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Full text of "Questões do dia; observações políticas e litterárias"

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QUESTÕES  DO  DIA; 


observações  polilieavS  e  litterárias 


escriptas  por  vários 


B 


ooordeuadas 


POR 


/     K 


TOMO  I      . 


mo  DE  JANEIRO 

TVP06RAPHIA  B  LITHOGRAPHIA  —  IMPARCIAL  — 
146  A   BUA  SBTB  DB  SBTB^$BO    146  A 


Advertência 


Compôe-se  este  volume  de  376  paginas,  em  15 
números  successivos.  Contôm  o  1°.  n\  7i  páginas^ 
e  comprehende  as  4  primeiras  cartas  de  Cincinnato. 
Cada  um  dos  restantes  19  números  tem  16  páginas» 


Várias  pessoas  coUaboram  n'esta  publicação  ;  cada 
uma  escolheu  um  pseudónymo.  Tendo-se  concordado 
em  plena  liberdade  de  redacção,  cada  signatário  só  é 
moralmente  responsável  pelo  que  subscreve. 


CARTAS  POLITICAS 


DIRIGIDAS 


PELO  ROCEIftO  CraCMNiTO  AO  CIDADÃO  FABRÍCIO. 


CARTA  1/ 

Amigo.— A  estas  matas  seculares,  a  este  deserto  em 
que  me  apago,  quasi  a  sós  com  a  natureza,  a  este  rp- 
manso  para  onde  ha  tantos  annos  fugi  desses  campos 
de  batalha,  em  que  se  digladiam  as  paixões  politicas 
6  sociaes ,  chega  de  ordinário  amortecido  o  écho  da^ 
lutas  com  que  ahi  se  recreiam  os  nossos  homens  pú- 
blicos. Se  não  fora,  portanto,  a  tua  bondade  de  me 
mandares  as-  publicações  que  ora  tenho  ante  mim, 
ignoraria  eu  que  as  mil  questões  graves  que  prendem 
com  o  futuro  do  Brasil  estão  ahi  sendo  substituídas 
por  discussões  sobre  logomachias.  Pelo  que  Tejo  a  de 
hoje  é  o  poi>ER  PESSOAL,  monstro  ingente  e  informe, 
Tisiphone  ou  Medusa  de  casta  nova. 

Estou  longe  dos  homens  e  das  cousas  publicas ;  mas 
sabes  que,  emquanto  pertenci  ao  mundo,  fui  libera- 
lissimo,  isto  é,  conservador;  e^pois  que  Deus  me  nSo 
deu  míoh)s  versáteis,  persisto  nas  minhas  idéas. 

Ao  contemplar  o  quadro  que  me  envias,  não  resisto 
a  bradar,  Gorregio  do  sertão,  AnchHo  l  e  peço  vénia 
para  te  submetter  atropelladamente  algumas  das  obser- 
vações que  tão  ingrato  assumpto  me  suggerc. 


—  4  — 


I. 


Theses  ha,  curtas  na  expressão,  mas  longas  no 
alcance,  que,  por  audazes,  costumam  ser  ajudadas  da 
fortuna :  moeda  falsa  que  circula,  lava  que  se  alastra. 

Essas  theses  aspiram  logo  a  fóros"de  axioma.  Já  foi 
dito  que  os  astuciosos  as  lançam  às  turbas ;  os  pre- 
guiçosos de  intelligencia  apoderão-se  delias,  por  lhes 
pouparem  o  trabalho  de  reflectir,  e  repetem-n'as,  para 
alardearem  comprehendôl-as.  E  todavia  representam 
essas  proposições  o  absurdo,  quando  são  analysadas; 
mesmo  assim  mil  bocas  as  reiteram,  e,  para  demonstrar 
aquelle  absurdo,  é  mister  contrarial-as  mil  vezes. 


It. 


E  nem  se  julgue  que  essas  theses  íicão  sempre  em 
tnnocenles  brincos  do  espírito,  em  gymnasticas  theo- 
ricas,  como  as  controvensias  das  escolas  rhetoricas  dos 
antigos.  Muitas  vezes  são  joio  semeado,  que  poderá  um 
dia  afogar  a  seara.  Cumpre  não  desprezal-as  :  são  o 
grão  de  areia  de  Pascal. 

Que  significa,  na  forma  de  governo  q/ie  nos  rege, 
pâr  a  these  poi>cr  pessoal  na  ordem  do  dia  da  imprensa, 
do  parlamento,  das  assembléas,  dos  clubs,  das  confe- 
rencias, dos  corrilhos  e  das  praças?!  Que  significa 
arrastar  a  coroa  para  o  campo  dos  debates"^  Injuriar 
a  pessoa  que  o  pacto  fundamental  qualifica  de  invio-^ 
lavei  e  sagrada  ?  Responsabílisar  a  quem  não  está  su- 
jeito a  responsal>ilidade  ?  Atacar  a  quem  não  pôde,  nem 
deve,  defender-se,  nem  tem  de  que  ? 

Será  uma  fácil  valentia,  se  lhe  não  achas  outro  nome ; 
será  um  pouco  invejável  laço  armado  a  uma  falsa  popu- 
laridade :  tudo  será,  menos  acto  reflectido  e  prudente. 
Estas  tentativas  (venham  d'onde' vierem)  sò  levam  a 
um  perigoso  desprestigio,  ou  á  mais  abominável  das 


-8- 

ochiocracias.  O  que  só  conseguen^  esses  arautos  da 
anarchia  é,  Encelados  sob  o  Etna,  estremecerem  e 
convaisarem  a  terra.  Tal  não  é  a  missão  dos  bem 
inteacionados. 

Talvez  baja,  entre  esses ,  alguns  dos  que  dizemos 
de  antes  quebrar  que  torcer ;  dos  que  não  reconhecem 
amigos  nem  inimigos ;  águias  que  se  affrontam  com  o 
próprio  sol  sem  pestanejar ;  orgulhos  que  se  ufanam 
com  o  antigo  motto  etiam  si  omnes^  ego  nonf  entes 
ideae^  em  summa,  como  o  justo  e  tenaz  phantasiado 
por  Horácio.  Como  não  devasso  o  foro  intimo,  res- 
peito-lhes  as  intenções. 


m. 


Lamento  mais  que  tudo  ver  arvorada  por  um  va- 
lente alferes  conservador,  n'uma  hora  de  allucinação, 
a  desgraçada  bandeira  anti-dynastica. 

Era  já  o  Sr.  conselheiro  José  de  Alencar,  que  ria 
sua  folha  Dezeseis  de  Julho  (de  Haio  e  Junho  de  1870) 
fizera  do  moii^  poder  pessoal  a  sua  Delenda  Carthago. 
Comquanto  os  artigos  dessa  folha  fossem  anonymos, 
pelo  dedo  se  conhecia  o  gigante.  S.  Ex.  mesmo  em 
lugar  bem  alto  e  publico^  os  perfilhou. 

Na  sessão  parlamentar  desse  mesmo  anno,  o  illustre 
orador  adoptou  o  mesmo  thcma  para  seus  raptos  objur- 
gatorios. 

Finalmente  agora  (de  21  a  31  de  Março)  ahi  voltou 
outra  vez  ás  mesmas  variações  no  Jornal  do  Com- 
niercio^  sob  o  titulo  de  Ultima  phase.  * 

Temos,  portanto,  uma  voz  autorizada,  repetindo  as 
duas  palavras  fatídicas,  aterradoras  como  as  do  festim 
de  Balthazar.  Autorizada,  sim.  Hontem  erão  essas  pa- 
lavras pelouros  frios,  tiros  imbelles,  porque  sabiam 
de  arraiaes  naturalmente  hostis,  e  dava-se  o  devido 
desconto  á  arguição,  arrojada  sem  sciencia  nem  con- 
sciência. Mas  quem  as  profere  hoje? 


OOESTOESDODIÂ: 


observações  polílicavS  e  litterárias 


eseriptas  por  vários 


B 


ooordeuadas 


POR 


•     / 


^*5<?.    /     ■-/     •' 


TOMOI  - 


mo  DE  JANEIRO 

TVP06RAPHIA  B  LITHOGRAPHIA  —  lUPARCIAL — 
146  A   BUA  SBTB  DB   SBTBàiSBO    146  A 


I 

—  8  — 


Não  tem  sentido  algum-,  se  se  lhe  tira  aquella  ccAnitira 
de  requisitos. 

Representa  um  grande  principio  constitucional^  se  se 
dá  áquelles  termos  a  devida  interpretação 


V. 


Despotismo  ne«ta  abençoada  terra  t  Mas  que  entendem 
os  publicistas  por  despotismo?  Será  elle  possivel,  onde 
não  é  lei  a  vontade  do  monarcha  ?  Onde  existem  e 
funccionam  os  poderes  independentes?  Onde  a  imprensa 
é  livre?  Onde  o  habitante  goza  de  todos  os  privilé- 
gios reconhecidos  á  humanidade  pela  celebre  declaração 
dos  direitos  do  homem  e  do  cidadão?  Onde  o  mo- 
narcha não  é  proprietário  do  seu  império,  mas  dele- 
gado delle?  Onde  a  autoridade  não  pôde  coarctar  a 
liberdade  aos  cidadãos?  Onde  os  tribunaes ^ não  são 
subordinados  aos  caprichos  do  poder? 

Não :  a  coroa  do  Brasil  não  è  o  chapéo  de  Gesslcr. 


VI. 


O  poder  pessoal  (se  isto  quer  áizer  poder  régio)  existe  ; 
quem  o  duvida?  Existe  em  toda  a  sua  força,  em  toda 
a  sua  plenituí^e,  pela  natureza  das  cousas,  pela  Índole 
do  governo,  pelo  espirito  das  instituições,  pela  letra 
da  constituição. 

E  pois  que  é  um  correligionário  quem  diverge,  ha 
feliaftente  um  terreno  neutro  em  que  não  discre- 
pamos. Eis  como  se  exprime  o  Sr.  Alencar  {Dezeseis 
de  Julho  n.^  113):^ 

t  A  escola  conservadora  adopta,  como  umanormapra^ 
tica^  a  distincção  feita  pela  constituição  entre  o  poder 
executivo  e  o  poder  moderador,  exduinio  os  actos  deste 
da  responsabilidade  ministerial. 

c  Dahi  resulta  que  o  gabinHe  não  intervém  nos  actos 
privativos  do  monarcha  t  E  continua,  dizemdo  que  a 


constituição  brasileira  confiou  á  corda^  daqueUa  forma ^ 

o  elemento   conservador,  constituindo-o  o  centro  dos 

potleres  políticos. 
Que  é^  isto.  Santo  Deus?  Pois  a  pesâoa  do  monarcha 

•;  centro  dos  poderes  politicos ;  pois  a  pessoa  do  monarcha 
individnul mente  exerce  actos  privativos  ;  pois  nestes 
acto^  da  pessoa  do  monarcha  nem  é  permittido  ao 
gabinete  intervir ;  c  ousais  aflirmar  que  é  illicilo  o 
poder  pessoal!  Appeilo  de  Phílippe  para  Philippe  ;  sois 
vòs  mesmo  que  vos  condemnais. 


VII. 


Nos  legeni  habemas.  Como  se  nâo  trata  de  direito 
constituendo,  é  a  constituição  do  linperio  a  nossa  biblia 
politica.  .    , 

E'  ella  quem  nos  ensina,  que  o  monarcha  iem  poder 
pessoal;  que  é  elle  o  chefe  supremo  ;que  a  elle  pri- 
vativamente cumpre  velar  incessantemente  oobre  a  ma- 
nutenção, equilibrio  e  harmonia  dos  mais  poderes  po- 
liticos. 

Como  pede  a  pessoa  do  soberano  exercer  essa  vigi- 
lância incessante  ordenada  pela  lei  das  leis,  sem  poder 
pessoal? 

Não  quero  discutir  supremacias;  mas  direi  que,  se- 
gundo a  constituição,  o  poder  io  monarcha  é  de  todos 
os  iHKleres  o  mais  amplo  c  variado.  Emquanto  cada 
um  dos  três  poderes  se  circumscreve  em  uma  dada 
orbita,  o  poder  privativo  do  imperante  penetra  nas 
orbitas   de  todos. 

E  não  tem  poder  pessoal  ? ! 

O  poder  legislativo  não  julga  nem  executa ;  o  exe- 
cutivo não  julga  nem  legisla;  o  judiciário  não  legisla 
nem  executa. 

E  qual    o  poder  pessoal  e  privativo  do  imperador? 

Ei-lo : 

Quanto  ao  moderador,  e^erce-o  plena  o  exclusiva- 
mente; 

2 


—  10  - 

« 

Quanto  ao  legislativo,  tntervem  na  promulgação  ou 
suspensão  da  lei,  na  convocação  extraordinária  da  ao- 
sembléa  geral,  na  prorogação,  adiamento  ou  dissolução 
da  camará  dos  deputados; 

Quanto  ao  executivo,  ô  o  rei  chefe  delle,  e  noméa  e 
demitte  livremente  os  ministros ; 

Quanto],  finalmente,  ao  judiciário,  o  rei  intervém 
suspendendo  os  magistrados,  nomeando-os  e  transfe- 
rindo-os,  concedendo  amnistias  e  moderando  as  penas 
aos  réos  condemnados  por  sentença. 

Não  serão  tudo  isso.poderes  0  máximos  pederes?  Não 
serão  ,tão  exercidos  pela  pessoa  do  soberano  que  até 
nelles,  segundo  a  linguagem  do  Sr.  Alencar,  não  é  dado 
aos  ministros  interferir?  E  quando  assim  o  decreta  o 
código  dos  nossos  deveres  e  direitos,  ha  cidadãos  que 
lhe  opponham  o  seu  veto,  de  uma  penada  annullando 
principies,  antes  axiomas  constitucionaes  ? 

Poder  pessoal  de  um  escriptor  qualquer  superposto  ao 
poder  pessoal  do  rei  I 

E  se  esta  é  a  doutrina  fundamental,  no  tocante  a  attri« 
buições,  não  só  foi  ella  consagrada  pelo  espirito  que  a 
dictou,  senão  também  pelas  mais  positivas  e  formaes 
disposições. 

Quando  a  constituição  estabeleceu  que  o  imperador 
se  considerasse  o  primeiro  representante  da  nação,  e  que 
velasse  por  que  fossem  sempre  uma  verdade  as  garan- 
tias que  ella  offerece,  não  lhe  conferiu  vastíssimo  poder 
pessoal ? 

Não  lh'o  conferiu,  quando  o  obrigou  a  prestar  jura- 
mento de  fazer  observar  a  constituição  e  as  leis,  epro- 
ver  ao  b&m  geral  ? 

Não  lh'o  conferiu,  quando,  submettido  por  ambas 
as  camarás  um  projecto  de  lei,  o  autorizou  a  negar-lhe 
consentimento,  ouvindo  em  resposta  louvores  do  inte- 
resse que  toma  pela  nação  ? 

E  é  esta  entidade  preponderante  e  suprema,  este 
Argos,  a  quem  a  lei  prohibe  o  dormir,  a  quem  ella 
assenta  no  posto  mais  eminente  para  servir  de  senti- 


- 11  - 

ncHa  de  todos  os  deveres  e  direitos,  este  poder  que 
íunde  em  si  attribuiçòes  de  todos  os  poderes,  ou  as 
exerce  privativamente  ;  o  homem-instihnção^  creado 
para  a  inspecção  summa  da  sociedade ;  é  este  magistrado 
supremo,  a  cuja  pessoa  se  pretende  negar  poder  ! 

Impõem-lhc  a  lei  e  o  'juramento  uma  permanente 
direcção  e  intervenção  (directa  ainda  quando  indirecta, 
seé  licita  a  phrase),  e  ha  quem  Ibe  denegue  os  meios 
de  cumprir  o  seu  dever  I 

Quer-se  inverter  Ioda  a  marcha  da  civilisação,  a  exi- 
gência de  tempos  illustrados,  substituindo  o  rei  intel- 
ligente^e  amigo  da  pátria  por  um  phantasma  de  soberano  I 
Quer-se  pôr  ao  vivo  era  scena  a  ironia  de  Boileau? 

Hélas!  qu'est  devenu  ce  temps,cet  heureuxtemps,* 
Ou  les  róis  s'honoraient  du  nom  de  fainéánts  I 

A  aspiração  será  explicável  para  quem  se  sentir  com 
forças  de  se  arvorar  cm  maire  du  poiais^  suppondo  en- 
contrar ante  si  massas  de  Dagobertos. 

Não  e  não.  Em  presença  da  forma  de  governo  c  da 
constituição  que  nos  rege,  se  á  nação  compete  a  omni- 
potência, ao  imperador  é  delegado  amplissimo  poder 
pessoal. 


VIII 


E  porque  o  debate  naquelle  terreno  já  se  vô  que  le- 
varia a  duvidar  da  luz  meridiana,  fica-me  uma  hesitação. 
Dar-se-ha  que  sereduza  aannullaçãodo  poder  régio  aos 
actos  que  só  prendem  çom  a  direcção  do  poder  exe- 
cutivo? 

O  absurdo  c  inconstitucionalidade  da  accusação  não 
seria  menor.  Mas,  se  essaé  a  interpretação  do  horrendo 
poder  pessoal^  aceite-se  a  discussão,  mesmo  nessas  aca- 
nhadas proporções. 

Vamos  ver  se  resumimos  o  cerebrino  pensamento  :    • 

€  Concedemos   que  o  imp(M'ante  possa  por  si,  e  sem 


—  14  — 

€  Por  mim  sei  que  nunca  S.  M.  o  Imperador  me 
coagiu  a  acto  algum,  porque  nem  eu  me  sujeitara, 
nem  Sua  Magestade  m'o  impuzera.  Desta  minha  certeza 
dá  prova  o  facto  de  ter  eu  strvido  anno  e  meio  como 
ministro,  pois  não  serviria  24  horas,  se  me  sentisse 
annullado  e  desairado.  Dào  igual  prova  as  declarações, 
por  mim  feitas  na  camará  dos  deputados,  em  4  e  i8 
de  Junho  de  1870,  patenteando.que  não  deixei  a  pasta 
da  justiça  por  falta  de  confiança  da  coroa  ou  na  coroa, 
mas  sim  por  ter  o  gabinete  a  que  eu  pertencia  apoiado 
a  divergência  de  um  collega  meu;  e  acrescentei':  t  Esta 
^éaunicae verdadeira  causa.  »  Dão  igual  prova  outras 
phrases  minhas,  quando  na  camará  tratei  da  minha 
candidatura  senatorial,  e  di^se:  c  Entendi  que  minha 
t  posição  de  ministro  me  impunha  o  dever  de  commu- 
t  nicar  a  minha  resolução  à  coroa,  porque  esta  reso- 
t  lução  podia  modificar  a  confiança  do  poder  irrespon- 
c  sável,  confiança  sem  a  qual  eu  não  cámpreliendo  a  per- 
«  manencia  do  ministro.  »  Ora,  se  esta  linguagem  é  pos- 
terior á  minha  estada  no  poder ;  se  eu  tão  explicita- 
mente declarei  que  conservara  até  ao  fim  a  confiança  da 
coroa  ;  se  funccionei  sempre,  com  a  liberdade  própria 
do  meu  caracter  e  da  minha  posição ;  se  não  foi  attrito 
algum  com  a  chefe  supremo  que  motiVou  a  minha  sa- 
hida  ;  é  obvio  que  nunca  para  commigo  foi  indebita- 
mente  exercida  coacção  de  espécie  alguma ;  antes  me 
foi  sempre  deixado  o  pleno  uso  das  faculdades,  peio  qual 
me  cabia  responsabilidade.» 

Iguaes,  creio  eu,  s.eriam  os  depoimentos  dos  149  res- 
tantes ex-ministros.  Não  são  manequins  de  cortiça, 
boiando  á  lona  do  poder,  acariciados  e  cobertos  de  Icn- 
tejoulas;  são  os  caracteres  da  tempera  do  Sr.  conse- 
lheiro Alencar,  os  cidadãos  fortes  e  independentes,  que 
entoam  coro,  em  que  não  destoa  uma  voz  única. 

Só  n'um  accesso  epheraero  de  despeito  ou  ira   se. 
podia  calumniar  a  nação  nas  pessoas  de  suas  primeiras 
illustrações.  «  Poder  pessoal  é  subserviência,  e  o  Sr. 
visconde  de  S.    Vicente  era  a  encarnação  do  poder 
pessoal!  O  seu    desejo  de   aproveitar    para  a    pátria 


—  15  — 

OS  lalenlos  (isto  è,  de  cumprir  a  constituição)  é  tra- 
balhar na  obra  nefasta  do  aniquilamento  dos  par- 
tidos I...  i  Escondamos  o  sudário. 

Aquella  primeira  interpretação  da  palavra  intervenção^ 
como  variante  de  reprehensivel  poder  régio,  está  fora 
de  causa.  Progridamos. 


X. 


Venhamos  á  segunda ;  a  essa^  que  eu  digo  ser  licita 
e  honrosa,  obrigatória,  veneranda ;  a  esse  poder  pessoal, 
que  eu  proclamo  benéfico;  a  esse,  cuja  interrupção 
por 24  horas  fazia  a  um  Tito  exclamar :  Hodie  diemperdidi. 

Esse  poder  pessoal^  q\ie  eu  dentro  dos  limites  approvo 
e  louvo  para  os  actos  do  poder  executivo  como  para 
todos  os  mais,  é  poder  decretado  pela  constituição  e 
aconselhado  pelos  principios.  E,  visto  existir  lei  escripta, 
antes  de  tudo  regjilemo-nos  por  ella. 

Que  prescreve  a  constituição  ao  Imperador?— Que  es- 
teja permanentemente  vigilante  em* fazê^-a  observar; 
em  prover  ao  benl  geral ;  em  manter  a  harmonia  dos  po- 
deres ;  em  representar  a  nação. — Não  ha  nesses  preceitos 
excepções  nem  restricções ;  não  ha  mais  nem  menos : 
abrangem  todos  os  negócios  públicos,  qualquer  que 
seja  a  orbita  a  que  eiles  pertençam. 

Deste  altíssimo  jus  de  vigilância  será  acaso  exceptuado 
o  poder  executivo?  ficará  o  Imperador  excluído  desse, 
o  mais  activo,  militante  e  permanente  de  todos  os 
poderes  ?De  modo  nenhum.  Salva  uma  única  restricção, 
tem  todo  o  direito,  como  tem  toda  a  obrigação  de 
estudar  os  actos  submettidos  á  sua  referenda. 

A  restricção  a  que  alludo  é  a  seguinte: 

Sendo  certo  que  a  responsabilidade  do  acto  projec- 
tado recahe  sobre  o  ministro,  que  succede?  Se  o  Impe- 
rador o  julga  acertado,  subscreve-o ;  se  o  desapprova, 
ao  passo  que  o  ministro  persevera  na  sua  opinião, 
fica  ao  monarcha  a  opção  entre  ceder  neste  ponto^ 
ou   demíttir  o  dissidente. 


— 16  —     . 

Em  tudo  mais,  o  Imperador  póJe,  deve  estudar  os 
negocies  que  correm  pelo  executivo,  com  tanto  que 
por  ultimo  respeite  a  responsabilidade  alheia.  Como!' 
Pois  ignora-se  acaso  que  o  Imperador  forma  parte 
integrante  do  poder  executivo?!  Tanto  forma,  que  o 
art.  102  o  denomina  chefe  do  poder  executivo^  é  curioso 
seria  que  a  cabeça  de  lim  corpo  fosse  parte  estranha 
a  esse  coi*po.  Pois  a  lei  que  créa  um  membro  e  chefe 
do  poder,  que  encargos  lhe  impõe,  se  se  quer  entender 
que  esse  chefe  e  membro  seja  mudo !  E  que  constituição 
seria  esta,  que,  reconhecendo  ao  iníimo  cidadão  jus  de 
communicar  seus  pensamentos,  igual  jus  recusasse  a 
quem  occupa  o  pináculo  do  edifício  social ;  a  quem  só 
o  emprega  em  zeloso  desempenho  de  seu  oíTicio  de 
Rei? 

Nem  se  diga  que  a  constituição  só  confere  ao  Impe- 
rador a  nomeação  e  demissão  dos  ministros,  mas  que 
emquanto  estes  funccionam  se  suspende  toda  a  interfe- 
rência magestatica.  Nomeação  e  demissão  são  attribui- 
ções  do  Moderador;  o  exercido  do  executivo,  isto  é, 
a  eífectividade  das  suas  resoluções,  pertenceaosministros; 
mas  o  trabalho  prévio  da  elaboração,  do  estudo,  compete 
ao  Imperador  com  os  seus  ministros,  à  cabeça  com 
o  corpo;  e  do  mesmo  modo  que,  n'um  governo  soli- 
dário ,  è  acto  de  todos  os  ministros ,  embora  não 
signatários,  o  acto  do  ministro  que  o  praticou,  assim 
pôde  o  chefe  do  executivo  temar  parte  nas  deliberações, 
deixada  por  elle  a  responsabilidade  a  quem  de  direito 
couber.  Até  jrei  mais  longe,  observando  que^ficçãoeu 
verdade)  a  constituição  proclama  o  Imperador  como 
não  sendo  só  o  chefe,  mas  personificando  o  próprio 
poder  executivo,  visto  declarar  que  é  o  Imperador  quem 
pdos  seus  ministros  o  exercita. 

Gonseguintemente,  opoder  pessoal^  'considerado  como 
direito  imperial  de  exprimir  opinião  sobre  todos  os 
assumptos  da  administração,  e  de  tomar  parte  nos 
trabalhos  do  poder  executivo,  é  formalmente  estabe- 
lecido, recommendado^  prescripto  pela  constituição 
do  Império. 


-  17  — 


XL 


Assim  o  prescreve  a  lei  escripta,  assim  o  devia  m* 
limar.  Os  actuaes  monarchasjã  não  administram  jus* 
liça  i  sombra  de  um  carvalho ;  mas  em  tão  complicadas 
sociedades  como  as  actuaes,  cabe-lhes  muito  mais  larga 
esphera. 

Nem  se  imagine  que,  no  tumultuoso  século  em  que 
vivemos,  haja  para  os  reis  encanto  na  arbitrariedade  ; 
poder  arbitrário  è  contra  a  indole  e  a  natureza  do 
régio  poder ;  o  que  pôde  namorar  um  cidadão,  não 
seduz  um  soberano ;  o  imperante  fica»  o  seu  escolhido 
passa  ;  rei  não  é  mtaistro. 

Colloque-se  ao  leme  um  rei  illustrado  e  justo, 
e  a  náo  do  Estado  vogará  sempre  com  ventos  galernos. 
Ora,  a  justiça^  qualidade  mais  rara  do  que  parece,  é 
dever  de  todo  homem^  do  inflmo  como  do  máximo; 
e,  para  o  exigirmos  dos  outros,  importa  que  interro- 
guemos a  nosso  respeito  a  própria  consciência.  A  justiça 
(diz  J.  Simon)  é  inexorável:  o  que  elia  impuzer^ 
satisfaça-se  incontinente  e  lealmente,  sem  hypocrisia 
nem  pensamento  reservado,  por  ser  justo,  e  não  por 
ser  lucrativo  ou  glorioso.  Cale-se  o  coração  quando 
desharmonisar  da  justiça.  Ao  dever  nunca  se  falta. 

Sejamos  Jiistos,  que  vale  tanto  como:  sejamos  po- 
iiticos.  Não  apedrejemos  o  sol  que  alumia.  Não  inju- 
riemos quem  no  throno  foi  collocado,  não  por  cálculos 
das  suas  commodidades,  mas  por  conveniências  do  nosso 
interesse.  Não  desgostemos  da  sua  dedicação  a  quem 
ha  perto  de  meio  século  nlo  tem  ferias.  Não  conver- 
tamos merecimentos  em  defeitos;  não  imputemos  a 
ruins  imp|)sos  actos  muitas  vezes  nobilíssimos;  não 
demos  por  synonimos  ingratidão  e  independeria. 

A  Benjamin  Gonstant  devemos,  em  parte,  o  que  ha 
de  peculiar'  no  jogo  das  nossas  instituições,  e  nomea* 
damente  no  que  respeita  ao  poder  neutro,  interme- 
diário entre  os  poderes  activos.  E'  o  melhor  expositor 

da  nossa  instituição  de  realeza  constitucional.  OaçTimol-o: 
3 


—  18  — 

f  OíTcrece-nos  a  monarchia  constitucional  um  poder 
neutro,  indispensável  á  liberdade  regular.  O  rei,  era 
terra  livre,  é  um  ente  á  parte  ;  sobranceiro  á  variedade 
das  opiniões ;  com  a  mira  n'um  só  alvo— a  maiiu- 
tengifo  da  ordem  e  da  liberdade ;  estranho  á  condição 
commum  ;  inaccessivel  por  isso  ás  paixões  procedentes 
dessa  condição.  A  augusta  prerogativa  da  realeza  dá 
ao  espirito  do  monarcha  uma  tranquillidade  de  que  as 
posições  inferiores  não  participão.  Eleva  o  homem  por 
sobre  as  humanas  agitações;  e  a  obra  prima  da  orga- 
nização politica  foi  ter  creado  assim,  no  próprio  seio 
dos  dissentimentos,  sem  os  quaes  nenhuma  liberdade 
existe,  uma  inviolável  esphera  de  segurança,  de  ma- 
gentade,  do  imparcialidade,  que  pacificamente  permitte 
àquellas  divergências  desenvolvcrem-se  (emquanto  não 
ultrapassam  certas  raias),  e  que,  apenas  sôa  a  hora  do 
perigo,  lhos  põe  termo  por  meios  legaes,  constitucio- 
nacs,  e  sem  arbitrariedade.  » 

Disséreis  que,  ao  traçar  este  quadro,  fitava  o  grande 
publicista  olhos  no  Brasil,  que  não  tem  certamente 
razão  de  queixar-se  das  suas  instituições,  e  do  modo 
como  ellas  funccionam. 

Cabe-nos  a  fortuna  de  podermos  aprender  com  as 
alheias  grandezas  e  felicidades,  com  os  alheios  desastres 
e  humilhações.  Temos  visto  nascer,  vegetar  e  mor- 
rer doutrinas  e  seitas ;  variadas  turmas  têm  seguido 
caudilhos  de  san-simonianismo,  socialismo,  commn- 
nismo,  e  quantas  extravagantes  concepções  tém  aspi- 
rado a  pautar  a  sociedade  por  um  quadro  imaginário 
impossível.  Às  más  doutrinas  não  tém  achado  écho 
nestas  regiões.  O  Império  é  um  irmão  gémeo  da  cons- 
tituição ;  esta  tem  creado  e  acompan  hado  a  nossa  ci- 
vilisação  e  a  nossa  politica;  não  nol-as  adulterem. 

Na  nossa  monarchia  constitucional,  o  soberano  não  é 
um  Deus,  não  é  uma  omnipotência,  mas  é  um  altíssimo 
poder,»um  poder  exercido  pessoalmente^  poder  com  facul- 
dades superiores  não  aos  outros  poderes^  mas  sim  ao» 
elementos  que  os  constituem, 

E  se  não,   veja-se   a  organização  da  Inglaterra,  do 


—  19  — 

paiz  (]^onde  o  systema  representativo  foi  para  os  outros 
transplantado. 

Ahi  o  monarcha  é  superior  aos  elementos  que  cons- 
tituem : 

O  poder  executivo^  quando  nomeia  e  demitte  livre- 
mente os  ministros. 

O  parlamento^  quando  profere  o  veto. 

A  catnara^  hereditária,  quando  noméa  novos  ^ares. 

A  camará  ekctiva,  quando  dissolve  a  assembléa  dos 
deputados. 

O  poder  judicial^  quando  amnistia^  commuta  ou  perdoa. 

E'  ama  entidade  que  instiiicto  o  reflexão,  mais  ainda 
que  a  educação  politica ,  ensinam  a  acatar,  a  rodear 
de  certa  aureola  de  veneVação,  sem  que  nisso  entre 
sombra  de  baixeza,  servilismo  ou  indignidade,  gratuitos 
insultos  que,  á  falta  de  razões,  costumam  os  illumi** 
nadissimos  prodigalisar  aos  que  não  recusam  respeito  ás 
cousas  que  tém  como  respeitáveis. 

O  código  criminal  permitte,  em  termos  babeis^  cen- 
sura dos  actos  do  governo  e  da  administração;  não 
prevô  a  censura  dos  actos  pessoaes  do  soberano,  porque 
mais  alto  código  o  proclama  inviolável,  sagrado,  irres- 
ponsável. Como  se  ousa,  pois,  estar  sempre  dando  para 
ordem  do  dia  o  que  nem  é  tolerável  apontar  de  fugida? ! 


XII. 


E  por  Deos,  que  exigem  da  pessoa  que  empunba  o 
sceptro  brasileiro?  formulem  as  suas  instrucções:  que 
lhe  querem?  Por  que  bússola  Ifc  de  dirigir-sc  que  não 
seja  a  constituição  e  a  sua  razão? 

Que  outros  pharóes  tem  elle  que  o  orientem? 

A  opinião  ? 

Sejamos  francos.  Opinião,  merecedora  do  nome  de 
publica,  é  planta  que  está  entre  nós  por  acclimar.  Este 
immenso  território  mal  povoado  ainda  não  ofiercce 
as  condições  de  paizes  populosos,  mais  antigos,  maii> 
adiantados,  mais  estudiosos  dos  interesses  públicos. 


—  20  — 

I 


A  imprensa  periódica  não  polilica  é  um  conruso 
deposito  de  opiniões  indivíduaes  e  contradiçtorias.  A 
imprensa  politica,  rara  e  sustentada  laboriosamente, 
mereceria  que  os  partidos  e  o  paiz  lhe  dessem  mais  im- 
portância do  que  lhe  dão ;  e  confessemos  que,  por  em- 
quanto,  mais  é  a  opinião  éco  da  imprensa,  que  a  im- 
prensa écHo  da  opinião.  Os  homens  eminentesem  sciencia 
pouco  se  appHcam  a  tratar,  em  obras  especiaes,  os 
grandes  problemas  de  governo.  A  importante  classe 
agrícola  compõe-se  de  indivíduos,  que  se  concentram 
nos  seus  trabalhos  ruraes.  A  classe  mercantil  absorve-so 
no  immenso  desenvolvimento  pratico  dos  seus  ne- 
,  gocios,  não  curando  das  questões  que  não  tocam  na  sua 
especialidade.  A  classe  militar  cumpre  bem  os  seus 
deveres,  mas  não  opina,  nem  fôra  próprio  que  opinasse; 
e  assim  as  mais. 

Oago  que  augustos  lábios  soltaram  a  formosa  phrase: 
f  O  que  eu  íne  considero  é  chanceller  da  opinião.  > 
Pôde  isto  levelar  nobilissima  disposição;  mas  nada 
msiis:  opinião  é  por  ora  uma  chimera  no  tocante  a 
alterações  no  systema  do  nosso  governo.  Por  mais  que 
o  soberano  applique  o  ouvido,  não  percebe  som  algum 
distincto.  Tem,  pois,  que  se  guiar  pelos  seus  con- 
selheiros naturaes  e  pelos  dictames  da  própria  razão. 


XIII. 


Temos  atè  aqui  faUado  vagamente  da  entidade  im- 
perador, sem  DOS  referirmos  emi  particular  a  quem 
actualmente  preenchera  suprema  magistratura.  Fallar 
de  quem  impera  é  navegar  por  entre  os  parceis  das 
supposições.  Oue  importa?  A  verdade,  por  se  tratar 
*  de  um  príncipe,  será  força  escondel-a  ?  Chegaríamos  a 
tempo  em  que  um  sólio  não  sirva  para  matis  que 
pelourinho  ? 

Receia-se  o  jpoderpessoai  exercido  pelo  Sr .  D.  Pedro  II T 
Para '  quem  é  deste  tempo  e  desta  terra,  o  dito  já  vem 
por  si  mesmo  refutado. 


—  21  — 

Quem  é  unirersaimente  coaLecido  por  uma  vida 
inteira  de  abnegação,  ia,  após  40  annos  de  glorioso 
reinado,  exorbitar  dos  seus  poderes !  Para  que  ?  Para 
elevação  ?  Não  pôde  subir  mais  alto ;  e  longe  de  subir^ 
desceria.  Para  consideração  7  Taes  meios  lh'a  não 
dariam.  Para  enriquecimento?  Não  ba  quem  mais  des- 
preze as  opulências,  qli^m  mais  as  tenha  rejeitado, 
quem  mais  haja  consagrado  seus  parcos  meios  a  con- 
veniencia»  alheias.  Para  popularidade?  Não  precisa 
acrescentaNa  quem  tamanha  e  por  tantos  titulos 
a  conquistou  ;  e  isto  antes  lh'a  diminuiria.  Para 
absolutismo  ?  Não  ha  maior  inimigo  do  arbitrário,  nem 
quem  neste  Império  tome  tanto  ao  serio  a  constituição 
que  jurou. 

Se  não  pôde,  pois,   imputar-se  ao  actual  soberano 
pensamento  reservado  e  calculo  pessoal,  a ttrvbuam-se* 
os  muito  legitimes  actos  que  pratica  ao  modo  como 
concebe  o  desempenho  dos  seus  deveres,   que  são 
diversos  dos  de  todos  os  outros  cidadãos. 

Tudo  se  lhe  move  em  torno :  só  elle  fica ;  só  nelle 
se  encarnam  e  perpetuam  as  tradições,  a  successão  dos 
negócios.  Senado  f  Não  tem  já  um  membro,.designado 
pelo  Sr.  D.  Pedro  I,  nem  pela  primeira  regência  do 
acto  addicional ;  são  todos  escolhidos  pelo  Sr.  D.  Pedro  II, 
e  entre  esses  já,  dos  antigos,  raros  restão.  Depntadêst 
Renovam -se  constantemente.  Ministros^  Um  por  anno, 
desde  a  maioridade,  em  cada  repartição.  Se,  pois,  tudo 
desapparece,  e  só  o  sober^jio  occupa  permanentemente 
o  seu  lugar  ao  leme  do  Estado ,  é  elle  incontesta- 
velmente a  pessoa  mais  idónea  para,  nas  cousas  pu- 
blicas, aconselhar,  ou  guiar,  ou*interferir,  ou  mandar, 
segundo  a  co-relação  entre  as  suas  attribuiçOes  e  os 
casos  supervenientes. 

Niní^oem  lhe  nega,  creio  eu,  amor  de  pátria,  ins- 
trucção  rara  ,  esclarecido  espirito ,  desinteresse ,  ex- 
periência, conhecimento  dos  homens  e  das  cousas,  mag- 
nanimidade, tudo  sobredourado  de  summa  rectidão. 
Que  receio  pôde  então  inspirar  quem,  dotado  destas 
qualidades  e  do  grande  amor  ao  trabalho,  mostfa  que 


—  22  — 

não  quer  ficar  ocioso,  antes  sente  satisfação  em  dar 
ao  serviço  publico  todas  as  horas  que  a  alta  cultura 
do  seu  espirito  lhe  poderia  estar  ambicionando  para 
mais  attractivas  occupações  ?  Preferir-se-hia  acaso  que 
o  natural  centro  de  todos  os  poderes  se  mostrasse  in* 
diíTerente  e  estranho  a  quanto  o  circumdasse?  Que 
o  piloto  adestrado  ficasse  impassível  em  presença  de 
todas  as  manobras?  E,  finalmente,  que  aquelle  que 
pôde  até  demittir,  se  lhe  desprazem  os  actos  do  seu 
ministro,  fique  inhibido  de  lhe  apresentar  sequer  a 
sua  opinião  acerca  dos  mesmos  actos? 

Ainda  que  não  fosse  um  dever  e  um  direito  do  cargo, 
6  poder  pessoal  seria  uma  conveniência,  quanUo  exer- 
cido por  tão  recto  e  illustrado  animo.  £'  esta  uma 
geral  convicção,  e  do  coro  unisono  nem  sempre  dis- 
crepa a  voz  do  Sr.  conselheiro  Alencar.  E,  como  o 
seu  elegante  estylo  dá  outra  qualidade  de  relevo  ao 
pensamento,  aqui  transcrevo  uma  significativa  phrase 
do  discurso  proferido  por  S.  £x.  em  14  de  Maio  ultimo, 
phrase  allusiva  ao  Sr.  D.  Pedro  H,  e  em  que  a  justiça 
aposta  primazias  com  a  elegância : 

c  Asattribuições  magestaticas  estão  personificadas  em 
uma  individualidade  ;  esta  individualidade  é  susceptível 
de  convicções,  e  de  convicções  profundas ;  pôde  ser 
inspirada  nestas  convicções  pelo  desejo  de  bem  servir 
ao  paiz.  • 

E*  o  mesmo  Sr.  Alencar,  que  no  seu  segundo  artigo, 
no  Jonial  doCommercio^  declara  enunciar  uma  convicção 
gue  i  sua  e  de  todos  os  que  têm  dirigido  o  paiz.  Pal- 
iando, de  todos  esses  e  do  si  mesmo,  diz  que  sempre 
têm  tido  c  os  ministros  a  consciência  das  puras  intenções 
do  Imperador  e  do  seu  iticontestavel  patriotismo,  » 

Deve  exultar  com  o  exercício  do  poder  pessoal  quem 
assim  o  vé  depositado  em  mente  pura  e  mãos  incun- 
testavelmente  patrióticas. 

Basta.  Se  o  poder  pessoal  é  legitimo  exercido  por 
qualquer  imperante,  exercido  pelo  actual  é  benéfico» 
louvável  e  livre  de  toda  a  espécie  de  risco. 


-23  - 


XIV. 


E,  antes  de  sahir  desta  matéria,  occorre-nos  uma 
curiosa  reflexão  sobre  o  modo  como  o  Sr.  D.  Pedro  tem 
praticamente  exercido  o  poder  pessoal ,  que  as  ins- 
tituições lhe  conferem. 

Algum  proveito  se  ha  de  tirar  do  ser  velho:  é  ter 
archivadas  muitas  recordações  ;  e  essas  invoco  eu  agora. 

Não  ha  nada  mais  pessoal,  individual,  privativo, 
exclusivo  do  monarcha,  do  (}ue  é  o  direito,  que  ninguém 
lhe  contesta,  de  demittir  livremente  os  ministros. 
Ninguém  ?  engano-me  ;  parece  haver  alguém  que  lh'o 
não  concede  :  é  elle  próprio ! 

Disse  eu  que,  desde  a  maioridade,  tem  quasi  havido 
annualmente  um  ministro  por  cada  repartição ;  disse 
que  orçavam  por  150  os  ministros,  o  que  representa 
nma  inflnidade  de  ministérios.  Pois  bem ;  nessa  in- 
fíniJade  não  vejo  senão  três,  cuja  sabida  proviesse  de 
repulsas  do  Imperador.  Todos  tem  dado,  no  parlamento 
ou  na  imprensa,  e  na  occasião  opportuna ,  as  razões 
da  sua  retirada,  a  qual. tem  constantemente  provindo 
das  indicações  parlamentares  ou  politicas,  de  dissi- 
dências entre  os  collegas,  de  moléstias  ou  de  outras 
causas ;  nunca  de  atlritos  com  a  coroa. 

Já  se  vê  que  em  taes  casos  o  soberano  foi  passivo, 
c  não  usou  da  sua  faculdade  magestatica.  Um  tanto 
mais  activo  foi  nos  trcs  casos  únicos  de  que  fallo,  mas 
cm  todos  esses  appareco  o  acto  honrosissimamente 
explicado. 

Na  sua  extrema  mocidade  reagiu  contra  um  gabinete 
enérgico,  mas  que  exigia  tenazmente  para  com  um  alto 
servidor  uma  demonstração,  não  motivada  por  conve- 
niências de  serviço,  e  sim  por  considerações  alheias  a 
elle.  Não  era  ainda  a  experiência,  mas  era  já  o  instincto 
da  justiça,  que  o  fez  insistir  naabstenção,  e  o  gabinete 
díssolveu-se. 

AlCTns  annos  depois,  certas  demasias  de  turbulentos, 
cm  dias  de  eleições  na  capital  do  Império,  que  deviam 


-24  — 

correr  paciGcas»  patentearam  que  os  ministros  eram,  por 
sua  pouca  acção,  accusados  de  negngencia,  fraqueza  e 
até  complicidade ;  e,  comquanto  não  houvesse  motivo 
para  tantas  accusaç(5es,  não  era  menos  desmoralisada  a 
situação,  e  entendeu  Soa  Jfagestade  dever  escolher 
ministério  mais  forte  na  opinião. 

Finalmente,  em  um  caso  próximo,  tendo  sido  tentada 
a  invasão  da  sua,  mais  que  nenhuma,  privativa  attri* 
buição  da  escolha  de  um  senador,  e  não  sendo  conven- 
cido da  inconveniência  da  que  fizera,  aceitou  a  resig- 
nação com  que  fora  ameaçado, 

Eis-ahi,  entre  tantos  ministérios,  as  três  únicas 
espécies  de  meio-conflicto,  terminadas  pela  demissão 
'dos  gabinetes ;  e  em  todos  esses  três  casos  actuando  no 
animo  do  soberano  um  motivo  de  alto  interesse  publico. 

Quem  nessa  attribuição  fundamental,  e  incontesta- 
velmente própria,  renuncia  a  empregar  o  seu  poder 
pessoal,  mostra  que  nunca  delle  usou  nem  usará,  nas 
attribuições  secundarias,  senão  parcamente,  constitu- 
cionalmente, e  em  harmonia  com  o  interesse  nacional. 


XV^ 


O  Sr.  conselheiro  Alencar,  attribuindo  ao  poder 
pessoal,  a  que  elle  denomina  esterilidade  dos  partidos, 
quando  ^bem  ao  governo  do  Estado,  exprime-se  desta 
arte: 

c  Que  temos  nós  adiantado,  a  respeito  dos  melhora- 
mentos moraes  e  materiaes  do  Império  7  d 

Não  duvido  de  que  a  intenção  da  resposta  a  esta 
pergunta  seja  bomba  de  ricochete.  Por  ser  o  imperante 
parte  muito  activa  e  essencial  no  governo  da  repu- 
blica, pretende-se-lhe  attribuir  especialmente  o  dezar 
proveniente  dessa  esterilidade.  Nesta  ordem  ds  idéas^ 
obvio  fica  igualmente  que  será  para  a  gloria  do  mesmo 
imperante,  se  a  interrogação  tiver  solução  contraria  á 
que  ingrata  e  injustamente  se  supp^e. 


—  25-- 

Pois  bem.  A  resposta,  eil-a  aqui:  durante  o  reinado 
do  Sr.  D.  Pedro  It  tem-se  o  Brasil  transformado  com* 
pletamente  e  adiantado,  com  progresso  notável,  nesses 
mesmos  melhoramentos  moraes  e  materiaes. 

Uma  nacionalidade  nascente  radicou-se  e  fortificou-se. 

Um  paiz  pouco  considerado  dos  estrangeiros,  e  cer« 
cado  de  mil  republiquetas,  firmou  a  sua  monarcbia  e  é 
acatado  como  a  segunda  nação  (e  nem  em  tudo  segunda) 
de  ambas  as  Américas. 

A  esphcra  armilar,  divisa  quasi  desconhecida  do  ocea« 
no,  com  eile  travou  largo  conhecimentoe  dos  portosonde 
não  havia  um  vaso  de  guerra  sahiu  possante  armada. 

Todas  as  nações  do  mundo  tém  cultivado  com  o  Brasil 
as  mais  constantes  e  cordiaes  relaçScsf.* 

Uma  delias,  que  ousou  recentemente  provocar  o  Im- 
pério, sentiu  a  finar oseíTei tos  de  sua  imprudência, 
e  acrescentou  na  fronte  do  Brasil  novos  loiros  mar^ 
ciaes,  aos  que  duas  outras  republicas,  hoje  amigas,  já 
lhe  haviam  ennastrado. 

A  riqueza  do  paiz  cresceu  por  tal  forma  que,  ao  sahir 
de  cinco  annosdc  dispendiosíssima  guerra^,  a  fazenda  se 
ostenta  florescente ;  e  tão  vigorosa  é  a  seiva  productora 
da  riqueza  nacional,  que  as  rendas  publicas  foram  sempre 
subindo  progressiva  e  annualmente,  durante  essa 
guerra,  e  a  despeito  delia. 

As  constantes  revoltas  que,  no  principio. do  reinado, 
ensanguentaram  successi vãmente  numerosas  províncias, 
foram  substituídas  por  paz  octaviana. 

A  instituição  da  escravatura  levou  golpe  mortal  com 
a  extincção  do  ^raQco  de  Africanos,  e  tem  seus  dias 
contados. 

Umaredede  vias  férreas  liga  numerosas  regiões  em 
muitas  provindas  do  Imjperío. 

Importantíssima  navegação  a  vapor  sulca  os  mares  de 
to<Ias  as  costas,  e  os  rios  de  muitas  regiões. 

Tclegraphos  eléctricos  unem  entre  si  muitas  locali- 
dades. 

AI»riram-sQ  a  todas  as  bandeiras  o  Páraguay,  Paraná, 

Uruguay  e  Amazonas. 
4 


—  26  — 

Em  muitas  províncias,  solo  outr'ora  deserto  está 
rasgado  de  boas  estradas,  algumas  das  quaes  podem 
ser  apontadas  como  exemplares. 

As  principacs  cidades  são  illuminadas  a  gaz. 

Promoveu-so  a  instrucção. 

Promulgaram-se  códigos  e  simpliflcou-sc  a  legislação. 

A  população  do  Império  duplicou.  Neste  reinado 
quintuplicou  a  importação,  e  a  exportação  sextuplicou. 

Os  rendimentos  públicos,  com  suavidade  de  impostos, 
sextupl  içaram, 

Grearam-se  ou  reorganizaram-se  institutos,  academias, 
faculdades  de  direito  e  medicina,  escolas  militares, 
observatórios,  roUegios  de  letras,  lyceus,  bibliothecas, 
thealros,  conservatório,  institutos  aí^ricolas,  archivos, 
sociedades,  bancos,  estabelecimentos  de  caridade,  hos- 
pitaes  geraes  e  de  alienados,  hospícios  de  surdos  mudos 
e  de  cegos,  prisões  e  casas  penitenciarias,  cemitérios, 
asylos  de  inválidos  da  pátria  o  de  inválidos  da  ma- 
rinha, lazaretos,  casas  da  moeda,  diques,  passeios, 
obras  de  salubrisação,  esgotos  e  limpeza  das  cidades, 
systemas  de  viação  aperfeiçoados. 

Longe  iria  esta  resenha  se  nella  me  quizesse  de- 
morar. Não  é  matéria  que  de  fugida  se  percorra.  K 
se  deste  esplendido  quadro  resulta  gloria  para  S.  M. 
Imperial,  o  thuribulario  è  o  Sr.  conselheiro  Alencar, 
que  deduz  os  factos  moraes  e  matcriaes  do  paiz  do 
poder  pessoal  do  imperador. 

XVI. 

Disse  eu  que  o  Sr.  Alencar,  denunciando  o  abomi- 
nável abuso  do  podíT  p^ssoaí,  não  dera  a  mínima  prova 
da  aíTinnaliva,  não  allegára  um  único  facto.  Eis-mo 
coberto  de  sacco  e  cinza ;  errei ;  S.  Ex.  deu  valentes 
provas,  allegou  factos  tremendos  I  E,  pois  ahi  fica  feita 
a  confissão,  permitte-me  tu  agora  perguntar-te  se  são 
exactas  as  versões  que  por  este  sertão  correram  acerca 
de  dous  acontecimentos. 


—  27  — 

PRiMEiao.  Retrocedamos  aos  tempos  da  Uruguayana. 
Diz-se  que,  nos  princípios  da  guerra  com  o  Paraguay, 
no  mais  renhido  e  arriscado  delia ;  quando  Lopez  se 
ostentava  com  excessiva  força;  quando  a  sua  causa 
tinha  grandes  ramificações  em  Bplivia,  Entre-Rios,  Cor- 
ricntes,  Montevideo  e  Buenos-Ayres ;  quando  o  próprio 
exercito  brasileiro  ainda  estava  em  gérmen  ;  quando  sur- 
giam diariamente  difíiculdades,  não  só  com  os  alliados, 
mas  alé  entre  elementos  de  força  brasileira ;  quando- 
SC  havia  creado  a  nova  milicia  ios  voluntários  dapairía^ 
a  que  importava  dar  animação  e  prestigio ;  quando  o» 
solo  do  Brasil  estava  já  calcado  por  pé  inimigo ;  quando 
emíim  se  reconlieceu  a  urgência  de  uma  deliberação 
arrojada  e  a  conveniência  de  fazer  capitanear  todas 
as  forças  por  espada,  a  que  nenhuma  outra  se  equi- 
parasse em  hierarchia,  pondo  assim  termo  a  perigosas^ 
dissidências;  nessa  crise  melindrosa,  digo,  o  Imperador 
patenteou  a  resolução  de  partir  para  os  campos  de 
batalha,  e  participar  dos  incommodos,  das  privações. 
c  dos  riscos  a  que  seus  súbditos  andavam  expostos. 
Diz-se  que  esta  decisão  achou  manifesta  repugnância 
em  muitos  conselheiros  da  coroa,  que  á  porfia  ex-^ 
punham  a  Sua  Hagestade  os  inconvenientes  do  seu  he- 
róico projecto.  Dizem  que  Sua  Miigestade  respondera  r 
•  Rt»solvi  ir:  qiíeroiv.  Se  me  não  deixam  ir  como 
Imperador,  abdico,  e  vou  como  cidadão.  Se  me  não 
deixam  ir  como  general,  não  me  podem  tirar  a  qua- 
lidade de  brasileiro;  alisto-me  como  voluntário  da 
pátria,  e  vou  com  uma   espingarda,   t   (Aqui  disse: 

QUEUO)  ) 

-  SsciUNDO.  Diz-se  mais  que  no  anno  passado,  quando 
o  governo  assentou  ein  mandar  proceder  a  uma  solem- 
nidadc  olTicial,  em  acção  de  graças  ao  Omnipotente 
pela  terminação  da  guerra,  aconteceu  que  o  encarre- 
gado desses  trabalhos  apresentasse  uma  tabeliã  onde 
SC  orçava  em  36:000^000  a  coUocação  de  uma  estatua 
equestre  do  Sr.  D.  Pedro,  em  frente  ao  quartel  do 
campo  da  Acclamação ;  e  diz-se  que  apenas  Sua  Ma- 
gcslade  leve  conhccimonto  desso  plano  declarou  que 


—  28  -- 

«00  consentia  que  se  lhe  erigisse  semelhante  estatua. 
(Aqui  disse  :  nâo  quero  !) 

Boquiabertos  escutemos  agora  o  Sr.  Alencar  na 
sessão  de  19  de  Maio,  ao  tratar  desta  recusa  da  es- 
tatua e  (já  se  sabe)  do  poder  pessoal. 

São  suas  te:ítuaes  palavras: 

«  Já  uma  vez,  senhores,  foi  trazido  a  este  recinto 
um  qiierOy  que  se  disse  ser  irrevogável ;  foi  a  pro- 
pósito da  Uruguayana.  Não  desejava  que  qualquer 
m^^mbro  do  gabinete  de  16  de  Julho  viesse  trazer  a 
esta  casa  um  não  quero/  » 

Parabéns,  meu  amigo,  parabéns !  Que  tens  que  lhe 
dizer?  O  juiz  togado  allegou  e  provou.  Agora  ninguém 
mais  poderá  duvidar  da  existência,  intensidade  e  pe- 
rigos daquelle  tyrannico  poder  pessodl^  daquella  espada 
de  Damocles  pendente  sobre  a  cabeça  de  todos  os  ci- 
dadãos. Os  crimes  do  pod<^  pessoal  ahi  estão  patentes: 
o  Imperador  qiiizf  e  não  quizf  Quiz  ir  expôr-se  ás 
balas,  em  defesa  da  pátria,  e  foi!  Não  quiz  que  lhe 
erigissem  estatuas,  e  não  se  erigiram!  E'  o  mais  bár- 
baro, atroz,  e  virulento  abuso  que  nunca  se  viu  do 
indigno  poder  pessoal.  Rei  que  delle  usa  assim,  de  que 
horrores  não  é  capaz  II 

Omittoo  muito  mais  que  ainda  no  espirito  me  tu- 
multua. A'  fé  que  foi  bem  contra  minha  intenção  se 
neste  aranzel  me  escapou  uma  palavra  que  denotasse 
desrespeito  para  com  um  talento  distincto,  embora 
neste  ponto  o  considere  transviado;  também  me  não 
passou  pela  mente  duvidar  da  sinceridade  das  suas 
convicções,  ou  attribuil-as  a  motivos  reprovados.  Apenas 
se  me  alTigura  que  o  nobi^e  conservador,  poeticamente 
movido  de  alta  inspiração,  se  deixou  drrrebatar  pelos 
espaços  imaginários.  O  que  ardentemente  lhe  desejo, 
visto  ser  conservador,  é^que  evite  a  discussão  de  outras 
theses  como  esta,  embora  fique  vencedor,  pois  corre 
perigo  de  ter  de  exclamar  como  Pyrrho :  t  Mais  im& 
Victor  ia  assim^  e  >estou  perdida!  i^ 


CARTA    «•* 


Amigo.^NSo  sei  se  te  queira  mal.  Pratico  a  sós  com- 
tigo,  na  branda  eíTusâo  de  um  coiloquio  particular,  c  tu 
arrastas-me  para  a  praça  1  A  imprensa,  meu  amigo,  que 
para  uns  é  templo  capitolino,  nâo  passa  de  pelourinho 
para  nós  outros,  os  plebeus  da  pcnna.  Fabricio  querido, 
para  que  me  puzeste  em  exposição  ?  Tu,  com  essas  repas 
embranquecidas  nas  lutas  da  politica  (nâo  raro  dege- 
nerada em  pelotica ),  devias  antever  o  quesuccedeu. 
Para  certa  ordem  de  estadistas^  a  argumentação  não  vale 
nada,  despreza-se,  ridicularisa-se,  refuta-se  com  de- 
clamações bombásticas,  bolhas  de  sabão  que  mentem 
arvores  e  ediflcios,  mares  e  soes  que  um  ténue  sopro 
apaga.  Substitue-se  a  discussão  proveitosa  dos  prin- 
cípios pelo  fsfíiscar  das  autorias,  pelo  sentenciar  das 
intenções :  Fábio  aspira  ao  poder,  Curcio  almeja  por  um 
titulo,  Sempronio  vendeu-se  por  um  conto  ou  por  400 
contos,  Tarquínio  é  estrangeiro,  Curcio  é  aulico,  Pan- 
cracío  é  ignorante...  e assim  se  vai  argumentando^ e 
triumphando,  e  provocando  o  riso  alvar  dos  coros  do 
comparsas,  porque  a  final  de  contas  Alhenas  e  a  Beucia 
slo  ambas  sita^  na  mesma  Greciu. 


—  30  — 

Que  Ululo  me  assistia  a  mim,  humildo  roceiro,  sem 
intelligencia,  sem  circulo,  sem  nome  para  me  isentar 
daquellas  onerosas  consequências  da  publicidade?  E. 
apezarde  tudo,  aqui  muito  á  puridade  te  digo  que  nào 
me  arrenego  muito,  porque  não  é  cousa  pouca  ver-se 
um  boçal  roceiro  em  letra  redonda,  e  enfatuar-se  com 
o  seu  noSf  quoque  gens  sumas. 

Além  disso,  como  não  é  minha  mente  transviar-me 
das  cousas  para  as  pessoas,  nem  ultrapassar  os  limites 
do  que  é  licito  aos  debates  políticos,  deve  outorgar-se- 
me  a  tolerância,  que  é  para  com  todos,  quaesquer  que 
sejam  suas  opiniões,  a  minha  constante  divisa.  Deixo  pois 
á  tua  consciência  queimares  ou  mostrares  a  minha  cor- 
respondência. Se  não  fôr,  e  talvez  seja,  stulta  presump- 
ção.  fazer  subir  estes  aranzêis  á  tribuna  universal, 
carta  branca !  A's  minhas  rabiscas,  digo  o  que  diz  o  Ir- 
mão Terrível  ao  Ncophito,  no  escancarar-lhe  as  poe- 
tas do  templo :  «  Ahi  vo-las  entrego ;  não  respondo  mais 
por  ellas. » 


I. 


Recebo  o  diluvio  de  papelada  com  que  me  alagas,  e  o 
teu  relatório  sobre  o  que  ahi  se  está  admirando,  quanto 
ás  duas  questÕesHla  ordem  do  dia :  poder  pessoale  elemento 
servil.  Recommendas-me  particularmente  o  extracto, 
publicado  a  14  do  corrente,  de  um  discurso  proferida 
na  véspera  por  S.  Ex.  o  Sr.  conselheiro  José  de  Alen- 
car na  camará  dos  deputados,  discurso  onde,  como  sem- 
pre, superabundam  elegâncias  de  phrase,  arrojos  de  dic- 
ção,  demonstrações  de  elevada  cultura,  e  dotes  orató- 
rios de  subido  quilate. 

Feita  esta  profissão  de  fé,  que,  dentro  de  taes  limites, 
constituo  não  favor,  mas  justiça,  igual  justiça  me  guia- 
ráfao  contemplar  o  reverso  da  medalha*  Não  timbrarei 
de  severo  nem  de  nimiauieiUe  rigoroso ;  tenho  pouco 
geito  para  Genturião  de  procissão ;  hei  de  dizer  as  cousas 


~  31  — 

» 

chSmentc,^em  fazer  de  mim  javali  nem  ouriço  cacheiro. 
Se  ea  tiver  razão,  hSo  de  achar-m'a ;  se  a  não  tiver, 
certamente  ma  não  dariam  as  severidadcs^,  nem  os  ri* 
gores  nimios. 


II. 


Não  ha  remodio  senão  entrar  também  em  scena  o  eu^ 
não  obstante  sua  insignificância.  Sempre  pensei  que  o 
mea  nome,  desconhecido  além  de  500  braças  do  sitio 
onde  resido,  estava  condemnado  a  resvalar  esquecido 
da  terra  para  o  Lethes ;  mas  não  senhor;  agora,  zoilos^ 
tremei !  posteridade^  és  miiika !  agora  superviverei  e 
perdurarei,  mas  que  seja  com  a  invejável  sorte  de  um 
Bavio  ou  Mevio,  perpetuado  por  melhor  Virgilio. 

O  facundo  orador,  que  se  não  abaixara,  e  com  razão, 
a  tomar  em  consideração  as  ponderações  que  na  minha 
anterior  te  submettí  acerca  da  sua  mofina  do  poder 
pessoal ;  o  nobre  disputante,  luminar  da  imprensa,  que 
pela  imprensa  me  não  respondeu,  decidiu  esmagar-me 
em  pleno  parlamento,  i9to  é,  no  olympico  recinto,  até 
rujas  eminências  se  não  sublimam  as  vozes  de  simples 
mortaes ;  reservava  ao  meu  nome  a  honra  de  echoar 
sob  aquellas  abobadas  augustas,  gloria  esta  e  monu- 
mento mais  perenne  do  que  o  bronze. 

Alludindo  a  não  sei  que  benévola  insinuação,  e  di- 
rigindo-se  ao  [Ilustrado  relator  da  commissão  do  ele- 
mento servil,  disse-lhe  que  elle  (feria  conter  a  sua 
ndmiração  por  certo  estylo  romano^  recheado  de  erudição^ 
que  etiamos  habittiados  a  ver  ahi  nos  jornaes  surgir  com 
n  rubrica  de  Epaminondas  ou  de  Cincinnato ;  pois  foi 
essa  admirando  o  que  o  comprometteu. 

Que  eu  sou  Cin:innato,  é  verdade;  Epaminondas 
não  conheço,  e  nem  era  dos  meus  ascendentes,  se  nasceu 
na  Grécia.  Estylo  romano  ?  ó  muita  honra  ;  eu  sou  como 
o  peão  fidalgo :  fallo.  em  prosa  sem  o  saber;  e  con- 
formo-me  com  o  preceito,  do  mestre : 

«  J'ap|)elle  un  chat  un  chat,  et  Rollet  un  fripon.  » 


—  32  — 

Pois  um  estylo  que  nem  é  estylo,  um  dizer  sem  ele- 
yaçSío  nem  cdr,  pôde  aspirar  á  preeminência  de  formar 
escola»  de  crear  propaganda  ?  Fico  sabendo  que  esta 
linguagem  pedestre  constitue^stj^fo  romano ;  e  que  delle 
se  deve  fugir  como  Satanaz  da  Cruz.  Aceito  a  fla- 
gellaçâo:  poenitet  me  peccati;  'c  sahindo  agora  da  ber- 
linda, supplico  a  S.   Ex.   se  digne  sen  ta  r-se  nella. 


III. 


Antes  de  entrar  na  questão  magna,  nao  resisto  á 
vontade  de  seF  esclarecido  sobre  duvidas. 

Bradou  o  nobre  orador :  c  Nesta  tribuna^  é  necessário 
nâo  ver  individualidades.  »  E  logo  em  seguida,  como 
desenvolvimento  desta  these,  leio  que  os  ministros  de- 
clamam ;  que  o  da  agricultura  procura  incutir  o  terror  ; 
que  o  presidente  do  conselho  o  escuta  risonho,  como 
assistiria  a  um  brinde  daquelles  que  o  tém  muitas 
vezes  festejado  nos  grandes  banquetes  diplomáticos; 
que  o  ministro  da  justiça  tem  uma  voz  agoureira  e 
tétrica  (risadas!  do  dito  espirituoso);  e  assim  uma 
porção  de  outras  phrases  individuae^^  que  d'ora  avante 
tomarei  como  typos  de  cortezia  e  parlamentarismo. 

Mas  é  que  neste  terreno  convincente,  lógico,  dia- 
léctico ,  irrespondivel,  nem  Yerres  nem  Catilina  ins- 
pirou tão  brilhantemente  ao  collega  romano  (não  é  o 
do  estylo).  Os  doestos,  exprobrações  e  invectivas,  são 
os  únicos  argumentos  desta  enérgica  oração,  desta 
metralhadora  parlamentar,  toda  a  sociedade  ahi  cabe 
prostrada  aos  tiros  de  lingua  1 

O  Imperador^  adiante  veremos  como  é  tratado.  Toda 
a  organização  hierarchica  tem  igual  sorte,  uns  a  re- 
talho, outros  por  atacado.  Exemplos  dos  syttogismos 
deste  discurso:     . 

Que  é  o  jfwcrno?— Athleta,  que  salta  á  arena,  e  se 
trava,  corpo  a  corpo,  com  a  nação;  luta  para  aba- 
tOi-a  e  esmagal-a.  Sectário  ardente  da  propaganda. 


—  33  — 

emancipador  fanático,  agitador,  revolucionário.  Pre- 
cipitados, ameaçadores.  Homens  que  t#mam  o  povo  por 
um  rebanho,  que  se  dirige  com  um  aceno.  Vertiginosos. 
Desgraçados,  que  jogam  no  páreo  da  ambição  interesses 
capitães,  como  são  a  ordem  publica  e  a  paz  social; 
que  invocam  a  insurreição  para  suffocar  a  resistência 
l^gal ;  quo  querem  atacar  a  razão  com  as  quatro  syl- 
iabas  do  despotismo.  Conjurados,  que  pretendem  des- 
mascarar o  absolutismo,  etc. 

Que  soo  0$  defensores  deste  projecto  de  lei  ? — Os  que  o  de- 
fendem tém  em  vista  a  giba  do  orçamento,  emquanto  os 
do  outro  lado  são  o  braço  e  o  cérebro  da  nação.  São 
obreiros  de  ruinas.  Não  servem  á  sua  cpnvícção,  á  sua 
pátria,  mas  obedecem  aos  influxos  do  poder,  aos  im- 
pulsos da  opinião  estrangeira .  Emissários  da  revolução, 
apóstolos  da  anarchia.  Retrógrados,  assassinos  do  paiz. 
O^tentadores  vãos.  Sacrificadores  dos  interesses  da  pátria 
a  velleidades  de  gloria.  Cruéis,  iuiquos.  Heróes  do 
extermínio.  Erostratos  da  nação,  etc. 

Não  continuarei,  pois  teria  de  copiar  toda  a  oração, 
cujo  sueco...  6  isso  que  ahi  vôs.  Que  inversão  de  po- 
sições I  Sediciosos  e  retrógrados  são  os  que  propugnam 
pelos  principies  do  eterno  direito;  os  que  os  atacam 
^o  os  homens  da  ordem  e  da  liberdade  I 

Quis  tulerií  Grucchús  de  seditione  queretUes . 

Será  acaso  esta  descomposta  linguagem,  esta  sequencia 
de  allrontosos  ultrages,  um  meio  de  persuasão? 

Imaginará  o  disíincto  parlamenta^  que  assim  angaria 
para...  para  suas  idéas  supponhamos,  as  sympathias 
dos  a  quem  combate  insultando,  ou  mesmo  dos  indille- 
renies  a  quem  taes  scenas  devem  repugnar?  Parece-me 
que  não  ha  nada  mais  inhabtl,  mais  contra-producente 
que  estes -temppraes  em  copos  d'agua,  estas  exaltações 
c!e  «ncommenda,  estes  enthusiasmos  oeí  usum  De^hini^ 
estas  hyperboles  injuriosas;  será  sempre  de  inconcussa 
verdade  aquella  observação  do  poeta  : 

On  affaiblit  toujours  tont  ce  qu^on  exaggère, 

%» 

'O 


—  34  - 

Quando  algumas  horas  houvessem  volvido  sobre  a 
recitação  deste  j^ouco  feliz  discurso^  para  mim  tenho 
que  o  senso  reclo,  o  espirito  de  justiça  do  fogoso 
cavalheiro  lhe  terá  segredado  aos  ouvidos  da  cons- 
ciência^ que  andara  errado ;  que  se  nSo  tratam  assim  os 
companheiros  de  trabalhos  na  representação  nacional. 
Não  lhe  terá  tardado  o  arrependimento  de  haver  pro- 
ferido phrases  como  estas: 

c  Quem  defende  esta  proposta  ?  A  condescendência  e  a 
in^lèerencia.  A  condescendência  dos  que  estavam  com  o 
governo  hontem,  estão  hoje  e  estarão  amanhã ,  sem  atten- 
derem  á$  mudanças  de  physumomia  que.se operam  tias  sete 
cabeças  do  podev^  etc.  t 

Mas  a  condescendência^  em  assumptos  vitacs  do  paíz, 
é  crime  de  lesa  magestade  nacional ;  é  holocausto  da 
intelligencia  á  conveniência ;  é  abdicação  dos  foros  de 
representante,  de  cavalheiro,  de  homem  ;  é  vil  traição 
á  pátria.  Honra  i  maioria  da  camará  dos  deputados, 
se  ante  semelhantes  verrinas  conservou  imperturbável 
placidez ;  não  será  ^Ivo  de  invejas  o  orador  a  quem 
impunemente  se  tolerem  taes. liberdades.  Quizera  eu 
nesses  ihomentos  estar  lendo  por  dentro  os  sentimentos 
de  60  varões,  flor  da  nação,  eleitos  delia,  a  cujas  faces 
se  arremessa  a  accusação  de  vendidos  ao  poder ;  afer- 
rados á  giba  do  orçamento;  incapazes, hontem, hoje, 
amanhã,  de  se  destacarem  do  cofre  das  graças  que  har- 
poaram  I 

Se  eloquência  é  isto,  nada  mais  fácil  que  ser  elo- 
quente, e  não  é  em  cadeiras  de  parlamentos  que  esta 
linguagem  se  aprende  e  usa  com  mais  vehemencia  e 
emphase.  Mas  nelia  ha  perigos,  e  não  é  ultimo  o  das 
reconvenções ;  quem  assim,  justa  ou  injustamente, 
penetra  em  foro  intimo,  autoriza  suas  victimas  a,  justa 
ou  injustamente,  penetrarem  no  seu  próprio ;  e  então 
onde  iria  isso  parar? 

Obraram  admiravelmente,  deixando  passar  o  pam- 
peiro ;  não  reciprocando ;  não  retribuindo  injustiça 
com  injustiça.  Outro  tanto  farei   eu.  Declararei  ao 


—  33  — 

contrario,  que  tudo  induz  a  crer  que  o  illustre  orador 
só  foi  arrebatado  por  admiráveis  Ímpetos,  sem  sombra 
de  sentimento  reprovado. 


IV. 


Gaidava  eu  morta  e  enterrada  a  qucstSo  do  poder 
pessoal,  mas  agora  reconheço  que  se  o  que  sobre  ella 
se  escreveu  não  foi  pulverisado,  dcveu-se  isso  á  magna- 
nimidade do  invencível  orador,  que  por  algum  tempo 
a  trouxe  á  moda,  pois  que, gerada  da  sua  imaginação^ 
só  a  eila  deveu  a  ephemera  duração ,  e  vegetou  á 
sombra  do  seié  grande  nome ;  de  certo  que  S.  Ex.  se 
revia  ao  espelho  intellectual,  quando  invocava  no  seu 
discurso  o  magni  nominis  umbra^  e  eu  lhe  supplico 
se  digne  não  destacar  a  phrase  do  poeta  e  ler  as  outras 
palavras : 

muUumqne  priori 

êredere  forturuB. 

« 
Os  tempos  nem  todos  são  uns. 

Est4  visto,  portanto,  que  o  pesadelo  do  poder  pessoal 
é  ídéa  íl\a  do  Sr.  conselheiro  Alencar.  Tem-se  visto 
fri*quentemente,em  homens  iliustradií:simos,esta  con- 
centrarão das  faculdades  n'um  só  pensamento,  muitas 
vezes  phantastico  :  bem  grande  era  Pascal,  e  imagi- 
nava ver  sempre  um  abysmo  ao  lado  esquerdo  de  sua 
pessoa ;  são  aberrações  que  não  merecem  censura. 

Como  não  nasci  para  relógio  de  repetição,  e  já  tratei 
este  ponto,  sem  ver  minhas  asserções  rebatidas,  admiro 
a  sem-ceremoaia  com  que  se  volta  à  carga  dez  vezes 
com  as  aquilatadas  banalidades ;  e  como  Cincinnato  não 
teve  a  ventara  de  convencer  o  illustre  antagonista , 
espero  ser  hoje  mais  feliz,  pois  para  refutar  o  Sr.  José 
de  Alencar,  impetrei  o  auxilio....  do  Sr.  José  de 
Alencar.! 

Não  esttgmatisarei  o  estadista  com  a  sua  própria 
plirase:  c  Uoje  as  abjurações  esl^  em  moda.  »  Não  cm- 


—  36  — 

pregarei  o  luxo  de  vocabulário  com  qae  elic  qualifican 
as  suppostas  incoherencia$  dos  a  qaem  combate. 

Ao  contrario,  na  sua  mndança  de  opiniões  exaltarei 
sua  sabedoria^  desde  que  sapientú  est  mutare  cansilium. 
Na  sua  instabilidade  reconhecerei  o  seu  horror  ao 
absurdo^  desde  que 

L'homme  absfurde  est  eelui  qui  ne  changc  jamais. 

Nas  suas  variações  acharei  a  applicação  de  uma  lei 
providencial,  revelada  por  Camões: 

Hudam->se  os  tempos ;  mudam-se  as  vontades ; 
muda-se  o  ser;  muda-se  a  confiança. 
Todo  o  mando  é  composto  de  mudança, 
tomando  sempre  novas  qualidades» 

A  my thologia  porem  fabula-nos  Acteon  devorado  pelos 
seus  próprios  cães ;  a  historia  cita  o  sujeito  que  com  o 
braço  direito  cortou  o  esquerdo.  Dar-se-ha  caso... 


Ha  meia  dúzia  de  annos,  sahiram  dos  prelos  desta 
corte  umas  publicações,  cm  forma  de  cartas,  endere- 
çadas do  povo  e  ao  Imperador^  e  assignadas  por  nib 
Sr.  Erasmo. 

Sabia  eu  que,  deste  nome,  tinha  havido  um  menino 
do  coro  da  sé  de  Utrecht,  depois  frade,  depois  con- 
selheiro, e  depois  sábio;  que  além  dos  seus  Cottoquios^ 
não  deixou  quasi  senãio  o  seu  ehgio  da  loucura;  que 
tinha  por  divisa :  quando  einbirrei^  embirrei  {Nemini 
cedo)^  e  de  quem  Scaligero  tez  uma  descripçâo  que 
não  ouso  recordar ;  mas  eu  nunca  suppuz  que  fosse 
esse  o  autor  das  taes  cartas,  porque  morreu  ha  mai» 
de  300  annos,  e  não  podia  ser. 

Voltei-mc  para  o  outro  lado  sem  mais  pensar  em 
tal,  quando  agora  leio  com  pasmo  no  discurso  do  Sr. 
José  de  Alencar  ser  aqueile  o  pscudonymo  de  que 


-  37  — 

S.  Ex.  usou  em  1897 !  Fui-me  á  pobre  estante,  oude 
jazem  uns  poucos  de  alfarrábios  e  folhetos,  e  regozi* 
jei-me  tanto  com  a  instructiva  leitura  das  famosas 
cartas,  que,  se  eu  andasse  mais  folgado  em  cobres, 
mandava  reimprimir  aquellas  cousas  em  letras  de 
ouro. 

Como  porém  isto  náo  pôde  ser,  contento*me  com 
transcrever  algo  do  quo  vem  a  propósito  da  questão. 

Não  ha  Potosi  neiá  Golconda,  de  mais  rico  ouro 
nem  mais  esplendidos  diamantes  que  esta  inexgotavel 
mina.  Que  inveja  me  não  infunde  o  Sr.  Alencar  Erasmo 
na  superioridade  com  que  refuta  o  Sr.  Alencar  do 
discurso  t 

Não  é  de  hoje  o  caso;  já  lá  vão  li  annos  que  me 
deliciei  com  a  leitura  de  uma  comedia,  intitulada : 
O  Rio  de  Janeiro  verso  e.  reverso.  Desde  então  me  deu 
no  goto  este  modo  de  encarar  as  cousas  pelo  direito 
e  pelo  avesso;  levante-se  o  panno  para  o  3.*  acto  da 
comedia  :  Verso  e  reverso.  (*) 

Ouçamos  os  dons  Srs.  Alencares.  ^ 


VI. 


§  1.*  Aceusação  do  Sr.  Alencar^  do  discurso. 

c  Emprega-se  a  ameaça,  a  ultima  ratio  regum,  o 
summum  jus  do  governo  pessoal,  i 

*  Refutação  do  Sr.  Alencar  Erasmo. 

—  A  existência  do  governo  pessoal  está  na  crença 
ée  muitos  Brasileiros. 

Deleita-se  a  malignidade  em  cultivar  semelhante 
convicção,  interpretando  a  geito  alguns  factos  recentes, 
oa  pondo  em^  circulação  uma  copia  de  anecdotas  de 


(*}  Cartas  pyliUca^  de  Erasmo  ao  Imperador;  2.*' edição 
1806. 


—  38  — 

reposteiro;  fabulas  que,  fugindo  á  luz  da  publicidade 
e  pullulando  quaes  immundicias  no  lodo  escuro  (I),  não 
são  esmagadas  como  deveram  (pag.  26). 

-^Insofregas  (!)  ambições  já  lôm  por  mais  de  uma  vez 
formulado  positivamente  a  accusação.  Mas  deveis  re- 
gozijar-vos,  senhor  :  são  ellas  próprias  que,  ao  appro- 
ximar-se  do  throno,  mais  se  allucinam  na  atmosphera 
superior,  e  dão  ao  publico  o  grotesco  espectáculo  de 
sua  ebriedade  cortozã  (pag.  28). 

—  Se  ha  falsa  prevenção,  é  esta  que' se  tem  estabe- 
lecido a  respeito  do  governo  pessoal.  Minha  convicção 
vai  muito  além.  Não  somente  nenhuma  influencia  di- 
recta exerceis  no  governo,  mas  vosso  ^escrúpulo  chega 
ao  ponto  de  frequentes  vezes  concentrar  aqúeile  rcllexo 
que  uma  intelligencia  sã  e  robusta  como  a  vossa  deve 
derramar  sobre  a  administração  (pag.  25). 

—  Protesto  alto  contra  semelhante  imputação,  e  não 
quero  mais  prova  que  o  próprio  facto ;  dispenso  os  ar- 
gumentos ijue  poderia  tirar  do  vosso  critério  e  aus- 
t(^ridade  de  princípios  (pag.  26). 

—  Desenganem-se  pois  os  abusados  a  respeito  do  go- 
verno pessoal.  Nas  paginas  em  que  se  desenrolam  as 
últimos  acontecimentos,  o  que  está  em-  relevo  é  a  abs- 
tenção da  coroa. levada  a  um  extremo  que  talvez  ex- 
ceda da  imparcialidade  constitucional.  Vossa  augusta 
pessoa  somente  se  destaca  quando  trata-se  do  sacrifí- 
cio e  abnegação.  Então  vos  debuxais  no  primeiro  plano, 
reclamando  a  parte  do  leão  na  fadiga  e  perigo  (pag.  31). 

—  Conío  é  possível  que  se  propague  esse  erro  deplo- 
rável do  estabelecimento  de  um  governo  pessoal,  quando 
as  actas  contemporâneas  a  cada  passo  o  dissipam  comple- 
tamente ( pag.  26  )  ? 

—  Forte  é  a  tempera  da  virtude  que  repelle  as  ins- 
tantes provocações  do  poder.  Sob  a  purpura  imperial 
palpita  em  vosso  peito  um  desinteresse  de  Cinciniiato  c 
Washington  ( pag.  40 )  ! 

—  Senhor,  é  esteanhelo  com  que  a  nação  vos  está  pro- 
vocando a  assumir  o  governo  pleno  do  Estado  (  pag.  3i) ! 


-89  — 

—  Liberdade  de  imprensai...  dizem.  Desgarros  da 
licença,  que  nSo  oasára  tanto,  se  a  opinião  reagisse 
com  indignação  contra  esse  insulto  á  soberania  repre- 
sentada no  poder  1  Mas  por  desgraça  nossa  o  riso  e  o 
exemplo  insuflam  taes  misérias  (^pag.  12 )  I 


§  S.""  Aceusação  do  Sr.  Alencar  do  discurso . 

«  O  Brasil  è  a  anima  Yilis,  a  matéria  prima  de  uma 
coroa  de  triumpho.  > 

BefiUaçâo  do  Sr.  Alencar  Erasmo. 

—  Aberração  do  espirito  publico,  tanto  mais  estra- 
vagante,  quanto  os  factos  geralmente  assignalados  com 
o  conho  da  pretendida  influencia  da  corda,  são  aqnelles 
em  que  mais  se  accnsa  uma  escrupulosa  imparcialidade 
(pag.26). 

—  Mas  é  na  esphera  da  constituição  que  se  dilatam 
essas  aspirações  liberaes.  Invocava-se  a  corda,  para  re- 
clamar delia  a  verdade  do  systema  ( pag.  V ) . 

—  Mas  penso  eu  que  se  iUude ;  o  somno  do  povo  bra- 
sileiro, confiado  na  virtude  do  seu  monarcha,  é  possível ; 
sua  servidão,  não  acredito  ( pag.  YIII ). 


{  3.*  Accmação  do  à'.  Alencar  do  dist^rso. 

€  (O  imperador  é  )  a  mão  que  ata  e  desata  os  nossos 
destinos,  o  conquistador,  que  marcha  á  conquista  da 
gloria  promettida.  ■ 

Befííiação  do  Sr.  Alencar  Erasmo . 

—  A  primeira  serie,  contendo  dez  cartas,  cingiu-se  á 
necessidade  da  iniciativa  imperial  para  arrancar  o  paiz 
da  crise  em  que  se  debate. 


—  40- 

Limiiou-se  o  trabalho  ao  estudo  consciencioso  da 
actualidade.  Dos  factos  resalta  a  verdade.  No  meio  da 
inércia  e  compressão  de  todas  as  forças  viras  da  nação, 
só  o  impulso  generoso  da  corda  terá  efflcacia  [Adver'^ 
tencia) . 

—  Será  na  dedicação  de  Erasmo  à  pessoa  do  mo- 
narcha ;  na  confiança  que  manifesta  peia  acção  bem- 
fazeja  da  coroa ;  na  appello  á  energia  da  mageslade 
(pag.  5). 


§  4  /  Accnsaçâo  do  Sr.  Alencar  do  discurso . 

t(0  Imperador  é)  o  único  poder  deste  Império, 
aquelle  que  o  estrangeiro  chama  ingenuamente  dono  c 
senhor  da  terra.  • 

Refutação  do  Sr.  Alencar  Erasmo. 

—  Rei  constitucional,  vossa  missão  é  a  do  sol:  não 
aquelle  astro  fatídico  e  abrazador  de  Luiz  XIY,  que 
condensou  a  borrasca  de  1789,  mas  o  fúco  brilhante 
que  rege  todo  um  systema  e  dardeja  luz  e  calor  para  a 
naçio(.pag.  25). 

—  A'  região  superior  em  que  vos  coUocou  a  sobera- 
nia nacional,  não  sobem,  senhor,  nem  o  pó  que  torve- 
linha,  nem  os  rumores  que  se  escutam,  no  estádio  onde 
se  agita  a  pátria,  afllicla  do  presente  e  temerosa  do 
futuro.  Os  miasmas  da  terra  nâo  costumam  attíngir  as 
eminências^ pag.  4). 

'  —  A  constituição  vos  conferiu  em  sua  inteireza  o 
titulo,  como  a  effectividade,  das  prerogatívas  imperiaes. 
Basta  que  vossa  vontade  se  enuncie  de  um  modo  posi- 
tivo e  solemne,  torna-se  logo,  de  sun  própria  virtude 
e  essência,  facto  consummado.  No  domínio  da  lei  não 
se  concebe  resistência  para  ella  ( pag.  58). 

—  O  Imperador  nâo  pôde  sem  duvida  desprezar  a  opi- 
nião publica ;  se,  porém,  a  opinião  se  extravia  e  con* 
tamina  com  a  mais  feia  ímmorniidade,  ellc,  probo  e 


—  41  — . 

austero,  tem,  nâo  s6  ante  a  nação,  porém  ante  Deus,  a 
obrigação  indeclinável  de  resistir  cm  nomo  da  lei  e  da 
moral  (  pag.  50  ).  • 

—  Si  tuado  na  oupola  do  systema,  neutro  e  inaccessivel, 
o  monarcha,  poder  nacional,  plaina  (f)  sobre  os  outros, 
meros  poderes  politicos.EUe  não  exprime  somente,  como 
a  le.í^islatura,  uma  delegação  da  soberania  ;  exprime  um 
deposito  permanente  e  sagrado.  O  Imperador  é  mais  do 
que  o  primeiro  representante  da  nação ;  é  seu  defensor 
perpetuo,  o  magistrado  supremo  do  Estado  (pag.  57). 

—  Chamo-o— poder  nacional — para  significara  quasi 
communidade  em  que  se  acha  com  a  nação.  Nelle  reside 
uma  parte  de  soberania  popular,  que  isolou-se  (!)  em 
principio  e  se  consolidou  nessa  grande  individualidade,  a 
fim  de  resistir  aos  desvarios  da  opinião  (  pag.  58 ). 

—  Não  ha  contestar  esse  ponto.  Os  actos  do  poder  mo- 
derador sao  de  exclusiva  competência  vossa:  para  exer- 
cel-os  não  dependeis  de  agentes,  e  actualmente  nem  de 
conselho  (pag.  58). 


I  5."*  Accusação  do  Sr.  Alencar  do  ^discurso.    \ 

t  Este  golpe  de  estado  ha  de  firmar  no  paiz  o  absolu- 
tismo, ou  antes  de.ímascaral-o.  » 

Refutação  do  Sr.  Alencar  Erasmo. 

—  A  summa  questão  da  actualidade  6  esta,  da  vigo- 
rosa iniciativa  que  deveis  tomar  em  prol  da  constitui- 
ção; ncllaestàa  chave  de  todas  as  outras,  tendentes  á 
realidade  do  systema  e  restauração  do  paiz  (pag.  40). 

—  Só  appareceis  onde  a,  vossa  presença  é  necessária 

• 

para  cobrir  as  faltas  do  governo  e  seus  agentes.  No  Rio 
Grande  para  promover  a  defesa  deleixada  por  muitos 
mezes  e  applacar  dissensões.  Em  Uruguayana  para  res- 
g^uardar  o  decoro  nacional  compromcttido  por  grave 


—  42  — 

omissão  do  tratado  de  alliança.  Na  corte  prra  activar  a 
expedição  das  tropas  e  trem  de  campanha  ou  zelar  o  bem 
estar  do  soldado  (  pag.  32 ). 

—  Mas  é  só  dedicação  e  actividade  individual  que  assim 
dispensais  prodi^^amenle:  a  magostade  se  envolve  na 
magnânima  cordura  que  releva  a  negligencia  e  o  erro. 

Esta  é  a  verdade  (  pag..  32  ). 

—  Emquanto  vos  esquivais  á  politica,  a  nação,  desabu- 
sada dos  homens  que  a  governam,  vos  reclama  e  solicita 
com  abundância  de  coração  ( pag.  33). 


^§  6/  Accnsaçâo  do  Sr .  Alenc     do  discurso. 
f  Idèa  funesta,  que  vinha  de  cima.  » 

Refutação  do  Sr.  Alencar  Erasmo. 

—  Por  todos  esporos  rotnpe  a  effusão  do  paiz  que  se 
abandona  e  confia  exclusivamente  da  lealdade  e  critério 
do  seu  monarcha  (pag.  34 ). 

—Este  povo,  apathico  e  indiíferente  ás  mais  nobres 
funcçõesda  soberania^  ainda  sente  por  vossa  pessoa  sin- 
ceros transportes.  Não  sereis  sua  fé  única ;  porém,  com 
certeza  sois  o  estimulo  das  outras  raras  e  sopitadas ; 
o  estandarte  capaz  de  nestes  tempos  inertes  levantar 
enthusiasmo  em  prol  de  uma  causa  (pag.  31). 

—  Grato  e  fácil  é  o  designio  de  convencer  uma  razão 
recta,  quando  não  se  tem  outro  prol  além  da  verdade. 
Mais  ainda,  se  a  convicção  já  alli  despontou  e  só  aguarda 
espaço  e  vez  de  produzir-se  (pag.  VII ). 

—  Nossa  felieidade  é  possuirmos  a  monarchia  para 
socalcar  as  ambições  afoutas ;  e  na  monarchia  um  prin- 
.'!ipe  recto,  liberal,  invulnerável  aos  assaltos  da  paixão 
(pag.  IV). 


-.43  - 

I  7.°  Accimção  do  Sr.  Alencar  do  discurso. 

€  A  proposta  é  o  precursor  do  projecto  incubado  no 
alto ;  provocação  para. . .  atacar  a  razão  combayonelas, 
o  fuzil,  o  sabre  e  o  canhão,  que  são  as  quatro  syllabas 
do  despotismo.  > 

Refutação  do  Sr.  Alencar  Erasmo. 

—  Monárcha,  eu  vos  amo  e  respeito.  Sois,  neste  tempo 
calamitoso  de  indifferentismo  e  descrença,  um  enthu- 
siasmo  e  uma  fé  para  o  povo.  As  esperanças  que  bro- 
taram na  primeir-  metade  de  vosso  reinado,  e  mur- 
charam ao  sopro'*  itiao  do  presente,  aiuda  podem  re- 
florir sob  os  raios  de  vossa  coroa.  O  cidadão  livre  se 
approxima  sereno  de  vosso  throno  porque  nunca  ahi 
senlQu-sc  a  tyrannia ;  sua  dignidade  não  se  vexa,  ao 
reclinar-se  para  beijar-vos  a  dextra  augusta,  porque 
em  vós  acata  elle  o  pai  da  nação  (pag.  4). 

—  Alli  está  a  cabeça  da  nação.  Não  toldam  a  lucidez 
da  mente  superior  sombras  que  projecte  a  inveja.  Sua 
abnegação  c  civismo  estão  provados  (pag.  7). 

—  Homem,  cu  vos  prezo,  admiro.  Virtudes  cívicas  e 
domesticas  adornam  vossa  pessoa .  Na  cúpula  social  onde 
a  nação  vos  collocou  sois  para  a  sociedade  brasileira 
mais  do  que  um  rei,  sois  um  exemplo.  Quando  por 
toda  a  parle  se  ostenta  impune  o  pungente  espectáculo 
do  relaxamento  do  dever  e  obliteração  do  senso-moral, 
a  alma  da  gente  honesta  se  expande,  contemplando 
era  vós  um  typodc  homem  de  bem  (  pag.  5 ). 

—  Em  uma" palavra,  e  cila  resume  vosso  elogio  :  Bem 
poucos  monarchas  dirão  como  D.  Pedro  II :  «  Nunca, 
cm  um  reinado  de  23  annos,  es^lreado  com  a  inex- 
periência da  juventude,  nun:a  abri  meu  coração  a 
ura  sentimento  de  ódio,  nunca  puz  meu  poder  ao  ser- 
viço de  mesquinhas  vinganças.  »(pag.  5) 


■     —  44  — 

§  8.*  Accmação  do  Sr,  Alencar  do  discurso. 

t  O  golpe  foi  decretado  in  excelsis^  e  nâo  se  podem 
mostrar  vellcidades  de  resistir  à  vontade  omnipo- 
tente.  » 

Refutação  do  Sr.  Alenccrr  Erasmo. 

—  Eis  porque  Erasmo  se  dirigiu  ao  throno.  Lá  está 
o  que  o  egoismo  c  a  vaidade  lhe  recusariam  em  muita 
parte.  Ouvido  benévolo  para  o  escutar;  dedicação 
prompta  para  o  comprehendcr  ;  illustraçâo  magnâ- 
nima, que  nào  desdenha  a  idóa,  e  corrige  o  erro  sem 
mofa  (pag.  7). 

—....com  o  risco  mesmo  de  molestar  o  pudorda 
magestade.  Não  vos  falta  coragem  moral  para  enca- 
rar de  frente  os  males  do  paiz  (pag.  31). 

—  Ache  ao  menos  a  liberdade  que  desertou  a  alma 
succumbida  da  pátria,  um  abrigo  á  sombra  do  manto 
imperial,  para  que  não  morra  conspurcada  nos  tri- 
púdios da  anarchia  ( pag.  16  ). 

—  Ha,  senhor,  nesse  pronunciamento,  que  brota  a 
cada  canto,  uma  demasia  que  degenera  em  lisonja  e 
frisa  o  ridículo.  Mas  não  convém  escarnecer  destes 
desvios,  c  somente  corrigil-os.  Todo  o  enlliusiasmo  do 
povo  é  generoso ;  e  n»íste  dos  Brasileiros  por  seu 
Imperador,  'parccc  cfuo  estão  realmente  concentradas 
durante  a  crise  as  forças  vivas  da  nação  (pag.  36). 


Vil. 


Fica  evidenciado,  por  boca  do  Sr.  Alencar  de  hon- 
tem,  que  nenhuma  razão  assiste  ao  Sr.;^AIencar  de 
hoje. 

S.  Ex.  nos  ensina  que  não  existe  entre  nós  poder 
pessoal;  que  só  a  malignidade  pôde  tal  aventar;  quo 
c  uma  falsa  prevenção ;  que  a  missão  do  Imperador  ê 


—  43  — 


V 
^ 


I 


( lai  e  qual)  como  a  do  sol ;  qae  ellc  protesta  alta- 
raentc  contra  a  imputação ;  que  a  imparcialidade  da 
corda  excede  os  limites  devidos;  que  só  o  impulso 
delia. poderá  ter  efficacia;que  o  Imperador  ó  o  pai 
da  pátria,  para  beijar  cuja  dextra  augusta^v  elle  se 
honra  em  reclinar-se ;  que  o  Imperador  6  a  cabeça  da 
nação.;  que  apenas  elle  enuncia  sua  vontade,  isso  b.ista 
para  se  tornar  logo,  de  sua  virtude  e  essência,  facto  con- 
summado,  contra  o  qual  se  não  concebe  resistência, 
etc,  ele. 

Pouco  tempo  depois,  o  Sr.  Alencar  era  ministro  da 
justiça* 


VIII. 


De  que  modo  S.  Ex.  foi  deixado  em  liberdade  no  des*- 
empenho  de  seu  alto  cargo,  já  eu  o  dissessem  ter  sido, 
csem  risco  de  ser,  contrariado.  Como,  porém,  a  decla- 
mações balofas  é  útil  antepor  factos  concludentes,  ve- 
nham mais  dous,  do  arsenal  do  próprio  Sr.  Alencar,  jun- 
tar-se  a  tantos  que  adduzi. 

Será  um  delles  o  que  o  próprio  Sr.  Alencar  agora 
neste  discurso  vem  delatar,  fallando  da  sua  opposição 
a:)  pensamento  da  abolição  da  instituição  do  captivei- 
ro.  Diz  S.  Ex. : 

c  Na  qualidade  de  ministro,  resisti  francamente  á  < 
cor(Va  na  promoção  desta  reforma,  cujo  projecto,  elabo- 
rado pelo  conselho  de  estado,  mandei  archivar  na  se- 
cretaria da  justiça.  • 

Admira,  meu  Fabrício,  esta  esplendida  demonstração 
do  poder  pessoal/  Resulta  desta  inconfidência  que,  a  coroa, 
chamando  a  attcnção  do  ministro  para  um  projecto  do 
conselho  de  estado,  foi  o  ministro  quem  lho  pôz  o  seu 
velo  e  mandou  archivar  os  papeis,  oppondo-sc  a  que 
se  lhes  desse  andamento;  e  esse  ministro  continuou  mais 
de  am  anno  em  exercicio,  e  declarou  ao  parlamento  que 
fóra  por  divergências  individuacs  com  outros  conse- 
ILieiros  da  coroa  que  resignara  a  pasta. 


—  46  — 

« 

Se  S.  Ex.  se  não  arroga  o  dom  da  infallibilidade,  ha 
de  tolerarque  outros  ministros  podessem  pensar  de  um 
modo  diverso,  e  não  achassem  tão  archivavcis  os  traba- 
lhos do  Conselho  de  estado. 

Mas,  eia  todo  o  caso,  o  certo  é  que  o  Sr.  Alencar  de- 
nunciou que  comsigo  mesmo  teve  a  prova,  nesta  pró- 
pria questão,  de  que  a  coroa  não  exerceu  pressão  de 
espécie  alguma ;  nem  ella  se  lembrou  de  quebrar,  como 
tão  constitucionalmente  poderá  ter  feito,  o  instrumento 
que  se  'oppunha  áquillo  que  ella  acaso  considerasse 
bem.do  paiz. 

Também  não  é  fora  de  propósito  apontar  pai^a  a  nar- 
ração (lue  oSr.  Alencar  faz,  no  seu  discurso,  das  phases 
por  que  foi  passando  o  pensamento  emancipador.  FJs 
como  se  exprime  : 

€  Inaugura-se  esta  situação  em  1868...  A  falia  do  throno, 
documento  authentico  da  nova  situação  e  seu  program- 
ma,  fazer\do'um  contraste  patente  com  os  dous  ante- 
riores discursos  da  coroa,  calou-se  a  respeito  da  eman- 
cipação; guardou  sobre  essa  questão  um  silencio  elo- 
quente. > 

Aqui  o  discurso  do  coroa  é  considerado  obra  dos  mi- 
nistros, e,  portanto,  eloquente...  no  silencio  (silen- 
tium  verbis  facundius) ;  alli  o  mesmo  discurso  da  coroa 
é  considerado  obra  do  rei,  e,  portanto,  abominável  INão 
appello  de  Philippe  para  Philippe;mas  concluo  do  tal 
relatório  do  Sr.  Alencar  que  os  discursos  da  coroa 
são  de  feitura  e  responsabilidade  dos  ministérios,  e 
que  o  throno  tanto  comprimiu  a  situação,  de  1871  [para 
fallar,  como  havia  comprimido  a  de  1868,  para  calar-sc. 

E  já  que  estamos  no  campo  das  anecdotas  e  tu  vives 
na  corte,  onde  as  pcsquizas  são  fáceis,  quizera  me  in- 
formasses do  seguinte : 

Uma  das  mais  preciosas  attribuiçôes  do  pader  mode- 
rador, é  sem  duvida  a  de  perdoar  as  penas.  São  notó- 
rios os  tramites  que  os  respectivos  regulamentos  esta- 
belecem para  serem  instruídas  as  petições  dos  indiví- 
duos condemnados,  mas  não  é  tão  geralmente  sabida  a 
marcha  posterior  destes  processos.  E' \crdade  que,  se- 


—  47  — 

gundo  as  pra\esda  secretaria  da  justiça,  estos  processos 
eram  nella  preparados,  e  em  seguida  subiam  ao  ministro, 
o  qual  os  estudava  também  e  os  submettia  com  o  seu 
parecer  á  suprema  deliberação  de  S.  M.    o  Imperador  ? 

Será  verdade  que,  occupando  a  pasta  da  justiça  um 
cavalheiro  que  a  respeito  de  poder  pessoal  pensa va-appro- 
ximadamente  como  Erasmo,  foi  um  de  seus  primeiros 
cuidados  pôr  termo  a  estas  praticas,  dizendo  a  Sua  Ma- 
gestade :  t  Senhor  I  Eu  não  tenho  nada  que  ver  com 
o  exercício  do  poder  moderador;  é  desse  poder  o  jus  de 
perdoar.  Em  taes  casos  o  governo  não  deve  interferir, 
nem  mesmo  com  o  seu  conselho.  Faça  Y.  M.  como  em 
sua  sabedoria  achar  ju^to.  fteora  avante  estes  processos 
subirão  a  suas  augustas  mãos,  sem  relatório,  nem  pare- 
cer do  ministro  respectivo?  » 

Será  verdade  que.em  virtude  desta  singular  abstenção, 
abdicação  ou  como  melhor  nome  haja,  do  ministiro,  foram 
por  eile  assim  alargadzR  as  ensanchas  do  que  por  ahi 
denominam  poder  pessoaH  Quem  seria  ?  E  são  elles  que 
faliam... 


IX. 


E  como  por  sainete  destas  agruras  tenha  seu  cabi- 
mento a  farça,  cá  se  me  depara  na  fulminante  catilinaria 
outro  bocadinho  de  ouro. 

Tem  o  censor  do  poder  pessoal  sido  cem  vezes  con- 
vidado a  expdr  um  só  acto,  que  durante  os  seus  longos 
18  mezes  de  assento  nos  conselhos  da  coroa  presenciasse, 
exorbitante  dos  deveres  e  dos  direitos  da  realeza  cons- 
titucional; a  nada  o  censor  se  move ! 

Já  se  vô  que  não  é  por  escrúpulos  de  consciência 
timorata,  .attento  o  perenne  alarde  de  independência 
c  autoflomia ;  e  seria  cem.  vezes  menos  hostil,  mais 
franco  e  leal  referir  factos  sobre  que  ninguém  pediu 
segredo,  c  em  que  a  discrição  apenas  é  aconselhada 
pelo  senso-commum  das  conveniências,  que  batalhar 
com  a  arma  curta  das  reservas   e  a  espada  de  canna 


-  48  - 

das  reticencias :  accusaçues  poiRm  rcpellir-se,  reslric^ 
çues  (loixam  sempre  um  campo  vago. 

Segundo  sempre  ouvi,  S.  M.  o  Imperador,  o  defensor 
p(?rpotuo  do  BrasiK  o  constitucional  timoneiro  da  náo 
do  Estado,  o  magistrado  supremo  a  quom  incumbe  a 
pormanenie  vigilância,  tem  por  uso  prestar  sempre  a 
mais  accurada  at tenção  aos  negócios  públicos;  quando 
cm  conselho,  escuta  cuidadosamente  as  exposições,  o 
para  não  interromper,  costuma  ir  tomando  nota  do  que 
lho  vai  chamando  a  advertência,  para  depois  dissipar 
duvidas  ou  emittir  opinião. 

Reparaste,  bom  Fabricio,  no  modo  como  o  Sr.  Alencar 
ccnsuri,  fulmina,  ridicularisa  e«te  ^nobre  habito,  esta 
prova  do  zelo  o  da  seriedade  com  que  o  monarclia  estuda 
os  negócios  públicos  ?  Relê  e  pasma  1 

t  Armei-me  do  lápis,  porque  todos  nós  lemos  o  veto  do 
lápis ;  não  é  privilegio  da  realeza,  t 

E  leio  mais,  que  isto  despertou  hilaridade  1  !  Creio-o 
bem;  creio  que  a  hilaridade  é  a  única  disposição  que 
condiz  com  linguagem  semelhante;  mas  hilaridade s 
assim  só  são  de  feição..  ♦  em  palco  diverso.  Já  sevo 
quaes  seriam  os  escrúpulos  de  tal  delator,  em  correr  o 
reposteiro  dos  paços  onde  ura  dia  lhe  iteram  entrada,  ou 
em  provar  seriamente  com  factos  a  intrusão  da  coro:*, 
quando  tão  ingratamente  se  procura  expôl-a  ao  ridi* 
culo,  por  praticas  dignas  do  acatamento;  mas  em  ver- 
dade, o  Sr,  Alenaar,  que  6  poeta,  precisava  chave  de 
ouro  para  o  seu  soneto  das  provas  do  poder  pessoal: 
já  vimos  o  1.'  quarteto  do  qiiero  da  Uruguayana ;  o 
2.*  quarteto  do  nào  quero  da  estatua ;  agora,  1.*  terceto, 
oprivilegio  da  realeza  ;  2.°  terceto,  veto  do  lápis. 

São  argumentos  monumentacs,  discursos  demosthc- 
nicos,  canhões  Krupps. 


Tencionava,  preclaro  Fabricio  meu,  dizer-te  algumas 
palavras  sobre  o  pouquíssimo,  não  declamatório,  que 
da  oração  do  Sr.  Alencar  se  espremo  sobre  a  magna 


—  49  — 

questão  (lo  elemento  servil,  mas  já  te  consagrei  uma 
tarde  inteira,  e  isto  nâo  vai  a  matar.  Se  amanhã  ou 
depois  me  sentir  com  disposições,  palestraremos. 

Por  agora,  aqui  me  cerro,  quando  talvez  já  de  sobra 
tenha  bacharelado. 

Sabes  tu  o  que  ando  a  ler  nas  horas  vagas?  Aquelle 
thesouro  que  denominam  Carta  de  Guia.  Ora,  quem  falta 
a  um  dever,  está  apto  para  faltar  a  todos;  cesteiro  que 
faz  um  cesto  faz  um  cento,  o  caso  eslá  em  darem-lhe 
verga  e  tempo :  a  honra  politica  comparo-a  eu  á  honra 
da  mulher ;  e  c  a  honra  da  mulher  ( segundo  diz  o  alço- 
rio)  é  como  gí  algarismo :  tanto  a  erra  quem  erra  em 
um,  como  quem  erra  em  mil.»  E  afinal  de  contas  lá  vai 
todo  o  discurso  pelos  ares ;  è  ainda  aqui  me  acode  a 
mesma  Carta  de  Guia,  dizendo :  •  Parece-me  a  mim 
agora  isto,  como  quem  põe  meada  grande  em  doba- 
doura pequena,  que  em  lhe  puxando  pelo  ílo,  traz  o 
íio,  a  meada  qa  dobadoura  tudo  a  terra.  > 

Saudades  á  comadre  e  aos  pequerruchos. 


Teu  velho  amigo, 


Chiei  una  to. 


CARTA  8/ 


Amigo. — ^Disse-te,  na  minha  ultima,  que  tornaria  a 
palestrar  comtigo  sobre  o  discurso  de  um  de  nossos 
laminares  do  parlamento,  se  me  sentisse  para  ahi  vi- 
rado. Ora  hoje  não  tenho  muito  que  fazer ;  os  pretinhos 
andam  por  fora  a  cortar  canna ;  e  eu,  se  hei  de  estar 
a  embalar-me  na  rede,  ou  a  berrar  com  o  feitor,  ou  a 
pedir  que  me  façam  cócegas  ou  dém  cafonés,  venho 
governar  o  mundo  em  secco,  e  aborrecer-te  com  as  mi- 
nhas tontices,  privilegio  triste  dos  annos  largos.  Se  eu 
disser  muito  disparate,  desculpa,  que  eu  sou  o  primeiro 
M  nlo  dar  nada  pelo  meu  bestunto ;  e  quem  me  descar- 
regasse paulada,  seria  bárbaro,  porque  daria  em  homem 
morto  • 

Não  sou  dos  que  aspiram  a  dominar  o  universo,  a 
imperar  sobre  a  intelligencia  humana  com  o  seu  verbo 
omnipotente,  porque  li  a  historia  de  ícaro,  cujas  azas  se 
derretiam ;  de  Lúcifer,  cujo  orgulho  o  precipitou  do  em- 
pyreo  nas  profundas  ;  e  sempre  me  toou  aquella  velha 
máxima  :  c  Quem  quer  tnais  do  jjue  lhe  convém^  perde  o 
çuequereoquetem.  >  E  ainda  que  não  venha  a  pro- 
pósito, quero  transcrever- te  um  passo  curioso  de  um 
sermão  do  padre  A .  Vieira : 


—  52  — 

«  Toda  a  creatura  nao  sóappetece  sempre  ser  mais 
do  que  é,  senão  também  qnerer  mais  do  que  pôde.  Tal 
é  a  cegueira  de  um  entendimento  ambicioso :  ha  de 
querer  mais  do  que  pôde,  ainda  que  conheça  que  é  im- 
possivel.  O  oílicial  pôde  viver  como  oíTicial,  e  quer  viver 
como  escudeiro ;  o  escudeiro  podo  viver  corao^cscudeiro; 
e  quer  viver  como  fidalgo ;  o  fidalgo  pôde  viver  como 
fidalgo,  e  quer  viver  como  titulo ;  o  titulo  pôde  viver 
como  titulo,  e  quer  viver  como  príncipe. 

€  E  que  se  segue  deste  tão  desordenado  querer  ?  O 
menos  é  que,  por  quererem  o  que  não  podem,  venham 
a  não  poder  o  que  podiam. 

€  Quanto  sobe  violentamente  o  querer  para  cima, 
tanto  desce  sem  querer  o  poder  para  baixo.  Quem 
quer  mais  do  que  lhe  convém,  perde  o  que  quer  e  o 
que  tem.  Se  apenas  podeis  sustentar  um  cavallo  com 
um  mochila,  porque  haveis  de  ler  uma  carroça  com 
oito  lacaios  ?  Com  essa  mal  considerada  vaidade,  que 
é  o  que  adquiristes,  com  o  que  perdestes  ?  » 

Portanto  não  corro  eu  perigo,  continuando  a  aren- 
gar-te  sobre  cousas  de  que  entendo  pouco  ?  Se  eu  não 
poder  sustentar  uma  these,  para  que  me  hei  de  metter 
cm  fofas  ?  para  que  hei  de  menosprezar  o  prudente  quid 
valeant  humeri  ?  Se  eu  sei  apenas  sargentear  uma 
companhia,  para  que  arvorar-me  em  generalíssimo? 
Se  a  minha  estatura  épygméa,  para  que  hei  de  pedir 
um  covado  aos  tacões  da  bota  ?  Se  com  justiça  me  con- 
cedem alguns  dotes,  para  que  hei  de' eu,  ambicionando 
glorias  inattingiveis,  arriscar-me  a  que  se  me  neguo 
pão  e  agua  ? 

Nada.  Qaemquer  mais  do  que  lhe  convém,  perde  o 
que  quer  e  o  que  tem ;  e  eu  não  quero  perder  o  con- 
ceito de  espirito  singelo  e  chão  em  que  tu,  meu  Fabrí- 
cio, sempre  me  tens  tido  ;  e  por  isso/tudo  quanto  te 
submet ter  será  em  simples  forma  dubitativa  ;e  onde 
eu  desarrazoar,  faze  a  merco  decorrigir-me. 

Eu  cá  de  nada  me  gabo,  e  em  nada  tenho  presumpção, 
nem  mesmo  em  ser  coherente ;  para  que  presta  isso  ? 
Sc  eu  não  fosse  tão  velho,  senil,  encanecido,  ancião, 


■^^■^■■^^^^■g^tl 


-  53  — 

decrépito  e  der rengado  (confesso  todos  os  meus  crimes), 
talvez  ainda  sentisse  pretençõcs  de  subir  até  o  sétimo 
çéOy  sem  me  importar  com  os  degráos ;  hoje  palhaço  de 
corte,  amanhã  iribono  da  plebe,  e...  Nada  ! 

Desisto  dessas  aspirações  :  estou  carcomido  ;  nâo  valho 
pitada  de  tabaco. 

E,  pois  se  me  concede  alvará  para  delirar  e  tontear, 
aproveito  a  generosa  licença  e  entro  em   matcria. 


I. 


A  escravidão. 

Folgo  de  ver  que  os  poderes  públicos  tomaram  a  si  a  so- 
lução da  jà  tio  demorada  questão  do  elemento  servil,  por- 
que era  essa  amanpha  que  deturpava  a  nossa  sociedade, 
e  cada  dia  qne  passava  na  inacção  constituia  uma  ver- 
gonha e  am  perigo. 

A  instituição  da  escravidão  só  se  coaduna  cora  o  gráo 
intimo  da  civilisaçâo,  e  repugna-mc  ver  esta  terra  accu- 
sada  de  occupar  esse  gráo  na  escala  das  naç5es. 

Eras  houve  em  que  a  escravidão  seria,  relativamente, 
até  nm  beneflciopara  as  victimas  de  tal  instituição.  Em 
longes  tempos  desastrosos,  a  guerra  era  acompanhada 
de  um  cortejo  de  horrores,  que,  para  confusão  do  deno- 
minado século  das  luzes,  só  nestes  dias  se  viu  reprodu- 
zido. Nas  taes  eras  o  direito  das  gentes !  autorizava  o 
guerreiro  a  immolar  o  vencido ;  nessas  eras  também 
o  trabalho  significava  deshonra.  Quando  pois  o  interesse, 
e  não  a  caridade ,  convenceu  o  vencedor  de  que  apro- 
veitava mais  com  o  trabalho  do  que  com  a  carniceria  dos 
vencidos;  quando  se  reconhcceujser  preferível  aprovei- 
tar, a  degolar,  os  prisioneiros,  procuraram  conserval-os, 
de  onde  vem  o  termo  servus ,  e  utilisar  os  seus  serviços; 
c  dahí  seconclue  que  a  escravidão,  em  taescircumstan- 
cias,  foi  ura  progresso,  comparada  com  a  sorte  que 
a;ruardava  as  míseros. 


'o 


—  B4  — 

Mas  essas  praxes  são  remotissimas.  Pôde  dizer-seque 
JadcQS,  Gregos,  Romaups  fandaram  sobre  a  nefasta 
ínstítaição  uma  organização  social,  e  até  a  philosophía 
lançava  saa  espada  de  Brenno  na  concha  da  balança : 
Platão  e  Aristóteles,  reconhecendo-a  contraria  i  natu- 
reza humana,  proclamavam  todavia  que  sem  escravidão 
não  havia  estado  politico  passivel  1  e  a  matrona  romana, 
se  Juvenal  não  mente,  espantava-se  de  que  alguém  sup- 
pozesse  possível  que  o  escravo  fosse  homem.  {Itaservus 
homo  est?)  Era  natural  nessas  sociedades  o  torpe  espec- 
táculo do  corpo  livre  e  da  alma  livre  (pois  são  insepa- 
ráveis )  vendidos  a  preço  de  dinheiro,  embora  só  a  venda 
do  corpo  parecesse  indigna  aos  espíritos  rectos,  como 
o  de  Ovidio: 

Turpiter  ingenuum  munera  corpus  emunt. 

Com  o  andar  dos  tempos,  com  o  pharol  do  christianis- 
mo,  com  o  progresso  da  philosophia,  com  o  aperfeiçoa- 
mento da  civílisação,  reconheceu -se  que  o  homem  não  é 
objecto  venal,  e  que  a  instituição  é  contraria  aos  mais 
elementares  principies  do  direito.  Assim  o]proclamaram 
todos  os  povos  e  se  não  desaira  ser  o  Brasil,  por  peculia- 
res circumstancias,  ultimo  que  em  seu  pendão  inscreveu 
o  motto  liberdade  universal^  por  certo  lhe  não  estaria  bem 
se  por  mais  tempo  demorasse  a  sua  resolução  pratica, 
embora  rodeada  de  cautelas,  impostas  por  excepcional 
situação. 

Felizmente  vejo  que  todos  os  pensadores,  quaesquer 
que  suas  dissidências  sejam,  estão  concordes  neste 
ponto;  se  nos  recônditos  ancos  de  alguma  intelligencia 
se  abriga  pensamento  diverso,  e  o  plano  de  perpetuar 
o  captiveiro,  ao  menos  no  coro  dos  lábios  reina  a  mai^ 

honrosa  unanimidade. 

Tem  universalmente  calado  nos  ânimos  aquellesapo- 
phtegmas  de  Erasmo,  lá  dooulro,o  Erasmo  de  Ulrecht: 

—  NuUa  volúpias  viris  suavior  est  UberMe. 

—  NUiil  beatum^  si  absít  libertas. 


—  KJ  — 

E*  também  delle,  um  que  eu  tenho  medo  de  citar  : 
Pestilmtissifnum  genus  est  adulationis,  sub  libertatis  ima- 
gine  blandiri ; 
mas  emíim,  como  vai  na  língua  da  missa,  passe. 

n. 

o  projecto.    As  iras. 

Li  atientamente  o  projecto  do  gorerno,  tendente  á 
gradual  abolição  da  escravidão  ;  li  as  modificações  que 
nelle  introduziu  a  benemérita  commissão  da  camará 
dos  deputados ;  li  o  muito  que  me  mandaste^  pró  e 
contra  ;  e  adquiri  convicção  deque,nascircumstancias 
actuaes  do  Brasil,  esta  lei  é  previdente  e  sabia  ;  e(  em- 
bora ea  desejasse  nella  algumas  addiçdes,  taes  como  a  li- 
berdade dos  escravos  sexagenários  que  a  desejassem,  in- 
demnizados os  senhores  comum  titulo  deSOOjSlOOO;  ne- 
nhum imposto  sobre  os  escravo^  da  lavoura,  e  uma  taxa 
de  S^HOOOa  mais  em  cada  anno,  em  progressão  indefinida, 
sobre  os  escravos  das  cidades  eem  beneficio  da  caixa  da 
emancipação,  e  algumas  outras  secundarias  modiflcaçdíes, 
de  que  se  não  faz  cargo  quem  não  é  legislador  ),  tenho 
para  mim  que  as  disposições  da  lei  são  dignas  de  plena 
aceitação. 

Seja  Deus  o  direito ;  seja  César  o  dono  dos  escravos ; 
parece-me  que  esta  lei  dá  a  Gesar  quanto  lhe  é  pos« 
sivel  dar,  offerece  a  Deus  quanto  lhe  pôde  oSerecer. 

Nas  transacções^  impostas  pelo  dever  e  pela  prudên- 
cia, é  frequente  imitar  a  lei  ao  grande  Affonso  de  Albu- 
querque, quando  se  queixava  de  ficar  mal  com  o  rei  por 
amor  dos  homens,  mal  com  os  homens  por  amor^do  rei . 

Troquemos  as  palavras  rei  por  direito,  homens  por  m- 
nhares  ie  escravos^  e  acharemos  que  toda  ^  kide  con- 
ciUaçâò  ficará  mal  com  o  direito,  por  não  exigir  tudo 
qnanto  este  proclama ;  mal  com  os  senhores,  por  lhes 
nio  conceder  a  permanência  da  escravidão,  ou  pelo 
menos  o  adiamento  para  as  kaiendas  gregas,  de  qualquer 
plano  de  acabamento  da  triste  instituição. 


—  oG  — 

-^  Vejo  com  pczar  que  essa  questão,  precisada  de 
attençâo  e  Iranquillidade  de  animo,  tem  sido  discutida 
com  exaltações  e  scenas  violentas,  e  nesta  distancia 
não  posso  avaliar  de  quem  é  a  culpa.  Deploro-o,  pela 
dignidade  do  parlamento,  pelo  credito  das  instituições 
juradas,  pelos  duplos  preceitos  da  civilidade  e  da  ci- 
vilisação.  Nunca  ouviram  os  iracundos,  sejam  quem 
forem,  que  não  ha  paixão  que  tanto  abale  asinc«riladc 
do  juizo  como  a  cólera  ?  que  essa  paixão  corre  ás  armas 
sem  aguardar  oplacet  da  razão?  .E  aftida  se  issoiossc 
um  movimento  casual,  único,  de  despeito  ou  desres- 
peito, desculpar^se-hia  o  tributo  prestado  ás  imper- 
feições da  natureza  humana ;  mas  a  cólera  arvorada 
em  systema  I  repetida  quotidianamente  como  argu- 
mento convincente  l  Não  deve  ser.  t  Fora  para  desejar 
( diz  o  meu  ancião  Séneca )  que  os  movimentos  do  furor 
não  podessem  prejudicar  mais  que  uma  vez,  a  exemplo 
das  abelhas,  cujo  ferrão  se  parte  í  primeira  picada  que 
dão.  »  Oh  Séneca,  Séneca!  Quantas  intactas  trombas  de 
bisouros  te  não  desmentem  i 

Mas  visto  que  cada  um  enterra  seu  pai  conforme 
pôde,  barafustem  lá  como  lhes  aprouver,  e  continuo 
a  servir  de  texto  para  os  meus  estudos  o  discurso  do 
inimigo  do  poder  pessoal. 

Tu  sabes  os  meus  hábitos.  A  todo  o  cidadão,  òomo 
cidadão,  como  particular,  tributo  respeito,  e  nada  tenho 
com  elle;  isso  pertence  lá  ao  seu  foro  interior.  Mas 
pertence  a  mim,  como  a  todos,  o  que  é  do  foro  exte- 
rior: as  opiniões  politicas  proclamadas  urbi  et  orbi  per- 
tencem á.sciencia  politica, ao  debate,  á publicidade  ;  e 
triste  idéa  daria  da  çua  firmeza,  da  sua  convicção,  ou 
da  procedência  das  suas  theses  quem,  por  meios  repro- 
vados, fugisse  a  sustcntal-as,jou  phantasiasse  declina- 
torias  para  annullar  contradictores. 

E'  nestes  termos  que  entendo  a  polemica,  e  nelles 
continuarei. 

Procedam  outros  como  lhes  aprouver,  que  não  me 
demoverão. 


^ím 


i)J  — 


III. 


Se  o  projecto  baixou  do  alto. 

Loio  no  discurso: 

•  Ogol(>e  foi  decretiido  in  excelais;  é,  com  a  ameaça» 
o  $nmmam  jua  do  governo  jpessoal ;  mana  de  quem  as* 
pira  a  esta  coroa  de  triumpho,  do  uiiico  poder  do  Im? 
perio;  idéa  funesta  que  \€m  de  cima  ;  golpe  de  estado 
que  ha  de  Ormar  no  paiz  o  despotismo,  e te,  ele.  t 

Que  se  lh6  ha  de  fazer  ? 

São  sempre  variações  do  mesmo  thema  ;  a  idéa  fixa, 
a  aberração;  o  abysmode  Pascal. 

Opensamento  da  liberdade  humana  baifj  do  alto,  foi 
dtcrttaáo  in  excelsis.  Certamente:  quem  o  duvida  ? 

Sim,  foi  decretado  m  cxcelsis  no  dia  em  que  o  fí^^ 
demptor  desceu  á  terra  e  proclamou  a  rcdempçâo  dos 
captivos  e  o  dogma  da  fraternidade  humana,  e  o  maior 
numero  dos  preceitos  do  decálogo— Gloria  a  Deus  nas 
alturas . 

Sim,  baixou  das  alturas  da  philosophia^  nâo  menos 
que  da  religião,  para  esclarecer  a  guiar  as  socie- 
dades. 

m 

Sim,  baixou  das  alturas  do  direito^  do  verdadeiro,  do 
rtcrno,  do  ímmutiivel,  do  natural,  do  que  nao  varia 
com  os  tempos  e  as  circumstancias. 

Sim,  baixou  das  alturas  da  civilisaçâo^  que  se  nâo 
compadece  com  as  ruins  doutrinas  do  captiveiro. 

Sim,  baixou  das  alturas  do  consenso  unanime  da 
humanidade^  que  baniu  essa  instituição  para  nâo  sub- 
sistir senão  nas  paginas  tristes  de  mais  bárbaros  tempos, 
e  a  condemnou  para  nunca  mais  resurgir. 

Sim,  baixou  das  alturas  da  moral  social^  que  ante  essa 
instituição  velava  o  envergonhado  rosto. 

Sim,  baixou  das  alturas  da  politica  universal,  que  em 
todas  as  nações, sem  excepção  alguma,  apagou  dos  códigos 
a  mancfia  que  os  conspurcava. 


—  38  — 

Sim,  baixou  daa  alturas  da  economia  politica^  da  f/?- 
du&iria^  da  prodmção^  e  da  illustrada  experiência^  que 
nosmo.^tra  ser  a  honra  do  trabalho,  incentivo,  alimento 
e  premio  dellc ;  ser  estacionaria  a  sociedade  com  es- 
cravos ;  alar-se  eila  a  seus  magestosos  destinos,  desde 
que  se  lhe  desprende  esse  grilhão  ;  .vogar  ligeira,  desde 
que  â  nào  do  Estado  se  arranca  o  entorpecimento  du 
rémora. 

Não  serão  bastantes  esses  ín  é^rrcri^w,  essas  altnrast 
quereis  mais?  quereis  as  supremas  elevações  da  nossa 

terra  ? 

Não  sei  bem  como  o  mercúrio  do  vosso  barómetro  po- 
litico TOS  determine  e.^sas  alturas:  mas  honra  seja 
feiia  á  nossa  sociedade,  percorrei-as  todas,  e  cm  todas 
achareis  grafado  o  mesmo  sentimento. 

A  nossa  ma!^  elevada  eminência,  o  nosso  Himàlaya 
político,  a  residência  terrestre  do  nosso  Deus  Mahadeva, 
denominado  Op«ur(ío,é  o  primeiro  oráculo  que  devemos 
consultar :  elle  nos  respondessem  hesitação  nem  am- 
biguidades, que  a  escravidão  deve  acabar.  Seja  prova 
disto  o  eloquente  facto  de  hingnem  ousar  oppõr-se  á 
idéa  em  si  mesma:  a  opinião  publica  exige  pojs  o 
termo  da  instituição. 

Exigem-n*o,  Q^o  menos,  as  vozes  generosas  em  todo 
o  Império;  a  reproducção  dos  debates  sobre  este  as- 
sumpto, desde  o  dia  da  independência,  se  não  antes, 
e  com  especialidade  em  ambas  as  casas  do  parlamento 
lia  alguns  annos ;  o  desenvolvimento  que  vão  tomando 
as  espontâneas  alforrias,  concedidas  por  assembléas 
provinciaes,  corporações  pias  e  profanas,  particulares 
em  sua  vida  e  causa  niortis ;  o  profundo  estudo  feito 
sobre  esta  matéria  pelas  summidades  sociaes  que  cons- 
tituem o  conselho  de  estado;  a  organização  de  socie- 
dades libertadoras  c  de  jornaes  protectores  da  liber- 
dade em  numerosas  províncias;  finalmente  quantos 
elementos  sociaes  podem  gerar  a  persuasão  de  que  o 
sol  americano  sazonou  alíim  o  frucfo  opimo  da  li- 
berdade. 


Ahi  tendes  as  alturas^  e  n'outra  parte  nao  as  pro- 
cureis. Dissipai  da  vossa  imaginação  sobrexcitada  o 
daende,  o  espectro  do  poder  pessoal,  que  nada  tem 
com  a  questão,  a  qual  não  pertence  a  nenhum  indi- 
viduo, mas  ã  religião,  á  philosophia,à  politica,  á  hu- 
manidade e  á  pátria. 

Não  ha  contradicção  mais  flagrante  que  a  do  cava- 
lheiro que  pretende  rebaixar  o  soberano,  attribuin- 
do-Ihe  o  desejo  de  aspirar  para  a  sua  pátria  áquillo 
a  que  a  própria  pátria  aspira.  Se  é  certo  que  o  Im- 
perador do  Brasil  forma  votos  por  que  os  legisladores 
do  Brasil  consagrem  o  principio  que  o  Brasil  todo 
aceita ;  e  se  nem  ainda  assim  exorbita  um  ápice  dos 
seus  poderes,  a  nação  lh'o  agradece. 

Nada  mais  imprudente,  por  parte  de  quem  fdr  ini- 
migo da  realeza ,  do  que  attribuir  a  essa  realeza  o 
«neto  mais  glorioso  que  estes  tempos  legarão.  Bajulador 
involuntário,  aulico  invicto,  cortezão  ínnocente,  decla- 
rado palaciano,  será  o  que  só  barafustar  por  convencer 
<iue  a  nobre  idéa,  rellectida  do  Império  inteiro  no  animo 
do  Monarcha,  foi  o  animo  delle  que  a  dardejou  no 
Império  inteiro !  Tributo  o  devido  acatamento  i  pessoa 
do  Imperador,  mas  não  o  adulo  nem  o  incenso,  attri- 
buindo-lhe  mais  do  que  uma  opinião,  aliás  digna  e  pa- 
triótica, sobro  um  ponto,  que  só  os  nossos  estadistas 
poderão  resolver. 

—  Antes  de  transpor  este  assumpto,  direi  que,  se- 
fmndo  um  autor,  tem  o  homem  a  faculdade  de  trans^ 
formar-se  tão  promptamente  como  de  mudar  de  ves- 
tuário ;e  é  assim ;  toma  liçSes  dos  lepidopteros  e  outras 
creaturas,  que  successívameníe  se  nos  desflgurara  cm 
sementes,  larvas,  borboletas,  vermes,  etc,  etc,  se- 
gundo as  conveniências  da  sua  natureza.  Devemos  suppór 
que  a  politica  participa  algiim  tanto  dessa  natureza 
actifissima ;  aliás  nao  poderíamos  explicar  certos  phe- 
nomcnos . 

Na  minha  precedente  chamei  a  tua  attonçao  para 
umas  cartas  de  um  Erasmo,  amouco  do  Sr.  D.  Pedro  II 
cm  1800 ;  agora  te  rccovdaorci  ^lue,  ji  mcadjo  o  anno 


-Go- 
dé 1867,  forani  publicadas  Novas  cartas  politicas  de 
Erasmo  ao  Imperador^  cm  espirilo  diamelrajincnlo 
opposto  ao  que  diclára  as  Antigas,  Tivemos /pois,  um 
Erasmo  o  Velho^  typo  do  cortezãos  ,  e  um  Erasmo  aiíofo^ 
typodeaDti-dyaastícos ;  para  mim  tenho  quenâo  podiam 
ser  uma  e  a  mesma  pessoa ;  seriam  os  dous  Plinios. 
;  Seja  como  fôr,  direi  que  Erasmo  o  Moco  disse  tantas... 
altivezas  a  S.  M.  I.,  como  Erasmo  o  Velho  lhe  di« 
rígira....  amabilidades.  Parte  grande  dessas  cartas  rèovas 
versou  sobre  a  emancipação,  e  já  então  se  delatava  uma 
boa  vontade,  atè  neste  assumpto,  ao  Imperador,  tão 
bem  fundada  como  a  historia  do  qtiero  enão quero.  Ora, 
olha  tu;  os  crimes  do  poder  pessoal,  assacados,  a  pag.  12 : 
•  Libertando,  uma  centena .  de  escravos,  cujos  ser- 
viços a  nação  vos  concoddra  (1.*  mm^);  distinguindo 
com  um  mimo  especial  o  superior  de  uma  ordem  re- 
ligiosa que  emancipou  o  ventre  (2.*  críiwe);  esliniulan<lo 
as  alforrias  por  meio  de  mercês  honorificas  (3."  crime); 
respondendo  ás  aspirações  beneficentes  de  uma  sociedade 
abolicionista  da  Europa  (4."  crime);  e,  Onalmenle,  recla* 
mando  na  falia  do  throno  o  concurso  do  poder  legisla- 
tivo para  essa  delicada  reforma  social  (5,*  a^me);  sem 
duvida  julgais  ter  adquirido  os  furos  de  um  rei  phi- 
lanthropo  I  Grande  erro,  senhor  1  Prejuízo  rasteiro,  que 
não  devora  nunca  attingír  á  altura  do  vosso  espirito  1  » 

Ora,  em  verdade  qualquer  commentario  embaciaria 
este  aço  limpo  e  terso.  Censurado  o  Monarcha  porque 
os  seus  ministros  aconselham  na  falia  do  throno  o  con** 
curso  do  poder  legislativo!  Porque  um  desses  ministros 
responde  a  aspirações  beneficentes  I  Porque  estimula  al- 
forrias voluntárias!  Porque  aprecia  um  nobre  acto 
praticado  por  uma  ordem  religiosa  t  Porque  liberta 
uma  centena  áe  escravos! 

O'  Fabrício,  nâo  ó  este  o  caso  da  operação  gue  o  rei 
do  Olympo  pratica  naquelles  quos  Júpiter  vtUt  perderet 

Não  são  tudo  isto  versetos  de  um  responsorio,  ou  antes 
cânticos  de  um  hymno  em  honra  e  louvor  do  Imperante  ? 

II  me  snnble  voir  fc  diable 

Que  Dieu  force  à  loner  ks  saints. 


—  fil  — 

« 

Claro  cslá  que  naquelles  factos  níngucm  senão  Erasmo 
acharia  matéria  p^ra  rcprehensão;  suo  do  natureza 
adamantina.  Só  no  primeiro  poderia  um*  excesso  de  es- 
crúpulo demorar  algum  reparo;  e  e.>se  mesmo  apenas 
servirá  pura  provocar,  ao  contrario,  novos  tributos  do 
applauso  à  augusta  pessoa  que  se  pretendeu  deprimir. 

Oiz-se  alií  que  o  Sr.  D.  Pedro  libertara  escravos, 
que  a  nação  lhe  concedida  ;  e  isto  com  o  manifesto 
intuito  de  accusar  a  roaleza  de  dispdr ,  como  sendo 
seu  dominío,  daquillo  que  a  naçSo  apenas  em  usufructo- 
lhe  concedera. 

Pois  bem:  se  cu  não  estou  mal  informado,  mani*- 
festar-te-hci  um  facto  tanto  menos  conhecido  quanto 
mais  merece  que  o  seja ;  merece-o,  sim,  porque  se  a 
verdadeira  caridade  occuUa  á  mao  esquerda  o  que  faz 
a  direita,  a  terceiros  è  licita  a  revclarSo,  menos  para 
desnecessário  premio  que  para  nobre  incentivo. 

Consta-me  pois  que,  ha  largo  tempo,  nao  yè  o  Sr. 
D.  Pedro  entre  os  que  o  servem  nascer  um  só  escravo. 
E  por  que  artes  de  engenhosíssima  caridade?  Mandando 
na  pia  libertar  os  (llhos^das  suas  escravas,  e  satisfazendo 
loíTO,  do  sea  bohinho,  a  importância  dos^a  emancipação, 
cujo  valor,  para  que  não  seja  desfalcado  o  património  da 
corda,  é  íncontinenti  constituído  em  apólices,  que  ao 
mesmo  património  ficam  pertencendo.  H.irmoni:;e-se  a 
sin.í^eleza  da  narração  de  um  acto  dçsta  magnitude  (e 
om  que  a  virtude  se  escondeu  tanto  como  outros  escon- 
deriam malefícios),  com  a  sublime  singeleza  com  que 
tem  sido  praticado  ;  e  nem  ihais  uma  palavra. 

As  alturas^  portanto,  de  onde  o  projecto  baixou,  são 
a>  alturas,  não  do  poder  possoal,  mas  da  razão,  da  jus- 
tiça, do  direito  e  do  futuro  desta  grande  nação. 


Cumpre  não  abusar  da  tua  condescendência.  Fique- 
mos hoje  por  aqui,  mas  já  que  dei  principio,  voltarei  a 
imporlunar-te.  Eu  não  te  aconselho  que  publiques  estas 
e\lravagancias  de  um  »pobre  inhcnho;  e  de  mais  eu 


—  62  — 

nâo  quero  revolver  a  bíie  de  ninguém,  e  muito  menos 
de  quem  tiver  a  innocentc  infelicidade  de  estar  acom- 
mettido  de  alguma  idéa  fixa. 

Tu  sabes  o  que  é  uma  macuca  ?  uma  ave  gallinacea, 
espécie  de  perdiz  grande,  de  cujos  ossos  se  diz  que  a 
applicaçSo  cura  as  mordidelas  da  cobra?  Pois,  meu 
amigo,  em  1835,  achando-mc  eu  em  Minas,  conheci  lá 
uma  velha  que  tinha  a  mania  de  se  crer  transformada 
em  macuca,  e  dava  por  páos  e  por  pedras  quando  alguém 
llíe  dizia  que  nSo  era  tal ;  a  familia,  por  ordem  do 
medico,  deixava-a  fazer  o  que  lhe  dava  na  tola,  e  a 
boa  da  mulher  fez  o  seu  ninho  em  um  grande  cesto, 
aonde  estava  sempre  acocorada  e  assegurava  a  quem 
ia  visitaUa  que  d*aili  a  pouco  lhe  viriam  as  macuquinhas. 
E  era  mentira,  nâo  sahiu  nem  uma! 


Teu  velho  amigo. 


Cincinnato. 


CARTA  A- 


Oh  Fabrício! 

Isto  de  escrever  é  como  o  coçar ;  peíor  é  principiar» 
lá  que  tens  a  paciência  dé  aturar-me,  queíxa-ie  de  ti 
mesmo.  Eu  ando  com  meus  barruntos  de  partir  um  dia 
destes  para  essa  corte,  aonde  me  chamam  ha  um  anno  os 
metts  altos  negócios  do  Estado ;  tudo  nesta  fazendola  ha 
mister  de  reforma ;  estive  hontem  pondo  ao  ar  os  pre- 
paros de  jornada  e  flquei.  petrifícado  i  nem  sequer  os 
aprestos  de  marcha  !  ponche  esburacado,  rebenque  roido 
dos  ra  tos,  ciiapéo  de  Chile  traçado,  cochenílho  sem  pello, 
chilenas  sem  rosetas,  tudo  uma  miséria ;  mas  eu  pre- 
ciso ir  á  corte,  ainda  que  seja  a  trancos  e  barrancos, 
mercar  para  a  gente  carne  secca,  baetâo  e  outros  tecidos 
felpudos,  e  caturrar  com  o  correspondente,  a  ver  se  me 
cahe  com  algun^;  contitos  para  certos  arranjos.  Se  tu 
me  não  embaças,  asseverando-me  qucahi  nâo  h\  bexigas 
(que  saoomeu  Adamastor^  a  minha  estatua  do  commen* 
dador,  o  meu  poder  pessoal,  o  meu  terror-mór),  que 
Dielhor  occasiáo  posso  eu  escolher?  Já  nâo  apanharei 
Ho>sí,  Taborda,,  nem  Emilia  Adelaide;  mas  nem  todos 
05  cómicos   representam  no  palco,  e  sempre  ahi  hei  de 


-  Cfi  — 

não  famn,  a  algodão  que  não  tece ;  e  as  barras  de  nossos 
portos  são  a  origem  de  nossa  prosperidade.  Estamos  na 
dependência  quotidiana  do  elemento  estrangeiro ;  é  cs- 
tulticie,  além  de  ingratidão,  repellíl-o. 

E  que  pensas  tu,  meu  Fabrício,  da  doutrina  mahome- 
tana  que  arrebata  ao  estrangeiro  a  faculdade  de  pensar? 
Está  boa  esta!  Consínto-lhe  quo  venha  flxar-se  em 
nossas  terras ;  que  nellas  goze  dos  mesmos  direitos  civis 
que  os  naturaes ;  que  como  estes  regule  a  sua  proprie- 
dade ;  que  funda  os  seus  interesses  nos  da  nossa  asso- 
ciação... mas  vendo-lhe  os  olhos,  e  tapo-lho  a  boca  • 
não  ha  de  ver,  nem  fallar  sobre  aquillo  que  importa  a 
elle  tanto  como  a  nós ;  se  divisar  um  recife  à  proa  do 
navio  em  que  vai  embarcado  comnosco,  condcmno-o  se 
elle  ousar  chamar  a  attenção  dos  oíTiciaes  de  bordo  ! 

Ha  mais.  Nós  arrogamo-nos  o  direito  de  emittir  opi- 
nião sobre  o  que  se  passa  no  mundo  inteiro  ;  quer  o  Sr. 
Alencar  que  ao  mundo  inteiro  vedemos  boqueje  sobro 
cousa  alguma  que  nos  interesse !  Os  retrospectos  annuaes 
da  nossa  imprensa  relatam, criticam,  exaltam  ou  depri- 
mem quanto occorrea  durante  oanno  transacto  nas  outra» 
naçGes ;  os  membros  dessas  nações  hão  de  ser  uns  fucos 
vesiculosos,  umas  alforrecas  inertes,  que  apenas  servem 
para  na  praia  se  calcarem !  Nos  parlamentos,  nas  so- 
ciedades, na  imprensa,  nos  colloquios,  podemos  des- 
cretiar  e  sentenciar  sobre  o  que  se  passa  fora  do  paiz; 
não  ha  de  quem  não  seja  do  paiz  expender  sequer  du- 
vidas ou  animar  esforços,  tratando-se  de  questões  que 
pertençam,  não  a  nós  individualmente,  mas  á  humani- 
dade inteira \ 

Não  pôde  ser.  Sou  muito  conservador,  muito  liberai 
e  muito  tolerante.  Não  rechaço  a  discussão,  venha  ella 
de  onde  vier.  Quero  luz!  quero  luz!  e  não  pergunto 
á  luz,  se  me  è  projectada  de  azeite  francez,  de  sebo 
montevideano,  de  gaz  inglez,  de  petróleo  americano, 
de  cora  italiina,  de  mamona  ou  carnaúba  nacional. 

Todos  os  espiritos  illustrados  e  por  isso  rectos,  rectos 
e  por  isso  tolerantes,  prpciamam  entre  nòé  esta  nobre 
doutrina;  mas   para  contraposição,  bom  é  que  surda 


-  67  - 

pnrabi  algum  Luu  XI  cm  mlaialura,  que  laçiilo  seu 
Inrbclro  •>  mais  íntirno  conliílcnio;  alí<:uni  conslrue- 
lorsiuho  iJe  muralli;)  tarlara,  altruni  Fnncín-niiriín 
i|ai;  innriac  o  seu  Império  a  todos  os  estrangeiros. 

Faz-Die  este  [lonlo  comitliScs  de  mais  lar^its  ilcsea- 
volv [mentos,  nus  nàu  devo  uloiigiir<mc;  alii  Iílíi  j.'i  fi.-ila 
a  c»m3  pira  o  assuiilplo  a  (juc  me  .irrastani  os  scguiulL>s 
trechos  do  discurso  do  Sr.  Alencar: 

•  Este  projcclv  é  um  cortejo  â  opinião  cslraiiQeira.  54 
tfm  o  intuito,  de  se  dizer  a  algitem :  Senhor,  por  ate  acto 
nxM»  nome  uii^uirini  uma  famit  imperecível.  Resignese  a 
n/resa.  ate  que  n  interfenfão  de  ali/uma  socieilnde  nlrangeira 
imteprla  fua  Uberdade,  Ou  emnncipadoreu  obedecem  ao»  iin- 
pulfos  da  opinião  estrnnfieirã.  Nada  mais  tialuraldo  que  siijt. 
pór-sií  iiue  se  procurasse  um  estrangeiro,  para  dar  d  proposta 
eertú  resaibo  d'alén-mnr.  A  idi-a  de  eiimncipação  c  um  pro- 

dutto  de  fabrica  europea,  consignada  ao  dono  da  terra,  ttc.  > 
ToJo  isto  Jâo  uns  enredozinlios,  uns  cstralaíenia- 
xtnltoa  para  desvairar-se  a  opinião  nacional,  iiidispt}I-a 
ifljiutamcnic  com  o  projcclu,  servir  ã  niorma  do  poder 
pmoal,  e  prosar  cruuda  conlra  estrangeiros,  a  qual 
««ni  capítaniiadu  peto  mandarim  Fu-Ti-liOou-fu,  que  já 
na  seu  barrete  arvorou  a  pfnna  de'pavâo. 

Pelo  que  vejo,  a  politica  rccoínmcndaiia,  a  nitra- 
rliiaeia,  cúasislc  cui  fazermos  ni^  o  contrario  do  que 
a  liamanidade  praticar;  niioòassim?  Todas  as  oulrai^ 
nac^Sos  são  estrangeiras;  ergo  se  todas  cilas  disserem 
— eocamido— tanto  basla  para  nós  dizermos— aznl — ; 
(lis  licença  que  cliame  a  isto— poííííOí  de  íesourinha'1 
Com  «sie  antagonismo,  não  lique  pildra  sobre  pedra; 
íílra  rom  a  religiàQ  que  veio  da  Palestina ;  com  as 
inslílDífJicit,  quo  vJLTam  da  luglalerra;  comacivíli- 
uçío,  qDC  veio  de  toda  a  parto. 

Sun.  o  género  Iiunuao  é  aocúrdc'  em  que  o  homem 
Aio  deva  ser  objecto  do  compra  e  venda  ;  e  nada  mais 
reneraodo  que  o  esforço  teiti  neste  sentido  por  naçOes, 

ciedacjes  ou  individuo»,  nasecssem  onde  nascossem, 

ai  cujos  desinteressados  trabalhos  sO  ti^m  por  a4vo 

regeneração  da  tiumana  e-^poeic. 


-  68  - 

Quem  reprova  esforços  laes,  quem  julga,  com  o  labéo 
de  estrangeiros,  conspurcal-os,  vá  mais  longe;  styg- 
matize  até  as  missões.  Que  criminosos  não  foram  os 
estrangeiros  que,  sahindo  das  mais  adiantadas  terras, 
ousaram  pregara  palavra  divina  nas  Índias,  na.Chipa, 
no  Japão,  na  Oceania,  em  todo  o  Novo  Mundo  1  Que 
criminosos  não  foram  Pedro,  João,  Thiago,  Matheus, 
Thadeo,  Paulo  e  outros  apóstolos,  a  quem  o  Redem- 
ptor  ordenou  que  fossem  doutrinar  nas  terras  estran- 
geiras  1 

Os  apóstolos  da  emancipação  das  almas  Sião  também 
evangelisanles,  e  a  voz  de  quem  clama  pela  verdade, 
sóe  d'onde  soar,  merece,  não  repulsa,  mas  acatamenlo- 

Seja  dito  em  honra  do  paiz:  O  caracter  brasileiro, 
fifeneroso,  recto,  hospitaleiro,  repelle  a  obsoleta  dou- 
trina ;  tudo  quanto  6  verdadeiramente  liberal  acolhe, 
aceita,  provoca  a  manifestação  dos  pareceres,  venham 
ellesd'onde  vierem;  presta  culto  sobretudo á  imprensa, 
à  opinião,  rainha  do  globo,  e  não  rainha  de  tal  ou  tal 
parallolo.  Que  importa  portanto  que  uma  voz  desafine? 
Uma  andorinha  não  faz  verão.  O  voto  illuslrado  de 
quem  tem  voto,  é  que  dave  condemnar-se  ao  desprezo 
a  cerebrina  theorla  de  devor-se' rechaçar  uma  lei,  só 
porque  as  summidades  da  nação  a  consideram  util,  e 
só  porque  essa  lei  representa  uma  aspiração  do  mundo 
inteiro!  Thjcses  são  estas  que  basta  descarnar. 

Vou  mais  longe ;  e  digo  que  em  quasi  todo  o  mundo 
civilisado,  a  base  de  cada  lei  vem,  por  via  de  regra, 
de  regiões  estrangeiras.  E  apparece  quem  aconselho 
que  façamos  uma  excepção  a  esta  regra  da  sabedoria 
e  da  prudência  universal  1 

E  os  que  se  esforçam  (indirectamente,  mas  de  facto) 
por  perpetuar  a  escravidão,  a  que  fontes  vão  elles  pró- 
prios buscar  o  seu  imaginário  direito?  á  mã  antigui- 
dade européa ;  vão  hauril-o,  pelo  menos,  da  parto  mais 
injuridica.  mais  indigna,  do  velho  corpus  júris  civilis^ 
que  são  todas  essas  disposições  dcshonradoras  do  Ji- 
reito  de  familia,  autorizando  a  escravidão,  no  mesmo 
código  que  também  autorizava  as  relações  do  marido 


—  69  — 

leíraimonle   (yranno  pnra  com  a  mulher    súbdita,  do 
pai  omnipotente  para  com  os  íilhos  vassalos. 

Ni  Itália  e  no  sul  da  Franca,  nas  terras  do  direito 
escriptOy  toda  essa  jurisprudência  romana  lançou  fundas 
raizos.  Na  França  é  ella,  a  cada  passo,  invocada  em 
apoio  das  próprias  prcscripções  do  codip:o  civil.  Os  tri- 
banaes  ecclesiasticos  na  Inglaterra  e  Escosi&ia  seguem 
geralmente  esse  direito  estrangeira  como  regra.  Na 
Allemanha,  o  direito  romano  foi  legalmente  consagrado, 
confirmado  nas  leis  do  império;  por  exemplo,  no  re- 
gimento da  camará  aulica^  e  em  grão-numero  de  leis 
locaes,  particulares  a  certoi  paizes.  O  mundo  moderno 
emfim  vai  lodo  prestar  homenagem,  como  jus  subsi- 
diário, áquella  legislação  estrangeira ;  melhor  faltando 
da  jurisprudência  que  de  tudo  o  mais,  ^  pôde  Rutilio 
dizer  á  sua  Roma  : 

Pecisti  patriam  diversis  gentibus  umm. 

A  base  actual  da  legislação  áo  Brasil  é  ainda  hoje, 
em  grSo-parle,  a  de  Portugal.  A  nossa  lei  de  20  de 
Outubro  de  1823  determina  que  a  legislação  do  Império 
abranja  a  daquelle  'Outro  Estado,  até  25  de  Abril  de 
1821,  e  os  decretos  das  cortes  porluguezas  ahi  especi- 
ficados. E  já  a  ordenação  do  llv.  3.*  tit:  64,  tinha  es- 
tabelecido que,  nos  casos  omissos  na  legislação  nacional, 
regulasse  legislação  estrangeira.  Acaso  todas  aquellas 
naçOes  (e  nós  com  ellas)  se  consideram  desairadas,  por- 
que semelhantes  disposições  foram  originariamente 
proclamadas  para  além  das  suas  fronteiras? 

Bis  ta.  Ha  tanta  procedência  em  suscitar  op  posição  a 
leis  justas  por  ciúmes  internacionaes,  como  já  mostrei 
que  a  haveria  cm  desafial-a  por  ódio  à  pessoa  do  Im- 
perante. 

—  Liga-se  ainda  outra  à  dupla  accusação  contra  o 
poder  pessoal  e  contra  tudo  quanto  é  estrangeiro. 

Diz  o  Sr.  Alencar  que  c  esses  trabalhos  do  conselho  de 
estado^  que  o  gabhiete  com  tamanha  repugnância  remetteu 
d  camará^  haviam  sido  communicados  aos  membros  da  junta 
central  abolicionista^  e  citados  na  conferencia  que  houve 
nn  Pariz  a  26  de  Agosto  de  1867,  como  consta  das  actas 


—  70  — 

das  suas  sessões^  levando-se  o  desprezo  a  tal  ponto^  que  o 
paiz  não  teve  conhecimento  do  facto  senão  de  torna* 
viagem.  9 

So  o  attentado  horrendo  foi  praticado  cm  1867,  csle 
governo  nondum  natus  erat^  c  podia  dizer  ao  seu  illus- 
tre  accusador  t  Deus  o  faroreça,  irmão  ;  bata  a  outra 
porta !  t    . 

E  SC  css*outra  poria  tivesse  a  condescendência  de 
abrir-se-lhc,  talvez  lhe  perguntassem  de  dentro: 
«  Quem  lhe  disso  ao  senhor,  que  foi  o  governo,  ou 
poder  pessoal,  que  mandou  para  a  Europa  esses  folhetos 
impressos,  tirados  em  assaz  avultado  numero,  c  de  que 
algum  exemplar  pôde  ter  cabido  em  mãos  de  amigos 
daquella  sociedade?  Muito  mais  secreto  era  o  tratado 
da  tríplice  alliança,  e  além  disso  manuscripto,  e  là 
viajou  de  Montevideo  para  Londres,  sem  ser  levada 
pelo  phantastico  paquete,  denominado  Poder  Pessoal. 
Boas  noites ;  temos  conversado.  » 

Façamos  porém  de  conta  que  se  descobriu  o  cul- 
pado do  monstruoso  sacrilégio.  Pallido  e  tremulo  acudi- 
ria c^se  misero  á  bnrra  do  tal  juiz,  c  Jhe  diria  em 
vozes  entrecortadas  :  t  Suspenda  V.  Ex.  o  seu  alfange, 
e  seu  inclyto  poder  pessoal,  mais  rutijantc  que  os 
possoaes  de  quem  qucfr  que  seja. 

c  Eu  sou  Brasileiro,  muito  amante  de  minha  pátria. 
Desejo  por  honra  e  interesse  delia  ver  finda  a  insti- 
tuição do  captiveiro.  Como  apanhei  um  exemplar  das 
actas  do  conselho  de  estado,  não  o  divulguei  aqui^mas 
dei-o  a  um  amigo,  que  o  mandou  para  Pariz,  com  meu 
conhecimento. 

c  Almejava  o  meu  amor  da  pátria  por  que  na  Europa 
soubessem  os  que  se  occupam  activamente  da  questão, 
os  que  ouvem  tanta  gente  infamar-nòs  de  escravocratas, 
que  o  Brasil  não  merece  os  apodos  de  que  era  victima, 
trabalha  para  equiparar-se  a  todas  as  nações,  e  estuda 
o  modo  de  o  fazer,  sem  sacrifício  de  vastos  interesses 
creados  por  lei.  Entendi  que  o  conhecimento  desse  li- 
vrinho não  tinha  inconveniente  tilgum  naquella  terra 
onde  è  já  domínio  dos  prelos  quanto  se  ha  dilo  e  possa 


—  71  — 

dizer  sobre  a  magna  questuo ;  mas  que  no  Brasil  é  que 
não  era  pruJ^nX^  vulgar isar  taes  trabalhos,  antes  do  dia 
em  que  a  IJiese  tivesse  de  ser  tratada  em  parlamento, 
porque  é  incandescente,  perigosa  quando  extempo- 
rânea, e  da  natureza  daquellas  para  as  quaes,  apenas 
aí^itadas,  naodeve  haver  um  amanhã;  toda  a  solução 
é  preferivel  a  uma  suspensão. 
•  t  Se  errei,  perdôe-me  V.  E^. ;  mas  já  vé  que  foi  por 
patriotismo  que  o  livrinho  viajou  para  a  Europa ;  por 
patriotismo  que  no  Brasil  o  não  divulguei ;  por  pa- 
triotismo que  os  successivos  gabinetes  julgaram  que 
tal  publicidade  era  prematura.  » 

E  o  mais  galante  seria  vir  correndo  o  accusado  e 
di2er-me  ao  ouvido  que  ninguém  ha  menos  habilitado 
que  o  Sr.  Alencar  para  atirar  esta  pedra, '  pois  no 
mesmo  discurso  declara  elle  que  teve  tanto  conhe- 
cimento dos  trabalhos  do  conselho  de  estado,  que  sobre 
elles  discutia  com  a  coroa,  e  os  mandou  archivar ; 
portanto,  sobre  elle  recahe  a  sua  própria  censura,  de 
nio  terem  sido  apresentados  esses  trabalhos  ao  par- 
lamento, procedimento  com  que  contrasta  o  do  actual 
ministério,  que  entregou  tudo  á  publicidade ,  apenas 
chegou  o  dia  dos  debates,  sem  a  denunciada  repug- 
nância, antes  com  o  intuito  de  contribuir  assim  jMira 
que  tão  estwiado  assumpto  seja  sabiamente  resolvido. 


Tive  qae  levantar  a  penna. 

Qae  historia,  que  historia,  meu  Fabrício ! 

E'  já  quasi  chegada  a  hora  do  correio,  e  deixo  o 
caso  de  remissa ;  mas  sempre  te  quero  prevenir  do 
segainte:  Estava  eu  disposto  ainda  a  continuar  este 
aranzel,  quando  ha  meia  hora  ouvi  uma  algazarra  no 
campo  do  sitio ;  cheguei  á  janella,  e  vi  um  grupo  de  20 
ou  25  aggregados  e  vizinhos,  que  vinham  precedidos  de 
um  tocador  depuita.  Abri-lhes  a  porta,  e  então  soube 
eu  que  aquella  boa  gente,  ouvindo  aos  meus  paizinhos 
que  eu  partia  amanhã  ou  depois  para  a  cdrte,  vinha 
despedir-se  de  mim,  e  pedir-me...varíasque  cousas. 


—  72  —  ^ 

O  impagável,  porém,  c  a  chaiileriiidadc  com  que  se  me 
apresentou  um  bom  preto  que  aqui  ha,  chamado  o 
Panturrào^  o  qual  me  leu,  e  depois  depositou  em  minhas 
augustas  mãos  uma  mensagem,  em  nome  dos  meus 
vizinhos ;  o  peior  foi  o  comportamento  do  meu  mo- 
leque Adão,  que  me  ia  entornando  o  caldo,  como  para 
outra  vez  te  direi. 

O  Panturrão  accumula :  é  barbeiro,  ensina  primei- 
ras e  segundas  letras ,  faz  uns  pasteis  que  é  mesmo 
comei-me,  comeí-me,  e  amola  facas  e  tesouras.  Este 
benemérito  enthusiasmou-se  por  certo  estilo^  cheio  de  eru- 
dições e  de  et  costeras,  que  por  ahi  apparece  ás  vezes  e  as. 
pira  a  imital-o.  O  maganão  do  meu  moleque  Adão  está 
com  12  annos  feitos,  aprendeu  a  ler  com  o  padre 
Tiburcio  e  já  é  capaz  de  dar  sota  e  az  a  qualquer; 
é  um  azougue,  benza-oDéus.  O  atrevido  fez  uma  scena 
jocosa  ao  Panturrão,  e  tão  mal  creado  que  nada  servia 
mandal-o  eu  calar;  foi  a  vergonha  da  minha  cara. 

Se  tiver  tempo,  antes  de  partir  transcrever-te-hei 
a  referida  mensagem  com  que  engordei  a  olhos  vistos, 
e  repetir-te-hci  algumas  das  observações  do  meu  endia- 
brado  moleque. 

Santa  Rita  de  Cássia  te  tenha  na  sua  santa  guarda. 


Teu  velho  amigo, 
Cincinnato, 


QUESTÕES   DO   DIA 


MT. 

RIO  DE  JANEIRO,  29  DE  AGOSTO  DE  1871 


Heflexões    politicas  •     dirigidas    pelo  roceiro    Cin- 

cinnato    ao    cldado    fnabrioio 


CARTA   QUINTA 


RIO   Bíi  JANEIRO,    20   DE   AGOSTO  DE    1871. 


Esta  nao  se  faz,  cidadão  Fabrício,  aaose  faz.  Vir  eu 
da  minha  Tliebaida  a  cavallo  na  mulinha,  tico-tico,  ato 
n  corte  ;  esperar  o  alegrão  de  abraçar  o  amigo  velho,  e 
ficar  com  cara  de  palmo  e  meio,  ao  ouvir  dizer  à  coma- 
dre que  partiras  para  Pindamunhangaba  1 

E'  duro.  Tua  mulher  cá  me  entregou  a  carta  em  que 
explicas  os  urgentes  motivos  da  tua  súbita  jornada,  e  me 
ordenas  te  retribua  eu  na  mesma  moeda  de  que  és  meu 
credor,  dirigindo-te  agora  umas  ephemerides  do  que  por 
aqui  se  está  passando,  ou  pelo  menos  continuando  a  mi- 
nha  analyse  do  sabido  discurso,  e  do  sabido  orador.  Seja 
assim  ;  empregarei  as  minhas  noites  nesta  divertida  oc- 
cupaçao,  já  que  o  rheumatismo,  a  gota  e  os  calos  me 
privara  de  fácil  locomoção. 

Ha  coincidências  estupendas.  Chego  hontera  k  tarde, 
e  eu  que  lá  no  sitio  não  sabia  ainda  das  honrarias  que 
drsvo  ao  meu  idolo  politico,  caio  das  nuvens,  quando  me 
trazem  ao  almoço  o  Jornal  do  Comincrcio^  onde  leio  (jue 
'^  Sr.  José  de  Alencar  empalmou  á  tarefa  politica  todo  o 


tempo  de  uma  das  ultimas  sessões  parlamentares  deste 
anno,  para  me  roer  nos  calcauhares  e  pôr  a  minlia  insig- 
nificante pessoa  na  ordem  do  dia  I  Darás  licença  por- 
tanto para  eu  intercalar  umas  cartinhas  sobre  a  incrivel 
sessão  do  dia  5  do  corrente.  Nilo  vale  nada  a  minha 
pessoa,  mas  vale  muito  o  aresto;  ha  fervuras  em  que  Im- 
portadeitar  agua;  venço  a  repugnância,  e  venho  à  scena. 

—  Antes  de  mais  nada,  pasmo  da  longanimidade  da 
camará,  ao  consentir  d'est'arte  o  atropêllo  de  todítô  as 
conveniências,  a  protelaçao  dos  mais  serio.'^  debates,  o 
descurar  dos  mais  vitaes  interesses,  o  despreso  das  dis- 
posições do  regimento  por  que  deve  dirigir  se;  e  ao  tole- 
rar que  tudo  isto  se  sacrifique  a  certos  orgulhos  gárrulos, 
que  levam  horas  a  repizar  trivialidades,  a  injuriar  o 
género  humano,  e  a  dar  tristes  documentos  de  incapa- 
cidade politica. 

Invoco  as  tuas  recordações,  Fabrício.  Reconhecerás 
que  esta  minha  correspondência  começou  por  testimu- 
nhos  exaggerados  de  consideração  para  com  o  Sr.  Alen- 
car. Trouxera  elle  á  imprensa  descabelladas  verrinas 
contra  o  Poder  Pessoal.  Suppondo  eu  que  fosse  uma  these 
omnipatente  á  discussão  que  elle  mesmo  desafiava,  es- 
crevi-te  a  esse  respeito  sem  me  desviar  um  apse  do  terreno 
licito,  do  politico ;  e  recordar-te-has  de  que  a  esse  senhor 
attribui,  por  meus  peccados,  appreciaveis  dotes  como 
escriptor,  estadista,  romancista  e  orador  (  Antes  da 
quaresma  me  confessarei  desse  peccado].  A  paga  nao  se 
fez  esperar,  nao  senhor  :  começou  por,  de  logar  inacces- 
sivel,  me  arremeçar  as  insinuações  desagradáveis,  sobre 
que  já  falíamos  ;  agora  vejo  que  as  completa  com  os  iu 
sultos  mais  ferinos,  com  as  calumnias  mais  próprias  para 
revelarem  o  caracter  do  provocador  ;  muda  o  negocio  de 
figura.  Batido  em  todíis  as  discussões,  refugia-se  era 
abrigada  casamata,  d'onde  me  atira  mortaes...,  pipa- 


ruteá.  Jiilfrava  esse  senhor  que  com  seus  ademaes  me 
atemorisaria ;  ai,  níío;  aqui  metem. 

Ha  quem  timbre  na  sublimidade  do  muito  fallnr;  lá  o 
virou  nao  a  propósito,  importa  pouco  ;  comtanto  que  a 
azenha  rode,  que  môa  ou  nao  moa  o  trigo,  ou  a  paciên- 
cia, é  o  mínimo  de  que  o  Pretor  nao  cura.  Ai,  venerando 
Fabrício,  desadoro  com  galinha,  que  leva  a  cacarejar 
sem  pôr  ovo.  (Tem  tu  paciência,  que  eu  aprendi  com  um 
pensador,  que  diz  que  se  nao  devem  tratar  ao  serio  senão 
as  cousíis  serias  : 

Co'  a  matéria  convém  casar  o  estvlo. 

—  Levante-se  a  expressão  se  é  grande  a  idéa; 

—  se  a  idéa  é  negra,  a  locução  negreje ; 

—  e  ténue  sendo,  se  attenue  a  phrase. 

Mais  ténue  do  que  istonão  ha  nada. 

Sirva  pois  a  regra  para  minha  justificação  de  ora 
avante;  onde  me  vires  rir,  é  porque  considero  a  cousa 
risivel). 

Ora,  toca  a  dissecar  a  eloquente  arenga,  com  que  o 
campanudo  orador  esteve  escarnecendo  do  parlamento. 

— Principiou,  jurando  que  fugiria,  como  diabo  da  cruz, 
dos  exercicios  oratórios ;  é  de  crer  que  logo  os  ouvintes 
«6  entre  segredassem  que  iam  assistir  a  nao  mais  que  um 
exercício  oratório.  Mas  enganar-se-hiam,  confesso,  pois 
ao  que  iam  assistir  era  amais  desbragada  descompostura 
a  tudo  e  a  todos,  com  uma  raiva,  um  phrenesi  tal,  que 
eu  recommendo  cautela,  pois  nos  ataques  de  hydro- 
pliobía  morde-se  com  aquella  sanha.  Aqui  as  dentadas 
foram  em  tudo  quanto  o  rodeava  de  facto,  ou  lhe  atro- 
pellava  o  cérebro  rábido. 

—  Dentada  no  ministro  do  império,  por  dois  crimes  : 
V  ter  só  feito  nesta  sessão  dois  discursos,  2**  serem  estes 
ao  lusco- fusco. 


—  Dentada  no  presidente,  que  Uie pedia  (quando  de- 
via mandar-lhe )  se  conformasse  com  o  art.  217  do  regi- 
mento ;  attribue-llie  o  plano  de  restringir  a  liberdade 
da  tribuna;  e  ameaça  a  pátria  de  a  deixar  na  orphan- 
dade,  privando-a  dos  seus  falatórios,  em  que  sempre 
apparece  representada  uma  scena  dos  Vemandistas^  de 
Racine,  ou  em  que  a  propósito  de  uma  avella,  se  des- 
crevem todolos  successos  para  cá  do  diluvio. 

—  Dentada  no  Poder  Pessoal;  isto  já  se  sabe;  nao 
havia  remédio  senão  coçar  na  borbulha.  E'  mofina  para 
a  qual,  embora  calhe  como  canção  de  noivado  em  cemi- 
tério, ha  sempre  opportunidade.  Coitadinha  da  macu- 
quinha  I 

Aqui  agora,  houve  um  intervallo  nas  dentadas,  porque 
S.  Ex.  fallou  de  si,  e  é  essa  a  única  pessoa  em  quem  nSo 
morde.  Ora,  como  esta  carta  é  nao  menos  um  relatório, 
eis  como  o  caso  foi ;  vá  também  de  entreacto.  Desenfar- 
delando  citaçõ^is  (sem  serem  da  esckola  ingleza^  d'esta 
feita),  comparou  se,  modestamente  como  sempre,  com  o 
grande  jurisconsulto  Labeon,  a  quem  os  contemporâneos 
tinham  por  louco,  attenta  **a  austeridadee  rigidez  do  seu 
caracter,  e  o  seu  amor  á  liberdade,  incorrupta  liberlatc^ 
dice  Tácito''.  Isto  nao  faz  mal:  quanto  á primeira  parte, 
.  a  da  comparação  com  o  impávido,  acérrimo,  rigido  e 
aspérrimo,  quem  ha  de  gabar  a  noiva,  senão  o  pai  que  a 
quer  casar  ?  quanto  á  segunda,  (  se  a  intenção  foi 
attribuir  a  narração  a  Tácito,  que,  a  mio  ser  assim,  en- 
traria aqui  como  Pilatos  no  credo )  nao  passa  de  unia 
citação  falsa,  que  nao  quebra  osso,  e  demonstra  alta 
sabença,  visto  como  d'est'arte 

aqui  vão  berrando 

os  échos  das  bombas 

que  estalam  nas  trombas 

dos  rhinocerontes. 


amphiyuri,q\in^i  como  o  do  Filinto.  Tácito  nunca  appli- 
cou  a  LabeoD  a  locução  incorrupta  lib&r late ^  pela  simples 
circumstancia  de  que  nunca  escreveu  uma  só  palavra  a 
respeito  dotal  estouvado:  nos  -4/inaes  fallou,  sim,  de 
um  Labeon  (IV  47,  VI  29)  mas  esse  era  o  Pompeio,  e  de 
outro  Labeon  (II  85),  mas  esse  era  o  Titidio,  e  nao  mais  se 
occupou  da  família  dos  beiçudos ;  ora  o  tal,  do  liospicio 
de  Pedro  II  do  tempo  (.e  Augusto,  era  Labeon  Antistio. 
Cá  o  nosso  preclaro  orador  ouvio  cantar  a  gallo,  mas  nao 
soube  aonde  ;  leu  isso,  nao  em  Tácito,  mas  em  alguma 
colleçao  franceza  de  anecdotas,  ou  em  algum  Supico,  e 
fez  muito  mal  om  comparar-se  com  Labeon.  D'esse  pa- 
peou,  por  exemplo,  Aulo  Uellio  (XIII  12)  que  do  tal 
jurisprudente,  sábio  e  mentecapto^  repete  o  seguinte: 
"  Sed  agitabat  honiinem  libkrtas  quoedam  nimia  atquií 
vfXORs ;  iisque  eo,  ut  ratuin  pensumque  nihil  haberet^  nisi 
fpiotl  jiiMum  sanctunique  esset^  in  romanis  anliquiiaíibns 
lerfissel  "\  Ora  ali,  no  yí?co/*5,  pôde  haver  suas  duvidas, 
porque  o  endiabrado  vocábulo  exprime,  umas  vezos 
doudo,  outras  furioso,  e  outras  tolo  ;  mas  quanto  ao 
re.sto  a  tradução  é  clarissima.  A  palavra  nimio  quer  dizer, 
fletnasiado^  ftobejo^  demais,  O  Sr.  Alencar  já  nos  participou 
quí^  era  nimiamente  severo^  severo  de  mais  :  o  Labeon 
lambem  ([ueria  liberdade  de  mais  \libe7*t(U{nimià.;  masd'alii 
por  diante,  não  senhor,  nâo  admitto  comparação,  visto 
que  o  romano  levava  as  suas  exigências  a  ponto  do  lou- 
cura ou  de  toleima  [atfjue  vecors]  ;  mas  entendessem  lá 
o  tal  romano  !  liberalfio  dos  quatro  costados,  quando 
berrava  por  liberdade  infinita  ;  e  ao  mesmo  tempo  cor- 
cunda de  papo  amarello,  quando  bramava  por  que  se 
não  bulisse  nas  idéas  antigas.  Mas  aqui  outra  vez,  sim; 
entrevejo  suas  paridades  :  era  um  Erasmo  o  Moço,  e  um 
EIrasmo  o  Velho,  de  pernas  para  o  ar.  Acabou  o  eu- 
treacto  ;   prosogue   a  comedia   das  Dentadas, 


8 


—  Dentada  em  Horácio,  porque  vilmente  chamou 
insano  a  Labeon^  para  agradar  ao  seu  protector  Mecenas, 
como  os  actuaes  Mevios  sao  proteg^idos  pelo  presidente 
do  conselho  ;  tal  e  qual. 

—  Vinte  dentadas  no  referido  presidente  do  conselho, 
porque  é  altisonante  e  grandíloquo  (nestas  terras  é 
defeso  caçar;  ha  quem  jà  se  apossasse  delias,  por  ar- 
rematação ou  adjudicação^  que  é  uma  e  a  mesma 
cousa);  porque  tem  velleidades  pedagógicas;  porque 
marcha  de  paradoxo  em  paradoxo;  porque  nSo  é 
homem  de  bera ;  porque  voa  com  azas  Içarias ;  porque 
arranha  os  adversários;  porque  suas  iras  suo  felinas; 
porque  deve  a  carreira  aos  seus  grandes  gestos  e  scepti- 
cismo ;  porque  deve  a  sua  exaltação  a  um  grande  vácuo 
que  tem  dentro  em  si  para  o  manter  á  tona  etc.  etc. 
E  conclue  com  esta  phrase,  de  uma  propriedade  impa- 
gável :  *'  Mas,  senhores,  nem  esta  reconvençao  seria 
tolerada  pela  minha  consciência  [consciência)  j  nem  a 
minha  delicadeza  [delicadeza]  permittiria  que  a  fizesse". 
Avante  I 

—  Dentada  nos  membros  da  commissa©  especial, 
aquém  accusa  de  pregar  sermão  inçad  3  de  profanidades, 
e  de  affrontar  os  brios  nacionaes  e  a  dignidade  do  par- 
lamento. 

—  Dentada  no  relator  dacommissao,  ao  responder-lhe 
que  as  suas  palavras,  nem  dignas  sSo  de  ser  ouvidas. 

—  Dentada  no  governo,  fa]»ricante  de  torpedos  polí- 
ticos, porque  o  trata  com  desdém  e  ironia. 

—  Dentada  na  maioria,  porque  o  amordaça,  e  não  lhe 
deixa  jorrar  esta  catadupa  de  irresistíveis  argumentos  : 
e  porque  a  maioria  nao  é  senão  o  gabinete,  e  o  gabinete 
nao  é  senão  o  presidente  do  conselho. 

—  Dentada  no  senado  [viilpis  ad  uvatn)  e  no  conselho 
destado,  porque  é  nesses  elementos  vitalícios  e  anti- 


9 


constitucionaes,  que  a  também  vitalícia  coroa  se  apoia 
(macaquinha). 

Dentada  em  S.  M.  o  Imperador,  e  em  S.  A.  a  Re- 
gente, dizendo  ao  ministério  que  iiao  pense  ganhar  a 
partida,  apezar  de  ter  nas  su  is  cartas  o  rei  e  a  dama. 

Bem  era  que,  após  estas  e  outras  mordeduras  e  tor- 
quezadas,  se  concluisse  pregando  a  insurreição  ao  pa- 
cifico povo,  que  nunca  imaginaria  que  da  assembU'a  dos 
seus  legisladores,  de  um  areópago  conservador,  surgisse 
uma  voz  provocando  sedições  e  levantamentos. 

—  Salto  a  pés  juntos  por  sobre  outras  gentilezas,  e 
venho  já  ás  imprecações  contra  a  imprensa  em  geral, 
que  apoia  o  governo  : 

"Imprensa  clandestina  do  governo  —  Lucrativa  em- 
preitada—  O  suor  do  povo  desce  do  céo,  como  Júpiter 
transformado  era  chuva  de  ouro,  para  seduzir  e  profa- 
nar a  imprensa  —  O  governo  inoculou-lhe  o  virus  da 
desmoralisaçao,  a  lepra  da  subvenção  —  O  governo  fa- 
brica uma  opiniílo  falsa,  que  nao  é  inspirada  pelas  idéas, 
mas  pelo  salário  —  A  imprensa  subvencionada  rebaixa 
uma  profissão  tao  nobre  como  ojornulismo  —  O  governo 
levantou  contra  o  orador  uma  coliorte  de  anonj^mos  a 
qiiem  incumbio  nao  de  refutar  as  suas  idéas,  mas  de 
lançar  sobre  a  sua  pessoa  doestos  ;  artigos  que,  por  sua 
profusão,  bem  se  via  que  eram  pagos  por  tao  abastado 
e  generoso  capitalista,  como  é  o  cofre  secreto  —  Arma 
a  ra?lo  do  mercenário  para  insultar  os  adversários  que 
nrio  se  anima  a  combater  na  tribuna  —  O  governo 
chama  em  seu  auxilio  os  mercenários  da  penna, 
esses  que  na  phrase  de  Marcial  verba  et  iras  locant^ 
alugam  a  palavra  e  a  bilis. — Instrumentos  de  diffa- 
niacao,  etc,  etc/* 

A  que  deferência  pôde  aspirar  quem  assim  vilipendia, 
com  a  mais  desenvolta  linguagem,  nao  só  os  governos, 


10 


mas  os  e.scriptoiv.s  f*m  massa ?  Qiioesiylo  é  este,  que  uSo 
acha  precedente  seiírio  uas  peiores  paginas  da  Tripa 
Virada,  ou  da  Besta  esfolada?  K  como  não  andaria  bem 
consultada  a  justiça,  quando  leve  por  seu  consultor 
quem  entende  descarte  as  prescripçòes  da  justiça  I 

Esta  ladainha  de  aitrontas  a.ssenta  numa  accusação 
de  facto ;  porque  nao  esperou  a  declaração  desse  facto, 
antes  do  accesso  hydrophobico?  Ora  o  presidente  do 
conselho,  n'um  discurso  antipoda  deste,  em  elegância, 
cortezia  e  dignidade,  respondeu : —  ^'Qne  o  gabinete 
actual  nao  tem  subvencionado  escriptores  ;*'  e  após  inn 
explicita  declaração,  o  juslo  e  leal  parlamentar  na  j  re- 
tira as  suas  iniqua.s  accusaçoes  de  chuva  d*ouro,  lepra 
da  subvenção,  salário,  mercenários  da  penna,  e  outros 
ai^fl II mentos,  dos  únicos  de  que  se  aclui  provido  o  arsí^- 
nal  do  tonitruante  orad-jr!  Lamentável  privilegio  o  di^ 
similhantcs  eloquências:  tristíssimo,  quando  só  inspi- 
ram piedade.  Os  illustrados,  nobres  e  desinteressados 
escriptoreí?,  (pie  assim  se  te/ita  vilipendiar,  riem  dos 
Labeons,  e  vão  andando. 

Mas  eu,  é  que  não.  Ao  bom  ]»ngailor  nao  dóe  o  pi*- 
nlior.  Temos  uma  continha  que  ajustar.  Kmtjuanto  nu» 
illudi,  suppondo  possivel  discutir  uma  questão,  de  Ín- 
dole exclusivamente  politica,  sem  se  nJirapassarem  os 
limites  que  a  simples  educação  ensina,  usei  da  mais 
respeitosa  linguagem,  e  de  quantas  precauções  signiti- 
cassem  apreço,  superior  até  ao  devido,  dos  dotes  do 
adversário.  Fui  cauteloso  em  não  proferir  palavra  que 
resvalasse  das  idéas  politicas  para  as  moraes,  sociaes 
ou  outras,  defezas  aos  debates.  Não  approuve  este  co- 
medimento ao  valente  athleta:  descobri  i  contra  mim  a 
sua  metralhadora,  de  tiros  de  cortiça,  sem  resguardo 
de  espécie  alguma ;  acceito  o  novo  estádio  a  que  me 
chama:  dente  por  deute,  olho  por  olho. 


u 


i)Tiei-er-^-1i.i  '[nti  fui  an  o  prnvocado,  6  qiiR  quem 
affitãhiii  p.irii  muito  luaiit  lonfr^  □'•  limit&i  qtie  eu  me 
L  trnrado.  foi  quum  ij^urava  o  snnexim:  (jaera 
«pnpftoar.   itn  rara  Ibo  cabe.  l)'ora  «vante  o  csUi- 
,  tiescriptor,  o  critino.  o  romancista,  n  jariVcoa- 
\tAtt  livi-R  ibmtníi)  (la  aanlysfl.  A  d  la  Cí  igiieorsa 
Hlndv  iiAo  '^om  privilegio  truliisiro  dos  I^aheona.         , 
[eriormftnte,  cnm  muita  eRtranheza  minha,  ci 
r  uii*  r(iii>;uriini  na  pnrlaaiBDto,  comn  notei 
srior.  Ouço,  p'irém,   ijiie  pretendia  ngora 
^  A  minha  pifíuioa,  >jiinndH  iitt^^tc  memorando  dlit- 
',  pr«VAliv:findn>ftâ  nobremente  Atu  inim unidade»  da 
I  ((ii[ai  u  tcnnn  6  feminino),  profariíi  as  so- 
llpndiirHM,  n  <\np  desejo  an^inentar  a  merucida 


■  -  irrave,  a  (|ii<!  mais  rcTolta  no 

i-,   iW|Uvt  diamou   em  seu  iin> 

,:    iríi  para   roadjiival-o  nos  scus 

Aon  pHrÍiuiii*utare^<',  díHCittir  m  nej^con  do  paJK, 

atcrtnlrn  f*  «■"1*  «li  versa  rios  ihTeclivM...,  Nilo  se 

■  I.  fnltando  »fis  dfivcres  de  cor-  < 
U-n  bospUul idade,  .se  arrofrua 

■  .'mpenbe  cm  deprimir  os  seus 
l^rArtBn**  |iiiltUi-oii.  O  pai»  onde  i^imílliaDlit  fiicto  se 
iijn'^-  oem   uma  retirtSa  enerifiCJ  do  povo,  wtíb,..,  etr." 

íii  itiítraiigcirophobi»:  'i",  d«- 
iro;  ;^,  convite  ao  povo  para 
i-odamii-uos:  Sc  cii  »uii  Cjo- 
r^  -^Mi:  nanei  em  Roma;  e  c&  este 
itr  t|ui<r  ((fíioriar-)w>,  fiuwndo  coin  (jue 
a  touta  (ahlruHcnl  capitem,  dix  neste 
N  [ruga  i)p  ter  eu  approvado  ao  veltio 
'  1^0  g-HURral  de  r«v«ll»ria  liz«se  ow- 
'>  iKjbrc  ^rviliu  Axilta.  Nflo  ba  rnxA" 


12 


de  queixa.  Aclio  em  realidade  este  o  mais  hábil  expe- 
diente para  caiar  contradictores;  veulia  de  lá  uma  boa 
cabeçada :  homem  morto  nao  falia. 

Quer  porém  S.  Ex.  ver  na  minha  assi^rnatura  um 
pseudonymo?  Porque  não?  Ouve  tu  cá!  Empreg^a-^se  a 
pseudonymiíi,  ora  por  tMctira,  ora  p.")r  medo,  ora  por 
calculo;  mas  tf.mbem  .se  adopta  ás  vezes  por  .se  pensar 
qiie,  quando  se  tem  um  nome  obsuiro,  nadaaccrescenta 
elle  ao  valor  ou  á  insignificância  dos  raciooinios,  os 
quaes  sao  assim,  com  mais  liberdade  o  justiça,  aqui- 
latados. 

A  explicação  da  minha  assi{*:natura  i*  esta  ultima;  e 
nao  se  imag'ine  que  sou  movido  por  temor  de  espécie 
alguma:  se  eu  tivesse  medo,  comprava  um  cao.  Eu  fui 
baptisado;  ponha  o  denumúanto.  o  meu  nome  por  ex- 
tenso, que  eu  lhe  protesto  que,  assim  como  o  meu  an- 
tecessor dava  peio  nome  do  Quinto-Lucio-Cincinuato, 
eu  quando  o  nobre  delator  cliamar  pelo  meu  nome.  Fu- 
lano de  tal  e  tal,  bradarei  immediatamente :  Trompti)! 
Adswii;  in  me  coiivertite  ferram.  Emquanto  porém  o 
nao  fizer*,  consinta  que  eu  vá  andando  meu  caminho, 
coxeando  na  pingada  de  quem  hontem  assignou  Erasmo 
o  Velho^  hoje  aL.  agora  Erasmo  o  Moí;o,  logo  a  Voz  de 
jDeiM,  depois  o  Autor  da  corte  do  leão,  outra  vez  /.  (í. 
dos  Tamojjos^  outra  G.  M.  da  Diva^  outra  Seiíio  do 
(íaúcho^  outra  o  AiUor  da  festa  macarn^onia,  e  se  mais 
mundo  houvera  lá  chegara.  (Esse,  sim,  esse  quem 
quer  que  seja,  que  toda  a  vida  tem  usado  e  abusado 
da  anouymia,  é  curioso  quando  clama,  em  questão  de 
princípios,  que  se  nao  abaixa  a  discutir  com  anonymos  ! 
Perdeu-se  alli  um  bom  diplomata). 

Quer  p')is  que  enseja  estrangeiro?  Aponta  com  o 
dedo  para  a  minha  pessoa,  nao  para  discutir  (que  isso 
nao  é.  cousa  do  seu  gosto),  mas  para  me  injuriar,  e  pro- 


Tocnr  conlTB  mim  opooo  a  uma  reacção  enerificaf  Poíá 
«rei.  que  mais  quer?  Serei  au ;  e  qtiem  wu  eu?  E30 
siivi  tfvii  9unt. 

Oro  iigortt,  sabe  o  qoo  maisí  Faiw  iverdiide  em  loao-s 
OA  iiunti»  fi  virgulas  da  suii  verrina. 

Falta  &  «rdade,  quunJo  affirma  <i»e  o  ffabinete  m« 
chanioM  i'nm  o  coadjuvar  em  s«itó  trabalhos  pnrkmeu- 
liiíu  s(S  iiulitt  lio  projecto  sobro  o  ele- 
,u  depois  ijiití  elle  iipiitrereu  impresso ; 
.  trúquei  palavra  ^fbve  tal  «ssuiiipto 
cfltn  t|iiuiii  '{ucr  4iie  aeja. 
fiilta  á  verdade.  aflSBverando  tftr-me  o  gaVmetH  cuii- 
URdo  a  lHn<.Mif  i0vi:cliv«fl  contrA  adversariya.  Nem 
Bicui  invectiva  alguma:  ortn  o  gabinete  «ra  capax  do 
b*U  pedir,  nwn  ou  d«  escrever  uma  pUrtwP-  que  «lo 
provÍcís«  da  mnts  intima  convicção. 

Falta  8  v«riliide.  quando  <Uz  .[ue  i!u  fui  dfiscortez 
a  çom  e.ne  pniz:  o  quera  nat.  riuer  piissar  pur...  por 
n  nOHiH  muito  feio.  raostrt!  uma  só  locuçriu  minba  quw 
I  d«iioÍ«  iiraixadtí  sincera  o  justiça  para  cura  este  im- 
,  n  quom.  no  contrarí'!.  nesta  mesma  polemica,  a 
o  dcídc  li  primeira  carta,  dafendi  ener(?icamente  das 
lOgUuitea  Bxprobraçflw  que.  contra  uUe  a  tudo  (luatilo 
Ml«,  vomita  o  illUíilro  dcvanoado.  que  só  iraajfioftri» 
il  de  amtlo  iConro.  quando  elle  subi-we  ao  governo, 
IBftíelRVftrOes.  iím'iuaiiU>  a'Js  cá  «os  fossemos 
ÍAn  ufwtcMniilo  de  ferro,  em  que 
A . .  In  anrl  Irarlooqaa  («n  ce  «Iwle  à«  ter) 
R  pUaau  luand  U  Tuni,  mit  Mn  uu  due  et  |mú. 
bi  verdade,  quando  mo  pinta  como  devendo  I 
^ndeoido  pcln  Inxpitaiidiuif  (/ue  nrlc  p<lij;  11 
IrAlH)  lil  HuuriHroií  com  a  bonevnlencia  que  1 
^rema  sltunt  atA  its  iu&ranR  camadas,  mQ  lia  \ 
tntemenU  dispeiisidit ;  maa  de  igrnal  bene-  j 


14 


volencia  tenho  sido  alvo  era  varias  naçõeis,  que  me  nSo 
vendem  por  mercê  de  hospitalidade  o  ser  eu  amigavel- 
mente tratado  por  aquelles  a  quem  trato  amigavel- 
mente. Vim  para  aqui,  porque  uma  importante  missão 
me  trouxe;  conservo-me,  porque  me  apraz;  nem  pela 
vinda,  nem  pela  estada,  ha  obsequio  de  quem  quer  que 
seja.  Nada  devo;  nunca  devi;  nada  peço  que  nao  seja 
de  justiça;  nunca  pedi.  Se  aqui  prefiro  estar ;  se  aqui 
dispendo  o  que  possuo;  se  aqui  vivo  (respeitando  as 
leis,  mas  sem  adular  homens,  nem  ante  preconceitos  de 
qualquer  género  pôr  joelhos  em  genuflexório)  é  porque 
quero,  só  porque  quero,  e  sem  tolerar  mais  que  se 
chame  hospitalidade  k  minha  estada,  do  que  se  eu  tivesse 
a  vergonhosa  pequenhez  de  dar  esse  nome  ao  acolhi- 
mento fraternal  e  dedicado  que  o  Brazileiro  encontra 
em  todas  as  terras  que  percorre,  mormente  em  al- 
gumas. 

Falta  finalmente  á  verdade,  allegando  que  eu  de- 
primo os  caracteres  politic/)s  do  BraziU  E'  outra  esper- 
teza; quer  fazer  clientella  á  minha  custa!  Muito  lido 
na  historia  da  França,  pauta  o  seu  procedimento  (si 
parva  licet  componere  magnis)  pelo  de  Napoleflo  III, 
cujo  machiavelismo  o  levava  a  nao  fa'^er  guerras 
senão  de  parceria:  Crimea ,  Áustria,  Itália,  Co- 
chinchina ,  México ,  tudo  foi  tentndo  com  as  costas 
quentes;  e  a  primeira  vez  que  se  vio  sozinho,  levou 
tremenda  liçrio  da  Prússia.  Esta  subtileza  agora  tem 
por  fira  gritar  :  oh  da  guarda,  nh  (/ui  d^el-rei,  que  uie 
escovami  Tem  igualmente  por  fim  desvairar  o  juizo  dos 
caracteres  politicos,  com  uma  falsidade.  Nunca  eu  disse 
uma  palavra  contra  um  único,  individual,  nem  contra 
muitos,  collectivamente ;  ou  nao  bailo  senão  conforme 
me  to'^im ;  ncredito  com  sinceridade  que  os  que  nao 
pensam  couio  eu   i)ensò,  é  porque  a  sua  intelligenci« 


15 


ixàsim  lh'o  ordena,  e  talvez  tenham  mais  razílo  do  que 
eu;  it]  só  com  o  Sr.  Alencar  que  eu  tenho  discutido,  e  o 
Sr.  Alencar  nSo  é  plural,,  para  fal lar  de  caracteres ^  e 
contente-se  se  poder  empregar  esse  nome  no  singular. 


Nao  te  quero  cançar,  Fabricio  querido;  paro  aqui. 
Cedo  continuarei  os  commentarios  ao  grão  thema. 

Agora  fecharei,  tocando  em  assumpto  que  nada  tem 
com  o  que  precede,  e  que  é  uma  simples  trivialidade 
moral. 

Eu  também  leio  os  meus  Supicos,  e  num  d'elles  acho 
que  a  argutissima  antiguidade  tinha,  entre  os  seus 
sophismas  celebres,  um  denominado  —  o  Mentiroso — ,  e 
cuja  formula  era  esta  : 

O  que  mente,  e  diz  que  mente, 
mentiu  ou  dice  verdade? 

Até  agora  o  typo  mais  cómico  d'aquella  virtude  era  a 
personagem  de  Dorante,  na  comedia  de  P.  Corneille, 
que  tem  o  nome  do  tal  sophisma.  Antes  d'isso,  exclamou 
um  personagem  de  Plauto:  ^'Si  dix  ero  mendãcium^  soltns 
vieo  more  fecei'o\  que  um  annexim  nosso  traduzio  por  : 
'*  Mente  Pedro,  porque  o  tem  de  veso".  Mas  as  figuras  de 
Plauto,  os  Dorantes  e  os  Pedros,  neste  século  de  monde 
?/iarc/íe,  já  sao  fosseis  e  eclipsados. 

Bem  eclipsado  és  tu,  que  te  pozeste  a  audar ;  e  attento 
o  grão  crime  da  minha  caducidade,  fóssil  é  este  teu 
amigo  ;  o  qual,  depois  de  se  ter  dirigido  a  ti,  volta-se 
para  o  Illra.  Exm.  Sr.  conselheiro  José  de  Alencar,  di- 
zendo-lhe  outra  vez  que,  para  todos  os  effeitos,  tenha  por 
entendido  que  esta  carta  é  assignada  pela  pessoa  que 
lhe  approuver,  ou  pelo  roceiro 


ittCI 


lioaio. 


QUESTÕES    DO   DIA 

RIO  DE  JANEIRO,  3  DE  SETEMBRO  DE  tSTl 


Veii(lo-se  em  casa  do  Srs.  E.  &  II.  L<aeiinnert— Praça  da  Constituição, 
Loja  do  Canto— Rua  do  S.  José  n.  110— Livraria  Aaidoiuica,  e  Cniz 
Coutinho  na  uiesnm  rua  n.  75.    Preço  :^00  réis. 


Xtcforma    juclloiarla 

O  Parlamento  brasileiro  acaba  de  votar  uma  das  pnais 
importantes  reformas  reclamadas  pelo  paiz. 

K'  de  crer,  que  brevemente  a  .sanceão  imperial  con- 
verta  em  lei  o  projecto  aceito  por  aiuba?  as  camarás 
legislativas;  e  log-o  que  este  facto  se  realise,  poder-se-ha 
dizer,  que  o  Brasil  é  um  dos  paizes  do  mundo  civili- 
sado,  onde  a  liberdade  do  cidadão  encontra  as  mais 
amplas  g\arantias. 

O  Brasil  pude  ufanar-se  de  possuir  as  instituições  ju- 
diciarias mais  excellontes,  e  capazes  de  einparelhar 
com  as  dos  povos  mais  adiantados  em  civilisacfio,  e 
mais  zelosos  da  liberdade  individual. 

O  jnry,  essa  instituição,  que  os  ingdezes  denomina- 
ram a  verdadeira  cidadeila  do  pmo,  e  a  inexpií^-navel 
Liibraltar  da  sua  constituicrio,  acaba  de  receber  da  re- 
cente  reforma  o  possível  melhoramento,  tendo  gnran- 
ti:is  superiores  talvez  ás  do  jnry  ing^lez. 

(/Oufronte-se  o  que  na  In;:i*laterra  se  es:abelecc  em 
Fídacílo  a  este  assumpto  com  o  que  a  reforma  provi- 
dencia eatre  nós,  e  nfio  liaverá-  exa<i'g*eracrio  da  no.-sa 
parte. 

Os  Kstados-Unidos  e  a  Ing-laterra,  paizes  modelos  de 
libenlade,  nâo  ofitírecem  em  sua  le^-islnção  criminal 
mais  desenvídvida  protecção  a  essa  liberdade. 

Para  mostrar  a  exactidão  do  nosso  asserto,  basta 
contrapor  as  disposições  do  scui  direito  ás  disposições 
do  nosso  direito  novo.  lím  aml)os  oí?'  paizf\^  notam  ano- 
malia^, <[U<»  i^ntre  ni)S  o  espirito  esclarecido  do  1{\í:^*1s- 
lador  tem  rejeitado. 

A  ri'ft)r.na  já  votatlíi  traz  ^*r:nidís  (Miii])orLantes  me- 
llioramcMilos  c?m   vaiila^NMii  do   cidadão,  o  mostra  um 


2 


espirito  de  liberdade,  que  ninguém  rasoavelmente  con- 
testará. 

Xao  podemos  deixar  de  fazer  sobresaliir  cm  primeira 
pluna  o  re.speito,  que  a  reforma  consagra  ao  grande 
principio  da  inviolabilidade  da  vida  humana. 

Si  a  reforma  uao  abolio  formalmente  a  pena  de 
morte,  todavia  a  tornará  raríssima,  e  talvez  impossível. 
Para  a  applicaçíío  deseja  pena,  exige-se  agora  a  unani- 
midade na  decisão. 

A  unanimidade  em  julgamento  de  pena  capital  é  por 
certo  difficilimo  succcsso,  qnando  por  caracter  os  bra- 
sileiros são  brandos,  e  infensos  a  castigos  atrozes,  como 
é  uma  pena,  que  é  irreparável  sem  ao  menos  ser  exem- 
plar. 

A  nova  disposição  tem  ainda  salutar  etteito  em  rela- 
ção á  injustificável  e  barbara  lei  de  10  de  Junho  de 
Í835,  que  com  o  ultimo  supplicio  punia  o  escravo 
autor  de  crimes,  em  que  essa  pena  era  comminada. 

A  lei  não  attendia  a  circumstancias:  a  morte  casti- 
gava o  caso  atroz  e  horroroso,  assim  como  punia  o  facto 
mais  justificável  e  simjjles. 

F/  uma  lei  tora  do  todos  os  principios  de  justiça,  e 
humanidade;  nenhuma  gradação  de  penas  reconhecia. 

l^ela  reforma,  desde  <iue  não  lia  unanimidade  na  vo- 
tação sobre  o  crime,  apj)  jcar-se-lia  a  pena  immediata  : 
assim  já  uma  gradarão  apparece  para  modificar  o  rigor 
absoluto  da  lei  draconiana. 

A  abolição  do  procedimíMito  fx-o/fícío  nos  casos 
crimes  é  de  alta  conveniência  para  a  cansa  publica. 

A  simples  consideração  de  í|ne  actualmente  o  juiz  é 
parte  ejnlgador,  mostra  (juão  desvirtuadas  estavam  as 
regras  de  justiça. 

l)*ora  (un  diante  o  juiz  conservará  o  seu  caracter  de 
arbitro  desapaixonado  e  desprevt;nido. 

O  jniz  formador  da  culpa  por  j)ropria  iniciativa  não 
podia  deixar  de  levar  o  fermento  da  parcialidade  contra 
o  accusado.  em  quem  elle  começava  por  ver  um  crimi- 
noso. O  espirito  assim  preoceupado  prejudica  a  justiça, 
que  requer,  no  momento  de  avaliar  e  pe/ar  as  provas, 
animo  desprendido  de  qualquer  consideração  alheia  á 
natureza  dessas  mesmas  provas. 

A  reforma  neste  ponto  restaura  o  grande  principio 
da  imparcialidade,  e  da  dignidade  do  juiz. 

O  réo  VÊ  seu  jnlgador,  mas  não  o  homem  eivado  do. 
inter^BS^ií  no  bom  êxito  de  uma  accnsação.  qne  elle  pro- 


jirio  levantou;  porque  assim  arreda  (l(í  si  a  argiiirOo 
«lo  leviano,  (íomoraudo  o  procedimento  iniuudaíh,  e 
rí>nseg'ue  os  fóro.s  de  per.spicajs,  (juo  nao  deixou  passar 
incólume  o  criminoso  escapo  á  vig-ilancia  das  demais 
autoridades. 

Na  ordem  daí?  garantias  imm^ídiatas  da  liberdade 
civil  o  melhoramento  operado  pela  reforma  coUoca  o 
cidadão  em  posição  mui  sobranceira. 

Elle  já  não  verá  no  g-oso  da  sua  liberdade  pessoal  a 
simples  e  bondosa  concessílo  da  autoridade  policial,  ([ue 
armada  de  arbitrio  para  prender  por  m(M'as  suspeitas, 
ou  indicies,  que  fantasiava,  tinha  o  eondao  ma{i'ico  de 
tolher  o  cidadilo  cm  sua  independência,  quando  lhe 
aprazia. 

A  segurança  do  cidadfSo  brasileiro  estava  hoje  depen- 
dente do  terrível  anathema,  que  a  autoridade  proferia 
nestas  palavras :  "  Estás  iniciado  em  crime  inafian- 
ravel.  '^ 

Tanto  bastava  para  o  cidadrío  ver  empallidecer  diante 
de  si  iodas  as  seguranças  da  lei  constitucional. 

Atrora  a  autoridade  criminal  lerá  rejirras  definidas 
ynm  constituir  o  indiein mento  e:u  crime,  e  já  não  po- 
Jevá  jireíider  senão  em  vista  do  facto  incontistavt.»!  d(; 
•  itlVnsa  á  b'i,  e  em  face  de  ])rovas  concludentes  da  cri- 
nii^ialidade  de  um  individuo. 

(.>  ridadã"  tem  abri^ro  certo  na  lei :  não  fica  apenas 
(Mitrí.'írue  ao  bom  ou  ináo  critério  da  autoridade. 

Aquillo  <[ue  o  cidadão  tem  de  mais  ])recioso  na  so- 
<;itída<le  civi!.  a  sef^^iiranca  de  sua  pessoa,  será  uma 
realidade,  .^em  facto  seu  devidainent<>  com])rovado,  elle 
não  se  temerá  do  cárcere:  a  sua  pessroa  é  livn». 

O  }ifih.fHft'rori)ns  foi  desenvolvido  ])ela  reforma.  As- 
-ontaJo  em  nossas  leis  do  processo  criminal,  sotfria  na 
pratica  resiricçnes  incompatíveis  com  a  natureza  de  tão 
>;iiut?ir  instituição. 

Nos  casos  de  maior  nec(»ssidade.  por  isso  mesmo  que 
a  opy»r";s<ão  se  acidx.rtava  com  a  falsa  Ic.íralidade,  tor- 
:iand''»-se  intolerável  e  ousada,  o  írraude  recurso  das 
Ti'^>s.is  lilu-rdados,   dfM^ahia,  e  perdia  a  sua  eíHcacia. 

i)^  nossos  tribuuae^  vacillavíim  sobre  a.  amplitude  do 
Ifih-^as-r.orpiir,.  e  muitas  ve/es  os  pacientes,  escandalosa- 
ment»'.  vexados,  tinham  de  resignar -se  aos  rigores  da 
prizão  urbi traria. 

A    autoridade  violenta    procedia  sem   competcuí^va. 


SEXTA  CARTA 

DO    ROCKIUO     riXClNNATO     AO    CIDADÃO     FABRÍCIO 

Kio  de  Janeiro,  23  de  Agosto  de  1871. 
Fabrício  d'est'alma 

Obrig-ado  pela  tua  cartinha.  Tu  nunca  te  esqueces 
(los  amiyos,  bom  velho.  Já  sei  que  chegaste  a  Taubaté 
e  rincbununhaniraba  ;  que  o  teu  primeiro  cuidado  foi 
tlirigireí-to  a  N.  Sra.  do  Bom  Succosso,  e  ires  lojro  á 
caj)ella  de  S.  José,  ouvir  missa  por  intenção  de  todos  os 
Josés passados,  presentes  c  futuros.  Sei  que  meias  mandar 
pela  bahiade  Ubatuba  uns  rolos  de  precioso  fumo  indig'e- 
na,  mimo  que  é  muito  de  menj^osto.  Excellento  Fabricio! 

Teimas  pelíi  minha  correspondência  ;  níio  te  aflijas, 
que  hnsdç  recebel-a,  e  de  ora  avante  um  pouquinho 
mais  livre,  gmcas  a  J)eos 

Ag^ora  o  que  me  atrapalha  é  a  abundância  de  matéria; 
pobre,  á  força  de  rico,  diziam  os  romanos:  tenho  ante 
mim  as  duas  lenfifa-leníras  monumentaes  com  que  o 
insigrie  orador  andou  aos  g^rillos  e  a  que  serviram  de 
pretexto  —  num  caso  o  elemento  civil  —  no  outro 
a  cerebrina  interpellaçao.  Kmvez  de  absorver  as  minhas 
admirações  num  só  desses  Koh-i-noors  políticos,  reparti- 
las-hei  por  ambos,  mas  já  agora  continuemos  com  o 
parou these  que  a  interpellaçao  abriu. 

Deos  me  livre  de  cercear  uma  virgula  á  diatribe  com 
íjue  a  mordacidade  desse  subjeito  imaginou  fulminar 
este  pobre  homem  de  palha,  contra  quem  houve  por  bem 
espinhar-se.  Quero  repetir  litteralmente  as  suas  palavras 
])ara  que  s  •  avalie  a  dignidade  do  orador,  a  justiça  das 
incropaçíles,  a  valentia  dos  argumentos,  a  decência  da 
phrnze...e  a  revira-volta  a  que  me  constrangeu.  Trans- 
creverei  os  trechos  d'aquelle  jaez  que,  segundo  dizem, 
teve  cm  mente  encarapuçar-me  quem  á  discussilo  pro- 
fere a  disputa : 

''  Senhores,  a  camará  comprehende  que  nem  eu  nem 
os  meus  amigos  damos  a  menor  importância  a  esses 
escriptos  e  ao  seu  auctor.  Kssas  rahulires  litternria^' 
{ mandou  que  o  Jornal  do  Commarcio  pozesse  em 
gripho)  nao  chegam  até  nós ;  nem  me  occuparia  com 
ellas,  pois  tenho  nojo  de  tocar-lht:s,  se  nilo  fosse  euco- 
incndã   do  g"overno.  " 


ner    quem  sao    os    «míjos  deste    seulior,  e    o  nome 

POUCO-  f^n^H       ''.  P'"^^x  ^  ''"  ''"'  1»«  J^  »ao  é  tao 

um  t  rf  Tn"  ■?'??  ^  'i"'  propósito  diziam  os  autip-os: 

é   « m   s.^ii"       "^  """  ''^"''^'^  "  P'^^'^^'--  ^  ^?°'^'»« 
ara  do  ^"  '  "í"'"?  '"    *  -'^  "™«'   'í^  ní"/"«>n  é 


a,!?m^"f-"'«         importância  aos  meus  escriptos  nem 
do  si    In  '  ^°,f '^•'°>-"--Nao,  que  realmente  pirraças 

^Sr,        \    ^"^'  ^^«''"^o  «   costume,  amanha  pen- 
teio   T      ""'  ?  "''^  ""^'"'^  *^"-  esperança  é  já  conso- 
dos  ;..?;  J"^  "1""'^  ^  "í""'   f'^"'^"^«  tão  poiico   ca.o 

a  nla  Lí7  P^'"^^'»^»^"*'  ^™  ^'"^  cada  palavra  sua 
"Pne  .e  pSr^''^  '^^  ''"''  ''"'  P'^^^"«  '^^  ^^^^^'"'^ 
Dizemos  auexins  :  quem  se  queima  é  poniue  peo-a 
em  bra/as;  quem  se  pica  cardos  come.  Fa/  mal  em  co- 
mando'       '   "'""^  ''^  ^'"'*'^'  ^°'"  P™^  ^''^  ^^'•''^ '    ^'''  ^'i- 

Quanto  , is  minhas  ra/m/i>ev   lillerarias,    orçam    pe- 
as    rabuhces  htterarias,  jnridicas,    oratórias,*  dramá- 
ticas,  e  outras,  do  certo  vulto  que  eu  cá  sei,  de  cert-i 
frralha,  cujas  ].eunas  senlo,  um',  a  uma,-  arrancadas  ató 
que  lhe  hque,  sim,  o  jus  de  gralhar,  nuis  uno  de  pavo- 


nenr-se. 


Coiitiuua  o  Demosthenes,  provando  do  seguinte 
modo  seremos  meus  escriptos encommenda  do  froverno' 
Le  e  pasma : 

"  A  prova  circumstancial  ó  a  intimidade  que  ostenta  i 

r..m  o  g-ovyrno  esse  estran-eiro;  o  carbo  e  or-ulho  que 
oUe  tem  de  ser  um  auxiliar  prestimoso  da  administra- 
ção :  e  o  custo  exc.íssivo  dos  longos  e  esteirados 
urtipsjs;   tudo   está  revelando  o  dedo  do  ministério. 

Acamarão  vio  exlabir-se  neste  recinto  diariamente, 
em  coUoquios  com  o  nobre  ministro  do  império,  e 
com  o  nobre  relator  da  commissao,  fazendo  trempe. 
Aberta  a  discussão  ello  a  accompanhou  constantemente 


8 


como  uma  espeoie  de  arolito  da  illiístrada  commisáão  ; 
e  parecia  desafiar  os  oradores  da  oppí/siçao  a  que  ou- 
sassem tocar  no  seu  insulso  arauzel. 

''  Nrio  cuidei  que  os  reis  constitucionaes  carecessem 
de  suissos  de  peniuis.  Pode  o  uobre  presidente  do  conse- 
lho despejar  os  cofres  públicos  para  pajrar  aos  cavalleiros 
de  injuria...  Os  aventureiros  que  hlazonam  do  protec- 
tores do  «governo  rc^viliinlo  no  despreso  publico,  donde 
pertender.im  surdir.., 

Dizia  o  direito  romíuio :  Adori  Incumbit  oritis  pro- 
bíindi.  Olha  tu,  meu  Fabricio,  a  jurisprudência  d'esto 
causidico.  São  do  governo  os  nituis  artigos,  P  porque 
conheço  algum  dos  ministros  I  2"  porque  tenho  garbo 
de  os  auxiliar  (invenr.ao  du  orador)  !  3"  i)orque  os  arti- 
gos sfio  longos  e  esteirados  (não  pode  ser  erro  typogra- 
phico,  pois  í.s7iraíZo.v  seria  redundância  :  logo  .são  com 
etfeíto,  além  de  longos,  esteirados"  !-i"  porque  conversei 
com  2  cavalheiros,  fazendo  tremm  ( não  entendo, 
mas  deve  ser  espirituoso,  vislo  que  o  Sr.  Alencar  diz  quíí 
provocou  hilaridade !J  õ"  porqucí  me  vio  na  camará 
(como  poderá  ter  visto  centenares  de  curiosos,  tão  vadios 
como  eu)  !  finalmente  (>**  poríjue  eu  parecia  desafiar  a 
opposição  a  ousar  tocar  no  meu  insulsí)  avanzel  (que 
nranzel  é  este  ?  em  que  é  que  eu  lhe  ])areci  desafiar  a 
ninguém?  Vou  para  Minas,  visitar  a  velha  da  ma- 
cuca.) 

K  eisahi  imí  provas.  Limpe  as  mãos  á  parede:  são 
tão  convincentes  como  as  com  que  acaba  de  pejar  us 
]>relos  sobre  um  ponto  juridico,  em  que,  depois  de  de- 
j)ennado  por  Inibil  antagonista,  acaba  também  de  ter  no 
supremo  Tribunal  a  consohiÇão  de  não  acb;ir  um  só 
Voto  que  oi)inasse  ter  a  sua  doutrina  o  sim|»le.^  senso 
Cíunmum.  Mas  não  antecipemos:  a  annlyse  do  jurispe- 
jito,  hade  vira  seu  tempo;  por  agora  liniiteiíio  nos 
a  erguer  as  mãos  ao  céo  ])or  não  s(ír  juiz,  cjuem  ]íor 
taes  chamadas  provaa  circujínstancites  condínnna  os  mi.^e- 
ros  que  odeia. 

Quanto  ao  r.avuHeiro  do  injuria,  e  ao  avcnlureirn.  con- 
versaremos, depois  de  transcrever  mais  um  treilio  da 
audaciosa  verrina; 

*'  Mercê  de  Deos,  não  preciso  da  tribuna  ])ara  com- 
bater os  meus  adversários  pe.rsoaes,  nem  consinto  que 
S.  ]'!x.  ])roí'ai-i'  ivhni\ar-me,  jr.lgMUíb»  qin?  (mi  ]).í«"Ii'ssi» 
ycr,  nny.  i\<r*\'iy,{yi-\  n  que  me  r<*í*'rí,  uni  advi':.-'ri.).    Nã  ^ 


senhores,  03  meus  adversários  uilo  sao  d'aqnella  ordem. 
O  nobre  presidente  do  conselho,  que  o  tem  posto  a  par 
íle  si,  abríndo-lhe  o  thesouro  que  outr'orase  lhe  fechou, 
o  nobre  presidente  do  conselho  é  que  poderá  conside- 
ral-o  algum  dia  seu  adversário,  quando  elle  prestar  a 
outro,  e  por  i^^ual  razão,  o  mesmo  serviço  que  lhe  está 
agora  prestando. 

"  E'  meu  costume  combater  os  meus  adversários  de 
frente,  e  sinto  coragem  bastante  p^ra  dizer  a  verdade 
em  face.  Nunca  recorri  a  pennas  mercenárias  para 
atirar  a  meus  antagonistas  o  stygma  que  nfio  tivesse 
a  coragem  de  lançar  em  rosto ;  nunca  I  „ 

Nao  precisa  de  tribunal!  Oh  se  precisa  !  precisa  até  de 
tribuna,  que  seja  inaccessivel  a  qualquer  antagonista, 
porque  só  assim  poderá  alardear  triumphos  que  deva  a 
silêncios  forçados.  Pois  pensava  o  Sr.  José  de  Alencar 
que  ousaria  exprimir-se  assim,  se  visse  ante  si  com  a  pa- 
lavra o  cidadão  a  quem  julga  insultar?!  Não;  as  sums 
valentias  sao  as  do  verdugo,  que  açoita  a  victima  alge- 
mada. E  alardeia  aquillo  a  sua  coragem  !  Com  uma  tiara 
de  immunidades  ! 

Qual  combate  de  frente  ? !  O  seu  combater  é  o  da  som- 
bra, que  foge  de  quem  o  segue,  c  segue  a  quem  se  afastn. 
O  Sr.  Alencar  bravateia  onde  a  fortuna  o  coUocou  fura 
de  alcance.  Tem  três  privilégios  para  injuriar  sem 
respeita  : 

!.•  Tema  galharda  chibança  de  atacar  no  parLamenlo 
a  quem  nao  pode  ali  retorquir-lhe  ;  e  assim  abuza  da 
irresponsabilidade  parlamentar,  que  só  dovOra  conser- 
var-se  para  as  opiniões,  e  nunca  para  os  convicios  contra 
estranhos. 

2,*  Tem  o  exclusivo  de  propagar  os  seus  doestos,  á 
custa  dos  cofres  públicos,  reproduzindo-se  estes  pela 
imprensa. 

3/  E  como  se  tudo  isto  nao  bastasse,  accresce-lhe  a 
exempção  da  resposta  grammatical  (que  é  pelo  mesmo 
caso  que  se  faz  a  pergunta),  attento  o  inconstitucional 
contracto  em  que  a  camará  dos  deputados  inhibe  o 
prande  orgam  da  publicidade  de  dar  á  luz  escripto 
al^rum  em  que  se  responda  livremente  ao  Sr.  Alencar. 

Onde  ninguém  falle,  brilha  S.  Ex.  ;  da  imprensa 
livre,  desadora;  provoca  e  foge,  e  acha  lá  uns  pretextos 
íucoraiJrehensiveis  para  explicar  a  seu  guerrear  de 
Partho,  que  dispara  flexas  fugindo.  Se  é,  como  diz,  filho 


10 


da  imprensa,  para  elle  fez  C.  De  la  Vigne  o  verso  cujo 
sentido  é  : 

Filho  da  imprensa,  a  tua  mãi  suffòcas ! 

Venhamos  agora  ao  amnlureirOy  indigno  de  ser  adver- 
sário d'este  senhor,  que  per  tende  converter-me  em 
armazém  de  pancadas.  Kaz-uie  cócegas  ao  bico  da  penna 
uma  resposta  appropriada  ;  mas  ha  ura  certo  pudor  que 
impede  de  descer  demasiado,  ou  de  sujar  as  mãos  com 
punhados  de  lodo,  ainda  quando  de  lodo  sejam  as  armas 
adversas.  E'  as.im  mesmo  com  indizível  repugnância 
(|ue  me  vejo  forçado  a  redarguir  a  ti"lo  insólito  descome- 
dimento, (lizendo  que  por  todo  u  qualquer  lado  que  o 
Sr.  José  de  Alencar  se  delicie  no  espectáculo  das  suas 
grandezas,  o  humilde  roceiro  que  i^sto  escreve  (salvo  no 
talento)  está  a  par,  ou  muito  acima  de  S.  E\.  Se  eu 
quizesse  desfiar-lhe  isto.  seria  facillimo  :  mas  ó  terreno 
desagradável ;  basta  a  tliese,  cuja  exactidão  afianço,  e 
passo  adiante. 

Chama-me  viercoiario^  a  mim,  que  nem  agora,  ninu 
nunca  em  minha  vida  acceitei  um  ceitil  como  assala- 
riado, e  isto  me  ó  lançado  em  rosto  por  (juem  tem  sido 
assalariado,  frequentemente,  como  te  mostrarei.  E  sobre 
tantas  proposições  vergonhosas,  mais  uma  se  distingue, 
(|ue  por  si  só  basta  para  revehir  quaes  os  principios  do 
facundo  orador.  O  Sr.  Alencar  cantou  a  ária  de  1).  Ba- 
7Ílio,  do  Barbeiro  de  Stvilha^  com  os  competentes  piano 
piano^  rinforzando  e  crescendo. 

Se  é  calumnia  a  im])utaçrio  falsa  de  actos  culpáveis, 
armada  pelo  inventor;  se  Menaudro  a  define  :  ódio  ser- 
vido pela  mentira  ;  se  Voltaire  escreve  :  (Juand  uno  fois 
la  valomnie  est  entrée  dans  Vesprit  du  méclíaní^  elle  nen 
déloye  pas  ;  se  a  calumnia  é  uma  serpente  alada,  que  ora 
se  arrasta,  ora  voa;  cumpriria  aos  homens  collocados 
em  certas  posições  ostensivas  evitar  que  se  lhes  appli- 
qué  a  mais  abjecta  das  denominações. 

Lè-se  no  discurso  impresso  do  Sr.  Alencar  a  seguinte 
plirase,  (jue  elle  não  proferira  na  camará  (pois  este 
discurso  foi  penteado  e  brunido  no  gabinete),  que 
''  o  Sr,  presiílcnte  do  conselho  me  csíd  abrindo  o  ihesonro^ 
que  OMÍ7*'o?ví  se  me  fechou.^' 

Isto  sHo  fados  \  e  que  nome  merece  quem  os  tiver  ex- 
cogitado  ?  E'  claro  que  o  Sr.  Alencar  nao  entende  por 
estas  palavras  qualquer  recepção,  tao  legitima  como  a 


IJ 


dos  honorários  de  deputado,  que  S.  Ex.  recehe  do  the- 
souro  ;  entende  insinuar,  ou  delatar  que  outr  ora  se 
fechou  o  thesonro  a  assaltos  meus,  e  que  ag^ora  estou 
dispondo  d'elle,  recebendo  somnias  indevidas. 

Declaro-lhe  eu  que  são  duas  proposições,  qual  a  qual 
mais  falsa.  Dig'o  ra.ais:  nunca  recebi  para  mim  um  real 
do  thesouro  ;  nunca  recebi  para  terceiro  um  real,  que 
nao  fosse  proveniente  de  leis  ou  sentenças ;  e  ha  muitos 
annos  que  de  novo  nao  tenho  recebido  um  real  do  the- 
souro, sfíja  porque  titulo  for. 

Agora  accrescento  o  sejruinte  :  tiro  o  Sr.  Alencar  a 
terreiro;  nao  é  capaz  de  despir  a  sua  immnniílado  parla- 
mentar, e  vir  á  imprensa  repetir  aquella  phrase  ( a  nfio 
st;r  com  evasivas  jesaiticas),  pondo  o  meu  nome  por 
extenso,  e  subjeitnndo-st»  á  responsabilidade  que  a  hn 
applica  â  calumnia,  pois  protesto  que  lh'a  faria  impor. 
Nílf)  SC  metterá  a  bordo  doesse  chaveco  ;  macaco  velho 
não  trepa  em  ramo  secco ;  é  mais  seguro  escudar-se  com 
o  seu  poder  pessoal. 


Snpponho,  Fabricio  meu,  que  me  dás  razão,  ven- 
<lo  nin  mudar  o  estylo  respeitoso  para  com  quem  in^rra- 
taraente  m'o  desoonheneu,  qualiíicando-me  torpemente 
de  aventureiro,  morcenario,  indiii^no  de  s^r  adversarií), 
e.  ravalleivo  da  injiu^ía.  E  dize  me  cá  :  se  te  dessem  a  es- 
rnlher,  que  preferirias  tu  ser  :  cnvalleiro  da  injuria,  ou 
p^hirro  da  r^alumnia  ? 

Ainda  não  levanto  mão  do  assumpto,  m.-is  basta  de 
dar  á  lin.írua  por  hoje. 

Estas  cousas  de  dinheiro  sHo  curiosas  na  bocca  de 
fctos  prototypo.s....  de  cousas  e  lousas. 

Ha  por  hi  muito  qu<^m  a  esse  idolo  sacrifique  todos  os 
pensamentos,  e  entno.  nos  outros  os  dedos  llie  pareeem 
hospedes  :  e  todavia  6  para  esses  taes  que  os  velhos  di- 
zem :  quem  quizer  que  o  l)areo  corra,  de-lhe  cebo  nos 
paraes. 

Teu  capellão  obrig-ado 

Uiucitittato. 


DfJ  Pfirnambiico  recebemos  o  scírninln  notavrl  artigo,  que,  por  suas 
dimonsões,  encurlíiinos,  mas  que  subsequentemente  conUnuavemos  a 
pubUcíir. 


12 


I>ol8  discursos  do  Oonsollielro  [Joaó  de  AJLenoar 

lia  homens,  que  nascem,  vivem  e  morrem  convenci- 
dos de  que  o  mundo  ó  a  albergaria  liumilile  o  servil  d(í 
seu  palácio  de  mármores,  e  que  u  sociedade  é  uma 
caterva  de  pobres  de  espirito,  cujo  único  destino  é  bater 
palmas  em  honra  sua,  e  tripudiar  no  eterno  festejo  das 
suas  glorias  triumphaes. 

Esses  homens  sao  mais  felizes  do  que  todos  os  outros; 
porque  nflo  conhecem  os  penosos  esforços  das  abnega  • 
rOes  bemfazejas ;  nflo  conhecem  os  desgostos  e  os  peza- 
r(?s  das  almas  modestas,  que  nunca  vêem  completadas 
as  suas  ambições  de  fazer  bem  ;  níio  conhecera  a  dolo- 
rosa alHicçfío  daquelles,  que,  reputando  jjoucos  todos  os 
seus  sacriticios  em  bem  da  humanidade,  soffrem  pela 
impotência  dos  seus  muitos  e  continuos  esforços;  e  mio 
sentem  em  si  a  fraqueza,  que  é  partilha  da  es])ccie 
humana 

Esses  homens  nflo  padecem  nuncn  pelos  males  alheios, 
nem  sao  capazes  de  remorsos.  A  sua  pessoa  enche  todo 
o  ambiente,  em  que  vivem.  Fazendo  de  si  o  seu  próprio 
Ídolo,  extasiam-se  na  mais  enlevada  contemplação  das 
suas  incomparáveis  bondades :  bastam-se  a  si  mesmos 
para  a  sua  completa  felicidade. 

O  conselheiro  José  de  Alencar  foi  premiado  ])ela  na- 
tureza com  o  dom  dessa  felicidade.  PMle,  e  o  que  é  seu, 
sao  o  tudo  que  conhece  snh  teffmine  avlovum.  O  demais 
precisa  de  receber  a  lei  da  sua  dictíulnra. 

E'  esse  o  seu  caraeter  como  litterato.  E  iS  por  esse 
caracter,  que  se  modela  e  ostenta  o  politico  e  parlamen- 
tar, face  mais  protuberante  do  seu  typo. 

O  homem,  que  se  impõe  pelo  orgulho  e  pela  inque 
brantavel  ostentação  de  uma  superioridade  tolerada 
por  todos  e  nfto  atacada  por  ninguém,  faz  uma  tradiçílo 
pessoal  e  um  direito  de  ser  por  fim  cegamente  acatado 
em  todas  as  velleidades.  Nao  o  atacarflo  depois  impu- 
nemente: porque  seguro  do  seu  prestigio,  elle  rir-se-ha 
dos  temerários,  e  imporá  sempre  a  lei  da  sua  vaidade. 

Pelasegurissima  e  inabalável  convicção  da  sua  imcy- 
clopedica  sufficiencia  o  Sr.  Jostl  de  Alencar  chegou  a 
fazer  parte  do  ministério  de  10  de  Julho,  e  elegeu-se 
deputado  á  assembléa  geral. 

]?or  essa  crescente  e  exorbitante  convicção  de  2S.  Ex, 


li 


devera  ser  pleno  jure  eleito  e  encolhido  senador  deste 
império. 

Fatalidade  I  Foi  eleito,  mas  nao  foi  escolhido.  Isto  è, 
foi  bruscamente  precipitado  da  sua  montanha  no  valle 
chatis.simo  das  vulgaridades  mundanas  I 

Fazer  crerão  mundo  que  um  fanático  adora  um  idolo 
falso,  e  tentar  a  couscienfia  do  próprio  fanático,  6  para 
elle  uma  cousa,  tilo  horrivelmente  absurda,  que  ello  a 
repellirá  com  todos  os  excessos  e  furores  de  uma  ira 
voraz  e  descommunal.  Ai  daquelle  que  ousar  tamanha 
oifensa,  porque  esse  a  pagará  car'j,  será  puniil)  até.  á 
sétima  geração.  E  si  fôr  mister  matar  todos  os  nascitu- 
ros para  que  nao  escape  a  victinia  destinada  a  applacar 
as  iras  desse  fanático  offendido ;  si  fòr  preciso  desonra- 
beçar  um  povo;  incitai- o  á  guerra,  ao  incêndio,  á  d»»s- 
truição;  si  fôr  mister  a  conílagraçãi)  de  um  imperiu;  nao 
liaja  duvida,  tudo  isso  será  feito  para  lavar  a  aíTronta 
daquella  consciência  injuriada,  i)ara  elevar  arinia  do 
todas  as  verdades — que  e^^^e  hí)nieni  *!•  excepcional,  in- 
<*umparavel,  superior  a  todas  as  elevaçOt;.;  sjciaes,  o 
t^nantnin  satis  para  todas  as  possiveis  felicidades  da  na- 
rau,  que  teve  a  honra  de  o  ver  nascer. 

O  í^r.  D.  Pedro  II  será  afinal  convencido  de  que  com- 
irietteu  um  erro  palmar,  deixando  de  escollier  si/nador 
du  seu  imj)orio  o  totutn  cotitineiis  da  no-ísa  grandeza 
so'*ial  e  politica. 

Pagará  caro,  muito  caro  o  simi  erri. 

E'  esta  toda,  iiitiura.  a  irraiidií)sji  po!ili<'a  do  illustrado 
M  insigne  conselheiro  José  de  Alencar. 

Os  dois  notáveis  discursos,  qne  tem  proferido  est<* 
anno  como  opposicionista,  d«^*5en]iani-no  mais  ao  vivo 
do  fjue  o  poderiamos  lazer  por  nós  s'Mnent'\ 

O  primeiro  desses  discursos  tfvi».  por  fim  estvginalisar 
a  viagem  do  i:n])erador  á  Iíui'opa  c  a  menção  da  questão 
servil  na  falia  do  thr«)no.  Em  um  governo  tfio  briltuii- 
ramente parlumfntar^  como  querem  «jue  s-íjii  o  nosso, — 
nem  uma  falta  i)ód<í  fazer  o  imperador,  ausentando-se, 
desde  que  o  s-^u  logar  de  mera  honra  continua  a  s^r  (jc- 
cupado.  Para  o  próprio  Sr.  Jí>sí'*  dí>  Ahíucar.  C{}ino  para 
toíl»)S  o.>  nossos  ''stadista.s  hritnaif'n\\  nãn  soifre  duvidas 
esta  verdade.  K  Uí^sle  pjnto  estão  dií  accordo  comuí).'!'*». 
cora  a  ditF'.M'tMu;a  de  »jU(í  não  ar.iMjitamos  esse  lo'jar  de 
mera  lionra^  armação  de  phanUi.sias,  fii^rão  de  ourop«;is, 
negaça  de  mentiras  sabidas. 


14 


A  questílo  servil,  por  seu  lado,  em  vez  de  ser  os.sa 
calamidade  tremenda,  em  que  a  converteram  aphan- 
tasia  e  a  declamação  dos  traidores  da  pátria,  é  a  ques- 
tílo vital  da  honra  nacional,  do  direito  so]>erano  da  li- 
berdade, da  pfrandiosa  aspiração  da  humanidade  atra  vez 
de  séculos  de  lucta. 

A  sua  inclusão  na  falia  do  throno,  se  nílo  devia  dar 
occasiao  aos  últimos  e  fulminantes  desaffopfos  de  uma 
indifíMiaçno  lonpramente  suffocada,  deveria  pr()V')car  o 
perdão  final  do  todas  as  almas  em  f -ivor  dos  traficante-^ 
o  dos  govíTuos  que  os  teem  proteg-ido,  porque  cm  fim 
declaram  que  é  tempo  de  fnzer  alg*uma  cousa. 

A  questno  da  emancipação  dos  escravos,  nílo  encon- 
trando Já,  antes  do  minist-.rio  de  7  de  Março,  outra  oj)- 
posição  que  nfio  fosse  o  líartido  conservador;  e  sendi) 
tíste  partido  quem  ajorora  se  resolvera  a  dirií^ir  o  log-i- 
timo  e  irresistivel  movimento  nacional.  desapjKiroci  i  a 
única  possibilidade  de  alteração  da  paz  c  da  ordem  pu- 
blica. 

Portanto,  inadmissível,  como  é,  a  intewençJlo  pessoal 
do  imperador  na  soluçilo  dessa  como  na  de  todas  as 
questões  sociaes,  a  sua  viaprem  d(íV(>ra  ser  fa<*to  de  todo 
secundário,  sem  a  menor  importância  ]>ara  um  povo  tflo 
seriamente  possuido  dasconve  niencias  de  uma  paz  a 
todo  o  transe,  pelas  quaes  tem  chep^ado  a  comjirometter 
osnolíres  estimulos  de  lepritimas  reacções. 

^las  nflo !  Acabar  com  a  escravidílo,  de  qualquer 
modo  que  seja,  é  para  o -Sr.  José  de  Alencar  uma.  catas- 
trophe  horrorosa.  S.  K\'.  e\a<rera  os  seus  horrores  para 
insinuar  que  o  imperador  sahia  do  seu  império  por 
medo  dos  peri/íos  imminente-  ? 

A  existência  da  espravidílo  é  para  o  elevado  orador 
uma  f(dicidade,  porque  lhe  offorece  dupla  oeeasino  de 
brilhar  c  Ae,  vingar-sp,  K  foi  por  isso  que  denunciou  á 
naçílo  que  o  imperador  ateara  o  facho  das  desordens  e 
das  calamidades  publicas,  e  fuíria  ao  periíro  (pie  attra- 
hira  sobre  os  brasileiros. 

Pedio  a  palavra  o  Sr.  conselheiro  José  de  Alencar,  o 
auctor  do  drama  intitulado  Mui,  que  íiuer  acliar  na 
conservaçílo  do  estado  servil  uma  frlorií*  politiea  qu(í 
sobre])UÍe  á  prloria  littpraria  do  dramaturpro. 

Os  liomens.  ípn^.  nos  bons  t^^mpos  íloresc(>utes  do  Diá- 
rio '{n  fí'^   '^  )nheceram   em  S.   ]í\,  aíjuelle  n»publica- 


15 


uismo,  que  mal  podia  inascarar-se  com  apjiareiícias  de 
mera  liberdade, — embora  a  sua  transformação  politica, 
pensaram  que  .S.  Ex.  se  deixasse  arrebatar  um  momento 
pelus  impelos  sopeados  dos  seus  antig'os  anhelos  demo- 
cráticos, e  esperaram  o  instante  de  admirar  os  deslum- 
brantes lampejos  da  mais  inspirada  eloquência. 

O  discurso  do  Sr.  conselheiro  José  de  Alencar  foi  o 
aborto  de  uma  grande  inspiração,  mas  o  parto  com- 
pleto e  feliz  de  uuia  aberração  formidável. 

Quem  quer  conhecer  em  que  condição  elevada  foi 
coUocada  a  questão  politica  que  fez  objecto  do  discurso, 
descobre  somente,  é  triste  dizel-o,  a  fatuidade  e  o  des- 
abafo de  concentrados  rancores. 

<fc>uem  quer  conhecer  qual  o  principio  politico,  qual  o 
valioso  interesse  social,  que  pode  fazer  a  syntliese  dessa 
peça  (>ratoria,  j)erde-ífe  no  balsuiro  das  venenosas  iro- 
nias, das  allusoes  ag-gressivas,  das  malifrnidades  des- 
peitosas,  (las  insinuações  descortozes,  das  jactâncias 
jíueris,  das  atfeclações  de  umaeneryia,  que  poreja  baixa 
lisonja. 

O  que  apparece  em  todo  o  discurso  é  a  saliência  os- 
ten.siva  da  sua  entidade  social,  é  a  importância  politica 
..lo  seu  vulto  de  estadista,  impondo-se  pela  própria  exu- 
berância do  valor  pessoal. 

O  orador  u?lo  teve  outro  propósito  sen?lo  desenhar  o 
;-eu  retratj  em  ^*'rande,  e  ainda  par  ilussus  h  murche 
jii*»ldural-o  ricamente. 

lia  no  seu  discurso  uma  palpitante  exploração  dos 
tlesgrostos,  das  contrariedades,  dasoftensas,  das  dolorosas 
reminiscências  de  um  povo,  que  tem  experimentado  op- 
pre.ssOes.  S.  Exa.  apanhou  todos  esses  elementos  de 
reacção,  e  pol-os  ao  serviço  de  seu  orgulho  descommunal. 

Foi  despertando-os  todos  que  tentou  ganhar  adhesões 
para  si-  e  applausos  para  o  seu  discurso. 

E  com  effeito,  se  a  camará  lhe  negou  esses  applausos, 
a  clafjíie  litteraria  que  conquistou  os  redactores  da  Ite- 
forma^  e  que  se  vai  tornando  em  cltKjue  politica,  tem-lhe 
fiivoneado  as  vaidades ,  e  correspondido  ao  seu  maligno 
expediente. 

Sbl  mais  diíficil  collisão  entre  os  reclamos  da  honesti- 
dade e  das  conveniências  parlamentares  por  um  lado,  e 
jior  outro  os  pequeninos,  mas  exigentes  impulsos  do  seu 
de^jpeito  e  egoismo,  o  Conselheiro  José  de  Alencar  çre- 


16 


cisou  de  empregar  todo  o  esforço  dos  seus  recursos 
oratórios  para  cohonestar  a  attitude  esquerda  que 
tomara. 

Precisou,  mais  de  uma  vez,  de  queimar  iucensos  ao 
Ídolo  imperial  que  já  uão  veuéra,  para  melhor  veucer  a 
confiança  de  muitos,  e  fazer  crer  na  sua  rectidão. 

Para  seduzir  a  mais  alguns, — mostra-se  apprehensivo 
pela  falta  immensa  c  irreparável,  que  sentirá  o  governo 
com  a  ausência  das  luzes^  da  experiência  e  do  patriotismo 
do  imperador,  que  aliás  é,  eserá  ainda  alguns  annos  ou 
mezes,  accusado,  por  dd  cd  aquclla  palha,  de  ostentar 
governo  pessoal. 

Queimou  o  orador  esse  incenso  por  que  teve  necessi- 
dade de  insinuar  que  era  falso  o  motivo  allegado 
da  viagem,— moléstia  da  imperatriz — ;  visto  que  de 
longa  data  projectada,  essa  viagem  "estava  reservada 
para  o  condão  magico  do  nobre  presidente  do  conselho, 
depois  de  a  não  poderem  obter  os  Srs.  Marquez  de  Olinda 
e  Visconde  de  Itaborahy.  1'  De  modo  que,  fosse  embora 
verdadeira  a  moléstia,  o  motivo  da  viagem  era  mentiroso. 

Queimou  o  orador  esse  incenso,  porque  lhe  era  neces- 
sário dizer:  "Senhores,  quem  n?lo  conhecesse  o  Sr.  D. 
Pedro  II,  e  não  soubesse  das  provas  de  civismo,  que  elle 
tem  dado  em  trintas  occasioes,  diria  que  esta  viagem 
precipitada  ora....  inspirada  pelas  círct*?n.çíancía5 gravei?, 
em  que  se  acha  o  paiz.  ■' 

Longa  e  qualificada  foi  a  premeditaçao  de  fugir  aos 
perigos  daquestílo  servil,  seja  o  Marquez  de  Olinda  fura 
procurado  para  obter  autorisaçfio  para  a  viagem  I 

Esta  nobre  insinuação  caracterisa  o  orador  e  o  seu  dis- 
curso I 

Mas  em  que  consistem  essas  graves  circufnstdnciàs,  de 
que  falia  o  orador? 

Para  aquelles,  a  quem  o  egoismo  e  o  calculo  ainda 
nao  tiraram  o  bom  senso,  essas  circumstancias  consistem 
só  e  unicamente  na  agitação  dos  especuladores,  na  grita 
insensata  dos  descontentes,  na  opposiçao  contra  todas 
as  grandes  reformas,  por  que  isso  é  o  que  estimula  a  in- 
dignação e  o  desabafo  ,  e  pôde  atear  outras  causas 
latentes  de  reacção,  inais  elevadas  e  inais  dignas. 


[Continua) 


Typographia — americana — Rua  dos  Ourives  n.  19. 


QUESTÕES   DO   DIA 

RIO  1)B  JAÍÍBtBO,  8  DE  SETEMBRO  DE  1871. 


Vcade-se  eoi  caaa  iIo  Srs.  E.  &  II.  Laemniert— Prni;u  da  ConsUtaíH 
t«ia  do  CoDio— RufL  da  S.  João  u.  110— Livmria  Académica,  t 
Qtulíiilin  nu  mesuiti  rua  n,  75.     Pkço  â»  réis. 


BU  n  trlbii  ae  I.CV1  do  parti 


1  coasorvador   1 


Temo»  asâistiilo  u  um  espectáculo  contristador,  qaaP 
nqiieilã  âi  U^m  datlu  a  miaoria  da  camará  temporária 
em  sua»  falsa.>4  e  apaixonadas  apreciações  da  fQÍ}Xv:,i).  ú.a 
cprOu  /  fazeado  assim  cíJro  com  os  mais  exaltados  escríp- 
turea  adversos  à  ordem  coastitucioual  da  monarcUia  ri 
presentativa.  1 

Nunca  tal  fora  visto  no  seio  do  parlamento,  n^ 
tD6sniú  iiuK  tempos,  em  que  alli  estiveram  em  opposiç&o 
otf  liburauii  mais  exaltados.  Nilo:  alli  nuuca  se  investio 
tSa  de  frente  coutra  a  pessoa  dfi  chefe  do  Estado ;  nunca 
au  eoiinciaram  proposições  tao  subversivas.  

Estava  isso  reservado  para  uma  minoria  que  \ 
tunda  ropreseotar  aa  genuínas  idéas  do  partido  conai 
rador I  \ 

S«)iida  da  situação  inaugurada  pelo  ministério  de  16 
de  JuUio,  a  camará  actual  nao  devia  collocar-se  em  an- 
lifODÍflino  cem  os  bons  princípios  de  governo.  E  nno  se 
eollocou,  como  o  attesta  a  illustrada  e  patriótica  maio- 
ria, (inc.ãrmts  e  corajosa,  apoiou  o  ministério  na  grandu 
lueta.  em  que  até  hoje  tem  vencido;  mas  desgraçada- 
mente ficam  os  precedentes  deploravei«,  plantados  pela 
minoria,  mijos  chefes  tenlo  com  o  seu  comnortamcnto 
D»  sesíflu  desto  anno  a  parto  mais  vnlueravel,  e  sempre 
fraca  do  sua  vida  política,  para  poderem  no  futuro,  a* 
forem  governo,  arcar  contra  os  excessos  das  mínolf 
ijae  os  combaterem. 

NAo  attetidoram  siuflo  a  falsos  interesses  do  occanifl 
nXtí  escutaram  sinfto  os  impulsos  de  sentimentos  n     _ 
tospiradoã ;  quebraram  os  elos  preciosos  de  unidade  do 


2  IV 

partido  conservador ;  e  excitaram  na  imprensa  a  mais 
solta,  a  mais  desrespeitosa  linguagem  contra  o  chefe  da 
nação,  contra  as  sabias  instituições  politicas  da  nossa 
forma  de  governo ;  e  deram  aos  contrários  o  mais  des- 
graçado exemplo  da  desorganisaç&o  de  um  partido, 
que,  em  seus  verdadeiros  recursos,  possue  os  melhores 
elementos  de  forca. 

E  o  que  foi  que  accendeu  tamanhas  iras,  e  levantou 
t&o  medonha  tempestade,  que  desprendeu  os  raios  de 
indignaç&o  da  minoria  ? 

Foi,  dixem  elles,  a  questão  do  elemento  servil,  pomo 
de  discórdia,  desafio  do  poder  contra  os  interesses  da 
nação :  foi  o  governo  pessoal,  que  vicia  a  marcha  dos  ne- 
gócios do  Estado. 

E  quem  é  que  o  diz !  quem  é  que  apoia  semelhantes 
proposições? 

Sao  alguns  ex-ministros  da  coroa,  e  ex-presidentes  de 
provincia,  que  o  foram  na  situação  creada  pelo  16  de 
Julho  I 

Foram  elles,  ha  pouco  instrumentos  desse  poder, 
como  membros  primários  do  executivo,  ou  delegados 
deste  na  plana  immediata  da  jerarchia  administrativa, 
que  agora  vieram  denunciar-se  como  subservientes,  e 
executores  do  poder  pessoal! 

Mas  nada  mais  devia  admirar-nos  desde  que  vimos 
que  um  que  tivera  acção  tao  livre  no  governo,  que  po- 
derá mandar  trancar  na  sua  secretaria  todo  o  trabalho 
que  existia  referente  ao  elemento  servil,  e  praticara 
sem  embaraço  todos  os  actos  administrativos,  emquanto 
preparava  o  ninho,  em  que  esperava  agazalhar-se,  aguar- 
dando depois  fora  do  ministério  a  coroação  dos  seus 
cálculos;  só  reconhecera  ò  monstro  governo  pessoal^ 
quando,  na  solução  final,  vira  cahirem  esses  cálculos 
por  um  dos  mais  sábios  actos  de  moralidade  politica  da 
coroa. 

Sábio,  sim,  foi  sem  duvida  o  acto,  que  não  deu  ganho 
de  causa  ás  pretenções  de  um  individuo,  que  como  mi- 
nistro improvisou  uma  candidatura  que  não  podéra 
tentar  antes  e,  não  obstantes  todas  as  considerações  que 
o  arredavam  de  tal  pretenção,  se  obstinou  a  sustental-a 
como  se  fora  direito  perfeito,  que  a  passagem  pelo  po- 
der lhe  houvesse  feito  adquirir. 

Foi  esse  o  grande,  o  imperdoável  crime  da  coroa; 
d^ahi  a  origem  dessa  mania,  que  se  tornou  como  um 
spectro,  que  acompanha  o  individuo  despeitado  por  toda 


IV  3 

A  parte,  n  lhe  iiinitio  no  animo  o  propósito  de  erigir  em 
[wHlica  de  partido  os  spntimentos  ile  ódio  nascidos  de 
SUB  iocommensiiravpl  vnidade 

Mas  o  Sr.  José  de  Alencar  nao  fora  preterido  por  no- 
mes obscuros,  sem  importância:  qualquer  dos  dois  es- 
colhidos é  homem  pncanecido  no  serviço  publico,  é 
homem  de  reconhecido  merecimento,  e  tinha  jà  sido 
incluído  era  lista  senatorial. 

Varfles  eminentes  esiatera  hoje  no  senado,  ijue  plis- 
saram por  mais  de  iimn  eleiçílo,  vendo  outros  escolhidas, 
«em  que  Í4so  lhes  aguçasse  ns  iras  contra  a  mesma 
coríl».  Reconheceram  que  na  escolha  estava  ella  perfei- 
tamente no  seu  direito  coustitucional ;  e  nao  havia  of- 
feofa  de  direitos,  quando  de  uma  lista  tríplice  s6  pôde 
liahír  um  de  cada  vez.  e  nii  opportunidade  da  escollia 
do  qne  é  desig^nado  sii  a  corfla  é  o  juiz  comi)etente. 

Voltando,  porém,  ao  nosso  ponto,  ao  que  serve  de  nexo 
Às  nossas  observações  sobre  o  comportamento  da  mino- 
ria da  camsra,  devemos  tornar  bem  saliente  que  a  nossa 
reitsnra  nSo  é  parque  o  governo  nSo  tivesse  a  unanimi- 
dade dos  votos  da  camará  na  questão  do  elemento  servil ; 
mas  nn  modo,  jiorqne,  em  sun  oppo3Íç&o,  se  conduzio 
a  minoria,  tanto  na  eamam  como  na  imprensa,  attri- 
buíiido  a  motivos  menos  honrosos  o  apoio  dado  á  pro- 
posta du  governo,  e  excedendo-se  no  emprej^-o  dos  meios 
de  opposíçfto,  de  modo  altamente  condemnavol. 

A  abflliçan  da  escravidão  no  Brasil  nao  é  um  acto 
irop*8tíi  pela  vontade  caprichosa  de  Cesfir ;  nao  è  uma 
imposição  da  coroa;  e  nao  pôde  ser  traduzida 'X-mo 
£ub%rv'iencia  A  vontade  irresponsável,  porque,  em  si, 
a  questílfl  nasceu  da  marcha  dos  acontecimentos;  é 
como  o  fructo  amadurecido  na  arvore,  que  deve  ser  co- 
lllido  «m  tempo  para  que  se  nao  deteriore. 

E"  um  tentame  insensato  o  daquelles,  que  entendem 
que  podem  fszer  parar  o  carro  de  nm  acontecimento  que 
e  determinado  por  causas  fataes. 

Quando  a  locomotiva  sibila,  desprendendo  a  carreira, 
Dfto  conhece  resistência  :  esmagará  os  obstáculos  que  se 
llie  anteposerem  :  e  só  cumpre  dirigila  pelos  meios  con- 
venientes para  que  nan  saia  do  trilho,  até  ir  precipitar-se 
Ho  abismo. 

A  questão  do  elemento  servil  traz  hoje  o  impulso  da 
locomotiva  que  Ibe  (',  própria,  a  força  dos  verdadeiros, 
dos  primários  interesses  de  ordem  económica  e  social, 
qae  a  impellom  para  sua  prompta  solução. 


IV 

Foi  isto  o  que  nSo  quiz  reconhecer  a  minoria  da  ca- 
mará; é  a  isto  que  n&n  quer  attenâer  a  obt^tinação  de 
certos  interesses  que  actuam  dentro  o  fora  do  parlamento, 
que  pretendem  desviar  do  seu  verdadeiro  ponto  de  queda 
a  torrente  que  engrossou,  e  que  mais  suberba  crescerá 
com  a  repressão  das  comportas  que  imaginam  ante- 
por-lhe,  a  tal  ponto  que,  si  nflo  se  Ibe  acudir  a  tempo, 
quebrará  todos  os  embaraços  que  encontrar,  e  se  despe- 
nhará, da  montanha  com  horrível  fragor  em  medonhas 
catadupas. 

Pensam  que  a  oratória  apaixonada  da  tribuna  parla- 
mentar, que  enfáticos,  e  faltazes  artigos  de  jornal,  e 
planos  calculados  para  o  fim  de  retardarem  um  aconte- 
cimento inevitável,  sao  meios  regulares  conducentes  ao 
retardamento  da  extinccSo  do  captíveiro  7 

Em  seu  plano,  aopposiçSo  procura  amontoar  trabalhos 
e  embaraços  ao  governo  para  fazel-o  recuar  em  sua  mar- 
cha. E'  assim  que  tem  procurado,  mas  muito  sem  geito, 
promover  o  descontentamento  da  classe  militar,  na  qua! 
vê  um  auxiliar  poderoso  contra  o  governo.  Erro  grave  I 
cujas  consequências,  si  o  plano  surtisse  effeito,  seriam 
bem  perigosas  para  o  paiz. 

Mas  porque  só  hoje  se  pretende  agitar  esta  arma  do 
opposiçao,  só  boje  se  manifesta  esse  interesse  por  um» 
classe,  sem  duvida,  muíto  merecedora  das  attençces  do 
governo  ? 

Ha  nisto  summa  deslealdade,  e  grande  desacerto  no 
modo  de  defender  os  interesse.^^  públicos.  Esse  meio  de 
opposiçao  é  como  uma  espada  de  dous  gumes,  que,  si 
fere  o  adversário,  também  fero  a  quem  com  tao  grande 
má  fé  e  imprudência  a  maneja, 

A  situação  é  grave,  como  bera  reconhecemos ;  a  socie- 
dade exige  grandes  remédios  administrativos ,  mas  eites 
nfio  podem  sair  a  lume  com  as  excitações  e  os  estorvos 
oppostos  por  uma  minoria  era  opposiçao  systematica. 

Uma  dns  grandes  necessidades  reclamadas  é  a 
colouisaçao  que,  na  ordem  económica,  é  a  primeira 
quest&o.  depois  da  do  elemento  servil,  si  é  que  com  ella 
nAo  marcha  pari  passu  ;  mas  como  poderá  ser  satisfeita 
essa  necessidade,  sem  que  seja  traduzida  em  lei  a  aboli- 
ção do  elemento  servil  de  um  modo  eíficaz  T 

E'  desenganar,  porque  as  tentativas  iofructiferas  até 
hoje  feitas  ahí  estão  para  attestar  o  facto :  com  a  escra- 
vidão, acolonisaçao  jamais  será  entre  ods  uma  realidade; 


IV  5 

todos  05  esforços  serão  como  a  onda  que  vai  queorar-se 
sobre  o  rochedo. 

Na  ordem  administrativa,ha  outras  questiles  de  grande 
alcance,  cuja  solução  conveniente  nao  pôde  ser  dada 
sem  que  a  proposta  sobre  o  elemento  servil,  j&  felizmente 
approvada  pela  camará  dos  deputados,  seja  convertida 
em  lei  com  a  necessária  approvaçao  do  senado. 

A  reforma  judiciaria,  hoje  lei,  em  cuja  discussão  o 
illustre  ministro  da  justiça  appareceu  em  toda  a  altura 
de  seu  assignalado  talento,  e  nunca  desmentido  patrio- 
tismo, com  sacrifício  de  sua  enfraquecida  saúde,  é,  certa- 
mente, um  grande  benefício  conseguido  ;  mas  as  medi- 
das de  governo  nao  podem  isolar-se,  prendem-se  por  um 
encadeamento  necessário  como  elos  administrativos 

A  reforma  judiciaria,  é  força  reconhecel-o,  para  pro- 
duzir os  seus  salutares  effeitos  está  na  dependência  do 
melhoramento  das  condições  do  estado  civil  do  povo, 
melhoramento  que  não  poderá  operar  se,  sinão  com 
a  extincção  da  escravidão ;  mas  desde  já  começarão  a 
sentir-se,  em  parte,  esses  effeitos,  ató  onde  (\  possivel 
chegar  a  sua  influencia  na  actualidade,  muito  embora 
um  grupo  de  praguentos  condemne  tudo  que  parto  do 
actual  ministério. 

O  paiz  não  deve  estar  subordinado  sempre  a  certas  in- 
fluencias estacionarias  :  seria  um  impossível,  e,  se  pos- 
sivel fosse,  seria  grande  calamidade. 

Não  ha  hoje  em  dia  Josués,  que  possam  fazer  parar  o 
sol  em  sua  carreira  :  a  missão  divina  da  rodempção  do 
írenero  humano  já  foi  consummada  pelo  maior  dossacri- 
fícios;  os  milagreít  já  não  são  necessários  para  guiar  a 
familia  humana.  Entre  nós  ninguém  terá  força  para 
proferir  o  sisíe  na  marcha  regular  dos  acontecimentos, 
que  vem,  por  que  irremissivelmente  hão  de  vir. 


rutittiò. 


IV 


SÉTIMA  CARTA 


DO   ROCEIRO   CINCINNATO  AO   CIDADÃO   FABRÍCIO 


Rio  de  Janeiro,  5  de  Setembro  de  1871. 

Fabrício  querido. —  Dou  as  mãos  â  palmatória;  tenho 
gazeado ;  passei  uns  dias  em  Petrópolis,  que  numsa  me 
agrada  tanto,  como  quando  parece  deserto  ;  e  eis-me  de 
volta,  proseguindo  na  tarefa  que  me  impuzeste. 

Consagrei  as  duas  missivas  ultimas  a  conversar  com- 
tigo  sobre  a  famosa  interpellaçao  do  dia  5  do  passado,  e 
devia  naturalmente  seguir-se  agora  uma  interpellaçao 
minha  ao  interpellante,  com  as  provas  documentaas  de 
ser  sobre  elle  que  recahem  as  accusações  de  assalariado 
e  mercenário,  e  outras  gentilezas  com  que  pretendeu 
acabrunhar-me ;  porém  como  na  tua  ultima  carta  me 
ponderas  que  estou  gastando  demasiada  cera  com  bom 
defunto^  e  que  preferes  ouvir-me  divagar  sobre  a  ques- 
tão magna  do  dia,  obedeço ;  guardo  para  um  pouquito 
mais  tarde  a  continuação  do  ajuste  de  contas  pessoal,  e 
volto  ao  apimentado  discurso  que  o  Sr.  José  de  Alencar 
proferio  sobre  o  elemento  servil,  analyse  interrompida 
pela  tal  interpellaç&o,  de  eternas  luminárias.  Venha 
portanto  para  a  frente  o  thema  das  minhas  variações. 

V. — As  CONTRADICCÕKS 

Fulminou  o  Sr.  Alencar  o  projecto  do  governo  e  o  pa- 
recer da  commiss&o  especial  da  camará  dos  deputados, 
por  ejstabelecerem  principios  contradictorios,  inconci- 
liáveis ;  e  exprimio-se  com  a  brandura  e  delicadeza,  que 
estão  em  seus  modestos  hábitos.  Ora  deixa  me  transcre- 
ver-te  o  principal  desses  trechos. 

" A  argumentação  é   um  calculo  egoístico,  uma 

transacção  politica ;  é  o  pacto  da  religifto  com  a  iniqui- 
dade.... Desde  que  no  parlamento  se  declara  que  uma 
instituição  é  barbara,  iniqua  e  torpe,  consentir  que  ella 
continue  a  contaminar  o  paiz  é  um  crime  de  lesa-naçfto 
e  de  lesa-humanidade "  (Esta  mesma  idéa  é  esparra- 
Ihada  por  dez  formas  diversas)  **....  Estas  contradicções 
tem  uma  causa ;  n&o  ha  na  illustrada  maioria  uma  opi- 
nião, o  que  ha  sao  aspirações  divergentes,  heteroge- 
aeas ;  falta  o  nexo  para  as  consolidar  em  uma  só  convic- 


IV 

çSo,  em  uma  sií  i<]éa;  por  isso  cada  trecho  do  parecer 
revela  UBui  duvida,  uma  iudeci-sao,  uma  incoberencia" 
etc.,  ele. 

