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QUESTÕES DO DIA;
observações polilieavS e litterárias
escriptas por vários
B
ooordeuadas
POR
/ K
TOMO I .
mo DE JANEIRO
TVP06RAPHIA B LITHOGRAPHIA — IMPARCIAL —
146 A BUA SBTB DB SBTB^$BO 146 A
Advertência
Compôe-se este volume de 376 paginas, em 15
números successivos. Contôm o 1°. n\ 7i páginas^
e comprehende as 4 primeiras cartas de Cincinnato.
Cada um dos restantes 19 números tem 16 páginas»
Várias pessoas coUaboram n'esta publicação ; cada
uma escolheu um pseudónymo. Tendo-se concordado
em plena liberdade de redacção, cada signatário só é
moralmente responsável pelo que subscreve.
CARTAS POLITICAS
DIRIGIDAS
PELO ROCEIftO CraCMNiTO AO CIDADÃO FABRÍCIO.
CARTA 1/
Amigo.— A estas matas seculares, a este deserto em
que me apago, quasi a sós com a natureza, a este rp-
manso para onde ha tantos annos fugi desses campos
de batalha, em que se digladiam as paixões politicas
6 sociaes , chega de ordinário amortecido o écho da^
lutas com que ahi se recreiam os nossos homens pú-
blicos. Se não fora, portanto, a tua bondade de me
mandares as- publicações que ora tenho ante mim,
ignoraria eu que as mil questões graves que prendem
com o futuro do Brasil estão ahi sendo substituídas
por discussões sobre logomachias. Pelo que Tejo a de
hoje é o poi>ER PESSOAL, monstro ingente e informe,
Tisiphone ou Medusa de casta nova.
Estou longe dos homens e das cousas publicas ; mas
sabes que, emquanto pertenci ao mundo, fui libera-
lissimo, isto é, conservador; e^pois que Deus me nSo
deu míoh)s versáteis, persisto nas minhas idéas.
Ao contemplar o quadro que me envias, não resisto
a bradar, Gorregio do sertão, AnchHo l e peço vénia
para te submetter atropelladamente algumas das obser-
vações que tão ingrato assumpto me suggerc.
— 4 —
I.
Theses ha, curtas na expressão, mas longas no
alcance, que, por audazes, costumam ser ajudadas da
fortuna : moeda falsa que circula, lava que se alastra.
Essas theses aspiram logo a fóros"de axioma. Já foi
dito que os astuciosos as lançam às turbas ; os pre-
guiçosos de intelligencia apoderão-se delias, por lhes
pouparem o trabalho de reflectir, e repetem-n'as, para
alardearem comprehendôl-as. E todavia representam
essas proposições o absurdo, quando são analysadas;
mesmo assim mil bocas as reiteram, e, para demonstrar
aquelle absurdo, é mister contrarial-as mil vezes.
It.
E nem se julgue que essas theses íicão sempre em
tnnocenles brincos do espírito, em gymnasticas theo-
ricas, como as controvensias das escolas rhetoricas dos
antigos. Muitas vezes são joio semeado, que poderá um
dia afogar a seara. Cumpre não desprezal-as : são o
grão de areia de Pascal.
Que significa, na forma de governo q/ie nos rege,
pâr a these poi>cr pessoal na ordem do dia da imprensa,
do parlamento, das assembléas, dos clubs, das confe-
rencias, dos corrilhos e das praças?! Que significa
arrastar a coroa para o campo dos debates"^ Injuriar
a pessoa que o pacto fundamental qualifica de invio-^
lavei e sagrada ? Responsabílisar a quem não está su-
jeito a responsal>ilidade ? Atacar a quem não pôde, nem
deve, defender-se, nem tem de que ?
Será uma fácil valentia, se lhe não achas outro nome ;
será um pouco invejável laço armado a uma falsa popu-
laridade : tudo será, menos acto reflectido e prudente.
Estas tentativas (venham d'onde' vierem) sò levam a
um perigoso desprestigio, ou á mais abominável das
-8-
ochiocracias. O que só conseguen^ esses arautos da
anarchia é, Encelados sob o Etna, estremecerem e
convaisarem a terra. Tal não é a missão dos bem
inteacionados.
Talvez baja, entre esses , alguns dos que dizemos
de antes quebrar que torcer ; dos que não reconhecem
amigos nem inimigos ; águias que se affrontam com o
próprio sol sem pestanejar ; orgulhos que se ufanam
com o antigo motto etiam si omnes^ ego nonf entes
ideae^ em summa, como o justo e tenaz phantasiado
por Horácio. Como não devasso o foro intimo, res-
peito-lhes as intenções.
m.
Lamento mais que tudo ver arvorada por um va-
lente alferes conservador, n'uma hora de allucinação,
a desgraçada bandeira anti-dynastica.
Era já o Sr. conselheiro José de Alencar, que ria
sua folha Dezeseis de Julho (de Haio e Junho de 1870)
fizera do moii^ poder pessoal a sua Delenda Carthago.
Comquanto os artigos dessa folha fossem anonymos,
pelo dedo se conhecia o gigante. S. Ex. mesmo em
lugar bem alto e publico^ os perfilhou.
Na sessão parlamentar desse mesmo anno, o illustre
orador adoptou o mesmo thcma para seus raptos objur-
gatorios.
Finalmente agora (de 21 a 31 de Março) ahi voltou
outra vez ás mesmas variações no Jornal do Com-
niercio^ sob o titulo de Ultima phase. *
Temos, portanto, uma voz autorizada, repetindo as
duas palavras fatídicas, aterradoras como as do festim
de Balthazar. Autorizada, sim. Hontem erão essas pa-
lavras pelouros frios, tiros imbelles, porque sabiam
de arraiaes naturalmente hostis, e dava-se o devido
desconto á arguição, arrojada sem sciencia nem con-
sciência. Mas quem as profere hoje?
OOESTOESDODIÂ:
observações polílicavS e litterárias
eseriptas por vários
B
ooordeuadas
POR
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^*5<?. / ■-/ •'
TOMOI -
mo DE JANEIRO
TVP06RAPHIA B LITHOGRAPHIA — lUPARCIAL —
146 A BUA SBTB DB SBTBàiSBO 146 A
I
— 8 —
Não tem sentido algum-, se se lhe tira aquella ccAnitira
de requisitos.
Representa um grande principio constitucional^ se se
dá áquelles termos a devida interpretação
V.
Despotismo ne«ta abençoada terra t Mas que entendem
os publicistas por despotismo? Será elle possivel, onde
não é lei a vontade do monarcha ? Onde existem e
funccionam os poderes independentes? Onde a imprensa
é livre? Onde o habitante goza de todos os privilé-
gios reconhecidos á humanidade pela celebre declaração
dos direitos do homem e do cidadão? Onde o mo-
narcha não é proprietário do seu império, mas dele-
gado delle? Onde a autoridade não pôde coarctar a
liberdade aos cidadãos? Onde os tribunaes ^ não são
subordinados aos caprichos do poder?
Não : a coroa do Brasil não è o chapéo de Gesslcr.
VI.
O poder pessoal (se isto quer áizer poder régio) existe ;
quem o duvida? Existe em toda a sua força, em toda
a sua plenituí^e, pela natureza das cousas, pela Índole
do governo, pelo espirito das instituições, pela letra
da constituição.
E pois que é um correligionário quem diverge, ha
feliaftente um terreno neutro em que não discre-
pamos. Eis como se exprime o Sr. Alencar {Dezeseis
de Julho n.^ 113):^
t A escola conservadora adopta, como umanormapra^
tica^ a distincção feita pela constituição entre o poder
executivo e o poder moderador, exduinio os actos deste
da responsabilidade ministerial.
c Dahi resulta que o gabinHe não intervém nos actos
privativos do monarcha t E continua, dizemdo que a
constituição brasileira confiou á corda^ daqueUa forma ^
o elemento conservador, constituindo-o o centro dos
potleres políticos.
Que é^ isto. Santo Deus? Pois a pesâoa do monarcha
•; centro dos poderes politicos ; pois a pessoa do monarcha
individnul mente exerce actos privativos ; pois nestes
acto^ da pessoa do monarcha nem é permittido ao
gabinete intervir ; c ousais aflirmar que é illicilo o
poder pessoal! Appeilo de Phílippe para Philippe ; sois
vòs mesmo que vos condemnais.
VII.
Nos legeni habemas. Como se nâo trata de direito
constituendo, é a constituição do linperio a nossa biblia
politica. . ,
E' ella quem nos ensina, que o monarcha iem poder
pessoal; que é elle o chefe supremo ;que a elle pri-
vativamente cumpre velar incessantemente oobre a ma-
nutenção, equilibrio e harmonia dos mais poderes po-
liticos.
Como pede a pessoa do soberano exercer essa vigi-
lância incessante ordenada pela lei das leis, sem poder
pessoal?
Não quero discutir supremacias; mas direi que, se-
gundo a constituição, o poder io monarcha é de todos
os iHKleres o mais amplo c variado. Emquanto cada
um dos três poderes se circumscreve em uma dada
orbita, o poder privativo do imperante penetra nas
orbitas de todos.
E não tem poder pessoal ? !
O poder legislativo não julga nem executa ; o exe-
cutivo não julga nem legisla; o judiciário não legisla
nem executa.
E qual o poder pessoal e privativo do imperador?
Ei-lo :
Quanto ao moderador, e^erce-o plena o exclusiva-
mente;
2
— 10 -
«
Quanto ao legislativo, tntervem na promulgação ou
suspensão da lei, na convocação extraordinária da ao-
sembléa geral, na prorogação, adiamento ou dissolução
da camará dos deputados;
Quanto ao executivo, ô o rei chefe delle, e noméa e
demitte livremente os ministros ;
Quanto], finalmente, ao judiciário, o rei intervém
suspendendo os magistrados, nomeando-os e transfe-
rindo-os, concedendo amnistias e moderando as penas
aos réos condemnados por sentença.
Não serão tudo isso.poderes 0 máximos pederes? Não
serão ,tão exercidos pela pessoa do soberano que até
nelles, segundo a linguagem do Sr. Alencar, não é dado
aos ministros interferir? E quando assim o decreta o
código dos nossos deveres e direitos, ha cidadãos que
lhe opponham o seu veto, de uma penada annullando
principies, antes axiomas constitucionaes ?
Poder pessoal de um escriptor qualquer superposto ao
poder pessoal do rei I
E se esta é a doutrina fundamental, no tocante a attri«
buições, não só foi ella consagrada pelo espirito que a
dictou, senão também pelas mais positivas e formaes
disposições.
Quando a constituição estabeleceu que o imperador
se considerasse o primeiro representante da nação, e que
velasse por que fossem sempre uma verdade as garan-
tias que ella offerece, não lhe conferiu vastíssimo poder
pessoal ?
Não lh'o conferiu, quando o obrigou a prestar jura-
mento de fazer observar a constituição e as leis, epro-
ver ao b&m geral ?
Não lh'o conferiu, quando, submettido por ambas
as camarás um projecto de lei, o autorizou a negar-lhe
consentimento, ouvindo em resposta louvores do inte-
resse que toma pela nação ?
E é esta entidade preponderante e suprema, este
Argos, a quem a lei prohibe o dormir, a quem ella
assenta no posto mais eminente para servir de senti-
- 11 -
ncHa de todos os deveres e direitos, este poder que
íunde em si attribuiçòes de todos os poderes, ou as
exerce privativamente ; o homem-instihnção^ creado
para a inspecção summa da sociedade ; é este magistrado
supremo, a cuja pessoa se pretende negar poder !
Impõem-lhc a lei e o 'juramento uma permanente
direcção e intervenção (directa ainda quando indirecta,
seé licita a phrase), e ha quem Ibe denegue os meios
de cumprir o seu dever I
Quer-se inverter Ioda a marcha da civilisação, a exi-
gência de tempos illustrados, substituindo o rei intel-
ligente^e amigo da pátria por um phantasma de soberano I
Quer-se pôr ao vivo era scena a ironia de Boileau?
Hélas! qu'est devenu ce temps,cet heureuxtemps,*
Ou les róis s'honoraient du nom de fainéánts I
A aspiração será explicável para quem se sentir com
forças de se arvorar cm maire du poiais^ suppondo en-
contrar ante si massas de Dagobertos.
Não e não. Em presença da forma de governo c da
constituição que nos rege, se á nação compete a omni-
potência, ao imperador é delegado amplissimo poder
pessoal.
VIII
E porque o debate naquelle terreno já se vô que le-
varia a duvidar da luz meridiana, fica-me uma hesitação.
Dar-se-ha que sereduza aannullaçãodo poder régio aos
actos que só prendem çom a direcção do poder exe-
cutivo?
O absurdo c inconstitucionalidade da accusação não
seria menor. Mas, se essaé a interpretação do horrendo
poder pessoal^ aceite-se a discussão, mesmo nessas aca-
nhadas proporções.
Vamos ver se resumimos o cerebrino pensamento : •
€ Concedemos que o imp(M'ante possa por si, e sem
— 14 —
€ Por mim sei que nunca S. M. o Imperador me
coagiu a acto algum, porque nem eu me sujeitara,
nem Sua Magestade m'o impuzera. Desta minha certeza
dá prova o facto de ter eu strvido anno e meio como
ministro, pois não serviria 24 horas, se me sentisse
annullado e desairado. Dào igual prova as declarações,
por mim feitas na camará dos deputados, em 4 e i8
de Junho de 1870, patenteando.que não deixei a pasta
da justiça por falta de confiança da coroa ou na coroa,
mas sim por ter o gabinete a que eu pertencia apoiado
a divergência de um collega meu; e acrescentei': t Esta
^éaunicae verdadeira causa. » Dão igual prova outras
phrases minhas, quando na camará tratei da minha
candidatura senatorial, e di^se: c Entendi que minha
t posição de ministro me impunha o dever de commu-
t nicar a minha resolução à coroa, porque esta reso-
t lução podia modificar a confiança do poder irrespon-
c sável, confiança sem a qual eu não cámpreliendo a per-
« manencia do ministro. » Ora, se esta linguagem é pos-
terior á minha estada no poder ; se eu tão explicita-
mente declarei que conservara até ao fim a confiança da
coroa ; se funccionei sempre, com a liberdade própria
do meu caracter e da minha posição ; se não foi attrito
algum com a chefe supremo que motiVou a minha sa-
hida ; é obvio que nunca para commigo foi indebita-
mente exercida coacção de espécie alguma ; antes me
foi sempre deixado o pleno uso das faculdades, peio qual
me cabia responsabilidade.»
Iguaes, creio eu, s.eriam os depoimentos dos 149 res-
tantes ex-ministros. Não são manequins de cortiça,
boiando á lona do poder, acariciados e cobertos de Icn-
tejoulas; são os caracteres da tempera do Sr. conse-
lheiro Alencar, os cidadãos fortes e independentes, que
entoam coro, em que não destoa uma voz única.
Só n'um accesso epheraero de despeito ou ira se.
podia calumniar a nação nas pessoas de suas primeiras
illustrações. « Poder pessoal é subserviência, e o Sr.
visconde de S. Vicente era a encarnação do poder
pessoal! O seu desejo de aproveitar para a pátria
— 15 —
OS lalenlos (isto è, de cumprir a constituição) é tra-
balhar na obra nefasta do aniquilamento dos par-
tidos I... i Escondamos o sudário.
Aquella primeira interpretação da palavra intervenção^
como variante de reprehensivel poder régio, está fora
de causa. Progridamos.
X.
Venhamos á segunda ; a essa^ que eu digo ser licita
e honrosa, obrigatória, veneranda ; a esse poder pessoal,
que eu proclamo benéfico; a esse, cuja interrupção
por 24 horas fazia a um Tito exclamar : Hodie diemperdidi.
Esse poder pessoal^ q\ie eu dentro dos limites approvo
e louvo para os actos do poder executivo como para
todos os mais, é poder decretado pela constituição e
aconselhado pelos principios. E, visto existir lei escripta,
antes de tudo regjilemo-nos por ella.
Que prescreve a constituição ao Imperador?— Que es-
teja permanentemente vigilante em* fazê^-a observar;
em prover ao benl geral ; em manter a harmonia dos po-
deres ; em representar a nação. — Não ha nesses preceitos
excepções nem restricções ; não ha mais nem menos :
abrangem todos os negócios públicos, qualquer que
seja a orbita a que eiles pertençam.
Deste altíssimo jus de vigilância será acaso exceptuado
o poder executivo? ficará o Imperador excluído desse,
o mais activo, militante e permanente de todos os
poderes ?De modo nenhum. Salva uma única restricção,
tem todo o direito, como tem toda a obrigação de
estudar os actos submettidos á sua referenda.
A restricção a que alludo é a seguinte:
Sendo certo que a responsabilidade do acto projec-
tado recahe sobre o ministro, que succede? Se o Impe-
rador o julga acertado, subscreve-o ; se o desapprova,
ao passo que o ministro persevera na sua opinião,
fica ao monarcha a opção entre ceder neste ponto^
ou demíttir o dissidente.
— 16 — .
Em tudo mais, o Imperador póJe, deve estudar os
negocies que correm pelo executivo, com tanto que
por ultimo respeite a responsabilidade alheia. Como!'
Pois ignora-se acaso que o Imperador forma parte
integrante do poder executivo?! Tanto forma, que o
art. 102 o denomina chefe do poder executivo^ é curioso
seria que a cabeça de lim corpo fosse parte estranha
a esse coi*po. Pois a lei que créa um membro e chefe
do poder, que encargos lhe impõe, se se quer entender
que esse chefe e membro seja mudo ! E que constituição
seria esta, que, reconhecendo ao iníimo cidadão jus de
communicar seus pensamentos, igual jus recusasse a
quem occupa o pináculo do edifício social ; a quem só
o emprega em zeloso desempenho de seu oíTicio de
Rei?
Nem se diga que a constituição só confere ao Impe-
rador a nomeação e demissão dos ministros, mas que
emquanto estes funccionam se suspende toda a interfe-
rência magestatica. Nomeação e demissão são attribui-
ções do Moderador; o exercido do executivo, isto é,
a eífectividade das suas resoluções, pertenceaosministros;
mas o trabalho prévio da elaboração, do estudo, compete
ao Imperador com os seus ministros, à cabeça com
o corpo; e do mesmo modo que, n'um governo soli-
dário , è acto de todos os ministros , embora não
signatários, o acto do ministro que o praticou, assim
pôde o chefe do executivo temar parte nas deliberações,
deixada por elle a responsabilidade a quem de direito
couber. Até jrei mais longe, observando que^ficçãoeu
verdade) a constituição proclama o Imperador como
não sendo só o chefe, mas personificando o próprio
poder executivo, visto declarar que é o Imperador quem
pdos seus ministros o exercita.
Gonseguintemente, opoder pessoal^ 'considerado como
direito imperial de exprimir opinião sobre todos os
assumptos da administração, e de tomar parte nos
trabalhos do poder executivo, é formalmente estabe-
lecido, recommendado^ prescripto pela constituição
do Império.
- 17 —
XL
Assim o prescreve a lei escripta, assim o devia m*
limar. Os actuaes monarchasjã não administram jus*
liça i sombra de um carvalho ; mas em tão complicadas
sociedades como as actuaes, cabe-lhes muito mais larga
esphera.
Nem se imagine que, no tumultuoso século em que
vivemos, haja para os reis encanto na arbitrariedade ;
poder arbitrário è contra a indole e a natureza do
régio poder ; o que pôde namorar um cidadão, não
seduz um soberano ; o imperante fica» o seu escolhido
passa ; rei não é mtaistro.
Colloque-se ao leme um rei illustrado e justo,
e a náo do Estado vogará sempre com ventos galernos.
Ora, a justiça^ qualidade mais rara do que parece, é
dever de todo homem^ do inflmo como do máximo;
e, para o exigirmos dos outros, importa que interro-
guemos a nosso respeito a própria consciência. A justiça
(diz J. Simon) é inexorável: o que elia impuzer^
satisfaça-se incontinente e lealmente, sem hypocrisia
nem pensamento reservado, por ser justo, e não por
ser lucrativo ou glorioso. Cale-se o coração quando
desharmonisar da justiça. Ao dever nunca se falta.
Sejamos Jiistos, que vale tanto como: sejamos po-
iiticos. Não apedrejemos o sol que alumia. Não inju-
riemos quem no throno foi collocado, não por cálculos
das suas commodidades, mas por conveniências do nosso
interesse. Não desgostemos da sua dedicação a quem
ha perto de meio século nlo tem ferias. Não conver-
tamos merecimentos em defeitos; não imputemos a
ruins imp|)sos actos muitas vezes nobilíssimos; não
demos por synonimos ingratidão e independeria.
A Benjamin Gonstant devemos, em parte, o que ha
de peculiar' no jogo das nossas instituições, e nomea*
damente no que respeita ao poder neutro, interme-
diário entre os poderes activos. E' o melhor expositor
da nossa instituição de realeza constitucional. OaçTimol-o:
3
— 18 —
f OíTcrece-nos a monarchia constitucional um poder
neutro, indispensável á liberdade regular. O rei, era
terra livre, é um ente á parte ; sobranceiro á variedade
das opiniões ; com a mira n'um só alvo— a maiiu-
tengifo da ordem e da liberdade ; estranho á condição
commum ; inaccessivel por isso ás paixões procedentes
dessa condição. A augusta prerogativa da realeza dá
ao espirito do monarcha uma tranquillidade de que as
posições inferiores não participão. Eleva o homem por
sobre as humanas agitações; e a obra prima da orga-
nização politica foi ter creado assim, no próprio seio
dos dissentimentos, sem os quaes nenhuma liberdade
existe, uma inviolável esphera de segurança, de ma-
gentade, do imparcialidade, que pacificamente permitte
àquellas divergências desenvolvcrem-se (emquanto não
ultrapassam certas raias), e que, apenas sôa a hora do
perigo, lhos põe termo por meios legaes, constitucio-
nacs, e sem arbitrariedade. »
Disséreis que, ao traçar este quadro, fitava o grande
publicista olhos no Brasil, que não tem certamente
razão de queixar-se das suas instituições, e do modo
como ellas funccionam.
Cabe-nos a fortuna de podermos aprender com as
alheias grandezas e felicidades, com os alheios desastres
e humilhações. Temos visto nascer, vegetar e mor-
rer doutrinas e seitas ; variadas turmas têm seguido
caudilhos de san-simonianismo, socialismo, commn-
nismo, e quantas extravagantes concepções tém aspi-
rado a pautar a sociedade por um quadro imaginário
impossível. Às más doutrinas não tém achado écho
nestas regiões. O Império é um irmão gémeo da cons-
tituição ; esta tem creado e acompan hado a nossa ci-
vilisação e a nossa politica; não nol-as adulterem.
Na nossa monarchia constitucional, o soberano não é
um Deus, não é uma omnipotência, mas é um altíssimo
poder,»um poder exercido pessoalmente^ poder com facul-
dades superiores não aos outros poderes^ mas sim ao»
elementos que os constituem,
E se não, veja-se a organização da Inglaterra, do
— 19 —
paiz (]^onde o systema representativo foi para os outros
transplantado.
Ahi o monarcha é superior aos elementos que cons-
tituem :
O poder executivo^ quando nomeia e demitte livre-
mente os ministros.
O parlamento^ quando profere o veto.
A catnara^ hereditária, quando noméa novos ^ares.
A camará ekctiva, quando dissolve a assembléa dos
deputados.
O poder judicial^ quando amnistia^ commuta ou perdoa.
E' ama entidade que instiiicto o reflexão, mais ainda
que a educação politica , ensinam a acatar, a rodear
de certa aureola de veneVação, sem que nisso entre
sombra de baixeza, servilismo ou indignidade, gratuitos
insultos que, á falta de razões, costumam os illumi**
nadissimos prodigalisar aos que não recusam respeito ás
cousas que tém como respeitáveis.
O código criminal permitte, em termos babeis^ cen-
sura dos actos do governo e da administração; não
prevô a censura dos actos pessoaes do soberano, porque
mais alto código o proclama inviolável, sagrado, irres-
ponsável. Como se ousa, pois, estar sempre dando para
ordem do dia o que nem é tolerável apontar de fugida? !
XII.
E por Deos, que exigem da pessoa que empunba o
sceptro brasileiro? formulem as suas instrucções: que
lhe querem? Por que bússola Ifc de dirigir-sc que não
seja a constituição e a sua razão?
Que outros pharóes tem elle que o orientem?
A opinião ?
Sejamos francos. Opinião, merecedora do nome de
publica, é planta que está entre nós por acclimar. Este
immenso território mal povoado ainda não ofiercce
as condições de paizes populosos, mais antigos, maii>
adiantados, mais estudiosos dos interesses públicos.
— 20 —
I
A imprensa periódica não polilica é um conruso
deposito de opiniões indivíduaes e contradiçtorias. A
imprensa politica, rara e sustentada laboriosamente,
mereceria que os partidos e o paiz lhe dessem mais im-
portância do que lhe dão ; e confessemos que, por em-
quanto, mais é a opinião éco da imprensa, que a im-
prensa écHo da opinião. Os homens eminentesem sciencia
pouco se appHcam a tratar, em obras especiaes, os
grandes problemas de governo. A importante classe
agrícola compõe-se de indivíduos, que se concentram
nos seus trabalhos ruraes. A classe mercantil absorve-so
no immenso desenvolvimento pratico dos seus ne-
, gocios, não curando das questões que não tocam na sua
especialidade. A classe militar cumpre bem os seus
deveres, mas não opina, nem fôra próprio que opinasse;
e assim as mais.
Oago que augustos lábios soltaram a formosa phrase:
f O que eu íne considero é chanceller da opinião. >
Pôde isto levelar nobilissima disposição; mas nada
msiis: opinião é por ora uma chimera no tocante a
alterações no systema do nosso governo. Por mais que
o soberano applique o ouvido, não percebe som algum
distincto. Tem, pois, que se guiar pelos seus con-
selheiros naturaes e pelos dictames da própria razão.
XIII.
Temos atè aqui faUado vagamente da entidade im-
perador, sem DOS referirmos emi particular a quem
actualmente preenchera suprema magistratura. Fallar
de quem impera é navegar por entre os parceis das
supposições. Oue importa? A verdade, por se tratar
* de um príncipe, será força escondel-a ? Chegaríamos a
tempo em que um sólio não sirva para matis que
pelourinho ?
Receia-se o jpoderpessoai exercido pelo Sr . D. Pedro II T
Para ' quem é deste tempo e desta terra, o dito já vem
por si mesmo refutado.
— 21 —
Quem é unirersaimente coaLecido por uma vida
inteira de abnegação, ia, após 40 annos de glorioso
reinado, exorbitar dos seus poderes ! Para que ? Para
elevação ? Não pôde subir mais alto ; e longe de subir^
desceria. Para consideração 7 Taes meios lh'a não
dariam. Para enriquecimento? Não ba quem mais des-
preze as opulências, qli^m mais as tenha rejeitado,
quem mais haja consagrado seus parcos meios a con-
veniencia» alheias. Para popularidade? Não precisa
acrescentaNa quem tamanha e por tantos titulos
a conquistou ; e isto antes lh'a diminuiria. Para
absolutismo ? Não ha maior inimigo do arbitrário, nem
quem neste Império tome tanto ao serio a constituição
que jurou.
Se não pôde, pois, imputar-se ao actual soberano
pensamento reservado e calculo pessoal, a ttrvbuam-se*
os muito legitimes actos que pratica ao modo como
concebe o desempenho dos seus deveres, que são
diversos dos de todos os outros cidadãos.
Tudo se lhe move em torno : só elle fica ; só nelle
se encarnam e perpetuam as tradições, a successão dos
negócios. Senado f Não tem já um membro,.designado
pelo Sr. D. Pedro I, nem pela primeira regência do
acto addicional ; são todos escolhidos pelo Sr. D. Pedro II,
e entre esses já, dos antigos, raros restão. Depntadêst
Renovam -se constantemente. Ministros^ Um por anno,
desde a maioridade, em cada repartição. Se, pois, tudo
desapparece, e só o sober^jio occupa permanentemente
o seu lugar ao leme do Estado , é elle incontesta-
velmente a pessoa mais idónea para, nas cousas pu-
blicas, aconselhar, ou guiar, ou*interferir, ou mandar,
segundo a co-relação entre as suas attribuiçOes e os
casos supervenientes.
Niní^oem lhe nega, creio eu, amor de pátria, ins-
trucção rara , esclarecido espirito , desinteresse , ex-
periência, conhecimento dos homens e das cousas, mag-
nanimidade, tudo sobredourado de summa rectidão.
Que receio pôde então inspirar quem, dotado destas
qualidades e do grande amor ao trabalho, mostfa que
— 22 —
não quer ficar ocioso, antes sente satisfação em dar
ao serviço publico todas as horas que a alta cultura
do seu espirito lhe poderia estar ambicionando para
mais attractivas occupações ? Preferir-se-hia acaso que
o natural centro de todos os poderes se mostrasse in*
diíTerente e estranho a quanto o circumdasse? Que
o piloto adestrado ficasse impassível em presença de
todas as manobras? E, finalmente, que aquelle que
pôde até demittir, se lhe desprazem os actos do seu
ministro, fique inhibido de lhe apresentar sequer a
sua opinião acerca dos mesmos actos?
Ainda que não fosse um dever e um direito do cargo,
6 poder pessoal seria uma conveniência, quanUo exer-
cido por tão recto e illustrado animo. £' esta uma
geral convicção, e do coro unisono nem sempre dis-
crepa a voz do Sr. conselheiro Alencar. E, como o
seu elegante estylo dá outra qualidade de relevo ao
pensamento, aqui transcrevo uma significativa phrase
do discurso proferido por S. £x. em 14 de Maio ultimo,
phrase allusiva ao Sr. D. Pedro H, e em que a justiça
aposta primazias com a elegância :
c Asattribuições magestaticas estão personificadas em
uma individualidade ; esta individualidade é susceptível
de convicções, e de convicções profundas ; pôde ser
inspirada nestas convicções pelo desejo de bem servir
ao paiz. •
E* o mesmo Sr. Alencar, que no seu segundo artigo,
no Jonial doCommercio^ declara enunciar uma convicção
gue i sua e de todos os que têm dirigido o paiz. Pal-
iando, de todos esses e do si mesmo, diz que sempre
têm tido c os ministros a consciência das puras intenções
do Imperador e do seu iticontestavel patriotismo, »
Deve exultar com o exercício do poder pessoal quem
assim o vé depositado em mente pura e mãos incun-
testavelmente patrióticas.
Basta. Se o poder pessoal é legitimo exercido por
qualquer imperante, exercido pelo actual é benéfico»
louvável e livre de toda a espécie de risco.
-23 -
XIV.
E, antes de sahir desta matéria, occorre-nos uma
curiosa reflexão sobre o modo como o Sr. D. Pedro tem
praticamente exercido o poder pessoal , que as ins-
tituições lhe conferem.
Algum proveito se ha de tirar do ser velho: é ter
archivadas muitas recordações ; e essas invoco eu agora.
Não ha nada mais pessoal, individual, privativo,
exclusivo do monarcha, do (}ue é o direito, que ninguém
lhe contesta, de demittir livremente os ministros.
Ninguém ? engano-me ; parece haver alguém que lh'o
não concede : é elle próprio !
Disse eu que, desde a maioridade, tem quasi havido
annualmente um ministro por cada repartição ; disse
que orçavam por 150 os ministros, o que representa
nma inflnidade de ministérios. Pois bem ; nessa in-
fíniJade não vejo senão três, cuja sabida proviesse de
repulsas do Imperador. Todos tem dado, no parlamento
ou na imprensa, e na occasião opportuna , as razões
da sua retirada, a qual. tem constantemente provindo
das indicações parlamentares ou politicas, de dissi-
dências entre os collegas, de moléstias ou de outras
causas ; nunca de atlritos com a coroa.
Já se vê que em taes casos o soberano foi passivo,
c não usou da sua faculdade magestatica. Um tanto
mais activo foi nos trcs casos únicos de que fallo, mas
cm todos esses appareco o acto honrosissimamente
explicado.
Na sua extrema mocidade reagiu contra um gabinete
enérgico, mas que exigia tenazmente para com um alto
servidor uma demonstração, não motivada por conve-
niências de serviço, e sim por considerações alheias a
elle. Não era ainda a experiência, mas era já o instincto
da justiça, que o fez insistir naabstenção, e o gabinete
díssolveu-se.
AlCTns annos depois, certas demasias de turbulentos,
cm dias de eleições na capital do Império, que deviam
-24 —
correr paciGcas» patentearam que os ministros eram, por
sua pouca acção, accusados de negngencia, fraqueza e
até complicidade ; e, comquanto não houvesse motivo
para tantas accusaç(5es, não era menos desmoralisada a
situação, e entendeu Soa Jfagestade dever escolher
ministério mais forte na opinião.
Finalmente, em um caso próximo, tendo sido tentada
a invasão da sua, mais que nenhuma, privativa attri*
buição da escolha de um senador, e não sendo conven-
cido da inconveniência da que fizera, aceitou a resig-
nação com que fora ameaçado,
Eis-ahi, entre tantos ministérios, as três únicas
espécies de meio-conflicto, terminadas pela demissão
'dos gabinetes ; e em todos esses três casos actuando no
animo do soberano um motivo de alto interesse publico.
Quem nessa attribuição fundamental, e incontesta-
velmente própria, renuncia a empregar o seu poder
pessoal, mostra que nunca delle usou nem usará, nas
attribuições secundarias, senão parcamente, constitu-
cionalmente, e em harmonia com o interesse nacional.
XV^
O Sr. conselheiro Alencar, attribuindo ao poder
pessoal, a que elle denomina esterilidade dos partidos,
quando ^bem ao governo do Estado, exprime-se desta
arte:
c Que temos nós adiantado, a respeito dos melhora-
mentos moraes e materiaes do Império 7 d
Não duvido de que a intenção da resposta a esta
pergunta seja bomba de ricochete. Por ser o imperante
parte muito activa e essencial no governo da repu-
blica, pretende-se-lhe attribuir especialmente o dezar
proveniente dessa esterilidade. Nesta ordem ds idéas^
obvio fica igualmente que será para a gloria do mesmo
imperante, se a interrogação tiver solução contraria á
que ingrata e injustamente se supp^e.
— 25--
Pois bem. A resposta, eil-a aqui: durante o reinado
do Sr. D. Pedro It tem-se o Brasil transformado com*
pletamente e adiantado, com progresso notável, nesses
mesmos melhoramentos moraes e materiaes.
Uma nacionalidade nascente radicou-se e fortificou-se.
Um paiz pouco considerado dos estrangeiros, e cer«
cado de mil republiquetas, firmou a sua monarcbia e é
acatado como a segunda nação (e nem em tudo segunda)
de ambas as Américas.
A esphcra armilar, divisa quasi desconhecida do ocea«
no, com eile travou largo conhecimentoe dos portosonde
não havia um vaso de guerra sahiu possante armada.
Todas as nações do mundo tém cultivado com o Brasil
as mais constantes e cordiaes relaçScsf.*
Uma delias, que ousou recentemente provocar o Im-
pério, sentiu a finar oseíTei tos de sua imprudência,
e acrescentou na fronte do Brasil novos loiros mar^
ciaes, aos que duas outras republicas, hoje amigas, já
lhe haviam ennastrado.
A riqueza do paiz cresceu por tal forma que, ao sahir
de cinco annosdc dispendiosíssima guerra^, a fazenda se
ostenta florescente ; e tão vigorosa é a seiva productora
da riqueza nacional, que as rendas publicas foram sempre
subindo progressiva e annualmente, durante essa
guerra, e a despeito delia.
As constantes revoltas que, no principio. do reinado,
ensanguentaram successi vãmente numerosas províncias,
foram substituídas por paz octaviana.
A instituição da escravatura levou golpe mortal com
a extincção do ^raQco de Africanos, e tem seus dias
contados.
Umaredede vias férreas liga numerosas regiões em
muitas provindas do Imjperío.
Importantíssima navegação a vapor sulca os mares de
to<Ias as costas, e os rios de muitas regiões.
Tclegraphos eléctricos unem entre si muitas locali-
dades.
AI»riram-sQ a todas as bandeiras o Páraguay, Paraná,
Uruguay e Amazonas.
4
— 26 —
Em muitas províncias, solo outr'ora deserto está
rasgado de boas estradas, algumas das quaes podem
ser apontadas como exemplares.
As principacs cidades são illuminadas a gaz.
Promoveu-so a instrucção.
Promulgaram-se códigos e simpliflcou-sc a legislação.
A população do Império duplicou. Neste reinado
quintuplicou a importação, e a exportação sextuplicou.
Os rendimentos públicos, com suavidade de impostos,
sextupl içaram,
Grearam-se ou reorganizaram-se institutos, academias,
faculdades de direito e medicina, escolas militares,
observatórios, roUegios de letras, lyceus, bibliothecas,
thealros, conservatório, institutos aí^ricolas, archivos,
sociedades, bancos, estabelecimentos de caridade, hos-
pitaes geraes e de alienados, hospícios de surdos mudos
e de cegos, prisões e casas penitenciarias, cemitérios,
asylos de inválidos da pátria o de inválidos da ma-
rinha, lazaretos, casas da moeda, diques, passeios,
obras de salubrisação, esgotos e limpeza das cidades,
systemas de viação aperfeiçoados.
Longe iria esta resenha se nella me quizesse de-
morar. Não é matéria que de fugida se percorra. K
se deste esplendido quadro resulta gloria para S. M.
Imperial, o thuribulario è o Sr. conselheiro Alencar,
que deduz os factos moraes e matcriaes do paiz do
poder pessoal do imperador.
XVI.
Disse eu que o Sr. Alencar, denunciando o abomi-
nável abuso do podíT p^ssoaí, não dera a mínima prova
da aíTinnaliva, não allegára um único facto. Eis-mo
coberto de sacco e cinza ; errei ; S. Ex. deu valentes
provas, allegou factos tremendos I E, pois ahi fica feita
a confissão, permitte-me tu agora perguntar-te se são
exactas as versões que por este sertão correram acerca
de dous acontecimentos.
— 27 —
PRiMEiao. Retrocedamos aos tempos da Uruguayana.
Diz-se que, nos princípios da guerra com o Paraguay,
no mais renhido e arriscado delia ; quando Lopez se
ostentava com excessiva força; quando a sua causa
tinha grandes ramificações em Bplivia, Entre-Rios, Cor-
ricntes, Montevideo e Buenos-Ayres ; quando o próprio
exercito brasileiro ainda estava em gérmen ; quando sur-
giam diariamente difíiculdades, não só com os alliados,
mas alé entre elementos de força brasileira ; quando-
SC havia creado a nova milicia ios voluntários dapairía^
a que importava dar animação e prestigio ; quando o»
solo do Brasil estava já calcado por pé inimigo ; quando
emíim se reconlieceu a urgência de uma deliberação
arrojada e a conveniência de fazer capitanear todas
as forças por espada, a que nenhuma outra se equi-
parasse em hierarchia, pondo assim termo a perigosas^
dissidências; nessa crise melindrosa, digo, o Imperador
patenteou a resolução de partir para os campos de
batalha, e participar dos incommodos, das privações.
c dos riscos a que seus súbditos andavam expostos.
Diz-se que esta decisão achou manifesta repugnância
em muitos conselheiros da coroa, que á porfia ex-^
punham a Sua Hagestade os inconvenientes do seu he-
róico projecto. Dizem que Sua Miigestade respondera r
• Rt»solvi ir: qiíeroiv. Se me não deixam ir como
Imperador, abdico, e vou como cidadão. Se me não
deixam ir como general, não me podem tirar a qua-
lidade de brasileiro; alisto-me como voluntário da
pátria, e vou com uma espingarda, t (Aqui disse:
QUEUO) )
- SsciUNDO. Diz-se mais que no anno passado, quando
o governo assentou ein mandar proceder a uma solem-
nidadc olTicial, em acção de graças ao Omnipotente
pela terminação da guerra, aconteceu que o encarre-
gado desses trabalhos apresentasse uma tabeliã onde
SC orçava em 36:000^000 a coUocação de uma estatua
equestre do Sr. D. Pedro, em frente ao quartel do
campo da Acclamação ; e diz-se que apenas Sua Ma-
gcslade leve conhccimonto desso plano declarou que
— 28 --
«00 consentia que se lhe erigisse semelhante estatua.
(Aqui disse : nâo quero !)
Boquiabertos escutemos agora o Sr. Alencar na
sessão de 19 de Maio, ao tratar desta recusa da es-
tatua e (já se sabe) do poder pessoal.
São suas te:ítuaes palavras:
« Já uma vez, senhores, foi trazido a este recinto
um qiierOy que se disse ser irrevogável ; foi a pro-
pósito da Uruguayana. Não desejava que qualquer
m^^mbro do gabinete de 16 de Julho viesse trazer a
esta casa um não quero/ »
Parabéns, meu amigo, parabéns ! Que tens que lhe
dizer? O juiz togado allegou e provou. Agora ninguém
mais poderá duvidar da existência, intensidade e pe-
rigos daquelle tyrannico poder pessodl^ daquella espada
de Damocles pendente sobre a cabeça de todos os ci-
dadãos. Os crimes do pod<^ pessoal ahi estão patentes:
o Imperador qiiizf e não quizf Quiz ir expôr-se ás
balas, em defesa da pátria, e foi! Não quiz que lhe
erigissem estatuas, e não se erigiram! E' o mais bár-
baro, atroz, e virulento abuso que nunca se viu do
indigno poder pessoal. Rei que delle usa assim, de que
horrores não é capaz II
Omittoo muito mais que ainda no espirito me tu-
multua. A' fé que foi bem contra minha intenção se
neste aranzel me escapou uma palavra que denotasse
desrespeito para com um talento distincto, embora
neste ponto o considere transviado; também me não
passou pela mente duvidar da sinceridade das suas
convicções, ou attribuil-as a motivos reprovados. Apenas
se me alTigura que o nobi^e conservador, poeticamente
movido de alta inspiração, se deixou drrrebatar pelos
espaços imaginários. O que ardentemente lhe desejo,
visto ser conservador, é^que evite a discussão de outras
theses como esta, embora fique vencedor, pois corre
perigo de ter de exclamar como Pyrrho : t Mais im&
Victor ia assim^ e >estou perdida! i^
CARTA «•*
Amigo.^NSo sei se te queira mal. Pratico a sós com-
tigo, na branda eíTusâo de um coiloquio particular, c tu
arrastas-me para a praça 1 A imprensa, meu amigo, que
para uns é templo capitolino, nâo passa de pelourinho
para nós outros, os plebeus da pcnna. Fabricio querido,
para que me puzeste em exposição ? Tu, com essas repas
embranquecidas nas lutas da politica (nâo raro dege-
nerada em pelotica ), devias antever o quesuccedeu.
Para certa ordem de estadistas^ a argumentação não vale
nada, despreza-se, ridicularisa-se, refuta-se com de-
clamações bombásticas, bolhas de sabão que mentem
arvores e ediflcios, mares e soes que um ténue sopro
apaga. Substitue-se a discussão proveitosa dos prin-
cípios pelo fsfíiscar das autorias, pelo sentenciar das
intenções : Fábio aspira ao poder, Curcio almeja por um
titulo, Sempronio vendeu-se por um conto ou por 400
contos, Tarquínio é estrangeiro, Curcio é aulico, Pan-
cracío é ignorante... e assim se vai argumentando^ e
triumphando, e provocando o riso alvar dos coros do
comparsas, porque a final de contas Alhenas e a Beucia
slo ambas sita^ na mesma Greciu.
— 30 —
Que Ululo me assistia a mim, humildo roceiro, sem
intelligencia, sem circulo, sem nome para me isentar
daquellas onerosas consequências da publicidade? E.
apezarde tudo, aqui muito á puridade te digo que nào
me arrenego muito, porque não é cousa pouca ver-se
um boçal roceiro em letra redonda, e enfatuar-se com
o seu noSf quoque gens sumas.
Além disso, como não é minha mente transviar-me
das cousas para as pessoas, nem ultrapassar os limites
do que é licito aos debates políticos, deve outorgar-se-
me a tolerância, que é para com todos, quaesquer que
sejam suas opiniões, a minha constante divisa. Deixo pois
á tua consciência queimares ou mostrares a minha cor-
respondência. Se não fôr, e talvez seja, stulta presump-
ção. fazer subir estes aranzêis á tribuna universal,
carta branca ! A's minhas rabiscas, digo o que diz o Ir-
mão Terrível ao Ncophito, no escancarar-lhe as poe-
tas do templo : « Ahi vo-las entrego ; não respondo mais
por ellas. »
I.
Recebo o diluvio de papelada com que me alagas, e o
teu relatório sobre o que ahi se está admirando, quanto
ás duas questÕesHla ordem do dia : poder pessoale elemento
servil. Recommendas-me particularmente o extracto,
publicado a 14 do corrente, de um discurso proferida
na véspera por S. Ex. o Sr. conselheiro José de Alen-
car na camará dos deputados, discurso onde, como sem-
pre, superabundam elegâncias de phrase, arrojos de dic-
ção, demonstrações de elevada cultura, e dotes orató-
rios de subido quilate.
Feita esta profissão de fé, que, dentro de taes limites,
constituo não favor, mas justiça, igual justiça me guia-
ráfao contemplar o reverso da medalha* Não timbrarei
de severo nem de nimiauieiUe rigoroso ; tenho pouco
geito para Genturião de procissão ; hei de dizer as cousas
~ 31 —
»
chSmentc,^em fazer de mim javali nem ouriço cacheiro.
Se ea tiver razão, hSo de achar-m'a ; se a não tiver,
certamente ma não dariam as severidadcs^, nem os ri*
gores nimios.
II.
Não ha remodio senão entrar também em scena o eu^
não obstante sua insignificância. Sempre pensei que o
mea nome, desconhecido além de 500 braças do sitio
onde resido, estava condemnado a resvalar esquecido
da terra para o Lethes ; mas não senhor; agora, zoilos^
tremei ! posteridade^ és miiika ! agora superviverei e
perdurarei, mas que seja com a invejável sorte de um
Bavio ou Mevio, perpetuado por melhor Virgilio.
O facundo orador, que se não abaixara, e com razão,
a tomar em consideração as ponderações que na minha
anterior te submettí acerca da sua mofina do poder
pessoal ; o nobre disputante, luminar da imprensa, que
pela imprensa me não respondeu, decidiu esmagar-me
em pleno parlamento, i9to é, no olympico recinto, até
rujas eminências se não sublimam as vozes de simples
mortaes ; reservava ao meu nome a honra de echoar
sob aquellas abobadas augustas, gloria esta e monu-
mento mais perenne do que o bronze.
Alludindo a não sei que benévola insinuação, e di-
rigindo-se ao [Ilustrado relator da commissão do ele-
mento servil, disse-lhe que elle (feria conter a sua
ndmiração por certo estylo romano^ recheado de erudição^
que etiamos habittiados a ver ahi nos jornaes surgir com
n rubrica de Epaminondas ou de Cincinnato ; pois foi
essa admirando o que o comprometteu.
Que eu sou Cin:innato, é verdade; Epaminondas
não conheço, e nem era dos meus ascendentes, se nasceu
na Grécia. Estylo romano ? ó muita honra ; eu sou como
o peão fidalgo : fallo. em prosa sem o saber; e con-
formo-me com o preceito, do mestre :
« J'ap|)elle un chat un chat, et Rollet un fripon. »
— 32 —
Pois um estylo que nem é estylo, um dizer sem ele-
yaçSío nem cdr, pôde aspirar á preeminência de formar
escola» de crear propaganda ? Fico sabendo que esta
linguagem pedestre constitue^stj^fo romano ; e que delle
se deve fugir como Satanaz da Cruz. Aceito a fla-
gellaçâo: poenitet me peccati; 'c sahindo agora da ber-
linda, supplico a S. Ex. se digne sen ta r-se nella.
III.
Antes de entrar na questão magna, nao resisto á
vontade de seF esclarecido sobre duvidas.
Bradou o nobre orador : c Nesta tribuna^ é necessário
nâo ver individualidades. » E logo em seguida, como
desenvolvimento desta these, leio que os ministros de-
clamam ; que o da agricultura procura incutir o terror ;
que o presidente do conselho o escuta risonho, como
assistiria a um brinde daquelles que o tém muitas
vezes festejado nos grandes banquetes diplomáticos;
que o ministro da justiça tem uma voz agoureira e
tétrica (risadas! do dito espirituoso); e assim uma
porção de outras phrases individuae^^ que d'ora avante
tomarei como typos de cortezia e parlamentarismo.
Mas é que neste terreno convincente, lógico, dia-
léctico , irrespondivel, nem Yerres nem Catilina ins-
pirou tão brilhantemente ao collega romano (não é o
do estylo). Os doestos, exprobrações e invectivas, são
os únicos argumentos desta enérgica oração, desta
metralhadora parlamentar, toda a sociedade ahi cabe
prostrada aos tiros de lingua 1
O Imperador^ adiante veremos como é tratado. Toda
a organização hierarchica tem igual sorte, uns a re-
talho, outros por atacado. Exemplos dos syttogismos
deste discurso: .
Que é o jfwcrno?— Athleta, que salta á arena, e se
trava, corpo a corpo, com a nação; luta para aba-
tOi-a e esmagal-a. Sectário ardente da propaganda.
— 33 —
emancipador fanático, agitador, revolucionário. Pre-
cipitados, ameaçadores. Homens que t#mam o povo por
um rebanho, que se dirige com um aceno. Vertiginosos.
Desgraçados, que jogam no páreo da ambição interesses
capitães, como são a ordem publica e a paz social;
que invocam a insurreição para suffocar a resistência
l^gal ; quo querem atacar a razão com as quatro syl-
iabas do despotismo. Conjurados, que pretendem des-
mascarar o absolutismo, etc.
Que soo 0$ defensores deste projecto de lei ? — Os que o de-
fendem tém em vista a giba do orçamento, emquanto os
do outro lado são o braço e o cérebro da nação. São
obreiros de ruinas. Não servem á sua cpnvícção, á sua
pátria, mas obedecem aos influxos do poder, aos im-
pulsos da opinião estrangeira . Emissários da revolução,
apóstolos da anarchia. Retrógrados, assassinos do paiz.
O^tentadores vãos. Sacrificadores dos interesses da pátria
a velleidades de gloria. Cruéis, iuiquos. Heróes do
extermínio. Erostratos da nação, etc.
Não continuarei, pois teria de copiar toda a oração,
cujo sueco... 6 isso que ahi vôs. Que inversão de po-
sições I Sediciosos e retrógrados são os que propugnam
pelos principies do eterno direito; os que os atacam
^o os homens da ordem e da liberdade I
Quis tulerií Grucchús de seditione queretUes .
Será acaso esta descomposta linguagem, esta sequencia
de allrontosos ultrages, um meio de persuasão?
Imaginará o disíincto parlamenta^ que assim angaria
para... para suas idéas supponhamos, as sympathias
dos a quem combate insultando, ou mesmo dos indille-
renies a quem taes scenas devem repugnar? Parece-me
que não ha nada mais inhabtl, mais contra-producente
que estes -temppraes em copos d'agua, estas exaltações
c!e «ncommenda, estes enthusiasmos oeí usum De^hini^
estas hyperboles injuriosas; será sempre de inconcussa
verdade aquella observação do poeta :
On affaiblit toujours tont ce qu^on exaggère,
%»
'O
— 34 -
Quando algumas horas houvessem volvido sobre a
recitação deste j^ouco feliz discurso^ para mim tenho
que o senso reclo, o espirito de justiça do fogoso
cavalheiro lhe terá segredado aos ouvidos da cons-
ciência^ que andara errado ; que se nSo tratam assim os
companheiros de trabalhos na representação nacional.
Não lhe terá tardado o arrependimento de haver pro-
ferido phrases como estas:
c Quem defende esta proposta ? A condescendência e a
in^lèerencia. A condescendência dos que estavam com o
governo hontem, estão hoje e estarão amanhã , sem atten-
derem á$ mudanças de physumomia que.se operam tias sete
cabeças do podev^ etc. t
Mas a condescendência^ em assumptos vitacs do paíz,
é crime de lesa magestade nacional ; é holocausto da
intelligencia á conveniência ; é abdicação dos foros de
representante, de cavalheiro, de homem ; é vil traição
á pátria. Honra i maioria da camará dos deputados,
se ante semelhantes verrinas conservou imperturbável
placidez ; não será ^Ivo de invejas o orador a quem
impunemente se tolerem taes. liberdades. Quizera eu
nesses ihomentos estar lendo por dentro os sentimentos
de 60 varões, flor da nação, eleitos delia, a cujas faces
se arremessa a accusação de vendidos ao poder ; afer-
rados á giba do orçamento; incapazes, hontem, hoje,
amanhã, de se destacarem do cofre das graças que har-
poaram I
Se eloquência é isto, nada mais fácil que ser elo-
quente, e não é em cadeiras de parlamentos que esta
linguagem se aprende e usa com mais vehemencia e
emphase. Mas nelia ha perigos, e não é ultimo o das
reconvenções ; quem assim, justa ou injustamente,
penetra em foro intimo, autoriza suas victimas a, justa
ou injustamente, penetrarem no seu próprio ; e então
onde iria isso parar?
Obraram admiravelmente, deixando passar o pam-
peiro ; não reciprocando ; não retribuindo injustiça
com injustiça. Outro tanto farei eu. Declararei ao
— 33 —
contrario, que tudo induz a crer que o illustre orador
só foi arrebatado por admiráveis Ímpetos, sem sombra
de sentimento reprovado.
IV.
Gaidava eu morta e enterrada a qucstSo do poder
pessoal, mas agora reconheço que se o que sobre ella
se escreveu não foi pulverisado, dcveu-se isso á magna-
nimidade do invencível orador, que por algum tempo
a trouxe á moda, pois que, gerada da sua imaginação^
só a eila deveu a ephemera duração , e vegetou á
sombra do seié grande nome ; de certo que S. Ex. se
revia ao espelho intellectual, quando invocava no seu
discurso o magni nominis umbra^ e eu lhe supplico
se digne não destacar a phrase do poeta e ler as outras
palavras :
muUumqne priori
êredere forturuB.
«
Os tempos nem todos são uns.
Est4 visto, portanto, que o pesadelo do poder pessoal
é ídéa íl\a do Sr. conselheiro Alencar. Tem-se visto
fri*quentemente,em homens iliustradií:simos,esta con-
centrarão das faculdades n'um só pensamento, muitas
vezes phantastico : bem grande era Pascal, e imagi-
nava ver sempre um abysmo ao lado esquerdo de sua
pessoa ; são aberrações que não merecem censura.
Como não nasci para relógio de repetição, e já tratei
este ponto, sem ver minhas asserções rebatidas, admiro
a sem-ceremoaia com que se volta à carga dez vezes
com as aquilatadas banalidades ; e como Cincinnato não
teve a ventara de convencer o illustre antagonista ,
espero ser hoje mais feliz, pois para refutar o Sr. José
de Alencar, impetrei o auxilio.... do Sr. José de
Alencar.!
Não esttgmatisarei o estadista com a sua própria
plirase: c Uoje as abjurações esl^ em moda. » Não cm-
— 36 —
pregarei o luxo de vocabulário com qae elic qualifican
as suppostas incoherencia$ dos a qaem combate.
Ao contrario, na sua mndança de opiniões exaltarei
sua sabedoria^ desde que sapientú est mutare cansilium.
Na sua instabilidade reconhecerei o seu horror ao
absurdo^ desde que
L'homme absfurde est eelui qui ne changc jamais.
Nas suas variações acharei a applicação de uma lei
providencial, revelada por Camões:
Hudam->se os tempos ; mudam-se as vontades ;
muda-se o ser; muda-se a confiança.
Todo o mando é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades»
A my thologia porem fabula-nos Acteon devorado pelos
seus próprios cães ; a historia cita o sujeito que com o
braço direito cortou o esquerdo. Dar-se-ha caso...
Ha meia dúzia de annos, sahiram dos prelos desta
corte umas publicações, cm forma de cartas, endere-
çadas do povo e ao Imperador^ e assignadas por nib
Sr. Erasmo.
Sabia eu que, deste nome, tinha havido um menino
do coro da sé de Utrecht, depois frade, depois con-
selheiro, e depois sábio; que além dos seus Cottoquios^
não deixou quasi senãio o seu ehgio da loucura; que
tinha por divisa : quando einbirrei^ embirrei {Nemini
cedo)^ e de quem Scaligero tez uma descripçâo que
não ouso recordar ; mas eu nunca suppuz que fosse
esse o autor das taes cartas, porque morreu ha mai»
de 300 annos, e não podia ser.
Voltei-mc para o outro lado sem mais pensar em
tal, quando agora leio com pasmo no discurso do Sr.
José de Alencar ser aqueile o pscudonymo de que
- 37 —
S. Ex. usou em 1897 ! Fui-me á pobre estante, oude
jazem uns poucos de alfarrábios e folhetos, e regozi*
jei-me tanto com a instructiva leitura das famosas
cartas, que, se eu andasse mais folgado em cobres,
mandava reimprimir aquellas cousas em letras de
ouro.
Como porém isto náo pôde ser, contento*me com
transcrever algo do quo vem a propósito da questão.
Não ha Potosi neiá Golconda, de mais rico ouro
nem mais esplendidos diamantes que esta inexgotavel
mina. Que inveja me não infunde o Sr. Alencar Erasmo
na superioridade com que refuta o Sr. Alencar do
discurso t
Não é de hoje o caso; já lá vão li annos que me
deliciei com a leitura de uma comedia, intitulada :
O Rio de Janeiro verso e. reverso. Desde então me deu
no goto este modo de encarar as cousas pelo direito
e pelo avesso; levante-se o panno para o 3.* acto da
comedia : Verso e reverso. (*)
Ouçamos os dons Srs. Alencares. ^
VI.
§ 1.* Aceusação do Sr. Alencar^ do discurso.
c Emprega-se a ameaça, a ultima ratio regum, o
summum jus do governo pessoal, i
* Refutação do Sr. Alencar Erasmo.
— A existência do governo pessoal está na crença
ée muitos Brasileiros.
Deleita-se a malignidade em cultivar semelhante
convicção, interpretando a geito alguns factos recentes,
oa pondo em^ circulação uma copia de anecdotas de
(*} Cartas pyliUca^ de Erasmo ao Imperador; 2.*' edição
1806.
— 38 —
reposteiro; fabulas que, fugindo á luz da publicidade
e pullulando quaes immundicias no lodo escuro (I), não
são esmagadas como deveram (pag. 26).
-^Insofregas (!) ambições já lôm por mais de uma vez
formulado positivamente a accusação. Mas deveis re-
gozijar-vos, senhor : são ellas próprias que, ao appro-
ximar-se do throno, mais se allucinam na atmosphera
superior, e dão ao publico o grotesco espectáculo de
sua ebriedade cortozã (pag. 28).
— Se ha falsa prevenção, é esta que' se tem estabe-
lecido a respeito do governo pessoal. Minha convicção
vai muito além. Não somente nenhuma influencia di-
recta exerceis no governo, mas vosso ^escrúpulo chega
ao ponto de frequentes vezes concentrar aqúeile rcllexo
que uma intelligencia sã e robusta como a vossa deve
derramar sobre a administração (pag. 25).
— Protesto alto contra semelhante imputação, e não
quero mais prova que o próprio facto ; dispenso os ar-
gumentos ijue poderia tirar do vosso critério e aus-
t(^ridade de princípios (pag. 26).
— Desenganem-se pois os abusados a respeito do go-
verno pessoal. Nas paginas em que se desenrolam as
últimos acontecimentos, o que está em- relevo é a abs-
tenção da coroa. levada a um extremo que talvez ex-
ceda da imparcialidade constitucional. Vossa augusta
pessoa somente se destaca quando trata-se do sacrifí-
cio e abnegação. Então vos debuxais no primeiro plano,
reclamando a parte do leão na fadiga e perigo (pag. 31).
— Conío é possível que se propague esse erro deplo-
rável do estabelecimento de um governo pessoal, quando
as actas contemporâneas a cada passo o dissipam comple-
tamente ( pag. 26 ) ?
— Forte é a tempera da virtude que repelle as ins-
tantes provocações do poder. Sob a purpura imperial
palpita em vosso peito um desinteresse de Cinciniiato c
Washington ( pag. 40 ) !
— Senhor, é esteanhelo com que a nação vos está pro-
vocando a assumir o governo pleno do Estado ( pag. 3i) !
-89 —
— Liberdade de imprensai... dizem. Desgarros da
licença, que nSo oasára tanto, se a opinião reagisse
com indignação contra esse insulto á soberania repre-
sentada no poder 1 Mas por desgraça nossa o riso e o
exemplo insuflam taes misérias (^pag. 12 ) I
§ S."" Aceusação do Sr. Alencar do discurso .
« O Brasil è a anima Yilis, a matéria prima de uma
coroa de triumpho. >
BefiUaçâo do Sr. Alencar Erasmo.
— Aberração do espirito publico, tanto mais estra-
vagante, quanto os factos geralmente assignalados com
o conho da pretendida influencia da corda, são aqnelles
em que mais se accnsa uma escrupulosa imparcialidade
(pag.26).
— Mas é na esphera da constituição que se dilatam
essas aspirações liberaes. Invocava-se a corda, para re-
clamar delia a verdade do systema ( pag. V ) .
— Mas penso eu que se iUude ; o somno do povo bra-
sileiro, confiado na virtude do seu monarcha, é possível ;
sua servidão, não acredito ( pag. YIII ).
{ 3.* Accmação do à'. Alencar do dist^rso.
€ (O imperador é ) a mão que ata e desata os nossos
destinos, o conquistador, que marcha á conquista da
gloria promettida. ■
Befííiação do Sr. Alencar Erasmo .
— A primeira serie, contendo dez cartas, cingiu-se á
necessidade da iniciativa imperial para arrancar o paiz
da crise em que se debate.
— 40-
Limiiou-se o trabalho ao estudo consciencioso da
actualidade. Dos factos resalta a verdade. No meio da
inércia e compressão de todas as forças viras da nação,
só o impulso generoso da corda terá efflcacia [Adver'^
tencia) .
— Será na dedicação de Erasmo à pessoa do mo-
narcha ; na confiança que manifesta peia acção bem-
fazeja da coroa ; na appello á energia da mageslade
(pag. 5).
§ 4 / Accnsaçâo do Sr. Alencar do discurso .
t(0 Imperador é) o único poder deste Império,
aquelle que o estrangeiro chama ingenuamente dono c
senhor da terra. •
Refutação do Sr. Alencar Erasmo.
— Rei constitucional, vossa missão é a do sol: não
aquelle astro fatídico e abrazador de Luiz XIY, que
condensou a borrasca de 1789, mas o fúco brilhante
que rege todo um systema e dardeja luz e calor para a
naçio(.pag. 25).
— A' região superior em que vos coUocou a sobera-
nia nacional, não sobem, senhor, nem o pó que torve-
linha, nem os rumores que se escutam, no estádio onde
se agita a pátria, afllicla do presente e temerosa do
futuro. Os miasmas da terra nâo costumam attíngir as
eminências^ pag. 4).
' — A constituição vos conferiu em sua inteireza o
titulo, como a effectividade, das prerogatívas imperiaes.
Basta que vossa vontade se enuncie de um modo posi-
tivo e solemne, torna-se logo, de sun própria virtude
e essência, facto consummado. No domínio da lei não
se concebe resistência para ella ( pag. 58).
— O Imperador nâo pôde sem duvida desprezar a opi-
nião publica ; se, porém, a opinião se extravia e con*
tamina com a mais feia ímmorniidade, ellc, probo e
— 41 — .
austero, tem, nâo s6 ante a nação, porém ante Deus, a
obrigação indeclinável de resistir cm nomo da lei e da
moral ( pag. 50 ). •
— Si tuado na oupola do systema, neutro e inaccessivel,
o monarcha, poder nacional, plaina (f) sobre os outros,
meros poderes politicos.EUe não exprime somente, como
a le.í^islatura, uma delegação da soberania ; exprime um
deposito permanente e sagrado. O Imperador é mais do
que o primeiro representante da nação ; é seu defensor
perpetuo, o magistrado supremo do Estado (pag. 57).
— Chamo-o— poder nacional — para significara quasi
communidade em que se acha com a nação. Nelle reside
uma parte de soberania popular, que isolou-se (!) em
principio e se consolidou nessa grande individualidade, a
fim de resistir aos desvarios da opinião ( pag. 58 ).
— Não ha contestar esse ponto. Os actos do poder mo-
derador sao de exclusiva competência vossa: para exer-
cel-os não dependeis de agentes, e actualmente nem de
conselho (pag. 58).
I 5."* Accusação do Sr. Alencar do ^discurso. \
t Este golpe de estado ha de firmar no paiz o absolu-
tismo, ou antes de.ímascaral-o. »
Refutação do Sr. Alencar Erasmo.
— A summa questão da actualidade 6 esta, da vigo-
rosa iniciativa que deveis tomar em prol da constitui-
ção; ncllaestàa chave de todas as outras, tendentes á
realidade do systema e restauração do paiz (pag. 40).
— Só appareceis onde a, vossa presença é necessária
•
para cobrir as faltas do governo e seus agentes. No Rio
Grande para promover a defesa deleixada por muitos
mezes e applacar dissensões. Em Uruguayana para res-
g^uardar o decoro nacional compromcttido por grave
— 42 —
omissão do tratado de alliança. Na corte prra activar a
expedição das tropas e trem de campanha ou zelar o bem
estar do soldado ( pag. 32 ).
— Mas é só dedicação e actividade individual que assim
dispensais prodi^^amenle: a magostade se envolve na
magnânima cordura que releva a negligencia e o erro.
Esta é a verdade ( pag.. 32 ).
— Emquanto vos esquivais á politica, a nação, desabu-
sada dos homens que a governam, vos reclama e solicita
com abundância de coração ( pag. 33).
^§ 6/ Accnsaçâo do Sr . Alenc do discurso.
f Idèa funesta, que vinha de cima. »
Refutação do Sr. Alencar Erasmo.
— Por todos esporos rotnpe a effusão do paiz que se
abandona e confia exclusivamente da lealdade e critério
do seu monarcha (pag. 34 ).
—Este povo, apathico e indiíferente ás mais nobres
funcçõesda soberania^ ainda sente por vossa pessoa sin-
ceros transportes. Não sereis sua fé única ; porém, com
certeza sois o estimulo das outras raras e sopitadas ;
o estandarte capaz de nestes tempos inertes levantar
enthusiasmo em prol de uma causa (pag. 31).
— Grato e fácil é o designio de convencer uma razão
recta, quando não se tem outro prol além da verdade.
Mais ainda, se a convicção já alli despontou e só aguarda
espaço e vez de produzir-se (pag. VII ).
— Nossa felieidade é possuirmos a monarchia para
socalcar as ambições afoutas ; e na monarchia um prin-
.'!ipe recto, liberal, invulnerável aos assaltos da paixão
(pag. IV).
-.43 -
I 7.° Accimção do Sr. Alencar do discurso.
€ A proposta é o precursor do projecto incubado no
alto ; provocação para. . . atacar a razão combayonelas,
o fuzil, o sabre e o canhão, que são as quatro syllabas
do despotismo. >
Refutação do Sr. Alencar Erasmo.
— Monárcha, eu vos amo e respeito. Sois, neste tempo
calamitoso de indifferentismo e descrença, um enthu-
siasmo e uma fé para o povo. As esperanças que bro-
taram na primeir- metade de vosso reinado, e mur-
charam ao sopro'* itiao do presente, aiuda podem re-
florir sob os raios de vossa coroa. O cidadão livre se
approxima sereno de vosso throno porque nunca ahi
senlQu-sc a tyrannia ; sua dignidade não se vexa, ao
reclinar-se para beijar-vos a dextra augusta, porque
em vós acata elle o pai da nação (pag. 4).
— Alli está a cabeça da nação. Não toldam a lucidez
da mente superior sombras que projecte a inveja. Sua
abnegação c civismo estão provados (pag. 7).
— Homem, cu vos prezo, admiro. Virtudes cívicas e
domesticas adornam vossa pessoa . Na cúpula social onde
a nação vos collocou sois para a sociedade brasileira
mais do que um rei, sois um exemplo. Quando por
toda a parle se ostenta impune o pungente espectáculo
do relaxamento do dever e obliteração do senso-moral,
a alma da gente honesta se expande, contemplando
era vós um typodc homem de bem ( pag. 5 ).
— Em uma" palavra, e cila resume vosso elogio : Bem
poucos monarchas dirão como D. Pedro II : « Nunca,
cm um reinado de 23 annos, es^lreado com a inex-
periência da juventude, nun:a abri meu coração a
ura sentimento de ódio, nunca puz meu poder ao ser-
viço de mesquinhas vinganças. »(pag. 5)
■ — 44 —
§ 8.* Accmação do Sr, Alencar do discurso.
t O golpe foi decretado in excelsis^ e nâo se podem
mostrar vellcidades de resistir à vontade omnipo-
tente. »
Refutação do Sr. Alenccrr Erasmo.
— Eis porque Erasmo se dirigiu ao throno. Lá está
o que o egoismo c a vaidade lhe recusariam em muita
parte. Ouvido benévolo para o escutar; dedicação
prompta para o comprehendcr ; illustraçâo magnâ-
nima, que nào desdenha a idóa, e corrige o erro sem
mofa (pag. 7).
—....com o risco mesmo de molestar o pudorda
magestade. Não vos falta coragem moral para enca-
rar de frente os males do paiz (pag. 31).
— Ache ao menos a liberdade que desertou a alma
succumbida da pátria, um abrigo á sombra do manto
imperial, para que não morra conspurcada nos tri-
púdios da anarchia ( pag. 16 ).
— Ha, senhor, nesse pronunciamento, que brota a
cada canto, uma demasia que degenera em lisonja e
frisa o ridículo. Mas não convém escarnecer destes
desvios, c somente corrigil-os. Todo o enlliusiasmo do
povo é generoso ; e n»íste dos Brasileiros por seu
Imperador, 'parccc cfuo estão realmente concentradas
durante a crise as forças vivas da nação (pag. 36).
Vil.
Fica evidenciado, por boca do Sr. Alencar de hon-
tem, que nenhuma razão assiste ao Sr.;^AIencar de
hoje.
S. Ex. nos ensina que não existe entre nós poder
pessoal; que só a malignidade pôde tal aventar; quo
c uma falsa prevenção ; que a missão do Imperador ê
— 43 —
V
^
I
( lai e qual) como a do sol ; qae ellc protesta alta-
raentc contra a imputação ; que a imparcialidade da
corda excede os limites devidos; que só o impulso
delia. poderá ter efficacia;que o Imperador ó o pai
da pátria, para beijar cuja dextra augusta^v elle se
honra em reclinar-se ; que o Imperador 6 a cabeça da
nação.; que apenas elle enuncia sua vontade, isso b.ista
para se tornar logo, de sua virtude e essência, facto con-
summado, contra o qual se não concebe resistência,
etc, ele.
Pouco tempo depois, o Sr. Alencar era ministro da
justiça*
VIII.
De que modo S. Ex. foi deixado em liberdade no des*-
empenho de seu alto cargo, já eu o dissessem ter sido,
csem risco de ser, contrariado. Como, porém, a decla-
mações balofas é útil antepor factos concludentes, ve-
nham mais dous, do arsenal do próprio Sr. Alencar, jun-
tar-se a tantos que adduzi.
Será um delles o que o próprio Sr. Alencar agora
neste discurso vem delatar, fallando da sua opposição
a:) pensamento da abolição da instituição do captivei-
ro. Diz S. Ex. :
c Na qualidade de ministro, resisti francamente á <
cor(Va na promoção desta reforma, cujo projecto, elabo-
rado pelo conselho de estado, mandei archivar na se-
cretaria da justiça. •
Admira, meu Fabrício, esta esplendida demonstração
do poder pessoal/ Resulta desta inconfidência que, a coroa,
chamando a attcnção do ministro para um projecto do
conselho de estado, foi o ministro quem lho pôz o seu
velo e mandou archivar os papeis, oppondo-sc a que
se lhes desse andamento; e esse ministro continuou mais
de am anno em exercicio, e declarou ao parlamento que
fóra por divergências individuacs com outros conse-
ILieiros da coroa que resignara a pasta.
— 46 —
«
Se S. Ex. se não arroga o dom da infallibilidade, ha
de tolerarque outros ministros podessem pensar de um
modo diverso, e não achassem tão archivavcis os traba-
lhos do Conselho de estado.
Mas, eia todo o caso, o certo é que o Sr. Alencar de-
nunciou que comsigo mesmo teve a prova, nesta pró-
pria questão, de que a coroa não exerceu pressão de
espécie alguma ; nem ella se lembrou de quebrar, como
tão constitucionalmente poderá ter feito, o instrumento
que se 'oppunha áquillo que ella acaso considerasse
bem.do paiz.
Também não é fora de propósito apontar pai^a a nar-
ração (lue oSr. Alencar faz, no seu discurso, das phases
por que foi passando o pensamento emancipador. FJs
como se exprime :
€ Inaugura-se esta situação em 1868... A falia do throno,
documento authentico da nova situação e seu program-
ma, fazer\do'um contraste patente com os dous ante-
riores discursos da coroa, calou-se a respeito da eman-
cipação; guardou sobre essa questão um silencio elo-
quente. >
Aqui o discurso do coroa é considerado obra dos mi-
nistros, e, portanto, eloquente... no silencio (silen-
tium verbis facundius) ; alli o mesmo discurso da coroa
é considerado obra do rei, e, portanto, abominável INão
appello de Philippe para Philippe;mas concluo do tal
relatório do Sr. Alencar que os discursos da coroa
são de feitura e responsabilidade dos ministérios, e
que o throno tanto comprimiu a situação, de 1871 [para
fallar, como havia comprimido a de 1868, para calar-sc.
E já que estamos no campo das anecdotas e tu vives
na corte, onde as pcsquizas são fáceis, quizera me in-
formasses do seguinte :
Uma das mais preciosas attribuiçôes do pader mode-
rador, é sem duvida a de perdoar as penas. São notó-
rios os tramites que os respectivos regulamentos esta-
belecem para serem instruídas as petições dos indiví-
duos condemnados, mas não é tão geralmente sabida a
marcha posterior destes processos. E' \crdade que, se-
— 47 —
gundo as pra\esda secretaria da justiça, estos processos
eram nella preparados, e em seguida subiam ao ministro,
o qual os estudava também e os submettia com o seu
parecer á suprema deliberação de S. M. o Imperador ?
Será verdade que, occupando a pasta da justiça um
cavalheiro que a respeito de poder pessoal pensa va-appro-
ximadamente como Erasmo, foi um de seus primeiros
cuidados pôr termo a estas praticas, dizendo a Sua Ma-
gestade : t Senhor I Eu não tenho nada que ver com
o exercício do poder moderador; é desse poder o jus de
perdoar. Em taes casos o governo não deve interferir,
nem mesmo com o seu conselho. Faça Y. M. como em
sua sabedoria achar ju^to. fteora avante estes processos
subirão a suas augustas mãos, sem relatório, nem pare-
cer do ministro respectivo? »
Será verdade que.em virtude desta singular abstenção,
abdicação ou como melhor nome haja, do ministiro, foram
por eile assim alargadzR as ensanchas do que por ahi
denominam poder pessoaH Quem seria ? E são elles que
faliam...
IX.
E como por sainete destas agruras tenha seu cabi-
mento a farça, cá se me depara na fulminante catilinaria
outro bocadinho de ouro.
Tem o censor do poder pessoal sido cem vezes con-
vidado a expdr um só acto, que durante os seus longos
18 mezes de assento nos conselhos da coroa presenciasse,
exorbitante dos deveres e dos direitos da realeza cons-
titucional; a nada o censor se move !
Já se vô que não é por escrúpulos de consciência
timorata, .attento o perenne alarde de independência
c autoflomia ; e seria cem. vezes menos hostil, mais
franco e leal referir factos sobre que ninguém pediu
segredo, c em que a discrição apenas é aconselhada
pelo senso-commum das conveniências, que batalhar
com a arma curta das reservas e a espada de canna
- 48 -
das reticencias : accusaçues poiRm rcpellir-se, reslric^
çues (loixam sempre um campo vago.
Segundo sempre ouvi, S. M. o Imperador, o defensor
p(?rpotuo do BrasiK o constitucional timoneiro da náo
do Estado, o magistrado supremo a quom incumbe a
pormanenie vigilância, tem por uso prestar sempre a
mais accurada at tenção aos negócios públicos; quando
cm conselho, escuta cuidadosamente as exposições, o
para não interromper, costuma ir tomando nota do que
lho vai chamando a advertência, para depois dissipar
duvidas ou emittir opinião.
Reparaste, bom Fabricio, no modo como o Sr. Alencar
ccnsuri, fulmina, ridicularisa e«te ^nobre habito, esta
prova do zelo o da seriedade com que o monarclia estuda
os negócios públicos ? Relê e pasma 1
t Armei-me do lápis, porque todos nós lemos o veto do
lápis ; não é privilegio da realeza, t
E leio mais, que isto despertou hilaridade 1 ! Creio-o
bem; creio que a hilaridade é a única disposição que
condiz com linguagem semelhante; mas hilaridade s
assim só são de feição.. ♦ em palco diverso. Já sevo
quaes seriam os escrúpulos de tal delator, em correr o
reposteiro dos paços onde ura dia lhe iteram entrada, ou
em provar seriamente com factos a intrusão da coro:*,
quando tão ingratamente se procura expôl-a ao ridi*
culo, por praticas dignas do acatamento; mas em ver-
dade, o Sr, Alenaar, que 6 poeta, precisava chave de
ouro para o seu soneto das provas do poder pessoal:
já vimos o 1.' quarteto do qiiero da Uruguayana ; o
2.* quarteto do nào quero da estatua ; agora, 1.* terceto,
oprivilegio da realeza ; 2.° terceto, veto do lápis.
São argumentos monumentacs, discursos demosthc-
nicos, canhões Krupps.
Tencionava, preclaro Fabricio meu, dizer-te algumas
palavras sobre o pouquíssimo, não declamatório, que
da oração do Sr. Alencar se espremo sobre a magna
— 49 —
questão (lo elemento servil, mas já te consagrei uma
tarde inteira, e isto nâo vai a matar. Se amanhã ou
depois me sentir com disposições, palestraremos.
Por agora, aqui me cerro, quando talvez já de sobra
tenha bacharelado.
Sabes tu o que ando a ler nas horas vagas? Aquelle
thesouro que denominam Carta de Guia. Ora, quem falta
a um dever, está apto para faltar a todos; cesteiro que
faz um cesto faz um cento, o caso eslá em darem-lhe
verga e tempo : a honra politica comparo-a eu á honra
da mulher ; e c a honra da mulher ( segundo diz o alço-
rio) é como gí algarismo : tanto a erra quem erra em
um, como quem erra em mil.» E afinal de contas lá vai
todo o discurso pelos ares ; è ainda aqui me acode a
mesma Carta de Guia, dizendo : • Parece-me a mim
agora isto, como quem põe meada grande em doba-
doura pequena, que em lhe puxando pelo ílo, traz o
íio, a meada qa dobadoura tudo a terra. >
Saudades á comadre e aos pequerruchos.
Teu velho amigo,
Chiei una to.
CARTA 8/
Amigo. — ^Disse-te, na minha ultima, que tornaria a
palestrar comtigo sobre o discurso de um de nossos
laminares do parlamento, se me sentisse para ahi vi-
rado. Ora hoje não tenho muito que fazer ; os pretinhos
andam por fora a cortar canna ; e eu, se hei de estar
a embalar-me na rede, ou a berrar com o feitor, ou a
pedir que me façam cócegas ou dém cafonés, venho
governar o mundo em secco, e aborrecer-te com as mi-
nhas tontices, privilegio triste dos annos largos. Se eu
disser muito disparate, desculpa, que eu sou o primeiro
M nlo dar nada pelo meu bestunto ; e quem me descar-
regasse paulada, seria bárbaro, porque daria em homem
morto •
Não sou dos que aspiram a dominar o universo, a
imperar sobre a intelligencia humana com o seu verbo
omnipotente, porque li a historia de ícaro, cujas azas se
derretiam ; de Lúcifer, cujo orgulho o precipitou do em-
pyreo nas profundas ; e sempre me toou aquella velha
máxima : c Quem quer tnais do jjue lhe convém^ perde o
çuequereoquetem. > E ainda que não venha a pro-
pósito, quero transcrever- te um passo curioso de um
sermão do padre A . Vieira :
— 52 —
« Toda a creatura nao sóappetece sempre ser mais
do que é, senão também qnerer mais do que pôde. Tal
é a cegueira de um entendimento ambicioso : ha de
querer mais do que pôde, ainda que conheça que é im-
possivel. O oílicial pôde viver como oíTicial, e quer viver
como escudeiro ; o escudeiro podo viver corao^cscudeiro;
e quer viver como fidalgo ; o fidalgo pôde viver como
fidalgo, e quer viver como titulo ; o titulo pôde viver
como titulo, e quer viver como príncipe.
€ E que se segue deste tão desordenado querer ? O
menos é que, por quererem o que não podem, venham
a não poder o que podiam.
€ Quanto sobe violentamente o querer para cima,
tanto desce sem querer o poder para baixo. Quem
quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o
que tem. Se apenas podeis sustentar um cavallo com
um mochila, porque haveis de ler uma carroça com
oito lacaios ? Com essa mal considerada vaidade, que
é o que adquiristes, com o que perdestes ? »
Portanto não corro eu perigo, continuando a aren-
gar-te sobre cousas de que entendo pouco ? Se eu não
poder sustentar uma these, para que me hei de metter
cm fofas ? para que hei de menosprezar o prudente quid
valeant humeri ? Se eu sei apenas sargentear uma
companhia, para que arvorar-me em generalíssimo?
Se a minha estatura épygméa, para que hei de pedir
um covado aos tacões da bota ? Se com justiça me con-
cedem alguns dotes, para que hei de' eu, ambicionando
glorias inattingiveis, arriscar-me a que se me neguo
pão e agua ?
Nada. Qaemquer mais do que lhe convém, perde o
que quer e o que tem ; e eu não quero perder o con-
ceito de espirito singelo e chão em que tu, meu Fabrí-
cio, sempre me tens tido ; e por isso/tudo quanto te
submet ter será em simples forma dubitativa ;e onde
eu desarrazoar, faze a merco decorrigir-me.
Eu cá de nada me gabo, e em nada tenho presumpção,
nem mesmo em ser coherente ; para que presta isso ?
Sc eu não fosse tão velho, senil, encanecido, ancião,
■^^■^■■^^^^■g^tl
- 53 —
decrépito e der rengado (confesso todos os meus crimes),
talvez ainda sentisse pretençõcs de subir até o sétimo
çéOy sem me importar com os degráos ; hoje palhaço de
corte, amanhã iribono da plebe, e... Nada !
Desisto dessas aspirações : estou carcomido ; nâo valho
pitada de tabaco.
E, pois se me concede alvará para delirar e tontear,
aproveito a generosa licença e entro em matcria.
I.
A escravidão.
Folgo de ver que os poderes públicos tomaram a si a so-
lução da jà tio demorada questão do elemento servil, por-
que era essa amanpha que deturpava a nossa sociedade,
e cada dia qne passava na inacção constituia uma ver-
gonha e am perigo.
A instituição da escravidão só se coaduna cora o gráo
intimo da civilisaçâo, e repugna-mc ver esta terra accu-
sada de occupar esse gráo na escala das naç5es.
Eras houve em que a escravidão seria, relativamente,
até nm beneflciopara as victimas de tal instituição. Em
longes tempos desastrosos, a guerra era acompanhada
de um cortejo de horrores, que, para confusão do deno-
minado século das luzes, só nestes dias se viu reprodu-
zido. Nas taes eras o direito das gentes ! autorizava o
guerreiro a immolar o vencido ; nessas eras também
o trabalho significava deshonra. Quando pois o interesse,
e não a caridade , convenceu o vencedor de que apro-
veitava mais com o trabalho do que com a carniceria dos
vencidos; quando se reconhcceujser preferível aprovei-
tar, a degolar, os prisioneiros, procuraram conserval-os,
de onde vem o termo servus , e utilisar os seus serviços;
c dahí seconclue que a escravidão, em taescircumstan-
cias, foi ura progresso, comparada com a sorte que
a;ruardava as míseros.
'o
— B4 —
Mas essas praxes são remotissimas. Pôde dizer-seque
JadcQS, Gregos, Romaups fandaram sobre a nefasta
ínstítaição uma organização social, e até a philosophía
lançava saa espada de Brenno na concha da balança :
Platão e Aristóteles, reconhecendo-a contraria i natu-
reza humana, proclamavam todavia que sem escravidão
não havia estado politico passivel 1 e a matrona romana,
se Juvenal não mente, espantava-se de que alguém sup-
pozesse possível que o escravo fosse homem. {Itaservus
homo est?) Era natural nessas sociedades o torpe espec-
táculo do corpo livre e da alma livre (pois são insepa-
ráveis ) vendidos a preço de dinheiro, embora só a venda
do corpo parecesse indigna aos espíritos rectos, como
o de Ovidio:
Turpiter ingenuum munera corpus emunt.
Com o andar dos tempos, com o pharol do christianis-
mo, com o progresso da philosophia, com o aperfeiçoa-
mento da civílisação, reconheceu -se que o homem não é
objecto venal, e que a instituição é contraria aos mais
elementares principies do direito. Assim o]proclamaram
todos os povos e se não desaira ser o Brasil, por peculia-
res circumstancias, ultimo que em seu pendão inscreveu
o motto liberdade universal^ por certo lhe não estaria bem
se por mais tempo demorasse a sua resolução pratica,
embora rodeada de cautelas, impostas por excepcional
situação.
Felizmente vejo que todos os pensadores, quaesquer
que suas dissidências sejam, estão concordes neste
ponto; se nos recônditos ancos de alguma intelligencia
se abriga pensamento diverso, e o plano de perpetuar
o captiveiro, ao menos no coro dos lábios reina a mai^
honrosa unanimidade.
Tem universalmente calado nos ânimos aquellesapo-
phtegmas de Erasmo, lá dooulro,o Erasmo de Ulrecht:
— NuUa volúpias viris suavior est UberMe.
— NUiil beatum^ si absít libertas.
— KJ —
E* também delle, um que eu tenho medo de citar :
Pestilmtissifnum genus est adulationis, sub libertatis ima-
gine blandiri ;
mas emíim, como vai na língua da missa, passe.
n.
o projecto. As iras.
Li atientamente o projecto do gorerno, tendente á
gradual abolição da escravidão ; li as modificações que
nelle introduziu a benemérita commissão da camará
dos deputados ; li o muito que me mandaste^ pró e
contra ; e adquiri convicção deque,nascircumstancias
actuaes do Brasil, esta lei é previdente e sabia ; e( em-
bora ea desejasse nella algumas addiçdes, taes como a li-
berdade dos escravos sexagenários que a desejassem, in-
demnizados os senhores comum titulo deSOOjSlOOO; ne-
nhum imposto sobre os escravo^ da lavoura, e uma taxa
de S^HOOOa mais em cada anno, em progressão indefinida,
sobre os escravos das cidades eem beneficio da caixa da
emancipação, e algumas outras secundarias modiflcaçdíes,
de que se não faz cargo quem não é legislador ), tenho
para mim que as disposições da lei são dignas de plena
aceitação.
Seja Deus o direito ; seja César o dono dos escravos ;
parece-me que esta lei dá a Gesar quanto lhe é pos«
sivel dar, offerece a Deus quanto lhe pôde oSerecer.
Nas transacções^ impostas pelo dever e pela prudên-
cia, é frequente imitar a lei ao grande Affonso de Albu-
querque, quando se queixava de ficar mal com o rei por
amor dos homens, mal com os homens por amor^do rei .
Troquemos as palavras rei por direito, homens por m-
nhares ie escravos^ e acharemos que toda ^ kide con-
ciUaçâò ficará mal com o direito, por não exigir tudo
qnanto este proclama ; mal com os senhores, por lhes
nio conceder a permanência da escravidão, ou pelo
menos o adiamento para as kaiendas gregas, de qualquer
plano de acabamento da triste instituição.
— oG —
-^ Vejo com pczar que essa questão, precisada de
attençâo e Iranquillidade de animo, tem sido discutida
com exaltações e scenas violentas, e nesta distancia
não posso avaliar de quem é a culpa. Deploro-o, pela
dignidade do parlamento, pelo credito das instituições
juradas, pelos duplos preceitos da civilidade e da ci-
vilisação. Nunca ouviram os iracundos, sejam quem
forem, que não ha paixão que tanto abale asinc«riladc
do juizo como a cólera ? que essa paixão corre ás armas
sem aguardar oplacet da razão? .E aftida se issoiossc
um movimento casual, único, de despeito ou desres-
peito, desculpar^se-hia o tributo prestado ás imper-
feições da natureza humana ; mas a cólera arvorada
em systema I repetida quotidianamente como argu-
mento convincente l Não deve ser. t Fora para desejar
( diz o meu ancião Séneca ) que os movimentos do furor
não podessem prejudicar mais que uma vez, a exemplo
das abelhas, cujo ferrão se parte í primeira picada que
dão. » Oh Séneca, Séneca! Quantas intactas trombas de
bisouros te não desmentem i
Mas visto que cada um enterra seu pai conforme
pôde, barafustem lá como lhes aprouver, e continuo
a servir de texto para os meus estudos o discurso do
inimigo do poder pessoal.
Tu sabes os meus hábitos. A todo o cidadão, òomo
cidadão, como particular, tributo respeito, e nada tenho
com elle; isso pertence lá ao seu foro interior. Mas
pertence a mim, como a todos, o que é do foro exte-
rior: as opiniões politicas proclamadas urbi et orbi per-
tencem á.sciencia politica, ao debate, á publicidade ; e
triste idéa daria da çua firmeza, da sua convicção, ou
da procedência das suas theses quem, por meios repro-
vados, fugisse a sustcntal-as,jou phantasiasse declina-
torias para annullar contradictores.
E' nestes termos que entendo a polemica, e nelles
continuarei.
Procedam outros como lhes aprouver, que não me
demoverão.
^ím
i)J —
III.
Se o projecto baixou do alto.
Loio no discurso:
• Ogol(>e foi decretiido in excelais; é, com a ameaça»
o $nmmam jua do governo jpessoal ; mana de quem as*
pira a esta coroa de triumpho, do uiiico poder do Im?
perio; idéa funesta que \€m de cima ; golpe de estado
que ha de Ormar no paiz o despotismo, e te, ele. t
Que se lh6 ha de fazer ?
São sempre variações do mesmo thema ; a idéa fixa,
a aberração; o abysmode Pascal.
Opensamento da liberdade humana baifj do alto, foi
dtcrttaáo in excelsis. Certamente: quem o duvida ?
Sim, foi decretado m cxcelsis no dia em que o fí^^
demptor desceu á terra e proclamou a rcdempçâo dos
captivos e o dogma da fraternidade humana, e o maior
numero dos preceitos do decálogo— Gloria a Deus nas
alturas .
Sim, baixou das alturas da philosophia^ nâo menos
que da religião, para esclarecer a guiar as socie-
dades.
m
Sim, baixou das alturas do direito^ do verdadeiro, do
rtcrno, do ímmutiivel, do natural, do que nao varia
com os tempos e as circumstancias.
Sim, baixou das alturas da civilisaçâo^ que se nâo
compadece com as ruins doutrinas do captiveiro.
Sim, baixou das alturas do consenso unanime da
humanidade^ que baniu essa instituição para nâo sub-
sistir senão nas paginas tristes de mais bárbaros tempos,
e a condemnou para nunca mais resurgir.
Sim, baixou das alturas da moral social^ que ante essa
instituição velava o envergonhado rosto.
Sim, baixou das alturas da politica universal, que em
todas as nações, sem excepção alguma, apagou dos códigos
a mancfia que os conspurcava.
— 38 —
Sim, baixou daa alturas da economia politica^ da f/?-
du&iria^ da prodmção^ e da illustrada experiência^ que
nosmo.^tra ser a honra do trabalho, incentivo, alimento
e premio dellc ; ser estacionaria a sociedade com es-
cravos ; alar-se eila a seus magestosos destinos, desde
que se lhe desprende esse grilhão ; .vogar ligeira, desde
que â nào do Estado se arranca o entorpecimento du
rémora.
Não serão bastantes esses ín é^rrcri^w, essas altnrast
quereis mais? quereis as supremas elevações da nossa
terra ?
Não sei bem como o mercúrio do vosso barómetro po-
litico TOS determine e.^sas alturas: mas honra seja
feiia á nossa sociedade, percorrei-as todas, e cm todas
achareis grafado o mesmo sentimento.
A nossa ma!^ elevada eminência, o nosso Himàlaya
político, a residência terrestre do nosso Deus Mahadeva,
denominado Op«ur(ío,é o primeiro oráculo que devemos
consultar : elle nos respondessem hesitação nem am-
biguidades, que a escravidão deve acabar. Seja prova
disto o eloquente facto de hingnem ousar oppõr-se á
idéa em si mesma: a opinião publica exige pojs o
termo da instituição.
Exigem-n*o, Q^o menos, as vozes generosas em todo
o Império; a reproducção dos debates sobre este as-
sumpto, desde o dia da independência, se não antes,
e com especialidade em ambas as casas do parlamento
lia alguns annos ; o desenvolvimento que vão tomando
as espontâneas alforrias, concedidas por assembléas
provinciaes, corporações pias e profanas, particulares
em sua vida e causa niortis ; o profundo estudo feito
sobre esta matéria pelas summidades sociaes que cons-
tituem o conselho de estado; a organização de socie-
dades libertadoras c de jornaes protectores da liber-
dade em numerosas províncias; finalmente quantos
elementos sociaes podem gerar a persuasão de que o
sol americano sazonou alíim o frucfo opimo da li-
berdade.
Ahi tendes as alturas^ e n'outra parte nao as pro-
cureis. Dissipai da vossa imaginação sobrexcitada o
daende, o espectro do poder pessoal, que nada tem
com a questão, a qual não pertence a nenhum indi-
viduo, mas ã religião, á philosophia,à politica, á hu-
manidade e á pátria.
Não ha contradicção mais flagrante que a do cava-
lheiro que pretende rebaixar o soberano, attribuin-
do-Ihe o desejo de aspirar para a sua pátria áquillo
a que a própria pátria aspira. Se é certo que o Im-
perador do Brasil forma votos por que os legisladores
do Brasil consagrem o principio que o Brasil todo
aceita ; e se nem ainda assim exorbita um ápice dos
seus poderes, a nação lh'o agradece.
Nada mais imprudente, por parte de quem fdr ini-
migo da realeza , do que attribuir a essa realeza o
«neto mais glorioso que estes tempos legarão. Bajulador
involuntário, aulico invicto, cortezão ínnocente, decla-
rado palaciano, será o que só barafustar por convencer
<iue a nobre idéa, rellectida do Império inteiro no animo
do Monarcha, foi o animo delle que a dardejou no
Império inteiro ! Tributo o devido acatamento i pessoa
do Imperador, mas não o adulo nem o incenso, attri-
buindo-lhe mais do que uma opinião, aliás digna e pa-
triótica, sobro um ponto, que só os nossos estadistas
poderão resolver.
— Antes de transpor este assumpto, direi que, se-
fmndo um autor, tem o homem a faculdade de trans^
formar-se tão promptamente como de mudar de ves-
tuário ;e é assim ; toma liçSes dos lepidopteros e outras
creaturas, que successívameníe se nos desflgurara cm
sementes, larvas, borboletas, vermes, etc, etc, se-
gundo as conveniências da sua natureza. Devemos suppór
que a politica participa algiim tanto dessa natureza
actifissima ; aliás nao poderíamos explicar certos phe-
nomcnos .
Na minha precedente chamei a tua attonçao para
umas cartas de um Erasmo, amouco do Sr. D. Pedro II
cm 1800 ; agora te rccovdaorci ^lue, ji mcadjo o anno
-Go-
dé 1867, forani publicadas Novas cartas politicas de
Erasmo ao Imperador^ cm espirilo diamelrajincnlo
opposto ao que diclára as Antigas, Tivemos /pois, um
Erasmo o Velho^ typo do cortezãos , e um Erasmo aiíofo^
typodeaDti-dyaastícos ; para mim tenho quenâo podiam
ser uma e a mesma pessoa ; seriam os dous Plinios.
; Seja como fôr, direi que Erasmo o Moco disse tantas...
altivezas a S. M. I., como Erasmo o Velho lhe di«
rígira.... amabilidades. Parte grande dessas cartas rèovas
versou sobre a emancipação, e já então se delatava uma
boa vontade, atè neste assumpto, ao Imperador, tão
bem fundada como a historia do qtiero enão quero. Ora,
olha tu; os crimes do poder pessoal, assacados, a pag. 12 :
• Libertando, uma centena . de escravos, cujos ser-
viços a nação vos concoddra (1.* mm^); distinguindo
com um mimo especial o superior de uma ordem re-
ligiosa que emancipou o ventre (2.* críiwe); esliniulan<lo
as alforrias por meio de mercês honorificas (3." crime);
respondendo ás aspirações beneficentes de uma sociedade
abolicionista da Europa (4." crime); e, Onalmenle, recla*
mando na falia do throno o concurso do poder legisla-
tivo para essa delicada reforma social (5,* a^me); sem
duvida julgais ter adquirido os furos de um rei phi-
lanthropo I Grande erro, senhor 1 Prejuízo rasteiro, que
não devora nunca attingír á altura do vosso espirito 1 »
Ora, em verdade qualquer commentario embaciaria
este aço limpo e terso. Censurado o Monarcha porque
os seus ministros aconselham na falia do throno o con**
curso do poder legislativo! Porque um desses ministros
responde a aspirações beneficentes I Porque estimula al-
forrias voluntárias! Porque aprecia um nobre acto
praticado por uma ordem religiosa t Porque liberta
uma centena áe escravos!
O' Fabrício, nâo ó este o caso da operação gue o rei
do Olympo pratica naquelles quos Júpiter vtUt perderet
Não são tudo isto versetos de um responsorio, ou antes
cânticos de um hymno em honra e louvor do Imperante ?
II me snnble voir fc diable
Que Dieu force à loner ks saints.
— fil —
«
Claro cslá que naquelles factos níngucm senão Erasmo
acharia matéria p^ra rcprehensão; suo do natureza
adamantina. Só no primeiro poderia um* excesso de es-
crúpulo demorar algum reparo; e e.>se mesmo apenas
servirá pura provocar, ao contrario, novos tributos do
applauso à augusta pessoa que se pretendeu deprimir.
Oiz-se alií que o Sr. D. Pedro libertara escravos,
que a nação lhe concedida ; e isto com o manifesto
intuito de accusar a roaleza de dispdr , como sendo
seu dominío, daquillo que a naçSo apenas em usufructo-
lhe concedera.
Pois bem: se cu não estou mal informado, mani*-
festar-te-hci um facto tanto menos conhecido quanto
mais merece que o seja ; merece-o, sim, porque se a
verdadeira caridade occuUa á mao esquerda o que faz
a direita, a terceiros è licita a revclarSo, menos para
desnecessário premio que para nobre incentivo.
Consta-me pois que, ha largo tempo, nao yè o Sr.
D. Pedro entre os que o servem nascer um só escravo.
E por que artes de engenhosíssima caridade? Mandando
na pia libertar os (llhos^das suas escravas, e satisfazendo
loíTO, do sea bohinho, a importância dos^a emancipação,
cujo valor, para que não seja desfalcado o património da
corda, é íncontinenti constituído em apólices, que ao
mesmo património ficam pertencendo. H.irmoni:;e-se a
sin.í^eleza da narração de um acto dçsta magnitude (e
om que a virtude se escondeu tanto como outros escon-
deriam malefícios), com a sublime singeleza com que
tem sido praticado ; e nem ihais uma palavra.
As alturas^ portanto, de onde o projecto baixou, são
a> alturas, não do poder possoal, mas da razão, da jus-
tiça, do direito e do futuro desta grande nação.
Cumpre não abusar da tua condescendência. Fique-
mos hoje por aqui, mas já que dei principio, voltarei a
imporlunar-te. Eu não te aconselho que publiques estas
e\lravagancias de um »pobre inhcnho; e de mais eu
— 62 —
nâo quero revolver a bíie de ninguém, e muito menos
de quem tiver a innocentc infelicidade de estar acom-
mettido de alguma idéa fixa.
Tu sabes o que é uma macuca ? uma ave gallinacea,
espécie de perdiz grande, de cujos ossos se diz que a
applicaçSo cura as mordidelas da cobra? Pois, meu
amigo, em 1835, achando-mc eu em Minas, conheci lá
uma velha que tinha a mania de se crer transformada
em macuca, e dava por páos e por pedras quando alguém
llíe dizia que nSo era tal ; a familia, por ordem do
medico, deixava-a fazer o que lhe dava na tola, e a
boa da mulher fez o seu ninho em um grande cesto,
aonde estava sempre acocorada e assegurava a quem
ia visitaUa que d*aili a pouco lhe viriam as macuquinhas.
E era mentira, nâo sahiu nem uma!
Teu velho amigo.
Cincinnato.
CARTA A-
Oh Fabrício!
Isto de escrever é como o coçar ; peíor é principiar»
lá que tens a paciência dé aturar-me, queíxa-ie de ti
mesmo. Eu ando com meus barruntos de partir um dia
destes para essa corte, aonde me chamam ha um anno os
metts altos negócios do Estado ; tudo nesta fazendola ha
mister de reforma ; estive hontem pondo ao ar os pre-
paros de jornada e flquei. petrifícado i nem sequer os
aprestos de marcha ! ponche esburacado, rebenque roido
dos ra tos, ciiapéo de Chile traçado, cochenílho sem pello,
chilenas sem rosetas, tudo uma miséria ; mas eu pre-
ciso ir á corte, ainda que seja a trancos e barrancos,
mercar para a gente carne secca, baetâo e outros tecidos
felpudos, e caturrar com o correspondente, a ver se me
cahe com algun^; contitos para certos arranjos. Se tu
me não embaças, asseverando-me qucahi nâo h\ bexigas
(que saoomeu Adamastor^ a minha estatua do commen*
dador, o meu poder pessoal, o meu terror-mór), que
Dielhor occasiáo posso eu escolher? Já nâo apanharei
Ho>sí, Taborda,, nem Emilia Adelaide; mas nem todos
05 cómicos representam no palco, e sempre ahi hei de
- Cfi —
não famn, a algodão que não tece ; e as barras de nossos
portos são a origem de nossa prosperidade. Estamos na
dependência quotidiana do elemento estrangeiro ; é cs-
tulticie, além de ingratidão, repellíl-o.
E que pensas tu, meu Fabrício, da doutrina mahome-
tana que arrebata ao estrangeiro a faculdade de pensar?
Está boa esta! Consínto-lhe quo venha flxar-se em
nossas terras ; que nellas goze dos mesmos direitos civis
que os naturaes ; que como estes regule a sua proprie-
dade ; que funda os seus interesses nos da nossa asso-
ciação... mas vendo-lhe os olhos, e tapo-lho a boca •
não ha de ver, nem fallar sobre aquillo que importa a
elle tanto como a nós ; se divisar um recife à proa do
navio em que vai embarcado comnosco, condcmno-o se
elle ousar chamar a attenção dos oíTiciaes de bordo !
Ha mais. Nós arrogamo-nos o direito de emittir opi-
nião sobre o que se passa no mundo inteiro ; quer o Sr.
Alencar que ao mundo inteiro vedemos boqueje sobro
cousa alguma que nos interesse ! Os retrospectos annuaes
da nossa imprensa relatam, criticam, exaltam ou depri-
mem quanto occorrea durante oanno transacto nas outra»
naçGes ; os membros dessas nações hão de ser uns fucos
vesiculosos, umas alforrecas inertes, que apenas servem
para na praia se calcarem ! Nos parlamentos, nas so-
ciedades, na imprensa, nos colloquios, podemos des-
cretiar e sentenciar sobre o que se passa fora do paiz;
não ha de quem não seja do paiz expender sequer du-
vidas ou animar esforços, tratando-se de questões que
pertençam, não a nós individualmente, mas á humani-
dade inteira \
Não pôde ser. Sou muito conservador, muito liberai
e muito tolerante. Não rechaço a discussão, venha ella
de onde vier. Quero luz! quero luz! e não pergunto
á luz, se me è projectada de azeite francez, de sebo
montevideano, de gaz inglez, de petróleo americano,
de cora italiina, de mamona ou carnaúba nacional.
Todos os espiritos illustrados e por isso rectos, rectos
e por isso tolerantes, prpciamam entre nòé esta nobre
doutrina; mas para contraposição, bom é que surda
- 67 -
pnrabi algum Luu XI cm mlaialura, que laçiilo seu
Inrbclro •> mais íntirno conliílcnio; alí<:uni conslrue-
lorsiuho iJe muralli;) tarlara, altruni Fnncín-niiriín
i|ai; innriac o seu Império a todos os estrangeiros.
Faz-Die este [lonlo comitliScs de mais lar^its ilcsea-
volv [mentos, nus nàu devo uloiigiir<mc; alii Iílíi j.'i fi.-ila
a c»m3 pira o assuiilplo a (juc me .irrastani os scguiulL>s
trechos do discurso do Sr. Alencar:
• Este projcclv é um cortejo â opinião cslraiiQeira. 54
tfm o intuito, de se dizer a algitem : Senhor, por ate acto
nxM» nome uii^uirini uma famit imperecível. Resignese a
n/resa. ate que n interfenfão de ali/uma socieilnde nlrangeira
imteprla fua Uberdade, Ou emnncipadoreu obedecem ao» iin-
pulfos da opinião estrnnfieirã. Nada mais tialuraldo que siijt.
pór-sií iiue se procurasse um estrangeiro, para dar d proposta
eertú resaibo d'alén-mnr. A idi-a de eiimncipação c um pro-
dutto de fabrica europea, consignada ao dono da terra, ttc. >
ToJo isto Jâo uns enredozinlios, uns cstralaíenia-
xtnltoa para desvairar-se a opinião nacional, iiidispt}I-a
ifljiutamcnic com o projcclu, servir ã niorma do poder
pmoal, e prosar cruuda conlra estrangeiros, a qual
««ni capítaniiadu peto mandarim Fu-Ti-liOou-fu, que já
na seu barrete arvorou a pfnna de'pavâo.
Pelo que vejo, a politica rccoínmcndaiia, a nitra-
rliiaeia, cúasislc cui fazermos ni^ o contrario do que
a liamanidade praticar; niioòassim? Todas as oulrai^
nac^Sos são estrangeiras; ergo se todas cilas disserem
— eocamido— tanto basla para nós dizermos— aznl — ;
(lis licença que cliame a isto— poííííOí de íesourinha'1
Com «sie antagonismo, não lique pildra sobre pedra;
íílra rom a religiàQ que veio da Palestina ; com as
inslílDífJicit, quo vJLTam da luglalerra; comacivíli-
uçío, qDC veio de toda a parto.
Sun. o género Iiunuao é aocúrdc' em que o homem
Aio deva ser objecto do compra e venda ; e nada mais
reneraodo que o esforço teiti neste sentido por naçOes,
ciedacjes ou individuo», nasecssem onde nascossem,
ai cujos desinteressados trabalhos sO ti^m por a4vo
regeneração da tiumana e-^poeic.
- 68 -
Quem reprova esforços laes, quem julga, com o labéo
de estrangeiros, conspurcal-os, vá mais longe; styg-
matize até as missões. Que criminosos não foram os
estrangeiros que, sahindo das mais adiantadas terras,
ousaram pregara palavra divina nas Índias, na.Chipa,
no Japão, na Oceania, em todo o Novo Mundo 1 Que
criminosos não foram Pedro, João, Thiago, Matheus,
Thadeo, Paulo e outros apóstolos, a quem o Redem-
ptor ordenou que fossem doutrinar nas terras estran-
geiras 1
Os apóstolos da emancipação das almas Sião também
evangelisanles, e a voz de quem clama pela verdade,
sóe d'onde soar, merece, não repulsa, mas acatamenlo-
Seja dito em honra do paiz: O caracter brasileiro,
fifeneroso, recto, hospitaleiro, repelle a obsoleta dou-
trina ; tudo quanto 6 verdadeiramente liberal acolhe,
aceita, provoca a manifestação dos pareceres, venham
ellesd'onde vierem; presta culto sobretudo á imprensa,
à opinião, rainha do globo, e não rainha de tal ou tal
parallolo. Que importa portanto que uma voz desafine?
Uma andorinha não faz verão. O voto illuslrado de
quem tem voto, é que dave condemnar-se ao desprezo
a cerebrina theorla de devor-se' rechaçar uma lei, só
porque as summidades da nação a consideram util, e
só porque essa lei representa uma aspiração do mundo
inteiro! Thjcses são estas que basta descarnar.
Vou mais longe ; e digo que em quasi todo o mundo
civilisado, a base de cada lei vem, por via de regra,
de regiões estrangeiras. E apparece quem aconselho
que façamos uma excepção a esta regra da sabedoria
e da prudência universal 1
E os que se esforçam (indirectamente, mas de facto)
por perpetuar a escravidão, a que fontes vão elles pró-
prios buscar o seu imaginário direito? á mã antigui-
dade européa ; vão hauril-o, pelo menos, da parto mais
injuridica. mais indigna, do velho corpus júris civilis^
que são todas essas disposições dcshonradoras do Ji-
reito de familia, autorizando a escravidão, no mesmo
código que também autorizava as relações do marido
— 69 —
leíraimonle (yranno pnra com a mulher súbdita, do
pai omnipotente para com os íilhos vassalos.
Ni Itália e no sul da Franca, nas terras do direito
escriptOy toda essa jurisprudência romana lançou fundas
raizos. Na França é ella, a cada passo, invocada em
apoio das próprias prcscripções do codip:o civil. Os tri-
banaes ecclesiasticos na Inglaterra e Escosi&ia seguem
geralmente esse direito estrangeira como regra. Na
Allemanha, o direito romano foi legalmente consagrado,
confirmado nas leis do império; por exemplo, no re-
gimento da camará aulica^ e em grão-numero de leis
locaes, particulares a certoi paizes. O mundo moderno
emfim vai lodo prestar homenagem, como jus subsi-
diário, áquella legislação estrangeira ; melhor faltando
da jurisprudência que de tudo o mais, ^ pôde Rutilio
dizer á sua Roma :
Pecisti patriam diversis gentibus umm.
A base actual da legislação áo Brasil é ainda hoje,
em grSo-parle, a de Portugal. A nossa lei de 20 de
Outubro de 1823 determina que a legislação do Império
abranja a daquelle 'Outro Estado, até 25 de Abril de
1821, e os decretos das cortes porluguezas ahi especi-
ficados. E já a ordenação do llv. 3.* tit: 64, tinha es-
tabelecido que, nos casos omissos na legislação nacional,
regulasse legislação estrangeira. Acaso todas aquellas
naçOes (e nós com ellas) se consideram desairadas, por-
que semelhantes disposições foram originariamente
proclamadas para além das suas fronteiras?
Bis ta. Ha tanta procedência em suscitar op posição a
leis justas por ciúmes internacionaes, como já mostrei
que a haveria cm desafial-a por ódio à pessoa do Im-
perante.
— Liga-se ainda outra à dupla accusação contra o
poder pessoal e contra tudo quanto é estrangeiro.
Diz o Sr. Alencar que c esses trabalhos do conselho de
estado^ que o gabhiete com tamanha repugnância remetteu
d camará^ haviam sido communicados aos membros da junta
central abolicionista^ e citados na conferencia que houve
nn Pariz a 26 de Agosto de 1867, como consta das actas
— 70 —
das suas sessões^ levando-se o desprezo a tal ponto^ que o
paiz não teve conhecimento do facto senão de torna*
viagem. 9
So o attentado horrendo foi praticado cm 1867, csle
governo nondum natus erat^ c podia dizer ao seu illus-
tre accusador t Deus o faroreça, irmão ; bata a outra
porta ! t .
E SC css*outra poria tivesse a condescendência de
abrir-se-lhc, talvez lhe perguntassem de dentro:
« Quem lhe disso ao senhor, que foi o governo, ou
poder pessoal, que mandou para a Europa esses folhetos
impressos, tirados em assaz avultado numero, c de que
algum exemplar pôde ter cabido em mãos de amigos
daquella sociedade? Muito mais secreto era o tratado
da tríplice alliança, e além disso manuscripto, e là
viajou de Montevideo para Londres, sem ser levada
pelo phantastico paquete, denominado Poder Pessoal.
Boas noites ; temos conversado. »
Façamos porém de conta que se descobriu o cul-
pado do monstruoso sacrilégio. Pallido e tremulo acudi-
ria c^se misero á bnrra do tal juiz, c Jhe diria em
vozes entrecortadas : t Suspenda V. Ex. o seu alfange,
e seu inclyto poder pessoal, mais rutijantc que os
possoaes de quem qucfr que seja.
c Eu sou Brasileiro, muito amante de minha pátria.
Desejo por honra e interesse delia ver finda a insti-
tuição do captiveiro. Como apanhei um exemplar das
actas do conselho de estado, não o divulguei aqui^mas
dei-o a um amigo, que o mandou para Pariz, com meu
conhecimento.
c Almejava o meu amor da pátria por que na Europa
soubessem os que se occupam activamente da questão,
os que ouvem tanta gente infamar-nòs de escravocratas,
que o Brasil não merece os apodos de que era victima,
trabalha para equiparar-se a todas as nações, e estuda
o modo de o fazer, sem sacrifício de vastos interesses
creados por lei. Entendi que o conhecimento desse li-
vrinho não tinha inconveniente tilgum naquella terra
onde è já domínio dos prelos quanto se ha dilo e possa
— 71 —
dizer sobre a magna questuo ; mas que no Brasil é que
não era pruJ^nX^ vulgar isar taes trabalhos, antes do dia
em que a IJiese tivesse de ser tratada em parlamento,
porque é incandescente, perigosa quando extempo-
rânea, e da natureza daquellas para as quaes, apenas
aí^itadas, naodeve haver um amanhã; toda a solução
é preferivel a uma suspensão.
• t Se errei, perdôe-me V. E^. ; mas já vé que foi por
patriotismo que o livrinho viajou para a Europa ; por
patriotismo que no Brasil o não divulguei ; por pa-
triotismo que os successivos gabinetes julgaram que
tal publicidade era prematura. »
E o mais galante seria vir correndo o accusado e
di2er-me ao ouvido que ninguém ha menos habilitado
que o Sr. Alencar para atirar esta pedra, ' pois no
mesmo discurso declara elle que teve tanto conhe-
cimento dos trabalhos do conselho de estado, que sobre
elles discutia com a coroa, e os mandou archivar ;
portanto, sobre elle recahe a sua própria censura, de
nio terem sido apresentados esses trabalhos ao par-
lamento, procedimento com que contrasta o do actual
ministério, que entregou tudo á publicidade , apenas
chegou o dia dos debates, sem a denunciada repug-
nância, antes com o intuito de contribuir assim jMira
que tão estwiado assumpto seja sabiamente resolvido.
Tive qae levantar a penna.
Qae historia, que historia, meu Fabrício !
E' já quasi chegada a hora do correio, e deixo o
caso de remissa ; mas sempre te quero prevenir do
segainte: Estava eu disposto ainda a continuar este
aranzel, quando ha meia hora ouvi uma algazarra no
campo do sitio ; cheguei á janella, e vi um grupo de 20
ou 25 aggregados e vizinhos, que vinham precedidos de
um tocador depuita. Abri-lhes a porta, e então soube
eu que aquella boa gente, ouvindo aos meus paizinhos
que eu partia amanhã ou depois para a cdrte, vinha
despedir-se de mim, e pedir-me...varíasque cousas.
— 72 — ^
O impagável, porém, c a chaiileriiidadc com que se me
apresentou um bom preto que aqui ha, chamado o
Panturrào^ o qual me leu, e depois depositou em minhas
augustas mãos uma mensagem, em nome dos meus
vizinhos ; o peior foi o comportamento do meu mo-
leque Adão, que me ia entornando o caldo, como para
outra vez te direi.
O Panturrão accumula : é barbeiro, ensina primei-
ras e segundas letras , faz uns pasteis que é mesmo
comei-me, comeí-me, e amola facas e tesouras. Este
benemérito enthusiasmou-se por certo estilo^ cheio de eru-
dições e de et costeras, que por ahi apparece ás vezes e as.
pira a imital-o. O maganão do meu moleque Adão está
com 12 annos feitos, aprendeu a ler com o padre
Tiburcio e já é capaz de dar sota e az a qualquer;
é um azougue, benza-oDéus. O atrevido fez uma scena
jocosa ao Panturrão, e tão mal creado que nada servia
mandal-o eu calar; foi a vergonha da minha cara.
Se tiver tempo, antes de partir transcrever-te-hei
a referida mensagem com que engordei a olhos vistos,
e repetir-te-hci algumas das observações do meu endia-
brado moleque.
Santa Rita de Cássia te tenha na sua santa guarda.
Teu velho amigo,
Cincinnato,
QUESTÕES DO DIA
MT.
RIO DE JANEIRO, 29 DE AGOSTO DE 1871
Heflexões politicas • dirigidas pelo roceiro Cin-
cinnato ao cldado fnabrioio
CARTA QUINTA
RIO Bíi JANEIRO, 20 DE AGOSTO DE 1871.
Esta nao se faz, cidadão Fabrício, aaose faz. Vir eu
da minha Tliebaida a cavallo na mulinha, tico-tico, ato
n corte ; esperar o alegrão de abraçar o amigo velho, e
ficar com cara de palmo e meio, ao ouvir dizer à coma-
dre que partiras para Pindamunhangaba 1
E' duro. Tua mulher cá me entregou a carta em que
explicas os urgentes motivos da tua súbita jornada, e me
ordenas te retribua eu na mesma moeda de que és meu
credor, dirigindo-te agora umas ephemerides do que por
aqui se está passando, ou pelo menos continuando a mi-
nha analyse do sabido discurso, e do sabido orador. Seja
assim ; empregarei as minhas noites nesta divertida oc-
cupaçao, já que o rheumatismo, a gota e os calos me
privara de fácil locomoção.
Ha coincidências estupendas. Chego hontera k tarde,
e eu que lá no sitio não sabia ainda das honrarias que
drsvo ao meu idolo politico, caio das nuvens, quando me
trazem ao almoço o Jornal do Comincrcio^ onde leio (jue
'^ Sr. José de Alencar empalmou á tarefa politica todo o
tempo de uma das ultimas sessões parlamentares deste
anno, para me roer nos calcauhares e pôr a minlia insig-
nificante pessoa na ordem do dia I Darás licença por-
tanto para eu intercalar umas cartinhas sobre a incrivel
sessão do dia 5 do corrente. Nilo vale nada a minha
pessoa, mas vale muito o aresto; ha fervuras em que Im-
portadeitar agua; venço a repugnância, e venho à scena.