Desataviada  das  pumpas,  iiligranas  e  espertezas  ora- 
tórias, coadeiisa~se  e  fortifíca-se  esta  accu^ação  feita  ao 
projecto  u  aos  fundamentos  eiQ  que  se  estriba,  no  se- 
fruinte  dilomma  descarnado:—  "tíe  a  escravidão  repre- 
âenta  direitos  rasneitaveís,  como  dizeis;  porque  a  r^Lio- 
reÍK  abolir?  Se  ella  é  contraria  aos  princípios  da  reli- 
g-íao,  da  moral,  do  ioteresíie  publico,  como  também 
dizeis;  porque  a  conservais  ?  Sois  contradictorios !  " 

Se  isto  fosse  conlradicção,  poderíamos,  com  Joubert, 
exclamar:  "Pôde  por  erro  cair-se  em  contradicçao ; 
maâ  se  é  pela  Verdade  que  nella  se  cae,  es^a  contrudic 
çfto  é  veneranda,  (t  alors  il  faut  ti'yjeUer  à  corps  perdu." 
Mas  com  qutj  fundamento  ae  chama  a  isto  coiitradic- 
Ç&o?  Como  úqua  um  Roas i  em  miniatura  applica  a  se- 
ttielhaale  b yputbese  a  duvida  Haniletiaiia  do  «er  ou  nuo 
sert  O  que  03  philosophos  denominavam  o  principio  do 
contFadic^Tfto.fonnulava-se  assim :  t"  impossível  que  uma 
couêa,  aomeamo  icmpo,  «eja  e  não  xeja.  lufelizmento  a 
pliilosopliia  e  a  religifto  nao  atto  as  únicas  legisladoras 
do  inuodu.  Servt;ui,  sim,  para,  com  «eus  fachos  lumi- 
nujios,  ir  aperfeiçoando  as  instituições;  porém  as  leis 
do  houiera  uão  tem  a  .labedoria  e  immutabilidade  das 
luís  dú  Creador,  Desde  o  principio  d-i  eterno  Fiat,  achou 
o  Legislador  Supremo  que  tudo  e'4tava  bom ;  mas  o  le- 
gislador bumatio,  desde  a  origem  das  sociedades  que 
anda  apalpando,  lidando  ua  sua  teia  de  Penélope,  pro- 
clnuiaudo  hoje  mentira  o  que  hontem  fiira,  o  que  amn- 
aUa  tornará,  a  ser,  verdade.  E,  eis  como  em  matéria  de 
leis,  nunca  o  melhoramento  deverá  ser  alcunhado  de 
contradicçao,  iiem  tao  pouco  o  serii  quando  considera- 
oACu  dn alto  momento  forçarem  a  coutemporisar,  ainda 
I»r  algum  praso,  até  que  respeitáveis  interesses  sejam 
atlenilidoti. 

O  progresso  é  a  magna  charta  das  sociedades:  nflo  o 
prog-reiíso  da  faísca,  para  log-o  convertida  em  labareda ; 
u&o  o  do  rocio  instantaneamente  transformado  em 
iaunilaçao.  Progresso  real,  fecundo,  civilisador,  6  o  me- 
ditado e  gradual ,  o  que  avança,  dando  tempo  para 
Unçar  ollios  em  torno,  e  nao  aquelle  que  vôa  ãs  cíga^, 
quer  saltar  ao  alto  da  escada  sem  lhe  subir  us  degraus, 
qnar  chegar  ante:«  de  partir,  tfe  em  terras  como  as  aosiías 
ua  diOerença  entre  um  liberal  e  um  conservador,  a  diffe- 


8  tV 

rença  é  só  eeta :  aspiram  ambos  approximadameDte  à 
mesma  cousa,  mas  aquello  com  impaciência,  soffre- 
guid&o,  e  colhendo  o  fructo  verde;  este  comsocego,  fir- 
meza, e  exigindo  ao  fructo  que  amadureça. 

Eií  alii  porque  o  projecto  entende  dever  pôr  termo  á 
instituiçso  do  captiveiro,  mas  entende  também  que  esse 
desiderwidum  deve  respeitar  direitos  adquiridos  A  sombra 
da  lei ;  se  ha  conlradicção,  toda  ella  está  no  amag:o  da 
própria  questão.  Os  que  exageram  os  direitos  oriundos 
dessa  tíío  peculiar  propriedade,  acham  se  no  campo  que 
os  jurisconsultos  UeSnem  pra  Icfie  contra  jurem;  os  que 
só  admittem  o  extrorao  da  emancipação  immodiata,  tio 
campo  pra  jure  contra  íeye/».  Naa  circumatancias  espe- 
ciaea  do  Brasil,  ambos  esses  oxtremos  sao  viciosos. 

O  direito  eterno,  o  natural,  o  direito  por  excellencia, 
que  dúvida  ha  de  que  repelle  a  instituição?  Que  dúvida 
ua  de  que  o  termo  propriedade  é  mal  applicado  é  relaçílo 
entre  o  senhoreo  escravo,  no  anno  de  graça  de  1871  * 

Propriedade  I  Compra  e  vendai  A  primeira,  a  uuica 
legitima  condiçfto  do  commercio  é  recair  sobre  objecto 
vmial ;  venal  nfto  é  a  alma  nem  o  corpo  de  um  ente  hu- 
mano. Toda  a  propriedade  se  atfere  por  um  padrão,  a 
preço  de  dinlieiro;  estranha  cousa  é  pòr-se  a  proprie- 
dade-homem  ,  como  o  carneiro  ou  o  jumento .  em 
almoeda,  aos  lanços. 

E  como  se  hnde  exigir  que  o  mísero  coUocado  nessas 
condições,  alifts  embrutecido  (porque  o  embrutecimento 
di  raça  é  uma  das  condições  do  seu  estado],  se  dedique 
fervorosamente  ao  bem  da  sociedade,  fi  que  uflo  per- 
tence ?  Elle  nos  respondeni : 

"  Deus?  Descreio;  porque  me  illude,  proclamando- 
me  vosso  egual,  e  eu  sou  vosso  captivo. 

"  Patbia  T  Descreio;  porque  ndo  sou  nem  serei  nunca 
cidadKo,  e  porque  ú  disposição  delia  nso  me  é  dado  piír 
ss  minhas  faculdades. 

'■  Fauilia?  Descreio;  porqna  v(5s  me  ensinais  a  des- 
prezar 08  laços  que  8Ó  unem  a  vossa;  me  difBcuUais 
o  formal>a  legitima;  e,  depois  de  consUtuida,  nau  a 
rodeais  das  mesmaa  seguranças. 

'■  Ec  ?  Irrisfio  !  Que  sou  eu  t  Alma  penada,  se  é  que 
sou  alma;  Saturno,  que  devoro  os  filhos;  ignóbil 
creatura,  para  quem  o  espirito  nao  foi  dom,  mas  con- 
demnnçUo;  inhibido  de  respirar  a  atmosphera  que  me 
circumda;  considerado  suspeito,  inferior,  inimigo;  con- 
demuado  a  trabalho  insuuo,  cujo  fructo  aproveita  a 


IV  j) 

outros:  no  passado,  vileza:  no  presente,  miséria:  futuro 
>eni  esperança.  Estou  sirnplesmenttí  euclieudo  altura  na 
terra,  onde  nem  vestígios  ficarão  da  minha  passag-em, 
porque  Oá  nao  podem  deixar  o  suor  nem  as  lag-rvmas.  *' 

Ponjue  se  não  liade  dizer  isto,  se  istí>  6  a  verdade?  K 
;i  tantos  horrores,  vemhnje  nesta  terra  outra  curiosa  des- 
i>rualdade  auírmentar  o  seu  cortejo  de  al)ominaçr)es. 
Fallo  da  anomalia,  dacontradiccão,  da  injustiça  máxima 
<Ie  collocarmos  em  posiçflo  interior  af|uelle  que  ao.-; 
nossos  olhos  deveria  ocoupar  posição  d(?  superioridade  ! 
Acham-se  dons  homens  em  absoluta  identidailo  do  cir- 
cumstancias:  chamamos  ambos,  escravos;  mas,  se  um 
chejrar  ahi,  estrangpeiro,  trazido  de  lonj»'es  terras,  sem 
liíraçao  alg"uma  com  esta;  se  o  outro  for  creoulo,  com- 
patriota, nascido  na  mesma  terra  ([xw  o.<  outros  bra- 
sileiros, que  succederá?  para  aqutdlí»,  aliás  com  razão, 
mas  em  condições  inferiores,  a  liberdade  immediata  ; 
para  este,  conterrâneo,  o  perpetuo  captiveiro! 

Tudo  isto  é  de  evidencia  meridiana  :  não  se  offusque 
o  sol,  cobrindo-o  com  uma  peneira ;  não  se  zombe  de 
considerações  d'estama«^-nitude ;  não  .^e  exija,  para  foro« 
de  estadista,  cortar  a  cabeça,  arrancar  o  coração,  pctri- 
lical-o,  ou  converíel-o  n'umasimpl(ís  bola  d^ouro.  (Isque 
applaudom  (»  ])rojecto,  é  por  verem  noUe  a  aurora  do 
ília  em  que  o  vocábulo  escravo  d«»sapp}irecorá  do  nosso, 
•'omo  de  todos  nn  idiomas. 

Mas  se  o  christão,  o  iiliilosoidio,  o  ])atriota,  o  homem 
:i.  cabeça  e  coração,  reflexiona  assim,  sur/jre  opoliticu,  e 
::.ipõe-lhe  outro  íhiver  que  se  não  coaduna  com  aquelle. 

Pondera  o  politico  —  que  atraz  dessa  nobre  (juestão 
iia  outra,  que  embora  de  menos  momento,  uuTece  res- 
jjeito  :  — qui»  a  lei  civil  estabeleceu  a  instituição  ;  —  que 
dfí  conformidade  com  essa  lei,  e  sob  a  salvaj^uarda 
d'ella  existem  valiosos  interesses  :  —  (jue  estes  se 
acham  ainda  vinculados  com  a  actual  orjranisação 
do  trabalho:  —  que  a  sociedade  peri^Mria  com  o  liber- 
tamento  instantâneo  de  todos  os  cai)tivos  ;  —  que  é 
axioma  o  jure  ííuo  iwnio  i}rivandus  :  —  cpn^  sem  indem- 
nisacão  dos  serviços,  a  alforria  ^'•oral  seria  uma  extorcão: 
—  que  para  a  decretar  com  indemnisacão,  seria  ao  Estado 
imj»ossivel  achar  recursos  ;  —  que  cons(í^^uintemente 
<»  direito  deve  ceder  um  tanto  á  pressão  pcditica,  porque 
também  aqui  o  sunumun  jus  seria  a  sinmna  Injuria:  e 
Tionjue  teríamos  então  direito  contra  direito,  violência 
contra  violência,  desordem,  anarchia. 


10  IV 

Kis-ahi  pois  o  que  inexactamente  denominam  contra- 
dicçflo :  as  considerações  da  primeira  ordem  levariam  á 
abolição  immediata  do  captiveiro,  as  da  segunda  ordem 
mostram-na  impraticável ;  Ahi,  ahi  é  que  estão  os  inte- 
resses oppostos,  que  constrangem  o  legislador  a  fugir  a 
qualquer  dos  dons  extremos,  a  adoptar  um  meio  termo, 
uma  composição,  que  por  um  lado  afiance  aquella  ex- 
tincçao  num  prazo  mais  ou  menos  curto,  por  outro  per- 
mitta  ainda  a  duração  d'essa  deformidade  social,  quanto 
baste  para  se  não  imputarem  á  lei  as  pechas  de  desorga- 
nisadora,  espoliadora  e  iniqua. 

Assim  a  vemos  neste  projecto  prudentemente  decretar 

—  a  impossibilidade  de  futura  escravidão,  pela  liber- 
dade dos  nascituros— o  respeito  á  existente  propriedade 
de  serviços,  pela  conservação  do  estado  excepcional  da 
actual  classe  captiva  —  a  possível  protecção  a  esses 
miseros,  pelos  variados  esforços  feitos  para  as  suas 
alforrias. 

Quem  desconhece  que  o  rigor  da  lógica  se  não  con- 
tenta com  essas  prudentes  reservas?  Corollarios  lógicos 
só  poderiam  tirar-se  de  uma  das  contrarias  proposições : 

—  Perpetue-se  a  instituição  —  ou  —  SuppyHma-se  a  insti- 
tuição. Ora,  se  nem  uma  n*,.*m  outra  cousa  é  factível, 
claro  está  í|ue  nenhum  expediente  pode  ser  lembrado  a 
que  se  exijam  rigores  dialécticos.  Os  que  interessam  na 
duração  do  captiveiro,  hão  de  sempre  bramar  contra  as 
monstruosidades  que  renlniente  resultam  por  furça  d'esta 
duração  anómala ;  os  que  só  do  direito  se  enamoram, 
hão  de  stygmatisar  uma  lei  que  os  não  acompanha  em 
suas  impaciências,  e  hão  de.  como  o  fez  o  AiUi-Slavery 
Repórter^  do  1"  de  julho,  qualificar  este  projecto,  não 
como  de  suppressao,mas  como  de  alongamento  da  insti- 
tuição abominável. 

Sendo  certo  que,  nem  no  parlamento,  nem  na  im- 
prensa, nem  nas  representações,  nem  nas  associações, 
nem  nas  salas,  nem  nas  praças,  ha  uma  só  voz  que  não 
proclame  a  necessidade  de  acabar  com  a  escravidão  ; 
sendo  pois  esta  a  opinião  unanime  do  Brazil ;  e  não  ha- 
vendo tão  pouco  quem,  nas  peculiares  circumstancias 
d'este  império,  desconheça  a  necessidade  de  não  dar  o 
golpe  de  súbito ;  é  de  primeira  intuição  que  nenhum 
alvitre  poderia  imaginar-se  escoimado  de,reaes  ou  appa- 
rentes,  injustiças  relativas,  de  disposições  contradicto- 
rias,  se  assim  querem  chamar  á  inevitável  condescen. 
íTencia    com    direitos,    senão  oppostos,  diversíssimos^ 


IV  11 

Oc.safío  a  que  algum  melhor  Lycurgo,  dadas  as  duas 
condições  imprescindíveis,  exliiba  projecto,  d'onde  nao 
puUuíem  os  inconvenientes  d'este  penero,  que  ao  do 
g-overno  assacam.  Ninguém  do  boa  fó  o  poderá  negar. 
Pode  porém,  tem  carta  branca,  negal-o  o  Sr.  José  de 
Alencar,  e  exclamar  o  seguinte : 

•'  —  Nflo  ha  nem  pode  haver  senão  duas  opiniões  poli- 
ticas, dous  partidos,  o  da  emancipação  indirecta  e  o  da 
emancipação  directa  e  immediata.  ^' 

Partido  de  emtincipaçao  directa  e  immediata,  pode 
havel-o  lá  fora;  nao  o  ha  no  Brazil.  Na  Europa  podem 
ter-se  deixado  levar  pelos  impulsos  exclusivamente  hu- 
manitários, não  só  hoje  para  a  propaganda,  como  até  em 
tempos  mais  afastados,  quando  alli  havia  interesses 
diversos  na  questão;  alli  podia  ter  alcance  exclusiva- 
mente generoso  e  nobre,  quando  estava  em  causa  o 
principio  da  liberdade  humana,  aquelle  famoso  brado  : 
Pereçam  as  colónias^  e  salve-se  o  principio  I  O  trabalho 
servil   das   colónias    inglezas  e  francezas   nao    era  a 
Inprlaterra  nem  a  Franca;  mas  as  colónias  do  Brazil  sao 
o  próprio  Brazil,  e  portanto,  aos  olhos  do  muitos,  aquelle 
hrado  aqui,  sêro-hia  de  suicidio. 

Nao  ha  pois  neste  império  nem  partido,  nem  opinião, 
<[ue  pu^ne  i)ela  emancipação  directa  e  immediata;  e 
qnnnto  á  extinoçao  indirecta  e  gradunlda  escravidão,  ó 
isso  que  o  projecto  assegura. 

P(3de  tardar  o  dia  da  verdade,  mas  para  todas  as 
grandes  conquistas  sociaes,  é  lei  providencial,  raia  ine- 
vitavelmente. Para  as  melhores  e  mais  indispensáveis 
prescripçOes  ha  sempre  rémoras,  como  o  orador  qno 
analyso;  mas  a  despeito  delias,  os  principios  lá  vao 
marchando  f/uo  faia  vocant,  Barafustíi  o  nobre  depu- 
tado por  que  se  demore  ou  eternize  a  solução  deste  jis- 
surapto;  nao  pode  ser;  demasiado  tem  elle  figurado  nos 
debates  especulativos.  Todas  as  naçOes  admittiram  a 
negra  instituição,  mas  já  todas  sem  excepção  a  derruba- 
ram ;  está  madura  a  idéa  da  humanidade,  e  o  Brasil 
jiertence  á  humanidade. 

Cada  doctrina,  atn  das  que  hoje  mais  nos  arripiam, 
teve  existência  legal,  e  muitas  vezes  constituindo  di- 
reito publico  internacional  ou  privado. 

A  escravidão  dos  judeos,  gregos  e  romanos  na  anti- 
guidade, e  modernamente  a  dos  povos  do  oriente  e  da 
Africa,  foi  base  social,  e  teve  extensão  mui  outra  que 
<»sta  nossa  escravidão,  a  derradeira.  Onde  vai  ella? 


( 


12  IV 

O  despotismo  do  chefe  da  família  para  com  sua  con- 
sorte, filhos  e  fâmulos,  onde  está? 

O  caprichoso  direito  de  conquista  e  do  incorporação, 
íícin  titulos  nem  motivos,  nao  desappareceu  ? 

O  direito  albinato  (alibi  nalus,  droit  d\iiih(une)^  ({iie 
tornava  o  soberano  local  herdeiro  do  alienígena,  ou  de 
quem  nao  deixasse  succcssor  reinícola,  precisa  já  hoje 
a  declaração  dos  tratados  para  ser  desprezado  ? 

O  direito  da  praia  {jits  liltoi^is]  que  aos  mesquinhos 
naufrag-os  augrmentava  a  miséria,  vendo  elles  leg'al- 
mente  arrebatada  toda  a  sua  propriedade  arremecada 
pelas  ondas  a  alheias  costas,  6  hoje  mais  que  uma  tra- 
diç.lo  vergonhosa? 

Tantos  denominados  direitos  feudaes  e  senhoriaes  que 
os  séculos  toleraram  sem  espanto,  formam  acaso  mais 
que  negras  paginas  de  obsoleta  civilisaçao? 

E  nao  obstante,  todas  essas  façanhosas  barbaridades 
arreiavam-se  com  o  usurpado  nome  de  direitos,  direitos 
e  direitos,  por  mais  tortos  que  esses  direitos  fossem. 
Tenhamos  cautela  em  nao  enterrar  a  mao  na  chaga, 
nós  outros:  quem  sabe  se  em  1871  com  igual  razão 
não  chamamos  direito  ao  que,  á  devida  luz,  só  devesse 
cham;ir-se  interesse  ? 


Ai,  Fabricio,  que  ainda  agora  dou  por  mim  1  Parece 
que  também  eii  estou  hoje  (H)m  cara  de  poucos  amigos, 
(íe  bitaculas  franzidas,  com  o  fígado  segregando  bile 
negra,  e  arrependo -me  porque  melancolia  não  paga  di- 
vidas. Também  a  culpa  foi  minha:  eu  tenho  uma  receita 
infallivel  para  por  mede  canninha  na  agua:  é  olhar 
para  certos  furores,  \C*y  certos  discursos,  e  ver  ursos  a 
dansar;  o  que  tudo  é  excessivamente  alegre.  Desta  vez 
li  pouco,  e  sobre  themas  de  Bertholdo  thalberguei  va- 
riações áestabfU  mater;  foi  o  assumpto  que  irresistivel- 
mente me  chamou  á  seriedade,  que  houvera  sido  impró- 
pria do  discurso  que  analyso. 

Naofecho  esta,  sem  chamar  atua  attençSo  para  uma 
oração  proferida  pelo  respeitável  conselheiro  Nebias, 
um  dos  mais  nobres  vultos  do  parlamento  e  do  paiz, 
discurso  que  hoje  foi  publicado  no  Jornal  de  Commorcio. 
O  venerando  ancião  hostilisa  o  projecto,  e  tudo  induz  a 
crer  que  por  convicção.  Com  quanto  eii  divirja  da  sua 
opinião,  respeito-a,  porque,  afinal  de  contas,  as  convic- 
ções do  homem  probo  e  illustrado  sao  sempre  dignas  de 
acatamento.  Persuado-me  porém  que  o  Sr.  Alencar  terá 


IV  13 

ficado  como  uma  bicha  com  o  illustre  estadista,  que 
aliás  timbra  pela  franqueza,  mas  a  franqueza  da  leal- 
dade e  boa  educação,  quando,  alludindo  ixs  conferencias 
sobre  o  elemento  servil,  entre  os  membros  do  poder 
executivo,  de  que  eram  parto  o  orador  e  o  Sr.  Alencar 
também,  se  exprimio  assim : 

"  Declarei  a  Sua  Magestade  o  Imperador  (que  discu- 
tio  sempre  com  os  seus  ministros  em  plena  liberdade  e 
confiança,  ficando  cada  um  de  nós  com  a  sua  responsa- 
bilidade) queetc...  Em  resultado  ^da  discussão)  a  falia 
do  throno  desse  anno  nao  disse  nada  acerca  do  elemento 
servil  Nós  éramos  ministros  re-^ponsaveis,  e  tomámos  a 
responsabilidade  dessa  ommissao.  "' 

Eis  ahi  o  famoso  ab  alío^  a  pressão  exercida  pelo  poder 
pessoal.  Um  varão,  incapaz  de  adular  nem  mentir,  diz 
que  os  ministros,  quorum  pars  magna  fuit  o  Sr.  Alencar, 
nunca  foram  coa«ridos  pelo  chefe  do  poder  executivo ; 
que  n<^^ta  própria  matéria,  como  em  todas,  obraram 
sempre  em  plena  liberdade  e  confiança  ;  o  que  as  reso- 
luções tomadas  foram  sempre  sof^undo  o  seu  modo  de 
vére  conformes  á  sua  responsabilidade.  E  o  delator  do 
poder  pessoal  ouvio  e  nao  ousou  desmentir.  Infeliz 
mortal !  tudo  lhe  corre  torto. 

Ainda  mais  íiutra:  Na  sessHo  do  hont(.Mn.  no  senado, 
o  illustrado  Sr.  Zacarias  de  (íoos  ■(iu«í  a  um  aíilluido  pu- 
zera,  na  pia  do  baptismo,  o  iionie  d(í  FfitiiuUnho]  ])on(l(»- 
rou  que  parecia  impossível  ter  o  ministro  da  justiça  oní 
1870  declarado  á  camará  dos  deputados,  em  seu  carac 
terofficial,  que  não  existia  trabalho  al^rtim  do  consellio 
de  estarlo  sobre  o  elemento  servil  !  n  o  respeitável  Sr. 
visconde  de  Itabornhy  accresceníou,  em  á  ])arte,  que  já 
desdn  o  anno  de  18(58,  os  i^apeis  do  conselho  de  estatlo 
e  outros  haviam  sido  entreg'u<»s  ao  Sr.  José  de  Alencar.... 
que  ag^ora  vem  accusar  os  outros  do  não  terem  disto 
dado  conhecimento  ao  poder  leí^islativo.  Habilidoso 
líermann,  sí>  Deos  «'•  Deos,  e  tu  o  seu  prr)j)heta  I 

O  íTuerroar  desleal 
contra  o  pí)der  pessoal ; 
o  jti  vamos  do  barqueiro  ; 
o  sf})n.  faliu  (Palfaiate  : 
esporada  d'arrieiro; 
bom  vinho  na  taboleta.... 
tildo  é  peta. 
Verdade  só  é,  meu  vciiio,  ser  eu  inalteravelmente*  len 
constíinte  admirador  Cint  Innato. 


14  IV 


Do us  discursos  <to  conselliolro  Josó  d.o  Alencar. 


( Continuação ) 


Portanto  o  imperador  fugiria  (l*aqiiillo,  que  o  orador 
havia  de  fazer,  e  começou  já  a  fazer  com  os  seus  dis- 
cursos ! 

Deve  portanto  a  nação  ficar  de  sobreaviso,  e  tomar 
ruidndo  com  o  Sr.  Conselioiro  Alencar. 


Mas  ali !  O  orador  precisava  mui  ti)  de  fazer  ver  ao  im- 
perador—  que  nJlo  será  impunemente  que  »^.  Majestade 
deixi'U  de  trioutar  homenagem  a  um  estadista  da  polpa 
de  S.  Exa.;  quo  caro  í^vk  custar  á  naçfio  o  desapreço, 
que  o  excluio  do  senado. 

O  orador  precisou  de  fazer  saber  á  nacao  e  ao  mundo 
que  ha  neste  paiz  um  monarcha  tilo  imprevidente,  que 
nao  sabe  receber  em  sua  casa  com  a  devida  distincçilo  c 
amabilidade  um  homem  da  elevação  politica ,  e  da 
illustraçao  sem  parelha,  do  Conselheiro  José  do  Alencar, 
de  cujo  tracto  devera  S.  Míi^estade  colher  tflo  boa  lição 
de  conhecimentos  humanos. 

O  Sr.  Conselheiro  precisou  muito  de  fazer  constar  ao 
paiz  e  ao  mundo  que  o  esphacelamento  actual  do  partido 
conservador  dat'i,  e  provém  da  desastrada  recusa,  q  le 
ousaram  fazer  dos  seus  inestimáveis  projectos  —  de  re- 
forma judiciaria  e  da  p^uarda  nacional,  dos  quaes  de 
certo  dependia  a  salvação  da  pátria. 

Fazendo  de  si  tilo  exaltido  con<*eito,  crendo-se  uma 
verdadeira  influencia  nacional,  concebi^u  a  apprehensllo 
de  que  o  imperador  quiz  abrir  eoinelle  uma  hicta  pessoal 
de  prestigio  politico,  intollectu;d  e  scientifico  E  que 
mostrar  que,  por  força  da  sua  autoridade  parlamentarer 
politica,  ha  de  cahir  a  fracçOo  desse  partido,  que  pela 
recusa  dos  seus  projectos  deu  razflo  ao  imperador  na  lucta 
que  este  travou  rontra  o  autor  do(jaú'*ho. 

O  senhor  Con^;rdheiro  alfaga  í)  ardente  propósito  de 
mostnsi',  .u'  ;isuanílo  escolha  de  senador  pela  província 
do  Ceará  hade  ser  paga  com  usura:  porque  S.  Exa.  ó  o 


IV  15 

rier  pias  ultra,  o  solas,  tohis  et  unas  deste  império  de 
parvos. 

A  gana  de  molestar  o  imperador,  que  o  levou  a  dizer 
duras  verdades,  naolhe  cousentio  que  omittisse  nas  suas 
criticas  a  antigualha  ridicula  do  beiia-mao,  embora 
fosse  obrigado  a  confessar  que  tamliem  lhe  tem  prestado 
reverencia,  sendo  porém  a  tal  respeito  uma  espécie  de 
amigo  livre. 

Lamenta  o  orador  que  —  *'  a  liberdade  seja  sempre 
neste  paiz  uma  outorga  da  realeza,  e  não  uma  briUiante 
conquista  do  povo." 

Estas  palavras  deveram  ter  sido  proferidas  com  ver- 
dadeira compuncçao,  e  com  lagrimas  I.... 

Como !  Nao  está  S.  Exa.  deitando  montes  abaixo  para 
abafar  e  aniquilar  essa  conquista,  longa,  demorada, 
tardia,  que  o  povo  fez,  da  emancipação  dos  escravos? 

Como  pois  consentiria  que  este  pobre  povo  tentasse 
alg^uma  conquista,  e.  ainda  mais  a  fizesse  de  um  modo 
brilhante? 

Que  liberdade  poderia  ser  conquistada  sem  que 
.  Exa.  se  deixasse  possuir  de  apprehensOes  contra  os 
perigos  da  ordem  publica,  em  favor  da  segurança  indi- 
vidual e  de  propriedade,  contra  os  excessos  e  açoda- 
mentos imprudentes  ? 

E'  que  o  orador  representa  com  a  maior  seriedade 
o  seu  papel. 

Cria  corn  geitosa  phantasia  enormes  inimigos  da  pa;^ 
publica  —  para  ceder  depois  á  necessidado  de  cumprir  o 
sagrado  e  imperioso  dever  de  os  debellar. 

py  assim  que  *S.  Ex.  fabrica  perigos,  desordens,  re- 
voluções, cataclysmas  mentaes ;  vè  a  perdição  total 
deste  império  em  todo  e  qualquer  meio  razoável  de  ex- 
tinguir a  escravidão  ;  e  declara  não  só  temeridade,  mas 
atteutado,  aberração,  monstruosidade,  baixeza,  e  cor- 
rupção repugnantes  ,  as  convicções  dos  estonteados 
poetas  e  philosophos  deste  paiz,  ( pondo  de  parte  os  ro- 
mancistas e  os  dramaturgos)  porque  ha  quem  pugne  pela 
emancipação  da  escravatura. 

E'  assáim  que  ÍS.  Ex.  moureja,  fatiga-so  e  extenua-se, 
—  em  demonstrar  a  existência  e  a  invasão  ostensiva  c 
insólita  do  poder  pessoal  do  imperador  ;  desse  mesmo 
poder  que  durante  o  dominio  dos  progressistas  era  tao 


S 


miur   . 

Mo. ' 


QUESTÕES  DO  DIA 


.4 


I^.   õ 


BIO  DE  JANEIRO  14  DE  SETEMBRO  DE  1871. 


Vende -se  em  casa  do  Srs  E.  &  H.  Lacmmert— Praça  da  Constituição, 
Loja  do. canto— Bua  de  S.  José  n.  110— Livraria  Académica,  o  Cruz 
Coutinho  na  me:>ma  rua  n,  75.  Preço  200  reis. 

01>x*as  cie  Senlo— O  Oaúelio. 

(Cartas  a  um  amigo.) 

Meu  amigo. 

Compreheado  o  gaúcho  assim :  organisaçao  deste- 
^mida,  vasada  nos  moldes  dos  Guaycunis  ou  dos  Pata- 
^es,  que  sao  os  primeiros  cavalleiros  do  mundo. 

O  rebenque  e  as  chilenas  castigam  e  subjugam  os 
Ímpetos  do  cavallo  indómito. 

Ha  em  sua  physionomia  illurainada  de  um  explendor 
insano,  em  seu  animo  iu.soffrido,  o  entumecimento  e  iis 
palpitações  precipites  do  arrojo  semi-barbaro. 

Finalmente  vejo  no  gaúclio  alguma  cousa  que  se 
pareça  com  Osório  ou  Zeno  Cabral — no  espirito,  fontes 
inesgotáveis  dos  maiores  lieroi.smos, — no  sentimento  a 
exaltação  e  a  decisão,  que  pode  inspirar  a  cálida  ven- 
tania das  savanas, —  nas  acçOes,  nos  gostos,  uma  reso- 
lução firme,  implacável — n'uma  palavra,  a  intei^^-ra  per- 
sonalisaçao  da  virilidade  continental. 

O  cavallo  o  completa :  é  o  .seu  appendicc  ou  antes  o 
seu  epilogo :  repre.^enta  o  papel  de  sou  escravo,  antes 
que  o  de  seu  amigo  ,  e  melhor  o  de  victima  que  o  de 
escravo :  o  gaúcho  é  mais  o  tyraiiuio  do  cavallo  do  que 
seu  senhor. 

Jíao  sei,  meu  amigo,  si  já  leu  uma  intcre.ssante  his- 
toria, intitulada  —  O  (Inaranu  —  por  Cuistave  Aimard  *? 
Ahi  pode  estudar-se  o  gaúcho  com  proveito.  Encontra- 
.?e  otypo  exacto  e  nao  a  fabula  rachitica.  O  historiador 
francez  estudou  em  pessoa  os  costumes  da  vida  nómada 
do  pampa.  Escreveu  como  quem  viu,  e  nâocomo  quem 
\ik  a. 


2  V 

Por  isso  os  personag-ens,  nessa  verídica  historía,  silo 
de  uma  vitalidade  eloquente  ;  tem  toda  a  efflorescencia 
da  vida  ;  e  nao  são  pallidas  visões,  creaturas  dií>formes, 
descoradas,  confusas  e  em  contraposição  á  verdade  na- 
tural e  ethnographica. 

E  o  cavallo  do  pampa?  Compreliendo-o  deste  modo: 
susceptivel,  vertiginoso,  estremecendo  de  mil  inquie- 
tações a  qualqu  r  leve  rumor  do  deserto,  arredio  do 
homem  em  quem  adivinha, por  instincto  eporlicçílo,um 
inimigo  encarniçado  de  sua  independência  ;  um  animal 
que,  ao  vêr  o  gaúcho,  dispara  a  correr,  com  medo  de  sua 
enfeza,  por  banhadí^s  e  coxilhos,  impellido  pela  exal- 
tação, pela  investida,  pela  desencadeamento  dos  pânicos 
brutaes  ;  um  animal  que  só  possam  domar  a  teuieraria 
audácia  e.  a  clássica  perícia  do  gaúcho,  e  a  que  fora 
licito  applicar,  sem  risco  de  impropriedade,  o  nome  * 
expressivo  de  desespero  ou  furacão. 

Nem  um,  nem  outro,  nos  dá  Se) tio. 

Manoel  Canho,  apresentado  como  realisando  o  ideal 
do  gaúcho,  caraclerisa-se  por  estes  signaes  :  ódio  eterno 
para  com  a  espécie  humana,  frouxo  e  effeminado  inter- 
necimento  para  com  a  raça  hippica.  Senio  emitte  a  dou- 
trina de  que  o  gaúcho  tem  mais  em  si  de  cavallo  do 
que  de  homem;  que  dizer  gaúcho  é  querer  dizer— corarão 
para  umaraça  bruta,  ninscido  apenas  para  a  sua  própria 
espécie  e  alê  para  a  sua  família. 

Canho  morre  de  amores  pelas  éguas.  Com  ellas  vive, 
convive  e  dorme.  Cavallos  e  poldrinhosdespertam-ihe 
todos  os  estremecimentos  do  affecto  mais  terno  e  mu- 
lherengo. Já  viu  maior  aberração,  meu  amigo? 

Quanto  aos  cavallos,  vejamos  como  foram  ideados 
por  Senio. 

São  muito  discretos,  sensatos  e  reflectidos.  A  baia  é 
sensível,  amorosa  e  ciumenta  de  Canho;  a  tordilha 
tresanda  a  humanidade  e  a  piedade  christã ;  o  alazão, 
o  pae  do  lote,  é  polido  e  cumprimentador  como  um 
conselheiro. 

A  baia,  em  logar  de  tempestade^  chama-se  morena. 

Ai  !  morenas  tão  decantadas,  romantisadas,  poetisa- 
das  todos  os  dias  e  pelas  melhores  pennas,  quão  pouco 
vos  deveis  lisongear  com  o  original  capricho  de  Senio  ! 

Moreninha  chamou  Macedo  a  um  bello  livrinho  seu, 
de  cunho  nacional,  que  faz  as  delicias  do  sexo  amaveU 
e  as  estantes  brazileiras  recolhem  como  uma  jóia. 


Pois  este  significativo  epitlieto,de  tradicional  encanto, 
clássica  presnmpçao  do  que  ha  de  garrido,  de  gracios  ), 
de  tentador  na  mulher  nacional,  qualifica  no  Gaúcho 
uma  égua.  Canho  alardeia  de  fazer  tudo  pela  besta,  pela 
mulher  nada,  E  a  propósito  de  besta  :  deve  saber  Senio, 
que  no  Rio  Grande  do  Sul  nunca  se  emprega  esta  voz 
para  significar  egua^  como  erroneamente  se  faz  no  seu 
Gaúcho, 

Depois  da  morena  quem  ha  de  seguir-se  *?  Ò  Jucá. 
Podereis  adivinhar  quem  seja  esse  moço,de  nome  insinu- 
antemente alterado  ?  Nao  é  um  moço,  é  um  poldrinho!  E' 
querer  levar  a  espécie  ao  ultimo  ludibrio. 

D'e5t'arte  temos  o  tratamento  amoravel,  que  a  mae 
estremosa  dá  ao  filho  do  seu  coração,  o  carinhoso  di- 
minutivo  com  que  a  donzella  chama  o  irmão  ou  o  pri- 
mo,em  signal  de  estima  e  de  intimidade  aftavel  e  jovial, 
temol-o  aqui  applicado  ao  potro.  Para  se  chegar  a 
humanisar  a  sociedade  equina,  nao  se  hesita  em  cavallí- 
sar  a  sociedade  dos  homens. 

Meu  amigo  :  entendo  nio  dever  passar  além,  sem 
primeiro  lançar  certas  bases,  certos  preceitos  que  regu- 
lem o  processo  analytico-litterario. 

Por  isso,  para  toda  boa  ordem  e  claresa  de  idéas,  re- 
duso  a  questão  ao  dilemma  :  ou  Gaúcho  pretende  as 
honras  de  um  romance  de  cosfiirnes^  ou  satisfaz-se  com 
o  ser  de  mera  p/ia/i^a5Ía. 

No  primeiro  caso,  protesto.  Longe  d'isso,  o  Gaúcho  é 
desnaturado,  falsissimo,  apocrypho. 

Tal  qual  foi  concebido  e  executado,  importa  a  mais 
pungente  palinodia  contra  a  o*entilesa, a  masculinidade, 
a  fama  das  illustres  façanhas  e  legendarias  tradições  do 
campeão  das  savanas  austraes. 

No  segundo,  ha  de  permittir-nos  Sento  a  franqueza 
de  lhe  declararmos  que  sua  phantasia  é  das  mais  tristes, 
porque  importa  uma  corrupção  do  sentimento  natural 
e  racional,  o  rebaixamento  vivo  e  indecoroso  da 
espécie. 

Raciocinemos. 


Q/em^io^€0. 


'(Continua) 


OITAVA  CARTA 

DO  ROCEIRO  CINCINNATO  AO  CIDADÃO  FABRÍCIO 

Fabrício. — O  homem  é  animal  de  hábitos,  e  estes 
sao  segunda  natureza.  Ora  se  o  tal  senhor  habito  é  a 
repetição  frequente  dos  mesmos  actos,  e  se  tu  me 
tens  obrigado  a  escrever-te  missiva  sobre  missiva, 
jâ  isto  vai  correndo  como  habito,  e  és  tu  o  culpado 
da  transformação  da  minha  natureza  taciturna.  Jà 
quasi  venho  insensivelmente  cavaquear  comtigo,  por 
attracçao  inexplicável.  Tu  lembras-te  d'aquella  nossa 
boa  camaradagem  de  4  annos  ,lá  de  S.  Paulo?  Éramos 
um  pêndulo  ;  o  que  fizemos  hontem,  faziamol-o  hoje: 
apenas  abriamos  os  olhos,  trazia-nos  a  mulata  a 
dose  matutina  de  caffé,  que  era  o  nosso  mata-bicho ; 
quando  nos  iamos  estirar  no  catre,  lá  vinha,  para 
conciliarmos  o  somno  (ainda  então  nao  eram  inventa- 
dos certos  discursos)  o  cojio  da  socega.  Quem  nos  tirasse 
estes  hábitos,  infernizar-iios-hia;  parece-me  que  já  me 
sucederá  outro  tanto,  se  tu  agora  me  prohibires  estes 
desabafos,  a  que  já  espontaneamente  me  atiro  á  voga 
arrancada. 

Continuemos  pois  a'  nossa  pratica.  Fique  ainda  de 
remissa  a  conclusão  da  tal  giga-joga  da  interpellaçao: 
reconheço  que  nella  só  estão  em  causa  duas  figuras  das 
Arábias,  eu  e  outra,  nenhuma  das  quaes  tem  impor- 
tância para  ser  anteposta  a  questões  de  interesse  pu- 
blico: guardemos  as  nossas  pessoinhas  para  a  sobre- 
meza,  e  continuemos  com  a  analyse  da  oração  pro  ser- 
t;iítiíe,d'aquelle  berreiro  da  montanha  que  deu  á  luz 
um  rato. 

Em  muitos  pomos  graves,a  claridade  vai  penetrando. 
O  Sr.  Zacharias  de  Góes,  na  sessão  do  dia  4,  matou  o 
principal  cavallo  de  batalha  do  Sr.  Alencar,  queé 
de  uma  felicidade  estupenda  ;  mas  também  a  quem 
Deus  quer  bem,  o  ventp  lhe  apanha  a  lenha.  Dissera 
este  no  seu  perigrino  discurso: 

u  Os  brios  nacionaes  se  confrangem...  o  paiz  nSo  teve 
conhecimento  do  facto  senão  de  torna-viagem.  Ainda 
ultimamente  nao  vimos  nós  manifestar-se  esse  menos- 
cabo de  uma  maneira  revoltante  ?  Esses  trabalhos  do 
conselho  doestado,  que  o  gabinete  com  tamanha  repug- 
nância remetteu  a  esta  augusta  camará,  e  só  depois  de 
requerido  e  instado, esses  trabalhos  eram  communicados 


V  o 

aos  membros  da  junta  central  abolicionista  e  citados 
na  conferencia  que  houve  em  Pariz  a  '26  de  Ag-osto  de 
1867  Semação.  Vozes  Oh  oh  !  Nâo  sei  se  este  ó  ó  era 
para  o  mandar  durmir)  Assim  dava-se  conta  ao  estran- 
geiro, primeiro  que  ao  parlamento brazileiro... O  Brazil 
tem  representado  nesta  magna  questão  o  papel  de  uma 
creança,  de  cujos  destinos  se  decide,  sem  coiisultar-lhe 
a  vontade  »  etc,  etc.  E  elle  alii  vai. 

Os  factos,  os  factos!  declamações  de  serrazinas, 
cobras  e  lagartos  venham  depois.  O  chefe  do  gabi- 
nete de  3  de  agosto,  que  governava  ao  tempo  d'essa 
tortia-viagem,  doesse  menos-cabo  que  revolta,  que  C07\- 
frange^os  brios^  que  distribue  ao  Brazil  o  papel  de 
creança,  declarou  que  «  approveitava  a  occasiílo  para 
desfazer  uma  irninUarão  levanlada  na  outra  camará^ 
dizendo-se  que  o  ministro  fornecera  copias  desse  tra- 
balho a  estrangeiros,  ao  passo  que  as  negava  á  ca- 
mará »  e  accrescentou  desejar  que  esta  negativa 
tivesse  a  forma  mais  categórica. 

Eis-ahi  desmoronado  o  edifício  erguido  ao  som  da 
náutica  buzina.  Eis-ahi  a  demonstração  de  que  de 
uma  pulga  se  faz  um  cavalleiro  armado.  Uma  pagina 
de  injurias,  de  menos-cabos,  de  confrangimentos  e 
quebrantamentos,  de  sensações,  de  óse  de  /./s, assenta... 
numa  falsidade. 

A  verdade  é  como  o  azeite  :  por  mais  que  o  afundem 
vem  á  tona  d'?^gua.  Claro  está  que  se  o  acto  fosse 
privado,  de  um  cidadão  qualquer, não  poderia  o  trisulco 
de  Jove  fulminal-o,  nem  teriam  cabimento  as  expro- 
brações  e  exclamações.  Para  justifícar  o  ore  rohnido, 
para  produzir  effeitos  cómicos,  sensações  e  espasmos, 
era  mister  que  o  acto  manasse  do  governo  d'esse 
tempo ;  mas  que  custa  a  um  dramaturgo  imaginoso 
inventar  uma  peripécia?  u  Foi  o  governo  do  Impe- 
rador,  horror !    foi  o  governo    do   Poder  Pess(,al.  » 

Acaba  de  ser  levado  á  ultima  evidencia  o  que  já 
era  convicção  universal,  e  de  que  eu  mesmo  junto  a 
ti  já  fora  interprete.  Não  resta  sombra  de  duvida, 
de  que  a  accusaçãofoi  uma  falsidade,  mas  que  importa 
isso?  Não  teve  a  scena  palmas  no  dia  da  primeira 
representação  ?  quem  exige  da  comedia  a  verdade 
histórica?  Produzido  o  effeito,já  o  xisgaravis  pode 
fazer  ablativo  de  viaírem. 

Foi  uma  falsidade:  deixal-a  ser:  quem  interroga 
o  oceano  pelas  gottas  de  que  se  compõe  ?  Não  saiu  ella 


6  V 

dos  mesmos  lábios  que  attribairam  ao  Presidente  do 
Conselho  escancarar-me  o  thesouro  e  a  mira  assaltal-o  ^ 
Nao  é  bom  que  se  saiba  que  se  os  consultores  da 
justiça  !  ministros  delia  I  ignoram  o  espirito  e  a  letra 
dos  art.  7,167  e  229  do  Código  Penal,  tem  artes  de 
refugiar-se  atraz  do  art.  26  da  Constituição,  dando-lhe 
aliás  interpretação  e  elasticidade  absurda  ? 

Ao  que  erra  perdoa  uma  vez,  mas  nâo  lhe  perdoes 
trez  !  Adeante. 

VI. — PLANO    DE   ESTORVAR    A    LEI. 

Nao  perscruto  as  intenções  dos  outros  membros  da 
dissidência ;  admitto,  sem  approvar,  que  julgassem 
cumprir  deveres,  lançando  mao  de  meios  que  se  me  fi- 
guram contrários  á  indole  dos  parlamentos,  e  ao  regi- 
mento da  camará. 

Já  uma  rã  estoirou,  por  aspirar  a  boi  ;  por  isso  Deos 
iLie  livre  de  tão  alto  pôr  a  mira,  que  ouse  pretender  a 
uma  cadeira  no  areópago,  apezar  de  nella.s  ver  algum 
areopagita  menos  grave  que  S.  Diniz.  Mus  supponha- 
mos  que  a  innocencia  da  fortuna  me  guindasse  áquellas 
excelsas  alturas,  e  que  eu  tivesse  de  tomar  ao  serio  a 
minha  inopinada  elevação.  Que  diria  eu  a  mim  mesmo? 
Parece-me  que  diria  o  seguinte  : 

«  1**.  A  minha  linguagem  deve  ser  constantemente, 
não  par.i  lamentar,  mas  parlamentar,  isto  é,  simples, 
lacónica,  lógica,  respeitosa  ;  no  dia  em  que  me  faltar 
cuialquer  destes  requisitos,  a  minha  curul  estremecerá  ; 
e  se  eu  vier  a  ser  o  provocador  de  linguHgem  análoga, 
a  triste  respons  vbilid  ide  de  scenas  indignas  recahirá 
sc»bre  a  minha  cabeça. 

((  2\  Convicios,  furores,  despeitos,  injurias,  tumul- 
tos serão  por  mim  stj^gmatizaJos  ;  mal  vai  a  argumen- 
tação quando  o  seu  calor  sobe  a  incêndio  :  espectáculos 
tnes  não  degradam  S(5  o  homem  da  sua  categoria  de 
cavalheiro,  ou  de  simplesmente  bem  educado,  mas,  o 
UJ13  é  p^or,  desauctorisam  a  lei,  e  nivelam  o  legislador 
CD  n  o  frv^jue  Hidor  de  bodegas  ;  abster-me-hei  pois  de 
toda  a  violência. 

((  3".  C)!isideraudo  que,  em  quanto  a  lei  é  lei,  a 
t'»dos  cumpre  acatal-a  :  que  duplo  achatamento  merece 
a  lei  fimdameutal,  e  a  essência  do  regimen,  que  me 
Conferiu  este  assento  ;  que,  s»^gundo  as  prescripçoes  da 
constituiçlo,  art.  25,  e  as  normis  do  guverno  represen- 
tativo, são  as  maiorias  que  resolv  m  os  negócios  ;  nuuca 


V  7 

na  ])ratic:i  desconhecerei,  pertençirea  a  ura  ou  outro 
gruppo  da  assembléa,  esta  base  fundamental  da  forma 
do  governo. 

«  4°.  Regeudo-se  a  augusta  camará  por  lei  especial, 
respeiíal-a-hei,  cora  a  snbmissao  que  todo  o  cidadão 
deve  á  lei,  qualquer  que  seja,  ou  antes  tanto  mais 
quanto  mais  alta  for,  a  iiierarchia  delle.  Mandando  o 
art.  2.7  do  regimento,  que,  salvo  na  discussão  do  pri- 
meiro artigo  de  ura  projecto,  o  orador  se  cinja  á  ma- 
téria que  se  debate,  eu  nunca  levarei  a  mal  ao  presi- 
dente que  me  chamar  â  ordem,  quando,  se  acaso  eu  me 
deixar  desvairar  pelo  decien  repetila  placebit^  eu  repizar 
em  todos  os  artigos  as  matérias  já  fora  do  debate,  e 
dissertrir  deomnire  sciòili,  soh  o  pr.^texto  de  que,  se- 
gundo a  arvore  de  Bacon,  na  sua  Instauratio  Magna^ 
todos  os  conhecimentos  humanos  es  <lo  ligados  t?lo  in- 
tima uienre.  que  o  discorrer  sobre  peciilio  prende  en- 
tranha\elmente  com  a  guerra  da  Ahyssinia  ;  e  muito 
menos  ine  arremeçarei  sobre  o  prosidenie  que  invocar  a 
minlia  attençâo,  nem  lhe  direi  :  «  V.  Ex.  é  um  parvo  ; 
o  que  quer,  é  atabalhoar-me,  e  <i talhar  os  voos  da 
minha  facúndia  ;  nao  sejasoffrego  ;  daqui  a  duas  horas 
começará  a  entrever  por  que  invisíveis  mns  sólidos  fios 
eu  vou  agarrar  o  pecúlio  ao  (irão  Nego,  imperante  da 
região  dos  Monophysitas.»  Se  não  'lueuderem,  pouco 
importa  ;  a  cousa  é  assim  mesmo. 

K  .V.  N 10  se  recrutando  para  deputado,  e  proibindo 
só  d*'  MÚuha  legitima  ambição  o  assento  que  nesta  casa 
se  me  iiuuver  concedido,  heide  occupal-o  com  todas  as 
condii^Oes  que  lhe  são  inherentes,  e  não  acceital-o  a  be- 
neficio íle  inventario.  Quando  os  eleitores  me  escolhe- 
ram, i»íip'izeram-rae  esta  obrigação  :  »  Salvo  motivo 
de  granule  enfermidade  ou  força  maior,  comparecerás 
sempie  ás  sessões,  para  que  os  negócios  públicos  se  nao 
atrazj*ín  ;  discutirás,  quando  souberes,  quizeres  ou  po- 
der 's  ;  votarás  em  liberdade  ,  niMs  votarás  sempre  , 
queir  's  ou  não  queiras,  agrade-te  ou  despraza-te  !  «  A 
minlia  cmsciencia  qualificaria  poi.s  de  acto  reprehen- 
sivel  a  minha  falta  individual  a  qunhjuer  sessão,  e  de 
atte  itad.j  contra  a  constituição,  de  ])erigoso  minar  dos 
seus  alicerces,  todo  o  conluio,  cnnjiiração,  parede, 
ijvrcf\  du  como  em  g'iria  politica  inellior  nome  haja. 
Ob»-  .vÃn  ('s  outros  como  lhes  approuver  ;  quanto  a  Uiim, 
ou(h*  n  inçio  me  coUocou  de  atalaia,  não  desertarei  do 

pu<ti). 


8  V 

O  meu  roteiro  teria  muitas  outras  estações ;  mas 
emfim,  como  isto  é  vagamundear  pelos  espaços  imagi- 
nários, e  como,  sem  que  eu  por  isso  me  damnasse,  a 
minha  candidatura  jâ  gorou,  como  tem  succedido  aos 
mais  pintados»  escuso  fazer  programmas,  que  jà  agora 
nunca  sairei  da  cepa  torta.  Ora  como  eu  me  nao  arvoro 
em  pregador,  e  nao  pretendo  ensinar  padre  nosso  ao  vi- 
gário, nem  vender  siso  a  Catão,  Deus  me  livre  de  ten- 
tar propagandas ;  eu  cá  teria  pensado  assim,  mas  isso 
nao  quer  dizer  que  nao  pensasse  detestavelmente. 

Trégua  a  devaneios,  e  vamos  á  sabbatina  do  sara- 
patel. 

Observando  que  todos  unâ  você  pedem  a  suppressao 
do  captiveiro,  o  Sr.  Alencar  lá  deu  á  idéa  um  frio 
apoiado  ;  mas  sem  detença  desmanchou  com  os  pés  o 
que  fizera  com  a  cabeça.  Sem  appresentar  projecto 
algum  (  nao  se  esquece  da  sorte  sempre  reservada  a 
projectos  seus),  ataca  o  do  governo  com  unhas  e  dentes; 
nao  come,  nem  deixa  comer.  Onde  porém  surrateira- 
mente  e  pisa-mansinho, revela  aspirações,rato  escondido 
com  o  rabo  de  fora,  patenteia  que  o  seu  plano  é  pro- 
crastinar a  urgente  solução para  o  dia  do  ante- 

christo.     Oucamol-o  : 

((  E  preciso  esclarecer  a  intcUigencia  embotada,  ele- 
var a  consciência  humilhada,  para  que  um  dia^  no  mo-- 
mento  de  conceder-lhe  a  liberdade,  possamos  dizer  :  Nós 
vos  remimos,  nao  só  do  captiveiro,  mas  da  ignorân- 
cia.» 

Nao  achas,  Fabricio,  que  isto  vale  por  projecto,  lei, 
código  ?  Toca  a  instituir  escolas.  coUegios,  faculdades, 
só  para  os  pretos.  De  ora  avante,  os  senhores  alter- 
narão o  serviço  dos  escravos  com  o  de  sua  cultura  das 
lettras  e  sciencias,  e  por  toda  a  face  deste  império  se 
empregarão  as  forças  vivas  da  sociedade  em  levantar 
senzalas  universitárias !  O  senso  commum  diz  que 
para  dissipar  a  ignorância, é  precisa  a  liberdade ;  cá  este 
expositor  recommenda  que, para  conquistar  a  liberdade, 
se  dissipe  a  ignorância. 

É  por  certo  este  plano  efficaz  e  intelligentissirao. 
Pois  nao  é?  E  ha  ainda  mais  outra  raridade  :  quem 
tau  10  labuta  por  prolongar  a  instituição  do  captiveiro 
dos  negros,  vê-so  instantaneamenl;e  accomettido  de  uma 
paixão  negro phila,  que  o  leva  a  exigir  a  favor  do  negro 
actualmoat  í  escravo,  o  que  não  pede  a  favor  do  hraiKO, 
actualmente  livre ! 


V  9 

Nilo  confundamos:  uma  cousa  sSo  as  iruserias  da 
escravidão^  outra  são  as  misérias  da  indigência. 

Fazeis  consistir  a  autonomia  humana,  a  liberdade 
plena,  o  jus  do  cidadão,  na  cultura  intellectual  ?  Então, 
a  loírica  manda-vos  condemnar  ao  captiveiro  milliões 
de  compatriotas  vossos,  totalmente  baldos  dt;  instrucção 
e  cujo  intellecto  se  nivella  pelo  dos  escravos.  Esses 
são  igualmente  tolhidos  na  sua  intelligencia,  abatidos 
na  sua  consciência,  membros  inúteis  da  sociedade, 
hordas  selvnjrens  no  seio  de  um  povo  culto. 

Não  consiste  a  condição  ingénua  na  capacidade  do 
engenho  e  na  perícia  da  doctrina,  sendo  tão  livre  um 
Bertholdo  como  um  Newton  ?  Então,  não  junteis  aos 
infortúnios  do  escravo  uma  exigência  absurda,  atroz, 
impossivel  ;  não  o  colloqueis  n'um  circulo  vicioso,  em 
cujo  centro  se  leia  a  inscripção  do  inferno  do  Dante  : 
esperar  o  din  da  dissipação  da  ignorância,  para  obten- 
ção da  liberdade  I 
« 

Intendo,  intendo^  como  diz  Hernâni.  Com  o  regimen 
da  escravatura,  nunca  será  dissipada  a  ignorância  dos 
miseros,  nem  nelles  mesmos,  nem  nas  suas  gerações, 
perpetuamente  subjeitas  ao  partas  rentrem  serfailur  : 
assim  inpossibilitado  o  diploma  scientifico  que  abre  as 
portas  da  liberdade,  ficam  estas  trancadas  p^^r  omnia 
scecula  s^rculorum. 

A  subtilei.a  é  diaphana ;  não  pega:  a  mente  culta 
não  dà  mais  títulos  á  liberdade  que  a  grosseira.  Até 
para  o  ensino  e  o  apostolado,  houve,  entre  os  embai- 
xadores de  Christo,  mais  ignorantes  que  safjios  :  se 
Paulo  era  tão  profundamente  instruido,  que  o  gover- 
nador Festo  lhe  lançou  em  rosto  extravagaiiciar.  por 
excesso  de  sciencia,  lá  diz  o  texio  sagrado  que  Pedro, 
André,  João,  eram  homens  analpha])etos,  idiotas  (?) 

A  condição  real  da  liberdade  está  na  existência  da 
alma :  quem  a  possue,  doato  ou  boçal,  tem,  em  pé  de 
egualdade,  du*eito  á  sua  autonomia. 

Em  quanto  durar  a  escravidão,  a  regra  (  de  que 
sempre  haverá,  como  em  tudo,  honrosas  excepções^  será 
que  o  senhor  conservará  intencionalmente  o  servo  no 
embrutecimento,  sem  o  qual  toda  a  artificial  discij)lina 
periclita.  Se,  para  libertar  a  raça,  se  esperasse  o  fa- 
moso dia  da  sua  ascensão  intellectual,  estai-ia  ganha  a 
causa  do  addiamento  eterno  ;  fixar-se-hia  a  solução 
para  as  kalendas   dos  gregos,  que  não  tinham  kalen- 


iO  V 

rias,  e  iiiscrover-se-hia  aaembaçadella  do  plauo,  aquillo 
de  Lafontaine  : 

Notre  Uèvre  n^avait  que  quatro  pas  à  faire, 
j'enteud.s  de  ceux  qu*il  fait  lor.sque,  prés  d'être  atteiat, 
il  «'éloi.i^ne  des   cliiens, /e?  renvoyeaux  calendss^ 
ot  leur  fait  arpenter  les  landes. 

La  mannniission  dcs  esdaves^  d^apvès  le  'projeí  du 
sienr  d'Ale)}ca7%  arpenterait  les  landes  juscpA'  à  lan  3000. 

Confesso -te  que  acabo  de  perpassar  attentamente 
pelos  olíioso  lai  discurso  todo,  para  ver  que  outra  pro- 
videncia o  Sr.  Alencar  sul)nielte  á  discussão  ;  nada  e 
nada  mais.  O  seu  projecto  conipõi3-se  de  2  artigos  :  1." 
A  escravidão  acabará  no  dia  em  que  todos  os  pretos 
forem  doctores  ;  2."  Fica  revofí:ada  a  leuislacão  emcon- 
trario. 

Faz'^r  leis  sDbre  assumptos  árduos,  não  é  zang-arrear 
insultos  ou  esparralhar  criticas  sobre  lucubraçõas  serias. 
O  Sr.  Alencar  não  se  arriscou  a  servir  de  columna  aos 
liobrè^)s,  nem  tão  pouco  a  atar  o  guiso  ao  pescoço  do 
Rodilardo.  A  missão  doeste  leírislador  não  é  legislar  ;  é 
só  censurar:  Catãosinho. 

Ai,  não  ;  a  julgar  pelos  parentliesvjs  semeados  no  seu 
discurso,  parece  ler  ainda  ouira  missão  na  camará:  a 
de  Tribgulet  parlamentar.  Que  .'es  ver? 

((  O  nobre  ministro  da  justiça,  com  uma  .'  signal  de 
quo  não  tem  duas  )  vo;c  telri^ia  e  agoureira,  prophe- 
tisoa  /  )'isa(las    » 

OiM,  meu  caro  amigo,  tu,  que  estás  em  Pindamo- 
nhan'J:-abn,  não  te  escangalhas  também  a  rir  doeste  ar- 
(jumento  graciosíssimo?  não  chega  lá  tão  longe  o  con- 
tagio? Mas  não  ;  já  te  estou  ouvindo,  a  ti  homem 
gra\  e  •;  sisudo  •  —  a  Cada  um  iom  a  voz  que  Deus  lhe 
deu.  :'/  inqualificável ridicularisar  a  um  dos  mais  nobres 
vultos  (]*esta  terra,  inaccessivcl  a  settasinlias  inotfen- 
sivas.  M'  iuhal)il  expor-se  a  que  se  retalie  contra  (luem 
caro  'ei*  d't».sses  dotes  physicos,  p?.la  voz  ingrata,  pelo 
eneaixílhar  da  cabeça  nos  hoinbros,  pelos  ademães 
l)url'v>;cos,  e  outros  dotes  d^^  que,  sí^gundo  vejo.  nem 
cons^-ioncia   tiver.  »  Calo-me,  ])^)is,  e  transcrevo  mais  : 

H  Todos  n6>  temos  o  veto  do  lápis  '  hilaridwlc  J  ,  não 
é  privilegio  d:i  realeza.  » 

No  primeirí)  caso  uma  indecencia  ;  neste  uma  iniqua 
injustiça  um  epigramma  insulso,  de  que  já  fallei. 
Vejamos  mais  : 


V  11 

«  Se  uma  (  não  são  duas;  é  o  homem  à-xs  umas)  lei 
similhante  fosse  votada,  eu  não  a  poderia  comparar 
senão  a  essa  vaga  Veniis  de  que  se  falia  no  parecer 
da  illustradri  commis^do  (hilaridule  prolon^/acJa).    » 

Isto  n'outra  bocca,  seria  a  demonstração  da  mais 
supina  ig^norancia.  Já  vi,  pelo  illustrado  relator  da 
Commlssão,  tratada  esta  critica  de  um  modo  irres- 
pondivel;  não  me  arriscarei  a  dizer  mal  o  que  já 
foi  perfeitamente  aquilatado.  Só  fica  de  pó  a  inten- 
ção benévola  de  fazer  rir  de  um  collega,  polo  eu- 
phemisrao  do  uma  imagem:  e  isto  no  mesmo  discurso 
em  que  nos  ensina  que —  a  liberdade  é  fogo  sagrado 
entregue  ao  Ímpeto,  ao  arrojo  de  um  novo  e  sel- 
vagem Proraetlieo»  — a  questão  é  anima  rilis  de  uma 
;uma)  experiência  philantropica,  e  matéria  prima  de 
uma  (uma)  coroa  de  triumpho  » —  «  o  monstro  de 
Horácio  »  — «  o  Bemembe)\  de  Milton,  »  — e  logo  de- 
•  pois: —  «  a  águia  de  Júpiter  »  — a  Júpiter  transforma- 
do em  chuva  de  ouro  » — euuia  multidão  de  imagens, 
que  nem  approvo,  nem  censuro  agora,  mas  que  lhe 
tiram  o  jus  de  atirar  pedra  ao  tell^ado  do  visinho. 
^  Continua,  na  interpellação,  com  estas  excitações 
ao  diaphrag'ma   parlamentar: 

«  Nesta  sessão,  o  ministro  do  Império  tem  feito 
apenas  doas  (graças !  não  é  um!  )  trechos  de  discur- 
so (hilaridade^ ,  e  isso  mesmo  ao  Insco-fusco  '^continua 
a  liilaridade]  » 

Este  engenhosissimo  argumento  já  foi  apreciado. 
Quem  inventou  o  provérbio  «  Travaram-se  de  ra^Oes  » 
para  exprimir  descomposturas,  sem  duvida  antevia 
/[ue  as  razões  haviam  de  ser  destas. 

'i  Não  me  admirei  quando  o  ►Sr.  Presidente  do  Con- 
selho, tomando  um  um^  tom  de  mestre,  tratou  de 
aimn^>;taros  alurauos  deste  colleg*io.  'hilaridade  da 
opposirão  yi 

Eair.*  o  rozario  de  delicadezas,  fig*ura  ei^tx.  Se  com 
eífeito  o  censurado  realmente  mestre  parlamentar) 
tives^o;  assumido  o  tom  de  mestre,  teria  no  s'hi  colle- 
gio  alíifum  alumno,  que  nem  S.  Luzia  pode^se  sal- 
var, pois  llie  daria  o  váo  pela  barba,  ao  doctrinal-o  nos 
rudimentos  de   edncaclo  politica  e  outras    educações. 

«  Por  ter  entre  as  suas  cartas  o  rei  ea  dama^níio 
conte  ganhar   a  piri  ida   [hilaridade  da  O]^jfosirilo.)>y 

Plirase^  destas  não  se  commentam.  Pr  osiga  a  ge- 
ringonça: 


12  V 

— «Ávida  do  Sr.  Presidente  do  Conselho  nao  tem 
sido  mais  do  que  um  longo  secretariato  (hilaridade  da 
oppoúção)  » 

O  secretariato  cá  vai  para  o  lexicon  do  Bacellar. 
E  não  admiras  tu  o  arreganho,  c  orgulhoso  ,  entono 
aristocrático  com  que  o  filho  do  sol  e  neto  da  lua 
alça  a  preclara  grimpa,  no  intento  de  ludibriar  a 
Estadista  que  ha  largos  annos,  com  zelo,  illustraçâo 
e  patriotismo,  tem  servido  o  seo  paiz  nos  mais  elevados 
cargos,  e  isto  por  que,  no  começo  de  sua  brilhante  cansei- 
ra ,toi  secretario  de  presidência  e  de  ministro?  Mas  onde 
se  vio  que  estes  cargos  fossem  dcshonrosos  ou  des- 
airosos ?  Quem  igmora  que,  ao  contrario,  é  de  uso 
escolher  para  desempenhal-os  quem  disponha  de  ele- 
vadas habilitações  intellecluaes  ?  Nestas  formas  de 
governo,  são  esses,  do  mérito,  os  mais  invejáveis  per- 
gaminhos. Raros  os  ostentam,  brilhantes  como  os  do 
Estadista  ridiciilarisado. 

Em  fim,  diz  que  fez  rir;  então  ganhou   a  partida. 

»  Des:le  que  S.  Exa.  me  re^.usa  os  esclarecimentos 
que  pedi,  posso  eii  esperar  que  me  sejam  concedidos^ 
pela  maioria  que  o  sustenta  a  todo  o  transe  ?  O  nobre 
Presidente  do  Conselho  quer  que  eu  recorra  de  S. 
Exa.  para  S.  Exa.  mesmo  ?  »    hilaridade) 

Está  bonita  esta  !..  Quando  fores  bigorna,  aguenta: 
e,  quando  malho,  malha  !  Agora  aqui  tundas  por  ata- 
cado: a  maioria  é  nada;  a  questão  servil  mudou  de 
face;  a  instituição  do  captiveiro  foi  dos  pretos  endossada 
na  maioria,  a  qual  está  de  tal  forma  escravisada  ao 
Governo,  ou  ao  R\ssoal,([ue  já  nelle  se  consubstanciou. 
E'  de  crer  que  alguém  risse, porem  mais  certo  deve  ser 
que  mui  outro  sentimento  t(»rá  o  orador  inspirado  aos 
cavallieiros  que  tem  a  fortuna  de  ser  seus  collegas. 

—  «  Lembro-me  de  artigos,  que  chistosamente  fa- 
ziam a  conta  da  despeza  de  cada  entrelinhado  ^risadas}r> 

Dizo  cá  :  comprehenderias  tu  esta  hilaridade  demo- 
critica,  a  não  ser  que  os  hilariantes  se  hilariassem  dn 
liilarisador  ?  Soltarem-se  gargalhadas  em  coro, por  ap- 
plauso  a  uma  conta  detypographia  !  Nada,  não  ])0(h». 
ser  ;  estes  impulsos  risonhc-s,  estas  carranquinhas  d^^ 
cabo  de  chapéo  de  sol, estas  risadas  não  foram  i)rovoca- 
das  por  cousas  alegres,  mas  sim  pela  extravagante  di- 
ligencia do  orador,  debatendo-se  para  fazer  rir,  invitâ 
Minerva;   se  alguém  risse  n'uin  caso  d'esles,  é  porque. 


V  13 

mãos  invisíveis  lhe   estariam  titillando  as  plantas  dos 
pésinhos. 

Conta-se  que  Rabelais,  que  tambera  levou  toda  a 
vida  a  rir  e  fazer  rir,  egualinente  se  conservou  na  dis- 
posição faceta,  em  sua  derradeira  infermidade.  Afinal, 
quando  já  na  agonia,  abriu  os  olhos  pela  ultima  vez, 
€  balbuciou  :  Pano  abaixo  ;  esta  acabada  a  farça  ! 

E'  de  crer  que,  ao  findar  a  frandulagem  oratória, 
outro  tanto  exclamasse,  de  si  para  si,  o  nosso  ridente 
orador,de  quem  gosto  mais  assim  do  que  embezerrado. 
O  certo  porem  é  que,  depois  de  concluir  a  campanha 
d*esse  dia,  apregoava,  no  imraediato,  como  tendo  sido 
um  triurapho  sem  par,  um  combate  em  que,  sem  per- 
der um  só  argii montinho,  desbaratara  as  fileiras  cerra- 
das da  maioria, reproduzindo  o  boletim  do  general  Beur- 
noBiville,  acerca  das  batalhas  feridas  em  Bellygen  e 
New-Machen  :  <c  Após  três  horas  de  uma  acção  treme- 
bunda,em  que  três  mil  inimigos  foram  feitos  em  postas, 
limitou-se  a  perda  dos  fraucezes^àdo  dedo  minimo  de  um 
granadeiro  » 

Macte^  puer,  sic  itiir  ad  astra  ! 

Teu  velho  amigo 

ClNCINNATO. 


A  liiter*peIlaçao  do  ftJr*.  Alencar* 

No  Jornal  do  Commercio^  de  hontem,  foi  publicado  o 
admirável  improviso  com  que  o  Sr.  Visconde  do  Rio 
Branco  pulverisou  todas  as  proposições  que  o  rancoroso 
interpeUante  tinha  levado  semanas  a  brunir.  É  um 
modelo  de  discussão  vigorosa,  fina,  esmagadora,  ur- 
bana, parlamentar  ;  seja-nos  licito  transcrever  d'esse 
brilhante  discurso  uma  parte  que  prende  mais  parti- 
cularmente com  pontos  que  temos  tratado. 

O  Sb.  Visconde  do  Rio-Buanco  (  Presidente  do  con- 
selho) : — Com  referencia  ao  gabinete  de  7  de  Março. 
devo  declarar  que  elle  não  tem  subvencionado  imprensa, 
nem  escriptor  algum.... 

Os  Srs.  Ministros  do  Império,  da  Marinha,  da  -Igri- 
ruLTURA  E  ESTRANGEIROS  : —  Apoiado. 

O  Sr.  Visconde  do  Rio  Branco  (  Presidente  do  con- 
celho] :  —  É  uma  grande  injustiça  a  accusação  arti- 
<!nlada  pelo  nobre  deputado. 

Todos  sabem  que  nunca  causa  alguma  teve  defeii- 
.sores  mais  espontâneos,  mais  independentes  do  que  esta 
[[muitos  apoiados]  ;  mas  nós  sabemos  também  que 


14  V 

aquelles  que  tem  aptidão  para  escrever,  que  estão  ha- 
bituados ás  lutas  da  imprensa,  não  dispõem  de  grandes 
recursos  nem  podem  supportar,  além  do  trabalho  intel- 
lectuai,  as  despezas  com  a  publicação  de  seus  escriptos. 

Uma  Voz  : —  Então  para  que  trabalham,  senão  para 
serem  pagos  ?    Oh  ! )  i 

O  Sii.  Ministro  do  Império  :  — ■  Nunca  se  pagou  ar- 
tigo algum;  tem-se  pago  algumas  publicações. 

O  Sr.  Andrade  Figueira  : —  Não  ha  nisso  o   menor 
desaire  *? 
[  Ha  outros  aparlcfi ;  o  Sr.  presidente  reclama  altenção,) 

O  Sr.  Visconde  do  Rio/Branco  (  Presidente  do  con- 
selho )  : —  Repito  á  camará  :  o  gabinete  de  7  de  Março 
não  tem  subvencionado  a  escriptor  algum  'ajjoiados)  ; 
tem  autorisado  a  despeza  com  a  publicação  de  artigos 
de  interesse  publico,  escriptos  com  moderação  e  pru- 
dência ;  não  tem  corrido  por  conta  do  governo  tudo 
quanto  tem  sahido  em  defesa  da  questão  do  elemento 
servil.  Muitos  defensores  da  idéa  tem  pago  á  sua  custa 
os  artig-os  que  publiccan,  e  até  alguns  artigos  são  evi- 
dentoineute  de  orig*e:n  liberal,  pois  não  são  unicamente 
os  amigos  do  g*overno  os  que  se  empenham  pela  victoria 
da  causa  da  emancipação, 

[Tíocam-se  apartes,) 

O  nobae  deputado  pela  província  do  Ceará  conhece 
bem  os  segredos  da  administração;  quando,  pois,  nos 
dirigio  a  .sua  interpellação,  devia  saber  que  não  viria- 
mos  aqui  dar  nma  resposta  negativa,  como  figurou  ; 
porque  seria  mentir  á  camará  e  ao  paiz  negar  um  facto 
que  está  no  conhecimento  de  todos,  que  não  é  de  hoje,, 
mas  de  ha  muito  tempo,  facto  praticado  por  todos  os 
ministérios,  mesmo  por  aquelle  de  que  S.  Ex.  fez  parte. 
[Muitos  apoiados  da  maioria  ). 

O  Sr.  Alencar  Araripe  :—  E  um  facto  licito. 

O  Sr.  Visconde  do  Rio-Branco  [Presidente  do  con- 
selho )  : —  A  verdadeira  causa  desta  interpellação,  reve- 
lou-se  no  final  do  discurso  do  nobre  deputado  :  ahi 
está  ella  claramente  patenteada,  S.  Ex.  entende  que- 
alguns  artigos  que  elle  attribue  á  habillissima  penua 
de  um  estrangeiro  iilustre,  artigos  que  (  ou  eu  estou 
muito  illudido  ou  j^  me  Jião  recordo  do  que  li  )  nao 
continham  injuria  alguma,  mas  sim  uma  discussão 
muito  digna  de  cavíÁheiros  ;  S.  Ex.  entende  que  esses 
artigos  foram  encommendados  pelo  governo,  pagos  pelo 
governo,  sendo  também  o  escriptor  subvencionado  í 


V  15 

Senhores,  é  preciso  estar  muito  apaixonado  para  vir 
a  esta  tribuna  aventurar  proposições  desta  ordem,  com- 
metterdo  uma  g^rave  e  dupla  injustiça  contra  o  g-abi- 
nete  t;  contra  este  dislincto  qscvíçíoy  {muitos  apoiados 
da  maioria)^  se  é  o  mesmo  que  eu  presumo  ! 

O  nobre  deputado  nos  disse  que  ama  os  estrangeiros, 
que  os  quer  ver  entre  nós,  que  deseja  que  afluam  em 
grande  numero  e  com  toda  a  confiança  ao  nosso  paiz  ; 
o  nobre  deputado  também  é  camperio  da  liberdade  da 
imprensa,  é  filho  da  imprensa,  como  aqui  nos  disse  ha 
pouco  ;  mas,  entflo,  como  S.  Ex.  esquepe  que  essa  lança 
de  Achilles  cura  as  feridas  queella  própria  faz*?  como 
S.  Ex.  em  vez  de  tomar  o  desforço  que  cabia  á  sua  il- 
lustraçfio,  empunhando  também  a  penna  c  respondendo 
a  esse  esrripior,  abandona  a  imprensa  e  vem  viiig*ar-se 
no  ministério,  trazendo  essas  paixões  á  tribuna  e  fa- 
zendo consistir  nellas  o  objecto  principal  de  uma  inler- 
pellaçHo  ?  ! 

Vozes  da  maioria  : — Muito  bem  ! 

O  Sr.  Visconde  do  Rio-Branto  [Presidente  do  Conse- 
lho):—  Sr.  presidente:  se  o  nobre  deputado,  pelas  cir- 
cumstancias  a  que  desreiK  alludio  a  um  iilustre  estran- 
geiro que  conheço,  S.  ]£\.  foi  summamente  injusto. 
Esse  notável  homem  de  letras  é  incapaz  de  representar 
o  papel  que  lhe  atuúbuio  o  nobre  deputado]  Muitos 
apoiados  da  maioria). 

(Trocam-se  apartes.)  • 

Se  alguma  cooperação  prestasse  ellc  ao  gabinete,  seria 
a  mesma  que  prestaria  a  qualquer  outro  que  defendesse 
uma  causa  que  interessa  a  todo  o  mundo  civilisado. 
[Muitos  apoiados  da  maioria,) 

Senhores,  o  nobre  deputad'j  lamentou  a  facilidade 
com  que  entre  nós  se  desvirtuam  as  intenções,  se  depri- 
mem os  caracteres,  o  empenho  com  que  se  procura  tudo 
nivelar,  gerando  o  descrédito  e  a  descrença  no  paiz  ; 
mas  com  que  direito  veio  S.  Ex,  aggredir-nos  aqui 
pelos  escriptos  que  attribue  a  um  iilustre  estrangeiro  ? 
com  que  direito  nos  torna  responsáveis  pelos  seus  arti- 
gos, quando  é  temerária  e  inteiramente  inexacta  a  as- 
serção de  S.  Ex.,  de  que  esses  artigos  fossem  encom- 
mendados  pelo  ministério,  ou  publicados  sob  as  vistas 
deste  ?  !  Como  se  anima  o  nobre  deputado  a  assegurar 
o  que  nao  pôde  saber  e  o  que  é  inteiramente  inexacto '? ! 
E  como  traz  S.  Ex.  para  esta  discussão  um  escriptor 
anonymo,  um   estrangeiro  respeitável  [muitos  apoiados 


16  V 

da  maioria),  quando  elle  nao  pôde  defender-se  aqui  e 
nao  deve  ser  olyecto  de  discussão  nesta  casa  ?  !  (Apoia- 
dos da  maioria.) 

A  discussão  em  paiz  livre,  como  o  nosso,  é  e  deve  ser 
permittida  a  todos,  nacionaes  e  estrangeiros  ;  e  se  isto 
é  certo,  liade  levar-se  a  mal  que  um  estrangeiro, 
quando  vè  debater-se  um  assumpto  de  interesse  uni- 
versal, sinta  algum  enthusiasmo  e  procure  manifestar 
suas  idéas  ?! 

Como  quereis  que  sejamos  julgados  e  apreciados  nos 
outros  paizes,  como  poderá  haver  nelles  um  estran- 
geiro que  defenda  o  Brazil,  se  é  um  crime  que  o  estran- 
geiro no  Brazil  possa  manifestar  seu  pensamento  sobre 
uma  questão  social  desta  ordem?  (Muitos  apoiados  da 
maioria.)  Onde  estão  aqui  os  principios  da  liberdade 
da  imprensa  ?!  Oh!  filhos  da  imprensa!  vós  esqueceis 
a  vossa  própria  origem! 

VozKs  DÁ  maioria: —  Muito  bem! 
O  Sr.  J.  de  Alkncar:  —  A  questão  não  é  essa;   é  a 
do  insulto. 

O  Sr.  Visconde  do  Rio-Branco  (Presidente  do  Con- 
selho): — Eu  nao  approvo  o  insulto,  e  nenhum  homem 
de  educação  o  pôde  approvír.  O  nobre  deputado  não 
ignora  que  a  melhor  resposta  que  se  pôde  dar  ao  in- 
sulto é  o  despreso.  Se  porém  os  artigos  a  que  alludio 
são  os  mesmos  que  eu  li,  e,  se  não  estou  esquecido,  não 
havia  nelles  injuria  alguma  ;  havia  uma  discussão 
muito  illustrada,  e  muito  decente.  (Muitos  apoiados  da 
maioria.) 

O  segundo  ponto  da  interpellação  é  a  despeza  que 
temos  feito  com  a  publicação  de  artigos  políticos  na 
imprensa  diária.  Senhores,  nunca  se  fez  semelhante 
pergunta  a  ministério  algum.  (Apoiados  da  maioria.) 

Se  o  nobre  deputado,  o  que  eu  não  creio,  presume 
que  possa  haver  aqui  algum  abuso  offensivo  de  nossa 
honradez,  devo  dizer-lhe  com  toda  a  confiança  que,  se 
S.  Ex.,  tão  prevenido  como  se  acha  contra  nós,  subir 
ao  poder  e  entrar  em  todos  os  escaninhos  das  secretarias, 
nada  lia  de  encontrar  com  que  possa  ferir-nos  por  esse 
lado  :  ao  contrario,  achará  provas  de  que  temos  proce- 
cedido  e  procederemos  sempre  como  os  ministros  mais 
honestos  que  tem  tido  o  Brazil.  (Muitos  e  repetidos^ 
•apoiados  da  maioria.) 

Typ.  e  Lith.— IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Setembro  n-  146  A. 


QUESTÕES  DO  DIA 


isr.  6 


RIO  DE  JANEraO  ITDE  SETEMBRO  DE  1871. 


Vendesse  em  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Laemmert—  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto— Rua  de  S.  José  n.  119—  Livraria  Académica,  e  &uz 
Coutinho  na  mesma  rua  n,  75.  Breco  200  reis. 


A  q.ii.estão  d.o  elexnento  sex*vll 

Votada  na  camará  dos  deputados  a  proposta  do  go- 
verno com  as  emendas  da  commi&são  especial,  está  ella 
iigora  sujeita  &  discuss&o  do  Senado,  onde  diversos 
oradores  têm  tratado  do  assumpto,  pró  e  contra. 

(Combatem  a  proposta,  na  forma  e  na  essência,  os  Srs. 
Muritiba,  Três  Barras  e  Itaborahy,  como  j&  se  sabia 
que  fariam. 

Na  camará  dos  deputados  dissera  o  Sr.  Paulino  de 
^uzai  digno  chefe  da  minoria,  adversaria  da  pro- 
posta: 

a  Neste  século  de  luzes,  e  para  homens  que  profes- 
sam a  lei  do  Evangelho,  a  causa  da  escravid&o  está 
julgada,  e  para  sempre.  y> 

Mas  esta  proposição,  que  devia  leval-o,  e  &  minoria, 
^e  fossem  consequentes,  ao  caminho  verdadeiro,  por 
onde  se  chegará  ao  desideratum^  que  naquella  camará 
-íL  minoria  tantas  yezos  protestou  ser  também  seu,  foi 
no  senado  posta  em  duvida,  sinao  contrariada  pelo 
illustre  Sr.  Visconde  de  Itaborahy,  que  tantos  encó- 
mios teceu  no  seu  discurso  ao  trabalho  escravo,  que 
sté  entende  que  só  o  escravo  é  próprio  para  resistir,  no 
Berviço  da  lavoura,  ao  sol  abrasador  deste  paiz  ;  e  que 
o  serviço  exercido  por  homens  livres  n&o  é  tão  lucra- 
tivo como  por  braços  escravos ! 

Pensa  também  o  honrado  senador  que  a  escravidão 
n&o  é  embaraço  para  a  colonisaç&o ;  e  é  egualmente  o 
clima  a  razão  poderosa  que  a  isso  se  oppõe. 

J&  se  vd  que  o  Sr.  Visconde  de  Itaborahy  tem  maior 
franqueza  na  enunciação  de  suas  idóas,  do  que  outros 
'Contradictores  da  proposta.  J&  se  vê  que  para  elle,  no 
fundo  de  suas  opiniões  regaladas  pelo  interesse  da  la^ 


2  VÍ 

voura,  nao  é  certo  que,  neste  século  de  luzes,  a  causa  da 
escravidão  esteja  julgada,  no  sentido  em  que  se  enunciou 
o  distincio  Sr.  Paulino  de  Souza. 

O  Sr.  Visconde  de  Itaborahy  foi  consequente.  Con- 
siderando o  braço  escravo  como  o  auxiliar  mais  útil  da 
lavoura,  dirigiu  todos  os  seus  argumentos  ao  fim  bem 
manifesto  de  estender  a  instituição  pelo  maior  tempo 
que  for  possivel,  jà  que  nao  pôde  ser  eternamente. 

Possuido  de  taes  sentimentos,  nada  ha  que  estranhar 
no .  tom  de  azedume,  com  (J^e  o  orador  entrou  na  dis- 
cussão, nem  no  modo  pessimista,  com  que  encarou  a 
proposta,  desde  que  ella  foi  levada  á  camará  dos  depu- 
tados. 

Nao  vê  que  haja  perigo  em  ficar  adiada  a  solução 
de  um  negocio  de  tanta  gravidade  para  a  sessão  fu- 
tura do  parlamento ;  pensa  que  os  lavradores  não  leva- 
rão a  mal  esse  adiamento  ;  não  ha  nisso  inconvenientes 
de  natureza  alguma.  Se  o  governo  com  i.s.so  se  escan- 
dalisasse  ( accrescenta  o  Sr.  Visconde  )  e  tencionasse 
ameaçar  o  paiz  com  disposições  ainda  mais  prej  iidiciaes 
aos  interesses  da  lavoura,  antes  que  executasse  algum 
acto  dictatorial,  o  governo  estouraria,  e  talvez  comdleas 
instituições  que  nos  regem. 

Estas  proposições,  e  outras  contidas  no  discurso  de 
S.  Ex.,  confirmam  bem  o  que  sempre  se  disse — que  o 
Sr.  Visconde  de  Itaborahy  não  é  o  chefe  menos  intole- 
rante da  cruzada  contra  a  proposta. 

Mas  haverá  grande  prudência  em  ameaçar  com  es- 
touros políticos?  Deviam  estas  palavras  sahir  de 
tao  autorisados  lábios,  ou  ser  proferidas  em  tão  alto 
logar?  O  illustre  senador,  quando  mais  a  frio,  reco- 
nheceria a  impossibilidade  de  pairarem  na  mente  do 
governo  as  intenções  que  apaixonadamente  lhe  attri- 
buiu. 

O  attento  exame  do  que  se  está  passando  na  socie- 
dade brasileira  leva  á  convicção  de  que  a  opinião  ga- 
nharia forças  com  a  resistência,  e  que,  desgraçada- 
mente, si  estouro  houvesse,  seria  todo  em  grande  cala- 
midade dos  interesses,  que  S.  Ex.  e  outros  pensam 
defender. 

Obstinam-se  em  ver  na  proposta  erros  e  perigos,  que 
ella  nao  encerra,  como  jâ  tao  extensamente,  com  tanto 
critério  de  apreciação  e  luz  de  verdade,  se  tem  de- 
monstrado. 

Obstinam-se  em  transviar  a  opinião  dos  lavradores ^ 


IV  3 

que  só  agora  vêm  tanta  oJB5.ciosidade  n'esses  amigo^;, 
que  nunca  acharam  meios  de  suavisar-lhes  os  padeci- 
mentos, que  levam  uma  considerabilissima  parte 
d'elles  a  estar  vendo  todos  os  dias  em  praça,  para 
pagamento  de  dividas,  aggravadas  por  penosos  juros, 
os  seus  escravos,  as  suas  plantações,  as  suas  terras  de 
cultura  ! 

Um  dos  pontos,  tantas  vezes  allegados  contra  a  pro- 
posta, e  tantas  outras  victoriosamente  combatidos,  é  a 
posiçílo  dos  nascituros  livres,  segundo  a  proposta,  no 
meio  dos  escravos,  creados  por  suas  mães  escravas,  e 
vivendo  na  fazenda,  com  a  obrigação  de  prestarem  ser- 
viço até  os  21  annos. 

Ora  argumentam  que  a  própria  proposta  será  lei  de 
Herodes,  será  a  degolação  dos  innocentes.  Mas  porque  ? 
Os  senhores  das  escravas  que  derem  filhos,  faraó  com 
sua  severidade  que  estes  pereçam  ? 

Ora,  que  taes  indivíduos  serão  elemento  de  indisci- 
plina nas  fazendas;  desorganisarao  o  trabalho,  creando 
a  desobediência. 

Ora,  que  serão  realmente  escravos  ;  que  o  nome  de 
livres  será  um  som  vao  ;  que  serão  galés  do  trabalho  ; 
que  contrahirao  todos  os  vícios  do  captiveiro;  que  serão 
na  sociedade  membros  perigosos. 

Ora,  finalmente,  que  os  senhores  de  suas  mães  nao 
os  quererão  :  que  os  entregarão  ao  Estado  ;  e  que  este 
nao  terá  meios  de  educal-os... 

Em  tudo  isto  as  contradições  em  que  caem,  nao  podem 
ser  maiores. 

Si  os  nascituros,  nas  condições  da  proposta,  ficam 
realmente,  como  se  diz,  na  posição  de  escravos,  nao  ha 
risco  de  serem  elemento  de  desordem  nas  fazendas. 

Demais,  nao  devem  ainda  ser  elemento  de  desordem, 
attenta  a  sua  idade  até  os  21  annos,  em  que  nao  podem 
tornar-se  instrumentos  de  propaganda  desmoralisadora; 
nem  o  podem  ser  depois  d'essa  idade,  porque  ou  sao 
submissos,  e  seus  serviços  convém  ao  fazendeiro,  e  con- 
tinua este  a  conserval-os  contratando-lhes  os  serviços; 
ou,  nao  convém  ao  fazendeiro  a  sua  conservação,  e  os 
despede  ;  estão  elles  na  idade  de  reger-se,  sujeitos  ás 
leis  communs. 

Nao  serão  instruídos,  como  nao  sao  tantos  homens 
livres  entre  nós,  que  nascem,  e  sao  creados  no  tra/- 
balho;  mas  analphabetos.  Os  remédios  a  esses  inconve 


4  IV 

nientes  vfto  yindo  &  proporç&o  que  os  meios  de  ins- 
trucçao  do  povo  se  forem  desenvolvendo. 

£'  nossa  firme  convicç&o  que  as  crianças  nascidas 
livres,  de  mães  escravas,  por  beneficio  da  lei  terão  os  ca- 
rinhios  maternos  sem  resaibo  de  ciúme,  e  antes  com 
aquella  dedicação  que  suas  m&es  poderem  prestar-lbes; 
e  taes  crianças  serão  muito  vantajosamente  aproveita- 
das no  serviço  das  fazendas. 

Estamos  no  Brazil,  e  é  pnra  o  Brazil  que  se  legisla. 
Aqui  a  escravidão  foi  desde  i83l  collocada  em  condi- 
ções bem  diversas  da  de  outros  paizes.  ' 

J&nao  é  possivel,  com  o  movimento  no  sentido  eman- 
cipador que  desde  alguns  annos  começou,  e  de  dia  em 
dia  vai  crescendo,  manter-se  a  instituição  escrava  pelo 
tempo  indefinido  que  a  querem  os  adversários  da  pro- 
posta ;  é  verdadeira  loucura  pensar-se  tal  cousa. 

O  que  nos  diz  o  Sr.  Visconde  de  Itaborahy  sobre  os 
rigores  do  clima,  que  n&o  permitte  trabalho  efficaz  na 
lavoura  senão  por  braço  escravo,  é  desmentido  por  factos 
comprovados  do  norte  ao  sul  do  Brazil,  e  por  todo  esse 
interior,  onde  o  homem  livre  supporta  o  trabalho  da  la- 
voura com  toda  a  vantagem  para  a  producç&o.  Isto  é 
bem  sabido  ;  desde  que  o  homem  se  habitua  a  um  tra- 
balho, na  idade  conveniente,  contrahe  o  habito  para  o 
mesmo,e  para  a  fadiga  qued'ahi  provêm.  Os  nossos  ho- 
mens do  campo  s&o  nfto  somente  robustos,como  também 
sóbrios.     Querem  todos  os  que  guerreiam  a  proposta, 
que  o  impulso  abolicionista  nascosse  da  opini&o  ;  e  que 
o  governo  fosse  conduzido  como  a  reboque  ou  arrastado ! 
Sem  duvida  o  impulso  nasceu,  e  nasceu  de  causas  im- 
periosas; éa  opinião  publica  que  o  gerou  I  e  da  parte  do 
governo  haveria  grande  erro,  si  n&o  se  puzesse  &  frente, 
dando-lhe  direcç&o.  Si  tivesse  continuado  o  ministério 
de  16  de  Julho,  o  Sr.  visconde  de  Itaborahy  nfio  hou- 
vera podido  conservar-se  na  posiç&o  que  aconselha. 
N&o  é  de  hoje  que  as  republicas  nossas  conterrâneas 
nos  detrahem  por  motivos  da  escravid&o.  Tem-se  procu- 
rado no  exterior,  e  com  successo,  em  parte,  desde  muito 
tempo,  crear  indisposições  contra  a  nossa  nacionali- 
dade, por  esse  motivo. 

A  escravid&o  no  Brazil  tem  seus  dias  contados  desde, 
que  no  mundo  christ&o  ó  este  o  único  paiz  que  ainda 
conserva  tal  instituiç&o  na  sua  existência  social. 

E  pode  alguém,  com  a  m&o  na  consciência,  qualquer 
que  seja  o  jogo  que  faça  com  os  algarismos,  demonstrar 


VI  5 

que,  com  alforrias  parciaes  e  limitadas,  se  conseguirá  a 
extíncçao  do  elemento  servil,  continuando  a  fonte  de 
producçao  cora  os  nascituros  na  condição  de  escravos  ? 

Eé  sincera,  é  fundada  a  accusaçao,que  fazem  ao  pro- 
jecto approvado  pelatsamara  dos  deputados,por  nao  dis- 
por essa  lei  por  modo  que  os  nascituros,livres  segundo 
a  mesma  lei,  recebam  uma  educação,  qual  o  Estado  nSo 
dá  aos  raeni  lOs  livres  das  classes  necessitadas  da  nossa 
sociedade,  sinno  em  proporção  limitada,  visto  como  o 
ensino  popular  ainda  nao  está  devidamente  desenvol- 
vido eitre  nós  ? 

E  é  verdade  que  o  governo  attente  contra  a  lavoura 
cora  a  proposta,  quando  é  certo  que  ella  consulta  todos 
os  interesses  p.usentes  e  futuros  da  lavoura  ?  E  pode 
acreditar-se  que  nao  foi  um  pensamento  grandioso  que 
guiou  o  governo,  quando  a  razRo  tranquilla  reconhece 
qu*  co'n  a  escravidão  nao  será  possível  que  a  sociedade 
brazileira  se  eleve  ao  ponto  de  melhoramento  moral, 
industrial  e  económico,  tao  próprio  das  condições  em 
que  se  verá  coUocada  com  a  sabia  providencia? 

Ftílizmente  para  o  Brazil,  si  entre  os  antagonistas  da 
proposta  ha  retardatários,  nao  o  é  a  nação,  nao  o  é  a 
grande  maioria  dos  representantes  d'ella,  não  o  é  o  go- 
verno. 

Temos  fé  em  que  a  proposta  será  lei  do  Estado  no 
corrente  anno. 

JunÍKs. 


Ol>i?as  <le  Sonlo— O  Oaviclio. 

Caretas  a  um  amigo.) 

II 

Meu  amifíro. 


o 


Nunca  tive  nem  terei  uma  palavra  mais  severa  pjira 
exprobrar  ao  moço  a  fraqueza,  em  que  incorrer,  arris- 
cando suas  primeiras  luctas  na  escabrosa  arena  das 
lettras. 

A  litteratura,  como  se  ha  dito  tanta  vez,  é  um  sacer- 
do  -io,  e  como  todos  os  sacerdócios  tem  de  ser  ser- 
vida por  diversas  (jrdens  de  religionarios.  O  neo- 
phyio,  em   regra,  paga   irremissivelmente  o  natural 


6  VI 

tributo  do  excesso  de  fervor,  que  caracterisa  todo  o  no- 
viciado. Exigir  d'elle  serviço  completo  fora  impiedade. 

Nao  assim  com  os  serventuários  provectos,  de  repu- 
tação feita  e  perfeita.  Si  deslisam  do  verdadeiro  trilho, 
é  dever  imperioso  arguir-lhas  as  feitas,  para  que  nao 
succeda  aos  sectários  inexperientes  seguirem  o  máo 
exemplo,  na  persuasão  de  se  estarem  edificando.  Ha  pra- 
ticas, que  sendo  apparentemente  sans,  nao  deixam  de 
ser  no  fundo  heterodoxas. 

Nao  ponho  em  duvida  os  créditos  e  a  auctoridade,  de 
que  Senio  gosa  n'este  género  de  labor  intellectual. 

E  justamente  por  estar  cônscio  de  sua  auctoridade  e 
dos  seus  conceitos,  é  que  estremeço  pelas  lettras  pátrias, 
que  vejx)  ameaçadas  de  um  transtorno  inevitável,  si 
fizerem  escola  as  fátuas  phantasias  de  uma  peana  phi- 
lauciosa,  que  abusa  das  suas  faculdades  procreadoras, 
vestindo  o  centauro  com  as  roupagens  da  bella  Juno, 
envolvendo  na  crosta  côr  de  rosa  do  confeito  perfuma- 
do a  bryóuia  ou  o  tártaro. 

Tanto  mais  me  receio  dos  males  que  da  aberração 
possam  provir,  quanto  é  innegavel  a  espécie  de  idola- 
tria, que  existe  em  certo  circulo  para  com  as  obras 
oriundas  da  penna  de  Senio.  Si  a  confissão  d*esia  ver- 
dade lhe  desvanece  ainda  mais  o  descoinmunal  amor 
próprio,  embora;  refociUe-se  no  ingrato gôso. 

Um  folhetinista  conceituado,  referindo-se  á  Pata  da 
gazella^  chegou  a  declarar  que,  por  ser  ella  -«scripta  por 
quem  fora,  merecia  as  honras  da  alta  jerar chia  litteraria 
do  auctor,  e  não  podia  passar  sem  as  salvas  do  estylo. 
Nao  penso  outro  tanto.  A  obra  e  só  a  obra — eis  tudo, 
venha  d'onde  vier,  seja  de  quem  fôr.  Pego  no  ^olume, 
sem  indagar  quem  o  escreveu  ;  e  si  fôr  anonymo,  tanto 
melhor. 

Já  antecedentemente  havia  dito  o  folhetinista  que  si 
a  obra  nao  fora  filha  legUima  dac/iÁelle  applaitdido  tor 
Ze/í/o,  seria  justo  recebel-a  como  um  mero  accideníe  ub 
litteratura. 

Haverá  confissão  mais  flagrante  da  idolatria  ?  Isto 
quer  dizer  que,  a  nao  ser  a  obra  de  quem  é,  passaria 
com  inteira  inditferença.  Semelhante  juizo,  vindo  de 
uma  penna  amiga  e  grata,  importa  uma  condemnaçlo. 
Quanto  a  mim,  o  que  o  folhetinista  quiz  em  balde  dis- 
farçar com  as  filigranas  de  seu  luxuoso  estylo,  foi  o  se- 
guinte conceito  :  «  A  obra,  por  si  só,  nao  presta.  »> 
E  cntao  i  Pois  também  cá  pela  republica  das  lettras 


VI  7 

havemos  de  ter  oráculos  indiscutiveis,  auctoridades  do- 
gmáticas ?  Também  por  cá  os  divifios^  quando  parece 
ter  soado  a  hora  dos  papas  e  dos  pães  Soulouques... 
Vamos  ao  Gaúcho, 

O  romance  de  nacionalidade  ainda  por  ninguém  foi 
melhor  entendido  e  executado  do  que  por  Cooper. 

Walter  Scott,  de  quem  a  Europa  ta-j  legitimamente  se 
vangloria,  ainda  assim  a  certos  respeitos  é  menos  recom- 
merdavel  do  que  o  suberbo  escriptor  norte-americano. 
Por  exemplo  :  antes  de  Walter  Scott  haver  empre- 
hendido  a  construcçao  do  agigantado  edifício  da  his- 
toria da  Escossia,  já  outros  o  haviam  precedido  n'este 
mister,  colhendo  e  recolhendo  muitos  costumes,  muitas 
superstições  narionaes,  como  observa  um  profundo  cri- 
tic  J.  Walter  Scott  nao  é  no  todo  original.  Mistriss  Grant. 
Burns,  AUan-Ramsay,  Buchanan,  Ma.^pherson  e  outros 
ti  abam  já  explorado  as  virgens  fontes,  para  onde  Walter 
Scott  nao  fez  mais  que  a-centuar  com  sua  penna  arro- 
jada vastos  caminhos,  descobrindo  com  amplitude  pers- 
pectivas bellissimas,  apenas  entrevistas  e  semi-occultas. 
Walter  Scofu  achou  veredas  para  seguir  no  dédalo;  nao 
podia  perdjr-se  u'elle. 

Antes  de  Cooper  porem,  que  observação  litteraria 
havia  já  perlustrado  as  seculares  solidões  do  Oliio,  do 
Mississipi,  do  Illinois  ?  Que  peniia  rasgara  a  cellula 
virgem  e  immehsa  de  uma  riaiureza  acima  de  todos  os 
\òos^  de  todas  as  preoccupações  das  mais  arrojadas  phan- 
ta-íias,  e  fi^^era  jorrar  d'alli  a  veia  cnudal  <ia  poesia  a  iie- 
ricana,  para  inniindar  mares  e  coutineutes  ?  Quem  já 
havia  (Teado  e  dado  um  cerlo  molde  ))ara  exemplo? 

«Cooper  não  tem  predeces-for:  veredas  ainda  nao  bati- 
das se  lhe  apresentam  de  todos  os  lad)>.  U  na  inexgo- 
tavel  variedade  de  maieriaes;  sceiías  que  exigiam  um 
tlieatro;  painéis  que  demandavam  um  (|u;Klro:  p Jiiios  de 
vista,  que  solieitavam  um  pintor:  p  )r  lod-i  a  pane  no- 
vidade, bizarria^  maravillias  ;  um  intevesstí  tido  rno- 
derii'>  ;  um  povo,  api3nas  saliido  de  sums  faixas  e  já 
pod*:*roso;  uma  historia,  cujas  primeiras  pagi.ias  brilliam 
(Ip  civilisiiçao  e  falam  de  couquisía  ;  a  singularidade 
de  iiin  Jieroismo  trauqiiilio,  piedoso  e  perseverante  ;  os 
n-iiiies  de  Washington,  de  Peun,  de  Kratiklin  ;  para  o 
fundo  do  quadro  as  florestas  seculares;  para  actores,  os 
apo3:olos  do  Xovo  Mundo,  entreiendo-se  com  os  fillios 
du  wUjicam  e  ái)  caluniei ;  os  progressos  da  arte  eiiropea 
no  meio  d'essas  solidões  sem  dono  ;  os  combates  de  op- 


8  VI 

pressos  e  de  oppressores,  uns  reclamando,  outros  que- 
rendo, abafar  a  liberdade  e  a  tolerância  ; — que  digo  ? 
talvez  nova  éra  social,  fechada  para  o  mundo,  e  prestes 
a  emanar  de  Philadelphia  1  » 

O  grande  merecimento  de  Cooper  consiste  em  ser 
verdadeiro  ;  porque  nao  teve  a  quem  imitar  sinao  à  na- 
tureza ;  é  um  payzagista  completo  e  fidelissimo. 

Nao  escreveria  um  livro  siquer,  talvez,  fechado  em 
seu  gabinete.  Vê  primeiro,  ooserva,  apanha  todos  os 
matizes  da  natureza,  estuda  as  sensações  do  eu  e  do  não 
eu,  o  estremecimento  da  folhagem,  o  ruido  das  aguas, 
o  colorido  do  todo  ;  e  tudo  transmitte  com  uma  exacti- 
dão daguerreolypica. 

Apontam-lhe  o  defeito  de  serem  seus  quadros  um 
pouco  sêccos,  em  consequência  d'essa  minuciosa  fideli- 
dade de  pormenores.  Mas  embora ;  nSo  deixa  de  occu- 
par  o  priíiíeiro  logar,  ao  nosso  ver,  n'essa  galeria  de 
vultos  gigantêos. 

Cooi)t»r  é  americano,  Senio  também  o  é  — eis  ahi  um 
pont^  de  analóíria,  que  os  aproxima. 

Ao  passo  pr)Vem  que  Cooper  daguerreotypa  a  nalureza. 
Senio^  á  força  de  querer  passar  por  original,  sacrifica  a 
realidades ^do  sonho  de  sua  caprichosa  imaginação  ;  des- 
preza a  fonte,  onde  muita  gente  tem  bebido,  mas  que 
é  inexo-)tavel,  e  onde  ha  muito  liquor  iniacto.  Para 
Senio  a,  verdade,  dita  por  muitos,  perde  o  encanto.  Elle 
não  ha  de  escrever  pelo  ramerão;  fora  rebaixar-se.  E' 
preciso  dar  cousa  nova,  e  eis  surge  o  monstro  repug- 
nante e  dí^spresivel. 

Senio  ulo  í^omprehende  a  poesia  americana,  como  em 
geral  tem  sido  concebida  por  bons  talentos  que  o  Iro 
precedido,  e  vem  dar-nos  o  ideal  da  «  poesia  verdadei- 
ravxente  brazileira,  haurida  na  lingua  dos  selvagens  »  na 
sua  etfeíninada  Iracema,  onde  os  guerreiros  falam  unia 
lin»ru.)giiem  débil,  esmorecida  e  fláccida,  que  não  po- 
diam de  modo  alguni   usar  em  sua  braveza. 

Isto  importa  um  característico  :  a  penna  de  Senio  não 
foi  talhnda  para  construir  a  epopea  ;  faliam-lhe  azas 
para  elevar-se  nos  assumptos  heróicos,  que  demandam 
vô  )S  ex-elsos  do  pensamento,  phraseologia  máscula, 
jo^ro  de  piixõ^s  vehemen;ese  arrebatadas.  A  linguagem 
de  Senio  é  dole.ite  e  languida.  No  dizer  de  um  criiif^o 
portuguez,  sua  pmna  pôde  ter  bom  succ  sso  «  na  poesia 
dengue  e  cof/uelte^  poesia  arrebicada,  doentia,  ras.ei- 
rinha,  poesia  d'alcôvas  e  salões,  complacente,  p  egas. 


VI  9 

cousa  de  toilette^  feminina....  como  o  pó  de  arroz, 
o6  vinagres  aromáticos,  os  espiritos  de  peíites  domex 
e  de  pelits  crêvés,  o  Ilangylang,  o  bouquet  Manilha,  e 
o  cosmético  Miranda,  d 

N'es3e  prurido  de  querer  passar  por  original  c<  seus 
exforços  de  imaginação  sao  voos  de  uma  intelligencia, 
que  quer  crear,  e  que  em  sua  impotência  cria  chime- 
ras  »  na  phrase  de  um  critico,  apreciando  Brockden 
Brown.  Exemplo  ;  Diva^  Pata  da  Gazella^  Gaúcho. 

Além  do  mais,  Serdo  tem  a  pretençao  de  conhecer  a 
natureza,  os  costumes  dos  povos  (todas  essa«i  variadas 
particularidades,  que  só  bem  apanhamos  em  contacto 
com  ellas),  sem  dar  um  só  passo  fora  do  seu  gabinete. 
Isto  o  faz  cahir  em  frequentes  inexactidões,  quer  se 
proponha  a  reproduzir,  quer  a  divagar  na  téla. 

Porque  nao  foi  ao  Rio  Grande  do  Sul,  antes  de  haver 
escripio  o  seu  Gaúcho  ?  A  litteratura  é  uma  religião,  e 
tem  direito  de  merecer  taes  Sbcrificios  de  seus  sinceros 
cultores.  Nao  nos  teria  então  talvez  dado  esses  esboços 
de  physionomíafria,de  cútis  contradicioria,  concepções 
hybridas,  a  titulo  de  figuras  esculpturaes  e  legendaria.s 
da  campanha.  Muita  rasao  tinha  Balzac  :  nao  fundava 
acção  nenhuma  em  logar  que  nao  conhecesse. 

Convençamo-nos:  a  imaginação,  até  amais  viril»* 
opima,  .se  esgota,  cança  e  desfallece.  Apreciando  a 
decadência  do  theatro  hispanhol,  diz  uma  auctoridade, 
que  ella  teve  por  causa  o  haver-se  esquecido  de  que  a  a 
opulência  das  mais  magnificas  correntes  exige  uma 
renovação  e  uma  economia  na  despeza  ». 

A  renovação  faz-se  pela  observação.  A  natureza  offe- 
rece  cada  dia  um  encanto  novo,  que  a  imaginação  sa- 
dia recolhe  para  dar-lhe  mil  feições  graciosas,  ainda 
nao  conhecidas.  O  fluido  proprÍM mente  original  e  ima- 
crinoso  é  apenas  applicado  a  dar  o  tom,  o  equilíbrio,  o 
reflexo  esthetico  às  creações  reaes.  Com  tao  comedido 
emprego  e  uso,  nunca  se  poderá  dar  a  bnncarôía. 

A  imaginação  atrophiada  nas  cidades  só  pôde  procrear 
a  mentira,  a  falsidade,  quando  quer  estampar  acções  e 
figuras  da  vida  florestal  uii  do  decerto.  Nflo  é  a  leitura 
isolada,  embora  dos  mais  escolhidos  modelos,  que  dará 
a  expressão  fiel  da  natureza.  E'  preciso  contemplal-a, 
receber  impressões  face  a  face  com  o  desconhecido, 
experimentar  verdadeiranente  todas  as  sensações  da 
inapiraçílo,  nao  ficticia,  mas  real. 
O  quê  foi  que  contribuiu  para  ter  cedo  a  America  do 


10  VI 

Norte  uma  litteratura  orig^inale  grandiosa,  graças  ao 
trabalho  de  poucos  obreiros  ?  Foi  o  nao  fazerem  outra 
cousa  sinao  copiarem  fieliaeate  as  grandes  scenas,  as 
magaificas  perspectivas  d^essas  regiões  virgens,  onde 
tudo  offerecia  um  cunho  de  originalidade  tao  graciosa, 
que  nao  só  dispensava,  porém  mesmo  excluía  o  uso  da 
creaçao  phantasiosa^  por  somenos  aos  magestosos 
painéis. 

O  que  faz  Audubon  ?  Estuda  os  pássaros,  suas  cores, 
suas  paixões,  suas  metamorphoses,para  e  simplesmente 
á  sombra  das  florestas  do  Mississipi,  a  Audubon  nao 
somente  comprehendeu  essas  harmonias,  no  meio  das 
quaes  viveu  e  que  repercutiram  no  fundo  de  sua  alma, 
porém  reproduziu-as  em  estylo  admira\''el  de  sim- 
plicidade, cheio  de  sabor,  de  seiva,  de  eloquência  e  de 
sobriedade.  » 

Ao  passo  que  esses  illustres  constructores  vão  pedir  a 
natureza  os  traços  harmoniosos,  os  painéis  correctos,  as 
cores  vivas  com  que  devem  erigir  e  adornar  o  pantheon 
das  glorias  da  pátria,  e  de  sua  própria  immortalidade, 
entende  Senio  que  conseg  lirá  idênticos  r»^sultados,  des- 
presando  o  inexhaurivel  manancial  ;  e,  cego  pela 
vaidade,  nao  vê  sua  veia  apparecer  em  seus  últimos 
livros  deprimida  e  exangue  ?  Lamentamos  do  coração 
o  engano  d'alma. 

Na  sua  monomania  de  querer  passar  por  creador  ou 
melhor  por  cZúeí/or  de  novidades  tem  a  pachorra  de 
asseverar  em  sua  Diva  ao  publico,  para  quem  se  deve 
ter  a  gravidade  e  a  reverencia  devida  a  tão  alto  senhor^ 
que  os  termos  nubil^  pubescowia^  olympio^  frondes,  afflar 
e  outros  (já  de  muito  consignados  nos  diccionarios  da 
lingua)  sao  innovações  suas  I  e  demora-se  em  justifi- 
cal-as. 

Ora,  todos  estes  vocábulos  se  acham  em  Moraes  e 
Constâncio,  e  especialmente  em  Fonseca,  edição  de 
Pariá,  de  1852  —  volume  portátil. — Núbil — diz  o  lexi- 
cographo  —  adj.  de  2  gen  ;  em  estado  de  casar,  casa- 
douro. — Nubilidadey  s.  f.  idide,  estado  do  que  é  núbil. 
— Pubescenciu,  s.  f.  puherd  id  ;  (bot.)  existência  de  pe- 
los.— Olympico,  Olytnpio^  a,  adj.  pertencente  aos  jogos 
olympicos  ou  ao  olympo,  —  Frondes^  s.  m.  pi.  [bot.) 
ramos  de  arvores  folhudos. —A^ayi/c,  adj.  de  2  gen^ 
que  assopra  ou  bafeja.  —  Afflar  v.  a.  lançar  o  hálito  : 
soprar  para  alguém  ou  alguma  cousa  ;  (/u/.)  communi- 


VI  11 

caro  ar  como  assoprando  ou  bafejando  ;  [poetj  inspirar 
os  vates.  » 

Na  sua  Iracema  diz,  na  carta  final,  que  «  as  etymo- 
logias  dos  nomes  das  diversas  localidades  sao  de  cunho 
original.  »  Entretanto  os  vocábulos  Ceard^  Aracaiy, 
Meruóca,  Quixeramobim^  Pirapora^  Pacatúba  e  outros, 
vem  todos  no  Glossário  do  Dr.  Martins,  quasi  pelos 
mesmos  termos ! 

Sento  tem  a  mania  das  notas.  Nao  ha  volume  seu, 
d'entre  os  últimos  que  assigualam  a  sua  precoce  de- 
cadência litteraria,  que  nao  seja  acompanhado  de  al- 
guns desses  enxertos,  que  em  sua  maioria  só  servem 
para  desabonar  o  auctor.  Na  Pata  da  Gdzella  escreve 
Tilbure^  champanhe,  porque  entende  que  devemos  im- 
primir certo  cunho  portugaez  nas  palavras  estrangei- 
ras adoptadas  pelo  uso.  Por  esta  regra  devemos  escre- 
ver buque,  soarê,  etc.  Nao  te  parece  uma  extravagân- 
cia? 

No  Gaúcho  offerece-nos  hennilo,  com  certos  ares  de 
novidade,  por  nao  encoutral-o  em  Moraes  ou  em  Cons- 
tâncio; e  crê  (este  crê  dá  ura  specimen  da  frivola  vai- 
dade de  quem  nao  quer  achar  auctoridade  antes  de  si, 
até  na  própria  lingua)  que  Fonseca  dá  hinnir  ehinnito. 

Notável  singularidade  !  Parece  que  Senio  faz  timbre 
de  lançar  a  confusão  nos  espiriíos.  Quando  elle  diz  que 
inventou  tal  verbo,  eucontra-se  o  verbo  nos  dicciona- 
rios  mais  vulgares  ;  quando  diz  que  em  tal  diccionario 
vem  tal  termo,  justamenie  este  termo  deixa  de  vir  no 
diccionario  referido.  E  sim ;  cá  o  meu  Fonseca,  tao  in- 
discreto e  abelhudo  no  afflar,  na  pubescencia  e  nos  ou- 
tros, está  mudo  quanto  au  henniío  e  aohennirl  Nao 
sao,  porém,  vocábulos  novos  ;  Filinto  Elysio  empregou 
hinnitory  rinchador,  e  modernamente  Odorico  Mendes 
faz  o  mesmo  no  seu  Virgilio  Brazileiro,  Hinnus  chamam 
os  naturalistas  ao  filho  da  burra  com  o  cavallo. 

Diz-nos  ainda  Senio,  no  seu  inexgotavel  Gaúcho,  a 
titulo  de  idiotismos  e  yiria  da  campanha:  «  carneador,  o 
que  mata  a  rez  e  a  esfola  e  mauLêa  a  carne ;  salgador  o 
que  salga ;  que  serro  é  monte;  que  lomba  é  ladeira;  que 
mondongo  sao  tripas  ;  que  pó/í/ro  é  cria  da  égua.  » 

Nao  é  uma  mania  de  querer  a  todo  o  transe  passar 
por  philólogo  ? 

Diz-nos  mais  que  os  Yankees  chamam  far-west  ao 
í£ue  os  russos  chamam  steppes  e  os  castelhanos  sabanas 
— isto  é,  «  as  immensas  planícies  rasas  que  se  dilatam 


12  VI 

por  aquellas  regiões,  e  que,  de  certo,  no,dizer  dos  via- 
jantes, parecem  á  noite  cobertas  de  um  branco  lençol.  » 

Está  enganado  :  os  Yankees  chamam  far-west  ao  des- 
conhecido^ o  inexplorado ;  e,  talvez,  mais  propriamente 
ás  mattas  virgens,  onde  ainda  nao  penetrou  o  esforça 
civilisador. 

Com  o  titulo  de  Far-west  ha  um  bello  livro,  com 
auctoridade  e  cunho  de  qnem  viu  as  cousas,  e  cuja  lei- 
tura recommendamos  a  Senio, 

Diz-nos  mais  que  pampa  é  uma  palavra  originaria 
da  lingua  kichúa,  que  significa  simplesmente  o  plaino. 
Porque  nSo  declarou  de  onde  hou^e  esta  noticia  sobre 
a  lingua  kichúa,  tão  pouco  conhecida  entre  nós,  e  que 
nao  se  aprende  nas  academias? 

A  tal  respeito  lê-se  no  Guarany,  de  G.  Aimard,  pag. 
41,  capitulo  intitulado — O  ?*anc/io— em  seguida  ao  que 
se  intitula — O  Gaúcho  : 

c(  Le  mot  pampa  appartient  à  la  langue  Qiiinchúa 
(langue  des  Incas);  il  signifie  textuellement  place, 
terrain  plat,  savane  ou  grande  plaine.  » 

Ora  esta  !  ora  esta ! 

Tenho-me  alongado  de  mais  nesta  carta,  e  reservo- 
me  para  a  seguinte. 


As  oausas  das  eausas. 


DEDICADO   AO   SR.    S. 


Time  i8  money 
John  Bull. 


Todos  os  males  diversos 
que  vem  á  terráquea  bola 
devem-se  a  esses  pervprsos 
que  ignoram  a  inglezaeschola. 


VI  13 

Se  nos  abraza  o  calor , 
é  culpa  do  Imperador. 
Se  faz  frio  glacial, 
cão  do  Poder  Pessoal ! 

Se  de  nada  serve  o  berro, 
de  nada  a  interpellaçao  ; 
«  se  alguém  ficou  com  ferro 
da  sua  atrapalhação ; 

se  fez  fiasco  algum  doctor, 

é  culpa  do  Imperador. 

Quem  pOe  bobo  em  arraial, 

é  o  Poder  Pessoal. 

Se  alguém  viu  saguins  sem  rabo  ; 

se  viu  gigantes  pygmeos  ; 

se  uma  lingua  do  diabo 

se  transforma  em  Voz  de  Deus ; 

se  ha  quem  viva  de  rancor 

é  culpa  do  Imperador  ; 

a  culpa  de  falar  mal 

6  do  roder  Pessoal. 

Se  um  homem  que  calça  luvas 

n&o  leva  os  dedos  despidos ; 

e  se  todas  as  viuvas 

sao  senhoras  sem  maridos  ; 

d*estes  effeitos  o  auctor, 
quem  será  f  o  Imperador, 
que,  no  bem  como  no  mal, 
tem  um  Poder  Pessoal. 

Se  eu  não  quero  se  emancipe 
quem  nasceu  na  escravid&o  ; 
e  se  o  cónego  Philippe 
tem  ratinhos  na  razSo  ; 

se  tenho  ar  de  inquisidor, 

6  culpa  do  Imperador  ; 

sou  um  marquez  de  Pombal 

co^o  meu  Poder  Pessoal. 

Se  um  homem  que  cai  de  costas 
n&o  vai  de  ventas  ao  chão  ; 
e  se  um  João,  feito  em  postas, 
fica  sendo  um  ex-João  ; 


14  V 

se  quem  ama  tem  amor, 
é  culpa  do  Imperador  ; 
se  ter  ódio  é  querer  mal, 
guerra  ao  Poder  Pessoal ! 

Se  sao  yayás  as  meninas, 
e  se  aos  poldros  chamam  Jucás; 
se  a  pobre  velha  de  Minas 
esperava  pôr  macucas ; 

e  se  o  rato  é  roedor, 

culpado  é  o  Imperador. 

Se  ha  doidos  no  hospital, 

culpo  o  Poder  Pessoal. 

Se  entre  Rómulo  e  Pilatos 
muito  século  correu  ; 
se  Adão  nao  calçou  sapatos  ; 
se  Eva  nao  usou  chapeo  ; 

se  Caim  foi  lavrador, 

é  culpa  do  Imperador  ; 

e  se  o  Abel  foi  zagal, 

fêl-o.o  Poder  Pessoal. 

Se  houve  no  Egypto  e  na  Grécia 
a  divindade  Serapis  ; 
se  hoje  o  grão  Deus  da  fiicecia 
é  o  do  Veto  do  lápis  ; 

se  houve  um  sábio  consultor, 

foi  culpa  do  Imperador  ; 

se  ha  mingáos  que  nao  tem  sal, 

safa !  é  Poder  Pessoal, 

A  historia  fala  de  um  louco 
que  havia  em  Porto  Pyreo, 
que,  ao  ver  naus,  tinha  o  descôco 
de  julgar  ser  tudo  seu. 

Quando  o  sol  ás  eiras  for, 

leval-o-ha  o  Imperador ; 

e  se  ha  chuva  no  nabal, 

quem  lá  chove,  é  o  Pessoal. 

Se  um  homem  de  perna  bamba 
tem  o  nome  de  cambaio ; 
e  se  nunca  uma  caçamba 
pode  vir  a  ser  balaio  ; 


I 


VI 


15 


se  ha  escravo  o  se  ha  senhor, 
a  culpa  é  do  Imperador  ; 
se  ha  quaresma  e  carnaval, 
culpa  é  só  do  Pessoal. 

Se  ha  quem  ostente  ser  nimio 
austero^  severo  e  fero  ; 
e  se  um  dialéctico  eximio 
fulmina  o  quero  e  o  não  quero  ; 

se  li    bra  em  >er  delator 

é  culpa  do  ImiJerador. 

Seja-lhe  o  rei  pedestal ! 

Novo  Poder  Pessoal ! 

Se  ha  quem  se  julgue  facundo, 
por  adeinaes  e  tregeitos  ; 
se  ha  quem  calque  a  todo  o  mundo, 
por  tributo  a  seus  despeitos  ; 

se  é  todo  o  cao  ladrador, 

a  culpa  é  do  Imperador  ; 

cae  em  dezembro  o  natal, 

por  culpa  do  Pessoal. 

Se  eu  bramo  como  dez  fúrias 
contra  qualquer  que  me  vença ; 
se  eu  vomito  e  babo  injurias* 
contra  quem  me  nao  incensa  : 

se  eu  sou  berrante  orador, 

culpem  lá  o  Imperador ; 

se  imito  o  lobo  cerval, 

é  cascar  no  Pessoal. 

Se  acho  a  bem-aventurança 
no  dinheiro  e  mais  dinheiro  ; 
se  pago  alta  confiança, 
descerrando  o  reposteiro ; 

se  me  acham  declamador, 

quem  tem  culpa  ?  o  Imperador. 

Vendeu-me  a  alma  a  Baal 

espectro  do  Pessoal. 

Se  eu  já  vi  um  tira-dentes 
arrancal-os  sem  ganir ; 
e  se  vi  certos  valentes 
a  provocar  é  a  fugir ; 


se  hoQtem  fui  conservador, 
tinha  em  vista  o  Imperador  ; 
sou  hoje  ultra-liberal, 
por  pirraça  ao  Pessoal. 

Se  eu  souhei  subir  do  nada 

té  ao  cume  derradeiro  ; 

se,  ao  ver-me  em  tamanha  alhada, 

me  sai  o  gado  mosqueiro ; 

se  nao  subo  a  senador, 

quem  tem  culpa  ?  o  Imperador  ; 

e  se  eu  faço...  et  cosfra  e  tal, 

é  por  birra  ao  Pessoal. 

Emfim,  se  tudo  no  mundo 

anda  de  pernas  p'ra  o  ar  ; 

se  o  primeiro,  sem  segundo, 

é  o ,,     - 

deve-ae  o  inferno  do  Dante, 
e  opeccado  original, 
aos  influxos  (lo  Imperante, 
e  ao  monstro  do  Pessoal. 


PiTT  «  BlíCkstonb,  em  colUiboraçâo. 


Typ.  e  Litb.— IMPARCIAL— fl<ia Sete  de  SeUnbro  n'  USA. 


QUESTÕES  DO  DIA 


N.  7 


RIO  DE  JANEIRO  20  DE  SETEMBRO  DE  1871. 


Vende-se  «m  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Laemmert.—  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto  .^Livraria  Academicai  Rua  de  S.  José  n.  119—  Largo  do 
Paço  n.  12  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis. 


Ol>x*as  de  Senio-^O  Gai^obo. 


(Cartas  a  \im  amigo.) 


III 


Meu  amigo. 


Aqui  estou  outra  vez^  proseguindo  em  meu  insamo, 
e  sem  duvida  inglório  labor. 

Â'  luz  dos  príncipios  estabelecidos  na  minha  carta  de 
hontem,  estudemos  o  Gaúcho,  como  romance  nacional. 

Achou-se  um  dia  Manoel  Canho  em  um  rancho  ou 
pousada  de  Entre-Rios,  onde  uma  égua  brava  tinha 
desbancado  os  mais  hábeis  e  destemidos  picadores. 
Ouçamos  Senio: 

a  Fora  longa  e  renhida  a  lucta  dos  piOes  com  o  ani- 
mal, antes  que  lho  deitassem  a  m&o.  Em  se  adiantando 
algum  mais  affouto,  a  égua  juntava,  e  de  um  salto 
espantoso  se  arremessava  longe,  disparando  aos  ares 
o  couce  terrível  e  encrespando  o  pescoço  para  morder. 

«  Conheceram  a  final  que  era  impossível  levar  a  sua 
avante  pelos  meios  ordinários.  Foi  então  laçado  o  ani- 
mal peia  garupa  em  um  dos  corcovos,  e  jungido  ou 
antes  enrolado  ao  moirfto.  » 

Jà  antes  d^essa  tremenda  prova  da  indomabilidade  da 


2  V..  VII 

égua,  D.  Romero  (o  dono)  e  mais  dous  camaradas,  que 
trazia,  haviam  empenhado,  mas  de  balde,  os  maiores 
esforços  para  montal-a.  Era  tal  a  rapariga,  que  D.  Ro- 
mero a  dava  de  graça  a  quem  a  montasse,  tao  con- 
vencido estava  de  o  nao  conseguirem. 

Canho,  que  nunca  vira  o  animal,  adianta-se,  crava 
o  olhar  na  pupilla  brilhante  da  baia,  solta  um  mur- 
murejo semelhante  ao  rincho  do  poldrinho,  e  temos  a 
égua  rendida. 

Graças  a  esse  simples  olhar  amoroso,  a  esse  arrojo. 
Canho  consegue  aproximar-se  e  pôr-lhe  a  mâo  nas  es- 
padoas 

—  «Só  mandinga!»  observa  lim  dos  da  pousada, 
attonito  pelo  prodígio.  Nao  podia  deixar  de  ser  um 
homem  de  senso,  esse. 

Canho  cinge-llie  o  collo  garboso.  Os  olhos  de  ambos  se 
embeberam  uns  nos  outros. — «Que  palavras  mysterio.sas 
balbuciaram  os  lábios  do  gaúcho  ao  ouvido  do  indó- 
mito animal,  com  a  mao  a  tiíillar-lhe  os  seios  "^  »  per- 
gunta Senio, 

«  O  bruto  entendia  o  homem  — responde  elle  mesmo. 
— A  égua  estreita  com  o  pescoço  o  gancho.  Houve  um 
coUoquio  do  bruto  com  o  homem.  Ficam  todos  os  ran- 
cheiros  pasmados  »  (Nem  era  para  menos). 

Mas  Canho  continua  nos  seus  carinhos  e  blandicias. 
Amacia  as  finas  íêdas  da  crina  e  abraça  a  égua.  Esta 
volta  o  rosto  para  ver  o  semblante  do  gaúcho  e  agra- 
decer-llie  a  caricia.  Domada,  ou  antes  rendida  ao  amor, 
a  baiu  aproxima-se  do  terreiro,  sacando  com  gentileza 
e  elegância. 

E'  de  tal  força  o  milagre  que  os  da  pousada  que- 
rem crer  que  a  égua  já  fora  amansada,  ou  fugira  ha 
tempos  de   algum  pasto,  e  outras  cousas  mais. 

Porém  Canho,  cônscio  do  seu  estupendo  prestigio, 
desafia  a  que  consigam  o  que  elle  acaba  de*  obter  de 
morena.  Alguns  temerários,  levianos,  se  aproximani 
para  outra  vez  tentarem  cavalgar  o  animal,  mas  foi 
uma  tal  ccuicata  de  couces,  que  todos  correm  a  refugiar-se 
no  alpendre. 

E  comtudo —  mirabile  dieta !  —  morena  correu  para 
junto  do  gaúcho,  que  estava  arredio  (arredado,  devia 
dizer)  e  começou  a  roçar  por  elle  o  pescoço,  como  se  o 
affagasse  ;  Manoel  montou  de  novo,  sem  que  a  égua  fi- 
;sesse  o  menor  movimento  de  impaciência.  (Artes  do- 
demo  ;não  tem  que  ver.) 


VII  3 

Para  quem  sabe  o  que  é  a  égua  bravia,  maxime  si 
está  recem-parida,  essa  transfusão  de  sentimentos  affec- 
tuosos^  de  que  nos  fala  Senio^  operada  entre  morena  e 
Canho,  é  o  cumulo    do    absurdo,   senão  do  ridiculo. 

Perguntae,  desde  o  sertanejo  do  norte  até  o  picador  da 
cidade,  e  d'este  até  o  gaiiclio  da  campanha  do  sul;  per- 
guntae  a  qualquer  pessoa  de  todos  os  paizes,  entre  os 
primeiros  povos  dados  á  arte  de  montar,  mais  astutos, 
mais  férteis  em  artefactos  e  fraudes  para  illudir  os 
sentidos  aguçados,  levados  ao  ultimo  acíime,  da  égua 
parida,  si  é  possivel  essa  scena  por  mera  sympathia  ou, 
influencia  sentimental;  e  todos  rirfío  de  vossa  ingenui- 
dade. 

«  Os  Americanos — diz  um  auctor — apanham  os  cavai- 
los  bravos,  deitando-lhes  o  laço  ao  pescoço,  pondo-lhes  o 
freio  e  a  sella,  a  de^ipeito  de  todos  os  esforços  do  animal 
para  se  ver  livre  de  taes  obstáculos  ;  um  domador  va- 
lente monta  então  o  cavalloe  fal-o  correr,  picando-o  com 
as  suas  agudas  esporas,  até  que  o  animal  se  cance.))  Senío 
não  seri  capaz  do  citar,  para  apoio  de  sua  concepção^ 
uma  só  opinião  em  favor  da  domesticação  do  cavallo,pelo 
sentimento  brando  e  affectuoso.  Muito  menos  se  se  tratar 
da  égua  no  estado  de  morena^  estado  em  que  adquirem 
esses  animaes  um  tal  grau  de  excitabilidade  e  suscepti- 
bilidade que  só  não  desconhecem  o  próprio  filho. 

Senxo  parece  querer  de  algum  modo  insinuar  ajustifi- 
caçãode  sua  desnaturalidade,  pelo  ornejo  de  Canho  imi- 
tando o  rincho  débil  do  poldnnho  recem-nascido.  E'  uma 
filigrana,  que  cede  a  uma  só  observação  :  a  égua  cer- 
tifica-se  do  filho,  não  tanto  pelo  rincho  como  pelo  cheiro 
d'elle.  Mas  ainda  assim  :  pegae  do  filho  da  égua  e 
approximae-vos  d'ella  com  as  mostras  mais  aflectuo-sas 
de  vossa  ternura,  e  duvido  que  a  consigais  abrandar. 
Talvez  succeda  o  contrario,  e  cada  vez  mais  a  irriteis, 
com  risco  de   a  fazõrdes  desprezar  o  próprio  filho. 

O  auctor  acha,  entretanto,  simples  o  segredo  da  proeza 
do  gaúcho.  Jamais  moça  ardente,  sòtFreiJra  de  lascivos 
prazeres,  coraprehendeu  melhor  um  olhar  de  ternura, 
€  d'elle  se  deixou  vencer,  do  que  morena  do  olhar  de 
Canho. 

Morena  é  a  encarnação  pois  do  talento  racional.' 
Conlicce  as  meaores  intenções  de  seu  dominador  des- 
couheci<lo.  Torna-se  em  momentos  o  escravo  mais  intel- 
ligente,  submisso  e  dedicado  do  estranho. 

A's  vezes   vem  a  contradiccão  dar  diversão  ás  idéas. 


4  VII 

Como  comprehendesse  o  gaúcho  que  a  égua  estava  com 
saudades  do  filho,  apressou-se  a  satisfazel-a.  Foi,  «  pas- 
sar a  tronqueira  do  pasto  e  a  besta  desfechar  n'uma 
corrida  veloz.  »(£'  tranqueira  e  nao  tronqueira.) 

Pois  esse  animal,  que  assim  corria  instinctivamente 
em  procura  da  prole  ausente  ;  aue  devia  ter  uma  cor- 
rida louca,  sem  parar,  faz  alto  á  beira  do  arroio,  i^õe-se 
a  retouçar  os  tufos  da  gramma,  e  assim  fica  esquecido  do 
filho,  ponto  supremo  de  attracç&o  irresistível,  que  o 
seduzia  è  o  arrastava  por  sangas  e  coxilhos^  galgando 
encostas  e  transpondo  barrancos  1 

Canho  está  deitado  dentro  do  rancho,  emquanto  a 
égua  solta  pastava.»  Porque  não  correu,  selvagem  e 
livrey  para  onde  a  chamava  o  instincto  com  tanta  vehe- 
meneia?  » pergunta  o  auctor.  EUe  accode  logo: a  Antevia 
que  tinha  necessidade  do  homem,  carecia  do  seu  auxilio, 
ou  antes  uma  força  desconhecida  a  prendia  à  vontade 
superior,  que  a  domava.»  A  égua  tinha  já  adivinhado 
que  succedâra  ao  filho  algum  desastre^  do  qual  só  o 
homem  o  poderia  salvar ;  como,  pois,  o  deixar! 

Mas  emfim  lembrou-se  morena  que  nao  era  bem  de- 
morar-se  mais  a  pastar ;  e  em  logar  de  seguir  só  seu 
caminho,  como  faria  qualquer  outro  que  só  desde  horas 
conhecesse  o  gaúcho,  vejamos  o  que  ella  faz.  Ouçamo» 
Senio  : 

K  N'esse  momento  metteu  a  égua  a  cabeça  pela  porta. 
Dando  com  o  gaúcho  sentado,  fitou  n*elle  os  olhos  é 
começou  a  ornejar  baixinho^  como  para  chamar  á  atten- 
çEo  do  companheiro.» 

O  auctor  nao  se  demora  em  explicar  o  phenomeno  por 
«stas  palavras : 

<i  Era  a  égua  um  intelligente  animal ;  e  depressa 
aprendera  a  linguagem  pittoresca  e  symbolica,  inven- 
tada pelo  gaúcho  para  suas  relações  sociaes  com  a  raça 
equina.» 

Que  eguasinha,  hein,  meu  amigo! ! 

Em  poucas  horas  comprehendeu  a  giria  symbolica 
do  Gaúcho.  Se  esta  égua  frequentasse  uma  faculdade, 
que  de  prodígios  nao  operaria  !  Era  capaz  de  impro- 
visar discursos,  recheados  de  sensações. 

Ha  por  ahi  talento  que  possa  tantil 

Também  naoé  muito  para  admirar,  porque  já  morena 
se  rendera  ao  só  olhar  do  brazileiro,  e  um  simples 
ornejo  d'este  lhe  vencera  os  Ímpetos  bravios,  quando 


vn  5 

ainda  eram  inteiramente  desconhecidos ;  e  isto  logo  ao 
primeiro  encontro. 

Um  folhetinista  diz  que  o  Gaúcho  é  um  romance  pri- 
moroso, de  vasto  alcance  litterario,  philosophico  e  his- 
tórico (nada  menos). 

Espera  o  leitor  que  o  profundo  critico  entre  na  vasti- 
dão d'essa  philosophia  enigmática,  boudhica  ou  my- 
thica,  n'esse  alcouce  litterario  de  logognpho,  e  cedo 
cahe  das  nuvens,  fulminado  pela  mais  atroz  desillusão. 
O  que  o  escriptor  adduz  para  provar  suas  pomposas  pro- 
posições, sao  estas  palavras: 

a  Tenho  em  m&o  o  primeiro  volume  da  obra.   Que 
belleza  de  imagens !  que  voos  audaciosos  e  brilhantes  1» 
E  vai  proseguindo  n'esta  apologia,  apologia,  e  nada 
mais  que  apologia  ! 

Só  a  morena  poderá  explicar  o  lalum^  longum  et  pro- 
fundum  do  contexto. 

A  burra  de  Balaão  falava,  e,  pelo  que  as  cousas 
mostram,  ainda  assim  ficava  áquem  de  ^novena. 

Tenam  também  as  orelhas  da  burra  biblica  a  virtude 
•de  ttse  enroscarem  como  ums.  cojicha? »  As  orelhas  da 
morena  faziam  doestas  magicas.  Prosigamos. 

O  que  vemos  agora  ?  Duas  éguas  que  se  abraçam  e 

acariciam  :  —  moremi    e  tordilha.     Estamos  junto  da 

gruta,  onde  cahiu  e  está  agonisante  o  Juca^  o  filho  da 

primeira. 

Canho  penetra  na  guéla  pétrea,  d'ondesaca  o  menino. 

Ao  vêl-o,   a  raae  soluça  e  ri. 

A  esta  gentil  creança  havia  a  tordilha^  na  ausência 
da  amiga,  amamentado  por  alguns  dias^  condoída  do 
orphão.  Tordilha  é  um  portento  de  sentimentalismo  : 
a  égua  parida  só  consente  tocar-lhe  nas  tôtas  o  próprio 
filho ;  tordilha,  posto  que  selvagem,  pelo  contrario : 
é  ella,  de  motu  próprio,  que  vai  em  soccorro  depecí<r- 
r^icho ! 

Entretanto  —  admirável  contraste  ou  capricho  da 
natureza!  — ao  passo  que  assim  procedeu  com  o  jucá 
durante  a  ausência  da  mae,  agora,  ao  contemplar  com 
Manoel  a  morena  deitada  com  a  criança  equina,  casti- 
fjQva  a  travessura  do  seu  próprio  poldrinho,  arredando-o 
de  si,  quando  se  elle  chegava  para  acaricial-a.  «  Nao 
queria  ella  —  diz  o  auctor — ,  a  mae  feliz,  dar  áquella 
mãe  desventurada  o  espectáculo  de  sua  alegria!  !» 

Em  seguida  tira  Canlio  o  poldrinho  do  regaço  ma- 
lemo.    Égua  nenhuma  consentiria  em  tal,  mas  emfim 


6  VII 

morena  iiuo  é  uma  égua  humana^  de  sentimentos  rebel- 
des e  vnlorares  ;  pertence,  pelo  contrario,  ao  Olynipo, 
como  o  Péf^aso  ;  é  uma  égua  divina. 

Canho  chama  a  tordilha,  que  ligeira  accode,  o/fere- 
cendo  asívlas  para  amamentar  o  pobresinho  desfallecido. 
Só  então  consentiu  tordilha  que  o  seu  pirralho  brincasse; 
mas  ainda  assim,  só  ao  longe,  para  mio  acordar  o  ca- 
marada. 

O  enternecimento  da  amiga  de  worenanao  fica  n'isso, 
e  vai  pressurosa  chamar  as  selvagens  coudelarias,  para- 
que  venham  felicitar  a  exilada  pela  sua  boa  volta  aos 
serros  nativos. 

Espantando-se  com  o  gaúcho,  que  se  levantara  do 
chão,  dispararam  os  magotes.  Morena  porém  corre  a 
dissuadil-os  de  seus  receios,  contando-íhes  tudo  sem 
duvida:  seus  recentes  amores,  sua  nova  paixão  ao  Canho, 
os  sacrifícios  prestados  por  este  a  favor  do  jííca,  filho  do 
pae  do  lote,  e  là  volta  a  cavalhada. 

Ahi  então  o  espectáculo  é  edificante.  O  maioral  da 
tropa,  o  suberbo  alasão,  cumprimenta  Canho  ;  Canho- 
corresponde  á  saudação  do  rei  do  deserto,  a  Não  houve 
entre  elles  affagos  nem  familiaridades  »  vem  logo 
dizer-nos  Senio^  para  que  não  pensemos  que  elles  te- 
riam d'essas  effusões,  só  próprias  de  gente-relé,  faltando 
á  corlezan  pragmática^  mas  uma  dt.-nonstração  grave  de 
mutuo  respeito  e  confiança. 

Canho  é  verdadeiro  heróe  d'aquella  festa  cavallar. 

Rodeiam-n'o,  saúdam-n'o,  cada  qual  mais  ceremo- 
nioso,  obsequioso  e  solicito.  Pôde  mesmo  suppor-se  que 
alli  se  praticou  de  cousas  concernentes  á.  hippica  gente^ 
e  fallou-se  compridamente  da  politica  dopaiz  era  intima 
confiança,  como  n*uma.  sessão  de  parlamento.  Canho 
parece-se  com  o  oráculo.  Si  lhe  occorresse  improvisar 
no  deserto  uma  ceremonia  das  monarchias,  lembrando- 
o  beija-mão,  todos  teriam  corrido  commovidos  e  á  poi^fia 
a  oscular  a  pata  do  grande  alasão. 

Depois  d'esse  solemne  cortejo,  celebrado  namagestade 
das  solidões,  sente  o  gaúcho  exigir-lhe  o  coração  o 
cumprimento  do  humano  dever  de  malar  um  homem — 
embora  o  assassino  de  seu  pae.  Esse  coração  era  a 
esphinge.  Tão  vilão  para  com  seu  semelhante ,  quão 
pródigo  de  impossiveis  affectos  para  o  bruto  !  Homem 
que,  tendo  o  sentimento  tão  apurado  para  o  animal, 
deixasse  de  o  ter  para  a  sua  espécie,  seria  um  alejão  da 
espécie  humana.   Pois  Canho  era  assim  :  desde  mtniíka^ 


VII  7 

jnUnneditara  vingar  a  morte  de  .<;eii  pae.  Não  tora  elle 
tao  sensível  para  os  cavallos  e  as  éguas,  e  nao  se  admi- 
raria essa  r(»soluíTio.  EUa  estíi  até  na  Índole  e  natureza 
do  arrebatado  e  vingativo  gaiicho,  só  não  na  do  simu- 
lacro mais  imperfeito,  do  arremedo  mais  incompleto, 
da  caricatura  mais  contradictoria  e  desnaturada  do  typo. 

Sois  vós  isso,  acaso,  gaúcho  ? 

«  Não  se  explica  semelhante  aberração  »  diz-nos  o 
auctor. 

Ah  !  não  se  explica.  E  dá-se-nos  a  aberração  como 
o  typo  !  Triste  phantasia,  a  que  não  explica  sua  própria 
creacão. 

Canho  vai,  em  fim,  partir  para  vingar-se. 

Apanhou  a  novilha,  que  já  não  tinha  poldrinho  para 
amamentar.  Nenhuma  resistência  fez  o  animal.  Todos 
se  haviam  rendido  d  influencia  mystenosa  do  gaúcho  ;  e 
todos  desejavam  tanto  mostrar-lhe  seu  affecto,  que 
\ion\e  ffuasi  (luevellas  e  arvíffoít  de  ciúmes^  pela  preferencia 
dada  d  novilha. 

Morena^  vendo  que  seu  bemfeitor  ia  partir,  arrancou-se 
no  Jubilo  maternoj  correu  para  Canho  e  abraçou-o.  De- 
veria ser  uma  scena  toda  de  commover,  aquelle  suprema 
lance  de  despedida  de  dons  amantes,  apaixonados. 
Quem  dera  um  Raphael,  para  levar  á  tela  o  quadro 
portentoso  doeste  sublime  abraço  ! 

Não  nos  podemos  furtar  á  tentação  de  re])etir  aqui  as 
ultimas  sentidas  palavras  de  Canho,  que  fazem  cortar 
o  coração : 

— «  Pensavas  tu.  Morena,  que  me  iria  sem  abraçar-te? 
Adeus  í  Levo  de  ti  muitas  saudades.  A  corrida  que 
dêmos  juntos,  nunca,  nunca  hei  de  es(piecel-a.  Duvido 
que  já  alguém  sentisse  prazer  igual  a  esse.  Falam 
outros  das  delicias  de  alyraçar  mna  bonita  rapariga  *  se 
dles  te  apertassem^  como  eu,  a  cintura  esbelta^  voando  por 
estes  ares !  » 

Vade  retro  I  Que  lhe  faça  bom  proveito,  senhor 
Canho. 

— «  Adeus,  adeus  !  conclue  o  gaúcho.  Lembranças  ao 
álajinofi})ího,n 

Será  lembrado.   Vá  com  Deus.  E  Canho  partiu. 

Mas  apenas  vencera  algumas  quadras,  ouviu  o  tropel 
da  veloz  corrida  de  morena^  que  distribuiu  quatro  di- 
zias de  couces  e  outras  tantas  dentadas  à  novilha,  por 
haver   tido  a    ousadia  de   merecer  attencOes   de  seu 


8  VII 

amante.  Manoel  entendeu  logo — podéra  nao !  Eram 
ciúmes, 

E  para  acabar  de  uma  vez  com  esta  repugnante  his- 
toria de  hippicos  amores,  fique-se  sabende  úue  Canho 
montou  na  morena,  põz  o  jucá  na  garupa,  e  toi-se. 

Santo  Deus  I  Para  onde  foram  deportados  o  bom  senso 
e  o  gosto  litterario  do  Rio  de  Janeiro  ? ! 

Ah  qui  d*el-rei !  Quem  denominou  jamais  pha/nta$ia 
o  que  nem  se  alça  &  categoria  de  puerilidade  ?I 


Gr^tn^io^ti^, 


(Cow/tn?ía) 


IVona 


DO  ROCEIRO  CINCINNATO  AO  CIDADÃO  FABRÍCIO 


Fabrício  querido, 


Rio  de  Janeiro,  18  de  Setembro  de  1871. 


Continuam  as  attenções  a  absorver-se  na  questfto 
magna  ;  envolva-nos  a  onda.  Nao  estou  hoje  com  dis- 
posiçtLo  jovial  ;  tem  paciência  ;  atura  os  meos  azeites. 

Subiu  o  projecto  de  lei  sobre  o  elemento  servil  á  ca- 
mará vitalicia.  Tudo  induzia  a  crer  que  nao  só  seria 
impossivel  repetirem-se  alli  as  demasias,que  os  amantes 
do  systema  representativo  já  haviam  deplorado,  mas 
também  que  a  discussão  correria  rápida,  como  em 
casos  d'esta  ordem  o  aconselham  a  próceres  e  provectos 
todas  as  indicações  da  prudência.  Com  surpresa  e 
pesar,  vejo  e  ouço  cousas....  difficeis  de  explicar;  e  que 
o  programma  de  alguns  é  buscar  cinco  pés  ao  gato. 


VIÍ  9 

Jà  não  é  tempo  de  papas  na  língua.  Com  questões 
-delicadas,  como  a  do  elemento  servil,  não  é  licito  brin- 
car ;  nem  são  ellas  das  mais  próprias  para  gymnastícas 
vOratorias  e  funambulismos  parlamentares.  Desde  1867, 
1850,  1831,  1826  e  1817,  que  este  assumpto  se  estuda 
-entre  nós,por  todas  suas  faces:  o  período  platónico  deve 
emfim  transfundir-se  em  período  pratico;  as  questões 
sociaes  são  como  os  systemas  :  quando  amadurecidos, 
.03  Copernicos  geram  os  Galileos,  e  estes  são  os  precur- 
sores dos  Newtons  :  e  pur  si  muove^  e  a  verdade  tri- 
umpha. 

Em  quanto  só  se  tratava  de  dissertações  académicas 
a  favor  da  instituição,  e  de  thoorias  especulativas, 
seriam  innocentes  as  divagações  ;  mas  chegada  a  hora 
da  solução,  toda  a  perda  de  tempo  ó  um  mal  e  um 
perigo. 

E  que  significa  senão,  pelo  menos,  perda  de  tempo,  o 
j)rucedimento  dos  oradores,  que,  depois  de  declararem 
que  hão  de  votar  pela  lei,  ou  que  não  esperam  poder 
estorval-a,  e  nem  sequer  fazer  acceitar  emenaas  ã 
ella,  levam  horas  a  desmoralizal-a? 

Será  esse  o  dever  que  a  circumspecção  impõe  ao  le- 
gisladora 

O  politico,  o  verdadeiramente  liberal,  o  que  toma  & 
âerío  esta  forma  de  governo,  hade  respeitar  os  princi- 
.pios  elementares  do  regimen  representativo;  hade,sim, 
.pugnar  pela  victoria  de  suas  idéas,  quando  sinceras, 
mas  não  hade  fatuamente  superpor  a  sua  ás  outras  in- 
telligeucias,  nem  indignar-se  contra  as  opiniões  de  que 
divergir,  nem  lançar  mão  de  armadilhas,  lograções  e 
•esparrelas,  para  dificultar  ou  impossibilitar  o  anda- 
mento legal  dos  negócios  públicos.  Mal  vai  á  socie- 
dade, quando  anarchico  for  o  exemplo  d'aquelles  que 
o  devem  dar. 

Tal  não  succederá  certamente  no  senado  brazileiro. 
•Suas  nobres  cadeiras,  alvo  das  derradeiras,  das  má- 
ximas ambições,  são  occupadas  pelos  homens  encane- 
cidos no  leal  serviço  da  nação,  por  cidadãos  a  quem  a 
experiência  e  os  annos  devem  ter  apagado  as  labaredas 
das  paixões  tumultuosas,  por  estadistas  versados  nas 
doctrinas  e  praticas  do  governo,  por  politicos  que  não 
Lão  de,  em  proveito  ephemero  de  uma  opinião  do  mo^ 
mento,  afiar  segundo  gume  da  espada  que  um  dia  os 
fira.  Haverá  algum  que  esqueça  estas  obrigações  da 
sua  curul?  Não,  certamente  ;  ou  se  um  impulso  instan- 


10  VIÍ 

taneo   o   desvairar,  razão  fria  o  trará  para  log-o  íi  pru- 
dência, que  uiinca  devera  desamparal-o. 

Se  os  usos  e  o  reg^imeuto  do  senado  perinitteni  it 
multiplicidade  dos  discursos  stereotypados,  é  reflexo» 
de  certa  jurisprudência  antig-a  a  que  já  alg"uem  alhi- 
diu.  Entendeu-se  que  ura  areópago  de  varões  sábios, 
patrióticos  e  prudentes, nun(*a  teria  de  deplorar  o  espec- 
táculos de  discursos-maranhas,  de  expedientes  proiela- 
torios,  de  embargos  de  matéria  velha,  de  opposiçoes 
acintosas,  de  minorias  revolucionarias.  Leis  assim  dis- 
cutidas, seriam  confeitos  de  enforcado. 

Se  os  58  senadores  proferissem  2  discursos  sobre  cada 
artigo,  um  projecto  em  dez  artigos  seria  illumrnado 
por  nada  menos  de  160  orações!  isto  é,  levaria,  só  nr> 
senado,  para  ser  convertido  em  lei,  três  sessões  an- 
imas, em  que  fosse  constantemente  dado  para  ordem 
do  dia ! 

Ora  assumptos,  da  Índole  do  de  que  se  trata,iiao  se 
eternizam  no  tear  do  parlamento.  Por  isso  mesmo  que 
prendem  com  vastos  interesses;  que  excitam  apprecia- 
COes  apaixonadas:  que  são  punhaes  politicos  e  barris  de 
pólvora  sociaes;  que  se  prestam  a  ser  instrumentos  de  de- 
sordem; que  auctorisam  receios  de  bons  e  criminosas  es- 
peranças de  máos  ;  que  prejudicí^Ti  mais  pela  indecisão 
que  por  qualquer  golpe  ;  que  podem,  pelas  perplexida- 
des e  hesitações,  trocar  de  repente  os  tempos  de  modo 
que  a  solução  passasse  a  tornar-se  forçada  e  violen- 
ta ;  —  por  isso  tudo,  urge  que  os  Dionysios  cortem  os 
cabellos  das  espadas,  para  que  o  Damocles  social  possa 
ao  menos  dormir  em  paz. 

A  missão  do  corpo  legislativo  é  legislar,  e  não  im- 
pedir nem  discretear.  Se  o  orador  reconhece  e  proclama 
que  o  projecto  hade  ser  lei,  que  lucra  elle  ou  o  paiz 
com  seus  inúteis  arrazoados  ? 

Beniy  já  se  ve  que  nenhum  pôde  fazer  ;  mal,  certa- 
mente. Se  no  fim  da  sessão  âunua,  discutindo-se  tão 
grave  questão,  taes  discursos  impedirem  que  a  lei 
passe,  sei-ão  esses  bacharéis  os  culpados  de  quantos 
inales  se  seguirem  :  aelles  deverão  attribuir-se — o  ul- 
terior desasocego  dos  ânimos — os  perigos  da  ordem  pu- 
blica— a  escravisação  de  alguns  milheiros  de  infelizes, 
que,  nascidos  nos  doze  mezes  que  ora  começara,  só  esses 
oradores  terão  condemnado  á  escravidão.  Triste  Ct>usa 
é  suspeitar  que  uraa  corporação,  tao  veneraada,tao  pre- 
cisada da  respeitosa  confiança  nacional,  corra  o  perigo- 


VII  11 

de  sor  victima  de  manejos  de  alguém,  e  considerada 
cúmplice  da  ruim  obra  em  que  ao  menoiá  a  quasi  tota- 
lidade do  senado  é  por  certo  innocente. 

Para  que  servem  jii  hoje  intermináveis  arengas,  em 
que  se  nao  apura,  por  nm  nem  outro  lado,  um  só  argu- 
mento que,  de  estafado,  não  deite  a  língua  de  fora? 
Servirão  talvez  para  brilhaturas  e  scintillações  de 
algum  sublime  perorador;  mas  não  é  isso  que  o  paiz 
requer.  O  programma  é  bacharelar  :  cada  um  tem  seu 
plano,  no  qual  só  achu  salvação,  e  em  todos  os  outros 
ruina;  mas  toda  esta  confusão  tem  precedentes  nas  reli- 
giões profanas,  e  sagrada.  Na  fonte  de  Dirce  havia  ura 
dragão  que  devorou  os  companheiros  de  Cadmo,  o  qual 
foi  ás  ventas  do  bicho,  e  arrancou-lhe  e  semeou  as 
dentes  ;  doestes  nasceram  homemzarrões  armados,  os 
quaes  no  mesmo  ponto  deram  cabo  uns  dos  outros,  e  os 
superviventes  fundaram  então  pacificamente  a  cidade 
de  Thebas  no  lugar  marcado  pelo  oráculo.  (  O  dragão 
é  o  captiveiro  ;  homens  armados  são  os  impugnadores, 
que  entre  si  se  destroem  ;  Thebas,  prevista  pelo  orá- 
culo, é  a  liberdade  humana  decretada  pelo  direito.) 
O  que  estamos  vendo  faz  também  lembrar  o  tumulto 
e  o  labyrintho  que  um  sábio  Padre  descreve  nestas  con- 
densadas palavras:  «  Les  hommes  ont  bati  la  tojtr  de 
Babel ^  et  la  femmos  la  tour  de  babíL  »  Noas  avons  aussi 
des  assemblées  liermaphrodites,  o»)  je  ve  sais  le/juel  deff 
deac  predomine  :  ta  lonr  de  fíabel^  ou  la  tour  de  babil. 
Ora  vejamos  : 

Podem  diVidir-se  os  dizedores  em  três  categorias  : 
P.  os  que  defendem  o  projecto,  2*.  os  que  totalmente 
o  impugnam,  3*.  os  que  parcialmente  o  censuram,  mas 
votam  por  elle. 

Os  que  defendem  o  projecto,  já  em  ambas  as  casas  do 
parlamento,  e  pela  imprensa,  tem  rechaçado  as  opiniões 
contrarias. 

Os  que  o  impugnam,  tem  todos  declarado  que,  em 
presença  da  disposição  dos  ânimos,  perderam  toda  a  fé 
no  seu  triumpho,  e  então,  cebolas  do  Egypto,  nisi  utile 
est  (fuod  fwdmus^  stulta  est  gloria. 

Finalmente  os  que  se  coUocam  entre  a  cruz  e  a  cal- 
deirinha,  os  que  declaram  votar  pelo  projecto,  mas  se 
comprazem  em  censural-o,  praticam  uma  imprudência. 
Comprehendem-sebem  as  duas  posições  definidas  ;  mas 
não  esta  do  qiirero^  mio  quero^  mettei-me  neste  eapello. 
Quem  vai,  pelo  seu  voto,  ser  cooperador  da  lei,  não  deve 


12  VII 

começar  por  atacal-a;  quem  aspira  a  ser  obedecido,  nao 
desvirtua  03  seus  próprios  preceitos;  quem  lança  o  balão 
às  alturas,  nao  lhe  dá  cani vetadas  na  seda. 

Se  alg-uem  ha  que  assim  pense  e  obre,  affigura-se-me 
que  mudará  de  systema.  Bem  bastam  as  dificuldades 
gravíssimas  com  que  hao  de  luctar  os  governos  que,  em 
.  seus  regulamentos,  tiverem  de  providenciar  sobre  as 
cem  novas  e  urgentes  necessidades  creadas  por  tao  ra- 
dical mudança;  para  que  hão  de  artificialmente  jun- 
tar-se  a  tantas  graves  exigências  da  situação  estas  ex- 
citações artifíciaes,  estas  desconfianças,  estas  picadas 
de  alfinete  politico  ? 

Convertido  o  projecto  em  lei,  são  precisos  no  governo 
Bryareos,   Centimanos,  para  preparar  a  transformação, 
e  fazer  com  que  ella  se  opere  com  a  possível  suavidade. 
Quantos  objectos  diversíssimos  e  urgentíssimos  não 
terão  de  chamar  a  attenção  do  poder  executivo,  e  sem 
duvida  também  do  legislativo !  — A  mudança  progres- 
siva no  systema  do  trabalho,  —  o  aperfeiçoamento  das 
industrias,  especialmente  da  agrícola  —  o  império  da 
machina  inanimada  substituindo  o  da  machina-homem 
— a  civílisação,  tomando  o  logar  do  embrutecimento  da 
raça  negra  — a  creação  dos  estabelecimentos  onde  o  Es- 
tado recolha,  eduque,  moralize  e  approveíte  as  creanças 
.que  houverem  de  ficar  sob  a  sua  tutella — o  desenvolvi- 
mento dos  mil  trabalhos  importantes  a  que  possam  ser 
:applicados  esses  braços,  n'uma  região  cuja  opulência 
inter-tropical  só  braços  está  pedindo — o  recolher  dos  da- 
dos estatísticos  sobre  os  vários  pontos  ligados  com  a 
questão — o  providenciar  com  ínstruccOes  e  regulamentos 
.sobre  os  escravos  actuaes ;  o  modo  de  os  ir  libertando  ; 
o  uso  do  seu  pecúlio  e  da  sua  redempção  ;  os  excessos 
vd'elles  contra  os  senhores,  ou  více-versa  ;  a  animação  á 
constituição  das  famílias ;  as  relações  entre  os  livres 
nascituros  e  os  senhores  de  suas  mães;  afixação  das  obri- 
gações jurídicas  resultantes  d'estas  relações  interme- 
diarias —  o  regular  prudentemente  a  matrícula  dos  es- 
cravos presentes,  de  modo  que  se  evitem  fraudes  e  abu- 
sos—o organizar  os  títulos  trintannarios,  que  hão  de 
•compensar  a  creação  até  os  8  annos,  estudando  os  ele- 
mentos com  que  a  esse  ohus  se  hade  fazer  face— regula- 
xisar  a  transferencia  de  serviços — estabelecer  as  bases 
das  associações  especiass,  efiscalisal-as  constantemente, 
para  que  em  vez  de  auxiliares  respeitáveis  da  sociedade, 
se  não  convertam  em  f  )co  de  especulaçõ3S — providen 


13 

ciar  sobre  o  (ptantum  das  alforrias  parciaes  em  cada  pro- 
Tiscia — vijriar  sobre  a  applicaçflo  do  fuudo  de  emanci- 
pação—dar  destino  aos  libertos  que  pertenceram  è  na- 
fAo,  i  coroa,  á^  heram;as  vagas,  ao  evento  —  promulgar 
r8g:iilameut03  sobre  a  forma  do  processo  especial — es- 
tebelecer  os  registros  parocbiaes,  propor  melboramentos 
na  lei  das  terras,  approveitar  o  immenso  território  in- 
culto para  a  iudustria  particular,  rasg-ar  estradas,  faci- 
litar a  immigraçau  por  incentivos,  tratados  e  reformas 
da  leg-iálaçau  ;  e  eiiifím  as  mil  miudezas  que,  em  tSo- 
Tasto  império  e  grave  assumpto,  a  execução  d'esta  lei 
e<tá  apertadamente  demandando. 

O  estadista,  que  sò  é  guiado  por  amor  da  pátria, 
compreheude  que,  se  é  coroa  para  o  governo  estalei, 
■fio  menos  os  rubis  que  a  adoranm,  que  os  espinhos  com 
pie  ella  se  crava  na  fronle  dos  invejados  triumpliado- 
tg  ;  e  não  irá,  de  rnSo  beijada,  multiplicar,  com  dis- 
«rsofi  vãos,  ns  dii&culdades.  Se  alguém  lia,  de  coração- 
So  bolota,  que  de  si  para  si  approve  a  lei.  mas  sú  a 
dflie  por  ter  de  ser  referendada  por  quem  o  hade  ser^ 
oiiip«aeça-.se  de  si  mesmo  p  da  sua  cadeira,  e  resigne-se. 

Em  logar  menos  elevado,  certos  estratagemas  sio 
xplícaveis ;  mas  na  suprema  corporação  nacional,  è- 
Itster  muito  calculo,  muita  discriçilo,     muito   pro- 

lifj :  aquellas  cadeiras  impOem,  para  a  cnsa,  summo- 

íoro  ;  para  o  homem,  summa  dignidade.  Quem  nella.-; 
1  assenta,  é  perpetuo  conselheiro  da  naeao,  e  tem  sido, 
t  ou  está  nos  circumstancias  de  ser,  conselheiro  dai' 
deveiu  todos  v.8ses  potentados  parlamentares, 
nliticos  magnntes,  ser  homens  da  ordem,  do  governo, 
t  cotwtituiçíiu'.  antevendo  o  hodie  míhi,  eras  tibi,  devem^ 
ipellir  todas  as  praticas  inroustitucionues  ou  alicanti- 
eiraa,  impróprias  do  homem  publico  em  qualquer  grau^ 
'i  escala,  torpes  no  que  recebeu  as  mais  esplendidas 
rovaa  de  reverencia,  da  parte  do  povo  e  do  rei, 

A  fliha  de  Prinmo  aó  proplietisava  desgraças,  e  essas 
ealinvam-se  :  na  primeira  parte  parecem-se  com  ellic 
I  lUisos  Cassandras  políticos,  mas  nSo  na  segunda, 
taças  s  Dáus.  Tem-se  vaticinado  perturbações,  suble- 
kÕ^^  caíaclismoa,  ruiuas ;  e  o  certo  é,  que  nund  o 
ftuc  prãsear-.iou  mais  ocinviatia  pa»  que  desde  que  esta 
pesUto  ie  debate  no  parlamento,  de  cuja  sabedoria  a 
kçAo  estiem  conliadamente  a  soluç-So  da  crise.  Mais 
Irídicos  prophetas serão,  sem  dúvida,  osque  sustentanr 
i  lei    de    que  se  trata,   facillima  de  executar,   em 


^ 


i 


14  VII 

cou.sequeacia  dos  excelleiítes  iustiiictosdo  pov),  e aurora 
do  dia  da  dignidade,  da  liberdade,  da  opulência,. da 
grandeza,  e  dos  esplendidos  futuros  d'esta  nação. 

E'  de  uso  hostilisarem  o  projecto,  por  não  terem  sido 
para  elle   ouvidos  os  fazendeiros,  os  quaes  se  aílirma 
serein-lhe  infensos,  e  lá  terem  uma  incógnita  panacéa,  • 
un  spéci/hiiie  unif^ue^  qai  tjaéril  les  maiix  pcissé^^  présents^ 
fatnrs^  nonvecmc. 

E  que  fundamento  ha  para  serem  considerados  in- 
fensos ?  Sabemos  todos  perfeitamente  a  historia  de 
varias  representações  submettidas  áo  parlamento ; 
sabemos  que  se  os  amigos  do  governo  tivessem  querido 
lançar  miXo  de  iguaes  expedientes,  teria  apparecido  o 
décuplo  das  representações  em  sentido  contrario  ;  sabe- 
mos onde  diversas  tem  sido  fabricadas  ;  sabemos  haver 
casos  de  numerosas  assignaturas,  todas  do  mesmo 
punho,  e  de  outras,  que  nunca  foram  dadas  para  tal 
fim,  e  contra  as  quaes  os  próprios  reclamaram  ;  sabemos 
que  personagens  que  ha  bem  poucos  dias  percorreram 
logares  dos  mais  afamados  pela  energia  das  represen- 
tações, se  espantaram  de  ver  que  nenhum  d'entre 
centos  de  fazendeiros  com  quem  praticaram,  llies  tocou 
sequçr  no  assumpto  que  se  pinta  aqui  como  desvelando 
todo  Q^SQ  interior ;  sabemos  de  muitos  cidadãos  que 
prestaram  suas  firmas,  por  condescendências  de  campa- 
nário ;  sabemos  de  muitos  outros,  cujas  opiniões  diver- 
sificam tolo  coeío  das  que  subscreveram;  sabemos  que, 
se  ha  certo  accòrdo  na  destruição,  não  ha  o  minimo 
nas  aspirações  e  propostas,  etc,  etc. 

Entretanto,  onde  está  essa  mesma  apregoada  unani- 
midade, que  nãLo  significa  senão  minoria  infima?  Das 
vinte  províncias  do  Império,  de  todas  as  quaes  havia 
largo  tempo  para  chegarem  manifestações,  sao  apenas 
três  as  que  mór  numero  de  escravaria  possuem,  e  as  que 
tem  com  effeUo  enviado  algumas  representações. 

Se  eu  argumentasse  com  o  que  se  passa  em 
.qualquer  outra,  lançar-se-me-hia  em  rosto  nao  haver 
nella  tão  altos  interesses  comprehendidos  :  tomarei  pois 
lesta  mesma  do  Rio  de  Janeiro,  importantíssima  por  sua 
riqueza  e  illustraçao  de  seus  habitantes  ;  facillima  '^e 
manejar,  pela  proximidade  da  corte  e  facilidade  de 
communicações  ;  interessadíssima  na  questão,  pelo 
numero  de  escravos  que  encerra,  e  por  serem  aqui  os 
iseus  principaes  empórios.  Pois  bem  ;  o  que  acontece  *? 
Ha  na  província  do  Rio  de  Janeiro  36  municípios,  e  137 


VII  15 

fregiiezias ;  o  que  tudo  representa  173  naturaes  focos 
de  populaçílo  agrícola  ;  e  quantas  sâo  as  representações 
recebidas  d'esta  província,  no  parlamento  ?  líí !  Eis 
ahi  e>tá  a  unanimidade  da  opinião  dos  fazendeiros,  na 
província  onde  o  projecto  deveria  ver  enfeixadas  todas 
as  condições  mais  desfavoráveis  ! 

Ora  agora,  dado  e  nao  concedido  que  os  factos  fossem 
o  contrario,  tenho  para  mim  que  seria  insustentável  o 
alvitre  de  nao  decidir  a  questão,  senão  depois  de  ouvi- 
dos 05  fazendeiros. 

Concedo-lhes  tudo  :  illustraçâo,  patriotismo,  impar- 
cialidade, abnegaçílo ;  mas  aos  legisladores  hei  de 
conceder  qualidades  pelo  menos  iguaes.  O  peor  é  que 
aquelltís  illustres.  cidadãos,  considerados  os  mais  pró- 
prios para  decidirem  o  negocio,  sao,  por  isso  mesmo, 
aos  meus  olhos,  p^r  causa  dos  seus  interesses,  os  menos 
aptos.  A  clareza  de  vistas  perde-se  no  interesse  pró- 
prio, como  um  rio  se  perde  no  mar ;  ])or  mais  perfeita 
que  seja  a  nossa  retina  intellectual,  o  nosso  interesse 
pôr-nos-ha  sempre  óculos  roxos  ante  os  olhos,  que  assim 
verão  tinctos  em  roxo  os  mais  claros  objectos.  Nestas 
circumstancias  todos  nós,  mesmo  dotados  da  melhor  fé, 
mentimos  involuntariamente  ;  espar-tar-se-hia  a  nossa 
consciência  se  lhe  fosse  dado  enxergar  os  esforços  que 
fazemos  para  simplificar  o  que  nos  parece  confuso,  para 
confundir  o  que  nos  parece  claro. 

Se  vingasse  a  lembrança  de  nao  legislar  senão  depois 
de  consultar  os  interessado?,  teríamos  de  substituir  o 
nosso  raechanismo  constitucional,  convertendo  todas  as 
cKsses  n'ama  espécie  de  tribunaes  de  consulta,  ou 
antes  de  juntas  legisladoras,  ou  communas  parlamen- 
tares. 

Trata-se  de  uma  lei  sobre  assumptos  ecclesiasticos  ? 
Congreguem-se  os  bispos,  padres,  frades,  sacristães, 
a  sineiros. 

De  uma  lei  militar?  Convoquem-se  os  generaes,  coro- 
néis, cabos  d'esquadra,  fornecedores  e  vivandeiras. 

De  alfandegas  ?  Tem  a  palavra  inspectores,  despa- 
chantes, capatazias,  e  trapicheiros. 

De  forma  de  processo?  Consultem-se  as  Relações, 
Juizes  de  Paz,  escrivães,  porteiros  e  beleguins. 

Do  saúde  pública?  Legislem  medicou,  boticários, 
parteiras,   applicadores  de  sanguesugas  e  enfermeiros. . 

De  construccao  naval?  Brilhem  agora  os  coutra-mes- 


16  VII 

três  e  mandadores,  polieiros  e  torneiros,  calafates  & 
carapinas. 

Et  sic  de  cwteris» 

Deus   nos  livre :  tal  doctriua  seria  absurda.  Ckda 
membro   da    sociedade    tem  sua  miss&o,  como  cada 
tecla  do  piano   tem  seu  som;  tractent  fabrilia  fabri  :0y 
carapina  aplaine,  o  enfermeiro  vele,  o  beleguim  citeo 
o  trapicheiro  arrume,  o  cabo  d'esquadra  diga  razOes,  ^ 

sacristã  chuche  galhetas, ,  o  fazendeiro  agriculte- 

e  o  legislador  legisle.   Tao  ridiculo  é  um  padre  com 
mandando    uma   brigada,   como  um    major  dizendo* 
missa. 

Nao  sei  como  isto  foi  hoje,  meu  amigo.  Dei  o  giro  1& 
por  outros  bairros  mais  serios,e  só  agora  observo  que  me 
esqueceu  o  meu  ídolo;  eu  podia  facilmente  accrescentar 
algo  mais,  mas  seria  deslocado :  quem  sai  da  sala  é  im- 
próprio ir  para  a  cosinha;  e  nSLo  se  tratam  no  corpo  da 
folha  objectos  levissimos,  só  próprios  de  folhetim.  Por- 
tanto, adeusinho  até  a  primeira. 

Cà  recebi  o  fumo;  tu  mandaste-o  a  mais  alguém? 
quem  fuma,  tem  fumo;  nao  è  assim  ? 

Tout  à  toi 

ClNCINNÀTO. 


Typ.  e  Lilh.—IMPARC1AL— Ru»  Sele  de  Setembro  o-  146 A. 


QUESTÕES  DO  DIA 

]sr.  8 

RIO  DE  JANEIRO  22  DE  SETEMBRO  DE  1871. 

VeDde-se  em  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Laemmert. —  Praça  da  Constituição» 
Loja  do  canto. — Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119 —  Largo  do 
Paço  n.  12  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis* 

01>r*as  de  Senlo— O  Oavkolxo. 

(Cartas  a  um  amigo.) 
VI 

Meu  amigo : 

Hoje  occupo-me  apenas  com  o  pampa,  cuja  descrip- 
çao  no  primeiro  capitulo  do  romance  tantos  louvores 
tem  grangeado  a  Senio. 

Nao  tenho  tempo  para  mais.  Escuta !  : 

c  Como  são  melancólicas  e  solemnes,  ao  pino  do  sol,  as  vas- 
tas campinas  que  cingem  as  margens  do  iJraguay  e  seus  af- 
fluentes  !  » 

Melancólicas  as  campinas,  ao  pino  do  sol^l  Defeito  de 
observação. 

Que  as  selvas  o  sejam  sempre,  as  selvas  que  natu- 
ralmente vestem  aspecto  sombrio,  de  indefinivel  tris- 
teza, comprehende-se.  Mas  campinas,  embora  immen- 
sas,  embora  solitárias,  porém  banhadas  de  luz ! 

Nao  ha  sitios  descobertos,  ao  ar  livre,  como  a  sa- 
vana, que  apresentem  melancolia  ao  pino  do  soL  A 
luz,  que  se  diffunde  como  um  diluvio,  esclarecendo 
tudo,  imprime,  ao  contrario,  no  descampado  uma  fei- 
ção radiante  e  bella. 

E  Senio  tanto  parece  esposar  esta  opinião  que  de- 
clara que.  ((  ao  pôr  do  sol^  a  physionomia  crepuscular 
do  deserto  é  suave  nos  primeiros  momentos^  e  só  depois 
é  que  ressumbra  profunda  tristeza.  »  Oh !  Pois,  si  no 
crepúsculo  da  tarde,  quando  uma  solemne  melancolia 
envolve  toda  a  natureza  e  portanto  deve  já  ser  triste 
a  savana,   é,  pelo  contrario,  no  dizer  de  Senio^  stiave. 


2  VIII 

isto  é,  aprazível^  então  ao  pião  do  meio  dia,  quando 
tudo  é  luz,  calor  e  viJa,  é  que  o  pampa  ha  de  ser  ine- 
ZancoZíco?  Ainda  mais:  chega  elle  a  dizer  que  nesse 
momento  (isto  é,  ao  pino  do  meio  dia)  o  pampa  é  mais 
pavoroso  do  que  a  immensidade  dos  mares.  Que  pampa 
seria  esse  que  Senio  observou  e  estudou  ? 

«  No  seio  das  ondas,  o  nauta  sente-se  isolado  ;  é  átomo  en- 
volto  n'uma  dobra  do  infinito.  As  ondas  se  agitam  em  cons- 
tante flucluaçílt) ;  tem  uma  voz,  murmuram.  No  firmamento  as 
nuvens  cambiam  a  cada  instante,  ao  sopro  do  vento  ;  ha  nellas 
uma  physionomia,  um  gesto.  A  tela  oceânica,  sempre  ma- 
gestosa  e  esplendida  (e  porque  nâo  também  o  pampa?)  ressum- 
bra possante  vitalidade.  O  mesmo  pego.  insondável  abysroo, 
exhubera  de  força  creadora;  miríades  de  animaes  o  povoam, 
que  surgem  á  fiôr  d'agua. 

«  O  pampa,  ao  contrftrio,  é  o  pasmo,  o  torpor  da  natureza. 
Em  torno  ao  viandante  faz-se  o  vácuo.  » 

Em  torno  do  viandante  faz-se  o  vácuo,  no  pampa  ?  E 
porque  não  também  no  mar  em  torno  do  nauta  isolado  t 

As  miriades  de  animaes  que  povoam  o  mar  surgem 
(i  flor  d' agua?  Prodigiol  Nisto  não  pôde  deixar  de  ha- 
ver milagre  de  Santo  António  de  Pádua.  Caracterís- 
tico do  mar,  ao  pino  do  meio  dia:  os  peixes  deitara  a 
cabeça  de  fora. 

«  Lavor  de  jaspe,  imbutido  na  lamina  azul  do  céo,  é  a  nu- 
vem. » 

As  nuvens  no  firmamento  do  mar  têm  o  direito  de 
cambiar,  e  no  firmamento  do  pampa  tem  a  nuvem  o 
dever  de  ser  lavor  imbutido,  pela  mesma  razão  porque 
alli  não  pôde  deixar  de  soprar  o  vento,  e  aqui  não  pôde 
deixar  de  reinar  a  paralysia. 

As  ondas  murmuram,  é  certo  ;  mas  as  altas  hervas 
da  savana  nao  rumorejam  ?  Pois  Seuio  nao  diz  que  o 
pampa  é  n  pátria  do  tufão?  Nao  é  muito  que  onde 
reina  o  tufão,  possam  também  soprar  galernos.  Con- 
clusão, que  muito  interessa  à  meteorologia:  no  pampa, 
ao  pino  do  sol,  não  ha  vento. 

«  O  cliâo  semelha  uma  vasta /ajmrfa  musgosa  de  extenso  pa- 
vimento. » 

Ora,  si  a  savana  figura  as  fluctuações  do  mar  alte- 
roso, como  se  compara  a  savana  com  a  lapida  ? 

<(  Para  a  fujria  dos  elementos  inventou  o  Creador  as  rijezas 
cadaverícas  da  natureza;  diante  da  vaga  impetuosa  collocou  o 
rochedo;  como  leito  do  furacão,  estendeu  pela  terra  as  infindas 
savanas  da  America  e  os  ardentes  areaes  da  África.  » 

O  rochedo  é  com  effeito  uma  rijeza.  Mas  as  savanas 


VIÍI  3 

ondítlosaSf    os  areaes  movediços  seráo  também  t^ijezas 
cadavéricas  da  natureza  ? 

«  Arroja-se  o  furacão  pelas  vastas  planícies;  espoja-se  n'ellas 
como  o  potro  indómito.  » 

Em  suas  Cartas  sobre  a  Confederação  dos  Tamoyos^ 
estranha  J.  de  Alencar  ao  poeta  G.  de  Magalhães  o 
haver  «  d  águia  dos  Alpes^  ao  cysne  da  Greda,  ao  condir 
dos  Aiides^  opposlo  por  parte  do  Brasil  a  andorinha^  ave 
de  todos  os  paizes,  »  Pois  bem  :  Senio  compara  o  fu- 
racão das  savanas  com  o  potro  !  Como  assim  se  ames- 
quinha  um  dos  mais  magestosos  phenomenos  da  natu- 
reza americana  ?!  Quem  dissera  que  Senio  reproduzira 
o  preceito  que  devia  condemnal-o  ? 

Queres  agora  ver  o  contraste  mais  vivo  e  completo  *? 
E'  ura  escriptor  americano  que  vai  descrever  o  fu- 
racão. E'  Audubon  : 

«  Por  sobre  o  continente  americano — diz  Audubon — nSo 
pjassa  o  furac&o  sem  deixar  traços.  Quanto  a  mim,  que  fui  tes- 
timunha  de  um  desses  phenomenos  terríveis,  tão  viva  lem- 
brança me  ficou  d'elie  que  talvez  me  taxassem  de  exaggerado.si 
•eu  reproduzisse  a  sensação  de  assombro  que  ainda  me  invade, 
quando  a  memoria  me  representa  os  pormenores  d'essa  hór- 
rida scena. 

flf  Jornadeava  eu  a  cavallo.  Achava-me  entre  Shawaney  e  a 
ponta  do  Canot;  lindo  estava  o  tempo  ;  o  ar  meigo  ;  ia  deva- 
garínho  o  meu  cavallo. 

«  Apenas  entrei  na  garganta  ou  valle  que  separa  a  ponta  do 
Canot  da  d'Highland,  obscureceu-se  océo;  cerração  negra  foi  si- 
mulando noite  profunda.  Parei, cheio  de  espanto;  sentia  ardente 
aède,  que  saciei  num  arroio  próximo. 

«  Para  logo  escutei  uns  sons  vagos,  sem  nome  em  lingua 
humana,  um  como  murmúrio  longo.  Sobre  o  fundo  tenebroso 
do  firmamento  foi-se  desenhando  uma  faixa  oval  e  lívida. 

«  Os  ramos  superiores  das  arvores  estremeceram  ;  depois 
communicou-se  esse  movimento  aos  ramos  inferiores.  Num 
relancear  de  olhos,  vi  os  troncos  estalarem  em  pedaços,  desen- 
ralzarem-se,  fugirem  ao  sopro   da  ventania,  e  toda  a  floresta 

rsar    ante   mim  como  torrente    de  agig  antados  e  a  terra- 
es  phantasmas.  Esses  troncos  se  embatiam  e  entrechoca- 
vam em  sua  viagem. 

«  No  centro  da  corrente  tempestuosa,  viam-se  os  topos  das 
mais  grossas  arvores  forçados  a  tomar  uma  direcção  obliaua,  a 
vsrgar  :  abaixo  e  a  cima  d'ellas,  massa  espessa  de  ramalnada, 
galhos  estalados,  poeira  erguida,  tudo  redemoinhava  sob  a 
mesma  impulsão.  O  espaço  até  ahi  occupado  por  todas  essas 
arvores,  nada  era  mais  que  arena  vasia,  ou  antes  coberta  de 
raízes,  c  destroços  ;  diríeis  o  leito  do  Meschacebe  inteiramente 
nú.  As  cataractas  do  Niagara  não  atroam  com  mais  violência  ; 
não  é  mais  poderoso  o  ímpeto  da  sua  queda  terrivel. 

«  Quando  a  sanha  primeira  do  furacão  se  mostrou  como  que 
tarta  ou.  cançada,    milhões  de  ramos  despedaçados  revoavam 


viir 


ainda  pelo  ar,  e  a  marcha  da  columna  densa  que  ia  assignalando 
á  passagem  da  tempestade  perdurou  ainda  horas,  como  que 
determinada  por  nfto  sei  que  força  de  attracção. 

«  Cobrirase  o  firmamento  de  um  véo  esverdinhado  e  lu- 
ffubre:  cheiro  de  enchofre  excessivamente  desagradável  impre- 
gnava a  atmosphera.  Silenciosa  e  pasmado,  esperei  que  a  na- 
tureza transtornada  readquirisse,  sinão  a  forma  primeira,  ao 
menos  seu  costumado  aspecto.  i    v  «^ 

u  Atravessei  o  leito  da  torrente  aérea,  conduzindo  pela  brida 
o  cavallo,  que  espantavam  todos  esses  cadáveres  dar\'ore9 
despojadas  e  derruídas.  , 

«As  ruinas  da  floresta  destruída  jaziam  amontoadas  no 
solo,  onde  formavam  tâo  espessa  barreira,  que  obrigado,  ora  a 
abrir  vereda  nesse  labyrintho,  ora  a  arrastar-me  por  debaixo 
dos  ramos  enlaçados,  ora  a  transpol-os  de  um  salto,  senti, 
durante  o  tempo   que  a    esse    trabalho    co.nsagrei,     íaaiga 

Daortal.  ,        j  ^«*^ 

«  Essa  columna  de  vento,  que  occupava  côrca  de  um  quarto 
de  milha,  levantou  telhados,  arrebatou  casas,  forçou  rebanhos 
inteiros  a  emigrar  violentamente  pelos  ares.  Achou-se  uma 
pobre  vacca  morta  no  cimo  de  um  pinheiro  para  onde  a  levaram 
as  azas  dofuracSo.  O  valle  ó  ainda  hoje  um  logar  desolado, 
coberto  de  musgo  e  de  sarças,  inacccssivel  aos  honiens:  os 
animaes  de  rapina  o  escolheram  para  asylo.  »  f Vid.  P.  Liiasies, 
Etudes  síir  ta  liUélrattire  et  les  maurs  des  Anfflo-Américains.j)^^^' 
85  e  seguintes.) 

Tanto  tem  esta  descripçao  de  grandiosa  e  verdadeira, 
quanto  a  primeira  de  apoucada  e  falsa. 

Além  de  comparar  a  fúria  do  furacão  com  o  potro, 
vê,  meu  amigo,  como  Senio  pinta  a  passagem  do  im- 
ponente e  horroroso  phenómeno  : 

«  A  final  a  natureza  entra  em  repouso ;  serena  a  tempestade; 
queda-se  o  deserto,  como  d'antes  plácido  e  inalterável  {  Queria 

dizer  ifialterado.) 

«  E'  a  mesma  face  impassível ;  nao  ha  ah  surriso,  nem  ruga. 
Passou  a  borrasca,  mas  não  ficaram  vestígios  (Que  insignificantes 
borrascas  são  as  do  sul,  julgadas  por  Senio  !  ) 

«  No  tronco  da  arvore  derreado,  nos  galhos  convulsos,  na  to- 
Ihagem  desgrenhada,  ha  uma  attitude  athletica.  Logo  se  co- 
nhece, que  a  arvore  já  luctou  com  o  parapeiro  e  o  venceu.  » 

Pois  se  em  consequência  das  luctas  com  o  pampeiro  é 
que  a  arvore  fica  derreada,  e  seus  galhos  convulsos,  e 
sua  folhagem  desgrenhada,  como  é  que  'passou  a  bor- 
rasca e  não  ficaram  vestígios  ? 

Mas  a  arvore  luctou  cora  o  pampeiro  e  venceu-o.  Que 
•  arvore !  e  que  pampeiro!  Já  viste  arvores  colossaes  pas- 
sarem arrebatadas,  estranguladas  nas  azas  do  furacão, 
como  acaba  de  nos  referir  Audubon.  Senio  porem  affir- 
ma  que  a  arvore  do  pampa  (Nrio  falando  nas  altas  her- 
vas,  a  vegetação  lenhosa  do  pampa  é  fraca  e  acanhada, 
sem  proporções,  nem  solidez  para  resistir  ao  furacão  ) 


VIII  õ 

não  só  resistiu  a  este,  porem    venceu-o  I    E  Senio  nos 
diz  isto  !  Mas  continuemos. 

«  A  trecho  passa  o  poldro  bravio,  desgarrado  do  magote;  eil-o 
que  se  vai  retouçanao  alegremente  babujar  a  grama  do  pro^ 
ximo  banhado. 

«  Xas  margens  do  Urugaaj,  onde  a  civilisaçâo  já  babujou  a 
virgindade  primitiva,  etc.  » 

Uma  das  manias  que  perdem  Senio  é  querer  passar 
por  outro  Colombo,  descobridor  de  mundos  novos,  por 
mares  nunca  d^antes  navegados.  Insiste,  demora-se  n'es- 
sas  novidades,  com  a  intenção  de  imbutil-as  *io  idioma 
vigente.  Quer  a  todo  o  transe  introduzir  na  linguagem 
moderna — nomenclatura,  phraseologia,  que  se  attribua 
â  sua  iniciativa  e  sapiência. 

O  vocábulo  babujar  é  empregado  frequentes  vezes  no 
volume.  Os  diccionarios  da  lingua  nao  o  trazem  e  so- 
mente babugem,  vocábulo  este  muito  usado  pelos  nossos 
homens  do  campo,  para  também  significar  a  grama  ras- 
teira, que  aponta  com  as  primeiras  aguas.  Senio  não  se 
contenta  somente  com  dizer  que  o  poldro  baòuja  ;  e  sem 
se  importar  com  o  simile  pouco  lisongeiro  a  que  dá  logar  . 
:seu  vaidoso  capricho,  faz  também  a  civilisação  babujar 
(como  cavallo)  s.  virgindade  primitiva  das  regiões.  Aqui 
nao  temos  simplesmente  o  rebaixamento  do  homem  ao 
nivel  de  irracional,  idéa  fixa  e  capital  de  Senio  em  sua 
obra  ;  temos  mais  que  isto  :  o  phenómeno  supremo  e 
providencial  da  humanidade,  a  civilisação,  exerce  a 
fuucção  do^ bruto — babuja. 

Descance  também  o  auctor :  ha  de  pegar  a  moda  do 
termo  ;  e  d'aqui  a  pouco,  sinão  jâ,  nílo  só  o  Rio  de  Ja- 
neiro, mas  também  o  mundo  em  peso  estará,  nao  a  6a- 
bujar,  que  é  a  tal  funcção  especial  do  bruto,  mas  a  sa- 
borear, com  enthusiasíica  leitura,  as  bellezas  e  as  novi- 
dades do  seu  Gaúcho. 

«  Tal  é  opampa— conclue  Senio.— Esta  palavra,  originaria  da 
lingua  kicíuia  (keckúa  escreve  o  Dr.  Martins  em  seu  Glossário, 
dando-lhe  a  significação  de  campo]  significa  simplesmente  o 
plaino  ;  mas  sob  a  fria  expressão  do  vocábulo  está  viva  e  pal- 
pitante a  Idéa.  Pronunciae  o  nome,  como  o  povo,  que  o  inventou 
(Como  havia  de  ser  que  elle  o  pronunciaria  ?  )  Nilo  vedes  no 
som  cheio  da  voz  (Ha  pouco,  a  expressão  do  vocábulo  era  fria, 
açora  ha  cheio  som  de  voz  )  que  reboa  e  se  vai  propagando  ei^- 
pirar  no  va^^o,  a  ima^^em  fiel  da  savana  a  dilatar-se  por  hori- 
zontes infindos ?  Não  ouvis  nessa  maprestosa  onomatopea  re- 
percutir a  surdina  profunda  e  merencória  da  vasta  solidão  ?  » 

(Aqui  jà  a  solidão,  isto  é,  o  pampa  tem  uma  voz,  a 


6  VIII 

surdina:  murmiira.  Está  claro  que  nao  ha  de  ser  ao 
pino  de  meio  dia.) 

Nao  ha  duvida  que  é  muito  significativo  o  termo 
pampa.  Por  mais,  porém,  que  o  queiramos,  hao  pode- 
mos ver  nelle  um  som  (e  os  sons  tamhem  se  vêem?)  que 
reboe  e  se  vá  propagando,  e  muito  menos  descobnr-lhe 
onomatopéa. 

Que  indica  tudo  isto  ?  O  fructo  agorentado  e  fana- 
dinho  de  uma  imaginação,  farta  em  bagagem  de 
cores  vivazes  para  pintar  os  quadros  da  natureza  real, 
mas  que  só  produz,  inteiramente  entregue  a  si,  pálidos 
e  coatradictorios  desenhos,  onde  sobresai  a  confusão 
árida. 

Lendo-se  a  descripçao  do  pampa  por  Senio,  vê-se  que 
«  essas  solidões  nao  lhe  serviram  d^ gabinete  de  traba- 
lho ;  que  elle  nao  percorreu  os  vastos  desertos ;  que  nao 
respirou  o  ar  carregado  de  emanações  da  vegetação 
primitiva  »  como  fez  o  grande  ornithólogp  das  mar- 
gens do  Mississipi  e  do  Ohio. 

O  espectáculo  verdadeiro  do  pampa  está  desfigurada 
no  Gancho. 

Aquella  nuvem  nao  está  imbuíida  no  céo,  divaga ; 
aquella  campina  nao  é  melancólica^  mas  expande-se  e 
surri ;  aquella  savana  nao  é  o  torpor  ou  o  pasmo  ou  a 
paralysia^  agita-se ;  aquelle  cliao  nao  se  parece  com 
a  lapida  do  claustro  ou  do  tumulo,  sinao  com  as  sinuo- 
sidades do  vasto  oceano  ;  aqueíle  furacão  nao  se  espoja 
como  o  potro,  mas  subleva-se,  contorce-se,  revolve-se, 
devasta  e  tala  o  deserto  como  vórtice  ou  cataclysma.  A 
natureza  protesta  contra  o  panorama  traçado  á  custa 
do  prolongado  esforço  estéril. 

Queres  ver,  meu  amigo,  um  painel  vivo  e  natural  ? 
E'  a  descripçao  suave  do  pampa  por  G.  Aimard. 

Aqui  nao  se  escreveu  para  encher  um  capitulo.  Sao 
pinturas  rápidas,  mas  incisivas,  próprias  de  penna 
modesta  e  despretenciosa.  Por  via  de  regra,  para  dar-se 
noticia  desta  natureza  meridional,  que  é  portento  de 
magnificência  e  formosura,  nao  se  ha  mister  de  longosr 
desenvolvimentos,  prejudiciaes  sempre  ao  vigor  e  effei- 
to   das  scenas. 

«  A  campanha  em  torno  de  mim  —  diz  G.  Aimard  —  estava 
deserta  e  plácida  como  no  dia  da  creaçSlo. 

a  Os  cães,  vigilantes  sentinellas,  que  durante  a  noite  nos 
haviam  velado  o  repouso,  levantaram-se  ao  ver-me,  e  vieram 
festejar-rae  com  latidos  alegres. 


VIU  7 

«  O  aspecto  do  pampa  é  dos  mais  pittorescos,  ao  nascer  do 
sol. 

«  Silencio  fundo  paira  por  sobre  o  deserto  ;  dir-se-hia  que  a 
natureza  se  recolhe  e  recupera  as  forcas,  ao  desabrochar  do  dia 
que  enceta. 

«  Tremula  docemente  a  fresca  brisa  matinal,  por  entre  os 
altos  macegaes  que  ella  inclina  em  ondeados  e  leves  movi- 
mentos 

«  Por  aqui.  por  alli,  erguem  os  veados  as  cabeças,  tomados 
de  espanto,  e  circumvagam  olhares  temerosos. 

«  Os  passarinhos,  encolhidos  de  frio  sob  as  ramagens,  pre- 
ludiam por  algumas  notas  tímidas  o  seu  matutino  hosannah. 

•  Sobre  os  montículos  de  areias,  formados  pelas  to(ías  aas 
vigonhas,  poisam  curujinhas  indolentes  e  immoveis.como  sen- 
tinellas  ;  em  sua  meia  somnolencia,  deslumbradas  pelos  raios 
do  astro  do  dia,  escondem  as  redondas  cabeças  na  plumagem 
do  pescoço. 

«  Lá  pelas  alturas,  urubus  e  caracanis  bordejam  em  círculos 
alongados,  librando-se  negligentemente,  á  feiçflo  do  vento,  á 
espera  da  presa  sobre  que  hajam  de  cahir  de  siibito,  com  a  ce- 
leridade do  raio. 

«  Assemelha-sp  o  pampa  neste  momento  a  mar  de  verdes  e 
calmas  ondas,  cujas  margens  se  occiíllem  lá  por  detraz  das 
dobras  do  horizonte.  » 

Eis  ahi  era  rápidos  traços  o  pampa.  Opulento  ou  po- 
bre de  encantos,  é  isto.  E'  a  natureza  copiada  com  fi- 
delidade photographica. 

«  A  imaginação  dos  homens  ãc  génio,  observou  um  crítico, 
reproduz  as  paixões  e  os  quadros  do  mundo,  como  espelho  íieí 
e  orilhante  repete  bella  campina,  ou  rosto  regular  ;  a  imagina- 
ção falsa  assemelha-se  porém  a  esses  vidros  oblíquos,  que  o 
óptico  dispõe  de  modo  que  não  apresentam  reflexo  algum 
exacto  ;  ahi  tudo  nos  apparcce  ou  diminuído  ou  desmedida- 
mente dilatado.  Uma  está  para  a  outra  na  mesma  proporção  do 
retrato  para  a  caricatura.  » 

No  Gaúcho  nota-se  uma  pompa,  uma  dema  ia  pala- 
vTosa,  sacrificando  o  pensamento  á  forma.  Pede-se  ahi 
de  mais  à  imag^inacão  estanque. 

E  que  succetle,  afinal?  Se  ha  hi  forma  que  scintille,é 
scintillar  de  lentejoulas  ;  é  lustro  de  ouropel ;  é  cas- 
quinha de  brilho  fictício  e  fallaz  :  mal  roçardes  o  arte- 
facto,  conhecereis  o  inferior  quilate  da  quinquilharia. 

Desculpa,  meu  amipfo,  a  prolixidade,  e  permitte-me 
voltar  ao  assumpto. 


dC 


[Continua) 


8  VIU 

Decima  cax*ta 

DO  ROCEIRO  CINCINNATO' AO  CIDADÃO  FABRÍCIO 

Venerando  amigo. 

Rio  de  Janeiro,  21  de  Septembro  de  1871. 

Recebi  a  tua  carta,  de  15  do  corrente,  e  li  com  a 
maior  attençao  o  que  passaste  com  esse  respeitável  fa- 
zendeiro, de  que  me  falas,  homem  illustrado  e  de  bôa 
fé,  mas  que,  vivendo  sempre  longe  doestes  centros  das 
maranhas,  entende  que  é  ouro  tudo  o  que  luz,  e 
tinha-se  deixado  levar  pelas  declamações  interessadas, 
receando  que  o  projecto  sobre  o  elemento  servil  fosse 
inconveniente,  por  prejudicar  seus  direitos  e  interesses, 
por  ameaçar  o  futuro  d'este  paiz,e  por  o  stygmatizarem 
homens  distinctos,  que  todos  considera  só  movidos  dos 
mais  santos  impulsos  do  amor  da  pátria.  Mostraste-lhe 
as  minhas  cartas,  e  pediu-te  me  consultasses  ainda 
sobre  vários  quesitos;  a  minha  opinião  é  desauctorisa- 
dissima,  porém  está  à  disposição  do  teu  amigo,  a  quem 
rogarás  que  tome  esta  carta,  como  a  elle  dirigida. 

Antes  porem  de  entrar  na  matéria,  direi  que  em  al- 
gumas folhas  da  Corte  appareceram,  tempos  ha,  sob  o 
titulo  Resenha^  uns  artigos  de  penna  valente,  defen- 
dendo theses  mui  diversas  das  que  sustento,  mas  dis- 
tinguindo-se  por  argumentação  de  ordem  superior,  e 
muitas  ve/.es  por  uma  delicadeza  e  cortezia  de  formas, 
que  mesmo  combatendo  a  quem  neste  ponto  conside- 
ravam adversário,  tao  dignamente  o  faziam,  que  nao 
houvera  sido  desar  o  render-se  a  suas  opiniões;  nao 
raro  foram  modelo  de  polemica.  Appareceu  depois  um 
notável  Parecer  do  Sr.  Conselheiro  Ottoni,  mui  mere- 
cedor de  estudo  attento,  e  bem  assim  uma  analyse 
d'es3e  Parecer,  composta  e  publicada  por  um  respei- 
tável Senador,  sob  o  titulo  de  :  Carta  aos  fazendeiros  e 
comimrciantes  fluminenses  sobre  o  elemetito  seroil.  Con- 
sidero este  folheto,  vade-mecum  em  tal  matéria;  e  pois 
te  envio  tudo  isto»  fora  talvez  mais  prudente  esquivar- 
me  a  emittir  opinião  própria,  porque  Deus  me  nao  deu 
grande  geito  para  echo.  Entretanto,  com  a  devida 
vénia,  passo  a  responder  aos  quesitos  do  teu  amigo. 

Por  via  de  regra,  nada  ha  mais  singelo  e  chão,  que 
o  homem  dos  campos;  por  mais  alta  que  seja  a  sua  in- 


VIII  9 

telligencia,  por  maiores  dotes  que  á  natureza  deva,  a 
sua  convivência  com  as  arvores  e  o  trabalho  toma-o 
aatural,  innocente,  inimigo  da  simulação  e  de  tudo 
quanto  contraste  com  a  inteireza  do  caracter.  Por  isso 
que  a  ninguém  engana,  suppõe  em  todos  sinceridade 
egual;  por  isso  que  núo  calcula  com  os  outros,  imagina 
que  os  outros  a  nao  tomam  a  elle  para  instrumento  de 
seus  cálculos. 

Infelizmente  o  machinismo  da  forma  do  governo  re- 
presentativo appresenta  compensações  ás  vantagens 
d'elle  ;  e  d'essas  tristes  compensações  nao  é  a  menor  a 
perversão  do  espirito,  gerada  da  politica.  Onde  a  todos 
é  licito  aspirar  a  tudo,  bem  se  concebe  que  a  todos  nos 
insuffle  a  ambição,  e  que  o  natural  amor  próprio, —de 
tudo,  com  verdade  ou  miragem,  nos  proclame  ca- 
pazes. 

E'  assim  que,  entrQ  nós,  se  entende  a  politica.  Este 
vocabulo,que  na  sua  origem  significava  a  arte  que  rege 
a  cidade^  a  nação  ;  a  arte  social,  por  excellencia  ;  o 
grande  estudo  dos  interesses  geraes  de  toda  a  ordem, 
que  deveria  ir  buscar  no  thesouro  dos  conhecimentos 
humanos  quanto  contribua  para  o  bem  dos  cidadãos  ; 
o  approveitamento  de  todas  as  forças  vivas  para  pro- 
gresso material  e  moral  da  commuiiidade;  a  creação 
de  um  impulso  motor,  appropriado  á  Índole  do  mecha- 
nismo  social,  e  à  educação,  á  instrucçao,  às  tradições, 
às  aptidões,  e  á  historia  de  cada  povo ;  o  estudo  das 
áuccessivas  alterações  das  cousas,  mesmo  quando  ainda 
conservam  nomes  que  já  nao  deveram  ser  os  seus  ;  o 
dissipar  das  illusOes  e  o  accompanhar  a  razão  pública  : 
— vocábulo,  cuja  base  Aristóteles  assentava  só  n'este 
princípio:  o  justo  e  o  honesto,  —  tem  hoje  sigaificaçao 
muito  diversa:  a  politica  é  qualquer  conjuncto  de 
traças,  ardis  e  tretas,  com  que  se  sustentem  ou  com  que 
se  derrubem  ministérios. 

Já  nao  merecem  o  epitheto  de  homens  políticos  os 
Alexandres,  Césares,  Pedros  Grandes,  Freaericos,  Rí- 
chelieus,  Washingtons,  Pombaes  ou  Pedros  Primeiros, 
esses  que,  ua  pratica  do  poder  supremo,  exerceram 
larga  influencia  nos  povos,  e  fizeram  triumphar  seus 
systemas  e  planos  :  politico  de  polpa  é  o  discorredor  que 
injuria  freneticamente  um  ministro  ;  corretor  eleitoral 
mie  falsifica  bem  uma  urna  ;  Protheo  que  bajula  ou 
mtraja  as  alturas,  a  talante  de  sua  conveniência. 

Máxima  questão  politica  é  que  o  Conselheiro  Quincas 


10  VIII 

substitua  no  poder  o  Dr.  Manduca  :  em  aquelle  che- 
geando  ao  tal  poder,  fará  o  mesmo  ou  menos  que  este, 
mas  a  mudança  trará  os  applausos  dos  candidatos  ao 
coffre  das  graças  e  ás  migalhas  do  orçamento,  o  que 
tudo  constitue  um  dos  mais  flammantes  capítulos  de 
politica  transcendental. 

Ora  como  estasciencianao  excava  cérebros,  accontece 
que,  a  par  dos  raros  engenhos  privilegiados,  aptos  para 
empunharem  as  rédeas  de  um  Estado,  surge  ahi  um 
formigueiro,  um  fervedouro  de  salvadores  da  pátria, 
de  inventores  de  panacéas,  de  Codros  e  Curcios  polí- 
ticos, de  missionários  sem  missão,  de  procuradores  sem 
procuração,  de  Mentores  sem  Telemacos,  de  politiquei- 
ros ou  pelotiqueiros  sem  o  senso  commum. 

Le  rnonde  marche  em  tão  desabrido  galopear,  que  o 
menino  saldo  da  eschola  já  faz  bico  á  idéa  de  ser  de- 
sembargador, deputado,  ministro,  e  até  senador  com 
dispensa  de  edade. 

Silo  tantos,  por  isso,  os  candidatos  ás  elevações,  e 
estas  siio  proporcionalmente  tao  poucas,  que  a  nossa  po- 
litica toda  consiste  no  jogo  do  empurra:  ôle-toi  de  fó,  <yu#? 
je  my  meíle  ;  os  dez  que  estão  de  dentro  sao  rechaçados 
pelos  trezentos  que  estão  de  fora ;  os  alcatruzes  que 
descem  insurgem-se  contra  os  que  sobem  ;  e  é  a  este 
vai-vem,  a  esta  cerração  da  velha,  que  ahi  decoram 
com  o  harmonioso  nome  de  equilíbrio  constitucional. 

Ha  quem  pense  que  n'aquella  ordem  de  ideas  lan- 
ça raízes  o  facto  que  presenciamos.  A  questão  ãt^ 
elemento  servil,  tal  como  o  governo  a  concebeu  é 
nobre,  previdente,  sympathica;  poucos  homens  illus- 
trados  a  repulsam  por  convicção;  mas  não  se  pres- 
tava ella  a  servir  de  instrumento  politico  da  tal  pe- 
lotica  ?  Facillimamente. 

Os  dissidentes  (  exceptuo  sempre  os  de  boa  fé)  esfre- 
garam as  mãos,  dizendo: — «  Bôa  arnlfe  politica  é  esta;  a 
educação  do  paiz,  suas  tradições,  alguns  interesses, 
disposição  de  alguns  ânimos,  alguma  audácia,  algum 
talento,  alguns  inconvenientes  reaes,  tudo  isto  bem 
aproveitadinho,  pôde  dar  com  este  governo  eui  terra: 
mãos  á  obra  !  » 

E  na  mais  incestuosa  união,  fundiram-se    as   mais 
oppostas  legiões,  todas  accordes  no   plano  da  demo- 
lição,  cada  uma  com  diverso  pensamento  reservado. 
E    republicanos,   diceram:  —  «  Extremos  tocam-íe: 
Russias    e  Estados-Unidos    sympathisam.  Os  toleran- 


vm  11 

tes  que  aceitam  o  motto:  fraternidade  ou  morte,  tam- 
bém aceitam  a  instituição  do  captiveiro.  Toca  a  des- 
moralisar  o  projecto  do  governo;  toca  a  attribnil-o 
á  pressão  de  uma  cousa,  que  alcunharemos  Poder 
Pessoal;  toca  a  tornar  odioso  o  monarcha,  odiosa  a 
monarchia,  e  desfraldaremos  nossa  bandeira  victo- 
riosa.  » 

E  liberaloes,  diceram:  «  Que  importa  ser  tanto  essa 
a  nossa  convicção  que  aííirmarnos  terem-nos  roubada 
uma  das  clausulas  do  nosso  programma  ?  No  thea- 
tro  da  politica,  admittera-se  as  mudanças  á  vista  e 
as  magicas,  et  nos  miitamur  ia  illis.  Oppondo-nos  ao 
projecto,  baqueará  o  governo,  substituil-o-bemos  nós, 
e  o  Faustino   tocará  o  liymno  !  I 

E  dissidentes,  diceram  !  !  Nos  quoque  gens  sumus;  cr- 
ganise-se  um  ministério  com  38  pastas,  e  volverá  o 
reinado  d'Astrea.  Como  não  querem,  sentiráo  o  peso 
da  nossa  justa  indignação.  Tanto  faremos  que  o  go- 
verno hade  saltar;  e  visto  que  a  situação  é  conserva- 
vadora,  os  naturaes  herdeiros  do  defuncto,  seremos 
nós.  » 

Eis  ahi  politica,  politica  e  sempre   politica ! 

D'est'arte  cahio  sobre  o  espirito  dos  fazendeiros 
um  enxame  de  evangelisantes,  entre  os  quaes  ha  muito 
advogado  talentoso,  muito  bacharel  habilitado,  muito 
sophista  destro,  e  também  muito  pescador  d'agua& 
turvas.  Depois  de  lhes  circumcludirem  os  ânimos, 
apresentaram-lhe  a  papinha  feita,  e  muitos  se  deixa- 
ram  r.ahir  na  armadilha. 

Assim  se  prestaram  esses  a  servir  de  manivellas 
a  aspirações  monarchómacas,  diametralmente  oppostas 
aas  seus  pensamentos  de  ordem  e  de  respeito  ás  ins- 
tituições juradas;  arriscaram-se  a  passar  indevida- 
mente por  escravocratas,  por  homens  que  nao  fossem 
da  sua  naç&o  e  do  seu  tempo ;  abaixaram-se,  esses,  os 
maia  beneméritos  cidad&os,  a  servir  de  degraus  a 
planos  subversivos  ou  a   combinações  degradantes. 

Com  quanto,  como  já  demonstrei,  os  fazendeiros  que 
representaram  contra  o  projecto  constituam  tao  infima 
minoria  que  nao  chegam  a  um  por  cem,  esses  mesmos 
que   se  deixam  adormecer  por  paradoxos,   cedo  se  es- 

7  uivarão  á  acção  anesthesica  do   tal  chloroformio  po- 
itico, 

Acordarã.0  para  a  verdade  e  para  a  luz,  quando  vi- 
rem: 


12  VIII 

— que  a  instituição  derruída  no  mundo  inteiro  nao 
podia  perpetuar-se  no  Brazil; 

— que  nobre  será  a  sua  extincção,. quando  nenhuma 
pressão  externa  ou  interna  subjugar  este  paiz; 

—  que  qualquer  d'estas  poderia  vir  a  surgir,  se 
adormecêssemos ; 

— que  então  já  para  os  possiveis  cálculos  actuaes 
do  rasoavel  interesse,  poderia  dar-se  aquella  locução 
fatal:  £'  tarde ! 

— que  pelo  systema  do  projecto  se  conciliam,  até 
onde  podem  ajustar-se,  os  direitos  dos  escravos  e  dos 
senhores; 

— que  se  alei  civil  estabeleceu,  contra  jus,  a  insti- 
tuição, melhor  pôde,  com  jus,  modifical-a  em  tempo, 
em  circumstancias,  emjufidicos  effeitos; 

— que  a  liberdade  do  ventre  é  pensamento  ouasi 
geral,  desseca  a  fonte  da  monstruosidade,  e  proclama 
um  facto  sem  contrariar  um  direito; 

— que  o  pecúlio  e  a  redempção,  não  somente  são 
faculdades  naturaes,  mas  nada  innovam  nos  usos  da 
terra; 

— que  a  serie  de  providencias  destinadas  a  tornar 
cada  vez  mais  brandas  as  relacOes  entre  o  servo  e  o 
servido,  são  reflexo  do  successivo  abrandamento  com 
que  os  nossos  costumes  se  temido  civilisando; 

— que  conservando-se  a  actual  escravaria,  só  com 
equivalente  indemnisação  do  serviço  pode  o  senhor  ser 
privado  dos  braços  de  que  dispOe; 

— que  insultam  e  calumniam  os  senhores  de  escravos 
os  que  falam  de  degolação  de  innocentes,  injuriando 
assim  os  sentimentos  de  cidadãos,  que  de  homens  trans- 
formam em  feras; 

— que  a  lei  não  desorganisará  o  trabalho,  e  dará 
tempo  e  meios  de  o  ir  vantajosamente  modificando; 

— que  devendo  geralmente  ser  approveitado  pelos 
agricultores  o  serviço  dos  nascituros,  até  que  comple- 
tem a  edade  dos  21  annos,  teremos  ainda,  durante  al- 
guns decennios  esse  valioso  concurso; 

— que  chegado  o  dia  em  que  esses  cidadãos  possam 
dispor  de  si,  escolherão,  na  máxima  parte,  a  continua- 
ção do  serviço  nos  mesmos  estabelecimentos  onde  ten> 


vni  13 

parentes  e  onde  foram  nascidos  e  educados  (sempre 
que  liouverem  sido  humanamente  tratados); 

— qne,  se  se  considera  preciso  para  conviverem  es- 
cravos c  livres,  que  estes  tenham  melhor  alimento,, 
vestuário  e  tratamento,  bem  vinda  seja  a  lei  que  in- 
duza os  senhores  a  collocar  todos  no  mesmo  nível, 
quanto  a  estas  legitimas  recompensas  do  trabalho  hu- 
mano; 

— que,  desta  melhoria  geral  do  tratamento  d'esses 
valiosos  instrumentos  resultará  diminuição  de  mor- 
tplidade,  augmento  de  forças  e  productos,  alegria  e 
bem  estar  dos  operários,  vantagens  reciprocas  para  o 
servido  e  o  servo; 

— que,  a  condição  livre  de  largo  número  de  homens 
elevará  dentro  em  pouco  a   altura  da  civilisação; 

— que,  todos  estes  progressos  tornaráõ  cada  vez 
mais  amigas  as  duas  raças,  que  os  preconceitos  ainda 
hoje  separam; 

— que  dentro  em  pouco  veremos  entre  nós  honrado  e 
facilitado  o  trabalho,  e  com  elle  o  desenvolvimento  da 
intelligencia,  da  moralidade  e  da  riqueza  nacional ; 

— que  só  então  accudirao  espontaneamente  a  estas 
plagas  hospitaleiras  correntes  d'immigrantes  indus- 
triosos ; 

— que  nesse  dia  o  concursq  do  trabalho  livre  de  es- 
trangeiros e  indígenas  operará  milagres  ; 

— que  a  experiência,  em  toda  a  parte,  ha  mostrado 
que  a  extincçao  d'esta  praga  tem  sido  aurora  de  im- 
menso  progresso  ; 

— que  esta  modificação  induzirá  os  agricultores  a  es- 
tudar mais  a  sua  especialidade,  a  introduzir  novos 
systemas,  a  empregar  a  machina  e  o  vapor,  a;  dispen- 
der  com  melhor  êxito  menor  copia  de  forças  vivas  ; 

— que  finalmente  nos  cobrirap  as  bênçãos  de  Deus,da 
humanidade,  da  raça  libertada,  e  da  nossa  consci- 
ência. 

Tal  é  a  minha  convicção  profunda,  meu  amigo.  Er- 
rarei eu  ?  Não  o  creio.  Sou  echo  da  opinião  pública, 
da  imprensa,  das  associações,  da  grande  maioria  da 
camará  dos  deputados,  da  quasi  unanimidade  do  se- 
nado, e  do  illustrado  Governo  a  que  está  reservada  a 
maior  gloria  com  que  Estadistas  podem  ser  recompen- 
sados. Politica,  sim,  é  isto.  Quando  actos  similhantes 
transformam  as  sociedades  ;  quando  da  seara  opima 
é  por  mão  firme  arrancado  o  joio  ;  quando  a  humani- 


14  VIII 

dade  avança  mais  ilma  etapa  na  marcha  da  grande  ci- 
•vilisaçao,  os  coros  da  terra  e  dos  anjos  exultam  6  en- 
toam novo  hosannah  ao  Senhor. 

Perdão.  Creio  que  estou  mais  carregado  e  sombrio 
<io  que  devera,  e  tu  gostas :  desculpa  ;  emendarei 
a  mão. 

Teu  dedicado  amigo 

ClNCINNATO. 


A  Escravatura  no  Bx^azll. 

NOTÁVEL   DISCURSO    DO    SR.    PARANHOS. 

Sob  este  titulo  publicou  a  Nacion,  de  Buenos  Ayres, 
Tim  artigo,  que  sentimos  nEo  poder  reproduzir  na  inte- 
gra ;  mas  eis  aqui  alguns  trechos  d'elle. 

.  Quando  a  Rússia,  vencida  pela  civilisaçao  occidental 
emSebastópoli,  em  si  mesma  sereconcentrou,  e  estudou 
:as  causas  da  sua  debilidade  e  derrota,  achou-as  no  ele- 
mento servil;  e  para  logo  emancipou  os  servos  da  gleba, 
-chamando-se  desde  então  Rússia  livre. 

Quando  o  Brazil,  vencedor  na  guerra  contra  a  tyran- 
nia  do  Paraguay,  deu  conta  a  si  mesmo  das  causas  que 
geraram  tantos  esforços  e  resistências,  e  ura  tanto  lhe 
aguarentaram  a  victoria,  achou-as  na  escravatura  ;  e 
para  logo  se  occupou  de  extirpar  cancro,  que  poderia 
acabar  por  corroer  todo  o  corpo  politico  e  social. 

Quasi  todos  os  povos  que  esta  grtlo  reforma  operaram, 
que  romperam  os  grilhões  do  escravo  e  arrojaram  seu 
ultimo  elo  aos  abysmqg  do  passado,  fizeram-no  em  meio 
de  grandes  crises  e  dolorosas  convulsões. 

A  America  do  Sul,  e  à  testa  d^ella  a  Republica  Ar- 
gentina em  1813,  proclamou  a  liberdade  dos  ventres, 
ao  matutino  arrebol  da  revolução  de  sua  independên- 
cia, e  resgatou  os  escravos  com  as  rendas  do  Estado, 
levando  os  libertos  de  raça  ao  campo  de  batalha,  a  com- 
batera a  par  dos  libertos  coloniaes. 

O  Estado  Oriental  aboliu  os  últimos  vestígios  da  es- 
cravatura, quando  Rosas  o  invadiu  ;  os  seus  libertos 
foram  núcleo  e  nervo  da  defesa,  no  immortal  sitio  de 
Montevideo.... 


VIII  15 

O  Brazil,  como  a  Inglaterra,  pode  hoje  operar  esta 
magnifica  reforma  em  meio  da  paz,  sem  nenhuma  pres- 
são externa  ou  interna,  dependepdo  a  sua  solução  no 
Brazil,  como  antes  dependeu  na  Inglaterra,  do  voto 
illustrado  e  livre  do  parlamento,  que  pode  immortali- 
zar-se  em  um  dia,  firmando  a  carta  de  emancipação  dos 
•escravos  do  porvir,  preparando  a  extincçSo  da  escrava- 
tura como  instituição,  e  como  facto  inconsistente  com 
«  civilisação  moderna,  com  a  moral  universal,  com  a 
•conservação  social,  com  a  prosperidade  pública,  e  até 
com  o  decoro  internacional. 

Ha  jà  tempos,  que  esta  revolução  de  idéas  e  senti- 
mentos se  vai  no  Brazil  operando,  nao  só  na  opinião 
illustrada  do  império,  senão  também  nos  interesses  bem 
-entendidos  dos  productores,  que  chegaram  a  formar 
4ima  espécie  de  consciência  pública,  a  qual,  reagindo 
contra  o  facto  e  o  direito  de  tão  barbara  instituição, 
tem  dado  ponto  de  apoio  á  reforma  no  passado  ;  e,  tor- 
nando-a  factivel  no  presente,  hade  contribuir  para  fa- 
xel-a  fecunda  no  futuro. 

Aspiração  dos  grandes  pensadores,  desde  os  primei- 
ros dias  da  independência  do  Brazil;  convicção  dos  eco- 
nomistas, que  profundaram  as  suas  questões  agrícolas; 
paixão  geuerosa  em  charac teres  elevados, que  no  escravo 
reconheciam  creatura  de  Deus,  feita  á  imagem  e  simi- 
ihança  do  seu  irmão,  o  branco  ;  previsão  nos  Esta- 
distas, enxergando  a  impossibilidade  da  prolongaçãa 
do  captivciro,  no  dia  era  que  o  mundo  todo  emancipasse 
os  escravos  (  como  jà  succedeu ),  ficando  essa  nação 
isolada  no  mundo,  como  excepção  da  moral  e  da  liber- 
dade universal ; — a  extincçâo,  mais  ou  menos  gradual, 
da  escravatura  no  Brazil,  é  facto  fatal,   irrevogável, 

3ue  obedece  à  lógica  das  idéas  e  â  força  das  cousas,  que 
omina  todas  as  vontades  como  aspiração  sublime, 
solução  económica,  e  facto  que  nada  e  ninguém  pôde 
impedir  ou  retardar. 

....  A  abolição  da  escravatura  depende  hoje  do 
voto  das  suas  camarás,  ou  antes  não  depende  já  de 
niQguem,  porque  taes  questões,  quando  enterreiradas, 
resolvem -se  por  si  mesmas,  sem  que  desde  então  de- 
pendam já  do  voto  fallivel  dos  homens. 

E  não  obstante,  era  mister  coragem  cívica,  intrepidez 
politica,  amor  á  idéa,  para  soltar  o  signal  d'alarma,  e 
romper   decididamente  a  batalha  com  o  facto  trium- 


16  VIU 

f 

phante,  as  jpreoccupações,  os  interesses  illegitimos  ou 
raal  entendidos,  e  as  combinações  possiveis  dos  politi- 
cos  de  parlamento  que,  para  seus  fins  particulares,  fi- 
zessem fogo  contra  bandeira  nao  erguida  por  elles, 
ainda  quando  nella  vissem  inscripta  a  lenda  de  um  dos 
principios  do  seu  credo. 

Prosegue  o  escriptor  na  descripçao  do  estado  da 
Brazil,  e  dos  seus  partidos,  bem  como  do  amadureci- 
mento da  grande  idéa;  e  fazendo  justiça  aos  altos  e  ex- 
cepcionaes  dotes  do  alferes  que  empunha  aquella  ban- 
deira, em  torno  á  qual,  dentro  em  pouco,  todo  o  Brazil 
se  apinhará,  o  Sr.  Visconde  do  Rio  Branco,  exalta  e- 
gualmente  o  seu  valor,  a  sua  paixão  moral.... 

O  sr.  Paranhos,  com  quanto  comprehenda  as  dificul- 
dades e  as  resistências  em  que  tropeça,  nao  assume  at- 
titude  arrogante.  Nao  se  appresenta  aos  compatriotas 
como  excepção,  nem  como  propheta  destinaao  a  con- 
verter incrédulos,  nem  como  força  que  imponha  con- 
vicções :  é  singelamente  o  homem  da  crença  e  da  pa- 
lavra, que  joga  num  dia  tudo  por  tudo,  em  nome  e  na 
interesse  de  uma  grande  idéa,  estribando-se  nas  forças 
sociaes,  na  consciência  pública,  nos  próprios  interesses: 
buscando  seus  antecedentes  na  tradição,  sem  por  isso 
deixar  de  confessar  a  doctrina  humana,  e  de  collocal~a 
sob  os  auspicies  da  moral  do  género  humano,  de  que 
os  brazileiros  e  os  seus  escravos  constituem  parte. 

Continuando  no  mesmo  espirito  este  notável  escripto, 
dà-se  ampla  noticia  de  um  dos  memoráveis  discursos 
do  sr.  Presidente  do  Conselho,  cuja  fronte,  nesta  sessão 

f)arlamentar  se  engrinaldou  de  tao  imraarcessiveis 
ouros,  que  nos  fastos  do  Brazil  nao  ficará  pagina  em 
lettras  de  ouro  tao  esplendida  como  a  que  hade  ins- 
crever os  nomes  de  tal  Estadista  e  de  tal  Governo. 


Typ.  e  Lith.— IMPARCIAL— Rua  Sele  de  Setembro  n*  146A. 


QUESTÕES  DO  DIA 

N.  9 

BIO  DE  JANEIRO  28  »E  SETEMBRO  DE  lff71. 


VeDd«-s«  *m  rasa  dos  Sis.  E.  &  H.   Laemiacrl.—  Pra^  da  Coaslituigftg*  I 
l,o>*  do  raalo.— Livraria  Academi™,  Rua   de  S.  José  u.  119— Larpi  * 
paço  D.  I3C.—  Rua  ãe  Gonçalvcti  Dias  n.  79.—  Pre^  200  reis. 


D.  Pedr^  Px-lmelro. 


IINTE   B   aCATRO   DE   SEPTBMDEO. 


Kra  Umbem  um  rei  ;  também  poderojo  e  grande. 
Subvertera  montes,  entulhara  mares,  erguera  moiiu- 
meatos  rom  que  a  reg*!!!»  da.i  nuvens  se  atfroutava. 

Em  todo  isso....  E  todavia,    alargando  olhos,  do 
fmiiie  de  um  rochedo,  por  extensão  sem  fim,  toda  co- 
berta  de  inaiimeravel   numero  de  homens,  alag'ada  d 
nm  exercito  infinito.  Xerxes  chorou  !  E  mais,  exércitos  1 
e  montes,  povos  e  mare.s,  tudo  aquillo  era  seu. 

D — Choro — dixia — porque,  em  cem  aunos,  d'enl.re  ] 
tantos  nem  um  restará.  » 

Nestes  dias  de  imraeusa  dôr,  subamos  ao  rochedo  de 
^erxes,  e  roasoiemo-nos.  Baixemos  olhos  por  sobre 
rase  universo,  que  iios  pés  nos  redemoinha;  observemos 
9  taceisaute  martellar  do  Tempo  leve  !  Mundo  juncado 
je ruínas;  perpétuo  batalhar  dasg-entes  com  as  geutes, 
dos  reis  <^>m  os  reis,  dos  impérios  com  os  impérios  : 
triampho?  e  derrotas;  grandezas  asmagadas  e  insigni- 
flesDcia^  erg-uidas;  incêndio,  devastação  e  morte,  ar- 
Toradai  em  arautos  de  civilização.  Estendei  a  vista  em 
lAmo:  aqui,   um    apunhalado  ;  além,  um  coroado  de 

^touros  :  d'aquelle  lado,  um  feliz,  levado  em  carro  tri- 
impbat  a  capitólio  ;  d'este,  o  mísero,  (]espe.ihadu  da 
Tarpeía.  Danças  e  jogos  ante  vós:  alli  pranto  e  deses-  | 
lersção  :  no  longe,  incensos;  no  perto,  maldicçoes...  E 
I  iQfSiiio  homem,  ínstauteapós instante,  segue  asort« 
i'es«es  tantos  que  a  vista  abarca: — louros  e  dansas, 
|Bs««peraçao  e  pranto,  inceusos  e  maldicçOes,  Tarpeia  e 

^^aipitolio,  nascimento  e  morte,  tudo  isso  é  commum. 
E    oao  é  só  o  exercito  de  Xerse.s;  é  toda  a  humani- 


2  '  IX 

dade,  que  hoje  vive,  e  se  a^ita,  e  se  revolve,  e  pratica 
êc<í0e»  grandes,  e  commette  crines  negros,  e  chora,  e 
ri,  e  corre,  e  võa,  e  conta  com  uma  eternidade  de  exis- 
tência, que  amanhã...  amanhã  será  toda  pó  de  ca- 
dáver. 

Paia  bam  I  a  essa  lei  commum  da  humanidade,  tam- 
bém EiXK  cedeu.  O  frágil  involtorio  caiu  pedaços  ;  e  o 
que  era  mortal,  passou.  Que  admira'?  Mocidade,  belle- 
za,  força,  poder,  nada  retarda  um  instante  o  golpe  da 
inevitável  foice.  Ainda  rodeado  de  todas  essas  vanta- 
gens, dirieis  em  cada  homem  um  conjuncto  monstruoso 
de  dons  companheiros  inseparáveis;  ao  vivo  anda  sem- 
,  pre  abraçado  o  inorlo^  que  só  larga  o  companheiro  no 
dia  em  que  pode,  triumphante,  calcal-o  aos  pés  de  es- 
queleto. 

Bem  I  Morreu  o  que  podia  morrer. 

Mas  dessa  tirannica  lei,  libertam-se  alguns  raros,  ra- 
rissimos  nomes,  que,  desprendendo-se  do  que  nelles  era 
terra,  sobem  fulgurantes  ás  ethereas  regiões,  para  d'al- 
li,  planetas  brilhantes,  admiração  de  todos  os  povos  e 
de  todas  as  edades,  affroutarem  a  eternidade. 

Esses  nomes  são  raros  ;  tal  mixto  de  eminentes  qua- 
lidades exigem,  que  a  antiguidade  os  denominava  semi- 
deuses, e  os  séculos  correm  sem  junctar  um  só  à  curta 
lista  d'esses  eleitos  do  Senhor. 

Um  d'esses,  embora  caia  ceifado  em  flor  :  para  elle 
não  ha  somno  eterno,  nem  somno  longo.  No  momento 
mesmo  era  que  fechou  os  olhos,  a  humanidade  em  peso, 
com  a  sua  voz  grande,  q^ue  também  é  voz  de  Deus,  bra- 
da como  elle  :  Swge  qui  dormis,  et  exurge  a  mortais! 

Succumbiu,  neste  dia,  um  d'esses  que  o  mundo  ve-. 
nera  unanime  como  immortal  modelo  do  rei,  do  sol* 
dado,  do  legislador,  do  philosopho,  do  esposo,  do  pae, 
do  cidadão,  e  do  homem. 

D.  Pedro,  que  ha  37  annos  existia  cheio  de  vida  e 
força,  e  juventude  e  esperanças;  que  libertava  dous 
mundos;  que,  nos  campos  da  batalha,  semelhava  o  anjo 
da  tempestade,  que,  tranquillo,  no  seio  de  um  turbi- 
lhão, dirige  os  ventos,  impera  aos  furacões,  e  aponta 
ao  raio  onde  hade  ir  fulminar...  hoje!  desengano  atroz! 
jaz  alli,  naquella  terra  irmã,  mudo  e  quedo,  inanimado 
corpo  sem  coração,  esse  coi^po  onde  um  coração  im- 
menso  palpitou,  como  nunca  outro  algum,  por  quanto 
no  céo  e  na  terra  ha  nobre  ! 


IX  3 

Se  porém  na  eterna  mansão  dos  justos  podem  as  al- 
mas exultar,  lá  estará  hoje  o  fundador  deste  império 
implorando  novas  bênçãos  sobre  esta  terra  tfto  sua, 
e  danda  as  derradeiras  graças  ao  Senhor,  por  vêr 
emfim  coroada  a  obra  que  emprehendêra,  e  que  nunca 
hoav«ya  sido  completa,  emquanto  nao  tivesse  sido 
promulgada,  como  acaba  de  o  ser,  a  redempç&o  de 
todos  os  homens  nascidos  neste  torrfto  abençoado. 
Desta  grande  obra,  a  semente  foi  lançada  pelo  rei 
philosopho. 

Retumbem  por  esses  échos  o  estrondo  dos  canhões, 
o  dobrar  dos  sinos,  os  saudosos  lamentos !  Revista-se 
toda  esta  redimida  sociedade  de  lucto  e  de  dó  !  E 
aprendam  as  gerações  futuras,  que,  no  século  XIX, 
só  uma  cousa  houve,  egual  ao  immenso  amor  de  um 
monarcha...  foi  a  perpetua  e  immensa  gratidão  dos 
povos  que  elle  remiu  ! 


•Os  leitores  nos  agradecerão,  sem  duvida»  que  os  presenteemos 
com  o  seguinte  mimoso  inédito,  em  que  a  delicadeza  do  sen- 
timento disputa  primasias  á  appropriada  singeleza  da  forma. 
Tivemos  de  vencer  a  modéstia  de  seu  auctor,  que  se  julga 
tanto  menos  do  que  vale,quantos  outros  valem  menos  do  que  se 
julgam.  E'  distincto  membro  de  uma  familia,na  qual  o  talento, 
nem  por  ser  hereditário,  diminue  o  património  de  cada  um,  da 
mesma  forma  que  a  tocha  nSLo  diminue  o  fulgor  da  tocha  a  que 
se  aceendeu.  Se,  nessa  familia,  não  distingue  o  engenho  sexos 
nem  edades,  mais  de  uma  vez  a  foice  da  morte  veiu  invejosa 
ceifar  em  flor,  ou  em  já  esplendido  fructo,  esperanças  que  des- 
cortinavam horisontes  sem  limite.  A  amostra,  que  oraj  damos, 
é  também  sympathica,  pela  natureza  do  assumpto  inspirador 
desta  poesia  :  que  aromas  não.rescende  o  amor  dos  amores,  o 
do  joven  filho  a  seu  provecto  pae  I  Não  ha  entre  as  harmonias 
da  natureza  outra  que  mais  suavemente  faça  vibrar  as  fibras  do 
coraç&o/  Oh/ feliz  aquelleaquem  é  dado  poder  prestar  estes 
preitos  a  ura  pae  ! 


IX 
Três  ô«  «f-ulHo.    " 

Hontado  velho  I 
tu  na  estrada  da  honra  me  pozeste. 

QíLTTetí—CamôeJt. 

Cada  poeta  na  lyra 

canta  o  amor  que  lh'inspira 

o  bater  do  coração. 

Deixas .  que  eu  consagre  um  canto 

ao  pae,  nos  risos,  no  pranto, 

minha  mais  doce  affeicao.  * 


Os  mares  beijam  as  ilhas ; 
as  flores,   dos  troncos  filhas, 
ennastram  gentis  o  chfto, 
que  adorna  a  mimosa  planta, 
que  para  os  céos  se  levanta, 
como  que  em  pia  oração. 


Pendem  os  fructos  dos  ramos, 
e  a  beijar  os  encontramos 
annosa,  tosca  raiz. 
A  flor,  a  fructa  cahida, 
no  tronco  que  lhe  deu  vida  . 
tem    um  pae,  que  a  fez  feliz 


Se  a  planta  frágil  é  grata, 
se  nos  orvalhos  de  prata 
alenta  a  côr,  que  se  esvae, 
ganha  perfumes  e  viço, 
meiguice,  brilho,   feitiço, 
para  coroar  seu  pae, 


ai,  não  te  admires  se  venho 
trazer  as  rosas  que  tenho, 
tua  grinalda  formar 
com  tão  míseras  florinha-s  ; 
pobres,  como  eu  (que  são  minhas), 
a  ti  que   as  fazes  brotar. 


II 


Ao  meu  primeiro  vagido 
ancioso  prestaste  ouvido, 
escutaste  esse  meu  ai! 
e  teus  olhos  me  disseram : 
«  Por  ti  meus  braços  esperam  ! 
«  vem,  filho,  abraça  teu  Pae.» 

E  déste-me  um  beijo  sancto  ; 
libaste  logo  esse  pranto 
com  que  o  infante  acolhe  a  luz : 
foste-me  seio  d^amores, 
como  orvalho  que  nas  ^ôres 
suspende  o  sol  que  reluz. 

Dentro.  d'um  berço— meu  ninho— 
concha  d'amor  e  carinho—, 
aquecftu-me  o  teu  amor. 
Deste  vida  ás  ondas  mansas 
doesse  berço  d'esperanças, 
que  ficaram  sempre  em  flor  ! 

O  meu  passo  vacillante 
seguiu,  meu  Deiís !  foi  avante, 
guiado  por  tua  mao. 
No  bater  igual,  perfeito, 
deparei  dentro  em  teu  peito 
echo  do  meu    coração. 

Do  livro  a. primeira  folha 
quem  me  abriu,   de  sua  escolha  ? 
quem  a  peqna  me  estendeu  ? 
quem  me  apontou  da  scíencia 
branda  luz,  com  paciência, 
foi  o  Pae  que  Deus  me  deu  I 

Plantaste  muito,  é  verdade  ; 
mas  não  qui?  a  divindade 

Íremiar  o  teu  suor  ! 
iveste  tantas  colheitas 
n'outros.  filhos,  tao  perfeitas  ! 
devia  esta  ser  menor. 


BH 


m      I    ■llWll^ipill.Wl^.l^ft^jn.r^:.,,..." 


IX 


Deram  outros  c'rôa  e  palma.... 
dou-te  murchas  flores  d'alma, 
nascidas  de  puro  amor. 
N&o  tenho  os  raios  da  gloria, 
para  teu  nome  na  historia 
douràt  de  novo  fulgor. 


Sim,  meus  irmfU)s  foram  grandes  ! 
Também  meiiores  que  os  Andes 
ha  o  monte,  o  valle  e  o  chão  ! 
E  n'uns  e  n'outros  o  dia 
com   perennal  harmonia 
ostenta  de  um  Deus  a  mSo. 


Tiveste  illustrados  filhos. 
Inda  esplandecem  os  trilhos 
do  breve  caminho  seu. 
Nao,  nâo;  nfto  tenho  esse  brilho, 
porém  sou  também  teu  filho, 
e  bom  Pae  lambem  és  meu. 

Ter  Pae  !  é  cousa  tao    doce  I 
O  mesmo  Deus  humaiioii-se 
para  ser  filho.  •—  Jesus, 
quando  a  libertar-nos  veiu, 
deixou  o  materno  seio 
mas  ao  Pae  voltou  da  cruz. 


Teus  filhos — doçura,  enleio, 
acham   no  paterno   seio, 
remedio.s  promptos  á  dor  ! 
Teu   coração  nao  tem  raias  : 
immenso  mar,  mas  sem  praias, 
transborda  sempre  de  amor! 


Acceita  este  canto. — é  preito, 
qne  vem  render-te  meu  peito 
eoffre  de  amor  filial. 
Viiiarda   a  grinalda;   essas  fiares 
i)rotaram   murchas,   sem  cores. 
d'este  m^n  peito  no  vai. 


IX  T 

N'esta  pude  e  pobre  offerta 
vai    minh'alma,  em  flor  aberta, 
osculando  a  tua  mão, 
no  Urro  de  nossa  vida 
ínscreTer    agradecida 
um  só  nome  —  g-ratidao. 

Rio  de  Janeiro,  —  1871. 


Oaz*ta  I. 


wir.cir^rií^to  a  Síir^proaio 


SemproDio   amigo. 

Agradeço  cordialmente  as  admiráveis  cartas  em  que 
me  tens  ido  fazendo  a  analyse  do  famoso  Gaácho^  com 
intelligencia  e  agudeza  critica  tal,  que  me  parece  a 
tuapenna,  ncdelo  para  similhantes  e.studos,  e  digna  de 
applií^ar-L-c  á  appreciação  de  trabalhos  de  vulto.  Sim, 
pennas,  cora(  a  tua,  devem  ter  mais  alta  missão,  mas 
emfim,  b'?m  laja  quem  foi  origem  de  lucubrações  tao 
valiosas,  na  e;^encia  e  na  forma,  como  estas  cartas  são. 

Mandas-me  com  a  tua  4*  carta,  um  exemplar  do 
(ittâcho,  pnra  dn^  eu,  confrontando-a  com  o  documento 
original,  te  dii^a  se  és  severo  ou  justo.  Já  que  me  per- 
mittos.  dir-te-iei  que  me  não  pareces  justo  uem  seve- 
ro :  em  vez  de  rigor,  lia  ahi  brandura  ;  longo  de  jus- 
tiça, ha  favor  los  teus julgamentrs:  afHgura-se-me  que 
ainda  (M>u'*ede  ao  escriptor  qualidades  imaginarias, 
em  desconto  de-eiis  peccados.  Agora  que  li  o  tal  livnn^o, 
lenho  para  min  que  no  seu  auctor  venernroi  de  bòa 
ii:en!c  uma  e%:c.lienie  pessoa:  mas  como  escri])tor,  isto 
não  é  mais  queim  operário  da  couimuna  lilteraria, 
dí-molidor  feroz, petrolisador  iutellcctua!,  di.iruo  mo:n- 
brod'1  direriori(  da   Eschola  Coiívbrn. 

N<»st;i  lua  -i"*  ca-ta,  dissecas  brilhantemente  u  I"  cvjpi- 
tulu  do  Gaúcho,  i  aiuda  assim  saltas  ])or  sobre  Uiil  hei- 
h'Z(ts^  prova\eimaite  porque,  para  aquilatal-as  todas, 
houveras  precisalo  Oi  60  volumes  in- folio  da  Etiri/do- 
j  ''tl.'(-  Melhoúico. 

Concordo  ccaiiti^o :  fite   cscreved^r  tem  ;.  mauiít  <la 


ê  IX 

novidade.^  U  lui  faut  du  nouveau,  quand  il  n'y  en  a  ptus; 
logo  no  proemio  doesta  cousa,  nos  diz  elle  que  na  no- 
vidade é  que  elle  acha  o  sainete  ;  é  da  raça  dos  taes  que 
nfto  hesitarão  em  descrever  o  mar  como  encarnado 
e  o  circulo  como  bicudo,  só  para  conquistarem  a  gloria 
de  ceifar  estranhezas,  e  dar  à  luz  novidades;  foi  queiA 
aconselhou  Alcibiades  a  cortar  o  rabo  ao  cão.  Onde 
a  imaginação  lhe  parece  frouxa,  ou  desenfreada,  pou- 
co importa;  acceíta-se  tudo:  às  maiores  hucuras, 
chamarse  originalidade;  o  devaneador  é  chefe  de  es- 
chola,  e  já  que  n&o  pode  brilhar  pelo  senso  oDmmum^ 
contenta-se  com  o  pechisbeque  de  casa: 

Quand  onn'a pasce  que  Ton  aime, 
il  faut  aimer  ce  que  Ton  a. 

Tons  carradas  de  razão  em  quanto  pondera,mas  reco- 
nheço que  muito  te  arriscas,porque,  segund)  parece,até 
este  Deus  tem  seu  pagode,  com  os  competentes  adorado- 
res ou  pagodeiros.  No  L.  4  de  varia  Histeria  da  índia 
Oriental  cap.  8,  escreve  o  Padre  Fr.  João  dos  Santos, 
que  nas  terras  do  Malabar,  de  que  é  sentor  o  Çamoriy 
rei  de  Calecut,  ha  um  pagode  a  que  em  <ertos  dias  d^ 
festas,  acodem  uns    endiabrados  devotos,  chamados 
Amoucos^  e  mettem-se  pelo.  meio  da  geite,  apostados 
a  matar  quantos  poderem,  em^  honra  e  lOUvor  do  seu 
nume,  até  morrerem  na  contenda,  como  de  ordinário 
succede  depressa,  porque,  como  sua  vindié  sabida  e  es- 
peradc^fha  muita  vigia  que  lhes  sai  logp  ao  encontro, 
e  peleja  até  dar  cabo  d'elles  ;  e  com  esta>arbara  solem- 
nidade  se.  celebram  as  festas  d'este  jagode.  Fernão 
Mendes  diz  que  se  untam  com  o  nngfienUminhamundy. 
Ouço  que  alguém  se  anda  por  ahi  minlamundyzando, 
m^s  por  ora  ainda  a  cousa  se  reduz  a  iicensos  e  genu- 
flexões; e  isco  é  innocente;  agora  quemem  dia  de  festa, 
for  fazer  das  suas  no  pagode,  muda  o  3aso   de  figura. 

Continuando  pois,  direi  que  o  tal  cçitulinho,  a  me- 
lhor cousa  da  melhor  obrado  melhor atctor,  objecto  dos 
espantos  de  espantadiços,tem,  nas  pousas  linhas  de  que 
se  compõe,  outras  muitas  curiosídadbs,  além  das  que 
notaste.  Bem  as  viste  certamente, mai  não  te  abaixaste 
a  indical-as.  Permitte  que  eu  U  apcnte  para  algumas 
d'entre  tantas  outras  : 

—  «  A  savana  ondula  pelas  sanitas,  que  figuram  •  as 


fluduações  das  vagas  nesae  verde  ocuauo...   A^  ondas 
«e  agitam  em  constante  fluctuação  etc.  » 

Oiide  se  viu  riqut:za  mais  pobre  í  Fííícípís  é  ouda : 
fluctuação  é  a  agitação  ia  onda;  ondular  (se  é  (jue  »\istej 
jt^Difica  imitar  o  movimeuto  da  onda.  Que  eluqueacla 
è  est«  verbosidade,  i^ue  está  dando  em  cíqco  viubjriâ 
1^  trocos  dos  tojtOes  !  Quem  diz  fluduaçilo  teia  dito 
o^itacãQ  das  ondas,  eex|)rime~se  tristemente  quem  escre 
ve  ;  «  as  ondas  se  ugilam  em  ductuaçao  "  •  o  restante 
eciparralbamentu  que  por  alií  fica. 

Nao  era  isto  que  Frederico  II  chamava  a  abundância 
estéril  de  Bernis  f 

— «  à  trecho  passa  o  poldro  bravio  '■   Conbeço  a  lo- 
cução adverbial    a   trechos,   sig-aitícaudo  de   tempo  a 
tempo,   mas  no  singular  é  ueolo^ia  c&d'este  clássico. 
— o  O  nauta  é  átomo  envolto  u'uma  dobra  do  infí- 
aito  !  »   Bravo  !   o  íniinito  com  dobras  !  e  dobras  de  in- 
finito  para  envolverem   átomos!  Que    ineUio.r  poderia 
dizer  o  cirurgião  Rozendo,   o  preclaro  fundador  da  es- 
chola  coimbrã  ?  Deixem  estar:   esta   adiniravel  pbrase 
vai    matar,  de  inveja  aos  patriarchas  da  escola.  Apeaafi 
Henrique  IV  deu  a  ultima  espadeirada.  n\wi a  famosa 
batalha,  escreveu  islo  ao  duque  de  Crillon:  — «  Enfor- 
ca-te.    bravo  Crillon;    combatemos   em    Arques,  e  tu 
ailo  estavas  cà  .  ...  Adeus,  bravo  Crillon;  gosto  de  ti, 
a  Uirto    e  a  direito.     «  Agora   o  peuaclio  branco  .lubs- 
títuirá    a   penna    de   pavão  do   maudarinado,    e  j&  là 
vai   ao  auclor  das   Odes   Hodertias  este   bilhete:  «  En- 
\  forca-ic,  bravo  Q.;   envolvi   um    atorao  em   dobras  dn 
I   infinito,  e  tu  ficaste  a  olhar  ao  signal.     ,  Adeus,  bravo 
I  Q.;    gosto  de  ti  a  torto  e  a  direito.  " 

t  A  ambula  iaiuieusa  tem  só  duas  faces. convexas  : 
1  o  mar    e  o  céo..»  Ah  qui  d>l-rei,   bravo   Crillon;  mor- 
I  de-te  e  remorde-te.  Olha!  aqui  estou  eu  denlro,d'um 
I  aavio  veudo  duas  faces  converan  !  a  saber,  o  céo,  que. 
I  do  ponto  d'onde   o  eu  vejo,  me  parece  concavo,   e  ven- 
F  do  o  mar,  o  qual  me  parece,  que  me  parece  liorizonlal. 
Oli    bravo   Crillon,  nem  tu,  que   podes  tudo,  podeste 
jamais   dizer  que   uma  coucavidade  e   uma  horizonta- 
lidade, eram  duas  couvevidadeci;  euforca-te  !   Mas  nio 
le    enforques  ainda;   cuidavas  que  a  estupenda  brilha- 
tura    ficava    por   aqui  "í    Qual  historia  !   A   barra   vai 
adeante;  ha  melhor:  o  que  rodeia  um  nauta  é  uma  um- 
btUtt  imntensa;  tal  e  qual;  aquella  cousa  toda  represen- 
Uk  uma   botija,  uma  garrafa;   a  convexidade  inferior... 


■■^■■■.  L    JlTw     ■■■■!,     ■-■■•.^^g^^^^^^^M 


10  1$: 

é  o  mar,  que  ó  concavo  para  baixo;  a  superior  é  o  céo 
que  tem  o  bojo  pára  cima;  e  o  gargalo...  o  gargalo... 
isso  façamos  de  conta  que  1&  da  alt^ira  do  septe-estrello' 
ascende  um  tubo  muito  comprido,  que  na  ultima  do- 
bra do  infínito  vai  dar  com  a  imaginação  pomposa  do 
Senio,  servindo-lhe  de  rolha. 

— «Em  ambas  as  faces,  a  scena  é  vivaz  e  palpitante» 
Erro  em  duplicata:  admittidos  que  fossem,  no  figu- 
rado, estes  adjectivos,    nem   um  nem  outro  teria  a 
significação  que  o  impávido  escriptor  aqui  applica  ás 
taes"  convexidades  concavo-horizontaes. 

—  «  As  ondas  murmuram:  — «  Ouviu-as  murmurar. 
D'isto  agora  é  que  eu  nao  duvido.  Em  minha  igno- 
rância cuidava  eu  que  só  o  homem  era  inclinado  á 
murmuração,  mas  dou  as  mãos  à  palmatória,  e  reco- 
nheço haver  casos  em  que  as  monstruosidades  são  de 
tal  casta  que  nem  as  cousas  inanimadas  podem  ter 
mão  em  si,  que  as  não  censurem  !  Na  Epistola  aos  Pi- 
sões, diz  Horácio;  «  N'uin  consultor  da  justiça  ( consid- 
tiis  júris  ',  num  rábula  de  demandas  actor  causarum^^j 
mesmo  quando  em  facúndia  e  sciencia  (diserlf,  nec  stil) 
esteja  infinitamente  abaixo  de  um  Z.  ou  de  um  L.  abest 
Messalce..,  quantum  Ca^celUns),  tolera-se-lhe  a  medio- 
cridade ímédiocris^)  e  pode  dar-se-lhe  em  paga  o  pre- 
ço de  600$000  rs.  que  elle  exija  por  uma  insignificante 
imput^nação  tle  embargos  :Uimen  in  pretio  esl]\  mas 
mediocridade  num  auctor  I  isso  não  o  supportam  os 
homens,  nem  os  deui>es,  nem  as  coíumaa^i !» 

Consnltns  júris  et  actor 
causaram  mediocris  abest  virtate   «liserti 
.Messalcp,    nec  scit,  quantum  Ca.scellius  Aulns: 
sed  tamen  in  pretio  est:  mediocribus  esse  poeti ^ 
non  homines,  non  dí,  non  concessere   colnifuni^. 

Ora  o.^ta.s  rohinínas  eram  ms  pilares  das  loja.;  de  li- 
vreiro: e  por  tanto,  se  os  pilares  re/iníi'am,  n"ioé  iir.iiío 
que  as  ondas  murmurem.  Está  direito. 

—  u  As  nuvens  rcnnhiani  a  cada  ins. ante;  lia  nellas  * 
um  fjcsío.  •>  Minha  Nossa  Senhora  !  tjiie  ])ro])ria  acção 
(lo  cambiar  I  e-jue  será  o  gesto  chis  iinvo.s  ?  lír-sp^índe- 
me  o  (Jrillon  ([ue  de\e  ser7'".v^f)  nelf!floso\  is.-  >  entrí.j. 
sim;  bem  nebulosa  é  toda  essa  rudiíi  iiiflifjrsiafjm'  nfnlew 
-(Jue  (!omparaç<jes,  meu  ami^io,  que  imagens  '  Fa/  lem- 
])rar    tim  ti^echo  de   uma   en<>-rneadissimn   po«\sí;i.   -nie 


IX  11 

pinta  bem  a  posiç&o  em  que  se  collocaifi  esses  caça- 
dores de  efFeitos  que  levam  a  vida  a  atirar-lhes  e*  a 
falhar: 

Pois  bem  !  vou  arrojar-me  pelo  vago 
d'essas  comparações  que  a  troche-moche 
do  romantismo  o  geaio  cá  nos  trouxe 
que  p'ra  todas  as  cousas  vao  servindo; 
eá  phautasia  as  rédeas  sacudindo, 

irei,  bem  como  um  cego; 
que  us  românticas  musas  desenvoltas 
costumam  navegar  a  velas  soltas. 

«  — A  tela  oceânica  re.^ssumbva  possante  vitalidade.  » 
Esta  phrase  é  inadmissível  :  concedendo  a  paparrotice 
da  tela  oceânica^  dir-se-hia  :  u  da  tela  oceânica  ressum- 
bra vitalidade  »  Nao  é  a  tela  que  ressumbra  vitali- 
dade, porque  ressumbrar  não  é  espremer  ou  expellir  ; 
è  a  própria  vitalidade  que  da  tella  ressumbra,  còa, 
transluz,  surge,  apparere,  ou  emfim  se  deixa  ver  fora 
do  lugar  onde  estava. 

u  — Em  turno  do  viandante  no  pampa,  faz-se  o 
vácuo.  )j  Que  vácuo  é  este  ?  Non  dalur  vamum  in 
reruíu  natura.  Que  macliina  pneumática  trabalhou 
no  pamp:'  ?  Eu  quero  crer  que  vácuo  não  é  vácuo,  o 
.sim  a  idéa  sesquipcdalizada  de  solidão  ;  mas  sendo 
assim,  onde  a  antíthese  com  o  que  succede  ao  nauta  t 
O  viandante  liça  oppn?sso,  por  se  ver  a  sós  numa  grande 
|ilanicie  terrt^stre,  onde  os  olhos  podem  medir  5  ou  () 
legu«s  de  horizonte  em  torno,  e  sente-se  muito  do.sop- 
presso,  e  uiuito  accompanhado,  quando,  no  pLiino 
equoreo,  aloncviudo  olhos  por  uni  circulo  de  ccin  lé- 
guas, não  avista  um  ente  vivoí  Pois  sim. 

ti  — Alluvio  de  luz.  »  Certamente  :  preceitos  <jue 
mais  obrigam  ;  podir  quem  pode  mandar.  E  ois-aqni 
ju^tauicutí»  purque  sua  tilha está  muda. 

<t  — Para  a  fiiria  dos  ehí:!i« Mitos,  inventou  o  Creador 
;is  rijexas  «"Kbiverica--  danature/a  :  deante  da  vaga  im- 
petuosa, rollneoii  o  rooliodo  etc.  »  Pronietto  um  ov'> 
rórido  aqiKiin  desalg'araviar  esta  enibriilhada;  decidi- 
Jament»»  »*.<crev«ír  assim,  é  dar  razão  a  quenidiee  ler  a 
palavra  sido  tlada  aohonu.4n  para  (^115^  o  não  entendruu; 
ma-;  já  \[\u'  nos  aventuram  )s  nesta  iinuiensa  nocturna 
.sa\ana.  ac«vMidamos  um  pavio. 

Cjme<'tMnos,    antes   de  tudo,  rebaixando  Dens  á  eab»- 


12  IX 

goria  de  inventor !  Inventar,  é  dispor  da  facul- 
dade, eminenteoxente  humana,  que  leva  o  bichinho 
terrestre  a  achar  alguma  cousii  engenhosa,  à  força  de 
talento  e  de  imaginação  :  inTenta-se  uma  arte,  uma 
sciencia,  um  processo,  um  systema,  uma  machina,  um 
meio,  um  expediente;   inventou-sc  a  escripta,  a  im- 

rrensa,  a  música,  a  bússola,  o  barómetro,  a  pólvora 
càesta,  nao  foi  o  Senio  );  em  todas  essas,  e  quejandas 
invenções,  figura,  sempre  o  cérebro  humuio,  tomando 
por  giiia  a  natureza.  Também  o  homem  inventa  um 
poema,  um  conto,  um  Gaúcho,  uma  astúcia,  uma  fa- 
bula, uma  calúmuia ;  inventa,  quando  convém,  um 
poder  pessoal,  ou  assaltos  ao  thesouro,  denunciados 
por  novos  gansos  do  Capitólio.  Mas  de  tudo  isso,  quem 
é  ô  inventor  ?  O  homem  ou  o  diabo.  Deus  a  inventar  ! 
Invental-K)  a  Elle,  se  nfto  existisse,  sim, -deveria  o  ho- 
mem, como  de  Lucano  traduziu  Voltaire ;  mas  Deus 
inventor!  .  j., 

Ahi  restam  dous  dos  melhpres  livros-  de  Cícero, 
sobre  a  invenção,  e  nem  naquella  religião,  toda  maté- 
ria ,  se  considerou  Júpiter  inventor.  Não  queres  ver  o 
Ente  Supremo,  Conservador  de  todas  as  cousas,  Pae  da 
Natureza,  Eterno  architecto,  Soberano  Motor,  Arbitro 
Perpetuo,  o  Altissimo,  o  Sjr  dos  Seres,  o  Omnipotente, 
a  .Fonte  única  de  toda  a  intellígencia,  que  rege  com 
poder  e  sabedoria,  sem  limites  todas  as  espécies  eo 
universo,  o-  que  a  uma  só  voz  extrahia  do  chãos  mi- 
lhões de  mundos,  o  que  do  seiovdas  trevas  mandava  k 
luz  que  fosse,  e  a  luz  era....  não  vês  o  Creador  exca- 
vando  o  espirito  para  inventar  uma  pedra,  e  isto  só 
com  a  missão  de  oppõr  a  uma:  fúria  uma  rijeza?  ' 

Dissequemos  mais:  «  Os  rochedos  são  as  rijezas  ca- 
davéricas da  natureza.  »  Rochedos  serem  rijezas,  era 
uma  definição  que  ainda  estava  por  dar,  e  muito  in- 
telligente.  Mas  porque  razão  serão  rijezas  cadavéricas? 
Como  pôde .  o  rochedo  ser  cadáver?  Se  nos  reinos  ani- 
mal e  vegetal  se  nasce,  vive  e  morre,  outro  tanto  não 
succede  ao'  rochedo  :  até  à  con^ummação  dos  séculos 
(a  não  se  darem  cataclis* nos  ),  conserva r-se-ha  elle  tal 
qual  se  acha  desde  ii  creaçio  ;  a  sua  existência  é 
aquella,  aquella  a  sua  ríjeza  congénita  ;  es;>a  rijeza 
nãoé  cadavérica,  porque  o  rochedo  não  morre. 

Porque  chamará  pbis  o  auctor  aos  rochedos,  *<c  rijezas^ 
cadavéricas  da  natureza  ?  y^  Será  porque  assim  como  o 
animal  morto  enrijece,  também  o  rochedo  é  duro? 


IX  13 

Santo  Deus,  seria  a  mais  estapafúrdia  das  imagens; 
seria  uma  comparação  de  pernas  para  o  ar.  Se  o  ca- 
Savef  enrija  um  tanto,  ao  cadáver  fica  todavia  flexi'- 
biUdáde^  molleza  relativa :  o  granito  é  sempre  gra- 
nito ;  se  po^s  a  comparação  é  só  quanto  &  dureza,  seria 
talvez  tolerável  a  exaggeraçao  que  comparasse  o  ca- 
dáver ao  rochedo,  mas  é  eschola  coimbrã  egualar  o 
rochedo  ao  cadáver.  Estas  confrontações  do  máximo 
com  o  minimo,  de  César  com  Jo&o  Fernandes,  tem  o 
mesmo  mérito  que  se  algum  inspirado,  para  exaltar 
as  magnificências  da  natureza,  comparasse  o  Vesúvio 
f!om  um  fogareiro. 

— «  Passou  a  borrasca.  A  savana  permanece  como 
foi  hontem,  como  hade  ser  amanhfi,  até  o  dia  em  que  o 
verme  homem  corroer  essa  crosta  secular  do  deserto.)! 
Trocadilho,  amphigHri^  charada  ou  logogripho,  nao 
sei  bem  classificar  isto...  que  é  ode  certamente  ;  mas 
emfim  dou  de  barato,  que  inlmjo  ("quero  arvorar-me 
era  mais  esperto,  que  Deus  me  fez.  ]  Que  é  esta  crosta 
xecular  ¥  Ah,  já  sei;  nflo  éecclesiastica;  isso  sim:  outra 
accepção  nao  seria  própria,  por  que,  em  relaçí&o  àanti- 
guidade,  é  impróprio  chamar  secular  ao  que  se  nao 
conta  só  por  alguns  séculos,  ao  que  é  coevo  da  crea- 
çao.  Vemos  para  deante:  Temos  pois  o  verme  homem 
a  corroer  a  crosta  do  dese^to\  figura-se-me  que  isto, 
em  portuguez,  quer  dizer  que  um  dia  esse  deserto  hade 
ser  cultivado  ou  approveitado  pelo  homem,  que  ahi 
agricultar  ou  edificar.  Dei  com  a  adivinhação  ?  entOo 
só  me  resta  um  grande  empacho:  Se  hoje  a  savana  está 
devastada  pelo  furacão,  como  o  foi  hontem,  e  como  o 
hade  ser  amanha,  por  que  é  que  o  nao  hade  ser  mais, 
senão  aU  o  dia  em  que  o  homem  nella  arar  ou  constrair  *? 
como  é  Que  o  indómito  uracao,  em  vez  de  derrubar 
após  o  tal  dia  arvores  e  plantas, ;  nlacios  e  choupanas, 
hade  conter  os  seus  furores  ante  essas  obras  humanas  ? 
Quem  hade  nesse  dia  dizer  ao  vendaval:  Pára;  té  aqui, 
mais  nao  ?  Só  sefôr  o  Poder  Pessoal. 

— «  Ao  pôr  do  sol,  perde  o  pampa  os  toques  ardentes 
da  lujj  meridional.  »  Aqui  entrou  coUaboraçlio  do  có- 
nego Philippe  :  toques  ardentes  são  uns  que  geram  o 
mal  das  vinnas  ;  mas  emfim  ficamos  inteirados  de  que 
o  sol,  quando  se  põe,  nao  arde  tanto  como  ao  meio-dia; 
agora  o  que  importava  observar,para  gloria  deste  sécu- 
lo observador,  é  que  o  tal  phenomeno  estupendo  nao  se 
dá  senão  no  pampa. 


14  IX 

— «  Âs  grandes  sombras,  que  não  intercepl;:ni  moa- 
tes.aem  selvas...»  Quer  dizer  exactamente  o  contrario: 
ií  Ás  sombras,  que  nem  montes  nem  selvas  intercepi- 
tam  »  mas  também,  em  gira  d'esta  casta,  tanto  é  o 
sentido  de  deante  para  traz  como  de  traz  para  deante; 
tanto  vai  dar-lhe  na  cabeça,  como  na  cabeça  lhe  dar. 

— «  Ao  pôr  do  sol.. .  a  savana  figura  um  vasto  lençol 
desfraldado  por  sobre  a  terra.  »  Nunca  a  idéa  de  len- 
çol occorre  sem  acompanhamento  da  alyura  ;  pòr  isso^ 
é  bem  acceita  a  imagem,  ao  desci*everem<'Se  toalhas  de 
altar,  um  campo  coberto  de  neve,  areaes  entremeadas 
nas  verduras  etc,  mas  de  que  côr  será  este  lençol, 
composto  de  terras,  vegetaes  e  fundos-negros  9  Ah,  jâ 
sei:  assim  como  ha  mantas  de  retalhos,  será  um  lençol 
dos  sujpraditos. 

— «  ...  ressumbra  tao  funda  tristeza  que  estringe  a 
alma  »  Cà  temos  mais  ressumbramentos  a  dous  passos 
de  distancia.  E  quem  é  em  portuguez  este  senhor  es- 
tringe  ?  será  verbo  da  estranja  ?  nao  tenho  a  honra. 

— «  Uma  alma  pampa  »  Nao  parece  assim  uma  alma 
bamba  9  Não  é  onomatopaico?  Nao  gostas  doestes  subs- 
tantivos adjectivados?  Nao  achas  aqui  muita  proprie- 
dade na  applicaçao  ? 

— «  Tem  o  quer  que  seja  »  ou  tem  o  que  quer  que 
seja  ? 

— í<  Parece  que  o  vasto  e  imrnenso  orbe,  cerra-se  » 
Conviria  neste  caso  fugir  ao  emprego  de  tal  verbo  ; 
mas,  a  ter  de  empregar-se,  nao  se  deve  dizer  «  Parece 
que  cerra-se  »  e  sim  «  Parece  que  se  cerra  w  Agora  lá 
quanto  ao  immenso^  já  tardava  :  Temos — pag.  1,  a  im- 
mensidade  dos  mares — a  pag.  2,  a  immensa  plauicie  — 
a  pag.  4,  a  immeiísa  planície,  eo  immenso  orhe — a 
pag.  6,  immeiísa  coroo  a  savana —  e  tudo  por  hi  a  flux 
é  uma  immensidade  de  immensos,  que  demonstram  a 
immensa  sciencia  de  Senio  na  arte  de  escrever. 

Basta,  basta  !  Um  capitulosinho  de  120  linhas  de 
lettra  garrafal,  apontado  como  a  melhor  cousa  e  pór- 
tico da  obra,  deu  margem  para  a  tua  carta  magnifica, 
e  deixou-me  estes  sobejos,  ficando  ainda  intacta  maté- 
ria para  outras  tantas  observações. 

Tens  pois  razão  ás  carradas,  repito.  Eis-ahi  as  bul- 
ias com  que  certos  escriptores  se  collocam  a  si  mesmos 
em  nichos  no  pantheon  litterario.  Também  os  phariseos 
affectavam  ser  nimiamente  severos,  pagavam  o  di- 


IX  15 

2ÍIQ0,  e  ostentavam  observar  as  cerimonias  da  lei;  mas 
acharam  quem  lhes  desmascarasse  o  orgulho  e  a  hypo- 
crisia,  e  os  expulsasse,  Deus  sabe  como,  do  templo. 
Tomaram  elles  continuar  a  ter  força  para  condemnar 
ao  supplicio  da  cruz. 

Teo  leal  amigo    ' 

^  ClNCINNATO. 

Neoessidade  da  assooiaoao  oatlxolioa 

Proposta  db  S.  Ex.  o  Su.  Duque  de  Saldanha. 

Atravessam  as  sociedades  uma  crise  que  não  parece  passa 
geira,  e  a  arvore  da  civilisaçfio  apodrece  pela  raiz.  Os  leaes 
pensadores,  encarando  a  situação  aterradora,  estudam  q  mal 
e  o  remédio.  Muitos  dos  bem  intencionados  persuadem-se  de 
qufí  a  humanidade  precisa  novamente  retemperar-se  na  reli- 
gião, origem  de  toda  a  liberdade,  egualdflde  e  progresso,  e 
estrada  real  das  vidas  transitória  e  perenne.  O  Sr.  Duaue  de 
Saldanha,  tâo  sincero  e  illustrado  crente,  como  é,  soldado  va- 
lente, exiraio  patriota,  e  intelligencia  de  esfera  superior, 
acaba  de  consagrar  suas  vigílias  a  assumpto  de  tanto  mo- 
mento, e  de  lembrar  providencias  praticas,  que  S.  Ex.  justifica, 
D*um  importante  escripto,  que  julgamos  útil  publicar ;  e  é 
do  leor  seguinte  : 


A  ordem  permanente  de  qu«   os  povos  necessitam 

Sara  que  a  sua  felicidade  seja  constante,  deve  resultar 
o  acordo  harmónico  entre  a  auctoridade  e  a  liberdade, 
que  só  dimana  do  Catholicismo,  e  fora  do  qual  nem 
uma  nem  outra  se  accommodam  à  justiça,  à  moral, 
e  ao  verdadeiro  progresso  das  sociedades. 

A  legitima  liberdade  do  homem  tem  por  limite  o 
respeito  do  direito  alheio  ;  nao  se  funda,  por  certo, 
neste  principio  de  eterna  verdade  qualquer  providencia 
que  tenha  por  fim  o  coarctar  essa  liberdade,  isto  é,  a 
ordem  nao  deve  resultar  necessariamente  do  emprego 
iinico  da  repressão. 

O  acordo  da  liberdade  com  a  auctoridade  deve  por 
isso  nascer  principalmente  da  circumstancia,  que  a 
obediência  resulte  da  convicção  de  que  o  superior  só 
deseja  o  bem  do  inferior ;  da  circumstancia  de  que 
este  se  reconheça  como  tal ;  e  da  convicção  de  que  o 
áuperior  está  prompto  a  tudo  sacrificar,  até  a  própria 
viaa,  onde  tanto  se  exija,  para  assegurar  ao  inferior 
o  gozo  de  seu  direito  e  a  sua  felicidade. 

Em  um  estado  tao  elevado,  a  persuasão  e  o  senti- 
mento do  respeito  que  o  superior  inspira  a  todos  os 
espíritos  de  bastante  elevação  para  receberem  a  in- 


16  IX 

flileocia  de  uma  natareza  eminente,  serSlo  os  mais  po- 
derosos sustentáculos  da  auctoridade. 

O  superior  será,  como  Nosso  Senhor  Jesus  Christo, 
o  servo  dos  servos,  pois  que  a  sua  única  preoccupação 
ser&  a  felicidade  de  seus  subordinados. 

Tal  caridade,  tal  abnegação,  só  pôde  nascer  nos  co- 
rações, que  tenham  por  exemplo  o  amor  e  o  respeito 
que  o  Mestre  tinha  à  liberdade  dos  homens. 

E'  comtudo  evidente  que  uma  jerarchia  inferior, 
como  é  um  poder  politico,  nao  poderá  fazer  abstracção 
absoluta  da  força  coerciva,  mas  só  a  empregará  quando 
veja  que  o  homem  se  perde  no  caminho  que  segue, 
e  obrará  então  como  a  mãe  carinhosa  que  retira  o 
filhinho  da  borda  do  precipicio  em  que  ia  despenhar-se. 

A  necessidade  do  emprego  da  torça  coerciva  será 
tanto  meuQs  frequente  quanto  a  jerarchia  £5t  de  ordem 
mais  elevada.  Esta  jerarchia  será  tanto  mais  elevada 
quanto  mais  o  Catnolicismo  dominar  no  coraçfto  do 
homem. 

Nenhuma  forma  de  governo  á  incompatível  com  o 
Catholicismo.  A  republica  christa  é  bem  preferível  á 
monarchia  atheista. 

O  governo  representativo,  no  seu  sentido  genuíno, 
assegura  a  todas  as  classes  igual  justiça ;  o  liberalismo, 
C/Omo  hoje  o  preconizam  e  como  a  experiência  tem 
mostrado,  é  a  mais  completa  perversão  de  uma  ver- 
dadeira e  nobre  theoria. 

O  liberalismo,  como  hoje  o  pi-oclamamjtraz  com- 
sigo  o  gérmen  da  sua  dissolução,  e,  se  chegasse  a  do- 
minar, nao  poderia  resistir,  nuo  poderia  sobreviver 
aos  conflictos  sociaes  e  políticos  que  continuamente 
suscita. 

No  liberalismo  a  base  fundamental,  a  única  medida 
por  que  se  afere  o  direito,  é  a  vontade  das  maiorias 
numéricas,  substituindo  em  politica,  como  o  raciona- 
lismo em  religião,  o  querer  do  homem  ao  querer  de 
Deus. 

O  desenvolvimento  deste  principio,  a  sua  conclusão 
lógica,  é  a  guerra  das  classes,  que  uma  tal  theoria 
infallivelmente  traz  comsigo,  guerra  que  afinal  neces- 
sariamente faria  succurabir  o  liberalismo,  para  dar 
logar  ao  coinmunismo,  que  é  o  seu  successor  natural. 

(Continua') 


Typ.  e  Lith.— Imparcial—  Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  A. 


QUESTÕES  DO  DIA 

]sr.  IO 

RIO  DE  JANEIRO  30  DE  SEPTEMBRO  DE  18TÍ1. 


Vende-se  cm  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Lacmmert.—  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto. — Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119—  Largo  do 
Paço  n.  12  C. —  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79. —  Preço  200  reis. 


Al>olieSo  cia  eâer^a vidão . 

Raiou  finalmente  o  dia  grande  da  emancipação  da 
raça  humana.  Nos  fastos  do  Brazil  inscreve-se,  com 
lettras  de  ouro,  a  data  memoranda —  28  de  Septembro^ 
— em  que  a  lei  coroou  as  mais  santas  aspirações  da 
humanidade.  Desde  este  dia,  ninguém  mais  no  mundo 
nasce  escravo  :  a  liberdade  é  desde  hoje  apanágio  uni- 
versal ;  direito,  tao  incontestado  como  já  era  incontes- 
tável, de  todo  o  género  humano.  E'  esta  a  aurora  da 
verdadeira  independência,  autonomia,  dignidade  da 
creatura  racional,  fadada  a  altos  destinos. 

Ainda  ahi  fica  uma  turha  de  míseros  innocentes,  para 
quem  nao  pôde  soar  o  doce  nome.  Ciirve-se  o  senti- 
mento ante  a  razão  politica  ;  ceda  o  coração  á  intelli- 
geacia  >  respeitem-se  as  raias  do  possível  ;  Hercules 
gravara  nas  suas  columnas  :  AU'  aqui !  mais  não  !  Che- 
gámos até  essas  columnas.  Se  as  nltrapassassemos,  no 
reverso  da  columna  de  Calpe,  leríamos  desorganização  ; 
da  de  Abyla,  anarchia.  Não  se  pôde,  não  se  deve  na- 
vcg'ar  para  mais  longe. 

Asrora,  mui  outros  são  os  deveres,  mui  outros  os  in- 
teresses  dos  cidadãos.  Se  até  hontem,  em  quanto  se 
tratava  de  direito  constituendo,  eram  naturalmente 
explicáveis  as  dissidências  até  apaixonadas,  os  esforços 
até  irregulares,  de  ora  avante,  constituído  como  se 
acha  o  direito  novo,  ninguém  terá  interesse  em  contra- 
riar, na  prática,  a  mais  suave  realísação  do  grande 
pensamento.  Agora,  a  todos  e  cada  um  de  nós,  com- 
pete a  sua  missão. 

Para  o  Governo,  abre-se  estádio  novo.  Concluiu  glo- 
riosamente a  mais  brilhante  campanha  ;  mas  se  Alcides 
esmagava  serpentes  no  berço,  tinha  na  sua  virilidade 


de  emprehender  trabalhos  de  maior  magaitude  ;  ^o 
esseâ  os  que  de  ora  avante  o  devem  desvelar  ;  só  o  en- 
numeral-os,  assoberbaria  o  pensamento. 

O  Poder  Legislativo  tem  ae  presidir,  com  disposições 
adequadas,à  transformação  social  porque  vamos  passar; 
tem  de  providenciar  harmonicamente  sobre  muitos 
pontos,  da  sua  alçada,  que  prendem  com  o  futuro  re- 
moto e  próximo. 

Os  senhores  de  escravos,  conhecedores  dos  direitos 
que  a  lei  lhes  consagra,  serSo  os  mais  prestimosos  e 
desvelados  auxiliares  delia;  como  utilíssimos  membros 
da  communidade,  esforçar-se-hso  por  facilitar  a  so- 
lução do  problema;  como  caridosos  e  christãos,  concor- 
darão em  ver  nos  seus  operários  entes  dotados  de  alma, 
e  dignos  da  sua  misericórdia;  como  illustrados  mante- 
nedores de  seus  próprios  interesses,  tratarão  com  ca- 
rinho, alimentarão,  vestirão  bem  os  infelizes  que  sorte 
adversa  ainda  conserva  era  captiveiro,  e  darão  a  possi- 
vel  ventura  a  esses  instrumentos  da  sua  prosperidade ; 
como  previdentes,  applicar-se-hão  a  melhorar  o  systema 
do  trabalho,  a  approveitar  mais  as  forças,  e  a  dispor 
as  cousas  para  os  milagres  originados  do  regimen  da 
liberdade. 

Finalmente  os  políticos  não  se  dividirão  mais  entre 
vencedores  e  vencidos,  como  no  senado  e  na  imprensa 
se  confundiram  patrioticamente  os  votos  de  conserva- 
dores e  liberaes.  Por  maior  que  a  divergência  fosse,  es- 
peremos que,  resolvida  por  lei  esta  base  social,  só  de 
ora  avante  surja  entre  as  illustraçOes  do  paiz  emula- 
ção, mas  no  sentido  de  depor  no  altar  da  pátria  res- 
sentimentos sem  alcance,  e  de  enfeixar  idéas  e  esforços 
para  que  a  gradual  emancipação  se  vá  effectuando  pa- 
cificamente, e  com  o  máximo  respeito  a  todos  os  inte- 
resses que  na  questãe  se  achão  envolvidos.  Oxal& ! 

O  diade  28  Septerabro  deverá  ser  considerado  como 
o  primeiro  dia  de  gala  d'este  Império. 

iVeoessidade  da  assoolaoSo  oatliolioa 

Proposta  de  S.  Ex.  o  Sr.  Duque  de  Saldanha. 

(Conclusão,) 

Sendo  a  vontade  das  maiorias  o  unico  fundamento  de 
todos  os  direitos,  estabelecendo  o  liberalismo  que  não 
ha  direito  absoluto  ou  verdade  no  mundo  que  não 
esteja  subordinada  á  voz  do  maior  numero,  segue-se 


que  a  única  reg^a  a  que  o  homem  deve  obedecer  é  á 
tal  voz  do  maior  numero. 

E  esta  vontade  suprema  pôde  nao  se  contentar  com 
atacar  as  monarchias,  abolir  a  religião  ;  mas ,  des- 
truindo a  suprema  única  sancçao  sobre  que  até  agora 
se  fundava  a  ordem  social,  pôde  ir  avante,  e  declarar 
que  a  propriedade  é  roubo,  a  fé  superstição,  a  virtude 
utopia  e  crime.  E  quem  lhe  resistirá  ?  Neste  império 
absoluto  e  despótico,  nesta  lei  suprema  e  única  do  libe- 
ralismo, o  que  é  que  o  homem  poderá  considerar  como 
seguro,  de  tudo  quanto  possue  ?  Em  face  do  movimento 
geral  que  chegaria,  logo  que  o  liberalismo  conseguisse 
infiltrar  nas  massas  populares  (para  o  que  emprega 
todos  os  meios)  o  atheismo  e  a  desconsideração  para 
com  tudo  que  é  auctoridade,  os  corypheos  de  tSo  atroz 
desmoralisação  seriam,  elles  mesmos,  victimas,  e  rece- 
beriam dos  seus  adeptos  a  recompensa  da  sua  obra  in- 
fernal. 

Porém,  não  obstantes  os  esforços  empregados,  e  ap- 
parentes  triumphos  obtidos,  o  liberalismo,  cujo  natural 
herdeiro  é,  como  dissemos,  o  communismo,  está  muito 
longe  de  occupar  no  mundo  o  lugar  que  suppOe  ter  con- 
seguido no  espirito  e  no  coração  dos  povos  christãos  da 
Europa. 

A  christandade,  a  igreja  catholica,  conta  entre  os 
seus  lieis  muitos  e  n^uitos  nobres  intellectos,  a  mais 
elevada  litteratura,  e  vastas  mós  de  christãos  que,  no 
dia  da  provação,  estarão  promptos  para  defender  quanto 
ha  sagrado  no  mundo. 

Os  inimigos  de  Deus,  da  religião  revelada,  e  de  todas 
as  religiões,  portanto  da  sociedade,  para  conseguirem 
seus  fins  diabólicos,  têm  buscado  a  força  nas  sociedades 
Becretas.  Porque  motivo  não  buscaremos  nós,  os  catho- 
licos,  em  associações  publicas  e  n'iima  união  catholica, 
a  força  para  frustrar  aquellas  cavililaçOes  infernaes? 

Auctoridade  e  liberdadey  são  principies  sobre  que  se 
firma  a  ordem  moral  do  mundo.  E'  necessário  não  sa- 
crificar uma  á  outra. 

Foi  pela  sua  corajosa  firmeza,  abnegação,  e  indepen- 
dência ante  o  poder  absoluto  dos  tyrannos,  que  o  cnris- 
tianismo  reivindicou  a  liberdade  de  consciência,  e  sobre 
ella  fundou  seu  dominio,  estabelecendo  essa  harmonia 
divina,  que  faz  da  obediência  condição  da  liberdade,  e 
da  justiça  lei  superior  a  toda  a  auctoridade. 

No  mundo  romano  então  ninguém  fazia  resistência ; 


4  X 

abandonada  toda  a  ídéa  de  liberdade,  só  havia  a  mais 
abjecta  submissão  a  todas  as  oppressOes.  Foram  os 
christaos  que  levantaram,  cora  o  da  verdade,  o  estan- 
darte do  direito,  e  portanto  a  resistência  legitima,  mas 
passiva,  na  abnegação  e  na  caridade,  a  quanto  podesse 
ferir  ou  offender  aquelles  principios. 

Duas  expressões  ou  máximas  levaram  a  revolução 
franceza  em  voltado  mundo  :  «Os  direitos  do  homem,  » 
e  as  palavras  «  liberdade,  igualdade  e  fraternidade.  » 
Delias  sahiram  bens  e  males,  progressos  e  ruinas  dos 
nossos  tempos  e  de  um  futuro  desconhecido. 

Tudo  quanto  ha  bom  e  verdadeiro  ne.^tas  máximas 
é  christao  e  foi  proclamado  pelo  christianismo,  que 
repelle  e  condemna  tudo  quanto  nellas  ha  funesto  e 
falso.  E  nao  só  nesta  assustadora  e  terrível  confusão  o 
christianismo  proclama  o  bem  e  condemna  o  mal  em 
principio,  mas  só  elle  na  realidade  tem  a  auctoridade  e 
a  força  moral  necessárias  para  domar  e  submetter  o  mal, 
sem  que  o  bem  desappareça  na  lucta;  e  isto  sopeia  razão 
de  que  a  verdade  e  o  direito  nao  perecem;  e  o  chris- 
tianismo é  o  triumpho  glorioso  destes  dous  principios, 
eternos  porque  vem  de  IJeu.s,  e  sobre  os  quaes  se  funda 
a  justiça  e  o  amor,  svmbolisados  na  auctoridade  e  na 
lei. 

Com  muita  razão  nos  ufanamos  hoje  de  termos  che- 
gado a  considerar  o  homem,  o  individuo,  a  sua  exis- 
tência, a  sua  liberdade  pessoal,  os  direitos,  como  o  fim 
essencial  do  estado  social.  Sahimos  do  profundo  sulco 
da  aníÁgnidade  pagã,  que  subordinava  e  sacrificava  o 
individuo  ao  estado,  e  abaixava  e  annullaim  dianU  de 
nma  classe  milhares  de  creaturas  humanas,  Desapparece- 
ram  as  raças  ;  o  mundo  não  se  compõe  de  romanos  e 
de  bárbaros,  de  homens  livres  e  de  escravos. 

Foi  o  christianismo  não  só  o  primeiro  que  proclamou 
esse  principio,  masquepoz  em  pratica  essa  verdade  su- 
perior. O  direito  do  homem,  o  valor  da  alma  humana 
independentemente  de  toda  a  situação  exterior  ,é  o  ponto 
de  partid^a,  a  idéa  fundamental,  o  preceito  dominante 
da  religião  christa.  Foi,  sem  a  menor  duvida,  na  socie- 
dade religiosa,  na  igreja  christa  nascente,  que  este 
principio  foi  desde  logo  e  pela  primeira  vez  proclamado 
e  posto  em  pratica,  epor  ella  posteriormente  seguido 
com  o  escrúpulo  e  exactidão  que  só  pertence  a  quem 
leva  por  guia  a  inspiração  divina. 

As  relações  do  homem  para  com  Deus  e  para  com  os 


X  5 

outros  homens  sao,  pelo  cbristianismo,  o  primeiro  e  o 
mais  importante  negocio  da  vida  humana.  E'  perante 
Deus  que  os  christãos  reconhecem,  e  unicamente  existe, 
igual  a  importância  das  almas  ;  são  os  christãos  que 
eutre  si  se  dão  o  nome  de  irmãos  ;  e  d'esta  fraternidade 
dimana  a  caridade,  que  é  a  sua  principal  força  social. 
A  idéa  christa,  tão  poderosa  como  fecunda,  mantem-se, 
espalha-se  atravez  dos  séculos  e  dos  espaços,  não  obs- 
tantes todos  os  obstáculos. 

Jesus  Christo,  Deus  e  homem,  rehahilitou  o  homem 
diante  de  Deus,  e  o  homem  nunca  mais  se  deixou  humi- 
lhar e  abater  diante  da  tyrannia  humanai.  Em  presença 
das  ^desigualdades  terrestres  mais  poderosas,  o  nome 
de  irmão  nunca  deixou  de  ouvir-se  nas  sociedades 
rhristãs.  E  hoje  mesmo,  depois  de  todos  os  progressos 
da  pretendida  igualdade  na  sociedade  civil,  é  ainda 
unicamente  na  sociedade  religiosa,  nas  igrejas  christãs, 
que  os  homens  ouvem  chamar-se,  tratur-se  e  em  tudo 
oonsiderar-se,  irmãos. 

A  paixão  dos  nossos  dias  é  o  desejo  de  liberdade  e 
igualdade,  n'uns  inlelligente  e  honesta.  n'outros  des- 
regrada e  cega.  Esta  paixão  algumas  \eze6  desenvolve 
a  sua  força  por  meio  de  revoluções,  outras  vezes  des- 
vanece-se,  e  murcha  nas  reacções  óiovidas  pelos  exces- 
sos que  Hs  revoluções  trazem  comsigo. 

A  liberdade  do  homem  e  a  sua  responsabilidade  mo- 
ral é  o  que  dá  ao  ser  humano,  a  todo  o  ser  humano,  o 
.seu  valor;  é  porque  o  homem  conhece  e  accredita  essen- 
cialmente na  distincção  do  bem  e  do  mal,  e  na  obriga- 
ção que  esse  conhecimento  lhe  impõe  de  os  seguir  ou 
rejeitar  ;  é  pelo  uso  que  faz  dessa  liberdade,  e  porque 
tal  é  a  natureza  do  homem,  qu3r  elL^  a  reconheça  ou 
uão,  que  o  Evang'elho  o  colloca  tão  elevado,  e  lhe  an- 
nunciatão  sublimes  destinos.  Os  philosophos  teem  feito 
grandes  esforços  para  resolver  o  problema  da  liberdade 
humana,  em  vista  da  prestúencia  divina  :o  Evangelho 
reconhece  e  proclama  a  liberdade  humana,  sem  lhe 
importar  com  o  problema  da  philosophia  ;  é  sobre  o 
facto  que  o  homem  é  um  ser  livre  e  responsável  que  se 
lirma  a  religião  de  Jesus  Christo.  Convém  comtudo  não 
confundir  esta  liberdade  intima  da  vontade,  regulada 
|*elas  leis  da  consciência  e  da  fé  .  com  a  liberdade 
externa  de  nossos  actos  ,  restricta  pelas  leis  civis, 
e  sociaes ;  embora  ambas  constituam  o  priucipio  ge- 
nérico da  liberdade  christã,  aquella  respeita  ao  livre 


6  X 

arbítrio  do  homem  perante  Deus,  esta  aos  direitos  de 
sua  acção  entre  os  mais  homens. 

Em  todo  o  caso,  a  liberdade  é  o  ponto  de  partida  de 
tudo  o  que  o  christianismo  diz  e  ordena  á  humanidade. 

£'  pois  o  christianismo  essencialmente  liberal,  em 
proveito  e  utilidade  de  todos  os  homens,  e,  pela  sua 
noçEo  primeira  e  fundamental  da  natureza  humana,  dà 
á  liberdade  a  base  mais  solida,  e  o  mais  amplo  direito 
que  a  perfeição  do  pensamento  humano  pôde  conceber. 
Tudo  quanto  os  mais  atrevidos  publicistas  teem  escripto 
está  muito  longe  de  elevar  a  dignidade  nativa  e  uni- 
versal do  homem  á  altura  que  lhe  marca  o  Evan- 
gelho. 

O  christianismo,  fundando  a  liberdade  christà,  deu- 
lhe  ao  mesmo  tempo  a  sancção  prática  que  lhe  era 
necessária,  estabelecendo  o  jus  de  resistir  com  a 
verdade,  com  o  direito,  e  pela  obediência  que  lhes  é 
devida,  á  oppressao  e  á  tyrannia  do  erro.  «  Julgae  vós 
«mesmos,  seé  justo  diante  de  Deus  obedecer-vos  pri- 
«  meiro  que  a  D  ?us  (1),  »  resvponderam  S.  Pedro  e 
S.  João  aos  sacrificadores  e  chefes  da  synagoga,  quan- 
do estes  lhes  prohibiram  de  ensinar  em  nome  de  Jesus. 
E  ás  instancias  dos  mesmos,  S.  Pedro  responde  (2)  : 
«  Primeiro  está  obedecer  a  Deus  que  aos  homens.» 

Mas,  ao  mesmo  tempo  que  o  christianismo  afirma  e 
proclama  a  liberdade,  proclama  e  affirma  igualmente 
a  auctoridade  e  os  seus  direitos.  «  Dae  a  César  o  que  é 
«  de  César,  dae  a  Deus  o  que  é  de  Deus,  »  respondeu 
Jesus  Christo  aos  Phariseos,  que  lhe  perguntaram  se 
era  ou  nao  permittido  pagar  os  tributos  a  César.  S.  Pau- 
lo recoramenda  (3)  a  Tito  que  ensine  os  Cretenses  a  se- 
rem submissos  aos  principes  e  ás  auctoridades,  e  a  obe- 
decer á  sua  voz.  O  respeito  á  auctoridade  constituída, 
seja  em  quem  fôr,  pagdo  ou  herético,  é  preceito  da  li- 
berdade christa  (4),  que  em  tudo  só  vê  a  vontade  e  lei 
de  Deus,  seu  único  limite. 

Duas  são  as  causas  das  desgraças  dos  tempos  em 
que  vivemos,  causas  que  deploram  todos  os  homens 
de  espirito  elevado,  todos  aquelles  que  sinceramente 
desejam  o  bem  da  humanidade,  catholicos   como  pro- 

!l)  Actos  dos  Apóstolos,  cap.  iv.  e  v. 
2)  Actos  dos  Apóstolos,  cap.  vn. 
3)  S.  Paulo  a  Tito,  cap    lu. 
(4)  Ibid.  ;  a  Tim  :  cap.  vi,  etc;  S.  Jeron.   Comment. 


testantes ,  conservadores  como  progressistas.  Estas 
causas  sao,  a  preponderância  dos  interesses  materiaes, 
a  sede  dos  gosos  physicos  e  vulgares,  e  os  hábitos  do 
egoísmo  eda  molleza,  que  dVhi  resultam.  Mas,  infeliz^ 
mente,  mesmo  entre  os  homens  esclarecidos  e  bons  que 
conhecem,  e  que  sinceramente  se  affligem  pelo  mào 
estado  das  nossas  sociedades,  ha  grande  numero  que 
nao  avalia  toda  a  grandeza  do  mal,  nem  o  tremendo  e 
horrível  resultado,  que  infallivelmente  virá,  se  não  se 
remediarem  as  causas  que  hoje  tao  eficazmente  corroem 
as  ditas  nossas  sociedades. 

O  individuo,o  povo,  que  quer  ser  livre,  que  quer  que 
a  liberdade  de  que  gosa  seja  também  herança  de  seus 
filhos  e  netos,  necessita,  é-lhe  absolutamente  preciso, 
que  nao  esteja,  com  exclusão  de  tudo  mais,preoccupado 
s6  do  seu  bem-estar  material  e  da  satisfaccão  dos  seus 
desejos  pessoaes.  E  contra  o  egoismo  e  contra  o  epi- 
curismo que  deve  estar  prevenido.  O  epicurista  gros- 
seiro ou  delicado  dificilmente  se  resigna  a  empregar 
esforços,  a  fazer  sacrifícios,  e  facilmente  se  contenta, 
com  tanto  que  nossa  ter  a  certeza  de  satisfazer  prazeres 
a  seu  sabor.  O  mesmo  egoismo  prudente  e  pouco  exi- 
gente é  paixão  fria  e  estéril,  que  só  domina  enervando 
6  rebaixando  a  natureza  humana.  A  verdadeira  li- 
berdade, a  sua  duraçao,exige  costumes  mais  vigorosos, 
aspirações  mais  elevadas,  resistências  mais  fortes,  es- 
tado de  alma,  no  qual  a  symparhia  moral  e  o  des- 
interesse occupem  grande  logar. 

Eis-aqui  o  que  o  christianismo,  e  só  o  cliristianismo 
pôde  dar  ã  moderna  sociedade,  e  que  tanta  falta  lhe 
faz.  Ensina  aos  grandes  e  pequenos,  aos  ricos  e  pobres, 
a  nao  fazer  con-^^istir  toda  a  sua  vida  nas  satisfacções 
materiaes ;  chama  o  homem  a  regiOe.s  mais  elevadas, 
e,  ao  mesmo  tempo  que  lhe  inspira  ambições  mais  puras, 
faz  raiar,para  elle  mesmo  e  pelo  caminho  da  felicidade, 
as  mais  bellas  esperanças.  Poderoso  ou  humilde  , 
ostentoso  ou  modesto,  o  christao  nao  faz  consistir  na  va 
panacéa  da  politica  a  sua  preoccupaçao  exclusiva,  o  seu 
único  movei :  tanto  pelo  que  lhe  diz  respeito,  como 
para  com  os  skus  similhantes  ,  tem  outro  fim  que 
attingir,  outras  leis  para  cumprir,  outros  sentimentos 
para  manifestar  e  satisfazer ;  nao  pôde  ser,  nem  egoista, 
nem  epicurista. 

Tal  é  a  primnra  e  a  maior  utilidade  que  as 
jsociedades  hoje  aspirantes  á  liberdade  podem  receber 


8  X 

(lo  christianismo,  do  qual  as  tem  progressivameate 
afastado  a  cegueira  das  ambições  ,  e  os  erros  da 
ignorância.  A  seguoda  nao  é  menos  importante.  A 
liberdade  traz  sempre  comsigo  boa  porção  de  licença. 

É  sonho  julgar  que  podemos  gosar  dos  benefícios 
de  uma ,  sem  correr  o  risco  dos  inconvenientes  da 
outra.  E  também  sonho  pensar  que  com  leis  pe- 
naes ,  com  tribunaes  e  agentes  de  policia ,  se  pôde 
efficaz  e  convenientemente  reprimir  a  licença.  A  re- 
pressão legal  e  material  é  necessária,  mas  é  insuf- 
ticiente;  n'esta  lucta  necessita-se  de  alguma  cousa  mais 
que  processos  e  castigos.  Contra  a  licença,  que  a  li- 
berdade infallivelmente  traz  comsigo,  é  indispensável 
a  prevenção  moral  e  espontaDea,  a  influencia  do  bom 
estado  dos  espirites  e  dos  costumes. 

Duas  cousas  estão  hoje  fora  de  toda  a  dúvida  : 

!■.  Em  paiz  livre,  não  é  possivel  reprimir  completa- 
mente a  licença,  como  no  governo  absoluto  e  despótico 
se  não  podem  prevenir  demasias  e  funestes  abusos  do 
poder. 

2*.  Só  as  forças  moraes  e  preventivas  da  sociedade 
podem  pôr  os  governos  e  os  povos  em  estado  de  sup- 
portar  a  parte  da  licença  que  nao  é  possivel  supprimir, 

O  christianismo  importa  a  mais  efficaz,  a  mais  po- 
pulnre  amais  provada  d'essas  forcas,  que  elle  exerce 
como  principio  e  como  meio.  Como  principio  mamem 
á  auctoridade  o  seu  direito  e  a  sua  dignidade  sem  a  hu- 
milhar diante  da  liberdade  que  lhe  põe  por  limite,  da 
qual  elle  também  reconhece  e  reclama  o  direito,  re.s- 
tricto  á  obediência  e  á  caridade.  Como  meio,  o  chris- 
tianismo inspira  aos  homens  um  sentimento  indispen- 
sável á  auctoridade,  o  respeito.  A  falta  de  respeito  é  o 
maior  perigo  que  ameaça  a  auctoridade,  que  soffre 
muito  mais  do  vilipendio  que  da  aggressao.  Atacar  e 
aviltar  systematicamente  a  auctoridade,  insulial-a  sem 
cessar,  é  o  que  têem  sempre  em  vista  os  seus  ardentes 
inimigos,  que  a  isso  dao  falsamente  o  nome  de  liber- 
dade, consistente  só  em  guerra  infatigável  à  moral  e  á  te 
christã,  e  por  isso  aos  principios  e  ás  instituições  ca- 
tholicas,  que  sâo  guarda  e  deposito  sagrado  dos  the- 
souros  do  christianismo. 

Nao  se  pôde  negar  que  nas  sociedades  christas 
também  ha  licenciosos,  insolentes,  turbulentos,  como 
nas  outras ;  mas  as  leis,  as  crenças  e  costumes  chris- 
tnos  suscitam  e  mantém  nas  turbas  populares,    como 


X  9 

nas  regiões  elevadas  ,  o  dominio  da  consciência  for- 
mada no  temor  de  Deus,  no  amor  do  próximo,  e  no 
conhecimento  da  verdade;  o  que  torna  lespeitosos 
amigos  da  ordem  legal  e  moral,  homens  a  quem  o 
insulto  e  a  licença  aborrece  tanto  quanto  os  assusta, 
e  que,  usando  da  liberdade  que  também  lhes  pertence, 
recorrem  às  máximas  e  ás  armas  que  a  mesma  liber- 
dade lhes  fornece  para  combater  abusos  que  a  viciam 
e  destroem. 

Dá-nus  a  historia  a  este  respeito  os  mais  conclu- 
dentes exemplos.  Os  povos  christaos  sao  os  únicos 
que  a  licença  nao  tem  definitivamente  levado  áanar- 
chia  ou  ao  despotismo;  únicos  que  por  muitas  vezes 
e  por  salutares  reacções  têem  atravessado  taes  peri- 
gos, sem  succumbir  moral  ou  politicamente  aos  exces- 
sos do  poder  e  aos  excessos  da  liberdade.  Afastando-se 
do  christianismo,  as  sociedades  cedem  ao  principio  de 
morte  que  se  manifestou  em  quantas  se  formaram  fora 
da  luz  da  verdade  e  da  fé.  Nem  os  estados  do  antigo 
paganismo,  nem  os  do  oriente  boudhista  ou  musulmano 
poderam  resistir  àquelles  excessos.  Tiveram  dias  de 
vida  e  de  gloria  ;  mas  quando  a  peste  da  liberdade  ou 
datyrannia  os  atacou,  succumbiram  para  nunca  mais 
.<e  levantarem.  Gloria  e  honra  á  religião  christa,  que 
em  si  tem  (^ò  meios  de  curar  as  sociedades  das  suas  mo- 
léstias como  aos  individues  de  seus  desvios,  e  que  nas 
suas  crenças  e  sentimentos  tem  já  mais  de  uma  vez  for- 
necido, aos  amigos  da  ordem,  e  aos  amigos  da  verda- 
deira liberdade,  asylo  nos  seus  revezes,  abrigo  contra 
perseguições,  e  meios  e  forças  de  readquirir  para  a 
felicidade  dos  povos  o  perdido  pelas  invasões  barbaras 
do  erro,  e  da  revolução. 

A  exposição  que  precede  apresenta  as  considerações 
j>elas  quaes  o  abaixo  assignado  (  que  por  misericórdia 
fie  Deus  teve  a  ventura  de  nascer  no  seio  do  catholi- 
rismo,  entre  um  povo  catholico,  e  que  está  prompto  a 
derramar  o  seu  sangue  na  sustentação  de  todns  as 
verdades  da  sua  religião,  que  prompto  está  também 
u  expor  a  vida,  quando  seja  necessário,  para  que  os 
.seus  concidadãos  conservem  as  liberdades  de  que  go- 
.sani;  deseja  ver  estabelecida  uma  associação  catholica, 
que,  fortalecendo  a  união  nacional  nas  crenças  e  na  fé, 
e  dando  impulso  à  verdadeira  prosperidade  da  pátria, 
tenha  por  objecto  os  meios  de  tanto  conseguir,  como  são 
H  gloria  de  Deus   e  a  prosperidade  da  igreja,  e  o  tra_ 


10  X 

balhar  para  que  haja  uma  verdadeira  representação 
nacional. 


Londres,  IS^l. 


^aaue  ae   <S/a^anÁa. 


Cincinnato  a  Sempronio 

OI>x*as  d.e  Senlo—O  Oaikolio 

(Cartas  a  um  amigo). 

V. 

Meu  amigo. 

No  que  fica  apontado  até  aqui  ha  suficiente  material 
para  se  basear  um  juizo  ácêrca  do  Gaúcho.  Permit- 
te-me,  porém,  nao  concluir  sem  te  chamar  a  attençao 
para  uns  padacitos  nao  menos  preciosos,  cuja  aprecia- 
ção mais  detida  deixo  inteiramente  á  conta  do  bom 
senso,  que  te  adorna. 

Em  seu  capitulo  intitulado  O  Páreo,  diz  o  Gaúcho. 

a  Para  ter  geito  de  mondar,  afírouxou  o  paraguavo  o  laço,  que 
prendia  os  quartos  do  animal  fa  morena)  ao  tronco*;  e  ajustando 
as  rédeas,  pôz  o  pé  na  soleira  do  estribo. 

a  Im mediatamente  aos  olhos  dos  campeiros  attónitos  passou 
uma  cousa  subitânea,  confusa,  estrepitosa;  uma  espiecie  de 
turbilhão,  para  o  qual  só  ha  um  termo  próprio;  foi  uma 
erupç&o.  » 

t  adeante : 

a  Retrahiu-se  o  flanco  sobre  os  quadris  agachados,  emquanto 
a  tábua  do  pescoço  arqueou,  dobrando  a  cabeça  ao  peito  entu- 
mecido. De  súbito,  esse  corpo  que  se  fizera  bomba,  estourou.  » 

De  que  espécie  seria  essa  erupção  estrepitosa  que  mais 
abaixo  estourou  ?  Aqui  ha  malicia. 

No  capitulo  seguinte : 

a  Suspensa  na  ponta  dos  rijos  cascos,  longos  e  delgados^  de 
cabeça  leDantaday  cruznndo  a  ponta  das  orelnas  finas  e  canuta- 
daSf  com  o  pello  erriçado  {adoSj  ada,  adoi^  ado  I )  e  a  cauda 
opulenta  a  espasmar-se  pelos  rins,  parecia,  etc.  » 

Os  cavallos  no  Gaúcho  tém  um  sing^ular  caracteris- 
tico:    arripiam-se   como  fazem  os  gatos  e    os  cae.<. 


11 

Nunca  oavi  dizer,  meu  amig^o,  que  cavallo  erriçasse  o 
òêllo  ao  sentir  uma  commoção,  por  mais  intensa  que 
fosse,  em  condição  nenhuma. 

Mas  com  que  se  parecia  a  égua  assim  enriçada  ? 

Ao  leres  esse  pomposo  lanço,  calculado  para  dar  idéa 
do  estado  de  excitação  da  égua,  e  quando  o  auctor, 
próximo  de  terminar,  diz  que  o  animal  pareda..,,  nao 
âuppozeste,  meu  amigo,  que  a  morena  ia  ser  comparada 
com  um  animal  legendário,  de  grandiosos  Ímpetos, 
animal  imponente  pela  força,  pela  fereza,  pelo  animo 
descommunal?  Illusao,  que  rápido  se  desvanece!  A 
morena  parecia, , .  o  animal  prestes  a  desferir  a  corrida 
veloz.  Um  animal  era  morena^  e  estava  prestes  a  galo- 
par. Para  que  preveniu  Senio  o  espirito  do  leitor,  fa- 
zendo*o  depois  cahir  das  nuvens  ? 

No  capitulo  subsequente : 

a  Havia  entre  o  Gaúcho  e  os  cavallos  verdadeiras  relações 
sociaes.  Alguns  faziam  parte  de  sua  familin;  outros  eram  seus 
amigos;  aos  mais  tratava-os  como  camaradas  c  simples  conhe- 
cidos. » 

Canho  tinha  dedo  para  as  hierarchias. 

«  Com  os  irmãos  e  amigos  vivia  em  perfeita  intimidade;  con- 
sentia que  lhe  roçassem  a  cabeça  pelu  hombru,  ou  lambessem- 
Ihe  a  face.  » 

Jà  ouvistes  dizer  algures  que  algum  cavallo  lambesse 
a  face  a  alguém,  assim  a  modo  da  vacca  que  lambe  o 

filho? 

«  Muitas  vezes  comiam  em  sua  mão;  andavam  constante- 
mente soltos;  não  havia  cabresto,  nem  suga  para  elles;  eram 
corseis  livres,  » 

Grande  novidade.  Um  cavallo  comer  n  i  mfio!  Quanto 
a  andarem  constantemente  soltos,  não  andam  elles  de 
outro  modo  na  campanha,  a  não  ser  algum  parelheíro  de 

«grande  estimação. 

a  Aos  camaradas  n&o  consentia  o  Gaúch.»  aquellas  familiari- 
dades; ao  contrario  os  tratava  com  certa  reserva.  Saudavam  se 
pela  manhã  ao  despontar  do  dia;  eá  noite,  na  uccasião  de 
recolhei . 

Assim  devia  fazer  quem  era  tao  zelo^ío  observador 
das  distancias  sociaes 

<r  Commumente  se  encontravam  na  hora  da  ração :  comiam 
juntos,  08  brutos  no  embornal,  o  homem  na  palangana.  » 

Tem  lá  palangana,  um  Gaúcho,  que  come  o  chur- 
rasco com  o  punhado  de  farinha,  e  muitas  vezes  a  carne 
á  escoteira? 

c  Na  opiniio  de  Manoel,  o  caVallo  e  o  homem  contrahiam 
obrí^açito  reciproca;  o  cavallo  de  servir  e  transportar  o  homem  ; 
o  homem  de  nutrir  e  defender  o  cavallo.  » 


12  X- 

Isto  nao  é  só  na  opinião  do  Canho;  todo  o  senhor  co- 
nhece o  dever,  que  tem,  por  próprio  interesse^  de  nutrir 

e  defender  seu  animal. 

«  Nao  passava  elle  por  um  legar  onde  visse  um  cavallo  en- 
fermo ou  estropeado  que  se  não  K\}Qíi%%e^  fosse  embora  com  pressa ^ 
para  o  soccorrer.  Sangrava-o,  se  era  preciso :  cauterisava-lhc 
as  feridas,  etc.  » 

Teriam  muito  que  esperar  os  cavallos  que  um  gaúcho 
siquer  do  Rio   Grande,  á  excepção  do  Canho,  tivesse 

para  elles  taes  attençOes. 

«  Tinha  eomprado  alguns  cavallos  que  os  donos  arrebenta- 
vam-de  mao  tracto,  unicamente  para  llies  dar  repouso  e  assegu- 
rar-lhes  velhice  socegada.  » 

As  justiças  do  municipio  deviam  dar  um  curador  a 
Canho,  como  prodig'o,  nos  termos  da  Ordenação. 

í(  Não  via  o  Canho  castigarem  barbaramente  um  animal,  sem 
tomar  o  partido  deste.  » 

Esta  lunnanidade  não  constitue  uma  especialidade  do 
heróe  de  Senío.  Geralmente  fica-se  indignado,  ao  teste- 
munhar espectáculos  brutaes.  E  os  jornalistas  uma 
hora  por  outra  estão  ahi  a  clamar  contra  os  carroceiros 
que  castigam  immoderadamente  seus  animaes. 

«  Por  isso  affirmavam  que  era  elle  o  gaúcho  mais  popular 
entre  os  quadrúpedes  habitantes  das  verdes  coxilbas.  » 

Cabem  aqui^os  versos : 

((  Que  cavallos  tão  bregeiros^ 
E  que  Ganhos  tão  seiuleiros  l  » 

Continua  Senio : 

«  Em  qualquer  ponto  onde  estivesse,  precisando  de  um  ca- 
vallo. não  carecia  de  o  apanhar  a  laço  ;  oastava-lhe  um  signal  c 
logo  apparecia  o  uar/otc  alegre  a  festejal-o,  olferecendo  se  para 
seu  serviço.  O  traballio  era  escolher  e  arredar  os  outros,  pois 
todos  queriam  prestar-se,  como  seus  oMigos  i\\xt  eram,  uns  por 
gratidão,  outros  por  sympathia.   » 

De  semelhante  popularidade  só  o  Canho  se  poderia 
lisongeur  na  campanha  com  cíYeito!  E  o  trabalho  na 
escolha  havia  de  ser  cousa  de  dar  o  váo  pela  barba.  E 
se  todos  os  magotes  eram  assim  compostos  de  amigou 
por  sympathia  e  \)0v  gratidão,  onde  esta\am  os  simpleíí 
conhecidos^  aquelles  a  quem  apenas  saudava  pela  ma- 
nhan  e  á  noute,  e  que  tratava  com  certa  reserva?  Ah! 
Senio,  qna'  te  dewcntia  ctejiif^  l 

«  Quando  partia,  o  acompanhavam,  algumas  auadras  cur- 
veteando  a  seu  lado,  como  demonstração  de  amizade.  Atinai  pa- 
ravam para  .ç<^^fa7- o  com  a  vísia,  até  que  sumia-se  por  dotray- 
das  coNilhas.  » 

«  Taes  eram  os  contos,  que  referia  a  gente  da  Campanha 
(Bellos  contos,  não  ha  duvida)  Verdadeiros  ou  não,  todos  nolles 
acreditavam  (que  gente  crédula/ );  e  até  apontavam-se /i<f<yMw,ç. 


X  13 

que  tinham  sido  testemunhas  dos  factos  »   [Seino  estará  contem- 
plado neste  numero?  Duvido.) 

Apezar  de  ter  pressa  de  concluir  este  juizo,  consente 
•  ![ue  eu  faça  ainda  por  ultimo  umas  ligeiras  observa- 
ções, em  ordem  a  firmar  mais  a  critica. 

D'onde  vinha  o  ódio  do  Manoel  Canho  á  espécie  hu- 
mana e  até  à  sua  própria  família^  ou  mais  particular- 
mente á  sua  própria  màe?  De  haver  esta  casado  segun- 
da vez.  Parece  incrivel  que  quem  tinha  tao  bom  coração, 
tivesse  tao  máos  bofes. 

Digam-me  o  que  me  disserem  :  o  Canho  é  uma  triste 
ooncepçao  de  Senio.  Por  mais  que  este  se  haja  esten- 
dido e  esbaforido  por  justificar  o  repugnante  aleijão, 
tanto  peior;  cada  vez  o  mirnstro  mais  se  accentúa  e 
r:aracterisa. 

A  historia  das  segundas  núpcias,  senão  a  origem  do 
tremendo  ódio,  conta-se  em  poucas  palavras  : 

Um  negociante  do  Alegrete,  Loureiro,  perseguido 
por  castelhanos,  refugiou-se  em  casa  de  João  Canho, 
pae  do  Manoel.  Os  castelhanos  nao  respeitaram  a  casa, 
e  depois  de  defeza  renhida,  e  por  uma  traição,  succede 
ser  assassinado  o  Jofío,  emquanto  o  Loureiro  escapava 
em  fuga,  a  unhas  de  cavallo. 

A  noticia  da  morte  de  JoSo  chegou  a  Loureiro,  que 
se  penalizou  em  extremo  com  aquella  desgraça  de  que 
elle  fura  causa.  Lembrou- se  da  viuva,  que  ficara  ao  de- 
samparo com  dous  filhos  menores;  e  sentiu-se  obrigado  a 
amparara  família  o?'/}/ia/i.  Estás  vendo,  meu  amigo, 
i|ue  o  Loureiro  nao  era  um  máo  próximo,  cujo  con- 
sorcio cora  Francisca,  a  viuva,  se  devesse  reputar  uma 
desgraça  ou  um  aviltamento  para  a  familia.  Portanto 
nao  procede  o  ressentimento  do  Manoel,  a  nao  haver 
outra  razão. 

Loureiro  diz  a  Francisca  estas  textuaes  expressões: 

—  Fui  eu,  sem  querer,  a  causa  da  despfraça  Q^e  a  senhora 
soffreu,  perdendo  seu  marido,  ^i  pudesse  restituil-o,  sem 
duvida  Gue  o  faria.  Não  podendo,  faço  quanto  está  era  mim, 
offereço-lhe,  para  o  substituir,  outro  que  na  de  cstimal-a  tanto 
ou  mais. 

A  uma  amiga  de  Francisca,  que  affirmára  ao  Manoel 
ser  verdade  o  casamento,  atiràra-se  elle  com  furor, 
rasgando-lhe  a  roupa  e  arranhando-lhe  o  rosto  com  as 
imhas.  O  Canhinho  era  onça  ! 

Um  dia,  em  que  Loureiro  passeava  pelo  campo,  o 
Manoel  se  lhe  apresenta  trazendo  empunhada  a  faca 


14  X 

do  Canho  (  pae  ).    Pergunta-lhe  o  noivo,  recdando  que 
o  travesso  menino  viesse  a  ser  victima  da  arma  : 

—  Para  que  é  esta  faca,  Manoel  ? 

—  Para  te  matar. 

—  A  mim  ?  Que  mal  lhe  fiz  eu,  meu  filho  ? 

—  Nao  sou  teu  filho  I  gritou  a  criança,  querendo 
ferir. 

Sabendo  Francisca  do  occorrido,quiz  castigar  o  filho» 
e  o  faria  sem  a  intervenção  de  Loureiro,  que  em  face  de 
taes  circunstancias  teve  escrúpulos  e  receios  de  contra- 
hir  o  casamento.  Vae  sempre  notando,  meu  amigo,  que 
nao  tendo  o  Loureiro  um  máo  caracter,  mas  revelando 
até  ser  homem  de  senso,  generoso,  compadecido,  sen- 
sível e  humano,  nada  justifica  o  ódio  do  menino,  e 
muito  menos  o  de  Senio,  para  dar-lhe  tao  desastroso 
fim,  qual  o  de  morrer  de  uma  queda  do  murzello,  ca- 
vallo  que  fora  do  Canho  velho.  O  murzello,  senhor  das 
intenções,  do  ódio  do  menino,  jurou  também  auxilial-o 
em  sua  gratuita  vingança;  e  com  effeito  dà  com  o  ne- 
gociante no  chão,  e  corre  para  Manoel,  saltando  e  gin&- 
íeando  de  contente^  por  ter  desempenhado  o  seu  papel 
com  tal  successo. 

Vejamos  agora,  nao  jíi  o  menino,  porém  o  homem 
a  tomar  a  vingança  ào  assassino  do  pae,  e  revelando- 
um  grau  de  perversidade  admirável  e  rara.  E'  galante 
o  modo  como  Senio  pretende  justificar  o  Manoel.  Re- 
produzo as  palavras  : 

<(  O  gaúcho  n9o  tinha  ódio  ao  Barreda  [  o  assassino  áo* 
velho.  )  A  vingança  da  morte  do  pae  nfto  era  para  sua  alma  a 
satisfaç&o  de  um  profundo  rancor  ;  mas  o  simples  cumprimento^ 
de  um  dever.  EUe  obedecia  a  uma  intimação  que  recebera  do- 
céo  (  o  céo  mandando  matar  gente! )  ;  á  ordem  d'aquelle  que- 
sempre  tinha  presente  á  sua  memoria.  £  obedecia  friamente^ 
com  a  calma  e  impassibilidade  do  juiz,  que  pune  em  obser^ 
tancia  da  lei,  »  (  E'  bôa  !  ) 

Depois  da  renhida  lucta  entre  o  Manoel  e  o  Barreda». 
correu  este  a  refugiar-se  em  casa,  onde  sua  mulher 
chorava ;  mas  nao  o  conseguiu  porque  seu  contendor 
atirou-lhe  as  holas,   e  o  inimigo  cahiu.  O  que  segue 

sao  textuaes  palavras  de  Senio  : 

«  —  Pede  perdfio  a  Deus,  que  chegou  tua  hora. 

«  A  mulher  do  Barreda  prostrava-se  n^esse  momento  aos^ 
pés  de  Manoel,  implorando  compaixfto  para  o  marido.  Riu-se  o 
gaúcho  com  dureza  e  escarneo  : 

«  — Virá  outro  marido  para  a  consolar. 

ff  Arredando  a  desgraçada  mulher,  chegou  o  ferro  da  lamçm 
aos  olhos  do  castelhano. 

«  Conheces  7...  E'  a  lança  com  que  ha  doze  annos  feriste  mea 


X  15 

pae  â  traiçfio    Eu  jurei  que  havia  de  craval-a  em  teu  coração, 
mas  depois*  de  vencer -te  em  combate  leal. 

<«  Com  uma  calma  feroz,  espetou  o  ferro  da  lança  no  corpo  do 
assassino  de  seu  pae,  atravessando-lhe  o  coração,  como  faria 
com  uma  folha  secca. 

((  líurzello,  que  se  conservara  immovel  ao  lado  durante  esta 
f^cena,  avançou  a  um  signal  do  senhor^  pisou  com  a  pata  a  face 
contrahida  do  moribundo»  que  ainda  estremeceu  ante  essa  der- 
radeira affronta. 

«  Em  quanto  a  victima  se  debateu  nas  vascas  da  agonia,  Ma- 
noel a  contemplou  friamente.  Quando  se  apagou  o  ultimo  vislum- 
bre de  vida,  se  afastou  sem  lançar  um  olnar  de  compaixào  á  mu- 
lher desmaiada.  » 

Que  tinha  a  pobre  mulher  com  o  crime  de  seu  mari- 
do, para  nao  inspirar  compaixão  a  um  coração  tao  sen- 
sível como  o  do  Manoel  ?  si  Canho,  depois  de  haver  per- 
petrado a  sua  vingança,  se  voltasse  para  a  viuva,  com- 
padecido d'ella,  daria,  sim,  prova  de  coherencia  com  o 
tal  simples  cumprimento  do  seu  dever ;  e  tanto  mais 
quanto  jà  uma  vez,  tendo  oUe  vindo  para  matar  o  Bar- 
reda  e  achando-o  doente,  medicou-o  e  tratou-o,  posto 
que  para  tomar  uma  desforra  mais  cynica  e  solemne. 
Como  tudo  isto  é  edificante;  nao  é,  meu  amigo  ? 

Mas  ainda  nao  é  tudo.  De  repente  ouve  o  Manoel  o 
rincho  da  morena  seguido  da  detonação  de  um  tiro.  O 
tiro  fora  disparado  contra  Manoel  por  um  negro  da  es- 
tancia, onde  o  Barreda  era  capataz.  A  morena,  que  es- 
tava contemplando  de  longe  a  scena  do  combate,  presenr- 
tira  que  a  pontafHa,  feita  pelo  pião,  ameaçava  a  cxw- 
tenda  de  sei^  amigo ^  e  disparara  como  uma  bala,  e,  pas- 
sando por  junto  do  negro,  desfechara-lhe  nas  costas  um 
couce  que  o  atirara  sobre  a  macega!  Ouvindo  o  nitrido, 
Manoel  adivinhou  ás  primeiras  notcLs  o  sossobro  do  te- 
mor e  a  angustia,  pela  ^remu/a  vibração  da  voz^  sempre 
límpida  e  argentina. 

Em  face  de  taes  cousas,  pergunto-te,  sem  a  menor 
intenção  hostil  para  com  o  auctor,  que  posso  dizer  que 
eâtimo,  admiro  e  respeito :  será  um  romance  de  costu- 
mes o  Gaúclu)?  Romance  brazileiro  —  diz  o  frontispício 
da  obra  ;  logo  nao  ha  duvida  de  que  o  auctor  o  deu 
como  tal. 

Tudo  quanto  conheço,  por  leitura  de  viagens  e 
por  informações  pessoaes,  concernente  a  esta  face 
ainda  tfto  pouco  explorada  da  America  Austral,  im- 
porta a  negação  mais  completa  do  que  nos  dá  Senio.  Pe- 
ZBrme  disel-o^  mas  forçi^me  ao  sacrifício  a  consciên- 
cia. 


16  X 

E  ainda  bem  que  temos  em  opposição  ao  Gancho  au- 
ctoridades  que  nos  evitarão  no  estrangeiro  o  ridiculo 
que  attrahe  esta  obra  sobre  os  costumes  da  campanha 
do  Rio  Grande  do  Sul,  tao  interessantes  e  romanescos, 
mas  nao  tao  arredados  da  decência  e  da  rasao  publica. 

Ha  ahi  um  drama  de  auctor  portuguez,  que  nao  dei- 
xa de  encerrar  muita  exactidão  sobre  este  aspecto. 
O  drama  intitula-se — O  Monarcha  das  Coxilhas — e  é  ori- 
ginal de  César  de  Lacerda,  que  esteve  no  Rio  Grande 
e  estudou  os  costumes.  Quanto  a  mim,  tem  um  grande 
defeito  o  trabalho  de  Lacerda:  é  personalisar  o  typo 
do  gaúcho  em  um  portuguez,  o  que  só  explica  o  exces- 
sivo" espirito  de  nacionalidade  do  auctor.  Além  deste 
defeito  de  essência,  contém  outros  que  entendem  me- 
ramente com  a  forma  litteraria;  em  todo  o  caso  porém 
o  trabalho  é  plausivel. 

Como  se  explica  pois,  a  antithese  ? 

O  auctor  nacional  afasta-se,  em  quanto  os  estran- 
geiros se  approximam  da  verdade  das  cousas. 

Não  te  parece  isso  um  infortúnio  para  as  nossas  let- 
trás,  para  a  nossa  terra  tao  fértil  em  talentos,  entre  os 
quaes  o  resoluto  talento  de  Senio  ? 

Como  é  triste  fazer  em  publico  taes  confissões  !  Mas 
urge  fazel-as  para  que  lhes  succeda  a  emenda  com  o 
que  temos  deinfallivelmente  ganhar,segundo  o  espero. 

Confio  muito  na  nossa  plêiade  de  novéis  litteratos,  e 
devo  dizer-te  com  franqueza,  confio  muito  no  próprio 
bom  senso  reparador  de  Senio. 


Q/em^ 


i^n€0. 


[Conímna^ 


Typ.  e  Lith.— Imparcial —  Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  A. 


QUESTÕES  DO  DIA 


isr.  11 


RIO  DE  JANEIRO  5  DE  OUTUBRO  DE  1871. 


Vende-s6  em  casa  dos  Srs.  E.  &  H.  Laemmert. —  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto. — Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119 —  Largo  do 
Paço  n.  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis. 

i^essao  pax^lamentax*  de  1S71. 

Concluiu-sea  sessão  d'este  anno,  a  qual  deixará,  nos 
annaes  parlamentares  do  Brazil,  a  mais  esplendida  pa- 
gina. O  Presidente  da  Gamara  Temporária,  ao  encerrar 
os  trabalhos  de  tfto  benemérita  corporação,  proferiu  um 
discurso  curto,  mas  valiosissimo,  em  que,  fazendo  jus- 
tiça á  illustraçao  e  dedicação  do  parlamento,  compen- 
diou em  quadro  breve  os  resultados  da  laboriosa  tarefa 
dos  legisladores,  durante  uma  quadra  de  poucos  mezes, 
mas  que,  além  das  occupaçOes  ordinárias,  dotou  o  paiz 
com  progressos  taes,  que  tornar&o  o  anno  de  1871, 
para  o  Brazil,  marco  milliario  na  estrada  da  grande 
civilisaçao.  Eis  aqui  esse  discurso  : 

O  Sr.  Presidente  : —  E'  hoje,  senhores,  a  ultima 
sessão  do  S"*  anno  da  14'  legislatura,  e  no  momento  de 
deixar  esta  cadeira,  eu  sinto  necessidade  de  dirigir-me 
aos  meus  illustres  collega^  para  agradecer  a  subida 
honra  que  me  conferiram,  elevando-me  a  esta  alta  po- 
sição, e  auxiliando-me  efficazmente  no  desempenho  de 
tao  importante  tarefa. 

Semelhante  aspiração  nunca  poderia  ser  por  mim 
alimentada,  porque  j&mais  me  julgaria  habilitado  a 
satisfazer  as  funcçOes  do  mais  elevado  cargo  desta  au- 
gusta camará  !...  [Muitos não  apoiados,) 

Surprendido,  porém,  pela  vossa  decisão,  eu  nao  me 
julguei  com  o  direito  de  recusar-me  a  um  mandatOj 
cuja  transcendência  se  augmentava  pela  especialidade 
das  circumstancias  em  que  foi  dado  ;  e  confiando  no 
vosso  patriotismo  e  prudência,  obedeci,  como  me  cum- 
pria. A  minha  confiança  não  foi  illudida,  e  a  tarefa, 
que  se  afigurava  árdua  e  difficil,  tornou-se  a  mais 
suave,  pelo  vosso  próprio  procedimento. 


2  X 

Pela  minha  parte,  senhores,  tenho  convicção  de  que 
me  esforcei,  tanto  quanto  era  de  meu  dever,  para  exer- 
cer as  funcções  que  me  foram  confiadas,  com  a  impar- 
cialidade que  exigia  o  seu  desempenho.  [Muitos  apoiar- 
dos,)  Se  nfio  correspondi  à  vossa  honrosa  espectativa, 
ao  menos  fizestes  justiça  á  minha  bôa  vontade  e  á  sin- 
ceridade do  meu  procedimento.  Eu  o  agradeço. 

Mas  permitti  também  algumas  palavras  sobre  os  re- 
levantes serviços  que  prestastes  á  causa  publica. 

Ao  rotirar-vos  para  vossos  lares,  levais  em  vossas 
consciências  o  maior  galardão  u  que  podia  aspirar  o 
vosso  patriotismo,  qual  é  a  convicção  de  bem  haver 
exercido  o  sublime  mandato  da  nação. 

A  par  de  numerosas  deliberações  sobre  os  diversos 
ramos  da  administração  do  Estado,  também  mereceram 

a  ' 

particular  solicitude  desta  camará  alguns  assumptos 
cuja  importância  e  interesse  se  revelam  da  sua  simples 
enunciação. 

Assim,  foram  approvadas  numerosas  pensões  conce- 
didas em  remuneração  de  relevantes  serviços  prestados 
á  pátria;  e  especialmente  para  protecção  da  viuvez  e 
orphandade,  victimas  da  gloriosa  guerra  que  susten- 
támos contra  o  governo  do  Paraguay. 

Diversas  leis  de  animação  a  emprezas  destinadas  ao 
desenvolvimento  material  do  paiz  foram  solicitamente 
elaboradas. 

A  providencia  concernente  aos  estudos  preparató- 
rios, determinando  que  os  exames  feitos  em  alguma 
das  faculdades  do  Império  sejam  válidos  em  qualquer 
outra,  tem  a  dupla  vantagem  de  consagrar  uma  me- 
dida de  equidade  e  grande  economia  de  tempo  para  os 
trabalhos  da  assembléa  geral. 

A  lei  que  regulou  as  fyudas  de  custo  dos  bispos, 
supprindo  uma  lacuna  da  nossa  legislação,  estabeleceu 
uma  regra  previdente  e  salutar. 

Outra,  regulando  melhor  as  ajudas  de  custo  dos 
presidentes  de  provincia,  consultou  convenientemente 
uma  necessidade  da  administração. 

A  lei  sobre  a  naturalisação  de  estrangeiros  simpli- 
ficou o  processo  para  a  obtenção  da  respectiva  carta, 
com  grande  proveito  para  a  immigraçSo,  condição  es- 
sencial do  nosso  progresso  e  desenvolvimento. 

O  credito  especial  para  prolongamento  das  estradai; 
de  ferro  D.  Pedro  II,  S.  Paulo,  Pernambuco  e  Bahia, 
satisfazendo  a  mais  vital  necessidade  publica,  é  um 


XI  3 

grande  incentivo  do  progresso  da  industria  e  da  ri- 
queza nacional. 

A  reforma  judiciaria,  que  preoccupaha  longos  annos 
a  attençao  dos  poderes  do  Estado  e  de  todos  os  partidos 
políticos,  tornou-se  uma  realidade  pela  lei  recente- 
mente sanccionada  que,  regulando  a  administração  da 
justiça,  garante  melhor  a  liberdade  do  cidadão. 

Além  destas  leis,  cuja  execução  vai  satisfazer  gran- 
des necessidades  públicas,  e  que  por  isso  bastariam 
para  recommendar  a  actual  sessão  legislativa,  foram 
ainda  iniciados  muitos  projectos  importantes,  que 
pendem  de  vossa  decisão. 

Mas,  d'entre  todos  os  actos  legislativos,  sobresahe, 
pela  sua  importância  e  gravidade,  a  reforma  do  estado 
servil,  medida  de  grande  transcendência  para  os  mais 
vitaes  interesses  do  paiz. 

Esta  reforma,  que  teve  por  base  a  iniciativa  parla- 
mentar, e  sobre  a  qual  se  pronunciaram  os  membros 
desta  augusta  camará  com  a  maior  independência  e 
patriotismo,  ha  de  necessariamente  produzir  os  seus 
salutares  effeitos.  A  historia  fará  justiça  a  cada  um  dos 
representantes  da  nação,  que  com  a  maior  abnegação 
e  inexcedivel  civismo  se  consagraram  á  solução  de  tao 
grave  questão. 

E'  cedo  para  que  possamos  apreciar  todos  os  bené- 
ficos resultados  que  devem  auferir-se  dessa  lei,  e  dos 
quaes  estão  profundamente  convencidos  seus  auctores. 
É'  cedo  para  que  se  possam  aquilatar  os  serviços  pres- 
tados pela  actual  legislatura  sobre  tilo  melindroso  as- 
sumpto. 

Mas  nao  é  cedo,  senhores,  para  que  possamos  bem- 
dizer  a  Divina  Providencia,  que  concedeu  aos  legisla^- 
dores  do  Brazil  a  graça  de  poderem  discutir  e  votar 
uma  lei  t5o  importante,  sem  as  calamidades  que  em 
outros  paizes  acompanharam  a  sua  solução  ( muitos 
apoiados  j,  sem  nenhuma  perturbação  da  riqueza  e  da 
tranquillidade  publica.  (  Apoiados  ).  Nfto  é  cedo  para 
agradecermos  ao  Todo  Poderoso  a  protecção  que  nos 
concedeu,  fazendo  com  que  a  nação  brazileira  assumisse 
a  mais  prudente  attitude  em  face  de  uma  questão  tâo 
momentosa,  que  podia  agitar  os  mais  perigosos  estí- 
mulos das  classes  socíaes;  e  que  em  suas  múltiplas 
relações  interessa,  não  somente  uma  parte  da  socie- 
dade, mas  toda  ella,  nao  somente  aos  cidadãos  bra- 


4  XI 

zileiros,  mas  à  todos  os  habitantes  do  Brazil!...  [A- 
poiados). 

Graças,  senhores,  a  essa  protecção  que  tao  eficaz- 
mente inspirou  o  patriotismo  de  nossos  concidadãos, 
podemos  apresentar  um  bello  exemplo  às  outras  na- 
ções, que  sò  depois  de  grandes  provanças  conseguiram 
realizar  essa  difficil  conquista  do  progresso  e  da  civi- 
lização. E'  com  ufania  que  devemos  dizer :  «  A  reforma 
do  estado  se7'vil  não  achou  adversários  no  Brazil.  » 

Quanto  a  mim,  conservarei  como  a  mais  grata  e  hon- 
rosa recordação  da  minha  vida  politica  o  facto  de  ter 
sido  chamado  à  presidência  desta  augusta  camará  em 
condições  tao  graves  como  as  que  presenciámos  por  oc- 
casião  da  discussão  desta  reforma,  que  sem  duvida  é 
a  questão  mais  importante  que  tem  sido  submettida  á 
decisão  dos  legisladores  do  Brazil  desde  a  indepen- 
dência do  Império.  {  Apoiados). 

E,  finalmente,  julgo  exprimir  o  pensamento  desta 
augusta  camará  dando  um  público  testemunho  de  re- 
conhecimento á  população  desta  capital,  que  mais  de 
Serto  accompanhou  os  nossos  debates,  e  que  pela  gravi* 
ade  e  decoro  com  que  se  portou  sempre  que  compare- 
ceu para  assistir  ás  discussões,  provou  que  a  confiança 
pública  em  nossas  sabias  instituições  e  o  respeito  aos 
poderes  do  Estado  sao  uma  realidade  no  Brazil.  Tenho 
concluído. 


Oarta  II 

Gincinnato  a  Sempronio 

Continuo  a  metter-me  a  taralhfio:  nSo  venho,  amigo, 
caçar  nas  tuas  terras  ;  está  bem  entregue  o  Gaúcho  ao 
teu  braço  secular,  mas  faz-me  gosto  servir-te  de  cama- 
rada ;  tu  és  Marechal  do  Exercito  ;  eu  serei  Tambor  ; 
mas  o  certo  é  que  ambos  pertencemos  á  mesma  milicia. 
Continuemos  a  campanha. 

Vejo  que  já  pareces  ir  aproando  para  terra,  por  con- 
siderares sufficiente  o  que  tens  dito.  Seja  assim;  mas 
como  me  deste  o  gáudio  de  mimosear-me  com  um  exem- 
plar do  livro  monumental,  quero  agradecer*t'o,  pro- 
vando que  nao  deitaste  agua  em  cesto  roto,  e  que, 
tendo  eu  convidado  a  Senio  para  preceptor,  vou  prós- 


XI  5 

crever  todas  as  noções  que  tinha  do  idioma,  substi- 
tuindo-o  por  uma  lingua  incógnita,  nova,  moderna, 
triumphante,  conquistadora  e  fresca,  a  que  darei  o 
nome  de  SeniaL  Passo  também  a  impregnar-me  nas 
phrases,  imagens,  descripçOes  e  locuções,  nao  menos 
SeniaeSy  e  espero  poder  vir  a  arremedar  o  género  pan- 
tafaçudo,  porque  onde  me  faltar  a  idéa,  buscarei  uma 
phraseologia  onomatopaicamente  campanuda,  phraseo- 
logia  pâââmpa,  com  que  porei  os  meus  admiradores 
boqui-abertos  e  zonzos.  Seguirei  a  moda  coimbrã  ; 
seguirei  a  moda,  já  proclamada  pelas  Cacholetas  : 

Hoje  é  moda  estylo  abstruso  ; 
enrodilhar  palavrões. 
Nunca  perde  por  confuso 
quem  fizer  allocuções. 
E'  moda  que  tem  pegado , 
porque  vem  de  auctor  graúdo, 
que  devera  dar  ào  estudo 
o  tempo  mal  empregado 
em  tecer,  por  modo  novo, 
os  discursos  nebulosos 
de  que  se  ri  todo  o  povo. 

Como  nao  heide  escrever  10  volumões  para  analj- 
sar  2  voluminhos,  vou  só  apontando  o  dizimo  das 
bellezas  que  esfervilham  por  toda  esta  biblia  do  Bom 
gosto. 

Começa  o  cap.  2;**  : 

a — Çon^a  o  anno  de  1832.  Um  cavalleiro  co7V'ia, 
n  toda  brida..,.  » 

Perfeitamente:  se  o  anno  corria,  o  cavalleiro  por  força 
que  também  corria',  é  lógico  e  é  elegante.  Agora  o  que 
vou  accrescentar  aos  meus  estudos  da  língua,  é  a  ex- 
pressão toda  6rií/a  para  significar  á  desfilada:  na  era  dos 
Affonsinhos,  dizia-se  a  toda  a  brída. 

O  cavalleiro  levava  na  cabeça  um  chapfo  desabado 
de  baí^ta,  premiado,  como  invenção  Senial,  na  Exposi- 
ção d'aquelle  anno,  em  que  nao  houve  exposição  ;  e  lá 
por  dentro  levava  uma  alma  sui  generis^  alma  com  a 
velocidade  {!)  do  vôo  do  gavião. 

Ch«^ga  Manoel  Canho  ao  rancho  do  Chico  Baeta  /'ap- 
pelidado  o  Semmedo,  por  ser  homem  sem  medo  de  que 
o   convertam  em  desabado',  e  entr'ambos  começa  um 


6  XI 

dialogo,  opulentíssimo  em   grammatica  e  vernaculi- 
dade.  Por  exemplo  : 

(( — Em  uma  corrida,  ha  2  annos,  o  senhor  nfio  es- 
teve lá  ? 

(( — Fui  um  dos  que  corri,  » 

Por  minha  parte,  eu  cá  fui  um  dos  que  ficaram  colo- 
ridos de  vergonha,  de  nao  ter  aprendido  tâo  correcta 
lingua,  e  lá  vi  o  Canho  montado  no  murzello,  porque 
tinha  ainda  que  fazer  umas  cinco  léguas. 

Em  poucas  linhas,  temos  :— a  murzellinha  fez  traz 
zas — o  elogio  feito — fazendo  um  esforço — fazer  5  léguas 
— farei  presente— /e^  o  viajante — etc.,etc.  o  que  prova 
com  que  engenho  se  pode  conjugar  um  verbo  todo, 
sem  ter  ar  d'isso:  estylos  assim  sao  ainda  menos  ro- 
mânticos que  didácticos. 

Afinal  pára  o  Canhu;  come  a  janta^  e  bebe  agua  ''  pelo 
bocal  do  estribo  "  que  o  rapaz  teve  o  cuidado  de  lavar 
para  dar-lhe  a  serventia  de  copo.  Que  o  rapaz  era  a- 
ceado  e  fez  bem,  nao  ha  dúvida  nenhuma,  visto  que  o- 
tal  estribo  devia  vir  porquinho,  lá  isso  devia;  porem  o 
que  me  espanta  é  a  sobriedade  do  Canho, que,  tendo,  ao 
pino  do  meio  dia  e  com  sol  claro, aturado  muitas  léguas 
de  corcovos,  capriolas*,  repellôes  e  curvetas  do  murzello 
a  t>  da  brida,  se  contentava  com  i;  pinguinho  d'agua, 
que  um  bocal,  de  uma  pollegada  quando  muito,  po- 
deria conter.  Os  Gaúchos,  em  taes  circumstancias, bebem 
pela  mão,  por  qualquer  folha  larga  de  arvore,  ou  cousa 
assim:  o  P(ídro  Javardo  pag.  72;  ((  para  beber  agua 
ia  ao  arroio,  e  estendia-se  de  bruços  pela  margem.  »  O 
próprio  Manoel  Canho,»  quando  topava  com  cavallo  es- 
tropeado  (pag.  6G)  arrastava-o  para  a  sombra,  e  ia 
buscar-lhe  agua  no  chapéo.  »  Mas,  nesta  memoranda 
occasino,  o  Gaúcho  estava  na  apojadura  de  apurado  e 
delambido:  para  sanar  uma  damnada  sede  (  não  era 
certamente  tão  damnada  como  isso  ;,  não  só  se  con- 
tentou com  um  golesinho  d'agiia  homeopathico,  mas 
para  isso  teve  de  pòr-se  primeiro  a  desprender  os  loros 
dasella,  a  tirnr  os  estribos  da  argola,  a  despir  delles  os 
bocaí^s  para  fazer  púcaro...  complicada  operação  de  per 
si  ])astante  para  apagar  a  sede  de  um  Dário,  fugindo 
d*Alexandre. 

« — ...  afrouxou  as  rodeas  ao  ruão,7?/e  lançoií-st'  como 
uma  flecha»  aquegirou-lhe  em  torno  da  cabeça  »  i(  pro- 
seguiu  o  animal  e  lhe  fendeu  o  craneo  »  «  o  suor  que  n- 
lagava-lhe    o   corpo  )>    c<  cuja  estampa  descnhava-se  » 


XI  7 

«  olhos  a  se  engolfarem  »  ele.  etc.  e  idênticas  locuções, 
que  Senio  reproduz  a  cuda  passo,  e  se  me  affiguram 
incorrectas. 

Aqui  porem  tem  elle  uma  desculpa,  se  lia  culpa  :  é 
este  seu  dizer  assaz  frequente  no  Brazil,  e  caracterís- 
tico dos  mais  seg'uros  para  se  affirmar,  prima  facAe^ 
ter  uma  obra  portugueza  sido  aqui  escripta.  Nem  me 
applico  a  censuras, nem  a  proselytismo  ou  propag*anda  ; 
mas  deve-me  ser  tolerada  a  franqueza,  g-erada  da  con- 
vicção :  adeante  de  Platão,  a  verdade  !  e  nem  receio 
que  os  sensatos  me  levem  a  mal  a  observaCã)  que 
submetto  respeitosamente,  quanto  a  esta  liberdade 
local. 

Affigura-se-me  pois  que  não  será  fácil  mostrar,  em 
auctor  portuguez,  antigo  ou  mcderno,  já  não  di^*o 
clássico,  mas  simplesmente  de  bua  nota,  as  locuções 
supra-citadas  ;  e  que  a  construcção  d'ellas  será  sempre 
a^sim  :  ffiie  se  lançou,  (jue  lhe  girou,  fciiclea-lhe.  que  lhe 
édagarOj  cuja  estampa  se  desenJta^-a,  olhos  a  engolfarem^ 
sf\  etc. 

Regula-se  (creio  eu^  por  eguaes  preceitos  a  coUoca- 
ção,  tanto  da  variação  do  pronome  da  3\  pessoa  coui 
que  apassivamos  os  verbos,  como  dos  outros  pronoinc^s 
e  casos  íulverl)iaes  que  unimos  aos  verbos  reílexos  ou 
rociprocos  :  me,  te,  lhe,  nos,  vos,  se  ele.  e  a  rei:*ra  para 
coUocação  de  qualquer  d'e>tes,  abranij-e  a  todos  os 
outros. 

Phrases  ha  em  que  o  uso  dos  dout^^  concede  li- 
berdade mais  ou  menos  amjda  para  indistinctamente 
antepor  ou  jKJspòr  aos  verbos  a(|uelles  pronomes  ; 
porem  na  máxima  parte,  ha  regras,  de  que  não  é  licito 
eximirmo-nos,  se  aspiramos  a  não  sei*  tidos  por  muito 
incorrectos.  A  leitura  dos  bons  modelos  é  o  primeiro  • 
guia  ;  mas  creio  que  para  as  seguintes  normas  .se  não 
a«*hará  excepção. 

No  seguuíio  modo  de  apa^sivar  verbos  .  isto  é. 
quando  juntam()s  o  caso  sp  aos  sui)jtútos  da  *i\  pessoa. 
que  não  podem  fazer  a  acção  em  si  mesmos  ).  e  quando 
aos  verbos  activos,  reílexos  ou  recipi'ocos,  ligamos  o.s 
raso^  adv<*rbines,  dá-se  cnllocarão  forruda^  nas  seguin- 
tes hypotheses  : 

1*.  Se  ao  verbo  precede  o  articular  demonstrativo  e 
i-onjunctivo  r/í/(\  ou  outro  relativo,  ou  couiunccão,  ou  os 
advérbios  /íí/o,  nunca,  jn,  s^^rtipr",  untes,  c',  lu,  mais, 
in  filo,  assim^hem,  (^ua^i  todos  o<  tí»rmiimd"»s  em  mcnt^ 


8  XI 

(excepto,  em  alguns    casos,    os    ordinaes,  por  outro 
motivo  )   etc,  deve  sempre  o  pronome  antepôr-se  ao 

VERBO. 

Exemplos  :  —  que  se  lançou^  e  nao  que  lançou-se  ;  — 
que  lhe  girou,  e  nao  que  girou-lhe  —  cuja  estampa  se 
desenhava^  e  nao  cuja  estampa  desenhava-se  ;  —  não  te 
amOj  em  vez  de  não  amo-te  ;  —  nunca  te  admirei^  e  nao 
nunca  admirei-te  ;  —  deixe- nie,,  e  nao  me  deixe  ;  — jd  te 
conheço^  e  naoja  conkeço-ie  ;  —  sempre  te  enfatuaste,  e 
nao  sempre  enfatuaste-te  ;  —  antes  nos  divirtas,  e  nao 
antes  divirtas-nos ;  —  ca  me  vou,  e  nâo  cá  vou-nie  ;  — 
Id  vos  espichastes,  e  nao  lá  espichastes-vos  :  —  mais  te 
exaltas,  e  nHo  mais  exaltas-te  ;  —  muito  te  prestas,  e  nao 
muito  presías-te  ; —  assim  te  ajude  Deus,  e  nSo  assim 
ajude-te  Deus  ;  —  bem  me  importa,  e  não  bem  importa- 
me  ;  — parvoamenle  se  exprime,  e  n^o  parvoamente  ex- 
prime-se. 

2.*  Geralmente  nos  restantes  casos,  quando  a  oraça* 
começa  pelo  verbo,  ou  pelo  seu  agente,  o  verbo  ante- 
põe-se  AO  pronome. 

Exemplos  :  Este  menino  perde-se,  e  nao  este  menino  se 
perde] — as  finanças  evaporanv-se,  e  nao  ^e  evaporayn\ — 
divertes-me,  coiiheço-te,  vou-me  embora,  enâo  me  diver- 
tes, te  conheço,  me  vou  embora  ele,  etc. 

Uf  !  que  maçada !  nao  foi  ?  agúenta-a,  em  desconto 
dos  teus  peccados,  e  se  o  andante  foi  tristonho,  siga-se 
o  galhofeiro  alegro :  refocillemos  o  animo  na  admiração 
do  romance. 

Chega  o  Canho  ao  Jaguarao,  lia  hora  em  que  os  sol- 
dados de  Lavalleja  vao  depor  as  armas,  com  um  senti- 
mento de  humilhação,  que  era  partilhado  pela  popula- 
ção :  «  un  sentiment  d-humiliation^  qui  étail  partagé  pa?* 
ia  population.  »  Eu  também  bato  palmas  ao  neologis- 
mo, substitutivo  do  compartir,  participar  de,  emais  va- 
riantes indigenas  ;  mas  então  proponho  que  creemos  o 
tal  verbo  partilhar  para  que  signifique  :  dar  o  quinhão 
da  herança ;  e  acceitemos  francamente  o  pariajar  ou 
partejar,  para  uns  apertos  doestes:  assim  ficará  plirase 
ainda  mais  harmónica  e  gallica  :  «  sentimento  de  hu- 
milhação, que  era  partajado  pela  população.  •> 

Apparece  depois  um  ferrador  e  o  coronel  Bento  Gon- 
çalves, vasado  na  mesma  tempera  de  Osório  e  Andrade 
Neves,  Ficamos  pois  sabendo  que  um  homem  se  pôde 
vasar  em  rijeza  ou  consistência  :  ou  antes  que  tempera, 
.em  idioma  senial,  é  synonymo  de  modelo  ou  molde. 


XI  9 

Mas,  adivinhada  esta  charada,  fica  outra  peior :  Que 
Osório  e  Neves  fossem  vasados  na  mesma  tempera,  em 
que  outr*ora  o  foi  Bento  Gonçalves,  vade  in  pace  ;  mas 
que  uma  heroicidade,  patenteada  30  annos  antes,  já 
então  fosse  vasada  na  têmpera  que  havia  de  apparecer 
lima  geração  depois,  nao  deixa  de  ser  habilidade. 

E  o  coronel  Bento  era  feliz,  porque  os  homem  o  ado- 
ravam; as  tnulheres  o  admiravam,  »  Pelo  que  as  mulhe- 
res faziam,  segundo  para  baixo  se  vê,  ha  exactamente 
aqui  um  chnssé  croisé  de  verbos  :  eram  as  mulheres  que 
o  adoravam,  e  os  homens  que  o  admiravam ;  mas  isso  é 
•o  mesmo. 

Segue-se  um  dialogo  onde  se  vê  um  tal  CoUeira  allu- 
dir  ao  «  degolo y  que  todas  as  manhãs  fazia  nas  rezes 
destinadas  ao  corte  de  charqueada  »  e  que  geralmente 
nao  sao  degoladas;  e  surge  uma  trapalhonasinha,  de  12 
annos,  e  de  excellente  embocadura,  chamada  Catita^ 
nome  que  Bluteaudá  por  synonymo  de  Catharina.,Aiío 
singela,  como, ás  duas  por  três, mostrou  que  o  era  a  Ca- 
tharininha,  que,  na  famosa  canção  irónica  do  Mephis- 
topheles.  serviu  de  pseudónymo  á  Margarida  do  Fausto, 
.subjeitiuha  esta  com  quem  sempre  impliquei, por  nol-a 
venderem  como  typo  de  innocencias,  começando  ella 
por  ser  facilmente  comprada  com  quinquilharias  do 
diabo,  e  acabando  por  estrefegar  mííe,  irmão,  filho  e 
amante,  e  nao  obstante  subir  até  ás  bambolinas  do  ceo, 
cousa  que  tanto  custa  a  qualquer  simples  mortal. 

Esta  rapariga  era  um  demonico.  Nós  cá  diriamos  que 
ella  tinha  a  boquinha  mais  gentil  ;  mas  errariamos  ;  o 
que  ella  tinha,  segundo  Senio,  era  a  bonfjuinha  xmais 
gentil.  Tinlia  mais  1.°  cabellos  negros,  2."  os  olhos 
negros  como  os  cabellos  (Sina!  Charaa-se  mnrzello  o 
cavallo  todo  negro  ;e  pois  Canho  era  todo  uma  vul- 
cânica paixão  equina,  estava  no  livro  dos  destinos,  que 
se  lhe  havia  de  assemelhar  a  namorada  ao  seu  mur- 
zello  .  Ressumbrava  graça  etc, segando  o  systema  geral 
do^  ressumbramentos    Vide  o  Movo  Metliodo]. 

Como   a  pequenina  viera  ao   mundo,  predestinada 

f)elo  menos  para  figuranta  do  Theatro  Li/rico^  compre- 
lende-se  bem  a  utilidade  do  seu  requebro  faceiro^ 
nrsinho  de  malícia^  esticamenlo  da  perna  bem  torneada^ 
nrqueamento  do  pisinho^  figura  de  danra^  e  olhar  bre- 
griro  '!  Sim,senlior;  as  musas  de  uns  senhores  homens, 
chamados  Atiacreontes,  Parnys  e  Pirons,  inspiravam-se 
assim  ;  nao  ha  que  dizer:  o  nome  do  General  Camará 


10  XI 

deu    euphemismo  a  uma  rua  ;  e  o  marcial  pavilhão 
cobriu  a  mercadoria. 

Ha,  entre  aquellas  expressões  cândidas  e  significa- 
tivas, uma  que  me  dá  ainda  mais  no  goto  que  o  olhar 
bregeiro  ;  é  o  7'e(juebro  faceiro .  Este  sympathico  auctor  é 
enthusiasta  das  faceiras  ;  lá  volta,  a  pag.  73,  a  Morena 
vergando  faceiramcute  o  homhro  ;  vocábulo  frequente- 
mente repetido. 

Este  faceiro,  assim,  sempre  quisilei  com  elle.  Eu  nSo 
sei  se  o  Moraes  tem  ou  não  razfio;  mas  descreve  d'est'arte 
a  faceira  :  «  A  carne  das  faces  do  boi.  Vaidoso,  pata- 
rata, casquilho  rafado,  que  se  sustenta  com  faceira  de 
boi  e  o  mais  á  proporção,  e  aperta  a  barriga,  e  soffre 
outras  necessidades  para  se  enfeitar  etc.  »  Que,  figu- 
radamente, a  faceirice  seja  equivalente  de  bandalhice, 
peralvilhice,  e  casquilharia  rafada,  nao  digo  nada  ; 
mas  que  faceiro  seja  synonynio  de  gentil,  mimoso,  en- 
graçado, airoso,  galante,  ai-jesus,  só  no  idioma 
Senial. 

Continue  em  scena  a  faceira-bregeira. 

Agora,  o  que  torna  o  Xn\  feitiço^  prodígio  nunca  visto, 
é  a  descripçao  do  Senio,  que,  ao  pintal-a...  fez  um  ca- 
pote e  um  milagre.  Já  viste,  ou  viu  alguém  neste 
mundo,  uma  creança  de  12  annos,  de  pernas  bem  tor- 
neadas, que  tivesse  cabcUos  que  dessem  até  d  bahiha  da 
saia,  desenvolvimento  este,  a  que  a  natureza  nunca  se 
presta  senão  em  edades  muito  mais  adeantadas?  Isto  só 
podia  ser  visto  j^or  quem  viu  uma  catita,  filha  de  um 
selleiro  gaúcho,  arqueando  o  pcsinho  calçado  com  um 
sapato  de  íiiarroquim  azul,  cheg^ado,  pelo  ultimo  pa- 
quete, da  casa  Campas:  e  que  naturalmente  a  feiticei- 
rinha  comprou  em  Pelotas,  na  loja  de  Mlle.  Elisa. 

Mas  isto  nao  é  nada  ;  o  mais  está  para  ver.  A  garota 
queria  o  Canho  para  noivo  :  este  estava  w  alheio  ao  que 
passava  junto.  »  ;  Xao  sei  bem  o  que  é  que  passava, 
nem  janto  de  quem,  nem  porque  )  ;  emfim  tinha  uma 
((  expressão  de  recolho.  »  Recolho '?  recueillement  ? 
Nada.  (  Isto  provavelmente  é  erro  typographico:  o 
Canho  estava  tao  fecliado  e  redondo,  que  tinha  erjtres^ 
são  de  repolho],  E  o  caso  nao  é  para  menos.  O  Canha 
bem  quer  adcíiar  o  seu  matrimonio  paro  quando  a  abe- 
lha seja  ainda  mais  mestra  ;  para  quando  for  viuva  : 
porque  emfim  de  cavallos  gosta,  mas  de  borracliinhos 
novos,  não.  Está  pois  alli  enrolado  como  um  rej'()llio, 
a  meditar  n*!  vaidade  das  vaidades  a  que  anda  subjeit.^ 


XI  11 

a  espécie  humana,  e  na  sorte  que  o  aguarda  quando 
por  sobre  a  ornada  fronte  lhe  vier  a  desabar  o  Carmo  e 
a  Trindade. 

E  como  poderia  aquella  portentosa  Catita  deixar  em 
socêg-o  o  coração  de  toda  a  gaucharia,  e  mais  dos  bu- 
gres, charruas,  guaicanans,  guaranys,  minuanos,  ta- 
pes, e  restantes  ornamentos  silvestres  da  província  de 
S.  Pedro  do  Rio  Grande!  Era  vellhaquinha,  que  andava 
sempre  de  olhos  piscos,  aos  12  annos,  e  que  quando 
erguia  as  pálpebras  (  o  que  erafim  lá  succedia  de  tem- 
pos a  tempos),  «  parecia  que  seu  rosto  se  tinha  banhado 
em  joiTOS  de  luz.  »  Era  assim  mesmo  :  o  lavar  da  cara 
daquella  menina  (  de  mezes  a  mezes)  era  num  alguidar 
de  jorros  de  luz ;  até  aqui  vai  bem  ;  agora  ser  isto  uma 
comparação  para  o  caso  da  despiscadella  dos  olhos...  lá 
verás. 

O  retrato  da  menina  precisou  ser  feito  do  toutiço  até 
à  perna  torneada  e  ao  pésinho  arqueado,  sem  faltar  uma 
pollegada.  Lá  vem  o  ar,  a  boiKjuviha^  a  fronte,  os 
cabelíos,  as  espáduas,  o  talhe,  as  formas,  o  requebro, 
os  olhos  piscos,  as  pálpebras  róseas,  a  perna,  o  pé,  a 
pirueta,  e  o  olhar  brejeiro  ;  agora  .só  falta  o  nariz  e  o 
cotovello...  Ai,  nâo ;  falta  também  a  tez;  toca  a  ver: 

—  «  A  tez,  quem  a  visse,  em  repouso,  sob  a  ne^rra 
madeixa,  cuidaria  ser  alva  ;  mas  nas  inflexões  do  coUo 
e  dos  braços  percebia-se,  como  sob  a  transparência  de 
opala,  uns  reflexos  de  ouro  fusco.  Então  conhecia-se 
que  era  morena  ;  e  o  tom  cálido  da  sua  cútis  lembrava 
o  aspecto  das  brancas  praias  de  areia,  illuminadas  pelos 
últimos  raios  do  sol.  » 

«  A  tez.quejn  a  visse,  cuidaria,,.))  Certamente ;  quem 
a  não  visse,  não  cuidaria  nada. 

«  A  tez,  (jnem  a  visse  em  repouso..,  »  Tez  em  repouso, 
já  é  bom;  ver  lez  em  repouso, é  muito  melhor. 

M  Penebia-se  lUis  reflexos... )>  Muita  palmatoada levou 
ura  condiscípulo  que  eu  tive  em  gramrn atiça,  quando 
éramos  pequenitos,  e  que  dizia  d'e>tas !  Nunca  o  mestre 
lhe  poude  fazer  entrar  nos  cascos  que  um  nominativo 
no  plural  com  verbo  no  singuhir,  é  prohibido. 

Vamos  para  deante.  Olha  tu  para  a  raparifi*a.  Cuidas 
qtie  é  alvíi  ?  tó,  que  te  damnas.  O  modo  de  olhar  para 
ella,  não  é  commum  :  tem  de  s^u*  examinada  por  uma 
opala,  (|ue  é  a  luneta  própria  para  estas  averigniações. 
Já  tens  a  opala,  no  canto  do  olho  ?  ora,  muito  bem. 
Agora,    maganão,    começa  por  lhe  olhar  para  as  infle- 


12  XI 

xões  do  coUo  ou  pescoço,  e  dos  braços,  que,  já  se  sabe, 
sao  o  sovaco  e  o  sangradouro  ;  e  acharás  que  essas  in- 
flexões sao  côr  de  ouro  fusco,  e  que  a  Catita  é  morena. 
A  cara  parece  branca ;  o  gasnete  é  de  ouro  fusco  ;  o 
sangradouro  é  pardo  ;  e  o  sovaco  é  côr  de  opala.  O  que 
à  rapariga  vale  é  não  ter  nascido  no  tempo  e  na  terra 
de  D.  Miguel ;  tao  certo  como  2  e  2  serem  4,  esta  bel- 
leza  ia  à  forca,  por  malhada, 

E  >»inda  por  alli  não  fica,  no  tocante  ás  imbirrações 
da  cútis.  Tem  também  um  tora  cálido  ;  e  para  se,  não 
dizer  que  a  imagem  nao  tem  tom  nem  som,  lembra  o 
aspecto  das  brancas  praias  de  areia  ;  ergo,  as  praias  de 
areia  náo  silo  pretas;  sao  brancas,  mas,  ao  pôr  do  sol, 

tingem-se  em  moreno  ouro  fusco de  conformidade 

com  o  systema  das  cacholelas. 

Será  tudo  isto  progresso  na  arte  de  escrever  ?  Será 
com  linguagens  e  phantasias  doestas,  que  derrubarão 
a  antipathica  columna  Vendôme  do  terso  dizer  dos 
mestres  ? 

Nas  impagáveis  notas  á  Iracema^  cora  que  talvez  me 
divirta  um  (Tia,  diz  o  Sr.  Alencar  : 

— «  Aquelles  que  censuram  minha  maneira  de  escre- 
ver, saberão  (assim  o  tenham  entendido,  e  o  façam  exe- 
cutar) que  nao  provera  ella,  mercê  de  Deus  (esta  bafo- 
rada, esta  mercê  de  Deus  vale  quanto  pesa)  da  ignorân- 
cia dos  clássicos,  mas  de  uma  convicção  profunda  (po- 
bres clássicos,  mais  vos  valera  nunca  terdes  nascido)  a 
respeito  da  decadência  d^aquella  eschola  »  «  O  velho 
estylo  clássico  destoa  no  meio  doestas  florestas  secula- 
res, d'estas  catadupas  formidáveis,  d'estes  prodígios  de 
uma  natureza  virgem,  que  nao  podem  sentir  nem  des- 
crever as  musas  gentis  do  Tejo  ou  do  Mondego.  » 

Sim  Sr.  ;  é  assim  mesmo.  Ora  comparemos  estes  mo- 
dernismos  Seniaes  com  as  intoleráveis  antigualhas  dos 
clássicos,  e  abramos  um  doestes  ao  acaso,  era  paginas 
onde  também  se  descrevam  raparigas  catitas,  e  o  ef- 
feito  que  ellas  produzem  em  corações  masculinos.  Caiu- 
me,  por  exemplo,  debaixo  das  mãos,  a  Eufrosina,  como 
poderia  cair  qualquer  outro  jarreta.  Lê  : 

— «  Passando  agora  peUi  porta  da  minha  rapariga, 
achei-a  falando  com  uma  nossa  vizinha  ao  pé  da  escada 
de  dentro  ;  eu  como  n'estes  casos  súbitos  mostro  mi- 
nha SLifficiencia,  e  ando  sempre  provido  de  cautelas 
para  os  taes  recontros,  porque  occasião  de  fazer  bem 
nunca  se  ha-de  perder,  levo  do  tudesco  para  traz,  como 


XI  13 

cortezao  soldadesco,  e  chegando-me  ao  limiar  da  porta, 
perguntei-lhe  se  era  ahi  o  senhor  seu  pae  ?  A  rapariga 
estava  bonita  como  o  ouro  de  sua  vasquinha  amarella 
quartapisada,  em  mangas  de  camisa,  seus  cabellos  ata- 
dos com  uma  fita  incarnada,  tao  de  verão  que  vos  ride 
vós  de  mais  sereia  pintada,  e  por  mais  ajuda,  em  me 
vendo,  ficou  fraca,  e  dizendo-me  »  é  fora  da  cidade, 
virá  amanha  por  noite  —  »  ao  despedir  fez-me  uma  mi- 
sura  com  um  recacho,  que  me  aleijou  ;  e  assentae  que 
é  um  camafeo  de  pequena  em  fora:  e  eu  com  isto  ve- 
nho espirrando,  lançando  mais  faiscas  de  amor-  que  es- 
trelh\s  com  suão. 

...  E  estando  assim,  erguia,  de  quando  em  quando,  uns 
olhos  verdes  claros,  húmidos,  orvalhados  de  alegria  so- 
cegada,  tao  grandes  e  graciosos  como  todo  o  primor 
das  Charites  (  por  maneira  que  com  razão  se  pode  cha- 
mar a  4*  GraÇa  )  ;  e  pondo-os  em  mim,  a  tempos  fur- 
tados, com  um  olhar  quebrado  surrateiro  e  brando, 
atravessam -me...  Já  sabeis  que  sou  perdido  por  olhos 
quebrados,  que  fazem  furtos  no  ar..  Quando  contemplo 
comigo  que  estive  á  fala,  rosto  por  rosto,  com  a  senho- 
ra Eufrosina,  e  que  ouvi  aquellas  doces  palavras  de 
delicada  pronuncia,  aquellas  razões  brandas  e  discretas, 
aquelles  risos,  aquelles  temores  honestos,  os  favores 
escassos  da  vontade  liberal....  e  nisto  junctamente  os 
olhos  que  faraó  clara  a  noite  escura,  os  cabellos  en- 
trançados que  representavam  todo  o  thesouro  do  mundo, 
aquelle  rosto,  aquella  presença,  aquelles  ais  frautados 
quando  se  maguava. . .  por  certo  eu  me  espanto  como 
não  abafei  em  tanta  gloria,  e  perdidos  os  espirites.... 
E  d'outra  parte,  quando  cuido  que  tive  coração  para 
me  apartar  d'ella,  fico  frio,  e  nunca  homem  commetteu 
tal  ousadia  » 

Levo  mao  doestas  transcripções.  Que  homem  de  gosto 
ha  hi,  que  a  dizer  tão  singelo,  elegante,  vernáculo, 
attractivo,  prefira  os  inqualificáveis  estylos  de  um 
Senio,  com  os  seus  Ganhos  escanhoados,  e  as  suas  Cati- 
ta.s  acatingadas  ! 

Esta  guerra  aos  clássicos,  para  certos  escrevedores, 
é  precedida  do  manifesto  da  raposa,  inimiga  da  uva. 
As  obras  dos  mestres,  os  eternos  modelos  tomam-se  ob- 
jecto do  escarneo  dos  innovadores,  capazes  de  desthro- 
nar  os  Demósthenes  e  Homeros.  Tivemos  a  eschola  da 
antiguidade  ;  depois,  certo  numero  de  regras  tradicio- 
naes ;  mais  proximamente,  a  emancipação  de  todas  as 


14  XI 

normas,  proclamando-se  typo  único  a  natureza;  agora, 
surgem  os  ministros  do  bello,  sacerdotes  du  ideal,  de- 
molidores do  senso  commum,  despresadores  de  quanto 
merece  veneração,  e  que  nao  produzem  senão  monstros 
litterarios,  sem  alcance  ou  de  alcance  detestável,  sem 
missão  ou  com  a  missão  desorganisadora,  sem  forma  ou 
com  tauxia  das  mais  incongruentes  formas. 

Uma  sub-divisão  doesta  casta  de  auctores  compre- 
liende  a  dos  caçadores  de  effeitos.  Conheci  eu  em  Ouro 
Preto  um  ratão,  que  desejou  industriar-se  na  caça  ;  le- 
vou 6  mezes  aprendendo  a  carregar  a  espingarda,  e 
um  anno  diligenciando  passarinhar  ;  aflB.igia-s8  porém 
com  o  estampido  do  tiro,  de  modo  que,  quando  puxava 
o  gatilho,  virava  a  cara,  abala  seguia  para  o  norte,  o 
passarinho  deitava  a  rir  para  o  sul,  e  o  meu  caçador, 
encarando  então  a  sua  façanha,  exclamava  invaria- 
velmente: «  Brava  I  fugiu.  »  Os  taes  caçadores  littera- 
rios imitam  toda  esta  operação  ;  só  com  a  difiFerença  de 
que,  quem  exclama  o  a  Brava  I  fugiu  »  é  o  publico. 

O  processo,  neste  caso,  é  singello.  Proclama-se  o 
poder  pessoal  da  excentricidade,  embora  ridicula ;  da 
originalidade,  embora  extravagante ;  da  novidade, 
embora  absurda;  e  quando  se  tem  assim  embrulhado 
desatinos  e  puerilidades  em  esfarrapado  manto  de  vas- 
cosa  linguagem  vasconça,  imagina-se  subir  em  carro 
ebúrneo  ás  glorias  capitolinas.  Arago,  na  sua  AstronO" 
mia  jwpular,  fala  de  um  tal  Dr.  Elliot,  sapientissimo, 
e  ainda  mais  excêntrico,  e  que  havia  demonstrado, 
entre  outras  novidades,  ( e  com  a  mesma  evidencia  com 
que  o  estudante  de  um  observatório  astronómico  de- 
monstrou haver  ratos  na  lua  )  que  o  sol  era  habitado. 
Adergou  que  um  dia  em  que  o  doutor  estava  com  os 
seos  azeites,  matou,  num  accesso  de  cólera,  miss  BoydelU 
Não  teve  o  advogado,  Simmons,  mais  que  expor  ao  tri- 
bunal a  theoria  do  sapientissimo,  para  lhe  obter  a  absol- 
vição, por  unanimidade.  Que  a  theoria  do  doutor  fosse 
nova^  concordo,  mas  que  egualmente  nova  fosse  a 
mania  do  homem,  isso  é  que  não,  pois  remonta  lá  até 
os  tempos  do  incêndio  do  templo  de  Delphos. 

Participo-te  que  o  teu  Carlos  está  com  escarlatina; 
as  febres  andam  assanhadas. 

« 

Teu  leal  amigo 

ClNCINNATO. 


XI  15 

Epigramnias  e  madrigaes,  orlginaes  ou  imitados 

Dialogo  com.  um.  Rva.Poota 

«  —  Bocage  descreu  dos  médicos  ; 
fez-lhes  muitos  epigrammas. 
Tu,  Vate  Reverendissimo, 
aquelle  exemplo  nao  amas  ?  » 
«  —  Queres  que  eu  siga,  sem  calculo, 
exemplo  que  me  nao  quadre  ? 
Faltando  defuncto  e  exéquias, 
de  que  hade  viver  um  padre  ?  ! 

Quiniiliano. 


Um  casamonto  acsfclto 

Quizeste  casar  co'  o  Jucá, 
Matliilde;  és  mulher  de  siso. 
O  Jucá  roeu-te  a  corda; 
inda  Uie  acho  mais  juizo. 


-V  uma  actriz  qiie  enviuvou  Hontem. 

Morreu  o  esposo  da  cantora  Alpini, 
que  hoje  devia  o  Trovador  cantar. 
Quel-aem  scena  o  empresário!  O  homem  é  doido. 
Hoje  é  dia  de  rir,  nao  de  chorar. 


Oonaiçõos  cio  favor 


Se  eu  te  peço  um  favor,  para  que  o  seja, 
fal-o  !  fal-o  depressa  e  em  bom  humor  I 
Se  o  fazes  manco,  ou  tarde,  ou  de  má  cara, 
o  mérito  perdeu  ;  nao  é  favor. 


Amor  fugçindo 

Idolatro  a  que  me  foge. 
Nao  desejo  a  que  me  quer. 
Se  amor  douram  as  recusas, 
sô  menos  fácil,  mulher! 


16 

A.   um,  que   nunca  ologia  poetas  ^vivos 

Só  de  elogios  a  mortos 
nao  és,  Decio,  nada  avaro. 
Safa  !  ser  por  ti  louvado 
nao  vale  a  pena;  sai  caro. 


A.  uma  feia  <lelâm'bi<la 


Gertrudes,  tem  por  amigas 
mulheres  velhas,  ou  feias, 
ou  tortas,  ou  aleijadas, 
ou  vesgas,  ou  centopeias. 
Leva-as  comsigo  aos  theatros; 
só  taes  subjeitas  visita. 
Faz  bem,  faz  bem,  que  ao  pé  d'ellas 
alguém  dirá  que  é  bonita. 


Os  porquês  do  uma  demanda  perdida 

«  —  Tu  só  ganhas  más  demandas» 
mr.u  querido  Balthazar  !  » 
«  —  Top  !  o  mal  dos  meus  burricos 
foi  quem  me  fez  alveitar. 
Sem  justiça,  ganho  sempre. 
Com  justiça,  historia !  apanho. 
Com  ella,  fiei-me...  e  perco; 
sem  ella,  comprei-a...  e  ganho. 

Zero. 


Questões  do  dia 

O  1*  volume,  de  300  paginas,  compOe-se  do  N.  1,  de 
72  pag.  (  preço  500  rs.),  e  dos  Ns.  2  a  15,  cada  um  de 
16  pag.  (  a  200  rs.  cada  numero  ).  Para  encadernar, 
dá-se  grátis,  nma  folha,  de  rosto.  Saem  dous  números 
em  cada  semana.  Quem  desejar  que  esta  publicaç&o 
lhe  seja  entregue  em  casa,  poderá  avisar  na  loja  do 
Canto,  Praça  da  Constituição. 

Typ.  e  Lith.— Imparcial—  Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  A. 


QUESTÕES  DO  DIA 


N.  13 


RIO  DEJASEIROT  DE  OCTIBHO  DE  1811. 


Ti!n<l«-*e  am  ra*»  dos  Sr*  E.  &  H,  Liem  mo  ri.—  Traça  d»  ConstituiçSo. 
l.^a  do  rsDto. — Livraiia  Academira,  Rua  de  S.  José  n.  119 —  Lari^j  do 
Pav^  o.   Cl—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  7S.  —  Profo  20fl  reis. 


A    sessão    de  16T1. 

O    paix  foi    dotado  com    três  leis  importantes  na 

i  «âãdão    legislativa,   encerrada  em  30  de  septemhru  ul- 

I  timo.  Com  tíjfla  a  raKuo  será  a  sess^  d'este  aimo  coasi- 

Jerada   nos  anuaps  do  parlamento  brazíleíro  como  uma 

dãa   mais  importante.s  e  fecundas,  siiitlo.  talvez,  a  pri- 

meim   rora  r«ferenciu  ao   immenso  alcance  de  uma  da» 

1  lei*,  a  que  alhiilimos. 

Observemos  rapidamente  cada  uma  d'e.ssa.s  tre.s  lei». 
— ?5ii  sua  ordem  de  datas  a  primeira  é  a  que  concedeu 
'  um  credito  de  '20  mit  contos  pura  o  prolongamento  da 
I  e:strada  da  ferro,  que  pnrle  d'esta  Corte  para  o  interior. 
L  Com  o  poderoso  auxilio  que  acaba  de  receber  a  estrada 
l  de  D.  Pedro  II  terá  de  segfuir  até  o  ponto  terminal,  por 
■  'ora  assestado,  ia  prorincia  de  Miniis.  d'onde  no  futuro 
1  essa  e„'itnida  continuará  na  direcção,  que  for  entAo 
I  jnltfRiiH  mnís  conveniente  ao  tim  de  irnidiar-se  pelo  in- 
*  teríor  do  Bruzil. 

O  qoe  ora  foÍ  decretado  éjã  muito  para  o  futuro  de 
ima    parte  importante   d"essii   rira  província,  e  de  di- 
I  veraue  mnnicipioí<  dn    nito    menos    rica    provincia  de 
|S.  Paulo. 

Nau  somente  na  direcção  da  sua  linha,  romu  ainda 
nm  fw  ramaes,  que  necessariamente  terão  de  ser  crea- 
Idofi,  a  estrada  servirá  a  valiosissinios  tnteresse.s  mate- 
I  riaes  e  ecouumicos,  facilitando  ã  lavoura  e  cominer('io 
I  dos  pontos  a  que  tem  de  approveitar  um  largo  desen- 
I  TolTimenlo  de  actividade  industrial,  que  muito  seri 
^  para  fecundaras  fontes  do  trabalbo,  da  prcducçíio  e  da 
I  riqueza. 

[      Como    Consequência    oatural,  a  população   terá  de 
nmdeiiBar-se  iia-t  zonas  próximas  d'essa  grande  artéria 


2  XII 

de  viação:  o  sibilo  da  locomotiva  n'essíis  rogiões  dis- 
tantes dos  grandes  centros  commerciaes  de  beira-mar 
despertará,  com  o  seu  echo  estridente,  a  vida  agrícola 
das  populações  dissoíninadas  por  área  va.stissima,  que 
até  hoje  tem  vivido  em  lucrta  insana  cora  as  difficulda- 
des  do  isolamento,  nascidas  da  falta  de  meios  fáceis  de 
communicacão. 

Assim  os  vinte  mil  contos,  com  que  o  Estado  subven- 
ciona essa  obra  importantíssima  de  progresso,  têm  de 
reverter  ao  thesouro  com  abundantíssimos  juros;  porque 
o  augmeiito  da  producçao,  e  o  progresso  da  industria 
engrossarão  as  rendas  dos  cofres  públicos,  em  propor- 
ções muito  vantajosas. 

As  facilidades  de  communicacão  e  transporte  serão, 
também,  para  a  colonização  estrangeira,  um  muito  po- 
deroso incentivo;  e  desde  que  a  população  assim  cres- 
cer, e  que  com  o  seu  crescimento  se  desenvolver  o  tra- 
bailio  em  escala  sempre  ascendente,  e  em  suas  melho- 
res condições  e  methodos,  a  vida  da  nacao  se  tomará 
gradualmente  mais  vigorosa;  as  empresas  se  facilita- 
rão; o  povo  animar-se-ha,  tendo  fé  em  si  mesmo,  nos 
seus  recursos  industriaes;  e  a  família,  que  é  o  núcleo 
do  Estado,  se  multiplicará  convenientemente  com  os 
melhores,  e  mais  esperançosos  meios  de  existência. 

Taes  serão,  em*  substancia,  os  grandiosos  benefícios, 
que  necessariamente  devemos  esperar  da  lei  que  dotou 
a  estrada  de  ferro  de  D.  Pedro  II  com  o  credito  de  20 
mil  contos;  e  do  desenvolvimento  que  outras  impor- 
tantes estradas,  como  a  da  Bahia,  a  de  Pernambuco,  a 
de  S.  Paulo,  reclamam  egualmente  da  solicitude  do 
governo. 

Temos  robusta  fé  que  serão  attendidas,  conveniente- 
mente, até  onde  o  permittirem  os  recursos  do  Estado, 
que,  infelizmente,  não  pôde  a  um  tempo  satisfazer 
a  estas  e  outras  necessidades  de  ordem  material  e  eco- 
nómica. 

— Quanto  á  lei  da  reforma  judiciaria,a  2*  na  ordem  das 
datas,  sua  importância  é  geralmente  reconhecida:  era 
uma  necessidade  urgente  da  administração  da  Justiça 
civil  e  criminal,  e  essa  necessidade  foi  satisfeita. 

A  reforma,  intendendo  com  um  e  outro  foro,  desem- 
pachou  a  administração  da  justiça  de  certos  embaraços, 
que  a  prejudicavam  ;  estabeleceu  praxes  úteis,  consul- 
tou o  bem  do  cidadão,  deu  melhores  garantias  á  liber^ 
dade  individual;  cortou  as  delongas  dos  julgamentos 


XII  3 

nos  tribunaes  superiores;  e,  finalmente,  deu  outras  pro- 
videncias, que  a  pratica  terá  de  demonstrar  como  muito 
salutares. 

— A  lei  de  28  de  septembro,  a  ultima  votada  e  sanc- 
cionada,  marca  uma  era  nos  fastos  do  parlamento,  e  na 
vida  da  naçSo. 

Longamente  discutida  nas  camarás  e  na  imprensa,  . 
concebèram-se  sérios  temores  de  que  nao  passasse  no 
senado,  na  sessão  d'este  anno. 

Quiz  a  bôa  estrella  do  Brazil  que  assim  não  fosse:  o 
paiz  nao  permaneceu  nas  incertezas  perigosas  do  adia- 
mento de  uma  medida  de  tal  magnitude,  e  a  proposta 
do  governo  é  hoje  lei  do  Estado. 

Pede  a  j  ustiça  que  reconheçamos  os  importantes  ser- 
viços, que  nas  duas  camarás,  como  seus  muito  dignos 
presidentes,  prestaram  os  Srs.  Conselheiros  Jeronymo 
Teixeira  e  Visconde  de  Abaete 

Na  camará  dos  deputados  o  Sr.  Conde  de  Baependy, 
como  presidente,  consentira,  na  discussão  da  proposta, 
ns  mais  inconvenientes  divagações,  que  deslocavam  a 
discussão  e  exarcebavam  as  paixOes. 

Substituindo-o  na  cadeira  presidencial,  o  Sr.  Conse- 
lheiro Teixeira  teve  de  haver-se  com  esse  precedente,  e 
de  toleral-o  até  certo  ponto,  sendo  seu  grande  empenho 
moderar  a  exaltação  nos  debates,  e  cohibir  tanto  quanto 
possivel  as  divagações,  antes  toleradas;  e  n'isto  provou 
sua  muita  capacidade  para  o  lugar  honroso  e  difficii, 
em  que  a  maioria  o  coUocara. 

No  senado,  o  venerando  Sr.  Visconde  de  Abaete  pro- 
•cedeu  com  todo  aquelle  tacto  que  lhe  é  reconhecido. 
Deade  o  principio  da  discussão,  mesmo  quando  pelo  re- 
gimento d'aquella  camará  é  permittida  a  apreciação 
geral  da  lei  em  todos  os  seus  artigos,  o  dislincto  presi- 
dente fez  que  o  debate  se  circum8creveí*se  o  mais  pos- 
sível aos  assumptos  da  lei,  que  a  camará  discutia. 

Por  isso  a  discussão  n'aquella  camará  correu  plácida; 
e  da  parte  de  alguns  oradores  foi  muito  luminosa. 

Nao  é  menos  digna  de  louvor  a  constância  com  que 
o  Sr.  Visconde  de  Abaete,  o  mais  velho,  como  elle 
disse,  dos  membros  do  senado,  se  conservava  na  cadeira 
presidencial  por  õ  longas  horas.  S.  Ex.,  como  o  go- 
verno, como  todo  o  senado,  reconhecia  que  o  assumpto 
eragTavissimo,e  que  cumpria  dar-lhe  solução  na  sessão 
d'este  anno. 

Sabe-se  com  que  insistência  um  grupo  de  antago- 


4  XII 

ni8tas  da  proposta,  que  nenhum  recurso  poupava  para 
obstar  &  sua  passagem  nas  duas  camarás,  procurava 
fazer  pressão  sobre  os  ânimos  dos  legisladores,  dizendo- 
que  a  lei  nascia  do  capricho,  do  imperialhmo,  da  voU" 
tade  do  Imperador,  que  assim  queria;  e  que  uma  tal 
imposição  desvirtuava  o  mérito  da  grande  medida. 

Era  uma  arma  de  guerra  desleal,  e  de  mà  tempera;  e 
n&o  surtiu  e  nem  podia  surtir  o  premeditado.  eifeitOr 
porque  a  providencia  em  si  era  a  expressna*de  uma  alta 
necessidade  no  geral  reconhecida;  era  uma  verdadeira 
aspiraç&o  nacional:  e  si  o  Imperador  e  o  seu  governo  ser 
punham  á  frente,  levavam  em  mira  um  fim,  que  a  na- 
Ç8.0  applaudia  com  enthusiasmo,  como  attestam  os- 
quasi  diários  factos  de  manumissOes  de  escravos,  de  que 
as  folhas  públicas  dão  frequente  noticia,  praticados  em 
todas  as  provincias  do  vasto  império. 

Sobre  a  subserviência  das  camarás  à  vontade  do  mi- 
nistério,  assim   discursou  o  dístincto  e  patriótico  Sr. 
Visconde  do  Rio-Branco,  repellindo  o  que  enunciara  o 
Sr.  Silveira  da  Motta  : 

«  E'  notável,  Sr.  Presidente,  como  o  nobre  senador 
por  Goyaz  considera  o  procedimento  das  duas  camarás, 
e  suas  relações  com  o  ministério!....  Si  a  camará  (tem- 
porária) approva,  como  approvou,  esta  proposta,  n&O' 
obedeceu  aos  dictames  da  sua  consciência,  não  consul- 
tou seus  altos  deveres,  os  grandes  interesses  nacionaes; 
foi  impellida  pelo  ministeriol...  O  senado  obedece  ao 
impulso  ministerial !...  mas  o  senado  procede  conscien- 
ciosamente. » 

Ha  n'esta  contradicta  muita  cortezia,  mas  muita 
força. 

O  muito  respeitável  Sr.  Visconde  de  S.  Vicente  assim 
dizia : 

tt  O  senado  do  Brazil,  sempre  fiel  aos  sentimentos  ge- 
nerosos, dominado  sempre  por  sua  tranquilla  sabedo- 
ria, depois  de  longa  ôiscussão,  parece  desejoso,  e  pres- 
tes a  adoptar  definitivamente  o  grande  principio,  a 
grande  medida  de  justiça,  de  progresso,  e  de  civílisa- 
ção,  de  que  se  trata. 

«  Embora   a  proposta  fosse  susceptivel    de  alguns^ 
melhoramentos  em  suas    disposições  secunaarias,  ou 
detalhes,  o  profundo  critério,  o  saber  pratico  da  grmode- 
maioria  do  senado  com  muita  razão  prefere  adoptal-ai 
tal  qual,  antes  do  que  adial-a  por  meio  de  emendas. 

«  E'   porque  sabe  bem,  que  essas  disposições  ou  de- 


XII  5 

talheâ  a  todo  o  tempo  podem  ser  melhorados,  se  assim 
for  conveniente;  é  porque  sabe  bem  que  quem  vale  tudo 
é  a  disposição  fundamental,  a  idéa  capital  da  libertação 
das  gerações  futuras;  é  porque  comprehende  que  cada 
dia  de  demora  vale  o  captiveiro  para  muitos  seres  in- 
nocentes,  que  pela  primeira  vez  divisam  a  luz  do  sol 
brazileiro:  é  porque  o  addiamento  para  o  anno  importa- 
ria a  escravidão  para  vinte  ou  trinta  mil  creaturas,  que 
aliás  devem  gozar  da  liberdade.  E',  emfim,  porque  esta 
idéa  em  vez  de  ser  apreciada  pela  maioria  do  senado 
•com  fria  indifferença,  pesaria  por  modo  penoso  sobre 
•  seu  coração  e  consciência.  [Apoiados.) 

c(  E'  porisso,  e  não  por  qualquer  outra  razão,  que 
essa  maioria  não  quer,  nem  admitte  emendas.  (Apoia- 
dos.) Nao  é  por  fazer  ou  não  o  gosto  ao  ministério.  Ainda 
quando  o  ministério  adoptasse  alguma  emenda,  ao  me- 
nos eu,  e  alguns  amigos  não  a  adoptariam  os.  [Apoiados.) 
Fiquem,  pois,  certos  os  nobres  opposicionistas,  que 
não  teem  mais  independência  do  que  os  membros  da 
maioria. 

«Como,  é  portanto,  que  o  illustre  senador  peia  Bahia 
se  julga  auctorisado  a  dizer  que  o  senado  se  rebaixa,ou 
se  reduz  a  mera  chancellaria  ?  E'  uma  expressão 
offensiva,  que  sinto  ouvir  dos  lábios  de  um  senador ;  e 
se  alguém  se  rebaixa,  então  será  quem  pronuncia  tal 
phrase,  e  não  o  senado. 

«Complete  este  o  seu  alto  e  nobre  pensamento, e  pou- 
cos dias  depois  ninguém  mais  nascerá  escravo  no  Bra- 
zil;  poucos  dias  depois  a  escravidão  começará  a  dimi- 
nuir até  que  se  extinga  totalmente,  e  para  sempre, 
como  exige  a  honra  e  a  moralidade  de  nossa  pátria.  A 
idéa  capital  é  tão  santa  que  uma  vez  decretada  será 
irrevogável:  por  certo  ninguém  quererá  encarregar-se 
de  propor  a  sua  impossível  abrogação.  »> 

Os  sentimentos,   que   enunciou  o   Sr.   Visconde  de 
S.  Vicentií,  foram  os  que  influirain  na  firme  maioria  da 
camará  dos  deputado.^,  e  no  animo  do  senado. 
Foi  assim  que  sempre  apreciámos  a-  proposta. 
O  governo  tem  agora  sobre  os  seus  hombros  tarefa 
muito  e  muito  espinhosa. 

>ía  execução  da  lei  tem  de  arcar  com  os  maiores  em- 
baraços. 

w 

o  governo  inostra-se  de   todo  possuído  da  grandeza 
de  sua  missão. 

JUNIUS. 


6  XII 

OI>x*as  cie  Senlo— O  Oaúclxo 

(Cartas  a  um  amigo). 

VI. 

Meu  amigo. 

Tencionava  concluir  n'esta  carta  as  minhas  conside- 
rações sobre  a  obra  de  SeniOf  mas,  chegando-me  ás 
mãos  o  segundo  volume,  não  quero  deixar  de  o  chamar 
á  fala,  ou  antes  de  o  receber  com  as  honras  do  estylo. 

O  auctor  vem  sangrando-se  na  veia  da  saúde  com 
estas  palavras  da  sua  nota  final : 

«  N5o  faltará  quem  increpe  o  livro  de  inverosímil,  na  parte 
relativa  ao  cavallo.  Duvidar  hoje,  depois  de  tantos  factos  c  de  tão 
respeitáveis  testemunhos,  dos  resultados  admiráveis  do  ins-. 
tincto  dos  animaes,  é  uma  excentricidade,  que  não  vale  a  pena 
de  refutar.  Demais,  n*este  livro,  a  maior  parte  dos  actos  intel- 
lipentes  praticados  pelo  cavallo  são  antes  attribuidos  pelo  Gaú- 
cho ao  animal,  do  que  attestados  pelo  escriptor.  » 

O  que  nao  vale  a  pena  de  refutar  é  a  filigrana 
de  se  eximir  da  responsabilidade  d'esses  actos  o  auctor, 
a  titulo  de  serem  elles  attribuidos  pelo  Gaúcho  aos  ani- 
maes, e  nao  attestados  pelo  escriptor.  Longe  de  importar 
islo  uma  justificação,  aggrava  a  situação  do  escriptor, 
qu^í  não  encontra  em  si  mesmo  vslzv^s  para  confirmar 
os  devaneios  de  sua  pbantasia. 

Quanto  a  nós,  é  cousa  que  a  boa  critica  menos  tem 
que  indagar,  si  as  asserções  são  attestadas  pelo  auctor 
da  obra,  si  são  deixadas  á  mera  conta  dos  personagens. 
N'uma  obra  em  que  o  escriptor  se  limite  a  fazer  as 
descripções  meramente  essenciaes  de  tempo  e  logar, 
deixando  esclarecer-se  o  mais  à  conta  do  dialogo,  nem 
por  isso  terá  elle  men'>s  responsabilidade  moral  e  lit- 
teraria. 

Pelos  dialo^*os,  p^^las  idéas  n^ellos  emittidas  e  trava- 
das, á  que  principalmente  se  Iride  conhecer  o  caracter 
de  cada  figura.  Não  será  d'.)  que  o  auctor  afflrma  ej- 
auctorttaie  sua  qilíí  se  deduzirá  m  exoellencia  ou  infe- 
ri()ridad(5  da  concepção. 

Si  uin  auctor  preconisar  o  exaltar  muito  os  mereci- 
mento.í  de  um  personagem,  que  no  desenvolvimento 
da  a^^ção  não  corresponder  pelas  suas  obras  ás  premis- 
sas, não  prevalecerá  a  recommendação  do  auctor,  sinão 
o  que  se  deduzir  do  papel  desempenhado  pelo  persona- 
gem. 


XII 


E  quando  o  escriptor  se  propOe  a  dar  um  typo  nacio- 
nal e  verdadeiro,  cora  maioria  de  razão,  nâo  se  pode 
de  bòa  fé  abstrahir  d'essa  responsabilidade  legitima  e 
intuitiva.  Se  o  Senio  nos  declarara  dar  uo  seu  Gaúcho 
o  typo  de  um  contador  de  petas  para  divertir  agente, 
calar-nos-hiamos  ;  no  caso  contrario,  não  ;  tenha  paci- 
ência. 

Demais,  contestamos  que  a  maior  parte  d 'esses  actos 
inlelligentes  seja  attribuida  pelog-a^cho  aos  animaes; 
não,  a  maior  parte  é  attestada  pelo  auctor  ;  abre,  meu 
amigo,  qualquer  dos  dous  volumes,  e  vêl-o-hàs. 

Mas  disse-nos  iV/*i'o  que  NÃO  vale  a  pena  refutara 
excentricidade  de  quem  duvida  dt'S  admiráveis  resulta- 
dos do  inslinciodos  animaes\  certamente,  e  muito  menos 
nós  o  duvidaremos.  L-rge,  porem,  estabelecer  a  devida 
diátincção  ;  uma  cousa  é  o  resultado  do  puro  instincLo 
atiitnal^  e  í)utra  a  funcção  reflectida,  judiciosa,  da  fa- 
culdade humana  de  conhecer^  ou  do  entendimento, 

Todcs  os  actos  que  increpamos  ao  primeiro  volume  do 
seu  fiaúrho  não  só  importam  operações  da  razão,  mas 
de  uma  razão  tisclarecída  e  sã  —  conquista  de  civilisa- 
ção  adiantada,  e  tamb^nn  do  sentimento  mais  humano, 
mais  jusU>,  mais  apurado,  sempre  presidiíK)  polacons- 
rieucia  da  mais  fina  moral,  antithese  do  ('anho. 

Nã')  me  demorarei  em  fatigar  a  tua  paciência,  repe- 
tindo os  trechos  que  ficam  desonvolvidauitíute  aj)rocia- 
dos  e  julgado.s.  No  entanto,  como  compleme.iitj  ás  no- 
tas jà  adduzidas,  citarei  ainda  os  seguint-^s  passos  do 
ullimo  volume  d3  ^''/•W7//j,que  :igora  niesiuo  arabo  de 
ler  : 

1".  o  reconhecimeuto  do  L'icas  pelo  Murzollo,  pag. 
•37  ;  "2".  a  baia  reboar  que  o  fjgo  desse  signal  ao  ini- 
mit'*o,  pag.  11(5  :  3".  ficar  escondido  ni  restinga  cada 
animal  da  tropilha,  k  espera,  que  o  Tanho  fizesse  o 
sÍLf*nal  de  chauial-  )S,  pii;r.  lOò  e  141  ;  4".  sentir  o  Jucá 
ter  sido  reconhecido,  não  ter  p:)r  isso  necessidade  mais 
ih*  erumu  lecfT,  e  soltar  o  nitrido,  pag.  210  ;  Jnca  e 
Morena  repararem  no  movimento  do  C:»nho,  farejanMu 
o  cbão,  e  ao  sahirda  villa  já  conhecerem  a  pista  do 
^av  illo  d»'  I).  Romero  tão  bem  como  o  gaúcho,  pag. 
•J2G.  .lá  o  (riiicho  conhecer  o  rosto  de  um  animal  que 
elh'  vira  i>onais  rezes  tem  o  que  s^^  lhe  diga. 

Haverá  (|uem  creia  que  todas  estas  operaçOv^s  de  uma' 
razi  j   activa    e    previdente,  desenvolvida  e  perspicaz. 


8  XII 

«ejam  actos  de  mstincto  animal  ?  Senio  o  dirá  de 
bôa  fé  ?  Quem  melhor  se  quizer  convencer  do  prodígio, 
leia  a  obra. 

Declaro  que  muito  poderia  produzir  ainda  para  prova 
das  impugnações,  o  que  deixo  de  fazer  por  já  me  achar 
em  extremo  fatigado  e  até  enojado  da  matéria,  por 
si  mesma  tao  pouco  agradável  para  a  quem  quer  que 
for  deter  por  mais  tempo.  Seja-me,  porém,  licito  a- 
venturar  uma  apreciação  synthetica  da  obra,  encaran- 
do-a  ao  mesmo  tempo  sob  outro  aspecto. 

Diz  Senio  em  sua  alludida  nota  ultima  c^ue  «o  1". 
volume  é  o  desenho  de  um  grande  scenario,  o  esboça 
de  um  caracter  vigoroso,  cuja  exuberância  ainda  nao 
foi  revolta  e  propellida  pelo  esto  da  paixão;  que  no  2". 

volume  começa  o  drama. 

« 

Nao  é  as.sim:  a  obra  divide-se  em  quatro  livros,  inti- 
tulados— 1°.  O  Pião;  2°.  Jucá;  3°.  Morena;  4".  Huppa  ! 
Os  três  primeiros,  o  auctor  gastou-os  em  preparar  a 
acção,  que  verdadeiramente  nao  apresenta  interesse 
algum  sinao  no  ultimo  livro.  Antes  doeste  não  ha  movi- 
mento que  seriamente  preoccupe  o  leitor,  posto  que  al- 
gumas circumstancias  destacadas  nao  deixem  de  o  im- 
pressionar. 

Por  exemplo  :  um  subjeito  que  joga  a  amante  no 
pacáu,  cousa  nao  só  pouco  verosímil,  como  de  máo 
gosto,  sob  o  aspecto  estethicol  a  coUocação  de  uma 
cruz  sobre  a  sepultura  de  um  cavallo,  como  se  fora  a  de 
um  christão  !  unia  velha  que  esld  ainda  de  camisa  à  beira 
do  rio,  com  medo  de  entrar  no  banho  !  a  Catita  a  pôr 
em  seu  regaço  a  cabeça  da  ^lorena  e  cobril-a  de  cari- 
nhos  e  lagrimas  l  Outra  vez  a  Catita  a  arrostar  a  voraci- 
dace  dos  cães  chimarrões  por  amor  da  égua,  e  que  seria 
victimados  molossos,  um  dos  quaes  jà  começara  a  des- 
pedaçar-llíe  a  saia,  si  não  passa  jrrovidenciaJmenie  uma 
vacca  ferida,  que  os  attrahiu  para  longe  !  finalmente  o 
grande  amor  do  Canho  a  Catita,  tendo  soe  absoluta- 
mente só  por  origem  a  affeição  da  moça  á  Morena.  Si  a 
moça  não  trata  da  égua,  o  Canho  a  nao  amara  nunca  ! 
Nao  podia  ter  flin  diverso  do  que  teve  um  amor,  que 
nascera  sob  taes  auspícios. 

Has  de  permittir-me,  meu  amigo,  que  transcreva  aqui 
as  palavras  sentidas  do  Canho,  que  as  proferio  de  joe- 
lhos  ao  lado  do  corpo  da  Morena  ferida.  Admira  est^ 
rasgo  do  sentimento  épico  e  sensato  do  gaúcho,  que  nao 


mi  9 

66  pôde  ler  sem  se  sentirem  as  lagrimas  acudir  aos 

olhos  : 

«_A.ssim  devia  ser '.—balbuciaram  seu?  lábios  frouxos.— 
Vivemos  juneto8,morreremosjuiictos,no  mesmo  dia.  Murzello, 
nosso  velho  amigo,  foi  o  primeiro;  deixou-nos  esta  manhã. 
Tíós  ficámos  para  \ingal-o  ;  elle  deve  estar  contente,  (  Porque 
não  ?  Si  estava  no  céo...  Vid.  a  pag.  172. )  Jucá,  a  esta  hora 
talvez  já  esteja  com  o  padrinho  í  Quem  era  esse  heróe  T  j  ;  já 
terá  conhecido  o  pae  e  o  mano.  A  bala  sem  duvida  traspassou- 
Ihe  o  coracáo,  porque  nfto  soltou  um  gemido,  nem  chamou  por 
ti  nem  pôr  mim  ;  foi  mais  feliz ;  nSo  soffreu  como  tu.  Mo- 
rena {  » 

Conheces  typo  de  simplório  mais  perfeito  do  que  este 
-Canho  ?  ! 

Continua  a  laxjientação  do  bravo  e  másculo  gaúcho: 

«—Foste  tu  çueni  te  mataste,  amiga,  e  para  salvar-me  !  A 
bala  em  vez  de  atrazar  a  carreira  te  deu  azas  ;  sentiste  que  me 
perseguiam,  e  voaste  para  me  pôr  fora  do  alcance  do  inimigo. 
£  nem  um  gemido,  nem  um  signal  por  onde  conhecesse  que 
estavas  ferida  !  Ah  !  se  eu  adivinhasse/  Para  que  fugirmos  ? 
Melhor  era  morrermos  ambos,  combatendo,  e  vingando  o  nosso 
Jucá  !  Eu  só,  nfto  terei  forças  nem  coragem  i  Que  vale  um 
homem  meio  morto  ?  eu  já  morri  no  Murzello,  já  morri  no 
Juea;  quando  acabar  de  morrer  em  ti,  que  fico  sendo  ?  Uma 
cabeça  sem  corpo  (  nego;  um  coipo  sem  cabeça  como  sempre 
foi )  *;  uma  mfto  sem  braço  /  Entáo  melhor  é  dormirmos  juiictos 

no  seio  da  terra,  » 

• 

Estás  alagado  em  pranto,  meu  amigo  ? 

Senio  fez  que  os  melhor  intencionados  críticos  e  a- 
niigos  calassem  das  nuvens.  Todas  as  espectativas  fa- 
voráveis à  obra  foram  enganadas. 

O  segundo  volume  veio  esmagar  os  mais  resplande- 
centes castellos  ;  dissipar  as  mais  brilhantes  esperanças 
cios  folhetinistas  benévolos,  concebidas  por  sympathia 
sem  dúvida  ao  auclor,  com  a  publicação  do  pri- 
meiro. 

L'ra  d'esí»es  escriptores  disse  : 

«  O  episodio,  que  constitue  o  romance  de  Manoel  e  Catita, 
acha-se  apenas  esboçado;  provavelmente  no  segundo  volume, 
que  ainda  nfto  appareceu,  ficará  accentuado  aquillo  que  já  se 
entrevê. 

«  Com  que  mimo  e  delicadeza  é  apresentada  a  travessa  me- 
nina, que  consegue  domar  a  indomável  natureza  do  filho  dos 
pampas  ! 

Outro  disse : 

<»  O  perfil  de  Catita,  o  lyrio  do  matto.  appareoe  no  meio  d'a- 
ouellas  contorsões,  combates,  perigos  e  lagrimas,  como  o  vulto 
d-  uma  estrella  limpida  resplandecendo  ua  tempestade.  » 


10       .  XII 

Engano  de  ambos.  Nao  foi  a  travessa  menina  qnera 
domou  a  indomável  natureza  do  gaúcho;  o  auctor 
negou  a  este  desgraçado  Canho  a  misericórdia  de  um 
sentimento  sublime,  despertado  exclusivamente  pela 
mulher  ;  o  gaúcho  amou  Catita,  porque  Catita  mostrou 
compadecer-se  daegut». 

Também  Catita  nao  é  o  lyrio  do  matto,  a  estrella 
limpida  resplandecendo  na  tempestade.  E'  uma  mulher 
vaidosa,  que  acceita  a  corte  de  Romero,  que  com  ellp 
conversa  á  janella,  e  por  quem  se  perde  afinal. 

E'  ainda  astuta  e  velhaquèta,  que  pretende  illudir  o 
Manoel  com  os  versos  de  sentido  dúbio  ou  duplo,  que  se 
applicam  também  ao  castelhano  : 

((  Ai.  nao  fuja,  nao,  meu  bem, 
«  Que  me  mata  esse  desdém.  » 

Conclusão:  nao  havia  sinceridade  no  amor  de  Catita; 
nao  havia  espontaneidade  nem  exclusivismo  no  amor 
de  Canho.  Misérrimas  concepções  \  Cada  qual  mais 
triste  e  deplorável  ! 

Disseram  mais  os  escriptores  referido.s  : 

«  Tratando  de  Bento  Gonçalves,  que,  adivinha-se,  terá  de 
representar  um  grande  papel  no  seu  romance,  .José  de  Alencar 
dá-lbe  ura  caracter  épico  e  esculptuAl.  cobrindo  de  veneração 
o  grande  homem  do  seu  paiz. 

«  O  perfil  do  coronel  Bento  Gonçalves,  que  vai  formar  » 
base  primordial  do  segundo  volume  ào  Gnúrho,  está  delineado 
com  mâo  de  mestre.  » 

Engano  de  ambos.  Nem  Bento  Goncalve.s  rejiresoita 
nrn  grande  papel  no  romance^  nem  Bento  (lonçalves 
vai  formar  a  bcise  primordial  do  seginido  rohivto  do 
Gaúcho. 

O  auctor  passa  por  cima  do  nome  e  das  l^uli(;(H^^,  e, 
posso  até  dizer,  da  historia  do  grande  brazib^n»,  como 
galo  \)ovlrrazas.  Sempre  o  defeito  característico  :  des- 
preza a  fonte  perenne,  inexgotavel,  para  ir  pedir  al- 
gumas gôttas  ao  arroio  estanque;  deixa-se  a  historia  e 
a  natureza,  e  soccorre-se  ao  apoucado  capricho  t»  k  ima- 
ginação exhausta. 

«  Quanto  á  parte  histórica,  o  auctor  foi  mais  solunotlo  que 
desejava,  e  quiçá  do  oue  esperava  o  leitor  ;  limito-me  a  atra- 
vessar de  relance  o  prologo  da  revolução  rio-grandense.  n  Vui 
Sento  que  acabou  de  fallar. 

Todos  ficam  boqui-abertos,  menos  o  que  escreve  »'stas 
linhas.  Atravessar  de  relance  o  prologai  Nem,  ao  meno.<. 


XII  11 

teve  em  consideração  as  previsões  para  dar  algum  de- 
senvolvimento á  parte  histórica  e  ás  espectativas  do 
publico.  Tudo  quanto  pOe  ligeiramente  em  scena  com 
relação  k  revolução  é  incompleto,  minguado  e  depri- 
mido. 

«  A  isso  o  obrigaram  seus  escrúpulos;  trinta  e  cinco  annos, 
menos  de  meio  século,  não  bastam  para  archivar  factos  e  per- 
sonagens t&o  lijprados  ainda  ao  presente  pelos  vínculos  das 
paixões  e  da  familia  »  eis  a  razão  ciada  por  Sento, 

Uma  cousa  te  digo,  meu  amigo,  vem  a  ser :  que 
poucos  se  julgarão  com  pulso  para  pôr  a  mao  n'essa 
ceara,  d^ouue  lia  épicos  fructos  a  colher. 

Ninguém  dirá  que  o  Gaúcho  nSo  seja  uma  espiga. 

Mas  devo  declarar-te  com  franqueza:  os  fructos  pecos 
e  fanados  só  servem  para  mais  sensivel  nos  tornarem  o 
damno  da  abundantíssima  e  excellente  messe,  que  se 
perde  nos  campos  nataes,  á  míngua  de  um  segador 
idóneo. 

O  tempo  no-lo  trará  decerto.  Nao  desanimemos. 


éC 


[Continua) 


Uncleciíràa  car*ta 

DO  ROCEIRO  CINCINNATO  AOCIDADÃO  FABRÍCIO 
Rio  de  Janeiro,  6  de  Octubro  de  1871. 

Preclaro  amiíro. 


'tD 


Passei  uns  dias  sem  caturrar  comtigo,  e  já  tinha  sau- 
dades dVste  nosso  cavaco  ;  vamo-nos  a  elle. 

O  projecto,  geralmente  almejado,  é  lei.  Deixemos  o 
paiz  regosijar-se  com  a  nova  e  honrosa  era,  que  os  le- 
gisladores lhe  depararam;  o  governo  receber  os  testi- 
munhos  internos  e  externos  da  gratidão  da  huruani- 
dadíí;  e  todos,  como  cada  um,  prepararem-se  para  a  es- 
plendida transformação  social.  P]  visto  que  voltamos  a 
l«mpi)s  normaes,  é  chegada  a  occasifio  de  concluir  eu  o 
paganiíuito  de  uma  divida. 

Já  nas  minhas  ò».  e  6*.  carta,  de  20  e  2'2  de  ao-osto, 
escriptas,  apenas  o  Jornal  do  Connuercio  deu  o  leor  da 


m 


XII 

interpellaçao  do  Sr.  Aleucar,  repuUi  a  série  de  invecti- 
vas, falsidades  e  calumaias,  que  (  de  logar  onde  me 
uao  era  possível  dar-lhe  resposta,  aliás  o  mo  ousaria) 
imaginou  derramar  .-lobre  mim,  se  é  certa  a  iatençao 
que  g:eraImeDle  se  lhe  altribue. 

Eutre  essas  amenidades,  disltnguiram-seas  seg:uiri- 
tes:  X  —  Não  dou  a  menor  imporlancia  a  esses  escriptos, 
nem  a  seu  auctor.  —  «  Rabulices  litterarias,  de  que 
lenho  nojo  »  —  Esse  estrangeiro  acoompanhou  a  dis- 
cussão como  acolyto  w  —  «  .  o  seu  iusulso  arauzel  n — 
suisso  da  penna  »  —  «  cavalleiro  de  injuria,  para  pagai* 
arj  qual  se  despeja:u  tis  coffres  públicos  »  —  «  aventu- 
reiro ))  — «pertende  surg-ir  do  despréso  publico  em  que 
caiu.  n  —  «Os  meus  adversários  [  mercê  de  Deus  j  nSo 
sao  d'aquella  urdem.  »  —  «O  Presidente  do  Coaselho 
abriu-lhe  o  Tbesouro,  que  oHtr'ora  se  lhe  fechou,  n 
— II  Hade  prestar  a  outros,  e  por  erjual  vazão,  o  mesmo 
serviço  que  ora  está  prestando,  ii  —  "  Penna  mercená- 
ria, n  — «  Assalariado  »  etc.  etc. 

Está  o  extracto  feito  com  lealdade,  e  condensado  por 
tal  arte  que  a  injuria  omDÍmodae.-iguicha  que  nem  agua 
da  fonte  de  compressfio^  Estimo, estimo:  e  se  novamente 
desenrolo  o  sudário,  é  porque  me  pesaria  que  ulguem 
desconhecesse  o  inqualificável  e  ferino  das  provoca- 
ções com  que  correspondeu  ás  maiores  provas  de  cor- 
tezia  e  deferência,  quem  fugiu  do  terreno  para  onde 
chamara.  Eu  que  almejo  por  tratar  cora  respeito  ti 
todo  o  género  humano,  para  merecer  tratamento  egual, 
uao  quizera  se  desconhecesse  um  momento  a  força 
maior,  que  rae  constrangeu  a  mudnr  de  linguagem 
para  com  quem  gratuitamente  me  vilipendiava  e  ca- 
íiimniava.  Ha  homens,  que  é  preciso  pôr  no  seu  lugar. 
Declarei  pois,  desde  logo,  que  levantava  a  luva,  com 
a  differença  de  que  uao  pagaria  injuria  com  injuria,  e 
mil  vezes  menos  calumnia  com  calumnia;  que  agrade- 
cia a  rudeza  com  que  se  saltava  por  sobre  tDdaa  as 
considerações,  auclorizaiido-me  a  saltar  por  sobre  al- 
gumas ;  que  parem  aj  .ivstema  adverso  de  invenEor 
factos  deshonrosod,  corresponderia  com  o  systema ju- 
rídico de  allegar  e  provar. 

Curvei-me  ante  a  condemnaçfto  da  mínha  intelligea- 
cia,  mas  nao  ante  a  da  rainha  probidade,  fsao  appeliei 
da  sentença,  que  m^  giroclamava  rábula  litterario,  es- 
Irangeirj  acolyto,  auctor  à.i  aranzeis  insulsos,  e  digno 
do  dcspi'i3so  (io  chauceller  das  ri;p«taç<les.  Tudo  isso 


XII  13 

sao  apreciações  intellectuaes,  em  que  S.  Ex.  pode  ou 
nflo  ssr  acompanhado  pela  opiniaof  acceito  tudo  das 
dadivosas  mãos  de  S.  Ex.,  inclusive  o  diploma  de 
parvo. 

Agora,  o  que  nHo  acceitei  com  egual  humildade,  foi 
o  restante  autem  genuit  de  accusações  de  facto,  d'aquel- 
las  que,  uma  vez  proferidas,  ou  deshonram  o  accusado 
com  o  stygma  de  miserável,  ou  o  accusador  com  o  fer- 
rete de  calumniador.  Declarei  eu  immediatamente  que 
convidava  o  arrenegado  orador  a  despir-se  das  suas 
í  elásticas  )  immunidades,  a  repetir  as  mesmas  argui- 
ções pela  imprensa,  protestando-lhe  eu  habilital-o  no 
mesmo  dia  a  dcsmascarar-rae,  provando  nao  todas,  mas 
uma  única  das  suas  increpaçOes  de  mercenário^  assalor- 
riado^  cavalleiro  dHiyuria,  s7iisso  da  penna  para  quem 
se  despejam  os  coffres  públicos^  a  quem  o  Thesouro  ou- 
Ir  ora  se  fechou  e  se  abrnn  arjora  etc.  etc.  Que  nome  me- 
rece quem  vem  à  praça  com  linguagem  d'estas,  e  con- 
vidado pela  sua  victima  a  justificar  as  suas  palavras, 
treme  de  repetir  f^ora  responsabilidade  aquillo  que  sem 
responsabilidade  barateia? 

Se  me  não  posso  lisonjear  de  gabar-lhe  outras  qua- 
lidarlos,  ao  menos  a  da  prudência  merece  os  meos  prol- 
façrt.s.  R*íalmente  faz  muito  bem,  porque  a  invenção 
foi  triste,  porque  só  a  immunidade  parlamentar  (?)  a 
tornou  impune,  e  porque,  barafustasse  o  accusador 
quanto  quizesse,  nunca  acharia  um  pretexto  sequer 
para  as  suas  ousadas  asserções. 

Se  S.  Ex.*  quizesse  dar-se  ao  incommodo  de  occupar 
os  seus  espias,  e  se  elles  o  nao  illudissem,  dir-lhe-hiam, 
de  Cincinnato,  ou  de  quem  quer  que  neste  nome  se 
chrismasse,  o  seguinte : 

—  E'  falso  que  cUe  seja,  nem  jamais  fosse,  assala- 
riado por  ninguém,  nem  noBrazil,  nem  em  parte  al- 
guma, do  mundo.  Nunca  poz  a  sua  penna  (  de  ouro, 
ou  de  chumbo,  isso  não  é  o  caso)  á  disposiç&o  senão  das 
suas  convicções.  Tem  pejado  os  prelos  com  dezenas  de 
volumes,  impressos  sempre  á  sua  custa,  ou  de  seus  edi- 
torei. Tem  superintendido  a  redacção  de  7  folhas  perió- 
dicas, durante  largos  annos ;  tem  sido  escriptos  seus 
accolhidos  em  mais  de  30  jornaes,  allemSes,  francezes, 
portuguezes,  brazileiros,  sem  que  jamais  recebesse  es- 
tipendio algum  por  estas  col laborações,  e  sendo  pro- 
priedade sua  as  folhas  que  superintendeu.  Doeste  cons- 
tante procedimento  em  nada  destoa  o  recente:  ninguém 


i4  XII 

lhe  offereceu,  niaguem  lhe  ousaria  offerer^M'  espécie 
alguma  de  remugieraçao  por  seus  pobres  escriptos,  jà 
pelo  cavalheirismo  inconcusso  de  quem  taes  offereci- 
mentcs  houvesse  podido  verificar,  já  pela  certeza  pré- 
via de  que  bastaria  o  mínimo  vislumbre  que  a  tal  pro- 
posta se  assimilhasse,  para  o  fazer  não  molhar  a  penna 
em  tinta,  mas  quebral-a. 

E  mais  lhe  diriam  os  mexeri^^ueiros  : 

—  E'  egualmente  falso  o  tal  escaucaramento  do  The- 
souro,  pois,  após  as  mais  minuciosas  pesquisas,  achá- 
mos, que  Cincinnato  nunca  directa  ou  indirectamente 
d'alli  recebeu  um  ceitil,  que  nao  proviesse  de  poderes 
conferidos  por  credores  que  o  eram  por  leis  ou  senten- 
ças; que  ha  muitos  annos  e  até  hoje,  nem  mesmo  nestas 
legitimas  qualidades  tem  levantado  nada  ;  e  que  final- 
mente nao  tem  lá,  nem  por  si,  nem  por  procuração  de 
terceiro,  requisição  ou  pertençao  de  espécie  alguma. 

Parece  ser  tudo  isto  assaz  positivo,  e  que  um  dos 
dous  falta  á  verdade  ;  qual  será? 

Sem  applicaçao,  e  só  coma  pratica  entre  nós  ambos, 
dir-te-hei  que  em  algumas  de  minhas  recentes  leituras, 
impressionaram-me  certos  estudos  retrospectivos.  As- 
sim li  eu  que  no  tempo  dos  imperadores  romanos,  já 
quando  se  considerava  extincta  toda  a  vida  publica,  o 
famoso  direito  de  accusaçRo  privada  deu  origem  aos 
abusos  mais  odiosos,  e  o  papel  de  accusador  tornou-se, 
sob  o  nome  de  delação,  tão  lucrativo  como  infame. 
«  V.yt  isso,  uma  das  mais  bellas  creações  do  génio  mo- 
derno (  diz  a  Noxm  Encyclopedia)  é  indubitavelmente  a 
instituição  de  um  ministério  publico,  orgam  da  lei  e 
representante  da  sociedade,  substituindo  as  accusações 
particulares,  eivadas  geralmente  de  sentimentos  ranco- 
rosos ou  de  interesses  egoistas.  » 

Depois  de  affirmar  que  a  obrigação  do  denunciante» 
é  dirigir-se  abertamente  á  justiça,  e  appresentar-lhe  as 
provas  de  suas  asserções,  Montesquieu  chama  bem  a 
attençao  para  este  memorável  uso  :  «  Em  Roma,  o  ac- 
cusador injnslo  era  notado  de  infâmia.  » 

Nós  cá,  se  já  tivemos  na  lei  a  marca  L  para  certos 
casos,  nunca  tivemos  a  marca  C  para  calumniadores  ; 
mas  se  é  certo  que  hoje  nos  parlamentos  reside  seu  quê 
de  soberania,  e  tanto  que  os  Deputados  sao  Augustos^ 
e  tem  o  rei  na  barriga,  lembrar-te-hei  que  a  nossa  or- 


XII  15 

denaçao  nao  era  tao  imprevidente  como  isso,  pois  no 
L.  V.  tit.  10,  alli  diz  o  competente  Augusto  :  «  Man- 
damos que  toda  a  pessoa  que  nos  vier  dizer  mentira, 
em  prejuizo  de  alguma  parte,  seja  degradado  2  annos, 
e  pague  20  cruzados  para  a  parte  em  cujo  prejuizo  nos 
assim  disse  a  mentira,  e  mais  ficará  em  arbitrío  do 
julgador  dar-lhe  mór  pena,  e  julgar  á  parte  sua  inju- 
ria, se  for  caso  d'injuria.  » 

Graças  a  Deus,  que  as  luzes  do  século,  a  liberdade 
da  lingua,  a  inviolabilidade  dos  inventores,  as  con- 
veniências sociaes,  e  o  monde  marche^  tudo  isso  subs-  ' 
tituiu  o  eterno  direito  pelo  direito  novo  ;  e  d'estar'te  as 
sociedades  marcharão  avante  por  uma  estrada  real  ; 
se  uâo  for  a  da  civilisaçao,  será  a  de  Pantana  ! 

Paro  aqui.  Logo  terei  occasiao  de,  estupefacto,  per" 
guntar-te  quem  é  a  bocca  d'onde  saíram  taes  accusa" 
•ções...!  por  hoje  nao  compliquemos. 

Teu   dedicado 

ClNCINNATO. 


"Epigraramas  e  madrigaes,  originaes  ou  imitados 


Dua  troca 


Eu  mandei-te  uns  pobres  versos  ; 
(  Tiveste  a  bilha  de  leite  ). 
Mandas-me  um  presente  esplendido. 
(  Graças  &  bilha  d' azeite  I  ) 


Jk.  uma    moça,  qu.o  sotore  a  sua  otlad.e,  mento  sempro 

«  —  Quantos  annos  fazes,  Ânna, 
neste'dia  afortunado  ?  » 
«' —  Dezoito.»  —  «  O  que!  Vinte  e  cinco 
fizeste  o  anno  passado.  » 


16  XII 

((  —  Quantos  ânuos  fazes,  Anna  ^  » 
ft —  Este  é  o  vigessimo  quinto.  » 
«  —  Dizes  sempre  isso  ha  dez  annos  !» 
«  —  Pois  ahi  vê  que  nao  minto.» 

«  —  Quantos  annos  fazes,  Anna  ? 

«  —  Hoje  faço  dezesepte.  » 

«  —  Nao  me  admira,  não  me  admira; 

essa  continha  promette. 

Fizeste  vinte,  ha  dous  annos; 

no  passado,  menos  um; 

indo  assim...  em  poucos  annos, 

.nao  fazes  anno  nenhum.  » 

Zero. 


Ao  ou-vir-se  que     a  IRA.OE:>i  A  ia  sor  trasladaOi 

a    Italiano. 


Là    vao  verter  a  Iracema 
em  grego,  e  latim,  e  inglez. 
Se   eu  fosse  o  auctor  do  poema, 
vertia- o    em    portuguez. 

Themislocles^ 


Typ.  e  Lith.^IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Setembro,  146. 


QUESTÕES  DO  DIA 


isr..  13 


RIO  DE  JANEIRO  12  DE  OCTUBRO  DE  1871. 


Veode-se  %m  casa  dos  Srs.  E.  &  H.  Laemmert. —  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto.— Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119 — Largo  do 
Paço  n.  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis. 

rrendeneias  desor^ganisadox^as 

O  que  a  constituição  regulou  sobre  a  existência  po- 
litica da  sociedade  brasileira  assenta  om  tao  solidas 
bases  de  verdadeira  sabedoria,  que,  alliando  no  interior 
a  ordem  e  a  liberdade,  serve  de  exemplo,  attrahe  aat- 
tençao,  e  o  respeito  dos  povos  estranhos. 

No  entanto  ha  um  circulo  de  innovadores,  que, 
apresentando,  com  deturpação  clamorosa  da  verdade, 
este  paiz  em  lucta  incessante  com  a  influencia  de  um 
elemento  desorganisador  da  liberdade  politica,  pre- 
tende, com  insistência,  inocular  no  espirito  do  povo 
principios  erróneos,  e  .subversivos  da  monarchia  re- 
presentativa. 

As  idéas  republicanas  estão  desde  muito  desaccredi- 
tadas  no  Brazii  ;  e  nao  será  hoje  que  conseguirão  fazer 
fortuna  ;  porque  hoje,  mais  que  em  tempo  algum,  o 
prestígio  da  monarchia,  como  foi  pautada  pela  nossa 
constituição,  acha-se  justamente  firmado  na  pessoa  do 
actual  imperante,  e  na  augusta  familia,  cujas  virtudas 
o  Brazii  admira. 

As  idéas  republicanas  foram  já  vencidas  pelos  prin- 
cipios suos  da  nossa  forma  de  governo,  quando  preten- 
deram os  seus  coriphêos  irapol-as  com  a  denominada 
reimbíica  do  Equador  em  1824,  com  a  sabinada  na  Ba- 
hia, em  1837,  e  com  a  republiqueta  de  Piratinim,  nos 
primeiros  annos  do  actual  reinado. 

As  idéas  republicanas  cahíram  em  justo  descrédito 
com  esses  e  outros  movimentos  políticos, em  que  sempre 
triumphou  a  ordem  constitucional  da  monarchia  repre- 
sentativa. Hoje  essas  idéas  pretendem  rehabilitar-se. 


2  XIII 

tendo  por  apóstolos  um  ou  outro  liberal  histórico,  al- 
guns descontentes  e  insofeidos  ambiciosos  de  mais  re- 
cente data,  e  jovens  sonfiadores  em  quem  queremos» 
suppôr  boa  fe. 

E,  cumpre  dizer,  o  que  lhes  deu  animo  para  essa 
tentativa  de  hoje,  na  imprensa,  foi  o  despeito  de  alguns 
dos  nossos  homens  politicos,  a  quem,  por  sua  posição 
na  sociedade,  corria  imperioso  dever  de  serem  sempre 
comedidos  nos  seus  meios  de  opposiçao,  e  em  suas  aspi- 
rações ao  governo. 

Temos  visto,  desgraçadamente,  que,  sempre  que  os 
partidos  entre  nós  descem  do  poder,  ou  todas  as  vezes 
que  certos  homens  se  vêem  burlados  em  seus  cálculos 
politicos,  é  logo  a  peasôa  do  chefe  irresponsável  da 
nação  o  alvo  certo  de  aggressOes  ou  insinuações  mais 
ou  menos  manifestas,  com  o  fim  de  fazel-o  passar  como 
exercendo  no  governo  influencia  indébita,  e  perni- 
ciosa !... 

Temos  visto,  mesmo  no  seio  das  camarás,  serem 
enunciadas,  e  repetidas,  proposições  n'esse  sentido  !... 
Deplorável  desabafo  I  grande  erro  !... 

Houve  já  quem  dicesse  que  no  poder  moderador  es- 
tava consagrado  o  absolutismo!...  E  dizia-o  em  voz 
accentuada,  mas  nao  exprimindo  a  verdade  constitucio- 
nal, nem  a  verdade  da  sua  consciência,  porque  sempre 
dera  provas  de  que  a  sua  consciência  politica  n'este 
ponto  era  outra  :  exprimia  somente  a  paixão,  mal  ca- 
bida, do  momento. 

E  mal  cabida,  porque  os  homens  politicos,  altamente 
coUocados,  e  de  reconhecida  intelligencia,  nao  podem, 
sem  desconceituar-se,  e  nao  devem,  sendo  homens  de 
ordem,  apaixonar-se  por  modo  que  appareçam  em  pu- 
blico, ou  pela  palavra,  ou  pela  penna,  soltando  erró- 
neas proposições  de  tal  gravidade. 

Ainda  na  sessão  doeste  anno,  por  occasiao  de  discu 
tir-se  a  proposta  do  governo  sobre  o  elemento  servil, 
testimunnámos  todos  o  que  se  disse  no  parlamento,  o 
que  se  escreVeu  nà  imprensa,  por  parte  dos  adversários 
da  grande  providencia,  sobre  a  influencia  do  supposto 
poder  pessoal,.,. 

Tudo  isto  tem  serv  do  de  incentivo,  de  tempos  a  esta 
parte,  para  essa  cruzada  que  se  pretende  arregimentar 
contra  a  instituição  da  monarchia  representativa  entre 


3  XIII 

nós  ;  contra  essa  forma  de  governo,  que  nos  tem  con- 
servado unidos  como  nação,  que  nos  tem  angariado  a 
estima  e  o  respeito  dos  povos  civilisadbs;  que  r.os  tem 
dado  gloria,  como  aquella  que  nos  veio  dos  nossos 
triumphos  contra  a  barbaria  do  tyranno  do  Parag-uay, 
que  ameaçava  subjugar  as  republicas  visinhas,  sem- 
pre tao  mal  reconhecidas  dos  serviços  que  de  nós 
recebem.  , 

Olvidam  os  partidos  entre  nós  que  sao  elles  que  se 
inutilizam,  que  se  gastam  depressa,  e  se  inhabuitam 
para  continuar  no  governo,  quer  por  suas  discórdias 
intestinas,  quer  por  erros,  ou  incapacidade,  ou  des- 
gostos dos  seus  chefes,  desgostos  quasi  sempre  gerados 
por  seus  próprios  partidários. 

A  situação  politica  decaída  em  15  de  julho  de 
1868,  bem  o  sabem  os  liberaes,  e  progressistas  de 
entSLo,  nao  foi  determinada  pelo  capricho,  pela  impo- 
sição da  corda,  mas  sim  pela  força  das  circumstancias, 
que  actuaram  de  modo  dissolvente  no  partido  liberal. 

Essa  situação,  como  é  sabido, e  confessado  por  muitos 
dos  principaes  chefes  que  n'ella  activamente  figura- 
ram, nunca  podéra  formular  programma  certo,  confes- 
savel,  de  governo. 

Os  chefes  liberaes,  reunindo-se  por  mais  de  uma  vez 
para  chegarem  a  um  accôrdo  n'esse  sentido,  nao  o 
conseguiram. 

D'ahi  resultou  que  alguns  se  retrahiram,  e  outros  fo- 
ram fazendo  politica  por  sua  conta. 

D'ahi  resultou  nao  menos  que  desde  logo  a  situação 
se  viu  coUocada  em  terreno  falso;  e  o  fraccionamento 
do  partido,  composto  de  elementos  dissolventes,  tor- 
nou-se  manifesto,  denominando-se  uns /i6e?'ae5  históricos 
e  outros  progressistas, 

D'ahi  a  lucta  que  se  tornou  encarniçada  ao  ponto  de 
dizerem  os  históricos^  em  pleno  parlamento,  ser  pre- 
ferível a  ascensão  dos  conservadores. 

Chegadas  as  cousas  a  este  ponto,  e  quando  o  presi- 
dente do  conselho  do  gabinete  de  3  d*agosto,  chefe  da 
fracção  dissidente,  creava,  calculadamente,  como  tudo 
faz  crer,  uma  crise,  com  o  fim  duplo,  ou  de  tornar-se 
dominador  absoluto  da  situação,  ou  cair  e  dando  mate 
aos  históricos^  dos  quaes  se  achava  completamente  di- 
vorciado, a  mudança  que  se  operou  na  politica  do 
paiz  foi  consequente,  foi  natural. 


4  XIII 

Si  logo,  no  outro  dia,  &s  duas  fracções  decaídas  se 
uniram,  em  amplexo  fraternal,  para  guerrear  a  nova 
situação,  creada  pelo  chefe  dos  progressistas  do  modo 
mais  desasado,  foi  isso  consequência?  Não  foi  antes  um 
desconceito  para  os  que  assim  procederam  ?  E  que  im- 
putação justa  contra  o  procedimento  da  coroa  podia 
ser  feita  pela  nova  liga,  uma  vez  que  a  coroa  não 
tinha  outro  alvitre,  sinão  o  que  tomou?  . 

Os  liberaes  tinham-se  inutilizado  para  continuarem 
no  governo  :  seus  chefes  mais  illustres,  como  o  Sr. 
Nabuco  e  outros,  tinham  estado  no  ministério,  e  ha- 
viam-no  deixado  por  desgostos  com  o  partido.  E  si 
havia  o  Sr.  Theophilo  Ottoni  para  organisar  novo  mi- 
nistério, não  era  possivel  que  fosse  bem  succedido, 
visto  como,  sendo  histórico^  estava  em  guerra  aberta 
com  o  Sr.  Zacarias,  chefe  dos  progressistas,  e  por  estes 
seria  hostilizado. 

E,  sendo  consultado  pelo  Imperador  o  chefe  do  ga- 
binete demissionário  sobre  a  pessoa  que  lhe  parecia 
mais  adequada  para,  n'essa  occasião.  ser  encarregada 
da  organização  do  novo  gabinete,  o  Sr.  Zacarias  não 
indicou  o  Sr.  Ottoni;  reconheceu  que  era  chegada  a  vez 
de  passar  o  governo  às  mãos  dos  conservadores,  e  in- 
dicou o  Sr.  Visconde  de  Itaborahy. 

Ora,  sendo  tal  facto  determinado  logicamente  péla 
ordem  dos  successos,  si  não  teve  a  coroa,  sinão  aquella 
influencia  constitucional  que  justamente  devia  exer- 
cer; não  podendo  haver  outra  solução  possivel;  não  foi 
um  desabafo  lamentável,  e  desleal  de  partido  tudo 
quanto  se  escreveu  então,  tudo  quanto  se  disse  contra  a 
politica  pessoal  da  coroa,  no  modo  porque  exercera  a 
prerogativa  constitucional?.... 

O  thema  constante  dos  novos  propugnadores  dos 
princípios  republicanos  é  a  mà  influencia  do  poder  pes^ 
soai  existente  com  a  mouarchia;  e  pára  isso,  ou  inven- 
tam factos,  ou  desfiguram  os  que  se  passam,  e  investem 
contra  todos  os  actos  do  poder  executivo  ! 

Si  a  policia  prende  os  criminosos,  é  ura  abuso  r.ívol- 
tante  da  politica  imperial  I 

Si  se  dá  o  caso  de  um  assassinato,  é  effeito  dapoZtZica 
impe^Hai  I 

Si  o  gov^no  apresenta,  como  apresentou,  a  proposta 
para  abolição  do  elemento  servil,  é  uma  imposição  ím- 


XIII  5 

perial;    perde    todo  o  merecimento  a  grandiosa  idéa, 
porqne  se  pôz  &  sua  frente  o  governo  do  Imperador! 

£  o  mais  é  que  n'isto  foram  animados  por  quasi 
todos  os  que  (como  j&  pouco  antes  observámos)  comba- 
teram a  proposta,  pertencentes  ao  partido  conservador, 
ou  como  taes  considerados  ! 

Oh  !  bem  perniciosa  é  a  influencia  da  politica  do  poder 
pessoal^  que,  interpretando  sabiamente  a  opinião  pu- 
blica, promove  o  maior  dos  bens,  que  o  paiz  podia  re- 
ceber dos  seus  legisladores. 

Bem  perniciosa,  no  vosso  dizer,  é  a  politica  imperial 
que  veda  o  trucidamento  dos  partidos  entre  si,  como 
auccede  nas  republicas,  que  tanto  admirais,  vós  outros 
que  pregais  o  gpverno  republicano  • 

Pelo  regular  exercício  das  attribuições,  de  que  se 
acha  investida,  a  monarchia  modera  a  fúria  dos  par- 
tidos. Sendo  este  o  governo  que  consagra  placidamente 
o  governo  das  maiorias,  nao  sendo  o  Imperador  crea- 
lura  de  um  partido,  mas  chefe  vitalicio,  e  defensor 
perpétuo  da  nação,  nao  pode  ser  sinSo  o  juiz  impar- 
cial, que  nas  evoluções  regulares  dos  partidos,  entrega 
o  poder  &  maioria  em  condições  de  governo  nas  pessoas 
de  seus  representantes  mais  auctorizados,  seja  a  maioria 
liberal,  seja  conservadora. 

Na  nossa  feliz  forma  de  governo,  estas  operações  fa- 
zem-se  por  meios  naturae^,  sem  as  commoções  que 
âoem  dar-se  nos  governos  de  forma  republicana,  onde, 
geralmente  falando,  as  maiorias  despotizam,  porque 
sao  sobre  maneira  intolerantes;  o  chefe  que  empunha 
as  rédeas  do  goverao  é  o  chefe  do  partido  que  vence, 
tem  dividas  de  partido  a  pagar  :  tem  paixões  a  satis- 
fazer. 

A  má  fé,  com  que  os  propugnadores  das  idéas  que 
combatemos  querem  implantal-as  com  o  descrédito  da 
monarchia,  e  mesmo  das  qualidades  pessoaes  do  Impe- 
rador como  magistrado  supremo  da  nação,  essa  falta 
de  verdade  com  que  apreciam  os  actos  de  um  governo, 
que  só  pode  querer  o  bem  da  nação;  e  os  perigos  que 
na  sua  applicaçao  encerram  como  gove»'no  os  principios 
itípublicanos,  fazem  que  a  opinião  pública  repilla  entre 
nós  taes  principios;  mas,  nao  obstante  o  descouceito  era 
que  sao  tidos, não  será  de  mais  que  os  amigos  da  ordem 
mouarchica  os  apreciem  uma  ou  outra  vez,  como  agora 
fazemos,  no  interesse  da  defeza  das  boas  idéas. 


6  XIII 

Nas  condições  do  Brazil,  nSo  lhe  convém  outra  forma 
de  governo,  sinao  aquella  que  possue;  porque  offerece 
ét  liberdade  politica  os  precisos  impulsos,  como  também 
à  ordem  publica. 

Do  que  precisamos  é  de  educação  politica  nos  partidos 
militantes;  que  os  cliefes  saibam  conservar-se  na  altura 
dos  seus  deveres;  que  saibam  reconhecer  que  a  lucta 
das  opiniões  deve  ser  sempre  nas  espheras  constitucio- 
nal e  moral  dos  partidos,  nao  se  desprestigiando  elles 
mesmos  com  soffregas  ambições. 

Nao  será  sinao  com  a  forma  de  governo  que  feliz- 
mente possue,  que  o  Brazil,  grande  no  seu  território, 
grande  nos  seus  recursos  naturaes  inexgotaveis,  ha  de 
engrandecer-se  moral  e  politicamente  entre  as  nações, 
exercendo  tranquillaraente,  e  com  zelo  patriótico,  seus 
direitos  politicos;  cultivando  e  desenvolvendo  o  tra- 
balho e  ás  fontes  de  riqueza;  fazendo  cada  um  conveni- 
ente uso.de  sua  actividade  individual. 

JUNIUS. 


OTbras  cie  Senio— O  Oa-ú.olxo 


(Cartas  a  um  amigo). 


VII. 


Meu  amigo. 


Acabo  de  ler  o  Gaúcho  e  pergunto  á  memoria  ou  ao 
sentimento,  si  houve  no  decurso  d'essa  historieta  ras- 
go, que  me  deixasse  duradoura  impressão  no  espirito 

ou  no  coração.  Embalde  ! 

• 

Nada,  meu  amigo !  Nem  um  lance  de  mestre  em  499 
paginas  !  Por  mais  que  se  queira,  nao  se  encontra  uma 
scena  completa,  que  verdadeiramente  commova  e  ar- 
rebate, ou  deixe  traços  no  anima  djy  leitor  que  sobrevi- 
vam á  leitura.  Si  tudo  nao  é  pallido  e  frio,  e  n'alguma 


XIII 


cousa  lia  cores  e  calor,  esse  calor  é  incongruente,  esse 
colorido  é  desvairado. 

Sento  nao  escreve  para  explorar  o  sentimento.  Preoc-' 
cupado  inteiramente  com  os  enfeites,  com  os  arrebiques, 
com  as  exterioridades  de  inadmissivel  estylo,  pouco  se 
importa  com  pintar  ou  nao  a  vida.  E'  de  tal  ordem  o 
dizer  deste  livro,  que,  em  pre  sença  d'elle,  até  se  po- 
derá achar  mimo  na  Lucíola,  e  fluente  suavidade  no 
Guarany. 

No  último  livro,  que  é  onde  apparece  certo  movi- 
mento dramático,  situações  ha  que  offereceriam  ensan- 
chas para  um  effeito  commovedor;  entretanto,  passam 
frias  ou  com  calor  mediocre;  o  leitor  adivinha,  compre- 
hende  que  o  lance  aspira  a  força,  mas  nao  o  sente  ;  des- 
nerdiçam-se  d'est'arte  occasiões  solemnes,  d'onde  uma 
"jenna  proporcionada  á  altura  das  circumstancias  po- 
UTÍa  aproveitar  mais  de  um  brilhante  successo. 

Recuemos  ao  livro  3".  Sabes  que  Senio  encarece  aos 
quatro  ventos  o  seu  Canho.  Forma  d*elle  idéa  agigan- 
tada que  se  perde  nas  alturas  do  zenílh:  reputa-o  ty- 
po,  grandeza  cabal  —  organisação  escuiptural  e  alhlé- 
tica. 

t-m  olhetinista  comparou  o  Gaúcho  ao    «  Cid  Cam- 

fícador,  que  se  destaca  das  paginas  do  livro,  à  seme- 
hança  iqs  bustos  de  mármore  nas  raaos  artisticas  de 
Pradier.  E  a  propósito:  busto  é  de  certo  o  Canho, 
isto  é  um  organisação  mutilada,  amputada,  que  de 
homem  se  tem  o  rosto,  e  longe  está  do  exprimir  a 
energia  vaimij  em  toda  a  sua  inteireza. 

Sao  tanth  as  cousas  a  dizer  que  sò  um  volume  bas- 
taria. 

Vejamos  co.q  acorda  aquelle  coração  «  cujo  desper- 
tar devia  ser  ^ilento,  uma  explosão;  cujo  amor  nasce 
no  meio  dos  coihates  sanguinolentos  u  como  nos  refere 
o  auctor.  » 

Entre  parenthe.^  ;  que  combates  sanguinolentos  são 
esses,  no  meio  d*  quaes  nos  diz  Senio  ter  nascido  o 
amor  de  ManoeH  >  leitor  apenas  e  difficilmente  os 
poderá  presuppôr,  í^q  oue  o  auctor  os  tenha  pintado 
para  fazer  vivo,  na.pal  e  grandiosamente  original  o 
rebentar  do  affecto.  v  gaúcho  nao  era  mais  que  um 
botnheiro  ,  qualidade  q%  q  impedia  de  empenhar-se  em 
lucl    *  serias  ;  era  um  e.^^^  q  cq^qq  tal  o  vemos  escon- 


8 


J^lLL 


dendo-se  no  matto,  fugindo  ao  ver  troços  inimigos, 
conduzindo  cartas  a  Rosas,  etc.  Onde  os  combates  san- 
guinolentos, no  meio  dos  quaes  brotou  a  pHÍxr.o  &  Ca- 
tita ? 

Áh  !  bem  diversa  se  passou  a  transição.  A  paixão  re- 
sultou de  uma  circumstancia  accidental  para  elle  —  a 
de  encontrar  a  Catita  abrigando  no  regaço  uma  égua 
agonisante. 

«  — -Morta  !  — disse  elle,  precipitando-se. 
«  — Nao  I  — balbiíciou  Catita. 

«  Os  olhos  do  gaúcho,  encontrando  os  da  rapariga, 
nao  se  desviaram,  como  outr*ora.  Quem  elles  viram 
n&o  era  mais  a  mulher  bonita  e  seductora,  e  sim  um 
coração,  que  entendia  e  partilhava  sua  dôr ;  uma  alma 
que  n'aquelle  momento  solemne  entrava  na  santa  com- 
mimhaode  suas  affeiçOes.  »  (Vid.  pag.  129  e  seguinte. 

Eis  ahi  como  nasceu  a  paixão  do  Hercules  eunucb, 
do  preconisado  centauro  com  coração  de  pomba-rola 

Depois  d'isto  elle  nao  tem  o  primeiro  abraço  para^a- 
tita,  mas  para  o  alazao.  «  Só  então  abraçou  o  alazo,  a 
çwcm  na  véspera  julgara  morto.  »  (pag.  130.) 

No  meio  d'esse  doloroso  transe,  vem  o  Luc»  cha- 
mal-o,  e  parte,  sem  dizer  à  Catita  :  Aqui  te  l?am  as 
chaves  e  Id  se  foi  ouvir,  três  discursos,  um  de 
Ortis,  outro  de  Verdun,  e  o  ultimo  do  furriel  >  (  pag- 

132.) 

Apresentou,  porém,  certa  duvida  para  ^o  seguir 
03  correligionários,  não  em  attençao  à  C«^ta,  mas  á 
morena^  que  estava  enferma. 

«  —  Porque  razão  nao  quer  você  ir  c^^^osco,  Ma- 
noel ? 

c(  —Algum  dos  senhores  abandonaiá-  seu  irmão  e 
seu  amigo,  quando  elle  está  a  expirar  "^ 

«  — Acima  de  tudo  a  pátria  ! 

«  —Minha  pátria  é  a  campanha,  ^^^  ^orre  meu  ca- 
vallo.  » 

Nada  ainda  de  grande  para  co*  ^  °i^Ça»  nem  tam- 
bém para  com  a  pátria,  como  vês, 

Por  fim  como  houvesse  extr/^^^^  »  bala  da  ferida 
da  égua,   o  gaúcho  a  apertou/  seio  o  corpo  trémulo 
damoça  e  desappareceu.  » 


/ 
/ 


XIII  9 

Eacontrou-a  depois  montada  na  égua. 

«  — Manoel !  disse  Catita. 

<í  — ^Viva!  balbuciou  o  gaúcho.  »  (pag.  145.) 

Foi  então  que  «  Manoel  colheu  a  flor  dos  seus  lábios 
mimosos,  que  soluçaram  n'um  beijo  »  Todo  entregue 
nos  seus  cavallos  e  às  suas  éguas  desde  creança,  saberia 
acaso  o  Canho  que  existia  no  mundo  uma  cousa  a  que 
se  chamava — beijo  ? 

Soubesse  ou  nao,  eis  como  despertou  aquelle  immen- 
so  coração.  Ainda  procuro  a  explosão  e  nao  acho.  Por 
um  olhar,  por  um  amplexo,  por  um  beijo  principiam 
quasi  todas  as  paíxOes  e  até  as  mais  comezinhas  e  tri- 
viaes.  O  que  nos  deu,  pois,  Senio  de  excepcional  e  ma- 
gestoso  no  despertar  do  amor  do  Canho  ? 

Entramos  agora  no  4°  e  ultimo  livro. 

Ha  duas  situações  enérgicas  neste  livro,  mas  imper- 
feitas: a  primeira,  quando  Manoel  volta,  creio  que  para 
casar  com  a  Catita,  e  a  encontra  víctima  de  sua  per- 
fídia ;  a  segunda,  quando  depois  de  haver  assassinado 
o  castelhano,  e  de  o  arrojar  ao  abysmo,  dá  com  a  moça 
a  fazer -lhe  mil  protestos. 

Na  primeira,  lá  andou  o  auctor  assim  assim;  ahi  tal- 
vez interesse  ao  leitor,  posto  que  só  empregando  a  lin- 
guagem do  silencio.  Ha  muito  quem  seja  tido  por  elo- 
quente e  até  sábio,  por  guardar  silencio. 

Na  segunda,  falta  o  auctor  á  lógica,  deixando  o  ga- 
úcho tolerar  a  mulher  lançar-se  á  garupa  da  morena  e 
com  ella  desapparecer  na  corrida  desesperada  pelo  de- 
:5erto  a  dentro. 

Em  situação  nenhuma  o  Canho  caiu  tanto,  como 
n'esta,  da  qual  podia  ter  tirado  o  auctor  o  melhor  par- 
tido, que  ella  a  isto  se  prestava. 

íí'aquelle  auge,  um  homem  de  génio  vertiginoso,  de 
'•ar^-sTír  arrebatado,  nlo  teria  piedade  para  a  mulher, 
que  o  tr.iliira  na  primeira,  na  uiiica  excelsa  paixão  de 
sua  vida.  Uma  ve/2  «  abarcando  na  cai)ei"a  da  moca  as 
longas  trancas  negras,  revoltis  pel)  sopri)  da  tempes- 
tade »>  devia  arreinjssal-a  ao  abvsmo,  <jii  le  se  achava 
o  chileno.  Tocante  verosimilhança  havtjriu  n*esse  as- 
soía  i  de  vingança  bravia  I 

St:. ih  disdeiiiia,   p)rém,   a  naturalidade   para  favo- 
re  tv  o  romance"! 

\A  vai  Ciitita  correiídj  s)b   t)los  os  mil  azorragiie^ 


10  XIII 

do  parnpeiro,  agarrada  ao  Canho  ;  e  perdem-se  amidos 
na  immensidade  do  desconhecido.  Vão  viver  muito- 
bem,  talvez,  muito  felizes  nas  esplendidas  oLscuri- 
dades  do  deserto. 

Pobre  Canho ! 

Ha  um  typo  consequente:  é  o  de  Félix,  que  se  suicida 
quando  vê  escapar-lhe  o  gaúcho,  de  quem  elle  morria 
de  ciúmes,  por  causa  da  Catita. 

E  o  pampeiro  *? 

Quando  conheciamos  apenas  o  primeiro  volume  da 
obra,  censurámos  a  Senio  a  descripçâo  minguada  e  ca- 
ricata, que  fizera  do  furacfio  do  pampa.  Agora  que, 
no  segundo,  consagra  especialmente  um  capitulo  á  pin- 
tura do  pampeiro,  aprecieiuol-o. 

Desenhando  a  savana  ao  pino  do  meio  dia  em  seu  pri- 
meiro volume,  abstrahe  de  toda  a  creatura  animada 
que  habita  n'essas  solidões,  e  chega  a  dar  a  estas  a  de- 
nominação de  pasmo^  de  lot^por  da  natureza.  Acha  mais 
natural  e  verosímil  surgirem  os  peixes  á  flor  da  agua 
no  mar  para  denunciarem  ahi  a  vida,  do  que  correrem 
e  relincharem  os  cavallos,  pastarem  as  rezes,  apparece- 
rem  veados  e  outros  animaes,  voarem  aves  no  pampa, 
com  o  fim  de  deduzir  d'ahiuma  suppostaimniobilidade 
ou  paralysia  para  a  natureza.  Tudo  por  amor  de  um 
contraste  í  de  mero  capricho  í 

Em  quanto  assim  faz  relativamente,  á  savana,  ve- 
mol-o  cahir  no  excesso  opposto  fazendo  «  arreraetr 
terem  no  pampeiro  cem  touros  selvagens  bastava  nvi 
para  dar  idéa  da  braveza  da  natureza )  escarvando  o 
chão  ;  sentir-se  o  convólvulo  à^mil  serpentes,  que  es- 
tringem  as  arvores  colossaes  e  as  esiilhaçam  silvando 
(  que  arvores  colossaes  essas,  que  as  serpentes  estilha- 
çam com  seu  convólvulo  l)  \  m\eLV  a  malilha  b  morder 
o  penhasco  d- onde  arranca  lascas  da  rocha  do  penhasco 
ou  da  rocha  ?  )  como  lanhos  da  carne  palpitante  das 
víctimas;  tombarem  os  tigres  de  salto  sobre  a  presa 
com  um  rugido  espantoso;  finalmente  ouvir-se  o  ronco 
medonho  da  sucury  braudirdo  nos  ares  a  cauda  enor- 
me e  o  frémito  das,  azas  do  condor,  que  me  cora  hór- 
rido estridulo.  »  (óptimo  esdrúxulo). 

Já  Senio  tinha  dito  :  «  O  pampeiro  é  a  maior  chólera 
danaturera;  o  raio,  a  tromba,  o  incêndio,  a  inundação, 
todas  essas  terríveis  convulsões  dos  elementos  nflo  pas- 
sam de  pequenas  iras,  comparadas  com  a  sanha  ingente 
do  cyclone,  etc.  » 


XIII  11 

Depois  de  assim  pomposamente  apregoado  o  pam- 
peiro  como  a  chólera  maior  da  natureza,  ante  a  qual 
sao  pequenas  iras  as  terríveis  convulsões  dos  elementos, 
o  que  ó  que  vai  constituir  a  magestade  original,  a  des- 
communal  grandeza  do  phenómeno  meteorológico  *?  O 
arremesso  do  touro,  o  aperto  da  serpente,  o  uivo  do 
cfto,  o  salto  do  tigre,  o  ronco  da  sucury  (ainda  serpen- 
te,, as  azas  do  condor. 

Ainda  mais  :  o  pampeiro  é  também  a  cauda  da  sucu- 
ry brandindo  nos  ares! 

E  as  gargalhadas  do  raio  ?  E  a  alma  do  Canho  a  cris- 
par-se'^  E  as  tempestades  fugindo  pávidas  com  medo  do 
pampeiro,  como  um  bando  de  capivaras  ouvindo  o  ber- 
ro  da  giboia  ? !  ! 

«  Únicos,  no  meio  d'essa  horrivel  subversão,  aquelle 
homem  ( o  Canho  )  e  aquella  mulher  (  a  Catita  )  nao  se 
apercebiam  dos  furores  da  procella.  »  Estavam  cadá- 
veres, nao  ha  que  ver.  O  Canho  nem  via  os  relampa- 
g-os  cingindo  de  uma  auréola  fulminea  o  semblante  da 
moça  ! 

Nao;  «  dentro  de  suas  almas  lhes  tumultuava  outra 
furiosa  tormenta,  que  as  devastava  com  sanha  mais 
terrível  que  a  do  raio.  » 

Ainda  assim  não  era  motivo  para  se  nao  aperceberem 
dos  furorL  .  da  procella.  Daria  o  auctor  mais  verdade  e 
força  ao  lance,  si  fizesse  esse  homem  e  essa  mulher  ti- 
rarem novas  energias  e  novos  estimulos  da  própria 
lucta  dos  elementos,  tendo  porém  d'ella  clara  consciên- 
cia. 

Nota-se  n^essa  descripçao  luxo  de  palavrosidade, 
vigor  de  phrases  retumbantes,  cijclones,  athletas,  gigfi^f^- 
tes,  cobras,  touros^  tigres,  cães,  e  até  demónios,  que  vem 
do  bárathro,  porém  na  verdade  muito  pouca  cousa  do 
real  desabrido  embate  dos  elementos. 

Depíús  de  se  haver  admirado  a  deácripçao  do  furacão 
por  Audubon,  nao  pôde  ler-se  sinao  para  ficar-se  con- 
tristado, mormente  si  se  é  brazileiro,  a  descripçao  do 
pampeiro  por  Senio. 

Meu  amigo  :  nao  quero  mais  alongar-me  n'esta  fa- 
tigante analyse. 

Amanha  dnr-te-hei  minha  última  palavra  sobre  o 
Gaúcho. 

{fiontinúa) 


12  XIII 

I>u.odeoima  eax^ta 

DO  ROCEIRO  CINCINNATO  AO  CIDADÃO  FABRÍCIO 

Kio  de  Janeiro,  10  de  Octubro  de  1311. 

Venerando  pé  de  boi. 

Bons  dias,  meu  velho.  Cá  volto  a  bater  o  pre^o.  Queixas- 
te de  que  eu  na  minha  correspondência  tiacte  ab  kocet  ab  kac, 
e  me  nfto  concentre  mais.  Podia  responder-te  que,  se  ha  culpa 
em  mim,  6  no  opposto ;  mas  nilo  disputemos.  Ja  receio  parecer 
pefifajoso,  nilo  clesaferrando  de  tão  seceante  matéria  :  vejamos 
pois,  se  se  acaba,  desta  feita,  com  a  an%ljse  da  interpellaç&o. 

Já  provei  que  houve  injustiça  nas  accusações  parlamentares 
feitas  pelo  Sr.  Alencar  contra  quem  tomou  por  um  pata-choca, 
contra  quem  n&o  pertencia  ao  parlamento,  e  nem  mesmo  ao  ser- 
viço puolico  ;  agora  cumpre  deslindar  quem  seja  o  marruaz  que 
atira  estas  pedradas  de  cortiça,  sonhando-as  de  bronze.  De  lá 
vitupérios,  d'aqui  argumentos  :  vós  ás  duras,  eu  ás  maduras ; 
quem  diz  o  que  quer,  ouve  o  que  nfto  quer,  comquanto  eu  reco- 
nheça que  onde  elle  é  sol,  nilo  passo  eu  de  pirilampo. 

Mas  para  que  me  não  acoimes  de  insultuoso,  preciso  primeiro 
varrer  a  testada,  e  deixar  assente  ja  minha  opinião  sobre  duas 
questões  prévias. 

Deixa  tu  gyrar  os  alcatruzes  da  nora  I 

'  l.«  E'  punivel.  na  ordem  criminal,  moral,  religiosa,  civil, 
ou  politica,  o  abjurar?  Eu  ponho-lhe  muita  dúvida.  2."  Ha 
crime  em  ser  mercenário  ?  Também  me  parece  que  não. 

Quanto  á  primeira  these,  não  ha  nada  mais  fidalgo  que  os 
precedentes  históricos  :  Clóvis,  Turenne,  Pedro  III,  Catharina. 
Christina  de  Suécia,  Augusto  de  Saxonia,  os  sábios  Zacharias 
Werner.  conde  de  Stolberg.  Schlegel,  Hnller,  e  tantos  outros 
luminares,  abjuraram;  assim  como  apostataramo  padre  Anto- 
nio,Bernardotte,  e  uma  porção  de  outros  tiííurões.  Substituindo 
o  barrete  de  clérigo  p^la  carapuça  vermelha,  muitos  padres  re- 
negaram da  sua  crença  no  altar  da  Deusa  Razão,  que  a  despeito 
do  nome,  não  gerava  senão  desarrazoados  horrores. 

Não  cxcaves  muito,  porque  em  geral  acharás  sempre  um 
porquô,  muito  feio,  nestas  revira-voltas,  de  pássaros  de  bico 
amarello,  em  cada  uma  dns  (\\v\q^  o  apóstata  costuma  segredar 
a  si  mesmo  a  phra-e  que  Heuritiue  IV  dice,  se  é  que  dice  : 
«  Com  :íOO  pip-A^,  o  rein  j  do  França  vale  bem  uma  missa.  » 
Entretanto  esta>  iingicas  intelh^etuaos  nãi)  são  raras,  nem 
obscuras  ;  e  quando  meditadas  e  n?.o  repetidas,  podem  estas 
abjiiraçúos  ser  conversões.  Resolva-o  a  consciência,  e  não  o 
fulminem  os  homens. 

Pelo  que  toca  á  segunda  these,  direi  que  se  hade  stygtnatisar 
a  alma  mercenária,  que,  nas  cousas  da  vida,  (^ue  devem  ser 


xm  13 

pautadas  p^loB  princípios  da  nobreza  e  dos  sentimentos,  só 
t^m  por  pli:t:*ol  o  egoísmo  e  o  calculo  .Mas  eu  agora,  quando 
usar  do  vocábulo  mercenário^  n&o  o  tomarei  senfto  na  accepçSLo 
do  operário  que  recebe  o  salário  de  serviço  ;  e  porque  se  me 
nio  assaque  depois  intenção  injuriosa,  transcreverei  aauillo, 
da  Miicellanea,  de  Miguel  Leit&o  de  Andrade,  dial,  18  pag. 
157  :  «  Mercê  procedeu  da  palavra  mercês  latina,  que  quer  aizer 
.falario  de  serciç.o,  ou  soldada,  por  onde  dizemos  por  cortezia 
Vossa  Mercê  (como  quem  diz  :  «  Vós,  que  me  poaeis  dar  sol- 
dada, como  meu  maior,  e  eu  servir-vos.)  »  E  em  rigor,  é  tanto 
6  mais  que  senhoria,  porque  aos  reis  nossos  de  Hespanha  se 
falou  já  por  Mercê  e  Senhoria,  depois  Alteza  e  Magestade^  etc.  » 

Os  livros  santos,  em  muitos  logares,  honram  a  posiçfto  do 
mercenário,  como  em  S.  Lucas,  quando  diz  (10) :  «  Dignns  est 
enitn  operarius  »iercede  siía  »  ;  e  Tobias  ( 4 )  :  «  Quicumque  tih% 
alicia  operatus  fuerit,  staíim  ei  mercedem  restitue,  et  mercês  mer- 
renarti  tui  omnino  apud  te  non  remaneat  etc.  Houve  uma  dis- 
tinctissima  ordem  militar  e  depois  religiosa,  fundada  por  S. 
Pedro  Nolasco,  accompanhado  de  S.  Raymundo  de  Penhaforte, 
e  de  Pedro  rei  de  Ârag&o,  denominada  dos  Mercenários  (  com 
voto  de  trabalhar  para  a  redempção  dos  captivos,  como  outros 
o  fazem  de  barafustar  por  impeSil-a  ),  Portanto,  e  pelo  mais 
dos  autos,  e  invocados  os  doutos  supprimentos,  acceitemos  a 
declaração  de  que  a  palavra  mercenário  não  é  desairosa;  agora 
accrescênto  : 

—  O  Sr.  José  de  Alencar,  nas  varias  transformações  poli- 
ticas por  gue  tem  passado,  teve  ao  menos  uma  consistência  :  a 
de  haver  sido  perennemente  mercenário. — 

Se  é  certo  o  que  me  affirmam.  tem  S.  Ex.  sido  constante- 
mente assoldadado  para  escrever  na  imprensa  periódica. 

\o  tempo  em  que  era  liberal  exaltado,  e  protegido  dos  a 
quem  depois  virou  costas,  recebeu  o  salário  dos  seus  artigos. 

Quando  escreveu  os  folhetins  Ao  correr  da  penna^  eram-lhe  . 
pagos  pelo  Correio  MercautiL 

O  finado  José  Bernardino  de  Sá  pagou-lhe  salário  para  es- 
crever no  Diário  do  Rio,  no  principio  da  sua  mutação  para  con- 
servador, motivada  pelas  razões  que  talvez  um  dia  te  repita. 

Quando  se  metamorphoseou.  por  amor  da  pátria,  em  inimigo 
do  poder  pessoal,  que  antes  bajulara  como  nenlium  aulico  até 
então  o  fizera,  e  creou  o  Dezeseis  de  Julho,  d'onde  saíram  os 
fundos  para  costear  essa  publicação  ? 

A  quem,  porque,  como,  e  para  que,  se  fixou  a  mezada  de 
"300$000,  além  de  outros  biscatos  ? 

Após  a  4".  mutação,  depois  que  o  ultra-conservador  começou 
a  commungar  as  idéas  e  as  aspirações  republicanas,  até  que 
oliegou  a  denominada  Ultima  phase  (  que  indubitavelmente  não 
será  kl f ima  )  foi  S.  Ex.  quem  pagou  os  artigos  todos,  que  com- 
poz  e  fez  imprimir? 

Quando  alguns  cavalheiros  da  lavoura  e  do  commercio  pen- 
saram em  crear  um  jornal,  e  houve  idéa  de  para  elle  angariar  a 
i*oUaboracão  retribuida  do  prestante  escriptor,  repeli iu  elle  o 
pensamento  ? 


S^^^^^^-^LJ^J^^^^^^^ 


14  XIII 

Etc.  etc.  etc. 

N5o  sou  eu.  quem  em  todos  estes,  e  muitos  outros  análogos 
factos,  imprime  stygma, visto  como  acceito  a  regra  de  S.  Lucas. 
Quem  qualifica  os  que  assim  procedem  de  suissos  ua  penna, 
mercenários,  assalariados  e  vilõep)  quem  nfio  vê  o  agreiro  no  seu 
olho,  é  o  culpado;  ora  tendo  o  interpellante,  apezar  da  afilrma- 
tiva  do  Sr.  Presidente  do  Conselho,  de  que  ninguém  fora  retri- 
buido  pelos  seus  escriptos,  continuado  a  sua  accusaçSo  por 
factos  muito  mais  innocentes  do  que  os  aqui  expostos,  queixe- 
se  o  Sr.  Alencar  do  ferrete  que  lhe  imprime  o  Sr.  Alencar, 
como  já  teve  egual  occasião  de  lamentar  a  refutação  trium- 
phante  com  que  Erasmo  o  esmagou.  Quem  tem  telhados  de 
vidro  nâo  atira  a  telhas  adamantinas. 

Ha  pessoas  para  quem  o  dinheiro  é  a  pedra  philosophal,  o 
desiderandnm,  a  alma  mater ;  não  pertence  Cincinnato  a  esse 
número.  Seccam-se  de  inveja,  quando  imaginam  que  outrem 
pode  extrahir  alguma  vantagem  pecuniária  d'aquillo  de  que 
arremataram  o  monopólio  ;  os  dedos  lhes  parecem  hósx)edes. 
Está-me  esfervilhando  na  ponta  da  lingua  uma  correnteza  de 
anecdotas  harpagonicas,  mas  deixemos  historias  de  Josés 
Nabos,  que  não  vem  ao  caso,  e  voltemos  já  á  interpellação  do 
Sr.  Conselheiro  Alencar. 

Na  memorável  sessão  em  que  esse  senhor,  dando  por  páos  e 
por  pedras,  pretendeu  alfinetar-me,  foram  proferidas  por 
elle,  em  sua  admirável  parlanda,  que  promettia— chuva  e  aeu 
vento,  muitas  phrases  como  estas  : 

«  —  Cumpre  que  o  suor  do  povo,  convertido  em  impostos  ex- 
cessivos... »  etc.  «  —  ...  o  povo  onerado  de  impostos  iníquos, 
além  de  onerosos...  »  etc.  t —  Aquelles  que,  apoderando-se  do 
governo,  pOe  ao  serviço  de  suas  ambições  os  recursos  que  a  re- 
presentação nacionaí  vota  para  a  gestão  dos  negócios  pu- 
olicos  »  etc. 

Bravo,  facundo  orador  /  Nunca  as  mãos  lhe  doam  /  Dô  para 
baixo,  dê,  nos  aue  dissipam  e  esbanjam  os  rendimentos  públi- 
cos, nos  que  aão  má  applicação  ao  suor  do  povo,  nos  que  es- 
tragam o  tempo  que  a  nação  paga  para  ser  empregado  no  ser- 
viço d*ella,  nos  que  encarregam  o  thesouro  nacional  de  satisfa- 
zer o  custo  das  suas  particulares  e  individuaes  questões. 

E'  pois  de  crer  que  o  nobre  orador,  ao  metter-se  no  tilbury 
para  regressar  a  casa,  depois  d'esta  verrina,  terá  ido  monolo- 
gando o  seu  essere  ó  7ion  essere,  da  seguinte  forma  : 

«  —  De  inconsequência^,  já  basta.  Palavras  sem  obras,  plu- 
mas ao  vento.  Uma  vez  na  vida,  preciso  ser  lógico.  Levei  a 
minha,  nobremente,  avante.  A  quem  me  contrariou  pela  im- 
prensa, tive  a  circumspeeção  (  ah  pés,  para  que  te  c^uero  T  ) 
de  nada  dizer  pela  imprensa;  mas  também  agora  vinguei-meva- 
lentemente:  como  na  camará  lhe  não  podia  ser  dada  a  palavra» 
dcscompul-o  á  minha  vontade.  Se  alguém  o  duvidava,  agora 
todos  ncam  sabendo  que  estou  despicado.  Certamente  :  inun- 
da-me  o  prazer  dos  deuses;  mas  resta-me,  confesso-o,  outra 
dever. 

«  O  facto  de  roubar  aos  trabalhos  legislativos  uma  sessfio 
inteira,  só  destinada  a  espalhar  os  rubis  barrocos  da  minha 


XIII  15 

eloaiiencia  atrabiliária,  de  substituir  as  ouestões  de  interesse 
publico  pelas  do  meu  poder  pessoal  ;  ae  inutilizar  muitas 
noras  que  actualmente,  quando  no  fim  da  sessSo  legislativa,  e 
pendentes  graves  projectos  de  lei,  equivalem  a  mezes;  e  de 
mil  outras  cousas  assim,  é  já  consummado  e  irremediável ; 
mas  ha  outra  consideração,  ligada  com  esta,  que  eu  devo  com- 
pensar, quanto  possivel.' 

«f  Pois  que  !  Levei  3  horas  a  bramar  contra  o  máo  emprego 
do  suor  do  povo,  contra  o  estrago  do  tempo  que  a  nacSo  paga» 
contra  o  esbanjamento  dos  impostos  (que  não  só  denominei 
<y»erosoSy  mas  iníquos  .' ),  e  não  vejo  eu  que.  uma  sessão  da  ca- 
mará dos  Deputados  custa  muito  dinheiro  ao  tal  suor,  aos  taes 
estragos,  e  aos  taes  impostos  iniquos  ?  Não  deve  recair  sobre 
a  minha  algibeira  a  responsabiliaade  dos  gastos,  como  sobre  a 
minha  cabeça  a  do  inutilizar  dos  trabalhos  ?  Não  fiz  eu  levantar 
o  pano  d'este  espectáculo  só  para  representar  cm  meu  bene- 
ficio ?  Vou  dar  um  exemplo  altamente  moralizador;  vou  resti- 
tuir ao  thesouro  o  que  lhe  fiz  despender,  em  pura  perda;  ai,  o 
«uor  do  povo  /  ui,  os  impostos  iniquos/  Vamos  ás  contas. 

flf  Como  estudo  muito  as  cousas  de  dinheiro,  compulsei  ainda 
hontem  o  Orçame^ito  da  Recrita  e  despeza  do  Império  para  o  exer- 
cício de  18r72— 73,  e  ahi  vi  votadas,  a  pag.  5  e  6,  as  quantias 
de  Rs.  454:250^000,  applicaveis  á  camará  dos  Deputados.  Ora, 
como  geralmente  em  cada  sessão  legislativa  s^  ha  umas  80 
assentadas,  custa  cada  uma  ao  suor  do  povo  cerca  deRs, 
5:6785000,  somma  de  que  eu  vou  pedir  guia,  para  entrar  com 
cila  na  Recebedoria  do  Município.  y> 

No  fim  da  sessão  legislativa,  é  também  de  crer  que,  em 
attenção  áquellas  meritórias  disposições  de  restituição  ao  cofre 
<los  impostos  iniquos,  S.  Ex.  examinasse  nos  seus  assentos,  ou 
nas  actas,  ou  nas  declarações  do  Jornal,  e  achasse  que  em  todo 
o  anno  apenas  compareceu  na  camará,  quando  devia,  umas  27 
veze'? ;  e  então  o  venerando  Hamleto  ou  Carlos  V  do  Hernâni 
terá  recitado  outro  monologo  monumental : 

— >«  Preciso  cautela,  eu  que  já  me  adornei  de  plumagem  de  en- 
xertia. Com  que  direito  reprehenderia  eu  nos  outros  a  apçlicação 
íjue  dão  honradamente  aos  dinheiros  públicos,  se  eu,  insigne 
jurisconsulto,  me  locupletasse  com  a  jactura  alheia  T  A  nação 
estabeleceu  o  meu  subsidio  para  eu  ao  menos  comparecer  na 
camará.  Se  eu  só  lá  appareoo  quando  no  meu  escriptorio  de 
Advocacia  não  tenho  autos  para  despachar ;  se  é  unica  e  ex- 
clusivamente porque  as  partes  me  dão  boa  maquia,  que  eu 
desamparo  o  serviço  publico  ;  se  eu  recebo  a  um  carrilho,  e  as 
«ccumulações  estão  prohibidas ;  vou  também  repor  tudo  quanto 
«Tida  e  indevidamente  recebi  do  suor  do  povo,  e  dos  impostos 
iniauos.  A  conta  é  fácil :  pelos  120  dias  dos  4  mezes  manda  a 
Ui  dar,  e  eu  recebi  Rs.  2:400jJ000;  ora  eu  só  adquiri  jus  a  27 
dias,  logo  estou  em  debito  de  mais  Rs.  1:511$112  ;  e  não  seria 
senão  nm  declamador,  um  Frei  Thomaz,  se,  commiserando-me 
do  suor  do  povo  estragado  por  outros,  me  comprouvesse  eu  em 
n  mim  propno,  e  abusivamente,  e  pospondo  o  serviço  desse 
povo  aos  meus  lucros  particulares,  me  alimentasse  do  apontado 
fiuor.  0 

Creio  piamente  que  assim  terá  succedido,  e  que  na  publica- 


16  Xlli 

ç5o  próxima  da  Receita  da  Recebedoria  do  Municimo,  admira- 
remos  esta  moralizadora  e  lógica  verba  de  Rs.  7:189j|ll2,  entre- 
gues pelo  Catoniano  interpellante. 

Acabemos  com  a  interpellaçfio,  de  que  se  pode  dizer,  o  que- 
Voltaire  respondeu,  depois  de  oíivir  certa  oraçio  fúnebre: 

«  —  Como  a  achou  ? 

«  —  Como  a  espada  de  Carlos  Magno. 

«  —  Em  ser  o  que  ? 

c  —  Longa  e  chata.  » 

Imaginou  sem  duvida  o  ílammispiranté  orador  que  me  tinha^ 
enguhdo;  e  ha  quem  diga  que,  nos  seus  raptos  e  transportes,, 
de  mostarda  ao  nariz,  julgando  que  me  via  a  mim,  ao  encarar 
entSo  um  dos  seus  admiradores  (porque  emâm  eu  sempre  reco- 
nheço que  estou  a  jogar  o  whist  com  perna  de  páo  ),  essa  vista 
lhe  "produzia  uns  efieitos  hydrophobicos,  ou  lembrava  Salvini 
ao  encarar  o  Hervondillo  da  tragedia  famosa  que  o  Goethe  es- 
tudou no  seu  Wilhelm  Meister,  Se  os  tregeitos,  de  que  as  inno- 
eentes  aspiracOes  a  invectiva  eram  accompanhados,  vinham 
oom  sobrescripto  a  mim,  nfto  occulto  que  um  eíleito,  sim,  me 
excitaram  :  de  riso  e  de  compaixão.  Toctavia,  ja  que  repeti  um^ 
dialogo,  vá  outro.  Tendo  um  poeta  mostrado  a  um  critico  certa 
ode  sua  A' Posteridade^  e  perguntando-lhe,  com  philauciosa 
modéstia,  o  que  achava,  respondeu-lhe  este  : 

«  —  Acho  que  não  chega  ao  seu  destino.  » 

Outro  tanto  desejarei  eu  que  nfto  succeda  á  presente,  com 
que  remato   a   appreciação  da  catilinaria  que   me  dispara  a 

Í)henix  dos  oradores,  que  já  na  tua  opinião  vai  trepando  de 
)ispo  a  moleiro. 

Adeus,  meu  velho.  Trago  uns  callos,  que  é  ver  as  estrellas. 

Teu  velho  amigo 

ClNCINNATO. 


Typ.  e  Lith.— IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Setembro,  146. 


QUESTÕES  DO  DIA 


N.  14= 


RIO  DE  JANEIRO  15  DE  OCTUBRO  DE  1871. 


Vende-se  «m  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Laemmert. —  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  caDto. — Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  d.  119 —  Largo  do 
Paço  n.  C. —  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis 

A  política  especuiativa. 

As  doctríaas  insidiosas  de  uma  politica  aspecula- 
tiva»  que,  com  iosisteate  coatradicção  da  verdade  dos 
factos,  c  com  uma  theoria  perniciosa  á  ordem  poli- 
tica existenie,  pretendem  impor-se,  não  podem  convir  à 
nação  brazileira:  a  nação  as  repelle. 

Possuimos  uma  constituição  tão  liberal,  baseada  em 
prin<*ipios  tão  salutares  de  governo,  que  é,  de  todo, 
adequada  &  satisfacção  das  mais  razoáveis,  das  mais 
justas  aspirações  de  um  povo,  que  vê  consagrado, 
em  seu  código  fundamental,  o  governo  do  paiz  pelo 
paiz. 

Sim.  porque  o  chefe  supremo  do  Estado,  no  ex3rcicio 
de  suas  elevadas  funcções,  não  governa  por  si,  mas 
st5gundo  a  ordem  dos  principios  políticos,  que  o  facto 
social  estabeleceu;  e  no  modo,  pelo  qual  se  acham  dis- 
tribuídos os  poderes,  ha  tão  perfeita  harmonia  no  gyro 
da  niàchina  governativa,  em  suas  funcções  naturaes, 
que  não  pôde  haver  embate  fatal  á  causa  da  liberdade, 
desde  que  o  direito  de  livre  exame  e  de  franca  discus- 
são é  amançado  na  tribuna  e  na  im  prensa. 

E  que  o  é  entre  nós,  não  se  pôde  duvida:*.  O  paiz  é 
testímunha  doesta  grande  verdade;  tem  as  provas  mai*^ 
patentes  de  que  possue  em  toda  a  sua  plenitude,  e 
ainda  além  de  seos  verdadeiros  ligiite^,  tão  precioso 
direito. 

A  aurtoridade  pública  Lão  exorbitaria;  e  ao  contrario 
se  manteria  no  exercício  legítimo  de  seos  deveres,  se, 
com  a  lei  na  mão,  obstasse  ao  vicioso  uso,  que  da  liber- 
dade de  imprensa  fazem  aquelles  que  propalam,  e  pre- 


2  XIV 

tendem  incutir  no  animo  do  povo,  princípios  contrários 
á  razão  constitucional  da  nossa  organização  politica. 

Mas  o  governo  vê  com  sobranceria,  e  perfeita  con- 
fiança no  bom  senso  público,  esses  condemnaveis  ten- 
tames de  espíritos,  que  se  transviam  por  paixões  polí- 
ticas incontinentes,  que  uao  querem,  ou  nâo  sabem, 
medir  o  abysmo  a  que  arrastariam  o  paiz,  se  trium- 
pbassem  as  suas  idéas. 

O  Dodêr  tem  seos  attractivos,  suas  seducçOes  ;  mas 
egualmente  os  seos  desgostos,  suas  asperezas,  seos  es- 
pinhos. 

Os  partidos  só  o  visam  pela  face  dos  encantos,  quando 
o  cubicam;  esquecem-se,  ou  fogem  de  consideral-o  com 
os  seos  escabrosos  deveres,  com  as  suas  angústias  ! 

E'  sempre  a  eterna  contradicçao  do  espírito  humano 
entre  os  desejos,  quando  almeja  por  satisfazel-os,  e  a 
justa  apreciação  dos  prós  e  dos  contras,  no  implemento 
de  taes  desejos. 

Assim  vemos,  de  contínuo,  em  sua  lucta,  os  partidos 
políticos  mais  exaltados,  mais  impacientes  do  poder, 
ferindo,  sem  escolha  de  armas,  os  adversários,  que  sao 
governo,  sem  reflectirem  que  as  dores  causadas  lhes 
serão  retribuídas,  quando  conseguirem  subir  ao  poder. 

Nos  governos  de  instituições  liberaes,  a  lucta  entre  os 
partidos  é  natural;  nasce  do  systema;  é  mesmo  indis- 
pensável, para  que  a  auctoridade  administrativa  tenha 
salutar  correctivo  no  exercício  de  sua  missão. 

E'  isto  geralmente  reconhecido ;  não  pretendemos 
dizer  cousa  nova;  mas,  se  é  da  índole  do  systema  a 
opposição  mais  ou  menos  vigorosa,  não  o  é  a  opposiçao, 
que  se  torna  radical  ao  poncto  de  pretender  substituíra 
fórma  política  do  governo  existente,  calumniando-a, 
desfigurando-a,  por  outra  fórma  de  governo,  fundada 
em  princípios  perigosos. 

Não  é  dos  modernos  séculos,  mas  sim  desde  os  tampos 
remotos  da  antiguidade,  a  pesquiza,  o  estudo  dos  ho- 
mens políticos,  dos  philósophos,  e  dos  sábios  sobre  a 
fórma  de  governo  mais  consentânea  com  o  bem-estar 
dos  povos;  e  o  qut  até  hoje  parece  averiguado  é  que  o 
melhor  governo  é  aquelle  em  que  a  existência  política, 
isto  é,  a  liberdade  do  homem  social,  é  mais  garantida, 
de  harmonia  com  o  seo  bem-estar  na  ordem  e  desin- 
volvimento  moral,  e  condições  económicas,  em  relaçílo 
aos  meios  de  prover  á  sua  subsistência. 


XIV  3 

Os  experimentos,  no  sentido  em  que  tractâmos  este 
poncto,  foram  bem  longos  e  dolorosos  em  alguns  povos; 
tem  sMo,  e  continuam  a  sel-o  entre  outros  ;  mas,  nesta 
lucta  secular,  nao  ficou  ainda  decidido,  nem  decidido 
será  jamais,  que  a  república  seja  o  regimen  mais  feliz 
dos  povos;  antes,  sim,  o  que  prova  a  história,  nos  anti- 
gos tempos,  o  que  attestam  os  exemplos  contemporâ- 
neos, os  da  actualidade  no  mundo  christao,  isto  é,  no 
mundo  civiliaado,  é,  quanto  ao  passado,  que  o  go- 
verno republicano  nunca  conseguiu  perpetuar-se,  quer 
em  suas  verdadeiras  formas  democráticas,  quer  em 
suas  formas  mais  ou  menos  aristocráticas;  e,  quanto 
ao  presente,  que  é  um  governo  sempre  agitado,  e  em 
muitos  casos  oppressor,  e  subjeito  às  empalmaçoes  do 
mais  astuto,  ou  do  mais  audaz  e  menos  escrupuloso,  e 
do  mais  forte. 

As  índoles  dos  povos  nao  sao  as  mesmas;  seos  costu- 
mes, seos  hábitos  variam  segundo  os  climas,  nas  diffe- 
rentes  raças,  em  que  se  divide  a  humanidade;  e,  assim, 
o  governo  que  se  coaduna  a  um  povo,  pôde,  como 
attestam  os   exemplos  do  mnndo,  nao  convir  a  outro- 

Tem-se  accusado  as  monarchias,  mesmo  as  limitadas, 
ou  mixtas,  como  a  nossa,  da  influencia  indébita  da 
coroa  no  governo  do  Estado;  e,  entre  nós,  tem-se  tor- 
nado esta  accusaçao  um  thema  obrigado,  da  parte  de 
certos  políticos,  quando  em  opposição]  a  phrase  consa- 
grada é  —  governo  pessoal. 

Mas,  onde  o  governo  ou  poder  pessoal  se  ostenta  com 
maior  pujança,  do  que  nas  repúblicas?  Nestas  é  sem- 
pre épocha  de  grande  lucta  a  eleição  do  presidente,  ou 
chefe  do  governo;  e  o  indivíduo  eleito  exprime  a  vic- 
tória  de  um  partido;  e  este  passa  a  gosar  dos  principaes 
favores,  e  das  boas  graças  do  chefe  vencedor. 

Argumenta-se  que  ahi  o  perigo  do  governo  pessoal 
desapparece,  ou  é  menor,  porque  o  chefe  da  república  é 
temporário  e  responsável  por  seos  actos,  e  está  subjeito 
a  ser  accusado  pelas  câmaras;  emquanto  nas  monar- 
chias representativas  a  irresponsabilidade  do  monar- 
cha  e  sua  vitaliciedade  sao  circumstancias  permanentes 
para  crearem  o  poder  pessoal. 

Os  que  assim  argumentam  nao  querem,  muito  de 
propósito,  fazer  cabedal  da  responsabilidade  dos  minis- 
tros, nas  monarchias  representativas;  nem  da  acção 
efficaz  das  câmaras  legislativas  sobre  o  governo,  com- 


4  XIV 

batendo  a  sua  politica  na  tribuna  e  nas  votações;  não 
querem  ter  em  linha  de  conta  a  poderosa  i^ma  da 
imprensa. 

Não  querem  elles  attender  a  que  o  monarcha,  nas 
condições  da  nossa  constituição,  está  em  posição  muito 
sobranceira  às  rivalidades,  e  aos  inrédos  dos  partidos, 
dos  quaes  não  é  feitura;  que  o  chefe  da  nação,  conhe* 
eido  o  voto  d'esta,  não  pôde  querer  siaão  marchar  de 
accõrdo  com  esse  voto  na  escolha  dos  seos  ministros, 
e  na  vereda  constitucional. 

Não  querem  attender  a  que  não  se  dará  o  caso,porqae 
não  poderá  dar-se,  de  constituir-se  entre  nós  o  chefe  do 
Estado  protector  de  um  partido  para  esnjagar  o  outroy 
antes  será  sempre  o  seo  empenho  fazer  que  se  mode- 
rem, que  se  aproveitem  devidamente  todas  as  aptidòas, 
que  melhor  convenham  para  os  importantes  cargcs 
públicos. 

Não  querem  ainda  attender  a  que  uma  das  vantagens 
políticas,  mais  characterística  da  proeminência  do  go- 
verno monárchico  representativo,  é  a  de  se  operarem  as 
mudanças  de  política,ou  suas  modifícaçOes, com  a  subida 
de  uns  ministros  ao  poder,  e  descida  de  outros,  sem 
perturbação  da  ordem  pública. 

Entte  nós  o  chefe  do  Estado  tem  sido,  felizmente, 
sempre  da  maior  dedicação  ao  bem-estar  da  sua  pátria. 
Dotado  de  variadíssima  instrucção,  e  alto  tino  poli- 
tico, tem,  na  acção  que  lhe  compete,  quer  como  chefe 
supremo  do  executivo,  quer  como  poder  moderador, 
dado  provas  exhuberantíssimas  de  verdadeiro  monarcha 
constitucional. 

O  Sr.  D.  Pedro  II,  que  a  Europa  agora  pessoalmente 
conhece,  e  admira,  pelas  provas  esplêndidas  que  alli 
tem  dado  do  seo  muito  elevado  mérito,  nutre,  sem  dú- 
vida, grande  ambição,  mas  nobre,  patriótica,  —a  de  ser 
o  m!iis  dedicado  servidor  do  seo  paiz. 

Outra  qualidade,  altamente  apreciável  no  Sr, 
D.  Pedro  II,  é  a  firmeza  de  sua  vontade  na  abnegação 
das  pompas  da  realeza,  no  seo  viver  habitual:  ninguém 
mais  lhano,  mais  communicativo  no  tracto. 

Tem-se  dicto,  e  com  issj  tem-se  pretendido  formar 
um  capitulo  de  censura  á  sua  ingerência  indébita  dq 
governo,  que  foi  por  imposição  da  sua  vontade  que  a 
proposta  para  abolição  do  e^stado  servil  foi  apresentad  ^ 


XIV  õ 

no  parlamento  ;  que  foi,  em  obediência  a  essa  imposi^ 
cão,  que  o  ministério  tanto  se  esforçou  para  que  fosse, 
como  felizmente  é  hoje,  lei  do  Estado. 

O  que  sobre  isto  acreditámos,  é  que  o  Imperador  e  o 
ministério,  reconhecendo,  com  elevado  bom  senso,  que 
-era  urgente  uma  providencia,  que  determinasse  a  ex- 
tirpação do  cancro  da  escravidão,  confiaram  no  parla- 
mento, fizeram  justiça  à  opinião  pública,  e  nfto  quize- 
ram  que  tosse  addiada  tão  importante  resoluçãos;  o  mi- 
nistério tomou  sobre  seos  hombros  o  grande  commetti- 
xnento,  no  qual  obteve  tão  assignalada  glória.  Segue-se 
de  tudo  isto,  que  mais  uma  vez  o  Imperador,  identifi- 
cando-se  com^  a  naçPo,  mereceu  as  bênçãos  do  paiz  in- 
teiro, que  tem  applaudido  a  lei. 

Por  maiores  que  sejam  os  esforços  de  alguns  homens 
<le:)peitados,  e  de  um  limitado  círculo,  que  se  arvorou 
em  paladino  dos  princípios  republicanos,  não  consegui- 
rão desprestigiar,  no  conceito  nacional,  a  sábia,  salu- 
tarissima  influencia  do  Imperador  no  governo  do  Es- 
tado. 

Querem,  com  doctrinas  erróneas,  precipitar  o  paiz 
no  abysmo  da  revolução,  dissolvendo  os  laços  da  união 
das  províncias,  e  reduzindo-nos  ás  tristíssimas  condiçGes 
das  repiiblicas  nossas  conterrâneas,  que  se  dilaceram 
em  guerras  civis.  Pretendem,  insensatamente,  fazer 
accreditar  á  nação  que  será  ahi,  n'esse  chãos,  que  será 
ahi  nas  angústias,  geradas  pela  oppressão  das  ambi- 
ções incarniçadas,  disputando  o  mando,  que  o  paiz  se 
innobrecerá;  que  só  nos  dolorosos  vaivéns  do  governo 
republicano  será  livre ! 

Que  loucura!..  Nem  attendem  a  que  temos  deante  dos 
olhos  as  desgraças  da  França,  para  aprendermos  que 
um  povo  só  será  feliz...  tendo  juízo. 

Junius. 


6  XIV 

Obras  de  Senlo— O  Oaiúiolio 

(Cartai  a  um  amigo), 
Vhl. 


«A 


Meu  amigo. 

Viste  que  o  Gaúcho  não  pôde  pretender  as  honras 
de  romance  de  costumes,  fim  que  aliás  visa,  mérito  de 
que  faz  alarde. 

Senio  nao  se  parece  com  John  Crevecceur,  auctor  do 
Agricultor,  obra,  onde  «payzagens,  costumes,  lingua- 
gem, sentimentos,  tudo  é  essencialmente  americano; 
onde  nao  se  encontram  somente  os  objectos,  mas  tam- 
bém as  sensações  e  as   idéas  de   um  paiz  recente.  » 

Nao  se  parece  com  Waíshington  Irving,  que  apezar 
de  «  dever  seo  renome  à  imitação  graciosa  da  littera- 
tura  ingleza  »  apezar  de  «  só  para  a  Inglaterra  diri- 
gir seos  pensamentos  »  como  a  critica  o  atacasse,  pe- 
netrou nas  tribus  bravias,  explorou  e  estudou  as  flo- 
restas, os  campos,  os  rios,  e  deu-nos  o  seo  magestoso 
livro — A  planície — [La  Prairie.) 

Menos  se  parece  com  Fenimore  Cooper,  como  já  se 
dice,  o  auctor  do — Ultimo  dos  Mohicanos -^ohvB,  para 
a  qual  debalde  procurarão  um  parallelo  em  toda  a  bi- 
bliotheca  de  romancistas.  » 

Menos  ainda  se  parece  com  Audubon,  que  um  crítico 
coUoca  superior  a  Buffon,  e  com  o  qual  a  oiais  variado 
que  Irving,  mais  colorido  e  puro  que  Fenimore 
Cooper  se  completa  o  que  se  pôde  chamar  a  primeira 
épocha    litterária  dos  Estados-Unidos.  »     P.  Chasles. 

Transportemo-nos. 

Senio  também  se  nao  parece  com  Walter  Scott,  «  que 
soube  haurir  nas  fontes  da  natureza  e  da  verdade  um 
género  desconhecido;  allia  á  minuciosa  exactidão  das 
chrónicas  a  majestosa  grandeza  da  história,  e  o  in- 
teresse instante  do  romance,  génio  poderoso  e  curioso 
que  adivinha  o  passado;  pincel  verdadeiro  que  traça 
um  retrato  fiel  por  uma  sombra  confusa,  e  nos  força 
a  reconhecer  até  o  que  nao  vimos;  espírito  flexível  e 
sólido  que  se  impregna  do  sêllo  particular  de  cada 
século  e  de  cada  paiz  como  cera  branda,e  conserva  es.<ia 


XIV  7 

marca  para  a  posteridade,  como  bronze  indelével.  »  Y , 
Hugo. 

Nao  se  parece  com  Chateaubriand  »  que  deu  ás  pai- 
xões innocencia  que  ellas  nao  comportam  ou  que  nao 
tem  sinao  uma  vez.  Em  Atala^  as  paixOes  sao  cobertas 
por  longos  véos  brancos.  »  * 

Nao  se  parece  com  B.  de  Saint  Pierre  que  no  seo 
Paulo  e  Virgínia  >>  sabe  escolher  o  que  ha  mais  puro 
e  opulento  na  língua;  cujo  estylo,  se  assimelha  a  esse 
famoso  metal,  que,  no  incêndio  de  Corintho,  se  forma- 
ra da  mistura'  de  todos  os  outros  metaes.  »  J.  Joubert. 

Nao  se  parece  com  Balzac,  que  « toma  corpo  a  corpo 
a  sociedade  moderna,  arranca  a  todos  alguma  cousa, 
a  uns  a  illusao,  a  outros  a  esperança,  a  estes  um  grito, 
àquellés  a  mascara;  que  esquadrinha  o  vício,  disseca 
a  paixão;  que  cavae  sonda  o  homem, a  alma, o  coração, 
as  intranhas,  o  cérebro,  o  abysmo  que  cada  um  pos- 
sue  em  si  mesmo.  »  V.  Hugo. 

Todavia  de  uma  grande  obra  de  Balzac — Le  Dernier 
des  Chotians — obra  que  prima  «  pelo  pittoresco,  pelo 
cunho  dramático,  pelos  caracteres  verdadeiros,  pelo 
diálogo  feliz  »  diz  Sainte  Beuve  que  «a  imitação  de 
Walter  Scott  e  de  Cooper  é  evidente,  o  E  a  Sainte 
Beuve  chama  nao  sei  si  Paulo  Raynol,  que  agora  bem 
me  nao  lembro,  «  eminente  juiz  das  cousas  do  espí- 
rito ». 

Com  quem   se  parece,  pois,  Senio  no   seo  Gaúcho — 

5>or  ventura  arremedo  remoto,  caricato   e  illógico  do 
lomo  e  do  Ursus,  do  Homem  que  ri  ? 

Nao  seria  difficil  dizêl-o,  mas  nao  o  quero  fazer,  li- 
mitando-me  apenas  a  dizer  com  quem  penso  que  Senio 
86  nao  parece  ;  e  nao  é  pouco. 

O  que  fica  fora  de  toda  a  dúvida,  quanto  a  mim,  é 
que  o  Gaúcho  nao  paf  sa  de  uma  producçao  cachética,de 
que  a  litteratura  brazileira  pouco  se  deverá  lisonjear. 

<í  Ha  duas  maneiras  de  .ser  sublime  —  diz  um  crítico 
francez  : — pelas  idéasou  pelos  sentimentos.  No  segundo 
estado  tem-se  palavras  de  fogo  que  penetram,  que  ar- 
rastam. No  primeiro  não  se  tem  sinao  palavras  de 
luz,  que  pouco  aquecem,  mas  que  deslumbram.  »  No 
Gatícho  o  sentimento  é  frouxo  e  frio,  a  idéa  descorada 
c  infeliz  ;  é  por  isso  que  o  estylo  nem  deslumbra,  nem 
arrasta. 


8 


A.X 


Si  estudamos  o  Gaúcho  em  seo  character  hUtóricOj 
tanto  peior;  é  tudo  vago,  indeciso,  maxime  insignifi- 
cante. Lendo-o,  não  se  fica  tendo  uma  idéa  da  revolu- 
ção rio-grandénse.  Nao  ha  um  traço  vigoroso  que  se 
deixe  demorar  no  ânimo  do  leitor.  A  revolução  appa- 
reee,  em  uma  attitude  fugaz,  fungivel  como  a  sombra 
do  quadro  —  a  luz  pertence  aos  cavallos,  ou  aos  ar- 
roubos da  imaginação  delirante. 

Intendeu  Senio  que,  citando  taes  e  taes  nomes,  que 
figuraram  no  movimento,  e  dizendo  que  este  caminho 
vai  ter  aJaguarão,  aquelle  a  S.  Borja,  tinha  preen- 
chido e  satisfeito  a  parte  histórica  da  obra.  Erro  ou 
[Ilusão  I 

O  espírito  do  tempo,  o  cunho  varonil  e  incisivo  do 
acontecimento,  sua  acção  moral  ou  politica,  tudo  deixa 
addiado  para  d*aqui  a  um  século  talvez  a  quando  jà  os 
personagens  não  se  achem  tão  ligados  ainda  ao  pre- 
sente pelos  vínculos  das  paixões  e  da  família.  » 

Que  família,  que  paixões?  Pois  tem  alguma  cousa 
que  ver  com  isto  o  escriptor  profundo,  consciencioso,  o 
crítico  justo  e  severo,  que  não  transige  com  espécie 
alguma  de  interesse,  e  só  se  dirige  a  attingir  o  alvo 
excelso  da  verdade  histórica?  Frívola  ^aze  esta  que  não 
incobre  os  defeitos,  as  nodosidades  do  arcabouço  re- 
pulsivo ! 

Falando  de  Alexandre  Herculano,  como  romancista" 
histórico,  diz  um  dos  bons  talentos  críticos  modernos  da 
Península:  «  Nos  romances  histórico-nacionaes,  nunca 
tanto  como  alli  talvez,  se  eleva  o  escriptor  a  uma  idea- 
jisação  característica,  pessoal,  crítica  e  philosóphica. 

«  Em  geral  fica  com  Walter  Scott  na  chrónica  ro- 
mantizada.  E  esplendidamente  romantizada.  A  história 
é  escrupulosamente  tractada:  estudam-se  a  épocha,  os 
costumes,  as  tendências,  as  ambições,  os  homens.  » 

Fez  acaso  outro  tanto  Senio  no  seu  Gaúcho^  para  pre- 
tender com  razão  um  logar  na  ordem  dos  romancistas 
históricos  ?  Si  acaso  se  não  acha  ainda  inaugurada  no 
paiz  a  eschóla,  não  ha  de  ser  de  certo  a  obra  de  Senio 
que  servirá  de  modelo,  tão  certo  é  faltar- lhe  a  possança 
e  a  firmeza  de  acção  e  de  crítica  imprescindíveis  em  tra- 
balhos taes  de  iniciativa  no  género. 

Si  conchegámos  o  Gaúcho  âs  fórmulas  geraes  da 
plástica,  aos  preceitos  da  arte  e  do  bello,  ao  purismo  da 


-XIV  9 

linguag^em  castiça,  não  se  ressente  elle  de  menos  des- 
lÍ2es  com  feições  de  defeitos  que  difficilmente  se  po- 
•derão  escusar. 

A  neologísmomania  puUúlae  palpita  a  cada  pagina, 
infastia.  A  titulo  de  inriquecer-se  a  língua,  já  de  si 
iAo  opulenta,  inventam-se  vocábulos  por  mero  arbítrio. 
A  prevalecer  o  abuso,  quem  se  intenderá  d'aqui  a 
pouco  ?  O  direito,  a  auctoridade  que  tem  Senio  para 
introduzir  na  língua  vernácula  termos  novos  ex  aucto- 
ritate  qnâ  scribiíj  muitos  também  o  têm;  e  onde  iremos 
parar,  si  todos  esses  se  Jeixarem  dominar  pelo  mesmo 
'erro  e  vaidade  de  inventarem  por  conta  própria  ? 

A  contar  da  Diva  para  cá,  justamente  a  obra  que  as- 
^ignala  o  prin^^ipal  período  de  decadência  de  Senio^  não 
ha  trabalho  seo  que  se  possa  Ier,de  recheado,  que  vem, 
4e  quanta  innovaçRo  lhe  occorre  fazer,  como  si  isso  de- 
nunciasse grande  m-i^recimento  intellectnnl,  e  deman- 
<la3se  alto  esforço  e  superioridade  no  escriptor  !  De 
um  verbo  deriva  Senio  um  substantivo;  de  um  vSubs- 
tantivo  deriva  um  verbo  —  e  eis  a  que  se  reduz  a 
grandiosa  procreaçao  philológica  de  Senio.  Quem  é 
<[ue  nao  poderia  fazer  outro  tanto,  sem,  de'  mais  a 
mais,  snppôr  ter  descoberto  a  pólvora,  ou  se  julgar . 
çor  isso  com  jus  ao  respeito  e  á  admiração  de  pre- 
sentes 8  pósteros  1 

E  que  razão  de  necessidade  poderia  determinar  taes 
inn)vaçOes?   Por  ventura  Senio  cria  idéas  tao sublime- 
mente originaes,  que  nflo  incontre  na  inexgotavel  ri- 
3ueza  da  língua  nacional  termos,  que  lhes  correspon- 
am  e  que  as  exprimam  ?  Serão  essas  idéas  creanças 
<le  septe  braços  para  quem  seja  mister  talhar  camisa.-^ 
^e  septe  mangas  ?  Não  será  difficil  na  verdade  deparar 
•era  nossas  últimas  lettras  com  aleijões  de  tal  ordem. 

Em  um  caso  indisputavelmente  seria  preciso  inven- 
tar uma  língua  própria  :  no  de  querer  fazer  o  homem 
intendido  em  seus  mais  recônditos  phenómenos  psychi- 
•cos  pelos  cavallos,  e  de  intendel-os  elle  egualmente  ; 
mas  então  inventem  uma  língua  nova,  e  não  queiram 
aviltar  na  ínfima  funcção  a  illustre  e  heróica  língua 
dos  Barros  e  dos  Vieiras. 

Longe  me  levaria  esta  ordem  de  considerações,  e  eu 

t<5uho  pressa  de  terminar  a  série,  apezar  do  muito  que 

me  fica  ainda  por  dizer.  Aguardarei  outra  occasiã^),  em 

*que   farei  a  apreciação   da  Diva,  da  Iracíma  como  ro- 


10  XIV 

mance  typico-indiano-brazíleo,  e  da  Pata  da  Gazella^. 
se  antes  d'isso  nos  não  der  Senio  cousa  mais  nova^  como 
promettem  os  arautos  e  passavantes. 

Segundo   vès,   meo  amigo,    seja  incarado  o  Gaúcho* 
sob  o   aspecto,   ethnógraphico,   ou  seja-o  sob  o  esthé- 
tico,  ou  philológico,  urge  que  os  que  sinceramente  se 
interessam  pelo  lustre  das  pátrias  lettras  façam  cruzada 
para  que  elle  nao  consiga  abrir  eschola. 

Discutamol-o  entretanto,  e  a  vôo  de  pássaro,  em  ter- 
reno diverso,  isto  é  considerado  como  romance  iephan- 
tasia^  segundo  te  prometti  em  minha  primeira  epis- 
tola. 

Nao  condemno  este  género  da  litteratura  romântica. 
O  Ha7i  rf'  Islândia  é  horrivelmente  bello.  A  Ondinn^  de 
Fouqué,  é  sublime.  Também  não  deixa  de  ser  interes- 
sante o  Diabo  côxo^  de  Lesage,  posto  que  plágio  do  Di(^ 
bio  cujuelOy  de  Guevara.  E  muitos  outros,  que  ahi  fazem 
as  delicias  dos  diletianíi  da  litteratura  do  impossível  e 
do  sonho  ou  da  fábula.  Nao  condemno  pois  in  limine 
o  romance  de  phantasia, 

Parecei\do-me,  porém,  que  o  romance  tem  influencia 
civilizadora  ;  que  moraliza,  educa,  forma  o  sentimento 
pelas  licções  e  pelas  advertências  ;  que  até  certo  poncto 
accompanha  o  theatro  em  suas  vistas  de  conquista  do 
ideal  social — prefiro  o  romance  intimo  histórico^  de  cos- 
tumes^ e  até  o  realista,  ainda  que  este  me  nflo  pareça 
característico  dos  tempos  que  correm. 

Em  uma  palavra  prefiro  o  romance  verosimil^  possi- 
vel,  quero  «  o  homem  juncto  das  cousas  »  definição  da 
arte  por  Bacon. 

E  é  justamente  por  isso  que  o  Lazarillo  de  Tormes^  de 
Don  Diego  H.  de  Meudoza,  exerceu  tao  considerável 
importância  nao  só  na  história  política  da  Hispanha» 
sinão  também  na  história  litterária  de  toda  a  Europa — 
como  diz  Viardot.  «  O  pequeno  Lazaro  de  Tormes  é  umr 
ingeitado,  quepaasa  de  senhor  em  senhor,  que  se  vinga 
de  os  ter  servido  exprobrando-os'  desapiedadamente,  e 
que,  em  cada  condição  nova,  faz  a  crítica  amarga  de 
una  classe  da  sociedade  »  E'  um  monumento  em  nove- 
capítulos. 

Mas  o  GaAcho  não  é  um  romance  de  phantasia,  nem 
pensa  em  tal,  desde  que  localiza  sua  acçRo  n'um  thea- 
trc;   verdadeiro,  e  n'ella  pretende  offerecer  a  photogra- 


XIV  11 

phia  dos  costumes  de  uma  sociedade  conhecida  c  con- 
temporânea, dando  ás  pessoas  e  ás  cousas  seos  próprios 
nomes. 

O  Gaúcho  pretendia  ser  de  costumes,  mas  depravou-se 
na  aberração.  «  A  pietençao  de  excessiva  novidade 
nao  pôde  dar  em  resultado  sinao  uma  triste  mistura  de 
comedia  gruiesca  e  de  grandeza  phantdstica^  que  se  nao 
encontra  em  livro  algum  »  diz  Philarète,  apreciando 
as  Viagens  d'  Herman  Melville.  Dir-se-hia  que  o  pro- 
fundo crítico  francez  talhou  n'estas  palavras  a  carapuça 
de  Senio. 

Terei  sido  acaso  ssvero,  meu  amigo  ?  Nao,  de  certo, 
pelo  que  me  parece. 

E'  preciso  dizer  abertamente  a  Sento  que  poucos  po- 
dem ser  Dumas  ou  Voltaire.  A  fertilidade  proveitosa 
só  é  partilha  dos  génios.  Non  omnia  possumus  omnes  ; 
e  a  Coryntho  nao  vai  quem  quer. 

Os  graves  incargos  de  conselheiro  do  Estado,  de  po- 
lítico, de  advogado,  de  parlamentar,  de  opposicionista, 
6  de  muitas  cousas  mais,  não  permittem  aos  talentos  lit- 
terários  produzir  sinao  abortos,  se  querem  dar  creanças 
em  menos  de  nove  raezes. 

Quando  Senio  era  simples  advogado,  e  não  queria 
campar  de  philólogo  abalizado,  politico  profundo,  nem 
concebera  ainda  a  vaidade  de  passar  espichas  nos  clás- 
sicos e  de  arvorar-se  em  mestre  de  eschola,  tudo  ia 
bem. 

Chegando-lhe  o  tempo  para  applicar-se  ás  lettras  a- 
menas,  compor  seos  trabalhitos  com  vagar,  corrigil-os, 
à  luz  do  gosto  e  do  bom  senso,  até  onde  este  lhe  che^ 
gava.  A  prova  temol-a  nós  no  Guaraay^  na  Viuvinha,  e 
no  Demónio  Fa/niiliar.  O  têmpora. 

Hoje,  porém,  como  tudo  está  mudado  !  Os  elogios 
immoderados  apodreceram  cedo  o  talento  útil,  fazen- 
do-o  mfunar-se  da  presumpçâo  de  ser  génio.  Prejuízo 
para  a  litteratura  natal  I  porque  em  vez  de  recolher 
mais  duas  ou  três  producçOesinhas,  dos  quilates  da 
Viuvinha  ou  do  Guarany^  temos  uma  bagagem  de  vo- 
lumes, que  nao  valem  nem  o  arroubo  dos  —  Ciiwo  mi- 
nutos, 

Metta  a  mâo  em  sua  consciência,  e  diga  Senio  si  nao 
temos  razão. 


12  XIV 

Mas  nada  de  desacoroçoar.  E'  ainda  occasíão  de  re- 
cuperar o  tempo  gasto  em  pura  perda,  e  reparar  o  mal 
que  tem  feito  ao  seo  nome  e  áis  lettras  brazileiras. 

Tenho  concluído,  meo  amigo.  Pede  por  mim  desculpa 
ao  pública,  e  a  Senio  que  me  uâo  queira  mal. 

FIM. 


O  Brazll  (Jor^nal.) 

Sob  este  título  começou  a  publicar-se  em  Lisboa,  na 
dia  25  de  agosto  passado,  um  periódico  cujo  program- 
ma  resulta  da  exposição,  que  d'elle  transcrevemos  em 
seguida.  Com  effeito,  os  seos  três  primeiros  números, 

Sue  temos  á  vista,  occupam-se  quasi  exclusivamente 
e  um  noticiário  do  Brazil  em  geral,  e  de  cada  uma 
das  suas  províncias,  dissertando  egualmente  sobre  as- 
sumptos de  interesse  para  este  Império,  ou  irando  no- 
tícias da  Europa,  que  prendem  com  o  desinvolvimento 
do  paiz.  Jâ  pela  forma  da  redacção,  jà  pelo  valor  dos 
^escriptos,  ou  das  matérias  nelles  tractadas,  julgámos 
aue  serão  lidos  com  attençao  os  seguintes  artigos,  qua 
a'aquellas  coluranas  trasladamos.  (*) 

INTRODUCCXO. 

* 

A'  iiitrada  do  ultimo  quartel  do  presente  século 
existe  incontíistavelmente,  por  entre  muitos  e  graves 
motivos  para  lamentos,  um  facto  innegavel,  grande- 
mente.consolador;  é  o  espírito  de  fraternisaçao,  que 
de  dia  para  dia  se  desinvolve,  e  cresce  entre  os  diver- 
sos povos,  e  que  nem  as  luctr.s  políticas,  nem  as  diffe- 
renças  religiosas,  nem  os  passageiros  accidenies  das 
guerras,  hao  de  já  agora  supplantar. 

Ninguém,  que  metta  fundo  a  mao  na  consciência, 
deixará  de  sentir  em  si  mesmo  esta  benéfica,  esta  auspi- 
ciosa tendência  humanitária.  E'  uma  revolução  moral 

(*)  Nesta  corte,  sfto  correspondentes  d'esta  folha  os  Srs.  E. 
e  H.  Laemmert,  em  cuja  cana  se  tomam  assignaturas  ()or  anno 
a  lõjJOOO.  por  semestre  a  SjJOOO;  e  se  recebem  annúncios,  para 
serem  publicados  no  Brazil  a  60  rs.  por  Unha  ;  tudo  dinheiro 
do  Império.  (Em  lAsbôa :  Redacção^  António  Maria  de  Castilho  ; 
Administração^  Pedro  A.  d'  Almeida.) 


XIV  13 

iniciada  pelo  Christianiámo.  e  perfilhada  pela  philoso- 
pbia,  que  sao  as  duas  potencias,  que  sempre,  cedo 
ou  tarde,  conseguem  triumphar. 

Que  será  porém,  quando  ás  razões  geraes  do  senti- 
mento, que  leva  espontaneamente  o  homem  para  os 
homens,  accrescem  interesses  mais  (Jefinidos,  mais  po- 
sitivos, mais  palpáveis  ?  Enião  a  hospitalidade  natu- 
ral corrobora-se  ainda  com  todas  as  forças  do  egcismo  ; 
é  jà  o  commércio  mútuo  dos  benefícios. 

Das  naçOes  a  que  esta  ponderação  affeiçõa  mais  par- 
ticularmente  a  nossa,  duas  ha,  que  em  primeiro  logar 
se  apresentam  ao  espirito :  a  Hispanha,  e  o  Braz  11. 
Com  a  Hispanha  (Iriua  e  não  sennora)  estamos,  por 
mútuo  accõrdo,  estreitando  cada  vez  mais  relações 
scientifícas,  litterárias,  artisticas  e  commerciaes.  Co- 
meçamos a  conhecer-nos  de  parte  a  parte,  e  por  conse- 
guinte a  appreciar-nos,  a  respeitar-nos,  a  servir-nos. 
As  casas  d'estas  duas  irmãs,  agora  que  se  arra/ou  o 
muro  secular  que  as  separava,  hao  de  de  melhorar  am- 
bas co:n  a  pacífica  e  aprazivel  convivência. 

Bem  com  a  irmfl,  de  quem  já  nao  temos  que  temer, 
mas  tudo  que  esperar,  resta  a  Portugal  outro  íntimo  ; 
o  seo  filho  emancipado  :  o  Buazil.  Um  amigo  útil  ao 
pé  da  porta,  outro  amigo  nao  menos  útil  a  uma  dis- 
tancia, de  duas  mil  léguas  ainda  ha  pouco,  hoje... 
de  alguns  dias,  graças  ao  successivo  desinvolvimento 
ue  as  sciencias  e  as  arleá,  á  hora  que  lhes  foi  marca- 
a  pelo  Progresso  (isto  é,  pela  Providencia ;  trouxeram 
á  mais  prompta  reaailo,  de  todas  as  partes  do 
mundo. 

Uma  das  razões  que  à  Hispanha  nos  affeiçoam  c  in- 
contestavelmente a  similhança  da  língua  ;  essa  refor- 
ça-se  ainda  para  com  o  Brazil  ;  a  língua  é  uma  única 
nos  dous  povos.  Todos  sabem  quanto  contribue  para 
nos  amarmos,  o  intendermo-nos. 

Mas  nao  é  só  i.sto.  As  glórias  de  Portugal  são  gló- 
rias brdzileiras,  porque  as  nossas  origens  gloriosas 
sfto  idênticas.  Nenlium  portuguez,  ou  raro,  deixará  de 
ter,  próximos  ou  remitos,  parentes  no  Brazil  ;  nenhum 
brazileiro  (e  a  generalidade  dos  appellidos  que  o  diga) 
deixará  de  comptar,  remoto  ou  próximo,  algum  ou 
muitos  parentes  em  Portugal. 

Mais  ainda  :  uma  parte  dos  habitantes  d'aquelle 
Império  auspiciosíssimo,  de  Portugal  sai  ;  em  amor 
pátrio  se  acrisola  n'egsas  apartadas  regiões, e  de  lá  volta 


i 


14  XIV 

quasi  sempre  ao  seo  ninho,  ao  cabo  de  aunos  de  tra- 
balhos úteis,  galardoado  pela  fortuna  que  premeia  os  . 
seos  trabalhos,  e  trazendo,  para  até  á  sepultura,  sauda- 
des de  uma  segunda  pátria. 

A  colónia  d'estes  homens,  que  entre  nós  vem  acabar, 
úteis  á  nossa  terra,  depois  de  o  terem  sido  á  terra 
alheia,  homens  que  mereceram,  e  trazem,  e  nao  rene- 
gam, o  título  de  brazileiros,  sem  renegarem  nem  des- 
merecerem o  de  porUiguezes,  é  de  todas  as  colónias  es- 
trangeiras entre  nós  a  mais  numerosa. 

E'  para  elles  especialmente  que  nós  emprehendemos 
esta  fólha. 

Cifra-se  o  nosso  empenho  na  anciã  de  lhes  apresen- 
tarmos sem  dilação  de  dias,  como  a  outras  folhas  for- 
çadamente acontece,  nas  primeiras,  e  quasi  á  primeira 
hora,  todas  quantas  novidades  nas  folnas  e  correspon- 
dências particulares  do  Brazil  podermos  receber  por 
cada  um  dos  vapores  transatlânticos. 

Conio  nenhum  outro  assumpto  nos  propomos,  nem 
admittimos,  n'esta  publicação,  poderemos  consagrar  a 
elle  o  muito  espaço  que  ao3  outros  periódicos  absorvem 
noticias  políticas  do  mundo,  as  particulares  do  nosso 
paiz,  e  mil  outras  considerações  imperiosas. 

O  Brazil  é  pois  especialmente  destinado  a  trazer  o 
mais  cedo  e  o  mais  abundantemente  que  ser  possa,  as 
novidades  de  todo  o  género,  que  devam  interessar  a 
todos  os  que  manteem  relações,  quer  de  commércio, 
quer  de  amizade  com  aquelles  nossos  bons  Irmãos  do 
ultramar. 

Nao  sao  portanto  unicamente  os  muitos  que  vem  ter- 
minar os  seos  dias  por  essas  províncias,  respeitados  e 
queridos  no  torrão  do  seo  nascimento,  e  os  muitíssimos 
Que  vem  repousar-se  das  suas  lidas  no  seio  e  nos  gosos 
das  nossas  cidades  principaes,  os  que  esperamos  nos  aco- 
lham benevolamente;  serão  tamoem,  e  principalmente 
os  filhos  da  sempre  lembrada  terra  de  Sancta  cruz,  re- 
sidentes entre  nós,  os  que  se  hao  de  comprazer  de  estar 
vendo  passarem-lhes  por  diante  dos  olhos  do  espírito 
quantos  acontecimentos   de  lá  constem. 

Dêmos  candidamente  razão  de  nós.  Obrigamo-nos 
pela  boa  diligencia  no  desempenho  do  nosso  encargo  ; 
e  com  as  disposições  que  havemos  tomado  para  apromp- 
ta  obtenção  de  jornaes  e  correspondentes,  curiosos  e 
fidedignos,  esperámos  que  este  papel,  de  paquete  para 
paquete,  irá  crescendo  de  importância. 


XIV  15 

O  Bx*azil  littej?a]?io. 

Sabe  a  Europa  como  é  esplendida  a  natureza  no  con- 
tinente americano  ;  como  alli  se  eleva  imponente  a 
palmeira  majestosa  ;  como  o  cipó  se  inlaça  vaidoso  por 
entre  as  mangueiras  e  as  mil  copadas  árvores  das 
mattas  virgens  do  Brazil ;  como  os  colibris  gorgeiam 
por  entre  aquella  riqueza  de  vegetação;  que  pittorescos 
sao  os  seos  vales;  que  panoramas  immensos  se  desin- 
rolam  do  alto  das  suas  collinas;  sabe,  finalmente,  como 
a  Providencia  foi  pródiga  de  todas  as  bellezas,  do  Ama- 
zonas ao  Paraguay. 