— Antes de mais nada, pasmo da longanimidade da
camará, ao consentir d'est'arte o atropêllo de todítô as
conveniências, a protelaçao dos mais serio.'^ debates, o
descurar dos mais vitaes interesses, o despreso das dis-
posições do regimento por que deve dirigir se; e ao tole-
rar que tudo isto se sacrifique a certos orgulhos gárrulos,
que levam horas a repizar trivialidades, a injuriar o
género humano, e a dar tristes documentos de incapa-
cidade politica.
Invoco as tuas recordações, Fabrício. Reconhecerás
que esta minha correspondência começou por testimu-
nhos exaggerados de consideração para com o Sr. Alen-
car. Trouxera elle á imprensa descabelladas verrinas
contra o Poder Pessoal. Suppondo eu que fosse uma these
omnipatente á discussão que elle mesmo desafiava, es-
crevi-te a esse respeito sem me desviar um apse do terreno
licito, do politico ; e recordar-te-has de que a esse senhor
attribui, por meus peccados, appreciaveis dotes como
escriptor, estadista, romancista e orador ( Antes da
quaresma me confessarei desse peccado]. A paga nao se
fez esperar, nao senhor : começou por, de logar inacces-
sivel, me arremeçar as insinuações desagradáveis, sobre
que já falíamos ; agora vejo que as completa com os iu
sultos mais ferinos, com as calumnias mais próprias para
revelarem o caracter do provocador ; muda o negocio de
figura. Batido em todíis as discussões, refugia-se era
abrigada casamata, d'onde me atira mortaes..., pipa-
ruteá. Jiilfrava esse senhor que com seus ademaes me
atemorisaria ; ai, níío; aqui metem.
Ha quem timbre na sublimidade do muito fallnr; lá o
virou nao a propósito, importa pouco ; comtanto que a
azenha rode, que môa ou nao moa o trigo, ou a paciên-
cia, é o mínimo de que o Pretor nao cura. Ai, venerando
Fabrício, desadoro com galinha, que leva a cacarejar
sem pôr ovo. (Tem tu paciência, que eu aprendi com um
pensador, que diz que se nao devem tratar ao serio senão
as cousíis serias :
Co' a matéria convém casar o estvlo.
— Levante-se a expressão se é grande a idéa;
— se a idéa é negra, a locução negreje ;
— e ténue sendo, se attenue a phrase.
Mais ténue do que istonão ha nada.
Sirva pois a regra para minha justificação de ora
avante; onde me vires rir, é porque considero a cousa
risivel).
Ora, toca a dissecar a eloquente arenga, com que o
campanudo orador esteve escarnecendo do parlamento.
— Principiou, jurando que fugiria, como diabo da cruz,
dos exercicios oratórios ; é de crer que logo os ouvintes
«6 entre segredassem que iam assistir a nao mais que um
exercício oratório. Mas enganar-se-hiam, confesso, pois
ao que iam assistir era amais desbragada descompostura
a tudo e a todos, com uma raiva, um phrenesi tal, que
eu recommendo cautela, pois nos ataques de hydro-
pliobía morde-se com aquella sanha. Aqui as dentadas
foram em tudo quanto o rodeava de facto, ou lhe atro-
pellava o cérebro rábido.
— Dentada no ministro do império, por dois crimes :
V ter só feito nesta sessão dois discursos, 2** serem estes
ao lusco- fusco.
— Dentada no presidente, que Uie pedia (quando de-
via mandar-lhe ) se conformasse com o art. 217 do regi-
mento ; attribue-llie o plano de restringir a liberdade
da tribuna; e ameaça a pátria de a deixar na orphan-
dade, privando-a dos seus falatórios, em que sempre
apparece representada uma scena dos Vemandistas^ de
Racine, ou em que a propósito de uma avella, se des-
crevem todolos successos para cá do diluvio.
— Dentada no Poder Pessoal; isto já se sabe; nao
havia remédio senão coçar na borbulha. E' mofina para
a qual, embora calhe como canção de noivado em cemi-
tério, ha sempre opportunidade. Coitadinha da macu-
quinha I
Aqui agora, houve um intervallo nas dentadas, porque
S. Ex. fallou de si, e é essa a única pessoa em quem nSo
morde. Ora, como esta carta é nao menos um relatório,
eis como o caso foi ; vá também de entreacto. Desenfar-
delando citaçõ^is (sem serem da esckola ingleza^ d'esta
feita), comparou se, modestamente como sempre, com o
grande jurisconsulto Labeon, a quem os contemporâneos
tinham por louco, attenta **a austeridadee rigidez do seu
caracter, e o seu amor á liberdade, incorrupta liberlatc^
dice Tácito''. Isto nao faz mal: quanto á primeira parte,
. a da comparação com o impávido, acérrimo, rigido e
aspérrimo, quem ha de gabar a noiva, senão o pai que a
quer casar ? quanto á segunda, ( se a intenção foi
attribuir a narração a Tácito, que, a mio ser assim, en-
traria aqui como Pilatos no credo ) nao passa de unia
citação falsa, que nao quebra osso, e demonstra alta
sabença, visto como d'est'arte
aqui vão berrando
os échos das bombas
que estalam nas trombas
dos rhinocerontes.
amphiyuri,q\in^i como o do Filinto. Tácito nunca appli-
cou a LabeoD a locução incorrupta lib&r late ^ pela simples
circumstancia de que nunca escreveu uma só palavra a
respeito dotal estouvado: nos -4/inaes fallou, sim, de
um Labeon (IV 47, VI 29) mas esse era o Pompeio, e de
outro Labeon (II 85), mas esse era o Titidio, e nao mais se
occupou da família dos beiçudos ; ora o tal, do liospicio
de Pedro II do tempo (.e Augusto, era Labeon Antistio.
Cá o nosso preclaro orador ouvio cantar a gallo, mas nao
soube aonde ; leu isso, nao em Tácito, mas em alguma
colleçao franceza de anecdotas, ou em algum Supico, e
fez muito mal om comparar-se com Labeon. D'esse pa-
peou, por exemplo, Aulo Uellio (XIII 12) que do tal
jurisprudente, sábio e mentecapto^ repete o seguinte:
" Sed agitabat honiinem libkrtas quoedam nimia atquií
vfXORs ; iisque eo, ut ratuin pensumque nihil haberet^ nisi
fpiotl jiiMum sanctunique esset^ in romanis anliquiiaíibns
lerfissel "\ Ora ali, no yí?co/*5, pôde haver suas duvidas,
porque o endiabrado vocábulo exprime, umas vezos
doudo, outras furioso, e outras tolo ; mas quanto ao
re.sto a tradução é clarissima. A palavra nimio quer dizer,
fletnasiado^ ftobejo^ demais, O Sr. Alencar já nos participou
quí^ era nimiamente severo^ severo de mais : o Labeon
lambem ([ueria liberdade de mais \libe7*t(U{nimià.; masd'alii
por diante, não senhor, nâo admitto comparação, visto
que o romano levava as suas exigências a ponto do lou-
cura ou de toleima [atfjue vecors] ; mas entendessem lá
o tal romano ! liberalfio dos quatro costados, quando
berrava por liberdade infinita ; e ao mesmo tempo cor-
cunda de papo amarello, quando bramava por que se
não bulisse nas idéas antigas. Mas aqui outra vez, sim;
entrevejo suas paridades : era um Erasmo o Moço, e um
EIrasmo o Velho, de pernas para o ar. Acabou o eu-
treacto ; prosogue a comedia das Dentadas,
8
— Dentada em Horácio, porque vilmente chamou
insano a Labeon^ para agradar ao seu protector Mecenas,
como os actuaes Mevios sao proteg^idos pelo presidente
do conselho ; tal e qual.
— Vinte dentadas no referido presidente do conselho,
porque é altisonante e grandíloquo (nestas terras é
defeso caçar; ha quem jà se apossasse delias, por ar-
rematação ou adjudicação^ que é uma e a mesma
cousa); porque tem velleidades pedagógicas; porque
marcha de paradoxo em paradoxo; porque nSo é
homem de bera ; porque voa com azas Içarias ; porque
arranha os adversários; porque suas iras suo felinas;
porque deve a carreira aos seus grandes gestos e scepti-
cismo ; porque deve a sua exaltação a um grande vácuo
que tem dentro em si para o manter á tona etc. etc.
E conclue com esta phrase, de uma propriedade impa-
gável : *' Mas, senhores, nem esta reconvençao seria
tolerada pela minha consciência [consciência) j nem a
minha delicadeza [delicadeza] permittiria que a fizesse".
Avante I
— Dentada nos membros da commissa© especial,
aquém accusa de pregar sermão inçad 3 de profanidades,
e de affrontar os brios nacionaes e a dignidade do par-
lamento.
— Dentada no relator dacommissao, ao responder-lhe
que as suas palavras, nem dignas sSo de ser ouvidas.
— Dentada no governo, fa]»ricante de torpedos polí-
ticos, porque o trata com desdém e ironia.
— Dentada na maioria, porque o amordaça, e não lhe
deixa jorrar esta catadupa de irresistíveis argumentos :
e porque a maioria nao é senão o gabinete, e o gabinete
nao é senão o presidente do conselho.
— Dentada no senado [viilpis ad uvatn) e no conselho
destado, porque é nesses elementos vitalícios e anti-
9
constitucionaes, que a também vitalícia coroa se apoia
(macaquinha).
Dentada em S. M. o Imperador, e em S. A. a Re-
gente, dizendo ao ministério que iiao pense ganhar a
partida, apezar de ter nas su is cartas o rei e a dama.
Bem era que, após estas e outras mordeduras e tor-
quezadas, se concluisse pregando a insurreição ao pa-
cifico povo, que nunca imaginaria que da assembU'a dos
seus legisladores, de um areópago conservador, surgisse
uma voz provocando sedições e levantamentos.
— Salto a pés juntos por sobre outras gentilezas, e
venho já ás imprecações contra a imprensa em geral,
que apoia o governo :
"Imprensa clandestina do governo — Lucrativa em-
preitada— O suor do povo desce do céo, como Júpiter
transformado era chuva de ouro, para seduzir e profa-
nar a imprensa — O governo inoculou-lhe o virus da
desmoralisaçao, a lepra da subvenção — O governo fa-
brica uma opiniílo falsa, que nao é inspirada pelas idéas,
mas pelo salário — A imprensa subvencionada rebaixa
uma profissão tao nobre como ojornulismo — O governo
levantou contra o orador uma coliorte de anonj^mos a
qiiem incumbio nao de refutar as suas idéas, mas de
lançar sobre a sua pessoa doestos ; artigos que, por sua
profusão, bem se via que eram pagos por tao abastado
e generoso capitalista, como é o cofre secreto — Arma
a ra?lo do mercenário para insultar os adversários que
nrio se anima a combater na tribuna — O governo
chama em seu auxilio os mercenários da penna,
esses que na phrase de Marcial verba et iras locant^
alugam a palavra e a bilis. — Instrumentos de diffa-
niacao, etc, etc/*
A que deferência pôde aspirar quem assim vilipendia,
com a mais desenvolta linguagem, nao só os governos,
10
mas os e.scriptoiv.s f*m massa ? Qiioesiylo é este, que uSo
acha precedente seiírio uas peiores paginas da Tripa
Virada, ou da Besta esfolada? K como não andaria bem
consultada a justiça, quando leve por seu consultor
quem entende descarte as prescripçòes da justiça I
Esta ladainha de aitrontas a.ssenta numa accusação
de facto ; porque nao esperou a declaração desse facto,
antes do accesso hydrophobico? Ora o presidente do
conselho, n'um discurso antipoda deste, em elegância,
cortezia e dignidade, respondeu : — ^'Qne o gabinete
actual nao tem subvencionado escriptores ;*' e após inn
explicita declaração, o juslo e leal parlamentar na j re-
tira as suas iniqua.s accusaçoes de chuva d*ouro, lepra
da subvenção, salário, mercenários da penna, e outros
ai^fl II mentos, dos únicos de que se aclui provido o arsí^-
nal do tonitruante orad-jr! Lamentável privilegio o di^
similhantcs eloquências: tristíssimo, quando só inspi-
ram piedade. Os illustrados, nobres e desinteressados
escriptoreí?, (pie assim se te/ita vilipendiar, riem dos
Labeons, e vão andando.
Mas eu, é que não. Ao bom ]»ngailor nao dóe o pi*-
nlior. Temos uma continha que ajustar. Kmtjuanto nu»
illudi, suppondo possivel discutir uma questão, de Ín-
dole exclusivamente politica, sem se nJirapassarem os
limites que a simples educação ensina, usei da mais
respeitosa linguagem, e de quantas precauções signiti-
cassem apreço, superior até ao devido, dos dotes do
adversário. Fui cauteloso em não proferir palavra que
resvalasse das idéas politicas para as moraes, sociaes
ou outras, defezas aos debates. Não approuve este co-
medimento ao valente athleta: descobri i contra mim a
sua metralhadora, de tiros de cortiça, sem resguardo
de espécie alguma ; acceito o novo estádio a que me
chama: dente por deute, olho por olho.
u
i)Tiei-er-^-1i.i '[nti fui an o prnvocado, 6 qiiR quem
affitãhiii p.irii muito luaiit lonfr^ □'• limit&i qtie eu me
L trnrado. foi quum ij^urava o snnexim: (jaera
«pnpftoar. itn rara Ibo cabe. l)'ora «vante o csUi-
, tiescriptor, o critino. o romancista, n jariVcoa-
\tAtt livi-R ibmtníi) (la aanlysfl. A d la Cí igiieorsa
Hlndv iiAo '^om privilegio truliisiro dos I^aheona. ,
[eriormftnte, cnm muita eRtranheza minha, ci
r uii* r(iii>;uriini na pnrlaaiBDto, comn notei
srior. Ouço, p'irém, ijiie pretendia ngora
^ A minha pifíuioa, >jiinndH iitt^^tc memorando dlit-
', pr«VAliv:findn>ftâ nobremente Atu inim unidade» da
I ((ii[ai u tcnnn 6 feminino), profariíi as so-
llpndiirHM, n <\np desejo an^inentar a merucida
■ - irrave, a (|ii<! mais rcTolta no
i-, iW|Uvt diamou em seu iin>
,: iríi para roadjiival-o nos scus
Aon pHrÍiuiii*utare^<', díHCittir m nej^con do paJK,
atcrtnlrn f* «■"1* «li versa rios ihTeclivM..., Nilo se
■ I. fnltando »fis dfivcres de cor- <
U-n bospUul idade, .se arrofrua
■ .'mpenbe cm deprimir os seus
l^rArtBn** |iiiltUi-oii. O pai» onde i^imílliaDlit fiicto se
iijn'^- oem uma retirtSa enerifiCJ do povo, wtíb,.., etr."
íii itiítraiigcirophobi»: 'i", d«-
iro; ;^, convite ao povo para
i-odamii-uos: Sc cii »uii Cjo-
r^ -^Mi: nanei em Roma; e c& este
itr t|ui<r ((fíioriar-)w>, fiuwndo coin (jue
a touta (ahlruHcnl capitem, dix neste
N [ruga i)p ter eu approvado ao veltio
' 1^0 g-HURral de r«v«ll»ria liz«se ow-
'> iKjbrc ^rviliu Axilta. Nflo ba rnxA"
12
de queixa. Aclio em realidade este o mais hábil expe-
diente para caiar contradictores; veulia de lá uma boa
cabeçada : homem morto nao falia.
Quer porém S. Ex. ver na minha assi^rnatura um
pseudonymo? Porque não? Ouve tu cá! Empreg^a-^se a
pseudonymiíi, ora por tMctira, ora p.")r medo, ora por
calculo; mas tf.mbem .se adopta ás vezes por .se pensar
qiie, quando se tem um nome obsuiro, nadaaccrescenta
elle ao valor ou á insignificância dos raciooinios, os
quaes sao assim, com mais liberdade o justiça, aqui-
latados.
A explicação da minha assi{*:natura i* esta ultima; e
nao se imag'ine que sou movido por temor de espécie
alguma: se eu tivesse medo, comprava um cao. Eu fui
baptisado; ponha o denumúanto. o meu nome por ex-
tenso, que eu lhe protesto que, assim como o meu an-
tecessor dava peio nome do Quinto-Lucio-Cincinuato,
eu quando o nobre delator cliamar pelo meu nome. Fu-
lano de tal e tal, bradarei immediatamente : Trompti)!
Adswii; in me coiivertite ferram. Emquanto porém o
nao fizer*, consinta que eu vá andando meu caminho,
coxeando na pingada de quem hontem assignou Erasmo
o Velho^ hoje aL. agora Erasmo o Moí;o, logo a Voz de
jDeiM, depois o Autor da corte do leão, outra vez /. (í.
dos Tamojjos^ outra G. M. da Diva^ outra Seiíio do
(íaúcho^ outra o AiUor da festa macarn^onia, e se mais
mundo houvera lá chegara. (Esse, sim, esse quem
quer que seja, que toda a vida tem usado e abusado
da anouymia, é curioso quando clama, em questão de
princípios, que se nao abaixa a discutir com anonymos !
Perdeu-se alli um bom diplomata).
Quer p')is que enseja estrangeiro? Aponta com o
dedo para a minha pessoa, nao para discutir (que isso
nao é. cousa do seu gosto), mas para me injuriar, e pro-
Tocnr conlTB mim opooo a uma reacção enerificaf Poíá
«rei. que mais quer? Serei au ; e qtiem wu eu? E30
siivi tfvii 9unt.
Oro iigortt, sabe o qoo maisí Faiw iverdiide em loao-s
OA iiunti» fi virgulas da suii verrina.
Falta & «rdade, quunJo affirma <i»e o ffabinete m«
chanioM i'nm o coadjuvar em s«itó trabalhos pnrkmeu-
liiíu s(S iiulitt lio projecto sobro o ele-
,u depois ijiití elle iipiitrereu impresso ;
. trúquei palavra ^fbve tal «ssuiiipto
cfltn t|iiuiii '{ucr 4iie aeja.
fiilta á verdade. aflSBverando tftr-me o gaVmetH cuii-
URdo a lHn<.Mif i0vi:cliv«fl contrA adversariya. Nem
Bicui invectiva alguma: ortn o gabinete «ra capax do
b*U pedir, nwn ou d« escrever uma pUrtwP- que «lo
provÍcís« da mnts intima convicção.
Falta 8 v«riliide. quando <Uz .[ue i!u fui dfiscortez
a çom e.ne pniz: o quera nat. riuer piissar pur... por
n nOHiH muito feio. raostrt! uma só locuçriu minba quw
I d«iioÍ« iiraixadtí sincera o justiça para cura este im-
, n quom. no contrarí'!. nesta mesma polemica, a
o dcídc li primeira carta, dafendi ener(?icamente das
lOgUuitea Bxprobraçflw que. contra uUe a tudo (luatilo
Ml«, vomita o illUíilro dcvanoado. que só iraajfioftri»
il de amtlo iConro. quando elle subi-we ao governo,
IBftíelRVftrOes. iím'iuaiiU> a'Js cá «os fossemos
ÍAn ufwtcMniilo de ferro, em que
A . . In anrl Irarlooqaa («n ce «Iwle à« ter)
R pUaau luand U Tuni, mit Mn uu due et |mú.
bi verdade, quando mo pinta como devendo I
^ndeoido pcln Inxpitaiidiuif (/ue nrlc p<lij; 11
IrAlH) lil HuuriHroií com a bonevnlencia que 1
^rema sltunt atA its iu&ranR camadas, mQ lia \
tntemenU dispeiisidit ; maa de igrnal bene- j
14
volencia tenho sido alvo era varias naçõeis, que me nSo
vendem por mercê de hospitalidade o ser eu amigavel-
mente tratado por aquelles a quem trato amigavel-
mente. Vim para aqui, porque uma importante missão
me trouxe; conservo-me, porque me apraz; nem pela
vinda, nem pela estada, ha obsequio de quem quer que
seja. Nada devo; nunca devi; nada peço que nao seja
de justiça; nunca pedi. Se aqui prefiro estar ; se aqui
dispendo o que possuo; se aqui vivo (respeitando as
leis, mas sem adular homens, nem ante preconceitos de
qualquer género pôr joelhos em genuflexório) é porque
quero, só porque quero, e sem tolerar mais que se
chame hospitalidade k minha estada, do que se eu tivesse
a vergonhosa pequenhez de dar esse nome ao acolhi-
mento fraternal e dedicado que o Brazileiro encontra
em todas as terras que percorre, mormente em al-
gumas.
Falta finalmente á verdade, allegando que eu de-
primo os caracteres politic/)s do BraziU E' outra esper-
teza; quer fazer clientella á minha custa! Muito lido
na historia da França, pauta o seu procedimento (si
parva licet componere magnis) pelo de Napoleflo III,
cujo machiavelismo o levava a nao fa'^er guerras
senão de parceria: Crimea , Áustria, Itália, Co-
chinchina , México , tudo foi tentndo com as costas
quentes; e a primeira vez que se vio sozinho, levou
tremenda liçrio da Prússia. Esta subtileza agora tem
por fira gritar : oh da guarda, nh (/ui d^el-rei, que uie
escovami Tem igualmente por fim desvairar o juizo dos
caracteres politicos, com uma falsidade. Nunca eu disse
uma palavra contra um único, individual, nem contra
muitos, collectivamente ; ou nao bailo senão conforme
me to'^im ; ncredito com sinceridade que os que nao
pensam couio eu i)ensò, é porque a sua intelligenci«
15
ixàsim lh'o ordena, e talvez tenham mais razílo do que
eu; it] só com o Sr. Alencar que eu tenho discutido, e o
Sr. Alencar nSo é plural,, para fal lar de caracteres ^ e
contente-se se poder empregar esse nome no singular.
Nao te quero cançar, Fabricio querido; paro aqui.
Cedo continuarei os commentarios ao grão thema.
Agora fecharei, tocando em assumpto que nada tem
com o que precede, e que é uma simples trivialidade
moral.
Eu também leio os meus Supicos, e num d'elles acho
que a argutissima antiguidade tinha, entre os seus
sophismas celebres, um denominado — o Mentiroso — , e
cuja formula era esta :
O que mente, e diz que mente,
mentiu ou dice verdade?
Até agora o typo mais cómico d'aquella virtude era a
personagem de Dorante, na comedia de P. Corneille,
que tem o nome do tal sophisma. Antes d'isso, exclamou
um personagem de Plauto: ^'Si dix ero mendãcium^ soltns
vieo more fecei'o\ que um annexim nosso traduzio por :
'* Mente Pedro, porque o tem de veso". Mas as figuras de
Plauto, os Dorantes e os Pedros, neste século de monde
?/iarc/íe, já sao fosseis e eclipsados.
Bem eclipsado és tu, que te pozeste a audar ; e attento
o grão crime da minha caducidade, fóssil é este teu
amigo ; o qual, depois de se ter dirigido a ti, volta-se
para o Illra. Exm. Sr. conselheiro José de Alencar, di-
zendo-lhe outra vez que, para todos os effeitos, tenha por
entendido que esta carta é assignada pela pessoa que
lhe approuver, ou pelo roceiro
ittCI
lioaio.
QUESTÕES DO DIA
RIO DE JANEIRO, 3 DE SETEMBRO DE tSTl
Veii(lo-se em casa do Srs. E. & II. L<aeiinnert— Praça da Constituição,
Loja do Canto— Rua do S. José n. 110— Livraria Aaidoiuica, e Cniz
Coutinho na uiesnm rua n. 75. Preço :^00 réis.
Xtcforma juclloiarla
O Parlamento brasileiro acaba de votar uma das pnais
importantes reformas reclamadas pelo paiz.
K' de crer, que brevemente a .sanceão imperial con-
verta em lei o projecto aceito por aiuba? as camarás
legislativas; e log-o que este facto se realise, poder-se-ha
dizer, que o Brasil é um dos paizes do mundo civili-
sado, onde a liberdade do cidadão encontra as mais
amplas g\arantias.
O Brasil pude ufanar-se de possuir as instituições ju-
diciarias mais excellontes, e capazes de einparelhar
com as dos povos mais adiantados em civilisacfio, e
mais zelosos da liberdade individual.
O jnry, essa instituição, que os ingdezes denomina-
ram a verdadeira cidadeila do pmo, e a inexpií^-navel
Liibraltar da sua constituicrio, acaba de receber da re-
cente reforma o possível melhoramento, tendo gnran-
ti:is superiores talvez ás do jnry ing^lez.
(/Oufronte-se o que na In;:i*laterra se es:abelecc em
Fídacílo a este assumpto com o que a reforma provi-
dencia eatre nós, e nfio liaverá- exa<i'g*eracrio da no.-sa
parte.
Os Kstados-Unidos e a Ing-laterra, paizes modelos de
libenlade, nâo ofitírecem em sua le^-islnção criminal
mais desenvídvida protecção a essa liberdade.
Para mostrar a exactidão do nosso asserto, basta
contrapor as disposições do scui direito ás disposições
do nosso direito novo. lím aml)os oí?' paizf\^ notam ano-
malia^, <[U<» i^ntre ni)S o espirito esclarecido do 1{\í:^*1s-
lador tem rejeitado.
A ri'ft)r.na já votatlíi traz ^*r:nidís (Miii])orLantes me-
llioramcMilos c?m vaiila^NMii do cidadão, o mostra um
2
espirito de liberdade, que ninguém rasoavelmente con-
testará.
Xao podemos deixar de fazer sobresaliir cm primeira
pluna o re.speito, que a reforma consagra ao grande
principio da inviolabilidade da vida humana.
Si a reforma uao abolio formalmente a pena de
morte, todavia a tornará raríssima, e talvez impossível.
Para a applicaçíío deseja pena, exige-se agora a unani-
midade na decisão.
A unanimidade em julgamento de pena capital é por
certo difficilimo succcsso, qnando por caracter os bra-
sileiros são brandos, e infensos a castigos atrozes, como
é uma pena, que é irreparável sem ao menos ser exem-
plar.
A nova disposição tem ainda salutar etteito em rela-
ção á injustificável e barbara lei de 10 de Junho de
Í835, que com o ultimo supplicio punia o escravo
autor de crimes, em que essa pena era comminada.
A lei não attendia a circumstancias: a morte casti-
gava o caso atroz e horroroso, assim como punia o facto
mais justificável e simjjles.
F/ uma lei tora do todos os principios de justiça, e
humanidade; nenhuma gradação de penas reconhecia.
l^ela reforma, desde <iue não lia unanimidade na vo-
tação sobre o crime, apj) jcar-se-lia a pena immediata :
assim já uma gradarão apparece para modificar o rigor
absoluto da lei draconiana.
A abolição do procedimíMito fx-o/fícío nos casos
crimes é de alta conveniência para a cansa publica.
A simples consideração de í|ne actualmente o juiz é
parte ejnlgador, mostra (juão desvirtuadas estavam as
regras de justiça.
l)*ora (un diante o juiz conservará o seu caracter de
arbitro desapaixonado e desprevt;nido.
O jniz formador da culpa por j)ropria iniciativa não
podia deixar de levar o fermento da parcialidade contra
o accusado. em quem elle começava por ver um crimi-
noso. O espirito assim preoceupado prejudica a justiça,
que requer, no momento de avaliar e pe/ar as provas,
animo desprendido de qualquer consideração alheia á
natureza dessas mesmas provas.
A reforma neste ponto restaura o grande principio
da imparcialidade, e da dignidade do juiz.
O réo VÊ seu jnlgador, mas não o homem eivado do.
inter^BS^ií no bom êxito de uma accnsação. qne elle pro-
jirio levantou; porque assim arreda (l(í si a argiiirOo
«lo leviano, (íomoraudo o procedimento iniuudaíh, e
rí>nseg'ue os fóro.s de per.spicajs, (juo nao deixou passar
incólume o criminoso escapo á vig-ilancia das demais
autoridades.
Na ordem daí? garantias imm^ídiatas da liberdade
civil o melhoramento operado pela reforma coUoca o
cidadão em posição mui sobranceira.
Elle já não verá no g-oso da sua liberdade pessoal a
simples e bondosa concessílo da autoridade policial, ([ue
armada de arbitrio para prender por m(M'as suspeitas,
ou indicies, que fantasiava, tinha o eondao ma{i'ico de
tolher o cidadilo cm sua independência, quando lhe
aprazia.
A segurança do cidadfSo brasileiro estava hoje depen-
dente do terrível anathema, que a autoridade proferia
nestas palavras : " Estás iniciado em crime inafian-
ravel. '^
Tanto bastava para o cidadrío ver empallidecer diante
de si iodas as seguranças da lei constitucional.
Atrora a autoridade criminal lerá rejirras definidas
ynm constituir o indiein mento e:u crime, e já não po-
Jevá jireíider senão em vista do facto incontistavt.»! d(;
• itlVnsa á b'i, e em face de ])rovas concludentes da cri-
nii^ialidade de um individuo.
(.> ridadã" tem abri^ro certo na lei : não fica apenas
(Mitrí.'írue ao bom ou ináo critério da autoridade.
Aquillo <[ue o cidadão tem de mais ])recioso na so-
<;itída<le civi!. a sef^^iiranca de sua pessoa, será uma
realidade, .^em facto seu devidainent<> com])rovado, elle
não se temerá do cárcere: a sua pessroa é livn».
O }ifih.fHft'rori)ns foi desenvolvido ])ela reforma. As-
-ontaJo em nossas leis do processo criminal, sotfria na
pratica resiricçnes incompatíveis com a natureza de tão
>;iiut?ir instituição.
Nos casos de maior nec(»ssidade. por isso mesmo que
a opy»r";s<ão se acidx.rtava com a falsa Ic.íralidade, tor-
:iand''»-se intolerável e ousada, o írraude recurso das
Ti'^>s.is lilu-rdados, dfM^ahia, e perdia a sua eíHcacia.
i)^ nossos tribuuae^ vacillavíim sobre a. amplitude do
Ifih-^as-r.orpiir,. e muitas ve/es os pacientes, escandalosa-
ment»'. vexados, tinham de resignar -se aos rigores da
prizão urbi traria.
A autoridade violenta procedia sem competcuí^va.
SEXTA CARTA
DO ROCKIUO riXClNNATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Kio de Janeiro, 23 de Agosto de 1871.
Fabrício d'est'alma
Obrig-ado pela tua cartinha. Tu nunca te esqueces
(los amiyos, bom velho. Já sei que chegaste a Taubaté
e rincbununhaniraba ; que o teu primeiro cuidado foi
tlirigireí-to a N. Sra. do Bom Succosso, e ires lojro á
caj)ella de S. José, ouvir missa por intenção de todos os
Josés passados, presentes c futuros. Sei que meias mandar
pela bahiade Ubatuba uns rolos de precioso fumo indig'e-
na, mimo que é muito de menj^osto. Excellento Fabricio!
Teimas pelíi minha correspondência ; níio te aflijas,
que hnsdç recebel-a, e de ora avante um pouquinho
mais livre, gmcas a J)eos
Ag^ora o que me atrapalha é a abundância de matéria;
pobre, á força de rico, diziam os romanos: tenho ante
mim as duas lenfifa-leníras monumentaes com que o
insigrie orador andou aos g^rillos e a que serviram de
pretexto — num caso o elemento civil — no outro
a cerebrina interpellaçao. Kmvez de absorver as minhas
admirações num só desses Koh-i-noors políticos, reparti-
las-hei por ambos, mas já agora continuemos com o
parou these que a interpellaçao abriu.
Deos me livre de cercear uma virgula á diatribe com
íjue a mordacidade desse subjeito imaginou fulminar
este pobre homem de palha, contra quem houve por bem
espinhar-se. Quero repetir litteralmente as suas palavras
])ara que s • avalie a dignidade do orador, a justiça das
incropaçíles, a valentia dos argumentos, a decência da
phrnze...e a revira-volta a que me constrangeu. Trans-
creverei os trechos d'aquelle jaez que, segundo dizem,
teve cm mente encarapuçar-me quem á discussilo pro-
fere a disputa :
'' Senhores, a camará comprehende que nem eu nem
os meus amigos damos a menor importância a esses
escriptos e ao seu auctor. Kssas rahulires litternria^'
{ mandou que o Jornal do Commarcio pozesse em
gripho) nao chegam até nós ; nem me occuparia com
ellas, pois tenho nojo de tocar-lht:s, se nilo fosse euco-
incndã do g"overno. "
ner quem sao os «míjos deste seulior, e o nome
POUCO- f^n^H ''. P'"^^x ^ ''" ''"' 1»« J^ »ao é tao
um t rf Tn" ■?'?? ^ 'i"' propósito diziam os autip-os:
é « m s.^ii" "^ """ ''^"''^'^ " P'^^'^^'-- ^ ^?°'^'»«
ara do ^" ' "í"'"? '" * -'^ "™«' 'í^ ní"/"«>n é
a,!?m^"f-"'« importância aos meus escriptos nem
do si In ' ^°,f '^•'°>-"--Nao, que realmente pirraças
^Sr, \ ^"^' ^^«''"^o « costume, amanha pen-
teio T ""' ? "''^ ""^'"'^ *^"- esperança é já conso-
dos ;..?; J"^ "1""'^ ^ "í""' f'^"'^"^« tão poiico ca.o
a nla Lí7 P^'"^^'»^»^"*' ^™ ^'"^ cada palavra sua
"Pne .e pSr^''^ '^^ ''"'' ''"' P'^^^"« '^^ ^^^^^'"'^
Dizemos auexins : quem se queima é poniue peo-a
em bra/as; quem se pica cardos come. Fa/ mal em co-
mando' ' "'""^ ''^ ^'"'*'^' ^°'" P™^ ^''^ ^^'•''^ ' ^''' ^'i-
Quanto , is minhas ra/m/i>ev lillerarias, orçam pe-
as rabuhces htterarias, jnridicas, oratórias,* dramá-
ticas, e outras, do certo vulto que eu cá sei, de cert-i
frralha, cujas ].eunas senlo, um', a uma,- arrancadas ató
que lhe hque, sim, o jus de gralhar, nuis uno de pavo-
nenr-se.
Coiitiuua o Demosthenes, provando do seguinte
modo seremos meus escriptos encommenda do froverno'
Le e pasma :
" A prova circumstancial ó a intimidade que ostenta i
r..m o g-ovyrno esse estran-eiro; o carbo e or-ulho que
oUe tem de ser um auxiliar prestimoso da administra-
ção : e o custo exc.íssivo dos longos e esteirados
urtipsjs; tudo está revelando o dedo do ministério.
Acamarão vio exlabir-se neste recinto diariamente,
em coUoquios com o nobre ministro do império, e
com o nobre relator da commissao, fazendo trempe.
Aberta a discussão ello a accompanhou constantemente
8
como uma espeoie de arolito da illiístrada commisáão ;
e parecia desafiar os oradores da oppí/siçao a que ou-
sassem tocar no seu insulso arauzel.
'' Nrio cuidei que os reis constitucionaes carecessem
de suissos de peniuis. Pode o uobre presidente do conse-
lho despejar os cofres públicos para pajrar aos cavalleiros
de injuria... Os aventureiros que hlazonam do protec-
tores do «governo rc^viliinlo no despreso publico, donde
pertender.im surdir..,
Dizia o direito romíuio : Adori Incumbit oritis pro-
bíindi. Olha tu, meu Fabricio, a jurisprudência d'esto
causidico. São do governo os nituis artigos, P porque
conheço algum dos ministros I 2" porque tenho garbo
de os auxiliar (invenr.ao du orador) ! 3" i)orque os arti-
gos sfio longos e esteirados (não pode ser erro typogra-
phico, pois í.s7iraíZo.v seria redundância : logo .são com
etfeíto, além de longos, esteirados" !-i" porque conversei
com 2 cavalheiros, fazendo tremm ( não entendo,
mas deve ser espirituoso, vislo que o Sr. Alencar diz quíí
provocou hilaridade !J õ" porqucí me vio na camará
(como poderá ter visto centenares de curiosos, tão vadios
como eu) ! finalmente (>** poríjue eu parecia desafiar a
opposição a ousar tocar no meu insulsí) avanzel (que
nranzel é este ? em que é que eu lhe ])areci desafiar a
ninguém? Vou para Minas, visitar a velha da ma-
cuca.)
K eisahi imí provas. Limpe as mãos á parede: são
tão convincentes como as com que acaba de pejar us
]>relos sobre um ponto juridico, em que, depois de de-
j)ennado por Inibil antagonista, acaba também de ter no
supremo Tribunal a consohiÇão de não acb;ir um só
Voto que oi)inasse ter a sua doutrina o sim|»le.^ senso
Cíunmum. Mas não antecipemos: a annlyse do jurispe-
jito, hade vira seu tempo; por agora liniiteiíio nos
a erguer as mãos ao céo ])or não s(ír juiz, cjuem ]íor
taes chamadas provaa circujínstancites condínnna os mi.^e-
ros que odeia.
Quanto ao r.avuHeiro do injuria, e ao avcnlureirn. con-
versaremos, depois de transcrever mais um treilio da
audaciosa verrina;
*' Mercê de Deos, não preciso da tribuna ])ara com-
bater os meus adversários pe.rsoaes, nem consinto que
S. ]'!x. ])roí'ai-i' ivhni\ar-me, jr.lgMUíb» qin? (mi ]).í«"Ii'ssi»
ycr, nny. i\<r*\'iy,{yi-\ n que me r<*í*'rí, uni advi':.-'ri.). Nã ^
senhores, 03 meus adversários uilo sao d'aqnella ordem.
O nobre presidente do conselho, que o tem posto a par
íle si, abríndo-lhe o thesouro que outr'orase lhe fechou,
o nobre presidente do conselho é que poderá conside-
ral-o algum dia seu adversário, quando elle prestar a
outro, e por i^^ual razão, o mesmo serviço que lhe está
agora prestando.
" E' meu costume combater os meus adversários de
frente, e sinto coragem bastante p^ra dizer a verdade
em face. Nunca recorri a pennas mercenárias para
atirar a meus antagonistas o stygma que nfio tivesse
a coragem de lançar em rosto ; nunca I „
Nao precisa de tribunal! Oh se precisa ! precisa até de
tribuna, que seja inaccessivel a qualquer antagonista,
porque só assim poderá alardear triumphos que deva a
silêncios forçados. Pois pensava o Sr. José de Alencar
que ousaria exprimir-se assim, se visse ante si com a pa-
lavra o cidadão a quem julga insultar?! Não; as sums
valentias sao as do verdugo, que açoita a victima alge-
mada. E alardeia aquillo a sua coragem ! Com uma tiara
de immunidades !
Qual combate de frente ? ! O seu combater é o da som-
bra, que foge de quem o segue, c segue a quem se afastn.
O Sr. Alencar bravateia onde a fortuna o coUocou fura
de alcance. Tem três privilégios para injuriar sem
respeita :
!.• Tema galharda chibança de atacar no parLamenlo
a quem nao pode ali retorquir-lhe ; e assim abuza da
irresponsabilidade parlamentar, que só dovOra conser-
var-se para as opiniões, e nunca para os convicios contra
estranhos.
2,* Tem o exclusivo de propagar os seus doestos, á
custa dos cofres públicos, reproduzindo-se estes pela
imprensa.
3/ E como se tudo isto nao bastasse, accresce-lhe a
exempção da resposta grammatical (que é pelo mesmo
caso que se faz a pergunta), attento o inconstitucional
contracto em que a camará dos deputados inhibe o
prande orgam da publicidade de dar á luz escripto
al^rum em que se responda livremente ao Sr. Alencar.
Onde ninguém falle, brilha S. Ex. ; da imprensa
livre, desadora; provoca e foge, e acha lá uns pretextos
íucoraiJrehensiveis para explicar a seu guerrear de
Partho, que dispara flexas fugindo. Se é, como diz, filho
10
da imprensa, para elle fez C. De la Vigne o verso cujo
sentido é :
Filho da imprensa, a tua mãi suffòcas !
Venhamos agora ao amnlureirOy indigno de ser adver-
sário d'este senhor, que per tende converter-me em
armazém de pancadas. Kaz-uie cócegas ao bico da penna
uma resposta appropriada ; mas ha ura certo pudor que
impede de descer demasiado, ou de sujar as mãos com
punhados de lodo, ainda quando de lodo sejam as armas
adversas. E' as.im mesmo com indizível repugnância
(|ue me vejo forçado a redarguir a ti"lo insólito descome-
dimento, (lizendo que por todo u qualquer lado que o
Sr. José de Alencar se delicie no espectáculo das suas
grandezas, o humilde roceiro que i^sto escreve (salvo no
talento) está a par, ou muito acima de S. E\. Se eu
quizesse desfiar-lhe isto. seria facillimo : mas ó terreno
desagradável ; basta a tliese, cuja exactidão afianço, e
passo adiante.
Chama-me viercoiario^ a mim, que nem agora, ninu
nunca em minha vida acceitei um ceitil como assala-
riado, e isto me ó lançado em rosto por (juem tem sido
assalariado, frequentemente, como te mostrarei. E sobre
tantas proposições vergonhosas, mais uma se distingue,
(|ue por si só basta para revehir quaes os principios do
facundo orador. O Sr. Alencar cantou a ária de 1). Ba-
7Ílio, do Barbeiro de Stvilha^ com os competentes piano
piano^ rinforzando e crescendo.
Se é calumnia a im])utaçrio falsa de actos culpáveis,
armada pelo inventor; se Menaudro a define : ódio ser-
vido pela mentira ; se Voltaire escreve : (Juand uno fois
la valomnie est entrée dans Vesprit du méclíaní^ elle nen
déloye pas ; se a calumnia é uma serpente alada, que ora
se arrasta, ora voa; cumpriria aos homens collocados
em certas posições ostensivas evitar que se lhes appli-
qué a mais abjecta das denominações.
Lè-se no discurso impresso do Sr. Alencar a seguinte
plirase, (jue elle não proferira na camará (pois este
discurso foi penteado e brunido no gabinete), que
'' o Sr, presiílcnte do conselho me csíd abrindo o ihesonro^
que OMÍ7*'o?ví se me fechou.^'
Isto sHo fados \ e que nome merece quem os tiver ex-
cogitado ? E' claro que o Sr. Alencar nao entende por
estas palavras qualquer recepção, tao legitima como a
IJ
dos honorários de deputado, que S. Ex. recehe do the-
souro ; entende insinuar, ou delatar que outr ora se
fechou o thesonro a assaltos meus, e que ag^ora estou
dispondo d'elle, recebendo somnias indevidas.
Declaro-lhe eu que são duas proposições, qual a qual
mais falsa. Dig'o ra.ais: nunca recebi para mim um real
do thesouro ; nunca recebi para terceiro um real, que
nao fosse proveniente de leis ou sentenças ; e ha muitos
annos que de novo nao tenho recebido um real do the-
souro, sfíja porque titulo for.
Agora accrescento o sejruinte : tiro o Sr. Alencar a
terreiro; nao é capaz de despir a sua immnniílado parla-
mentar, e vir á imprensa repetir aquella phrase ( a nfio
st;r com evasivas jesaiticas), pondo o meu nome por
extenso, e subjeitnndo-st» á responsabilidade que a hn
applica â calumnia, pois protesto que lh'a faria impor.
Nílf) SC metterá a bordo doesse chaveco ; macaco velho
não trepa em ramo secco ; é mais seguro escudar-se com
o seu poder pessoal.
Snpponho, Fabricio meu, que me dás razão, ven-
<lo nin mudar o estylo respeitoso para com quem in^rra-
taraente m'o desoonheneu, qualiíicando-me torpemente
de aventureiro, morcenario, indiii^no de s^r adversarií),
e. ravalleivo da injiu^ía. E dize me cá : se te dessem a es-
rnlher, que preferirias tu ser : cnvalleiro da injuria, ou
p^hirro da r^alumnia ?
Ainda não levanto mão do assumpto, m.-is basta de
dar á lin.írua por hoje.
Estas cousas de dinheiro sHo curiosas na bocca de
fctos prototypo.s.... de cousas e lousas.
Ha por hi muito qu<^m a esse idolo sacrifique todos os
pensamentos, e entno. nos outros os dedos llie pareeem
hospedes : e todavia 6 para esses taes que os velhos di-
zem : quem quizer que o l)areo corra, de-lhe cebo nos
paraes.
Teu capellão obrig-ado
Uiucitittato.
DfJ Pfirnambiico recebemos o scírninln notavrl artigo, que, por suas
dimonsões, encurlíiinos, mas que subsequentemente conUnuavemos a
pubUcíir.
12
I>ol8 discursos do Oonsollielro [Joaó de AJLenoar
lia homens, que nascem, vivem e morrem convenci-
dos de que o mundo ó a albergaria liumilile o servil d(í
seu palácio de mármores, e que u sociedade é uma
caterva de pobres de espirito, cujo único destino é bater
palmas em honra sua, e tripudiar no eterno festejo das
suas glorias triumphaes.
Esses homens sao mais felizes do que todos os outros;
porque nflo conhecem os penosos esforços das abnega •
rOes bemfazejas ; nflo conhecem os desgostos e os peza-
r(?s das almas modestas, que nunca vêem completadas
as suas ambições de fazer bem ; níio conhecera a dolo-
rosa alHicçfío daquelles, que, reputando jjoucos todos os
seus sacriticios em bem da humanidade, soffrem pela
impotência dos seus muitos e continuos esforços; e mio
sentem em si a fraqueza, que é partilha da es])ccie
humana
Esses homens nflo padecem nuncn pelos males alheios,
nem sao capazes de remorsos. A sua pessoa enche todo
o ambiente, em que vivem. Fazendo de si o seu próprio
Ídolo, extasiam-se na mais enlevada contemplação das
suas incomparáveis bondades : bastam-se a si mesmos
para a sua completa felicidade.
O conselheiro José de Alencar foi premiado ])ela na-
tureza com o dom dessa felicidade. PMle, e o que é seu,
sao o tudo que conhece snh teffmine avlovum. O demais
precisa de receber a lei da sua dictíulnra.
E' esse o seu caraeter como litterato. E iS por esse
caracter, que se modela e ostenta o politico e parlamen-
tar, face mais protuberante do seu typo.
O homem, que se impõe pelo orgulho e pela inque
brantavel ostentação de uma superioridade tolerada
por todos e nfto atacada por ninguém, faz uma tradiçílo
pessoal e um direito de ser por fim cegamente acatado
em todas as velleidades. Nao o atacarflo depois impu-
nemente: porque seguro do seu prestigio, elle rir-se-ha
dos temerários, e imporá sempre a lei da sua vaidade.
Pelasegurissima e inabalável convicção da sua imcy-
clopedica sufficiencia o Sr. Jostl de Alencar chegou a
fazer parte do ministério de 10 de Julho, e elegeu-se
deputado á assembléa geral.
]?or essa crescente e exorbitante convicção de 2S. Ex,
li
devera ser pleno jure eleito e encolhido senador deste
império.
Fatalidade I Foi eleito, mas nao foi escolhido. Isto è,
foi bruscamente precipitado da sua montanha no valle
chatis.simo das vulgaridades mundanas I
Fazer crerão mundo que um fanático adora um idolo
falso, e tentar a couscienfia do próprio fanático, 6 para
elle uma cousa, tilo horrivelmente absurda, que ello a
repellirá com todos os excessos e furores de uma ira
voraz e descommunal. Ai daquelle que ousar tamanha
oifensa, porque esse a pagará car'j, será puniil) até. á
sétima geração. E si fôr mister matar todos os nascitu-
ros para que nao escape a victinia destinada a applacar
as iras desse fanático offendido ; si fòr preciso desonra-
beçar um povo; incitai- o á guerra, ao incêndio, á d»»s-
truição; si fôr mister a conílagraçãi) de um imperiu; nao
liaja duvida, tudo isso será feito para lavar a aíTronta
daquella consciência injuriada, i)ara elevar arinia do
todas as verdades — que e^^^e hí)nieni *!• excepcional, in-
<*umparavel, superior a todas as elevaçOt;.; sjciaes, o
t^nantnin satis para todas as possiveis felicidades da na-
rau, que teve a honra de o ver nascer.
O í^r. D. Pedro II será afinal convencido de que com-
irietteu um erro palmar, deixando de escollier si/nador
du seu imj)orio o totutn cotitineiis da no-ísa grandeza
so'*ial e politica.
Pagará caro, muito caro o simi erri.
E' esta toda, iiitiura. a irraiidií)sji po!ili<'a do illustrado
M insigne conselheiro José de Alencar.
Os dois notáveis discursos, qne tem proferido est<*
anno como opposicionista, d«^*5en]iani-no mais ao vivo
do fjue o poderiamos lazer por nós s'Mnent'\
O primeiro desses discursos tfvi». por fim estvginalisar
a viagem do i:n])erador á Iíui'opa c a menção da questão
servil na falia do thr«)no. Em um governo tfio briltuii-
ramente parlumfntar^ como querem «jue s-íjii o nosso, —
nem uma falta i)ód<í fazer o imperador, ausentando-se,
desde que o s-^u logar de mera honra continua a s^r (jc-
cupado. Para o próprio Sr. Jí>sí'* dí> Ahíucar. C{}ino para
toíl»)S o.> nossos ''stadista.s hritnaif'n\\ nãn soifre duvidas
esta verdade. K Uí^sle pjnto estão dií accordo comuí).'!'*».
cora a ditF'.M'tMu;a de »jU(í não ar.iMjitamos esse lo'jar de
mera lionra^ armação de phanUi.sias, fii^rão de ourop«;is,
negaça de mentiras sabidas.
14
A questílo servil, por seu lado, em vez de ser os.sa
calamidade tremenda, em que a converteram aphan-
tasia e a declamação dos traidores da pátria, é a ques-
tílo vital da honra nacional, do direito so]>erano da li-
berdade, da pfrandiosa aspiração da humanidade atra vez
de séculos de lucta.
A sua inclusão na falia do throno, se nílo devia dar
occasiao aos últimos e fulminantes desaffopfos de uma
indifíMiaçno lonpramente suffocada, deveria pr()V')car o
perdão final do todas as almas em f -ivor dos traficante-^
o dos govíTuos que os teem proteg-ido, porque cm fim
declaram que é tempo de fnzer alg*uma cousa.
A questno da emancipação dos escravos, nílo encon-
trando Já, antes do minist-.rio de 7 de Março, outra oj)-
posição que nfio fosse o líartido conservador; e sendi)
tíste partido quem ajorora se resolvera a dirií^ir o log-i-
timo e irresistivel movimento nacional. desapjKiroci i a
única possibilidade de alteração da paz c da ordem pu-
blica.
Portanto, inadmissível, como é, a intewençJlo pessoal
do imperador na soluçilo dessa como na de todas as
questões sociaes, a sua viaprem d(íV(>ra ser fa<*to de todo
secundário, sem a menor importância ]>ara um povo tflo
seriamente possuido dasconve niencias de uma paz a
todo o transe, pelas quaes tem chep^ado a comjirometter
osnolíres estimulos de lepritimas reacções.
^las nflo ! Acabar com a escravidílo, de qualquer
modo que seja, é para o -Sr. José de Alencar uma. catas-
trophe horrorosa. S. K\'. e\a<rera os seus horrores para
insinuar que o imperador sahia do seu império por
medo dos peri/íos imminente- ?
A existência da espravidílo é para o elevado orador
uma f(dicidade, porque lhe offorece dupla oeeasino de
brilhar c Ae, vingar-sp, K foi por isso que denunciou á
naçílo que o imperador ateara o facho das desordens e
das calamidades publicas, e fuíria ao periíro (pie attra-
hira sobre os brasileiros.
Pedio a palavra o Sr. conselheiro José de Alencar, o
auctor do drama intitulado Mui, que íiuer acliar na
conservaçílo do estado servil uma frlorií* politiea qu(í
sobre])UÍe á prloria littpraria do dramaturpro.
Os liomens. ípn^. nos bons t^^mpos íloresc(>utes do Diá-
rio '{n fí'^ '^ )nheceram em S. ]í\, aíjuelle n»publica-
15
uismo, que mal podia inascarar-se com apjiareiícias de
mera liberdade, — embora a sua transformação politica,
pensaram que .S. Ex. se deixasse arrebatar um momento
pelus impelos sopeados dos seus antig'os anhelos demo-
cráticos, e esperaram o instante de admirar os deslum-
brantes lampejos da mais inspirada eloquência.
O discurso do Sr. conselheiro José de Alencar foi o
aborto de uma grande inspiração, mas o parto com-
pleto e feliz de uuia aberração formidável.
Quem quer conhecer em que condição elevada foi
coUocada a questão politica que fez objecto do discurso,
descobre somente, é triste dizel-o, a fatuidade e o des-
abafo de concentrados rancores.
<fc>uem quer conhecer qual o principio politico, qual o
valioso interesse social, que pode fazer a syntliese dessa
peça (>ratoria, j)erde-ífe no balsuiro das venenosas iro-
nias, das allusoes ag-gressivas, das malifrnidades des-
peitosas, (las insinuações descortozes, das jactâncias
jíueris, das atfeclações de umaeneryia, que poreja baixa
lisonja.
O que apparece em todo o discurso é a saliência os-
ten.siva da sua entidade social, é a importância politica
..lo seu vulto de estadista, impondo-se pela própria exu-
berância do valor pessoal.
O orador u?lo teve outro propósito sen?lo desenhar o
;-eu retratj em ^*'rande, e ainda par ilussus h murche
jii*»ldural-o ricamente.
lia no seu discurso uma palpitante exploração dos
tlesgrostos, das contrariedades, dasoftensas, das dolorosas
reminiscências de um povo, que tem experimentado op-
pre.ssOes. S. Exa. apanhou todos esses elementos de
reacção, e pol-os ao serviço de seu orgulho descommunal.
Foi despertando-os todos que tentou ganhar adhesões
para si- e applausos para o seu discurso.
E com effeito, se a camará lhe negou esses applausos,
a clafjíie litteraria que conquistou os redactores da Ite-
forma^ e que se vai tornando em cltKjue politica, tem-lhe
fiivoneado as vaidades , e correspondido ao seu maligno
expediente.
Sbl mais diíficil collisão entre os reclamos da honesti-
dade e das conveniências parlamentares por um lado, e
jior outro os pequeninos, mas exigentes impulsos do seu
de^jpeito e egoismo, o Conselheiro José de Alencar çre-
16
cisou de empregar todo o esforço dos seus recursos
oratórios para cohonestar a attitude esquerda que
tomara.
Precisou, mais de uma vez, de queimar iucensos ao
Ídolo imperial que já uão veuéra, para melhor veucer a
confiança de muitos, e fazer crer na sua rectidão.
Para seduzir a mais alguns, — mostra-se apprehensivo
pela falta immensa c irreparável, que sentirá o governo
com a ausência das luzes^ da experiência e do patriotismo
do imperador, que aliás é, eserá ainda alguns annos ou
mezes, accusado, por dd cd aquclla palha, de ostentar
governo pessoal.
Queimou o orador esse incenso por que teve necessi-
dade de insinuar que era falso o motivo allegado
da viagem,— moléstia da imperatriz — ; visto que de
longa data projectada, essa viagem "estava reservada
para o condão magico do nobre presidente do conselho,
depois de a não poderem obter os Srs. Marquez de Olinda
e Visconde de Itaborahy. 1' De modo que, fosse embora
verdadeira a moléstia, o motivo da viagem era mentiroso.
Queimou o orador esse incenso, porque lhe era neces-
sário dizer: "Senhores, quem n?lo conhecesse o Sr. D.
Pedro II, e não soubesse das provas de civismo, que elle
tem dado em trintas occasioes, diria que esta viagem
precipitada ora.... inspirada pelas círct*?n.çíancía5 gravei?,
em que se acha o paiz. ■'
Longa e qualificada foi a premeditaçao de fugir aos
perigos daquestílo servil, seja o Marquez de Olinda fura
procurado para obter autorisaçfio para a viagem I
Esta nobre insinuação caracterisa o orador e o seu dis-
curso I
Mas em que consistem essas graves circufnstdnciàs, de
que falia o orador?
Para aquelles, a quem o egoismo e o calculo ainda
nao tiraram o bom senso, essas circumstancias consistem
só e unicamente na agitação dos especuladores, na grita
insensata dos descontentes, na opposiçao contra todas
as grandes reformas, por que isso é o que estimula a in-
dignação e o desabafo , e pôde atear outras causas
latentes de reacção, inais elevadas e inais dignas.
[Continua)
Typographia — americana — Rua dos Ourives n. 19.
QUESTÕES DO DIA
RIO 1)B JAÍÍBtBO, 8 DE SETEMBRO DE 1871.
Vcade-se eoi caaa iIo Srs. E. & II. Laemniert— Prni;u da ConsUtaíH
t«ia do CoDio— RufL da S. João u. 110— Livmria Académica, t
Qtulíiilin nu mesuiti rua n, 75. Pkço â» réis.
BU n trlbii ae I.CV1 do parti
1 coasorvador 1
Temo» asâistiilo u um espectáculo contristador, qaaP
nqiieilã âi U^m datlu a miaoria da camará temporária
em sua» falsa.>4 e apaixonadas apreciações da fQÍ}Xv:,i). ú.a
cprOu / fazeado assim cíJro com os mais exaltados escríp-
turea adversos à ordem coastitucioual da monarcUia ri
presentativa. 1
Nunca tal fora visto no seio do parlamento, n^
tD6sniú iiuK tempos, em que alli estiveram em opposiç&o
otf liburauii mais exaltados. Nilo: alli nuuca se investio
tSa de frente coutra a pessoa dfi chefe do Estado ; nunca
au eoiinciaram proposições tao subversivas.
Estava isso reservado para uma minoria que \
tunda ropreseotar aa genuínas idéas do partido conai
rador I \
S«)iida da situação inaugurada pelo ministério de 16
de JuUio, a camará actual nao devia collocar-se em an-
lifODÍflino cem os bons princípios de governo. E nno se
eollocou, como o attesta a illustrada e patriótica maio-
ria, (inc.ãrmts e corajosa, apoiou o ministério na grandu
lueta. em que até hoje tem vencido; mas desgraçada-
mente ficam os precedentes deploravei«, plantados pela
minoria, mijos chefes tenlo com o seu comnortamcnto
D» sesíflu desto anno a parto mais vnlueravel, e sempre
fraca do sua vida política, para poderem no futuro, a*
forem governo, arcar contra os excessos das mínolf
ijae os combaterem.
NAo attetidoram siuflo a falsos interesses do occanifl
nXtí escutaram sinfto os impulsos de sentimentos n _
tospiradoã ; quebraram os elos preciosos de unidade do
2 IV
partido conservador ; e excitaram na imprensa a mais
solta, a mais desrespeitosa linguagem contra o chefe da
nação, contra as sabias instituições politicas da nossa
forma de governo ; e deram aos contrários o mais des-
graçado exemplo da desorganisaç&o de um partido,
que, em seus verdadeiros recursos, possue os melhores
elementos de forca.
E o que foi que accendeu tamanhas iras, e levantou
t&o medonha tempestade, que desprendeu os raios de
indignaç&o da minoria ?
Foi, dixem elles, a questão do elemento servil, pomo
de discórdia, desafio do poder contra os interesses da
nação : foi o governo pessoal, que vicia a marcha dos ne-
gócios do Estado.
E quem é que o diz ! quem é que apoia semelhantes
proposições?
Sao alguns ex-ministros da coroa, e ex-presidentes de
provincia, que o foram na situação creada pelo 16 de
Julho I
Foram elles, ha pouco instrumentos desse poder,
como membros primários do executivo, ou delegados
deste na plana immediata da jerarchia administrativa,
que agora vieram denunciar-se como subservientes, e
executores do poder pessoal!
Mas nada mais devia admirar-nos desde que vimos
que um que tivera acção tao livre no governo, que po-
derá mandar trancar na sua secretaria todo o trabalho
que existia referente ao elemento servil, e praticara
sem embaraço todos os actos administrativos, emquanto
preparava o ninho, em que esperava agazalhar-se, aguar-
dando depois fora do ministério a coroação dos seus
cálculos; só reconhecera ò monstro governo pessoal^
quando, na solução final, vira cahirem esses cálculos
por um dos mais sábios actos de moralidade politica da
coroa.
Sábio, sim, foi sem duvida o acto, que não deu ganho
de causa ás pretenções de um individuo, que como mi-
nistro improvisou uma candidatura que não podéra
tentar antes e, não obstantes todas as considerações que
o arredavam de tal pretenção, se obstinou a sustental-a
como se fora direito perfeito, que a passagem pelo po-
der lhe houvesse feito adquirir.
Foi esse o grande, o imperdoável crime da coroa;
d^ahi a origem dessa mania, que se tornou como um
spectro, que acompanha o individuo despeitado por toda
IV 3
A parte, n lhe iiinitio no animo o propósito de erigir em
[wHlica de partido os spntimentos ile ódio nascidos de
SUB iocommensiiravpl vnidade
Mas o Sr. José de Alencar nao fora preterido por no-
mes obscuros, sem importância: qualquer dos dois es-
colhidos é homem pncanecido no serviço publico, é
homem de reconhecido merecimento, e tinha jà sido
incluído era lista senatorial.
Varfles eminentes esiatera hoje no senado, ijue plis-
saram por mais de iimn eleiçílo, vendo outros escolhidas,
«em que Í4so lhes aguçasse ns iras contra a mesma
coríl». Reconheceram que na escolha estava ella perfei-
tamente no seu direito coustitucional ; e nao havia of-
feofa de direitos, quando de uma lista tríplice s6 pôde
liahír um de cada vez. e nii opportunidade da escollia
do qne é desig^nado sii a corfla é o juiz comi)etente.
Voltando, porém, ao nosso ponto, ao que serve de nexo
Às nossas observações sobre o comportamento da mino-
ria da camsra, devemos tornar bem saliente que a nossa
reitsnra nSo é parque o governo nSo tivesse a unanimi-
dade dos votos da camará na questão do elemento servil ;
mas nn modo, jiorqne, em sun oppo3Íç&o, se conduzio
a minoria, tanto na eamam como na imprensa, attri-
buíiido a motivos menos honrosos o apoio dado á pro-
posta du governo, e excedendo-se no emprej^-o dos meios
de opposíçfto, de modo altamente condemnavol.
A abflliçan da escravidão no Brasil nao é um acto
irop*8tíi pela vontade caprichosa de Cesfir ; nao è uma
imposição da coroa; e nao pôde ser traduzida 'X-mo
£ub%rv'iencia A vontade irresponsável, porque, em si,
a questílfl nasceu da marcha dos acontecimentos; é
como o fructo amadurecido na arvore, que deve ser co-
lllido «m tempo para que se nao deteriore.
E" um tentame insensato o daquelles, que entendem
que podem fszer parar o carro de nm acontecimento que
e determinado por causas fataes.
Quando a locomotiva sibila, desprendendo a carreira,
Dfto conhece resistência : esmagará os obstáculos que se
llie anteposerem : e só cumpre dirigila pelos meios con-
venientes para que nan saia do trilho, até ir precipitar-se
Ho abismo.
A questão do elemento servil traz hoje o impulso da
locomotiva que Ibe (', própria, a força dos verdadeiros,
dos primários interesses de ordem económica e social,
qae a impellom para sua prompta solução.
IV
Foi isto o que nSo quiz reconhecer a minoria da ca-
mará; é a isto que n&n quer attenâer a obt^tinação de
certos interesses que actuam dentro o fora do parlamento,
que pretendem desviar do seu verdadeiro ponto de queda
a torrente que engrossou, e que mais suberba crescerá
com a repressão das comportas que imaginam ante-
por-lhe, a tal ponto que, si nflo se Ibe acudir a tempo,
quebrará todos os embaraços que encontrar, e se despe-
nhará, da montanha com horrível fragor em medonhas
catadupas.
Pensam que a oratória apaixonada da tribuna parla-
mentar, que enfáticos, e faltazes artigos de jornal, e
planos calculados para o fim de retardarem um aconte-
cimento inevitável, sao meios regulares conducentes ao
retardamento da extinccSo do captíveiro 7
Em seu plano, aopposiçSo procura amontoar trabalhos
e embaraços ao governo para fazel-o recuar em sua mar-
cha. E' assim que tem procurado, mas muito sem geito,
promover o descontentamento da classe militar, na qua!
vê um auxiliar poderoso contra o governo. Erro grave I
cujas consequências, si o plano surtisse effeito, seriam
bem perigosas para o paiz.
Mas porque só hoje se pretende agitar esta arma do
opposiçao, só boje se manifesta esse interesse por um»
classe, sem duvida, muíto merecedora das attençces do
governo ?
Ha nisto summa deslealdade, e grande desacerto no
modo de defender os interesse.^^ públicos. Esse meio de
opposiçao é como uma espada de dous gumes, que, si
fere o adversário, também fero a quem com tao grande
má fé e imprudência a maneja,
A situação é grave, como bera reconhecemos ; a socie-
dade exige grandes remédios administrativos , mas eites
nfio podem sair a lume com as excitações e os estorvos
oppostos por uma minoria era opposiçao systematica.
Uma dns grandes necessidades reclamadas é a
colouisaçao que, na ordem económica, é a primeira
quest&o. depois da do elemento servil, si é que com ella
nAo marcha pari passu ; mas como poderá ser satisfeita
essa necessidade, sem que seja traduzida em lei a aboli-
ção do elemento servil de um modo eíficaz T
E' desenganar, porque as tentativas iofructiferas até
hoje feitas ahí estão para attestar o facto : com a escra-
vidão, acolonisaçao jamais será entre ods uma realidade;
IV 5
todos 05 esforços serão como a onda que vai queorar-se
sobre o rochedo.
Na ordem administrativa,ha outras questiles de grande
alcance, cuja solução conveniente nao pôde ser dada
sem que a proposta sobre o elemento servil, j& felizmente
approvada pela camará dos deputados, seja convertida
em lei com a necessária approvaçao do senado.
A reforma judiciaria, hoje lei, em cuja discussão o
illustre ministro da justiça appareceu em toda a altura
de seu assignalado talento, e nunca desmentido patrio-
tismo, com sacrifício de sua enfraquecida saúde, é, certa-
mente, um grande benefício conseguido ; mas as medi-
das de governo nao podem isolar-se, prendem-se por um
encadeamento necessário como elos administrativos
A reforma judiciaria, é força reconhecel-o, para pro-
duzir os seus salutares effeitos está na dependência do
melhoramento das condições do estado civil do povo,
melhoramento que não poderá operar se, sinão com
a extincção da escravidão ; mas desde já começarão a
sentir-se, em parte, esses effeitos, ató onde (\ possivel
chegar a sua influencia na actualidade, muito embora
um grupo de praguentos condemne tudo que parto do
actual ministério.
O paiz não deve estar subordinado sempre a certas in-
fluencias estacionarias : seria um impossível, e, se pos-
sivel fosse, seria grande calamidade.
Não ha hoje em dia Josués, que possam fazer parar o
sol em sua carreira : a missão divina da rodempção do
írenero humano já foi consummada pelo maior dossacri-
fícios; os milagreít já não são necessários para guiar a
familia humana. Entre nós ninguém terá força para
proferir o sisíe na marcha regular dos acontecimentos,
que vem, por que irremissivelmente hão de vir.
rutittiò.
IV
SÉTIMA CARTA
DO ROCEIRO CINCINNATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Rio de Janeiro, 5 de Setembro de 1871.
Fabrício querido. — Dou as mãos â palmatória; tenho
gazeado ; passei uns dias em Petrópolis, que numsa me
agrada tanto, como quando parece deserto ; e eis-me de
volta, proseguindo na tarefa que me impuzeste.
Consagrei as duas missivas ultimas a conversar com-
tigo sobre a famosa interpellaçao do dia 5 do passado, e
devia naturalmente seguir-se agora uma interpellaçao
minha ao interpellante, com as provas documentaas de
ser sobre elle que recahem as accusações de assalariado
e mercenário, e outras gentilezas com que pretendeu
acabrunhar-me ; porém como na tua ultima carta me
ponderas que estou gastando demasiada cera com bom
defunto^ e que preferes ouvir-me divagar sobre a ques-
tão magna do dia, obedeço ; guardo para um pouquito
mais tarde a continuação do ajuste de contas pessoal, e
volto ao apimentado discurso que o Sr. José de Alencar
proferio sobre o elemento servil, analyse interrompida
pela tal interpellaç&o, de eternas luminárias. Venha
portanto para a frente o thema das minhas variações.
V. — As CONTRADICCÕKS
Fulminou o Sr. Alencar o projecto do governo e o pa-
recer da commiss&o especial da camará dos deputados,
por ejstabelecerem principios contradictorios, inconci-
liáveis ; e exprimio-se com a brandura e delicadeza, que
estão em seus modestos hábitos. Ora deixa me transcre-
ver-te o principal desses trechos.
" A argumentação é um calculo egoístico, uma
transacção politica ; é o pacto da religifto com a iniqui-
dade.... Desde que no parlamento se declara que uma
instituição é barbara, iniqua e torpe, consentir que ella
continue a contaminar o paiz é um crime de lesa-naçfto
e de lesa-humanidade " (Esta mesma idéa é esparra-
Ihada por dez formas diversas) **.... Estas contradicções
tem uma causa ; n&o ha na illustrada maioria uma opi-
nião, o que ha sao aspirações divergentes, heteroge-
aeas ; falta o nexo para as consolidar em uma só convic-
IV
çSo, em uma sií i<]éa; por isso cada trecho do parecer
revela UBui duvida, uma iudeci-sao, uma incoberencia"
etc., ele.
Desataviada das pumpas, iiligranas e espertezas ora-
tórias, coadeiisa~se e fortifíca-se esta accu^ação feita ao
projecto u aos fundamentos eiQ que se estriba, no se-
fruinte dilomma descarnado:— "tíe a escravidão repre-
âenta direitos rasneitaveís, como dizeis; porque a r^Lio-
reÍK abolir? Se ella é contraria aos princípios da reli-
g-íao, da moral, do ioteresíie publico, como também
dizeis; porque a conservais ? Sois contradictorios ! "
Se isto fosse conlradicção, poderíamos, com Joubert,
exclamar: "Pôde por erro cair-se em contradicçao ;
maâ se é pela Verdade que nella se cae, es^a contrudic
çfto é veneranda, (t alors il faut ti'yjeUer à corps perdu."
Mas com qutj fundamento ae chama a isto coiitradic-
Ç&o? Como úqua um Roas i em miniatura applica a se-
ttielhaale b yputbese a duvida Haniletiaiia do «er ou nuo
sert O que 03 philosophos denominavam o principio do
contFadic^Tfto.fonnulava-se assim : t" impossível que uma
couêa, aomeamo icmpo, «eja e não xeja. lufelizmento a
pliilosopliia e a religifto nao atto as únicas legisladoras
do inuodu. Servt;ui, sim, para, com «eus fachos lumi-
nujios, ir aperfeiçoando as instituições; porém as leis
do houiera uão tem a .labedoria e immutabilidade das
luís dú Creador, Desde o principio d-i eterno Fiat, achou
o Legislador Supremo que tudo e'4tava bom ; mas o le-
gislador bumatio, desde a origem das sociedades que
anda apalpando, lidando ua sua teia de Penélope, pro-
clnuiaudo hoje mentira o que hontem fiira, o que amn-
aUa tornará, a ser, verdade. E, eis como em matéria de
leis, nunca o melhoramento deverá ser alcunhado de
contradicçao, iiem tao pouco o serii quando considera-
oACu dn alto momento forçarem a coutemporisar, ainda
I»r algum praso, até que respeitáveis interesses sejam
atlenilidoti.
O progresso é a magna charta das sociedades: nflo o
prog-reiíso da faísca, para log-o convertida em labareda ;
u&o o do rocio instantaneamente transformado em
iaunilaçao. Progresso real, fecundo, civilisador, 6 o me-
ditado e gradual , o que avança, dando tempo para
Unçar ollios em torno, e nao aquelle que vôa ãs cíga^,
quer saltar ao alto da escada sem lhe subir us degraus,
qnar chegar ante:« de partir, tfe em terras como as aosiías
ua diOerença entre um liberal e um conservador, a diffe-
8 tV
rença é só eeta : aspiram ambos approximadameDte à
mesma cousa, mas aquello com impaciência, soffre-
guid&o, e colhendo o fructo verde; este comsocego, fir-
meza, e exigindo ao fructo que amadureça.
Eií alii porque o projecto entende dever pôr termo á
instituiçso do captiveiro, mas entende também que esse
desiderwidum deve respeitar direitos adquiridos A sombra
da lei ; se ha conlradicção, toda ella está no amag:o da
própria questão. Os que exageram os direitos oriundos
dessa tíío peculiar propriedade, acham se no campo que
os jurisconsultos UeSnem pra Icfie contra jurem; os que
só admittem o extrorao da emancipação immodiata, tio
campo pra jure contra íeye/». Naa circumatancias espe-
ciaea do Brasil, ambos esses oxtremos sao viciosos.
O direito eterno, o natural, o direito por excellencia,
que dúvida ha de que repelle a instituição? Que dúvida
ua de que o termo propriedade é mal applicado é relaçílo
entre o senhoreo escravo, no anno de graça de 1871 *
Propriedade I Compra e vendai A primeira, a uuica
legitima condiçfto do commercio é recair sobre objecto
vmial ; venal nfto é a alma nem o corpo de um ente hu-
mano. Toda a propriedade se atfere por um padrão, a
preço de dinlieiro; estranha cousa é pòr-se a proprie-
dade-homem , como o carneiro ou o jumento . em
almoeda, aos lanços.
E como se hnde exigir que o mísero coUocado nessas
condições, alifts embrutecido (porque o embrutecimento
di raça é uma das condições do seu estado], se dedique
fervorosamente ao bem da sociedade, fi que uflo per-
tence ? Elle nos respondeni :
" Deus? Descreio; porque me illude, proclamando-
me vosso egual, e eu sou vosso captivo.
" Patbia T Descreio; porque ndo sou nem serei nunca
cidadKo, e porque ú disposição delia nso me é dado piír
ss minhas faculdades.
'■ Fauilia? Descreio; porqna v(5s me ensinais a des-
prezar 08 laços que 8Ó unem a vossa; me difBcuUais
o formal>a legitima; e, depois de consUtuida, nau a
rodeais das mesmaa seguranças.
'■ Ec ? Irrisfio ! Que sou eu t Alma penada, se é que
sou alma; Saturno, que devoro os filhos; ignóbil
creatura, para quem o espirito nao foi dom, mas con-
demnnçUo; inhibido de respirar a atmosphera que me
circumda; considerado suspeito, inferior, inimigo; con-
demuado a trabalho insuuo, cujo fructo aproveita a
IV j)
outros: no passado, vileza: no presente, miséria: futuro
>eni esperança. Estou sirnplesmenttí euclieudo altura na
terra, onde nem vestígios ficarão da minha passag-em,
porque Oá nao podem deixar o suor nem as lag-rvmas. *'
Ponjue se não liade dizer isto, se istí> 6 a verdade? K
;i tantos horrores, vemhnje nesta terra outra curiosa des-
i>rualdade auírmentar o seu cortejo de al)ominaçr)es.
Fallo da anomalia, dacontradiccão, da injustiça máxima
<Ie collocarmos em posiçflo interior af|uelle que ao.-;
nossos olhos deveria ocoupar posição d(? superioridade !
Acham-se dons homens em absoluta identidailo do cir-
cumstancias: chamamos ambos, escravos; mas, se um
chejrar ahi, estrangpeiro, trazido de lonj»'es terras, sem
liíraçao alg"uma com esta; se o outro for creoulo, com-
patriota, nascido na mesma terra ([xw o.< outros bra-
sileiros, que succederá? para aqutdlí», aliás com razão,
mas em condições inferiores, a liberdade immediata ;
para este, conterrâneo, o perpetuo captiveiro!
Tudo isto é de evidencia meridiana : não se offusque
o sol, cobrindo-o com uma peneira ; não se zombe de
considerações d'estama«^-nitude ; não .^e exija, para foro«
de estadista, cortar a cabeça, arrancar o coração, pctri-
lical-o, ou converíel-o n'umasimpl(ís bola d^ouro. (Isque
applaudom (» ])rojecto, é por verem noUe a aurora do
ília em que o vocábulo escravo d«»sapp}irecorá do nosso,
•'omo de todos nn idiomas.
Mas se o christão, o iiliilosoidio, o ])atriota, o homem
:i. cabeça e coração, reflexiona assim, sur/jre opoliticu, e
::.ipõe-lhe outro íhiver que se não coaduna com aquelle.
Pondera o politico — que atraz dessa nobre (juestão
iia outra, que embora de menos momento, uuTece res-
jjeito : — qui» a lei civil estabeleceu a instituição ; — que
dfí conformidade com essa lei, e sob a salvaj^uarda
d'ella existem valiosos interesses : — (jue estes se
acham ainda vinculados com a actual orjranisação
do trabalho: — que a sociedade peri^Mria com o liber-
tamento instantâneo de todos os cai)tivos ; — que é
axioma o jure ííuo iwnio i}rivandus : — cpn^ sem indem-
nisacão dos serviços, a alforria ^'•oral seria uma extorcão:
— que para a decretar com indemnisacão, seria ao Estado
imj»ossivel achar recursos ; — que cons(í^^uintemente
<» direito deve ceder um tanto á pressão pcditica, porque
também aqui o sunumun jus seria a sinmna Injuria: e
Tionjue teríamos então direito contra direito, violência
contra violência, desordem, anarchia.
10 IV
Kis-ahi pois o que inexactamente denominam contra-
dicçflo : as considerações da primeira ordem levariam á
abolição immediata do captiveiro, as da segunda ordem
mostram-na impraticável ; Ahi, ahi é que estão os inte-
resses oppostos, que constrangem o legislador a fugir a
qualquer dos dons extremos, a adoptar um meio termo,
uma composição, que por um lado afiance aquella ex-
tincçao num prazo mais ou menos curto, por outro per-
mitta ainda a duração d'essa deformidade social, quanto
baste para se não imputarem á lei as pechas de desorga-
nisadora, espoliadora e iniqua.
Assim a vemos neste projecto prudentemente decretar
— a impossibilidade de futura escravidão, pela liber-
dade dos nascituros— o respeito á existente propriedade
de serviços, pela conservação do estado excepcional da
actual classe captiva — a possível protecção a esses
miseros, pelos variados esforços feitos para as suas
alforrias.
Quem desconhece que o rigor da lógica se não con-
tenta com essas prudentes reservas? Corollarios lógicos
só poderiam tirar-se de uma das contrarias proposições :
— Perpetue-se a instituição — ou — SuppyHma-se a insti-
tuição. Ora, se nem uma n*,.*m outra cousa é factível,
claro está í|ue nenhum expediente pode ser lembrado a
que se exijam rigores dialécticos. Os que interessam na
duração do captiveiro, hão de sempre bramar contra as
monstruosidades que renlniente resultam por furça d'esta
duração anómala ; os que só do direito se enamoram,
hão de stygmatisar uma lei que os não acompanha em
suas impaciências, e hão de. como o fez o AiUi-Slavery
Repórter^ do 1" de julho, qualificar este projecto, não
como de suppressao,mas como de alongamento da insti-
tuição abominável.
Sendo certo que, nem no parlamento, nem na im-
prensa, nem nas representações, nem nas associações,
nem nas salas, nem nas praças, ha uma só voz que não
proclame a necessidade de acabar com a escravidão ;
sendo pois esta a opinião unanime do Brazil ; e não ha-
vendo tão pouco quem, nas peculiares circumstancias
d'este império, desconheça a necessidade de não dar o
golpe de súbito ; é de primeira intuição que nenhum
alvitre poderia imaginar-se escoimado de,reaes ou appa-
rentes, injustiças relativas, de disposições contradicto-
rias, se assim querem chamar á inevitável condescen.
íTencia com direitos, senão oppostos, diversíssimos^
IV 11
Oc.safío a que algum melhor Lycurgo, dadas as duas
condições imprescindíveis, exliiba projecto, d'onde nao
puUuíem os inconvenientes d'este penero, que ao do
g-overno assacam. Ninguém do boa fó o poderá negar.
Pode porém, tem carta branca, negal-o o Sr. José de
Alencar, e exclamar o seguinte :
•' — Nflo ha nem pode haver senão duas opiniões poli-
ticas, dous partidos, o da emancipação indirecta e o da
emancipação directa e immediata. ^'
Partido de emtincipaçao directa e immediata, pode
havel-o lá fora; nao o ha no Brazil. Na Europa podem
ter-se deixado levar pelos impulsos exclusivamente hu-
manitários, não só hoje para a propaganda, como até em
tempos mais afastados, quando alli havia interesses
diversos na questão; alli podia ter alcance exclusiva-
mente generoso e nobre, quando estava em causa o
principio da liberdade humana, aquelle famoso brado :
Pereçam as colónias^ e salve-se o principio I O trabalho
servil das colónias inglezas e francezas nao era a
Inprlaterra nem a Franca; mas as colónias do Brazil sao
o próprio Brazil, e portanto, aos olhos do muitos, aquelle
hrado aqui, sêro-hia de suicidio.
Nao ha pois neste império nem partido, nem opinião,
<[ue pu^ne i)ela emancipação directa e immediata; e
qnnnto á extinoçao indirecta e gradunlda escravidão, ó
isso que o projecto assegura.
P(3de tardar o dia da verdade, mas para todas as
grandes conquistas sociaes, é lei providencial, raia ine-
vitavelmente. Para as melhores e mais indispensáveis
prescripçOes ha sempre rémoras, como o orador qno
analyso; mas a despeito delias, os principios lá vao
marchando f/uo faia vocant, Barafustíi o nobre depu-
tado por que se demore ou eternize a solução deste jis-
surapto; nao pode ser; demasiado tem elle figurado nos
debates especulativos. Todas as naçOes admittiram a
negra instituição, mas já todas sem excepção a derruba-
ram ; está madura a idéa da humanidade, e o Brasil
jiertence á humanidade.
Cada doctrina, atn das que hoje mais nos arripiam,
teve existência legal, e muitas vezes constituindo di-
reito publico internacional ou privado.
A escravidão dos judeos, gregos e romanos na anti-
guidade, e modernamente a dos povos do oriente e da
Africa, foi base social, e teve extensão mui outra que
<»sta nossa escravidão, a derradeira. Onde vai ella?
(
12 IV
O despotismo do chefe da família para com sua con-
sorte, filhos e fâmulos, onde está?
O caprichoso direito de conquista e do incorporação,
íícin titulos nem motivos, nao desappareceu ?
O direito albinato (alibi nalus, droit d\iiih(une)^ ({iie
tornava o soberano local herdeiro do alienígena, ou de
quem nao deixasse succcssor reinícola, precisa já hoje
a declaração dos tratados para ser desprezado ?
O direito da praia {jits liltoi^is] que aos mesquinhos
naufrag-os augrmentava a miséria, vendo elles leg'al-
mente arrebatada toda a sua propriedade arremecada
pelas ondas a alheias costas, 6 hoje mais que uma tra-
diç.lo vergonhosa?
Tantos denominados direitos feudaes e senhoriaes que
os séculos toleraram sem espanto, formam acaso mais
que negras paginas de obsoleta civilisaçao?
E nao obstante, todas essas façanhosas barbaridades
arreiavam-se com o usurpado nome de direitos, direitos
e direitos, por mais tortos que esses direitos fossem.
Tenhamos cautela em nao enterrar a mao na chaga,
nós outros: quem sabe se em 1871 com igual razão
não chamamos direito ao que, á devida luz, só devesse
cham;ir-se interesse ?
Ai, Fabricio, que ainda agora dou por mim 1 Parece
que também eii estou hoje (H)m cara de poucos amigos,
(íe bitaculas franzidas, com o fígado segregando bile
negra, e arrependo -me porque melancolia não paga di-
vidas. Também a culpa foi minha: eu tenho uma receita
infallivel para por mede canninha na agua: é olhar
para certos furores, \C*y certos discursos, e ver ursos a
dansar; o que tudo é excessivamente alegre. Desta vez
li pouco, e sobre themas de Bertholdo thalberguei va-
riações áestabfU mater; foi o assumpto que irresistivel-
mente me chamou á seriedade, que houvera sido impró-
pria do discurso que analyso.
Naofecho esta, sem chamar atua attençSo para uma
oração proferida pelo respeitável conselheiro Nebias,
um dos mais nobres vultos do parlamento e do paiz,
discurso que hoje foi publicado no Jornal de Commorcio.
O venerando ancião hostilisa o projecto, e tudo induz a
crer que por convicção. Com quanto eii divirja da sua
opinião, respeito-a, porque, afinal de contas, as convic-
ções do homem probo e illustrado sao sempre dignas de
acatamento. Persuado-me porém que o Sr. Alencar terá
IV 13
ficado como uma bicha com o illustre estadista, que
aliás timbra pela franqueza, mas a franqueza da leal-
dade e boa educação, quando, alludindo ixs conferencias
sobre o elemento servil, entre os membros do poder
executivo, de que eram parto o orador e o Sr. Alencar
também, se exprimio assim :
" Declarei a Sua Magestade o Imperador (que discu-
tio sempre com os seus ministros em plena liberdade e
confiança, ficando cada um de nós com a sua responsa-
bilidade) queetc... Em resultado ^da discussão) a falia
do throno desse anno nao disse nada acerca do elemento
servil Nós éramos ministros re-^ponsaveis, e tomámos a
responsabilidade dessa ommissao. "'
Eis ahi o famoso ab alío^ a pressão exercida pelo poder
pessoal. Um varão, incapaz de adular nem mentir, diz
que os ministros, quorum pars magna fuit o Sr. Alencar,
nunca foram coa«ridos pelo chefe do poder executivo ;
que n<^^ta própria matéria, como em todas, obraram
sempre em plena liberdade e confiança ; o que as reso-
luções tomadas foram sempre sof^undo o seu modo de
vére conformes á sua responsabilidade. E o delator do
poder pessoal ouvio e nao ousou desmentir. Infeliz
mortal ! tudo lhe corre torto.
Ainda mais íiutra: Na sessHo do hont(.Mn. no senado,
o illustrado Sr. Zacarias de (íoos ■(iu«í a um aíilluido pu-
zera, na pia do baptismo, o iionie d(í FfitiiuUnho] ])on(l(»-
rou que parecia impossível ter o ministro da justiça oní
1870 declarado á camará dos deputados, em seu carac
terofficial, que não existia trabalho al^rtim do consellio
de estarlo sobre o elemento servil ! n o respeitável Sr.
visconde de Itabornhy accresceníou, em á ])arte, que já
desdn o anno de 18(58, os i^apeis do conselho de estatlo
e outros haviam sido entreg'u<»s ao Sr. José de Alencar....
que ag^ora vem accusar os outros do não terem disto
dado conhecimento ao poder leí^islativo. Habilidoso
líermann, sí> Deos «'• Deos, e tu o seu prr)j)heta I
O íTuerroar desleal
contra o pí)der pessoal ;
o jti vamos do barqueiro ;
o sf})n. faliu (Palfaiate :
esporada d'arrieiro;
bom vinho na taboleta....
tildo é peta.
Verdade só é, meu vciiio, ser eu inalteravelmente* len
constíinte admirador Cint Innato.
14 IV
Do us discursos <to conselliolro Josó d.o Alencar.
( Continuação )
Portanto o imperador fugiria (l*aqiiillo, que o orador
havia de fazer, e começou já a fazer com os seus dis-
cursos !
Deve portanto a nação ficar de sobreaviso, e tomar
ruidndo com o Sr. Conselioiro Alencar.
Mas ali ! O orador precisava mui ti) de fazer ver ao im-
perador— que nJlo será impunemente que »^. Majestade
deixi'U de trioutar homenagem a um estadista da polpa
de S. Exa.; quo caro í^vk custar á naçfio o desapreço,
que o excluio do senado.
O orador precisou de fazer saber á nacao e ao mundo
que ha neste paiz um monarcha tilo imprevidente, que
nao sabe receber em sua casa com a devida distincçilo c
amabilidade um homem da elevação politica , e da
illustraçao sem parelha, do Conselheiro José do Alencar,
de cujo tracto devera S. Míi^estade colher tflo boa lição
de conhecimentos humanos.
O Sr. Conselheiro precisou muito de fazer constar ao
paiz e ao mundo que o esphacelamento actual do partido
conservador dat'i, e provém da desastrada recusa, q le
ousaram fazer dos seus inestimáveis projectos — de re-
forma judiciaria e da p^uarda nacional, dos quaes de
certo dependia a salvação da pátria.
Fazendo de si tilo exaltido con<*eito, crendo-se uma
verdadeira influencia nacional, concebi^u a apprehensllo
de que o imperador quiz abrir eoinelle uma hicta pessoal
de prestigio politico, intollectu;d e scientifico E que
mostrar que, por força da sua autoridade parlamentarer
politica, ha de cahir a fracçOo desse partido, que pela
recusa dos seus projectos deu razflo ao imperador na lucta
que este travou rontra o autor do(jaú'*ho.
O senhor Con^;rdheiro alfaga í) ardente propósito de
mostnsi', .u' ;isuanílo escolha de senador pela província
do Ceará hade ser paga com usura: porque S. Exa. ó o
IV 15
rier pias ultra, o solas, tohis et unas deste império de
parvos.
A gana de molestar o imperador, que o levou a dizer
duras verdades, naolhe cousentio que omittisse nas suas
criticas a antigualha ridicula do beiia-mao, embora
fosse obrigado a confessar que tamliem lhe tem prestado
reverencia, sendo porém a tal respeito uma espécie de
amigo livre.
Lamenta o orador que — *' a liberdade seja sempre
neste paiz uma outorga da realeza, e não uma briUiante
conquista do povo."
Estas palavras deveram ter sido proferidas com ver-
dadeira compuncçao, e com lagrimas I....
Como ! Nao está S. Exa. deitando montes abaixo para
abafar e aniquilar essa conquista, longa, demorada,
tardia, que o povo fez, da emancipação dos escravos?
Como pois consentiria que este pobre povo tentasse
alg^uma conquista, e. ainda mais a fizesse de um modo
brilhante?
Que liberdade poderia ser conquistada sem que
. Exa. se deixasse possuir de apprehensOes contra os
perigos da ordem publica, em favor da segurança indi-
vidual e de propriedade, contra os excessos e açoda-
mentos imprudentes ?
E' que o orador representa com a maior seriedade
o seu papel.
Cria corn geitosa phantasia enormes inimigos da pa;^
publica — para ceder depois á necessidado de cumprir o
sagrado e imperioso dever de os debellar.
py assim que *S. Ex. fabrica perigos, desordens, re-
voluções, cataclysmas mentaes ; vè a perdição total
deste império em todo e qualquer meio razoável de ex-
tinguir a escravidão ; e declara não só temeridade, mas
atteutado, aberração, monstruosidade, baixeza, e cor-
rupção repugnantes , as convicções dos estonteados
poetas e philosophos deste paiz, ( pondo de parte os ro-
mancistas e os dramaturgos) porque ha quem pugne pela
emancipação da escravatura.
E' assáim que ÍS. Ex. moureja, fatiga-so e extenua-se,
— em demonstrar a existência e a invasão ostensiva c
insólita do poder pessoal do imperador ; desse mesmo
poder que durante o dominio dos progressistas era tao
S
miur .
Mo. '
QUESTÕES DO DIA
.4
I^. õ
BIO DE JANEIRO 14 DE SETEMBRO DE 1871.
Vende -se em casa do Srs E. & H. Lacmmert— Praça da Constituição,
Loja do. canto— Bua de S. José n. 110— Livraria Académica, o Cruz
Coutinho na me:>ma rua n, 75. Preço 200 reis.
01>x*as cie Senlo— O Oaúelio.
(Cartas a um amigo.)
Meu amigo.
Compreheado o gaúcho assim : organisaçao deste-
^mida, vasada nos moldes dos Guaycunis ou dos Pata-
^es, que sao os primeiros cavalleiros do mundo.
O rebenque e as chilenas castigam e subjugam os
Ímpetos do cavallo indómito.
Ha em sua physionomia illurainada de um explendor
insano, em seu animo iu.soffrido, o entumecimento e iis
palpitações precipites do arrojo semi-barbaro.
Finalmente vejo no gaúclio alguma cousa que se
pareça com Osório ou Zeno Cabral — no espirito, fontes
inesgotáveis dos maiores lieroi.smos, — no sentimento a
exaltação e a decisão, que pode inspirar a cálida ven-
tania das savanas, — nas acçOes, nos gostos, uma reso-
lução firme, implacável — n'uma palavra, a intei^^-ra per-
sonalisaçao da virilidade continental.
O cavallo o completa : é o .seu appendicc ou antes o
seu epilogo : repre.^enta o papel de sou escravo, antes
que o de seu amigo , e melhor o de victima que o de
escravo : o gaúcho é mais o tyraiiuio do cavallo do que
seu senhor.
Jíao sei, meu amigo, si já leu uma intcre.ssante his-
toria, intitulada — O (Inaranu — por Cuistave Aimard *?
Ahi pode estudar-se o gaúcho com proveito. Encontra-
.?e otypo exacto e nao a fabula rachitica. O historiador
francez estudou em pessoa os costumes da vida nómada
do pampa. Escreveu como quem viu, e nâocomo quem
\ik a.
2 V
Por isso os personag-ens, nessa verídica historía, silo
de uma vitalidade eloquente ; tem toda a efflorescencia
da vida ; e nao são pallidas visões, creaturas dií>formes,
descoradas, confusas e em contraposição á verdade na-
tural e ethnographica.
E o cavallo do pampa? Compreliendo-o deste modo:
susceptivel, vertiginoso, estremecendo de mil inquie-
tações a qualqu r leve rumor do deserto, arredio do
homem em quem adivinha, por instincto eporlicçílo,um
inimigo encarniçado de sua independência ; um animal
que, ao vêr o gaúcho, dispara a correr, com medo de sua
enfeza, por banhadí^s e coxilhos, impellido pela exal-
tação, pela investida, pela desencadeamento dos pânicos
brutaes ; um animal que só possam domar a teuieraria
audácia e. a clássica perícia do gaúcho, e a que fora
licito applicar, sem risco de impropriedade, o nome *
expressivo de desespero ou furacão.
Nem um, nem outro, nos dá Se) tio.
Manoel Canho, apresentado como realisando o ideal
do gaúcho, caraclerisa-se por estes signaes : ódio eterno
para com a espécie humana, frouxo e effeminado inter-
necimento para com a raça hippica. Senio emitte a dou-
trina de que o gaúcho tem mais em si de cavallo do
que de homem; que dizer gaúcho é querer dizer— corarão
para umaraça bruta, ninscido apenas para a sua própria
espécie e alê para a sua família.
Canho morre de amores pelas éguas. Com ellas vive,
convive e dorme. Cavallos e poldrinhosdespertam-ihe
todos os estremecimentos do affecto mais terno e mu-
lherengo. Já viu maior aberração, meu amigo?
Quanto aos cavallos, vejamos como foram ideados
por Senio.
São muito discretos, sensatos e reflectidos. A baia é
sensível, amorosa e ciumenta de Canho; a tordilha
tresanda a humanidade e a piedade christã ; o alazão,
o pae do lote, é polido e cumprimentador como um
conselheiro.
A baia, em logar de tempestade^ chama-se morena.
Ai ! morenas tão decantadas, romantisadas, poetisa-
das todos os dias e pelas melhores pennas, quão pouco
vos deveis lisongear com o original capricho de Senio !
Moreninha chamou Macedo a um bello livrinho seu,
de cunho nacional, que faz as delicias do sexo amaveU
e as estantes brazileiras recolhem como uma jóia.
Pois este significativo epitlieto,de tradicional encanto,
clássica presnmpçao do que ha de garrido, de gracios ),
de tentador na mulher nacional, qualifica no Gaúcho
uma égua. Canho alardeia de fazer tudo pela besta, pela
mulher nada, E a propósito de besta : deve saber Senio,
que no Rio Grande do Sul nunca se emprega esta voz
para significar egua^ como erroneamente se faz no seu
Gaúcho,
Depois da morena quem ha de seguir-se *? Ò Jucá.
Podereis adivinhar quem seja esse moço,de nome insinu-
antemente alterado ? Nao é um moço, é um poldrinho! E'
querer levar a espécie ao ultimo ludibrio.
D'e5t'arte temos o tratamento amoravel, que a mae
estremosa dá ao filho do seu coração, o carinhoso di-
minutivo com que a donzella chama o irmão ou o pri-
mo,em signal de estima e de intimidade aftavel e jovial,
temol-o aqui applicado ao potro. Para se chegar a
humanisar a sociedade equina, nao se hesita em cavallí-
sar a sociedade dos homens.
Meu amigo : entendo nio dever passar além, sem
primeiro lançar certas bases, certos preceitos que regu-
lem o processo analytico-litterario.
Por isso, para toda boa ordem e claresa de idéas, re-
duso a questão ao dilemma : ou Gaúcho pretende as
honras de um romance de cosfiirnes^ ou satisfaz-se com
o ser de mera p/ia/i^a5Ía.
No primeiro caso, protesto. Longe d'isso, o Gaúcho é
desnaturado, falsissimo, apocrypho.
Tal qual foi concebido e executado, importa a mais
pungente palinodia contra a o*entilesa, a masculinidade,
a fama das illustres façanhas e legendarias tradições do
campeão das savanas austraes.
No segundo, ha de permittir-nos Sento a franqueza
de lhe declararmos que sua phantasia é das mais tristes,
porque importa uma corrupção do sentimento natural
e racional, o rebaixamento vivo e indecoroso da
espécie.
Raciocinemos.
Q/em^io^€0.
'(Continua)
OITAVA CARTA
DO ROCEIRO CINCINNATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Fabrício. — O homem é animal de hábitos, e estes
sao segunda natureza. Ora se o tal senhor habito é a
repetição frequente dos mesmos actos, e se tu me
tens obrigado a escrever-te missiva sobre missiva,
jâ isto vai correndo como habito, e és tu o culpado
da transformação da minha natureza taciturna. Jà
quasi venho insensivelmente cavaquear comtigo, por
attracçao inexplicável. Tu lembras-te d'aquella nossa
boa camaradagem de 4 annos ,lá de S. Paulo? Éramos
um pêndulo ; o que fizemos hontem, faziamol-o hoje:
apenas abriamos os olhos, trazia-nos a mulata a
dose matutina de caffé, que era o nosso mata-bicho ;
quando nos iamos estirar no catre, lá vinha, para
conciliarmos o somno (ainda então nao eram inventa-
dos certos discursos) o cojio da socega. Quem nos tirasse
estes hábitos, infernizar-iios-hia; parece-me que já me
sucederá outro tanto, se tu agora me prohibires estes
desabafos, a que já espontaneamente me atiro á voga
arrancada.
Continuemos pois a' nossa pratica. Fique ainda de
remissa a conclusão da tal giga-joga da interpellaçao:
reconheço que nella só estão em causa duas figuras das
Arábias, eu e outra, nenhuma das quaes tem impor-
tância para ser anteposta a questões de interesse pu-
blico: guardemos as nossas pessoinhas para a sobre-
meza, e continuemos com a analyse da oração pro ser-
t;iítiíe,d'aquelle berreiro da montanha que deu á luz
um rato.
Em muitos pomos graves,a claridade vai penetrando.
O Sr. Zacharias de Góes, na sessão do dia 4, matou o
principal cavallo de batalha do Sr. Alencar, queé
de uma felicidade estupenda ; mas também a quem
Deus quer bem, o ventp lhe apanha a lenha. Dissera
este no seu perigrino discurso:
u Os brios nacionaes se confrangem... o paiz nSo teve
conhecimento do facto senão de torna-viagem. Ainda
ultimamente nao vimos nós manifestar-se esse menos-
cabo de uma maneira revoltante ? Esses trabalhos do
conselho doestado, que o gabinete com tamanha repug-
nância remetteu a esta augusta camará, e só depois de
requerido e instado, esses trabalhos eram communicados
V o
aos membros da junta central abolicionista e citados
na conferencia que houve em Pariz a '26 de Ag-osto de
1867 Semação. Vozes Oh oh ! Nâo sei se este ó ó era
para o mandar durmir) Assim dava-se conta ao estran-
geiro, primeiro que ao parlamento brazileiro... O Brazil
tem representado nesta magna questão o papel de uma
creança, de cujos destinos se decide, sem coiisultar-lhe
a vontade » etc, etc. E elle alii vai.
Os factos, os factos! declamações de serrazinas,
cobras e lagartos venham depois. O chefe do gabi-
nete de 3 de agosto, que governava ao tempo d'essa
tortia-viagem, doesse menos-cabo que revolta, que C07\-
frange^os brios^ que distribue ao Brazil o papel de
creança, declarou que « approveitava a occasiílo para
desfazer uma irninUarão levanlada na outra camará^
dizendo-se que o ministro fornecera copias desse tra-
balho a estrangeiros, ao passo que as negava á ca-
mará » e accrescentou desejar que esta negativa
tivesse a forma mais categórica.
Eis-ahi desmoronado o edifício erguido ao som da
náutica buzina. Eis-ahi a demonstração de que de
uma pulga se faz um cavalleiro armado. Uma pagina
de injurias, de menos-cabos, de confrangimentos e
quebrantamentos, de sensações, de óse de /./s, assenta...
numa falsidade.
A verdade é como o azeite : por mais que o afundem
vem á tona d'?^gua. Claro está que se o acto fosse
privado, de um cidadão qualquer, não poderia o trisulco
de Jove fulminal-o, nem teriam cabimento as expro-
brações e exclamações. Para justifícar o ore rohnido,
para produzir effeitos cómicos, sensações e espasmos,
era mister que o acto manasse do governo d'esse
tempo ; mas que custa a um dramaturgo imaginoso
inventar uma peripécia? u Foi o governo do Impe-
rador, horror ! foi o governo do Poder Pess(,al. »
Acaba de ser levado á ultima evidencia o que já
era convicção universal, e de que eu mesmo junto a
ti já fora interprete. Não resta sombra de duvida,
de que a accusaçãofoi uma falsidade, mas que importa
isso? Não teve a scena palmas no dia da primeira
representação ? quem exige da comedia a verdade
histórica? Produzido o effeito,já o xisgaravis pode
fazer ablativo de viaírem.
Foi uma falsidade: deixal-a ser: quem interroga
o oceano pelas gottas de que se compõe ? Não saiu ella
6 V
dos mesmos lábios que attribairam ao Presidente do
Conselho escancarar-me o thesouro e a mira assaltal-o ^
Nao é bom que se saiba que se os consultores da
justiça ! ministros delia I ignoram o espirito e a letra
dos art. 7,167 e 229 do Código Penal, tem artes de
refugiar-se atraz do art. 26 da Constituição, dando-lhe
aliás interpretação e elasticidade absurda ?
Ao que erra perdoa uma vez, mas nâo lhe perdoes
trez ! Adeante.
VI. — PLANO DE ESTORVAR A LEI.
Nao perscruto as intenções dos outros membros da
dissidência ; admitto, sem approvar, que julgassem
cumprir deveres, lançando mao de meios que se me fi-
guram contrários á indole dos parlamentos, e ao regi-
mento da camará.
Já uma rã estoirou, por aspirar a boi ; por isso Deos
iLie livre de tão alto pôr a mira, que ouse pretender a
uma cadeira no areópago, apezar de nella.s ver algum
areopagita menos grave que S. Diniz. Mus supponha-
mos que a innocencia da fortuna me guindasse áquellas
excelsas alturas, e que eu tivesse de tomar ao serio a
minha inopinada elevação. Que diria eu a mim mesmo?
Parece-me que diria o seguinte :
« 1**. A minha linguagem deve ser constantemente,
não par.i lamentar, mas parlamentar, isto é, simples,
lacónica, lógica, respeitosa ; no dia em que me faltar
cuialquer destes requisitos, a minha curul estremecerá ;
e se eu vier a ser o provocador de linguHgem análoga,
a triste respons vbilid ide de scenas indignas recahirá
sc»bre a minha cabeça.
(( 2\ Convicios, furores, despeitos, injurias, tumul-
tos serão por mim stj^gmatizaJos ; mal vai a argumen-
tação quando o seu calor sobe a incêndio : espectáculos
tnes não degradam S(5 o homem da sua categoria de
cavalheiro, ou de simplesmente bem educado, mas, o
UJ13 é p^or, desauctorisam a lei, e nivelam o legislador
CD n o frv^jue Hidor de bodegas ; abster-me-hei pois de
toda a violência.
(( 3". C)!isideraudo que, em quanto a lei é lei, a
t'»dos cumpre acatal-a : que duplo achatamento merece
a lei fimdameutal, e a essência do regimen, que me
Conferiu este assento ; que, s»^gundo as prescripçoes da
constituiçlo, art. 25, e as normis do guverno represen-
tativo, são as maiorias que resolv m os negócios ; nuuca
V 7
na ])ratic:i desconhecerei, pertençirea a ura ou outro
gruppo da assembléa, esta base fundamental da forma
do governo.
« 4°. Regeudo-se a augusta camará por lei especial,
respeiíal-a-hei, cora a snbmissao que todo o cidadão
deve á lei, qualquer que seja, ou antes tanto mais
quanto mais alta for, a iiierarchia delle. Mandando o
art. 2.7 do regimento, que, salvo na discussão do pri-
meiro artigo de ura projecto, o orador se cinja á ma-
téria que se debate, eu nunca levarei a mal ao presi-
dente que me chamar â ordem, quando, se acaso eu me
deixar desvairar pelo decien repetila placebit^ eu repizar
em todos os artigos as matérias já fora do debate, e
dissertrir deomnire sciòili, soh o pr.^texto de que, se-
gundo a arvore de Bacon, na sua Instauratio Magna^
todos os conhecimentos humanos es <lo ligados t?lo in-
tima uienre. que o discorrer sobre peciilio prende en-
tranha\elmente com a guerra da Ahyssinia ; e muito
menos ine arremeçarei sobre o prosidenie que invocar a
minlia attençâo, nem lhe direi : « V. Ex. é um parvo ;
o que quer, é atabalhoar-me, e <i talhar os voos da
minha facúndia ; nao sejasoffrego ; daqui a duas horas
começará a entrever por que invisíveis mns sólidos fios
eu vou agarrar o pecúlio ao (irão Nego, imperante da
região dos Monophysitas.» Se não 'lueuderem, pouco
importa ; a cousa é assim mesmo.
K .V. N 10 se recrutando para deputado, e proibindo
só d*' MÚuha legitima ambição o assento que nesta casa
se me iiuuver concedido, heide occupal-o com todas as
condii^Oes que lhe são inherentes, e não acceital-o a be-
neficio íle inventario. Quando os eleitores me escolhe-
ram, i»íip'izeram-rae esta obrigação : » Salvo motivo
de granule enfermidade ou força maior, comparecerás
sempie ás sessões, para que os negócios públicos se nao
atrazj*ín ; discutirás, quando souberes, quizeres ou po-
der 's ; votarás em liberdade , niMs votarás sempre ,
queir 's ou não queiras, agrade-te ou despraza-te ! « A
minlia cmsciencia qualificaria poi.s de acto reprehen-
sivel a minha falta individual a qunhjuer sessão, e de
atte itad.j contra a constituição, de ])erigoso minar dos
seus alicerces, todo o conluio, cnnjiiração, parede,
ijvrcf\ du como em g'iria politica inellior nome haja.
Ob»- .vÃn ('s outros como lhes approuver ; quanto a Uiim,
ou(h* n inçio me coUocou de atalaia, não desertarei do
pu<ti).
8 V
O meu roteiro teria muitas outras estações ; mas
emfim, como isto é vagamundear pelos espaços imagi-
nários, e como, sem que eu por isso me damnasse, a
minha candidatura jâ gorou, como tem succedido aos
mais pintados» escuso fazer programmas, que jà agora
nunca sairei da cepa torta. Ora como eu me nao arvoro
em pregador, e nao pretendo ensinar padre nosso ao vi-
gário, nem vender siso a Catão, Deus me livre de ten-
tar propagandas ; eu cá teria pensado assim, mas isso
nao quer dizer que nao pensasse detestavelmente.
Trégua a devaneios, e vamos á sabbatina do sara-
patel.
Observando que todos unâ você pedem a suppressao
do captiveiro, o Sr. Alencar lá deu á idéa um frio
apoiado ; mas sem detença desmanchou com os pés o
que fizera com a cabeça. Sem appresentar projecto
algum ( nao se esquece da sorte sempre reservada a
projectos seus), ataca o do governo com unhas e dentes;
nao come, nem deixa comer. Onde porém surrateira-
mente e pisa-mansinho, revela aspirações,rato escondido
com o rabo de fora, patenteia que o seu plano é pro-
crastinar a urgente solução para o dia do ante-
christo. Oucamol-o :
(( E preciso esclarecer a intcUigencia embotada, ele-
var a consciência humilhada, para que um dia^ no mo--
mento de conceder-lhe a liberdade, possamos dizer : Nós
vos remimos, nao só do captiveiro, mas da ignorân-
cia.»
Nao achas, Fabricio, que isto vale por projecto, lei,
código ? Toca a instituir escolas. coUegios, faculdades,
só para os pretos. De ora avante, os senhores alter-
narão o serviço dos escravos com o de sua cultura das
lettras e sciencias, e por toda a face deste império se
empregarão as forças vivas da sociedade em levantar
senzalas universitárias ! O senso commum diz que
para dissipar a ignorância, é precisa a liberdade ; cá este
expositor recommenda que, para conquistar a liberdade,
se dissipe a ignorância.
É por certo este plano efficaz e intelligentissirao.
Pois nao é? E ha ainda mais outra raridade : quem
tau 10 labuta por prolongar a instituição do captiveiro
dos negros, vê-so instantaneamenl;e accomettido de uma
paixão negro phila, que o leva a exigir a favor do negro
actualmoat í escravo, o que não pede a favor do hraiKO,
actualmente livre !
V 9
Nilo confundamos: uma cousa sSo as iruserias da
escravidão^ outra são as misérias da indigência.
Fazeis consistir a autonomia humana, a liberdade
plena, o jus do cidadão, na cultura intellectual ? Então,
a loírica manda-vos condemnar ao captiveiro milliões
de compatriotas vossos, totalmente baldos dt; instrucção
e cujo intellecto se nivella pelo dos escravos. Esses
são igualmente tolhidos na sua intelligencia, abatidos
na sua consciência, membros inúteis da sociedade,
hordas selvnjrens no seio de um povo culto.
Não consiste a condição ingénua na capacidade do
engenho e na perícia da doctrina, sendo tão livre um
Bertholdo como um Newton ? Então, não junteis aos
infortúnios do escravo uma exigência absurda, atroz,
impossivel ; não o colloqueis n'um circulo vicioso, em
cujo centro se leia a inscripção do inferno do Dante :
esperar o din da dissipação da ignorância, para obten-
ção da liberdade I
«
Intendo, intendo^ como diz Hernâni. Com o regimen
da escravatura, nunca será dissipada a ignorância dos
miseros, nem nelles mesmos, nem nas suas gerações,
perpetuamente subjeitas ao partas rentrem serfailur :
assim inpossibilitado o diploma scientifico que abre as
portas da liberdade, ficam estas trancadas p^^r omnia
scecula s^rculorum.
A subtilei.a é diaphana ; não pega: a mente culta
não dà mais títulos á liberdade que a grosseira. Até
para o ensino e o apostolado, houve, entre os embai-
xadores de Christo, mais ignorantes que safjios : se
Paulo era tão profundamente instruido, que o gover-
nador Festo lhe lançou em rosto extravagaiiciar. por
excesso de sciencia, lá diz o texio sagrado que Pedro,
André, João, eram homens analpha])etos, idiotas (?)
A condição real da liberdade está na existência da
alma : quem a possue, doato ou boçal, tem, em pé de
egualdade, du*eito á sua autonomia.
Em quanto durar a escravidão, a regra ( de que
sempre haverá, como em tudo, honrosas excepções^ será
que o senhor conservará intencionalmente o servo no
embrutecimento, sem o qual toda a artificial discij)lina
periclita. Se, para libertar a raça, se esperasse o fa-
moso dia da sua ascensão intellectual, estai-ia ganha a
causa do addiamento eterno ; fixar-se-hia a solução
para as kalendas dos gregos, que não tinham kalen-
iO V
rias, e iiiscrover-se-hia aaembaçadella do plauo, aquillo
de Lafontaine :
Notre Uèvre n^avait que quatro pas à faire,
j'enteud.s de ceux qu*il fait lor.sque, prés d'être atteiat,
il «'éloi.i^ne des cliiens, /e? renvoyeaux calendss^
ot leur fait arpenter les landes.
La mannniission dcs esdaves^ d^apvès le 'projeí du
sienr d'Ale)}ca7% arpenterait les landes juscpA' à lan 3000.
Confesso -te que acabo de perpassar attentamente
pelos olíioso lai discurso todo, para ver que outra pro-
videncia o Sr. Alencar sul)nielte á discussão ; nada e
nada mais. O seu projecto conipõi3-se de 2 artigos : 1."
A escravidão acabará no dia em que todos os pretos
forem doctores ; 2." Fica revofí:ada a leuislacão emcon-
trario.
Faz'^r leis sDbre assumptos árduos, não é zang-arrear
insultos ou esparralhar criticas sobre lucubraçõas serias.
O Sr. Alencar não se arriscou a servir de columna aos
liobrè^)s, nem tão pouco a atar o guiso ao pescoço do
Rodilardo. A missão doeste leírislador não é legislar ; é
só censurar: Catãosinho.
Ai, não ; a julgar pelos parentliesvjs semeados no seu
discurso, parece ler ainda ouira missão na camará: a
de Tribgulet parlamentar. Que .'es ver?
(( O nobre ministro da justiça, com uma .' signal de
quo não tem duas ) vo;c telri^ia e agoureira, prophe-
tisoa / )'isa(las »
OiM, meu caro amigo, tu, que estás em Pindamo-
nhan'J:-abn, não te escangalhas também a rir doeste ar-
(jumento graciosíssimo? não chega lá tão longe o con-
tagio? Mas não ; já te estou ouvindo, a ti homem
gra\ e •; sisudo • — a Cada um iom a voz que Deus lhe
deu. :'/ inqualificável ridicularisar a um dos mais nobres
vultos (]*esta terra, inaccessivcl a settasinlias inotfen-
sivas. M' iuhal)il expor-se a que se retalie contra (luem
caro 'ei* d't».sses dotes physicos, p?.la voz ingrata, pelo
eneaixílhar da cabeça nos hoinbros, pelos ademães
l)url'v>;cos, e outros dotes d^^ que, sí^gundo vejo. nem
cons^-ioncia tiver. » Calo-me, ])^)is, e transcrevo mais :
H Todos n6> temos o veto do lápis ' hilaridwlc J , não
é privilegio d:i realeza. »
No primeirí) caso uma indecencia ; neste uma iniqua
injustiça um epigramma insulso, de que já fallei.
Vejamos mais :
V 11
« Se uma ( não são duas; é o homem à-xs umas) lei
similhante fosse votada, eu não a poderia comparar
senão a essa vaga Veniis de que se falia no parecer
da illustradri commis^do (hilaridule prolon^/acJa). »
Isto n'outra bocca, seria a demonstração da mais
supina ig^norancia. Já vi, pelo illustrado relator da
Commlssão, tratada esta critica de um modo irres-
pondivel; não me arriscarei a dizer mal o que já
foi perfeitamente aquilatado. Só fica de pó a inten-
ção benévola de fazer rir de um collega, polo eu-
phemisrao do uma imagem: e isto no mesmo discurso
em que nos ensina que — a liberdade é fogo sagrado
entregue ao Ímpeto, ao arrojo de um novo e sel-
vagem Proraetlieo» — a questão é anima rilis de uma
;uma) experiência philantropica, e matéria prima de
uma (uma) coroa de triumpho » — « o monstro de
Horácio » — « o Bemembe)\ de Milton, » — e logo de-
• pois: — « a águia de Júpiter » — a Júpiter transforma-
do em chuva de ouro » — euuia multidão de imagens,
que nem approvo, nem censuro agora, mas que lhe
tiram o jus de atirar pedra ao tell^ado do visinho.
^ Continua, na interpellação, com estas excitações
ao diaphrag'ma parlamentar:
« Nesta sessão, o ministro do Império tem feito
apenas doas (graças ! não é um! ) trechos de discur-
so (hilaridade^ , e isso mesmo ao Insco-fusco '^continua
a liilaridade] »
Este engenhosissimo argumento já foi apreciado.
Quem inventou o provérbio « Travaram-se de ra^Oes »
para exprimir descomposturas, sem duvida antevia
/[ue as razões haviam de ser destas.
'i Não me admirei quando o ►Sr. Presidente do Con-
selho, tomando um um^ tom de mestre, tratou de
aimn^>;taros alurauos deste colleg*io. 'hilaridade da
opposirão yi
Eair.* o rozario de delicadezas, fig*ura ei^tx. Se com
eífeito o censurado realmente mestre parlamentar)
tives^o; assumido o tom de mestre, teria no s'hi colle-
gio alíifum alumno, que nem S. Luzia pode^se sal-
var, pois llie daria o váo pela barba, ao doctrinal-o nos
rudimentos de edncaclo politica e outras educações.
« Por ter entre as suas cartas o rei ea dama^níio
conte ganhar a piri ida [hilaridade da O]^jfosirilo.)>y
Plirase^ destas não se commentam. Pr osiga a ge-
ringonça:
12 V
— «Ávida do Sr. Presidente do Conselho nao tem
sido mais do que um longo secretariato (hilaridade da
oppoúção) »
O secretariato cá vai para o lexicon do Bacellar.
E não admiras tu o arreganho, c orgulhoso , entono
aristocrático com que o filho do sol e neto da lua
alça a preclara grimpa, no intento de ludibriar a
Estadista que ha largos annos, com zelo, illustraçâo
e patriotismo, tem servido o seo paiz nos mais elevados
cargos, e isto por que, no começo de sua brilhante cansei-
ra ,toi secretario de presidência e de ministro? Mas onde
se vio que estes cargos fossem dcshonrosos ou des-
airosos ? Quem igmora que, ao contrario, é de uso
escolher para desempenhal-os quem disponha de ele-
vadas habilitações intellecluaes ? Nestas formas de
governo, são esses, do mérito, os mais invejáveis per-
gaminhos. Raros os ostentam, brilhantes como os do
Estadista ridiciilarisado.
Em fim, diz que fez rir; então ganhou a partida.
» Des:le que S. Exa. me re^.usa os esclarecimentos
que pedi, posso eii esperar que me sejam concedidos^
pela maioria que o sustenta a todo o transe ? O nobre
Presidente do Conselho quer que eu recorra de S.
Exa. para S. Exa. mesmo ? » hilaridade)
Está bonita esta !.. Quando fores bigorna, aguenta:
e, quando malho, malha ! Agora aqui tundas por ata-
cado: a maioria é nada; a questão servil mudou de
face; a instituição do captiveiro foi dos pretos endossada
na maioria, a qual está de tal forma escravisada ao
Governo, ou ao R\ssoal,([ue já nelle se consubstanciou.
E' de crer que alguém risse, porem mais certo deve ser
que mui outro sentimento t(»rá o orador inspirado aos
cavallieiros que tem a fortuna de ser seus collegas.
— « Lembro-me de artigos, que chistosamente fa-
ziam a conta da despeza de cada entrelinhado ^risadas}r>
Dizo cá : comprehenderias tu esta hilaridade demo-
critica, a não ser que os hilariantes se hilariassem dn
liilarisador ? Soltarem-se gargalhadas em coro, por ap-
plauso a uma conta detypographia ! Nada, não ])0(h».
ser ; estes impulsos risonhc-s, estas carranquinhas d^^
cabo de chapéo de sol, estas risadas não foram i)rovoca-
das por cousas alegres, mas sim pela extravagante di-
ligencia do orador, debatendo-se para fazer rir, invitâ
Minerva; se alguém risse n'uin caso d'esles, é porque.
V 13
mãos invisíveis lhe estariam titillando as plantas dos
pésinhos.
Conta-se que Rabelais, que tambera levou toda a
vida a rir e fazer rir, egualinente se conservou na dis-
posição faceta, em sua derradeira infermidade. Afinal,
quando já na agonia, abriu os olhos pela ultima vez,
€ balbuciou : Pano abaixo ; esta acabada a farça !
E' de crer que, ao findar a frandulagem oratória,
outro tanto exclamasse, de si para si, o nosso ridente
orador,de quem gosto mais assim do que embezerrado.
O certo porem é que, depois de concluir a campanha
d*esse dia, apregoava, no imraediato, como tendo sido
um triurapho sem par, um combate em que, sem per-
der um só argii montinho, desbaratara as fileiras cerra-
das da maioria, reproduzindo o boletim do general Beur-
noBiville, acerca das batalhas feridas em Bellygen e
New-Machen : <c Após três horas de uma acção treme-
bunda,em que três mil inimigos foram feitos em postas,
limitou-se a perda dos fraucezes^àdo dedo minimo de um
granadeiro »
Macte^ puer, sic itiir ad astra !
Teu velho amigo
ClNCINNATO.
A liiter*peIlaçao do ftJr*. Alencar*
No Jornal do Commercio^ de hontem, foi publicado o
admirável improviso com que o Sr. Visconde do Rio
Branco pulverisou todas as proposições que o rancoroso
interpeUante tinha levado semanas a brunir. É um
modelo de discussão vigorosa, fina, esmagadora, ur-
bana, parlamentar ; seja-nos licito transcrever d'esse
brilhante discurso uma parte que prende mais parti-
cularmente com pontos que temos tratado.
O Sb. Visconde do Rio-Buanco ( Presidente do con-
selho) : — Com referencia ao gabinete de 7 de Março.
devo declarar que elle não tem subvencionado imprensa,
nem escriptor algum....
Os Srs. Ministros do Império, da Marinha, da -Igri-
ruLTURA E ESTRANGEIROS : — Apoiado.
O Sr. Visconde do Rio Branco ( Presidente do con-
celho] : — É uma grande injustiça a accusação arti-
<!nlada pelo nobre deputado.
Todos sabem que nunca causa alguma teve defeii-
.sores mais espontâneos, mais independentes do que esta
[[muitos apoiados] ; mas nós sabemos também que
14 V
aquelles que tem aptidão para escrever, que estão ha-
bituados ás lutas da imprensa, não dispõem de grandes
recursos nem podem supportar, além do trabalho intel-
lectuai, as despezas com a publicação de seus escriptos.
Uma Voz : — Então para que trabalham, senão para
serem pagos ? Oh ! ) i
O Sii. Ministro do Império : — ■ Nunca se pagou ar-
tigo algum; tem-se pago algumas publicações.
O Sr. Andrade Figueira : — Não ha nisso o menor
desaire *?
[ Ha outros aparlcfi ; o Sr. presidente reclama altenção,)
O Sr. Visconde do Rio/Branco ( Presidente do con-
selho ) : — Repito á camará : o gabinete de 7 de Março
não tem subvencionado a escriptor algum 'ajjoiados) ;
tem autorisado a despeza com a publicação de artigos
de interesse publico, escriptos com moderação e pru-
dência ; não tem corrido por conta do governo tudo
quanto tem sahido em defesa da questão do elemento
servil. Muitos defensores da idéa tem pago á sua custa
os artig-os que publiccan, e até alguns artigos são evi-
dentoineute de orig*e:n liberal, pois não são unicamente
os amigos do g*overno os que se empenham pela victoria
da causa da emancipação,
[Tíocam-se apartes,)
O nobae deputado pela província do Ceará conhece
bem os segredos da administração; quando, pois, nos
dirigio a .sua interpellação, devia saber que não viria-
mos aqui dar nma resposta negativa, como figurou ;
porque seria mentir á camará e ao paiz negar um facto
que está no conhecimento de todos, que não é de hoje,,
mas de ha muito tempo, facto praticado por todos os
ministérios, mesmo por aquelle de que S. Ex. fez parte.
[Muitos apoiados da maioria ).
O Sr. Alencar Araripe :— E um facto licito.
O Sr. Visconde do Rio-Branco [Presidente do con-
selho ) : — A verdadeira causa desta interpellação, reve-
lou-se no final do discurso do nobre deputado : ahi
está ella claramente patenteada, S. Ex. entende que-
alguns artigos que elle attribue á habillissima penua
de um estrangeiro iilustre, artigos que ( ou eu estou
muito illudido ou j^ me Jião recordo do que li ) nao
continham injuria alguma, mas sim uma discussão
muito digna de cavíÁheiros ; S. Ex. entende que esses
artigos foram encommendados pelo governo, pagos pelo
governo, sendo também o escriptor subvencionado í
V 15
Senhores, é preciso estar muito apaixonado para vir
a esta tribuna aventurar proposições desta ordem, com-
metterdo uma g^rave e dupla injustiça contra o g-abi-
nete t; contra este dislincto qscvíçíoy {muitos apoiados
da maioria)^ se é o mesmo que eu presumo !
O nobre deputado nos disse que ama os estrangeiros,
que os quer ver entre nós, que deseja que afluam em
grande numero e com toda a confiança ao nosso paiz ;
o nobre deputado também é camperio da liberdade da
imprensa, é filho da imprensa, como aqui nos disse ha
pouco ; mas, entflo, como S. Ex. esquepe que essa lança
de Achilles cura as feridas queella própria faz*? como
S. Ex. em vez de tomar o desforço que cabia á sua il-
lustraçfio, empunhando também a penna c respondendo
a esse esrripior, abandona a imprensa e vem viiig*ar-se
no ministério, trazendo essas paixões á tribuna e fa-
zendo consistir nellas o objecto principal de uma inler-
pellaçHo ? !
Vozes da maioria : — Muito bem !
O Sr. Visconde do Rio-Branto [Presidente do Conse-
lho):— Sr. presidente: se o nobre deputado, pelas cir-
cumstancias a que desreiK alludio a um iilustre estran-
geiro que conheço, S. ]£\. foi summamente injusto.
Esse notável homem de letras é incapaz de representar
o papel que lhe atuúbuio o nobre deputado] Muitos
apoiados da maioria).
(Trocam-se apartes.) •
Se alguma cooperação prestasse ellc ao gabinete, seria
a mesma que prestaria a qualquer outro que defendesse
uma causa que interessa a todo o mundo civilisado.
[Muitos apoiados da maioria,)
Senhores, o nobre deputad'j lamentou a facilidade
com que entre nós se desvirtuam as intenções, se depri-
mem os caracteres, o empenho com que se procura tudo
nivelar, gerando o descrédito e a descrença no paiz ;
mas com que direito veio S. Ex, aggredir-nos aqui
pelos escriptos que attribue a um iilustre estrangeiro ?
com que direito nos torna responsáveis pelos seus arti-
gos, quando é temerária e inteiramente inexacta a as-
serção de S. Ex., de que esses artigos fossem encom-
mendados pelo ministério, ou publicados sob as vistas
deste ? ! Como se anima o nobre deputado a assegurar
o que nao pôde saber e o que é inteiramente inexacto '? !
E como traz S. Ex. para esta discussão um escriptor
anonymo, um estrangeiro respeitável [muitos apoiados
16 V
da maioria), quando elle nao pôde defender-se aqui e
nao deve ser olyecto de discussão nesta casa ? ! (Apoia-
dos da maioria.)
A discussão em paiz livre, como o nosso, é e deve ser
permittida a todos, nacionaes e estrangeiros ; e se isto
é certo, liade levar-se a mal que um estrangeiro,
quando vè debater-se um assumpto de interesse uni-
versal, sinta algum enthusiasmo e procure manifestar
suas idéas ?!
Como quereis que sejamos julgados e apreciados nos
outros paizes, como poderá haver nelles um estran-
geiro que defenda o Brazil, se é um crime que o estran-
geiro no Brazil possa manifestar seu pensamento sobre
uma questão social desta ordem? (Muitos apoiados da
maioria.) Onde estão aqui os principios da liberdade
da imprensa ?! Oh! filhos da imprensa! vós esqueceis
a vossa própria origem!
VozKs DÁ maioria: — Muito bem!
O Sr. J. de Alkncar: — A questão não é essa; é a
do insulto.
O Sr. Visconde do Rio-Branco (Presidente do Con-
selho): — Eu nao approvo o insulto, e nenhum homem
de educação o pôde approvír. O nobre deputado não
ignora que a melhor resposta que se pôde dar ao in-
sulto é o despreso. Se porém os artigos a que alludio
são os mesmos que eu li, e, se não estou esquecido, não
havia nelles injuria alguma ; havia uma discussão
muito illustrada, e muito decente. (Muitos apoiados da
maioria.)
O segundo ponto da interpellação é a despeza que
temos feito com a publicação de artigos políticos na
imprensa diária. Senhores, nunca se fez semelhante
pergunta a ministério algum. (Apoiados da maioria.)
Se o nobre deputado, o que eu não creio, presume
que possa haver aqui algum abuso offensivo de nossa
honradez, devo dizer-lhe com toda a confiança que, se
S. Ex., tão prevenido como se acha contra nós, subir
ao poder e entrar em todos os escaninhos das secretarias,
nada lia de encontrar com que possa ferir-nos por esse
lado : ao contrario, achará provas de que temos proce-
cedido e procederemos sempre como os ministros mais
honestos que tem tido o Brazil. (Muitos e repetidos^
•apoiados da maioria.)
Typ. e Lith.— IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro n- 146 A.
QUESTÕES DO DIA
isr. 6
RIO DE JANEraO ITDE SETEMBRO DE 1871.
Vendesse em casa dos Srs E. & H. Laemmert— Praça da Constituição,
Loja do canto— Rua de S. José n. 119— Livraria Académica, e &uz
Coutinho na mesma rua n, 75. Breco 200 reis.
A q.ii.estão d.o elexnento sex*vll
Votada na camará dos deputados a proposta do go-
verno com as emendas da commi&são especial, está ella
iigora sujeita & discuss&o do Senado, onde diversos
oradores têm tratado do assumpto, pró e contra.
(Combatem a proposta, na forma e na essência, os Srs.
Muritiba, Três Barras e Itaborahy, como j& se sabia
que fariam.
Na camará dos deputados dissera o Sr. Paulino de
^uzai digno chefe da minoria, adversaria da pro-
posta:
a Neste século de luzes, e para homens que profes-
sam a lei do Evangelho, a causa da escravid&o está
julgada, e para sempre. y>
Mas esta proposição, que devia leval-o, e & minoria,
^e fossem consequentes, ao caminho verdadeiro, por
onde se chegará ao desideratum^ que naquella camará
-íL minoria tantas yezos protestou ser também seu, foi
no senado posta em duvida, sinao contrariada pelo
illustre Sr. Visconde de Itaborahy, que tantos encó-
mios teceu no seu discurso ao trabalho escravo, que
sté entende que só o escravo é próprio para resistir, no
Berviço da lavoura, ao sol abrasador deste paiz ; e que
o serviço exercido por homens livres n&o é tão lucra-
tivo como por braços escravos !
Pensa também o honrado senador que a escravidão
n&o é embaraço para a colonisaç&o ; e é egualmente o
clima a razão poderosa que a isso se oppõe.
J& se vd que o Sr. Visconde de Itaborahy tem maior
franqueza na enunciação de suas idóas, do que outros
'Contradictores da proposta. J& se vê que para elle, no
fundo de suas opiniões regaladas pelo interesse da la^
2 VÍ
voura, nao é certo que, neste século de luzes, a causa da
escravidão esteja julgada, no sentido em que se enunciou
o distincio Sr. Paulino de Souza.
O Sr. Visconde de Itaborahy foi consequente. Con-
siderando o braço escravo como o auxiliar mais útil da
lavoura, dirigiu todos os seus argumentos ao fim bem
manifesto de estender a instituição pelo maior tempo
que for possivel, jà que nao pôde ser eternamente.
Possuido de taes sentimentos, nada ha que estranhar
no . tom de azedume, com (J^e o orador entrou na dis-
cussão, nem no modo pessimista, com que encarou a
proposta, desde que ella foi levada á camará dos depu-
tados.
Nao vê que haja perigo em ficar adiada a solução
de um negocio de tanta gravidade para a sessão fu-
tura do parlamento ; pensa que os lavradores não leva-
rão a mal esse adiamento ; não ha nisso inconvenientes
de natureza alguma. Se o governo com i.s.so se escan-
dalisasse ( accrescenta o Sr. Visconde ) e tencionasse
ameaçar o paiz com disposições ainda mais prej iidiciaes
aos interesses da lavoura, antes que executasse algum
acto dictatorial, o governo estouraria, e talvez comdleas
instituições que nos regem.
Estas proposições, e outras contidas no discurso de
S. Ex., confirmam bem o que sempre se disse — que o
Sr. Visconde de Itaborahy não é o chefe menos intole-
rante da cruzada contra a proposta.
Mas haverá grande prudência em ameaçar com es-
touros políticos? Deviam estas palavras sahir de
tao autorisados lábios, ou ser proferidas em tão alto
logar? O illustre senador, quando mais a frio, reco-
nheceria a impossibilidade de pairarem na mente do
governo as intenções que apaixonadamente lhe attri-
buiu.
O attento exame do que se está passando na socie-
dade brasileira leva á convicção de que a opinião ga-
nharia forças com a resistência, e que, desgraçada-
mente, si estouro houvesse, seria todo em grande cala-
midade dos interesses, que S. Ex. e outros pensam
defender.
Obstinam-se em ver na proposta erros e perigos, que
ella nao encerra, como jâ tao extensamente, com tanto
critério de apreciação e luz de verdade, se tem de-
monstrado.
Obstinam-se em transviar a opinião dos lavradores ^
IV 3
que só agora vêm tanta oJB5.ciosidade n'esses amigo^;,
que nunca acharam meios de suavisar-lhes os padeci-
mentos, que levam uma considerabilissima parte
d'elles a estar vendo todos os dias em praça, para
pagamento de dividas, aggravadas por penosos juros,
os seus escravos, as suas plantações, as suas terras de
cultura !
Um dos pontos, tantas vezes allegados contra a pro-
posta, e tantas outras victoriosamente combatidos, é a
posiçílo dos nascituros livres, segundo a proposta, no
meio dos escravos, creados por suas mães escravas, e
vivendo na fazenda, com a obrigação de prestarem ser-
viço até os 21 annos.
Ora argumentam que a própria proposta será lei de
Herodes, será a degolação dos innocentes. Mas porque ?
Os senhores das escravas que derem filhos, faraó com
sua severidade que estes pereçam ?
Ora, que taes indivíduos serão elemento de indisci-
plina nas fazendas; desorganisarao o trabalho, creando
a desobediência.
Ora, que serão realmente escravos ; que o nome de
livres será um som vao ; que serão galés do trabalho ;
que contrahirao todos os vícios do captiveiro; que serão
na sociedade membros perigosos.
Ora, finalmente, que os senhores de suas mães nao
os quererão : que os entregarão ao Estado ; e que este
nao terá meios de educal-os...
Em tudo isto as contradições em que caem, nao podem
ser maiores.
Si os nascituros, nas condições da proposta, ficam
realmente, como se diz, na posição de escravos, nao ha
risco de serem elemento de desordem nas fazendas.
Demais, nao devem ainda ser elemento de desordem,
attenta a sua idade até os 21 annos, em que nao podem
tornar-se instrumentos de propaganda desmoralisadora;
nem o podem ser depois d'essa idade, porque ou sao
submissos, e seus serviços convém ao fazendeiro, e con-
tinua este a conserval-os contratando-lhes os serviços;
ou, nao convém ao fazendeiro a sua conservação, e os
despede ; estão elles na idade de reger-se, sujeitos ás
leis communs.
Nao serão instruídos, como nao sao tantos homens
livres entre nós, que nascem, e sao creados no tra/-
balho; mas analphabetos. Os remédios a esses inconve
4 IV
nientes vfto yindo & proporç&o que os meios de ins-
trucçao do povo se forem desenvolvendo.
£' nossa firme convicç&o que as crianças nascidas
livres, de mães escravas, por beneficio da lei terão os ca-
rinhios maternos sem resaibo de ciúme, e antes com
aquella dedicação que suas m&es poderem prestar-lbes;
e taes crianças serão muito vantajosamente aproveita-
das no serviço das fazendas.
Estamos no Brazil, e é pnra o Brazil que se legisla.
Aqui a escravidão foi desde i83l collocada em condi-
ções bem diversas da de outros paizes. '
J&nao é possivel, com o movimento no sentido eman-
cipador que desde alguns annos começou, e de dia em
dia vai crescendo, manter-se a instituição escrava pelo
tempo indefinido que a querem os adversários da pro-
posta ; é verdadeira loucura pensar-se tal cousa.
O que nos diz o Sr. Visconde de Itaborahy sobre os
rigores do clima, que n&o permitte trabalho efficaz na
lavoura senão por braço escravo, é desmentido por factos
comprovados do norte ao sul do Brazil, e por todo esse
interior, onde o homem livre supporta o trabalho da la-
voura com toda a vantagem para a producç&o. Isto é
bem sabido ; desde que o homem se habitua a um tra-
balho, na idade conveniente, contrahe o habito para o
mesmo,e para a fadiga qued'ahi provêm. Os nossos ho-
mens do campo s&o nfto somente robustos,como também
sóbrios. Querem todos os que guerreiam a proposta,
que o impulso abolicionista nascosse da opini&o ; e que
o governo fosse conduzido como a reboque ou arrastado !
Sem duvida o impulso nasceu, e nasceu de causas im-
periosas; éa opinião publica que o gerou I e da parte do
governo haveria grande erro, si n&o se puzesse & frente,
dando-lhe direcç&o. Si tivesse continuado o ministério
de 16 de Julho, o Sr. visconde de Itaborahy nfio hou-
vera podido conservar-se na posiç&o que aconselha.
N&o é de hoje que as republicas nossas conterrâneas
nos detrahem por motivos da escravid&o. Tem-se procu-
rado no exterior, e com successo, em parte, desde muito
tempo, crear indisposições contra a nossa nacionali-
dade, por esse motivo.
A escravid&o no Brazil tem seus dias contados desde,
que no mundo christ&o ó este o único paiz que ainda
conserva tal instituiç&o na sua existência social.
E pode alguém, com a m&o na consciência, qualquer
que seja o jogo que faça com os algarismos, demonstrar
VI 5
que, com alforrias parciaes e limitadas, se conseguirá a
extíncçao do elemento servil, continuando a fonte de
producçao cora os nascituros na condição de escravos ?
Eé sincera, é fundada a accusaçao,que fazem ao pro-
jecto approvado pelatsamara dos deputados,por nao dis-
por essa lei por modo que os nascituros,livres segundo
a mesma lei, recebam uma educação, qual o Estado nSo
dá aos raeni lOs livres das classes necessitadas da nossa
sociedade, sinno em proporção limitada, visto como o
ensino popular ainda nao está devidamente desenvol-
vido eitre nós ?
E é verdade que o governo attente contra a lavoura
cora a proposta, quando é certo que ella consulta todos
os interesses p.usentes e futuros da lavoura ? E pode
acreditar-se que nao foi um pensamento grandioso que
guiou o governo, quando a razRo tranquilla reconhece
qu* co'n a escravidão nao será possível que a sociedade
brazileira se eleve ao ponto de melhoramento moral,
industrial e económico, tao próprio das condições em
que se verá coUocada com a sabia providencia?
Ftílizmente para o Brazil, si entre os antagonistas da
proposta ha retardatários, nao o é a nação, nao o é a
grande maioria dos representantes d'ella, não o é o go-
verno.
Temos fé em que a proposta será lei do Estado no
corrente anno.
JunÍKs.
Ol>i?as <le Sonlo— O Oaviclio.
Caretas a um amigo.)
II
Meu amifíro.
o
Nunca tive nem terei uma palavra mais severa pjira
exprobrar ao moço a fraqueza, em que incorrer, arris-
cando suas primeiras luctas na escabrosa arena das
lettras.
A litteratura, como se ha dito tanta vez, é um sacer-
do -io, e como todos os sacerdócios tem de ser ser-
vida por diversas (jrdens de religionarios. O neo-
phyio, em regra, paga irremissivelmente o natural
6 VI
tributo do excesso de fervor, que caracterisa todo o no-
viciado. Exigir d'elle serviço completo fora impiedade.
Nao assim com os serventuários provectos, de repu-
tação feita e perfeita. Si deslisam do verdadeiro trilho,
é dever imperioso arguir-lhas as feitas, para que nao
succeda aos sectários inexperientes seguirem o máo
exemplo, na persuasão de se estarem edificando. Ha pra-
ticas, que sendo apparentemente sans, nao deixam de
ser no fundo heterodoxas.
Nao ponho em duvida os créditos e a auctoridade, de
que Senio gosa n'este género de labor intellectual.
E justamente por estar cônscio de sua auctoridade e
dos seus conceitos, é que estremeço pelas lettras pátrias,
que vejx) ameaçadas de um transtorno inevitável, si
fizerem escola as fátuas phantasias de uma peana phi-
lauciosa, que abusa das suas faculdades procreadoras,
vestindo o centauro com as roupagens da bella Juno,
envolvendo na crosta côr de rosa do confeito perfuma-
do a bryóuia ou o tártaro.
Tanto mais me receio dos males que da aberração
possam provir, quanto é innegavel a espécie de idola-
tria, que existe em certo circulo para com as obras
oriundas da penna de Senio. Si a confissão d*esia ver-
dade lhe desvanece ainda mais o descoinmunal amor
próprio, embora; refociUe-se no ingrato gôso.
Um folhetinista conceituado, referindo-se á Pata da
gazella^ chegou a declarar que, por ser ella -«scripta por
quem fora, merecia as honras da alta jerar chia litteraria
do auctor, e não podia passar sem as salvas do estylo.
Nao penso outro tanto. A obra e só a obra — eis tudo,
venha d'onde vier, seja de quem fôr. Pego no ^olume,
sem indagar quem o escreveu ; e si fôr anonymo, tanto
melhor.
Já antecedentemente havia dito o folhetinista que si
a obra nao fora filha legUima dac/iÁelle applaitdido tor
Ze/í/o, seria justo recebel-a como um mero accideníe ub
litteratura.
Haverá confissão mais flagrante da idolatria ? Isto
quer dizer que, a nao ser a obra de quem é, passaria
com inteira inditferença. Semelhante juizo, vindo de
uma penna amiga e grata, importa uma condemnaçlo.
Quanto a mim, o que o folhetinista quiz em balde dis-
farçar com as filigranas de seu luxuoso estylo, foi o se-
guinte conceito : « A obra, por si só, nao presta. »>
E cntao i Pois também cá pela republica das lettras
VI 7
havemos de ter oráculos indiscutiveis, auctoridades do-
gmáticas ? Também por cá os divifios^ quando parece
ter soado a hora dos papas e dos pães Soulouques...
Vamos ao Gaúcho,
O romance de nacionalidade ainda por ninguém foi
melhor entendido e executado do que por Cooper.
Walter Scott, de quem a Europa ta-j legitimamente se
vangloria, ainda assim a certos respeitos é menos recom-
merdavel do que o suberbo escriptor norte-americano.
Por exemplo : antes de Walter Scott haver empre-
hendido a construcçao do agigantado edifício da his-
toria da Escossia, já outros o haviam precedido n'este
mister, colhendo e recolhendo muitos costumes, muitas
superstições narionaes, como observa um profundo cri-
tic J. Walter Scott nao é no todo original. Mistriss Grant.
Burns, AUan-Ramsay, Buchanan, Ma.^pherson e outros
ti abam já explorado as virgens fontes, para onde Walter
Scott nao fez mais que a-centuar com sua penna arro-
jada vastos caminhos, descobrindo com amplitude pers-
pectivas bellissimas, apenas entrevistas e semi-occultas.
Walter Scofu achou veredas para seguir no dédalo; nao
podia perdjr-se u'elle.
Antes de Cooper porem, que observação litteraria
havia já perlustrado as seculares solidões do Oliio, do
Mississipi, do Illinois ? Que peniia rasgara a cellula
virgem e immehsa de uma riaiureza acima de todos os
\òos^ de todas as preoccupações das mais arrojadas phan-
ta-íias, e fi^^era jorrar d'alli a veia cnudal <ia poesia a iie-
ricana, para inniindar mares e coutineutes ? Quem já
havia (Teado e dado um cerlo molde ))ara exemplo?
«Cooper não tem predeces-for: veredas ainda nao bati-
das se lhe apresentam de todos os lad)>. U na inexgo-
tavel variedade de maieriaes; sceiías que exigiam um
tlieatro; painéis que demandavam um (|u;Klro: p Jiiios de
vista, que solieitavam um pintor: p )r lod-i a pane no-
vidade, bizarria^ maravillias ; um intevesstí tido rno-
derii'> ; um povo, api3nas saliido de sums faixas e já
pod*:*roso; uma historia, cujas primeiras pagi.ias brilliam
(Ip civilisiiçao e falam de couquisía ; a singularidade
de iiin Jieroismo trauqiiilio, piedoso e perseverante ; os
n-iiiies de Washington, de Peun, de Kratiklin ; para o
fundo do quadro as florestas seculares; para actores, os
apo3:olos do Xovo Mundo, entreiendo-se com os fillios
du wUjicam e ái) caluniei ; os progressos da arte eiiropea
no meio d'essas solidões sem dono ; os combates de op-
8 VI
pressos e de oppressores, uns reclamando, outros que-
rendo, abafar a liberdade e a tolerância ; — que digo ?
talvez nova éra social, fechada para o mundo, e prestes
a emanar de Philadelphia 1 »
O grande merecimento de Cooper consiste em ser
verdadeiro ; porque nao teve a quem imitar sinao à na-
tureza ; é um payzagista completo e fidelissimo.
Nao escreveria um livro siquer, talvez, fechado em
seu gabinete. Vê primeiro, ooserva, apanha todos os
matizes da natureza, estuda as sensações do eu e do não
eu, o estremecimento da folhagem, o ruido das aguas,
o colorido do todo ; e tudo transmitte com uma exacti-
dão daguerreolypica.
Apontam-lhe o defeito de serem seus quadros um
pouco sêccos, em consequência d'essa minuciosa fideli-
dade de pormenores. Mas embora ; nSo deixa de occu-
par o priíiíeiro logar, ao nosso ver, n'essa galeria de
vultos gigantêos.
Cooi)t»r é americano, Senio também o é — eis ahi um
pont^ de analóíria, que os aproxima.
Ao passo pr)Vem que Cooper daguerreotypa a nalureza.
Senio^ á força de querer passar por original, sacrifica a
realidades ^do sonho de sua caprichosa imaginação ; des-
preza a fonte, onde muita gente tem bebido, mas que
é inexo-)tavel, e onde ha muito liquor iniacto. Para
Senio a, verdade, dita por muitos, perde o encanto. Elle
não ha de escrever pelo ramerão; fora rebaixar-se. E'
preciso dar cousa nova, e eis surge o monstro repug-
nante e dí^spresivel.
Senio ulo í^omprehende a poesia americana, como em
geral tem sido concebida por bons talentos que o Iro
precedido, e vem dar-nos o ideal da « poesia verdadei-
ravxente brazileira, haurida na lingua dos selvagens » na
sua etfeíninada Iracema, onde os guerreiros falam unia
lin»ru.)giiem débil, esmorecida e fláccida, que não po-
diam de modo alguni usar em sua braveza.
Isto importa um característico : a penna de Senio não
foi talhnda para construir a epopea ; faliam-lhe azas
para elevar-se nos assumptos heróicos, que demandam
vô )S ex-elsos do pensamento, phraseologia máscula,
jo^ro de piixõ^s vehemen;ese arrebatadas. A linguagem
de Senio é dole.ite e languida. No dizer de um criiif^o
portuguez, sua pmna pôde ter bom succ sso « na poesia
dengue e cof/uelte^ poesia arrebicada, doentia, ras.ei-
rinha, poesia d'alcôvas e salões, complacente, p egas.
VI 9
cousa de toilette^ feminina.... como o pó de arroz,
o6 vinagres aromáticos, os espiritos de peíites domex
e de pelits crêvés, o Ilangylang, o bouquet Manilha, e
o cosmético Miranda, d
N'es3e prurido de querer passar por original c< seus
exforços de imaginação sao voos de uma intelligencia,
que quer crear, e que em sua impotência cria chime-
ras » na phrase de um critico, apreciando Brockden
Brown. Exemplo ; Diva^ Pata da Gazella^ Gaúcho.
Além do mais, Serdo tem a pretençao de conhecer a
natureza, os costumes dos povos (todas essa«i variadas
particularidades, que só bem apanhamos em contacto
com ellas), sem dar um só passo fora do seu gabinete.
Isto o faz cahir em frequentes inexactidões, quer se
proponha a reproduzir, quer a divagar na téla.
Porque nao foi ao Rio Grande do Sul, antes de haver
escripio o seu Gaúcho ? A litteratura é uma religião, e
tem direito de merecer taes Sbcrificios de seus sinceros
cultores. Nao nos teria então talvez dado esses esboços
de physionomíafria,de cútis contradicioria, concepções
hybridas, a titulo de figuras esculpturaes e legendaria.s
da campanha. Muita rasao tinha Balzac : nao fundava
acção nenhuma em logar que nao conhecesse.
Convençamo-nos: a imaginação, até amais viril»*
opima, .se esgota, cança e desfallece. Apreciando a
decadência do theatro hispanhol, diz uma auctoridade,
que ella teve por causa o haver-se esquecido de que a a
opulência das mais magnificas correntes exige uma
renovação e uma economia na despeza ».
A renovação faz-se pela observação. A natureza offe-
rece cada dia um encanto novo, que a imaginação sa-
dia recolhe para dar-lhe mil feições graciosas, ainda
nao conhecidas. O fluido proprÍM mente original e ima-
crinoso é apenas applicado a dar o tom, o equilíbrio, o
reflexo esthetico às creações reaes. Com tao comedido
emprego e uso, nunca se poderá dar a bnncarôía.
A imaginação atrophiada nas cidades só pôde procrear
a mentira, a falsidade, quando quer estampar acções e
figuras da vida florestal uii do decerto. Nflo é a leitura
isolada, embora dos mais escolhidos modelos, que dará
a expressão fiel da natureza. E' preciso contemplal-a,
receber impressões face a face com o desconhecido,
experimentar verdadeiranente todas as sensações da
inapiraçílo, nao ficticia, mas real.
O quê foi que contribuiu para ter cedo a America do
10 VI
Norte uma litteratura orig^inale grandiosa, graças ao
trabalho de poucos obreiros ? Foi o nao fazerem outra
cousa sinao copiarem fieliaeate as grandes scenas, as
magaificas perspectivas d^essas regiões virgens, onde
tudo offerecia um cunho de originalidade tao graciosa,
que nao só dispensava, porém mesmo excluía o uso da
creaçao phantasiosa^ por somenos aos magestosos
painéis.
O que faz Audubon ? Estuda os pássaros, suas cores,
suas paixões, suas metamorphoses,para e simplesmente
á sombra das florestas do Mississipi, a Audubon nao
somente comprehendeu essas harmonias, no meio das
quaes viveu e que repercutiram no fundo de sua alma,
porém reproduziu-as em estylo admira\''el de sim-
plicidade, cheio de sabor, de seiva, de eloquência e de
sobriedade. »
Ao passo que esses illustres constructores vão pedir a
natureza os traços harmoniosos, os painéis correctos, as
cores vivas com que devem erigir e adornar o pantheon
das glorias da pátria, e de sua própria immortalidade,
entende Senio que conseg lirá idênticos r»^sultados, des-
presando o inexhaurivel manancial ; e, cego pela
vaidade, nao vê sua veia apparecer em seus últimos
livros deprimida e exangue ? Lamentamos do coração
o engano d'alma.
Na sua monomania de querer passar por creador ou
melhor por cZúeí/or de novidades tem a pachorra de
asseverar em sua Diva ao publico, para quem se deve
ter a gravidade e a reverencia devida a tão alto senhor^
que os termos nubil^ pubescowia^ olympio^ frondes, afflar
e outros (já de muito consignados nos diccionarios da
lingua) sao innovações suas I e demora-se em justifi-
cal-as.
Ora, todos estes vocábulos se acham em Moraes e
Constâncio, e especialmente em Fonseca, edição de
Pariá, de 1852 — volume portátil. — Núbil — diz o lexi-
cographo — adj. de 2 gen ; em estado de casar, casa-
douro. — Nubilidadey s. f. idide, estado do que é núbil.
— Pubescenciu, s. f. puherd id ; (bot.) existência de pe-
los.— Olympico, Olytnpio^ a, adj. pertencente aos jogos
olympicos ou ao olympo, — Frondes^ s. m. pi. [bot.)
ramos de arvores folhudos. —A^ayi/c, adj. de 2 gen^
que assopra ou bafeja. — Afflar v. a. lançar o hálito :
soprar para alguém ou alguma cousa ; (/u/.) communi-
VI 11
caro ar como assoprando ou bafejando ; [poetj inspirar
os vates. »
Na sua Iracema diz, na carta final, que « as etymo-
logias dos nomes das diversas localidades sao de cunho
original. » Entretanto os vocábulos Ceard^ Aracaiy,
Meruóca, Quixeramobim^ Pirapora^ Pacatúba e outros,
vem todos no Glossário do Dr. Martins, quasi pelos
mesmos termos !
Sento tem a mania das notas. Nao ha volume seu,
d'entre os últimos que assigualam a sua precoce de-
cadência litteraria, que nao seja acompanhado de al-
guns desses enxertos, que em sua maioria só servem
para desabonar o auctor. Na Pata da Gdzella escreve
Tilbure^ champanhe, porque entende que devemos im-
primir certo cunho portugaez nas palavras estrangei-
ras adoptadas pelo uso. Por esta regra devemos escre-
ver buque, soarê, etc. Nao te parece uma extravagân-
cia?
No Gaúcho offerece-nos hennilo, com certos ares de
novidade, por nao encoutral-o em Moraes ou em Cons-
tâncio; e crê (este crê dá ura specimen da frivola vai-
dade de quem nao quer achar auctoridade antes de si,
até na própria lingua) que Fonseca dá hinnir ehinnito.
Notável singularidade ! Parece que Senio faz timbre
de lançar a confusão nos espiriíos. Quando elle diz que
inventou tal verbo, eucontra-se o verbo nos dicciona-
rios mais vulgares ; quando diz que em tal diccionario
vem tal termo, justamenie este termo deixa de vir no
diccionario referido. E sim ; cá o meu Fonseca, tao in-
discreto e abelhudo no afflar, na pubescencia e nos ou-
tros, está mudo quanto au henniío e aohennirl Nao
sao, porém, vocábulos novos ; Filinto Elysio empregou
hinnitory rinchador, e modernamente Odorico Mendes
faz o mesmo no seu Virgilio Brazileiro, Hinnus chamam
os naturalistas ao filho da burra com o cavallo.
Diz-nos ainda Senio, no seu inexgotavel Gaúcho, a
titulo de idiotismos e yiria da campanha: « carneador, o
que mata a rez e a esfola e mauLêa a carne ; salgador o
que salga ; que serro é monte; que lomba é ladeira; que
mondongo sao tripas ; que pó/í/ro é cria da égua. »
Nao é uma mania de querer a todo o transe passar
por philólogo ?
Diz-nos mais que os Yankees chamam far-west ao
í£ue os russos chamam steppes e os castelhanos sabanas
— isto é, « as immensas planícies rasas que se dilatam
12 VI
por aquellas regiões, e que, de certo, no,dizer dos via-
jantes, parecem á noite cobertas de um branco lençol. »
Está enganado : os Yankees chamam far-west ao des-
conhecido^ o inexplorado ; e, talvez, mais propriamente
ás mattas virgens, onde ainda nao penetrou o esforça
civilisador.
Com o titulo de Far-west ha um bello livro, com
auctoridade e cunho de qnem viu as cousas, e cuja lei-
tura recommendamos a Senio,
Diz-nos mais que pampa é uma palavra originaria
da lingua kichúa, que significa simplesmente o plaino.
Porque nSo declarou de onde hou^e esta noticia sobre
a lingua kichúa, tão pouco conhecida entre nós, e que
nao se aprende nas academias?
A tal respeito lê-se no Guarany, de G. Aimard, pag.
41, capitulo intitulado — O ?*anc/io— em seguida ao que
se intitula — O Gaúcho :
c( Le mot pampa appartient à la langue Qiiinchúa
(langue des Incas); il signifie textuellement place,
terrain plat, savane ou grande plaine. »
Ora esta ! ora esta !
Tenho-me alongado de mais nesta carta, e reservo-
me para a seguinte.
As oausas das eausas.
DEDICADO AO SR. S.
Time i8 money
John Bull.
Todos os males diversos
que vem á terráquea bola
devem-se a esses pervprsos
que ignoram a inglezaeschola.
VI 13
Se nos abraza o calor ,
é culpa do Imperador.
Se faz frio glacial,
cão do Poder Pessoal !
Se de nada serve o berro,
de nada a interpellaçao ;
« se alguém ficou com ferro
da sua atrapalhação ;
se fez fiasco algum doctor,
é culpa do Imperador.
Quem pOe bobo em arraial,
é o Poder Pessoal.
Se alguém viu saguins sem rabo ;
se viu gigantes pygmeos ;
se uma lingua do diabo
se transforma em Voz de Deus ;
se ha quem viva de rancor
é culpa do Imperador ;
a culpa de falar mal
6 do roder Pessoal.
Se um homem que calça luvas
n&o leva os dedos despidos ;
e se todas as viuvas
sao senhoras sem maridos ;
d*estes effeitos o auctor,
quem será f o Imperador,
que, no bem como no mal,
tem um Poder Pessoal.
Se eu não quero se emancipe
quem nasceu na escravid&o ;
e se o cónego Philippe
tem ratinhos na razSo ;
se tenho ar de inquisidor,
6 culpa do Imperador ;
sou um marquez de Pombal
co^o meu Poder Pessoal.
Se um homem que cai de costas
n&o vai de ventas ao chão ;
e se um João, feito em postas,
fica sendo um ex-João ;
14 V
se quem ama tem amor,
é culpa do Imperador ;
se ter ódio é querer mal,
guerra ao Poder Pessoal !
Se sao yayás as meninas,
e se aos poldros chamam Jucás;
se a pobre velha de Minas
esperava pôr macucas ;
e se o rato é roedor,
culpado é o Imperador.
Se ha doidos no hospital,
culpo o Poder Pessoal.
Se entre Rómulo e Pilatos
muito século correu ;
se Adão nao calçou sapatos ;
se Eva nao usou chapeo ;
se Caim foi lavrador,
é culpa do Imperador ;
e se o Abel foi zagal,
fêl-o.o Poder Pessoal.
Se houve no Egypto e na Grécia
a divindade Serapis ;
se hoje o grão Deus da fiicecia
é o do Veto do lápis ;
se houve um sábio consultor,
foi culpa do Imperador ;
se ha mingáos que nao tem sal,
safa ! é Poder Pessoal,
A historia fala de um louco
que havia em Porto Pyreo,
que, ao ver naus, tinha o descôco
de julgar ser tudo seu.
Quando o sol ás eiras for,
leval-o-ha o Imperador ;
e se ha chuva no nabal,
quem lá chove, é o Pessoal.
Se um homem de perna bamba
tem o nome de cambaio ;
e se nunca uma caçamba
pode vir a ser balaio ;
I
VI
15
se ha escravo o se ha senhor,
a culpa é do Imperador ;
se ha quaresma e carnaval,
culpa é só do Pessoal.
Se ha quem ostente ser nimio
austero^ severo e fero ;
e se um dialéctico eximio
fulmina o quero e o não quero ;
se li bra em >er delator
é culpa do ImiJerador.
Seja-lhe o rei pedestal !
Novo Poder Pessoal !
Se ha quem se julgue facundo,
por adeinaes e tregeitos ;
se ha quem calque a todo o mundo,
por tributo a seus despeitos ;
se é todo o cao ladrador,
a culpa é do Imperador ;
cae em dezembro o natal,
por culpa do Pessoal.
Se eu bramo como dez fúrias
contra qualquer que me vença ;
se eu vomito e babo injurias*
contra quem me nao incensa :
se eu sou berrante orador,
culpem lá o Imperador ;
se imito o lobo cerval,
é cascar no Pessoal.
Se acho a bem-aventurança
no dinheiro e mais dinheiro ;
se pago alta confiança,
descerrando o reposteiro ;
se me acham declamador,
quem tem culpa ? o Imperador.
Vendeu-me a alma a Baal
espectro do Pessoal.
Se eu já vi um tira-dentes
arrancal-os sem ganir ;
e se vi certos valentes
a provocar é a fugir ;
se hoQtem fui conservador,
tinha em vista o Imperador ;
sou hoje ultra-liberal,
por pirraça ao Pessoal.
Se eu souhei subir do nada
té ao cume derradeiro ;
se, ao ver-me em tamanha alhada,
me sai o gado mosqueiro ;
se nao subo a senador,
quem tem culpa ? o Imperador ;
e se eu faço... et cosfra e tal,
é por birra ao Pessoal.
Emfim, se tudo no mundo
anda de pernas p'ra o ar ;
se o primeiro, sem segundo,
é o ,, -
deve-ae o inferno do Dante,
e opeccado original,
aos influxos (lo Imperante,
e ao monstro do Pessoal.
PiTT « BlíCkstonb, em colUiboraçâo.
Typ. e Litb.— IMPARCIAL— fl<ia Sete de SeUnbro n' USA.
QUESTÕES DO DIA
N. 7
RIO DE JANEIRO 20 DE SETEMBRO DE 1871.
Vende-se «m casa dos Srs E. & H. Laemmert.— Praça da Constituição,
Loja do canto .^Livraria Academicai Rua de S. José n. 119— Largo do
Paço n. 12 C— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis.
Ol>x*as de Senio-^O Gai^obo.
(Cartas a \im amigo.)
III
Meu amigo.
Aqui estou outra vez^ proseguindo em meu insamo,
e sem duvida inglório labor.
Â' luz dos príncipios estabelecidos na minha carta de
hontem, estudemos o Gaúcho, como romance nacional.
Achou-se um dia Manoel Canho em um rancho ou
pousada de Entre-Rios, onde uma égua brava tinha
desbancado os mais hábeis e destemidos picadores.
Ouçamos Senio:
a Fora longa e renhida a lucta dos piOes com o ani-
mal, antes que lho deitassem a m&o. Em se adiantando
algum mais affouto, a égua juntava, e de um salto
espantoso se arremessava longe, disparando aos ares
o couce terrível e encrespando o pescoço para morder.
« Conheceram a final que era impossível levar a sua
avante pelos meios ordinários. Foi então laçado o ani-
mal peia garupa em um dos corcovos, e jungido ou
antes enrolado ao moirfto. »
Jà antes d^essa tremenda prova da indomabilidade da
2 V.. VII
égua, D. Romero (o dono) e mais dous camaradas, que
trazia, haviam empenhado, mas de balde, os maiores
esforços para montal-a. Era tal a rapariga, que D. Ro-
mero a dava de graça a quem a montasse, tao con-
vencido estava de o nao conseguirem.
Canho, que nunca vira o animal, adianta-se, crava
o olhar na pupilla brilhante da baia, solta um mur-
murejo semelhante ao rincho do poldrinho, e temos a
égua rendida.
Graças a esse simples olhar amoroso, a esse arrojo.
Canho consegue aproximar-se e pôr-lhe a mâo nas es-
padoas
— «Só mandinga!» observa lim dos da pousada,
attonito pelo prodígio. Nao podia deixar de ser um
homem de senso, esse.
Canho cinge-llie o collo garboso. Os olhos de ambos se
embeberam uns nos outros. — «Que palavras mysterio.sas
balbuciaram os lábios do gaúcho ao ouvido do indó-
mito animal, com a mao a tiíillar-lhe os seios "^ » per-
gunta Senio,
« O bruto entendia o homem — responde elle mesmo.
— A égua estreita com o pescoço o gancho. Houve um
coUoquio do bruto com o homem. Ficam todos os ran-
cheiros pasmados » (Nem era para menos).
Mas Canho continua nos seus carinhos e blandicias.
Amacia as finas íêdas da crina e abraça a égua. Esta
volta o rosto para ver o semblante do gaúcho e agra-
decer-llie a caricia. Domada, ou antes rendida ao amor,
a baiu aproxima-se do terreiro, sacando com gentileza
e elegância.
E' de tal força o milagre que os da pousada que-
rem crer que a égua já fora amansada, ou fugira ha
tempos de algum pasto, e outras cousas mais.
Porém Canho, cônscio do seu estupendo prestigio,
desafia a que consigam o que elle acaba de* obter de
morena. Alguns temerários, levianos, se aproximani
para outra vez tentarem cavalgar o animal, mas foi
uma tal ccuicata de couces, que todos correm a refugiar-se
no alpendre.
E comtudo — mirabile dieta ! — morena correu para
junto do gaúcho, que estava arredio (arredado, devia
dizer) e começou a roçar por elle o pescoço, como se o
affagasse ; Manoel montou de novo, sem que a égua fi-
;sesse o menor movimento de impaciência. (Artes do-
demo ;não tem que ver.)
VII 3
Para quem sabe o que é a égua bravia, maxime si
está recem-parida, essa transfusão de sentimentos affec-
tuosos^ de que nos fala Senio^ operada entre morena e
Canho, é o cumulo do absurdo, senão do ridiculo.
Perguntae, desde o sertanejo do norte até o picador da
cidade, e d'este até o gaiiclio da campanha do sul; per-
guntae a qualquer pessoa de todos os paizes, entre os
primeiros povos dados á arte de montar, mais astutos,
mais férteis em artefactos e fraudes para illudir os
sentidos aguçados, levados ao ultimo acíime, da égua
parida, si é possivel essa scena por mera sympathia ou,
influencia sentimental; e todos rirfío de vossa ingenui-
dade.
« Os Americanos — diz um auctor — apanham os cavai-
los bravos, deitando-lhes o laço ao pescoço, pondo-lhes o
freio e a sella, a de^ipeito de todos os esforços do animal
para se ver livre de taes obstáculos ; um domador va-
lente monta então o cavalloe fal-o correr, picando-o com
as suas agudas esporas, até que o animal se cance.)) Senío
não seri capaz do citar, para apoio de sua concepção^
uma só opinião em favor da domesticação do cavallo,pelo
sentimento brando e affectuoso. Muito menos se se tratar
da égua no estado de morena^ estado em que adquirem
esses animaes um tal grau de excitabilidade e suscepti-
bilidade que só não desconhecem o próprio filho.
Senxo parece querer de algum modo insinuar ajustifi-
caçãode sua desnaturalidade, pelo ornejo de Canho imi-
tando o rincho débil do poldnnho recem-nascido. E' uma
filigrana, que cede a uma só observação : a égua cer-
tifica-se do filho, não tanto pelo rincho como pelo cheiro
d'elle. Mas ainda assim : pegae do filho da égua e
approximae-vos d'ella com as mostras mais aflectuo-sas
de vossa ternura, e duvido que a consigais abrandar.
Talvez succeda o contrario, e cada vez mais a irriteis,
com risco de a fazõrdes desprezar o próprio filho.
O auctor acha, entretanto, simples o segredo da proeza
do gaúcho. Jamais moça ardente, sòtFreiJra de lascivos
prazeres, coraprehendeu melhor um olhar de ternura,
€ d'elle se deixou vencer, do que morena do olhar de
Canho.
Morena é a encarnação pois do talento racional.'
Conlicce as meaores intenções de seu dominador des-
couheci<lo. Torna-se em momentos o escravo mais intel-
ligente, submisso e dedicado do estranho.
A's vezes vem a contradiccão dar diversão ás idéas.
4 VII
Como comprehendesse o gaúcho que a égua estava com
saudades do filho, apressou-se a satisfazel-a. Foi, « pas-
sar a tronqueira do pasto e a besta desfechar n'uma
corrida veloz. »(£' tranqueira e nao tronqueira.)
Pois esse animal, que assim corria instinctivamente
em procura da prole ausente ; aue devia ter uma cor-
rida louca, sem parar, faz alto á beira do arroio, i^õe-se
a retouçar os tufos da gramma, e assim fica esquecido do
filho, ponto supremo de attracç&o irresistível, que o
seduzia è o arrastava por sangas e coxilhos^ galgando
encostas e transpondo barrancos 1
Canho está deitado dentro do rancho, emquanto a
égua solta pastava.» Porque não correu, selvagem e
livrey para onde a chamava o instincto com tanta vehe-
meneia? » pergunta o auctor. EUe accode logo: a Antevia
que tinha necessidade do homem, carecia do seu auxilio,
ou antes uma força desconhecida a prendia à vontade
superior, que a domava.» A égua tinha já adivinhado
que succedâra ao filho algum desastre^ do qual só o
homem o poderia salvar ; como, pois, o deixar!
Mas emfim lembrou-se morena que nao era bem de-
morar-se mais a pastar ; e em logar de seguir só seu
caminho, como faria qualquer outro que só desde horas
conhecesse o gaúcho, vejamos o que ella faz. Ouçamo»
Senio :
K N'esse momento metteu a égua a cabeça pela porta.
Dando com o gaúcho sentado, fitou n*elle os olhos é
começou a ornejar baixinho^ como para chamar á atten-
çEo do companheiro.»
O auctor nao se demora em explicar o phenomeno por
«stas palavras :
<i Era a égua um intelligente animal ; e depressa
aprendera a linguagem pittoresca e symbolica, inven-
tada pelo gaúcho para suas relações sociaes com a raça
equina.»
Que eguasinha, hein, meu amigo! !
Em poucas horas comprehendeu a giria symbolica
do Gaúcho. Se esta égua frequentasse uma faculdade,
que de prodígios nao operaria ! Era capaz de impro-
visar discursos, recheados de sensações.
Ha por ahi talento que possa tantil
Também naoé muito para admirar, porque já morena
se rendera ao só olhar do brazileiro, e um simples
ornejo d'este lhe vencera os Ímpetos bravios, quando
vn 5
ainda eram inteiramente desconhecidos ; e isto logo ao
primeiro encontro.
Um folhetinista diz que o Gaúcho é um romance pri-
moroso, de vasto alcance litterario, philosophico e his-
tórico (nada menos).
Espera o leitor que o profundo critico entre na vasti-
dão d'essa philosophia enigmática, boudhica ou my-
thica, n'esse alcouce litterario de logognpho, e cedo
cahe das nuvens, fulminado pela mais atroz desillusão.
O que o escriptor adduz para provar suas pomposas pro-
posições, sao estas palavras:
a Tenho em m&o o primeiro volume da obra. Que
belleza de imagens ! que voos audaciosos e brilhantes 1»
E vai proseguindo n'esta apologia, apologia, e nada
mais que apologia !
Só a morena poderá explicar o lalum^ longum et pro-
fundum do contexto.
A burra de Balaão falava, e, pelo que as cousas
mostram, ainda assim ficava áquem de ^novena.
Tenam também as orelhas da burra biblica a virtude
•de ttse enroscarem como ums. cojicha? » As orelhas da
morena faziam doestas magicas. Prosigamos.
O que vemos agora ? Duas éguas que se abraçam e
acariciam : — moremi e tordilha. Estamos junto da
gruta, onde cahiu e está agonisante o Juca^ o filho da
primeira.
Canho penetra na guéla pétrea, d'ondesaca o menino.
Ao vêl-o, a raae soluça e ri.
A esta gentil creança havia a tordilha^ na ausência
da amiga, amamentado por alguns dias^ condoída do
orphão. Tordilha é um portento de sentimentalismo :
a égua parida só consente tocar-lhe nas tôtas o próprio
filho ; tordilha, posto que selvagem, pelo contrario :
é ella, de motu próprio, que vai em soccorro depecí<r-
r^icho !
Entretanto — admirável contraste ou capricho da
natureza! — ao passo que assim procedeu com o jucá
durante a ausência da mae, agora, ao contemplar com
Manoel a morena deitada com a criança equina, casti-
fjQva a travessura do seu próprio poldrinho, arredando-o
de si, quando se elle chegava para acaricial-a. « Nao
queria ella — diz o auctor — , a mae feliz, dar áquella
mãe desventurada o espectáculo de sua alegria! !»
Em seguida tira Canlio o poldrinho do regaço ma-
lemo. Égua nenhuma consentiria em tal, mas emfim
6 VII
morena iiuo é uma égua humana^ de sentimentos rebel-
des e vnlorares ; pertence, pelo contrario, ao Olynipo,
como o Péf^aso ; é uma égua divina.
Canho chama a tordilha, que ligeira accode, o/fere-
cendo asívlas para amamentar o pobresinho desfallecido.
Só então consentiu tordilha que o seu pirralho brincasse;
mas ainda assim, só ao longe, para mio acordar o ca-
marada.
O enternecimento da amiga de worenanao fica n'isso,
e vai pressurosa chamar as selvagens coudelarias, para-
que venham felicitar a exilada pela sua boa volta aos
serros nativos.
Espantando-se com o gaúcho, que se levantara do
chão, dispararam os magotes. Morena porém corre a
dissuadil-os de seus receios, contando-íhes tudo sem
duvida: seus recentes amores, sua nova paixão ao Canho,
os sacrifícios prestados por este a favor do jííca, filho do
pae do lote, e là volta a cavalhada.
Ahi então o espectáculo é edificante. O maioral da
tropa, o suberbo alasão, cumprimenta Canho ; Canho-
corresponde á saudação do rei do deserto, a Não houve
entre elles affagos nem familiaridades » vem logo
dizer-nos Senio^ para que não pensemos que elles te-
riam d'essas effusões, só próprias de gente-relé, faltando
á corlezan pragmática^ mas uma dt.-nonstração grave de
mutuo respeito e confiança.
Canho é verdadeiro heróe d'aquella festa cavallar.
Rodeiam-n'o, saúdam-n'o, cada qual mais ceremo-
nioso, obsequioso e solicito. Pôde mesmo suppor-se que
alli se praticou de cousas concernentes á. hippica gente^
e fallou-se compridamente da politica dopaiz era intima
confiança, como n*uma. sessão de parlamento. Canho
parece-se com o oráculo. Si lhe occorresse improvisar
no deserto uma ceremonia das monarchias, lembrando-
o beija-mão, todos teriam corrido commovidos e á poi^fia
a oscular a pata do grande alasão.
Depois d'esse solemne cortejo, celebrado namagestade
das solidões, sente o gaúcho exigir-lhe o coração o
cumprimento do humano dever de malar um homem —
embora o assassino de seu pae. Esse coração era a
esphinge. Tão vilão para com seu semelhante , quão
pródigo de impossiveis affectos para o bruto ! Homem
que, tendo o sentimento tão apurado para o animal,
deixasse de o ter para a sua espécie, seria um alejão da
espécie humana. Pois Canho era assim : desde mtniíka^
VII 7
jnUnneditara vingar a morte de .<;eii pae. Não tora elle
tao sensível para os cavallos e as éguas, e nao se admi-
raria essa r(»soluíTio. EUa estíi até na Índole e natureza
do arrebatado e vingativo gaiicho, só não na do simu-
lacro mais imperfeito, do arremedo mais incompleto,
da caricatura mais contradictoria e desnaturada do typo.
Sois vós isso, acaso, gaúcho ?
« Não se explica semelhante aberração » diz-nos o
auctor.
Ah ! não se explica. E dá-se-nos a aberração como
o typo ! Triste phantasia, a que não explica sua própria
creacão.
Canho vai, em fim, partir para vingar-se.
Apanhou a novilha, que já não tinha poldrinho para
amamentar. Nenhuma resistência fez o animal. Todos
se haviam rendido d influencia mystenosa do gaúcho ; e
todos desejavam tanto mostrar-lhe seu affecto, que
\ion\e ffuasi (luevellas e arvíffoít de ciúmes^ pela preferencia
dada d novilha.
Morena^ vendo que seu bemfeitor ia partir, arrancou-se
no Jubilo maternoj correu para Canho e abraçou-o. De-
veria ser uma scena toda de commover, aquelle suprema
lance de despedida de dons amantes, apaixonados.
Quem dera um Raphael, para levar á tela o quadro
portentoso doeste sublime abraço !
Não nos podemos furtar á tentação de re])etir aqui as
ultimas sentidas palavras de Canho, que fazem cortar
o coração :
— « Pensavas tu. Morena, que me iria sem abraçar-te?
Adeus í Levo de ti muitas saudades. A corrida que
dêmos juntos, nunca, nunca hei de es(piecel-a. Duvido
que já alguém sentisse prazer igual a esse. Falam
outros das delicias de alyraçar mna bonita rapariga * se
dles te apertassem^ como eu, a cintura esbelta^ voando por
estes ares ! »
Vade retro I Que lhe faça bom proveito, senhor
Canho.
— « Adeus, adeus ! conclue o gaúcho. Lembranças ao
álajinofi})ího,n
Será lembrado. Vá com Deus. E Canho partiu.
Mas apenas vencera algumas quadras, ouviu o tropel
da veloz corrida de morena^ que distribuiu quatro di-
zias de couces e outras tantas dentadas à novilha, por
haver tido a ousadia de merecer attencOes de seu
8 VII
amante. Manoel entendeu logo — podéra nao ! Eram
ciúmes,
E para acabar de uma vez com esta repugnante his-
toria de hippicos amores, fique-se sabende úue Canho
montou na morena, põz o jucá na garupa, e toi-se.
Santo Deus I Para onde foram deportados o bom senso
e o gosto litterario do Rio de Janeiro ? !
Ah qui d*el-rei ! Quem denominou jamais pha/nta$ia
o que nem se alça & categoria de puerilidade ?I
Gr^tn^io^ti^,
(Cow/tn?ía)
IVona
DO ROCEIRO CINCINNATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Fabrício querido,
Rio de Janeiro, 18 de Setembro de 1871.
Continuam as attenções a absorver-se na questfto
magna ; envolva-nos a onda. Nao estou hoje com dis-
posiçtLo jovial ; tem paciência ; atura os meos azeites.
Subiu o projecto de lei sobre o elemento servil á ca-
mará vitalicia. Tudo induzia a crer que nao só seria
impossivel repetirem-se alli as demasias,que os amantes
do systema representativo já haviam deplorado, mas
também que a discussão correria rápida, como em
casos d'esta ordem o aconselham a próceres e provectos
todas as indicações da prudência. Com surpresa e
pesar, vejo e ouço cousas.... difficeis de explicar; e que
o programma de alguns é buscar cinco pés ao gato.
VIÍ 9
Jà não é tempo de papas na língua. Com questões
-delicadas, como a do elemento servil, não é licito brin-
car ; nem são ellas das mais próprias para gymnastícas
vOratorias e funambulismos parlamentares. Desde 1867,
1850, 1831, 1826 e 1817, que este assumpto se estuda
-entre nós,por todas suas faces: o período platónico deve
emfim transfundir-se em período pratico; as questões
sociaes são como os systemas : quando amadurecidos,
.03 Copernicos geram os Galileos, e estes são os precur-
sores dos Newtons : e pur si muove^ e a verdade tri-
umpha.
Em quanto só se tratava de dissertações académicas
a favor da instituição, e de thoorias especulativas,
seriam innocentes as divagações ; mas chegada a hora
da solução, toda a perda de tempo ó um mal e um
perigo.
E que significa senão, pelo menos, perda de tempo, o
j)rucedimento dos oradores, que, depois de declararem
que hão de votar pela lei, ou que não esperam poder
estorval-a, e nem sequer fazer acceitar emenaas ã
ella, levam horas a desmoralizal-a?
Será esse o dever que a circumspecção impõe ao le-
gisladora
O politico, o verdadeiramente liberal, o que toma &
âerío esta forma de governo, hade respeitar os princi-
.pios elementares do regimen representativo; hade,sim,
.pugnar pela victoria de suas idéas, quando sinceras,
mas não hade fatuamente superpor a sua ás outras in-
telligeucias, nem indignar-se contra as opiniões de que
divergir, nem lançar mão de armadilhas, lograções e
•esparrelas, para dificultar ou impossibilitar o anda-
mento legal dos negócios públicos. Mal vai á socie-
dade, quando anarchico for o exemplo d'aquelles que
o devem dar.
Tal não succederá certamente no senado brazileiro.
•Suas nobres cadeiras, alvo das derradeiras, das má-
ximas ambições, são occupadas pelos homens encane-
cidos no leal serviço da nação, por cidadãos a quem a
experiência e os annos devem ter apagado as labaredas
das paixões tumultuosas, por estadistas versados nas
doctrinas e praticas do governo, por politicos que não
Lão de, em proveito ephemero de uma opinião do mo^
mento, afiar segundo gume da espada que um dia os
fira. Haverá algum que esqueça estas obrigações da
sua curul? Não, certamente ; ou se um impulso instan-
10 VIÍ
taneo o desvairar, razão fria o trará para log-o íi pru-
dência, que uiinca devera desamparal-o.
Se os usos e o reg^imeuto do senado perinitteni it
multiplicidade dos discursos stereotypados, é reflexo»
de certa jurisprudência antig-a a que já alg"uem alhi-
diu. Entendeu-se que ura areópago de varões sábios,
patrióticos e prudentes, nun(*a teria de deplorar o espec-
táculos de discursos-maranhas, de expedientes proiela-
torios, de embargos de matéria velha, de opposiçoes
acintosas, de minorias revolucionarias. Leis assim dis-
cutidas, seriam confeitos de enforcado.
Se os 58 senadores proferissem 2 discursos sobre cada
artigo, um projecto em dez artigos seria illumrnado
por nada menos de 160 orações! isto é, levaria, só nr>
senado, para ser convertido em lei, três sessões an-
imas, em que fosse constantemente dado para ordem
do dia !
Ora assumptos, da Índole do de que se trata,iiao se
eternizam no tear do parlamento. Por isso mesmo que
prendem com vastos interesses; que excitam apprecia-
COes apaixonadas: que são punhaes politicos e barris de
pólvora sociaes; que se prestam a ser instrumentos de de-
sordem; que auctorisam receios de bons e criminosas es-
peranças de máos ; que prejudicí^Ti mais pela indecisão
que por qualquer golpe ; que podem, pelas perplexida-
des e hesitações, trocar de repente os tempos de modo
que a solução passasse a tornar-se forçada e violen-
ta ; — por isso tudo, urge que os Dionysios cortem os
cabellos das espadas, para que o Damocles social possa
ao menos dormir em paz.
A missão do corpo legislativo é legislar, e não im-
pedir nem discretear. Se o orador reconhece e proclama
que o projecto hade ser lei, que lucra elle ou o paiz
com seus inúteis arrazoados ?
Beniy já se ve que nenhum pôde fazer ; mal, certa-
mente. Se no fim da sessão âunua, discutindo-se tão
grave questão, taes discursos impedirem que a lei
passe, sei-ão esses bacharéis os culpados de quantos
inales se seguirem : aelles deverão attribuir-se — o ul-
terior desasocego dos ânimos — os perigos da ordem pu-
blica— a escravisação de alguns milheiros de infelizes,
que, nascidos nos doze mezes que ora começara, só esses
oradores terão condemnado á escravidão. Triste Ct>usa
é suspeitar que uraa corporação, tao veneraada,tao pre-
cisada da respeitosa confiança nacional, corra o perigo-
VII 11
de sor victima de manejos de alguém, e considerada
cúmplice da ruim obra em que ao menoiá a quasi tota-
lidade do senado é por certo innocente.
Para que servem jii hoje intermináveis arengas, em
que se nao apura, por nm nem outro lado, um só argu-
mento que, de estafado, não deite a língua de fora?
Servirão talvez para brilhaturas e scintillações de
algum sublime perorador; mas não é isso que o paiz
requer. O programma é bacharelar : cada um tem seu
plano, no qual só achu salvação, e em todos os outros
ruina; mas toda esta confusão tem precedentes nas reli-
giões profanas, e sagrada. Na fonte de Dirce havia ura
dragão que devorou os companheiros de Cadmo, o qual
foi ás ventas do bicho, e arrancou-lhe e semeou as
dentes ; doestes nasceram homemzarrões armados, os
quaes no mesmo ponto deram cabo uns dos outros, e os
superviventes fundaram então pacificamente a cidade
de Thebas no lugar marcado pelo oráculo. ( O dragão
é o captiveiro ; homens armados são os impugnadores,
que entre si se destroem ; Thebas, prevista pelo orá-
culo, é a liberdade humana decretada pelo direito.)
O que estamos vendo faz também lembrar o tumulto
e o labyrintho que um sábio Padre descreve nestas con-
densadas palavras: « Les hommes ont bati la tojtr de
Babel ^ et la femmos la tour de babíL » Noas avons aussi
des assemblées liermaphrodites, o») je ve sais le/juel deff
deac predomine : ta lonr de fíabel^ ou la tour de babil.
Ora vejamos :
Podem diVidir-se os dizedores em três categorias :
P. os que defendem o projecto, 2*. os que totalmente
o impugnam, 3*. os que parcialmente o censuram, mas
votam por elle.
Os que defendem o projecto, já em ambas as casas do
parlamento, e pela imprensa, tem rechaçado as opiniões
contrarias.
Os que o impugnam, tem todos declarado que, em
presença da disposição dos ânimos, perderam toda a fé
no seu triumpho, e então, cebolas do Egypto, nisi utile
est (fuod fwdmus^ stulta est gloria.
Finalmente os que se coUocam entre a cruz e a cal-
deirinha, os que declaram votar pelo projecto, mas se
comprazem em censural-o, praticam uma imprudência.
Comprehendem-sebem as duas posições definidas ; mas
não esta do qiirero^ mio quero^ mettei-me neste eapello.
Quem vai, pelo seu voto, ser cooperador da lei, não deve
12 VII
começar por atacal-a; quem aspira a ser obedecido, nao
desvirtua 03 seus próprios preceitos; quem lança o balão
às alturas, nao lhe dá cani vetadas na seda.
Se alg-uem ha que assim pense e obre, affigura-se-me
que mudará de systema. Bem bastam as dificuldades
gravíssimas com que hao de luctar os governos que, em
. seus regulamentos, tiverem de providenciar sobre as
cem novas e urgentes necessidades creadas por tao ra-
dical mudança; para que hão de artificialmente jun-
tar-se a tantas graves exigências da situação estas ex-
citações artifíciaes, estas desconfianças, estas picadas
de alfinete politico ?
Convertido o projecto em lei, são precisos no governo
Bryareos, Centimanos, para preparar a transformação,
e fazer com que ella se opere com a possível suavidade.
Quantos objectos diversíssimos e urgentíssimos não
terão de chamar a attenção do poder executivo, e sem
duvida também do legislativo ! — A mudança progres-
siva no systema do trabalho, — o aperfeiçoamento das
industrias, especialmente da agrícola — o império da
machina inanimada substituindo o da machina-homem
— a civílisação, tomando o logar do embrutecimento da
raça negra — a creação dos estabelecimentos onde o Es-
tado recolha, eduque, moralize e approveíte as creanças
.que houverem de ficar sob a sua tutella — o desenvolvi-
mento dos mil trabalhos importantes a que possam ser
:applicados esses braços, n'uma região cuja opulência
inter-tropical só braços está pedindo — o recolher dos da-
dos estatísticos sobre os vários pontos ligados com a
questão — o providenciar com ínstruccOes e regulamentos
.sobre os escravos actuaes ; o modo de os ir libertando ;
o uso do seu pecúlio e da sua redempção ; os excessos
vd'elles contra os senhores, ou více-versa ; a animação á
constituição das famílias ; as relações entre os livres
nascituros e os senhores de suas mães; afixação das obri-
gações jurídicas resultantes d'estas relações interme-
diarias — o regular prudentemente a matrícula dos es-
cravos presentes, de modo que se evitem fraudes e abu-
sos—o organizar os títulos trintannarios, que hão de
•compensar a creação até os 8 annos, estudando os ele-
mentos com que a esse ohus se hade fazer face— regula-
xisar a transferencia de serviços — estabelecer as bases
das associações especiass, efiscalisal-as constantemente,
para que em vez de auxiliares respeitáveis da sociedade,
se não convertam em f )co de especulaçõ3S — providen
13
ciar sobre o (ptantum das alforrias parciaes em cada pro-
Tiscia — vijriar sobre a applicaçflo do fuudo de emanci-
pação—dar destino aos libertos que pertenceram è na-
fAo, i coroa, á^ heram;as vagas, ao evento — promulgar
r8g:iilameut03 sobre a forma do processo especial — es-
tebelecer os registros parocbiaes, propor melboramentos
na lei das terras, approveitar o immenso território in-
culto para a iudustria particular, rasg-ar estradas, faci-
litar a immigraçau por incentivos, tratados e reformas
da leg-iálaçau ; e eiiifím as mil miudezas que, em tSo-
Tasto império e grave assumpto, a execução d'esta lei
e<tá apertadamente demandando.
O estadista, que sò é guiado por amor da pátria,
compreheude que, se é coroa para o governo estalei,
■fio menos os rubis que a adoranm, que os espinhos com
pie ella se crava na fronle dos invejados triumpliado-
tg ; e não irá, de rnSo beijada, multiplicar, com dis-
«rsofi vãos, ns dii&culdades. Se alguém lia, de coração-
So bolota, que de si para si approve a lei. mas sú a
dflie por ter de ser referendada por quem o hade ser^
oiiip«aeça-.se de si mesmo p da sua cadeira, e resigne-se.
Em logar menos elevado, certos estratagemas sio
xplícaveis ; mas na suprema corporação nacional, è-
Itster muito calculo, muita discriçilo, muito pro-
lifj : aquellas cadeiras impOem, para a cnsa, summo-
íoro ; para o homem, summa dignidade. Quem nella.-;
1 assenta, é perpetuo conselheiro da naeao, e tem sido,
t ou está nos circumstancias de ser, conselheiro dai'
deveiu todos v.8ses potentados parlamentares,
nliticos magnntes, ser homens da ordem, do governo,
t cotwtituiçíiu'. antevendo o hodie míhi, eras tibi, devem^
ipellir todas as praticas inroustitucionues ou alicanti-
eiraa, impróprias do homem publico em qualquer grau^
'i escala, torpes no que recebeu as mais esplendidas
rovaa de reverencia, da parte do povo e do rei,
A fliha de Prinmo aó proplietisava desgraças, e essas
ealinvam-se : na primeira parte parecem-se com ellic
I lUisos Cassandras políticos, mas nSo na segunda,
taças s Dáus. Tem-se vaticinado perturbações, suble-
kÕ^^ caíaclismoa, ruiuas ; e o certo é, que nund o
ftuc prãsear-.iou mais ocinviatia pa» que desde que esta
pesUto ie debate no parlamento, de cuja sabedoria a
kçAo estiem conliadamente a soluç-So da crise. Mais
Irídicos prophetas serão, sem dúvida, osque sustentanr
i lei de que se trata, facillima de executar, em
^
i
14 VII
cou.sequeacia dos excelleiítes iustiiictosdo pov), e aurora
do dia da dignidade, da liberdade, da opulência,. da
grandeza, e dos esplendidos futuros d'esta nação.
E' de uso hostilisarem o projecto, por não terem sido
para elle ouvidos os fazendeiros, os quaes se aílirma
serein-lhe infensos, e lá terem uma incógnita panacéa, •
un spéci/hiiie unif^ue^ qai tjaéril les maiix pcissé^^ présents^
fatnrs^ nonvecmc.
E que fundamento ha para serem considerados in-
fensos ? Sabemos todos perfeitamente a historia de
varias representações submettidas áo parlamento ;
sabemos que se os amigos do governo tivessem querido
lançar miXo de iguaes expedientes, teria apparecido o
décuplo das representações em sentido contrario ; sabe-
mos onde diversas tem sido fabricadas ; sabemos haver
casos de numerosas assignaturas, todas do mesmo
punho, e de outras, que nunca foram dadas para tal
fim, e contra as quaes os próprios reclamaram ; sabemos
que personagens que ha bem poucos dias percorreram
logares dos mais afamados pela energia das represen-
tações, se espantaram de ver que nenhum d'entre
centos de fazendeiros com quem praticaram, llies tocou
sequçr no assumpto que se pinta aqui como desvelando
todo Q^SQ interior ; sabemos de muitos cidadãos que
prestaram suas firmas, por condescendências de campa-
nário ; sabemos de muitos outros, cujas opiniões diver-
sificam tolo coeío das que subscreveram; sabemos que,
se ha certo accòrdo na destruição, não ha o minimo
nas aspirações e propostas, etc, etc.
Entretanto, onde está essa mesma apregoada unani-
midade, que nãLo significa senão minoria infima? Das
vinte províncias do Império, de todas as quaes havia
largo tempo para chegarem manifestações, sao apenas
três as que mór numero de escravaria possuem, e as que
tem com effeUo enviado algumas representações.
Se eu argumentasse com o que se passa em
.qualquer outra, lançar-se-me-hia em rosto nao haver
nella tão altos interesses comprehendidos : tomarei pois
lesta mesma do Rio de Janeiro, importantíssima por sua
riqueza e illustraçao de seus habitantes ; facillima '^e
manejar, pela proximidade da corte e facilidade de
communicações ; interessadíssima na questão, pelo
numero de escravos que encerra, e por serem aqui os
iseus principaes empórios. Pois bem ; o que acontece *?
Ha na província do Rio de Janeiro 36 municípios, e 137
VII 15
fregiiezias ; o que tudo representa 173 naturaes focos
de populaçílo agrícola ; e quantas sâo as representações
recebidas d'esta província, no parlamento ? líí ! Eis
ahi e>tá a unanimidade da opinião dos fazendeiros, na
província onde o projecto deveria ver enfeixadas todas
as condições mais desfavoráveis !
Ora agora, dado e nao concedido que os factos fossem
o contrario, tenho para mim que seria insustentável o
alvitre de nao decidir a questão, senão depois de ouvi-
dos 05 fazendeiros.
Concedo-lhes tudo : illustraçâo, patriotismo, impar-
cialidade, abnegaçílo ; mas aos legisladores hei de
conceder qualidades pelo menos iguaes. O peor é que
aquelltís illustres. cidadãos, considerados os mais pró-
prios para decidirem o negocio, sao, por isso mesmo,
aos meus olhos, p^r causa dos seus interesses, os menos
aptos. A clareza de vistas perde-se no interesse pró-
prio, como um rio se perde no mar ; ])or mais perfeita
que seja a nossa retina intellectual, o nosso interesse
pôr-nos-ha sempre óculos roxos ante os olhos, que assim
verão tinctos em roxo os mais claros objectos. Nestas
circumstancias todos nós, mesmo dotados da melhor fé,
mentimos involuntariamente ; espar-tar-se-hia a nossa
consciência se lhe fosse dado enxergar os esforços que
fazemos para simplificar o que nos parece confuso, para
confundir o que nos parece claro.
Se vingasse a lembrança de nao legislar senão depois
de consultar os interessado?, teríamos de substituir o
nosso raechanismo constitucional, convertendo todas as
cKsses n'ama espécie de tribunaes de consulta, ou
antes de juntas legisladoras, ou communas parlamen-
tares.
Trata-se de uma lei sobre assumptos ecclesiasticos ?
Congreguem-se os bispos, padres, frades, sacristães,
a sineiros.
De uma lei militar? Convoquem-se os generaes, coro-
néis, cabos d'esquadra, fornecedores e vivandeiras.
De alfandegas ? Tem a palavra inspectores, despa-
chantes, capatazias, e trapicheiros.
De forma de processo? Consultem-se as Relações,
Juizes de Paz, escrivães, porteiros e beleguins.
Do saúde pública? Legislem medicou, boticários,
parteiras, applicadores de sanguesugas e enfermeiros. .
De construccao naval? Brilhem agora os coutra-mes-
16 VII
três e mandadores, polieiros e torneiros, calafates &
carapinas.
Et sic de cwteris»
Deus nos livre : tal doctriua seria absurda. Ckda
membro da sociedade tem sua miss&o, como cada
tecla do piano tem seu som; tractent fabrilia fabri :0y
carapina aplaine, o enfermeiro vele, o beleguim citeo
o trapicheiro arrume, o cabo d'esquadra diga razOes, ^
sacristã chuche galhetas, , o fazendeiro agriculte-
e o legislador legisle. Tao ridiculo é um padre com
mandando uma brigada, como um major dizendo*
missa.
Nao sei como isto foi hoje, meu amigo. Dei o giro 1&
por outros bairros mais serios,e só agora observo que me
esqueceu o meu ídolo; eu podia facilmente accrescentar
algo mais, mas seria deslocado : quem sai da sala é im-
próprio ir para a cosinha; e nSLo se tratam no corpo da
folha objectos levissimos, só próprios de folhetim. Por-
tanto, adeusinho até a primeira.
Cà recebi o fumo; tu mandaste-o a mais alguém?
quem fuma, tem fumo; nao è assim ?
Tout à toi
ClNCINNÀTO.
Typ. e Lilh.—IMPARC1AL— Ru» Sele de Setembro o- 146 A.
QUESTÕES DO DIA
]sr. 8
RIO DE JANEIRO 22 DE SETEMBRO DE 1871.
VeDde-se em casa dos Srs E. & H. Laemmert. — Praça da Constituição»
Loja do canto. — Livraria Académica, Rua de S. José n. 119 — Largo do
Paço n. 12 C— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis*
01>r*as de Senlo— O Oavkolxo.
(Cartas a um amigo.)
VI
Meu amigo :
Hoje occupo-me apenas com o pampa, cuja descrip-
çao no primeiro capitulo do romance tantos louvores
tem grangeado a Senio.
Nao tenho tempo para mais. Escuta ! :
c Como são melancólicas e solemnes, ao pino do sol, as vas-
tas campinas que cingem as margens do iJraguay e seus af-
fluentes ! »
Melancólicas as campinas, ao pino do sol^l Defeito de
observação.
Que as selvas o sejam sempre, as selvas que natu-
ralmente vestem aspecto sombrio, de indefinivel tris-
teza, comprehende-se. Mas campinas, embora immen-
sas, embora solitárias, porém banhadas de luz !
Nao ha sitios descobertos, ao ar livre, como a sa-
vana, que apresentem melancolia ao pino do soL A
luz, que se diffunde como um diluvio, esclarecendo
tudo, imprime, ao contrario, no descampado uma fei-
ção radiante e bella.
E Senio tanto parece esposar esta opinião que de-
clara que. (( ao pôr do sol^ a physionomia crepuscular
do deserto é suave nos primeiros momentos^ e só depois
é que ressumbra profunda tristeza. » Oh ! Pois, si no
crepúsculo da tarde, quando uma solemne melancolia
envolve toda a natureza e portanto deve já ser triste
a savana, é, pelo contrario, no dizer de Senio^ stiave.
2 VIII
isto é, aprazível^ então ao pião do meio dia, quando
tudo é luz, calor e viJa, é que o pampa ha de ser ine-
ZancoZíco? Ainda mais: chega elle a dizer que nesse
momento (isto é, ao pino do meio dia) o pampa é mais
pavoroso do que a immensidade dos mares. Que pampa
seria esse que Senio observou e estudou ?
« No seio das ondas, o nauta sente-se isolado ; é átomo en-
volto n'uma dobra do infinito. As ondas se agitam em cons-
tante flucluaçílt) ; tem uma voz, murmuram. No firmamento as
nuvens cambiam a cada instante, ao sopro do vento ; ha nellas
uma physionomia, um gesto. A tela oceânica, sempre ma-
gestosa e esplendida (e porque nâo também o pampa?) ressum-
bra possante vitalidade. O mesmo pego. insondável abysroo,
exhubera de força creadora; miríades de animaes o povoam,
que surgem á fiôr d'agua.
« O pampa, ao contrftrio, é o pasmo, o torpor da natureza.
Em torno ao viandante faz-se o vácuo. »
Em torno do viandante faz-se o vácuo, no pampa ? E
porque não também no mar em torno do nauta isolado t
As miriades de animaes que povoam o mar surgem
(i flor d' agua? Prodigiol Nisto não pôde deixar de ha-
ver milagre de Santo António de Pádua. Caracterís-
tico do mar, ao pino do meio dia: os peixes deitara a
cabeça de fora.
« Lavor de jaspe, imbutido na lamina azul do céo, é a nu-
vem. »
As nuvens no firmamento do mar têm o direito de
cambiar, e no firmamento do pampa tem a nuvem o
dever de ser lavor imbutido, pela mesma razão porque
alli não pôde deixar de soprar o vento, e aqui não pôde
deixar de reinar a paralysia.
As ondas murmuram, é certo ; mas as altas hervas
da savana nao rumorejam ? Pois Seuio nao diz que o
pampa é n pátria do tufão? Nao é muito que onde
reina o tufão, possam também soprar galernos. Con-
clusão, que muito interessa à meteorologia: no pampa,
ao pino do sol, não ha vento.
« O cliâo semelha uma vasta /ajmrfa musgosa de extenso pa-
vimento. »
Ora, si a savana figura as fluctuações do mar alte-
roso, como se compara a savana com a lapida ?
<( Para a fujria dos elementos inventou o Creador as rijezas
cadaverícas da natureza; diante da vaga impetuosa collocou o
rochedo; como leito do furacão, estendeu pela terra as infindas
savanas da America e os ardentes areaes da África. »
O rochedo é com effeito uma rijeza. Mas as savanas
VIÍI 3
ondítlosaSf os areaes movediços seráo também t^ijezas
cadavéricas da natureza ?
« Arroja-se o furacão pelas vastas planícies; espoja-se n'ellas
como o potro indómito. »
Em suas Cartas sobre a Confederação dos Tamoyos^
estranha J. de Alencar ao poeta G. de Magalhães o
haver « d águia dos Alpes^ ao cysne da Greda, ao condir
dos Aiides^ opposlo por parte do Brasil a andorinha^ ave
de todos os paizes, » Pois bem : Senio compara o fu-
racão das savanas com o potro ! Como assim se ames-
quinha um dos mais magestosos phenomenos da natu-
reza americana ?! Quem dissera que Senio reproduzira
o preceito que devia condemnal-o ?
Queres agora ver o contraste mais vivo e completo *?
E' ura escriptor americano que vai descrever o fu-
racão. E' Audubon :
« Por sobre o continente americano — diz Audubon — nSo
pjassa o furac&o sem deixar traços. Quanto a mim, que fui tes-
timunha de um desses phenomenos terríveis, tão viva lem-
brança me ficou d'elie que talvez me taxassem de exaggerado.si
•eu reproduzisse a sensação de assombro que ainda me invade,
quando a memoria me representa os pormenores d'essa hór-
rida scena.
flf Jornadeava eu a cavallo. Achava-me entre Shawaney e a
ponta do Canot; lindo estava o tempo ; o ar meigo ; ia deva-
garínho o meu cavallo.
« Apenas entrei na garganta ou valle que separa a ponta do
Canot da d'Highland, obscureceu-se océo; cerração negra foi si-
mulando noite profunda. Parei, cheio de espanto; sentia ardente
aède, que saciei num arroio próximo.
« Para logo escutei uns sons vagos, sem nome em lingua
humana, um como murmúrio longo. Sobre o fundo tenebroso
do firmamento foi-se desenhando uma faixa oval e lívida.
« Os ramos superiores das arvores estremeceram ; depois
communicou-se esse movimento aos ramos inferiores. Num
relancear de olhos, vi os troncos estalarem em pedaços, desen-
ralzarem-se, fugirem ao sopro da ventania, e toda a floresta
rsar ante mim como torrente de agig antados e a terra-
es phantasmas. Esses troncos se embatiam e entrechoca-
vam em sua viagem.
« No centro da corrente tempestuosa, viam-se os topos das
mais grossas arvores forçados a tomar uma direcção obliaua, a
vsrgar : abaixo e a cima d'ellas, massa espessa de ramalnada,
galhos estalados, poeira erguida, tudo redemoinhava sob a
mesma impulsão. O espaço até ahi occupado por todas essas
arvores, nada era mais que arena vasia, ou antes coberta de
raízes, c destroços ; diríeis o leito do Meschacebe inteiramente
nú. As cataractas do Niagara não atroam com mais violência ;
não é mais poderoso o ímpeto da sua queda terrivel.
« Quando a sanha primeira do furacão se mostrou como que
tarta ou. cançada, milhões de ramos despedaçados revoavam
viir
ainda pelo ar, e a marcha da columna densa que ia assignalando
á passagem da tempestade perdurou ainda horas, como que
determinada por nfto sei que força de attracção.
« Cobrirase o firmamento de um véo esverdinhado e lu-
ffubre: cheiro de enchofre excessivamente desagradável impre-
gnava a atmosphera. Silenciosa e pasmado, esperei que a na-
tureza transtornada readquirisse, sinão a forma primeira, ao
menos seu costumado aspecto. i v «^
u Atravessei o leito da torrente aérea, conduzindo pela brida
o cavallo, que espantavam todos esses cadáveres dar\'ore9
despojadas e derruídas. ,
«As ruinas da floresta destruída jaziam amontoadas no
solo, onde formavam tâo espessa barreira, que obrigado, ora a
abrir vereda nesse labyrintho, ora a arrastar-me por debaixo
dos ramos enlaçados, ora a transpol-os de um salto, senti,
durante o tempo que a esse trabalho co.nsagrei, íaaiga
Daortal. , j ^«*^
« Essa columna de vento, que occupava côrca de um quarto
de milha, levantou telhados, arrebatou casas, forçou rebanhos
inteiros a emigrar violentamente pelos ares. Achou-se uma
pobre vacca morta no cimo de um pinheiro para onde a levaram
as azas dofuracSo. O valle ó ainda hoje um logar desolado,
coberto de musgo e de sarças, inacccssivel aos honiens: os
animaes de rapina o escolheram para asylo. » f Vid. P. Liiasies,
Etudes síir ta liUélrattire et les maurs des Anfflo-Américains.j)^^^'
85 e seguintes.)
Tanto tem esta descripçao de grandiosa e verdadeira,
quanto a primeira de apoucada e falsa.
Além de comparar a fúria do furacão com o potro,
vê, meu amigo, como Senio pinta a passagem do im-
ponente e horroroso phenómeno :
« A final a natureza entra em repouso ; serena a tempestade;
queda-se o deserto, como d'antes plácido e inalterável { Queria
dizer ifialterado.)
« E' a mesma face impassível ; nao ha ah surriso, nem ruga.
Passou a borrasca, mas não ficaram vestígios (Que insignificantes
borrascas são as do sul, julgadas por Senio ! )
« No tronco da arvore derreado, nos galhos convulsos, na to-
Ihagem desgrenhada, ha uma attitude athletica. Logo se co-
nhece, que a arvore já luctou com o parapeiro e o venceu. »
Pois se em consequência das luctas com o pampeiro é
que a arvore fica derreada, e seus galhos convulsos, e
sua folhagem desgrenhada, como é que 'passou a bor-
rasca e não ficaram vestígios ?
Mas a arvore luctou cora o pampeiro e venceu-o. Que
• arvore ! e que pampeiro! Já viste arvores colossaes pas-
sarem arrebatadas, estranguladas nas azas do furacão,
como acaba de nos referir Audubon. Senio porem affir-
ma que a arvore do pampa (Nrio falando nas altas her-
vas, a vegetação lenhosa do pampa é fraca e acanhada,
sem proporções, nem solidez para resistir ao furacão )
VIII õ
não só resistiu a este, porem venceu-o I E Senio nos
diz isto ! Mas continuemos.
« A trecho passa o poldro bravio, desgarrado do magote; eil-o
que se vai retouçanao alegremente babujar a grama do pro^
ximo banhado.
« Xas margens do Urugaaj, onde a civilisaçâo já babujou a
virgindade primitiva, etc. »
Uma das manias que perdem Senio é querer passar
por outro Colombo, descobridor de mundos novos, por
mares nunca d^antes navegados. Insiste, demora-se n'es-
sas novidades, com a intenção de imbutil-as *io idioma
vigente. Quer a todo o transe introduzir na linguagem
moderna — nomenclatura, phraseologia, que se attribua
â sua iniciativa e sapiência.
O vocábulo babujar é empregado frequentes vezes no
volume. Os diccionarios da lingua nao o trazem e so-
mente babugem, vocábulo este muito usado pelos nossos
homens do campo, para também significar a grama ras-
teira, que aponta com as primeiras aguas. Senio não se
contenta somente com dizer que o poldro baòuja ; e sem
se importar com o simile pouco lisongeiro a que dá logar .
:seu vaidoso capricho, faz também a civilisação babujar
(como cavallo) s. virgindade primitiva das regiões. Aqui
nao temos simplesmente o rebaixamento do homem ao
nivel de irracional, idéa fixa e capital de Senio em sua
obra ; temos mais que isto : o phenómeno supremo e
providencial da humanidade, a civilisação, exerce a
fuucção do^ bruto — babuja.
Descance também o auctor : ha de pegar a moda do
termo ; e d'aqui a pouco, sinão jâ, nílo só o Rio de Ja-
neiro, mas também o mundo em peso estará, nao a 6a-
bujar, que é a tal funcção especial do bruto, mas a sa-
borear, com enthusiasíica leitura, as bellezas e as novi-
dades do seu Gaúcho.
« Tal é opampa— conclue Senio.— Esta palavra, originaria da
lingua kicíuia (keckúa escreve o Dr. Martins em seu Glossário,
dando-lhe a significação de campo] significa simplesmente o
plaino ; mas sob a fria expressão do vocábulo está viva e pal-
pitante a Idéa. Pronunciae o nome, como o povo, que o inventou
(Como havia de ser que elle o pronunciaria ? ) Nilo vedes no
som cheio da voz (Ha pouco, a expressão do vocábulo era fria,
açora ha cheio som de voz ) que reboa e se vai propagando ei^-
pirar no va^^o, a ima^^em fiel da savana a dilatar-se por hori-
zontes infindos ? Não ouvis nessa maprestosa onomatopea re-
percutir a surdina profunda e merencória da vasta solidão ? »
(Aqui jà a solidão, isto é, o pampa tem uma voz, a
6 VIII
surdina: murmiira. Está claro que nao ha de ser ao
pino de meio dia.)
Nao ha duvida que é muito significativo o termo
pampa. Por mais, porém, que o queiramos, hao pode-
mos ver nelle um som (e os sons tamhem se vêem?) que
reboe e se vá propagando, e muito menos descobnr-lhe
onomatopéa.
Que indica tudo isto ? O fructo agorentado e fana-
dinho de uma imaginação, farta em bagagem de
cores vivazes para pintar os quadros da natureza real,
mas que só produz, inteiramente entregue a si, pálidos
e coatradictorios desenhos, onde sobresai a confusão
árida.
Lendo-se a descripçao do pampa por Senio, vê-se que
« essas solidões nao lhe serviram d^ gabinete de traba-
lho ; que elle nao percorreu os vastos desertos ; que nao
respirou o ar carregado de emanações da vegetação
primitiva » como fez o grande ornithólogp das mar-
gens do Mississipi e do Ohio.
O espectáculo verdadeiro do pampa está desfigurada
no Gancho.
Aquella nuvem nao está imbuíida no céo, divaga ;
aquella campina nao é melancólica^ mas expande-se e
surri ; aquella savana nao é o torpor ou o pasmo ou a
paralysia^ agita-se ; aquelle cliao nao se parece com
a lapida do claustro ou do tumulo, sinao com as sinuo-
sidades do vasto oceano ; aqueíle furacão nao se espoja
como o potro, mas subleva-se, contorce-se, revolve-se,
devasta e tala o deserto como vórtice ou cataclysma. A
natureza protesta contra o panorama traçado á custa
do prolongado esforço estéril.
Queres ver, meu amigo, um painel vivo e natural ?
E' a descripçao suave do pampa por G. Aimard.
Aqui nao se escreveu para encher um capitulo. Sao
pinturas rápidas, mas incisivas, próprias de penna
modesta e despretenciosa. Por via de regra, para dar-se
noticia desta natureza meridional, que é portento de
magnificência e formosura, nao se ha mister de longosr
desenvolvimentos, prejudiciaes sempre ao vigor e effei-
to das scenas.
« A campanha em torno de mim — diz G. Aimard — estava
deserta e plácida como no dia da creaçSlo.
a Os cães, vigilantes sentinellas, que durante a noite nos
haviam velado o repouso, levantaram-se ao ver-me, e vieram
festejar-rae com latidos alegres.
VIU 7
« O aspecto do pampa é dos mais pittorescos, ao nascer do
sol.
« Silencio fundo paira por sobre o deserto ; dir-se-hia que a
natureza se recolhe e recupera as forcas, ao desabrochar do dia
que enceta.
« Tremula docemente a fresca brisa matinal, por entre os
altos macegaes que ella inclina em ondeados e leves movi-
mentos
« Por aqui. por alli, erguem os veados as cabeças, tomados
de espanto, e circumvagam olhares temerosos.
« Os passarinhos, encolhidos de frio sob as ramagens, pre-
ludiam por algumas notas tímidas o seu matutino hosannah.
• Sobre os montículos de areias, formados pelas to(ías aas
vigonhas, poisam curujinhas indolentes e immoveis.como sen-
tinellas ; em sua meia somnolencia, deslumbradas pelos raios
do astro do dia, escondem as redondas cabeças na plumagem
do pescoço.
« Lá pelas alturas, urubus e caracanis bordejam em círculos
alongados, librando-se negligentemente, á feiçflo do vento, á
espera da presa sobre que hajam de cahir de siibito, com a ce-
leridade do raio.
« Assemelha-sp o pampa neste momento a mar de verdes e
calmas ondas, cujas margens se occiíllem lá por detraz das
dobras do horizonte. »
Eis ahi era rápidos traços o pampa. Opulento ou po-
bre de encantos, é isto. E' a natureza copiada com fi-
delidade photographica.
« A imaginação dos homens ãc génio, observou um crítico,
reproduz as paixões e os quadros do mundo, como espelho íieí
e orilhante repete bella campina, ou rosto regular ; a imagina-
ção falsa assemelha-se porém a esses vidros oblíquos, que o
óptico dispõe de modo que não apresentam reflexo algum
exacto ; ahi tudo nos apparcce ou diminuído ou desmedida-
mente dilatado. Uma está para a outra na mesma proporção do
retrato para a caricatura. »
No Gaúcho nota-se uma pompa, uma dema ia pala-
vTosa, sacrificando o pensamento á forma. Pede-se ahi
de mais à imag^inacão estanque.
E que succetle, afinal? Se ha hi forma que scintille,é
scintillar de lentejoulas ; é lustro de ouropel ; é cas-
quinha de brilho fictício e fallaz : mal roçardes o arte-
facto, conhecereis o inferior quilate da quinquilharia.
Desculpa, meu amipfo, a prolixidade, e permitte-me
voltar ao assumpto.
dC
[Continua)
8 VIU
Decima cax*ta
DO ROCEIRO CINCINNATO' AO CIDADÃO FABRÍCIO
Venerando amigo.
Rio de Janeiro, 21 de Septembro de 1871.
Recebi a tua carta, de 15 do corrente, e li com a
maior attençao o que passaste com esse respeitável fa-
zendeiro, de que me falas, homem illustrado e de bôa
fé, mas que, vivendo sempre longe doestes centros das
maranhas, entende que é ouro tudo o que luz, e
tinha-se deixado levar pelas declamações interessadas,
receando que o projecto sobre o elemento servil fosse
inconveniente, por prejudicar seus direitos e interesses,
por ameaçar o futuro d'este paiz,e por o stygmatizarem
homens distinctos, que todos considera só movidos dos
mais santos impulsos do amor da pátria. Mostraste-lhe
as minhas cartas, e pediu-te me consultasses ainda
sobre vários quesitos; a minha opinião é desauctorisa-
dissima, porém está à disposição do teu amigo, a quem
rogarás que tome esta carta, como a elle dirigida.
Antes porem de entrar na matéria, direi que em al-
gumas folhas da Corte appareceram, tempos ha, sob o
titulo Resenha^ uns artigos de penna valente, defen-
dendo theses mui diversas das que sustento, mas dis-
tinguindo-se por argumentação de ordem superior, e
muitas ve/.es por uma delicadeza e cortezia de formas,
que mesmo combatendo a quem neste ponto conside-
ravam adversário, tao dignamente o faziam, que nao
houvera sido desar o render-se a suas opiniões; nao
raro foram modelo de polemica. Appareceu depois um
notável Parecer do Sr. Conselheiro Ottoni, mui mere-
cedor de estudo attento, e bem assim uma analyse
d'es3e Parecer, composta e publicada por um respei-
tável Senador, sob o titulo de : Carta aos fazendeiros e
comimrciantes fluminenses sobre o elemetito seroil. Con-
sidero este folheto, vade-mecum em tal matéria; e pois
te envio tudo isto» fora talvez mais prudente esquivar-
me a emittir opinião própria, porque Deus me nao deu
grande geito para echo. Entretanto, com a devida
vénia, passo a responder aos quesitos do teu amigo.
Por via de regra, nada ha mais singelo e chão, que
o homem dos campos; por mais alta que seja a sua in-
VIII 9
telligencia, por maiores dotes que á natureza deva, a
sua convivência com as arvores e o trabalho toma-o
aatural, innocente, inimigo da simulação e de tudo
quanto contraste com a inteireza do caracter. Por isso
que a ninguém engana, suppõe em todos sinceridade
egual; por isso que núo calcula com os outros, imagina
que os outros a nao tomam a elle para instrumento de
seus cálculos.
Infelizmente o machinismo da forma do governo re-
presentativo appresenta compensações ás vantagens
d'elle ; e d'essas tristes compensações nao é a menor a
perversão do espirito, gerada da politica. Onde a todos
é licito aspirar a tudo, bem se concebe que a todos nos
insuffle a ambição, e que o natural amor próprio, —de
tudo, com verdade ou miragem, nos proclame ca-
pazes.
E' assim que, entrQ nós, se entende a politica. Este
vocabulo,que na sua origem significava a arte que rege
a cidade^ a nação ; a arte social, por excellencia ; o
grande estudo dos interesses geraes de toda a ordem,
que deveria ir buscar no thesouro dos conhecimentos
humanos quanto contribua para o bem dos cidadãos ;
o approveitamento de todas as forças vivas para pro-
gresso material e moral da commuiiidade; a creação
de um impulso motor, appropriado á Índole do mecha-
nismo social, e à educação, á instrucçao, às tradições,
às aptidões, e á historia de cada povo ; o estudo das
áuccessivas alterações das cousas, mesmo quando ainda
conservam nomes que já nao deveram ser os seus ; o
dissipar das illusOes e o accompanhar a razão pública :
— vocábulo, cuja base Aristóteles assentava só n'este
princípio: o justo e o honesto, — tem hoje sigaificaçao
muito diversa: a politica é qualquer conjuncto de
traças, ardis e tretas, com que se sustentem ou com que
se derrubem ministérios.
Já nao merecem o epitheto de homens políticos os
Alexandres, Césares, Pedros Grandes, Freaericos, Rí-
chelieus, Washingtons, Pombaes ou Pedros Primeiros,
esses que, ua pratica do poder supremo, exerceram
larga influencia nos povos, e fizeram triumphar seus
systemas e planos : politico de polpa é o discorredor que
injuria freneticamente um ministro ; corretor eleitoral
mie falsifica bem uma urna ; Protheo que bajula ou
mtraja as alturas, a talante de sua conveniência.
Máxima questão politica é que o Conselheiro Quincas
10 VIII
substitua no poder o Dr. Manduca : em aquelle che-
geando ao tal poder, fará o mesmo ou menos que este,
mas a mudança trará os applausos dos candidatos ao
coffre das graças e ás migalhas do orçamento, o que
tudo constitue um dos mais flammantes capítulos de
politica transcendental.
Ora como estasciencianao excava cérebros, accontece
que, a par dos raros engenhos privilegiados, aptos para
empunharem as rédeas de um Estado, surge ahi um
formigueiro, um fervedouro de salvadores da pátria,
de inventores de panacéas, de Codros e Curcios polí-
ticos, de missionários sem missão, de procuradores sem
procuração, de Mentores sem Telemacos, de politiquei-
ros ou pelotiqueiros sem o senso commum.
Le rnonde marche em tão desabrido galopear, que o
menino saldo da eschola já faz bico á idéa de ser de-
sembargador, deputado, ministro, e até senador com
dispensa de edade.
Silo tantos, por isso, os candidatos ás elevações, e
estas siio proporcionalmente tao poucas, que a nossa po-
litica toda consiste no jogo do empurra: ôle-toi de fó, <yu#?
je my meíle ; os dez que estão de dentro sao rechaçados
pelos trezentos que estão de fora ; os alcatruzes que
descem insurgem-se contra os que sobem ; e é a este
vai-vem, a esta cerração da velha, que ahi decoram
com o harmonioso nome de equilíbrio constitucional.
Ha quem pense que n'aquella ordem de ideas lan-
ça raízes o facto que presenciamos. A questão ãt^
elemento servil, tal como o governo a concebeu é
nobre, previdente, sympathica; poucos homens illus-
trados a repulsam por convicção; mas não se pres-
tava ella a servir de instrumento politico da tal pe-
lotica ? Facillimamente.
Os dissidentes ( exceptuo sempre os de boa fé) esfre-
garam as mãos, dizendo: — « Bôa arnlfe politica é esta; a
educação do paiz, suas tradições, alguns interesses,
disposição de alguns ânimos, alguma audácia, algum
talento, alguns inconvenientes reaes, tudo isto bem
aproveitadinho, pôde dar com este governo eui terra:
mãos á obra ! »
E na mais incestuosa união, fundiram-se as mais
oppostas legiões, todas accordes no plano da demo-
lição, cada uma com diverso pensamento reservado.
E republicanos, diceram: — « Extremos tocam-íe:
Russias e Estados-Unidos sympathisam. Os toleran-
vm 11
tes que aceitam o motto: fraternidade ou morte, tam-
bém aceitam a instituição do captiveiro. Toca a des-
moralisar o projecto do governo; toca a attribnil-o
á pressão de uma cousa, que alcunharemos Poder
Pessoal; toca a tornar odioso o monarcha, odiosa a
monarchia, e desfraldaremos nossa bandeira victo-
riosa. »
E liberaloes, diceram: « Que importa ser tanto essa
a nossa convicção que aííirmarnos terem-nos roubada
uma das clausulas do nosso programma ? No thea-
tro da politica, admittera-se as mudanças á vista e
as magicas, et nos miitamur ia illis. Oppondo-nos ao
projecto, baqueará o governo, substituil-o-bemos nós,
e o Faustino tocará o liymno ! I
E dissidentes, diceram ! ! Nos quoque gens sumus; cr-
ganise-se um ministério com 38 pastas, e volverá o
reinado d'Astrea. Como não querem, sentiráo o peso
da nossa justa indignação. Tanto faremos que o go-
verno hade saltar; e visto que a situação é conserva-
vadora, os naturaes herdeiros do defuncto, seremos
nós. »
Eis ahi politica, politica e sempre politica !
D'est'arte cahio sobre o espirito dos fazendeiros
um enxame de evangelisantes, entre os quaes ha muito
advogado talentoso, muito bacharel habilitado, muito
sophista destro, e também muito pescador d'agua&
turvas. Depois de lhes circumcludirem os ânimos,
apresentaram-lhe a papinha feita, e muitos se deixa-
ram r.ahir na armadilha.
Assim se prestaram esses a servir de manivellas
a aspirações monarchómacas, diametralmente oppostas
aas seus pensamentos de ordem e de respeito ás ins-
tituições juradas; arriscaram-se a passar indevida-
mente por escravocratas, por homens que nao fossem
da sua naç&o e do seu tempo ; abaixaram-se, esses, os
maia beneméritos cidad&os, a servir de degraus a
planos subversivos ou a combinações degradantes.
Com quanto, como já demonstrei, os fazendeiros que
representaram contra o projecto constituam tao infima
minoria que nao chegam a um por cem, esses mesmos
que se deixam adormecer por paradoxos, cedo se es-
7 uivarão á acção anesthesica do tal chloroformio po-
itico,
Acordarã.0 para a verdade e para a luz, quando vi-
rem:
12 VIII
— que a instituição derruída no mundo inteiro nao
podia perpetuar-se no Brazil;
— que nobre será a sua extincção,. quando nenhuma
pressão externa ou interna subjugar este paiz;
— que qualquer d'estas poderia vir a surgir, se
adormecêssemos ;
— que então já para os possiveis cálculos actuaes
do rasoavel interesse, poderia dar-se aquella locução
fatal: £' tarde !
— que pelo systema do projecto se conciliam, até
onde podem ajustar-se, os direitos dos escravos e dos
senhores;
— que se alei civil estabeleceu, contra jus, a insti-
tuição, melhor pôde, com jus, modifical-a em tempo,
em circumstancias, emjufidicos effeitos;
— que a liberdade do ventre é pensamento ouasi
geral, desseca a fonte da monstruosidade, e proclama
um facto sem contrariar um direito;
— que o pecúlio e a redempção, não somente são
faculdades naturaes, mas nada innovam nos usos da
terra;
— que a serie de providencias destinadas a tornar
cada vez mais brandas as relacOes entre o servo e o
servido, são reflexo do successivo abrandamento com
que os nossos costumes se temido civilisando;
— que conservando-se a actual escravaria, só com
equivalente indemnisação do serviço pode o senhor ser
privado dos braços de que dispOe;
— que insultam e calumniam os senhores de escravos
os que falam de degolação de innocentes, injuriando
assim os sentimentos de cidadãos, que de homens trans-
formam em feras;
— que a lei não desorganisará o trabalho, e dará
tempo e meios de o ir vantajosamente modificando;
— que devendo geralmente ser approveitado pelos
agricultores o serviço dos nascituros, até que comple-
tem a edade dos 21 annos, teremos ainda, durante al-
guns decennios esse valioso concurso;
— que chegado o dia em que esses cidadãos possam
dispor de si, escolherão, na máxima parte, a continua-
ção do serviço nos mesmos estabelecimentos onde ten>
vni 13
parentes e onde foram nascidos e educados (sempre
que liouverem sido humanamente tratados);
— qne, se se considera preciso para conviverem es-
cravos c livres, que estes tenham melhor alimento,,
vestuário e tratamento, bem vinda seja a lei que in-
duza os senhores a collocar todos no mesmo nível,
quanto a estas legitimas recompensas do trabalho hu-
mano;
— que, desta melhoria geral do tratamento d'esses
valiosos instrumentos resultará diminuição de mor-
tplidade, augmento de forças e productos, alegria e
bem estar dos operários, vantagens reciprocas para o
servido e o servo;
— que, a condição livre de largo número de homens
elevará dentro em pouco a altura da civilisação;
— que, todos estes progressos tornaráõ cada vez
mais amigas as duas raças, que os preconceitos ainda
hoje separam;
— que dentro em pouco veremos entre nós honrado e
facilitado o trabalho, e com elle o desenvolvimento da
intelligencia, da moralidade e da riqueza nacional ;
— que só então accudirao espontaneamente a estas
plagas hospitaleiras correntes d'immigrantes indus-
triosos ;
— que nesse dia o concursq do trabalho livre de es-
trangeiros e indígenas operará milagres ;
— que a experiência, em toda a parte, ha mostrado
que a extincçao d'esta praga tem sido aurora de im-
menso progresso ;
— que esta modificação induzirá os agricultores a es-
tudar mais a sua especialidade, a introduzir novos
systemas, a empregar a machina e o vapor, a; dispen-
der com melhor êxito menor copia de forças vivas ;
— que finalmente nos cobrirap as bênçãos de Deus,da
humanidade, da raça libertada, e da nossa consci-
ência.
Tal é a minha convicção profunda, meu amigo. Er-
rarei eu ? Não o creio. Sou echo da opinião pública,
da imprensa, das associações, da grande maioria da
camará dos deputados, da quasi unanimidade do se-
nado, e do illustrado Governo a que está reservada a
maior gloria com que Estadistas podem ser recompen-
sados. Politica, sim, é isto. Quando actos similhantes
transformam as sociedades ; quando da seara opima
é por mão firme arrancado o joio ; quando a humani-
14 VIII
dade avança mais ilma etapa na marcha da grande ci-
•vilisaçao, os coros da terra e dos anjos exultam 6 en-
toam novo hosannah ao Senhor.
Perdão. Creio que estou mais carregado e sombrio
<io que devera, e tu gostas : desculpa ; emendarei
a mão.
Teu dedicado amigo
ClNCINNATO.
A Escravatura no Bx^azll.
NOTÁVEL DISCURSO DO SR. PARANHOS.
Sob este titulo publicou a Nacion, de Buenos Ayres,
Tim artigo, que sentimos nEo poder reproduzir na inte-
gra ; mas eis aqui alguns trechos d'elle.
. Quando a Rússia, vencida pela civilisaçao occidental
emSebastópoli, em si mesma sereconcentrou, e estudou
:as causas da sua debilidade e derrota, achou-as no ele-
mento servil; e para logo emancipou os servos da gleba,
-chamando-se desde então Rússia livre.
Quando o Brazil, vencedor na guerra contra a tyran-
nia do Paraguay, deu conta a si mesmo das causas que
geraram tantos esforços e resistências, e ura tanto lhe
aguarentaram a victoria, achou-as na escravatura ; e
para logo se occupou de extirpar cancro, que poderia
acabar por corroer todo o corpo politico e social.
Quasi todos os povos que esta grtlo reforma operaram,
que romperam os grilhões do escravo e arrojaram seu
ultimo elo aos abysmqg do passado, fizeram-no em meio
de grandes crises e dolorosas convulsões.
A America do Sul, e à testa d^ella a Republica Ar-
gentina em 1813, proclamou a liberdade dos ventres,
ao matutino arrebol da revolução de sua independên-
cia, e resgatou os escravos com as rendas do Estado,
levando os libertos de raça ao campo de batalha, a com-
batera a par dos libertos coloniaes.
O Estado Oriental aboliu os últimos vestígios da es-
cravatura, quando Rosas o invadiu ; os seus libertos
foram núcleo e nervo da defesa, no immortal sitio de
Montevideo....
VIII 15
O Brazil, como a Inglaterra, pode hoje operar esta
magnifica reforma em meio da paz, sem nenhuma pres-
são externa ou interna, dependepdo a sua solução no
Brazil, como antes dependeu na Inglaterra, do voto
illustrado e livre do parlamento, que pode immortali-
zar-se em um dia, firmando a carta de emancipação dos
•escravos do porvir, preparando a extincçSo da escrava-
tura como instituição, e como facto inconsistente com
« civilisação moderna, com a moral universal, com a
•conservação social, com a prosperidade pública, e até
com o decoro internacional.
Ha jà tempos, que esta revolução de idéas e senti-
mentos se vai no Brazil operando, nao só na opinião
illustrada do império, senão também nos interesses bem
-entendidos dos productores, que chegaram a formar
4ima espécie de consciência pública, a qual, reagindo
contra o facto e o direito de tão barbara instituição,
tem dado ponto de apoio á reforma no passado ; e, tor-
nando-a factivel no presente, hade contribuir para fa-
xel-a fecunda no futuro.
Aspiração dos grandes pensadores, desde os primei-
ros dias da independência do Brazil; convicção dos eco-
nomistas, que profundaram as suas questões agrícolas;
paixão geuerosa em charac teres elevados, que no escravo
reconheciam creatura de Deus, feita á imagem e simi-
ihança do seu irmão, o branco ; previsão nos Esta-
distas, enxergando a impossibilidade da prolongaçãa
do captivciro, no dia era que o mundo todo emancipasse
os escravos ( como jà succedeu ), ficando essa nação
isolada no mundo, como excepção da moral e da liber-
dade universal ; — a extincçâo, mais ou menos gradual,
da escravatura no Brazil, é facto fatal, irrevogável,
3ue obedece à lógica das idéas e â força das cousas, que
omina todas as vontades como aspiração sublime,
solução económica, e facto que nada e ninguém pôde
impedir ou retardar.
.... A abolição da escravatura depende hoje do
voto das suas camarás, ou antes não depende já de
niQguem, porque taes questões, quando enterreiradas,
resolvem -se por si mesmas, sem que desde então de-
pendam já do voto fallivel dos homens.
E não obstante, era mister coragem cívica, intrepidez
politica, amor á idéa, para soltar o signal d'alarma, e
romper decididamente a batalha com o facto trium-
16 VIU
f
phante, as jpreoccupações, os interesses illegitimos ou
raal entendidos, e as combinações possiveis dos politi-
cos de parlamento que, para seus fins particulares, fi-
zessem fogo contra bandeira nao erguida por elles,
ainda quando nella vissem inscripta a lenda de um dos
principios do seu credo.
Prosegue o escriptor na descripçao do estado da
Brazil, e dos seus partidos, bem como do amadureci-
mento da grande idéa; e fazendo justiça aos altos e ex-
cepcionaes dotes do alferes que empunha aquella ban-
deira, em torno á qual, dentro em pouco, todo o Brazil
se apinhará, o Sr. Visconde do Rio Branco, exalta e-
gualmente o seu valor, a sua paixão moral....
O sr. Paranhos, com quanto comprehenda as dificul-
dades e as resistências em que tropeça, nao assume at-
titude arrogante. Nao se appresenta aos compatriotas
como excepção, nem como propheta destinaao a con-
verter incrédulos, nem como força que imponha con-
vicções : é singelamente o homem da crença e da pa-
lavra, que joga num dia tudo por tudo, em nome e na
interesse de uma grande idéa, estribando-se nas forças
sociaes, na consciência pública, nos próprios interesses:
buscando seus antecedentes na tradição, sem por isso
deixar de confessar a doctrina humana, e de collocal~a
sob os auspicies da moral do género humano, de que
os brazileiros e os seus escravos constituem parte.
Continuando no mesmo espirito este notável escripto,
dà-se ampla noticia de um dos memoráveis discursos
do sr. Presidente do Conselho, cuja fronte, nesta sessão
f)arlamentar se engrinaldou de tao imraarcessiveis
ouros, que nos fastos do Brazil nao ficará pagina em
lettras de ouro tao esplendida como a que hade ins-
crever os nomes de tal Estadista e de tal Governo.
Typ. e Lith.— IMPARCIAL— Rua Sele de Setembro n* 146A.
QUESTÕES DO DIA
N. 9
BIO DE JANEIRO 28 »E SETEMBRO DE lff71.
VeDd«-s« *m rasa dos Sis. E. & H. Laemiacrl.— Pra^ da Coaslituigftg* I
l,o>* do raalo.— Livraria Academi™, Rua de S. José u. 119— Larpi *
paço D. I3C.— Rua ãe Gonçalvcti Dias n. 79.— Pre^ 200 reis.
D. Pedr^ Px-lmelro.
IINTE B aCATRO DE SEPTBMDEO.
Kra Umbem um rei ; também poderojo e grande.
Subvertera montes, entulhara mares, erguera moiiu-
meatos rom que a reg*!!!» da.i nuvens se atfroutava.
Em todo isso.... E todavia, alargando olhos, do
fmiiie de um rochedo, por extensão sem fim, toda co-
berta de inaiimeravel numero de homens, alag'ada d
nm exercito infinito. Xerxes chorou ! E mais, exércitos 1
e montes, povos e mare.s, tudo aquillo era seu.
D — Choro — dixia — porque, em cem aunos, d'enl.re ]
tantos nem um restará. »
Nestes dias de imraeusa dôr, subamos ao rochedo de
^erxes, e roasoiemo-nos. Baixemos olhos por sobre
rase universo, que iios pés nos redemoinha; observemos
9 taceisaute martellar do Tempo leve ! Mundo juncado
je ruínas; perpétuo batalhar dasg-entes com as geutes,
dos reis <^>m os reis, dos impérios com os impérios :
triampho? e derrotas; grandezas asmagadas e insigni-
flesDcia^ erg-uidas; incêndio, devastação e morte, ar-
Toradai em arautos de civilização. Estendei a vista em
lAmo: aqui, um apunhalado ; além, um coroado de
^touros : d'aquelle lado, um feliz, levado em carro tri-
impbat a capitólio ; d'este, o mísero, (]espe.ihadu da
Tarpeía. Danças e jogos ante vós: alli pranto e deses- |
lersção : no longe, incensos; no perto, maldicçoes... E
I iQfSiiio homem, ínstauteapós instante, segue asort«
i'es«es tantos que a vista abarca: — louros e dansas,
|Bs««peraçao e pranto, inceusos e maldicçOes, Tarpeia e
^^aipitolio, nascimento e morte, tudo isso é commum.
E oao é só o exercito de Xerse.s; é toda a humani-
2 ' IX
dade, que hoje vive, e se a^ita, e se revolve, e pratica
êc<í0e» grandes, e commette crines negros, e chora, e
ri, e corre, e võa, e conta com uma eternidade de exis-
tência, que amanhã... amanhã será toda pó de ca-
dáver.
Paia bam I a essa lei commum da humanidade, tam-
bém EiXK cedeu. O frágil involtorio caiu pedaços ; e o
que era mortal, passou. Que admira'? Mocidade, belle-
za, força, poder, nada retarda um instante o golpe da
inevitável foice. Ainda rodeado de todas essas vanta-
gens, dirieis em cada homem um conjuncto monstruoso
de dons companheiros inseparáveis; ao vivo anda sem-
, pre abraçado o inorlo^ que só larga o companheiro no
dia em que pode, triumphante, calcal-o aos pés de es-
queleto.
Bem I Morreu o que podia morrer.
Mas dessa tirannica lei, libertam-se alguns raros, ra-
rissimos nomes, que, desprendendo-se do que nelles era
terra, sobem fulgurantes ás ethereas regiões, para d'al-
li, planetas brilhantes, admiração de todos os povos e
de todas as edades, affroutarem a eternidade.
Esses nomes são raros ; tal mixto de eminentes qua-
lidades exigem, que a antiguidade os denominava semi-
deuses, e os séculos correm sem junctar um só à curta
lista d'esses eleitos do Senhor.