Sabe  a  Europa  quão  sincero  é  alli  o  amor  aos  que 
trabalham:  com  que  hospitalidade  sao  recebidos  os  que 
v5o  em*  busca  de  uma  nova  familia  e  de  uma  nova 
pátria  ;  com  que  boa  fé  e  confiança  vai  até  ao  seio  das 
famílias  o  homem  de  bem,  nobre,  ou  plebêo,  rico  ou 
pobre;  com  que  alegria  é  olhada  a  prosperidade  de 
extranhos;  sabe,  também,  finalmente,  como  alli  se 
premeia  a  actividade  e  a  honradez. 

Eis  o  muito  que  sabe ;  eis  o  que  três  séculos  de  expe- 
riência lhe  tem  provado  ;  mas  ignora  ainda  muito,  e 
tanto,  que  tem  razão  para  alcunhar  de  egoísta  o  paiz 
que  a  todos  se  entrega  e  que  de  todos  é  pátria. 

Que  é  feito  da  litteratura  brazileira  ?  Onde  estão 
os  cantores  inspirados  por  tanta  belleza  ?  onde  os 
poetas  intoando  hymnos  ante  aquella  magnificência  ? 
onde  as  lendas  das  tribus  americanas  ? 

E  o  echo  só  tem  alguns  nomes  a  repetir;  a  medo 
balbucia....  Gonçalves  Dias...  Magalhães...  Casimiro 
de  Abreu...  Pereira  da  Silva...  poucos  mais,  e  em- 
mudece. 

E  cala-se  sem  ração  !  Que  egoismo  é  este  "?  porque 
haveis  vós,  poetas  e  prosadores,  tantos  que  sois  já,  de 
monopolizar  os  fructos  da  vossa  inspiração,  a  quem 
tanto  de  braços  abertos  vos  quer  também  ? 

Vai  elevar-se  agora  um  monumento  a  Gonçalves 
Dias,  a  essa  glória  brazileira  tão  invejada  de  Norte  a 
Sul,  que,  para  que  todo  o  Brazil  tivesse  direito  a  cha- 
mal-o  egualmente  seo,  se  foi  sepultar  na  immensidade 
do  Oceano.  Pois  bem;  segui  o  exemplo,  que  para  se- 
g^uir  é  :  elevae  outro  monumento  que  vos  não  honrará 
menos.  Junctae  todas  as  vossas  obras;  distribui-as  pelas 
bibliothecas  do  velho  mundo;  nfto  as  deixeis  circums- 
criptas  ao  vosso  império;  apresentae-vos  e  sereis  respei- 


16     .  XLV 

lados  ;  provae  que,  de  mãos  dadas  com  o  commércio  t; 
a  agricultura,  caminha  e  progride  a  litteratura  bra- 
zileira.  ^ 

Mal  vai  ao  povo  que  tudo  exige  do  governo,  e  que* 
entre  a  indecisão  e  a  indifferença  deixa  que  o  tempo 
olvide  o  nome  d^aquelies  que  bastariam  à  glória  de 
uma  nação.  Nao  sejaes  do  número  d'esses:  convencei- 
vos  de  que  nem  só  o  bronze  e  o  mármore  resistem  á 
acção  dos  tempos,  e  de  que  a  história,  mais  duradoura 
do  que  aquelles,  atravessa  impassivel  os  séculos,  senv 
que  nem  as  commoçoes  politicas  nem  os  caprichos  hu- 
manos a  abalem  ou  destruam. 

Volvei  os  olhos  para  o  vosso  InsiUuto  Histórico  ^ 
Geográphico^  para  essa  academia  que  tem  recebido  em 
seo  seio  tantos  talentos  privilegiados,  que  teminrique- 
eido  a  sua  bibliotheca  com  tantas  obras  notáveis,  e 
alli  podeis  medir  as  vossas  forças. 

Drtspertae!  E'  azado  e  de  molde  o  ensejo.  Prestae  um 
tributo  bem  merecido  e  bem  digno  de  Gonçalves 
Dias;  e  na  hora  em  que  a  sua  província  natal  vestir  aa 
43uasgala«  ao  descobrir  a  estatua  do  immortal  cantorbra* 
zileiro,fazei  com  que,  em  honra  d'esse  nom<í,  que  vistes 
t&o  acatado  na  Europa,  ella  poss*i  conhecer-vos,  ava- 
liar-vos  e  dar-vos  o  honroso  logar  que  vos  compete  j& 
na  litteratura  contemporânea. 


NOTICIÁRIO. 

ELEicao. — Na  academia  real  dasbellas  artes  foi  élei" 
to,  pelos  artistas  iuscriptos  como  concurrentes  &  expo'' 
siçao  de  Madrid,  para  fazer  parte  do  jury  de  admissão 
das  obras  destinadas  àquelle  certemeu,  o  sr.  Manuel  de 
Araújo  Porto  Alegre,  cônsul  geral  do  Brazil  em 
Lisboa. 

Foi  s.  ex.'  um  dos  mais  dísti netos  cultores  e  pro~ 
fessores  das  bellaj  artes  no  Rio  de  Janeiro,  onde  gran-* 
geou  pelo  seo  talento  uma  reputaçílo  noiabili^isíma. 


Tjp.  e  Lith.— IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Setembro,  146. 


QUESTÕES  DO  DIA 

N.  15 

BIO  DE  JANEIBO  1»  DE  OCTUBBO  DE  1811. 


-Hf.  *m  usa  dos  Ses.  E.  &  tí.   LaemmpH.—  Pri^a  ila  Consliluifão, 

lo.»  rffi  rjintn. — Livraria  Arademit», Rua   deS.  Joae  r.  IV9 — LMigftdo 
pa^  o.   C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  d.  79.  —  Pibí«  200  reis 


Saber  do  and&nieato  que  teve  a.  honrosa  idéa,  ini- 
ãada  D'esta  corte,  da  erecção  de  tira  monumeiítú  ao 
ttoatre  poeta  do  Sado,  dará  satiafecçao  a  muitos  de 
lossoe  leitores,  ou  por  terem  prestado  o  seo  concurso  i 
eftUzaçao  do  pensamento,  ou  pela  sympathia  que 
^ram  estan  manifestações  de  veneração  à  memória  de 
uu  grande  vulto,  de  que  se  honrara  as  lettras  do  nosso 
idioma, 

Tendo-nos  sido  confiados  varío.s  documentos,  rela- 
ÍÍT08  a  este  assumpto,  e  especialmente  a  act-a  da  ultima 
da  commissSo  central,  que  n'esta  corte  funccio- 
noa,  obtida  a  devida  veaia,  aqui  trasladamos  o  es- 
Mneiat  : 

COMWISSXO  CBNTBAL   DO   MONUMENTO   A  BOCAGE. 

Setíão  exlraoráaulria  em  4  de  junho  de  1S71. 

Ae  meio  dia,  preseotettos  Srs.  Ministro  de  Portug;*!, 
Coa^elheiro  Mathias  de  Carvalho  e  Vascoucellos,  Osn- 
Mlheiro  José  Feliciano  de  Castiilio  Barreto  e  Noronha, 
BarSo  de  8.  Clemente,  Visconde  de  Sapucahy,  Com- 
ntendador  Boaventura  Gonçalves  Roque,  Coaselheira 
JoAo  C»rdo,-«o  de  Menezes  e  Souza,  Commendador  Ao- 
José  da  Costa  Braga,  Quintino  Bocayuva,  Com- 
mcoidador  Agoãtiaho  Maria  Correia  de  Sã,  Bernardo 
Itooiin^uas  da  Silva  Araújo  e  Ernesto  CTbi-fto — o  pri- 
BUiro,  a  convite  especial  do  Sr.  Presiaeate  dacom- 
miaBOo  Boca^aaa,  e  os  outros  membros  da  mesma; — 
preseatee  mais  os  Srs.  Commaadador  Padre  José  Luiz 
d' Almeida  Martins,  Desembarg:ador  Manoel  de  Freitas 
Travageofi,  e  Consellieiro  Francisco  Borges  Xavier  de 
lembroa  da  commissfio  de  Nictheroy — e  os  Srs. 
daSilvaMelloGuimarftes,  Joaquim  Maria  Ma- 


2  XV 

chado  d'A8siz,  António  José  Victorino  de  Barros,  Gui- 
lherme Cândido  Bellegarde,  Justiniano  Augusto  de  Fa- 
ria, e  Dr.  José  Cândido  de  Lacerda  Coutinho,  membros 
conspícuos  da  grande  assembléa  do  Jubilêo  de  Bocage; 

O  Sr.  Conselheiro  Castilho,  Presidente  da  commissfto, 
convidou  o  Sr.  Vice-Presidente,  Barão  de  S.  Clemente, 
para  dirigir  os  trabalhos  que  iam  inceptar-se. 

O  mesmo  Sr.  Barão  abre  a  sessão. 

Secretários  os  Srs.  Ernesto  Cybrao  e  Quintino  Bo- 
cayuva. 

Lê-se  uma  carta  do  Sr.  Visconde  do  Rio-Branco, 
declarando  que  n&o  pode  comparecer  â  reunião  da 
commissao,  de  que  é  membro,  porque  a  outro  poncto 
o  chamam  negócios  urgentes  do  Estado. 

Obtendo  a  palavra  o  Sr.  Conselheiro  Castilho,  pro- 
cede á  leitura  do  seo  Relatório^  que  é  do  teor  se- 
guinte : 

Senhores. 

Reunimo-nos  hoje,  para  que  providenciei/s  definiti- 
vamente sobre  assumpto  que  com  tanta  propriedade 
foi  commettido  ao  vosso  zelo,  quando  uma  numerosa 
e  escolhida  assembléa,  congregada  n'esta  corte,  vos 
requereu  tractasseis  dcu^écção  de  um  monumento  que 
simbolizasse  o  respeito  tributado  pelos  homens  da 
língua  portugueza  a  um  de  seos  mais  primorosos  orna- 
mentos, o  Sadino  Manuel  Maria  Barbosa  du  Bocage. 

J&  para  esse  grandioso  vulto  é  chegado  o  dia  da  ver- 
dadeira e  desprevenida  appreciaçao  ;jâo  nosso  julga- 
mento pôde  assumir  character  de  justiça  recta,  de  fria 
imparcialidade.  Quando  nem  cinzas  restam  das  paixões 
que  incendiaram  os  contemporâneos  do  homem  grande: 
quando  se  dissiparam  os  preconceitos  perturbadores  do 
espirito  ;  quando  a  distancia  dos  tempos  e  dos  homens 
permitte  ficar  estranho  &s  attracçOes  do  amor  cego,e  da 
ódio  mais  cego  ainda  ;  quando  o  exame  auxilia  a  ver- 
dade; é  vindo  o  dia,  fixanse  a  opinião,  e  a  posteridade 
profere  a  sua  sentença,  de  que  nao  ha  appellação. 

E  então  se  aquilata  o  mérito  real:  os  que  foram  seos 
perseguidores  jazem  sepultados  soba  mais  pesada  das 
lousas,  a  do  esquecimento;  o  perseguido  vive,  sobre- 
vive, triumpha.  Fará  elle  o  laude  póstera.  A  elle,  sim^ 
é  licito,  o  brado  :  Poateridadej  és  minha  I  porque  es£» 
posteridade,  ente  de  raz&o  em  que  se  fundem  e  perso- 
nificam séculos  ou  decennios,  povos  e  homens  que  se 


.s^gninm,  é  a  (|ue  decreta,  em  derradeira  instaucia, 
condemnaçao  ou  apotheose. 

Quando  d'esse  julgamentu  houver  safdo  iacólume  a 
memória  de  um  beneraérito,  e  a  sociedade  reconhecer 
une  esse  homem  se  elevou,  por  dotes  excepcionaes, 
muito  arima  do  nivel  commum,  útil  é.  para  prémio  e 
incentivo,  se  manifestem  pura  com  essa  cara  memória 
oa  testimuuho»  de  respeito  e  gratidão. 

Se  isto  asaira  deveria  ter  .sidu  sempre,  parece  que 
mais  activaraeate  se  deve  promover  que  o  aeja  hoje, 
«fim  Je  contrastar  a  actual  tendência,  qae  faz  cora  que 
tuats  vivamoii  para  o  presente,  e  para  a  matéria,  e  para 
DÓS,  que — para  o  futuro,  e  para  a  floria,  e  para  a  bu- 
maniilade.  Já  discutimos  se  a  posteridade  é  uma  reali- 
dade ou  um  mytho  ;  paraella  trabalhã.mos  meuos  que 
para  o  alfaiate,  u  estofador,  o  mordomo  ;  a  fama  coq- 
yerteti-jítí  em  mercadoria  e  officio  ;  as  aspirações  nobres 
a&o  utopiaíi  :  as  recompensas  nacioíia^s,  enredos;  e  as 
rolumnas-VeudOrae  de  todas  as  glórias,  procuram  der- 
rocal-ax,  mesmo  com  o  risco  de  se  ficar  esmagado  pela 
queda  dVllas. 

Has  os  que,  como  v4s,  ainda  crêem,  trabalham  e  es- 
peram, continuam  na  sua  missão  que  é  sancta.  Para 
BSaes  a  glória,  ti&o  se  vende  nem  se  compra,  ou  antes 
B  glúria  é  a  moeda  com  que  a  humanidade  compra  o 
Krviço,  e  o  preço  que  a  memória  do  benemérito  cou- 
■seate  em  receber;  amemoríl£í,digo,  porque  essas  recom- 
pensas, para  sarem  supremas, hão  de  ser  pagas  pelos  vi- 
T08  aos  que  já  sob  a  campa  os  nfio  podetn  escutar. 

Ua  â6  annos  que  o  vulcSo,  denominado  cérebro  de 
Soeage,  deixou  de  arremessar  labaredas,  e  lavas,  e 
pedras,  e  areias  leves,  que  do  tudo  havia  também  n'a- 
■queila  cratera  humana.  Nenhum  de  nós  o  conheceu: 
é  o  Ualba.  Otho,  ou  Vitellíu.  de  quem  nem  benefício 
wm  injúria  recebemos;  nao  pôde  ser  averbado  de  sus- 

Píito  o  nosso  tribunal;  e  aqui  repetirei  o  que  jíi  dice  : 
oje  nao  estão  j  ulgando  Bocage  olhos  fanatizados  pelo 
pasmo,  nem  desvairados  pela  inveja,  quasi  exclusivos 
]UJze»  do  seo  engenho,  omquanto  pertenceu  á  terra. 
FiSne  homem  nascera  eminentemente  poeta.  Pródiga 
latureza,  ao  derramar  em  sua  alma  torrentes  de  estro, 
íufaodiu-lhe  parte  grande  da  scieacia,  que  só  costuma 
er  dominio  da  arte.  Vida  aventurosa  e  estragada  in- 
lols  o  impediram  todavia  de  opulentar  iniraitavel- 
Beata  as  suas  producçOes  com  aquelles  toques  ma^is- 


1 

4 


4  XV 

tmas.»  que  sói  segreda  meditação,  estuado,  leitura  e  a^- 

Ílicaçfto.  Victima  de  insanos  applaueos,  e  de  mk  turba 
e  adouf adoces,  a  elles  deveu  oa  peiores  dias  da  sua 
exialeiMna  de  homem,  os  mais  ruins  impulsos  e  os  maia 
disooràeasons  da  ena  lyrade  poeta.  Character  fogose^e 
indómito,  paixões  árnã>atadas  e  omnipotentes,  subju- 
garam alma  ali&e  melancholiea,  em  que  até  os  maiS' 
doces  sentimentos  vibravam  escabrosos  e  acerbos.  Am- 
bicioso de  todos  06  lauréis  poéticos,  tentou  com  deee- 
gual  fortuna  todos  os  váurios  géneros  e  estylos.  Idólatra 
da  bannonia  métrica,  desencantou  segredos  de  inexge- 
tavel  melodia,  e  escravizou  a  locuç&o,  nfto  para  lhe 
AvsieT^  mas  pam  cantar-lbe  os  pensamentos.  O  idicnia 
dfi  GamOes  subiu  em  suas  mftos  a  tal  grandeza  e  majee» 
tade,  que  nunca  houve  segundo  typo  que  se  lhe  equi* 
parasse.  Seo  extremado  gosto  o  fez  ousar  uma  tente- 
tiva  de  reacç&o  contra  o  caaçado  estylo  bucólico.  Coo- 
ciso  e  claro,'  metaj^órico  mas  natural,  hyperbólico 
BI48  verdadeiro,  as  azas  da  sua  imaginação  levan- 
tavam o  ouvinte  &  esphera  onde  reinava.  J&  em  tAo 
verdes  annos  sem  par  em  diversos  géneros  de  poesia^ 
todos  os  houvera  iliu^trado,  se  a  psurca  n&o  tivesse  eei^ 
tado  t&o  brilhante  e  esperançoso  fio.  Chefs  glorioso  da 
uma  esch(da  nacional,  teve  a  dita  de  Moliére :  lançou 
a  barra  onde  ninguém  lh'a  poude  ir  buscar. 

Nós,  ministros  humildes  mas  fieis  da  religino  da 
arte,  ousámos  com  mfto  trómuta  chegar  o  facho  á  pyra 
do  grande  morto.  D'entre  as  chammas  em  que  ábrazár 
mos  quanto  n'elle  havia  de  mortal,  vimea  levantar-se, 
sob  aspecto  de  cyme,  um  espírito  que  logo  rasgou  vôo 
seguro  para  osoéos  da  glória.  Napyra  se  consummou 
a  apatheose:  desappareceu  o  homem,  e  dobrámos  o. 
joelho  ao  humano  semi-deus. 

Corria  o  anno  de  186&.  Occupava-me  eu  de  corrigir 
e  ampliar,  para  a  2*  ediçfto  da  Lwra/ria  Clássica  Part^^ 
gueza^  o  meo.  obscuro  mas  amplo  estudo  sobre  o  inexoe- 
divel  improvisador,  assumpto  entllo  de  aturada  corres- 
pondência com  meo  irmfto  Ajitonio  Feliciano  de  Oaa- 
tilho,  um  dos  mais  convicto» admíradopes  d'aquelle  ^a 
accesos  turbilhões  aa  voz  desato.  Elle  mepondeioa 
que,  tomando  a  nossa  geraçllo  sobre  si  solver  muita» 
débitos,  dos  que  a  precederam,  erguendo  monumentoa 
aos  quaem  suas  obras  nos  legaram  outros  mouumentaa 
mais  perennes  que  o  mármore  ou  o  brenze,f6»  para  da- 
seiar  que  justiça  se  fizesse  á  memória  de  Boeage,porqua 


ftjtes  ftctoâ  eepleadidoâ  de  gTKtidfio  nacionsl  são  honras 
4o  presente,  recompensas  do  passado  e  sementes  do 
futuro. 

E  eu,  qae  bem  i^tmheço  aterra  onde  ha  um  quarto 
Je  século  resido, — que  sei  que  u'eUa  acham  prorapta- 
iBcute  écho  iodos  oh  pensamentos  generosos, — que  me 
costumei  por  doce  experiência  a  Mo  achar  em  taes 
>cs80s  distiDcçio  entre  brazíleiros  e  porttiguezes, — que 
vi  que  o  génio  que  illuminava  o  átrio  do  presente  sé- 
■culo  brilhara  uo  lempo  em  que  formávamos  uma  só 
&imilia.»eRdo  conseg-uintti mente  glória  de  uns  e  outros,  • 
— que  esse  Petrarcha  portuguez  tinha  uma  peculiari-  j 
daJe  pam  o  Brazil.  e  era  ser  neto  do  vice-almiranta 
íiA  du  Bocage,  famoso  por  muitas  façanhas,  entre  as 
ijusesi  as  praticadas  na  defezn  do  Rto  de  Janeiro  contra 
jut  hostes  de  Duguay-Trouín, — nao  hesitei  em  consul- 
tar um  auditório  tao  numeroso  como  illustrado. 

Faxia  um  feliz  acaso  que  a  15  de  septembro  de  1865 
fo6*i!  o  anuiversário   secular   de  Bocage,  nascido  om 
egaat  dia,em  17õã.  E  por  quanto  em  paizes  adeantados 
teu  estado  em  nobre  uso  celebrar  o  jiibilèa  de  homens 
graudes,  como  succedeu  na  AUemanha,  no  dia  dos  100 
annoi  de    Scliiller  eim   1859.  na  Inglaterra  no  dia  dos 
HUtianDos  de  Shakspeare,  em  1864,  na  Itália  em  egual 
aono  *  no  dia  dos  600  annos  de  Dante  etc  julguei  que 
em  tSo  civilisada  cidade  como  esta,  sf'ria  bemacceita  a 
idé»  decelebrarmos  o  jubilêo  dograo  fidalgo  do  idioma,  , 
do  príncipe  do  improviso,  do  Anacreoute   da  lyrica,  dõ  i 
Pulrarcha     do  soneto,   do  Rembrandt   do   ciúme,    do  1 
Kdi-i-nuor  da  metrificação  portugueza.  1 

Gstãan  memória  de  todos  a  esplendida  solemuidads  I 
(l*esaa   etitbusiastica   noite,   que  tao   apuradas  penuas  | 
4escrf!Vi!ram    «m  todaa  as  folhas  do  Rio  de  Janeiro,  e  ' 
nas  principaes  de  Portugal.  Se  no  empyreo  se  é  sensível 
ao  auv  os  homens  fazem  na  terra,  terá  estremecido  dfl 
júbilo   a  alma  de  Bocage,   tao  sedenta  do  atfecto  dos 
«eof, — uao  ao  ver  uma  imagem  collocadasob  um'docel, 
lanieaila.  t^ircumdada  de   flores,   bagas   douradas,  da-J 
mmcos,  luzes,  lyra  ingrinatdada  de  rosas,  fíualmeutél 
aLtnr  lythtirgico  da  religião  poética — mna  de  admirai" 
^uc    800   cavalheiros   se  con^egasseni  para  victoriar 
um  hemem  morto  antes  de  quasi  todos  elles  terem  nas- 
cido ;  c  concordassem  unisonos  e  jubilosas  em   procla- 
mar e.>MU  l]tiado  digno  de  perpétuo  respeito  da  poste-a 
rídade.  Alli  o  mais  popular  dos  nossos  escriptoreíi  tevf 
msi.t  popular  das  consagrações. 


I 
I 

3 

m 


6  XV 

Resolveu  entfto  a  assembléa  se  promovesse  a  erecçaa 
de  um  singelo  monumento  a  Bocage,  na  própria  terra 
do  seo  nascimento,  Setúbal;  e  foi,  acto  continuo,  no- 
meada para  angariar  donativos  uma  commissfto  cen- 
tral, composta  indistinctamente  de  brazileiros  e  por- 
tuguezes,  recaindo  a  escolha,  â  excepção  de  um  nome, 
em  cavalheiros,  por  todos  os  titulos,distinctissimos. 

Cumpre  aqni  recordar  que  ao  nosso  talentoso  coUega, 
o  Exm.  Sr.  1*.  secretario  Dr.  Pedro  Luiz  Pereira  de 
Souza,  deveu  a  commissão  um  auxilio  valiosissimo, 
qual  foi  o  admirável  brado  de  excitaç&o;  o  sursuni 
corda  de  um  formoso  escripto  relativo  ao  monumento, 
escripto  a  que  foi  dada  a  devida  ampla  publicidade. 

Então  se  applicou  a  commissao  a  desempenhar-se  do- 
seo  encargo,  nao  só  espalhando  listas,  mas  estabele- 
cendo commissões  filiaes  em  todo  o  Império,  susten- 
tando durante  uns  3  aunos  uma  correspondência  que 
representa  mais  de  500  oflicios  recebidos  e  expedidos, 
e  lançando  mao  de  quantos  meios  occorriam  para  aug- 
mentar  o  algarismo  da  subscrípçao,  sendo  formuladas  e 
mandadas,  em  todas  as  direcções,  particulares  ins- 
trucçOes  para  boa  ordem  dos  trabalhos. 

Infelizmente  a  quadra  era  péssima  para  similhante 
intento:  a  guerra  do  Paraguay  nao  só  fazia  escacear 
geralmente  os  recursos,  mas  absorvia  as  attençôes;  e, 
observando-se  que  as  sommas  agenciadas  nâo  subiam 
alto,  julgou-se  mais  prudente  sobr'estar,  aguardando 
melhores  tempos. 

Todavia  importa  reconhecer  que  achámoe  dedicada 
cooperação  em  muitos  honrados  cidadãos,  que  nos  auxi- 
liaram. Se  é  licito  particularizar,  mencionarei,  quanto 
à  corte,  sem  falar  em  membros  da  commissao,  os  ser- 
viços que  prestaram  nobre  e  desinteressadamente  (  de- 
sinteressadamente, digo,  porque  desde  o  principio  se 
proclamou  que  esta  empresa,  exclusivamente  patrió- 
tica, nao  daria  logar  a  remuneração  alguma  nobiliária, 
ou  de  outra  espécie  )  os  seguintes  senhores  : — L.  C^ 
Furtado  Coelho,  que  com  a  generosa  annuencia  da  sua 
companhia  dramática,  nos  proporcionou  a  vantagem  de 
dous  lucrativos  benefícios,  um  na  corte,  outro  em  Nic- 
theroy— o  Sr.  Joaquim  da  Silva  Mello  Guimarães, 
que  a  si  tomou  parte  grande  da  direcção  do  expediente 
e  contas, — o  Sr.  Joaquim  Insley  Pacheco,  que  nos  con- 
cedeu cem  photographias  do  poeta,  que  destinávamos  % 
principio  para  oiBFerecer  a  valiosos  auxiliares,  etc,  Tam- 


XV 

bem  concorreram,  por  si  ou  por  meio  de  listas  de 
subscriptores,  com  qaantias  superiores  a  20$  rs.  os 
cavalbeiros,  cujos  nomes  se  acham  indicados  na  rela- 
ção juncta. 

Egualmente  mencionarei  vários  espontâneos  oiBFereci- 
mentos,  ainda  não  utilizados;  taes  como  os  dos  Srs.  pa- 
dre José  Joaquim  Correia  de  Almeida,  de  considerável 
número  de  exemplares  das  suas  producções;  Francisco 
Libório  Fernandes,  portuguez,  residente  no  Pará,  de 
um  notável  quadro ,  primorosamente  desenhado  a 
penna. 

Uma  inopinada  desgraça  annullou  porém  subita- 
mente os  resultados  de  tantos  esforços.  O  nosso  hon- 
rado  e  infeliz  thesoureiro,  Sr,  José  Ricardo  Moniz,para 
cujas  mãos  passavam  constantemente  todas  as  sommas, 
apenas  por  mim  recebidas,  depositou-as,  com  venci- 
mento de  juros,  na  casa  bancária  Portinho  á  Moniz, 
a  qual  arrastou  na  sua  fallencia  todos  os  valorescom 
que  comptavamos,  e  tão  laboriosamente  agenciados. 
Da  exposição  do  nobre  thesoureiro  resulta  que  a  quan- 
tia a  elle  entregue,  e  seos  juros  subiu  a  Rs.  8:427s640; 
?ue  as  despezasj  segundo  os  documentos  foram 
•-6928420  e  «jue  por  conseguinte  lhe  ficaram  líquiJos 
Rs.  6:735$220. 

Em  relação  a  esta  quantia,  o  único  rateio  pago  (em 
maio  de  1870  )  ao  meo  procurador,  durante  a  minha 
ausência  em  Portugal,  foi  de  Rs.  1628000. 

Cumpre  porém  notar  que,  excedendo  talvez  as  mi- 
nhas attribuiçOes,  deixei  de  intrar  para  a  thesouraria 
com  as  duas  ultimas  verbas  por  mim  recebidas,  e  que 
já*  o  foram,  quando  eram  notoriamente  tristes  as  cir- 
cumstancias  da  casa  Portinho  &  Moniz,  e  por  isso  fica- 
ram em  meo  poder  essas  duas  verbas,  a  saber: 

Da  commissão  da  Parahyba  do  Sul,  por  mão  do 
Sr.  Dr.  Cândido  Mendes  de  Almeida  2008000. 

Da  dieta  em  Nictheroy,por  lettra  do  Sr.  José  Pereira 
da  Silva  Porto  1:3838000,  prefazendo  as  três  quantias 
por  mim  guardadas  Rs.  1:7458000. 

De  conformidade  com  a  minha  ordem,  foi-me  remet- 
tida  esta  quantia^  em  septembro,  ao  cambio  de  184  */o, 
como  se  vê  da  2*.  via  de  lettra  juncta,  correspondendo 
por  tanto  em  Portugal  a  somma  de  minha  total  res- 
ponsabilidade, em  dinheiro  forte,  a  Rs.  6148437. 

Consta-me  que  mais  algumas  quantias  ha  arrecada- 
das, que  nem  chegaram  às  mãos  do  Sr.  thesoureiro 


8  XV 

nem  ás  minhas,  sobre  as  quaes  resolvereis  o  que  vos 
approuver. 

Passo  agora  a  confessar  mui  respeitosamente  as  ex- 
orbitaneias  a  (^\xe  me  abalancei  (  sem  auctorizaçAo,  e 
por  isso  com  risco  da  vossa  censura  ),  relativamente 
á  tarefa  que  nos  fora  commettida. 

Estive  em  Portugal  duas  vezes  depois  da  nossa  or- 
ganização :— em  1866  a  1867,— em  1869  a  1870. 

Da  primeira  vez  procedi  a  muitos  estudos  cçm  pessoas 
competentes:  ainda  ent^o  eu  comptava  que  podessemos 
dispor  de  uns  Rs.  iO:000$000  dinheiro  do  Brazil;  mas 
quando  vi  um  dos  principaes  esculptores  orçar  só  a 
a  estátua,  independente  de  todo  o  monumento,  em 
Rs.  7  a  8:000$000  fortes,  esmoreci,  e  intendi  que  de- 
víamos esperar  melhores  dias,  quando  o  Brazil  nSlo 
estivesse  assoberbado  pela  guerra,  e  Portugal  por  uma 
grande  crise  pública  e  particular.  Nada  tínhamos  pois 
enttlo  que  fazer :  nem  havia  meios  para  obra  de  algum 
vulto,  nem  possibilidade  de  obtel-os.  Entretanto,  meo 
irmão  e  eu  quizemos  approveitar  o  tempo  para  estudar 
a  localidade  onde  o  monumento  devia  ser  coUocado,  e 
a  disposição  dos  espíritos  em  Setúbal.  Junctos  achareis 
diversos  números  do  Jornal  de  Setúbal,  onde  apparece 
minuciosamente  descripto  tudo  quanto  occorreu  na  mi- 
nha visita  áquella  cidade,  cumprindo-rae  aqui  declarar 
que  tomei  como  feitas  a  todos  os  cooperadores  do  pen- 
samento as  distincçOes  de  que  alli  fui  alvo  ;  e  qne  da 
parte  do  Presidente  da  respectiva  Camará  Municipal, 
como  dos  respeitáveis  oradores  Setúbal enses,  foram 

Íior  todos  os  modos  manifestados  os  seos  sentimentos 
e  gratidão  para  com  os  seos  irmãos  brazileiros  e 
portuguezes,  residentes  neste  Império,  tanto  pela  idéa 
em  si  mesma  como  pela  sua  execução.  Suscitou-se  alli 
por  esta  occasiao  uma  variante  ao  nosso  projecto,  a 
qual  consistia  em  se  applicarem  antes  os  fundos  á  crea- 
çao  de  um  estabelecimento  de  ii^trucção,  denominado 
Asylo  Bocage;  mas  nao  me  suppondo  eu  com  faculdade 
de  desviaros  dinheiros  da  premeditada  applicaç&o;tendo 
uma  assembléa  de  mais  de  60  membros  resolvido  dei- 
xar a  solução  a  nosso  arbítrio  ;  e  dirigindo  meo  irra&o 
uma  carta  ao  Presidente  da  Camará  [  carta  que  juncta 
achareis  impressa,  por  ordem  da  mesma  Camará  ) ; 
permanecemos  na  primitiva  deliberação,  quanto  á  erec- 
ç&o  do  monumento,  quando  para  isso  houvesse  meios. 
Creou  se  em  Setúbal  uma  commissao,  dando-se-vos  o 


XV  9 

lo^ar  de  hoara,  pois  é  só  nessa  qualidade  que  meo  ir- 
mfto  e  eu  tomámos  a  eleiç&o  ( já  se  yâ  que  honorária ) 
4l*ell6  para  Presidente»  e  de  mim  para  Vice-Presidente. 
£sta  commissao  poróm  pouco  poude  angariar,  e  eu 
«reio  ser  vossa  meate  .que  ^sse  producto  lá  tenha  o 
destino  que  a  cjmmissão  local  julgar  dever  dar-lhe. 

No  anno  de  1869  a  70  porém  já  eu,  por  occasião  de 
nova  viagem  a  Portugal,  sabia  que  estavam  perdidos 
os  tundos  da  subscrípção,  excepto  a  pequena  somma 
«zistente  em  meo  poder.  Éutao,  considerei  eu  que  era 
próprio  da  commissao  eleita  dar  conta  do  incargo  que 
4U!ceitara — que  haviam  desapparecido  os  meios  de 
que  dispunha — que  nao  era  da  nossa  dignidade  ir,  para 
41  mesmo  fim,  provocar  subscripções  novas,  tendo  as 
anteriores  tido  tão  máo  êxito — que  purém  o  material  e 
m^o  de  obra  em  Portugal  são  bons,  e  por  baixo  preço  — 
que  a  pequenhez  da  terra,e  a  singeleza  do  homem  cujo 
mérito  se  commemora,  nao  demandam  ostentosa  cons- 
trucção — que  o  intuito  moral  se  preeiíclie,  erigindo-se 
uma  modesta  columna  e  estatua — que  d*e.ss'arte  pode- 
ríamos com  pequeno  sacrificio,  e  sem  recorrer  a  subs- 
crípções  novas  fora  dj  nosso  grémio,  levar  avante  o 
que  se  nos  incumbira. 

Dirigi-me  pjis  ao  Sr.  (lermano  José  de  Salle.s,  intel- 
ligeuce  director  de  um^i  das  primeiras  officinas  de  cs- 
culptura  de  Lisboa,  e  a  quem  foi  incarregada  grande 
parte  do  trabalho  do  monumento  recem-erigido  ao 
immori^alSr.  D.  Pedro  IV  o  I;  e  nesse  patriótico  artista 
achei  a  mais  prompta  acquiescencia,  declarando-me 
que  portal  forma  abraçava  o  pensamento  que  se  promp- 
tificava  a  realizal-o,  até  com  perda.  Depois  de  várias 
conferencias,  e  coadjuvado  pelos  meos  honrados  ami- 
gos, o  Sr.  conselheiro  Francisco  de  Assiz  Rodrigues, 
Director  da  Academia  das  Bailas  Artes,  António  da 
Silva  TuUio,  e  conselheiro  António  José  Viale,  conser- 
vadores da  Bibliotheca  Nacional,  Dr.  António  Rodri- 
gues Manitto,  Presidentp  da  Camará  Municipal  do 
Setúbal,  Júlio  de  Castilho  <ítc.,  concordei  definitiva- 
mente no  plauD  da  obra;  e  depois  de  feitos  os  compe- 
tentes desenhos,  e  dpprovado  por  todos  o  modelo  da 
pstátua,  tal  como  eu  a  recommendara,  modelo  que  foi 
obra  do  esculptor  Sr.  Pedro  Carlos  dos  Reis,  ordenei  se 
começassem  immediatamente  os  trabalhos,  e  eis-ahi  o 
excesso  de  poderes  pelo  qual  vos  snpplico,  se  o  raere 
cer,  um  voto  absolutório. 


10  XV 

Aqui  vos  appresento,   Srs.,   o  plano  do  nosso  mo- 
numento a  Bocage.  £'  todo  elle  feito  com  aquella 
pedra  lioz ,    extrahida    das    pedreiras    de   Pêro    Pi- 
nheiro. ,  que  denominam  mármore  de  Lisboa. 

Tem,  em  proporções  menores,  alguma  similhança 
com  o  que  se  erigiu  ao  Sr.  D.  Pedro,  no  Rocio,  de- 
Lisboa.  Sobre  uma  escadaria,  de  quatro  degraus,  dos 
quaes  o  primeiro  tem  4  m.  de  largura,  sendo  a  altura 
d'elles  de  1  m.  10,  ergue-seum pedestal  quadrado,  que 
da  base  até  á  cornija  tem  2  m.  40  de  alto,  1  m.  50  de^ 
largo  ;  nos  4  ângulos  é  chanfrado,  e  nas  4  frentes- 
ha  de  levar  como  inscripções  4  quartetos  de  Bocage, 
dirigidos —  um  a  Deus — outro  á  pátria — terceiro  aa 
amor — quarto  à  amizade.  Superpõe-se  ao  pedestal 
uma  columna  assaz  elegante,  de  ordem  corynthia,  com 
canelluras  ;  e  medindo  o  envazamento  a  altura  de* 
O,"  60,  o  fusto  4,"  4  de  altura  e  O,*"  66  de  diâmetro, 
e  o  capitei  O,"  80;  nesse  capitel,  entre  as  volutas 
e  folhas  d'acantho  estão  umas  lyras  coroadas  de  rosas. 
Por  sobre  a  columna  vê-se  um  supedâneo  com  altura  der 
O^^ySO  ;  sobre  este  uma  convexidade  como  topo  de  abó- 
bada, e  é  nessa  convexidade  que  Bocage  assenta  os  pès. 
Está  o  poeta  com  a  cabeça  descoberta,  vestido  com  a 
trajo  do  tempo,  casaca  e  calção,  e  unaa  capa,  manto 
ou  capote  ;  empunha  na  direita  uma  penna  de  ave, 
na  esquerda  umas  folhas  de  papel ;  tem  a  cabeça  leve- 
mente curvada;  a  altura  da  estatua  é  de  2".,  e  de 
12".   (ou  cerca  de  um  3"  andar)  o  total  do  monumento. 

Tivemos  a  fortuna  de  alcançar,  para  guiar  o  esta- 
tuário, o  melhor  e  mais  fidedigno  retrato  que  existe  da 
Sadino,  cuja  história  devo  aqui  reproduzir: 

Quando  publi(juei  a  1*  edição  da  Livraria  Clássica, 
tinha  baldado  diligencias  em  Portugal  para  descobrir 
um  retrato  (que  D.  Gastão  Fausto  da  Camará,  o  grande 
amigo  do  poeta,  me  asseverara  ser  o  único  fidedigno), 
executado  por  Henrique  José  da  Silva,  mezes  antes,  mas 
no  mesmo  anno,  da  morte  de  Bocage.  Como  havia  eu 
de  lá  desincantal-o,  se  elle  estava  no  Rio  de  Janeiro  ? 
Henrino  ficou  com  o  retrato  que  tirara,  e  vindo  para 
o  Rio,  onde  foi  professor  de  Bellas-Artes,  trouxe-o  ; 
por  sua  morte,  passou  no  espólio  a  seo  filho,  porteiro 
do  musêo,  e  depois  por  morte  d'este  a  siios  filhas^ 
nascidas  no  Brazil.  Foi  avaliado  em  10$000,  e  por  suas 
donas  adjudicado,  como  mimo  ao  gratuito  advogado* 
no  inventário,  Exm.  Dr.  Joaquim  José  Teixeira,  que  o 
conserva  com  o  apreço  devido.   Comquanto  como  obra 


XV  11 

d'arte  nao  seja  um  primor,  transverbera-lhe  no  rosto 
uma  n&o  sei  que  vaga  expressão  de  verdade  e  vida,  que 
atordoa  até  aos  profanos,  e  incute  convencimento  de  ser 
este  o  retrato  authéntico. 

J&  por  ser  esta  preciosidade  pertencente  a  um  cava- 
lheiro que  razoavelmente  a  nao  dispensava,  jà  também 
porque  artisticamente  está  muito  incorrecto,  obtive  do 
referido  amigo  a  concessão  de  se  tirar  uma  cópia,  a 
qual  foi  confíada  a  Mr.  Moreau,  que  da  tarefa  se  saiu 
perfeitamente,  reproduzindo  com  a  maior  fidelidade 
as  derradeiras  minúcias  dos  traços  phjsionómicos,  ma» 
aperfeiçoando  notavelmente  o  incorrecto  trabalho,  e 
augmentando- lhe  consideravelmente  as  dimensões; 
foi  este  painel  que  serviu  de  modelo  ao  esculptor. 

A'  Gamara  Municipal  de  Setúbal  offereci  eu  deixar- 
lh'o  em  depósito,  declarando-lhe  que  ficaria  proprie- 
dade sua,  se  esta  commissão  a  isso  auctorizasse,  o  que 
vós  decidireis.  Provisoriamente,  e  até  vossa  resolução, 
determinou  aquella  corporação  que  fosse  collocado  no 
logar  de  honra  do  vasto  salão  das  suas  conferencias. 

Claro  está  que,  desde  que  assumi  a  responsabilidade 
de  mandar  fazer  a  obra,  subjeitei-me  a  completar  por 
mim  a  parte  do  numerário,  que  acaso]  possa  vir  a 
faltar  para  a  conclusão  da  obra  e  seos  accessórios,  se 
me  não  absolverdes  das  minhas  usurpações  ;  ou  mesmo 
a  satisfazer  todo  o  custo  d'ella,  se  o  que  está  feito  não 
merecer  a  vossa  approvação. 

Solliclto  pois  vossas  resoluções  sobre  os  seguintes 
ponctos  : 

1'. — E'  ou  não  approvado  o  que  até  hoje  se  tem  pra- 
ticado e  consta  d'este  relatório  ? 

2*. — Convém  incumbir  alguém  de  levar  ao  cabo  a 
empresa,  dirigindo  o  que  resta  para  fazer,  e  reclamando 
de  quem  os  tiver,  os  fundos  já  subscriptos  e  ainda  não 
recolhidos  ? 

3^. — Quer  a  commissão  fixar  o  dia  da  inauguração, 
e  o  programma  d'essa  solemnidade,  e  nomear  iis  pes- 
soas qne  em  Portugal  a  devem  representar  ? 

4'*.-— Auctoriza  todas  as  despezas  que  se  julgarem 
convenientes,  com  o  monumento,  medalhas,  impressos, 
melhoramento  da  praça,  e  o  mais  que  parecer  acertado, 
com  tanto  que  se  não  promova  nova  subscripção  para 
fora  dos  membros  da  commissão? 

5*. — Precisam  estes  gastos  do  successivo  consenti- 
mento  da  commissão,  ou  ficam  desde  já  auctorizados. 


12  XV 

bastando  que,  depois  de  effectuaáoi»^  a  ^commisdao  se 
congregae  pela  última  vez  para  o  exame  das  contas? 

B^^.-^Deve  dar*se  publicidade  a  alguma  cousa? 
ao  quê  ? 

7».  ..-.Cumpre,  n'aquelle  caso,  mandar  exemplares 
d^essas  publicações  aos  contribuintes,  renovando-llxes  q 
agradecimento  da  coadjuYaçfto  ? 

Só  tsjte  resta  reiterar  as  expressões  da  minha  grati- 
dão aos  que  me  fizeram  a  honra  de  consentir  que  eu  me 
associasse  aos  vossos  trabalhos,  e  a  vós  mesmos  pela 
confiança  e  benevolência  com  que  vos  tendes  dignado 
distinguir-me.  Se  a  ellas  n&o  correspondi,  culpe-se-me 
a  insuficiência,  que  n&o  certamente  a  vontade. 

Rio  de  Janeiro,  3  áe  junho  de'1871. 

J.  F.  BK  Castilho  Babbeto  e  Noronha. 


Este  acto  foi  interrompido,  quasi  em  principio,  pela 
presença  do  Sr.  José  Ricardo  Moniz,  Thesoureiro  da 
CommissSlo,  o  qual  declara  que  só  a  urgência  do  caso^ 
e  a  singularidade  da  sua  posiç&o  perante  os  subscripto- 
res  para  o  Monumento  a  Bocage,  o  forçariam  a  appre- 
seutar-se  em  público,  no  dia  em  que  baixava  á  sepul- 
tura um  de  seos  irm&os :  por  isso  pedia  para  ser  ouvido, 
afim  de  poder  retirar-se. 

Concedida  a  urgência,  o  Sr.  Moniz  leu  o  seo  Rela- 
tório, que  é  do  teor  seguinte  : 

Senhores. 

Para  conhecimento  de  todos  aquelles  que  tem  direito 
de  perguntar  o  que  se  ha  feito  dos  dinheiros  arreca- 
dados para  o  monumento  a  Bocage,  de  cuja  commissfto 
fui  thesoureiro,  apresento  o  balimço,  mostrando  dever 
existir  em  meo  poder  a  quantia  áevs.  6:735S290. 

Este  algarismo,  obtido  às  migalhas,  e  pode-se  dioér, 
na  sua  totalidade,devidas  ás  relações  pessoaes  do  Exm* 
Sr.  Conselheiro  José  Feliciano  de  Castilho,  iniciador 
da  idéa,  para  realização  da  qual  tudo  tem  sacrifi- 
cado, foi  sempre  por  mira  exclusivamente  arreca- 
dado, e  depositado  a  juros  na  casa  bancária,  da  qual 
eu  era  sócio  solidário. 

O  fatal  desbarato  dos  negócios  d'essa  casa,  levou- 
me  á  ruina  em  que  me  acho. 

Julgado  pelos  Tribunaes  do  paiz,  a  que  me  submetti, 
devo  aos  cavalheiros,  que  na  melhor  fé  confiaram  na 
minha  moralidade  uma  justificação. 


13 

Por  mais  maliiid^M  e  vauda  que  seja,  a  minha  po- 
si^  n'e^te  laomeato,  consolo-me  por  ter  no  meio  d^ 
todo  o  meo  descalabro  salvado  esse  mesmo  principio 
de  moralidade  O  bom  senso  reconhece  que  eu  n&u 
podia  nem  devia  preferir  outro  estabelecimento  que 
nAo  fdsse  o  meo,  para  ser  oaixa  d^essas  quantias  que  k 
formiga  se  arrecadavam. 

A  legalidade  de  meo  procedei  é  tao  intuitivo  que 
toda  a  reflexão  seria  uma  oanalidade. 

lias porque  nao  salvastes  no  meio  do  vosso  naur 

fetigio  08  dinheiros  da  subscripQfto  que  se  achavam  a 
vosso  cargo? 

Isso  importaria  nada  mais  nem  nada  menos  do  que 
salvar-me  a  mim  próprio;  e  nao  seria  moral  ^ue  eu  trao- 
tasse  de  me  salvar,  sacrificando  todos  os  pnncipios  pe- 
los quaes  me  constitui  responsável  d'esses  mesmos 
dinheiros. 

Um  tal  proceder  seria  a  negaç&o  de  meps  foros,  na 
sociedade  que  me  considerou. 

A  moralidade  n&o  é  trapaçaria,  e  embora  o  incadear- 
mento  de  fataes  incidentes  me  prenda  a  um  poste  de 
interpretações. equivocas,  confio  no  meo  braço,  eu» 
minha  actividade,  para  ainda  um  dia  poder  solver  esse 
débito  contrahido  pela  minha  dualidade  de  Thesour 
rdro  e  commereiante,  fundida  na  minha  própria  indi- 
vidualidade 

Nfto  posso  dar  costas  ás  accusaçOes  impertinentes 

nno  ultramar  se  fizeram  a  propósito  d'este  malfa- 
o  commettimento,  ao  character  doincançavel  Sr. 
Conselheiro  José  Feliciano  de  Castilho,  que  eom  tanto 
enthusiasmo,  e  nOo  egualada  dedicação,  se  applicou  de 
oorpo  e  alma  a  traduair  em  facto  a  sua  nobre  idéa, 
pondo  ao  serviço  d*ella  o  seo  afanoso  trabalho  e  o  seo 
grande  valimento. 

O  character  d'este  distincto  cavalheiro,  o  qual  se  tem» 
deixado  sacrificar  até  hoje  para  salvaguardar  o  meo 
nome,  nao  {>óde  por  dmús  ten:^  continuar  a  partilhar 
de  uma  posição  indefinida. 

Segundo  deveis  saber,  os  trabalhos  da  commiisao 
ficaram  reduzidos,  o  adstrictos  a  elle  como  Presi- 
dente, e  a  mim  como  Tbesoureiro;  cabendo  a  elle  toda 
a  oorrespondencia,  e  a  mim  toda  a  narteeeonóm^ioa. 
As  raias  de  nossas  aoçoes  assim  estaoeleoidas  demap* 
cavam  a  nossa  independência ;  e  nao  é  sem  grande 
oonfrangimento*  que  entro  n'estas  minúcias  para  nao 


14  XV 

pôr  em  dúvida  a  minha  total  responsabilidade,  pois 
considero-me  bastante  forte  para  nao  corar  diante  das 
impertinências,  que  um  successo  desgraçado  pôde  fazer 
nascer  em  espíritos  que  medem  a  honra  pelo  paga- 
mento &  vista. 

Nao  me  acastello  atraz  das  theorias  dos  factos,  e 
nfto  chamo  em  meo  soccorro  os  desbaratos  que  levaram 
os  dinheiros  da  subscripção  pnra  o  monumento  a 
Camões,  nem  da  Caixa  de  Pedro  V,  cuja  responsabili- 
dade legal  e  moral  das  commissoes  desappareceu  deante 
das  considerações  de  força  maior^  porque  intendo  que 
quando  os  brios  cavalheirosos  se  acham  empenhados, 
as  obrigações  não  prescrevem,  nem  a  responsabilidade 
se  divide. 

E'  tudo  quanto  tem  a  dizer  o 

Ex-Thesoureiro 
José'  Ricardo  Moniz. 

Rio  de  Janeiro  31  de  Maio  de  1871. 


  Âssembléa,  tendo  escutado  attentamente  as  consi- 
derações oraes  e  escriptas  do  Sr.  Thespureiro,  toma 
parte  em  seo  desgosto,  e  interrompe  a  sessão  durante 
algum  tempo. 

Tendo-se  retirado  o  Sr.  Moniz,  continuam  os  traba- 
lhos começados,  e  prosegue  a  leitura  do  Relatório  do 
Sr.  Conselheiro  Castilho,fínda  a  qual  o  Sr.  Conselheiro 
Cardoso  de  Menezes  propõe  que  se  votem  os  quesitos, 
in  finSy  do  Relatório. 

O  Sr.  M.  de  Mello  lembra  a  conveniência  de  se  re- 
lerem as  conclusões  do  mesmo  Relatório. 

O  Sr.  Conselheiro  Cardoso  de  Menezes  accrescenta 
que,  tendo  a  leitura  sido  interrompida,  convém  talvez 
que  o  Sr.  Conselheiro  Castilho  faça  um  resumo  do  seo 
trabalho,  e  assim  se  resolve. 

Terminada  a  exposição,  feita  por  este  senhor,  propõe 
o  Sr.  Commendador  Costa  Braga,  que  as  conclusões  do 
Relatório  sejam  votadas  inglobadamente.  Objecta  a 
Sr.  Couselheiro  Castilho  que,  tractando  ellas4e  maté- 
rias mui  diversas  entre  si,  convém  separal-as. 

Entra  em  discussão  o  P.  quesito  a  F  ou  não  appro^ 
vado  o  que  até  hoje  se  tem  feitOy  e  consta  doeste  ReUsc 
tório  ? ))  Resolve-se  pela  afirmativa,  unanimemente, 
e  sem  discussão. 

Entra  em  discussão  o  2^.  quesito  «  Convêm  mcunibir 


15 

alguém  de  levar  ao  cabo  a  empresa^  dirigindo  o  que  resta 
para  fazer:  e  redamando  de  quem  os  tiver ^  os  fundos  jd 
subscriptos^  e  ainda  não  recolhidos  ?  » 

O  Sr.  Costa  Braga  declara  ter  em  seo  poder  cerca  de 
350SÓOO  rs.  pertencentes  &  subscripçao,  que  reteve  até 
iigtira,  por  conselho  das  círcamstancias.  Outro  tanto,  e 

Selas  mesmas  razoes,  fez  o  Sr.  Commendador  Correia 
e  Sà,que  declara  ter  em  sua  mao  cerca  de  900$000  rs., 
procedente3  de  egual  origem. 

A  Assembléa  agradece  a  estes  senhores,  e  sob  pro- 
posta  do  Sr.  Conselheiro  Cardoso  de  Menezes,  resolve 
unanimemente  que  o  Sr.  Conselheiro  Castilho  seja  sol-  ' 
licitado  a  levar  ao  cabo  a  empresa;  e  dà^-lhe  solemne 
voto  de  louvor. 

O  Sr.  Conselheiro  Castilho,  agradecendo  mais  esta 
prova  de  confiança  da  Assembléa  (  «  confiança  mere- 
d^idissiman  <i  simples  justiça  »  bradam  muitas  vozes) , 
acceita  todos  o.^;  incargos,  menos  o  de  arrecadar,  o  que 
A  receber  houver.  Vários  cavalheiros  insistem  embalde 
oom  Sua  Excellencia. 

O  Sr.  Cybrfto  propõe  que  os  Srs. — Presidente,  Con- 
jflellieiro  Castilho — e  Vice-Presidente,  Barão  de  S.  Cle- 
mente— ^sejam  incarregados  de  levar  ao  fim  a  tarefa; 
«  entr:f  si  dividam  os  trabalhos.  Esta  proposta  é  una- 
nimemente approvada. 

Lêem-se  os  quesitos  3°.,  4\,  e  5\,  e  resolve-se  : 

Quanto  ao  o**.  :  que  os  Srs.  Presidente  e  Vice-Presi- 
^ente  façam  o  que  melhor  lhes  parecer  ;         • 

Quantj  ao  4".  :  o  mesmo,  e  que  se  as  sommas  arre- 
cadadas não  derem  para  os  gastos  a  que  se  refere,  seja 
cada  um  dos  membros  da  commissão  consultado  por 
c?%rta,  a  respeito  da  quantia  com  que  deseja  con- 
tribuir ; 

E  quanto  ao  5"".  :  que  iicam  desde  já  auctorizados 
todos  os  gastos  precisos. 

Lâ-âe  o  6°.  quesito,  e  resolve-se  :  que  os  Srs.  Presi- 
dente e  Vice-Presidente  mandem,  quando  opportuno  o 
julgarem,  publicar  o  que  ihes  parecer,  do  occorrido 
n'e.sta  sessão,    e  o   que   convenha  acerca  do  seo  in- 
cargo. 

Julga-se  prejudicado  o  quesito  7." 

Mais  se  resolveu, em  presença  da  promessa  contida  no 
Relatório  do  Sr.  Thesoureiro,  que  a  todo  o  tempo  que 
este  senhor  possa  restituir  os  fundos,  que  por  uma  ca- 
lamidade commercial  se   perderam,  ficam  os  mesmos 


18 

Srs.  Presidente  e  Vice^Presidente  auctorizados  a  rece* 
bel-oSy  e  i4)plical-os  a  qualquer  objecto  análogo,  que 
julgarem  conveniente. 

Obtendo  a  palavra  o  Sr.  Commendadór  Almeida 
Martins,  prop0e  que  o  voto  de  louvor,  tfio  espontanea- 
mente offerecido  ao  Sr.  Conselheiro  Castilho  pelos  v»* 
levantissimos  serviços  prestados  jpor  S.  Ex.  para  o  bom 
êxito  da  empresa  começada,  seja  extensivo  ao  Sr.  Vi»* 
conde  de  Castilho,  de  quem  nasceu  a  idéa  d^  um  Mor 
numento  a  Bocage,  segundo  a  declaraçfto  do  &*.  Con- 
selheiro. Esta  proposta  é  accolhida  com  geral  a]^lau60^ 
e  a  Âssembléa  vota  unanimemente  louvores  e  cordiae» 
agradecimentos  aos  dous  diçnos  IrmSos  Castiihos,  o 
Sr.  Visconde  e  o  Sr.  Conselheiro. 

Levanta-se  a  sessfto  ás  2 1/2  horas. 


Ebnesto  Ctbbao. 
Secretário. 


ADVERTENCU 

Já  estava  em  grande  adeantamenio  a  compósito  da 
matéria  d'este  número  (a  qual  pnecisa  ainda  ser  conti- 
nuada no  seguinte}  quando  foram  successivamente  en- 
tregues, para  serem  publicadas,  as  cartas  13*^14*  e  15*, 
de  Cincínjiato  a  Fabrície»  Saírfto  á  luz,  apmas  o 
paço  o  permitta. 


Typ.  6  Lità.— mPABCIAIr--Bm  Sete  dfl  Setembio,,lé$. 


QUESTÕES  DO  DIA 


isr.  16 


RIO  DE  JANEIRO  21  DE  OCTUBBO  DE  1871. 


Pafo  n.  < 


ísa  dos  5rs  K.  di  H.  Laemniírt.—  Praça  da  ConslituiçãD, 
o,— LívrnHa  AcadcmUra.  ttua  de  S.  Josa  d.  119—  Largo  do 
-  Rua  de  Gonçalves  Dias  o.  79.  —  Preço  200  reis. 


>toiiuiuexito  a  Bocage. 

Dêmos  no  precedente  número  a  acta  da  última  sessfto 
'»  commissao  central,  creada  n'''ãla  corte  para  promo- 
Ter  s  erecção  de  um  modesto  monumento  a  M.  M.  Bar- 
hozB  àu  Bocage,  Elmano  Sadino,  a  qual  vai  verificar- 
se  proximamente,  e  talvez  no  dia  21  de  dezembro  d'eate 
anDo,  em  Setúbal,  cidade  natal  do  poeta,  coramemo- 
rnudo-se  assim  o  66'  anno  do  seo  passamesto,  como, 
no  dia  15  de  septembro  de  1865,  egualmente  se  com- 
Inemorãra,  n'um  brilhante  jubilêo,  o  anniversÃrio  se- 
Eular  do  seo  nascimento. 

Nomeadas  para  Lisboa  e  Setúbal  commisaOes  com- 
postas dos  cavalheiros  mais  competentes,  tndo  faz  es- 
perar que  o  generoso  pensamento,  iniciado  nesta  corte, 
I  ao  qual  se  associaram  cidadãos  brazileiros  eportugue- 
ies.  seja  dignameute  realizado,  pois  consta  acharem-aa 
mtn   andamento  os  derradeiros  trabalhos. 

Este  número  será  pois  ainda  inteiramente  consagrado 
_0  mesmo  assumpto,  e  sonos  permitteo  espaço  pu- 
blicar uelle  o  excellente  escripto  do  Sr.  Dr.  Pedro  Luíe 
Pereira  de  Souza,  e  a  correspondência  trocada  entre  o 
Sr.  António  Feliciano  de  Castilho  e  a  Camará  Muni- 
eíp«l  de  Setúbal.  Ficam  muitos  outros  curiosos  docu- 
neotos,  a  alguns  dos  quaes  talvez  ainda  damos  egnal 
publicidade. 

Monumento  a  BQ:;age. 

Em  dias  do  mez  de  septembro,  na  cidade  do  Rio  de 
Janeiro,  celebrava-se  uma  festa  litterária  em  honra  & 
lyra  de  llocage. 

Os  amigos  das  lettras   e   de   nossas  antigas   glórias 

Itsviam  sido  convidados  para  uma  reunião  nas  salas  do 

lub  Fluminense,  pelo  Sr.  Conselheiro  José  Feliciano 


2  XVI 

de  Castilho  Baireto  e  Nonmha,  em  áeo  nome,  e  no  de 
seo  distincto  irmão  o  Sr.  Dr.  António  Feliciano  de  Cas- 
tilho, de  quem,  como  S.  Ex.  annunciou,  recebera 
aquelle  honroso  incarjfo. 

Tudo  concorria  para  aquecer  os  ânimos  n'essa  elo- 
quente contemplação  do  passado. 

A  illustre  personagem  que  apparecia  á  frente  de  tao 
generoso  movimento  conquistara  de  ha  muito  tempo  a 
admiração  dos  contemporâneos.  As  musas  carinhosas 
lhe  embalaram  o  berço,  e  na  existência  litterària  do 
illustre  cego  ingastaram  inniimeras  jóias  do  mais  fino 
quilate.  Alma  sempre  nova,  espírito  sempre  audaz, 
talento  sempre  fecundo,  ainda  sonha  o  grande,  o  ideal. 
Nao  cançou.  Não  descreu.  Naose  assentou  alquebrado 
à  beira  da  estrada,  nem  se  recolheu  ao  sombrio  silen- 
cio da  ironia.  Antes  caminha  sempre,  carregado  de 
trophéos,  saudando  com  fervor  a  geração  que  tem  ância 
de  poesia  e  de  futuro.  Os  olhos,  que  j^ara  a  luz  se  fe- 
charam, fitou-os  elle  em  outro  céo  mais  límpido. 

Ainda  agora  se  nos  revela  o  Ovídio  portuguez,  e  lá 
do  seo  Tibur  nos  convidava  para  a  festa  do  passado, 

A  data  em  que  nos  reuníamos  era  solemne.  O  dia  15 
de  septembro  de  1865  completava  o  século  do  nasci- 
mento de  Bocage.  Éramos  pois  convivas  de  um  jubilôo 
litterárío,  ceremónia  poética,  e  original  entre  nós. 

Não  podia  ficar  estéril  a  saudação  que  dirigíamos  á 
sombra  de  Elmano.  O.Sr.  Conselheiro  Castilho  expoz  a 
nobre  idéa  de  perpetuar  no  mármore  e  no  bronze  a  ve- 
neração da  posteridade  ao  assombroso  poeta.  Foi  caloro- 
samente abraçada.  O  plano  do  monumento  apresentado 
por  S.  Ex.  circulou  pela  assembléa.  E*  simples,  ele- 
gante e  modesto.  Uma  escadaria  de  mármore  leva  por 
quatro  degraus  a  um  átrio,  onde  oito  columnas  de  or- 
dem jónica  sustentam  uma  cúpola,  sobre  a  qual  se 
eleva  a  musa  da  poesia,  com  a  mão  esquerda  apoiada 
em  uma  lyra,  e  a  direita  alçada,  empunhando  uma 
coroa.  Ao  meio  do  átrio,  e  sobre  um  pedestal  quadran- 
gular, em  cujas  faces  se  lerão  versos  do  poeta,  er- 
gue-se  o  busto  de  bronze  de  Bocage. 

Desde  logo  foi  acclamada  uma  commissão  para  levar 
a  effeito  o  magnífico  pensamento. 

Sem  dúvida  merece  Bocage  essa  oblação  eloquente, 
ainda  que  singela.  Aquelles  que  se  acharam  no  cami- 
nho do  poeta  percebiam  n'elle  o  deus  interior,  presen- 
tiam  a  chamma  sagrada  a  incendiar-lhe  o  cérebro,  a 


XVI  3 

crepitar  no  verso  que  lhe  rebentava  de  improviso,  a 
fulgurar  em  seos  olhos  azues,  que  paraciam  reflectir  a 
immensidade.  Esse  homem,  que  alli  andava  na  turba, 
tinha  a  mens  divinior.  Em  torno  d'elle  havia  o  círculo 
do  espanto. 

Cabia  á  futura  geração  consagrar  aquelle  sentimento. 
O  renome  de  Elmano  passou  pelo  chrysol  da  posteri- 
dade. Entre  nós  e  o  berço  do  poeta  se  estende  um  sé- 
culo. Pois  a  figura  de  Bocage,  de  tEo  inspirada,  de  tao 
grandiosa,  assumiu  a  nossos  olhos  proporções  legen- 
dárias. E*  quasi  um  ente  phantástico  ! 

Para  aquelle  homem  a  musa  nao  tinha  segredos  ; 
de  seos  lábios  brotava  em  jorros  a  poesia;  a  murmurosa 
lympha  da  Castália  despenhava-se-lhe  em  catadupas. 
Seos  livros  ahi  ficaram;  attestam  muiio  alto  aquelle 
maravilhoso  ingenho  e  a  febril  inspiração  que  lhe 
transbordava  da  alma.  Para  elle  n&o  íxavia  barreiras. 
Os  horizontes,  por  mais  remotos,  era  fital-os,  e  ao  olhar 
do  ^énio  se  rasgavam  luminosos. 

Mas  nem  sempre  pairava  nas  regiões  olympicas 
aquella  suberba  phantasia.  Roçou  de  perto,  e  nao  raro, 
as  misérias  humanas,  e  n'isso  sentia  singular  prazer. 
Génio  inquieto,  louco,  devorado  de  scismas,  deixava-se 
arrastar  pelo  tropel  das  paixões^  como  elle  próprio  mur- 
murou em  hora  de  tristeza,  n'aquelles  versos  que  todos 
nós  sabemos.  Rastejava  então  por  sobre  o  pó  da  terra. 
Zunia  de  seos  l&bios  o  epigramma  como  uma  setta 
hervada.  Sua  risada  mordia  deveras. 

O  soneto  nascia-lhe  de  um  jacto  e  primoroso.  Ora 
parecia  o  fascículo  das  varas  com  que  se 'comprazia 
em  flagellar  o  vicio,  ora  um  festão  de  lindas  rosas, 
como  que  entrelaçando  suspirados  amores.  Cançado  da 
terra,  fugla-lhe  a  alma  então  para  as  nuvens  douradas. 
A  cantata  serena  o  inlevava  manso  e  manso;  a  ode 
pomposa  o  arrebatava  no  turbilhão  de  fogo;  e  ouvidos 
terrestres  procuravam  o  bardo  nas  regiOes  do  ideal. 

Tal  foi  Bocage. 

Onde  pára  aquelle  crâneo- vulcão...  ninguém  o  sabe. 
Não  se  desfolham  goivos  sobre  a  lousa  que  incobre  as 
cinzas  do  poeta.  Pois  levante-se  na  terra  do  seo  berço 
a  pedra  symbólica  do  futuro.  E'  um  tributo  esse  que 
lhe  devem  duas  naçoes  :  Portugal  e  Brazil. 

A  idéa  do  monumento  a  Bocage  deve  acordar  pro- 
fundas sympathias  áquem  ealém  do  Atlântico.  Bocage 
nao  é  o  representante  de  uma  nacionalidade:  é  o  filho 


4  XVI 

sublime  de  uma  raça.  Suas  glórias  nfto  se  acham  pre- 
sas em  mesquinhas  circumscripções  geográphicas  : 
pertencem  á  língua  harmoniosa  que  falam  dous  povos 
irm&os. 

Alma  errante  nos  paramos  da  poesia,  assim  lhe  cor- 
reu a  penosa  vida.  Aqui  na  plaga  brazileira  yiveu 
também  Elmano;  respirou  d*este  ar  embalsamado;  nos 
seos  inspirados  cantos  flammeja  o  raio  quente  d'este  sol. 

Uma  vez  ainda — e  agora  em  nome  da  poesia — abra- 
cem-se  brazileiros  e  portuguezes. 

N&o  é  faustoso  monumento  o  que  se  quer  levantar  k 
memória  do  divino  cantor;  nao  é  a  traducç&o  d'aquelle 
estro  em  mármore,  pois  que  o  estro  ahi  ficou  no  mundo 
traduzido  em  versos  immortaes:  é  uma  offerenda  sin- 
gela do  futuro,  que  só  colherá  esplendores  da  idéa  que 
symboliza;  um  tributo  gracioso  e  modesto;  iima  pe- 
dra que  vai  alegrar  os  manes  queixosos  do  bardo,  e  ás 
duas  nações  pesará  bem  pouco. 

Pedro  Luiz. 

Rio  de  Janeiro-*octubro  de  1865. 


Senhores  :  presidente,  e  vereadores  da  camará,  no- 
táveis, E  HABITANTES  EM  GERAL  DA  ILLUSTRB  CIDADS 

DE  Setúbal. 

Mais  que  atrevimento  deveria  parecer  o  dirígir-me 
eu  hoje  a  vós  coUectivamente,  se  vós  mesmos,  dignan- 
do-vo6  de  me  honrar  com  excessivas  mostras  de  bene* 
volencia,  me  n&o  houvéreis  imposto  necessidade  e  obri- 
gação de  agradecimento. 

O  agradecido  é  um  amigo;  e  todo  o  amigo  tem  di- 
reito de  expor  chan  e  lisamente  os  seos  sentimentos» 
Sem  mais  vénias  o  farei. 

Penhorastes-me,  quanto  nSo  cabe  em  expressão,  ao» 
ceitando-nos  com  alacridade  um  projecto,  em  que  meo 
irmão  e  eu  havíamos  posto  o  maior  empenho  e  diligen* 
cia;  e  esse  vosso  obséquio,  já  de  si  tao  grande,  ing^ran- 
decestel-o  ainda  mais,  preparando-vos  para  nos  receber 
e  hospedar  com  magnificência  digna  de  vós,  e  de  qud 
até  príncipes  se  pagariam.  Coroastes  finalmente 
o  obsequio,  deferindo  em  parte  ás  nossas  instâncias^ 
e  attenuando  um.  pouco  essas  públicas  manífes* 
taçoes,  com  que   a  nossa  justa  humildade  se   nfto 


.trevia.  Ainda  assim,  o  que  d'eUas  ficou,  sobraria  para 
ÍDSoberbecer  aos  mais  aoibicíosos.  i 

Jà  pela  Toz  de  lueo  irmão  soubestes  a  causa  que  me 

irivoíi  de accompauhal-o,   nesta  que  para  nós  em  de- 

TOtisaima  romaria,  e  que  a  vessa  urbanidade  mais  que 

nerosa  nos   transformou    em  triumplio;  mas   o  que 

lem    pela   voz  d'el!e  podestes    decerto  comprehender, 

;em  eu  por  palavras  vos  saberia  explicar,  é  o  inliDito 

^ue  a  vós  me  prendestes  com  as  acclamaçOes,  em  que, 

â'uiD  dia  todo  de   Bocage,  o  meo  nome  andou  conso- 

Eiado  com  o  do  grande  Poeta,  no  meio  dos  seos  conter- 

neos  mais    tllustres.   Inthesouro   para  glória  de  fa- 

ilia  as  folhas  publicas  e  a»   cartas,  em    que   sa    me 

l«tain    eâsas  memoráveis  horas  de  17  a  18  d'este 

arco. 

Glorificado  por  vós  com  o  titulo  de  Presidente  ho- 
lorÀrio  da  commissftoque  deve  tractar  do  monumento 
»  Cysne  do  Sado,  venho  jà  ao  assumpto  que  sobre- 
ido  oos  interessa. 

Filhos  digníssimos  d'este  século,  quereríeis,  e  quí- 
jra-o  eu  tambem,que  os  manes  de  Bocage  se  podessem 
lobilitar  com  um  monumento  productivo  :  que  uo 
lilo  se  preferisfie  para  elle  o  bom;  à  pompa  artis- 
ica.  a  educação  e  acaridade  ;  a  um  quasi  mausoléo, 
berço  queattrabisse  as  bênçãos  de  Deus  para  sfibre 
^  litados  da  Fortuna.  As  pyramides  do  Egyplo  reu- 
Idas  nSo  valem  a  mais  humilde  eschola.  Tal  é  j&  de 
uito  a  minha  convicção  intima:  livre  a  expuz,  e 
^  diuturnamente  a  sustentei  na  lievista  Vni- 

•rgúlt  quando  se  iractava  do  como  se  ergueria  padrílo 
"igno  ft  D.  Pedro  IV  :  e  outra  vez  ainda  tomei  voz 
ela  civilisaçao  contra  a  vaidade,  quando  se  contro- 
vertia por  D,  Pedro  \'  qual  melhor  o  representaria: — se 
im  colosso  surdo,  mudo,  cego,  immovel,  gelado,  sem 
ÍDtraohas  : — se  um  mestre,  embora  o  mais  obscuro,  ou 
I  mais  humilde  me.stra,  preparando  no  eremitério  de 
mos  eschola  o  bemdicto  milagre  de  homens  e  mulhe- 
reí  para  o  porvir. 

Que  eu  defendia,  no  jà  quasi  anachrónico  pleito,  a 
njellior  parte,  sabe-o  a  rainha  consciência,  e  compro- 
T88le)-o  vós  tambeui. 

Todavia,  Senhores,   como  nem  todos  ainda  o  inten- 
detn  aisim,  e  o.s  dinheiros  jà  tributados,  para  a  home- 
nagem   que  hoje  se   projecta,  vieram  logo.  e  talvez 
(idíÀí  se  retrahiriam,  de-ítinados  a  couverter-se  em  mo- 


6  .vVI 

numento^na  accepção  vulgar  do  termo,  intendo  eu  que 
todo  e  qualquer  debate  n^este  sentido  seria  jà  agora 
intempestivo,  e  inútil  quando  menos. 

Renunciemos  pois  virilmente  o  óptimo  para  onde  nos 
fugia  o  coração,  e  ousemos  contentar-nos  com  o  simples 
bom,  que  tao  risonho,  ainda  assim,  e  t&o  conseguivel 
se  nos  presenta. 

Por  sermos  vencidos  do  número,  nao  havemos  de 
fugir  do  campo;  e  esperando  por  dias  de  mais  rasgada 
luz,  consolemo-nos,  que  também  é  boa  philosophia, 
considerando  que  d'entre  todos  os  monumentos  infe- 
cundos, estes,  os  dos  filhos  de  si  mesmos  que  se  nobili- 
taram pelos  trabalhos  da  intelligencia,  sao  sem  duvida 
os  de  maior  préstimo. 

Quem  se  instrue  ou  se  melhora  com  a  estátua  de  um 
rei,  mas  que  fosse  Trajano,o  IV  Henrique,ou  D.  Pedro? 
Que  diz  esse  mármore  ou  bronze,  que  o  não  diga  me- 
lhor, mais  ampla,  mais  alta  e  mais  duradouramente  a 
história  ?  e  quantos  monarchas  ha  para  irem  escutar  a 
esse  simulacro  de  príncipe  uma  exortação,  que  nunca 
lhes  virá  de  fora,  se  já  Deus  ao  nascer  lh'a  n&o 
insinuou  ? 

O  vulto  de  Colombo,  sim;  é  o  rei  dos  utopistas,  por 
quem  o  mundo  se  duplica  ;  essa  fígura,  como  a  do  In* 
mnte  D.  Henrique,  eleva  a  almn  ao  pensamento  das 
g^raudes  cousas;  pregoa  o  estudo,  o  trabalho, a  perseve- 
rança :  todo  o  espinhoso  itinerário  da  Glória. 

No  mesmo  caso  estão  as  effigies  solemnes  de  Galli- 
lêo,  de  Newton,  de  Linnêo,  de  Guttemberg,  de  Was- 
hington, de  Franklin,  e  estariam  a  de  Fulton,  a  de 
Olivier  de  Serres,  a  de  Jacart,  a  de  Cobden,  a  de  Da- 
guerre  e  as  de  duzentos  outros  que  negociaram  os  ta- 
lentos divinos,  em  proveito  de  seos  irmãos. 

Ainda  após  estes,  ha  logares  honrosos,  a  chamar 
pelo  cinzel,  e  podem,  com  interesse  público  outorgar- 
se  aos  homens  do  mundo  ideal,  aos  devaneadores  do 
bello,  ess'outros  fecundadores  do  mundo  pelo  menos; 
espíritos  incarregados  pela  Providencia,  de  o  aformo- 
sentar  com  as  flores  do  espírito,  com  as  saudades  do 
bom  que  foi,  e  com  os  arrebóes  prophéticos  de  me- 
lhores dias.  Os  Shakspeares,  os  Molières,  os  Schillers, 
os  Cervantes,  os  Camões  e  os  Bocages,  pertencem  a 
este  número  de  eleitos,  cuja  verdadeira  vida  principia 
da  sepultura. 

A  estátua  do  poeta,  essa  sim  que  nao  é  mlida  ;  por 


XVI  7 

ella  falam  ainda  08  seos  versos.  O  filho  das  Musas 
ouve-a  cantar,  no  mundo  estéril,  por  onde  vagueia  in- 
differente,  como  nos  areiaes  do  Egypto  o  coUosso  de 
Memnon  modulava  hymnos  ao  apparecimento  da  Au- 
rora sua  mãe 

Já  naoé  pedra  aquillo;  é  um  conselho  vivo  de  estudo, 
de  recolhimeoto  solitário,  de  meditação,  de  paciência, 
de  esperança,  de  fé  na  própria  estrella,  de  renunciaçao 
ás  pequenhezes,  aos  iurédos,  a  todas  as  misérias  ca- 
ducas e  perecedeiras. 

Falei  de  Camões  e  Bocage.  Que  de  ponctos  de  con- 
tacto, entre  estas  duas  glórias  nacionaes!  Permitti-me 
recordar-vol-os,  que  será  insoberbecer  essa  terra  a  que 
já  tanto  devo. 

Com  quasi  doas  séculos  e  meio  de  distancia,  nascem 
de  famílias  honradas,  mas  de  pouca  fortuna,  os  dous 
máximos  cantores  portuguezes,  no  prazo  precisamente 
em  que  mais  úteis  podiam  ser,  como  exemplares  á 
língua  e  poesia  nacional.  Camões  regulariza  e  fixa, 
com  o  adjutório  do  latim,  do  italiano  e  dohispanhol,  a 
arte  do  escrever  claro  e  culto  : 

..,..  um  som  alto  e  sublimado, 
um  estylo  grandíloquo  e  corrente. 
Bocage,  outro  Messias  litterário.  offusca,  dispersa, 
qua^si  anniquilla  de  todo  a  synagoga  arcàdica.  Fone 
egualmente  «'om  os  idiomas  da  antiga  e  moderna  Itá- 
lia, e  como  francez,  de  que  elle  sabe  não  colher  senão 
o  necessário,  o  útil  e  o  bom,  abelha  delicada  entre  in- 
sectos impuros  que  só  venenos  lhe  sugavam,  dá  a  ouvir 
pela  primeira  vez  aos  echos  multiplicados  e  attónitos 
uai  falar  altiloquo  e  terso,  claro  e  elegante,  cheio  e 
harmonioso,  conij  nenhum,  em  poesia,  ainda  por  cá 
se  ouvira,  nem  se  tornou  a  ouvir,  depois  que  elle  em- 
mudeceu.  Camões  e  Bocage  são  pois  ainda  hoje  dous 
mestres;  mbs  o  segundo,  por  mais  achegado  a  nós, 
mestre  para  mais  aproveitamento.  Na  traducçao  inex- 
cedivel,  e  no  soneto  inegualavel. 

Ingenhos  peregrinos  ambos,  começam  a  colher  tein- 
poran  a  celebridade;  ouvem  em  vida  os  applausos  dos 
vindouros,  e  por  entre  os  susurros  harmoniosos  dos 
loureiros,  já  também  os  pios  importunos  das  invejas. 
D'aqui  talvez  a  esplêndida  bile  que  em  ambos  se  desa- 
bafava em  sátyra;  d'aqui  também,  aquelles  frequentes 
assomos  com  que  ambos,  nao  sem  escândalo  de  me- 
díocres, ousavam  pregoar,  como  Ovídio,  como  Horácio, 


8  XVI 

como  todos  os  gigantes,  que  ardia  n'elles  o  fogo  sacro, 
q^ue  os  inspirava  um  nume,  e  que  as  suas  obras  n&o 
tinham  de  morrer. 

Beprehende-se  à  Fortuna  a  sua  prodigalidade  para 
com  entes  vulgares,  abjectos,  nuUos,  ao  mesmo  passo 
que  pelo  commum  se  mostra  mesquinha  aos  espíritos 
eleitos!  Que  desarrazoado  nCLo  é  esse  queixume !  e  basta 
uma  consideracao,ommittindo  vinte  outras  que  a  refor- 
çam : — Seria  por  ventura  justo  que  a  Providencia  dis- 
partisse  tudo  a  uns,  e  a  outros  nada "?  que  os  pobres  de 
espirito  fossem  também  mendigos  dos  bens  terrestres, 
emquanto  os  talentos  e  génios  possuíssem  os  palácios 
e  parques,  os  cavallos  da  Arábia,  as  mesas  de  LucuUo? 
«  Não  escreve  Lusíadas  quem  janta 

(c  em  toalhas  de  Flandres ; 

já  o  tinha  dicto  Garção. 

A  Camões  e  a  Bocage  vá  pois  a  vida  pobre,  atormen- 
tada, trabalhosa.  Quem  sabe  se  a  contrária  os  não  afo- 
garia ! 

Camões  recorre  á  milícia;  Bocage  recorre  á  milícia. 
Ambos  vão  servir  a  pátria  nas  terras  d'alem-mar,no  Ori- 
ente, na  região  do  sol  e  das  palmas;  a  ambos  os  espera 
lá  a  inspiração,  mas  os  infortúnios  também;  a  ambos 
a  ausência  apura  a  sensibilidade;  a  ambos  os  chamam 
es  amores  para  o  ninho  paterno. 

Amores :  qual  dos  dous  levará  n'isto  a  palma  ao 
outro  ?  Nem  um  nem  outro  é  Petrarcha  para  uma  só 
Laura,  ou  Dante  para  uma  só  Beatriz,  a  quem  ame 
viva,  e  a  quem  ame  dobradamente  depois  da  morte. 

Cada  um  d'elles  é,  como  o  segundo  por  si  confessou 
ingenuamente  : 

í(  devoto  incensador  de  mil  deidades. 

Não  amam  a  uma  formosa,  inleva-os  a  formosura  : 
ardera  por  mil;  adorara  a  todas ;  a  feminidade  sob 
qualquer  fórina  ou  nome,  é  o  seo  iman  perpétuo. 

Era  rumos  incontrados,  e  com  a  mira  em  estrellas 
diversas,  é  sempre  a  mesma  luz  celeste,  a  belleza.quem 
os  enamora,  quem  lhes  chama  :  aos  olhos,  ora  o  riso, 
ora  as  lágrymas  ;  ao  coração,  ora  a  esperança,  ora  o 
ciúme;  aos  lábios,  ora  os  hosannas,  ora  os  impropérios, 
que  são  ainda  amor.  Por  isso,  nem  um  nem  outro  se 
atreve  a  escolher  uma  companheira  para  a  jornada 
trabalhosa  da  vida.  Por  filhos  e  herdeiros  só  hão  de 
deixar  as  próprias  obras. 

A  existência  namorada,  aventurosa,  errabunda,  for- 


XVI  9 

tuita,  amphíbia,quasi  aérea,quasi  chimérica,e  quasi  de 
•chímeras  uaicameate  pascida,  a  tal  poncto  os  irmanou, 
«que  Bocage  nao  poude  abster-se  de  exclamar  no  seo 
«xilio  indiano  : 

Camões,  grande  Camões,  quão  similhante 
acho  teo  fado  ao  meo  quando  os  cotejo  ! 
egual  causa  nos  fez,  perdendo  o  Tejo, 
arrostar  co'o  sacrílego  Gigante  ; 

como  tu,  juncto  ao  Ganges  susurrante, 
da  penúria  cruel  no  horror  me  vejo; 
como  tu,  gostos  raos  que  em  v&o  desejo 
também  carpindo  estou,  saudoso  amante  ; 

ludibrio,  como  tu,  da  sorte  dura, 
meo  fim  demando  ao  cèo,  pela  certeza 
de  que  só  terai  paz  na  sepultura. 

E  ainda  então,  senhores,  o  vosso  cantor,  o  vosso  Ca- 
mOes  II,  não  sabia  quantas  mais  similhanças  com  o 
grande  homem  o  aguardavam  no  futuro.  Como  elle, 
havia  de  experimentar  por  leviandades  a  amargura 
expiatória  do  cárcere;  como  elle,  havia  de  chegar  a 
ver  a  Pátria  n*uma  grande  crise,  suprema  dor  para 
um  coração  portuguez !  como  elle,  havia  de  se  finar 
n'um  aposento  desconchegado,  esoccorrido  da  caridade; 
como  elle,  até  depois  de  interrado,  havia  de  naufra- 
gar e  perder-se  com  a  própria  sepultura;  como  a  elle 
em&m  havia  de  chegar  um  dia,  e,  foi  Deus  louvado! 
era  nosso  tempo,  em  que  a  gratidão  pública  o  evo- 
casse glorioso  d'entre  os  mortos.  Foi  necessário  um  sé- 
culo para  a  canonização  da  arte;  acampa  extraviada 
le^urgiu  pedestal,  quasi  ara. 

CamOes  e  Bocage  vão  reapparecer  nas  suas  cidades 
uataes;  d'estavez,  de  bronze  para  a  eternidade,  a  domi- 
narem com  toda  a  sua  grandeza  intellectual  em  meio 
de  praça-;  do  seo  nome;  emquanto  as  Musas  do  drama 
e  da  comédia  os  offerecem  aos  applausos  das  turbas, 
Camões  pelos  meus  exforços,  Bocage  pelo  ingenho 
prestigioso  de  Mendes  Leal,  o  príncipe  do  nosso 
theatro. 

Um  génio  poético  do  novo  mundo,  inspirado  cantor 
d'aquellas  terras,  ainda  nossas  pela  fraternidade,  d'a- 
quelle  paiz  único  do  ouro  e  do  sol,  dos  diamantes,  da 
poesia  e  da  mocidade,  Alvares  de  Azevedo,  dera-nos  o 
-exemplo  ^pobre  moço,  tão  em  flor  cortado  á  glória  do 


10  XVI 

Brazil  e  do  nosso  commiim  e   opuleiítíssinio  idioma!); 
carpira  o  fim  misérrimo  de  Bocage,  em  páginas  digna.^ 
do  seo  assumpto,  mostrando-nos  por  dentro  e  ao  natu- 
ral o  coração  vulcânico,    o  espirito   sublimemente  de- 
lirante doeste  filho  pródiíjo  das  Musas,  que  ainda  melo- 
dioso ao  expirar,  como  a  ii\e  do  Caistro,  suspirava  o 
pesaroso  gemido  que  a  ninguém  esqueceu  : 
«  Meo  ser  evaporei  na  lida  insana 
«  do  tropel  das  paixOes  qué  me  arrastava. 
Surja  pois,  muito  nas  boas  horas,  no  melhor  Fórum 
de  Setúbal,  ao  som  dos  vivas  de  Portugal  e  do  Brazil, 
essa  projectada  rotunda,  occupada  por  Bocage,  e  domi- 
nada da  Musa  lyrica,  podendo-se  intalhar  no  pedestal 
aquelle  verso  delle,  então  prophecia,  hoje  história : 

<(  Zoilos,  tremei  I  Posteridade,  és  minha  ! 

Todos  os  bons  ingenhos  portnguezes,  hao-de  sem 
falta  acudir  com  os  seos  cantos  a  essa  inauguração 
expiatória,  o  que  será  para  Elmano  terceiro  monu- 
mento: o  primeiro  jà  o  havia  elle  mesmo  levantado  a 
si  com  os  seos  versos  de  ouro. 

D'aqui  me  estou  eu  deliciando  a  antever  essa  festa 
nacional !  Toda  a  vossa  cidade  de  gala;  a  capital  visi- 
tando-acom  inveja;  a  praça  alcatifada  de  loiírob  e  mur- 
tas; a  música  alvoroçando  ainda  mais  os  coracOes;  os 
edifícios  colgados  de  púrpura:  os  representantes  do 
município  em  toda  a  pompa  official,  e,  a  convite  d*elle, 
as  damas, indo  coroar  de  flores  o  seo  escravo,  agora  rei. 

Quanto  nao  seria  para  desejíir,  que  esta  emblemá- 
tica cerimónia,  da  coroação  do  talento  pela  formosura^ 
se  renovasse  perpetuamente  de  anuo  a  anuo,  no  dia  do 
nascimento  do  poeta,  ou  no  do  seo  renascimento  em 
estátua! 

Confessemos  que  n"estas  cousas  tao  sympàthicas,  e 
tao  fáceis  de  si  que  até  sao  gratuitas,  vai  alguma 
cousa  mais  que  mero  regosijo  popular;  vai  estimulo 
enérgico  a  muito  ingenho.  A  glória  também  é  conta- 
giosa; nao  o  haviam  de  ser  só  as  outras  febres. 

Por  este  lado  o  monumento,  que  a  principio  nos  pa- 
receria estéril,  já  cessa  de  o  ser;  e  a  Posteridade  alguma 
cousa  porventura  confessará  que  lhe  devíMi.  quando 
der  de  século  a  século  o  seo  balanço. 

Senhores,  vós  tendes  várias  outraíi  praças;  vejamos 
se  se  evocam  do  nada  futuros  grandes  homens,  para  aí> 
occuparem  com  a  sua  effigie. 


XVÍ  11 

Setúbal  recebeu  da  natureza  boa  bençam  de  poesia  » 
Já  tivera  antes  de  Bocage  o  vosso  Va^co  Mausinbo  de 
Quebedo,  o  pregoeiro  épico  do  Affonso  Africano;  e 
Thomaz  António  dos  Santos  e  Silva,  o  infeliz  carpidor 
de  Lésbia,  génio  inculto,  que  o  estudo,  e  um  pouca 
menos  de  adversidade  houveram  podido  sublimar. 
Quem  sabe  quantos  outros  eguaes  ou  maiores  não  po- 
derá ainda  crear  um  torrão,  pela  amenidade,  pelo  céo, 
e  pelas  circumvisinhanças,  tao  inspirativo:  com  a 
Arrábida  religiosa  a  um  lado,  vestida  dos  seos  rosma- 
ninhos e  alecrins;  e  Palmella,  a  devanear  do  seo  castel- 
lo  proêsas  guerreiras  d'outras  edades;d'outro  ladoTroya, 
a  romana  antiga,  que  para  alli  se  jaz;  e  o  Oceano,  a 
meditação  immensa;  torrão  das  laranjeiras  noivas^ 
como  a  Itália;  e  por  baixo,  thesouro  de  jaspes  e  mármo- 
res, resguardados  para  estátuas  de  seos  filhos.  Solo 
providencialmente  prendado  de  tudo,  e  d'onde,  ainda 
ha  dous  dias,  um  insigne  poeta  dinamarquez,  o  nosso 
amigo  Andersen,  estanciando  ahi  depois  de  percorrida 
a  Europa,  me  escrevia  quê  tinha  incontrado  ao  cabo  o 
Paraízo  Terreal. 

Se  eu  não  temesse  offeuder  modéstias  que  venero, 
citaria  exemplo  contemporâneo,  de  que  a  terra  que  deu 
Bocage  nao  ficou  por  isso  exhausta  de  poesia. 

Mas  vol:"mos  ao  nosso  Bocage..  Nao  o  conheci  eu 
pessoalmente.  Despedia-se  elle  do  mundo  quando  eu 
apenas  o  intrava;  mas  conheci  e  tractei  depois  a  alguns 
dos  que  o  haviam  admirado,  e  que  d'elle  me  falavam, 
como  se  na  véspera  o  tivessem  applaudido.  Eram  estes 
po6ca.s,  seos  cortezaos,  nada  menos  que  Vicente  Pedro 
Nola.sco  da  Cunha,  João  Vicente  Pimentel  Maldonado, 
Morgado  de  Assentiz,  D.  Gastão  Fausto  da  Camará  Coi- 
tinho,  Belchior  Manoel  Curvo  Semmedo  Torres  de 
Sequeira,  José  Ni^^oláo  de  Massuelos  Pinto,  José  Agos- 
tinho de  Macedo,  e  duas  poetisas:  Condessa  de  Oyen- 
hausen,  Marqueza  d'Alorna,  e  D.  Anna  Pereira  Mare- 
cos,  a  cada  uma  das  quaes  dedicou  um  dos  seos  tomos 
poéticos,  e  o  coração  também,  segundo  é  fama. 

Toda  essa  constellação  poética  já  lá  vai  sumida  no 
occaso.  D'entre  est^s  nove  ingenhos  não  vulgares,  não 
houve  um,  sem  exceptuar  o  Padre  Macedo,  flagel- 
.lado  com  a  mais  tremenda  e  memorável  das  sáty- 
ras  bocagianas,  que  me  não  confirmasse  o  que  eu  ou- 
vira a  meo  próprio  pae,  não  poeta,  porém  juiz  muito 
competente  emcou<as  litterárias: — que  o  improvisador 


12  XVI 

Elniaao  fora  ainda  muito  maior  na  facilidade  e  felíci- 
dade  da  improvisação,  que  nos  seos  versos  esmerados 
para  a  luz  pública.  Como  poeta,  poder&o  os  diversos 
gostos   contrapôr-lhe  um  ou  outro  rival;  como  repen- 
tista, nenhum.  Eis  ahi  um  novo  jus  ao  monumento. 
Vão  longe  aquelles  dias  dos  tão  afamados  oiteiros 
poéticos  de  Portugal;  jà  também  agonizavam  quando  os 
«u  alcancei;  mas  eram  donosa  occupação  e  bom  esti- 
mulo de  ingenhos,  emquanto  a  juventude  era  juven- 
tude, e  a  politica  nos  não  tinha  a  todos  e  de  todo  des- 
salgado ;  mas  quem  nos  diz  que  ao  pé  do  vosso  Bocage 
resuscitado,   não  poderiam,  se  os  evocásseis  vós,  re- 
suscitar  egualmente  aquelles  certames  nocturnos  dos 
ingenhos,  no  dia,  ou  no  tríduo  do  anniversârio  do 
monumento  ? 

E  se  resuscitassem,  não  seria  esse  um  facto  bem  fe- 
cundo? não  sabemos  todos  nós  o  que  a  história  ainda 
Urlo  esqueceu  das  luctas  de  poetas  e  de  poetizas  na  6ré- 
<;ia,  na  pátria  do  bom  gosto  e  dos  eternos  exemplos? 

Quando  repomos  em  uso  e  era  honra,  sob  o  nome  de 
regatas,  as  naumàchias  festivas  dos  Troyanos,  quaes 
Virgílio  nol-as  descreveu;  quando  imitámos  as  apostas 
dos  cavallos  voadores  de  Elide;  quando  se  vai  palmear 
a  ferocidade  sanguinosa  do  Circo  romano,  em  batalhas 
de  feras  com  homens,  ou  antes  d'homens-feras  com 
animaes  forçados  a  infurecer-se  ;  porque  motivo  só 
desdenharemos  da  sábia  antiguidade  o  que  se  refere 
á  cultura  do  ingenho,  o  que  tende  a  amenizar  a  convi- 
vência, a  polir  os  costumes,  a  approximar  e  reunir  os 
sexos  no  convívio  dos  gostos  delicados?  Que  lustre 
não  seria  para  Setúbal,  a  Bocagiana,  instaurar  ella 
esse  estádio,  em  memória  do  seo  filho !  Embora  o  não 
viesse  a  conseguir,  já  o  tental-o  a  innobrecôra;  nós  di- 
ríamos no  nosso  poucochinho: — os  jogo^  setubalenses  ! 
como  a  Grécia  blazonava  os  seos  jogos  olyrapicos  e  os 
pythicos,  a  que  se  cria  presidir  o  mesmo  Apollo  ! 

Os  ânuos  vao  frios,  não  o  iguor:) ;  mas  que  mal  faria 
tentar-se  ainda  o  bello,  o  gracioso,  o  admirável  ? 

A'  fé  que  não  valia,  nem  vale  ainda  hoje,  a  aldeia 
franceza  de  Salency ,  o  que  ha  de  valer,  e  o  que  já  vale 
a  vossa  cidade  tão  bella  e  tão  populosa  ;  e  todavia  um 
grave  prelado,  um  velho,  despegado  do  mundo,  e  que 
mereceu  canonisado,  S.  Medardo,  instituiu  lá,  e  lo- 
grou-se  de  vêr  pegada  à  festa  annual  da  Roseira,  de- 


XVI  13 

pois  transplantada  para  tantas  outras  partes  ;  e  que^ 
extirpada  passageiramente  pelo  tufão  revolucionário, 
tornou  a  pegar,  e  ainda  hoje  se  conserva.  Que  ricos 
fructos  moraes,  e  em  que  larga  cópia  nao  tem  produzido 
aquella  coroa  de  rosas,  trançada  para  a  meça  mais 
virtuosa  pelo  risonho  velho,  poético  e  innocente  Ana- 
creonte  da  caridade!  Tentae  vós  também,  e  jà  pode  ser 
que  Deus  vos  abençoará  a  tentativa,  e  que  algum  dia 
ainda,  em  recompensa  d'esses  esforços,  vos  permittirà 
levantar,  em  face  do  monumento  de  Bocage,  outro  da 
civilizaç&o:  a  eschola,  o  asylo,  como  vós  e  eu  os  cubi- 
cámos. 

Sao  horas  de  cerrar  t&p  larga  conversação  de  amigo 
com  amigos  (  perdida  não  espero  eu  que  ella  o  fique 
totalmente);  Por  agora  despeço-me  de  vós,  formando 
votos  para  que  o  êxito  corresponda  &s  vossas  diligencias,, 
e  d'aqui  a  pouco  se  esteja  celebrando  na  vossa  terra,  com 
a  assistência  de  todos  os  poetas  portugueses,  o  jubilêo 
de  Bocage. 

Setúbal  é  já  uma  linda  cidade:  d'ahi  avante,  po- 
derá chamar-se  uma  cidade  famosa,  porque  também  de 
Sulmona,  que  de  certo  a  não  valia^  lá  dizia  o  Bocage 
romano,  Ovídio: — <c  Muralhas  da  minha  terra,  não  sois- 
muito,  não  ;  mas  quando  um  viandante  vos  avistar  de 
longe,  dirá: — Terra  que  tamanho  poeta  creaste,  embora 
não  abarques  largo  território,  chamar-te-hei  Grande!  » 

Permitti-me  a  honra  de  me  assignar 

O  vosso 

mais  respeitoso  e  agradecido  servo, 
Lisboa  20  de  março  de  1867. 

A.  F.  DB  Castilho. 


Illm.  o  EjLXKtm  Sr.  Consellielro  António 
Felioiano  de  Oastillxo. 

Novos  laços  de  gratidão  prendem  hoje  a  V.  Ex.  o 
povo  de  Setúbal. 

Em  nome  dos  habitantes  d*esta  cidade,  que  nos  hon- 
ramos de  representar,  agradecemos  do  coração  as  be- 
névolas expressões,  que  V.  Ex.  se  dignou  de  nos 
dirigir  na  sua  excellente  e  obsequiosa  carta. 


■-H-U  -  J 


U  XVI 

As  deraonstraçõed  com  que  este  povo  de  >9java  re- 
ceber as  diatinctas  illustraçoes,  que  vinhain  visitar 
esta  terra,  representavam  apenas  uma  imperfeita  ma- 
nifestação de  respeitosa  komenagem  ao  primeiro  poe- 
ta do  áeo  paiz  e  um  singelo  tributo  de  sincera  grati- 
<iílo  ao  homem  benemérito,  que  tanto  se  tem  desvela- 
do a  bem  do  povo,  praparando-lhe  pela  instrucçao 
um  melhor  futuro.  N'essa  occasiao  tornava  mais  vivo 
o  enthusiasmc  dos  filhos  d'esta  terra  a  lembrança  dos 
motivos  que  tinham  determinado  a  visita  de  tao  il- 
lustres  hóspedes:  honrar  a  memoria  de  um  géíiio  fe- 
cundo, de  que  Setúbal  se  orgulha  de  haver  sido  berço. 

E'  explendida  a  maneira  com  que  V.  Ex.  expressa 
os  seos  elevados  conceitos  :  será  modesta  a  nossa  res- 
posta, porque  modestos  «ao  os  nossos  recursos.  E' 
justo  que  mais  dê  quem  mais  possue,  e  a  V.  Ex.,  a 
quem  a  natureza  concedeu  com  mao  pródiga  os  altos 
•dotes  da  intelligencia  e  do  coração,  cal>e  a  vantagem 
e  a  glória  de  Doder  dar  muito  mais  do  que  pôde  re- 
•ceber. 

Seja  pois  lhano  e  cordial  o  nosso  agradecimento,  e 
valha  pela  sinceridade  com  (jue  é  offerecido  o  que  nao 
pôde  valer  pela  riqueza  das  imagens  nem  pela  pompa 
do  estylo. 

Aquella  carta,  Exm.  Sr. ,  devora  ser  lida  em  assem- 
bléa  aonde  concorresse  o  maior  número  possível  dos 
conternlneos  de  Bocage,  se  nao  fosse  ainda  mais  útil 
dal-a  á  estampa  e  distribuil-a  com  profusão,  para  que 
fique  bem  gravada  na  intelligencia  o  no  coração  de 
todos,  e  seja  um  poderoso  talisman  que  avive  mais  e 
mais  n'este  povo  o  amor  ás  instituições  humanitárias, 
de  que  V.  Ex.  tem    sido     sempre  incançavel   propu- 

gnador. 

Como  complemento  de  tao  assignalados  favores,  ou- 
sámos pedir  qíie  V.  Ex.  consinta  que  as  brilhantes 
páginas  d^iquella  carta  sejam  divulgadas  pela  impren- 
sa e  cheguem  assim  ao  conhecimento  de  innúmeros 
indivíduos,  anciosos  de  admirar  mais  uma  vez  o  génio 
de  V.  Ex.   e  inthesourar   tao  preciosa  jóia  litteÃria. 

Sala  das  sessões  da  Camará  Municipal  de  Setúbal, 
eixí  "21  de  março  de  1867. — António  Rodrigues  iíanit- 
to. — José  de  Groot  Pombo, — Francisco  Alberto  dos  San-^ 
tos, — Manoel  José  Vieira  Novaes. — Martinho  da  Sitva 
Mendes. — Joa/juim  Pedro  de  Assumpção  Rasteiro, 


XVI  15 


III ms.    e    e:x:«$.    ^n.r.9.     Presidente   e  Vereadores    d(t 
Oamara    Municipal  do  S9otul>al. 


Segunda  ve-/-  me  confundem  V.  Exs.  com  a  sua 
generosidade  Ambicionar  honras,  é  um  sentimento 
natural,  muito  lícito,  e  muito  proveitoso  ;  mas  quando 
AS  honras  vem  superiores  ao  merecimento,  sao  co- 
roas que  miis  depressa  esmagam  do  que  ingran- 
decem. 

Dos  três  louvores  que  V.  Exs.  me  libríralisam,  des- 
•cabem -me  dous,  seja-me  permittido  confessal-o  ;  um, 
é  o  que  recaí  excessivo  sobre  a  minha  poesia;  o  outro, 
o  que  me  converte  em  mérito,  o  que  é  simples  acto 
de  justiça :  o  Je.^ejo  em  que  eu  accompanho  a  meo 
irtnao,  e  a  V.  Exs.  mesmos,  e  creio  que  a  todos  os 
portuguezes,  de  que  se  tributem  a  Bocage,  mostras 
solemues  da  gratidão  pública  pelos  altos  serviços  que 
«lie  prestou  à  poesia  nacional. 

O  terceiro  louvor  sim,  que  julgo  nâo  o  ter  desme- 
recido, e  é  de  todos  o  que  mais  e  melhor  me  enche 
e  alegra  o  coração.  Sip,  meos  Senhores  ;  creio  como 
vós,  e  firmemente  o  creio,  que  nao  vim  inútil  ao  mundo, 
pois  que  alumiei,  arejei,  ajardinei,  e  tornei  attractiva, 
philosóphica  e  fecunda  a  eschola  primária,  pia  baptis- 
mal única  onde  os  povos  se  podem  regenerar. 

Todos  os  meos  outros  livros  pouco  valem;  o  meo 
méthodo  de  ensino,  fácil,  rápido,  e  aprazível,  des- 
«oraprehendido,  mal  apreciado  por  muitos,  e  por  quasi 
todos,  esse  é  que  é  a  minha  primeira  e  última  obra. 
Se  os  mortos  sabem  o  que  se  passa  na  humanidade, 
algum  dia,  d'aqui  a  quantos  aunos  nao  scei,  ainda  me 
heide  deliciar  de   ouvir  isto  aos  nossos  vindouros. 

Também  eu  fiz  uns  Lusíadas',  só  uns:  foi  esta  carta 
<ie  alforria  da  puerícia.  Nao  cantei  os  portuguezes 
passados,  mas  forcejei  por  que  houvesse  portuguezes 
futuros,  o  que  nao  vale  menos,  se  è  que  nao  vale  mais. 

A  Camões,  as  palmas  de  cantor  de  génio;  a  mim 
bastam-me,  e  prefiro-os,  os  emboras  de  trabalhador 
4)bscuro  mas  útil;  de  amigo  provado  das  creanças, 
de  suas  mães,  e  da  terra  em  que  me  creei. 

Com  a  maior  gratidão  pois  beijo  a  V.  Exs.  as 
mãos.  que  me  assignam  este  documento,  de  que  nao 
trabalhei  totalmente  para  ingratos;  este  testimunho  de 


16  XVI 

que  ainda  ha  homens-humanos  nos    nossos  municí- 
pios. 

Pelo  que  respeita  à  publicação  da  minha  prece- 
dente carta,  podem  V.  Exs.  de  lhes  apraz,  confe- 
rir-me  essa  nova  honra;  como  nessas  paginas  eu  não 
depositei  sen&o  o  de  que  estava  convencido,  e  o  qua- 
se me  figurava,  e  ainda  se  me  figuro,  de  algum  prés- 
timo, até  desejo  e  agradeço  que  ellas  vão  conversar 
com  maior  número  de  espíritos. 

Podem  pois  V.  Exs.  mandal-as  dar  &  estampa^ 
assim  como  estas,  assim  como  todas  quantas  por  ven- 
tura eu  haja  de  dirigir  a  V.  Exs.  Os  obreiros  d» 
civilisaç&o  gostamos  de  trabalhar  ao  grande  sol. 

Com  a  maior  satisfacçfto  me  assigno 

De  V.  Exs. 
respeitoso  e  agradecidíssimo  servo 
Lisboa,  29  de  março   de  1867, 

A.  F.  DK  Castilho. 


l^p.  e  Lith.— IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Setembro,  146.£ 


QUESTÕES  DO  DIA 


isr.  17 


RIO  DE  JANEIRO  24  DE  OCTUBRO  DE  ISTfl. 


Vende-se  em  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Laemmert. —  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto.— Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119—  Largo  do 
Paço  n.  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.. —  Preço  200  reis 


A  r*epi3Ll>lloa  federativa. 

Se  n'esta  capital,  ou  em  alguma  outra  das  provín- 
cias do  Brazil,  um  gruppo  de  indivíduos  tentasse  oi^a- 
nizar-se  em  partido  do  absolutismo^  creando  uma  folha, 
que  servisse  de  orgam  de  suas  doctrinas,  e  no  frontis- 
pício do  logar  das  suas  palestras  fizesse  inscrever  este 
motto  Club  absolutista ^  esse  pretenso  partido  se  col- 
locaria  fora  do  terreno  legal,  como  incitador  contra  a 
ordem  política  existente  ;  mas  estaria  tanto  no  seo  di- 
reilo^  como  o  gruppo,  que  actualmente  aqui  se  ostenta 
com  essa  publicidade,  como  partido  republicano. 

Jà  em  outro  artigo  dicemos  que  datam  dos  primeiros 
annos  da  nossa  existência  como  nação  independente  as 
aspirações  republicanas  de  uma  minoria,  que  nunca 
poude  tornar-se  verdadeiro  partido  ,  porque  nunca  ob- 
teve fazer  proselytismo  que  lhe  desse  no  paiz  o  apoio 
que  fortalece  os  partidos  legítimos. 
.  A  ídéa  de  federação  das  províncias  sob  a  forma  repu- 
blicana j&  outr'ora  tentou,  e  com  muito  esforço,  fazer 
fortuna  no  Brazil,  tanto  no  primeiro  reinado,  como 
depois  da  abdicação  ;  mas,  assim  como  nao  vingou  a 
idéa  republicana,  por  occasiao  da  independência,  nos 
ânimos  dos  nossos  grandes  homens,  que  prepararam  e 
eíFectuaram  esse  grande  accontecimento,  dispensando 
todo  o  seo  efficaz  apoio  ao  princípio  monàrchico,  por 
ser  aquelle  que  assegurava  a  unidacie  e  a  liberdade  po- 
litica do  paiz,  sem  os  riscos  da  dissoluç&o,  que  seria 
consequente  com  a  forma  republicana,  assim  tam- 
bém o  mesmo  bom  senso  predominou  entre  os  homens 
que  mais  influíram  na  situaçfto  que  se  seguiu  ao  7  de 
abril,  na  qual  tivera  a  mais  decidida  influencia  o  par- 
tido liberal,  dirigido  por  homens  t&o  eminentes,  como 
Paula  Souza,  Vergueiro,  Lino  Coutinho,  Paula  Araújo, 


2  XVII 

Limpo  de  Abreo,  Costa  Carvalho,  Feijó,  Evaristo,  Vas- 
concellos,  Alencar,  e  tantos  outros. 

Sociedades  federaes  com  sessões  públicas,  onde  s® 
discutia,  no  tom  mais  expressivo,  a  federação  das  pro" 
vindas^  existiam  em  varias  capitães  ;  as  idéas  n'esse 
sentido  procuravam  obter  triumpho  ;  seos  jornalistas 
as  defendiam  com  calor  aqui,  e  em  todos  os  ponctos  do 
império,  onde  a  politica  tinha  seos  orgams;  mas  os 
homens  políticos,  que  então  dirigiam  a  sociedade  brazi- 
leira  (e  eram  elles,  como  jâ  observámos,  os  liberaes  no- 
táveis e  insuspeitos  )  reconheceram  que,  sim,  convinha 
dar  mais  expansão  politica  e  administrativa  ás  provín- 
cias, mas  nao  federal-afi  sob  a  forma  republicana, 
como  queriam  os  exaltados. 

Foi  assim  qiie  nasceu  o  acto  addicional,  nao  obstante 
a  opinião  de  alguns  liberaes  muito  circumspectos,  que 
d'este  modo  se  enunciavam  :  «  Da  constituído,  nem 
uma  vírgula  deve  mudár-se  :  tal  como  é,  satisfaz.  O 
que  falta  é  a  boa  prática  do  governo  constitucional 
que  possuímos;  a  educação  política;  é  a  instrucçao  do 
povo;  é  o  verdadeiro  patriotismo,  a  leal  coadjuvação, 
a  firmeza  e  a  dignidade  dos  homens;  e  leis  adminis- 
trativas e  regulamentares,  que  melhorem  conveniente- 
mente os  serviços  públicos,  sirvam  de  pinhor  á  liber- 
dade individual,  e  dêem  mais  vida  ás  administrações 
provinciaes:  mas  tudo  isto  se  pótíe  obter  nos  limites  da 
constituição.» 

O  acto  addicional  foi  discutido  e  votado  sob  o  in- 
fluxo daá  impressões  e  opiniões  de  tempo.  Nao  obstante 
as  sábias  e  prudentes  inspirações  dos  liberaes  mode- 
rados, nao  puderam  estes  deixar  de  acceder  a  algumas 
disposições,  de  ordem  regulamentar,  que  nao  tardaram 
em  manifestar-se,  na  prática,  repugnantes  com  a  bõa 
ordem  do  governo,  como  confessaram  liberaes  cons- 
cienciosos. 

No  emtanto  as  províncias,  ás  quaes  a  constituição 
concedera  seos  conselhos  de  governo,  que  nao  as  satis- 
faziam, tiveram,  pelo  acto  addicional,  assembléaa  le- 
gislativas, incarregadas  de  proverem  ás  suas  necessi- 
dades locaes  e  económicas,  em  uma  esphera  sufliciente 
para  affiançar  o  desinvolvimento  de  sua  prospe- 
ridade. 

Grande  conquista  foi  essa ;  e  a  exj)eriencia  tem  de- 


JXVII  3 

xnonstrado  que    o  sábio  exercício  doeste  direito   tem 
.sido  para  o  império,  em  geral,  um  grande  beneficio. 

Mas  os  abusos,  que  se  foram  dando  no  modo  de  se- 
rem desinvolvidas  em  algumas  províncias  várias  dis- 
posições do  acto  addicional,  abus<vs  sentidos  desde  a 
primeira  regência  eleita  de  conformidade  com  o  mes- 
mo acto,  occasionaram  a  necessidade  indeclinável  da 
lei  interpretativa  e  regulamentar,  que  tao  cautelosa  e 
i3abiamente  provê  sobre  esses  abusos. 

Foi   uma   necessidade  de  governo,  no  interesse  da 
ordem  pública,  e  do  regimen  constitucional   em  sua 
marcha,  convenieote  ao  interesse  da  communidade,  no 
sentido  administrativo.  Isto  em  nada  offendeu  o  grande 
principio  da  autonomia    das  províncias  em  sua  vida 
intima;   e  o  mais  que,  no  sentido  d^  facilidade  admi- 
nistrativa, em   proveito  dos  povos,  é  lícito  conceder  ás 
províncias,  sem  infraquecimento  dos  elos,  que,  no  in- 
teresse commum,  devem  sempre  ligar  a  nação  brasi- 
leira,  e  manter  a  harmonia  e  a  força  indispensável  do 
.gx>vêmo  nacional,  isso,  cremos  firmemente,  que,  depen- 
dendo somente  de  actos  administrativos  nas  attribui- 
çoes  do  executivo,  ou  de  leis  regulamentares,  será  de- 
cretado, sem  commoçOes  politicas,  sem  penurbaç^lo  da 
ordem  pública;  por  isso  pugnem  os  partidos ! 

A  república  federativa  uilo  pode  convir  ao  Brazil  ; 
seria  o  anniquilamento  d'este  grande  paiz,  porque  traria 
-em  si  o  gérmen  fatal  das  luctas  civis  incarniçadas, 
(^ue  sao  usuaes  e  congéneres  doesta  forma  de  guvêrno, 
onde  a  auctoridade  pública  está  sempre  sob  a  influen- 
cia directíi  das  paixões  dos  partidos. 

Este  grande  todo,  este  império,  que  já  excita  o  res- 
peito dos  outros  povos,  e  que,  de  annopara  anuo,  vai 
marchando  para  o  seo  ingrandecimento,  nao  territo- 
rial, porque  nSo  o  necessita,  mas  económico,  indus- 
trial, e  moral,  e  d'ora  em  deante  mais  ainda  sob  o  bené- 
fico influxo  da  lei  de  28  de  septembro,  seria  despeda- 
çado, e  sentiria  todos  os  males  deploráveis  doesse  frac- 
cionamento, so  por  desgraça  se  tornasse  república. 

Nos  tempos  que  correm,  t*3m-se  reconhecido  que  a 
unidade  dos  povos  em  respeitáveis  corpos  de  naçílo  è 
uma  necessidaae,  a  bem  dos  mesmos  povos. 

Vemos  a  Itália,  (que  nunca  desde  o  império  romano 
existira  politicamente  unida,  e  que  por  largos  séculos 
fora  dividida  em  diversos  estados,  ou  republicanos,  ou 


4  XVII 

mon&rchicos),  completar  dos  nossos  dias  a  sua  unidade- 
sob  um  só  regimen  político,  e  muito  concorrendo  para 
esse  grande  acontecimento  os  liberaes  de  todos  os  ma- 
tizeSf  até  os  republicanos  de  Mazzini. 

Vemos  como  a  raça  germânica,  desde  longos  anno^ 
aspirando  â  t^ua  unidade  politica,  tem  reconstruído  o- 
grande  império  germânico.  E  nem  se  diga  que  é  so- 
mente fructo  da  ambição  do  novo  Imperador,  da  poli* 
tica  do  seo  chanceller,  da  força  dos  seos  exércitos,  e 
perícia  dos  seos  generaes. 

Nfto  :  o  rei  Guilherme  da  Prússia  nfto  poderia  ter 
obtido  da  Allemanha  a  força  da  opinião  pública,  que  a 
accompanhou  e  accompanha,  abafando  quasi  a  auto- 
nomia política,  e  a  influencia  dos  chefes  dos  estados- 
secundários,  so  os  allemaes  dos  vários  Estados  que 
hoje  constituem  partes  integrantes  do  novo  império, 
nao  vissem  no  rei,  hoje  imperador,  o  representante  do 
grande  princípio  da  unidade  germânica;  e  é  esse  senti- 
mento, que  parece  actuar  sobre  os  8  milhões  de  alle- 
mães,  que  fazem  parte  do  império  austríaco,  por  modo 
que   mantém  em  sobresalto  o  chefe  d'esse  império. 

E'  que  os  povos,  assim,  manifestam  justo,  e  natu- 
ral orgulhe  de  formarem  uma  grande  e  respeitável 
nacionalidade,  por  bem  da  defeza,  e  dignidade  com- 
mum;  porque  na  unifto  é  que  está  o  desinvolvimento 
das  forças,,  e  dos  interesses  communs. 

Se  inçáramos  outro  poncto  da  Europa,  vemos  a  po- 
derosa Inglaterra  zelando  com  o  maior  patriotismo  a 
sua  unidade  política,  nao  poupando  esforços  para  man- 
ter a  sua  auctoridade  ra  Irlanda,  e  velando  pela  sua 
grandeza,  para  nao  descer  do  pedestal  em  que  se  acha 
coUocada. 

Se  da  Europa  volvemos  olhos  para  o  Continente 
Americano,  temos  muitas  licçOespara  aproveitar,  mui- 
tos escolhos  para  evitar. 

Na  grande  república  do  Norte  vemos,  sim,o  governo- 
republicano  federativo;  mas  em  que  condições  ?  —  A 
unidade  nacional  é  mantida  com  vigor  tal  por  parte  do 
governo  central,  que,  para  defendel-a,  se  empenhou 
n'essa  guerra  colossal,  espanto  do  mundo  inteiro.  Sna- 
força  venceu,  anniquillando  a  nova  confederação  dos 
Estados  do  Sul;  e  para  domar  e  conter  os  vencidos^ 
nem  o  governo  federal,  nem  o  congresso  trepidarant 
jio  emprego  dos  meios  repressivos. 


XVII  5 

Intendeu-se  que,fraccionaado-se,  a  grande  república 
desceria  das  alturas  a  que  se  tem  elevado  no  mundo, 
como  nação  una.  £  é  um  grande  problema  que  ao 
futuro  pertence  resolver,  se,  com  a  sua  actual  forma 
•de  governo,  aquelle  grande  paiz  poderá  permanecer 
por  longos  annos  formando  uma  só  nação. 

Estendendo  as  vistas  sobre  os  paizes  americanos,  da 
língua  e  raça  hispanhola,  nada  vemos  oue  invejar 
de  sua  forma  de  governo:  nem  é  n'elles  elemento  de 
prosperidade  e  paz  a  república  federativa  onde  ella 
existe,  como  n&o  o  é  no  geral  a  república  unitária. 

E  em  qual  dos  paizes  a  que  nos  referimos,  dotados 
de  governo  republicano,  existem  melhores  fianças  de 
liberdade  individual  e  política,  do  que  noBrKzil? 

Em  qual  d'esses  paizes  seria  tolerado  que  circulasse 
livremente  uma  folha  política,  pregando  a  monarchia? 
e  que  um  partido  escrevesse  na  frente  da  casa  de  suas 
reuniões:  Club  mondrchicol 

Aqui  prégam-se  abertamente  as  doctrinas  mais  sub- 
versivas da  nossa  forma  de  governo,  quer  na  imprensa, 
quer  em  conferencias  públicas,  e  a  auctoridade  nao  op- 
põe  o  mcuor  embaraço  !...  Veja-se  bem  como  é  inimiga 
da  liberdade  esta  monarchia  I... 

Em  nossa  opinião,  a  auctoridade  procede  com  su- 
bido critério.  Tolera  esses  desabafos  de  ambições 
incontinentes  e  despeitadas  da  parte  de  uns,  é  meros 
sonhos  da  parte  de  outros^  ávidos  de  novidades;  mas 
tolera  atè  o  poncto,  em  que  nSo  sejam  verdadeiro  em- 
baraço para  a  marcha  regular  do  governo  constituído 
essas  prédicas  á  revolução. 

Também,  è  certo,  essas  aspirações  republicanas  nao 
couseguem  exercer  influencia,  porque  o  bom-senso 
público  sabe  apreciaUas  e  reconhece  que  sUas  nSo  tem 
razão  de  se?. 

Querem  os  innovadores  levar  o  paiz  do  conhecido 
para  o  desconhecido,  pretendendo  que  a  nação  par- 
ticipe, jurando  em  suas  palavras,  não  só  de  suas  vi- 
sões, mas  egualmente  de  suas  paixões. 

Não,  não  é  a  actual  forma  de  governo,  que  nos  pre- 
judica; mas  sim  o  desregramento  das  ambições  de  to- 
dos quantos  entre  nós  querem  ser  governo,  sem  saberem 
4*iiperar  que  Jhes  caiba  a  vez. 

Isso,  quanto  a  uns:  quanto  a  outros,  é  a  emprego- 
mania  que  os  impelle  a  desejarem  sempre  o  transtorno 


6  xvlr 

do  que  existe,  esperançados  em  serem  aquinhoados  com. 
rendoso  emprego  em  uma  nova  ordam  de  cousas. 

A  educação  da  nossa  mocidade  dá  logar  a  isso:  no* 
geral  todos  querem  que  seos  filhos  cursem  estudos  su- 
periores; e  depois?  O  que  ha  de  ser  do  bacharel,  ou  do 
doctor? — E'  um  pretendente;  e  pretendente  mal  succe- 
dido  é,  em  geral,  um  gritador  contra  o  go/êrno. 

Nos  paizes  constituidos  desde  séculos,  ha  sempre  me- 
lhoramentos que  operar  na  ordem  administrativa:  e  se 
n'esses  paizes  assim  é,  se  vemos  a  Inglaterra,  que  se 
nos  apresenta  como  modelo  do  governo  livre,  sempre 
trabalnando  em  melhorar  a  sua  legislação  em  ponctos 
muito  importantes,  como  ainda  agora  no  sentido  elei- 
toral relativamente  ao  escrutínio  secreto,  e  no  iní^e- 
rêsse  da  melhor  organização  do  seo  exército,  e  em 
outras  providencias  tendentes  aos  interessais  públicos, 
que  muito  é  que  entre  nós  haja  ainda  tanto  que  fazer 
no  interesse  d'este  grande  paiz  ? 
'  Mas,  cumpre  repetir,  isto  não  se  conseguirá  conve- 
nientemente, senão  pelos  meios  regulares.  Não  é  insi- 
nuando idéas  demolidoras  da  unidade  brazileira,  não 
é  procurando  plantar  a  desconfiança  entre  o  governo  e 
o  paiz,  não  é  promovendo  nos  espíritos  má  vontade 
contra  a  monarcaia  constitucional  representativa,  que 
poderemos  adeantar-nos  na  carreira  do  progresso,  da 
civilização,  e  da  riqueza;  não  será  por  tal  guisa  que 
•  seremos  fortes;  mas  sim  tendo  juízo...  juizo...  sempre 
juízo. 

Junius. 


Decima  ter*celx*a  carta 

DO  ROCEIRO  CINCINNATO  AO  CIDADÃO  FABRÍCIO 
Rio,  15  de  octubro  de  1871. 

Querido  amigo. 

Não  Fomos  nada  neste  mundo.  Homem  propOe,  e 
ás  vezes  o  díabj  díspoe ;  é  porque  este  bípede  hu- 
mano não  é  mais  que  uma  molécula,  um  corpúsculo, 
um  poncto,  um  nonada,  emfim  um  átomo  embrulhado 
n'uma  dobra  do  infinito. 

Communicara-te  eu  a  tenção  de  pôr  termo,  com 
o  n.  15  das  Questões  do  dta,  á  minha  correspondência 
comtigo,  no  tocante  a  Senio  e  C,*:  Não  scei  dar  em 


XVII  7 

• 

nomem  morto,  e  durante  3  mezes  nflo  ouvi  uma  só 
voz  defendendo  a  quem,  até  ha  pouco,  vivia  e  cam- 
peava, e£'VÍ  de  uma  reputação  pânica.  Daniel  aflELr- 
ma  que  certo  rei  da  Babylónia  (  como  outro  arvorado 
em  rei  de  uma  Babylónia  linguistica)  destruiu  Jerusa- 
lém (  como  outro  destruiria,  se  podesse,  a  Jerusalém 
das  lettras  ),  errou  7  annos  na  forma  de  um  animal 
feroz  ( isso  agora  é  que  nao  )  reduziu  um  povo  in- 
teiro  à  escravidão  (como  est^outro,  menos  feliz  no 
êxito  de  suas  aspirações,  ambicionava  ),  e  levou  o 
seo  poder  pessoal  ao  poncto  de  decretar  que  o  ado- 
rassem em  estátua,  a  qual  figurava  umas  cousas  por 
nhi  além,  mas  por  desgraça  tinha  os  pés  de  barro, 
t/onde  resultou  que  um  dia,  como  era  de  razão,  veiu 
tcda  aquella  caraminhola  a  terra.  Historias  velhas  ! 

Voltando  á  vacca  fria,  repito  que  estava  eu  no 
fim  d*esta  inglória  tarefa,  como  quem  em  direito  hou- 
vess?  chegado  aos  29  anno.s  e  11  mezes;  quando  ago- 
ra iiopinadamente  vejo  surgir  o  adversário,  inter- 
romptndo  a  prescripção,  á  última  das  horas. 

E' ocaso,  que,  hoje  me  trouxe  um  amigo  o  Diário 
do  Rio^  onde,  sob  o  título  de  Palestras,  c  a  rubrica 
de  Pubó.caçôts  a  fedido^  apparece  um  longo  escripto, 
que  prouette  dar-me  a  vantagem  e  o  gáudio  de 
coníinuar,  denunciando  duas  intenções:  ai.'  de  in- 
deusar  o  «r.  Conselheiro  José  de  AÍencar,  ou  eleval-o 
até  o  incaiapitar  no  zenith;  a  2.'  de  me  subverter 
pelo  chão   ibaixo,  até  me  arremeçar  ao  nadir. 

E  por  coiiseguintemuda  o  negócio  de  figura.  Dou- 
me  por  citau);  está  interrompida  a  prescripçflo,  e  co- 
meçam novos  iOannos;  rira  bieii^  qui  rira  le  dernier, 

0^  nosso  amigo  (a  quem  chamarei  Ticio  )  vinha 
muito  arrenegâo,  e  queria  afinar-me  pelo  seu  dia- 
pasão ;  sublinhiva-me,  com  a  voz,  as  palavras  e  phra- 
ses  insultuosas,  de  que  o  artigo  exclusivamente  se 
compõe,  e  espmtava-se  do  meo  sangue  de  barata,  e 
da  placidez  con  que  eu,  á  sua  ladainha  e  no  logar 
do  ora  pro  nofcwretorquia  somente  com  estes  palavras: 
.'Vôo  faz  ynal !  E  como  a  minha  memória  nfio  é^  das 
peores,  e  o  diálojo  está  ainda  fresquinho,  quero  dar-te 
uma  idéa  d'elle.  ^il-  o : 

Ticio  (  depois  0.  haver  lido  com  emphase  )  —  Que  é 
isso,  sancto  Deus  Pois,  em  vez  de  tomares  isto  com 
ira,  chólera,  furo^  iracúndia,  raiva,  agastamento,  e 


8  XVII 

assanho,  satisfazendo  a  ambição  do  escriptor,  continuas 
a  palitar  os  dentes,  e  a  rir! 

ciNCiNNATO. — Porque  nao?  Que  ha  hi  que  motive  in- 
dignação ou  prejudique  quem  quer  que  seja  ? 
Ticio. — Ai,   nao  vês  nada  ?  !  Olha  que  tudo  isto  as- 

Í)ira  a  ser  comtigo;  e  só  uma  alforreca  ficaria  indif- 
erente a  tamanhas  insolências.  Vae  contando:!!... 
Reptil  que  levantas  pó — intromettido — rasteiro —  es- 
trangeiro pretencioso — especulador — merecedor  de 
desprêso  profundo — philaucioso  —  audacioso  chefe  de 
empreitada  diffamatória  —  estrangeiro  imprudente  — 
novo  Sancho  Pança  —  calúmnias  e  insultos,  próprios 
de  quem  os  escreve,  mas  nao  tem  a  precisa  coragem 
de  assignal-os  —  lodo -^  o  auct  rde  taes  impropérios 
está  muito  conhecido  nesta  corte,  como  homem— es- 
criptor  de  tesoura— manipulador  de  almanaks— sabet- 
ça  inferrujada  —  o  que  só  ha  de  seo.  é  mofo  e  bobr 

—  falador  de  cabinda  — parlapatice  — -  parvure'las  !  — 
jogo  dos  disparates — parvoiçadas  de  farça — orelhido 
dos  que  pastam  a  relva — rolho  poetastro,  mettid>  em 
um  farrapo  de  toga  romana-^  Cinciuuato,  por  .*ausa 
da   gafurinha  —  em  Coimbra  nao    metteu   o  »iariz ! 

—  o  José..ú  -^errabraz  ,  que  nascera  taga*ella  — 
tenda  de  crítica — montador  de  pasquino,  proílaman- 
do-se  um  dos  primeiros  litteratos..,. 

CiNC.  —  Deixa  rabiar,  homem!  Sao  válvilas,  que 
se  abrem  para  a  máchina  nao  estoirar.  Ou v' dizer  que 
um  suDjeito,  chamado  Pope  (que,  valha  a  verdade,  nao 
tinha  das  melhores  línguas^  publicou  um  /olume;  on- 
de nada  havia  de  sua  lavra;  compunha-^  exclusiva- 
mente das  affroutas,  injúrias,  impropéri)s,  convicios, 
calúmnias  e  coutumélias,  com  que,  emíalta  de  argu- 
mentos, o  haviam  frechado. 

Tic— E  depois'? 

CiNC — E  depois,  ficou  sendo  tno  Pope  como  d'antes. 
Se  bom  ou  máo  era,  tao  bom  ou  tao  raác  ficou. 

Tic. — Mas  nao  ves  que  isto  é  vingançt  ? 

CiNC.  {rindo) — Vingança,  i^^to?  coladinho.  Ora  lè 
aqui :  A  vingança  é  uma  satisfacçao,  qtie  os  homens 
tomam  diversamente,  uns  por  modo  ridículo,  outros 
por  modo  inhumano.   Os  Getas   atiraíi   settas  ao  sol, 

auaudo  se  pno.  Os  Pygmêos  movem  guerra  aos  grous» 
s  Psyllos  chamam  a  desafio  os  ventc^.  Outros  têm  de- 
safogado a   sua  ira  com   estocadas  <  punhaladas  nos 


XVII  9 

<^adáveres  de  seos  adversários  morlos.  Doestas  dizia 
Platão,  que  se  parecem  com  o  cao,  que  morde  a  pe- 
<Lra  que  lhe  chegou,  e  não  na  pessoa  que  com  ella  o 
feriu.  Ticio!  deixa  là,  quem  quer  que  seja,  mordera 
pedra,  e  morde  tu  este  delicioso  Havana. 

Tic— ^uem  quer  que  sejal  Pois  tu  hesitas  em  dar 
<o  nome  aos  bois  ? 

CiNC.  —  E' cousa  em  que  nem  pensei,  nem  me  im- 
porta. 

Tic. — Pois  devia  importar,  attento  um  facto,  de  que 
•eu  tenho  sciencia  certa,  mas  que  mesmo  sem  isso  eu 
iiouvera  jurado,  à  simples  leitura  d'este  escripto  admi- 
rável. A  divinização  de  Senio  é  jobra  do  próprio  Senio. 

CiNC.  — Tinha  que  ver!  Então  prestei  eu  mais  atten- 
•ção  à  tua  leitura  que  tu  mesmo.  Olha  aqui  o  que  se  diz 
d'elle,  e  imagina  se  haveria  no  mundo  homem  tao...  mo- 
desto, que  de  si  mesmo  dicesse  o  seguinte  : —  «  Brazi- 
leiro  illustre,  como  cidadão,  político  e  litterato —  »  por 
fortuna  para  nós  (!)  está  tao  altamente  coUocado,  que 
Q&o  iuxerga  etc. — distincto  par  seos  merecimentos  — 
As  obras  de  Senio  sao  appreciadas  em  seo  justo  valor 
pelos  melhores  talentos 

Tic. — Tudo  isso  é  a  minha  1»  prova  ciroumstancial, 
pois  uao  haveria  facilmente  segunda  penna  que,  neste 
estado  de  cousas,  assim  gabasse  a  noiva,  senão  a  do 
par»  que  a  quer  casar,  ou  a  de  quem  nao  quer  deixar  o 
aeo  crédito  por  maus  alheias,  embora  saiba  o  que  sig- 
nifique louvor  em  bôcca  jírópria.  Tenho  mais  738  pro- 
vaci  de  que  é  esta...  outra  metamorphose  de  Protêo. 

('ixc. — Deixa-te  d'isso,  nao  me  convences.  Hade  ser 
producçio  le  algum  dos  muitos  que  se  iiileiam,  as- 
sombram e  pasmam  das  magnificências  do  intellecto 
Senial:  d^  algum  dos  s.íjs  sábios  -idrairadores. 

Tic. — Na  tua  edaJe.  é  para  admirar  estares  ainda 
fom  os  beiços  com  que  mamaste!  A  primeira  regra  do 
jui:í  instructor,  é  profundar  o  ca^o,  e  perguntar  a  si 
mesmj:  cai  prodeií']  A  q'iem  approveita  inthronizar 
Senio  no  apogôo  do  solV  a  Senio.  Quem,  natural  d'este 
paiz,  te  brutalizou  jamais  d'esta  forma *?  ninguém,  se- 
não Senio.  E  o  nnnio  z^lo  do  seo  despique  deitou-o  a 
parJt^r :  ainda  se  pnderia  crer  que  fosse  de  algum 
admirador  o  escripto,  sendo  menos   immoderado;  mas 

tufm  traç iria  tantas  finezas  senio  quem  estivesse  hy- 
rophóbico  de  despeita V 


10  XVII 

CiNC. — Verdade  seja  que,  assim  como  nunca  maltra- 
ctei  ninguém  n'esta  terra,  nunca  fui  maltractado;  e  ad- 
miraria que  hoje,  sem  provocação  (  como  aquella  cota. 
que  Senio  me  fez  demover  dos  meos  hábitos  e  systema) 
apparecesse  segundo  Ferrabraz,  com  grosserias  da- 
guerreotypadas  das  com  que  Senio  me  mimoseou. 

Tic. —  Qual  segundo,  nem  meio  segundo!  São  três 
bravos  distinctos  e  um  só  Senio  verdadeiro. 

CiNC. — Temos  mystério*?  Como  é  isso  do  três  e  um*? 
Eu  sou  conhecedor  de  estylos  e  sinto  zelos  de  quem  se- 
arvora  em  demasiado    esperto:   Quem  sfio   esses  três 
e  um  ? 

Tic. — Então  vds  com  zêlos^  porque  eu  ja  dei  com  a 
charada.  Querem  ....  (N.  B.  Aqui  seguia-se  uma  cousa 
muito  confusa,  que  eu,  ja  ílepois  de  composta,  c-ortei.) 

CiNC. — Falas-me  por  perlincafuzes,  como  diz  o  padre 
Manoel  Bernardes.  Nao  intrujo  uma  palavra. 

Tic. — Eu  te  conto  a  história.  N.  1  Senio  dá  os  apon- 
tamentos magistraes,  recommcndando  que  nada  appa- 
reça  por  sua  leira.  N.  2.  Salpica  o  discurso  com 
amenidades  próprias  do  sertão.  N.  3....  e  fica  esca- 
broso. 

CiNC. — Escabroso  é  todo  esse  imbróglio.  Entretanto 
esses,  coitadinhos,  não  tem  imputação.  A  questão  única 
é  com  o  bafejador-mór,  se'  o  ha. 

Tic. —  Ha;  é  Senio.  Eu  não  digo  que  elle  se  não  es- 
conda por  detraz  de  um  ou  dous  cujos.  Faze  de  conta 
que  eu  assisto  á  tragédia  Fausto,  e  que  tu  és  o  Valen- 
tim, irmão  da  Margarida  ;  quem  figura  dar-:e  a  esto- 
cada é  o  pobre  Doctor  (a  juncta  é  de  3  doctores),  mas 
quem  guia  o  braço  e  a  catana  é  Mephistópheles. 

CiNC.^Nãome  rendo:  tem  paciência.  Pois  se  fosse 
obra  de  um  luminar  da  imprensa^  teria  similhante  re- 
dacção? Levaria  duas  columnas  de  typos  a  injuriar 
somente,  sem  sombra  de  argumentação?  Escreveria  em 
lingua  tupinamba  ?  A  propósito  de  alhos,  tractaria  de 
bugalhos  ? 

Tic. — Saneia  Sxmplicilas  l  Cada  uma  d'essas  cousas 
tem  sua  água  no  bico.  Não  ha  alli  nada,  que  não  leve 
£sgada  uma  intenção  de  esperteza,  esactamente  no  gé- 
nero dos  hábitos  Seniaes. 

CiNX. — Nada,  nada.  Com  que  intenção  thuribularia 
Octaviano,  Pedro  Luiz  (que  nunca,  nem  um  nem  ou- 
tro, que  eu  saiba,  publicaram  juizo   algum  favoravev 


XVII  11 

do  escriptor  Senio  ),  Luiz  de  Castro,  Miizzio,    Guima 
raes,  Serra,  e  Salvador  de  Mendonça,  declarando-lhes 
serem  elles  os  melhores  talentos  d'esta  terra,  os  pri- 
meiros litteratos  etc.  ? 

Tic. — Estás  por  conquistar.  E'  a  hábil  estratégia  do 
<i  Ohda  guardai  Ah  qui  d'el-reique  me  escovam  l  »  E'  o 
plano  ja  transparente,  desde  o  tempo  da  mterpellaçao, 
quando  se  pretendia  angariar  prosélytos,  iusinuanda 
que  tu,  na  pessoa  d'elle,  injuriavas  os  characleres  poli- 
ticasy  e  quando  pedia  ao  povo  que  te  desse  provas  tan- 
giveis  da  sua  indignação. 

CiNC. —  Digo,  com  a  mao  na  consciência,  que 
tenho  a  mais  profunda  convicção  de  que  todos  esses- 
escriptores  ahi  invocados  poderão  reconhecer  em  Senio 
os  dotes  que  nem  mesmo  a  sua  iniustiça  me  fará  ne- 
gar-lhe  ;  mas  de  que  nem  um  d'elles  deixará  de  con- 
cordar na  procedência  das  censuras  politicas  e  litterá- 
rias,  que  Semprónio  e  eu  lhe  temos  íeito. 

Tic— Forte  dúvida!  Aquillo  foi  uma  rede  de 
arrastar ;  se  nao  pescou  haleia  nem  mero,  sempre  pes- 
cará algum  bagre  ou  siry. 

CiNC. —  E  para  que  é  que  (tractando-se  de  um  ya- 
pehicho  tão  desprezível  como  diz  que  .^-ao  as  Questões  do 
dia)  vem  á  baila  outra  vez  a  questão  dos  estrangeires, 
e  da  prohibiçao  de  escreverem  ou  pensarem  sobre  pes- 
soas ou  assumptos  nacionaes  ? 

Tic. —  E'  outra  these  do  discurso  interpellador 
(matéria  que  já  tractaste  irrespondivelmente),  e  que 
apenas  serve  para  confirmar  que  é  a  mesma  pessoa,  a 
que  em  ambos  os  legares  echôa  as  mesmas  idéas. 

CiNC. —  Mas  imaginando-me  portuguez,  porque 
fac  elle  agora  tantas  zumbaias  a  portuguezes,  con- 
demnando-me  a  mim  como  precito,  e  insinuando  que 
pôde  a  minha  insignificante  voz  produzir  cataclismos 
nas  relações  internacionaes  ? 

Tic. —  Tem  bem  que  ver  !  «  Oh  da  guarda,  ah  qui 
(íel-rei^  que  me  escovamly>  Viu  que  nao  achou  écho  em 
parlamento;  viu  que  o  nao  achou  na  imprensa:  tem 
certeza  de  que  o  nao  achará  nos  nomes  illustres  inten- 
cionalmente implorados ;  bate  a  outra  porta  para  que 
lhe  acudam,  e  quer  ver  se  encontra  em  membros  de 
uma  nacionalidade  respeitável,  quem  te  induza  a  dei- 
xal-o  em  socêgo,  ou  quem  partage  os  preclaros  inte- 
rêsses  da  eua  própria  conveniência  Q'elle. 


12  XVII 

CiNC. —  E  será  tainbem  para  isso  que  invoca  uns 
imaginários  brios  nacionaes,  que... 

Tic. —  Certamente,  é  o  afogado  deitando  a  unha 
ti  quanta  palha  avista.  U  Brazil  é  Senio  I  Senio  é  o 
Brazil  !  Quem  o  não  proclama  escriptor  de  trus^  poli- 
tico de  maço  e  mona,  vilipendia  a  todos  os  brazileiros, 
rebaixa  o  Império  da  Sancta  Cruz.  Ora  olha: — «O 
^pirito  nacional  deve  incher-se  de  indignação  » — a 
appreciaçflo  de  um  romancista  é  «  um  negócio  domés- 
tico )) — ((  os  brazileiros  illustrados...  têm  susceptibili- 
dades nacionaes  » — uo  zelo  é  legitimo,  nós  o  sentimos, 
etc,  etc.»  Nao  estás  ahi  vendo  outra  vez  o  fi  Oh  da 
guarda,  meo  povo  /  »  *?  Repetição  das  provas  tangiveis^ 
da  interpellaçao. 

ciNC. —  Realmente  jà  lhe  vou   achando  seo  furo; 
mas  o  estylo... 

TIC. — E'  elle,  sem   tirar  nem  pôr,  no  pejasamento  e 
na  forma. 

E  se  nao,  repara  bem  ! 

Viste-o,  na  interpellaçao,  estomagado  por  imaginar 
que  tu  ganhasses  muito  dinheiro  ( idéa  fixa  como  a  do 
pessoal) '?  Aqui  o  tens!!  «o  meo  dinheiro  em  garatujas; 
isso  é  para  os  que  vivem  d^ellas,  e  de  tudo  fazem 
especulação  &»  E*  a  historia  cios  assoldudados, — Viste-o, 
em  quantas  occasiOes  se  lhe  deparam,  vulpis  ad  uvam^ 
injuriar  os  clássicos?  Aqui  o  tens,  repetindo  as  suas 
exprobrações  aos  pernadas  ds  longo  fôlego^  que  deixam 
a  gente  sem  fala,  e  mais  cousas  assim. — Viste-o,  na 
interpellaçao,  dizendo  que  seos  adversários  (mercê  de 
Deus )  nao  eram  da  tua  casta  ?  Aqui  tens  a  mesma 
idéa :  Por  tortuna  para  nós  (  nós,  é  cousa  atada  ),  está 
tao  altamente  collocadoá.» — Visto-o,  na  mesma  occa- 
siao,  responder  da  bua  cáthedra  ao  Relator  da  Com- 
missão  especial,  que  lhe  nao  redarguia,  porque  lá  da 
sua  altura  nem  escutar  podia  as  suas  palavras  Y  Aqui 
tens  a  variante  da  mesma  delicadeza,  na  phrase  :  » 
que  nem  inxerga  o  pó  que  se  levanta  no  rojar  do 
reptil.» — Viste-o,  sempre  no  mesmo  dia  dizer  que  nuo 
fazia  caso  de  ti,  ao  passo  que  te  tornava  objecto 
único  do  fiasco  da  sua  interpellaçao  ?  Tal  e  qual  agora, 
quando  repete  que  o  silencio  da  imprensa  tem  pro- 
vindo do  desprêso  profundo  votado  ás  tuas  publica- 
ções, e  logo  te  dedica  em  seguida  duas  columuas  do  a- 
mabilidades,  prom'?ttendo  continuar. —  Viste-o,  em  seo 


XVII  1? 

brilhante  discurso,  dando  prova  da  sua  cultura  intel- 
lectual,  chamando  a  hilaridade  da  Camará  para  a  ex- 
pressão Vaga  Vénus?  Câ  o  apanhas  com  a  bõcca  na  bo- 
tija, voltando  à  carga,  e  em  nota  (para  destacar 
melhor)  onde  pergunta  com  graça  de  um  urso  a 
dansar»  Este  Cupido  será  marido  da  Vénus  vaga  ?! — 
Viste-o,  na  inteipellaçao,  citar  erradamente  o  Labeao, 
de  Horácio,  e  os  alugadores  d'iras,  de  Marcial  ?  Aqui 
o  tens  agora,  citando  Juvenal  erradamente,  tanto  nas 
palavras  como  no  pensamento. 

ciNC. — ^Ja  me  convenceste  ;  mas  pára  ahi,  que  isso  è 
de  mais.  Pois  é  possivel  que  n'esse  senhor,  as  citações- 
falsas  se  convertessem  n'nma  espécie  de  mania  ? 

Tic. — Ohi  se  é  !  Esta  sátyra  scei-a  eu  quasi  toda  de 
cór;  e  no  logar  alludido,  tractando  dos  Senios  do  seo 
tempo,  diz  Juvenal  (o  que  depois  em  distincto  auctor 
francez  tem  sido  citado  como  original  :  Rien  ne  lui  bat 
sous  la  inamelle  gaúche ): 

...  quod  Iwva  in  parte  mamilícB 
NiL  salit  arcadico  juveni; 
e  o  nosso  intelligente  crítico  imputa-lhe  o  contrário !  : 
quod  IdBva  parte  mamillcB  salil  arcadico  juveni.  Pergunta 
o  poeta,  se  acaso  o  coração  doesse  joven  Arcádio  (Vecto) 
nfto  pulsa;  e  imagina  Senio  que  isto  allude  a  uns  burros 
que  pastavam  a  relva  da  Arcádia  ! 

CiNC. — Basta,  meo  amigo,  basta  .  No  tempo  de  Pey- 
ronnet  não  se  exigiam  tantas  provas  para  um  processo 
de  tendência,  e.... 

Tic. — E  ós  neologismos  estrambóticos,  taes  como 
parvnrellasj  e  restantes  moxinifadas,  não  estão  dela* 
tando  o  inventor  do  novo  idioma?  E  os  erros  de  Imgua- 
gem,  taes  como  o  emprego  do  verbo  carecer  (sem  ser  na 
significação  de  precisar-se  cousa  de  que  ha  falta,  e  cuja 
falta  se  sente)  ;  o  gallicismo  do  partilhar,  e  do  tim  e 
uma  a  torto  e  a  direito  ;  o  uso  do  mais  ( plus ) 
quando  o  portuguez  manda  escrever  o  jd:  e  mil  outras 
absolutas  paridades  entre  o  estylo  d'este  aranzel  e  o  de 
Senio,  deixa-te  isso  tudo  no  espirito  sombra  de  diivida? 

CiNC. — Uf  I  deixa,  sim  senhor. 

Tic. — Então  descobriste  a  quadratura  do  circulo. 

CiNC— Contra  esse  exército  de  argumentos  tenho  um 
canhão  Krupp. 

Tic. — Hade  ser  areado... 

CiNc. — Invencivel.  O  Diário  do  Rio  não  publicava  a 


14  XVII 

cousa  pílos  lindos  olhos  do  eficriptor;  custava  dinheiro; 
<linheiro!  corda  sensível*  fibra  d^alma... 

Tic, — Pois  é  Krupp,  sim  senhor.  Ainda  nao  ha  muito 
que  eu  vi  aquelles  mesmos  typos  d'aquelle  mesmo 
Diário  porem  pela  rua  da  amargura  aquelle  mesmo 
Senio  que  agora  exaltam  nos  A  pedidos.  Sendo  porem 
certo  que  aquelles,  como  estes,  prestantes  escriptores 
satisfizeram  a  sua  espórtula,  está  direito.  Do  que  eu 
duvido  muito  é  de  que  Senio  pagasse  taes  publicações; 
segredos  da  abelha,  para  desvendar  os  quaes  tomara  eu 
interpellar...  fosse  a  quem  fosse.... 

CiNC. — A  matéria  está  discutida;  deixemos  a  autó- 
psia do  auctor.  Lê  por  hi  abaixo,  e  vê  o  que  elle  me  as- 
saca, limitando-te  a  tirar  o  chapéo  ao  que  só  forem 
insultos  descarnados. 

TiG. — A  ti,  nada  mais.  Diz  que  te  vai  catar  a  tua  9*. 
carta,  mas  nao  caía  nada^  e  como  catavento^  vira  logo 
para  outra  banda. 

CiNC.  —Ah,  sim?  Eatao  mede-se  com  o  amigo  Sem- 
próaio? 

Tic. — Qual!  n'essa  nao  cai  elle.  Em  resposta  ás  8  es- 
magadoras cartas  de  Semprónio,  faz-lhe  uma  careta, 
chama-lhe  um  nome  feio  [arcádio)  ^  e  vira  de  rumo.  E' 
porque  com  pennas  d'  aquellas  nao  se  brinca;  e  de 
mai>,faltavam-lhe  as  muletas  dos  estrangeiros,  das  sus- 
ceptibilidades, das  nacionalidades,  e  do  Oh  da  guarda! 

CiNC. — Bom,  bom;  fecha  ahi  a  catilinária. 

Tic. — Nao.  Procede  de  modo  estupendo.*  poe-sea 
ladrar  á  lua.  Investe  contra  a  sombra  de  um  dcs  má- 
ximos vultos  do  nosso  idioma,  e  farta-se  de  dizer  ba- 
buzeiras  acerca  de  quem  os  primeiros  mestres  procla- 
mam todos  seo  mestre. 

CiNC. — ilas  porque  carga  d'àgua  traz  elle  para  a 
discussão  quem  reside  a  duas  mil  léguas  de  distancia? 
quem  nem  sequer  sonha  que  exista  similhante  polé- 
mica? quem  até  nunca  imaginou  que  existisse  uma 
cousa,  chamada  Senio? 

Tic. — E'  outra  esperteza  transparente.  Muito  lido  na 
mythologia,  occorreu-lhe  a  história  de  Castor  e  PoUux, 
e  dice  coinsigo :  Sou  um  azougue  de  esperteza  ;  vou 
transviar  o  debate;vou  mudar  a  guerra  de  ofFensiva  em 
defensiva;  vou  substituir  o  assumpto  por  outro;  escapo- 


XVII  15 

me  da  arena,  sem  mais  arranhões  e  estou  salvo.  Vamos 
-a  ver,  se  pega. 

CiNC. — Nao  pega,  nao  senhor.  Seria  até  caso  de  fa- 
zer a  um  raio  soltar  gargalhadas  titânicas,  ao  surriar 
fustigando  as  escarpas  de  um  rochedo,  se  eu  me  pozesse 
a  defender  António  Feliciano  de  Castilho  das  inno- 
<!en*es  frechadas  de  um  Senio.  Pode  delirar  a  tal  resr- 
peito  quanto  lhe  apraza,  que  d'isso  farei  eu  tanto  caso 
•como  o  público  faz.  Comigo  é  que  eu  pergunto;  co- 
migo, nao  implica  mais? 

Tic. — Nao;  mas  promette  continuar.  Eu  te  trarei  o 
Diúiio. 

CiNC. — Obrigado:  até  mais  ver. 

E  foi-se.  Ahi  tens  tu,  meo  amigo,  o  pè  em  que  hoje 
a  controvérsia  fica.  E'  outra  variante.  Como  quem  tem 
muito  medo  ingrossa  muito  a  voz,  foi  primeiro  plano 
aterrar  me,  fazer  de  papão,  amiaçar-me  de  logar  inac- 
cessivel,  e  de  quartel  de  saúde.  D.  Fr.  António  de 
4jouveia,  na  sua  Relação  da  Pérsia,  fala  de  certos 
Mouros-Medusas,  que  só  com  o  olhar  matam ;  cha- 
mara-se  Cafatares;  cà  o  nosso  Cafatar  quiz  experi- 
mentar em  mim  aquelle  seo  poder  pessoal.  Parece 
<jue  tinha  perdido  a  virtude,  por  ingarrafado  desde 
muito  tempo  ( sao  várias  as  possanças  ingarrafadas, 
que  já  nao  illudem  ninguém  ).  Tenta  agora  systema 
novo,  em  que  lhe  nao  prevejo  mais  fortuna  ;  e  d'ahi, 
veremos.  Em  todo  o  caso,  descança.  que  andarás 
sempre  em  dia  com  este  curioso  espectáculo.  Prova- 
velmente de  lá,  segundo  o  uso,  nao  virao^  mais  do 
que  affrontas ;  quanto  a  mim,  guiar-me-hei  sempre, 
.sem  que  o  máo  exemplo  me  desmande,  pelos  preceitos 
que  tenho  lido :  só  considerarei  eita  controvérsia  como 
liaialha  litterária,  onde  a  minha  penna  terá  logar  de 
espada,  a  língua  de  mao,  os  livros  de  escudo,  o  racio- 
cínio de  poder.-  meos  tiros  serão  argumentas,  e  na 
razão  procurarei   a  victória. 

Desculpa  a  prolixidade,  e  crê-me  inalteravelmente 

Teo  velho  amigo 

ClNCINNATO. 


16  xvir 

Epigrammas  e  madrigaes,  originaes  ou  imitados 

A  lei  de  H:ex*odles. 

Ser  livre  o  ventre  da  escrava 
estatue  lei   brazileira  ! 
Dizem  que  d'isto  se  aggrava 
quem  nfto  tem  eira  nem  beira  ; 

que  a  raça  de  Can  sossobra 
sem  esperança  de  porto, 
e  a  funesta  causa  sobra 
no   infanticídio,  no  aborto  ; 

que  um  ou  outro  fazendeiro 
pensa  n'isto  e  perde  o  somno  t 

n'isto,  sim  ;  nfto  no  dinheiro 

que  suppõe  minguar  ao  dono. 

Mentira  /  calumnia  I  as  vistas 
sâo  de   alta  moralidade  ; 
nem  de  humanos  cafézistas 
se  desquita  a  caridade. 

Pois,  ricos  e  bons  senhores, 
escutae  I  (  um  chrístão  pede-o.) 
Tendes  contra  esses  horrores 
em  vossas  mãos  o  remédio.  * 

A'  vossa  phijanthropia 
por  ventura  nfto  parece 
que  víctimas  haveria 
só  quando  algozes  houvesse  7 

(Juintilianò, 


Apprcciaçâo  critica,  da  inAOKMA  ,  salda  diy 
toestunto  do  mco  criado. 

Diz  um  gngo,  meo  criado 
(  nue  é  rapaz,  lido  em  gramroática, 
e  dOs  pronomes  tem  prática, 
que  se  adquire  no  Mercado ) 
«  Que  o  tal  romance  Irracima 
(que  é  um  romance  de  truz  ) 
é  dos  romances  a...  gemma... 
porem...  de  ôvode...  abestruz.ii 

TkemUtorles. 


Lilh.-lMrAKCIAL— Kua  Sele  de  Fetcmbro,  146. 


QUESTÕES  DO  DIA 


isr.  : 


RIO  DE  JANEIRO  29  DE  OCTUBRO  DE  1871. 


Vende-se  em  casa  dos  Srs.  E.  &  H.  Laemmert. —  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto. — Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  d.  119—  Largo  do 
Paço  n.  C. —  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis 


Deelnxa  q.uax*ta  oar*t» 

DO  ROCEIRO  CINCINNATO  AO  CiDADÃO  FABRÍCIO 

Rio  (ie  Janeiro,  17  de  octubro  de  1871. 

Caro  amigo. 

Psssei  hontem  o  dia  em  Andaraliy,  e  por  isso  nfto 
pude  palestrar  comtigo.  Sai  agora  d'aqui  o  Tício, 
que  me  trouxe  a  2*.  e  3*.  Palestra  do  V.  (  ?  ),  publi- 
cadas hontem  e  hoje. 

Lemos  junctos  aquellas  duas  peças  de  architectura» 
e  discutimos  largamente  se  era  licito  tomar  em  consi- 
deração escríptos  redigidos  com  formas  tao  baixas,  que 
é  duvidoso  merecerem  resposta.  Estas  pugnas  litterá- 
rias  tem  seo  quê  do  duello  :  acceitarias  tu- um  repto 
para  te  bateres,  nao  com  armas  licitas,  mas  com  pu- 
nhados de  lodo  ?  Eu  jà  nem  me  presto  a  copiar  as  pa- 
lavras e  expressões,  que  esta  casta  de  adversários  julga 
admissiveis  em  taes  polémicas  ;  embora  seja  simples 
transcripçâo,  ha  certo  pudor  que  veda  reproduzir  com 
a  nossa  penna  linguagem  que  só  se  aprende  nas  taber- 
nas e  nos  açougues.  O  sal  âttico  doestes  senhores,  é  sal 
do  cosinha,  e  do  mais  ordinário. 

O  idioma  é  em  todos  os  géneros  t&o  opulento  que 
nada  houvera  mais  fácil  do  que  a  uma  insolência  res- 
ponder com  dez  insolências,  a  uma  brutalidade  com 
cem  brutalidades  ;  mas  ainda  quando  o  adversário 
nada  mereça,  merece  muito  o  público,  e  a  nossa  própria 
dignidade. 

Depois  de  lidos  estes  dous  artigos,  tinha  um  de  três 
arbítrios  a  tomar  : 


^2  XVIII 

l®.  Responder  na  mesma  afinação,  ou  meio  tom 
acima.  Seria  seguir  um.  vergonhoso  exemplo  ;  trans- 
formar controvérsia  em  pugilato;  desrespeitar  o  leitor  e 
a  mim  mesmo. 

2°.  Em  vista  de  tamanho  descomedimento,  guardar 
silencio,  por  nao  julgar  decente  polémica  de  espécie  al- 
guma com  taes  contendores.  Seria  deixar  campear  im- 
pune o  desacerto  boçal,  e  auctorizal-o  a  proclamar  ir- 
respondiveis  os  seos  delírios. 

3".  Fechar  olhos  a  tudo  quanto  em  taes  artigos  re- 
veste a  forma  brutal,  extrahird'elles  lealmente  o  que 
aspire  a  foros  de  argumentação,  e  aquilatal-a,  como  se 
fosse  proferida    com   decência    e    compostura,  e  por 

auem  tivesse  em  mente,  nao  a  injúria,  mas  a  apuração 
e  doctrinas  controvertidas.  Por  exclusão  de  panes, 
intendi  que  era  esta  a  marcha  que  eu  tinha  de  seguir. 
Deixarei  pois,  de  boamente,  a  Senio  a  glória  do  seo 
vocabulário.  Nao  reciprocarei  os  piegas^  MaiiianUj 
salsinha  litterãrio^  charlatão^  casmun^o,  palhaço,  crili- 
queiro^  cacassenOy  etc,  etc.  (*)  Acceito  tudo,  epago-lhe, 
dizendo  que  nada  d'isso  me  demove  da  posição  de 
justiça  e  plena  rectidão  em  que  me  coUoquei,  nem  me 
auctoriza  a  represálias,  que  em  taes  termos  seriam  in- 
dignas do  público,  de  mim...  e  do  próprio  Senio. 

Nao  ha  quem  tenha  esquecido  a  lucta  entre  J.  A. 
de  Macedo  e  Bocage,  no  fim  do  século  passado.  Aquelle 
começou  a  sua  excellente  sàtyra  por  estes  versos  : 

Sempre,  ó  Bocage,  as  sátyras  serviram 
para  dar  nome  eterno  e  fama  a  um  tolo. 

A  sátyra  monumental  em  que  Bocage  analysou 
aquella,  principiou  assim  : 

Sátyras  prestam,  sâtyras  se  estimam, 

quando  n'ellas  calúmnia  o  fel  nao  verte 

quando  forçado  epítheto  afprontoso 

{ tal  que  nein  cabe  a  ti )  nao  cabe  áquelle^ 

que  já  na  infância  consultavam  Phebo. 

Eis-ahi,  ao  menos  n'este  poncto  da  sàtyra,  um  bello 
exemplo.  Bocage  tinha  um  arsenal  provido  :  quem  lhe 
chamava  tolo,   dava-lhe  o  direito  de  redarguir  com 

Y*)  Em  seguida  a  esta  carta,  chamo  a  tua  attenj^o  para  o  qua 
yai  transcripto,  sob  o  título  de  Infirmidades  ãa  tingia. 


xviir  3 

egual   energia :   parvo,   néscio,  asno,  tolambana,  bas- 
baque,  asneirao,  estólido,  fátuo,  papalvo,  párvoalho, 
inxovôdo,   inepto,  insensato,  parvoeirEo,  tolaz,  patau, 
simplório,  sandêo,  tolSo,  simpleirUo,  stulto,  ignorante, 
lorpa,   zote,  bestial,  pateta  das  luminárias,    amente, 
mentecapto,  lunático,  tresvariado,demente,  tonto,  par- 
voinho,  alarve,  alvar,  animal,  bobles  abobles,  bolonio, 
oamfilo,  caturra, orate,  despro{}ositftdo,estouvado,  estú- 
pido,patola,  e  mais  duas  dúzias  de  variantes,  que  se  a- 
f)rendem  na  praça  do  Mercado.  Tal  nEo  fez:  começou 
ogo  reconhecendo, nao  obstante  a  ira  que  o  inflammava, 
ufto  ser  aquelle  epitheto  applicavel  a  quem  lh'o  applica- 
va;como  nfto  faria  outro  tanto,  eu, em  quem  taes  violen- 
i^ias  nao   geraram    agastamento,    mas    simples  com- 
paixão ? 

Deixarei  pois  aquellas  energias  de  linguagem  para 
quem  precisar  lançar  poeira  aos  olhos  ;  eu,  que  só 
preciso  raciocinar  som  vitupérios,  dispenso  esses  tristes 
recursos  da  impotência. 

Pelo  que  vejo,  abcndonai^am  ao  braço  secular  o  poder 
pessoal,  o  orador,  o  tstadista,  o  escriptor.  Só  defendem 
o  romancista.  Vamos  a  isso.  Semprónio  consagrou  40 
páginas  á  anályse  do  Gaúcho  ;  não  se  atreveram 
rom  elle:  eu  rabusquei  na  vinha  que  o  hábil  vindi- 
mador  deixara,  consagrando  apenas  duas  cartinhas  ao 
meo  supplemento  de  anályse,  e  é  sobre  mim  que  Senio 
cai  desapiedadamente,  por  me  saber  mais  fraco.  Faz 
lembrar  Cosar  em  Dyrráchio,  investindo  o  campo  de 
Torquato,  por  supp61-o  maia  fácil  de  derrotar  do  que 
se  atacasse  as  forças  de  Pompeo.  Resigne-se  cada  um 
&  sua  sorte,  e  vamos  a  isso. 

E'  um  tanto  difflcil  conquistar  attençao  sobre  assum- 
ptos já  cançados,  e  que  naturalmente  saciam.  Sem- 
prónio fez  uma  primorosa  anályse  do  Gaúcho  ;  eu  co- 
mecei-lhe  um  insignificante  additamento  ;  agora  o  tal 
V.  disseca-me  a  mim  ;  eu  vou  dissecara  sua  dissec- 
ção   de  modo  que  isto  vem  a  ser  anályse  da  anályse 

do  additamento  á  anályse  da  obra.  Fora  mister  muito 
mais  alto  mérito  litterário  em  mim,  e  no  meo  fusti- 
í^ador,  para  ser  isto  supportavel;  todavia  cumpra-se  o 
dever,  inteiro  e  com  lealdade. 

E  para  d'ella  dar  mais  uma  prova,  quero  (nao  obs- 
tante o  risco  de  ver  converter-se-me  em  desar  a  con- 
fissão espontânea)  declarar  que   houve   n'estas  cartas 


4  XVII 

uma  observação  inexacta.  Passando  pelos  olhos  as  //w- 
titutas  de  Justiniano,  de  Ortolan,  là  achei  a  citação  de 
Labeon,  tauto  do  Tácito,  como  do  Horácio,  reproduzida 
no  discurso  do  Sr.  Alencar:  e  então,  examinando  mais 
attentamente,  vi  que  a  minha  afirmativa  proveiu  de 
uma  ommissSlo  do  auctor  da  Taboada  geral  das  maté- 
rias contidas  nas  diversas  obras  de  Tácito^  o  qual  pro- 
mettendo  aponctar  a**  logares  onde  o  grão  discípulo  de 
Quintiliano  fala  de  personagens  notáveis,  menciona 
sob  a  rubrica  de  Labeon  outros  indivíduos  d'essa  famí- 
lia, e  nfto  o  bàbio  e  louco  Antístio,  de  quem  é  todavia 
certo  que  o  grave  auctor  dos  Annaes  tracta  no  L.  III 
§  75.  Nao  sou  como  aquelles  a  quem  í>e  appresenta 
prova  de  inexactidão  de  suas  accusaçoes  e  as  nfto  reti- 
ram ;  em  obséquio  á  verdade,  retiro  esta,sem  que  vies- 
sem notar-m*a,  e  com  a  mesma  espontaneidade  reti- 
raria qualquer  outra,  quando  a  consciência  m'o  pres- 
crevesse. 

Agora,  supprimindo  os  insultos,  discutamos  os  pou- 
ctos  sobre  que  Senio  repelle  as  minhas  observações. 

§  L  ii«  andais  se  agitam  em  (luctuação. 

Na  minha  i*.  ca''ta  a  Semprónio  (  Questões^  n.  9  ) 
censurei  esta  phrase  do  Gaúcho  em  4  linhas,  e  respon- 
de-se-me  com  um  i  columna  de  typos.  E'  um  desper- 
dício de  palavras  que  bem  se  harmoniza  com  o  da 
phrase  censurada.  Nâo  sou  pois  eu  o  culpado,  se  tiver 
de  seguir  nesta  trilhada. 

Eu  transcrevi  do  romance  os  seguintes  trechos  :  «  A 
savana  ondula  pelas  sangas,  que  figuram  as  flvcluarôes 
das  vagas ^  n'esse  verde  oceano....  As  ondas  se  agitam 
em  constante  fluctuaçào  etc.  »  Qualquer  amigo  mais 
prudente  do  auctor  calar-se-hia,  reconhecendo  comigo 
que  isto  estava  tristemente  expresso  e  esparralhado.  E 
como  redargue  o  imprudente  V  ? 

((  —  Nao  vê  (senhor  piegas)  que  de  propósito  comea  o 
constante^  e  levantou  um  aleive  a  Senio  ?  isto  é  ser 
calumniador.  » 

Oalumniador,  meo  sábio  mestre  !  a  isto  é  que  o 
mestre  chamaria  calúmnia  ?  Sabe  bem  da  língua,  não 
ha  dúvida. 

E  onde  é  que  eu  comi  o  constante^  meo  leal  censor  *? 
Nao  o  yè  alli,  na  phrase  litteralmente  reproduzida  ? 
Olhe  que  se  me  nao  alimentasse  sendo  de  comida 
assim,  dava  a  alma  a  Deus  em  3  dins. 


XVIII  s 

E  note  mais,  que  bem  podia  eu  ter  ommittido  o  ad- 
jectivo, sem  fazer  falta  alguma.  A  minha  repugnância 
não  é  contra  o  constante^  que  só  d&  idéa  de  que  o  tal 
movimento  è  aturado,  duradouro;  é  contra  (a  moléstia 
pega-se)  a  redundância  da  pleonàstica  eicpressSo  do 
tal  movimento  ;  e  já  vê  que  para  isso  tanto  importa  ler 
como  supprimir  o  adjectivo. 

Ondas  representa  águas  em  movimento;  fluctua- 
Ção^  representa  águas  em  movimento;  agitarem-s^ 
/ij'/a.ç,representa  águas  em  movimento.  O  que  eu  digo 
por  tanto  é  que  a  expressão — as  ondas  se  agitam  em,., 
flucttiação, — trocada  em  miúdos,dá  isto: — as  águas  que 
se  movem  movem-se  em  movimento  de  águas.— Se 
approva,  também  eu. 

Ksta  perissologia,  sempre  reprehensivel,  ainda  o  é 
mais,  quando,  logo  antes,  tinha  o  auctor  escrípto 
que  a  savana  ondula  pelas  sangas,  que  figuram  as 
fln:lHaçôes  das  vagas  nesse  verde  oceano  l  Oceano  sao 
águas;  vagas  o  movimenio  d^ellas;  fluctuação,  idem; 
ondular^  idem;  de  forma  que  bom  nadador  hade  ser 
quem  leia,  se  sair  incólume   deste   dilúvio. 

I)á-nos  o  Sr.  V.  a  novidade  de  que  «aquella  plarase, 
exprime  em  estyio  nobre  e  elegante  !  este  pensamento: 
As  ondas  estão  em  constante  movimento.  »  D'isso  é 
que  me  eu  queixo;  foi  uma  idéasingelissima,  diluída 
em  repetições  de  palavriado;  sao  dizeres  de  Mr.  de  la 
Falisse,  ou  do  cónego  Philippe:  «Se  elle  nao  estivesse 
morto,  ainda  estaria  vivo.  »  Nilo  ha  dúvida  de  que, 
era  alguns  casos,  sóbrias  repetições  augmeutam  a  in- 
tíjnativa^  mas  nuo  devem  usar-se  quando,  como  aqui, 
nãi)  cnbp  intenção  de  ingrandecimento,  pois  a  phrase 
de  Seuio  nao  descreve  temporaes,  e  .comente  ondu- 
lações. Quando  Molière  escreveu:  Je  Vai  vu,  dis-je,  vw, 
4Íe  7nes  propines  yeax  vit,  ccqnon  appellevn  »  teve  em 
mente  uma  idéa  enérgica,  energicamente  expressa. 
Quando  ao  contrário  os  próprios  escriptores  da  nossa 
lingMia  escreveram  os  idiotismos: — Eu  por  mim-^Su- 
bir  para  cima — Parece-me  amim— Descer  para  baixo — 
E»  parece-me  --e  cem  outras  flucíuações  das  ondas  agi- 
/nrfífA,  procederam  reprehensivelmente. 

Seguem-se  agora  as  erudições  polyglottas,  ante 
a^  qaaes  me  curvo  reverente,  pois  fiquei  sabendo  que 
í»  nobre  crlrico  sabe  habilmente  compulsar  um  dic- 
oionario. 


6  XVIII 

Abre  por  exemplo  um  Calepino,  onde  vé  citada  a 
Eneida,  IV.  313: 

Trojaper  undosum  peierelur  classiòus  osquor^ 
e  noticía-nos  que    Virgílio  dice  undosum  (Bquor  (que 
podia  perfeitamente  dizer,  pois  ahi  n&o  se  acha  re- 
petição, como  a  nSlo  ha  em  maré  undosum,) 

Mas  o  mais  divertido  é  isto.  Procura  no  mesmo  Ca- 
lepino a  palavra  fluctivagus^  e  lô  ;  çuod  fluctibus  agir- 
íatuvy  ut  Naula  flucíivagiy  unda  fluclivaga,  Stat.  1.  3. 
Sylv,  1.  V.  84  e  Théb.  I.  v.  271  »  Imaginou  natural- 
mente que  isto  eram  3  auctores  : — Théb.^  senfto  fosse 
a  ex-imperatriz,  condessa  de  Teba,  seria  a  nympha 
Thebe,  que  Ovidio  pinta,  amada  do  rio  Asopo — Stat. 
será.  . .  o  Statilio,  cúmplice  de  Catilina — No  que  nao 
ha  dúvida  é  em  que  5s^/v.  é  o  escriptor  Silvio,  tilho 
d'Ascanio,  segu|iao  rei  d'  Alba. 

Ergo,  escreve  Senio  :  «  Em  latim ^  dice  Silvio:  unda 
fluctivaga.  » 

Sao  os  inconvenientes  da  erudição  lexicogràpliica, 
os  ossos  do  officio.  O  infeliz  Senio  julgou  que  havia 
um  senhor  Silvio,  que  tinha  dicto  aquellas  bonitas  pa- 
lavras, e  enganou-se.  Houve,  sim,  um  poeta,  chamado 
Stácio,  que  J.  A.  de  Macedo  traduziu,  levando  u7(/ia- 
dan  de  Bocage  ;  esse  poeta  compoz  iima  série  de  Carmes ^ 
divididos  em  5  livros,  obra  que  denomine  u  Sylvas,  e 
2  poemas,  intitulados  Thebaida  e  Achilleida. 

Portanto,  o  «  Em  latim,  dice  Silvio  »  traduz-se  u'isto  : 
«  nas  sUrOÃ  Sylvas^  dice  Stàcio  »  E  até  isso  mesmo  seria 
errado,  porque  aquellas  referencias,  nao  comprelien- 
didas  por  Senio,  sao  a  outra  cousa  diíferente.  O  verso 
das  Sylvas  n&o  diz  tal  unda  fluctivaga,  e  sim 

Fluctivagos  nautas,  scrutatoresque  profundi : 

e  portanto  n&o  é  para  o  unda  fluctivaga,  que  o  diccio- 
nàrio  o  cita.  Onde  o  Calepino  indica  isso,  é  na  Thebni- 
da,  e  ahi  com  effeito  s^  lê : 

,..fl,uclivaga  qua  prceterlabitur  unda. 

Consaguintemeute  em  vez  de  o  Silvio  dice  cm  latim , 
leia-se:  o  Stàcio  dice  na  Thebaida. 

As  superfluidades  de  palavras  não  sao  invenção  Se- 
nial.  Já  n'aquelles  tempos  se  perpetravam.  Quintiliano 
queixava-se  da  locução  húmida  vina  e  similhantes;  cha- 
mava a  esses  dizeres  supervacua  oraíio  ou  abundans 
supra  necessilatem  oratio,   Desadorava  com    as  gemi- 


XVIU  7 

naçOas;  indignava-se  com  discursos  que  vao  logo  sendo 
tiradoâ  em  pública-forma ;  que  diria  elle  da  mesma 
idèa,  desbotada  e  chata,  repetida    dez  vezes  ?  placebií  ? 

Da  sciencia  lexicogràpliica  romaua  passa  o  Senio, 
ou  V.,  para  idêntica  sciencia  portugueza.  Diz  que  são 
eguaes  pleonasmos  dguas  fluctuosas  (como  se  as  aguas 
não  podessem  ser  paradas  )  ; — mar  undoso  ( como  se  o 
mar  nao  podesse  estar  estanhado).  Diz  mais  que  tam- 
bém CamOes  dice  :  «  Eslava-se  como  as  onda^  ondeandor* 
(como  se  Camões  fizesse  versos  errados).  E'  o  passo  em 
que  o  poeta  descreve  o  phenómeiio  da  tromba  absor- 
vente d^agua  de  mar,  ou  manga  do  nuvem,  e  diz  que 
ella  ( man^a )  estava  fazendo  uns  movimentos  de  ondu- 
lação similhantes  aos  que  as  ondas  faziam...  c  o  nosso 
preclaro  crítico  imagina,  para  justificar  o  seo  pleonas- 
mo, que  sao  as  ondas  que  estão  ondeando.  Pois  sim. 

O  que  é,  porém,  mais  impagável  é  a  profundidade 
doestas  erudições,  todas  ellas  também  de  diccionário  (e 
ainda  se  fosse  só  isso,  seria  meio  mal\ 

1'  zrudtção  lusitana  \  t<  Emportuguez,  Menezes  diz  : 
as  dguas  fluctuosas  ">  Com  efleito  es<e  autor  da  ^lía/aca 
ConquistadAi^  dice  : 

Rompendo  Affonso  as  águas  fluctuosas 
chega  >•  Coulao  e  foi  bem  recebido  ; 

mas  ndo  foi  no  poema  que  V.  achou  isso,  e  sim  no  dic- 
clonàrio  de  Mcráes,  onde  se  encontra,  verbo  ttuctuoso, 
a  citação,  tal  qual  a  copia. 

2* — K  Na  riysséa,  cap.  1  v.  24,  vèse  mar  undoso  » 
Vide  o  mesmo  diccionàrio:))  undoso:  que  tom  ou  faz  on- 
das* v.  gr.  o  mar  undoso.  Ulys  1.  24»  E  a  j)rova  plena 
de  que  a  cópia  foi  cegamente  do  diccionàrio,  e  que  nem 
sequer  se  tem  noção  do  que  se  cita,  é  que  o  copista  so- 
nhou que  o  I  era  capitulo  'de  um  poema  !  )  e  o  24  era 
verso,  quando  6  1  era  o  canto^  e  o  24  era  a  estância. 

;j»  — ((  E  o  clássico  Camões,  canto  V  v.  20  diz  :  £s- 
tavorse  como  as  ondas  ondeando  »>  Veja-se  ainda  Moraes: 
—  »<  Ondear-se:  Mover-se  còm  as  ondas:  Estava-se  co'  as 
ondas  ondeando.  Lus.  V  ítO  »  E  que  nem  sequer  aqui 
foi  mais  do  que  uma  cópia  muito  intelligente,  demons- 
tra-se  com  o  facto  de  chamar  verso  20  a  estância  20 
porque  nao  comprehendeu  a  citação  do  Moraes. 

«i    E  TM  CHARLATÃO  DE  TAL  JAEZ  METTIDO  A  CRlTICO!    )) 

E'  como  V.  conclue  esta  parte  da  sua  defesa,  de  que 
acabo  de  rjxtrahir  toda  a  força,  pedindo  licença  para 


8  XVIII 

fechar  olhos  ao  roceiro,  maitiante,  salsíaha  litierário, 
merceeiro  da  critica,  e  restante  molho  de  vilão  (é  termo 
téchaico)  com  que  aquella  cosinha  se  vai  adubando. 

Por  hoje  basta.  Ficou-me  jnuita  matéria  notincteiro; 
nao  vai  a  matar. 

Teo  velho  amigo 

» . 

ClNCINNATO. 


l]aílx*iTiiaa<les   da   língua 

O  ingenhoso  bacharel  Manoel  José  de  Paiva  publi" 
cou»  meado  o  século  passado,uma  porção  de  obras,  ge* 
ralmente  da  mais  fina  crítica,  sob  o  pseudónymo  d® 
Silvestre  Silvério  da  Silveira  e  Silva.  Ha  entre  ellas 
uma,  curiosís-^úma,  dedicada  a  S.  António,  sob  o  titulo 
de  Infirtnidades  da  língua^  e  arte  (jne  a  ensina  a  eiumude- 
cer  para  mdhoYar ,  livro  quo  o  Sr.  Conselheiro  d'Estado 
José  Silvestre  Ribeiro  diz  que  «  supposto  seja  ura  tra- 
ctado  de  moral  prática,  e  de  finíssima  critica  das  ten- 
dências ruins  do  homem,  deve  comtudo  ser  comptado 
entre  os  subsídios  philológicos  etc.  »  Este  livro,  no 
maior  número  das  suas  páginas,  de  sabor  clásf^iro,  é 
pouco  manuseado  pelo  geral  dos  leitores,  mas  parece 
ser  o  vade-mecum  de  certos  escrevedores,  não  para  se 
afastarem  dos  dizeres  que  elle  condemna,  mas  para  se 
apoderarem  das  torpezas  que  profusamente  exempli- 
^ca.  Nao  será  desr-abidí»,  nem  desagradável,  ler  (»ni 
seguida  uma  porção  de  trechos  da  dita  obra,  que  sem 
dúvida  aguçarão  o  desejo  de  recorrer  ao  original. 
Transcrevamos  : 

«  ~Em  lamentáveis  ruínas  se  considera  estar  a  lín- 
gua que  a  Providencia  creou  com  tanto  re^i  ;uardo,  e 
que,  saindo  tantas  vezes  fora  deseos  limites,  se  perver- 
teu de  sorte,  cora  o  vulgar  tractaraento,  que  a  natural 
limpeza  se  lhe  tem  convertido  na  artificial  corrupção. 
Assim  como,  quem  se  chega  ao  fogo  se  queima,  assim 
ficaria  ferido  quem  se  poz3Sse  perto  do  contágio.... 
A  língua  publica,  que  não  teme  exércitos,  que  nao 
respeita  monarchas,  e  que  o  mundo  todo  é  pusillânime 
para  seo "emulo;  porque  ella,  cora  qualquer  venida  de 
que  usd,  ou  força  que  faça,  aos  mesmos  astros  podírii 
derribar  do  firmamento....  Eis-aqui  a  declarada  ini- 
miga contra  que  este  livro  quer  sair  a  carap:inha. 


xvrir  9 

«  ....  Para  que  uma  líugua  de  fogo  uao  faça  damna 
ao  pàbulo  a  que  se  chega,  afasta-se  este  com  vigilân- 
cia, e  assim  a  labareda  sobe  ao  seo  centro  sem  estrago, 
mas....  A  língua  deve  ser  luz  que  alumie,  e  não  fogo 
que  abraze...  Se  os  homens  nao  intendem  as  cousas, 
•calem-se,  e  ficarão  na  opinião  de  homens  ;  mas  quando 
.as  não  intendem,  se  falam,  saibam  que  ficam  na  opi- 
nião de  brutos. 

a  Reparo  em  duas  vezes  em  que  Christo  não  deu 
resposta  a  Pilatos : —uma,  quando  lhe  perguntou,  de 
que  pátria  era — outra^  quando  lhe  dice,  porque  não 
-contrariava  as  accusaçOes  dos  judôos  ?  Que  não  respon- 
desse à  ociosa  pergunta  da  pátria,  não  me  admira, 
porque  um  Senhor  tão  sábio  bem  conhece  o  pouco  que 
importa  a  differença  das  pátrias  etc.  . 

«  Porfia  um  louco  a  formar  de  areia  uma  estátua,. 
mas  da  sua  loucura  é  evidente  signal  esta  porfia  :  a 
mesma  acção  com  que  a  está  compondo,  é  a  com  que  a 
vai  desfazeudo  ;  como  não  tem  união  substancial  em 
que  se  segurem  aquellas  partes,  apenas  se  vão  levan- 
tando, quando  vem  caindo.  Assim  as  palavras  suber- 
bas,  como  soltas  ou  dissolutas,  não  podem  admittir 
composição,  que  não  seja  desmancho. 

u  ...  As  palavras  da  emulação,  da  invejando  ódio, 
4^8  ira.  e  da  vingança,  são  as  bandeiras  que  o  coração 
vai  trt»mulaudo,  para  que  lhe  tenham  medo;  e  o  medo 
é  it  nielKop  preservativo  contra  o  estrago.  Mas  que  suc- 
cedc*  ?  O  iunocente  foge,  o  inimigo  cança-se,  e  ades- 
pe/.i  qui' tem  feito  o  deteriora,  porque  não  faz  preza 
qu.'  Ih*!!  pigue  ;  e  por  último  effeito  d>sta  diligencia, 
ouvt»  uma  náutica  gritaria  com  que  é  escarnecido. 
Quem  jaiiTais  attondeu  ás  palavras  doestas  paixOes,  de- 
poi>  í|ue  \)  ir  taes  as  distinguiu?  Em  se  conhecendo  que 
.prokVílem  de  origens  tão  indignas,  já  se  avaliam  por 
loucas,  e  se  julgam  por  indei^entes.  Diz  mal  o  irado  do 
objfiMM  da  .iua  ira:  e  com  que  escárneo  se  não  recebem 
u-i  tumultuo^ií  expressõas  de  ardor  tão  temerário?  Por 
f  >;r^i  fátuo  s^  uit'M*pr<Ua,  na  opinião  dos  que  percebem 
tã  j  diffiísas  lahiri>J')S,  tã'»  inquietas,  tão  desproporcio- 
nadus.  t j  )  impróprias  e  t>lo  loucas,  como  as  mesmas 
palavr2i<  o  dizem.  (.VimpO?-se  a  ira  da  descompostura 
án<  palavras  :  t»  como  pode  apparecer  composta  a  que 
faz  u-ala  da  descompostura  ?  l^ue  período  se  lhe  obser- 
vou jamais  com  elegância,  com  discrição  e  com  acôrto? 
Ir:im-ie  contra  si  os  que  se  iram. 


10  XVIIl 

<(  Ha  na  língua  uma  espécie  de  borbulhas,  a  que 
chamam  brotoeja,   e  ainda  que  nao  è  de  perigo,  pari» 

ficar  com   saúde  perfeita,  bom  será  alimpar-lh'a A 

língua  ò  o  mostrador  do  relógio,  que  diz,  com  o  acerto, 
o  aceito  que  n'elle  se  acha  ;  mas  quando  se  desmancha 
este,  logo  ella  o  manifesta,  para  que  ninguém  o 
creia. 

«...  Que  phrases  indignas  nao  tém  composto  a 
apprehensão  dos  ignorantes  !  Que  palavras  torpes  nao 
têm  inxertado  na  sincera  planta  da  linguagem,  que 
sem  necessidade  chegou  a  ver-se  tao  corrupta!  ...de 
sorte  que  a  linguagem  dos  livros  é  diversa  da  lingua- 
gem do  vulgo  ;  nos  livros  acham-se  as  palavras  como* 
limadas,  no  vulgo  incontram-se  como  cheias  de  limos  ; 
e  succede  ordinariamente  que  a  gente  humilde  que  em 
sua  casa  e  fora  d'ella  nunca  se  tracta  com  aceio,  nau 
passa  da  immuudicie,  mas  a  gente  limpa,  em  quanto 
está  em  sua  casa,  nao  se  mancha,  e  por  sair  à  rua  so 
mette  pela  lama  e  se  salpica. 

«...  Entre  as  innumeraveis  palavras  que  a  igno- 
rância tem  introduzido  e  em  que  a  língua  tem  degene- 
rado, escreverei  as  que  agora  me  lembram  e  as  indignas 
phrases  de  que  o  vulgo  usa,  infamando-as  por  indis- 
cretas, por  loucas  epor  temerárias,  já  porque  nao  têm 
recta  deducçao  da  linguagem,  já  porque  as  institniu  a 
ignorância,  já  porque  nao  sSo  attendidas  pela  prudên- 
cia, já  porque  as  nao  recebeu  a  discrição,  já  porque  só 
se  usam  nos  períodos  desço  npostos,  e  já  porque  só 
d'ellas  se  tracta  nas  práticas  deshonestas.  » 

Comquanto  esta  matéria  esteja  perfeitamente  irac- 
tada,  e  lenha  grande  ])arentesco  com  a  dos  e;stylo.^ 
adoptados  pelos  S»*nios  interpellantes  e  pelos  V.  escrip- 
tores,  nao  devo  continuar  a  transcripçao,  e  limito-mi! 
a  dizer  que  o  nosso  auctor  pOe  em  seguida,  e  por 
ordem  alphabética,  uma  multidão  de  termos  e  phra- 
ses, defesas  a  toda  a  penna  que  se  respeita,  e  entre  a> 
quaes  appare^^em  quasi  na  totalidade  os  dizeres  d'estas 
Palestras,  d'r>nde  se  collige  que  realmente  os  seosi 
auctores  $ao  mui  lid(  s  n^este  meio-classico,  a  quem 
impetraram  auxílio,  afim  de  lhes  fornecer  para  sjCouso 
as  locuções  exactamente  que  o  hábil  crítico  desterrou 
como  indignas  dos  typos.  Pelos  tempos  que  coriHm;,, 
ha  lógica  em  tudo  isto  :  quando  a  propriedade  é  r«.ubo. 
a   religião  farça,    a   monarchia  flagello.   o  incccJro 


XVIII  11 

meio,  a  destruição  fim,  a  glória  lucro,  a  honra  phau- 
tasma,  o  progresso  desordem,  e  a  liberdade  anarchia,. 
nada  mais  natural  do  que  desinthrouizar-se  a  lin- 
guagem culta,  ou  sobre  as  cinzas  d'ella  fazer  pom- 
pear  a  geringonça  ou  gíria  dos  ciganos  e  galés. 


Alonurmeiato  a  JBooas^*(*) 

Ha  vontades  de  ferro,  espíritos  persistentes  aosquaes 
nenhuma  dificuldade  desanima^  e  que  vencem  e  supe- 
ram toda  a  sorte  de  obstáculos.  Cabe  a  esta  raça  pri- 
TÍlcgiada  de  lidadores  saír-se  vic tório  ;a  sempre  das 
luctas  que  emprehende  :  a  palavra  ijiipossivel^  por  naa 
ter  noção  correspondente  em  sua  vida  práctica,  foi 
ha  muito  supprimida  do  vocabulário  próprio. 

Pertence  incontestavelmente  a  esta  família  —  pouco 
numerosa,  ainda  mal ! —  o  Sr.  consel)u;iro  José  Felicia- 
no de  Casiilho  Barreto  e  Noronha.  Documentos  de  toda 
a  authencidade  ahi  nol-o  estão  a  testificar,  e,  se  de 
nova  demonstrar&o  se  carec^ssse  para  affirmar  a  sua  fi- 
liação n*aquella  genealogia  predestinada,  o  assumpto 
que  vamos  tractar  nol-a  ministraria  cabal  e  perfeita. 

Bocage  é  um  vulto  notabillíosimo  da  litteratura  por- 
tuguesa; Mias  nao  est&o  ainda  de  todu  extincta^  as 
paixões  que  sublevou  o  seo  assombroso  talento.  Uns  o 
proclamam  o  principal  poeta  da  península  n'este  século; 
porfiam  outros  que  nao  soube  extremar-se  da  turba  de 
versejadores  de  outeiro. 

Com  mfto  segura  e  sciencía  de  mestre,  o  Sr.  conse- 
lheiro Castilho  tomou  o  escalpello  da  anályse,  e  \)yí^- 
vou  que,  ire  os  primeiros  eram  exaggerados  na  sua 
classihcação,  peccavam  os  segundos  por  nimiamente 
injustos  no  conceito  em  que  tinham  a  Elmano.  N'este 
paciente  e  consciencioso  trabalho,  que  forma  os  tomos 
vii  ft  VIU  da  Livraria  Clássica,  levantou  o  Sr.  Castilho 
primoroso  monumento  á  glória  do  grande  vate  setuba- 

(•)  Tendu  dado  n*este  rcpcsit^rio  vários  dos  principaes  escrip- 
tosqae  prendem  com  este  assumpto.transereveremos  alfçuns  ou- 
tros. Os  que  vfto  ler-8e,appareceram  no  jornal  illustrado  d'esta 
capital  A  Vtda  F/iMnt»^^.accompanliando  um  excellente  dese- 
nho do  monumento,  em  que  ró  ha  uma  inexactidão:  a  de  iigu- 
rmr  armas  reaes  no  logar  onde  estfto  lyras.  Também  depois  se 
mandou  colocar  emtòrno  do  monumento  uma  elegante  gradaria 
de  ferro,  octógona,  elevando-se,  dos  8  ângulos,  columnas,  4  das 
quaes  sustentam  grandes  candelabros,  e  i  alternadamente  lyras. 
— O  2.0  artigo  saiu  nR  Gazeta  ie  SetvbaL 


*i  XVIII 

leuse ;  podia  pois  descançar  repousado  da  sua  obra» 
^ue  formosa  e  imperecedora  lhe  sairá  ella.  Mas  no 
mauusear  e  estudar  profundamente  o  nosso  poeta,  mai- 
ores motivos  de  admiração  se  lhe  foram  deparando, 
mais  elevado  grau  de  intensidade  ganhou  o  seo  enthu- 

siasmo. 

Bocage,  que  fora  «  uma  dobadoura  de  bons  dictos, 
girândola  de  epigrammas,  azenha  de  graças,  mâchina 
de  repentes  »  é  para  elle  ( e  para  quantos  prezam  as 
lettras  )  «  o  grRo  fidalgo  do  idioma,  o 'príncipe  do  im- 
proviso, o  Anacreonte  à^  lyrica,  o  Petrarca  do  soneto, 
o  Rerabrandt  do  ciúme,  o  Koh-i-noar  da  meti^íficaçâo 
portugue7-a.  » 

Doesta  convicção  lhe  nasceu  a  idéa  de  que,  para  hon- 
Tar  a  memória  de  homem  tal,  só  uma  estátua  erecta  em 
praça  pública  seria  padrão  bastante  e  condigno  de  seo 
grande  renome.  Formular  esta  idéa  e  tractar  de  a  pôr 
em  execução  foram  actos  simultâneos. 

Era  no  anno  de  1865,  poucos  dias  antes  do  centésimo 
anniversário  do  harmonioso  bardo.  Occorreu-lhe  logo 
o  pensamento  de  approveitara  feliz  coincidência,  solem- 
nisando  com  um  jubilêo  litterário,  celebrado  segundo 
o  moderno  rito  poético,  aquella  data  memorável. 

A  15  de  septembro,  por  convite  e  a  esforços  de 
S.  Ex.,  uma  luzida  sociedade  se  congregava  nos  saloes 
do  Club  Fluminense,  e,  em  meio  dos  esplendores  da 
festa,  o  projecto  de  se  erigir  a  Bocage  memória  perdu- 
rável foi  accolhido  com  unanime  acquieseencia. 

Nomeada  uma  numerosa  comraissao  central,  com- 
posta de  influentes  e  distinctos  cavalheiros,  brazileiros 
e  portuguezes,  em  breve  começaram  os  trabal  losese 
iniciou  a  subscripçao. 

A  esse  tempo,  oorém,  surge  a  guerra  do  Paraguay. 
e  deu  isto  causa  a  que  a  subscripçao  tivesst»  êxito  muito 
limitado,  n5o  obstantes  grandes  diligencias  e  constante 
trabalho  da  parte  do  Sr.  Castilho,  presidente  da  oom- 
missão.  Sabidos  thv^^astre.s  coinráerciae.^  vieram  desfal- 
car, quasi  na  totalidade,  a  coilocta  já  de  .si  minguada  ; 
e  n'esta  situação  desanimadora  ninguém  cria  ainda  na 
possibilidade  de  se  edificar  o  planejado  monumtMito. 

Nao  esmoreceu,  comtuHo,  S.  Ex.,  e  comptava  sempre 
realizar  a  sua  concepção,  embora  sosinho  e  desajudado 
se  viesse  a  achar.  Em  sua  ultima  viagem  a  PortugaU 
mais  vivo  se  lhe  reaccendeu  o  seo  generoso  intuito,  e 
tomou  então  uma  resolução  extrema,  ideando  um  plano 


■  K 


XVílI  13 

simples  e  elegante,  coatractoii  com  o  Sr.  Germano  José 
de  Salle^,  hábil  director  de  uma  importante  officina 
de  esculptura  em  Lisboa,  a  feitura  da  obra,  e  imme* 
diatamente  se  principiaram  os  trabalhos,  debaixo  de 
sua  exclusiva  responsabilidade,  correndo  risco  nâo- 
menor  que  o  de  nao  ser  approvada  a  sua  deliberação, 
e  ter  conseguintemente  de  pagar  de  seo  bolsinho  toda 
a  importância  de  t&o  dispendiosa  fábrica. 

A  commissao  central,  reunida  a  db  de  junho  próximo- 
passado,  approvou,  porém,  plenamente  a  nobre  decisão» 
de  S.  Ex.,  e  resolveu  ratear  entre  os  seos  membros  as 
despesas  da  constr  ucçao,  que  devem  exceder  conside- 
ravelmente o  pouco  que  ha  apurado  da  antiga  subs- 
cripcao.  Honra  lhes  seja  por  tao  assignalada  munifi- 
cência ! 

O  desenho  com  que  hoje  brindamos  aos  nossos  as- 
signantei?  é  cópia  fiel  do  do  esculptor.  (  Supprimimos 
aqui  a  descripção  do  monumento^  por  jd  ter  sido  lida  no 
Relaíório) . 

Tal  será  o  monumento  do  grande  satyrico,  do  espi- 
ritiiosQ  epigriímmatista,  do  bucólico  virgiliano,  do  mi- 
moso elegíaco,  do  arrojado,  do  suavíssimo  Bocage,  que 
dos  ceos  houve 

o  solemne  idioma,  o  tom  dos  numes, 
a  voz  que  longe  vai,  que  longe  sobe, 
que  sôa  além  do  mundo,  além  dos  t3mpos. 

Louvores  a  quantos  cooperarem  para  o  resgate  d'esta 
divida  de  reconhecimento  a  um  esplêndido  ingenho, 
e  nomeadamente  ao  Sr.  conselheiro  José  Feliciano  de 
Castilho,  iniciador  da  idéa,  e  seo  zeloso  e  infatigável 
promotor. 

¥.  O. 


IVotlolax^io 

Lô-se  no  Jornal  de  Setúbal^  de  24  de  março  de  1867y 
o  seguinte  : 

Chegada. — Dommgo  pelas  4  horas  e  meia  da  tarde, 
chegou  a  esta  cidade  o  Exm.  Sr.  José  Feliciano  à& 
Caijiilho  Barreto  e  Noronha. 

S.  Ex.  veiu  só.  O  Sr.  António  Feliciano  de  Castilho 
ainda  chegou  ao  cae.s  dos  vapores  para  embarcar  para 
Setiibal,  mas  viu-se  obrigado  a  retirar,  em  razilo  do 
tempo  estar  muito  mào. 


U  XVIII 

Suas  Excelleacias  tinham  mandado  dizer  era  uma 
carta  qu^^  só  viriam,  caso  o  tempo  estivesse  inteira- 
mente seg-uro,  e  por  isso  a  commissao  incarrefarada  da 
recepção  d*aquelles  cavalheiros,  os  nao  esperava  em 
tal  dia. 

Logo  que,  por  uma  participação  telegráphica,  se 
soube  que  S.  Ex.  havia  chegado  á  estação  do  Barreiro, 
reunira m-se  o  presidente  e  alguns  membros  da  com- 
missao, que  o  acaso  fez  encontrar,  pois  estavam  já 
dissuadidos  da  chegada  dos  illustres  hóspedes,  e  parti- 
ram para  a  estação  do  es  minho  de  ferro. 

Ali  poude  aind&  chegar,  ao  tempo  que  chegou  a 
parte  da  commissao,  uma  deputação  da  camará  mu- 
nicipal. 

Feitos  que  foram  na  estação  os  devidos  cumpri- 
mentos ao  distincto  visitante  por  parte  dos  dignos  pre- 
sidentes da  camará  municipal  e  da  commissao,  dirigi- 
ram-se  todos  a  visitar  as  praças  da  cidade,  afim  de  se 
vor  qual  a  queS.Ex.  julgava  mais  appropriada  para  a 
■erecção  do  monumento  ao  nosso  illustre  conterrâneo  o 
famoso  poeta  Bocage,  para  o  qual  S.  Ex.  tem  solicitado 
e  obtido  já  importantes  donativos. 

S.  Ex.  nao  se  pronunciou  definitivamente  pela  es- 
colha do  local,  e  pareceu  ficar  indeciso  entre  a  linda 
praia,  ao  lado  poente  do  cães,  e  a  praça  principal  da 
cidade,  jà  denominada  de  Bocage. 

Concluida  a  visita  aos  locaes  que  poderiam  prestar-se 
á  coUocaçao  do  monumento,  dirigiu-se  S.  Ex.  com  as 
pessoas  que  o  accompanhavam  aos  paços  do  conselho, 
onde  antecipadamente  havia  manifestado  desejo  de 
<?onferenciar  com  as  pessoas  competentes  sobre  o  as- 
sumpto que  era  motivo  da  sua  vinda  à  terra  do  grande 
Elmano. 

S.  Ex.,  recusando  oocupar  o  logar  principal  que 
lhe  fora  oflTerecido  pelo  Sr.  presidente  da  camará, 
sentou-se  ao  lado  d'e.:te,e  tomando  a  palavra,  expôz  em 
claro  e  conceituoso  discurso  os  trabalhos  preparatórios, 
qu3  tinha  levado  a  effeito  para  o  monumento  a  Bocage, 
e  o  fim  que  tinha  em  vista  na  realisaçíio  e  forma  d*e.sse 
monumento,  declarando  ser  a  iniciativa  do  monu- 
mento do  seo  Exm.  irmão,  o  Sr.  António  Feliciano  de 
Castilho. 

Seguiu-se-lhe  no  uso  da  palavra  o  Sr.  Presidente  da 
camará,  felicitando  os  habitantes  de  Setúbal  pela  hon- 


XVllí  15 

ro.>a  visita  quo  acabavam  de  receber,  e  agradecendo 
4ios  Srs.  Castilhos,  em  nome  dos  Setubalenses,  o  lou- 
vável e  assidiio  empenho  que  tomaram  para  se  pagar 
nm  tributo  devido  &  memória  de  um  tao  illustre  setu- 
balense. 

S.  Ex..  em  coritinuaçílo  expôz  o  estado  de  obscu- 
rantismo doesta  terra  e  a  grande  necessidade  de  ins- 
truir o  pivo,  e  n'e3te  intuito  submetteu  &  appreciaçao 
<lo  Sr.  Castilho  a  idéa  de  um  monumento  eschóla- 
hnvIo^  com  o  titulo— Bocage,  e  com  distinctivos  que 
dice.^sera  /espeito  ao  poeta,  a  fira  de  que  assim  o  mo- 
numento pMJectado  reunisse  duas  qualidades  úteis. 

Dis^ur^iu  em  seguida,  no  mesmo  sentido,  o  Sr. 
presidente  d\  conmi^^ao,  dpm:)iistrando  a  dupla  utili- 
dade do  monumento  e-^chòla-a-iylo. 

Respondeu  ao^  dou^  oradores  o  Sr.  Castilho,  di- 
z,^iido  que  eUava  em  tudo  disposto  a  empenhar-se  na 
realisaçío  do  monumento, qualquer  que  fô-ise  a  respeito 
d'elle  a  vontade  dos  setubalenses.  Notou  comtudo 
r|ae  vil  diffi^uldal?^  attvíiidiveis  e:n  se  alterar  o  pen- 
sam ^uto  que  tinha  .-esivido  de  bio  á  offerta  de  quan- 
*iín<  já  obtida-j  para  o  monumento,  difficuldades  que 
íli'/5ia  par^»c*r-lh?  tornariam  ra3no>  importante  o  resul- 
tado da  subícripçl,o  que  ainda  tencionava  abrir  em 
Portugal  para  o  fim  indicado. 

Djpois  de  alga  na  disca -«si  o  sobre  a  natureza  do 
iu>  uni?:i^o,  o  Sr.  pi^endent^  da  cimira  repetiu  o  que 
JH  havia  dito,  que  uio  punha  a  sua  propo=?ta  &  votação, 
II  •ni  ra^sm)  p^día  discussão  sobre  ella,  e  que  só  a 
siibmettia  k  appreciaçao  de  S.  Ex. 

C)  Sr.  Castilho  deiniii-it.^ou  ainda,  se  banque  em 
•]4hriis:í  em  qu3  revelava  a  sua  extrema  delicadeza,  e  a 
i?fc»rencia  ((ue  se  dignava  ter  com  a  as^embléii,  que  a 
-iUi  opinilo  divi^rgía  d:\  qu^  tinhisido  aventada  em 
^ui  prjív^íiiçi.  e  manifeUoa  des3Jo  de  ouvir  a  opinião 
íla  as-;embléa. 

Em   seguidri  o  Sr.  pr^^ideiite   d  i  camará  de^biroa, 
«4 II'*    unicamsnte   para  anceder  á>  instanciai  que  o  Sr. 
Castilho  lhe  estava  fa/.endo,  iaconverter  em  proposta 
tf    idi*»a    4ue   tinha  appresentado   a   respeito  do  monu- 
mento e  pol-a  â  votação. 

O  Sr.  Castilho  tinha  padido  aquella  votação  para 
«•«onhecer  até  que  poncto  a  assembléa  se  manifestava 
à^r^rcfi  de  uma  ou  outra  formado  monumento;  desistiu, 
p-or-m.  d'<41a  logo  <[ue  alguns  cavalheiros  propozeram 


16  xvm 

que  se  transferisse  para  outra  reunião  da  assembléa  e 
que  se  dessem  os  trabalhos  d'aquella  sessão  por 
concluídos. 

?soineou-8e  em  seguida  uma  commissao  para  couti- 
nuar  os  trabalhos  precisos  n'esta  cidade  relativamente 
ao  monumento,  ficando  presidente  e  vice-presidente 
d'ella  os  Eims.  Srs.  António  Feliciano  de  Castilho  e 
José  Feliciano  de  Castilho,  e  terminou  a  sessão. 

Saindo  dos  paços  do  conselho  ,  foi  S.  Ex.  acompa- 
nhado pelos  Srs.  presidente  da  camará,  da  commissfio 
e  por  n;uitos  membros  d'esta  até  a  casa  que  estaVa  des- 
tinada para  seo  aposento.  Alli  se  serviu  ao  illustre 
hóspede  um  jantar  em  que  tomaram  parte  o  Sr.  presi- 
dente da  camará  e  a  direcção  da  commissao,  e  ao  qual 
assistiram,  por  deferência  ao  Sr.  Castilho,  mais  tres^ 
membros  da  mesma  commissao. 

Fizeram-se  recíprocos  e  aflFectuosos  brindes,  nao  es- 
quecendo o  nome  do  primeiro  poeta  portuguez  da  actu- 
alidade, incansável  apóstolo  da  instrucçao  e  iniciador 
do  monumento  a  Bocage,  o  S.  António  Feliciano  de 
Castilho. 

Durante  o  jantar,  a  conversação  correu  animada:  e  o 
Sr.  José  Feliciano  de  Castilho  mostrou  grande  e  admi- 
rável profundeza  de  conhecimentos  sobre  variados  as- 
sumpto.s,e  deu  as  maiores  provas  do  quanto  lhe  é  fácil  a 
palavra  e  cheia  de  hentenciosos  conceitos,  o  que  jà^ 
tinha  sido  objecto  da  admiraçat)  da  assembléa  que  o 
tinha  escutado  nos  paços  do  concelho. 

Terminado  o  jantar,  o  Sr.  Castilho  leu  uma  excel- 
lente  biographia  de  Bocage,  de  que  è  auctor,  a  qual 
está  escripta  com  mâo  de  mestre.  Depois  da  leitura  tra- 
vou-se  uma  brilhante  conversação  entre  o  Sr.  Castilho 
e  o  talentoso  mancebo  o  Sr.  br.  José  Braz,  que  teve 
presas  as  attenções  dos  circumstantes,  e  onde  appare- 
ceram  de  parte  a  parte  luminosos  raciocínios,  imagens 
cheiíis  de  belleza,  animadas  de  vivíssima  inspiração. 

O  Sr.  Castilho  mostrou  desejos  de  ver  alguns  dos  ob- 
jectos descobertos  han  excavações  de  Cetóbriga,e  apenas 
um  dos  membros  da  commissao  ponde  offerecer  a  S.  Ex. 
algumas  moedas  de  cobre  aili  encontradas. 

S.  Ex.  partiu  no  primeiro  comboyo  de  segunda-feira^ 
sendo  accompanhado  á  estação  pelo  presidente  e  mais 
alguns  membros  da*  commissao. 

Typ.  e  Lith.— IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Bcti^mbro,  146. 


QUESTÕES  DO  DIA 

N.  19 

RIO  DE  JANEIRO  4  DE  NOVEMBRO  DK  1871. 


V«ide*se  Mn  casa  dos  Srs.  E.  &  H.  Laemmert.—  Praça  da  Gonstítuiçio, 
Loja  do  canto.-*-Uvraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119-^  UiigQ.do 
I^ço  D.  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  tareco  200  reis. 


m  ^ 


Deolma  ciulnta  oai*ta 

DO  ROCEIRO  CINCINN ATO  AO  CIDADÃO  FABRÍCIO 

Rio,  15  de  Octubro  de  1871. 

Bom  Fabrício. 

Acabo  de  te  escrever  sobre  assumpto  bem  fatilj  e 
nfto  resisto  á  teataç&o  de  vir  novamente  praticar  com- 
tigo,  sobre  cousas  sérias,  ao  toque  do  AragSlo,  depois 
de  ter  lido  uma  notável  memória  sobre  a  Prússia  após 
a  emancipaç&o  dos  servos,  cheia  de  considerações  e 
factos,  merecedores  da  mais  attenta  reflex&o.  Tumul- 
tuam-me  na  mente  idéas  associadas,  e  vou  submetter-te 
o  fructo  do  meo  estudo  e  das  minhas  impressões.  Ponc- 
tos  ha  de  paridade  entre  os  impérios  asiático-européo  e 
americano,  no  tocante  &  grave  questfto  social  que  acaba 
de  ser  agitada;   e  para  o  nosso  dia  de  amanha  bem 

£óde  ser  matéria  de  ensino  aquelPoutro  alheio  dia  de 
ontem. 

Quem  consulta  um  mappa-muadi,  e  vê  o  enorme 
coUosso  brazileiro  occupar  na  terra  espaço  egual  ao 
de  quasi  toda  a  Europa;  quem  observa  os  rios-mares 
que  o  abraçam,  e  as  caudalosas  torrentes  que  o  vSLo 
pautando  de  grau  em  grau  do  parallelo;  quem  examina 
auás  regiões  diversíssimas,  e  a  omnimoda  variedade  e 
uberdade  do  seo  solo;  quem  hesita  em  qual  dos  três 
raínos  a  natureza  foi  aqui  mais  pródiga;  quem  reco- 
nhece na  raça  dominante  os  characteristicos  de  uma 
vitalidade  possante; — espantasse  de  que  este  abençoado 
clifto  esteja  ainda  despovoado,  e  de  que  a  civilisaç&o 
afio  haja  ainda  operado  todos  os  seos  usuaes  mi- 
lagres. 


2  XIX 

Também  a  Rússia  é  immeasa.  Para  o  norte,  estea- 
deu-se  até  o  impossível  ;  diríeis  que  em  seos  braços 
gigantêos  quer  abarcar  o  polo.  A  leste,  separara-n'ada 
Ásia  uma  cordilheira  immensa  e  nm  rio  magnífico,  fi- 
cando-lhe  um  paiz  maior  que  meia  Europa.  Ao  sul, 
zombou  das  barreiras,  cavalgou  o  Cáucaso,  e  se  nSo 
fòsse  a  guerra  da  Crimea,  houvera  convertido  o  mar 
negro  n'um  lago  russo.  Para  o  lado  de  oeste,  é  perma- 
nente amiaça  :  Finlan-lia,  provincias  allemans  do  Bál- 
tico, Lithuânia,  Polónia,  attestam  a  sua  insaciabili- 
dade.  Se  nao  fora  a  guerra,  e  a  derrota  da  Moscóvia» 
talvez  ella  hoie  se  estendesse  até  o  Báltico  e  o  Medi- 
terrâneo. Mas  a  sua  derrota  valeu-lhe  mais  que  uma 
victória,  o  que  nao  é  raro  na  história  dos  povos,  a 
quem  a  Providencia  liberaliza  ás  vezes  estas  com- 
pensações. 

O  Brazil  e  a  Rússia  tiveram  de  sustentar  guerras  me- 
donhas. Se  aquelle  nao  viu  ante  si  tao  vastas  mós  de 
homens,  tao  possantes  intelligencias,  tao  collossaes  re- 
cursos béllicos,  tao  poderosas  allianças,  também  esta 
nao  teve  que  superar  eguaes  difficuldades  topográphi- 
cas,  que  batalhar  contra  mais  dedicndas  hostes,  que 
erguer  da  terra  instantaneamente  como  Pompêo  ba- 
tendo com  o  pé  exércitos  aguerridos,  que  vencer  mais 
variados  e  perigosos  obstáculos. 

Ambos  os  Impérios  cumpriam  nobremente  o  que  era 
seo  triste  dever,  desde  que  desembainhavam  as  valenta> 
espadas.  A  Rússia  foi  gloriosamente  infeliz.  O  pendão 
auriverde,  coroou-o  o  louro  da  victória.  Foi  sorte  das 
armas,  que  em  nenhuma  das  bandeiras  deixou   labéo. 

Mas  ambas  as  grandes  nações,  ao  retirarem-se  dos 
campos   da  batalha,    meditaram  sobre  os  successos  em 

3ue  acabavam  de  figurar.  Remontaram  ás  causas,  alli 
a  sua  fraqueza  relativa,  aqui  da  necessidade  de  esforço 
desproporcionado  ao  êxito,  e  ambas  comprehenderam 
que  nem  só  o  número  constitue  os  elementos  da  força. 
Ambas,  em  occasiao  análoga,  ambas  logo  após  a 
cruenta  lucta,  passaram  em  revista  todas  as  suas  ins- 
tituições fundamentaes,  e  resolveram  modifical-as, 
quanto  o  temperamento  da  naçfto  o  permittisse. 

Vejamos  primeiro  o  que  se  passou  no  Império  de 
alem-mar;  mais  ao  porvir  que  ao  presente  caberá  com- 
parar consequências  que  das  sementes,  ora  lançadas 
á  terra,  ainda  aqui  nao  podem  germinar. 


XIX  3 

Das  ruínas  de  Sebastópoli  sjurgiu  a  Rússia  livre. 
Uma  intelligencia  superior  e  uma  vontade  firme  fize- 
ram de  uma  catástroplie  brotar  a  regeneração  de  um 
povo. 

A  servidão  na  Rússia,  com  as  suas  mil  gradações, 
differia  essencialmente,  no  seo  principio,  da  servidão 
do  occidente,  mas  pouquíssimo  no  seo  character  e  nos 
seos  effeitos.  Os  servos  constituiam  em  grande  parte 
a  ciasse  dos  camponezes,  e  esta  instituição  foi  ^Ui 
creada  em  tempos  não  remotos.  Quando  Ivan,  o  Ter- 
rível, anniquilou  em  1554  o  poder  dos  Tártaros,  achou 
tudo  por  fazer:  planícies  immensàs  devastadas,  campos 
incultos,  aldeias  destruídas;  nem  estradas,  nem  segu- 
rança ;  mendigos  e  vagabundos  aos  milheiros.  Era 
mister  chamar  o  cultivador  ás  terras  ;  fixal-o  ao  solo. 
Para  isso,  a  corte  de  Moscou  usou,  ora  da  persuasão, 
ora  da  violência,  e  acabou  por  crear  a  classe  dos  kre- 
postnoij  servos  addictos  d  gleba.  Pareceu  resolvido  assim 
o  complicado  problema;  o  camponez  lucrava  com  o  solo 
regado  pelo  seo  suor;  mas  por  maisque  se  unctassede 
mel  a  borda  do  vaso,  era  a  escravidão. 

O  servo  pagava  os  impostos,  servia  em  tempo  de 
guerra;  mas  era  inhibido  de  deixar  a  sua  terra,  de  tro- 
cal-a  por  outra,  ou  de  sair  de  uma  aldeia  para  se  ir 
estabelecer  em  outra  diversa.  Nomearam-se  inspecto- 
res para  vigiarem  os  camponezes,  obrigal-os  a  ferti- 
lizar o  terreno;  estes  voivodes  traziam  como  distinctivo 
de  auctoridade  o  bastão,  que  symbolizava  o  direito  de 
serem  obedecidos.  O  bastão  caía  duro  nas  costas  do 
camponez,  quando  este  negligenciava  as  colheitas  ou 
as  cabanas,  ou  nílo  pagava  regularmente  o  tributo, 
A'  força  de  bater  no  servo,  o  inspector  considerava-se 
senhor  d'elle,  e  se  o  nao  podia  converter  em  cousa, 
▼endél-o  ou  compral-o,  exigia  d'elle  serviços  forçados, 
e  eis  como,  pouco  a  pouco,  o  inspector  veiu  realmente 
a  tornar-se  senhor  absoluto  do  servo,  que  com  dor  se 
resignava,  dizendo  :  «  Deus  está  muito  alto  e  o  tzar 
muito  longe.  »  Afinal  ^^e  contas,  transviada  a  insti- 
tuição, passou  o  servo  a  ficar  cousa,  escravo  :  batiam- 
lhe,  esfaimavam-n'o,  transportavam-n'o,  vendiam-n'o 
até,  a  despeito  das  leis  que  o  escudavam  contra  este 
ixkàximo  ultrage. 

Pedro  I  prohibiu  a  venda  dos  servos  nas  terras  que 
ellcs  cultivassem  ;  mais  tarde  Paulo  I  decretou  que  os 


4  -XIX 

^eúhores  nfto  podessem  exigir  á^elles  tnais  c^ue  os  ser- 
vi èos^  de' três  dias  por  semaha;  Alexandre  I  Cfeou  uma 
classe 'de  camponezes  livYes  ;  mas  tudo  isso  etam  in- 
sigfnificantes  pailiativos. 

O  actttal    Imperador,   legatário,  não  invicto  mas 

invito,  da  g^uerra  com  o  Occídente,  acabou  còm  ella, 

mais  cedo  que  o  precisava,  para,  liberto  das  preoccupa- 

çoíbs  exteriores,    se    consagrar  todo  ao    interior.  As 

^perdas  xjue   lamentUVa  (mínimas  para  quem  ficava 

•soberano  de  70  milhões  de  súbditos)  iam  ser  mais  que 

Compensadas  coma  renasctmça  nacibnal.  A  servidão 

enerva,  adormece,  debilita,  despoja  o  homem  de  suas 

' melhores  qualidades;  e  Alexandre  achava-se  em'  fá(5e 

'^de  um  povo  ignorante  e  rebaixado  (Sabiam  ler  um 

em  10,  escrever  um  em  50). 

Começaram  então  as  grandes  refortíias,  taes  como  a 
buppressao  do  militarismo  do  corpo  docente  e  'das 
universidades  ;  o  inelhorámento  da  instrticçâo  publica ; 
a  amnistia  aos  polacos;  a  simplificação  do  recrutamento 
e  do  inlpbsto  ;  òperdao  de  innumferaveis  condemnados; 
o  systema  de  estradas,  communicações,  e  fefro-vias, 
etc,  até  que  o  grande  reformador  chegou  à  magna 
questão  do  Império,  para  atacal-a  de  rrente. 

Com  o  augmento  da  classe  fidalga,  era  innumeravel 
a  quantidade  dcs  poderosos  senhores  de  servos.  Dav^a- 
se  enorme  desproporção  entre  o  número  dos  habitantes 
ou  antes  dos  trabalhadores,  e  a  extens&o  das  terras,  hk 
também  se  dizia,  como  aqui,  que,  com  o  regimen  da 
liberdade,  a  agricultura  perderia  os  braços,  6  pai2  a 
prosperidade. 

Deixo  a  narração  dos  trabalhos  a  que  a  illustrada  e 
firme  vontade  do  Imperador  Alexandre  presidiu,  e 
limito-me  a  dizer  que  a  Rússia  teve  também  o  «eo 
grande  primeiro  de  março ^  poisai  março  1861  foi 
promulgada  a  lei,  destructora  dos  derradeiros  vestigios 
do  dominio  t&rtaro,  e  que,  libertando  o  camponez,  Ike 
dava  a  sua  casa  e  o  seo  campo,  comprados  por  elle,  e 
abrindo-lhe  para  isso  o  governo  um  crédito  (Em  ja- 
neiro  '  1S69,  mais  de  metade  dos  servos  emancipados  se 
tinham  servido  d'este  crédito,  e  haviam  contrahido 
uma  divida  enorme  para  com  a  coroa.) 

Comprehendia  a  raça  liberta  22  milhOes  de  sereos 
ordinários,  3  milhOes  de  camponezes  dos  apanágios, 
e  23  milhões  de  camponezes  da  coroa.  Estas  duas 
classes  deram    logar  a  alguns    artigos   addicionaes. 


XPÍ  5, 

Be]]ireaeni^ya  isto  mais  de  dous  terços  da  pp vo^o  da , 
Rúsisia,  e  era  justo  e  prudente  proporcionar-lhes  subsis^ 
teAcia.d^sim  como  conxbater.p^a  puis^  da  pgopri^^4f » 
a. tondmcia,  nómada  do  Russo,  o  que  induziu  a  limitaj: 
com  certas  re^tricções  o  exercício  da  liberdade. 
Sao  9  os  artigos  que  a  regulam:  1.°  O.  camponez, 

3ue  deixa  a  sua  aldeia  perde  o  lote  de  terra  que  a^ocie^ 
ade  Ibe  deu  ;  2.°  Se  a  sociedade  recusa  acceitar  o  tal 
campo,  pertence  ao  senhor ;  3/  Hade  ter  satisfeito  ás 
leis  do  recrutamento  ;  4.°  Hade  ter  pago  todos  os  im- 
postos, até  o  do  anno  inceptado  ;  5.°  Hade  provar  á 
administração  do  cantão  que  preencheu  todas  suas  obri- 
gações ,  6".  E'  preciso  nao  haver  contra  elle  processo 
algum  ;  7°.  Hade  fazer  face  primeiro  ás  precisões  de 
todas  as  pessoas  de  família  que  deixar;  8^  Hade  ter 
pago  todos  os  atrazados  devidos  ao  senhor,  pejla  terra 
que  lhe  foi  concedida.  9".  Tem  finalmente  que  exhibir 
certificado  das  auctoridades  da  localidade  onde  se  quer 
fixar,  em  como  alli  adquiriu  um  lote  de  terras,  a  me- 
nos de  11  milhas  da  aldeia,  e  mais  que  duplo  do  que 
possuia. 

Como  todas  as  reformas  que  mudam  radicalmente 
a  face  de  uma  sociedade,  o  acto  da  emancipação  foi 
por  muitos  accolhido  com  desconfiança.  Aos  sei^vos 
dd-se  de  mais^  diziam  os  senhores.  De  mais  conservam, 
os  seyihores^  diziam  os  servos.  Mas  apezar  de  certo 
abalo  momentâneo,  restabeleceií-se  sem  detença  a  tran- 
quillidade,  e  para  logo  se  sentiram  os  salutares  eflFeitos 
da  liberdade,  nao  obstantes  as  sombrias  predicções  dos 
adoradores  do  oassado.  O  estrangeiro  que  percorre 
aquelles  campos  nota  que  os  camponezes  andam  mais 
hera  vestidos,  nutridos  e  accommodados;  vivem  vida 
mais  conchegada  e  com  certo  conforto  ;  as  mulheres 
cuidara  melhor  de  si  e  dos  filhos.  A  casa  do  trabalha- 
ílor  mudou  de  aspecto;  já  não  é  a  senzala  do  escravo,  é 
a  habitação  de  um  homem  livre. 

Com  quanto  a  iustittuição  derrocada  revista  entre  nós 
a*^SHz  diversa  natureza,  ponctos  ha  de  contacto,  que 
merecem  exame,  nas  paridades  e  nos  effeitos. 

;\  obra  de  Wil.  Hepworth  Dixon,  em  2  volumes, 
ÍM)pri»í>sa  em  Londres,  sob  o  titulo  Free  Rússia^  e  a  Me- 
'iiória  do  pastor  genebrez  Cailliate,  sobre  o  Estado  so- 
riaidn  Rússia,  merecem  a  tua  attençao,e  a  de  quanto?? 
^p  interessam  pelo  importante  problema  com  que  o 
Bra/.il  arca  n'este  momento.  Mais  uma  vez  proseguirei 


6  XIX 

n'este  assuiiipto,  em  dia  próximo,  se  o  nao  considerares 
pesado  em  demasia. 

E'  tarde;  ponho  poncto  agora  n'isto.  Amanha,se  Deus 
me  der  vida  e  saúde,  projecto  continuar  a  entreter-me 
com  o  Senio,  transformado  em  PalesíreirOy  e  servmdo-se 
de  um  pobre  testa  de  ferro,  que  assigna,  e  realmente 
tem  jus  de  assignar-se,  V. 

Recebe  um  estreito  abraço  do 

tf 

Teo  amigo 

ClNCINNATO. 


Terceira  oax*ta 

DO  ROCEIRO  ClNCINNATO  A  SEMPRÒNIO 

Rio  de  Janeiro,  18  de  octubro  de  1871. 

Querido  amigo. 

Forçaram-me  a  trocaras  politicas  pelas  litteratura». 
Em  qualquer  d'esses  campos,  sou  eu  um  curioso  muito 
inválido,  mas  emíim  tudo  serve  :  quem  nao  pode 
brandir  clava,  descarrega  piparote,  e  as  minhas  aspi- 
rações nao  sobem  a  mais.  As  infallibilidades  sao  }»ara 
os  Papas  das  lettras,  Senios^  V,  &-  6'".;  eu,  na  egreja  do 
aoc,  apenas  invergo  a  opa  de  sacristão.  Olho  para  os 
livros,  como  boi  para  palácio. 

Náo  tenho  mSos  a  medir.  O  Sr.  V.,  faz-me  andar 
n'uma  dobadoura.  Ahi  me  trazem  hoje  4*.  PaJeístra, 
como  as  precedentes  elegante,  delicada,  respeitosa, 
intelligente,  inatacável  e  irrespondivel.  Eu  bem  me 
vejo  em  talas,  bem  me  sinto  esmagado,  e  merecedor  de 
tremenda  vaia,  por  me  nao  curvar  silencioso  ante  elo- 
quência tamanha  ;  mas  que  queres  ?  sou  um  iusuppor- 
tavel  tagarella,  que  mesmo  sem  sombra  de  razão  heide 
estar  sempre  bacharelando !  Ora  isto,  após  tao  repe- 
tidas qualificações  da  minha  inópia,  e  tantas  amiaças 
do  olhudo  instrumento  de  Tolentino,  em  tao  apertado 
lance,  ultrapassa  as  raias  da  imprudência.  Mas  é  que 
eu  também  nao  me  sublevo  contra  os  firmans  de  quem 
ludo  pôde  ;  não  tenho  voz  activa  nem  passiva;  recebo 
com  seráphica  humildade  as  descomposturas  civiliza- 
doras; e, apenas  rosnando  por  entre  os  dentes,  subraetto 
aos  illustres  infalliveis  a  continuação  das  rainhas 
muito  rendidas  e  submissas  dúvidas,  protestando  con- 


XIX  7 

formar-me,  afinal  de  contas,  com  o  que  for  decretado 
pelos  muito  altos  e  poderosos  Srs.  Senio,  A.  de  V.  &  C*. 
E  ainda  mais,  elevo  súpplices  vozes  ao  céo,  para  que 
isto,  em  mim,  nao  sejam  rompantes  de  leão.  paradas 
de  sendeiro.  Dêmos  tempo  ao  tempo. 

Continuarei  pois  a  transcrever  fidelissimamente  as 
ponderosas  reflexões  das  Palestras^  sem  saltar  uma 
única,  nem  lhe  attenuar  no  mínimo  a  enerofia  da  argur- 
mentaçao,  reiterando  somente  o  pedido  de  licença  para 
eliminar  as  palavras  e  phrases  acerbas,  jíi  poroue 
aprendi  que  as  injúrias  sao  as  razões  de  quem  as  nao 
têm,  já  porque  emfim  reconheço  com  todo  o  acata- 
mento que  ellasme  pungiram  no  âmago  das  intranhas. 
'  Quem  castiga  com  raiva  não  castiga,  vinga-se  ]. 
Vamos  levando  esta  cruz  ao  calvário. 

§  2  A  abundância  estéril  de  Bermh. 

Diz  o  meo  preclaro  mestre,  para  me  abaixar  a 
grimpa  : 

«  A  propósito  de  abundância  estéril,  fala  em  Fran- 
gi cisco  I  !  cita  como  grande  auctoridade  litterária  um 
w  rei  ignorante.  Para  apoiar  as  sandices  de  um  Cin- 
«  cinnato  e  roceiro,  só  um  litterato  como  Francisco  I. 
ti  Racine  tinha  mais  gosto  litterário  em  uma  unha  do 
«  pé  í  ou  diable  le  goút  liLierawe  va-t-il  se  nicherl )  do 
"  que  Francisco  I  em  toda  sua  real  pessoa.  » 

Anda  lá,  Francisco  I,  leva  para  o  teo  tabaco  !  Im- 
porta pouco  teres  tu  sido  admirador  d'Erasmo;  estava- 
te  destinada,  no  fim  de  três  séculos  e  meio,  segunda 
Pavia;  e  abella  Ferronière  naofa  pregou  mais....  na 
menina  do  olho,  do  que  este  severo  Senio. 

Está  muito  bem,  sim  senhor,  nunca  as  mãos  lhe 
doam  ;  mas,  oh  tu,  Senio,  typo  de  lealdade,  a  que  pro- 
pósito trazes  para  a  dansa  o  pobre  poeta  da  Donna  è 
mobile  ?  Diz  tíenio,  ou  o  seo  porta-voz  V .  que  «  a  pro- 
pósiío  de  abundância  estéril,  eu  citei  Francisco  I,  »  Com 
a  devida  vénia,  represento  a  V.  Ex.  que  nao  citei  tal; 
que  esta  citação  é  de  V.  Ex.,  illuminado  discípulo  de 
D.  Quichote,  que  desbaratava  moinhos. 

O  que  eu  dice,  depois  ^e  me  queixar  da  diffusao  da 
loquacidade,  e  da  prolixidade  do  palavrório  dos  7  mo- 
vimentos das  ondas  pacatas,  foi  o  seguinte,  ipsis  verbis 
'  Vid.  Questões^  n.  9  )  ;  «  Nao  era  a  isto  que  Frede- 
rico II  chamava  a  dibundancia  estéril  de  Bernis?  »  Esta 


8  XIX> 

minha  pkrase  curta,  è  que  serviu  de  thema  ás  varia- 
ções longas  de  Senio. 

Ora,  se  o  illustre  Senio  dá  licença,  Frederico  lí  è, 
se  nao  me  engano,  personagem  mui  diversa  de  Fran- 
cisco 1 1  Frederico  II,  o  mais  admirável  príncipe  do 
seo  século,  foi  cc^nominado  O  Grande;  cultivou  scien- 
cias  e  lettras  com-  amor  ;  correspondia-se  cbm  os 
sábios  Wolf,  Bollin,  S'Gravesande,  Mcwipertuis,  Al- 
garotti  etc.  Sao  de  sua  régia  penna  as — Memárias  para 
servirem  d  história  da  Casa  de  Brandeburgo — História 
do  meo  tempo — Memórias  sobre  a  guerra  de  seple  annos 
eto.  etc.  Suas  numerosas  poesias  valem,  se  isto  nao  é 
heresia,  um  pouquinho  mais  que  as  quadrinhas  de 
Senio;  e  na  parte  epistolar  que  fígura  na  coUecçao  das 
obras  de  Voltaire,  talvez  que  a  secção  mais  notável 
seja  a  da  correspondência  que  tantos  annos  durou 
entre  estas  duas  testas  coroadas.  Era  tao  superior,  tao 
poeta  d'alma,  que  na  famosa  noite  em  que  se  viu 
cercado  de  quatro  exércitos  inimigos,  Frederico  da 
Prússia,  em  posição  desesperada,  e  já  resolvido  ao  sui- 
cídio, compoz  aquella  admirável  epístola  a  Voltaire, 
que  rematava  com  estes  nobres  veri^os  : 

Pour  moi,  menacé  du  naufrage, 
je  dois,  en  affrontant  Torage, 
penser,  vivre  et  raourir  en  roi  ! 

Ja  me  está  parecendo  que  um  tal  homem,  apesar  de 
rei  (é  precisa  esta  precaução  oratória  do  apesar  de  rei, 
para  amimar  certos  neóphitos,  candidatos  a  republi- 
canos, que  esiao  querendo  dar  arrhas  aos  seos  novos 
correligionários),  nao  era  tao  ignorante  como  isso,  O 
caso  é  que  a  tal  estéril  abundância  foi  fecunda  em  de- 
sastres. Frederico  satyrízava  frequentemente  nos  seos 
versos  as  concubinas  do  rei  de  Franca  e  os  poetas  áu- 
licos  ;  entre  a  Pompadour  e  Bemis  tinha  havido  es- 
treitas relações.  A  Frederico  portanto  caiu  a  sopa  no 
mel,  quando,  entre  outras  facécias,  escreveu  o  verso^ 
de  que,  segundo  parece,  o  Sr.  V.  nao  tinha  notícia: 

Evitez  de  Bernis  la  stérile  abondance. 

Seguiu-se  logo  após, a  guerra  de  7  annos,  que  alguns 
incadearam,  de  consequência  em  causa,áquelles  versos 
satyricos  ;  e  tanto  que  então  viu  a  luz  outra  sátyra 
anónyma,  a  qual  terminava  assim  : 


XiX,  9i 

Six  ceets  mille  hommes  égorgés, 
MoQsiear  l'abbè,  de  grace,est-ce  assez  de  victioies; 
et  les  méprís  d'un  roi  poar  vos  petites  rimes 

Yous  semblent-ils  assez  vengés  ? 

Basta  d'isto. 

Apezar  de  caber  à  defeza  mais  insancbas  que  â  accusa- 
ç2o,receio  que  se  me  assaque  também  abundância  estéril j 
«  por  isso  mudo  de  rumo,  terminando  com  esta  justifi- 
cação :  P.  Nao  citei  Francisco  I  ;  2'.  Citei  Fre^lerico 
O  Grande,  o  historiador,  o  prosador,  o  poeta  ;  3°.  A 
sua  phrase  feliz  estava  predestinada  para  Senio. 

«    E  UM  CHARLÂ.TÃ0  DE  TAL  JAEZ,  METTIDO  A  CRITICo!  » 

Com  estas  palavras,  remata  Senio  a  discussão  doeste 
poncto.  Tenciono  ir  sempre  repetindo  o  significativo 
estrebilho,  nao  com  o  audaz  intuito  de  reciprocal-o, 
porque  eu  nao  perco  as  estribeiras,  mas  para  habilitar 
o  nobre  crítico  a  ir  avaliando  a  propriedade  da  sua 
exclamação.  Corre -jponcierá  esta  phrase  slo  a  Irmãos^ 
tendes  de  morrer  »  dos  Trappistas,  ou  ao  Remernber 
whaí  l  loan  thee  de  Milton,  que  o  Sr.  Alencar  tão  ele- 
gantemente invocou  em  certo  final  de  um  discurso. 
Nao  importa,  nao  importa,  e  deu  com  septe  navios 
á  costa. 

s5  3  Dos  pleonasmos. 

l)efonde-se  Senio,  dizendo  que  elle  nSo  é  o  único,  e 
que  muitos  auctores  têm  também  empregado  pleonas- 
mo<.  Forte  dúvida  !  Pois  a  sua  ambição  de  inventor 
leva-o  ao  extremo  de  julgar  que  o  suppomos  inventor 
dos  pleonasmos  ?  Nao,  senhor;  só  digo  que  dos  plco- 
násticos  carneiros  de  Panúrgio,  Senio  será  o  millío- 
néitm3  ;  e  em  tal  imitação,  apenas  lhe  reconliecerei  a 
glória  de  que,  transplantado  de  outro  solo  para  o  seo, 
esse  fructo  toi 

peor  tornado  no  terreno  alheio. 

Ora  agora,  iutenda-se  bem,  não  alludr  eu,  nesta 
minha  censurada  observação,  ao  derramamento  das 
idéas,  mas  à  impertinência  das  vnriante>  verbaes:  e  seja 
licitD  reproduzir  aqui  algumas  ponderações  sobre  o 
genus  dicendi. 

Ha  um  mundo  entre  os  estvlos  conciso  e  ditfuso. 

O  e:^cripior  conciso  condensa  os  pensamentos  no  mí- 
nimo número  de  termos;  só  emprega  os  mais  expressi- 
vos ;  repelle,    como  redundante,  a  expressão  que  algo 


10  XIX 

nao  addiciona  ao  sentido.  Quando  introduz  ornatos  e 
figuras,  mais  o  faz  por  força  que  para  graça.  Nunca 
repete  duas  veies  um  pensamento.  Descreve-o  sob  o 
aspecto  que  mais  appropriado  se  lhe  aflâgura;  mas  se  a 
essa  luz  o  nao  comprehenderdes,  nao  espereis  que  a 
outra  vol-o  revele.  Primam  suas  sentenças  mais  pelo 
compacto  e  pela  energia  que  pela  cadencia  e  harmo- 
nias. Esse  dizer  lacónico  mais  inspira  a  imaginação 
do  leitor  do  que  directamente  lhe  exprime. 

O  escriptor  diffuso  estira  e  esparralha  os  pensamen- 
tos. Appresenta-os  em  variadissimas  apparencias,  e 
prohibe  ao  leitor  o  coUaborar,  com  elle.  Cuia  pouco 
de  exprimir-se,  desde  o  princípio,  com  toda  a  força  ; 
porque  calcula  que  tem  de  reiterar  a  impressão,  e  cun- 
seguintemente  o  que  lhe  falta  em  força,  hade  sup- 
pril-o  com  a  abundância. 

O  excesso  de  ambas  estas  qualidades  é  perigoso. 
Em  concisão,  nem  todos  se  podem  conter  nas  raias  de 
Aristóteles,  Tácito,  Montesquieu  (  no  Espirito  d<u 
Leis  ),  ou  Filinto.  E  i:  ditfusao  magnífica,  nem  todos 
nas  de  Cícero,  Ovídio,  Addison',  Temple  ou  Bocage. 

A  ditFusao  torna  o  estylo  fláccido,  débil,  e  cança  o- 
leitor;    mas  é  tolerável  em  penna  de  superior  ordem, 
por    ser  condão  do   génio  até  defeitos  converter  em 
bellezas. 

Importa  porem  nao  confundir:  Uma  cousa  é  o  incarar 
do  mesmo  pensamento  por  muitas  faces,  outra  o  repro- 
duzir da  mesma  expressão  com  muitas  palavras.  No 
primeiro  caso  pôde  haver  sua  justificação;  no  segundo, 
jamais. 

Tomemos  para  exemplo  um  grande  escriptor,  natu- 
ralmente prolixo,  posto  que  a  trechos  magnificamente 
lacónico,  Ovídio.  Esse  poeta  nao  sabia  decotar,  dn 
tronco  da  sua  idéa,  os  ramos,  os  galhos,  renovos  e 
garfos  que  o  incobriara;  muitas  vezes,  onde  uma  só 
imagem  bastaria,  multiplica  4,  õ  e  7  símiles  !  mas 
ainda  ahi,  se  é  lícita  a  expressão,  nos  depara  na  uni- 
formidade immensa  variedade  ;  seria  descabido,  n'este 
escripto  fugaz,  aponctar  cópias  d*este  defeito-bel- 
leza. 

Mas  nem  n'esse  esplendido  génio  é  desculpável  o 
erro,  em  que  raras  vezes  caiu.  de  reproduzir  exacta- 
mente a  mesm  i  idéa  por  diver^^as  palavras,  por 
extímplo  : 


XIX  11 

— Omnia  pontus  erat;  deerant  quoque  (!)  littora  ponto. 
— Semibovemque  vi  rum,  semivirumque  bovem. 
— At  vos,  qua  veniet,  tumidi  subridite  montes! 
Et  faciles  curvis  vallibus  e.ste  vioe! 

e  assim  em  outros  logares.  Eis-ahi  pleonasmos  repre- 
hensiveis,  ou  antes  perissologias  detestáveis,  mas  fi- 
dalgas, por  virem  de  quem  vêm. 

E  a  critica  leal  e  digna,  que  fecha  olhos  à  grandeza 
do  censurado,  e  o  exprobra,  quando  elle  diz  duas  vezes 
a  mesma  cousa  por  palavras  diversas,  tem  rigorosa 
obrigação  de  stygmatizar  cem  vezes  mais  o  vicioso  uso 
das  7  variantes  para  darem  a  mesma  idéa,  como  suc- 
cede  no  Gaúcho. 

Para  justificar  o  :  As  ondas  se  agitam  em  fhiciuação^ 
(o  que  aliás  podia  ser  tão  brando  com^)  O  contínuo 
vaivém  das  mansas  ondas,  de  que  nos  fala  Bocag-e  ] 
cita  o  Sr.  V.  dous  versos  de  Racine,  em  que  diz  haver 
sido  achado  pleonasmo.  Se  o  houvesse,  mais  nao  seria 
isso  do  que  mancha  em  sol,  mas  nao  o  vejo.  Os  versos 
de  Racine  sao  ambos  estropiados  pelo  docto  Pales- 
treiro,  o  qual  nol-os  dà  a-^sim  : 

Cependant  sur  le  dos  de  laplauie  humide^ 
Sf-^ve  à  gros  bouilloiis  une  montagne  lújuide, 

(As  orelhas  métricas  de  V.  erraram  ambos  os  ver-o:>, 
pondo  liquide  onde  devia  ser  humide^  e  /iwmíí/eouJe 
devia  ser  liquide).  Todos  os  termos  aqui  tem  uma  in- 
tenção sobre  si,  .>em  que  haja  sombra  de  repetição  de 
idéa — La  plaine  liquide^  em  relação  ao  mar,  serve  para 
distinguir  das  plaines  íen^estre,  celeste, azurée,  rtoilce,  de 
t'air  etc. — Moiitagne  humideàk  idéa  da  grande  eleva- 
ção das  águas,  sendo  aliátó  este  adjectivo  appropriado, 
i'omj  quando  J.  B.  Rousseau  escreveu  : 

L'humide  empire  oíi  Vénus  prit  naissance. 

E  uem  se  diga  que  do  dorso  do  mar  era  d'água  que  for- 
çosamente devia  sobresair  a  montanha,  vi.<to  como 
podia  ser  uma  ilha — A*  gros  bouillons^  em  grandes  bor- 
bulhrics,  também  dá  outra  idèa  ;  de  forma  que  nem 
avalio  onde  pos<a  aqui  imaginar-se  pleonasmo,  ou 
como  tao  elevada  e  poética  linguagem  possa  invocar-se 
para  justificação  de  Às  ondas  se  agitam  em  fluctuaolo. 

Ha  PLEONASMOS  6  FLEONASNOS* 


12  XIX 

E    UM   CHARLATÃO    DE    TAL    JABZ  METTIUO.   A    CRÍTICO  ! 

(PhrasedeV.  dirigida  a  Cincinoato,  a  qual  nem    por 
isso,  como  V.  esperava,  lhe  fez  crear  sangue  de  bugio.) 

§  4  Átomo  invôlto  nas  dobras  do  infinito. 

Hesitei*-  ante  esta  quinta  essência  das  imagens,  e 
agora  transcrevo  a  sargentona  anályse  do  Sr.  V. 
<i  Diz  Senio  :  —  n  No  seio  das  onda^^  o  nauta  sente^se 
isolado;  e  átomo  invôlto  em  vana  dobra  do  infinito.  » 
Imagem  sublime  I  de  um  traço  desenha-se  o  painel  do 
homem  infinitamente  pequeno,  perdido '  na  imoiensi- 
dade  da  solidão  infinitamente  grande,  na  qual  basta 
uma  vaga,  uma  fraga,  um  destroço  de  navio,  emfim, 
para  escondêl-o.  Nao  se  pôde  exprimir  tanto,  nem  com 
maior  energia,  nem  menos  palavras.» 

Depois  de  assim  posta  a  história  em  trocos  miúdos, 
seguem-se  as*  generosas  descomposturas.  Argumento  é 
só  istíi  :  um  idem  per  idem,  uma  explicação  que  nada 
explica,  uma  demonstração  de  que  nao  comprehendeu 
a  censura,  ou  buscou  uma  tangente  para  eviíal-a. 

A  minha  questão  era  com  as.doèra*  do  infinito ^  e  sou 
realmente  culpado  da  minha  ignorância,  visto  como  jà 
outro  que  tal  sacerdote  do  Ideal  me  havia  explicado  a 
gerigonça  nas  Odes  modernas  : 

c(  Diz  a  eterna  missa  da  karmonia 

«  o  que  veste  a  estola  do  infinito^ 

«  para  deitar  a  grande  bençam — Vida!  » 

kSe  o  querem  mais  claro,  deitem-lhe  água.  Syllogismo 
evidente  :  l**.  Todo  o  infinito  é  uma  listola  ;  2^  Toda  a 
estola  tem  dobras  ;  3"".  Ergo,  ha  dobras  do  infinitjo;  e 
.se  acertam  em  apanhar  na  prega  um  átomo  qualquer, 
cai  na  ratoeira  e  fica  esborrachado. 

Que  imagem  esta,  sancto  Deus!  Infinito  é  o  espaço 
que  se  vai  sempre  estendendo,  sem  óbices  nem  limites 
existente:?,  ne:n  possíveis  ;  e  o  que  fosse  susceptível  de 
dobrar-se,  cessaria  de  ser  infinito  ;  podemos,  sim,  an- 
nexar  também  a  idéa  do  infinito  ao  tempo,  à  extensão, 
ao  número,  mas  nao  ha  uma  só  variante  do  substan- 
tivo, que  se  coadune  com  a  idéa  de  ruga,  de  termo. 

Se  alguma  cousa  ha  mais  ridícula  do  que  a  imagem* 
é  a  explicaçrio  do  Sr.  V.  Diz^nos  que,  collocado  um 
objecto  entre  um  nauta  e....  [  e  nao  sei  qu^  :  falta  o 
outro   termo  )  fica  escondido  e  invôlto  n'uma  dobra  do 


-XIX  13 

infinito  I  ha  mais  :  essa  cousa,  dentro  da  qual  o  átomo 
se  embrulha,  no  meio  do  mar,  pode  ser  uma  vaga  ou 
uma  fraga  I  que  espécie  de  fragas  serão  estas  que  o 
B0S80  fragalhoteiro  descreve  no  seio  das  ondas  ?  Elle 
caberá  o  que  é  fraga  ¥ 

«  E  UM  charlatKo  de  tal  jaez  mettido  a  crítico  !  » 
(  Phrasede  V.,  dirigida  a  Cincinnato  ). 

E  nada  mais  accrescenta  o' Sr.  V.,  senão  uma  ima- 
gem extrahida  do  Eurico^  a  qual  tem  tanta  paridade 
com  a  de  que  se  tracta,  como  um  espeto  com  um  re- 
queijão, e  que  passo  a  pés  junctos,  por  nada  vir 
ao  caso. 

Agora,  algumas  palavras  mais,  sem  applieacão, 
como  simples  generalidade,  e  em  que  só  repetirei  o  jâ 
dicto  pelos  reguladores  do  gosto. 

Nada,  na  arte  de  escrever,  demanda  mais  cautela  do 
que  o  uso  dos  tropos,  figuras  e  imagens.  Os  mais  su- 
blimes e  pathéticos  passos  dos  mais  admirados  aucto- 
res,  em  prosa  e  verso,  *  acham-se  expressos  no  estylo 
mais  simples  e  sem  figuras.  Pôde,   por  outro    lado, 
nbundar  uma  composição   em   ornamentos  estudados, 
em  linguagem  artificiosa,  esplendida,  figuradíssima,  e 
ser  no  todo  affectada  e  glacial.  Quem  nao  falar  ao  es- 
q)írito  e  ao  ooraçfto,   por  mais  gymnásticas  de  estylo  a 
-que  se   abalance,  se  este  fôr  ostentoso,  esquisito,  pre- 
sumpçoso,  impróprio  ou  obscuro,  poderá  lançar  poeira 
aos  olhos  do  vulgo,  mas  nunca   aprazer  a  juízo  dos 
competentes. 

As  imagens  e  figuras  acceitaveis  hao  de  adaptar-se 
naturalmente  ao  objecto  :  suggere-as  a  imaginação, 
quando  altamente  excitada,  produzindo  metáphoras  e 
comparações  ;  suggere-as  a  paixão,  quando  o  peito  se 
commov^,  gerando  ent&o  prosopopèas  e  apóstrophes. 
Está  perdido  quem  deixa  o  curso  do  pensamento  para 
se  ir  á  caça  das  figuras  ;  nao  apanha  leOes  nem  veados, 
mas  sombras  impalpáveis  e  ridículas. — Erra  quem 
pensa  que  ornamentos  de  estylo  se  cosem  á  compo- 
sição como  a  gola  á  casaca.  Eis  como  o  Visconde  de 
Seabra  verte  um  trecho  da  Epístola  aos  Pisões  : 

A  começos  magníficos  mil  vezes 

se  alinhavam  de  púrpuras  remendos, 

que  ao  longe  brilham, como  quando  os  meandros 

da  &gua  que  gira  pelo  ameno  prado, 


14  XIX 

de  Cynthia  o  bosque,  as  venerandas  aras, 
o  Rheno,  oii  o  arco  pluvial,  se  pinta.... 
mas  era  do  logar  impróprio  o  quadro. 

Os  ornamentos  verdadeiros  nao  sSo  arrebiques,  ou  es- 
forços de  imaginação  infêrma  ;  devem  correr  no  mes- 
mo álveo  por  onde  se  desliza  o  pensamento.  Hade-se 
falar  como  se  sente,  e  não  pedir  emprestado  o  effeito. 
Quando  invila,  a  Mimrva  vinga-se. 


E  por  sobremesa,  para  gratificar  o  teo  paladar  deli- 
cado,lê  agora  comigo  este  final  do  cap.  3  do  liv.  IX  de 
Quintiliano  :  «  Auctores,  que  até  os  argumentos  dão 
por  figuras,  é  fugir  d'elle.s.  Estas,  mesmo  quando  ver- 
dadeiras, se  adornam  o  estylo,  postas  a  propósito,  tor- 
nam-se  mais  que  ineptas,  empregadas  sem  moderação. 
Taes  ha  que  se  julgam  summos  artífices,  porque, 
sem  curarem  da  essência  das  cousas,  nem  da 
solidez  dos  pensamentos,  amontoam  palavras  sem 
sentido,  e  ridiculamente  se  empenham  em  procurar 
gesto  onde  não  ha  corpo.  Até  no  uso  das  cousas  legi- 
timas, é  mister  <!autela:  a  expressão  do  rosto,  o  vibrar 
dos  olhos,  muito  ajudam  ao  orador  ;  mas  se  o  vires 
contorcer  esquisitamente  a  bôcca,  e  trazer  testa  e  olhos 
em  movimento  desesperado,  deitas  âs  gargalhadas.  A 
oração  tem  também  a  sua  face  natural;  nem  immobi- 
lidade  cadavérica,  nem  o  movediço  da  careta.  Nimio 
cuidado  no  palavrório  gera  desconfiança;  e  sempre  que 
se  ostenta  artificio,  tudo  parece  mentira.  » 


CaroSemprónio  meo,tuhasde  reconhecer  sem  dúvida 
que  não  é  possível  ser  mais  brando,  mais  dócil,  mais 
submisso  do  que  eu  o  sou  para  com  Senio.  Desde  o 
principio  d'este  dize-tu  direi  eu,  que  o  tracto  com  as 
formas  mais  blandísonas  e  mellínuas,  e  nao  alcanço 
hada;  quanto  mais  molle  acha,  mais  carrega.  Tomara 
eu  que  tu  me  ensinasses  o  modo  de  o  amansar  ;  eu  bem 
procuro  fazer-lhe  a  vontade,  e  estou  atè  prompto  para 
proclamar  que  Deus,  que  se  não  cançou  era  fazer  o 
mundo  em  uns  poucos  de  dias,  levou  depois  muitas 
semanas  para  invental-o  a  elle,  e  ficou  estafado;  mas 
nada :  pelo  que  coUijo  das  Palestras^  dictadas  pelo 
Senio,  e  editadas  pelo  companheiro,  o  irado  Jove  To- 


XIX  15 

nitruaate  nao  larga  da  dextra  o  trisulco.  Estou  bem 
servido  ! 

Ora  escuta  aqui  uma  história  : 

Havia  na  Bahia  ura  homem,  chamado  o  Sr.  Gabriel, 
muito  mal  incarado,  cujas  delícias  eram  bater  na 
pobre  mulher.  Dous  annos  supportou  a  infeliz  a  sua 
cruz,  levando  quotidianamente  bôa  conta  de  pauladas 
á  tôa. 

í< — Ah!  tu  deixaste-me  esfriar  o  jantar.  ..    Toma  lá. 

í< — Nao  deixei,  menino,  que  está  bem  quente. 

« — Ah!  tu  resping'as!  toma  lá. 

E  assim  approveitava  todas  as  razOes  para  repetir  a 
antiphona.  Deu-lhe  uma  amiga  um  conselho  :  «  Diga 
teo  marido  o  que  dicer,  nao  contraries.  Mande  o  que 
mandar,  faze  logo.  Assim  lhe  tirarás  os  pretextos. » 
Chega  o  Sr.  Gabriel  : 

« — Maria,  descalca-me  as  botasl 

« — Prompta, 

a — Maria,  está  aquella  janella  aberta  para  intrar  o 
sol  ?  {Era  noite). 

<( — Eu  vou  fechal-a. 

« — Maria,  dá  cá  aquelle  chicote. 

« — Slle  aqui  está. 

« — Maria,  está  muito  calor;  vae  fazer-me  acama  no 
quintal! 

Foi  a  mulher,  e  fez  o  que  se  lhe  mandava.  Deitou-se 
o  bom  do  homem,  e,  passado  um  instante,  levantou-se 
a  bater-lhe. 

« — Que  teQS  tu,  meo  maridinho  *? 

« — Ainda  m'o  perguntas,  cachorra?  Foste-me  pôr  a 
cama  logo  por  baixo  da  estrada  de  Santiago  :  se  por  lá 
tropeça  um  macho  e  cai,  vem-me  logo  cair  no 
toutiço. 

Assim  parece  accontecer  comigo.  Se  eu  nao  estivesse 
certo  do  meo  sexo,julgar-me-hia  mudado  em  D.  Maria; 
todavia,  para  teo  socêgo,  asseguro-fce  que  tens  sempre 
em  mim 

O  teo  velho  e  cordial  amigo 

C1NCINNA.T0. 


16  <XIX 

Noticiário 

CoLONisAçao. — Pfojeota-se  em  Inglaterra  a  remessa 
de  emigrantes  úteis  para  o  Brazil,  em  número  e  bases 
taes  que  assegurem  o  desinToWimento  do  paiz  e^  faci- 
litem as  negociações  no  Império.  O  plano  j&  apresen- 
tado ao  governo,  por  intermédio  do  sr.  Cônsul  brazileiro 
€m  Londres,  explica  detida  e  largamente  c  projecto,no 
qual  se  propOe,  entre  outras  cousas,  qvte  as  reservas  de 
terras  férteis  e  desocoupadas  nas  províncias  do  Sul,  en- 
tre 22  e  30  gráos  S.-,  e  contíguas  a  algum  posto  esta-* 
belecido  ou  por  estabelecer,  sejam  vendidas  ;  que  o 
governo  sanccione  a  acquisiçaó,  sob  sua  garantia,  pe- 
los seos  agentes  financeiros  em  Londres,  de  um  capital 
nao  superior  a  600:000  lib.,  capital  que  será  reembol- 
sado em  um  praso  fixado  até  30  annos,  aoomptardada- 
ta  em  que  aquellas  terras  se  reservem  para  a  venda,  fi- 
cando os  capitães  obtidos  em  poder  dos  mesmos  agentes 
do  governo  imperial ;  que  aquelle  capital  se  applique, 
400:000  lib.  ao  pagamento  das  passagens  adeantadas 
em  dinheiro  e  seguros  de  vida  de  cada  chefe  de  famí- 
lia até  10:000  emigrantes  annuaes  e  as  restantes 200:000 
lib.  na  abertura  de  estradas  e  mais  obras  públicas, 
para  adeant amentos  ás  municipalidades,  mediante  pres- 
tações nao  excedentes  a  100:000  lib.  a  cada  uma.  E 
finalmente  que  os  terrenos,  urbanos  ou  ruraes,  que 
forem  comprados,  o  serão,  metade  pelo  governo  brazi- 
leiro e  a  outija  metade  pela  respectiva  municipalidade, 
uma  vez  que  as  terras  pertencentes  a  cada  municipali- 
dade offereçam  segurança  ao  reembolso  dos  adeanta- 
mentos  referidcs,  para  a  creaçao  das  citadas  obras? 
póbiicas. 

(  O  Brazil,  jornoZ  de  Lisboa  {  *  ) 


(*)  Nesta  corte,  sSo  correspondentes  doesta  folha  os  Srs.  E. 
e  H.  Laemmert,  em  cuja  oasa  se  tomam  assignaturas  por  anno 
a  15j||000,  por  semestre  8jj|000;  e  se  recebem  annúncios,  para 
serem  publicados  no  Braztl  a  60  rs.  por  linha;  tudo  dinheiro 
do  Império.  (  Em  Lisboa:  Redacção^  António  Maria  de  Castilho; 
AdminisltaçãOj  Pedro  A.  de  Almeida. ) 


Tjp.  e  Lith.— IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Setembro,  146. 


QUESTÕES  DO  DIA 

RIO  DE  JANEIRO  10  DE  NOVEMBRO  DE  1871. 