Um d'esses, embora caia ceifado em flor : para elle
não ha somno eterno, nem somno longo. No momento
mesmo era que fechou os olhos, a humanidade em peso,
com a sua voz grande, q^ue também é voz de Deus, bra-
da como elle : Swge qui dormis, et exurge a mortais!
Succumbiu, neste dia, um d'esses que o mundo ve-.
nera unanime como immortal modelo do rei, do sol*
dado, do legislador, do philosopho, do esposo, do pae,
do cidadão, e do homem.
D. Pedro, que ha 37 annos existia cheio de vida e
força, e juventude e esperanças; que libertava dous
mundos; que, nos campos da batalha, semelhava o anjo
da tempestade, que, tranquillo, no seio de um turbi-
lhão, dirige os ventos, impera aos furacões, e aponta
ao raio onde hade ir fulminar... hoje! desengano atroz!
jaz alli, naquella terra irmã, mudo e quedo, inanimado
corpo sem coração, esse coi^po onde um coração im-
menso palpitou, como nunca outro algum, por quanto
no céo e na terra ha nobre !
IX 3
Se porém na eterna mansão dos justos podem as al-
mas exultar, lá estará hoje o fundador deste império
implorando novas bênçãos sobre esta terra tfto sua,
e danda as derradeiras graças ao Senhor, por vêr
emfim coroada a obra que emprehendêra, e que nunca
hoav«ya sido completa, emquanto nao tivesse sido
promulgada, como acaba de o ser, a redempç&o de
todos os homens nascidos neste torrfto abençoado.
Desta grande obra, a semente foi lançada pelo rei
philosopho.
Retumbem por esses échos o estrondo dos canhões,
o dobrar dos sinos, os saudosos lamentos ! Revista-se
toda esta redimida sociedade de lucto e de dó ! E
aprendam as gerações futuras, que, no século XIX,
só uma cousa houve, egual ao immenso amor de um
monarcha... foi a perpetua e immensa gratidão dos
povos que elle remiu !
•Os leitores nos agradecerão, sem duvida» que os presenteemos
com o seguinte mimoso inédito, em que a delicadeza do sen-
timento disputa primasias á appropriada singeleza da forma.
Tivemos de vencer a modéstia de seu auctor, que se julga
tanto menos do que vale,quantos outros valem menos do que se
julgam. E' distincto membro de uma familia,na qual o talento,
nem por ser hereditário, diminue o património de cada um, da
mesma forma que a tocha nSLo diminue o fulgor da tocha a que
se aceendeu. Se, nessa familia, não distingue o engenho sexos
nem edades, mais de uma vez a foice da morte veiu invejosa
ceifar em flor, ou em já esplendido fructo, esperanças que des-
cortinavam horisontes sem limite. A amostra, que oraj damos,
é também sympathica, pela natureza do assumpto inspirador
desta poesia : que aromas não.rescende o amor dos amores, o
do joven filho a seu provecto pae I Não ha entre as harmonias
da natureza outra que mais suavemente faça vibrar as fibras do
coraç&o/ Oh/ feliz aquelleaquem é dado poder prestar estes
preitos a ura pae !
IX
Três ô« «f-ulHo. "
Hontado velho I
tu na estrada da honra me pozeste.
QíLTTetí—CamôeJt.
Cada poeta na lyra
canta o amor que lh'inspira
o bater do coração.
Deixas . que eu consagre um canto
ao pae, nos risos, no pranto,
minha mais doce affeicao. *
Os mares beijam as ilhas ;
as flores, dos troncos filhas,
ennastram gentis o chfto,
que adorna a mimosa planta,
que para os céos se levanta,
como que em pia oração.
Pendem os fructos dos ramos,
e a beijar os encontramos
annosa, tosca raiz.
A flor, a fructa cahida,
no tronco que lhe deu vida .
tem um pae, que a fez feliz
Se a planta frágil é grata,
se nos orvalhos de prata
alenta a côr, que se esvae,
ganha perfumes e viço,
meiguice, brilho, feitiço,
para coroar seu pae,
ai, não te admires se venho
trazer as rosas que tenho,
tua grinalda formar
com tão míseras florinha-s ;
pobres, como eu (que são minhas),
a ti que as fazes brotar.
II
Ao meu primeiro vagido
ancioso prestaste ouvido,
escutaste esse meu ai!
e teus olhos me disseram :
« Por ti meus braços esperam !
« vem, filho, abraça teu Pae.»
E déste-me um beijo sancto ;
libaste logo esse pranto
com que o infante acolhe a luz :
foste-me seio d^amores,
como orvalho que nas ^ôres
suspende o sol que reluz.
Dentro. d'um berço— meu ninho—
concha d'amor e carinho—,
aquecftu-me o teu amor.
Deste vida ás ondas mansas
doesse berço d'esperanças,
que ficaram sempre em flor !
O meu passo vacillante
seguiu, meu Deiís ! foi avante,
guiado por tua mao.
No bater igual, perfeito,
deparei dentro em teu peito
echo do meu coração.
Do livro a. primeira folha
quem me abriu, de sua escolha ?
quem a peqna me estendeu ?
quem me apontou da scíencia
branda luz, com paciência,
foi o Pae que Deus me deu I
Plantaste muito, é verdade ;
mas não qui? a divindade
Íremiar o teu suor !
iveste tantas colheitas
n'outros. filhos, tao perfeitas !
devia esta ser menor.
BH
m I ■llWll^ipill.Wl^.l^ft^jn.r^:.,,..."
IX
Deram outros c'rôa e palma....
dou-te murchas flores d'alma,
nascidas de puro amor.
N&o tenho os raios da gloria,
para teu nome na historia
douràt de novo fulgor.
Sim, meus irmfU)s foram grandes !
Também meiiores que os Andes
ha o monte, o valle e o chão !
E n'uns e n'outros o dia
com perennal harmonia
ostenta de um Deus a mSo.
Tiveste illustrados filhos.
Inda esplandecem os trilhos
do breve caminho seu.
Nao, nâo; nfto tenho esse brilho,
porém sou também teu filho,
e bom Pae lambem és meu.
Ter Pae ! é cousa tao doce I
O mesmo Deus humaiioii-se
para ser filho. •— Jesus,
quando a libertar-nos veiu,
deixou o materno seio
mas ao Pae voltou da cruz.
Teus filhos — doçura, enleio,
acham no paterno seio,
remedio.s promptos á dor !
Teu coração nao tem raias :
immenso mar, mas sem praias,
transborda sempre de amor!
Acceita este canto. — é preito,
qne vem render-te meu peito
eoffre de amor filial.
Viiiarda a grinalda; essas fiares
i)rotaram murchas, sem cores.
d'este m^n peito no vai.
IX T
N'esta pude e pobre offerta
vai minh'alma, em flor aberta,
osculando a tua mão,
no Urro de nossa vida
ínscreTer agradecida
um só nome — g-ratidao.
Rio de Janeiro, — 1871.
Oaz*ta I.
wir.cir^rií^to a Síir^proaio
SemproDio amigo.
Agradeço cordialmente as admiráveis cartas em que
me tens ido fazendo a analyse do famoso Gaácho^ com
intelligencia e agudeza critica tal, que me parece a
tuapenna, ncdelo para similhantes e.studos, e digna de
applií^ar-L-c á appreciação de trabalhos de vulto. Sim,
pennas, cora( a tua, devem ter mais alta missão, mas
emfim, b'?m laja quem foi origem de lucubrações tao
valiosas, na e;^encia e na forma, como estas cartas são.
Mandas-me com a tua 4* carta, um exemplar do
(ittâcho, pnra dn^ eu, confrontando-a com o documento
original, te dii^a se és severo ou justo. Já que me per-
mittos. dir-te-iei que me não pareces justo uem seve-
ro : em vez de rigor, lia ahi brandura ; longo de jus-
tiça, ha favor los teus julgamentrs: afHgura-se-me que
ainda (M>u'*ede ao escriptor qualidades imaginarias,
em desconto de-eiis peccados. Agora que li o tal livnn^o,
lenho para min que no seu auctor venernroi de bòa
ii:en!c uma e%:c.lienie pessoa: mas como escri])tor, isto
não é mais queim operário da couimuna lilteraria,
dí-molidor feroz, petrolisador iutellcctua!, di.iruo mo:n-
brod'1 direriori( da Eschola Coiívbrn.
N<»st;i lua -i"* ca-ta, dissecas brilhantemente u I" cvjpi-
tulu do Gaúcho, i aiuda assim saltas ])or sobre Uiil hei-
h'Z(ts^ prova\eimaite porque, para aquilatal-as todas,
houveras precisalo Oi 60 volumes in- folio da Etiri/do-
j ''tl.'(- Melhoúico.
Concordo ccaiiti^o : fite cscreved^r tem ;. mauiít <la
ê IX
novidade.^ U lui faut du nouveau, quand il n'y en a ptus;
logo no proemio doesta cousa, nos diz elle que na no-
vidade é que elle acha o sainete ; é da raça dos taes que
nfto hesitarão em descrever o mar como encarnado
e o circulo como bicudo, só para conquistarem a gloria
de ceifar estranhezas, e dar à luz novidades; foi queiA
aconselhou Alcibiades a cortar o rabo ao cão. Onde
a imaginação lhe parece frouxa, ou desenfreada, pou-
co importa; acceíta-se tudo: às maiores hucuras,
chamarse originalidade; o devaneador é chefe de es-
chola, e já que n&o pode brilhar pelo senso oDmmum^
contenta-se com o pechisbeque de casa:
Quand onn'a pasce que Ton aime,
il faut aimer ce que Ton a.
Tons carradas de razão em quanto pondera,mas reco-
nheço que muito te arriscas,porque, segund) parece,até
este Deus tem seu pagode, com os competentes adorado-
res ou pagodeiros. No L. 4 de varia Histeria da índia
Oriental cap. 8, escreve o Padre Fr. João dos Santos,
que nas terras do Malabar, de que é sentor o Çamoriy
rei de Calecut, ha um pagode a que em <ertos dias d^
festas, acodem uns endiabrados devotos, chamados
Amoucos^ e mettem-se pelo. meio da geite, apostados
a matar quantos poderem, em^ honra e lOUvor do seu
nume, até morrerem na contenda, como de ordinário
succede depressa, porque, como sua vindié sabida e es-
peradc^fha muita vigia que lhes sai logp ao encontro,
e peleja até dar cabo d'elles ; e com esta>arbara solem-
nidade se. celebram as festas d'este jagode. Fernão
Mendes diz que se untam com o nngfienUminhamundy.
Ouço que alguém se anda por ahi minlamundyzando,
m^s por ora ainda a cousa se reduz a iicensos e genu-
flexões; e isco é innocente; agora quemem dia de festa,
for fazer das suas no pagode, muda o 3aso de figura.
Continuando pois, direi que o tal cçitulinho, a me-
lhor cousa da melhor obrado melhor atctor, objecto dos
espantos de espantadiços,tem, nas pousas linhas de que
se compõe, outras muitas curiosídadbs, além das que
notaste. Bem as viste certamente, mai não te abaixaste
a indical-as. Permitte que eu U apcnte para algumas
d'entre tantas outras :
— « A savana ondula pelas sanitas, que figuram • as
fluduações das vagas nesae verde ocuauo... A^ ondas
«e agitam em constante fluctuação etc. »
Oiide se viu riqut:za mais pobre í Fííícípís é ouda :
fluctuação é a agitação ia onda; ondular (se é (jue »\istej
jt^Difica imitar o movimeuto da onda. Que eluqueacla
è est« verbosidade, i^ue está dando em cíqco viubjriâ
1^ trocos dos tojtOes ! Quem diz fluduaçilo teia dito
o^itacãQ das ondas, eex|)rime~se tristemente quem escre
ve ; « as ondas se ugilam em ductuaçao " • o restante
eciparralbamentu que por alií fica.
Nao era isto que Frederico II chamava a abundância
estéril de Bernis f
— « à trecho passa o poldro bravio '■ Conbeço a lo-
cução adverbial a trechos, sig-aitícaudo de tempo a
tempo, mas no singular é ueolo^ia c&d'este clássico.
— o O nauta é átomo envolto u'uma dobra do infí-
aito ! » Bravo ! o íniinito com dobras ! e dobras de in-
finito para envolverem átomos! Que ineUio.r poderia
dizer o cirurgião Rozendo, o preclaro fundador da es-
chola coimbrã ? Deixem estar: esta adiniravel pbrase
vai matar, de inveja aos patriarchas da escola. Apeaafi
Henrique IV deu a ultima espadeirada. n\wi a famosa
batalha, escreveu islo ao duque de Crillon: — « Enfor-
ca-te. bravo Crillon; combatemos em Arques, e tu
ailo estavas cà . ... Adeus, bravo Crillon; gosto de ti,
a Uirto e a direito. « Agora o peuaclio branco .lubs-
títuirá a penna de pavão do maudarinado, e j& là
vai ao auclor das Odes Hodertias este bilhete: « En-
\ forca-ic, bravo Q.; envolvi um atorao em dobras dn
I infinito, e tu ficaste a olhar ao signal. , Adeus, bravo
I Q.; gosto de ti a torto e a direito. "
t A ambula iaiuieusa tem só duas faces. convexas :
1 o mar e o céo..» Ah qui d>l-rei, bravo Crillon; mor-
I de-te e remorde-te. Olha! aqui estou eu denlro,d'um
I aavio veudo duas faces converan ! a saber, o céo, que.
I do ponto d'onde o eu vejo, me parece concavo, e ven-
F do o mar, o qual me parece, que me parece liorizonlal.
Oli bravo Crillon, nem tu, que podes tudo, podeste
jamais dizer que uma coucavidade e uma horizonta-
lidade, eram duas couvevidadeci; euforca-te ! Mas nio
le enforques ainda; cuidavas que a estupenda brilha-
tura ficava por aqui "í Qual historia ! A barra vai
adeante; ha melhor: o que rodeia um nauta é uma um-
btUtt imntensa; tal e qual; aquella cousa toda represen-
Uk uma botija, uma garrafa; a convexidade inferior...
■■^■■■. L JlTw ■■■■!, ■-■■•.^^g^^^^^^^M
10 1$:
é o mar, que ó concavo para baixo; a superior é o céo
que tem o bojo pára cima; e o gargalo... o gargalo...
isso façamos de conta que 1& da alt^ira do septe-estrello'
ascende um tubo muito comprido, que na ultima do-
bra do infínito vai dar com a imaginação pomposa do
Senio, servindo-lhe de rolha.
— «Em ambas as faces, a scena é vivaz e palpitante»
Erro em duplicata: admittidos que fossem, no figu-
rado, estes adjectivos, nem um nem outro teria a
significação que o impávido escriptor aqui applica ás
taes" convexidades concavo-horizontaes.
— « As ondas murmuram: — « Ouviu-as murmurar.
D'isto agora é que eu nao duvido. Em minha igno-
rância cuidava eu que só o homem era inclinado á
murmuração, mas dou as mãos à palmatória, e reco-
nheço haver casos em que as monstruosidades são de
tal casta que nem as cousas inanimadas podem ter
mão em si, que as não censurem ! Na Epistola aos Pi-
sões, diz Horácio; « N'uin consultor da justiça ( consid-
tiis júris ', num rábula de demandas actor causarum^^j
mesmo quando em facúndia e sciencia (diserlf, nec stil)
esteja infinitamente abaixo de um Z. ou de um L. abest
Messalce.., quantum Ca^celUns), tolera-se-lhe a medio-
cridade ímédiocris^) e pode dar-se-lhe em paga o pre-
ço de 600$000 rs. que elle exija por uma insignificante
imput^nação tle embargos :Uimen in pretio esl]\ mas
mediocridade num auctor I isso não o supportam os
homens, nem os deui>es, nem as coíumaa^i !»
Consnltns júris et actor
causaram mediocris abest virtate «liserti
.Messalcp, nec scit, quantum Ca.scellius Aulns:
sed tamen in pretio est: mediocribus esse poeti ^
non homines, non dí, non concessere colnifuni^.
Ora o.^ta.s rohinínas eram ms pilares das loja.; de li-
vreiro: e por tanto, se os pilares re/iníi'am, n"ioé iir.iiío
que as ondas murmurem. Está direito.
— u As nuvens rcnnhiani a cada ins. ante; lia nellas *
um fjcsío. •> Minha Nossa Senhora ! tjiie ])ro])ria acção
(lo cambiar I e-jue será o gesto chis iinvo.s ? lír-sp^índe-
me o (Jrillon ([ue de\e ser7'".v^f) nelf!floso\ is.- > entrí.j.
sim; bem nebulosa é toda essa rudiíi iiiflifjrsiafjm' nfnlew
-(Jue (!omparaç<jes, meu ami^io, que imagens ' Fa/ lem-
])rar tim ti^echo de uma en<>-rneadissimn po«\sí;i. -nie
IX 11
pinta bem a posiç&o em que se collocaifi esses caça-
dores de efFeitos que levam a vida a atirar-lhes e* a
falhar:
Pois bem ! vou arrojar-me pelo vago
d'essas comparações que a troche-moche
do romantismo o geaio cá nos trouxe
que p'ra todas as cousas vao servindo;
eá phautasia as rédeas sacudindo,
irei, bem como um cego;
que us românticas musas desenvoltas
costumam navegar a velas soltas.
« — A tela oceânica re.^ssumbva possante vitalidade. »
Esta phrase é inadmissível : concedendo a paparrotice
da tela oceânica^ dir-se-hia : u da tela oceânica ressum-
bra vitalidade » Nao é a tela que ressumbra vitali-
dade, porque ressumbrar não é espremer ou expellir ;
è a própria vitalidade que da tella ressumbra, còa,
transluz, surge, apparere, ou emfim se deixa ver fora
do lugar onde estava.
u — Em turno do viandante no pampa, faz-se o
vácuo. )j Que vácuo é este ? Non dalur vamum in
reruíu natura. Que macliina pneumática trabalhou
no pamp:' ? Eu quero crer que vácuo não é vácuo, o
.sim a idéa sesquipcdalizada de solidão ; mas sendo
assim, onde a antíthese com o que succede ao nauta t
O viandante liça oppn?sso, por se ver a sós numa grande
|ilanicie terrt^stre, onde os olhos podem medir 5 ou ()
legu«s de horizonte em torno, e sente-se muito do.sop-
presso, e uiuito accompanhado, quando, no pLiino
equoreo, aloncviudo olhos por uni circulo de ccin lé-
guas, não avista um ente vivoí Pois sim.
ti — Alluvio de luz. » Certamente : preceitos <jue
mais obrigam ; podir quem pode mandar. E ois-aqni
ju^tauicutí» purque sua tilha está muda.
<t — Para a fiiria dos ehí:!i« Mitos, inventou o Creador
;is rijexas «"Kbiverica-- danature/a : deante da vaga im-
petuosa, rollneoii o rooliodo etc. » Pronietto um ov'>
rórido aqiKiin desalg'araviar esta enibriilhada; decidi-
Jament»» »*.<crev«ír assim, é dar razão a quenidiee ler a
palavra sido tlada aohonu.4n para (^115^ o não entendruu;
ma-; já \[\u' nos aventuram )s nesta iinuiensa nocturna
.sa\ana. ac«vMidamos um pavio.
Cjme<'tMnos, antes de tudo, rebaixando Dens á eab»-
12 IX
goria de inventor ! Inventar, é dispor da facul-
dade, eminenteoxente humana, que leva o bichinho
terrestre a achar alguma cousii engenhosa, à força de
talento e de imaginação : inTenta-se uma arte, uma
sciencia, um processo, um systema, uma machina, um
meio, um expediente; inventou-sc a escripta, a im-
rrensa, a música, a bússola, o barómetro, a pólvora
càesta, nao foi o Senio ); em todas essas, e quejandas
invenções, figura, sempre o cérebro humuio, tomando
por giiia a natureza. Também o homem inventa um
poema, um conto, um Gaúcho, uma astúcia, uma fa-
bula, uma calúmuia ; inventa, quando convém, um
poder pessoal, ou assaltos ao thesouro, denunciados
por novos gansos do Capitólio. Mas de tudo isso, quem
é ô inventor ? O homem ou o diabo. Deus a inventar !
Invental-K) a Elle, se nfto existisse, sim, -deveria o ho-
mem, como de Lucano traduziu Voltaire ; mas Deus
inventor! . j.,
Ahi restam dous dos melhpres livros- de Cícero,
sobre a invenção, e nem naquella religião, toda maté-
ria , se considerou Júpiter inventor. Não queres ver o
Ente Supremo, Conservador de todas as cousas, Pae da
Natureza, Eterno architecto, Soberano Motor, Arbitro
Perpetuo, o Altissimo, o Sjr dos Seres, o Omnipotente,
a .Fonte única de toda a intellígencia, que rege com
poder e sabedoria, sem limites todas as espécies eo
universo, o- que a uma só voz extrahia do chãos mi-
lhões de mundos, o que do seiovdas trevas mandava k
luz que fosse, e a luz era.... não vês o Creador exca-
vando o espirito para inventar uma pedra, e isto só
com a missão de oppõr a uma: fúria uma rijeza? '
Dissequemos mais: « Os rochedos são as rijezas ca-
davéricas da natureza. » Rochedos serem rijezas, era
uma definição que ainda estava por dar, e muito in-
telligente. Mas porque razão serão rijezas cadavéricas?
Como pôde . o rochedo ser cadáver? Se nos reinos ani-
mal e vegetal se nasce, vive e morre, outro tanto não
succede ao' rochedo : até à con^ummação dos séculos
(a não se darem cataclis* nos ), conserva r-se-ha elle tal
qual se acha desde ii creaçio ; a sua existência é
aquella, aquella a sua ríjeza congénita ; es;>a rijeza
nãoé cadavérica, porque o rochedo não morre.
Porque chamará pbis o auctor aos rochedos, *<c rijezas^
cadavéricas da natureza ? y^ Será porque assim como o
animal morto enrijece, também o rochedo é duro?
IX 13
Santo Deus, seria a mais estapafúrdia das imagens;
seria uma comparação de pernas para o ar. Se o ca-
Savef enrija um tanto, ao cadáver fica todavia flexi'-
biUdáde^ molleza relativa : o granito é sempre gra-
nito ; se po^s a comparação é só quanto & dureza, seria
talvez tolerável a exaggeraçao que comparasse o ca-
dáver ao rochedo, mas é eschola coimbrã egualar o
rochedo ao cadáver. Estas confrontações do máximo
com o minimo, de César com Jo&o Fernandes, tem o
mesmo mérito que se algum inspirado, para exaltar
as magnificências da natureza, comparasse o Vesúvio
f!om um fogareiro.
— « Passou a borrasca. A savana permanece como
foi hontem, como hade ser amanhfi, até o dia em que o
verme homem corroer essa crosta secular do deserto.)!
Trocadilho, amphigHri^ charada ou logogripho, nao
sei bem classificar isto... que é ode certamente ; mas
emfim dou de barato, que inlmjo ("quero arvorar-me
era mais esperto, que Deus me fez. ] Que é esta crosta
xecular ¥ Ah, já sei; nflo éecclesiastica; isso sim: outra
accepção nao seria própria, por que, em relaçí&o àanti-
guidade, é impróprio chamar secular ao que se nao
conta só por alguns séculos, ao que é coevo da crea-
çao. Vemos para deante: Temos pois o verme homem
a corroer a crosta do dese^to\ figura-se-me que isto,
em portuguez, quer dizer que um dia esse deserto hade
ser cultivado ou approveitado pelo homem, que ahi
agricultar ou edificar. Dei com a adivinhação ? entOo
só me resta um grande empacho: Se hoje a savana está
devastada pelo furacão, como o foi hontem, e como o
hade ser amanha, por que é que o nao hade ser mais,
senão aU o dia em que o homem nella arar ou constrair *?
como é Que o indómito uracao, em vez de derrubar
após o tal dia arvores e plantas, ; nlacios e choupanas,
hade conter os seus furores ante essas obras humanas ?
Quem hade nesse dia dizer ao vendaval: Pára; té aqui,
mais nao ? Só sefôr o Poder Pessoal.
— « Ao pôr do sol, perde o pampa os toques ardentes
da lujj meridional. » Aqui entrou coUaboraçlio do có-
nego Philippe : toques ardentes são uns que geram o
mal das vinnas ; mas emfim ficamos inteirados de que
o sol, quando se põe, nao arde tanto como ao meio-dia;
agora o que importava observar,para gloria deste sécu-
lo observador, é que o tal phenomeno estupendo nao se
dá senão no pampa.
14 IX
— « Âs grandes sombras, que não intercepl;:ni moa-
tes.aem selvas...» Quer dizer exactamente o contrario:
ií Ás sombras, que nem montes nem selvas intercepi-
tam » mas também, em gira d'esta casta, tanto é o
sentido de deante para traz como de traz para deante;
tanto vai dar-lhe na cabeça, como na cabeça lhe dar.
— « Ao pôr do sol.. . a savana figura um vasto lençol
desfraldado por sobre a terra. » Nunca a idéa de len-
çol occorre sem acompanhamento da alyura ; pòr isso^
é bem acceita a imagem, ao desci*everem<'Se toalhas de
altar, um campo coberto de neve, areaes entremeadas
nas verduras etc, mas de que côr será este lençol,
composto de terras, vegetaes e fundos-negros 9 Ah, jâ
sei: assim como ha mantas de retalhos, será um lençol
dos sujpraditos.
— « ... ressumbra tao funda tristeza que estringe a
alma » Cà temos mais ressumbramentos a dous passos
de distancia. E quem é em portuguez este senhor es-
tringe ? será verbo da estranja ? nao tenho a honra.
— « Uma alma pampa » Nao parece assim uma alma
bamba 9 Não é onomatopaico? Nao gostas doestes subs-
tantivos adjectivados? Nao achas aqui muita proprie-
dade na applicaçao ?
— « Tem o quer que seja » ou tem o que quer que
seja ?
— í< Parece que o vasto e imrnenso orbe, cerra-se »
Conviria neste caso fugir ao emprego de tal verbo ;
mas, a ter de empregar-se, nao se deve dizer « Parece
que cerra-se » e sim « Parece que se cerra w Agora lá
quanto ao immenso^ já tardava : Temos — pag. 1, a im-
mensidade dos mares — a pag. 2, a immensa plauicie —
a pag. 4, a immeiísa planície, eo immenso orhe — a
pag. 6, immeiísa coroo a savana — e tudo por hi a flux
é uma immensidade de immensos, que demonstram a
immensa sciencia de Senio na arte de escrever.
Basta, basta ! Um capitulosinho de 120 linhas de
lettra garrafal, apontado como a melhor cousa e pór-
tico da obra, deu margem para a tua carta magnifica,
e deixou-me estes sobejos, ficando ainda intacta maté-
ria para outras tantas observações.
Tens pois razão ás carradas, repito. Eis-ahi as bul-
ias com que certos escriptores se collocam a si mesmos
em nichos no pantheon litterario. Também os phariseos
affectavam ser nimiamente severos, pagavam o di-
IX 15
2ÍIQ0, e ostentavam observar as cerimonias da lei; mas
acharam quem lhes desmascarasse o orgulho e a hypo-
crisia, e os expulsasse, Deus sabe como, do templo.
Tomaram elles continuar a ter força para condemnar
ao supplicio da cruz.
Teo leal amigo '
^ ClNCINNATO.
Neoessidade da assooiaoao oatlxolioa
Proposta db S. Ex. o Su. Duque de Saldanha.
Atravessam as sociedades uma crise que não parece passa
geira, e a arvore da civilisaçfio apodrece pela raiz. Os leaes
pensadores, encarando a situação aterradora, estudam q mal
e o remédio. Muitos dos bem intencionados persuadem-se de
qufí a humanidade precisa novamente retemperar-se na reli-
gião, origem de toda a liberdade, egualdflde e progresso, e
estrada real das vidas transitória e perenne. O Sr. Duaue de
Saldanha, tâo sincero e illustrado crente, como é, soldado va-
lente, exiraio patriota, e intelligencia de esfera superior,
acaba de consagrar suas vigílias a assumpto de tanto mo-
mento, e de lembrar providencias praticas, que S. Ex. justifica,
D*um importante escripto, que julgamos útil publicar ; e é
do leor seguinte :
A ordem permanente de qu« os povos necessitam
Sara que a sua felicidade seja constante, deve resultar
o acordo harmónico entre a auctoridade e a liberdade,
que só dimana do Catholicismo, e fora do qual nem
uma nem outra se accommodam à justiça, à moral,
e ao verdadeiro progresso das sociedades.
A legitima liberdade do homem tem por limite o
respeito do direito alheio ; nao se funda, por certo,
neste principio de eterna verdade qualquer providencia
que tenha por fim o coarctar essa liberdade, isto é, a
ordem nao deve resultar necessariamente do emprego
iinico da repressão.
O acordo da liberdade com a auctoridade deve por
isso nascer principalmente da circumstancia, que a
obediência resulte da convicção de que o superior só
deseja o bem do inferior ; da circumstancia de que
este se reconheça como tal ; e da convicção de que o
áuperior está prompto a tudo sacrificar, até a própria
viaa, onde tanto se exija, para assegurar ao inferior
o gozo de seu direito e a sua felicidade.
Em um estado tao elevado, a persuasão e o senti-
mento do respeito que o superior inspira a todos os
espíritos de bastante elevação para receberem a in-
16 IX
flileocia de uma natareza eminente, serSlo os mais po-
derosos sustentáculos da auctoridade.
O superior será, como Nosso Senhor Jesus Christo,
o servo dos servos, pois que a sua única preoccupação
ser& a felicidade de seus subordinados.
Tal caridade, tal abnegação, só pôde nascer nos co-
rações, que tenham por exemplo o amor e o respeito
que o Mestre tinha à liberdade dos homens.
E' comtudo evidente que uma jerarchia inferior,
como é um poder politico, nao poderá fazer abstracção
absoluta da força coerciva, mas só a empregará quando
veja que o homem se perde no caminho que segue,
e obrará então como a mãe carinhosa que retira o
filhinho da borda do precipicio em que ia despenhar-se.
A necessidade do emprego da torça coerciva será
tanto meuQs frequente quanto a jerarchia £5t de ordem
mais elevada. Esta jerarchia será tanto mais elevada
quanto mais o Catnolicismo dominar no coraçfto do
homem.
Nenhuma forma de governo á incompatível com o
Catholicismo. A republica christa é bem preferível á
monarchia atheista.
O governo representativo, no seu sentido genuíno,
assegura a todas as classes igual justiça ; o liberalismo,
C/Omo hoje o preconizam e como a experiência tem
mostrado, é a mais completa perversão de uma ver-
dadeira e nobre theoria.
O liberalismo, como hoje o pi-oclamamjtraz com-
sigo o gérmen da sua dissolução, e, se chegasse a do-
minar, nao poderia resistir, nuo poderia sobreviver
aos conflictos sociaes e políticos que continuamente
suscita.
No liberalismo a base fundamental, a única medida
por que se afere o direito, é a vontade das maiorias
numéricas, substituindo em politica, como o raciona-
lismo em religião, o querer do homem ao querer de
Deus.
O desenvolvimento deste principio, a sua conclusão
lógica, é a guerra das classes, que uma tal theoria
infallivelmente traz comsigo, guerra que afinal neces-
sariamente faria succurabir o liberalismo, para dar
logar ao coinmunismo, que é o seu successor natural.
(Continua')
Typ. e Lith.— Imparcial— Rua Sete de Setembro n. 146 A.
QUESTÕES DO DIA
]sr. IO
RIO DE JANEIRO 30 DE SEPTEMBRO DE 18TÍ1.
Vende-se cm casa dos Srs E. & H. Lacmmert.— Praça da Constituição,
Loja do canto. — Livraria Académica, Rua de S. José n. 119— Largo do
Paço n. 12 C. — Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis.
Al>olieSo cia eâer^a vidão .
Raiou finalmente o dia grande da emancipação da
raça humana. Nos fastos do Brazil inscreve-se, com
lettras de ouro, a data memoranda — 28 de Septembro^
— em que a lei coroou as mais santas aspirações da
humanidade. Desde este dia, ninguém mais no mundo
nasce escravo : a liberdade é desde hoje apanágio uni-
versal ; direito, tao incontestado como já era incontes-
tável, de todo o género humano. E' esta a aurora da
verdadeira independência, autonomia, dignidade da
creatura racional, fadada a altos destinos.
Ainda ahi fica uma turha de míseros innocentes, para
quem nao pôde soar o doce nome. Ciirve-se o senti-
mento ante a razão politica ; ceda o coração á intelli-
geacia > respeitem-se as raias do possível ; Hercules
gravara nas suas columnas : AU' aqui ! mais não ! Che-
gámos até essas columnas. Se as nltrapassassemos, no
reverso da columna de Calpe, leríamos desorganização ;
da de Abyla, anarchia. Não se pôde, não se deve na-
vcg'ar para mais longe.
Asrora, mui outros são os deveres, mui outros os in-
teresses dos cidadãos. Se até hontem, em quanto se
tratava de direito constituendo, eram naturalmente
explicáveis as dissidências até apaixonadas, os esforços
até irregulares, de ora avante, constituído como se
acha o direito novo, ninguém terá interesse em contra-
riar, na prática, a mais suave realísação do grande
pensamento. Agora, a todos e cada um de nós, com-
pete a sua missão.
Para o Governo, abre-se estádio novo. Concluiu glo-
riosamente a mais brilhante campanha ; mas se Alcides
esmagava serpentes no berço, tinha na sua virilidade
de emprehender trabalhos de maior magaitude ; ^o
esseâ os que de ora avante o devem desvelar ; só o en-
numeral-os, assoberbaria o pensamento.
O Poder Legislativo tem ae presidir, com disposições
adequadas,à transformação social porque vamos passar;
tem de providenciar harmonicamente sobre muitos
pontos, da sua alçada, que prendem com o futuro re-
moto e próximo.
Os senhores de escravos, conhecedores dos direitos
que a lei lhes consagra, serSo os mais prestimosos e
desvelados auxiliares delia; como utilíssimos membros
da communidade, esforçar-se-hso por facilitar a so-
lução do problema; como caridosos e christãos, concor-
darão em ver nos seus operários entes dotados de alma,
e dignos da sua misericórdia; como illustrados mante-
nedores de seus próprios interesses, tratarão com ca-
rinho, alimentarão, vestirão bem os infelizes que sorte
adversa ainda conserva era captiveiro, e darão a possi-
vel ventura a esses instrumentos da sua prosperidade ;
como previdentes, applicar-se-hão a melhorar o systema
do trabalho, a approveitar mais as forças, e a dispor
as cousas para os milagres originados do regimen da
liberdade.
Finalmente os políticos não se dividirão mais entre
vencedores e vencidos, como no senado e na imprensa
se confundiram patrioticamente os votos de conserva-
dores e liberaes. Por maior que a divergência fosse, es-
peremos que, resolvida por lei esta base social, só de
ora avante surja entre as illustraçOes do paiz emula-
ção, mas no sentido de depor no altar da pátria res-
sentimentos sem alcance, e de enfeixar idéas e esforços
para que a gradual emancipação se vá effectuando pa-
cificamente, e com o máximo respeito a todos os inte-
resses que na questãe se achão envolvidos. Oxal& !
O diade 28 Septerabro deverá ser considerado como
o primeiro dia de gala d'este Império.
iVeoessidade da assoolaoSo oatliolioa
Proposta de S. Ex. o Sr. Duque de Saldanha.
(Conclusão,)
Sendo a vontade das maiorias o unico fundamento de
todos os direitos, estabelecendo o liberalismo que não
ha direito absoluto ou verdade no mundo que não
esteja subordinada á voz do maior numero, segue-se
que a única reg^a a que o homem deve obedecer é á
tal voz do maior numero.
E esta vontade suprema pôde nao se contentar com
atacar as monarchias, abolir a religião ; mas , des-
truindo a suprema única sancçao sobre que até agora
se fundava a ordem social, pôde ir avante, e declarar
que a propriedade é roubo, a fé superstição, a virtude
utopia e crime. E quem lhe resistirá ? Neste império
absoluto e despótico, nesta lei suprema e única do libe-
ralismo, o que é que o homem poderá considerar como
seguro, de tudo quanto possue ? Em face do movimento
geral que chegaria, logo que o liberalismo conseguisse
infiltrar nas massas populares (para o que emprega
todos os meios) o atheismo e a desconsideração para
com tudo que é auctoridade, os corypheos de tSo atroz
desmoralisação seriam, elles mesmos, victimas, e rece-
beriam dos seus adeptos a recompensa da sua obra in-
fernal.
Porém, não obstantes os esforços empregados, e ap-
parentes triumphos obtidos, o liberalismo, cujo natural
herdeiro é, como dissemos, o communismo, está muito
longe de occupar no mundo o lugar que suppOe ter con-
seguido no espirito e no coração dos povos christãos da
Europa.
A christandade, a igreja catholica, conta entre os
seus lieis muitos e n^uitos nobres intellectos, a mais
elevada litteratura, e vastas mós de christãos que, no
dia da provação, estarão promptos para defender quanto
ha sagrado no mundo.
Os inimigos de Deus, da religião revelada, e de todas
as religiões, portanto da sociedade, para conseguirem
seus fins diabólicos, têm buscado a força nas sociedades
Becretas. Porque motivo não buscaremos nós, os catho-
licos, em associações publicas e n'iima união catholica,
a força para frustrar aquellas cavililaçOes infernaes?
Auctoridade e liberdadey são principies sobre que se
firma a ordem moral do mundo. E' necessário não sa-
crificar uma á outra.
Foi pela sua corajosa firmeza, abnegação, e indepen-
dência ante o poder absoluto dos tyrannos, que o cnris-
tianismo reivindicou a liberdade de consciência, e sobre
ella fundou seu dominio, estabelecendo essa harmonia
divina, que faz da obediência condição da liberdade, e
da justiça lei superior a toda a auctoridade.
No mundo romano então ninguém fazia resistência ;
4 X
abandonada toda a ídéa de liberdade, só havia a mais
abjecta submissão a todas as oppressOes. Foram os
christaos que levantaram, cora o da verdade, o estan-
darte do direito, e portanto a resistência legitima, mas
passiva, na abnegação e na caridade, a quanto podesse
ferir ou offender aquelles principios.
Duas expressões ou máximas levaram a revolução
franceza em voltado mundo : «Os direitos do homem, »
e as palavras « liberdade, igualdade e fraternidade. »
Delias sahiram bens e males, progressos e ruinas dos
nossos tempos e de um futuro desconhecido.
Tudo quanto ha bom e verdadeiro ne.^tas máximas
é christao e foi proclamado pelo christianismo, que
repelle e condemna tudo quanto nellas ha funesto e
falso. E nao só nesta assustadora e terrível confusão o
christianismo proclama o bem e condemna o mal em
principio, mas só elle na realidade tem a auctoridade e
a força moral necessárias para domar e submetter o mal,
sem que o bem desappareça na lucta; e isto sopeia razão
de que a verdade e o direito nao perecem; e o chris-
tianismo é o triumpho glorioso destes dous principios,
eternos porque vem de IJeu.s, e sobre os quaes se funda
a justiça e o amor, svmbolisados na auctoridade e na
lei.
Com muita razão nos ufanamos hoje de termos che-
gado a considerar o homem, o individuo, a sua exis-
tência, a sua liberdade pessoal, os direitos, como o fim
essencial do estado social. Sahimos do profundo sulco
da aníÁgnidade pagã, que subordinava e sacrificava o
individuo ao estado, e abaixava e annullaim dianU de
nma classe milhares de creaturas humanas, Desapparece-
ram as raças ; o mundo não se compõe de romanos e
de bárbaros, de homens livres e de escravos.
Foi o christianismo não só o primeiro que proclamou
esse principio, masquepoz em pratica essa verdade su-
perior. O direito do homem, o valor da alma humana
independentemente de toda a situação exterior ,é o ponto
de partid^a, a idéa fundamental, o preceito dominante
da religião christa. Foi, sem a menor duvida, na socie-
dade religiosa, na igreja christa nascente, que este
principio foi desde logo e pela primeira vez proclamado
e posto em pratica, epor ella posteriormente seguido
com o escrúpulo e exactidão que só pertence a quem
leva por guia a inspiração divina.
As relações do homem para com Deus e para com os
X 5
outros homens sao, pelo cbristianismo, o primeiro e o
mais importante negocio da vida humana. E' perante
Deus que os christãos reconhecem, e unicamente existe,
igual a importância das almas ; são os christãos que
eutre si se dão o nome de irmãos ; e d'esta fraternidade
dimana a caridade, que é a sua principal força social.
A idéa christa, tão poderosa como fecunda, mantem-se,
espalha-se atravez dos séculos e dos espaços, não obs-
tantes todos os obstáculos.
Jesus Christo, Deus e homem, rehahilitou o homem
diante de Deus, e o homem nunca mais se deixou humi-
lhar e abater diante da tyrannia humanai. Em presença
das ^desigualdades terrestres mais poderosas, o nome
de irmão nunca deixou de ouvir-se nas sociedades
rhristãs. E hoje mesmo, depois de todos os progressos
da pretendida igualdade na sociedade civil, é ainda
unicamente na sociedade religiosa, nas igrejas christãs,
que os homens ouvem chamar-se, tratur-se e em tudo
oonsiderar-se, irmãos.
A paixão dos nossos dias é o desejo de liberdade e
igualdade, n'uns inlelligente e honesta. n'outros des-
regrada e cega. Esta paixão algumas \eze6 desenvolve
a sua força por meio de revoluções, outras vezes des-
vanece-se, e murcha nas reacções óiovidas pelos exces-
sos que Hs revoluções trazem comsigo.
A liberdade do homem e a sua responsabilidade mo-
ral é o que dá ao ser humano, a todo o ser humano, o
.seu valor; é porque o homem conhece e accredita essen-
cialmente na distincção do bem e do mal, e na obriga-
ção que esse conhecimento lhe impõe de os seguir ou
rejeitar ; é pelo uso que faz dessa liberdade, e porque
tal é a natureza do homem, qu3r elL^ a reconheça ou
uão, que o Evang'elho o colloca tão elevado, e lhe an-
nunciatão sublimes destinos. Os philosophos teem feito
grandes esforços para resolver o problema da liberdade
humana, em vista da prestúencia divina :o Evangelho
reconhece e proclama a liberdade humana, sem lhe
importar com o problema da philosophia ; é sobre o
facto que o homem é um ser livre e responsável que se
lirma a religião de Jesus Christo. Convém comtudo não
confundir esta liberdade intima da vontade, regulada
|*elas leis da consciência e da fé . com a liberdade
externa de nossos actos , restricta pelas leis civis,
e sociaes ; embora ambas constituam o priucipio ge-
nérico da liberdade christã, aquella respeita ao livre
6 X
arbítrio do homem perante Deus, esta aos direitos de
sua acção entre os mais homens.
Em todo o caso, a liberdade é o ponto de partida de
tudo o que o christianismo diz e ordena á humanidade.
£' pois o christianismo essencialmente liberal, em
proveito e utilidade de todos os homens, e, pela sua
noçEo primeira e fundamental da natureza humana, dà
á liberdade a base mais solida, e o mais amplo direito
que a perfeição do pensamento humano pôde conceber.
Tudo quanto os mais atrevidos publicistas teem escripto
está muito longe de elevar a dignidade nativa e uni-
versal do homem á altura que lhe marca o Evan-
gelho.
O christianismo, fundando a liberdade christà, deu-
lhe ao mesmo tempo a sancção prática que lhe era
necessária, estabelecendo o jus de resistir com a
verdade, com o direito, e pela obediência que lhes é
devida, á oppressao e á tyrannia do erro. « Julgae vós
«mesmos, seé justo diante de Deus obedecer-vos pri-
« meiro que a D ?us (1), » resvponderam S. Pedro e
S. João aos sacrificadores e chefes da synagoga, quan-
do estes lhes prohibiram de ensinar em nome de Jesus.
E ás instancias dos mesmos, S. Pedro responde (2) :
« Primeiro está obedecer a Deus que aos homens.»
Mas, ao mesmo tempo que o christianismo afirma e
proclama a liberdade, proclama e affirma igualmente
a auctoridade e os seus direitos. « Dae a César o que é
« de César, dae a Deus o que é de Deus, » respondeu
Jesus Christo aos Phariseos, que lhe perguntaram se
era ou nao permittido pagar os tributos a César. S. Pau-
lo recoramenda (3) a Tito que ensine os Cretenses a se-
rem submissos aos principes e ás auctoridades, e a obe-
decer á sua voz. O respeito á auctoridade constituída,
seja em quem fôr, pagdo ou herético, é preceito da li-
berdade christa (4), que em tudo só vê a vontade e lei
de Deus, seu único limite.
Duas são as causas das desgraças dos tempos em
que vivemos, causas que deploram todos os homens
de espirito elevado, todos aquelles que sinceramente
desejam o bem da humanidade, catholicos como pro-
!l) Actos dos Apóstolos, cap. iv. e v.
2) Actos dos Apóstolos, cap. vn.
3) S. Paulo a Tito, cap lu.
(4) Ibid. ; a Tim : cap. vi, etc; S. Jeron. Comment.
testantes , conservadores como progressistas. Estas
causas sao, a preponderância dos interesses materiaes,
a sede dos gosos physicos e vulgares, e os hábitos do
egoísmo eda molleza, que dVhi resultam. Mas, infeliz^
mente, mesmo entre os homens esclarecidos e bons que
conhecem, e que sinceramente se affligem pelo mào
estado das nossas sociedades, ha grande numero que
nao avalia toda a grandeza do mal, nem o tremendo e
horrível resultado, que infallivelmente virá, se não se
remediarem as causas que hoje tao eficazmente corroem
as ditas nossas sociedades.
O individuo,o povo, que quer ser livre, que quer que
a liberdade de que gosa seja também herança de seus
filhos e netos, necessita, é-lhe absolutamente preciso,
que nao esteja, com exclusão de tudo mais,preoccupado
s6 do seu bem-estar material e da satisfaccão dos seus
desejos pessoaes. E contra o egoismo e contra o epi-
curismo que deve estar prevenido. O epicurista gros-
seiro ou delicado dificilmente se resigna a empregar
esforços, a fazer sacrifícios, e facilmente se contenta,
com tanto que nossa ter a certeza de satisfazer prazeres
a seu sabor. O mesmo egoismo prudente e pouco exi-
gente é paixão fria e estéril, que só domina enervando
6 rebaixando a natureza humana. A verdadeira li-
berdade, a sua duraçao,exige costumes mais vigorosos,
aspirações mais elevadas, resistências mais fortes, es-
tado de alma, no qual a symparhia moral e o des-
interesse occupem grande logar.
Eis-aqui o que o christianismo, e só o cliristianismo
pôde dar ã moderna sociedade, e que tanta falta lhe
faz. Ensina aos grandes e pequenos, aos ricos e pobres,
a nao fazer con-^^istir toda a sua vida nas satisfacções
materiaes ; chama o homem a regiOe.s mais elevadas,
e, ao mesmo tempo que lhe inspira ambições mais puras,
faz raiar,para elle mesmo e pelo caminho da felicidade,
as mais bellas esperanças. Poderoso ou humilde ,
ostentoso ou modesto, o christao nao faz consistir na va
panacéa da politica a sua preoccupaçao exclusiva, o seu
único movei : tanto pelo que lhe diz respeito, como
para com os skus similhantes , tem outro fim que
attingir, outras leis para cumprir, outros sentimentos
para manifestar e satisfazer ; nao pôde ser, nem egoista,
nem epicurista.
Tal é a primnra e a maior utilidade que as
jsociedades hoje aspirantes á liberdade podem receber
8 X
(lo christianismo, do qual as tem progressivameate
afastado a cegueira das ambições , e os erros da
ignorância. A seguoda nao é menos importante. A
liberdade traz sempre comsigo boa porção de licença.
É sonho julgar que podemos gosar dos benefícios
de uma , sem correr o risco dos inconvenientes da
outra. E também sonho pensar que com leis pe-
naes , com tribunaes e agentes de policia , se pôde
efficaz e convenientemente reprimir a licença. A re-
pressão legal e material é necessária, mas é insuf-
ticiente; n'esta lucta necessita-se de alguma cousa mais
que processos e castigos. Contra a licença, que a li-
berdade infallivelmente traz comsigo, é indispensável
a prevenção moral e espontaDea, a influencia do bom
estado dos espirites e dos costumes.
Duas cousas estão hoje fora de toda a dúvida :
!■. Em paiz livre, não é possivel reprimir completa-
mente a licença, como no governo absoluto e despótico
se não podem prevenir demasias e funestes abusos do
poder.
2*. Só as forças moraes e preventivas da sociedade
podem pôr os governos e os povos em estado de sup-
portar a parte da licença que nao é possivel supprimir,
O christianismo importa a mais efficaz, a mais po-
pulnre amais provada d'essas forcas, que elle exerce
como principio e como meio. Como principio mamem
á auctoridade o seu direito e a sua dignidade sem a hu-
milhar diante da liberdade que lhe põe por limite, da
qual elle também reconhece e reclama o direito, re.s-
tricto á obediência e á caridade. Como meio, o chris-
tianismo inspira aos homens um sentimento indispen-
sável á auctoridade, o respeito. A falta de respeito é o
maior perigo que ameaça a auctoridade, que soffre
muito mais do vilipendio que da aggressao. Atacar e
aviltar systematicamente a auctoridade, insulial-a sem
cessar, é o que têem sempre em vista os seus ardentes
inimigos, que a isso dao falsamente o nome de liber-
dade, consistente só em guerra infatigável à moral e á te
christã, e por isso aos principios e ás instituições ca-
tholicas, que sâo guarda e deposito sagrado dos the-
souros do christianismo.
Nao se pôde negar que nas sociedades christas
também ha licenciosos, insolentes, turbulentos, como
nas outras ; mas as leis, as crenças e costumes chris-
tnos suscitam e mantém nas turbas populares, como
X 9
nas regiões elevadas , o dominio da consciência for-
mada no temor de Deus, no amor do próximo, e no
conhecimento da verdade; o que torna lespeitosos
amigos da ordem legal e moral, homens a quem o
insulto e a licença aborrece tanto quanto os assusta,
e que, usando da liberdade que também lhes pertence,
recorrem às máximas e ás armas que a mesma liber-
dade lhes fornece para combater abusos que a viciam
e destroem.
Dá-nus a historia a este respeito os mais conclu-
dentes exemplos. Os povos christaos sao os únicos
que a licença nao tem definitivamente levado áanar-
chia ou ao despotismo; únicos que por muitas vezes
e por salutares reacções têem atravessado taes peri-
gos, sem succumbir moral ou politicamente aos exces-
sos do poder e aos excessos da liberdade. Afastando-se
do christianismo, as sociedades cedem ao principio de
morte que se manifestou em quantas se formaram fora
da luz da verdade e da fé. Nem os estados do antigo
paganismo, nem os do oriente boudhista ou musulmano
poderam resistir àquelles excessos. Tiveram dias de
vida e de gloria ; mas quando a peste da liberdade ou
datyrannia os atacou, succumbiram para nunca mais
.<e levantarem. Gloria e honra á religião christa, que
em si tem (^ò meios de curar as sociedades das suas mo-
léstias como aos individues de seus desvios, e que nas
suas crenças e sentimentos tem já mais de uma vez for-
necido, aos amigos da ordem, e aos amigos da verda-
deira liberdade, asylo nos seus revezes, abrigo contra
perseguições, e meios e forças de readquirir para a
felicidade dos povos o perdido pelas invasões barbaras
do erro, e da revolução.
A exposição que precede apresenta as considerações
j>elas quaes o abaixo assignado ( que por misericórdia
fie Deus teve a ventura de nascer no seio do catholi-
rismo, entre um povo catholico, e que está prompto a
derramar o seu sangue na sustentação de todns as
verdades da sua religião, que prompto está também
u expor a vida, quando seja necessário, para que os
.seus concidadãos conservem as liberdades de que go-
.sani; deseja ver estabelecida uma associação catholica,
que, fortalecendo a união nacional nas crenças e na fé,
e dando impulso à verdadeira prosperidade da pátria,
tenha por objecto os meios de tanto conseguir, como são
H gloria de Deus e a prosperidade da igreja, e o tra_
10 X
balhar para que haja uma verdadeira representação
nacional.
Londres, IS^l.
^aaue ae <S/a^anÁa.
Cincinnato a Sempronio
OI>x*as d.e Senlo—O Oaikolio
(Cartas a um amigo).
V.
Meu amigo.
No que fica apontado até aqui ha suficiente material
para se basear um juizo ácêrca do Gaúcho. Permit-
te-me, porém, nao concluir sem te chamar a attençao
para uns padacitos nao menos preciosos, cuja aprecia-
ção mais detida deixo inteiramente á conta do bom
senso, que te adorna.
Em seu capitulo intitulado O Páreo, diz o Gaúcho.
a Para ter geito de mondar, afírouxou o paraguavo o laço, que
prendia os quartos do animal fa morena) ao tronco*; e ajustando
as rédeas, pôz o pé na soleira do estribo.
a Im mediatamente aos olhos dos campeiros attónitos passou
uma cousa subitânea, confusa, estrepitosa; uma espiecie de
turbilhão, para o qual só ha um termo próprio; foi uma
erupç&o. »
t adeante :
a Retrahiu-se o flanco sobre os quadris agachados, emquanto
a tábua do pescoço arqueou, dobrando a cabeça ao peito entu-
mecido. De súbito, esse corpo que se fizera bomba, estourou. »
De que espécie seria essa erupção estrepitosa que mais
abaixo estourou ? Aqui ha malicia.
No capitulo seguinte :
a Suspensa na ponta dos rijos cascos, longos e delgados^ de
cabeça leDantaday cruznndo a ponta das orelnas finas e canuta-
daSf com o pello erriçado {adoSj ada, adoi^ ado I ) e a cauda
opulenta a espasmar-se pelos rins, parecia, etc. »
Os cavallos no Gaúcho tém um sing^ular caracteris-
tico: arripiam-se como fazem os gatos e os cae.<.
11
Nunca oavi dizer, meu amig^o, que cavallo erriçasse o
òêllo ao sentir uma commoção, por mais intensa que
fosse, em condição nenhuma.
Mas com que se parecia a égua assim enriçada ?
Ao leres esse pomposo lanço, calculado para dar idéa
do estado de excitação da égua, e quando o auctor,
próximo de terminar, diz que o animal pareda..,, nao
âuppozeste, meu amigo, que a morena ia ser comparada
com um animal legendário, de grandiosos Ímpetos,
animal imponente pela força, pela fereza, pelo animo
descommunal? Illusao, que rápido se desvanece! A
morena parecia, , . o animal prestes a desferir a corrida
veloz. Um animal era morena^ e estava prestes a galo-
par. Para que preveniu Senio o espirito do leitor, fa-
zendo*o depois cahir das nuvens ?
No capitulo subsequente :
a Havia entre o Gaúcho e os cavallos verdadeiras relações
sociaes. Alguns faziam parte de sua familin; outros eram seus
amigos; aos mais tratava-os como camaradas c simples conhe-
cidos. »
Canho tinha dedo para as hierarchias.
« Com os irmãos e amigos vivia em perfeita intimidade; con-
sentia que lhe roçassem a cabeça pelu hombru, ou lambessem-
Ihe a face. »
Jà ouvistes dizer algures que algum cavallo lambesse
a face a alguém, assim a modo da vacca que lambe o
filho?
« Muitas vezes comiam em sua mão; andavam constante-
mente soltos; não havia cabresto, nem suga para elles; eram
corseis livres, »
Grande novidade. Um cavallo comer n i mfio! Quanto
a andarem constantemente soltos, não andam elles de
outro modo na campanha, a não ser algum parelheíro de
«grande estimação.
a Aos camaradas n&o consentia o Gaúch.» aquellas familiari-
dades; ao contrario os tratava com certa reserva. Saudavam se
pela manhã ao despontar do dia; eá noite, na uccasião de
recolhei .
Assim devia fazer quem era tao zelo^ío observador
das distancias sociaes
<r Commumente se encontravam na hora da ração : comiam
juntos, 08 brutos no embornal, o homem na palangana. »
Tem lá palangana, um Gaúcho, que come o chur-
rasco com o punhado de farinha, e muitas vezes a carne
á escoteira?
c Na opiniio de Manoel, o caVallo e o homem contrahiam
obrí^açito reciproca; o cavallo de servir e transportar o homem ;
o homem de nutrir e defender o cavallo. »
12 X-
Isto nao é só na opinião do Canho; todo o senhor co-
nhece o dever, que tem, por próprio interesse^ de nutrir
e defender seu animal.
« Nao passava elle por um legar onde visse um cavallo en-
fermo ou estropeado que se não K\}Qíi%%e^ fosse embora com pressa ^
para o soccorrer. Sangrava-o, se era preciso : cauterisava-lhc
as feridas, etc. »
Teriam muito que esperar os cavallos que um gaúcho
siquer do Rio Grande, á excepção do Canho, tivesse
para elles taes attençOes.
« Tinha eomprado alguns cavallos que os donos arrebenta-
vam-de mao tracto, unicamente para llies dar repouso e assegu-
rar-lhes velhice socegada. »
As justiças do municipio deviam dar um curador a
Canho, como prodig'o, nos termos da Ordenação.
í( Não via o Canho castigarem barbaramente um animal, sem
tomar o partido deste. »
Esta lunnanidade não constitue uma especialidade do
heróe de Senío. Geralmente fica-se indignado, ao teste-
munhar espectáculos brutaes. E os jornalistas uma
hora por outra estão ahi a clamar contra os carroceiros
que castigam immoderadamente seus animaes.
« Por isso affirmavam que era elle o gaúcho mais popular
entre os quadrúpedes habitantes das verdes coxilbas. »
Cabem aqui^os versos :
(( Que cavallos tão bregeiros^
E que Ganhos tão seiuleiros l »
Continua Senio :
« Em qualquer ponto onde estivesse, precisando de um ca-
vallo. não carecia de o apanhar a laço ; oastava-lhe um signal c
logo apparecia o uar/otc alegre a festejal-o, olferecendo se para
seu serviço. O traballio era escolher e arredar os outros, pois
todos queriam prestar-se, como seus oMigos i\\xt eram, uns por
gratidão, outros por sympathia. »
De semelhante popularidade só o Canho se poderia
lisongeur na campanha com cíYeito! E o trabalho na
escolha havia de ser cousa de dar o váo pela barba. E
se todos os magotes eram assim compostos de amigou
por sympathia e \)0v gratidão, onde esta\am os simpleíí
conhecidos^ aquelles a quem apenas saudava pela ma-
nhan e á noute, e que tratava com certa reserva? Ah!
Senio, qna' te dewcntia ctejiif^ l
« Quando partia, o acompanhavam, algumas auadras cur-
veteando a seu lado, como demonstração de amizade. Atinai pa-
ravam para .ç<^^fa7- o com a vísia, até que sumia-se por dotray-
das coNilhas. »
« Taes eram os contos, que referia a gente da Campanha
(Bellos contos, não ha duvida) Verdadeiros ou não, todos nolles
acreditavam (que gente crédula/ ); e até apontavam-se /i<f<yMw,ç.
X 13
que tinham sido testemunhas dos factos » [Seino estará contem-
plado neste numero? Duvido.)
Apezar de ter pressa de concluir este juizo, consente
• ![ue eu faça ainda por ultimo umas ligeiras observa-
ções, em ordem a firmar mais a critica.
D'onde vinha o ódio do Manoel Canho á espécie hu-
mana e até à sua própria família^ ou mais particular-
mente á sua própria màe? De haver esta casado segun-
da vez. Parece incrivel que quem tinha tao bom coração,
tivesse tao máos bofes.
Digam-me o que me disserem : o Canho é uma triste
ooncepçao de Senio. Por mais que este se haja esten-
dido e esbaforido por justificar o repugnante aleijão,
tanto peior; cada vez o mirnstro mais se accentúa e
r:aracterisa.
A historia das segundas núpcias, senão a origem do
tremendo ódio, conta-se em poucas palavras :
Um negociante do Alegrete, Loureiro, perseguido
por castelhanos, refugiou-se em casa de João Canho,
pae do Manoel. Os castelhanos nao respeitaram a casa,
e depois de defeza renhida, e por uma traição, succede
ser assassinado o Jofío, emquanto o Loureiro escapava
em fuga, a unhas de cavallo.
A noticia da morte de JoSo chegou a Loureiro, que
se penalizou em extremo com aquella desgraça de que
elle fura causa. Lembrou- se da viuva, que ficara ao de-
samparo com dous filhos menores; e sentiu-se obrigado a
amparara família o?'/}/ia/i. Estás vendo, meu amigo,
i|ue o Loureiro nao era um máo próximo, cujo con-
sorcio cora Francisca, a viuva, se devesse reputar uma
desgraça ou um aviltamento para a familia. Portanto
nao procede o ressentimento do Manoel, a nao haver
outra razão.
Loureiro diz a Francisca estas textuaes expressões:
— Fui eu, sem querer, a causa da despfraça Q^e a senhora
soffreu, perdendo seu marido, ^i pudesse restituil-o, sem
duvida Gue o faria. Não podendo, faço quanto está era mim,
offereço-lhe, para o substituir, outro que na de cstimal-a tanto
ou mais.
A uma amiga de Francisca, que affirmára ao Manoel
ser verdade o casamento, atiràra-se elle com furor,
rasgando-lhe a roupa e arranhando-lhe o rosto com as
imhas. O Canhinho era onça !
Um dia, em que Loureiro passeava pelo campo, o
Manoel se lhe apresenta trazendo empunhada a faca
14 X
do Canho ( pae ). Pergunta-lhe o noivo, recdando que
o travesso menino viesse a ser victima da arma :
— Para que é esta faca, Manoel ?
— Para te matar.
— A mim ? Que mal lhe fiz eu, meu filho ?
— Nao sou teu filho I gritou a criança, querendo
ferir.
Sabendo Francisca do occorrido,quiz castigar o filho»
e o faria sem a intervenção de Loureiro, que em face de
taes circunstancias teve escrúpulos e receios de contra-
hir o casamento. Vae sempre notando, meu amigo, que
nao tendo o Loureiro um máo caracter, mas revelando
até ser homem de senso, generoso, compadecido, sen-
sível e humano, nada justifica o ódio do menino, e
muito menos o de Senio, para dar-lhe tao desastroso
fim, qual o de morrer de uma queda do murzello, ca-
vallo que fora do Canho velho. O murzello, senhor das
intenções, do ódio do menino, jurou também auxilial-o
em sua gratuita vingança; e com effeito dà com o ne-
gociante no chão, e corre para Manoel, saltando e gin&-
íeando de contente^ por ter desempenhado o seu papel
com tal successo.
Vejamos agora, nao jíi o menino, porém o homem
a tomar a vingança ào assassino do pae, e revelando-
um grau de perversidade admirável e rara. E' galante
o modo como Senio pretende justificar o Manoel. Re-
produzo as palavras :
<( O gaúcho n9o tinha ódio ao Barreda [ o assassino áo*
velho. ) A vingança da morte do pae nfto era para sua alma a
satisfaç&o de um profundo rancor ; mas o simples cumprimento^
de um dever. EUe obedecia a uma intimação que recebera do-
céo ( o céo mandando matar gente! ) ; á ordem d'aquelle que-
sempre tinha presente á sua memoria. £ obedecia friamente^
com a calma e impassibilidade do juiz, que pune em obser^
tancia da lei, » ( E' bôa ! )
Depois da renhida lucta entre o Manoel e o Barreda».
correu este a refugiar-se em casa, onde sua mulher
chorava ; mas nao o conseguiu porque seu contendor
atirou-lhe as holas, e o inimigo cahiu. O que segue
sao textuaes palavras de Senio :
« — Pede perdfio a Deus, que chegou tua hora.
« A mulher do Barreda prostrava-se n^esse momento aos^
pés de Manoel, implorando compaixfto para o marido. Riu-se o
gaúcho com dureza e escarneo :
« — Virá outro marido para a consolar.
ff Arredando a desgraçada mulher, chegou o ferro da lamçm
aos olhos do castelhano.
« Conheces 7... E' a lança com que ha doze annos feriste mea
X 15
pae â traiçfio Eu jurei que havia de craval-a em teu coração,
mas depois* de vencer -te em combate leal.
<« Com uma calma feroz, espetou o ferro da lança no corpo do
assassino de seu pae, atravessando-lhe o coração, como faria
com uma folha secca.
(( líurzello, que se conservara immovel ao lado durante esta
f^cena, avançou a um signal do senhor^ pisou com a pata a face
contrahida do moribundo» que ainda estremeceu ante essa der-
radeira affronta.
« Em quanto a victima se debateu nas vascas da agonia, Ma-
noel a contemplou friamente. Quando se apagou o ultimo vislum-
bre de vida, se afastou sem lançar um olnar de compaixào á mu-
lher desmaiada. »
Que tinha a pobre mulher com o crime de seu mari-
do, para nao inspirar compaixão a um coração tao sen-
sível como o do Manoel ? si Canho, depois de haver per-
petrado a sua vingança, se voltasse para a viuva, com-
padecido d'ella, daria, sim, prova de coherencia com o
tal simples cumprimento do seu dever ; e tanto mais
quanto jà uma vez, tendo oUe vindo para matar o Bar-
reda e achando-o doente, medicou-o e tratou-o, posto
que para tomar uma desforra mais cynica e solemne.
Como tudo isto é edificante; nao é, meu amigo ?
Mas ainda nao é tudo. De repente ouve o Manoel o
rincho da morena seguido da detonação de um tiro. O
tiro fora disparado contra Manoel por um negro da es-
tancia, onde o Barreda era capataz. A morena, que es-
tava contemplando de longe a scena do combate, presenr-
tira que a pontafHa, feita pelo pião, ameaçava a cxw-
tenda de sei^ amigo ^ e disparara como uma bala, e, pas-
sando por junto do negro, desfechara-lhe nas costas um
couce que o atirara sobre a macega! Ouvindo o nitrido,
Manoel adivinhou ás primeiras notcLs o sossobro do te-
mor e a angustia, pela ^remu/a vibração da voz^ sempre
límpida e argentina.
Em face de taes cousas, pergunto-te, sem a menor
intenção hostil para com o auctor, que posso dizer que
eâtimo, admiro e respeito : será um romance de costu-
mes o Gaúclu)? Romance brazileiro — diz o frontispício
da obra ; logo nao ha duvida de que o auctor o deu
como tal.
Tudo quanto conheço, por leitura de viagens e
por informações pessoaes, concernente a esta face
ainda tfto pouco explorada da America Austral, im-
porta a negação mais completa do que nos dá Senio. Pe-
ZBrme disel-o^ mas forçi^me ao sacrifício a consciên-
cia.
16 X
E ainda bem que temos em opposição ao Gancho au-
ctoridades que nos evitarão no estrangeiro o ridiculo
que attrahe esta obra sobre os costumes da campanha
do Rio Grande do Sul, tao interessantes e romanescos,
mas nao tao arredados da decência e da rasao publica.
Ha ahi um drama de auctor portuguez, que nao dei-
xa de encerrar muita exactidão sobre este aspecto.
O drama intitula-se — O Monarcha das Coxilhas — e é ori-
ginal de César de Lacerda, que esteve no Rio Grande
e estudou os costumes. Quanto a mim, tem um grande
defeito o trabalho de Lacerda: é personalisar o typo
do gaúcho em um portuguez, o que só explica o exces-
sivo" espirito de nacionalidade do auctor. Além deste
defeito de essência, contém outros que entendem me-
ramente com a forma litteraria; em todo o caso porém
o trabalho é plausivel.
Como se explica pois, a antithese ?
O auctor nacional afasta-se, em quanto os estran-
geiros se approximam da verdade das cousas.
Não te parece isso um infortúnio para as nossas let-
trás, para a nossa terra tao fértil em talentos, entre os
quaes o resoluto talento de Senio ?
Como é triste fazer em publico taes confissões ! Mas
urge fazel-as para que lhes succeda a emenda com o
que temos deinfallivelmente ganhar,segundo o espero.
Confio muito na nossa plêiade de novéis litteratos, e
devo dizer-te com franqueza, confio muito no próprio
bom senso reparador de Senio.
Q/em^
i^n€0.
[Conímna^
Typ. e Lith.— Imparcial — Rua Sete de Setembro n. 146 A.
QUESTÕES DO DIA
isr. 11
RIO DE JANEIRO 5 DE OUTUBRO DE 1871.
Vende-s6 em casa dos Srs. E. & H. Laemmert. — Praça da Constituição,
Loja do canto. — Livraria Académica, Rua de S. José n. 119 — Largo do
Paço n. C— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis.
i^essao pax^lamentax* de 1S71.
Concluiu-sea sessão d'este anno, a qual deixará, nos
annaes parlamentares do Brazil, a mais esplendida pa-
gina. O Presidente da Gamara Temporária, ao encerrar
os trabalhos de tfto benemérita corporação, proferiu um
discurso curto, mas valiosissimo, em que, fazendo jus-
tiça á illustraçao e dedicação do parlamento, compen-
diou em quadro breve os resultados da laboriosa tarefa
dos legisladores, durante uma quadra de poucos mezes,
mas que, além das occupaçOes ordinárias, dotou o paiz
com progressos taes, que tornar&o o anno de 1871,
para o Brazil, marco milliario na estrada da grande
civilisaçao. Eis aqui esse discurso :
O Sr. Presidente : — E' hoje, senhores, a ultima
sessão do S"* anno da 14' legislatura, e no momento de
deixar esta cadeira, eu sinto necessidade de dirigir-me
aos meus illustres collega^ para agradecer a subida
honra que me conferiram, elevando-me a esta alta po-
sição, e auxiliando-me efficazmente no desempenho de
tao importante tarefa.
Semelhante aspiração nunca poderia ser por mim
alimentada, porque j&mais me julgaria habilitado a
satisfazer as funcçOes do mais elevado cargo desta au-
gusta camará !... [Muitos não apoiados,)
Surprendido, porém, pela vossa decisão, eu nao me
julguei com o direito de recusar-me a um mandatOj
cuja transcendência se augmentava pela especialidade
das circumstancias em que foi dado ; e confiando no
vosso patriotismo e prudência, obedeci, como me cum-
pria. A minha confiança não foi illudida, e a tarefa,
que se afigurava árdua e difficil, tornou-se a mais
suave, pelo vosso próprio procedimento.
2 X
Pela minha parte, senhores, tenho convicção de que
me esforcei, tanto quanto era de meu dever, para exer-
cer as funcções que me foram confiadas, com a impar-
cialidade que exigia o seu desempenho. [Muitos apoiar-
dos,) Se nfio correspondi à vossa honrosa espectativa,
ao menos fizestes justiça á minha bôa vontade e á sin-
ceridade do meu procedimento. Eu o agradeço.
Mas permitti também algumas palavras sobre os re-
levantes serviços que prestastes á causa publica.
Ao rotirar-vos para vossos lares, levais em vossas
consciências o maior galardão u que podia aspirar o
vosso patriotismo, qual é a convicção de bem haver
exercido o sublime mandato da nação.
A par de numerosas deliberações sobre os diversos
ramos da administração do Estado, também mereceram
a '
particular solicitude desta camará alguns assumptos
cuja importância e interesse se revelam da sua simples
enunciação.
Assim, foram approvadas numerosas pensões conce-
didas em remuneração de relevantes serviços prestados
á pátria; e especialmente para protecção da viuvez e
orphandade, victimas da gloriosa guerra que susten-
támos contra o governo do Paraguay.
Diversas leis de animação a emprezas destinadas ao
desenvolvimento material do paiz foram solicitamente
elaboradas.
A providencia concernente aos estudos preparató-
rios, determinando que os exames feitos em alguma
das faculdades do Império sejam válidos em qualquer
outra, tem a dupla vantagem de consagrar uma me-
dida de equidade e grande economia de tempo para os
trabalhos da assembléa geral.
A lei que regulou as fyudas de custo dos bispos,
supprindo uma lacuna da nossa legislação, estabeleceu
uma regra previdente e salutar.
Outra, regulando melhor as ajudas de custo dos
presidentes de provincia, consultou convenientemente
uma necessidade da administração.
A lei sobre a naturalisação de estrangeiros simpli-
ficou o processo para a obtenção da respectiva carta,
com grande proveito para a immigraçSo, condição es-
sencial do nosso progresso e desenvolvimento.
O credito especial para prolongamento das estradai;
de ferro D. Pedro II, S. Paulo, Pernambuco e Bahia,
satisfazendo a mais vital necessidade publica, é um
XI 3
grande incentivo do progresso da industria e da ri-
queza nacional.
A reforma judiciaria, que preoccupaha longos annos
a attençao dos poderes do Estado e de todos os partidos
políticos, tornou-se uma realidade pela lei recente-
mente sanccionada que, regulando a administração da
justiça, garante melhor a liberdade do cidadão.
Além destas leis, cuja execução vai satisfazer gran-
des necessidades públicas, e que por isso bastariam
para recommendar a actual sessão legislativa, foram
ainda iniciados muitos projectos importantes, que
pendem de vossa decisão.
Mas, d'entre todos os actos legislativos, sobresahe,
pela sua importância e gravidade, a reforma do estado
servil, medida de grande transcendência para os mais
vitaes interesses do paiz.
Esta reforma, que teve por base a iniciativa parla-
mentar, e sobre a qual se pronunciaram os membros
desta augusta camará com a maior independência e
patriotismo, ha de necessariamente produzir os seus
salutares effeitos. A historia fará justiça a cada um dos
representantes da nação, que com a maior abnegação
e inexcedivel civismo se consagraram á solução de tao
grave questão.
E' cedo para que possamos apreciar todos os bené-
ficos resultados que devem auferir-se dessa lei, e dos
quaes estão profundamente convencidos seus auctores.
É' cedo para que se possam aquilatar os serviços pres-
tados pela actual legislatura sobre tilo melindroso as-
sumpto.
Mas nao é cedo, senhores, para que possamos bem-
dizer a Divina Providencia, que concedeu aos legisla^-
dores do Brazil a graça de poderem discutir e votar
uma lei t5o importante, sem as calamidades que em
outros paizes acompanharam a sua solução ( muitos
apoiados j, sem nenhuma perturbação da riqueza e da
tranquillidade publica. ( Apoiados ). Nfto é cedo para
agradecermos ao Todo Poderoso a protecção que nos
concedeu, fazendo com que a nação brazileira assumisse
a mais prudente attitude em face de uma questão tâo
momentosa, que podia agitar os mais perigosos estí-
mulos das classes socíaes; e que em suas múltiplas
relações interessa, não somente uma parte da socie-
dade, mas toda ella, nao somente aos cidadãos bra-
4 XI
zileiros, mas à todos os habitantes do Brazil!... [A-
poiados).
Graças, senhores, a essa protecção que tao eficaz-
mente inspirou o patriotismo de nossos concidadãos,
podemos apresentar um bello exemplo às outras na-
ções, que sò depois de grandes provanças conseguiram
realizar essa difficil conquista do progresso e da civi-
lização. E' com ufania que devemos dizer : « A reforma
do estado se7'vil não achou adversários no Brazil. »
Quanto a mim, conservarei como a mais grata e hon-
rosa recordação da minha vida politica o facto de ter
sido chamado à presidência desta augusta camará em
condições tao graves como as que presenciámos por oc-
casião da discussão desta reforma, que sem duvida é
a questão mais importante que tem sido submettida á
decisão dos legisladores do Brazil desde a indepen-
dência do Império. { Apoiados).
E, finalmente, julgo exprimir o pensamento desta
augusta camará dando um público testemunho de re-
conhecimento á população desta capital, que mais de
Serto accompanhou os nossos debates, e que pela gravi*
ade e decoro com que se portou sempre que compare-
ceu para assistir ás discussões, provou que a confiança
pública em nossas sabias instituições e o respeito aos
poderes do Estado sao uma realidade no Brazil. Tenho
concluído.
Oarta II
Gincinnato a Sempronio
Continuo a metter-me a taralhfio: nSo venho, amigo,
caçar nas tuas terras ; está bem entregue o Gaúcho ao
teu braço secular, mas faz-me gosto servir-te de cama-
rada ; tu és Marechal do Exercito ; eu serei Tambor ;
mas o certo é que ambos pertencemos á mesma milicia.
Continuemos a campanha.
Vejo que já pareces ir aproando para terra, por con-
siderares sufficiente o que tens dito. Seja assim; mas
como me deste o gáudio de mimosear-me com um exem-
plar do livro monumental, quero agradecer*t'o, pro-
vando que nao deitaste agua em cesto roto, e que,
tendo eu convidado a Senio para preceptor, vou prós-
XI 5
crever todas as noções que tinha do idioma, substi-
tuindo-o por uma lingua incógnita, nova, moderna,
triumphante, conquistadora e fresca, a que darei o
nome de SeniaL Passo também a impregnar-me nas
phrases, imagens, descripçOes e locuções, nao menos
SeniaeSy e espero poder vir a arremedar o género pan-
tafaçudo, porque onde me faltar a idéa, buscarei uma
phraseologia onomatopaicamente campanuda, phraseo-
logia pâââmpa, com que porei os meus admiradores
boqui-abertos e zonzos. Seguirei a moda coimbrã ;
seguirei a moda, já proclamada pelas Cacholetas :
Hoje é moda estylo abstruso ;
enrodilhar palavrões.
Nunca perde por confuso
quem fizer allocuções.
E' moda que tem pegado ,
porque vem de auctor graúdo,
que devera dar ào estudo
o tempo mal empregado
em tecer, por modo novo,
os discursos nebulosos
de que se ri todo o povo.
Como nao heide escrever 10 volumões para analj-
sar 2 voluminhos, vou só apontando o dizimo das
bellezas que esfervilham por toda esta biblia do Bom
gosto.
Começa o cap. 2;** :
a — Çon^a o anno de 1832. Um cavalleiro co7V'ia,
n toda brida..,. »
Perfeitamente: se o anno corria, o cavalleiro por força
que também corria', é lógico e é elegante. Agora o que
vou accrescentar aos meus estudos da língua, é a ex-
pressão toda 6rií/a para significar á desfilada: na era dos
Affonsinhos, dizia-se a toda a brída.
O cavalleiro levava na cabeça um chapfo desabado
de baí^ta, premiado, como invenção Senial, na Exposi-
ção d'aquelle anno, em que nao houve exposição ; e lá
por dentro levava uma alma sui generis^ alma com a
velocidade {!) do vôo do gavião.
Ch«^ga Manoel Canho ao rancho do Chico Baeta /'ap-
pelidado o Semmedo, por ser homem sem medo de que
o convertam em desabado', e entr'ambos começa um
6 XI
dialogo, opulentíssimo em grammatica e vernaculi-
dade. Por exemplo :
(( — Em uma corrida, ha 2 annos, o senhor nfio es-
teve lá ?
(( — Fui um dos que corri, »
Por minha parte, eu cá fui um dos que ficaram colo-
ridos de vergonha, de nao ter aprendido tâo correcta
lingua, e lá vi o Canho montado no murzello, porque
tinha ainda que fazer umas cinco léguas.
Em poucas linhas, temos :— a murzellinha fez traz
zas — o elogio feito — fazendo um esforço — fazer 5 léguas
— farei presente— /e^ o viajante — etc.,etc. o que prova
com que engenho se pode conjugar um verbo todo,
sem ter ar d'isso: estylos assim sao ainda menos ro-
mânticos que didácticos.
Afinal pára o Canhu; come a janta^ e bebe agua '' pelo
bocal do estribo " que o rapaz teve o cuidado de lavar
para dar-lhe a serventia de copo. Que o rapaz era a-
ceado e fez bem, nao ha dúvida nenhuma, visto que o-
tal estribo devia vir porquinho, lá isso devia; porem o
que me espanta é a sobriedade do Canho, que, tendo, ao
pino do meio dia e com sol claro, aturado muitas léguas
de corcovos, capriolas*, repellôes e curvetas do murzello
a t> da brida, se contentava com i; pinguinho d'agua,
que um bocal, de uma pollegada quando muito, po-
deria conter. Os Gaúchos, em taes circumstancias, bebem
pela mão, por qualquer folha larga de arvore, ou cousa
assim: o P(ídro Javardo pag. 72; (( para beber agua
ia ao arroio, e estendia-se de bruços pela margem. » O
próprio Manoel Canho,» quando topava com cavallo es-
tropeado (pag. 6G) arrastava-o para a sombra, e ia
buscar-lhe agua no chapéo. » Mas, nesta memoranda
occasino, o Gaúcho estava na apojadura de apurado e
delambido: para sanar uma damnada sede ( não era
certamente tão damnada como isso ;, não só se con-
tentou com um golesinho d'agiia homeopathico, mas
para isso teve de pòr-se primeiro a desprender os loros
dasella, a tirnr os estribos da argola, a despir delles os
bocaí^s para fazer púcaro... complicada operação de per
si ])astante para apagar a sede de um Dário, fugindo
d*Alexandre.
« — ... afrouxou as rodeas ao ruão,7?/e lançoií-st' como
uma flecha» aquegirou-lhe em torno da cabeça » i( pro-
seguiu o animal e lhe fendeu o craneo » « o suor que n-
lagava-lhe o corpo )> c< cuja estampa descnhava-se »
XI 7
« olhos a se engolfarem » ele. etc. e idênticas locuções,
que Senio reproduz a cuda passo, e se me affiguram
incorrectas.
Aqui porem tem elle uma desculpa, se lia culpa : é
este seu dizer assaz frequente no Brazil, e caracterís-
tico dos mais seg'uros para se affirmar, prima facAe^
ter uma obra portugueza sido aqui escripta. Nem me
applico a censuras, nem a proselytismo ou propag*anda ;
mas deve-me ser tolerada a franqueza, g-erada da con-
vicção : adeante de Platão, a verdade ! e nem receio
que os sensatos me levem a mal a observaCã) que
submetto respeitosamente, quanto a esta liberdade
local.
Affigura-se-me pois que não será fácil mostrar, em
auctor portuguez, antigo ou mcderno, já não di^*o
clássico, mas simplesmente de bua nota, as locuções
supra-citadas ; e que a construcção d'ellas será sempre
a^sim : ffiie se lançou, (jue lhe girou, fciiclea-lhe. que lhe
édagarOj cuja estampa se desenJta^-a, olhos a engolfarem^
sf\ etc.
Regula-se (creio eu^ por eguaes preceitos a coUoca-
ção, tanto da variação do pronome da 3\ pessoa coui
que apassivamos os verbos, como dos outros pronoinc^s
e casos íulverl)iaes que unimos aos verbos reílexos ou
rociprocos : me, te, lhe, nos, vos, se ele. e a rei:*ra para
coUocação de qualquer d'e>tes, abranij-e a todos os
outros.
Phrases ha em que o uso dos dout^^ concede li-
berdade mais ou menos amjda para indistinctamente
antepor ou jKJspòr aos verbos a(|uelles pronomes ;
porem na máxima parte, ha regras, de que não é licito
eximirmo-nos, se aspiramos a não sei* tidos por muito
incorrectos. A leitura dos bons modelos é o primeiro •
guia ; mas creio que para as seguintes normas .se não
a«*hará excepção.
No seguuíio modo de apa^sivar verbos . isto é.
quando juntam()s o caso sp aos sui)jtútos da *i\ pessoa.
que não podem fazer a acção em si mesmos ). e quando
aos verbos activos, reílexos ou recipi'ocos, ligamos o.s
raso^ adv<*rbines, dá-se cnllocarão forruda^ nas seguin-
tes hypotheses :
1*. Se ao verbo precede o articular demonstrativo e
i-onjunctivo r/í/(\ ou outro relativo, ou couiunccão, ou os
advérbios /íí/o, nunca, jn, s^^rtipr", untes, c', lu, mais,
in filo, assim^hem, (^ua^i todos o< tí»rmiimd"»s em mcnt^
8 XI
(excepto, em alguns casos, os ordinaes, por outro
motivo ) etc, deve sempre o pronome antepôr-se ao
VERBO.
Exemplos : — que se lançou^ e nao que lançou-se ; —
que lhe girou, e nao que girou-lhe — cuja estampa se
desenhava^ e nao cuja estampa desenhava-se ; — não te
amOj em vez de não amo-te ; — nunca te admirei^ e nao
nunca admirei-te ; — deixe- nie,, e nao me deixe ; — jd te
conheço^ e naoja conkeço-ie ; — sempre te enfatuaste, e
nao sempre enfatuaste-te ; — antes nos divirtas, e nao
antes divirtas-nos ; — ca me vou, e nâo cá vou-nie ; —
Id vos espichastes, e nao lá espichastes-vos : — mais te
exaltas, e nHo mais exaltas-te ; — muito te prestas, e nao
muito presías-te ; — assim te ajude Deus, e nSo assim
ajude-te Deus ; — bem me importa, e não bem importa-
me ; — parvoamenle se exprime, e n^o parvoamente ex-
prime-se.
2.* Geralmente nos restantes casos, quando a oraça*
começa pelo verbo, ou pelo seu agente, o verbo ante-
põe-se AO pronome.
Exemplos : Este menino perde-se, e nao este menino se
perde] — as finanças evaporanv-se, e nao ^e evaporayn\ —
divertes-me, coiiheço-te, vou-me embora, enâo me diver-
tes, te conheço, me vou embora ele, etc.
Uf ! que maçada ! nao foi ? agúenta-a, em desconto
dos teus peccados, e se o andante foi tristonho, siga-se
o galhofeiro alegro : refocillemos o animo na admiração
do romance.
Chega o Canho ao Jaguarao, lia hora em que os sol-
dados de Lavalleja vao depor as armas, com um senti-
mento de humilhação, que era partilhado pela popula-
ção : « un sentiment d-humiliation^ qui étail partagé pa?*
ia population. » Eu também bato palmas ao neologis-
mo, substitutivo do compartir, participar de, emais va-
riantes indigenas ; mas então proponho que creemos o
tal verbo partilhar para que signifique : dar o quinhão
da herança ; e acceitemos francamente o pariajar ou
partejar, para uns apertos doestes: assim ficará plirase
ainda mais harmónica e gallica : « sentimento de hu-
milhação, que era partajado pela população. •>
Apparece depois um ferrador e o coronel Bento Gon-
çalves, vasado na mesma tempera de Osório e Andrade
Neves, Ficamos pois sabendo que um homem se pôde
vasar em rijeza ou consistência : ou antes que tempera,
.em idioma senial, é synonymo de modelo ou molde.
XI 9
Mas, adivinhada esta charada, fica outra peior : Que
Osório e Neves fossem vasados na mesma tempera, em
que outr*ora o foi Bento Gonçalves, vade in pace ; mas
que uma heroicidade, patenteada 30 annos antes, já
então fosse vasada na têmpera que havia de apparecer
lima geração depois, nao deixa de ser habilidade.
E o coronel Bento era feliz, porque os homem o ado-
ravam; as tnulheres o admiravam, » Pelo que as mulhe-
res faziam, segundo para baixo se vê, ha exactamente
aqui um chnssé croisé de verbos : eram as mulheres que
o adoravam, e os homens que o admiravam ; mas isso é
•o mesmo.
Segue-se um dialogo onde se vê um tal CoUeira allu-
dir ao « degolo y que todas as manhãs fazia nas rezes
destinadas ao corte de charqueada » e que geralmente
nao sao degoladas; e surge uma trapalhonasinha, de 12
annos, e de excellente embocadura, chamada Catita^
nome que Bluteaudá por synonymo de Catharina.,Aiío
singela, como, ás duas por três, mostrou que o era a Ca-
tharininha, que, na famosa canção irónica do Mephis-
topheles. serviu de pseudónymo á Margarida do Fausto,
.subjeitiuha esta com quem sempre impliquei, por nol-a
venderem como typo de innocencias, começando ella
por ser facilmente comprada com quinquilharias do
diabo, e acabando por estrefegar mííe, irmão, filho e
amante, e nao obstante subir até ás bambolinas do ceo,
cousa que tanto custa a qualquer simples mortal.
Esta rapariga era um demonico. Nós cá diriamos que
ella tinha a boquinha mais gentil ; mas errariamos ; o
que ella tinha, segundo Senio, era a bonfjuinha xmais
gentil. Tinlia mais 1.° cabellos negros, 2." os olhos
negros como os cabellos (Sina! Charaa-se mnrzello o
cavallo todo negro ;e pois Canho era todo uma vul-
cânica paixão equina, estava no livro dos destinos, que
se lhe havia de assemelhar a namorada ao seu mur-
zello . Ressumbrava graça etc, segando o systema geral
do^ ressumbramentos Vide o Movo Metliodo].
Como a pequenina viera ao mundo, predestinada
f)elo menos para figuranta do Theatro Li/rico^ compre-
lende-se bem a utilidade do seu requebro faceiro^
nrsinho de malícia^ esticamenlo da perna bem torneada^
nrqueamento do pisinho^ figura de danra^ e olhar bre-
griro '! Sim,senlior; as musas de uns senhores homens,
chamados Atiacreontes, Parnys e Pirons, inspiravam-se
assim ; nao ha que dizer: o nome do General Camará
10 XI
deu euphemismo a uma rua ; e o marcial pavilhão
cobriu a mercadoria.
Ha, entre aquellas expressões cândidas e significa-
tivas, uma que me dá ainda mais no goto que o olhar
bregeiro ; é o 7'e(juebro faceiro . Este sympathico auctor é
enthusiasta das faceiras ; lá volta, a pag. 73, a Morena
vergando faceiramcute o homhro ; vocábulo frequente-
mente repetido.
Este faceiro, assim, sempre quisilei com elle. Eu nSo
sei se o Moraes tem ou não razfio; mas descreve d'est'arte
a faceira : « A carne das faces do boi. Vaidoso, pata-
rata, casquilho rafado, que se sustenta com faceira de
boi e o mais á proporção, e aperta a barriga, e soffre
outras necessidades para se enfeitar etc. » Que, figu-
radamente, a faceirice seja equivalente de bandalhice,
peralvilhice, e casquilharia rafada, nao digo nada ;
mas que faceiro seja synonynio de gentil, mimoso, en-
graçado, airoso, galante, ai-jesus, só no idioma
Senial.
Continue em scena a faceira-bregeira.
Agora, o que torna o Xn\ feitiço^ prodígio nunca visto,
é a descripçao do Senio, que, ao pintal-a... fez um ca-
pote e um milagre. Já viste, ou viu alguém neste
mundo, uma creança de 12 annos, de pernas bem tor-
neadas, que tivesse cabcUos que dessem até d bahiha da
saia, desenvolvimento este, a que a natureza nunca se
presta senão em edades muito mais adeantadas? Isto só
podia ser visto j^or quem viu uma catita, filha de um
selleiro gaúcho, arqueando o pcsinho calçado com um
sapato de íiiarroquim azul, cheg^ado, pelo ultimo pa-
quete, da casa Campas: e que naturalmente a feiticei-
rinha comprou em Pelotas, na loja de Mlle. Elisa.
Mas isto nao é nada ; o mais está para ver. A garota
queria o Canho para noivo : este estava w alheio ao que
passava junto. » ; Xao sei bem o que é que passava,
nem janto de quem, nem porque ) ; emfim tinha uma
(( expressão de recolho. » Recolho '? recueillement ?
Nada. ( Isto provavelmente é erro typographico: o
Canho estava tao fecliado e redondo, que tinha erjtres^
são de repolho], E o caso nao é para menos. O Canha
bem quer adcíiar o seu matrimonio paro quando a abe-
lha seja ainda mais mestra ; para quando for viuva :
porque emfim de cavallos gosta, mas de borracliinhos
novos, não. Está pois alli enrolado como um rej'()llio,
a meditar n*! vaidade das vaidades a que anda subjeit.^
XI 11
a espécie humana, e na sorte que o aguarda quando
por sobre a ornada fronte lhe vier a desabar o Carmo e
a Trindade.
E como poderia aquella portentosa Catita deixar em
socêg-o o coração de toda a gaucharia, e mais dos bu-
gres, charruas, guaicanans, guaranys, minuanos, ta-
pes, e restantes ornamentos silvestres da província de
S. Pedro do Rio Grande! Era vellhaquinha, que andava
sempre de olhos piscos, aos 12 annos, e que quando
erguia as pálpebras ( o que erafim lá succedia de tem-
pos a tempos), « parecia que seu rosto se tinha banhado
em joiTOS de luz. » Era assim mesmo : o lavar da cara
daquella menina ( de mezes a mezes) era num alguidar
de jorros de luz ; até aqui vai bem ; agora ser isto uma
comparação para o caso da despiscadella dos olhos... lá
verás.
O retrato da menina precisou ser feito do toutiço até
à perna torneada e ao pésinho arqueado, sem faltar uma
pollegada. Lá vem o ar, a boiKjuviha^ a fronte, os
cabelíos, as espáduas, o talhe, as formas, o requebro,
os olhos piscos, as pálpebras róseas, a perna, o pé, a
pirueta, e o olhar brejeiro ; agora .só falta o nariz e o
cotovello... Ai, nâo ; falta também a tez; toca a ver:
— « A tez, quem a visse, em repouso, sob a ne^rra
madeixa, cuidaria ser alva ; mas nas inflexões do coUo
e dos braços percebia-se, como sob a transparência de
opala, uns reflexos de ouro fusco. Então conhecia-se
que era morena ; e o tom cálido da sua cútis lembrava
o aspecto das brancas praias de areia, illuminadas pelos
últimos raios do sol. »
« A tez.quejn a visse, cuidaria,,.)) Certamente ; quem
a não visse, não cuidaria nada.
« A tez, (jnem a visse em repouso.., » Tez em repouso,
já é bom; ver lez em repouso, é muito melhor.
M Penebia-se lUis reflexos... )> Muita palmatoada levou
ura condiscípulo que eu tive em gramrn atiça, quando
éramos pequenitos, e que dizia d'e>tas ! Nunca o mestre
lhe poude fazer entrar nos cascos que um nominativo
no plural com verbo no singuhir, é prohibido.
Vamos para deante. Olha tu para a raparifi*a. Cuidas
qtie é alvíi ? tó, que te damnas. O modo de olhar para
ella, não é commum : tem de s^u* examinada por uma
opala, (|ue é a luneta própria para estas averigniações.
Já tens a opala, no canto do olho ? ora, muito bem.
Agora, maganão, começa por lhe olhar para as infle-
12 XI
xões do coUo ou pescoço, e dos braços, que, já se sabe,
sao o sovaco e o sangradouro ; e acharás que essas in-
flexões sao côr de ouro fusco, e que a Catita é morena.
A cara parece branca ; o gasnete é de ouro fusco ; o
sangradouro é pardo ; e o sovaco é côr de opala. O que
à rapariga vale é não ter nascido no tempo e na terra
de D. Miguel ; tao certo como 2 e 2 serem 4, esta bel-
leza ia à forca, por malhada,
E >»inda por alli não fica, no tocante ás imbirrações
da cútis. Tem também um tora cálido ; e para se, não
dizer que a imagem nao tem tom nem som, lembra o
aspecto das brancas praias de areia ; ergo, as praias de
areia náo silo pretas; sao brancas, mas, ao pôr do sol,
tingem-se em moreno ouro fusco de conformidade
com o systema das cacholelas.
Será tudo isto progresso na arte de escrever ? Será
com linguagens e phantasias doestas, que derrubarão
a antipathica columna Vendôme do terso dizer dos
mestres ?
Nas impagáveis notas á Iracema^ cora que talvez me
divirta um (Tia, diz o Sr. Alencar :
— « Aquelles que censuram minha maneira de escre-
ver, saberão (assim o tenham entendido, e o façam exe-
cutar) que nao provera ella, mercê de Deus (esta bafo-
rada, esta mercê de Deus vale quanto pesa) da ignorân-
cia dos clássicos, mas de uma convicção profunda (po-
bres clássicos, mais vos valera nunca terdes nascido) a
respeito da decadência d^aquella eschola » « O velho
estylo clássico destoa no meio doestas florestas secula-
res, d'estas catadupas formidáveis, d'estes prodígios de
uma natureza virgem, que nao podem sentir nem des-
crever as musas gentis do Tejo ou do Mondego. »
Sim Sr. ; é assim mesmo. Ora comparemos estes mo-
dernismos Seniaes com as intoleráveis antigualhas dos
clássicos, e abramos um doestes ao acaso, era paginas
onde também se descrevam raparigas catitas, e o ef-
feito que ellas produzem em corações masculinos. Caiu-
me, por exemplo, debaixo das mãos, a Eufrosina, como
poderia cair qualquer outro jarreta. Lê :
— « Passando agora peUi porta da minha rapariga,
achei-a falando com uma nossa vizinha ao pé da escada
de dentro ; eu como n'estes casos súbitos mostro mi-
nha SLifficiencia, e ando sempre provido de cautelas
para os taes recontros, porque occasião de fazer bem
nunca se ha-de perder, levo do tudesco para traz, como
XI 13
cortezao soldadesco, e chegando-me ao limiar da porta,
perguntei-lhe se era ahi o senhor seu pae ? A rapariga
estava bonita como o ouro de sua vasquinha amarella
quartapisada, em mangas de camisa, seus cabellos ata-
dos com uma fita incarnada, tao de verão que vos ride
vós de mais sereia pintada, e por mais ajuda, em me
vendo, ficou fraca, e dizendo-me » é fora da cidade,
virá amanha por noite — » ao despedir fez-me uma mi-
sura com um recacho, que me aleijou ; e assentae que
é um camafeo de pequena em fora: e eu com isto ve-
nho espirrando, lançando mais faiscas de amor- que es-
trelh\s com suão.
... E estando assim, erguia, de quando em quando, uns
olhos verdes claros, húmidos, orvalhados de alegria so-
cegada, tao grandes e graciosos como todo o primor
das Charites ( por maneira que com razão se pode cha-
mar a 4* GraÇa ) ; e pondo-os em mim, a tempos fur-
tados, com um olhar quebrado surrateiro e brando,
atravessam -me... Já sabeis que sou perdido por olhos
quebrados, que fazem furtos no ar.. Quando contemplo
comigo que estive á fala, rosto por rosto, com a senho-
ra Eufrosina, e que ouvi aquellas doces palavras de
delicada pronuncia, aquellas razões brandas e discretas,
aquelles risos, aquelles temores honestos, os favores
escassos da vontade liberal.... e nisto junctamente os
olhos que faraó clara a noite escura, os cabellos en-
trançados que representavam todo o thesouro do mundo,
aquelle rosto, aquella presença, aquelles ais frautados
quando se maguava. . . por certo eu me espanto como
não abafei em tanta gloria, e perdidos os espirites....
E d'outra parte, quando cuido que tive coração para
me apartar d'ella, fico frio, e nunca homem commetteu
tal ousadia »
Levo mao doestas transcripções. Que homem de gosto
ha hi, que a dizer tão singelo, elegante, vernáculo,
attractivo, prefira os inqualificáveis estylos de um
Senio, com os seus Ganhos escanhoados, e as suas Cati-
ta.s acatingadas !
Esta guerra aos clássicos, para certos escrevedores,
é precedida do manifesto da raposa, inimiga da uva.
As obras dos mestres, os eternos modelos tomam-se ob-
jecto do escarneo dos innovadores, capazes de desthro-
nar os Demósthenes e Homeros. Tivemos a eschola da
antiguidade ; depois, certo numero de regras tradicio-
naes ; mais proximamente, a emancipação de todas as
14 XI
normas, proclamando-se typo único a natureza; agora,
surgem os ministros do bello, sacerdotes du ideal, de-
molidores do senso commum, despresadores de quanto
merece veneração, e que nao produzem senão monstros
litterarios, sem alcance ou de alcance detestável, sem
missão ou com a missão desorganisadora, sem forma ou
com tauxia das mais incongruentes formas.
Uma sub-divisão doesta casta de auctores compre-
liende a dos caçadores de effeitos. Conheci eu em Ouro
Preto um ratão, que desejou industriar-se na caça ; le-
vou 6 mezes aprendendo a carregar a espingarda, e
um anno diligenciando passarinhar ; aflB.igia-s8 porém
com o estampido do tiro, de modo que, quando puxava
o gatilho, virava a cara, abala seguia para o norte, o
passarinho deitava a rir para o sul, e o meu caçador,
encarando então a sua façanha, exclamava invaria-
velmente: « Brava I fugiu. » Os taes caçadores littera-
rios imitam toda esta operação ; só com a difiFerença de
que, quem exclama o a Brava I fugiu » é o publico.
O processo, neste caso, é singello. Proclama-se o
poder pessoal da excentricidade, embora ridicula ; da
originalidade, embora extravagante ; da novidade,
embora absurda; e quando se tem assim embrulhado
desatinos e puerilidades em esfarrapado manto de vas-
cosa linguagem vasconça, imagina-se subir em carro
ebúrneo ás glorias capitolinas. Arago, na sua AstronO"
mia jwpular, fala de um tal Dr. Elliot, sapientissimo,
e ainda mais excêntrico, e que havia demonstrado,
entre outras novidades, ( e com a mesma evidencia com
que o estudante de um observatório astronómico de-
monstrou haver ratos na lua ) que o sol era habitado.
Adergou que um dia em que o doutor estava com os
seos azeites, matou, num accesso de cólera, miss BoydelU
Não teve o advogado, Simmons, mais que expor ao tri-
bunal a theoria do sapientissimo, para lhe obter a absol-
vição, por unanimidade. Que a theoria do doutor fosse
nova^ concordo, mas que egualmente nova fosse a
mania do homem, isso é que não, pois remonta lá até
os tempos do incêndio do templo de Delphos.
Participo-te que o teu Carlos está com escarlatina;
as febres andam assanhadas.
«
Teu leal amigo
ClNCINNATO.
XI 15
Epigramnias e madrigaes, orlginaes ou imitados
Dialogo com. um. Rva.Poota
« — Bocage descreu dos médicos ;
fez-lhes muitos epigrammas.
Tu, Vate Reverendissimo,
aquelle exemplo nao amas ? »
« — Queres que eu siga, sem calculo,
exemplo que me nao quadre ?
Faltando defuncto e exéquias,
de que hade viver um padre ? !
Quiniiliano.
Um casamonto acsfclto
Quizeste casar co' o Jucá,
Matliilde; és mulher de siso.
O Jucá roeu-te a corda;
inda Uie acho mais juizo.
-V uma actriz qiie enviuvou Hontem.
Morreu o esposo da cantora Alpini,
que hoje devia o Trovador cantar.
Quel-aem scena o empresário! O homem é doido.
Hoje é dia de rir, nao de chorar.
Oonaiçõos cio favor
Se eu te peço um favor, para que o seja,
fal-o ! fal-o depressa e em bom humor I
Se o fazes manco, ou tarde, ou de má cara,
o mérito perdeu ; nao é favor.
Amor fugçindo
Idolatro a que me foge.
Nao desejo a que me quer.
Se amor douram as recusas,
sô menos fácil, mulher!
16
A. um, que nunca ologia poetas ^vivos
Só de elogios a mortos
nao és, Decio, nada avaro.
Safa ! ser por ti louvado
nao vale a pena; sai caro.
A. uma feia <lelâm'bi<la
Gertrudes, tem por amigas
mulheres velhas, ou feias,
ou tortas, ou aleijadas,
ou vesgas, ou centopeias.
Leva-as comsigo aos theatros;
só taes subjeitas visita.
Faz bem, faz bem, que ao pé d'ellas
alguém dirá que é bonita.
Os porquês do uma demanda perdida
« — Tu só ganhas más demandas»
mr.u querido Balthazar ! »
« — Top ! o mal dos meus burricos
foi quem me fez alveitar.
Sem justiça, ganho sempre.
Com justiça, historia ! apanho.
Com ella, fiei-me... e perco;
sem ella, comprei-a... e ganho.
Zero.
Questões do dia
O 1* volume, de 300 paginas, compOe-se do N. 1, de
72 pag. ( preço 500 rs.), e dos Ns. 2 a 15, cada um de
16 pag. ( a 200 rs. cada numero ). Para encadernar,
dá-se grátis, nma folha, de rosto. Saem dous números
em cada semana. Quem desejar que esta publicaç&o
lhe seja entregue em casa, poderá avisar na loja do
Canto, Praça da Constituição.
Typ. e Lith.— Imparcial— Rua Sete de Setembro n. 146 A.
QUESTÕES DO DIA
N. 13
RIO DEJASEIROT DE OCTIBHO DE 1811.
Ti!n<l«-*e am ra*» dos Sr* E. & H, Liem mo ri.— Traça d» ConstituiçSo.
l.^a do rsDto. — Livraiia Academira, Rua de S. José n. 119 — Lari^j do
Pav^ o. Cl— Rua de Gonçalves Dias n. 7S. — Profo 20fl reis.
A sessão de 16T1.
O paix foi dotado com três leis importantes na
i «âãdão legislativa, encerrada em 30 de septemhru ul-
I timo. Com tíjfla a raKuo será a sess^ d'este aimo coasi-
Jerada nos anuaps do parlamento brazíleíro como uma
dãa mais importante.s e fecundas, siiitlo. talvez, a pri-
meim rora r«ferenciu ao immenso alcance de uma da»
1 lei*, a que alhiilimos.
Observemos rapidamente cada uma d'e.ssa.s tre.s lei».
— ?5ii sua ordem de datas a primeira é a que concedeu
' um credito de '20 mit contos pura o prolongamento da
I e:strada da ferro, que pnrle d'esta Corte para o interior.
L Com o poderoso auxilio que acaba de receber a estrada
l de D. Pedro II terá de segfuir até o ponto terminal, por
■ 'ora assestado, ia prorincia de Miniis. d'onde no futuro
1 essa e„'itnida continuará na direcção, que for entAo
I jnltfRiiH mnís conveniente ao tim de irnidiar-se pelo in-
* teríor do Bruzil.
O qoe ora foÍ decretado éjã muito para o futuro de
ima parte importante d"essii rira província, e de di-
I veraue mnnicipioí< dn nito menos rica provincia de
|S. Paulo.
Nau somente na direcção da sua linha, romu ainda
nm fw ramaes, que necessariamente terão de ser crea-
Idofi, a estrada servirá a valiosissinios tnteresse.s mate-
I riaes e ecouumicos, facilitando ã lavoura e cominer('io
I dos pontos a que tem de approveitar um largo desen-
I TolTimenlo de actividade industrial, que muito seri
^ para fecundaras fontes do trabalbo, da prcducçíio e da
I riqueza.
[ Como Consequência oatural, a população terá de
nmdeiiBar-se iia-t zonas próximas d'essa grande artéria
2 XII
de viação: o sibilo da locomotiva n'essíis rogiões dis-
tantes dos grandes centros commerciaes de beira-mar
despertará, com o seu echo estridente, a vida agrícola
das populações dissoíninadas por área va.stissima, que
até hoje tem vivido em lucrta insana cora as difficulda-
des do isolamento, nascidas da falta de meios fáceis de
communicacão.
Assim os vinte mil contos, com que o Estado subven-
ciona essa obra importantíssima de progresso, têm de
reverter ao thesouro com abundantíssimos juros; porque
o augmeiito da producçao, e o progresso da industria
engrossarão as rendas dos cofres públicos, em propor-
ções muito vantajosas.
As facilidades de communicacão e transporte serão,
também, para a colonização estrangeira, um muito po-
deroso incentivo; e desde que a população assim cres-
cer, e que com o seu crescimento se desenvolver o tra-
bailio em escala sempre ascendente, e em suas melho-
res condições e methodos, a vida da nacao se tomará
gradualmente mais vigorosa; as empresas se facilita-
rão; o povo animar-se-ha, tendo fé em si mesmo, nos
seus recursos industriaes; e a família, que é o núcleo
do Estado, se multiplicará convenientemente com os
melhores, e mais esperançosos meios de existência.
Taes serão, em* substancia, os grandiosos benefícios,
que necessariamente devemos esperar da lei que dotou
a estrada de ferro de D. Pedro II com o credito de 20
mil contos; e do desenvolvimento que outras impor-
tantes estradas, como a da Bahia, a de Pernambuco, a
de S. Paulo, reclamam egualmente da solicitude do
governo.
Temos robusta fé que serão attendidas, conveniente-
mente, até onde o permittirem os recursos do Estado,
que, infelizmente, não pôde a um tempo satisfazer
a estas e outras necessidades de ordem material e eco-
nómica.
— Quanto á lei da reforma judiciaria,a 2* na ordem das
datas, sua importância é geralmente reconhecida: era
uma necessidade urgente da administração da Justiça
civil e criminal, e essa necessidade foi satisfeita.
A reforma, intendendo com um e outro foro, desem-
pachou a administração da justiça de certos embaraços,
que a prejudicavam ; estabeleceu praxes úteis, consul-
tou o bem do cidadão, deu melhores garantias á liber^
dade individual; cortou as delongas dos julgamentos
XII 3
nos tribunaes superiores; e, finalmente, deu outras pro-
videncias, que a pratica terá de demonstrar como muito
salutares.
— A lei de 28 de septembro, a ultima votada e sanc-
cionada, marca uma era nos fastos do parlamento, e na
vida da naçSo.
Longamente discutida nas camarás e na imprensa, .
concebèram-se sérios temores de que nao passasse no
senado, na sessão d'este anno.
Quiz a bôa estrella do Brazil que assim não fosse: o
paiz nao permaneceu nas incertezas perigosas do adia-
mento de uma medida de tal magnitude, e a proposta
do governo é hoje lei do Estado.
Pede a j ustiça que reconheçamos os importantes ser-
viços, que nas duas camarás, como seus muito dignos
presidentes, prestaram os Srs. Conselheiros Jeronymo
Teixeira e Visconde de Abaete
Na camará dos deputados o Sr. Conde de Baependy,
como presidente, consentira, na discussão da proposta,
ns mais inconvenientes divagações, que deslocavam a
discussão e exarcebavam as paixOes.
Substituindo-o na cadeira presidencial, o Sr. Conse-
lheiro Teixeira teve de haver-se com esse precedente, e
de toleral-o até certo ponto, sendo seu grande empenho
moderar a exaltação nos debates, e cohibir tanto quanto
possivel as divagações, antes toleradas; e n'isto provou
sua muita capacidade para o lugar honroso e difficii,
em que a maioria o coUocara.
No senado, o venerando Sr. Visconde de Abaete pro-
•cedeu com todo aquelle tacto que lhe é reconhecido.
Deade o principio da discussão, mesmo quando pelo re-
gimento d'aquella camará é permittida a apreciação
geral da lei em todos os seus artigos, o dislincto presi-
dente fez que o debate se circum8creveí*se o mais pos-
sível aos assumptos da lei, que a camará discutia.
Por isso a discussão n'aquella camará correu plácida;
e da parte de alguns oradores foi muito luminosa.
Nao é menos digna de louvor a constância com que
o Sr. Visconde de Abaete, o mais velho, como elle
disse, dos membros do senado, se conservava na cadeira
presidencial por õ longas horas. S. Ex., como o go-
verno, como todo o senado, reconhecia que o assumpto
eragTavissimo,e que cumpria dar-lhe solução na sessão
d'este anno.
Sabe-se com que insistência um grupo de antago-
4 XII
ni8tas da proposta, que nenhum recurso poupava para
obstar & sua passagem nas duas camarás, procurava
fazer pressão sobre os ânimos dos legisladores, dizendo-
que a lei nascia do capricho, do imperialhmo, da voU"
tade do Imperador, que assim queria; e que uma tal
imposição desvirtuava o mérito da grande medida.
Era uma arma de guerra desleal, e de mà tempera; e
n&o surtiu e nem podia surtir o premeditado. eifeitOr
porque a providencia em si era a expressna*de uma alta
necessidade no geral reconhecida; era uma verdadeira
aspiraç&o nacional: e si o Imperador e o seu governo ser
punham á frente, levavam em mira um fim, que a na-
Ç8.0 applaudia com enthusiasmo, como attestam os-
quasi diários factos de manumissOes de escravos, de que
as folhas públicas dão frequente noticia, praticados em
todas as provincias do vasto império.
Sobre a subserviência das camarás à vontade do mi-
nistério, assim discursou o dístincto e patriótico Sr.
Visconde do Rio-Branco, repellindo o que enunciara o
Sr. Silveira da Motta :
« E' notável, Sr. Presidente, como o nobre senador
por Goyaz considera o procedimento das duas camarás,
e suas relações com o ministério!.... Si a camará (tem-
porária) approva, como approvou, esta proposta, n&O'
obedeceu aos dictames da sua consciência, não consul-
tou seus altos deveres, os grandes interesses nacionaes;
foi impellida pelo ministeriol... O senado obedece ao
impulso ministerial !... mas o senado procede conscien-
ciosamente. »
Ha n'esta contradicta muita cortezia, mas muita
força.
O muito respeitável Sr. Visconde de S. Vicente assim
dizia :
tt O senado do Brazil, sempre fiel aos sentimentos ge-
nerosos, dominado sempre por sua tranquilla sabedo-
ria, depois de longa ôiscussão, parece desejoso, e pres-
tes a adoptar definitivamente o grande principio, a
grande medida de justiça, de progresso, e de civílisa-
ção, de que se trata.
« Embora a proposta fosse susceptivel de alguns^
melhoramentos em suas disposições secunaarias, ou
detalhes, o profundo critério, o saber pratico da grmode-
maioria do senado com muita razão prefere adoptal-ai
tal qual, antes do que adial-a por meio de emendas.
« E' porque sabe bem, que essas disposições ou de-
XII 5
talheâ a todo o tempo podem ser melhorados, se assim
for conveniente; é porque sabe bem que quem vale tudo
é a disposição fundamental, a idéa capital da libertação
das gerações futuras; é porque comprehende que cada
dia de demora vale o captiveiro para muitos seres in-
nocentes, que pela primeira vez divisam a luz do sol
brazileiro: é porque o addiamento para o anno importa-
ria a escravidão para vinte ou trinta mil creaturas, que
aliás devem gozar da liberdade. E', emfim, porque esta
idéa em vez de ser apreciada pela maioria do senado
•com fria indifferença, pesaria por modo penoso sobre
• seu coração e consciência. [Apoiados.)
c( E' porisso, e não por qualquer outra razão, que
essa maioria não quer, nem admitte emendas. (Apoia-
dos.) Nao é por fazer ou não o gosto ao ministério. Ainda
quando o ministério adoptasse alguma emenda, ao me-
nos eu, e alguns amigos não a adoptariam os. [Apoiados.)
Fiquem, pois, certos os nobres opposicionistas, que
não teem mais independência do que os membros da
maioria.
«Como, é portanto, que o illustre senador peia Bahia
se julga auctorisado a dizer que o senado se rebaixa,ou
se reduz a mera chancellaria ? E' uma expressão
offensiva, que sinto ouvir dos lábios de um senador ; e
se alguém se rebaixa, então será quem pronuncia tal
phrase, e não o senado.
«Complete este o seu alto e nobre pensamento, e pou-
cos dias depois ninguém mais nascerá escravo no Bra-
zil; poucos dias depois a escravidão começará a dimi-
nuir até que se extinga totalmente, e para sempre,
como exige a honra e a moralidade de nossa pátria. A
idéa capital é tão santa que uma vez decretada será
irrevogável: por certo ninguém quererá encarregar-se
de propor a sua impossível abrogação. »>
Os sentimentos, que enunciou o Sr. Visconde de
S. Vicentií, foram os que influirain na firme maioria da
camará dos deputado.^, e no animo do senado.
Foi assim que sempre apreciámos a- proposta.
O governo tem agora sobre os seus hombros tarefa
muito e muito espinhosa.
>ía execução da lei tem de arcar com os maiores em-
baraços.
w
o governo inostra-se de todo possuído da grandeza
de sua missão.
JUNIUS.
6 XII
OI>x*as cie Senlo— O Oaúclxo
(Cartas a um amigo).
VI.
Meu amigo.
Tencionava concluir n'esta carta as minhas conside-
rações sobre a obra de SeniOf mas, chegando-me ás
mãos o segundo volume, não quero deixar de o chamar
á fala, ou antes de o receber com as honras do estylo.
O auctor vem sangrando-se na veia da saúde com
estas palavras da sua nota final :
« N5o faltará quem increpe o livro de inverosímil, na parte
relativa ao cavallo. Duvidar hoje, depois de tantos factos c de tão
respeitáveis testemunhos, dos resultados admiráveis do ins-.
tincto dos animaes, é uma excentricidade, que não vale a pena
de refutar. Demais, n*este livro, a maior parte dos actos intel-
lipentes praticados pelo cavallo são antes attribuidos pelo Gaú-
cho ao animal, do que attestados pelo escriptor. »
O que nao vale a pena de refutar é a filigrana
de se eximir da responsabilidade d'esses actos o auctor,
a titulo de serem elles attribuidos pelo Gaúcho aos ani-
maes, e nao attestados pelo escriptor. Longe de importar
islo uma justificação, aggrava a situação do escriptor,
qu^í não encontra em si mesmo vslzv^s para confirmar
os devaneios de sua pbantasia.
Quanto a nós, é cousa que a boa critica menos tem
que indagar, si as asserções são attestadas pelo auctor
da obra, si são deixadas á mera conta dos personagens.
N'uma obra em que o escriptor se limite a fazer as
descripções meramente essenciaes de tempo e logar,
deixando esclarecer-se o mais à conta do dialogo, nem
por isso terá elle men'>s responsabilidade moral e lit-
teraria.
Pelos dialo^*os, p^^las idéas n^ellos emittidas e trava-
das, á que principalmente se Iride conhecer o caracter
de cada figura. Não será d'.) que o auctor afflrma ej-
auctorttaie sua qilíí se deduzirá m exoellencia ou infe-
ri()ridad(5 da concepção.
Si uin auctor preconisar o exaltar muito os mereci-
mento.í de um personagem, que no desenvolvimento
da a^^ção não corresponder pelas suas obras ás premis-
sas, não prevalecerá a recommendação do auctor, sinão
o que se deduzir do papel desempenhado pelo persona-
gem.
XII
E quando o escriptor se propOe a dar um typo nacio-
nal e verdadeiro, cora maioria de razão, nâo se pode
de bòa fé abstrahir d'essa responsabilidade legitima e
intuitiva. Se o Senio nos declarara dar uo seu Gaúcho
o typo de um contador de petas para divertir agente,
calar-nos-hiamos ; no caso contrario, não ; tenha paci-
ência.
Demais, contestamos que a maior parte d 'esses actos
inlelligentes seja attribuida pelog-a^cho aos animaes;
não, a maior parte é attestada pelo auctor ; abre, meu
amigo, qualquer dos dous volumes, e vêl-o-hàs.
Mas disse-nos iV/*i'o que NÃO vale a pena refutara
excentricidade de quem duvida dt'S admiráveis resulta-
dos do inslinciodos animaes\ certamente, e muito menos
nós o duvidaremos. L-rge, porem, estabelecer a devida
diátincção ; uma cousa é o resultado do puro instincLo
atiitnal^ e í)utra a funcção reflectida, judiciosa, da fa-
culdade humana de conhecer^ ou do entendimento,
Todcs os actos que increpamos ao primeiro volume do
seu fiaúrho não só importam operações da razão, mas
de uma razão tisclarecída e sã — conquista de civilisa-
ção adiantada, e tamb^nn do sentimento mais humano,
mais jusU>, mais apurado, sempre presidiíK) polacons-
rieucia da mais fina moral, antithese do ('anho.
Nã') me demorarei em fatigar a tua paciência, repe-
tindo os trechos que ficam desonvolvidauitíute aj)rocia-
dos e julgado.s. No entanto, como compleme.iitj ás no-
tas jà adduzidas, citarei ainda os seguint-^s passos do
ullimo volume d3 ^''/•W7//j,que :igora niesiuo arabo de
ler :
1". o reconhecimeuto do L'icas pelo Murzollo, pag.
•37 ; "2". a baia reboar que o fjgo desse signal ao ini-
mit'*o, pag. 11(5 : 3". ficar escondido ni restinga cada
animal da tropilha, k espera, que o Tanho fizesse o
sÍLf*nal de chauial- )S, pii;r. lOò e 141 ; 4". sentir o Jucá
ter sido reconhecido, não ter p:)r isso necessidade mais
ih* erumu lecfT, e soltar o nitrido, pag. 210 ; Jnca e
Morena repararem no movimento do C:»nho, farejanMu
o cbão, e ao sahirda villa já conhecerem a pista do
^av illo d»' I). Romero tão bem como o gaúcho, pag.
•J2G. .lá o (riiicho conhecer o rosto de um animal que
elh' vira i>onais rezes tem o que s^^ lhe diga.
Haverá (|uem creia que todas estas operaçOv^s de uma'
razi j activa e previdente, desenvolvida e perspicaz.
8 XII
«ejam actos de mstincto animal ? Senio o dirá de
bôa fé ? Quem melhor se quizer convencer do prodígio,
leia a obra.
Declaro que muito poderia produzir ainda para prova
das impugnações, o que deixo de fazer por já me achar
em extremo fatigado e até enojado da matéria, por
si mesma tao pouco agradável para a quem quer que
for deter por mais tempo. Seja-me, porém, licito a-
venturar uma apreciação synthetica da obra, encaran-
do-a ao mesmo tempo sob outro aspecto.
Diz Senio em sua alludida nota ultima c^ue «o 1".
volume é o desenho de um grande scenario, o esboça
de um caracter vigoroso, cuja exuberância ainda nao
foi revolta e propellida pelo esto da paixão; que no 2".
volume começa o drama.
«
Nao é as.sim: a obra divide-se em quatro livros, inti-
tulados— 1°. O Pião; 2°. Jucá; 3°. Morena; 4". Huppa !
Os três primeiros, o auctor gastou-os em preparar a
acção, que verdadeiramente nao apresenta interesse
algum sinao no ultimo livro. Antes doeste não ha movi-
mento que seriamente preoccupe o leitor, posto que al-
gumas circumstancias destacadas nao deixem de o im-
pressionar.
Por exemplo : um subjeito que joga a amante no
pacáu, cousa nao só pouco verosímil, como de máo
gosto, sob o aspecto estethicol a coUocação de uma
cruz sobre a sepultura de um cavallo, como se fora a de
um christão ! unia velha que esld ainda de camisa à beira
do rio, com medo de entrar no banho ! a Catita a pôr
em seu regaço a cabeça da ^lorena e cobril-a de cari-
nhos e lagrimas l Outra vez a Catita a arrostar a voraci-
dace dos cães chimarrões por amor da égua, e que seria
victimados molossos, um dos quaes jà começara a des-
pedaçar-llíe a saia, si não passa jrrovidenciaJmenie uma
vacca ferida, que os attrahiu para longe ! finalmente o
grande amor do Canho a Catita, tendo soe absoluta-
mente só por origem a affeição da moça á Morena. Si a
moça não trata da égua, o Canho a nao amara nunca !
Nao podia ter flin diverso do que teve um amor, que
nascera sob taes auspícios.
Has de permittir-me, meu amigo, que transcreva aqui
as palavras sentidas do Canho, que as proferio de joe-
lhos ao lado do corpo da Morena ferida. Admira est^
rasgo do sentimento épico e sensato do gaúcho, que nao
mi 9
66 pôde ler sem se sentirem as lagrimas acudir aos
olhos :
«_A.ssim devia ser '.—balbuciaram seu? lábios frouxos.—
Vivemos juneto8,morreremosjuiictos,no mesmo dia. Murzello,
nosso velho amigo, foi o primeiro; deixou-nos esta manhã.
Tíós ficámos para \ingal-o ; elle deve estar contente, ( Porque
não ? Si estava no céo... Vid. a pag. 172. ) Jucá, a esta hora
talvez já esteja com o padrinho í Quem era esse heróe T j ; já
terá conhecido o pae e o mano. A bala sem duvida traspassou-
Ihe o coracáo, porque nfto soltou um gemido, nem chamou por
ti nem pôr mim ; foi mais feliz ; nSo soffreu como tu. Mo-
rena { »
Conheces typo de simplório mais perfeito do que este
-Canho ? !
Continua a laxjientação do bravo e másculo gaúcho:
«—Foste tu çueni te mataste, amiga, e para salvar-me ! A
bala em vez de atrazar a carreira te deu azas ; sentiste que me
perseguiam, e voaste para me pôr fora do alcance do inimigo.
£ nem um gemido, nem um signal por onde conhecesse que
estavas ferida ! Ah ! se eu adivinhasse/ Para que fugirmos ?
Melhor era morrermos ambos, combatendo, e vingando o nosso
Jucá ! Eu só, nfto terei forças nem coragem i Que vale um
homem meio morto ? eu já morri no Murzello, já morri no
Juea; quando acabar de morrer em ti, que fico sendo ? Uma
cabeça sem corpo ( nego; um coipo sem cabeça como sempre
foi ) *; uma mfto sem braço / Entáo melhor é dormirmos juiictos
no seio da terra, »
•
Estás alagado em pranto, meu amigo ?
Senio fez que os melhor intencionados críticos e a-
niigos calassem das nuvens. Todas as espectativas fa-
voráveis à obra foram enganadas.
O segundo volume veio esmagar os mais resplande-
centes castellos ; dissipar as mais brilhantes esperanças
cios folhetinistas benévolos, concebidas por sympathia
sem dúvida ao auclor, com a publicação do pri-
meiro.
L'ra d'esí»es escriptores disse :
« O episodio, que constitue o romance de Manoel e Catita,
acha-se apenas esboçado; provavelmente no segundo volume,
que ainda nfto appareceu, ficará accentuado aquillo que já se
entrevê.
« Com que mimo e delicadeza é apresentada a travessa me-
nina, que consegue domar a indomável natureza do filho dos
pampas !
Outro disse :
<» O perfil de Catita, o lyrio do matto. appareoe no meio d'a-
ouellas contorsões, combates, perigos e lagrimas, como o vulto
d- uma estrella limpida resplandecendo ua tempestade. »
10 . XII
Engano de ambos. Nao foi a travessa menina qnera
domou a indomável natureza do gaúcho; o auctor
negou a este desgraçado Canho a misericórdia de um
sentimento sublime, despertado exclusivamente pela
mulher ; o gaúcho amou Catita, porque Catita mostrou
compadecer-se daegut».
Também Catita nao é o lyrio do matto, a estrella
limpida resplandecendo na tempestade. E' uma mulher
vaidosa, que acceita a corte de Romero, que com ellp
conversa á janella, e por quem se perde afinal.
E' ainda astuta e velhaquèta, que pretende illudir o
Manoel com os versos de sentido dúbio ou duplo, que se
applicam também ao castelhano :
(( Ai. nao fuja, nao, meu bem,
« Que me mata esse desdém. »
Conclusão: nao havia sinceridade no amor de Catita;
nao havia espontaneidade nem exclusivismo no amor
de Canho. Misérrimas concepções \ Cada qual mais
triste e deplorável !
Disseram mais os escriptores referido.s :
« Tratando de Bento Gonçalves, que, adivinha-se, terá de
representar um grande papel no seu romance, .José de Alencar
dá-lbe ura caracter épico e esculptuAl. cobrindo de veneração
o grande homem do seu paiz.
« O perfil do coronel Bento Gonçalves, que vai formar »
base primordial do segundo volume ào Gnúrho, está delineado
com mâo de mestre. »
Engano de ambos. Nem Bento Goncalve.s rejiresoita
nrn grande papel no romance^ nem Bento (lonçalves
vai formar a bcise primordial do seginido rohivto do
Gaúcho.
O auctor passa por cima do nome e das l^uli(;(H^^, e,
posso até dizer, da historia do grande brazib^n», como
galo \)ovlrrazas. Sempre o defeito característico : des-
preza a fonte perenne, inexgotavel, para ir pedir al-
gumas gôttas ao arroio estanque; deixa-se a historia e
a natureza, e soccorre-se ao apoucado capricho t» k ima-
ginação exhausta.
« Quanto á parte histórica, o auctor foi mais solunotlo que
desejava, e quiçá do oue esperava o leitor ; limito-me a atra-
vessar de relance o prologo da revolução rio-grandense. n Vui
Sento que acabou de fallar.
Todos ficam boqui-abertos, menos o que escreve »'stas
linhas. Atravessar de relance o prologai Nem, ao meno.<.
XII 11
teve em consideração as previsões para dar algum de-
senvolvimento á parte histórica e ás espectativas do
publico. Tudo quanto pOe ligeiramente em scena com
relação k revolução é incompleto, minguado e depri-
mido.
« A isso o obrigaram seus escrúpulos; trinta e cinco annos,
menos de meio século, não bastam para archivar factos e per-
sonagens t&o lijprados ainda ao presente pelos vínculos das
paixões e da familia » eis a razão ciada por Sento,
Uma cousa te digo, meu amigo, vem a ser : que
poucos se julgarão com pulso para pôr a mao n'essa
ceara, d^ouue lia épicos fructos a colher.
Ninguém dirá que o Gaúcho nSo seja uma espiga.
Mas devo declarar-te com franqueza: os fructos pecos
e fanados só servem para mais sensivel nos tornarem o
damno da abundantíssima e excellente messe, que se
perde nos campos nataes, á míngua de um segador
idóneo.
O tempo no-lo trará decerto. Nao desanimemos.
éC
[Continua)
Uncleciíràa car*ta
DO ROCEIRO CINCINNATO AOCIDADÃO FABRÍCIO
Rio de Janeiro, 6 de Octubro de 1871.
Preclaro amiíro.
'tD
Passei uns dias sem caturrar comtigo, e já tinha sau-
dades dVste nosso cavaco ; vamo-nos a elle.
O projecto, geralmente almejado, é lei. Deixemos o
paiz regosijar-se com a nova e honrosa era, que os le-
gisladores lhe depararam; o governo receber os testi-
munhos internos e externos da gratidão da huruani-
dadíí; e todos, como cada um, prepararem-se para a es-
plendida transformação social. P] visto que voltamos a
l«mpi)s normaes, é chegada a occasifio de concluir eu o
paganiíuito de uma divida.
Já nas minhas ò». e 6*. carta, de 20 e 2'2 de ao-osto,
escriptas, apenas o Jornal do Connuercio deu o leor da
m
XII
interpellaçao do Sr. Aleucar, repuUi a série de invecti-
vas, falsidades e calumaias, que ( de logar onde me
uao era possível dar-lhe resposta, aliás o mo ousaria)
imaginou derramar .-lobre mim, se é certa a iatençao
que g:eraImeDle se lhe altribue.
Eutre essas amenidades, disltnguiram-seas seg:uiri-
tes: X — Não dou a menor imporlancia a esses escriptos,
nem a seu auctor. — « Rabulices litterarias, de que
lenho nojo » — Esse estrangeiro acoompanhou a dis-
cussão como acolyto w — « . o seu iusulso arauzel n —
suisso da penna » — « cavalleiro de injuria, para pagai*
arj qual se despeja:u tis coffres públicos » — « aventu-
reiro )) — «pertende surg-ir do despréso publico em que
caiu. n — «Os meus adversários [ mercê de Deus j nSo
sao d'aquella urdem. » — «O Presidente do Coaselho
abriu-lhe o Tbesouro, que oHtr'ora se lhe fechou, n
— II Hade prestar a outros, e por erjual vazão, o mesmo
serviço que ora está prestando, ii — " Penna mercená-
ria, n — « Assalariado » etc. etc.
Está o extracto feito com lealdade, e condensado por
tal arte que a injuria omDÍmodae.-iguicha que nem agua
da fonte de compressfio^ Estimo, estimo: e se novamente
desenrolo o sudário, é porque me pesaria que ulguem
desconhecesse o inqualificável e ferino das provoca-
ções com que correspondeu ás maiores provas de cor-
tezia e deferência, quem fugiu do terreno para onde
chamara. Eu que almejo por tratar cora respeito ti
todo o género humano, para merecer tratamento egual,
uao quizera se desconhecesse um momento a força
maior, que rae constrangeu a mudnr de linguagem
para com quem gratuitamente me vilipendiava e ca-
íiimniava. Ha homens, que é preciso pôr no seu lugar.
Declarei pois, desde logo, que levantava a luva, com
a differença de que uao pagaria injuria com injuria, e
mil vezes menos calumnia com calumnia; que agrade-
cia a rudeza com que se saltava por sobre tDdaa as
considerações, auclorizaiido-me a saltar por sobre al-
gumas ; que parem aj .ivstema adverso de invenEor
factos deshonrosod, corresponderia com o systema ju-
rídico de allegar e provar.
Curvei-me ante a condemnaçfto da mínha intelligea-
cia, mas nao ante a da rainha probidade, fsao appeliei
da sentença, que m^ giroclamava rábula litterario, es-
Irangeirj acolyto, auctor à.i aranzeis insulsos, e digno
do dcspi'i3so (io chauceller das ri;p«taç<les. Tudo isso
XII 13
sao apreciações intellectuaes, em que S. Ex. pode ou
nflo ssr acompanhado pela opiniaof acceito tudo das
dadivosas mãos de S. Ex., inclusive o diploma de
parvo.
Agora, o que nHo acceitei com egual humildade, foi
o restante autem genuit de accusações de facto, d'aquel-
las que, uma vez proferidas, ou deshonram o accusado
com o stygma de miserável, ou o accusador com o fer-
rete de calumniador. Declarei eu immediatamente que
convidava o arrenegado orador a despir-se das suas
í elásticas ) immunidades, a repetir as mesmas argui-
ções pela imprensa, protestando-lhe eu habilital-o no
mesmo dia a dcsmascarar-rae, provando nao todas, mas
uma única das suas increpaçOes de mercenário^ assalor-
riado^ cavalleiro dHiyuria, s7iisso da penna para quem
se despejam os coffres públicos^ a quem o Thesouro ou-
Ir ora se fechou e se abrnn arjora etc. etc. Que nome me-
rece quem vem à praça com linguagem d'estas, e con-
vidado pela sua victima a justificar as suas palavras,
treme de repetir f^ora responsabilidade aquillo que sem
responsabilidade barateia?
Se me não posso lisonjear de gabar-lhe outras qua-
lidarlos, ao menos a da prudência merece os meos prol-
façrt.s. R*íalmente faz muito bem, porque a invenção
foi triste, porque só a immunidade parlamentar (?) a
tornou impune, e porque, barafustasse o accusador
quanto quizesse, nunca acharia um pretexto sequer
para as suas ousadas asserções.
Se S. Ex.* quizesse dar-se ao incommodo de occupar
os seus espias, e se elles o nao illudissem, dir-lhe-hiam,
de Cincinnato, ou de quem quer que neste nome se
chrismasse, o seguinte :
— E' falso que cUe seja, nem jamais fosse, assala-
riado por ninguém, nem noBrazil, nem em parte al-
guma, do mundo. Nunca poz a sua penna ( de ouro,
ou de chumbo, isso não é o caso) á disposiç&o senão das
suas convicções. Tem pejado os prelos com dezenas de
volumes, impressos sempre á sua custa, ou de seus edi-
torei. Tem superintendido a redacção de 7 folhas perió-
dicas, durante largos annos ; tem sido escriptos seus
accolhidos em mais de 30 jornaes, allemSes, francezes,
portuguezes, brazileiros, sem que jamais recebesse es-
tipendio algum por estas col laborações, e sendo pro-
priedade sua as folhas que superintendeu. Doeste cons-
tante procedimento em nada destoa o recente: ninguém
i4 XII
lhe offereceu, niaguem lhe ousaria offerer^M' espécie
alguma de remugieraçao por seus pobres escriptos, jà
pelo cavalheirismo inconcusso de quem taes offereci-
mentcs houvesse podido verificar, já pela certeza pré-
via de que bastaria o mínimo vislumbre que a tal pro-
posta se assimilhasse, para o fazer não molhar a penna
em tinta, mas quebral-a.
E mais lhe diriam os mexeri^^ueiros :
— E' egualmente falso o tal escaucaramento do The-
souro, pois, após as mais minuciosas pesquisas, achá-
mos, que Cincinnato nunca directa ou indirectamente
d'alli recebeu um ceitil, que nao proviesse de poderes
conferidos por credores que o eram por leis ou senten-
ças; que ha muitos annos e até hoje, nem mesmo nestas
legitimas qualidades tem levantado nada ; e que final-
mente nao tem lá, nem por si, nem por procuração de
terceiro, requisição ou pertençao de espécie alguma.
Parece ser tudo isto assaz positivo, e que um dos
dous falta á verdade ; qual será?
Sem applicaçao, e só coma pratica entre nós ambos,
dir-te-hei que em algumas de minhas recentes leituras,
impressionaram-me certos estudos retrospectivos. As-
sim li eu que no tempo dos imperadores romanos, já
quando se considerava extincta toda a vida publica, o
famoso direito de accusaçRo privada deu origem aos
abusos mais odiosos, e o papel de accusador tornou-se,
sob o nome de delação, tão lucrativo como infame.
« V.yt isso, uma das mais bellas creações do génio mo-
derno ( diz a Noxm Encyclopedia) é indubitavelmente a
instituição de um ministério publico, orgam da lei e
representante da sociedade, substituindo as accusações
particulares, eivadas geralmente de sentimentos ranco-
rosos ou de interesses egoistas. »
Depois de affirmar que a obrigação do denunciante»
é dirigir-se abertamente á justiça, e appresentar-lhe as
provas de suas asserções, Montesquieu chama bem a
attençao para este memorável uso : « Em Roma, o ac-
cusador injnslo era notado de infâmia. »
Nós cá, se já tivemos na lei a marca L para certos
casos, nunca tivemos a marca C para calumniadores ;
mas se é certo que hoje nos parlamentos reside seu quê
de soberania, e tanto que os Deputados sao Augustos^
e tem o rei na barriga, lembrar-te-hei que a nossa or-
XII 15
denaçao nao era tao imprevidente como isso, pois no
L. V. tit. 10, alli diz o competente Augusto : « Man-
damos que toda a pessoa que nos vier dizer mentira,
em prejuizo de alguma parte, seja degradado 2 annos,
e pague 20 cruzados para a parte em cujo prejuizo nos
assim disse a mentira, e mais ficará em arbitrío do
julgador dar-lhe mór pena, e julgar á parte sua inju-
ria, se for caso d'injuria. »
Graças a Deus, que as luzes do século, a liberdade
da lingua, a inviolabilidade dos inventores, as con-
veniências sociaes, e o monde marche^ tudo isso subs- '
tituiu o eterno direito pelo direito novo ; e d'estar'te as
sociedades marcharão avante por uma estrada real ;
se uâo for a da civilisaçao, será a de Pantana !
Paro aqui. Logo terei occasiao de, estupefacto, per"
guntar-te quem é a bocca d'onde saíram taes accusa"
•ções...! por hoje nao compliquemos.
Teu dedicado
ClNCINNATO.
"Epigraramas e madrigaes, originaes ou imitados
Dua troca
Eu mandei-te uns pobres versos ;
( Tiveste a bilha de leite ).
Mandas-me um presente esplendido.
( Graças & bilha d' azeite I )
Jk. uma moça, qu.o sotore a sua otlad.e, mento sempro
« — Quantos annos fazes, Ânna,
neste'dia afortunado ? »
«' — Dezoito.» — « O que! Vinte e cinco
fizeste o anno passado. »
16 XII
(( — Quantos ânuos fazes, Anna ^ »
ft — Este é o vigessimo quinto. »
« — Dizes sempre isso ha dez annos !»
« — Pois ahi vê que nao minto.»
« — Quantos annos fazes, Anna ?
« — Hoje faço dezesepte. »
« — Nao me admira, não me admira;
essa continha promette.
Fizeste vinte, ha dous annos;
no passado, menos um;
indo assim... em poucos annos,
.nao fazes anno nenhum. »
Zero.
Ao ou-vir-se que a IRA.OE:>i A ia sor trasladaOi
a Italiano.
Là vao verter a Iracema
em grego, e latim, e inglez.
Se eu fosse o auctor do poema,
vertia- o em portuguez.
Themislocles^
Typ. e Lith.^IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro, 146.
QUESTÕES DO DIA
isr.. 13
RIO DE JANEIRO 12 DE OCTUBRO DE 1871.
Veode-se %m casa dos Srs. E. & H. Laemmert. — Praça da Constituição,
Loja do canto.— Livraria Académica, Rua de S. José n. 119 — Largo do
Paço n. C— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis.
rrendeneias desor^ganisadox^as
O que a constituição regulou sobre a existência po-
litica da sociedade brasileira assenta om tao solidas
bases de verdadeira sabedoria, que, alliando no interior
a ordem e a liberdade, serve de exemplo, attrahe aat-
tençao, e o respeito dos povos estranhos.
No entanto ha um circulo de innovadores, que,
apresentando, com deturpação clamorosa da verdade,
este paiz em lucta incessante com a influencia de um
elemento desorganisador da liberdade politica, pre-
tende, com insistência, inocular no espirito do povo
principios erróneos, e .subversivos da monarchia re-
presentativa.
As idéas republicanas estão desde muito desaccredi-
tadas no Brazii ; e nao será hoje que conseguirão fazer
fortuna ; porque hoje, mais que em tempo algum, o
prestígio da monarchia, como foi pautada pela nossa
constituição, acha-se justamente firmado na pessoa do
actual imperante, e na augusta familia, cujas virtudas
o Brazii admira.
As idéas republicanas foram já vencidas pelos prin-
cipios suos da nossa forma de governo, quando preten-
deram os seus coriphêos irapol-as com a denominada
reimbíica do Equador em 1824, com a sabinada na Ba-
hia, em 1837, e com a republiqueta de Piratinim, nos
primeiros annos do actual reinado.
As idéas republicanas cahíram em justo descrédito
com esses e outros movimentos políticos, em que sempre
triumphou a ordem constitucional da monarchia repre-
sentativa. Hoje essas idéas pretendem rehabilitar-se.
2 XIII
tendo por apóstolos um ou outro liberal histórico, al-
guns descontentes e insofeidos ambiciosos de mais re-
cente data, e jovens sonfiadores em quem queremos»
suppôr boa fe.
E, cumpre dizer, o que lhes deu animo para essa
tentativa de hoje, na imprensa, foi o despeito de alguns
dos nossos homens politicos, a quem, por sua posição
na sociedade, corria imperioso dever de serem sempre
comedidos nos seus meios de opposiçao, e em suas aspi-
rações ao governo.
Temos visto, desgraçadamente, que, sempre que os
partidos entre nós descem do poder, ou todas as vezes
que certos homens se vêem burlados em seus cálculos
politicos, é logo a peasôa do chefe irresponsável da
nação o alvo certo de aggressOes ou insinuações mais
ou menos manifestas, com o fim de fazel-o passar como
exercendo no governo influencia indébita, e perni-
ciosa !...
Temos visto, mesmo no seio das camarás, serem
enunciadas, e repetidas, proposições n'esse sentido !...
Deplorável desabafo I grande erro !...
Houve já quem dicesse que no poder moderador es-
tava consagrado o absolutismo!... E dizia-o em voz
accentuada, mas nao exprimindo a verdade constitucio-
nal, nem a verdade da sua consciência, porque sempre
dera provas de que a sua consciência politica n'este
ponto era outra : exprimia somente a paixão, mal ca-
bida, do momento.
E mal cabida, porque os homens politicos, altamente
coUocados, e de reconhecida intelligencia, nao podem,
sem desconceituar-se, e nao devem, sendo homens de
ordem, apaixonar-se por modo que appareçam em pu-
blico, ou pela palavra, ou pela penna, soltando erró-
neas proposições de tal gravidade.
Ainda na sessão doeste anno, por occasiao de discu
tir-se a proposta do governo sobre o elemento servil,
testimunnámos todos o que se disse no parlamento, o
que se escreVeu nà imprensa, por parte dos adversários
da grande providencia, sobre a influencia do supposto
poder pessoal,.,.
Tudo isto tem serv do de incentivo, de tempos a esta
parte, para essa cruzada que se pretende arregimentar
contra a instituição da monarchia representativa entre
3 XIII
nós ; contra essa forma de governo, que nos tem con-
servado unidos como nação, que nos tem angariado a
estima e o respeito dos povos civilisadbs; que r.os tem
dado gloria, como aquella que nos veio dos nossos
triumphos contra a barbaria do tyranno do Parag-uay,
que ameaçava subjugar as republicas visinhas, sem-
pre tao mal reconhecidas dos serviços que de nós
recebem. ,
Olvidam os partidos entre nós que sao elles que se
inutilizam, que se gastam depressa, e se inhabuitam
para continuar no governo, quer por suas discórdias
intestinas, quer por erros, ou incapacidade, ou des-
gostos dos seus chefes, desgostos quasi sempre gerados
por seus próprios partidários.
A situação politica decaída em 15 de julho de
1868, bem o sabem os liberaes, e progressistas de
entSLo, nao foi determinada pelo capricho, pela impo-
sição da corda, mas sim pela força das circumstancias,
que actuaram de modo dissolvente no partido liberal.
Essa situação, como é sabido, e confessado por muitos
dos principaes chefes que n'ella activamente figura-
ram, nunca podéra formular programma certo, confes-
savel, de governo.
Os chefes liberaes, reunindo-se por mais de uma vez
para chegarem a um accôrdo n'esse sentido, nao o
conseguiram.
D'ahi resultou que alguns se retrahiram, e outros fo-
ram fazendo politica por sua conta.
D'ahi resultou nao menos que desde logo a situação
se viu coUocada em terreno falso; e o fraccionamento
do partido, composto de elementos dissolventes, tor-
nou-se manifesto, denominando-se uns /i6e?'ae5 históricos
e outros progressistas,
D'ahi a lucta que se tornou encarniçada ao ponto de
dizerem os históricos^ em pleno parlamento, ser pre-
ferível a ascensão dos conservadores.
Chegadas as cousas a este ponto, e quando o presi-
dente do conselho do gabinete de 3 d*agosto, chefe da
fracção dissidente, creava, calculadamente, como tudo
faz crer, uma crise, com o fim duplo, ou de tornar-se
dominador absoluto da situação, ou cair e dando mate
aos históricos^ dos quaes se achava completamente di-
vorciado, a mudança que se operou na politica do
paiz foi consequente, foi natural.
4 XIII
Si logo, no outro dia, &s duas fracções decaídas se
uniram, em amplexo fraternal, para guerrear a nova
situação, creada pelo chefe dos progressistas do modo
mais desasado, foi isso consequência? Não foi antes um
desconceito para os que assim procederam ? E que im-
putação justa contra o procedimento da coroa podia
ser feita pela nova liga, uma vez que a coroa não
tinha outro alvitre, sinão o que tomou? .
Os liberaes tinham-se inutilizado para continuarem
no governo : seus chefes mais illustres, como o Sr.
Nabuco e outros, tinham estado no ministério, e ha-
viam-no deixado por desgostos com o partido. E si
havia o Sr. Theophilo Ottoni para organisar novo mi-
nistério, não era possivel que fosse bem succedido,
visto como, sendo histórico^ estava em guerra aberta
com o Sr. Zacarias, chefe dos progressistas, e por estes
seria hostilizado.
E, sendo consultado pelo Imperador o chefe do ga-
binete demissionário sobre a pessoa que lhe parecia
mais adequada para, n'essa occasião. ser encarregada
da organização do novo gabinete, o Sr. Zacarias não
indicou o Sr. Ottoni; reconheceu que era chegada a vez
de passar o governo às mãos dos conservadores, e in-
dicou o Sr. Visconde de Itaborahy.
Ora, sendo tal facto determinado logicamente péla
ordem dos successos, si não teve a coroa, sinão aquella
influencia constitucional que justamente devia exer-
cer; não podendo haver outra solução possivel; não foi
um desabafo lamentável, e desleal de partido tudo
quanto se escreveu então, tudo quanto se disse contra a
politica pessoal da coroa, no modo porque exercera a
prerogativa constitucional?....
O thema constante dos novos propugnadores dos
princípios republicanos é a mà influencia do poder pes^
soai existente com a mouarchia; e pára isso, ou inven-
tam factos, ou desfiguram os que se passam, e investem
contra todos os actos do poder executivo !
Si a policia prende os criminosos, é ura abuso r.ívol-
tante da politica imperial I
Si se dá o caso de um assassinato, é effeito dapoZtZica
impe^Hai I
Si o gov^no apresenta, como apresentou, a proposta
para abolição do elemento servil, é uma imposição ím-
XIII 5
perial; perde todo o merecimento a grandiosa idéa,
porqne se pôz & sua frente o governo do Imperador!
£ o mais é que n'isto foram animados por quasi
todos os que (como j& pouco antes observámos) comba-
teram a proposta, pertencentes ao partido conservador,
ou como taes considerados !
Oh ! bem perniciosa é a influencia da politica do poder
pessoal^ que, interpretando sabiamente a opinião pu-
blica, promove o maior dos bens, que o paiz podia re-
ceber dos seus legisladores.
Bem perniciosa, no vosso dizer, é a politica imperial
que veda o trucidamento dos partidos entre si, como
auccede nas republicas, que tanto admirais, vós outros
que pregais o gpverno republicano •
Pelo regular exercício das attribuições, de que se
acha investida, a monarchia modera a fúria dos par-
tidos. Sendo este o governo que consagra placidamente
o governo das maiorias, nao sendo o Imperador crea-
lura de um partido, mas chefe vitalicio, e defensor
perpétuo da nação, nao pode ser sinSo o juiz impar-
cial, que nas evoluções regulares dos partidos, entrega
o poder & maioria em condições de governo nas pessoas
de seus representantes mais auctorizados, seja a maioria
liberal, seja conservadora.
Na nossa feliz forma de governo, estas operações fa-
zem-se por meios naturae^, sem as commoções que
âoem dar-se nos governos de forma republicana, onde,
geralmente falando, as maiorias despotizam, porque
sao sobre maneira intolerantes; o chefe que empunha
as rédeas do goverao é o chefe do partido que vence,
tem dividas de partido a pagar : tem paixões a satis-
fazer.
A má fé, com que os propugnadores das idéas que
combatemos querem implantal-as com o descrédito da
monarchia, e mesmo das qualidades pessoaes do Impe-
rador como magistrado supremo da nação, essa falta
de verdade com que apreciam os actos de um governo,
que só pode querer o bem da nação; e os perigos que
na sua applicaçao encerram como gove»'no os principios
itípublicanos, fazem que a opinião pública repilla entre
nós taes principios; mas, nao obstante o descouceito era
que sao tidos, não será de mais que os amigos da ordem
mouarchica os apreciem uma ou outra vez, como agora
fazemos, no interesse da defeza das boas idéas.
6 XIII
Nas condições do Brazil, nSo lhe convém outra forma
de governo, sinao aquella que possue; porque offerece
ét liberdade politica os precisos impulsos, como também
à ordem publica.
Do que precisamos é de educação politica nos partidos
militantes; que os cliefes saibam conservar-se na altura
dos seus deveres; que saibam reconhecer que a lucta
das opiniões deve ser sempre nas espheras constitucio-
nal e moral dos partidos, nao se desprestigiando elles
mesmos com soffregas ambições.
Nao será sinao com a forma de governo que feliz-
mente possue, que o Brazil, grande no seu território,
grande nos seus recursos naturaes inexgotaveis, ha de
engrandecer-se moral e politicamente entre as nações,
exercendo tranquillaraente, e com zelo patriótico, seus
direitos politicos; cultivando e desenvolvendo o tra-
balho e ás fontes de riqueza; fazendo cada um conveni-
ente uso.de sua actividade individual.
JUNIUS.
OTbras cie Senio— O Oa-ú.olxo
(Cartas a um amigo).
VII.
Meu amigo.
Acabo de ler o Gaúcho e pergunto á memoria ou ao
sentimento, si houve no decurso d'essa historieta ras-
go, que me deixasse duradoura impressão no espirito
ou no coração. Embalde !
•
Nada, meu amigo ! Nem um lance de mestre em 499
paginas ! Por mais que se queira, nao se encontra uma
scena completa, que verdadeiramente commova e ar-
rebate, ou deixe traços no anima djy leitor que sobrevi-
vam á leitura. Si tudo nao é pallido e frio, e n'alguma
XIII
cousa lia cores e calor, esse calor é incongruente, esse
colorido é desvairado.
Sento nao escreve para explorar o sentimento. Preoc-'
cupado inteiramente com os enfeites, com os arrebiques,
com as exterioridades de inadmissivel estylo, pouco se
importa com pintar ou nao a vida. E' de tal ordem o
dizer deste livro, que, em pre sença d'elle, até se po-
derá achar mimo na Lucíola, e fluente suavidade no
Guarany.
No último livro, que é onde apparece certo movi-
mento dramático, situações ha que offereceriam ensan-
chas para um effeito commovedor; entretanto, passam
frias ou com calor mediocre; o leitor adivinha, compre-
hende que o lance aspira a força, mas nao o sente ; des-
nerdiçam-se d'est'arte occasiões solemnes, d'onde uma
"jenna proporcionada á altura das circumstancias po-
UTÍa aproveitar mais de um brilhante successo.
Recuemos ao livro 3". Sabes que Senio encarece aos
quatro ventos o seu Canho. Forma d*elle idéa agigan-
tada que se perde nas alturas do zenílh: reputa-o ty-
po, grandeza cabal — organisação escuiptural e alhlé-
tica.
t-m olhetinista comparou o Gaúcho ao « Cid Cam-
fícador, que se destaca das paginas do livro, à seme-
hança iqs bustos de mármore nas raaos artisticas de
Pradier. E a propósito: busto é de certo o Canho,
isto é um organisação mutilada, amputada, que de
homem se tem o rosto, e longe está do exprimir a
energia vaimij em toda a sua inteireza.
Sao tanth as cousas a dizer que sò um volume bas-
taria.
Vejamos co.q acorda aquelle coração « cujo desper-
tar devia ser ^ilento, uma explosão; cujo amor nasce
no meio dos coihates sanguinolentos u como nos refere
o auctor. »
Entre parenthe.^ ; que combates sanguinolentos são
esses, no meio d* quaes nos diz Senio ter nascido o
amor de ManoeH > leitor apenas e difficilmente os
poderá presuppôr, í^q oue o auctor os tenha pintado
para fazer vivo, na.pal e grandiosamente original o
rebentar do affecto. v gaúcho nao era mais que um
botnheiro , qualidade q% q impedia de empenhar-se em
lucl * serias ; era um e.^^^ q cq^qq tal o vemos escon-
8
J^lLL
dendo-se no matto, fugindo ao ver troços inimigos,
conduzindo cartas a Rosas, etc. Onde os combates san-
guinolentos, no meio dos quaes brotou a pHÍxr.o & Ca-
tita ?
Áh ! bem diversa se passou a transição. A paixão re-
sultou de uma circumstancia accidental para elle — a
de encontrar a Catita abrigando no regaço uma égua
agonisante.
« — -Morta ! — disse elle, precipitando-se.
« — Nao I — balbiíciou Catita.
« Os olhos do gaúcho, encontrando os da rapariga,
nao se desviaram, como outr*ora. Quem elles viram
n&o era mais a mulher bonita e seductora, e sim um
coração, que entendia e partilhava sua dôr ; uma alma
que n'aquelle momento solemne entrava na santa com-
mimhaode suas affeiçOes. » (Vid. pag. 129 e seguinte.
Eis ahi como nasceu a paixão do Hercules eunucb,
do preconisado centauro com coração de pomba-rola
Depois d'isto elle nao tem o primeiro abraço para^a-
tita, mas para o alazao. « Só então abraçou o alazo, a
çwcm na véspera julgara morto. » (pag. 130.)
No meio d'esse doloroso transe, vem o Luc» cha-
mal-o, e parte, sem dizer à Catita : Aqui te l?am as
chaves e Id se foi ouvir, três discursos, um de
Ortis, outro de Verdun, e o ultimo do furriel > ( pag-
132.)
Apresentou, porém, certa duvida para ^o seguir
03 correligionários, não em attençao à C«^ta, mas á
morena^ que estava enferma.
« — Porque razão nao quer você ir c^^^osco, Ma-
noel ?
c( —Algum dos senhores abandonaiá- seu irmão e
seu amigo, quando elle está a expirar "^
« — Acima de tudo a pátria !
« —Minha pátria é a campanha, ^^^ ^orre meu ca-
vallo. »
Nada ainda de grande para co* ^ °i^Ça» nem tam-
bém para com a pátria, como vês,
Por fim como houvesse extr/^^^^ » bala da ferida
da égua, o gaúcho a apertou/ seio o corpo trémulo
damoça e desappareceu. »
/
/
XIII 9
Eacontrou-a depois montada na égua.
« — Manoel ! disse Catita.
<í — ^Viva! balbuciou o gaúcho. » (pag. 145.)
Foi então que « Manoel colheu a flor dos seus lábios
mimosos, que soluçaram n'um beijo » Todo entregue
nos seus cavallos e às suas éguas desde creança, saberia
acaso o Canho que existia no mundo uma cousa a que
se chamava — beijo ?
Soubesse ou nao, eis como despertou aquelle immen-
so coração. Ainda procuro a explosão e nao acho. Por
um olhar, por um amplexo, por um beijo principiam
quasi todas as paíxOes e até as mais comezinhas e tri-
viaes. O que nos deu, pois, Senio de excepcional e ma-
gestoso no despertar do amor do Canho ?
Entramos agora no 4° e ultimo livro.
Ha duas situações enérgicas neste livro, mas imper-
feitas: a primeira, quando Manoel volta, creio que para
casar com a Catita, e a encontra víctima de sua per-
fídia ; a segunda, quando depois de haver assassinado
o castelhano, e de o arrojar ao abysmo, dá com a moça
a fazer -lhe mil protestos.
Na primeira, lá andou o auctor assim assim; ahi tal-
vez interesse ao leitor, posto que só empregando a lin-
guagem do silencio. Ha muito quem seja tido por elo-
quente e até sábio, por guardar silencio.
Na segunda, falta o auctor á lógica, deixando o ga-
úcho tolerar a mulher lançar-se á garupa da morena e
com ella desapparecer na corrida desesperada pelo de-
:5erto a dentro.
Em situação nenhuma o Canho caiu tanto, como
n'esta, da qual podia ter tirado o auctor o melhor par-
tido, que ella a isto se prestava.
íí'aquelle auge, um homem de génio vertiginoso, de
'•ar^-sTír arrebatado, nlo teria piedade para a mulher,
que o tr.iliira na primeira, na uiiica excelsa paixão de
sua vida. Uma ve/2 « abarcando na cai)ei"a da moca as
longas trancas negras, revoltis pel) sopri) da tempes-
tade »> devia arreinjssal-a ao abvsmo, <jii le se achava
o chileno. Tocante verosimilhança havtjriu n*esse as-
soía i de vingança bravia I
St:. ih disdeiiiia, p)rém, a naturalidade para favo-
re tv o romance"!
\A vai Ciitita correiídj s)b t)los os mil azorragiie^
10 XIII
do parnpeiro, agarrada ao Canho ; e perdem-se amidos
na immensidade do desconhecido. Vão viver muito-
bem, talvez, muito felizes nas esplendidas oLscuri-
dades do deserto.
Pobre Canho !
Ha um typo consequente: é o de Félix, que se suicida
quando vê escapar-lhe o gaúcho, de quem elle morria
de ciúmes, por causa da Catita.
E o pampeiro *?
Quando conheciamos apenas o primeiro volume da
obra, censurámos a Senio a descripçâo minguada e ca-
ricata, que fizera do furacfio do pampa. Agora que,
no segundo, consagra especialmente um capitulo á pin-
tura do pampeiro, aprecieiuol-o.
Desenhando a savana ao pino do meio dia em seu pri-
meiro volume, abstrahe de toda a creatura animada
que habita n'essas solidões, e chega a dar a estas a de-
nominação de pasmo^ de lot^por da natureza. Acha mais
natural e verosímil surgirem os peixes á flor da agua
no mar para denunciarem ahi a vida, do que correrem
e relincharem os cavallos, pastarem as rezes, apparece-
rem veados e outros animaes, voarem aves no pampa,
com o fim de deduzir d'ahiuma suppostaimniobilidade
ou paralysia para a natureza. Tudo por amor de um
contraste í de mero capricho í
Em quanto assim faz relativamente, á savana, ve-
mol-o cahir no excesso opposto fazendo « arreraetr
terem no pampeiro cem touros selvagens bastava nvi
para dar idéa da braveza da natureza ) escarvando o
chão ; sentir-se o convólvulo à^mil serpentes, que es-
tringem as arvores colossaes e as esiilhaçam silvando
( que arvores colossaes essas, que as serpentes estilha-
çam com seu convólvulo l) \ m\eLV a malilha b morder
o penhasco d- onde arranca lascas da rocha do penhasco
ou da rocha ? ) como lanhos da carne palpitante das
víctimas; tombarem os tigres de salto sobre a presa
com um rugido espantoso; finalmente ouvir-se o ronco
medonho da sucury braudirdo nos ares a cauda enor-
me e o frémito das, azas do condor, que me cora hór-
rido estridulo. » (óptimo esdrúxulo).
Já Senio tinha dito : « O pampeiro é a maior chólera
danaturera; o raio, a tromba, o incêndio, a inundação,
todas essas terríveis convulsões dos elementos nflo pas-
sam de pequenas iras, comparadas com a sanha ingente
do cyclone, etc. »
XIII 11
Depois de assim pomposamente apregoado o pam-
peiro como a chólera maior da natureza, ante a qual
sao pequenas iras as terríveis convulsões dos elementos,
o que ó que vai constituir a magestade original, a des-
communal grandeza do phenómeno meteorológico *? O
arremesso do touro, o aperto da serpente, o uivo do
cfto, o salto do tigre, o ronco da sucury (ainda serpen-
te,, as azas do condor.
Ainda mais : o pampeiro é também a cauda da sucu-
ry brandindo nos ares!
E as gargalhadas do raio ? E a alma do Canho a cris-
par-se'^ E as tempestades fugindo pávidas com medo do
pampeiro, como um bando de capivaras ouvindo o ber-
ro da giboia ? ! !
« Únicos, no meio d'essa horrivel subversão, aquelle
homem ( o Canho ) e aquella mulher ( a Catita ) nao se
apercebiam dos furores da procella. » Estavam cadá-
veres, nao ha que ver. O Canho nem via os relampa-
g-os cingindo de uma auréola fulminea o semblante da
moça !
Nao; « dentro de suas almas lhes tumultuava outra
furiosa tormenta, que as devastava com sanha mais
terrível que a do raio. »
Ainda assim não era motivo para se nao aperceberem
dos furorL . da procella. Daria o auctor mais verdade e
força ao lance, si fizesse esse homem e essa mulher ti-
rarem novas energias e novos estimulos da própria
lucta dos elementos, tendo porém d'ella clara consciên-
cia.
Nota-se n^essa descripçao luxo de palavrosidade,
vigor de phrases retumbantes, cijclones, athletas, gigfi^f^-
tes, cobras, touros^ tigres, cães, e até demónios, que vem
do bárathro, porém na verdade muito pouca cousa do
real desabrido embate dos elementos.
Depíús de se haver admirado a deácripçao do furacão
por Audubon, nao pôde ler-se sinao para ficar-se con-
tristado, mormente si se é brazileiro, a descripçao do
pampeiro por Senio.
Meu amigo : nao quero mais alongar-me n'esta fa-
tigante analyse.
Amanha dnr-te-hei minha última palavra sobre o
Gaúcho.
{fiontinúa)
12 XIII
I>u.odeoima eax^ta
DO ROCEIRO CINCINNATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Kio de Janeiro, 10 de Octubro de 1311.
Venerando pé de boi.
Bons dias, meu velho. Cá volto a bater o pre^o. Queixas-
te de que eu na minha correspondência tiacte ab kocet ab kac,
e me nfto concentre mais. Podia responder-te que, se ha culpa
em mim, 6 no opposto ; mas nilo disputemos. Ja receio parecer
pefifajoso, nilo clesaferrando de tão seceante matéria : vejamos
pois, se se acaba, desta feita, com a an%ljse da interpellaç&o.
Já provei que houve injustiça nas accusações parlamentares
feitas pelo Sr. Alencar contra quem tomou por um pata-choca,
contra quem n&o pertencia ao parlamento, e nem mesmo ao ser-
viço puolico ; agora cumpre deslindar quem seja o marruaz que
atira estas pedradas de cortiça, sonhando-as de bronze. De lá
vitupérios, d'aqui argumentos : vós ás duras, eu ás maduras ;
quem diz o que quer, ouve o que nfto quer, comquanto eu reco-
nheça que onde elle é sol, nilo passo eu de pirilampo.
Mas para que me não acoimes de insultuoso, preciso primeiro
varrer a testada, e deixar assente ja minha opinião sobre duas
questões prévias.
Deixa tu gyrar os alcatruzes da nora I
' l.« E' punivel. na ordem criminal, moral, religiosa, civil,
ou politica, o abjurar? Eu ponho-lhe muita dúvida. 2." Ha
crime em ser mercenário ? Também me parece que não.
Quanto á primeira these, não ha nada mais fidalgo que os
precedentes históricos : Clóvis, Turenne, Pedro III, Catharina.
Christina de Suécia, Augusto de Saxonia, os sábios Zacharias
Werner. conde de Stolberg. Schlegel, Hnller, e tantos outros
luminares, abjuraram; assim como apostataramo padre Anto-
nio,Bernardotte, e uma porção de outros tiííurões. Substituindo
o barrete de clérigo p^la carapuça vermelha, muitos padres re-
negaram da sua crença no altar da Deusa Razão, que a despeito
do nome, não gerava senão desarrazoados horrores.
Não cxcaves muito, porque em geral acharás sempre um
porquô, muito feio, nestas revira-voltas, de pássaros de bico
amarello, em cada uma dns (\\v\q^ o apóstata costuma segredar
a si mesmo a phra-e que Heuritiue IV dice, se é que dice :
« Com :íOO pip-A^, o rein j do França vale bem uma missa. »
Entretanto esta> iingicas intelh^etuaos nãi) são raras, nem
obscuras ; e quando meditadas e n?.o repetidas, podem estas
abjiiraçúos ser conversões. Resolva-o a consciência, e não o
fulminem os homens.
Pelo que toca á segunda these, direi que se hade stygtnatisar
a alma mercenária, que, nas cousas da vida, (^ue devem ser
xm 13
pautadas p^loB princípios da nobreza e dos sentimentos, só
t^m por pli:t:*ol o egoísmo e o calculo .Mas eu agora, quando
usar do vocábulo mercenário^ n&o o tomarei senfto na accepçSLo
do operário que recebe o salário de serviço ; e porque se me
nio assaque depois intenção injuriosa, transcreverei aauillo,
da Miicellanea, de Miguel Leit&o de Andrade, dial, 18 pag.
157 : « Mercê procedeu da palavra mercês latina, que quer aizer
.falario de serciç.o, ou soldada, por onde dizemos por cortezia
Vossa Mercê (como quem diz : « Vós, que me poaeis dar sol-
dada, como meu maior, e eu servir-vos.) » E em rigor, é tanto
6 mais que senhoria, porque aos reis nossos de Hespanha se
falou já por Mercê e Senhoria, depois Alteza e Magestade^ etc. »
Os livros santos, em muitos logares, honram a posiçfto do
mercenário, como em S. Lucas, quando diz (10) : « Dignns est
enitn operarius »iercede siía » ; e Tobias ( 4 ) : « Quicumque tih%
alicia operatus fuerit, staíim ei mercedem restitue, et mercês mer-
renarti tui omnino apud te non remaneat etc. Houve uma dis-
tinctissima ordem militar e depois religiosa, fundada por S.
Pedro Nolasco, accompanhado de S. Raymundo de Penhaforte,
e de Pedro rei de Ârag&o, denominada dos Mercenários ( com
voto de trabalhar para a redempção dos captivos, como outros
o fazem de barafustar por impeSil-a ), Portanto, e pelo mais
dos autos, e invocados os doutos supprimentos, acceitemos a
declaração de que a palavra mercenário não é desairosa; agora
accrescênto :
— O Sr. José de Alencar, nas varias transformações poli-
ticas por gue tem passado, teve ao menos uma consistência : a
de haver sido perennemente mercenário. —
Se é certo o que me affirmam. tem S. Ex. sido constante-
mente assoldadado para escrever na imprensa periódica.
\o tempo em que era liberal exaltado, e protegido dos a
quem depois virou costas, recebeu o salário dos seus artigos.
Quando escreveu os folhetins Ao correr da penna^ eram-lhe .
pagos pelo Correio MercautiL
O finado José Bernardino de Sá pagou-lhe salário para es-
crever no Diário do Rio, no principio da sua mutação para con-
servador, motivada pelas razões que talvez um dia te repita.
Quando se metamorphoseou. por amor da pátria, em inimigo
do poder pessoal, que antes bajulara como nenlium aulico até
então o fizera, e creou o Dezeseis de Julho, d'onde saíram os
fundos para costear essa publicação ?
A quem, porque, como, e para que, se fixou a mezada de
"300$000, além de outros biscatos ?
Após a 4". mutação, depois que o ultra-conservador começou
a commungar as idéas e as aspirações republicanas, até que
oliegou a denominada Ultima phase ( que indubitavelmente não
será kl f ima ) foi S. Ex. quem pagou os artigos todos, que com-
poz e fez imprimir?
Quando alguns cavalheiros da lavoura e do commercio pen-
saram em crear um jornal, e houve idéa de para elle angariar a
i*oUaboracão retribuida do prestante escriptor, repeli iu elle o
pensamento ?
S^^^^^^-^LJ^J^^^^^^^
14 XIII
Etc. etc. etc.
N5o sou eu. quem em todos estes, e muitos outros análogos
factos, imprime stygma, visto como acceito a regra de S. Lucas.
Quem qualifica os que assim procedem de suissos ua penna,
mercenários, assalariados e vilõep) quem nfio vê o agreiro no seu
olho, é o culpado; ora tendo o interpellante, apezar da afilrma-
tiva do Sr. Presidente do Conselho, de que ninguém fora retri-
buido pelos seus escriptos, continuado a sua accusaçSo por
factos muito mais innocentes do que os aqui expostos, queixe-
se o Sr. Alencar do ferrete que lhe imprime o Sr. Alencar,
como já teve egual occasião de lamentar a refutação trium-
phante com que Erasmo o esmagou. Quem tem telhados de
vidro nâo atira a telhas adamantinas.
Ha pessoas para quem o dinheiro é a pedra philosophal, o
desiderandnm, a alma mater ; não pertence Cincinnato a esse
número. Seccam-se de inveja, quando imaginam que outrem
pode extrahir alguma vantagem pecuniária d'aquillo de que
arremataram o monopólio ; os dedos lhes parecem hósx)edes.
Está-me esfervilhando na ponta da lingua uma correnteza de
anecdotas harpagonicas, mas deixemos historias de Josés
Nabos, que não vem ao caso, e voltemos já á interpellação do
Sr. Conselheiro Alencar.
Na memorável sessão em que esse senhor, dando por páos e
por pedras, pretendeu alfinetar-me, foram proferidas por
elle, em sua admirável parlanda, que promettia— chuva e aeu
vento, muitas phrases como estas :
« — Cumpre que o suor do povo, convertido em impostos ex-
cessivos... » etc. « — ... o povo onerado de impostos iníquos,
além de onerosos... » etc. t — Aquelles que, apoderando-se do
governo, pOe ao serviço de suas ambições os recursos que a re-
presentação nacionaí vota para a gestão dos negócios pu-
olicos » etc.
Bravo, facundo orador / Nunca as mãos lhe doam / Dô para
baixo, dê, nos aue dissipam e esbanjam os rendimentos públi-
cos, nos que aão má applicação ao suor do povo, nos que es-
tragam o tempo que a nação paga para ser empregado no ser-
viço d*ella, nos que encarregam o thesouro nacional de satisfa-
zer o custo das suas particulares e individuaes questões.
E' pois de crer que o nobre orador, ao metter-se no tilbury
para regressar a casa, depois d'esta verrina, terá ido monolo-
gando o seu essere ó 7ion essere, da seguinte forma :
« — De inconsequência^, já basta. Palavras sem obras, plu-
mas ao vento. Uma vez na vida, preciso ser lógico. Levei a
minha, nobremente, avante. A quem me contrariou pela im-
prensa, tive a circumspeeção ( ah pés, para que te c^uero T )
de nada dizer pela imprensa; mas também agora vinguei-meva-
lentemente: como na camará lhe não podia ser dada a palavra»
dcscompul-o á minha vontade. Se alguém o duvidava, agora
todos ncam sabendo que estou despicado. Certamente : inun-
da-me o prazer dos deuses; mas resta-me, confesso-o, outra
dever.
« O facto de roubar aos trabalhos legislativos uma sessfio
inteira, só destinada a espalhar os rubis barrocos da minha
XIII 15
eloaiiencia atrabiliária, de substituir as ouestões de interesse
publico pelas do meu poder pessoal ; ae inutilizar muitas
noras que actualmente, quando no fim da sessSo legislativa, e
pendentes graves projectos de lei, equivalem a mezes; e de
mil outras cousas assim, é já consummado e irremediável ;
mas ha outra consideração, ligada com esta, que eu devo com-
pensar, quanto possivel.'
«f Pois que ! Levei 3 horas a bramar contra o máo emprego
do suor do povo, contra o estrago do tempo que a nacSo paga»
contra o esbanjamento dos impostos (que não só denominei
<y»erosoSy mas iníquos .' ), e não vejo eu que. uma sessão da ca-
mará dos Deputados custa muito dinheiro ao tal suor, aos taes
estragos, e aos taes impostos iniquos ? Não deve recair sobre
a minha algibeira a responsabiliaade dos gastos, como sobre a
minha cabeça a do inutilizar dos trabalhos ? Não fiz eu levantar
o pano d'este espectáculo só para representar cm meu bene-
ficio ? Vou dar um exemplo altamente moralizador; vou resti-
tuir ao thesouro o que lhe fiz despender, em pura perda; ai, o
«uor do povo / ui, os impostos iniquos/ Vamos ás contas.
flf Como estudo muito as cousas de dinheiro, compulsei ainda
hontem o Orçame^ito da Recrita e despeza do Império para o exer-
cício de 18r72— 73, e ahi vi votadas, a pag. 5 e 6, as quantias
de Rs. 454:250^000, applicaveis á camará dos Deputados. Ora,
como geralmente em cada sessão legislativa s^ ha umas 80
assentadas, custa cada uma ao suor do povo cerca deRs,
5:6785000, somma de que eu vou pedir guia, para entrar com
cila na Recebedoria do Município. y>
No fim da sessão legislativa, é também de crer que, em
attenção áquellas meritórias disposições de restituição ao cofre
<los impostos iniquos, S. Ex. examinasse nos seus assentos, ou
nas actas, ou nas declarações do Jornal, e achasse que em todo
o anno apenas compareceu na camará, quando devia, umas 27
veze'? ; e então o venerando Hamleto ou Carlos V do Hernâni
terá recitado outro monologo monumental :
— >« Preciso cautela, eu que já me adornei de plumagem de en-
xertia. Com que direito reprehenderia eu nos outros a apçlicação
íjue dão honradamente aos dinheiros públicos, se eu, insigne
jurisconsulto, me locupletasse com a jactura alheia T A nação
estabeleceu o meu subsidio para eu ao menos comparecer na
camará. Se eu só lá appareoo quando no meu escriptorio de
Advocacia não tenho autos para despachar ; se é unica e ex-
clusivamente porque as partes me dão boa maquia, que eu
desamparo o serviço publico ; se eu recebo a um carrilho, e as
«ccumulações estão prohibidas ; vou também repor tudo quanto
«Tida e indevidamente recebi do suor do povo, e dos impostos
iniauos. A conta é fácil : pelos 120 dias dos 4 mezes manda a
Ui dar, e eu recebi Rs. 2:400jJ000; ora eu só adquiri jus a 27
dias, logo estou em debito de mais Rs. 1:511$112 ; e não seria
senão nm declamador, um Frei Thomaz, se, commiserando-me
do suor do povo estragado por outros, me comprouvesse eu em
n mim propno, e abusivamente, e pospondo o serviço desse
povo aos meus lucros particulares, me alimentasse do apontado
fiuor. 0
Creio piamente que assim terá succedido, e que na publica-
16 Xlli
ç5o próxima da Receita da Recebedoria do Municimo, admira-
remos esta moralizadora e lógica verba de Rs. 7:189j|ll2, entre-
gues pelo Catoniano interpellante.
Acabemos com a interpellaçfio, de que se pode dizer, o que-
Voltaire respondeu, depois de oíivir certa oraçio fúnebre:
« — Como a achou ?
« — Como a espada de Carlos Magno.
« — Em ser o que ?
c — Longa e chata. »
Imaginou sem duvida o ílammispiranté orador que me tinha^
enguhdo; e ha quem diga que, nos seus raptos e transportes,,
de mostarda ao nariz, julgando que me via a mim, ao encarar
entSo um dos seus admiradores (porque emâm eu sempre reco-
nheço que estou a jogar o whist com perna de páo ), essa vista
lhe "produzia uns efieitos hydrophobicos, ou lembrava Salvini
ao encarar o Hervondillo da tragedia famosa que o Goethe es-
tudou no seu Wilhelm Meister, Se os tregeitos, de que as inno-
eentes aspiracOes a invectiva eram accompanhados, vinham
oom sobrescripto a mim, nfto occulto que um eíleito, sim, me
excitaram : de riso e de compaixão. Toctavia, ja que repeti um^
dialogo, vá outro. Tendo um poeta mostrado a um critico certa
ode sua A' Posteridade^ e perguntando-lhe, com philauciosa
modéstia, o que achava, respondeu-lhe este :
« — Acho que não chega ao seu destino. »
Outro tanto desejarei eu que nfto succeda á presente, com
que remato a appreciação da catilinaria que me dispara a
Í)henix dos oradores, que já na tua opinião vai trepando de
)ispo a moleiro.
Adeus, meu velho. Trago uns callos, que é ver as estrellas.
Teu velho amigo
ClNCINNATO.
Typ. e Lith.— IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro, 146.
QUESTÕES DO DIA
N. 14=
RIO DE JANEIRO 15 DE OCTUBRO DE 1871.
Vende-se «m casa dos Srs E. & H. Laemmert. — Praça da Constituição,
Loja do caDto. — Livraria Académica, Rua de S. José d. 119 — Largo do
Paço n. C. — Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis
A política especuiativa.
As doctríaas insidiosas de uma politica aspecula-
tiva» que, com iosisteate coatradicção da verdade dos
factos, c com uma theoria perniciosa á ordem poli-
tica existenie, pretendem impor-se, não podem convir à
nação brazileira: a nação as repelle.
Possuimos uma constituição tão liberal, baseada em
prin<*ipios tão salutares de governo, que é, de todo,
adequada & satisfacção das mais razoáveis, das mais
justas aspirações de um povo, que vê consagrado,
em seu código fundamental, o governo do paiz pelo
paiz.
Sim. porque o chefe supremo do Estado, no ex3rcicio
de suas elevadas funcções, não governa por si, mas
st5gundo a ordem dos principios políticos, que o facto
social estabeleceu; e no modo, pelo qual se acham dis-
tribuídos os poderes, ha tão perfeita harmonia no gyro
da niàchina governativa, em suas funcções naturaes,
que não pôde haver embate fatal á causa da liberdade,
desde que o direito de livre exame e de franca discus-
são é amançado na tribuna e na im prensa.
E que o é entre nós, não se pôde duvida:*. O paiz é
testímunha doesta grande verdade; tem as provas mai*^
patentes de que possue em toda a sua plenitude, e
ainda além de seos verdadeiros ligiite^, tão precioso
direito.
A aurtoridade pública Lão exorbitaria; e ao contrario
se manteria no exercício legítimo de seos deveres, se,
com a lei na mão, obstasse ao vicioso uso, que da liber-
dade de imprensa fazem aquelles que propalam, e pre-
2 XIV
tendem incutir no animo do povo, princípios contrários
á razão constitucional da nossa organização politica.
Mas o governo vê com sobranceria, e perfeita con-
fiança no bom senso público, esses condemnaveis ten-
tames de espíritos, que se transviam por paixões polí-
ticas incontinentes, que uao querem, ou nâo sabem,
medir o abysmo a que arrastariam o paiz, se trium-
pbassem as suas idéas.
O Dodêr tem seos attractivos, suas seducçOes ; mas
egualmente os seos desgostos, suas asperezas, seos es-
pinhos.
Os partidos só o visam pela face dos encantos, quando
o cubicam; esquecem-se, ou fogem de consideral-o com
os seos escabrosos deveres, com as suas angústias !
E' sempre a eterna contradicçao do espírito humano
entre os desejos, quando almeja por satisfazel-os, e a
justa apreciação dos prós e dos contras, no implemento
de taes desejos.
Assim vemos, de contínuo, em sua lucta, os partidos
políticos mais exaltados, mais impacientes do poder,
ferindo, sem escolha de armas, os adversários, que sao
governo, sem reflectirem que as dores causadas lhes
serão retribuídas, quando conseguirem subir ao poder.
Nos governos de instituições liberaes, a lucta entre os
partidos é natural; nasce do systema; é mesmo indis-
pensável, para que a auctoridade administrativa tenha
salutar correctivo no exercício de sua missão.
E' isto geralmente reconhecido ; não pretendemos
dizer cousa nova; mas, se é da índole do systema a
opposição mais ou menos vigorosa, não o é a opposiçao,
que se torna radical ao poncto de pretender substituíra
fórma política do governo existente, calumniando-a,
desfigurando-a, por outra fórma de governo, fundada
em princípios perigosos.
Não é dos modernos séculos, mas sim desde os tampos
remotos da antiguidade, a pesquiza, o estudo dos ho-
mens políticos, dos philósophos, e dos sábios sobre a
fórma de governo mais consentânea com o bem-estar
dos povos; e o qut até hoje parece averiguado é que o
melhor governo é aquelle em que a existência política,
isto é, a liberdade do homem social, é mais garantida,
de harmonia com o seo bem-estar na ordem e desin-
volvimento moral, e condições económicas, em relaçílo
aos meios de prover á sua subsistência.
XIV 3
Os experimentos, no sentido em que tractâmos este
poncto, foram bem longos e dolorosos em alguns povos;
tem sMo, e continuam a sel-o entre outros ; mas, nesta
lucta secular, nao ficou ainda decidido, nem decidido
será jamais, que a república seja o regimen mais feliz
dos povos; antes, sim, o que prova a história, nos anti-
gos tempos, o que attestam os exemplos contemporâ-
neos, os da actualidade no mundo christao, isto é, no
mundo civiliaado, é, quanto ao passado, que o go-
verno republicano nunca conseguiu perpetuar-se, quer
em suas verdadeiras formas democráticas, quer em
suas formas mais ou menos aristocráticas; e, quanto
ao presente, que é um governo sempre agitado, e em
muitos casos oppressor, e subjeito às empalmaçoes do
mais astuto, ou do mais audaz e menos escrupuloso, e
do mais forte.
As índoles dos povos nao sao as mesmas; seos costu-
mes, seos hábitos variam segundo os climas, nas diffe-
rentes raças, em que se divide a humanidade; e, assim,
o governo que se coaduna a um povo, pôde, como
attestam os exemplos do mnndo, nao convir a outro-
Tem-se accusado as monarchias, mesmo as limitadas,
ou mixtas, como a nossa, da influencia indébita da
coroa no governo do Estado; e, entre nós, tem-se tor-
nado esta accusaçao um thema obrigado, da parte de
certos políticos, quando em opposição] a phrase consa-
grada é — governo pessoal.
Mas, onde o governo ou poder pessoal se ostenta com
maior pujança, do que nas repúblicas? Nestas é sem-
pre épocha de grande lucta a eleição do presidente, ou
chefe do governo; e o indivíduo eleito exprime a vic-
tória de um partido; e este passa a gosar dos principaes
favores, e das boas graças do chefe vencedor.
Argumenta-se que ahi o perigo do governo pessoal
desapparece, ou é menor, porque o chefe da república é
temporário e responsável por seos actos, e está subjeito
a ser accusado pelas câmaras; emquanto nas monar-
chias representativas a irresponsabilidade do monar-
cha e sua vitaliciedade sao circumstancias permanentes
para crearem o poder pessoal.
Os que assim argumentam nao querem, muito de
propósito, fazer cabedal da responsabilidade dos minis-
tros, nas monarchias representativas; nem da acção
efficaz das câmaras legislativas sobre o governo, com-
4 XIV
batendo a sua politica na tribuna e nas votações; não
querem ter em linha de conta a poderosa i^ma da
imprensa.
Não querem elles attender a que o monarcha, nas
condições da nossa constituição, está em posição muito
sobranceira às rivalidades, e aos inrédos dos partidos,
dos quaes não é feitura; que o chefe da nação, conhe*
eido o voto d'esta, não pôde querer siaão marchar de
accõrdo com esse voto na escolha dos seos ministros,
e na vereda constitucional.
Não querem attender a que não se dará o caso,porqae
não poderá dar-se, de constituir-se entre nós o chefe do
Estado protector de um partido para esnjagar o outroy
antes será sempre o seo empenho fazer que se mode-
rem, que se aproveitem devidamente todas as aptidòas,
que melhor convenham para os importantes cargcs
públicos.
Não querem ainda attender a que uma das vantagens
políticas, mais characterística da proeminência do go-
verno monárchico representativo, é a de se operarem as
mudanças de política,ou suas modifícaçOes, com a subida
de uns ministros ao poder, e descida de outros, sem
perturbação da ordem pública.
Entte nós o chefe do Estado tem sido, felizmente,
sempre da maior dedicação ao bem-estar da sua pátria.
Dotado de variadíssima instrucção, e alto tino poli-
tico, tem, na acção que lhe compete, quer como chefe
supremo do executivo, quer como poder moderador,
dado provas exhuberantíssimas de verdadeiro monarcha
constitucional.
O Sr. D. Pedro II, que a Europa agora pessoalmente
conhece, e admira, pelas provas esplêndidas que alli
tem dado do seo muito elevado mérito, nutre, sem dú-
vida, grande ambição, mas nobre, patriótica, —a de ser
o m!iis dedicado servidor do seo paiz.
Outra qualidade, altamente apreciável no Sr,
D. Pedro II, é a firmeza de sua vontade na abnegação
das pompas da realeza, no seo viver habitual: ninguém
mais lhano, mais communicativo no tracto.
Tem-se dicto, e com issj tem-se pretendido formar
um capitulo de censura á sua ingerência indébita dq
governo, que foi por imposição da sua vontade que a
proposta para abolição do e^stado servil foi apresentad ^
XIV õ
no parlamento ; que foi, em obediência a essa imposi^
cão, que o ministério tanto se esforçou para que fosse,
como felizmente é hoje, lei do Estado.
O que sobre isto acreditámos, é que o Imperador e o
ministério, reconhecendo, com elevado bom senso, que
-era urgente uma providencia, que determinasse a ex-
tirpação do cancro da escravidão, confiaram no parla-
mento, fizeram justiça à opinião pública, e nfto quize-
ram que tosse addiada tão importante resoluçãos; o mi-
nistério tomou sobre seos hombros o grande commetti-
xnento, no qual obteve tão assignalada glória. Segue-se
de tudo isto, que mais uma vez o Imperador, identifi-
cando-se com^ a naçPo, mereceu as bênçãos do paiz in-
teiro, que tem applaudido a lei.
Por maiores que sejam os esforços de alguns homens
<le:)peitados, e de um limitado círculo, que se arvorou
em paladino dos princípios republicanos, não consegui-
rão desprestigiar, no conceito nacional, a sábia, salu-
tarissima influencia do Imperador no governo do Es-
tado.
Querem, com doctrinas erróneas, precipitar o paiz
no abysmo da revolução, dissolvendo os laços da união
das províncias, e reduzindo-nos ás tristíssimas condiçGes
das repiiblicas nossas conterrâneas, que se dilaceram
em guerras civis. Pretendem, insensatamente, fazer
accreditar á nação que será ahi, n'esse chãos, que será
ahi nas angústias, geradas pela oppressão das ambi-
ções incarniçadas, disputando o mando, que o paiz se
innobrecerá; que só nos dolorosos vaivéns do governo
republicano será livre !
Que loucura!.. Nem attendem a que temos deante dos
olhos as desgraças da França, para aprendermos que
um povo só será feliz... tendo juízo.
Junius.
6 XIV
Obras de Senlo— O Oaiúiolio
(Cartai a um amigo),
Vhl.
«A
Meu amigo.
Viste que o Gaúcho não pôde pretender as honras
de romance de costumes, fim que aliás visa, mérito de
que faz alarde.
Senio nao se parece com John Crevecceur, auctor do
Agricultor, obra, onde «payzagens, costumes, lingua-
gem, sentimentos, tudo é essencialmente americano;
onde nao se encontram somente os objectos, mas tam-
bém as sensações e as idéas de um paiz recente. »
Nao se parece com Waíshington Irving, que apezar
de « dever seo renome à imitação graciosa da littera-
tura ingleza » apezar de « só para a Inglaterra diri-
gir seos pensamentos » como a critica o atacasse, pe-
netrou nas tribus bravias, explorou e estudou as flo-
restas, os campos, os rios, e deu-nos o seo magestoso
livro — A planície — [La Prairie.)
Menos se parece com Fenimore Cooper, como já se
dice, o auctor do — Ultimo dos Mohicanos -^ohvB, para
a qual debalde procurarão um parallelo em toda a bi-
bliotheca de romancistas. »
Menos ainda se parece com Audubon, que um crítico
coUoca superior a Buffon, e com o qual a oiais variado
que Irving, mais colorido e puro que Fenimore
Cooper se completa o que se pôde chamar a primeira
épocha litterária dos Estados-Unidos. » P. Chasles.
Transportemo-nos.
Senio também se nao parece com Walter Scott, « que
soube haurir nas fontes da natureza e da verdade um
género desconhecido; allia á minuciosa exactidão das
chrónicas a majestosa grandeza da história, e o in-
teresse instante do romance, génio poderoso e curioso
que adivinha o passado; pincel verdadeiro que traça
um retrato fiel por uma sombra confusa, e nos força
a reconhecer até o que nao vimos; espírito flexível e
sólido que se impregna do sêllo particular de cada
século e de cada paiz como cera branda,e conserva es.<ia
XIV 7
marca para a posteridade, como bronze indelével. » Y ,
Hugo.
Nao se parece com Chateaubriand » que deu ás pai-
xões innocencia que ellas nao comportam ou que nao
tem sinao uma vez. Em Atala^ as paixOes sao cobertas
por longos véos brancos. » *
Nao se parece com B. de Saint Pierre que no seo
Paulo e Virgínia >> sabe escolher o que ha mais puro
e opulento na língua; cujo estylo, se assimelha a esse
famoso metal, que, no incêndio de Corintho, se forma-
ra da mistura' de todos os outros metaes. » J. Joubert.
Nao se parece com Balzac, que « toma corpo a corpo
a sociedade moderna, arranca a todos alguma cousa,
a uns a illusao, a outros a esperança, a estes um grito,
àquellés a mascara; que esquadrinha o vício, disseca
a paixão; que cavae sonda o homem, a alma, o coração,
as intranhas, o cérebro, o abysmo que cada um pos-
sue em si mesmo. » V. Hugo.
Todavia de uma grande obra de Balzac — Le Dernier
des Chotians — obra que prima « pelo pittoresco, pelo
cunho dramático, pelos caracteres verdadeiros, pelo
diálogo feliz » diz Sainte Beuve que «a imitação de
Walter Scott e de Cooper é evidente, o E a Sainte
Beuve chama nao sei si Paulo Raynol, que agora bem
me nao lembro, « eminente juiz das cousas do espí-
rito ».
Com quem se parece, pois, Senio no seo Gaúcho —
5>or ventura arremedo remoto, caricato e illógico do
lomo e do Ursus, do Homem que ri ?
Nao seria difficil dizêl-o, mas nao o quero fazer, li-
mitando-me apenas a dizer com quem penso que Senio
86 nao parece ; e nao é pouco.
O que fica fora de toda a dúvida, quanto a mim, é
que o Gaúcho nao paf sa de uma producçao cachética,de
que a litteratura brazileira pouco se deverá lisonjear.
<í Ha duas maneiras de .ser sublime — diz um crítico
francez : — pelas idéasou pelos sentimentos. No segundo
estado tem-se palavras de fogo que penetram, que ar-
rastam. No primeiro não se tem sinao palavras de
luz, que pouco aquecem, mas que deslumbram. » No
Gatícho o sentimento é frouxo e frio, a idéa descorada
c infeliz ; é por isso que o estylo nem deslumbra, nem
arrasta.
8
A.X
Si estudamos o Gaúcho em seo character hUtóricOj
tanto peior; é tudo vago, indeciso, maxime insignifi-
cante. Lendo-o, não se fica tendo uma idéa da revolu-
ção rio-grandénse. Nao ha um traço vigoroso que se
deixe demorar no ânimo do leitor. A revolução appa-
reee, em uma attitude fugaz, fungivel como a sombra
do quadro — a luz pertence aos cavallos, ou aos ar-
roubos da imaginação delirante.
Intendeu Senio que, citando taes e taes nomes, que
figuraram no movimento, e dizendo que este caminho
vai ter aJaguarão, aquelle a S. Borja, tinha preen-
chido e satisfeito a parte histórica da obra. Erro ou
[Ilusão I
O espírito do tempo, o cunho varonil e incisivo do
acontecimento, sua acção moral ou politica, tudo deixa
addiado para d*aqui a um século talvez a quando jà os
personagens não se achem tão ligados ainda ao pre-
sente pelos vínculos das paixões e da família. »
Que família, que paixões? Pois tem alguma cousa
que ver com isto o escriptor profundo, consciencioso, o
crítico justo e severo, que não transige com espécie
alguma de interesse, e só se dirige a attingir o alvo
excelso da verdade histórica? Frívola ^aze esta que não
incobre os defeitos, as nodosidades do arcabouço re-
pulsivo !
Falando de Alexandre Herculano, como romancista"
histórico, diz um dos bons talentos críticos modernos da
Península: « Nos romances histórico-nacionaes, nunca
tanto como alli talvez, se eleva o escriptor a uma idea-
jisação característica, pessoal, crítica e philosóphica.
« Em geral fica com Walter Scott na chrónica ro-
mantizada. E esplendidamente romantizada. A história
é escrupulosamente tractada: estudam-se a épocha, os
costumes, as tendências, as ambições, os homens. »
Fez acaso outro tanto Senio no seu Gaúcho^ para pre-
tender com razão um logar na ordem dos romancistas
históricos ? Si acaso se não acha ainda inaugurada no
paiz a eschóla, não ha de ser de certo a obra de Senio
que servirá de modelo, tão certo é faltar- lhe a possança
e a firmeza de acção e de crítica imprescindíveis em tra-
balhos taes de iniciativa no género.
Si conchegámos o Gaúcho âs fórmulas geraes da
plástica, aos preceitos da arte e do bello, ao purismo da
-XIV 9
linguag^em castiça, não se ressente elle de menos des-
lÍ2es com feições de defeitos que difficilmente se po-
•derão escusar.
A neologísmomania puUúlae palpita a cada pagina,
infastia. A titulo de inriquecer-se a língua, já de si
iAo opulenta, inventam-se vocábulos por mero arbítrio.
A prevalecer o abuso, quem se intenderá d'aqui a
pouco ? O direito, a auctoridade que tem Senio para
introduzir na língua vernácula termos novos ex aucto-
ritate qnâ scribiíj muitos também o têm; e onde iremos
parar, si todos esses se Jeixarem dominar pelo mesmo
'erro e vaidade de inventarem por conta própria ?
A contar da Diva para cá, justamente a obra que as-
^ignala o prin^^ipal período de decadência de Senio^ não
ha trabalho seo que se possa Ier,de recheado, que vem,
4e quanta innovaçRo lhe occorre fazer, como si isso de-
nunciasse grande m-i^recimento intellectnnl, e deman-
<la3se alto esforço e superioridade no escriptor ! De
um verbo deriva Senio um substantivo; de um vSubs-
tantivo deriva um verbo — e eis a que se reduz a
grandiosa procreaçao philológica de Senio. Quem é
<[ue nao poderia fazer outro tanto, sem, de' mais a
mais, snppôr ter descoberto a pólvora, ou se julgar .
çor isso com jus ao respeito e á admiração de pre-
sentes 8 pósteros 1
E que razão de necessidade poderia determinar taes
inn)vaçOes? Por ventura Senio cria idéas tao sublime-
mente originaes, que nflo incontre na inexgotavel ri-
3ueza da língua nacional termos, que lhes correspon-
am e que as exprimam ? Serão essas idéas creanças
<le septe braços para quem seja mister talhar camisa.-^
^e septe mangas ? Não será difficil na verdade deparar
•era nossas últimas lettras com aleijões de tal ordem.
Em um caso indisputavelmente seria preciso inven-
tar uma língua própria : no de querer fazer o homem
intendido em seus mais recônditos phenómenos psychi-
•cos pelos cavallos, e de intendel-os elle egualmente ;
mas então inventem uma língua nova, e não queiram
aviltar na ínfima funcção a illustre e heróica língua
dos Barros e dos Vieiras.
Longe me levaria esta ordem de considerações, e eu
t<5uho pressa de terminar a série, apezar do muito que
me fica ainda por dizer. Aguardarei outra occasiã^), em
*que farei a apreciação da Diva, da Iracíma como ro-
10 XIV
mance typico-indiano-brazíleo, e da Pata da Gazella^.
se antes d'isso nos não der Senio cousa mais nova^ como
promettem os arautos e passavantes.
Segundo vès, meo amigo, seja incarado o Gaúcho*
sob o aspecto, ethnógraphico, ou seja-o sob o esthé-
tico, ou philológico, urge que os que sinceramente se
interessam pelo lustre das pátrias lettras façam cruzada
para que elle nao consiga abrir eschola.
Discutamol-o entretanto, e a vôo de pássaro, em ter-
reno diverso, isto é considerado como romance iephan-
tasia^ segundo te prometti em minha primeira epis-
tola.
Nao condemno este género da litteratura romântica.
O Ha7i rf' Islândia é horrivelmente bello. A Ondinn^ de
Fouqué, é sublime. Também não deixa de ser interes-
sante o Diabo côxo^ de Lesage, posto que plágio do Di(^
bio cujuelOy de Guevara. E muitos outros, que ahi fazem
as delicias dos diletianíi da litteratura do impossível e
do sonho ou da fábula. Nao condemno pois in limine
o romance de phantasia,
Parecei\do-me, porém, que o romance tem influencia
civilizadora ; que moraliza, educa, forma o sentimento
pelas licções e pelas advertências ; que até certo poncto
accompanha o theatro em suas vistas de conquista do
ideal social — prefiro o romance intimo histórico^ de cos-
tumes^ e até o realista, ainda que este me nflo pareça
característico dos tempos que correm.
Em uma palavra prefiro o romance verosimil^ possi-
vel, quero « o homem juncto das cousas » definição da
arte por Bacon.
E é justamente por isso que o Lazarillo de Tormes^ de
Don Diego H. de Meudoza, exerceu tao considerável
importância nao só na história política da Hispanha»
sinão também na história litterária de toda a Europa —
como diz Viardot. « O pequeno Lazaro de Tormes é umr
ingeitado, quepaasa de senhor em senhor, que se vinga
de os ter servido exprobrando-os' desapiedadamente, e
que, em cada condição nova, faz a crítica amarga de
una classe da sociedade » E' um monumento em nove-
capítulos.
Mas o GaAcho não é um romance de phantasia, nem
pensa em tal, desde que localiza sua acçRo n'um thea-
trc; verdadeiro, e n'ella pretende offerecer a photogra-
XIV 11
phia dos costumes de uma sociedade conhecida c con-
temporânea, dando ás pessoas e ás cousas seos próprios
nomes.
O Gaúcho pretendia ser de costumes, mas depravou-se
na aberração. « A pietençao de excessiva novidade
nao pôde dar em resultado sinao uma triste mistura de
comedia gruiesca e de grandeza phantdstica^ que se nao
encontra em livro algum » diz Philarète, apreciando
as Viagens d' Herman Melville. Dir-se-hia que o pro-
fundo crítico francez talhou n'estas palavras a carapuça
de Senio.
Terei sido acaso ssvero, meu amigo ? Nao, de certo,
pelo que me parece.
E' preciso dizer abertamente a Sento que poucos po-
dem ser Dumas ou Voltaire. A fertilidade proveitosa
só é partilha dos génios. Non omnia possumus omnes ;
e a Coryntho nao vai quem quer.
Os graves incargos de conselheiro do Estado, de po-
lítico, de advogado, de parlamentar, de opposicionista,
6 de muitas cousas mais, não permittem aos talentos lit-
terários produzir sinao abortos, se querem dar creanças
em menos de nove raezes.
Quando Senio era simples advogado, e não queria
campar de philólogo abalizado, politico profundo, nem
concebera ainda a vaidade de passar espichas nos clás-
sicos e de arvorar-se em mestre de eschola, tudo ia
bem.
Chegando-lhe o tempo para applicar-se ás lettras a-
menas, compor seos trabalhitos com vagar, corrigil-os,
à luz do gosto e do bom senso, até onde este lhe che^
gava. A prova temol-a nós no Guaraay^ na Viuvinha, e
no Demónio Fa/niiliar. O têmpora.
Hoje, porém, como tudo está mudado ! Os elogios
immoderados apodreceram cedo o talento útil, fazen-
do-o mfunar-se da presumpçâo de ser génio. Prejuízo
para a litteratura natal I porque em vez de recolher
mais duas ou três producçOesinhas, dos quilates da
Viuvinha ou do Guarany^ temos uma bagagem de vo-
lumes, que nao valem nem o arroubo dos — Ciiwo mi-
nutos,
Metta a mâo em sua consciência, e diga Senio si nao
temos razão.
12 XIV
Mas nada de desacoroçoar. E' ainda occasíão de re-
cuperar o tempo gasto em pura perda, e reparar o mal
que tem feito ao seo nome e áis lettras brazileiras.
Tenho concluído, meo amigo. Pede por mim desculpa
ao pública, e a Senio que me uâo queira mal.
FIM.
O Brazll (Jor^nal.)
Sob este título começou a publicar-se em Lisboa, na
dia 25 de agosto passado, um periódico cujo program-
ma resulta da exposição, que d'elle transcrevemos em
seguida. Com effeito, os seos três primeiros números,
Sue temos á vista, occupam-se quasi exclusivamente
e um noticiário do Brazil em geral, e de cada uma
das suas províncias, dissertando egualmente sobre as-
sumptos de interesse para este Império, ou irando no-
tícias da Europa, que prendem com o desinvolvimento
do paiz. Jâ pela forma da redacção, jà pelo valor dos
^escriptos, ou das matérias nelles tractadas, julgámos
aue serão lidos com attençao os seguintes artigos, qua
a'aquellas coluranas trasladamos. (*)
INTRODUCCXO.
*
A' iiitrada do ultimo quartel do presente século
existe incontíistavelmente, por entre muitos e graves
motivos para lamentos, um facto innegavel, grande-
mente.consolador; é o espírito de fraternisaçao, que
de dia para dia se desinvolve, e cresce entre os diver-
sos povos, e que nem as luctr.s políticas, nem as diffe-
renças religiosas, nem os passageiros accidenies das
guerras, hao de já agora supplantar.
Ninguém, que metta fundo a mao na consciência,
deixará de sentir em si mesmo esta benéfica, esta auspi-
ciosa tendência humanitária. E' uma revolução moral
(*) Nesta corte, sfto correspondentes d'esta folha os Srs. E.
e H. Laemmert, em cuja cana se tomam assignaturas ()or anno
a lõjJOOO. por semestre a SjJOOO; e se recebem annúncios, para
serem publicados no Brazil a 60 rs. por Unha ; tudo dinheiro
do Império. (Em lAsbôa : Redacção^ António Maria de Castilho ;
Administração^ Pedro A. d' Almeida.)
XIV 13
iniciada pelo Christianiámo. e perfilhada pela philoso-
pbia, que sao as duas potencias, que sempre, cedo
ou tarde, conseguem triumphar.
Que será porém, quando ás razões geraes do senti-
mento, que leva espontaneamente o homem para os
homens, accrescem interesses mais (Jefinidos, mais po-
sitivos, mais palpáveis ? Enião a hospitalidade natu-
ral corrobora-se ainda com todas as forças do egcismo ;
é jà o commércio mútuo dos benefícios.
Das naçOes a que esta ponderação affeiçõa mais par-
ticularmente a nossa, duas ha, que em primeiro logar
se apresentam ao espirito : a Hispanha, e o Braz 11.
Com a Hispanha (Iriua e não sennora) estamos, por
mútuo accõrdo, estreitando cada vez mais relações
scientifícas, litterárias, artisticas e commerciaes. Co-
meçamos a conhecer-nos de parte a parte, e por conse-
guinte a appreciar-nos, a respeitar-nos, a servir-nos.
As casas d'estas duas irmãs, agora que se arra/ou o
muro secular que as separava, hao de de melhorar am-
bas co:n a pacífica e aprazivel convivência.
Bem com a irmfl, de quem já nao temos que temer,
mas tudo que esperar, resta a Portugal outro íntimo ;
o seo filho emancipado : o Buazil. Um amigo útil ao
pé da porta, outro amigo nao menos útil a uma dis-
tancia, de duas mil léguas ainda ha pouco, hoje...
de alguns dias, graças ao successivo desinvolvimento
ue as sciencias e as arleá, á hora que lhes foi marca-
a pelo Progresso (isto é, pela Providencia ; trouxeram
á mais prompta reaailo, de todas as partes do
mundo.
Uma das razões que à Hispanha nos affeiçoam c in-
contestavelmente a similhança da língua ; essa refor-
ça-se ainda para com o Brazil ; a língua é uma única
nos dous povos. Todos sabem quanto contribue para
nos amarmos, o intendermo-nos.
Mas nao é só i.sto. As glórias de Portugal são gló-
rias brdzileiras, porque as nossas origens gloriosas
sfto idênticas. Nenlium portuguez, ou raro, deixará de
ter, próximos ou remitos, parentes no Brazil ; nenhum
brazileiro (e a generalidade dos appellidos que o diga)
deixará de comptar, remoto ou próximo, algum ou
muitos parentes em Portugal.
Mais ainda : uma parte dos habitantes d'aquelle
Império auspiciosíssimo, de Portugal sai ; em amor
pátrio se acrisola n'egsas apartadas regiões, e de lá volta
i
14 XIV
quasi sempre ao seo ninho, ao cabo de aunos de tra-
balhos úteis, galardoado pela fortuna que premeia os .
seos trabalhos, e trazendo, para até á sepultura, sauda-
des de uma segunda pátria.
A colónia d'estes homens, que entre nós vem acabar,
úteis á nossa terra, depois de o terem sido á terra
alheia, homens que mereceram, e trazem, e nao rene-
gam, o título de brazileiros, sem renegarem nem des-
merecerem o de porUiguezes, é de todas as colónias es-
trangeiras entre nós a mais numerosa.
E' para elles especialmente que nós emprehendemos
esta fólha.
Cifra-se o nosso empenho na anciã de lhes apresen-
tarmos sem dilação de dias, como a outras folhas for-
çadamente acontece, nas primeiras, e quasi á primeira
hora, todas quantas novidades nas folnas e correspon-
dências particulares do Brazil podermos receber por
cada um dos vapores transatlânticos.
Conio nenhum outro assumpto nos propomos, nem
admittimos, n'esta publicação, poderemos consagrar a
elle o muito espaço que ao3 outros periódicos absorvem
noticias políticas do mundo, as particulares do nosso
paiz, e mil outras considerações imperiosas.
O Brazil é pois especialmente destinado a trazer o
mais cedo e o mais abundantemente que ser possa, as
novidades de todo o género, que devam interessar a
todos os que manteem relações, quer de commércio,
quer de amizade com aquelles nossos bons Irmãos do
ultramar.
Nao sao portanto unicamente os muitos que vem ter-
minar os seos dias por essas províncias, respeitados e
queridos no torrão do seo nascimento, e os muitíssimos
Que vem repousar-se das suas lidas no seio e nos gosos
das nossas cidades principaes, os que esperamos nos aco-
lham benevolamente; serão tamoem, e principalmente
os filhos da sempre lembrada terra de Sancta cruz, re-
sidentes entre nós, os que se hao de comprazer de estar
vendo passarem-lhes por diante dos olhos do espírito
quantos acontecimentos de lá constem.
Dêmos candidamente razão de nós. Obrigamo-nos
pela boa diligencia no desempenho do nosso encargo ;
e com as disposições que havemos tomado para apromp-
ta obtenção de jornaes e correspondentes, curiosos e
fidedignos, esperámos que este papel, de paquete para
paquete, irá crescendo de importância.
XIV 15
O Bx*azil littej?a]?io.
Sabe a Europa como é esplendida a natureza no con-
tinente americano ; como alli se eleva imponente a
palmeira majestosa ; como o cipó se inlaça vaidoso por
entre as mangueiras e as mil copadas árvores das
mattas virgens do Brazil ; como os colibris gorgeiam
por entre aquella riqueza de vegetação; que pittorescos
sao os seos vales; que panoramas immensos se desin-
rolam do alto das suas collinas; sabe, finalmente, como
a Providencia foi pródiga de todas as bellezas, do Ama-
zonas ao Paraguay.
Sabe a Europa quão sincero é alli o amor aos que
trabalham: com que hospitalidade sao recebidos os que
v5o em* busca de uma nova familia e de uma nova
pátria ; com que boa fé e confiança vai até ao seio das
famílias o homem de bem, nobre, ou plebêo, rico ou
pobre; com que alegria é olhada a prosperidade de
extranhos; sabe, também, finalmente, como alli se
premeia a actividade e a honradez.
Eis o muito que sabe ; eis o que três séculos de expe-
riência lhe tem provado ; mas ignora ainda muito, e
tanto, que tem razão para alcunhar de egoísta o paiz
que a todos se entrega e que de todos é pátria.
Que é feito da litteratura brazileira ? Onde estão
os cantores inspirados por tanta belleza ? onde os
poetas intoando hymnos ante aquella magnificência ?
onde as lendas das tribus americanas ?
E o echo só tem alguns nomes a repetir; a medo
balbucia.... Gonçalves Dias... Magalhães... Casimiro
de Abreu... Pereira da Silva... poucos mais, e em-
mudece.
E cala-se sem ração ! Que egoismo é este "? porque
haveis vós, poetas e prosadores, tantos que sois já, de
monopolizar os fructos da vossa inspiração, a quem
tanto de braços abertos vos quer também ?
Vai elevar-se agora um monumento a Gonçalves
Dias, a essa glória brazileira tão invejada de Norte a
Sul, que, para que todo o Brazil tivesse direito a cha-
mal-o egualmente seo, se foi sepultar na immensidade
do Oceano. Pois bem; segui o exemplo, que para se-
g^uir é : elevae outro monumento que vos não honrará
menos. Junctae todas as vossas obras; distribui-as pelas
bibliothecas do velho mundo; nfto as deixeis circums-
criptas ao vosso império; apresentae-vos e sereis respei-
16 . XLV
lados ; provae que, de mãos dadas com o commércio t;
a agricultura, caminha e progride a litteratura bra-
zileira. ^
Mal vai ao povo que tudo exige do governo, e que*
entre a indecisão e a indifferença deixa que o tempo
olvide o nome d^aquelies que bastariam à glória de
uma nação. Nao sejaes do número d'esses: convencei-
vos de que nem só o bronze e o mármore resistem á
acção dos tempos, e de que a história, mais duradoura
do que aquelles, atravessa impassivel os séculos, senv
que nem as commoçoes politicas nem os caprichos hu-
manos a abalem ou destruam.
Volvei os olhos para o vosso InsiUuto Histórico ^
Geográphico^ para essa academia que tem recebido em
seo seio tantos talentos privilegiados, que teminrique-
eido a sua bibliotheca com tantas obras notáveis, e
alli podeis medir as vossas forças.
Drtspertae! E' azado e de molde o ensejo. Prestae um
tributo bem merecido e bem digno de Gonçalves
Dias; e na hora em que a sua província natal vestir aa
43uasgala« ao descobrir a estatua do immortal cantorbra*
zileiro,fazei com que, em honra d'esse nom<í, que vistes
t&o acatado na Europa, ella poss*i conhecer-vos, ava-
liar-vos e dar-vos o honroso logar que vos compete j&
na litteratura contemporânea.
NOTICIÁRIO.
ELEicao. — Na academia real dasbellas artes foi élei"
to, pelos artistas iuscriptos como concurrentes & expo''
siçao de Madrid, para fazer parte do jury de admissão
das obras destinadas àquelle certemeu, o sr. Manuel de
Araújo Porto Alegre, cônsul geral do Brazil em
Lisboa.
Foi s. ex.' um dos mais dísti netos cultores e pro~
fessores das bellaj artes no Rio de Janeiro, onde gran-*
geou pelo seo talento uma reputaçílo noiabili^isíma.
Tjp. e Lith.— IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro, 146.
QUESTÕES DO DIA
N. 15
BIO DE JANEIBO 1» DE OCTUBBO DE 1811.
-Hf. *m usa dos Ses. E. & tí. LaemmpH.— Pri^a ila Consliluifão,
lo.» rffi rjintn. — Livraria Arademit», Rua deS. Joae r. IV9 — LMigftdo
pa^ o. C— Rua de Gonçalves Dias d. 79. — Pibí« 200 reis
Saber do and&nieato que teve a. honrosa idéa, ini-
ãada D'esta corte, da erecção de tira monumeiítú ao
ttoatre poeta do Sado, dará satiafecçao a muitos de
lossoe leitores, ou por terem prestado o seo concurso i
eftUzaçao do pensamento, ou pela sympathia que
^ram estan manifestações de veneração à memória de
uu grande vulto, de que se honrara as lettras do nosso
idioma,
Tendo-nos sido confiados varío.s documentos, rela-
ÍÍT08 a este assumpto, e especialmente a act-a da ultima
da commissSo central, que n'esta corte funccio-
noa, obtida a devida veaia, aqui trasladamos o es-
Mneiat :
COMWISSXO CBNTBAL DO MONUMENTO A BOCAGE.
Setíão exlraoráaulria em 4 de junho de 1S71.
Ae meio dia, preseotettos Srs. Ministro de Portug;*!,
Coa^elheiro Mathias de Carvalho e Vascoucellos, Osn-
Mlheiro José Feliciano de Castiilio Barreto e Noronha,
BarSo de 8. Clemente, Visconde de Sapucahy, Com-
ntendador Boaventura Gonçalves Roque, Coaselheira
JoAo C»rdo,-«o de Menezes e Souza, Commendador Ao-
José da Costa Braga, Quintino Bocayuva, Com-
mcoidador Agoãtiaho Maria Correia de Sã, Bernardo
Itooiin^uas da Silva Araújo e Ernesto CTbi-fto — o pri-
BUiro, a convite especial do Sr. Presiaeate dacom-
miaBOo Boca^aaa, e os outros membros da mesma; —
preseatee mais os Srs. Commaadador Padre José Luiz
d' Almeida Martins, Desembarg:ador Manoel de Freitas
Travageofi, e Consellieiro Francisco Borges Xavier de
lembroa da commissfio de Nictheroy — e os Srs.
daSilvaMelloGuimarftes, Joaquim Maria Ma-
2 XV
chado d'A8siz, António José Victorino de Barros, Gui-
lherme Cândido Bellegarde, Justiniano Augusto de Fa-
ria, e Dr. José Cândido de Lacerda Coutinho, membros
conspícuos da grande assembléa do Jubilêo de Bocage;
O Sr. Conselheiro Castilho, Presidente da commissfto,
convidou o Sr. Vice-Presidente, Barão de S. Clemente,
para dirigir os trabalhos que iam inceptar-se.
O mesmo Sr. Barão abre a sessão.
Secretários os Srs. Ernesto Cybrao e Quintino Bo-
cayuva.
Lê-se uma carta do Sr. Visconde do Rio-Branco,
declarando que n&o pode comparecer â reunião da
commissao, de que é membro, porque a outro poncto
o chamam negócios urgentes do Estado.
Obtendo a palavra o Sr. Conselheiro Castilho, pro-
cede á leitura do seo Relatório^ que é do teor se-
guinte :
Senhores.
Reunimo-nos hoje, para que providenciei/s definiti-
vamente sobre assumpto que com tanta propriedade
foi commettido ao vosso zelo, quando uma numerosa
e escolhida assembléa, congregada n'esta corte, vos
requereu tractasseis dcu^écção de um monumento que
simbolizasse o respeito tributado pelos homens da
língua portugueza a um de seos mais primorosos orna-
mentos, o Sadino Manuel Maria Barbosa du Bocage.
J& para esse grandioso vulto é chegado o dia da ver-
dadeira e desprevenida appreciaçao ;jâo nosso julga-
mento pôde assumir character de justiça recta, de fria
imparcialidade. Quando nem cinzas restam das paixões
que incendiaram os contemporâneos do homem grande:
quando se dissiparam os preconceitos perturbadores do
espirito ; quando a distancia dos tempos e dos homens
permitte ficar estranho &s attracçOes do amor cego,e da
ódio mais cego ainda ; quando o exame auxilia a ver-
dade; é vindo o dia, fixanse a opinião, e a posteridade
profere a sua sentença, de que nao ha appellação.
E então se aquilata o mérito real: os que foram seos
perseguidores jazem sepultados soba mais pesada das
lousas, a do esquecimento; o perseguido vive, sobre-
vive, triumpha. Fará elle o laude póstera. A elle, sim^
é licito, o brado : Poateridadej és minha I porque es£»
posteridade, ente de raz&o em que se fundem e perso-
nificam séculos ou decennios, povos e homens que se
.s^gninm, é a (|ue decreta, em derradeira instaucia,
condemnaçao ou apotheose.
Quando d'esse julgamentu houver safdo iacólume a
memória de um beneraérito, e a sociedade reconhecer
une esse homem se elevou, por dotes excepcionaes,
muito arima do nivel commum, útil é. para prémio e
incentivo, se manifestem pura com essa cara memória
oa testimuuho» de respeito e gratidão.
Se isto asaira deveria ter .sidu sempre, parece que
mais activaraeate se deve promover que o aeja hoje,
«fim Je contrastar a actual tendência, qae faz cora que
tuats vivamoii para o presente, e para a matéria, e para
DÓS, que — para o futuro, e para a floria, e para a bu-
maniilade. Já discutimos se a posteridade é uma reali-
dade ou um mytho ; paraella trabalhã.mos meuos que
para o alfaiate, u estofador, o mordomo ; a fama coq-
yerteti-jítí em mercadoria e officio ; as aspirações nobres
a&o utopiaíi : as recompensas nacioíia^s, enredos; e as
rolumnas-VeudOrae de todas as glórias, procuram der-
rocal-ax, mesmo com o risco de se ficar esmagado pela
queda dVllas.
Has os que, como v4s, ainda crêem, trabalham e es-
peram, continuam na sua missão que é sancta. Para
BSaes a glória, ti&o se vende nem se compra, ou antes
B glúria é a moeda com que a humanidade compra o
Krviço, e o preço que a memória do benemérito cou-
■seate em receber; amemoríl£í,digo, porque essas recom-
pensas, para sarem supremas, hão de ser pagas pelos vi-
T08 aos que já sob a campa os nfio podetn escutar.
Ua â6 annos que o vulcSo, denominado cérebro de
Soeage, deixou de arremessar labaredas, e lavas, e
pedras, e areias leves, que do tudo havia também n'a-
■queila cratera humana. Nenhum de nós o conheceu:
é o Ualba. Otho, ou Vitellíu. de quem nem benefício
wm injúria recebemos; nao pôde ser averbado de sus-
Píito o nosso tribunal; e aqui repetirei o que jíi dice :
oje nao estão j ulgando Bocage olhos fanatizados pelo
pasmo, nem desvairados pela inveja, quasi exclusivos
]UJze» do seo engenho, omquanto pertenceu á terra.
FiSne homem nascera eminentemente poeta. Pródiga
latureza, ao derramar em sua alma torrentes de estro,
íufaodiu-lhe parte grande da scieacia, que só costuma
er dominio da arte. Vida aventurosa e estragada in-
lols o impediram todavia de opulentar iniraitavel-
Beata as suas producçOes com aquelles toques ma^is-
1
4
4 XV
tmas.» que sói segreda meditação, estuado, leitura e a^-
Ílicaçfto. Victima de insanos applaueos, e de mk turba
e adouf adoces, a elles deveu oa peiores dias da sua
exialeiMna de homem, os mais ruins impulsos e os maia
disooràeasons da ena lyrade poeta. Character fogose^e
indómito, paixões árnã>atadas e omnipotentes, subju-
garam alma ali&e melancholiea, em que até os maiS'
doces sentimentos vibravam escabrosos e acerbos. Am-
bicioso de todos 06 lauréis poéticos, tentou com deee-
gual fortuna todos os váurios géneros e estylos. Idólatra
da bannonia métrica, desencantou segredos de inexge-
tavel melodia, e escravizou a locuç&o, nfto para lhe
AvsieT^ mas pam cantar-lbe os pensamentos. O idicnia
dfi GamOes subiu em suas mftos a tal grandeza e majee»
tade, que nunca houve segundo typo que se lhe equi*
parasse. Seo extremado gosto o fez ousar uma tente-
tiva de reacç&o contra o caaçado estylo bucólico. Coo-
ciso e claro,' metaj^órico mas natural, hyperbólico
BI48 verdadeiro, as azas da sua imaginação levan-
tavam o ouvinte & esphera onde reinava. J& em tAo
verdes annos sem par em diversos géneros de poesia^
todos os houvera iliu^trado, se a psurca n&o tivesse eei^
tado t&o brilhante e esperançoso fio. Chefs glorioso da
uma esch(da nacional, teve a dita de Moliére : lançou
a barra onde ninguém lh'a poude ir buscar.
Nós, ministros humildes mas fieis da religino da
arte, ousámos com mfto trómuta chegar o facho á pyra
do grande morto. D'entre as chammas em que ábrazár
mos quanto n'elle havia de mortal, vimea levantar-se,
sob aspecto de cyme, um espírito que logo rasgou vôo
seguro para osoéos da glória. Napyra se consummou
a apatheose: desappareceu o homem, e dobrámos o.
joelho ao humano semi-deus.
Corria o anno de 186&. Occupava-me eu de corrigir
e ampliar, para a 2* ediçfto da Lwra/ria Clássica Part^^
gueza^ o meo. obscuro mas amplo estudo sobre o inexoe-
divel improvisador, assumpto entllo de aturada corres-
pondência com meo irmfto Ajitonio Feliciano de Oaa-
tilho, um dos mais convicto» admíradopes d'aquelle ^a
accesos turbilhões aa voz desato. Elle mepondeioa
que, tomando a nossa geraçllo sobre si solver muita»
débitos, dos que a precederam, erguendo monumentoa
aos quaem suas obras nos legaram outros mouumentaa
mais perennes que o mármore ou o brenze,f6» para da-
seiar que justiça se fizesse á memória de Boeage,porqua
ftjtes ftctoâ eepleadidoâ de gTKtidfio nacionsl são honras
4o presente, recompensas do passado e sementes do
futuro.
E eu, qae bem i^tmheço aterra onde ha um quarto
Je século resido, — que sei que u'eUa acham prorapta-
iBcute écho iodos oh pensamentos generosos, — que me
costumei por doce experiência a Mo achar em taes
>cs80s distiDcçio entre brazíleiros e porttiguezes, — que
vi que o génio que illuminava o átrio do presente sé-
■culo brilhara uo lempo em que formávamos uma só
&imilia.»eRdo conseg-uintti mente glória de uns e outros, •
— que esse Petrarcha portuguez tinha uma peculiari- j
daJe pam o Brazil. e era ser neto do vice-almiranta
íiA du Bocage, famoso por muitas façanhas, entre as
ijusesi as praticadas na defezn do Rto de Janeiro contra
jut hostes de Duguay-Trouín, — nao hesitei em consul-
tar um auditório tao numeroso como illustrado.
Faxia um feliz acaso que a 15 de septembro de 1865
fo6*i! o anuiversário secular de Bocage, nascido om
egaat dia,em 17õã. E por quanto em paizes adeantados
teu estado em nobre uso celebrar o jiibilèa de homens
graudes, como succedeu na AUemanha, no dia dos 100
annoi de Scliiller eim 1859. na Inglaterra no dia dos
HUtianDos de Shakspeare, em 1864, na Itália em egual
aono * no dia dos 600 annos de Dante etc julguei que
em tSo civilisada cidade como esta, sf'ria bemacceita a
idé» decelebrarmos o jubilêo dograo fidalgo do idioma, ,
do príncipe do improviso, do Anacreoute da lyrica, dõ i
Pulrarcha do soneto, do Rembrandt do ciúme, do 1
Kdi-i-nuor da metrificação portugueza. 1
Gstãan memória de todos a esplendida solemuidads I
(l*esaa etitbusiastica noite, que tao apuradas penuas |
4escrf!Vi!ram «m todaa as folhas do Rio de Janeiro, e '
nas principaes de Portugal. Se no empyreo se é sensível
ao auv os homens fazem na terra, terá estremecido dfl
júbilo a alma de Bocage, tao sedenta do atfecto dos
«eof, — uao ao ver uma imagem collocadasob um'docel,
lanieaila. t^ircumdada de flores, bagas douradas, da-J
mmcos, luzes, lyra ingrinatdada de rosas, fíualmeutél
aLtnr lythtirgico da religião poética — mna de admirai"
^uc 800 cavalheiros se con^egasseni para victoriar
um hemem morto antes de quasi todos elles terem nas-
cido ; c concordassem unisonos e jubilosas em procla-
mar e.>MU l]tiado digno de perpétuo respeito da poste-a
rídade. Alli o mais popular dos nossos escriptoreíi tevf
msi.t popular das consagrações.
I
I
3
m
6 XV
Resolveu entfto a assembléa se promovesse a erecçaa
de um singelo monumento a Bocage, na própria terra
do seo nascimento, Setúbal; e foi, acto continuo, no-
meada para angariar donativos uma commissfto cen-
tral, composta indistinctamente de brazileiros e por-
tuguezes, recaindo a escolha, â excepção de um nome,
em cavalheiros, por todos os titulos,distinctissimos.
Cumpre aqni recordar que ao nosso talentoso coUega,
o Exm. Sr. 1*. secretario Dr. Pedro Luiz Pereira de
Souza, deveu a commissão um auxilio valiosissimo,
qual foi o admirável brado de excitaç&o; o sursuni
corda de um formoso escripto relativo ao monumento,
escripto a que foi dada a devida ampla publicidade.
Então se applicou a commissao a desempenhar-se do-
seo encargo, nao só espalhando listas, mas estabele-
cendo commissões filiaes em todo o Império, susten-
tando durante uns 3 aunos uma correspondência que
representa mais de 500 oflicios recebidos e expedidos,
e lançando mao de quantos meios occorriam para aug-
mentar o algarismo da subscrípçao, sendo formuladas e
mandadas, em todas as direcções, particulares ins-
trucçOes para boa ordem dos trabalhos.
Infelizmente a quadra era péssima para similhante
intento: a guerra do Paraguay nao só fazia escacear
geralmente os recursos, mas absorvia as attençôes; e,
observando-se que as sommas agenciadas nâo subiam
alto, julgou-se mais prudente sobr'estar, aguardando
melhores tempos.
Todavia importa reconhecer que achámoe dedicada
cooperação em muitos honrados cidadãos, que nos auxi-
liaram. Se é licito particularizar, mencionarei, quanto
à corte, sem falar em membros da commissao, os ser-
viços que prestaram nobre e desinteressadamente ( de-
sinteressadamente, digo, porque desde o principio se
proclamou que esta empresa, exclusivamente patrió-
tica, nao daria logar a remuneração alguma nobiliária,
ou de outra espécie ) os seguintes senhores : — L. C^
Furtado Coelho, que com a generosa annuencia da sua
companhia dramática, nos proporcionou a vantagem de
dous lucrativos benefícios, um na corte, outro em Nic-
theroy— o Sr. Joaquim da Silva Mello Guimarães,
que a si tomou parte grande da direcção do expediente
e contas, — o Sr. Joaquim Insley Pacheco, que nos con-
cedeu cem photographias do poeta, que destinávamos %
principio para oiBFerecer a valiosos auxiliares, etc, Tam-
XV
bem concorreram, por si ou por meio de listas de
subscriptores, com qaantias superiores a 20$ rs. os
cavalbeiros, cujos nomes se acham indicados na rela-
ção juncta.
Egualmente mencionarei vários espontâneos oiBFereci-
mentos, ainda não utilizados; taes como os dos Srs. pa-
dre José Joaquim Correia de Almeida, de considerável
número de exemplares das suas producções; Francisco
Libório Fernandes, portuguez, residente no Pará, de
um notável quadro , primorosamente desenhado a
penna.
Uma inopinada desgraça annullou porém subita-
mente os resultados de tantos esforços. O nosso hon-
rado e infeliz thesoureiro, Sr, José Ricardo Moniz,para
cujas mãos passavam constantemente todas as sommas,
apenas por mim recebidas, depositou-as, com venci-
mento de juros, na casa bancária Portinho á Moniz,
a qual arrastou na sua fallencia todos os valorescom
que comptavamos, e tão laboriosamente agenciados.
Da exposição do nobre thesoureiro resulta que a quan-
tia a elle entregue, e seos juros subiu a Rs. 8:427s640;
?ue as despezasj segundo os documentos foram
•-6928420 e «jue por conseguinte lhe ficaram líquiJos
Rs. 6:735$220.
Em relação a esta quantia, o único rateio pago (em
maio de 1870 ) ao meo procurador, durante a minha
ausência em Portugal, foi de Rs. 1628000.
Cumpre porém notar que, excedendo talvez as mi-
nhas attribuiçOes, deixei de intrar para a thesouraria
com as duas ultimas verbas por mim recebidas, e que
já* o foram, quando eram notoriamente tristes as cir-
cumstancias da casa Portinho & Moniz, e por isso fica-
ram em meo poder essas duas verbas, a saber:
Da commissão da Parahyba do Sul, por mão do
Sr. Dr. Cândido Mendes de Almeida 2008000.
Da dieta em Nictheroy,por lettra do Sr. José Pereira
da Silva Porto 1:3838000, prefazendo as três quantias
por mim guardadas Rs. 1:7458000.
De conformidade com a minha ordem, foi-me remet-
tida esta quantia^ em septembro, ao cambio de 184 */o,
como se vê da 2*. via de lettra juncta, correspondendo
por tanto em Portugal a somma de minha total res-
ponsabilidade, em dinheiro forte, a Rs. 6148437.
Consta-me que mais algumas quantias ha arrecada-
das, que nem chegaram às mãos do Sr. thesoureiro
8 XV
nem ás minhas, sobre as quaes resolvereis o que vos
approuver.
Passo agora a confessar mui respeitosamente as ex-
orbitaneias a (^\xe me abalancei ( sem auctorizaçAo, e
por isso com risco da vossa censura ), relativamente
á tarefa que nos fora commettida.
Estive em Portugal duas vezes depois da nossa or-
ganização :— em 1866 a 1867,— em 1869 a 1870.
Da primeira vez procedi a muitos estudos cçm pessoas
competentes: ainda ent^o eu comptava que podessemos
dispor de uns Rs. iO:000$000 dinheiro do Brazil; mas
quando vi um dos principaes esculptores orçar só a
a estátua, independente de todo o monumento, em
Rs. 7 a 8:000$000 fortes, esmoreci, e intendi que de-
víamos esperar melhores dias, quando o Brazil nSlo
estivesse assoberbado pela guerra, e Portugal por uma
grande crise pública e particular. Nada tínhamos pois
enttlo que fazer : nem havia meios para obra de algum
vulto, nem possibilidade de obtel-os. Entretanto, meo
irmão e eu quizemos approveitar o tempo para estudar
a localidade onde o monumento devia ser coUocado, e
a disposição dos espíritos em Setúbal. Junctos achareis
diversos números do Jornal de Setúbal, onde apparece
minuciosamente descripto tudo quanto occorreu na mi-
nha visita áquella cidade, cumprindo-rae aqui declarar
que tomei como feitas a todos os cooperadores do pen-
samento as distincçOes de que alli fui alvo ; e qne da
parte do Presidente da respectiva Camará Municipal,
como dos respeitáveis oradores Setúbal enses, foram
Íior todos os modos manifestados os seos sentimentos
e gratidão para com os seos irmãos brazileiros e
portuguezes, residentes neste Império, tanto pela idéa
em si mesma como pela sua execução. Suscitou-se alli
por esta occasiao uma variante ao nosso projecto, a
qual consistia em se applicarem antes os fundos á crea-
çao de um estabelecimento de ii^trucção, denominado
Asylo Bocage; mas nao me suppondo eu com faculdade
de desviaros dinheiros da premeditada applicaç&o;tendo
uma assembléa de mais de 60 membros resolvido dei-
xar a solução a nosso arbítrio ; e dirigindo meo irra&o
uma carta ao Presidente da Camará [ carta que juncta
achareis impressa, por ordem da mesma Camará ) ;
permanecemos na primitiva deliberação, quanto á erec-
ç&o do monumento, quando para isso houvesse meios.
Creou se em Setúbal uma commissao, dando-se-vos o
XV 9
lo^ar de hoara, pois é só nessa qualidade que meo ir-
mfto e eu tomámos a eleiç&o ( já se yâ que honorária )
4l*ell6 para Presidente» e de mim para Vice-Presidente.
£sta commissao poróm pouco poude angariar, e eu
«reio ser vossa meate .que ^sse producto lá tenha o
destino que a cjmmissão local julgar dever dar-lhe.
No anno de 1869 a 70 porém já eu, por occasião de
nova viagem a Portugal, sabia que estavam perdidos
os tundos da subscrípção, excepto a pequena somma
«zistente em meo poder. Éutao, considerei eu que era
próprio da commissao eleita dar conta do incargo que
4U!ceitara — que haviam desapparecido os meios de
que dispunha — que nao era da nossa dignidade ir, para
41 mesmo fim, provocar subscripções novas, tendo as
anteriores tido tão máo êxito — que purém o material e
m^o de obra em Portugal são bons, e por baixo preço —
que a pequenhez da terra,e a singeleza do homem cujo
mérito se commemora, nao demandam ostentosa cons-
trucção — que o intuito moral se preeiíclie, erigindo-se
uma modesta columna e estatua — que d*e.ss'arte pode-
ríamos com pequeno sacrificio, e sem recorrer a subs-
crípções novas fora dj nosso grémio, levar avante o
que se nos incumbira.
Dirigi-me pjis ao Sr. (lermano José de Salle.s, intel-
ligeuce director de um^i das primeiras officinas de cs-
culptura de Lisboa, e a quem foi incarregada grande
parte do trabalho do monumento recem-erigido ao
immori^alSr. D. Pedro IV o I; e nesse patriótico artista
achei a mais prompta acquiescencia, declarando-me
que portal forma abraçava o pensamento que se promp-
tificava a realizal-o, até com perda. Depois de várias
conferencias, e coadjuvado pelos meos honrados ami-
gos, o Sr. conselheiro Francisco de Assiz Rodrigues,
Director da Academia das Bailas Artes, António da
Silva TuUio, e conselheiro António José Viale, conser-
vadores da Bibliotheca Nacional, Dr. António Rodri-
gues Manitto, Presidentp da Camará Municipal do
Setúbal, Júlio de Castilho <ítc., concordei definitiva-
mente no plauD da obra; e depois de feitos os compe-
tentes desenhos, e dpprovado por todos o modelo da
pstátua, tal como eu a recommendara, modelo que foi
obra do esculptor Sr. Pedro Carlos dos Reis, ordenei se
começassem immediatamente os trabalhos, e eis-ahi o
excesso de poderes pelo qual vos snpplico, se o raere
cer, um voto absolutório.
10 XV
Aqui vos appresento, Srs., o plano do nosso mo-
numento a Bocage. £' todo elle feito com aquella
pedra lioz , extrahida das pedreiras de Pêro Pi-
nheiro. , que denominam mármore de Lisboa.
Tem, em proporções menores, alguma similhança
com o que se erigiu ao Sr. D. Pedro, no Rocio, de-
Lisboa. Sobre uma escadaria, de quatro degraus, dos
quaes o primeiro tem 4 m. de largura, sendo a altura
d'elles de 1 m. 10, ergue-seum pedestal quadrado, que
da base até á cornija tem 2 m. 40 de alto, 1 m. 50 de^
largo ; nos 4 ângulos é chanfrado, e nas 4 frentes-
ha de levar como inscripções 4 quartetos de Bocage,
dirigidos — um a Deus — outro á pátria — terceiro aa
amor — quarto à amizade. Superpõe-se ao pedestal
uma columna assaz elegante, de ordem corynthia, com
canelluras ; e medindo o envazamento a altura de*
O," 60, o fusto 4," 4 de altura e O,*" 66 de diâmetro,
e o capitei O," 80; nesse capitel, entre as volutas
e folhas d'acantho estão umas lyras coroadas de rosas.
Por sobre a columna vê-se um supedâneo com altura der
O^^ySO ; sobre este uma convexidade como topo de abó-
bada, e é nessa convexidade que Bocage assenta os pès.
Está o poeta com a cabeça descoberta, vestido com a
trajo do tempo, casaca e calção, e unaa capa, manto
ou capote ; empunha na direita uma penna de ave,
na esquerda umas folhas de papel ; tem a cabeça leve-
mente curvada; a altura da estatua é de 2"., e de
12". (ou cerca de um 3" andar) o total do monumento.
Tivemos a fortuna de alcançar, para guiar o esta-
tuário, o melhor e mais fidedigno retrato que existe da
Sadino, cuja história devo aqui reproduzir:
Quando publi(juei a 1* edição da Livraria Clássica,
tinha baldado diligencias em Portugal para descobrir
um retrato (que D. Gastão Fausto da Camará, o grande
amigo do poeta, me asseverara ser o único fidedigno),
executado por Henrique José da Silva, mezes antes, mas
no mesmo anno, da morte de Bocage. Como havia eu
de lá desincantal-o, se elle estava no Rio de Janeiro ?