Vende-se  em  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Laemmert. — ^Praça*da  Constituição, 
Loja  do  canto.— Livraria  Académica,  Rua  do  S.  José  n-  119'^  Largo  do 
Paço  n.  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis. 

CINCINNATO  À    SEMPRONIO. 

Meo  illustre  crítico . 

Recebo  n.  tua  carta,  interessante  como  quanto  sai  da 
tua  penna.  N'ella  me  d&s  a  noticia  de  que  applicarás 
mais  algumas  horas  vagns  ao  exame  das  producçOes 
liUeràrias  de  Senio,  com  o  que  sem  dúvidfa  teremos 
todos  muito  que  aprender. 

Com  a  tua  carta,  recebo  a  de  um  nosso  distincto  a- 
migro  commum  que,  referindo-se  também  a  certo 
escriptor  (quem  seja,  nao  vem  ao  caso)  se  exprime 
d'e3t*arte  :  «  Folgo  com  um  tao  completo  desba- 
rato da  fôfice,  da  pedantaria,  do   orgulho  petulante, 

e  das  bulias  falsas Com  effeito  sempre  lhe  achei 

ares  excêntricos,  fornias  hybridas,  contornos  naons- 
trúosos,  planos  disformes,  lavor  irregularissimo,  mín- 
gua de  gosto  e  senso  artístico,  ambição  impotente  de 
eflFeitos  ridículos.  Depois,  vindo  a  vez  do  político,  ma- 
nifestou-se-me  elle  ura  ambicioso  vulgar,  um  acabado 
especulador,  que  armava  tilo  somente  ao  próprio  inte- 
resse, e  que  se  desmascarou,  no  dia  da  prova  &  &  » 

Mas  emfím,  isto  nada  tem  com  a  matéria  que  tra- 
ctãmos,  e  portanto  continuemos  com  a  anàlyse  da;:) 
PcUeeiras ;  e  preciso,  antes  de  tudo,  pôr  bem  claro  um 
poncto.  Saem  estas  palestras  de  debaixo  do  telhado  de 
oenio :  assume  a  paternidade  d'ellas  um  senhor  homem 
que  se  senta  á  mesma  carteira  que  o  primoroso  escri- 
ptor :  esta,  e  outras  circumstancias  me  convencem  de 
que,  embora  o  estylo  seja  exclusivo  e  characterístico 
do  dito  .senhor  homem,  as  partes  da  oração  sao-lhe  mi- 
nistradas pelo  companheiro    Senio.  •£'   conseguinte- 


â  \X 

mente  com  este,  que  eu  me  entreteuho :  se  tivesse  a 
persuasão  de  que  o  seuhor  hamem  era  o  aiictor  do  que 
copia  e  aduba,  passaria  de  largo  respeitosamente^  & 
silencioso  o  deixaria  brilhar  á  vontade.  Continuo,  por 
que  na  lettra  V.  das  Palestrai  nSo  vejo  mais  que  outra 
anonymia  Senial.   Prosigamos: 

§  5°  O  cvtdiío  não  deixado  por  mãos  alheias. 
Tenho  ante  mim  agora  a  3*.  Palestra,  da  qual  ex- 
traio us  seguintes  trechos  : 

—  «O  Gaúcho  è  uma  das  melhores  creaçOes  da  pátria 
«  litteratura!  livro,  qu^í  só  de  per  si,  e  desaccompanhado 
((  d»  qualquer  outra  prova,  bastaria  para  dar  um  nome 
«  e  dos  melhores  !  ! 

—  «  Dicemos  c  repetimos  :  José  d'  Alencar  está  tâo 
a  altamente  coUocado  que  não  pode  inchergar  o  pó  que 
«  se  levanta,  no  rojar  do  reptil. 

—  «O  político  severo  ( ! ),  o  jurisconsulto  abalizado 
((  (!  1,  o  littíírato  mimoso  (  !  ],  o  character  nobre  {  ! ) 
«^.0  filhu  que  d^  orgulho  á  pátria  (I ),  o  orador  lan- 
ce reado  por  tantos  triumphos  ( ! ),  nao  pôde  decair  do 
«  pedestal  a  que  foi  elevado  pela  opinião  pública,  pela 
a  admiração  dos  doctos  e  sensatos,  pelo  preito  e  home- 
c<  nagem  de  seos  émulos  no  talento  e  na  illustraçao.... 
<c  Columna  de  mérito,  em  cuja  cripta  desponta  sobran- 
te ceiro  aquelle  vuito  » 

E  vai  continuando  por  este  modesto   teor. 

Pelo  que  toca  aos  adjectivos  (severo,  abalizado,  mi- 
moso, nobre,  orgulhoso,  laureado,  e  pedestalizado  )» 
eu  ftiço  choro,  e  ainda  acho  pouco. 

Quanto  ao  preito  e  homenagem  dos  doctos  e  sensatos, 
também  é  muito  bem  proposto.  Venham  todos  os  escri- 
ptoies,  jurisconsultos,  políticos,  oradores,  e  litteratos 
d'e.sta  terra,  ajoelhar  ante  o  seo  capitao-mór,  o  alto  e 
poderrso  D.  Senio.  Preito  e  homenagem  só  se  prest» 
a  soberanos  ;  e  é  bom,  em  vésperas  doesta  solemnidade^ 
repetir  como  estas  cousas  se  fazem.  No  auto  de  jura- 
mento Preito  e  homenagem  que  os  Três  Estados  fizeram 
ao  Infante  D.  Pedro  &  {  impresso  em  Lisboa,  no  anuo 
de  1669 )  se  indica  o  cerimonial.  D.  Vasco  Luiz  da 
Gama,  marquezde  Nisa,  foi  a  primeira  pes.soa  que 
jurou  :  chegando  ao  logar  marcado,  ajoelhou,  e  postA 
a  mão  direita  sobre  a  cruz  e  missal,  dice  todaa  as  pa- 
lavras do  dicto  juramento,  preito,  e  homenagem  ;  e, 
acabando  de  jurar,  meiteu  as  mEos  entre  as  de  S.  Al- 
teza, e  logo  lhe  beijou  a  mao  d,  e  o  mesmo  fizeram  os 


XX  3 

mais.  O  vassallo  dizia  ao  S60  príncipe  :  Devenio  homo 
vester  &  Fique  pois  assentado  em  irmos  todos,  clero, 
nobreza  e  povo,  dar  homenagem  e  preito  ao  rei  da  in- 
telligencia ;  juremos  que  o  seo  sceptro  è  indisputável ; 
brade-lhe  cada  brazileiro  sensato  edocto:  Devenio  homo 
vester. 

O  ficado  Senador  Theóphilo  Ottoní  narrava  com 
summa  graça  numerosas  particularidades  dos  usos  e 
costumes  dos  selvagens  do  Mucury.  Lembro-me  bem 
de  lhe  ouvir  esta  história  ; — «  Para  um  Botecudo, 
toda  a  sua  idea  de  superioridade  e  prioridade  funde-sè 
no  vocábulo  :  Capitão.  Â  mim  chamam-me  Capitão 
Pogirum,  que  quer  dizer  :  Homem  de  posiç&o  elevada 
e  de  mftos  brancas.  A  um  francez,  do  Mucury,  chamar 
vam  Capitão  Ouioui,  por  que  era  de  raça  branca,  e  re- 
petia frequentemente  a  palavra  oui ;  e  assim  os  mais. 
O  curioso  porem  é  que  o  termo  applica-se  nao  menos  a 
cousas  inanimadas  ou  não  humanas ;  por  exemplo  : 
de  um  renque  d'  árvores,  a  primeira  é  a  arvore-capita^; 
no  delta  formado  por  aves  de  emigração,  a  primeira 
é  o  pássaro-capitão  ;  de  uma  vara  de  cochinos  o  que 
vai  adiante  é  o  portxhcapitão  » 

Sempre  me  lembra  o  Senador  Ottoni,  quando  ouço 
d'estas  ;  e,  longe  de  contrariar  a  asserção,  concordo  em 
que  Senio  é  o  orador  capitão,  o  advogado  capitão,  o 
politico-capitão,o  litterato  capitão,o  Gauchista  capitão, 
o  jurisconsulto  capitão,  o  laureado  capitão,  o  filho  que 
d&  orgulho  capitão,  o  character  capitão,  finalmente  o 
centurião,  o  eapitãozarrão,  o  capitão  general  dos  capi- 
tães. Que  anais  querem?  Prestemos-lhe  todos  este  - 
preito  e  homenagem. 

Mas,  agora  com  o  que  eu  desadoro,  é  com  o  logar 
onde  o  preclaro  V.  pertende  collocar  o  meo  heroe : 
€  C^lumna  de  mérito,  em  cuja  crypta  desponta  sohtanr 
«  ceiro  aquelle  vulto.  »  Segue-se  logo : 

«  fT  irrisório  I  »  E  eu  não  sei  se  isto  se  refere  ao 
próprio  pensamento  ou  á  imagem,  pois  irrisório  é  real- 
iBente  tudo  isto.  Já  é  bello  o  despontar  sobranceiro, 
mas  na  crypta  I  Onde  será  esta  senhora  ? 

A  palavra  vem  de  um  verbo  grego,  que  significa 
esconder :  dar-se-ha  caso  que  V.  estivesse  fazendo  um 
epigramma  a  Senio,  dizendo-lhe  que  o  seo  vulto  só 
pôde  despontar  onde  esteja  escondido  ?  Aqui  me  diz  o 
amigo  Ticio  que  i^aturalmente  V.  ouviu  cantar  o  gallo, 
e  confundiu  orypta  com   plintho^  que,  na  ordem  tos- 


4  XX 

cana,  é  a  parte  superior   do  capitel,  por  o  seo  capitel 
nao  ter  címàcio,  como  na  jónica. 

Glória,  pois,  ao  novo  grão  Vitrúvio,  ou  antes  glória 
8  ambos :  ao  architecto  da  columna  do  mérito^  e  ao 
vulto  que  já  se  pôz  na  crypta  (Vdla, 
§  6**.  O  Creador  inventou  as  rijezas  cadavéricas  da  natu- 
reza (que  são  o  rochedo), 

Nao  sou  relógio  de  repetição,  e  por  isso  me  refiro  às 
minhas  anteriores  observações  sobre  o  que  n'esta  phrase 
me  parece  incerrar  dous  absurdos.  Descarnemos,  dos- 
insultos  adversos,  cousa  que  aspire  a  foros  de  argu- 
mento: 

«  Inventou  o  Creador  é  de  incontestável  belleza... 
«  Edificar,  fabricar,  etc,  são  attributos  de  Deus,  que 
«  fez  o  mundo,  e  tudo  o  que  n'elle  se  contêm,  com  uma 
<(  palavra.  Na  phrase  inventou  o  Crtador  vejo  uma 
«  soberba  antithese!  O  Creador,ao  tirar  do  nada  quanto 
c<  existe,  inventou^  isto  é,  destinou ^  ordenou  as  rijezas 
((  cadavéricas  para  a  fúria  dos  elementos. 

«  As  sagradas  escripturas  descrevem  a  maneira 
«  como  Deus  ordenou  o  mundo,  alteou  as  montanhas  e 
«  estendeu  as  planicies.  » 

E  nada  mais.  Que  triste  defeza  !  Pois  quem  contes- 
tou a  omnipotência  do  Creador?  Seria  acaso  eu,  que 
consagrei  meia  página  a  exaltal-a?  Do  que  me  eu 
queixo,  é  exactamente  do  contrário,  isio  é,  de  que 
Senio  rebaixasse  a  majestade  suprema,  nivelaudo-a 
com  os  cancados  esforços  da  intellifireucia  humana. 
Grande  temeridade  é  querer  definir  a  Deus,  mas  vergo- 
►nhosa  profanarão  6  applicar  á  essência  divina  os  attri- 
bui  j  ua  natureza  humana,  e  n'este  caso  e/?tá  a  wt- 
ven^ão. 

Reflectem  os  competentes,  que  dizem  alguns  ser  Deus 
uma  primeira  mente,  primeiro  intendimçnto,  primeira 
substancia,  primeira  causa,  primeiro  ser ;  mas  Deus  não 
é  mente,  não  é  intendimento,  não  é  substancia,  não  é 
causa,  não  é  ser  ;  é  sôbre-mente,  sôbre-intendimento, 
sôbre-si4>i5tancia,  sôbre-causa,  i^ôbre-ser ;  superior  ao 
ser,  anterior  á  causa,  ulterior  ao  intendimento,  alem  de 
substancia,  e  mais  que  ser  ;  mente  de  toda  u  mente, 
intendimento  de  todo  o  intendimento,  substancia  de 
toda  a  substancia,  causa  de  toda  a  causa,  ser  de  todo 
o  ser. 

Deus,  ua  phrase  de  Lactancio,  mundum  ènihilo  fecit^ 
do  nada  fez  o  universo.  Tolera  a  linguagem,  applicada 


XX  5 

A  essa  estupenda  obra,  as  palavras  creou,  fez,  edificou, 
ordenou,  regulou,  fabricou,  architectou,  construiu, 
formou,  e  outras,  aliás  defícientiscimas  todas  para 
representarem  o  que  nem  conceber  pôde  o  verbo  hu- 
mano ;  mas  ao  menos  todos  esses  vocábulos  dao  va- 
riantes da  idéa  da  -  creacao  sem  esforço  intellectual. 
Nunca  jamais  escriptor,  que  SQubesse  os  segredos  de 
•qualquer  idioma,  diria  que  Deus  inventara  rochedos  ;  jâ 
que  V.  se  proclama  tao  lido,  e  alardeia  a  sua  citação  de 
auctores,  procure  n'elles  se  algum  ousou  jamais  appli- 
car  o  verbo  inventar  ao  fiat  da  creacao.  Nao  achará 
por  certo. 

«   E  UM  CHARLi^TAO  DE  TAL  JAEZ,  MBTTIDO  A  CRITICO.    )) 

(Phrase  que,  por  ordem  de  V.,  c&  me  applico  a  mim 
mesmo), 

—  Repelli  eu  a  locução  rijeza  cadavérica,  como  defi- 
nição do  rochedo.  Pondo  de  parte  parte  dos  impropérios, 
eis-aqui  como  V.  defende  isto : 

—  «  Cá  o  plantador  de  batatas  críticas  nao  compre- 
«  hendeu  que,  para  exprimir  as  rijeza^  graníticas  se 
«  usava  da  expressão  cadavérica.  » 

Cita  a  phrase  do  Eurico :  «  Era  horribilissimo  ver 
convertido  era  cadáver,  de  todo  immovel  e  mudo,  o 
Oceano.  »* 

( jue  infeliz  argumentador  I  No  Eurico^  temos  o  Oce- 
au  j,  naturalmente  animado  e  vivo,  immovel  e  muJo  ; 
a  comparação,  pois,  com  o  cadáver,  é  no  tocante  á  im- 
mobílidade  e  mudez  ;  imagem  nobre  e  verdadeira. 

No  Gancho,  confessa  o  próprio  V.  que  o  cadáver  é 
impetrado  para  symbolizar  a  rijeza  granítica !  isto  é, 
em  vez  de  alludir  ao  movimento  e  á  acção,  refere-se  á 
substancia  da  matéria  ;  e  para  exaltar  a  rijeza  do 
mármore,  que  é  sempre  duríssimo,  compara-o  com  a 
carne,  que  no  próprio  cadáver,  posta  em  parallelo  com 
um  rochedo  granítico,  é  sempre  fláccida  e  molle. 

ícE  UM  CHARLATÃO  DE  TAL  JAEZ  MRTTIDO  A  CRÍTlCo!»  Cá 

tne  vou  disciplinando  com  estas  disciplinas  que  o  bom 
do  Senio  tem  a  caridade  de  administrar-me,  por  inter- 
médio do  Sr.  V.  E  a  propósito  :  nunca  eu  tinha  com- 
prehendido  a  razão  de  se  denominarem  disciplinas, 
tanto  as  artes  liberaes  e  scienciascomo  certos  bacalháos 
com  que  os  disciplinantes  até  nas  procissões  costu- 
r:iMvam  açoutar-se.  Agora,  sim  senhor,  já  intendo.  Por 


6  XX 

nao  avaliar  a  omnisciência  do  Sr.  Capitão  Mór  em 
todas  as  disciplinas,  aquellas  enérgicas  phrases  sao  a* 
disciplinas  com  que  elle  flagella  o 

Teo  obediente  creado 

ClNCINNATO. 

l^onu-iineiito  a  Booa^e. 

De  uma  carta  fidedigna  recem-recebida  de  Lisboa 
copi&mos  o  seguinte,  que  deve  interessar  a  muitas  pes- 
soas n^este  paiz,  visto  ter  sido  aqui  iniciado  o  projecto, 
que  se  está  tractando  de  levar  proximamente  ao  cabo. 
Eis-aqui : 

—  «  Tem  sido,  em  todos  os  ponctos,seguidas.  tanto 
n'esta  cidade,  como  em  Setúbal,  as  recommendaçOes^ 
dos  Srs.  conselheiro  J.  F.  de  Castilho,  e  Barão  de  S, 
Clemente,  Presidente  e  Vice-Presidente  da  CommissRo 
Central  do  monumento  no  Rio  de  Janeiro,  incumbidos 
pela  mesma  commissao  de  dirigir  a  conclusão  dos 
trabalhos. 

Foram  egualmente  recr^bidos  os  convites  d^aquelles 
senhores  aos  vários  cavalheiros  que  designaram  nas 
duas  cidades  para  constituirem  commissoes  especiaes, 
A  de  Lisboa,  presidida  pelos  Srs.  Marquez  d'  Ávila 
e  Bolama,  e  Visconde  de  Castilho,  vai  reunir-se  para 
deliberar,  de  accôrdo  com  as  in.strucçOes  recebidas, 
sendo  o  local  das  suas  sessões  na  Academia  Real  das 
Sciencias. 

O  desenho  do  monumento  está  muito  exacto,  tal 
qual  o  deu  o  jornal  illuslrado  d'essa  corte  Vida  Flu- 
minense^ só  com  a  differeuça  de  que  no  logar  indicado 
com  armas  reaes,  estão  lyras. 

A  estátua,  que  muito  honra  o  esculptor  Reis,  está 
prompta,  como  tudo  mais.  Gravaram-so  na.?  quatro 
frentes  do  pedestal  os  seguintes  quartetos,  do  próprio 
Bocage : 

1®.   Frente 

De  Elmano  èis  sobre  o  mármore  sagrado 
a  lyra,  em  que  chorava  ou  ria  amores... 
Ser  d'elles,  ser  das  musas,  foi  seo  fado. 
Honrera-lhe  a  lyra  vates  e  amadores  ! 

2".  Lado  esquerdo  da  estJtiia, 

Doou-me  Phebo  aos  séculos  vindouros. 
Deponho  a  flor  da  vidn,  e  guardo  o  fructo. 


Pagando  á  vil  matéria  um  vão  tributo, 
retenho  a  posse  d*  immortaes  thesonros. 

3**.  Costas. 

E!ste,  com  quem  se  ufana  a  pedra  erguida. 
ah !  se  incantou  com  sonorosas  cores... 
já  Bocage  nao  é !  n&o  sois,  amores ! 
Chorae^he  a  morte,  e  celebrae-lhe  a  vida ! 

4*.  Lado  direito  da  estátua. 

Um  Nume,  só  terrível  ao  tyranno, 
nao  à  triste  mortal  fragilidade, 
eis  o  Deus,  que  consola  a  humanidade, 
eis  o  Deus  da  razão,  o  Deus  de  Elmano. 

No  dia  9  do  corrente  (octubro)  foram  a  Setúbal,  o 
Sr.  Salles.  domno  da  officina  ondif  foi  feito  o  monumen- 
to, e  o  Sr.  A.  Torquato  Azedo  e  Silva,  para  esse  fim 
êommissionado. 

Apenas  chegaram,  passaram  immediatamente  a  exa- 
minar com  attenç>»o  qujil  a  praça  que  melhor  se  pres- 
tava ao  intuito.  Acharam  que  a  praça,  jà  denominada  de 
Bocage,  era  grande  e  assaz  desegual  no  seo  todo  ;  mas 
que  a  parte  que  propriamente  se  pode  chamar  praça  era 
a  mais  adequada,  e  tal  qual  podesse  deseiar-se,  se  de 
novo  houvesse  de  ser  feiui.  Nao  tem  casebres,  ou  pré- 
dios em  máo  estado,  senão  um,  que  pertence  a  um 
cavalheiro  opulento,  o  qual  acaba  de  construir  um  pa- 
lacete na  rua  que  deita  frente  para  a  praia,  e  parece 
t^ír  promettido  erguer  agora  n'aquelle  chão  um  edifício 
digno  da  elegante  praça 

Ha  duas  grandes  construcções  que  a  affrontam,  e  que 
naturalmente  um  dia  desapparecerao  ;  entretanto  ficam 
um  pouco  distantes,  e  nao  no  recinto  da  praça  :  sao 
uma  egrejae  o  Paço  da  Gamara;  ambos  estes  edificios 
sobresaem  do  alinhamento  dos  prédios  ;  mas  ficam  em 
tal  distancia  que  nada  tem  com  a  praça  propriamente 
dieta.   Ha  também  um  chafariz  defronte  do  Paço  da 
Camará  ;  fica  no  meio  da  rua,  mas  também  em  distan- 
cia, que  nao  prejudica  o  offeito,    E'  egualmente  n'a- 
qiielle  largo  o  mercado  da  fracta,  mns  mui  afastado  do 
recinto  da  prnça  de  Bocage,  a  qual  verdadeiramente 
fica  isolada,  e  é  do  tamanho  tal  que  se  proporciona  per- 
feitamente com  o  tamanho  da  memória. 

A  Camará  reuniu-se  logo,  e  ambos  aquelles  senhores 
se  lhe  apnresentaram.  Entregue  a  carta  que  levavam  do 


8  XX 

Sr.  Visconde  de  Castilho  (impossibilitado  de  ir  pes- 
soalmente) ao  Presidente  da  Gamara,  Sr.  Dr.  Manitto, 
que  a  recebeu  em  pé,  leu-a,  e  dice  que  o  Sr.  Conselheiro 
J.  F.  de  Castilho,  quando  alli  fora,  mostrara  preferir  a 
praça  de  Bocage  para  a  erecção  do  monumento,  mas 
que  perguntava  se  levavam  ordem  de  escjlher  outra. 
Sendo-lhe  respondido  que  nao,  «  Nesse  caso  (dice  o 
venerando  Presidente)  a  Camará  Municipal  decidiu  que 
fosse  posta  a  praça  á  disposição  da  Commissao  C  mtral 
no  Rio  de  Janeiro.  Podem  começar  a  obra  quando  qui- 
zerem  ;  eeu,  por  deliberação  da  Camaia,  estou  auctori- 
zado  para  declarar  que  ella  está  prompta  para  cooperar^ 
da  melhor  vontade,  com  aquillo  que  poder,  para  a 
realisaçao  do  pensamento  da  Commissao  no  Brazil.  » 

Responderam-lhe  que  a  Commiosao  no  Brazil  pedia 
licença  paranlo  receber  auxílio  algum  pecuniário,  ou 
de  outra  qualquer  natureza,  com  relação  a  tudo  que  diz 
respeito  ao  monumento  ;  e  só  pedia  que  a  Camará  fi- 
zesse quanto  podesse  para  que  a  inauguração  se  veri- 
ficasse com  a  grandeza  devida  ao  vulto  a  quem  se 
honrava.  Foi  respondido  que  a  Camará  se  empenharia 
n*isso,  quanto  coubesse  em  seos  meios  e  faculdades. 

Immediatamente  se  começaram  os  trabalhos,  por- 
que, nas  instrucções  do  Brazil,  se  havia  pedido  que  a 
inauguração  .se  realizasse  no  dia  21  de  dezembro, 
sexagésimo  sexto  anniversàrio  do  passamento  do  poeta  ; 
mas  uma  circumstància,  que  era  desconhecida,  torna 
problemática  a  fixação  do  dia.  Com  effeito,  adquiriu-se 
certeza  de  que,  a  uns  cinco  palmos  abaixo  do  chão, 
âe  iílcontra  água,  nau  só  alli,  mas  ainda  muito  mais 
distante  do  mar ,  na  mesma  direcção ;  sendo  in- 
dispensável possante  estacaria  para  solidificar  o  ter- 
reno, de  modo  que  possa  aguentar  o  grande  peso, 
como  aliás  tem  sido  obrigados  a  praticar,  com  assaz 
avultada  despesa. diversos  prop.-ietários  que  n'aquellas 
immediaçOes    têm   mandado  edificar. 

Ficava-se  egualmente  aformoseando  a  praça,  para 
o  que  03  moradores  concorriam  jubilosamente.  Em 
Lisboa  se  preparava  umà  elegante  gradaria,  para  ro- 
dear o  monumento.  A  alguma  distancia  vao  Sr^r  col- 
locados  quatro  renques  parallelogrammáticos  de  ár- 
vores, alternadas  com  bancos  de  ferro.  Por  fora  d*estes 
bancos  e  árvores,  segue, também  em  parallelogramma^ 
uma  bonita  calçada,  de  pedra  miúda,  da  qual  sobre- 
ssem  «eis   coUossaes  lampeoes. 


XX  9 

'!  Tudo  estará  acabado  para  o  dia  21  de  dezembro^ 
caso  o  permitta,  como  dicto  fica,  a  abertura  e  o  pre- 
paro, a  que  se  procede,  dos  alicerces.  » 


CONTO. 

o  GRÃO  SENHOR  DAS  LETTRAS 

Um  dia  certo  pedante 
da  turba  dos  pomadistas 
lembrou-se  de  assentar  praça 
no  bando  dos  romancistas. 

D'  entre  todos  os  assumptos 
nenhum  lhe  quadrou  melhor 
que  as  ddicias  dos  selvagens 
sob  o  império  do  amor. 

E  elle,  então  todo  inlevado 
no  seo  próprio  aj  uizar, 
introu  logo  em  movimento, 
e  poz-se  a  penna  a  aparar. 

N»  sublime  operação 
empregou  mais  de  hora  e  meia : 
era  tempo  de  invernada  , 
e  a  noite  de  lua  cheia. 

Por  acaso,  juncto  &  mesa 
onde  se  ^  oz  a  escrever, 
veiu  miar-lhe  um  gatinho 
magrinho,  quasi  a  mjrrer. 

E  o  escripior  emproado, 
intrando  em  meditação, 
tomou  isto  por  preságio 
de  futura  elevação. 

De  chofre  exclamou  suberbo, 
trovejando  em  tom  severo  : 
«  Sê  tu  minha  musa,  oh!  gato! 
«  iuvocar  a  ti  só  quero  : 

«  Que  importa  que  sejas  macho^ 
«  e  as  musas  ?ní///ierps  sejam? 
«  eu  creio  que,  ao  leo  influxii, 
4.  mais  alto  os  cysnes  adejam. 

<i  Vem  tu,  pois,  abre-me  os  cofres 
«  da  suprema  inspiração  ! 
a  faze  que  o  meo  génio  exceda 
<x  toda  a  humana  geração  ! 


10 


«  Escreverei  prosa  e  verso, 
«  como  ninguém  tenha  escripto ; 
«  vou  no  drama  e  no  romance 
a  ter  valor  mais  que  infinito  * 

«  Hei  de  mostrar  aos  oue  julgpam 
«  valer,  um  pouquito  o  Horácio, 
«  qufto  longe  estava  do  bello 
«  aquelle  génio  do  Lácio  : 

n  E  se  ha  hi  quem  louca  fama 
«  proclame  grãos  sabedores, 
a  nade  fazer  de  seos  louros 
u  holocausto  a  meos  furores.  » 

Segue-se  ligeira  pausa, 
e  depois  inthusiasraado, 
eis  solta  esplendidos  voos 
ao  seo  estro  sublimado 

Leu,  tresleu,  roeu  as  unhas, 
borrou  papel  a  valer, 
e  um  formosíssimo  drama 
veiu  então  a  apparecer. 

O  rapas  ^  que  da  pomada 
faz  um  commér  io  per^nne, 
pôde  erguer  nos  seos  escr!ptos 
um  monumento  solemne. 

Desde  a  hora  em  que  lhe  appronve 
vagar  das  lettras  no  espaço, 
Desbancou  Virgílio,  Homero, 
Lucano,  Camões  e  Tasso. 
Como  poeta  e  estylisía^ 
nenhum  lhe  i^anha  vantagem  : 
todos  a  flux,  cabisbaixos, 
lhe  prestam  preito  e  homenagem, 

E'  fecundo  dramaturgo, 
é  raro  folhetinista, 
historiador  sem  segundo^ 
delicado  romancista. 

Qual  eschola  ou  meia  eschola ! 
forma  eschola  por  si  só  : 
todas  as  mais  são  supérfluas, 
ninharias,  fumo,  pó. 

O  que  mais  alto  distingue 
o  seu  mérito  immortal, 
é  o  pendor  que  o  impelle 
á  cultura  da  moral. 

Passa  por  ser  um  dos  homens 


XX  11 

mais  lidos  n'essa  cidade: 
— Bom  milagre  do  gatinho, 
que  fez  tanta  novidade  : — 

£'  condão  dos  pomadistas, 
que  tudo  deixam  atraz: 
Basta  um  gesto  de  arrogância; 
a  prova  está  no  rapaz. 

Ck)'um  escrópulo  de  audácia^ 
meia  onça  de  franqueza^ 
quatro  oitavas  de  mystérios, 
e  a  cerviz  erguida  e  teza; 

com  certo  ar  d'aita  importância^ 
de  plebéa  fidalguia^ 
e  um  pince-nez  e  umas  lavas 
e  a  phrase  nlmio  bravia^ 

ani  surge  um  homem  grande, 
um  htterato,  um  poeta^ 
embora  na  mente  côncava 
confunda  a  curva  co'a  recta. 

Mas  o  mundo  é  assim  mesmo: 
os  parvos  sSo  sabichões  ; 
os  sábios  sao  vis  jarrê  as, 
que  nao  vale>m  attençOes. 

Ser  pomadistal..,.  Isto  agora 
è  caso  muito  diverso: 
so  quem  cultiva  a  pomada 
é   grande  em  prosa  e  no  verso. 

O  exemplo  é  bem  patê  ate, 
eiPo  ahi  no  grau  maior: 

3uem  pôde  negar  a  fama 
as  lettras  ao  Grão-Senhor  ?!... 

Exalçado  à  eternidade 
pela  inspiração  de  um  gato  !  ! 
quem  jamais  poderá  crêl-o  !  ? 
pois  o  conto  é  muito  exacto. 

Ouvi-o  a  certa  velhinha, 
que  tí  das  fidalgas  d^aJèm^ 
e  que  sabe  muita  cousa 
que  faz  mal  e  que  faz  bem. 

Asseguro  que  ella  mesma 
me  contou  toda  essa  história; 
e  eu  muito  crente  nos  contos, 
conse^^vpi  este  em  memória. 

Transmittindo-o  agora  mesiio 
á  plena  publicidade. 


12  XX 

dou  prova  de  que  n?io  zombo 
dos  aireitos  da  verdade. 

Pago  um  tributo  á  pomada, 
saudando  o  mór  pomadista^ 
o  poeta^  andor  de  dramas, 
historiador^  romancista. 

Deus  Ihft  dê  annosde  vida, 
para  ser  ainda  maior. 
Eu  só  lhe  peço  uma  graça. 
— Não  desprese  o  meo  amor. 

Archiloco. 


« — ^Já  leste,  Jucá,  a  Iracema  ?  » 
<c — Vale  a  pena  ?  » 

« — E'  obra  prima...  » 
o — Algum  romance  ?  » 

((-•E'  um  poema, 
lido...  de  baixo  p'ra  cima.  » 

<( — Li  três  vezes  o  Gaácho, 
Achei-o  três  vezes  chocho.  » 
« — Pois  eu  li-o  uma  só  vez, 
e  achei-o  três  vezes  três.  » 

Da  tal  Pala  da  Gazella 
eis  o  inrêdo  verdadeiro. 
Cautela,  leitor,  cautela  ! 
Quando  a  ii,  perdi  meo  tempo  ; 
quando  a  comprei,  meo  dinheiro. 

Themisiocles, 


FIM. 


XX  18 


0  r 


das   xiiatcirias  contidas  xi'cste  voliune.  > 

(  H,  B.  Ás  A  primeirat  carias  dç  Cintinnato  constituem  o  Vi.  1.  O  «nte 
vai  apontado  em  cifra  romana  indica  o  número,  que  se  esífnde  dei  a 
XX.  O  que  vai  em  cifra  arábica  indica  a  pdgina  da  rf^ívectito  número.) 

Cartajs  vh  CiNaNNATo  ▲  Fabru 

1*. — Poder  pessoal .     1  :j 

2*. — Idem.  Linguagem  de  um  parlamentar    I  29 

2*. — Anályse  de  um  discurso.  O  projecto  so- 
bre o  elemento  servil  A  escravidão. 
As  iras.Se  o  projecto  baixou  do  alto    1  51 

4*. — Os  estrangeiros I  63 

5". — Anàlyse  de  um  discurso  de  inierpella- 
ção.  As  dentadas.  A  imprensa.  A 
estrangeirophobia.    As  calúmnias 

do  interpellante II  3 

6*. — Defesa  de  Cincinnato  contra  as  accu- 

saçõfts  da  interpellaçao     ....     Ill  6 

7'. — Elemento  servil.  As  suppostas  contra- 

dicçoes    .    • IV  6 

8*. — Arguições  infundadas.  Plano  de  estor- 
var a  lei.  Dos  oradores  lálariantes.     V  4 
9*. — O  projecto  sobre  elemento  servil,  no 
senado.    As  variadas  providencias 
que  a  lei  ainda  demandará  .     .     .     VII         8 

10'. — A  origem  de  certas  opposições  à  lei. 

Benefícios  que  d'ella  resultarão.     .     VIII        8 

II*. — Defesa  de  Cincinnato  contra  as  accu- 

saçõed  da    interpellaçao.     .     .     .     XII        II 

12*. — O  interpellante  convencido  de  cata- 

vento  e  mercenário XIII      12 

13'.— O  Gaúcho.  A   1'  Palestra  do  Didrio 

do  Rio XVII      6 

14'.— Idem.  A  2-,  e  3- XVIU     I 

Io\ — A  Rússia,  depois  da  emancipação  dos 
servos.  O  Brazil,  depois  da  lei  de  28 
do  septembro XIX       1 

Cartas  de  Cincinnato  a  Semprónio  [sobre  o  Gaúcho) . 

1.— IX  7 

2'.- Xi         -4 

3*.  —O  Gaúcho.  As  palestras  do  Wrfrio do  Rio  aIX       6 
4'.— Idem XX        I 


V 


IJaktas  de  Sempronio  a   um  amigo   (sobre  o  ííaí^çho) 

i\\  1—2*.  VI  3—3'.   VIÍ  1-4'.  VIII  l— 5'.X  lO 
>^6\  XII  6—7'.  XUl  6—8'.  XIV  6. 
/  Artu  o   db    Sólon 

Reforma^  Judiciária .  111  l 

Aktioos  de  Junius 

Eis  a  tribii  de  Levi,  do  partido  conservador  IV 

A  quesUJó  do  elemento  servil.*    ....  VI 

Asesslode  1871. XU 

Tendências  desorganisadoras XUl 

A  política  especulativa XIV 

A  república  federativa XVU 

Proposta  do  Sr  duque  di  Saldanha 

Necessidade  da  associação  cathólica.    '.     .  IX  15  X  2 

Discurso  do  Sr.  visconde  de  Rio  Branco 

Eespoiáta  &  interpellaçao  do  Sr.  Alencar     .  V  13 

Artigos  sIsm  assignaTura 

Vinte  e  quatro  de  septembro.  D.  Pedro  I     .  IX  l 

Três  de  julho  (poesia) IX  3 

x\boliçâo  da  escravidão X  1 

Sessão  parlamentar  de  1871 XI  1 

Monumento  a  Bocage.   Acta  da  sessão  de 

.  4  de  junho  de  1871  da  commissao  central  XV         1 
Idem  idem.  Artigo  do  Sr.   Dr.  Pedro  Luiz 

Pereira  de  Souza XVI       l 

Idem  idem.  Correspondência  entre  o  Sr.   A. 

r.  de  Castilho  e  a  camará  de  Setúbal.     ,  XVI       4 

Idem  idem.  Artigo  da  Vida  Fluminense,     .  XVIU    11 

Idem  iáem.  D.'' áfi  Gazela  de  Setúbal.     .     .  XVIU    13 

Idem  idem.  Noticiário  de  Lisboa.     ,     .     .  XX        6 

Infermidades  da  língua XVIU     8 

Artigos  do  Jornal  o  a  Dhazil  » 

Introduccílo XIV       12 

O   Brazil    litteràrio XIV       15 

Noticiário XIV 16  XIX    16 

Artigo  du  (cJornal  do  Recife 

Dous  discursos  do  conselheiro  J.  de  Alencar    Hl  121V  14 

Artigo  du  Jornal  «La  Naliou 

Notável  discurso  do  Sr.  Paranhos     .     .     .     VIU       14 

CoNTOS),   EPIGRAMMAS  E  MADR10AE8 

De  Quintiliano  .     ...'...     XI  15  XVU  16 

De  Themistocles XU  16  XVU  16  XX  12 

De  Zero,  XI  lõ,  15, 15,  15,  16, 16, 16  XU  15, 15, 16,  16 
C\)nto.  por  Archíloco XX        9 

POKSUDE  PlTT  B  BLACkSTONE 

As  causas  aas  causas .    •    VI         12 


OOESTOES  DO  DIA; 


observações  politicas  e  litterárias 


eseriptas  por  yários 


B 


POR 


j£uceo  ^aená^     (umannaA. 


TOMO  U 


RIO  DE  JANEIRO 

TYPOORAPHU  B  LITHOGRAPHIA  —  IMPARCIAL  — 

146  A   RUA  SBTE  DB   SETEMBRO    146  A 

18T1 


Adverlencia. 


^^^■^^^^^^«#%«%«NrfN^kM^h^«tf^^k^»tf«^ 


Várias  pessoas  collaboram  ii'esta  publicação  ;  cada 
uma  escolheu  um  pseudóuymo.  Teado-se  concordado 
em  plena  liberdade  de  redacção,  cada  signatário  só  é 
moralmente  responsável  pelo  que  subscreve. 


QUESTÕES  DO  DIA 


N".  91 


RIO  DE  JANEIRO  14  DE  NOVEMBRO  DE  1871. 


Veode-se  em  casados  Srs  E.  &  H.  Laemmert.— Agostinho  de  Freitas  Gui- 
marães âí  Comp.,  26,  rua  do  General  Camará.—  Praça  da  Constituição, 
Loja  do  canto.— Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119—  Largo  do 
Paço  n.  C—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis. 

A  sinoex^ldade  das  aooSes 
opposlolonlstas.- " 

As  opposiçOes,  nos  governos  de  livre  discussão,  para 
serem  úteis,  cumpre  que  sejam  verdadeiras  ;  e  para 
isto  devem,  nos  seos  justos  fins,  inlacar-se  em  máxi- 
mas, em  princípios  de  ordem  elevada,  tendo  somente 
como  poncto  objectivo  o  público  bem. 

As  opposições,  como  systema  assentado  unicamente 
com  o  empenho  de  derrubarem  os  homens  do  poder, 
sem  escolha  de  armas,  servindo-se  de  todas,  boas  e 
más,  com  tanto  que  obtenham  o  descrédito  do  governo, 
^sas  opposições  aninham  em  si  elementos  destruidores 
dos  princípios  regulares  da  ordem  e  das  conveniências 
governativas:  são  opposiçOes  pautadas  somente  por 
ambições  mal  contidas,  que  podem,  sim,  destruir,  á 
força  de  suas  incessantes  martelladas,  o  edifício  cons- 
tituidoy  se  conseguirem  transviar  a  opinião;  mas,  com 
certeza,  nada  conseguirão  recompor  durável  no  terreno 
político. 

Odillon  Barrot,  e  quantos,  na  mesma  plana,  hosti- 
lizaram nos  últimos  annos, excitando  as  paixões  popula- 
res,© governo  do  sábio  e  venerável  Luiz  Philippe,  iai- 
putando-lhe  erros,  que  não  havia  commettido,  e  reves- 
tindo de  cores  negras  as  menores  faltas  administrati- 
vas, sempre  no  tom  de  desconceito  á  monarchia  de 
Julho,  ficaram  surpreendidos,  quando  viram  baquear 
essa  monarchia,  que  não  queriam  destruída,  e,  em 
aeo  logar,  erguer-se  a  república,  com  todos  os  seos 
demagógicos  furores,  que  deram  depois  em  resultado 
o  impário. 

Nas  vistas  do  illustre  Thiers,  o  grande  orador, 
quando  hostilizava  o  governo  de  Napoleão  III,  nfto 


4  XXI 

podia  intrar  o  desialace  que.se  âeu.  Adversário  siste- 
mático do  império,  orleaniBta  reconhecido,  elle,  sem 
dúyid»,  visava  a  substituição  da  ordem  de  cousas  exis- 
tente por  alguma  outra;  mas  essa  nao  era  a  república; 
era  uma  nova  monarchia. 

Sem  o  presentir  (fazemos-lhe  essa  justiça)  concorreu 
para  as  grandes  calamidades,  que  cairam  sobre  sua 
infeliz  pátria;  desmoronou-se  o  império,  mas  nSo  o 
substituiu  o  governo  que  desejava. 

Ninguém,  tanta  como  elle  (porque^  nenhum  outro 
consegiuira  tfto  grande  auctorídade  na  tribuna  com  im- 
portantes discursos,  preparados  com  tanto  esmero  « 
talento),  cavou  a  ruina  do  império  :  ninguém,  tanto^ 
como  elle,  animou,  affagou.  as  illusOes,  os  appetites 
guerreiros,  e  a  incontinência  politica  do  povo  trancez, 
sempre  inquieto,  sempre  vário,  sempre  ávido  de  novi- 
dades, como  bem  havia  apreciado  Júlio  César  nos  seos 
commentáríos  ha  19  séculos:  mas  intendera  errada- 
mente o  grande  orador  opposicionista,  que  sua  voz  só 
teria  o  alcance  que  lhe  queria  dar;  que  poderia  mode- 
rar 08  Ímpetos  da  naç&o,  e  guia!-os  com  osoccorro  dos 
eiTos  do  império,  atè  onde  (fazemos-lhe  também  esta 
jnstiçaj  considerava  exigil-o  o  bem  do  seo  paiz,  e  a  po- 
litica aa  sua  concepção. 

Quando  os  homens  importantes  por  suas  posiçOes  e 
por  seos  talentos  se  excedem  nos  seos  meios  de  oppo- 
siçao  contra  o  governo,  auctorizam,  com  o  seo  ceusn- 
ravel  exemplo,  outros  excessos,  que,  em  suas  consciên- 
cias, nao  poderão  approvar,  mas  contra  os  quaes  nao 
se  animam  a  protestar  abertamente.  E  accontece  que, 
assim  coUocados  em  um  plano  inclinado,  quasi  sempre 
vao  escorregando  gradualmente  para  um  terreno,  que 
nunca  poderá  convir-lhes,  e  no  qual,  ou  terão  de  sus- 
tentar posição  falsa,  ou  de  fazer  grande  esftrço  para 
voltarem  a  melhor  caminho. 

Foi  o  que  acconteceu  ao  illustre  Thiers.  Se  fftsse  po- 
litico tao  eminente,  ou  menos  apaixonado,  como  é  no- 
tável orador,  teria  sabido  regular  a  sua  opposiçao  ás 
faltas  graves  do  império,  de  moio  que  evitasse  o 
plano  inclinado,  por  onde,  a  seo  pesar  sem  dúvida,  se 
sentiu  resvalar. 

Em  politica  as  boas  intenções  nao  absolvem  dos 
grandes  erros  :  estes  somente  podem,  mas  apenas  eoo 
parte,  ser  attenuados,  ou  resgatados  por  importantes 
serviços,  como  aquelles  que  procura  prestar  actual* 


KXI  5 

mente  A  Franca  humilhada  o  eminente  chefe  do  poder 
«Kecntiyo. 

Se  a  história  dos  pas^sados  tempos  é  sempre  instruc- 
tira,  miais  proveitosas  devem  ser  para  os  governos  é 
jpara  os  povos  as  licçOes  dos  factos  contemporâneos  de 
países  que  marcham  na  frente  da  civilisação  do 
mundo. 

  França,  a  orgulhosa,  a  poderosa,  a  gloriosa 
França  d&-nas  actualmente  prova  bem  digna  de  estudo, 
-com  as  tristes  e  espantosas  peripécias  porque  tem  pas- 
sado n'estes  últimos  tempos. 

D'onde  tem  nascido  essa  lucta  continua  d*aquelle 
nobre  paiz,  no  redemoinho  político  ? 
•  Como  o  doente  que  não  inrontra  no  leito  posição  que 
o  satisfaça,  procura  o  melhor  governo,  mas  nenhum  o 
contenta;  e  hoje  está  mais  distanciado  de  socêgo  po- 
litico, do  que  em  qualquer  outro  período  de  sua  exis- 
tência, visto  como  tudo  alli  actualmente  é  transitório. 
Nada  aprendeu  no  passado:  saberá  agora  aprender 
com  a  dolorosa  licçao  presente  ? 

A  tribuna  e  a  imprensa,  grandes  pliaróes  da  civili- 
sação moderna,  e,  antes  d'elles,  e  com  elles,  aphiloso- 
phia  que  illustra,e  guia  o  espirito  humano,preparando 
os  povos  para  bl^  grandes  conquistas  moraes  no  per- 
passar das  edades,  fízerara  da  França,  não  ha  dúvida, 
iim  grande  paiz,  nas  lettras,  nas  artes,  na  riqueza,nas 
indústrias,  na  força,  e  na  glória. 
*  Consagrado  como  verdadeiro  este  princípio,  a  França 
tem  sido  ao  mesmo  tempo,  mais  que  algum  outro  paiz 
do  mundo  civilizado,  victima  dos  excessos, das  paixões, 
dos  erros,  e  da  fallácia  arguciosa  da  tribuna,  da  im- 
prensa, e  da  philosophia  mendaz,  que  lhe  cavaram  a 
queda  horrorosa  no  abysmo 

Princípios  exaggerados  ou  falsos  fizeram  alli  pullu- 
lar  escriptos  de  doctrinas  perniciosas,  influindo  de 
modo  deplorável  sobre  o  characttr  das  turbas  menos 
instruídas,  e  o  geral  do  povo. 

E  este  mal,  que  é  grande  na  França,  também  se  tem 
inoculado,  e  vai  fazendo  sequella  era  outros  paizes  ; 
▼ai-se  tornando  um  perigo  de  todos  os  dias,  nos  povos 
do  anti»ro  continente. 

A  commuiia^  que  tao  desastrosa  se  ostentou  com  esse 
desfaçamento,  que  surprendeu  o  mundo  inteiro,  alta- 
mente denuncia  o  relaxamento  dos  indispensáveis  vín- 
-culos  da  sociedade  humana. 


6  XXI 

A  Internacional^  sua  sócia  6  irmã.  gémea,  declarando 
guerra  ao  capital,  ou  querendo  subordinal-o  à  bitola 
de  uma  insensata  economia  política,  denuncia  a  au- 
sência de  todo  o  bom  senso  nas  numerosas  classes  ope- 
rárias de  diversos  paizes  europêos;  porque  sem  o  capital 
o  trabalho  não  pode  ser  fundado  ;  e  se  não  ha  capital 
que  anime  o  trabalho,  este  não  pôde  existir;  e,  se  não 
ha  trabalho,  o  povo  fenece  na  miséria. 

A  sociedade,  em  suas  condições  de  ser,  nos  elos  que  a 

f>rendem  em  laços  necessários,  só  pôde  manter-se  regu- 
ar  com  essa  harmonia  que  resulta  da  reunião  das  for- 
ças de  cada  um,  e  com  a  troca  dos  serviços  e  auxílios 
de  todos  entre  si. 

Os  lavores  não  podem  ser  eguaes,  porque  as  aptidões 
differem,  e  umas  são  mais  lucrativas  do  que  outras  ! 
A  actividade  individual  e  a  intelligencia  nao  são  egua- 
ladas  pela  natureza. 

Uns  nascem  com  propensão  para  o  commércio;  outros 
para  as  artes  ;  outros  para  tal  ou  tal  industria. 

Este  têm  queda  para  a  poesia  ;  aquelle  para  a  pin- 
tura :  uns  para  as  sciencias  e  estudos  superiores,  e 
outros  para  a  lavoura  ;  e  assim  por  deante. 

Ora  o  que  é  certo  é  que  todas  as  classes  dependem 
umas  das  outras,  as  ricas  como  as  pobres  ;  e  d'ahi  essa 
harmonia  que  fortifica  a  todos,  arapajando-se,  com  o^ 
secs  meios  uns  aos  outros  no  interesse  commum  e 
geral. 

A  communa  inspirou-se  nas  idéas  perniciosas  de  es- 
criptores  sem  consciência,  que  empregaram  e  empre- 
gam o  talento  em  especular  sobre  os  ânimos  da  mul- 
tidão, qUe  sonha  venturas,  acceitando  taes  doctrinas. 

São  despresiveis  especuladores,  que  merecem  o  aná- 
thema  da  sociedade. 

Mas  não  são  somente  os  que  assim  tão  baixa  e  peri- 
gosamente especulam  com  o  povo  os  que  devemos  con- 
demnar. 

Os  demolidores  políticos,  que  se  arvoram  em  de- 
fensores de  princípios  que  ninguém  ataca,  o  inventam, 
a  seo  bel  prazer,  factos  que  adulteram,  ou  os  desfigu- 
ram, mentindo  á  consciência  do  dever  de  bons  cida- 
dãos, são  justamente  merecedores  da  expnibraçao 
geral. 

No  nosso  paiz,  se  não  ha  apóstolos  do  communismo, 
nem  filiados  da  Internacional,  ha  certos  regeneradores 
da  sociedade  política  brazileira,  que  estão  de  continuo 


XXI  7 

a  insinar  idéas  contrárias  à  ordem  politica  existente, 
como  salvatério^  que  trará  ao  paiz  uma  edade  de  ouro. 

Em  outra  linha  de  combatentes,  ha  muitos  que  in- 
tendem despender  bem  toda  a  sua  actividade  intel- 
lectual,  e  fazer  justa  applicação  do  seo  patriotismo, 
atiçando  o  fogo  sagrado  da  liberdade  com  uma  oppo- 
siçâo  constante  aos  actos  do  governo,  e  mais  ainda,  se 
taes  actos  têm  cunho  conspícuo  na  ordem  administra- 
tiva. 

Ora  das  folhas  opposicionistas  o  governo  não  pôde 
esperar  louvores  ;  mas  entre  o  louvor  de  que  prescinde 
e  a  censura  baseada  em  falsa  appreciaç&o,  ha  grande 
distancia. 

Esta  politica  de  verdadeira  personalidade  podia  bem 
ser  substituida  por  outra  mais  elevada,  eque  justamente 
o  paiz  agradeceria,  occupando-se  as  folhas  opposicio- 
nistas das  muitas  necessidades  de  ordem  industrial  e 
económica,  e  também  de  várias  leis  administrativas,  no 
interesse  da  boa  governança  do  Estado. 

A  licçao  das  desgraças  estranhas,  a  experiência  do- 
lorosa dos  outros  paizes  n9o  lhes  insina  o  perigo  das 
talsas  idéas,  e  das  ambições  incontinentes  ? 

Dar-se-ha  caso  que  nunca  se  po.ssa,  ou  se  queira 
aprender  nos  males  alheios  ? 

Triste  obcecaçao  da  raça  humana!...  muitas  vezes 
nem  a  experiência  própria,  por  dolorosa  que  seja,  serve 
de  correctivo,  e  evita  a  repetição  dos  erros !... 

Como  amigo  sincero  da  nossa  pátria,  sempre  con- 
demnaremos  a  política  regulada  pelos  interesses  mo- 
veis e  egoístas  das  facções. 

JUNIUS. 


Oarta  5« 

DE  CINCINNATO  A  SEMPRÒNIO. 

Rio,  9  de  novembro  de  1871. 

Respeitável  Semprónio. 

Tenho  a  stulta  manha  de  muitas  vezes  discursar  de 
alhos  quando  se  tracta  de  bugalhos  ;  e  se  me  cai  a 
talho  de  fouce  uma  leitura  que  me  quadra,  transcrevo 
logo,  embora  venha  despropositada;  e  comod'istojá 
agora  me  nfto  emendo,  porque  quem  torto  nasce,  tarde 
ou  nunca  se  indireita,  lá  vai  uma  das  taes  leituras, 
sem  atilho  nem  vencilho. 


Celebrava-se  antigamente  em  algumas  egrejas  do 
Norte,  por  £ns  de  dezembro,  uma  ie^t^  denominada 
Libertas  decemjbrka^  ou,  mais  commupaojiante,  do  Papa 
fytuorum.  Np  tempo  dos  officios  divinos,  saiam  da  ca* 
tliedral  os  clérigos  emmascarados,  ou  em  trajos  mu* 
llieris,  ou  vestidos  de  bQbus  e  chocarreiros,  dançapdo 
jà  saltando  e  correndo,  qom  grandes  alaridos.  Junctos 
jQo  choro,  can^vam  cftntigas  deshonestas,  faziam  dos 
altares  mesas,  com  grandes  comesanas  e  galhofas,  dei- 
tavam solas  de  chichellos  nos  thuribulos,  e  com  fétido 
luuio  incensavam  as  paredes,  e  com  outras  sacrílegas 
ep^travjagancias,  procediam  &  eleição  do  seo  Poutifíce, 
que  tinha  por  titulo  O  Papa  dos  fátuos.  Foi  conti- 
nuando este  b&rbaro  escândalo,  até  que,  em  1444,  os 
theólogos  da  faculdade  de  Paris,  com  a  circular  que 
dirigiram  aos  prelados  de  França,  e  que  depois  foi 
]àada  á  luz  por  João  Savaro,  extinguiram  a  festa  do 
Pçipa  fatuorum.  Fizeram  muito  bem,  e  estou  conven- 
cido de  que  nunca  mais  se  rastabelecerà  o  ridículo  pro- 
topapado. 

Emfim,  deixemos  os  assombrosos  costumes  da  edade 
média,  tão  outros  dos  actus^s,  e  continuemos  a  nossa 
pr&tica  litterária. 

Uma  folha  d'esta  capital,  de  aspirações  adeantadis- 
simas,  dâ  ao  orbe  intellectual  a  fausta  notícia  de  que 
ás  suas  columnas  coube  a  glória  de  serem  escolhidas 
para  uma  nova  brilhatura  romaatica  do  Sr.  José  d'A- 
lencar,  o  conservador.  Hade  chamar-se-lhe..  O  TU  I  e 
justificar  a  qualificação,  já  dada  ao  seo  auctor,  de  chefe 
da  litteratura  brazileira.  Podes  imaginar  com  que  an- 
ciedade  é  esperado  o  novo  parto  da  fecunda  musa,para 
glória  nacional,  orgulho  e  desvaiíecimento  (da  pá- 
tria [sic). 

E  para  matar  o  tempo,  que  tão  moroso  se  espre- 
guiça até  á  chegada  do  apregoado  Messias,  vamos  con- 
tinuando a  examinar,  com  profundo  respeito,  a  ele- 
gante defesa  que  Senio  publica,  de  si  mesmo,  pela  voz 
do  seo  confrade  V.,  nas  Palestras  áo  Diário.  Segue- 
se  a  4'.  : 

§  7.**   As  citações  erradas. 

A  primeira  cousa  que    me  chama  a  atteução   são 
as  duas  citações,  portugueza  e  latina,  por  onde  a  vasta 
erudição  do  meo  indómito  contendor  começa  desde  logo 
.a  patentear-se  :  patuit  dea  I 


JXL  9 

Já  temos  observado  quão  competente  é  Seaio  na... 
lioguagem  enérgica  :  ora  as  accumulaçoes  estão  pro- 
Mbidas,  e  um  homem,  por  mais  admirável  que  nos 
pareça,  nao  pôde  ser  omnisciente.  As  orelhas  do  porta- 
voz  de  Senio,  quaesquer  que  suas  dimensões  sejam, 
-está  visto  que  tem  mal  collocados  os  anfractos  e  emi- 
nências do  seo  helix  e  anthelix  :  são  antípodas  da  har- 
monia métrica,  e  sou  eu  o  primeiro  que  pugno  pela 
coherencia  do  meo  nobre  adversário,  ao  menos  n'este 
poncto:  nunca  emprega  u  ma  citação,  em  idioma  al- 
gum, que  a  não  estropie  radicalmente  ;  e  tão  feliz  é 
na  solução  d'e3te  problema,  que,  se  Herodes  tivesse 
sido  egualmente  severo  em  não  poupar  um  só  innocen- 
te,  o  menino  Jesus  não  houvera  escapadq  ao  tetrarcha 
da  Judéa!  Ora  eis-aqui  citações  feitas  pelo  bom  do 
Senio  n'estas  Palestras.  Em  latim,  diz  elle  : 

SiccstidcB  MusoB,  paulo  majora  canamus. 
Devia  escrever : 

Sicelides  Musob,  paulo  majora  canamus  ( Virg.  Egl.  4) 
E  até  no  macarróníco  erra,  pondo  : 

Pfós  quoquegens  samus,  et  cavalgara  sabemus.  (Palito) 
E  n'outro  íogar,  trazido  como  Pilatos  ao  credo: 

...  trensversis  tiientibus  hircis, 
leia-se  : 

...  transversa tuentibus  hircis   (Virg.  Egl.  3) 
Em  france/.  erra  os  versos  da  Racine,  di-^endo  : 
CependaiU^  sur  le  dos  de  la  píaine  huinide, 
s^élève  à  g^oss  bouillons  une  montugne  liquide^ 
quando  o  que  o  harmonioso  vate  escreveu,  foi  (  como 
já  notei ) 

Cependant,  sa^  le  dos  de  In  plaina  liquide 
s^éUve  à  gros  í^uillons  une  montagne  humide. 
Mas  quH   arimira  se  as  orelhas  e  o  sentido,  nem  se- 
quer em  portuguez  o  ajudam  !  E'  assim  que  cita  uma 
quadra,  que  é  da  3*.  carta  do  Toleutino  (ao  cabellei- 
reiro)  as.^im  .* 

Mil  vezes  travessas  musas 
da  obra  o  desviam  ; 
e,  mostrando -lhe  o  tincteiro, 
pós  e  banhas  lhe  escondiam, 

quando  no  4"  verso  a  palavra  é  no  singular,   banha;  e 
o  2*.  é : 

da  baixa  obra  o  Jesviam 

^tc.    etc.    Nem  assombra  que  imagine    serem   tudo 


•  J  -ii llj.l 


10  XXI 

aquillo  versos,  quem  desde  a  1".  Palestra  se  mostrou 
tao  intelligente  d'elles,  que  a  terminou  por  estes  dous, 
nao  de  ane  menor,  mas  de  arte  mínima  : 

Cobre  o  rosto  ^  Lusitânia  I 
Querem  fazer  de  ti  Lapónia  I 

E  nao  te  ponhas  tu  agora  a  imaginar  serem  tudo  isto 
innocentes  incúrias  typcgráphicas,  como  vais  ver. 
Tendo  no  Jonial  do  Commercio^  do  dia  19  de  octubro, 
apparecido  um  artigo,  cujo  auctor  te  dou  minha  pa- 
lavra que  ainda  hoje  ignoro  quem  seja,  e  em  que  o 
Sr.  V.  é  posto  no  seo  logar,  saiu-se  este  critico,  logo 
no  dia  seguinte,  com  uma  Palestra  avulsa^  em  resposta, 
onde  se  lê  o  seguinte  : 

ií  Ora  pillulal  e  eu  nao  ia  tomando  ao  sério  este  sub- 
«  jeito  que  fala  em  estropeari  vejam  como  citou  o 
«  lindo  verso  de  Camões  !  Em  vez  de 

«  Ohl  tu  que  tens  de  humano  o  gesto  e  o  peito 
«  estropea-o  d'esta  forma  : 

a  Ohl  tu  quede  humano  só  tens  o  gesto  e  o  ptUo.)> 

Perdeu  portanto  todo  o  direito  de  escudar-se  com  os 
typógraphos  em  suas  citações,  quem,  depois  de  ter 
commettido  todos  aquelles  erros,  sem  os  emendar, 
e  nem  sequer  dar  por  isso,  se  appresenta  inexorável 
contra  um  erro  análogo  de  terceiro  (que  talvez  tivesse 
em  vista  fazer-lhe  o  epigramma  de  imital-o).  E'  lei  da 
natureza  que  eu  padeça  o  mesmo  que  eu  fiz  padecer  a 
outro;  é  o  que  os  Rabbinos  denominavam  Talião  idên- 
tico ou  pyíhagórico;  ao  pé  da  lettra:  é  a  applicacao  do 
Levitico  :  «  Quòd  si  quis  intulerit  corporis  vitiuni  pró- 
ximo suo,  quemadmodum  fecit,  sic  fiat  ei:  fractura 
pro  factura,  oculus  pro  óculo,  dens  pro  dente  ete.  » 

«    E   UM  CHARLATÃO  DE  TAL   JAEZ  METTIDO  A  CRÍTICO  I)> 

(  Phrase  nao  minha,  mas  com  que  este  mesmo  ve- 
nerando Sr.  V.  devida  e  charidosamente  síí  dignou 
flagellar-me). 

§  8°.  A  ambula  immensa  tem  só  duas  faces 
convexas :  o  mar  e  o  cèo. 

A's  vezes  hesito  quasi  na  paternidade  das  Palestras  : 
sao  ellas  de  Senio,  ou  de  algum  figadal  inimigo  seo  ? 
Quando  uma  vez  se  teve  a  infelicidade  de  atirar  ao 
papel  phrases  assiai,  o  único  arbítrio  prudentíí  ê  con- 
tinuar no  anterior syste ma:  esmagar  os  censores  com 
o  silencio  do  mais  soberano  desprêso  ;  d'esse  modo  ha 
certa  coherencia  com  uma  phrase  que  ouvidos  fidedig- 


XXI  u 

nos  attribuem  a  Senio:  «  Eu  minca  leio  o  que  se  escreve, 
em  mal^  de  mim,  »  Ha  nestas  baforadas  seo  quê  de 
pantafaçudo,  mas  lambeu  de  habilissimo.  Agora  sus- 
tentar polémica  sobre  evidencias  d*estas  f  trazer  o 
ite^^m' Chrispinus  para  uma  causa  perdida  !  fazer  do 
sambenito  galla !  é  manifestamente  zombar  do  bom 
senso  público.  E  com  que  vem  Senio  á  praça  ?  ouça- 
mol-o,  supprimindo  sempre  as  phrases  mais  ascosas^ 
mas  conservando  toda  apossança' da  alta  argumen- 
tação: 

« — E'  claro  que  o  auctor  observa  esse  orbe  do  lado 
«  de  fora  ;  e  comparando  (  o  que  *? )  com  uma  immensa 
a  ambula,  imagina  suas  faces  exteriormente,  e  portanto 
«  convexas.  » 

Que  defesa  esta,  sancto  Deus  !  Ignorar  o  que  seja 
convexidade  pôde  denotar. .  .isto  ou  aquillo,mas  nao  está 
condemnado  pelo  Código  Penal  nem  pela  cartilha  da 
Padre  Ignacio.  Agora  o  que  dos  Códigos  Penaes  passa 
para  os  Moraes  são  as  circumstancias  aggravantos  que 
n'este  caso  se  dao  de — ter  o  delinquente  reincidido  em 
delícto  da  mesma  natureza  —  ser  impellido  por  motivo 
reprovado — dar-se  a  premeditaçao — haver  procedido 
cora  fraude — ter  precedido  ajuste  entre  2  indivíduos 
para  o  fim  de  commetter-se  o  crime. 

Ora  pois,  como  quem  nao  pôde,  trapaceia,  eis-aqui 
como,  (  aiuda  assim  para  se  sair  com  tão  melancólica 
apologia '•  Senio  obrou:  havia  elle escripto  no  Go/úcho 
(p.  2): 

— «  No  seio  das  ondas,  o  nauta  sente-se  isolado  ;  é 
«  átomo  involto  numa  dobra  do  infinito.  A  ámbula 
«  immensa  tem  sô  duas  faces  convexas,  o  maré  o  céo  » 

Desenvolve  o  aspecto  do  mar  e  do  céo,  vistos  pelo 
nauta,  com  o  intuito  de  appresentar  a  ccmtraposição 
do  chão  e  da  atmosphera que  em  seguida  pinta,  vistos 
pelo  viandante  ua  savana. 

Então  quem  observa  o  mar  e  o  céo  ?  é  o. auctor  ou  é 
o  nauta  ? 

E  ha  mais  :  Para  se  livrar  do  absurdo  que  se  lhe  pa- 
tenteou, cai  nesta  coarctada,  e  agora  em  absurdo  ainda 
maior.  CoUoca  o  observador-auctor  da  parle  de  fora  das 
duas  faces  convexas,  isto  é,  para  alem  do  mar,  para 
aleui  do  céo,  para  alem  do  infinito  !  De  lá  esse  divino 
Ivuce  entre  o  qual  e  o  nosso  mar  se  interpõe  milhões 
de  milhões  de  léguas  e  de  astros,  divisa  distinctamente 
Lão  só  o  nosso  planeta,  que  nem  em  forma  de  nebulosa 


12  XXI 

lhe  seria  dado  inxergar,  e  em  vez  de  só  lubrigar  dis- 
tinguiria nelle  clarameute  a  parte  equórea,  e  reconhe- 
<^eria  manifestamente  a  sua  lorma  convexa !  Habilida* 
des  !  Mas  o  que  maior  habilidade  seria  ainda,  é  a  se- 
g-unda  parte.  Onde  collocaria  o  auctor  o  seo  observatório 
de  alem-universo,  para  vir  dar  à  humanidade  a  incrivel 
uoticia  1°.  de  que  ha  um  logarfóra  do  infinito  e  das 
^uas  dobras,  2**.  que  o  universo,  visto  d'esse  logar,  é 
convexo  ? 

Eis  os  despropósitos  a  que  nos  levam  emendas  fal- 
sas,  e  que  ainda  assim  hcam  peiores  que  o  soneto. 

Deixemo-nos  de  novas  tricas  e  alicantinas,  geradoras 
de  ainda  mais  estupendos  disparates,  é  o  nauta 
quem,  no  Gaúcho,  vê  as  duas  convexidades,  asquaes 
constituem . .  .uma  perspectiva  concava,outra  horizontal! 

Todavia  parece,  quanto  a  estas  apparencias  ópticas, 
que  ha  mares  e  mares,  e  agora  scei  que  nas  viagens, 
por  ex.  até  Macahé,  a  vista  é  outra,  pois  me  ensina  o 
Sr.  V.   como  a  cousa  é. 

Pergunta  em  que  díccionário  pesquei  o  termo  hori- 
zontalidade^ e  tenho  a  honra  de  responder-lhe  que  no 
diccionario  das  Necessidades  e  do  senso  commura. 
«Quando  a  lingua  me  ensina  que  a  parte  internado 
uma  esphera  oca  constitue  uma  concavidade  e  a  externa 
uma  convexidade ye^tk-me  auctorizando  a  chamar  hori- 
zonlalidade[^OT  nao  se  poder  dar  a  idéa  senão  por  longa 
periphrase)a  parte  superior  de  uma  linha  que  se  cruza 
em  angulo  recto  com  a  vertical.  Venhamos  porém  ao 
que  importa,  qu^.  não  é  a  minha  vernaculidade,  visto 
como  todas  as  minhas  pessoaes  sabenças  entrego  eu, 
semphiláucias,ao  braço  secular  de  Senioá  C.  ,soberanoi5 
senhores,  dominadores  e  únicos  introductores  e  bele- 
guins de  todosos  neologismos  passados,  presentes  e 
futuros.    DizV  : 

«  Basta  ter  embarcado  para  se  saber  que  se  aíRgura 
<(  a  quem  está  no  mar  achar-se  dentro  de  uma  esphera; 
((  porque  o  horizonte  visual  não  é  como  o  horizonte 
«  matliemàtico,  perpendicular  ao  diâmetro  da  teri-a.  w 

Este  porque  é  uma  espécie  de  ergo  rosas,  porqxte 
nunca  tal  consequência  poderia  conter-se  era  simi- 
ihante  principio,  mas  ronca  bem,  e  representa  a  fun- 
dura dos  conhecimentos  mathemáticos  do  DoUore  En- 
ciclopédico chiamato  signor  Se)tio,  Mas  peço  ao  nosso 
Newton  se  digne  instruir-me  sobre  a  sua  curiosa  de- 
iiuição,  dissipando  as  dúvidas  originadas   da  minha 


XXI  t^ 

i&ópia.  O  hori^íonte  imaginário,  que  os  astrónomos  de- 
nominam racional  ou  geocêntrico^  será  acaso  uma  linha 
que  se  suppOe  passar  pelo  centro  da  terra,  dividindo 
a  esphera  em  duas  metades,  mas  parallela  ao  ho- 
rizonte astronómico  *?  e  este  horizonte  nao  é  o  plano 
tangente  ao  logar  oftde  o  espectador  se  acha  ?  §e  to- 
dos os  pontos  do  globo  podem  por  tanto  ser  o  ele- 
mento variabilíssimo  do  cálculo  db  horizonte  geocên- 
trico, como  é  que  o  preclaro  professor  do  observatório 
do  infinito  não  vê  nesse  horizonte  senfto  perpétua  per- 

gindicular  ao  diâmetro  da  terra  1  e  também  se  não* 
ra  receio  de  infadar,  quizera  aprender  se  a  tal  linha 
é  perpendicular  ao  diâmetro  ou  ao  contrário  perpen- 
dicular ao  eixo  da  terra,  pois  me  parece  que  dá  para 
tudo. 

Só  resta  por  tanto,  independentemente  dosscienti- 
ficos  porquês ^  a  certeza  de  que  o  olho  de  quem  viajA 
até  Macahé  persuade  o  nauta  de  que  sulca  o  centro 
de  uma  esphera,  a  qual  se  compõe,  já  se  vê,  de  uma 
abóbada  que  vai  para  cima,  denominada  firmamento, 
ejà  se  sabe,  para  symetria,  de  outra  egu ai  concavi- 
dade para  baixo  que  profunda  alé  ás  profundas,  fican- 
do necessariamente  o  nauta  em  situação  dolorosa  e 
vertiginosa,  com  risco  de  dar  um  trambolhão  por  allí 
abaixo,  mais  perigoso  que  o  que  no  S.  Luiz  deram  un& 
meninos  no  Mundo  ds  avessai.  Eu,  como  nunca  via- 
jei senão  até  Nictheroy,  tinha  tão  ridículo  olho  que 
toda  a  água  me  parecia  horizontal,  e  pôr-me-hia  a  rir 
de  quem  me  quizesse  persuadir  de  que  se  lhe  afigura- 
va estar  collocado  no  centro  de  uma  esphera.  Mas 
quem  sabe,  sabe. 

Completam-se  as  amabilidades  com  a  explicação 
da  âmbtila.  Diz  V  :  «  Confunde  âmbnla  (vaso  sagrado 
e  de  bocca  estreita  e  sem  gargalo)  com  um  frasco,  que 
chamaram  também  âmbula  os  antigos,  pela  simi- 
Ihaaça  de  bojo.  Com  que  sonhas,  porco*?  com  a  bo- 
lota etc.  y> 

Eu,  verdade  seja,  tenho  enorme  queda  para  os  li- 

anores  espirituosos,  e  rara  ó  a  semana  em  que  não  vou 
ar  com  os  ossos  no  xadrez  da  policia ;  mas  isso  não 
tira  que  o  termo  âtnbula  não  signifique  um  vaso  de 
vidro  ou  cristal,  com  maior  ou  menor  bôcca  ou  gar- 
galo ;  e  o  applicar-se  o  vocábulo  ao  receptáculo  do 
santo  chrisma  ou  do  óleo  com  que  os  reis  de  França 
se  ungiam  etc.  em  nada  lhe  altera    a  significação. 


16  xxr 

passo  na  vida  das  reformas,  é  sempre  o  primeiro  a  der* 
ramar  as  águas  do  baptismo  sobre  a  institaiçao,o  prin- 
cipio que  ha  de  nascer  para  a  nova  vida  social.  Com<> 
consequência  d'esta  verdade,  toúa  a  homenagem  ao- 
progresso  da  civilisação  e  da  scieneia  acham  sempre 
n'elle  o  mais  ardente  partidário. 

Por  tudo  isto  brilham  já  para  D.  Pedro  as  horas 
formosai  de  alegria  e  satisfacção  que  muitos  soberano» 
da  Europa  invejariam  para  si  ao  contemplar  o  enthu- 
siasmo  com  que  tem  sido  acolhido  o  sábio,  modesto  e 
virtuoso  guarda  da  liberdade  de  um  povo  no  mais  am- 
plo gõso  de  uma  existência  próspera  etranquilla. 

Se  olharmos  para  o  Mexico;se  examinarmos  como  em 
quasi  toda  a  América  vai  plantado  o  systema  queWas- 
nington  legou  aos  yankees;  se  lançarmos  um  lançar  de 
olhos  do  Prata  ao  Pacifico,  ha  de  o  coração  confranger- 
se-nos  ao  ver  tanta  discórdia  intima  alterando  de  con** 
tinuo  a  paz  das  familias;  e  o  homem  observador,  acy 
folhear  a  nistoria  contemporânea  da  América,  fixando 
toda  a  sua  attenç&o  nas  páginas  que  tao  ricos  exem- 
plos offerecem  á  humanidade,  e  ao  referir- se  ao  Brasil, 
dirá  espontaneamente  :  Eis  o  paiz  mais  feliz  da  terra? : 
eis  onde  o  império  é  paz,  porque  o  chefe  do  e^adò 
é  o  primeiro  cidadão  da  nação,  pela  religião  do  dever  e 
da  honra.  [Brasil^  jornal  de  Lisboa). 

NOTICIÁRIO. 

Pantheon  MARANHENSE. — O  cxmo.  sr.dr.Antonio  Hen- 
ríques  Leal,  distincto  maranhense  e  muito  considerado 
na  república  das  lettras,  vai  publicar  uma  obra  com  o 
titulo  doesta  noticia. 

Constará  esta  obra  de  três  volumes  em  8®.  grande, 
contendo  as  biographias  dos  maranhenses  fallecidos 
que  honraram  a  província  pelos  seos  escriptos,  e  pelos 
seos  serviços  á  pátria,  entre  os  quaes  Odorico  Mendes, 
Gonçalves  Dias,  Sotero  dos  Reis,  Lisboa,  dr.  Joaquim 
Gomes  de  Souza,  barão  do  Pindaré,  Jos^  Cândido  de 
Moraes  e  Silva  (Pharol),  brigadeiro  Falcflo,  senador 
Franco  de  Sá,  Trajano  G.  de  Carvalho,  António  Fran- 
cisco de  Sá  etc. 

Portugal  que  se  ufana  de  ter  em  seo  seio  este  dis^ 
tincto  ornamento  da  litteratura,  applaude  já  também  a 
notícia  e  espera  ancioso  por  este  trabalho,  que  hade  de- 
certo ser  digno  do  já  tao  respeitável  nome  do  sr.  dr. 
Leal,  (Idem). 


QUESTÕES  DO  DIA 


]sr.  22 


RIO  DE  JANEIRO  24  DE  NOVEMBRO  DE  1871. 


VeDde-M  em  casa  dos  Srs  E.  &  H.  Laemmert.— Agostinho  de  Freitas  Gui- 
■aries  &  Comp.,  26,  rua  do  General  Gamara.—  Praça  da  Constituição, 
Lqjado  canto.— Livraria  Académica,  Rua  de  S.  José  n.  119 — ^  Largo  do 
Paço  n.  C.—  Rua  de  Gonçalves  Dias  n.  79.  —  Preço  200  reis. 

^ — ^^^—^-^^——^^^—^^-^^^ 

A  Repiil>lloa  e  os  estudantes. 

I 

Quem  (mmr,  sem  maior  reflexão,  os  echos  de  certo  s 
órgãos  da  imprensa  brazileira,accreditará  que  o  her- 
pe  lento  da  corrupção,  lavrando  surdamente  pelo  or- 
ganismo social,  tem  invenenado  as  fontes  da  vida 
a  esta  grande  e  poderosa  nação,  anniquilando  n'ella 
todos  08  princípios  de  ordem,  todas  as  ideas  do 
honesto,  todas  as  aspirações  de  liberdade  e  justiça. 

—  «A  ineptidão,  a  ignorância  e  a  immoralidade 
( brada  um )  mcarnam-se  hoje  nos  altos  funccioná- 
rios  do  Estado,  que  são  os  depositários  do  poder 
e  os  directores  da  suprema  administração.  Nuilida- 
des,  que  nunca  sonharam  surgir  da  sombra,  a  que 
estavam  condemnadas ;  espíritos  mesquinhos  e  ta- 
canhos, cujo  horizonte  intellectual  é  tão  acanhado 
como  o  do  campanário  em  que  nasceram,  sentam- 
se  hoje  nos  conselhos  da  coroa.  Incapazes  de  com- 
prehender  ( quanto  mais  de  desempenhar)  a  mis- 
são árdua  e  sublime  de  dirigir  os  destinos  de  um 
povo  nobre  e  generoso,  imprimindo-lhe  a  direcção 
aue  reclama  o  espirito  do  século,  servem  somente 
ae  rémoras  animadas  ao  progresso  e  desinvolvi- 
mento  d'esta  parte  da  livre  América,  que  recebeu 
e  aperfeiçoou  o  legado  de  civilisação  do  velho 
mundo,  a  quem  ha  de,em  breve, substituir  nocyclo 
do  processo  humanitário.  )> 

—  «A  monarchia  (acode  outro)  é  uma  instituição 
caduca  e  anachrónica,  que  se  esboroa  e  desfaz  em 


u 


XXII 


I  pó  á  luz  das  modernas  idéas,  como  ao  contacto  do 

Par  se  dissolve  o  cadáver  incerrado  ha  séculos   na 

catacumba.    A  realeza — adoração    de  um  fetiche, 

fenuflexão  a  um  symbolo  illusório — não  está  jà  era 
armonia  com  o  estado  de  perfeição  da  actual  so- 
ciedade. E'  a  essa  obsoleta  e  caduca  forma  de  go- 
verno ;  é  a  essa  ficção  ridícula  e  incompatível  com 
a  dignidade  humana,  que  torna  sagrado  e  infallivel 
fc^um  nomem,  collocando-o  n'uma  esphera  superior 
fás  fraquezas  communs  de  seos  similhantes;  é  a 
fessa  mascarada  ignóbil  e  truanesca  que  deve  o  Brazil 
I  arrastrar^e ainda  hoje  na  retaguarda  do  progresso, 
Lmiando  outras  nações  menos  favorecidas  da  Provi- 
Idencia,  mas  em  cujo  seio  germinou  e  deu  sasona- 
Idos  fruclos  a  semente  plantada  por  Washington  e 
Franklin  no  Novo  Mundo,  occupam  logar  de  honra 
o  mappa  dos  povos  cultos.  » 
E  em  seguida  a  tão  estranhas  tbeorias,  concluem 
b^os  raptos  declamatórios  com  o  estribilho  força- 
■do: — «  Uetirae-vos  do  poder,   toupeiras;  deixae 
que  as  águias,  únicas  que  podem  incarar  de  frente 
o  sol  das  excelsas  regiões,  pousem  em  penelraes  das 
régias  olympicas ;  em  vossas  mãos,  inexpertos  Phae- 
tontes.  afrouxam-se  os  bridões  á  quadriga  do  sol, 
e  o  carro  vai  ás  tontas  errando  pelo  espaço,  até  que 
tombe  em  terra,  levando  comsigo  oincendioca 
devastação. 

Mas  para  que  o  bom  senso  público,  único  juizo 
ampetente  e  irrecorrível,  recebesse  o  libello  ac- 
-cusatório  e  os  artigos  de  preferencia,  appresen- 
tados  pelos  apó^toIus  das  novas  idéas,  fora  de 
mister  que  um  e  outros  viessem  acompanhados 
de  provas  concludentes  e  irrecusáveis. 

Cumpria,  antes  de  tudo.  pôr  em  relíívo  e  levará 
luz  da  evidencia  a  falta  de  habilitações  dos  Pali- 
nuros  que  empunham  o  timão  ao  leme  da  nau  do 
Estado. 

Imputações  de  lál  gravidade  não  são  accreditadas 
pelo  simples  enunciado.  Ciíae  os  factos  I  aponctae 
os  erros  f  descarnae  as  misérias  da  alta  adminis- 
tração I  e  a  nação  inteira  vos  será  grata  por  haver- 


XXII  19 

des  arrancado  ás  gralhas  as  pennas  do  pavão,  e 
reduzido  a  suas  reaes  proporções  os  pigmeos,  que 
tentam  inculcar-se  gigantes,  subindo  em  andas  de 
taquara.  Eia,  senhores  da  imprensa  regeneradora ; 
despi  os  histriões  de  seos  ouropéis  e  lentejoulas ; 
desfazei  os  embustes  dos  prestidigitadores,   e  ex- 

Sonde^os  á  apupada  da  praça  pública  na  sua  ver- 
adeira  nudez. 

Mas  não  é  este  o  systema,  que  haveis  adoptado. 
Vossas  ousadas  asserções  vêm  sempre  á  luz  da  pu- 
filicidade  desaccompanhadas  de  demonstração,  sem 
apparencias  de  verdade,  e  até  sem  visos  de  plausibi- 
lidade. Abris  o  vocabulário  das  ir^júrias,  escolheis 
n*elle  os  mais  ferinos  doestos,  os  mais  affrontosos 
insultos  e  os  arrojais  a  mãos  cheias  contra  os  re- 
presentantes do  poder,  que  tem  direito,  senão  a 
vosso  respeito  e  deferência,  ao  menos  á  corteziá, 

3ue  se  devem  mutuamente  os  homens  bem  educa- 
os. 

E,  quando  desfeita,  ao  sopro  da  anályse,  a  volu- 
mosa bolha  de  sabão  da  vossa  objurgatória,  o  que 
se  vê?  Nada,  alem  de  mera  declamação;  naua, 
alem  de  factos  appreciados  sob  o  prisma  de  falsos 
princípios  e  desfigurados  pela  má  vontade  e  por 
inexactas  informações. 

E  quereis  que  sobre  tão  frágeis  alicerces  firme 
a  opinião  pública  um  veredictnm  condemnatório  con- 
tra eminentes  cidadãos,  cuja  primeira  virtude  é 
acceitar  o  poder,  n'uin  paiz  em  que  se  cospe  a  saliva 
da  injúria  e  o  veneno  da  calúmuia  contra  os  aue 
assim  alcançam  a  confiança  da  coroa  e  do  pana- 
mento  ? 

A  opinião  pública,  que  pretendeis  embalde  des- 
vairar e  illuair,  recusa  aahesào  e  cerra  ouvidos  á 
vossa  abstrusa  propaganda,  que  tende  a  desmora- 
lizar tudo  o  que  ainda  merece  o  respeito  e  a  vene- 
ração do  mundo. 

Elia  não  acceila  sem  prévio  e  rigoroso  examo,  sem 
escrupulosa  e  accurada  investigação  de  causa,  ossas 
sentenças  proferidas  por  vós  em  processos  raal 
instruidos  e  documentados,  e  com  os  quaes  jul- 


ao  XXII 

gais  na  vossa  apaixonada  mente  aue  apagastes  os 
nomes  de  vossas  victimas  do  rol  dos  cidadãos  be- 
neméritos. Nâo !  Titulos  de  benemerência  e  apti- 
dão, diplomas  de  incapacidade  ou  de  ignorância 
não  são  os  que  arvoram  o  estandarte  da  anarchla 
e  da  dissolução  social  que  os  podem  distribuir. 

E,  reconvindo  justamente  contra  vós,  pergun- 
ta-vos  a  sã  e  recta  consciência  da  sociedade  :  — 
Quem  sois  vós  ?  D'onde  vindes  ?  Que  documentos 
comprovam  a  vossa  capacidade  intellectual ,  os 
vastos  conhecimentos  administrativos  e  litterários 
que  alardeais  ?  Quaes  os  homens  competentes,  que 
vos  decerniram  o  bastão  de  juizes  dos  que  manu- 
seiam as  rédeas  da  suprema  administração  ?  Que 
provas  de  moralidade»  que  testimunhos  de  bom 
senso  e  de  independência  abonam  o  vosso  passado 
e  dão  arrhas  pelo  vosso  presente  ? 

O  silencio  da  vaidade  confundida  responde  a 
taes  interrogações;  a  desconfiança  olha  de  revez  para 
essas  typographias,  que  se  improvisam,  e  para 
alguns  d'esses  redactores,  que  n*ellas  tumultuam» 
quaes  inxames  de  ephémeras,  e  cujos  nomes, 
apenas  conhecidos  em  circulo  limitadissimo , 
ainda  não  resoáram  aos  ouvidos  de  seos  conci- 
dadãos como  reveladores  de  um  rasgo  de  civismo 
ou  do  mínimo  serviço  prestado  á  pátria. 

E  a  voz  da  verdade,  echoando  da  consciência 
da  sociedade,  brada  pujante  e  imparcial : 

—  «  Não !  Carecem  de  base,  ou  não  são  bem 
apreciados  os  factos  arguidos  aos  actuaes  chefes 
do  poder  executivo,  que,  unicamente  por  dedica- 
ção á  pátria,  exercem  o  ingrato,  bem  que  hon- 
roso cargo  a  que  os  chamaram  o  eleitor  dos  minis- 
tros e  os  próceres  da  Nação. 

«  Não  1  os  egrégios  cidadãos,  que  vós  amarrais 
ao  poste  da  diffa  mação,  não  são  nuUidades  philaa- 
ciosas,  que  subi.  sem  ás  altas  posições  por  mero 
acaso  ou  por  outra  influencia,  diversa  da  que  le- 
gitimamente lhes  dão. o  seo  merecimento  e  rele^ 
vantes  serviços  ô  causa  pública.  A  Nação  sabe 
devidamente  aquilatar  os  sacrificios,  que  para  ser- 


TÍl-a  fazem  esses  seos  filhos,  e  não  será  a  opinião 
peita  de  umpugiUo  de  ambiciosos,  que  lhe  apa- 
H  no  peilo  o  sentimento  de  gratidão. 
<  Nâo  I  A  Monarchia  no  Brasil  nào  é  rémora 
do  progresso;  é  sim  condição  essencial  do  desin- 
volnmento  d'esta  nova  terra  de  promissão;  a  rea- 
Uza  não  é  instituição  anachróhica  e  em  deshar- 
inonia  com  o  estado  de  civilisação  do  Brasil — é 
a  íórma  de  governo,  que  convém  ú  Índole 
Teste  povo,  e  a  cuja  protectora  sombra  têm  pros- 
perado as  suas  libérrimas  instituições  ;  não  é  um 
etUhe.  superstição  ridicula,  ou  symbolo  iUusório, 
que  offenda  a  dignidade  do  homem ;  6  sim  a  sal- 
vaguarda de  nossa  liberdade,  a  égide  de  nossa 
Bonstituiçào  politica,  a  acção  benéfica,  o  influxo 
alnlarde  nossa  vida  social.» 

Os  í|utí  condemnam  a  monarchia  como  eraba- 
Bço  ao  livre  caminhar  d'este  gigante  do  Novo 
Hnndo,  que  em  breve  ha  de  formara  syntheseda  ci- 
nlisação  do  continente  Sul-.\.mericano,  são  acco- 
Diidos  pela  parte  sensata  da  população  (a  quasi 
lolalidade  dos  brasileiros)  com  o  mesmo  surriso 
de  incredulidade,  que  fez  abortar  no  berço  as 
Iheorias  da  moderna  eschola  racionalista,  quando 
^tr^TU  que  o  estado  de  progresso  do  género  hu- 
mano demandava  uma  religião  mais  perfeita  que 
o  actual  catholicismo  ! 

Quem.  por  conseguinte,  ouvir,  reflectindo,  os 
fechos  d'e3ses  órgãos  da  imprensa  brasileira,  que 
^^  tornaram  vehiculos  das  reprovadas  doclrinas 
ue  consubstanciamos,  não  julgará  que  as  bases 
i  sociedade  estejam  abaladas,  e  que  marchamos 
_  ira  a  anarchia  c  para  a  revolução;  sentirá 
antes  confranger-se-lhn  o  coração,  por  ver  que  al- 
guns talentos  escolhidos,  que  podiam  dedicar-se 
ova  brilho  a  definir  e  propagar  os  verdadeiros  princí- 
ãos.  se  desvairam  pelo  matagal  emmaranhado  de 
heorias  sem  filiação,  imitando  a  voz  que  clamava 
to  deserto,  porque  não  terão  força  para  abalar, 
Kmdeleve,  em  seo  pedestal  a  monarchia.  inraizada 
1  fonição  e  no  espirito  dos  brasileiros,   nem  para 


22  XXII 

mareara  reputação  illibada  dosintegérrimoseillu»- 
trados    cidadãos  que  se  senlam  nos  conselhos  da 
coroa,  e  que  nas  bênçãos  dos  brasileiros  incootraitt 
recompensa  ás  provações  por  que  estio  passando. 
Pompeo. 
(Continua.) 


I*r*lmelra  oarta. 

MUCrO  SCCEVOLA  A  QUINTO  CINCINNATO. 
Rei  operam  dabo. 

Honrado  cidadflo  romano.  Tenha  accompanhado  os 
vossos  admiráveis  escriptos,  e  iiSo  sei  o  qiirj  inai»  poâaa 
maravilhar,  se  a  dicçilo  majestosa  com  que  tão  hem 
sabeis  sustentar  a  fidalguia  da  língua  tão  malbaratada 

Sor  bofarinheiros,  se  a  lóg:ica  irresistivel  com  que  an- 
ais patenteando  a  luz  da  verdade,  escondida  nos  ecli- 
pses de  despeitos  desarrasoados,  que  barafustam  por 
andurríaes  e  se  somem  nos  sorvedouros  subtwrfi- 
neos.  {•) 

Um  célebre  Basílio  Valentim,  là  imaginou  uma  en- 
tidade a  que  deu  o  nome  de  — íl.hcheo. — Paracelso  e 
I  Van  Hei moul, agarraram  este  Sr.  archéo  e  responsabili- 
saram-uQ  por  todos  os  phenómenos  da  economia  viva. 
I  Leibiiitz  creou  a  sua  harmonia  pre^tabeháda:  a  inglês 
,  Cudworth,  líi  forjou  o  seo  viedindor  plástico;  e  oa 
philósophos  modernos,  não  menos  opulentos  de  ima- 
ginação, e  nao  menos  vi.sionàrios  que  seos  anteces- 
sores, andaram  procurando  com  seos  mystérios  caba- 
lísticos a  pedra  philosophal,  e  U  nas  suas  elucubra- 
ções, à  força  do  muito  doudejar,  crearam....  o  poder 
pessoal,  e  fizeram  d'este  mylho  o  -■=«)  archéo  e  o  seo 
mediador  plástico;  fazendo  d'e8te  gigante  da  aUm- 
pada  maravithusa  de  Aladino  o  editor  responsável 
de  tudo  que  de  máo  accontecia  por  este  mundo  sub- 
lunar. 

Vós,  Cincinnaio  meo,  fostes  o  Hércules  da  mytholo- 
gia,  que  entre  os  vossos  doze  trabalhos  esmagastes  estg 


notável  escripto  de  uma  brilhantíssima  penna.  Esta  conai- 
peraçio  venceu  a  primeira,  cuja  fdrça  aliás  nío  denco- 
alieiemos. 


IXIJ  23 

novo  leão  da  Neméa,  nascido  aqui  n^esta  nossa  terra, 
onde  está  ainda  tudo,  muito  por  fazer,  e  onde  o  mecha- 
nismo  d'eâta  cousa  chamada  liberdade,  ou  como  melhor 
nome  haja,  est&  ainda  muito  por  compreender.  Ora, 
depois  da  explanação  larga  e  longa  de  vossas  magni- 
ficas theses  de  direito  constitucional  ;  depois  da  argu- 
mentação esplendida  e  concludente  dos  embargos  com 
.  Que  viestes  áquelle  libello  do  poder  pcissoalj  era  multo 
ae  esperar-se  a  contrariedade  cathegórica  e  na  altura 
dos  principies  tao  logicamente  postos.  Pois,  nada 
d'isso  aconteceu  :  acastellaram-se  na  taciturnidade 
do  surdo-mudoy  e,  como  este  desherdado  da  palavra, 
responderam  com  visagens  e  tregeitos  que  os  afearam, 
o  que  lhes  deslustrou  e  anniquilou  de  uma  vez  o  seo 
malfpdado  invento  do  mediador  plástico^  tao  mal  ca- 
bido em  cousas  sérias. 

Ora,  meo  estimável  Cincinnato,  vós  que  sois  homem 
da  roça,  como  eu,  que  vivo  pelos  desertos  d'esta 
Thebaida,  sabeis  que,  à  falta  de  convivência,  a  mór 
parte  das  vezes,  em  se  acabando  o  ser&o  fica  um  ho* 
mem  sem  nada  que  fazer  ;  ainda  quem  tem  livros, 
1&  vai  matando  o  tempo  o  melhor  que  pôde,  mas  quem 
nfto  os  tem,  como  eu,  nada  faz  ;  só  tenho  aqui  sobre 
uma  tulha  o  Lundrio  perpétuo^  o  Fios  Sanctorum  e  uma 
collecçSlo  de  folhinhas  do  Laemmertj  tudo  lido  e  re- 
lido ;  mas  tenho  cá  um  vizinho,  que  faz  divisa  pelo 
rumo,  e»se  recebe  os  jornaes  da  côrte^  de  5  em  5  dias, 
e  emprestá-m'os  para  que  eu  depois  lhe  conte  o  que 
n'elles  vem;  com.  esta  espécie  de  contracto  synalla- 
gm&tico  dou-me  bem,  porque  estou  i)*essas  horas  mais 
feliz,  que  os  sonhadores  de  repúblicas.  Leio-os  detida  e 
pausadamente,  como  quem  tem  de  repetir  a  licçao  de 
cór,  e  nas  horas  de  folga  ponho-me  a  scismar  em  todo 
esse  descalabro  que  vai  pelo  mundo  velho  e  pelo  mundo 
novo  e  que  também  se  reílecie  com  um  arremedosinho 
n'este  nosso  torrão,  tao  feito  para  a  paz  e  para  a  vida 
plácida  e  abastada. 

Dá-me  muito  que  pensar  esse  vozear  descompassado 
que  por  ahi  vai,  dos  que  gritam :  liberdade  e  mais 
uberdade  I  queremos  liberdade !  1 1  Então,  digo  entre 
mim:  ou  nós  n&o  temos  a  mesma  noção  d'este  vocábulo, 
ou  vós  não  sabeis  o  que  quereis  e  o  porque  gritais. 
Vás  dizeis,  que  viveis  tyrannicameute  opprimidos:  em 
coacção  permanente;  que  se  vos  tolhem  os  vossos  di- 
reitos; dizeis  tudo  isto  e  o  mais  que  vos  apraz  dizer;  eis 


24  XXII 

ahi  a  prova  pleua  e  ÍQconcusda  da  illimítada  e  dema- 
siada liberdade  de  que  gozais.  Fazeis  comicíos  e  a'elles 
só  aao  grita  quem  nlo  tem  bofes  para  tanlo;  escreveis 
deãcabelladamente,  na  explosão  do  despeito  e  da  cbólera, 
quauto  vos  dá  ua  gaaa;expoiideâ  tabolelas  auuuuciando 
a  — república — ;  desacatais  o  elemento  r^íligios'»,  e  o 
chefe  supremo  do  Estado;  desauctorisais  e  atFrontais 
com  os  epilhelos  mais  deprimentes  aos  mais  nobres  ca-  _ 
racteres,  aos  mais  conspícuos  e  prestantes  cidadãos  do 
vosso  paiz;  préguis  doctriaas  altaineiile  heterodoxas  e 
subversivas;  e  idea  em  paz  repousar  das  fadigas  e  co- 
lher oa  louros  de  vossos  tWumphos  declamatórios,  e  no 
dia  seguinte  ides  continuar  a  vossa  ladainha  de  todos 
os  dias.  Agora  dizei-me  francamente,  vós,  cavalteiros 
andantes  d'eata  inglória  cruzada!  pôde  haver  maior 
somma  de  liberdade  1  qual  é  o  paiz  do  mundo  em  que 
ella  é  mais  ampla,  mais  largamente  concedida,  mais 
usada  e  mais  abusada  f 

Se  no  vosso  sonhado  regimen  republicano,  alguém 
ousasse  levantar  o  grito — Viva  o  rei — qual  seria  a 
sorte  d'essemal  aventurado?  a  mesma  que  tiveram  mi- 
lhares de  suspeito.-^,  apenas,  de  idéas  de  ordem,  ua  re- 
publicaníssima convenção  nacional,  no  México,  na 
república  <le  Prim  e  de  Topete,  na  república  do  Para- 
guay,  que  também  era  república,  nas  repúblicas  do 
Prata,  onde  se  assassinam  os  chr-fes  dos  Estados  em 
pleno  dia  no  meio  das  ruas,  e  onde  se  dilaceram  os  filhos 
da  mesma  terra  com  guerras  fratricidas  que  nAo  teem 
fim,  e  em  toda  parte  onde  o  espírito  revolucionário  tem 
podido  assenhorear -se  e  derrocar  o  império  da  lei,  da 
ordem  e  do  bem  estar;  porque  emfim  os  taes  republi- 
canos representam  a  fábula  de  Saturno  :  quaudo  u&o 
podem  mais  nivelar  os  mais  altos,  pelo  pescoço,  come- 
çam a  devorar-se  uns  aos  outros,  e  cauçados  il'esta  he- 
catombe,  desingauados  pela  improcedência  prática  de 
suas  utopias,  intregam-se  de  braços  cruzados  ao  pri- 
meiro que  lhes  parece  que  tem  juizo  para  os  governar. 
Se  incontram  um  Carlos  II,  vai  tudo  mal,  porque  nao 
é  este  o  espirito  recto,  enérgico  e  forte  para  tirar  da 
voragem,  da  subversão  e  dos  destroços  a  ordem,  a  mo- 
Talidade  e  o  acatamento  ás  instituições  que  se  fundam 
no  bom  senso  e  que  asseguram  a  inviolabilidade  dos 
direitos  de  cada  um;  se  incontram  um  Napoleão  1,  tudo 
ressurge  das  trevas,  tudo  se  alumia  com  luz  espleo- 
dida;  o  paiz  prostrado,  exangue,  invilecido  e  coberto 


XXII  35 

de  minas  reconquista  nome,  honra,  glória  e  admira- 
-çao,  porque  n'eâte  ha  o  génio  creador,  a  elevação  do 
espirito  ao  apogêo  das  concepções  grandiosas;  ha  em 
summa  o  homem  moldado  e  destinado  por  Deus  para 
levantar  pelos  cabellos  uma  nação  a  quem  a  ferocidade 
sanguinária  dos  utopistas  havia  precipitado  no  abysmo 
das  abjecções  e  do  aviltamento. 

Paro  hoje  por  aqui,  meo  bom  Cincinnato,  nao  posso 
ir  adeante  com  o  turbilhão  de  pensamentos  que  me 
suggere  o  scismar  no  descalabro  que  vai  por  esse 
mundo,  que  Deus  em  sua  infinita  sabedoria  creon  com 
tantas  leis  q^ue  o  regem  e  o  dirigem,  e  que  os  homens 
•em  seo  desatmo  andam  a  ver  se  podem  fazer  voltar 
ao  chãos  d'onde  sairá,  pela  bondade  infinita  do  Omni- 
potente. 

Até  outra  vez. 

O  vosso  ex-corde 

MUCIO  ScdVOLA.. 


Deolma  sejcta  oai^ta 

DO  ROCEIRO  CINCINNATO  AO  CIDADÃO  FABRÍCIO 

Inappreciavel  amigo* 

Ja  me  tarda  que  acabes  lá  esses  teos  negócios  na 
invejosa  e  monopolisadora  Pindamonhangaba ;  e  até 
se  me  afl5.gura  que  se  nao  voltas  breve,  abalo  por  esses 
mares  e  terras,  e  dou  comigo  na  supradicta  cuja. 

Comptas-me  a  grande  figura  que  por  ahi  tens  feito,  o 
que  n&o  me  admira,  pois  conheço  os  teos  talentos,  e 
por  mim  scei  que  quando  nós  là  na  roça  recebemos  um 
figurfto  da  corte,  esmeràmo-nos  por  agradar-lhe,  e 
provar  que  também  somos  gente  e  avaliámos  o  qne 
^bom. 

Entre  as  tuas  tribulações  porém,  narras-me  a  da  per- 
seguição dos  albumSf  e  dizes  que  te  anda  o  bestunto  em 
polvorosa,  á  cata  de  ideas  miríficas  e  magniloquas, 

Jara  dar  vasAo  a  1798  albums  que  ahi  tens  por  cima 
as  cadeiras  e  do  soalho,  denunciantes  da  curiosidade 
intellectual  d'essas  damas  e  cavalheiros,  n'uma  área  de 
14  léguas  e  meia.  Chegou  tarde  a  mania  a  Pindamo- 
uhang^^aba,  mas  emfim  chegou  ;  que  dó ! 

Pedes-me  que  te  ajude  e  te  diga  alguma  cousa  de 
«unca  dicto  ou  feito  em  tal  matéria :   di/fidUm  rem 


26  XXII 

Estes  inimigos  d^alma  tem  tradição  muito  antiga  e 
aristocrática. 

As  auctoridades  em  Roma  empregavam  certas  pa- 
redes muito  alvas^  para  n'ellas  mandarem  gravar,  em 
cores  vermelhas  ou  pretas,  as  suas  ordenanças,  privi- 
légio entre  nós  monopolisado  pelos  agentes  do  Tónico 
Orientai^  Relojoaria  Gôndola  e  Vigor  d'  Ayer. 
^  Mais  por  aqui,  mais  por  alli,  havia  o  álbum  dos  decu- 
rioes,  o  do  pretor,  o  dos  juizes,  o  dos  senadores,  e  em 
fim  de  certas  classes  altas,  o  que  tudo  é  muito  mais 
velho  que  o  tempo  em  que  se  tomou  indispensável 
andar  de  chapeode  sol  aberto,  para  evitar  que  a  cabeça 
do  cidadão  seja  permanentemente  inundada  da  chu- 
vinha miúda  dos  albums  universaes. 

N'esse  tempo,  quem  punha  a  mao  para  apagar  uma 
só  leltra  d'esses  albums  era  punido  de  morte;  agora  sflo 
os  próprios  albums  que  nos  punem  de  morte  a  nós. 

Que  cada  um  tenha,  para  seo  uso,  e  para  a  sua  prá- 
tica, sós  a  sós  cora  a  consciência,  um  livrinho  de  recor- 
dações, umas  ephemérides  íntimas,  um  memorial  da 
memória,  um  álbum  da  sua  própria  cabeça  e  do  seo 
próprio  coração,  comprehende-se  :  é  condensar  maté- 
ria prima  para  o  dia  dfis  rememorações,  das  reflexões, 
das  saudades,  das  melancholias,  das  comparações,  das 
animações,  da  justiça  ou  do  arrependimento.  Também 
chamam  albums  a  esses  confidentes  íntimos  e  perigosos, 
visto  que  só  devem  servir  para  os  que  os  traçam,  sob 
pena  de  tornarem-se  muito  mentirosos,  ou  arriscada- 
mente denunciantes. 

Nao  é  raro  ver  o  viajante,  sobretudo  Irancez,  trazer 
comsigo  o  seo  a/6itm,  carteira  de  lembranças,  para 
lançar  um  esboço  de  paizagem,  cu  os  aponctamentos,. 
que  hao  de  senrir  depois  para  um  volume  illustrado, 
com  o  titulo  :  Impressões  de  viagem.  Sendo  francez,  a 
regra  é  esta : 

Dorme  o  viajante  n'uma  estalagem,  onde  lhe  dao 
uma  cama,  em  que  ha  pulgas.  Na  descripçSo  da  res- 
pectiva cidade,  lê-se :  — «  Por  contraposâçac,  ha  n*essa 
terra  uma  praga  inaudita,  peor  que  a  dos  gafanhotos. 
Todas  as  casas  sao  covis  de  pulgas,  ratos,  baratas, 
lagartixas,  carochas  e  mais  sevandija^s,  que  pulam, 
saltam,  mordem,  devoram,  palpitam,  e  atormentam 
principalmente  ao  estrangeiro  recem-chegado  ;  de  modo 
que  casa  onde  n&o  haja  um  maíorcarochas  fica  inhabi- 
tavel.» — Ao  erguer-se,  chega  á  janella,  e  vendo  em. 


XXII  27 

frente  um  rapazinho  a  tocar  realejo,  atira-se  logo  ao 
álbum,  e  escreve :  —  «O  grande  atrazo  d'esta  povoa- 

go  consiste  no  emprego  que  geralmente  se  d&  à  in- 
icia e  juventude :  todas  as  crianças  de  7  a  12  annos 
passam  a  vida  moendo  musica.  Como  é  possivel  que 
similhante  educação  não  embote  todos  os  sentimentos 
nobres  na  quadra  em  que  o  coração  dilatando-se  e  o 
espirito  assanhando-se,  tendem  a...  etc,  etc.  « 

Mas  a  raça  peor  dos  albums,a  mais  damninha,  ainda 
não  é  essa.  E'  a  que  reveste  a  forma  de  um  livro  parai- 
lelogrammatico,  capa  de  couro  da  Rússia,  rebordos 
dourados,  papel  apergaminhado  e  fechos  de  ouro,  tudo 
a  dizer :  Comei-me,  comei-me  I  Mão  mais  ou  menos 
mimosa  te  ofFerece  as  alvas  páginas  d'este  álbum,  para 
que  tu  lances  n^uma  d'ellasum  pensamento  (â  moda  de 
iim  senhor,  que  todos  nós  conhecemos). 

E'  caso  de  embatucar.  Se  alguém  dicesse  a  Triboulet 
ou  Bertholdo :  Diga  Id  uma  graça^  bastava  isso  para 
instantaneamente  o  des-salgar,  ou  para  heraclitar  um 
Demócrito. 

Celebro  portanto  e  communico-te  uma  noticia  que 
leio  n'uma  carta  de  Lisboa,  e  que  pelo  menos  torna  de 
ora  avante  toleráveis  e  não  inúteis  os  albums,  facili- 
tando nliás  o  trabalho  dos  míseros  contribuintes  para 
o  pagamento  d'éste  inexorável  foro. 

Uma  dama,  distincta  por  talento,  graça  e  formo- 
sura, tem  jà  no  seo  a/òtk^  uma  coUecçíio  muito  in- 
teressante de  autógraphos  das  mais  illustres  pennas, 
usando  de  um  processo  singelíssimo. 

No  recto  de  cada  folha  mandou  imprimir,  do  lado 
da  extrema  esquerda,  24  perguntas.  O  escriptor  não 
tem  mais  que  lançar  em  frente  d'ellas,  em  prosa  ou 
verso,  mas  em  phrases  curtas,  a  resposta  que  lhe 
apraz.  No  exemplar  que  eu  vi,  as  perguntas  era  \  em 
francez,  e  consistiam  no  seguinte  : 

1  Votre  vertu  favorite  ? 

2  Vos  qualités  favorites  chez  Thomme? 

3  Vos  qualités  favorites  cliez  la  femn^o? 

4  Votre  occupation  favorite? 

5  Le  trait  principal  de  votre  carr  ;tère? 

6  Votre  idée  du  bonheur? 

7  Votre  idée  du  malheur? 

8  Votre  couleur  et  votre  fle  ir  favorites  ? 

9  Si  voiis  n'étiez  pa3  vous,  qui  voudriez-vous  être  ? 
10  Oú  préféreriez  vous  vi\re  ? 


28  XXII 

11  Vos  auteurs  favorisen  prose? 

12  Vos  poetes  favoris? 

13  Vos  peíntres  et  compositeurs  favoris? 

14  Vos  héros  favoris  dans  la  vie  réelle  (rHistoire)t 

15  Vos  héroines  favorites  dans  la  vie  réelle  (  THis- 
toire)? 

16  Vos  héros  favoris  dans  les  romansou  lafable  ? 

17  Vos  héroines  favorites  dans  les  romans  ou  la  fable? 

18  Votre  nourriture  et  votre  boisson  favorites  ? 

19  Vos  noms  favoris? 

20  L'objet  de  votre  plus  grande  aversion? 

21  Qiiels  caracteres  détestez  vous  le  plus  dans 
rhistoire  ? 

22  Quel  est  votre  situation  d'esprit  actuelle  ? 

23  Pour  quelle  faute  avez  vous  le  plus  d*indul- 
gence  ? 

24  Quelle  est  votre  devise  favorito? 

Vi  diversas  respostas,  mas  bastando-te  receberes 
simples  amostra,  para  fazeres  idéa  do  dicto  systema, 
eis-aqui  o  que  uma  das  mais  brilhantes  pennas  por- 
tugue^^as  redarguiu  a  cada  item  do  inquérito  : 

l^  La  compassion — 2'.  La  loyauté — 3**.  La  patience 
— 4**.  La  rêverie— 5*.  L'ántipathie  contre  tout  ce  qui 
est  faux — 6'.  La  vie  sans  remords,  quelle  qu'elle  soit 
du  reste — 7*.  Lemalheur  suprême  est,  selonmoi,  celui 
de  ceux  qu'on  aime — 8*.  Le  pourpre:  la  rose — 9*. 
Pierre  11,  du  Brésil — 10*.  A'  la  campagne,  prés  de  la 
ville,  dans  une  patite  maiso^nette,  bàtie  par  moi — 11*. 
Alexandre  Dumas,  parmi  les  modernes;  parmi  les 
anciens,  Pline  le  Jeune — 12°.  Virgile;  parmi  les  mo- 
dernes, Victor  Hugo,  d'autrefois— 13*.  Peintre,.. 
toujours  Virgile  ;  compositeur,  Bellini — 14".  Scipion 
15®.  Ste.  Elisabeth,  de  Portugal — 16".  Dans  les  ro- 
mans, d'Artagnan,*  le  mousquetaire;  dans  la  fable, 
Orphée — 17*.  Dans  le  roman,  Clarisse  Harlowe;  dans 
la  fable,  Andromaque— 18*.  Les  végétaux  et  Teau 
19°.  Nom  d'homme,  aucun:  nom  de  femme,  Marie— - 
20*.  Le  serpent,  ou  bien  le  calomniateur — 21*.  Hudson 
Lowe — 22".  Apathie  et  raécontentement — ^ií3".  Pour 
celles  qui  tiennent  à  la  faiblesse  du  coeur — ^24*.  Rien 
n'est  beau  que  le  vrai. 

Nao  achas  ser  este  um  brinquedo  útil,  e  um  grande 
melhoramento  na  indemonhinhada  lida  dos  albums  ? 
Tenho  sobre  a  mesa  muitas  outras  respostas ;  mas  um 
exemplo  basta;  agora  é  de  Pindamouhangaba  que  ea 


XXII  29 

espero  mais.  Âffigura-se-me  que  assim  se  toma  um 
albuai,  depositário  de  thesouros  de  erudiçfto,  gabinete 
anatómico  para  dissecção  de  corações  humanos,  espe- 
lho que  retrate  o  pensamento  intimo,  theatro  em  que 
façam  todos  os  actores,  com  a  mesma  matéria,  dilfe- 
rente  papel. 
Adeus,  amorinhos. 

Teo  capellao  obrigado 

ClNCINNATO. 


Suppx^essSo  da  esex^avldSo  xio  Bi^azll 

À  philosophia,  o  christianismo  e  a  liberdade  trajenr 
de  gala,  corõem-se  de  louros  em  toda  a  superfície  da 
terra !  O  juTcnil  império  brasileiro  acaba  de  dar  ao 
mundo  um  dos  mais  sublimes  espectáculos,  um  dos 
mais  sublimes  exemplos  de  verdadeira  civilisaçfto. 
Cerrando  heroicamente  ouvidos  aos  clamores  de  secu- 
lares preocupações,  atirou  com  um  sopro  para  o  abys- 
mo  do  passado,  n'uma  hora  bemdicta,  como  aqueila 
em  que  Deus  proferiu — façase  a  luz — os  grilhões  com 

Íue  mais  de  um  milhão  de  filhos  da  raça  africana  de- 
nhavam,  sobre  uma  terra  amora vel  que  dá  tudo,  e 
sob  um  cèo  que  ri  sempre,  condemnados,  elles  só, 
entre  um  povo  bondoso  e  livre,  a  peor  inferno  que  suar 
e  padecer  de  contínuo  ;  ao  tormento  de  se  nao  repro- 
duzir, senão  para  testar  pelos  séculos  fora  miséna  e 
escravidão  aos  filhos  precitos  dos  seos  amores. 

A  magnânima  proposta  do  governo  do  Brazil  está 
emfim  sanccionnda  por  todo  o  corpo  legislativo,  victo- 
riada  por  toda  a  immensa  maioria  pensante  da  nação, 
e  saudada  com  alvoroço  pelo  mundo  inteiro. 

Os  anniquiladores  da  tyrânnica  omnipotência  de 
Lopez  completaram  hoje  a  mais  4pur^<l^  página  dos 
seos  fastos  nacionaes. 

A  nós,  irmãos  do  heróico  povo  brasileiro,  anos, 
que  de  herança  tantas  e  tão  bel  las  qualidades  temos 
em  commum  com  essa  juvenil  gente,  do  nosso  sangue 
e  dos  nossos  appellidos ;  a  nós,  um  quinhão  legítimo 
na  ufania  com  que  elles  devem  estar  celebrando  o  seo 
triumpho,  triumpho  incruento,  triumpho  auspiciosís- 
simo, triumpho  em  que  só  a  alegria  verte  lágrymas. 

Está  emfim  iugastado  na  coroa  de  D.  Pedro  II  o  ver- 
dadeiro diamante  Montanha  de  Ltiz^  que  ha  de  as- 
sombrar com  o  seo  brilho  a  posteridade. 

Do  Brazil^  jornal  de  Lisboa 


30  XXIÍ 

OolonisacSo  do  Br*azll 

Discute  se  ha  largos  annos  na  imprensa  port:igueza 
a  questão  da  colonisaçao  do  Brazil ;  (]^uantos  epithetos 
desagradáveis  tem  a  língua  se  applicam  ao  que  cha- 
mam vulgarmente  escravalara  branca,  e,  queixando- 
se  uns  de  que  os  colonos  s&o  tractados  como  escravos ; 
outros  de  que  se  illudem  pobres  diabos  que  além  v&o 
morrer  a  braços  com  a  miséria;  outros  de  que  Portugal 
é  gravemente  prejudicado  com  esta  emigração,  s&o 
todos  accordes  em  pedir  ao  governo  que  de  uma  vez 
para  sempre  cohiba  este  nefa/iido  tráfico. 

Esta  quasi  unanimidade  na  accusaç&o  faz  crer  boa 
intenção,  grave  o  assumpto  e  sérias  ás  consequências ; 
parece  que  de  facto  se  substituiram  as  negociações  em 
Africa,  pelas  negociações  em  Portugal ;  que,  severa- 
mente vigiada  a  costa  occidental  d'  Africa,  convergiu 
a  negociação  illídta  para  o  archipélago  dos  Açores 
especialmente,  e  para  as  províncias  do  Minho,  Traz-os* 
Montes,  Beira  alta  etc. 

Vejamos  se  assim  é ;  examinemos  se  tem  razão  de 
ser  esta  accusação,  corroborada  por  muitas  pennas 
illustres,  fortalecida  por  muitos  espíritos  esclarecidos. 
Como  se  tracta  apenas  da  emigração  para  o  Brazil, 
virão  factos  e  opiniões  auctorisadas  em  auxílio  da 
nossa  argumentação  :  concentraremos  as  nossas  vistas 
no  império,  que  de  certo  nos  ha  de  fornecer  dados  para 
a  sua  defeza. 

Dividiremos  portanto  este  trabalho  em  quatro  partes : 
— Insalubridade  do  clima — Falsidade  nos  contractos — 
Melo  tractamento  aos  colonos — Miséria  e  abando^no, 

I 

INSALUBRIDADE   DO   CLIMA 

Houve  épocha,'e  não  vai  longe,  em  que  por  todo  Por- 
tugal se  apregoava  a  facilidade  de  adquirir  cabedais 
no  Brazil,  e  volver  rico  á  pátria  e  de  alli  se  assegurar 
uma  velhice  socegada  e  feliz.  Como  é  natural,  isto  de- 
safiava a  cubica  de  muitos,  senão  de  todos,  e  o  ardente 
desejo  de  sacrificar  alguns  annos  de  vida,  amargurados 
pelas  saudades  do  torrão  natal  e  pela  ausência  da  fa- 
milia  estremecida,  à  certeza  de  um  futuro  próspero  e 
risonho. 

Mas,  como  tudo  no  mundo,  tinha  reverso  esta  meda- 
lha ;  dizia-se  que  a  felicidade  de  um  representava  a 
vida  de  centenares  de  compatriotas,  de  amigos  qu® 


XXII  31 

alli  tiaham  morrido,  dizimados  pelad  terríveis  e  cons- 
tantes moléstias  dos  Brazis.  Isto  esfriava  os  desejos  de 
ínriquecer;  e  poucos  eram  os  que  chegavam  a  ir,  com- 
parativamente com  os  que  haviam  chegado  a  fazer 
castellos  no  ar,  calculando  o  resultado  provável,  ou 
certo,  da  sua  ida  á  América. 

N'es3e  tempo  eram  as  viagens  longas :  navio  que 
aportava  &s  terras  de  Santa  Cruz  com  menos  de  40 
dias  de  derrota  era  comptado  nos  jornaes  das  duas  capi- 
tães. Os  homens  laboriosos  e  decididos  que  haviam 
Jogado  a  vida  pelo  futuro  dos  seos,  internavam-se  pelas 
províncias,  e  muitos  não  sabiam  escrever ;  deixavam 
portanto  de  dar  noticias  aos  entes  que  lhes  eram  caros, 
os  quaes,  amaldiçoando  a  ídéa  e  a  hora  da  partida, 
prancteavam  como  morto  o  parente  que  se  aventurara 
a  ir  a  longes  terras^  cego  pela  ambição. 

Com  o  correr  dos  annos,  foram-se  multiplicando  as 
viagens,  estabelecendo  carreiras  quinzenaes  de  pa- 
quetes com  marcha  accelerada  :  após  estas  vieram  as 
carreiras  semanaes,  e  as  cartas, recebidas  mais  amiuda- 
das vezcs  e  de  mais  moderna  data,  iam  affastando  a 
lúgubre  idéa  de  morte.  A  par  com  esses  progressos, 
começava  a  conhecer-se  mais  aquelle  paiz,  a  falar-se  e 
a  ouvir-se  falar  mais  do  seo  clima  e  modo  de  viver: 
vinham  as  estatísticas,  e  tudo  comprovava  que  a  idéa 
de  horror  ligada  á  insalubridade  do  clima  era  mais 

Shantasia  creada  pelo  affecto  que  deixara  na  pátria  o 
lho  ausonte,  do  que  realidade.  Vinham  carias  das 
provincias  do  sul,  das  colónias  de  Theresó[)')lis  e  de 
Petrópolis,  de  toda  a  província  de  Minas  Ger>i;^s,  de 
Vassouras,  de  Valença,  de  Iguassú,  de  NovaFribargo, 
finalmente  da  maior  parle  dus  ponctos  por  ou  Je  a  colo- 
nisaçao  se  tem  desinvolvido  em  escala  superior,  a  uro- 
varem  a  amenidade  do  clima  n'aqueue3  poacios,  dado 
o  desconto  à  differença  da  temperatura  ,  que  é  í  empre 
mais  ou  menos  .sensível  aos  homens  que,  aascidòs  na 
Europa,  passam,  na  edade  viril,  a  viver  na  Am^^rica 
do  sul. 

Isto  quanto  às  informações  particulares.  Os  dados 
oflBciaes,  quer  com  relação  á  colónia  portug"iesa,  quer 
com  relação  á  colónia  allema,  provam  exh^ror.rítnte- 
mente  que  a  mortalidade  nao  attinge  cifra  qu*)  aucto- 
rise  a  considerar  insalubre  o  clima  do  Brasil,  n^m 
mesmo  na  épí)cha  em  que  a  febre  amarella  tem  feito 
mais  víctimas,  por  isso  que  as  províncias  toem  sido 


32  XXII 

sempre  poupadas,  grassando  apenas  as  epidemias  hr- 
zenao  estragos  no  litoral. 

Escusado  é  portanto  discutir  mais  este  poncto.  Ou 
as  estatísticas  talam  verdade  ou  nflo-  se  falam,destroem 
a  accusaç&o :  se  n&o  falam  nao  se  pôde  fazer  obra  por 
uma  ou  outra  fazenda,  onde  se  n&o  respeita  tanto  a 
h  jgiene,  ou  que  de  si  própria  é  menos  saudável.  Por- 
tugal tem  o  exemplo  frisante  em  uma  das  suas  coló- 
nias. Em  S.  Thomé,  ao  passo  que  ha  roçds  mortíferas 
pela  proximidade  de  pântanos,  e  essas  s&o  geralmente- 
as  que  circulam  a  cidade,  tem  outras  tSLo  saudáveis,  e 
em  que  a  temperatura  differe  tanto,  que  os  liberto» 
africanos  e  os  europêos  sao  fortes,  robustos,  e  até,  caso 
raro,  grandemente  dispostos  ao  trabalho.  ( Continua  ] 

Idem, 


RazSo  pouoo  llsoiiselr*a. 

No  baile,  minha  Senhora, 
n&o  se  despresa  a  etiqueta, 
nem  cortezias  penhora 
lapúz  de  grossa  jaqueta. 
Vai  perguntar  joven  linda"" 
a  Diogo  Madureira 
se  Sua  Excellencia  ainda 
nao  tem  par  para  a  primeira. 

O  homem  stava  disponível, 

acceita  o  honroso  convite  ; 

do  favor  nSLo  é  possível 

considerar-se  elle  quite. 
Convidar  tem  sido  dado, 
n'este  caso,  ao  cavalheiro; 

Sela  dama  convidado 
>iogo  foi  o  primeiro. 

No  íntervallo  da  quadrilha 
è  de  assucar  a  palavra, 
e,  vencendo  a  prata,  brilha 
qual  ouro  da  melhor  lavra. 
« — Discreta  joven,  consinta 
que  minha  ousadia  inquira 
porque  o  costume  desminta 
quem  para  a  dansa  me  tiraf 

« — Motivo   assaz  cautelloso 
deveis  ínchergar  n'aquilloI 
Meo  marido  é  mui  zeloso, 
e  assim  fícar&  tranquíllo. 


QUESTÕES   DO   DIA 


IST.   23 


RIO  DE  JANEIRO,   1  DE  DEZEMBRO  DE  lOTl. 


9ende-se  em  rasa  dos  Srs.  E.  &  H.  Laemmert. — Agostinho  de  Freitas  Gui' 
maràes  6l  Comp.,  26,  rua  do  General  Gamara. —  Livraria  Académica» 
Rua  de  S.  José  n.  119— Largo  do  Paço  n.  C.—  Preço  200  reis. 


A  Republica  c  os  Estudantes 

II 

Para  levar  à  evidencia  a  asserção  de  que  os  org&os 
da  imprensa  brasileira,  a  que  nos  referimos  no  anterior 
artigo,  sHo  instrumentos  de  ruína  social,  basta  attentar 
na  direcção  que  a  República  deu  á  questão  dos  exa- 
mes dos  estudantes. 

Felizmente  hoje  a  imprensa  justa  e  imparcial  p6z 
em  reiêvo  todas  as  principaes  faces  d'esse  negócio, 
convertido  pelos  obreiros  da  destruição  em  catapulta 
contra  o  ministério.  A  razão  pública,  prudente  e 
convenientemente  e.^clarecida  por  Themístocles,  foi 
reconduzida  ao  terreno  da  justiça,  d'onde,  mais  por 
imá  fé  do  que  por  ignorância,  tentaram  arredal-a  aquel- 
les  que,  até  das  immundicies  da  calúmnia  invejosa 
fazem  arma  oflFensiva  contra  o  poder,  que  sôffregos 
ambicionam  empolgar.  Desfez-so  o  nevueiro  de 
sophismas  e  prejuzos  que  adrede  fora  estendido  ante 
a  luz  da  verdade,  e  acalmada  a  paixão  de  momento, 
reduzido  a  suas  verdadeiras  proporções  o  principio 
de  falso  pondonor,  resta  somente  o  pejo  dos  próprios 
excessos  e  o  arrependimento  de  se  haver  seguido 
errado  caminho. 

A  terrivel  catapulta,  a  destruidora  'arma  de  guerra 
com  que  imaginaram  derrocar  depois  de  dous  ou 
três  bombardeios  o  bastião  governamental,  quebrou-se 
nas  msos  dos  esforçados  guerreiros,  como  essas 
espingardas  e  lanças  de  frágil  madeira  cora  que 
brincam  as  creanças.  Nem  a  mais  leve  brecha  apparece 
na  praça  que  atacaram ,  a  fortaleza  nem  se  apercebeu 
de  qu»?  lhe  atiravam  projectís  :   pareceu-lhe  que  um 


34  XXIII 

vento  desolador  levantando  do  chão  folhas  sêccas  e 
fazendo  remoinhar  o  pó  das  ruina'?,  lhe  arrojava  de 
incontro  às  muralhas  alguns  grãs  de  areia,  com  cujo 
attrito  conseguia  apenas  polir-lhe  as  pedras  esver- 
deadas pelo  limo  que  os  séculos  n'ellas  haviam 
depositado,  pondo  assim  a  descoberto  a  solidez  e  a 
perfeição  de  sua  constructura. 

Falhou  mais  esta  condemnavel  tentativa  da  anar- 
chia  contra  a  ordem;  mais  uma  vez  o  principio  da  auc- 
toridade,  legitimamente  constituída  e  exercendo-se 
dentro  da  esphera  leg'al,  poude  fazer  triumphar  as  suas 
justas  e  jurídicas  prescripções.  Mais  uma  vez  os  apre- 
goadores  da  insubordinação,  os  fautores  da  desordem 
se  viram  forçados  a  recuar  e  a  cantar  a  palinódia,  ater- 
rados aute  os  eflFeitos  de  sua  subversiva  propaganda. 

Nao  !  Este  povo,  protegido  pela  sombra  damonarchia 
constitucional,  educado  nas  máximas  da  religião  do 
Crucificado,  que  pregou  obediência  ao  poder, acceitando 
resignado  o  suppiicio,mandando  que  se  desse  a  César  o 
que  é  de  César,  e  ordenando  a  Pedro  que  não  ferisse  a 
Malcho,  porque  só  ao  juiz  competia  punil-o  ;  este  povo 
que  floresce  e  prospera  rapidamente  e  sem  abalos,  ao 
influxo  de  benéficas  instituições,  tem  em  si  tanto  bom 
senso  que  inxerga  á  primeira  vista  nos  pose  nas  drogas 
dos  Dulcamaras  políticos  o  fermento  do  tóxico  traiço- 
eiro, com  que  lhe  querem  illudir  o  paíadir,  insinuando- 
Ihe  que  o  pretendem  curar  de  males  imaginários. 

E  que  outra  cousa  que  nao  mortal  peçonha  tentou  a 
República  introduzir  nas  veias  da  mocidade  brasileira, 
prégando-lhe  as  doctrinas  que  se  lêm  em  seos  us.  183 
e  184  na  parte  editorial  sob  a  rubrica — Questão  Acadé- 
mica'^— Com  suprema  habilidade  tentaram  os  distinctos 
redactores  d'aquella  folha  invenenar  a  arvore  fron- 
dosa do  futuro  nos  seos  esperançosos  rebentos.  E'  nos 
pimpolhos  que  desabrocham  esplendidos  de  viço  e  seiva, 
ao  sol  da  liberdade  e  da  religião,  que  aquelles  cul- 
tores do  espírito  público,  falseando  a  sagrada  missão 
da  imprensa,  inoculam  o  virus  corrosivo  das  más  ide- 
as  e  implantam  os  germes  corruptores,  que  hao  de 
trazer  o  corroimento  do  cerne  e  o  esphacelamento  do 
tronco. 

E'  na  geração  que  puUula  agora  cheia  de  vida  e 
actividade  febril  que  reside  a  esperança  do  Brazil. 
Tanto  a  geração  que  está  no  pleno  vigor  da  edade  como 
a  que  vai  concluindo  a  sua  peregrinação  na  terra  e 


XXIII  35 

camiahaudo  par^  o  sepulchro  devem  uni r-se  para,  de 
commum  acordo,  aponctar-lhe  os  bons  exemplos,  insi- 
nar-lhe  os  verdadeiros  princípios  de  disciplina,  e  edu- 
cal-a  em  todas  as  grandes  verdades  do  evangelho 
social. 

A*quelles,  que  receberam  em  partilha  o  talento,  das 
mãos  munificentes  da  Divindade,  áquelles,  que  assu- 
miram o  brilhante  e  nobre  papel  de  intérpretes  e  direc- 
tores da  opinião  pública,  incumbe  o  rigoroso  dever  de 
formar  o  coração  e  a  intelligencia  da  mocidade,  e  de 
traçar-lhe  a  renda  por  onde  deve  caminhar  para  con- 
seguir augmentar  a  grandeza  e  a  glória  da  pátria. 

Quaudo  porem,  esses  espíritos  privilegiados  apagam 
o  archote,  com  que  devem  illuminar  os  olhos  das  gera- 
ções contemporâneas,  e,  em  vez  da  luz  directora,  lhes 
dao  o  negro  penacho  de  fumo  e  as  sombras  da  morte, 
quando  trocam  o  seo  mandato  de  apóstolos  da  verdade 
pelo  de  pseudo-prophetas — commettem  um  attentado  de 
lesa-humanida(le,.digno  do  castigo  de  Deus  e  da  mais 
severa  reprovação  da  sociedade. 

Vejamos  como  a  República  comprehendeu  e  desempe- 
nhou o  seo  mandato. 

No  dia  14  de  Novembro  dizia  ella : 

«  O  nosso  jornal  e  um  homem  de  bem\  não  se  presta 
a  nenhum  papel  menos  digno. 

Estas  expressões  serviram  de  epigraphe  para  justi- 
ficar a  seguinte  proposição : 

«  O  decreto,  na  opinião  da  maioria  da  imprensa^  na 
opinião  das  congregações  das  faculdades  de  medicina  e  de 
direito^  na  opinião  dos  estudantes  de  5.  Paulo  e  doesta 
capital^  foi  reputado  inopportuno,  iníquo^  viole)do  e  aU*' 
illegal.n 

Em   seguida  narra  aquella  folha  os  actos  praticados 
pelos  estudantes  de  medicina  da  corte  e  a  deliberação/ 
por  elles    assentada,  de  fazerem   parede^    isto    é,  de 
nenhum  se  inscrever  para  exame. 

Accrescenta  que  no  campo  dos  que  tomaram  este 
alvitre  levanta  a  honra  o  seo  estandarte,  e  que  no  con- 
trário « levanta  seos  arraiaes  esse  exército  aaónymo^  mas 
que  sempre  acha  recrutas  no  seio  de  uma  sociedade  cor- 
rompida pelas  tradições  peculiares  ao  seo  regimen  poli- 
ticOn  o  regimen  dos  genuflexões...  a  A's  queixas  da  moci- 
dade^ offendida  nos  seos  brios  e  nos  seos  direitos,  respon- 
demos  (conclue)  com  a  sympathia  do  nosso  apoio.» 


:J6  XXIÍl 

No  dia  seguinte  a  República  incita  os  estudantes  á 
resistência  pacifica ;  instiga-os  fazendo  apêllo  ao  senti- 
mento do  pondonor^  a  que  não  rompam  a  parede  para 
nao  merecerem  o  stignia  inftimante,  que  a  maioria  dos 
estudantes  de  S.  Paulo  lançou  sobre  os  díscolos  e  sobre 
os  medrosos.  «  Ser-nos  hia  doloroso  j-^exclama)  ter  de 
registrar  um  acto  de  subserviência  por  parte  de  mancc' 
bos,  que  vêem  offendida  nas  suas  pessoas  a  dupla  dignir 
dade  de  estudantes  e  de  cidadãos.  Ao  que  nos  consta^  a 
mocidade  não  está  disposta  a  receber  dos  velhos  a  licção 
da  prudência^  que  se  traduz  em  servilismo..,  » 

Os  tópicos  transcriptos  suscitam  um  mundo  de 
reflexões,  a  que  se  nuo  prestam  as  dimensões,  que 
talhámos  a  esta  perfunctória  anályse.  Assignalaremos 
apenas  de  leve  os  coroUários,  que  d'elles  se  inferem. 
Nao  nos  faremos  carg-o  de  demonstrar  a  justiça, 
legalidade  e  exequibilidade  do  decreto  de  22  de  oc- 
tubro, — nova  boceta  de  Pandora,  a  que  os  pessimistas 
do  dia  attribuem  o  inxamede  males, que  phantasiaram 
choverem  d'elle  sobre  a  classe  académica  e  sobre  a 
instrucçao  pública  ;  a  brilhante  penna  de  Themisto- 
cies  já  levou  essa  these  à  luz  da  evidencia;  até  a  pró- 
pria Republica  par?ce  que  seguiu  a  torrente  da  geral 
opinião  e  se  deu  por  nobremente  convencida,  a  jul* 
gar-se  pelo  silencio  que  tem  guardado.  Ainda  bem 
que  não  morre  impenitente  e  reconhece  a  sabedoria  do 
brocardo  :  sapientis  est  mutare  consilium. 

Dado,  porém,  mas  não  concedido  que  o  decreto 
contivess:í  os  erros  e  dislates,  que  lhe  emprestaram  de 
má  fé ;  *  dado  que  fosse  iniquo  e  inexequível,  podia  o 
direito  de  resistência  pacífica,  aconselhado  pela  Repú- 
blica, tomar  as  formas  de  manifestação  e  a  direcção 
que  se  lhe  deu,e  que  ella  tanto  applaudiu  e  a  princípio 
tão  calorosamente  animou  em  seos  artigos  editoriaes? 

Seria  legítima  e  digna  de  louvor  e  acoroçoamento  a  at- 
titude,que  tomaram  os  estudantes  da^s  faculdades  de  di- 
reito de  S.  Paulo  e  de  medicina  da  Corte,  aos  quaes  nSo 
compete,  por  não  serem  sui-juris,  o  direito  de  petição. 

O  direito  de  petição  (dir-se-ha)  é  permittido  pela 
constituição  a  todos  que  habitam  este  paiz  libérrimo 
(que  ellcs  no  emtanto  proclamam  regido  pelo  despo- 
tismo do  baixo  império) ! 

Em  virtude  d'essa  grande  garantia,  os  e^^ítudantes 
podiam  pedir  ao  governo  o  que  intendessem  a  bem  do 
seo  direito. 


XXIII  37 

Não  negamos  nem  podemos  contestar  o  direito  de 
petição  ;  mas  o  que  nos  parece  fora  de  questão  é  que 
os  indivíduos  que  nao  attingiram  o  período  da  maiori- 
dade legal,  e  que  nao  sao,  por  conseguinte,  capazes  de 
direitos,  possam  exercer  aquelle  ! 

Dêmos  ainda  de  barato  que  os  estudantes, em  quanto 
na  condição  de  menores,  possam  requerer  outra  cousa 
fora  do  círculo  de  acçSo  e  do  elencho  das  matérias  que 
lhes  é  permittido  pela  lei  e  pelos  estatutos  das  facul- 
dades e  dos  estabelecimentos  de  instruccão. 

Perguntamos  agora  :  Limitaram-í^e  os  estudantes  de 
S.  Paulo  a  requerer  o  que  lhes  era  a  bem  do  direito  ? 
Representaram  sequer  contra  o  decreto  de  22  de  oc- 
tubro  em  termos  convenientes  e  respeitosos  ? 

Ba^ta  ler  o  inqualificável  protesto  académico  de  28 
de  octubro  último,  assignado  por  cerca  de  170  estu- 
dantes para  adquirir  a  convicção  de  que  aquelles  estu- 
dantes insultaram  e  desrespeitaram  os  seos  lentes,  ar- 
vorando-se  em  juizes  e  censores  d'aquelles  que,  coUo- 
cados  para  cora  elles  na  razão  de  pães,  tinham  a  seo 
favor,  quando  não  a  prova,  ao  menos  a  presumpção 
de  experiência,  sabedoria  e  dignidade. 

AqueUes  jovens,  transviados  talvez  pela  opinião 
de  algum  de  seos  mestres,  que  intendesse  dever-s9 
negar  execução  ao  decreto  de  22  de  octubro,  qualifi- 
caram de  subservientes  e  ignorantes  os  que,  formando 
a  maioria  da  respectiva  congregação,  votaram  para 
que  se  fizesse  effectivo  desde  logo  o  systema  de  exames 
que  o  mesmo  decreto  estabelecia. 

Tal  não  devia  ser  por  certo  o  procedimento  d'aquelles 
estudantes.  A  injúria  é  arma  dos  que  não  têm  razão, 
e,  irrogada,  como  foi,  a  seos  superiores,  toma  cha- 
racter  de  gravidade,  que  se  torna  credor  de  geral 
reprovaçrio  e  severa  punição. 

Os  que  assim  se  portaram,  deram  triste  idea  de  sua 
educação,  do  seo  espírito  de  disciplina  e  subordinação. 

Que  pode  esperar  a  pátria  d'aquelles  que,  preparando- 
.se  para  auctoridades,  juízes  e  funccionàrios  da  alta 
administração,  assim  faltam  á  deferência,  á  submissão 
e  .MO  rtíspeito  que  devem  aos  que  estão  pela  edade  e 
pela  lei  coUocados  em  posição  de  credores  do  seo 
preito  de  menagem  ? 

Qu.*  modelos  de  bons  cidadãos ,  que  promessas 
brilhantes  de  excellentes  servidores  do  Estado  nao 
se  «iifixam  entrever  em  tao  denodados  campeões  do 


38  XXIII 

doesto  e  do  insulto!  Que  direito  terá  para  exigir  dos  seos 
subordinados  obediência  e  respeito,  quem  por  forma 
tão  descommunal  inxovalhaas  cans  da  experiência  e  do 
saber,  e,  afrouxando  todos  os  vínculos  da  disciplina, 
recorre  ao  tumulto  e  á  amiaça  para  fazer  triumphar 
as  ideas  da  Interjiacional  e  oppôr  condemnavel  resis- 
tência a  ordens  legaes  ?  ! 

Isto,  senhores  da  imprensa  republicana,  nâo  é  nem 
pode  ser  (salvo  por  irrisão)  qualificado  direito  de  pe- 
tição ou  de  representação. 

E  o  que  é  a  parede  ?  E'  a  conclusão  lógica,  o  des- 
fecho necessário  d'aquelle  1°  acto  de  desobediência 
e  opposiçao  à  ordem  do  governo. 

E'  a  resistência  da  inércia,  a  desobediência  passiva, 
mas  nem  por  isso  menos  criminosa,  às  prescripções  do 
poder  competente. 

E  podia  o  corpo  académico  tomar  tão  extranlm  e  ex- 
traordinária resolução  i  Nao  lhe  aconselhava  o  dever 
que  se  subjeitasse  ás  provas  exigidas  pelo  decreto  e  que 
foram  promulgadas  depois  de  ouvido  o  parecer  das  con- 
gregações e  de  muitas  pessoas  habilitadas  na  matéria  ? 
Não   constituo  esse  alvitre   um  desafio  acintoso  ao 
ministério?   Não  é   um  acto  de  tácita  insubordinação 
contra  seos  pães,  que  correm  perigo  de  vel-os  perder  o 
anno,  com  o  respectivo  cortejo  de  prejuízos  e  despezas, 
que  a  esse  facto  se  ligam  essencialmente  ?  Nilo  é  uma 
confissão  implícita    do    não  cumprimento  dos  deveres 
escholásticos  no  anno  lectivo,  revelada  pelo  receio  de 
se  subjeitarem  ao  exame  ? 

Responda  a  consciência  dos  próprios  estudantes, que, 
arrependidos  de  seo  errado  proceder,  se  lesulveram 
finalmente  a  comparecer,  com  raras  excepções, aos  actos 
académicos. 

E  todas  estas  tresloucadas  deliberações,  fnictos  mais 
do  verdor  dos  annos,  da  inexperiência,  e  de  incitações 
imprudentes,  foram  acoroçoadas  pela  imprensa  repu- 
blicana ! 

Appelou-se  para  os  falsos  brios  da  mocidade:  pintou- 
se-lhe  como  heróico  e  louvável  o  acto  de  resistir  pas- 
sivamente ao  decreto,  e  até  se  lhe  pregou  a  dortrina 
de  que  incorreria  no  labéo  de  infame  o  que  rompesse  a 
parede. 

Isto  o  dice  a  República  !  !  .  . 

Felizmente  a  propaganda  perigosa,  partida  das  co- 
lumnas  d'aquelle  orgam  da  imprensa  brazileira,  nao 


XXIII  39 

incontrou  terreno  favorável  para  fazer  fructificar  a  sua 
semente  de  morte.  O  bom  senso  do  paiz  reagiu  contra 
tao  louca  tentativa;  e  a  louvável  energia  e  a  poderosa 
força  de  vontade  do  digno  e  ill listrado  Ministro  do  Im- 
pério oppôz  insuperável  barreira  à  invasão  da  onda 
sediciosH,e  fez  abortar  no  nascedouro  os  planos  condem- 
nados  dos  fautores  de  desordens,  que  ficaram  bem  co- 
nhecidos á  face  do  paiz. 

Pompêo. 

Qixinta  cax*ta. 

DECINCINNATO  A  SEMPRONIO 

Rio,  24  Novembro  1871. 

Illustrado  amigo. 

Recebo  a  tua  preciosa  carta,  de  10  do  corrente,  na 
qual  me  dizes  que  talvez  te  divinas  com  o  testa  de 
ferro  de  Senio,  parecendo-te  porem  mais  methódico 
esperar  qae  elle  despeje  o  seo  vasto  arsenal  de  co- 
nhecimentos, expressos  em  linguagem  appropriada. 
Accrescentas :  •>  Far-se-ha  então  uma  appreciaçfio  syn- 
thética,  e  pôr-se-ha  a  nú  a  intelligencia  do  critico. 
Crê  tu  que  o  Gaúcho  me  otferece  matéria  para  outra 
longa  série  de  cartas,  e  não  estou  longe  de  escre- 
vêl-a.  Entretanto,  para  mudar  de  assumpto  por  agora, 
vou  entreter-me  com  a  Iracema.  » 

Escuta  cá,  meo  amigo.  O  anónymo  V.  das  Palestras 
declarou  depois  que  depunha  a  máscara,  e  que  era 
Vasconceilos,  com  o  que  ficou  mais  anónymo  que 
d'antes!  A  casa  de  Castello-melhor  vai  querellarda 
injúria,  pois  desde  o  tempo  do  ií em  Rodrigues  se  diz 
de  VasconcelloSy  nunca  em  tao  cerúleo  sangue  houve 
heroe  d'esta  casta.  Consta  porem  que  o  individuo  Vas- 
concellado  se  defende,  declarando  que  aquillo  nao  é 
appellido,  mas  alpunha,  que  elle  a  si  mesmo  poz, 
com  summa  propriedade;  que  o  seo  intuito  tra  reco- 
nhecer que  fala  lingua  vasc«jnça,  que  sempre  era 
um  tal  sarapatel  que  no  tempo  dos  romanos  se  nao 
atreveu  PomponioMela  a  reduzir  a  escrip:ura  os  nomes 
í^e  seos  povos.  Ora,  bem  se  pode  alcunhar  Vascon- 
ceilos quem  tao  vascoso  torna  o  leitor,  e  quem  tanto 
lhe  vasconceia..  delicadezas. 

Já  esmerilhei  as  criticas  do  pimpão.  Prometteu  es- 
magar-te  a   ti,  e  a  mim  ;    mas   depois    subverteu-se 


r  ■  m  -  ■n-mi^ir  m awaia#u»wp   *  *  íiH 


40  XXIII 

pelo  chão  abaixo,  dizendo  apenas  que  ia  fazer  uma 
viagem,e  ha  pouco  accrescentou  que  estava  já  de  volta, 
e  aparelhado  para  amarrotar-nos.. Ficámos  com  o  juízo 
suspenso,  o  que  é  muito  incómmodo,  visto  que  um 
juizo,  pendurado  tanto  tempo,  acaba  por  cauçar.  Roeu 
a  chorda  ;  remetteu-se  ao  silencio,  segundo  a  doctrina 
da  eschola  Senial.  Promeítre  et  lenir ^  sont  denx.  Tam- 
bém nao  vai  longe  o  dia  em  que  o  Sr.  José  de  Alencar 
amiaçou  com  a  horripilante  publicação  de  um  livro 
do  futuro,  que  ficou  para  as  kaleadas  greyas,  como 
as  criticas  do  Sr.  Vasconcellos,  o  anónymo. 

Visto,  porem,  que  o  senhor  quem  quer  que  seja  se 
esbofa  por  convencer-nos  de  que  as  suas  estupendas 
lucubracOes  sao  realmente  suas,  e  nenhuma  neces- 
sidade  vejo  de  o  desmentir,  acho  mais  curial  que 
de  ora  avante  o  deixemos,  tu  e  eu,  em  sancta  paz. 
Já  demonstrou  o  que  sabe  e  o  que  vale  aquelle  senhor 
homem.  Se  o  senhor  homem  imagina  que,  por  si^ 
tem  direito  de  ser  por  nós  contrariado,  engana-se 
de  meio  a  meio.  Se  elle  é  eile,  parce  sepullis.  Nâo 
contribuiremos  para  as  suas  glórias,  nem  mesmo  Eros- 
trdticas.  Fica-lhe  campo  livre  para  repetir,  sem  receio 
de   mais  resposta,   as  suas  brilhaturas. 

Quem  está  na  berlinda  não  é  nem  poderá  nunca 
ser  nenhum  phantástico  Sr.  Vascoucellos.  Poderia  to- 
lerar-se  o  officio  de  caça-tigres^  mas  nunca  o  de  inata- 
carochas.  Sempre  suppuz  que  alguém  assignava  de  cruz 
o  que  o  Espirito  Sancto  lhe  dictava,  ou  que  pelo 
menos  esse  alj^uem  tocava  as  .suas  variações  sobre  o 
thema  do  mestre,  de  cuja  alta  intelligencia  julga- 
vam todos  dimanarem  aquelPoutras  preciosidades. 
Teima-se  em  que  estas  nao  sao  auihenticamente  do 
inspirado  ;  n'esse  caso,  faço  meia  volta,  e  passe  por 
lá  muito  bem  o  delicado  Palestreiro.  Algumas  outras 
decididamente  auíhenticas  hei  de  achar.  O  Imperador 
Justiniano  deixou-ços  nas  suas  Constituições  as  Au- 
thenticas  ;  por  fortuna  da  humanidade  também  nós 
temos  as  nossas  Autheíiticce  seu  Novella*.  Constitutiones  do- 
mini  nostri  Alencaris^  inaximi  magisíri  atque  sacratis- 
simi  principis.  Parabéns  á  pátria:  estas  Autkenticas 
Constituições  (  visto   que  o  oes  tem  um  til )  chamam-se 

o   TIL- 

Tu,  que  estás  longe,  talvez  queiras  andar  em  dia 
com  a  monumental  história  d'este  monumento  ;  eu  le 
compto  o  que  scei. 


XXII  I  41 

Já  leste   o  vaudevUle  de  Scribe,   intitulado  A  gala 
transformada  em  mulher,  de  que   ultiraameute   Offen- 
bach  fez  uma  opereta  ?  é  uma  das  ma:s  ingraçadas  e 
orig^inaes  producçOes  do    inexhaurivel    dramaiurgo. 
Um  allemaosito  exaltado  inlouqueceu  com  a  leitura  do 
Fausto;  accredita  na  metempsycose,  enamora-se  da  sua 
gata.  Uma  prima  ricaça  quer  cural-o  da  ridícula  paixão, 
tiral-o   da  miséria  casando   com  elle,  e  arvora-se  em 
rival  da  bichanica  gata.  Conluia-se  com    um  falso  ni- 
gromante índio,  que  vai  predispondo  o  novo  Werther 
para  a  metamorphose  do   animal   felino  em  mulher. 
Lá  chega  o   preparado   momento.   ELs-alli   a  bichana 
dormindo  n'uma  alcova,  emcima  de  um  canapé ;  profe- 
?idas  as  palavras    mágicas,    corre-se  o   panno...  a  E' 
uma  mulher  ?  »  «  E*  uma  gata  ?  »  Tem-se  visto  gato 
pjr  lebre,  mas  mulher  por  gata...  O  certo  é  que  é  uma 
e  outra,   na  forma  de  uma  linda  menina,  que,  em  vez 
de  miar,  papeia  e  garganteia  ;  mas  a  alvura  do  vestido 
e  «  arminho  que  o  borda  lembram    perfeitamente  a 
ga\a ;  o  impagável  porem  é  a  imitação   dos    modos, 
gesros,  andar,  alegria,   gentileza  e  vivacidade.    A  bi- 
cha lica  nao  era  mais  ágil,  mais  galante,  mais  volup- 
tuosa ;  nao  gostava  mais  das  snas  commodidades,  nem 
.se  espreguiçava  com   mais  delícia  sobre  o  veludo  das 
cadeiras  ;  sao  tal  e  qual  as  manhas  d^ella,  os  seos  mo- 
vimentos leve-í,  as  suhs  marradinhas  graciosas    o  soo 
brincar  com  as  patinlias  rosadas.  Ficou-lheegualmente 
o  !i:wi:ral,  como  as   maneiras  do  quadrúpede  :    ágata 
feita  mulher  conserva  oeíroísmo,  a  inclinação  maléfica, 
a  asUicia,  o  gosto  de  furtar.   Para  surrupiar  um  pud- 
din^r.   para  embaraçar  as  linhas  de  um    novêllo,  para 
atirar  uma  unhada,  nem  a  verdadeira   bichanica  era 
mais  hábil.  Emfim  é  a  gata  sem  tirar  nem  pôr,  só  com 
fóvij^i  diversa:  e  o  allemão.  felicíssimo,  soUicita  e  al- 
cança a  pala  da  bichana. 

Hn  um  mundo  de  doctrina  dentro  d'este  quadro  curto. 
E'  o  tliassez  le  naturel,  i!  rerient  au  (jalop,  posto  era 
acção  Quando  vires  um  republicano,  por  índole  e  edu- 
cação, dizer  ao  rei — que  a  naçílo  o  provoca  a  assumir 
o  governo  pleno  do  Estado — que  a  sua  missúo  é  a  do 
soí— qii*  basta  a  sua  vo'itade,  enunciada  de  um  modo 
positivo  e  solemne  para  se  tornar  logo,  de  sua  própria 
virtude  ^  essência,  facto  consummado —  que  para  ella 
se  nao  concebe  resistência,  no  domínio  da  lei — que  elle 
tem  ante  a  nacao  e  ante  Deus  obrigação  indeclinável 


42  XXIII 

« 

de  resistir  á  opinião  pública  em  nome  da  lei  e  da  mo- 
ral— e  outras  cousas  assim,  é  gaia  transformada  em 
mulher.  Como  então  o  escriptor  está  fora  da  sua  nat\i- 
reza,  aquellas  demasias  nao  têm  imputação.  Cuida  elle 
que  similhantes  bajulações  e  baixezas  constituem  um 
credo  conservador,  quando  só  constituem  linguagem 
de  que  o  mais  exaggerado  àulico  se  invergonharia ; 
os  extremos  tocam-se ;  gente  assim  halouça-se  sempre 
entre  o  César  e  o  João  Fernandes.  Faze  bem  á  gata, 
saltar-te-ha  na  cara. 

Matriculada  a  gata  como  conservadora,  e  depois  de 
se  lhe  recusar  o  senatorial  pudding,  volve  á  sua  natu- 
reza :  mia,  arranha  e  apanha  rates.  Miau  !  poder  pes- 
soal !  Miau  !  absolutismo  !  Miau  !  golpes  de  Estado  ! 
Miau  !  bayonetas,  fuzil,  sabre  e  canhílo  ( que  sao  4  syl- 
labas) !  Miau  !  ab  alto  e  in  excelsisl  E  todos  quantos 
outros  miaus  constituem  os  items  do  credo  republicano, 
e  fazem  do  género  humano  gato-sapato. 

Tornando-se  desnecessária  a  máscara,  cada  um  volta 
para  os  seos  arraiaes,  e  assim  é  melhor.  Porque  um  ho- 
mem a  si  mesmo  se  chama  conservador,  nao  se  s^ue 
que  o  seja  ;  pode  isso  até  ser  uma  antíphrase,  um  sim- 
ples Cabo  da  Boa  Esperança.  A's  vezes  sao  illusões  óp- 
ticas da  retina  physica  ou  intellectual.  Quando  eu,  de 
bordo  de  um  navio,  vejo  as  casas  e  a  praia  a  correr  ; 
quando  se  me  torna  angular  o  pào  que  na  agua  netti 
direito;  quando  observo  no  horizonte  a  pôr-se  o  sol,  que 
já  está  para  baixo  d'elle,  ou  o  vejo  apparecer,  quando 
ainda  não  é  nado  ;  quando  os  olhos  me  affirmam  ser 
redonda  uma  torre  quadrada ;  quando  vejo  a  ninha 
cara  feia  atraz  de  um  espelho,  nao  estando  ella  atraz 
nem  adeante  ;  quando  um  vidro  me  patenteia  caterva 
de  animálculos  onde  eu  só  julgava  estar  uma  gôtta  de 
água  puríssima,  e  bem  assim  valles  e  montanhat  na 
face  mimosa  de  uma  virgem;  quando  vejo  tanta  cousa, 
digo  que  é  superficialidade  fiar  nas  apparencias;  que  o 
hábito  nao  faz  o  monge,  e  que  nao  basta  dizer-se  que 
uma  cousa  é,  para  que  o  seja.  O  nobre  parlamentar, 
por  costume,  denomina-se  conservador,  mas  de  facto 
repassou  já  ha  muito  tempo  o  seo  Rúbicon,  com  armas 
e  bagagens,  e  lá  está  já  n^^  campo  dos  repiiblicos.  fa- 
zendo o  seo  officio  de  dissolvente. 

Era  portanto  naturalíssimo  que  levasse  á  República 
a  sua  nova  oblação  :  assim  como  o  era  que  o  incapo- 
tado  carrijligionário  fosse  bem  accolhido  ;  tu  oao   mal- 


XXin  43 

tractas  quem  entra  na  tua  sala.  O  Sr.  José  d'  Alencar 
levou,  pois,  o  seo  TU  à  folha  ultra. 

Veiu  a  publicação  precedida  de  um  manifesto,  de- 
claração de  guerra,  proclamação,  ou  cousa  assim,  es- 
tampada na  sobredicta,  de  3  do  corrente. 

A  parte  litterária  fica  para  depois,  mas  a  politica  é 
já  ahi  impagável. 

Diz  que  anda  assignalado  como  republicano  disfar- 
çado, mas  que  nao  é  tal.  Peso  de  consciência. 

Diz  que  é  monarchista  da  idea.  O'  Sempronio,  que 
sentido  tem  isto?  Para  dar-lhc  cousa  que  com  isso  se 
pareça,  supponhâmos  que  a  phrase  aspira  a  significar 
uma  contraposição  a  monarchistas  da  pessoa  ;  advinha- 
ria  eu  ?  Mas  então  ah  qui  d'el-rei !  Que  doctrina  é 
esta  ?  Ha  moijarchia-idea  que  se  nao  incarne  em  rao- 
narcha-pessoa  ?  Intende  este  publicista  que  a  raonar- 
chia  é  um  ente  de  razão,  um  phantasma,  um  mytho? 
que  para  ma  servir  da  phrase  de  Racine,  a  monarchia 
ríesíqiCune  idée^unrêve  ylatonujue?  Admirável  modo 
este  de  pugnar  pela  monarchia,  hostilizando  o  monar- 
cha!  Quer  missa  sem  padre,  victória  sem  soldados, 
ganhar  na  loteria  sem  comprar  bilhete.  Proclamar-se 
monarchista,  denunciando  o  soberano  como  déspota, 
tyranno,  usurpador,  é  o  systema  das  petroleiras^  que 
apagavam  o  fogo  com  kerosene. 

E  está  tao  convicto,  mesmo  da  tal  ídca,  que  faz. 
saber  que  a  presumida  infallibilidade  ( em  itálico  )  roe 
o  cerne  das  monarchias.  A  bom  intendedor,  meia  pa- 
lavra. 

Acaba  condignamente  por  este  impagável   treclio: 

—  «  Convencidos  nós,  os  monarchistas,  de  que  é 
passível  atacar  a  cidadella  invencível,  correremos  a 
defender  a  brecha,  por  onde,  no  momento  do  perigo, 
hao  de  fugir  espavoridos  os  ganços  do  Capitólio.  » 

Se  nao  fosse  a  minha  humilde  admiração  da  vasta 
sabedoria  do  eminente  escriptor,  diria  que  cousas  doestas 
nao  as  escreve  senão  quem,  ou  nao  sabe  o  que  diz,  ou 
está  debicando  com  o  seo  paciente  público.  Que  signi- 
fica similhante  phrase?  Ja  sabemos  que  um  novo  Man- 
lio  fará  a  grande  Africa  de  defender  uma  cidadella 
iíwencivel :  mas  que  motivo  tem  Manlio  para  descom- 
por e  laxar  de  covardes  e  inúteis  (  caso  único  em  que 
se  compreenderia  a  intenção  da  phrase )  os  pobres 
ganços  do  Capitólio  ?  Dar-se-ha  caso  ( tudo  é  por^sivel ) 
que  o  erudito  romancista  ouvisse  cantar  o  ganco,  sem 


44  XXIII 

saber  d'onde  ?  que  lesse  algures  a  locução  ganços  do 
Capitólio^  a  achasse  bombástica,  e  a  atirasse  para  ahi, 
fosse  como  fosse  ?  Euja  não  juro  nada. 

Tito  Lívio  (V.  47)  compta  que,  estando  Roma  em  grão 
perigo,  cercada  dos  Gallos,  foi  Cominio  incumbido  pelo 
senado  de  ir  a  Veios  buscar  para  dictador  o  desterrado 
Camillo  ;  mas  tão  apertado  estava  o  sítio  que  era  peri- 
gosíssima a  tentativa  de  rompêl-o  ;  todavia  o  portador, 
regressando,  lá  achou  artes  de  penetrar  no  Capitólio, 
por  uns  atalhos  mal  guardados.  Talvez  que  observando 
os  vestígios  da  passagem  do  mensageiro,  approveita- 
ram  os  Gallos  uma  noite  assaz  clara,  e  nao  sem  muitas 
dificuldades,  foram  subindo  até  o  alto  do  morro,  tao 
caladinhos,  que  por  ellos  nem  deram  as  senti nell^s,  e 
nem  os  cães,  animal  que  de  noite  o  çiínimo  ruído 
acorda.  Só  a  que:n  nao  lograram,  foi  aos  sacros  gan- 
ços de  Juno,  que,  a  despeito  da  terrível  fome,  tinham 
sido  poupados.  A  elles  deveu  Roma  a  salvação.  Come- 
çaram os  ganços  a  estrugir  os  ouvidos  dos  romanos,  e  a 
dar-lhes  rebate,  batendo  com  as  azas,  e  gasnando 
estrepitosamente,  d*onde  resultou  precipitarem-se  os 
Romanos  sobre  os  Gallos,  que  iam  jà  intrando  no  Capi- 
tólio, e  darem  cabo  doestes,  o  que  não  succederia  seos 
ganços  houvessem  demorado  alguns  minutos  o  seo 
chamamento. 

Por  tão  grande  foi  este  serviço  considerado,  que  nas 
cerimónias  públicas,  os  ganços,  como  qualquer  con- 
sultor, andavam  de  sege,  e  não  scei  se  com  correio 
atraz  ,  mas  scei  que  à  cerimónia  chamavam  anser 
in  leclica  ,  e  que  era  isto  tido  por  suprema  hon- 
raria, em  memória  dos  beneméritos  ganços  do  Capi- 
tólio. 

Será  a  estes  que  allude  o  atilado  escriptor?  Será  a 
este  Capitólio,  cujo  nome  dizem  que  proveiu  de  alli  ter 
sido  achada  a  cabeça  de  Tolo,  capul  Toli,  que  era  um 
quidam  que  elles  lá  sabiam? 

Mas  se  os  Cranços  do  Capitólio  foram  mais  sollícitos 
que  as  sentinellas,  se  foi  a  sua  intervenção  que  salvou 
Roma  íq}i(p  res  salutis  fnil^  diz  Lívio),  como  imagina  o 
Sr.  Alencar  que  a  sua  locução  signifique  desaire,  me- 
noscabo, labéo,  desdouro? 

Os  patos,  sim  senhor,  patinham;  mas  os  ganços  do 
Capitólio  são  o  emblema  da  lealdade,  da  vigilância, 
do  cuidado. 


XXIII  4.> 

Neste  sentido  foram,  por  famílias  illustres,  tomados 
para  divisHs  suas,  do  mesmo  modo  que  a  águia  foi 
divisa  do  l.iipério  romano,  e  depois  cora  2  cabeças, 
alludindo  á  divisão  do  império  oriental  e  occidental ; 
e  a  esphera  do  Sr.  D.  Manoel  alludia  ao  domínio  do 
mundo  ;  e  o  pelicano  do  Sr.  D.  João  II,  com  o  moito  : 
Pola-ley  e  polorgr&y^  alludia  ao  modo  como  esse  mo- 
narcha  intendia  o  offício  de  reinar,  etc.  Era  assim, 
alludindo  às  altas  qualidades  que  história  ou  fábula 
proclama  nos  ganços  do  Capitólio,  que  estes  se  torna- 
ram uma  honrada  empresa  ;  mas  cá  o  uosi^o  nivelador- 
mór  desadorou  com  o  poder  pessoal  dos  ganços,  e 
rebaixou-os  de  posto,  ou  antes,  por  uma  antíphrase 
inexpKcavel,  converteu  em  censura  o  que  sempre  foi 
tido  por  louvor. 

Eis-ahi  tens  tu  o  que  seja  a  carta  introductória  do 
novo  romance  O  TU :  como  sempre,  uma  baforada, 
uma  arrogância,  uma  injúria. 

Segue-se  falar  no  começado,  apregoado,  assoprado, 
ingraudecido,  celebrado,  hyperbolizado  ,  incarecido, 
exaltado  e  inthronizado  romance.  Está-me  caindo  da 
penna  um  verso  de  Boileau,  mas  nao  quero,  nao 
senhor. 

Teo  respeitoso  amigo. 

ClNCINNATO. 


G  Brasil. 
11 

FALSIDADE    DOS    CONTRACTOS 

Nao  menos  condemnada  é  a  questão  de  emigração 
para  o  Brasil,  pela  falsidade  e  má  fé  que  se  diz 
presidir  a  todos  os  contractos  celebrados  em  Portugal. 
Acceitâmcs  a  accusaçao  como  verdadeira,  em  pane; 
no  todo  nâo,  e  vamos  dizer  o   porque. 

Um  dos  fazendeiros  que  mais  tem  sido  aggredido, 
talvez  por  ser  o  que  mais  colonos  ajusta  para  os  seos 
estabelecimentos  agrícolas  na  província  de  S.  Paulo, 
é  o  desembargador  Bernardo  Avelino  Gavião  Peixoto. 
O  governo  imperial  celebrou  já  n'este  anuo  um  con- 
tracto cora  aquelle  agricultor,  no  qual,  determinando 
que  se  observem  no  transporte  de  colonos  as  dis- 
posições do  decreto  do  l.**  de  Maio  de  1868,  deter- 
mina mais :  Que,  antes  de  embarcarem  nos  porto .  de 


46  XXIII 

sua  procedência,  os  emigrantes  assignarào  perante  o 
cônsul  ou  agente  consular  do  Brasil^  ou  na  falta  d'este 
perante  a  aucioridade  /occ/,  a  declaração  em  dupli- 
cata, de  terem  conhecimciUo  doà  condições  dos  con- 
tractos feitos  para  a  importação  no  império,  nspeci- 
ficando-se  a  cláusula  de  nao  irem  por  conta  do  go- 
verno, o  qual  fica  exempto  de  toda  e  qualquer  der- 
pezacom  o  transporte,  desembarque,  agasalho, sustento, 
tractamento   dos  colonos,  e  conducçâo  de  bagagem  ; 

Que  o  governo  imperial  auxilili  a  despe.^a  com  a 
passagem  com  os  colonos  menores,  de  2  a  14  anno;?, 
que  forem  em  companhia  de  seos  pães,  na  pro- 
porção de  4  por  cada  família,  e  nao  excedendo  de 
80S000  rs.  o  auxilio  para  cada  passageiro  ;  e  bera 
assim  de  3508000  para  a  passagem  dos  colonos  adul- 
tos do  sexo  masculino,  de  modo  que  o  número  de 
passagens  auxiliadas  nao  exceda  a  200,  comprehen- 
didas  as  dos   menores  ; 

Que  da  dívida  dos  colonos  para  com  o  importador 
será  deduzida  em  favor  dos  mesmos  a  importância  do 
auxilio  concedido  pelo  governo  imperial  para  as  pas- 
sagens,   tanto  dos  menores  como  dos  adultos  ; 

Que,  finalmente,  a  subvenção  só  será  paga  em 
vista  de  um  exemplar  da  declaração  exigida  e  at- 
testada  do  agente  consular  do  Brasil,  na  qual  se 
mencione  a  edade,  naturalidade,  filiação,  profissfio, 
estado,  religião  e  o  número  dos  emigrantes,  e  pre- 
cedendo a  appresentaçao  de  cada  um  ao  agente  no- 
meado pelo  governo  para  fiscalisaçao  do  contracto. 

Como,  pois,  pôde  accusar-se  de  falsidade  nos  ron- 
tractos  o  governo  que  toma  taes  medidas  e  o  par- 
ticular que  acceita  taes  condições  ?  Como  pode  haver 
falsidade  no  contracto,  se  elle  só  pôde  ser  válido, 
em  interessa  do  próprio  agricultor,  depois  do  colono 
haver  declarado  quaes  as  condições  com  que  seescrip- 
tura  e  de  as  acceitar? 

Outros  haverá,  e  ha  talvez,  que  sejam  illudidos  na 
sua  boa  fé.  Mas  de  quem  a  responsabilidade  ?  Do 
governo  imperial,  de  certo  nao,  (|ue  o  nao  pôde  evi- 
tar. Chega  a  qualquer  poncto  do  império  um  navi'^ 
conduzindo  colonos,  que  se  declaram  ajustados  por 
motu-próprio  e  livre  vontade  :  como  ha  de  o  governo 
imperial  castigar  o  contractador,  se  nao  ha  accusaçâo. 
se  ninguém  se  lhe  queixa,   se  o  próprio  cônsul  por- 


XXIII  47 

tuguez  tem    de  legal isar   e    dar   sancçao    aos    con- 
tractos ? 

Sao  estes  contractadores  os  contrabandistas,  e  esses 
ha-os  em  todos  os  paizes.  Claro  é,  portanto,  que  só 
«s  auctoridades  locaes  podem  ou  devem  fazer  com- 
prehender  aos  indivíduos  que  se  dispõem  a  seguir 
para  o  Brasil,  que  tem  dous  alvitr^.s  a  tomar  e  dous 
caminhos  distinctos  a  seguir :  ou  contractarem  pe- 
rante auctoridades  legaes  e  responsáveis  pelos  seos 
actos,  em  cujo  caso  uao  podem  ser  illudidos  ;  ou  ajus- 
tarem a  occultas,  sem  conhecimento  de  quem  quer 
que  seja,  que  possa  coarctar  qualquer  abuso  ou  qual- 
quer fraude  nos  seos  contractos. 

Em  ambos  os  casos,  absolva-se  a  colonisaçao  para 
o  Brasil  que,  se  tem  custado  vidas,  tem  também 
salvado  muita  família  da  fome  e  da  indigência,  e 
feito  de  muito  homem  indolente  um  cidadão  útil  a 
siy  a(»s  seos  e  à  sociedade. 

[Continua). 

Do  BrasiL 


ARCHILOCO  A  CINCINNATO. 

Conheço  na  minha  terra, 
meo  querido  Cincinnato, 
um  charlata  pequenino^ 
arvorado  em  litterato. 

Dando  por  páos  e  por  pedras, 
em  fofo  estylo  arrogante, 
crê-se  o  magister  da  lingua 
sendo  n'ella  archi-ignorante. 

E'  mania  imperdoável 
d'esse  ingenho  sem  egual 
escrever  de  omni  scihili.r 
que  importa  se  bem  ou  mal  ! 

Por  vocábulos  esdrúxulos 
que  nao  valem  um  vintém, 
julga-se  um  sábio  da  Grécia, 
e  nao  respeita  a  ninguém. 

Quer  o  mísero  ser  tido 
em  conta  de  novelleiro  ! 
mas  no  mercado  das  lettras 
é  simples  bufarinheiro. 


48  XXIII 

Anda  sempre  atarefado 
em  romanescos  lavores  ; 
occupa  log'ar  distincto 
na  turba  dos  palradores. 

Quer  ser  crítico  eminente, 
e  dnr  liccões  sobre  tudo. 
Ninguém  dà  o  que  nao  tem  ; 
philaucia  nao  suppre  «estudo. 

Se  romântica  e  faz  dramas^ 
enche  resma.s  de  papel, 
parece  escrever  na  lingua 
que  se  fallava  em  Babel, 

Brilha  de  um  modo  espantoso 
na  abstrusa  phrase....  queé  linda, 
e  deixa  a  perder  de  vista 
o  próprio  José  Cabinda. 

Nas  talentosas  imagens 
verão  o  bello  e  o  bonito. 
Não  é  átomo,  é  gigante  ; 
dobra  e  desdobra  o  infinito. 

E  ha  quem  o  eleve  ao  throno ! 
por  Deus  ou  por  Belzebuth! 
Thronos  d'estes  só  assentam 
no  reino  de  Lilliputh. 

Archiloco. 


E  P  I  G  R  A  M  M  A  S 

Ha  hi  quem  tenha  apostado 
que  as  taes  dobras  do  infinito 
o  fizeram  pequenito 
e  algum  tanto  amarrotado. 


Dentro  de  um  taquarussii 
veio  de  Itapemerim 
notícia  para  Iguassii 
de  como  o  infinito  assú 
passa  a  infinito  merim. 

Estes  epigrammas  como  o  último  do  precedente  nú- 
mero sEo  de  Quintiliano. 


Typ.  e  lith.— Imparcial— Rua  Sete  de  Setembro  n.  14«  A« 


QUESTÕES  DO  DIA 

]Sr.  34 

RIO  DE  JANEIRO,  8  DE  DEZEMBRO  DE  1871. 


?ende-8e  <m  casa  dos  Srs  E.  &  H.Laemmert.— Agostinho  de  Freitas  Gui' 
maiies  &  Comp.,  26,  rua  do  General  Gamara.—  Livraria  Académica) 
Rua  de  S.  José  n.  119— Largo  do  Paço  n.  C.— Pr^^  200  reis. 


Shdx*.  I^tedaotox*  aas  «  Questões  do  Dia  » 

Do  excellenteescriptorSemprónio  recebo,  com  outras, 
a  carta  inclusa,  destinada  &  publicidade,  e  n&o  posso 
enYÍar-lh'a,  desaccompanhada  de  duas  ponderações. 

A  primeira  é  que,  dignando-se  V.  acceitar  as  minhas 
garatujas,  poderá  parecer  vaidade  ou  insânia  transcre- 
yerem-se  nas  mesmas  páginas  encómios  á  minha  pessoa, 
aliás  exclusivamente   devidos  á  cega  benevolência  de 

Srotectora  amizade.  Repito  porém  o  que  ja  tive  precisão 
e  reflectir,  e  que  me  servirá  de  salvaguarda  ,se  por 
ventura  alguma  outra  vez  me  achar  em  eguaes  con- 
dições :  Vejo-me  entre  a  espada .  e  a  parede.  Que 
fazer? 

— Deixar  de  publicar  estes  escriptos  ?  Seria  defraudar 
os  leitores  d'estes  modelos  de  critica ;  abusar  de  hon- 
rosa confiança ;  corresponder  a  uma  delicadeza  com 
uma  Vasconcellice. 

— Publicai -os,  operando-lhes  alterações  e  cortes? 
Seria  desfigurar  a  producçao  ;  arvorar-me  em  censor, 
sem  direito  ;  superpor  a  minha  penna  rude  á  aparada 
de  quem  a  maneja  muito  melhor  do  que  eu. 

— Dal-os  à  luz,  intactos?  Por  exclusão,  é  o  linico 
expediente  lícito,  supplicada,  como  fica,  para  este  e 
todos  os  ca.sos  análogos,  a  desculpa  do  leitor,  a  quem 
n^o  me  considere  subjeito  então  a  força  maior. 

Venhamos  a  outro  poncto. 

Na  carta  que  vai  ler-se,  abaixa-se  Semprónio  a  tomar 
em  consideração,  embora  seja  para  esmagal-o,  ao  Pa- 
lesireiro  do  Diário  do  Rio.  Está  longe  o  conspícuo  es- 
criptor.  Pensa  elle,  como  todos  tinham  pensado,  que 
eram  ou  dictadas  ou  insufiladas  por  Sénio  as  tristes 
Palestras^  que  lhe  imitam  o  estylo  ;  que  lhe  reproduzem 


50  XXIV 

a  argumentação ;  que  se  sabe  saírem  de  debaixo  do 
iiidsiao  telhado  e  de  sobre  a  mesma  mesa  em  que  Sénio 
escreve. 

Foi  exclusivamente  esta  coEvicção  que  levou  a  raim 
e  a  Serapróaio,  a  descermos.ao  poncto  de  discutir  com 
o  Palestreiro^  guardadas  sempre  as  devidas  distancias 
de  linguagem,  isto  é,  brandindo  nós  espada  de  aço 
contra  espada  de  canna  temperada  em  lodo. 

Surge  porém  um  çuidam^incoberto  sob  o  pseudóaymo 
VasconcelloSj  bradando  serelle,  e  não  Sénio^  o  auctor  da 
Nova  Tripa  Virada,  e  a  reclamar  para  si  certo  privilégio, 
de  que  afirmam  usava  uma  Viscondessa  da  Lourinhã. 

Quer,  a  toda  a  força,  celebrizar-se  ;  é  o  que  os  fran- 
cezes  chamam  reclame ;  quer  que  façamos  faiar  nelle  ; 
quer  que  annunciemos  aos  taberneiros  o  seo  escriptório 
de*  advocacia.  Perde  o  tempo. 

Quanto  a  mim,  ja  avaliei  a  importância  do  critico, 
e  pode  esbofar-se,  que  lhe  não  darei  mais  attenção  a 
quantas  inépcias  escrevinhar,  em  linguagem  de  prós- 
tíbulo  ou  de  aço^igue.  Nada,  não  senhor.  Eróstrato  era 
um  parvo  obscuro,  aquém  atormentava  o  delírio  da 
celebridade.  Qieria  immortalizar-se  fosse  como  fosse,  e 
com  o  petróleo  de  Epheso  queimou  aquelle  Rocheford  o 
Velho  uma  das  7  maravilhas  do  mundo.  Isso  foi  lá  com 
elle;  mas  eu,  simples  cidadão,  e  respeitador  da  lei, 
curvo-me  á  que  promulgaram  os  Ephesianos,   quando 
prohibiram  expressamente  que  se  proferisse  o  nome  do 
inceadiàrio.  Por  isso,  surrindo,  o  vejo  voltar  ao  Dia' rio 
do  Rio  ( ha  folhas,  que,  em  se  lhes  pagando,  pablicam 
tudo  ;  tomam  a  sua  missão  por  uma  tigella  da  casa  jor- 
nalística ],  fazendo-me  tregeitos  e  visagens,  e  dizendo 
que  o  Sr.  José  d'  Alencar  E'  SOL  ( de  quem  ja  obteve, 
e  appira  a  m  is....   certo  calor  que   nós  sabemos  ),  e 
outras  bajulações  tão  nojentas  como  as  diatf  ibes  com 
que  sonha  fulminar-nos.  Coitado,  reqaiescat  in  pace. 

O  que  é  lamentável,  porém,  é  que  Semprónio  se 
curvasse  a  inxergar  similhante  escrevinhador,  a  quem 
faltam  todos  os  dotes  de  sciencia,  consciência,  intel- 
ligencia,  gosto,  estudo,  educação,  e  senso  commuoi. 
Entretanto,  submetta-se  Semprónio  aos  ossos  do  oficio: 
isto  é  o  (c  Lembra-te  que  és  homem  l  do  romano  trium* 
phador.  Quando  o  general  victorioso,  ia  revestido  da 
túnica  palmata  e  da  pintada  toga^  coroa  de  louro  na 
fronte,  ramo  de  louro  e  ebúrneo  sceptro  nas  mãos,  pouco 
importara  que  ao  pescoço  levasse  uma  nómina  contra 


XXIV  51 

a  inveja  :  atraz  d'elle,  no  carro  magnifico  de  marfim, 
pachado  por  4  alvos  conséis,  ia  um  escravo  ébrio,  des- 
compoodo-o  e  insultando-o,  e  desde  o  Campo  de  Mafte 
até  á  Porta  Carmental  e  ao  Clivo  Capitolino,  confundia- 
se  a  voz  do  truSo  com  o  Io  trvumphel  das  multidões. 

Cada  um  occupe  o  seo  lugar,  e  Semprónio  trium- 
phe  ! 

Desde  que,  porém,  nos  querem  convencer  de  que 
Sènio  nao  é  o  auctor  das  Palestras^  persu€tdo-me  que 
o  distincto  escriptor  fará  devida  justiça  a  si  mesmo, 
Gondemnando  ao  desprêso  a  insolente,  analphabeta 
e  chata  escripta  de  um  V. 

Semprónio  vai  inceptar  o  estudo  da  Iracema  e  da 
Diva.  Acaba  de  sair  à  luz  uma  sequencia  de  produc- 
ções  estupendas,  incontestavelmente  do  Sr.  José  de 
Alencar ;  para  que  se  hade  brigar  com  phantasmas, 
quando  ante  nós  temos  o  corpo  ? 

Ahi  está  fresquinho  o  impagável  TiL  Temos  o  2* 
tomo  do  Tronzode  Ipê  (que  os  thuribulàrios  do  costume 
já  proclamaram  famoso,  eloquente,  de  forma  rara  e 
mais  que  appreciavei  etc,  nada  menos).  Ha  muito 
por  onde  esmerilhar,  sem  que  se  nos  saia  ao  incontro 
com  hesitações  sobre  authenticidades. 

Ha  mais  outro  livro,  que  participa  de  empalmaçSo 
^  de  roedéla  de  chorda,  e  que  parte  da  mesma  selecta 
intelligencia  ;  mas  este  merece  duas  palavras  de  re- 
miniscências. 

A  23  de  abril  de  1870,  publicou  o  sr.  José  de  Alen- 
car uma  carta  muito  perra,  fazendo  saber  ao  mundo 
que  nio  tinha  ficado  pârro,  por  nflo  ter  sido  escolhido 
para  senador,  carta  ds  que  ainda  espero  occupar-me. 
E'  uma  verriUfi,  quanto  ao  passaao ;  uma  amiaça, 
quanto  ao  futuro.  Leem-se  nella  estas  phra^es,  por 
exemplo  : 

«  Sou  obrigado  a  revelar  ao  paiz  os  motivos  pes- 
soaeSf  e  as  razões  occultas,  que  determinaram  minha 
exclus&o.  Abrirei  aos  contemporâneos  as  páginas  de  um 
livro,  que  eu  havia  escripto  para  o  futuro.  Accredito 
que  nao  serão  páginas  perdidas  para  ^  história  doeste 
paiz  ;  aquelles  que  se  derem  ao  trabalho  de  a.s  folhear 
conhecerão  que  essa  condemnaç&o  do  meo  ministério 
foi  lógica.  Eu  a  esperava  como  a  consequência  neces- 
sária de  alguns  actos  de  energia  e  m^ralidade^  que 
pratiquei  no  governo.  » 


i^k«W 


52  XXIV 

Ponhamos  de  lado  o  despeito  e  o  desabrimento  com 
que  se  tracta  o  mais  que  sol^  aquelle  contra  cuja 
vontade  se  não  concebe  resistência  no  dominio  da  lei, 
O  género  humano  tomou  nota  da  promessa  formal. 
Exultou  de  ver  que  um  melhor  Chateaubriand  pre- 
senteava a  actualidade  com  umas  interessantes  Memó- 
rias destinadas  à  posteridade,  mas  que  generosamente 
se  transformavam  em  Memórias  àe  a>quem^ca/mpa.  Tem- 
se  preparado  para  admirar  o  promettido  Livro  do  futuro, 
com  seos  foros  de  apocalipse.  Excitara-lhe  a  curiosidade 
a  certeza  de  que  ia  estudar  as  consequências  lógicas, 
razões  pessoaes,  e  motivos  occultos,  porque  emfim, 
desde  tempos  immemoriaes,  as  sciencias  occultas  têm 
arte  de  despertar  geral  appetite. 

Já  lá  vai  anno  e  meio,  e  moita  I  O  Livro  do  futuro 
assimilhava-se  ás  prophecias  do  Bandarra,  e  D.  Se- 
bastião sem  apparecer  I  Mas  afinal,  parabéns,  surgiu, 
eureka^  eil-o  ani . 

O  Sr.  Alencar  imprimiu  os  seos  brilhantes  discursos 
d*esta  sessão.  No  prólogo  (diz  o  Jornal  do  Commércio) 
declara  o  auctor  que  offerece  estes  discursos  como  paga- 
mento  do  promettido  livro  sobre  a  sua  passagem  pelas 
regiões  do  poder,  e  que  se  intitulará  Dezoito  mezes  no 
podfix.  Antes  que  este  appareça,  promette  reproduzir, 
ainda  como  pagamentos^  os  seos  discursos  aa  sess&o 
de  1870,  e  como  prefácio  uma  3*  edição  das  Cartas 
à^Erasmo. 

Que  a  impavidez  é  dote  d'aquelle  descommunal 
talento,  se  tantas  provas  nao  houvesse,  bastaria  esta 
para  evidencial-o.  Emfim,  tem-se  visto  quem  faça 
do  sanbonito  gala.  Mas  que  se  pague  em  moeda  falsa, 
isso  é  que  nao  parece  de  jurisconsulto,  que  sabe  as 
penalidades  da  lei.  Deve  alhos  e  dá  bugalhos.  Por  5 
libras  sterlinas  dá  egual  forma  em  5  vinténs.  Promette 
livro  do  futuro,  e  diz  que  paga  reimprimindo  farelórios 
do  passado.  Obriga-se  a  revelar  consequências  lógicas, 
motivos  pessoaes,  razões  occultas,  e  empalma  tudo, 
pagando  ern  cobre  o  peso  do  que  devia  em  ouro,  e 
burlando  uma  vez  mais  o  público  paciente.  Ficaremos 
pois  intendendo  que  a  alta  novidade  das  Cartas  de 
Erasmo,  e  àns  arengas  parlamentares  do  passado  é  o 
Livro  do  Futuro  l  ! 

Todavia  ahi  esiá  matéria  sem  termo  para  appreciaçao 
d-o    orador,  do  estadista,  do  romancista,  do  escriptor, 


XXIV  53 

aos  quaes,  a  seo  tempo,  seguirá   o  jurisperito  e  o 
dramaturgo. 

Peço  desculpa  de  haver  dado  a  estas  linhas  de  in- 
troducç&o  e  justificação  maiores  dimençoes  que  projec- 
tava, e  permitta  subscrever-me 

ClNCINNATO 


NONA  CARTA  DE   SEMPRONIO  A  ClNCINNATO 

( Epíittola  aparte.) 

ínclito  amigo. 

Tenho  sido  de  uma  descortezia  atroz. 

Três  cartas  tuas  até  hoje  sem  resposta !  E  que 
cartas!  onde  a  liberalidade  mais  cavalleirosa  confunde 
o  ignorado  escrevinhador  de  província  I  três  primores 
de  ingenho  e  de  arte,  padrões  de  vernaculidade,  eru- 
dição e  atticismo. 

Mil  perdoes. 

Tu  tambor,  emquanto  ftu  marechal  do  exército  ! 
Nao  te  lembres  d'isso. 

Eu,  sim,  é  que  me  apresso  a  reconhecer  em  ti  o 
mestre,  capaz  de  me  dar  licçOes,  ricas  de  insino  para 
viagens  de  instrucçao  n'este  labyrintho  inextricável 
da  crítica.  Nao  sou  senão  justo,  prestando-te  do  co- 
ração o  culto  a  que  têm  indisputável  direito  os  teos 
múltiplos  e  fecundíssimos  talentos,  as  tuas  graciosas  e 
castiças  lettras. 

Acabo  de  chegar  do  arrabalde,  onde  a  minha  dete- 
riorada saúde  me  deteve  cerca  de  quatro  mezes.  Tran- 
quillisa-te,  porém  ;  estou  disposto  e  preparado  para  a 
esgrima. 

Vi  as  minhas  frandulagens  sobre  o  Gaúcho.  Agra- 
decido. 

Mal  pensara  eu,  quando  tive  de  escrevêl-as,  a  ins- 
tancias reiteradas  de  um  amigo  que  chegara  havia 
pouco  da  campanha  do  Rio  Grande,  que  Sénio,  em 
resposta  e  sem  ler  em  consideração  a  excellencia  do  in- 
tuito, nem  o  comedimento  e  selectos  modos  da  minha 
compostura,  viria,  arrojado  e  infrene,  assacando-nos 
doestas  fidalguissimas  amenidades : 

«  To7nOj  para  começar^  a  1*  carta  em  que  Cindnnato^ 
d  laia  de  amigOy  se  dirige  a  um  Semprónio,  AMBO  FLO- 
RENTES, não  na  edade^  poisque  o  de  lá  ainda  estd  na 
esjnga  e  o  de  cajá  chegou  ao  sabugo^  mas  com  certeza 
ÁRCADES  AMBO  ;  e  bom  será  que  se  saiba  que  ha  dt- 


• 


54  "-  XXIV 

versas  espécies  de  ARCADIOS,  sendo  estesdousd'aqudles 
de  que  tracta  Juvenal  sat.  VII  v.  160  :  QUOD  L^VA 
PARTE  MAMILLCE  SALIT  JUVENI  ARCADICO, 
qua/ndo  faz  aJUusão  a  certos  ORELHUDOS  de  bom  vo- 
/ume,  qae  pastavam  a  relva  da  Arcddia.  » 

Diz  uma  auctoridade  em  lettras  :  a  Quando  a  alma 
é  elevada,  as  palavras  vem  do  alto,  e  a  expressão  nobre 
^    accompanha  sempre  o  nobre  pensamento.  »  Faze  a  ap- 
plicaçao. 

Orelhudo  só  pode  ser  filho  de  burra.  Ora  d'esta  es- 
pécie de  animal  nunca  figurou,  que  eu  saiba,  na  minha, 
posto  que  plebéa,  estyrpe.  Para  onde  se  voltou,  pois, 
Sénio,  quando  quiz  achar  a  finíssima  allusao  ? 

A'  vista  de  tao  polido  exórdio  hesitei,  a  principio, 
como  tu,  se  devia  ou  nâo  travar  contenda  com  quem 
assaz  mostrou  só  saber  torneiar  d  gancha. 

Ora,  nunca  me  empenhei  em  taes  luctas — verda- 
deiros exercícios  bárbaros.  De  meos  pães,  de  meos  mes- 
tres, da  boa  sociedade,  da  civilisaçao  ( da  nossa  civi- 
lisaçao  que  nao  babuja^  como  a  de  Sénio  ]  aprendi  a 
pleitear  com  as  armas  do  pensamento — pela  palavra, 
esse  escudo  sonoro,  e  pela  penna,  essa  tersa  lança  do 
brioso  lidador. 

Mas  deixar  de  accudir  à  intimac^lo !  isso  nunca.  Dou^ 
me  também  por  citado,  e  venho  á  lide  para  discutir,  se 

o  quizerem,  e  nunca  para rebaixar-me.  E'    falar 

em  bom  portuguez. 

Quizesse  eu  combater  d  Gaúcha^  nada  mais  fácil, 
apezar  da  minha  falta  de  hábitos,  de  gosto  e  de  aptidão, 
confesso-o,  para  esta  espécie  de  pugna  gentílica :  o 
amigo,  de  quem  acima  te  falei,  tem  ainda  em  seo  poder 
um  rebenque  e  umas  chilenas,  que  de  bom  grado  me 
prestaria;  e  até  um  Jucá  acharia  eu  defronte  de  mim 
para  o  cavalgar. 

Mas  renuncio  para  outros  á  glória  de  sobresair  n'est6 
páreo.  O  público  da  cidade ,  que  nao  confunde , 
como  Sénio,  o  homem  com  o  bruto,  vai  tendo  o  bom 
senso  de  antepor  ás  corridas  ferozes  as  nobres  justas  do 
raciocínio,  únicas  que  instruem  e  dao  triumpho  sem 
molestarem. 

Para  prova  de  que  estou  disposto  a  discutir,  vou 

occupar-rae  com  a  continuação  da  gauchada  de  Sénio. 

«  Prometto  continuar — diz  elle — logo  q-ue  regresse t  pois 

que  para  concluir  a  tarefa^  que  tomei  sobre  os  homkros^ 

inda  me  resta  debicar  um  pouco  o  Sr.  Semprónio^  que 


XXIU  55 

também  se  metteu  a  criticaço^  e  pinoteou  pela  campanha 
da  litteratura^  para  mostrar  ao  vivo  como  comprehende  o 
ca/úaUo  do  Gaúcho.  » 
Duas  observações : 

L*  Sénio  nao  abandonou  ainda  o  estylo  equino.  Vai- 
lhe  a  phantasia  tão  recheiada  de  visões  hippicas,  que 
as  imagens  que  lhe  occorrem  nao  sSo  de  outro  género. 
Piríoteoit  pela  campanha  da  Htteratura.  Que  gentileza 
de  me^Aphora !  A  Htteratura  convertida  em  campanha, 
onde  se  pinoteia !  E'  da  mesma  ordem  da  civiíisaçao 
que  babuja.  Descobriu-se  o  Chiarini  da  Htteratura. 

2.*  O  que  eu  disse  foi  como  comprehendia  o  cavallo 
do  pampa,  e  nao  o  cavallo  do  gaúcho ;  sao  idéas  bem 
differentes.  E'  preciso  que  Sénio,  por  amor  de  si  mesmo, 
tenha  presente  o  seguinte:  que  &  improbidade  litterá- 
ria  doá  palestreiros  jesuítas  deveu  Pascal  em  grande 
parte  o  seo  majestoso  triumpho. 

Accrescenta  o  nosso  fidalgo  oppositor  : 
«  Ora,  Sr.  Semprónio  I  Vd  esbrugar  os  seos  indios  do 
Jagiiaríbe,   e  fp,iando  lhes  tiver    tirado  o  cascão,  etc.  » 
Bôa  dúvida !  Grande  achado ! 

Que  o>í  taes  indios  tinham  cascão,  e  do  mais  espesso, 
foi  o  auctor  o  primeiro  que  o  declarou,  alto  e  bom  som. 
Leiam  a  nota  1*  no  final  do  vol.  1*. 

Semprónio,    provinciano    bronco  e  obscuro,  nunca 
pretendeu  ser   tido  por  grande  cousa,  por  formador  de 
eschola,  Htterato  inatacável,  philólogo  inerrante,  sábio 
illuminado.  De  taes  velleidades  não  se  accusa.  Escre- 
veu, garatujou  aquillo  por  mero  desinfado.  E  ficará 
em  excelso  agradecido  ao  pio  leitor,  ao  próprio  Sénio, 
m  se  dignar  indicar-lhe  os  erros,  porque  se  elles  nao 
forem  irremediáveis,  promette  tentar  emendal-os  con- 
forme poder  na  3*  edição,  se  resolver  dal-a  Chateau- 
briand,  dócil  ás  licções  dos  críticos,  nunca  se  despresou 
de  corrigir  suas  obras.  E'  elle  mesmo  quem  nos  con- 
fessa que,  sendo  reimpressa  a  Atala  onze  vezes,  se  con- 
frontassem essas  onze    edições,   apenas    incontrariam 
duas  inteiramente  similhantes.  E'  que  pelo  menos  dez 
vezes  a  Atala  teve  cascão.  Antes  quero  pensar  com  Cha- 
teaubriaud  do  que  com  Sénio  (perdôe-me  elle  a  prefe- 
rencia), que  emperrou,  emperrou 

Semprónio  estava  uma  vez  muito  caladinho  no  sea 
canto,  quando  recebeu  o  1*  numero  da  República  (diá- 
rio que  se  pubHca  n'essa  corte)  trazendo  um  formoso  e 
obsequiosíssimo  juízo  crítico  sobre  os  índios.  Era  da 


ôt)  XXIY 

penna  do  Sr.  Silva  Maia,  cavalheiro  que  o  auctor  n&o 
tinha  nem  teve  ainda  a  fortuna  de  conhecer. 

O  Sr.  Silva  Maia,  julgando  da  acção,  dizia  o  se- 
guinte : 

«  E'  esta  por  ventura  um  pouco  arrastada  e  longa,  e 
interrompida  não  poucas  vezes  por  incidentes,  talvez 
alheios  ao  seo  movimento  e  desinvolvimento,  etc.  » 

Semprónio  toma  o  livro,  folheia-o,  medita,  e  conclue 
confessando  á  sua  consciência,  como  ao  público  o  de- 
clara .agora,  que  o  Sr.  Silva  Maia  tem  carradas  de 
razão.  Eisahi. 

Acceitar  com  reconhecimento  e  gáudio  salutares 
instrucções  e  advertências,  por  mais  elevada  que  seja 
a  posição  que  se  occupe,  sempre  foi  próprio  do  es- 
col dos  espíritos.  O  que  me  parece  triste,  e  das  me- 
diocridades desabridas,  é  perseverar  voluntária  e 
obstinadamente  no  erro  por  amor  de  preconceitos    vãos. 

O  mundo  é  uma  eschola,  onde  se  pratica,  não  o 
elogio,  senão  o  insino  mútuo,  com  esta  circumstancia 
porém  —  que   não  ha  magister  super  omnes. 

Firme  n'estes  princípios  é  que  Semprónio  irá  tam- 
bém esbrugar  e  dissecar  a  Iracema  e  a  Diva^  que, 
segundo  alguns,  têm  moléstia  na  pelle  (  elephancia» 
de  estylo  ),  e,  segundo  outros,  talvez  mais  bem  avi- 
sados, o  principal  defeito  está  em  alguma  mielite  ou 
alguma  viciosa  disposição  da  espinha  (  destempêros 
de  acção  e  de  characteres  ),  d'onde  vêm  os  corcovos  e 
B&  suturas  ósseas,  que  lhes  dão  a  figura  de  monstren- 
gos. 

Notarei :  nas  delicadas  operações,  que  vou  con- 
tinuar, nunca  os  erros,  as  fragilidades,  os  arroubos 
disformes,  os  caprichos  frívolos  do  auctor  farão  Sem- 
prónio deixar  de  ter  para  com  Sénio  as  attenções  devi- 
das ã  sua  edade,  posição  social,  admiráveis  talentos, 
illustre  pessoa,  e  particular  character.  Sénio  precisa 
mais  de  ter  quem  lhe  diga  certas  verdades  proveitosas 
do  que  de  pão  para  a  bôcca.  Hei  de  dizer-lh'as,  apoia- 
do na  minha  bôa  fé,  em  meo  desenvolvido  espírito  de 
rectidão. 

Não  é  de  hoje,  uão  é  no  interesse  de  quem  quer 
que  seja,  que  reajo  em  nome  das  lettras  nataes.  As 
minhas  cartas  sobre  o  Gaíicho,  posto  que  sé  agora 
publicadas,  foram  escriptas  ha  perto  de  um  anno,  e, 
o  que  é  mais,  estiveram  todo  este  tempo  ahi  na  corte. 
Scei  que  de  tudo  isso  tem  Sénio    notícia. 


XXIV  57 

Repito:  estou  plena  e  profundameate  convencido 
•de  que,  procedendo  assim,  presto  serviço  ao  Bra- 
2il.  A  crítica,  que  se  preza  de  justa  e  independente, 
é  inquestionável  agente  de  progresso ;  poe  diques 
«(deixem  1&  falar)  aos  extravasamentos  das  imagi- 
nações superabundantes,  alimenta  e  aguça  os  estímu- 
los productivos,  apura  o  liquor  das  boas  fontes  sem 
estancal-as. 

Nsio  sSo  mais  brazileiros  do  que  eu,  os  que  só  têm 
o  incenso  que  embriaga,  e  nunca  uma  palavra  de  ju- 
diciosa e  firme  admoestação.  Muita  vez  o  applauso  é 
desserviço,  e  quando  perenne,  converte-se  em  nojenta 
6  nociva  idolatria.  Admira  que  os  mesmos  que  alar- 
deiam querer  espancar  o  chamado  fetichismo  político^ 
estejam  alimentando  o  fetichismo  litterdrio^  real,  fu- 
nesto e  enervador. 

Serão  da  injustiça  mais  injuriosa  e  acerba,  se  me 
tacharem  de  iconoclasta  de  imagens  da  terra  ;  o  que 
faço  é,  do  fundo  da  minha  obscuridade,  aponctar  a 
eiva  ao  ídolo,  e  pedir  que  o  reparem,  para  que  nfto 
caia  aos  pedaços. 

Quem  souber  commover-se  e  orgulhar-se  com  as 
grandes  cousas  ^da  pátria  nSo  o  ha  de  saber  melhor 
do  que  eu  ;  estão  enganados  !  Quando  J.  de  Alencar, 
â^piples  neóphyto  nas  lettras,  escrevia  desabridas 
cartas  contra  um  brazileiro,  a  todos  os  respeitos  illus- 
tre  e  respeitável,  verdadeira  glória  do  Brazil,  o  con- 
selheiro Gonçalves  de  Magalhães,  alguém  o  chamou 
de  iconoclasta  de  imagens  da  terra 'i  Pelo  contrário  : 
houve  de  sobra  quem  o  applaudisse  e  acoroçoasse.  E' 
que  ha  homens  que  nascem  sob  um  signo  inteira- 
mente feliz :  J.  de  Alencar  é  doestes. 

Pois  bem  :  nSlo  faço  mais  do  que  seguir  o  edificante 
exemplo  de  J.  de  Alencar. 

Fico  com  o  escalpello  sobre  a  Iracema  . 

Teo  amigo  e  admirador  sincero 

Sbmprónio. 


o    MCE30     IVO>IE3. 


Apparecendo  pela  primeira  vez  perante  o  público 
doesta  capital,  natural  é  que  alguém  pergunte  quem  sou* 
d^onde  vim,  e  para  onde  vou.  Ora,  como  eu  sou  do 
«éculo  da  publicidade,  vou  já  pôr  tudo  aqui  em  pratos 
limpos,  afim  de  n^o  deixar  a  mínima  dúvida. 


58  XXIY 

Como  se  verá  na  fralda  d'esle  escripto,  chamoHoae 
Oilon.  Nao  é  nome  que  me  pozessem  na  pia  do  baptis- 
mo :  assim  como  Ha  muita  gente,  que  abandona  06  no- 
mes, que  seos  pães  lhe  deram  para  tomar  outros,  qu^ 
muitas  vezes  valem  menos,  assim  fiz  eu ,  appro- 
veitando  o  exemplo. 

Mas  porque  razão  dei  eu  preferencia  antes  a  este  que* 
a  qualquer  outro  ? 

Eu  explico.  Otton  é  o  nome  de  vários  individnos 
conhecidos  na  história  :  entre  elles  pelo  menos  tres 
imperadores. 

Ora  eu  queria  um  nome,   que  impozesse    às  turbas  : 
pareceu-me  qiie  este  estava  muito  no  caso,  nao  tanto 
por  ser  nome  essencialmente  monárchico,  mas  porque 
com   pequeníssima  variante  se  transforma  em   outro» 
perfeitamente  republicano. 

Eu  sou  monarchista,  isso  lã  sou  eu ;  porém  não  scel 
quanto  tempo  isto  ha  de  durar.  Nos  dias  que  vao  cor- 
rendo, um  homem  muda  de  posto  com  mais  facilidade 
do  que  muda  de  camisa. 

Supponhâmos  que  sou  chamado  ao  ministério  :  é 
difficU,  mas  nao  é  impossível.  Se  houver  eleiçSo  se- 
natorial, là  meincaixo  eu  ;  e  que  hei  de  intrar  na  liâta> 
isso  é  dos  livros.  Mas  não  sou  escolhido  :  republicano 
no  caso.  O  cao  dos  Animaes  Falantes^  de  Casti,  o  fuib- 
dador  da  monarchia  leonina,  só  porque  o  demittiram,. 
foi  para  o  campo  do  elephante. 

Porventura  nao  houve  ahi  alguém  que  tomou  o  no- 
me de  Sènio?  Porque?  Sem  dúvida  por  ser  com  peque* 
na  alteração  o  anagramma  de  nhcio.  Eu  tomei  o  nome» 
Otton,  porque  me  serve,  emquanto  a  cousa  me  correr 
bem  ,  mas  em  me  chegando  a  mostarda  ao  nariz,  ldrgt> 
cutellos  e  varredouras :  é  apenas  um  risquinho  e  um 
pinguinho  ;  estou  cá,  e  estou  là  ! 

No  tempo  em  que  o  wapor  nao  fazia  mover  carros 
nem  barcos,  e  nem  havia  telégrapho  eléctrico,  a  cousa 
nao  ia  a^sim :  as  idéas  andavam  tao  de  vagar  como  as 
pernas.  Ainda  por  ahi  ha  muita  gente,  que  para  obter 
o  seo  retrato,  depois  de  dar  quinze  ou  vinte  se^sOes  ao 
seo  pintor,  tinha  de  esperar  seis  mezes.  Hoje  é  negó- 
cio de  segundos,  a  tres  mil  réis  a  dúzia. 

A  gente  fala  das  cousas,  segundo  o  modo  porque  as 
Yê  :  mas  os  olhos  sao  màchinas  photogràphicas  que 
appresentam  os  objectos  de  diíFerentos  modos. 


XXIV  59 

A  inveja  tem  os  olhos  vesgos,  nao  é  assim?  que 
eu,  excluído,  hei  de  ter  inveja  do  escolhido,  isso  nao 
admitte  dúvida.  Ficam-me  os  olhos  vesg-os :  de  Otton 
que  sou,  passo  a  ser  o  meo  simile,  por  outra,  de  monar- 
chista  que  sou,  passo  a  ser  republicano  de  papo  ama- 
rello. 

Tenho  falado  muito  de  mim  :  para  outra  vez  falarei 
dos  outros* 

Otton. 


TRAGEDIA    Igtiez    de  Castro. 

Se  o  nao  conhecem,  deixai-o-hao  seguir  sem  atten- 
tar  n*elle,  e  sem  lhes  passar  pela  mente  que  vai  alli 
uma  grande  intelligencia,  uma  alma  nooilissima  e 
um  coração  de  pomba. 

Júlio  de  Castilho  é  assim  :  crenças,  puras  como  a 
dos  primeiros  annos ;  coração,  vivíssimo  como  o  dos 
vinte ;  talento,  profundo  e  sólido  como  o  dos  cin- 
coenta.  Modesto  (sincera  e  demasiadamente  modesto), 
imaginando  insignificância  quanto  faz,  mesquinho 
quanto  inventa,  rachítico  quanto  concebe,  ó  pasmo  de 
quantos  lhe  sabem  estas  virtudes  a  noticia  de  que  um 
trabalho  seo  vai  ser  lido  em  público  ou  publicado  em 
livro.  Se  o  virem  n'um  gabinete,  em  que  é  tantas 
vezes  o  primeiro,  julgal-o-hao  o  último,  tal  é  a  timi- 
dez com  que  expõe  a  sua  opinifto  sobre  o  assumpto 
que  se  discute.  E,  não  obstante,  poucas  vezes  hade  um 
pae,  já  immortal  como  o  d^alle,  confiar  aguardv  fu- 
tura do  seo  nome  a  um  talento  tao  seguro  como  o  de 
Júliq  de  Castilho. 

Tem  fácil  explicação  este  character.  Educado  por 
uma  senhora,  toda  virtude,  toda  carinho,  toda  saber, 
senhora  que  ainda  hoje  é  prancteada  por  tantos  pa- 
rentes e  estranhos,  foi-se  aquella  alma  abrindo  ás 
luctas  da  vida,  entre  exemplos  de  resignação  e  de 
amor,  despretenciosa  e  modestamente  praticados  entre 
as  quatro  paredes  do  seo  lar.  Se  se  soltava  dos  braços 
da  mfte  estremecida,  para  voar  ao  collo  do  pae,  d'a- 
quelle  pae  de  quem  elle  foi  sempre  o  inlêvo,  via-o 
longas  horas  do  dia  intregue  ao  trabalho  sem  trégua, 
ao  e>tudo  sem  infado,  como  se  elle,  que  tanto  sabia, 
tivesse  ainda  tudo  que  aprender.  Se  ouvia  falar  es- 
tranhos, podia,  creança  ainda,  levantar  a   fronte  aL 


60  XXIV 

tiva,  pelo  culto  de  veneração  e  de  respeito  com  que 
era  repetido  o  nome  d'aquelle  que  lhe  dera  o  ser.  Se 
assistia  aos  saràos  litteràrios,  contemplava  attónito  a  , 
multid&o  que  corria  a  ouvir  a  palavra  do  seo  mestre 
e  melhor  amigo.  Finalmente,  se  folheava  o  Méthodo 
portuguez^  segredava-lhe  a  posteridade  o  nome  de  seo 
pae. 

Que  mais  fora  preciso  para  fazêl-o  tremer  ante  a  idéa 
de  firmar  com  um  nome  tão  glorioso  um  trabalho  seo  ? 
Que  importavam  conselhos,  que  valiam  incitamentos 
de  amigos,  se  mais  alto  lhe  falavam  as  imposições 
d'esse  nome,  e  o  respeito  com  que  elle  era  repetido  ? ! 

Tal  foi  a  lucta  d'aquelle  espirito  até  1863.  N'esse 
anuo  começava  a  surrir-lhe  a  vida :  jia  posse  de  um 
anjo  lhe  baixara  uma  primavera  de  flores.  Embriagou-^ 
o  perfume  d^ellas,  e  cego  e  surdo  a  tudo,  para  só  vêr  a 
candidez  e  ouvir  a  voz  harmoniosa  da  esposa  que  me 
recêra  a  Deus,  foi-se  cantando,  cantando  amores,  que 
tempos  depois  publicava  com  o  titulo  formosíssimo 
de —  Memórias  dos  vinte  annos, 

E  fugiu. 

Como  a  avesinha  innocente  que,  ao  som  do  tiro 
do  caçador,  solta  o  vôo  em  busca  de  outro  refúgio, 
assim  fugiu  aquella  creança  para  o  campo,  involto 
nas  azas  do  seo  anjo.  Corou  de  si  próprio,  do  seo  ar- 
rojo, e  a  nSo  lêr  nos  olhos  d'aquella  cândida  pomba  o  • 
—  bem  hajas !  —  teria  volvido  a  comprar  todos  os 
exemplares,  para  que  ninguém  podesse  ler  o  seo  livro. 

Nas  saudações  da  imprensa,  nos  parabéns  dos  ami- 
gos, via  elle  apenas  indulgência  e  amizade  ;  e  se  um 
dia  se  convenceu  de  que  a  sua  estreia  tinha  algum 
valor,  foi  preciso  que  um  parente,  tao  sábio  como 
austero,  lhe  dicesse  largamente  o  que  pensava  do  seo 
livro.  Foi-lhe  o  único  voto  insuspeito,  nao  porque  o 
dictasse  menos  amizade,  mas  porque  lhe  exigia  a  in- 
trega  immediatade  todos  os  seos  versos  inéditos,  para 
que.  áquelle  volume  se  seguisse  outro,  e  outro,  e 
muitos, 

Publicaram-se  entfto  os  Primeiros  versos ^  e  nfio  me- 
nos festejado  foi  aquelle  volumesinho.  Em  todo  elle  se 
revelava  a  herança  do  pae  ;  gemia-se  com  o  gemido 
d'aquella  harpa ;  surria-se  com  o  surriso  das  flores  que 
lhe  ingrinaldavam  a  fronte  ;  respirava-se  em  todas  as 
páginas  poesia  e  amor. 


XXIV  61 

Após  tao  supremos  esforços,  pediu  tréguas.  Preci- 
sava rrpouso  que  nSLo  tinha :  prostàra-o  a  anciedade, 
o  receio  de  insombrar  as  tradições  dos  seos,  e  depoz  a 
lyra,  para  a  tanger  três  annos  depois,  rica  de  nova 
harmonia  e  de  sons  dulcíssimos. 

Um  dia  despertaram  os  seos  íntimos,  aquelles  a  quem 
é  mais  familiar  o  tracto  das  lettras,.  com  um  convite 
para  assistirem  á  leitura  de  uma  tragédia  do  moço  es- 
criptor,  intitulada  Ignez  de  Castro.  O  próprio  cartão 
de  convite  o  photographava  :  a  um  cantinho  de  linha, 
em  lettra  mais  trémula  e  sumida, as  palavras — drama  de 
Júlio  de  Castilho^ — como  que  se  escondiam  invergo- 
nhadas  I 

Ninguém  se  escusou  a  tal  convite,  senão  os  que  a 
doença  impedia  de  tomar  parte  em  tao  appetitoso  coma 
raro  festim. 

A's  7  e  meia  começou  a  leitura,  perante  um  selecta 
auditório.  D'aquelle  róo  eram  juizes  em  primeira  instan- 
cia Pereira  da  Cunha,Duarte  de  Sà,D.  António  da  Costa, 
Freitas  e  Oliveira,  Silva  TúUio,  Castilho  e  Mello,  Dal- 
huaW,  Biester,  conselheiro  Lisboa,  visconde  de  Al- 
menaro,  Álvaro  Paes,  Luiz  Philippe  Leite,  dr.  Acácio 
Caldeira,  Júlio  Machado,  Roma,  Bulh&o  Pato,  Zacha- 
rias  Aça,  Xavier,  José  Aboim,  Silva  Ramos,  dr.  Hen- 
rique Leal,  e  Ramiro  Guedes.  Se  o  vísseis  passar  a 
vista,  inquieto  e  offegante,  de  um  ao  outro  extrema 
do  gabinete,  veríeis  que  tortura  lheian'alma,  tor- 
tura <^ue  ia  morrer  ante  as  cans  venerandas  de  um 
astro  immenso,  que  em  frente  a  elle  o  animava  e  a 
incitava  :  de    seo  pae,  o  Sr.  Visconde    de  Castilho. 

Fez-se  profundo  silencio,  apenas  quebrado  pelo 
arfar  descompassado  d*aquelle  peito,  contrastando  com 
a  serenidade  do  pae  e  a  convicção  em  qn.e  estavam 
todos  os  convivas  de  que  o  banquete  havia  de  ser 
digno  dos    convidados. 

No  fim  de  cada  acto,  fugia  Júlio  de  Castilho,  a  res- 
pirar a  sós  :  os  que  o  queriam  abraçar,  que  eram  to- 
dos, iam  ihcontral-o  no  poncto  mais  escuso  dos  gabi- 
netes contíguos,  e  era  para  ver  com  que  attençao  ouvia 
conselhos  e  parabéns  de  todos,  como  a  todos  agrade- 
cia com  o  coraç&o  nas  mãos  as  palavras  de  sincera  ad- 
miração qiie  lhe  tributavam. 

Isto  pude  contar  ;  mais  não  scei,  nao  me  cabe  a  mim, 
único  que  estava  deslocado  n'aquella  sala :  o  oue  tan- 
tos talentos  lhe  diceram,  nem  sequer  em  é  aado  re- 


(52  XXIV 

petir.  O  que  vou  dizer,  perdoem-m'o  e  suppoDhauí  que 
me  chegou  aos  ouvidos,  ora  aqui,  ora  alli,  doutre  os 
diversos  gruppos  que  ajuizavam  da  tragédia. 

Nao  scei  que  Júlio  ae  Ca-tilho  podesse  metter  hoin- 
bros  a  empresa  mais  afaiiusa.  Se  era  muito  o  ter  de 
atbender  á  palavra  da  historia,  ao  character  dos  perso- 
Dageus,  ao  estudo  da  épocha,  ao  desenho  das  figuras 
que  tinham  logar  n^aquelle  quadro,  ás  exigências  de 
um  poema  dramático,  á  ligação  racional  das  scenas  e 
dos  actos  entre  si,  era  tudo  o  confronto  com  a  immensi- 
dade  de  tragédias  a  que  tem  dado  assumpto  aquelle 
thema  (  algumas  das  quaes,  de  subido  valor ),  e  a  difi- 
culdade de  prender  a  attençao  de  espectadores,  que 
todos  conhecem  a  fundo  as  peripécias  da  tragédia,  em 
que  nao  ha  o  imprevisto,  em  que  cada  figura  que  entra 
em  scena  é  esperada,  e  para  dizer  palavras  que  todos 
sabem. 

Pois  tudo  salvou  Júlio  de  Castilho :  nenhum  dos 
espectadores,  apesar  de  lidos  e  versados  nas  leitras, 
tinha  até  então  visto  ou  lido  a  Ignez  de  Castro  :tudo  era 
novidade,  tudo  era  attrahente,  commovedor,  suberbo  ;' 
^,  nao  obstante,  a  parte  histórica  lá  estava  respeitada 
nos  mais  insignificantes  ponctos. 

Como  conseguiu  tanto  o  moço  escriptor  ?  Como  soube 
fazer  chorar  com  elle,  arrebatar  com  os  arrebatamentos 
da  sua  lyra,  enthusiasmar  com  os  enthusiasmos,  can- 
tar amores  com  os  seos  amores?  Lereis  um  dia  o  livro 
e  sabel-o-heis :  com  a  maior  opulência  de  estylo,  com 
a  maior  suavidade  de  versos,  dando  á  rainha  o  amor  de 
mâe  que  vira  na  sua  ;  ao  sr.  rei  D.  Affonso  o  valor  de 
que  são  capazes  os  reis  portuguezes  ;  a  Ignez  de  Castro, 
o  céo  de  encantos  que  lhe  dá  a  SUA  Ignez  de  Castro  ; 
ao  velho  Almada  a  lealdade,  o  conselho  e  a  prudência 
de  seo  extremoso  pae. 

Aos  30  annos  náo  se  escreve  melhor ;  aos  50  dificil- 
mente se  escreverá  tao  haa  :  na  sua  edade  ninguém 
firmou  assim  uma  reputação  de  verdadeiro  talento. 
Lede  aquella  scena  entre  o  rei  e  a  rainha,  a  da  rainha 
e  Ignez,  a  de  Ignez  e  Pedro  ;  ouvi  á  rainha  dizer  o  que 
é  o  povOj  e  convencer- vos-heis  de  como  fica  bem  per- 
petuado em  Júlio  de  Castilho  o  prodigioso  talento  de 
António  Feliciano  de  Castilho. 

Dictou  a  admiração,  nao  a  amizade,  estas  linhas;  se 
as  tomarem  por  affecto,  por  delicadeza  ou  testimunho 
de  cada  um  doa  íntimos  que  ouviram  a  leitura  da  Igiits 


XKIV  63 

dê  Castro^  provará  i&so  que  sou  apeaas  echo  de  quem, 
com  direito  inço  atesta  vel,  coroou  já  poeta  a  Júlio  de 
Castilho. 

Lisboa,  Octubro  31. 

A.  DE  Castilho. 


A  causa  do  réo  discute-se 
perante  o  seo  julgador. 

—  «  Que  houve  crime,  é  cousa  liquida  » 
diz  o  forte  accusador. 

—  «  Sim  I  A  prova  nao  é  sólida  » 
responde-lhe  o  defensor. 


Se  de  Homero  o  poema,  antigo  e  celebrado, 
coube  dentro  da  casca  estreita  de  uma  noz, 
quando  o   infinito  fòr  e  bem  e  bem  dobrado 
nade  vir  a  caber  n'uma  casca  de  arroz 

Quintiliano, 


Dou  &  luz  para  a  semana 
o  liodo  romance— Til  ! — 
E'  serio  (  diz  a  República  ). 
Quem  diz  que  é  poisson  d*  Avril  I 

O  rei  das  lettras  brasileas 
vai  para  o  meo  rodapé  I  ! 
Como  Sardon  na  FerlíUinda 
exclamo  em  júbilo  :   cc  Té  /  » 

O'  folhetim  de  espavento, 
tu  nos  vais  cobrir  de  glória  ! 
D'esta  feita  a  oossa  folha 
grimpa  ao  templo  da  Memória  I 

Quem  vence  a  Scott  em  Romances, 
e  é  nas  Leis  mais  que  Lycurgo; 
Quem  desbanca  atè  Shakspeare 
se  se  mette  a  dramaturgo  ; 


64  XXIV 

quem  cr«ou  01  fato  e  Olho 
nas  ricas — Minas  de  Prata; 
quem  fez  a  pobre  Iracema 
parir  em  pé  como  pata ; 

nos  campos  do  Rio  Grande 
quem  põe  rocíns  a  falar; 
o  da  âmbula  do  infinito, 
o  que  faz  côncavo  o  mar  ; 

o  chefe  da  pátria  eschola, 
co'opseudónymo  Cazuza^ 
cedeu-nos,  ó  glória,  um  fhicto 
de  sua  fecunda  Musa. 

Ides  ver  a  flor  mimosa 
do  seo  vasto  repertório. 
O'  leitores,  preparae-vos 
para  mais  um  purgatório  ! 

Pompeo. 


ANJVLNCIOS 

Qi.E.sTr)ríf  DoniA. — Veiulo-se  j^or  3$000  rs.,  brochado, 
ou   por  4S000rs. ,  iuquaderiiado.  o  I./' volume  dVsta 
tolha. 


O  Bmaval,  jo^rnal  (Iti  Liabôa. — N'esta corte,  sao  corres- 
]  oiuUnírs  d'esta  folhii  os  »Sr.s.  E.  e  II.  Laemmert,  em 
"lija  c:  sti  SP  tem:  m  ^ossigiiíituras  por  aiino  a  158000, 
por  seii:e.síri^  a  SSOOO  ;  c  .-.e  rocThem  anmincios.  para 
-rrpin  i«ii^)licíido-  m^  P.raztl  íi  60  r?.  j.or  Imha  ;  tudo 
ib>'lif*ir«)  t\o  íiiiprri^.  ;Fm  Li.-Ka.  rua  Au{riif>ta  u  188: 
íírtJan^ro.  Ant«;ino  Mana  de  Castiih'^ :  Adminúirarão, 
Pedro  A.  d'Almeida.) 


'.y,     :  ;::!;.- ij;i:'..i::l- Lu;    hí  íc  •:•  )^fl(7í'1  n- i  .  1-j<*  A  . 


QUESTÕES  DO   DIA 


N.   25 


RIO  DE  JANEraO,  13  DE  DEZEMBRO  DE  1871. 


Vende-se  «m  casa  dos  Srs  E-  &  H.LaemiDert.~Ágostinbo  de  Freitas  Gui* 
narães  &  Comp.,  26,  rua  do  General  Camará.—  Livraria  Académica* 
Rua  de  S.  José  n.  119—  Largo  do  Paço  d.  C— Preço  200  reis. 


Bio9rapli.la  d.e  H»  SC.  o  Imperailor  do  Brasil 

E'  mui  conhecido  o  Esèudo  Biogrdphico^  traçado  ha 
alguns  annos  pelo  respeitável  McHisenhor  Joaquim 
Pinto  de  Campos,  e  puolicado  no  periódico  litter&rio 
O  Fuluro,  redigido  pelo  admirável  poeta  da  natureza, 
Faustino  Xavier  de  Novaes,  t&o  prematuramente  rou- 
bado ás  lettras  e  a  innumeraveis  amigos. 

Bem  era  que  um  dos  primeiros  soberanos  tivesse  a 
sua  biographia  feita  por  uma  das  primeiras  pennas 
doesta  terra,  e  publicada  por  um  dos  mais  talentosos 
hóspedes  que  *nella  hao  sido  recebidos,  e  reproduzida 
agora  na  nação-irmã  por  um  dos  primeiros  prosa- 
dores de  que  Portugal  se  honra. 

Coube  pois,  e  muito  naturalmente,  a  Cainillo  Cas- 
tello  Branco,  o  honroso  incargo  de  presidir  à  ediç&o 

?ae  de  parte  d'esses  opúsculos  se  acaba  de  fazer  no 
torto,  o  que  acaba  de  sair  á  luz,  em  nítida  ediçSlo,  com 
o  retrato  do  Sr,  D.  Pedro  II. 

Camillo  Castello  Branco,  tao  facundo  como  fecundo 
escriptor,  tornou-se  uma  das  priífcipaes  glórias  do 
nosso  idioma.  Desde  muitos  annos  ^ue  'nelíe  se  dis- 
putam primazias  as  mais  raras  qualidades  de  que  um 
auctor  possa  orgulhar-se  :  pureza,  vemaculidaae,  ele- 
gância, sciencia,  sentimento,  graça,  imaginaçSo,  pro- 
priedade, estudo,  fidelidade,  tudo  coUocado^  a  seo 
tempo,  tudo  posto  no  seo  lugar.  Tal  é  a  superioridade 
das  p&ginas  d'essa  admirável  penna,  sobretudo  nos 
últimos  lo  ou  15  annes,  que  um  de  nossos  primeiros 
poetas  e  prosadores,  considerando-o  clássico  em  vida, 
tem  inriquecido  o  sèo  diccíonário  com  centenas  de  pa- 


66  XXV 

lavras    e  phrases,   consagradas  por  aquella  formosa 
penna  de  Camillo  Castello  Branco. 

Inimigo  de  indeusar  poderosos,  repugna  ao  sec  cha- 
racter  tractar  de  assumptos  que  prendam  com  encómio 
a  elles ;  mas  o  Sr.  D.  Pedro  constitue  uma  excepção ; 
nunca  em  ser  justo  pode  haver  desar. 

Damos  pois  em  seguida  a  Advertência^  com  que  o 
primoroso  escriptor  incepta  o  livrinho.  Formamos, 
por  elle  e  pelas  lettras,votos  por  que  se  restabeleça  da 
grave  e  obstinada  infermidade  que  o  acabrunha.  Viera 
Camillo  a  Lis^ôa,em  princípios  de  octubro,  com  tenção 
de  se  demorar  uns  15  dias ;  mal  eram  passadas  24 
horas,  tornou-se  arrebatadamente  para  o  Porto,  com 
medo,  dizia,  de  morrer  separado  dos  filhos.  S  apezar 
de  tudo,  e  de  se  lamentar  que  sente  já  apagada  em  si 
a  luz  da  imaginativa,  e  o  &nimo  para  trabalhar,  e  até 
para  escrever,  censta  que  nos  curtos  intervallos  em 
que  a  doença  lhe  dâ  folga,  vai  sempre  escrevendo 
obras  novas.  Esperemos  que  os  receios  do  doente  sejam 
infundados,  e  que  tão  preciosa  viaa  se  prolongue 
largos  annos  para  honfa  e  lustre  da  lingua  que  fa- 
lamos. 

A  citada  Advertência  é  do  seguinte  teor  : 


A  biographia  do  Sr.  D.  Pedro  II,  trasladada  'neste 
livro,  é  escripta  por  um  dos  mais  insignes  litteratos  do 
Império  brazileiro.  Monsenhor  Joaquim  Pinto  de  Cam- 

Sos,  'nesse  primoroso  trabalho,  revela  do:es  superiores 
e  bem  pensar,  de  bem  escrever,  e — o  que  mais  realça 
—  de  manter  a  verdade  histórica,  a  respeito  de  um 
principej  vivo,  sem  incorrer,  se  quer,  na  venialidade 
da  lison  a.  « 

Foi  publicada  esta  biographia  em  um  periódico  lit- 
terârio  do  Rio  de  Janeiro,  annos  antes  que  o  Brazil 
fosse  apalpado  pela  mão  da  trabalhosa  guerra  "*ue 
mais  relevantes  lhe  tornou  os  merecimentos  ao  louvor, 
após  a  suspirada  victória.  E'  muito  para  desejar  que 
a  vigorosa  penna  que  tao  magistralmente  urdiu  a  his- 
tória da  pacifica  existência  de  Sua  Majestade  Imperial, 
nos  descreva  os  corajosos  alentos  insinuados  peio  au- 
gusto imperante  no  ânimo  brioso  dos  generaes  quo  lhe 
honraram  o  reinado,  tanto  quanto  se  nobilitaram  ser- 
vindo o  império. 


XXV  67 

Os  factos,  porém,  relativos  ao  período  deplorável 
que  perturbou  temporariamente  a  prosperiaade  do 
Brazil,  sacrificando  á  honra  as  vidas  de  muitíssimos 
filhos  seos,  s&o  recentíssimos,  bastante  notórios,  e  vi- 
riam supérfluos,  sobre  dissonantes,  :ie  outro  historia- 
dor os  relatasse. 

Este  livro  não  se  apresenta  occasionado  somente  pela 
visita  com  que  o  festejado  Imperador  honrou  a  terra 
de  seo  augusto  pae  e  avós.  Cabe-lhe  mais  elevada 
graduação  e  quilate  de  outra  mais  nobre  espécie,  por 
que  ha  ahi  páginas  identificadas  ás  da  história  de  Por- 
tugal, e  relanços  capitães  da  vida  política  do  Brazil, 
mal  conhecida  entre  nós,  da  lo  que  por  amor  da  língua 
e  costumes,  e  das  relações  commerciaes,  e  da  tao  vasta 
quanto  respeitável  colónia  portugueza  n*aquelle  im- 

Íério,  nos  estejamos  sempre  mutuando  affectos  como 
e  irm&os. 

Houve  quem, possuindo  o  periódico  em  que  Monsenhor 
Pinto  de  Campos  publicou  os  seos  preciosos  artigos, 
se  lembrasse  de  responder  com  este  livro  à  curiosidade 
de  muitíssimas  pessoas  que  de  nome  apenas  conhecem 
o  augusto  hóspede  que  tantas  affeiçGes  grangeou  em 
Portugal.  'Nesse  estimável  pensamento  fui  convi- 
dado a  coUaborar,  em  parte  assim  insignificante  quanto 
dispensável ;  porém,  como  na  ci.ada  biographia  super- 
abundassem  notas  circumstanciadas  de  iilucidaçoes 
politicas  menos  interessantes  para  portuguezes,  cedi  a 
eliminar  'neste  traslado  as  menos  precisas  na  narra- 
tiva. 

Nao  scei  que  impressão  deixará  no  ânimo  do  leitor 
a  biographiade  tão  bondoso  quanto  illustrado  príncipe. 
Deve  de  ser  estranha,  attenta  a  raridade  dos  vultos 
majestosos  d'este  porte  que  nos  offj^rece  a  história  con- 
temporânea :  e  deve  de  ser  melanchólica,  se  inrràmos 
em  confrontos,  de  que  não  podemos  tirar  senão  traços 
que  nem  os  thuriferários  abjectos  podem  fazer  pare- 
cidos entre  si.  Figurou-se,  outr'ora,  que  a  Providencia 
nos  dera  um  rei  com  o  coração  aureolado  por  grandes 
virtudes  e  talentos  ;  mas,  um  dia,  fechou-se  uma 
sepultura ;  e  a  bella  alma,  que  se  alumiou  em  es- 
treita de  eterna  saudade  para  portuguezes,  não  pôde 
baixar  com  os  seos  resplendores  até  o  throno  d'onde 
subira. 


68  XXV 

A'  primeira  vista,  avulta-se  a  nas  certos  illumÍDadoí> 
na  arte  de  governar  que  os  reis  constitucionaes  dis- 
pensam a  prática  das  DÍbliotheca^,  c  o  tracto  dos  bons 
exemplares  em  matéria  de  reiaar.  Nao  é  bem  afisim, 
posto  que  86  haja  ahi  eacripto  qae  D.  João  III  fora  rei 
magnifico,  mas  que  a  muito  custo  soubesse  deletrear 
os  Regimentos  da  laquisiçSo  ;  e  que  D.  João  II,  o 
assassino  de  dons  duques,  aeos  reaes  parentes,  nao  era 
também  melhor  lettrado. 

Seja  como  Fòr,  a  ignorância  áo!j  reis  nfto  é  cousa  a 
que  devamos  consagrar  poemas,  invocando  as  tágides, 
nem  03  Pyndaros  modernos  lhe  poderiam  ajustar  os 
seos  épodoa  cantados  ao  tiarpejo  da^  guitarras  pala- 
cianas. 

Eu,  por  mim  e  em  nome  do^  amantes  dos  scos  ruis 
e  da  glória  da  saa  terra,  quereria  que  de  todos  os  sobe- 
ranos portuguezes  sapodesse  dizer,  sem  iis  fragrância» 
do  tomilho  da  adulação,  o  que  Monsenhor  Pinto  de 
Campos  tfto  luminosa  como  verdadeiramente  compta 
do  augusto  Imperador  do  Bra^íil. 

Camillo  Castbllo  Branco 


OBKAS  DE  J.  DE  ALENCAR  -  A  IRACEMA 
I 

Meo  respeitável  amigoi 

Visto  que  estas  fartas  se  devera  intender  contí- 
nuaçno  das  outras  sobro  o  Gaúcho,  nao  me  deterei  em 
nova  exposiçaii  deiuotivos.  Inrontrarás  na^  primeiras 
com  que  .npprir  a  deficiência  das  últiuiM.  Entro,  pois, 
sem  mais  tardança  na  matéria. 

Representa  o  Gaúcho  o  ponto  extremo  da  decadência 
da  Sènio  até  hoje. 

D'eutre  todas  aa  obraa  da  sério  que  inceptoii  sob  o 
»ovo  pscndiinymo,  nenhuma,  qnanto  n  mim  churticte- 
riza  melhor  o  esvaecimenlo  ilris  iUui^es  juvenis  ou 
viríe,  a  «na  litteréria  seriectnd-^ 

Açha-aa  o  aucior  de  ta!  forma  iil«niÍfi<rado  cum  este 
8eniim#nto,  tao  despovoado  o  #rmo  cntihene  o  coffni  do 


XXV  69 

deo  espirito,  tão  regpelada  a  sua  phantasia,  lAo  decré- 
pita a  9or  dos  sonhos  resplaxadecentes^ — que  q  appellido 
que  adopta  é  o  de  Sénio.  Confessa-se  velno,  quando  a 
htteratura  natal  tinh«k  o  direito  de  o  suppor  moço  ainda. 
Tiriste  destino  o  da  pátria  ! 

Estas  nossas  conjecturas  n&o  h&o  arbitrárias.  Depre" 
hendem-se  das  phrases  repassadas  de  angústia,  de 
acerba  descrença  do  prólogo,  que  vêm  na  Pata  da  6a* 
zella^  que  se  repete  ipsis  verbis  no  Gaúcho^  e  que  terá 
talvez  de  ser  ainda  reproduzido  ipst«  virgulis  no  Til^  que 
pomposamente  se  annuncia  e  com  antecedência  se  fes- 
teja como  um  primor.  Dir-se-bia  que  o  auctor,  persis- 
tindo em  nfto  desligar  das  obras  tao  solemne  e  signifi* 
cativa  confidencia,  quer  fazer  crer  que  o  sopro,  que 
acaba  de  lhe  crestar  as  mais  intimas  e  pulchraa  illusoes, 
foi-lke  de  veras  certeiro  ao  coração,  afogou-lhe  as 
aspirações  mais  elevadas,  derrocou-lhe  de  uma  vez 
para  sempre  os  mais  esplêndidos  e  agigantados  cas- 
tello.*? !  Accompanho-o  de  coração  na  sua  rude  e  cruel 
dÔr. 

Mas  .se  o  Gaúcho  exprime  o  poncto  extremo,  a  /ra- 
cêmaf  com  que  me  vou  occupar,  é,  pelo  contrário,  o 
poncto  de  partida  da  queda  do  astro,  que  descamba  em 
marcha  rápida  para  o  occaso,  quando  não  espargira 
ainda  luz  suficiente  para  que  se  presumisse  ter  já 
chegado  ao  zenith. 

Não  incontraremos,  pois,  aqui  aquella  copiosa» 
aquella  inexgotavel  messe  do  Gaúcho,  cnpaz  de  fazer, 
por  si,  a  eterna  fortuna  de  um  vindimador  hábil,  paci- 
enta e  desfructador.  Todavia  teremos  já  muito  que  res- 
pigar. O  campo  promette. 

Qual  a  razão  da  differença  de  feição  e  de  organização, 
entre  os  dous  filhos  do  mesmo  progenitor  ?  Explica-se 
bellamente:  .são  seis  annos  antes  df^  dTecadencia  que  vão 
do  primeiro  ao  último. 

Este,  posto  que  ataviado  das  lentejoulas  de  um  es- 
tylo  deslumbrante  e  fallaz,  logo  á  primeira  vista  é  a 
moio  de  disformidade,  que  nada  pôde  disfarçar  ou  il- 
ludir,  porque  o  volume  é  descommunal  e  enorme.  Com 
o  primeiro  já  se  não  dá  o  mesmo;  é  preriso  que  o 
observador  consciencioso  se  approxime  mais,  e  estude 
com  alguma  detença  aquelle  character  esquisito  e  todo 
de  mera  creação  phautástica.  Mas  não  vacilleis,  não 
receeie  um  instante  não  achar  com  que  cevar  a  boa 


70  XXV 

critica.  Pelo  contrário  encontrareis  sem  grande  custo 
as  tortuosidades  ou  as  depresOes  da  débil  e  pállida  cre- 
atura. 

Sabes,  meo  amigo,  que  a  Iracema  tem  a  pretençfto 
confessa  de  realizar  o  typo  da  poesia  brazileiral  O 
auctor,  na  carta  final  dirigida  a  um  amigo,  assim  se 
exprime  «  Este  livro  é^  pois^  um  insaio  ou  antes  amostra. 
Verd  realtsadas  'nelleas  minhas  ideas  a  respeito  da  liltera- 
tura  ruicional ,  a^hard  ahi  poesia  inteiramente  brazileira^ 
haurida  na  língua  dos  selvag&ns.  » 

Se  a  carta  precedesse  a  obra,  o  leitor  intendido  teria 
de  cair  das  nuvens,  lendo  esta.  EUa  importaria  a  de- 
cepção, o  esmagamento  mais  formal  da  espectativa  con- 
cebida com  a  pomposa  promessa  do  auctor. 

Como,  porém,  a  carta  segue  o  volume,  e  sò  pôde  ser 
lida  quando  já  o  leitor  deve  ter  formado  idéa  mais  ou 
menos  approximada  d'esse  poema  in  anima  prosaica^ 
involuntariamente  sobr'estará,  e  attónito  c  perplexo 
inquirirá  a  si  mesmo:  ' 

« — Pois  é  esta  a  poesia  eminentemente  brazileira, 
offérecida  como  padrão  de  belleza  e  de  verdade "?  » 

N&o  se  dissipam  as  mil  hesitações.  O  leitor  fecha  o 
livro  6  perde-se-Ihe  a  mente  n'um  mar  de  conjecturas. 
O  quQ  elle  sente  Jistinctamente  é  que  tem  o  ef;  !rito 
cançado  e  oppresso,  depois  da  leitura  da  obra-modêlo. 

A  poesia  do  selvagem  deve  ser  simples,  e  aquella 
é  um  artefacto  de  múltiplas  combinações. 

Deve  ser  singela,  e  aquella  é  apparatosa  o  vai- 
dosa. 

Deve  ter  certo  cunho  de  energia,  certa  expressão 
de  braveza,  e  aquella  tem  a  feiç&o  e  o  requebro  do  uma 
poesia  fláccida  e  feminil. 

Deve  ser  espoatânea,  desegual  nas  sua^s  formas, 
e  aquella  é  forçada,  porque  se  mede  e  bate  a  com- 
passo. 

Deve  arrebatar,  e  aquella  opprime  e  prostra  o  espi- 
rito. 

Como  I  Pois  aquelle  pôde  ser  o  selvagem  brazileiro  ? 
Aquella  a  sua  linguagem  ?  Aquella  a  sua  masculi- 
nidade ?  Aquelks  os  seos  fogosos  sentimentos  ? 

A  Iracema  foi  localizada  nos  sertões  do  Ipú,  ataquem 
Ibyapaba.  Deixando,  portanto,  a  savana,  parece  que 
tive  de  dar  um  salto  mortal :  n&o  é  assim,  meo 
amigo  ? 


XXV  71 

Pois  nem  por  isso.  A  transição  foi  fácil,  embora 
desnaturai.  Os  extremos  tocam^se. 

A  impressão,  que  experimentei,  ao  intrar  no  pampa, 
segundo  os  desenhos  desvairados  do  »Sénio,  foi  a  de 
quem  penetrasse  n'um  cemitério.  Lembro-me  até  que 
Sénio  compara  a  savana  com  a  vasta  lápida. 

E  sim.  Surprende-se  ahi  a  raça  humana  rebaixada  á 
última  degeneração  animal — abysmada,  desapparecida, 
morta.  O  pampa  é  uma  neerópoli. 

Se,  porém,  das  solidões  do  pampa  retrahindo-nos  um 
pouco  vamos  ter  às  solitárias  florestas  e  planí- 
cies dos  tabayáras^  o  espectàcula  muda,  a  impres- 
são é  diversa,  sim,  mas  congénita.  As  extensíssimas 
paragens  que  rios  bordam  e  florestas  delimitam,  figu- 
rara leitos  de  um  hospital  immenso,sombrio  e  merencó 
riol  Contempla-se  alli  sei.^  annos  antes,  ainda  a  raça  do 
homem,  victima  de  morbidez  ede  lonsuni]  çSo 

Ora  entre  o  hospital  e  o  cemitério  só  ha  um  passo  • 
«  Bem  poucos  passos  vào  da  vida  d  mo7*le  i»  diz  o  poe' 

ta.  O  que  ha  notável  a  fazer  aqui,  é  dar  esse   passo.... 

para  traz. 

E  sim.  Nas  savanas  austraes,  homens  e  cavallo^ 
identificam-se,  confundem-se,  vasam-se  uns  nos  outros» 
nas  extensões  do  septentriao  os  homens,  posto  qu® 
selvagens,  o  que  quer  dizer — a  personificação  do  arro- 
jo, da  petulância,  do  ardimento  da  correnteza  ou  do 
TÓrtice — tresandam  a  effeminaçao  e  a  moUeza  e  nao  sao 
mais  do  que  a  negação  completa  da  gentileza  tradi- 
cional de  Ararigboia  ou  de  Jaguarary  ! 

Resumamos:  Da  raça  colossal  do  norte  fez  J.  de  Alen~ 

car  um inferno;  da  raça  esculptural    do  sul  fez 

Sénio  um...  cadáver!  O  que  resta — dize-me  tu — d'essas 
immensas  e  originaes  grandezas,  d'eisas  pomposas  e 
estupendas  herculeidades,  nunca^ assaz  exaltadas,  do 
Brazil  ? 

Desgraçado,  misérrimo  Brazil !  E  é  um  filho,  e  um 
grande  filho  teo,  quem  d'est'ane  te  desfigura  e  rebaixa! 
Oh  I  dor  I 

Sim.  Tao  intensa  e  verdadeira  é  a  pena  que  me 
punge,  ao  meditar  um  pouco  sobre  estes  estranhos  ca- 
prichos da  sorte,  que  a  afflicçao  me  vence  e  cai-me  a 
pennn  da  mao. 

Sempronio. 


72  IXV 

Sex.ta  oai:*ta 

DE  CINCINNATO  A  SEMPHCNíO. 

Rio,  8  dezembro  1871. 

Le  monde  marche^  n&o  ha  dúvida  nenhuma  ;  cami- 
nha por  uma  estrada  larga ;  se  é  estrada  real,  ou  de 
Pantana,  os  Paduanos  dirão  ;  mas  lá  que  elle  marcha, 
isso  é  de  fé.  O  andar  é  lei  geral  de  toda  a  animalidade: 
até  o  caranguejo  ( como  qualquer  Sénio,  ou  outro  bi- 
pede  mais  ou  meuo."^  conhecido  )  anda. 

Ora  eu  te  digo  o  que  tenho,  em  parte  lido,  e  em 
parte  visto,  demonstrativo  de  certa  casta  de  progresso^ 
que  progride  a  olhos  visto. 

Da  janella  de  uma  casa,  da  rua  do  ouvidor,  gesticu- 
lava um  bemfeitor  da  humanidade  ante  uma  turba 
boqui-aberta : 

«  Meos  senhores,  concidadãos  de  pé  fresco !  Vendo 
por  uma  tuta  e  meia  um  especiflco  único,  um  bál- 
samo balsâmico,  um  elixir  prodigioso,  que  opera  ma- 
ravilhas, prodígios,  milagres.  E  nao  receeis  a  acçSo 
dos  ingTedientes,  illustres  cidadãos!  O  meo  elixir  com- 
pOe-se  de  simples ;  e  em  quanto  eu  aqui  dispozér  de 
simples,  está  a  cousa  navegada.  Um  boiao  por  2  vinténs. 
A  glória,  a  saúde,  a  felicidade,  e  tudo  o  mais  por  um 
cobrinho  !  E'  outro  portento  mais.  Aqui  está  ;  quem  se 
chega  ?  2  vinténs  ;   quem  merca  ?  » 

A  raça  dos  charlatães  ó  antiquíssima,  que  digof 
a  sua  prosápia  trepa  mais  longe  ainda  que  o  homem  e 
sua  creaçSo.  Eu  não  juro  nada,  mas  eis-aqui  o  que 
affirmam,  e  vá  por  conta  do  narrador,  também  antigo, 
pois  é  do  século  XVII,  que  lá  fica  mais  próximo  da 
creaçBo. 

O  primeiro  doestes  sympáthicos  industriosos  tomou 
posse  da  sua  dignidade  (  ou  instaUou-se^  como  dizem ) 
no  Paraizo  Terreal ,  e^Satanaz  incarnou-se  na  forma  de 
uma  cobra.  Dem^nstra-se  esta  incarnação  com  docu- 
mentos mais  authênticos  que  innumeraveis  perga- 
minhos qno  por  ahi  andam,  ou  nEo  andam...  vamos 
a  ver  : 

Em  todos  os  tempos  e  logares,  as  propriedades  e  con- 
dições doesta  linhagem  de  charlatães  palreiros,  e  pres- 
tidigitadores saltimbancos,  r.ão,  no  exercício  da  sua 
arte,  nada  menos  de  cinco: 

1'.  Mascarar-se. — Assim  o  fez  o  pae-avô  da  família 
quando  se  mudou  em  reptil.  Seguem*lho  as  licçoes  o» 


XXV  73 

modernos,  quando,  habilidosoa  Protêos,  se  appreseutam, 
ora  como  reptis,  ora  como  absolutistas,  como  conser- 
vadores, liberaes,  republicanos,  communistas,  petrolei- 
ros, selon  les  besoins  de  la  cause.  E  a  final  de  contas, 
nao  sfto  nada  d'isto,  como  Satan  nao  éra  biçba,  porque 
o  que  unicamente  sao,  ó  especuladores  talentosos,  que 
a  tudo  quanto  existe  superpõem  exclusivamente  o 
poder  pessoal  das  suas  pessoinfuis. 

2*.  Trepar-se  acima  de  um  banco  para  pregar, — As- 
sim o  ínsinou  mestre  Satan,  pois  affirmam  que  a  astuta 
serpe  trepara  por  uma  árvore,  para  conversar  com  Eva, 
e  di2.er-lhe :  «  Comei  esta  maça,  sem  medo,  porque 
logo  se  vos  abrirão  os  olhos,  e  sereis  como  uns  deuses, 
conhecendo  o  bem  e  o  mal  »  Agora,  ou  na  praça  trepa- 
se  no  banco,  ou  no  parlamento  á  tribuna,  ou  no  iomal 
ao  componedor,  ou  emfím  a  um  telónio  qualquer, 
d*onde  se  etnbace  a  humanidade. 

3*.  Dizer  e  comptar  mentiras. — E  naquelle  dia,  Sa- 
tan segredou  a  Eva:  Nequaquarn  moritmini !  E  foi  por 
alli  adeante,  impingindo-íhe  cada  carapetao  que  te 
parto,  e  preparando  a  ampla  estrada  que  hoje  òs  seos 
successores  tao  brilhantemente  percorrem. 

4*.  Negociar  com  a  credulidade  e  simplidd^zde  dos  outros. 
— Assim  obrou  D.  Satanaz,  quando  introu  a  seduzir 
aquelles  papalvos,  promettendo-lhes  vida  sem  termo, 
eternidade  de  venturas,  divinal  scíencii,  empregos 
rendasos  sem  trabalho  nem  complicação  de  cabeça, 
olhos  enoriue.^,  e  o  poder  pessoal  de  um  Deus.  Tal  e 
qual,  comij  os  que  preparam  a  república,  pauacéa 
universal,  que  com  oò  me3ra(j>í  ingredientes  hade  trans- 
formar tudo,  isto  é  com  só  farinha  e  carvão  hade  fazer 
arroz  doce;  instituição  que  hade  substituir  por  va- 
rões, sparciatas,  çtemi-nuines,  os  actuaes  ambiciosos, 
servis,  miseráveis  ou  desordeiros.  Levou-sea  tal  poncto 
esto  mandamento,  que  até  se  imagina  que  o  povo  hade 
accreditar  nas  palavra^>de  quem  hoje  defenae  o  ama- 
rello,  como  hontem  propugnou  pelo  azul  e  pelo  roxo, 
tí  amanha  bradará  pelo  encarnado  e  pelo  preto. 

õ'.  Vender  elixires. — A  nossa  avó  bem  caro  nos  com- 
prou a  maçã  que  lhe  vendeu  a  avó  lá  d'elles.  E*  a 
maça  da  communa,  da  Internacional,  da — liberdade, 
egtialdado  ou  morte, — da  república,  de  que  Sénio 
seria  digníssimo  Presidente,  cercado  de  um  conselho 
que  eu  cá  scei,  se  nao  fossem  certas  dúvidas,  que  scei 
aíndn  melhor. 


74  XXV 

Leio  que  Roberto  Houdin  (mestre,  árbitro  infal- 
livel  em  matéria  de  charlatanismo]  narra  um  caso 
curioso,  cujo  resumo  é  este : 

Passeava  eu  uma  tarde,  quando  uma  trombeta  pró- 
xima me  arrancou  ás  meditações.  Corri,  com  muitos, 
e  achámo-nos  formando  circulo  à  um  distincto  ar- 
tista. Era  um  latagao,  olho  vivo,  atrigueirado,  ca- 
beça que  se  interrava  nos  hombros,  voz  nasal,  e  can- 
galhas (ja  se  sabe  nos  olhos).  Tive  tempo  de  obser- 
val-o  pausadamente,  porque  o  subjeito,  nao  conside- 
rando o  auditório  assaz  numeroso  para  merecer  as 
honras  da  sua  interpellação,  poz  o  compadre  a  va^- 
concellar,  e  a  estrugir-nos  os  ouvidos  um  quarto  d'hora 
com  a  sua  trombeta  desafinada ;  afinal  o  gruppo  era  jà 
satisfactório.O  nobre  artista  circumvagou  gravemente^ 
exhortando  a  recuar  um  pouquito,  depois  do  que  es- 
tacou, passou  a  mão  pda  guedelha,  olhou  para  dentro 
dos  óculus,  recolheu-se  em  poética  inspiração.  Depois» 
com  voz  metállica  e  ingrata,  exprimiu-se  d'est*arte : 

c<  Claro  auditório  meo  !  Atteução  !  Eu  cá  não  sou 
o  oue  pareço.  Direi  mais:  sou  o  que  nao  pareço  {Hila- 
ridade), Sim,  nobre  auditório,  sim  senhor:  vocemecês 
tomam-me  por  um  d^esses  pobres  diabos,  que  por 
ahi  vogam  á  tôa,e  julgam  que  eu  venho  impUrar 
ásua  generosidade  alguns  cartões  de  bonds.  Illusao, 
venerandos  cidadãos!  hallucinaçao !  deliriol  Se  eu 
vim  pôr-me  hoje  aqui,  foi  simplesmente  para  allívio  da 
humanidade  que  padece,  em  geral,  e  para  bem  de  vo- 
cemecês em  particular,  assim  como  para  seo  diverti- 
timento  [Vozes:  muito  obrigado). 

Aqui  o  orador,  que  parecia  de  província  do  Nonc, 
pelo  sotaque,  passou  segunda  vez  a  mao  pela  gafo- 
rina, olhou  á  roda  pelas  cangalhas,  metteu  graciosa- 
mente o  toutiço  pelos  hombros  abaixo,  dice  uma  pi- 
Ibéria  á  direita,  outjH  á  esquerda,  e  continuou : 

«  O  que  sou,  vocemecês  logo  verão.  Assim  como  os 
profundos  pensadores,  os  altos  metaphysicos,  os  go- 
vernantes sagazes,  os  jurisconsultos  exhorbitantes  e 
os  estadistas  abstrusos,  nas  horas  roubadas  a  suas 
enormes  meditações  se  occupam  de  de§infadar  e  re- 
crear a  humanidade,  assim,  antes  de  habilita-los  a 
appreciar-me  em  toda  a  minha  grandeza,  peço  li- 
cença de  lhes  appresentar,  para  os  distrair,  uma  reles 
mostra  df  ninha  perícia.  (Grande  homem  !  bradaram 
dons  Beócios). 


XXV  75 

Regularizou  o  circulo,  abriu  uma  mesa  de  X,  poz 
nella  3  copos  de  lata  que  parecia  prata,  e  começou 
^num  chorrilho  de  habilidades  pasmosas,  tirando  até 
com  03  dedos  bolinhas  do  nariz  de  um  joven  especta- 
dor^que  tanto  tomou  a  cousa  a  sério,que  se  matou  a  as- 
soar-se  para  ficar  certo  de  que  nao  flca^ram  nos  miolos 
mais  bolinhas  d'aquellas.  Quando  a  assembléa  estava 
emfím  na  melhor  disposição,  acabou  o  entr'acto,  fe- 
chou a  mesa,  e  fez  signal  de  que  ainda  nao  ficava  por 
alli  o  Que  tinha  que  dizer.  Pousou  ambas  as  patas  so- 
bre a  aita  mesa,  como  se  fosse  a  balaustrada  de  qual- 
quer tribuna  parlamentar,  e  assim  continuou  : 

"  Claro  auaitóríol  [EUe  nao  era  todo  claro,  por- 
que tiuha  muito  preto,  mas  isso  não  faz  ao  caso]  (Aqui 
agora,  tomou  elle  uns  modos  de  modéstia  virginal, 
conhecida  caçadora  de  não  apoiadoSy  destinada  a  produ- 
zir certos  effeitos  oratórios).  Tive  a  dita  de  fazer 
que  vossas  senhorias  prestassem  benévola  attenção 
aos  meoa  innocentes  brinquedos.  MuitOÃ  graf:as\  (Incli- 
nou a  cabeça  até  o  chão).  Ora  almejo  por  mostrar- 
Ihes  que  nfto  estão  lidando  com  um  ingrato  ;  vou 
pagar-lhes  a  sati  facção  que  lhes  devo.  Dignem-se 
escutar-me    um   instante. 

((  Prometti  eu  a  vossas  senhorias  dizer-llies  quem 
sou,  e  vou  desempenhar-i:.e.  (Mudança  súbita  de pÂmo- 
gnomia^  à  moda  do  TU  ;  sentimento  de  alta  estimação 
de  si  mesmo).  Os  senhores  têm  ante  si  nada  menos 
que  o  celebérrimo  Dr.  Carlosbach.  Já  assaz  lhes 
indica  a  consonância  du  meo  nome  ser  eu  de  origem 
angUhfrandsêo-germànicay  privilegiada  região,  onde 
se  vem  ao  mundo  com  uma  coroa  de  louro  sobre  a 
fronte.  Oh !  Fazer  o  meo  elogio  mais  não  seria  que 
aer  eu  o  intérprete  do  renome,  com  as  suas  cem 
bôccas  de  ouro  e  de  azul. 

?>  CoQtentar-me-hei  com  dize^lhes,  apenas,  que  tenho 
am  talento  que  vai  até  o  infinito  e  dobra  ainda,  e  que 
a  minha  incomensurável  reputação  não  pôde  ser 
egaalada  senão  pelo  meo  puaor.  Coroado  pelo  oscol 
dos  liiteratos,  chefe  inconcusso  de  tudo  quanto  ha, 
águia  que  não  inxérgo  reptis,  capitão  mór  da  íntelli- 
gencia  em  todas  suas  applicaçoes,  inclino-me  ante  o 

1'uizo  de  todos  os  sábios  (o  Jucá  Palreiro,  o  Quincas 
^atusco,  o  Manduca  Urso,  e  a  mais  concomitante 
caterva)  que  proclamaram  a  universalidade  dos  meos 
conhecimentos  e  e  infallibil idade  de  minhas  sentenças 


78  XXV 

alturas,  como  em  dia  de  eleijio,  o  official  de  sapateiro 
chucha  excellencia ;  o  caso  é  então  que  tenha  um  voto, 
como  agora  que  tenha  no  bolso  uma  pataca). 

'Nisto,  lira  da  caixa  o  ex-doctor  uma  enorme  ruma 
de  folhetos,  intitulados  •  CoUecção  dos  discursos  profe- 
ridos em  diversos  logares^  no  anno  do  taly  pelo  pseudo- 
nymo  Carlosbach.  Vai-os  offerecendo,  a  um  e  um  ;  e 
graças  á  sympathia  que  o  seo  disciacto  talento,  pro- 
fundo saber,  e  largo  character  haviam  inspirado, 
vendeu  toda  a  futrica,  e  teve   de  fazer  outra  ediçSU). 

Finda  a  sessão,  voltei  para  casa  com  a  cabeça  repleta 
de  um  mundo  de  sensacQes  desconhecidas.  Puz-me  a 
parafusar  no  volume,  mas  o  pseudo-doctor  continuava 
'nelle  o  seo  systema  de  mysti/lcação.e.^ov  mais  que  me 
mBtasse,  não  pude  chegara  comprehender  uma  única 
das  tretas  e  peloticas,  de  que  o  auctor  dava  a  inex- 
plicável explicação.  Da  minha  pataca  só  me  consolou 
a  interpellação  que  lhe   ouvi,  e  ahi  foi  reproduzida. 

Esta  arte  divina  vai  entre  nÓ3  tomando  incremento 
espantoso,  e  é  para  admirar  o  ingenho  sagacíssimo 
com  que  se  estende  a  publicidade  até  os  derradeiros 
coniSns  da...  da  não  sei  quê 

Agora,  a  moda,  meo  a  nigo,  é  inforcar  uma  toalha, 
ou  uma  verónica,  de  janeLla  a  janella  fronteira  4^ 
ruas  estreitas,  e  estampar  nella  o  elixir  que  se  vende 
na  loja  em  baixo.  Eis  aqui  alguns  exemplos  : 

'Numa  rua,  vê-se  uma  das  taes  verónicas,  com  uma 
cabeça  de  porco  pintada,  e  por  baixo,  artisticamente 
disposta  esta  inscripção  :  «  Hotel  do  porco  de  prata. 
Dá  casa  e  cama  barata.  Aqui  se  faz  óptima  tripa  ía- 
sopada,  e  vatapá  de  primeira  qualidade.  » 

'Noutra,  pin'ado  um  rato  defuncto,  e  uma  barata 
exânime,  e  por  baix8  :  «Guerra  áa  sevandijas  !  Aqui 
se  matam  ratos,  mosquitos,  pulgas,  persevVjos,  bara- 
tas, e  outros  anicetos  mais  ;  a  400  rs.  o  frasco  ! 

Mas  as  que  me  deram  mais  no  goto,  são  as  veró- 
nicas estendidas,^  do  primeiro  andar  do  lomal  Á  Repún 
blica  á  casa  da  sapataria  defronte.  Uma  d^ellas  nuo  é  to- 
alha, é  lençol:  lettras  góthicas  e  garrafaea;  disposiçfto 
apparatosa,  a  que  só  falta  um  realejo;  e  a  redacção^ 
se  me  ficou  bem  na  memória,  é,  pouco  mais  ou  menos, 
a  seguinte: 


XXV  77 

quem  toma  o  meo  b&lsamo,  fica  embalsamado  por 
antecipação  ;  o  homem  toma-se  immortal.  Ah,  senho- 
res, se  bem  conhecessem  todas  as  virtudes  do  meo  su- 
blime elixir,  precipítar-se-hiam  todos  sobre  mim,  para 
m'o  arrancarem,  atirando-me  punhados  de  ouro  ;  nao 
seria  distribuição,  seria  saque,  seria... 

Parou  um  instante,  para  limpar  a  testa  com  uma 
mfto,  em  quanto  com  a  outra,  indicava  aos  ouvintes^ 
aue  ia  falar  mais.  A  turba-mulcta  queria  chegar-se  ao 
doctor ;  Carlosbach  fingia  nao  notar,  e  tornando  á 
attitude  dramática,  proseguiu : 

«  Porém,  dirão  os  senhores,  que  preço  poderá  ser 
o  de  thesouro  similhante  "^  Temos  nós  riqueza  para 
tanto  ?  Pois  bem  I  Vao  ver  a  extensão  do  meo  desin- 
teresse. Este  bálsamo,  para  cuja  confecção  tenho  sec- 
cado  a  minha  vida,  este  bálsamo  que  soberanos  com- 
prariam pelos  seos  sceptros,  este  bálsamo  impagá- 
vel  dou-vx)ro! ! ! 

A  multidão,  anciosa,  fremente,  parece  ficar  embasba- 
cada :  mas  para  logo^  como  se  todos  estivessem  sob  a 
impressão  de  um  fluido  eléctrico,  todos  estendem  súp- 

Slices  braços,  invocando  a  generosidade  do  doctor. 
[as...  ó  surpresa!  é  decepção  I  Carlosbach  o  cele- 
bérrimo,  Carlosbach  o  bemfeitor  da  humanidade,  larga 
súbito  o  papel  de  çharlatfto,  e  desata  a  rir  homerica- 
mente.  Como  em  mudança  á  vista,  tran%forma-se  a 
aoena,  caem  a  um  tempo  todos  os  braços ;  olham  uos 
.  para  os  outros,  interrogam-se,  murmuram,  depois  vol- 
tem a  si,  6  sem  demora  propagasse  o  contágio  do  riso, 
€'  era  um  choro  geral  de  gargalhadas  estrepitosas. 
O  primeiro  que  pára  é  o  saltimbanco ;  pede  silencio  e 
iiz: 

«  Senhores  meos  (diz  elle  então  com  o  tom  mais 
natural  do  mundo],  n&o  me  queiram  mal  por  esta  brin- 
cadeira:o  que  tive  em  vista  com#sta  comédia  foi  preca- 
vél-<os  contra  os  çharlat&es  que  ahi  os  andam  a  embaír 
todas  os  dias,  exactamente  como  agora  o  fiz.  Nao  sou 
doctor,  mas  um  simples...  um  simples  artista  presti- 
diçitaiório,  lente  de  mystificaçoes,  e  auctor  de  uma 
ocuiecçfto  de  discursos,  como  este  com  que  ora  os  brin- 
da, e  por  entre  os  quaes  vossas  excellencias  incontra- 
xfto  g:mnde  número  de  receitas  de  empalmaç&o.  Que- 
rem vossas  excellencias  conhecer  a  arte  de  se  diverti- 
ftm  t  Por  uma  pataquinha  podem  vossas  aUeza.s 
satisfazer-se  ».(Se  dura  mais,  ia  até  majestade:  'uestaí^ 


80  XXV 

Continuando  'neste  systema,  vê-se  diariamente  na 
4".  pagina  da  folha,  um  parallelogramma,  rodeado  de 
uma  tarja,  com  isto  : 


I 


ENIGMA  PITTORESCO 


f 


DECIFRA-SB   na   RDA  DO  OUVIDOR  N.  132 

m 


Uns  teimam  que  aquillo  é  uma  sobrancelha  ou  ujd9 
sanguesuga  mal  feita  ;  mas  a  quem  vai  ao  balc&o  da 
República,  dizem  que  é  um  TU  mais  mal  feito  ainda, 
mas  que  assignem  para  o  correligionário,  que  é  o  que 
se  quer. 

Poderia  dar-te  muitas  noticias  d'este  jaez,  mas  ja  fiii 
mais  longe  do  que  talvez  devesse.  Deixemos  por  tanto* 
os  accessórios,e  passemos  ao  estudo  do  tal  Ti/,  título  que 
ainda  nSo  farejo  a  que  propósito  venha,  e  que  me  pa-- 
rece  como  qualquer  dns  aiicantinus  do  Dr.  Carlosbach. 

Por  hoje  basta  ;  até  cedo. 

Teo  respeitoso  amigo 

ClNCINNATO. 


Tjp.  e  lith.— Imparcial— Bua  Sete  de     Fetcrobro  n.  146  A. 


QUESTÕES  DO   DIA 


]sr.  26 


RIO  DE  JANEraO,  15  DE  DEZEMBRO  DE  1871. 


Vende-se  «m  casa  dos  Srs  E.  &  H.Laemmert. — Agostinho  de  Freitas  Gui- 
marães &  Comp.,  26,  rua  do  General  Gamara. —  Livraria  Académica, 
Bua  de  S.  José  n.  119— Largo  do  Paço  n.  C.— Preço  200  reis 


Segunda   caz*ta. 

DE  MUCIO  SCCEVOLA   A   QUINTO  CINCINNATO 

Honrado  cidadão  romano.  Como  discursámos  das 
cousas  que  são,  nao  devemos  esquecer  as  cousas 
que  foram,  e  que  nos  serão  sempre  guias  e  pharol 
no  meio  doeste  oceano  revolto  em  que  navegam  os 
ntopistas  e  sonhadores  de  repúblicas  platónicas,  de 
visualidades  aéreas  e  os  íncolas  do  mundo  da  lua, 
que^  com  toda  a  certeza,  nao  eram  filhos  de  Adão. 
E%  e  foi  sempre  axioma  de  boa  nota  o  seguinte : 
onde  todos  mandam^  ninguém  manda.  O  chefe  da  fa- 
mília é  sempre  o  supremo  regulador  da  ordem  e 
da  direcção  da  casa.  Ha  uma  perturbação  no  teor 
d*aquelle  viver  doméstico  ;  ha  excessos  ou  afrouxa- 
mentos nas  rédeas  da  vida  íntima ;  o  que  deve 
&zer  o  fâmulo  mais  ajuizado  e  mais  sério  da  casa? 
é  sem  dúvida   communicar  ao   chefe  da    família  o 

?[ue  por  alli  vai  de  desarrazoado  e  mal  cabido,  e 
ázel-o  com  cortezia  e  respeito,  que  tudo  isto  se 
deve  ao  superior,  para  que  venha  elle  com  seo 
provimento  impor  os  preceitos  ^ue  acabem  com  os 
transvies  ;  e  mais  deve  elle  premiar  os  bons  para 
metter  brios  a  quem  valha  esse  incentivo  e  cas- 
tigar os  ruins  para  pôr  exemplos  aos  mal  inten- 
cionados e  turbulentos  relapsos,  que  têm  por  ins- 
tincto  a  revolta  e  por  sestro  a  prática  de  actos  sub- 
versivos, sem  outra  razão  de  ser  j^não  o  gosto  sa- 
tânico da  perturbação  e  da  desordem.  Ora,  que  se 
insubordinem  e  revoltem  a  mulher,  os  filhos  e  os  do- 
mésticos contra  o    chefe    da    família ;    que  gritem 


82  XXVi 

todos  e  ralhem  ao  mesmo  tempo  ;  que  cada  um  se 
governe  a  seo  modo ;  que  a  mulher  proclame  a  sua 
emancipação  e  nao  queira  subjeitar-se  à  tutella  do 
marido  e  venha  propugnar  por  sua  elegibilidade  e 
direitos  à  deputação  e  á  senatória;  que  os  rapazes 
nao  reconheçam  mais  o  jus  paterno  de  um  velhusco 
que,  eivado  de  doctrinas  obsoletas,  crê  ainda  em 
Deus  e  no  rei ;  e  que  os  domésticos  proclamem  a 
egualdade  e  fraternidade,  e  que  quando  tenham  de 
ir  à  fonte  buscar  o  cântaro  d'água  vao  para  a  ta- 
berna e  da  taberna  para  a  praça  pública,  vestida 
a  camisa  vermelha  do  heroe  de  Caprera^  apregoar 
os  direitos  do  homem  segundo  o  Emilio  e  o  con- 
tracto sscial  de  João  Jacques....  o  que  fora  por  fim 
de  contas  toda  esta  balbúrdia?  uma  verdadeira  casa 
de  orates,  senão  um  detestável  foco  de  immorali- 
dades,  um  núcleo  de  máos  exemplos,  e  um  protesto 
vivo  contra  o  senso  commum  d'aquella  gente  e  mais 
contra  a  energia  e  o  juizo   recto   do  oheft*  que  nao 

fióde  ou  nao  sabe  pôr  cobro  em   desmandos  e  trope- 
ias de   similhante  jaez. 

Eu  quero  mil  vezes,  meo  caro  Cincinnato,  aquelle 
velho  rei  Codro,  que  se  foi  metter  entre  o  inimigo  e 
se  deixou  matar  e  morrer  porque  o  Oráculo  lhe  ha- 
via assegurado  que  da  sua  morte  viria  a  salvação 
de  seo  povo  ;  nao  quero  os  trinta  patriotas  e  po- 
pulares de  Athenas,  conhecidos  ainda  hoje,  e  isto 
ha  jà  sua  meia  dúzia  de  annos,  pelos  trinta  tyran- 
nos,  posto  que  eram  alli  por  imposição  estranha ; 
todavia  entre  aquelles  célebres  democratas  muitos 
eram  athenienses  e  naturalmente  patriotas.  Nao 
quero  Pisístratos,  pescadores  d'aguas  turvas,  que, 
para  subirem  com  estado  maior  vistoso  e  luziaio, 
que  lhes  dê  lustre  e  bizarria  aos  sentimentos  de- 
mocráticos, em  cujo  nome  ascendem  á  suprema  al- 
tura, tenham  o  máS  gosto  de  se  arranharem  e  es- 
murrarem as  ventas  para  obter  a  canonização  de 
mártyres  da  pátria,  quando  a  pobre  pátria  é  que 
é  mártyr  d'elles.  Quero  Numa  Pompilio,  Antonino, 
Trajano  e  Vespasiano .  Nao  falem  em  tribunos,  em 
decêmviros,  et  réliqua^  súcia  de  libertinos  e  ambi- 
ciosos turbulentos,  porque  decididamente  nao  os 
quero,  e  nem  os  tolero,  assim  como  aos  Mários  e 
Syllas,  que,  exaltados  da  obscuridade  pelo  pobre 
povo,  que  a  final  é  quem  paga  as  favas,  foram-no 


XXVI  83 

lavando  em  rios  de  sangue  e  arrancando-lhe  liber- 
dades, direitos  e  tudo  quanto  os  pães  dapátriavao 
dizendo  ao  povo  que  elle  tem,  e  possue,  e  delega, 
e   retoma  quando  lhe  apraz. 

Meo  caro  Cincinnato,esta  raça  de  cônsules,  de  tribu- 
nos, de  triúm vires  e  de  decêmvirob,  v.òtá  toda  ella  sub- 
jeita  á  lei  da  metempsycose  de  Pythágoras ;  faz  sua 
incessante  transmigração,  e  depois  de  animar  e  vivi- 
ficar Marat,  Collot  d^Herbois,  Danton,Billaud  Varen- 
ne,  Rob'»3pierre  e  tantos  outros,  que  se  lembravam 
de  haver  em  tempos  anteriores  incarnado  nos  seos 
ante  es^^res  Cartucho  e  Mandrin,  veiu  fazer  sua  hy- 
póstasis  nas  figuras  ridículas  ou  hideondas  deMazzini, 
e  de  tant  )S  outros  patriotas  de  blusa  e  camisa  ver- 
melha, H  a  fin-rvl  veiu  animar  os  salteadores  regicidas, 
e  tev»*  u  desfaçumento  de  vir  á  luz  do  dia  era  pleno 
século  |j',r  em  campo  e  dar  vida  aos  patriotas  republi- 
canos .'.»"irnunistas,  ás  associações  internacíonaes, 
aos  r<n  grossos  da  paz,  aos  phalanstérios,  ao  sansimo- 
niaí:í-]!i  ,f^  n  quantas  extravagâncias  podem  nascerdes 
cérel»  >  '.>t»  'vertidos  dos  apóstolos  do  incêndio,  da 
devji>?  i'^o  e  da  libertinagem,  do  sacrilégio  e  dasub- 
ver>r.'  '■*.  indo  quanto  os  homens  de  bem  acatam  e 
ver' r     : 

is  i  i^^-iinnla  do  esquadrio  lazarento  de  toda  esta 
díinr  I  I' abra  vem  arvorado  o  lábaro  da  peste  e  da 
devi  •  ),  com  estas  três  palavras  escriptas  em 
chat  •-:  dr^  sangne  :  Liberdade,  eguatdade  e  frater- 

júdiK'  '^Liio  horror,  arripiara-se-me  as  carnes  e  o 
cal"'  I  ír.ndo  vejo  estas  três  palavras  fatídicas  e 
hy;»'.  ',  •.  ^criptas  em  qualquer  tabolêta  de  fábrica 
de    '  V  i\^-. ;  lembra-me  a  lenda  do  festim  de   Bal- 

thi/  I  |)'*'fíuiaç?lo  dos  vasos  sagrados,  as  Ires  pala- 
vras .  \  ^.  :'io^as  dociphradas  por  Daniel  na  n''«it^  mal- 
dict.»  •  .  •>i'^;''légio  e  da  orgia,  a  deftruiçâo  e  a  q  leda 
de  H  '  f)  M^-ia  íj  o  castigo  exemplar  dos  j^rofanadores 
íra[)i'.  '  .-íí.íTÍlegos,  como  s(lo  os  de  hoje.  Estes  taes  e 
quej.í  \'[jj  jjuriotas  do  archote  e  do  cuiello,  que  vSlo 
puii II ♦'.  !o  jy)r  toda  parte  como  cogumelos  no  ester- 
quilÍM'"  ?' n  dias  de  chuva,  .começaram  sempre  por 
uma  •.**  :ií\i  que  importa  nao  esquecer  :  principia- 
ram D  i.f  juo.agauda  satânica  por  lisonjear  os  reis  ca- 
th»')litvi  ,  i:iduzindo-os  a  crer  na  usurpaçfto,  que  lhes 
fazia  a  Srv;.:ia  Sé,  de  seos  direitos  e  prerogativas  ;  in- 
dispuTih  im  o  rei  contra  o  clero  e  o  clero  contra  o  rei ; 


84  XXVI 

prepararam  a  reacção  das  prímazias  do  padroado  contra 
bulias  e  decretaes  pontifícias  ;  e  quando  viram  que  a 
reacç&o  tomava  caminho  e  que  o  fim  estava  preinchido, 
acabaram  por  sulapar  os  alicerces  do  throno,  depois 
de  haverem  àiffamado  as  prerogativas,  e  a  sanctidade 
do  altar. 

Esta  táctica  diabólica  é  sempre  a  lenda  dos  revolu- 
cionários. Robespierre,  depois  de  matar  os  padres, 
profanar  os  templos,  fazer  de  uma  mulher  das  ruas  a 
Deusa  Razão,  fez  reconhecer  por  um  decreto  a  exis- 
tência do  Ente  Supremo  I  !  ! 

Garibaldi  é  proposto  para  Novo  Christo,  no  con- 
gresso da  paz  ;  os  revolucionários  da  Itália  pOem  em 
assédio  o  sancto  padre,  tomam  Roma  á  Christandade 
Cathólica,  reduzem  a  supremacia  do  Papa  a  um  titulo 
vao,  porque  querem  que  elle  dê  preito  e  homenagem, 
e  que  se  despoje  do  poder  temporal,  a  beneficio  de 
inventário,  na  partilha  a  que  se  está  procedendo,  e 
querem  pôr  veto  ás  decisões  de  um  concílio.  Isto  tudo 
fez-se  e  continua  a  fazer-se  com  uma  impudência  que 
enoja. 

Para  subverter-se  a  ordem  social,  é  necessário  trans- 
tornar a  ordem  das  idéas  e  desembaraçar  o  espirito 
dos  vínculos  que  o  ligam  a  Deus,  desprende ndo-o  do 
acatamento,  do  amor  e  do  temor  que  se  lhe  deve;  é 
necessário  nSo  crer  na  religião  revelada  e  na  auctori- 
dade  da  Egreja  ;  e  no  encalço  de  tudo  isto  vem  a  ne- 
cessidade de  desacatar  o  Papa  e  menoscabar  os  mi- 
nistros do  altar,  como  corollário  obrigado.  Em  uma 
{)alavra,  para  se  causar  tao  grande  número  de  mã- 
es, cumpre  que  se  atrophie  a  consciência,  porque  o 
remorso  seria  um  juiz  severo  e  implacável,  e  para 
revolucionários  e  turbulentos  de  officio,  nao  ha  re- 
morsos. 

Como  se  chegada  obter  este  satânico  desideratum? 
Pelo  atheismo  e  pela  materialidade ;  por  este  bom  ca- 
minho çhega-se  com  segurança  a  regenerador  da  so- 
ciedade, a  modo  dos  iconoclastas,  demolidores  e  mem- 
bros da  communa.  Da  têmpera  d'estes  energúmeno» 
eram  os  Cartuchos,  os  Lacenaires  e  os  Tropmanns ; 
todos  estes  heroes  do  crime  pertenciam  á  grei  dos  e:*- 
píritos  fortes  que  se  desprendem  das  peias  que  os 
jungem  ao  carro  do  dever,  da  honra  e  da  veneração 
ao  que  é  sancto,  e  do  respeito  ao  que  é  nobre  e  digno,  O 
homem  que  tem  o  verdadeiro  sentimento  religioso 


XXVI      ^  85 

bem  arraigado  no  fundo  do  coração,  tem  a  consciên- 
cia muito  prompta  em  accusal-o  de  qualquer  acto 
menos  lícito  que  pratique.  Quem  se  accusa  e  arrepen* 
de  de  qualquer  acç&o  que  julga  menos  recta,  n&o  pôde 
commetter  crimes,  nao  pôde  ser  revolucionário  ;  por 
tanto  não  é  chefe  de  caudilhos,  nem  capitão  môr  de 
iasurgentes  e  desordeiros.  To  las  as  tropelias  de  que 
a  sociedade  tem  sido  víctima,  todas  as  depredares 
que  tem  soffrido  a  propriedade,  todo  o  sangue  que  a 
humanidade  tem  derramado,  todos  os  ultrages  e  sa- 
crilégios que  tem  a  religião  supportado,  teem  tido  por 
mote,  em  sua  bandeira  de  destruição  e  de  ruínas,  estas 
palavras  fatídicas  do  diccionàrio  da  devastação  e  da 
morte:  Liberdade,  Egualdade^  Fraternidade.  E'  com 
estas  três  palavras,  infeitadas  por  fora  e  vazias  por 
dentro,  que  se  vai  embalado  a  credulidade  dos  incau- 
tos, que  não  vêem  nem  sabem  que  estes  três  vocá- 
bulos sonoros  são,  no  sentido  em  que  os  applicam  os 
pseudo-regeneradores,  a  antíthese  completa  da  essên- 
cia e  natureza  da  pobre  humanidade,  que  Deus  creou 
assim  como  ella  é,  foi  e  hade  ser.  Liberdade^  gosam-n'a 
todos  e  d'ella  muito  grande  somma  gosa  quem  a  sabe 
gosar.  Egualdade;  isso  là,  não ;  é  egual  quem  o  é; 
quem  não  vê  qutí  o  idiota,  o  ímpio,  o  revolucionário, 
não  podem  ser  egunes  ao  sábio,  ao  homem  orthodoxo 
e  ao  cidadão  pacífico  e  sustentador  da  ordem,  da  lei  e 
da  moral  pública  e  privada  ?  Frateniidade,  vá  feito  ; 
mas  em  que  consiste  ella  ?  em  não  fazer  a  outrem  o 
que  não  queres  que  te  façam  a  ti.  Respeitae  a  honra 
alheia  ;  não  diffameis  o  próximo  ;  soccorrei  os  desva- 
lidos ;  curae  os  infêrmos  ;  levae  consolações  e  auxilies 
aos  »ffiictos  ;  em  uma  palavra,  cumpri  as  obras  de 
miãencórdia,  e  só  então  tereis  direito  pleno  de  pro- 
ferir cora  significação  completa  a  palavra — frater- 
nidade— .  • 

Não  scei,  meo  caro  Cincinnato,  onde  me  levariam 
estas  reflexões,  se  eu  fosse  abrindo  campo  ao  que  me 
vai  suggerindo  a  idea  do  que  vi  e  li  em  tempos  que  já 
lá  vão  muito  longe,  porque  hoje  nada  leio,  senão  os 
joraaes  do  vizinho  da  encosta. 

Estes  trabalhos  da  roça,  não  me  deixam  lazeres. 
Este  s€)rviço  com  escravos  é  a  cousa  mais  estúpida  que 
a  egualdads  dos  homens  podia  crear  para  atormentar- 
nos  a  nós,  que  somos  seos  eguaes  e  seos  irmãos;  porém 
estes  nossos  irmãos  da  costa  de  Guiné  não  nos  com- 


86  XXVI 

prebendem;  nao  trabalham  como  mácbinas,  que  é  o 
que  nós  queremos ;  comem,  dormem  e  adoecem ;  e 
ainda  em  cima  de  todas  estas  cousas  ruins  que  elles 
fazem,  o  que  é  ainda  peor,  meo  amigo,  é  que  se  fazem 
6ÓCÍ0S  comigo  nos  lucros  da  Fazenda,  sendo  eu  o  com- 
manditário,  de  sorte  que  uma  boa  parle  da  safra  vai 
sendo  passada  para  a  tasca  vizinha  de  um  Ambrósio, 
que  pelos  modos  pertence  á  seita  dos  communistas 
e  phalansterianos. 

E'  necessário  de  uma  vez  acabarmos  cora  esta  civi- 
lização do  azorrague.  Bem  haja  a  lei  de  28  de  sep- 
tembro,  que  arrancou  de  uma  e  de  muitas  gerações  o 
anáthema  que  a  segregava  da  communhao  geral  no 
gôso  de  direitos  e  de  pre rogativas  sociaes. 

Meo  bom  e  illustre  Cincinnato,  tenho  'nestes últimos 
tempos  visto  em  algumas  gazetinhas  ahi  da  corte,  de 
que  é  assignante  o  meo  vizinho  do  rumo,  de  quem  jà 
vos  falei  na  minha  anterior,  uma  cousa  que  me  tem 
feito  espécie  e  me  tem  dado  que  seis  mar.  Todas  estas 
dietas  e  referidas  gazetinhas  sao  ou  devem  ser  jornaes 
cathólicos  e  escriptos  por  cathólicos,  segundo  cremos  ; 
pois,  meo  amigo,  todos  elles  entiiusiasmam-se,  extasi- 
am-se  e  glorificam-se  deante  das  doctrinas  salvadoras 
áoá  dous  mentecaj  .os,  Martinho  Luthero  e  João  ('  .1- 
vino,e  sobre  tudo  preconizam,  nrbi  et  orbi,a  concepção 
hybrida  de  cohabitaçao  sacrílega  das  duas  .^eitas  que 
deram  o  aborto  infiesado,  rachítico  e  monstruoso  a  que 
puzeram  o  nome  de  egreja  evangélica !  Annun- 
ciam  elles  todos  os  dias  a  hora,  o  dia  e  o  logar  em  que 
se  celebraram,  celebram  ouhaode  celebrar  :  sessOes  da 
egreja  evangélica  presbyteriana,  explicações  de  cathe- 
cismo,  exercício  de  doctrina,  culto,  prégaçflo  de  evan- 
gelho, leitura,  themas  de  epístolas  de  S.  Paulo,  e  que 
scei  eu  ?  E'  tudo  ijto  um  armarinho  de  drogar^  vene- 
nosas, que  exhalam  cheiro  mystico  de  apostasia,  senão 
de  parvoíce  selvagem. 

Que  se  tolerem  as  seitas  heterodoxas,  como  o  per" 
mitte  a  lei  fundamental,  vá.  Que  vão  ouvir  ecrei* 
n'essas  cousas,  os  que  tiver.im  a  infelicidade  de  nas- 
cer fora  do  grémio  da  egreja  cathólica,  isso  compre- 
hende-se, parque  em  summa  o  cego  anda  às  cabeçadas, 
porque  íi4o  pôde  ver.  Porem  que  se  façam,  aberta,  os- 
tensiva e  acintosamente,  propagandas  e  cathecheses,  e 
que  sejam  cathólicos  os  propagandistas  e  cathechi -^tas» 


XXVI  87 

isto  é  o  que  s*3  nuo  pôde  tolerar  e  causaria  compaixão, 
se  PEo  produzisse   indignação  e  asco. 

Deante  d'est;us  extravaii^ancias  do  espirito  humano, 
o  homem  nSo  sabe  se  seja  Heraclito  ou  Demócrito.  Eu 
nao  posso  saber  a  que  vem  estes  desconchavos  e  con- 
traposições de  crenças  ;  nSo  corapreliendo  este  renegar 
da  fé  de  seos  pães  em  que  pôde  servir  ;  não  alcanço 
como  estes  sacrilégios  e  apostasi as  podem  aproveitar 
como  matéria  de  opposição  ao  governo;  o  certo  é  que 
elles  lá  o  sabem,  se  é  que  o  sabe:n  ;  o  que  também  é 
certo,  é  que  se  manifestam  por  toda  a  parte  os  grita- 
dores  de  liberdade  e  os  patriotas  do  petróleo  como  pro- 
fanadores  do  altar  e  demolidores  de  todas  as  institui- 
ções que  nos  dãu  paz  e  ordem. 

Meo  caro  Cincinnato,  ponho  por  hoje  remate  ás  re- 
flexões que  por  ahi  ficam  atiradas  a  esmo.  Não  posso 
ser  operário  diligente  d'esta  boa  cruzada  de  ordem,  por 
que  a  nossa  vida  atarefada  de  homem  da  roça,  nfo  dá 
para  sobejidões  e  largas  no  dizer.  No  emtanto  peço 
fervorosamente  aos  sanctos  da  rainha  devoção  que  vão 
inspirando  e  dando  alento  aos  homens  de  bons  ins- 
tinctos  para  que  sejam  atalaias  vigilantes,  e  bradem 
muito  alto  contra  a  desorganisação,  que  lavra  como  a 
peste,  pervertendo  i)elo  contágio  tanias  intelligencias 
que  se  transviam,  por  desacauteladas,  que,  não  sendo 
bem  incaminhadas  em  tempo,  se  exti aviam  pelos  la- 
byrinthos  e  ficam  irremediavelmente  perdidas.  Até 
outra  vez. 

O  vosso  ex-corde 

MUCIO  SCOBVOLA. 


Decima  carta  de  feSeinpronio  a  Oinclnnato. 

OBiíArf  DE  J.  DE  ALENCA|l.— A  IRACEMA 

II 

Meo  respeitável  amigo  ; 

Volto  ainda  á  faina  com  o  ânimo  contristado.  Como, 
porém,  o  caso  é  de  consciência,  tudo  sotoponho,  e  vou 
para  deante. 

Dice-te  na  minha  preced^?nte  (se  bem  me  lembro)  que 
na  Iracema^  o  absurdo,  o  paradoxo,  quer  de  substancia 
quer  de  forma,  não  fere  logo  a  vista,  como  no  Go  'içho. 
Ter-me-hia  acaso  in<i*anado  ? 


88  XXVI 

Affigura-se-me  que  o  auctor  nao  passava  ainda 
então  por  cima  de  certas  decencias  iitterárias.  Guar^ 
dava  05  apparencia^.  Como  que  lhe  fazia  peso  uma 
cousa  que  se  chama  —  opinião^  que  elle  se  interessara 
antes  em  attrahir  para  apoio  seo,  do  que  diligenciara 
concitar  em  seo  desfavor. 

E'  que  a  sua  reputação  não  estava  consolidada. 
Aquelle  nome  ainda  não  era  utn  prestígio,  um  oráculo, 
como  hoje.  Os  créditos,  que  .se  accentuavam,  podiam  ser 
varridos  e  apagrados  pelo  sopro  de  qualquer  accommet- 
tiraento  feliz.  Nao  existia  o  forte  partido,  que  mais  tarde 
apavorasse  e  tornasse  in  limine  impossível  a  manifea- 
tação  de  toda  critica^  por  mais  espontânea  e  consciente 
de  sua  serventia  que  fosse.  Por  isso  refreava  o  auctor^ 
como  podia,    as  petulâncias  da  insolente  phantasia. 

Tenha,  porém,  o  leitor  da  Iracema  olhares  desinte- 
ressados e  perscrutadores,  e  attente.  para  estas  floreB 
mágicaíí ;  ha  de  perceber  o  fervilhar  do  verme,  amia- 
çando  corroer-lhes  a  juvenil  corolla. 

A  planta  está  em  plena  primavera,  e  no  seo  matiz  se 
adivinham  pegadas  de  antecipado  outomno.  Mais  tarde 
nos  primeiros  fructos,  conhece-se  que  já  trabalham  es- 
tragos de  corrupção.  Aquella  deslumbrante  florescên- 
cia, aquelles  fúlgidos  pomos  aílo  passam  de  productos 
de  uma  vegetação,  cuja  seiva,  uma  vez  em  contacto 
com  os  gazes  deletérios  da  trêfega  phantasia,  principia 
a  contaminar-se. 

O  escriptor  propende  para  a  aberração  ;  a  enormidade 
o  tenta.  Queres  a  prova  ?  Eil-o  mais  logo  a  offerecer-nos 
na  donzella  do  salão  selecto  a  creaçao  brutesca  da 
amante  que  esbofeteia  o  objecto  das  suas  affeiçOes,  ea 
quem  só  verdadeiramente  ama  depois  que  se  sente  por 
elle  ^injuriada  e  aviltada,  depois  que  d'elle  apanha, 
como  se  fora  vil  escfava — é  a  Diva  ;  ou  então  um  pé 
nojento,  abominável,  immund'»,  servindo  de  protogo- 
nista  da  obra,  causando  horror  e  asco  ao  pio  leiíor,  e 
que  dirias  uma  baixa  miniatura  excogitada  do  Quasi* 
modo —  é  a  Pala  da  gazella  ;  ou  eniao  o  hippoceatauro 
chato,  informe,  indecoroso,  repulsivo,  como  typo  de  cos- 
tumes brazilios  —  e  temos  finalmente  o  Gancho. 

Eis-nos  na  actualidade.  O  escriptor  tem  chegado  á 
phase  mais  coruscante  e  mais  elevada  do  seo  império  de 
vaidade  e  de  aberração ;  isto  é,  tem  }>ttingido  o  período 
decisivo  da  mais  manifesta  decadência. 


XXVI  89 

E'  o  patriarcha  da  litteratura  brazileira,  um  génio 
talvez,  porque  crea  a  torto  e  a  direito,  seja  o  que  for,  nao 
importa  o  quê ;  crea  visões  ;  crea  disformidades ;  crea 
uma  linguagem  nova;. crea  vocábulos  já  creados,  velhos, 
incanecidos!  Quando  eu  leio  que  no  século  XVII  a  pri- 
meira condição  do  candidato  a  génio  consistia  em  que- 
brar copos  na  taberna  do  dd)oche  ;  que  no  século  XVI  o 
homem  de  génio  esgrimia  maravilhosamente,  embriaga- 
va-se  todos  os  dias,  e  sujava  de  ti  neta  e  de  vinho  as  pá- 
gÍTias  do  seo  Píndaro ;  quando  leio  que  Montaigne,  Cal- 
deron,  calmo  e  sereno,  prazenteiro  e  modesto,  Cervantes 
ingénuo,  e  natural  Shakespeare,  que  nao  o  era  menos, 
náo  realisava,  nenhum  d'elles,  o  typo  do  génio,  e  a 
utodos  se  fechavam  ultrajantemente  as  portas  da  glória» 
comprehendo  entào  que  se  possa  no  século  XÍX  ser  tido 
como  tal,  por  pintar  se  a  natureza  inanimada  com  a 
feição  da  imbecilidade  ou  da  loucura ;  por  f»zer-se  de 
grandiosas  e  gigantéas  raças  vis  caricaturas  ou  repu- 
gnantes monstros  ;  por  converter-se  a  língua  mais  opu- 
lenta n'uraa  saccola  de  pedinte  I 

Estamos  em  pleno  império  dos  Marc  Lasphyse,  dos 
Dubartas,  dos  Jodelle  «triste  innovador,  adorado  do  seo 
tempo, )»  Com  este  Jodelle,  innovador  e  adorado  do  seo 
tempo^  bem  se  vai  parecendo  J.  de  Alencar. 

Hoje  em  dia  entre  nós,  o  candidato  a  génio  deve  fazer 
versos  escabrosos  e  horripilantes,  comédias  hybridas, 
discursos  túmidos,  anasarcos,  romances  loucos.  O  que 
se  exige  de  mais  peso,  é  certo  apparente  arranjo  na  es- 
tructura  para  illudir  os  incautos,  e  poder,  impune  e 
libérrima,  cabecear  á  vontade  a  idéa  mais  paradoxal. 
Os  romances,  repassados  do  sabor  local,  adubados  do 
mais  fino  sal  áttico,  sensatos,  naturaes,  moralisadores, 
que  sao  uma  fiel  photcgraptíia  da  nossa  sociedade, esses 
com  qne  cada  dia  nos  dota  a  penna  habilíssima  de  Ma- 
cedo, nao  silo  da  iguaria,  que  mfis  gratifica  o  paladar. 
h  o  Brazil  tem  um  patriarcha  e  uma  litteratura !  O  que 
o  Brazil  infelizmente  tem  é  um  baixo  império  nas  lettras. 
Isto  sim. 

Admíra-se,  exalta-se  a  imaginação  de  J.  de  Alencar. 
Admirável  é,  nao  ha  dúvida  ;  agora  exaltavel,  isso  é 
que  nao. 

Deve-se  festejar  e  applaudir  a  imaginação  que  re- 
produz com  incautos  novos  e  novas  vivacidados  os 
gruppos,  os  accidentes,  as  attitudes,  os  recursos  da 
natureza  ;  que  faz  esses  grupos   interessantes,   esses 


90  XXVI 

accidentes  pittorescos,  essas  altitudes  graciosas,  es.sas 
seenas  animadas  e  felizes.  Isto  é  imaginar,  no  uso 
rigoroso  e  didáctico  da  expressão.  D'ahi  vem  que, 
quanto  mais  se  appropria  o  escriptor  dos  matizes  va- 
riados da  creaçâo,  ou  das  sensações  e  phenómenos  da 
vida,  e  tanto  mais  fielmente  os  retrata  ou  reproduz, 
impregnados  do  cunho  da  sua  pessoal  idealisaçfto, tanto 
mais  se  diz  ser  elle  original^  tanto  mais  génio. 

<(  Ab'.  sa-^se  da  elasticidade  de  linguagem,  quando 
se  ousa  fallar  de  intelligencias  creadoras.  Em  defini- 
tiva nao  ha  creaçao  ;  reproduzir,  imitar,  eis  quanto 
nos  cabe.  Se  Homero,  Cervantes,  Ariosto,  Byron  ti- 
vessem vivido  incerrados  'num  ergástulo,  o-que  teriam 
podido  imaginar  ?  Que  creaçao  teriam  dado  ao  mun- 
do ?  »  Logo,  a  natureza  em  primeiro  logar,  e  depois 
complexa  e  completa  observação — eis  os  dous  ele- 
mentos, as  duas  possantes  azas  do  génio. 

E'  consequente  com  estes  princípios  que  o  escriptor 
define  a  memória  na  esphera  da  esihética  >? — thesouro 
de  lembranças,  cuja  indigeueia  conslitue  o  que  se 
chama  o  idiotismo^  cuja  confusão  dá  em  resultado  a  er- 
travagancia,  cuja  riqueza  e  plenitude  constituem  o  gé- 
nior) 

Nao  sou  relógio  de  rep.tiçao,  como  dizes  tu  ;  mas 
nunca  é  ocioso  adduzir  certas  considerações  ade- 
quadas  ao  assumpto.  Perdoa,  pois,  a  ditFusão. 

Paulo  e  Virgínia  é  um  monumento  na  litteratura, 
justamente  porque  o  theatro  descripto,  e  amor  so- 
nhado, a  ingenuidade,  a  pureza,  o  devotamento  dos 
typos  estão  na  própria  natureza,  dentro  das  suas  am- 
plíssimas raias  e  múltiplas  possibilidades. 

Atala  é  um  primor,  justamente  porqutí  os  senti- 
mentos, os  suavíssimos  intrechos,  a  paixão  plácida  e 
morna,  as  manhas  e  as  tardes  bravias  e  bellíssimas,  a 
expressão  particulartlos  characteres,  a  feição  geral  dO . 
conjuncto,  tudo  é  condigno  e  próprio  do  mundo  e  das 
circumstancias  do  assumpto,  que  laz  o  poema. 

O  Guarany,  de  J.  de  Alencar,  agrada  algum  lant^e 
interessa  ao  leitor,  justamente  porque  as  descripções 
parecem  brazileiras.  A  natureza  alli  nao  pecca  por 
tao  demasiado  artificial,  como  no  Gaúcho*  O  leitor  ;.çha 
no  índio  modos,  brio,impertérrito  valor,  sagacidades  ^* 
recursos  vários,  dedicação  sem  limites,  que  nao  des 
toam  de  uma  raça,  que  as  florestas  embalaram  no  seo 
berço  libérrimo  de  trepadeiras  e  de  folhagens,  que  c^ 


XXVI  91 

calores  do  equinóccio  retingíram,  e  a  cuja  têmpera  os 
riscos  das  vicissitudes,  as  emboscadas  d)  inimigo  ou 
da  fera,  as  conspirações  da  natureza  deram  a  tensão 
mais  apurada  e  ampla. 

Pery  parece-se  com  o  índio  do  Brazil.  Ressum- 
bram do  seo  todo,  que  é  o  poncto  commum  entre 
duas  nacionalidades,  da  mesma  sorte  que  na  Evaji- 
gelina  de  Longfellow,  energia  bárbara  e  affectos, 
digamo-lo  assim,  cultos,  que  incantam.  Selvagem, 
realisa  o  prodígio ;  adventício  de  uma  sociedade 
civilisada,   pratica   virtudes   limadas. 

Nesse  tempo  o  demónio  da  vaidade  nao  tentara 
ainda  J.  de  Alencar.  Elle  nao  pretendia  então  , 
(pelo  que  parece)  conquistar  nomeada  stnSo  como 
escriptor  de  cunho  nacional,  e  nao  a  de  génio  crea- 
dor,  no  sentido  em  que  alguns  hoje  o  consideram 
e  que  é  lícito  ajuizar  pelas  suas  últimas  obras.  Ti- 
nha, seguramente,  por  muito  honroso  e  acertado 
voltar-se  para  o  e.spectáculo  grandioso  da  natureza, 
6  pedir-lhe  alguns  traçns  de  seos  painéis  de  eterna 
poesia,  alguns  ligeiros  matizes  da  sua  pompi)sa  e 
perenne   efflorescencia. 

Eis  que  uma  nuvem  de  desgraça  empana  esse 
nome  e  a  face  resplandecente  da  litterdtura  natal, 
que  espargira  tao  auspici  sos  brilhos.  O  escriptor, 
longe  de  cultivar  a  mina,  que  a  natureza  tornara 
capaz  de  inriquecer  um  mundo,  longe  ('e  exerci- 
tar-se  e  aprimorar-se  no  género,  de.-ípreza-o,  talvez 
por  sediço   e  commum ! 

Franklin,  Washington,  Jeíferson,  Governador  Mor- 
ris, Quincy-Adams,  tem  medo  da  imaginação  .*  dom 
magnifico  e  perigoso  •?  ^  Em  face  das  verdes  sa 
vanas,  das  florestas  virgens,  dos  lagos  que  sâo 
mares,  dos  rios  cujas  margens  escapam  à  vista,  as 
m&sculas  virtudes  dos  heroes  ]^uritanos  ingrande- 
ceram,  e  sua  imaginação  permaneceu  muda.  ^  J. 
de  Alencar,  porém,  espírito  então  ainda  novo,  ainda 
nao  feito,  e  quiçá  inexperiente,  dá  costas  á  mansão 
virgem,  que  nada  pôde  egualar  na  sua  majestade 
e  pompa,  e  deixa-se  arrastar  para  o  poncto  procel- 
loso  —  indício  certo  de  próximo  e  cabal  naufrágio 
—  com  que  lhe  acena  o  clarão  carregado  da  túr- 
bida phantasia.  Sua  primavera  foi  fugaz.  O  Gua- 
rany  uSo  tem  irmão.  As  faculdades creador-s  estão 
embotadas  e  corrompidas;  José  de  Alencar  esiá  Sénío, 


92  XXVI 

Quando  correu  que  elle  tinha  em  mãos  uma  obra 
destinada  a  dar  o  padrão  da  poesia  verdadeiramente 
brazileira^  os  leitores,  que  o  haviam  appreciado  no 
Guarany,  tiveram  de    sentir  grata  commoçao. 

Pareceu-lhes  que  o  typo  nao  estaria  muito  longe; 
só,  sim,  despojado,  estreme  de  toda  mescla  de  ele- 
mento  estrangeiro,  a  cousa  realisaria  o  puro  ideal 
da  poesia  nativa.  A  decepção  foi  tão  esmagadora, 
quando  appareceu  a  obra,  como  lisonjeira  tinha 
sido  a  espectativa  alimentada  uurante  a  despera- 
dora  gestação. 

Se  por  litteratura  nacional  se  deve  intender  aquel- 
la  em  que  «  se  reflecte  o  character  de  um  povo,  que 
dá  vida  ás  suas  tradições  e  crenças,  a  harpa  fre- 
mente em  cujas  cliordas  geme,  como  um  sopro,  a 
alma  de  uma  nação,  com  todas  as  dores  e  júbilos, 
que,  atravez  dos  séculos,  a  foram  retemperando  »  ; 
se  ((  cada  povo  tem  suas  paixões  como  cada  indi- 
viduo, e  essas  paixões  constituem  a  alma  de  cada 
poesia?»:  parece  de  bom  aviso,  que  o  candidato  a 
realisador  do  typo  da  litteratura  propriamente  bra-- 
zileiray  quando  já  nao  era  possivel  estudar  no  vivo 
as  paixões  de  uma  raça  quasi  desapparecida,  ou» 
pelo  menos,  decaída  da  sua  primitiva  grandeza, 
se  voltasse  para  a  história  e  para  o  estudo  dos  mes- 
tres, feito  sobre  o  índio  colonial,  e  d'ahi  apanhasse 
a  expressão  complexa  e  fiel  d'este,  seos  costumes, 
suas  inclinações,   sua  poesia  emfim. 

Já  havia  alguns  modelos  realisados  aobre  o  the- 
ma  indígena.  Sancta  Rita  Durão,  Basílio  da  Ga- 
ma, Gonçalves  Dias,  Gonçalves  de  Magalhães  ti- 
nham quasi  todos  batido  nas  mesmas  sendas.  N&o, 
nao  podiam  haver  tomado  a  nuvem  por  Juno  esses 
illustres  ingenhos,  alguns  dos  quaes  tiveram  occa- 
sirio  de  estudar  o  ftidio  em  original.  Podiam  falhar 
ou  desvairar-se  os  pormenores,  nunca  porém  a  es- 
sencÍM,  de  modo  que  devesse  ser  condemnada  a  ve* 
lha  escoUi    como   apócripha. 

I)ir-se-hia,  pois,  com  justo  fundamento  que  a  eschola 
estava  inaugurada,  a  incógnita  descoberta,  resolvido 
o  problema.  Fora  lícito  accreditar  aue  nao  restava 
neste  poncto,a  quem  ambicionasse  colner  novos  lauréis 
para  si,  e  proporcionar  novo  realce  á  pátria,  mais  do 
que  alargar  esses  caminhos,  afastar  o  mais  possivel 
esses  horizontes,  para  que  surgisse   na  máxima  pleni* 


XXVI  93 

tude  a  perenne  mansão  de  incantos.  Nao  é  o  que  faz 
J.  de  Alencar. 

Principia,  contrapondo-se  aos  mais  auctorisados  mes- 
tres. Sem  nunca  haver  tido  occasiao  de  estudar  efi- 
cazmente o  elemento  de  que  se  presume  conhecedor, 
nutre  a  vaidade  de  suppôr  que  achou  o  character  d'este 
na  sua  mesa  de  estudo  e  sem  dúvida  mediante  os 
subsídios,  devidos  aos  mesmos  escriptores,  contra  os 
quaes  rompe. 

«  O  conhecimento  da  língua  indígena  é  o  melhor 
critério  para  a  nacionalidade  da  litteratura,  »  diz-nos 
elle  na  sua  carta  final.  Ora,  como  ha  de  conhecer 
essa  língua  quem  nao  penetrou  nas  tribus,  quem  nao 
se  achou  em  contacto  com  o  povo,  quem  a  nao  estudou 
nos  tempos  primevos,  porque  era  impossível  fazel-o, 
nem  mesmo  nos  tempos  actuaes  em  que  jâ  o  verdadeiro 
character  indígena  decahiu  e  se  corrompeu  ?  Ha  de 
forçosamente  estudal-a  nas  obras  e  diccionários  que  nos 
deixaram  os  nossos  predecessores.  Pois  bem  :  elle 
acha  que  «  de  quantas  producçOes  se  publicaram 
sobre  o  thema  indígena,  nenhuma  realisava  a  poesia 
nacional  »  ;  e  quanto  aos  diccionários  é  o  primeiro  a 
taçhal-os  de  « imperfeitos  e  espúrios.  »>  Ao  próprio 
G.  Dias  nega  o  condão  de  realisador  da  poesia  ame- 
ricana. Diga-nos  quem  poder  e  quizer :  onde  foi  J.  de 
Alencar  buscar  esse  molde  de  poesia  selvagem,  fórá  dos 
diccionários,  que  «  são  espúrios  »,  fora  das  producçoes 

Sublicadas,  que  í*  nao  arealisam»,  fora  dos  modelos 
os  mestres  que  «  só  exprimem  idéas  próprias  do  ho- 
mem civilisado,  e  que  nao  é  verosimil  tivesse  no 
estado  de  natureza  ?  »  No  seo  gabinete  de  improvi- 
sador. 

Ah!  justamente  por  nao  havel-o  incontrado  em 
parte  nenhuma  foi  que  elle  adoptou  e  nos  offereceu 
como  o  verdadeiro  padrão  essa  poesia  pedantêsca  e 
diffusa  que  se  esparrama  nas  páginas  da  sua  Iracema, 

Meo  amigo,  estou-te  escrevendo  estas  cartas  por 
honra  da  firma.  Se  já  m'o  promettêra  a  mim  mesmo, 
e  se  ultimamente  t'o  prometti  também  a  ti...  o  pro- 
mettido  é  devido.  Mas,  á  fé,  que  estudos  em  que  só  se 
tem  de  apreciar  desaires  e  nSo  sublimidades  e  formo- 
suras, cançam  a  final,  o  não  pedem  deixar  de  levar 
á  monotonia. 

Quando  escrevi,  ha  mezes,  as  minhas  cartas  sobre  o 
Gaiiçho  estava  cora  disposição  para  a  cousa.    Também 


94  xxvr 

era  a  primeira  ceifa,  e  em  <;  le  campo  I  Era  dar  para 
a  esquerda  e  para  a  direita,  e  cair  espiga.  Mas 
também  pelo  muito  que  so  vindimou,  sobreveiu  o 
tédio  pn  •  i  a  repetição  das  operações. 

Se  aquellas  cartas  tivessem  sido  dadas  á  imprensa 
em  tempo,  jâ  n  anàlyse  da  Iracema^  da  Diva  e  da  Pata 
da  Gazella  estariaoi  feitas,  porque,  approveitado  o 
humor  do  momento,  um  só  e  mesmo  fôlego  abrangera 
tudo. 

Mas  foi  o  contrário.  Quando  eu  esnerava  recebel-as 
publicadas,  chega vam-me  noticias,  dando-me  formal 
desingano.  Lá  ficaram  por  meze.s  ;  já  nao  me  lem- 
brava d'elias,  e  tinha-as  até  por  extraviadas  (que 
talve::  fõosse  o  melhor.) 

Eis  que  vem  a  questão  do  elemento  servil,  o  parecer 
da  commissao  da  câmara  dos  deputados,  os  discursos 
parlamentares  de  J.  de  Alencar,  as  tuas  magnificas 
cartas  a  Fabrício,  e  finalmente  as  Questões  do  Dia. 

Ora,  durante  todo  esse  tempo,  estive  eu  cuidando 
dos  meos  verdadeiros  interesses  (que  isto  de  lettras, 
entre  nós,  nao  dá  para  mandar  ao  açougue)  como 
fossem  algumas  questões  forenses,  algumas  garatujas 
para  gazetas  politicas,  etc.  Nem  me  lembrava  mais 
de  Sénio,  senFlo  como  um  político,  e  este  velho,  des- 
crentey  como  elle  mesmo  se  diz. 

A  inspiração  do  momento  foi-se.  Veiu  depois  a 
doença,  que  mo  forçou  a  retirar-me  para  o  campo ;  e 
ahi,  quando  menos  o  esperava  eu,  vejo  ressuscitarem 
nó  teo  periódico  as  minhas  defuncthsimas  cartas. 

Foi  quando  tive  de  voltar  à  cidade,  e  agora  já  nao 
pareceria  de  bem  que  eu  deixasse  de  cumprir  a  palavra, 
que  imprudentemente  empenhei,  a  pezar  de  nao  ter 
«  primeiro  calculado  das  forças  mínimas  para  em- 
preza  tao  grande.  » 

Pois  bem :  peço-te  |x3rmissao  para  tomar  fôlego  e 
continuar  na  seguinte.   Até  lá. 

Teo  amigo  e  admirador 

Semprónio. 


M:o3iLTLiiieiito   a  Bocage 

Segundo  as  últimas  notícias  de  Lisboa,  os  alicerces 
que  o  máo  estado  do  solo  exigiu,  estavam  muito  adean- 
tados,  mas  sendo  precisos  ao  menos  15  dias  para  in- 
xugar,  e  nRo  cessando  a  chuva  desde  fins  de  octubro 


XXVI  95 

« 

ate  meado  novembro, ;  trazou  isto  muito  os  trabalhos, 
por  tal  motivo  de  força  maior.  Para  solidificar  o  ter- 
reno, foi  mister  suterrar  estacaria  de  9  palmos  de  al- 
tura, e  proceder  a  morosos  e  inesperados  trabalhos. 
Apenas  segurasse  o  tempo,  o  que  nao  parecia  próximo, 
ia  começar  a  assentar-se  a  cantaria.  'Nestes  termos,  a 
solemnidade  do  dia  21  de  dezembro  limitar-se-ha  pro- 
vavelmente á  collocacâo  dos  fundamentos.  Os  dous 
Membros  da  Comaiissão  Central  'nesta  corte  incumbi- 
dos de  dirigir  esta  tarefa,  approveiraram  estas  circums- 
lancias  para  recoramendar  que  a  definitiva  inauguração 
se  reserve  para  quando  S.  M.  o  Sr.  D.  Pedro  Segundo 
se  ache  em  Portugal,  esperando-se  que,  com  seos  au- 
gustos parentes,  abrilhante  o  esplêndido  acto. 

A  com  missão  em  Lisboa,  de  que  é  Presidente  o  Sr. 
Marquez  d'  Ávila  e  Bolama,  e  Vice-Presidente  o  Sr. 
Visconde  de  Castilho,  prosegue  em  seos  trabalhos,  de 
accôrdo  com  a  commissao  de  Setúbal,  e  ambas  com  a 
Ceutral  do  Rio  de  Janeiro. 

O  Presidf^nte  da  Comniis^âo  especial,  que  o  è  tpm- 
bem  da  Câmara  Municipal  de  Setúbal,  dirigiu  para 
esta  Corte  as  suas  coinmunicações,  das  quaes  se  col- 
lige  que  a  Rainha  do  Sado  verá  em  dia  próximo 
uma  das  mais  brilhantes  festas  de  que  neste  género  em 
Portugal  haja  memória. 

O  mesmo  cavalhe'iro  dirigiu  à  Commis^ao  em  Lisboa 
um  ofiicio  do  teor  «eguinte: 

«  No  empenho  louvável  de  abrilhantar  a  festa  da 
inauguração  do  monumento  dedicado  ao  celebre  poeta 
Bocage,  corapuzerata  e  ofterecerain  á  CArnara  Muni- 
cipal d'este  conselho  dous  liymnovs  dt  stir.uJos  a  serem 
executados  no  ar-to  da  dieta  inaiigur-irão,  os  profes- 
sores de  musica  Carlos  Augusto  Alves  Bim^m,  e  Antó- 
nio do  Nascimento  e  Oliveira,  ambos  conierràtieos  do 
poeta,  o  primeiro  residente  em  Lisbj:.t.  e  o  segando 
residente  nesta  (.idade  de  Setúbal,  onde  k^  locoaliocido 
o  seo  mérito  artístico,  e  cujas  PhilarmÓLiiv*as  tiveram 
já  partituras  do  segundo  dos  indicados  hyinr.os. 

Julgando  a  Câmara,  por  mais  acertada  drliber^çlo 
deixar  â  illiistn»da  commisslo  incarregada  de  dirigir 
a  solemnidade  alludida,  tanto  a  apprccir.cao  da  poesia 
que  faz  parte  do  bymno  de  que  a  miisica  é  composta 
por  António  do  Nascimento  e  Oliveira,  ccmuo  a  música 
de  ambos  os  hymnos,  por  isso  tenho  a  honra  de  os  re- 
m  etter  a  V.  Ex.  afim  de  os  fazer  presentes  âquella  Ex*. 


96  XXVI 

Comraissao,  que  a  tal  respeito  resolverá  do  modo  que 
à  sua  muita  competência  e  subida  illustraçao  mais  justo 
parecer.  Deus  Guarde  a  V.  Ex. — Setúbal  15  de  no- 
vembro de  1871. — lUm.  Ex.  Sr.  Visconde  de  Castilho. 
— O  Presidente  da  Câmara  António  Rodrigues  Ma- 
nitto. 

Quando,  porêm,  chegou  este  officio,  já  as  bandas  de 
música  da  Guarda  Municipal  e  outros  corpos  estavam 
ínsaiando  um  lindo  hymno,  expressamente  composio 
sob  o  título  Hymno  a  Bocage. 

As  RevoluoSes 

Como  ha  por  ahi  muita  gente  boa,  que  sonha  com 
revoluções,  e  se  os  seos  desejos  fossem  satisfeitos, 
teríamos  ao  menos  uma  por  dia,  será  bom  lembrar-lhe 
os  proveitos  que  d'ellas  se  auferem,  porque  muitos  ha 
que  cuidam  que  revolução  é  o  mesmo  que  pfto  com 
manteiga. 

Tomaremos  para  exemplo  a  França,  que,  'nesse  gé- 
nero ninguém  negará  que  seja  clássica. 

A  grande  revolução  franceza,  que  matou  a  Lmz 
XVI,  trouxe  o  Terror. 

Do  Terror,  que  acabou  por  uma  revolução,  veiu  o 
Directório^  com  todas  as  sjias  torpezas. 

Do  Directório,  que  acabou  por  uma  revolução,  veiu 
Napoleão  com  todo  o  seo  despotismo,  e  a^  giierras  do 
Império. 

De  Napoleão,  que  acabou  por  uma  revolução,  veiu  a 
Restauração  com  a  occupação^  e  os  milhares  de  indenmi" 
zação. 

Da  Restauração,  que  acabou  por  uma  revolução,  veiu 
Luiz  Philippe  com  todas  as  suas  fraquezas. 

De  Luiz  Philippe,  que  acabou  por  uma  revolução, 
veiu  Luiz  Napoleão,  com  todas  a.v  suas  misérias. 

De  Luiz  Napolefb,  que  acabou  por  uma  rL^Víliiívao, 
veiu  a  occupação  pelos  Allemães,  o  pagamento  ih  nlijuns 
milhares  de  milhões  e  a  communa.  e  sabe  Duus  o  '[ue 
ainda  virá. 

Arreda  de  lá  o  velho, dizia  certo  sexagenário, .i  ij'íem 
comptavam  que  uma  grande  patuscada  tiuha  a-.wl^ado 
por  uma  grande   desordem. 

Otton. 

Typ.  e  lith. — Imparcial— Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  A. 


QUESTÕES  DO   DIA 


]sr.  27 


RIO  DE  JANEIRO,  20  DE  DEZEMBRO  DE  1871. 


Vende-se  em  casa  dos  Srs.  E.  &  H.Laemmert. — Agostinho  de  Freitas  Gui- 
maries  &  Corop.,  26,  rua  do  General  Camará. —  Livraria  Académica, 
Rua  de  S.  JG^e  n.  119—  Largo  do  Paço  n.  C— Preço  200  reis 

O  !•  volume,  com  perto  de  400  paginas— 3$00B. 

OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR  —  A  IRACEMA 

(Oartas  a  Oincizinato) 
III 

Meo  ilhistre  amigo:  A  Iracema  teve  por  fim  des- 
empenhar o  comprcmisso  que  o  auctor  commetteu  a 
imprudência  (palavras  suas  e  dEo  dice  mal)  de  contra- 
hir,  quando  escreveu  algumas  cartas  sobre  a  Confede- 
ração dos  Tawoyos, 

Ora,  a  Confederação  dos  Tamoyos  pertende  as  honras 
nSo  só  de  poema,  porém  de  poema  épico.  Sinto  nao  ter 
esta  ^bra,  que  li  ha  tempos,  para  agora  averiguar  a 
minha  asserção.  Quer-me,  todavia,  parecer  que  nao 
estou  em  equivoco. 

J.  de  Alencar,  criticaado-a,  dice  que  «  as  tradiçOes 
dos  indígenas  davam  matéria  para  um  grande  poema» 
que  talvez  um  dia  alguém  appresenta.sse  sem  ruído  nem 
apparatu.  »  Infelizmente  ainda  nao  chegou  este  dia. 

Suppozeram  que  o  auctor  se  refei^ia  a  si,  e  pergunta- 
ram-lhe  varias  pe.iiôaá  por  elle.  Tanto  hastou  para  que 
se  mettesse  em  «  brios  lillerarios,  e  começasse  a  oora 
com  tal  vigor  que  de  um  fôlegofa  levou  ao  quarto 
canto!  m 

(Vid.  a  carta  final,  na  pag.  193.) 

Depois,  por  certas  considerações,  que  nao  vem  ao 
caso  recordar,  f  jí  o  auctor  levado  a  dar  «  um  ensaio 
das  suas  iuéas  sobre  a  poejiia  verdadeiramente  brazi* 
leiva  in  anima  prosaica.  »  Tal  o,  Iracema, 

Pergunta-sy :  o  que  é  lícito  conjecturar  em  face  de 
todas  estas  circura.siancias  e  precedentes,  a  saber — 
depois  de  uma  critica  feita  a  um  poema  candidato  a 


98  XXVII 

épico,  depois  de  uma  solemne  promessa  de  apresentação 
de  um  grcmde  poema,  jor  julgar  o  crítico  que  aquelle 
não  realizava  a  verdadeira  poesia  brazileira,  e  depois 
finalmente  da  amostra  em  prosa  d'essa  promeciida  e 
perguntada  obra?  Seguramente  que  esta  amostra  per- 
tende  offerecer  ao  mundo  não  só  o  typo  d'aquella  poesia, 
senão  também  o  de  um  poema  épico  em  contraposição 
ao  que  foi  julgado  incapaz  de  satisfazer  aquelle  deside- 
ratum.  Com  eflFeito ! 

Ha  um  grande  nome  na  litteratura  hispanhola — don 
Juan  Ruiz  de  Alarcon  y  Mendoza,  que  um  auctor  col- 
loca  acima  de  Moratin,  de  Montalvan,  e  immediata- 
mente  depois  de  Lopez  de  Vega  e  de  Calderon. 

Era  elle  «  infernalmente  orgulhoso  »  na  pbrAse  do 
crítico  aquém  peço  estas  notícias.  Em  um  dos  seos 
prefácios  se  lêem  estas  memorareis  palavras  allusivas 
ao  público  (ai  volgo) :  «  Canalha,  animal  feroz,  dirijo- 
me  a  ti ;  nada  digo  aos  gentis-homens,  que  me  tractam 
melhor  do  que  desejo ;  intrego-te  as  minhas  peças ;  Saae 
d*ellaso  que  fazes  das  boas  cousas — sê  injusto  e  estú* 
pido,  como  é  teo  costume.  Elias  te  inçaram  e  te  affron* 
tam;  seo  desprêso  para  comtigo  é  soberano.  Se  as 
achares  ruins,  tanto  melhor  —  é  que  são  boas.  Se  te 
agradarem,  tanto  peior — é  que  para  nada  prestam. 
Paga-as,  e  folgarei  de  te  haver  custado  alguma 
cousa.  » 

J.  de  Alencar  dá  poemas  e  romances  de  costumes^  sem 
ter  estudado  a  natureza  nem  os  povos,  e  condemnando 
além  d'isso  os  estudos  dos  mestres  e  os  diccionàrios 
existentes,  que  chama  <c  espúrios  ».  Essas  obras»  elle 
as  dá  do  fundo   do  seo  gabinete,   assim   a  modo  de 
quem  expede  avisos  para  um  império  inteiro.  Espé- 
cies de  encyc^icas  litterdria^,  trazem  o  cunho  da  aucto- 
ridade  dogmática  e  infallivel :  são  matéria  de  fé.  Hou- 
ve de  certo  immen%\  modéstia,  quando  nos  dice  que  a 
Iracema  era  uma  experiência  ou  amostra.    E'  que  foi 
isso  ha  seis  annos   antes  a  esta  parte,  e  têmpora  mu* 
tantur.  Hoje,  com  a  sem  cerimónia  de  quem  conhece 
o  terreno  onde  pisa,  suas  palavras  para  com  o  público 
seriam  talvez  estas  :   Canalha  imbecil,  corja  de  idio- 
tas ou  de  boçaes,  que  só  tens  tido    um  luus  perennis 
para  os  meos  caprichos,   a  minha  fatuidade  e  as  mi- 
nhas aberrações,    toma  lá  esta....   lUlada  brazileira. 
Os  que  conhecem  os  meos  erros  e  defeitos  tractam-me 


I 


XXVn  99 

melhor  do  que  seria  para  esperar.  Graças  ao  seo 
silSacio,  filho  do  p  uco  caso  ou  da  cobardia,  a  mioha 
reputação  pãoica  transpôs  jâ.  os  umbraes  da  posteri- 
dade, e  perde  o  tempo  ou  é  parvo  f|iiPTii  t«ntBr  apear- 
medo  meo  pedestal. Paga  tu  a  obra,  u  ulug*iu-ii  por  toda 
a  parte,  como  tem  sido  teo  co-stume.  « 

Haveria  'oestas  amabilidades  alguma  cousa  pare- 
cida com  as  de  Alarcoo,  mas,  umas  ligeiras  obser- 
vações: o  auctor  bíspanhol  era  de  tanto  génio,  que 
Corneille  vasou  o  seo  Menleur  no  molde  da  Veraad 
Suspeckosa.  obra  (jue  denomina  «  a  maravilha  do  thea- 
tro,  e  para  a  qual  nSo  se  acha,  como  elle  diz,  nada 
comparável,  quer  entre  os  antigos  quer  entre  os  mo- 
dernos. B  Infelizmente  as  cousas  sao  muito  diversas, 
em  relação  ao  caso  actual.  O  Brazil  de  hoje  está 
tao  di.stante  da  Hiapanha  do  século  XVI  e  do  século 
XVII,  quando  fornecia  assumptos  à  Itália,  á  França, 
á  Inglaterra,  a  Corneille  e  a  Shakspeare  !  O  nosso 
compatriota,  posto  que  muito  illuslre  e  respeitável, 
está  tao  afastado  physica,  chpouólogica  e  litteraria- 
meate  de  Alarcon  !  E  depois*  accresce  :  J.  de  Alencar 
nao  teria  razão  p^ra  m  queixar  do  piiblico  :  só  .Mar- 
cou—  perspicaz  e  profundo  —  desconfiaria  d'eR8e  pe- 
reniie  acoihimeuto  ás  suas  obras.  Bti-^eamos  ao  nosso 
I  aasimpto. 

Tu,  que  és  mestre  e  intendei  tSo  bom  da  cousa 
como  nem  ouso  pertendel-o  91,  achas  que  a  poesia 
brasileira  tenha  incontrado  o  seo  ideal  na  Iracema  ? 
A  poesia  de  um  povo,  que  fazia  das  guerras  sua 
principal,  senão  ilníca,  fonte  de  pnixOi-s,  nao  podia  ter 
eaa»  expressão  de  flaccidez  e  de  langurir,  que  faz 
a  feição  completa  da   obra  citada. 

Achelos  tumultuosos,    affectos    desinfrendos,    pra- 
L  nres  lúbricos,  Sí>nsaçAes  intensas  e  bravias,  rcstumam 
I  Intunzir-do  era  linguagem  de  outrt*  possança ;  isto  é 
f  O  que  nos  parece  dizerem    o  senso   critico  e    o  es- 
tado das  primitividades  de  todos  os  povos  do  mundo. 
O  poeta,  intérprete  der^sa  poesia,  n5o   tem  mais  que 
apanhar  o  colorido  ardente,    e  com  elle  velar  as  impu- 
dldcias  ou  as  fealdades  da  natureza  brutal. 

Cumpre   mais    acnrescentar   que    a    fiirma    de    tal 

[  po&)in,   parti cularmi-nle  bebida  ua  fonte  grosseira  dos 

I  aealidos,  devia  tender  mais  ao  plástico,  ao  material, 

do  que  a  uma  ideal ísacão  que  de  modo  nenhum  cabtf 


f 


100  XXVI! 

em  aimilbante  natureza.  Ura  moderno  archeúlogo  e 
sábio  ing^lez,  Lubbock,  estudando  os  costumes  dos 
aborígenes  da  América  do  Norte,  diz  que  o  «  estylo 
da  sua  música  é  magro  e  sem  arte.  »  Sabe-se  que 
a  monotonia  faz  também  um  characterisíico  das  festas, 
das  danças  e  dos  cantos  dos  selvagens  em  geral  ; 
8  com  relação  aos  do  Brazil,  é  fácil  deprehender 
do  que  dizem  os  competentes,  qite  lambem  era 
traço  distinctivo  da  sua  linguagem  cerio  cuubo  de 
varonilidade,  repercussão  do  estjlo  com  que  cele- 
travam  suas  paixOes  tumultuarias. 

Só  duas  fontes  vejo  onde  o  poeta  açbasse  para 
beber  o  character  da  poesia  brazileira:  a  saber — 
specimens  na  própria  lingua  vernácula  ,  ou  ,  na  falta 
d'estes,  o  dizer  dos  histopíadores.  Ora,  a  primeira  é 
sabido  que  nos  talta  ;  nao  só  os  índios  nno  escreviam, 
mas  também  quem  o  podia  fazer  n  nao  se  dpu  ao 
trabalho  de  recolher  ou  verter  era  língua  portu- 
guesa 08  cânticos  dos  Índios  »  como  diz  ura  litte- 
rato  contemporâneo.  Resta,  portanto,  a  segunda,  que, 
longe  de  auctorizar,  conderana  a  perlensa  eschola, 
inaugurada  por  J.  de  Alencar. 

Em  verdade,  biista  uma  interpretai; ilo  approximada 
da  história  para  vermes  a  medida  d'essa  poesia. 
Um  povo  dado  principal raente  íis  luctas  viol«itas, 
d'onde  derivam  os  seos  mais  assíduos  passatempos  e 
labores  nao  havia  de  ser  frôxo  o  débil,  quando  é 
certo  que  a  poesia  é  o  reflexo  raaia  animado,  firme 
e  substancial  das  paixOes  de  ura  povo. 

Mas  o  que  no.-í  dizem  os  historiadores?  Vejamos. 

Simão  de  Vasconcellos  diz,  —  Iractando  dos  cantos  : 
«Cantam  no  me.smo  tora  arengas  de  suas  valentias  e 
feitos  de  guerra  com  taes  Dssobios,  palmas  p  patoadas 
que  atr.-ara  os  valles.  » 

Ferdinand  Deny*  di;!,  occupaudo-se  eoni  o  mesmo 
a-"Sumpto :  "Cantavam  alternadamente  as  swns  faganhcu 
em  tnm  grave  e  compassado.  »  E  referiu  d  c-.se  a  uma 
certa  dansa  accresreota  que  «  do  seio  da  mtilttdno  se 
levantiiva  um  choro  harmonioso,  que  celebrimi  a  glória 
dos  antepassados  e  incitava  os  bravos  a  novos  feitos 
de  honra,  » 

Verdade  seja  que  G.  Dias  nos  observa:  «  Entre  os 
Tupys  era  tudo  música  e  poesia  —  o  nascimento  <s 
jBOrte  —  a  guerra  e  as  festas  —  o  amor  e   a  reli^^^ 


XXVII  101 

— a  linguagem  e  ávida  —  era  tudo  poesia Na  sua 

linguagem  harmoniosa  e  quasi  toda  labial,  travada  e 
intercalada  de  vogaes  —  imitavam  o  ciciar  dâ.  brisa  a 
correr  sobre  as  ondas  espalhadas  do  oceano,  a  agitar 
levemente  a  igara  derivando  á  tona  d'agua,  e  a  inre- 
dar-se  pelas  folhas  dos  bosques,  que  aromatizam  o 
littoral.  »  Para  apoiar  esta  opini&o  declina  a  de  di- 
versos auctorizados  escriptores,  como  o  padre  Figueira, 
Laet,  Vasconcellos,  Du  Montei,  os  qua^s  todos  s&o 
accordes  em  que  a  língua  geral  era  muito  rica,  suave 
e  elegante. 
Devo  entretanto  produzir  duas  rápidas  observações . 

Primeiramente,  historiadores)  também  ha,  não  menos 
abalisados,  e  entre  outros p*Orbigny,  que  suppoem  que 
«  quasi  todas  as  línguas  americanas  eram  pouco  ex- 
tensas, grosseiras,  e  careciam  absolutamente  de  termos 
para  exprimir  um  pensamento,  uma  idéa  delicada, 
ou  mesmo  a  paixão.  »  Se  coubesse  nos  estreitos  limi- 
tes de  uma  carta,  escripta  a  vôo  de  pássaro^  algum 
desiuvolvimento  sobre  matéria  sem  dúvida  transcen- 
dente ,  eu  reproduziria  com  Lubbock,  Forster,  Ellis, 
Cook,  Kolben,  Thunberg,  Harris  e  muitos  outros, 
factos  e  considerações  que  avigoram  esta  opinião. 

Em  seguindo  logar  direi  que,mesmo  admittida  a  opi- 
nião esposada  por  G.  Dias  e  pelos  outros  citados  his- 
toriadores, essa  suavidade,  opulência  e  elegância, 
longe  de  se  contraporem  à  these,  que  resalta  da  his- 
tória, mais  a  accentuam  e  corroboram.  Quanto  mais 
opulenta  e  elegante  fõr  a  língua,  tanto  mais  em  con- 
dições 'de  ostentar  fidalguia  e  gentileza,  quer  de 
forma,  quer  de  essência.  E  tanto  assim  é  que  o  próprio 
G.  Dias  não  vasou  as  suas  poesias  americanas  em  outro 
molde. 

Se  dos  cantos  passámos  às  dantas,  o  que  vemos? 
Refere  o  próprio  Dias :  «  Essas  mesmas  dansns  não 
eram  mero  exercício  de  força  ou  simples  distracção. 
Simulavam  (os  guerreiros)  nos  passos  choreográphicos, 

j&  o  caçador em  attitude  viril  e  ameaçadora,...  já, 

mais  enérgicos,  imitavam  com6a(e5  de  homem  contra 
homem,  em  que  se  succediam  as  palavras  aos  golpes^ 
etc.  »  Confirmando  esta  afiBlrmativa,  ajUncta  P.  Dinys  : 
a  Era  antes  ( a  mais  solemne  das  dansas  )  uma  ceri- 
mónia maixial  que  uma  dansa  propriamente  dieta.  » 


102  XXVII 

Eis,  pois,  ainda  aqui  characterisada  a  poesia  sel- 
vagem pela  energia  e  fortaleza,  qae  imbutiam,  diga- 
mol-o  asáim^  na  linguagem,  nos  gestos,  nas  acções, 
as  diversas  formas,  sempre  elevadas,  de  decantar 
assumptos  grandíloquos,  como  as  batalhas,  os  conví- 
vios em  honra  das  bárbaras  proezz&s,  os  exercícios  e 
noviciados  béllicos. 

Penso,  pois,  assim :  ou  a  poesia  tivesse  de  exprimir 
motivos  de  essência  épicos  —  as  luctas  gigantéas,  as 
glórias  marciaes ;  ou  motivoa  melodramáticos,  os  pra- 
zeres eróticos,  as  magnificências  da  natureza  inani- 
mada, os  incautos  da  vida  florestal ;  ou  de  referir-se 
ás  suas  práticas  e  crenças  religiosas  —  em  qualquer 
doestes  casos  ser-lh^hia  impossível  abstrahir  do  cunho 
de  vivacidade,  do  colorido  vigoroso,  própno  do  sen- 
timento universal  de  braveza  e  do  modo  geral  de  dizer 
que  especialmente  os  assignalava  e  que  era  como  as 
tinctas  predominantes  de  todos  os  seos  phenómenos 
sociaes  e  moraes. 

Pensando  assim  estou  de  accordo  com  os  dous  primi- 
tivos patriarchas  da  poesia  brazilica,  Basílio  da  Gama 
e  Sancta  Rita  Dur&o,  e  também  com  os  gfandiosos  in- 
genhos  do  Dias  e  do  Magalh&es,  que  nos  tempos  actuaes 
tamanho  impulso  deram  á  eschola  nascente,  apezar  de 
ser  de  data  colonial.  O  Dias  foi  infatigável,  verdadeiro 
propagador  d'essa  eschola,  que  cultivou  como  o  sacer- 
dote mais  estrénuo,  suctorizadoe  feliz.  E'  elle  indispu- 
tavelmente  o  nosso  primeiro  poeta,  e  difficilmente  teri 
um  successor  que  se  lhe  approxime,  se  a  ingrata  sorte 
arrabatar  cedo  á  pátriít  o  astro  mágico  de  Fagundes 
Varella,  que,  no  meo  fraco  intender,  é  o  vate  mais 
genuíno,  opulento  e  mavioso  da  moderna  plêiade  na- 
cional. 

Ora,  se  pego  a^ora  mesmo  do  Vruguay  e  o  abro  ao 
acaso,  o  que  incontro  ?  £'  o  poncto  em  que  o  índio, 
Cacambo,  se  appresenta  ao  general  como  parlameu* 
tário.  Ouçamol-o. 

t<  O'  general  famoso, 
«  tu  tens  á  vista  quanta  gente  bebe 
«  do  suberbo  Uruguay  a  esquerda  margem. 
«  Bem  que  os  nossos  avós  fossem  despojo 
«c  da  perfídia  de  Europa,  e  d'aqui  mesmo 
«  co'  os  n&o  vingados  ossos  dos  parentes 


^•> 


XXVII  103fc 

<t  se  vejam  branquejar  ao  longe  os  valles, 
«  eu,  desarmado  e  só,  buscar-te  venho. 


c(  Âs  campinas  que  vês,  e  a  nossa  terra 
í<  seo  e  nosso  suor  e  os  nossos  braços 
«  de  que  serve  ao  teo  rei  ?  Aqui  não  temos 
4c  nem  altas  minas,  nem  os  caudalosos 
a  rios  de  areias  de  ouro 


«  Pobres  choupanas,  e  algodões  tecidos, 
tt  e  o  arco,  e  as  settas,  e  as  vistosas  pennas 
<c  silo  as  nossas  phantàsticas  riquezas. 


c<  Que  mais  queres  de  nós?  Nao  nos  obrigues 
((  a  resistir- te  em  campo  aberto.  Pôde 
<c  custár-te  muito  sangue  o  dar  um  passo  ; 
«  n&o  queiras  ver  se  cortam  nossas  frechas; 
«  vê  que  o  nome  dos  reis  não  nos  assusta.  » 

Mas  j&  n&o  quero  este  assumpto  que  podem  tachar 
de  forte  em  si  mesmo,  e  vou  ter  a  outro  de  diversa 
ordem — o  amor.  Abro  o  Caramwrú^  e  não  é  já  um  guer^ 
reiro,  porém  sim  uma  simples  mulher  quem  fala.  Para- 
guassii,  promettendo  a  Diogo  Alvares  oaptizar-se  e  ser 
sua  esposa: 

«  Esposo — abella  diz — teo  nome  ignoro, 
«  mas  n?io  teo  coração,  que  no  meo  peito, 
«  desde  o  momento  on)  que  te  vi,  que  o  adoro: 
«  nao  scei  se  era  amor  jà,  s#  era  respeito  ; 
«(  mas  scei  do  que  entSlo  vi,  do  que  hoje  exploro, 
«(  que  de  dous  coraçOes  um  só  foi  feito  : 
K  quero  o  baptismo  teo,  quero  a  tua  egreja 
«  meu  povo  seja  o  teo,  teo  Deos  meo  .^eja. 

«  Ter-me-has,  caro,  ter-me-has  sempre  a  teo  lado, 

«  vigia  tua,  se  te  occupa  o  somno  : 

«  armada  sairei,  vendo-te  armado; 

«  tao  fiel  nas  prisões,  como  'num  throno . 


104  xxvn 

((  Outrem  aao  temas  que  me  seja  amado  : 
((  tu  só  serás  seuhor,  tu  sómsu  domuo;  » 
«  Taato  lhe  diz  Diogo,  e  ambos  juraram ; 
«  e  em  fé  do  jurameuto  as  mios  tocaram  » 

Pois  bem  'ne-^se  mesmo  assumpto  nlo  ha  frouxidão 
nem  moUeza  na  expressão  ;  pelo  contrário:  a  lin- 
guagem do  nífecto  não  se  deturpa,  não  se  abastarda, 
não  despe,  nos  lábios  da  moça,  da  selvagem  louçania 
sempre,  em  brio  e  garbo,  na  altura  condigna. 

Recorro  ao  Dias,  não  no  hitnpejante  Canlo  do  guer- 
reiro, não  no  Y — 7iicaP</7Vima -^modelo  de  pondonor  é 
de  ufania  bárbara,  nem  no  Tabyna  eminentemente  mar- 
cial o  athlético,  mas  'numa  poesia  da  insinuante 
sentimentalismo  e  amor — o  Canto  do  índio.  Tu  bem 
sabes  com  que  pujança*  de  idéa  e  galhardia  de  lin- 
guagem o  poeta  exalta  em  notas  plangentes  o  amoc 
grandioso  do  selvícola.   Ouve  : 

((  O'  virgem,  virgem,  dos  christúos  formosa, 
«  porque  eu  to  visse  assim,  como  te  via, 
<(  calcara  agros  espinhos  sem  queixar-me, 
«  que  antes  me  dera  por  feliz  de  ver- te. 
((  O  tacape  fatal  eu  terra  estranha 
<(  sobre  mim  sem  temor  veria  erguido; 
((  dessem-me  a  mim  somente  ver  teo  rosto 
«  nas  águas,  como  a  lua,  retratado.... 
«  Passara  a  vida  inteira  a  contemplar-te, 
<(  sem  que  dos  meos  irmãos  ouvisse  o  canto, 
((  sem  que  o  som  do  boré  que  incita  á  guerra 

c(  me  infiltrasse  o  valor  que   me  has  roubado 

<(  Escuta,  o'  virgem  dos  chrisuios  formosa. 

u  Odeio  tanto  aos  teos,  como  te  adoro  ; 

((  mas  queiras  tu  ser  minha,  que  eu  prometto 

(c  vencer   por  1»o  amor  meo  ódio  antigo, 

<(  trocar  a  maça  do  poder  por  ferros, 

«  e  sor,  por  te  gozar,  oseravo  d'elles.  » 

Esta  magnificência,  este  primor  comprehemlo  eu 
como  o  echo  da  paixão  sumptuosa  do  selvagem.  Esta, 
sim,  se  não  foi,  presume-se  que  poderia  ser  a  verdadeira 
poesia  brazileira.  As  sensações  e  as  idéas,  os  estimulou 
altivos  como  o  coraçílo,  que  se  expandia  nas  luctas 
eternas,  que  as  eterntis  solidões  ainda  mais  solemnes  e 


XXVII  105 

majestosas  faziam,  têm  'aestas  suavíssimas,  sem  dei- 
xarem de  ser  seguras  e  másculas  vozes,  um  echo  fiel  e 
intimo,  que  vai  coando  na  alma.  O  selvagrem  tupy, 
victima  da  paixão  como  soe  brotar  en;  ânimos  de  tal 
têmpera,  ou  fala  assim,  ou  não  fala. 

Quem  ha  ahi  que  nao  conheça  a  poe.sia  intitulada  — 
Leilo  de  folhas  verdes — do  mesmo  inspirado  poeta  ? 
Aquella  viração  da  noite,  aquelle  rumorejar  do  bosque, 
a  mangueira  altiva,  a  flor  do  tamarindo,  o  doce  aroma 
do  bogari,  valles  e  montes,  lago  e  terra,  a  arasoya,  a 
forisa  da  manha,  tudo  nos  fala  da  natureza  virgem,  e 
dos  «  rendes  vous  no  mato,  tão  simples  e  prosaicos  em 
si  mesmos,  mas  que  não  obstante  deram  assumpto  a 
uma  das  mais  bellas  e  graciosas  composições  do  Sr.  G. 
Dias,  no  dizer  de  J.  F.  Lisboa.  O  poeta  tira  da  paleta 
onde  guarda  as  mimosas  cores  da  sua  elegante  phan- 
tasia,as  mais  appropriadas  ao  deâenh(>,e  combinando-as 
com  as  ameníssimas  galas  da  natureza,  entretece  o 
sendal  de  variegadas  illusOes  com  que  incobre  o  fundo 
material,  e  quiçá  abjecto  do  motivo.  O  leitor  haure, 
como  ura  deleite,esses  esplêndidos  versos,  sabe  o  facto 
que  elles  decantam,  facto  em  si  mesmo  simples  e  pro- 
saico^ e  nem  uma  palavra  sequer  lhe  vem  estremecer  a 
placidez  d'esse  véo  de  decência  e  de  poesia,  que  se  di- 
ria cobrir  o  puro  leito  da  inaocencia.  E  comtudo  não 
ha  exagtiração,  o  mínimo  desvaire  no  quadro.  As  cores 
são  vivazes,  a  pintui*a  é  verosímil, 

O  contrário  se  dá  na  Iracema,  O  estylo  em  geral 
pecca  por  inchado,  por  alambicado.  As  imagens  suc- 
cedein-se,  atropellam-se.  Ha  um  esbanjamento  de  ima- 
ginação, quo,  desdíí  a  primeira  vista,  se  nota  que  está 
muito  longe  de  approximar-se  da  verdade;  para  que  os 
personagens  p^desseru  falar  assim,  n'essa  perenne  fi- 
gura, fura  preciso  suppor  *nílles  o  talento,  e  talvez  a 
cultura  do  próprio  auctor,  tão  ci^toso  e  trabalhado  se 
conhecc'  ter  sido  aquelle  arranjo  ostentoso.  De  repente, 
porém,  o  que  succede,  para  ainda  mais  desabonar  o 
pincel  do  artista '?  O  artefacto  de  roupagens  supérfluas 
contrahe-í^e,  e  desnuda  em  plena  luz  a  mais  deslavada 
materiali.lade.  Exemplo  : 

Abro  o  poemiv  na  pag.  71.  Martim  tem  passado  a 
primeira  noite  com  a  índia  na  cabana  de  Araken.  Ape- 
zar  de  ter  o  moço  u  inchido  sua  alma  com  o  nome  e  a 
veneração  do  t-eo   Deus — Christo  !   Chriato  !  »   ( como 


106  XXVII 

diz  o  auctor  )  o  seo  Deus  n&o  o  preservou  de  commet- 
ter  a  vilania  (  que  a  foi )  na  «  caoana  hospedeira,  » 

Depois  de  ter  o  auctor  contado  o  tal  infortúnio  da 
moça,  que  da  noite  para  o  dia  deixara  de  ser  digna  de 
guardar  os  sonhos  da  jurema  e  de  merecer  os  afféctos  e 
as  considerações  do  seo  velho  pae,  com  que  chave  de 
ouro  achas  que  se  sairia  o  auctor  para  fechar  este  pri- 
moroso capitulo  ?  Ouve  : 

«  As  dguas  do  rio  depuraram  o  corpo  consto  da  recente 
esposa  I  (  Sao  textuaes. ) 

Considera,  meo  amigo,  que  o  auctor  despendeu  uma 
nota  inteira,  apag.  169,  em  justificar  a  denominação 
de — Acaraú — que  deu  ao  rio — Acaracú -- áizenáo  ter 
a  usado  alli  da  liberdade  hcraciana.  com  o  fim  de  evi- 
tar em  uma  obra  litterària,  obra  de  gosto  e  artlstica^nm 
som  áspero  e  ingrato. 

Que  contradicçao  flagrante  é  esta?!  No  trecho  ci- 
tado, não  ha  só  a  aspereza  e  ingratidão  de  um  som  ;  ha 
um  período  inteiro,  offerecendo  a.>  espirito  do  leitor 
uma  idéa  vil,  expressa  por  palavras  indecentes:  depois 
da  baixeza,  a  india  foi  tomar  banho  no  rio  para  ncar 
limpa. 

Como  isso  é  de  gosto  e  de  arte  !  E  sobretudo,  que 
fina  e  edificante  poesia  ! 

Nao  posso  mais  por  hoje. 

Teo  amigo  certo 


Sóptima  cart:a.  d.e  Oinoinnato  a  Sempronio  : 

Rio,  15  de  dezembro  1871. 

Talentoso  amigo. 

Onde  estávamos  nós  ?  Ah,  já  me  lembro ;  no  Ttxt. 
Admirámos  os  mil  modos  interessantes  empregados 
para  activar  a  vendfll  do  livro  monumental,  tao  supe- 
rior a  qualquer  outra  producçao  como  o  til  o  é  ás  pa- 
lavras a  que  se  superpõe.  Interrogava-ire  eu  a  mim 
mesmo  sobre  a  explicação  d'este  apparente  puff« 
quando  me  chega  ás  m&os  uma  epistola,  que  esclarf  ee 
tudo,  e  não  posso  deixar  de  a  transcrever.  Resa  ella 
assim : 

«  Sr.  Cincinnato. —  De  pouco  se  admira  Vm ;  e  a 
sua  admiração  cessará  de  todo,   quando  souber  coma 


XXVII  107 

as  cousas  correram.  O  nobre  auctor  do  Til  adora  afama, 
a  glória,  e  a  pátria,  mas  dá  n&o  menor  apreço  a  certa 
cousa  tangivei,  com  que  se  compram  os  melões.  Foi  a 
glória  que  o  fez  passar  de  liberal  para  conservador, 
em  qualidade  de  consultor.  Foi  a  glória,  que  o  fez 
negociar  com  a  empresa  do  Diário  do  Aio,  exigindo  a 
troca  de  uns  papelinhos  por  moeda  bem  met&llica. 
Foi  a  glória,  que  o  fez  organizar  outra  folha,  com 
gordos  estipândios  para  casa.  E  a  glória,  que  a  tantos 
sacrifícios  taes  o  tem  condemnado,  é  sempre  o  seo 
pharol  nas  costas  da  litteratura.  Parece  pois  que  a 
Redacção  da  República  ahi  caiu  'num  laço  bem  ar- 
mado. Acceitou  um  contracto  desint&ressacíOj  em  que 
o  glorioso  neólogo  accedeu  a  dar  gratuitamente  o  seo 

Jortentoso  manuscripto,  apenas  debaixo  doestas  mo- 
estas  condições  .*  —  Tirar-se  a  obra  em  volume,  e 
receber  d'este  2000  exemplares  ;  ir  logo  à  porta  fron- 
teira receber  por  cada  um  a  900  rs.,  e  insaccar  assim 
gloriosamente  uma  continha  surda,  e  muito  bem 
ganha,  de  Rs.  1:800S000  (  Quem  de  tao  gordas  lettras 
tamanho  lucro  haja  tirado,  nao  conhece  este  Império  ; 
e  ainda  ha  'nelle  quem  lhe  conteste  a  glória !  ).  Dà-se 
por  assentado  que  os  Redactores  compraram  nabos 
em  sacco,  e  assim  o  creio :  sejam  boas  ou  más  as 
doctrinas  por  esses  mancebos  apregoadas,  ninguém 
lhes  negará  talento,  ou  supporá  possivel  que  elles 
acceitassem  similhante  embroglio  para  as  suas  colum- 
nas,  se  primeiro  o  tivessem  passado  pelos  olhos.  Foi 
um  fiasco  abominável.  No  final  do  capitulo  15  da  obra, 

Íue  bem  pôde  imprimir-se  em  15  pernas,  pois  saiu  em 
5  pequenos  folhetins,  já  se  lâ  fim  do  primeiro  volume. 
Todas  estas  tricas  sao  da  eschola  do  Dr.  Carlosbach. 
Seja  porém  como  for,  ja  se  comprehendem  as  reciprocas 
barretadas:  —  O  Sr.  Alencar  ao  Jornal:  Esta  folha  é 
magnifica—  O  Jornal  ao  Sr.  AJj^ncar :  Este  til,  e  este 
senhor  sao  magníficos.  Sao  os  dous  leigos  a  darem 
Reverendíssima  um  ao  outro.  Um  agradece  os  2000 
exemplares ;  outro  quer  desforrar-se,  angariando  2000 
dous  vinténs.  Tudo  é  glória,  patriotismo,  indepen- 
dência, desinteressa^  e  amor  da  pátria » 

A  cousa  ia  continuando  sempre  na  mesma  afínaç&o ; 
mas  como  eu  nao  creio  absolutamente  nadada  conteúdo 
da  tal  missiva,  permaneço  na  convicção  de  que  o  ex- 
clusivo intuito  do  reformador-reitor  das  lettras,   foi 


carauguejar  mais  um  paaao   uo  progreaso    do  seo  re- 
gteaso...   como  dizia  o  Sr,  Vhcoude  de  Laborira. 

Ainda  uao  tive  paciência  de  passar  pelos  olhos 
senão  os  primeiros  capítulos  do  TU,  mas  ja  li  bastante 
para  adi^uirir  a  convicção  de  que  lia  mais  outras  leis 
da  physica  applicaveis  à  ordem  moral. 

Todos  sabem  que  um  corpo  que  ahi  vera  caindo 
peios  ares  nSo  percorre  espaços  pguaes  em  tempos 
eguaes;  ao  contrário,  quanto  mais  se  approxima  do 
çh5o,  mais  corre  ;  o  movimento  do  corpo  é  então  uni- 
formemente accelerado,  na  razSo  dos  quadrados  das 
distâncias.  Se  Atwood  applicasse  a  sua  iogeulios» 
màchina  aos  escriptos  de  Sénio,  faria  como  Kepler, 
estendendo  a  lei  da  órbita  eliiptica  do  planeta  Marte 
aos  outros  planetas,  e  reconheceria  na  distincta  intel- 
ligencia  do  honrado  escriplor  uma  accele ração  de  queda, 
na  razão  do  cubo  das  respectivas  distâncias.  A  deca- 
dência vai  jà  de  foz  em  fora,  e  nao  tardará  que  faça 
ralar  de  inveja  a  antigos  escriptores  da  rua  da  Úarioca, 

Parecia  recommendar  a  prudência  ao  preclaro  ro- 
mancista (  agora  que  se  Ihedesvaneceua  fama  p&nica, 
tí  que  ja  vai  sendo  coUocado  no  logar  que  lhe  compete) 
algumas  férias  de  imprensa,  ou  pelo  menos  que  se  accon- 
selhasse  com  algum  amigo  leal  que  lhe  desvendasse 
os  olhos,  ou  lhe  corrigisse  os  barbarismos,  nao  para 
reconquistara  usurpada  posição  ja  impossível,  mas 
para  nao  aggravar  mais  o  ridículo  em  que  como  es- 
cripfor  tem  irremsdinvelraente  caído.  E  todavia,  ou 
não  tem  um  amigo  que  u  desiugane,  ou  a  traiçoeira 
vaidade  lhe  faz  fechar  ouvidos  às  admoestações  des- 
interessadas. 

O  TU  nilo  parece  um  romance,  mai  uma  rebemdita! 
.Se  até  hontem  causava  pana  a  successiva  decadên- 
cia da  peuniL  de  Sénio,  hoje  produz  assombro  este 
pereuiii?  ataque  no  sei^o  commum,  revelador,  ou  do 
gniiidc  ilesprCsii  com  que  se  tracta  o  pilblico.  ou  de 
mau if e,-t íi  pL'<-aii'l>aríio  de  faculdades. 

Sctíi  que  ó  malbaratar  o  tempo,  consaííral-o  a  lao 
fulil   occu])ai:ao,   mas  pouco  tenho  qne  fazer,  e   quem 
teiii  va:;";»!',  faz   ci)lhére3.  O  tal  folhetim   e.-!tà   indubi- 
taveimi:;!!.'  nlmixo  da  critica,    porem   nao   descouvei 
collocar  um  pnurol  'neste.'!  pérfidos  escolhos  do  mar  d 
lettras.    Consagremos,  pois,    algumas   p&ginas 
inglória  tarefa. 


XXVII  109 

E'  mania  doesta  penna  a  creação.  Tudo  para  elle 
sai  do  berço,  do  nada,  para  só  viver  quando  ba- 
fejado por  seo  divino  sopro.  Caracol  da  maledicên- 
cia, baba  quanto  o  precedeu  ;  e  assim  como,  na  Re  • 
laçao  do  inferno,  Bhadamanco  sentenciava  feitos, 
assim  chama  á  sua  barra  os  clássicos,  os  puros,  o^ 
escriptores,  os  romancistas,  os  jurisconsultos,  os  es- 
tadistas, brandindo  sobre  todos  a  fera  la  cariccata. 

Já  nos  proclamou  que  havia  de  insinar  o  que  era 
a  poesia  brazileira,  a  política  brazileira,  a  jurispru- 
dência brazileira  ;  agora  diz  que  nos  insma  o  que 
seja  o  romance  brazileiro.  Conquistou  o  universal 
monopólio  de  todas  as  especialidades  !  .  .  .  .  Tem-se 
visto  d'estas  aberrações  :  contam  que  o  poeta  Accio^ 
de  tão  acanhadas  dimensões  que  orçava  por  pygmêo, 
elevou,  no  templo  das  musas,  a  sua  estátua,  repre- 
sentando-o  gigante,  e  dedicou-a  à  Eternidade. 

Nfto  é  possivel  levar  a  maior  evidência  que  tu  o 
tens  feito,  que  nada  ha  nos  romances  brazileiros  do 
Sr  Alencar  que  represente  uma  litteratura  parti- 
cular d'estas  regiões,  O  pení?amento  de  todas  as  obras 
de  imaginação,  nem  têm  pátria  nrm  parallelo  ou  me- 
ridiano. Pode-se  sentir  com  mais  ou  menos  energia, 
ser-sb  mais  ou  menos  impressionado  pela  natureza 
ambiente,  proceder  de  modo  diverso  segundo  a  edu 
caç&o  ou  grande  civilização;  mas  aíBgura-se-me  que 
o  homem  nao  varia  tanto  como  se  aíElrma,  c  que  o 
coraç&o  dos  trópicos  nílo  tem  auricsila^  nem  ven- 
trículos diflferentes  do  das  regiões  polares.  E  toda- 
via,concordo  em  que  a  poesia  dv^  cada  zoaa  possua  offere- 
cer  matéria  prima  especial  aos  respectivos  prodiictores, 
incauto  especial  aos  respectivos  consuininidores.  Ap- 
plicando  esta  regra  ao  Brazil,è  em  que  deverá  con- 
sistir a  poesia  local,  a  merecedora  d(»  monçAo,  a 
que  se  nfto  limite  a  uma  caric^iura  i;::riobil,  a  que 
commova,  instrua  o  arrebate,  a  digna  dos  applausos 
dos  intendidos  e  das  turbas? 

Parece-me  que  essa  especialidade  tem  do  compor-se 
de  muitos  element-vs:— a  reli/:''irio  dos  incclns,  com 
todos  seos  dogmas,  liíhurgiaas,  bellczjK^.  r.s(.s  e  supers- 
tições— as  tradições  f]>lles,  com  suns  história. ,  lendas 
e  mythos — a  sua  poesia  nativa,  com  seM.s  arrojos  ou 
singelezas,  com  suas  harmonias  ou  dis 'ordànoias— os 
i8eos  costumes,  com  suas  generosidades  ou  baixezas, 


110  XXVII 

dedicações  ou  vilanias— as  suas  Índoles,  com  as  com- 
petentes virtudes  ou  vícios,  dignidade  ou  servilismo — 
a  sua  nfltureza,  com  as  peculiaridades  d'ella,  com  os 
seos  pheuómenos,  as  suas  grandezas,  os  seos  rios* 
mares,  catadupas,  florestas  monumentaes,  e  o  seo  admi- 
rável reino  animal,  e  as  infindas  opulências  que  ia- 
cerra  o  seio  d'este  magaiflco  torrão.  Finalmente  cum- 
pre applicar  a  observaçFio  mais  attenta  ao  estudo  de 
quanto  a  mesma  natureza  offerecc  próprio,  ingénito,  e 
ao  de  quanto  a  raça  humana  appresenta  de  excepcio- 
nal em  seo  temperamento,  compleição,  génio,  condi- 
ção, tendências  e  história. 

Quem  nao  se  sentir  com  pulso  para  erguer  tamanho 
peso,  nao  se  ostente  creador,  nem  procure  naturalizar 
producçoes  desvairadas,  em  paiz  que  as  não  conhece 
nem  tolera.  Tudo  aquillo  demanda  muita  applicaçSo, 
cultura,  estudo,  e  não  certas  noçOes  superfíciaes,  hau- 
ridas de  outiva,  e  tão  pingues  e  gordas  que,  do  mesmo 
modo  que  nas  águas  abetumadas  do  lago  Âsphaltites, 
tudo  bóia  na  superfície,  nada  nada  até  o  fundo. 

Não  ha  neste  romance  do  Sr.  Alencar  (ao  metios  no 
que  tenho  lido)  cousa  que  justifique  a  ambiciosa  quali- 
ficação. Characteres  mal  desenhados,  pessimamente 
sustentados,  descripções  sempre  defectivas,  diálogos 
impróprios,  personagens  repugnantes,  linguagem 
muitas  vezes  abaixo  de  plebéa  (  não  só  nas  falas  postas 
em  bocca  das  figuras,  mas  frequentemente  nos  dizeres 
do  auctor],  deficiência  de  senso  moral  e  de  alcance  do 
inrêdo  magro  e  descosido,  eflFeitos  mal  preparados,  e 
perenne  artifício  impotente.  Imagina  este  e^ríptor 
que,  por  dar,  aqui  e  acolá,  os  nomes  de  umas  terras 
ou  cousas  do  Brazil,  dá  romance  brazileiro!  E'  um  ve- 
nerando achaque  do  espírito, 

Nilo  chegou  ainda  o  tempo  de  avaliarmos  o  romance 
synthelicamente,  poMue  está  no  princípio,  e  não  scei 
de  quantos  volumes  fde  15  páginasj  virá  a  compor-se. 
Conseguíutemente  o  que  posso  é  chamar  a  tua  attençSo 
para  o  chorrilho  de  bellezas  de  estylo,  de  grammática, 
de  sciencia,  e  de  vernaculidade,*^que  pulíulam  n*este 
vasto  tremedal.  £'  o  que  farei  nas  seguintes  cartas. 

Creio  que  o  coroUário  será  que  ao  nobre  mestre  con- 
viria retirar-se  da  scena  para  aprender  primeiro  o  mui- 
to que  lhe  falta,  para  poder  insinar.  Faria  bem  de 
transportar-se  para  a  sua  soledade-çharneca,  ou  para  a 


XXVII  111 

sua  Thebàida.  Da  separação  de  toda  a  sociedade  ociosa 
saíram  os  Zoroastros,  os  Orphâos,  os  Epiménides,  e 
outros  famosos  contemplativos,  que  passados  alguns 
anãos  reappareceram  cheios  de  sciencias  e  virtudes. 
Faria  bem  em  epimenizar-se. 

Portanto  para  a  outra  vez  proseguiremos  na  anâlyse 
mais  miudinha  das  façanhas  linguisticas  do  Til. 

Teo  sincero  respeitador 

ClNCINNATO. 


Bil>liosr*aplxla . 

Nunca  será  muito  quanto  dicer  a  imprensa  sobre 
um  bom  livro,  maiormente  sobre  aquelies  que  se 
destinarem  à  infância,  aos  cidadãos,  aos  mestres;  aos 
pães  de  família  .futuros. 

O  poeta  saudado  em  1862  por  toda  a  imprensa 
fluminense,  e  em  seguida  pelas  demais  do  Império, 
por  oScasiao  de  dar  à  estampa  um  volumesinho  de 
versoSfílenominado  flohks  e  fructos,  o  mancebo  a 
quem,  por  esse  tempo,  a  sympàthica,  estudiosa  e 
intelligente  sociedade  ensaios  litterabios  offerecêra 
uma  rica  penna  de  ouro,  o  talentoso  e  illustrado  Sr. 
Bruno  Seabra,  querendo  também  ser  agradável  e 
útil  aos  nossos  concidada  isinhos,  deu  à  luz  um  in- 
teressante livro,  que  lhe  dedicou,  intitulado  O  alvorge 
DA  BOA-RAZÀo.  Tcmos  à  mao  um  exemplar  da  nova 
edição  d'esse  livro,  e  posto,  no  seo  género,  nenhum, 
que  saibamos,  se  avantaje  no  accolhimento  que  me- 
receu, sendo,  immediatainente  depois  de  publicado, 
approvado  com  louvor  pelas  Directorias  de  instruc- 
^ão  pública  das  províncias  de  Minas  e  da  Bahia, 
transcrevemos  para  aqui  o  seguinte  parecer,  incerto 
n'uma  gazeta  do  Maranhão,  da  ^mmissao  composta 
de  três  membros,  nomeada  expressamente  para  sobre 
es.^c  livro    emittir  sua  opinião. 

Eil-a  : 

<t  Illm.    Sr  — Lemos   o  livrinho  que,  para  meninos, 

sob      o    titulo    ALFORGE    UA    BOA-RAZAO,     dcU    à     luZ    O 

Sr.  Bruno  Seabra,  já  bastante  conhecido  entre  nos- 
sos homens  de  lettras  por  suas  producções  poéticas 
de  subido  q^érito,  e  cujo  exemplar  com  este  resti- 
tui mos  a  V.   S. 


112  XXVIl 

E'  nossa  opinião  que  o  Alforge  da  boa-razÃo  preen- 
che bem  0  fim  a  que  mirou  seo  intelligente  e  il- 
lustrado  auctor,  que,  em  sua  preciosa  obra,  coUi- 
gindo  grande  cópia  de  preceitos  com  o  fim  de  im- 
primir no  espirito  da  infância,  como  em  branda  cera, 
os  princípios  da  moral  mais  sa,  fal-o  era  estylo  fá- 
cil e  natural,  dicção  correcta  e  clara,  nao  menos 
que  em  linguagem  pura  e  de  lei  ;  qualidades  que, 
amenizando-a,  muito  recommendam  a  obra  do  Sr. 
Seabra,  pondo-a  ao  mesmo  tempo  ao  alcance  da  com- 
prehensao  infantil    d'aquelles  a  quem   se  destina. 

Inspirado  pelo  amor  paternal,  e  com  desvelo  es- 
cripto  no  intuito  de  dispor  o  filho  para  a  felici- 
dade, incutindo-lhe  em  verde  princípios  que,  se 
'nelles  se  embeber,  necessariamente  lh'a  darão,  e 
d'elle  faraó  um  membro  utíl  à  Sociedade,  a  obra 
do  Sr.  Seabra  nao  desdiz  dos  encómios  que  lhe  têm 
sido  tributados,  e  merece  ser  admittida  nas  nos- 
sas escholas  provinciaes.  Deus  guarde  a  V.  S.  lUm. 
Sr.  Dr.  Luiz  António  Vieira  da  Silva,  Inspector  da 
Instruccao  Pública  do  Maranhão. 

Pedro  de  Sousa  Guimarães.^ 
Luiz  Carlos  Pereira  dé  Ca^stro. 
Trajano  Cândido  dos  Reis.  >* 

Transcrevemo-la  para  estas  páginas,  crendo  pres- 
tar algum  serviço  aos  pães  de  família,  indicando- 
Ihes,  por  nossa  voz,  um  livro  que,  como  bem  dice 
uma  illustre  penna  portugueza,  a  do  Sr.  Dr.  An- 
tónio Xavier  Rodrigues  Cordeiro,  como  o  Bom  ho- 
mem  Ricardo^  de  Franklin^  deve  andar  nas  mãos  de 
todas  as  creaiif^aSy  pelo  insino  que  lhes  dd^  formari' 
do-lhes  as  almas,  e  pelo  modo  porque  o  expõe^  de/et- 
tandO'lh'as.  E  tudo  vHo^  e  é  escripto  em  portuguez 
de  lei.  * 


Corte,   1871. 


Varrâo, 


Typ.  e  lith. — Imparcial— Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  A 


QUESTÕES  DO  DIA 


ISr.  28 


mo  DE  JANEIRO,'  23  DE  DEZEMBRO  DE  Iffn. 


h^^ 


Vendesse  «m  casa- dos  Srs.  E.  ãt  H.Laemmert.— Agostinho  de  Freitas  Qui- 
naràes  ãt  Comp.,  26,  rua  do  General  Gamara. —  Livraria  Académica, 
Bua  de  S.  José  n.  119 —  Largo  do  Paço  n.  C— Prevo  200  reis. 

O  !•  Tolume,  com  perto  de  400  paginas— StfOOO. 

OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR— A  IRACEMA 

Cartas  a  Oix&olni&ato) 

IV. 

Meo  amigo  : 

Para  verdadeiramente  dizer-te,  é  esta  a  vez  que  -me 
sento  com  melhor  disposição  de  conversar  sobre  a 
Iracema.  Quando  a  gente  leu  um  livro,  de  que  nfto 
gostou «atira-o  para  um  canto,  nunca  mais  pega  n'elle  ; 
as  impressões  passaram,  e  se  pretende  reexperimental-as 
e  relê  a  obra ,  é  um  íngano! 

Isto  me  acconteceu  com  a  lenda  sertaneja  de  J.  de 
Alencar,  e  admira-me  que  ella  me  tenha  já  dado  mar- 
gem a  três  epistolas,  das  quaes  algumas  crescidinhas. 

Nflo  importa.  Approveito  o  humor  e.... conversemos. 

Quando  tive  occasifto  de  ler,  em  livro  de  auctor  es- 
trangeiro, um  benigno  juízo  crítico  sobre  a  Iracêmaj 
daas  impressões  me  assaltaram  —  oppostas,  postoque 
congénitas — uma  de  prazer,  outra  de  pezar. 

Se  o  escriptor  (que  reputo  compr|ente)  se  houvesse 
limitado  a  festejar,  pura  e  simplesmente,  o  illustre  no- 
me brazileiro,  e  só  a  isso,  á  fé  te  digo  que,  na  qualidade 
de  brazileiro,  que  também  sou,  tei^me-hia  exclusiva- 
mente regozijado  com  l&o  fidalgas  finezas ;  e,  sem 
descer  a  indagar  se  seriam  em  si  justas  ou  se  filhas  de 
mera  vontade  de  fratemizar  com  o,  por  assim  dizer, 
Go-irmao  nas  lettras,  nem  mesmo  de  relance  com  ellas 
me  occuparia  na  presente  occasifto.  Sou  muito  cordato, 
6  scei  bem  até  onde  deve  ir  o  espirito  de  nacionalidade. 

Mas  nao  succedeu  assim.  D*involta  com  as  meiguices 
e  delicadezas,  prodigalizadas  a  quem  certamente  conta 


114  xxvnr 

títulos  a  attençoes  e  acato,  tópicos  se  destacam  que  ia  • 
justamente  desfavorecem  reputações  feitas,  em  que  a 
pátria  se  re^ê  com  legitimo  orguího  —  reputações  que 
j&  baixaram  da  região  dos  problemas  para  receberem  a 
consagração  prática  do  reconhecimento,  do  respeito  e 
da  admiração  nacional.  Fora  covardia  nfto  defender 
esses  numes,  sacrificados  em  bonra  de  um  idolo  que,  se 
tem  seo  valor  (o  que  ninguém  contestp],  náo  está  com- 
tudo  na  altura  de  merecer  que  se  lhe  immolem  taes 
hóstias. 

Leem-se,  por  exemplo,  'nesse  livro,  pedaços  como 
este,  tractando-se  de  Gonçalves  Dias  : 

a  Nsio  conhecendo  esse  poema  (os  Tymbiras)^  n&o 
posso  formar  juizo  sobre  eile ;  mas  outros  poemetos 
indianos,  publicados  no  volunore  de  versos  do  grande 
poeta  brazileiro,  edição  de  Leipsick,  auctorisam-me  a 
suppor  que  a  morte  ceifou  Gonçalves  Dias  antes  d^elle 
ter  inaugurado  verdadeiramente  a  litteratura  nacional 
do  Brazil,  e  que  á  Iracema  do  Sr.  José  de  Alencar  per- 
tence a  honra  de  ter  dado  o  primeiro  passo  affoito  na 
selva  intrincada  e  magnificente  das  velhas  tradições.)» 

O  Sr.  Pinheiro  Chagas  já  tem  dicto  antes  que  «  Qon* 
çalves  Dias  e  Magalhães  sulcaram  o  formoso  lago 
d'uma  poesia  estranha  ás  regras  e  aos  hábitos  europêos, 
mas  como  o  cysne  alvejante  que  só  procura  semear  de 
pérolas  a  cândida  plumagem,  e  que  receia  inlodar  no 
vaso  do  fundo  o  collo  nítido  e  correctamente  airoso,  a 
aza  branca  e  lisa,  a  cabeça  graciosa  e  fina.  '> 

Tem  dicto  egualmente  que  «  de^^de  o  Caramurú  de 
Sancta  Bita  Durão,  o.«;  poetas  brazileiros  têem  entrevisto 
a  mina  riquíssima,  d'onde  podem  arrancar  diamantes 
litterários,  tão  fulgurantes  como  as  pedras  preciosas 
que  resplandecem  por  entre  as  areias  de  Tejuco,  mas  até 
agora  irenhum  se  ynpregou  bastante  'nessa  inspiração 
selvática.»  E  conclue  dizendo  que  «  a  Iracema  está 
destinada  a  lançar  no  Brazil  as  bases  d*uma  littera- 
tura verdadeiramente  nacional. » 

E'  desculpável,  'num  escriptor  estrangeiro  (postoque 
de  talento  seductor,  e  postoque  já  tenha  pisado,  segundo 
cremos,  n'estas  terras  brazueiras,  e  nos  haja  brindado 
com  a  sua  Virgem  Guaraciaba)  cair  em  inganos,  que 
bem  explicam  quanto  ainda  entre  próprios  irmãos  está 
desconhecida  no  seo  justo  valor  a  nossa  nascente,  mas> 
já  accentuada  litteratura.  Cumpre,  porém,  declarar 
que  o  ingano  do  Sr.  Pinheiro  Chagas  é  evidente,  é  de- 


xxvni  115 

vido  talvez  a  impressões  instantâneas,  deixadas  por 
uma  perfunctória  leitura  da  Carta  com  que  J.  de 
Alencar  fecha  o  seo  livro. 

Colhe-se  com  efFeito  do  dizer  do  Sr.  P.  Chagas  que 
os  talentos,  que  precederam  J.  de  Alenrnr  v-y  p\iiV>rt)- 
çao  da  mina,  cousa  nenhuma  apanUaram  uu  a^cuão  ia- 
significancias,  'nesses  campos  esmaltados  de  incantado- 
rasgallas, — 'nessas  selvas  solemnes,  regiOes  immarces- 
siveís  da  poesia  mais  melanchólica  e  mais  pathética — 
'nessas  montanhas  majestosas,  e  nesses  valles  somhrios 
onde  ainda  se  parecem  ouvir  echos  de  uma  raça  de 
Atlantes —  'nesses  rios  gigantôos,  que  uma  vegetação 
descommunal  horda  e  veste  de  eterno  viço,  de  louçania 
perenne. 

Parece  que  tudo  estava  ainda  por  fazer,  que  a  poesia 
dormia  na  immensidade  inexplorada  dos  ôrmos,  ou  que, 
assim  a  modo  de  jaguar  ou  de  ophidio  venenoso  se 
recolhia  em  antros  profundos, 'd'onde  os  antecessores  de 
J.  de  Alencar  só  a  tinham  podido  exhumar  completa- 
mente desfigurada  ou  morta,  ou  antes  onde  nao  haviam 
penetrado.  Bom  é  comtudo  observar  que  alguns  d'esses 
primeiros  exploradores,  a  quem  tão  peremptoriamente 
se  recusam  sagradas  direitos  adquiridos  e  reconheci- 
dos, tiveram,  mais  de  uma  vez,  occasiao  de  se  acharem 
em  immediato  contacto  com  a  natureza  virgem,  de 
contemplal-a  em  pessoa,  de  perscrutar  os  seos  augustos 
mystérios  e  de  receber  d'ella  directos  influxos  e  inspi- 
rações. Póde-se  acaso  dizer  outro  tanto  de  José  de 
Alencar,  que,  como  é  sabido,  arrancou  essa  pretensa 
poesia  brazileira  do  fundo  da  sua  phantasia  palaciana, 
6  lhe  deu  forma  sobre  a  sua  mesa  de  cortezao  ¥ 

Se  o  symp&thico  escriptor  portuguez  conhecesse  me- 
lhor as  cousas  de  nossa  terra;  se  soubesse  que,  ao 
passo  que  Gonçalves  Dias  percorria^o  Brazil  do  sul  ao 
norte,  penetrou  nas  intranhas  das  tribus  do  Ceará,  do 
Maranhfto,  do  Pará,  do  Amazonas,  atravessando  rios 
caudalosos,  margens  ínvias,  estudando  costumes  e 
dialectos  vários,  colhendo  mil  noticias  e  tradições,  José 
de  Alencar  escrevia  folhetins  impregnados  de  essências 
de  salões,  frequentava  os  passatempos  da  corte,  sonhava 
louras  visOes  de  luvas  de  pellica  e  de  crinoline  na  rua 
do  Ouvidor  ou  no  Carceller,  'numa  palavra  hauria  a 
vida  puramente  de  cidade,  de  filigranas,  de  excitações 
procuradas,  de  estimulantes  fáceis  e  á  mfto ;  se  soubesse 
que,  á  proporção  que  elle  ruminava,  talvez  entre  uma 


116  XXVIII 

chávena  de  café  e  um  delicioso  havaim,  sob  a  abóbada 
caricata  de  um  kiosoue  artificial,  a  poesia  também  arti- 
ficial e  brunidinha  aa  Iracema^  Gonçalves  Dias  combi- 
nava na  sua  grande  imaginaçfto,  á  sombra  de  um  gi- 
gante da  floresta,  ou  &  mai^gem  inundada  de  emanações 
aquáticas,  ou  no  píncaro  de  uma  serra  a  topetar  com  a 
immensidade,  a  poesia  musculosa  e  farta,  que  se  per- 
cebe palpitar  natural,  vehemente  e  livre  do  menor  ren- 
cilho  nas  páginas  immortaes  do  Y-juca-pirama  e  dos 
Tymbiras  ;  se  soubesse,  finalmente  qual  o  juízo  incon- 
trastavel  da  universalidade  brazileira  'neste  poncto, 
certo  nao  teria  aventurado  idéas  que  nSo  açnai^^, 
porque  nao  podiam  nem  deviam  achar,  a  menor  guarida 
entre  nós. 

Se  houve  já  alguma  obra  de  J.  de  Alencar,  a  cujo 
respeito  se  nSlo  demorasse  a  manifestar-se,  sem  hesita- 
ção, o  juízo  público,  está  certamente  em  tal  caso  a 
iracétna  ;  e  esse  juízo  nao  lhe  foi  fevoravel. 

Segundo  jâ  tive  occasiao  de  observar  'numa  das  pre- 
cedentes cartas,  o  appareciínento  da  lenda  sertaneja, 
longe  de  corresponaer  á  espectativa  suscitada  pelo 
Guarany^  do  mesmo  auctor,  fêl-^  despenhar^-se  na  mais 
amarga  e  rude  decepç&o.  Geral  frieza  a  recebeu,  e 
quer-me  até  parecer  que  appreciaçffes  auctorizadas  lhe 
recusaram  os  direitos,  que  também  agora  lhe  contesto, 
de  filha  da  terra. 

Nem  era  de  esperar  o  contrário,  porque  a  poesia  bra- 
zileira estava  já  entfto  verdadeiramente  inaugurada  no 
paiz.  Nem  é  outra  senEo  a  que  nos  deixaram  esplen- 
didamente insaiada  Basílio  da  Gama  e  Sancta  Rita 
Durão,  e  que  deve  ao  portentoso  pineel  de  Gonçalves 
Dias  os  contornos  accordes,  os  toques  magistraes,  as 
linhas  firmes,  as  cores  feiticeiras  e  primorosas  com  que 
se  arreia,  'numa  piilavra  as  sólidas  e  inabaláveis  bases 
em  que  hoje  a  vemos  definitivamente  firmada.  O  que 
J.  de  Alencar  nos  deu  na  sua  Iracema  foi  uma  poesia, 
de  sua  invençfto,  como  de  sua  invenção  nos  tem  querido 
dar  uma  língua,  uma  natureza  humana  e  uma  natu- 
reza inanimada  ao  avesso.  A  poesiíBL  de  um  povo  nfto 
se  inventa  a  mero  arbítrio,  e  dizeiàos  que  o  typo  da 
Iracema  é  de  pura  ficção  do  auctor,  porque  elle  nJlo  se 
apoia  nem  na  lettra  ou  espírito  da  história,  nem  nos 
modelos  e  estudos  dos  mestres. 

Fique  sabendo  o  Sr.  P.  Chagas  que  no  Brazil  n9o  se 
conhece  outro  padr&o  de  litteratura  indiana  com  foros 


XXVIII  117 

para   interpretar  fielmente  o  character  local,    senão 
aq\ielle  que  o  paiz  deve  ao  prestimoso  talento  do  Dias, 

£sà;e  typo  j&  recebeu  o  sagrado  baptismo  das  popula- 
ções e  dos  intendidos,  e  é  o  único  destinado  para 
perdurar  e  transmíttír-se  &  posteridade,  porque  foi 
bebido  nas  fontes  autbênticas  do  estudo,  mais  conscien- 
temente feito,  do  nosso  aborígene.  Pois  bem  :  d'esse 
typo  é  tao  essencialmente  diversa  a  Iracema,  quanto  a 
^ua  do  vinho. 

Explica-se  o  desacerto  de  J.  de  Alencar^  emprehen- 
dendo  contrapor  à  verdade  a  ficç&o  da  sua  phantasia. 

Ha  organísaçOes  que  h  m&xima  generosidade  preju- 
dica primeiro  do  que  beneficia.  Guarany  tinha  visto 
a  luz,  e  tendo  só  direito  a  ser  festejado  na  razão  de  10, 
foi-o  na  razão  de  100.  Ora,  o  espirito  d'esse  auctor  nfto 
é  d'aquelles  que  as  mais  exaggeradas  ovaçOes  não  des- 
pojam nunca  da  majestosa  calma  da  consciência,  o 
brilhante  realce  das  grandes  organisaçOes  moraes. 
Sopitada  a  çhamma  intima,  a  pretenção  mais  desbra- 
gada tomou  o  logar  &  razão  e  ao  bom  senso.  O  homem 
reputou-se  logo  com  suficiente  auctoridade  e  cabedaes 
para  demolir  o  que  a  edade  e  o  génio  tinham  custosa- 
mente construido.  Mas  demolir^  sem  ao  mesmo  tempo 
edificar,  não  era  decente  nem  plausivel.  £  depois  era 
preciso,  antes  de  tudo,  mostrar  que  o  novo  estava  muito 
acima  dos  velhos  archi tectos  ;  d'ahi  a  idéa  de  inaugu- 
rar eschola,  que  transmittisse  á  posteridade  o  nome  do 
seo  fundador.  E  então,  bom  Cincinnato  ?  Não  podia, 
como  vês,  ser  mais  modesta  a  aspiração.  Loucura! 
Nem  ao  menos  reflectiu  qssq  homem  que  o  seo  Guarany 
tinha  principalmente  agradado,  porque  mostrava  certo 
Hccõrdo  com  a  conhecida  feição  histórica  e  tradicional 
do  aborígene  brazilico ! 

J.  de  Alencar  escreveu  eutão  as  suas  célebres  cartai 
:&ohre  a  Confederação  dos  Tamoyos.^k'  sombra  dos  folhe- 
tins, e  principalmente  do  Guarani/  (que  se  não  foi  pu- 
blicado antes  das  cartas^  o  foi  de  certo,  se  bem  me  re- 
cordo, simultaneamente  comellas),  fizeram  carreira  e, 
comoé  natural,  visto  que  ninguém  quiz  antepor-se-lhe, 
novos  créditos  vieram  recommendar  o  talento  do  espe- 
rançoso escriptor. 

Suppondo  este,  por  illusão  de  óptica  da  sua  vaidade, 
haver  suterrado  o  nome,  consolidado  jà,  do  poeta  Gon- 
çalves de  Magalhães,  com  que  insânia  presumes  tu 
que  seria  agora  tentado  ?  Presta  attençfio  ! 


118  XXVIIf 

Barreira  ingente  interrompia  o  tõo  àquellas  j&  des- 
comedidas aud&cias.  Essa  oarreira  era  o  nome  pres- 
tigioso do  Dias — o  pae  nunca  assaz  prancteado  da  poe- 
sia brazileira,  como  Cullen  Bryant,  Waldo  Emerson 
e  Henry  Longfellow  o  haviam  sido  da  poesia  da  Amé- 
rica do  Norte*-  do  Dias,  que  conquista  elogios  <x  nfio 
incommendados  »  de  A.  Herculano,  e  que  Wolff  ap- 
plaude. 

Pois  bem,  meo  amigo.  Não  ha  respeito,  nao  ha  con- 
sideração, que  o  detenha.  Eil-o  que  se  arroja  contra  o 
colosso  formado,  gõtta  a  gôtta,  e  dia  a  dia — stalactite 
inaccessivel  e  sublime  do  génio,  consolidado  no  con- 
ceito de  mais  de  uma  naç&o  ;  somente  o  assalto  é  diri- 
gido com  mais  gcito,  estratégia  e  arte :  em  vez  de 
simples  critica  offerece  uma  obra  com  todas  as  seduc- 
çOes  da  novidade;  em  logar  de  modos  desabridos,  prin- 
cipia dizendo  que  «  Gonçalves  Dias  é  o  poeta  nacional 
por  excellência,  e  ninguém  lhe  disputa  o  conhecimento 
da  natureza  brazileira  e  dos  costumes  selvagens  »  ape- 
zar  de  concluir,  declarando  que  «  entretanto  os  selva- 
gens do  seo  poema  f  os  Tymbiras  )  falam  uma  lingua- 
gem clássica  e  exprimem  idéas  próprias  do  homem  ci- 
vilizado, e  que  n&o  é  verosimil  tivessem  no  estado  da 
natureza.  »  Ora  dize-me  :  que  poeta  nacional  por  ex- 
cellência  é  esse;  que  conhecimento  da  natureza  brazi- 
leira e  dos  costumes  selvagens  pôde  fazer  crer  que  tem 
aquelle  que  faz  dos  seos  selvagens  n&o  só  homens  ci- 
vilizados, mas  até  falando  linguagem  clássica  ?  Nao 
se  vê  que  a  proposição  inicial  só  teve  por  fím  illudir  a 
agrura,  sem  diminuir-lhe  a  intensidade,  da  proposiç&o 
final  ?  Que  o  pomo  contém  verme  corrosivo,  e  a  flor 
veneno  mortífero  ?  Opportunamente  tocaremos  *ne8se 
presumido  classismo  e  civilização  dos  selvagens  dos 
Tymbiras.  ^ 

Em  resumo  :  eis  ani  duas  importantes  auctoridades, 
duas  grandes  columnas  do  nosso  modesto  templo  de 
lettra»,  victimas  do  c^^martello  do  verdadeiro  icono- 
clasta dos  nossos  primeiros  numes.  Ah  !  n&o  s&o  so- 
mente estes  dous  sustentáculos,  que  padecem  golpes 
de  destruiç&o  cruel  :  J.  de  Alencar  tem  o  descõco  de 
dizer,  mediante  aquelle  seo  eslylo  insidioso,  que  appa- 
renta  o  melhor  desinteresse  e  cordura,  mas  em  reali- 
dade perigoso  e  malfazejo,  que  das  «  producçoes  que 
se  publicavam  sobre  o  thema  indígena,  nenhuma  reo- 
lizava  a  poesia  nacional^  tal  como  lhe  apparecia  no  es- 


XXVIII  119 

tudo  da  vida  selvagem  dos  autochthones  brazileiros  ; 
que  muitos  peccavam  pelo  abuso  dos  termos  indígenas 
accumulados  uns  sobre  outros  (havemos  de  ver  se  elle 
nSo  caiu  ^neste  abuso  ],  o  que  não  só  quebrava  a  har- 
monia da  lingua  portugueza  (quem  defende  a  língua!) 
como  perturbava  a  intelligência  do  texto  ;  que  outras 
eram  primorosas  no  estylo  e  ricas  de  bellas  imagens, 

r)rém  certa  rudez  ingénua  de  pensamento  e  expressão 
e  H,  Iracema  satisfez  estas  condições?^  que  devia  ser  a 
linguagem  dos  indígenas,  nao  se  incontrava  alli.  » 
Logo,  meo  amigo,  a  aggressao  não  se  circumscreveu  a 
Gonçalves  Dias  e  a  Gonçalves  de  Magalhães :  Porto 
Alegre,  Basílio  da  Gama,  Fr.  Sancta  Rita  e  todos 
ouautos  (passados  e  modernos)  tinham  escripto  sobre  o 
thema  iudígena,  a  todos  esses  se  dirigem  os  projectís 
d'aquella  màchina  de  arremesso,  forjada  pela  mais 
descommunal  philáucia  litter&ria  de  que  haja  noticia 
entre  nós. 

Chegámos  emfim  a  este  extremo  :  antes  de  J.  de 
Alencar,  ninguém!  O  bello  nacional  estava  ainda  in- 
colhido  no  õvo,  e  o  ôvo  escondido,  como  em  ninho 
enorme,  dentro  do  regaço  opaco  da  natureza. 

Os  mais  beneméritos  e  qualificados  ingenhos  tinham 
até  então  doudejado  por  fora  da  colmeia  immensa,  e 
nada  de  atinar  com  a  intrada  e  extrahir  algumas  gõttas 
de  mel  virgem.  O  próprio  Sr.  Pinheiro  Chagas  diz 
que  haviam  sulcado  o  lago  «  como  o  cysne  alvejante, 
que  só  procura  semear  de  pérolas  a  cândida  plumagem, 
6  que  receia  inlodar  na  vasa  do  fundo  o  collo  nítido.  » 

Moderno  Colombo,  J.  de  Alencar,  depois  do  seo  mer- 
gulho nas  intranhas  dormentes  e  até  então  impene- 
tradas  do  desconhecido,  assoma  á  superfície,  mostran-- 
do-nos  um  mundo,  ou  uma  maravilha.  As  pàllidas 
sombras  dos  nossos  avós  são  evocadas  aos  túmulos  das 
edades  pelo  boato,  pela  divulgarão  do  milagre  ;  e  re- 
surgem  infiadas  de  vergonha  as  illustres  figuras  dos 
nossos  primeiros  épicos,que  a  inquietitude  do  ciúme  im- 

Selle,  como  trémulas  páginas  de  névuas  para  o  logar 
a  exhibição. 

O  que  é  que  vedes,  vultos  venerandos  ?  A  exemplo 
daa  miragens  do  deserto,  o  sonho  dissipou-se  e  esvae- 
ceu-se.  Ah  I  foi  tudo  de  certo  um  sonho,  ou  um  delírio 
de  louca  phantasia.  Perdoae  a  profanação,  que  foi 
imprudentemente  despertar-vos  dos  vossos  jazigos  secu- 


120  XXVIII 

lares.  Foi  tudo  uma  farça,  e  eterno  perd&o  tos  peço 
para  quem  a  desempenhou. 

Que  novo  portento  de  estatuária  nos  offerecia  J.  de 
Alencar,  em  substituição  ás  columnas  camartelladas, 
mas  nao  alluidas  do  templo?  Vê  bem,  meo  amigo.  O 
<c  mergulhador  de  Schiller  »  tinha-nos  trazido,  nto 

Sérolas  ou  coraes  raros,  mas  justamente  a  vasa  inloda- 
õra  do  fundo,  que  G.  Dias,  Magalhães,  Porto  Alegre  e 
outros  tiveram  a  fidalguia  de  nSLo  levantar  para  nos 
pouparem  um  triste  presente.  O  que  se  vô  na  Iracema 
e  uma  composiç&o  infezada  e  anémica,  posto  que  con- 
gesta  de  serosidades  e  flatulências,  para  que  n&o  have- 
ria remédio,  a  n&o  ser  a  morte.  É  na  verdade  tfto 
depressa  nasceu  como  depressa  morreu.  A  tentativa 
abortou.  O  õvo  estava  goro.  Nao  fosse  elle  posto  por 
«  aquelle  applaudido  talento  »  e  já  d'elle  n&o  restaria 
nem  mais  a  dilacerada  casca. 

O  escriptor  portuguez,  referindo-se  á  Iracema^  ao- 
code . 

u  Pela  primeira  vez  apparecem  os  índios  falando  a 
sua  linguagem  colorida  e  ardente ;  pela  primeira  vez 
se  imprime  fundamente  o  cunho  nacional  ^num  livro 
brazileiro ;  pela  primeira  vez  sao  descriptos  os  selva- 
gens com  aquelles  toques  delicados,  que  dao  realce  tao 
vivo  aos  typos  do  romancista  da  América  do  Norte.  » 

Nao,  peço  vénia,  nao  ! 

Pela  primeira  vez  apparecem  os  índios  falando  uma 
linguagem  banzeira  e  esmorecida ;  pela  primeira  vez 
sao  descriptos  os  selvagens  com  toques,  com  tinctas  da 
affectaçao  mais  visível ,  mas  tmctas  lyinphdticas, 
quando  o  selvagem  é  simples  e  singelo  na  sua  majt^a- 
tosa  grandeza. 

Falta-lhes  o  colorido  próprio,  expressivo,  interes- 
sante. O  que  aquella  linguagem  tem,  sfto  demasias  de 
arte.  Debaixo  da  agglomeraçao  fastidiosa  de  compara- 
ções, as  mais  das  vSses  fora  de  villa  e  termo,  e  que 
haviam  de  ter  custado  bom  trabalho  ao  próprio  auctor, 
a  natureza  subverteu-se  como  'num  abysmo.  A  palli- 
dez  visivelmente  se  mostra  atravéz  das  cores  postiças, 
fugaces  e  precárias. 

O  que  me  parece  que  se  devia  achar  na  Iracáma^ 
para  que  se  podesse  dizer  que  'nella  estava  funda- 
mente impresso  o  cunho  nacional,  era  ruído  de  grandes 
embates,  repercuss&o  de  magnânimas  acçOes  e  geotile* 
zas,  tanto  no  amor  como  em  tudo. 


XXVIII  131 

Quizéramos  ver  ahí  o  character  do  índio,  primando 
na  heroicidade  e  no  valor  tradicional. 

Quizéramos  se  nos  deparassem  scenas  pathéticas,  e 
nao  episódios  grutêscos  e  abaixo  do  nivel  de  uma  raça 
que  qualidades  verdadeiramente  superiores  tornaram 
legendária. 

Quizéramos  ver  travar-se  a  paixão  com  força  ingente, 
o  sentimento  (principal  motor  da  acção]  rasgar  situa- 
ções grandiosas,  surprendentes  e  dramáticas  ;  mas  só 
ach&ioas  iutcecho.^  triviaes  e  insignificantes,  perfeitas 
bagatellas,  que  admira  como  tennam  preoccupado  um 
instante  a  phantasia  de  um  espirito  elevado. 

Quizéramos  que  o  modo  de  expressar  essas  luctas, 
essas  energias  profundas,  esses  thesouros  insondáveis 
de  affectos  e  de  smisaçOes  bárbaras,  fosse  impetuoso  e 
arrogante,  correspondendo  ás  ousadias  intimas,  e  tra- 
duzindo cabalmente  as  expansões  abruptas.  Mais  uma 
vez  o  diremos :  J.  de  Alencar  nao  tem  pulso  para  es- 
crever a  epopéa. 

A  linguagem  dos  gigantes  das  selvas  primitivas  é 
qual  se  fora  a  de  degenerados  pygmêos — pállida  e  fria, 
gem  alentos,  nem  vibraç&o. 

O  amor  da  indía  ó  um  amor  çhorao,  enervado, 
piegas.  A  sua  compleição  physiológica  tem  alguma 
cousa  de  inane,  que  repugna  á  organisação  desabro- 
chada em  pleno  trópico,  recebendo  fluidos  de  todas  as 
abundantes  fontes  damaissuberba  natureza  do  mundo. 
Se  quiz  modelar  a  Iracema  pela  Ato/a,  errou  em  claro: 
os  sentimentos  modestos,  por  assim  dizer  impalpáveis, 
d'esta  última  s&o  d&vidos  á  influencia  poderosa  do 
christianismo,  e  por  tanto  diversissimos  no  character 
e  até  no  seo  ser  bravio,  ardendo  perenncmente  em  todas 
as  çhammas  brutaes  da  natureza. 

Passando  do  amor  ás  batalhas,,  sancto  Deus  !  Aqui 
o  desmoronamento  do  génio  indiglna  é  completo,  des- 
perta compaixão. 

O  guerreiro  é  poltrão  e  moUe.  Está  ausente  a  inves- 
tida eloquente  do  animo,  que  tanto  o  recommenda  e 
particulariza  sempre  que  pOe  em  contribuição  o  seo 
brio  e  as  suas  glórias. 

Hei  de  mostrar  bem  ao  vivo  o  que  agora  apenas  de- 
nuncio. 

£  'neste  gosto  tudo  vai.  Que  amostra  de  poema  épico 
é  estai! 


122  XXVIII 

O  Sr.  Pinheiro  Chagas  ha  de  afinal  convir  comigo 
em  que,  apezar  do  seo  extenso  olhar  critico»  andou 
errado. 

Pois  é  pena:  faço  o  mais  vantajoso  conceito  do  seo- 
elegante  talento. 

Mil  desculpas  por  hoje. 

E  até  amanha. 

Teo  sempre  com  todas  as  veras 


á/e^<Uu.. 


1/  CARTA  DE  PLAUTO  A  CINCINNATO 

Rio,  20  de  Dezembro. 

Caro  amigo. 

Em  resposta  á  tua  última  carta,  em  que  me  per- 
guntas o  que  ha  de  novo  pelos  theatros  da  cõrce,  res- 
pondo com  esta,  que  terá  apenas  o  merecimento...  de 
te  nao  roubar  muito  tempo. 

Intrãmos  no  tempo  das  comédias-mègicas.Shakspeare 
pede  a  demissão — Molière retira-se  à  vida  íntima  !.... 
Vêem  substituil-os  nas  suas  funcçoes  Perrault  e  M"* 
D' Aulnoyl... 

Os  emprezários  convenceram-se, — e,  quanto  a  mira, 
nao  se  inganam, — de  que  só  os  contos  da  carochinha 
lhes  podiam  d&r  contos  de  réis ! . . . 

A  tragédia,  o  drama,  a  comédia  de  costames  e  de 
typos,  retiram-se  da  scena  cabisbaixos,  mettendo  a 
viola  no  saccol...  O  palco  povôa-se  de  sylphos'  fadas  e 
ondinas  !...  de   cyclopes,    demónios    e  feiticeiras  !.. . 

Triumpha  o  alçapão  e  o  tam-tam  I Reina  o  ouropel 

e  o  fogo  azul  I..  — De^apparecem  os  tyrannos  que  tri 
umpham  no  quarto^acto  com  a  justiça  dos  hcyfnens^  e, 
no  quinto,  levam  para  o  seo  tabaco  com  e^  justiça  de 
Deus  ! — Somem-se  os  pães  nobres  de  cabelleira  neva- 
da, os  galans  que  recitam  ao  piano,  os  artistas  de  mào 
calqada^  e  os  generaes  de  bigode  d*  algodão  que  pa* 
decem  de  gôtta  e  contam  historias  massadoras.-  O  pú- 
blico, farto  de  boas  idéas  e  bom  estylo,  tem  cançado  o 
bicho  do  ouvido,  e  quer  gozar  pela  vista, — e  a  rampa, 
ha  tempos  a  esta  parle,  tomou  a  deliberação  de  não 
illuminar  nenhum  facto  que  valha  menos  de  quatro 
centos  mil  réis  ! . . . 


XXVIll  123 

E'  por  isto  que  a  PheniX'  dramática  põe  em  acena  a 
Princ0zaF/^HÍe-mato,  com  grande  satisfaççao  dos  es- 
pectadores e  das  algibeiras  do  emprezário.  A  peça  tem 
tido  inçhentes  successivas,  e  ha  até  quem  se  tenba 
arriscado  a  uma  gymnástica  perigosa  para  ver  do  alto 
da  varanda  das  galerias,  o  demóoio  que  devora  gente, 
e  o  dragão,  devoto  de  Baccho,  que  se  embriaga  na 
fonte. 

Nada,  porem,  d'isto  teve  comparação  com  o  successo 
que  alcançou  a  Pêra  de  SatanaZj  que  viu  a  luz  da 
rampa  no  theatro  de  S.  Luiz,  e  que  j&  começou  a  série 
de  representações  que  promettem  ser  intermináveis,  se 
o  gosto  do  público  permanecer  como  t&o  estrepitosa» 
mente  se  manifestou. 

Esta  nova  mágica,  meo  caro  amigo,  não  é  uma  peça, 
— é  um  mundo  I...  Senta-se  um  homem  pacificamente 
na  sua  cadeira  da  platéa,e  transporta-se  em  duas  horas 
a  todos  os  paizes  conhecidos...  e  a  muitos  em  que 
nunca  ouviu  falar, —  o  que  aug^menta  consideravel- 
mente os  incautos  da  viagem...  eé  sobremodo ins- 
tructivol... 

Ck)mprehendendo  a  missão  do  theatro,  e  junctando 
ao  útil  o  agradável,  quer  a  empreza,  divertindo  o  pú- 
blico, alargar-lhe  a  esphera  dos  seos  conhecimentos!.. 

Afim  de  n&o  alongar  esta  carta,  peço  licença,  meo 
caro  amigo,  para  sacudir  as  considerações  philosóphi- 
cas  que  n'este  momento  me  accodem  aos  bicos  da  pen- 
na ;  e — seguindo  no  empenho  de  apreciar  a  peça, — 
aqui  te  subscripto  e  estampilho  as  impressões  que  ella 
me  deixou. 

Principiemos  pelo  principio. 

Eis  o  inrêdo  da  comédia : 

Era  uma  vez  uma  princeza  muito  linda,  filha  de  um 
rei  muito  poderoso -^ 

E  d'ahi,  para  que  heide  coatar-te  o  inrêdo?... 

Seria,  a  meo  ver,  roubar- te  a  surpreza  da  representa- 
ção, a  que  tu,  meo  amigo,  como  homem  de  bom  gosto, 
n&o  deixarás  por  certo  de  assistir. 

Nfto  devo,  comtudo,  t-^rminar  esta  carta,  sem  te  dizer 
que  a  peça  está  opulentamente  preparada,  e  com  mais 
esplenaor  do  que  em  Lisboa. 

Adereços,  vestuário,  machinismo,  mise-en-srkne^ — 
tudo  é  digno  de  ver-se. 


124  xxvin 

A  música ,.composiç&o  original  de  Furtado  Coelho,  di 
á  peça  um  realce  admirável,  e  incerra  trechos  delicio- 
sos, que  de  certo  hao  de  toruar-se  populares. 

Quanto  ao  scen&rio,  direi  apenas que  é  simples* 

mente  admirável, — e  que  o  Sr.  Rocha,  scenógrapho  do 
theatro  de  S.  Luiz,  é  decididamente  um  dos  mais  hábeis 
artistas  que  tenho  visto.  Tem  a  peça  dezoito  ou  vinte 
quadros,  e  entre  elles,  são  dignos  de  louvor,  principal- 
mente—a  apotheose,  o  reino  d&s  campainhas,  a  ilha  da 
harmonia,  o  palácio  das  cartas,  a  casa   do  pintor,  os 

jardins  do  imperador  da  China —  Perdfto.  A  lista 

vai  um  tanto  longa. —  Emendemos  : —  Sfto  dignos  de 
louvor  principalmente, ....  todos  os  quadros  que  a  peça 
tem ! . . . 

Por  via  de  regra,em  producçoes  doesta  natureza,só  se 
procura  satisfazer  completamente  os  olhos.  Esta  sai  do 
ramrão.  J&  te  dice  que  nao  meãos  a  agradecem  os 
ouvidos,  pois  prima  por  mimosa  e  appropriada  a  mú* 
8ica  de  Furtado  Coelho,  o  qual  toda  a  compôs  e  instru* 
mentou,  sendo  também  este  múltiplo  talento  que  regeu 
a  orchestra,  j&  com  o  piano  e  j&  com  a  batuta,  ao 
mesmo  tempo  que  dividia  a  attençao  por  outros  porme- 
nores da  represe atacSLo,  do  scenário  e  do  movimento. 

Accresce  por  último  outro  mérito  raríssimo  em  taes 
producções :  A  peça  de  Ed.  Garrido  (o  qual  veia  cx* 

Sressamente  de  Po/tugal  para  a  pôr  em  scena)  é  cheia 
e  chiste  e  graça  desambiciosa  e  natural.  As  situações, 
os  trocadilhos,  os  gracejos,  tudo  é  tao  conchegado,  tao 
nosso  de  lei,  que  do  principio  ao  fim, a  peça  se  sustenta, 

Srovocando  a  hilaridade  legitima,  aquella  que  nasce 
a  jovialidade  innocente,  e  n&o  do  reprehensivel  sacri- 
fício das  conveniências. 

Se  a  Pêra  de  Satanaz  deu  em  Portugal  mais  de  200 
representações  com  inçhentes,  quantas  nao  dará  no 
Rio  de  Janeiro,  ondAiao  é  menos  bem  representada,  e 
está  |)0:>ta  em  «^cena  com  tamanho  esplendor!  NSo 
haverá  quem  deixe  de  acudir  ao  feliz  theatrinho, 
quando  for  possível  achar  legares. 
Até  cedo. 

Teo  dedicado, 
Plauto. 


XXVni  125 

MONUMENTO  A  BOCAGE 

Tendo  melhorado  o  tempo,  e  parecendo  consolidado 
o  terreno  s6bre  que  vai  erguer-se  o  monumento,  re- 
solven-se  collocar  a  pedra  fundamental,  e  a  Câmara 
Mnnicinal  e  a  commiss&o  filial,  de  Setúbal,  resolve- 
ram proceder  a  essa  formalidade  com  pompa.  ^Neste 
sentido,  o  digno  Presidente  d'aquellas  corporações  di- 
rigiu ao  Sr.  Visconde  de  Castilho  um  officio,  onde 
se  Ha  o  seguinte  : 

«  Sciente  de  quanto  V.  me  diz  na  sua  carta  de 
15  do  corrente  ( é  resposta  a  outra  anterior )  tenho 
a  responder  que  na  próxima  sexta-feira,  24,  irei  pro- 
curar V.  em  sua  casa  para  o  fim  a  que  na  dieta  carta 
se  refere 

Approveito  esta  occasiao  para  declarar  a  V.,  que 
na  ausência  da  commissao  que  digna  e  illustradameute 
snperintende  na  Aireeçao  áos  prep&rutivos  e  festejos  i^ 
lativos  ao  monumento  dedicado  ao  exímio  poeta  Bo- 
cage, resolveram  a  Câmara  Municipal  e  Commissâo 
filial  d'esta  cidade  fazer  a  cerimonia  da  coUocaçao  da 
primeira  pedra  sobre  o  alicerce  do  dito  monumento 
com  modesta  mas  decente  formalidade,  na  seguinte 
quarta-feira,  22  do  referido  mez,  pelas  duas  horas  da 
tarde,  resolução  que  peço  a  V.  leve  no  conhecimento 
e  submetta  &  esclarecida  appreciaçSo  da  Exma.  Com- 
missao  d*essa  capital  etc.  >» 

Ck>m  eflfeito,  tomadas  as  devidas  providencias,  rea- 
lizou-se  a  cerimonia  no  dia  22  de  novembro,  às  2  horas 
da  tarde,  'coUocando-se  sob  a  pedra  um  coflf^e  açha- 
roado,  contendo  outro  de  zinco,  onde  se  incerraram: 
1.^  um  exemplar  em  pergaminho  do  jornal  SeUdfolense^ 
doesse  dia,  2.^  o  auto,  também  em  pergaminho,  assig- 
nado  pela  C&mara,  pela  Commis^o  filial,  e  mais  pes- 
soas gradas,  3.*  moedas  de  prata  e  ouro,  cunhadas 
no  anno  corrente. 

Em  toda  a  praça  emtorno  fluctuavam  flsmmulas  ra- 
riegadas,  mas  por  sobre  todas  tremulavaim,  próximas 
uma  da  outra,  e  sem  logar  de  precedência,  as  ban- 
deiras |)ortttgueza  e  brazileira.  No  ecto  da  collocação 
da  pedra  subiram  ao  ar  numerosas  girftndolas  de  fo^ 
gnetes,  e  tocaram  bandas  de  musica,  tudo  coberto 
pelos  vivas  e  gritos  da  immenga  multidão,  apinhada 
na  praça,  deficiente,  apezar  da  sua  grandeza,  para 
conter  tamanho  concurso  de    povo.   Foi  jà  uma  bri- 


3 


126  XXVUI 

Ihante  solemnidade,   que  fa-^,   antever  o  que  será  a 
do  dia  da  inauguração. 

O  suberbo  retrato  de  Bocage,  a  óleo,  e  de  ta- 
manho T^atural,  tirado  no  Rio  de  Janeiro,  pelo  ar* 
tista  MoreaUy  do  único  retracto  fidedigno,  que  é  o 
ue  tirou  Henrique  José  da  Silva,  no  último  anno 
a  vida  de  Bocage,  retrato  que  é  hoje  propriedade 
do  Exm.  Sr.  Dr.  Joaquim  José  Teixeira,  açha-se 
já  col locado  em  logar  de  honra  no  vasto  sal&o  do 
Paço  da  Câmara  da  cidade  do  Sado ;  ficando  as- 
sim também  satisfeita  essa  resolução  que  a  com- 
missão  central  no  Rio  de  Janeiro  commetteu  aos 
seus  dous  membros,  incumbidos  de  levar  a  tarefa 
ao  cabo. 

Tinha  sido  composto  para  a  festividade  um  gran- 
de hymno,  e  dous  outros  foram  remettidos  de  Se- 
túbal. No  dia  24  vciu  o  Sr.  Dr.  Manito  a  Lisboa 
6  com  os  Srs.  Castilhoc  e  diversos  membros  da  com- 
missao  Ulyssiponeuse,  assistiu  no  quartel  do  Carmo 
i  execução  do  hymno  pela  excellente  banda  de 
música  da  guarda  municipal,  hymno  que  ha  de  ser 
executado  pela  músicd  do  2  de  infantaria,  e  yâ- 
rias  philarmónicas,  e  que  já  está  impresso  para 
piano. 

Ficavam-se  preparando  tribunas  para  a  inaugu- 
ração, que  eflFectivamente  parece  dever  ser  hoje,  21 
de  dezembro.  Preparavam-se  em  Lisboa  conducçOes 
extraordinárias,  e  no  Barreiro  comboios  para  trans- 
portar os  visitantes. 

Reina  em  Setúbal  grande  enthusiasmo,  por  verem 
assim  satisfeita  esta  aspiração,  e  paga  esta  .divida 
ao  primoroso  poeta,  com  que  o  Sado  se  honra.  A 
cidade  toda  já  está  em  gala  :  os  prédios  renovados, 
pintados  ou  caiados,  derrubados  os  casebres  aue 
desfeavam  a  praça  e  suas  immediaçOes,  coUocaaos 
elegantes  bancos  na  praça,  similhantes  aos  que 
adornam  o  Passeio  Público  de  Lisboa. 

Dentro  em  pouco  teremos  definitivas  informações, 
mas  desde  já  se  pôde  asseverar  que,  a  despeito  de 
contratempos,  pôde  considerar-se  realizada  a  decido 
tomada  pelos  cavalheiros  que  em  15  de  septembro 
de  1865  celebraram  no  Club  Fluminense  o  jubilêo 
do  grande  poeta  portuguez  Manoel  Maria  Barbosa 
4u  Bocage. 


XXVIII  127 

F^óx^ma  deGovêz^no. 

Nas  mouarchias  absolutas  em  geral,  a  mudança  d^ 
uma  situação  depende  da  vida  do  monarcba,  que 
tanto  laais  velho  quanto  mais  afferrado  é  às  suas 
opiniões.  Ser  preciso  commetter  um  crime,  de  que 
a  hii»tória  nos  appresenta  tantos  exemplos,  ou  e^t&o 
esperar  por  sapatos  de  defuncto,  nao  sao  cousas  agra- 
dáveis. Demais,  'nessa  espécie  de  governo,  os  saltos 
são  tao  grandes  que  ha  muito  risco  de  cair  e  que- 
brar as  pernas.  De  um  rei  velho,  atrazado  meio  sé- 
culo ou  mais,  o  sceptro  passa  para  um  moço,  que 
muitas  vezes  quer  ir  adeante  do  seo  tempo.  Talvez 
se  as  vidas  de  Luiz  XIV  e  Luiz  XV  nao  tivessem 
sido  tao  longas,  Liiiz  XVI  nao  tivesse  ido  ao  ca- 
dafalso. 

Nas  repúblicas,  as  grandes  questões  resolvem-se  a 
pólvora  e  baila,  no  campo  da  batalha.  E'  o  juízo 
de  Deus.  (Sou  muito  religioso,  mas  accredito  pouco 
na  justiça  de  taes  juízos). 

Nas  monarchias  representativas  ou  parlamentares, 
uma  quest&o  custa  mais  ou  menos  palavras,  mais 
ou  menos  papel.  Os  homens  sobem  e  descem  como 
alcatruzes  de  nora  ;  as  situações  sSlo  mudadas  com 
mais  frequência  do  que  conviria  á  causa  pública: 
prefiro  essa  versatilidade  â  immobilidade.  As  opi- 
niões contrárias,  ou  apenas  diversas,  v&o  apparecendo 
à  luz,  mixturando-se  e  confundindo-se  de  maneira, 
que  perdendo  todas  as  asperezas,  a  final  se  conver- 
tem em  uma  só.  E'  a  história  de  todos  os  parla- 
mentos. 

Otton. 


O   podex*  pesiJoal. 

Houve  tempo,  em  que  as  pobres  amas  se  viam 
obrigadas  a  custosas  despezas  de  imaginação  para 
conterem  os  meninos  travessos.  Phantasmas,  lubisho- 
*mens,  bruçhas,  almas  do  outro  mundo,  era  ahi  uma 
multidão  de  cousas,  cujos  nomes  formariam  longo 
catálogo. 

O  mundo  marchou  :  tudo  isso  se  reuniu  ;  e  da  com- 
binação chimica  de  todos,  resultou  um  novo  ente  : 
um  biçharõco!  Eu  bem  o  queria  descrever....  mas  creio 
4ue   nunca  o  hei  de   poaêr  conseguir,    porque  sem 


128  XXVIII 

o  ver,  nao  pôde  ser....  e  se  elle  chegar  ao  pé  de 
mim....  fecho  os  olhos  por  tal  modo,  que  me  ha  de 
custar  a  abril-os  outra  vez. 

Çhama-se....  até  tenho  medo  de  o  dizer  :  chama* 
se  PODER  PESSOAL.  Safa  !  Que  nome !  Olhem  que 
só  o  nome  basta  para  assustar.  O  poder  pessoal  f 
Agora  sim:  não  ha  mais  creança  manhosa. 

O  poder  pessoal!  Como  o  Sr.  Alencar  fala  muito 
'nelle,  ainda  lhe  hei  de  pedir  que  nos  diga  como 
elle  é....  se  é  que  S.  Ex.  alguma  vez  o  viu,  por- 
ue,  segundo  as  suas  próprias  confissões,  muitas  vezes 
'e  virou  as  costas  e  fugiu  espavorido. 
Mas  que  a  cousa  foi  bem  achada,  foi.  Quando  ha 
or  ahi  tanta  gente,  que  quer  acab.ir  com  o  podar 
o  diabo,  era  preciso  crear  alguma  cousa  para  pôr 
no  seo  lugar.  O  poder  pessoal  é  a  mais  bella  in- 
venção  da  humanidade!  Otton, 


5 


Se  ruim  é  quem  em  ruim  conta  se  tem,  que  juízo 
poderemos  nós  fazer  de  uma  república,  que  se  ven- 
de por  dous  vinténs,  dando  ainda  de  quebra  um  fo- 
lhetim de   Nesio  ?  Otton. 

PROBLEMA. 

Discute-se  nos  melhores  círculos  d'esta  capital  uma 

Juestaò  da  maior  transcendência,  e  de  cuja  soluçSo 
epende  a  felicidade  do  género  humano:  questão 
muito  mais  importante  do  que  aquella  da  differenca 
entre  o  jota  e  o  i  romano,  de  que  se  occupava  a 
mestre  do  bom  Tolentino.  Tracta-se  de  saber  se  é  o 
Nesw^  que  com  o  folhetim  quer  fazer  passar  a  Re* 
pública,  se  é  a  República  que  pertende  fazer  acceí- 
tar  o  Nésio.   Que  dous  I  ! 

O  Sr.  Alencar  f^da  a  viver  a  República ;  será 
S.  Ex.  republicano  ?  Elle  diz  que  n&o,  e  S.  Ex. 
n&o  é  capaz  de  mentir.  O  Sr.  Alencar  é  um  ho* 
mem  grandemente  charitativo;  exerce  à  lettra  os  pre- 
ceitos do  Evangelho  :  soccorre  e  auxilia  os  seos 
inimigos.  S.  Ex.  prepara-se  para  a  vida,  que  em 
sua  fé  julga,  que  ha  de  vir  :  censural-o  porque  as- 
sim  cauteloso  vai  arranjando  o  seo  fardel  para  um 
dia  gozar  da  bemaventurança,  é  a  maior  das  injustiças. 

Otton/ 

Typ.  elith. ^Imparcial— Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  A. 


QUESTÕES  DO  DIA 


n:  39 


RIO  DE  JANEIBO,  28  DE  DEZEMBRO  DE  1871. 


WeÊáD  na  tm  cau  dos  Srs.  E.  &  HJUemvert—AgcMtfiilio  de  Freitas  Gui- 
■Mrtes  &  Comp.,  26,  rua  do  Goieral  Gamara.—  Livraria  Académica, 
Bus  de  8.  José  n.  119—  Largo  do*  Paço  n.  C— Preço  200  reis* 

O  !•  voluBie,  coB  perto  de  400  paginas— 3(000. 

OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR  —  IRACEMA. 

Omrtas  a  Oinoianato» 

V 

Meo  charo  amigo : 

Chegou  a  dilaç&o  das  provas  e  n&o  a  perco  ;  é  entre- 
tanto ao  Sr.  Pinheiro  Chagas  que  me  estou  dirigindo, 
porque  tu  já  sabes  de  tudo  isto. 

Vou  dar-me  ao  trabalho,  insano  por  certo,  de  co- 
piar ipsis  verbis  um  capitulo  integral  da  Iracèmay  em 
qae  se  descreve  um  combate  de  Índios. 

Hartim,  Poty  e  Iracema  vao  sendo  perseguidos 
pelos  guerreiros  tabajáras.  E  a  propósito  de  Martim : 
diz  J.  de  Alencar,  na  página  9o,  que  vendo  esse 
heroe  «  os  verdes  mares  e  as  alvas  praias,  onde  as 
ondas  murmurosas  ás  vezes  soluçam  e  outras  raivam 
de  fúria,  rebentando  em  frocos  de  espuma  (  o  que 
quererá  elle  dizer?  )  seo  peito  suspirou,  porque  esse 
mar  beijava  também  as  brancas  areias  do  Potengi, 
MO  berço  natal,  onde  elle  vira  a  luz  americana.  »  E 
mais  adeante,  na  página  180,  em%ota :  «  Potengi— 
rio  que  rega  a  ciaade  do  Natal,  d*onde  era  niho 
Soares  Moreno.  » 

Tenho  minhas  dúvidas,  com  o  devido  respeito. 
Southey,  Lisboa,  Constâncio,  Pompéo  e  outros  nSò 
dixem  que  Martim  Soares  Mdreno  fosse  natural  do 
Bio  Grande  do  Norte.  Pelo  contrário,  alguns  até 
deelaram  que  Martim  era  pairmte  do  sargento  mór 
Diogo  de  Campos  Moreno  ( português ),  o  que  de' 
algum  modo  faz  presumir  que  Maftim  pertencia  á 


130 

mesma  nacionalidade.  O  general  A.  e  Lima,  cuja 
auctoridade  nao  se  pôde  com  boas  razões  contestar, 
diz  positivamente  na  sua  Synopsts^  a  p&gina  70,  que 
Diogo  de  Menezes  «  contentou-se  com  mviar  ao  Ceará 
um  official  portuguez,  Martim  Soares  Moreno,  que 
tinha  accompanhado  a  Pedro  Coelho,  etc.  » 

Ssio  taes  e  tantos  os  testimunhos  auctorizados 
'neste  sentido,  que  nao  será  fácil  recusar-lhes  fé. 
Chego  um  momento,  quando  vejo  contrariado  pelo 
Sr.  Alencar  o  facto,  a  suppor  que  este  Sr.,  dispondo 
d'amplos  recursos,  e  açhando-se  'numa  corte,  onde  ha 
um  Instituto  Histórico  e  uma  rica  Bibliotheca  Nacio- 
nal, bebe  todas  estas  novidades  em  fontes  abundantes 
e  satisfactórias,  de  que  o  pobre  bisonho  provinciano 
nao  pôde  nem  de  teve  provar.  Mas  occorre-me  logo 
a  anecdota  da  invenção  do  verbo  afflar  e  de  outros 
vocábulos ;  da  etymologia  dos  nomes  das  diversas 
localidades  do  Ceará,  que  vem  aliás  no  diccionário  do 
Dr.  Martins,  e  outras  galantes  graçolas  d'esta  ordem, 
e  sou  levado  a  crer  que  o  Sr.  Alencar  na  Iracema  é 
o  mesmo  Sr.  Alencar  da  Diva^  do  Gaúcho^  da  Pata  da 
Gazella^  etc.  Então  digo  comigo,  a  sós,  depois  de 
fundo  cogitar : 

— ^  Só  se  o  Alencar  (  assim  se  diz  na  auaencia  ) 
açliou  isto,  ou  achou  aquilFoutro  nas  chrónicas  incó- 
guitas,  onde  também  achou  a  sua  poesia  banzeira,  os 
seos  selvagens  mandriões,  etc.  Sendo  assim  estou 
calado. 

Mas  nao.  E'  que  J.  de  Alencar  nao  quer  fazer  só- 
mente  uma  nova  língua,  uma  nova  natureza,  uma 
nova  poesia :  quer  fazer  também  uma  nova  história. 
E  se  o  homem  diz  que  inventou  o  que  está  claro  e 
velho  nos  lexicógraphos,  que  mais  é  que  dê  a  Martim 
uma  pátria  a  seo  geito,  quando  a  história  nao  é  tAo 
positiva  n'este  pon*o  quanto  fora  para  desejar  ?  Temos, 
pois,  este  grande  serviço  mais  a  agradecer  ao  Sr.  Alen- 
car :  o  ir  explicando  e  completando  por  serdes  vós  quem 
sois  a  história  pátria,  no  que  ella  tiver  de  duvidoso  ou 
pouco  preciso.  Faz  muito  oem.  E  quem  fôr  homem  de 
sangue  no  olho  que  lhe  vá  ao  incontro.  Metta-se 
'nisso  I 

Desculpa  a  digressão,  e  volta  comigo  ao  campo 
dos  tabajáras ;  já  nao  é  o  dos  tabajáras,  mas  sim  o  dos 
pytiguáras.  Havemos  de  dizer  algumas  palavrínhai^ 


XXIX  131 

sobre  a  etymologia  que  dà  o  Sr.  Alencar  a  esta  nação 
de  índios.  Fica  para  logo. 

Vai  travar-se  a  pugna  gigantéa,  tremenda  entre 
duas  tremendas  e  gigantéas  hordas  inimigas.  Pre- 
para-te  para  assistires  a  uma  epopáa  dig-na  de  Atlan- 
tes. Attençao  I 

«  Treme  a  selva  com  o  estampido  da  carreira  do  povo 
tabajàra. 

«  O  grande  Irapuam,*  primeiro,  assoma  entre  as 
árvores.  Seo  olhar  rúbido  viu  o  guerreiro  branco  entre 
nuvem  de  sangue ;  o  grito  rouco  do  tigre  rompe  de  seo 
peito  cavernobo.  (Este  tigre  é  da  família  :  também 
timbra  em  novidades ;  até  hontem  dizia-se  que  o  tigre 
bramava ;  mas  cá  este  grita  I). 

«  O  chefe  tabajàra  e  seo  povo,  iam  precipitar  (pôde 
deixar  de  dizer-se:  precipítar-se?  aqui  o  verbo  preci- 
pitar é  verbo  activo?  onde  está  o  paciente?  é  verbo 
reflexo)  sobre  os  fugitivos  como  a  vaga  incapellada 
que  arrebenta  no  Mocoripe.  (Como  a  vaga  só?). 

a  Eis  late  o  cão  selvagem. 

tt  Poty  solta  o  grito  da  alegria:  /'faz  como  o  tigre). 

—  O  cao  de  Poty  guia  os  guerreiros  de  sua  taba  em 
soccorro  teo. 

<x  O  rouco  búzio  (dous  roucos  t&o  junctos  'numa  obra 
de  gôsío  e  artística  l)  dos  pytiguàras  estruge  pela  flo- 
resta. O  grande  Jacaúna,  senhor  das  praias  do  mar, 
checava  do  rio  das  garças  com  seos  melhores  guer- 
reiros. 

«  Os  pytiguàras  recebem  o  primeiro  ímpeto  enne- 
migo  (com  este  ennemigo  depois  nos  entreteremos)  nas 

Sentas  erriçadas  de  suas  flechas,  que  elles  despedem 
o  arco  aos  molhos,  como  o  coandú  (fábula  I)  os  espi- 
nhos do  seo  corpo.  Logo  após  sõa  a  pocêma,  estreita-se 
o  espaço,  e  a  lucta  se  trava  face  a  faom.  » 

Quando  vejo  esses  pytiguàras  despedindo  do  arco 
flechas  aos  molhos^  como  o  coandú  os  espinhos  do  seo 
corpo,  lembro-me  do  trecho  de  um  crítico  appre- 
ciando  o  Washingtorij  de  Robert  Payne,  auctor  norte- 
americano.  Bobert  Payne  também  dá  a  pomposa  qua- 
lificação de  epopèa  ruicional  á  sua  obra,  que  elle  foi 
levado  a  compor,  despeitado  por  Channing  haver  dicto 
que  os  Estados  Unidos  nao  possuíam  uma  litteratura 
nacional.  «  Robert  Payne — diz  o  crítico —representa 
Washington  de  pé,  repellindo  com  o  peito  os  trovOes  a 


192  XXIX 

empunhando  a  espada  núi^^a  modo  de  conductor  eléc- 
trico, para  dirigir  o  raio  para  o  oceano,  onde  vai  apa- 
gpar-se.  Èãte  lieróe  p&ra-i-aio  ê  a  obra-príma  da  poesia- 
m&china.  »  Assim  também  esses  heróes-coandú^  P^^ 
oem-me  o  nec  plus  ultra  da  poesia-mondriice.  Conti- 
nuemos. 

a  Jacaúna  atacou  Irapuam.  Prosegue  o  horrivel 
combate  que  bastara  a  dez  bravos,  e  nfto  esgotou  ainda 
a  {6rça  dos  grandes  chefes.  Quando  os  dons  tacapes  ae 
ineontram,  a  batalha  toda  estremece, como  um  só  g^er* 
reiro,  até  as  intranhas. 

«  O  irmão  de  Iracema  veiu  direito  ao  estranedro* 
que  arrancara  a  filha  de  Âraken  á  cabana  hospedeira ; 
o  faro  da  vingança  o  guia ;  a  vista  da  irmft  assanha  a 
raiva  eni'  seo  peito.  O  guerreiro  Cauby  assalta  com 
furor  o  ènnemigo.  d 

Ent&o  f  J&  sèi  que  estás  tremendo  de  medo  da  tama- 
nha peleja.  Â  cousa  est&  mesmo  f^ijpí.  Mas  emfim  cora- 
gem, bum  Cincinnato,  que  haveinós  de  contar  da  festa 
sem  o  mínimo  arranhão. 

Iracema,  unida  ao  flanco  do  seo  guerreiro  e  esposo, 
vim  de  longe  Cauby  e  falou  assim : 

«  — Senhor  de  Iracema^  ouve  o  rogo  da  tua  escrava; 
n&o  derrama  (II)  o  sangue  do  filho  de  Araken.Se  o  guer- 
reiro Cauby  tem  de  morrer,  morra  elle  por  esta  mfto, 
nfto  pela  tua. 

(c  Martim  pôs  no  rosto  da  selvagem  olhos  de  horror : 

<c  — Iracema  matará  seo  irm&o  ? 

((  — Iracema  antes  quer  que  o  sangue  de  Cauby 
tinja  sua  mfto  que  a  tua ;  porque  os  olnos  de  IraoAiaa 
vêem  a  ti,  e  a  elle  nfto.  (É'  uma  razfto,  como  qualquer 
outra). 

«  Travam  a  lucta  os  guerreiros,^  Cauby  combate 
com  furor  ;  o  «hristfto  delende-se  apenas  ;  mas  a  setta 
embebida  no  arco  da  esposa  guarda  a  vida  do  guerreiro 
contra  os  botes  do  ennemiço. 

«  Poty  já  prostrou  o  vdho  Andirae  quantoa  guer- 
reiros topou  na  lucta  seo  válido  tacape.  Hariim  lhe 
abandona  o  filho  de  Araken,  e  corre  s6bre  Irapuam. 

«(—Jacaúna  é  um  grande  chefe;  seo  collar  de  guerra 
dá  três  voltas  ao  peito.  O  tabajára  pertence  ao  guer- 
reiro branco. 

€ — A  vingança  é  a  honra  do  guerreiro,  e  Jacaúna 
ama  o  amigo  de  Poty. 


133 

«  O  grande  chefe  pytigaara  levou  além  o  formidável 
tac&pe*  O  combate  renhíu-se  eatre  Irapuam  e  Martim. 
A  espada  do  christao,  batendo  na  clava  do  selvagem, 
fesHse  em  pedaços.  O  chefe  tabajàra  avançou  contra  o 
peito  inerme  do  advers&rio. 

«  Iracema  silvou  como  a  boicininga  (pois  a  mulher 
silvou  ?1 ),  e  se  arremessou  ante  a  fúria  do  guerreiro 
tabajàra.  A  arma  rígida  tremeu  na  dextra  possante 
do  chefe  e  o  braço  caiu-lhe  desfallecido . 

<c  Soava  a  pocâma  da  victória.  Os  guerreiros  pyti- 
guàras,  conduzidos  por  Jacaúna  e  Poty,  varriam  a  flo- 
resta. Os  tabajàras,  fugindo,  arrebataram  seo  ç  lefe  ao 
ódio  da  filha  de  Araken  que  o  podia  abater,  como  a 
jandaia  abate  o  prócero  coqueiro  roendo-lhe  o  cerne. 
(Onde  foi  que  o  Sr.  Alencar  viu  isso  ?] 

«  Os  olhos  de  Iracema  estendidos  pela  floresta,  viram 
o  çhao  juncado  de  cadáveres  de  seos  irmãos  ;  e  longe  o 
bando  dos  guerreiros  tabajàras  que  fugia  em  nuvem 
negra  de  pó.  Aquelle  sangue  que  inrubecia  a  terra  era 
o  mesmo  sangue  brioso  que  lhe  ardia  as  faces  de  ver- 
gonha 

«  O  prancto  orvalhou  seo  lindo  semblante. 

tt  Martim  affastou-se  para  n&o  iavergonhar  a  tris- 
teza de  Iracema.  Deixou  que  sua  dõr  nua  se  banhasse 
nas  l&grymas.  »  ( Uma  dor  nua  a  banhar-se  em  lá- 
gTjmBs  I  ) 

Acabou-se  a  batalha,  e  o  capitulo,  e,  como  vês,  sftos 
e  salvos  ficámos  ;  ainda  bem. 

Ora,  eis  ahi  ao  que  se  pôde  mesmo  chamar  um  mo* 
dêlo  de  descripçfto  de  combates  de  índios.  E  um  modelo 
devia  mesmo  ser  um  combate  entre  chefes  taes  como 
Irapuam  (Md  Redondo  )j  Jacaúna,  eo  Camai^o  ;  reco- 
nheces aoui  o  grande,  o  insigne  Camz&rao  ? 

Muito  levianos,  senão  mais  que  isso,  eram  esses  his- 
toriadores da  conquista.  Chegarem  ^ dizer  que  «  estes 
americanofiLSSLo  tao  incarniçados  nas  suas  guerras,que, 
emquanto  podem  meçher  com  pernas  e  braços  n&o  re- 
cuami  nem  dao  as  costas,  combatem  incessantemente, 
e  isto  ó  'nelles  a  cousa  mais  natural.»  Quall  histórias 
da  carochinha.  Esses  supra  mencionados  guerreiros, 
até  08  mais  afamados,  n&o  passai  am  de  guerreiros 
coandús.  E  a  prova  está  'nesse  mesmo  Irapuam,  tSo 
illustre  na  história  pela  sua  braveza  e  perseverança^ 
que  principiou  aqui  vendo  tudo  côr  de  sangtke^  e  deu 
costas  como    sendeiro.  Tabajáras  de  uma  -  figa,  co- 


134  XXK 

vardes  tabajâras !  De  que  vos  servia  serdes  —  o  povo 
SENHOR  ?  Poty,  Jacaúna,  Iracema  e  Martim,  isto  é^ 
três  homens  e  uma  mulher  vos  puzeram  a  trote,  a 
ver  estrellas  ao  meio  dia.  Verdade  é  dizer-nos  o 
auctor  que  Jacaúna  viera  com  seos  melhores  guer- 
reiros. Mas  também  não  se  presume  que  Irapuam 
viesse  com  os  peiores.  E  depois  que  melhores  eram 
esses,  dos  quaes  um    nome  se  não  dice? 

Contraponhamos  agora  a  esl»  descri pçao,  feita  por 
quem  desceu  ao  fundo  do  lago  e  foi  ter  «  ás  flores 
maravilhosas  que  desabrocham  nas  cavernas  de  co- 
ral »  aos  recifes  de  madrepérola  que  expandem  na- 
carados reflexos  sob  a  transparência  das  águas  »  a 
descripçao  de  quem  nao  passou  da  superflcie «  re- 
ceiando  inlodar  o  coUo  nitido,  e  a  aza  branca  e  lisa, 
a  cabeça  graciosa  e  fina  »  e  vejamos  quem  na  ver- 
dade se  imodou  na  vasa,  quem  extrahiu  as  pérolas 
e  os  coraes.  E'  Gonçalves  Dias  que  vai  pintar  uma 
lucta  entre  dous  guerreiros  (nenhum  dos  quaes  de 
valor  histórico).  Attençao. 

Travaram  lucta  fera  os  doiís  guerreiros. 
Primeiro  ambos  de  longe  as  settas  vibram. 
Amigos  manitõs,  que  ambos  protegem, 
nos  ares  as  de.^jarram.  Do  Gamella 
introu  a  fréçha  trémula  'num  tronco 
e  só  parou  no  cerne  ;  a  do  Tymbira, 
ciciando  veloz,  fugiu  mais  longe, 
roçando  apenas  os  frondosos  cimos  ; 
incontram-se  os  tacapes,  lá  se  partem  ; 
ambos,  o  punho  inútil  rejeitando, 
•6treitam*se  valentes,  braço  a  braço. 
Alentando  açodados,  peito  a  peito, 
revolvem  fundo  a  terra  aos  pés,  e  ao  longe 
rouqueja  o  peito  arfado  um  som  confuso,  d 

Tudo  aqui  é  natural,  meo  amigo.  A  lucta  vai-se  des- 
invoivendo  gradualmente.  Principiam  os  guerreiros 
despedindo  as  frechas  ;  depois  brandem  os  tacapes, 
porque  aquellas  foram  desgarradas  pelos  manitõs  (ma- 
gistral applicaçfto  da  tradição  ou  da  crença  selvagem) ; 
e  finalmente,  partindo-se  estas  últimas  armas,  estrêi- 
tam-se,  conçhegam-se  corpo  a  corpo,  e  rugem  no  agi- 
gantado esforço,  e  revolvem  a  terra  com  os  pés.  Pa- 
rece-nos  estar  vendo  a  pugna  de  dous  só,  mas  mi- 
rífica. Prosigo. 


135 


Scena  vistosa !  quadro  appat-atoso ! 
Guerreiros  velhos,  à  victória  affeitos, 
tamanhos  campeões  vendo  na  arena, 
e  a  lucta  horrível,  e  o  combate  accêso, 
mudos  quedaram   de  terror  tranzidos. 
Qual  d'aquelles  heróes  ha-de  primeiro 
sentir  o  egrégio  esforço   abandonai -o  ? 
perguntam  ;  mas  não  ha  quem  lhes  responda. 

Sao  ambos  fortes  :  o  Tymbira  hardido, 
esbelto  como  o  tronco  da  palmeira, 
flexível  como  a  frecha  bem  talhada, 
ostenta-se  robusto  o  rei  das  selvas  ;  - 
seo  corpo  musculoso,  immenso  e  forte, 
é  como  rocha  enorme,  que  desaba 
de  serra  altiva,  e  cai  no  valle  inteira ; 
nao  vale  humana  força  desprendel-a 
d'alli,  onde  ella  está ;  fugaz  corisco 
bate-lhe  a  calva  fronte  sem  partil-a. 

Separam-se  os  guerreiros  um  do  outro', 

foi  d'um  o  pensamento...  a  acção  foi  d'ambos. 

Ambos  arquejam  :   descoberto  o  peito 

arfa  e  estua,  eleva-se  e  comprime-se, 

e  o  ar  em  ondas  sôffregos  respiram. 

Cada  qual,  mais  pasmado  que  medroso, 

se  estranha  a  força  que  no  outro  incontra, 

a  mal  cuidada   resis  encia  o  irrita. 

—  ((  itajubal  Itajubal    os  seos  exclamam. 

Guerreiro,  tal  como  elle,  se  descora 

um  só  momento,  é  dar-se  por  vencido  » 

O  filho  de  Jaguar  voltou-se  rápido. 

D'onde  essa  voz  partiu  ?  quem  n'o  aguilhõa  ? 

Raiva  de  tigre  annuviou  lhe  o  rosto, 

e  os  olhos  cõr  de  sangue  irady  pulam. 

a  —  A  tua  vida  a  minha  glória  insulta!/] — 
grita  ao  rival —  e  já  de  mais  viveste.  » 
Dice,  e  como  o  condor,  descendo  a  prumo 
dos  astros,  sobre  o  Ihama  descuidoso, 
pávido  o  prende  nas  torcidas  garras, 

e  sobe  audaz  onde  não  chega  o  raio 

võa  Itajuba  sobre  o  rei  das  selvas, 
cinge-o  nos  braços,  contra  si  o  aperta 
com  força  incrível,  o  colosso  verga, 


1^ 


M.iê 


inclina-se,  desaba,  cai  de  chofre, 
e  o  pó  levanta  e  atroa  forte  os  echos. 
Assim  cai  na  floresta  um  tronco  annoso, 
e  o  som  da  queda  se  propaga  ao  longe/ 

O  fero  vencedor,  um  pé  alçando, 

«  Morre  I  •—  lhe  brada  —  e  o  nome  teo  comtigo !» 

O  pé  desceu,  batendo  a  arca  do  peito 

do  exânime  vencido  :  os  olhos  turvos 

levou,  a  extrema  vez,  o  desditoso 

&quelles  céos  de  azul,  áquellas  mattas, 

dõce-cobertas  de  verdura  e  flores ! 

Depois,  erguendo  o  esqu&lido  cadáver 

sobre  a  cabeça,  horrivelmente  bello, 

aos  seos  o  mostra  insanguentado  e  torpe . 

Então  por  vezes  três  o  horrendo  grito 

do  triumpho  soltou  ;  e  os  seos  três  vezes 

o  mesmo  grito  em  choro  repetiram. 

Aquella  massa  emfím  voa  nos  ares  ; 

porem  na  dextra  do  feliz  guerreiro 

dividem«se  entre  os  dedos  as  melenas, 

de  cujo  crftneo  marejava  o  sangue  !  » 

Ora,  diga-me  sinceramente  o  Sr.  P.  Chagas,  com  o 
cavalheirismo  que  o  distingue  :  em  qual  doestas  duas 
descripçoes  está  fundamente  impresso  o  cunho  nacío* 
nal  —  na  de  J.  de  Alencar,  ou  na  de  G.  Dias !  Acha 
o  illustre  critico  portuguez  que  uma  pugna  sangrenta, 
de  vida  e  morte,  entre  gigantes  da  floresta,  inimigos 
sanhudos  e  feros,  como  se  presume  que  seriam  Irapu- 
am  e  Poty,  ou  Mel-Redondo  e  Camar&o,  havia  de 
correr  d'ess*arte  pl&cida  e  desinxabida,  e  sobretudo 
teria  aquelle  desinlace  mesquinho  e  ridículo  ¥  Atten- 
da-se  mais  ;  que  &  precedente  inimizade  entre  ambos 
accrescôra  a  recent^uga  de  Iracema,  devida  a  Mar- 
tim,  de  Iracema,  que  a  turbara  osomno  do  primeiro 
guerreiro  tabaj  ar  a  »  que  o  fizera  descer  (c  do  seo  ni- 
nho de  águia  para  seguir  na  v&rzeaa  garça  do  rio» 
(  Vid  a  pag.  26. ; 

Mas  diz-nos  o  Sr.  P.  Chagas  que  <c  n&o  conhecend  o 
os  Tymbiras  (d'onde  fizemos  o  extracto  supra), nfto  pôde 
formar  juizo  sobre  elle;  mas  outros  poemetos  indianos, 
publicados  no  volume  de  versos  do  grande  poeta  bn^ 
zileiro  (edição  de  Leipsick)  auctorisam-n'o  a  suppor 
que  a  morte  ceifou  Gonçalves  Dias  antes  d*elle  ter 


XXIX  137 

inau^rado  verdadeiramente  a  litteratura  nacional  do 
Brazil.  )» 

Pois  nSo  seja  esta  a  dúvida ;  temos  tanto  as  Obras 
Pósthumas  do  grande  poeta,  como  os  seos  Cantos  (edi- 
ç&o  de  Leipsick),  como  suas  Poesias  (edição  novíssima 
de  Paris,  do  Sr.  Gramier,  precedida  da  biographia  do 
auctor  pelo  Sr.  cónego  Fernandes  Pinheiro. ) 

Abro  o  volume  dos  Cantos^s,  mesma  ediçfio  que  tem  o 
Sr.  Pinheiro  Chagas,  e  incontro  na  página  155  outra 
descripção  de  um  combate  de  índios.  £'  na  poesia 
intitulada  Tabyra. 

Eis  que  os  arcos  de  longe  se  incurvam  ; 
eis  que  as  settas  aladas  jé  voam ; 
eis  que  os  ares  se  cobrem,  se  turvam, 
de  fréçh&dos,  de  surdos  que  s&o. 
novos  gritos  mais  altos  reboam, 
entre  as  hostes  se  apaga  o  terreno, 
j&  tornado  apoucado  e  pequeno, 
j&  coberto  de  mortos  o  chão ! 

Mas  Tabyra !  Tabyra  I  que  é  d'elle  t 
onde  agora  se  esconde  o  pujante  ? 
Nào  n'o  vedes  ?  !  Tabyra  é  aquelle 
que.  sangrento,  impiedoso,  lá  vai  I 
Vél-o-heis  andar  oeojpreadeante, 
larga  esteira  de  mortos  deixando 
traz  de  si,  como  o  raio  cortando 
ramos,  troncos  do  bosque  onde  cai. 

«  Tem  um  olho  de  um  tiro  frechado  I 

«  Quebra  as  settas  que  os  passos  lhe  impedem, 

<c  e  do  rosto,  em  sco  sangue  lavado, 

«  frecha  e  olho  arrebata  sem^ó ! 

<c  e  aos  imigo'^,  que  o  campo  não  cedem 

«  olho  e  frecha  mostrando  extorquidos, 

«  diz,  em  voz  que  mais  eram  rugidos : 

«  — Basta,  vis,  por  vencer-vos  um  só !  » 

Pois  estas  três  strophes  nao  valem,  falando  sincera- 
mente, cem  vezes  mais  que  o  capítulo  inteiro  do  Sr. 
Alencar  t 

Ao  ler^se  este  episódio  do  Tabyra,  arrancando  o 
4)lho  com  a  fréçha  que  o  cravara,  e  que  parecerá, 


138  XXIX 

talvez,  exaggerado,  como  em  caso  análogo  se  tem 
dicto  de  Lucf-no,  íembro-me  de  uma  história  que 
nos  conta  Âudubou,  muito  em  harmonia  com  aquelle 
episódio. 

«  Defronte  de  mim,  diz  o  naturalista  americano, 
estava  um  índio,  com  os  cotovellos  incostados  aos 
joelhos,  e  a  cabeça  ás  mãos.  Segundo  o  uso  dos  in- 
dígenas da  América,  nao  se  moveu  ao  çhegar-se-lhe 
o  homem  civilizado. 

«  Os  viajantes  nao  tem  deixado  de  interpretar  como 
indício  de  priguiça,  de  estupidez,  de  apathia,  esse 
silencio   nascido  do   mais  altivo  orgulho. 

«  Via-se,  incostado  á  parede,  um  grande  arco,  mui- 
tas frechas  e  pássaros  mortos  espalhados  pelo  çhao. 
O  índio  nao  se  meçhia;  nem  parecia  respirar.  Di- 
rigi-lhe  a  palavra  em  francez,  idioma  de  que  a  mór 
parte  dos  índios  d'esses  logares  sabe  ao  menos  alguns 
termos.  Levantou  a  cabeça,  mostrando-me  com  o  dedo 
um  dos  olhos  saídos  da  órbita,  e  o  sangue  correndo 
sobte  o  rosto;  depois,  com  o  outro  que  lhe  restava  lan- 
çou em  mim  um  olhar  singularmente  significativo. 

«  Depois  soube  eu  que,  havendo-se  a  fréçha  do  seu 
arco  quebrado  no  momento  em  que  a  chorda  estava 
tesa,  um  dos  pedaços  da  arma  partida  resurtira  contra 
o  olho  do  índio  e  'nelle  se  cravara. 

«  Soffria  calado.  A  despeito  da  viva  dor,  conser- 
vava imperturbada  a  dignidade  altiva.  Era  bem  feito, 
ágil,  bem  disposto;  physionomia  intell igen te e  cân- 
dida. 

«  Adm  irei  esse  valor  do  selvagem ,  stóico  do  deserto, 
e  stóico  sem  vaidade.  » 

Como  se  vê,  G.  Dias  e  Audubon  estão  accordes ; 
quem  se  separa  e  fica  só,  é  o  Sr.  Alencar. 

Conhece-se  'neste  trecho  o  índio.  Ha  notável  firmeza 
e  verdade  no  finaMo  mestre,  que  viu  o  original  das 
estampas  que  desenha,  e  nao  tem  a  vaidade  de  pintar 
figuras  de  sua  exclusiva  concepção.  Bápidos  contor- 
nos e  cores  ligeiras  destacam  o  desenho,  a  que  só  falta 
o  movimento  da  vida.  Nem  uma  dVssas  linhas  ou 
tinctas  provoca  a  menor  contestação. 

Mas,  voltando  ao  assumpto:  o  que  é  que  vemos 
no  capítulo  do  Sr.  Alencar,  com  o  cunho  nacional 
fundamente  impresso  ?  A  bair  ininga  (  á  similhança 
da  qual  silva  Iracema  ),  o  tigre  (que  grita^  )  o  coandú,. 
etc. 


XXIX  139 

Mas  nos  versos  do  Dias  vemos  o  condor,  o  Ihama, 
também  o  tigre,  etc.  Dirão :  o  condor  e  o  Ihamá 
nao  sao  propriamente  do  Brazil.  Responderei :  também 
o  tigre  e  o  coandú  nao  sao  exclusivamente  d'este 
paiz  —  o  primeiro  incontra-se  na  Guyanna  e  Surinam, 
e  o  segtindo  na  Guyanna  e  no  México.  Logo 

Estou  fatigado  em  extremo.  Continuarei, 

Teo  do  coração 
Semprónio 

A   Xieox*saiilzao3o  do  t]?a1>aUio 

A  classe  operária  e  a  tndàstria  no  Brazit.  Necessidade  da 
rehabílitação  e  melhor  organização  do  trabalho.  Con- 
siderações sobre  o  meio  de  realizar  esta  grande  e  gene- 
rosa aspiração  da  sociedade  brazUeira, 

I 
O  Brazil  acaba  de  passar  por  uma  profunda  e  radical 
modificação.  O  dia  28  de  septembro  de  1871  é  o  génesis 
de  sua  regeneração  social.  A  lei  que  indirectamente 
aboliu  a  escravidão  no  Império  é  a  segunda  memorável 
épocha  de  sua  bistória.  Nova  ordem  de  cousas  nasce 
d'esse  grande  accontecimento.  Triumpbo  esplêndido  e 
incruento  da  civilização,  foi  elle  a  aurora  do  progresso 
6  da  regeneração  para  este  povo,  fadado  pela  Provi- 
dencia a  sustentar,  em  futuro  n&o  muito  remoto,  a 
balança  do  equilíbrio  entre  as  naçOes  da  América  do 
Sul.  A  terra  que  da  cruz  bavia  tomado  o  nome,  nOo 

Sodia  tolerar  que  'nella  se  perpetuasse  a  escravid&o — 
esmentido  formal  do  Evangelbo  que  professa,  contra- 
dicçfto  viva  com  as  doctrinas  libérrimas  que  prega  e 
executa — anacbronismo  inexplicável  e  absurdo  no  sé- 
culo de  luz  em  que  vivemos 

Este  importante  facto,  preparado  de  ba  muito  surda 
e  lentamente, e  nos  dous  últimos  ^nos, precipitado  pelo 
impulso  irruptor  da  civilização,  era  previsto  de  longa 
data  pelos  publicistas  mais  notáveis  da  Europa,  que^ 
fazendo  justiça  ao  cbaracter  brazileiro,  viam,  como  diz 
Victor  Hugo: 

..  .comme  une  mer  sur  son  ri  vage 
Monter  d'  étage  en  étage 
L'  irrésistible  libené. 

Já  em  1868  o  distincto  economista  Miguel  Cbevalier 
escrevia  «  O  vasto  Império  do  Brazil  prepara  visivel- 
mente a  grande  transformação  social.  » 


140 

Sem  abalo  sensivel,  sem  a  gigantéa  e  sanguinoleiíta 
lucta  de  que  foi  theatro  a  república  dos  Estado»- 
Unidos,  conseguimos  converter  em  lei  do  Estado  uma 
providencia  que,  ainda  mesmo  nao  secundada  por 
outras  que  mais  tarde  lhe  servirão  de  complemento, 
traria  dentro  de  alguns  annos  a  extincçlo  completa  da 
escravidão  no  Império. 

Abolido  no  futuro,  e  no  presente  diminuido  conside- 
ravelmente este  elemento  da  populaç&o,  que  na  sua 
maioria  ou  quasi  totalidade  era  o  instrumento  principal 
e  quasi  exclusivo  de  producç&o  entfo  nós,  ficam  suW 
tancialmente  alteradas,  no  que  diz  respeito  ao  trabalho, 
as  relações  sociaes.  Se  se  n&o  cuidar  seriamente  em 
substituir  de  prompto,  e  do  modo  mais  pppropriado  e 
vantajoso  possível,  os  braços  que  têm  necessariamente 
de  escacear  á  lavoura,  em  consequência  da  alforria  dos 
ncLscUuros^  ou  da  geraç&o  que  vier  ao  mundo  depois 
da  lei  de  28  de  septembro  a'este  anuo,  o  paiz  passará 
por  uma  crise;  suas  fontes  de  producç&o,  dimmuindo 
em  r&pido  decrescimento,  influirão  sôbrt  a  receita  pú- 
blica, que  hoje  tao  próspera  avulta. 

a  O  grau  de  potência  productiva  a  que  chegou  a 
indústria  moderna  (  diz  um  escriptor  contemporâneo ) 

Sela  intervenç&o  conjuncta,  e  crescentemente  activa, 
a  sciéncia  e  do  capital,  fez  vencer  obst&culos,  que 
outr'ora  seriam  reputados  insuperáveis.  Foi  assim  que 
se  resolveram  proolemas  que  interessavam  á  política 
geral  e  á  boa  ordem  do  género  humano. » 

Para  comprovar  essa  verdade  tomaremos,  como 
Dareau  um  exemplo  da  história  de  nossos  dias,  tanto 
mais  a  propósito,  quanto  é  applicavel  a  uma  situação 
similhante  &quella  em  que  se  acha  actualmente  o 
Brazil. 

A  escravidão  nas  co^nias  foi  abolida  pela  Inglaterra 
em  1833  e  pela  França  em  1848.  'Nessas  regí0e8,a8sim 
ouasi  despovoadas  de  braços,  os  proprietários  do  solo 
ncaram  em  difficil  posição.  Os  escravos  alforriados  reca- 
saram*se  tenazmente  a  trabalhar  nos  ingenhos  de 
assucar,  que  lhes  lembravam  uma  história  de  dolorosos 
padecimentos,  em  que  elleb  e  as  gerações  que  os  haviam 
precedido  tinham  sido  as  victimas.  Residindo  em  miee* 
raveis  cabanas « que  com  as  próprias  m&os  levantavam, 
viviam  do  producto  da  pesca  ou  de  alflfuns  legumes 
que  lhes  davam,  ouasi  independente  de  cultÍTO,  oa 


141 


férteis  torrões  em  que  lançavam  a  semente.  Poucos  d'en- 
tre  08  melhores  d'esses  libertos  se  prestavam,  mediante 
salários  exaggerados,a  ajudar  os  cultivadores  na  plan- 
taç&o  e  preparo  da  canna  e  dos  outros  géneros  de  sua 
lavoura. 

Com  desposas  extraordinárias  foram  para  esse  fim 
importados  da  índia  e  da  ÇUna  os  célebres  Coolis.  Foi 
nesta  mesma  occasiSo  que  o  assucar  de  beterraba, 
preparado  por  excellentes  processos  na  Europa, 
ameaçou  destruir,  pela  mais  terrível  das  concurrtacias, 
a  indústria  sacchanna  das  colónias. 

Mas  a  concurrência  é  sempre  a  mola  real  da  perfeiç&o 
na  indústria.  Foi  ella  que  salvou  as  colónias  aa  immi- 
nente  catástrophe.  Eis  o  como  : 

As  mácbmas  e  instrumentos  aperfeiçoados,  que  ser- 
viam no  velho  mundo  para  fabrico  do  assacar  de  beter- 
raba, foram  introduzidas  nas  ilhas  prodnctõras  do 
assucar  de  canna.  'Nessas  fábricas,  dotadas  de  excel- 
lentes apparelhos  mechftnicos,  os  colonos  nada  mais 
tinham  que  fazer  senão  depositar  a  matéria  prima  (  a 
canna )  no  mesmo  estado  bruto  em  que  a  colhiam^ 
sem  necessidade  de  preparai-^  como  antigamente.  Os 
cultivadores  davam-Ihes  em  pagamento  de  seo  tra- 
balho um  rendimento  correspondente  a  5  V«i  pouco 
mais  ou  menos,do  assucar. 

Foi  por  esta  forma  que  a  alliança  bem  combinada 
da  sciencia  e  do  capital  impediram  que  a  emancipai 
çfto  dos  escravos  nas  colónias  inglezas  e  íranceaas 
produzisse  os  funestos  resultados  que  reduziram  a 
república  do  Haiti,  outr^ora  t&o  florescente  e  rica  de 
futuro,  a  um  theatro  insanguentado,  a  um  horrivel  de- 
serto, em  Que  a  barbaria  assentou  seo  throno,  àes- 
truindo  pelo  assassinato,  pelo  incêndio  e  pela  de- 
vastaçftO)  os  grandes  capitães  que  a  indústria,  habil- 
mente favoneadd,  alli  accumulá^. 

Imitem  o  louvável  exemplo  a'aquelle6  sábios  e  in- 
telligentes  capitalistas,  que  salvaram  com  sua  indús- 
tria» servida  por  t&o  admiráveis  máchinas,  a  gran- 
deia  e  riqueza  das  mencionadas  colónias.  Dentro  de 
7  annos  ( e  nfto  é  longo  o  prazo  para  nreparar  o 
terreno )  devem  começar  a  tomar-se  palpáveis  os 
effeitoa  da  lei  de  28  de  septombro  de  1871.  Éstenda-se 
o  manto  da  protecç&o  do  governo  sobre  a  nossa  in- 
dústria manutactureira  e  fabril,  que  apenas  •  começa 
a  insaiar  os  titubaates  passos  n*um  terreno  ouriçado 


142  XXiX 

de  tropeços.  Para  isso  çhame-se  a  immigraçao.  O 
colono  se  fixará  úo  Império,  se  o  ligardes  ao  solo  pelo 
amor  da  propriedade ;  se,  pela  abertura  de  estradas, 
que  unam  o  littoral  aos  centros  productores,  lhe  pro- 
porcionardes meios  de  dar  valor  a  essa  propriedade; 
se  pela  lei  do  casamento  civil  lhe  não  creardes  emr 
baraços  à  família  ;  se  por  uma  sábia  e  previdente 
legislação,  e  por  magistrados  justos  e  intelligentes, 
lhe  assegurardes  os  seos  direitos,  o  gozo  de  suas 
prerogativas,  a  fácil  execução  dos  contractos  que 
celebrar  com  o  governo   ou  com  os  particulares. 

Urge  também,  e  mais  que  tudo,  que  providencieis 
sõb.re  o  futuro  da  nova  geraç&o  de  homens  livres, 
nascidos  depois  da  promulgação  da  lei  que  aboliu  o 
infando  principio — parias  sequUur  ventrem. 

S&o  estes  os  futuros  operários  de  nossas  fábricas, 
os  manufactureiros  que  hao  de  auxiliar  poderosamente 
o    desinvolvimento  da  nascente  indústria  brazileira. 
Degradados  até  agora,  physica  e   moralmente,  pelas 
algemas  do   captiveiro,  os  negros  n&o  podiam  con- 
currer  efficaz  e  intelligentemente  para  augmentar  a 
força  productiva  do  paiz.   O  trabalho  escravo,  im- 
perfeito, infecundo,  e  sem  character  de  espontaneidade, 
resentia-se  da  influência  do  azorrague,  da  amiaça  e  do 
constrangimento.   Educados  agora  na  eschola  da  li- 
berdade, tendo  a  intelligencia  desinvolvida  pelas  lic- 
çOes  do  pedagogo  e  do    párocho,  tereis  'nesses   ho- 
mens, não  meras  máchinas  de  trabalho  forçado,  não 
cegos  instrumentos  obedientes  ao  nuto  do  feitor,  não 
meios  materiaes  de  producção  que  não  entes,  que  more 
peciidi*m,vao,como  outros  tantos  carneiros  de  Panúrgio, 
seguindo  caminho  por  onde  os  leva  o  maioral  do  rebanho 
— e  sim  intelligencias  que  voluntariamente  se   pOem  a 
serviço  de  nobres  idéas,  almas  capazes  de  comprehen- 
der  os  grandes  e  ganerosos  sentimentos,  que  se  unem 
com  suas  irmans  para  levar  seo  contingente  de  suor 
e  de  esforço  profícuo  para  a  obra  eterna  da  civili- 
zação,  para  a  realização  do  destino  final  do  género 
humano. 

E'  com  apóstolos  de  uma  nova  cruzada  que  de- 
vem os  homens  eminentes  do  Bi*azil  olhar  para  os 
filhos  das  escravas,  nascidos  depois  da  lei  emancipa- 
dôra.  Na  obra  social  que  se  vai  inaugurar,  repre- 
sentam aquelles  obreiros  papel  importantíssimo.  São 
elementos  autochthonos  que  muito  de  proveito  hão  de 


XXIX  143 

âer  á  geraç&o  contemporânea  e  á  que  lhe  vai  succeder  ; 
se  nao  forem,  como  é  de  mister,  devidamente  apprecia- 
dos  e  approveitadoSy  converter-^e-h&o  em  armas  des- 
truidoras,que  será  preciso  inutilizar»  em  obstáculos  ao 
progresso,  que    cumprirá  remover. 

Tremenda  será  a  responsabilidade   dos  estadistas 
brazileiros,  se   deixarem  que  esta  semente  de  bene- 
fícios e  prosperidade, degenere,por  falta  de  solo  appro- 
priado  em  que  germine,  ou  por  carência  de  cultivo, 
em    nocivo  joio  ou  esterilisadôra    parasita.    Nao  se 
deixem   os  grandes  homens   que    dotaram  o    Brazil 
de  tao  abençoado  presente,  nao  se  deixem  adormecer 
sob  os  louros,  que  ainda  lhes  verdejam  nas  frontes. 
O  gabinete  de  um  ministro  nao  é  tenda  de  repouso, 
e  sim  laboratório  de  febril  actividade,  onde  se  agi- 
tam   incessantemente    as  questões  capitães  que  têm 
de    decidir  da  sorte  de  uma  nação.   O  homem  pri- 
vado pôde  descançar  no  conchego  do  lar  e  dissipar 
suas  horas  de  ócio  sub  tegmine  fagi^  mas  para  os  que 
têm  a  mao  no  leme  da  náu  do  Estado,  um  momento 
de  incúria  ou  de   negligência  constituo  grave  falta, 
crime  imperdoável,  quiçá,  que  os  arrisca  a  terem  a 
mesma  sorte  que  o  Palinnro,    de   que  fala  o  poeta 
Mantuano.   A  sombra  da  faia  pôde  ser  para  os  Es- 
tadistas tao  perigosa  e     fatal  como   a  da    manceni- 
Iheira. 

Alerta  pois.  Revolvei-vos  ,  Srs.,  no  leito  de  Pro- 
oruste,  que  nao  é  outra  cousa  a  cadeira  curul  da  su- 
prema administração  ;  o  martyrio,  que  soffreis.  para 
servir,  a  p  átria,  valer-vos-ha  a  coroa  immarcessivel 
dos  beneméritos. 

No  próximo  número  começaremos  a  desinvolver 
a  nossa  these,  applicando-a  especialmente  ao  estado 
actual  do  Brazil,  e  á  geração  que  ha  de  constituir  a 
nossa  futura  classe  operária.  pompeo 


IMPRENSA  PERIÓDICA  DA  CORTE 

a  OoiTJreio   do  iDruzil  » 

'Nestes  últimos  tempos,  tem-se  notado  um  conside' 
ravel  desinvolvimento  na  imprensa  periódica  dVsta 
corte.  Várias  folhas  antigas  e  importantes  têm  ainda 
melhorado  a  su  a  redacção,  e  outras  novas,  mui  dignas 
de  menç>lo,  têm  visto  a  luz  pública.  Na  denominada 
imprensa  barata,  appareceram  lidadores  de  valente 


144  XXIX 

palflo,  e  até  na  impressa  de  grande»  dimenoeu  se  toi^ 
nou  dislineto  o  progresso. 

F6ra  injustiça  esquecer  os  grau  dessenriços  prestados 
pelo  Jornal  do  Commértio^  folha  yaliosissima,  que 
tem  sabido  sempre  sustentar-se  na  altura  em  que  o  seo 
prudente  programma  a  coUooou.  Extranha  ú  vicissi- 
tudes partidárias,  têm  sempre 'as  suascolumnas  eetado 
francas  a  todas  as  opiniões,  a  todos  os  debates,  a  todos 
os  interesses'  honestos,,  a  todos  os  legitimoir  direitos. 
Vastos  recursos  tém  sempre  habilitado  essa  empresa 
para  prestar  serviços  reaes  &  política,ao  commércio,  ao 
tráfego  social. 

Saudemos  porem  o  apparecimento  de  mais  um  bri- 
lhante orgam  e  guia  da  opinifio.  O  Correio  do  BrczU^ 
jornal  de  módico  preço  e  grande  formato,  recem^crea» 
do  por  uma  companhia  especial,  acaba  de  inaugurar 
seos  trabalhos  com  distincçao  excepcional.  Bedigido 
por  uma  de  nossas  mais  elegantes  pennas,  coadjuvado 
por  outras  nao  menos  respeitáveis  e  por  correspon- 
dentes adestrados  nas  lides  da  imprensa,  animaao  e 
protegido  por  avultado  número  de  conspícuos  cidadllos, 
organizado  com  todos  os  elementos  desejáveis  para  a 
prosperidade  e  duraçSo  de  empresas  taes,  tudo  &z 
esperar  que  o  novo  pharol  da  civilização  cumpra  o  seo 
honroso  destino. 

Com  quanto  ainda  no  berço,  ja  esta  auspiciosa 
folha  se  vai  distinguindo  por  diversas  condições  jor- 
nalísticas, e  sobretudo  p  or  úteis  e  meditbdos  artigos 
de  redacção.  Parece  que  o  Co^^eio  quer  timbrar  em 
considerar-se  hóspede  na  politiquinha  dos  corrilhos, 
mas  militante  na  grande  politica  em  que  se  estriba  o 
futuro  e  o  verdadeiro  progresso  das  naçGes:  o  estudo 
das  grandes  questões,  de  applicaçSo  prática,  e  que 
prendem  com  a  instrucçao  alta,  média  e  popular ;  a 
scieucia  ;  o  commércio  ;  a  indústria  ;  as  artes ;  o  me- 
lhoramento do  homem  pela  sociedade  e  da  sociedade 
pelo  homem  ;  o  approveitamento  de  todas  as  riquezas 
'  intellectuaes  e  materiaes,  doadas  pelo  Creador. 

Formando  votos  por  que  o  strénuo   campefto  cor- 
responda sempre  ás  fundadas  esperanças  que  já  fe? 
conceber,   fiámos  que  'nelle  achará  a  cau^a  do  pro- 
gresso, ligado  á  ordem,  um  dos  mais  firmes  sustentá- 
culos. 

Tjp.  e  lith.— Imparcial>*Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  Â. 


QUESTÕES  DO   DIA 


N.^SO 


RIO  DE  JANEIRO,  IODE  JANEIRO  DE  1871. 


V  eode-se  em  casa  dos  Srs  E.  &  H.Laemmeil.— Agostinho  de  Freitas  Gui 
aoarârs  &  Ccmp.,  16,  rua  do  General  Camará. —  Livraria  Académica, 
Rua  de  S.  José  n.  119—  Largo  de  Paço  n.  C.— Preço  200  reis. 

O  1»  volume,  com  20  números  e  peito  de  400  paginas— 3^000. 


OITAVA  CARTA  DE  CINCINNATO  A  SEMPRONIO. 
Rio,  29  de  dezembro  de  1871. 

Respeitável  amigo. 

Nosso  Sr.  te  dê  muito  boas  festas  na  alma  e  no  corpo, 
glória,  paz  de  espírito  e  prebendas  largas.  Se  nada 
d'isto  te  constitue  felicidade^  consulta  Varro,  p  qual 
desinvolve  288  opiniões  sobre  o  verdadeiro  constitutivo 
d'ella ;  e  a  que  mais  te  approuver  para  estréa  de  novo 
anno,  essa  te  desejo. 

Tenho  lido  com  inexcedível  interesse  as  tuas  óptimas 
cartas,  relativas  â  Iracema,  Pena  é  que  tao  magistral 
dicção,  tamanha  competência,  tao  intelligente  critica, 
se  nao  applique  a  mais  dignos  assumptos :  6  estudo  dos 
escriptores  de  boa  nota,  a  appreciaçao  de  seos  defeitos 
e  suas  bellezas,  está  invocando,  em  proveito  daslettras, 
a  tua  attenção  :  e  affigura-se-me  que  uma  brilhante  pá- 
gina te  será  reservada  na  nossa  história  crítica.  Por  ahi, 
o  uso  é  deprimir  vagamente  e  sem  anályse  a  obra  do 
auctor  antipàthico ;  ou  também  passar  calandra  sobre  o 
panno  mais  bruto  para  lustral-o,<  applicar  ao  livro 
mais  pífio  certos  termos  encomiásticos  e  bombá.vticos, 
taes  como :  estupendo  primor ;  esmalte  de  eloquência  e 
l)elleza  ;  au^re  de  perfeiçno  ;  fecho  de  abóbada  litterária: 
fion  plvs  ultra  da  sapiência  ;  cinta,  capitel  e  coroa  da 
columna  das  lettras 

Ora,  toda  esta  algaravia,   esta  cascalheira,    o  que 

significa  é  o  dialecto  do  elogio  mútuo,  ou  uma  bajulação 

torpe,  ou  uma  ignorância  philauciosa  com  que  vãos  sons 

perteadem   incobrir  deficiência  de  ideas  e  incompetência 

Ae  julgamento. 


146  XXX 

Por  isso,  quando  as  palavras  de  um  crítico,  honesto 
e  intelligente,  allegam  e  provam,  dissecam  e  paten- 
teiam, argumentam  e  julgam,  estudam  e  insinam,  para 
logo  se  tornam  convincentes  e  auctorizadas,  e  a  sua 
sentença  é  confirmada  pelo  Supremo  Tribunal  de  Jus- 
tiça da  Opinião,  Taes  sao  os  triumphos  reservados  a 
pennas  como  a  tua. 

A  minha  canoa  ahi  vai  singrando  na  alheta  da  tua 
nau.  Onde  eu  atiro  um  piparote,  disparas  tu  o  teo  ca- 
nhão Krupp.  Vamos  continuando  este  divertimento 
pyrotéchnico,  e  abramos  novamente  o  Til. 

Já  aguentei  a  leitura  do  que  o  auctor  chama  1*.  vo- 
lume, em   15  folhetinsinhos.    Para  indigestão,  já  ba»- 
ta,  e  direi  mal  aos  meos  peccados,  quando  tiver  de  ia- 
reptar  o  denominado  2.° 

E'  isto  um  acervo  de  erros  e  defeitos,que  nem  por  des- 
cuido resgata  o  bruxulear  de  uma  sombra  de  belleza. 

O  inrôdo  é  chato.  O  diálogo  desnaturai,  impróprio, 
forçado.  As  imagens  sao  uma  incrível  profusão  de  dis- 
parates. A  grammática  mais  elementar  geme  a  cada 
linha.  Os  characteres  dos  personagens  sao  todos  repel- 
lentes,  mal  trajados  e  peor  traçados.  Aqui  os  velhos 
sao  creanças,  e  as  creanças  sao  velhos.  Descobre-se  a 
cada  momento  o  inaudito  tractear  da  imaginação  para 
gemer  sem  produzir  senão  monstros,  como  seio  exhaus- 
to  que,  ao  ser  sorvido,  só  deita  sangue.  A  linguagem 
compOe-se  de  uns  archaismos  inhabilmente  extrahidos 
de  elucidários,  e  de  gallicismos  de  palmatória,  tudo  cal- 
deado com  uns  neologismos  que  se  nao  comparam  com 
cousa  alguma  senão  com  a  eschola  senial,  na  qual  dSo 
Ka  senão  um  mestre  e  um  discípulo...  que  é  elle  mesmo. 
A  invocação  a  símiles,  das  sciencias,  nao  faz  senão  re- 
velar permanentemente  e  mais  fundamental  imperícia 
em  todas  ellas. 

De  quanto  precAe,  e  de  muito  mais,  fácil  fora  dar 
provas  aos  cachos.  O  auctor  terá  lá  uns  méritos  quaoe* 
quer  ;  é  de  crer ;  mas  da  língua  em  que  escreve,  do 
instrumento  que  toca,  nem  a  escala  conhece :  e  perten- 
der  alturas  épicas  quem  carece  de  conhecimentos  radi* 
mentares,  é  o  mesmo  que  aspirar  a  tocar  variações  de 
Thalberg  em  tambor  ou  berimbau,  O  perfeito  manu- 
sear de  um  idioma  é  tao  indispensável  condição,  para 
quem  affronta  a  luz  pública,  que  nos  diz  o  mestre: 

Em  Bumma,  sem  a  lingua»  o  mais  divino  auctor» 
laça  elle  o  q^e  fizer,  é  péssimo  escriptor. 


XXX  147 

Que  será,  quando  á  ignorância  da  língua  se  une  a 
incoherencia  das  idéas,  e  o  perenne  insulto  ao  senso 
commum  ?  1 

Esta  nossa  tarefa  ha  muito  se  podéra  dar  por  íiiida, 
se  se  tractasse  somente  da  penna  analysada  ;  mas  a  es- 
chola  do  m&o  gosto,  e  do  absurdo  ataviado  com  o  nome 
(loi  modernice,  vai  indo  de  foz  em  fora,  e  importa  que  se 
ponha  dique  a  um  proselytismo  stulto  e,  com  capa  de 
progressista,  tremendamente  retrógrado.  Se  ficarem  ce- 
gos, sejam  só  os  da  peor  espécie  :  os  que  se  obstinam 
em  n5o  querer  ver. 

Admiremos  agora  as  bellezas  do  romance,  dado  por 
modelo  do  género.  Tinha  eu  um  de  dous  systemas  para 
seguir :  ou  dar  as  amostras  de  egual  natureza  colhidas 
em  todo  o  volume, ou  il-o  successivamente  lendo  e  anno- 
tando  algumas.  Prefiro  o  segundo  expediente,  despre- 
gando aliás  08  nove  décimos  das  perfeições  que  doeste 
opulento  erário  puUulam. 

O  capítulo  1®.  do  livro  começa  assim: 

«  —  Eram  dous :  elle  e  ella.  » 

Ja  se  vê  que  se  toma  indispensável  travar  conheci- 
mento com  a  ella^  e  com  o  elle. 

Vamos  a  vér  quem  era  a  ella^  e  copiemos  para  isso  a 
de.scripçao  dos  seos  movimentos. 

Ella,  «  buliçosa,  saltita ;  scintilla  do  prazer  de 
pular  e  currer  ;  voluteia  ;  deita  a  currer ;  de  uma  cur- 
rida  alcança  a  tronqueira ;  sobe  de  salto  pelas  travessas; 
balança-se  com  prazer  infantil ;  ia  aos  saltos ;  saltou 
da  tronqueira ;  alcançou  de  uma  currida  ;  os  pulos  que 
dava  etc.  etc.  )> 

O  leitor  cuida  naturalmente  que  entra  em  scena  uma 
cabrita ;  engano  d'alma  ledo  e  cego  :  é  uma  raparigota, 
uma  trapalhonasinha  muito  despresivel,  muito  mal 
oreada,  protogonista  muito  das  do  gosto  do  illustre  escri* 
ptor,  pois  vai  parecendo  irmã  gécflea  de  outra  heroina 
do  Gaúcho^  e  de  outras  mais. 

A  descripção  da  cabrita  é  magistral,  e  com  quanto 
muito  miudinha,  sempre  interessante,  como  de  costume. 
Admiremos  estes  pormenores  eminentemente  poéticos  . 
Eu  farei  a  pergunta,  e  o  ])obre  romancista,  ipsis  verbis^ 
me  dará  a  resposta. 

—  PERGUNTA :  —  Como  vai  ella  de  saúde  ?  — 
Muito  boa,  muito  obrigado,  a  O  viço  da  saúde  rebentch- 
jhe  no  incarnado  »  Podia  ser  symptoma  de  congestSo 


48  XXX 

cerebral,  mas  nao  é  ;  isso  fica  reservado  para  outras 
figuras. 

—  PERGUNTA  :  —  Como  tem  ella  a  cara  ?  —  Mais 
avelludada  que  a  assucena  escarlate  recem-aheria  ALLI 
com  os  orvalhos  da  noite.  »  Estes  orvalhos  da  noite 
abrindo  assucenas  escarlates  representam....  analogica- 
mente.... representam....  para  a  outra  edição  saberemos; 
mas  o  sôbredourado  de  todos  estes  descobrimentos,  e 
que  tem  um  sentido  mirífico,  é  o  recem-aberto  alli. 

—  PERGUNTA : — Gomo  sao  os  olhos? — «  Límpidos  t 
brilhantes^  e  olhar  scintillante,  e  que  retalha^  com  o 
gume  »  Mas  tudo  isto  é  nada.  Queres  saber  que  mais  ? 
Escuta  : 

<(  Os  grandes  olhos^  NEGROS,  CLAROS  e  serenos^ 
como  um  LAGO  CRYSTALLINO  IMMERSO  NA  SOM- 
BRA,  tinham  a  DIAPHANA  PROFUNDIDADE  DO 
CÉO,    cheia  de  inUvos  e  mystérios.  » 

Assumpto  de  profunda  meditação!  meditem  e  lucrarão. 

Temos  1®*  uns  olhos  que  são  negros  e  ao  mesmo  tempo 
claros,  com  privilégio  de  macha-temea;  2^*.  olhares  que 
sao  serenos  e  retalham  com  o  gume;  3°.  lagos  crystal- 
linos  que  quando  se  immergem  na  sombra  ficam  serenos^ 
como  os  olhos  da  cabrita  ;  4°.  olhos  negros  com  profun- 
didade diáphana  comparável  nada  menos  que  com  a  do 
cerúleo  céo;  5°.  profundidade  do  céo,  cheia  de  iulêvos. 
Admirável !  Em  menos  palavras,  ninguém  diz  mais 
cousas.  E'  um  pào  por  um  olho. 

~  PERGUNTA  :  —  Como  é  o  nariz  ?  —  Caret, 

—  PERGUNTA  :  —  E  a  bôcca  ?  —  «  Mimosa  e  breve, 
conhecia-ee  que  fora  vasada  no  molde  da  bejo  e  do  snrriso  » 
Eu  aqui  tinha  17  cousas  que  dizer,  mas  nao  digo  nada, 
que  é  melhor  ;  e  passo  de  largo. 

— PERGUNTA  : — Como  é  o  surriso?— O  seo  surriso  é 
com  os  lábios!  o  que  nos  evita  grandes  perplexidades  de 
interpretação  :«  Noji^esco  surriso  dos  Idiios  »  Um  surriso 
dos  lábios  é  ja  bem  bom,  mas  um  suitíso  fresco,  muito 
melhor;  e  em  todo  o  caso,  é  appropriado,  porque  ja  nos 
vai  insinando  que  a  história  nade  ser  fresca,  e  que 
fresca  é  a  bregeirinha...  (Perdão, que  a  palavra  é  do  livro; 
logo  veremos  )  Lê-se  'noutra  parte  que  ella  «  se  banha 
em  um  suí^^iso  de  canduras  l  Percebes  ? 

Note-se  mais  que  a  subjeita  leva  a  vida  a  rir  ;  ainda 
que  lhe  digam  :  O'  menina,  muito  riso  pouco  .siso,  faz 
ouvidos  de  mercador,  e  vai  rinchando  para  deante. 


XXX  149 

—  PERGUNTA: —  A  voz  ?  —  «  Parecia  raiiger-lhe  nos 
lábios  »  O  leitor  faz  idea?  Pois  então  tenho-lhe  inveja. 

— PERGUNTA:  — E  os  cabellos?  — «  Negros  cacheados 
(  como  sao  ?  sao  espigados  ?  )  longoi^,  que  lhe  estavam 
mettendo  figas,  e  zombando  das  suas  pertenções  a 
rapaz!  » 

—  PERGUNTA  :  —  E  o  vestuário  ?  —  <c  Jaqueta  de 
flanella  escarlate^  mangas  compridas,  desabotoada  sobre 
utn  camisote  /iso,  collarinhos  largos  rebatidos  sobre  os 
honibros  como  os  dos  meninos  da  eschola.  Saia  de  çhita 
fMreita,  » 

—  PERGUNTA  :— E  o  toucado  ?— <(  Çhapeo  de  palha 
fie  coco  íronçnda  » 

—  PERGUNTA  :  —  Eo  calçado?— a  Cothurnos  gros- 
SOS  de  couro  de  veado  tão  altos  que  pareciayn  botas. 

—  PERGUNTA:— Altura?— ((  Pequeuji  e e 

também  de  pequena  cstaturan 

—  PERGUNTA  : — A  cinctura  ? —  Como  em  francez  se 
chama  a  isso  la  taille^  muito  favor  lhe  faz  o  nosso 
neólogo  em  masculinizar  o  vocábulo.  Nós  temos  talhe^ 
para  significar  estatura,  feição  geral  do  corpo  ;  mas 
as  obras  de  Sánio  insinam-nos  que  elle  naturalizou  em 
portuguez  a  cinctura  dos  francezes. 

Ora  pois :  era  «  tão  delgada  e  flexível  no  talhe^  que 
dobravorse  como  o  junco  da  varze  »  Conheces  esta  varzc  ? 
tíu  lambem  nno  ;  o  caso  é  que  se  dobrava  como  junco, 
seja  lá  d'ondp  for  ;  mas  acaso  para  essa  flexibilidade 
será  indispensável  enorme  delgadeza  ? 

C mtinuemos  com  a  descripçílo  erótica:  n  As  forma 
da  graciosa  pubescencia,  que  um  corpinho  justo  debu- 
çhara  etn  doce  e  palpitante  relevo  y^  Entre  pubescencia 
e  puberdade  ha  cartas  differencinhas,  que  não  s!Io  para 
aqui,  c  lirnito-me  a  dizer  que  é  preciáft  mais  cautela  no 
emprôgo  dos  vocábulos,  quando  se  entra  a  dar  cabeça- 
das ptíUis  sciencias  cm  que  se  é  hóspede,  e  a  que  se 
ousa  ir  podir  símiles.  Quanto  a  todo  o  resto,  sim 
senhor ;  está  traçado  pittorescamente  com  a  penna  de 
Parnv. 

—  PERGUNTA  —  Manhas  e  dotes  physicos  ?  —  «  Li- 
g-eira,  buliçosa,  gárrula,  scintillante,  esbelta,  gracioso 
vulto,  movimíMitos  p.ítulantes,  mãos  pequeninas,  ore- 
lhas com  conchinhas,  espanejando-se  ! !  >j 


150  XXX 

«  Imprimia  certa  nerxmra  a  seos  movimentos »  Isto 
vem  em  tigella  ou  em  garrafa  ?  Nervura  de  movimentos ! 
As  scíenciab  naturaes,  por  culpa  da  cabrita,  andam  em 
polvorosa  :  danos  a  physiologia  pupillas  injectadas» 
a  entomologia  chrys&lidas  d'argilla,  a  anatomia  formas 
de  pubescencia,  a  botânica  nervuras  de  movimentos,  e 
outras  bellezas  mais.  Nervuras  eram  em  portugnez  os 
filamentos  que  sobresaem  nas  folhas  ou  pétalas  das 
plantas  :  teremos  de  ora  avante  movimentos movi- 
mentos filamentosos,  impressos  pelas  cabritas. 

—  PERGUNTA— Os  modos  e  índole  d'ella?— Agor» 
o  verás  :  Tinha  «  affoutezas  de  um  traquinas  !  viva- 
cidade de  faceira  (que  termo  ridicvio) !  capetinha  de  mil 
peccados  I  olhardes  bregeiros  !  tregeitos  garotos  de  um  cai- 
pirinha  I  » 

«  Arrostou  a  sanha  de  um  assassino  cujo  senho  incu- 
tia pavor ))  Elegante :  matrimoniemos  esta  carranca 
com  aquelle  furor,  este  senho  com  aquella  sanha. 

((  Deu  uma  pÍ7*oeta  » — Sempre  ouvi :    fazer  piroeta. 

(( Sua  existen>cia  tem  a  constância  da  volubilidade.  » 
Estes  2  substantivos  tiveram  a  honra  de  se  encontrar 
pela  primeira  vez,  e  fizeram  uma  careta  um  ao  outro. 
Mas  ha  melhor: 

«  Na  vaga  fluctuaf;áo  dessa  alma^  como  no  seio  da 
onrfa,  SC  desenha  o  mãindo  que  a  cerca.  A  sombra  apa*ja 
a  luz.  Uma  forma  desvanece  a  outra.  Ella  é  a  imagem 
de  tudo^  menos  de  si  própria,  »  Tudo  isto  é  falso  como 
Judas.  As  ondas  nao  desenham  o  mundo  que  as  cerca. 
Sombra  diminuo  a  luz,  mas  não  ó  apagador.  Se  a 
bregeira  é  como  diz,  de  si  própria  é  que  a})enas  será 
imagem,  e  nao  de  outra  alguma  cousa. 

—PERGUNTA—  Como  ó  a  alma  da  moça  V— A  alma 
tem  seiva,e  então  esta  seiva  brota-lhe  pelos  lúzios:  a  Nos 
olhos  brotava-lh^  a  seiva  d^almaio  Aqui  temos  mais  uma 
novidade :  este  último  plural,  este  lhes  nao  tem  outro 
substantivo  a  que  se  refira  senão  aos  lábios  ;  e  portanto 
a  linda  phrase  completa  é :  «A  seiva  da  alma  d'ella 
brotava  aos  lábios  nos  olhos. »  Ergo,  os  sentimentos 
da  alma,  traz  ella  escriptos  na  palma. 

Mas  aquella  alma  estupenda  não  é  só  aquillo :  e 
também  «  nympha  celeste  a  romper  a  argilla  de  sua  for- 
mosa chrysálida.  »  Agora  aqui  temos  uma  metaphy- 
sica  entomológica,  descoberta,  ao  que  parece,  no  Ceará. 
Sempre  se  tinha  crido  que  os  lepidópteros,  antes  de  :5c 


XXX  lõl 

mudarem  em  borboletas,  e  antes  mesmo  de  serem 
insectos  perfeitos,  rompinm  um  ovinlio  tao  frágil  e 
delicado,  que  houve  um  basbaque,  çLamado  Réaumur 
que  attribuiu  o  nome  de  ehrysálidas  (de  chrusoSy  ouro) 
aos  brilhantes  áureos  e  argênteos  reflexos  d'este8  in- 
sectosinhos;  cores  produzidas  pela  decomposição  que 
86  opera  na  luz,  ao  atravessar  uma  membrana  temiis- 
sima  que  incerra  as  ehrysálidas. 

A  comparação  com  a  alma  da  moça  está  perfeita :  o 
invólucro  da  nympha  é  de  argilla,  ou  barro,  ou  padra, 
ou  bronze,  emhm  tale  qual  como  o  objecto  comparado. 
E  ainda  estos  entomologias  sao  o  menos.  Temos  me- 
lhor :  Á  nympha  rompe  a  argilla  da  sua  chrysdlida ! 
Minha  Xossa  Senhora!  Cuida  pois  que  chrysdlida  signi- 
fica invólucro  da  nympha.  Sapientíssimo  !  Nympha 
e  chrysàlida  eram,  até  hontem,  o  mesmo  bicho;  mas  de 
ora  avante,  a  nympha  fíca  sendo  a  gemma  d'ovo  e  a 
chrysàlida  a  casca  d'argilla  ;  tudo  i>to  em  honra  das 
conveniências   da  alma   da  cabrita. 

E  ainda  n^o  fíca  por  alli  a  tal  aima  desalmada ; 
nem  as  mágicas  da  Pêra  de  Satanaz  dão  logar  a  tantas 
transformações.  Queres  ver  mais  cousas  que  é  esta 
alminha  sancía  V  Lê  : 

K  Aquella  alma  tem  jaceias  como  o  diamante;  iria-se 
e  accende  uma  cor  ou  outra^  conforme  o  raio  de  luz  que 
a  fere.  -  Aqui,  pela  officina  do  lapidàriu,  penetrámos 
no  gabinete  de  physica.  Diií-se-nos  que  naturalmente 
aquella  alma  tem  facetas,  como  naturalmente  tem 
facetas  o  diamante.  Ora  ha  iim  equivoco.  O  Padre 
Manoel  Bernardes  [Luz  e  Calor  pag.  309)  diz  :  Um 
diamante  com  muitas  facetas^  e  assim  se  exprimem  outros 
clássicos,  mas  nunca  alludem  ao  diamante  natural,  e 
sim  ao  lapidado  :  o  artista  que  lavra  o  diamante  vai, 
para  augmentar-lhe  o  brilho,  procurar  as  faces  em  que 
elle  .se  cristallizou,  e  essas  superfícies,  assim  appresen- 
tadas  pela  arte,  é  que  se  chamam  facetas.  Se  já  a  ima- 
gem assim  começa  falsa,  mais  falsifícada  ainda  se  os- 
tenta na  segunda  parte.  ^  As  diversas  cores  do  prisma, 
ou  do  spectro  solar,  nao  •  provêm  do  raio  de  luz  em  si 
mesmo,  mas  sim  da  sua  direcção  ;  é  esta  que  gera  a 
dispers&o  das  várias  cores. 

Oh  minha  alma!  De  tantas  qualidades  estrambóticas 
com  que  te  ataviaram,  que  ficou?  nada. 

Alma  minha  gentil,   que  te  partiste! 
'  Vide :   formas   de   pubescencia). 


152 

Eis-ahi,  parece-me,  sufficientes  amostras  do  modo 
como  o  nosso  romancista  retrata  as  suas  persouagena. 
Quanto  'nessas  trauscripções  se  admira,apparece  logo  ao 
intróito  do  seo  Til^  e  as  outras  figuras  vao  sendo  pintadas, 
jase  vê,  com  análogas  tinctas.  Toma  elle  por  observação 
fina,  imagens  elegantes,  descripção  pittoresca,  o  que 
nao  é  senão  esforço  impotente,  falso  dizer,  orientalismo 
degenerado,  portuguez-tupy. 

O  Sr.  José  d'  Alencar  nunca  retrata  ^enHO  figuras 
congéneres,  as  qiiaes  são  todas  vasadas  no  nieárao  ca- 
dinho. Seos  pincéis  occupam-se  mais  dos  accessórios,  e 
esses  geralmente  grutescos.  Faz  lembrar  a  mania  do 
tempo  de  Luiz  XV :  os  retratistas  pouco  se  importavam 
com  a  similhança  ou  com  a  natureza:  todas  as  mulheres 
tinham  olhões,  boquinhas,  e  faces  redoudris  onde  a 
saúde  lhes  rebentava  no  incarnado  ;  só  se  conheciam  as 
differenças  em  estarem  trajadas  à  Diana,  à  Flora,  á 
Juno,  ou  á  Amphitrite,  como  os  homens  à  Marte,  â 
Acliilles,  (>u  á  Automedonte:  ficavam  na(^ retratos,  mas 
painéis  ridículos. 

O  nosso  Apelles  litteràrio  julga  que  para  o  romance» 
para  a  história  imaginária  de  um  viver  curivnte,  hade 
sempre  exhibir-nos  figuras  div^mtnraos,  impossíveis,  o 
que  é  antípoda  dos  preceitos  da  arte.  Ao  que  elle  aspira 
é  a  descrever  sempre  umas  nionsiruo.idade.s  humanas. 
Nero,  se  Plínio  nao  mente,  teve  a  phantasia  do  mandar 
que  o  piatassem  'nurr.a  tela  de  líOp/is  de  altura,  colosso 
que  um  raio  destruiu.  As  personagens  do  àSr.  Alencar 
sâo  telas  Neronianas,  fulminadas  polo  gôáto  e  pela 
opinião. 

Dêmos  esto  poncto  por  tractado,  o  passaremos  á  coa- 
tinuaçao  do  estudo  do  Til :  ma.-;  pois  que  esta  carta  ja 
ultrapassou  as  dimensões  lícita^-,  fiqpe  a  discussão 
addiada. 

Too  respeitoso  admiradur 

ClNClNNATO. 


XXX  153 

Ifçne:e  cie  Oastro. 

Tragedia  de  Júlio  de  Castilho.  (*) 

Júlio  de  Castilho,  o  priraogéaito  do  exímio  poeta  que, 
110  dizer  de  Cainillo  Castello  Branco,  é  honra  da  pátria^ 
honra  dos  que  o  presam  e  amara  a  patina,  comprehende  â 
justa  que  é  dever  seo  não  desdourar  o  lustre  e  glória  do 
nome  paterno ;  e  em  tão  nobre  empenho  porfia  por  mos- 
trar que  lhe  Cíihe 

et  par  droit  de  coiujuétc,  et  par  droit  de  naissance, 
umdus  mais  coaspíciíos  lugares  entre  os  laureados  es- 
criptores  que  ora  abrilhantam  e  opuleutam  as  lettras 
portuguezas. 

Dezenove  aunos  hao  passado  de^iih^  o  dia  em  que  o 
Sr.  Visconde  de  Castilho  offereceu  ao  público  as  primí- 
cias poéticas  de  seo  filho  mais  velho  :  as  bellas  estrophes, 
publicadas  na  Hcvolução  de  Septembro,  de  6  de  oclnbro 
de  1852. 

Reveladora  d^auspicioso  estro,  foi  essa  poesia  inthe- 
sourada  no  V  Volume'  (infelizmente  o  único)  da  série 
.segunda  da  Lysia  Po(»7?ca,excellente  chresí»raathia  dada 
à  estampa  no  Rio  de  Janeiro,  no  anno  de  1857,  por  uma 
associação  de  mancebos,  recommendaveis  pela  intelli- 
gencia,  nao  menos  que  pelo  amor  ao  estudo. 

Lidador  esforçado,  Júlio  de  Castilho  nao  abandonou 
'nessfís  dezenove  annos  o  estádio  das  lettras  ;  e,  sen- 
tindo-se  foríe  p<ílos  estudos  que  invalescemas  íntelli- 
gencias  de  fina  têmpera,  abalançou-se  a  um  commetti- 
mento  realmente  gií^unteo,  trasladando  novamente  para 
a  t{-la  ilraiuática  os  tétricos  amores  e  a  morte  escura  da 

inisera  e  mesquinha, 
que  di'pois  de  ser  morta,  foi  minha! 

Alem  de  varias  proJ;icçv5v»s  litt;írárias  de  género  di- 
verso, em  cujo  número  se  inclue  o  romance,  que  nao 
conhecemos,ma5  de  que  fa;:  expressslmençlo  o  auctor  do 
Bospiejo  histórico  da  IxUcratnra  clássica,  grega,  latina  e 
poríuguez  í,  romance  em  q:in,  segundo  a  opinião  d'esso 

(•)  IVla  última  vc/.  ohsfirvinvmos  quo  nos  não  leconhccemos  com  di- 
reito ilc  alterar  uma  vírgula  nos  e>cri|)los  dos  illustrados  coUaboradores 
d*Còta  publicjivào.  Pertencem  t>)dos  a  plêiada  dos  nossos  primeiros  esorip- 
lore>,  e  desraliido  seria  o  exercício  de  qualquer  censura,  mesmo  quando 
legitimas  considerações  nos  induzissem  a  pedir  licença  para  introduzir 
alguma  modilicaçio.  Entre  os  doas  useolhoa  oppostos,  o  leitor  concordará 
«m  que  ^obrc  tudo  nos  rnmpre  e\itar  o  do  parecermos  desrespeitoso  para 
"^om  os  nossos  companheiros  de  trabalhos. 


154  XXX 

escriptor,  o  esposo  de  Ignez  de  Castro  intentnu  eteruisar 
em  versos  seos  infortúnios,  celebrando  a  memória  da 
innocente,  fermosa^  humilde  e  sancta  (1) ;  da  Castro  de 
António  Ferreira,  a  primeira  tragédia  clássica  conhecidi^^ 
na  península  liispiinica,  conforme  a  esclarecida  nppre- 
ciaçao  de  Pinheiro  Chagas,  e  da  Castro^  de  Domingos 
dos  Reis  Quita,  que,  no  pensar  de  um  crítico,  bem  prova 
que  o  poeta  sabia  com  eg^ual  harmonia  tocar  a  trombeta 
heróica,  como  a  frauia  bucólica  ;  bastara  o  simples  í'on- 
fronto  da   Ignez  de  Castro^  de  Júlio  de  Castilho,  com  a 
Nova  Castro^  do  João  Baptista  Gomes,  tragédia  tantas 
vezes  victoriada  por  iiinúmeros  espectadores  commovi- 
dos  até  as  làgryraas,  ]nira  otferecer  a  medida  da  impor- 
tância e   alcance  de  uma  justa  Utterária,  na«^  condiçAes 
perfunctoriamente  aponctadas. 

Nós,  a  quem  fallecem  forças  para  intrar  'nesses  »'er- 
tames,  mas  a  quem  sobeja  outhusiasmo  para  applau- 
dil-os,  quando  inspirados  por  generosa  emulação,  accei- 
tàmos  com  alvoroço  de  prazer  o  obsequioso  convite  com 
que  se  dignou  de  distingui r-uos  o  Sr.  Conselheiro  José 
Feliciano  de  Castilho;  e  'nessa  disposição  de  ânimo 
assistimos  hoje,  no  Club  Fluminense^  à  leitura  da  tra- 
gédia Ignez  de  Castro,  de  Júlio  de  Castilho. 

Nao  basta  seguramente  uma  audição  para  juljrar  tra- 
balho de  ordem  tao  elevada  o  valor  tao  sabido  :  j>ra/,-nos 
romtudo  externar  .singelamente  as  impressões  qiu»  laais 
vivazes  em  nosso  espirito  se  conservam,  tanto  niaJN  que 
lemos  a  satisfação  de  saber  que  nos  achámos  do  accòrdo 
com  a  maioria,  se  nao  unanimidade,  dos  cavalheiros 
presentes  á  selecta  reuuiflo  convocada  pelo  Sr.  Cnn-^p- 
Iheiro  Castilho. 

Affigura-se-nos  que  a  composição  Utterária  de  Juho  úe 
Castilho  nao  é,  rigorosamente  falando,  uma  tragédia  ; 
é  antes  ura  drama  da  eschola  Shakespeariana,  realçada 
por  amplo  trabalho  ne  restauração  histórica  da  époch» 
em  que  viveram  os  personagens  que  o  poeta  illumina 
com  a  irradiação  de  seo  fulgida  talento. 

Em  seo  complexo  é,  pois,  «>  trabalho  wna  íni"?>i<7 
rfiuisi  prophéíica  do  passado,  'is  rpzcs  intuição  mais  difpr 
cultosa  que  a  do  futuro.  [2) 

fl)  Verso  da  tragedia  Castro,  de  A.  Ferreira. 

(2)  Palavras  do  Sr.  A.  Herculano,  no  nionumentMl  EPrrtco, 


XXX  155 

Tractando  assumpto  jà  tractado  por  e^fcriptores  de 
alto  mérito,  inclinãmo-nos  entretanto  a  pensar  que  Júlio 
da  Castilho  logrou  appresental-o,  á  parte  analogfias  ine- 
▼itayeis,  sob  novo  e  quiçá  mais  elevado  aspecto 

O  infante  D.  Pedro  é  o  mancebo  ardente  e  impetuoso, 
e  n&o  o  algoz  sanguisedento  em  que  se  transmudou,  ao 
ver  morta  ás  mãos  de  assassinos  a  mal-aventurada 
esposa. 

AflEbnso  IV  nao  é  o  cego  instrumento  de  pérfidos  conse- 
lheiros; é  um  rei  tímido,  irresoluto;  capaz,  porem,  de 
movimentos  generosos,  se  a  voz  da  esposa  estremecida 
lhe  fala  ao  coraçfto. 

D.  Beatriz  é  uma  bella  creaçao  do  poeta.  Júlio  de  Cas- 
tilho apresenta-a  como  a  figura  rediviva  de  Isabel,  a 
sancta,  a  que  trocara  em  frescas  rosas  no  regaço  bem* 
dicto  esmolas  preciosas.  (I) 

Pacheco,  o  mais  incarniçado  perseguidor  de  Ignez  de 
Castro,  n&o  é  simplesmente  um  verdugo  cruelissimo  ;  é 
o  político  vendido  ao  ouro  de  Castella  e  o  rival,  sempre 
humilhado,  do  infante  D.  Pedro. 

Sao,  se  a  memória  nos  nao  falha,  dezoito  os  perso- 
nagens que  mais  ou  menos  activamente  intervém  no 
desinvolvimento  da  acção  do  drama;  falando  todos  con- 
forme a  épocha,  adaptada  porem  a  linguagem  ás  neces- 
sidades scénicas  por  forma  que,  conservando  no  intender 
de  juizes  competentes  o  .^abor  do  estylo  do  século  XIV, 
pode  ser  entretanto  bem  comprehendida  sem  auxilio 
de  glossários  e  léxicous. 

Pareceu-nos  bem  combinada  e  deduzida  a  acção,  e 
habilmente  preparadas   as  situações  e  lances  de  effeito. 

Toda  a  composição,  exceptuada  a  carta  de  D.  Ignez  ao 
infante,  é  escripta  em  versos  soltos  aprimoradamente 
trabalhados. 

No  1'.  acto  a  narração  do  episódio  da  caçada,  que 
termina  pela  morte  do  javardo,  deparou-nos  bsllissimos 
versos  onoraatópicos. 

Tao  notável  pela  elevação  do  pensamento,  como  pela 
belleza  da  expressão,  é  a  nosso  ver,  a  scena  do  2*  acto, 
entre  o  infante  D.  Pedro  o,  Beatriz,  em  que  a  virtuosa 
rainha  descreve  o  povo  como  deve  ser  considerado :  não 
a  villanagem,  mas  a  força  o  o  poderio  dos  estados  cons- 
tituidos. 


(1)  Versos  do  Sr.  visconde  de  Castilho. 


j 


156  XXX 

A  despedida  do  infante  a  D.  Igiiez,  no  í**  acto,  evo- 
cou em  no.sso  espirito  a  lembrança  da  scena  incantadora, 
em  que  Julieta,  á  varanda  do  palácio  paterno,  banhada 
a  fronte  gentil  pelos  argênteos  raios  da  lua,  ouve  o  ci- 
ciar melodioso   das  phrases  apaixonadas  de  Romêo  ! 

E  a  essa  lembrança  associou-se  a  saudosa  e  indelével 
recordação  de  Rossi  e  da  Palladini,  o  grande  mestre  e 
a  illustre  alumna  da  verdadeira',  da  sublime  arte  dra- 
mática. 

Deixando  sunimariamente  indicadas  algumas  das 
scenas  de  que  conservamos  mais  vehemeute  impressão, 
nao  dissimularemos  comtudo  que  o  modo  admirável 
como  foi  lida  a  composição  levou-nos  talvez  a  louval-a 
sem  restricções  ;  sendo  aliás  possivel  que,  se  calma  e 
pausadamente  a  houvéramos  estudado,  nos  occorresse 
algum  reparo,  embora  de  valor  mínimo,  se  valor  de 
feito  tivesse. 

Nem  bem,  nem  mal  poderá  porem  advir  da  mani- 
festaçno  de  nossas  primeiras  impressões  a  respeito  da 
tragédia  Ignez  de  Castro. 

Como  taes  nos  sejam  portanto  acceitas  estas  breves  e 
despretenciosas  palavras,  que  não  tem  nem  podem  ter  a 
arrogada  pretenrfio  de  constituir  julgamento  áceuca  da 
superioridade,  absoluta  ou  relativa,  da  tragédia  de 
Júlio  de  Castilho  sobre  as  de  A.  Ferreira,  Quita  e  Bap- 
tista Gomes,  tão  altamente  aquilatadas  no  conceito  de 
críticos  de  legitima  competência. 

E,  pois,  como  synthese  do  que  havemos  escripto, 
diremos,  fippropritindo-nos  das  expressões  do  erudito 
•commentador  da  trnducçao  paraphrástica  dos  Amores 
de  Ovídio  :  «  Ficar  ab  lixo  de  tao  pi-echiros  predecessores, 
não  é  de.snr  ;  em  os  egaalar,  li:i  mérito  ;  um  vencel-os 
íílória.  )) 

ilio  d.í  Janeiro,  31  le  d;\:eiabro  de  1871. 

Gil   Braz. 


XXX  15T 

Prograrama 

PARA 

A  INAUGURAÇÃO  DA  ESTATUA  DE  BOCAGE 

NA 

ClDADli  DE  SETÚBAL 

A  commissão  central  do  Rio  de  Janeiro,  promotora  da 
subscripçao  para  se  erigir  a  estátua  de  Bocage  em  Setú- 
bal, onde  nasceu  o  insigne  poeta,  designou  o  dia  21  de 
dezembro  de  1871,  sexagésimo  anniversàrio  do  seo  fal- 
lecimento,  para  a  inauguração  solemne. 

Para  este  acto  se  armará  na  praça  de  Bocnge  uma 
tribuna,  onde  serão  recebidas  as  corporações,  auctori- 
dades,  e  mais  pe.ssoas  que  forem  convidadas. 

3.° 

  estátua  estará  velada  com  as  bandeiras  nacionaes 
de  Portugal  e  do  Brazil. 

Serão  convidados  para  esta  solemnidade — o  ministério? 
as  auctoridades  superiores  do  districto ;  as  corporações 
scientíficas  e  litterárias ;  a  imprensa  periódica ;  os  homens 
de  lettras,  e  os  súbditos  brazileiros  mais  qualificados, 
residentes  em  Lisboa  e  Setúbal,  como  demonstração  de 
reconhecimento,  por  haver  sido  a  estátua  do  Bocage 
erigida  por  subscripçao  commum  de  brazileiros  e  de 
portuguezes  residentes  no  império  do  Brazil. 

Ha  um  comboio  especial,  de  Lisboa  para  Setúbal,  ida 
e  volta,  no  mesmo  dia,  gratuito  para  os  que  receberem 
convite  com  essa  declaração. 

A  hora  do  embarque  na  estação  do  caminho  de  ferro 
do  sueste,  em  Lisboa,  será  designada  nos  bilhetes  de 
convite. 


158  XXX 


'/  •' 


A'  uma  hora  da  tarde,  as  commíssOes  filiaes  de  Lisboa 
e  Setúbal,  a  câmara  municipal  doesta  última  cidade,  e  o 
esculptor  Pedro  Carlos  dos  Reis,  descerão  da  tribuna 
para  j  une  to  da  estátua,  e  ahi  lerá  o  presidente  da  com- 
missão  de  Lisboa  o  discurso  inaugural,  a  que  responderá 
o  presidente  da  municipalidade  de  Setúbal. 

8.* 

Em  seguida  os  membros  da  mesma  commissão,  mar- 
quez  d'Avila  e  de  Bolama,  vice-presidente  da  academia 
real  das  sciencias;  conselheiro  Miguel  Maria  Lisboa, 
enviado  extraordinário  e  ministro  plenipotenciário  do 
Brazil,  em  Portugal ;  visconde  de  Castilho ;  Dr.  António 
Rodrigues  Manitto,  presidente  da  câmara  municipal 
de  Setúbal,  tomarão  os  cordoes  da  cortina  que  vela  a 
estátua  e  a  descobrirão. 

Logo  que  se  descobrir  a  estátua,  as  músicas  tocartlo 
successívamente  os  hymnos  compostos  e  offerecidos  para 
esta  festividade,  pelos  Srs.  Manoel  António  Corrêa, 
Carlos  Augusto  Alves  Braga  e  António  do  Nascimento  e 

Oliveira. 

lO.o 

Voltando  o  préstito  para  a  tribuna,  ahi  será  lido  e 
assignado  o  auto  da  inauguração,  que  ficará  depositado 
no  archivo  da  câmara  de  Setúbal,  enviando-se  um  tras- 
lado authentico  á  commissão  central  do  Rio  de  Janeiro. 

Sala  das  reuniões  da  commissão  filial  de  Lisboa,  na 
Bibliothera  Nacional,  em  2  de  dezembro  de  1871. 

O  Secrbtario 


XXX  159 


3 


F*ara"beiis. 

Vivia  alli  para  os  lados  do  ex-Largo  do  Paço  um  velho, 
ue  contava  mais  de  um  século  de  edade,  e  cuja  agra- 
avel  appareucia  attrahia  as  attenções  geraes. 

Exercia  em  larga  escala  a  segunda  das  obras  de  miser 
ricórdia:  dava  profusamente  de  beber  a  quem  tinha  sede 
uma  das  mais  crystallinas  e  puras  águas,  que  jamais 
correram  em  bica  de  chafariz.  Em  harmonia  com  todos 
os  moradores  do  bairro,  era  uma  das  bonitas  cousas  da 
cidade:  quem  o  via,  e  olhava  para  o  lado  direito,  e  via  a 
casa  do  velho  Telles,  para  a  esquerda,  e  via  o  palAcio  dos 
antigos  vice-reis,  e  no  fundo  o  ex-convento  do  Carmo, 
conhecia  logo  que  eram  bons  amigos,  do  bom  velho 
teiJipo. 

Mas  o  mundo  marcha;  e  o  progresso,  assim  à  maneira 
do  ar  que  se  respira,  entra  por  todos  os  buraquinhos. 
Em  Athenas  era  crime  ser  justo;  no  Bio  de  Janeiro  é 
Crime  ser  velho  :  sao  cousas  do  tempo,  e  talvez  com  o 
tempo  passem  :  mas  agora  são  assim  mesmo ;  é  preciso 
respeital-as.  E  se  não.  digam-me  lá,  porque  razão  se  têm 
andado  a  chrismar  as  ruas  e  praças  do  Rio  de  Janeiro, 
alguns  de  cujos  nomes  faziam  parte  de  nossa  história  ? 
Uma  só  razão  pôde  haver:  estavam  «velhos,  estavam. 
Ora  u  lUma.  Câmara,  a  cujo  cargo  está  attender,  a  que 
os  olhos  de  <seos  munícipes  não  sejam  oíFendidos  por 
espectáculos  menos  agradáveis,  incumbiu-se  de  mandar 
lavar,  penctear,  e  vestir  camisa  lavada  ao  sobredicto 
<Mijo  velho,  que  assim  se  viu  repentinamente  transfor- 
mado em  moço  casquilho,  namorando  as  quitandeiras 
da  Praça  do  Mercado. 

Intendâmo-nos:  eu  não  sei  bem  se  foi  a  Illma.Càmara. 
Deve  ter  sido;  mas  como  isto  de  attribuições  municipaes 
anda  meio  atrapalhado,  pode  ser  que  a  cousa  não  seja 
com  ella  ;  vá  a  quefm  tocar.        J 

Lá  por  essas  Europas,  de  gosto  depravado,  taes  velhos 
são  conservados  com  todo  o  respeito  :  até  se  a  roupa  se 
lhes  rompe,  procuram  remendar-lh'a  com  pedaços  ti- 
rados de  logar,  onde  menos  falta  façam.  Mas  a  Europa 
é  uma  velha  incarquilhada ;  a  América  é  uma  moça 
<rarrida.  Aqui  não  se  admittem  velharias. 

Ouvi  dizer  a  alguns  patetas  que  o  dinheiro  alli  gasto 
podia  ter  sido  mais  bem  approveitado.  Parvos  I  Pois  nós 
precisílmos  fazer  economias  ?  O  Brazil  é  o  paiz  do  ouro. 


160  XXX 

Ainda  está  nas  minas  :  mas  isso  o  que  tem  ?  Vão  lá  bus- 
cal-o;  O  nosso  dinheiro  é  de  papel  ;  mas  o  padeiro  dá 
pao  por  elle.  Outro  offício,  meos  amigos ! 

Beber  água  por  chafariz  velho  é  o  mesmo  que  beber 
por  caneca  rachada. 

Parabéns,  Fluminenses !  parabéns !  Tendes  o  vosso 
chafariz,  assim  com  ares  de  velho  que  tinge  os  cabêllos: 

que  mais  podeis  desejar  ?  Levantae  um  monumento 

de  lama  ao  auctor  da  idea. 

Otton. 


A  nnuncios. 

Desappareceram  as  ruas  Direita,  das  Violas,  dos  Pes- 
cadores, Largo  do  Paço,  e  outros  mais  logares  d'e3ta 
corte :  quem  d^elles  der  noticias,  receberá  boas  alvíçaras. 
Consta  que  foram  subtrahidos  pela  lUma.  Cíimara  Muni- 
cipal :  protestam-se  perdas  e  damnos  contra  o  sub- 
tractor. 

Otton. 


Precisa-se  um  nome  para  chrismar...  a  boa  cidade  d^ 
Rio  de  Janeiro,  porque  o  actual  ja  está  muito  usado,  em 
consequência  do  que  se  abre  um  concurso.  Ao  auctor  da 
melhor  Memória  sobre  este  objecto  se  offerecerá  em  com- 
pensação uma  penna  de  peru,  animal  characterístico  de 
muita  gente  que  por  ahi  anda. 

Otton 


Typ.  e  Hth. — Imparcial— Rua  Sete  de  Setembro  n,  146  A. 


QUESTÕES  DO   DIA 


N.°31 


KIO  DE  JA^K^RO,  14  DE  JANEIRO  DE  1812. 


Vende-se  em  caaa  dos  srs.  B.  &^  H.  La ammert.— Agostinho  de  Freitas  Gui- 
marães 6c  Comp.,  26,  rua  de  General  Camará.— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  José  n.  119-  Largo  do  Paçe  n.  C— Preço  200  reis. 

O  r  volume,  com  perto  de  400  páginas— 3Í000. 


OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR—  IRACEMA. 

OaT*tas  a  Oliicinnato, 

VI. 
Meo   generoso  amigo  . 

Nas  suas  Reflexões  a  respeito  dos  Annaes  Históricos 
de  Berrêdo,  diz  G.  Dias  tstas  palavras :  «  Hei  de  ser 
mais  extenso,  mais  diffuso,  do  que  talvez  conviesse, 
porque  quero  ser  comprehendido  e  porque  escrevo  para 
todos.  O  que  fôr  de  sobra  para  alguns,  será  apenas  suf- 
ficiente  para  outros.  » 

Assim  eu,  Cincinnato  de  minha  alma.  Tem  paci- 
ência. 

Mostrei  ao  Sr.  Pinheiro  Chagas,  que  tf.  Dias  voltara 
das  suas  excursões  submarinas  trazendo  só  pérolas^e 
coraes,  ao  passo  que  J.  de  Alencar  viera  do  seo  mS*- 
gulho  no  lago  com  muito  caramujo  e  muito  lôd^aquá- 
tico.  O  que  o  primeiro  nao  extrahiu,  nSo  foi'porque  o 
nfio  tivesse  visto,  senão  porque  o  nao  achou  digno  de 
apanhar  e  erguer  à  altura  da  superfície. 

Verdadeiramente  falando  :  pótl%-se  presumir  que  G. 
Dias  «  a  quem  ninguém  se  avantaja  na  opulência  da 
imaginaçílo  e  no  conhecimento  da  natnreza  brazileira 
e  dos  costumes  selvagens »  (palavras  do  próprio  Sr. 
Alencar),  ignorasi^e  que  existia  no  Brazil  o  prudentt 
tamanduá,  e  quantos  auimaes,  reptis,  peixes,  árvores, 
flores  e  objectos  ncssos  se  vêem  com  profusão  inexce- 
divel  aponctados  na  Iracema  ?  E'  que  o  seo  tacto  deli- 
cadíssimo percebia  logo  onde  existia  o  bello,  e  nem  um 
instante  se  demorava  onde  uno  podia  haver  senão  o 
irivial  ou  o  gruttôsco. 


162  XXXI 

K  o  ciinlio  nacional  d'í  uma  obra  consistirá  om  n?- 
pr('duzir  ella  quanto  se  «çha  ora  a  natureza,  nos  costu- 
mes (lo  p')vo,  nos  preconciitos  e  frag^ilidades  do  uma 
raça  ? 

Sri  as-iim  Vi  :'>,  í^-intaria  pouco  a  ser  grande  poet-i  ou 
o  primeiro  r>:iiancista  de  um*i  naclo.  So  não  se  exige, 
principalmeiíu',  p-rjra  que  .se  g^oze  de  tae.^  foros,  que  se 
colha  e  se  exliiba  o  que  pódc  fazer  o  público  deliciar-.e 
sem  comtudo  f  izôl-o  molestar-se  ou  corar;  S(i  o  pincel, 
que  se  molha  nas  tin^Mas  finas  e  elevadas,  deve,  para 
sor  tido  por  completo,  cliafurdar  tambtím  nos  resíduos 
barrentos  e  grossí^ros.  'neste  caso  é  certo  que  faço  das 
lilteraturas  a  idéa  mais  errónea  possivel. 