Henrino ficou com o retrato que tirara, e vindo para
o Rio, onde foi professor de Bellas-Artes, trouxe-o ;
por sua morte, passou no espólio a seo filho, porteiro
do musêo, e depois por morte d'este a siios filhas^
nascidas no Brazil. Foi avaliado em 10$000, e por suas
donas adjudicado, como mimo ao gratuito advogado*
no inventário, Exm. Dr. Joaquim José Teixeira, que o
conserva com o apreço devido. Comquanto como obra
XV 11
d'arte nao seja um primor, transverbera-lhe no rosto
uma n&o sei que vaga expressão de verdade e vida, que
atordoa até aos profanos, e incute convencimento de ser
este o retrato authéntico.
J& por ser esta preciosidade pertencente a um cava-
lheiro que razoavelmente a nao dispensava, jà também
porque artisticamente está muito incorrecto, obtive do
referido amigo a concessão de se tirar uma cópia, a
qual foi confíada a Mr. Moreau, que da tarefa se saiu
perfeitamente, reproduzindo com a maior fidelidade
as derradeiras minúcias dos traços phjsionómicos, ma»
aperfeiçoando notavelmente o incorrecto trabalho, e
augmentando- lhe consideravelmente as dimensões;
foi este painel que serviu de modelo ao esculptor.
A' Gamara Municipal de Setúbal offereci eu deixar-
lh'o em depósito, declarando-lhe que ficaria proprie-
dade sua, se esta commissão a isso auctorizasse, o que
vós decidireis. Provisoriamente, e até vossa resolução,
determinou aquella corporação que fosse collocado no
logar de honra do vasto salão das suas conferencias.
Claro está que, desde que assumi a responsabilidade
de mandar fazer a obra, subjeitei-me a completar por
mim a parte do numerário, que acaso] possa vir a
faltar para a conclusão da obra e seos accessórios, se
me não absolverdes das minhas usurpações ; ou mesmo
a satisfazer todo o custo d'ella, se o que está feito não
merecer a vossa approvação.
Solliclto pois vossas resoluções sobre os seguintes
ponctos :
1'. — E' ou não approvado o que até hoje se tem pra-
ticado e consta d'este relatório ?
2*. — Convém incumbir alguém de levar ao cabo a
empresa, dirigindo o que resta para fazer, e reclamando
de quem os tiver, os fundos já subscriptos e ainda não
recolhidos ?
3^. — Quer a commissão fixar o dia da inauguração,
e o programma d'essa solemnidade, e nomear iis pes-
soas qne em Portugal a devem representar ?
4'*.-— Auctoriza todas as despezas que se julgarem
convenientes, com o monumento, medalhas, impressos,
melhoramento da praça, e o mais que parecer acertado,
com tanto que se não promova nova subscripção para
fora dos membros da commissão?
5*. — Precisam estes gastos do successivo consenti-
mento da commissão, ou ficam desde já auctorizados.
12 XV
bastando que, depois de effectuaáoi»^ a ^commisdao se
congregae pela última vez para o exame das contas?
B^^.-^Deve dar*se publicidade a alguma cousa?
ao quê ?
7». ..-.Cumpre, n'aquelle caso, mandar exemplares
d^essas publicações aos contribuintes, renovando-llxes q
agradecimento da coadjuYaçfto ?
Só tsjte resta reiterar as expressões da minha grati-
dão aos que me fizeram a honra de consentir que eu me
associasse aos vossos trabalhos, e a vós mesmos pela
confiança e benevolência com que vos tendes dignado
distinguir-me. Se a ellas n&o correspondi, culpe-se-me
a insuficiência, que n&o certamente a vontade.
Rio de Janeiro, 3 áe junho de'1871.
J. F. BK Castilho Babbeto e Noronha.
Este acto foi interrompido, quasi em principio, pela
presença do Sr. José Ricardo Moniz, Thesoureiro da
CommissSlo, o qual declara que só a urgência do caso^
e a singularidade da sua posiç&o perante os subscripto-
res para o Monumento a Bocage, o forçariam a appre-
seutar-se em público, no dia em que baixava á sepul-
tura um de seos irm&os : por isso pedia para ser ouvido,
afim de poder retirar-se.
Concedida a urgência, o Sr. Moniz leu o seo Rela-
tório, que é do teor seguinte :
Senhores.
Para conhecimento de todos aquelles que tem direito
de perguntar o que se ha feito dos dinheiros arreca-
dados para o monumento a Bocage, de cuja commissfto
fui thesoureiro, apresento o balimço, mostrando dever
existir em meo poder a quantia áevs. 6:735S290.
Este algarismo, obtido às migalhas, e pode-se dioér,
na sua totalidade,devidas ás relações pessoaes do Exm*
Sr. Conselheiro José Feliciano de Castilho, iniciador
da idéa, para realização da qual tudo tem sacrifi-
cado, foi sempre por mira exclusivamente arreca-
dado, e depositado a juros na casa bancária, da qual
eu era sócio solidário.
O fatal desbarato dos negócios d'essa casa, levou-
me á ruina em que me acho.
Julgado pelos Tribunaes do paiz, a que me submetti,
devo aos cavalheiros, que na melhor fé confiaram na
minha moralidade uma justificação.
13
Por mais maliiid^M e vauda que seja, a minha po-
si^ n'e^te laomeato, consolo-me por ter no meio d^
todo o meo descalabro salvado esse mesmo principio
de moralidade O bom senso reconhece que eu n&u
podia nem devia preferir outro estabelecimento que
nAo fdsse o meo, para ser oaixa d^essas quantias que k
formiga se arrecadavam.
A legalidade de meo procedei é tao intuitivo que
toda a reflexão seria uma oanalidade.
lias porque nao salvastes no meio do vosso naur
fetigio 08 dinheiros da subscripQfto que se achavam a
vosso cargo?
Isso importaria nada mais nem nada menos do que
salvar-me a mim próprio; e nao seria moral ^ue eu trao-
tasse de me salvar, sacrificando todos os pnncipios pe-
los quaes me constitui responsável d'esses mesmos
dinheiros.
Um tal proceder seria a negaç&o de meps foros, na
sociedade que me considerou.
A moralidade n&o é trapaçaria, e embora o incadear-
mento de fataes incidentes me prenda a um poste de
interpretações. equivocas, confio no meo braço, eu»
minha actividade, para ainda um dia poder solver esse
débito contrahido pela minha dualidade de Thesour
rdro e commereiante, fundida na minha própria indi-
vidualidade
Nfto posso dar costas ás accusaçOes impertinentes
nno ultramar se fizeram a propósito d'este malfa-
o commettimento, ao character doincançavel Sr.
Conselheiro José Feliciano de Castilho, que eom tanto
enthusiasmo, e nOo egualada dedicação, se applicou de
oorpo e alma a traduair em facto a sua nobre idéa,
pondo ao serviço d*ella o seo afanoso trabalho e o seo
grande valimento.
O character d'este distincto cavalheiro, o qual se tem»
deixado sacrificar até hoje para salvaguardar o meo
nome, nao {>óde por dmús ten:^ continuar a partilhar
de uma posição indefinida.
Segundo deveis saber, os trabalhos da commiisao
ficaram reduzidos, o adstrictos a elle como Presi-
dente, e a mim como Tbesoureiro; cabendo a elle toda
a oorrespondencia, e a mim toda a narteeeonóm^ioa.
As raias de nossas aoçoes assim estaoeleoidas demap*
cavam a nossa independência ; e nao é sem grande
oonfrangimento* que entro n'estas minúcias para nao
14 XV
pôr em dúvida a minha total responsabilidade, pois
considero-me bastante forte para nao corar diante das
impertinências, que um successo desgraçado pôde fazer
nascer em espíritos que medem a honra pelo paga-
mento & vista.
Nao me acastello atraz das theorias dos factos, e
nfto chamo em meo soccorro os desbaratos que levaram
os dinheiros da subscripção pnra o monumento a
Camões, nem da Caixa de Pedro V, cuja responsabili-
dade legal e moral das commissoes desappareceu deante
das considerações de força maior^ porque intendo que
quando os brios cavalheirosos se acham empenhados,
as obrigações não prescrevem, nem a responsabilidade
se divide.
E' tudo quanto tem a dizer o
Ex-Thesoureiro
José' Ricardo Moniz.
Rio de Janeiro 31 de Maio de 1871.
 Âssembléa, tendo escutado attentamente as consi-
derações oraes e escriptas do Sr. Thespureiro, toma
parte em seo desgosto, e interrompe a sessão durante
algum tempo.
Tendo-se retirado o Sr. Moniz, continuam os traba-
lhos começados, e prosegue a leitura do Relatório do
Sr. Conselheiro Castilho,fínda a qual o Sr. Conselheiro
Cardoso de Menezes propõe que se votem os quesitos,
in finSy do Relatório.
O Sr. M. de Mello lembra a conveniência de se re-
lerem as conclusões do mesmo Relatório.
O Sr. Conselheiro Cardoso de Menezes accrescenta
que, tendo a leitura sido interrompida, convém talvez
que o Sr. Conselheiro Castilho faça um resumo do seo
trabalho, e assim se resolve.
Terminada a exposição, feita por este senhor, propõe
o Sr. Commendador Costa Braga, que as conclusões do
Relatório sejam votadas inglobadamente. Objecta a
Sr. Couselheiro Castilho que, tractando ellas4e maté-
rias mui diversas entre si, convém separal-as.
Entra em discussão o P. quesito a F ou não appro^
vado o que até hoje se tem feitOy e consta doeste ReUsc
tório ? )) Resolve-se pela afirmativa, unanimemente,
e sem discussão.
Entra em discussão o 2^. quesito « Convêm mcunibir
15
alguém de levar ao cabo a empresa^ dirigindo o que resta
para fazer: e redamando de quem os tiver ^ os fundos jd
subscriptos^ e ainda não recolhidos ? »
O Sr. Costa Braga declara ter em seo poder cerca de
350SÓOO rs. pertencentes & subscripçao, que reteve até
iigtira, por conselho das círcamstancias. Outro tanto, e
Selas mesmas razoes, fez o Sr. Commendador Correia
e Sà,que declara ter em sua mao cerca de 900$000 rs.,
procedente3 de egual origem.
A Assembléa agradece a estes senhores, e sob pro-
posta do Sr. Conselheiro Cardoso de Menezes, resolve
unanimemente que o Sr. Conselheiro Castilho seja sol- '
licitado a levar ao cabo a empresa; e dà^-lhe solemne
voto de louvor.
O Sr. Conselheiro Castilho, agradecendo mais esta
prova de confiança da Assembléa ( « confiança mere-
d^idissiman <i simples justiça » bradam muitas vozes) ,
acceita todos o.^; incargos, menos o de arrecadar, o que
A receber houver. Vários cavalheiros insistem embalde
oom Sua Excellencia.
O Sr. Cybrfto propõe que os Srs. — Presidente, Con-
jflellieiro Castilho — e Vice-Presidente, Barão de S. Cle-
mente— ^sejam incarregados de levar ao fim a tarefa;
« entr:f si dividam os trabalhos. Esta proposta é una-
nimemente approvada.
Lêem-se os quesitos 3°., 4\, e 5\, e resolve-se :
Quanto ao o**. : que os Srs. Presidente e Vice-Presi-
^ente façam o que melhor lhes parecer ; •
Quantj ao 4". : o mesmo, e que se as sommas arre-
cadadas não derem para os gastos a que se refere, seja
cada um dos membros da commissão consultado por
c?%rta, a respeito da quantia com que deseja con-
tribuir ;
E quanto ao 5"". : que iicam desde já auctorizados
todos os gastos precisos.
Lâ-âe o 6°. quesito, e resolve-se : que os Srs. Presi-
dente e Vice-Presidente mandem, quando opportuno o
julgarem, publicar o que ihes parecer, do occorrido
n'e.sta sessão, e o que convenha acerca do seo in-
cargo.
Julga-se prejudicado o quesito 7."
Mais se resolveu, em presença da promessa contida no
Relatório do Sr. Thesoureiro, que a todo o tempo que
este senhor possa restituir os fundos, que por uma ca-
lamidade commercial se perderam, ficam os mesmos
18
Srs. Presidente e Vice^Presidente auctorizados a rece*
bel-oSy e i4)plical-os a qualquer objecto análogo, que
julgarem conveniente.
Obtendo a palavra o Sr. Commendadór Almeida
Martins, prop0e que o voto de louvor, tfio espontanea-
mente offerecido ao Sr. Conselheiro Castilho pelos v»*
levantissimos serviços prestados jpor S. Ex. para o bom
êxito da empresa começada, seja extensivo ao Sr. Vi»*
conde de Castilho, de quem nasceu a idéa d^ um Mor
numento a Bocage, segundo a declaraçfto do &*. Con-
selheiro. Esta proposta é accolhida com geral a]^lau60^
e a Âssembléa vota unanimemente louvores e cordiae»
agradecimentos aos dous diçnos IrmSos Castiihos, o
Sr. Visconde e o Sr. Conselheiro.
Levanta-se a sessfto ás 2 1/2 horas.
Ebnesto Ctbbao.
Secretário.
ADVERTENCU
Já estava em grande adeantamenio a compósito da
matéria d'este número (a qual pnecisa ainda ser conti-
nuada no seguinte} quando foram successivamente en-
tregues, para serem publicadas, as cartas 13*^14* e 15*,
de Cincínjiato a Fabrície» Saírfto á luz, apmas o
paço o permitta.
Typ. 6 Lità.— mPABCIAIr--Bm Sete dfl Setembio,,lé$.
QUESTÕES DO DIA
isr. 16
RIO DE JANEIRO 21 DE OCTUBBO DE 1871.
Pafo n. <
ísa dos 5rs K. di H. Laemniírt.— Praça da ConslituiçãD,
o,— LívrnHa AcadcmUra. ttua de S. Josa d. 119— Largo do
- Rua de Gonçalves Dias o. 79. — Preço 200 reis.
>toiiuiuexito a Bocage.
Dêmos no precedente número a acta da última sessfto
'» commissao central, creada n'''ãla corte para promo-
Ter s erecção de um modesto monumento a M. M. Bar-
hozB àu Bocage, Elmano Sadino, a qual vai verificar-
se proximamente, e talvez no dia 21 de dezembro d'eate
anDo, em Setúbal, cidade natal do poeta, coramemo-
rnudo-se assim o 66' anno do seo passamesto, como,
no dia 15 de septembro de 1865, egualmente se com-
Inemorãra, n'um brilhante jubilêo, o anniversÃrio se-
Eular do seo nascimento.
Nomeadas para Lisboa e Setúbal commisaOes com-
postas dos cavalheiros mais competentes, tndo faz es-
perar que o generoso pensamento, iniciado nesta corte,
I ao qual se associaram cidadãos brazileiros eportugue-
ies. seja dignameute realizado, pois consta acharem-aa
mtn andamento os derradeiros trabalhos.
Este número será pois ainda inteiramente consagrado
_0 mesmo assumpto, e sonos permitteo espaço pu-
blicar uelle o excellente escripto do Sr. Dr. Pedro Luíe
Pereira de Souza, e a correspondência trocada entre o
Sr. António Feliciano de Castilho e a Camará Muni-
eíp«l de Setúbal. Ficam muitos outros curiosos docu-
neotos, a alguns dos quaes talvez ainda damos egnal
publicidade.
Monumento a BQ:;age.
Em dias do mez de septembro, na cidade do Rio de
Janeiro, celebrava-se uma festa litterária em honra &
lyra de llocage.
Os amigos das lettras e de nossas antigas glórias
Itsviam sido convidados para uma reunião nas salas do
lub Fluminense, pelo Sr. Conselheiro José Feliciano
2 XVI
de Castilho Baireto e Nonmha, em áeo nome, e no de
seo distincto irmão o Sr. Dr. António Feliciano de Cas-
tilho, de quem, como S. Ex. annunciou, recebera
aquelle honroso incarjfo.
Tudo concorria para aquecer os ânimos n'essa elo-
quente contemplação do passado.
A illustre personagem que apparecia á frente de tao
generoso movimento conquistara de ha muito tempo a
admiração dos contemporâneos. As musas carinhosas
lhe embalaram o berço, e na existência litterària do
illustre cego ingastaram inniimeras jóias do mais fino
quilate. Alma sempre nova, espírito sempre audaz,
talento sempre fecundo, ainda sonha o grande, o ideal.
Nao cançou. Não descreu. Naose assentou alquebrado
à beira da estrada, nem se recolheu ao sombrio silen-
cio da ironia. Antes caminha sempre, carregado de
trophéos, saudando com fervor a geração que tem ância
de poesia e de futuro. Os olhos, que j^ara a luz se fe-
charam, fitou-os elle em outro céo mais límpido.
Ainda agora se nos revela o Ovídio portuguez, e lá
do seo Tibur nos convidava para a festa do passado,
A data em que nos reuníamos era solemne. O dia 15
de septembro de 1865 completava o século do nasci-
mento de Bocage. Éramos pois convivas de um jubilôo
litterárío, ceremónia poética, e original entre nós.
Não podia ficar estéril a saudação que dirigíamos á
sombra de Elmano. O.Sr. Conselheiro Castilho expoz a
nobre idéa de perpetuar no mármore e no bronze a ve-
neração da posteridade ao assombroso poeta. Foi caloro-
samente abraçada. O plano do monumento apresentado
por S. Ex. circulou pela assembléa. E* simples, ele-
gante e modesto. Uma escadaria de mármore leva por
quatro degraus a um átrio, onde oito columnas de or-
dem jónica sustentam uma cúpola, sobre a qual se
eleva a musa da poesia, com a mão esquerda apoiada
em uma lyra, e a direita alçada, empunhando uma
coroa. Ao meio do átrio, e sobre um pedestal quadran-
gular, em cujas faces se lerão versos do poeta, er-
gue-se o busto de bronze de Bocage.
Desde logo foi acclamada uma commissão para levar
a effeito o magnífico pensamento.
Sem dúvida merece Bocage essa oblação eloquente,
ainda que singela. Aquelles que se acharam no cami-
nho do poeta percebiam n'elle o deus interior, presen-
tiam a chamma sagrada a incendiar-lhe o cérebro, a
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crepitar no verso que lhe rebentava de improviso, a
fulgurar em seos olhos azues, que paraciam reflectir a
immensidade. Esse homem, que alli andava na turba,
tinha a mens divinior. Em torno d'elle havia o círculo
do espanto.
Cabia á futura geração consagrar aquelle sentimento.
O renome de Elmano passou pelo chrysol da posteri-
dade. Entre nós e o berço do poeta se estende um sé-
culo. Pois a figura de Bocage, de tEo inspirada, de tao
grandiosa, assumiu a nossos olhos proporções legen-
dárias. E* quasi um ente phantástico !
Para aquelle homem a musa nao tinha segredos ;
de seos lábios brotava em jorros a poesia; a murmurosa
lympha da Castália despenhava-se-lhe em catadupas.
Seos livros ahi ficaram; attestam muiio alto aquelle
maravilhoso ingenho e a febril inspiração que lhe
transbordava da alma. Para elle n&o íxavia barreiras.
Os horizontes, por mais remotos, era fital-os, e ao olhar
do ^énio se rasgavam luminosos.
Mas nem sempre pairava nas regiões olympicas
aquella suberba phantasia. Roçou de perto, e nao raro,
as misérias humanas, e n'isso sentia singular prazer.
Génio inquieto, louco, devorado de scismas, deixava-se
arrastar pelo tropel das paixões^ como elle próprio mur-
murou em hora de tristeza, n'aquelles versos que todos
nós sabemos. Rastejava então por sobre o pó da terra.
Zunia de seos l&bios o epigramma como uma setta
hervada. Sua risada mordia deveras.
O soneto nascia-lhe de um jacto e primoroso. Ora
parecia o fascículo das varas com que se 'comprazia
em flagellar o vicio, ora um festão de lindas rosas,
como que entrelaçando suspirados amores. Cançado da
terra, fugla-lhe a alma então para as nuvens douradas.
A cantata serena o inlevava manso e manso; a ode
pomposa o arrebatava no turbilhão de fogo; e ouvidos
terrestres procuravam o bardo nas regiOes do ideal.
Tal foi Bocage.
Onde pára aquelle crâneo- vulcão... ninguém o sabe.
Não se desfolham goivos sobre a lousa que incobre as
cinzas do poeta. Pois levante-se na terra do seo berço
a pedra symbólica do futuro. E' um tributo esse que
lhe devem duas naçoes : Portugal e Brazil.
A idéa do monumento a Bocage deve acordar pro-
fundas sympathias áquem ealém do Atlântico. Bocage
nao é o representante de uma nacionalidade: é o filho
4 XVI
sublime de uma raça. Suas glórias nfto se acham pre-
sas em mesquinhas circumscripções geográphicas :
pertencem á língua harmoniosa que falam dous povos
irm&os.
Alma errante nos paramos da poesia, assim lhe cor-
reu a penosa vida. Aqui na plaga brazileira yiveu
também Elmano; respirou d*este ar embalsamado; nos
seos inspirados cantos flammeja o raio quente d'este sol.
Uma vez ainda — e agora em nome da poesia — abra-
cem-se brazileiros e portuguezes.
N&o é faustoso monumento o que se quer levantar k
memória do divino cantor; nao é a traducç&o d'aquelle
estro em mármore, pois que o estro ahi ficou no mundo
traduzido em versos immortaes: é uma offerenda sin-
gela do futuro, que só colherá esplendores da idéa que
symboliza; um tributo gracioso e modesto; iima pe-
dra que vai alegrar os manes queixosos do bardo, e ás
duas nações pesará bem pouco.
Pedro Luiz.
Rio de Janeiro-*octubro de 1865.
Senhores : presidente, e vereadores da camará, no-
táveis, E HABITANTES EM GERAL DA ILLUSTRB CIDADS
DE Setúbal.
Mais que atrevimento deveria parecer o dirígir-me
eu hoje a vós coUectivamente, se vós mesmos, dignan-
do-vo6 de me honrar com excessivas mostras de bene*
volencia, me n&o houvéreis imposto necessidade e obri-
gação de agradecimento.
O agradecido é um amigo; e todo o amigo tem di-
reito de expor chan e lisamente os seos sentimentos»
Sem mais vénias o farei.
Penhorastes-me, quanto nSo cabe em expressão, ao»
ceitando-nos com alacridade um projecto, em que meo
irmão e eu havíamos posto o maior empenho e diligen*
cia; e esse vosso obséquio, já de si tao grande, ing^ran-
decestel-o ainda mais, preparando-vos para nos receber
e hospedar com magnificência digna de vós, e de qud
até príncipes se pagariam. Coroastes finalmente
o obsequio, deferindo em parte ás nossas instâncias^
e attenuando um. pouco essas públicas manífes*
taçoes, com que a nossa justa humildade se nfto
.trevia. Ainda assim, o que d'eUas ficou, sobraria para
ÍDSoberbecer aos mais aoibicíosos. i
Jà pela Toz de lueo irmão soubestes a causa que me
irivoíi de accompauhal-o, nesta que para nós em de-
TOtisaima romaria, e que a vessa urbanidade mais que
nerosa nos transformou em triumplio; mas o que
lem pela voz d'el!e podestes decerto comprehender,
;em eu por palavras vos saberia explicar, é o inliDito
^ue a vós me prendestes com as acclamaçOes, em que,
â'uiD dia todo de Bocage, o meo nome andou conso-
Eiado com o do grande Poeta, no meio dos seos conter-
neos mais tllustres. Inthesouro para glória de fa-
ilia as folhas publicas e a» cartas, em que sa me
l«tain eâsas memoráveis horas de 17 a 18 d'este
arco.
Glorificado por vós com o titulo de Presidente ho-
lorÀrio da commissftoque deve tractar do monumento
» Cysne do Sado, venho jà ao assumpto que sobre-
ido oos interessa.
Filhos digníssimos d'este século, quereríeis, e quí-
jra-o eu tambem,que os manes de Bocage se podessem
lobilitar com um monumento productivo : que uo
lilo se preferisfie para elle o bom; à pompa artis-
ica. a educação e acaridade ; a um quasi mausoléo,
berço queattrabisse as bênçãos de Deus para sfibre
^ litados da Fortuna. As pyramides do Egyplo reu-
Idas nSo valem a mais humilde eschola. Tal é j& de
uito a minha convicção intima: livre a expuz, e
^ diuturnamente a sustentei na lievista Vni-
•rgúlt quando se iractava do como se ergueria padrílo
"igno ft D. Pedro IV : e outra vez ainda tomei voz
ela civilisaçao contra a vaidade, quando se contro-
vertia por D, Pedro \' qual melhor o representaria: — se
im colosso surdo, mudo, cego, immovel, gelado, sem
ÍDtraohas : — se um mestre, embora o mais obscuro, ou
I mais humilde me.stra, preparando no eremitério de
mos eschola o bemdicto milagre de homens e mulhe-
reí para o porvir.
Que eu defendia, no jà quasi anachrónico pleito, a
njellior parte, sabe-o a rainha consciência, e compro-
T88le)-o vós tambeui.
Todavia, Senhores, como nem todos ainda o inten-
detn aisim, e o.s dinheiros jà tributados, para a home-
nagem que hoje se projecta, vieram logo. e talvez
(idíÀí se retrahiriam, de-ítinados a couverter-se em mo-
6 .vVI
numento^na accepção vulgar do termo, intendo eu que
todo e qualquer debate n^este sentido seria jà agora
intempestivo, e inútil quando menos.
Renunciemos pois virilmente o óptimo para onde nos
fugia o coração, e ousemos contentar-nos com o simples
bom, que tao risonho, ainda assim, e t&o conseguivel
se nos presenta.
Por sermos vencidos do número, nao havemos de
fugir do campo; e esperando por dias de mais rasgada
luz, consolemo-nos, que também é boa philosophia,
considerando que d'entre todos os monumentos infe-
cundos, estes, os dos filhos de si mesmos que se nobili-
taram pelos trabalhos da intelligencia, sao sem duvida
os de maior préstimo.
Quem se instrue ou se melhora com a estátua de um
rei, mas que fosse Trajano,o IV Henrique,ou D. Pedro?
Que diz esse mármore ou bronze, que o não diga me-
lhor, mais ampla, mais alta e mais duradouramente a
história ? e quantos monarchas ha para irem escutar a
esse simulacro de príncipe uma exortação, que nunca
lhes virá de fora, se já Deus ao nascer lh'a n&o
insinuou ?
O vulto de Colombo, sim; é o rei dos utopistas, por
quem o mundo se duplica ; essa fígura, como a do In*
mnte D. Henrique, eleva a almn ao pensamento das
g^raudes cousas; pregoa o estudo, o trabalho, a perseve-
rança : todo o espinhoso itinerário da Glória.
No mesmo caso estão as effigies solemnes de Galli-
lêo, de Newton, de Linnêo, de Guttemberg, de Was-
hington, de Franklin, e estariam a de Fulton, a de
Olivier de Serres, a de Jacart, a de Cobden, a de Da-
guerre e as de duzentos outros que negociaram os ta-
lentos divinos, em proveito de seos irmãos.
Ainda após estes, ha logares honrosos, a chamar
pelo cinzel, e podem, com interesse público outorgar-
se aos homens do mundo ideal, aos devaneadores do
bello, ess'outros fecundadores do mundo pelo menos;
espíritos incarregados pela Providencia, de o aformo-
sentar com as flores do espírito, com as saudades do
bom que foi, e com os arrebóes prophéticos de me-
lhores dias. Os Shakspeares, os Molières, os Schillers,
os Cervantes, os Camões e os Bocages, pertencem a
este número de eleitos, cuja verdadeira vida principia
da sepultura.
A estátua do poeta, essa sim que nao é mlida ; por
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ella falam ainda 08 seos versos. O filho das Musas
ouve-a cantar, no mundo estéril, por onde vagueia in-
differente, como nos areiaes do Egypto o coUosso de
Memnon modulava hymnos ao apparecimento da Au-
rora sua mãe
Já naoé pedra aquillo; é um conselho vivo de estudo,
de recolhimeoto solitário, de meditação, de paciência,
de esperança, de fé na própria estrella, de renunciaçao
ás pequenhezes, aos iurédos, a todas as misérias ca-
ducas e perecedeiras.
Falei de Camões e Bocage. Que de ponctos de con-
tacto, entre estas duas glórias nacionaes! Permitti-me
recordar-vol-os, que será insoberbecer essa terra a que
já tanto devo.
Com quasi doas séculos e meio de distancia, nascem
de famílias honradas, mas de pouca fortuna, os dous
máximos cantores portuguezes, no prazo precisamente
em que mais úteis podiam ser, como exemplares á
língua e poesia nacional. Camões regulariza e fixa,
com o adjutório do latim, do italiano e dohispanhol, a
arte do escrever claro e culto :
..,.. um som alto e sublimado,
um estylo grandíloquo e corrente.
Bocage, outro Messias litterário. offusca, dispersa,
qua^si anniquilla de todo a synagoga arcàdica. Fone
egualmente «'om os idiomas da antiga e moderna Itá-
lia, e como francez, de que elle sabe não colher senão
o necessário, o útil e o bom, abelha delicada entre in-
sectos impuros que só venenos lhe sugavam, dá a ouvir
pela primeira vez aos echos multiplicados e attónitos
uai falar altiloquo e terso, claro e elegante, cheio e
harmonioso, conij nenhum, em poesia, ainda por cá
se ouvira, nem se tornou a ouvir, depois que elle em-
mudeceu. Camões e Bocage são pois ainda hoje dous
mestres; mbs o segundo, por mais achegado a nós,
mestre para mais aproveitamento. Na traducçao inex-
cedivel, e no soneto inegualavel.
Ingenhos peregrinos ambos, começam a colher tein-
poran a celebridade; ouvem em vida os applausos dos
vindouros, e por entre os susurros harmoniosos dos
loureiros, já também os pios importunos das invejas.
D'aqui talvez a esplêndida bile que em ambos se desa-
bafava em sátyra; d'aqui também, aquelles frequentes
assomos com que ambos, nao sem escândalo de me-
díocres, ousavam pregoar, como Ovídio, como Horácio,
8 XVI
como todos os gigantes, que ardia n'elles o fogo sacro,
q^ue os inspirava um nume, e que as suas obras n&o
tinham de morrer.
Beprehende-se à Fortuna a sua prodigalidade para
com entes vulgares, abjectos, nuUos, ao mesmo passo
que pelo commum se mostra mesquinha aos espíritos
eleitos! Que desarrazoado nCLo é esse queixume ! e basta
uma consideracao,ommittindo vinte outras que a refor-
çam : — Seria por ventura justo que a Providencia dis-
partisse tudo a uns, e a outros nada "? que os pobres de
espirito fossem também mendigos dos bens terrestres,
emquanto os talentos e génios possuíssem os palácios
e parques, os cavallos da Arábia, as mesas de LucuUo?
« Não escreve Lusíadas quem janta
(c em toalhas de Flandres ;
já o tinha dicto Garção.
A Camões e a Bocage vá pois a vida pobre, atormen-
tada, trabalhosa. Quem sabe se a contrária os não afo-
garia !
Camões recorre á milícia; Bocage recorre á milícia.
Ambos vão servir a pátria nas terras d'alem-mar,no Ori-
ente, na região do sol e das palmas; a ambos os espera
lá a inspiração, mas os infortúnios também; a ambos
a ausência apura a sensibilidade; a ambos os chamam
es amores para o ninho paterno.
Amores : qual dos dous levará n'isto a palma ao
outro ? Nem um nem outro é Petrarcha para uma só
Laura, ou Dante para uma só Beatriz, a quem ame
viva, e a quem ame dobradamente depois da morte.
Cada um d'elles é, como o segundo por si confessou
ingenuamente :
í( devoto incensador de mil deidades.
Não amam a uma formosa, inleva-os a formosura :
ardera por mil; adorara a todas ; a feminidade sob
qualquer fórina ou nome, é o seo iman perpétuo.
Era rumos incontrados, e com a mira em estrellas
diversas, é sempre a mesma luz celeste, a belleza.quem
os enamora, quem lhes chama : aos olhos, ora o riso,
ora as lágrymas ; ao coração, ora a esperança, ora o
ciúme; aos lábios, ora os hosannas, ora os impropérios,
que são ainda amor. Por isso, nem um nem outro se
atreve a escolher uma companheira para a jornada
trabalhosa da vida. Por filhos e herdeiros só hão de
deixar as próprias obras.
A existência namorada, aventurosa, errabunda, for-
XVI 9
tuita, amphíbia,quasi aérea,quasi chimérica,e quasi de
•chímeras uaicameate pascida, a tal poncto os irmanou,
«que Bocage nao poude abster-se de exclamar no seo
«xilio indiano :
Camões, grande Camões, quão similhante
acho teo fado ao meo quando os cotejo !
egual causa nos fez, perdendo o Tejo,
arrostar co'o sacrílego Gigante ;
como tu, juncto ao Ganges susurrante,
da penúria cruel no horror me vejo;
como tu, gostos raos que em v&o desejo
também carpindo estou, saudoso amante ;
ludibrio, como tu, da sorte dura,
meo fim demando ao cèo, pela certeza
de que só terai paz na sepultura.
E ainda então, senhores, o vosso cantor, o vosso Ca-
mOes II, não sabia quantas mais similhanças com o
grande homem o aguardavam no futuro. Como elle,
havia de experimentar por leviandades a amargura
expiatória do cárcere; como elle, havia de chegar a
ver a Pátria n*uma grande crise, suprema dor para
um coração portuguez ! como elle, havia de se finar
n'um aposento desconchegado, esoccorrido da caridade;
como elle, até depois de interrado, havia de naufra-
gar e perder-se com a própria sepultura; como a elle
em&m havia de chegar um dia, e, foi Deus louvado!
era nosso tempo, em que a gratidão pública o evo-
casse glorioso d'entre os mortos. Foi necessário um sé-
culo para a canonização da arte; acampa extraviada
le^urgiu pedestal, quasi ara.
CamOes e Bocage vão reapparecer nas suas cidades
uataes; d'estavez, de bronze para a eternidade, a domi-
narem com toda a sua grandeza intellectual em meio
de praça-; do seo nome; emquanto as Musas do drama
e da comédia os offerecem aos applausos das turbas,
Camões pelos meus exforços, Bocage pelo ingenho
prestigioso de Mendes Leal, o príncipe do nosso
theatro.
Um génio poético do novo mundo, inspirado cantor
d'aquellas terras, ainda nossas pela fraternidade, d'a-
quelle paiz único do ouro e do sol, dos diamantes, da
poesia e da mocidade, Alvares de Azevedo, dera-nos o
-exemplo ^pobre moço, tão em flor cortado á glória do
10 XVI
Brazil e do nosso commiim e opuleiítíssinio idioma!);
carpira o fim misérrimo de Bocage, em páginas digna.^
do seo assumpto, mostrando-nos por dentro e ao natu-
ral o coração vulcânico, o espirito sublimemente de-
lirante doeste filho pródiíjo das Musas, que ainda melo-
dioso ao expirar, como a ii\e do Caistro, suspirava o
pesaroso gemido que a ninguém esqueceu :
« Meo ser evaporei na lida insana
« do tropel das paixOes qué me arrastava.
Surja pois, muito nas boas horas, no melhor Fórum
de Setúbal, ao som dos vivas de Portugal e do Brazil,
essa projectada rotunda, occupada por Bocage, e domi-
nada da Musa lyrica, podendo-se intalhar no pedestal
aquelle verso delle, então prophecia, hoje história :
<( Zoilos, tremei I Posteridade, és minha !
Todos os bons ingenhos portnguezes, hao-de sem
falta acudir com os seos cantos a essa inauguração
expiatória, o que será para Elmano terceiro monu-
mento: o primeiro jà o havia elle mesmo levantado a
si com os seos versos de ouro.
D'aqui me estou eu deliciando a antever essa festa
nacional ! Toda a vossa cidade de gala; a capital visi-
tando-acom inveja; a praça alcatifada de loiírob e mur-
tas; a música alvoroçando ainda mais os coracOes; os
edifícios colgados de púrpura: os representantes do
município em toda a pompa official, e, a convite d*elle,
as damas, indo coroar de flores o seo escravo, agora rei.
Quanto nao seria para desejíir, que esta emblemá-
tica cerimónia, da coroação do talento pela formosura^
se renovasse perpetuamente de anuo a anuo, no dia do
nascimento do poeta, ou no do seo renascimento em
estátua!
Confessemos que n"estas cousas tao sympàthicas, e
tao fáceis de si que até sao gratuitas, vai alguma
cousa mais que mero regosijo popular; vai estimulo
enérgico a muito ingenho. A glória também é conta-
giosa; nao o haviam de ser só as outras febres.
Por este lado o monumento, que a principio nos pa-
receria estéril, já cessa de o ser; e a Posteridade alguma
cousa porventura confessará que lhe devíMi. quando
der de século a século o seo balanço.
Senhores, vós tendes várias outraíi praças; vejamos
se se evocam do nada futuros grandes homens, para aí>
occuparem com a sua effigie.
XVÍ 11
Setúbal recebeu da natureza boa bençam de poesia »
Já tivera antes de Bocage o vosso Va^co Mausinbo de
Quebedo, o pregoeiro épico do Affonso Africano; e
Thomaz António dos Santos e Silva, o infeliz carpidor
de Lésbia, génio inculto, que o estudo, e um pouca
menos de adversidade houveram podido sublimar.
Quem sabe quantos outros eguaes ou maiores não po-
derá ainda crear um torrão, pela amenidade, pelo céo,
e pelas circumvisinhanças, tao inspirativo: com a
Arrábida religiosa a um lado, vestida dos seos rosma-
ninhos e alecrins; e Palmella, a devanear do seo castel-
lo proêsas guerreiras d'outras edades;d'outro ladoTroya,
a romana antiga, que para alli se jaz; e o Oceano, a
meditação immensa; torrão das laranjeiras noivas^
como a Itália; e por baixo, thesouro de jaspes e mármo-
res, resguardados para estátuas de seos filhos. Solo
providencialmente prendado de tudo, e d'onde, ainda
ha dous dias, um insigne poeta dinamarquez, o nosso
amigo Andersen, estanciando ahi depois de percorrida
a Europa, me escrevia quê tinha incontrado ao cabo o
Paraízo Terreal.
Se eu não temesse offeuder modéstias que venero,
citaria exemplo contemporâneo, de que a terra que deu
Bocage nao ficou por isso exhausta de poesia.
Mas vol:"mos ao nosso Bocage.. Nao o conheci eu
pessoalmente. Despedia-se elle do mundo quando eu
apenas o intrava; mas conheci e tractei depois a alguns
dos que o haviam admirado, e que d'elle me falavam,
como se na véspera o tivessem applaudido. Eram estes
po6ca.s, seos cortezaos, nada menos que Vicente Pedro
Nola.sco da Cunha, João Vicente Pimentel Maldonado,
Morgado de Assentiz, D. Gastão Fausto da Camará Coi-
tinho, Belchior Manoel Curvo Semmedo Torres de
Sequeira, José Ni^^oláo de Massuelos Pinto, José Agos-
tinho de Macedo, e duas poetisas: Condessa de Oyen-
hausen, Marqueza d'Alorna, e D. Anna Pereira Mare-
cos, a cada uma das quaes dedicou um dos seos tomos
poéticos, e o coração também, segundo é fama.
Toda essa constellação poética já lá vai sumida no
occaso. D'entre est^s nove ingenhos não vulgares, não
houve um, sem exceptuar o Padre Macedo, flagel-
.lado com a mais tremenda e memorável das sáty-
ras bocagianas, que me não confirmasse o que eu ou-
vira a meo próprio pae, não poeta, porém juiz muito
competente emcou<as litterárias: — que o improvisador
12 XVI
Elniaao fora ainda muito maior na facilidade e felíci-
dade da improvisação, que nos seos versos esmerados
para a luz pública. Como poeta, poder&o os diversos
gostos contrapôr-lhe um ou outro rival; como repen-
tista, nenhum. Eis ahi um novo jus ao monumento.
Vão longe aquelles dias dos tão afamados oiteiros
poéticos de Portugal; jà também agonizavam quando os
«u alcancei; mas eram donosa occupação e bom esti-
mulo de ingenhos, emquanto a juventude era juven-
tude, e a politica nos não tinha a todos e de todo des-
salgado ; mas quem nos diz que ao pé do vosso Bocage
resuscitado, não poderiam, se os evocásseis vós, re-
suscitar egualmente aquelles certames nocturnos dos
ingenhos, no dia, ou no tríduo do anniversârio do
monumento ?
E se resuscitassem, não seria esse um facto bem fe-
cundo? não sabemos todos nós o que a história ainda
Urlo esqueceu das luctas de poetas e de poetizas na 6ré-
<;ia, na pátria do bom gosto e dos eternos exemplos?
Quando repomos em uso e era honra, sob o nome de
regatas, as naumàchias festivas dos Troyanos, quaes
Virgílio nol-as descreveu; quando imitámos as apostas
dos cavallos voadores de Elide; quando se vai palmear
a ferocidade sanguinosa do Circo romano, em batalhas
de feras com homens, ou antes d'homens-feras com
animaes forçados a infurecer-se ; porque motivo só
desdenharemos da sábia antiguidade o que se refere
á cultura do ingenho, o que tende a amenizar a convi-
vência, a polir os costumes, a approximar e reunir os
sexos no convívio dos gostos delicados? Que lustre
não seria para Setúbal, a Bocagiana, instaurar ella
esse estádio, em memória do seo filho ! Embora o não
viesse a conseguir, já o tental-o a innobrecôra; nós di-
ríamos no nosso poucochinho: — os jogo^ setubalenses !
como a Grécia blazonava os seos jogos olyrapicos e os
pythicos, a que se cria presidir o mesmo Apollo !
Os ânuos vao frios, não o iguor:) ; mas que mal faria
tentar-se ainda o bello, o gracioso, o admirável ?
A' fé que não valia, nem vale ainda hoje, a aldeia
franceza de Salency , o que ha de valer, e o que já vale
a vossa cidade tão bella e tão populosa ; e todavia um
grave prelado, um velho, despegado do mundo, e que
mereceu canonisado, S. Medardo, instituiu lá, e lo-
grou-se de vêr pegada à festa annual da Roseira, de-
XVI 13
pois transplantada para tantas outras partes ; e que^
extirpada passageiramente pelo tufão revolucionário,
tornou a pegar, e ainda hoje se conserva. Que ricos
fructos moraes, e em que larga cópia nao tem produzido
aquella coroa de rosas, trançada para a meça mais
virtuosa pelo risonho velho, poético e innocente Ana-
creonte da caridade! Tentae vós também, e jà pode ser
que Deus vos abençoará a tentativa, e que algum dia
ainda, em recompensa d'esses esforços, vos permittirà
levantar, em face do monumento de Bocage, outro da
civilizaç&o: a eschola, o asylo, como vós e eu os cubi-
cámos.
Sao horas de cerrar t&p larga conversação de amigo
com amigos ( perdida não espero eu que ella o fique
totalmente); Por agora despeço-me de vós, formando
votos para que o êxito corresponda &s vossas diligencias,,
e d'aqui a pouco se esteja celebrando na vossa terra, com
a assistência de todos os poetas portugueses, o jubilêo
de Bocage.
Setúbal é já uma linda cidade: d'ahi avante, po-
derá chamar-se uma cidade famosa, porque também de
Sulmona, que de certo a não valia^ lá dizia o Bocage
romano, Ovídio: — <c Muralhas da minha terra, não sois-
muito, não ; mas quando um viandante vos avistar de
longe, dirá: — Terra que tamanho poeta creaste, embora
não abarques largo território, chamar-te-hei Grande! »
Permitti-me a honra de me assignar
O vosso
mais respeitoso e agradecido servo,
Lisboa 20 de março de 1867.
A. F. DB Castilho.
Illm. o EjLXKtm Sr. Consellielro António
Felioiano de Oastillxo.
Novos laços de gratidão prendem hoje a V. Ex. o
povo de Setúbal.
Em nome dos habitantes d*esta cidade, que nos hon-
ramos de representar, agradecemos do coração as be-
névolas expressões, que V. Ex. se dignou de nos
dirigir na sua excellente e obsequiosa carta.
■-H-U - J
U XVI
As deraonstraçõed com que este povo de >9java re-
ceber as diatinctas illustraçoes, que vinhain visitar
esta terra, representavam apenas uma imperfeita ma-
nifestação de respeitosa komenagem ao primeiro poe-
ta do áeo paiz e um singelo tributo de sincera grati-
<iílo ao homem benemérito, que tanto se tem desvela-
do a bem do povo, praparando-lhe pela instrucçao
um melhor futuro. N'essa occasiao tornava mais vivo
o enthusiasmc dos filhos d'esta terra a lembrança dos
motivos que tinham determinado a visita de tao il-
lustres hóspedes: honrar a memoria de um géíiio fe-
cundo, de que Setúbal se orgulha de haver sido berço.
E' explendida a maneira com que V. Ex. expressa
os seos elevados conceitos : será modesta a nossa res-
posta, porque modestos «ao os nossos recursos. E'
justo que mais dê quem mais possue, e a V. Ex., a
quem a natureza concedeu com mao pródiga os altos
•dotes da intelligencia e do coração, cal>e a vantagem
e a glória de Doder dar muito mais do que pôde re-
•ceber.
Seja pois lhano e cordial o nosso agradecimento, e
valha pela sinceridade com (jue é offerecido o que nao
pôde valer pela riqueza das imagens nem pela pompa
do estylo.
Aquella carta, Exm. Sr. , devora ser lida em assem-
bléa aonde concorresse o maior número possível dos
conternlneos de Bocage, se nao fosse ainda mais útil
dal-a á estampa e distribuil-a com profusão, para que
fique bem gravada na intelligencia o no coração de
todos, e seja um poderoso talisman que avive mais e
mais n'este povo o amor ás instituições humanitárias,
de que V. Ex. tem sido sempre incançavel propu-
gnador.
Como complemento de tao assignalados favores, ou-
sámos pedir qíie V. Ex. consinta que as brilhantes
páginas d^iquella carta sejam divulgadas pela impren-
sa e cheguem assim ao conhecimento de innúmeros
indivíduos, anciosos de admirar mais uma vez o génio
de V. Ex. e inthesourar tao preciosa jóia litteÃria.
Sala das sessões da Camará Municipal de Setúbal,
eixí "21 de março de 1867. — António Rodrigues iíanit-
to. — José de Groot Pombo, — Francisco Alberto dos San-^
tos, — Manoel José Vieira Novaes. — Martinho da Sitva
Mendes. — Joa/juim Pedro de Assumpção Rasteiro,
XVI 15
III ms. e e:x:«$. ^n.r.9. Presidente e Vereadores d(t
Oamara Municipal do S9otul>al.
Segunda ve-/- me confundem V. Exs. com a sua
generosidade Ambicionar honras, é um sentimento
natural, muito lícito, e muito proveitoso ; mas quando
AS honras vem superiores ao merecimento, sao co-
roas que miis depressa esmagam do que ingran-
decem.
Dos três louvores que V. Exs. me libríralisam, des-
•cabem -me dous, seja-me permittido confessal-o ; um,
é o que recaí excessivo sobre a minha poesia; o outro,
o que me converte em mérito, o que é simples acto
de justiça : o Je.^ejo em que eu accompanho a meo
irtnao, e a V. Exs. mesmos, e creio que a todos os
portuguezes, de que se tributem a Bocage, mostras
solemues da gratidão pública pelos altos serviços que
«lie prestou à poesia nacional.
O terceiro louvor sim, que julgo nâo o ter desme-
recido, e é de todos o que mais e melhor me enche
e alegra o coração. Sip, meos Senhores ; creio como
vós, e firmemente o creio, que nao vim inútil ao mundo,
pois que alumiei, arejei, ajardinei, e tornei attractiva,
philosóphica e fecunda a eschola primária, pia baptis-
mal única onde os povos se podem regenerar.
Todos os meos outros livros pouco valem; o meo
méthodo de ensino, fácil, rápido, e aprazível, des-
«oraprehendido, mal apreciado por muitos, e por quasi
todos, esse é que é a minha primeira e última obra.
Se os mortos sabem o que se passa na humanidade,
algum dia, d'aqui a quantos aunos nao scei, ainda me
heide deliciar de ouvir isto aos nossos vindouros.
Também eu fiz uns Lusíadas', só uns: foi esta carta
<ie alforria da puerícia. Nao cantei os portuguezes
passados, mas forcejei por que houvesse portuguezes
futuros, o que nao vale menos, se è que nao vale mais.
A Camões, as palmas de cantor de génio; a mim
bastam-me, e prefiro-os, os emboras de trabalhador
4)bscuro mas útil; de amigo provado das creanças,
de suas mães, e da terra em que me creei.
Com a maior gratidão pois beijo a V. Exs. as
mãos. que me assignam este documento, de que nao
trabalhei totalmente para ingratos; este testimunho de
16 XVI
que ainda ha homens-humanos nos nossos municí-
pios.
Pelo que respeita à publicação da minha prece-
dente carta, podem V. Exs. de lhes apraz, confe-
rir-me essa nova honra; como nessas paginas eu não
depositei sen&o o de que estava convencido, e o qua-
se me figurava, e ainda se me figuro, de algum prés-
timo, até desejo e agradeço que ellas vão conversar
com maior número de espíritos.
Podem pois V. Exs. mandal-as dar & estampa^
assim como estas, assim como todas quantas por ven-
tura eu haja de dirigir a V. Exs. Os obreiros d»
civilisaç&o gostamos de trabalhar ao grande sol.
Com a maior satisfacçfto me assigno
De V. Exs.
respeitoso e agradecidíssimo servo
Lisboa, 29 de março de 1867,
A. F. DK Castilho.
l^p. e Lith.— IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro, 146.£
QUESTÕES DO DIA
isr. 17
RIO DE JANEIRO 24 DE OCTUBRO DE ISTfl.
Vende-se em casa dos Srs E. & H. Laemmert. — Praça da Constituição,
Loja do canto.— Livraria Académica, Rua de S. José n. 119— Largo do
Paço n. C— Rua de Gonçalves Dias n. 79.. — Preço 200 reis
A r*epi3Ll>lloa federativa.
Se n'esta capital, ou em alguma outra das provín-
cias do Brazil, um gruppo de indivíduos tentasse oi^a-
nizar-se em partido do absolutismo^ creando uma folha,
que servisse de orgam de suas doctrinas, e no frontis-
pício do logar das suas palestras fizesse inscrever este
motto Club absolutista ^ esse pretenso partido se col-
locaria fora do terreno legal, como incitador contra a
ordem política existente ; mas estaria tanto no seo di-
reilo^ como o gruppo, que actualmente aqui se ostenta
com essa publicidade, como partido republicano.
Jà em outro artigo dicemos que datam dos primeiros
annos da nossa existência como nação independente as
aspirações republicanas de uma minoria, que nunca
poude tornar-se verdadeiro partido , porque nunca ob-
teve fazer proselytismo que lhe desse no paiz o apoio
que fortalece os partidos legítimos.
. A ídéa de federação das províncias sob a forma repu-
blicana j& outr'ora tentou, e com muito esforço, fazer
fortuna no Brazil, tanto no primeiro reinado, como
depois da abdicação ; mas, assim como nao vingou a
idéa republicana, por occasiao da independência, nos
ânimos dos nossos grandes homens, que prepararam e
eíFectuaram esse grande accontecimento, dispensando
todo o seo efficaz apoio ao princípio monàrchico, por
ser aquelle que assegurava a unidacie e a liberdade po-
litica do paiz, sem os riscos da dissoluç&o, que seria
consequente com a forma republicana, assim tam-
bém o mesmo bom senso predominou entre os homens
que mais influíram na situaçfto que se seguiu ao 7 de
abril, na qual tivera a mais decidida influencia o par-
tido liberal, dirigido por homens t&o eminentes, como
Paula Souza, Vergueiro, Lino Coutinho, Paula Araújo,
2 XVII
Limpo de Abreo, Costa Carvalho, Feijó, Evaristo, Vas-
concellos, Alencar, e tantos outros.
Sociedades federaes com sessões públicas, onde s®
discutia, no tom mais expressivo, a federação das pro"
vindas^ existiam em varias capitães ; as idéas n'esse
sentido procuravam obter triumpho ; seos jornalistas
as defendiam com calor aqui, e em todos os ponctos do
império, onde a politica tinha seos orgams; mas os
homens políticos, que então dirigiam a sociedade brazi-
leira (e eram elles, como jâ observámos, os liberaes no-
táveis e insuspeitos ) reconheceram que, sim, convinha
dar mais expansão politica e administrativa ás provín-
cias, mas nao federal-afi sob a forma republicana,
como queriam os exaltados.
Foi assim qiie nasceu o acto addicional, nao obstante
a opinião de alguns liberaes muito circumspectos, que
d'este modo se enunciavam : « Da constituído, nem
uma vírgula deve mudár-se : tal como é, satisfaz. O
que falta é a boa prática do governo constitucional
que possuímos; a educação política; é a instrucçao do
povo; é o verdadeiro patriotismo, a leal coadjuvação,
a firmeza e a dignidade dos homens; e leis adminis-
trativas e regulamentares, que melhorem conveniente-
mente os serviços públicos, sirvam de pinhor á liber-
dade individual, e dêem mais vida ás administrações
provinciaes: mas tudo isto se pótíe obter nos limites da
constituição.»
O acto addicional foi discutido e votado sob o in-
fluxo daá impressões e opiniões de tempo. Nao obstante
as sábias e prudentes inspirações dos liberaes mode-
rados, nao puderam estes deixar de acceder a algumas
disposições, de ordem regulamentar, que nao tardaram
em manifestar-se, na prática, repugnantes com a bõa
ordem do governo, como confessaram liberaes cons-
cienciosos.
No emtanto as províncias, ás quaes a constituição
concedera seos conselhos de governo, que nao as satis-
faziam, tiveram, pelo acto addicional, assembléaa le-
gislativas, incarregadas de proverem ás suas necessi-
dades locaes e económicas, em uma esphera sufliciente
para affiançar o desinvolvimento de sua prospe-
ridade.
Grande conquista foi essa ; e a exj)eriencia tem de-
JXVII 3
xnonstrado que o sábio exercício doeste direito tem
.sido para o império, em geral, um grande beneficio.
Mas os abusos, que se foram dando no modo de se-
rem desinvolvidas em algumas províncias várias dis-
posições do acto addicional, abus<vs sentidos desde a
primeira regência eleita de conformidade com o mes-
mo acto, occasionaram a necessidade indeclinável da
lei interpretativa e regulamentar, que tao cautelosa e
i3abiamente provê sobre esses abusos.
Foi uma necessidade de governo, no interesse da
ordem pública, e do regimen constitucional em sua
marcha, convenieote ao interesse da communidade, no
sentido administrativo. Isto em nada offendeu o grande
principio da autonomia das províncias em sua vida
intima; e o mais que, no sentido d^ facilidade admi-
nistrativa, em proveito dos povos, é lícito conceder ás
províncias, sem infraquecimento dos elos, que, no in-
teresse commum, devem sempre ligar a nação brasi-
leira, e manter a harmonia e a força indispensável do
.gx>vêmo nacional, isso, cremos firmemente, que, depen-
dendo somente de actos administrativos nas attribui-
çoes do executivo, ou de leis regulamentares, será de-
cretado, sem commoçOes politicas, sem penurbaç^lo da
ordem pública; por isso pugnem os partidos !
A república federativa uilo pode convir ao Brazil ;
seria o anniquilamento d'este grande paiz, porque traria
-em si o gérmen fatal das luctas civis incarniçadas,
(^ue sao usuaes e congéneres doesta forma de guvêrno,
onde a auctoridade pública está sempre sob a influen-
cia directíi das paixões dos partidos.
Este grande todo, este império, que já excita o res-
peito dos outros povos, e que, de annopara anuo, vai
marchando para o seo ingrandecimento, nao territo-
rial, porque nSo o necessita, mas económico, indus-
trial, e moral, e d'ora em deante mais ainda sob o bené-
fico influxo da lei de 28 de septembro, seria despeda-
çado, e sentiria todos os males deploráveis doesse frac-
cionamento, so por desgraça se tornasse república.
Nos tempos que correm, t*3m-se reconhecido que a
unidade dos povos em respeitáveis corpos de naçílo è
uma necessidaae, a bem dos mesmos povos.
Vemos a Itália, (que nunca desde o império romano
existira politicamente unida, e que por largos séculos
fora dividida em diversos estados, ou republicanos, ou
4 XVII
mon&rchicos), completar dos nossos dias a sua unidade-
sob um só regimen político, e muito concorrendo para
esse grande acontecimento os liberaes de todos os ma-
tizeSf até os republicanos de Mazzini.
Vemos como a raça germânica, desde longos anno^
aspirando â t^ua unidade politica, tem reconstruído o-
grande império germânico. E nem se diga que é so-
mente fructo da ambição do novo Imperador, da poli*
tica do seo chanceller, da força dos seos exércitos, e
perícia dos seos generaes.
Nfto : o rei Guilherme da Prússia nfto poderia ter
obtido da Allemanha a força da opinião pública, que a
accompanhou e accompanha, abafando quasi a auto-
nomia política, e a influencia dos chefes dos estados-
secundários, so os allemaes dos vários Estados que
hoje constituem partes integrantes do novo império,
nao vissem no rei, hoje imperador, o representante do
grande princípio da unidade germânica; e é esse senti-
mento, que parece actuar sobre os 8 milhões de alle-
mães, que fazem parte do império austríaco, por modo
que mantém em sobresalto o chefe d'esse império.
E' que os povos, assim, manifestam justo, e natu-
ral orgulhe de formarem uma grande e respeitável
nacionalidade, por bem da defeza, e dignidade com-
mum; porque na unifto é que está o desinvolvimento
das forças,, e dos interesses communs.
Se inçáramos outro poncto da Europa, vemos a po-
derosa Inglaterra zelando com o maior patriotismo a
sua unidade política, nao poupando esforços para man-
ter a sua auctoridade ra Irlanda, e velando pela sua
grandeza, para nao descer do pedestal em que se acha
coUocada.
Se da Europa volvemos olhos para o Continente
Americano, temos muitas licçOespara aproveitar, mui-
tos escolhos para evitar.
Na grande república do Norte vemos, sim,o governo-
republicano federativo; mas em que condições ? — A
unidade nacional é mantida com vigor tal por parte do
governo central, que, para defendel-a, se empenhou
n'essa guerra colossal, espanto do mundo inteiro. Sna-
força venceu, anniquillando a nova confederação dos
Estados do Sul; e para domar e conter os vencidos^
nem o governo federal, nem o congresso trepidarant
jio emprego dos meios repressivos.
XVII 5
Intendeu-se que,fraccionaado-se, a grande república
desceria das alturas a que se tem elevado no mundo,
como nação una. £ é um grande problema que ao
futuro pertence resolver, se, com a sua actual forma
•de governo, aquelle grande paiz poderá permanecer
por longos annos formando uma só nação.
Estendendo as vistas sobre os paizes americanos, da
língua e raça hispanhola, nada vemos oue invejar
de sua forma de governo: nem é n'elles elemento de
prosperidade e paz a república federativa onde ella
existe, como n&o o é no geral a república unitária.
E em qual dos paizes a que nos referimos, dotados
de governo republicano, existem melhores fianças de
liberdade individual e política, do que noBrKzil?
Em qual d'esses paizes seria tolerado que circulasse
livremente uma folha política, pregando a monarchia?
e que um partido escrevesse na frente da casa de suas
reuniões: Club mondrchicol
Aqui prégam-se abertamente as doctrinas mais sub-
versivas da nossa forma de governo, quer na imprensa,
quer em conferencias públicas, e a auctoridade nao op-
põe o mcuor embaraço !... Veja-se bem como é inimiga
da liberdade esta monarchia I...
Em nossa opinião, a auctoridade procede com su-
bido critério. Tolera esses desabafos de ambições
incontinentes e despeitadas da parte de uns, é meros
sonhos da parte de outros^ ávidos de novidades; mas
tolera atè o poncto, em que nSo sejam verdadeiro em-
baraço para a marcha regular do governo constituído
essas prédicas á revolução.
Também, è certo, essas aspirações republicanas nao
couseguem exercer influencia, porque o bom-senso
público sabe apreciaUas e reconhece que sUas nSo tem
razão de se?.
Querem os innovadores levar o paiz do conhecido
para o desconhecido, pretendendo que a nação par-
ticipe, jurando em suas palavras, não só de suas vi-
sões, mas egualmente de suas paixões.
Não, não é a actual forma de governo, que nos pre-
judica; mas sim o desregramento das ambições de to-
dos quantos entre nós querem ser governo, sem saberem
4*iiperar que Jhes caiba a vez.
Isso, quanto a uns: quanto a outros, é a emprego-
mania que os impelle a desejarem sempre o transtorno
6 xvlr
do que existe, esperançados em serem aquinhoados com.
rendoso emprego em uma nova ordam de cousas.
A educação da nossa mocidade dá logar a isso: no*
geral todos querem que seos filhos cursem estudos su-
periores; e depois? O que ha de ser do bacharel, ou do
doctor? — E' um pretendente; e pretendente mal succe-
dido é, em geral, um gritador contra o go/êrno.
Nos paizes constituidos desde séculos, ha sempre me-
lhoramentos que operar na ordem administrativa: e se
n'esses paizes assim é, se vemos a Inglaterra, que se
nos apresenta como modelo do governo livre, sempre
trabalnando em melhorar a sua legislação em ponctos
muito importantes, como ainda agora no sentido elei-
toral relativamente ao escrutínio secreto, e no iní^e-
rêsse da melhor organização do seo exército, e em
outras providencias tendentes aos interessais públicos,
que muito é que entre nós haja ainda tanto que fazer
no interesse d'este grande paiz ?
' Mas, cumpre repetir, isto não se conseguirá conve-
nientemente, senão pelos meios regulares. Não é insi-
nuando idéas demolidoras da unidade brazileira, não
é procurando plantar a desconfiança entre o governo e
o paiz, não é promovendo nos espíritos má vontade
contra a monarcaia constitucional representativa, que
poderemos adeantar-nos na carreira do progresso, da
civilização, e da riqueza; não será por tal guisa que
• seremos fortes; mas sim tendo juízo... juizo... sempre
juízo.
Junius.
Decima ter*celx*a carta
DO ROCEIRO CINCINNATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Rio, 15 de octubro de 1871.
Querido amigo.
Não Fomos nada neste mundo. Homem propOe, e
ás vezes o díabj díspoe ; é porque este bípede hu-
mano não é mais que uma molécula, um corpúsculo,
um poncto, um nonada, emfim um átomo embrulhado
n'uma dobra do infinito.
Communicara-te eu a tenção de pôr termo, com
o n. 15 das Questões do dta, á minha correspondência
comtigo, no tocante a Senio e C,*: Não scei dar em
XVII 7
•
nomem morto, e durante 3 mezes nflo ouvi uma só
voz defendendo a quem, até ha pouco, vivia e cam-
peava, e£'VÍ de uma reputação pânica. Daniel aflELr-
ma que certo rei da Babylónia ( como outro arvorado
em rei de uma Babylónia linguistica) destruiu Jerusa-
lém ( como outro destruiria, se podesse, a Jerusalém
das lettras ), errou 7 annos na forma de um animal
feroz ( isso agora é que nao ) reduziu um povo in-
teiro à escravidão (como est^outro, menos feliz no
êxito de suas aspirações, ambicionava ), e levou o
seo poder pessoal ao poncto de decretar que o ado-
rassem em estátua, a qual figurava umas cousas por
nhi além, mas por desgraça tinha os pés de barro,
t/onde resultou que um dia, como era de razão, veiu
tcda aquella caraminhola a terra. Historias velhas !
Voltando á vacca fria, repito que estava eu no
fim d*esta inglória tarefa, como quem em direito hou-
vess? chegado aos 29 anno.s e 11 mezes; quando ago-
ra iiopinadamente vejo surgir o adversário, inter-
romptndo a prescripção, á última das horas.
E' ocaso, que, hoje me trouxe um amigo o Diário
do Rio^ onde, sob o título de Palestras, c a rubrica
de Pubó.caçôts a fedido^ apparece um longo escripto,
que prouette dar-me a vantagem e o gáudio de
coníinuar, denunciando duas intenções: ai.' de in-
deusar o «r. Conselheiro José de AÍencar, ou eleval-o
até o incaiapitar no zenith; a 2.' de me subverter
pelo chão ibaixo, até me arremeçar ao nadir.
E por coiiseguintemuda o negócio de figura. Dou-
me por citau); está interrompida a prescripçflo, e co-
meçam novos iOannos; rira bieii^ qui rira le dernier,
0^ nosso amigo (a quem chamarei Ticio ) vinha
muito arrenegâo, e queria afinar-me pelo seu dia-
pasão ; sublinhiva-me, com a voz, as palavras e phra-
ses insultuosas, de que o artigo exclusivamente se
compõe, e espmtava-se do meo sangue de barata, e
da placidez con que eu, á sua ladainha e no logar
do ora pro nofcwretorquia somente com estes palavras:
.'Vôo faz ynal ! E como a minha memória nfio é^ das
peores, e o diálojo está ainda fresquinho, quero dar-te
uma idéa d'elle. ^il- o :
Ticio ( depois 0. haver lido com emphase ) — Que é
isso, sancto Deus Pois, em vez de tomares isto com
ira, chólera, furo^ iracúndia, raiva, agastamento, e
8 XVII
assanho, satisfazendo a ambição do escriptor, continuas
a palitar os dentes, e a rir!
ciNCiNNATO. — Porque nao? Que ha hi que motive in-
dignação ou prejudique quem quer que seja ?
Ticio. — Ai, nao vês nada ? ! Olha que tudo isto as-
Í)ira a ser comtigo; e só uma alforreca ficaria indif-
erente a tamanhas insolências. Vae contando:!!...
Reptil que levantas pó — intromettido — rasteiro — es-
trangeiro pretencioso — especulador — merecedor de
desprêso profundo — philaucioso — audacioso chefe de
empreitada diffamatória — estrangeiro imprudente —
novo Sancho Pança — calúmnias e insultos, próprios
de quem os escreve, mas nao tem a precisa coragem
de assignal-os — lodo -^ o auct rde taes impropérios
está muito conhecido nesta corte, como homem— es-
criptor de tesoura— manipulador de almanaks— sabet-
ça inferrujada — o que só ha de seo. é mofo e bobr
— falador de cabinda — parlapatice — - parvure'las ! —
jogo dos disparates — parvoiçadas de farça — orelhido
dos que pastam a relva — rolho poetastro, mettid> em
um farrapo de toga romana-^ Cinciuuato, por .*ausa
da gafurinha — em Coimbra nao metteu o »iariz !
— o José..ú -^errabraz , que nascera taga*ella —
tenda de crítica — montador de pasquino, proílaman-
do-se um dos primeiros litteratos..,.
CiNC. — Deixa rabiar, homem! Sao válvilas, que
se abrem para a máchina nao estoirar. Ou v' dizer que
um suDjeito, chamado Pope (que, valha a verdade, nao
tinha das melhores línguas^ publicou um /olume; on-
de nada havia de sua lavra; compunha-^ exclusiva-
mente das affroutas, injúrias, impropéri)s, convicios,
calúmnias e coutumélias, com que, emíalta de argu-
mentos, o haviam frechado.
Tic— E depois'?
CiNC — E depois, ficou sendo tno Pope como d'antes.
Se bom ou máo era, tao bom ou tao raác ficou.
Tic. — Mas nao ves que isto é vingançt ?
CiNC. {rindo) — Vingança, i^^to? coladinho. Ora lè
aqui : A vingança é uma satisfacçao, qtie os homens
tomam diversamente, uns por modo ridículo, outros
por modo inhumano. Os Getas atiraíi settas ao sol,
auaudo se pno. Os Pygmêos movem guerra aos grous»
s Psyllos chamam a desafio os ventc^. Outros têm de-
safogado a sua ira com estocadas < punhaladas nos
XVII 9
<^adáveres de seos adversários morlos. Doestas dizia
Platão, que se parecem com o cao, que morde a pe-
<Lra que lhe chegou, e não na pessoa que com ella o
feriu. Ticio! deixa là, quem quer que seja, mordera
pedra, e morde tu este delicioso Havana.
Tic— ^uem quer que sejal Pois tu hesitas em dar
<o nome aos bois ?
CiNC. — E' cousa em que nem pensei, nem me im-
porta.
Tic. — Pois devia importar, attento um facto, de que
•eu tenho sciencia certa, mas que mesmo sem isso eu
iiouvera jurado, à simples leitura d'este escripto admi-
rável. A divinização de Senio é jobra do próprio Senio.
CiNC. — Tinha que ver! Então prestei eu mais atten-
•ção à tua leitura que tu mesmo. Olha aqui o que se diz
d'elle, e imagina se haveria no mundo homem tao... mo-
desto, que de si mesmo dicesse o seguinte : — « Brazi-
leiro illustre, como cidadão, político e litterato — » por
fortuna para nós (!) está tao altamente coUocado, que
Q&o iuxerga etc. — distincto par seos merecimentos —
As obras de Senio sao appreciadas em seo justo valor
pelos melhores talentos
Tic. — Tudo isso é a minha 1» prova ciroumstancial,
pois uao haveria facilmente segunda penna que, neste
estado de cousas, assim gabasse a noiva, senão a do
par» que a quer casar, ou a de quem nao quer deixar o
aeo crédito por maus alheias, embora saiba o que sig-
nifique louvor em bôcca jírópria. Tenho mais 738 pro-
vaci de que é esta... outra metamorphose de Protêo.
('ixc. — Deixa-te d'isso, nao me convences. Hade ser
producçio le algum dos muitos que se iiileiam, as-
sombram e pasmam das magnificências do intellecto
Senial: d^ algum dos s.íjs sábios -idrairadores.
Tic. — Na tua edaJe. é para admirar estares ainda
fom os beiços com que mamaste! A primeira regra do
jui:í instructor, é profundar o ca^o, e perguntar a si
mesmj: cai prodeií'] A q'iem approveita inthronizar
Senio no apogôo do solV a Senio. Quem, natural d'este
paiz, te brutalizou jamais d'esta forma *? ninguém, se-
não Senio. E o nnnio z^lo do seo despique deitou-o a
parJt^r : ainda se pnderia crer que fosse de algum
admirador o escripto, sendo menos immoderado; mas
tufm traç iria tantas finezas senio quem estivesse hy-
rophóbico de despeita V
10 XVII
CiNC. — Verdade seja que, assim como nunca maltra-
ctei ninguém n'esta terra, nunca fui maltractado; e ad-
miraria que hoje, sem provocação ( como aquella cota.
que Senio me fez demover dos meos hábitos e systema)
apparecesse segundo Ferrabraz, com grosserias da-
guerreotypadas das com que Senio me mimoseou.
Tic. — Qual segundo, nem meio segundo! São três
bravos distinctos e um só Senio verdadeiro.
CiNC. — Temos mystério*? Como é isso do três e um*?
Eu sou conhecedor de estylos e sinto zelos de quem se-
arvora em demasiado esperto: Quem sfio esses três
e um ?
Tic. — Então vds com zêlos^ porque eu ja dei com a
charada. Querem .... (N. B. Aqui seguia-se uma cousa
muito confusa, que eu, ja ílepois de composta, c-ortei.)
CiNC. — Falas-me por perlincafuzes, como diz o padre
Manoel Bernardes. Nao intrujo uma palavra.
Tic. — Eu te conto a história. N. 1 Senio dá os apon-
tamentos magistraes, recommcndando que nada appa-
reça por sua leira. N. 2. Salpica o discurso com
amenidades próprias do sertão. N. 3.... e fica esca-
broso.
CiNC. — Escabroso é todo esse imbróglio. Entretanto
esses, coitadinhos, não tem imputação. A questão única
é com o bafejador-mór, se' o ha.
Tic. — Ha; é Senio. Eu não digo que elle se não es-
conda por detraz de um ou dous cujos. Faze de conta
que eu assisto á tragédia Fausto, e que tu és o Valen-
tim, irmão da Margarida ; quem figura dar-:e a esto-
cada é o pobre Doctor (a juncta é de 3 doctores), mas
quem guia o braço e a catana é Mephistópheles.
CiNC.^Nãome rendo: tem paciência. Pois se fosse
obra de um luminar da imprensa^ teria similhante re-
dacção? Levaria duas columnas de typos a injuriar
somente, sem sombra de argumentação? Escreveria em
lingua tupinamba ? A propósito de alhos, tractaria de
bugalhos ?
Tic. — Saneia Sxmplicilas l Cada uma d'essas cousas
tem sua água no bico. Não ha alli nada, que não leve
£sgada uma intenção de esperteza, esactamente no gé-
nero dos hábitos Seniaes.
CiNX. — Nada, nada. Com que intenção thuribularia
Octaviano, Pedro Luiz (que nunca, nem um nem ou-
tro, que eu saiba, publicaram juizo algum favoravev
XVII 11
do escriptor Senio ), Luiz de Castro, Miizzio, Guima
raes, Serra, e Salvador de Mendonça, declarando-lhes
serem elles os melhores talentos d'esta terra, os pri-
meiros litteratos etc. ?
Tic. — Estás por conquistar. E' a hábil estratégia do
<i Ohda guardai Ah qui d'el-reique me escovam l » E' o
plano ja transparente, desde o tempo da mterpellaçao,
quando se pretendia angariar prosélytos, iusinuanda
que tu, na pessoa d'elle, injuriavas os characleres poli-
ticasy e quando pedia ao povo que te desse provas tan-
giveis da sua indignação.
CiNC. — Digo, com a mao na consciência, que
tenho a mais profunda convicção de que todos esses-
escriptores ahi invocados poderão reconhecer em Senio
os dotes que nem mesmo a sua iniustiça me fará ne-
gar-lhe ; mas de que nem um d'elles deixará de con-
cordar na procedência das censuras politicas e litterá-
rias, que Semprónio e eu lhe temos íeito.
Tic— Forte dúvida! Aquillo foi uma rede de
arrastar ; se nao pescou haleia nem mero, sempre pes-
cará algum bagre ou siry.
CiNC. — E para que é que (tractando-se de um ya-
pehicho tão desprezível como diz que .^-ao as Questões do
dia) vem á baila outra vez a questão dos estrangeires,
e da prohibiçao de escreverem ou pensarem sobre pes-
soas ou assumptos nacionaes ?
Tic. — E' outra these do discurso interpellador
(matéria que já tractaste irrespondivelmente), e que
apenas serve para confirmar que é a mesma pessoa, a
que em ambos os legares echôa as mesmas idéas.
CiNC. — Mas imaginando-me portuguez, porque
fac elle agora tantas zumbaias a portuguezes, con-
demnando-me a mim como precito, e insinuando que
pôde a minha insignificante voz produzir cataclismos
nas relações internacionaes ?
Tic. — Tem bem que ver ! « Oh da guarda, ah qui
(íel-rei^ que me escovamly> Viu que nao achou écho em
parlamento; viu que o nao achou na imprensa: tem
certeza de que o nao achará nos nomes illustres inten-
cionalmente implorados ; bate a outra porta para que
lhe acudam, e quer ver se encontra em membros de
uma nacionalidade respeitável, quem te induza a dei-
xal-o em socêgo, ou quem partage os preclaros inte-
rêsses da eua própria conveniência Q'elle.
12 XVII
CiNC. — E será tainbem para isso que invoca uns
imaginários brios nacionaes, que...
Tic. — Certamente, é o afogado deitando a unha
ti quanta palha avista. U Brazil é Senio I Senio é o
Brazil ! Quem o não proclama escriptor de trus^ poli-
tico de maço e mona, vilipendia a todos os brazileiros,
rebaixa o Império da Sancta Cruz. Ora olha: — «O
^pirito nacional deve incher-se de indignação » — a
appreciaçflo de um romancista é « um negócio domés-
tico )) — (( os brazileiros illustrados... têm susceptibili-
dades nacionaes » — uo zelo é legitimo, nós o sentimos,
etc, etc.» Nao estás ahi vendo outra vez o fi Oh da
guarda, meo povo / » *? Repetição das provas tangiveis^
da interpellaçao.
ciNC. — Realmente jà lhe vou achando seo furo;
mas o estylo...
TIC. — E' elle, sem tirar nem pôr, no pejasamento e
na forma.
E se nao, repara bem !
Viste-o, na interpellaçao, estomagado por imaginar
que tu ganhasses muito dinheiro ( idéa fixa como a do
pessoal) '? Aqui o tens!! «o meo dinheiro em garatujas;
isso é para os que vivem d^ellas, e de tudo fazem
especulação &» E* a historia cios assoldudados, — Viste-o,
em quantas occasiOes se lhe deparam, vulpis ad uvam^
injuriar os clássicos? Aqui o tens, repetindo as suas
exprobrações aos pernadas ds longo fôlego^ que deixam
a gente sem fala, e mais cousas assim. — Viste-o, na
interpellaçao, dizendo que seos adversários (mercê de
Deus ) nao eram da tua casta ? Aqui tens a mesma
idéa : Por tortuna para nós ( nós, é cousa atada ), está
tao altamente collocadoá.» — Visto-o, na mesma occa-
siao, responder da bua cáthedra ao Relator da Com-
missão especial, que lhe nao redarguia, porque lá da
sua altura nem escutar podia as suas palavras Y Aqui
tens a variante da mesma delicadeza, na phrase : »
que nem inxerga o pó que se levanta no rojar do
reptil.» — Viste-o, sempre no mesmo dia dizer que nuo
fazia caso de ti, ao passo que te tornava objecto
único do fiasco da sua interpellaçao ? Tal e qual agora,
quando repete que o silencio da imprensa tem pro-
vindo do desprêso profundo votado ás tuas publica-
ções, e logo te dedica em seguida duas columuas do a-
mabilidades, prom'?ttendo continuar. — Viste-o, em seo
XVII 1?
brilhante discurso, dando prova da sua cultura intel-
lectual, chamando a hilaridade da Camará para a ex-
pressão Vaga Vénus? Câ o apanhas com a bõcca na bo-
tija, voltando à carga, e em nota (para destacar
melhor) onde pergunta com graça de um urso a
dansar» Este Cupido será marido da Vénus vaga ?! —
Viste-o, na inteipellaçao, citar erradamente o Labeao,
de Horácio, e os alugadores d'iras, de Marcial ? Aqui
o tens agora, citando Juvenal erradamente, tanto nas
palavras como no pensamento.
ciNC. — ^Ja me convenceste ; mas pára ahi, que isso è
de mais. Pois é possivel que n'esse senhor, as citações-
falsas se convertessem n'nma espécie de mania ?
Tic. — Ohi se é ! Esta sátyra scei-a eu quasi toda de
cór; e no logar alludido, tractando dos Senios do seo
tempo, diz Juvenal (o que depois em distincto auctor
francez tem sido citado como original : Rien ne lui bat
sous la inamelle gaúche ):
... quod Iwva in parte mamilícB
NiL salit arcadico juveni;
e o nosso intelligente crítico imputa-lhe o contrário ! :
quod IdBva parte mamillcB salil arcadico juveni. Pergunta
o poeta, se acaso o coração doesse joven Arcádio (Vecto)
nfto pulsa; e imagina Senio que isto allude a uns burros
que pastavam a relva da Arcádia !
CiNC. — Basta, meo amigo, basta . No tempo de Pey-
ronnet não se exigiam tantas provas para um processo
de tendência, e....
Tic. — E ós neologismos estrambóticos, taes como
parvnrellasj e restantes moxinifadas, não estão dela*
tando o inventor do novo idioma? E os erros de Imgua-
gem, taes como o emprego do verbo carecer (sem ser na
significação de precisar-se cousa de que ha falta, e cuja
falta se sente) ; o gallicismo do partilhar, e do tim e
uma a torto e a direito ; o uso do mais ( plus )
quando o portuguez manda escrever o jd: e mil outras
absolutas paridades entre o estylo d'este aranzel e o de
Senio, deixa-te isso tudo no espirito sombra de diivida?
CiNC. — Uf I deixa, sim senhor.
Tic. — Então descobriste a quadratura do circulo.
CiNC— Contra esse exército de argumentos tenho um
canhão Krupp.
Tic. — Hade ser areado...
CiNc. — Invencivel. O Diário do Rio não publicava a
14 XVII
cousa pílos lindos olhos do eficriptor; custava dinheiro;
<linheiro! corda sensível* fibra d^alma...
Tic, — Pois é Krupp, sim senhor. Ainda nao ha muito
que eu vi aquelles mesmos typos d'aquelle mesmo
Diário porem pela rua da amargura aquelle mesmo
Senio que agora exaltam nos A pedidos. Sendo porem
certo que aquelles, como estes, prestantes escriptores
satisfizeram a sua espórtula, está direito. Do que eu
duvido muito é de que Senio pagasse taes publicações;
segredos da abelha, para desvendar os quaes tomara eu
interpellar... fosse a quem fosse....
CiNC. — A matéria está discutida; deixemos a autó-
psia do auctor. Lê por hi abaixo, e vê o que elle me as-
saca, limitando-te a tirar o chapéo ao que só forem
insultos descarnados.
TiG. — A ti, nada mais. Diz que te vai catar a tua 9*.
carta, mas nao caía nada^ e como catavento^ vira logo
para outra banda.
CiNC. —Ah, sim? Eatao mede-se com o amigo Sem-
próaio?
Tic. — Qual! n'essa nao cai elle. Em resposta ás 8 es-
magadoras cartas de Semprónio, faz-lhe uma careta,
chama-lhe um nome feio [arcádio) ^ e vira de rumo. E'
porque com pennas d' aquellas nao se brinca; e de
mai>,faltavam-lhe as muletas dos estrangeiros, das sus-
ceptibilidades, das nacionalidades, e do Oh da guarda!
CiNC. — Bom, bom; fecha ahi a catilinária.
Tic. — Nao. Procede de modo estupendo.* poe-sea
ladrar á lua. Investe contra a sombra de um dcs má-
ximos vultos do nosso idioma, e farta-se de dizer ba-
buzeiras acerca de quem os primeiros mestres procla-
mam todos seo mestre.
CiNC. — ilas porque carga d'àgua traz elle para a
discussão quem reside a duas mil léguas de distancia?
quem nem sequer sonha que exista similhante polé-
mica? quem até nunca imaginou que existisse uma
cousa, chamada Senio?
Tic. — E' outra esperteza transparente. Muito lido na
mythologia, occorreu-lhe a história de Castor e PoUux,
e dice coinsigo : Sou um azougue de esperteza ; vou
transviar o debate;vou mudar a guerra de ofFensiva em
defensiva; vou substituir o assumpto por outro; escapo-
XVII 15
me da arena, sem mais arranhões e estou salvo. Vamos
-a ver, se pega.
CiNC. — Nao pega, nao senhor. Seria até caso de fa-
zer a um raio soltar gargalhadas titânicas, ao surriar
fustigando as escarpas de um rochedo, se eu me pozesse
a defender António Feliciano de Castilho das inno-
<!en*es frechadas de um Senio. Pode delirar a tal resr-
peito quanto lhe apraza, que d'isso farei eu tanto caso
•como o público faz. Comigo é que eu pergunto; co-
migo, nao implica mais?
Tic. — Nao; mas promette continuar. Eu te trarei o
Diúiio.
CiNC. — Obrigado: até mais ver.
E foi-se. Ahi tens tu, meo amigo, o pè em que hoje
a controvérsia fica. E' outra variante. Como quem tem
muito medo ingrossa muito a voz, foi primeiro plano
aterrar me, fazer de papão, amiaçar-me de logar inac-
cessivel, e de quartel de saúde. D. Fr. António de
4jouveia, na sua Relação da Pérsia, fala de certos
Mouros-Medusas, que só com o olhar matam ; cha-
mara-se Cafatares; cà o nosso Cafatar quiz experi-
mentar em mim aquelle seo poder pessoal. Parece
<jue tinha perdido a virtude, por ingarrafado desde
muito tempo ( sao várias as possanças ingarrafadas,
que já nao illudem ninguém ). Tenta agora systema
novo, em que lhe nao prevejo mais fortuna ; e d'ahi,
veremos. Em todo o caso, descança. que andarás
sempre em dia com este curioso espectáculo. Prova-
velmente de lá, segundo o uso, nao virao^ mais do
que affrontas ; quanto a mim, guiar-me-hei sempre,
.sem que o máo exemplo me desmande, pelos preceitos
que tenho lido : só considerarei eita controvérsia como
liaialha litterária, onde a minha penna terá logar de
espada, a língua de mao, os livros de escudo, o racio-
cínio de poder.- meos tiros serão argumentas, e na
razão procurarei a victória.
Desculpa a prolixidade, e crê-me inalteravelmente
Teo velho amigo
ClNCINNATO.
16 xvir
Epigrammas e madrigaes, originaes ou imitados
A lei de H:ex*odles.
Ser livre o ventre da escrava
estatue lei brazileira !
Dizem que d'isto se aggrava
quem nfto tem eira nem beira ;
que a raça de Can sossobra
sem esperança de porto,
e a funesta causa sobra
no infanticídio, no aborto ;
que um ou outro fazendeiro
pensa n'isto e perde o somno t
n'isto, sim ; nfto no dinheiro
que suppõe minguar ao dono.
Mentira / calumnia I as vistas
sâo de alta moralidade ;
nem de humanos cafézistas
se desquita a caridade.
Pois, ricos e bons senhores,
escutae I ( um chrístão pede-o.)
Tendes contra esses horrores
em vossas mãos o remédio. *
A' vossa phijanthropia
por ventura nfto parece
que víctimas haveria
só quando algozes houvesse 7
(Juintilianò,
Apprcciaçâo critica, da inAOKMA , salda diy
toestunto do mco criado.
Diz um gngo, meo criado
( nue é rapaz, lido em gramroática,
e dOs pronomes tem prática,
que se adquire no Mercado )
« Que o tal romance Irracima
(que é um romance de truz )
é dos romances a... gemma...
porem... de ôvode... abestruz.ii
TkemUtorles.
Lilh.-lMrAKCIAL— Kua Sele de Fetcmbro, 146.
QUESTÕES DO DIA
isr. :
RIO DE JANEIRO 29 DE OCTUBRO DE 1871.
Vende-se em casa dos Srs. E. & H. Laemmert. — Praça da Constituição,
Loja do canto. — Livraria Académica, Rua de S. José d. 119— Largo do
Paço n. C. — Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis
Deelnxa q.uax*ta oar*t»
DO ROCEIRO CINCINNATO AO CiDADÃO FABRÍCIO
Rio (ie Janeiro, 17 de octubro de 1871.
Caro amigo.
Psssei hontem o dia em Andaraliy, e por isso nfto
pude palestrar comtigo. Sai agora d'aqui o Tício,
que me trouxe a 2*. e 3*. Palestra do V. ( ? ), publi-
cadas hontem e hoje.
Lemos junctos aquellas duas peças de architectura»
e discutimos largamente se era licito tomar em consi-
deração escríptos redigidos com formas tao baixas, que
é duvidoso merecerem resposta. Estas pugnas litterá-
rias tem seo quê do duello : acceitarias tu- um repto
para te bateres, nao com armas licitas, mas com pu-
nhados de lodo ? Eu jà nem me presto a copiar as pa-
lavras e expressões, que esta casta de adversários julga
admissiveis em taes polémicas ; embora seja simples
transcripçâo, ha certo pudor que veda reproduzir com
a nossa penna linguagem que só se aprende nas taber-
nas e nos açougues. O sal âttico doestes senhores, é sal
do cosinha, e do mais ordinário.
O idioma é em todos os géneros t&o opulento que
nada houvera mais fácil do que a uma insolência res-
ponder com dez insolências, a uma brutalidade com
cem brutalidades ; mas ainda quando o adversário
nada mereça, merece muito o público, e a nossa própria
dignidade.
Depois de lidos estes dous artigos, tinha um de três
arbítrios a tomar :
^2 XVIII
l®. Responder na mesma afinação, ou meio tom
acima. Seria seguir um. vergonhoso exemplo ; trans-
formar controvérsia em pugilato; desrespeitar o leitor e
a mim mesmo.
2°. Em vista de tamanho descomedimento, guardar
silencio, por nao julgar decente polémica de espécie al-
guma com taes contendores. Seria deixar campear im-
pune o desacerto boçal, e auctorizal-o a proclamar ir-
respondiveis os seos delírios.
3". Fechar olhos a tudo quanto em taes artigos re-
veste a forma brutal, extrahird'elles lealmente o que
aspire a foros de argumentação, e aquilatal-a, como se
fosse proferida com decência e compostura, e por
auem tivesse em mente, nao a injúria, mas a apuração
e doctrinas controvertidas. Por exclusão de panes,
intendi que era esta a marcha que eu tinha de seguir.
Deixarei pois, de boamente, a Senio a glória do seo
vocabulário. Nao reciprocarei os piegas^ MaiiianUj
salsinha litterãrio^ charlatão^ casmun^o, palhaço, crili-
queiro^ cacassenOy etc, etc. (*) Acceito tudo, epago-lhe,
dizendo que nada d'isso me demove da posição de
justiça e plena rectidão em que me coUoquei, nem me
auctoriza a represálias, que em taes termos seriam in-
dignas do público, de mim... e do próprio Senio.
Nao ha quem tenha esquecido a lucta entre J. A.
de Macedo e Bocage, no fim do século passado. Aquelle
começou a sua excellente sàtyra por estes versos :
Sempre, ó Bocage, as sátyras serviram
para dar nome eterno e fama a um tolo.
A sátyra monumental em que Bocage analysou
aquella, principiou assim :
Sátyras prestam, sâtyras se estimam,
quando n'ellas calúmnia o fel nao verte
quando forçado epítheto afprontoso
{ tal que nein cabe a ti ) nao cabe áquelle^
que já na infância consultavam Phebo.
Eis-ahi, ao menos n'este poncto da sàtyra, um bello
exemplo. Bocage tinha um arsenal provido : quem lhe
chamava tolo, dava-lhe o direito de redarguir com
Y*) Em seguida a esta carta, chamo a tua attenj^o para o qua
yai transcripto, sob o título de Infirmidades ãa tingia.
xviir 3
egual energia : parvo, néscio, asno, tolambana, bas-
baque, asneirao, estólido, fátuo, papalvo, párvoalho,
inxovôdo, inepto, insensato, parvoeirEo, tolaz, patau,
simplório, sandêo, tolSo, simpleirUo, stulto, ignorante,
lorpa, zote, bestial, pateta das luminárias, amente,
mentecapto, lunático, tresvariado,demente, tonto, par-
voinho, alarve, alvar, animal, bobles abobles, bolonio,
oamfilo, caturra, orate, despro{}ositftdo,estouvado, estú-
pido,patola, e mais duas dúzias de variantes, que se a-
f)rendem na praça do Mercado. Tal nEo fez: começou
ogo reconhecendo, nao obstante a ira que o inflammava,
ufto ser aquelle epitheto applicavel a quem lh'o applica-
va;como nfto faria outro tanto, eu, em quem taes violen-
i^ias nao geraram agastamento, mas simples com-
paixão ?
Deixarei pois aquellas energias de linguagem para
quem precisar lançar poeira aos olhos ; eu, que só
preciso raciocinar som vitupérios, dispenso esses tristes
recursos da impotência.
Pelo que vejo, abcndonai^am ao braço secular o poder
pessoal, o orador, o tstadista, o escriptor. Só defendem
o romancista. Vamos a isso. Semprónio consagrou 40
páginas á anályse do Gaúcho ; não se atreveram
rom elle: eu rabusquei na vinha que o hábil vindi-
mador deixara, consagrando apenas duas cartinhas ao
meo supplemento de anályse, e é sobre mim que Senio
cai desapiedadamente, por me saber mais fraco. Faz
lembrar Cosar em Dyrráchio, investindo o campo de
Torquato, por supp61-o maia fácil de derrotar do que
se atacasse as forças de Pompeo. Resigne-se cada um
& sua sorte, e vamos a isso.
E' um tanto difflcil conquistar attençao sobre assum-
ptos já cançados, e que naturalmente saciam. Sem-
prónio fez uma primorosa anályse do Gaúcho ; eu co-
mecei-lhe um insignificante additamento ; agora o tal
V. disseca-me a mim ; eu vou dissecara sua dissec-
ção de modo que isto vem a ser anályse da anályse
do additamento á anályse da obra. Fora mister muito
mais alto mérito litterário em mim, e no meo fusti-
í^ador, para ser isto supportavel; todavia cumpra-se o
dever, inteiro e com lealdade.
E para d'ella dar mais uma prova, quero (nao obs-
tante o risco de ver converter-se-me em desar a con-
fissão espontânea) declarar que houve n'estas cartas
4 XVII
uma observação inexacta. Passando pelos olhos as //w-
titutas de Justiniano, de Ortolan, là achei a citação de
Labeon, tauto do Tácito, como do Horácio, reproduzida
no discurso do Sr. Alencar: e então, examinando mais
attentamente, vi que a minha afirmativa proveiu de
uma ommissSlo do auctor da Taboada geral das maté-
rias contidas nas diversas obras de Tácito^ o qual pro-
mettendo aponctar a** logares onde o grão discípulo de
Quintiliano fala de personagens notáveis, menciona
sob a rubrica de Labeon outros indivíduos d'essa famí-
lia, e nfto o bàbio e louco Antístio, de quem é todavia
certo que o grave auctor dos Annaes tracta no L. III
§ 75. Nao sou como aquelles a quem í>e appresenta
prova de inexactidão de suas accusaçoes e as nfto reti-
ram ; em obséquio á verdade, retiro esta,sem que vies-
sem notar-m*a, e com a mesma espontaneidade reti-
raria qualquer outra, quando a consciência m'o pres-
crevesse.
Agora, supprimindo os insultos, discutamos os pou-
ctos sobre que Senio repelle as minhas observações.
§ L ii« andais se agitam em (luctuação.
Na minha i*. ca''ta a Semprónio ( Questões^ n. 9 )
censurei esta phrase do Gaúcho em 4 linhas, e respon-
de-se-me com um i columna de typos. E' um desper-
dício de palavras que bem se harmoniza com o da
phrase censurada. Nâo sou pois eu o culpado, se tiver
de seguir nesta trilhada.
Eu transcrevi do romance os seguintes trechos : « A
savana ondula pelas sangas, que figuram as flvcluarôes
das vagas ^ n'esse verde oceano.... As ondas se agitam
em constante fluctuaçào etc. » Qualquer amigo mais
prudente do auctor calar-se-hia, reconhecendo comigo
que isto estava tristemente expresso e esparralhado. E
como redargue o imprudente V ?
(( — Nao vê (senhor piegas) que de propósito comea o
constante^ e levantou um aleive a Senio ? isto é ser
calumniador. »
Oalumniador, meo sábio mestre ! a isto é que o
mestre chamaria calúmnia ? Sabe bem da língua, não
ha dúvida.
E onde é que eu comi o constante^ meo leal censor *?
Nao o yè alli, na phrase litteralmente reproduzida ?
Olhe que se me nao alimentasse sendo de comida
assim, dava a alma a Deus em 3 dins.
XVIII s
E note mais, que bem podia eu ter ommittido o ad-
jectivo, sem fazer falta alguma. A minha repugnância
não é contra o constante^ que só d& idéa de que o tal
movimento è aturado, duradouro; é contra (a moléstia
pega-se) a redundância da pleonàstica eicpressSo do
tal movimento ; e já vê que para isso tanto importa ler
como supprimir o adjectivo.
Ondas representa águas em movimento; fluctua-
Ção^ representa águas em movimento; agitarem-s^
/ij'/a.ç,representa águas em movimento. O que eu digo
por tanto é que a expressão — as ondas se agitam em,.,
flucttiação, — trocada em miúdos,dá isto: — as águas que
se movem movem-se em movimento de águas.— Se
approva, também eu.
Ksta perissologia, sempre reprehensivel, ainda o é
mais, quando, logo antes, tinha o auctor escrípto
que a savana ondula pelas sangas, que figuram as
fln:lHaçôes das vagas nesse verde oceano l Oceano sao
águas; vagas o movimenio d^ellas; fluctuação, idem;
ondular^ idem; de forma que bom nadador hade ser
quem leia, se sair incólume deste dilúvio.
I)á-nos o Sr. V. a novidade de que «aquella plarase,
exprime em estyio nobre e elegante ! este pensamento:
As ondas estão em constante movimento. » D'isso é
que me eu queixo; foi uma idéasingelissima, diluída
em repetições de palavriado; sao dizeres de Mr. de la
Falisse, ou do cónego Philippe: «Se elle nao estivesse
morto, ainda estaria vivo. » Nilo ha dúvida de que,
era alguns casos, sóbrias repetições augmeutam a in-
tíjnativa^ mas nuo devem usar-se quando, como aqui,
nãi) cnbp intenção de ingrandecimento, pois a phrase
de Seuio nao descreve temporaes, e .comente ondu-
lações. Quando Molière escreveu: Je Vai vu, dis-je, vw,
4Íe 7nes propines yeax vit, ccqnon appellevn » teve em
mente uma idéa enérgica, energicamente expressa.
Quando ao contrário os próprios escriptores da nossa
lingMia escreveram os idiotismos: — Eu por mim-^Su-
bir para cima — Parece-me amim— Descer para baixo —
E» parece-me --e cem outras flucíuações das ondas agi-
/nrfífA, procederam reprehensivelmente.
Seguem-se agora as erudições polyglottas, ante
a^ qaaes me curvo reverente, pois fiquei sabendo que
í» nobre crlrico sabe habilmente compulsar um dic-
oionario.
6 XVIII
Abre por exemplo um Calepino, onde vé citada a
Eneida, IV. 313:
Trojaper undosum peierelur classiòus osquor^
e noticía-nos que Virgílio dice undosum (Bquor (que
podia perfeitamente dizer, pois ahi n&o se acha re-
petição, como a nSlo ha em maré undosum,)
Mas o mais divertido é isto. Procura no mesmo Ca-
lepino a palavra fluctivagus^ e lô ; çuod fluctibus agir-
íatuvy ut Naula flucíivagiy unda fluclivaga, Stat. 1. 3.
Sylv, 1. V. 84 e Théb. I. v. 271 » Imaginou natural-
mente que isto eram 3 auctores : — Théb.^ senfto fosse
a ex-imperatriz, condessa de Teba, seria a nympha
Thebe, que Ovidio pinta, amada do rio Asopo — Stat.
será. . . o Statilio, cúmplice de Catilina — No que nao
ha dúvida é em que 5s^/v. é o escriptor Silvio, tilho
d'Ascanio, segu|iao rei d' Alba.
Ergo, escreve Senio : « Em latim ^ dice Silvio: unda
fluctivaga. »
Sao os inconvenientes da erudição lexicogràpliica,
os ossos do officio. O infeliz Senio julgou que havia
um senhor Silvio, que tinha dicto aquellas bonitas pa-
lavras, e enganou-se. Houve, sim, um poeta, chamado
Stácio, que J. A. de Macedo traduziu, levando u7(/ia-
dan de Bocage ; esse poeta compoz iima série de Carmes ^
divididos em 5 livros, obra que denomine u Sylvas, e
2 poemas, intitulados Thebaida e Achilleida.
Portanto, o « Em latim, dice Silvio » traduz-se u'isto :
« nas sUrOÃ Sylvas^ dice Stàcio » E até isso mesmo seria
errado, porque aquellas referencias, nao comprelien-
didas por Senio, sao a outra cousa diíferente. O verso
das Sylvas n&o diz tal unda fluctivaga, e sim
Fluctivagos nautas, scrutatoresque profundi :
e portanto n&o é para o unda fluctivaga, que o diccio-
nàrio o cita. Onde o Calepino indica isso, é na Thebni-
da, e ahi com effeito s^ lê :
,..fl,uclivaga qua prceterlabitur unda.
Consaguintemeute em vez de o Silvio dice cm latim ,
leia-se: o Stàcio dice na Thebaida.
As superfluidades de palavras não sao invenção Se-
nial. Já n'aquelles tempos se perpetravam. Quintiliano
queixava-se da locução húmida vina e similhantes; cha-
mava a esses dizeres supervacua oraíio ou abundans
supra necessilatem oratio, Desadorava com as gemi-
XVIU 7
naçOas; indignava-se com discursos que vao logo sendo
tiradoâ em pública-forma ; que diria elle da mesma
idèa, desbotada e chata, repetida dez vezes ? placebií ?
Da sciencia lexicogràpliica romaua passa o Senio,
ou V., para idêntica sciencia portugueza. Diz que são
eguaes pleonasmos dguas fluctuosas (como se as aguas
não podessem ser paradas ) ; — mar undoso ( como se o
mar nao podesse estar estanhado). Diz mais que tam-
bém CamOes dice : « Eslava-se como as onda^ ondeandor*
(como se Camões fizesse versos errados). E' o passo em
que o poeta descreve o phenómeiio da tromba absor-
vente d^agua de mar, ou manga do nuvem, e diz que
ella ( man^a ) estava fazendo uns movimentos de ondu-
lação similhantes aos que as ondas faziam... c o nosso
preclaro crítico imagina, para justificar o seo pleonas-
mo, que sao as ondas que estão ondeando. Pois sim.
O que é, porém, mais impagável é a profundidade
doestas erudições, todas ellas também de diccionário (e
ainda se fosse só isso, seria meio mal\
1' zrudtção lusitana \ t< Emportuguez, Menezes diz :
as dguas fluctuosas "> Com efleito es<e autor da ^lía/aca
ConquistadAi^ dice :
Rompendo Affonso as águas fluctuosas
chega >• Coulao e foi bem recebido ;
mas ndo foi no poema que V. achou isso, e sim no dic-
clonàrio de Mcráes, onde se encontra, verbo ttuctuoso,
a citação, tal qual a copia.
2* — K Na riysséa, cap. 1 v. 24, vèse mar undoso »
Vide o mesmo diccionàrio:)) undoso: que tom ou faz on-
das* v. gr. o mar undoso. Ulys 1. 24» E a j)rova plena
de que a cópia foi cegamente do diccionàrio, e que nem
sequer se tem noção do que se cita, é que o copista so-
nhou que o I era capitulo 'de um poema ! ) e o 24 era
verso, quando 6 1 era o canto^ e o 24 era a estância.
;j» — (( E o clássico Camões, canto V v. 20 diz : £s-
tavorse como as ondas ondeando »> Veja-se ainda Moraes:
— »< Ondear-se: Mover-se còm as ondas: Estava-se co' as
ondas ondeando. Lus. V ítO » E que nem sequer aqui
foi mais do que uma cópia muito intelligente, demons-
tra-se com o facto de chamar verso 20 a estância 20
porque nao comprehendeu a citação do Moraes.
«i E TM CHARLATÃO DE TAL JAEZ METTIDO A CRlTICO! ))
E' como V. conclue esta parte da sua defesa, de que
acabo de rjxtrahir toda a força, pedindo licença para
8 XVIII
fechar olhos ao roceiro, maitiante, salsíaha litierário,
merceeiro da critica, e restante molho de vilão (é termo
téchaico) com que aquella cosinha se vai adubando.
Por hoje basta. Ficou-me jnuita matéria notincteiro;
nao vai a matar.
Teo velho amigo
» .
ClNCINNATO.
l]aílx*iTiiaa<les da língua
O ingenhoso bacharel Manoel José de Paiva publi"
cou» meado o século passado,uma porção de obras, ge*
ralmente da mais fina crítica, sob o pseudónymo d®
Silvestre Silvério da Silveira e Silva. Ha entre ellas
uma, curiosís-^úma, dedicada a S. António, sob o titulo
de Infirtnidades da língua^ e arte (jne a ensina a eiumude-
cer para mdhoYar , livro quo o Sr. Conselheiro d'Estado
José Silvestre Ribeiro diz que « supposto seja ura tra-
ctado de moral prática, e de finíssima critica das ten-
dências ruins do homem, deve comtudo ser comptado
entre os subsídios philológicos etc. » Este livro, no
maior número das suas páginas, de sabor clásf^iro, é
pouco manuseado pelo geral dos leitores, mas parece
ser o vade-mecum de certos escrevedores, não para se
afastarem dos dizeres que elle condemna, mas para se
apoderarem das torpezas que profusamente exempli-
^ca. Nao será desr-abidí», nem desagradável, ler (»ni
seguida uma porção de trechos da dita obra, que sem
dúvida aguçarão o desejo de recorrer ao original.
Transcrevamos :
« ~Em lamentáveis ruínas se considera estar a lín-
gua que a Providencia creou com tanto re^i ;uardo, e
que, saindo tantas vezes fora deseos limites, se perver-
teu de sorte, cora o vulgar tractaraento, que a natural
limpeza se lhe tem convertido na artificial corrupção.
Assim como, quem se chega ao fogo se queima, assim
ficaria ferido quem se poz3Sse perto do contágio....
A língua publica, que não teme exércitos, que nao
respeita monarchas, e que o mundo todo é pusillânime
para seo "emulo; porque ella, cora qualquer venida de
que usd, ou força que faça, aos mesmos astros podírii
derribar do firmamento.... Eis-aqui a declarada ini-
miga contra que este livro quer sair a carap:inha.
xvrir 9
« .... Para que uma líugua de fogo uao faça damna
ao pàbulo a que se chega, afasta-se este com vigilân-
cia, e assim a labareda sobe ao seo centro sem estrago,
mas.... A língua deve ser luz que alumie, e não fogo
que abraze... Se os homens nao intendem as cousas,
•calem-se, e ficarão na opinião de homens ; mas quando
.as não intendem, se falam, saibam que ficam na opi-
nião de brutos.
a Reparo em duas vezes em que Christo não deu
resposta a Pilatos : —uma, quando lhe perguntou, de
que pátria era — outra^ quando lhe dice, porque não
-contrariava as accusaçOes dos judôos ? Que não respon-
desse à ociosa pergunta da pátria, não me admira,
porque um Senhor tão sábio bem conhece o pouco que
importa a differença das pátrias etc. .
« Porfia um louco a formar de areia uma estátua,.
mas da sua loucura é evidente signal esta porfia : a
mesma acção com que a está compondo, é a com que a
vai desfazeudo ; como não tem união substancial em
que se segurem aquellas partes, apenas se vão levan-
tando, quando vem caindo. Assim as palavras suber-
bas, como soltas ou dissolutas, não podem admittir
composição, que não seja desmancho.
u ... As palavras da emulação, da invejando ódio,
4^8 ira. e da vingança, são as bandeiras que o coração
vai trt»mulaudo, para que lhe tenham medo; e o medo
é it nielKop preservativo contra o estrago. Mas que suc-
cedc* ? O iunocente foge, o inimigo cança-se, e ades-
pe/.i qui' tem feito o deteriora, porque não faz preza
qu.' Ih*!! pigue ; e por último effeito d>sta diligencia,
ouvt» uma náutica gritaria com que é escarnecido.
Quem jaiiTais attondeu ás palavras doestas paixOes, de-
poi> í|ue \) ir taes as distinguiu? Em se conhecendo que
.prokVílem de origens tão indignas, já se avaliam por
loucas, e se julgam por indei^entes. Diz mal o irado do
objfiMM da .iua ira: e com que escárneo se não recebem
u-i tumultuo^ií expressõas de ardor tão temerário? Por
f >;r^i fátuo s^ uit'M*pr<Ua, na opinião dos que percebem
tã j diffiísas lahiri>J')S, tã'» inquietas, tão desproporcio-
nadus. t j ) impróprias e t>lo loucas, como as mesmas
palavr2i< o dizem. (.VimpO?-se a ira da descompostura
án< palavras : t» como pode apparecer composta a que
faz u-ala da descompostura ? l^ue período se lhe obser-
vou jamais com elegância, com discrição e com acôrto?
Ir:im-ie contra si os que se iram.
10 XVIIl
<( Ha na língua uma espécie de borbulhas, a que
chamam brotoeja, e ainda que nao è de perigo, pari»
ficar com saúde perfeita, bom será alimpar-lh'a A
língua ò o mostrador do relógio, que diz, com o acerto,
o aceito que n'elle se acha ; mas quando se desmancha
este, logo ella o manifesta, para que ninguém o
creia.
«... Que phrases indignas nao tém composto a
apprehensão dos ignorantes ! Que palavras torpes nao
têm inxertado na sincera planta da linguagem, que
sem necessidade chegou a ver-se tao corrupta! ...de
sorte que a linguagem dos livros é diversa da lingua-
gem do vulgo ; nos livros acham-se as palavras como*
limadas, no vulgo incontram-se como cheias de limos ;
e succede ordinariamente que a gente humilde que em
sua casa e fora d'ella nunca se tracta com aceio, nau
passa da immuudicie, mas a gente limpa, em quanto
está em sua casa, nao se mancha, e por sair à rua so
mette pela lama e se salpica.
«... Entre as innumeraveis palavras que a igno-
rância tem introduzido e em que a língua tem degene-
rado, escreverei as que agora me lembram e as indignas
phrases de que o vulgo usa, infamando-as por indis-
cretas, por loucas epor temerárias, já porque nao têm
recta deducçao da linguagem, já porque as institniu a
ignorância, já porque nao sSo attendidas pela prudên-
cia, já porque as nao recebeu a discrição, já porque só
se usam nos períodos desço npostos, e já porque só
d'ellas se tracta nas práticas deshonestas. »
Comquanto esta matéria esteja perfeitamente irac-
tada, e lenha grande ])arentesco com a dos e;stylo.^
adoptados pelos S»*nios interpellantes e pelos V. escrip-
tores, nao devo continuar a transcripçao, e limito-mi!
a dizer que o nosso auctor pOe em seguida, e por
ordem alphabética, uma multidão de termos e phra-
ses, defesas a toda a penna que se respeita, e entre a>
quaes appare^^em quasi na totalidade os dizeres d'estas
Palestras, d'r>nde se collige que realmente os seosi
auctores $ao mui lid( s n^este meio-classico, a quem
impetraram auxílio, afim de lhes fornecer para sjCouso
as locuções exactamente que o hábil crítico desterrou
como indignas dos typos. Pelos tempos que coriHm;,,
ha lógica em tudo isto : quando a propriedade é r«.ubo.
a religião farça, a monarchia flagello. o incccJro
XVIII 11
meio, a destruição fim, a glória lucro, a honra phau-
tasma, o progresso desordem, e a liberdade anarchia,.
nada mais natural do que desinthrouizar-se a lin-
guagem culta, ou sobre as cinzas d'ella fazer pom-
pear a geringonça ou gíria dos ciganos e galés.
Alonurmeiato a JBooas^*(*)
Ha vontades de ferro, espíritos persistentes aosquaes
nenhuma dificuldade desanima^ e que vencem e supe-
ram toda a sorte de obstáculos. Cabe a esta raça pri-
TÍlcgiada de lidadores saír-se vic tório ;a sempre das
luctas que emprehende : a palavra ijiipossivel^ por naa
ter noção correspondente em sua vida práctica, foi
ha muito supprimida do vocabulário próprio.
Pertence incontestavelmente a esta família — pouco
numerosa, ainda mal ! — o Sr. consel)u;iro José Felicia-
no de Casiilho Barreto e Noronha. Documentos de toda
a authencidade ahi nol-o estão a testificar, e, se de
nova demonstrar&o se carec^ssse para affirmar a sua fi-
liação n*aquella genealogia predestinada, o assumpto
que vamos tractar nol-a ministraria cabal e perfeita.
Bocage é um vulto notabillíosimo da litteratura por-
tuguesa; Mias nao est&o ainda de todu extincta^ as
paixões que sublevou o seo assombroso talento. Uns o
proclamam o principal poeta da península n'este século;
porfiam outros que nao soube extremar-se da turba de
versejadores de outeiro.
Com mfto segura e sciencía de mestre, o Sr. conse-
lheiro Castilho tomou o escalpello da anályse, e \)yí^-
vou que, ire os primeiros eram exaggerados na sua
classihcação, peccavam os segundos por nimiamente
injustos no conceito em que tinham a Elmano. N'este
paciente e consciencioso trabalho, que forma os tomos
vii ft VIU da Livraria Clássica, levantou o Sr. Castilho
primoroso monumento á glória do grande vate setuba-
(•) Tendu dado n*este rcpcsit^rio vários dos principaes escrip-
tosqae prendem com este assumpto.transereveremos alfçuns ou-
tros. Os que vfto ler-8e,appareceram no jornal illustrado d'esta
capital A Vtda F/iMnt»^^.accompanliando um excellente dese-
nho do monumento, em que ró ha uma inexactidão: a de iigu-
rmr armas reaes no logar onde estfto lyras. Também depois se
mandou colocar emtòrno do monumento uma elegante gradaria
de ferro, octógona, elevando-se, dos 8 ângulos, columnas, 4 das
quaes sustentam grandes candelabros, e i alternadamente lyras.
— O 2.0 artigo saiu nR Gazeta ie SetvbaL
*i XVIII
leuse ; podia pois descançar repousado da sua obra»
^ue formosa e imperecedora lhe sairá ella. Mas no
mauusear e estudar profundamente o nosso poeta, mai-
ores motivos de admiração se lhe foram deparando,
mais elevado grau de intensidade ganhou o seo enthu-
siasmo.
Bocage, que fora « uma dobadoura de bons dictos,
girândola de epigrammas, azenha de graças, mâchina
de repentes » é para elle ( e para quantos prezam as
lettras ) « o grRo fidalgo do idioma, o 'príncipe do im-
proviso, o Anacreonte à^ lyrica, o Petrarca do soneto,
o Rerabrandt do ciúme, o Koh-i-noar da meti^íficaçâo
portugue7-a. »
Doesta convicção lhe nasceu a idéa de que, para hon-
Tar a memória de homem tal, só uma estátua erecta em
praça pública seria padrão bastante e condigno de seo
grande renome. Formular esta idéa e tractar de a pôr
em execução foram actos simultâneos.
Era no anno de 1865, poucos dias antes do centésimo
anniversário do harmonioso bardo. Occorreu-lhe logo
o pensamento de approveitara feliz coincidência, solem-
nisando com um jubilêo litterário, celebrado segundo
o moderno rito poético, aquella data memorável.
A 15 de septembro, por convite e a esforços de
S. Ex., uma luzida sociedade se congregava nos saloes
do Club Fluminense, e, em meio dos esplendores da
festa, o projecto de se erigir a Bocage memória perdu-
rável foi accolhido com unanime acquieseencia.
Nomeada uma numerosa comraissao central, com-
posta de influentes e distinctos cavalheiros, brazileiros
e portuguezes, em breve começaram os trabal losese
iniciou a subscripçao.
A esse tempo, oorém, surge a guerra do Paraguay.
e deu isto causa a que a subscripçao tivesst» êxito muito
limitado, n5o obstantes grandes diligencias e constante
trabalho da parte do Sr. Castilho, presidente da oom-
missão. Sabidos thv^^astre.s coinráerciae.^ vieram desfal-
car, quasi na totalidade, a coilocta já de .si minguada ;
e n'esta situação desanimadora ninguém cria ainda na
possibilidade de se edificar o planejado monumtMito.
Nao esmoreceu, comtuHo, S. Ex., e comptava sempre
realizar a sua concepção, embora sosinho e desajudado
se viesse a achar. Em sua ultima viagem a PortugaU
mais vivo se lhe reaccendeu o seo generoso intuito, e
tomou então uma resolução extrema, ideando um plano
■ K
XVílI 13
simples e elegante, coatractoii com o Sr. Germano José
de Salle^, hábil director de uma importante officina
de esculptura em Lisboa, a feitura da obra, e imme*
diatamente se principiaram os trabalhos, debaixo de
sua exclusiva responsabilidade, correndo risco nâo-
menor que o de nao ser approvada a sua deliberação,
e ter conseguintemente de pagar de seo bolsinho toda
a importância de t&o dispendiosa fábrica.
A commissao central, reunida a db de junho próximo-
passado, approvou, porém, plenamente a nobre decisão»
de S. Ex., e resolveu ratear entre os seos membros as
despesas da constr ucçao, que devem exceder conside-
ravelmente o pouco que ha apurado da antiga subs-
cripcao. Honra lhes seja por tao assignalada munifi-
cência !
O desenho com que hoje brindamos aos nossos as-
signantei? é cópia fiel do do esculptor. ( Supprimimos
aqui a descripção do monumento^ por jd ter sido lida no
Relaíório) .
Tal será o monumento do grande satyrico, do espi-
ritiiosQ epigriímmatista, do bucólico virgiliano, do mi-
moso elegíaco, do arrojado, do suavíssimo Bocage, que
dos ceos houve
o solemne idioma, o tom dos numes,
a voz que longe vai, que longe sobe,
que sôa além do mundo, além dos t3mpos.
Louvores a quantos cooperarem para o resgate d'esta
divida de reconhecimento a um esplêndido ingenho,
e nomeadamente ao Sr. conselheiro José Feliciano de
Castilho, iniciador da idéa, e seo zeloso e infatigável
promotor.
¥. O.
IVotlolax^io
Lô-se no Jornal de Setúbal^ de 24 de março de 1867y
o seguinte :
Chegada. — Dommgo pelas 4 horas e meia da tarde,
chegou a esta cidade o Exm. Sr. José Feliciano à&
Caijiilho Barreto e Noronha.
S. Ex. veiu só. O Sr. António Feliciano de Castilho
ainda chegou ao cae.s dos vapores para embarcar para
Setiibal, mas viu-se obrigado a retirar, em razilo do
tempo estar muito mào.
U XVIII
Suas Excelleacias tinham mandado dizer era uma
carta qu^^ só viriam, caso o tempo estivesse inteira-
mente seg-uro, e por isso a commissao incarrefarada da
recepção d*aquelles cavalheiros, os nao esperava em
tal dia.
Logo que, por uma participação telegráphica, se
soube que S. Ex. havia chegado á estação do Barreiro,
reunira m-se o presidente e alguns membros da com-
missao, que o acaso fez encontrar, pois estavam já
dissuadidos da chegada dos illustres hóspedes, e parti-
ram para a estação do es minho de ferro.
Ali poude aind& chegar, ao tempo que chegou a
parte da commissao, uma deputação da camará mu-
nicipal.
Feitos que foram na estação os devidos cumpri-
mentos ao distincto visitante por parte dos dignos pre-
sidentes da camará municipal e da commissao, dirigi-
ram-se todos a visitar as praças da cidade, afim de se
vor qual a queS.Ex. julgava mais appropriada para a
■erecção do monumento ao nosso illustre conterrâneo o
famoso poeta Bocage, para o qual S. Ex. tem solicitado
e obtido já importantes donativos.
S. Ex. nao se pronunciou definitivamente pela es-
colha do local, e pareceu ficar indeciso entre a linda
praia, ao lado poente do cães, e a praça principal da
cidade, jà denominada de Bocage.
Concluida a visita aos locaes que poderiam prestar-se
á coUocaçao do monumento, dirigiu-se S. Ex. com as
pessoas que o accompanhavam aos paços do conselho,
onde antecipadamente havia manifestado desejo de
<?onferenciar com as pessoas competentes sobre o as-
sumpto que era motivo da sua vinda à terra do grande
Elmano.