Seg'inido  penso,  moo  amigo,  (í  me  parece  reom- 
mendar  a  esthética,  o  artista  nao  tem  o  direito  de  perder 
de  vistíi  o  bello  ou  o  ideal,  posto  que  combinando-o 
sempre  com  a  natureza. 

N?lo  fora  talvez  descabido  aqui  emiltir  o  meo  hu- 
milllssimo  parecer  sobre  o  modo  de  ver  de  alguns  (muito 
auctorizados)  que  intendem  que  a  arte  é  a  imiUição,  e 
de  outros  que  opinam  ser  cila  a  interpretação  da  natu- 
reza. Kicará  para  logo,  se  me  sobrar  tenpo  e  me  aprou- 
ver detcr-me  'neste  poncto. 

Mas  o  que  ainda  ninguém  se  lembrou  de  pôr  em 
dúvida  é  que,  ou  interpretando-a,  ou  imitando-a.  o 
artista  visa  sempre  o  alvo  de  helleza  ideal,  que  debalde 
se  procuraria 'nessa  lenda  sertaneja,  mais  parecida  com 
um  catálogo  de  zoologia  e  de  botânica  cearense,  do 
(f^e  com  uma  obra  d^arte. 

Li  4^  precioso  livro,  intitulado — Á  Sciencia  do  Belfn  — 
po^^L^ltaue,  obra  que  mereceu  ser  coroada  pir  três 
Acaaétnlas  da  França.  Nunca  njais  m*^  esqueci  de  um 
pedacito  que  lá  vem,  concebido  'nestes  termos  :  a  Se  o 
romancista  nHo  é  segão  o  arrolador  {grefficr)  da  vida 
de  todo.s  03  dias,  quero  antes  a  vida  cm  si  mesma,  qu<* 
é  viva,  e  onde  me  nao  demorarei  com  a  vista  senão  sobre 
o  que  me  interessar,  w 

Ah  í  mas  eu  esjuecia-me  que  estou  dissecando  um 
poema,  e  nfio  um  romance.  Pois  bem  :  se  se  tracta  da 
poesia,  a  cousa  muda  de  figura,  sim,  porém  para  con- 
demnar  ainda  mais  a  producção  do  »Sr.  Alencar.»  A 
poesia  ingrandece  todos  os  characteres;  entre  suas  mJlos 
o  bravo  torna-se  valente,  o  prudente  torna-se  sábio,  o 
falante  torna-se  eloquente,  o  guerreiro  um  heróe,  o 
heróe  um  semi-deus.»  Tudo  vai  precisamente  ao   in- 


XXXÍ  163 

verso  na  Iracema  ;  o  g'uerreiro,  que  devia  affig'urar-se 
heróe,*nao  passa  de  imbelle  pusillâuime  •  o  heróe  da 
história,  que  devia  na  poesia  assumir  as  pr'>M  ^r';;Ao^  do 
serni-deus,  está  abaixo  donivel  do  guerreiro.  E'  sempre 
este  destroço  dos  characteres  e  da  harmonia  artística. 

Ah  !  mas  eu  csquecia-rae  que  se  tracta  da  mais  su- 
blime manifestação  da  poesia — a  poesia  épica.  A  Iracema 
nfio  se  inculca  uma  amostra  no  género  ?  Pois  bera  : 
quanto  mais  nos  olevriraos  na  escala  da  arte,  tanto  mais 
desce  esí^e  bastardo  filho  de  um  talento  que  a  vaidade 
perdeu  como  o  oi^ulho  a  Satan. 

Sempre  que  vem  á  baila  falar  da  epop6a,  lembro-me 
da  Illuida  como  o  modelo  por  excellencia.  Homero  é  o 
primeiro  poeta  épico,  desfie  que  o  mundo  é  mundo. 

E  poderia  acaso  a  lUtada  servir  de  modelo  a  um 
poema  americano?  A  vida  fel  vagem  incerra  em  si 
bastante  interesse,  bastante  grandeza,  bastante  maravi- 
lhoso, para  sustentar  movimentos  d'aquelle  fôlego  e 
majestade?  D'aquelle  nao  direi;  mas  se  tivéssemos 
um  Homero,  a  mina  para  as  suas  explorações  não  seria 
outra.  Essa  raça,  seo  passado,  suas  superstições,  é 
tudo  de  tamanho  e  vigor  descommunal.  O  gentilismo 
tem  a  sua  face  pomposa  e  formidável.  A  epopéa  bár- 
bara nrio  pôde  deixar  de  ser  uma  das  maiores  epopéas. 

Um  dos  primeiros  elementos  do  grandeza  da  Illiada 
é  o  maravillijso,  symbolizado  na  crença  pagan. Também 
os  nossos  índios  tinham  do  maravilhoso,  e  á  farta.  As 
suas  superstições — eis.  no  meo  fraco  intender,  o  mús- 
culo d'essa  poesia  ;  e  esse  músculo,  força  é  dizel-o,  na% 
tem  sido  desinvolvido  e  distendido,  como  acaso  cum- 
priria, pelos  nossos  épicos. 

O  Homero  brazileiro  acharia  na  nossa  raça  primitiva 
typos  parecidos  com  Achilles  e  Ileitores,  Priamos  <; 
Menelàos.  Até  incontraria  uma  Melena,  sem  outro 
trabalho  mais  que  o  de  abrir  a  nistória.  Fernando 
Diniz  diz  :  «  Os  '1'upinambas,  depois  de  haverem  toma- 
do o  recôncavo,  dividiram-se  também,  dando  logar  á 
discórdia  no  meio  d'este  povo  um  drama  igual  ao  qu<» 
originou  a  Illiada.  Uma  rapariga  de  certa  tribu 
da  Ilha  de  Itaparica  foi  raptada  pelos  habitantes  do 
local  onde  depois  se  edificou  a  cidade  da  Bahia  ;  e 
d'ahi  accendeu-se  uma  guerra  terrível.  » 

Seguramente  esse  Homero  nao  havia  de  intender  a 
poesia  nacional,  e  muito  menos  a  poesia  épica,  segundo 
a  intendeu— van  e  factícia — J.  de  Alencar. 


164  XXXI 

Sim,  elle  iria  belêl-a  nas  tradições  dos  iudios»  mas 
nas  tradições  que,  pingues  e  plenas^as  tinham,  nos  pai- 
néis summos  e  monumentaes  das  suas  batalhas,  que 
eram  batalhas  titânicas.  Desde  a  cilada  ao  inimigo  até 
o  ineêndio,  desde  o  heroísmo  nas  luctas  até  o  heroísmo 
das  hóstias,  tudo  offerecia  elevação  própria,  que  nao 
destoaria  do  drama  nem  da  epopèa. 

Bebêl-a-hia  principalmente  nas  superstições,  suscep- 
tíveis dos  episódios  mais  robustos,  de  agigantados  pro- 
dígios, de  que  a  história  dá  idea  que  se  vê  que  é  pàllida, 
mas  que  bastante  colorido  incerra  para  nos  fazer  conhe- 
cer que  tinham  o  calor  e  a  importância  de  verdadeiras 
maravilhas. 

Bebêl-a-hia  nu  que  o  character  selvagem  tinha  de 
sculptural,  predominante,  e  athlético,  e  nao  no  que 
podia  ter  de  mesquinho,  ridículo  ou  accidental. 

De  dentro  das  soturnas  cavernas,  do  seio  dos  valles 
intermináveis,  de  cima  dos  rios  oceânicos,  dos  recessos 
da  mansão  opaca  das  selvas,  acordaria  os  echos  de  dra- 
mas tremendos  que  ahi  jazem  adormecidos  na  uecró- 
pole  de  séculos,  evocaria  as  visões  mysteriosas,  mythi- 
cas  da  sua  theogonia,  as  sombras  das  suas  divindades, 
dos  seus  lémures,  que  faria  representar  papeis  pavoro- 
samente grandes,como  no  Hamlet  o  e  no  spectro  de  Bankof 

Assim  como  o  poeta  grego  fazia  tremer  o  Olympo 
comum  movimento  de  cabeça  de  Júpiter,  o  poeta  ame- 
ricano faria  abalar-se  a  solidão  nos  seos  fundamentos^ 
com  o  simples  tanger  do  maracá  do  sacerdote  inspirado, 
representante  de  Tupan. 

Faria  emfim  dos  guerreiros  heróes  ;  dos  heróes  semi- 
deuses; da  crença  religiosa  a  primeira  fonte  do  poema — 
tudo  em  poncto  grande,  compatível  coma  pujança  de 
uma  raça,  indubitavelmente  capaz  dos  commettimentos 
mais  estupendos.       %, 

Ou  escreveria  assim,  ou  de  certo  nSo  escreveria  um 
poema.  Agora  invergonhar  a  pátria  com  uma  concepção 
sem  altura  de  motivos,  sem  elevação  de  vistas,  sem  mo- 
vimento, trajada  degallas  ephémeras,de  lentej  ou  las  im- 
possíveis, falando  linguagem  affectada,  frouxa  e  fútil,  o 
que  tudo  importa  uma  antíthese  da  poesia  hemica  e  do 
génio  collossal  do  nosso  aborígene,  isso  é  que  nao.  Te- 
ria o  bom  senso  e  a  generosidade  de  o  não  fazer. 

Longe  me  tem  levado  a  divagação,  e  é  tempo  de  re- 
cuar ao  assumpto. 


XKXI'  165 

Mostrei  o  abysmo  que  ha  entre  uma  descripçSlo 
de  combate  de  índios  por  G.  Dias,  e  outra  por  J.  de 
Alencar.  Provei  que  a  deslumbrante  e  hardida  poesia 
das  batalhas  falta  na  Iracema^  quando,  pelo  contrário, 
se  incontra,  já  nao  digo  nos  Tymbiras  ou  no  Tabyra^ 
mas  no  Urugnay  e  Caramurúy  que  sao  dos  tempos  da 
colónia* 

Por  exemplo,  lê-se  no  Uruguay: 
«  Fez  proezas  Cepé  'naquelle  dia. 
«  Conhecido  de  todos,  no  perigo 
«  mostrava  descoberto  o  rosto  e  o  peito, 
«  forçando  os  seos  co'  o  exemplo  e  co'  as  palavras. 
<c  Já  tinha  despejado  a  aljava  toda, 
«  e,  destro  em  atirar  e  irado  e  forte, 
«  quantas  settas  da  mao  voar  fazia, 
<c  tantas  na  nossa  gente  insanguentava. 
<(  Settas  de  novo  agora  lecebia, 
«  pai*a  dar  outra  vez  princípio  á  guerra. 

«  Cepé,  que  o  viu,  tinha  travado  a  lança, 
«  e,  atraz  deitando  a  um  tempo  o  corpo  e  o  braço, 
«  a  despediu.  Por  entre  o  braço  e  o  corpo 
«  ao  ligeiro  hispanhol  o  ferro  passa: 
«  rompe  sem  fazer  damno,  a  terra  dura, 
«  e  treme  fora  muito  tempo  a  hástea; 
<c  mas  de  um  golpe  o  Cepé  na  testa  e  psito 
«  fere  o  governador  e  as  rédeas  corta 
«  ao  cavallo  feroz.  Foge  o  cavallo, 
«  e  leva  involuntário  e  ardendo  em  ira 
«f  por  todo  o  campo  o  seo  senhor;  e  ou  fô«se 
«  que  regada  de  sangue  aos  pés  cedia 
a  a  terra,  ou  que  pozesse  as  m&os  em  falso, 
«  rodou  sobre  si  mesmo,  e  na  caída 
«  lançou  longe  a  Cepé. —  Rende- te  ou  morre! 
«  grita  o  governador;  e  o  Tape  altivo, 
«  sem  responder,  incurva  o  |rco,  e  a  setta 
<c  despede,  e  'nella  preparara  a  morte. 
«  Inganou-se  esta  vez.  A  setta  um  pouco 
«  declina,  e  açouta  o  rosto  a  leve  pluma. 
«  Era  pequeno  o  espaço,  e  fez  o  tiro 
<(  no  corpo  desarmado  estrago  horrendo. 
<c  Viam-se  dentro  pelas  \  õtas  costas 
<x  palpitar  as  intranhas.  Quiz  três  vezes 
<«  íevantar-se  do  çhao,  caiu  três  vezes; 
<x  e  os  olhos  já  nadando  em  fria  morte 
«  lhe  cobriu  sombra  escura  e  férreo  somno  » 


WWTWVHW 


166  XXXi 

L6-se  110  Caramnrú: 

1 
«  Já  se  avistava  bárbaro  tumulto 
«  das  inimigas  tropas  em  redondo; 
»  e  antes  que  empreendam  o  primeiro  insulto 
«  levanta-se  o  infernal  medonho  estrondo; 
a  os  marraques,  napés,  e  o  brado  inculto, 
«  todos  um  só  rumor  junctos  compondo, 
a  fazem  tamanha  bulha  na  esplanada 
«  como  faz  na  tormenta  uma  trovoada. 

2 
«  Mas  quando  tudo  com  terror  fugia, 
<(  o  bravo  Jacaré  se  lhe  põe  deante: 
((  Jacaré,  que,  se  os  tigren  combatia, 
<(  tigre  não  ha  que  lhe  estivesse  avante. 
«  Treme  de  Jararaca  a  companhia, 
«  vendo  a  forma  do  bárbaro  arrogante, 
«  que,  com  pelle  coberto  de  panthera, 
((  ruge  com  mais  furor  que  a  própria  fe^^a. 

3 
«  Em  quanto  a  selva  passeava  escura, 
«  de  immortaes  arvoredos  .rodeada, 
«  foi  Jararaca,  que  a  cuidou  segura, 
«  ferido  sobre  o  pé  de  uma  frechada. 
a  Ficou-lhe  a  planta  sobre  aterra  dura 
«  em  tal  maneira  com  o  chão  cravada, 
<(  que  por  mais  que  arrancal-a  d*alli  prove 
a  despedaca-se  o  pé,  mas  nao  se  move. 

4 
«  Corre  a  turba  a  salval-o,  e  em  continente 
«  voam  mil  settas  desde  a  espessa  rama, 
t<  e  cad'  árvore  alli  no  bosque  ingente 
a  um  chuveiro  de  tiros  lhe  derrama: 
c(  cada  tronco  é  castello:  ao  lado  e  frente 
t(  a  occulta  multidão  bramindo  clama; 
«  e  o  resto,  que  em  cavernas  se  escondia 
'  «  ao  rumor  da  victória  concurria. 
Do  que  fica  ahi  copiado  verá  o   illustre  Sr.  Pinheiro 
Chagas  que,  até  antes  de  (1.  I)ias,já  se  achava  nns  com- 
posições  dos   primeiros  épicos    bra/.ileiros   fundamente 
impresso  o  cunho  nacional.  Elles  nao  tinham  só  <i  entre- 
visto a  mina  »  ;  tinham-n'a  explorado  e  com  largueza  e 
fiuccesso. 

Como  seguramente  o  critico  portuguez  deve  saber,  o 
visconde  de  A.  Garrett,  ajuiza  do  primeiro  poema  do 


XXXI 


1^)7 


seg^uinte  inudo  :  «  O  Urug-uíiy,  de  José  linsilio  dn  (Jíiina, 
éo  iiioJenio  poema  que  mais  mérito  tem,  na  minlia  opi- 
nião. Scenaá  natiiraes  mai  bem  pintadas,  dí*  írrauJe  e 
Lella  execução  descriptiva;  plirase  pura,  sem  affiíctaçílo ; 
veráoá  naturaes,  sem  ser  prosaicos,  e  quando  cumpre  su- 
blimes sem  ser  «guindados;  não  são  qualidades  communs. 
Os  brasileiros  principaluKuite  lhe  devem  a  7nc/lwr  coroa 
de  svu  poesia^  que  'nelle  é  verdadeíranienln  tuicioiuil^  e 
legítima  americana.  >>  K  Fernando  Diniz,  faland)  do 
Caramurú,  diz:  «  K'  uma  <q)opéa  nacional  br.izileira  que 
interessa  e  inleva.  »  Copiamos  estes  extractos  da  notícia 
que  vem  annexa  a  estas  duas  obras,  impressão  de 
Lisboa,  1845. 

Portanto  nílo  pertence  a  J.  de  Alencar  (sem  querer 
falar  em  (1.  Dias)  «  a  honra  de  ter  dado  o  primeiro 
pa.sso  atfoito  na  selva  intrincada  e  mai:i'niíic('nle  <las 
velhas  tradições.  » 

Não;  não  só  não  lhe  pertence  ^imilhante  ^-lória,  como 
até  lhe  pertence  exclusivamente  a  triste  <-elebridade  de 
haver  offerecido  ao  mundo  como  padrão  da  poesia  bra- 
zileira,  um  mixto  de  vulg'arida(hi  e  de  burlesco,  que 
será  sempre  reconhecido  ])or  quem  não  for  demasiado 
benévolo  ou  demasiado  stíctário,  como  coutra.^te  vivo 
da  história. 

Meo  amig'o:  d.ísejando  approv(íitar  o  vap-u*  ;([ue  está 
prestes  a  lar^^ar)  não  vou  além  por  hoje. 

lia  tanto  ainda  (\\H)  dizer,  (|uan!,o  á  }))li'-i;i  dn  Iin*i*ua, 
notas,  carta  linal..  ! 

Mas  licide  levar  a  missão  ao  cabo. 

Ha  'nisso  algMima  C(j;isa  d(i  cons"ieiici:i  o  (Li  pjitriu- 
tisnio.    Di^ro:  i'ATUionsMo! 

Como  sempre 

Teo  iVaco,  mas  leal  amit^*!) 

SlCMPUÓNlO. 


A  ICeoi-fçaiiiziaoâo  do  ti'aljaIlio. 

A  (lasst*  opvrdrln  c  a  indúslria  no  linizíl.  !\ecrssl(la<lc  da 
rtlinhiliíanlo  c  nictlior  onjanlzação  do  Indndho.  Con- 
,vid(^rfirfies  sChre  o  itirio  de  realizar  esta  grande  a  (jene- 
rosa  asjjíraçuij  da  variedade  hrazlleira. 

W    T 

n 

Corftí  tíutr.í  nó.">  como  verdade  dr^monslrad.*  umà  sin- 
gular j/píposiclo. 


i  XXXI 

I  o  Braisil  (  repetem  lodo:>  j  è  paíx  exclusí  vãmente 
agrícola  » 

Se  íi  traduzirem  pela  frtrraiila  «egiiiote:  a.  O  Brazil 
até  aqui  só  se  lein  applicndo  &  agrricultura»  essa  pro- 
posição sorà  apenas  a  confirmação  de  'um  facto  e  expri- 
mirá rigorosamenle  a  verdade  das  coiisa.s. 

•Se,  porém,  a  tomarem,  como  geralmente  acconteca, 
por  uma  revclaçiio  da  idéa  de  rjue  uno  pôde  nem  deve 
liftver  no  Brazil  outra  indiistria,  alem  da  da  lavoura, 
deverá  ellaser  refutada  como  confissão  explícita  de  um 
árro,  que  cumpre  combater  de  frente  e  com  todas  as 
forças. 

Quem  lançar  vistam  altentas  sobre  esta  região  aben- 
çoada, que  parece  ser  a  terra  da  promissiio,  que  a  Provi- 
dencia escolheu  para  'nella  derramar  todos  "s  dons  do 
suainexhaurivel  munificência,  quem  avaliar  a  feracissima 
uberdadp  d'este  solo,  em  que,  como  uos  moatRs  que  ser- 
viram de  liêrço  e  núcleo  ao  género  humano  nasce  eapon- 
tílueo  o  niais  substancial  alimento;  quem  yir  piilliilar 
d'esta  natureza  esplêndida  todos  os  thesouros  de  fecun- 
didade, todos  os  elemento»  de  riqueza,  todos  os  princí- 
pios elementares  e  matérias  priísas,  que  formam  a 
indústria  fabril  e  têxtil  dos  povo8  cultos,  que  abastecem 
com  suaa  manufactura-i  todos  os  poncto;  dn  globo,  ficará 
profundamente  surprehendido  de  que  tal  opinião  ca- 
nhasse raízes  o  tomassp  character  de  axioma. 

Quanto  a  nós,  ó  mais  este  um  erro,  gerado  e  perpe- 
tuado pela  existência  da  escravidão  no  Império. 

O  lavrador  brazileiro,  accostumadoá  indolência  e  ao 
luxo,  que  é  um  dos  vícios  mais  fataes  e  derramados  em 
todas  as  classes  do  paíz,  vpudo  n  turra  pagar-Iheem 
fartas  colheitas  oesfôrço  do  trabalho  escravo,  accreditoa 
facilmente,  semexame.que  nada  mai.s  tinhaquf.esperar, 
para  complemento  de  sua  riqueza,  do  que  o  produclo  da 
safra  d'e«e3  caunaviaes.cafezaes,  e  algodoaes,  que  flores- 
ciam «  davam  fructot,  nas  falda^í  dcS  montes  e  nos 
valles  de  suas  extensas  fazendas.  Accostumado  a  esse 
systema  rotineiro  do  trabalho,  c  recebundo  do  nego- 
ciante, que  facilmentt!  Ihoadeantava.  dinheiro  sobre  as 
futuras  safras,  descauçava,  n5o  cuidoso  dos  acconteci- 
mentos,  na  esperança  dft  que  a  torra  nâo  cessaria  de 
expandir-se  em  messes  de  dia  para  dia  crescentes,  entre- 
tanto que  o  verme  roedor  do  áfí/iío  e  pesado  juro,  que 
pagava  á  praça,  llie  ia  oberaudo  <i  estabeleci  mento  c 
todos  os  instrumento;)  do  trabalho.  Chegava  finalmente  a 


XXXI  169 

hora  do  despertar  d'esse  somno  de  priguiçosa  indiffe- 
rença;  o  credor  urgia  pelo  pagamento,  e  a  liquidação 
forçada  trazia  como  consequência  a  venda  da  fazenda  e 
dos  escravos  hypothecados,por  metade  do  valor,  e  a  con- 
sequente miséria  do  outr'ora  abastado  proprietário  de 
fertilissimas  geiras. 

Se  o  escravo  nao  existisse,  outra  e  muito  mais  pro- 
fícua seria  a  applicaçao  do  braço  intelligentemente  des- 
tinado ao  trabalno  agncola.  Conhecr^ndo  que  o  partido, 
que  poderia  tirar  dos  couros  de  seos  bois,  da  pelle  de 
auas  cabras  e  de  seos  carneiros,  das  clinas  de  seos  ca- 
vallos,  e  de  todos  esses  animaes  em  si,  bem  como  de 
outras  producçOes  das  fazendas  e  ingenbos,  o  domno  do 
solo  approveitaria  melhor  e  com  mais  vantagem  todos 
os  elementos  da  riqueza  natural.  Nao  lhe  accontecería 
então,  pelo  hábito  do  contemplar  o  quadro  do  trabalho 
escravo,  convencer-se  de  que  nada  de  melhor  tivesse  que 
esperar  para  sua  prosperidade  e  bem-estar.  Podemos 
amrmar,  sem  receio  de  ser  contestados  e  de  cair  em 
erro,  que  se  outra  fosse  a  organização  do  trabalho,  a 
classe  operária  já  existiria  entre  nós  com  o  consequente 
desin volvi  mento  da  nossa  indústria  manufactureira, 
hoje  (  infelizmente)  embryonária. 

Nao !  O  Brazil  nao  é  exclusivamente  agrícola,  e  nem 
o  pôde  ser;  elle  tem  todas  as  proporções  para  occupar 
dentro  de  poucos  annos  uma  posição  brilhante  entre  os 
estados  manufactureiros  do  mundo.  Cumpre  fecundar 
todos  ósseos  germes  de  grandeza  industrial,  e  sobre 
tudo  crear  e  preparara  sua  classe  operária,approveitando 

Sara  esse  fim  a  nova  geração,  que  nascer  dos  escravos 
epois  da  lei  de  28  de  septembro  de  1871. 

Uma  das  principaes  f oudiçOes  para  firmar  o  futuro 
industrial  do  Império  é  eitabelecer  e  proteger  a  liber- 
dade do  trabalho. 

Debalde  a  terra  brotará  os  mais  ijiros  e  inexhauriveis 
mananciaes  de  uberdade:  debalde  a  natureza  prodi- 
galizará aos  homens  todas  as  munificencias  de  fecunda 
cornacópia,  se  o  Governo  nao  anniquilar  as  peias  que 
ainda  entre  nós  empecem  a  livre  acçlo  do  trabalho. 

Com  ra-çao  dizia  o  sábio  auctor  do  Espírito  das  Levi 
que  os  p  u*/*os  eram  cultivado*,  nlo  na  razão  de  sua  ferti- 
lidade, mas  sim  de  aw^  liberdade. 

Assignalarêmos  as  providencias,  que  tendem  a  manter 
c  a  desinvolver  em  mais  larga  escala  a  liberdade  da 
trabalho. 


170  XXXI 

Utn:i  (las  causas  intorpeceduras  do  livre  exercício  do 
trabalho  é  incoatestaveliiieate  amjinia  de  regulamentar. 
A  acçrio  restrictiva  do  poder  executivo  é  no  Brazil  a 
grand«*,  senão  a  principal  rémora  da  iniciativa  indi- 
Yjdual   (í  do    prog're.:so   da  indústria. 

Cumpre,  antes  de  tudo,  acabar  com  as  auctorizaçOes 
prévias  por  parte  do  Governo  para  o  estabelecimento  e 
fundação  de  certas  indústrias,  que  manirestamente 
tendem  a  activar  as  torças  vivas  da  sociedade  e  a  dar 
incentivo  e  inchanças  á  riqueza  pública.  Quanto  a  este 
poncto,  conviria  que.  sem  perda  de  tempo,  tosstí  revista 
e  profundamente  modificada  a  lei  de  2i  de  ag"òsto  de 
1860,  a  mais  notável  das  creacOes  du  escliola  res 
triciiva. 

Nilo  é  menos  nociva  á  livn^  marcha  do  trabalho  a 
aggravação  dos  impostos,  que  oneram  alfrumas  das  ma- 
térias primas. 

Ksse  mal  importa  a  aspliixiacão  ua  mesma  indústria, 
porqu(í  põe  o  operário  na  impossibilidade  de  produzir, 
por  não  poder  concurrer  em  preço  com  <js  productos  es- 
trang^eiros. 

A  ag^gravação  das  muletas  impostas  pela  violação  do^ 
Rej^u lamentos  não  é  menos  hostil  á  lil)erdade  do  tra- 
balho. "Neste  ponclo  é  preciso  fugir  de  imitar  as  dispo- 
sições anarhronicamciite  repressivas  do  antigo  re.gimen, 
herança  de  séculos  de  ignorância,  monumentis  d«j  des- 
potismo, ([ue  o  presente  deve  rejeitar  como  otfensivasda 
c*ivilizacão. 

Não  ha  circumslància  que  mais  directa  e  rapidamente 
concorra  par.t  a  liberdade  do  trabalho  do  que  a  liberdade 
dos  escaimbos  internacionaes,  ordinariamente  denomi- 
nada  liberdade  díí   commércio. 

Não  ha  muitos  annos  que  a  líuro))a,  imiíando  o  '-os- 
tume  do  Japão,  fechava  seos  portos  á  inlrada  das  mer- 
cadorias estrangeiras.  Debalde  o  notável  economista 
Adam  Smith  na  Inglaterra  e  todos  os  grandes  espíritos 
do  século,  em  França,  pregando  os  verdadeiros  princí- 
pios da  sciéncia  moderna,  tentaram  lançar  por  terra  essa 
insuperável  barreira  que  as  nações  erguiam  hostilmente 
á  introducção  dos  productos  de  fora  ;  o  erro  persistia 
sempre,  i)eando  o  vòo  da  indústria  e  servindo  de  obstá- 
culo á  solidariedade  induslrial  e  comuiercial  dví  tod^is  os 
povos, pela  melhor  satisfacção  das  necessidades  de  todos 
e  d(í  cada  um. 


XXXI  171 

O  primeiro  passo  para  e.staLeleci mento  da  iihenlade 
do  commércio  foi  dado  em  18ÍÍ8  ua  Inglaterra  com  a 
fundação  da  lig^a  para  abolição  das  leis  sobre  os  cereaes. 
Seonudada  por  John  Brigth  e  Ricardo  Cobdeu,  e  mais 
tarde  por  sir  Robert  Peei,  qne  a  opiuino  pública  arras- 
tràra  ao  poncto  de  desamparar  o  systema  restrictivo,  do 
qual  era  acénúmo  defensor,  (ísta  g*enerosa  idéa,  appre- 
sentada  em  184(3  ao  parlamento  pelo  Uuquti  de  Wel- 
lington, foi  o  começo  da  revolução  alfandegária,  que 
immortalizou  o  nome  d'este  estadista. 

Tal,  porém, era  a  forçado  systema  protector  'naquelle 
palz,  que  as  reformas  assim  iniciadas  por  aquelles  gran- 
des vultos  não  conseguiram  abolir  o  n  Aclo  de  navega- 
ção ))  de  Cromwell,  que  constituía  privilégio  exclusivo 
a  favor  dos  armadores  inglezes.  Ainda  pela  tarifa, 
'naquelle  tempo  promulgada,  ficaram  taxados  vários 
artigos,  cujos  idênticos  e  similares  eram  produzidos  no 
Reino  Unido,  onde  nenhuma  taxa  supportavam.  Koi  só 
depois  da  retirada  de  Peei  que  esses  direitos  foram  sup- 
primidos,  ficando  o  systema  proteccionista  reduzido 
à  imposição  das  taxas  sobre  os  grãos  e  farinhas  e 
neos  derivados(taxivs  aliás  moderadas  e  ([ue  tendem  a  des- 
apparecer),  e  ao  imposto  sobre  o  tabaco  manufacturado. 

D*esta  considerável  exempção  de  tilo  grande  cópia  de 
artigos,  e  reducção  de  taxa-'  d'»  outros,  em  vez  de  resul- 
tar diminuição  no  rendimento  das  aUTind^^gas  inglezas, 
proveiu,  pelo  contrário,  grande  augmento,  de  modo  que 
hoje  essa  renda  é  muito  mais  avultada  que  em  1841, 
anno  em  que  Roberto  Peei  começou  a  iniciar  a  idéa 
da  diminuição  ou  suppres.são  das  taxas  que  soffriam 
as  maté.ias  primas  de  indústria. 

Foi  com  excessiva  timidez,  e  depois  de  longo  tempo, 
que  as  potencias  continentaes  seguiram  o  salutar  exem- 
plo da  Inghiterra.  O  primeiro  e  balbuciante  insaio  da 
França  no  mesmo  sentido  rí;alizmi-se  em  1847 ;  o  Poder 
Legislativo,  porém,  ainda  não  eilucndo  pela  opinião,  re- 
pelliu  a  reforma.  Decretos  do  segundo  império  diminuí- 
ram grandemente  alguns  direitos  sobre  géneros  alimec- 
tícios,  especialmente  o  gado  e  o  vinho  ;  houve  também 
reducção  quanto  á  lã,  ao  fiírro  e  ao  aço. 

Novo  ^r^ljecto  de  lei,  appresentado  ás  Camarás  em 
IBÕõ,  foi  lambem  repellido,  mas  e.sta  rei uctancia  contra 
o  progresso  incontrou  salutar  correctivo  no  tractado  de 
"23  d«?  janeiro  de  1800  (j  convencOtís  de  12  de  octubro 
e  IG  de  novembro  do  mesmo  anno,  em  que  Napoleão  JII 


172  XXXI 

estabeleceu  a  tarifa;  pela  qual  em  França  deveria  ser 
regida  a  intrada  das  mercadorias  inglezas. 

Este  tractado,  seguido  por  outros  entro  a  mesma 
França  e  outras  naçOes  do  continente  trouxe  o  impulso 
e  progresso  da  indústria  para  todos  os  paizes  europêos , 
pelo  iramenso  desinvolvimeuto  dado  ao  commércio. 

Só  a  Hispanlia  ficou  estacionária  e  estranha  a  este 
civilisador  movimento.  E'  por  isso  que  o  commércio 
interno  e  externo  definha  'naquella  região,  c  as  suas 
dificuldades  financeiras  se  aggravam  de  dia  para  dia. 
O  systema  proteccionista  é  o  enervamento  e  a  morte  da 
indústria;  e  a  Hispanha,  isolada  no  continente  por  sua 
tarifa,  incontra  também,  como  diz  ura  escriptor  contem- 
porâneo, meio  de  isolar-se  pelas  estradas  de  ferro,  onde^ 
por  causa  do  regimen  protector,  se  nao  desinvolve  a  cir- 
culação das  mercadorias. 

Estranho  espectáculo  é  ver  assim  na  retaguarda  do 
progresso  uma  nação,  que,  ha  três  séculos,  foi  a  pri- 
meira potência  da  Europa  e  do  mundo  ! 

*0s  Estados  Unidos  conservam  também  uma  tarifa 
iiltra-protectorista,  tendo,  em  vez  de  diminuir,  aggra- 
vado,  'nestes  últimos  annos  os  direitos  aduaneiros,  erro 
tanto  mais  grave  quanto  os  Estados  do  sul,  reduzidos  k 
miséria,  precisam  de  allívio  no  preço  dos  mecanismos 
destinados  a  fecundar  o  trabalho  e  de  todas  as  manu- 
facturas. Se  nao  fosse  o  impulso  da  concurrência  inte- 
rior, os  effeitos  doeste  deplorável  systema  teriam  sido 
mais  fatalmente  sentidos  'naquella  grande  República, 
que  por  certo  cederá  'neste  poncto  á  torrente  da  opinião 
universal. 

Para  fundar  completamente  a  liberdade  do  commércio, 
è  de  grande  auxilio  a  liberdade  de  cabotagem.  Questão 
é  esta  que  occupa  seriamente  a  attençao  dos  nossos  esta- 
distas, e  que  a  experiência  de  mais  alguns  annos  habi- 
litará o  governo  a  resdíver. 

Grande  e  fecunda  em  resultados  será  para  o  Brazil  a 
abertura  do  Amazonas  a  todos  os  pavilhoe.5.  O  futuro 
confirmará  as  previsões  dos  que  'nesse  grande  acconteci- 
mento  viram  o  gérmen  da  grandeza  futura  do  (mpérto, 

A  reducçao,  do  número  das  alfandegas  contribuirá 
também  eficazmente  para  a  liberdade  do  commércio» 
E  o  governo  brazileiro,  que  ultimamente  extinguiu  al- 
gumas das  alfândegas  do  interior,  revelia  te!\dência  de 
dar  por  este  lado  protecção  ao  commércio.      Pompeo. 

[Continua.) 


XXXI  173 

Horas  vagas. 

Poesias 

DE 

JOAQUIM  DA  COSTA  RIBEIRO. 

EiU' nítida  edição  da  Typographia  do  Imperial  Instituto 
Artístico  acaba  de  ser  reimpresso  com  leves  alterações 
um  volume,  que  La  20  ânuos  saíra  dos  prelos  de  Per- 
nambuco, incerrando  as  entfio  primícias  litterárias  de 
um  esperançoso  talento. 

Sobre  esse  volume  se  exprimia  d'est'arte  Alexandre 
Herculano,  em  22  de  julho  de  1852 :  —  «  Bem  mostra  o 
auctor  'nestes  insaios,  que  liade  vir  a  ser  um  dos  or- 
namentos litterários  do  seo  paiz  ». 

Em  17  de  junho  do  mesmo  anno,  dizia  do  livro  An- 
tónio Feliciano  de  Castilho  :  —  «  Das  três  partes  essen- 
ciaes,  de  que  se  compõe  um  poeta  —  phantasia  —  co- 
ração  —  e  duvido — ,  nenhuma,  quanto  a  mim,  falta 
em  quem  escreveu  este  voluminho,  antes  se  vê  que  as 

Íiossue  todas  em  notável  grau.  Se  eu  o  visse,  e  nos 
alássemos,  havia  de  lhe  dar,  entre  outros,  dons  conse- 
lhos, relativos  um  á  forma,  outro  ao  próprio  fundo  da 
poesia.  Quanto  á  fòrma^  havia  de  lhe  pedir,  que  em 
todos  os  ponctosa  esmerasse  com  incançavel  paciência, 
nao  se  permittindo  nem  construcçOes  exclusivamente 
brazíleirasy  nem  na  versificação  hyatos,  e  alguns  outros 
leves  defeitos,  que,  inlevado  nabelleza  dos  pensamentos, 
algumas  vezes  deixa  passar.  Quanto  ao  fmtdo^  recom- 
mendar-lhe-hia  que,  sem  renunciar  de  forma  alguma 
a  moderna  eschola  de  Victor  Hugo  e  Lamartiue,  a  que 
elle  me  parece  pertencer,  se  applicasse  todavia,  nfto  só 
um  pouco,  porem  muito,  ao  estudo  dos  clássicos  consa- 
grados e  incontestáveis,  e  especialmente  ao  de  Virgílio». 
Depois  de  dar  desinvolvimento  a  esta  these,  conclue 
assim  :  —  «Queira  V.  fazer-lhesconstar,  que  estas  suas 
estreias  me  deram  muito  prazer,  e  que  eu  de.<ejo  e  au- 
guro á  sua  musa  um  porvir  muito  brilhante.  » 

Quando  taes  mestres  assim  q  ualificam  um  livro,  está 
julgado.  Uma  segunda  edição  d'elle  nao  pôde  deixar  de 
ser  expurgada  das  lacunas  e  deficiências  que  a  inexpe- 
riência dos  4  lustros  torna  inevitável.  Hoje  que  o  fo- 
lheto de  179  páginas  tomou  as  proporções  de  livro  de 
240,  que  uma  apurada  correcção  aperfeiçoou,  cremos 
que  as  lettras  devem  considerar  esta  acquisiçao  como 
valiosa. 


174  XXX^ 

A  poesia,  ííorno  nós  aiule  ileinos,  vivo  no  pens-iuieuto, 
e  roiilçfi-se u.L  iórma  ,  arraig'a-so  n^i  alma,  incarna-se  na 
arte  ;  quem  sente  o  Deus  interior,  e  ao  uiesino  tempo 
revcote  a  idéa  de  trajo  esplendido,  é  poeia,  qualquer  qm-» 
seja  ^  applicação  ([uo  ás  suas  estrophes   lhe  apraza  dar. 

'Neste  volume,  a  máxima  parte  dos  cantos  6  inderes- 
sada  ao  únic.o  assumpto  com  que  o  génio,  aos  20  nnnos, 
vê  soDredourada  a  natureza:  a  inullier.  Estas  pàg*i nas 
nos  deparam  o  sentir  ardente,  as  agonias,  as  lágrymas 
que  rebentam  de  olhos  que  sabem  chorar,  de  coraçílo 
que  a  dôr  com  mão  robusta  estorce.  'Noutros  lo;ranís, 
surge  o  amor  f«diz,  satisfeiío,  indeiisado,  transmutando 
a  vida  em  delícias,  o  mundo  em  éden.  A  saudade,  como 
a  Bernardim  Ribeiro,  foi  um  dos  sentimentos  que  mais 
cantos  dictaram  ao  poeta,  que  'neste  incarnou  toda 
sua  alma  ;   c  que  nlma  parece  ser  a  sua! 

Nao  St?  ahsjrve  porém  a  musa  do  Sr  Ribeiro,  exclusi- 
vamente nos  asíuuiptos  eróticos  ;  distinguem-se  'nesta 
collecçâo  mimosas  poesias  dedicadas  á  religião,  como  (^ 
o  Psahno  ;  ao  amor  filial,  como  sâo  as  indeixas  Minha 
mãe  ;  ás  harmonias  da  natureza,  como  é  a  poesia  intitu- 
lada Ás  flôreSy  etc. 

Doesta,  por  exemplo,  vejamos  alguns  quartetos  : 

Princeza  entre  as  flores,  oh  límpida  ro&íi, 
oh   glória   dos  prados,  amores  do  sol, 
derrama   os  teos  mimos,  derrama  orgulhosa, 
em  quanto  do  dia  não   morre  o  pharol ! 

Por  entre  os  verdores  do  arbusto   copado 
alli  da  innocencia  no   branco  jasmim 
revela-se  o  emblema,   talvez  desenhado 
por  mao   invisível  de   algum   seraphim. 

Lá  brilha  a  pcrpúlua  ;   modesta  surrind*» 
a  filha  mais  linda  dos  çhaos  de   Mogor; 
diviso-a  no  gesto,   na  cor   exprimindo 
formosos   segredos    de   pudico  amor. 

Lá  vejo  a  sauí/arfc... saudades  acordara. 
Lá  vejo  os  sMspiroi... suspiro  também. 
Que  doces  imagens  que  assim  se  recordam  I 
Que  fundo  mystério  que  as  flores  contêm ! 
,     .     >..■.■«••••.• 

Da  noiva  contente  vos  leva  a  capella. 
Surris  innocentes  no  altar  do  Senhor. 
Nas  salas  douradas,  na  choça  singella, 
se  reinam  folgares,  lá  brilha  uma  flor. 


XaX  175 

Té  brilh-i  dos  m orlos  uo  lúgubre  império, 
cobriíâdo  das  campas  o  pállido  horror ; 
c  ao  pí^  do  cyjiroste  que  se  er^ue  funéreo, 
nos  fila  da  morte  com  risos  de  amor. 


Surri-vos,  oli  flor'ís,  nos  oampos,  na    serra, 
no  braço  da  lyra,  n^)S  cânticos  meos  ! 
Vós  sois  os  brilhantf!S  mais  ricos  da  terra  ; 
caístes  na  t^M-ra  de  um  riso  de  Deus. 
Uitraimos  a   p'í:iaa,  pois  muito-;  outros  trechos  trans- 
cr^-vfíríamo^,  se  iv) ;  deix.  isse^nos  arrastar  pelo  prazer  de 
multiplicar  as  pr  ivas  A')  que  a  harmoniosa  lyra  do  vale 
peraambu'!ano  é  di'^na  de  vibrar  com  distincçno  ent;e 
as  que  honram  ao  paíz. 

Os  nepixtílí canos   om  Inglaterr-a. 

Em  Ing^l.iterra  lambe-n  ha  republicanos,  isso  ha  :  o 
que  ou  nkn  scei  é  se  sao  da-;  três  espécies,  em  qu*í  o  g^é- 
ner  j  se  divi<le,  ou  .se  apenas  os  ha  de  dua-?.  Porque  o 
género  repubtícano  divide-se  em  três  espécies  :  pescado- 
res dragueis  turvas,  paleUvi,  e  alguns  de  boa  fé.  Esta 
liltima  espéci",  pcdo  [»equeno  número  de  individuos,  de 
que  consta,  quasi  pôde  ser  contada  c  )mo  ex.^eprfio. 

O;  rapublicaaos  ingle/,es  serão  das  três  espé.-ic:,  de 
duas, ou  só  de  uma? 

Tiveram  elles  sua  reunião,  e  pregaram  ao  povo  um 
sermão,  de  que  se  concluía  que  aquelle  paiz  tem  até 
hoje  andado  pessimamente  governado :  é  uma  armadi- 
lha, que  é  príiciso  deitar  aterra,  para  a  substituir  por 
um*j  república  de  papo  amarello,  em  que  mais  nin- 
guém hade  trabalhar  !  o  governo  havendo  dinheiro 
(sem  que  ninguém  saiba  d'onde  lhe  hale  vir),  hade 
maníar  ai)r)mptar  tantos  binqui.es.  que  hão  de  ser  b*.- 
▼ado4  em  carros  "p^las  casas,  afim  de  cada  ufy  se 
servir  do  que  qui/.er. 

Talvez  alguém  c.iid';  qu?  isto  m^.r;ceu  g.^^al  approva- 
cao  :  (1  uai  historia  !  cab  «ci  de  mjfle^  é  duri:  não  se 
leva  assim  com  duas  ra^.ôíí.  Ríuaiu-s.^  una  porção 
d'elle5,  que  não  são  dos  tae;;  também  fe/.  seo  sermão, 
em  qu-j  prjmííteu  que  por  meio;  morais  e  phffsir.os 
(e5tà  escripto  assim  mesmo)  havia  de  obstar  a  que  che- 
gue essa  edade,  que  não  será  de  ouro, mas  será  de  com  í- 
zainas.  Est*s  esturrados  parece  que  pausam  que  lá  em 
Inglaterra  todo  o  republicano  ou  é  velhaco  ou  lolo. 
Terião  elles  razão  ?  Otton. 


176  XXXI 

Ao  pé  do  xnal  o  x*eziiedio. 

O  Largo  do  Paço,  cLrisin«du,  \,ov  giaça  da  JUiiia. 
Câmara  Municipal  em  Praça  de  I).  Pedi  o  II,  (com  o  que 
certamenie  muito  ganhou  a  salubridade  e  hforniC.-ta- 
menlo  d'esta  Loa  cidade,  fim  que  alei  esj-ecialnunie 
incumbiu  áquella  corpgraçao  )  o  Largo  do  Paço,  dizía- 
mos, tem  chafariz.  Mandaram-lhe  fazeraharba,  e  vesitir 
camisa  lavada,  mas  deixaram-lhe  o  sieo  antigo officio,  que 
é  dar  de  beber  a  quem  tem  sede. 

E  pois  quando  lhe  deixam  chegar  água  ás  bicas  (o  que 
nem  sempre  accontece  ),  lá  continua  elle  na  prática  d'a- 
quella  importante  obra  de  misericórdia.  Quem  tiver 
sede,  havendo  água  em  bica,  é  beber  até  farlar.  Kem 
custa  dinheiro,  cousa  que  ja  é  bem  rara  no  Rio  de  Ja- 
neiro. Mas  é  certo :  água  de  chafariz  em  primeira  rnHo 
obtem-se  de  graça,  a  nSo  [ser  alguma  bcidoada  que  o 
pobre  do  preto  leva  de  algum  urbano:  povtm  i.^ho  nSo 
se  conta. 

Mas  quem  bebe  água,  tem  necessidade  de  a  despejar  : 
isso  é  dos  livros. 

A  necessidade  de  um  logar  acc(  mmodado  e  próprit 
nas  immediacCes  do  chafariz,  é  de  intuicfio. 

Ora  ahi  está  a  razão  porque  em  freme  ao  tal  sòbie 
dicto  chafariz,  mandou  a  Illnia.  colk(  ai  i.nja  Jatrira.  on 
como  melhor  nome  haja. 

Se  está  collocada  bem  em  frente  ao  chafariz,  é  para 
poder  ser  vista  dos  qued'ella  precisarem. 

Se  não  foi  accommodada  em  algum  pequeno  gabinete 
na  casa,  que  próximo  áquelle  lugar,  foi  mandada  le- 
vantar, foi  não  só  porque  'nesse  caso  deixaria  de  e>tar 
bem  á  vista,  e  sobre  tudo  porque  o  logar,  em  que  po- 
deria estar  esse  gabinete,,  poderá  render  á  lllma.  al- 
gumas dezenas  de  mil  reis  annualmente,  o  que  não  é 
cousa  que  se  desprese. 

E  se  é  um  dos  priíÉeiros  objectos,  que  incontra  um  es- 
trangeiro, que  aporta  a  nossas  praias,  é  para  que  logo 
possa  escrever  para  a  sua  terra,  fazendo  ver  como  a 
nossa  municipalidade  se  occupa  de  nossos  cónimodos  e 
necessidades,  o  que  não  pôde  deixar  de  attrahir  ao  paia 
grande  immigração. 

Ottox. 


Typ.  e  lith. — Imparcial— Rua  Sete  de  Setembro  n.  146  A . 


QUESTÕES  DO   DIA 

DST.**  33 

RIO  DE  JANEIBO,  11  DE  JANEIRO  DE  W2. 

"Veaáe^se  em  casa  dos  srs.  E.  &&  H.  Lasiumort.— Agoslinho  de  Freitas  Gui- 
marães &  Comp.,  26,  rua  de  General  Camará.— Livraria  Académica/  Rua  de 
S.  José  n.  119-  Lar^^o  do  Paçe  n.  C— Preçío  200  reis. 
O  r  volume,  com  perto  de  400  páginas— aiJOOO. 

I^nez  <te  Oastx*o. 

Tragedia  de  Júlio  de  Castilho. 

I. 

Os  amores  do  infante  D.  Pedro,  e  a  trágica  morte  de 
D.  Ignez  de  Castro,  em  1355,  no  reinado  de  El-rei 
D.  Affbnso  IV,  que  morrea  2  annos  depois,  sao  o  quadro 
de  um  amor  tão  majestosamente  sublime,  e  de  uma  fero- 
cidade  tao  pavorosamente  execravel,  que  nao  tem  simi- 
Uiame  nos  annaes  do  mundo.  Ás  mythologias  do  pa- 
ganismo, tao  imaginativas,  e  fecundas  nas  creaçOes  do 
amor  e  da  crueldade,  nada  nos  indicam  de  idêntico; 
88  chrónicas  dos  povos,  desinrolando  os  pergaminhos 
de  8608  successos  notáveis,  nada  nos  aponctam  que  se 
alce  ao  sublime  e  horrível  d'aquelle  singular  episódio 
da  história  portugueza. 

D.  Pedro  incoutrára  um  dia  nos  aposentos  do  paço 
real,  em  companhia  da  rainha  sua  mae,  aquella  mulher 
formosa,  tal  como  nos  bellos  dias  da  arte  grega  a 
haviam  sonhado  Phidias,  Praxiteles  e  Pamphylo,  nos 
arrõbos  supremos  d'aquellas  almas  tao  feitas  &  imagem 
e  similhança  do  Omnipotente.  Aquella  fada  das  theo- 
gonias,  na  sua  mais  esplendida  manifestação  da  formo- 
sura ideal,  com  seo  collo  de  garço^  sua  face  de  neve  e 
carmim,  seos  cabellos  de  ouro  em  madeixas  fluctuantes, 
emmoldurando  o  oval  d'aquelle  rosto  de  anjo  ;  o  azul 
celeste  d'aquelles  olhos,  todo  aquelle  complexo  excelso 
de  maravilhas  lhe  introu  pelo  intimo  d'alma,  e  alma 
d*aquellc8  tempos  de  glórias  portuguezas,  tempos  de 
fé  e  de  gentilezas,  tempos  honrados  pelas  conquistas  da 
Cruz,  pelos  brios  de  cavalheiros  e  pela  observância  do 
juramento. 

VâP-at  amaV-a,  arrebatar-se,  sentir-se  nobilitado  pelo 
amor,  íncher-se  de  uma  nova  vida,  adunar-se  em  corpo 
e  alma  ao  objecto  que  lhe  exalçava  o  espirito  e  os  ex- 


37» 


XXXII 


tremos  acima  das  proporções  do  nivel  conhecido  ;  foi 
tudo  principio  e  fíiii,  elfeito  e  causa,  e  tudo  l^u  asinha 
ahrtdhado  d'aquelle  primeiro  incnntro,  que  mais  parecia 
o  súbito  arremessar  du  cratera  comprimida  no  bojo  d'um 
vukao  ou  o  improviso  effeito  do  raio  desprendido  das 
nuvens,  que  n  ilesbrochnr  de  uma  paixão  cm  peito  de 
homem. 

Mutuaram-si-  affcctos  e  carinlius,  e  aquellas  duas  al- 
mas sublimes  leram  e  guardaram  uo  fundo  de  coração 
a  grande  epopéa  de  uni  amor  que  não  teye,  nem  tem 
egual  na  humanidade   inteira. 

D.  Pedro,  o  infante  herdeiro  de  um  throuo  nobilitado 
e  afamado  pela  mirariilosa  vic.ória  do  Campo  d'OuriquB 
e  pelas  glórias  nfio  menos  grandes  de  Alcácer  .lo  Sal. 
do  reino  dos  Algarves  conquistado  aos  mouros,  de.  Cas- 
iella  e  de  Aragão,  de  Andaluzia  e  d'Africa,  e  dai*  mar- 
gens do  Salado,  deapresava  toda  a  linhagem  gloriosa  de 
que  vinha,  nao  ambicionava  o  throuo  glorificado  por 
seos  avoengos,  porque  seo  throno,  sua  glrtria,  .^^eo  fu- 
turo inteiro,  o  éJeu  de  suas  esperanças,  estava  tudo  na 
alma  de  sua  alma,  na  vida  de  sua  vida,  que  tudo  isto  era 
a  formosíssima  ígnea,  de  cujo  amor  não- haviam  des- 
viai'-© u'ím  as  forças  de  Portugal  inteiro,  nem  as  amia- 
ças  da  suberba  Castella.  Oljstâculos  o  cercavam  por 
toda  a  parte;  tramavara-se  conspirações  tenebrosamente, 
nada  demovia  o  infante  ;  cavalheiro,  valoroso,  leal  e 
magnânimo,  tinha  lavrado  no  livro  de  aeo  coração  o 
juramento  de  preito  e  homenagem  á  senhora  absoluta  de 
sua  vontade,  de  seos  extremos,  de  suas  acçOes  e  de  sua 
vida.  Nem  o  sobresenho  carregado  e  amiaçador  de  seo 
pae  e  seo  rei,  nem  as  lágrymas  dé  sua  sancta  mfte  e 
rainha,  uem  a  philauciosa  suberba  da  côrle  e  dos  no- 
bres do  reino,  nem  o  tumultuar  do  povo  nas  ruas  etias 
praças,  que  grilava  contra  a  alliança  de  um  príncipe 
com  H  plebea  e  pea^  Ignez  de  Castro  (ainda  quede 
muito  subida  entirpe  vinha  ellal ;  nada  de  tudo  isto 
amedrontava  o  infante,  que  eraelle,  só  e  desamparado, 
H  ilàu  possante  que  uo  meio  do  oceauo  revolto  e  negco,  e 
batida  de  todos  os  lados  pelas  indómitas  lufadas  de 
temporal  desfeito,  nao  se  afundava,  nem  ao  menos  roçava 
a  quilha  nos  alfaques. 

No  em  tanto,  assbranceriadorei,  o  indusimento  sinis- 
tro dos  conselheiros,  a  suberba  jactanciosa  dos  nobres, 
a  vozeria  estrugidora  dos  populares,  eram  o  rugir  me- 
donho de  tempestade  horrível;  ennegrecia-se  pavoro- 
-ainente  aquelie  céo  infausto ,  relâmpigos  sinistros  cru- 


XXXII  179 

zavani  os  espaços  tenebrosos  de  uma  atmospbera  de 
lucto  ;  todo  este  vertiginoso  remoinhar  desincadeado  dos 
elementos  era  o  prenúncio  de  uma  catástrophe  que 
ainda  hoje,  ha  quasi  seis  séculos  de  diôiuucij.  I  íaz 
gelar  de  horror,  humilha  e  in vergonha  a  humanidade. 

O  rei  era  incerto  e  vário  na  resolução,  os  conselheiros 
desalmados  e  sanguinários  no  intento,  e  a  victima  ex- 
piatória estava  irremissivelmente  votada  ao  sacrifício, 
sem  embargo  do  sentir  de  nobres  e  leaes  cavalheiros 
que  exprimiam  os  sentimentos  da  humanidade,  e  o  res- 
peito ás  damas  como  soía  haver  'naquelles  tempos 
cavalheirosos,  em  que  se  contrastavam  bravuras  e  pon- 
donores,  arbítrios  e  cruezas.  Coimbra,  a  rainha  do 
Mondâgo,  que  corre  e  se  recurva  humilhado  a  seos  pés; 
Coimbra,  debruçada  na  incosta  de  seo  monte,  com  seos 
afamados  campos,  seos  frondosos  salgueiraes,  seo  admi- 
rável aqueducto,  e  sua  Sé,  cuja  antiguidade  se  perde 
nos  tempos,  lá  tem  para  memória  eterna  de  um  remado 
e  de  um  século  a  Quinta  das  Idgrymas^  onde  geme  em 
solidão  a  Fonte  dos  amores^  tao  divinamente  celebrada 
pelo  immortal  poeta  dos  Lusíadas  \  lá  tem  esse  monu- 
mento de  angústias,  de  martyrio  e  de  ferocidade,  ma- 
culando uma  história  e  fazendo  verter  prancto  de  dó  a 
todas  as  gerações  que  se  succedem. 

Foi  ahi  que  no  infausto  dia  7  de  janeiro  de  1355,  os 
pérfidos  conselheiros  Álvaro  Gonçalves,  Diogo  Pacheco 
e  Pedro  Coelho,  levando  comsigo  o  rei,  de  Monte-Mòr 
o  Velho,  foram  juizes  e  algozes  a  um  tempo  ;  cravando 
desapiedadamente  punhaes  no  seio  alabastrino  da  vir- 
tuosa Ignez  de  Castro,  a  mais  esplêndida  formosura  de 
seo  tempo,  a  mais  desventurada  esposa  e  mae  de  que  se 
faz  menção  nos  annaes  da  humanidade.  Nada  pôde 
apiedar  os  tigres  sedentos  de  sangue  ;  aquella  desditosa 
aos  pés  do  rei  com  três  innocentes*filhus,  netos  d'elle ;  o 
gemer  e  soluçar  d'aquelles  anjos,  abraçados  ás  plantas 
de  seo  avô,  implorando  misericórdia  para  sua  sancta 
roSle....  nada,  nada  abrandou  a  fúria  dos  sicários. 

E  a  victima  innocente  dos  preconaaitos  de  seo  século, 
caiu  áos  pés  dos  implacáveis  algozes,  como  estátua  de 
alabastro  colorida  de  púrpura ;  e  a  sua  voz,  intercortada 
na  tribulação  da  morte,  ainda  proferia  o  nome  de  seo 
prineípe,que,  t&o  distanciado,nao  podia soccorrer  aquella 
que  lhe  era  a  luz  e  a  vida. 

Foi  sepultada  no  claustro  do  mosteiro  de  Sancta 
Clara. 


180  XXX  ll 

D.  Pedro  volta,  e  busca  o  iilolo  de  sua  alma;  infor- 
mado da  catàMtrophe,  ullulou  como  a  liyena,  corno  o- 
lao  no  deserto  rugiu  feroz  e  aoiiaçador  e.  bradou  — 
Vingança  !  !  —  Vingança —  repetiram  os  eclios  das  mon- 
tanhas, e  o  Mondego  levava  ao  oceano  a  palavra  tre- 
menda,  r|ne  por  muitci  temp)  os  montes,  os  valles  o  os 
campos  repetiram.  Si\bita  transformação  se  operara  no 
espírito  do  desditoso  infante  ;  parecia  que  o  homem  ia 
deshumanar-se  ;  parecia  que  lodos  os  senti  mentis  de 
humanidade  se  tinham  transformado  no  instincto  da 
ving^ança.  Parece  mpsmo  que  a  natureza  estremeceu  e 
se  convulsou  k  vista  de  tamanho  horror  e  de  tilo  inau- 
dita crueldade  e  do  castigo  horrível  que  tumultuava  no 
peito  do  ving-ador. 

A  21  de  agosto  de  1856  um  grande  terremoto  causou 
consideráveis  estragos,  e  mezes  depois,  em  maio  do 
anno  seguinte,  succumbia  o  rei  D.  Affonso  IV,  que  é 
appellidado  :  filho  ingralo,  irmão  injusto,  e  pae  cruel. 
O  infante,  que  em  vida  de  seo  pne  bramira  furioso,  e 
que  no  excesso  de  seo  desatino  pela  morte  bárbara  da 
querida  Ignez  sus, — cego  da  dor  que  o  excruciava, 
pegara  era  armas,  convocam  aeos  amigos,  devastara  e 
posera  a  ferro  e  fogo  as  províncias  do  norte  do  reino, 
acabou  todavia  por  ceder  aos  conselhos  prudentes  da 
rainha  sua  mfle  e  do  arcebispo  de  Braga  e  voltou  k  vida 
de  soledade  onde  quiçá  ruminava  os  planos  de  seo  peu- 
samento  fixo  —  a  ringanrn. 

Dons  annos  depois  da  catàstrnphe,  subia  ao  throno  o 
triste  infante,  orpham  de  tanto  amor,  e  era  proclamado 
pela  juncta  dos  três  estados  o  Sr.  D.  Pedrol,  rei  de  Por- 
tugal, Foi  seo  primeiro  cuidado  contrahir  ura  tractado 
de  alliança  cora  Pedro,  o  Cruel,  rei  de  Casiella,  contra 
o  rei  de  Aragão,  embora  contra  o  voto  dos  conselheiros, 
para  obter  a  intrega  das  assassinos  de  Ignei :  colheu  às 
mãos  Alvan»  Gonçalves  e  Pedro  Coelho,  tendo-ao  esca- 
pado Diogo  Pacheco.  Inventaram-se  os  mais  satânico» 
tormentos  ;  o  rei  qne  assistia  ao  supplicio  animava  os 
algozes,  e  chegou  por  sua  própria  mao  a  fustigar  uma 
das  vlctiraa<!,  mandando  arrancar  o  coração  a  ura  p^da 
frente,  a  outro  pelas  costas ! !  !  Este  acto  que  toca  o 
apogéo  da  crueldade,  só  iucontra  escusa  no  delírio  de 
um  amor  sem  tênno,  na  idéa  fixa  de  ura  martyrio  excru- 
ciant«,  no  pensamento  inabalável  de  uma  punição  em- 
parelhada à  crueldade  inaudita  do  assassinato  feroz  de 
uma  victima  innocente,  sacrificada   ao   rancor  do  misc- 


XXXII  181 

Em  seguida  o  rei  convoca  as  cortes,  declara  e  jura 
solemnemente  seo  casamento  com  D.  Ignez  de  Castro, 
tendo  sido  celebrado  em  Bragança,  presente  o  bispo  da 
Guarda  e  o  reposteiro  mór;  e  de  tiido  se  lavrou  termo. 

Mandou  desinterrar  o  cadáver,  cingiu-o  das  reaes 
insígnias,  pÕ7<-lhe  a  coroa  de  rainha  na  cabeça,  sentou 
aquelle  corpo  inanimado  no  throno  de  seos  avós,  e  or- 
denou que  todos  lhe  beijassem  a  mílo  como  rainha  de 
Portugal,  fazendo-lhe  todas  as  hpuras  e  ordenando-lhe 
depois  o  saimento  para  Alcobaça  com  tamanho  esplen- 
dor e  magnifícência ,  como  nunca  se  houvera  visto, 
accompanhado  de  toda  a  corte,  grandes  do  reino  e  fi- 
dalgos, todo  o  clero,  prelados  e  mais  dignidades,  man- 
dando-lhe  erigir  um  magnífico  mausolêo  reunido  a 
outro  que  lhe  era  destinado  ;  e  quando  se  lhe  ante- 

5 unham  embaraços  na  guvernança  de  seos  Estados  ia 
ebruçar-se  sobre  q  mármore  frio  do  túmulo  e  pedir 
inspirações  ás  cinzas  d'aquella,  cujas  recordações  lhe 
ínchiam  e  occupavam  a  vida  inteira.  Todas  estas 
magnificências,  respeitos  e  acatamentos  pósthumos,  são 
o  symbolo  sublime  do  ideal  do  amor,  da  saudade  eterna, 
da  lealdade  immaculada,  e  do  pungir  de  uma  dor  sem 
limites. 

O  principe  D.  Pedro  foi  o  protótypo  da  firmeza,  e 
estabilidade  do  amor  á  mulher  da  escolha  de  seo  cora- 
çfto ;  foi  o  modelo  da  saudade,  da  reverência  e  da 
dedicação  pósthumas  ;  foi  o  poeta  elegíaco  que  soube 
crear  uma  epopéa  para  estampal-a  no  pórtico  de  todos 
os  séculos  e  achar  no  coração  de  cada  poeta  um  echo,  e 
nos  olhos  de  quantos  tiverem  alma  capaz  de  sentir,  uma 
lágryma. 

Cumpre  porém  dizer,  que  D.  Pedro  foi  como  o  mar, 
negro  e  furiosamente  revolto  durante  a  sanha  indómita 
da  tempestade  ;  calmo,  plácido  e  sereno  no  repouso  dos 
elementos.  Aquietado  o  furoi-  da  vingança,  tornou-se 
liomem  ;  aplacado  o  allívio  do  uesaggravo,  tornou-se 
rei,  e  é  chamado  na  história  —  o  Justiceiro. — 

MUCIO  SCOBVOLA. 

[Continua.) 

NONA  CARTA  DE  CINCINNATO  A  SEMPRONIO. 

Rio  de  Janeiro,  5  de  Janeiro  de  1872. 

Amigo. 

Meo  dicto,  meo  feito ;  fui  propheta ;  e  nem  admira, 
que  se  sou  alveitar,  tal  me  fez  o  mal  dos  meos  burricos  ; 
asinha  prophetiza  (para  deante),  quem  não  é  senão  his- 


182  XXXII 

toriador  (para  traz) ;  o  hontem  costuma  trazer  no  bojo  o 
amanha. 

A  29  do  passado,  escrevia-te  eu  que  «  havia  críticos' 
cuja  praxe  é  applicar  ao  livro  mais  pífio  certos  termo®^ 
encomiásticos  e  bombásticos,  taes  como  :  estupendo  pri- 
mor ;  esmalte  de  eloquência  e  belleza  ;  auge  de  perfei- 
ção ;  fecho  de  abóbada  litter&ria ;  non  píus  idtra  da 
sapiência ;  cinta,  capitel  e  coroa  da  columna  das  let- 
trás 

«  Ora,  toda  esta  algaravia,  esta  cascalheira,  o  que 
significa  é  o  dialecto  do  elogio  mútuo,  ou  uma  bajulação 
torpe,  ou  uma  ignorância  philauciosa  com  que  vEos  sons 
pretendem  incobrir  deficiência  de  idéas  e  incompetência 
de  julgamento.  » 

E  logo  no  dia  immediato  me  traziam  um  número  do 
jornal  predilecto  do  Sr.  Alencar,  a  Repúblka^  o  infeliz 
pelourinho  do  Ti/,  com  um  panegyrico,  do  tal  género 
pantafaçudo,  ao  famoso  Tronco  do  Ipô  (do  que  a  seo 
tempo  me  occuparei),  onde  li  cousas  do  arco  da  velha, 
taes  como  que  na  língua  portiigueza,  aqui  e  alem- 
mar,  em  bem  poucos  romances  se  poderá  deter  a  atten- 
çao!  quando  este  último  quartode  século  brilha  com  innu- 
meraveis  romances  originaes,dos  qnaes  o  derradeiro  fica 
cem  léguas  acima  do  melhor  do  Sr.  de  Alencar.  (*) 

(*)  Deixo  aos  outros  quahfícar  como  lhes  approuver  esta 
injustíssima  e  ingratíssima  accusação.  E'  exactamente  no 
género  romance  e  contos,  que  a  litteratura  d'este  último  quarto 
de  século  se  tem  inriauecido  opulentamente,  e  de  modo  tal  que 
talvez  nenhum  outro  idioma  haja  produzido  tão  elevado  número 
de  jóias  litteránas,  algumas  das  quaes  de  subido  valor. 

A'  testa  d'essa  aguerrida  phalaage  fulgura  com  deslumbrante 
brilho  Camillo  Castello  Branco,  nfto  só  de  infatigável  c  as<(om- 
brosamente  fecundo  estro,  mas  (sobre  tudo  nos  últimoi)  12  an- 
nos)  de  valentia  de  imaginaçflo,  elegância  do  phrasc,  graça 
e  mimo  de  expressão,  originalidade  e  naturalidade  de  inrédos, 
riqueza  de  pensar  e  sentii^  harmonia  da  prosa,  vernaculidadc  do 
dizer,  inthesourar  de  termos  pittorescos  desingastados  da  lín- 
guagem  popular  ou  das  páginas  dos  bons  livros,  termos  c  locu- 
ções que  opulentarão  os  nossos  léxicons ;  o  que  tudo  o  rolloca 
em  altura  inaccessivel  'nesta  especialidade. 

Muitos  outros  peregrinos  talentos,  porém,  se  tôm  dado  a  este 
ramo,  que  até  verdadeiramente  se  pôde  dizer  que  nasceu  entre 
nós  ha  poucos  annos.  E  pois  que  importa  rebater  uma  asserc&o, 
tendente,  como  em  tantos  objectos  é  do  uso  de  certos  patriolas, 
a  deprimir  as  nossas  cousas  'naquillo  mesmo  em  que  ellas  mais 
louvor  merecem,  acho  conveniente  aponctar  aqui  algumas  das 
obras  de  alguns  dos  modernos  auctores,  que  exactamente  se  tem 
occupado  distinctamente  de  escrever  romances,  originaes,  que  o 
imparcial  crítico  stygmatiza  como  indignos  de  mençfto  1 


XXXII  183 

Vai  indo  aquillo  por  alli  abaixo  r.a  mesma  afinação  e 
depois  dà-rae  para  o  meo  tabaco.  Denuncia  que  eu  7ião 
tenho  espada  e  não  tenho  charrua^  faltas  estas  que  me. 
£azem  muita  falta;   proclama-me  romano   degenerado^  e 

Krtanto  inferior  a  qualquer  ganço  do  capitólio,  d'aquel- 
}  que  nós  sabemos;  diz  que  eu  não  posso  lavrar  as  mo- 
destas geiras  do  meo  património ^  do  que  os  meos  boi- 
sinhos  se  deram  por  insultados;  e  represonta-me  in- 
capaz de  salvar  a  pátria^  privilégio  reservado  aos 
Salvadores. 

Como  porém  não  é  a  minha  triste  figura  que  está  em 
discussão,  passemos  ja  á  apologia  do  Sr.  Alencar.  Queres 
saber  como  se  responde  ás  tuas  profundas  anályses,  às 
tuas  demonstrações,  assim  como  ás  minhas  respeitosas 
dúvidas?   Queres  ver  a  argumentação  adamantina  com 


íífto  ha  necessidade  de  fixar  ordem  nem  na  ohronolopia,  nem 
no  mérito  das  publicações.  Eis-ahi  indicações  lançadas  ao 
«caso: 

CAMILLO  CASTEhLO  BRANCO  :—Ap:ullia  em  palheiro— Amor  de 
perdição — Amor  de  palvaefto —  Anáthema — Annos  de  prosa — 
Aventuras  de  Basílio  Fernandes  Inxertado— O  bem  e  o  mal — 
Bruxa  de  Monte-Córdova— Carlota  Angela— Co raçào,  Cabeça, 
TÇstôraafro—  Cousas  espantosas— A  Doida  do  Candal— Doze  Casa- 
mentos felizes— A  Ingeitada— O  esqueleto — Kstréllas  funestas— 
KstrôUas  propícias — A  filha  do  arcediago— A  filha  do  Doctor 
negro— Um  homem  de  brios— O  Judeo— Lágrymas  abençoadas — 
Livro  negro  do  Padre  Diniz— Lucta  de  gigantes— Memorias  de 
Guilherme  do  Amaral— Mystérios  de  Fafe— Mystcrios  de  Lisboa 
— A  neta  do  arcediago — Noites  de  Lamego— O  olho  de  vidro — 
Onde  está  a  felicidade? — O  que  fazem  mulheres— A  queda  de 
um  anjo— O  retrato  de  Ricardina— O  Rom«nce  de  um  homem 
rico — O  Sancto  da  montanha-  O  Sangue— Sccnns  contemporâ- 
neas— O  Senhor  do  Passo  de   Ninàes— A  sereia — Ultima  palavra 

da  Consciência  (Solemnia  terba) — As  três  irmans — Vingança 

Vinte  horas  de  leitura— As  virtudes  antigas,  ou  a  freira  *que 
fszia  chagas  e  o  frade  que  fazia  reis—  Os  brilhantes  do  brazi- 
Iciro— ^Cavar  em  ruinas— Cousas  leves©  pesadas— Cousas  espaux 
tosas — Duas  horas  de  leitura-Taunay— Memórias  do  Cárcere— 
Memórias  do  Fr.  João  de  S.  J.  Queiroz— O  mosaico— No  Bom 
Jesus  do  Monte— Romance  de  um  rapaz  pobre— Sccnas  da  Fóz— 
Scenas  innocentes  da  Comédia  humana— A  mulher  fatal. 

ALKXANimE  IIERCDLANO:— O  alcaide  de  Santarém— O  bobo— 
Eurico — O  Monge  de  Cister— Lendas  e  narrativas — O  Monás- 
ticon. 

PEREIRA  DA  CUNHA :— Brios  heróicos  de  portuguezes -Contos 
da  minha  terra. 

ANDRADE  CORVO:— Um  anno  na  Corte— O  sentimentalismo. 

JOSÉ  JOAQLIW  RODRIGUES  DE  RASTOS:— O  Médico  do  Deserto. 

TEIXEIRA  DE  VASCONCELLOS :— O  Prato  d'arroz  doce— ROBERTO 
VALENÇA— A  ermida  de  Castromino. 

ANDRADE  FERREIRA :— Tradições  c  phantasias. 


184  XXXÍI 

que  se  pulverizam  conscienciosos  estudos,  e  com  que  se 
justificam  as  taes  cousas  que  nós  pergumâmos  se  nao  sao 
erros  palmares  ? 

Escuta  cá  esta  mirífica  justificação  : 

1.®  O  'B%Qod  que  com  maior  brilho  ha  até  hoje  inscripto 
o  nome  em  nossos  annaes  litteràrios  é,  sem  contestação 
razoável  (  cómmodo),  José  de  Alencar.  » 

Estupendo  primor  ! 
2.°  «  Cada  uma  de  suas  novas   composições  revela  o 
observador  profundo  » 

Auge  dk  perfeição  ! 
3.°  «  Veste   de  mil  incautos  a*  realidade  positiva  dos 
existências  as  mais  simples  »    ( é  portuguez  á  moda  de 
Sénio ) 

Esmalte  de  eloquência  e  belleza  ! 
4."  »  O  Tronco  do  Ipê  é  mais  uma  prova  brilhante   do 
meo  asserto  » 

NON  PLUS  ULTRA  DA  SAPIÊNCIA  ! 

5.**  «  Characteres  b^ím  delineados,  estylo elegantíssimo, 
sSo  os  seos  mais  notáveis  predicados  »  ( Que  taes  serfto 
os  outros  !  ) 

FRANCISCO  MANOEL  BORDALLO :—  Eugénio— Viagem  á  roda  de 
Lisboa. 

JÚLIO  DINIZ  (Dr.  Joaquim  Guilherme  Gomes  Coelho) — ^Morga- 
dinha dos  Cannaviaes — Uma  Família  Inprleza — As  Pupillas  do 
Sr.  Reitor— Os  Novôllos  da  Tia  Philomella— O  Espólio  do  Sr. 
Cypriano — As  Apprchensões  de  uma  Mãe — Uma  flor  d'entre  o 
golo. 

REBELLO  DA  SILVA  :— A  tomada  de  Ceuta— Contos  do  Seriio — 
Raússo  por  homisío — A  mocidade  de  1).  João  V —  Lágrymas  c 
Thesouros — A  Casa  dos  phantasmas — Odio  Velho  nào  cança — 
A  pena  de  TaliSio. 

DR.  A.  SILVA  GAIO  :— Mário. 

LOPES  DE  MENDONÇA:— Memórias  de  um  Doido. 

JDLIO  DE  CASTILHO :— Memórias  dos  Vinte  Annos. 

THOMAZ  RIBEIRO:— D.  Javme— Delphina  do  Mal. 

ANTÓNIO  COELHO  lousaIa  :— Os  Tripeiros— A  rua  Escura— Na 
Consciência. 

GARRETT :— Arco  de  SanfAnna. 

ARNALDO  GAMA:— O  Génio  do  Mal—  A  Caldeira  de  Pêro  Bote- 
lho—O Segredo  do  Abbade— O  Sargento  Mór  de  Villar — A  Ultima 
Dona  de  S.  Nicoláo—  O  Motim— Ha  cem  Annos—  O  Filho  do 
Baldaia — Honra  ou  Loucura— Verdades  e  Ficções. 

EUGÉNIO  DE  CASTILHO:— Miragens  da  Felicidade. 

A.  D.  DE  PASCHOAL:— A  Morte  Moral. 

FRANCISCO   LUIZ  GOMES:— Os  Brahamanes. 

DR.  JOAQUIM  MANOEL  DE  MACEDO:— Os  Dous  Amores— O  Moça 
Loiro— A  Moreninha— llosa—  Vicentina—  As  Víctimas-algozes 
— ^Homance  de  Uma  Velha. 

.WLIO  CfiSAR  MACHADO :—  Contos  a  Vapor—    ontos  ao  Luar— 


XXXII  185 

Fecho  de  abóbada  litteraria  ! 

C.**  «  Sceuas  ha  em  que  o  talento  da  descripçao  as- 
sume proporções  cooperiaaas;  e  para  nao  esteader-me 
/"  a  fio  comprido  ),  basta  assig^aãlar  a  narração  da  scena 

do   boqueirão E'  dVssas  obras  d'arte   que  hao-de 

passar  de  geração  era  geração  como  representantes  de 
uma  épocha  litteraria,  e  iniciadoras  do  romance  na- 
oional.  » 

Cinta,  capitel  e  coroa  da  columna  das  lettras. 

Entílo,  nao  estava  eu  adivinhando?  Agora  no  campo 
republicano  é  natural  esta  linguagem  para  com  o  neó- 
phyto,  até  que  a  centessima  revira-volta'de  amanhã  os 
tíiça  apupar  o  hoje  indeusado.  E'  a  algaravia;  é  a  casca- 
lheira; sao  os  palavrões  sesquipedaes;  os  juizos  superfi- 
ciaes  e  bombásticos;  as  appreciaçOes  vagas;  os  ribombos 
pyrotéchnicos,  ou  as  espadas  Alexandrinas. 

Curiosas  rebem ditas  !  Deraonstra-se-lhes  o  contrário 
de  tudo  isto;  nao  contestam  o  incontestável;  e  pur  si 
ínuove  l  São  a  mulher  da  tesourinha 

Allega-se  e  pròva-se  que  os  characteres  sao  mal  tra- 
çados, e  como  se  responde  ?  «  Os  characteres  são  bem 
delineados,  » 

AUega-stí  e  prova-se  que  as  denominadas  observa- 
ções do  romancista  são  falsas,  e  como  se  responde  ? 
í<  Estas  composições  revelam  o  observador  profundo.  » 

Allega-se  e  prova-se  que  o  nobre  escriptor  commette, 
a  cada  passo,  os  mais  graves  erros  da  lingua,  e  como  se 

Estevam — Histórias  para  Gente  Moça— A  Vida  em  Lisboa— Pas- 
seios e  Phantasias — Scenas  de  minha  Terra. 

MATHEUS  DE  MAGALHÃES!— Mulher  Funesta— Homem  Funesto 
— ^Receita  para  curar  paixões. 

MENDES  LEAL:— Calabar— Sonho  da  Vida— Aventaras  de  Mar- 
çal-Estouro — Mosqueteiros. 

D.  MARíA  PEREGRINA  DE  SODZA!-  Retalho  do  Mundo— Rhada- 
mantho. 

PEREIRA  DA  SILVA  :— Manoel  de  Moiles. 

PINHEIRO  CHAGAS  !-  A  Corte  de  D.  Jofto  V—  A  Flor  Sêcca— 
Tristezas  á  beira-mar—  A  Virgem  Guaraciaba— Contos  e  Des- 
cripçOes . 

JOSÉ  DE  torres: —Lendas  Peninsulares. 

FAUSTINO  XAVIER  DE  NOVAES:— Mantas  de  Retalho— Cartas  do 
um  Roceiro . 

ESCKAGSOLLE  TAUNAY:— A  Mocidade  do  Trajano. 

RAUALIIO  ORTIGÀO  :—  Em  Paris  —  Mystério  da  Estrada  de 
Oynthra. 

D.  MARIA  AMÁLIA  VAZ  DE  CARVALHO:— Uma  Primavera  de 
Mulher. 

ANTÓNIO  D'OLlVEIHA  MARRECA:— Manoel  de  Souza  Sepúlveda— 
O  Conde  Soberano  de  Castella,  etr-.etc. 


186  XXXII 

responde  ?  «  O  seo  maior  predicado  é  o  estylo  eleganlis- 
simo.  » 

El  sic  de  ccBteris. 

Comprehender-se-hia  que,  após  uma  polémica  illus- 
trada,  em  que  os  preclaros  adversários  lealmente  trium- 
phassem  de  ti,  e  de  nós  todos,  e  nos  convencessem  dos 
nossos  erros  e  de  que  são  bellezas  o  que  de  ílefeitos  qua- 
lificamos, rematassem  com  o^íses  ipl  ijil  livrrahs!  i\(r 
seo  actual  ídolo  ;  mas  soUicitarem  o  plaudile  7)ianibus 
antes  de  abrirem  o  bico,  perdôem-nos  os  sapientes  con- 
frades republicanos,  nao  é  das  mais  razoáveis  exigrên- 
cias. 

'Noutra  folha,  que  ahi  vem  lá  de  outra  República,ap- 
parece  também  uma  correspondência  sobre  o  Guarany^ 
onde  se  lêem  cousas  do  arco  d'outra  velha. Rompe  assim: 

— n  Em  J.  d'Alencar  possuem  as  leltras  bra/àleiras 
o  seo  Chateaubriand.  » 

E  lè-se  logo  no  §  immediato,  o  "2° : 

— «  Entre  Chateaubriand  e  J.  d^Aleucar  ha  um  des- 
penhadeiro profundo,  ou  antes  uma  revolução!   » 

E  no  3*»  §  lê-se  mais  isto  : 

— ((  Approximar-f^tí  os  dous  escriptore^  é  um  impossí- 
vel deanie  de  suas  obras!  que  o  protestam!  em  presença 
da  crítica,  que,  soparando-os,  eigue-lhes  2  pedestacs 
etc.  ctc.  » 

Preceitos  que  mais  obrigam  ! 
Pedir  quem   pôde  mandar! 

Possuímos  pois  um  Alencar  que  é,  tal  e  qual,  um 
Chateaubriand  ;  mas  fiquem  também  certos  que  o  Cha- 
teaubriand e  o  Alencar  nao  s;i  parecem  nada  ! ! 

Faz-me  lembmr  um  subjeito  do  meo  conhecimento,  e 
muito  gracioso,  que  um  dia  'numa  conversa,  caindo  era 
si,  se  saiu  com  um   disparate  muito  galante: 

— *0'  Cincinnato,  viste  hoje  o  Figueiredo? 

—  Figueiredo  !  N%p  conheço. 

—  Esteve  hontem  comno>co  em  casa  do  José  Esiàcio, 

—  Estava  lá  tanta  gente !  Podes  dar  alguns  sig- 
naes  ?. . 

—  E'  tal  e  qual  como  o  Possidóuio:  a  differença  está 
só  em  ser  mais  baixo,  menos  córádo,  cabêllos  mais  ar- 
ripiados.  olhos  pequenitos,  bôcca  niuilo  maicr,  em  falar 
meio  tatibitati,  em  ter  uns  "20  fnuos  deedade  mai;?...  e 
em  nao  se  parecer  nada. 

Já  SC  vê  que  com  similhaníe  photograpliia,  se  j  Sr. 
Figueiredo  passasse  'naquelle  momento  deante  de  mim, 
exclamaria  eu  logo  :   Ecce  homo ! 


XXXII  187 

Chateaubriand-Alencar  :    vide  Figueiredo-Possidónio. 

No  tal  artigo  sobre  o  Guarany  (  outra  producçao  que, 
se  Deus  me  dér  vida  e  tempo  inútil,  também  hade  vir 
para  a  berlinda),  egualmente  fulguram,  entre  outras 
particularidades,  osenthusiasmos  laudatórios.  Olha  aqui: 

—  «  Alencar  é  grande  pelo  génio!....  No  seo  Gna- 
rany  não  se  incontra  uma  lauda  inferior  ás  do  Atila  e 
Naíchezl...  Alencar  é  o  creador  do  drama  realista  no 
Brazil !  Tem  todas  as  elegâncias  de  um  estylo  a  tras- 
bordar de  opulências  !....  Os  personagens  de  Alencar 
remontam-se  a  um  sentir  qne  se  localizai...  O  Guarany 
irá  inriquecer  as  estantes  da  litteratura  européa,  como 
uma  bíblia  sancta  que  recorda  a  legenda  de  um  povo 
talhado  para  grandes  destinos!...  Esta  scena  incerra a 
syntheses  do  romance!...  Verdadeiro  triumpho  é  este 
para  as  lettras  brazileiras,  e  mais  ainda  para  as  do 
universo  !...  O  Brazil  conquistou  mais  uma  coroa » 

Sim  :  «  CINTA,  CAPITEL  E  CORÔA  DA  COLUMNA  DAS  LIÍT- 
TBAS.    » 

O  responso  está  divertido.  Um  leigo  grita:  «  V.  Rev. 
é  um  Octaviano  »  (  um  olho  dera  elle  ao  demo ).  O  outro 
diz:  «  V.  Revm.  é  um  Fenimore  Coopcr  )>.  Torna  o 
primeiro  :  «  V.  Revm.  vence  o  auctor  de  Ontário  ».  Re- 
dargue o  segundo  :  «  V.  Revm,  nao  é,  mas  6,  Chateau- 
briand  ».  E  cá  o  nutro  leigo  responde-lhes :  «  Obrigado, 
meo  povo  ;  obrigado  a  Vossas  Reverendíssimas.  » 

Eu  sou  da  mesma  opinião,  e  concordo  em  que  o  il- 
lustre  romancista  seja,  por  um  senatus-consulto,  pro- 
movido a  semi-deus,  ou  a  deus  e  meio^  o  que  já  estes 
bons  críticos  estão,  por  um  és  nao  és,  propondo  que  o 
proclamemos.  O  Rio  de  Janeiro  está  montado  acavallo 
no  trópico  de  Capricórnio  ;  ora  a  reminiscência  àePleLÍfío^ 
e  a  metempsycose  de  Pythágoras  fizeram  dos  dous  tró- 
picos duas  portas,  pelas  quaes  sobem  e  baixam  do  céo 
as  almas  —  por  Cancro^  as  dos  homens  —  e  as 
dos  deuses,  por  Capricòrmo,  Portanto,  e  pois  que  a  fá- 
bula nao  mente,  competia  cá  a  este  deus  baixar  á  terra, 
nao  por  liaependy,  mas  pela  corte  do  Rio  do  Janeiro. 
Pouco  perde  em  ter  perdido  a  senatória,  quem  ganhou 
honras  divinas. 

Se  eu  me  regular  por  um  grande  pensador,  direi  que 
embora  o  errar  seja  propriedade  da  natureza  humana  — 
o  conhecer  o  erro  é  de  homem  de  juízo  —  o  emendal-o  é 
de  homem  sábio  —  o  perseverar  'nelle  é  de  stulto  —  o 
patrocinal-o  é  de  demónio. 


188  XXXII 

Porque  sinto  um  certo  cmbrulhamento  de  estômago, 
coutento-me  hoje  com  esta  dose  homeopáthica,  e  fica  o 
Til  para  a  outra  vez.  Teo  dadicado 

Cincinuato. 

OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR -A  IRACEMA. 

VII 

Meo  respeitável  amigo.  Sem  mais  preâmbulo. 

Diz  J.  de  Alencar  que  Martins  Soares  Moreno  era  fi- 
lho do  Rio  Grande  do  Norte  {Iracema^  pag.  93  e  180) 

Diz  mais  que  <c  em  1603,  Pêro  Coelho,  homem  no- 
bre da  Parahyba,  partiu  como  capitao-mór  de  descober- 
ta, chegou  à  foz  do  Jaguaribe,  e  ahi  fundou  o  povoado, 
que  teve  nome  de  Nova-Lisbôa  »  (pag.  15Ô);  eque 
«  'nesta  primeira  expedição  (porque  houve  segunda,  a 
de  João  Soromenho,  como  diz  J.  de  Alencar)  foi  do 
Rio  Grande  do  Norte  um  moço,  de  nome  Martim  Soares 
Moreno,  que  se  ligou  de  amizade  com  Jacaúna,  chefe 
dos  Índios  do  littoral,  e  seo  irmão  Poty  »  (pag.  160) 

Ora,  que  em  1603  partiu  Pedro  Coelho  para  colonizar 
o  Ceará,  e  que  em  sua  companhia  foi  Martim  Soares 
Moreno,  dizem-n'o  todos  os  historiadores  e  chronistas 
do  tempo.  Pois  bom;  guarda  tu  bem  em  memória,  que 
em  1603  Martim  Soares  Moreno  estava  no  Ceará  com 
Pedro  Coelho. 

Mas  pergunto  eu  :  em  que  data  se  fez  a  conquista  do 
Rio  Grande  do  Norte  ?  Vai  responder  por  mira  um  his- 
toriador: 

u  1397 — 'Neste  anno  fez-se  a  conquista  do  Rio 
Grande  do  Norte  por  ordem  de  Philippe  I,  com  o  intui* 
to  de  impedir  aos  francezes  a  exportação  do  pàj  brazil, 
e  de  domar  os  Potyguaras,  que  destruíam  todas  as 
plantações  dos  moradores  da  Parahyba,  e  estorvavam  o 
progresso  d'esta  colónia. 

a  D.  Francisco  de  Souza,  Governador  e  Capit&o 
General  do  Estado  Ho  Brazil,  contribuiu  com  todas  as 
despesas,  à  custa  da  Real  Fazenda.  A  esquadra  que  se 
aprestara  em  Pernambuco,  levando  um  Jesuíta  por  in- 
genheiro  e  um  Franciscano  por  intérprete  da  língua  dos 
indígenas,  navegou  destinadamente  à  embcccadura  do 
Rio  Grande,  que  era  o  porto  mais  visitado  pelos  cor- 
sários. 

a  A  empresa  teve  principio  com  um  fortim  de  ma- 
deira, juncto  ao  logar  onde  hoje  está  a  fortaleza  dos 
Reis,  e  cujo  primeiro  commandante,  Jerónymo  de 
Albuquerque,  t^ve  muitos  e  renhidos  combates  com  os 


XXXII  189 

indígenas  por  mais  de  um  anno,  até  que  travando  ami- 
zade com  um  dos  chefes,  chamado  áorobabé,  por  me- 
diação de  um  Índio  allisído,  teve  a  opportunidade  de 
lançar  os  fundamentos  da  cidade,  que  tomou  o  nome 
do  Natal,  por  se  incontrar  a  inauguração  da  sua  matriz 
com  a  festividade  do  nsiscimento  do  Redemptor,no  anno 
de  1599.  »  [Deducção  Chronológica,  do  General  J.  I.  d** 
Abreu  e  Lima,  pa^:.  62). 

Do  que  acabo  de  citar,  o  que  é  que  se  evidencia  ? 
Que  antes  de  1597  nao  existia  no  Rio  Grande  do  Norte 
o  menor  indicio  de  colonização,  e  muito  menos  portu- 
gueza  ;  que  só  'nesse  anno  foi  que  ahi  teve  principio  o 
primeiro  estabelecimento,  consistente  em  um  fortim  de 
madeira  ;  e  que,  graças  à  mediaç&o  de  um  Índio  allia- 
do,  que  se  relacionou  com  o  chefe  Sorebabé,  foi  que 
teve  Jerónymo  de  Albuquerque  opportunidade  de  lan- 
çar os  fundamentos  da  cidade  do  Natal.  Cumpre  adver- 
tir, antes  de  tudo,  que  esses  mesmos  fundamentos  só 
os  poude  Jerónymo  de  Albuquerque  lançar  em  1599, 
porque  de  1597  até  essa  última  data  levou  elle  em 
renhidos  combates  com  os  índios.  O  mesmo  auctor,  na 
pag.  64  da  sua  citada  Deducção^  diz : 

«  1599.-  'Neste  anno  comefoti  Jerónymo  de  Albuquer- 
que^ natural  de  Pernambuco,  a  fundar  a  cidade  do  Na- 
tal, hoje  capital  da  província  do  Rio  Grande  do  Norte. i> 
Admittida  por  tanto  a  hypóthese  (inadmissível,  como 
se  provará)  de  haver  Soares  Moreno  (segundo  afBrroa  J. 
de  Alencar)  nascido  no  Rio  Grande,  este  facto  de  modo 
nephum  poderia  ter  tido  logar  antes  de  1597,  porque 
doeste  anno  para  traz  o  Rio  Grande  estava  em  pleno 
domínio  dos  selvagens  Potyguáras,  que,  se  algumas 
transacções  tinham,  era  com  Francezes,  que  «  vinham 
traficar  em  páo  brazil  »,  como  faziam  na  Parahyba. 
O  auctor  citado  refere  a  pag.  52  o  seguinte :  «  Os  Poty- 
guáras, naturaes  da  Parahyba,  unMos  com  os  Francezes, 
que  vinham  traficar  em  páo-brazil,  faziam  graves  dam- 
nos  aos  povoados  de  Itamaracá  e  de  Iguarassii,  etc.  i^ 
Ora,  ainda  admittida  a  primeira  hypóthese,  fora  ne- 
cessário, pnra  que  Soares  Moreno  houvesse  nascido  logo 
no  primeiro  unno  da  conquista  do  Rio  Grande,  que,  ou 
a  m&e  de  Moreno  houvesse  ido  na  tal  esquadra  de  Jeró- 
nymo de  Albuquerque,  o  que  nfto  é  comtudo  muito  pre- 
sumível, porque  o  guerreiro  devia  anteceder  á  família  e 
preparar-lhe  os  necessários  cómmodos  e  garantias;  ou 
qne  fosse  ella  natural  do  logar,  o  que.em  todo  o  caso,  só 
poderia  accontecer  depois  de  1597. 


19U  XKXII 

Mh!í  nãi)  seja  esta  a  dúvida  :  dâinos  de  barato  que  a 
niae  de  Moreno  fôase  na  expedição  g-nerreira  de  Albu- 
querque, e  -ãiè  que  já  fosse  em  eiitado  de  adesntada  g;ra- 
viden,  de  sorte  que  logo  uos  primeiros  dias  da  chegada 
tivesse  o  (4eo  bom  successo. 

Cuuibiuatido  as  datas,  a  que  concluiSo  çheguremos*? 
A' segiiiuli;.  que  nSo  deixa  de  ser  curiosa  e  sobretudo 
dig-ua  do  tiileiito  ini^eníivo  do  chefe  dn  nossa  litteratura, 
a  saber:  que  Martim  Soares  Moreno,  nascido  em  1597, 
tinha  uecessariamente  em  1603.  quando  accompanhou 
Pedro  Coelho  ao  Ceará,  tí  annos  de  edade.  Será  isso 
crivei  f  I^^aminemos. 

O  citado  historiador,  na  p»g,  70,  diz  que  Diogo  de 
Meneses  «  contentou-se  con  inviar  ao  Ceará  (em  1610) 
um  ofjiriat  poriiijruez,  quo  linha  accompunliado  a  Pedro 
Coelhi}  (em  1603)  e  se  havia  conduzido  bem  com  os  iadios, 
t'tc-  «  Logo,  H  prevalecer  a  opiniSo  do  Sr.  Alencar, 
temos  Martim  aos  6  annos  de  edaue  feito  ofjinal,  e  aos 
6  annos  c-ondazindo-se  bem  com  os  Índios.  Prodígio! 
Esse  chefe  da  nossa  litteratura,  .se  coatiuuar  assim,  àh 
decididamente  com  a  pobresita  em  pantanal  Com  a 
litteratura  só?  Coma  história  também,  para  gloriado 
Brasil  e  dos  idólatras.  Ahl  RilhafollesI 

Mas  dirá  u  tír,  Alencar  {digo,  algunm  por  elle)  que. 
abrindo  o  2'  vol.  das  Obras  de  J.  F.  Lisboa  (que  subs- 
tanciou os  diiteres  dos  mais  accreditados  historiadores) 
se  acha  uii  pag.  74,  o  seguinte  tópico  em  seo  favor : 

n  Tinha  Diogo  de  Campos  um  próximo  parente,  ao 
qual  de  TiHii  tpnra  edaile  fizera  accompauhar  a  expedição 
de  Pedro  Coelho.  ■ 

Sim,  senhor  ;  vi  alii  essa  mui  tenra  edade.  Mas,  peço- 
llie  vénia  para  coutinuar  aleroinesino  nuctor.ua  mesma 
p&gina  n  no  mesmo  poncto,  e  veremos  quem  tem  raitao. 

«  Tinha  Diogo  de  Campos  um  próximo  parente  ao 
•jual  de  mui  tenra  edaiie  fi/era  accompaiibar  a  expedição 
de  Pedro  Coelho,  afim  de  que,  aprendendo  a  língua  dos 
indígenas,  e  estudando  oa  seos  coslmnes,  se  fizesse  seo 
tilo  familiar,  que  elleso  tivessem  como  amigo,  parente 
ou  compadre,  segundo  usam  de  çli^iQ^''  ás  pessoas  a 
quem  criam  afFeiçao.  » 

Primeiramente  o  flm  que  teve  em  vista  Diogo  de 
Campjs,  mandando  Moreno  na  expedição  de  Coelho, 
foi  aprender  elle  a  língua  dos  indigenfts,  e  entudor  os  seos 
costumei.  Pois  bem:  ninguém  incumbe  ura  menino  de  tí 
aaiios  de  tarefa  tal,  evidentemente  fora  4o  alcance  ain- 
da  do  mais  hábil  'nesta  edade,  A  história  declara  ser 


XXXII  191 

Martim  babil  e  industrioso.  Mas,  apezar  disso,  na\)  é 
^crivei  que  era  tao  verdes  annos,  o  intreg^asse  a  si  somen- 
te Diogo  de  Campos,  homem  de  aviso;  e  muito  menos 
que  confiasse  em  que,  era  taes  circumstâncias,  surtisse 
eflFeito  o  expediente.  Logo  as  palavras  mui  tenra  edade 
se  devera  intender  muito  moço^  ou  rapaz ^  ou  joveii,  e  nao 
menino  àe  6  ãunos.  'Naquelles  tempos,  em  que  as  em- 
presas arriscadas  só  eram  confiadas  a  espíritos  maduros, 
a  homens  feitos  e  provectos,  deveria  nao  só  despertar 
certo  reparo  expôr-se  um  moço  a  taes  provas,  como  tam- 
bém ser  pelos  chronistas  considerado  de  mui  tenra  edade 
quem  talvez  se  achava  em  plena  infância. 

Em  seguuuO  logar,  cumpre  ainda  dizer  que  o  próprio 
citado  historiador  confirma  era  seguida  esta  interpre- 
tação, nos  seguintes  termos : 

«  Houve-se  o  Jiiancebo,  chamado  Martim  Soares  Mo- 
reno, com  tanto  aviso  e  discrição^  que,  maliograda  a 
expedição  de  Pedro  Coelho,  e  lepelliaos  depois  os  dous 
padres  jevSuitas,  elle  só  continuou  a  conservar  a  affeiçao 
dos* índios,  um  dos  quaes,  o  principal,  Jacaúna,  até  o 
nomeava  filho,  e  o  accolheu  com  grandes  alvoroços  e  sa- 
tisfacçao,  quando  chegou  ao  Ceará,  despachado  capitão 
pelo  governador  geral.  » 

Ora,  priraeiramente  nao  é  verosimil  que  uraa  creança 
de  6  annos  se  houvesse  com  esse  apregoado  aviso  e  dis- 
crição; e  tanto  nao  ev^  creança,  que  o  historiador  lhe  dá 
o  nome  de  mancebo ;  e  depois,  releva  observar  que  tam- 
bém inverosímil  se  afigura  que  o  nomeasse  capítao- 
mór  do  Ceará  o  governador  geral  se  elle  tivesse  10  an- 
nos, edade  que,  a  prevalecer  a  opinião  do  chefe  da  nossa 
titteratura^  devia  ter  Martim,  pois  que  recebeu  essa  no- 
meação em  1610. 

Sempre  desejara  que  fosse  o  próprio  Sr.  Alencar 
quem  explicasse  estes  impossiveis^  e  nao  ninguém  por 
nenhum.  Esse  chefe  da  nossa  litteratura  está-me  pare- 
cendo que  tambera  pretende  os  louros  de  chefe  da  nossa 
história.  E  que  chefe  ! 

Mas  nao  é  tudo.  Dêmos  de  barato  que  Martim  accom- 
panhasse  a  Coelho  para  aprender  a  língua  e  estudar  os 
costumes  dos  índios,  com  H  annos  ;  que  com  6  annos  se 
houvesse  com  todo  aquelle  aviso  e  discrição^  levando  as 
lampas  ao  prático  aventureiro  Pedro  Coelho :  que,  com 
10  ânuos  obtivesse  do  governo  geral  a  nomeação  de 
capitao-mór  do  Ceará,  e  que  com  11  tivesse  aqui  fun- 
dado o  presídio  de  Nossa  Senhora  do  Amparo,  Isto  é  um 


192  XXXII 

impossível   contra  a  razão^  mas  nada  será  em  face  do 
impossível  contra  a  natureza:,  Prosigamos. 

Tendo  Pedro  Coelho  ido  colonizar  o  Ceará  em  1603, 
ahi  só  ee  achou  em  1604  porque,  usando  de  perfídia  coro 
os  Índios  e  até  osalliados,  teve  de  ceder  àsiusídiatíe 
represálias  d'estes,  pondo  os  pés  em  polvorosa  com  sua 
família  para  a  Parahyba,  fuga  em  que  perdeu  dous 
filhos  de  menor  edade  (Vid.  a  História  do  Urazil  p(»r 
Constâncio,   porSouthey,  etc.) 

Pergunta-se ;  Martim  Moreno,  que  viera  em  compa- 
nhia  de  Coelho,  accompauhou-o  na  fuga  para  o  primeirí> 
estabelecimento  d'este  aventureiro  na  Parahvba?  Diz- 
nos  o  Sr,  J,  de  Alencar,  que  nao  ( Iracema^  pag.  10  e 
11.  )  Ouçamol-o  : 

«  O  estrangeiro  dice  [d  india) : 

«  —  Sou  dos  guerreiros  brancos,  que  levantaram  a 
taba  nas  margens  do  Jaguaribe,  perto  do  mar,  onde  ha- 
bitam os  Pytiguáras  (  nunca  ouvi  dizer  que  estes  se- 
nhores habitassem  no  mar)  ennemigos  de  tua  nação. 
Meo  nome  é  Martim  que  na  tua  língua  diz  como  Slho 
de  guerreiro  ;  meo  sangue  o  do  grande  povo  que  pri- 
meiro viu  as  terras  da  tua  pátria.  Já  meos  destroçados 
companheiros  voltaram  por  mar  ás  margens  do  Parahyba, 
d'onde  vieram ;  e  o  chefe  (  Fedro  Coelho),  desampa- 
rado dos  seos,  atravessa  a^ora  os  vastos  sertões  do  Ano- 
dy.  Só  eu  de  tantos  fiquei,  porque  estava  entre  os  Py- 
tiguáras do  Acaraii,  na  cabana  do  bravo  Po  ty,  etc.» 

Ora,  se  no  momento  em  que  Martim  está  falando 
(  agora,  diz  elle  )  Pedro  Coelho  atravessava  em  fuga 
os  vastos  sertões  do  Apody,  é  evidente  que  a  data  em 
que  Martim  falava  á  índia  era  1604. 

Logo  quer  nos  parecer  que  se  Martim  nasceu  no  Rio 
Grande  em  1597,  e  se  em  1603  tinha  6  annos,  em  1604 
devia  necessariamente  contar?.  Será  isto  lógico?  Tal- 
vez  ponham  em  dúfida. 

Puis  bem  :  com  7  annrs  de  edade,  Martim  Soares  Mo- 
reno pelejava  como  guerreiro  consummado,  desbancava 
o  famoso  chefe  Irapuan  (  Mel  Redondo  ),  conquistava  a 
índia  Iracema,  e  tinha  d*ella  um  filho  !  Com  7  annos  / 

Explica-me  a  cousa,  Cincinnato,  com  as  tuas  tSo 
escolhidas  facécias.    Faz-me  essa  obra  de  caridade. 

Teo  sempre  fiel  amigo 

Semprónio. 

Typ.— IMPARCIAL-  Rua  Sete  de  Setembro,  146  A . 


QUESTÕES  DO   DIA 


N.^  33 


RIO  DE  JANEIRO,  21  DE  JAMEIRO  DE  18^2. 


Vende-se  em  casa  dos  srs.  E.  &£  H.  Laímmert.— Atfostinho  de  Freitas  Gui- 
marães Òí  Comp.,  26,  rua  de  General  Oiinara.— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  Jose  n.  119-  Largo  do  Pa^e  n.  (.:.— Proç^-o  200  reis. 
O  r  volume,  com  i)erto  de  400  pá^inaií— 3$U00. 

IVIoiíixxiierito  a  Booage. 

Açlia-se  oonverlido  em  facto  o  pensamento  da  illus- 
trada  assembléa  que,  no  dia  dojiibilêo  de  Bocage, 
resolveu  se  lhe  erigisse  um  monumento  na  sua  terra 
natal.  A  despeito  de  mil  contrariedades,  a  idéa 
vingou. 

E'  sabido  que  a  illiístre  commisao  central,  d*esta 
corte,  delegou  em  dons  de  seos  membros  o  incargo  de 
dirigir  a  conclusão  dos  trabalhos,  conferindo-lhes  para 
isso  amplos  poderes.  Em  consequência,  depois  de  ter- 
minados aquellcs  trabalhos,  tendo  os  díctos  Delegados 
da  Commiâsão  assentado  em  que  so  procedesse  àinau- 
g^uraçílo  da  estátua  no  dia  21  de  dezembro,  66. "^  anni- 
versário  do  passamento  do  grande  poeta,  pôs-se  em 
correspondência  com  a  commissao  filial  em  Setúbal,  e 
ronvídou  para  em  Lisboa  se  reunirem  em  commissao, 
afim  de  na  solemnidade  representarem  os  brazileiros  e 
portugueses  que  no  Império  promoveram  esta  manifes- 
tação, os  Srs.  Mar(^uez  d'  Ávila  e  Bolama,  Visconde  de 
Castilho,  Conselheiro  Miguel  Maria  Lisboa,  Conselheiro 
J.  M.  Latino  Coelho,  Conselheiro  L.  A.  Rebello  da 
Silva,  Conselheiro  A.  J.  Viale,  Conselheiro  D.  António 
da  Costa  de  Souza  de  Macedo,  Conselheiro  J.  da  Silva 
Mandas  Leal,  Júlio  de  Castilho,  e  António  da  Silva 
TúUio;  e  agente  da  mesma  commissao  central,  o  Sr. 
António  Torquato  Azedo  e  Silva. 

Todos  desempenharam  o  incargo,  menos  três  doestes 
cavalheiros :  o  Sr.  Rebello  da  Silva,  por  ter  sido  inopi- 
nadamente arrebatado  pela  morte  ás  lettras  e  &  sua  pátria 
qae  honrara.  Os  Srs.  Mendes  Leal  e  Viale,  pelos  motivos 
exarados  em  ofFicios  que  dirigiram  aos  Delegados  da 
Commissao  no  Rio  de  Janeiro,  motivos  mencionados 
uos  seguintes  extractos : 


194  xxxn 

Do  Exm.  Sr,  Viale. 

íUms.  e  Exms.  Srs. 

No  número  dos  amigos  das  boas  lettras,  admira* 
dores  do  mimoso,  às  vezes  sublime,  e  sempre  inspirado 
y ite  Sadino,  Manoel  Maria  Barbosa  du  Bocage»  design- 
nados  por  Vs.  Exs.  para  comporem  em  Lisboa  a  Com- 
missão  incarregada  de  dirigir  a  inauguração  da  est&taa 
d'aquelle  grande  génio  na  terra  do  seo  nascimento,  vi, 
com  sentimento  de  verdadeira  ufania,  incluído  o  raeo 
obscuro  nome.  Cv^m  a  mesma  ufania  e  profundo  reco- 
nhecimento por  tao  immerecida  distincção,  acabo  de  ler 
a  carta  que  a  este  respeito  — Vs.  Exs.  me  fizeram  a  hon- 
ra de  escrever-me  em  data  de  22  de  agosto  último.  In- 
felizmente para  mim  {  e  de  certo  só  para  mim )  tor- 
na-se-me  impossivel  approveitar-me  de  tao  lisonjeiro 
convite.  Nao  m'o  permittem  as  minhas  quotidianas 
cccupaçOes  —  a  regência  da  2.'  cadeira  do  curso  supe- 
rior de  Lettras  —  a  direcção  do  mesmo  Curso  —  o  exer- 
cício das  funcções  de  conservador  da  Bibliotheca  Nacio- 
nal —  as  licçoes  a  Suas  Altezas  Reaes. 

Sirvam-se  pois  Vs.  Exs.  accolher  com  benignidade 
esta  minha  justificada  escusa,  e  ao  mesmo  tempo  accei- 
tar  benévolos  as  expressões  sinceras  da  minha  gratidfto, 
pela  bondade  que  tiveram  de  lembrar-se  do  menos  no- 
tável dos  portuguezes  estudiosos  e  amantes  da  poesia 
nacional,  para  o  associarem  aos  promotores  de  uma 
manifestação  merecidamente  solemnee  merecidamente 
enthusiastica,  em  honra  de  um  dos  mais  exímios  cul- 
tores da  mais  divina  das  artes  bellas. 

Deus  guarde  a  Vs.  Exs.  Lisboa,  10  de  octubro  de 
1871. 

Illms.  e  Exms.  Srs.  Conselheiro  José  Feliciano  de 
Castilho  Barreto  e  Noronha,  e  Barão  de  S.  Clemente. 

t  António  José  Viole. 

Do  Exm.  Sr,  Mendes  Leal. 

Ilhn.  e  Exm.  Sr.  e  Amigo  presadíssimo —Tenho  pre- 
sente a  carta  circular,  assignada  por  V.  Ex.  e  pelo  Sr. 
Barão  de  S.  Clemente,  relativa  á  inauguração  do  monu- 
mento a  Bocage.  Escuso  diztr,  que  bastava  a  alliança 
doestes  dous  grandes  nomes— Bocage  e  Castilho — o  se- 
gundo, como  de  razão,  tutellando  o  primeiro,  para  ea 
acceitar  com  alvoroço  e  reconhecimento  a  commÍBSiO 


XXXIII  195 

conferida  pela  benemérita  Direcçfto  dos  subscriptores 
para  o  respectivo  monumento.  Honrado  porem  por  Sua 
Majestade  com  o  àrdiio  e  nao  desejado  incargo  da  Le- 
gação em  Madrid,  para  onde  parto  por  estes  dias,  de 
todo  me  é  impossivel  fazer  parte  activa  da  referida 
commissilo,  como  tanto  estimava.  Isto  mesmo  rogo  a 
V.  Ex.  a  fineza  de  fazer  presente  ao  seo  coUega  Vice- 
Presidente,  e  aos  demais  illustres  vogaes,  certificando  a 
todos,  como  o  faço  aV.  Ex.,  dos  meos  agradecimentos 
pela  sua  honrosa  lembrança,  e  dos  meos  sentimentos  de 
pessoal  consideraç&o  &. 

Quanto  á  commissSLo  filial  em  Setúbal ,  eis-aqui  o 
officio  do  Presidente  e  a  acta  da  sua  sess&o  em  25  de 
octubro  de  1871. 

Ulmo.   Exm.  Sr. 

Satisfazendo  ao  que  por  V.  Ex.  é  indicado  em  sua 
carta  de  26  de  agosto  último,  tenho  a  honra  de  remet- 
ter  a  V.  Ex.  a  inclusa  cópia  da  acta  da  sess&o  da  Com- 
miss&o  filial  do  Monumento  a  Bocage,  d'esta  cidade,  pelo 
conteúdo  da  qual  V.  Ex.  tomará  conhecimento  da  de- 
liberação tomada  pela  mesma  Commissão. 

Com  relação  à  Câmara  Municipal,  posso  asseverar  a 
V.  Ex.  que  ella  fará  quanto  esteja  ao  seo  alcance  para 
abrilhantar  o  acto  da  inauguração  do  alludido  monu- 
mento. 

Pelo  que  respeita  à  minha  pessoa,  cumpre-me  agra- 
decar  o  honrosíssimo  conviíe  que  T.  Ex.  se  digna  fa- 
zer-me,  e  que  sobremaneira  me  pinhora,  ao  qual  seria 
descortezia  não  acceder,  reconhecida  mesmo  a  ausência 
em  mim  de  qualidades  que  me  tornem  merecedor  de 
tão  subida  distincção. 

Deus  Guarde  a  V.  Ex.  Setúbal  28  de  octubro  de 
1871. 

lUm.  e  Exmo.  Sr.  Conselheiro  Joíé  Feliciano  de  Cas- 
tilho Barreto  e  Noronha. 

António  Rodrigues  Manitío. 

Acta  da  sessão  de  vinte  cinco  de  octubro  de  mil  oi- 
tocentos setenta  e  um.  Áos  vinte  cinco  dias  do  mez  de 
octubro  de  mil  oitocentos  setenta  e  um,  estando  reunida 
a  Commissão  filial  do  monumento  a  Bocage,  d'esta  ci- 
dade, pelo  vogal  servindo  de  presidente  da  mesma  foi 


196  XXXIII 

declarado,  que    o  fim  da    reunião,  era  expor   &  Com- 
missão   a  carta  e    lembranças   adjunctas,   que  lhe  fo- 
ram remettidas  pelos  Exms.   Srs.  Conselheiro    José  Fe- 
liciano de  Castilho  Barreto  e  Noronha,  e  Barão  de  Sao 
Clemente,    representantes    da  Commissao   central    do 
Rio  de  Janeiro,  incarregada  da  erecção  do   monuinento 
ao  insigne  poeta  Bocage,  e  ouvir  sobre  o  seo  conteúdo  o 
parecer  da  mencionada  commissao,   na  forma  que  lhe 
era  indicada.  Em  seguida  foram  lidas  pelo  respectivo 
secretário  a  carta  e  as  lembranças  alludidas,  concer- 
nentes aos  festejos  que  se  hao  de  fazer  por  occasiao  da 
inaug«raçao  d'aquelle  monumento,   em  tudo  próprias 
do  acto  a  que  se  referem,  e  da  subida  intelligencia  e 
apurado  gosto  de  quem  as  dictou.   Discutidos  os  ponctos 
em  que  á  commissao  competia  resolver,  concordou  esta, 
que  não   permittindo  mais  a  órbita  dos  seos  poderes, 
effectuar-se  a  cobrança  da  subscripçao  que  havia  solici- 
tado, i?e  intregasse  a  somma  realizada  à  Extna.  Câmara 
Municipal  para  ser  applicada  ás  despezas  que  aquella 
digna    corporação   tem   que  fazer   com  a  solemnidade 
da  inauguração,  e  que  a  commissao  lhe  prestasse  todo 
o  auxílio    possível    nos  trabalhos  precisos,  para  que  a 
dieta  solemnidade  se  faça  por  modo  digno  do  objecto  a 
que  respeita,  e  tal  qual  desejara   todos  os  setubalenses. 
Deliberou,   mais,  que,  de  quanto    fica    expendido,  se 
desse  conhecimento  á  Exma.  Commissao  do  Rio  de  Ja- 
neiro,  por  intervenção  do  seo   illustrado  presidente  o 
Exmo.  Sr.  Conselheiro  José  Feliciano  de  Castilho  Bar- 
reto e  Noronha ;  do  que  para  constar  se  lavrou  a  pre- 
sente acta,   que  vai   devidamente  assignada — Manitta 
— Manoel  Maria   Portella — Joaquim  José   Barbosa  du 
Bocage — João  Ignacio    da  Cruz  Forte — Carlos  Torlades 
0'Neill. 

Está  conforme —  Setúbal  28  de  octubro  de  1871. 

•        O  Secretário  da  Commissao. 

Manoel  Maria  Portella. 

Assim  intabolados  os  trabalhos  finaes,  os  Delegados 
noRio  de  Janeiro  deram  miúdas  instrucções  ao  seo  agente 
em  Lisboa,  Sr.  A.  Torquato  Azedo  e  Silva,  que  as 
observou  c»jm  inexcedivel  zelo,  desinteresse  e  dedicaç&o; 
e  dirigiram  ás  commissOes  em  Lisboa  e  Setúbal  uma 
série  de  lembranças,  das  quaes  só  pequena  parte  n&o 
poude  reaiizar-se.  Supprimindo  aqui  outras   informa- 


XXXIII  197 

ções,  que  já  'nesta  publicação  appareceram,  damos 
em  seguida  o  oflflcio  que  a  commissao  em  Lisboa  dirigiu 
aos  Delegados  da  Commissao  no  Rio.  A  este  offício  ac- 
companhou  o  auto  da  inauguração,  o  que  tudo  é  do  teor 
seguinte : 

lUms.  Exms.  Srs. 

Temos  a  honra  de  inviar  a  V.  Exs.  o  traslado  do  auto 
da  inauguração  da  estátua  de  Bocage,  solemnidade  a  que 
presidimos,  por  parte  da  Commissao  Central,  de  que 
V.  Exs.  sao  dignos  presidentes. 

Pela  conferência  que  tivemos  com  o  presidente  da 
Câmara  Municipal  de  Setúbal,  também  presidente  da 
Commissao  filial  da  mesma  cidade,  reconhecemos  nao 
serem  exequiveis  todas  as  indicações  que  V.  Exs.  nos 
inviaram  em  offício  de  2 1  de  agosto  para  se  formular  o 
programma  da  inauguração. 

Tudo  porem  quanto  permittiam  as  circumstâncias 
d'aquella  localidade, e  a  actual  estação,  se  executou  com 
êxito  mui  satisfactório,  conforme  o  programma  impres- 
so, quejuncto  inviamos. 

Agradecendo  a  V.  Exs.  o  honorífico  incargo  que  nos 
confiaram,  reiterámos  a  todos  os  senhores  subscriptores, 
o  testimunhu  de  gratidão  que  Portugal  lhes  deve,  pela 
homenagem  que  prestaram  ao  insigne  poeta  do  Sado. 

Deus  Guarde  a  V.  Exs.  —  Lisboa  23  de  dezembro 
de  187i. 

Ulms.  e  Exms.  Sr.s.  Conselheiro  José  Feliciano  de 
Castilho  e  Barão  de   S.  Clemente. 

Marquez  cV  Ávila  e  Bolama, 

Castilho. 

M.  M.  Lisboa. 

J.  M.  Latino  Coelho, 

José  Vicente  Barbosa  da  Bocage. 

y,  António  dh  Cosia. 

Júlio  de  Castilho, 

A.  da  Silva  Tállio. 


A^ixta  da  iiiau^u.iraoao  solemno  cia  estátua 
cLo  Booa^ê  iia''eiâacLe  cLe  Setiil>al« 

Aos  vinte  e  wm  dias  do  mez  de  dezembro  do  anno 
de  mil  oitocentos  setenta  e  um,  do  nascimento  de  Jesus 
ChrÍ3to,na  cidade  de  Setúbal,  e  praça  de  Bocage,  no 
centro  da  qual  se  achava  erigida,   velada  com  as  ban_ 


198  XXXIII 

deiras  nacionaes  de  Portugal  e  do  Brazil,  a  estátua  de 
Manoel  Maria  Barbosa  du  Bocage,  foram  recebidas,  na 
tribuna  armada  na  mesma  praça,  as  auctoridades  do 
districto,  as  corporações  scientificas  e  litter&rias.  os  re- 
dactores dos  jomaes  políticos  e  litter&rios,  os  homens  de 
lettras  e  outras  pessoas  convidadas  para  este  acto,  na 
conformidade  do  programma  que  se  imprimiu.  Sendo 
duas  horas  da  tarde,  dirígiram-se  para  juncto  do  mo- 
numento a  commissSo  nomeada  no  Rio  de  Janeiro  pelos 
subscriptores  para  presidir  a  este  acto,  a  commissfto 
filial  de  Setúbal,  a  Câmara  Municipal  da  mesma  cidade, 
o  esculptor  da  estátua  Pedro  Canos  dos  Reis ;  e  ahi 
proferiu  o  excellentissimo  marquez  d'Avila  e  de  Bolama, 
presidente  da  mesma  commissao,  o  seguinte  discurso 
inaugural : 

«  Senhores :  Na  segunda  ametade  do  século  passado, 
nasceu  ^nesta  cidade  um  homem  que,  pela  força  admi- 
rável de  seo  estro,  veiu  a  ser  uma  das  glórias  d*este  paiz, 
e  o  mestre  querido  de  q^uantos  falam  a  nossa  língua 
áquem  e  alem  do  Atlântico.  Este  homem  eminente,  que 
pelas  suas  obras  immortaes  conquistou  a  posteridade,  foi 
Manoel  Maria  Barbosa  du  Bocage.  Justo  era,  queosdous 
povos  irm&os,  de  Portugal  e  do  Brazil,  falando  ambos 
o  idioma  que  elle  tanto  realçou,  lhe  prestassem  a  home- 
nagem a  que  estamos  assistindo,  elevando-Ihe  um  mo* 
numento  duradouro  na  sua  terra  natal.  A  idéa  de 
erigir  este  padr&o  á  memória  do  insigne  poeta  foi  ini- 
ciada por  dous  homens  illustres,  os  senhores  conselheiro 
José  Feliciano  de  Castilho,  e  seo  irm&o  Visconde  de 
Castilho,  a  quem  também  as  musas  embalaram  cari- 
nhosas, e  a  litteratura  portugueza  é  devedora  de  ou- 
tros monumentos,  nao  menos  perduráveis.  Estes  bene* 
méritos  portuguezes  deram  assim  mais  um  testimunho 
do  desvelo,  com  au%  teem  constantemente  contribuído 

Íara  o  renome  e  illustraç&o  da  pátria,  que  tanto  enno- 
recém.  Foi  na  capital  do  Brazileiro  Império,  outr'ora 
visitada  por  Bocage,  e  no  dia  15  de  beptembro  de  mil 
oitocentos  sessenta  e  cinco,  centenário  do  seo  nasci- 
mento, que  os  senhores  Castilhos  congregaram  uma 
numerosa  assembléa  de  portuguezes  e  brazileiros,  a 
qual  adoptou  unanimemente  e  com  vivo  enthusiasmo  a 
proposta  e  o  plano  do  monumento,  contribuindo  logo 
todos  para  que  tivesse  execuç&o  tão  magnífica  e  pa- 
triótica  idéa.  A  commissfto  a  que  tenho  a  honra  de 
presidir,  foi  nomeada  por  aquella  illustre  assembléa 


XXXIII  199 

para  a  representar  'neste  acto  solemne,  a  que  destinou  o 
dia  de  hoje,  por  ser  também  um  anniversário  de  Bocage, 
o  da  sua  prematura  e  ainda  sentida  morte.  Cumpriu-se 
o  intuito  dos  beneméritos  subscriptores,  e  'nesta  nu- 
merosa e  respeitável  reunião,  recebam  elles  o  testi- 
munho  que  lhes  damos  do  nosso  reconhecimento  por 
esíBL  homenagem  prestada  ao  dulcíssimo  cantor  do  Sado, 
homenagem  que  é  um  novo  pinhor  dos  sentimentos  de 
sympathia  e  de  profundo  aiiecto  que  prendem  os  dons 
povos  irmãos,  do  velho  e  do  novo  mundo.  Recebam 
também  os  illustres  cavalheiros»  que  compõem  a  bene- 
mérita Câmara  Municipal,  os  nossos  agradecimentos, 
pela  efficaz  cooperação  que  nos  prestou,  dando  t&o  me- 
recido realce  a  esta  demonstração  solemne  de  gratidão 
nacional. 

Senhores,  a  nossa  missão  está  concluida.  Cumpre 
agora  aos  representantes  doesta  formosa  cidade  velar  pela 
conservação  do  monumento  erigido  á  memória  do  grande 
poeta,  seo  conterrâneo.  Não  podia  confiar-se  a  mais 
dignas  maus  este  piedoso  incargo.  » 

Por  parte  da  cidade  de  Setúbal,  pronunciou  o  doctor 
António  Rodrigues  Manitto,  presidente  da  Câmara  Mu- 
nicipal, a  seguinte  allocução : 

Excellentissimos  Senhores  presidente  e  membros 
da  commissão  nomeada  para  presidir  â  inauguração 
da  estátua  de  Bocage.  Muito  me  glorio  de  ser  o 
intérprete  do  júbilo  e  reconhecimento  d'esta  cidade, 
por  ver  realizado  o  grandioso  pensamento  para  que 
tanto  contribuíram  a  commissão  central,  eleita  no 
Bio  de  Janeiro,  a  filial  de  Setúbal,  e  a  de  que  V.  Ex. 
é  digníssimo  presidente.  Setúbal  paga  no  dia  de  hoje 
uma  divida,  que  não  era  só  nossa  :  era  de  todos  os  que 
falam  a  língua  portugueza.  Está  solvida  por  este  padrão, 
digno  do  talento  do  grande  poeta.  Aos  beneméritos 
subscriptoroâ  portuguezes  e  brazil^iros,  e  a  vossas  ex- 
cellencias,  seos  representantes,  envio,  em  nome  dos  ha- 
bitantes d  esta  cidade,  os  protestes  da  nossa  perpétua 
gratidão.  Fo>lgo  de  ver  presente  a  este  acto  o  venerando 
escriptor,  que  foi,  com  seo  illustre  irmão,  o  proponente 
d*esta  homenagem  a  Bocage.  A  litteratura  nacional  e  a 
instrucçAo  pública  deviam-lhes  j&  muitas  fadigas  e 
muitas  obras  :  este  monumento  é  também  obra  de 
ambos  elles.  Cumpre-me  dar-lhes  aqui,  perante  todo  este 
povo,  o  merecido  testimunho  de  agradecimento  nacio- 
nal. Senhores,  a  cidade  de  Setúbal  assigna^la  entre  os 


200  XXXIII 

maiores  dias  das  suas  glórias  este  da  inauguraçlo  da 
estátua  do  grande  poeta  seo  conterrâneo.  Uo  alto  d'a- 
quella  coliiinna  .será  Boca.ire  o  incitador  da  civilização 
dos  seos  patrícios  ,  guia  dos  nossos  progressos  ;  e  ainda 
depois  de  trabalhosa  vida,  é  escudo  da  sua  terra  natal. 
O  auctor,  que  tanto  ,  opuleatou  a  poesia  portugueza, 
eil-o  redivivo  na  m-^sma  cidade  que  lhe  deu  bôrço.  Este 
sexagésimo  se>wto  aauiv/psário  d i  mníe  d)  grande  can- 
tor, é  o  dia  glorioso  da  sui  ap3theóíe.  Por  parte  da 
Câmara  que  tmhi)  a  honra  de  presidir,  congratulo-me 
com  Vossas  Excelleacias  pelo  êxito  que  teve  este  ge- 
neroso empenho  de  tantos  cultores  o  amigos  da  littera- 
tura  nacional.  » 

Em  a'Uo  continuo,  03  exc-allentíssim  )S  marquez  d'Avils 
e  de  Bolama,  como  vlce-prasidente  da  academia  real 
dasscitmcias,  e  o  conselheiro  Miguel  Maria  Lisboa,  como 
Ministro  do  Brazil  em  i^ortugal,  o  visconde  de  Castilho, 
um  dos  auctores  da  proposta  para  a  erecção  do  monu- 
mento, e  o  Dr.  António  Rodrigues  Manitto,  presidente 
da  Câmara  Municipal  de  Setúbal,  tomaram  os,  cordoes 
das  bandeiras  que  velavam  a  estátua  e  a  descobriram. 
E  logo  as  musicas  reunidas  tocarão  successivamente  os 
hymnos  compostos  e  offerecidos  para  esta  festividade  por 
Mano.íl  António  Corr.iia,  Carlos  Augusta  Alvi*s  Braga  e 
António  do  Nascimento  e  Oliveira. 

Dirigindo-se  o  préstití;  para  os  paços  do  concelho, 
alii  foi  lido  e  assignado  este  auto,  lavrado  e  subscripto 
por  mim,  Secretário  da  {/oinmissao  nomeada  para  pre- 
sidir a  esta  solemnidade,  António  da  Silva  Túllio. 

Antoiiio  R)drigues  Sampaio.  Ministro  d»  Reino. 

Castilho,  Victí  Presidente   da  Cominissíio  de   Lisboa. 

José  Vicente  Barbosa  du  Bocagi». 

Carlos  Roma  du  Bocage. 

Joaquim  José  Barl^sadu  Bocng^». 

António  Rodrigues  Manitto.  Preúdc^nt.^  da  Câmara  de 
Setúbal. 

Antoíiio  Maria  Albino,  Vereador. 

Francisí^o  Manjues  da  (Jostn,  Vereador. 

Joaquim  José  Ferreira  da  Silva  Júnior,  Vereador. 

José  Maria  Liverio,   Vereador. 

Miguel  Maria  LisbOu,  ministro  do  Brazil  e  membro  da 
Commissao. 

Marquez  d'  Ávila  e  de  B  dama, presidente  da  Gom- 
mis.sao  de  Lisboa. 


XXXIII  201 

José  Maria  Latino  Coelho,  vogal  da  Comraizsao  de 
Lisboa. 

Augusto  César  Cau  da  Costa,  Governador  Civil  de 
Lisboa. 

U.  Francisco  José  de  Mello,  administrador  do  con- 
celho de  Setúbal. 

Manoel  d'  Araújo  Porto- Ale^rre,  pelo  Brazil. 

JoPlo  Ignacio  da  Cruz  Forte,  da  Cnnmissáo  de 
Setúbal, 

Carlos  F.  O'  Noill,  da  Cjmmissão   de  Setúbal. 

Manoel  Maria  Portella,  Secretário  da  CouiinissSlo 
filial  de  Setúbal 

Conde  de  Fornos  d'  Algôdre.>,  Par  do  Reino. 

António  d'  Azevedo  Coutinho  Mello  e  Carvalho,  Par 
do  Reino. 

ttíivmundo  de  Bulhão  Paíto. 

nu 

O  Corninandaate  geral  das  guardas  raunicipaes  de 
Lisboa  e  Porto,  Barão  do  Rio  Zêzere,  general  de 
brigada. 

António  Maria  Barroiros  Arrobas,  deputado  por 
Setúbal. 

Joio  António  dosSanctos  e  Silva,  deputado  da  nação. 

Ignácii)  Francisco   Silveira  da    Motta,    deputado  da 

uacao. 

.  • 

José  de  Sande  Magalhães  Mexia  Salema,  deputado 
da  nacao. 

José  Pedro  António  Nogueira,  deputado  da  nação. 

António  AugusL  >  Pereira  de  Miranda,  deputado  da 
nacHo. 

Albertí)  Osório  de  Vasconcellos,  deputado  da  naçilo. 

Júlio   de  Castilho,  secretário  da  Ci)mmissao. 

Simn.0  Paes  de  Faria  Pereira,  da  Coramissao  de 
Lisboa. 

Joi\o  Ignácio  Holbeche,  Juiz  d^  Direito. 

Francisco  Maria  de  Souza  Brandão,  ingenheiro. 

Co.istanliUij  Lop;)S  d'  Andrade  Poucí»iro,  general  de 
brigada,  cominandante  militar. 

Bernardino  Pinheiro,  Secn^tário  dj  Supremo  Tribunal 
de  Justiça. 

Manoel  Pinheiro  Çliagas,  deputado  da    nação. 

José  Baptista  Cardoso  Klerck,  deputado  da  naçlo. 

Conselh'íiro  Augusto  Sebastião  de  Castro  Guedes, 
commandante  da  Eschola  Naval  e  da  companhia  dos 
g'\iarda.5  marinhas. 


202  XXXIII 

José  Joaquim  Peçanha  Póvoa,  Brazileiro,  advogado. 
Joaquim  Possidónio  Narciso  da  Silva,  presidente   da 
associação  dos  archi tectos. 

Francisco  Gomes  d'  Amorim,  sócio  correspondente  da 
acauemia  das  sciências  de  Lisboa. 

António  José  Torres  Pereira,  infermeiro-mór  do  Hos- 
pital de  S.  José. 

Augusto  Soromenho,  da  academia  real  das  sciências^ 
professor. 

Hermenegildo  Pedro  d'  Alcântara,  redactor  do  jornal 
«  A  Crença.  » 

José  Maria  António  No^fueira. 

João  José  de  Souza  Telles,  escriptor. 

Francisco  Simões  Margiochi  Júnior. 

Francisco  Maria  Ramos,  representante  da  associação 
typográphica  de  Lisboa. 

José  de  Torres,  da  Academia  real  das  sciâncias. 

Pedro  Carlos  dos  Reis,  estatuário. 

Augusto  Ernesto  de  Castilho  e  Mello,  bacharel  for- 
mado em  mathemática,  antigo  deputado  da  naçfto,  e 
primeiro  oficial  da  Secretaria  do  Remo. 

Albano  Coutinho  Júnior,  jornalií?ta. 

Costa  Goodolphim,  escriptor. 

José  Eduardo  de  C.  Vilhena,  jornalista  e  Procurador 
â  juncta  geral  d'  Aveiro. 

Philippe  Zeferino  da  Trindade  Carvalho,  da  Corres- 
pondência de  Portugal. 

António  José  Pacheco,  tenente  coronel,  veterano  da 
Liberdade. 

Manoel  da  Costa  Alves,  presidente  da  Câmara  d'  Al- 
cochete. 

D.  José  Carlos  Menezes  d'  Alarcão,  ingenheiro- 
agrónomo,  sócio  da  academia  real  das  sciências  e  de 
outras  academias  estrangeiras. 

Júlio  d'  Andrade,  jornalista. 

José  Miguel  de  Barros  e  Seixas. 

Caetano  Augusto  Lecor  Buys. 

José  António  Pinto,  escrivão  da  Câmara  Municipal 
de  Setúbal. 

Duarte  Gonzalez  de  Gargamala,  vice-consul  de 
Hispanha. 

Júlio  Caldas  Aulete.  deputado  da  nação. 

António  Torquato  Azedo  e  Silva,  agente  da  Com- 
missão  do  Brazil  em  Lisboa. 

O  Commendador  António  Gonçalves  Lamarfto,  syn- 


XXXIII  203 

dico  6  presidente  da  Câmara  dos  corretores  da  praça 
de  Lisboa. 

O  Commissario  dos  Estudos,  Mariano  Ghira. 

Adriano  Gaspar  Coelho,  secretário  da  redacç&o  do 
Di&rio  de  Noticias,  correspondente  do  Diário  Mercantil 
do  Porto  e  do  jornal  do  Recife  de  Pernambuco. 

Pedro  Wenceslau  de  Brito  Aranha. 

Albino  Augusto  de  Souza  Pimentel. 

Luiz  Philippe  Leite,  antigo  correspondente  do  Diário 
de  Pernambuco. 

Henrique  Midosi,  pelo  Jornal  do  Commércio. 

António  da  Silva  TúUio,  pela  Bibliotheca  Nacional 
de  Lisboa. 

Está  conforme  com  o  original  ^ue  fica  depositado  no 
archiyo  da  Câmara  de  Setúbal.  Lisboa,  23 de  dezembro 
de  1871. 

A .  da  Silva  Túllio. 

A  exposição,  que  ora  se  segue,  é  colhida  de  um  minu- 
cioso rmatório  du  digno  agente  da  commissao  do  Rio  de 
Janeiro  em  Lisboa,  e  das  descripçOes  de  vários  jornaes, 
taes  como  Gazeta  Setubalense^  Diário  de  NaticiaSy  Jornal 
do  Commércio^  de  Lisboa,  Revolução  de  Septembro^  Jor* 
nal  da  NoUe^  Gazeta  do  Povo  etc.  Supprimindo  o  muito 
que  poderíamos  transcrever  de  communicaçôes  anterio- 
res, vimos  já  ao  que  se  refere  á  inauguração  da  es- 
tátua. 

Dicémos  como  se  effectuara,  no  dia  22  de  novembro, 
a  coUocaç&o  da  primeira  pedra.  A  descripçflo  do  mo- 
numento é  conhecida  dos  nossos  leitores,  restando 
accrescentar  que  abaixo  do  primeiro  degrau  se  coUocou 
em  torno  um  lagedo  de  meio  metro,  e  sobre  elle  uma 
elegante  gradaria,  d*onde  sobresaem  grandes  lampiões. 

A  commiss&o  em  Lisboa  presida  pelo  sr.  Marquez 
d'Avila  e  Bolama,  applicou-se  desveiadamente  a  diri- 
gir 08  trabalhos ;  e,  se  entre  tantos  é  licito  distinguir, 
mencionaremos  o  seo  digno  secretário,sr.  5ilva  TúIIio^ 
que  foi  incauçavel,  applicando  á  realização  do  pensa- 
mento o  mais  inexcedivel  zelo. 

A*  c&roara  Municipal  de  5etubal,  e  especialmente  ao 
seo  digne  Presidente,  são  devidos  louvores  pela  nobre 
coadjuvação  que  prestaram. 

Ao  5r.  Germano  José  de  Salles,  com  officina  de  es- 
culptura  em  Lisboa,  é  egualmente  devido  o  maior  ap- 
plauso,  pois  correspondeu    perfeitamente  á   confíanç^ 


204  XXXllI 

que  'uelle  depositara  o  Prosidente  da  Commissao  Central 
do  Rio  de  Janeiro,  quando  o  incumbiu  do  honroso  in- 
cargo,  que  o  Sv.  Salles  satisfez  com  summa  intelligen- 
cia,  actividade,  e  dedicaçlo  ;  é  de  crer  que  a  tâo  cir- 
cumspecto  artista  se  dirijam  as  localidades  que  pre- 
tenderem honrar  os  seos  varões  illustres  cora  egual  tes- 
timunho  de  veneração. 

O  Sr.  Pedro  Carlos  dos  Reis,  incarregado  pelo  5r.  Sal- 
les de  f-izer  a  estátua,  merece  nao  menos  agradecimento 
pelo  modo  digno  como  se  desempenhou  da  tarefa. 

Fugimos  de  especializar  mais  nomes.  Todos  satisfi- 
zeram quanto  de  cada  um  se  esperava. 

No  dia  2  de  dezembro,  a  commissao  de  Lisboa  tomou 
as  deliberações  constantes  do  programma  que  já  publi- 
cámos ;e  alem  d'essis,  outras  relativas  a  pormenores. 
Taos  foram,  por  exemplo,  as  que  tendessem  a  manifestar 
que  esta  festa  era  tao  brazileira  como  portugueza.  Para 
isso,  alem  da  inscripçílo  gravada  no  monumento,  re* 
soiveu-se  que  as  bandeiras  que  velassem  a  estátua 
fossem  abraçadas  as  das  duas  nações ;  que  as  flammulas  e 
galhardet(3s  fossem  das  cores  de  aml)as  ellas  ;  que  re- 
presentantes do  Brazil  e  Portugal  puçhi;ssem  os  cordões 
das  cortinas ;  que  se  tocassem  alternadamente  os  res- 
pectivos hymnos  nacionaes ;  e  até  que  ninguém  da 
com;nissíl»  collocas^e  sòb.^e  as  suas  fardas  no  dia  da 
inauguração  decorações  senão  dos  dons  paízes. 

Kmfim  dispostas  Iodas  as  cousas,  raiou  o  dia  21  d*^ 
dezembro,  a  Gazeia  Selubalcnse  consagrou  quasi  toda  a 
sua  folha  ao  assumpto  que  occupava  exclusivamente  o 
pensainenio  dos  habitanies  da  rainha  do  Sado.  O  illus- 
trado  membro  da  (tommissa)  filial  'naquella  cidade, 
Sr.  Manoel  Maria  i\)rt^lla,  sob  o  títuh)  Homenagem  ao 
mérito,  consagrou  um  artigo  a  transcrever  o  que  elle 
íIenoininv)u  Oinniões  deifiizes  auclorízados^  relalivamente 
ao  mhvito  íiUonírio  S  Bocage^  extraiítando  trechos  de 
Filinto  Elysio,  J.  A.  de  Macedo,  F.  J.  Biiigre,  A.  M. 
do  Couto,  Link,  F.  J.  U.  Torrezão,  Medina,  J.  R.  Pi- 
mentt^l  e  Maia,  Sanctos  e  Silva,  Nvílasco  da  Cunha,  D. 
M.  Torres,  A.  Herculauí),  Costa  e  Silva,  F.  P.  Cardoso, 
D.  Gas;ai),  F.  C.  Coutinho,  Condessa  d'Oyenhausen, 
Pato  Moni;^,  Mendes  Bordallo,  Borges  de  Figueiredo, 
Rebelloda  Silva,  Anto;iio  Feliciano  de  Castilho;  J.  F. 
de  Castilho  Barreto  e  Noronha,  Pinheiro  Chagas.  De- 
dicaram 'nesse  número  outros  valiosos  artigos  a  Bocage  a 
Sra.   D.  Marianna    Angélica  d'Andrade,  o    Sr.    Costa 


XXX III  •  20e=> 

Goodolfim,  H  Redacção  do  Jori^al  &.  Todas  as  folhas  de 
Lisboa  chamavam  'nesse  dianattençao  do  público  para 
agrando  soleronidade  que  se  ia  verificar. 

Bocage  tinha  ainda  algum  peccado  que  pagar,  e  fo- 
ram os  que  virijaram  até  Setúbal  que  saldaram  es.^a 
conta.  Durante  15  dias,  até  20  do  mez,  embora  frio, 
esteve  mais  lindo  tempo  que  nos  melhores  dias  de  verfio» 
A's  2  horas  da  tarde  de  20  passou  o  vento  ao  sul,  chu- 
viscou á  noite,  e  conser'/ou-se  a  atmosphera  carregada, 
mas  sem  chuva.  Pelas  9  horas  da  manha  de  21,  reco- 
nieçou  a  chuviscar.  O  embarque  foi  ás  lO  1/2  horas, 
mas  depois  de  cheio  o  segunde  vapor,  é  que  se  abriram 
as  cataractas  do  céo,  pai*a  mais  nao  pararem  até  a 
noite.  No  Diário  de  Notícias^  de  25  de  dezembro,  foi 
publicado  um  chistoso  artigo  do  Sr.  Pinheiro  Chagas, 
que  descreve  as  tribulações  dVste  dilúvio.  Como  o  nao 
podemos  transcrever  na  Integra,  extrahimos  d*elle  uma 
pequena  parte : 

<(  Pobre  poeta  !  Amargurou-te  o  destino  a  tua  própria 
apotheóse!   Saíste   do   mundo,  no  vigor   da  mocidade, 
quando   se   rasgavam  ao  teo  génio  novos  horizonies, 
quando  o  teo  estro   fogoso,  vendo  passar  nos  ares- o  vôa 
scintillante  d'essa  águia  que  se  chamava  Byron,  excla- 
maria talvez:  n  Anh*io  son  poeta  »  o,  desferindo  as  azas, 
iria  pairar  nos  céos  onde  adejava  sublime,  e  soltando 
gritos  de  selvagem  desespero,  a  musadeChild-Harold. 
Qiiem    mais  do  que   tu    teve  a  imaginação   potente,  a 
phantasia  arrebatada,  o  íntimo  enthusiasmo?  Perdeu-te 
esse  claro  auditórioy  que  só  te  podia  as   bagatellas  do 
repentista,  o   slrass  do   glosador,  quando  da  mina  inex- 
haurivel  do  teo  génio  podia  arrancar  diamantes,   que 
reflectissem   nas  suas  mil   facetas  o   resplendor  de  um 
novo  sol  de  poesia!  Consumiste  ávida  n'uraa longa  lucta 
cora  as  conveniências,  os  hábitos,  as  tradições  da  socie- 
dade  avelhenta-la  que  te  cercava:   morreste  porque  fal- 
tava o  ar  aos  teos  pulmões  ancio.fts  de  respirarem  o  há- 
lito  embalsamado  da  poesia   verdadeira  ;  morreste  por- 
que eras  vulc?io,  o  exigiam-te  fogos   de  Bengala,  foga- 
chos pàllidos  e  insignificantes,  porque  represaste  a  lava 
candente,   e  arrojaste   apenas  as  escórias  de  mil  sonetos 
e  de   mil  glozas.  Vestiram-te  a  libré  mesquinha  da  Ar- 
cádia, a  ti  que  eras  da  estitura  dos  grandes  poetas,  que 
surgiram   quando  tu  caíste  na  arena  ;  pozeram-te  nas 
mans  a  lyra  clássica  banal,   quando  os  teos  dedos  con- 
vulsos procuravam  as  chordas  da  harpa  fremente  ao  sopro 


206  XXXllI 

da  iuâpiracFío  ;  quando  os  teos  lábios  sêccos  buscavam  a 
taça  de  ouro  do  ideal,  incoatravas  o  copo  dos  dythiram- 
bos  mesquinlios.  Devorou-te  a  sede  de  desconhecidos 
gõsos  :  matou-te  a  nostalgia  de  um  mundo  que  vaga- 
mente entrevias,  e  que  julgavas  incontrar  talvez  no 
âmbito  mysterioso  das  regiões  de  alem-túmulo. 

c(  E  agora  que  voltas,  ó  pàllido  poeta,  invõlto  no 
manto  luminoso  da  tua  immortalidade,  agora  que  te  er- 
gues, estátua,  acima  dos  rumores  confusos  do  mundo 
que  atravessaste,  scismando,  tens  ainda  os  horizontes 
nebulosos,  o  gemido  do  vento,  e  os  hymnos  truncados 
de  uma  apotheóse  incompleta.  Procuras  com  os  olhos 
vagos  o  límpido  sol,  e  invoíve-te  ainda  o  manto  plúmbeo 
do  firmamento.  Ah  I  mas  depois  do  hynverno  virá  a  pri- 
mavera !  E  nao  tardará  que  sintas  em  torno  de  .ti  o  v6o 
ligeiro  da  andorinha,  o, perfume  das  laranjeiras,  e  os 
raios  de  ouro  do  sol;  nao  tardará  que  contemples  orgu- 
lhoso o  firmamento  sem  nuvens;  não  tardará  que  vejas 
projectar-se  na  face  da  terra  a  tua  sombra  immensa ; 
também  assim  a  tua  glória,  escurecida  primeiro  tanto 
pelas  invectivas  injuriosas  como  pelos  frívolos  applau- 
sos,  se  foi  a  pouco  e  pouco  desprendendo  das  nuvens  que 
a  involviam,  e  resplandece  hoje  puríssima  no  nosso  fir- 
mamento litterário.  Desappareceu  o  gladiador  das  ignó- 
beis contendas,  o  tro vista  de  botequim,  o  glosador  de 
alambicados  motes,  e  os  gritos  do  teo  enthusiasmo,  ó 
cantor  melodioso,  poeta  de  Leandro  e  HerOy  hSo  de  se  ir 
repercutindo  de  echo  em  echo  até  á  mais  remota  poste- 
ridade. 

«  Estas  reflexões  devo  confessar  que  as  faço  aqui  pla- 
cidamente  ao  canto  do  raeo  gabinete,  porque  em  Setú- 
bal mal  tive  tempo  de  admirar  o  magnífico  soneto  de 
Castilho,  único  poeta  que  herdou  de  Bocage  o  segredo 
da  música  do  verso,  e  que  ainda  opulentou  o  legado, 
aportuguezando  o  alexandrino,  e  dando-lhe  essa  harmo- 
niosa majestade,  qu»se  nota  nos  quatorze  versos,  fun- 
didos d'um  só  jacto,  do  soneto  a  que  alludo.  » 

Por  conta  e  ordem  da  commissao  do  Rio  de  Janeiro, 
tiuham-.^e  posto  á  disposição  dos  convidados, vapores  do 
Tejo  e  carruagens  da  via  férrea.  Prepararam-se  bilhetes 
especiaes.  O  Ministro  e  o  Cônsul  do  Brazil  receberam  os 
que  indicaram  precisar  para  súbditos  brazileiros;  a  com- 
missão  de  Lisboa  dispôs  dos  que  lhe  approuve  exigir; 
grande  número  foi  distribuído  por  auctorídades,  litte- 


XXXni  207 

ratos,  associações,  e  particulares  distinctos,  a  todos  os 
quaes  se  facilitou  assim  passagem  gratuita,de  ida  e  volta. 
Muitas  pessoas  tinham  partido  na  véspera,  pelo  vapor 
da  carreira  ordinária,  de  modo  que  nao  havia  era  Se- 
túbal um  só  logar  livre  nas  estalagens,  e  poucas  casas 
particulares  deixavam  de  estar  apinhadas  de  visitantes. 

Partiram  pois  de  Lisboa  os  dous  vapores  D.  Carlos  e 
D.  Affonso,  atopetados  de  gente.  Philarmónicas,  du- 
rante a  viagem,  e  apezar  do  péssimo  tempo,  foram  to- 
cando os  hymnos  de  Bocage,  de  D.  Luiz,  brazileiro,  da 
independência,  e  da  Carta. 

Antes  do  meio  dia  largava  da  estaç&o  do  Barr  eiró  um 
comboio  com  31  carruagens,  que  pouco  depois  da  uma 
hora  chegava  à  estação  de  Setúbal.  Ahi  eram  os  visi-. 
tantes  esperados  pela  câmara  municipal,  auctoridades 
civis  e  militares,  grande  concurso  de  cidadãos,  e  uma 
philarmónica.  Todos  os  vehiculos  da  cidade  estavam 
''naquelle  logar,  por  delicada  lembrança  dos  dignos 
membros  da  commissao  de  Setúbal.  O  cortejo  p6z-se 
sem  detença  a  caminho  para  a  praça  de  Bocage. 

Magnífico  era  o  aspecto  da  praça.  Os  lados  d'ella  esta- 
vam guarnecidos  de  louro,  e  entremeados  de  columnas 
sobre  que  assentavam  vasos  de  flores,  d'onde  saíam  fes- 
toes de  buxo,  estendidos  em  torno.  Nas  intradas,  dos 
lados  do  sul  e  norte,  hnvia  figuras  empunhando  lyras, 
5ob  as  quaes  apparecia  o  nome  do  poeta. 

Por  conta  e  ordem  da  commissao  do  Rio  levantaram- 
se  estrados  e  um  pavilhão  era  frente  do  monumento, 
forrado  de  tafetá  azul,  amarello,  branco  e  vtrde,  cores 
nacionaes  de  Portugal  e  Brazil,  com  cortinas  também  de 
seda  ;  alcatifas  forravam  o  pavilhão,  estrados  e  degraus, 
et«,  'Neste  visioso  pavilhão  se  achava  um  excellente 
bufete,  e  sobre  elle  uma  escrevaninha,  e  a  penna  de 
ouro,  que  já  havia  servido  para  assignatura  do  auto 
d*inauguraçao  do  monumento  aCamOes,  penna  ofiferecida 
pelos  portuguezes  de  Porto-Alegí%  (província  de  S.  Pe- 
dro) ao  Sr.  visconde  de  Castilho,  por  occasiao  do  perdão 
que  este  alcançou  para  um  velho  compatriota,  com  uma 
epistola  dirigida  a  S.  M.  a  Imperatriz  do  Brazil.  Ao 
lado  do  pavilhão,  havia  tribunas  descobertas,  as  quaes 
foram  completamente  occupadas  por  damas  e  cava- 
lheiros. 

Tropa  em  grande  uniforme  estava  postada  á  esquerda 
da  estátua;  o  centro  da  praça  occupavam-n'o  4  bandas 
de  música. 


208  XXXllI 

Na  varanda  dos  paços  do  conselho  viain-se  bandeiras^ 
galhardetes,  vasos  de  flores,  e  doestes  havia  em  todos 
os  degraas  das  escadas  atapetad.is. 

Nas  janellas  dos  prédios,  adornadas  todas  de  sanefas, 
cortinas  e  ricas  colchas,  viani-se  as  mais  distincías  da- 
mas da  sociedade  setnbalense,  trajando  esnieradauicnte; 
e  muitas  casas  do  vice-consules  e  de  particulares  acha- 
vam-se  embandeiradas. 

Pompeavam  por  toda  a  praça  as  bandeiras  portugueza 
e  brazileira,  e  innúmeros  galhardetes  com  as  cores  das 
duas  nací^es. 

Assim  doscripto  o  scenário,  nu  próximo  número  com- 
pletaremos  a  narração  da  formosa  solemnidade. 


ADVERTÊNCIA. 

No  precedente  número,  CincíQDato,  repclliodo  a  injusta  accusaçáo  áh 
que  em  bem  poucos  romances  d'ctqui  e  dalem-mar  se  pode  deter  a  atten- 
çdo,  cstaheloccu  quo  cm  romances  e  contos,  a  litteratura  do  nosso  idioma 
cleu,  'neste  quarto  de  sérulOf  numcr(>>as  e  esplêndidas  provas  de  adeanU- 
mento.  *Numa  nota  se  indicaram  nada  menos  de  33  auctores  de  romance» 
c  contos,  c  muito  mais  largo  poderia  ser  este  catálogo,  tanto  de  outros 
auctores,  como  de  outras  oliras  dos  mesmos.  Na  lista  porem  que,  se  man- 
dou copiar,  não  houve  todo  o  esmero.  Producções  ha,  que  |)or  serem  em 
veri^o  e  chamadas  poemas,  qualiticAmos  de  romances.  Obras  ha,  quo  con- 
tendo alguns  contos,  hcm  cabiam  'naquella  classificação»  embora  também 
tractcm  outras  matérias.  Mas  passaram  na  cópia,  ou  na  revisão  das  probas, 
ciTos  que  os  intendidos  Icrào  logo  emendado.  Por  exemplo:  Entre  as  obras 
de  Camillo  Castcllo- Branco,  indir^ram-se  indevidamente  como  originaes 
Fanny  (ic-se  Taunay),  e  Uomance  de  um  rapaz  pobre.  Em  vez  do  Solemnia 
Verba,  lllima  palarra  da  sciéncia,  lé-se  LUima  palavra  da  consciência 
(Solemnia  Verba) — Era  Pereira  da  Cunha,  os  Brios  heróicos  dê  portugue- 
zcui  foi  amii  indevidamente  classificado—  O  lloberto  Valença^  do  Sr.  Tei- 
xeira de  Vasroncellos,  devia  est^nr  composto  cm  typo  corrente — Em  Arnaldo 
Gama, O  motim.  Ha  cem  annos,  leia-sc  Lm  motim  ha  cem  annos^ etc.  Ha- 
verá mais  alguns  erros,  para  os  quaes  supplicâmos  \énia,  mas  que  em  nada 
alteram  a  exactidão  da  these  quo  dcfenoemos. 


T.vpoi^rBphiii  e  litho^raphia  —IMPARCIAL— Rua  Sete  de  Setembro,  146  A 


QUESTÕES  DO  DIA 


isr.^34: 


BIO  DE  JANEIRO,  25  DE  JANEIRO  DE  18^2. 


Teode-Be  em  casa  dos  srs.  E.  &  H.  La?mmert.^Agostinho  de  Freitas  Gn- 
joarães  U  Comp.,  26,  rua  de  General  Camará.— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  José  D.  119-  Largo  do  Paçe  n.  C— Preço  SOO  reis. 
O  1*  volume,  com  perto  de  400  pá^imis— 3ff000. 


Eram  duas  horas  da  tarde,  qaande  dos  paços  do  con- 
aelho  desceram  as  commissoes  fíliaes  de  Lisboa  e  Seta- 
haly  Ministro  do  Reino,  Câmara  Municipal,  auctorldades 
cíyís  e  militares,  e  muitas  pessoas  gradas,  em  direcçfto 
ao  pavilhão,  onde  foram  proferidos  os  discursos;  depois 
do  que  00  cavalheiros  portugiiezes  e  brazileiros,  nomea- 
dos para  tirarem  os  cordoes  da  cortina,  que  velava  a 
estátua,  composta  das  bandeiras  de  Portugal  e  Brazil,  se 
dirigirany  para  o  monumento,  e  procederam  do  modo  in- 
dicado no  auto  de  inauguração.  Foi  momento  de  indizi- 
vel  enthusiasmo  aquelle  em  que  appareceu  descoberto  o 
Tulto  do  poeta,  ao  som  da  marcha  Éomenagem  a  Bocage, 
tocada  a  um  tempo  por  várias  bandas  de  música,  ao 
estrépito  de  innumeraveis  girândolas,  e  em  presença  da 
tropa,  que  appresentava  armas.  A  despeito  das  torrentes 
de  chuva,  todas  as  cabeças  se  descobriram;  tudo  era  vida 
e  animação :  o  rumor  das  vozes,  o  ondear  dos  lenços 
nas  janellas,  toda  aquella  alegria  tomava  o  momento 
aolemne. 

Emquanto  durava  esta  scena  esplêndida,  foi  distri- 
buído pelas  turbas  um  soneto  do  visconde  de  Castilho. 
Bem  era  que  a  homenagem  ao  Petrarcha  portuguez,  ao 
primeiro  mestre,  em  qualquer  língua,  da  difficu  forma 
métrica,  soneto,  revestisse  a  Bocagiana  forma  por  excel- 
lènda,  realçada  ainda,  mormente  para  emprego  alti- 
loquo,  pelo  uso  do  roçagante  alexandrino.  O  dicto  soneto 
áeste: 

Tu,  qi:e  nos  revelaste  a  mágica  harmonia, 
na  lyra  nacional  antes  de  ti  latente ; 
espirito  de  luz,  relâmpago  esplendente, 
que  descobriste  á  pátria  um  mundo  de  poesia ; 


210 

ao  Capitólio  d'arte  ascende  entre  a  alegria, 
entre  os  vivas  da  lusa  e  da  brazilea  gente. 
Se  um  sepulchro  nao  tens,  do  berço  teo  florente, 
qual  phenix  immortal,  resurges  'neste  dia. 

Emmudeceste  á  inveja  os  pérfidos  agouros  ; 
reduzistel-a  ao  nada,  ao  pó  d'onde  provinha. 
Em  vez  de  cy prestai,  rodeiam-te  só  louros. 

O  vate  lê  no  fado,  e  os  tempos  adivinha ; 

nao  debalde  exclamaste  aos  séculos  vindouros : 

—  «  Zoilos,  estremecei!  Posteridade,  és  minha t 

Logo  em  seguida  distribuíu-se  a  seguinte  poesia  do 
digno  setubalense,  Sr.  M.  M.  Portella,  membro  da  res- 
pectiva commiss&o  filial,  e  ornamento  da  imprensa  do 
Sado.   Eil-a  : 

HOMENAGEM 

A' 

MEMORU  DO  DISTINCTO  POETA 

MANUEL  MARIA  DE  BARBOSA  DU  BOCAGE 

POR  OCCAfilIO  DB  SBP  INAUOUBADO  O  8BO 

Moxi.iixKi.exito  exn  Setul>als 

PRESTADA  PELO  SEO  ADMIRADOR  B  CONTERRÂNEO 

M.  M.  PORTELLA 

(f  Este  com  quem  se  ufana  a  pedra  erguida. 

(BOCAGE). 

em  quanto  o  mundo 

!}C  lembrar  de  Camões»  de  Tasso  e  Milton, 

lhe  ha  de  lembi  ar  também  de  Elmano  o  nome. 

(J.  A.  MACEDO). 

Cumpriu-3e  a  predicçao,  Nao  foi  uma  luz  fátua 
(jue  o  vate  alumiou ;  alçou-se  emfím  a  est&tua!.** 
O  applauso  reapparece  ;  escuta-se  a  ovação ; 
e  unida  a  voz  do  docto  á  voz  da  multid&o^ 
em  júbilo  é  i^udada  a  coroada  fronte 
do  vulto  que  destaca  em  lúcido  horizonte. 
Após  nao  curta  edade  esplende  o  grão  fanal ; 
não  o  sumiu  a  crypta,  o  génio  é  immortal  I 
Posteridade,  és  sua !  o  monumento  a  Elmano, 
tal  qual  elle  o  predice,  agora  se  ergue  ufano  I 
Paga-se  o  justo  preito  em  honra  do  saber ; 
extingue-se  o  labéo,  cumprido  o  que  é  dever. 
Julga-te,  sem  razão,  ó  século  presente, 
o  parcial  censor  em  erro  permanente, 


s 


XXXIV  211 

negando-te  o  sentir,  a  crença,  a  fé,  a  luz, 
sem  vêr  que  quanto  nega  em  ti,  melhor  traduz 
o  apreço  ao  que  o  merece,  e  que  incessaut.'  provas 
no  tributo  ao  talento  e  em  mil  idéas  novas, 
arcanos  a  romper,  prodígios  a  operar, 
com  a  m&o  do  progresso  o  mundo  a  transformar, 
mais  que  aquelle  abandono  em  que  antes  pereciam 
quantos  a  si,  os  seos  e  a  p&tria  ennobreciam. 
O  sábio  então  só  tinha  o  cárcere  e  o  hospital; 
e  o  bárbaro  poder  de  occulta  lei  fatal 
nem  o  exempla  do  horror  que  inspira  essa  fereza 
aquella  majestade,  essa  alta  realeza, 
que  conta  por  palácio  a  gruta  de  Macau, 
or  cortez&o  e  amigo,  um  indigente,  o  Jau  !..., 
ue  oppróbrio  nos  transmitte  a  invelhecida  história 
a  par  da  heroicidade  em  c^ue  se  faz  notória !.., 
Obelisco  nao  ha,  nem  lápide  sequer, 
legada  do  passado,  onde  se  possa  ler 
por  honroso  dever  que  nos  poupasse  a  ultrage 
aos  olhos  do  estrangeiro  —  Aqui  nasceu  Bocage !... 

Na  chara  pátria  minha  entreteceu-lhe  amor 
o  berço  perfumado  em  laranjaes  em  flor. 
O  límpido  regato  a  serpear  na  relva, 
o  perfume,  a  frescura,  os  cânticos  da  selva, 
o  valle  d'onde  surge  á  tarde  a  viraç&o 
que  afaga  o  tenro  arbusto,  a  voz  da  solid&o 
que  lá  do  algar  repete  a  queixa  ao  triste  amante, 
a  sombra  da  quebrada,  o  prado  verdejante, 
em  fim  este  vergel  onde  ha  perenne  abril, 
provoca,  attráhi,  incita  a  musainda  infantil... 
Para  cantar   fadado  o  cysne  da  harmonia 
revela  o  seo  destino,  apenas  balbucia. 
O  Sado  a  murmurar  insina-lhe  á  canç&o 
que  repete  depois  dos  mares  na  amplid&o, 
de  nostalgia  oppresso,  em  seo  destino  vário, 
03  longes  do  occidente  olhando,  solitário. 

Cresce,  adeja  anhelante  aos  cimos  (^ue  fitou  ; 
que  assombro!  quasi  implume  e  rápido  chegou 
aonde  poucos  v&o  em  dilatado  espaço  I 
A  frauta  do  Delille,  hymnos  d'Ovídio  e  Tasso 
vai  escutar  attento  apenas  trovador, 
extráhi-lhes  a  magia,  a  música,  o  primor 
e  volve  endeusado;  e  o  canto  que  desata 
captiva  a  quem  n'o  ouve,  as  almas  arrebata  I... 


212  XXXIV 

Misterioso  ingenho,   harmonioso  ser, 
difficil  de  attingir  e  mais  de  comprehender, 
ora  sereno  lago  em  que  se  espelha  a  lua, 
ora  revolto  mar,  que  avança  e  que  recua, 
e  na  indomável  sanha,  entre  hórrido  bramir, 
pretende,  intumecido,  as  rochas  demolir ! 
Rival  de  Anacreonte,  inflora  a  doce  lyra 
que  inleia  os  corações  na  m&gua  em  que  suspira  ; 
mas  transmutado  em  breve,  a  sátyra  mordaz, 
penetrante,  despede,  iroso  e  mais  que  audaz, 
e  em  cego  delirar,  de  victimas  sedento, 
na  insânia  que  o  devora  ainda  é  um  portento  ! 
Impondo  á  musa  a  phrase  e  modo  varonil, 
fulmina  o  ousado  inepto,  o  torpe,  o  que  é  servil ; 
•«  passa  triumphante ;  e  a  multidão  que  o  acclama 
lhe  vai  da  voz  suspensa  e  o  ^segue  como  a  fama ! 
Refeito  'nesse  applauso  e  no  melhor  que  dflo 
os  versos  de  Piiinto,  as  odes  de  Garç&o, 
revoa  ao  infinito,  excede  o  que  ha  sublime 
na  flamma  em  que  sefaz,no  verbo  em  que  s'exprime! 
Coroas  aos  montões  e  feixes  de  trofeos 
s&o  despojos  da  lucta  aos  pés  do  semideus  t 
e  da  glóna  o  clara  o  dardeja  rutilante 
sobro  o  laurel  que  cinge  a  fronte  do  gigante 
que  os  émulos  venceu,  os  zoilos  suffocou, 
e  o  tempo,  o  olvido,  a  morte  altivo  dominou!... 
Mas  como  a  sorte  adversa  o  mérito  persegue ! 
como  quem  o  possue  ao  damno  deixa  intregue !... 
Quão  caro  custa  a  Elmano  o  universal  louvor ! 
quanto  tempo  passado  em  indigência  e  dor !... 
Porque,  vendo  surgir  da  liberdade  a  aurora 
pbrenétíco   a  saúda  e  •d'ella  se  enamora, 
e  d&diva  do  céo  a  crê  feita  aos  mortaes, 
o  hypócrita  ardiloso  em  tramas  infernaes 
lhe  tira  o  que  mais  ama  e  quasi  do  ar  o  priva, 
tiranlhe  a  liberdade,  em  ferros  quer  que  viva... 
Accusa-o  de  impiedade... Elmano  ímpio  n&o  é ; 
transi uz-lhe  Deus  na  mente  e  'nalma  abriga  a  fé. 
Se  alguma  vez  errou  na  ardente  mocidade, 
quem  mais  do  que  elle  exalta  e  preza  essa  verdade 
que  segue  desde  o  berço  e  origem  é  do  bem  ? 
quem  mais  exprobra  o  crime  e  mais  horror  lhe  t^mt. . 
Assim  contricto,  um  dia,  achou  silencioso 
o  termo  da  fadiga,  o  leito  do  repouso, 
e  os  olhos  que  cerrava,  entre  milhões  de  soes. 


XXXIV  213 

sem  demora  reabriu  na  turba  dos  heroes, 
que  sempre  a  batalhar,  tnumpham  pela  idéa 
e  duram  como  dura  o  bronze  ou  a  epopéa ! 

Bocage  nfto  morreu,  nos  séculos  por  vir 
hade  o  seu  nome  egrégio  o  mundo  repetir. 

Distribuiram-se  outras  producções,  taes  como  um  fo- 
lheto, intitulado  Salve^   Bocage  I  etc. 

Regressou  o  cortâjo  aos  paços  do  conselho,  onde  pelo 
infatigável  e  benemérito  Sr.  éilva  Túllio,  secretário  da 
commissão  de  Lisboa,  foi  lido  o  j&  transcripto  auto 
d^nauguraçfto,  do  qual  veiu  um  exemplar  para  a  com- 
miss&o  do  Rio  de  Janeiro. 

Por  um  nobre  acto  de  cortezia,  o  Sr.  Marquez  d'Avila« 
que  j&  havia  offerecido  o  seo  cordfto  da  cortina  ao  Sr. 
Ministro  do  Reino,  que  alli  estava  representando  a  naçfto 
portugueza,  convidou  os  parentes  de  Bocage,  que  esta- 
vam presentes,  para  assignarem  o  auto  antes  de  S.  Ex.« 
como  o  demostra  a  exacta  transcripçfto  que  d'esse  auto 
dêmos. 

Poucas  pessoas,  entre  as  muitas  centenas  que  na  praça 
se  apinhavam «  poderam,  por  falta  de  tempo,  sotopõr  as 
suas  assignaturas ;  mas  n&o  era  inferior  a  hierarchia 
de  innumeraveis  cavalheiros  presentes,  cujos  nomes  o 
auto  não  poude  mencionar.  Em  quanto  durava  esta 
tarefa,  ouviam-se  as  bandas  de  música,  e  os  hymnos 
portuguez,  brazileiro,  e  de  Bocage. 

Aberto  o  grande  sal&o  da  câmara  municipal,  offerecia 
aspecto  deslumbrante :  janellas  com  ricas  bambinellas  ; 
çhfto  alcatifado ,  reposteiros  de  magnifico  damasco  ; 
mobília  faustosa  ;  balcão  ao  centro  da  sala,  ornado  de 
vasos  de  mármore  cheios  de  flores;  suberbos  cristaes  ;  ao 
fundo  um  bufete,  com  todo  o  serviço  de  prata  ;  e  um 
confortante  e  variado  copo  d*àgua  (que  a  Commiss&o  do 
Rio  mandara  offerecer,  mas  que  i»C&mara  Municipal 
pediu  para  tomar  a  si]. 

Havia-se  disposto  para  as  senhoras  um  toucador,  de 
muita  elegância,  na  casa  dos  paços,  onde  funccionara 
a  antiga  juncta  do  sal.  Estava  atapetada,  guarnecida 
de  mobilia  á  Voltaire,  e  arranjada  com  o  maior  gosto. 

As  casas  da  Câmara  estiveram  abertas  para  serenai 
vistas  pelas  pessoas  que  as  quizessem  visitar.  A  sala 
principal  tem  as  paredes  forradas  de  pannos  de  raz,  re- 
presentando quadros  bíblicos  e  retratos  dos  reis,  até  â 
Sn.  D.  Maria  I,  em  cujo  reinado  se  construiu  o  edifício. 


214  XXXIV 

e  tem  figuras  em  poncto  grande,  e  algumas  bellas, 
embora  se  conheça  que  os  annos  ji  as  têm  detenorado. 
Da  imprensa  periódica  figuraram  os,e  gumtes  repre- 
sentantes, na  cerimónia  da  inauguração,  posto  que  nem 
todos  podessem  firmar  o  auto  :  —  Do  Jornal  do  Ct^mUr- 
do— Diário  do  Governo— Revolução  de  Sepiembro—Ihdno 
ãe  Noticias  —Diário  Popular  —  Jornal  da  Noite— Gajeta 
do  Povo—  Crença  —  BoUtim  do  CUro  e  do  Professorado— 
Partido  Constituinte  —  Gazeta  Setubalense—  Pnm^ro  de 
Janeiro  —  Didrio  Mercantil  e  Jornal  do  Recife,  dt  Per- 

iuifnbuco. 

Findo  o  lunch,  retirou-se  para  Lisboa  o  maior  número 
di^s  pessoas  que  haviam  assistido  &  festa,  a  qufel  houvera 
sido  de  inexcedivel  esplendor,  se  a  inclemência  do  tempo 
(vento,  frio  e  chuva  torrencial)  a  nfto  houvesse  nostoli- 
zado  táo  pertinazmente. 

Chegada  a  noite,  logo  se  atulhou  o  theatro,  que  ?stava 
convenientemente  decorado,  assistindo  as  auctondades 
civis  e  militares,  e  a  Câmara  ao  espectáculo,  em  cama- 
rotes ornados  de  damasco  e  ouro,  e  reinando  sempre  a 
melhor  ordem,  da  parte  de  tfto  selecto  piiblico,  que  a 
cada  momento  patenteava    o  seo  júbilo. 

Começou  o  espectáculo,  recitando  o  Sr.  Carlos  d  Al- 
meida os  seguintes  versos  do  Sr.  Eduardo  Coelho  : 

Salve,  Bocage! 

Ànniversário  triste    e  jubiloso  dia, 
Setúbal  veneranda,  é  este  em  tua  história ; 
a  portentosa    voz  gelou-a  a    terra  fria, 
mas  tu,  zelosa  mEe,  resgatas-lhe  a  memória. 

Raiara  o  génio  aqui ;  brisas  do  Sado  amenas 
no  berço  a  doce  luz  lhe  ateiam  brandamente  : 
—  n  Das  fachas  inluntis  (cantou)  despido  apenas,i> 
cc  sentia  o  sacro  fogo  arder  na  inquieta  mente.  » 

A  chamma  cresce  mais ;  domina  a  frágil  pyra, 
transborda,  alastra  e  banha  em  divinal  calor 
as  creaçoes  de  Deus.  O  povo  absorto  admira 
o  canto  ardente  e  audaz  de  Elmano,  o  trovador. 

Mas  essa  inspiração  que  o  século  deslumbra 

ò  corpo  consumiu  que  débil  a  abrigava  ; 

Bocage  cedo  a  face  esconde  na  penumbra 

dia  morte,  onde  o  «tropel...»  do  génio.. .o  «arrastava!»' 


XXXIV  215 

O'  flor  do  Sado,   orgulhar-te 

Jodes,  por  ter  sido  o  berço 
o  Deus  d^harmonia,  da  arte 
o  numen,  o  rei  do  verso  ; 
de  alma  aos  lábios  lhe  acudia 
em  jorros  de  melodia 
a  mais  súbita  poesia 
que  inda  escut&ra  o  universo ! 

No  estro  febricitante 
refervia-lhe  um    vulcão, 
que  o  tornava   delirante 
nas  convulsões  da  paixão  : 
mas  que  loucura  sublime ! 
Com  que  magia  se  exprime ! 
e  em  áureos  versos  redime 
08  erros  do  coraçfto  I 

Quer  soltando  a  voz  em  hymnos, 
gemendo»  ou  vertendo  pranctos, 
sentia  êxtases  divinos 
ao  formular  os  seos  cantos  ; 
concentravanse  um  momento... 
de  repente....  o  pensamento 
irrompia-lhe  violento 
jorrando  ethéreos  incautos. 

Como  é  bello,  a  natureza 
pintando,  ou  cantando  o  amor  I 
ou  descrevendo  a  crueza 
do  çiume  queimador ! 
ou  se  o  fere  a  atroz  inveja, 
como  a  sátyra  troveja  , 
e  o  epigramma  dardeja, 
e  esmaga  o  provocador! 

Os  moldes  da  vida  antiga     ^ 
pozeram-lhe  ao  estro  peias ; 
^'a  miséria  sempre  em  briga 
nfto  lhe  quebrara  as  cadeias ; 
ae  o  inspira  a  liberdade, 
que  a  França  agita  e  invade, 
qufto  úteis,  humanidade, 
te  foram  suas  ideias  ! 

As  musas  grega  e  romana 
abriram*lhe  os  seos  thesouros ; 
conheceu  da  história  humana 


as  virtudes  e  os  desdouros  ; 

avistou  nos  voos  seos 

quanto  ha  grande  em  terra  e  céos  ; 

do  g'éQÍo  Da  froute  Deufi 

lhe  pò3  os  eternos  lourow 

Se  intregue  aos  «  prazeres  vãos,  » 

(I  seos  sócios  »  e    11  aeo-'*  tyrannoM,  •' 

abrira  co'aA    próprias  mãos 

«  o  abyítino  dos  desinganos  .  n 

80  das  paixOeã  iio  delírio 

o  queiras  o  fúnebre  cync 

da  morte  ;  após  o  mariyrio 

fica  aol  entre  ns  humanos ! 

Luz  fecunda,  que  derrama 

a  sua  memória,  é   tal, 

que  inuDd&  em  vívida  chamma 

este  sec'ln  em  Portugal. 

Nobi^n   reconhecimento 

lhe  rri^e   esse  monumento, 

anto  o  qual  o  povo  attento 

diz  :  —  «  Bocage,  és  immortal !  " 
O'  bella  flor  do  Sado,  alegra  a  fronte  ;  o  dia 
é  data  immorradoura  em  lua  illustre  bititória  ; 
a  portentosa  voz  gt;loii-a  a  terra  fria, 
mas  tu  bradas-lbe,  ó  m&fí  :  "  Renasce  para  a  glória  í  » 
Recitada  esta  poesia  com  ralor,  e  accolhida  cora  ap- 
plausus,  pediram  unanimemente  os  espectadores  que  m 
orchestra  tocasse  a  marcha  Homenagem  a  Bocage,  o  qac 
foi  feito,  em  meio  de  geral  enthustasmo;  e  sempre  em 
egual  disposiçfio  de  ânimos  foi  seguindo  a  repre>entaçao. 
Ao  mesmo  tempo,  havia  um  concorrido  baile  no  club. 
Seis  banda»  de  miisica  percorriam  todas  as  ruas,  e  ea- 
tacionando  ante  os  pyos  do  conselho,  o  odiflcio  do  Seia- 
bixiense  e  outros  logares.  abi  locavam  ,a  Homenafiam  a 
Bocage  ti  outros  hymnos,  lançavam  ao  ar  ^riràndolas.  e 
trocavam-se  discursos. 

As  philarraónicas  iam,  uma  após  ontfa.lucar,  e  atB(»r 
foguetes,  em  frente  da  casa  ondp  nas<'qu  Bocage,  na 
rua  de  S.  DomínEros. 

Estava  preparada  na  praça  de  Bocage  uma  G^cellenta 
illuminaçS,o  a  gas,  de  que  ••  tempo  não  perraituii  sacar 
todo  o  partido  :  roas  grande  número  de  casas  da  cidade 
rstiveram  illumioadas.  haviíudo,  em  al^nrans,  transpa- 
eentes  «  allegoria.'*. 


XXXIV  21T 

Também  foi  devido  ao  máo  tempo  o  nfto  se  ter  lan- 
çado o  fogo  d*artifício,  que  se  mandara  preparar  para 
remate  dos  festejos  d 'aquelle  dia. 

Quando  o  comboio  partiu,  tendo  alguns  dos  convi- 
dados ficado  em  Setúbal,  accolheram-se  á  provada  bene- 
volèacia  do  digno  Presidente  da  Municipalidade,  e  dos 
mais  vereadores,  que  com  a  mais  sympáthica  delicadeza 
tractaram  aquelles  seos  hóspedes,  incbendo-os  de  atten- 
çOes  e  obséquios. 

O  edifício  da  câmara  municipal  conservou-se  interior 
e  exteriormente  adornado,  assim  como  todas  suas  im- 
mediações,  para  uma  jnova  solemnidade,  a  qual  se 
realizou  no  dia  24  do  mesmo  mez,  ainda  em  honra  do 
mesmo  grandioso  vulto,  e  por  iaiciativa  da  commissão 
do  Rio. 

Com  eflFeito,  é  j&  sabido  que  tendo  ella  tido  a  fortuna 
de  descobrir  em  poder  do  prestante  5r.  Dr.  Joaquim 
José  Teixeira  o  famoso  execnplar  original  do  retrato  que 
Henrique  José  da  Silva  fez  de  Bocage,  no  anno  de  seo 
passamento,  mandou  tirar  d'elle  uma  excellente  cópia, 
muito  mais  perfeita  que  o  original,  e  em  poncto 
muito  maior,  cópia  que  ficou  de  inexcedivel  similhança, 
sendo  portanto  o  único  retrato  que  existe  authêntico, 
e  o  que  teve  a  honra  de  servir  para  modâlo  da  estátua. 

Levou-o  comsigo  para  Portugal  o  Presidente  da  Com- 
miss&o  do  Rio,  que  o  depositou  nos  paços  do  Conselho 
de  Setúbal,  declarando  que  viria  a  ficar  propriedade 
d^ella,  se  a  Commissao  central  isto  approvasse  ;  e  pois  que 
assim  succedeu,  pertence  elle  hoje  4  Câmara  de  Satubal, 
que  o  conservava,  até  receber  a  decisão,  no  antigo  ora- 
tório ou  capellada  municipalidade,  casa  muito  digna  de 
admiração,  por  ser  toda  de  legítimo  xarao  e  de  primo- 
roso trabalho. 

Foi  a  inauguração  d'esse  retrat^  no  salão  do  conselho 
que  motivou  terceira  festividade,  no  dia  21.  em  honra 
do  Sadino.  A  municipalidade  convidou  muitos  dos  seos 
hóspedes,  do  dia  21.  Repeciu-se  então  a  festa  toda,  com 
ílluminaçôes,  músicas,  theatro,  baile  etc. 

Em  conformidade  com  as  instrucçoes  da  commissfto 
central,  do  Rio,  foi  o  photógrapho  Roquini,  de  Lisboa, 
com  um  ajudante,  para  tirar  na  própria  oceasi&o  da 
inauguração  2  photDgraphias,   uma  pela   frente,  outra 

fmlas  costas  do  monumento  ;  lambem  isto  nao  saiu  per- 
éito,  por  causa  do  tempo ;   mas,  tendo  o  photógrapha 


218  XXXIV 

ficado  em  Setúbal,  poude  depois,  com  quanto  nfto  tivesse 
um  raio  de  sol,  tirar  as  incgmmendadas  vistas,  embora 
desaccompanhadas  da  animação  que  o  espcct&culo  da 
inauguração  houvera  devido  imprirair-lhes. 

Também  serão  mandados  para  o  Rio  alguns  exempla- 
res da  marcha  Homenagem  a  Bocage,  tanto  para  piano 
como  para  banda  Regimental. 

Eis  ahi  de  que  modo  foi  realizada  a  idea,  proclamada 
na  Assembléa  do  Club  Fluminense,  a  15  septembro  de 
186t5,  isto  é,  no  dia  em  que  se  completavam  cem  annos, 
do  nascimento  do  laureado  vate  Manoel  Maria  Barbosa 
du  Bocage. 


O  Ooi3Lsex*vatoi*io  de  iMLiisloa 

Noticia  histórica  e  descriptiva  da    inauguuacào    do 
edifício,  e  origem  da  instituição. 

I 

No  seio  doesta  esplêndida  natureza,  cercado  doestas 
maravilhas  que  se  estampam  no  azul  dos  céos,  uo  ver- 
dor dos  campos,  no  iriar  das  flores,  no  serpear  dos  rios; 
que  se  molduram  na  aspereza  dos  granitos  que  topetam 
com  as  nuvens,  na  rugosidade  dos  troncos  que  Be  exal- 
çam aos  ares ;  que  se  traduz  no  perennal  concerto  dos 
pássaros,  do  ciciar  dos  bosques,  do  rugir  das  feras  e  do 
estrondar  das  cascatas,  porque  se  conserva  o  brazileiro 
indifferente  ao  amor  do  bello  e  ás  suas  divinas  creaçOes? 

Porque,  hao  de  ser,  na  terra  fecunda,  immensa,  do 
Cruzeiro  as  obras  do  Creador  tao  bellas,  t&o  portentosas, 
e  as  da  creatura  tao  feias,  tao  rachitícas  ¥ 

Porque,  como  os  helenos,  sob  um  céo  tao  formoso, 
pascendo  os  olhos  por  tao  pittorescas  paysagens,  nfto 
amamos  nós  a  arte  at^á  iaolatria,  nem  rendemos  ao 
bello  o  preito  devido? 

Porque  somos  nós,  os  filhos  doesta  terra  que  Deus  se- 
meou com  mao  generosa  de  tantos,  tao  vários  e  tfto 
raros  primores,  os  que  menos  comprehendemos  esta  laxa- 
riantenatureza,que  nenhuma  do  globo  supera  em  pompa? 

Será  que  os  brazileiros  herdassem  de  seos  avoengos  o 
tao  vergonhoso  desamor  que  votámos  ao  bello? 

E'  sempre  essa  a  desculpa  com  que  de  prompto  nos 
defendemos  do  nosso  atrazo  artístico :  desculpa,  que 
nao  passa  de  calúmnia  lançada  aos  nossos  antepassadost 
porque  nao   foram  elles   indifferentes  aos  esplendores 


XXXIV  219 

d*esta  natureza  tropical,    nem  avessos  ao   cultivo  das 
artes,  còmb  nos  esforçamos  por  insinuar. 

Ahi  estão  esquecidos  sob  o  pó  dos  tempos  os  Infolios 
dos  chronistas  portnguezes,  como  Gabriel  áoares,  Simão 
de  Vasconcellos,  Rocha  Pitta  e  outros,  que  em  estylo 
terso  e  fluente  descreveram  as  bellezas  agrestes  d*este 
faracissimo  solo ;  ahi  est&o  ennegrecidas  pelo  perpassar 
dos  a*)no8  as  grandiosas  fachadas  dos  nossos  velhos 
templos,  os  chafarizes  de  arrendados  contornos,  os  con- 
Tentos  de  severo  mas  imponente  aspecto,  e  a  altiva  e 
sólida  arcaria  da  canalizaç&o  das  águas  da  Carioca ^  a 
desmentirem-nos,  e  a  provarem  que  esses  nossos  avós 
almejavam  perpetuar  suas  obras  em  honrada  posteri- 
dade. 

Nfto ;  nao  foram  elles  que  nos  legaram  o  intranhado 
desamor  que  temos  ao  beilo ;  outra,  qualquer  que  seja, 
é  a  origem  do  nosso  atraso  artístico ;  origem  que  a 
estreiteza  da  presente  noticia  nfto  deixa  indagar,  nem 
a  acanhada  intelligência  ae  quem  estas  linhas  traça 
pôde  tfio  accuradamente  profundar  quanto  a  transcen- 
dência do  assumpto  o  estaria  soUicitando. 

D'emtre  os  quatro  ramos  principaes  de  bellas-artes,  a 
architectura  é,  sem  dúvida,  a  que  mais  atrazada  lan- 
guesce entre  nós ;  e  é  todavia  ella  que,  no  dizer  de 
Laboulaye,  d&  ás  physionomias  dos  edifícios  o  cunho  de 
uma  edade  e  'nelles  imprime  as  aspirações  de  uma 
raça. 

  architectura  é  uma  das  faces  mais  legíveis  do  cha- 
racter  de  um  povo ;  nas  suas  producçoes  gravam-se,  em 
typos  indeléveis,  os  períodos  do  ingrandecimento  ou 
decadência  de  uma  nacEo.  Nas  formas  de  um  edifício, 
JA  vastidão  ou  exiguidade  de  suas  proporções,  mede-se 
e  avalianse  a  nobreza  ou  a  vilania  de  quem  o  construiu. 

«  E'  na  architectura,  diz  o  er*^ito  Dr.  Velho  da  Sil- 
va, onde  se  revela  o  verdadeiro  poeta,  o  sonhador  de 
ideas  abstractas  ;  e  quereis  saber  o  porque  "?  E'  que  a 
pintura  busca  tyjpos  nos  grandes  quadros  das  obras  da 
creaçdo ;  a  esculptura  é  perigrina  dos  três  reinos  da 
natureza,  conduz  preciosidades  do  infinito  pára  o  finito, 
imita,  affeiçôa,  traz  illusões  para  os  olhos,  illude-se  á 
si  mesma  com  os  seos  traslados,  arrebata  o  f5go  do  ceo 
para  imprimir  calor  e  vida  na  estátua  de  mármore  frio 
uue  viveu  e  sentiu,  porque  era  a  mais  perfeita  imitação 
aa  obra  mais  perfeita  de  Deus.  A  architectura,  porem, 
n&o  tem  modelos  na  natureza,  n&o  acha  typo   na  crea- 


I 


220  xxxrv 

çKo  :  aqui  o  artista  concentra  em  sua  imag'inação,  com') 
era  fdco  Iuqiídoso,  tudo  que  sealfi.  pensa,  e  combimi-u 
de  raodo  que  transmitta  aos  outros  a  percepção  e  o  aen- 
timento  do  seo  ideal  ;  aqui  tudo  é  o  resultado  do  génio, 
das  luzes,  das  paixOef;  do  artista,  do  ^õsto  do  seo  paii;  e 
do  seo  tempo.  « 

A  architectura  tem  merecido  dos  povoa  civilizador;, 
antig;os  e  modernos,  toda  a  solicitude  que  para  o  seo  a- 
perfe  iço  amento  é  preciso  ter  incessaute  :  e  é  a  esse  des- 
vello  que  as  grandes  cidades  européas.  e  mesmo  dos 
Estudos  Unidos,  devem  a  grandeza  dos  seos  monumen- 
toa,  a  belleza  de  suas  edificações,  a  regularidade  dos 
seos  arruamentos. 

Entre  nós,  o  gosto  da  architectura  é  ainda  deficiente, 
e  até  geralmente  menospresado, 

A' iudifferença  que  temos  para  com  tudo  quanto  pro- 
duz a  arte  em  suas  differentes  manifestações  é  que  deve- 
mos a  irregularidade  e  rudeza  dos  nossos  ediffcio.-í,  par- 
ticulares e  piiblicus. 

A  falta  de  gosto  dos  nossos  misteiraes,  unida  á  suft 
supina  ignoríincia,  aao  parte  para  que  os  nossos  e- 
dificios  públicos  não  passem  de  servil  imitação  dos  eu- 
ropéos,  (jne  mesmo  assim  sariam  toleráveis  se  nao  Ilies 
amesquin liassem  as  formas,  diminuindo  consideravel- 
mente na  cópia  as  proporções, e  applicando  muila-s  vezes 
a  fins  assaz  diversos  a  caricatura  do  que  vão  procurar 
em  longes  pla^as- 

Quem  se  n9,o  doe  da  mutilação  que  se  perpetrou  aqui 
na  cópia  da  stiberba  estai;3o  da  estrada  de  terro  de  Stras- 
burgo,  admirável  construcçilo  moderna,  que  Lahonlayi! 
reputa  ;i  primeira  no  seo  génerii  ?  Qu5o  inhabilment»* 
nilo  foi  macaqueada  na  façhadn  da  estação  central  da 
estradii  de  ferro  de  D-  Pedro  II".?  Quem  pôde  vur  de 
&nimo  iranquillo  um  lios  mais  bellos  edifícios  das  es- 
cholan  belga.1  iristementie  caricaturado  na  rscliola  da 
praça  OiizR  de  Junho"? 

Para  o  novo  edifício  da  Praça  do  Commércio  da  ca- 
pital do  imp^rin  du  Brazil  [uma  das  mais  importan- 
tes do  mundo),  adoptoií-se  um  risco  acanhado  e  de  es- 
tyio  florido,  alambicado  e  cheio  de  arabescos,  antípodas 
do  fim  para  ijue  o  dbstinam,  ao  passo  que  o  do  Con- 
servatório de  mi'(Jiic.it  é  pesado  h  -iombrii»  como  um  pa- 
lácio de  Justiça  t 
Cerrit-.-íe-uos  a  alma    dfi  tristeza,    vemlo   empregada 


XXXIV  221 

t&o  avultada  somma  em  construcçSLo  que  para  tudo  será 
appropriada,  menos  para  o  mister  a  que  vai  applicar-se. 

E'  para  lamentar  que  a  primeira  eschola  que  o  Bra- 
zil  po&sue,  de  um  dos  mais  cultos  ramos  da  arte,  tenha 
habitaç&o  de  formas  tao  communs  e  de  tão  mesqui- 
nhas proporções.  E'  para  sentir,  qne»  ligando  se  a 
história  do  Conservatório  de  música  ao  nome  de  um 
artista  tfto  eminente  como  Francisco  Manoel,  n&o  pos- 
sa d'elle  dar  idóa,  mais  alta  nas  formas  grandiosas 
que  deveria  ter  o  edifício  devido  aos  esforços  incessan- 
tes de  tao  inspirado  músico. 

O  espirito  pouco  desinvolvido  das  associações  e  em- 
presas, a  falta  de  acoroçoamento  à  iniciativa  particular, 
(nao  da  parte  do  Governo,  mas  do  povo  que  a  ella  com- 
pete auxiliar),  inocularam-nos  o  péssimo  principio  de 
que  tudo  devemos  esperar  dos  poderes  do  Estado,  e  que 
só  à  custa  dos  cofres  públicos  é  que  deve  também  ser 
feito  quanto  fõr  de  geral  utilidade  e  concorrer  para  o  in- 
grandecimento  da  pÀtria.  E'  a  este  vulgar  systema  que 
devemos  as  grandes  anomalias  das  nossas  instituições  e 
por  consequência  a  injustiça  com  que  se  lança  ao  Go- 
verno unicamente  a  culpa  de  tudo  quanto  de  máo  ahi  se 
faz  entre  nós. 

Nenhuma  associação  se  funda  no  Brazil,  com  intuito 
de  concurrer  para  a  prosperidade  de  qualquer  dos  ramos 
dos  conhecimentos  humanos,  sem  protecç&o  do  Estado,  e 
nenhuma  prospera  sem  subsidio  do  thesc»uro!  D'ahi 
nasce  esse  amalgama  de  instituições  semi  of&ciaes,  semi- 
particulares,  com  administrações  electivas,  mas  depen- 
dentes da  approvaçfto  do  Governo. 

E'  assim  que  o  Conservatório  de  música^  instituído  por 
uma  sociedade  particular,  forma  hoje  a  quinta  secç&o  da 
Academia  de  bellas  artes ;  estando  sob  a  direcção  geral 
d'esta  tem  economia  separada  e  ainda  pertence  á  associa- 
ção que  o  estabeleceu;  e  constituindo  os  seos  professores 
parte  da  congregação  da  AcaderrAa  têm  ordenados  meno- 
res do  que  os  doesta,  e  recebem-n'os  do  património  da 
sociedade,  cujo  thesoureiro  serve  gratuitamente. 

O  resultado  de  similhantes  inconsequencias  é  que 
sendo  o  edifício  do  conservatório  quasi  todo  feito  a  ex- 
pensas dos  coffres  públicos,  deve  sua  má  e  deffeituosa 
construcção  ao  director  da  sociedade  que  o  fundou  ;  no 
emtanto,o  Yulgo,auctorizado  por  aquelles  que  sem  crité- 
rio nem  consciência  dão  a  Deus  o  que  é  de  César ,e  a  César 
o  què  é  de  Deus,  imputa  ao  Governo  todos  os  defeitos 


222  XXXIV 

d'aquella  e(lifiv*açao,e  até,atropellaado  a  própria  história 
dos  nossos  dia;»,  chega  a  suppõr  que  foi  o  actual  Sr.  Mi- 
nistro  do  Império  quem  auctorizou  a  feitura  d'essa  ohra, 
quando  ella  começou  em  1863. 

Âccreditando-se,  sem  a  mais  leve  indagaç&o,  que  o 
edifício  do  conservatóy^io  é  trabalho  d'estes  dous  últimos 
ânuos,  çhega-se  também  a  emprestar  a  auctoria  de  simi- 
Ihante  obra  ao  Sr.  Bettencourt  da  Silva,  que  apenas  foi 
incarregado  de  dirigir  a  sua  conclusão,  modificando 
quanto  podesse,  para  melhor,  o  seo  plano  primitivo. 

Levaao  por  estas  considerações,  seja-nos  permittido 
bosquejar  a  largos  traços  a  narrativa  da  fundaçilo  do 
Conservatório^  antes  de  aqui  fazermos  a  rápida  descrip- 
çao  da  sua  festa  inaugural,  de  que  nos  achámos  incarre- 
gados  por  quem  confiou  por  demais  em  nossos  débeis 
recursos. 

OaPHEO. 


{Continua.) 


A  faixiiiia. 


A  família  é  de  instituiçSo  natural,  e  é  a  base  de  todas 
as  associações  políticas.  São  theoremas,  que  nao  preci- 
sam  demonstração. 

A  família  recebe  o  homem  ao  nascer,  accompanha-o 
durante  toda  a  sua  vida,  e  nos  últimos  transes,  um  dos 
maiores  desejos  do  moribundo  é  açhar-se  cercado  de 
sua  família. 

O  amor  de  família  bebe-se  com  o  leite;  dosinvolve-se 
com  os  brincos  da  infância;  fortalece-se  cora  a  puberda- 
de, buscando  uma  companheira:  produz  seos  fructos  na 
virilidade,  e  abriga  na  velhice. 

O  amor  da  família  é  a  mais  valente  de  todas  as  leis 
divinas  e  humanas.  A  maior  parte  dos  homens  sao  con- 
tidos, não  porque  o  código  lhes  prohibe  esta  ou  aquella 
aroao,  ou  porque  na  vjda  futura  poderão  ter  este  ou  a- 
quelle  castigo.  Intremos  em  nós.  A  maior  parte  de  nós, 
só  deixa  de  praticar  certas  acções,  porque  tem  mulher, 
porque  tem  filhos,  porque  tem  um  velho  pae  ou  velha 
raae,  ás  vezes  até  porque  tem  um  irmSo,  ou  irmSr. 

A  natureza  dice  ao  homem  e  á  mulher,  que  um  por 
outro  deixaria  a  casa  de  seos  pães,  e  que  unidos  gera- 
riam e  creariam  filhos,  que  por  muito  tempo  neces&ita- 
riam  de  sua  pfotecção,  e  assim  deu  nascimento  á  socie- 
dade familiar.    Porém  ao  mesmo  tempo,  dando  a  todos 


XXXIV  223 

forças  limitadas,  e  aptidões  diversas,  obrigou-os  a  sepa- 
ra^^-se.  As  instituições  humanas  vieram  dar  mais  força 
a  esta  necessidade.  As  differentes  proHssOes,  se  tendem 
a  conservar  unidos  certos  homens,  tendem  a  desunir,  os 
membros  de  uma  família. 

Nem  o  corpo  nem  o  espírito  podem  estar  em  conti- 
nuado trabalho.  A  natureza  deu-nos  a  noite  para  o 
descanço. 

Mas  o  próprio  Deus  no  Sinai,  e  após  elle  todos  os  le- 
gisladores reconheceram  que  a  noite  nao  bastava  :  por- 
que se  bastava  com  o  descanço,  isto  é  ao  indivíduo, 
nao  approveitava  à  família.  Um  por  fatigado,  outro 
por  ausente,  não  poderia  approveitar-se  das  vantagens, 
que  proporcionam  as  relações  familiare.^. 

Para  reunir  os  membros  das  famílias  dispersas,  crea- 
ram-ae  os  dias  de  descanço.  O  artesão,  o  jornaleiro,  e 
outros  de  outras  profissões,  no  dia  de  descanço  ficam  em 
casa :  contam  a  sua  vida,  e  ouvem  a  vida  dos  mais. 
Estabelecem  a  communhao. 

O  catholicismo  foi  mais  longe.  Creou  grandes  festas, 
em  que  muitos  dias  de  descanço  seguidos  dessem  logar 
a  grandes  reuniões.  Era  assim  que  víamos,  ainda  nao 
ha  muitos  annos,  que  o  dia  de  Natal  reunia  à  roda  da 
mesa  do  chefe  da  família  todos  os  membros  d'ella :  se 
algum  faltava,  era  objecto  de  solicitude  geral :  e  mui- 
tas discórdias  ahí  tinham  fim,  muitos  interesses  eram 
ahi  regulados,  que  hoje  sao  origem  de  incóm modos 
processos. 

Em  Roma,  pelas  leis  das  doze  tábuas,  o  pae  de  famí- 
lia tinha  poder  discricionário  sobre  toda  ella  :  mulher, 
filhos,  e  escravos :  podia  vendêl-os  e  até  mactal-os. 
Conta-9e  de  Catão  o  antigo,  que  cedera  ou  antes  vende- 
ra Márcia  sua  mulher  a  um  seo  amigo,  recebendo-a  de 
novo  por  morte  d*este. 

Nos  tempos  do  feudalismo,  ainda  depois,  famílias 
houve  tao  unidas  e  poderosas,  que  os  reis  eram  obriga- 
dos a  combatêl-as  a  mao  armada.    Era  demais. 

Os  legisladores  modernos  tem  tractado  de  acabar  cora 
a  família,  e  tudo  quanto  a  pode  conservar  e  sustentar. 
Direitos  de  marido  sobre  a  mulher,  do  pae  sobre  os  fi- 
lhos, do  amo  sobre  os  creados,  ou  estão  extinctos  ou 
quasi;  no  poncto  a  que  as  cousas  v&o  chegando,  é  o 
excesso  contrário. 

Sem  respeito  á  família,  nao  ha  moral.  O  homem  hada 
achar  sempre  mil  meios  de  escapar  á  sancçao  externa 


224  XXXIV 

das  leis;  somente  a  sancç&o  interna  o  pôde  conter. 
Mas  esta  é  preciso  que  seja  immediata  :  o  mal  remoto 
assusta  pouco.  Não  ha  quem  n&o  espere  confessar-se  à 
hora  da  morte,  e  receber  absolviç&o. 

Isto  para  quem  crê :  para  quem  n&o  crê,  o  mal  é  peor. 

Pequenas  forças  nfto  podem  offerecer  grande  resis- 
tência ;  porém  também  não  podem  produzir  grande 
acç&o.  Caminhar  pelos  extremos  é  correr  o  risco  de 
a  cada  momento  precipitar-se.  Para  avançar  com  se- 
gurança,  é  mister  seguir  pelo  meio. 

Nos  séculos  passados,  os  homens  trabalhai  fim  para 
suas  famílias:  procuravam  feitos,  que  podessem  passar 
á  posteridade.  Hoje  cada  qual  trabalha  por  si  com  a 
quasi  certeza  de  que  seos  filhos,  e  a  certeza  absoluta 
de  que  seos  netos,  de  nada  se  approveitar&o. 

Acabaremos  tudo  hoje,  porque  amanhan  havemos 
de  morrer,  dizia  a  phílosophia  de  Epicuro,  e  dizemos 
nós  hoje. 

Com  este  systema,  vamos  direitinhos  à  barbaridade. 

O  livro  está  substituído  pelo  jornal  ;  o  estudo  pela 
leitura. 

Para  que  mais  ?  A  sepultura  que  devorar  o  corpo, 
devorará  também  o  nome. ' 

Ha  emulação  entre  amigos,  vizinhos  ou  parentes. 
Tirada  a  família,  é  tirado  um  grande  principio  de  emu- 
lação, e  por  consequência  de  aperfeiçoamento. 

Destruir  a  família  é  tirar  a  auctoridade  á  experiência. 

O  homem  que  procura  relaxar  os  laços  da  família, 
certamente  nunca  os  comprehendeu.  Ottok. 

Galex*a  a  duas  amax*x*a8 

O  marquez  de  Mirabeau  era,  como  todos  sabem* 
grande  liberal  *  seo  irmão,  o  conde  do  mesmo  titulo* 
tinha  logar  distincto  no  partido  da  corte  :  e  este  dizia 
áquelle :  Irmão  1  estamos  bem  ;  se  vencer  a  corte»  cá 
estou  eu  para  tesalvarf  se  vencer  o  partido  liberal,  lá 
estius  tu  para  me  acudir. 

O  Sr.  Alencar  incarnou  em  si  as  duas  pessoas :  pro- 
clamou-se  conservador  na  Câmara,  mas  escreve  para  a 
República.  E  assim  preparou  colxão  em  ambos  os  lados, 
accendendo  uma  vela  a  Dtms,  outra  ao  Diabo. 

Por  amizade,  que  lhe  temos,  lembr&mos-lhe  que  a 
demaí^iada  prevenção  muitas  vezes  produz  effeito  con* 
trário.  Otton. 

Typograpbia  e  lithographia  ->l]áPARCIAL^  Rua  Sete  de  Sete  iii)>«t\  ]«6 


J 


QUESTÕES  DO  DIA 

2Sr.°35 

RIO  DE  JAKEIBO;2r7D£  JAKEIRO  DE  1972. 

-r-m-  —  1^  -»_ ■    Ml       ■     M  — «r  i  i-nt" • ' 

TeDde-8e«m  casa  dos  sra.  B.  Ac  H.  Laammert.— Agoetinlio  de  Freitas  Ou- 
maries  &c  Ckimp.,  36,  roa  de  General  Camará.— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  José  n.  11^-  Largo  do  Pace  n.  C— Pre^  !KX>  reis. 
O  r  volume,  com  perto  de  400  páginae— 34000. 

lii8tx*ixcQSo  Populaz*. 

CARTAS  DE  CÍCERO  AO  SR.  DR.  CUNHA  LEITÃO. 

I 

Confrade  e  amigo. 

Ab  Jove  prindpitmi ;  começftmoB  pelos  deuses,  como 
diriam  aquelles  honestos  e  bons  poetas,  que,  despren* 
didos  das  misérias  da  vida,  passavam  as  horas  do  lazer, 
dedilhando  as  chordas  do  alaúde,  e  atirando  aos  ventos 
que  susurravam  na  copa  das  árvores  eançOes  t&o  triste- 
mente melanchólicas»  que  é  prazer  161<ts  e  sensaçfto 
indefinida  lembral-as.  Como  «qnelles  bons  pães  da  velha 
litteratura  portuguesa,  furtftmo-nos  por  um  momento 
ao  borborinho  do  mundo,  que  se  agita,  oscilla  e  passa, 
para  muito  &  puridade,  terra  a  terra  comvosco,  roubar- 
Tos  um  pouco  do  tempo  precioso,  que  tfto  generosamente 
votais  ás  cousas  do  paíz.  Grande  e  sublime  cousa  é  o 
assumpto  que  me  traz  arrastado  I  t&o  grande  e  nobre 
que  por  elle  me  vejo  obrigado  a  dizer-vos  que  o  vosso 
nome  cresce,  depois  que  se  consagrou  inteiro  a  esses  la- 
bores, que  intendem  comii  dissemina^  do  insino  a 
todas  as  classes  sociaes.  E  sinto-me  cheio  de  contenta- 
mento, porque  ao  nome  venerando  e  por  todos  os  títulos 
respeitável  de  Castilho  António,  que  em  Portugal  se 
pôs  a  evangelizar  dia  e  noite  em  prA  da  instrucç&o  pú- 
olica,  ostentando-se  como  apóstolo  e  martyr,  como 
licçfto  e  exemplo,  ajunctando  á  palavra  fecunda  e  elo- 
qnente  a  acçfto  magnânima  e  produetora,  vem  hoje 
alliar-se  o  nome  esperançoso,  cheio  de  promessas  eauspi- 
CÍ080  de  muito  futuro,  qual  o  vosso,  cnaro  amigo  e  con- 
frade !  Nfto,  nlo  me  nirto  a  dizeUo,  porque  o  sinto ; 
vosso  talento  e  vossas  obras  em  matéria  de  instrucçfto 
pública  no  Brazil  v&o  levantando  um  ruido  que  ha  de 
crescer  como  crescem  todas  as  sementes,  caídas  em  solo 
affeiçoado  e  orvalhadas  pelo  rocio  da  madrugada. 


r 


t 


226  X.XXV 

Actualmente  as  intelligências  estiolaiD-se  nas  lucta^ 
estéreis  de  politica  meãquaha,  e  os  talentos  perdeiD-se 
como  a  borboleta  de  mil  cô.es,  que  volita,  doideja, 
osciils  DOS  ares  e  vale  apeDa:s  o  pó  auurado  que  espaneja 
das  azas;  mas  o  vosso  talsiito  e  todos  os  vossos  estudos 
de  muito  sabere  iUustraçãa  aão  rutilam  apeuas  um  ins- 
tante como  aquella  «strellinha  que  sarg-e  no  canto  do 
céo  e  se  somo  det^fazendo-se  em  sombras,  nao;  de  si 
acho  eu  confronto  verdadeiro  na  ave,  que  hoje  insaiou 
06  primeiros  voos  para  amanhã  elevar-se  í  altura  das 
nuvens  e  incarar  sobranceira  os  raios  do  sol. 

Parabéns  vos  dou  pela  intelUgência  que  trabalha  e 
pelo  espifito  que  se  cultiva  no  manuzear  e  no  intender 
a  licçao  e  doctrina  de  bons  livros,  oa  melhores  amig-os 
que  conheço,  que  aos  estão  ahi  todos  os  dias  negace- 
andoe  derramando  na  alma  uma  esteira  de  luz,  quês 
mfto  do  tempo  nunca  apag^a.  Agora  permitti  que  entre 
no  assumpto  da  conversação,  que  me  impelle  a  dirigir- 
V03  estas  linhas. 

Ferida  a  ultima  pugna  d'essa  gfuerra  que  o  Império 
travou  nos  serros  e  plainoa  do  Paraguay,  volveram-se 
aa  vistas  do  paíz  para  questões  de  mór  valia,  que  affe- 
ctavam  de  perto  interesses  de  ordem  politica,  económica, 
social,  philosúphica.  A  lei  da  Uberdade  do  ventre,  e  a 
reforma  judiciária,  realizadas  pelo  partido  constitu- 
cional, eram  necessidades  impresciudiveis  do  paiz  :  mas 
outra  ha,  que  eslá  ahi  supplicando  o  auxilio  de  todas  as 
intelligências,  o  concurso  de  tod^s  as  forças,  e  a  activi- 
dade de.  todas  as  faculdados,  o^  estudos  de  toijoa  oa 
cidadãos,  e  o  pairiotismo  de  toi'.>sque  amam  terra  tao 
rica  e  fadada  a  preincher  deitiuos  tnormes.  A  inu- 
trucçao  piiblíca,  mais  que  qualquer  outra,  é  a  reforma 
capital,  o  poncto  de  purtida  de  iodas  as  reformas  úteis, 
progressivas,  civilizadoras. 

Nao  d  o  paiz  corAdo  por  immensa  rede  de  estrad&s 
de  ferro, oem  de  fio  eléctrico  ;  nao  e  o  palz  inself-govem- 
ment,  do  auffrágio  universal,  dos  plebiscitos,  e  dos 
meolings,  o  mais  aJeantado  >6  por  isso,  o  mais  liberal  e 
o  mais  progressista.  Pura  qu>'  um  povo  adquira  foros, 
cumpre  que  sejn  illuslrado  ■  e  o  confrade  e  amigo  Babe 
que  era  trevas  uHo  ha  inie  idei^-se  de  immunidades  e 
prerogativas  de  cidadão  e  hunitíin  livre. 

Estas  verdades  esiao  na  inentc  de  tdos,  e  é  sem  dd- 
vida  por  isso  que  em  todos  fh  ângulos  do  império  se  le- 
rsDta  a  escbola,  como  outr'ora  se  erguia  a  cathedral. 


XXXV  »  227 

A  eschola  hoje  é  o  logar  aprazado  do  presente  ;  d'ella 
partem  as  caravanas,  em  busca  de  melhores  tempos. 

A  vós,  um  dos  mais  estrénuos propugnadores  do  in.  ino 
popular,  cabem-Yos  parabéns  pela  eloquente  defesa  que 
ides  fazendo  da  causa  do  povo.  Emquaato  falsos  após- 
tolos levantam  tribunas,  d'onde  deixam  cair  invenenadas 
theorias  de  republicanismo  e  democracia,  emquanto  se 
armam  até  os  dentes  para  derrubar  a  monarchia  e  o 
altar,  a  constituição  e  os  bons  costumes,  summariando 
já  o  inventArio  da  djnastia,  vós  pregais  a  instrucç&o, 
a  necessidade  do  insino,  o  direito  que  o  povo  tem  de 
Bshet  ler  e  escrever,  e  o  dever  que  tem  o  Estado  de  in^ 
sinar  e  disseminar  nas  cidades,  nos  municípios,  nas 
villas,  nos  povoados,  escholas  e  mais  escholas,  escholas 
e  muitas  e^icholas.  Que  parallelo  entre  elles  e  vós  ?  EUes 
que  falam  na  liberdade  dos  Estados  Unidos,  e  vós  que, 
modesto,  sem  ruido,  sem  apparato,  transformais  som- 
bras em  luz,  desertos  em  cidades ! 

Mas,  que  fiquem  em  paz  esses  devaneadores,  que  se 
gritam  é  porque  ainda  as  massas  populares  se  n&o  bap- 
tizaram todas  nas  &guas  lustraes  do  Jordão  da  instrucção, 
Iue  as  ha  de  transformar  em  advogados  de  seos  próprios 
ireitos  e  prerogativas. 

Na  sessSU)  do  anno  atrazado^  apresentastes  na  Assem- 
bléa  Provincial  do  Rio  de  Janeiro  um  projecto  de  ins- 
trucção  primária,  obrigatória,  fundamentando-o  com  um 
discurso,  em  estylo  nobre  e  cheio,  que  é  por  sem  dúvida 
um  prodi$2:io  de  hermenêutica  e  eloquência.  A  nomea- 
ção que  de  vós  fez  o  Governo  Imperial  para  Presidente 
de  Sergipe,  distinguindo  em  tao  verdes  annos  vossos 
talentos  e  méritos,  levou-vos  para  uovu  terreno,  onde 
devia  levantar-sea  vossa  estrella,  esplendente  de  irra- 
diação. 

A  vossa  bella  administração  abriíi-se  fle-de  logo,  de 
m')lo  descommunal,  assignalanJojse  por  um  acto,  que 
ha  de  ser  sempre  memorado  nas  páginas  >\'i  história  de 
Siirgipe,  que* vem  a  ser  i  instituiçílj  d«-  um  ciirso  de 
auias  nocturnas f  tanto  de  instrucçao  jirun  iria,  como  de 
innrucç&o  secundária.  Este  gt^nero^o  pt^ns  imento  rea- 
lizoa-se  de  modo  digno  de  encómios,  nlo  só  para  quem 
o  cjncebôu  e  o  pôs  por  obra,  como  para  a  |ji*ovincia  de 
Sergipe.  A  imprensa  do  Império  di  *o  jikí  t«scrangeiros 
e  nacionaes,  professores  e  pessoas  hIóu^ms  «1'^  character 
respeitável,  e  lidas  em  matéria  de  iusiio..**  o  rereceram — 
piHi  leccionarem  gratuitamente  a  todos  ^titintos  se  ma 


228  XXXV 

tricaltussem  no  curso  nocturno,  Nfto  pái^  ahi  a  minha 
admiraç&o,  scei  mesmo  que  inaugui^astés  o  ciirso  com 
subido  número  de  matrículas  e  que  fostes  alvò  de  uma 
das  mais  solemnes  e  estrondosas  manifestações  po{)o- 
lares.  O  povo  é  sempre  grato :  aquelles  operários  rudes 
e  honestos,  aquelles  homens  do  trabalho  manual ,  aquel- 
les  artífices  e  obreiros  que  foram  ao  palftcio  saudar- vos 
sabiam  que  o  curso  nocturno  rasgava  diante  d^elles  ho- 
rizonte, que  seos  olhos  ainda  n&o  podiam  medir^  porque 
até  então  andavam  perdidos  em  trevas. 

Transporto  aqui  para  esta  carta  alguns  trechds  da 
manifestação  popular,  no  meio  da  qual  o  Jornal  So  Ara- 
caju  dá  como  gemmas  de  inestimável  preço  as  palavras 
elocj^uentes  com  que  agradecestes  tao  honrosa  e  nobi* 
lissima  festa. 

c(  Derrame-se  pois,  diz  a  fnamfestttíãopoputar^  a  xúb- 
truoç&o  a  <c  laicos  jorros  sobre  a  calaça  do  povo,  » 
e  elle,  banhado  'nesse  novo  Jordso,  bemdirá  a  mSlo 
quslhe  prodigalizou  a  agualuertit^l  doip6fí:$áhiêilto. 

a  Instruir,  instrtfir  muito  e  iuãrtrtiir  ^mpi^e :  tal  disve 
de  ser  o  esforço  de  todo  o  governo  livte  e  píatemaL 

«  Felizmente,  trao  tem  sido  V.  Ex.  surdo  e  iihpAssi- 
vel  a  esse  grande  reclamo  da  civilii^ftò  é  doa  áeòs 
governados,  mas  apóatolo  da  gi^ande  causa,  dedicado 
administrador  de  um  povo  digno  de  altos  deatíáds : 
illustrado,  tacteando-lhe  o  pulso  setitindò-lhe  'a  f&Mte 
de  conhecimentos  que  o  devora,  acAba  de  concedér-lhe 
o  refrigerante  que,  extinguindo-lhe  a  idBicçao,  êm  èeo 
lugar  geráta  o  gõso. 

«  Sim,  Exm.  Sr.,  já  n&o  sso  prt)btema  as  Vantagens 
do  Curso  Nocturno — em  bom  dia  imaginado  e  pMo  ém 
prática  por  V.  Efa.  » 

«  S.  Exa.  o  Sr.  Dr.  Cunha  Leitão  respondeu  a  essas 
manifestações  com  um  brilhante  e  eloquentisaimo  im- 
proviso, em  cujo  com||p>  entre  ^pplausos,  disâe  S*  Eta.: 

«  líeos  senhores,  as  vossas  maniféstaçfiíes  pinhoram  o 
meo  reconhecimento.  A  vida  política  é  toda  çhtfa 
de  flores  e  espinhos.  Agradeço- vos  as  floras  qoe  faojé 
me  .trazeis.  A  maior  satisfacÇ&o  do  homem  piiblico 
está  na  consciência  de  haver  feito  algum  beneficio  em 
favor  do  povo ;  isso  que  hoje  me  vindes  dizer,  pro- 
clamando como  um  benefido  a  creaçAo  das  aulas  noc- 
turnas, enche  a  minha  alma  de  júbilo,  satitfaz  as 
minhas  aspirações  de  administrador.  » 

N&o  parastes  }K>rèm  em  meio  do  caminho :  o  i^ano  de 


XXXV  229 

inatrucç&o  que  queríeis  desinvolver  era  bem  combinado 
e  matbeiaaticamepte  infallivel  no^  resultados .  Apte  o 
curso  nocturno^  creastes  as  conferências  populaces,  con- 
vidando por  charta  ao  Director  da  lustrucçao  Pública  de 
Seiígipe  para  inicial«as.  Permitti  que  me  detenha,  por 
instantes  na  conversaçAo  que  levo  inceptada  desde  o 
principio  e  me  aventure  em  breyes  e  ligeiras  coosiden^- 
çOes ,  mas  por  n4o  fatigar-vos,  peço  licença  para  resQc- 
var  para  outra  missiva  e^s^outras  considerações. 

CiCBRo.     (Continua). 

OBRAS  DE  J.  DE  ALENCABr^A  IRACEMA. 

VIII. 

lUustre  e  docto  escriptor :  Parece-me  haver  provado, 
de  modo  irrecusável,  carecer  a  Iracema  do  vigor  e  bri- 
lho, que  a  genuína  interpretação  da  história  attribúe  & 
poesia  indígena  brazília. 

Provei,  cotejando  capítulos  inteiros  ds^  obra  de  J.  de 
Alencar,  com  extractos  dos  nossos  nrimeirts  modelos, 
que  essa  falta  se  lhe  nota,  até  quanao  menos  o  fora  de 
esperar,  isto  é  quando  se  tracta  das  próprias  guerras — 
foco  principal,  senfto  único,  das  paixões  doesse  povo.  E 
como  nao  havia  de  ser  assim,  se  isso  mesmo  introu  nos 
planos  do  Sr.  Alencar  —  assignalar  eçsa  poesia, — obra 
sua— pelo  character  que  lhe  dí^  em  todas  as  condições, 
circumstãncias  e  assumptos  da  vida  sielvagem  ?  Fi^Ui^s 
illusfto,  que  só  o  mais  desregrado  e  bi^lõfo  orgulho 
explica. 

Eis  o  que  incontro  n'um  historiador : 

c(  Tudo  nos  Tupys  (os  índios  que  figuram  na  Iracema 
sfto  todos  doesta  raça)  respirava  guerra :  o  nascimento, 
a  educaç&o,  o  casamento  e  a  morte,  os  seos  hábitos,  i^ 
soas  idéas  e  a  sua  religião.  Se  a  in&e  chorava  com  as 
dores  da  maternidade,  aquellas  l^rymas  podiam  cair 
sobre  o  coraç&o  do  menino  e  tornal-o  covarde :  convinha' 
portanto  mactal-o.  (Laet,  Ind.  Occ,  L.  17,  cap.  15.) 

«  Apenas  nascidos,  eram  pintados  com  as  cores  d^ 
guerra,  o  urucú  e  o  genipapo,  como  se  o  negro  e  o  ver- 
melho d^aquellas  tinctas  symbolizassem  o  sangue  e  o 
lucto ;  a  seo  lado  depositavam  um  arco  e  frechas,  que 
os  accompanhariam  meninos,  jovens,  adultos,  guerrei- 
ros, e  depois  de  velhos,  e  depois  de  mortos. 

<c  Apenas  saldos  da  infância,  um  baptismo  de  sangue 
os  aguardava ;  furavam-lhes  os  l&bios  e  os  lóbulos  das 


230  XXXV 

I 

orelhas,  e  davam-lhes  um  nome  que  com  aquella  pro- 
vança  mereciam  [Belation  du  voyage  de  Roulox  Baro^ 
Trad.  de  Morau,  pag.  233.) 

«  Cresciam  no  meio  de  exercícios  physicos  que  Ihea 
desinvolviam  todas  as  forças  do  corpo ;  tomavam-se 
homens  no  meio  de  fadigas,  e  só  eram  recebidos  guer- 
reiros á  força  de  martyríos.  Para  o  casamento  era  pre- 
ciso conquistar  uma  mulher,  e  fazer  um  prisioneiro,  ou 
levar  a  palma  aos  outros  em  força  e  agilidade  ;  na  morte 
só  os  grandes  iriam  para  além  das  altaa  montanhaSt 
onde  os  seos  maiores  amigos  e  parentes  os  esperavam 
na  deliciosa  beatitude  do  ócio  entremeado  dos  prazeres 
da  caça  e  da  pesca. 

«  Um  cântico  .  de  guerra  os  accompanhava  do  berço  & 
sepultura,  e  fabricavam  as  suas  armas  ao  som  de  canti* 
gas  que  narravam  os  aggravos  recebidos  dos  seos  em 
tempos  anteriores,  e  como  todos  aquelles  que  prezam  em 
primeiro  logar  as  forças  physicas  e  a  coragem.»  G.(Dias, 
Obr.  PosL,  vol.  VII,  pag.  204  e  205). 

Ora,  se  «  entre  os  Tupys  era  tudo  poesia  )»  e  se,  por 
outro  lado,  a  tudo  'nelles  respirava  guerra  »  como  con- 
ceber-se  que  pretenda  realizar  o  legitimo  tvno  orna 
poesia  que,  além  de  forçada,  é  imbellc  c  molieirona, 
qual  a  aa  IratAna^i ! 

Porém  nao  é  só  'nisso  que  o  auctor  tracta  de  resto,sem 
auctoridade  nem  razão,  a  história.  Adoptado  o  dissol- 
vente systema  de  demolir  ou  innovar  quand  méme^  leva 
j^eante  o  sacrilégio  contra  o  legado  que  03  tempos  nos 
transmittiram,  nSo  para  que  o  proran&ssemos,  senfto 
para  que  lhe  rendêssemos  a  veneraç&o,  legitimamente 
devida  ks  relíquias  augustas  do  ingenho  e  da  observa- 
ção ;  n&o  para  que  apagássemos  a  lâmpada,  sen&o  para 
que  nos  ella  servisse  de  pharol,  tanto  no  presente  como 
nas  edades  porvindoiyas. 

Mas  o  que  queres,  meo  amigo  ?  Se  o  Sr.  Alencar  in* 
tende,  por  ser  quem  é,  que  em  tudo  tem  carta  branca 

para  devaneiar Se  até  na  jurisprudência  criminal,de 

natureza  puramente  positiva — (stricti  júris — )  tem  ellaa 
singular  pachorra  de  deduzir,  do  silêncio  da  lei,  pena 
de  prisão...  i  Já  viste  espirito  mais  liberal  ed^nulo? 
Ha  de  ser  difficil. 

Ld-se  na  Iracema^  pag.  5. 

«c  Ergue  a  virgem  os  olhos,  que  o  sol  n&o  deslumbra ; 
sua  vista  perturba-se.  Deante  d*ella,  e  todo  a  contem- 
içlal-o,  está  um  guerreiro  estranho,  etc.  (E'  Martim)... 


XXXV  231 


Foi  rápido,  como  o  olhar  o  gesto  de  Iracema.  A  flecha, 
embebida  no  a^cOy  partiu,  d 

Lê-se  na  pag.  27  : 

<c  A  virgem  retrabiu  d'um  salto  o  avanço,  e  vibrou 
o  arco.  » 

Lê-se  na  pag.  45  : 

«  A  virgem,  avistando  a  figura  sinistra  de  Irapuam, 
saltou  sobre  o  arco,  etc.  » 

Lê-se  na  pag.  85 : 

a  ...  O  cnristao  defende-se  apenas  ;  mas  a  setta  em* 
bebida  no  arco  da  esposa,  etc.  » 

Esse  constante  uso  que  faz  a  índia  das  armas  guer- 
reiras é  desmentido  pela  história.  Só  entre  os  Tapuyas, 
mais  embrutecidos  e  bárbaros,  se  permittia  ás  mulheres 
usal-as.  Entre  os  Tupys^  porém,  <x  ciosos  da  sua  digni- 
dade »,  ás  mulheres  nao  era  licito  trazerem  armas;  nEo 
caçavam  e  muito  menos  pelejavam.  O  Sr.  Alencar 
ignora  isso?  Nso  ignora,  mas  nfio  acceita,  está  acabado. 

Lô-se  na  pag.  24 : 

«c  Iracema  sentiu  que  sua  alma  se  escapava  para  em- 
beber-se  no  ósculo  i^rdente.  » 

E  na  pag.  53 : 

a  Iracema  tomou  a  mSU)  do  guerreiro  branco  e  beijoii^a.i> 

Recorrendo-se  ao  Glossário  do  Dr.  Martins,  incontra-se 
com  effeito  o  yerbo  tupico  pUer  (ou  pêUra,  segundo  o 
muito  accreditado  Vocabulário  do  Padre  M.  J.  S.,  lente 
de  Língua  Geral  no  Seminário  Episcopal  do  Pará)  com 
a  accepção  de  —  beijar.  Esta  accepçSo  é,  porém,  evi- 
dentemente figurada,  ou  adoptada  na  carência  do  termo 
primitivo  ;  a  própria  é  chupar,  sorver,  vindo  de  pHêma 
ou  petu/m  ou  pitum,  tabaco,  fumo,  como  se  dicessem  — 
sorver,  aspirar  a  fumaça. 

Isto  me  confirma  a  crença  de  que,  no  puro  estado  sel- 
vagem, 08  nossos  índios  n&o  conheciam  o  beijo,  e  que 
este  lhes  foi  transportado  e  insim^o  pelos  colonizadores; 
muito  menos  como  signal  de  reconhecimento,  digo  de 
gratidão,  qual  o  emprega  o  auctor  na  segunda  das  pas- 
sagens citadas.  «O  oeijo — diz-nos  uma  grande  auctori- 
dade  no  assumpto —  se  nos  appresenta  como  a  express&o 
natural  da  affeiç&o  ;  todavia  elle  era  inteiramente  des- 
conhecido dos  habitantes  do  Taití,  dos  Neo-Zelandezes 
(D'Urville,  vol.  II,  pag.  561),  dos  Papuás  (Freycinet, 
Yol.  I,  pag.  56),   dos  aborígenes  da  Austrália,  dos  Es- 

Suimaus  (  Journal  de  Lyon,  pag.   353.) ))  E  porque  n&o 
OH  selvagens  do  Brazil  ? 


232 

Lê-se  na  pag.  79 : 

«  A  virgem  pendeu  a  fronte;  velando-se  com  as  longva 
tranças....  recolheu  em  seo  pudor.» 

Ena  pag.  70 : 

«  Quando  veiu  a  manhan,  ainda  achou  Iracema  alli 
debruçada....  Em  seo  lindo  semblante  accendia  o  pejo 
vivos  rtJ)ores  etc.  » 

Rubor,  pôjo  ?  Têl-os-hiam  acaso  ? 

'Numa  sociedade,  em  que  os  instinctos  e  sentimentoB 
da  honestidade  feminil  se  gastavam  desde  os  mais  verdes 
annos,  ao  attrito  e  ao  espectáculo  permanente  da  vida 
licenciosa,  que  esgotava  toda  a  sorte  de  abominações  e 
turpitudes,  poder-se-hia  levar  à  puberdade  o  que  só  a 
recato  alimenta  e  guarda  ?  Por  outra  :  podiam  elles  ter 
o  que  nSLo  tinham  por  essência  da  sua  própria  sociedade? 
G.  Dias,  de  todos  os  historiadores  de  índios  o  que  mais  os 
favorece,  e  ameniza  a  sua  rudeza  e  fragilidades,  diz  (e 
é  sabido)  que  a  as  mulheres  em  splt^iras.se  prostituiam 
fddlmente.  »  Fala-nos  elle  —  é  verdade  —  de  um  cha- 
mado pudor  ;  mas  em  que  consistia  este  1  Eis  o  que  refere 
o  illustre  escriptor :  dO  seo  pudor  (falando  daa  mulheres) 
revelava-se  na  honestidade  dos  gestos  e  maneiras^  e  no 
mai5  consistia  em  aao  mostrarem  nuuca  signaes  de.... 
que,  ou  n&o  tinham  pelo  frequente  uso  de  banlioa,  etc.» 

N&o  se  vê  que  aqui  o  pudor,  esboçado  com  cores  tao 
vagas  e  indistinctas,  parece  antes  generosa  concessão  do 
poeta? 

Mas  observa  o  Sr.  Alencar  na  sua  carta  final :  «  O 
estudo  da  língua  indígena,  é  o  melhor  critério  para  a 
nacionalidade  da  litteratura.  Elle  nos  dá  nao  só  o  ver- 
dadeiro estylo,  como  as  imagens  poéticas  do  selvagem, 
os  modos  do  seo  pensamento,  as  tendências  do  seo  espi- 
rito, e  até  as  menores  particularidades  da  sua  vida.» 

Entre  parêntheses :  esta  idéa  não  é  do  Sr.  Alencar, 
bem  que  só  elle  lhe  haja  dado  tamanha  latitude.  Hum- 
boldt,  que  o  Sr.  Alen^r  nfto  quiz  citar,  sem  dúvida  por 
nao  conhecer  auctoridade  acima  de  si,  nem  mesmo 
Humboldt  (que  loucura!)  dice:  «(Creio  que  se  fòssem 
bem  estudados  os  idiomas  dos  selvagens,  açhar-se-hiam 
nelles  mais  riqueza,  e  gradações  mais  delicadas,  do  que 
se  devera  esperar  do  estado  inculto  dos  que  falavam.» 
D'Orbígny  abunda  na  mesma  opiní&o,  que  é  commum  a 
muitos  outros  historiadores.  Caberiam  aqui  outras  or- 
dens de  considerações  sobre  alguns  poactos  mais  da  carto 
do  Sr.  Alencar,   que  todavia  nos  reservamos  para  ptor» 


XXXV  233 

duzir quaado  tractarmos  especialiueate  da  reftírída carta, 
por  assim  o  acconselhar  a  melhor  distribuição  daan&lyse. 

Abro  o  Glossário  do  Dr.  Martius,  e  iacontro  com  effeito 
o  vocábulo  pouçú^  trazeado  a  seguinte  sigaificaç&o  : 
respeitar  com  alg^m  pejo,  pejo  ;  e  esfoutro —  poçúçabUf 
naturalmente  derivado  do  primeiro,  com  a  significação 
de  —  acatamento.  Â'  excepção  d*estes  dous  vocábulos, 
nenhum  outro  ha,  que  eu  saiba,  da  língua  geral,  expri^ 
mindo  a  idéa  do  attributo  moral. 

Mas  pergunta-se  :  pelo  simples  facto  de  virem  con- 
signados ahi  estes  termos,  devem  ser  elles  recebidos  sem 
quarentena  ¥  Ninguém  dirá  que  sim,  porque  ahi  lambem 
vêm  vocábulos  evidentemente  intercalados  na  língua  dos 
selvagens  pelo  tracto  d'estes  com  os  europêos  ;  por  exem- 
plo :  coaracyrangàbay  relógio  de  sol,  coatiçàra,  escrivão, 
ifniràrerecoáray  meirinho,  imirarereoçú,  ouvidor,  e  mui- 
tos outros.    Logo,  cumpre  fazer  a  devida  digest&o. 

Primeiramente,  a  nossa  razão  indaga  se  a  idéa  expressa 
repugnava,  ou,  se,  pelo  contrário,  era  comoativel  com  o 
estado  moral  da  sociedade  dos  Íncolas  primevos.  Com 
bons  argumentos  ninguém  dirá  que  tal  idéa  o  era« 

Em  segundo  logar,  sendo  assim,  somos  inclinados  a 
presumir  que  os  vocábulos  foram,  como  tantos  outros, 
introduzidos  pelos  colonos  estrangeiros.  Além  dos  mo- 
tivos já  expendidos,  fortalecem-me  a  crença  de  serem 
esse^  vocábulos  oriundos  da  necessidade  de  exprimir 
idéas  adventícias,  estas  duas  considerações :  1*  o  dar  o 
Dr.  Martius  o  termo  poUj;A  na  qualidade  de  duvidoso  ou 
incerto,  perguntando  se  será  portuguez  ;  2*  o  vir  este 
termo  (somente  escripto  deste  modo  —  possa)  no  Voca- 
bulário já  referido,  com  as  accepções  de  —  respeitar, 
ter  respeito.  Ora,  respeito  não  é  o  mesmo  que  pejo  ;  e  a 
idéa  de  respeito  não  só  não  repugna,  como  a  outra,  se 
não  que  é  toda  conforme  com  qualquer  sociedade  bárbara. 
Quanto  a  mim,  pois,  é  manifestamente  preferível  a 
accepção  trazida  pelo  Vocabulário,' obra  de  auctor  na- 
cional, mais  no  caso  por  isso  de  ter  estudado  melhor  a 
língua ! 

Mas  diz  o  Sr.  Alencar  que  «c  os  diccionáríos  são  im- 
perfeitos e  espúrios  »  (a  idéa  não  é  d'elle,  como  pro- 
varemos opportunamente.)  Quem  nos  dará,  pois,  a 
âoluçao  do  problema'?  O  Sr.  Alencar  não  nos  insina  o 
meio  de  sairmos  doesta  difficuldade,  mas  insinam-nol-o 
a  razão  e  o  bom  seus  d.  Voltemo-nos  para  aquelles,  que 
têm  estudado  as  raças  selvagens  no  meio  d^ellas ;  e  os 


234  XXXV 

seos  estudos  nos  servir&o  de  guia  ou  de  phaual  'neste 
oceano  de  dúvidas  e  incertezas.  Mi  nait,  nas  suas  R&- 
cherches  et  aventures  chez  les  insulaires  des  Andamanf  diz 
que  estes  selvagens  (e  s&o  selvagens  modernos)  sfto 
«  destituídos  de  todo  sentimento  de  pudor^  e  muitos 
dos  seos  hábitos  assimilham-^e  aos  do  bruto.  r>  O  capit&o- 
Cook  em  sua  Voyage  au  pôle  sud  diz  que  os  habitantes 
do  Taiti  s&o  absolutamente  carecedores  de  toda  idéa  de 
decência^  ou  antes  de  indecencia,  »  a  Sem  dúvida  —  ao- 
crescenta  Lubbock,  que  cita  Cook— isto  provinha  em 

Sarte  de  serem  as  suas  habitações  abertas,  e  nSo  divi- 
idas  em  compartimentos  separados  »  (como  eram  as 
dos  nossos  índios).  Gabriel  Soares  no  seo  Rcteiro  diz: 
«  Como  os  pães  e  as  mães  vêm  o^  filhos  com  meneios 
para  conhecer  mulher^  elles  lh*a  buscam^  e  os  Insinam 
como  a  saber&o  servir :  as  fômeas  muito  meninas^  es* 
peram  o  macho,  etc.  »  'Neste  sentido  haveria  innúm&- 
ras  citações  que  fazer,  cada  qual  mais  auetorizada. 
Onde,  pois,  a  idéa  de  pudor?  e,  se  a  n&o  havia  nem 
*num  nem  'noutro  sexo,  como  existiria  o  termo,  senão 
depois  do  tracto  com  os  europêos  ? 

O  Sr.  Alencar  dice  que  o  pejo  accendeu  vivos  rubores 
na  Iracema.  Como  rubores?  N&o  se  incontra  'nesses 
mesmos  espúrios  diccionários  termo  que  signifique  — 
corar.  No  Vocabulário  açha-se  o  verbo  puçanú  com 
esta  accepç&o,  mas  é  erro,  por  —  curar.  Tanto  é  erro, 
que  no  Glossário  vem  os  termos  poçanoug  e  poçanga^  o 

Srimeiro  exprimindo — curar,  e  o  segundo — medicina, 
pix  e  Martins  asseguram  que  os  nossos  Índios  «  nfto 
sabiam  o  que  era  corar,  e  q^ue  somente  depois  de  longas 
relações  com  os  europêos  foi  que  a  cdr  se  tomou — entre 
elles  o  indicio  de  uma  commoç&o  da  alma.  »  [Reise  in 
Brazilien,  vol  1.  pag.  376.) 

No  diccionário  da  língua  tupy — austral,  incontra-se  o 
Tocábulo — corar ^  mopiranyapó  (fazer  vermelho).  Mas, 
além  de  se  presumir  importado,  como  se  demonstrou, 
accresce  aue  n&o  era  esta  língua  a  que  se  falava  entre 
os  ndios  ao  Ceará. 

Devo  declarar,  meo  amigo,  que,  se  desço  a  taes  mi- 
nudências,  que  talvez  pareçam  exaggerado  rigor,  e  que 
eu  de  certo  n&o  teria  sen&o  para  o  chefe  apregoado  e  ae- 
cantado  de  uma  litteratura^  é  porquê  elle  diz  que  os  seus 
selvagens  tem  a  «t  rudez  ingénua  de  pensamento  e  ex-- 
pressão,  que  devia  ser  a  linguagem  dos  indígenas,  xr 


XXXV  23& 

Está  inganado ;  n&o  a  tem  tal,  n&o  só  no  que  fica  dicto, 
como  também  no  que  a  seo  tempo  se  dirá. 

Lê-se  na  pag.  31 : 

(c  —  Teo  hóspede  fica,  virgem  dos  olhos  negros :  elle 
fica  para  ver  abrir  em  tuas  faces  a  âdr  da  alegria,  e  para 
colher,  como  a  abelha,  o  mel  de  teos  lábios. 

<(  Iracema  soltou-se  dos  braços  do  mancebo,  o  olhou-o 
com  tristeza : 

c(  —  Guerreiro  branco  I  Iracema  é  filha  do  Ptigé^  e 
guarda  o  segredo  da  jurema.  O  guerreiro,  que  possuísse 
a  virgem  de  Tupan  morreria. 

Martim  toma  a  si  e  responde : 

«  —  Os  guerreiros  de  meo  sangue  trazem  a  morte 
comsigo,  filha  dos  Tabajaras.  N&o  a  temem  para  si, 
n&o  a  poupam  para  o  ennemig^.  Mas  nunca  fora  do 
combate  éíi^  deixaram  aberto  o  camocin  da  virgem.  x> 

Dize-me  uma  cousa :  se  tu  n&o  soubesses  o  que  em 
língua  geral  significa — camocin^  depois  d'aquelle  introilo 
do  diálogo,  que  idéa  ficarias  fazendo  d'esse  camocifi 
aberto  da  virgem  ? 

E  a  pia  leitora  como  n&o  coraria  até  que  verificasse  o 
sentido  do  vocábulo  túpico  ? 

Estou  fatigado.  Continuarei  amanh&. 

Teo  Teal  amigo  e  respeitoso  admirador 

Sbmpbónio. 


DE  CINCINNATO  A  SEMPRONIO. 

Rio   10  Janeiro  1872. 

Amigo 

Prosigamos  no  estudo  do  !•.  volume  do  Til,  que  é  a 
parte  doeste  conto  de  carochinha  que  perpassei  pelos 
olhos.  Por  tal  arte  pullulam  vegetações  frondosas 
doeste  ubérrimo  solo,  que  'nelle  acharia  um  Maury  ma- 
téria para  nos  patentear  todos  o^  recursos  da  humana 
eloquência. 

Travámos  conhecimento  com  a  ella  d'elle  (e  de  quan- 
tos a  quizerem).  Já  sabes  uma  porç&o  dos  characte- 
rísticos,  entVe  os  quaes  sobresai  o  de  uma  vis  saltitan- 
dí,  que  induz  a  pensar  ter  a  subjeita  molas  nas  pernas, 

âue  a  faziam  pular  destemperadamente.  Fr.  Jo&o  dos 
anctos,  na  sua  Ethiopia^  p.  o9,  dá  noticia  de  um  peixe 
do  rio  de  Sofala,  a  que  chamam  o  saltão^  por  ser  peor 
ue  uma  pulga,  nos  pinotes  que  está  sempre  dando. 
!u  suspeitaria  que  fosse  avô  da  menina,  se  nos  n&o  di- 
cessem  que  elle  tem  a  forma  de  uma  tainha  ;  mas  uma 


i 


236 

t^aíoh.a  uSlo  é  capaz  de  gerar  formas  de  pubescencia, 
e  também  não  consta  que  o  salt&o  da  Sofala  tenba  alma 
de  nympha  embrulhada  em  argilla  de  chrysàlida. 

— Or»  agora  a  moça^  lida.no  seo  Molière(Du  cõté  de  la 
barbe  eat  la  toute-puissance.)  era  meio  homem,  e  ás 
vezes  homem  e  meio  !  Julgávamos  nós  que  bastava 
ser  mulher  para  instinctivamente  se  rodear  um.  ente 
de  certa  atmosphera  de  delicadeza ;  mas  cá  esta  pim- 

Sopa  era  mal-creada  como  4  petroleiras  ou  como  7 
eusas  da  Raz&o  todas  junctas.  Eis-aqui  por  exemplo, 
como  ella  faz  trombas  ao  namorado,  logo  a  primeira 
vez  que  abre  o  bico,  que  é  quando  o  parvo  está  fitando 
os  olhos  'nella ;  copio  tintim  por  tintim  : 

— (íQue  mô  estd  olhando  ahi?  Nunca  me  viu?  Ex^ 
clamoUy  travada  sempre  da  petulância  que  animava4he 
(leia-se  :  que  lhe  ammava)  todos  os  movitnentos  )» 

Já  sabem  que  o  auctor  nos  denuncia,  com  o  mais 
apuradQ  gdsto,  com  o  mais  incorrupto  atticismo,  que  a 
sereia  tinha  um  a  bregeiro  olhar ^  o  tregeito  garoto  de  nm 
caipirinha:  era  um  capelinha  de  "nU  peccados;  com.  viva^ 
cidade  de  traquinas j  e  prelençoes  a  rapaz. n  Todas  estas 
elegâncias  leem-se  logo  no  intróito  da  história  .  assim 
como  que  a  capMinha  caprichava  em  destruir  um  vestU 
gio  do  seo  sexo.  »  Que  vestígio  será  *i  Eu  n&o  perce- 
bo bem  9^  destruição,  mas  accredito,  accredito  que  hade 
ter  bem  destruído  tudo. 

Fica  portanto  demonstrado  que  entra  em  scena  uma 
desalmada  virago  ;  e  que  se  Acixilles  se  tivesse  mudado 
de  Scyros  para  a  confluência  do  Atibaia  com  o  Piraci- 
caba, outro  gallo  lhe  cantara.  N&o  curria  perigo  de  de* 
nunciar-so,  quando  escolheu  o  sabre  de  son  père,  porqujs 
isso  nao  delatava  sexos,  e  na  dieta  confluência  achava 
Quem  desbancasse  nao  só  a  Joanna  do  Arco,  a  Padeira 
d' Aljubarrota  e  a  Maria  da  Fonte,  mas  ao  próprio  discí- 
pulo do  centauro.     # 

Quanto  ao  elle,  também  era  digno  de  menç&o: 
tt  Calcava  o  chão  sob  o  grosseiro  sócco  da  bota.  »  Calcar 
debaixo  da  bota,  em  vez  de  calcar  com  a  bota,  já  era 
uma  habilidade  do  heroe;  mas  onde  o  escriptor  me 
corre  a  sapateta  é  quaudo  eji  matéria  de  bota,  bota  os 
bofes  pela  bõcca,  para  nos  convencer  da  sua  sciencia  em 
technologia  sapateiral ;  e  sen&o,  é  vêr  aquella  varie- 
dade de  conhecimentos: — a  alp^goÂas  de  couro  cru  *> 
(as  alpargatas  ou  alparcâs,  que  eu  conheço  nao  sfto  cal- 
çados de  brutamontes/ —  «  grosso^  cothumos  de  couro 


XXXV  23^ 

de  veado,  tfto  altos  que  míiis  pareciam  botas  d — «  ta- 
cão do  cothumo» — «botas  de  bezerro  armadas»  etc.  etc. 

Ora  como  tudo  isto  é  theatral  da  cabeça  até  os  pés, 
bom  é  que  estes  manifestem,  no  calçado,  que  ha  'neste 
conto  matéria  para  rir  e  pranctear :  sócco  e  cothumo. 
Isto  jà  eu  aprendi,  mas  o  que  tu  me  hasde  insinar,  se 
soiibere«(,  é  o  que  significa  sócco  da  bota ;  será  o  mesmo 
que  tac&o  ?  n&o  me  constava. 

Nem  te  dedignes  de  estudar  disciplinas  próprias  das 
lucubraçOes  de  um  ininistro  d'£stado,  visto  como  esta 
especialidade  é  de  mui  antiga  data,  pois  se  affirma  que 
Luiz  XII  chamava  sapateiros  aos  ministros  de  Justiça, 
dizendo  que  a  estendiam  as  cousas,  como  os  sapateiros 
o  couro  com  os  dentes.  »  Podia  aquelle  soberano,  se 
tivesse  lido  um  capitulo  inteiro  a  descrever  um  pin- 
tainho feio  {A  sura)y  e  similhantes  ductilidades  litterÃ- 
rias,  applicar  a  sua  compáraçilo  ào  preclaro  auctor  do 
Til:  sutor  ultra  crepidam. 

— Começa  o  auctor,  descrevendo  uma  rechan,  e  diz: 
— «  Pela  ramagem  das  arvores  pbrcbbia-sb  a  proximi- 
dade de  umíi  maiftancial.  »  Em  que  língua  se  escreveu 
isto  ?  Se  é  em  francez  (com  a  simples  desinência  portu- 
gueza ) ,  entfto  nfto  digo  nada :  os  francezes  tém  o  seo 
apercevoir  significando  começar  a  vôr,  descobrir  de  lon- 

fe»  distinguir,  que  é  a  accépç&o  deste  percebiarsey  que  o 
r.  Alencar  em|$rega  em  muitos  logares;  mas  Suppunha 
eu  que  o  nosso  perecer  n&o  tinha  essa  significação,  como 
a  nfto  tinha  operbipere  dos  latinos:  comprehender^  avisar^ 
receber^  ordenar  j  appardhár-se^  acautelar-se^  isso  tudo 
pôde  dar  o  nosso  perceber  ou  perceber-se^  mas  avistar^  ou 
cousa  que  com  isso  se  pareça,  creio  que  nfto  pôde  sér. 

— Vamos  aprendendo  mais : 

-^  «  Entre  as  trepUaçôes  da  brisa  nas  folhas^  como  um 
tom  opaco  doesse  harpejo  da  solidão^  ouvionse  o  murmure 
soturno  do  Piracicaba.  y>  ^ 

NSo  te  pergunto  se  isto  é  guindada,  ou  se  é  um  d*estes 
effeitos  que  Mme.  de  Staêl  diz  que  nunca  se  acham 

Juando  assim  se  procuram.  O  que,  sim,  peço,  é  que  te 
ignes  traduzir-me  esta  algaravia  em  linguagem  acce^si* 
vel  cá  ás  nossas  ínfimas  posses. — Eu  nunca  vi  este  Sr. 
murmure  ( intenda-se  bem,  em  portuguez );  múrmur^ 
murmúrio  ou  murmuro^  isso  sim. — Denominar  harpejo 
( eu  escrevo  arpejo,  porque  o  italiano,  que  nos  deu  o 
termo,  diz  a'tpeggio  )  ao  som  monótono  de  uma  currente 
d' água,  parece-me  um  símile,  tao  outorgado   pela  arte 


238  XXXV 

musical  como  o  sfio  os  similes  pedidos  ás  scieucia^.  N&o 
ha  arpejo  onde  se  ouve  um  som  único;  para  que  haja 
arpejo  é  mister  que  diversos  tons,  e  pelo  menos  dous, 
se  modulem  r&pida  e  continuamente. — Arpejo  de  solidão j 
nem  anàlyse  comporta. — E  finalmente  pretender  que 
haja  opacidade  ou  transparência  'num  som  ou  'num  tom, 
amguTa-se-me,  que  nao  tem  tom  nem  som. — Nfto  me 
demoro;  tenho  muito  que  andar. 

—  <c  Septe  horas  aa  manhã  haviam  de  ser  » — ^Este 
^rro,  que  o  Sr.  Alencar  perpetra  a  cada  passo,  e  em  que 
tem  por  sócias  todas  as  cusinheiras  da  cidade,  é  formal 
ataque  a  um  dos  mais  sabidos  idiotismos  da  hngua, 
segundo  uns,  ou  a  uma  philosóphica  regra  d'ella,  se- 
gundo se  me  aífigura.Seja  porâni  qualfôr  a  quàlificaçfto, 
recebamos  o  facto,  que  é  diametralmente  opposto  ao 
emprego  que  o  Sr.  Alencar  costuma  dar  á  3.*  pessoa  do 
veroo  haver.  Ouçamos  por  ex.  C&ndido  Lusitano: 

«  Na  concordância  do  verbo  com  o  seo  nominativo, 
temos  um  particular  idiotismo  do  verbo  haver ,  porque 
nas  3."  pessoas  do  número  singuhir  nSlo  concorda  em 
número  com  o  seo  nominativo.  Os  ignorantes,  e  também 
muitos  dos  que  presumem  não  o  ser^  guvernando-se  pelas 
regulares  conjugações  dos  outros  verbos,  teem  por  erro 
crassíssimo  ouvirem  dizer: —  Houve  homens  que  nunca 
haviam  de  ter  nascido,  em  logar  de  houveram  homefisA — 
Havia  muitas  iguarias  no  banquete  em  vez  de  haviam 
iguarias.  Porem  estes  presumidos  s&o  os  que  erram, 
porque  com  tod  )s  os  clássicos  da  nossa  língua  se  prova, 
que  o  estar  este  verbo  no  singular,  e  o  seo  nominativo 
homens  ou  iguarias  no  plural,  é  um  idiotismo  e  gram- 
mática  irregular,  muito  piópria  da  nossa  linguagem.  ^ 

Repetirei  aqui  ser  atteadivel  o  reparo  d*e*te  ôrro,  que 
é  o  C')mmettido  pelo  Sr.  Alencar,  e  ir  eu  maia  longe, 
pois  supponho  nflo  ser  isso  um  idiotismo,  mas  o  bom 
talar  ;  porque  se  ha  homens^  havia  festas,  houve  tempos, 
haverdcasosÁ  fôáseoi^eabiiente  discordâncias  de  número 
enire  siibjeito  e  verbu,  nem  se  deveriam,  nem  se  pode- 
ria n  desculpar:  a  iiliisao  está  em  cai«1ar-se  que  o  verbo 
haoer  si*^nitíca  exustir.  Logo  que  se  advirta  em  que  haver 
é  derivado  do  habere,  e  com  a  mesm;i  significação  de  ter, 
fica  manifesto  que  o  erroneamente  çha  nado  subjeiío  ou 
agente  nao  é senão  complemento  obiectivo  ou  paciente  ; 
e  que  o  agente  ou  sul  jt^ito  real  se  deixou  occuiio,  para 
couforuiar  con  o  uso  recebido.  Assim:  —Ha  homens^ 
completa -se  d*este  modo — O  homem  ha  [tem)  homens. 


XXXV  239 

O  que  estes  modos  de  dizer  são  por  tanto  é  ellípticos  ; 
«  nfto  se  confunda  ellipse  com  idiotismo. 

No  próprio  francez,  tão  naturalizado  por  Sénio,  é  mui 
similhante  o  uso  do  verbo  avoir^  derivado,  como  o 
nosso  haver ^  da  mesma  raíz  latina,  ecom  idântí ca  signi- 
ficação. Enilya  des  hommes  (ha  homens),  o  subjeito  é 
il  (equivalente  de  le  monde) ;  o  complemento  objectivo, 
4es  hommes. 

Desculpa,  se,  uma  ou  outra  vez,  me  vejo  forçado  a 
assumir  apparência  pedagógica;  só  o  faço  quando  as 
phrases  analysadas  não  são  propriedade  exclusiva  do 
escriptor  insigne,  mas  também  usadas  por  outros.  Não 
quer  isto  dizer  que  a  razão  esteja  sempre  pela  minha 
parte:  ego  non  sum  papa.  Em  cada  jcaso  competirá 
sempre  a  ti  e  aos  competentes  dissiparem  os  meos  erros, 
quando  seja  eu  que  'nelles  labore. 

Sigpamos,  como  a  cabrita,  aos  pulos  por  hi  abaixo. 

—  «  O  c^o,  essa  immensa  tela  azul  que  foi  cúpola  de  nm 
berço  (o  da  /uz),  e  serd  mais  tarde  véo  de  um  leito  (o  da 
vida)^  a  alma  só  o  procura^  só  o  contemplay  quando  a  dôr 
a  prostra.  » 

Esta  cousa,  que  não  scei  se  ata  nem  desata,  começa 
por  ser  um  plágio.  Já  outro  collega  coimbrão  (Sr.  An- 
thero  do  Quintal),  tinha  dicto  : 

Oh  f  o  noivado  bárbaro  !  o  noivado 
sublime !  onde  os  céos,  os  céos  ingentes 
serão  leito  de  amor,  tendo  peadentes 
os  astros  por  docel  e  cortinado. 

E  no  Fiat  luxy  diz  também  que  o  velho  Chãos,  o  Oleiro 
do  Infíuíto,  cançou-se  de  amassar  mundos,  e  como  não 
tinha  mais  barro,  esfregou  as  mãos  que  estavam  sujas, 
e  deixou  cair  d'ellas  por  esse  abysmo  alem  um  pó  (  que 
ora  morcego). 

migalhas  dos  banquetes  do  Principio, 
triste  parto  das  sombras,  atirado 
sobre  o  borco  de  luz  do  firmamento, 
que  era    um    filho  ingeitado,    qúe    se  escondia    pela 
sombra  dos  muros  & 

E'  claro  como  um  prego,  ser  um  plágio  coimbrão 
aquelle  bArço  de  luz  e  cortinado  de  leito^  e  mais  claro 
aitiia,  que  d  luz  surgindo  es  «léndída  e  instantânea- 
m^^nte,  ao  simples  seja  I  te\^e  u  n  berço,  que  foi  na  tela 
azul ;  e  que  o  cé)  axul  ha  le  Sv3r  vèo  de  leito  da  vida  ;  e 
quem  nlo  encend-jr  nada,  é  pori^e  é  obtuso. 

E  d'ahi...  talvez  nem  plágio  seja.  Ocárebro-vulcão  do 


240  XXXV 

nosso  romancista  Bra  bem  capaz  de  gerar  coudas  d' 
aquellas,  e  poderá  dizer  dos  collegas  coimbrões  o  ^ue 
em  caso  auálogo  dice  Piron  : 

Lears  écrits  sont  des  vois  qu'ils  nous  ont  fait  d'avanc6. 

Com  o  que  eu  porém  desadoro  é  com  aquella  ca  delia 
d'alma,  que  nunca  se  lembra  de  S.  Bárbara,  senfto  ao 
estampido  dos  trovões  I  Quando  as  cousas  lhe  correm 
bem,  olha  só  para  o  çhao ;  quando  se  lhe  atrapalham, 
levanta  o  lúzio  para  o  ar,  com  risco  de  que  o  céo  lhe 
responda :  <i  Oh  senhora,  deiíte-me  !  quem  lhe  oomca  a 
carne,  que  lhe  rôa  o  osso.» 

Nfto  tenho  mais  tempo  para  estragar,  e  a  minha  lan- 
chara aqui  a  ferro  por  hoje.  E'  desnecessário  currcr 
mais  ;  chi  va  ptano,  t)a  sano;  chi  va  mno^  và  lontano. 