S. Ex., recusando oocupar o logar principal que
lhe fora oflTerecido pelo Sr. presidente da camará,
sentou-se ao lado d'e.:te,e tomando a palavra, expôz em
claro e conceituoso discurso os trabalhos preparatórios,
qu3 tinha levado a effeito para o monumento a Bocage,
e o fim que tinha em vista na realisaçíio e forma d*e.sse
monumento, declarando ser a iniciativa do monu-
mento do seo Exm. irmão, o Sr. António Feliciano de
Castilho.
Seguiu-se-lhe no uso da palavra o Sr. Presidente da
camará, felicitando os habitantes de Setúbal pela hon-
XVllí 15
ro.>a visita quo acabavam de receber, e agradecendo
4ios Srs. Castilhos, em nome dos Setubalenses, o lou-
vável e assidiio empenho que tomaram para se pagar
nm tributo devido & memória de um tao illustre setu-
balense.
S. Ex.. em coritinuaçílo expôz o estado de obscu-
rantismo doesta terra e a grande necessidade de ins-
truir o pivo, e n'e3te intuito submetteu & appreciaçao
<lo Sr. Castilho a idéa de um monumento eschóla-
hnvIo^ com o titulo— Bocage, e com distinctivos que
dice.^sera /espeito ao poeta, a fira de que assim o mo-
numento pMJectado reunisse duas qualidades úteis.
Dis^ur^iu em seguida, no mesmo sentido, o Sr.
presidente d\ conmi^^ao, dpm:)iistrando a dupla utili-
dade do monumento e-^chòla-a-iylo.
Respondeu ao^ dou^ oradores o Sr. Castilho, di-
z,^iido que eUava em tudo disposto a empenhar-se na
realisaçío do monumento, qualquer que fô-ise a respeito
d'elle a vontade dos setubalenses. Notou comtudo
r|ae vil diffi^uldal?^ attvíiidiveis e:n se alterar o pen-
sam ^uto que tinha .-esivido de bio á offerta de quan-
*iín< já obtida-j para o monumento, difficuldades que
íli'/5ia par^»c*r-lh? tornariam ra3no> importante o resul-
tado da subícripçl,o que ainda tencionava abrir em
Portugal para o fim indicado.
Djpois de alga na disca -«si o sobre a natureza do
iu> uni?:i^o, o Sr. pi^endent^ da cimira repetiu o que
JH havia dito, que uio punha a sua propo=?ta & votação,
II •ni ra^sm) p^día discussão sobre ella, e que só a
siibmettia k appreciaçao de S. Ex.
C) Sr. Castilho deiniii-it.^ou ainda, se banque em
•]4hriis:í em qu3 revelava a sua extrema delicadeza, e a
i?fc»rencia ((ue se dignava ter com a as^embléii, que a
-iUi opinilo divi^rgía d:\ qu^ tinhisido aventada em
^ui prjív^íiiçi. e manifeUoa des3Jo de ouvir a opinião
íla as-;embléa.
Em seguidri o Sr. pr^^ideiite d i camará de^biroa,
«4 II'* unicamsnte para anceder á> instanciai que o Sr.
Castilho lhe estava fa/.endo, iaconverter em proposta
tf idi*»a 4ue tinha appresentado a respeito do monu-
mento e pol-a â votação.
O Sr. Castilho tinha padido aquella votação para
«•«onhecer até que poncto a assembléa se manifestava
à^r^rcfi de uma ou outra formado monumento; desistiu,
p-or-m. d'<41a logo <[ue alguns cavalheiros propozeram
16 xvm
que se transferisse para outra reunião da assembléa e
que se dessem os trabalhos d'aquella sessão por
concluídos.
?soineou-8e em seguida uma commissao para couti-
nuar os trabalhos precisos n'esta cidade relativamente
ao monumento, ficando presidente e vice-presidente
d'ella os Eims. Srs. António Feliciano de Castilho e
José Feliciano de Castilho, e terminou a sessão.
Saindo dos paços do conselho , foi S. Ex. acompa-
nhado pelos Srs. presidente da camará, da commissfio
e por n;uitos membros d'esta até a casa que estaVa des-
tinada para seo aposento. Alli se serviu ao illustre
hóspede um jantar em que tomaram parte o Sr. presi-
dente da camará e a direcção da commissao, e ao qual
assistiram, por deferência ao Sr. Castilho, mais tres^
membros da mesma commissao.
Fizeram-se recíprocos e aflFectuosos brindes, nao es-
quecendo o nome do primeiro poeta portuguez da actu-
alidade, incansável apóstolo da instrucçao e iniciador
do monumento a Bocage, o S. António Feliciano de
Castilho.
Durante o jantar, a conversação correu animada: e o
Sr. José Feliciano de Castilho mostrou grande e admi-
rável profundeza de conhecimentos sobre variados as-
sumpto.s,e deu as maiores provas do quanto lhe é fácil a
palavra e cheia de hentenciosos conceitos, o que jà^
tinha sido objecto da admiraçat) da assembléa que o
tinha escutado nos paços do concelho.
Terminado o jantar, o Sr. Castilho leu uma excel-
lente biographia de Bocage, de que è auctor, a qual
está escripta com mâo de mestre. Depois da leitura tra-
vou-se uma brilhante conversação entre o Sr. Castilho
e o talentoso mancebo o Sr. br. José Braz, que teve
presas as attenções dos circumstantes, e onde appare-
ceram de parte a parte luminosos raciocínios, imagens
cheiíis de belleza, animadas de vivíssima inspiração.
O Sr. Castilho mostrou desejos de ver alguns dos ob-
jectos descobertos han excavações de Cetóbriga,e apenas
um dos membros da commissao ponde offerecer a S. Ex.
algumas moedas de cobre aili encontradas.
S. Ex. partiu no primeiro comboyo de segunda-feira^
sendo accompanhado á estação pelo presidente e mais
alguns membros da* commissao.
Typ. e Lith.— IMPARCIAL— Rua Sete de Bcti^mbro, 146.
QUESTÕES DO DIA
N. 19
RIO DE JANEIRO 4 DE NOVEMBRO DK 1871.
V«ide*se Mn casa dos Srs. E. & H. Laemmert.— Praça da Gonstítuiçio,
Loja do canto.-*-Uvraria Académica, Rua de S. José n. 119-^ UiigQ.do
I^ço D. C— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — tareco 200 reis.
m ^
Deolma ciulnta oai*ta
DO ROCEIRO CINCINN ATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Rio, 15 de Octubro de 1871.
Bom Fabrício.
Acabo de te escrever sobre assumpto bem fatilj e
nfto resisto á teataç&o de vir novamente praticar com-
tigo, sobre cousas sérias, ao toque do AragSlo, depois
de ter lido uma notável memória sobre a Prússia após
a emancipaç&o dos servos, cheia de considerações e
factos, merecedores da mais attenta reflex&o. Tumul-
tuam-me na mente idéas associadas, e vou submetter-te
o fructo do meo estudo e das minhas impressões. Ponc-
tos ha de paridade entre os impérios asiático-européo e
americano, no tocante & grave questfto social que acaba
de ser agitada; e para o nosso dia de amanha bem
£óde ser matéria de ensino aquelPoutro alheio dia de
ontem.
Quem consulta um mappa-muadi, e vê o enorme
coUosso brazileiro occupar na terra espaço egual ao
de quasi toda a Europa; quem observa os rios-mares
que o abraçam, e as caudalosas torrentes que o vSLo
pautando de grau em grau do parallelo; quem examina
auás regiões diversíssimas, e a omnimoda variedade e
uberdade do seo solo; quem hesita em qual dos três
raínos a natureza foi aqui mais pródiga; quem reco-
nhece na raça dominante os characteristicos de uma
vitalidade possante; — espantasse de que este abençoado
clifto esteja ainda despovoado, e de que a civilisaç&o
afio haja ainda operado todos os seos usuaes mi-
lagres.
2 XIX
Também a Rússia é immeasa. Para o norte, estea-
deu-se até o impossível ; diríeis que em seos braços
gigantêos quer abarcar o polo. A leste, separara-n'ada
Ásia uma cordilheira immensa e nm rio magnífico, fi-
cando-lhe um paiz maior que meia Europa. Ao sul,
zombou das barreiras, cavalgou o Cáucaso, e se nSo
fòsse a guerra da Crimea, houvera convertido o mar
negro n'um lago russo. Para o lado de oeste, é perma-
nente amiaça : Finlan-lia, provincias allemans do Bál-
tico, Lithuânia, Polónia, attestam a sua insaciabili-
dade. Se nao fora a guerra, e a derrota da Moscóvia»
talvez ella hoie se estendesse até o Báltico e o Medi-
terrâneo. Mas a sua derrota valeu-lhe mais que uma
victória, o que nao é raro na história dos povos, a
quem a Providencia liberaliza ás vezes estas com-
pensações.
O Brazil e a Rússia tiveram de sustentar guerras me-
donhas. Se aquelle nao viu ante si tao vastas mós de
homens, tao possantes intelligencias, tao collossaes re-
cursos béllicos, tao poderosas allianças, também esta
nao teve que superar eguaes difficuldades topográphi-
cas, que batalhar contra mais dedicndas hostes, que
erguer da terra instantaneamente como Pompêo ba-
tendo com o pé exércitos aguerridos, que vencer mais
variados e perigosos obstáculos.
Ambos os Impérios cumpriam nobremente o que era
seo triste dever, desde que desembainhavam as valenta>
espadas. A Rússia foi gloriosamente infeliz. O pendão
auriverde, coroou-o o louro da victória. Foi sorte das
armas, que em nenhuma das bandeiras deixou labéo.
Mas ambas as grandes nações, ao retirarem-se dos
campos da batalha, meditaram sobre os successos em
3ue acabavam de figurar. Remontaram ás causas, alli
a sua fraqueza relativa, aqui da necessidade de esforço
desproporcionado ao êxito, e ambas comprehenderam
que nem só o número constitue os elementos da força.
Ambas, em occasiao análoga, ambas logo após a
cruenta lucta, passaram em revista todas as suas ins-
tituições fundamentaes, e resolveram modifical-as,
quanto o temperamento da naçfto o permittisse.
Vejamos primeiro o que se passou no Império de
alem-mar; mais ao porvir que ao presente caberá com-
parar consequências que das sementes, ora lançadas
á terra, ainda aqui nao podem germinar.
XIX 3
Das ruínas de Sebastópoli sjurgiu a Rússia livre.
Uma intelligencia superior e uma vontade firme fize-
ram de uma catástroplie brotar a regeneração de um
povo.
A servidão na Rússia, com as suas mil gradações,
differia essencialmente, no seo principio, da servidão
do occidente, mas pouquíssimo no seo character e nos
seos effeitos. Os servos constituiam em grande parte
a ciasse dos camponezes, e esta instituição foi ^Ui
creada em tempos não remotos. Quando Ivan, o Ter-
rível, anniquilou em 1554 o poder dos Tártaros, achou
tudo por fazer: planícies immensàs devastadas, campos
incultos, aldeias destruídas; nem estradas, nem segu-
rança ; mendigos e vagabundos aos milheiros. Era
mister chamar o cultivador ás terras ; fixal-o ao solo.
Para isso, a corte de Moscou usou, ora da persuasão,
ora da violência, e acabou por crear a classe dos kre-
postnoij servos addictos d gleba. Pareceu resolvido assim
o complicado problema; o camponez lucrava com o solo
regado pelo seo suor; mas por maisque se unctassede
mel a borda do vaso, era a escravidão.
O servo pagava os impostos, servia em tempo de
guerra; mas era inhibido de deixar a sua terra, de tro-
cal-a por outra, ou de sair de uma aldeia para se ir
estabelecer em outra diversa. Nomearam-se inspecto-
res para vigiarem os camponezes, obrigal-os a ferti-
lizar o terreno; estes voivodes traziam como distinctivo
de auctoridade o bastão, que symbolizava o direito de
serem obedecidos. O bastão caía duro nas costas do
camponez, quando este negligenciava as colheitas ou
as cabanas, ou nílo pagava regularmente o tributo,
A' força de bater no servo, o inspector considerava-se
senhor d'elle, e se o nao podia converter em cousa,
▼endél-o ou compral-o, exigia d'elle serviços forçados,
e eis como, pouco a pouco, o inspector veiu realmente
a tornar-se senhor absoluto do servo, que com dor se
resignava, dizendo : « Deus está muito alto e o tzar
muito longe. » Afinal ^^e contas, transviada a insti-
tuição, passou o servo a ficar cousa, escravo : batiam-
lhe, esfaimavam-n'o, transportavam-n'o, vendiam-n'o
até, a despeito das leis que o escudavam contra este
ixkàximo ultrage.
Pedro I prohibiu a venda dos servos nas terras que
ellcs cultivassem ; mais tarde Paulo I decretou que os
4 -XIX
^eúhores nfto podessem exigir á^elles tnais c^ue os ser-
vi èos^ de' três dias por semaha; Alexandre I Cfeou uma
classe 'de camponezes livYes ; mas tudo isso etam in-
sigfnificantes pailiativos.
O actttal Imperador, legatário, não invicto mas
invito, da g^uerra com o Occídente, acabou còm ella,
mais cedo que o precisava, para, liberto das preoccupa-
çoíbs exteriores, se consagrar todo ao interior. As
^perdas xjue lamentUVa (mínimas para quem ficava
•soberano de 70 milhões de súbditos) iam ser mais que
Compensadas coma renasctmça nacibnal. A servidão
enerva, adormece, debilita, despoja o homem de suas
' melhores qualidades; e Alexandre achava-se em' fá(5e
'^de um povo ignorante e rebaixado (Sabiam ler um
em 10, escrever um em 50).
Começaram então as grandes refortíias, taes como a
buppressao do militarismo do corpo docente e 'das
universidades ; o inelhorámento da instrticçâo publica ;
a amnistia aos polacos; a simplificação do recrutamento
e do inlpbsto ; òperdao de innumferaveis condemnados;
o systema de estradas, communicações, e fefro-vias,
etc, até que o grande reformador chegou à magna
questão do Império, para atacal-a de rrente.
Com o augmento da classe fidalga, era innumeravel
a quantidade dcs poderosos senhores de servos. Dav^a-
se enorme desproporção entre o número dos habitantes
ou antes dos trabalhadores, e a extens&o das terras, hk
também se dizia, como aqui, que, com o regimen da
liberdade, a agricultura perderia os braços, 6 pai2 a
prosperidade.
Deixo a narração dos trabalhos a que a illustrada e
firme vontade do Imperador Alexandre presidiu, e
limito-me a dizer que a Rússia teve também o «eo
grande primeiro de março ^ poisai março 1861 foi
promulgada a lei, destructora dos derradeiros vestigios
do dominio t&rtaro, e que, libertando o camponez, Ike
dava a sua casa e o seo campo, comprados por elle, e
abrindo-lhe para isso o governo um crédito (Em ja-
neiro ' 1S69, mais de metade dos servos emancipados se
tinham servido d'este crédito, e haviam contrahido
uma divida enorme para com a coroa.)
Comprehendia a raça liberta 22 milhOes de sereos
ordinários, 3 milhOes de camponezes dos apanágios,
e 23 milhões de camponezes da coroa. Estas duas
classes deram logar a alguns artigos addicionaes.
XPÍ 5,
Be]]ireaeni^ya isto mais de dous terços da pp vo^o da ,
Rúsisia, e era justo e prudente proporcionar-lhes subsis^
teAcia.d^sim como conxbater.p^a puis^ da pgopri^^4f »
a. tondmcia, nómada do Russo, o que induziu a limitaj:
com certas re^tricções o exercício da liberdade.
Sao 9 os artigos que a regulam: 1.° O. camponez,
3ue deixa a sua aldeia perde o lote de terra que a^ocie^
ade Ibe deu ; 2.° Se a sociedade recusa acceitar o tal
campo, pertence ao senhor ; 3/ Hade ter satisfeito ás
leis do recrutamento ; 4.° Hade ter pago todos os im-
postos, até o do anno inceptado ; 5.° Hade provar á
administração do cantão que preencheu todas suas obri-
gações , 6". E' preciso nao haver contra elle processo
algum ; 7°. Hade fazer face primeiro ás precisões de
todas as pessoas de família que deixar; 8^ Hade ter
pago todos os atrazados devidos ao senhor, pejla terra
que lhe foi concedida. 9". Tem finalmente que exhibir
certificado das auctoridades da localidade onde se quer
fixar, em como alli adquiriu um lote de terras, a me-
nos de 11 milhas da aldeia, e mais que duplo do que
possuia.
Como todas as reformas que mudam radicalmente
a face de uma sociedade, o acto da emancipação foi
por muitos accolhido com desconfiança. Aos sei^vos
dd-se de mais^ diziam os senhores. De mais conservam,
os seyihores^ diziam os servos. Mas apezar de certo
abalo momentâneo, restabeleceií-se sem detença a tran-
quillidade, e para logo se sentiram os salutares eflFeitos
da liberdade, nao obstantes as sombrias predicções dos
adoradores do oassado. O estrangeiro que percorre
aquelles campos nota que os camponezes andam mais
hera vestidos, nutridos e accommodados; vivem vida
mais conchegada e com certo conforto ; as mulheres
cuidara melhor de si e dos filhos. A casa do trabalha-
ílor mudou de aspecto; já não é a senzala do escravo, é
a habitação de um homem livre.
Com quanto a iustittuição derrocada revista entre nós
a*^SHz diversa natureza, ponctos ha de contacto, que
merecem exame, nas paridades e nos effeitos.
;\ obra de Wil. Hepworth Dixon, em 2 volumes,
ÍM)pri»í>sa em Londres, sob o titulo Free Rússia^ e a Me-
'iiória do pastor genebrez Cailliate, sobre o Estado so-
riaidn Rússia, merecem a tua attençao,e a de quanto??
^p interessam pelo importante problema com que o
Bra/.il arca n'este momento. Mais uma vez proseguirei
6 XIX
n'este assuiiipto, em dia próximo, se o nao considerares
pesado em demasia.
E' tarde; ponho poncto agora n'isto. Amanha,se Deus
me der vida e saúde, projecto continuar a entreter-me
com o Senio, transformado em PalesíreirOy e servmdo-se
de um pobre testa de ferro, que assigna, e realmente
tem jus de assignar-se, V.
Recebe um estreito abraço do
tf
Teo amigo
ClNCINNATO.
Terceira oax*ta
DO ROCEIRO ClNCINNATO A SEMPRÒNIO
Rio de Janeiro, 18 de octubro de 1871.
Querido amigo.
Forçaram-me a trocaras politicas pelas litteratura».
Em qualquer d'esses campos, sou eu um curioso muito
inválido, mas emíim tudo serve : quem nao pode
brandir clava, descarrega piparote, e as minhas aspi-
rações nao sobem a mais. As infallibilidades sao }»ara
os Papas das lettras, Senios^ V, &- 6'".; eu, na egreja do
aoc, apenas invergo a opa de sacristão. Olho para os
livros, como boi para palácio.
Náo tenho mSos a medir. O Sr. V., faz-me andar
n'uma dobadoura. Ahi me trazem hoje 4*. PaJeístra,
como as precedentes elegante, delicada, respeitosa,
intelligente, inatacável e irrespondivel. Eu bem me
vejo em talas, bem me sinto esmagado, e merecedor de
tremenda vaia, por me nao curvar silencioso ante elo-
quência tamanha ; mas que queres ? sou um iusuppor-
tavel tagarella, que mesmo sem sombra de razão heide
estar sempre bacharelando ! Ora isto, após tao repe-
tidas qualificações da minha inópia, e tantas amiaças
do olhudo instrumento de Tolentino, em tao apertado
lance, ultrapassa as raias da imprudência. Mas é que
eu também nao me sublevo contra os firmans de quem
ludo pôde ; não tenho voz activa nem passiva; recebo
com seráphica humildade as descomposturas civiliza-
doras; e, apenas rosnando por entre os dentes, subraetto
aos illustres infalliveis a continuação das rainhas
muito rendidas e submissas dúvidas, protestando con-
XIX 7
formar-me, afinal de contas, com o que for decretado
pelos muito altos e poderosos Srs. Senio, A. de V. & C*.
E ainda mais, elevo súpplices vozes ao céo, para que
isto, em mim, nao sejam rompantes de leão. paradas
de sendeiro. Dêmos tempo ao tempo.
Continuarei pois a transcrever fidelissimamente as
ponderosas reflexões das Palestras^ sem saltar uma
única, nem lhe attenuar no mínimo a enerofia da argur-
mentaçao, reiterando somente o pedido de licença para
eliminar as palavras e phrases acerbas, jíi poroue
aprendi que as injúrias sao as razões de quem as nao
têm, já porque emfim reconheço com todo o acata-
mento que ellasme pungiram no âmago das intranhas.
' Quem castiga com raiva não castiga, vinga-se ].
Vamos levando esta cruz ao calvário.
§ 2 A abundância estéril de Bermh.
Diz o meo preclaro mestre, para me abaixar a
grimpa :
« A propósito de abundância estéril, fala em Fran-
gi cisco I ! cita como grande auctoridade litterária um
w rei ignorante. Para apoiar as sandices de um Cin-
« cinnato e roceiro, só um litterato como Francisco I.
ti Racine tinha mais gosto litterário em uma unha do
« pé í ou diable le goút liLierawe va-t-il se nicherl ) do
" que Francisco I em toda sua real pessoa. »
Anda lá, Francisco I, leva para o teo tabaco ! Im-
porta pouco teres tu sido admirador d'Erasmo; estava-
te destinada, no fim de três séculos e meio, segunda
Pavia; e abella Ferronière naofa pregou mais.... na
menina do olho, do que este severo Senio.
Está muito bem, sim senhor, nunca as mãos lhe
doam ; mas, oh tu, Senio, typo de lealdade, a que pro-
pósito trazes para a dansa o pobre poeta da Donna è
mobile ? Diz tíenio, ou o seo porta-voz V . que « a pro-
pósiío de abundância estéril, eu citei Francisco I, » Com
a devida vénia, represento a V. Ex. que nao citei tal;
que esta citação é de V. Ex., illuminado discípulo de
D. Quichote, que desbaratava moinhos.
O que eu dice, depois ^e me queixar da diffusao da
loquacidade, e da prolixidade do palavrório dos 7 mo-
vimentos das ondas pacatas, foi o seguinte, ipsis verbis
' Vid. Questões^ n. 9 ) ; « Nao era a isto que Frede-
rico II chamava a dibundancia estéril de Bernis? » Esta
8 XIX>
minha pkrase curta, è que serviu de thema ás varia-
ções longas de Senio.
Ora, se o illustre Senio dá licença, Frederico lí è,
se nao me engano, personagem mui diversa de Fran-
cisco 1 1 Frederico II, o mais admirável príncipe do
seo século, foi cc^nominado O Grande; cultivou scien-
cias e lettras com- amor ; correspondia-se cbm os
sábios Wolf, Bollin, S'Gravesande, Mcwipertuis, Al-
garotti etc. Sao de sua régia penna as — Memárias para
servirem d história da Casa de Brandeburgo — História
do meo tempo — Memórias sobre a guerra de seple annos
eto. etc. Suas numerosas poesias valem, se isto nao é
heresia, um pouquinho mais que as quadrinhas de
Senio; e na parte epistolar que fígura na coUecçao das
obras de Voltaire, talvez que a secção mais notável
seja a da correspondência que tantos annos durou
entre estas duas testas coroadas. Era tao superior, tao
poeta d'alma, que na famosa noite em que se viu
cercado de quatro exércitos inimigos, Frederico da
Prússia, em posição desesperada, e já resolvido ao sui-
cídio, compoz aquella admirável epístola a Voltaire,
que rematava com estes nobres veri^os :
Pour moi, menacé du naufrage,
je dois, en affrontant Torage,
penser, vivre et raourir en roi !
Ja me está parecendo que um tal homem, apesar de
rei (é precisa esta precaução oratória do apesar de rei,
para amimar certos neóphitos, candidatos a republi-
canos, que esiao querendo dar arrhas aos seos novos
correligionários), nao era tao ignorante como isso, O
caso é que a tal estéril abundância foi fecunda em de-
sastres. Frederico satyrízava frequentemente nos seos
versos as concubinas do rei de Franca e os poetas áu-
licos ; entre a Pompadour e Bemis tinha havido es-
treitas relações. A Frederico portanto caiu a sopa no
mel, quando, entre outras facécias, escreveu o verso^
de que, segundo parece, o Sr. V. nao tinha notícia:
Evitez de Bernis la stérile abondance.
Seguiu-se logo após, a guerra de 7 annos, que alguns
incadearam, de consequência em causa,áquelles versos
satyricos ; e tanto que então viu a luz outra sátyra
anónyma, a qual terminava assim :
XiX, 9i
Six ceets mille hommes égorgés,
MoQsiear l'abbè, de grace,est-ce assez de victioies;
et les méprís d'un roi poar vos petites rimes
Yous semblent-ils assez vengés ?
Basta d'isto.
Apezar de caber à defeza mais insancbas que â accusa-
ç2o,receio que se me assaque também abundância estéril j
« por isso mudo de rumo, terminando com esta justifi-
cação : P. Nao citei Francisco I ; 2'. Citei Fre^lerico
O Grande, o historiador, o prosador, o poeta ; 3°. A
sua phrase feliz estava predestinada para Senio.
« E UM CHARLÂ.TÃ0 DE TAL JAEZ, METTIDO A CRITICo! »
Com estas palavras, remata Senio a discussão doeste
poncto. Tenciono ir sempre repetindo o significativo
estrebilho, nao com o audaz intuito de reciprocal-o,
porque eu nao perco as estribeiras, mas para habilitar
o nobre crítico a ir avaliando a propriedade da sua
exclamação. Corre -jponcierá esta phrase slo a Irmãos^
tendes de morrer » dos Trappistas, ou ao Remernber
whaí l loan thee de Milton, que o Sr. Alencar tão ele-
gantemente invocou em certo final de um discurso.
Nao importa, nao importa, e deu com septe navios
á costa.
s5 3 Dos pleonasmos.
l)efonde-se Senio, dizendo que elle nSo é o único, e
que muitos auctores têm também empregado pleonas-
mo<. Forte dúvida ! Pois a sua ambição de inventor
leva-o ao extremo de julgar que o suppomos inventor
dos pleonasmos ? Nao, senhor; só digo que dos plco-
násticos carneiros de Panúrgio, Senio será o millío-
néitm3 ; e em tal imitação, apenas lhe reconliecerei a
glória de que, transplantado de outro solo para o seo,
esse fructo toi
peor tornado no terreno alheio.
Ora agora, iutenda-se bem, não alludr eu, nesta
minha censurada observação, ao derramamento das
idéas, mas à impertinência das vnriante> verbaes: e seja
licitD reproduzir aqui algumas ponderações sobre o
genus dicendi.
Ha um mundo entre os estvlos conciso e ditfuso.
O e:^cripior conciso condensa os pensamentos no mí-
nimo número de termos; só emprega os mais expressi-
vos ; repelle, como redundante, a expressão que algo
10 XIX
nao addiciona ao sentido. Quando introduz ornatos e
figuras, mais o faz por força que para graça. Nunca
repete duas veies um pensamento. Descreve-o sob o
aspecto que mais appropriado se lhe aflâgura; mas se a
essa luz o nao comprehenderdes, nao espereis que a
outra vol-o revele. Primam suas sentenças mais pelo
compacto e pela energia que pela cadencia e harmo-
nias. Esse dizer lacónico mais inspira a imaginação
do leitor do que directamente lhe exprime.
O escriptor diffuso estira e esparralha os pensamen-
tos. Appresenta-os em variadissimas apparencias, e
prohibe ao leitor o coUaborar, com elle. Cuia pouco
de exprimir-se, desde o princípio, com toda a força ;
porque calcula que tem de reiterar a impressão, e cun-
seguintemente o que lhe falta em força, hade sup-
pril-o com a abundância.
O excesso de ambas estas qualidades é perigoso.
Em concisão, nem todos se podem conter nas raias de
Aristóteles, Tácito, Montesquieu ( no Espirito d<u
Leis ), ou Filinto. E i: ditfusao magnífica, nem todos
nas de Cícero, Ovídio, Addison', Temple ou Bocage.
A ditFusao torna o estylo fláccido, débil, e cança o-
leitor; mas é tolerável em penna de superior ordem,
por ser condão do génio até defeitos converter em
bellezas.
Importa porem nao confundir: Uma cousa é o incarar
do mesmo pensamento por muitas faces, outra o repro-
duzir da mesma expressão com muitas palavras. No
primeiro caso pôde haver sua justificação; no segundo,
jamais.
Tomemos para exemplo um grande escriptor, natu-
ralmente prolixo, posto que a trechos magnificamente
lacónico, Ovídio. Esse poeta nao sabia decotar, dn
tronco da sua idéa, os ramos, os galhos, renovos e
garfos que o incobriara; muitas vezes, onde uma só
imagem bastaria, multiplica 4, õ e 7 símiles ! mas
ainda ahi, se é lícita a expressão, nos depara na uni-
formidade immensa variedade ; seria descabido, n'este
escripto fugaz, aponctar cópias d*este defeito-bel-
leza.
Mas nem n'esse esplendido génio é desculpável o
erro, em que raras vezes caiu. de reproduzir exacta-
mente a mesm i idéa por diver^^as palavras, por
extímplo :
XIX 11
— Omnia pontus erat; deerant quoque (!) littora ponto.
— Semibovemque vi rum, semivirumque bovem.
— At vos, qua veniet, tumidi subridite montes!
Et faciles curvis vallibus e.ste vioe!
e assim em outros logares. Eis-ahi pleonasmos repre-
hensiveis, ou antes perissologias detestáveis, mas fi-
dalgas, por virem de quem vêm.
E a critica leal e digna, que fecha olhos à grandeza
do censurado, e o exprobra, quando elle diz duas vezes
a mesma cousa por palavras diversas, tem rigorosa
obrigação de stygmatizar cem vezes mais o vicioso uso
das 7 variantes para darem a mesma idéa, como suc-
cede no Gaúcho.
Para justificar o : As ondas se agitam em fhiciuação^
(o que aliás podia ser tão brando com^) O contínuo
vaivém das mansas ondas, de que nos fala Bocag-e ]
cita o Sr. V. dous versos de Racine, em que diz haver
sido achado pleonasmo. Se o houvesse, mais nao seria
isso do que mancha em sol, mas nao o vejo. Os versos
de Racine sao ambos estropiados pelo docto Pales-
treiro, o qual nol-os dà a-^sim :
Cependant sur le dos de laplauie humide^
Sf-^ve à gros bouilloiis une montagne lújuide,
(As orelhas métricas de V. erraram ambos os ver-o:>,
pondo liquide onde devia ser humide^ e /iwmíí/eouJe
devia ser liquide). Todos os termos aqui tem uma in-
tenção sobre si, .>em que haja sombra de repetição de
idéa — La plaine liquide^ em relação ao mar, serve para
distinguir das plaines íen^estre, celeste, azurée, rtoilce, de
t'air etc. — Moiitagne humideàk idéa da grande eleva-
ção das águas, sendo aliátó este adjectivo appropriado,
i'omj quando J. B. Rousseau escreveu :
L'humide empire oíi Vénus prit naissance.
E uem se diga que do dorso do mar era d'água que for-
çosamente devia sobresair a montanha, vi.<to como
podia ser uma ilha — A* gros bouillons^ em grandes bor-
bulhrics, também dá outra idèa ; de forma que nem
avalio onde pos<a aqui imaginar-se pleonasmo, ou
como tao elevada e poética linguagem possa invocar-se
para justificação de Às ondas se agitam em fluctuaolo.
Ha PLEONASMOS 6 FLEONASNOS*
12 XIX
E UM CHARLATÃO DE TAL JABZ METTIUO. A CRÍTICO !
(PhrasedeV. dirigida a Cincinoato, a qual nem por
isso, como V. esperava, lhe fez crear sangue de bugio.)
§ 4 Átomo invôlto nas dobras do infinito.
Hesitei*- ante esta quinta essência das imagens, e
agora transcrevo a sargentona anályse do Sr. V.
<i Diz Senio : — n No seio das onda^^ o nauta sente^se
isolado; e átomo invôlto em vana dobra do infinito. »
Imagem sublime I de um traço desenha-se o painel do
homem infinitamente pequeno, perdido ' na imoiensi-
dade da solidão infinitamente grande, na qual basta
uma vaga, uma fraga, um destroço de navio, emfim,
para escondêl-o. Nao se pôde exprimir tanto, nem com
maior energia, nem menos palavras.»
Depois de assim posta a história em trocos miúdos,
seguem-se as* generosas descomposturas. Argumento é
só istíi : um idem per idem, uma explicação que nada
explica, uma demonstração de que nao comprehendeu
a censura, ou buscou uma tangente para eviíal-a.
A minha questão era com as.doèra* do infinito ^ e sou
realmente culpado da minha ignorância, visto como jà
outro que tal sacerdote do Ideal me havia explicado a
gerigonça nas Odes modernas :
c( Diz a eterna missa da karmonia
« o que veste a estola do infinito^
« para deitar a grande bençam — Vida! »
kSe o querem mais claro, deitem-lhe água. Syllogismo
evidente : l**. Todo o infinito é uma listola ; 2^ Toda a
estola tem dobras ; 3"". Ergo, ha dobras do infinitjo; e
.se acertam em apanhar na prega um átomo qualquer,
cai na ratoeira e fica esborrachado.
Que imagem esta, sancto Deus! Infinito é o espaço
que se vai sempre estendendo, sem óbices nem limites
existente:?, ne:n possíveis ; e o que fosse susceptível de
dobrar-se, cessaria de ser infinito ; podemos, sim, an-
nexar também a idéa do infinito ao tempo, à extensão,
ao número, mas nao ha uma só variante do substan-
tivo, que se coadune com a idéa de ruga, de termo.
Se alguma cousa ha mais ridícula do que a imagem*
é a explicaçrio do Sr. V. Diz^nos que, collocado um
objecto entre um nauta e.... [ e nao sei qu^ : falta o
outro termo ) fica escondido e invôlto n'uma dobra do
-XIX 13
infinito I ha mais : essa cousa, dentro da qual o átomo
se embrulha, no meio do mar, pode ser uma vaga ou
uma fraga I que espécie de fragas serão estas que o
B0S80 fragalhoteiro descreve no seio das ondas ? Elle
caberá o que é fraga ¥
« E UM charlatKo de tal jaez mettido a crítico ! »
( Phrasede V., dirigida a Cincinnato ).
E nada mais accrescenta o' Sr. V., senão uma ima-
gem extrahida do Eurico^ a qual tem tanta paridade
com a de que se tracta, como um espeto com um re-
queijão, e que passo a pés junctos, por nada vir
ao caso.
Agora, algumas palavras mais, sem applieacão,
como simples generalidade, e em que só repetirei o jâ
dicto pelos reguladores do gosto.
Nada, na arte de escrever, demanda mais cautela do
que o uso dos tropos, figuras e imagens. Os mais su-
blimes e pathéticos passos dos mais admirados aucto-
res, em prosa e verso, * acham-se expressos no estylo
mais simples e sem figuras. Pôde, por outro lado,
nbundar uma composição em ornamentos estudados,
em linguagem artificiosa, esplendida, figuradíssima, e
ser no todo affectada e glacial. Quem nao falar ao es-
q)írito e ao ooraçfto, por mais gymnásticas de estylo a
-que se abalance, se este fôr ostentoso, esquisito, pre-
sumpçoso, impróprio ou obscuro, poderá lançar poeira
aos olhos do vulgo, mas nunca aprazer a juízo dos
competentes.
As imagens e figuras acceitaveis hao de adaptar-se
naturalmente ao objecto : suggere-as a imaginação,
quando altamente excitada, produzindo metáphoras e
comparações ; suggere-as a paixão, quando o peito se
commov^, gerando ent&o prosopopèas e apóstrophes.
Está perdido quem deixa o curso do pensamento para
se ir á caça das figuras ; nao apanha leOes nem veados,
mas sombras impalpáveis e ridículas. — Erra quem
pensa que ornamentos de estylo se cosem á compo-
sição como a gola á casaca. Eis como o Visconde de
Seabra verte um trecho da Epístola aos Pisões :
A começos magníficos mil vezes
se alinhavam de púrpuras remendos,
que ao longe brilham, como quando os meandros
da &gua que gira pelo ameno prado,
14 XIX
de Cynthia o bosque, as venerandas aras,
o Rheno, oii o arco pluvial, se pinta....
mas era do logar impróprio o quadro.
Os ornamentos verdadeiros nao sSo arrebiques, ou es-
forços de imaginação infêrma ; devem correr no mes-
mo álveo por onde se desliza o pensamento. Hade-se
falar como se sente, e não pedir emprestado o effeito.
Quando invila, a Mimrva vinga-se.
E por sobremesa, para gratificar o teo paladar deli-
cado,lê agora comigo este final do cap. 3 do liv. IX de
Quintiliano : « Auctores, que até os argumentos dão
por figuras, é fugir d'elle.s. Estas, mesmo quando ver-
dadeiras, se adornam o estylo, postas a propósito, tor-
nam-se mais que ineptas, empregadas sem moderação.
Taes ha que se julgam summos artífices, porque,
sem curarem da essência das cousas, nem da
solidez dos pensamentos, amontoam palavras sem
sentido, e ridiculamente se empenham em procurar
gesto onde não ha corpo. Até no uso das cousas legi-
timas, é mister <!autela: a expressão do rosto, o vibrar
dos olhos, muito ajudam ao orador ; mas se o vires
contorcer esquisitamente a bôcca, e trazer testa e olhos
em movimento desesperado, deitas âs gargalhadas. A
oração tem também a sua face natural; nem immobi-
lidade cadavérica, nem o movediço da careta. Nimio
cuidado no palavrório gera desconfiança; e sempre que
se ostenta artificio, tudo parece mentira. »
CaroSemprónio meo,tuhasde reconhecer sem dúvida
que não é possível ser mais brando, mais dócil, mais
submisso do que eu o sou para com Senio. Desde o
principio d'este dize-tu direi eu, que o tracto com as
formas mais blandísonas e mellínuas, e nao alcanço
hada; quanto mais molle acha, mais carrega. Tomara
eu que tu me ensinasses o modo de o amansar ; eu bem
procuro fazer-lhe a vontade, e estou atè prompto para
proclamar que Deus, que se não cançou era fazer o
mundo em uns poucos de dias, levou depois muitas
semanas para invental-o a elle, e ficou estafado; mas
nada : pelo que coUijo das Palestras^ dictadas pelo
Senio, e editadas pelo companheiro, o irado Jove To-
XIX 15
nitruaate nao larga da dextra o trisulco. Estou bem
servido !
Ora escuta aqui uma história :
Havia na Bahia ura homem, chamado o Sr. Gabriel,
muito mal incarado, cujas delícias eram bater na
pobre mulher. Dous annos supportou a infeliz a sua
cruz, levando quotidianamente bôa conta de pauladas
á tôa.
í< — Ah! tu deixaste-me esfriar o jantar. .. Toma lá.
í< — Nao deixei, menino, que está bem quente.
« — Ah! tu resping'as! toma lá.
E assim approveitava todas as razOes para repetir a
antiphona. Deu-lhe uma amiga um conselho : « Diga
teo marido o que dicer, nao contraries. Mande o que
mandar, faze logo. Assim lhe tirarás os pretextos. »
Chega o Sr. Gabriel :
« — Maria, descalca-me as botasl
« — Prompta,
a — Maria, está aquella janella aberta para intrar o
sol ? {Era noite).
<( — Eu vou fechal-a.
« — Maria, dá cá aquelle chicote.
« — Slle aqui está.
« — Maria, está muito calor; vae fazer-me acama no
quintal!
Foi a mulher, e fez o que se lhe mandava. Deitou-se
o bom do homem, e, passado um instante, levantou-se
a bater-lhe.
« — Que teQS tu, meo maridinho *?
« — Ainda m'o perguntas, cachorra? Foste-me pôr a
cama logo por baixo da estrada de Santiago : se por lá
tropeça um macho e cai, vem-me logo cair no
toutiço.
Assim parece accontecer comigo. Se eu nao estivesse
certo do meo sexo,julgar-me-hia mudado em D. Maria;
todavia, para teo socêgo, asseguro-fce que tens sempre
em mim
O teo velho e cordial amigo
C1NCINNA.T0.
16 <XIX
Noticiário
CoLONisAçao. — Pfojeota-se em Inglaterra a remessa
de emigrantes úteis para o Brazil, em número e bases
taes que assegurem o desinToWimento do paiz e^ faci-
litem as negociações no Império. O plano j& apresen-
tado ao governo, por intermédio do sr. Cônsul brazileiro
€m Londres, explica detida e largamente c projecto,no
qual se propOe, entre outras cousas, qvte as reservas de
terras férteis e desocoupadas nas províncias do Sul, en-
tre 22 e 30 gráos S.-, e contíguas a algum posto esta-*
belecido ou por estabelecer, sejam vendidas ; que o
governo sanccione a acquisiçaó, sob sua garantia, pe-
los seos agentes financeiros em Londres, de um capital
nao superior a 600:000 lib., capital que será reembol-
sado em um praso fixado até 30 annos, aoomptardada-
ta em que aquellas terras se reservem para a venda, fi-
cando os capitães obtidos em poder dos mesmos agentes
do governo imperial ; que aquelle capital se applique,
400:000 lib. ao pagamento das passagens adeantadas
em dinheiro e seguros de vida de cada chefe de famí-
lia até 10:000 emigrantes annuaes e as restantes 200:000
lib. na abertura de estradas e mais obras públicas,
para adeant amentos ás municipalidades, mediante pres-
tações nao excedentes a 100:000 lib. a cada uma. E
finalmente que os terrenos, urbanos ou ruraes, que
forem comprados, o serão, metade pelo governo brazi-
leiro e a outija metade pela respectiva municipalidade,
uma vez que as terras pertencentes a cada municipali-
dade offereçam segurança ao reembolso dos adeanta-
mentos referidcs, para a creaçao das citadas obras?
póbiicas.
( O Brazil, jornoZ de Lisboa { * )
(*) Nesta corte, sSo correspondentes doesta folha os Srs. E.
e H. Laemmert, em cuja oasa se tomam assignaturas por anno
a 15j||000, por semestre 8jj|000; e se recebem annúncios, para
serem publicados no Braztl a 60 rs. por linha; tudo dinheiro
do Império. ( Em Lisboa: Redacção^ António Maria de Castilho;
AdminisltaçãOj Pedro A. de Almeida. )
Tjp. e Lith.— IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro, 146.
QUESTÕES DO DIA
RIO DE JANEIRO 10 DE NOVEMBRO DE 1871.
Vende-se em casa dos Srs E. & H. Laemmert. — ^Praça*da Constituição,
Loja do canto.— Livraria Académica, Rua do S. José n- 119'^ Largo do
Paço n. C— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis.
CINCINNATO À SEMPRONIO.
Meo illustre crítico .
Recebo n. tua carta, interessante como quanto sai da
tua penna. N'ella me d&s a noticia de que applicarás
mais algumas horas vagns ao exame das producçOes
liUeràrias de Senio, com o que sem dúvidfa teremos
todos muito que aprender.
Com a tua carta, recebo a de um nosso distincto a-
migro commum que, referindo-se também a certo
escriptor (quem seja, nao vem ao caso) se exprime
d'e3t*arte : « Folgo com um tao completo desba-
rato da fôfice, da pedantaria, do orgulho petulante,
e das bulias falsas Com effeito sempre lhe achei
ares excêntricos, fornias hybridas, contornos naons-
trúosos, planos disformes, lavor irregularissimo, mín-
gua de gosto e senso artístico, ambição impotente de
eflFeitos ridículos. Depois, vindo a vez do político, ma-
nifestou-se-me elle ura ambicioso vulgar, um acabado
especulador, que armava tilo somente ao próprio inte-
resse, e que se desmascarou, no dia da prova & & »
Mas emfím, isto nada tem com a matéria que tra-
ctãmos, e portanto continuemos com a anàlyse da;:)
PcUeeiras ; e preciso, antes de tudo, pôr bem claro um
poncto. Saem estas palestras de debaixo do telhado de
oenio : assume a paternidade d'ellas um senhor homem
que se senta á mesma carteira que o primoroso escri-
ptor : esta, e outras circumstancias me convencem de
que, embora o estylo seja exclusivo e characterístico
do dito .senhor homem, as partes da oração sao-lhe mi-
nistradas pelo companheiro Senio. •£' conseguinte-
â \X
mente com este, que eu me entreteuho : se tivesse a
persuasão de que o seuhor hamem era o aiictor do que
copia e aduba, passaria de largo respeitosamente^ &
silencioso o deixaria brilhar á vontade. Continuo, por
que na lettra V. das Palestrai nSo vejo mais que outra
anonymia Senial. Prosigamos:
§ 5° O cvtdiío não deixado por mãos alheias.
Tenho ante mim agora a 3*. Palestra, da qual ex-
traio us seguintes trechos :
— «O Gaúcho è uma das melhores creaçOes da pátria
« litteratura! livro, qu^í só de per si, e desaccompanhado
(( d» qualquer outra prova, bastaria para dar um nome
« e dos melhores ! !
— « Dicemos c repetimos : José d' Alencar está tâo
a altamente coUocado que não pode inchergar o pó que
« se levanta, no rojar do reptil.
— «O político severo ( ! ), o jurisconsulto abalizado
(( (! 1, o littíírato mimoso ( ! ], o character nobre { ! )
«^.0 filhu que d^ orgulho á pátria (I ), o orador lan-
ce reado por tantos triumphos ( ! ), nao pôde decair do
« pedestal a que foi elevado pela opinião pública, pela
a admiração dos doctos e sensatos, pelo preito e home-
c< nagem de seos émulos no talento e na illustraçao....
<c Columna de mérito, em cuja cripta desponta sobran-
te ceiro aquelle vuito »
E vai continuando por este modesto teor.
Pelo que toca aos adjectivos (severo, abalizado, mi-
moso, nobre, orgulhoso, laureado, e pedestalizado )»
eu ftiço choro, e ainda acho pouco.
Quanto ao preito e homenagem dos doctos e sensatos,
também é muito bem proposto. Venham todos os escri-
ptoies, jurisconsultos, políticos, oradores, e litteratos
d'e.sta terra, ajoelhar ante o seo capitao-mór, o alto e
poderrso D. Senio. Preito e homenagem só se prest»
a soberanos ; e é bom, em vésperas doesta solemnidade^
repetir como estas cousas se fazem. No auto de jura-
mento Preito e homenagem que os Três Estados fizeram
ao Infante D. Pedro & { impresso em Lisboa, no anuo
de 1669 ) se indica o cerimonial. D. Vasco Luiz da
Gama, marquezde Nisa, foi a primeira pes.soa que
jurou : chegando ao logar marcado, ajoelhou, e postA
a mão direita sobre a cruz e missal, dice todaa as pa-
lavras do dicto juramento, preito, e homenagem ; e,
acabando de jurar, meiteu as mEos entre as de S. Al-
teza, e logo lhe beijou a mao d, e o mesmo fizeram os
XX 3
mais. O vassallo dizia ao S60 príncipe : Devenio homo
vester & Fique pois assentado em irmos todos, clero,
nobreza e povo, dar homenagem e preito ao rei da in-
telligencia ; juremos que o seo sceptro è indisputável ;
brade-lhe cada brazileiro sensato edocto: Devenio homo
vester.
O ficado Senador Theóphilo Ottoní narrava com
summa graça numerosas particularidades dos usos e
costumes dos selvagens do Mucury. Lembro-me bem
de lhe ouvir esta história ; — « Para um Botecudo,
toda a sua idea de superioridade e prioridade funde-sè
no vocábulo : Capitão. Â mim chamam-me Capitão
Pogirum, que quer dizer : Homem de posiç&o elevada
e de mftos brancas. A um francez, do Mucury, chamar
vam Capitão Ouioui, por que era de raça branca, e re-
petia frequentemente a palavra oui ; e assim os mais.
O curioso porem é que o termo applica-se nao menos a
cousas inanimadas ou não humanas ; por exemplo :
de um renque d' árvores, a primeira é a arvore-capita^;
no delta formado por aves de emigração, a primeira
é o pássaro-capitão ; de uma vara de cochinos o que
vai adiante é o portxhcapitão »
Sempre me lembra o Senador Ottoni, quando ouço
d'estas ; e, longe de contrariar a asserção, concordo em
que Senio é o orador capitão, o advogado capitão, o
politico-capitão,o litterato capitão,o Gauchista capitão,
o jurisconsulto capitão, o laureado capitão, o filho que
d& orgulho capitão, o character capitão, finalmente o
centurião, o eapitãozarrão, o capitão general dos capi-
tães. Que anais querem? Prestemos-lhe todos este -
preito e homenagem.
Mas, agora com o que eu desadoro, é com o logar
onde o preclaro V. pertende collocar o meo heroe :
€ C^lumna de mérito, em cuja crypta desponta sohtanr
« ceiro aquelle vulto. » Segue-se logo :
« fT irrisório I » E eu não sei se isto se refere ao
próprio pensamento ou á imagem, pois irrisório é real-
iBente tudo isto. Já é bello o despontar sobranceiro,
mas na crypta I Onde será esta senhora ?
A palavra vem de um verbo grego, que significa
esconder : dar-se-ha caso que V. estivesse fazendo um
epigramma a Senio, dizendo-lhe que o seo vulto só
pôde despontar onde esteja escondido ? Aqui me diz o
amigo Ticio que i^aturalmente V. ouviu cantar o gallo,
e confundiu orypta com plintho^ que, na ordem tos-
4 XX
cana, é a parte superior do capitel, por o seo capitel
nao ter címàcio, como na jónica.
Glória, pois, ao novo grão Vitrúvio, ou antes glória
8 ambos : ao architecto da columna do mérito^ e ao
vulto que já se pôz na crypta (Vdla,
§ 6**. O Creador inventou as rijezas cadavéricas da natu-
reza (que são o rochedo),
Nao sou relógio de repetição, e por isso me refiro às
minhas anteriores observações sobre o que n'esta phrase
me parece incerrar dous absurdos. Descarnemos, dos-
insultos adversos, cousa que aspire a foros de argu-
mento:
« Inventou o Creador é de incontestável belleza...
« Edificar, fabricar, etc, são attributos de Deus, que
« fez o mundo, e tudo o que n'elle se contêm, com uma
<( palavra. Na phrase inventou o Crtador vejo uma
« soberba antithese! O Creador,ao tirar do nada quanto
c< existe, inventou^ isto é, destinou ^ ordenou as rijezas
(( cadavéricas para a fúria dos elementos.
« As sagradas escripturas descrevem a maneira
« como Deus ordenou o mundo, alteou as montanhas e
« estendeu as planicies. »
E nada mais. Que triste defeza ! Pois quem contes-
tou a omnipotência do Creador? Seria acaso eu, que
consagrei meia página a exaltal-a? Do que me eu
queixo, é exactamente do contrário, isio é, de que
Senio rebaixasse a majestade suprema, nivelaudo-a
com os cancados esforços da intellifireucia humana.
Grande temeridade é querer definir a Deus, mas vergo-
►nhosa profanarão 6 applicar á essência divina os attri-
bui j ua natureza humana, e n'este caso e/?tá a wt-
ven^ão.
Reflectem os competentes, que dizem alguns ser Deus
uma primeira mente, primeiro intendimçnto, primeira
substancia, primeira causa, primeiro ser ; mas Deus não
é mente, não é intendimento, não é substancia, não é
causa, não é ser ; é sôbre-mente, sôbre-intendimento,
sôbre-si4>i5tancia, sôbre-causa, i^ôbre-ser ; superior ao
ser, anterior á causa, ulterior ao intendimento, alem de
substancia, e mais que ser ; mente de toda u mente,
intendimento de todo o intendimento, substancia de
toda a substancia, causa de toda a causa, ser de todo
o ser.
Deus, ua phrase de Lactancio, mundum ènihilo fecit^
do nada fez o universo. Tolera a linguagem, applicada
XX 5
A essa estupenda obra, as palavras creou, fez, edificou,
ordenou, regulou, fabricou, architectou, construiu,
formou, e outras, aliás defícientiscimas todas para
representarem o que nem conceber pôde o verbo hu-
mano ; mas ao menos todos esses vocábulos dao va-
riantes da idéa da - creacao sem esforço intellectual.
Nunca jamais escriptor, que SQubesse os segredos de
•qualquer idioma, diria que Deus inventara rochedos ; jâ
que V. se proclama tao lido, e alardeia a sua citação de
auctores, procure n'elles se algum ousou jamais appli-
car o verbo inventar ao fiat da creacao. Nao achará
por certo.
« E UM CHARLi^TAO DE TAL JAEZ, MBTTIDO A CRITICO. ))
(Phrase que, por ordem de V., c& me applico a mim
mesmo),
— Repelli eu a locução rijeza cadavérica, como defi-
nição do rochedo. Pondo de parte parte dos impropérios,
eis-aqui como V. defende isto :
— « Cá o plantador de batatas críticas nao compre-
« hendeu que, para exprimir as rijeza^ graníticas se
« usava da expressão cadavérica. »
Cita a phrase do Eurico : « Era horribilissimo ver
convertido era cadáver, de todo immovel e mudo, o
Oceano. »*
( jue infeliz argumentador I No Eurico^ temos o Oce-
au j, naturalmente animado e vivo, immovel e muJo ;
a comparação, pois, com o cadáver, é no tocante á im-
mobílidade e mudez ; imagem nobre e verdadeira.
No Gancho, confessa o próprio V. que o cadáver é
impetrado para symbolizar a rijeza granítica ! isto é,
em vez de alludir ao movimento e á acção, refere-se á
substancia da matéria ; e para exaltar a rijeza do
mármore, que é sempre duríssimo, compara-o com a
carne, que no próprio cadáver, posta em parallelo com
um rochedo granítico, é sempre fláccida e molle.
ícE UM CHARLATÃO DE TAL JAEZ MRTTIDO A CRÍTlCo!» Cá
tne vou disciplinando com estas disciplinas que o bom
do Senio tem a caridade de administrar-me, por inter-
médio do Sr. V. E a propósito : nunca eu tinha com-
prehendido a razão de se denominarem disciplinas,
tanto as artes liberaes e scienciascomo certos bacalháos
com que os disciplinantes até nas procissões costu-
r:iMvam açoutar-se. Agora, sim senhor, já intendo. Por
6 XX
nao avaliar a omnisciência do Sr. Capitão Mór em
todas as disciplinas, aquellas enérgicas phrases sao a*
disciplinas com que elle flagella o
Teo obediente creado
ClNCINNATO.
l^onu-iineiito a Booa^e.
De uma carta fidedigna recem-recebida de Lisboa
copi&mos o seguinte, que deve interessar a muitas pes-
soas n^este paiz, visto ter sido aqui iniciado o projecto,
que se está tractando de levar proximamente ao cabo.
Eis-aqui :
— « Tem sido, em todos os ponctos,seguidas. tanto
n'esta cidade, como em Setúbal, as recommendaçOes^
dos Srs. conselheiro J. F. de Castilho, e Barão de S,
Clemente, Presidente e Vice-Presidente da CommissRo
Central do monumento no Rio de Janeiro, incumbidos
pela mesma commissao de dirigir a conclusão dos
trabalhos.
Foram egualmente recr^bidos os convites d^aquelles
senhores aos vários cavalheiros que designaram nas
duas cidades para constituirem commissoes especiaes,
A de Lisboa, presidida pelos Srs. Marquez d' Ávila
e Bolama, e Visconde de Castilho, vai reunir-se para
deliberar, de accôrdo com as in.strucçOes recebidas,
sendo o local das suas sessões na Academia Real das
Sciencias.
O desenho do monumento está muito exacto, tal
qual o deu o jornal illuslrado d'essa corte Vida Flu-
minense^ só com a differeuça de que no logar indicado
com armas reaes, estão lyras.
A estátua, que muito honra o esculptor Reis, está
prompta, como tudo mais. Gravaram-so na.? quatro
frentes do pedestal os seguintes quartetos, do próprio
Bocage :
1®. Frente
De Elmano èis sobre o mármore sagrado
a lyra, em que chorava ou ria amores...
Ser d'elles, ser das musas, foi seo fado.
Honrera-lhe a lyra vates e amadores !
2". Lado esquerdo da estJtiia,
Doou-me Phebo aos séculos vindouros.
Deponho a flor da vidn, e guardo o fructo.
Pagando á vil matéria um vão tributo,
retenho a posse d* immortaes thesonros.
3**. Costas.
E!ste, com quem se ufana a pedra erguida.
ah ! se incantou com sonorosas cores...
já Bocage nao é ! n&o sois, amores !
Chorae^he a morte, e celebrae-lhe a vida !
4*. Lado direito da estátua.
Um Nume, só terrível ao tyranno,
nao à triste mortal fragilidade,
eis o Deus, que consola a humanidade,
eis o Deus da razão, o Deus de Elmano.
No dia 9 do corrente (octubro) foram a Setúbal, o
Sr. Salles. domno da officina ondif foi feito o monumen-
to, e o Sr. A. Torquato Azedo e Silva, para esse fim
êommissionado.
Apenas chegaram, passaram immediatamente a exa-
minar com attenç>»o qujil a praça que melhor se pres-
tava ao intuito. Acharam que a praça, jà denominada de
Bocage, era grande e assaz desegual no seo todo ; mas
que a parte que propriamente se pode chamar praça era
a mais adequada, e tal qual podesse deseiar-se, se de
novo houvesse de ser feiui. Nao tem casebres, ou pré-
dios em máo estado, senão um, que pertence a um
cavalheiro opulento, o qual acaba de construir um pa-
lacete na rua que deita frente para a praia, e parece
t^ír promettido erguer agora n'aquelle chão um edifício
digno da elegante praça
Ha duas grandes construcções que a affrontam, e que
naturalmente um dia desapparecerao ; entretanto ficam
um pouco distantes, e nao no recinto da praça : sao
uma egrejae o Paço da Gamara; ambos estes edificios
sobresaem do alinhamento dos prédios ; mas ficam em
tal distancia que nada tem com a praça propriamente
dieta. Ha também um chafariz defronte do Paço da
Camará ; fica no meio da rua, mas também em distan-
cia, que nao prejudica o offeito, E' egualmente n'a-
qiielle largo o mercado da fracta, mns mui afastado do
recinto da prnça de Bocage, a qual verdadeiramente
fica isolada, e é do tamanho tal que se proporciona per-
feitamente com o tamanho da memória.
A Camará reuniu-se logo, e ambos aquelles senhores
se lhe apnresentaram. Entregue a carta que levavam do
8 XX
Sr. Visconde de Castilho (impossibilitado de ir pes-
soalmente) ao Presidente da Gamara, Sr. Dr. Manitto,
que a recebeu em pé, leu-a, e dice que o Sr. Conselheiro
J. F. de Castilho, quando alli fora, mostrara preferir a
praça de Bocage para a erecção do monumento, mas
que perguntava se levavam ordem de escjlher outra.
Sendo-lhe respondido que nao, « Nesse caso (dice o
venerando Presidente) a Camará Municipal decidiu que
fosse posta a praça á disposição da Commissao C mtral
no Rio de Janeiro. Podem começar a obra quando qui-
zerem ; eeu, por deliberação da Camaia, estou auctori-
zado para declarar que ella está prompta para cooperar^
da melhor vontade, com aquillo que poder, para a
realisaçao do pensamento da Commissao no Brazil. »
Responderam-lhe que a Commiosao no Brazil pedia
licença paranlo receber auxílio algum pecuniário, ou
de outra qualquer natureza, com relação a tudo que diz
respeito ao monumento ; e só pedia que a Camará fi-
zesse quanto podesse para que a inauguração se veri-
ficasse com a grandeza devida ao vulto a quem se
honrava. Foi respondido que a Camará se empenharia
n*isso, quanto coubesse em seos meios e faculdades.
Immediatamente se começaram os trabalhos, por-
que, nas instrucções do Brazil, se havia pedido que a
inauguração .se realizasse no dia 21 de dezembro,
sexagésimo sexto anniversàrio do passamento do poeta ;
mas uma circumstància, que era desconhecida, torna
problemática a fixação do dia. Com effeito, adquiriu-se
certeza de que, a uns cinco palmos abaixo do chão,
âe iílcontra água, nau só alli, mas ainda muito mais
distante do mar , na mesma direcção ; sendo in-
dispensável possante estacaria para solidificar o ter-
reno, de modo que possa aguentar o grande peso,
como aliás tem sido obrigados a praticar, com assaz
avultada despesa. diversos prop.-ietários que n'aquellas
immediaçOes têm mandado edificar.
Ficava-se egualmente aformoseando a praça, para
o que 03 moradores concorriam jubilosamente. Em
Lisboa se preparava umà elegante gradaria, para ro-
dear o monumento. A alguma distancia vao Sr^r col-
locados quatro renques parallelogrammáticos de ár-
vores, alternadas com bancos de ferro. Por fora d*estes
bancos e árvores, segue, também em parallelogramma^
uma bonita calçada, de pedra miúda, da qual sobre-
ssem «eis coUossaes lampeoes.
XX 9
'! Tudo estará acabado para o dia 21 de dezembro^
caso o permitta, como dicto fica, a abertura e o pre-
paro, a que se procede, dos alicerces. »
CONTO.
o GRÃO SENHOR DAS LETTRAS
Um dia certo pedante
da turba dos pomadistas
lembrou-se de assentar praça
no bando dos romancistas.
D' entre todos os assumptos
nenhum lhe quadrou melhor
que as ddicias dos selvagens
sob o império do amor.
E elle, então todo inlevado
no seo próprio aj uizar,
introu logo em movimento,
e poz-se a penna a aparar.
N» sublime operação
empregou mais de hora e meia :
era tempo de invernada ,
e a noite de lua cheia.
Por acaso, juncto & mesa
onde se ^ oz a escrever,
veiu miar-lhe um gatinho
magrinho, quasi a mjrrer.
E o escripior emproado,
intrando em meditação,
tomou isto por preságio
de futura elevação.
De chofre exclamou suberbo,
trovejando em tom severo :
« Sê tu minha musa, oh! gato!
« iuvocar a ti só quero :
« Que importa que sejas macho^
« e as musas ?ní///ierps sejam?
« eu creio que, ao leo influxii,
4. mais alto os cysnes adejam.
<i Vem tu, pois, abre-me os cofres
« da suprema inspiração !
a faze que o meo génio exceda
<x toda a humana geração !
10
« Escreverei prosa e verso,
« como ninguém tenha escripto ;
« vou no drama e no romance
a ter valor mais que infinito *
« Hei de mostrar aos oue julgpam
« valer, um pouquito o Horácio,
« qufto longe estava do bello
« aquelle génio do Lácio :
n E se ha hi quem louca fama
« proclame grãos sabedores,
a nade fazer de seos louros
u holocausto a meos furores. »
Segue-se ligeira pausa,
e depois inthusiasraado,
eis solta esplendidos voos
ao seo estro sublimado
Leu, tresleu, roeu as unhas,
borrou papel a valer,
e um formosíssimo drama
veiu então a apparecer.
O rapas ^ que da pomada
faz um commér io per^nne,
pôde erguer nos seos escr!ptos
um monumento solemne.
Desde a hora em que lhe appronve
vagar das lettras no espaço,
Desbancou Virgílio, Homero,
Lucano, Camões e Tasso.
Como poeta e estylisía^
nenhum lhe i^anha vantagem :
todos a flux, cabisbaixos,
lhe prestam preito e homenagem,
E' fecundo dramaturgo,
é raro folhetinista,
historiador sem segundo^
delicado romancista.
Qual eschola ou meia eschola !
forma eschola por si só :
todas as mais são supérfluas,
ninharias, fumo, pó.
O que mais alto distingue
o seu mérito immortal,
é o pendor que o impelle
á cultura da moral.
Passa por ser um dos homens
XX 11
mais lidos n'essa cidade:
— Bom milagre do gatinho,
que fez tanta novidade : —
£' condão dos pomadistas,
que tudo deixam atraz:
Basta um gesto de arrogância;
a prova está no rapaz.
Ck)'um escrópulo de audácia^
meia onça de franqueza^
quatro oitavas de mystérios,
e a cerviz erguida e teza;
com certo ar d'aita importância^
de plebéa fidalguia^
e um pince-nez e umas lavas
e a phrase nlmio bravia^
ani surge um homem grande,
um htterato, um poeta^
embora na mente côncava
confunda a curva co'a recta.
Mas o mundo é assim mesmo:
os parvos sSo sabichões ;
os sábios sao vis jarrê as,
que nao vale>m attençOes.
Ser pomadistal..,. Isto agora
è caso muito diverso:
so quem cultiva a pomada
é grande em prosa e no verso.
O exemplo é bem patê ate,
eiPo ahi no grau maior:
3uem pôde negar a fama
as lettras ao Grão-Senhor ?!...
Exalçado à eternidade
pela inspiração de um gato ! !
quem jamais poderá crêl-o ! ?
pois o conto é muito exacto.
Ouvi-o a certa velhinha,
que tí das fidalgas d^aJèm^
e que sabe muita cousa
que faz mal e que faz bem.
Asseguro que ella mesma
me contou toda essa história;
e eu muito crente nos contos,
conse^^vpi este em memória.
Transmittindo-o agora mesiio
á plena publicidade.
12 XX
dou prova de que n?io zombo
dos aireitos da verdade.
Pago um tributo á pomada,
saudando o mór pomadista^
o poeta^ andor de dramas,
historiador^ romancista.
Deus Ihft dê annosde vida,
para ser ainda maior.
Eu só lhe peço uma graça.
— Não desprese o meo amor.
Archiloco.
« — ^Já leste, Jucá, a Iracema ? »
<c — Vale a pena ? »
« — E' obra prima... »
o — Algum romance ? »
((-•E' um poema,
lido... de baixo p'ra cima. »
<( — Li três vezes o Gaácho,
Achei-o três vezes chocho. »
« — Pois eu li-o uma só vez,
e achei-o três vezes três. »
Da tal Pala da Gazella
eis o inrêdo verdadeiro.
Cautela, leitor, cautela !
Quando a ii, perdi meo tempo ;
quando a comprei, meo dinheiro.
Themisiocles,
FIM.
XX 18
0 r
das xiiatcirias contidas xi'cste voliune. >
( H, B. Ás A primeirat carias dç Cintinnato constituem o Vi. 1. O «nte
vai apontado em cifra romana indica o número, que se esífnde dei a
XX. O que vai em cifra arábica indica a pdgina da rf^ívectito número.)
Cartajs vh CiNaNNATo ▲ Fabru
1*. — Poder pessoal . 1 :j
2*. — Idem. Linguagem de um parlamentar I 29
2*. — Anályse de um discurso. O projecto so-
bre o elemento servil A escravidão.
As iras.Se o projecto baixou do alto 1 51
4*. — Os estrangeiros I 63
5". — Anàlyse de um discurso de inierpella-
ção. As dentadas. A imprensa. A
estrangeirophobia. As calúmnias
do interpellante II 3
6*. — Defesa de Cincinnato contra as accu-
saçõfts da interpellaçao .... Ill 6
7'. — Elemento servil. As suppostas contra-
dicçoes . • IV 6
8*. — Arguições infundadas. Plano de estor-
var a lei. Dos oradores lálariantes. V 4
9*. — O projecto sobre elemento servil, no
senado. As variadas providencias
que a lei ainda demandará . . . VII 8
10'. — A origem de certas opposições à lei.
Benefícios que d'ella resultarão. . VIII 8
II*. — Defesa de Cincinnato contra as accu-
saçõed da interpellaçao. . . . XII II
12*. — O interpellante convencido de cata-
vento e mercenário XIII 12
13'.— O Gaúcho. A 1' Palestra do Didrio
do Rio XVII 6
14'.— Idem. A 2-, e 3- XVIU I
Io\ — A Rússia, depois da emancipação dos
servos. O Brazil, depois da lei de 28
do septembro XIX 1
Cartas de Cincinnato a Semprónio [sobre o Gaúcho) .
1.— IX 7
2'.- Xi -4
3*. —O Gaúcho. As palestras do Wrfrio do Rio aIX 6
4'.— Idem XX I
V
IJaktas de Sempronio a um amigo (sobre o ííaí^çho)
i\\ 1—2*. VI 3—3'. VIÍ 1-4'. VIII l— 5'.X lO
>^6\ XII 6—7'. XUl 6—8'. XIV 6.
/ Artu o db Sólon
Reforma^ Judiciária . 111 l
Aktioos de Junius
Eis a tribii de Levi, do partido conservador IV
A quesUJó do elemento servil.* .... VI
Asesslode 1871. XU
Tendências desorganisadoras XUl
A política especulativa XIV
A república federativa XVU
Proposta do Sr duque di Saldanha
Necessidade da associação cathólica. '. . IX 15 X 2
Discurso do Sr. visconde de Rio Branco
Eespoiáta & interpellaçao do Sr. Alencar . V 13
Artigos sIsm assignaTura
Vinte e quatro de septembro. D. Pedro I . IX l
Três de julho (poesia) IX 3
x\boliçâo da escravidão X 1
Sessão parlamentar de 1871 XI 1
Monumento a Bocage. Acta da sessão de
. 4 de junho de 1871 da commissao central XV 1
Idem idem. Artigo do Sr. Dr. Pedro Luiz
Pereira de Souza XVI l
Idem idem. Correspondência entre o Sr. A.
r. de Castilho e a camará de Setúbal. , XVI 4
Idem idem. Artigo da Vida Fluminense, . XVIU 11
Idem iáem. D.'' áfi Gazela de Setúbal. . . XVIU 13
Idem idem. Noticiário de Lisboa. , . . XX 6
Infermidades da língua XVIU 8
Artigos do Jornal o a Dhazil »
Introduccílo XIV 12
O Brazil litteràrio XIV 15
Noticiário XIV 16 XIX 16
Artigo du (cJornal do Recife
Dous discursos do conselheiro J. de Alencar Hl 121V 14
Artigo du Jornal «La Naliou
Notável discurso do Sr. Paranhos . . . VIU 14
CoNTOS), EPIGRAMMAS E MADR10AE8
De Quintiliano . ...'... XI 15 XVU 16
De Themistocles XU 16 XVU 16 XX 12
De Zero, XI lõ, 15, 15, 15, 16, 16, 16 XU 15, 15, 16, 16
C\)nto. por Archíloco XX 9
POKSUDE PlTT B BLACkSTONE
As causas aas causas . • VI 12
OOESTOES DO DIA;
observações politicas e litterárias
eseriptas por yários
B
POR
j£uceo ^aená^ (umannaA.
TOMO U
RIO DE JANEIRO
TYPOORAPHU B LITHOGRAPHIA — IMPARCIAL —
146 A RUA SBTE DB SETEMBRO 146 A
18T1
Adverlencia.
^^^■^^^^^^«#%«%«NrfN^kM^h^«tf^^k^»tf«^
Várias pessoas collaboram ii'esta publicação ; cada
uma escolheu um pseudóuymo. Teado-se concordado
em plena liberdade de redacção, cada signatário só é
moralmente responsável pelo que subscreve.
QUESTÕES DO DIA
N". 91
RIO DE JANEIRO 14 DE NOVEMBRO DE 1871.
Veode-se em casados Srs E. & H. Laemmert.— Agostinho de Freitas Gui-
marães âí Comp., 26, rua do General Camará.— Praça da Constituição,
Loja do canto.— Livraria Académica, Rua de S. José n. 119— Largo do
Paço n. C— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis.
A sinoex^ldade das aooSes
opposlolonlstas.- "
As opposiçOes, nos governos de livre discussão, para
serem úteis, cumpre que sejam verdadeiras ; e para
isto devem, nos seos justos fins, inlacar-se em máxi-
mas, em princípios de ordem elevada, tendo somente
como poncto objectivo o público bem.
As opposições, como systema assentado unicamente
com o empenho de derrubarem os homens do poder,
sem escolha de armas, servindo-se de todas, boas e
más, com tanto que obtenham o descrédito do governo,
^sas opposições aninham em si elementos destruidores
dos princípios regulares da ordem e das conveniências
governativas: são opposiçOes pautadas somente por
ambições mal contidas, que podem, sim, destruir, á
força de suas incessantes martelladas, o edifício cons-
tituidoy se conseguirem transviar a opinião; mas, com
certeza, nada conseguirão recompor durável no terreno
político.
Odillon Barrot, e quantos, na mesma plana, hosti-
lizaram nos últimos annos, excitando as paixões popula-
res,© governo do sábio e venerável Luiz Philippe, iai-
putando-lhe erros, que não havia commettido, e reves-
tindo de cores negras as menores faltas administrati-
vas, sempre no tom de desconceito á monarchia de
Julho, ficaram surpreendidos, quando viram baquear
essa monarchia, que não queriam destruída, e, em
aeo logar, erguer-se a república, com todos os seos
demagógicos furores, que deram depois em resultado
o impário.
Nas vistas do illustre Thiers, o grande orador,
quando hostilizava o governo de Napoleão III, nfto
4 XXI
podia intrar o desialace que.se âeu. Adversário siste-
mático do império, orleaniBta reconhecido, elle, sem
dúyid», visava a substituição da ordem de cousas exis-
tente por alguma outra; mas essa nao era a república;
era uma nova monarchia.
Sem o presentir (fazemos-lhe essa justiça) concorreu
para as grandes calamidades, que cairam sobre sua
infeliz pátria; desmoronou-se o império, mas nSo o
substituiu o governo que desejava.
Ninguém, tanta como elle (porque^ nenhum outro
consegiuira tfto grande auctorídade na tribuna com im-
portantes discursos, preparados com tanto esmero «
talento), cavou a ruina do império : ninguém, tanto^
como elle, animou, affagou. as illusOes, os appetites
guerreiros, e a incontinência politica do povo trancez,
sempre inquieto, sempre vário, sempre ávido de novi-
dades, como bem havia apreciado Júlio César nos seos
commentáríos ha 19 séculos: mas intendera errada-
mente o grande orador opposicionista, que sua voz só
teria o alcance que lhe queria dar; que poderia mode-
rar 08 Ímpetos da naç&o, e guia!-os com osoccorro dos
eiTos do império, atè onde (fazemos-lhe também esta
jnstiçaj considerava exigil-o o bem do seo paiz, e a po-
litica aa sua concepção.
Quando os homens importantes por suas posiçOes e
por seos talentos se excedem nos seos meios de oppo-
siçao contra o governo, auctorizam, com o seo ceusn-
ravel exemplo, outros excessos, que, em suas consciên-
cias, nao poderão approvar, mas contra os quaes nao
se animam a protestar abertamente. E accontece que,
assim coUocados em um plano inclinado, quasi sempre
vao escorregando gradualmente para um terreno, que
nunca poderá convir-lhes, e no qual, ou terão de sus-
tentar posição falsa, ou de fazer grande esftrço para
voltarem a melhor caminho.
Foi o que acconteceu ao illustre Thiers. Se fftsse po-
litico tao eminente, ou menos apaixonado, como é no-
tável orador, teria sabido regular a sua opposiçao ás
faltas graves do império, de moio que evitasse o
plano inclinado, por onde, a seo pesar sem dúvida, se
sentiu resvalar.
Em politica as boas intenções nao absolvem dos
grandes erros : estes somente podem, mas apenas eoo
parte, ser attenuados, ou resgatados por importantes
serviços, como aquelles que procura prestar actual*
KXI 5
mente A Franca humilhada o eminente chefe do poder
«Kecntiyo.
Se a história dos pas^sados tempos é sempre instruc-
tira, miais proveitosas devem ser para os governos é
jpara os povos as licçOes dos factos contemporâneos de
países que marcham na frente da civilisação do
mundo.
 França, a orgulhosa, a poderosa, a gloriosa
França d&-nas actualmente prova bem digna de estudo,
-com as tristes e espantosas peripécias porque tem pas-
sado n'estes últimos tempos.
D'onde tem nascido essa lucta continua d*aquelle
nobre paiz, no redemoinho político ?
• Como o doente que não inrontra no leito posição que
o satisfaça, procura o melhor governo, mas nenhum o
contenta; e hoje está mais distanciado de socêgo po-
litico, do que em qualquer outro período de sua exis-
tência, visto como tudo alli actualmente é transitório.
Nada aprendeu no passado: saberá agora aprender
com a dolorosa licçao presente ?
A tribuna e a imprensa, grandes pliaróes da civili-
sação moderna, e, antes d'elles, e com elles, aphiloso-
phia que illustra,e guia o espirito humano,preparando
os povos para bl^ grandes conquistas moraes no per-
passar das edades, fízerara da França, não ha dúvida,
iim grande paiz, nas lettras, nas artes, na riqueza,nas
indústrias, na força, e na glória.
* Consagrado como verdadeiro este princípio, a França
tem sido ao mesmo tempo, mais que algum outro paiz
do mundo civilizado, victima dos excessos, das paixões,
dos erros, e da fallácia arguciosa da tribuna, da im-
prensa, e da philosophia mendaz, que lhe cavaram a
queda horrorosa no abysmo
Princípios exaggerados ou falsos fizeram alli pullu-
lar escriptos de doctrinas perniciosas, influindo de
modo deplorável sobre o characttr das turbas menos
instruídas, e o geral do povo.
E este mal, que é grande na França, também se tem
inoculado, e vai fazendo sequella era outros paizes ;
▼ai-se tornando um perigo de todos os dias, nos povos
do anti»ro continente.
A commuiia^ que tao desastrosa se ostentou com esse
desfaçamento, que surprendeu o mundo inteiro, alta-
mente denuncia o relaxamento dos indispensáveis vín-
-culos da sociedade humana.
6 XXI
A Internacional^ sua sócia 6 irmã. gémea, declarando
guerra ao capital, ou querendo subordinal-o à bitola
de uma insensata economia política, denuncia a au-
sência de todo o bom senso nas numerosas classes ope-
rárias de diversos paizes europêos; porque sem o capital
o trabalho não pode ser fundado ; e se não ha capital
que anime o trabalho, este não pôde existir; e, se não
ha trabalho, o povo fenece na miséria.
A sociedade, em suas condições de ser, nos elos que a
f>rendem em laços necessários, só pôde manter-se regu-
ar com essa harmonia que resulta da reunião das for-
ças de cada um, e com a troca dos serviços e auxílios
de todos entre si.
Os lavores não podem ser eguaes, porque as aptidões
differem, e umas são mais lucrativas do que outras !
A actividade individual e a intelligencia nao são egua-
ladas pela natureza.
Uns nascem com propensão para o commércio; outros
para as artes ; outros para tal ou tal industria.
Este têm queda para a poesia ; aquelle para a pin-
tura : uns para as sciencias e estudos superiores, e
outros para a lavoura ; e assim por deante.
Ora o que é certo é que todas as classes dependem
umas das outras, as ricas como as pobres ; e d'ahi essa
harmonia que fortifica a todos, arapajando-se, com o^
secs meios uns aos outros no interesse commum e
geral.
A communa inspirou-se nas idéas perniciosas de es-
criptores sem consciência, que empregaram e empre-
gam o talento em especular sobre os ânimos da mul-
tidão, qUe sonha venturas, acceitando taes doctrinas.
São despresiveis especuladores, que merecem o aná-
thema da sociedade.
Mas não são somente os que assim tão baixa e peri-
gosamente especulam com o povo os que devemos con-
demnar.
Os demolidores políticos, que se arvoram em de-
fensores de princípios que ninguém ataca, o inventam,
a seo bel prazer, factos que adulteram, ou os desfigu-
ram, mentindo á consciência do dever de bons cida-
dãos, são justamente merecedores da expnibraçao
geral.
No nosso paiz, se não ha apóstolos do communismo,
nem filiados da Internacional, ha certos regeneradores
da sociedade política brazileira, que estão de continuo
XXI 7
a insinar idéas contrárias à ordem politica existente,
como salvatério^ que trará ao paiz uma edade de ouro.
Em outra linha de combatentes, ha muitos que in-
tendem despender bem toda a sua actividade intel-
lectual, e fazer justa applicação do seo patriotismo,
atiçando o fogo sagrado da liberdade com uma oppo-
siçâo constante aos actos do governo, e mais ainda, se
taes actos têm cunho conspícuo na ordem administra-
tiva.
Ora das folhas opposicionistas o governo não pôde
esperar louvores ; mas entre o louvor de que prescinde
e a censura baseada em falsa appreciaç&o, ha grande
distancia.
Esta politica de verdadeira personalidade podia bem
ser substituida por outra mais elevada, eque justamente
o paiz agradeceria, occupando-se as folhas opposicio-
nistas das muitas necessidades de ordem industrial e
económica, e também de várias leis administrativas, no
interesse da boa governança do Estado.
A licçao das desgraças estranhas, a experiência do-
lorosa dos outros paizes n9o lhes insina o perigo das
talsas idéas, e das ambições incontinentes ?
Dar-se-ha caso que nunca se po.ssa, ou se queira
aprender nos males alheios ?
Triste obcecaçao da raça humana!... muitas vezes
nem a experiência própria, por dolorosa que seja, serve
de correctivo, e evita a repetição dos erros !...
Como amigo sincero da nossa pátria, sempre con-
demnaremos a política regulada pelos interesses mo-
veis e egoístas das facções.
JUNIUS.
Oarta 5«
DE CINCINNATO A SEMPRÒNIO.
Rio, 9 de novembro de 1871.
Respeitável Semprónio.
Tenho a stulta manha de muitas vezes discursar de
alhos quando se tracta de bugalhos ; e se me cai a
talho de fouce uma leitura que me quadra, transcrevo
logo, embora venha despropositada; e comod'istojá
agora me nfto emendo, porque quem torto nasce, tarde
ou nunca se indireita, lá vai uma das taes leituras,
sem atilho nem vencilho.
Celebrava-se antigamente em algumas egrejas do
Norte, por £ns de dezembro, uma ie^t^ denominada
Libertas decemjbrka^ ou, mais commupaojiante, do Papa
fytuorum. Np tempo dos officios divinos, saiam da ca*
tliedral os clérigos emmascarados, ou em trajos mu*
llieris, ou vestidos de bQbus e chocarreiros, dançapdo
jà saltando e correndo, qom grandes alaridos. Junctos
jQo choro, can^vam cftntigas deshonestas, faziam dos
altares mesas, com grandes comesanas e galhofas, dei-
tavam solas de chichellos nos thuribulos, e com fétido
luuio incensavam as paredes, e com outras sacrílegas
ep^travjagancias, procediam & eleição do seo Poutifíce,
que tinha por titulo O Papa dos fátuos. Foi conti-
nuando este b&rbaro escândalo, até que, em 1444, os
theólogos da faculdade de Paris, com a circular que
dirigiram aos prelados de França, e que depois foi
]àada á luz por João Savaro, extinguiram a festa do
Pçipa fatuorum. Fizeram muito bem, e estou conven-
cido de que nunca mais se rastabelecerà o ridículo pro-
topapado.
Emfim, deixemos os assombrosos costumes da edade
média, tão outros dos actus^s, e continuemos a nossa
pr&tica litterária.
Uma folha d'esta capital, de aspirações adeantadis-
simas, dâ ao orbe intellectual a fausta notícia de que
ás suas columnas coube a glória de serem escolhidas
para uma nova brilhatura romaatica do Sr. José d'A-
lencar, o conservador. Hade chamar-se-lhe.. O TU I e
justificar a qualificação, já dada ao seo auctor, de chefe
da litteratura brazileira. Podes imaginar com que an-
ciedade é esperado o novo parto da fecunda musa,para
glória nacional, orgulho e desvaiíecimento (da pá-
tria [sic).
E para matar o tempo, que tão moroso se espre-
guiça até á chegada do apregoado Messias, vamos con-
tinuando a examinar, com profundo respeito, a ele-
gante defesa que Senio publica, de si mesmo, pela voz
do seo confrade V., nas Palestras áo Diário. Segue-
se a 4'. :
§ 7.** As citações erradas.
A primeira cousa que me chama a atteução são
as duas citações, portugueza e latina, por onde a vasta
erudição do meo indómito contendor começa desde logo
.a patentear-se : patuit dea I
JXL 9
Já temos observado quão competente é Seaio na...
lioguagem enérgica : ora as accumulaçoes estão pro-
Mbidas, e um homem, por mais admirável que nos
pareça, nao pôde ser omnisciente. As orelhas do porta-
voz de Senio, quaesquer que suas dimensões sejam,
-está visto que tem mal collocados os anfractos e emi-
nências do seo helix e anthelix : são antípodas da har-
monia métrica, e sou eu o primeiro que pugno pela
coherencia do meo nobre adversário, ao menos n'este
poncto: nunca emprega u ma citação, em idioma al-
gum, que a não estropie radicalmente ; e tão feliz é
na solução d'e3te problema, que, se Herodes tivesse
sido egualmente severo em não poupar um só innocen-
te, o menino Jesus não houvera escapadq ao tetrarcha
da Judéa! Ora eis-aqui citações feitas pelo bom do
Senio n'estas Palestras. Em latim, diz elle :
SiccstidcB MusoB, paulo majora canamus.
Devia escrever :
Sicelides Musob, paulo majora canamus ( Virg. Egl. 4)
E até no macarróníco erra, pondo :
Pfós quoquegens samus, et cavalgara sabemus. (Palito)
E n'outro íogar, trazido como Pilatos ao credo:
... trensversis tiientibus hircis,
leia-se :
... transversa tuentibus hircis (Virg. Egl. 3)
Em france/. erra os versos da Racine, di-^endo :
CependaiU^ sur le dos de la píaine huinide,
s^élève à g^oss bouillons une montugne liquide^
quando o que o harmonioso vate escreveu, foi ( como
já notei )
Cependant, sa^ le dos de In plaina liquide
s^éUve à gros í^uillons une montagne humide.
Mas quH arimira se as orelhas e o sentido, nem se-
quer em portuguez o ajudam ! E' assim que cita uma
quadra, que é da 3*. carta do Toleutino (ao cabellei-
reiro) as.^im .*
Mil vezes travessas musas
da obra o desviam ;
e, mostrando -lhe o tincteiro,
pós e banhas lhe escondiam,
quando no 4" verso a palavra é no singular, banha; e
o 2*. é :
da baixa obra o Jesviam
^tc. etc. Nem assombra que imagine serem tudo
• J -ii llj.l
10 XXI
aquillo versos, quem desde a 1". Palestra se mostrou
tao intelligente d'elles, que a terminou por estes dous,
nao de ane menor, mas de arte mínima :
Cobre o rosto ^ Lusitânia I
Querem fazer de ti Lapónia I
E nao te ponhas tu agora a imaginar serem tudo isto
innocentes incúrias typcgráphicas, como vais ver.
Tendo no Jonial do Commercio^ do dia 19 de octubro,
apparecido um artigo, cujo auctor te dou minha pa-
lavra que ainda hoje ignoro quem seja, e em que o
Sr. V. é posto no seo logar, saiu-se este critico, logo
no dia seguinte, com uma Palestra avulsa^ em resposta,
onde se lê o seguinte :
ií Ora pillulal e eu nao ia tomando ao sério este sub-
« jeito que fala em estropeari vejam como citou o
« lindo verso de Camões ! Em vez de
« Ohl tu que tens de humano o gesto e o peito
« estropea-o d'esta forma :
a Ohl tu quede humano só tens o gesto e o ptUo.)>
Perdeu portanto todo o direito de escudar-se com os
typógraphos em suas citações, quem, depois de ter
commettido todos aquelles erros, sem os emendar,
e nem sequer dar por isso, se appresenta inexorável
contra um erro análogo de terceiro (que talvez tivesse
em vista fazer-lhe o epigramma de imital-o). E' lei da
natureza que eu padeça o mesmo que eu fiz padecer a
outro; é o que os Rabbinos denominavam Talião idên-
tico ou pyíhagórico; ao pé da lettra: é a applicacao do
Levitico : « Quòd si quis intulerit corporis vitiuni pró-
ximo suo, quemadmodum fecit, sic fiat ei: fractura
pro factura, oculus pro óculo, dens pro dente ete. »
« E UM CHARLATÃO DE TAL JAEZ METTIDO A CRÍTICO I)>
( Phrase nao minha, mas com que este mesmo ve-
nerando Sr. V. devida e charidosamente síí dignou
flagellar-me).
§ 8°. A ambula immensa tem só duas faces
convexas : o mar e o cèo.
A's vezes hesito quasi na paternidade das Palestras :
sao ellas de Senio, ou de algum figadal inimigo seo ?
Quando uma vez se teve a infelicidade de atirar ao
papel phrases assiai, o único arbítrio prudentíí ê con-
tinuar no anterior syste ma: esmagar os censores com
o silencio do mais soberano desprêso ; d'esse modo ha
certa coherencia com uma phrase que ouvidos fidedig-
XXI u
nos attribuem a Senio: « Eu minca leio o que se escreve,
em mal^ de mim, » Ha nestas baforadas seo quê de
pantafaçudo, mas lambeu de habilissimo. Agora sus-
tentar polémica sobre evidencias d*estas f trazer o
ite^^m' Chrispinus para uma causa perdida ! fazer do
sambenito galla ! é manifestamente zombar do bom
senso público. E com que vem Senio á praça ? ouça-
mol-o, supprimindo sempre as phrases mais ascosas^
mas conservando toda apossança' da alta argumen-
tação:
« — E' claro que o auctor observa esse orbe do lado
« de fora ; e comparando ( o que *? ) com uma immensa
a ambula, imagina suas faces exteriormente, e portanto
« convexas. »
Que defesa esta, sancto Deus ! Ignorar o que seja
convexidade pôde denotar. . .isto ou aquillo,mas nao está
condemnado pelo Código Penal nem pela cartilha da
Padre Ignacio. Agora o que dos Códigos Penaes passa
para os Moraes são as circumstancias aggravantos que
n'este caso se dao de — ter o delinquente reincidido em
delícto da mesma natureza — ser impellido por motivo
reprovado — dar-se a premeditaçao — haver procedido
cora fraude — ter precedido ajuste entre 2 indivíduos
para o fim de commetter-se o crime.
Ora pois, como quem nao pôde, trapaceia, eis-aqui
como, ( aiuda assim para se sair com tão melancólica
apologia '• Senio obrou: havia elle escripto no Go/úcho
(p. 2):
— « No seio das ondas, o nauta sente-se isolado ; é
« átomo involto numa dobra do infinito. A ámbula
« immensa tem sô duas faces convexas, o maré o céo »
Desenvolve o aspecto do mar e do céo, vistos pelo
nauta, com o intuito de appresentar a ccmtraposição
do chão e da atmosphera que em seguida pinta, vistos
pelo viandante ua savana.
Então quem observa o mar e o céo ? é o. auctor ou é
o nauta ?
E ha mais : Para se livrar do absurdo que se lhe pa-
tenteou, cai nesta coarctada, e agora em absurdo ainda
maior. CoUoca o observador-auctor da parle de fora das
duas faces convexas, isto é, para alem do mar, para
aleui do céo, para alem do infinito ! De lá esse divino
Ivuce entre o qual e o nosso mar se interpõe milhões
de milhões de léguas e de astros, divisa distinctamente
Lão só o nosso planeta, que nem em forma de nebulosa
12 XXI
lhe seria dado inxergar, e em vez de só lubrigar dis-
tinguiria nelle clarameute a parte equórea, e reconhe-
<^eria manifestamente a sua lorma convexa ! Habilida*
des ! Mas o que maior habilidade seria ainda, é a se-
g-unda parte. Onde collocaria o auctor o seo observatório
de alem-universo, para vir dar à humanidade a incrivel
uoticia 1°. de que ha um logarfóra do infinito e das
^uas dobras, 2**. que o universo, visto d'esse logar, é
convexo ?
Eis os despropósitos a que nos levam emendas fal-
sas, e que ainda assim hcam peiores que o soneto.
Deixemo-nos de novas tricas e alicantinas, geradoras
de ainda mais estupendos disparates, é o nauta
quem, no Gaúcho, vê as duas convexidades, asquaes
constituem . . .uma perspectiva concava,outra horizontal!
Todavia parece, quanto a estas apparencias ópticas,
que ha mares e mares, e agora scei que nas viagens,
por ex. até Macahé, a vista é outra, pois me ensina o
Sr. V. como a cousa é.
Pergunta em que díccionário pesquei o termo hori-
zontalidade^ e tenho a honra de responder-lhe que no
diccionario das Necessidades e do senso commura.
«Quando a lingua me ensina que a parte internado
uma esphera oca constitue uma concavidade e a externa
uma convexidade ye^tk-me auctorizando a chamar hori-
zonlalidade[^OT nao se poder dar a idéa senão por longa
periphrase)a parte superior de uma linha que se cruza
em angulo recto com a vertical. Venhamos porém ao
que importa, qu^. não é a minha vernaculidade, visto
como todas as minhas pessoaes sabenças entrego eu,
semphiláucias,ao braço secular de Senioá C. ,soberanoi5
senhores, dominadores e únicos introductores e bele-
guins de todosos neologismos passados, presentes e
futuros. DizV :
« Basta ter embarcado para se saber que se aíRgura
<( a quem está no mar achar-se dentro de uma esphera;
(( porque o horizonte visual não é como o horizonte
« matliemàtico, perpendicular ao diâmetro da teri-a. w
Este porque é uma espécie de ergo rosas, porqxte
nunca tal consequência poderia conter-se era simi-
ihante principio, mas ronca bem, e representa a fun-
dura dos conhecimentos mathemáticos do DoUore En-
ciclopédico chiamato signor Se)tio, Mas peço ao nosso
Newton se digne instruir-me sobre a sua curiosa de-
iiuição, dissipando as dúvidas originadas da minha
XXI t^
i&ópia. O hori^íonte imaginário, que os astrónomos de-
nominam racional ou geocêntrico^ será acaso uma linha
que se suppOe passar pelo centro da terra, dividindo
a esphera em duas metades, mas parallela ao ho-
rizonte astronómico *? e este horizonte nao é o plano
tangente ao logar oftde o espectador se acha ? §e to-
dos os pontos do globo podem por tanto ser o ele-
mento variabilíssimo do cálculo db horizonte geocên-
trico, como é que o preclaro professor do observatório
do infinito não vê nesse horizonte senfto perpétua per-
gindicular ao diâmetro da terra 1 e também se não*
ra receio de infadar, quizera aprender se a tal linha
é perpendicular ao diâmetro ou ao contrário perpen-
dicular ao eixo da terra, pois me parece que dá para
tudo.
Só resta por tanto, independentemente dosscienti-
ficos porquês ^ a certeza de que o olho de quem viajA
até Macahé persuade o nauta de que sulca o centro
de uma esphera, a qual se compõe, já se vê, de uma
abóbada que vai para cima, denominada firmamento,
ejà se sabe, para symetria, de outra egu ai concavi-
dade para baixo que profunda alé ás profundas, fican-
do necessariamente o nauta em situação dolorosa e
vertiginosa, com risco de dar um trambolhão por allí
abaixo, mais perigoso que o que no S. Luiz deram un&
meninos no Mundo ds avessai. Eu, como nunca via-
jei senão até Nictheroy, tinha tão ridículo olho que
toda a água me parecia horizontal, e pôr-me-hia a rir
de quem me quizesse persuadir de que se lhe afigura-
va estar collocado no centro de uma esphera. Mas
quem sabe, sabe.
Completam-se as amabilidades com a explicação
da âmbtila. Diz V : « Confunde âmbnla (vaso sagrado
e de bocca estreita e sem gargalo) com um frasco, que
chamaram também âmbula os antigos, pela simi-
Ihaaça de bojo. Com que sonhas, porco*? com a bo-
lota etc. y>
Eu, verdade seja, tenho enorme queda para os li-
anores espirituosos, e rara ó a semana em que não vou
ar com os ossos no xadrez da policia ; mas isso não
tira que o termo âtnbula não signifique um vaso de
vidro ou cristal, com maior ou menor bôcca ou gar-
galo ; e o applicar-se o vocábulo ao receptáculo do
santo chrisma ou do óleo com que os reis de França
se ungiam etc. em nada lhe altera a significação.
16 xxr
passo na vida das reformas, é sempre o primeiro a der*
ramar as águas do baptismo sobre a institaiçao,o prin-
cipio que ha de nascer para a nova vida social. Com<>
consequência d'esta verdade, toúa a homenagem ao-
progresso da civilisação e da scieneia acham sempre
n'elle o mais ardente partidário.
Por tudo isto brilham já para D. Pedro as horas
formosai de alegria e satisfacção que muitos soberano»
da Europa invejariam para si ao contemplar o enthu-
siasmo com que tem sido acolhido o sábio, modesto e
virtuoso guarda da liberdade de um povo no mais am-
plo gõso de uma existência próspera etranquilla.
Se olharmos para o Mexico;se examinarmos como em
quasi toda a América vai plantado o systema queWas-
nington legou aos yankees; se lançarmos um lançar de
olhos do Prata ao Pacifico, ha de o coração confranger-
se-nos ao ver tanta discórdia intima alterando de con**
tinuo a paz das familias; e o homem observador, acy
folhear a nistoria contemporânea da América, fixando
toda a sua attenç&o nas páginas que tao ricos exem-
plos offerecem á humanidade, e ao referir- se ao Brasil,
dirá espontaneamente : Eis o paiz mais feliz da terra? :
eis onde o império é paz, porque o chefe do e^adò
é o primeiro cidadão da nação, pela religião do dever e
da honra. [Brasil^ jornal de Lisboa).
NOTICIÁRIO.
Pantheon MARANHENSE. — O cxmo. sr.dr.Antonio Hen-
ríques Leal, distincto maranhense e muito considerado
na república das lettras, vai publicar uma obra com o
titulo doesta noticia.
Constará esta obra de três volumes em 8®. grande,
contendo as biographias dos maranhenses fallecidos
que honraram a província pelos seos escriptos, e pelos
seos serviços á pátria, entre os quaes Odorico Mendes,
Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, Lisboa, dr. Joaquim
Gomes de Souza, barão do Pindaré, Jos^ Cândido de
Moraes e Silva (Pharol), brigadeiro Falcflo, senador
Franco de Sá, Trajano G. de Carvalho, António Fran-
cisco de Sá etc.
Portugal que se ufana de ter em seo seio este dis^
tincto ornamento da litteratura, applaude já também a
notícia e espera ancioso por este trabalho, que hade de-
certo ser digno do já tao respeitável nome do sr. dr.
Leal, (Idem).
QUESTÕES DO DIA
]sr. 22
RIO DE JANEIRO 24 DE NOVEMBRO DE 1871.
VeDde-M em casa dos Srs E. & H. Laemmert.— Agostinho de Freitas Gui-
■aries & Comp., 26, rua do General Gamara.— Praça da Constituição,
Lqjado canto.— Livraria Académica, Rua de S. José n. 119 — ^ Largo do
Paço n. C.— Rua de Gonçalves Dias n. 79. — Preço 200 reis.
^ — ^^^—^-^^——^^^—^^-^^^
A Repiil>lloa e os estudantes.
I
Quem (mmr, sem maior reflexão, os echos de certo s
órgãos da imprensa brazileira,accreditará que o her-
pe lento da corrupção, lavrando surdamente pelo or-
ganismo social, tem invenenado as fontes da vida
a esta grande e poderosa nação, anniquilando n'ella
todos 08 princípios de ordem, todas as ideas do
honesto, todas as aspirações de liberdade e justiça.
— «A ineptidão, a ignorância e a immoralidade
( brada um ) mcarnam-se hoje nos altos funccioná-
rios do Estado, que são os depositários do poder
e os directores da suprema administração. Nuilida-
des, que nunca sonharam surgir da sombra, a que
estavam condemnadas ; espíritos mesquinhos e ta-
canhos, cujo horizonte intellectual é tão acanhado
como o do campanário em que nasceram, sentam-
se hoje nos conselhos da coroa. Incapazes de com-
prehender ( quanto mais de desempenhar) a mis-
são árdua e sublime de dirigir os destinos de um
povo nobre e generoso, imprimindo-lhe a direcção
aue reclama o espirito do século, servem somente
ae rémoras animadas ao progresso e desinvolvi-
mento d'esta parte da livre América, que recebeu
e aperfeiçoou o legado de civilisação do velho
mundo, a quem ha de,em breve, substituir nocyclo
do processo humanitário. )>
— «A monarchia (acode outro) é uma instituição
caduca e anachrónica, que se esboroa e desfaz em
u
XXII
I pó á luz das modernas idéas, como ao contacto do
Par se dissolve o cadáver incerrado ha séculos na
catacumba. A realeza — adoração de um fetiche,
fenuflexão a um symbolo illusório — não está jà era
armonia com o estado de perfeição da actual so-
ciedade. E' a essa obsoleta e caduca forma de go-
verno ; é a essa ficção ridícula e incompatível com
a dignidade humana, que torna sagrado e infallivel
fc^um nomem, collocando-o n'uma esphera superior
fás fraquezas communs de seos similhantes; é a
fessa mascarada ignóbil e truanesca que deve o Brazil
I arrastrar^e ainda hoje na retaguarda do progresso,
Lmiando outras nações menos favorecidas da Provi-
Idencia, mas em cujo seio germinou e deu sasona-
Idos fruclos a semente plantada por Washington e
Franklin no Novo Mundo, occupam logar de honra
o mappa dos povos cultos. »
E em seguida a tão estranhas tbeorias, concluem
b^os raptos declamatórios com o estribilho força-
■do: — « Uetirae-vos do poder, toupeiras; deixae
que as águias, únicas que podem incarar de frente
o sol das excelsas regiões, pousem em penelraes das
régias olympicas ; em vossas mãos, inexpertos Phae-
tontes. afrouxam-se os bridões á quadriga do sol,
e o carro vai ás tontas errando pelo espaço, até que
tombe em terra, levando comsigo oincendioca
devastação.
Mas para que o bom senso público, único juizo
ampetente e irrecorrível, recebesse o libello ac-
-cusatório e os artigos de preferencia, appresen-
tados pelos apó^toIus das novas idéas, fora de
mister que um e outros viessem acompanhados
de provas concludentes e irrecusáveis.
Cumpria, antes de tudo. pôr em relíívo e levará
luz da evidencia a falta de habilitações dos Pali-
nuros que empunham o timão ao leme da nau do
Estado.
Imputações de lál gravidade não são accreditadas
pelo simples enunciado. Ciíae os factos I aponctae
os erros f descarnae as misérias da alta adminis-
tração I e a nação inteira vos será grata por haver-
XXII 19
des arrancado ás gralhas as pennas do pavão, e
reduzido a suas reaes proporções os pigmeos, que
tentam inculcar-se gigantes, subindo em andas de
taquara. Eia, senhores da imprensa regeneradora ;
despi os histriões de seos ouropéis e lentejoulas ;
desfazei os embustes dos prestidigitadores, e ex-
Sonde^os á apupada da praça pública na sua ver-
adeira nudez.
Mas não é este o systema, que haveis adoptado.
Vossas ousadas asserções vêm sempre á luz da pu-
filicidade desaccompanhadas de demonstração, sem
apparencias de verdade, e até sem visos de plausibi-
lidade. Abris o vocabulário das ir^júrias, escolheis
n*elle os mais ferinos doestos, os mais affrontosos
insultos e os arrojais a mãos cheias contra os re-
presentantes do poder, que tem direito, senão a
vosso respeito e deferência, ao menos á corteziá,
3ue se devem mutuamente os homens bem educa-
os.
E, quando desfeita, ao sopro da anályse, a volu-
mosa bolha de sabão da vossa objurgatória, o que
se vê? Nada, alem de mera declamação; naua,
alem de factos appreciados sob o prisma de falsos
princípios e desfigurados pela má vontade e por
inexactas informações.
E quereis que sobre tão frágeis alicerces firme
a opinião pública um veredictnm condemnatório con-
tra eminentes cidadãos, cuja primeira virtude é
acceitar o poder, n'uin paiz em que se cospe a saliva
da injúria e o veneno da calúmuia contra os aue
assim alcançam a confiança da coroa e do pana-
mento ?
A opinião pública, que pretendeis embalde des-
vairar e illuair, recusa aahesào e cerra ouvidos á
vossa abstrusa propaganda, que tende a desmora-
lizar tudo o que ainda merece o respeito e a vene-
ração do mundo.
Elia não acceila sem prévio e rigoroso examo, sem
escrupulosa e accurada investigação de causa, ossas
sentenças proferidas por vós em processos raal
instruidos e documentados, e com os quaes jul-
ao XXII
gais na vossa apaixonada mente aue apagastes os
nomes de vossas victimas do rol dos cidadãos be-
neméritos. Nâo ! Titulos de benemerência e apti-
dão, diplomas de incapacidade ou de ignorância
não são os que arvoram o estandarte da anarchla
e da dissolução social que os podem distribuir.
E, reconvindo justamente contra vós, pergun-
ta-vos a sã e recta consciência da sociedade : —
Quem sois vós ? D'onde vindes ? Que documentos
comprovam a vossa capacidade intellectual , os
vastos conhecimentos administrativos e litterários
que alardeais ? Quaes os homens competentes, que
vos decerniram o bastão de juizes dos que manu-
seiam as rédeas da suprema administração ? Que
provas de moralidade» que testimunhos de bom
senso e de independência abonam o vosso passado
e dão arrhas pelo vosso presente ?
O silencio da vaidade confundida responde a
taes interrogações; a desconfiança olha de revez para
essas typographias, que se improvisam, e para
alguns d'esses redactores, que n*ellas tumultuam»
quaes inxames de ephémeras, e cujos nomes,
apenas conhecidos em circulo limitadissimo ,
ainda não resoáram aos ouvidos de seos conci-
dadãos como reveladores de um rasgo de civismo
ou do mínimo serviço prestado á pátria.
E a voz da verdade, echoando da consciência
da sociedade, brada pujante e imparcial :
— « Não ! Carecem de base, ou não são bem
apreciados os factos arguidos aos actuaes chefes
do poder executivo, que, unicamente por dedica-
ção á pátria, exercem o ingrato, bem que hon-
roso cargo a que os chamaram o eleitor dos minis-
tros e os próceres da Nação.
« Não 1 os egrégios cidadãos, que vós amarrais
ao poste da diffa mação, não são nuUidades philaa-
ciosas, que subi. sem ás altas posições por mero
acaso ou por outra influencia, diversa da que le-
gitimamente lhes dão. o seo merecimento e rele^
vantes serviços ô causa pública. A Nação sabe
devidamente aquilatar os sacrificios, que para ser-
TÍl-a fazem esses seos filhos, e não será a opinião
peita de umpugiUo de ambiciosos, que lhe apa-
H no peilo o sentimento de gratidão.
< Nâo I A Monarchia no Brasil nào é rémora
do progresso; é sim condição essencial do desin-
volnmento d'esta nova terra de promissão; a rea-
Uza não é instituição anachróhica e em deshar-
inonia com o estado de civilisação do Brasil — é
a íórma de governo, que convém ú Índole
Teste povo, e a cuja protectora sombra têm pros-
perado as suas libérrimas instituições ; não é um
etUhe. superstição ridicula, ou symbolo iUusório,
que offenda a dignidade do homem ; 6 sim a sal-
vaguarda de nossa liberdade, a égide de nossa
Bonstituiçào politica, a acção benéfica, o influxo
alnlarde nossa vida social.»
Os í|utí condemnam a monarchia como eraba-
Bço ao livre caminhar d'este gigante do Novo
Hnndo, que em breve ha de formara syntheseda ci-
nlisação do continente Sul-.\.mericano, são acco-
Diidos pela parte sensata da população (a quasi
lolalidade dos brasileiros) com o mesmo surriso
de incredulidade, que fez abortar no berço as
Iheorias da moderna eschola racionalista, quando
^tr^TU que o estado de progresso do género hu-
mano demandava uma religião mais perfeita que
o actual catholicismo !
Quem. por conseguinte, ouvir, reflectindo, os
fechos d'e3ses órgãos da imprensa brasileira, que
^^ tornaram vehiculos das reprovadas doclrinas
ue consubstanciamos, não julgará que as bases
i sociedade estejam abaladas, e que marchamos
_ ira a anarchia c para a revolução; sentirá
antes confranger-se-lhn o coração, por ver que al-
guns talentos escolhidos, que podiam dedicar-se
ova brilho a definir e propagar os verdadeiros princí-
ãos. se desvairam pelo matagal emmaranhado de
heorias sem filiação, imitando a voz que clamava
to deserto, porque não terão força para abalar,
Kmdeleve, em seo pedestal a monarchia. inraizada
1 fonição e no espirito dos brasileiros, nem para
22 XXII
mareara reputação illibada dosintegérrimoseillu»-
trados cidadãos que se senlam nos conselhos da
coroa, e que nas bênçãos dos brasileiros incootraitt
recompensa ás provações por que estio passando.
Pompeo.
(Continua.)
I*r*lmelra oarta.
MUCrO SCCEVOLA A QUINTO CINCINNATO.
Rei operam dabo.
Honrado cidadflo romano. Tenha accompanhado os
vossos admiráveis escriptos, e iiSo sei o qiirj inai» poâaa
maravilhar, se a dicçilo majestosa com que tão hem
sabeis sustentar a fidalguia da língua tão malbaratada
Sor bofarinheiros, se a lóg:ica irresistivel com que an-
ais patenteando a luz da verdade, escondida nos ecli-
pses de despeitos desarrasoados, que barafustam por
andurríaes e se somem nos sorvedouros subtwrfi-
neos. {•)
Um célebre Basílio Valentim, là imaginou uma en-
tidade a que deu o nome de — íl.hcheo. — Paracelso e
I Van Hei moul, agarraram este Sr. archéo e responsabili-
saram-uQ por todos os phenómenos da economia viva.
I Leibiiitz creou a sua harmonia pre^tabeháda: a inglês
, Cudworth, líi forjou o seo viedindor plástico; e oa
philósophos modernos, não menos opulentos de ima-
ginação, e nao menos vi.sionàrios que seos anteces-
sores, andaram procurando com seos mystérios caba-
lísticos a pedra philosophal, e U nas suas elucubra-
ções, à força do muito doudejar, crearam.... o poder
pessoal, e fizeram d'este mylho o -■=«) archéo e o seo
mediador plástico; fazendo d'e8te gigante da aUm-
pada maravithusa de Aladino o editor responsável
de tudo que de máo accontecia por este mundo sub-
lunar.
Vós, Cincinnaio meo, fostes o Hércules da mytholo-
gia, que entre os vossos doze trabalhos esmagastes estg
notável escripto de uma brilhantíssima penna. Esta conai-
peraçio venceu a primeira, cuja fdrça aliás nío denco-
alieiemos.
IXIJ 23
novo leão da Neméa, nascido aqui n^esta nossa terra,
onde está ainda tudo, muito por fazer, e onde o mecha-
nismo d'eâta cousa chamada liberdade, ou como melhor
nome haja, est& ainda muito por compreender. Ora,
depois da explanação larga e longa de vossas magni-
ficas theses de direito constitucional ; depois da argu-
mentação esplendida e concludente dos embargos com
. Que viestes áquelle libello do poder pcissoalj era multo
ae esperar-se a contrariedade cathegórica e na altura
dos principies tao logicamente postos. Pois, nada
d'isso aconteceu : acastellaram-se na taciturnidade
do surdo-mudoy e, como este desherdado da palavra,
responderam com visagens e tregeitos que os afearam,
o que lhes deslustrou e anniquilou de uma vez o seo
malfpdado invento do mediador plástico^ tao mal ca-
bido em cousas sérias.
Ora, meo estimável Cincinnato, vós que sois homem
da roça, como eu, que vivo pelos desertos d'esta
Thebaida, sabeis que, à falta de convivência, a mór
parte das vezes, em se acabando o ser&o fica um ho*
mem sem nada que fazer ; ainda quem tem livros,
1& vai matando o tempo o melhor que pôde, mas quem
nfto os tem, como eu, nada faz ; só tenho aqui sobre
uma tulha o Lundrio perpétuo^ o Fios Sanctorum e uma
collecçSlo de folhinhas do Laemmertj tudo lido e re-
lido ; mas tenho cá um vizinho, que faz divisa pelo
rumo, e»se recebe os jornaes da côrte^ de 5 em 5 dias,
e emprestá-m'os para que eu depois lhe conte o que
n'elles vem; com. esta espécie de contracto synalla-
gm&tico dou-me bem, porque estou i)*essas horas mais
feliz, que os sonhadores de repúblicas. Leio-os detida e
pausadamente, como quem tem de repetir a licçao de
cór, e nas horas de folga ponho-me a scismar em todo
esse descalabro que vai pelo mundo velho e pelo mundo
novo e que também se reílecie com um arremedosinho
n'este nosso torrão, tao feito para a paz e para a vida
plácida e abastada.
Dá-me muito que pensar esse vozear descompassado
que por ahi vai, dos que gritam : liberdade e mais
uberdade I queremos liberdade ! 1 1 Então, digo entre
mim: ou nós n&o temos a mesma noção d'este vocábulo,
ou vós não sabeis o que quereis e o porque gritais.
Vás dizeis, que viveis tyrannicameute opprimidos: em
coacção permanente; que se vos tolhem os vossos di-
reitos; dizeis tudo isto e o mais que vos apraz dizer; eis
24 XXII
ahi a prova pleua e ÍQconcusda da illimítada e dema-
siada liberdade de que gozais. Fazeis comicíos e a'elles
só aao grita quem nlo tem bofes para tanlo; escreveis
deãcabelladamente, na explosão do despeito e da cbólera,
quauto vos dá ua gaaa;expoiideâ tabolelas auuuuciando
a — república — ; desacatais o elemento r^íligios'», e o
chefe supremo do Estado; desauctorisais e atFrontais
com os epilhelos mais deprimentes aos mais nobres ca- _
racteres, aos mais conspícuos e prestantes cidadãos do
vosso paiz; préguis doctriaas altaineiile heterodoxas e
subversivas; e idea em paz repousar das fadigas e co-
lher oa louros de vossos tWumphos declamatórios, e no
dia seguinte ides continuar a vossa ladainha de todos
os dias. Agora dizei-me francamente, vós, cavalteiros
andantes d'eata inglória cruzada! pôde haver maior
somma de liberdade 1 qual é o paiz do mundo em que
ella é mais ampla, mais largamente concedida, mais
usada e mais abusada f
Se no vosso sonhado regimen republicano, alguém
ousasse levantar o grito — Viva o rei — qual seria a
sorte d'essemal aventurado? a mesma que tiveram mi-
lhares de suspeito.-^, apenas, de idéas de ordem, ua re-
publicaníssima convenção nacional, no México, na
república <le Prim e de Topete, na república do Para-
guay, que também era república, nas repúblicas do
Prata, onde se assassinam os chr-fes dos Estados em
pleno dia no meio das ruas, e onde se dilaceram os filhos
da mesma terra com guerras fratricidas que nAo teem
fim, e em toda parte onde o espírito revolucionário tem
podido assenhorear -se e derrocar o império da lei, da
ordem e do bem estar; porque emfim os taes republi-
canos representam a fábula de Saturno : quaudo u&o
podem mais nivelar os mais altos, pelo pescoço, come-
çam a devorar-se uns aos outros, e cauçados il'esta he-
catombe, desingauados pela improcedência prática de
suas utopias, intregam-se de braços cruzados ao pri-
meiro que lhes parece que tem juizo para os governar.
Se incontram um Carlos II, vai tudo mal, porque nao
é este o espirito recto, enérgico e forte para tirar da
voragem, da subversão e dos destroços a ordem, a mo-
Talidade e o acatamento ás instituições que se fundam
no bom senso e que asseguram a inviolabilidade dos
direitos de cada um; se incontram um Napoleão 1, tudo
ressurge das trevas, tudo se alumia com luz espleo-
dida; o paiz prostrado, exangue, invilecido e coberto
XXII 35
de minas reconquista nome, honra, glória e admira-
-çao, porque n'eâte ha o génio creador, a elevação do
espirito ao apogêo das concepções grandiosas; ha em
summa o homem moldado e destinado por Deus para
levantar pelos cabellos uma nação a quem a ferocidade
sanguinária dos utopistas havia precipitado no abysmo
das abjecções e do aviltamento.
Paro hoje por aqui, meo bom Cincinnato, nao posso
ir adeante com o turbilhão de pensamentos que me
suggere o scismar no descalabro que vai por esse
mundo, que Deus em sua infinita sabedoria creon com
tantas leis q^ue o regem e o dirigem, e que os homens
•em seo desatmo andam a ver se podem fazer voltar
ao chãos d'onde sairá, pela bondade infinita do Omni-
potente.
Até outra vez.
O vosso ex-corde
MUCIO ScdVOLA..
Deolma sejcta oai^ta
DO ROCEIRO CINCINNATO AO CIDADÃO FABRÍCIO
Inappreciavel amigo*
Ja me tarda que acabes lá esses teos negócios na
invejosa e monopolisadora Pindamonhangaba ; e até
se me afl5.gura que se nao voltas breve, abalo por esses
mares e terras, e dou comigo na supradicta cuja.
Comptas-me a grande figura que por ahi tens feito, o
que n&o me admira, pois conheço os teos talentos, e
por mim scei que quando nós là na roça recebemos um
figurfto da corte, esmeràmo-nos por agradar-lhe, e
provar que também somos gente e avaliámos o qne
^bom.
Entre as tuas tribulações porém, narras-me a da per-
seguição dos albumSf e dizes que te anda o bestunto em
polvorosa, á cata de ideas miríficas e magniloquas,
Jara dar vasAo a 1798 albums que ahi tens por cima
as cadeiras e do soalho, denunciantes da curiosidade
intellectual d'essas damas e cavalheiros, n'uma área de
14 léguas e meia. Chegou tarde a mania a Pindamo-
uhang^^aba, mas emfim chegou ; que dó !
Pedes-me que te ajude e te diga alguma cousa de
«unca dicto ou feito em tal matéria : di/fidUm rem
26 XXII
Estes inimigos d^alma tem tradição muito antiga e
aristocrática.
As auctoridades em Roma empregavam certas pa-
redes muito alvas^ para n'ellas mandarem gravar, em
cores vermelhas ou pretas, as suas ordenanças, privi-
légio entre nós monopolisado pelos agentes do Tónico
Orientai^ Relojoaria Gôndola e Vigor d' Ayer.
^ Mais por aqui, mais por alli, havia o álbum dos decu-
rioes, o do pretor, o dos juizes, o dos senadores, e em
fim de certas classes altas, o que tudo é muito mais
velho que o tempo em que se tomou indispensável
andar de chapeode sol aberto, para evitar que a cabeça
do cidadão seja permanentemente inundada da chu-
vinha miúda dos albums universaes.
N'esse tempo, quem punha a mao para apagar uma
só leltra d'esses albums era punido de morte; agora sflo
os próprios albums que nos punem de morte a nós.