Tudo  isto,  como  as  tuas  profundas  criticas,  hadè  ficar 
sem  resposta,  pois  é  mais  cómmòdo  aos  thuribuláríoa 
incensar  que  redarguir :  pára  isto  é  precido  estudo  (que 
sempre  aborrece),  e  razftò  (qtie  se  nfto  tem);  para 
aquillo,  basta  pulmão  ou  penná  (  dè  qu^  ha  fartura  ). 
Amanha  virfto  esses  célebres  comparsas  &  sua  Hosan- 
futh  Raòba,  &  áua  festa  dos  tabérníU:ulos,  clam&tido  que 
só  Âpollo  é  AjpoUo  e  Alencar  o  seo  propheta;  s&ò  os  só- 
cios de  Uiysses,  mimoseados  por  Circe.  Assiâi  como  o 
abbade  cantar,  hade  o  acólyto  accòmpanhak*. 

Todavia,  sempre  te  duero  dizer  que  o  pimpão,  que 
continuo  a  cohsiderar  digno  int«^rpréte  de  Sénio,  espé- 
cie de  demónio  familiar  de  Sócrates,  salu-se  (mais  uma 
vez,  que  me  conste)  com  outtas  parvòiçadas  qtie  infdn- 
diam  dó,  mas  que  fizeste  bem  em  aespre8ar,como  eu  tam* 
bem  o  fíz.  Trazia  1&  umas  histórias  de  zenitbs,  vulcOes 
etc.  impagáveis,  e  tfem  pretendido  roer-me  os  calcanhar 
res  e  satyrizar-me,  como  se  isto  de  s&tyras  fosse  para 
sátyros  ! 

Nas  f&bulas  de  Es^o,  segundo  leio,  é  célebre  o  ju- 
mento que,  vendo  que  o  senhor  assentado  na  mesa  dava 
boccadishos  a  um  caosito,  que  se  levantava  èm  pé  e  Ihè 
fazia  festa,  imaginou  que  lhe  succederia  o  mesmo  ;  tats 
levantando  as  m9os,  e  atirando  com  ellas  ao  peito  do 
senhor,  deu  com  ellè  e  com  a  cadeira  no  çhao.  Acudi- 
ram os  creados,  e  com  p&os  moeram  ao  asno.  Graças 
asininas  s&o  chamarizes  de  trancas. 

Agora  adeus,  até  quando  o  tempo  me  der  vâo. 

Teo  admirador — CIiícinn^to. 

Typographia  e  lithographia  -IMPARCIAL--  Rua  Sete  de  Seie mbro,  146 


QUESTÕES   DO   DIA 

]Sr.^36 

RIO  DE  JANETEO,  31  DE  JANEIRO  DE  1872. 

Vende-se  em  casa  dos  srs.  E.  &c  H.  La3inmert.~Âgt>stiiiho  de  Freitas  Gn- 
marSes  &c  Comp.,  26,  rua  de  Qeneral  Camará.— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  José  n.  119-  Largo  do  Paoe  n.  C— Preço  300  reis. 
O  r  volume,  com  perto  de  400  páginas— 319000. 

ln.stz*iicçao  Popixlar». 

CARTAS  DE  CÍCERO  ÂO  SR.  DR.  CUNHA  LEITÃO. 

Continuando  o  assumpto  tractado  em  minha  carta  an- 
terior, ponderarei  agora  que  as  conferências  populares 
tSLO  um  pensamento  civilizador,  que  nos  paízes  majis 
prósperos  da  Europa  dao  de  si  aprimorados  fructos.  Vós 

Í)orém,  Sr.,  talhastes  as  conferências  em  Sergipe  com 
eição  de  insino  popular ;  e  sendo  o  primeiro  que  ini- 
ciastes no  paiz  tao  robusta  concepç&o,  apropriastel-a  aos 
costumes,  instituições  e  índole  do  povo.  'Nisto,  alem  de 
muita  sagacidade,  revelastes  talentos  de  estadista  e  admi- 
nistrador. E'  por  isso  que  as  conferências  no  Aracaju 
excitaram  estímulos,  accenderam  brios,  acordaram  intel- 
ligdncias  que  se  perdiam  na  inércia,  e  o  povo  curreu  a 
ouvir  a  palavra  de  oradores,  ainda  moços,  ainda  inexpe- 
rientes, mas  robustecidos  de  fé  e  alimentados  pelo  fogo 
sagrado  do  patriotismo.  Cabem  também  aqui  umas  refle- 
xões sobre  a  charta  que  inderessastes  ao  director  da 
instrucçfto  pública  e  que  tfto  bons  resultados  produziu  : 
é  uma  peça  litterária,  talhada  no  molde  d'aquellas  bel- 
las  epistolas  que  Duruy  sabia  escrever  de  18d7  a  1869, 
quando  dirigia  a  pasta  do  ministério  dos  cultos  e  instruo- 
ç&o  pública  do  segundo  império  francez  ;  além  d*isto  é 
cousa  nova  no  paíz  e  dieta  em  estyk»  terso  e  abundante. 
Continuando  no  poncto,  em  que  alarguei  os  pannos  do 
assumpto,  tenho  a  signifícar-vos  um  pesar,  e  vem  a  ser 
o  de  que  em  todo  o  Brazil  se  nfto  propagasse  o  gosto 
d*aquelle  discursar  ameno,  fácil  e  instructivo  das  con- 
ferências. Entre  nós,  descendentes  dos  latinos,  com  uma 
língua  tfto  opulenta,  seria  isso  facillimo  e  n&o  é  raro 
açharem-se  vocações  decididas  para  a  tribuna  e  talentos 
jà  provados  na  oratória. 

Dejpois  das  conferências,  creastes  nas  cinco  cidades  de 
Sergipe  aulas  públicas  nocturnas,  para  os  adultos,  onde 


242  XXXVI 

elles  fossem  receber  instrucçfto  primária  elementar  gra- 
tuitamente. 

Louvar  mais  essa  nobilíssima  creaçSlo,  seria  repetir 
um  a  um  os  liymnos  que  a  imprensa  do  Brasil  vos  inde- 
reçou.  Cabe-me  porém  fazer  um  reparo :  de  todas  as 
instituições  úteis  e  humanitárias,  que  o  vosso  géuio  fez 
surgir  á  luz,  a  que  mais  me  inçheu  de  enthusiasmo  foi  a 
da  creaçao  de  uma  aula  para  os  presos  da  penitenciária 
do  Aracajá.  A  isto  chamo  eu  guerra  aos  problemas  do 
socialismo^  morte  ás  sombrias  theorias  do  communismo — 
charidade  evangélica,  sancta,  que  só  peitos  christaos 
sabem  sentir  !  E'  semente  atirada  a  um  solo  até  entfto 
subventâneo  e  infecundo  ;  é  orvalho  do  céo  descido  para 
mitigar  a  sede  de  infelizes,  sepultos  nas  masmorras  de 
uma  detenção.  Verdadeira  philosophia,  que  sabe  que 
onde  se  abre  uma  eschola,  se  fecha  um  cárcere  ;  onde 
ha  irradiações,  fogem  as  sombras ! 

A  vossa  presidência  em  Sergipe  foi  curta,  mas  deixou 
muita  luz.  Os  jornaes  do  Norte  e  do  Sul,  e  nomeada- 
mente os  de  Sergipe,  resumiram  em  um  bello  artigo  a 
synopse  brilhante  de  vossa  administração.  Nâo  me  furto 
ao  prazer  de  mais  uma  vez  transcrever  essas  phrases 
que  já  curreram  todo  o  império.  E'  tao  bom  o  mister  da 
imprensa,  quando  edifica ;  é  tao  nobre  recompensar-se  de 
modo  público  os  que  se  afadigam  em  cousas  que  trazem 
bem  para  a  nação  ! 

«  A  administração  do  Sr.  Dr.  Cunha  Leitão  (diz  o 
orgam  sergipano  transcripto  em  outras  provindas)  posto 
que  de  curta  duração,  como  a  passagem  de  um  meteoro, 
deixa  comtudo  traços  luminosos  e  indeléveis,  que  jamais 
serão  obliterados  da  memória  do  povo  sergipense.  » 

Verdades  são  essas  tao  poderosas  que,  ao  sairdes  do 
Aracaju,  recebestes  as  provas  inequívocas  das  sympa* 
thias  d'aquelle  povo  generoso. 

Deixando  a  cadeiíg  de  primeiro  magistrado  de  uma 
província,  viestes  tomar  assento  entre  os  legisladores 
da  província  do  Rio  de  Jai^eiro,  mostrando-vos  desde 
logo  apóstolo  por  excellência  do  insino  popular. 

A  instrucçlo  obrigatória,  com  cujo  projecto  iniciastes 
vossa  vida  pública  no  anuo  anterior,  projecto  que  tanto 
honra  ao  nome  illustre  do  seo  auctor,  como  ás  luzes  da 
Assembléa  que  oapprovou,  foi  o  primeiro  assumpto  que 
mereceu  as  attenções  do  vosso  talento. 

A  instrucçao  obrigatória  tem  sido  ventilada  e  deba- 
tida nos  paizes  mais  adeantados  da  Europa.  Melhores 


XXXVI  243 

que  os  longos  discursos  e  que  os  arrazoados  ,  em 
que  cada  um  mette  maior  número  de  consequências,  s&o 
as  vantagens  que  os  cantOes  da  Sulssa  e  quasi  toda  a 
Állemanha  do  Norte  têm  tirado  de  um  systema  de  insino, 
em  prol  do  qual  militam  publicistas  eminentes  e  libera- 
lissimos,  como  Tocqueville  e  Pelletan.  A  assemblea  le- 
gislativa do  Rio  de  Janeiro,  ouvindo  a  vossa  voz  elo- 
quente na  defesa  de  um  projecto  já  de  si  fecundo,  votou 
por  elle  ;  e  a  imprensa  da  Corte  nao  se  esqueceu  de 
tributar  ao  vosso  nome  os  louvores  mais  espontâneos.  Um 
jornal  inglez,  memorando  este  facto, diz  o  seguinte  : 
c<  The  assemblyof  lhe  Province  o f  Rio  de  Janeiro  has  passed 
a  lato  making  it  obrigatory  on  parents  and  guardians  to 
sendthe  children^  ofeither  sex^  in  their  ctiarge,  to  viiblic  or 
private  schools,  from  lhe  age  ofl  to  14  years.  ChUdren 
for  whom^  ovoing  to  poverty^decent  clothing  cannot  other- 
wise  be  obtained^  are  to  be  clad  at  the  cost  ofthe  provincial 
treoÃwry, 

«  The  autor  ofthe  bil!^  Dr.  António  Cândido  da  Cunha 
Leitão,  deserves  the  highest  praiae  for  a  measure  tohich 
unhappy  experience  has  proved  is  needed  to  overcome  the 
indifference  of  the  poorer  classes  to  the  education  of  their 
children^and  whichhas  been  employed  with  síich  advanta- 
geous  results  in  Prússia^  and  other  states  of  Germany.  Dr, 
Cunha  Leitão^  has  thus  proved  that  he  is  ofthe  stuff  from 
which  genuine  and  practical  refomiers  aremadc^and  it 
would  be  well  for  the  country,  icere  more  ofhis  kind  to  he 
found  in  its  representation,  » 

Após  o  luminoso  projecto  de  iastrucçno  obrigatória, 
necessidade  imprescindível  na  província  do  Rio  de  Ja- 
neiro, por  isso  que, alem  de  ser  gr..taita,  já  se  decretara 
o  insino  livre  ;  apresentastes  o  projí^cto  das  esc/io/íw  pú- 
blicas nocturnas  de  instrucçao  primária  para  OvS  adultos 
do  sexo  masculino,  em  todas  as  cidades  e  víUas  da  pro- 
víncia. A  utilidade  d'essas  iusiituiç^s  de  índole  demo- 
crática, era  que  o  homem,  moco  uu  velho,  nascido  em  o 
fundo  d'ura  sert&o,  ou  em  centro  populoso,  pôde,  nas 
horas  do  descanço,  á  noitinha,  receber  o  alimento  e  a 
lu#  do  espírito,  é  por  sem  dúvitln  manifesta.  As  socie- 
dades litterárias,  os  grémios  políticos,  os  homens  ver- 
dadeiramente patriotas  estão  1»  vantando  escholas.  De- 
pois que  instituístes  o  curso  nocturno  do  Aracaju,  quan- 
tos cursos  e  aulas  nocturnas  n&o  tem  produzido  a 
felicíssima  propaganda  da  disseminação  do  ensino  po- 
pular !    E'  uma  cruzada  sancta,  a  que  se  junctam  todos 


244  XXXVI 

os  talentos,  todas  as  vocações  e  todos  os  espíritos  bem 
intencionados.  Lamento  porém  que  o  município,  o  re- 
presentante fiel  dos  direitos  do  povo,  desde  as  iuctas  da 
edade  média  até  nossos  dias,  nSo  se  tenha  podido  adean- 
tar  etn  reformas  taes.  Que  honra  e  glória  para  as  câ- 
maras municipaes,  se  d'ellas  partisse  a  iniciativa  de 
crear  escholas !  mas  a  decadência  dVstabella  insiituiç&o, 
tfio  mal  approveitada  no  ^aíz,  tem-lhe  tirado  o  cunho 
characteristico  da  sua  autonomia  e  reduzido  à  ultima 
penúria  os  seo9  orçamentos  I  Comprehendeis  que  esfés 
s&o  os  sentimentos  que  nutro  a  favor  de  uma  causa, 
que  não  é  só  de  uma  cidade,  mas  de  um  paiz:  nfto  só  de 
um  paíz,  mas  da  humanidade.  A  causa  da  instrucç&o,8aa 
disseminação,  sua  universalidade,  entram  por  certo  nas 
utopias  dos  philósophos.  Creio  mesmo  que  é  assim  que 
a  humanidade  ha  de  ir  por  deante ;  emquanto  porém  o 
insino  nao  fér  livre,  a  instrucçao  primária  obrigatória,  e 
emquanto  se  nao  multiplicarem  as  bibliothecas>  os  jor- 
naes,  os  livros,  se  nao  estabelecerem  conferências  gra- 
tuitas e  cursos  nocturnos,  nfto  poderá  haver  progresso 
senão  lento,  imperceptível  quasi. 

E  é»  por  sem  dúvida,  louvando-vos  'nestas  ideaa  que 
appresentastes  um  projecto,  creando  bibliothecas  popu- 
lares. Aquillo,  sim,  que  é  trabalhar  e  preparar  o  terreno, 
d'onde  deve  rebentar  a  esplêndida  messe  do  futuro. 
Deixemos  Volney  parado  ante  as  ruínas  de  Palmyra  e 
Troya,  calcando  aos  pés  as  ossadas  descommunaes  de 
cem  cidades  batidas  das  areias  esbrazeadas  do  deserto ; 
deixemol^  lamentar  o  passado  ;  e  sintamos  antes  ale- 
gria com  os  apóstolos  do  progresso,  admirando  o  desiii- 
volvimento  phenomenal  dos  Estados  Unidos,  onde  a  in9- 
tracção  se  áerrama  de  modo  extraordinário :  todos  os 
municípios,  todos  os  homens  ricos  votam  taxas  propor- 
cionaes  e  legam  dotações  enormes  para  museos,  bibliothe- 
cas e  escholas.  Na  4^11emanha,  principalmente  na  Prús- 
sia^ ha  contribuições  directas,  especiaes,  que  são  votadas 
no  reichstagy  e  cumpridas  escrupulosamente.  Mas,  indo- 
lência nossa,  apenas  despontam  os  primeiros  albores  da 
uma  luz  no  horizonte  I  E  será  aurora  ou  crepúsculo  ? 

A  creaçfto  das  biòlioihecctó  popular  es ,  moldada  também 
á  feiç&o  da  índole  do  povo,  vai  ja  excitando  reparo  entre 
nós.  A  imprensa,  que  é  sempre  quem  anda  na  van- 
guarda da  opiniso  nacional  ( íalo-vos  aqui  da  imprensa 
nobre  e  generosa;  da  outra  nao  me  occupo  eu,  que  a^ 
baixo  n&o  volvo  os  o|ihos ) ,  revelou-a  como  utiUssima  ; 


XXXVI  246 

e  não  o  diria  de  outro  modo,  a  menos  que  fechasse  os 
olhos  às  consequências  benéficas  que  o  gosto  das  lettras, 
o  amor  ao  estudo,  produzem  sempre.  Cabe- vos  a  palma 
da  prioridade  de  tao  bom  pensamento,  que  já  o.  tinheis 
manifestado  em  Sergipe,  quando  em  carta  official  ao  Di- 
rector da  Instrucção  Pública  o  convidastes  a  inceptar  a 
série  de  conferéTudas  nocturnas. 

Grande  contentamento  deve  ser  o  vosso, em  bem  servir 
o  paíz  que  vos  viu  nascer.  A  que  maior  glória  poderia 
aspirar  o  vosso  bello  talento  do  que  essa  de,  na  prima- 
vera da  vida,  na  estação  esperançosa  dos  vinte  annos, 
contar  já  tantos  e  tao  assignalados  serviços  ao  paiz  e  á 
causa  do  povo,  inflorar  tão  virentes  louros  na  eorôa 
brilhante  que  ha  de  ser  o  vosso  futuro  ?  A  vossa  glória 
cresce  de  poncto,  quando  vos  cabem  os  títulos  de  terdes 
iniciado  no  Brazil  as  melhores  ideas,  ainda  n&o  cui- 
dadas, sobre  a  instrucção  pública.  São  vossos  foros  em 
Sergipe  o  curso  nocturno^  as  conferências  populares^  cls 
escholoà nocturnas  pa/ra  achUtos  e  a  aula  para  os  presos  do 
Aracaju  ;  no  Rio  de  Janeiro  os  projectos  de  mstrueção 
primária  obrigatória^  aulas  nocturnas  para  adultos,  e 
bibliothecoà populares 

Quem  por  esse  modo  principia  a  vida  pública,  deve  ir 
longe.  A  intelligência,  quando  mais  trabalha,  mais  es- 
plende: é  o  diamante  a  despedir  de  si  mil  scintillaçoes.  E, 
confrade  e  amigo,  o  paiz  não  pôde  ser  indifferente  aos 
commettimentos  nobilíssimos  em  que  se  embarca  o  vosso 
afortunado  génio.  Hoje,  mais  que  nunca,  a  nação  tem 
direito  de  exigir  o  concurso  de  vosso  espírito,  os  labores 
de  vosso  intendimento.  Trabalhae,  que  o  alicerce  de 
vosso  futuro  o  firmou  a  vossa  actividade;  agora  é  perse- 
verar. Saúdo  desde  já  as  alvoradas  de  um  porvir,  que 
ha  de  ser  semeador  de  boas  obras,  e  generosas  ideas. 
Falei-vos  do  futuro,  e  não  esconderei  que  Deus  reservou 
para  os  seos  eleitos — os  príncipes  c|^  talento,  os  illumi- 
nados  do  fogo  celeste — as  murmurações  dos  zoilos,  as 
objurgatórias  dos  parvos,  as  injúrias  dos  obcecados, 
muito  fel,  muita  provação;  mas  dir-vos-hei  também 
ue,  quando  o  sol  rutila,  ençhem-se  de  luz  os  cabeços 
as  montanhas  e  o  fundo  dos  valles,  as  campinas  esmal- 
tadas de  flores  e  os  pântanos,  onde  se  escondem  os  reptis 
que  lhe  não  supportam  a  luz.  Caminhae,  que,  como  ao 
saudoso  Elmano^  a  posteridade  é  vossa. 

ClCBBO. 


i 


246  XXXVI 

OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR— A  IRACEMA. 

IX 

Meo  amigo. 

Cumprimento-te,  e  continuo. 

Lê-se  na  pag.  84  da  Iracema:  « — ....Se  o  guerreiro 
Cauby  tem  de  morrer^  morra  elle  por  esta  mão,  e  não  pela 

tiui. 

«  Martim  pôs  no  rosto  da  selvagem  olhos  de  horror : 

nlracêma  matará  seo  irmão  ? — Iracema  antes  quer  que  o 
sangue  de  Cauby  tinja  sua  mão  qve  a  tua\  porque  os 
olhos  de  Iracema  vêem  e  a  ti,  a  dia  não.  » 

Explica-me  esta  filigrana,  que  o  Sr.  Alencar  n&o 
achou  planta  exótica  'numa  sociedade,  onde  o  sangue, 
longe  de  iafamar,  exaltava,  porque  era  prova  de  gen- 
tileza e  bravura. 

Entretanto,  ao  passo  que  tinha  tal  fineza  para  o 
amante,  n&o  vacillava  deante  do  extermínio  da  tribu 
inteira,  que  uma  palavra  sua  poderia  salvar.  Assim,  lê- 
se  na  pag.  52: 

— «O  estrangeiro  estd  salvo  /'diz  ella) ;  os  irmãos  de 
Iracema  vão  morrer ^  porque  ella  não  falará,  » 

'Nestes  irmãos,  além  de  Cauby,  estava  comprebendido 
o  próprio  pae,  o  page.  Será  tudo,  muito  poética,  muito 
romântica,  menos  lógica,  similhante  sensibilidade. 

N&o  só  isso,  como  também  o  que  se  segue,  é  prova  de 
que  ella  n&o  sentia  là  grande  affecto  a  esse  pae,  apezar 
de  a  estimar  elle  em  tanto.  Assim,  lê-se  na  pag.  143: 

—  «  Ainda  vive  Araken  sobre  a  terra  ?  ( perguntava 
a  índia  a  Cauby,  que  fora  ter  com  ella  ás  praias  do  mar). 

—  <íL  Pena  ainda ;  depois  que  tu  o  deixaste^  sua  cabeça 
VERGOU  para  o  peito ^  b  não  se  ergueu  mais. 

—  <(  Dize-lbe  que  Iracema  é  morta  j&,  para  que  elle 
se  console.  » 

E  foi  preparar  a  rg^eiç&o,  armar  a  rede,  etc. 

Para  n&o  offender  Martim,  que  ella,  como  se  tem 
visto,  superpunha  às  mais  naturaes  affeições,  deixou  de 
chamar  aos  Potyguáras  (s,  cuja  tribu  pertencia  Poty, 
amigo  de  Martim).  Potyguáras^  nome  que  davam  os  Ta- 
bajàras(dil-ooSr.  Alencar^àquellesporescàrneo,  signi- 
ficando comedores  de  camarão  fVid.  a  pag.  51) 

Mas,  se  ella  observava  tal  delicadeza,  que  faria  inveja 
a  muita  gente  civilizada  da  sociedade  em  que  vivemos, 
onde  n&o  só  nos  offendem  na  pessoa  dos  nossos  amigos, 
mas  até  nos  assacam  a  nós  próprios  pelos  diários  toda 


XXXVI  247 

sorte  de  doestos,  nós  temos  sido  doestes  victimas,  como 
n&o  evitava  a  Martim  a  protecção  impertinente  que  o  des- 
gosta/va  (f&g,  45)  ^  dando  logar  a  Mel-Redondo  dizer  a 
elle  :  a  —  Vil  é  o  guerreiro,  que  se  deixa  proteger  por 
uma  mulher  »  (pag.  28)  Se  se  mostrava  tso  íina  e  escru- 
pulosa alli,  tractando-se  de  um  amigo  do  amante,  como 
n&o  o  fazia  quando  aqui  se  tractava  do  pondonor,  do 
brio  (que  era  tudo  entre  os  selvagens)  d'elle  próprio  ? 
Ali!  Iracema,  tu  foste  o  primeiro  fructo,  ábsonojà,  da 
árvore  estranha,  que  devia  mais  tarde  produzir  a  Diva, 
et  reliqua  I 

Em  mais  de  um  passo  se  notam  arranjos  de  pbrase, 
que  se  afiguram  só  próprios  da  linguagem  polida. 
Assim,  lê-senapag.  21: 

—  «  Iracema nunca  sentiu  a    frescura    do  seq 

SURRISO.    » 

Scei  que  posiiuiam  os  Tupys  o  vocábulo  yroiçang^ 
frescura,  viração.  Mas  nfto  obstante,ninguem  contestará 
que  frescura  de  surriso  seja  um  dizer  figurado,  só  pos- 
sível na  lÍBguagem  de  uma  sociedade  de  outra  ordem, 
que  não  a  dos  selvagens.  Entre  nós  mesmos,  só  nas 
classes  mais  elevadas  se  poderá  usar  de  tal  melindre  e 
bellezaáe  pensamento  e  de  expressão. 

Ha  um  grande  erro  de  forma  na  obra  do  Sr.  Alencar : 
Essa  linguagem,  sempre  figurada,  que  elle  poi  a  cada 
instante  na  bõcca  dos  bárbaros,  como  se  fossem  todos 
poetas. 

Está  iuganado ;  o  uso,  que  faziam  dos  tropos,  era 
determinado  tão  somente  pela  necessidade,  quando 
tinham  de  exprimir  as  idéas  abstractas,  para  as  quaes 
lhes  faltavam  termos.  Fora  disso,  o  seo  modo  de  expri- 
mir-se  havia  de  ser  grosseiro,  rústico  e  simples,  porque 
a  mais  lhes  não  permittia  subir  o  estado  de  embruteci- 
mento intellectuai  e  moral,  em  que  o  seo  espirito  jazia 
immerso.  E'  o  que  dizem  todos  os  %uctores. 

Ld-se  na  pag.  12 : 

«  —  Estrangeiro^  Iracema  não  pôde  ser  tua  serva.  E* 
Ma  que  guarda  o  segredo  da  jurema  e  o  mystério  do  sonlto. 
Sua  mão  fabrica  para  o  page  a  bebida  de  Tupan,  » 

E  na  pag.  32  : 

«t  — O  guerreiro^  que  possuísse  a  virgem  de  Tupan^mor- 
reria.  » 

Inverosímil,  porque  a  virgindade  entre  elles  nunca 
foi  signal  de  distincção  ou  valia,  de  sorte  que  a  perda 
d'ella  importasse  oppróbrio  ou  menospreço;  e  ainda 


248  XXXVI 

porque,  se  o  fabrico  da  tisana  da  jurema  era  segredo 
d'alta  importância,  pois  que  d'elle  dependia  o  prestigio 
do  page,  nao  lh'o  teria  este  confiado.  Os  pagés,  por  isso 
que  eram  impostores,  deviam  necessariamente  ser,  e  o 
eram,  também  muitíssimo  ciosos  da  sua  auctoridade,  e  a 
não  exporiam  (como  a  nao  expunham)  á  mulher,  ente 
reputado  vil  entre  elles.  Falando  dos  pagés,  diz  G.  Dias: 
«  Eram  anachoretas  austeros,  que  habitavam  cavernas 
hediondas,  nas  quaes,so&  pena  de  morte^  não  penetravam 
profanos.»  (Prim.  Cant.^  not.)  E  mais :  «  Fugindo  d^essa 
tal  qual  sociedade  que  tinham,  retiravam-se  a  cabanas 
affastadas  e  obscuras,  ao  õco  das  árvores,  á  lapa  dos 
rochedos  ou  &s  cavernas  tenebrosas,  onde  nenhum  guer- 
reiro intrava,  e  de  cuja  vizinhança  se  abstinham.  » 
[Ohr.  Post.)  E  mais:  «  Os  segredos,  que  possuíam,  ob- 
tidos pela  observação  e  experiência,  ou  herdados  dos 
seos  antecessores,  eram  como  o  sdh  da  sua  auctoridade^ 
e  o  characterístico  do  seo  valimento  para  com  Deus.  » 
(Ibid.)  Como,  })ois,  intregaria  Araken  a  outrem  (fdsse 
quem  fosse  ]  a  ulma  da  sua  impostura,  que  se  poderia 
converter  de  chofre  em  arma  contra  elle  próprio? 

Se  o  Sr.  Alencar  intendeu  poder  justincar  a  anomalia 
com  o  que  refere  Gr.  Dias  'nestes  termos  :  «  Um  prestí- 
gio de  tal  ou  qual  considey^ação  rodeava  as  mulheres  no 
seo  estado  de  virgindade,  porque  só  ds  virgens  era  per- 
mittido  mastigar  a  mandioca  para  fabricar  o  cauim  » 
inganou-se  ;  primeiramente,  o  próprio  G.  Dias  cita  Do- 
brizhoffer,  que  «  tractando  do  çhiçha^  que  é  uma  espécie 
de  cauim,  parece  indirar  que  só  os  velhos  o  fabricavam» : 
em  segundo  logar  carapre  dizer  que  se  os  homens  re- 
mettiam  esse  direito,  ou  melhor  essa  obrigação  para  as 
mulheres,  era  porque,  segundo  diz  Levy  »  julgavam 
elles  que  isso  lhes  fazia  mal,  e  o  reputavam  indigno  do 
sexo.  »  Mas  o  mesmo  se  poderia  acaso  intender  do  fa- 
brico da  bebida  de  T^pan^  que  incerrava  o  mysUrio  do 
sonho  ? 

O  que,  porém,  principalmente  admira,  meo  amigo,  é, 
já  nao  digo  achar-se  senhora  dos  segredos  do  sacerdote 
uma  mulher,  mas  ser  a  cabana  d'este  accessivel  a  pro- 
fanos, estrangeiros,  e  até  inimigos! 

Por  exemplo :  na  pag.  44  lê-se  : 

c(  Araken  viu  intrar  na  sua  cabana  o  grande  chefe  da 
nação  tabajàra.  y*  O  chefe  nao  só  introu,  como  ^nella 
amiaçou  o  page ;  é  o  que  se  vê  da  pag.  46  :  « — ....a  ta 
que  amiaças  em  sua  cabana  o  velho  Page.  » 


XXXVI  249 

Mas  emfim,  como  se  tracta  do  chefe,  o  grande  Ira- 
puam,  dou  de  barato  que  o  fizesse,  bem  que  os  historia- 
dores Q&o  assignalem  excepção  de  espécie  nenhuma,  e 
digam  positivamente,  como  se  viu,  que  incorria  em 
pefia  de  morte  quem  ousava  penetrar  na  habitação  do 
sacerdote  de  Tupan. 

Com  espanto  vemos  o  próprio  sacerdote  dizer  &  filha, 
na  pag.  54 ; 

a  —Se  os  guerreiros  de  Irapuam  viessem  contra  a 
cabana,  levanta  a  pedra  e  esconde  o  estrangeiro  no  seio 
da  terra.  » 

Devo  dar  algumas  explicações.  Quando  Irapuam  in- 
vadiu a  cabana  de  Araken,  com  o  fim  de  apoderar-se  de 
Martim,  de  quem  tinha  ciúmes,  pela  Iracema,  o  velho 
<K  avançou  até  o  meio  da  cabana  (palavras  do  Sr  Alen- 
car), e  alli  ergueu  a  graude  pedra  e  calcou  o  pé  com 
força  no  çhfto :  súbito,  abriu-se  a  terra.  Do  antro  pro- 
fundo saiu  um  medonho  gemido,  que  parecia  arrancado 
das  intranhas  do  rochedo.  » 

O  Sr.  Alencar  explica  o  prodígio  em  nota  a  pag.  175. 
Eis  as  suas  palavras :  «  Todo  esse  episódio  do  rugido  da 
terra  é  uma  astúcia,  como  usavam  os  pagés  e  os  sacer- 
dotes de  toda  a  nação  selvagem,  para  imporem  à  imagina- 
ção do  povo.  A  cabana  estava  assentada  sobre  um  ro- 
chedo, onde  havia  uma  galeria  subterrânea  que  com- 
municava  com  a  várzea  por  estreita  abertura ;  Araken 
tivera  o  cuidado  de  tapar  com  grandes  pedras  as  duas 
aberturas,  para  occultar  a  gruta  dos  guerreiros.  'Nessa 
occasiao  a  fenda  inferior  estava  aberta  e  o  Page  o  sabia; 
abrindo  a  fenda  superior,  o  ar  incanou-se  pelo  antro 
espiral  com  estridor  medonho,  e  de  que  pôde  dar  uma 
idéa  o  susurro  dos  caramujos.  O  facto  é  pois  natural  ; 
a  apparência,  sim,  é  maravilhosa.» 

Vemos,  portanto,  que  essa  astúcia,  que  devia  ter  cus- . 
tado  a  Araken,  e  que  estava  vl(P  seo  interesse  manter 
mysteriosa  e  imperscrutável,  a  fim  de  impôr-se  d  imor- 
gtnação  do  povo,  de  repente  a  desvenda  elle  próprio,  e 
a  intrega  a  um  desconhecido,  que,  saindo  d' alli,  poderia 
ir  apregoar  a  impostura,  dando  logar  a  decair  do  pú- 
blico conceito  quem  só  a  ella  devia  o  prestígio,  que  o 
fazia  respeitado  e  terrível.  Certamente  os  pagés,  pôstoque 
selvagens,  nao  cairiam  em  tamanha  indiscrição,  que 
importaria  o  suicídio  de  seo  maravilhoso  poder. 

Mas  emfiin,  não  só  Araken  ordenou  á  filha  que  escon- 
desse o  estrangeiro  na  caverna,  senão  que  [o  estrangeiro 


250  XXXVI 

çheg-ou  a  penetrar  effectivamente  'uella,  como  se  vê  da 
pag.  60 :  «  Iracema  ce?Ta  a  mão  do  guerreiro^  e  o  tevo  á 
borda  do  a/ntro.  Somemse  ambos  nas  intranhaa  da 
terra.y) 

D'eât'arte  os  preconisados  sigillos  e  mystérios  das 
cavernas  dos  pagés  e  dos  seos  ritos,  de  que  positiva  e 
terminantemente  nos  d&  noticia  a  história,  ficam  ^ndo 
mera  burla  em  face  do  capricho  do  Sr.  Alencar.  Como 
comprehendeu  mal  o  Sr.  Alencar  as  tradições  e  crenças 
dos  índios,  de  que  fez  tamanho  alarde  nas  suas  Cartas 
sobre  a  Confederação  dos  TamoyosI  Profanos  e  estra- 
nhos penetram  nos  recônditos  recessos,  vedados  sem 
excepção  a  todos,  menos  ao  sacerdote,  representante  de 
Deusy  Iracema  leva  o  estrangeiro  ao  bosque  sagrado 
(pag.  26);  dà-lhe  a  beber  do  liquor  prestigioso,  reservado 
aos  guerreiros  (pag  23) ;  o  que  mais  resta  ?  Está  tudo 
anniquilado.  Ingano-me;  ha  cou^a  ainda  mais  aggra- 
vante.  Queres  ver,  meo  amigo?  Pois  é  já. 

Lê-se  na  pag.   63 : 

a  Iracema  e  o  christao,  perdidos  nas  intranhas  da  terra, 
descem  à  gruta  profunda.  Súbito  uma  voz  que  vinha 
reboando  pela  crasta,  inçheu  seos  ouvidos.» 

De  quem  avalias  tu  que  seria  a  voz  que  profana  a 
gúélla  de  Tupan?  De  algum  guerreiro  de  Irapuam  ?  Nao- 
De  alguma  mulher?  Não.  De  algum  desconhecido  ou 
forasteiro,  como  Martim?  Também   nao.  Ouve  tu  : 

«  —  O  guerreiro  do  mar  escuta  a  fala  de  seo  irm&olf 

«  —  E'  Poty,  o  amigo  de  teo  hóspede  —  dice  o 
christao  para  a  virgem.» 

Sim,  meo  amigo,  era  Poty,  o  grande  chefe  Potyguára, 
Poty,  o  implacável  inimigo  dos  Tabajáras,  Poty  «i  cuja 
fama  (textual)  subiu  das  ribeiras  do  mar  ás  alturas  da 
serra  »  ;  Poty  contra  quem  «  rara  é  a  cabana  onde  já 
não  rugiu  o  grito  de  vingança,  porque  em  quasi  todas 
o  golpe  do  seo  válido  ^acape  deitou  um  guerreiro  taba- 
jára  em  seo  camocim.  »   (pag.'  52.) 

Eis  o  page  exposto,  desmascaiado  o  seo  embuste,  por 
terra  o  seo  incauto  e  poder,  exposta  também  a  tribu,  na 
pessoa  do  seo  sagrado  ministro  !  Tudo  estava  nas  m&os 
do  inimigo.  Eis  ao  que  dá  logar  fazer-se  de  uma  mu- 
lher (contra  o  uso  inveterado)  acólyto  do  sacerdote,  ou 
iniciarem-n'a'  nos  solemnes  e  profundos  arcanos  de 
Tupan ! 

E,  em  definitiva,  quem  é  que  tem  a  culpa  da  rude 
inversão,  t&o  estranhamente  operada  nos    estylos,  quer 


XXXVI  251 

civiSy  quer  de  religião,  da  familia  bárbara  ?  Se  nSo  é 
sempre  o  amor,  nao  deixa  de  ser  elle  em  grande  parte. 
O  amor  de  Iracema  a  Martim  leya-a  a  estancar  o  san- 
gue que  ella  mesma  derramou  da  face  do  guerreiro,  e 
no  mesmo  instante  em  que  o  fez  (nao  muito  natural]  ;  a 
vibrar,  em  sua  defeza,  o  arco  e  a  frecha  (contra  os 
usos) ;  a  dar-lhe  a  beber  a  tisana  do  sonho,  a  penetrar 
com  elle  no  bosque  do  sacrifício,  e,  por  consenso  e  até 
por  ordem  do  page  I  na  furna  sagrada  (contra  o  rito). 

O  Sr.  Alencar  parece  ter  a  paixão  de  demolir.  Basta 
pertencer  ao  passado  para  provocar  as  suas  iras  ;  basta 
ser  venerando  para  leval-o  ao  sacrilégio.  Que  índole ! 
Que  natureza  I  E  çhama-se  aquillo  conservador  ! 

Queres  tu  saber,  meo  amigo,  o  que  intendo  que  se 
deveria  fazer,  no  caso  do  auctor  da  Iracema  ?  Ouve  lá . 
Intendo  que  se  deveria  pôr  o  amor  em  lucta  com  a  su- 
perstição— a  paixão  bárbara  bracejando  com  a  crença 
bárbara  ;  Iracema  loucamente  amando,  mas  firmemente 
respeitando  a  liturgia  gentílica.  D'ahi,  que  embates  de 
sentimentos,  que  acerbos  desesperos,  acçoes  grandiosas, 
episódios  tremendos,  sacrifícios  inauditos,  satisfacçoes 
ineffaveis  I —  «  Guerreiro  branco  (diria  a  india  a  Mar- 
tim), a  gruta  do  sacerdote  é  absolutamente  inaccessivel 
e  impenetrável ;  alli  está  o  segredo  do  prestígio  e  do 
poder;  a  ninguém  é  dado,  nem  mesmo  a  Irapuam,  sondar 
o  mystério  do  abysmo  !  Se  lograsses  recolher-te  'nesse 
asylo,  estarias  salvo  ;  quem  se  atreveria  a  ir  disputar-te 
a  Tupan  ?  Ah  !  mas  como  não  se  viola  impunemente  o 
rito  tremendo,  eu  expiarei  por  ti  a  profanação  sem 
egual ;  salva-te,  que  Iracema  te  irá  esperar  na  deliciosa 
mansão  das  montanhas  azues.»  Isto,  sim,  estava  na  * 
Índole  e  na  paixão  decidida,  heróica,  stoica,  do  selvagem, 
que  soffria  o  sacrifício  rindo  e  cantando. 

Não  seria  mais  lógico  e  talvez  mais  bello,  do  que 
a  relaxação,  que  se  nota  do  i^ntimento  religioso  da 
parte  do  próprio,  que  tinha  interesse  em  cada  vez  for- 
talecer mais  o  elemento  da  superstição  ? 

Responde-me :  está  ou  não  anniquilada,  na  obra  do  ^r. 
Alencar,  a  theogonia  dos  Brazís  ?  Quem  mactou  o 
gaúcho,  infirmou  se  nãp  mactou  também  o  índio! 

Mil    attencoes  do 

Teo  amigo  certo 

Semprónio. 


252  XXXVI 

o  Ooiisex*vato]?lo  de  iviixsloa 

Noticia,   histórica  e  descriptiva  da.   inauguração    do 
edifício,  e  origem  da  instituição. 

II 

Em  1841  uma  modesta  associação  musical  d'esta  cõrte 
requereu  &  Âssembléa  geral  legislativa  a  concessão  de 
dezeseis  loterias  para  com  o  seo  producto  fundar  e  man- 
ter um  Conservatório  de  música,  Defferída  satisfactoria- 
mente  esta  petição,  por  decreto  de  27  de  novembro 
d'esse  mesmo  anno,  foi  mandada  executar  a  lei  da  Âs- 
sembléa, fazeado-se  extrahir  duas  loterias  annuaes  até 
completar  se  o  número  das  que  foram  solicitadas  e  con- 
cedidas. 

Por  decreto  de  21  de  janeiro  de  1847,  sendo  ministro 
dos  negócios  do  império  o  Sr.  Conselheiro  Joaquim  Mar- 
celino de  Brito,  estabeleceu  o  Governo,  de  accõrdo  com 
a  Sociedade  de  miísica^  conforme  a  determinaç&o  da  su* 
pracitada  lei  de  I84I,as  bases  do  Conservatório,  com  seiB 
cadeiras  de  professorado,  sendo  :  três  de  rudimentos  de 
solfejo  e  canto,  uma  de  instrumento  de  chorda,  uma  de 
instrumento  de  sopro,  e  uma  de  harmonia  e  composiçfto ; 
ficando  também  estabelecido  nas  referidas  bases  que  o 
producto  das  loterias  seria  convertido  em  apólices  e  com 
os  juros  d'estas  se  fariam  as  despesas  da  manutenção  das 
aulas,  capitalizando-se  o  excesso  da  receita,  para  ser 
applicadoà  compra  de  uma  casa  para  estabelecimento 
das  me-mas,  e  que  o  Conservatório  ficaria  sob  a  adminia* 
traç'3o  de  uma  directoria  de  três  membros,  tirados  da 
Sociedade  de  músicxL. 

Pelas  portarias  de  28  de  janeiro  d'esse  mesmo  anno 
foram  nomeados :  Francisco  Manoel  da  Silva,  director 
do  Conservatório,  o  padre  Manoel  Alves  Carneiro,  th^ 
soureiro,  e  Francisco  da  Motta,  secretário  ;  concedendo- 
se  uma  das  salas  do  pai^imento  térreo  do  Muséo  nacional 
para  exercício  da  aula  de  rudimentos  de  solfejo,  e  no- 
meando-se  para  professor  da  respectiva  cadeira  Fran- 
cisco Luiz  Pinto,  com  o  vencimento  de  600$00O  an- 
nuaes. 

Em  10  de  agosto  de  1848,  em  presença  do  ministro  do 
império,  então  o  Sr.  Conselheiro  José  Pedro  Dias  de 
Carvalho,  inauguraram-se  solemnemente  as  aulas  do 
Conservatório,  coUocando-se  'nessa  mesma  occasiao  o 
busto,  esculptarado  em  gesso,  do  grande  músico  brazi- 
leiro,o  padre  José  Maurício,  cujo  nao  vulgar  talento 


253 

mereceu  as  maiores  distincçoes  que  o  Sr.  D.  João  VI 
costumava  conceder  aos  artistas  de  sua  predilecção,  j& 
nomeando-o  mestre  da  sua  real  capella,  j&  condeco- 
rando-o  com  o  grau  de  cavalleiro  da  ordem  de  Christo, 
bonra  esta  que  'naquelles  tempos  era  reputada  como 
prova  do  mais  alto  e  merecido  apreço. 

Por  portaria  de  31  de  octubro  de  1853,  sendo  ministro 
do  império  o  Sr.  Conselheiro  Luiz  Pedreira  do  Couto 
Ferraz,  hoje  BarSo  do  Bom  Retiro,  foi  o  Conservatório 
auctorizado  a  estabelecer  a  aula  de  rudimentos  de  sol- 
fejo para  o  sexo  feminino,  no  CoUégio  de  Saneia  Thereza, 
da  Sociedade  Amante  da  Instrucção,  em  falta  de  melhor 
logar ;  sendo  nomeado  por  outra  portaria  da  mesma 
data,  o  finado  Francisco  Manoel  para  professor  d'essa 
aula  com  os  mesmos  vencimentos  que  percebia  o  da  aula 
idêntica  do  sexo  masculino,  Francisco  Luiz  Pinto,  que, 
no  anno  seguinte,  pedindo  a  sua  demissão  d'aquelle 
incargo,  foi  substituído,  a  3  de  junlio  de  1854,  pelo 
maestro  Dionysio  Vega. 

Por  decreto  de  23  de  janeiro  de  1855  foi  reorganizado 
o  Conservatório  com  a  creaçao  de  novas  cadeiras,  con- 
firmando-se  as  nomeações  anteriormente  feitas,  de  Fran- 
cisco  Manoel  e  Dionysio  Vega,  para  professores  de  rudi- 
mentos de  solfejo  para  os  sexos  masculino  e  feminino,  e 
nomeando-se  para  a  de  harmonia  e  contrapoftcto  Joa- 
quim Giannini,  de  flauta  Jo&o  Scaramella,  de  clarineta 
António  Luiz  de  Moura,  de  rebeca  Demétrio  Rivera  e 
de  violoncello  e  contrabaixo  José  Martini. 

A  14  de  março  de  1855  abriram-se  solemnemente  as 
noras  aulas,  executando-se  por  essa  occasifto  o  primeiro 
concerto  dado  pelo  Conservatório y  no  qual  tomaram  parte 
44  alumnas  e  ôO  alumnos  do  mesmo.  A  14  de  maio  do 
mesmo  anno,  por  decreto  imperial,  foi  a^uella  eschola 
unida  k  Academia  de  beUas  artes  e  constituída  em  quinta 
secç&o  da  mesma  academia.         # 

A  16  de  março  de  1856  deu  o  Conservatório  o  seo  se- 
gundo concerto,  pela  primeira  vuz  executado  no  palácio 
da  Academia  das  beUas  artes  como  complemento  &  festi- 
vidade da  distribuiç&o  de  prémios  entre  os  alumnos  de 
uma  e  outra  instituiç&o. 

A  portaria  de  31  de  março  de  1857  approvou  a  es- 
colha que  o  Conservatório  fez  do  seo  discipulo  Henrique 
Alves  de  Mesquita  para  primeiro  pensionista  do  Estado 
nos  Conservatórios  ae  Paris  e  Milfio.Este  notável  maestro^ 
que  é  hoje  do  Conservatório  braziUirOj  acaba  de  ser  no- 


254  XXXVI 

meado  professor  de  uma  das  cadeiras  doesta  eschola  pelo 
Sr.  Conselheiro  Jon o  Alfredo,  digno  e  actual  ministro 
do  império,  que  por  essa  forma  deu  mais  uma  prova  do 
seo  amor  ás  bellas  artes,e  de  quanto  deseja  fazel-as  pros- 
perar, animando  e  recompensando  os  bons  artistas  pela 
escala  do  mérito  e  importância  real  de  cada  um,  e  n&o 
pela  fama  que  lhes  emprestam  artigos  anónymos,  muitas 
vezes  escriptos  pelo  próprio  punho  dos  interessados. 

Em  junho  de  1857  comprou  a  Sociedade  de  miisica 
metade  da  casa  da  rua  da  Lampadosa  n.  76  e  o  Governo 
a  outra  metade,  e  por  egual  forma  foram  também  com- 
pradas as  dos  ns,  74  e  78  da  mesma  rua,  sendo  todas 
três  demolidas  e  os  seos  terrenos  destinados  â  edificação 
de  uma  casa  especial  e  appropriad:<,  ao  Conservatório, 

Pela  portaria  de  3  de  janeiro  tlí  1860,  concedeu  o 
Governo  a  Francisco  Manoel  e  Dioiíysio  Vega  uma  gra- 
tificaçfio  de  2008000  rs.  annuaes  a  cada  um.  que  gene- 
rosa e  espontaneamente  foram  cedidos  pelos  gratifi- 
cados ao  património  do  Conservatório,  Tanto  era  a  amor 
e  a  dedicação  que  votavam  á  música  estes  dous  notáveis 
professores,  que,  apezar  de  pobres  como  eram,  abriam 
mão  de  uma  quantia  um  tanto  valiosa  para  quem  nada 
possue,  a  favor  de  uma  eschola  da  arte  que  tao  digna- 
mente professavam. 

Em  15  de  março  de  1860  deu  o  Conservatório  ura 
esplêndido  concerto,  do  qual  fez  parte  a  execução  da  pri- 
meira composição  de  António  Carlos  Gomes,  então  dis- 
cípulo d'aquella  eschola,  e  hoje  um  dos  seos  maiores 
ornamentos. 

A  15  de  agosto  do  mesmo  anno,  falleceu  o  professor 
Joaquim  Giannini,  compositor  de  grande  ingenho,  que 
no  Brazil  viveu  quasi  ignorado  e  morreu  totalmente 
esquecido  ;  três  mezes  depois  doesta  triste  occurrencia, 
outra,  nao  menos  lamentável, cobriu  novamente  de  lucto 
o  Conservatório:  a  16  d^  novembro  desceu  &  sepultura  o 
insigne  pianista  Dionysio  Vega,  que  tfto  frenético.^ 
applausos  colhera  tantas  vezes  de  magnas  asserableas, 
que  dtí  ouvidos  attentos  escutaram  absôrptas  as  má- 
gicas melodias  que  seos  adestrados  dedos  arrancavam 
de  um  frio  teclado. 

Em  30  de  octubro  de  1862  approvou  o  Governo  impe- 
rial o  plano  e  orçamento  do  novo  edifício  para  o  Co^isfr- 
vatório,  sendo  o  seo  director  Francisco  Manoel,  poraviáo 
de  15  de  janeiro  do  anno  seguinte,  auctorizadoa  man- 
dal-o  construir  sob  a  direcção  do  Ingenheiro  José  Carlos 


:XXXVI  255 

de  Carvalho,  valente  e  brioso  militar  que  primeiro  fez 
iiastear  a  bandeira  brazileira  em  terras  paragaayas,  na 
ilha  da  Redempção,  que  lhe  foi  capitólio  e  túmulo. 

A  15  de  março  de  1863,  em  presença  de  S.  M.  o  Im- 
perador e  de  numeroso  concurso  de  pessoas  de  todas 
as  classes  da  sociedade,  foi  lançada  a  pedra  fundamental 
do  edifício  para  o  Conservatório,  que  d'essa  data  em 
deante  se  constituiu  em  o  único  objecto  dos  mais  inces- 
santes desvellos  e  incançaveis  esforços  que  para  concluil- 
o  debalde  empregou  o  maestro  Francisco  Manoel,  que 
morreu  antes  de  se  realizarem  os  seos  mais  ardentes  e 
patrióticos  desejos. 

A  2i  de  novembro  de  1863,  approvou  o  Governo  Im- 
perial a  escolha  que  o  Conservatório  fez  do  seo  discípulo 
Carlos  Gomes,  para  segundo  pensionista  do  Estado  na 
Europa,  afim  de  estudar  música.  Esta  escolha  valeu 
mais  tarde  aos  que  a  fizeram  as  bençams  da  pátria, 
quando  viu  aquelle  seo  illustre  filho  coroado  de  immar- 
cessiveis  louros,  e  victoriado  com  retumbantes  palmas, 
no  primeiro  theatro  lyrico  do  mundo,  a  Scala  de  Milão, 
onde  pela  primeira  vez  se  cantou  a  formosa  opera  11 
Giiarariy. 

Cançado  dos  annos  e  dissabores,  que  sâo  partilha  do 
talento  e  do  patriotismo,  Francisco  Manoel,  o  immor- 
tal  compositor  do  hymno  nacional,  esse  esplêndido  verbo 
do  enthusiasmo,  sentindo  que  se  lhe  esvahiam  as  forças 
vitaes,  s  dlicita  do  Governo  Imperial  um  seo  substituto 
na  direcção  do  Conservatório^  do  qual  por  mais  do 
dezoito  annos  fora  o  braço  robusto  e  válido  quo  o  guiou 
por  entre  alfaques  e  cachopos  ao  seguro  abrigo  ;  mas 
quando  prestes  a  tocal-o  perdeu  alfirn  o  seo  adestrado 
palinuro. 

Por  proposta  do  próprio  Francis  -o  Manoel  é  nomeado 
a  17  de  dezembro  de  1865  o  Sr.  Conselheiro  Thomaz  Go- 
mes, para  substituil-o  na  dirc^^ao  do  Consm*vatório\ 
no  dia  seguinte  ao  doesta  nomeação  morre  o  maestro^  le- 
gando á  pátria  um  renome  illustre  e  à  sua  família  uma 
pobreza  honesta.  Dir-se-hia  que  a  alma  do  grande  com- 
positor só  esperava  por  um  successor  nas  lides  da  terra 
para  voar  a  receber  o  prémio  das  suas  virtudes  no 
empyreo,  onde  em  remanso  eterno  goza  a  perenne  íeli- 
cidade  que  Deus  reserva  a  seos  eleitos. 

Com  a  morte  de  Francisco  Manoel  paralisaram-se  0.5 
trabalhos  do  novo  edifício  do  Conservatório^  que  já  esta- 
vam em  grande  parte  muito  adeantados  ,   a;í  obras  ex- 


256  XXXVI 

teriores  açhavam-se  quasi  concluidas;  e  das  interiores 
faltavam  apenas  pequena  parte  dos  soalhos,  algumas 
portas  e  janellas,  o  portão  de  ferro,  a  escada  principal, 
a  pintura,  e  outros  pequenos  reparos,  que  nem  para  esses 
possuíam  numerário  sufficiente  os  exbaustus  cofres  da 
Sociedade  de  música. 

Mais  de  três  annos  esteve  o  inacabado  edifício  quasi 
em  completo  desamparo  ;  e,  em  consequência  da  sua  má 
construcçao,  até  mesmo  a  ameaçar  ruína.  Fazendo  parte 
do  primeiro  ministério  d'esta  ultima  restauração,  no 
poder,  do  partido  conservador,  foi  que  o  Sr.  Conselheiro 
Paulino,  na  qualidade  de  incarregado  dos  negócios  do 
império,  por  aviso  de  30  de  junho  de  1869,  ordenou  ao 
Sr.  Commendador  Bettencourt  que  examinasse  o  estado 
do  edifício,  estudasse  o  meio  de  melhoral-o  quanto  pos- 
sível, e  calculasse  a  importância  da  somma  precisa  para 
a  sua  conclusão. 

Em  cumprimento  d'estas  ordens,  procedeu  o  Sr.  Betten- 
court aos  respectivos  estudos  e  cálculos,  communicando 
ao  Sr.  ministro  o  resultado  de  seo  exame  e  apresentando 
as  bases  sobre  as  quaes  se  contractou,  de  empreitada  com 
o  mestre  Couto,  a  conclusão  das  obras,  debaixo  da 
direcção  d'aquelle  notabilíssimo  architecto,  que,  com  a 
proficiência  que  lhe  é  peculiar,  introduziu  grandes  me- 
lhoramentos ne  plano  interno  do  edifício,  e  poude  ainda 
disfarçar  certas  rudezas  das  formas  externas  por  demais 
pesadas  ou  singellas. 

Orpheo. 

(Continua.^ 

Charada  sem  sentido. 

Entre  septe   irmans    perversas  }^ 
deram-me  o    quarto  logar,         J 
e  de  me  ver  quasi   cega  í , 
tive  gana  ft    chorar  I      ) 
sou  cousa  ruim  como  o  todo,  ?  j 
como  o  todo  cousa  má.  ) 

Valho,  dizem,  quando  muito, 
o   Lundu   de  mon  roi. 

Un    TILL     (*) 


{*]  Oqu&aassignatura  seja  em  portu^ezn&o  scei  eu;  mas 
em  inglez  parece  ser  uma  promessa.  Sendo  assim,  promet* 
tido  é  devido.     (Tudo  isto  tem  cara  de  sibyUino). 

Typographia  e  litbograpbia —IMPARCIAL—  Rua  Sete  de  Setembro,  m 


QUESTÕES  DO   DIA 

RIO  DE  JA^EIR0,2DE  FEVEREIRO  DE  18r72. 


Yende-6e  em  casa  dos  srs.  E.  &  H.  La ?mmert.— Agostinho  de  Freitas  Gn- 
marães  òí  Ck)mp.,  26,  rua  de  General  Camará.— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  José  n.  119-  Largo  do  Paçe  n.  C— Preço  200  reis. 
O  r  volume,  com  perto  de  400  páginas— 3i)000. 


OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR  —  A  IRACEMA. 

(Cartas    a   Oinciniiato) 

X. 

Meo   amigo : 

Na  minha  3*  carta  falei-te  da  víllania  commettida  por 
Martim  na  cabana  hospedeira. 

Sabes  como  a  cousa  se  passou  ?  Sonhando,  meo  amigo, 
sonhando. 

EUe  tomou  o  eléxir  para  gozar  sem  abusar^  mas  foi 
peior  a  emenda  que  o  soneto  ;  tão  depressa  o  ingoliu, 
quanto  prestes  a  rola  (até  então  arisca — pag.  32)  curreu 
fiôfirega  a  cair  entre  as  garras  do  milhafre,  que,  por 
estar  adormecido  e  inerte,  nem  por  isso  foi  menos  carni- 
ceiro. Nunca  tao  facilmente  «  perdeu  Tupan  uma  vir-^ 
gem  na  terrados  Tabajàras^K  Prodígio  da  jurema! 

Queres  que  te  diga  uma  cousa  ?  AUi  houve  finura  do 
Martim.  Là  que  o  homem  tinha  saberêtes,  tinha-os ; 
para  se  disfarçar  na  facção  dos  bárbaros  que  abordou  a 
náu  hollandeza,  chegou  a  coatyar-se  !  (O  neologismo  é 
do  Sr.  Alencar  —  Vid.  a  pag.  185.J 

Mas. . . .  discutamos.  Poder-se-hia  exercer  no  espírito 
do  homem  culto  a  influência  da  droga  do  gentio  ?  Tenho 
minhas  dúvidas. 

Reconheço  que  só  à  sciência competiria  proferira  últi- 
ma palavra  na  questão.  E',  porém,  de  crer  que  ^neste, 
como  em  tantos  outros  ponctos,  a  imaginação  dos  sel- 
vagens, dada  á  exaltação  e  ao  maravilhoso,  avultava 
effeitos,  que,  quando  muito,  seriam  narcóticos. 

Sabe-se  que  os  vegetaes  que  tinham  d'efita  propriedade, 
eram  estimados  em  muito  apreço  pelos  índios.  Aspirando 
o  tabaco  era  que  Caraíbas  e  Pagés  transmittiam  aos  guer- 


^58 


XXXVII 


reiros  o  «  eupíriío  da  força.»  Nfto  proclamavam  os  agou- 
ros, nem  celebravam  as  s\ias  tnai^  .solenines  festividades 
011  cerímóuías,  abstrahindo  do  uso  desta  planta. 

Sem  dúvida,  uma  vez  conhecido  que  cila  produzia  o 
somno,  tornando  assim  possível  occorrerem  os  sonhos, 
q^ue  eram  eatre  elles  d<i  maí^  alta  importância,  pulsou  a 
ser  considerada  agente  de  sobreiíaturaes  virtudes  e  a  ter 
esta  lata  applicaçso.  Da  identidade  de  préstimo  é  lícito 
seguramente  orig-inar  o  conceito  em  que  era  tida  a  acácia 
jurema. 

Quem  tiulia  «  feitiços,  que  as  mais  das  vezes  uilo  pas-- 
savam  de  osso  de  algium  animal  caruívoro,  de  uma 
aranha  dessecada,  dos  membros  de  sapo,  ou  mesmo  de 
alguma  producçSo  mineral  ou  vrffelal  sem  préstimo,  ramo 
sem  virtude  »  não  admira,  que,  depois  de  haver  bebido 
uma  preparação  apregoada  pelos  pagos  e  reputada  por 
todos  miraculosa,  possuísse  ou  fruísse  em  sonho,  ou 
anteãem  treavarío,  aquillo  que,  em  seo  juízo — anhelava. 

Cabe  todavia  notar  que,  tautu  para  mim  como  para 
muitos,  a  quem  tenho  ouvido,  é  inteiramente  novo  o 
mérito  attribuído  pelo  Sr.  Alencar  áquella  mimoseàcea 
— de  fazer  a  pessoa  fruir  no  sonho  melhor  do  que  na 
realidade.  Nunca  ouvi  referir  à  beheragera  da  jurema 
nutro  mister  que  nfto  fosse  o  de — fazer  ver  no  futuro. 
Para  mais  força,  declino  a  auctorídade  de  Pompeo,  que 
ninguém  dirá  nao  ser  competente  :  «  —  Jurema  ]iríta — 
planta  commum  em  todos  os  taboleiros  e  várzeas  do 
scrtflo.  Sua  casca  é  tónica,  án  natureza  eãtupefacíente  : 
os  índios  preparavam  com  ella  uma  tisana  narcótica,  e 
com  o  seo  uso  caiam  em  uma  espécie  de  magnetismo, 
em  cujo  estado  pretendiam  ver  o  f>ititrú.»  [Ens.  Esl.  do 
Ceará,  vol.  I.  pag.  173)  O  Sr.  AlencarnSosó  lhe  attri- 
búe  u  virtude  de  fazer  gozar-se  em  sonho  o  que  se  al- 
mejava, como  precisamenie  a  de  fazer  ver  e  reviver  no 
■passado  :  Martim,  tSido  bebido  do  elixir  bárbaro.  «  sen- 
tiu perpassar  nos  olhos  o  somno  da  morte  ;  porém  logo 
a  luz  inundou  os  seios  da  alma  ;  a  fArça  exhuherou  no 
coração.  Reviveu  os  dias  passados  meihor  do  que  os 
tinha  vivido:  fruiu  a  realidaik  de  sua.'^  bellaí  esperanças.» 
{Iracfma,  pag.  23) 

Outra  observação  me  occorre  adduzir  :  os  selvageos 
fundavam,  em  geral  as  suas  usanças  nas  analogiad  ;  um 
exemplo  :  a  Para  os  homens  escolhiam  nomes  que  ex- 
primissem a  fdrça,  a  robustez,  s  coragem  ;  era  a  anta, 
o  tigre,  o  ipâ,  a  palmeira,  a  frecha,  o  arco  ;  —  para  as 


1 


XXXVII  259 

mulheres  os  dos  objectos  jnais  .brandos,  mais  doces, 
mais  delicados  —  das  aves,  dosfructos  e  das  flores  :  era 
o  romper  d*alva,  o  cipó  flexivel,  a  junca  do  brejo.» 
Nao  deixa  pois  de  ser  estranhavel^que,  para  S2  trans- 
migrarem  a  bizarras  delícias  usassem  de  uma  bebida  de 
sabor  amargo  e  de  cheiro  acre  e  nauseabundo,  quando 
tinham  o  cauin — o  seu  liquor  por  excellência — ,  e  outros 
muitos  vinhos,  de  que,  no  dizer  de  Fernando  Dinys 
<(  se  n&o  contavam  menos  de  trinta  e  duas  castas.  »  A 
operação  de  adivinhar  era  árdua,  arriscada  e  de  grave 
compromettimento  ;  nao  admira,  antes  é  lógico,  que  se 
servissem,  para  intrarem  no  espirito  prophétíco,  de  uma 
bebida  desagradável,  que  fosse  tida  como  á  conta  de 
provação  para  conseguirem  o  grandioso  fim.  Mas  poder- 
se-ha  dizer  o  mesmo  da  operação  de  gozar  *? 

Como  quei  que  fosse,  prevaleça  a  opinião  isolada  e 
inexplicável  do  Sr.  Alencar,  ou  a  de  Pompêo,  que  está 
de  accôrdo  com  a  geral  tradição  e  com  a  lei  invariável 
das  analogias  entre  o  objectivo  e  o  subjectivo,  o  que  pa- 
rece dever  presumir-se  fora  de  toda  dúvida  é  que  taes 
ef feitos  (quaesquer  que  fossem)  n&o  se  exerceriam  senão 
no  espirito  visionário,  carregado  de  abusões  innúmeras 
do  índio. 

Martim  nao  estava  'neste  caso  ;  era  espírito  mais  ou 
menos  culto  e  sobretudo  forte  ;  nao  é  natural  que  par- 
ticipasse  de  boa  fé  do  fetiçhismo  e  crendices  dos  bár- 
baros. Entretanto  do  que  nos  previne  a  seo  respeito  o 
Sr.  Alencar  ?  Além  do  que  consta  da  citada  pag.  23, 
offerece-nos  o  seguinte,  que  reproduzo  por  extenso  para 
toda  clareza  : 

«  Quando  Iracema  foi  de  volta,  já  o  Page  nao  estava 
na  cabana.  (Este  Page  parece  que  quiz  mesmo  favore- 
cer o  estellionato,  porque,  estiyjido  a  princípio  « no 
recanto  escuro  e  tendo  soltado  um  gemido  quando  o 
estrangeiro  premia  (apertava)  ao  seio  a  moça  »  (pag  67) 
retirou-se  depois  a  deshoras  e  a  propósito,  deixando-os 
sós  e  á  vontade)  Tirou  do  seio  o  vaso,  que  alli  trazia 
occulto  ::ob  a  carioba  de  algodão  entretecida  de  pennas. 
Martim  ih'o  atTebatou  das  mãos  (que  gana  !),  e  libou  as 
gôttas  poucas  do  verde  e  amargo  liquor.  Nao  tardou 
que  a  rede  recebesse  seo  corpo  desfallecido. 

a  Agora  podia  viver  com  Iracema,  e  colher  nos  seos 
lábios  o  beijo,  que  ali  viçava  entre  risos,  como  o  fructo 
na  corolla  da  flor.  Podia  amal-a,  e  sugar  d'esse  amor 


260  XXXVIt 

o   mel  e  o  perfume,    sem  deixar  veneno   no  seio  da 
virgem. 

«  O  gozo  era  vida,  pois  o  sentia  mais  vivo  e  intenso ; 
o  mal  era  sonho  e  illusao,  que  da  virgem  elle  nao  pos- 
suía mais  que  a   imagem.»  (Nao  intendo.] 
<c  Iracema  se  affastàra  oppressa  e  suspirosa 
«  Abriram-se  os  braços  do  guerreiro  e  seos  lábios;  o 
nome  da  virgem  resoou  docemente  ;  etc,    etc,  etc. 
(pag.  69)»   O  capítulo  conclue-se  com  estas  significa- 
tivas palavras  :   «  A  jandaia  nSlo   tornou  à    cabana. 
Tupan  já  nao  tinha  sua  virgem  na  terra  dos  Tabajáras.» 
A  jandaia,  conforme  se  vê,  parecia  ter  mais  sentimento 
moral  do  que  a  Índia  (que  nao  quiz  guardar  a  fé  do  seo 
cargo),  do  que  o  próprio  Martim  (que  abusou,  é  verdade 
que  em  sonho ^   da  confiança  e  da  hospedagem.) 

Com  effeito,  depois  da  catástrophe,  a  tal  avesinha 
emigrou  e  foi-se,  até  que  uma  vez  reappareceu,  quando 
c(  a  formosa  filha  de  Araken  se  lamentava  á  beira  da 

lagoa  da  Mocejana Iracema  lembrou-se  ent&o  que 

tinha  sido  ingrata  para  a  jandaia,  esquecendo-a  no 
tempo  da  felicidade.  »  (pag.  126.)  Admira  que,  repu- 
tando-se  ingrata  para  a  jandaia,  nao  se  reputasse  tal 
para  seo  pae  e  os  seos,  tanto  que  «  nao  se  arrependera 
ainda  de  os  ter  abandonado.»  /pag.  125)  «  A  linda  ave  nao 
deixou  mais  sua  senhora  ;  ou  porque  depois  da  longa 
ausência  não  se  fartasse  de  a  ver,  ou  porque  adivinhasse 
que  ella  tinha  necessidade  de  quem  a  accompanhasse  em 
sua  solidão  »  (ibi.)  Nao  parece  que  a  penna  que  lançou 
estas  idéas,  teria  mais  tarde  de  lançar  estas  outras, 
senão  as  mesmas  e  nas  mesmas?  expressões,  referindo-se 
a  uma  égua  :  «  Antevia  que  tinha  necessidade  do  homem, 
carecia  do  seo  auxilio,  etc.  »  ?  (Vide  Gaúcho.)  Voltemos 
a  Martim. 

Eil-o,  pois,  presa  também  das  abusões  dos  selvagens, 
crendo  nos  sonhos  dosl^etiçhes,  nos  manitôs  sem  dúvida, 
nas  pernas  da  aranha  e  nos  membros  de  sapo. 

Nao  colhe  o  dizer  o  Sr.  Alencar  em  a  nota  a  pag. 
165  :  <(  Desde  já  advertimos  que  nao  se  estranhe  a  ma- 
neira porque  o  estrangeiro  se  exprime  falando  cora  os 
selvagens;  ao  seo  perfeito  conhecimento  dos  usos  e 
língua  dos  indígenas,  e  sobretudo  a  ter-se  conformado 
com  elles  a  poncto  de  deixar  os  trajos  europêos  e  pintar- 
se,  deveu  Martim  Soares  Moreno  a  influência  que  adquí* 
riu  entre  os  índios  do  Ceará.  »  Nao  colhe,  repetimol-o 
porque    todos    sabem  que,   assim    fazendo,    nao  leve 


XXXVII  261 

Martim  em  vista  senão  captar  a  confiança  e  a  amizade 
d'elles  em  favor  dos  seos  reservados  fíns. 

Sendo  assim,  todos  têem  razão  de  estranhar  que  o  Sr. 
Alencar  pintasse  o  portuguez  (  que  nada  tinha  de  sim- 
plóHOj  e  sim  tudo  de  sagaz )  crédulo  ao  poncto  de  beber 
a  jurema,  e  ver  e  gozar  no  imaginário  sonho  o  que  só 
com  os  selvagens  se  poderia  dar  por  força  da  superstição 
grosseira  em  que  jaziam  immersos. 

Ora  dize-me  ;  nao  seria  pelo  contrário  verosimil  que, 
em  logar  de  ser  bebida  a  tisana  só  por  Martim,  o  fosse 
também  pela  índia  ?  Que  Martim,  incontrando  da  parte 
d*ella  objecção  na  circumstância  de  ser  filha  do  page  e 
guardar  o  segredo  da  jurema  (  vid.  a  pag.  32  )  a 
fizesse  crer  que,  tomando  egualmente  comelle  do  elixir, 
fruiriam  em  sonhos  sem  risco  o  que  ambos  anhelavam 
e  'neste  inlêvo  a  possuísse  ?  A  ser  vilão,  vilão  com  a 
verosimilhança  e  com  a  natureza. 

Meo  amigo  :  visto  que  estou  inçhendo  alguns  claros 
deixados  em  cartas  precedentes,  por  nfto  querer  tornar- 
me  então  demasiado  extenso,  passo  a  fazer  agora  uns 
ligeiros  extractos,  no  sentido  de  mostrar  mais  uma  vez, 
quão  mal  o  Sr.  Alencar  comprehendeu  o  amor  bárbaro, 
quer  na  lioguagem,  quer  nas  acçOes  dos  typos.  £  ainda 
antes  de  começar  a  operação,  quatro  palavras,  que  se 
devem  intender  complemento  de  quanto  dice  na  minha 
última  carta  com  relação  á  theogonia  tupy. 

Fala-se  'nesta  Iracema,  poema  selvagem  brazílio,  de 
um  bosque  sagrado^  de  vasos  de  sacrifício,  de  uma  virgem 
consagi^ada  a  Tupan,  etc:  Parece  que  o  auctor  tresleu,  se 
não  sou  eii  que  estou  treslendo. 

Não  ha,  que  eu  saiba,  um  só  escriptor  de  quantos  se 
têem  occupado  com  a  matéria,  que  atteste  a  existência 
de  taes  ritos  entre  os  selvagens  brasUicos,  quer  da  língua 
gerai  ou  Tupys,  quer  Tapuyas. 

Pelo  que  respeita  a  estes  últimos  fíndios  da  língua  tra- 
vada, para  me  servir  da  expressão  de  Theberge)  chegou 
a  parecer  a  auctores  de  nota  e  a  viajantes  que  com  os  taes 
conviveram  e  tiveram  occasião  de  observal-os  de  perto, 
que  elles  desconheciam  inteiramente  uma  religião.  £'que 
a  que  tinham  era  «mui  pouco  complicada»  no  dizer  de  G. 
Dias  ),  e  reduzia-se  ao  «c  ridículo  tabernáculo,  de  impor^ 
t&ncia  immensa,  sob  o  nome  de  maracd,  emblema  sym- 
bólico  da  divindade  »  (  na  phrase  de  Fernando  Dinys ). 
Quanto  aos  Tupys  <c  em  quem  admiraremos  um  tal  ou 
qual  desinvolvimento  metaphysico,  que  parece  characte- 


I 


262  XXXV  U 

risal-os  »  o  seo  Tuptin  a  diviadade  grande,  majestosa, 
tremenda  n  que  tinha  por  essência  o  bem  «  nfto  carecia 
de  preces  para  inclinar-se  á  compaixilo,  nem  o  sangue 
mançh^rin  os  seos  altares,  quando  os  tir.esso Se  al- 
gum culto  lhe  tributavauí,  era  sómeute  o  intervo.  i>  Para. 
dizer  de  uma  vez:  tanto  Tupijs^  como  Tapuijívi,  tinham 
seos  pagéa  ou  vidantes,  o  maracd.  o.s  manilôs,  Tupan, 
etc.  SSo  estas  as  idéas  geralmente  assentadas  a  respeito 
dos  nossos  aborígenes. 

Onde  foi  portanto  buscar  o  auctor  da  Imcfma  esse 
bosque  sagrado,  essa  virgem,  espécie  de  sacerdotiza,  etc? 

A  religião  dos  Quixúas,  o  culto  dos  Incas,  de  certo  lhe 
nfto  deram  insançhas  para  isso.  Nao  será  mais  presu- 
mível que  os  tivesse  ido  pedir  à  religião  dos  Uallos  1 

íiBaão-se  os  MystiÍTÍos  do  Pox^o,  incontra-se  ahi  o  epi- 
sódio da  virgemda  ilha  de  S^n,  muito  parecido  em  mais 
de  um  poncto  com  o  poema  do  Sr.  Alencar.  Lá  é  a  tribu 
de  Karnak,  aqui  é  a  tribu  do.s  Tabajàras;  lá.  Hêna,  Slha 
de  Joel,  aqui  Iracema,  filha  do  Araken;  \h  o  bosque  sa- 
grado dos  carvalhos,  cá  o  bosque  sagrado  das  jurámas; 
lá  a  dniidica  de  Hósus,  cá....  a  sacerdotiza  de  Tupan;  lá 
um  desconhecido,  que  fora  recebido  como  traosviado 
em  casa  dopaede  Hêna,  ó  o  íkefe  dos  cem  valles;  aqui 
um  desconhecido  qun  se  perdera  e  fora  dar  á  caban;i  do 

{lae  de  Iracema — é  Martim.  Singular  e  pasmosa  ana- 
ogía  !  (Vid.  Myst.  doPovo,voL  III.) 
Mas  quem  suppozéra  que  tamanha  similhança  havia 
de  terminar  pela  contraposição  mais  formal  o  surprea- 
dente  ?  !  Hêna,  por  esse  heroísmo  innsto  e  patriótico  do 
bárbaro,  e  por  esse  fervor  lúgico  danatureza  contempla- 
tiva, ofFerece-se  em  holocausto  a  Hésus  para  que  livre  a 
Gállia,  sua  pátria,  do  jugo  dos  Romanos,  u — A  lilha  de 
Joel — cantou  ella  com  uma  voz  pura  como  sua  alma — a 
filha  de  Joel  e  de  Margarida  vem  com  alegria  sacrificar 
aHèsualO'  Todo-Poieroso..,.  do  estrangeiro  livra  a 
terra  dos  nossos  paetí.'  Galloi  da  Bretanha,  vós  tendes 
lança  e  espada!  A  filha  de  JohI  e  de  Margarida  nfto 
possile  mais  que  o  seo  sangue;  offerece-o  voluntaria- 
mente a  fiésus!  O'  Deus  omnipotente,  torna  invencíveis  a 
lança e a  espada  gallus!  O'  Hésus....  acceitameo  sangue, 
pertonce-le....   salva  nossa   saucta  pátria!  i> 

Isto  6  beroismOjbem  que  feroz  e  cruento,  nem  jmr  isso 
miinos  admirável  e  grande;  e  sobretudo  de  naturalidade, 
de  lógica  iri-efra^uvel.  Ão  passo  porém,  que  a  vestal  daa 
Gállías  se  dá  como  hóstia  pura  que  sua  pátria  seja  lirre 


XXXVII  263 

do  jugo  de  estrangeiro  »  a  impossivel  vestal  do  Sr. 
Alencar  é  a  primeira  que  em  bem  do  estrangeiro  profana 
com  a  presença  d*este  a  majestade  do  bosque  sagrado, 
▼iola  o  segredo  imperscrutável  da  gruta  do  druida  túpico, 
anniquila  e  calca  aos  pés  a  theogonia  pagãnica  mais 
venerada  do  seo  povo  '  E'  o  bello  defronte  do  horrível; 
a  elevação,  a  nobreza  bárbara  deante  da  vileza,  da  tur- 
pitude  selvagem  I 

Ha  um  abysmo  immenso,  insondável,  eterno,  entre  os 
Mystèriosdo  Povo  e  a  Iracema,  entre  Eugénio  Sue.génio 
cheio  de  liberdade  e  de  amor,  que  escrevia  em  nome  da 
humanidade,  e  José  de  Alencar....  que  escreve  em  nome 
do  seo  nome. 

Ninguém  ignora  que  é  incerta  a  origem  dos  nossos 
autocthones ;  que  alguns  os  fazem  descender  das  tribus 
de  Israel ;  outros  de  um  cataclismo  que  houvesse  sepa- 
rado o  único  continente  terrestre  em  porções  diversas, 
dando  logar  &  dispersão  de  famílias,  k  variedade  de 
formas  e  &  multiplicidade  de  línguas,  e  nao  sendo  os 
differentes  povos  do  globo  senSlo  contemporâneos,  entre 
fii  mesmos;  outros  dos  Índios  da  Ásia,  dos  Egyp- 
cios,  dos  Carthaginezes,  dos  Lacedemónios ;  outros  dos 
Germanos,  com  quem  acham  a  maior  similhança  pos- 
sível. 

Dever-se-ha  acaso  suppor  que  o  Sr.  Alencar,  querendo 
como  de  costume  offerecer-nos  uma  theoria  que  se  diga 
sua  sobre  a  matéria,  apezar  de  j&  t&o  elucidada,  tivesse 
em  vista,  ao  dar-nos  'numa  lenda  túpica-cearense  esse 
mutilado  arremedo  da  mythologia  galla,  insinuar  que 
08  nossos  aborígenes  vieram  da  Gàllia?  Seria  dimcil 
jastifícal-o,  em  face  do  estado  actual  da  sciência,  e  prin- 
cipalmente depoÍH  de  se  ter  lido  esse  magnífico  capítulo 
de  Herder,  que  se  inscreve  sob  a  epígraphe^Or^am^o- 
fão  dos  Americanos — (Vid.  este  auctor,  Phílosoph.  de  Vhis- 
toir.  de  Vhuman.  vol.  I,  pag.  296.) 

Viria  a(jui  a  pêllo  tractar  daíquestao^se  os  Ameri- 
canos cammhavam  para  o  progresso  ou  para  a  decadên- 
cia, no  tempo  da  conquista ;  mas,  alem  de  reputal-a  do 
maior  pézo  para  os  meos  huroillíssimoshombro5,  accresce 
que  iá  te  tenho  roubado  muito  tempo  por  hoje,  e  urge 
eoDcluir.  Peço-te  comtudo  vénia  para  só  o  fazer,  depois 
de  haver  transcnpto  as  seguintes  palavras,  de  um  emi- 
nente sábio  moderno  : 

«  A  opinlfto  commum — diz  esse  auctor — é  que  os  sel- 
TAgens  n&o  sfto,  em  these,  senfto  miseráveis  restos  de 


264  XXXVII 

nações  outr*ora,  mais  civilizadas ;  mas,  posto  que  exis- 
tam casos  bem  estabelecidos  de  decadência  de  nações, 
nada  nos  auctoriza  scientificainente  a  admittir  que  cons- 
titua isso  o  caso  geral. 

«  Sem  dúvida,  ha  muitos  exemplos  de  nações,  que» 
outr'ora  progressivas,  nao  somente  cessaram  de  avançar 
em  civilização,  mas  até  recuaram.  E  comtudo,  se  com* 
paramos  as  relações  dos  primeiros  viajantes  com  o  es- 
tado de  cousas  actualmente  existente,  nao  achamos 
prova  em  apoio  da  theoria  de  um  geral  declínio. 

«  Os  Australianos,  os  Boschimanos  e  os  naturaes  da 
Terra  do  Fogo  viviam,  ao  tempo  em  que  pela  primeira 
vez  foram  observados,  quasi  exactamente  como  vivem 
hoje. 

<c  Em  muitas  tribus  selvagens  achámos  até  traços  de 
progresso  ;  os  Baçhapinos,  quando  Burchell  os  visitou, 
acabavam  de  introduzir  em  seo  seio  a  arte  de  trabalhar 
no  ferro ;  o  maior  edifício  do  Taiti  foi  construído  pela 
geração  contemporânea  da  visitado  capitão  C.ok,  e 
tinham,  havia  pouco,  renunciado  a  prática  do  canniba- 
lismo  (  Forster,  Observ,  de  voyag.  autour  du  mondei  pag. 
372) ;  e  se  certas  raças,  como  por  exemplo  muitas  das 
tribus  americanas^  retrogradaram,  este  resultado  é  tal- 
vez menos  devido  a  uma  tendência  inherenle  que  ao  mao 
effeito  da  influência  dos  Europeos.  » 

No  meo  fraco  pensar,  seria  indispensável  para  quem 
pretendesse  dar-nos  o  typo  de  uma  poesia  «  verdadeira- 
mente nacional^  haurida  nn  língua  dos  selvagens>y  assentar 
idéas  'neste  sentido:  se  elles  progrediam  ou  se  decaíam» 
quando  foi  do  descobrimento.  D'ahi  se  projectaria  graa- 
de  somma  de  luz  sobre  a  procedência  ou  n&o  do  pretenso 
typo;  a  poesia,  tanto  na  forma  como  na  essência,  de 
um  povo  que  progride,  nfto  pôde  ser  a  mesma  que  a  de 
um  povo  que  j^ecaí. 

Entretanto  o  Sr.  Alencar,  tendo  de  romper  contra  o 
padrão  secular  da  poej^ia  brazileira,  tido  e  havido,  quer 
por  nós,  quer  pelo  estrangeiro,  como  o  genuíno  e  puro 
nosso,  nem  de  relance  mostrou  ter  meditado,  instantes 
sequer,  sobre  o  assumpto ;  nao  nos  dice  d'ondt^  veitt, 
como  se  se  nao  fizesse  mister  sabêl-o  para  bem  ter-ôe 
idéa  da  sua  marcha  e  do  seo  destino.  Singular  modo  de 
fazer  eschola,  este  I 

E  comtudo  um  forte  apoio  se  offerece  para  quem 
quizesse  desinvolver  um  estudo  mais  vasto  e  mais 
seguro  a  respeito  do  character  dos  nossos  aborígenes,  do 


XXXVII  265 

•660  estado  social,  da  sua  acanhada  indústria,  do  seo 

{irogresso  emfim  na  escala  da  humanidade  ;  é  a  archeo- 
ogia. 

Se  applicássemos  ao  exame  das  toscas  obras  e  instru- 
mentos que  nos  deixaram  os  nossos  selvagens,  os  pro- 
cessos e  méthodos  d'esta  sciência,  parece-nos  que  pode- 
ríamos sem  contestação  classifícal-os  na  épocha  a  néo- 
líthica  »  ou  «  edade  das  pedras  polidas  »,  isto  é  na 
segunda  das  grandes  edades,  conforme  a  divisão  feita 
pela  archeologia  moderna. 

Ha  quem  diga  positivamente  com  toda  auctoridade 
estas  palavras :  «  E'  evidente  que  alguns  povos,  taes 
como  os  naturaes  da  ilha  do  Fogo  e  os  das  ilhas  d'Au- 
daman,  estão   ainda  presentemente  na  edade  de  ped^a.  » 

As  edades  da  archeologia  ante-historica  dividem-se 
em  quatro,  a  saber  :  primeira,  a  do  dilúvio  ou  «  paloe- 
olíthica  »  ;  segunda,  a  das  pedras  polidas  ou  a  neo- 
líthica  »  ;  terceira  a  edade  de  bronze  ;  e  quarta  a  edade 
de  ferro. 

Posto  que  alguns  archeólogos  opinem  que  a  pedra,  o 
bronze  e  o  ferro  foram  simultaneamente  empregados  no 
fabrico  das  armas  e  instrumentos,  a  classificação  acima 
parece-nos  tão  consentânea  com  o  instincto  do  progresso 
ascensional  e  gradual  dos  povos,  que  a  adoptamos  de 
plena  convicção. 

Ora,  prevalecendo  essa  classificação,  é  fora  de  dúvida 
que  os  nossos  selvagens  se  achavam  ainda  na  edade  de 
pedra,  como  os  habitantes  do  Paiz  do  Fogo,  segundo  o 
provam  os  instrumentos  de  que  se  serviam,  e  a  sua 
inteira  ignorância  do  metal,  a  não  ser  o  ouro  ou  a  prata, 
de  que  não  faziam  caso  ;  logo,  é  também  innegavel  que 
elles  iam  em  marcha  ascendente,  e  não  descendente,  na 
escala  da  humanidade. 

A  hypóthese  de  tamanha  decadência,  que  houvessem 
completamente  esquecido  o  uso  d^  ferro  e  do  bronze,  é 
inadmissivel ;  primeiramente,  porque  não  consta  ter-se 
íncontrado  d'elles  o  menor  objecto  fabricado  de  algum 
doestes  metaes,o  que  certamente  teria  succedido  se  hou- 
vessem existido,  ainda  da  mais  remota  antiguidade  ;  em 
segundo  logar  porque,  por  muito  que  descesse  um  povo 
em  todos  os  sentidos,  nunca  perderia  o  uso  de  objectos  e 
instrumentos  tão  immediatamente  ligados  ás  práticas 
materiaes  e  necessárias  da  vida. 

L  nge^  pois,  de  pensarmos  com  G.  Dias,collocando-se 
entre  Martins  eChateaubriand,o  primeiro  que  reputa  os 


266  XXXVII 

■ 

nossos  índios  decaidos  de  um  alto  grau  de  culturSi  e  o 
segundo  que  opina  estarem  ainda  por  dar  os  primeiros 
passos  no  caminho  da  civilizaç&o,  confessãmo-nos  intei- 
ramente  de  accôrdo  com  este  último,  que  nos  parece 
mais  verdadeiro  e  mais  lógico  em  sua  conjectura  his- 
tórica. 

E  sem  me  ter  apercebido,  meo  amigo,  ia-me  arris- 
cando no  inextricável  labyríntho,  e  desviando-me  do 
assumpto,  que  prende  com  o  objecto  da  presente  carta ! 

Desculpa.  O  estudo  das  antiguidades  tem  para  mim 
tal  seducç&o,  apezar  do  nada,  do  verdadeiro  nada  (cré 
que  sou  sincero)  que  me  reconheço  ser  ^isso,  como  em 
tudo  mais I 

Vou  concluir  por  esta  vez. 

Tivessem,  ou  n&o,  vindo  os  nossos  índios  dos  Scy- 
thas,  dos  Phenícios,  ou  mesmo  dos  Gallos,  o  que  n&o 
pôde  duvidar-se  é  que  elles  n&o  possuíam  bosque  sagrado^ 
nem  sacerdotizas^  e  muito  menos  virgens  voUdas  a 
Tupan. 

Logo,  a  Iracema  'neste  poncto,  coma  em  outros,  n&o 
passa  de  mero  inxêrto,  filho  de  uma  imaginaç&o  dada  a 
arrojos  que  nada  justifica,  porque  n&o  precisa  trans- 
plantações exóticas  quem  tem,  como  nós,  a  mais  guapa 
e  inexhaurivel  flora. 

Teo  amigo 

Sbmprónio. 


Deoima  Oai?ta 

DE  CINCINNATO  A  SEMPRONIO. 

Rio  20  Janeiro  1872. 

Respeitável  amigo 

Ecce  iterum  Chrispinus,  et  est  mihi  saepe  vocandus. 

Vamos  continuando  a  admirar  o  Til,  se  dás  licença, 
e  deleitando-nos  agor%[  com  os  estudos  de  vernaculi- 
dade,  estylo,  elegancia,^  imagens,  poesia  e  senso  com- 
mum  (se  n&o  é  como  dous). 

—  Entra  em.scena  uma  figura  de  tombai ôbos,  um 
trangalhasdanças,  de  camisola  de  baeta  preta,  com 
faca  de  ponta.  «Em  uma  das  bandoleiras  trazia  o  polva- 
rinho  e  munição;  na  outra  suspendia  um  bacamarte, 
cuja  bòcca  negra  e  sinistra  apparccia-lhe  na  altura  do 
joelho  esquerdo,  como  a  fauce  de  um  dragão  que  Ibp 
servisse  de  rafeiro.  » 


XXXVII  267 

Toca  a  esmerilhar. 

Bandoleira,  é  o  cinto  d'onde  o  bacamarte  pôde  pen- 
der; mas  c&  este  bandido  traz  bandoleiras  aos  pares, 
ou  antes  chama  bandoleira  ao  que  o  é,  e  ao  que  tal 
n&o  é. 

Accresce  que,seguindo  este  falar,pólvora  nao  é  muni- 
ção. 

Temos  mais  um  bacamarte  de  bocca  negra    e  sinistra. 

—  Sinistra  ;  porque  ? 

—  Porque  aquelle  bacamarte  disp&ra  tiros  que  matam. 

—  Ai,  meo  senhor,  mas  ent&o  isso  é  só  aquelle  ?  Eu 
nunca  vi  bacamartes  destinados  a  disparar  violetas  nem 
água  de  colónia.  E  agora  negra^  porque  ? 

—  Porque  o  metal  d'aquelle  bacamarte  ^  de  côr  es- 
cura. 

—  Ai,  meo  senhor,  mas  então  isso  é  só  aquelle  ?  !  Eu 
nunca  vi  bacamartes  verdes  nem  côr  de  rosa. 

Conseguintemente,  bacamarte  de  bõcca  negra  e  si- 
nistra é...  mel  doce,  segundo  Plínio. 

Mas  as  bellezas  máximas  d'este  trecho  est&o  no  resto: 
— bôcca  sinistra  e  negra  I  —na  altura  do  joelho  I^— como 
fauce  de  dragão  I — servindo-lhe  de  rafeiro  I  Noli  me 
tangere ;  'nestas  arcas  sanctas  é  defeso  tocar  ;  todo  o 
commentário  seria  pallido;  sSLo  sol  que  é  sol;  patenteiam- 
ae  de  per  si;  ellas  sao  quem  sfto. 

— 1(  Uma  aba  larga  occultava-lhe  grande  parte  da 
physiognomia.  » 

Nós  cá,  simples  mortaes,  diriamos  que  lhe  occultava 
parte  da  fronte,  do  rosto,  das  feições,  do  semblante,  ou 
qualquer  outra  loeuçfto  tfto  pedestre  quanto  o  é  a  idéa 
que  se  representa ;  mas  lá  os  Deuses  do  Olympo  lêem 
por  outro  oreviário  (elles  tém  breviário  ?) :  Ostentam-se 
às  Semeies  ccruscantes  e  tonitruantes,  com  o  intuito  de 
manifestarem  á  pequenina  humanidade  açhar^se  já 
transfundido  para  as  suas  pess§as  o  disputado  poder 
pessoal. 

Suppondo  porém  que,  em  estylo  aspirante  a  elevado, 
se  possa  substituir  semblante  por  physionomia  (n&o  quero 
multiplicar  questões),  só  o  que  pergunto  é  d'onde  veiu 
a  transformação  doeste  vocábulo  em  physiognomia^  como  o 
Sr.  Alencar  escrevbu  20  vezes 'nesle  volume  com  que 
me  flagellei  ?  O  termo  que  as  linguas  modernas  adop- 
taram foi  physionomia,  derivado  do  grego  physis^  na- 
tureza ou  Índole,  e  nomos^  lei,  ou  indicio,  ou  regulador ; 
d'onde  se  coilige  que  o  sentido  verdadeiro  do  termo 


268  XXXVII 

(antes  de  passarão  figurado)  é— complexo  de  feiçOes  re- 
veladoras da  iudole  do  indivíduo. 

Nao  seria  descabido  empregar  a  palavra  physiognomia^ 
ou  antes  physiognoinonia^  porque  os  gregos  tinham 
também  o  seo  gnomé^  ou  gnomos^  ou  antes  gnoinon  (in- 
dicador ;  mas  a  sciencia  reservou  esse  vocábulo,  nao 
para  exprimir,  como  o  Sr.  Alencar,  a  cara  de  um  lio- 
mem,  mas  para  denominar  uma  verdadeira  ou  supposta 
arte  que  insina  a  conhecer  o  temperamento  e  as  incli- 
nações e  qualidades  do  homem  pelas  feições  do  rosto  e 
formas  do  corpo.  Já  Aristóteles  lançara  as  primeiras 
linhas  d'esta  arte,  asseverando  que  os  génios  de  cada 
subjeito  eram  similhantes  aos  de  um  ou  outro  volátil  ou 
quadrúpedcr,  com  quem  por  força  se  parecia.  Ha  os 
Tractados  do  velho  Amâncio  De  physiogiiornica^  e  de  J.  B. 
Porta  De  humana  physiognomica  \  e  entre  outras  muitas 
obras  análogas,  ha  as  Tentativas  physiognoniónicasy  de 
Lavater,  depois  do  qual  vieram  Bacharach  e  outros.  E' 
pois  uma  arte  curiosa,  que  nem  mesmo  é  lícito  senten- 
ciar de  çharlataria,  e  que  d  e  da  phrenologia  dá  e  re- 
cebe auxílio.  Parece  que  da  convicção  d'esta  verdade, 
veiu  o  annexim  dos  nossos  antigos : — Máos  bofes  e  boa 
cara,  se  elle  ha  d'isso,   é  cousa  rara. 

A  que  vem  pois,  no  Til^  o  nunca  empregado  neologis- 
mo de  physiognomia'^  Virá  elle  inçher  algum  vácuo?  nao, 
que  se  a  palavra  pfti/5Ío?iomíaj a  dá  isso,  cá  a  tínhamos 
na  largo  tempo.  Mostrar  a  sciencia  do  neólogo  ?  per- 
dôe-nos  elle,  que  só  serviu  para  patentear  sua  ignorân- 
cia em  assumptos,  sobre  que  nao  tem  obrigação  de  ser 
profissional,  mas  que  melhor  faria  em  deixar  lá  onde 
estão,  desde  que  os  nao  intende. 

—  O  número  lim,  logo  'neste  1°  capitulo,  de  que  ainda 
me  nao  foi  possível  arrancar-me,  apparece  600  vezes, 
e  o  auctor  lá  tem  suas  trazões :  — Bizarria  de  um  prín- 
cipe—  por  U7na  reçhan —  um  grande  manancial  —  nin 
tom  opaco — um  sol  esplendido — o  firmamento  é  tima 
terra —  uma  d  'essas  occasioes —  um  cardeal —  tima  pal- 
meira—  um  poncto  além —  uma  lividez —  um  homem— 
com  uma  camisola —  uma  das  bandoleiras —  um  baca- 
marte— íim  dragão — um  gesto  de  contrariedade — um 
asco  mixto —  uma  travessura —  um  passo  — um  bera  a 
mim — um  arquejo — lim  pulo  — um  fungar....  E  isto 
tudo,  logo  'num  capitulinho,  de  meia  dúzia  de  linhas, 
o  primeiro,  e  o  mais  aprimorado  do  livro! 


XXXVII  269 

O  que  isto  significa  é  um  despréso  da  língua;  é  uma 
incorrecção  pouco  decente  ;  é  um  gallicismo  de  légua  e 
meia.  Se  nfto  todos,  pelo  menos  as  três  quartas  partes 
doestes  uns  seriam  supprimidos  por  quem  soubesse  es- 
crever. O  francez  (por  outros  motivos)  segue  lá  outra 
regra,  que  lhe  derrama  nas  suas  páginas  esse  dilúvio 
de  uns  ;  mas  no  portuguez,   constitue  este  surdo    mar- 
tellar,  menos  ainda  uma   ingrata  monotonia,  que   um 
erro  grammatical.  O  um^  em  portuguez,  nao  é  cavilha, 
partícula  sem  sentido,  arbitrariamente  entremeada  nas 
orações,  como  os  cantores  italianos  entremeiam    ad  li- 
bitum  o  siy  quando  lhes  faz  conta :  o  nosso  um  tem 
missão  especial,   e  é  a  de  limitar  o  respectivo  nome 
individualizautto-o,  isto  é,  separando-o  dos   da  mesma 
espécie.   Com  esse  adjectivo  articular   deve  pois  ter-se 
cuidado,  porque  gera —  ou  incorrecção,  quando  empre- 
gado desnecessariamente —  ou  erro  formal,  quando  des- 
virtuada a  sua  índole.  Com  o  Sr.  Alencar  dá-se  uma  ou 
outra  d'estas  hypótheses,  nos  nove  décimos  dos  casos. 

«  — ..•  assomo  de  terror,  que  lhe  embotava  os  brios 
de  valente  e  galhardo.  » 

Aqui,  depois  de  darmos  graças  a  Deus,  por  ja  uma 
vez,  por  ingano,  apparecer,  o  lhe  collocado  em  seo  de- 
vido logar,  admiremos  logo  em  seguida  a  facúndia  do 
valente  e  galhardo.  Galhardo  (quando  nao  na  intenção  de 
elegante  e  bem  feito )  pôde  significar  animoso^  mas  nao 
tem  a  força,  áenommBÀa  inlimativa,  da  palavra  valente^ 
com  quanto  represente  exactamente  a  mesma  ordem  de 
ideas ;  ergo, valente  e  galhardo  é  um  dizer  que  vai  de  bispo 
a  moleiro,  e  orça  por  óptimo  e  menos  mdo. 
—  «  E,  promovendo  um  passo....» 
Promover  passos  parece-me  outro  neologismo  desne- 
cessário c  inadmissível.    Como   porém   quero  sempre 
ficar  bem  com  a  minha  consciência,  e  nem  a  um  sabedor 
dos  teos  quilates  seria  prudente   iabmetter  observações 
infundadas,    permitte-me  desinvolver-te  o  sentido   da 
minha  hesitação. 

Diz-se  incontestavelmente   em  bom  portuguez  mover 
os  passos.   Assim  Manoel  de  Galhegos,  no  seo  Templo  da 
Memória^  cant.  I.  est.  114,  escreveu: 
Ní»m   quando  a  Aurora   aljôfre   e  raios  chove, 
com  tanta  bizarria  os  passos  moi:e. 
E  classicamente  foi  traduzido  o  famoso    el  incessu  pa- 
tuit  Dea^  por  :  u  E  na  bizarria  com  que  moina  os  passos^ 
mostrou   que  era  deusa.  »  &.   Isto  é  tudo  de  fidalga 


270  XXXVII ' 

procedência,  pois  os  latinos,  (como  Séneca,  Tr.,)  diziam 
também  movere  grndum. 

Mas  o  que  me  nao  consta  é  que  ninguém  escrevesse 
jamais  promover  passo,  nem  promovere  gradum^  e  isto 
por  um  motivo  muito  simples,  eé  ter  Deus  feito  o  ho- 
mem com  um  tarso,  metatarso  e  phalanges,  tudo  vira- 
do só  para  deante ;  e  ter  a  perna  músculos,  dos  chamados 
da  vida  animal,  dispostos  para  o  movimento  natural 
'naquella  mesma  direcção.  Portanto,  quem  só  dicer 
mover  o  passOj  ja  se  sabe  que  significa  para  deante^  e  a 
addição  da  preposição  latina  pro,  nem  aquenta  nem 
arrefenta,  sendo  uma  innovaçao  para  que  o  Sr.  Alencar 
nao  tem  direito,  e  completamente  ociosa,  ou  antes  pre- 
judicial, porque,  sem  addiccionar  .  ombra  de  idea,  viria 
multiplicar  inconvenientemente  a^  accepçOes,  ja  dema- 
siadas, de  um  verbo,  que  tem  sentido  diverso. 

—  «  Açhou-se  o  facínora  a  rosto  com  o  rapaz.  » 

Concordo  em  que  o  vocábulo  fadnora^  nascido,  nao  ha 
muitos  annos,  entre  os  estudantes  de  Coimbra,  é  porahi 
frequentemente  repetido.Direi  porem  que,  quasquer  que 
sejam  os  lábios  que  o  profiram,  representa  ura  dizer  des- 
necessário e  incorrecto  i— .desnecessário^  porque  temos 
facinoroso,  criminoso,  perverso,  flagicioso,assassino,  ma- 
tador, malvado,  scelerado,  nefário,  desalmado,  ímpio, 
iníquo,  protervo,  ímprobo,  homicida,  sicário, e  outros 
muitos  nomes,entre  os  quaes  o  auctor  pode  achar  a  me- 
nor oumaior  energia,que  lhe  convenha  applicar; — incor- 
recto,porque,  derivando-se  do  latim,  a  palavra  era  'nesse 
idioma  tomada  á  boa  ou  má  parte:  quando  á  boa  (  como 
em  Sallústio,  ingenii  egrégia  facínora^  productos  egré- 
gios de  ingenho),  nao  pôde  dar  origem  á  tal  interpre- 
tação ;  quando  á  má,  nunca  em  Ifetim  se  referiu  a  quem 
pratica  o  attentado,  mas  só  ao  próprio  attentado. 

Pelo  que  toca  ao  a  'rosto j  também  nao  conheço.  Rosto 
a  rosto,  sim  Sr.,  tenh(f  visto  muita  vez,  por  ex,  na  Ma- 
laca Conquistada  : 

Quando  vi  o  céo  a  meo  valor  opposto, 
e  nao  ha  com  Miguel  pôr  rosto  a  rosto  ; 
mas  a  rosto  com  o  rapaz,   persuado-me  que   nunca  fora 
dicto. 

Onde  iria  eu  dar  comigo,  se  analysasse  um  baca- 
marte, de  já  3  volumes,  denunciando  todas  suas  bellezas, 
como  o  tenho  feito  a  «Igiimas  so  do  1*  capitulo  do  ro- 
mance ?  E'  um  livro  de  estudo,  é  •  quem  bem  o  meditar, 
lucrará  ;  é  vernáculo,    neólogo,    docto,  elegante  e  fa- 


X  XX vil  ,  271 

cundo.  Â  respeito  de  eloquência  tal,  por  mim  repito  as 
grandes  palavras :  Eloquência !  artífice  peritíssima,  que 
sabe  usar  todo  o  género  de  instrumentos,  e  'nelles  des- 
tramente se  converte:  prende  como  cadeia;  alumia 
como  tocha ;  pica  como  espora ;  reprime  como  freio ; 
corta  como  espada ;  defende  como  escudo  ;  inunda  como 
torrente ;  fere  e  derruba  como  raio  ;  inventa  como  o 
lUm,  Sr.  C.  Urso. 

Para  a  outra  vez  dobraremos  este  Cabo  Tormentório, 
denominado  —  O  Capanga,   primeiro    capitulo  do   TU. 

E^  confesso  que  ainda  nao  tenho  opinião  bem  assente 
sobre  o  intuito  que  preside  &  publicação  d'este  deno- 
minado romance.  ;Vir  com  uma  cousa  assim  à  praça  I 
Será  zombar  do  público  ou  do  editor  ?  Explicação  plau- 
sível só  a  entrevejo,  no  facto  da  mercancia  :  a  República 
dá  muitos  exemplares  ;  o  auctor  produz  muitos  volu- 
mes ;  o  editor  paga  muitos  tostões ;  e  a  história  vai 
currendo  como  um  manso  ribeiro. 

Um  predecessor  do  nosso  digno  ex-ministro  çhamava- 
se  Mazarino.  Entre  as  muitas  anecdotas  que  d'este  narra 
a  Princeza  Palatina,  acho  graça  a  esta :  PuUulavam 
contra  Mazarino  os  libellos,  os  artigos,  as  cantigas ; 
Mazarino  mandava  perseguir  e  apprehender  tudo  aquillo; 
augmentava  assim  o  appetite  da  leitura ;  logo  em  se- 
guida, mandava  secretamente  vender  as  sátyras  appre- 
hendidas  ;  ganhou  assim  muito  honradamente  dez  mil 
escudos. 

Modus  vivendi ;  desde  que  a  cousa  pinga, pinga  ou  bri- 
lhante, ó  deixar  ir. 

Teo  sincero  admirador 

ClNCINNATO. 


ILill>ex*dacle  politica 

Em  todos  os  tempos  têm  havido  certas  expressões  bom- 
básticas, com  o  privilégio  de  fascinar  os  homens,  e 
leval-os  a  fazer  muita  asneira,  em  quanto  que,  exami- 
nadas com  alguma  seriedade,  conhece-se  que  nfto  sSlo 
mais  que  bolhas  de  sab&o»  ou  lindas  miragens,  cuja  rea- 
lidade é  zero. 

Âs  palavras  liberdade  política  s&o  das  que  mais  fortuna 
têm  feito,  e  que  menos  deviam  fazer,  porque  contêm  em 


272  XXXV  n 

si  um  antagonismo,  que  as  nunca  devia  deixar  andar 
junctas. 

A  liberdade  politica  é  a  liberdade  que  nao  é  livre.  A 
liberdade  políiica  deveria  existir  nas  associações  políti- 
cas ;  mas  uma  associação  politica  nunca  foi  livre.  A 
união  política  de  muitos  homens  suppoí  sempre  a 
existência  de  uma  entidade  superior,  que  tem  direito  de 
mandar,  e  á  qual  todos  devem  obedecer. 

A  idéa  governo  está  tao  implicitamente  comprehen- 
dida  na  idea  associação  politica,  como  a  idea  figura  está 
implicitamente  comprehendida  na  idéa  corpo.  Mas  a  idéa 
governo  tem  outra,  que  lhe  é  correlativa :  é  a  idéa  gu- 
vernado  ou  súbdito. 

Nao  ha  definição  de  liberdade,  que  nao  contenha  a 
idéa  de  conformidade  com  a  lei :  o  homem  é  livre  porque 
tem  a  faculdade  de  fazer  o  que  lhe  a  lei  nao  prohibe:  o 
que  quer  dizer  que  o  homem  é  livre,emquanto  lh'o  a  lei 
consente.  E  como  a  lei  é  a  vontade  do  legislador,  segue- 
se  que  o  homem  em  sociedade  tem  apenas  a  somma  de 
liberdade,  que  lhe  consente  ou  permitte  o  legislador,, 
que  nao  é  mais  do  que  um  homem. 

Lembra-se  o  legislador  de  que  se  nao  ande  a  certas 
horas,  nao  se  anda; — de  que  se  fechem  as  portas  a  certas 
horas,feçham-se  as  portas  a  certas  horas; — de  que  se  nfto 
reúna  certo  número  de  indivíduos,sem  satisfazer  a  certas 
práticas,  nao  se  reúnem — e  assim  milhares  de  outras 
cousas.  Em  alguns  casos  até  prescreve  as  horas  a  que 
se  deve  comer,  e  nao  observadas. 

Onde  então  está  a  liberdade  política  ?  Nem  no  direita 
de  eleger  existe,porque  esse  direito,e  o  seo  exercício,  está 
subordinado  ás  prescripções  de  legislador. 

Dir-me-hao  que  tudo  isto  é  assim  exigido  pelo  bem 
commum.  Mas  quem  dafine  o  bem  commum,  é  ainda  o 
legislador. 

O  homem  nasceu  para  a  sociedade  e  nao  para  a  plena 
liberdade ;  a  sociedade  e  a  liberdade  sao  duas  cousas 

muito  differentes. 

Otton. 


Typoerraphia  e  lithoeraphia  —IMPARCIAL—  Rua  Sete  de  Sete  mbro,  146 


QUESTÕES  DO  DIA 

isr.°38 

RIO  DE  JANEIEO,  9  DE  FEVEREIRO  DE  !»». 


Tcode-m  em  caaa  dos  sn.  K.  te  B.  La>mmett.— AcoKtinho  de  Freitas  Oui- 
marSes  Ac  Comp.,  36,  rua  de  Oeneral  Gamar».— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  Joaé  n.  119-  Largo  do  Paço  n.  C— Preço  200  reis. 
O  I*  volume,  com  perto  de  400  pÉ^nas— 8R000. 


OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR— A  IRACEMA. 

(Cartas    a  Olnolnnato) 

XI 

Meo  charo  amigo. 

Fiquei  de  mostrar-  te  ao  vivo  como  o  Sr.  Alencar  con- 
cebeu o  amor  bárbaro  abaixo  das  forças  da  natureza  e 
jnrejudicando  usanças  e  reputações  históricas,  de  subido 
Talor.  E'  esta  a  occasiSo. 

Abrindo  o  poema.... «prosaico»  (experiência  tn  anima 
prosaica  o  çbama  o  auctor)  na  pag.  25,  leio : 

a  — Iracema  !  exclamou  o  guerreirO;^  recuando.  » 

«  — Anhangá  turbou  sem  dúvida  o  somno  de  Ira- 

puam,  que  o  trouxe  perdido  ao  bosque  da  jurema,  onde 

nenhum  guerreiro  penetra  sem  a  vontade  de  Araken.  » 

(Só  Martim,  estrangeiro  e  desconhecido,  teve  d'este  pri- 

Tilégio. ) 

«  — Nao  foi  Anhangá,  mas  a  lembrança  de  Iracema, 

?ue  turbou  o  somno  do  primeiro  guerreiro  tabajara. 
rapuam  desceu  de  seo  ninho  de  águia  para  seguir  na 
Tinea  a  garça  do  rio.  Chegou,  e  Iracema  fugiu  dos 
£608  olhos.  D  (Devia  ser  um  grandeii mor  este,  que  fazia 
o  próprio  chefe  tentar  contra  o  rito— cousa  inaudita  entre 
tacs  povos  I — Vejamos  porém  que  de  prodígios  fará  esse 
amor.) 

«  — As  vozes  da  taba — continuou  elle — contaram  ao 
envido  do  chefe,  que  um  estrangeiro  era  vindo  á  caba- 
na. » 

•  A  virgem  estremeceu.   O  guerreiro  cravou  'nella  o 
olhar  abrazado. 

«  O  coração,  aqui  no  peito  de  Irapuam,  ficou  tigre. 
Pulou  de  raiva.  Veiu  farejando  a  presa.  O  estrangeiro 
«8tá  DO  bosque,e  Iracema  o  accompanhava.  Quero  beber- 


274  XXXVIII 

lhe  o  sangue  todo  :  quando  o  sangue  do  guerreiro  braa- 
CO  currer  nas  veias  do  chefe  tabajàra,  talvez  o  ame  a 
filha  de  Araken.  »  (Um  chefe,  dos  quilates  de  Irapuam^ 
ou  antes  qualquer  guerreiro,  que  sentisse  para  com  a  sa- 
cerdotiza  vehemente  paixão,  ao  poncto  de  postergar 
'nisso  o  preceito  religioso,  jà  estaria  em  face  do  felix 
rival. 

«  A  pupilla  negra  da  virgem  scintillou  na  treva,  e  do 
seo  lábio  borbulhou  como  gôttas  do  leite  cáustico  da 
euphórbia,  um  surriso  de  desprezo  »  (O  que  seria  natu- 
ral é  que  ella  se  aterrasse,  e  negasse  o  facto  :  a  culpa,  ft 
em  condições  tao  graves,  sempre  acobarda  o  espirito  que 
pela  primeira  vez  commette  o  crime. 

cc  —  Nunca  Iracema  daria  seo  seio,  que  o  espirito  dô 
Tupaa  habita  só,  ao  guerreiro  mais  vil  dos  guerreiro» 
tabajàras  I  Torpe  é  o  morcego,  porque  foge  da  luz  e  be- 
be o  sangue  da  victima  adormecida  I  )>  (Que  razlo  ha- 
via para  tal  desabrimento  ?) 

«  —  Filha  de  Araken  I  Nao  assanha  o  jaguar  !  » 
(Estava  um  jaguar  muito  discreto  e  tolerante  este)» 
<(  O  nome  de  Irapuam  voa  mais  longe  que  o  goanâ  do 
lago,  quando  sente  a  chuva  além  das  serras.  Que  a 
guerreiro  branco  venha,  e  o  seio  de  Iracema  se  abra 
para  o  vencedor.  »  (O  pseudo-heróe  só  tinha  vistas  e 
parolas). 

<c  —  O  guerreiro  branco  é  hóspede  de  Araken.  (EntSo^ 
por  ser  hóspede, tinha  charta  branca  para  fazer  das  suas?) 
A  paz  o  trouxe  aos  campos  do  Ipú.  Quem  offeudera 
estrangeiro,  offende  o  Page  »  (E  quem  oíFendesse  a  reli- 
gião, nao  oflfenderia  também  o  Page  ? 

((  Rugiu  de  sanha  o  chefe  tabajàra  : 

«  —  A  raiva  de  Irapuam  só  ouve  agora  o  grito  da 
vingança.  O  estrangeiro  vai  morrer.  »  (Beaucoup  de 
bruit  pour  rien.  ) 

«  —  A  filha  de  Araken  é  mais  forte  que  o  chefe  dos 
guerreiros,  dica  Iracema,  travando  da  indbia.  Ella  tem 
aqui  a  voz  de  Tupan,  que  chama  o  seo  povo.  »  (Or&> 
convertido  em  juiz  e  com  que  poderes?  I  ) 

(c  —  Mas  ella  nao  chamará  !  respondeu  o  chefe,  es- 
carnecendo. 

í(  —  Não,  porque  Irapuam  vai  ser  punido  pela  mâa 
de  Iracema.  Seo  primeiro  passo,  éo  passo  da  morie« 

<(  A  virgem  retrahiu  d'um  salto  o  avanço  que  Lomir- 
ra,  e  vibrou  o  arco.  »  (Lembro-me  d'aqUelle  trecho  dU> 
gaúcho :   »  A  égua  retrahiu  o  flanco  sobre  os  quadris 


XXXVIIl  275 

-agachados,  e  esse  corpo,  que  se  fizera  bomba,  estou^ 
rouy>).[0  chefe  cerrou  ainda  o  punho  do  formidável  taca- 
pe ;  mas  pela  vez  primeira  sentiu  que  pesava  ao  braço 
robusto.  O  golpe  .que  devia  ferir  Iracema,  ainda  nao 
alçado,  já  lhe  trespassava,  a  elle  próprio,  o  coração.  » 
(Mesmo  depois  do  que  via  e  ouvia  ?  Chefe  imbelle, 
.  guerreiro  maricas]  ) 

A  final  Irapuam  desappareceu  entre  as  árvores,  e  Ira- 
cema voltou  a  proteger  o  somno  do  estrangeiro  no  bos- 
que sagrado. 

Pensas  tu,  bom  Cincinnato,  que  esse  chefe  que  sur- 
prendêra  assim  o  nefando  sacrilégio  ;    que  tantas  provas 
recolhera,  até  uma  declaração  confessa  da  sacerdotiza, 
de  que  o  desconhecido  estava  no  bosque  onde  era  veda- 
do penetrar  ;  que,  além  do  mais,  se  devia  reputar  atroz- 
mente ultrajado  pelo  desprezo  infligido  ao  seo  desvaira- 
do amor,  e  pela  preferencia  tributada  ao  forasteiro;  pen- 
sas tu  que  esse  chefe  saí.sse  d!ahi  para  dar  o  grito  de 
alarma,  delatar  o  crime,  exigir  a  punição  immediata 
dos  delinquentes,  ser  fervorosamente  coadjuvado  (como 
fora  de  esperar)  na  applicaçao  dos  castigos  tremendos 
para    cabal    desaffronta    dos    preceitos    postergados,  e 
•  exemplo  estrondoso  a  presentes e  pósteros?    Qual,  meo 
amigo  !  Vais  ver  o  que  acconteceu. 

Irapuam  cousa  nenhuma  communicou  ao  page  até  á 
tarde  seguinte,  quando,  com  cem  guerreiros,  foi  tomar 
o  estrangeiro  ao  Cauby,  irmão  de  Iracema.  Seguramen- 
te o  chefe  ter-lhe-hia  contado  í  ao  iiltimol  os  successos 
da  noite  ;  mas  longe  de  ficar  esce,  como  era  natural,  es- 
candalizado,na  dupla  qualidade  da  guern»iro  e  de  irmão 
da  moça,  suas  palavras  foram  estas  : 
«  —  Mactae  Cauby  antes  !  » 

Eis  reboa  o  rouco  som  da  inúl):a  j)ela  mata  ;  ostaba- 
járas  estremecem,  reconhecendo  'nesse  annúncio  a  voz 
inimiga  do  búzio  dos  Pytiguàrus.  AbinJonam  Martim 
e  seo  protector,  batem  as  matas,  procuram,  esmerilham, 
e  nada  incoutram. 

Suppõi  com  razdo  Irapuam  qui^  o  aviso  falso  fora  ardil 
de  Iracema  para  fazer  diver^sao  ao  ódio  d'elle,  e  entre- 
mentes dar  escapula  ao  amante :  e  só  então  procura  o 
Page  para  referir-lhe  o  arcontecido. 

«(  — Araken,  a  vingança  dos  tabajáras  espera  o  guer- 
reiro branco,   Irapuam  veiu  buscal-o.  » 

Queres  saber  a  resposta  do  sacerdote,  instituído  para 
•velar  perennemente  pelo  rito,  e  impedir  por  todos  os 


276  XXXVIU 

meios  ao  aeo  alcance   que  elle  chegasse  a  ser  de  leve 
estremecido?  Ouve  lá; 

«  —  O  hóspede  é  amigo  de  Tupan  ;  quem  oflFender  o- 
estrangeiro  ouvirá  rugir  o  trovão.  » 

Qué  dizes  a  isto  ?  Ura  quero  confundir  es^e  'page  re- 
misso e  refractário,  que  n&o  sahe  exercer  o  seo  oficio, 
com  uma  licç&o  que  me  ministra  G.  Dias,  insinando  como 
era  intendida  a  hospedagem  entre  os  verdadeiros  Índios 
—  a  hospedagem,  que  o  Sr.  Alencar  tornou  elástica,  áo 
poncto  de  fazêl-a  absorver  um  dos  mais  accentnados 
characterlsticos  do  povo  bárbaro  — a  veneraç&o  das  suas 
práticas  religiosas.  «  Hospitaleiros  para  com  os  estra- 
nhos—  diz  o  historiador  —  os  seos  próprios  inimigo» 
achavam  accolhimento  e  gazalhado  nas  suas  tabas  »  E 
mais  adeante  :  a  Desconfiado  o  índio  com  os  estranhos^ 
principalmente  quando  'nelles  percebia  deslealdade  (é  o 
caso},  um  indício,  um  vislumhre  de  intenção  sinistra, 
bastava  muitas  vezes  para  o  tornar  suspeitoso,  e  da  sus- 
peita, sem  mais  exame^  precipitava-se  na  traiçEo.D  Ora, 
vô  lá  se  com  índios  d*esta  ordem,  Martim  e  Iracema  te- 
riam feito  septe  montes! 

Mas  emfim,  Irapuam  torna  a  Âraken : 

a —  O  estrangeiro  foi  quem  offendeu  a  Tupan,  rou- 
bando a  tua  virgem,  que  guarda  os  sonhos  da  jurema. 

« —  Tua  bôcca  mente  como  o  ronco  da  giboia — excla- 
mou Iracema,  d 

O  chefe  insta  e  insiste  pela  vingança  ;  até  que  a  Âra< 
ken  ergueu  a  grande  pedra  e  calcou  o  pé  com  fôvea  no 
çhao  »  e  ouviu-se  o  ronco  de  Tupan.  Irapuam,  por  outro- 
lado,  bem  merecia  d'isso,  attenta  a  sua  frouxid&o.  Dous 
insêjos,  cada  qual  mais  propício,  perdeu  de  dar  de 
garra  ao  estrangeiro  —  um  no  bosque,  onde,  se  este 
penetrou,  com  maioria  de  razão  poderia  penetrar  aquelle 
que  ia  punir  um  sacrílego,  e  a  quem  a  opposiçao  de 
uma  fraca  mulher,  nrincipal  culpada,  nao  deveria  de- 
ter ;  outro,  quando,  tendo  cem  guerreiros  de  seo  lado, 
o  foi  incontrar  só  com  Cauby.  Eis  ahi  o  cacique  esculp-^ 
tural  da  Ibyapaba  !  Que  amor  o  ibeo,  que  sentimento  ae* 
vingança,  que  denodo,  que  desvelo  pela  defeza  do  rito  t 
Uma  mulher  (que  e!le  já  devia  então  odiar]  o  amiaçava^ 
eil-o  tolhido  ;  incon trava  o  rival  (que  nao  era  só  isso» 
mas  também  profanador  da  liturgia  sagrada)  a  sós  com 
o  irmão  da  mulher  que  o  ultrajara,  e  tanto  bastava 
para  frustrarem-se  os  seos  ímpetos,  apezar  de  açhar*8e 
accompanhado  de  cem  guerreiros  ! 


XXXVIII  877 

Na  batalha  em  que  mais  tarde  se  empenha  com  os 
Pityguáras,  como  já  7Ímos,  nSo  faz  maiores  prodfgios 
4e  bravura  ;  e,  para  incurtar  razoes,  là  se  foram  sem  uin 
arranhão  Martim  e  a  índia  ;  e  esse  preclaro  cabecilha, 
que  nos  dizem  as  chrónicas  mandar  sobre  mais  de  30 
aldeias,  que  nos  diz  o  próprio  Sr.  Alencar  a  tantas  vezes 
tsr  guiado  os  seos  guerreiros  ao  combate,  quantas  à 
TÍCtória  »  (pag.  61)  volta  cabisbaixo  e  derrotado,  dando 
•o  mais  formal  e  vergonhoso  desmentido  ao  passado  re- 
nome !  Eitt  como  são  reduzidos  a  zero  typos  colossaes, 
que  o  valor  e  o  poder  illustraram  nas  guerras  da  con- 
quista !  O  Sr.  Alencar  pôde  jactar-se  de  intendedor  da 
história,  e  de  chefe  da  nossa  htteratura.  Tem  dôdo ! 

O  typo  de  Poty,  posto  que  njienos  falso  que  o  de  Mel 
Bedondo,  fica  ainda  assim  muito  somenos  &  grande  fi- 
.^ra,  que  subsiste  e  perdurará  indelével  entre  os  brilhos 
áe  homérico  heroismo  nas  nossas  p&ginas  da  restau- 
nçfto. 

O  que  faz,  na  verdade,  Poty,  na  lenda  do  Sr.  Alen- 
car, que  se  mostre  na  altura  das  altas  façanhas  d*es8e 
braziliano,  no  período  da  guerra  hollandeza  ¥  Accom- 
panhemol-o,  desde  que  apparece  até  ao  fim  da  lenda. 

Martim  está  na  cabana  do  page.  cc  Levantado  no  re- 
^omno  da  noite  um  grito  vibrante,  que  remonta  ao  céo  » 
ípag.  5n,E*  o  grito  da  gaivota,  que  ires  vezes  resôa 
(pag.  (55),  ou  antes  é  a  voz  de  Poty,  que  de  dentro  do 
tanque  da  aldeia  dava  signal  a  Martim. 

Nos  sertões  do  Ipú  n&o  ha  gaivota,  tanto  que  a  índia 
•desconhece  esse  grito,  o  que  Martim  acha  muito  natural, 
TÍsto  como  a  gaivota  é  «  a  garça  do  mar  »  ;  ao  passo  que 
Iracema  é  a  a  virgem  da  serraj  que  nunca  desceu  ás 
(Uvas  praias  r>  (pag.  51) 

Mas  se  o  grito  da  garça  do  mar  er^  desconhecido  da 
índia,  presume-se  que  também  o  fosse  dos  guerreiros  ta- 
bajàras  em  incessantes  guerras  com  os  pityguáras,  e 
senhores  dos  seos  costumes  e  modos  de  aununciar-se  ? 
Decerto  que  nao.  Ora,  se  o  nao  era,  presume-se  que 
Poty,  prudonte  e  matreiro,  se  arriscasse  de  tal  modo 
4t  no  resomno  da  noite  »  e  ao  alcance  immediato  dos  ini- 
migos f  E  isso,  quando  a  aldeia  suspeitosa  deveria  estar 
4e  sôbr'aviso,  depois  do  facto  de  haver  soado  «  o  búzio 
guerreiro  dos  Pityguáras»  que  horas  antes  a  tinha  alar- 
mado (pag.  42)?  O  verdadeiro  Camarão  nao  se  teria  met- 


278  xxxviir 

tido  em  tal  giqui.  (1)  E  é  tao  verdade  que  em  tal  situa- 
ção estava  exposto  o  prudente  abaete,  que  a  índia  a  foi 
direito  ao  logar  d'onde  partiu  o  grito  e  chegou  à  borda 
do  tanque  »  (pag.  55.)  Se  a  índia  foi,  como  nao  iriam 
os  Índios? 

^  D'aqui  o  vamos  achar  no  combate  na  floresta,  do  qual 
já  te  dei  noticia  na  minha  V  carta,  e  que,  sem  embar- 
go de  ser  travado  entre  figuras  tao  legitimamente  afa- 
madas, taes  como  Mel  Redondo,  Jacaúna,  Camarão  e 
Soares  Moreno,  appresenta,  como  visle,  a  feição  burlesca 
da  caricatura  (é  o  termo). 

O  que  fez  de  certo  digno  de  si  o  Camarão  'nesse  prélio 
de  athletas?  O  Sr.  Alencar  o  vai  dizer  :  «  Poty  já  pos- 
trou  o  velho  x\ndira  e  quantos  guerreiros  topou  na  lucta 
seo  válido  tacape.  »  Verdade  é  que  conclúe  'nestes  ter- 
mos ;  »  Martim  lhe  abandona  (a  Po^yj  o  filho  de  Ara- 
ken,  e  corre  sobre  Irapuam.  »  O  íilho  de  Araken, — 
Cauby — é  certo — parece  que  era  am  guerreiro  moço  e 
valoroso;  mas  também  certo  é  que  Poty  lhe  nao  levou 
grande  e  cabal  vantagem,  pois  que  o  vemos  apparecer 
depois  nas  praias  do  Ceará,  onde  foi  ter  com  a  irmã 
sao  como  um  pêro  (pag.  142).  Logo,  em  rigor  e  subs- 
tanciando, em  que  se  resumem  os  grandes  feitos  ou 
proezas  do  Camarão  'nesse  renhido  combate  ou  antes  em 
toda  a  lenda  ?  Em  prostrar  o  velho  Andira.  O  velho  l 
Terás  idéa  approximada  do  valor  d'este,  pelas  seguintes 
palavras  de  Irapuam,  que  o  invectivou  com  acerbo  me- 
noscabo, quando  elle  votou  contra  o  combate:  « — Fica 
tu,  escondido  entre  as  igaçabas  de  ninho,  fica,  velha 
morcego,  porque  temes  a  luz  do  dia,  e  só  bebes  o  san- 
gue da  víctima  que  dorme  »>  (pag.  19)  Eis  ahi  quem 
Poty  prostrou. 

E  depois  d'isso,  nada  mais  occorre  na  altura  de  r©- 
commendar  este  último.  Vemol-o  pintar  Martim  com 
os  <<riscos  vermelhos  e  pretos,  que  ornavam  a  grande 
nação  pityguara  "  (pag.  11.:!),  frechar  o  camoropim  de 
cima  do  coqueiro,  ou  do  morro  do  Mocoripe  etc. 
Cousas  d'estas.  E  acabou-se.  Será  este  o  próprio  Cama- 
rão grande,  ou  o  Camarão,  le  petit  ?  Que  houve  diver- 
sos Camarões,  dil-o  a  história. 

Antes  de  fazer  poncto  por  hoje,  permitte-me  trasla- 
dar ainda  uns  ligeiros  extractos. 


1)  Armadilha  selvagem  de  pegar  camarão. 


XXXVIII  279 

Lè-se  na  pag.   10  do  poema  : 

«  -  Bem  vieste  !  O  estrangeiro  é  senhor  na  cabana  de 
Araken.  Os  Tabajàras  tem  mil  guerreiros.  » 

E  na  pag.  52  .* 

"  -  Nao  vale  um  guerreiro  só  contra  mil  guerreiros.  » 
Se  o   vocábulo — mil — foi  empregado   aqui  na  acce- 
pç&o  de — grande  número,   muitos,  pa^se  ;   mas  se  o  foi 
na  accepçao  de     dez  vezes  cem — seria  isso  tao  grossei- 
ro erro,  que  d'elle  nao  reputo  capaz  o  Sr.  Alencar. 
Os  nossos  Índios  só  para  os  números  l,2,3,e  100  tinham 
termos  próprios,  a  saber;   um,   oiepen  ;  dous,  mocôtn; 
três,  moçapoêr;  cem,  papaçà.  De  quatro  a  10  contavam 
c^ompoudo    03  niimoros  com   os   três  primeiros,   d'este 
modo  ;    quatro,  m,òcoia — mocòin ;    cinco,   pò  (mao,   ou 
cinco  dedos);   seis,    moçapuer — moçapuer ;  eic.  (Vide  o 
Vocabulário  do  padre  M.  J.  S.) 

A  lingua  Kechàa  tinha  o  vocábulo  huaranca^  mil ; 
sias  seria  erro  usar  do  termo  entre  índios  que  falavam 
s  lingua  geral,  como  os  tabajàras, ou  melhor  como  todos 
es  nossos  aborígenes. 

O  Sr.  Alencar,  seguramente  seguindo  'nisso  d'Orbi- 
gny,  que  opina  haver  em  toda  a  América  meridional 
uma  só  religião— a  dos  Quichúas^  intercala  nas  prag- 
máticas bárbaras  dos  Índios  do  peará  práticas  que  eram 
evidentemente  peculiares  aos  Incas,  que  professavam 
esta  religião.  A  supposta  festa  que  nos  dá,  sob  o  nome 
sonoro  e  pomposo  de  festa  <(  á  lua  das  flores  »  está  'neste 
caso. 

Os  chronistas  nao  falam  de  tal  instituição  entre  es 
«utochthones  brazileiros.  Ainda  aqui,portanto,o  corajoso 
e  temerário  romancista  quiz  dar-nos  um  mero  producto 
do  seo  génio  inventivo  ou  creador. 

Mas,  além  do  mais,  foi  infeliz  na  lettra  do  liymno, 
que  saiu  chilro  e  çhôçho,como  vais  ver: 

«  Veiu  no  céu  a  mae  dos  gu|rreirrs;  já  volta  o  rosto 
para  vêr  seos  filhos.  Ella  traz  as  águas,  que  enchem  os 
rios  e  a  polpa  do  caju. 

«  Já  veiu  a  esposa  do  sol:  já  surri  ás  virgens  da  terra, 

'filhas  suas.  A  doce  luz  accende  o  amor  no  coração  dos 

{guerreiros  e  fecund^a  o  seio  da  joven  mae.  »  (pag.  72). 

E  mais  nao  dic**. 

A  qualificação  de  esposa  do  sol  applicada  á  lua,  é  pro- 
priamente da  religião  dos  Incas,  segundo  a  qual  aPaçha- 
€ana4i^  deus  invisível,  creador  de  todalas  cousas,  tinha 


ZOU  JLAiLVUJ. 

O  podâr  supremo,  imperava  sobre  o  sol  e  a  lua  sua  mur- 
Iher,  » 

Como  a  cousa  não  vai  também  a  morrer,  nfto  me  de- 
terei mais  DO  texto  e  passo  às  notas. 

Teo  leal  amigo  e  admirador. 

Sbmprónio* 
Ignez  de  Oastro. 

POR 

JULIO    DE   CASTILHO. 

II. 

Houvemos  como  necessário  expor  a  syaopsis  do  epi- 
sódio da  história  portugueza.  E'  ella,  pelo  teor  por  que 
à  fizemos,  o  pequeno  esboço  de  um  quadro  granae. 
Tivemos  para  nós  ^ue  era  mister  lembrar  o  accoate- 
cimento  e  suas  peripécias,  para  que  se  mostre  o  porquft 
tantos  ingenlios  portentosos  se  teem  occupado  d'e9te 
assumpto  e  sempre  com  garal  assenso  e  beneplácito  dos 
intendidos.  Foi  o  insigne  doctor  António  Ferreira^ 
desembargador  e  lente  na  universidade  de  Coimbra,  o 
primeiro  que  urdiu  e  p5s  na  scena  aquelle  triste  e  Ia* 
ctuoso  successo;  e  só  viu  a  luz  em  Portugal  a  primeira 
tragédia  d^  Ignez  de  Castro,  cerca  de  250  annos  depois 
da  espantosa  catástrophe  dos  paços  de  Coimbra.  Foi  eia 
1598  que  veiu  á  imprensa  o  escripto  do  insigne  juris- 
consulto e  poeta  portuguez.  Escreveu  elle  a  sua  exeel- 
lente  tragédia— Castro—  em  5  actos  e  em  versos  deca- 
syllabos  soltos,  eatresaçhando-a  de  choros  e  concluiada 
p4^  acto  por  38  versos  sáphicos.  Sao  8  as  pessoas  d&^ 
tragédia,  afora  o  choro  das  moças  de  Coimbra, 

Consta  o  1*"  acto  de  longos  diálogos  entre  Castro  e 
sua  ama,  em  que  se  expoim  miudamente  os  amores  do 
infante  e  de  Castro;  o  casameato  forçado  d*aquelle  com 
Constança,  de  Castell^  a  morte  d'esta;  o  casamento 
occulto  d'ella  com  Castro,  a  escolhida  de  seo  coraçaoi 
constando  mais  este  acto  de  extensos  diálogos  entre  o^ 
secretário  e  o  infante,  em  que  aquelle  ancião  e  velho 
servidor  do  reino  procura  com  argumentos  enârgioos, 
e  a  maior  insistência,  dissuadir  o  infante  de  uma  paiicSo 
que  o  transvia,  de  um  amor  que  o  abate  e  ame^uitiba 
aos  olhos  de  seo  pae,  da  corte  e  dos  populares;  seoa 
argumentos,  suas  razões  de  Estado,  sao  rebatidas,   oc& 


XXXVIII  281 

*com  súpplicas  e  calma  em  que  transparece  a  raz&o  em 
repouso,  ora  com  o  ímpeto  e  a  violência  de  um  coração 
cheio  de  amor  ardente  e  contrariado  por  quem  nSlo  sabe 
nem  pôde  comprehendêl-o.  Doesta  lucta  tremenda  entre 
o  coração  de  um  mancebo,  incendido  nas  çbammas  de 
uma  paix&o  que  lhe  domina  os  sentidos,  e  a  razfto  calma 
de  um  ancião  cujo  espirito  gélido  não  pôde  compre- 
hender  aquelle  mundo  de  amor,  ternura  e  dedicação  sem 
exemplo  ;  d'esta  pugna  longa  e  tenaz,  em  que  se  esfor- 
çavam tao  denodados  cam piões,  venceu  a  paix&o  do 
príncipe  ;  e  o  adversário  retirou-se  derrotado  e  conven- 
^cido  de  que  nenhum  poder  humano  seria  capaz  de  ar- 
rancar d'aquelle  peito  uma  paixão  que  lhe  havia  senho- 
reado todo  o  alvedrio. 

Entram  no  2.'  acto  el-rei  D.  Affonso  IV,  Diogo  Lopes 
Pacheco  e  Pêro  Coelho. 

Sao  thema  d'este  acto  os  conselhos  pérfidos  e  sangui- 
nários de  Pacheco  e  Coalho,  e  as  hesitações  do  rei,  que 
ora  antepoi  aos  conselhos  a  grande  crueldade  de  mactar 
uma  innocente,  ora  cede  ás  razões  com  que  insistem 
-aquelles  espíritos  maléficos.  O  3.^  acto  consta  de  mono* 
iogos  entre  Castro  e  a  ama,  narrando  aquella  os  sonhos 
fatídicos  e  aterradores  que  a  haviam  assaltado  durante 
a  noite  ;  vindo  o  choro  annunciar-lhe  a  resoluç&o  irrevo- 
gável do  conselho  em  que  se  lhe  havia  decretado  a  morte, 
6  que  perto  vinham  os  assassinos  p5r  em  execução  o  que 
se  tinha  resolvido  em  conselho,  com  assentimento  do  rei. 
O  4."  acto  é  verdadeiramente  o  último  e  principal  suc- 
cesso  da  tragédia.  Âçham-se  em  scena,  e  em  face  uns  dos 
outros,  o  rei,  Castro!  Paçliêco  e  Coelho.  A  lucta  ó  tre- 
menda. Castro  e  seos  iunocentes  filhos,  ajoelhtidos  aos  pés 
do  Rei;  as  tribulações  daquella  almainnocentee  cândida 
desataudo-se  em  guaieis  excruciantes ;  seos  rogos  e  ge- 
mi^los;  o  çhura^r  e  soluçar  d*aquellas  creanças  tão  sem 
•culpa;  as  incertezas  do  rei,  que  tuctua  entre  a  piedade 
e  as  instancias  d'aquelles  malvados  conselheiros  ;  a  te 
nacidade  satânica  daquelles  monstros  ávidos  de  sangue; 
e  a  retirada  do  rei ,  deixando  a  víctima,  fraca  e  despro- 
tegida, intregue  á  fúria  implacável  de  ferozes  algozes  ; 
tudo  isto  forma  um  complexo  de  contraposições  onde  ha 
tanta  acção,  tanto  movimento  e  tamanha  exuberância 
ÁQ  vida,  que  nos  dá  razão  do  sobra  para  admirarmos  o 
grande  ingenho,  creador  d'este  transumpto  sublime  de 
inaudito  successo  histórico  dos  paços  de  Óoímbra. 


I 


282  XXMV III 

O  5."  acto  da  tragédia  da  Ferreira,  é  curlo  e  descai  ; 
consta  apenas  de  um  mensageiro  que  vem  dar  ao  deso- 
lado infante  a  triste  nova,  e  das  imprecaçOe;;  do  inÍBnle, 
promettendo  vincar  a  morte  da  sua  idolatrada  Castro, 
e  fazer-llie  as  lioiirad  pósthumas  de  ralulm  de  Porlng-al. 

Escreveu  também  sobre  este  assumpto  o  insigiii  poeta 
portiiguez  Domingos  dos  Reis  Quita;  e  em  llún  foi  dada 
à  luz  da  imprensa,  a  sua  tragédia  -  Castro.  Este  melo- 
dioso  po3la  concentrou  o  pensamento  da  obra,  redu- 
zindo'Ibe  as  dimensões;  sua  triig^édia  é  em  3  actos.  SfW> 
actores  o  príncipe  U.  f  edro,  D.  Iguez  de  Castro,  el-rei 
11.  Affonso  IV,  Coelho  e  Faoliêco,  um  embaixador  de 
Uispanha,  Aliâeida  conKdentu  de  D.  Pedro,  e  Leonor, 
aia  de  D  Ignez,  pnssaudo-se  a  scena  nu  jardim  da 
Quinta  das  Làgrymas. 

Apparecetii  no  M'  acto  os  assassinos  com  as  espadas 
tiuctas  do  smi^ne,  e  em  uma  porta  ao  fundo  o  cadáver 
de  Igmrfz  de  Castro.  A  verdade  histórica  è  aqui  um 
pouco  sacrificada,  porque  o  embaixador  de  Hispanha, 
que  vem  a  Fonugal  exigir,  em  nome  de  seo  rei,  cum- 
primento de  contractos,  e  satisfacçOes  por  siippostus  of- 
fensas.  ficando  cimmovido  e  interessando-se  pela  desdi- 
tosa Castro,  é  o  primeiro  que  desiste  de  suns  preteurOes 
e  que  intercede  em  neo  favor  e  reconhece  a  validade  do 
cousórciol!!  leto  é  inverosimil  e  inadmissivel. 

E',  sem  duvida  alguma,  amais  popular  de  to<In.s  as 
tragédias  escriptas  na  língua  portugueza,a — Nova  Castro 
— de  João  Baptistb  Gomes  Júnior.  Este  joven  eacriptor, 
que  tilo  m^iço  foi  arrebatado  às  lellras,  e  que  jà  nos 
havia  dado  as  IriiducçOes  de  Faiei,  de  Arnaud,  e  Aos  Ma- 
cliabè.ja,  de  Lamotte,  em  bons  vnrsos  portugueses,  era- 
simples  guarda-livrfs  de  uma  casa  coinraercial  no  Porto 
(d'onde  era  nniural),  qnHiido  escreveu  a  sua  popularís- 
sima— Nova  Castro — t4a3  lia  quem  lhe  nao  tenha  de  cór 
ãcciías  inteiras;  nao  h^  pelo  menos,  quem  lhe  nao  saiba 
muito  verso,  que  por  ser^m  muito  vií^toa  e  muito  repe- 
tidos, cairam  jà  em  uma  espécie  de  trivialidade  .\  ver- 
siticarão  é  túrgida;  o  pensamento  liy^ierbólico;  ha  .sohe- 
jidoes  no  dizer  e  demasias  nos  epillictus;  mas  por  pouco 
que  ,se  conheça  a  eschola  do  tempo  e  que  se  considere 
no  PStylo  dos  árcades,  e  sobre  tmlo  no  chamado  elaia- 
nieuio,  que  ainda  dominou  por  muito  tempo,  vèr-se-ha 
que  o  estjlo  de  JoSo  Baptista  era  o  da  ischola  d'>mi- 
nante,  e  que  tem  tantos  esplendnre-^  ii  tantas  galas,  que 
hnde    ser  adminida  sempre  pela  riq^ieza  de  língua  que 


XXXVIII  283 

possuíam  aquelles  beneméritos  das  lettras  e  a  quem  hoje 
ninguém,  com  as  lisuras  e  simplicidades  apregoadas, 
póde,nem  sabe  imitar. 

E'  H  tragédia  de  Joíio  Baptista  Gomes  em  5  actos  ;  en- 
tram n'ella  nove  personagens  e  maisdousmeninos,fillios 
de  D.  Pedro  e  de  D.  Ignez;  a  scena  é  em  Coimbra,  'numa. 
sala  do  palácio;  é  composta  em  versos  decasyllabos 
soltos,  .gnez  de  Castro  é  a  mulher  tímida,  visionária, 
sonhando  sempre  com  espectros,  tendo  sempre  deante 
dos  olhos  scenas  lúgubres,  e  misturando  aos  poucos  mo- 
mentos de  ventura,  que  lhe  sao  curtos  e  fugidios,  sécu- 
los de  amargura,  de  pranctos  e  terrores. 

O  príncipe  é  um  character  impetuoso  e  arrebatado 
sem  trégua;  o  rei  é  um  tyranno  violento;  em  suas  curtaS' 
e  passageiras  intermissOes  inclina-se  á  piedade  ;  porém 
essa  estrel asinha, que  apparece  'naquelle  horizonte  tene- 
broso, s(íme-se  logo  debaixo  das  nuvens  espessas  d'a- 
quelle  céo  de  tormentos  e  nevueiros. 

Pacheco  e  Coelho  sao  dous  monstros  sanguinários, 
sedentos  do  sangue  innocente  da  miseranda  Castro;  não 
se  descobre,  desde  a  perfídia  do  Conselho  até  o  commet- 
timento  cobarde  do  assassinato,  um  motivo  de  simi- 
Ihante  atrocidade  ;  nílo  ha  uma  razfto  que  justifique  a 
idéa  fixa  dos  conselheiros  e  algozes  que  tudo  ao  mesmo 
tempo  o  foram.  O  terceiro  acto  d*esta  tragédia  é  uma 
verdadeira  tempestade,  de  princípio  afim;  parece  que, 
desincadeados  os  elementos,  não  ha  mais  repouso,  nem 
trégmas  'naquelle  oceano  de  fúria»?.  Como  na  tragédia  de 
Quita,  cá  apparece  também  o  compassivo  embaixador 
de  Hispanha,  que  entra  furibundo  e  amiaçador  nqg 
paços  do  rei,  proraettendo  afogar  tudo  em  guerra  para 
sustentar  com  toda  a  força  o  decoro  do  throno  e  da  filha 
do  seo  rei,  que  ja  pisa  as  fronteiras  dos  domínios  do  rei 
portuguez,  e  depoia  por  sua  c^nta  e  risco  delibera  por  si; 
pede  perdão  para  Ignez  de  Castro;  re?ponzabiIiza-se 
pelo  bom  resultado  da  negociação;  e  volta  em  boa  paz 
com  a  princeza  lá  para  sua  Hispanha,  e  tudo  ficou  como 
se  nada  tivesí?e  havido  !!!  fato  mostra  que  Jojío  Baptista 
Gomes  vasou  boa  parte  de  sua,  aliás  formosa,  tra<rédia 
no  molde  de  Quita.  Esta  tra^rédia,  que  foi  impressa  em 
1813,  tem  tido  muitas  edições,  e  ha  d'ella  uma  versão 
allema  em  verso. 

Escreveram  sobre  este  assumpto,  e  em  diversos  tempos 
e  no  género  de    que  traclamos,  muitos  distinctos  poeta? 


^4  xxxvin 

tr&gicos  portugaezes  que  eternizaram  espleadidamente 
a  luctuosa  catástrophe 

,  ...  da  misera  e  mesquinha 
que  depois  de  ser  morta  foi  rainha. 

Escreveram,  com  maior  ou  menor  felicidade  na 
concepção  e  no  desempenho,  Nicolau  Luiz  em  1760, 
António  d'  Araújo  e  Azevedo,  Joaquim  José  Sabino, 
âouza  da  Câmara  e  outros;  e  nao  só  .  portuguezjs  têm 
invocado  e  alcançado  favor  da  musa  trágica  n*este  as- 
sumpto tao  seo,  senão  também  grande  número  de  poetas 
trágicos  francezes,  hispanboes  e  italianos.  O  colher 
incessante  de  t&o  sazonados  fructos  'neste  campo,  dá-nos 
prova  do  que  vale  para  os  coraçOes  sensíveis  e  para  os 
oons  ingenhos  esse  memorável  e  lachrymoso  episódio 
da  história  portugueza. 

MUCIO   SCOBVOLA. 

{Continua.) 


Oax*ta  Px^iimeix^a* 

DE  CINCINNATO  A  CUJÁCCIO. 

lUustrado  Cujáccio. 

Dizes  tu  que  lês  habitualmente  as  Questões  do  dia^  e 
'nessa  publicação  te  chamam  a  attençao  de  um  modo 
muito  particular  as  eruditas  cartas  de  Semprónio. 
Accrescentas  que  recentemente  viras  'numa  d'ellas  um 
trecho,  que  deixa  em  dúvida  os  conhecimentos  jurídicos 
do  venerando  Sr.  Alencar,  tão  apregoados,  ao  menos 
^or  elle  mesmo.  Perguntas-me  sobre  esta  matéria  a 
minha  opinião,  e,  emb'ora  desauctorizada,  não  devo 
occuUar-t'a. 

Persuado-me  eu  aue,  tendo-se  aquelle  senhor  appli- 
cado  a  tanta  cousa,  toi  vicflma  de  uma  lei  da  pkysica : 
o  que  ganhou  em  superfície,  perdeu-oem  profundidade. 
N&o  se  pode  accumular  a  universalidade  das  superiori- 
dades, porque  essa  perfeição  só  pertence  ao  Ente  Su* 
Íremo,  e  elle  ainda  o  não  é,  posto  para  lá  caminhe, 
erá  de  contentar-se  com  ser  estupendo  romancista,  e 
litterato,  e  prosador,  e  poeta,  e  dramaturgo,  e  jornalista» 
e  político,  e  orador.  Como  a  jurisprudência  lhe  ficou 
para  as  horas  vagas,  'nella  a  cada  passo  claudica  e 
esbarra. 


XXXVIII  285 

S&0  innumeraveis  as  provas,  que  ySo  ahi  por  todo 
esse  foro,  da  infelicidade  do  perito  jurisperto.  Admira 
não  teres  seguido  também,  pela  imprensa,  algumas  das 
polémitaí^  jurídicas,  em  que  o  nosso  causídico  tem  sido' 
anniquillado  por  muito  mais  habilitadas  pennas. 

Nfto  alludirei  aqui  a  pònctos  controvertiveis.  Não  só* 
as  sciências  positivas  se  prestam  frequentemente  a  boa 
ãustentação  de  theses  oppostas,  mas  um  advogado,  obri*- 
gado  a  defender  o  seo  cliente,  nem  sempre  tem  con*- 
vicçao  da  sua  justiça  absoluta,  e  d'est'arte  vè-se  obri- 
gado a  sustentar  doctrinas,  pelo  menos  duvidosas. 

Concedendo  porém  tanto  á  profiss&o  de  advogado,  há 
uma  barreira  que  lhe  nfto  é  lícito  ultrapassar.  Nenk 
pôde  contrariar  os  princípios  elementares  do  direito, 
nem  ignorar  cousas  sabidas  por  qualquer  triste  fiel  dè 
feitos.  N&o  scei  se  o  distincto  lettrado  nao  estará  'neste 
caso.  E  como  tenho  o  hábito  do  allegado  e  provado, 
vejamos  alguns  factos,  ou  desconhecidos,  ou  já  tra- 
ctados  pela  imprensa.  E  como  d'estes  mostras  nsio  ter 
notícia,  por  elles  começarei. 

Ainda  ha  poucos  mezes  se  agitou  pela  imprensa  uma 
discussão  jurídica  entre  o  Sr.  Alencar  e  outro  muito 
mais  valente  e  competente  contendor,  o  Sr.  Lafayette 
Bodrigues  Pereira.  O  epílogo  doesta  polémica  foi  uni 
artigo  em  que  se  resumia  o  que  do  debate  resultara,  e 
que  o  Sr.  Dr.  Lafayette  formulou  nas  seguintes  pa- 
lavras: 

...  c(  ExplosSLo  da  vaidade  offendida;  é  o  odre  qu-e 
arrebentou.  O  sábio  conselheiro  que,  de  ha  ânuos  a  esta 
parte,  traz  ás  costas  um  pesado  fatr<xs  litterário,  andava 
a  campar  de  jurisconsulto  de  polpa.  A  discussão  rom-  < 
peu-lhe  as  falsas  bulias,  que,  é  verdade,  se  tinham  tor- 
nado um  pouco  suspeitas,  depois  da  publicação  de  uns^ 
célebres  projectos  de  reforma  judiciária,  que  a  esta  hora 
já  terão  sido  approveitados  p^ra  alguma  encyclope- 
diana. 

<c  As  estupendas  heresias  jurídicas  que  o  sábio  conse- 
lheiro, com  invejável  gravidade!,  denomina  fructos  de 
fneditação^  mbsidios  da  sciência^  puzeram  patente  a  do- 
ctos  e  a  indoctos  uma  verdade  pungente,  e  que  fora 
melhor  se  conservasse  occulta ;  a  saber :  que  S.  Ex.  não 
andava  muito  familiarizado  com  as  Pandectas. 

«  Ntinca  me  passou  pela  mente  desconhecer  os  subli- 
mes (alentos  do  sapientíssimo  conselheiro,  como  folhe- 
tinista, poeta,  roíiiaucista  e  auctor  de  dramas.  E,  para 


286  XXXVIll 

•^prova  da  miiilia  sinceridade,  approveito  a  occasiao  para 
lhe  dizer  que  desde  muitos  aunos  professo  a  mais  viva 
admiração  pelos  inoiísirengos  laoraes  c\wq  ornam  a  sua 
linguagem  litterària,  e  pela  língua  divina  que  falam, 
língua  que  a  nós,  míseros  mortaes,  pôde  p«recer  fcrfr- 
ba7*a  estropiada.  » 

Ja  vês,  amigo,  como  um  distiiicto  jurisconsulto  avalia 
3,  sciência  do  Sr.  Alencar.  Nem  se  diga  que  apenas 
alludia  a  uma  dissidência  em  poucto  de  diictrina.  Quem 
argiie  a  outrem  de  proferir  heresias  jurídicas,  de  cam- 
par com  bulias  falsas,  de  desconhecer  as  Pandectas,  etc, 
characteriza  a  sciência  d'osse  outrem  em  matérias  ge- 
raes  de  direito,  e  nfio  em  q  lalquer  especialidade. 

Foi  o  referido  artigo  re- posta  ao  último  do  Sr.  Alen- 
car, intitulado  Simples  advertências,  repleto  das  mais 
Audaciosas  baforadas,  e  onde  apparecem  dos  taes  dizeres, 
que  sao  propriedade  exclusiva  d'este  .senhor.  Por 
exemplo  : 

—  c(  O  amor  próprio  e  o  despeito  sao  fumo  do  coração» 
que  tolda  o  espírito  e  obscurece  o  intendimento.  »» 
Bravo !  Temos  aqui  obscurecido  um  intendimento  quô 
.nao  é  espírito,  e  toldado  um  espírito  que  nao  é  intendi- 
mento, e  tudo  isto  defumado  polo  despeito,  que  é  fumo, 
e  fumo  de  que  1  do  coração.  Impagável  I 

Diz  que  «  Ov^ídio  entre  os  Getas  escreveu  este  veeso 
Barbarus  ego  siim,  quia  non  inielligor  illis  » 
como  se  Ovídio  fizesse  versos  errados  ;  sendo  este  vêso 
de  nunca  citar  certo,  um  dos  elementos  da  minha  con- 
vicção de  que  o  famoso  V.,  das  Palestras^  n5o  era 
mais  que  um  copista  do  patrão. 
,  Emfira  deixemos  essas  minúcias,  e  venhamos  ao  as- 
sumpto, que  então  se  agitou. 

Involvi:i  elle  muitas  circumstâncias  era  que  a  contro- 
vérsia era  tolerável,  mas  um  poncto  ha  que  docios  e 
indoctos  reconhecerão  j^rimà  /acíe,  que  o  Sr.  Alencar 
errou  desastradamente. 

Um  devedor  hypothecário,  nao  satisfazendo  o  seo 
débito,  foi  executado ;  procedeu-se  a  avaliações,  que  se 
dizem  exaggeradas,  dos  respectivos  immoveis,  os  quaes 
por  quantia  muito  superior  ao  débito  foram  adjudit^ados 
Ao  credor, que  nao  quiz  consignar  o  valor  do  denominado 
excesso,  no  praso  que  lhe  foi  marcado. 

Queria  o  Sr.  Alencar  que  o  credor  adjudicatário  fosse 
levado  á  prisão,  e  'nella  permanecesse  até  que  eatrô^ 
^asse  o  tal  chamado  excesso  ! 


XXXVIII  287 

Existe  alguma  lei  no  Império  que  tal  cousa  prescreva? 
Nao  ;  mas  o  liberalismo  do  actual  ueóphyto  republicano 
é  Hdsim  :  liberdade  do  cidadão  é  para  elle  uma  insi- 
gnificância, um  brinco  ;  deroga  a  constituição  ;  estabe- 
lece umas  theorias  cerebrinas,  que  se  convertem  em 
práticas  iuquisitoriaes  ;  incarcera....por  analogias!  A 
detenção  corporal,  a  pena,  susceptivel  sim  de  restrin- 
gir-se,  nunca  de  ampliar-se,  o  novo  Torquemada  a  ful- 
mina arbitrária,  despótica,  tyrannicameute,  sem  sombra 
•de  legislação  em  que  se  estribe.  Se  o  legislador,  excep- 
cional e  raramente,  preveniu  algum  caso  de  commina- 
ção  de  prisão,  circumscreveu-o,  limitou-o,  definiu-o.  Se 
em  dadas  hypótlieses,  a  lei  permittiu  esse  meio  contra 
depositários  e  arrematantes,  nunca  o  auctorizou  contra 
08  adjudicatários,  que  nem  arrematantes  nem  depositá- 
rios são. 

Tudo  isto  é  eiemeutar  ;  mas  o  Sr.  Alencar,  que  já  nos 
seos  projectos  de  reforma  judiciária  se  patenteara  adora- 
dor dos  cárceres,  masmorras  e  ergástulos,  quiz  ir  j& 
fazendo  experiências  in  anima  vili  de  um  cidadão.  Para 
elle,  a  liberdade  natural  é  um  abuso,  ou  pelo  menoa 
uma  mercê  de  S.Ex., que  assim  pode  ací  /i&iíum  coarctal-a! 

Para  honra  do  paiz,  cumpre  declarar  que  não  houve 
uma  só  voz  no  foro,  no  paiz,  nos  tribunaes,  que  fizesse 
choro  com  a  menos  inquisitorial  que  absurda  doctrina. 
Consultados,  todos  os  advogados  unanimemente  clama- 
ram contra  a  stulta  pretenção  ;  egual  uniformidade  se 
repetiu  nos  tribunaes  ;  egual,  na  opinião  dos  sabedores 
de  direito,  e  até  dos  mais  extranhos  ao  estudo  da  juris- 
prudência. Ficou  S.  Ex.  collocado  na  menos  invejável 
unidade  ;  foi  o  pur  si  muove  do  absurdo.  « 

Por  hoje  aqui  me  fico  ;  proximamente  trarei  outras 
brilhaturas  do  digno  jurisperito  ao  teo  conhecimento. 

Teo  respeitoso  amigo 
^  C1NCINNA.T0, 


Os  inglezes  e  09  x*epiil>iioaiios. 

Ha  três  meios  efificazea  de  convencer :  o  raciocínio,  o 
pão  e  o  dinheiro. 

A  grande  maioria  da  nação  ingleza  intendeu  que 
convém  convencer  os  republicanos  d'aquella  terra,  a  que 
não  tentem  mudança  na  forma  do  seo  governo. 

Mas  também  intendeu,  que  o  raciocínio  nem  sempre 
é  eflicaz,  pirque  uns  não  podem,  e  outros  n&o  querem, 
comprehender. 


288  xxxvm 

o  dinlieiro  tem  o  inconveniente  da  água  na  hydropi- 
sia:  quanto  mais  se  desse,  mais  fora  preciso  dar.  Tudo^ 
ahi  ficava  republicano,  só  para  receber  a  maquia. 

Resta  o  tercejro  meio.    A  grande  maioria  da  naçfio- 
ingleza  proclamou  aos  &eos  patrícios  republicanos,  que 
os  hade  levar  a  soco  (se  nâo  for  a  páo).  Assim  está  es- 
cripto  no  Boletim  do  Jornal  do  Commércio^  de  5  do  cor- 
rente. 

Socos  em  republicanos  !  Como  sfto  ignorantes  aquelles 
inglezes  I  Un  republicano  ou  liberal  de  papo  amarello 
tem  direito  de  mactar,  esfolar,  roubar,  incendiar,  estu- 
prar,  fazer  emfim  o  que  lhe  der  na  cabeça :  mas  é  pri- 
vilégio exclusivo :  nao  tem  correlativo. 

Otton. 


Pelo  dedo  o  gl^axite. 

Em  todos  os  tempos  gustaram  os  homens  de  deixar  de 
jsi  recordações  á  posteridade.  Antigamente  esses  monu- 
mentos affrontavam  os  séculos :  eram  as  pyràmides  do 
Egypto  ou  o  colosso  de  Bhodes,  e  mais  pjoximamente 
Belém  ou  a  Batalha  em  Portugal,  o  Escurial  em  His- 
panha,  e  outros  por  ahi  adeante. 

Vao-se  os  homens  amesquinhando,  e  com  elles  aa 
Buas  obras.  O  marquez  de  Pombal  mandou  levantar  a 
estátua  equestre  de  D.  José  I,  no  Terreiro  do  Paço,  em 
Lisboa  ;  porém  mandou  ao  mesmo  tempo  fazer  uma 
praça  condigna.  Quem  tem  visitado  aquella  capital 
sabe  que  a  praça  em  que  existe  a  estátua,  poucas  eguaes 
tem  na  Europa*.  No  Rio  de  Janeiro  mandou-se  levantar 
a  estátua  equestre  de  D.  Pedro  I,  porém  a  praça  ficoa 
^1  Qual  era  :  nenhuma  providência  se  tomou  para  o  seO 
melnoramento. 

A  illustrissima  câmara  actual  n&o  quiz  ficar  atraz  de 
suas  antecessoras. —  «  Efga-se,  disseram  os  illustríssi- 
mos,  um  monumento  que  atteste  aos  vindouros,  que  nós 
passamos  por  esta  terra.  Fique  memória  de  nósl  » — 
E  ficou. 

Lá  está  no  ex-Largo  do  Paço,  actual  praça  de 
D.  Pedro  II,  lá  está...  uma  latrina  pública,  exhalanda 
suavíssimos  perfumes,  com  que  sao  deleitados  es  nari- 
zes de  quantos  passam  pela  estrada. 

E  pelo  monumento  se  conhece  quem  o  mandou  le- 
vantar. Otton. 


L    Typographia  e  lithographia  —IMPARCIAL—  Rua  Sete  de  Setembm,  146  A ** 


QUESTÕES  DO   DIA 

RIO  DE  JANEIRO,  15  DE  FEVEREIRO  DE  1872. 


Teode-Be  em  casa  dos  srs.  E.  &  H.  La^mmert. — AgfObtinho  de  Freitas  Gui- 
maries  &  Comp.,  2G,  rua  de  General  Camará.— Livraria  Académica,  Rua  de 
S.  Jobé  n.  119-  Lar^o  do  Paço  n.  C— Preço  200  reis. 
O  r  volume,  com  i.erto  de  400pá£icas— 3|?GC0. 


OBRAS  DE  J.  DE  ALENCAR— A  IRACEMA. 

(Cartas    a   Oiixoinnato) 

XII 

Meo  amigo : 

Nao  entro  no  argumento  histórico  da  lenda,  nem  na 
questão  da  nacionalidade  do  Camarão. 

Do  primeiro  já  dice  quanto  se  me  oflferecia,  em 
referência  a  Martim  Soares  Moreno;  quanto  à  segunda, 
dou-me  por  «suspeito,  com  o  fím  de  me  poupar  uma  col- 
lisfto. 

Explico-me :  de  um  lado,  sou  natural  da  província 
para  a  qual  reclama  o  Sr.  Alencar  a  glória  do  haver 
dado  o  berço  ao  Camarão  ;  do  outro,  vejo  no  commen- 
dador  Mello,  que  ao  Ceará  contesta  essa  glória,  além  de 
uma  auctoridade,  um  amigo,  cuja  illustre  ancianidade, 
litter&ria  como  politica,  desde  muito  me  accostumei  a 
venerar. 

Se  nao  tivermos  attenções  para  esses  últimos  Aben- 
cerrages  das  priscas  eras  da  pátria — lumes  serenos,  que 
o  s&pro  impiedoso  da  morte  está  amiaçando  apagar-nos 
a caaa  instante,  quem  nol-as  merecerá  melhor?  Aca^o 
fechos  improvisados  de  hontem,  c^ja  çhamma  afc  guea- 
da  por  insólito  egoísmo,  nntes  no.b  desvaira  do  que  nos 
guia  nos  parcéis  da  história  ?  N^o  vou  para  ahi. 

A  primeira  nota  que  ^e  nos  depara,  inscrcve-se  sob  a 
«pfgraphe  — Onde  canta  a  jandaia.  'Nella  agita-se  a 
queatao  de  sater  d'onde  veiu  a  palavra  Ceará.  Já  dice 
a  esse  respeito  em  outro  Igar  o  que  é  escusado  repetir 

Do  verbo  rw^ í/ar,  que  o  auctor  compôs,  como  declara, 
auctorizado  pelo  exemplo  de  Filinto  Elysio,  que  creou 
Tvídar  (de  ruído)  tractarei  quando  houver  de  arriscar 


290 

tímidas  considerações  sobre  a  polícia  da  língua.  Hoje  a 
meo  despretencioso  exame  limita-se  á  parte  própria:- 
mente  indígena ;  e  d'esta  áquelles  termos  que  devem 
ao  Sr.  Alencar  etymologia  com  que  me  nao  conforma . 
Principiemos. 

Lê-se : 

«  Gard, —  Ave  palludal,  muito  conhecida  pelo  nome 
de  Guard.  Penso  eu  que  esse  nome  anda  corrompido  de 
sua  verdadeira  oriorem  que  é — ij,  agua — e  ard  arara^ 
arara  d'agua,  pela  bella  côr  vermelha.  » 

A  esta  opponho  as  opiniões  auctorizadas  do  Martios 
e  do  Dias. 

Diz  o  primeiro : 

a  Guard Contracção  de  Guá,    variegado,  eGtdraz 

Guaguirà,  ave  multicor,  porque,  pequena,  cobre-se  de 
pennas  brancas,  adulta  de  pennas  pretas,  e  por  ultimo 
de  incarnadas.  » 

Agora  o  Dias : 

<c  Guard,  ave ;  nasce  branca,  torna-se  preta,  e  por 
fim,  de  um  incarnado  vivíssimo.  » 

Se  é  certo  que  a  ave  passa  por  todas  estas  transfor- 
mações, d'ella  characteristicas,  quem  nos  auçtoríxaa 
despresar  a  etymologia  que  cabalmente  as  exprime  parm 
ir  buscar  outra,  errónea,  alem  do  mais  ?  De  ser  ella 
errónea,  fornece-me  prova  o  próprio  Alencar  na  nota 
seguiu  3,  para  a  qual  çham,o  a  tua  attençao : 

<c  Árd  —  periquito.  Os  indígenas  como  augmentativo 
usavam  repetir  a  ultima  syllaba  da  palavra  e  às  vezea 
toda  a  palavra — como  murémuri.  Maré — frauta — munS- 
muro  grandt?  frauta.  Ardra  vinha  a  ser  pois  o  augmeií- 
tativo  de  ard,  e  significaria  a  espécie  maior  do  género.» 

Se  elles  dobravam  a  syllaba,  e  até  a  palavra,  quando 
quoriam  exprimir  augLuentativo,  segue  se  que  'neste 
caso,  querendo  exprimir — ardra  d^agua^  diriam  gardra^ 
iáto  é  dobrariam  ard,  oiicí  singella  significa  simplus- 
mente — periquito:  e  nao  diriam  garà,  como  que  só 
teriam — periquito  d*àgaa.  O  Sr.  Alencar  morre  com  as 
suas  próprias  armas. 

Na  vau  pretençSo  de  tudo  poetizar  no  seo  aborto  de 
poema  (succede  o  contrário  as  mais  das  vezes)  a  cami- 
nhos directos  e  fáceis  prefere  tortu  jsos  rodeios.  Nfta  foi 
outro  seguramente  o  motivo  que  o  levou  a  ingeudrar  a 
etymologia  de  Pi/í^-jwara.s, quando «»  nome  evidentemente 
verdadeiro  é  o  de  Poliguaraa  ou — guerreiros  do  Camarfto. 
Lè-se : 


XXXIX  291 

«  Pitiguaras. — Grande  nação  de  índios  que  habitava 
o  littoral  da  província  e  estendia-se  desde  o  Paraahyba 
até  o  Rio  Grande  do  Norte.  A  orthographia  do  nome 
anda  mui  viciada  nas  differentes  versões,  pelo  que  se 
tornou  difficil  conhecer  a  etymologia. 

a  Iby  significa  terra;  ihy — tira  veiu  a  significar  serra, 
ou  tçrra  alta.  Aos  valles  chamavam  os  indígenas  iby — 
tira — cua — cintura  das  montanhas.  A  desinência  jara, 
senhor,  accrescentada,  formou  a  palavra  Ibyticuara — 
que  por  corrupção  deu  Pilygudra — senhores  dos  valles» 

Nao  procede,  ao  nosso  ver,  a  combinação.  De  Iby — 
ti — cua—jàra  (como  fica  a  palavra  composta,  e  nao  Iby 
— ii^-ma—ra^  como  diz  o  escriptor  )  vai  grande  diflfe- 
rença  para  Pity-guara-,  nada  menos  que  absorver  o  / 
inicial,  mudar  o  6  em  p,  supprimir  a  syllaba  ra  de  tira^ 
mudar  o  c  de  cud  em  g  para  dur  guáj  supprimir  a  syl- 
laba ja  de  jdra.  Só  bem  se  executam  taes  absorpções  e 
mutilações  no  gabinete,  onde  a  penna  corta  impune  e  á 
vontade;  o  povo,  até  mesmo  o  selvagem,  é  mais  respei- 
tador do  que  pareça  das  relíquias  do  passado. 

Al  accresce,  que  devo  lembrar:  a  opinião  do  escriptor 
levaria  ao  contrasenso.  Ibitiracud^  significando — cintura 
da  montanha^  não  podia  significar  valle,  porque  valle 
nunca  foi  cintura  de  montanha. 

O  que  é  valle  ?  «  Planície  juncto,  ao  pé  de  monte,  ou 
entre  montes  »  diz  o  lexicógrapho.  Se  é  ao  pé,  como 
pôde  ser  cinturay  que  dá  idéa  de  meio  de  cousa  ou  pessoa? 
Ao  valle  chamavam  elles  Ibyty-^godya  ou  ibyitygoaia 
e  não  Ibyticud. 

O  Sr.  Alencar  quiz  dar  origem  de  sua  lavra,  e  fez 
esta  confusão  inadmissível  combinação,  que  não  traz  gló- 
ria, porque  não  fora  diflBlcíl,  com  diccionários  e  folga  e 
sobretudo  fama,  preparar  laes  in:iêrtos.  Queres  tu  vêr 
quantas  combinações  arrumo  'num  momento  sem  o  mí- 
nimo esforço,  sem  folga,  sem  fama  e  sem  grandes 
recurso n  pliilológicos  sobre  a  pretendida  origem  da  pa- 
lavra Pilygudra  ou  Potigudra "?  Ouve  lá. 

Py — pé,  /j/roàra— misturar* com  água,  ou — pés  mo- 
lhados, por  frequentarem  esseí  selvagens  os  rios, 
visto  como  ((  habitavam  as  praias  e  viviam  em  grande 
parle  da  pesca  »  segundo  diz  o  próprio  J.  de  Alencar 
na  pag.  l70.  Não  se  faça  beiço  á  denominação  de — 
pis  molhadosy  por  quanto  havia  os  Índios  Uotuys  ou  de 
—pás  virados. 


292  XXXIX 

Pd— rnSlo  e  tycuàra^  ou  indios  de  mílos  molhadas, 
na  mesma  conformidade. 

/py— primeiro,  iby  terra,  e  juára  -  senhor,  ou — 
primeiros  senhores  da  terra,  na  accepçao  de  prioridade 
de  domínio,  ou  de  supremacia  do  \alf>r  guerreiro. 

Ipy  e  tecuàra^  ou  os  que  estão  primeiro. 

Iby  -terra,  íecò— poder,  e  vdra  senhor,  ou — podero- 
sos senhores   da  terra. 

Quando  sejam  illegltimas  taes  raízes,  nao  o  serão 
mais  do  que  a  raiz  do  Sr.  Alencar.  Mas  aiuda 
que  o  fossem,  poderiam  caber  no  caso,  à  vista  daa 
seguintes  palavras  de  ura  historiador  de  nota  : 

a  Nao  é  posíivel  intenderem-se  os  escriptores  ácêrca 
dos  nomes  próprios  das  hordas  selvagens  do  Brazil,  lao 
variados  sao  e  discordantes  entre  si.  O  certo  é  que  Po- 
tyguarés,  Putyguaras,  Pitiguarés  ou  Pitagoares,  tao 
diversos  em  suas  escripturas,  sao  comtudo  uma  e  a 
mesma  casta  de  indios,  que  h.ihitavam  desde  Pernam- 
buco até  o  Piauhy,  e  ainda  além,  como  querem  al- 
guns  Só  por  isto  se  pôde  ver  quão  estúpida 

nao  é  a  pretençao  do  tal que  queria  subraetter 

todos  estes  nomes  a  uma  escriptura  sua,  inventando 
com  este  fim  uma  orthographia  selvagem  :  tao  certo  é 
que  ha  no  mundo  gente  para  tudo.  » 

Lê-se : 

«  Boicininga — ó  a  cobra  cascavel:  de  boia^  cobra,  e  cv- 
ningay  chocalho.  '> 

Referindo-me  eu  'noutra  occasi3o  e  'noutro  logar  a 
esta  nota  da  Iracema,  tive  de  ajunctar  a  obs<^rvaçao  se- 
guinte ;  «  Entretanto  áiA  G.  Dias  que  o  vocábulo  boia^ 
na  composição,  vrecede  o  adjectivo,  e  pospõi-se  ao  subs- 
tantivo ;  e  dá  exemplo:  ardra—boyn,  cobra  de  ar&ra, 
bóia  '  pinimay  cobra  pintada.  Ora,  por  esta  regra  o 
termo  cinmga  ixTio  po4e  significar  chocalho,  e  deve  ser 
adjectivo  para  que  sq  posponha  à  hoia.  Ignoro  o  termo 
cininga  etc. 

Nao  tinha  eu  então  o  Glossário,  onde  agora  Sti  me 
offerecem  elementrs  para  decifrar  o  enigma. 

«  Cobra  Hnnidó^í^a  »  a  chama  o  Glossário  y  do  6o ia  e 
ocinimy  tinnir. 

Tivo,  do  mais,  occasiao  de  ver  que  no  tupy—  austral 
(d*on(1o  vem  ocinim  ou  antes  ôsinim)  o  termo  boiciínm 
significa-assobiar.  D'onde,  pois,  se  originou  em  defini- 
tiva a  exp-es.-:ao  :  do  cascavel  ou  do  silvo  da  cobra  ? 


XXXIX  293 

9 

Devo  afinal  declarar  que  se  confirma  a  regra  estabe- 
lecida por  G.  Dias  ;  cininga  pospoi-se  a  òoya,  porque, 
longe  de  significar  chocalho,  como  erradamente  diz  o 
Sr.  Alencar,  isto  é  longe  de  ser  substantivo,  é  adjectivo 
com  a  accepçao  de  cousa,  que  tinne. 

Lê-se  : 

a  Poíyuara — comedor  de  camarão  de  poty  —  e  uàra. 
Nome  que  por  desprezo  davam  os  ennemigos  aos  piti- 
guàras,  que  habitavam  as  praias  e  viviam  em  grande 
parte  da  pesca. 

c<  Este  nome  dao  alguns  escriptores  aos  pityguàras, 
porque  os  receberam  de  seos  ennemigos.  » 

O  Sr.  Alencar  foi  sem  dúvida  levado  a  conceber  taes 
idéas,  depois  de  ter  lido  no  Glossário  (pag.  523)  o 
seguinte  : 

«  Potiguares,  Potijaras^  Potyuaras ^laáios  da  gente 
de  Tupi,  que  comem  poti.  » 

Fosse  então  lógico,  e  nao  restringisse  ao  nome  Poty- 
uaras  a  qualidade  que  indistinctamente  se  attribúe  nao 
só  a  este,  como  também  aos  dous  primeiros  termos.  Mas 
discutamos  a  etymologia. 

Guará,  yara  ou  iara^jara  ou  uara  jamais  teve  a  signi- 
ficação de  comedor,  mas  sim  a  de  guerreiro,  ou  senhor, 
ou  habitante  :  Poliguara — guerreiro  de  Poti  ;  Tabajara 
ou  Tabayara  ou  Tabaiara,  senhor  da  aldeia  ;  Parduara^ 
habitante  do  Pará,  e  Capinara  habitante  do  Capim.  ( Vid. 
o  Diccionário  Tupy). 

Mas  S3  quer  dizer  que  a  palavra  se  compOe  de  Poiy,  o 
verbo  u-comer,  e  a  partícula  pospositiva  ara,  ainda  assim 
está  em  erro,  porque  a  esta  partícula  sempre  .se  juncta 
um  ç  :  Capiçara,  o  que  penteia  actualmente.  /'Vid.  o 
Dicciondrio). 

Convém  ainda  notar  que,  no  final  dos  veibos,  ella 
sempre  indica  a  pcs>oa  que  na  actualidade  exercita  a  sua 
significação,  como  no  exemplo  dado. 

Asáim,  pois,  para  que  procedesse  a  errónea  intelli- 
gência  dada  pelo  Sr.  Alencar  de — comedore.?  de  camarão 
— áquelle  nome,  deveria  elle  ser  escripto—Po/yi/para;  e 
fora  além  d*isso  mister  que  os  dictos  índios  levassem  toda 
sua  vida  a  comer  camarão,  porqur,  como  já  se  dice,  a 
partícula  indica  exercício  actual  da  pessoa  a  que  se  dá  o 
no.ne.  Ora  isto  é  o  cúmulo  do  absurao. 

Mas,  ainda  quando,  com  postergação  flagrante  dos 
preceitos  da  língua,  se  applicasse  a  denominação  aos 
guerreiros  do  chefe  Poty,  d'onde,  ou  de  quem  houve  o 


294  XXXIX 

Sr.  Alencar  a  notícia  de  que  tal  denominação  lhes  era 
applicada  pelos  inimigos  em  mostra  de  desprezo  ? 

O  que  se  presume  com  toda  razão  é  que  o  fariam  com  o 
fim  simplesmente  decharactcrizal-os,  como  era  de  costu- 
me entre  elles. 

Tao  plausiveis  nos  parece  serem  taes  conjecturas  que 
o  próprio  chefe  da  tribu  nao  se  desdourava  de  çhamar-se 
— o  Camarão. 

Lê-se : 

«  Senhor  do  caminho — assim  chamavam  os  indígenas 
ao  guia  de  py  — caminho,  e  gvara  senhor.  » 

Abro  o  diccionário  do  idioma  vulg-ar — tupy,  e  vejo 
que  ao  caminho  chamavam— p/?. 

No  dialecto  dos  índios  Apiacàs  çhamavam-n-o  pea. 

No  dialecto  dos  Cayowàs  pe. 

No  dos  Om águas  o  mesmo. 

No  da  língua  geral  por  G.  Dias,  idem. 

No  diccionàrio  da  Lingua  Tupypelo  Martins,  idem. 

Porque,  pois,  ha  de  o  Sr.  Alencar  dizer  pyguara  e  nao 
peguara?  O  terem-n-o  jà  outros  dicto  antes  de  si  nao  é 
razão  para  o  nao  acceitar,  e  menos  para  attribuir  ao  vo- 
cábulo significação  que  nao  tem. 

-Py  significa-pé,  e  nao — caminho. 

Lê-se : 

«  Gíboia.  Cobra  conhecida:  de  gi  machado,  e  bóia  cobra. 
O  nome  foi  tirado  da  maneira  porque  a  serpente  lança  o 
bote,  similhante  ao  golpe  do  machado;  pôde  traduzir-se 
bem,  cobra  de  arremesso.  » 

Parece-me  forçada  esta  etymologia. 

O  arremesso  ou  bote,  além  de  ser  commum  a  muitas 
castas  de  cobras,  nao  é  a  qualidade  que  mais  distingue 
o  individuo  emquesta..  Seo  principal  characterístico  é 
inlaçar  a  vlctima;  esta  especialidade  nao  podia  escapar 
aos  índios  para  que  deixassem  de  deduzir  d'ella  a  cor- 
respondente expressão,   c 

Duas  combinações  offereco  em  substituição. 

Primeira:  tj— água,  e  bo2/a  ou— cobra  d'água,  por  ser 
insigne  nadadora.  (Ver  Hist.  Nat.  Pop.  por  Austet.) 

Segunda:  yefcj/ — affogar,  apertar,  e  boya,  ou  cobra  que 
aperta,  que  affoga.  A  corrupção  poderia  haver  dado,  sem 
ser  admiração,  jeboia,  como  alguns  escrevem,  ou  mesmo 
jyboia. 

Esta  se  me  affigura  d^entre  todas  a  mais  exacta  ety- 
mologia.  ^ 


295 

Lê-se : 

«  Sucury — A  serpente  gigante  que  habita  nos  grandes 
lios  e  ingole  um  boi.  De  Smi^  animal,  e  cury  ou  cnrUy 
roncador.  Animal  roncador,  porque  de  feito  o  ronco  da 
sncury  é  medonho.  » 

Pois  quem  diz — animal  roncador — dá  idéa  da  sucury? 

Acho  manifestamente  errónea,  nao  só  no  heniido 
como  nos  termos.  Curu  e  menos  airy  é  palavra  que  nílo 
conheço  na  liugua  geral. 

Curvrúca^  sim;  é  o  verbo  neutro  —  rosnar,  rugir, 
roncar. 

Nao  virá  melhor  de  çoo,  animal,  acú  de  açú  grande, 
^  Ay  água,  ou  grande  animal  ou  monstro  do  rio  ou  das 
águas  ?  E'  curioso  quanto  acerca  d*este  ophid^o  vem 
nas  scenas  de  viagem  do  tenente  A.  de  Taun^y,  pag.  96. 

Eis  aqui,  para  concluir  por  agora,  os  nomes  das  di- 
versas localidades  que  o  Sr.  Alencar  diz  serem  de  cunho 
original,  e  que  no  emtanto  se  incontram  no  Glossário,  e 
alguns  também  no  Ensaio  Estatístico  da  Província  do 
Ceard^  por  Pomneo. 

«  Ipú. — Chamam  aiiida  h(»je  no  Ceará  certa  quali- 
dade de  terra  muito  fértil,  que  forma  grandes  coroas  ou 
ilhas  no  meio  dos  taboleiros  e  sertões,  e  ô  de  preferência 
procurada  para  a  cultura.  D'ahi  se  deriva  o  nome  d'e.>sa 
comarca  da  província.  »  { Iracema^  pag.  164  ) 

«  Estes  terrenos  çhamam-se  vulgarmente  Ypús,  e  sno 
d'um  barro  preto,  massapé,  que  tem  muito  húmus  ve- 
getal, ou  decomposirilo  veg^Hal  e  animal,  que  as  águas 
aicarretnm  das  serras,  e  por  i^so  muito  substancioso.  E' 
'nestes  F/>í/.v  ou  valles,  (jue  >e  fazem  as  maiores  planta- 
ções de  cannas  »  [Ens.  EHal.  vol.  i,  pag,  140) 

a  Bífpa^fa,  Ipaiie  corr.  e  //.///aie,  tudo  água  ;  d'onde  os 
hrazileirns  usam  da  vo-^s  pflí/c5  para  qualqut  r  água  es- 
tarque  ou  alagadiça,  n  {  Gloss.  fag  502 ) 

a  Aracaty, — SigniSca  este  nome  bom  tempo  :  de  ara  e 
caíú.  Os  selvagens  do  sertão  assim  çliamavam  as  brisas 
do  mar  que  soprauj  regularmente  ao  ca\r  da  tarde,  e 
cnrrecdo  pelo  valle  do  Jaguaribe  se  derramam  pelo  in- 
terior e  refrigeram  da  calma  abrazadora  do  verão.  D'ahi 
resultou  rh?»Tnar  se  Árnraty  o  lojrnr  d'nnflp  vinha  a 
monçSlo.  Aintiii  h<»je  no  icó  o  nome  é  conservado  á  brisa 
da  tarde,  que  sopra  do  mar.  »  ( Irac.  pag.   171) 

€  Aracaty. — Ara  tempo,  catú  bom;  vento  do  Norte^ 
^tc.  »  (  Glos.  pag.  49 1 ) 


.Jlli..  _  1L^^W"1"1P*^ 


296  XXXIX 

«  No  sertão,  principalmente  no  valle  do  Jag'usribe9 
reina  um  vento  forte  em  tempo  de  sêcca  que  se  çhams 
— Aracaiy  -  vi  apparece  ao  cair  da  noite  quasi  de  repente. 
Este  vento  é  uma  providência  para  os  habitantes  do  paíz, 
porque  vai  refrescar  a  atmosphera  elevada  a  um  alto 
grau  de  calor  etc.  »  (  Ens.  Estat.  pag.  123  vol.  1.  ) 

«  Meruóca, — Demerw,  mosca,  e  oca, casa.  Serra  juncta 
de  Sobral,  fértil  em  mantimentos.  »( Irac.  pag.  180  ) 

a  Meruóca  (  Ceará,  Serra.  )  —  merui  —  oca^  casa  de 
moscas.  »  [Glos.  pag.  515.  ) 

«  Uruburetama — pátria  ou  ninlio  de  urubus:  terra 
bastante  aUa.  »  ( Irac.  pag.  180  ) 

«  Uruburetama,  (  Ceará,  Serra ) — urubu  retè  taba — 
casa  de  muitos  urubâs.  »   (  Gloss.  pag.  532 ) 

«  As  saborosas  Irahiras. — E'  o  rio  Trahiry  trinta  lé- 
guas ao  norte  da  capital.  De  trahíriy  peixe  e  y,  rio.  Hoje 
é  povoação  e  districto  de  paz.  »  [Irac.  pag.  180.) 

((  Trahiri  (Ceará,  Povoação)—  taraira^hy  ^rio  das 
Taraíras  »  [Gloss.  pag.  530.) 

«  Pirapora — Ri)  do  "Mirnníru ipe,  notável  pela  fres- 
cura de  suas  áí>'ua.s  e  oxcellências  dos  banhos  chamados 
de  Pirapjra,  iiologar  das  caçho^dras.  Provêm  o  nome  de 
P/ra  peixe,  /n^re  salto:  salto  do  peixe.  »  [Irac.  pag.  183.) 

((  Pira;)ora  'i^Miiias,  etc.)  ^/rirapore  salto  de  peixe  oa 
porá  habUante — Lo^ar  onde  os  peixes  saltam  ou  habi- 
tam   »  [G'os.   pa^^.  5'i2.) 

((  Púcaldha  à^  paca  e  tuba,  leito  ou  couto  das  pacas. 
Rííceiíle,  :nas  imi)ort-.:ite  ])ovoaí;jLu  em  um  bello  valle 
da  .s M*ra  da  Ai-aiinha.  »  {Iiac.  ]).ig.  18i,) 

«  Paca-uba  —[>òi'g[Oi,  Alúei-i)  paca  ty ha — L»gar  do 
aniniril  /'-./crt    »  [(jlos.  pag.  -317.) 

Vem  ua  iraceiua  uma  nota,  que  nâo  quero  deixar 
passir  sem  re;jaro. 

((  Giiayab'i-  [iv/^  o  au?cor.j — D  »  goaia,  valle,  y,  àgua^ 
jur,  vir,  /;e,  ;)i)r  onde  ;  por  onde  vem  as  águas  do  valle. 
Rio,  que  nns^- ;  ua  Aiatanlia,  ele.   » 

O. ide  .foi  í|;ie  o  Sr.  A.Ieii.:ai' achou  joaia  sigaífícando 
valle  "?  Vallí  é  ihyUgoúa.  j*or  si  vSÓ,  g  )aia  r-erve  de  desi- 
nência, qie  en:rit  na  co  in)osiçílo  da  palavra  ;  sem  ilfli 
non'aíev-^  n  n-.Tençlo  d<'  vnl.t». 

A  quví  veiu  ciáií  ./a/' /  l^hvh  favorecera  deuomiuaç3o 
poética  Já  se  vè)  que  lhe  approuve  dar  ao  io  — pur  onde 
vem  as  águis  do  valle?  Que  prejuízo! 


JXXXIX  297 

Porque  nSlo  hade  o  Sr.  Alencar  perder  o  mâo  costu- 
me de  improvizar,  com  mostras  e  tom  de  sapiência?  Isto 
nao  accredita  nem  eleva. 

A  etymologia  exacta  é  a  qiie  vem  no  Glossário,  que  o 
Sr.  Alencar  nao  teve  razão  de  desprezar,  'neste,  quando 
tanto  se  tem  d'elle  servido  em  outros  muitos  vocábulos. 

Prosigamos. 

«  Jacarecunga  —  Morro  de  areia  na  praia  do  Ceará, 
afamado  pela  fonte  de  água  puríssima.  Vem  o  nome  de 
Jacaré,  crocodilo  e  acanga  cabeça  »  [Irac.  pag.    187.) 

«  Jacaracanga  (Bahia,  Povoação)  —  Jacaré  crocodilo, 
acanga  cabeça.  C.beça  de  jacaré.  »  {Glos.  pag.  507.) 

«  Bahia  dos  papagaios —  E'  a  bahia  da  Jericoacura,  de 
jeruj  papagaio,  ena,  várzea,  coara,  buraco  ou  seio  ;  in- 
seada  da  várzea  dos  papagaios.  E'  um  dos  bons  portos 
do  Ceará.  »   [Irac.  pag  188.  j 

«c  Jericoacara  (Ceará :  Enseada,  Morro,  Povoação) — 
jerú,  ajerií  ave,  papagaio,  gúa  variada,  coara  buraco. 
Morada  de  variegados  papagaios.  »  [Glos.  pag.  510.J 

Onde  foi  que  o'  Sr.  Alencar  achou  cua  significando 
várzea  ?  Significa  cintura,  e  portanto  nao  cabe  aqui ;  o 
que  cabe  é  guà  como  diz  Martins.  Para  que  improviza? 

Nao  posso  mais.  Estou  exhausto. 

A  princípio  nao  me  pareceu  haver  tanto  que  colher, 
lugauei-me.  Podes  crer  que  a  mina  é  inexgotavel. 

Quanto  mais  me  detenho  'nestes  ligeiros  estudos,  mais 
o  illustre  auctor  desce  no  meo  conceito. 

Má  hora  em  que  me  resolvi  a  emprehendel-os.  Têem- 
se-me  ido  tantas  illusOes... ! 

Teo  de  veras 

Sempronio. 


Undécima    Oar*ta 

DE  CINCINNATO  A   SEMPRONIO. 

Rio,  3  de  Fevereiro,  1872. 

Preclaro  amigo. 

Começo,  contando-te  uma  história. 

Como  dos  perennes  títulos  de  glória  do  Sr.  Alencar 
ainda  faltava  um  para  expor  á  admiraçflo  do  público — 
o  de  seos  triíimphos  scênicos  —  commetti  essa  tarefa  a 
um  illustrado  amigo,  competentíssimo  na  matéria,  a 
quem  roguei  que  imparcialmente  emitti^se  a  sua  opi* 
niao  sobre  algum  drama  do  infatigável  escriptor. 


298  XXXI X 

Já  se  sabe  por  morar  longe,  ignorava  elle  que  o  arco 
de  S.  Ex.  tivesse  também  essa  chorda  (vergonhosa  igno- 
rância ;  áquelle  arco  que  chorda  faltará?).  Pediu-me 
lhe  mandasse  uma  das  taes  cousas  ;  apressei-me  em 
satisfazel-o,  remettendo-lhe  As  azas  de  um  anjo.  Cái-me 
a  cara  no  çhao  :  quando  eu  esperava  uma  anályse  detida, 
um  pnnegyrico,  uma  viagem  extática,  recebo  uma  carta, 
d'onde  transcrevo  os  seguintes  trechos  litteralmente: 

— «Li.  Esperava  muito,  porem  tanto  nao.  Aquillo  6 
menos  que  coUegial.  Como  se  hade  intrar  com  obra  de 
taes  dimensões,  tao  semsabor  que  se  nao  presta  á pilhéria, 
6  tao  nulla  que  o  analysal-a  é  dar-lhe  corpo  e  força  ? 
Confesso  que  nao  scei.  Trascrever  trechos  seria  a  melhor 
anályse  ;  mas  começar  a  transcrever,  era  copiar  a  peça 
toda.  Aquillo  é  abaixo  de  toda  a  critica.» 

Em  carta  posterior,  accrescenta  : —  «  E'  uma  produc- 
çao  inaccreditavel.  Eu  li  as  primeiras  duas  scenas  e  nao 
pude  continuar.  Passados  dias,  vencendo  a  repugmlncia^ 
como  quem  tem  de  tomar  um  cálix  de  óleo  de  rícino^ 
recomecei,  e  cheio  de  tédio,  levei  ao  cabo  tal  leitura. 
Nao  acho  por  onde  se  pegue  em  similhante  escripto : 
tudo  alli  é  tao  nojoso,  tao  ascoroso,  tao  puerii,  tao 
néscio  e  tao  immoral,  que  o  peor  serviço  que  ao  auctor 
se  pôde  fazer  é  propagar  tal  obra. 

«  Aquellas  figuras  sao  vulgaríssimas,  e  nada  as  accen- 
tua  vigorosamente.  As  inverosimilhanças  puUulam  a 
cada  phrase.  O  meio  em  que  se  arrastam  aquelles  im- 
possiveis  actos  é  ignóbil.  Aquelles  typos  nao  commo- 
vem,  nao  instruem,  nao  moralizam,  nao  divertem; 
enojam.  Em  ponctos  de  estylo  e  linguagem,  isso  então 
^nem  toquemos  ;   nao  se  imaj^ina,  sem  ter  lido. 

«  'Numa  palavra  tudo  que  d'aquillo  se  dicesse  em 
lettra  redonda  e:*a  uma  superfluidade  :  a  própria  expro- 
braçao,  precedida  de  anályses  d'aquelle  intreçho  t 
d'aqnellas  personagens,  ^  d*aquelle  dizer,  seria  hrnra 
monumental  a  um  escripto,  para  que  já  a  gargalhada  é 
favor.  Um  homem  está  delinido,  quando  chama  azas 
de  anjo  a  umas  fitas  que  uma  tola  deixa  cair  da  ca- 
beça, etc,  etc,  etc.» 

Eu  nem  me  atrevo  a  tnanscrever  o  mais  que  por  alli 
vai,  nao  senhor.  Que  os  anjos  tenham  azas,  ou  sejam 
desazados,  sao  espiritei  relestes  com  que  se  nao  brinca  ; 
e  portanto  continuemos  cora  o  nosso  Til. 

Acabou-se  o  capitulo  1',  ficando  ainda  por  fazer  duas 
dúzias  de  refiexOes  ;  mas  como  se  eu  continuasse  com  o 


XXXIX  299 

mesmo  méthodo,  inçhería  50  volumes  só  com  esta  aná- 
lyse,  agora  toca  por  ahi  adeante  segando  e  respiganda 
aqui  e  acolá.  Vamos  a  isto  : 

O  titulo  do  2**  cap.  é  —  Na  tronqueira  —  Paremos  já 
'neste  êrro.  Ou  seja  porque  ignore  o  valor  dos  vocábulos, 
ou  porque  intenda  que  desde  que  uma  cusinheira  pro- 
fere um  termo,  entra  este  logo  no  thesouro  da  língua,^ 
tem  o  Sr.  Alencar  por  costume  semiar  nas  suas  páginas 
os  termos  mais  vulgares,  os  vocábulos  mais  corruptos, 
o  que  é  altamente  censurável.  Que  taes  corruptelas  figu- 
rem no  diálogo  de  analphabetos,  tolera-se,  uma  vez  que 
d'ellas  nao  esteja  a  cada  passo  destoando  o  restante  dizer; 
mas  que  o  auctor,  próprio  Marte^  empregue  essas  desa- 
certadas palavras, 

non  homines,  non  di,  non  concessere  columnce. 
N'estas  circumstâncias  está  o  termo  tronqueira^  que  sem 
dúvida  é  proferido,  mas  por  lábios  rudes.  A  palavra  por- 
tugueza  é  tranqueira^  porque  se  tranca  com  uma  tranca. 

—  Leio  que  se  deu  uma  «  lucta,  que  era  procella  a 
subverter  o  pélago  insondável  da  consciência.  »  Como  se 
faz  esta  habilidade  ?  Que  uma  procella  turve  e  revolva 
o  mar,  concebe-se  ;  mas  que  o  subverta !  ha  de  lhe  dar 
o  váo  pela  barba. 

—  «  Custava-lhe  a  arrancar  do  çhao  a  palma  do  pé  » 
Palma  do  pó !  Isto  agora  nem  a  tal  cusinheira  o  diria, 
porque  este  êrro  é  tao  crasso,  que  nem  nas  ínfimas  clas- 
ses se  commette.  Nunca,  desde  que  o  portuguez  foi 
idioma,  se  dice  senão  palma  da  mão,  planta  do  pé ;  dizer 
palma  do  pé  valh)  tanto  como  dizer  cotovelo  do  nariz.  O 
sábio  6r.  conselheiro,  que  tao  bem  conhece  e  cita  o  latim, 
ganharia  a  dous  carrilhos  era  ler  nos  Prov,  de  Vai.  Má- 
ximo :  Supra  plantam  ascendere^  d'onde  colligiria  1'  que 
lá  03  latinos  chamavam  planta  á  tal  palma  do  pé,  2°  que 
usavam  esta  phrase  para  insinuar  que  nSo  deve  um  ho- 
mem guindar-se  acima  das  suas  habilitações,  nem  falar 
do  que  não  sabe. 

E'  curiosa  a  infelicidade  do  docto  escriptor  :  está  sem- 
pre a  caçar  nas  terras  das  sciôncias,  e  .^empre  a  falhar  o 
alvo.  E'  por  exemplo  cômo  a  phrase  que  tu  citaste  na 
tua  X  í*firta  :  «  biijo  que  viçava  entre  risos,  como  o 
fructo  na  corolla  da  flor.»  Comparar  um  fructo  com  um 
beijo,  é  fino  ;  m^is  o  superlativo  são  os  fructos  viçando 
nas  ror^llas  das  flores  I 

O  illustrado  naturalista  fez  bem  em  aos  certificar  de 
que  era  das  corollas  das  flores  que  elle  nos  falava,  para 


"■-»--     JB  "1  ■«.  1-IC_     M'   •  •         .      LJ 


300  XXXIX 

nSo  ficarmos  em  dúvida  se  seria  das  coroUas  das. ..dos... 
das  nao  sei  que,  pois  de  outras  nao  conheço.  Mas  o 
curioso  é  a  applicaçao  do  seo  poder  pessoal  até  ás  obras 
da  natureza.  Frudos  viçando  em  coroUas  I  E'  assim 
mesmo. 

Até  agora  intendia-se  que  a  coroUa  era  um  cortinado 
dethàlamo  nupcial  (frequentemente  gracioso,  brilhante 
€  perfumado)  destinado  a  cercar  e  proteger  os  orgaos 
da  flor,  estames  e  pistillo  ,•  que  lá  no  fundo  do  pistillo  é 
que  ficava  o  ovário  ;  que  doeste  nascia  o  fructo ;  que 
finalmente  quando  o  fructo  chegava  a  pompear,  era  uma 
vez  corolla  ;   já  nao  havia. 

De  ora  avante,  ficam  intimados  os  fructos  para  viça- 
rem nas  coroUas,  assim  como  os  pés  para  terem  palmas. 
Profundidades  Aíencariuas  de  sciências  botânicas  e  ana- 
tómicas. 

— ((  Admiração  pela  coragem  da  companheira.  »  Esta 
incorrecção  apparece  a  cada  passo.  E'  admiração  de; 
nao  por.  Seria  interminável  se  fosse  reproduzir  todos 
os  por  incorrectos  que  puUulam  'nesta  obra,  trazidos 
da    Gállia  em  linha  recta. 

— «  Sentia  elle  uma  íincia,  qual  tem-na  (qual  a  íem, 
ou  a  sente)  o  artista,  olhando  o  tÓ7*o  de  mármore  d'onde 
seo  cinzel  vai  crear  uma  estátua.  Mas  essa,  que  lhe  vive 
e  palpita  'nalma,  ainda  o  mármore  nao  a  recebeu,  e  quem 
sabe  se  poderá  eíle  nunca  moldal-a  como  a  desenhou  a 
imaginação.» 

Que  imaginação  esta,    tao  de  foz  em  fora  ! 

Começa  pelo  toro  de  mármore  ;  nao  conheço  :  brelho, 
canto,  seixo,  matacão,  e  outras  variantes,  sim;  mas  toro 
para  mármore,  suspeito  ser  outra  novidade. 

<(  Mas  essa  (  mulher  )  que  lhe  palpita  na  alma^  ainda 
o  mármore  a  nao  recebeu.  »  Como  vai  esta  comparação? 
que  significa  este  masl  Poíh  o  toro,  d'onde  hade  ser 
creada  a  estátua,  já,  efh  sua  qualidade  de  toro,  a  tinha 
recebido  ? 

Também  aquelle  moldar,  se  se  refere  ao  mármore, 
deixa  me  muita  dúvida:  é  verbo  menos  de  esculptor  que 
de  ourives  ou  fundidor.  Molda-se,  vasando  metal  derre- 
tido em  molde  feito  de  matéria  appropriada.  Também 
se  modela^  fazendo  em  chumbo,  cera,  barro,  ou  análoga 
substância,  uma  imagem  que  depois  se  imite  em  poncto 
grande;  porem  moldar  uma  esrátua  de  mármore,  para 
significar  o  acto  de  cini^elar  (de  a  jplicar  o  maço  e  o 
oiuzel)  creio  nao  ser  o  termo  da  estatuária. 


XXXIX  301 

Vamos  por  hi  deante  aos  pulos,  como  a  cabrita. 

—  «  Alli  os  infelizes  se  ficav-dm  insepultos  e  devo- 
rados pelos  urubus  »  Como  faziam  aquelles  infelizes 
similhante  infelicidade  ?  Se  elles  eram  devorados  pelos 
urubus,  ndo  ficavam  alli  insepultos  ;  se  ficavam  alli 
insepultos,  é  que  os  urubus  os  nao  devoravam. 

—  Aqui  me  cai  agora,  nSto  debaixo  do  escalpello,mas 
do  mais  vivo  sentimento  d^  admiração,  a  descripçao  da 
metamorphose  da  phisiognomia  do  João  Fera.  Nao  per- 
camos uma  virgula;  é  tau  incrivel  como  inimitável : 

—  «  O  perfil  adunco  e  chanfrado  (!)  que  revestia  a 
belleza  (!)  feroz  e  sinistra  (!)  do  abutre,  embotou  a  ris- 
pidez (!)  saturando-se  (!)  de  uma  bruteza  alvar  (I). 
latumeceram-se  as  faces,  pouco  antes  crispadas  pela 
cerração  habitual  das  maxillas  (I),  e  tornou  a  ter  um 
tom  fouveiro  (I),  indicio  da  ebulição  do  sangue  a  fer- 
ver-lhe  em  bolhas  (l)  no  coração. 

<c  As  fulvas  (!)  pupillas  que  se  incovavam  pelas  têin- 

fforas  (!)  como  tigres  nas  furnas,  saltaram  das  órbitas 
I),  dilatadas  (!)  por  um  fluido  espesso  que  tinha  a  phos- 
pliorescencia  felina  (!).  De  ordinário  avincava-lhe  a 
fronte  uma  ruga  saliente  (!)  que  depois  de  fender-lhe 
o  sobr'ôlho  (!)  partia-se  em  duas  plicas  profundas  (!) 
como  gilvazes  a  lho  cortarem  o  rosto  (l).  A  temulência 
da  paixão,  injectando  os  músculos  (/)....  »  & 

Safa  !  Nao  posso  mais.  Olha  por  ahi  abaixo  todos 
esses  poucos  de  admiração.  A  tua  intelligência  e  pers- 
picácia instantaneamente  fará  justiça  a  todos  e  cada 
um  d'esses  dizeres,  antípodas  ou  du  gosto,  ou  da  sciên- 
cia,  ou  da  linguagem,  ou  do  senso  commum. 

Pois  ha  ahi  uma  phraso  que  sequer  mereça  anályse  ? 
Injuriaria  eu  a  tua  intelligiJncia,  especificando  os  hor- 
rores de  locução  d'es.=5as  espaniosas  linhas,  que  até  estão 
inspirando  coiipaixao  do  .•'co  auctor,  por  transluzir 
d'ellas  que  ficou  muito  satisfeho  de  si,  ao  ^rnçal-asl 
Tudo  isto  ó  novidade,  meo  amigo,  6  novidade;  e  esta 
palavra  justificai  á  a  quem  descrever  o  mar  como  incar- 
nado, e  o  círculo  como  bicudo.  Quando  porém  uma  vez 
o  génio  se  incarapitou  no  zenith  da  omnisciência  e  da 
irresponsabilidade,  deixam-.^e  cair  d'estas  e  nao  se 
a.iÍTaxn  mai^garidas  a  porcoí^;  n*Io  se  dAo  satisfacçoes. 

Dizem  que,  tendo  Euripides  introduzido  'numa  tra- 
gédia certa  sentença,  o  povo  a  quem  elln  desagradara 
iutrcu  a  exigir  em  altos  brados,  que  a  supprimisso  im- 
medíatamente ;  o  poeta  que  estava  'num  dos  cúneos, 


302  SXXIX 

arremessou-.- 'í  ao  proscénio,  e  de  lá,  com  voz  stento- 
riaaa,  exclamou'- — Ku  com[Hjiiho  as  miuhas  tragèdius 
para  os  insinar  a  vobcês,  e  nao  para  vobcês  me  iosi- 
iiarem  a  inim  !  n  E  o  mais  é  que  o  applaudiratn.  O  Sr. 
Alencar  já  é  Ctateaubriaml;  poiy  eutao  também  o  ser 
Eurípidas  [até  uo  tal  vobcês,  do  gregoj  lhe  fica  a  mactar. 
Tout  fi  toi 

ClNClNNATO. 


;Meii(lloltlade    estx'angeii^a    compara  ti  va- 

Temos  á  vista  ura  mapp;i  da  polícia  de  Buenos- Ayres, 
em  cujos  descarnados  algm  Íamos  achámos  ioexcedivei 
eloquência.  E'  sabido  que  !i  tendência  dos  imraigTiintes 
é  especialmente  de  ttaliauns  para  as  repúblicas  platinas, 
como  o  é  de  porLng;uezes  para  o  Brazll.  Não  admira  pois 
qua  'naquellas  re^ifies  seja,  ua  respectiva  proporçHo, 
mais  avultado  o  coutiiigeute  dos  italianos  em  todas  as  re- 
laçOes  socÍaes;mas  por  maior  que  essa  desigualdade  seja, 
nunca  poderíamos  nccreditar,  se  documeotos  ofliciaes 
nol-o  nao  revelassem — nem  que  tao  enorme  fosse  a  men- 
dicidade dos  e.strangeiros  na  cidade  de  Buenos  Ayres  — 
nem  sobretudo  que  seja  tao  desproporcionada  a  dos  ita- 
liauos.     Veja-se  este  sudário  : 

Mendigos    argeatin'3s 109 

»  hispaahóes ,...,.  72 

M  iuglezes  .......  11 

»  francezes 29 

a  "  italianos 682  f 

»  de   várias  nacionalidades     .  101 

lOlS 
Em  quanto  no  Brazil  ^mendicidade  é  rara,  nas  re~ 
públicas  vizintias  vê-se  quantos  hóspedes  que  haviam 
sonhadj  ir  ahi  achar  Eldorados,  só  incontram  a  miséria. 
Em  quanlo  uo  Brazil  os  naiuraes  immigraates,  portu- 
guezes,  vindos  em  muito  mais  larga  escala  que  os  ita- 
lianos para  o  Rio  da  Prat:i,  acham  immediatameiite 
occupaçio  e  trabalho,  os  que  ae  transportam  para  aquel- 
las  repúblicas  vêem  ja  tarde  as  suas  illusOes  desvane- 
cidas 

Aquelles  algarismos  deveriam  eer  reproduzidos  em 
todas  as  folhas  do  Império  e  da  Europa.  Constituem  ellea 


em  I 

lea  I 


XXXIX  303 

a  synthese  comparativa  das  instituições  e  da  riqueza  dos 
doas  paizes  ;  e  coavencem  da  preferência  que  os  emi- 
grantes europêos  deveriam  dar  ás  plagas  brazileiras. 


Vlx^tizs  post  XLumxnios 

Para  resolver  as  nossas  questões  de  dinheiro,  algumas 
bem  insignificantes,  susteritârnos  numeroso  corpo  de  ma- 
gistrados, de  quem  requeremos  avultadas  provas,a  quem 
impomos  grave  responsabilidade,  a  quem  pagámos  bons 
vencimentos,  e  dos  quaes  exigimos  severo  estudo  da 
causa. 

Para  resolver  nossas  questões  acerca  da  nossa  liber- 
dade, honra  e  vida,  colligimos  ahi  uma  porção  de  no- 
mes, cuja  habilitação  consiste  em  ter  duzentos  mil  reis 
de  renda(metade  do  que  realiza  qualquer  preto  do  ganho); 
lançâmol-os  em  uma  urna  :  e  d'alli  tiramos  certo  número 
&  sorte,  e  sejam  ricos  ou  pobres,  sábios  ou  ignorantes, 
velhos  ou  moços,  solteiros  ou  casados,  probos  ou  velha- 
cos, reunímol-os  em  uma  sala;  e  nem  lhes  permittindo 
que  ao  menos  se  acconselhem,  obrigãmol-os  a  decidir;  e 
a  sua  decis&o  diremos  que  é  a  verdade —  veredictum. 

Da  decisão  dos  magistrados  ha  recurso  ;  da  decisão  do 
jury  não  o  ha  I 

Consequência  lógica: 

Os  jurados  são  mais  aptos  para  julgar  que  os  desem- 
bargadores, ou  o  dinheiro  vale  mais  que  liberdade, 
honra  e  vida. 

E  ha  quem  se  admire  de  ver  dar  tanta  consideração 
ao  di  jheiro,  e  ter  em  tão  pequena  conta  a  virtude  I 

Otton. 


IV(aiox*ias 

Pretende-se  que  o  governo  sejac]^  maiorias  :  concordo. 
Mas  porqi^í  ?  Porque  a  maioria  tem  força  para  se  fazer 
obedecer.  Quem  não  tem  força  nlo  é  obedecido;  quem  não 
é  obedecido,  não  governa.  Ém  uma  disputa  entre  dous 
pretendentes,  o  vencido  é  rebelde;porque  não  teve  torça  : 
o  vencedor  é  heróe,  porque  leve  o  que  faltou  ao  seo  con- 
trário. 

Organizem  a  sociedade  como  quizerem  :  só  será  go- 
verno quem  do  seo  lado  tiver  a  força. 

Otton. 


304  XXXIX 

Oj?d.eiis    irellglosas 

Na  Itália,  Hiápanlm,  e  Portugal  deu-se  cabo  das  or- 
dens religiosas,  tirando  os  bens  aoá  religiosos  :  no  Bra- 
zil  pretende-se  chegar  ao  mesmo  resultado,  tirando  os 
religiosos  aos  bens. 

E  ainda  dizem  que  no  Brazil  procurámos  imitar;  qual  l 
Originaes  como  nós,  ninguém. 

Otton. 


I-ill>oi?d.ad.e  e  Indepondêncla   cia 

Egrej  a. 

Dia  feliz  !  a  Egreja  ha  de  ser  livre  e  independente  I 
Quer  dizer  :  o  Thesouro  nao  pagar/v  mais  côngruas,  em- 
b'ora  continue  a  receber  os  direitos  de  imj:oriaçao,  que 
substituíram  os  dízimos,  que  eram  pagos  pelos  fieis  para 
sustentação  do  culto. 

a» 

E'  preciso  confessar  que  ha  muita  palavra  bonita,  para 
illudir  papalvos ! 

Otton. 


Typographia  e  lithograibia  —IMPARCIAL—  Buu  Sete  de  Setembro,  146  A 


QUESTÕES  DO   DIA 

BIO  DE  JANEIRO,  20  DE  FEVEREIRO  DE  18TO. 


TcBd«-8e  em  casa  dou  srs.  E.  &  H.  LaBinmert.—A^roRtinho  de  Freitas  Oni- 
aMTies  (k  Comp.,  36,  rua  de  Oeneral  Camará.— Livraria  Académica,  Rvado 
S.  Joaé  n.  119-  Largo  do  Paeo  n.  C— Preço  SOO  reis. 
O  r  Tolome,  com  perto  de  400  páginas—SflOOO. 

Xieforaia  Jucllclax*la. 

I. 
{Considerações  gerties.) 

Pmra  o  discreto  exame  de  uma  lei,  nao  costumam  os 
espiritou  rectos  tomar  como  base  principal  a  maior  ou 
menor  força  concedida  ao  principio  da  auctoridade^  ou 
ao  demento  popular.  O  que  cumpre,  antes  de  tudo^  é 
investigar  com  escrúpulo  a  opportunidade  dos  pre- 
ceitos legislativos,  e  o  accôrdo  em  que  deverfto  estar 
com  as  condições  peculiares  do  paiz. 

O  que  valem  as  leis  sem  bons  costuma  ?  Axioma  trivial, 
one  nem  por  isto  tem  sido  devidamente  attendido,  em 
Ineoria  ou  na  pr&tíca,  por  algumas  das  nossas  intelli- 
gdncías  superiores,  deslumbradas — talvez — pela  auréola 
da  popularídade,ou  por  um  falso  prisma  na  appreciaç&o 
das  circumstâncias. 

*Neste  momento  presumimos  somente  a  bôa  fé  das 
opiniões,  sem  contarmos  com  o  espirito  de  novidade^ 
capricho,  ftncia  de  renome,  cubica  do  mando,  e  outros 
motivos  que  podem  ser  movei  de  especuladores,  mais  ou 
menos  disfarçados. 

Pessoas  que  parecem  considerar  a  sociedade  brazi* 
laira  no  caso  de  acclimar  desde  logo  em  seo  seio  as  idéas 
mais  adeantadas^  quanto  à  liberdade  e  franquezas^  argu- 
mentam com  a  bôa  índole  do  povo.  Todos  nós  folgámos 
de  reconhecer  que  esta  feliz  predisposição  existe  em 
gr&n  subido :  mas  ainda  ha  muito  que  fazer  para  corro- 
boral-a  e  desinvolvâl-a  pela  educaç&o  intellectual,  mo- 
raU  religiosa  e  politica. 

Sem  este  preparo  indispensável  pôde  acontecer  que 
certas  instituições  precoces  produzam  pernicioso  effeito 
jBÒhre  essa  mesma  índole,  tfto  justamente  louvada. 


306  XL 

ííonaidere-se  iim  Impérja  tW  .il.7i>0,(Kll'  lia^itíiiites  (') 
etó^ai^dis  'Dbtjà  irea  quê;  iíd.iépMhij-íi^^v/^jÍív  Amé- 
rica do  Sul  e  contòm  prDYiiiciaw  luaiorçá  i[ne  alguns 
Estados  da  Europa  ;(dfc4íizaoiííC  d'e3áa  exttíusao  umas 
2.311.974  raillias  de  superfície, pada  a  Jua  da  civilizaçJU» 
uao  penptróii ;  atteiida-se  á  'éxístè'i!icíà  de  1.'40D.000  ea- 
ft«weae-59O;000  indígenas  Enraiiie.';  tioí  bosqups  ;ac- 
CcesceQte-se,  .finalmente,  a  esUis  ligoirns  traços  uma. 
edncaçxo  ainda  pouco  efficaz,  qiiandu  nriti  dnacuiada,  a 
deficiência  da  prédica  na  parócliia,  a  inJoIPncià  que 
alimenta  os  víciosj  a  e^cas^ez  da  fòrçH  públtc»  e  de 
outros  meios. para  a  pravoíiçiloe  naftreesio  dos  delictoa. 
Tudo  isto  ponderado,  imagíne-se  mu  systema  iie  legisla^ 
çao  que  tenha  por  fim  aMrgar  Ímpriide:iteiaenl«  a  fti- 
lada  esphera  das  franqueias  fopitlaí'es,  e  debilitar  a  acç8» 
do  poder  púhlico,  que  jii  nao  sendo  de  si  mui  vig^oroso, 
-pela  insufficifinn.ia  dos  clPmen-tos  materiaôs:  qliasi  que 
'tira  fí  860  maior  presti>;Ío  de' cerlo  tlpparaío  do  attribni- 
-çOtíS,  alem  do  acatamento  que  òs  fuuccionàrios  possam 
merucer  porseós  predicados  pessbaes. 

UtOA  veE  iufraquecido  o  priórlpio  da'  aucloridadb,  & 
consequência  será  o  afrouxalraeiíto  progressivo  dos  laços 
de  obediência  e  respeito,  a  relactflueia.  a  animação  J»». 
o  crime. 

Assim  Scarà  desnaturado  o  tinimo  tílo  dócil  'd'este 
excelíentfl  povo.  E  se  p,irventurB  surg'Íro  intf^tilo  de 
reapçao  fora  da  lei,  como  remídio  ao  mal  qii^  se  déixotz 
de  prevenir,  importará  este  facui  consequências  graTOS. 
além  do  fúio  contraste  entre  a  tbeuria  e  prática. 

A  este  respeito  nos  occorre,  a  par  de  outros  factos  co- 
nhecidoíi.  o  que  se  deu  'nnma  das  mais  impurtanies  pn>- 
■'.Incias  do  Império.  O  respeito  devido  ao  túmulo,  e  o 
despjo  de  evitar  'neste  escrípto  o  mais  leve  resaíbo  de 
invectiva  pessoal  obriga-nos  a  omittir  o  nome  do  pi^o- 
goiíisia.  g 

Dominava  o  partido  liberal.  As  reuniões  piiblicag,  as 
putseiatas  com  vivna  est^epilo^■os,  tudo  emfim  concurria 
para  lisonjear  e  (ixcitar  as  liliimas  camadas  da  populs- 
^o. 'Em  uma  noite  de  festividade,  o  entliusiasmo  coQ- 
verteu-íie  em  delírio  ultra-patriótico,e  passou  âs  olfenss» 
pbysica^,  involvendo  também  os  estrangeiros,  O  próprio 
chefia  de  policia  coiifessára-se  impotente  para  restabole- 

j,  [•)  Eteaienlos  EsíatlslUos  do  Dr  Ferreira  Soares, 


?L  .  307 

cer  a.  ordefn  e  se&^urafiça  individual.  Em  ífto  triste  ^mer- 

j^ôiiciá.  ò  allatlidp'p^oto»bnis^,  aeai.'iiçliar-so,^'ç,v>;3tido 

■■"díi.cíiàfiiclei*  "dé'aHctonlà(lei  arremessou-de  acavállo  e 

'   'dé'  vergasta' óiii'pwijhòj'.solJ'ro' a.  miiltidaòe...,  hqteu-a, 

dispersando  á  procissOpaTiártljica. 

',,', "Predía-se  o  tacto,  nátiirfilméiitQ  á.ura   commentàrio 

edificante.  Õ  d'eiiiocráta'que  pouco  arités  advogava  com 

tanta  vel,   ■■.■■■.   'i   i  ■  'ij^íiliii-   ]i   ;   /-.i-'- ;,(ju'e  cíaliava  o 

'^['&m<ir-^rL      ■•■    ■  ;  i  huii  .  •   ;  -i[i.líj-.seapar'd'elle 

'^é'bòijaúc]  ■   .   ■   iao'ti,.:"i       .:■,  ■   ■u-i  {jthinlio:  que 

''itínóciíla  .  (ia''fj'  .,  ■      .  ;.  ■    i:i^     '.V  ^    '>■■■■-, 

','^e  cjut:  ti  l'a  iizi  -  ,       ,.■■■-■  l" 

"  ",çJieÇár'i  os  fru  ■  ~"' 

diividou.ciijpreí^ar  um  intíii;    ■  ..  j  .;'.-i  .-i, 

porque  parEicipava  dá  respc  ■/t". 

Aióân' issim,  o  bafejo  à.i  paixces  populares  deixou 
feúuaiia  gérmen  para  uma  conspiração  posterior,  e  mais 
tarde  uma  sublevação  ioeanguentada,  que  teve  por  chefe 
principal  o  mesmo  distincto  cidadão — tao  empenhado 
outr'orti'ém  déVellar  o  motim  dá'p'ráça  publica'. 
'  Se  recordfimo3'tae3  áaccessos,  nSO  é  coiri  a  mttligna 
intenção  d'e  revolverão  passado  pbr  espirito  partidário. 
Nosso  fito  é  demonstrar, 'Cdm  um  exemplo  d'entre  tan- 
tos, o  grave  írro  do  polític?  P(i  legislador  que  estimula 
aspiraç^íes  de  certa  ordem,  aem  attender  ao  estado  do 

■pírtzí  *     '  -1 

■'    Podem  algrtns  apóitolos  oao  drerqneas  sequâhcias  de 
''Sua  doctrÍn;i  fxcedam    Certos   termos.  ..' Mis  é  que, 

■  aherto  o  dltjiie,  {"lleí  próprios  à3.o  incapa/'''^  de  conter  a 
impetiiósídadc  da  torrente,  que  tam,bè*ii  os  arrasta.  .  . 
como  a  história  noa  insiua  em  liccflt.',-!  Li^vcraa,  tflo  mal 
appfOTeitadas.  .  .     ■ 

Convencidos  d'esta  verdade,  rarossfio  úslinm;ms  leaes 
qufl,  percorrendo  rrrto  estádio,  nílc  sinwm  moder.ir-sc  a 
sOffregft  exaltação  de  suas  teiiifinfia-;  ref.trmialas. 
Alguns  nem  precisam  attingir  a  edad'.:  provocia:  desil- 

■  ludcm-so  ao  clnWo  de  qualquer  expiTJâm-ia  profícua. 
Ha  IiomPii."?  dotados  de  tao  nobr,í  fran.jufiza  que  nem 
sophismam  a  retractaçao.  Outros  recuam  lentamente,  o 
chegam  d  tranaformaV-se  de  todo,  se  a  mono  os  nao 

'  eurprendo  antes  do  insejo  para  uma  deceii',p  e  completa 
'  transição. 

Poucos  slío  o3  que  morrem  aferrados  aonlcorno  de  suas 
"utopias.  Se  algum  se  mostra  irapenitíule,  vSde  que  o 


308  XL 

domina  a  coheréncia  ão  capriçHo,  o  orgulho  que  nfto 
petmitte  confessar  o  erro,  ou  grande  ambiç&o  que  vai  ao 
túmulo  agarrada  &  esperança  de  triumpho  proveitoso  ou 
da  aura  popular  de  uma  glória  pósthuma. 

Da  propagação  de  idéas  perigosas,  ou  exaggeradas, 
também  se  usa  no  propósito  de  obter  concessões,  incu- 
tindo medo. 

Mas  elevada  o  propagandista  â  cúpola  do  podér,e  ddmos 
que  elle  se  nOo  revele  um  nerverso  condemnado  a  cair 
sob  o  peso  de  suas  iniquidaaes ;  se  na  prática  nfto  reagir, 
aberta  ou  disfarçadamente,  contra  as  próprias  doctrinas, 
tornar-se-ha  mais  tíbio  no  seo  enthusiasmo,  senão  pela 
vos  da  consciência,  ao  menos  pelos  desinganos,  emba-* 
raços  e  exigências  inherentes  &  missSo  do  mando. 

Ulpiako. 

(Continua)» 

O  <7oxidex*vatox^Io  de  Mixsioâ. 

Noticia   histórica  b  obscriptiva  da  inauouraçIo  zx> 
bdificio,  e  obigbm  da  instituição* 

111 

(Conclusão) 

Graças  aos  incessantes  exforços  do  Sr.  Commeiliâa* 
dor  Bettencourt  da  Silva,  notabilissimo  artista  que 
comprehende  e  desempenha  dignamente  o  sacerdócio 
da  honrada  profissão  que  exerce,  concluiu-se  afinal  o 
edifício  do  Conservatório  de  música,  melhorado  em 
grande  parte  no*plano  interior,  que,  segundo  o  primi- 
tivo risco,  ficaria,  quasi  se  pôde  dizer,  incompleto, 
quer  pela  má  disti4buiç&o  das  salas  das  aulas,  quer 
pela  tal  ta  dos  compartimentos  secundários  de  que  nSo- 
podebfi  prescindirmos  edifícios  destinados  ao  insino, 
principalmente  para  sexos  diversos. 

A  casa  destinada  ao  conservatório  de  música  estava 
sendo  feita  sem  reservados  e  nem  sequer  um  quarto 

fiara  toucador  das  alumnas ;  n&o  havia  água  no  esiabe- 
ecimento,  nem  canalisaçâo  para  o  gas.  Todas  essas 
faltas  reparou-as  o  illustrado  architecto  Bettencourt, 
e,  nao  satisfeito  com  tao  grandes  melhoramentos,  ap- 
proveitou  ainda  os  fundos  do  salão  dos  concertos  do 
pavimento  superior,  e^^paço  vazio  e  inútil  no  primitivo 
plano,  para  'nelle  construir  um  pequeno  palco,  com  a 


ZL  300 

sua  caixa  de  movimentos,  guarda-roupa,  camarins 
etc. ;  idéa  essa  de  subido  alcance  para  dous  fins  que  o 
Conservatório  pôde  obter  a  um  tempo,  sem  dispêndio, 
se  o  Sr.  Ministro  do  Império  attender  &  necessidade 
palpitante  que  temos  de  uma  eschola  dram&tica  e  de 
ópera  nacional. 

A'  similbança  do  Conservatório  de  música  de  Paris, 
pôde  também  ao  nosso  addicionar-se  uma  eschola  dra- 
m&tica, creaç&o  que  muito  deve  concurrer  para  próxi- 
mo e  preciso  desinvolvimento  de  um  dos  ramos  de  arte 
em  que  mais  cuidam  as  nações  cultas  e  que  entre  nós 
vegeta  em  condemnavel  esquecimento. 

O  theatro  nacional,  pôde  hoje  dizer-se,  está  de  todo 
extincto :  o  velho  e  histórico  theatro  de  S.  Pedro  jaz 
em  vergonhoso  desaií]t)aro,  e  os  três  pequenos,  Gymna- 
sio,  S.  Luiz  e  Phenix,  ou  repetem  cançadas  peças  dos 
antigos  repertórios  de  melhores  tempos,  ou  exhibem 
mágicas  e  paródias,  nas  quaes  a  immoralidade  corre  pa- 
relhas com  a  semsaboria.  O  público,  indifferente  a  tudo 
S tanto  n&o  tiver  cunho  de  esc&ndalo,  n&o  procura  o 
eatro  senão  como  passatempo,  e  passatempo  que  o 
faça  rir  a  larga,  emb'ora  com  grande  prejuizo  da  ho- 
nestidade e  do  bom  senso  ;  se  o  sábio  Governo  de  S* 
M.  imperial  nao  tomar  a  si  a  regeneração  da  arte  de 
Talma,  com  certeza  nao  passaremos  tao  cedo  de  povo 
inculto  e  avesso  ao  gosto  do  bello. 

•  O  Sr^  Bettencourt  da  Silva,iucançavel  lidador  do  pro- 
gresso, infatigável  operário  da  cívilisaçao,  offereceu  no 
anuo  próximo  passado  as  suas  luzes  o»  conhecimentos  ao 
Oovérno  Imperial  para  dirigir  uma  eschola  dramática;  e 
até,se  nos  n&o  falha  a  memória,  chegou  a  organisal-a,de 
accõrdo  com  o  Conservatório  dramático,  com  nessoal 
escolhido  e  habilitado;  até  o  presente  porém  aincía  n&o 
começou  a  f unccionar  es^n  institui^o,  da  qual  tanto  tem 
.;ue  esperar  o  theatro  nacional.  Se  esse  marasmo  pro- 
vinha, como  pensámos,  da  falta  de  local  appropriado, 
ahi  tem  o  Sr.  Ministro  do  Império  o  Conservatório  de 
música  que  pôde  preincher  satisfactoriamente  essa 
lacuna. 

Cônscio  de  quanto  ama  e  deseja  a  prosperidade  das 
bellas  artes,  temos  fé  que  o  Sr.  Conselheiro  Jo&o  Al- 
fredo n&o  deixará  de  pôr  em  prática  essa  patriótica  idea 
do  fundador  do  importantíssimo  Lycêo  de  artes  e  oSicios, 


310  XL' 

hoje  a  primeira  esrfholà'  de;  iòsinò  .pópúlar,  riáiV  ^ó  áa 
Brazil,  bòxno  íàtvêz  'dá  Amérita  do  Sul^*   '  • 

..Ao,  Sr.  .Çonsell^eiro  Jo.ap .  A.lfrê^o  muito  i)ov(uu  os 
filhos, dp:ZUu/DÍcip;p  jpieutTQv  DP  i^ino.das  ,belW,artç£  o 
primeiras  lettras.  Para  o  aformoseamento  d'estu  cidâdi? 
e  desiuvolvimento  d!esses  dous  ramos  de  instrucçaô.prí- 
hlicA,  muito  tem  feito 'S.Ex/uestes  últimos  tempo-^  ;  $6 
os  mbàumentaeâ  edifícios  para  *  eschdlas  primárias  das 
fregiièizías  de  St.'*  Rita  elGlóría,*  que  se  estaò  ergíi(^ndt> 
sot  a  direcção  e  plaUo  dò'  Sr.  Commendador  Betíencoiift 
da  Silva,  na  praça  Dilque  dé  Caxias  é  rua  da  Harmoiiia, 
hastariam,  se  tanto.4  outrpâ  títulos  o  n^o  recomraòndns- 
semv  paraqueonbmié  doi.actaálSr.  Ministro  do  Império 
passasse  á  posteridade'.'         :«      .  '     •       . 

Dedicado  pòrêin  â  causa  ào'irigTàndecimentò  dopalz, 
úao  se.  tem  limitado  o  Sr.  Conselheiro  Jôáo  Alfredo  à 
construcçáô  d^aquelles  grandiosos  edificib.^i;  pn^loii' 
tamberii  todo  o  sep  Valioso  áújjclTiónara  à  cbúchisaó  díV 
Conservatóri  j  de  música;  e  matidou  procederá  desappró- 
priaçaòdé  umas  casas  dá  ruo-  da  Lampádosa  e  praça  da' 
Coifisíituiçao,  para  .romper  6  proloiji^amento  da  rua  D, 
Léoppldínk  atíS  está '^raòa/ nielhotaipento  esseâiièto- 
rizado  pela  Assèmblea  (jera?  ha  maís  de  trinta  annos. 
Graças  ja  S.  Ex.  e  áindá  ad  prestimoso  árchitecto  RetT 
tencoúrt  da  Silva,  á  pequena  mas  elegant:^.  fachada  do 
palácio  da  Academia  das  Bèll as  Artes  dèsvenda-se  hoje 
ás  vistas  da  praça  em  que  s»  levanta  o  perdurável  mo- 
nnmento  do  immortal  fundador d'68te  império* 

Para  »..  tríplice  festa. dí^  ioauguraçfto  dp .  edifício  dó' 
Conjseirvatório,  à^,  aber.tu^a  da  rua,  ^e  distribuição  .d^ 
prémios  aosalumnQS,4ã  Academia^  desigjjiofi S,  A.  .Im- 
perial á  Senhoria  ,Priuceza  Regente  p  dia  9  d?  janeijro  do 
currQuie  annq,  çm  o  tu,al  a  história  mçirca  a  •  memorável 
data  em  que  o  Príncipe  ds^.  Beira,  mais,  t^rde  D.  Pedro  .1, 
6  sucoesçivíimeinte  o  glorioso.  Dvique  d^.  Br^igança,  de- 
clarou ficar  upiPrazil,  qi^e  ante^  de.decurrida  um  aniw 
çra  império  livre e  independente.         ..• .      ' 

Seriam  cinco  horas  da  tarde  d^aquelle  memorável  dia; 
o  sol  illuminava  com  seos  raios  esp^endentes*  a  .fo^niqsa 
pátria  d^  Monte  Alv^rne  ;  quando,  a  excelsa  Princejsa  e 
sep  augusto  espojo,  acpomp^nhadus  de  pes3Ó)!is,,.da  maia 
alta  bierarchia  ei  compz^cta  m>í&sa  de,j^v6^  tf iljmr^in  a 
nova  rua  que  pòs  em  communicaçaò   directa  ouuicô 


XL  311 

monumento  que  possuímos  cora  o  edifício  único  também 
de  TáloT  artistico.  '    - 

Aborta  a  rua  D.  Ltíopo^dima,  S.  A.  Imperial,  seo  con- 
sorte) o 'Sr.  Mioist;ío  do  Império,  Direcítor,  Oo Agregação 
da  Academia,  e  grai>de  mimerod'e^convidados,pa$saram-' 
ee  para 'O  recem-eonsti*nido  edifício  do  Conservatório  de 
m^ca  «na  principal  siala  do  mesmo  assiístiram  h  ití- 
naram:  parte  no  cerímoiliAi  da  inauguração  e  distri- 
buição de  prémios.     ;  < » 

Desmando  b  Sr.  Oons^lbi^írí)  Thomaz  Gomes  ãòs  San- 
dos,  dtgnissimo  direciw  da  Academia  de  BeHas  Artes, 
que  o  di^scurso  inaugural  fôttèíe  feito  por  quem  mais  con- 
Gorrdu  para  a  realisaçS^odo  tao  ^mptuosa  festa urtíistica, 
designou  o  Sr.  Commei^cjl^or  Bettencourt  da  Silva  para; 
preinc^ier  esâa  formalidade,  que  por  nenhum  outro 
melhor  .seria  satisfeita,  .cpmo  realmente  o  foi  com  unâ^- 
nime  applauso  dos  assistentes,  doctos  e  ind(^tos. 

Debalde  tentou  aii;iyej£^^umesquinhar  a  subida,  valia 
de  1A0  brilhante  or^içao, ,  censurando  aorimonioa^mente 
os  louvores  'pella  tecidps.  ao  Sr;  Cpa»QUieiro  Jo3uo  Al- 
fredo;  debalde  tentou  o  despeito  morder  upméri  to  do 
orador,  propalando  .^ibivosauienik^.  pe^a  impt^jilsa  que 
elleali  fora,  em  falta  do  competente  ;  oç  applausos  dos 
homens  illustres  e  dos  litteratos  que  alli  concurreram  a 
ouvil-o,  tríumpharam  d'essas  e  outras  mesquinhas.  odip7 
aidades;  mais  uma  cdrõa  de  virentes  louros  iuramou.^ 
j4  laureada  fronte  do  poeta-artista. 

Acoimarem-n'a  de  lisonjeiro  para  como  Sr.  Conse- 
lheiro João  Alfredo  I  Que  ministro  do  império,'  'ne^es 
últimos  vinte  annos,  concnrreu  maf&  do  qiie  elle  para  o 
desinvolvimento  das  bellas  artes  e  derramamento  'do 
insiao  público? 

Para  provar  os  relevantes  serviços  prestado^  0.0  pajz, 
pelo  actual  Sr.  Ministro  do  impíjio,  .basta  aponctar  ps 
dous  primorosos  edifícios  para  escholas  de  3t/ Rita  ei 
Glória*  em  via  de  construcçao,  a  abertura  da  rua  D. 
L'3opoldína,  o  uonativo  d«  um  espaçoso  terreno  na  rua. 
da  Guarda- velha  para  'nelle  se  construir  um  edificip  ap- 
propriado  ao  Lycêo  *e  artes  e  officios,  a  instituição  ao 
Conservatório  dramático,  q  as  remunerações  honoríficas : 
concedidas  M  írrande  númoro  de  nrtistas,  naciohaes  e  es- 
trangeirofj,  do  !nconte>tavel  merecimento.  \  . 

E*  defeito  nosso,  velho  e  arraigado,,. tudo  censurar, 
eem  mais  detido  exam3  nem  reflexão,  nós  actos  dos  que 


312 

âe  dedicam  &  causa  pública,  até  os  niak  bem  ioteneio-' 
nados.  Se  a  indiffereaça  e  a  critica  affectasse  os  nobrw 
e  elevados  seatimeatos  dos  que  se  applicam  ao  serviço 
público,  ai  de  nós  e  da  pátria,  que  nenhum  se  animaria 
aaffrontaros  doestos  da  inveja  por  puro  patrioiisoio ; 
felizmente  porem  aos  beneméritos  dà  o  Senhor  alma 
forte  e  coraç&o  generoso,  para,  despresando  a  calúmnia 
dos  maldizentes,  proseguirem  ousados  na  senda  do 
progresso  e  da  civilização.  O  Sr.  Conselheiro  Jofto  Al- 
fredo tem  bastante  consciência  dos  seos  actos  para  que 
se  doesse  da  ingratidão  com  que  uns  e  a  parcialidade  ooot 
que  outros  o  stygmatisassem. 

O  discurso   do  Sr.    Commendador    Bettencourt  da 

Silva  é,  por  todos  os  títulos,  uma  bella  peça  litterária, 

que  não  pôde  nem  deve  ficar  no  limbo  dos  seus  valiosos 

inéditos  ;  seja  elle  pois  dado  a  lume  da  publicidade,  que 

^  assim  o  requerem  as  artes  e  as  lettras. 

Depois  da  brilhante  oração  inaugural,  executou^-se 
uma  linda  abertura  do  maestro  Fiorito,  por  elle  meamo 
regida,  e  em  seguida  fez-se  a  distribuição  dos  prémioB, 
que  a  estreiteza  do  espaço  de  que  aqui  immerecida* 
mente  dispomos  nos  não  deixa  memorar. 

Após  os  prémios,  executou-se  o  hymno  das  artes»  mú- 
sica do  inspirado  Francisco  Manoel,  e  lettras  de  Porta 
Alegre,  que  serviu  de  introducção  ao  concerto  vocal  e 
instrumental,  que  constou  das  peças  seguintes  : 

Grande  clássico^  para  piano,  rebeca  e  violonorilo^ 
do  Sr.  Carlos  Cavalier,  executado  pelo  mesmo  Sr.  e 
Rivera  e  José  MartinK 

O  joven  Carlos  Cavalier  é  approveitado  discípulo  do 
nosso  Conservatório  de  música,  que  concluiu  os  teos 
estudos  no  de  Paris,  do  qual  é  professor  adjuncto.  Qua- 
lidade essa  que  muitu  honra  a  nossa  eschola  musical. 

Balata  da  ópera  Guafany,  de  Carlos  Gomes,  cantada 
por  D.  Maria  das  Dores. 

Dizer  o  que  é  e  o  que  vale  esse  mimoso  trecho  daf 
assaz  conhecida  ópera  do  nosso  grande  maestro,  è  tarafa 
que  não  cabe  em  tão  rápida  noticia  qual  a  oue  bosque- 
jámos ;  quanto  á  execução  da  Sra.  D.  Maria  aas  Dores^sá 
nos  cumpre  mais  uma  vez  depor  justo<^  louvores  aoa 
pés  da    digua   condiscípula  de  Carlos  Gomes. 

Grande  phantasia  de  Allard,  executada  no  violino  por 
Vicente  Cernicchiari. 


XL  âl3 

O  Sr.  Ceraicchrari  é  discípulo  do  nosso  Conservatório, 
que  promette  muito  ;  dotado  de  grande  talento  e  su  m- 
ma  aptid&o  para  o  instrumento  que  maneja  com  pe- 
rícia, é  de  esperar  que  venha  a  ser  um  dos  ornamentos 
da  arte  musical  do  Èrazil ;  possa  elle,  guiado  pelos  con- 
selhos de  seos  bons  mestres,  vencer  as  sérias  dificul- 
dades e  graves  embaraços  que  se  antolham  na  carreira 
que  tao  brilhantemente  incepta. 

40 — Dueto  da  opera  do  Vagabundo^  de  Henrique  de 
Mesquita,  cantado  pela  Sra.  Pazzi  e  o  Sr.  Dupont. 

O  Vagaíywndo  nfto  é,  sem  dúvida,  ópera  cómica  de  alto 
merecimento,  mas  é  innegavelmente  exhuberante  prova 
da  génio  n&o  vulgar  do  seo  inspirado  auctor  ;  muito  é 
para  lastimar  que  Henrique  de  Mesquita,  vocação  fe* 
45unda  e  creadora,  nfto  empregue  o  seo  valioso  tempo  e 
os  recursos  de  seo  possante  talento  em  compor  ópera  de 
grande  força,  que  para  tanto  dispõi  elle  de  sobejos 
meios  intellectuaes. 

A  Sra.  Pazzi,  cantora  de  muito  merecimento,  inter- 
pretou magistralmente  a  sua  parte ;  outro  tanto  se  n&o 
pôde  com  justiça  dizer  do  Sr.  Dupont :  no  emtanto  am- 
bos receberam  enthusiasticos  appíausos ;  sendo  todavia 
á  primeira  que  maior  somma  coube  das  palmas  com  qu» 
foram  saudados. 

5* — FincU  sonata  de  Weber,  executada  pelo  Sr.  Ca- 
▼alier. 

6"^ — Grande  hymno  de  Mercadante,  cantado  por  todos 
os  alumnos  do  Conservaiório,  sob  a  regência  do  maestro 
Fiorito. 

Assim  terminou  essa  grande*  festa  artística  que  nos 
«nnaes  da  história  marca  épocha  memorável  para  as  artei^ 
nacionaes,  e  illuatra  o  curto  mas  admirável  periodo  da 
regência  no  segundo  reinado,  regência  que  constitue  j& 
uma  p&gina  de  ouro  para  a  biographia  da  excelsa  Prin- 
ceza  Imperial,  de  qnem  tanUf  tem  de  esperar  o  Brazil 
/"oxalá  todavia  que  bem  tarde),  quando  vier  a  reger  os 
destinos  d*este  vasto  e  florescente  Império. 

Orpbbo. 


[ 


Xfe 


Ovi-v«rao  barato. 


IÍ-.  O 


Noa  Estados  Unidos  o  pag^atoenlo  db'!iil^ííSÍ<íM*él' 
uniforme  :  emquanto  em  nas  estadia  si  pafíii  triarfl/efil- 
outros  se  paga  menoí.  Em  Boston 'por  exernpin  p!i;,-ani-  ■ 
SC  amitiulmenK;  36  duilars  por  cnbeça,  emqiVAmo  eiíi' 
New-York  se  pagam  sura^mle  29  dollats:  '    ■    '' 

S II  PP  unham  os  porém  este  liltimo  nlg^ftrisino,  o  ;i^-Wb^' 
remos  que  cada  americano  paga  ao  thesour-J' TiH'  uliL 
réis  anmiaes.  .  i    ..m  '. .      ; 

A  renda  g^ral  do  Brazi!  »■  inftírior  a  90  (hil  cínntOB  r* 
supponhíVmoa  porém  este  algariamo,  e  acct^SfteiitéiúAs 
mai.s  50  por  cento  para  rendas  provineinee  e  itt'wniei"' 
paes.  o  que  aliíií  é  ir  alftm  do  possível,  teremos  1^' 
mil  contos,  que,  divididos  por  10  milhões  de  haliilftlf^ 
tes,  mínimo  a  que  podetnoa  levar  a  população  do  -Idí^- 
pérío,  dar-Dos-hao  treíB  mil  e  quinhentos  rpM  por' 
cabeça.  '     ' 

Esles  algarismos  respondam  tiírmiuanferaeiíte,  áijuel- 
les,  quojulg-am  muito  i!aro  o  nosao  guvérnO,' e  preten- 
dera tornal-o  barato,  proclamando  nnia  TepúbHHa." 


Pergunta    Injioconte 

A  um  menino  que  fazia  exame  de  doctriua  para  séT' 
admittido  ao  coUegio  do  Pedro  11  quiiium  eliaminaditr, 
sacerdote,  explicar  o '  mystério  da  Encarnação,  fazeo- 
do-o  compreheuder,  como  S.  José  nilo  era  pae  do  Jesusi 
Chriato,  apezar  de  íier  oaaado  com  a  míiCL 
*    Este  padre  é  lolo,  nfto  é  ?     ,  Oitnn.      ib 


O  Juízo  dos  pax*et« 

O  jiirj  éojuizo  dos  pares.  Mas  quando?  aníeS  dé" 
julgar,  quando  jillga,  ou  depois?  Aiiteâ  nem  depois  nSO- 
pode  ser,  porque  ojury  s6  existe  qusudo  julga.  Dú-* 
rante  o  julgamento, a  paridade  nan  é  má  :  sao  pares  un» 
que  pode  mandar  inforcar  o  pobre  diabo,  e  o  pobre 
diabo  que  nao  pode  rugir  nem  mugir.  E  com  estes  pa- 
lavrões eeguveraao  mundo. 

Otton. 


XL  âl5 

Um.  livro  Impor jtaixte 

Anda  ahi  nas  mãos  dos  meninos,  que- frequentam  así. 
escholas  pública?  um  livro  que  diz  que  na  Austrália,  no 
hynverno,  nâo  se  vê  o  sol. 

Queín  será  maissagaa:  quem  escreveu  o  livro^   ou 
quem  o  approTOu  ?        '  Qlton,    - 


QUESTÕES  DO  X>I-A. 


Eis-nos  chegados  ao  tôrmo  do  segnindo  volume  d'esta^ 
publicação,  a  que  deram  importância  os  esoriptos  das 
primeiras  pennas  do  paíz,  taes  como  as  que  adoptaramr 
os  cryptónymos  de  Sémprónio,  Pompêo,Múcio  Scoevola,' 
Otton,  Gil  Braz,  e  restantes  collaboradores,  a  todos  os 
quaes  tributámos  cordiaea  agradecímenteâ. 

Sem  recurrer  a  meios  artíficiaes,  sem  assumir  com-' 
promisso  algum,  jsem  empregai»  o  recurso  dos  encómios 
incommendados  pela  imprensa,  ahi  temos  sàccessiva** 
mente,  ha  uns  6  mezes,  submettido  à  publicidade  essas 
páginas  desprçtenciosas,  mas  que  n&o  deixar&m  de  cor* 
responder  à  intenção  que  ao  seo  apparecimento 
presidiu. 

Tencionamos  inceptar  3."  volume,  e  progrediremos  em 
quanto  nos  nao  abhorrecermos  do  incargo.  Aos  nossos 
benévolos  leitores  agradecemos,  porém  nada  prometr- 
temos  :  liberdade  antes  de  tudo. 

Fácil  seria  dar  a  esta  publicação  mais  regularidade, 
mais  desinvolvimeuto,  mais  utilidade.  Sendo  as  16  p^ 
ginas  de  cada  número  de  matéria  sempre  original,  pou- 
cas folhas  periódicas  dao^-jA— ioje  tanta  escriptura 
inédita  ;  mas  se  convertêssemos  esta  em  diária,  muito 
mais  ampla  poderia  ser  a  su«  missão. 

'Num  dos  últimos  números  da  Bibliographia  da  França^ 
lemos  que  a  casa  Victor  Palme,  de  Paris,  se  preparava 
para  dar  á  luz,  sob  o  nosso  titulo  :  Questões  do  dia^  uma 
série  de  folhetos  populares,  precedidos  do  motto  :  União 
dos  homens  de  bem.  Segundo  aquelle  projecto  sympj^ 
tbico,  eis-aqui  alguns  dos  aí?sumptos  que  os  auctores  se 
propunham  a  tractar : 

A  internacional — A  questão  romana — O  catholicismo 
e  o  progresso — A  religião  na  França  em  1871 — A  de- 
pravação dos  costumes,   origem  das  desordens  sociaes 


"^16  XL 

—A  decadência  da  familia — O  despovoar  dos  campos — > 
A  lei  do  domingo— O  ínsino — A  instrucçfto  primária — 
As  classes  oper&rias  e  as  instituições  de  charidade — A 
liberdade  pública,  para  cá  de  17a9  -  A  fortuna  e  a  pros- 
peridade pública,  depois  da  revolução— As  fontes  do 
«uffrágio  universal —  A  descentralisaç&o— O  direito  das 
gentes  na  Europa  civi  lizada — A  bandeira  da  França — 
Os  direitos  feudaes  &. 

Já  se  vé  a  que  altura  se  eleva  o  plano  das  Questões  do 
dia^  parisienses,  e  de  que  vantagem  nfto  poderfto  ser,  se 
as  pennas  forem  dignas  da  missão,  para  revocarem  ao» 

{princípios  da  liberdade  pela  ordem  e  da  ordem  pela 
iberdade  os  espíritos  transviados,  que  abundam  'na- 
quella  grande  sociedade,  cujo  pêndulo  oscillará  ainda 
antes  de  (como  importa  á  religi&o,  á  liberdade,  à  digni- 
dade humana^  á  civilização)  cair  a  prumo. 

Todas  aquellas  matérias  sa.o  de  suprema  actualidade 
para  a  França  e  Europa ;  e  muitas  d'ellas  nos  tocam 
egualmente  por  casa ;  mas  se  é  certo  que  outras  nos  s&o 
mais  estranhas,  nao  menos  o  é  que  muitos  problemas 

S»li ticos  sAo  peculiares  á  nossa  sociedade,  e  estão  pe* 
ndo  o  concurso  de  todas  as  intelligêucias  superiores, 
de  todos  os  corações  bem  intencionados.  Resolva-os 
quem  se  sentir  com  a  capacidade,  que  a  Providencia  s6 
aos  seos  eleitos  liberaliza. 


XL 


317 


das  matérias  contidas  'neste  2^  Yolime. 

i\r.  B, — ^0  que  vai  aponctado  eín  cifra  romana  indica  o  número^, 
que  se  estende  de  XXi  a  XL.  O  que  vai  em  cifra  arábica  indica  a 
página  do  yo>ame. 

ÀRTIGe  DB  UlPIANO. 

Beforma  Judiciaria  (l.*) XL    30& 

Artigo  de  Junius. 
A  sinceridade  das  acções  opposicionistás    .     .  XXI       3 

Artigos  de  ^ifpâo. 

A  República  e  os  Estudantes  /!.•  art.)  .  •  .  XXII  17 

Id.                          (2.«  art.)  .  •  .  XXIIT  83 

A  reorganisaçáo  do  trabalho  (!.•  art.)  .  .  .  XXIX  189 

Id.^                         (2.«  art.)  .  .  .  XXXI  187 

Artigos  de  Muao  Scoevola. 

i.*  Sobre  os  abusos  da  liberdade XXII  22 

2.«              Id XXVI  81 

3.»  Ignez  de  Castro,  tragédia  de  Júlio  de  Cas- 
tilho m •  .     .     .     .  XXXII  177 

4.-              Id.  (II) XXXVIII  «80 

Artigos  de  Orphbo. 

O  conservatório  de  músicaVl*; XXXIV    218 

Id,  (2.<^ XXXVI    252 

Id.  (3.*) XL    308 

Artigo  de  Varrão. 

Um  liTro  do  Sr.  Bruno  Seabra ' .         XXVII    111 

Artigo  de  Gil  Braz. 

Ignez  de  Castro,  tragédia  de  Júlio  de  Castilho .  XXX    153 

Carta  de  Plauto  a  Cikcinnato. 
Sobre  thcatro XXVIII    122 


^B 


•318  XL 

'■  ■  •■  .  ■^. 

C    :{TAS   DE   SeMPRÓMO   a   ClNCINNATO. 

9.«  As  Palestras.  Plano  da  anályse  das  obras 

do  Sr.  Alencar XXIV  53 

10.»  (2l)  a  Iracema  (h^) XXV  68 

10.»  (b)       Id.    A  litteratura  nacional  (2.»)     .  XXVI  87 

11.»             Id.    (3.«) XXVII  97 

12.»             Id.    r4.V XXVIII  113 

13.»             Id.    r5.»j XXIX  129 

U.»             Id.    fO.^V]  '.    i.Jí    j.V^     1    .     •  XXXI  161 

15.»             Id.    n-').     .     .  ^     .     .     •     .     .  XXXII  188 

16.»             Id.    (8.»; XXXV  229 

17.»           ^,Id.    (9,»).  ....     .....     .     .     .  .  XXXVI  246 

18.»             rd.  (10.^).     . '   .     .•    '. '   .'     .''    '    . '  XXXVII  257 

19.»             Id.  fll.»).     . XXXVIII  273 

20.»             Id,  fl2.N XXXIX  289 

t- '  '  *     •     ■ '   ■■■      ...  -i  .■•'••  :     '     ■   '.   .       .  •  '     '■.■.■•:■■■  i                .«.  .  •     -     A 

Cartas  de  Cincinnvto  a  Semprókio- 

5.»  (aj  O  Gaúcho,  As  Palestras  do  DiáHo  .     .  XXI  7 

•  S.»  (h)      Id.  A  carta  do  Sr.  Alencar  á  Re-.i  .-  .  ,  . 

pública XXIII  39 

6.»         A  raça  dos  charlatães.  O  Til  '.     •     .  XXV  72 

7.»    .     O  r«?    .     .' XXVII  106 

8.»    '  '       Id.     .     .     .....     ...  XXX  145 

9.»         Os  thuriferárioa.  Os  romancistas,  em 

portuguez XXXII  181 

^                Advertência.    .     .     .     .     .     .     •.     .  XXXIII,  208 

aO.»/aYOra.     .     .     .     : XXXV  235 

^10.»  (b)      Id .....;.  XXXVII  266 

^11.»           Id.  O  Sr.  Alencar,  como  dramaturgo.  XXXIX  297 

Cartas  dk  Cincinnato  a  Fabrício. 

16.»         Osalbums XXII  25 

•  Carta  de  Cincinnato  a  Cujácoio., 

*  1.»         O  Sr.  Alencar,  como  jurisconsulto.     .  XXXVIII  284 

Carta  de  Cincinnato  ao  Redactor  das 
Questões  do  dia. 

Sobre  as  cartas  dfe  Semprónio XXIV  49 

Cartas  de  Cícero. 

Instrucção  popular.  Ao  Sr.   Dr.   Cunha  Lei- 
tão (!.») XXXV  225 

Id.            (2.*; XXXVI  241 


XL 


319 


57 
96 
127 
127 
128 
128 
159 
160 
175 
232 
224 
272 
287 
288 
303 
303 
304 
304 
314 
315 
314 
314 


Artigos  de  Oiton. 

O  meo  nome v\írr 

As  revoluções. yyvttt 

Forma  de  guvérno vvttttt 

O  poder  pessoal Íyvttt 

Pergunta ,    ,rTTT 

Problema XXVIII 

Parabéns qq^ 

Annxmcios yyyt 

Os  republicanos  em  Inglaterra vvvAr 

A  família yyvÍv 

Galera  a  duas  amarras yyyvtt 

Liberdade  politica yyyvttt 

Os  infçlezes  e  os  republicanos yyvttt 

Pelo  dedo  o  gigante ^Í^yty 

Virtus  post  nummos ^    yt v 

Maiorias yyyty 

Ordens  religiosas ^"^  Iy 

Liberdade  e  independência  da  egreja    .     •     .  ^^^j 

Guvôrno  barato XL 

Um  livro  importante Xi^ 

Ojuizodos  pares X*^ 

Pergunta  innocente XL 

Artigos  sem  assignatura. 

Biographia  de  S.  M.  o  Imperador  do  Brazil.     .  XXV      65 

Monumento  a  Bocage  ....     XX\     94 —  „„«.,,,    o/^ 

XXVIII  125  -XXX  157  -  XXXII)  193-  XXXIV  209 
Imprensa   periódica  da  corte.  O    Correio  do 

Brazil XXIX    14á 

Horas  vagas,  Poesias,  de  Joaquim  da  Costa  -.-^^t    i»w 

Ribeiro XXXI    HS 

Mendicidade  estrangeira  comparativa    .     .     •  XXaIA    w^ 

Questões  do  Dia  .     .     .     ,           XL    31» 

ARTrr.os  DO  Jornaj.  f  O  Brazil;  » 

O  Brazil .-    .      .      .  XXI 

Pantheon  Maranhense XXI 

SuppressSLo  da  escravidão  no  Brazil  ....  XXII 

Colonizac&o  do  Brazil  (art.  L°j XXIi 

*  Id.               (art.  2,^ XXIÍI 

Júlio  de  Castilho  (tragédia  Ignez  de  Castro^    .  XXiV 

Epigrammas  e  contos. 

De  Quintiliano  .     .     .     XXII  32-  XXIII  48.  XXIV      63 

De  Archíloco XXIIl      47 

De  Pompôo XXIV     63 

DeUnTill XXXVI    256 


14 
16 
29 
30 
45 
59 


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