Que cada um tenha, para seo uso, e para a sua prá-
tica, sós a sós cora a consciência, um livrinho de recor-
dações, umas ephemérides íntimas, um memorial da
memória, um álbum da sua própria cabeça e do seo
próprio coração, comprehende-se : é condensar maté-
ria prima para o dia dfis rememorações, das reflexões,
das saudades, das melancholias, das comparações, das
animações, da justiça ou do arrependimento. Também
chamam albums a esses confidentes íntimos e perigosos,
visto que só devem servir para os que os traçam, sob
pena de tornarem-se muito mentirosos, ou arriscada-
mente denunciantes.
Nao é raro ver o viajante, sobretudo Irancez, trazer
comsigo o seo a/6itm, carteira de lembranças, para
lançar um esboço de paizagem, cu os aponctamentos,.
que hao de senrir depois para um volume illustrado,
com o titulo : Impressões de viagem. Sendo francez, a
regra é esta :
Dorme o viajante n'uma estalagem, onde lhe dao
uma cama, em que ha pulgas. Na descripçSo da res-
pectiva cidade, lê-se : — « Por contraposâçac, ha n*essa
terra uma praga inaudita, peor que a dos gafanhotos.
Todas as casas sao covis de pulgas, ratos, baratas,
lagartixas, carochas e mais sevandija^s, que pulam,
saltam, mordem, devoram, palpitam, e atormentam
principalmente ao estrangeiro recem-chegado ; de modo
que casa onde n&o haja um maíorcarochas fica inhabi-
tavel.» — Ao erguer-se, chega á janella, e vendo em.
XXII 27
frente um rapazinho a tocar realejo, atira-se logo ao
álbum, e escreve : — «O grande atrazo d'esta povoa-
go consiste no emprego que geralmente se d& à in-
icia e juventude : todas as crianças de 7 a 12 annos
passam a vida moendo musica. Como é possivel que
similhante educação não embote todos os sentimentos
nobres na quadra em que o coração dilatando-se e o
espirito assanhando-se, tendem a... etc, etc. «
Mas a raça peor dos albums,a mais damninha, ainda
não é essa. E' a que reveste a forma de um livro parai-
lelogrammatico, capa de couro da Rússia, rebordos
dourados, papel apergaminhado e fechos de ouro, tudo
a dizer : Comei-me, comei-me I Mão mais ou menos
mimosa te ofFerece as alvas páginas d'este álbum, para
que tu lances n^uma d'ellasum pensamento (â moda de
iim senhor, que todos nós conhecemos).
E' caso de embatucar. Se alguém dicesse a Triboulet
ou Bertholdo : Diga Id uma graça^ bastava isso para
instantaneamente o des-salgar, ou para heraclitar um
Demócrito.
Celebro portanto e communico-te uma noticia que
leio n'uma carta de Lisboa, e que pelo menos torna de
ora avante toleráveis e não inúteis os albums, facili-
tando nliás o trabalho dos míseros contribuintes para
o pagamento d'éste inexorável foro.
Uma dama, distincta por talento, graça e formo-
sura, tem jà no seo a/òtk^ uma coUecçíio muito in-
teressante de autógraphos das mais illustres pennas,
usando de um processo singelíssimo.
No recto de cada folha mandou imprimir, do lado
da extrema esquerda, 24 perguntas. O escriptor não
tem mais que lançar em frente d'ellas, em prosa ou
verso, mas em phrases curtas, a resposta que lhe
apraz. No exemplar que eu vi, as perguntas era \ em
francez, e consistiam no seguinte :
1 Votre vertu favorite ?
2 Vos qualités favorites chez Thomme?
3 Vos qualités favorites cliez la femn^o?
4 Votre occupation favorite?
5 Le trait principal de votre carr ;tère?
6 Votre idée du bonheur?
7 Votre idée du malheur?
8 Votre couleur et votre fle ir favorites ?
9 Si voiis n'étiez pa3 vous, qui voudriez-vous être ?
10 Oú préféreriez vous vi\re ?
28 XXII
11 Vos auteurs favorisen prose?
12 Vos poetes favoris?
13 Vos peíntres et compositeurs favoris?
14 Vos héros favoris dans la vie réelle (rHistoire)t
15 Vos héroines favorites dans la vie réelle ( THis-
toire)?
16 Vos héros favoris dans les romansou lafable ?
17 Vos héroines favorites dans les romans ou la fable?
18 Votre nourriture et votre boisson favorites ?
19 Vos noms favoris?
20 L'objet de votre plus grande aversion?
21 Qiiels caracteres détestez vous le plus dans
rhistoire ?
22 Quel est votre situation d'esprit actuelle ?
23 Pour quelle faute avez vous le plus d*indul-
gence ?
24 Quelle est votre devise favorito?
Vi diversas respostas, mas bastando-te receberes
simples amostra, para fazeres idéa do dicto systema,
eis-aqui o que uma das mais brilhantes pennas por-
tugue^^as redarguiu a cada item do inquérito :
l^ La compassion — 2'. La loyauté — 3**. La patience
— 4**. La rêverie— 5*. L'ántipathie contre tout ce qui
est faux — 6'. La vie sans remords, quelle qu'elle soit
du reste — 7*. Lemalheur suprême est, selonmoi, celui
de ceux qu'on aime — 8*. Le pourpre: la rose — 9*.
Pierre 11, du Brésil — 10*. A' la campagne, prés de la
ville, dans une patite maiso^nette, bàtie par moi — 11*.
Alexandre Dumas, parmi les modernes; parmi les
anciens, Pline le Jeune — 12°. Virgile; parmi les mo-
dernes, Victor Hugo, d'autrefois— 13*. Peintre,..
toujours Virgile ; compositeur, Bellini — 14". Scipion
15®. Ste. Elisabeth, de Portugal — 16". Dans les ro-
mans, d'Artagnan,* le mousquetaire; dans la fable,
Orphée — 17*. Dans le roman, Clarisse Harlowe; dans
la fable, Andromaque— 18*. Les végétaux et Teau
19°. Nom d'homme, aucun: nom de femme, Marie— -
20*. Le serpent, ou bien le calomniateur — 21*. Hudson
Lowe — 22". Apathie et raécontentement — ^ií3". Pour
celles qui tiennent à la faiblesse du coeur — ^24*. Rien
n'est beau que le vrai.
Nao achas ser este um brinquedo útil, e um grande
melhoramento na indemonhinhada lida dos albums ?
Tenho sobre a mesa muitas outras respostas ; mas um
exemplo basta; agora é de Pindamouhangaba que ea
XXII 29
espero mais. Âffigura-se-me que assim se toma um
albuai, depositário de thesouros de erudiçfto, gabinete
anatómico para dissecção de corações humanos, espe-
lho que retrate o pensamento intimo, theatro em que
façam todos os actores, com a mesma matéria, dilfe-
rente papel.
Adeus, amorinhos.
Teo capellao obrigado
ClNCINNATO.
Suppx^essSo da esex^avldSo xio Bi^azll
À philosophia, o christianismo e a liberdade trajenr
de gala, corõem-se de louros em toda a superfície da
terra ! O juTcnil império brasileiro acaba de dar ao
mundo um dos mais sublimes espectáculos, um dos
mais sublimes exemplos de verdadeira civilisaçfto.
Cerrando heroicamente ouvidos aos clamores de secu-
lares preocupações, atirou com um sopro para o abys-
mo do passado, n'uma hora bemdicta, como aqueila
em que Deus proferiu — façase a luz — os grilhões com
Íue mais de um milhão de filhos da raça africana de-
nhavam, sobre uma terra amora vel que dá tudo, e
sob um cèo que ri sempre, condemnados, elles só,
entre um povo bondoso e livre, a peor inferno que suar
e padecer de contínuo ; ao tormento de se nao repro-
duzir, senão para testar pelos séculos fora miséna e
escravidão aos filhos precitos dos seos amores.
A magnânima proposta do governo do Brazil está
emfim sanccionnda por todo o corpo legislativo, victo-
riada por toda a immensa maioria pensante da nação,
e saudada com alvoroço pelo mundo inteiro.
Os anniquiladores da tyrânnica omnipotência de
Lopez completaram hoje a mais 4pur^<l^ página dos
seos fastos nacionaes.
A nós, irmãos do heróico povo brasileiro, anos,
que de herança tantas e tão bel las qualidades temos
em commum com essa juvenil gente, do nosso sangue
e dos nossos appellidos ; a nós, um quinhão legítimo
na ufania com que elles devem estar celebrando o seo
triumpho, triumpho incruento, triumpho auspiciosís-
simo, triumpho em que só a alegria verte lágrymas.
Está emfim iugastado na coroa de D. Pedro II o ver-
dadeiro diamante Montanha de Ltiz^ que ha de as-
sombrar com o seo brilho a posteridade.
Do Brazil^ jornal de Lisboa
30 XXIÍ
OolonisacSo do Br*azll
Discute se ha largos annos na imprensa port:igueza
a questão da colonisaçao do Brazil ; (]^uantos epithetos
desagradáveis tem a língua se applicam ao que cha-
mam vulgarmente escravalara branca, e, queixando-
se uns de que os colonos s&o tractados como escravos ;
outros de que se illudem pobres diabos que além v&o
morrer a braços com a miséria; outros de que Portugal
é gravemente prejudicado com esta emigração, s&o
todos accordes em pedir ao governo que de uma vez
para sempre cohiba este nefa/iido tráfico.
Esta quasi unanimidade na accusaç&o faz crer boa
intenção, grave o assumpto e sérias ás consequências ;
parece que de facto se substituiram as negociações em
Africa, pelas negociações em Portugal ; que, severa-
mente vigiada a costa occidental d' Africa, convergiu
a negociação illídta para o archipélago dos Açores
especialmente, e para as províncias do Minho, Traz-os*
Montes, Beira alta etc.
Vejamos se assim é ; examinemos se tem razão de
ser esta accusação, corroborada por muitas pennas
illustres, fortalecida por muitos espíritos esclarecidos.
Como se tracta apenas da emigração para o Brazil,
virão factos e opiniões auctorisadas em auxílio da
nossa argumentação : concentraremos as nossas vistas
no império, que de certo nos ha de fornecer dados para
a sua defeza.
Dividiremos portanto este trabalho em quatro partes :
— Insalubridade do clima — Falsidade nos contractos —
Melo tractamento aos colonos — Miséria e abando^no,
I
INSALUBRIDADE DO CLIMA
Houve épocha,'e não vai longe, em que por todo Por-
tugal se apregoava a facilidade de adquirir cabedais
no Brazil, e volver rico á pátria e de alli se assegurar
uma velhice socegada e feliz. Como é natural, isto de-
safiava a cubica de muitos, senão de todos, e o ardente
desejo de sacrificar alguns annos de vida, amargurados
pelas saudades do torrão natal e pela ausência da fa-
milia estremecida, à certeza de um futuro próspero e
risonho.
Mas, como tudo no mundo, tinha reverso esta meda-
lha ; dizia-se que a felicidade de um representava a
vida de centenares de compatriotas, de amigos qu®
XXII 31
alli tiaham morrido, dizimados pelad terríveis e cons-
tantes moléstias dos Brazis. Isto esfriava os desejos de
ínriquecer; e poucos eram os que chegavam a ir, com-
parativamente com os que haviam chegado a fazer
castellos no ar, calculando o resultado provável, ou
certo, da sua ida á América.
N'es3e tempo eram as viagens longas : navio que
aportava &s terras de Santa Cruz com menos de 40
dias de derrota era comptado nos jornaes das duas capi-
tães. Os homens laboriosos e decididos que haviam
Jogado a vida pelo futuro dos seos, internavam-se pelas
províncias, e muitos não sabiam escrever ; deixavam
portanto de dar noticias aos entes que lhes eram caros,
os quaes, amaldiçoando a ídéa e a hora da partida,
prancteavam como morto o parente que se aventurara
a ir a longes terras^ cego pela ambição.
Com o correr dos annos, foram-se multiplicando as
viagens, estabelecendo carreiras quinzenaes de pa-
quetes com marcha accelerada : após estas vieram as
carreiras semanaes, e as cartas, recebidas mais amiuda-
das vezcs e de mais moderna data, iam affastando a
lúgubre idéa de morte. A par com esses progressos,
começava a conhecer-se mais aquelle paiz, a falar-se e
a ouvir-se falar mais do seo clima e modo de viver:
vinham as estatísticas, e tudo comprovava que a idéa
de horror ligada á insalubridade do clima era mais
Shantasia creada pelo affecto que deixara na pátria o
lho ausonte, do que realidade. Vinham carias das
provincias do sul, das colónias de Theresó[)')lis e de
Petrópolis, de toda a província de Minas Ger>i;^s, de
Vassouras, de Valença, de Iguassú, de NovaFribargo,
finalmente da maior parle dus ponctos por ou Je a colo-
nisaçao se tem desinvolvido em escala superior, a uro-
varem a amenidade do clima n'aqueue3 poacios, dado
o desconto à differença da temperatura , que é í empre
mais ou menos .sensível aos homens que, aascidòs na
Europa, passam, na edade viril, a viver na Am^^rica
do sul.
Isto quanto às informações particulares. Os dados
oflBciaes, quer com relação á colónia portug"iesa, quer
com relação á colónia allema, provam exh^ror.rítnte-
mente que a mortalidade nao attinge cifra qu*) aucto-
rise a considerar insalubre o clima do Brasil, n^m
mesmo na épí)cha em que a febre amarella tem feito
mais víctimas, por isso que as províncias toem sido
32 XXII
sempre poupadas, grassando apenas as epidemias hr-
zenao estragos no litoral.
Escusado é portanto discutir mais este poncto. Ou
as estatísticas talam verdade ou nflo- se falam,destroem
a accusaç&o : se n&o falam nao se pôde fazer obra por
uma ou outra fazenda, onde se n&o respeita tanto a
h jgiene, ou que de si própria é menos saudável. Por-
tugal tem o exemplo frisante em uma das suas coló-
nias. Em S. Thomé, ao passo que ha roçds mortíferas
pela proximidade de pântanos, e essas s&o geralmente-
as que circulam a cidade, tem outras tSLo saudáveis, e
em que a temperatura differe tanto, que os liberto»
africanos e os europêos sao fortes, robustos, e até, caso
raro, grandemente dispostos ao trabalho. ( Continua ]
Idem,
RazSo pouoo llsoiiselr*a.
No baile, minha Senhora,
n&o se despresa a etiqueta,
nem cortezias penhora
lapúz de grossa jaqueta.
Vai perguntar joven linda""
a Diogo Madureira
se Sua Excellencia ainda
nao tem par para a primeira.
O homem stava disponível,
acceita o honroso convite ;
do favor nSLo é possível
considerar-se elle quite.
Convidar tem sido dado,
n'este caso, ao cavalheiro;
Sela dama convidado
>iogo foi o primeiro.
No íntervallo da quadrilha
è de assucar a palavra,
e, vencendo a prata, brilha
qual ouro da melhor lavra.
« — Discreta joven, consinta
que minha ousadia inquira
porque o costume desminta
quem para a dansa me tiraf
« — Motivo assaz cautelloso
deveis ínchergar n'aquilloI
Meo marido é mui zeloso,
e assim fícar& tranquíllo.
QUESTÕES DO DIA
IST. 23
RIO DE JANEIRO, 1 DE DEZEMBRO DE lOTl.
9ende-se em rasa dos Srs. E. & H. Laemmert. — Agostinho de Freitas Gui'
maràes 6l Comp., 26, rua do General Gamara. — Livraria Académica»
Rua de S. José n. 119— Largo do Paço n. C.— Preço 200 reis.
A Republica c os Estudantes
II
Para levar à evidencia a asserção de que os org&os
da imprensa brasileira, a que nos referimos no anterior
artigo, sHo instrumentos de ruína social, basta attentar
na direcção que a República deu á questão dos exa-
mes dos estudantes.
Felizmente hoje a imprensa justa e imparcial p6z
em reiêvo todas as principaes faces d'esse negócio,
convertido pelos obreiros da destruição em catapulta
contra o ministério. A razão pública, prudente e
convenientemente e.^clarecida por Themístocles, foi
reconduzida ao terreno da justiça, d'onde, mais por
imá fé do que por ignorância, tentaram arredal-a aquel-
les que, até das immundicies da calúmnia invejosa
fazem arma oflFensiva contra o poder, que sôffregos
ambicionam empolgar. Desfez-so o nevueiro de
sophismas e prejuzos que adrede fora estendido ante
a luz da verdade, e acalmada a paixão de momento,
reduzido a suas verdadeiras proporções o principio
de falso pondonor, resta somente o pejo dos próprios
excessos e o arrependimento de se haver seguido
errado caminho.
A terrivel catapulta, a destruidora 'arma de guerra
com que imaginaram derrocar depois de dous ou
três bombardeios o bastião governamental, quebrou-se
nas msos dos esforçados guerreiros, como essas
espingardas e lanças de frágil madeira cora que
brincam as creanças. Nem a mais leve brecha apparece
na praça que atacaram , a fortaleza nem se apercebeu
de qu»? lhe atiravam projectís : pareceu-lhe que um
34 XXIII
vento desolador levantando do chão folhas sêccas e
fazendo remoinhar o pó das ruina'?, lhe arrojava de
incontro às muralhas alguns grãs de areia, com cujo
attrito conseguia apenas polir-lhe as pedras esver-
deadas pelo limo que os séculos n'ellas haviam
depositado, pondo assim a descoberto a solidez e a
perfeição de sua constructura.
Falhou mais esta condemnavel tentativa da anar-
chia contra a ordem; mais uma vez o principio da auc-
toridade, legitimamente constituída e exercendo-se
dentro da esphera leg'al, poude fazer triumphar as suas
justas e jurídicas prescripções. Mais uma vez os apre-
goadores da insubordinação, os fautores da desordem
se viram forçados a recuar e a cantar a palinódia, ater-
rados aute os eflFeitos de sua subversiva propaganda.
Nao ! Este povo, protegido pela sombra damonarchia
constitucional, educado nas máximas da religião do
Crucificado, que pregou obediência ao poder, acceitando
resignado o suppiicio,mandando que se desse a César o
que é de César, e ordenando a Pedro que não ferisse a
Malcho, porque só ao juiz competia punil-o ; este povo
que floresce e prospera rapidamente e sem abalos, ao
influxo de benéficas instituições, tem em si tanto bom
senso que inxerga á primeira vista nos pose nas drogas
dos Dulcamaras políticos o fermento do tóxico traiço-
eiro, com que lhe querem illudir o paíadir, insinuando-
Ihe que o pretendem curar de males imaginários.
E que outra cousa que nao mortal peçonha tentou a
República introduzir nas veias da mocidade brasileira,
prégando-lhe as doctrinas que se lêm em seos us. 183
e 184 na parte editorial sob a rubrica — Questão Acadé-
mica'^— Com suprema habilidade tentaram os distinctos
redactores d'aquella folha invenenar a arvore fron-
dosa do futuro nos seos esperançosos rebentos. E' nos
pimpolhos que desabrocham esplendidos de viço e seiva,
ao sol da liberdade e da religião, que aquelles cul-
tores do espírito público, falseando a sagrada missão
da imprensa, inoculam o virus corrosivo das más ide-
as e implantam os germes corruptores, que hao de
trazer o corroimento do cerne e o esphacelamento do
tronco.
E' na geração que puUula agora cheia de vida e
actividade febril que reside a esperança do Brazil.
Tanto a geração que está no pleno vigor da edade como
a que vai concluindo a sua peregrinação na terra e
XXIII 35
camiahaudo par^ o sepulchro devem uni r-se para, de
commum acordo, aponctar-lhe os bons exemplos, insi-
nar-lhe os verdadeiros princípios de disciplina, e edu-
cal-a em todas as grandes verdades do evangelho
social.
A*quelles, que receberam em partilha o talento, das
mãos munificentes da Divindade, áquelles, que assu-
miram o brilhante e nobre papel de intérpretes e direc-
tores da opinião pública, incumbe o rigoroso dever de
formar o coração e a intelligencia da mocidade, e de
traçar-lhe a renda por onde deve caminhar para con-
seguir augmentar a grandeza e a glória da pátria.
Quaudo porem, esses espíritos privilegiados apagam
o archote, com que devem illuminar os olhos das gera-
ções contemporâneas, e, em vez da luz directora, lhes
dao o negro penacho de fumo e as sombras da morte,
quando trocam o seo mandato de apóstolos da verdade
pelo de pseudo-prophetas — commettem um attentado de
lesa-humanida(le,.digno do castigo de Deus e da mais
severa reprovação da sociedade.
Vejamos como a República comprehendeu e desempe-
nhou o seo mandato.
No dia 14 de Novembro dizia ella :
« O nosso jornal e um homem de bem\ não se presta
a nenhum papel menos digno.
Estas expressões serviram de epigraphe para justi-
ficar a seguinte proposição :
« O decreto, na opinião da maioria da imprensa^ na
opinião das congregações das faculdades de medicina e de
direito^ na opinião dos estudantes de 5. Paulo e doesta
capital^ foi reputado inopportuno, iníquo^ viole)do e aU*'
illegal.n
Em seguida narra aquella folha os actos praticados
pelos estudantes de medicina da corte e a deliberação/
por elles assentada, de fazerem parede^ isto é, de
nenhum se inscrever para exame.
Accrescenta que no campo dos que tomaram este
alvitre levanta a honra o seo estandarte, e que no con-
trário « levanta seos arraiaes esse exército aaónymo^ mas
que sempre acha recrutas no seio de uma sociedade cor-
rompida pelas tradições peculiares ao seo regimen poli-
ticOn o regimen dos genuflexões... a A's queixas da moci-
dade^ offendida nos seos brios e nos seos direitos, respon-
demos (conclue) com a sympathia do nosso apoio.»
:J6 XXIÍl
No dia seguinte a República incita os estudantes á
resistência pacifica ; instiga-os fazendo apêllo ao senti-
mento do pondonor^ a que não rompam a parede para
nao merecerem o stignia inftimante, que a maioria dos
estudantes de S. Paulo lançou sobre os díscolos e sobre
os medrosos. « Ser-nos hia doloroso j-^exclama) ter de
registrar um acto de subserviência por parte de mancc'
bos, que vêem offendida nas suas pessoas a dupla dignir
dade de estudantes e de cidadãos. Ao que nos consta^ a
mocidade não está disposta a receber dos velhos a licção
da prudência^ que se traduz em servilismo.., »
Os tópicos transcriptos suscitam um mundo de
reflexões, a que se nuo prestam as dimensões, que
talhámos a esta perfunctória anályse. Assignalaremos
apenas de leve os coroUários, que d'elles se inferem.
Nao nos faremos carg-o de demonstrar a justiça,
legalidade e exequibilidade do decreto de 22 de oc-
tubro, — nova boceta de Pandora, a que os pessimistas
do dia attribuem o inxamede males, que phantasiaram
choverem d'elle sobre a classe académica e sobre a
instrucçao pública ; a brilhante penna de Themisto-
cies já levou essa these à luz da evidencia; até a pró-
pria Republica par?ce que seguiu a torrente da geral
opinião e se deu por nobremente convencida, a jul*
gar-se pelo silencio que tem guardado. Ainda bem
que não morre impenitente e reconhece a sabedoria do
brocardo : sapientis est mutare consilium.
Dado, porém, mas não concedido que o decreto
contivess:í os erros e dislates, que lhe emprestaram de
má fé ; * dado que fosse iniquo e inexequível, podia o
direito de resistência pacífica, aconselhado pela Repú-
blica, tomar as formas de manifestação e a direcção
que se lhe deu,e que ella tanto applaudiu e a princípio
tão calorosamente animou em seos artigos editoriaes?
Seria legítima e digna de louvor e acoroçoamento a at-
titude,que tomaram os estudantes da^s faculdades de di-
reito de S. Paulo e de medicina da Corte, aos quaes nSo
compete, por não serem sui-juris, o direito de petição.
O direito de petição (dir-se-ha) é permittido pela
constituição a todos que habitam este paiz libérrimo
(que ellcs no emtanto proclamam regido pelo despo-
tismo do baixo império) !
Em virtude d'essa grande garantia, os e^^ítudantes
podiam pedir ao governo o que intendessem a bem do
seo direito.
XXIII 37
Não negamos nem podemos contestar o direito de
petição ; mas o que nos parece fora de questão é que
os indivíduos que nao attingiram o período da maiori-
dade legal, e que nao sao, por conseguinte, capazes de
direitos, possam exercer aquelle !
Dêmos ainda de barato que os estudantes, em quanto
na condição de menores, possam requerer outra cousa
fora do círculo de acçSo e do elencho das matérias que
lhes é permittido pela lei e pelos estatutos das facul-
dades e dos estabelecimentos de instruccão.
Perguntamos agora : Limitaram-í^e os estudantes de
S. Paulo a requerer o que lhes era a bem do direito ?
Representaram sequer contra o decreto de 22 de oc-
tubro em termos convenientes e respeitosos ?
Ba^ta ler o inqualificável protesto académico de 28
de octubro último, assignado por cerca de 170 estu-
dantes para adquirir a convicção de que aquelles estu-
dantes insultaram e desrespeitaram os seos lentes, ar-
vorando-se em juizes e censores d'aquelles que, coUo-
cados para cora elles na razão de pães, tinham a seo
favor, quando não a prova, ao menos a presumpção
de experiência, sabedoria e dignidade.
AqueUes jovens, transviados talvez pela opinião
de algum de seos mestres, que intendesse dever-s9
negar execução ao decreto de 22 de octubro, qualifi-
caram de subservientes e ignorantes os que, formando
a maioria da respectiva congregação, votaram para
que se fizesse effectivo desde logo o systema de exames
que o mesmo decreto estabelecia.
Tal não devia ser por certo o procedimento d'aquelles
estudantes. A injúria é arma dos que não têm razão,
e, irrogada, como foi, a seos superiores, toma cha-
racter de gravidade, que se torna credor de geral
reprovaçrio e severa punição.
Os que assim se portaram, deram triste idea de sua
educação, do seo espírito de disciplina e subordinação.
Que pode esperar a pátria d'aquelles que, preparando-
.se para auctoridades, juízes e funccionàrios da alta
administração, assim faltam á deferência, á submissão
e .MO rtíspeito que devem aos que estão pela edade e
pela lei coUocados em posição de credores do seo
preito de menagem ?
Qu.* modelos de bons cidadãos , que promessas
brilhantes de excellentes servidores do Estado nao
se «iifixam entrever em tao denodados campeões do
38 XXIII
doesto e do insulto! Que direito terá para exigir dos seos
subordinados obediência e respeito, quem por forma
tão descommunal inxovalhaas cans da experiência e do
saber, e, afrouxando todos os vínculos da disciplina,
recorre ao tumulto e á amiaça para fazer triumphar
as ideas da Interjiacional e oppôr condemnavel resis-
tência a ordens legaes ? !
Isto, senhores da imprensa republicana, nâo é nem
pode ser (salvo por irrisão) qualificado direito de pe-
tição ou de representação.
E o que é a parede ? E' a conclusão lógica, o des-
fecho necessário d'aquelle 1° acto de desobediência
e opposiçao à ordem do governo.
E' a resistência da inércia, a desobediência passiva,
mas nem por isso menos criminosa, às prescripções do
poder competente.
E podia o corpo académico tomar tão extranlm e ex-
traordinária resolução i Nao lhe aconselhava o dever
que se subjeitasse ás provas exigidas pelo decreto e que
foram promulgadas depois de ouvido o parecer das con-
gregações e de muitas pessoas habilitadas na matéria ?
Não constituo esse alvitre um desafio acintoso ao
ministério? Não é um acto de tácita insubordinação
contra seos pães, que correm perigo de vel-os perder o
anno, com o respectivo cortejo de prejuízos e despezas,
que a esse facto se ligam essencialmente ? Nilo é uma
confissão implícita do não cumprimento dos deveres
escholásticos no anno lectivo, revelada pelo receio de
se subjeitarem ao exame ?
Responda a consciência dos próprios estudantes, que,
arrependidos de seo errado proceder, se lesulveram
finalmente a comparecer, com raras excepções, aos actos
académicos.
E todas estas tresloucadas deliberações, fnictos mais
do verdor dos annos, da inexperiência, e de incitações
imprudentes, foram acoroçoadas pela imprensa repu-
blicana !
Appelou-se para os falsos brios da mocidade: pintou-
se-lhe como heróico e louvável o acto de resistir pas-
sivamente ao decreto, e até se lhe pregou a dortrina
de que incorreria no labéo de infame o que rompesse a
parede.
Isto o dice a República ! ! . .
Felizmente a propaganda perigosa, partida das co-
lumnas d'aquelle orgam da imprensa brazileira, nao
XXIII 39
incontrou terreno favorável para fazer fructificar a sua
semente de morte. O bom senso do paiz reagiu contra
tao louca tentativa; e a louvável energia e a poderosa
força de vontade do digno e ill listrado Ministro do Im-
pério oppôz insuperável barreira à invasão da onda
sediciosH,e fez abortar no nascedouro os planos condem-
nados dos fautores de desordens, que ficaram bem co-
nhecidos á face do paiz.
Pompêo.
Qixinta cax*ta.
DECINCINNATO A SEMPRONIO
Rio, 24 Novembro 1871.
Illustrado amigo.
Recebo a tua preciosa carta, de 10 do corrente, na
qual me dizes que talvez te divinas com o testa de
ferro de Senio, parecendo-te porem mais methódico
esperar qae elle despeje o seo vasto arsenal de co-
nhecimentos, expressos em linguagem appropriada.
Accrescentas : •> Far-se-ha então uma appreciaçfio syn-
thética, e pôr-se-ha a nú a intelligencia do critico.
Crê tu que o Gaúcho me otferece matéria para outra
longa série de cartas, e não estou longe de escre-
vêl-a. Entretanto, para mudar de assumpto por agora,
vou entreter-me com a Iracema. »
Escuta cá, meo amigo. O anónymo V. das Palestras
declarou depois que depunha a máscara, e que era
Vasconceilos, com o que ficou mais anónymo que
d'antes! A casa de Castello-melhor vai querellarda
injúria, pois desde o tempo do ií em Rodrigues se diz
de VasconcelloSy nunca em tao cerúleo sangue houve
heroe d'esta casta. Consta porem que o individuo Vas-
concellado se defende, declarando que aquillo nao é
appellido, mas alpunha, que elle a si mesmo poz,
com summa propriedade; que o seo intuito tra reco-
nhecer que fala lingua vasc«jnça, que sempre era
um tal sarapatel que no tempo dos romanos se nao
atreveu PomponioMela a reduzir a escrip:ura os nomes
í^e seos povos. Ora, bem se pode alcunhar Vascon-
ceilos quem tao vascoso torna o leitor, e quem tanto
lhe vasconceia.. delicadezas.
Já esmerilhei as criticas do pimpão. Prometteu es-
magar-te a ti, e a mim ; mas depois subverteu-se
r ■ m - ■n-mi^ir m awaia#u»wp * * íiH
40 XXIII
pelo chão abaixo, dizendo apenas que ia fazer uma
viagem,e ha pouco accrescentou que estava já de volta,
e aparelhado para amarrotar-nos.. Ficámos com o juízo
suspenso, o que é muito incómmodo, visto que um
juizo, pendurado tanto tempo, acaba por cauçar. Roeu
a chorda ; remetteu-se ao silencio, segundo a doctrina
da eschola Senial. Promeítre et lenir ^ sont denx. Tam-
bém nao vai longe o dia em que o Sr. José de Alencar
amiaçou com a horripilante publicação de um livro
do futuro, que ficou para as kaleadas greyas, como
as criticas do Sr. Vasconcellos, o anónymo.
Visto, porem, que o senhor quem quer que seja se
esbofa por convencer-nos de que as suas estupendas
lucubracOes sao realmente suas, e nenhuma neces-
sidade vejo de o desmentir, acho mais curial que
de ora avante o deixemos, tu e eu, em sancta paz.
Já demonstrou o que sabe e o que vale aquelle senhor
homem. Se o senhor homem imagina que, por si^
tem direito de ser por nós contrariado, engana-se
de meio a meio. Se elle é eile, parce sepullis. Nâo
contribuiremos para as suas glórias, nem mesmo Eros-
trdticas. Fica-lhe campo livre para repetir, sem receio
de mais resposta, as suas brilhaturas.
Quem está na berlinda não é nem poderá nunca
ser nenhum phantástico Sr. Vascoucellos. Poderia to-
lerar-se o officio de caça-tigres^ mas nunca o de inata-
carochas. Sempre suppuz que alguém assignava de cruz
o que o Espirito Sancto lhe dictava, ou que pelo
menos esse alj^uem tocava as .suas variações sobre o
thema do mestre, de cuja alta intelligencia julga-
vam todos dimanarem aquelPoutras preciosidades.
Teima-se em que estas nao sao auihenticamente do
inspirado ; n'esse caso, faço meia volta, e passe por
lá muito bem o delicado Palestreiro. Algumas outras
decididamente auíhenticas hei de achar. O Imperador
Justiniano deixou-ços nas suas Constituições as Au-
thenticas ; por fortuna da humanidade também nós
temos as nossas Autheíiticce seu Novella*. Constitutiones do-
mini nostri Alencaris^ inaximi magisíri atque sacratis-
simi principis. Parabéns á pátria: estas Autkenticas
Constituições ( visto que o oes tem um til ) chamam-se
o TIL-
Tu, que estás longe, talvez queiras andar em dia
com a monumental história d'este monumento ; eu le
compto o que scei.
XXII I 41
Já leste o vaudevUle de Scribe, intitulado A gala
transformada em mulher, de que ultiraameute Offen-
bach fez uma opereta ? é uma das ma:s ingraçadas e
orig^inaes producçOes do inexhaurivel dramaiurgo.
Um allemaosito exaltado inlouqueceu com a leitura do
Fausto; accredita na metempsycose, enamora-se da sua
gata. Uma prima ricaça quer cural-o da ridícula paixão,
tiral-o da miséria casando com elle, e arvora-se em
rival da bichanica gata. Conluia-se com um falso ni-
gromante índio, que vai predispondo o novo Werther
para a metamorphose do animal felino em mulher.
Lá chega o preparado momento. ELs-alli a bichana
dormindo n'uma alcova, emcima de um canapé ; profe-
?idas as palavras mágicas, corre-se o panno... a E'
uma mulher ? » « E* uma gata ? » Tem-se visto gato
pjr lebre, mas mulher por gata... O certo é que é uma
e outra, na forma de uma linda menina, que, em vez
de miar, papeia e garganteia ; mas a alvura do vestido
e « arminho que o borda lembram perfeitamente a
ga\a ; o impagável porem é a imitação dos modos,
gesros, andar, alegria, gentileza e vivacidade. A bi-
cha lica nao era mais ágil, mais galante, mais volup-
tuosa ; nao gostava mais das snas commodidades, nem
.se espreguiçava com mais delícia sobre o veludo das
cadeiras ; sao tal e qual as manhas d^ella, os seos mo-
vimentos leve-í, as suhs marradinhas graciosas o soo
brincar com as patinlias rosadas. Ficou-lheegualmente
o !i:wi:ral, como as maneiras do quadrúpede : ágata
feita mulher conserva oeíroísmo, a inclinação maléfica,
a asUicia, o gosto de furtar. Para surrupiar um pud-
din^r. para embaraçar as linhas de um novêllo, para
atirar uma unhada, nem a verdadeira bichanica era
mais hábil. Emfim é a gata sem tirar nem pôr, só com
fóvij^i diversa: e o allemão. felicíssimo, soUicita e al-
cança a pala da bichana.
Hn um mundo de doctrina dentro d'este quadro curto.
E' o tliassez le naturel, i! rerient au (jalop, posto era
acção Quando vires um republicano, por índole e edu-
cação, dizer ao rei — que a naçílo o provoca a assumir
o governo pleno do Estado — que a sua missúo é a do
soí— qii* basta a sua vo'itade, enunciada de um modo
positivo e solemne para se tornar logo, de sua própria
virtude ^ essência, facto consummado — que para ella
se nao concebe resistência, no domínio da lei — que elle
tem ante a nacao e ante Deus obrigação indeclinável
42 XXIII
«
de resistir á opinião pública em nome da lei e da mo-
ral— e outras cousas assim, é gaia transformada em
mulher. Como então o escriptor está fora da sua nat\i-
reza, aquellas demasias nao têm imputação. Cuida elle
que similhantes bajulações e baixezas constituem um
credo conservador, quando só constituem linguagem
de que o mais exaggerado àulico se invergonharia ;
os extremos tocam-se ; gente assim halouça-se sempre
entre o César e o João Fernandes. Faze bem á gata,
saltar-te-ha na cara.
Matriculada a gata como conservadora, e depois de
se lhe recusar o senatorial pudding, volve á sua natu-
reza : mia, arranha e apanha rates. Miau ! poder pes-
soal ! Miau ! absolutismo ! Miau ! golpes de Estado !
Miau ! bayonetas, fuzil, sabre e canhílo ( que sao 4 syl-
labas) ! Miau ! ab alto e in excelsisl E todos quantos
outros miaus constituem os items do credo republicano,
e fazem do género humano gato-sapato.
Tornando-se desnecessária a máscara, cada um volta
para os seos arraiaes, e assim é melhor. Porque um ho-
mem a si mesmo se chama conservador, nao se s^ue
que o seja ; pode isso até ser uma antíphrase, um sim-
ples Cabo da Boa Esperança. A's vezes sao illusões óp-
ticas da retina physica ou intellectual. Quando eu, de
bordo de um navio, vejo as casas e a praia a correr ;
quando se me torna angular o pào que na agua netti
direito; quando observo no horizonte a pôr-se o sol, que
já está para baixo d'elle, ou o vejo apparecer, quando
ainda não é nado ; quando os olhos me affirmam ser
redonda uma torre quadrada ; quando vejo a ninha
cara feia atraz de um espelho, nao estando ella atraz
nem adeante ; quando um vidro me patenteia caterva
de animálculos onde eu só julgava estar uma gôtta de
água puríssima, e bem assim valles e montanhat na
face mimosa de uma virgem; quando vejo tanta cousa,
digo que é superficialidade fiar nas apparencias; que o
hábito nao faz o monge, e que nao basta dizer-se que
uma cousa é, para que o seja. O nobre parlamentar,
por costume, denomina-se conservador, mas de facto
repassou já ha muito tempo o seo Rúbicon, com armas
e bagagens, e lá está já n^^ campo dos repiiblicos. fa-
zendo o seo officio de dissolvente.
Era portanto naturalíssimo que levasse á República
a sua nova oblação : assim como o era que o incapo-
tado carrijligionário fosse bem accolhido ; tu oao mal-
XXin 43
tractas quem entra na tua sala. O Sr. José d' Alencar
levou, pois, o seo TU à folha ultra.
Veiu a publicação precedida de um manifesto, de-
claração de guerra, proclamação, ou cousa assim, es-
tampada na sobredicta, de 3 do corrente.
A parte litterária fica para depois, mas a politica é
já ahi impagável.
Diz que anda assignalado como republicano disfar-
çado, mas que nao é tal. Peso de consciência.
Diz que é monarchista da idea. O' Sempronio, que
sentido tem isto? Para dar-lhc cousa que com isso se
pareça, supponhâmos que a phrase aspira a significar
uma contraposição a monarchistas da pessoa ; advinha-
ria eu ? Mas então ah qui d'el-rei ! Que doctrina é
esta ? Ha moijarchia-idea que se nao incarne em rao-
narcha-pessoa ? Intende este publicista que a raonar-
chia é um ente de razão, um phantasma, um mytho?
que para ma servir da phrase de Racine, a monarchia
ríesíqiCune idée^unrêve ylatonujue? Admirável modo
este de pugnar pela monarchia, hostilizando o monar-
cha! Quer missa sem padre, victória sem soldados,
ganhar na loteria sem comprar bilhete. Proclamar-se
monarchista, denunciando o soberano como déspota,
tyranno, usurpador, é o systema das petroleiras^ que
apagavam o fogo com kerosene.
E está tao convicto, mesmo da tal ídca, que faz.
saber que a presumida infallibilidade ( em itálico ) roe
o cerne das monarchias. A bom intendedor, meia pa-
lavra.
Acaba condignamente por este impagável treclio:
— « Convencidos nós, os monarchistas, de que é
passível atacar a cidadella invencível, correremos a
defender a brecha, por onde, no momento do perigo,
hao de fugir espavoridos os ganços do Capitólio. »
Se nao fosse a minha humilde admiração da vasta
sabedoria do eminente escriptor, diria que cousas doestas
nao as escreve senão quem, ou nao sabe o que diz, ou
está debicando com o seo paciente público. Que signi-
fica similhante phrase? Ja sabemos que um novo Man-
lio fará a grande Africa de defender uma cidadella
iíwencivel : mas que motivo tem Manlio para descom-
por e laxar de covardes e inúteis ( caso único em que
se compreenderia a intenção da phrase ) os pobres
ganços do Capitólio ? Dar-se-ha caso ( tudo é por^sivel )
que o erudito romancista ouvisse cantar o ganco, sem
44 XXIII
saber d'onde ? que lesse algures a locução ganços do
Capitólio^ a achasse bombástica, e a atirasse para ahi,
fosse como fosse ? Euja não juro nada.
Tito Lívio (V. 47) compta que, estando Roma em grão
perigo, cercada dos Gallos, foi Cominio incumbido pelo
senado de ir a Veios buscar para dictador o desterrado
Camillo ; mas tão apertado estava o sítio que era peri-
gosíssima a tentativa de rompêl-o ; todavia o portador,
regressando, lá achou artes de penetrar no Capitólio,
por uns atalhos mal guardados. Talvez que observando
os vestígios da passagem do mensageiro, approveita-
ram os Gallos uma noite assaz clara, e nao sem muitas
dificuldades, foram subindo até o alto do morro, tao
caladinhos, que por ellos nem deram as senti nell^s, e
nem os cães, animal que de noite o çiínimo ruído
acorda. Só a que:n nao lograram, foi aos sacros gan-
ços de Juno, que, a despeito da terrível fome, tinham
sido poupados. A elles deveu Roma a salvação. Come-
çaram os ganços a estrugir os ouvidos dos romanos, e a
dar-lhes rebate, batendo com as azas, e gasnando
estrepitosamente, d*onde resultou precipitarem-se os
Romanos sobre os Gallos, que iam jà intrando no Capi-
tólio, e darem cabo doestes, o que não succederia seos
ganços houvessem demorado alguns minutos o seo
chamamento.
Por tão grande foi este serviço considerado, que nas
cerimónias públicas, os ganços, como qualquer con-
sultor, andavam de sege, e não scei se com correio
atraz , mas scei que à cerimónia chamavam anser
in leclica , e que era isto tido por suprema hon-
raria, em memória dos beneméritos ganços do Capi-
tólio.
Será a estes que allude o atilado escriptor? Será a
este Capitólio, cujo nome dizem que proveiu de alli ter
sido achada a cabeça de Tolo, capul Toli, que era um
quidam que elles lá sabiam?
Mas se os Cranços do Capitólio foram mais sollícitos
que as sentinellas, se foi a sua intervenção que salvou
Roma íq}i(p res salutis fnil^ diz Lívio), como imagina o
Sr. Alencar que a sua locução signifique desaire, me-
noscabo, labéo, desdouro?
Os patos, sim senhor, patinham; mas os ganços do
Capitólio são o emblema da lealdade, da vigilância,
do cuidado.
XXIII 4.>
Neste sentido foram, por famílias illustres, tomados
para divisHs suas, do mesmo modo que a águia foi
divisa do l.iipério romano, e depois cora 2 cabeças,
alludindo á divisão do império oriental e occidental ;
e a esphera do Sr. D. Manoel alludia ao domínio do
mundo ; e o pelicano do Sr. D. João II, com o moito :
Pola-ley e polorgr&y^ alludia ao modo como esse mo-
narcha intendia o offício de reinar, etc. Era assim,
alludindo às altas qualidades que história ou fábula
proclama nos ganços do Capitólio, que estes se torna-
ram uma honrada empresa ; mas cá o uosi^o nivelador-
mór desadorou com o poder pessoal dos ganços, e
rebaixou-os de posto, ou antes, por uma antíphrase
inexpKcavel, converteu em censura o que sempre foi
tido por louvor.
Eis-ahi tens tu o que seja a carta introductória do
novo romance O TU : como sempre, uma baforada,
uma arrogância, uma injúria.
Segue-se falar no começado, apregoado, assoprado,
ingraudecido, celebrado, hyperbolizado , incarecido,
exaltado e inthronizado romance. Está-me caindo da
penna um verso de Boileau, mas nao quero, nao
senhor.
Teo respeitoso amigo.
ClNCINNATO.
G Brasil.
11
FALSIDADE DOS CONTRACTOS
Nao menos condemnada é a questão de emigração
para o Brasil, pela falsidade e má fé que se diz
presidir a todos os contractos celebrados em Portugal.
Acceitâmcs a accusaçao como verdadeira, em pane;
no todo nâo, e vamos dizer o porque.
Um dos fazendeiros que mais tem sido aggredido,
talvez por ser o que mais colonos ajusta para os seos
estabelecimentos agrícolas na província de S. Paulo,
é o desembargador Bernardo Avelino Gavião Peixoto.
O governo imperial celebrou já n'este anuo um con-
tracto cora aquelle agricultor, no qual, determinando
que se observem no transporte de colonos as dis-
posições do decreto do l.** de Maio de 1868, deter-
mina mais : Que, antes de embarcarem nos porto . de
46 XXIII
sua procedência, os emigrantes assignarào perante o
cônsul ou agente consular do Brasil^ ou na falta d'este
perante a aucioridade /occ/, a declaração em dupli-
cata, de terem conhecimciUo doà condições dos con-
tractos feitos para a importação no império, nspeci-
ficando-se a cláusula de nao irem por conta do go-
verno, o qual fica exempto de toda e qualquer der-
pezacom o transporte, desembarque, agasalho, sustento,
tractamento dos colonos, e conducçâo de bagagem ;
Que o governo imperial auxilili a despe.^a com a
passagem com os colonos menores, de 2 a 14 anno;?,
que forem em companhia de seos pães, na pro-
porção de 4 por cada família, e nao excedendo de
80S000 rs. o auxilio para cada passageiro ; e bera
assim de 3508000 para a passagem dos colonos adul-
tos do sexo masculino, de modo que o número de
passagens auxiliadas nao exceda a 200, comprehen-
didas as dos menores ;
Que da dívida dos colonos para com o importador
será deduzida em favor dos mesmos a importância do
auxilio concedido pelo governo imperial para as pas-
sagens, tanto dos menores como dos adultos ;
Que, finalmente, a subvenção só será paga em
vista de um exemplar da declaração exigida e at-
testada do agente consular do Brasil, na qual se
mencione a edade, naturalidade, filiação, profissfio,
estado, religião e o número dos emigrantes, e pre-
cedendo a appresentaçao de cada um ao agente no-
meado pelo governo para fiscalisaçao do contracto.
Como, pois, pôde accusar-se de falsidade nos ron-
tractos o governo que toma taes medidas e o par-
ticular que acceita taes condições ? Como pode haver
falsidade no contracto, se elle só pôde ser válido,
em interessa do próprio agricultor, depois do colono
haver declarado quaes as condições com que seescrip-
tura e de as acceitar?
Outros haverá, e ha talvez, que sejam illudidos na
sua boa fé. Mas de quem a responsabilidade ? Do
governo imperial, de certo nao, (|ue o nao pôde evi-
tar. Chega a qualquer poncto do império um navi'^
conduzindo colonos, que se declaram ajustados por
motu-próprio e livre vontade : como ha de o governo
imperial castigar o contractador, se nao ha accusaçâo.
se ninguém se lhe queixa, se o próprio cônsul por-
XXIII 47
tuguez tem de legal isar e dar sancçao aos con-
tractos ?
Sao estes contractadores os contrabandistas, e esses
ha-os em todos os paizes. Claro é, portanto, que só
«s auctoridades locaes podem ou devem fazer com-
prehender aos indivíduos que se dispõem a seguir
para o Brasil, que tem dous alvitr^.s a tomar e dous
caminhos distinctos a seguir : ou contractarem pe-
rante auctoridades legaes e responsáveis pelos seos
actos, em cujo caso uao podem ser illudidos ; ou ajus-
tarem a occultas, sem conhecimento de quem quer
que seja, que possa coarctar qualquer abuso ou qual-
quer fraude nos seos contractos.
Em ambos os casos, absolva-se a colonisaçao para
o Brasil que, se tem custado vidas, tem também
salvado muita família da fome e da indigência, e
feito de muito homem indolente um cidadão útil a
siy a(»s seos e à sociedade.
[Continua).
Do BrasiL
ARCHILOCO A CINCINNATO.
Conheço na minha terra,
meo querido Cincinnato,
um charlata pequenino^
arvorado em litterato.
Dando por páos e por pedras,
em fofo estylo arrogante,
crê-se o magister da lingua
sendo n'ella archi-ignorante.
E' mania imperdoável
d'esse ingenho sem egual
escrever de omni scihili.r
que importa se bem ou mal !
Por vocábulos esdrúxulos
que nao valem um vintém,
julga-se um sábio da Grécia,
e nao respeita a ninguém.
Quer o mísero ser tido
em conta de novelleiro !
mas no mercado das lettras
é simples bufarinheiro.
48 XXIII
Anda sempre atarefado
em romanescos lavores ;
occupa log'ar distincto
na turba dos palradores.
Quer ser crítico eminente,
e dnr liccões sobre tudo.
Ninguém dà o que nao tem ;
philaucia nao suppre «estudo.
Se romântica e faz dramas^
enche resma.s de papel,
parece escrever na lingua
que se fallava em Babel,
Brilha de um modo espantoso
na abstrusa phrase.... queé linda,
e deixa a perder de vista
o próprio José Cabinda.
Nas talentosas imagens
verão o bello e o bonito.
Não é átomo, é gigante ;
dobra e desdobra o infinito.
E ha quem o eleve ao throno !
por Deus ou por Belzebuth!
Thronos d'estes só assentam
no reino de Lilliputh.
Archiloco.
E P I G R A M M A S
Ha hi quem tenha apostado
que as taes dobras do infinito
o fizeram pequenito
e algum tanto amarrotado.
Dentro de um taquarussii
veio de Itapemerim
notícia para Iguassii
de como o infinito assú
passa a infinito merim.
Estes epigrammas como o último do precedente nú-
mero sEo de Quintiliano.
Typ. e lith.— Imparcial— Rua Sete de Setembro n. 14« A«
QUESTÕES DO DIA
]Sr. 34
RIO DE JANEIRO, 8 DE DEZEMBRO DE 1871.
?ende-8e <m casa dos Srs E. & H.Laemmert.— Agostinho de Freitas Gui'
maiies & Comp., 26, rua do General Gamara.— Livraria Académica)
Rua de S. José n. 119— Largo do Paço n. C.— Pr^^ 200 reis.
Shdx*. I^tedaotox* aas « Questões do Dia »
Do excellenteescriptorSemprónio recebo, com outras,
a carta inclusa, destinada & publicidade, e n&o posso
enYÍar-lh'a, desaccompanhada de duas ponderações.
A primeira é que, dignando-se V. acceitar as minhas
garatujas, poderá parecer vaidade ou insânia transcre-
yerem-se nas mesmas páginas encómios á minha pessoa,
aliás exclusivamente devidos á cega benevolência de
Srotectora amizade. Repito porém o que ja tive precisão
e reflectir, e que me servirá de salvaguarda ,se por
ventura alguma outra vez me achar em eguaes con-
dições : Vejo-me entre a espada . e a parede. Que
fazer?
— Deixar de publicar estes escriptos ? Seria defraudar
os leitores d'estes modelos de critica ; abusar de hon-
rosa confiança ; corresponder a uma delicadeza com
uma Vasconcellice.
— Publicai -os, operando-lhes alterações e cortes?
Seria desfigurar a producçao ; arvorar-me em censor,
sem direito ; superpor a minha penna rude á aparada
de quem a maneja muito melhor do que eu.
— Dal-os à luz, intactos? Por exclusão, é o linico
expediente lícito, supplicada, como fica, para este e
todos os ca.sos análogos, a desculpa do leitor, a quem
n^o me considere subjeito então a força maior.
Venhamos a outro poncto.
Na carta que vai ler-se, abaixa-se Semprónio a tomar
em consideração, embora seja para esmagal-o, ao Pa-
lesireiro do Diário do Rio. Está longe o conspícuo es-
criptor. Pensa elle, como todos tinham pensado, que
eram ou dictadas ou insufiladas por Sénio as tristes
Palestras^ que lhe imitam o estylo ; que lhe reproduzem
50 XXIV
a argumentação ; que se sabe saírem de debaixo do
iiidsiao telhado e de sobre a mesma mesa em que Sénio
escreve.
Foi exclusivamente esta coEvicção que levou a raim
e a Serapróaio, a descermos.ao poncto de discutir com
o Palestreiro^ guardadas sempre as devidas distancias
de linguagem, isto é, brandindo nós espada de aço
contra espada de canna temperada em lodo.
Surge porém um çuidam^incoberto sob o pseudóaymo
VasconcelloSj bradando serelle, e não Sénio^ o auctor da
Nova Tripa Virada, e a reclamar para si certo privilégio,
de que afirmam usava uma Viscondessa da Lourinhã.
Quer, a toda a força, celebrizar-se ; é o que os fran-
cezes chamam reclame ; quer que façamos faiar nelle ;
quer que annunciemos aos taberneiros o seo escriptório
de* advocacia. Perde o tempo.
Quanto a mim, ja avaliei a importância do critico,
e pode esbofar-se, que lhe não darei mais attenção a
quantas inépcias escrevinhar, em linguagem de prós-
tíbulo ou de aço^igue. Nada, não senhor. Eróstrato era
um parvo obscuro, aquém atormentava o delírio da
celebridade. Qieria immortalizar-se fosse como fosse, e
com o petróleo de Epheso queimou aquelle Rocheford o
Velho uma das 7 maravilhas do mundo. Isso foi lá com
elle; mas eu, simples cidadão, e respeitador da lei,
curvo-me á que promulgaram os Ephesianos, quando
prohibiram expressamente que se proferisse o nome do
inceadiàrio. Por isso, surrindo, o vejo voltar ao Dia' rio
do Rio ( ha folhas, que, em se lhes pagando, pablicam
tudo ; tomam a sua missão por uma tigella da casa jor-
nalística ], fazendo-me tregeitos e visagens, e dizendo
que o Sr. José d' Alencar E' SOL ( de quem ja obteve,
e appira a m is.... certo calor que nós sabemos ), e
outras bajulações tão nojentas como as diatf ibes com
que sonha fulminar-nos. Coitado, reqaiescat in pace.
O que é lamentável, porém, é que Semprónio se
curvasse a inxergar similhante escrevinhador, a quem
faltam todos os dotes de sciencia, consciência, intel-
ligencia, gosto, estudo, educação, e senso commuoi.
Entretanto, submetta-se Semprónio aos ossos do oficio:
isto é o (c Lembra-te que és homem l do romano trium*
phador. Quando o general victorioso, ia revestido da
túnica palmata e da pintada toga^ coroa de louro na
fronte, ramo de louro e ebúrneo sceptro nas mãos, pouco
importara que ao pescoço levasse uma nómina contra
XXIV 51
a inveja : atraz d'elle, no carro magnifico de marfim,
pachado por 4 alvos conséis, ia um escravo ébrio, des-
compoodo-o e insultando-o, e desde o Campo de Mafte
até á Porta Carmental e ao Clivo Capitolino, confundia-
se a voz do truSo com o Io trvumphel das multidões.
Cada um occupe o seo lugar, e Semprónio trium-
phe !
Desde que, porém, nos querem convencer de que
Sènio nao é o auctor das Palestras^ persu€tdo-me que
o distincto escriptor fará devida justiça a si mesmo,
Gondemnando ao desprêso a insolente, analphabeta
e chata escripta de um V.
Semprónio vai inceptar o estudo da Iracema e da
Diva. Acaba de sair à luz uma sequencia de produc-
ções estupendas, incontestavelmente do Sr. José de
Alencar ; para que se hade brigar com phantasmas,
quando ante nós temos o corpo ?
Ahi está fresquinho o impagável TiL Temos o 2*
tomo do Tronzode Ipê (que os thuribulàrios do costume
já proclamaram famoso, eloquente, de forma rara e
mais que appreciavei etc, nada menos). Ha muito
por onde esmerilhar, sem que se nos saia ao incontro
com hesitações sobre authenticidades.
Ha mais outro livro, que participa de empalmaçSo
^ de roedéla de chorda, e que parte da mesma selecta
intelligencia ; mas este merece duas palavras de re-
miniscências.
A 23 de abril de 1870, publicou o sr. José de Alen-
car uma carta muito perra, fazendo saber ao mundo
que nio tinha ficado pârro, por nflo ter sido escolhido
para senador, carta ds que ainda espero occupar-me.
E' uma verriUfi, quanto ao passaao ; uma amiaça,
quanto ao futuro. Leem-se nella estas phra^es, por
exemplo :
« Sou obrigado a revelar ao paiz os motivos pes-
soaeSf e as razões occultas, que determinaram minha
exclus&o. Abrirei aos contemporâneos as páginas de um
livro, que eu havia escripto para o futuro. Accredito
que nao serão páginas perdidas para ^ história doeste
paiz ; aquelles que se derem ao trabalho de a.s folhear
conhecerão que essa condemnaç&o do meo ministério
foi lógica. Eu a esperava como a consequência neces-
sária de alguns actos de energia e m^ralidade^ que
pratiquei no governo. »
i^k«W
52 XXIV
Ponhamos de lado o despeito e o desabrimento com
que se tracta o mais que sol^ aquelle contra cuja
vontade se não concebe resistência no dominio da lei,
O género humano tomou nota da promessa formal.
Exultou de ver que um melhor Chateaubriand pre-
senteava a actualidade com umas interessantes Memó-
rias destinadas à posteridade, mas que generosamente
se transformavam em Memórias àe a>quem^ca/mpa. Tem-
se preparado para admirar o promettido Livro do futuro,
com seos foros de apocalipse. Excitara-lhe a curiosidade
a certeza de que ia estudar as consequências lógicas,
razões pessoaes, e motivos occultos, porque emfim,
desde tempos immemoriaes, as sciencias occultas têm
arte de despertar geral appetite.
Já lá vai anno e meio, e moita I O Livro do futuro
assimilhava-se ás prophecias do Bandarra, e D. Se-
bastião sem apparecer I Mas afinal, parabéns, surgiu,
eureka^ eil-o ani .
O Sr. Alencar imprimiu os seos brilhantes discursos
d*esta sessão. No prólogo (diz o Jornal do Commércio)
declara o auctor que offerece estes discursos como paga-
mento do promettido livro sobre a sua passagem pelas
regiões do poder, e que se intitulará Dezoito mezes no
podfix. Antes que este appareça, promette reproduzir,
ainda como pagamentos^ os seos discursos aa sess&o
de 1870, e como prefácio uma 3* edição das Cartas
à^Erasmo.
Que a impavidez é dote d'aquelle descommunal
talento, se tantas provas nao houvesse, bastaria esta
para evidencial-o. Emfim, tem-se visto quem faça
do sanbonito gala. Mas que se pague em moeda falsa,
isso é que nao parece de jurisconsulto, que sabe as
penalidades da lei. Deve alhos e dá bugalhos. Por 5
libras sterlinas dá egual forma em 5 vinténs. Promette
livro do futuro, e diz que paga reimprimindo farelórios
do passado. Obriga-se a revelar consequências lógicas,
motivos pessoaes, razões occultas, e empalma tudo,
pagando ern cobre o peso do que devia em ouro, e
burlando uma vez mais o público paciente. Ficaremos
pois intendendo que a alta novidade das Cartas de
Erasmo, e àns arengas parlamentares do passado é o
Livro do Futuro l !
Todavia ahi esiá matéria sem termo para appreciaçao
d-o orador, do estadista, do romancista, do escriptor,
XXIV 53
aos quaes, a seo tempo, seguirá o jurisperito e o
dramaturgo.
Peço desculpa de haver dado a estas linhas de in-
troducç&o e justificação maiores dimençoes que projec-
tava, e permitta subscrever-me
ClNCINNATO
NONA CARTA DE SEMPRONIO A ClNCINNATO
( Epíittola aparte.)
ínclito amigo.
Tenho sido de uma descortezia atroz.
Três cartas tuas até hoje sem resposta ! E que
cartas! onde a liberalidade mais cavalleirosa confunde
o ignorado escrevinhador de província I três primores
de ingenho e de arte, padrões de vernaculidade, eru-
dição e atticismo.
Mil perdoes.
Tu tambor, emquanto ftu marechal do exército !
Nao te lembres d'isso.
Eu, sim, é que me apresso a reconhecer em ti o
mestre, capaz de me dar licçOes, ricas de insino para
viagens de instrucçao n'este labyrintho inextricável
da crítica. Nao sou senão justo, prestando-te do co-
ração o culto a que têm indisputável direito os teos
múltiplos e fecundíssimos talentos, as tuas graciosas e
castiças lettras.
Acabo de chegar do arrabalde, onde a minha dete-
riorada saúde me deteve cerca de quatro mezes. Tran-
quillisa-te, porém ; estou disposto e preparado para a
esgrima.
Vi as minhas frandulagens sobre o Gaúcho. Agra-
decido.
Mal pensara eu, quando tive de escrevêl-as, a ins-
tancias reiteradas de um amigo que chegara havia
pouco da campanha do Rio Grande, que Sénio, em
resposta e sem ler em consideração a excellencia do in-
tuito, nem o comedimento e selectos modos da minha
compostura, viria, arrojado e infrene, assacando-nos
doestas fidalguissimas amenidades :
« To7nOj para começar^ a 1* carta em que Cindnnato^
d laia de amigOy se dirige a um Semprónio, AMBO FLO-
RENTES, não na edade^ poisque o de lá ainda estd na
esjnga e o de cajá chegou ao sabugo^ mas com certeza
ÁRCADES AMBO ; e bom será que se saiba que ha dt-
•
54 "- XXIV
versas espécies de ARCADIOS, sendo estesdousd'aqudles
de que tracta Juvenal sat. VII v. 160 : QUOD L^VA
PARTE MAMILLCE SALIT JUVENI ARCADICO,
qua/ndo faz aJUusão a certos ORELHUDOS de bom vo-
/ume, qae pastavam a relva da Arcddia. »
Diz uma auctoridade em lettras : a Quando a alma
é elevada, as palavras vem do alto, e a expressão nobre
^ accompanha sempre o nobre pensamento. » Faze a ap-
plicaçao.
Orelhudo só pode ser filho de burra. Ora d'esta es-
pécie de animal nunca figurou, que eu saiba, na minha,
posto que plebéa, estyrpe. Para onde se voltou, pois,
Sénio, quando quiz achar a finíssima allusao ?
A' vista de tao polido exórdio hesitei, a principio,
como tu, se devia ou nâo travar contenda com quem
assaz mostrou só saber torneiar d gancha.
Ora, nunca me empenhei em taes luctas — verda-
deiros exercícios bárbaros. De meos pães, de meos mes-
tres, da boa sociedade, da civilisaçao ( da nossa civi-
lisaçao que nao babuja^ como a de Sénio ] aprendi a
pleitear com as armas do pensamento — pela palavra,
esse escudo sonoro, e pela penna, essa tersa lança do
brioso lidador.
Mas deixar de accudir à intimac^lo ! isso nunca. Dou^
me também por citado, e venho á lide para discutir, se
o quizerem, e nunca para rebaixar-me. E' falar
em bom portuguez.
Quizesse eu combater d Gaúcha^ nada mais fácil,
apezar da minha falta de hábitos, de gosto e de aptidão,
confesso-o, para esta espécie de pugna gentílica : o
amigo, de quem acima te falei, tem ainda em seo poder
um rebenque e umas chilenas, que de bom grado me
prestaria; e até um Jucá acharia eu defronte de mim
para o cavalgar.
Mas renuncio para outros á glória de sobresair n'est6
páreo. O público da cidade , que nao confunde ,
como Sénio, o homem com o bruto, vai tendo o bom
senso de antepor ás corridas ferozes as nobres justas do
raciocínio, únicas que instruem e dao triumpho sem
molestarem.
Para prova de que estou disposto a discutir, vou
occupar-rae com a continuação da gauchada de Sénio.
« Prometto continuar — diz elle — logo q-ue regresse t pois
que para concluir a tarefa^ que tomei sobre os homkros^
inda me resta debicar um pouco o Sr. Semprónio^ que
XXIU 55
também se metteu a criticaço^ e pinoteou pela campanha
da litteratura^ para mostrar ao vivo como comprehende o
ca/úaUo do Gaúcho. »
Duas observações :
L* Sénio nao abandonou ainda o estylo equino. Vai-
lhe a phantasia tão recheiada de visões hippicas, que
as imagens que lhe occorrem nao sSo de outro género.
Piríoteoit pela campanha da Htteratura. Que gentileza
de me^Aphora ! A Htteratura convertida em campanha,
onde se pinoteia ! E' da mesma ordem da civiíisaçao
que babuja. Descobriu-se o Chiarini da Htteratura.
2.* O que eu disse foi como comprehendia o cavallo
do pampa, e nao o cavallo do gaúcho ; sao idéas bem
differentes. E' preciso que Sénio, por amor de si mesmo,
tenha presente o seguinte: que & improbidade litterá-
ria doá palestreiros jesuítas deveu Pascal em grande
parte o seo majestoso triumpho.
Accrescenta o nosso fidalgo oppositor :
« Ora, Sr. Semprónio I Vd esbrugar os seos indios do
Jagiiaríbe, e fp,iando lhes tiver tirado o cascão, etc. »
Bôa dúvida ! Grande achado !
Que o>í taes indios tinham cascão, e do mais espesso,
foi o auctor o primeiro que o declarou, alto e bom som.
Leiam a nota 1* no final do vol. 1*.
Semprónio, provinciano bronco e obscuro, nunca
pretendeu ser tido por grande cousa, por formador de
eschola, Htterato inatacável, philólogo inerrante, sábio
illuminado. De taes velleidades não se accusa. Escre-
veu, garatujou aquillo por mero desinfado. E ficará
em excelso agradecido ao pio leitor, ao próprio Sénio,
m se dignar indicar-lhe os erros, porque se elles nao
forem irremediáveis, promette tentar emendal-os con-
forme poder na 3* edição, se resolver dal-a Chateau-
briand, dócil ás licções dos críticos, nunca se despresou
de corrigir suas obras. E' elle mesmo quem nos con-
fessa que, sendo reimpressa a Atala onze vezes, se con-
frontassem essas onze edições, apenas incontrariam
duas inteiramente similhantes. E' que pelo menos dez
vezes a Atala teve cascão. Antes quero pensar com Cha-
teaubriaud do que com Sénio (perdôe-me elle a prefe-
rencia), que emperrou, emperrou
Semprónio estava uma vez muito caladinho no sea
canto, quando recebeu o 1* numero da República (diá-
rio que se pubHca n'essa corte) trazendo um formoso e
obsequiosíssimo juízo crítico sobre os índios. Era da
ôt) XXIY
penna do Sr. Silva Maia, cavalheiro que o auctor n&o
tinha nem teve ainda a fortuna de conhecer.
O Sr. Silva Maia, julgando da acção, dizia o se-
guinte :
« E' esta por ventura um pouco arrastada e longa, e
interrompida não poucas vezes por incidentes, talvez
alheios ao seo movimento e desinvolvimento, etc. »
Semprónio toma o livro, folheia-o, medita, e conclue
confessando á sua consciência, como ao público o de-
clara .agora, que o Sr. Silva Maia tem carradas de
razão. Eisahi.
Acceitar com reconhecimento e gáudio salutares
instrucções e advertências, por mais elevada que seja
a posição que se occupe, sempre foi próprio do es-
col dos espíritos. O que me parece triste, e das me-
diocridades desabridas, é perseverar voluntária e
obstinadamente no erro por amor de preconceitos vãos.
O mundo é uma eschola, onde se pratica, não o
elogio, senão o insino mútuo, com esta circumstancia
porém — que não ha magister super omnes.
Firme n'estes princípios é que Semprónio irá tam-
bém esbrugar e dissecar a Iracema e a Diva^ que,
segundo alguns, têm moléstia na pelle ( elephancia»
de estylo ), e, segundo outros, talvez mais bem avi-
sados, o principal defeito está em alguma mielite ou
alguma viciosa disposição da espinha ( destempêros
de acção e de characteres ), d'onde vêm os corcovos e
B& suturas ósseas, que lhes dão a figura de monstren-
gos.
Notarei : nas delicadas operações, que vou con-
tinuar, nunca os erros, as fragilidades, os arroubos
disformes, os caprichos frívolos do auctor farão Sem-
prónio deixar de ter para com Sénio as attenções devi-
das ã sua edade, posição social, admiráveis talentos,
illustre pessoa, e particular character. Sénio precisa
mais de ter quem lhe diga certas verdades proveitosas
do que de pão para a bôcca. Hei de dizer-lh'as, apoia-
do na minha bôa fé, em meo desenvolvido espírito de
rectidão.
Não é de hoje, uão é no interesse de quem quer
que seja, que reajo em nome das lettras nataes. As
minhas cartas sobre o Gaíicho, posto que sé agora
publicadas, foram escriptas ha perto de um anno, e,
o que é mais, estiveram todo este tempo ahi na corte.
Scei que de tudo isso tem Sénio notícia.
XXIV 57
Repito: estou plena e profundameate convencido
•de que, procedendo assim, presto serviço ao Bra-
2il. A crítica, que se preza de justa e independente,
é inquestionável agente de progresso ; poe diques
«(deixem 1& falar) aos extravasamentos das imagi-
nações superabundantes, alimenta e aguça os estímu-
los productivos, apura o liquor das boas fontes sem
estancal-as.
Nsio sSo mais brazileiros do que eu, os que só têm
o incenso que embriaga, e nunca uma palavra de ju-
diciosa e firme admoestação. Muita vez o applauso é
desserviço, e quando perenne, converte-se em nojenta
6 nociva idolatria. Admira que os mesmos que alar-
deiam querer espancar o chamado fetichismo político^
estejam alimentando o fetichismo litterdrio^ real, fu-
nesto e enervador.
Serão da injustiça mais injuriosa e acerba, se me
tacharem de iconoclasta de imagens da terra ; o que
faço é, do fundo da minha obscuridade, aponctar a
eiva ao ídolo, e pedir que o reparem, para que nfto
caia aos pedaços.
Quem souber commover-se e orgulhar-se com as
grandes cousas ^da pátria nSo o ha de saber melhor
do que eu ; estão enganados ! Quando J. de Alencar,
â^piples neóphyto nas lettras, escrevia desabridas
cartas contra um brazileiro, a todos os respeitos illus-
tre e respeitável, verdadeira glória do Brazil, o con-
selheiro Gonçalves de Magalhães, alguém o chamou
de iconoclasta de imagens da terra 'i Pelo contrário :
houve de sobra quem o applaudisse e acoroçoasse. E'
que ha homens que nascem sob um signo inteira-
mente feliz : J. de Alencar é doestes.
Pois bem : nSlo faço mais do que seguir o edificante
exemplo de J. de Alencar.
Fico com o escalpello sobre a Iracema .
Teo amigo e admirador sincero
Sbmprónio.
o MCE30 IVO>IE3.
Apparecendo pela primeira vez perante o público
doesta capital, natural é que alguém pergunte quem sou*
d^onde vim, e para onde vou. Ora, como eu sou do
«éculo da publicidade, vou já pôr tudo aqui em pratos
limpos, afim de n^o deixar a mínima dúvida.
58 XXIY
Como se verá na fralda d'esle escripto, chamoHoae
Oilon. Nao é nome que me pozessem na pia do baptis-
mo : assim como Ha muita gente, que abandona 06 no-
mes, que seos pães lhe deram para tomar outros, qu^
muitas vezes valem menos, assim fiz eu , appro-
veitando o exemplo.
Mas porque razão dei eu preferencia antes a este que*
a qualquer outro ?
Eu explico. Otton é o nome de vários individnos
conhecidos na história : entre elles pelo menos tres
imperadores.
Ora eu queria um nome, que impozesse às turbas :
pareceu-me qiie este estava muito no caso, nao tanto
por ser nome essencialmente monárchico, mas porque
com pequeníssima variante se transforma em outro»
perfeitamente republicano.
Eu sou monarchista, isso lã sou eu ; porém não scel
quanto tempo isto ha de durar. Nos dias que vao cor-
rendo, um homem muda de posto com mais facilidade
do que muda de camisa.
Supponhâmos que sou chamado ao ministério : é
difficU, mas nao é impossível. Se houver eleiçSo se-
natorial, là meincaixo eu ; e que hei de intrar na liâta>
isso é dos livros. Mas não sou escolhido : republicano
no caso. O cao dos Animaes Falantes^ de Casti, o fuib-
dador da monarchia leonina, só porque o demittiram,.
foi para o campo do elephante.
Porventura nao houve ahi alguém que tomou o no-
me de Sènio? Porque? Sem dúvida por ser com peque*
na alteração o anagramma de nhcio. Eu tomei o nome»
Otton, porque me serve, emquanto a cousa me correr
bem , mas em me chegando a mostarda ao nariz, ldrgt>
cutellos e varredouras : é apenas um risquinho e um
pinguinho ; estou cá, e estou là !
No tempo em que o wapor nao fazia mover carros
nem barcos, e nem havia telégrapho eléctrico, a cousa
nao ia a^sim : as idéas andavam tao de vagar como as
pernas. Ainda por ahi ha muita gente, que para obter
o seo retrato, depois de dar quinze ou vinte se^sOes ao
seo pintor, tinha de esperar seis mezes. Hoje é negó-
cio de segundos, a tres mil réis a dúzia.
A gente fala das cousas, segundo o modo porque as
Yê : mas os olhos sao màchinas photogràphicas que
appresentam os objectos de diíFerentos modos.
XXIV 59
A inveja tem os olhos vesgos, nao é assim? que
eu, excluído, hei de ter inveja do escolhido, isso nao
admitte dúvida. Ficam-me os olhos vesg-os : de Otton
que sou, passo a ser o meo simile, por outra, de monar-
chista que sou, passo a ser republicano de papo ama-
rello.
Tenho falado muito de mim : para outra vez falarei
dos outros*
Otton.
TRAGEDIA Igtiez de Castro.
Se o nao conhecem, deixai-o-hao seguir sem atten-
tar n*elle, e sem lhes passar pela mente que vai alli
uma grande intelligencia, uma alma nooilissima e
um coração de pomba.
Júlio de Castilho é assim : crenças, puras como a
dos primeiros annos ; coração, vivíssimo como o dos
vinte ; talento, profundo e sólido como o dos cin-
coenta. Modesto (sincera e demasiadamente modesto),
imaginando insignificância quanto faz, mesquinho
quanto inventa, rachítico quanto concebe, ó pasmo de
quantos lhe sabem estas virtudes a noticia de que um
trabalho seo vai ser lido em público ou publicado em
livro. Se o virem n'um gabinete, em que é tantas
vezes o primeiro, julgal-o-hao o último, tal é a timi-
dez com que expõe a sua opinifto sobre o assumpto
que se discute. E, não obstante, poucas vezes hade um
pae, já immortal como o d^alle, confiar aguardv fu-
tura do seo nome a um talento tao seguro como o de
Júliq de Castilho.
Tem fácil explicação este character. Educado por
uma senhora, toda virtude, toda carinho, toda saber,
senhora que ainda hoje é prancteada por tantos pa-
rentes e estranhos, foi-se aquella alma abrindo ás
luctas da vida, entre exemplos de resignação e de
amor, despretenciosa e modestamente praticados entre
as quatro paredes do seo lar. Se se soltava dos braços
da mfte estremecida, para voar ao collo do pae, d'a-
quelle pae de quem elle foi sempre o inlêvo, via-o
longas horas do dia intregue ao trabalho sem trégua,
ao e>tudo sem infado, como se elle, que tanto sabia,
tivesse ainda tudo que aprender. Se ouvia falar es-
tranhos, podia, creança ainda, levantar a fronte aL
60 XXIV
tiva, pelo culto de veneração e de respeito com que
era repetido o nome d'aquelle que lhe dera o ser. Se
assistia aos saràos litteràrios, contemplava attónito a ,
multid&o que corria a ouvir a palavra do seo mestre
e melhor amigo. Finalmente, se folheava o Méthodo
portuguez^ segredava-lhe a posteridade o nome de seo
pae.
Que mais fora preciso para fazêl-o tremer ante a idéa
de firmar com um nome tão glorioso um trabalho seo ?
Que importavam conselhos, que valiam incitamentos
de amigos, se mais alto lhe falavam as imposições
d'esse nome, e o respeito com que elle era repetido ? !
Tal foi a lucta d'aquelle espirito até 1863. N'esse
anuo começava a surrir-lhe a vida : jia posse de um
anjo lhe baixara uma primavera de flores. Embriagou-^
o perfume d^ellas, e cego e surdo a tudo, para só vêr a
candidez e ouvir a voz harmoniosa da esposa que me
recêra a Deus, foi-se cantando, cantando amores, que
tempos depois publicava com o titulo formosíssimo
de — Memórias dos vinte annos,
E fugiu.
Como a avesinha innocente que, ao som do tiro
do caçador, solta o vôo em busca de outro refúgio,
assim fugiu aquella creança para o campo, involto
nas azas do seo anjo. Corou de si próprio, do seo ar-
rojo, e a nSo lêr nos olhos d'aquella cândida pomba o •
— bem hajas ! — teria volvido a comprar todos os
exemplares, para que ninguém podesse ler o seo livro.
Nas saudações da imprensa, nos parabéns dos ami-
gos, via elle apenas indulgência e amizade ; e se um
dia se convenceu de que a sua estreia tinha algum
valor, foi preciso que um parente, tao sábio como
austero, lhe dicesse largamente o que pensava do seo
livro. Foi-lhe o único voto insuspeito, nao porque o
dictasse menos amizade, mas porque lhe exigia a in-
trega immediatade todos os seos versos inéditos, para
que. áquelle volume se seguisse outro, e outro, e
muitos,
Publicaram-se entfto os Primeiros versos ^ e nfio me-
nos festejado foi aquelle volumesinho. Em todo elle se
revelava a herança do pae ; gemia-se com o gemido
d'aquella harpa ; surria-se com o surriso das flores que
lhe ingrinaldavam a fronte ; respirava-se em todas as
páginas poesia e amor.
XXIV 61
Após tao supremos esforços, pediu tréguas. Preci-
sava rrpouso que nSLo tinha : prostàra-o a anciedade,
o receio de insombrar as tradições dos seos, e depoz a
lyra, para a tanger três annos depois, rica de nova
harmonia e de sons dulcíssimos.
Um dia despertaram os seos íntimos, aquelles a quem
é mais familiar o tracto das lettras,. com um convite
para assistirem á leitura de uma tragédia do moço es-
criptor, intitulada Ignez de Castro. O próprio cartão
de convite o photographava : a um cantinho de linha,
em lettra mais trémula e sumida, as palavras — drama de
Júlio de Castilho^ — como que se escondiam invergo-
nhadas I
Ninguém se escusou a tal convite, senão os que a
doença impedia de tomar parte em tao appetitoso coma
raro festim.
A's 7 e meia começou a leitura, perante um selecta
auditório. D'aquelle róo eram juizes em primeira instan-
cia Pereira da Cunha,Duarte de Sà,D. António da Costa,
Freitas e Oliveira, Silva TúUio, Castilho e Mello, Dal-
huaW, Biester, conselheiro Lisboa, visconde de Al-
menaro, Álvaro Paes, Luiz Philippe Leite, dr. Acácio
Caldeira, Júlio Machado, Roma, Bulh&o Pato, Zacha-
rias Aça, Xavier, José Aboim, Silva Ramos, dr. Hen-
rique Leal, e Ramiro Guedes. Se o vísseis passar a
vista, inquieto e offegante, de um ao outro extrema
do gabinete, veríeis que tortura lheian'alma, tor-
tura <^ue ia morrer ante as cans venerandas de um
astro immenso, que em frente a elle o animava e a
incitava : de seo pae, o Sr. Visconde de Castilho.
Fez-se profundo silencio, apenas quebrado pelo
arfar descompassado d*aquelle peito, contrastando com
a serenidade do pae e a convicção em qn.e estavam
todos os convivas de que o banquete havia de ser
digno dos convidados.
No fim de cada acto, fugia Júlio de Castilho, a res-
pirar a sós : os que o queriam abraçar, que eram to-
dos, iam ihcontral-o no poncto mais escuso dos gabi-
netes contíguos, e era para ver com que attençao ouvia
conselhos e parabéns de todos, como a todos agrade-
cia com o coraç&o nas mãos as palavras de sincera ad-
miração qiie lhe tributavam.
Isto pude contar ; mais não scei, nao me cabe a mim,
único que estava deslocado n'aquella sala : o oue tan-
tos talentos lhe diceram, nem sequer em é aado re-
(52 XXIV
petir. O que vou dizer, perdoem-m'o e suppoDhauí que
me chegou aos ouvidos, ora aqui, ora alli, doutre os
diversos gruppos que ajuizavam da tragédia.
Nao scei que Júlio ae Ca-tilho podesse metter hoin-
bros a empresa mais afaiiusa. Se era muito o ter de
atbender á palavra da historia, ao character dos perso-
Dageus, ao estudo da épocha, ao desenho das figuras
que tinham logar n^aquelle quadro, ás exigências de
um poema dramático, á ligação racional das scenas e
dos actos entre si, era tudo o confronto com a immensi-
dade de tragédias a que tem dado assumpto aquelle
thema ( algumas das quaes, de subido valor ), e a difi-
culdade de prender a attençao de espectadores, que
todos conhecem a fundo as peripécias da tragédia, em
que nao ha o imprevisto, em que cada figura que entra
em scena é esperada, e para dizer palavras que todos
sabem.
Pois tudo salvou Júlio de Castilho : nenhum dos
espectadores, apesar de lidos e versados nas leitras,
tinha até então visto ou lido a Ignez de Castro :tudo era
novidade, tudo era attrahente, commovedor, suberbo ;'
^, nao obstante, a parte histórica lá estava respeitada
nos mais insignificantes ponctos.
Como conseguiu tanto o moço escriptor ? Como soube
fazer chorar com elle, arrebatar com os arrebatamentos
da sua lyra, enthusiasmar com os enthusiasmos, can-
tar amores com os seos amores? Lereis um dia o livro
e sabel-o-heis : com a maior opulência de estylo, com
a maior suavidade de versos, dando á rainha o amor de
mâe que vira na sua ; ao sr. rei D. Affonso o valor de
que são capazes os reis portuguezes ; a Ignez de Castro,
o céo de encantos que lhe dá a SUA Ignez de Castro ;
ao velho Almada a lealdade, o conselho e a prudência
de seo extremoso pae.
Aos 30 annos náo se escreve melhor ; aos 50 dificil-
mente se escreverá tao haa : na sua edade ninguém
firmou assim uma reputação de verdadeiro talento.
Lede aquella scena entre o rei e a rainha, a da rainha
e Ignez, a de Ignez e Pedro ; ouvi á rainha dizer o que
é o povOj e convencer- vos-heis de como fica bem per-
petuado em Júlio de Castilho o prodigioso talento de
António Feliciano de Castilho.
Dictou a admiração, nao a amizade, estas linhas; se
as tomarem por affecto, por delicadeza ou testimunho
de cada um doa íntimos que ouviram a leitura da Igiits
XKIV 63
dê Castro^ provará i&so que sou apeaas echo de quem,
com direito inço atesta vel, coroou já poeta a Júlio de
Castilho.
Lisboa, Octubro 31.
A. DE Castilho.
A causa do réo discute-se
perante o seo julgador.
— « Que houve crime, é cousa liquida »
diz o forte accusador.
— « Sim I A prova nao é sólida »
responde-lhe o defensor.
Se de Homero o poema, antigo e celebrado,
coube dentro da casca estreita de uma noz,
quando o infinito fòr e bem e bem dobrado
nade vir a caber n'uma casca de arroz
Quintiliano,
Dou & luz para a semana
o liodo romance— Til ! —
E' serio ( diz a República ).
Quem diz que é poisson d* Avril I
O rei das lettras brasileas
vai para o meo rodapé I !
Como Sardon na FerlíUinda
exclamo em júbilo : cc Té / »
O' folhetim de espavento,
tu nos vais cobrir de glória !
D'esta feita a oossa folha
grimpa ao templo da Memória I
Quem vence a Scott em Romances,
e é nas Leis mais que Lycurgo;
Quem desbanca atè Shakspeare
se se mette a dramaturgo ;
64 XXIV
quem cr«ou 01 fato e Olho
nas ricas — Minas de Prata;
quem fez a pobre Iracema
parir em pé como pata ;
nos campos do Rio Grande
quem põe rocíns a falar;
o da âmbula do infinito,
o que faz côncavo o mar ;
o chefe da pátria eschola,
co'opseudónymo Cazuza^
cedeu-nos, ó glória, um fhicto
de sua fecunda Musa.
Ides ver a flor mimosa
do seo vasto repertório.
O' leitores, preparae-vos
para mais um purgatório !
Pompeo.
ANJVLNCIOS
Qi.E.sTr)ríf DoniA. — Veiulo-se j^or 3$000 rs., brochado,
ou por 4S000rs. , iuquaderiiado. o I./' volume dVsta
tolha.
O Bmaval, jo^rnal (Iti Liabôa. — N'esta corte, sao corres-
] oiuUnírs d'esta folhii os »Sr.s. E. e II. Laemmert, em
"lija c: sti SP tem: m ^ossigiiíituras por aiino a 158000,
por seii:e.síri^ a SSOOO ; c .-.e rocThem anmincios. para
-rrpin i«ii^)licíido- m^ P.raztl íi 60 r?. j.or Imha ; tudo
ib>'lif*ir«) t\o íiiiprri^. ;Fm Li.-Ka. rua Au{riif>ta u 188:
íírtJan^ro. Ant«;ino Mana de Castiih'^ : Adminúirarão,
Pedro A. d'Almeida.)
'.y, : ;::!;.- ij;i:'..i::l- Lu; hí íc •:• )^fl(7í'1 n- i . 1-j<* A .
QUESTÕES DO DIA
N. 25
RIO DE JANEraO, 13 DE DEZEMBRO DE 1871.
Vende-se «m casa dos Srs E- & H.LaemiDert.~Ágostinbo de Freitas Gui*
narães & Comp., 26, rua do General Camará.— Livraria Académica*
Rua de S. José n. 119— Largo do Paço d. C— Preço 200 reis.
Bio9rapli.la d.e H» SC. o Imperailor do Brasil
E' mui conhecido o Esèudo Biogrdphico^ traçado ha
alguns annos pelo respeitável McHisenhor Joaquim
Pinto de Campos, e puolicado no periódico litter&rio
O Fuluro, redigido pelo admirável poeta da natureza,
Faustino Xavier de Novaes, t&o prematuramente rou-
bado ás lettras e a innumeraveis amigos.
Bem era que um dos primeiros soberanos tivesse a
sua biographia feita por uma das primeiras pennas
doesta terra, e publicada por um dos mais talentosos
hóspedes que *nella hao sido recebidos, e reproduzida
agora na nação-irmã por um dos primeiros prosa-
dores de que Portugal se honra.
Coube pois, e muito naturalmente, a Cainillo Cas-
tello Branco, o honroso incargo de presidir à ediç&o
?ae de parte d'esses opúsculos se acaba de fazer no
torto, o que acaba de sair á luz, em nítida ediçSlo, com
o retrato do Sr, D. Pedro II.
Camillo Castello Branco, tao facundo como fecundo
escriptor, tornou-se uma das priífcipaes glórias do
nosso idioma. Desde muitos annos ^ue 'nelíe se dis-
putam primazias as mais raras qualidades de que um
auctor possa orgulhar-se : pureza, vemaculidaae, ele-
gância, sciencia, sentimento, graça, imaginaçSo, pro-
priedade, estudo, fidelidade, tudo coUocado^ a seo
tempo, tudo posto no seo lugar. Tal é a superioridade
das p&ginas d'essa admirável penna, sobretudo nos
últimos lo ou 15 annes, que um de nossos primeiros
poetas e prosadores, considerando-o clássico em vida,
tem inriquecido o sèo diccíonário com centenas de pa-
66 XXV
lavras e phrases, consagradas por aquella formosa
penna de Camillo Castello Branco.
Inimigo de indeusar poderosos, repugna ao sec cha-
racter tractar de assumptos que prendam com encómio
a elles ; mas o Sr. D. Pedro constitue uma excepção ;
nunca em ser justo pode haver desar.
Damos pois em seguida a Advertência^ com que o
primoroso escriptor incepta o livrinho. Formamos,
por elle e pelas lettras,votos por que se restabeleça da
grave e obstinada infermidade que o acabrunha. Viera
Camillo a Lis^ôa,em princípios de octubro, com tenção
de se demorar uns 15 dias ; mal eram passadas 24
horas, tornou-se arrebatadamente para o Porto, com
medo, dizia, de morrer separado dos filhos. S apezar
de tudo, e de se lamentar que sente já apagada em si
a luz da imaginativa, e o &nimo para trabalhar, e até
para escrever, censta que nos curtos intervallos em
que a doença lhe dâ folga, vai sempre escrevendo
obras novas. Esperemos que os receios do doente sejam
infundados, e que tão preciosa viaa se prolongue
largos annos para honfa e lustre da lingua que fa-
lamos.
A citada Advertência é do seguinte teor :
A biographia do Sr. D. Pedro II, trasladada 'neste
livro, é escripta por um dos mais insignes litteratos do
Império brazileiro. Monsenhor Joaquim Pinto de Cam-
Sos, 'nesse primoroso trabalho, revela do:es superiores
e bem pensar, de bem escrever, e — o que mais realça
— de manter a verdade histórica, a respeito de um
principej vivo, sem incorrer, se quer, na venialidade
da lison a. «
Foi publicada esta biographia em um periódico lit-
terârio do Rio de Janeiro, annos antes que o Brazil
fosse apalpado pela mão da trabalhosa guerra "*ue
mais relevantes lhe tornou os merecimentos ao louvor,
após a suspirada victória. E' muito para desejar que
a vigorosa penna que tao magistralmente urdiu a his-
tória da pacifica existência de Sua Majestade Imperial,
nos descreva os corajosos alentos insinuados peio au-
gusto imperante no ânimo brioso dos generaes quo lhe
honraram o reinado, tanto quanto se nobilitaram ser-
vindo o império.
XXV 67
Os factos, porém, relativos ao período deplorável
que perturbou temporariamente a prosperiaade do
Brazil, sacrificando á honra as vidas de muitíssimos
filhos seos, s&o recentíssimos, bastante notórios, e vi-
riam supérfluos, sobre dissonantes, :ie outro historia-
dor os relatasse.
Este livro não se apresenta occasionado somente pela
visita com que o festejado Imperador honrou a terra
de seo augusto pae e avós. Cabe-lhe mais elevada
graduação e quilate de outra mais nobre espécie, por
que ha ahi páginas identificadas ás da história de Por-
tugal, e relanços capitães da vida política do Brazil,
mal conhecida entre nós, da lo que por amor da língua
e costumes, e das relações commerciaes, e da tao vasta
quanto respeitável colónia portugueza n*aquelle im-
Íério, nos estejamos sempre mutuando affectos como
e irm&os.
Houve quem, possuindo o periódico em que Monsenhor
Pinto de Campos publicou os seos preciosos artigos,
se lembrasse de responder com este livro à curiosidade
de muitíssimas pessoas que de nome apenas conhecem
o augusto hóspede que tantas affeiçGes grangeou em
Portugal. 'Nesse estimável pensamento fui convi-
dado a coUaborar, em parte assim insignificante quanto
dispensável ; porém, como na ci.ada biographia super-
abundassem notas circumstanciadas de iilucidaçoes
politicas menos interessantes para portuguezes, cedi a
eliminar 'neste traslado as menos precisas na narra-
tiva.
Nao scei que impressão deixará no ânimo do leitor
a biographiade tão bondoso quanto illustrado príncipe.
Deve de ser estranha, attenta a raridade dos vultos
majestosos d'este porte que nos offj^rece a história con-
temporânea : e deve de ser melanchólica, se inrràmos
em confrontos, de que não podemos tirar senão traços
que nem os thuriferários abjectos podem fazer pare-
cidos entre si. Figurou-se, outr'ora, que a Providencia
nos dera um rei com o coração aureolado por grandes
virtudes e talentos ; mas, um dia, fechou-se uma
sepultura ; e a bella alma, que se alumiou em es-
treita de eterna saudade para portuguezes, não pôde
baixar com os seos resplendores até o throno d'onde
subira.
68 XXV
A' primeira vista, avulta-se a nas certos illumÍDadoí>
na arte de governar que os reis constitucionaes dis-
pensam a prática das DÍbliotheca^, c o tracto dos bons
exemplares em matéria de reiaar. Nao é bem afisim,
posto que 86 haja ahi eacripto qae D. João III fora rei
magnifico, mas que a muito custo soubesse deletrear
os Regimentos da laquisiçSo ; e que D. João II, o
assassino de dons duques, aeos reaes parentes, nao era
também melhor lettrado.
Seja como Fòr, a ignorância áo!j reis nfto é cousa a
que devamos consagrar poemas, invocando as tágides,
nem 03 Pyndaros modernos lhe poderiam ajustar os
seos épodoa cantados ao tiarpejo da^ guitarras pala-
cianas.
Eu, por mim e em nome do^ amantes dos scos ruis
e da glória da saa terra, quereria que de todos os sobe-
ranos portuguezes sapodesse dizer, sem iis fragrância»
do tomilho da adulação, o que Monsenhor Pinto de
Campos tfto luminosa como verdadeiramente compta
do augusto Imperador do Bra^íil.
Camillo Castbllo Branco
OBKAS DE J. DE ALENCAR - A IRACEMA
I
Meo respeitável amigoi
Visto que estas fartas se devera intender contí-
nuaçno das outras sobro o Gaúcho, nao me deterei em
nova exposiçaii deiuotivos. Inrontrarás na^ primeiras
com que .npprir a deficiência das últiuiM. Entro, pois,
sem mais tardança na matéria.
Representa o Gaúcho o ponto extremo da decadência
da Sènio até hoje.
D'eutre todas aa obraa da sério que inceptoii sob o
»ovo pscndiinymo, nenhuma, qnanto n mim churticte-
riza melhor o esvaecimenlo ilris iUui^es juvenis ou
viríe, a «na litteréria seriectnd-^
Açha-aa o aucior de ta! forma iil«niÍfi<rado cum este
8eniim#nto, tao despovoado o #rmo cntihene o coffni do
XXV 69
deo espirito, tão regpelada a sua phantasia, lAo decré-
pita a 9or dos sonhos resplaxadecentes^ — que q appellido
que adopta é o de Sénio. Confessa-se velno, quando a
htteratura natal tinh«k o direito de o suppor moço ainda.
Tiriste destino o da pátria !
Estas nossas conjecturas n&o h&o arbitrárias. Depre"
hendem-se das phrases repassadas de angústia, de
acerba descrença do prólogo, que vêm na Pata da 6a*
zella^ que se repete ipsis verbis no Gaúcho^ e que terá
talvez de ser ainda reproduzido ipst« virgulis no Til^ que
pomposamente se annuncia e com antecedência se fes-
teja como um primor. Dir-se-bia que o auctor, persis-
tindo em nfto desligar das obras tao solemne e signifi*
cativa confidencia, quer fazer crer que o sopro, que
acaba de lhe crestar as mais intimas e pulchraa illusoes,
foi-lke de veras certeiro ao coração, afogou-lhe as
aspirações mais elevadas, derrocou-lhe de uma vez
para sempre os mais esplêndidos e agigantados cas-
tello.*? ! Accompanho-o de coração na sua rude e cruel
dÔr.
Mas .se o Gaúcho exprime o poncto extremo, a /ra-
cêmaf com que me vou occupar, é, pelo contrário, o
poncto de partida da queda do astro, que descamba em
marcha rápida para o occaso, quando não espargira
ainda luz suficiente para que se presumisse ter já
chegado ao zenith.
Não incontraremos, pois, aqui aquella copiosa»
aquella inexgotavel messe do Gaúcho, cnpaz de fazer,
por si, a eterna fortuna de um vindimador hábil, paci-
enta e desfructador. Todavia teremos já muito que res-
pigar. O campo promette.
Qual a razão da differença de feição e de organização,
entre os dous filhos do mesmo progenitor ? Explica-se
bellamente: .são seis annos antes df^ dTecadencia que vão
do primeiro ao último.
Este, posto que ataviado das lentejoulas de um es-
tylo deslumbrante e fallaz, logo á primeira vista é a
moio de disformidade, que nada pôde disfarçar ou il-
ludir, porque o volume é descommunal e enorme. Com
o primeiro já se não dá o mesmo; é preriso que o
observador consciencioso se approxime mais, e estude
com alguma detença aquelle character esquisito e todo
de mera creação phautástica. Mas não vacilleis, não
receeie um instante não achar com que cevar a boa
70 XXV
critica. Pelo contrário encontrareis sem grande custo
as tortuosidades ou as depresOes da débil e pállida cre-
atura.
Sabes, meo amigo, que a Iracema tem a pretençfto
confessa de realizar o typo da poesia brazileiral O
auctor, na carta final dirigida a um amigo, assim se
exprime « Este livro é^ pois^ um insaio ou antes amostra.
Verd realtsadas 'nelleas minhas ideas a respeito da liltera-
tura ruicional , a^hard ahi poesia inteiramente brazileira^
haurida na língua dos selvag&ns. »
Se a carta precedesse a obra, o leitor intendido teria
de cair das nuvens, lendo esta. EUa importaria a de-
cepção, o esmagamento mais formal da espectativa con-
cebida com a pomposa promessa do auctor.
Como, porém, a carta segue o volume, e sò pôde ser
lida quando já o leitor deve ter formado idéa mais ou
menos approximada d'esse poema in anima prosaica^
involuntariamente sobr'estará, e attónito c perplexo
inquirirá a si mesmo: '
« — Pois é esta a poesia eminentemente brazileira,
offérecida como padrão de belleza e de verdade "? »
N&o se dissipam as mil hesitações. O leitor fecha o
livro 6 perde-se-Ihe a mente n'um mar de conjecturas.
O quQ elle sente Jistinctamente é que tem o ef; !rito
cançado e oppresso, depois da leitura da obra-modêlo.
A poesia do selvagem deve ser simples, e aquella
é um artefacto de múltiplas combinações.
Deve ser singela, e aquella é apparatosa o vai-
dosa.
Deve ter certo cunho de energia, certa expressão
de braveza, e aquella tem a feiç&o e o requebro do uma
poesia fláccida e feminil.
Deve ser espoatânea, desegual nas sua^s formas,
e aquella é forçada, porque se mede e bate a com-
passo.
Deve arrebatar, e aquella opprime e prostra o espi-
rito.
Como I Pois aquelle pôde ser o selvagem brazileiro ?
Aquella a sua linguagem ? Aquella a sua masculi-
nidade ? Aquelks os seos fogosos sentimentos ?
A Iracema foi localizada nos sertões do Ipú, ataquem
Ibyapaba. Deixando, portanto, a savana, parece que
tive de dar um salto mortal : n&o é assim, meo
amigo ?
XXV 71
Pois nem por isso. A transição foi fácil, embora
desnaturai. Os extremos tocam^se.
A impressão, que experimentei, ao intrar no pampa,
segundo os desenhos desvairados do »Sénio, foi a de
quem penetrasse n'um cemitério. Lembro-me até que
Sénio compara a savana com a vasta lápida.
E sim. Surprende-se ahi a raça humana rebaixada á
última degeneração animal — abysmada, desapparecida,
morta. O pampa é uma neerópoli.
Se, porém, das solidões do pampa retrahindo-nos um
pouco vamos ter às solitárias florestas e planí-
cies dos tabayáras^ o espectàcula muda, a impres-
são é diversa, sim, mas congénita. As extensíssimas
paragens que rios bordam e florestas delimitam, figu-
rara leitos de um hospital immenso,sombrio e merencó
riol Contempla-se alli sei.^ annos antes, ainda a raça do
homem, victima de morbidez ede lonsuni] çSo
Ora entre o hospital e o cemitério só ha um passo •
« Bem poucos passos vào da vida d mo7*le i» diz o poe'
ta. O que ha notável a fazer aqui, é dar esse passo....
para traz.
E sim. Nas savanas austraes, homens e cavallo^
identificam-se, confundem-se, vasam-se uns nos outros»
nas extensões do septentriao os homens, posto qu®
selvagens, o que quer dizer — a personificação do arro-
jo, da petulância, do ardimento da correnteza ou do
TÓrtice — tresandam a effeminaçao e a moUeza e nao sao
mais do que a negação completa da gentileza tradi-
cional de Ararigboia ou de Jaguarary !
Resumamos: Da raça colossal do norte fez J. de Alen~
car um inferno; da raça esculptural do sul fez
Sénio um... cadáver! O que resta — dize-me tu — d'essas
immensas e originaes grandezas, d'eisas pomposas e
estupendas herculeidades, nunca^ assaz exaltadas, do
Brazil ?
Desgraçado, misérrimo Brazil ! E é um filho, e um
grande filho teo, quem d'est'ane te desfigura e rebaixa!
Oh I dor I
Sim. Tao intensa e verdadeira é a pena que me
punge, ao meditar um pouco sobre estes estranhos ca-
prichos da sorte, que a afflicçao me vence e cai-me a
pennn da mao.
Sempronio.
72 IXV
Sex.ta oai:*ta
DE CINCINNATO A SEMPHCNíO.
Rio, 8 dezembro 1871.
Le monde marche^ n&o ha dúvida nenhuma ; cami-
nha por uma estrada larga ; se é estrada real, ou de
Pantana, os Paduanos dirão ; mas lá que elle marcha,
isso é de fé. O andar é lei geral de toda a animalidade:
até o caranguejo ( como qualquer Sénio, ou outro bi-
pede mais ou meuo."^ conhecido ) anda.
Ora eu te digo o que tenho, em parte lido, e em
parte visto, demonstrativo de certa casta de progresso^
que progride a olhos visto.
Da janella de uma casa, da rua do ouvidor, gesticu-
lava um bemfeitor da humanidade ante uma turba
boqui-aberta :
« Meos senhores, concidadãos de pé fresco ! Vendo
por uma tuta e meia um especiflco único, um bál-
samo balsâmico, um elixir prodigioso, que opera ma-
ravilhas, prodígios, milagres. E nao receeis a acçSo
dos ingTedientes, illustres cidadãos! O meo elixir com-
pOe-se de simples ; e em quanto eu aqui dispozér de
simples, está a cousa navegada. Um boiao por 2 vinténs.
A glória, a saúde, a felicidade, e tudo o mais por um
cobrinho ! E' outro portento mais. Aqui está ; quem se
chega ? 2 vinténs ; quem merca ? »
A raça dos charlatães ó antiquíssima, que digof
a sua prosápia trepa mais longe ainda que o homem e
sua creaçSo. Eu não juro nada, mas eis-aqui o que
affirmam, e vá por conta do narrador, também antigo,
pois é do século XVII, que lá fica mais próximo da
creaçBo.
O primeiro doestes sympáthicos industriosos tomou
posse da sua dignidade ( ou instaUou-se^ como dizem )
no Paraizo Terreal , e^Satanaz incarnou-se na forma de
uma cobra. Dem^nstra-se esta incarnação com docu-
mentos mais authênticos que innumeraveis perga-
minhos qno por ahi andam, ou nEo andam... vamos
a ver :
Em todos os tempos e logares, as propriedades e con-
dições doesta linhagem de charlatães palreiros, e pres-
tidigitadores saltimbancos, r.ão, no exercício da sua
arte, nada menos de cinco:
1'. Mascarar-se. — Assim o fez o pae-avô da família
quando se mudou em reptil. Seguem*lho as licçoes o»
XXV 73
modernos, quando, habilidosoa Protêos, se appreseutam,
ora como reptis, ora como absolutistas, como conser-
vadores, liberaes, republicanos, communistas, petrolei-
ros, selon les besoins de la cause. E a final de contas,
nao sfto nada d'isto, como Satan nao éra biçba, porque
o que unicamente sao, ó especuladores talentosos, que
a tudo quanto existe superpõem exclusivamente o
poder pessoal das suas pessoinfuis.
2*. Trepar-se acima de um banco para pregar, — As-
sim o ínsinou mestre Satan, pois affirmam que a astuta
serpe trepara por uma árvore, para conversar com Eva,
e di2.er-lhe : « Comei esta maça, sem medo, porque
logo se vos abrirão os olhos, e sereis como uns deuses,
conhecendo o bem e o mal » Agora, ou na praça trepa-
se no banco, ou no parlamento á tribuna, ou no iomal
ao componedor, ou emfím a um telónio qualquer,
d*onde se etnbace a humanidade.
3*. Dizer e comptar mentiras. — E naquelle dia, Sa-
tan segredou a Eva: Nequaquarn moritmini ! E foi por
alli adeante, impingindo-íhe cada carapetao que te
parto, e preparando a ampla estrada que hoje òs seos
successores tao brilhantemente percorrem.
4*. Negociar com a credulidade e simplidd^zde dos outros.
— Assim obrou D. Satanaz, quando introu a seduzir
aquelles papalvos, promettendo-lhes vida sem termo,
eternidade de venturas, divinal scíencii, empregos
rendasos sem trabalho nem complicação de cabeça,
olhos enoriue.^, e o poder pessoal de um Deus. Tal e
qual, comij os que preparam a república, pauacéa
universal, que com oò me3ra(j>í ingredientes hade trans-
formar tudo, isto é com só farinha e carvão hade fazer
arroz doce; instituição que hade substituir por va-
rões, sparciatas, çtemi-nuines, os actuaes ambiciosos,
servis, miseráveis ou desordeiros. Levou-sea tal poncto
esto mandamento, que até se imagina que o povo hade
accreditar nas palavra^>de quem hoje defenae o ama-
rello, como hontem propugnou pelo azul e pelo roxo,
tí amanha bradará pelo encarnado e pelo preto.
õ'. Vender elixires. — A nossa avó bem caro nos com-
prou a maçã que lhe vendeu a avó lá d'elles. E* a
maça da communa, da Internacional, da — liberdade,
egtialdado ou morte, — da república, de que Sénio
seria digníssimo Presidente, cercado de um conselho
que eu cá scei, se nao fossem certas dúvidas, que scei
aíndn melhor.
74 XXV
Leio que Roberto Houdin (mestre, árbitro infal-
livel em matéria de charlatanismo] narra um caso
curioso, cujo resumo é este :
Passeava eu uma tarde, quando uma trombeta pró-
xima me arrancou ás meditações. Corri, com muitos,
e achámo-nos formando circulo à um distincto ar-
tista. Era um latagao, olho vivo, atrigueirado, ca-
beça que se interrava nos hombros, voz nasal, e can-
galhas (ja se sabe nos olhos). Tive tempo de obser-
val-o pausadamente, porque o subjeito, nao conside-
rando o auditório assaz numeroso para merecer as
honras da sua interpellação, poz o compadre a va^-
concellar, e a estrugir-nos os ouvidos um quarto d'hora
com a sua trombeta desafinada ; afinal o gruppo era jà
satisfactório.O nobre artista circumvagou gravemente^
exhortando a recuar um pouquito, depois do que es-
tacou, passou a mão pda guedelha, olhou para dentro
dos óculus, recolheu-se em poética inspiração. Depois»
com voz metállica e ingrata, exprimiu-se d'est*arte :
c< Claro auditório meo ! Atteução ! Eu cá não sou
o oue pareço. Direi mais: sou o que nao pareço {Hila-
ridade), Sim, nobre auditório, sim senhor: vocemecês
tomam-me por um d^esses pobres diabos, que por
ahi vogam á tôa,e julgam que eu venho impUrar
ásua generosidade alguns cartões de bonds. Illusao,
venerandos cidadãos! hallucinaçao ! deliriol Se eu
vim pôr-me hoje aqui, foi simplesmente para allívio da
humanidade que padece, em geral, e para bem de vo-
cemecês em particular, assim como para seo diverti-
timento [Vozes: muito obrigado).
Aqui o orador, que parecia de província do Nonc,
pelo sotaque, passou segunda vez a mao pela gafo-
rina, olhou á roda pelas cangalhas, metteu graciosa-
mente o toutiço pelos hombros abaixo, dice uma pi-
Ibéria á direita, outjH á esquerda, e continuou :
« O que sou, vocemecês logo verão. Assim como os
profundos pensadores, os altos metaphysicos, os go-
vernantes sagazes, os jurisconsultos exhorbitantes e
os estadistas abstrusos, nas horas roubadas a suas
enormes meditações se occupam de de§infadar e re-
crear a humanidade, assim, antes de habilita-los a
appreciar-me em toda a minha grandeza, peço li-
cença de lhes appresentar, para os distrair, uma reles
mostra df ninha perícia. (Grande homem ! bradaram
dons Beócios).
XXV 75
Regularizou o circulo, abriu uma mesa de X, poz
nella 3 copos de lata que parecia prata, e começou
^num chorrilho de habilidades pasmosas, tirando até
com 03 dedos bolinhas do nariz de um joven especta-
dor^que tanto tomou a cousa a sério,que se matou a as-
soar-se para ficar certo de que nao flca^ram nos miolos
mais bolinhas d'aquellas. Quando a assembléa estava
emfím na melhor disposição, acabou o entr'acto, fe-
chou a mesa, e fez signal de que ainda nao ficava por
alli o Que tinha que dizer. Pousou ambas as patas so-
bre a aita mesa, como se fosse a balaustrada de qual-
quer tribuna parlamentar, e assim continuou :
" Claro auaitóríol [EUe nao era todo claro, por-
que tiuha muito preto, mas isso não faz ao caso] (Aqui
agora, tomou elle uns modos de modéstia virginal,
conhecida caçadora de não apoiadoSy destinada a produ-
zir certos effeitos oratórios). Tive a dita de fazer
que vossas senhorias prestassem benévola attenção
aos meoa innocentes brinquedos. MuitOÃ graf:as\ (Incli-
nou a cabeça até o chão). Ora almejo por mostrar-
Ihes que nfto estão lidando com um ingrato ; vou
pagar-lhes a sati facção que lhes devo. Dignem-se
escutar-me um instante.
(( Prometti eu a vossas senhorias dizer-llies quem
sou, e vou desempenhar-i:.e. (Mudança súbita de pÂmo-
gnomia^ à moda do TU ; sentimento de alta estimação
de si mesmo). Os senhores têm ante si nada menos
que o celebérrimo Dr. Carlosbach. Já assaz lhes
indica a consonância du meo nome ser eu de origem
angUhfrandsêo-germànicay privilegiada região, onde
se vem ao mundo com uma coroa de louro sobre a
fronte. Oh ! Fazer o meo elogio mais não seria que
aer eu o intérprete do renome, com as suas cem
bôccas de ouro e de azul.
?> CoQtentar-me-hei com dize^lhes, apenas, que tenho
am talento que vai até o infinito e dobra ainda, e que
a minha incomensurável reputação não pôde ser
egaalada senão pelo meo puaor. Coroado pelo oscol
dos liiteratos, chefe inconcusso de tudo quanto ha,
águia que não inxérgo reptis, capitão mór da íntelli-
gencia em todas suas applicaçoes, inclino-me ante o
1'uizo de todos os sábios (o Jucá Palreiro, o Quincas
^atusco, o Manduca Urso, e a mais concomitante
caterva) que proclamaram a universalidade dos meos
conhecimentos e e infallibil idade de minhas sentenças
78 XXV
alturas, como em dia de eleijio, o official de sapateiro
chucha excellencia ; o caso é então que tenha um voto,
como agora que tenha no bolso uma pataca).
'Nisto, lira da caixa o ex-doctor uma enorme ruma
de folhetos, intitulados • CoUecção dos discursos profe-
ridos em diversos logares^ no anno do taly pelo pseudo-
nymo Carlosbach. Vai-os offerecendo, a um e um ; e
graças á sympathia que o seo disciacto talento, pro-
fundo saber, e largo character haviam inspirado,
vendeu toda a futrica, e teve de fazer outra ediçSU).
Finda a sessão, voltei para casa com a cabeça repleta
de um mundo de sensacQes desconhecidas. Puz-me a
parafusar no volume, mas o pseudo-doctor continuava
'nelle o seo systema de mysti/lcação.e.^ov mais que me
mBtasse, não pude chegara comprehender uma única
das tretas e peloticas, de que o auctor dava a inex-
plicável explicação. Da minha pataca só me consolou
a interpellação que lhe ouvi, e ahi foi reproduzida.
Esta arte divina vai entre nÓ3 tomando incremento
espantoso, e é para admirar o ingenho sagacíssimo
com que se estende a publicidade até os derradeiros
coniSns da... da não sei quê
Agora, a moda, meo a nigo, é inforcar uma toalha,
ou uma verónica, de janeLla a janella fronteira 4^
ruas estreitas, e estampar nella o elixir que se vende
na loja em baixo. Eis aqui alguns exemplos :
'Numa rua, vê-se uma das taes verónicas, com uma
cabeça de porco pintada, e por baixo, artisticamente
disposta esta inscripção : « Hotel do porco de prata.
Dá casa e cama barata. Aqui se faz óptima tripa ía-
sopada, e vatapá de primeira qualidade. »
'Noutra, pin'ado um rato defuncto, e uma barata
exânime, e por baix8 : «Guerra áa sevandijas ! Aqui
se matam ratos, mosquitos, pulgas, persevVjos, bara-
tas, e outros anicetos mais ; a 400 rs. o frasco !
Mas as que me deram mais no goto, são as veró-
nicas estendidas,^ do primeiro andar do lomal Á Repún
blica á casa da sapataria defronte. Uma d^ellas nuo é to-
alha, é lençol: lettras góthicas e garrafaea; disposiçfto
apparatosa, a que só falta um realejo; e a redacção^
se me ficou bem na memória, é, pouco mais ou menos,
a seguinte:
XXV 77
quem toma o meo b&lsamo, fica embalsamado por
antecipação ; o homem toma-se immortal. Ah, senho-
res, se bem conhecessem todas as virtudes do meo su-
blime elixir, precipítar-se-hiam todos sobre mim, para
m'o arrancarem, atirando-me punhados de ouro ; nao
seria distribuição, seria saque, seria...
Parou um instante, para limpar a testa com uma
mfto, em quanto com a outra, indicava aos ouvintes^
aue ia falar mais. A turba-mulcta queria chegar-se ao
doctor ; Carlosbach fingia nao notar, e tornando á
attitude dramática, proseguiu :
« Porém, dirão os senhores, que preço poderá ser
o de thesouro similhante "^ Temos nós riqueza para
tanto ? Pois bem I Vao ver a extensão do meo desin-
teresse. Este bálsamo, para cuja confecção tenho sec-
cado a minha vida, este bálsamo que soberanos com-
prariam pelos seos sceptros, este bálsamo impagá-
vel dou-vx)ro! ! !
A multidão, anciosa, fremente, parece ficar embasba-
cada : mas para logo^ como se todos estivessem sob a
impressão de um fluido eléctrico, todos estendem súp-
Slices braços, invocando a generosidade do doctor.
[as... ó surpresa! é decepção I Carlosbach o cele-
bérrimo, Carlosbach o bemfeitor da humanidade, larga
súbito o papel de çharlatfto, e desata a rir homerica-
mente. Como em mudança á vista, tran%forma-se a
aoena, caem a um tempo todos os braços ; olham uos
. para os outros, interrogam-se, murmuram, depois vol-
tem a si, 6 sem demora propagasse o contágio do riso,
€' era um choro geral de gargalhadas estrepitosas.
O primeiro que pára é o saltimbanco ; pede silencio e
iiz:
« Senhores meos (diz elle então com o tom mais
natural do mundo], n&o me queiram mal por esta brin-
cadeira:o que tive em vista com#sta comédia foi preca-
vél-<os contra os çharlat&es que ahi os andam a embaír
todas os dias, exactamente como agora o fiz. Nao sou
doctor, mas um simples... um simples artista presti-
diçitaiório, lente de mystificaçoes, e auctor de uma
ocuiecçfto de discursos, como este com que ora os brin-
da, e por entre os quaes vossas excellencias incontra-
xfto g:mnde número de receitas de empalmaç&o. Que-
rem vossas excellencias conhecer a arte de se diverti-
ftm t Por uma pataquinha podem vossas aUeza.s
satisfazer-se ».(Se dura mais, ia até majestade: 'uestaí^
80 XXV
Continuando 'neste systema, vê-se diariamente na
4". pagina da folha, um parallelogramma, rodeado de
uma tarja, com isto :
I
ENIGMA PITTORESCO
f
DECIFRA-SB na RDA DO OUVIDOR N. 132
m
Uns teimam que aquillo é uma sobrancelha ou ujd9
sanguesuga mal feita ; mas a quem vai ao balc&o da
República, dizem que é um TU mais mal feito ainda,
mas que assignem para o correligionário, que é o que
se quer.
Poderia dar-te muitas noticias d'este jaez, mas ja fiii
mais longe do que talvez devesse. Deixemos por tanto*
os accessórios,e passemos ao estudo do tal Ti/, título que
ainda nSo farejo a que propósito venha, e que me pa--
rece como qualquer dns aiicantinus do Dr. Carlosbach.
Por hoje basta ; até cedo.
Teo respeitoso amigo
ClNCINNATO.
Tjp. e lith.— Imparcial— Bua Sete de Fetcrobro n. 146 A.
QUESTÕES DO DIA
]sr. 26
RIO DE JANEraO, 15 DE DEZEMBRO DE 1871.
Vende-se «m casa dos Srs E. & H.Laemmert. — Agostinho de Freitas Gui-
marães & Comp., 26, rua do General Gamara. — Livraria Académica,
Bua de S. José n. 119— Largo do Paço n. C.— Preço 200 reis
Segunda caz*ta.
DE MUCIO SCCEVOLA A QUINTO CINCINNATO
Honrado cidadão romano. Como discursámos das
cousas que são, nao devemos esquecer as cousas
que foram, e que nos serão sempre guias e pharol
no meio doeste oceano revolto em que navegam os
ntopistas e sonhadores de repúblicas platónicas, de
visualidades aéreas e os íncolas do mundo da lua,
que^ com toda a certeza, nao eram filhos de Adão.
E% e foi sempre axioma de boa nota o seguinte :
onde todos mandam^ ninguém manda. O chefe da fa-
mília é sempre o supremo regulador da ordem e
da direcção da casa. Ha uma perturbação no teor
d*aquelle viver doméstico ; ha excessos ou afrouxa-
mentos nas rédeas da vida íntima ; o que deve
&zer o fâmulo mais ajuizado e mais sério da casa?
é sem dúvida communicar ao chefe da família o
?[ue por alli vai de desarrazoado e mal cabido, e
ázel-o com cortezia e respeito, que tudo isto se
deve ao superior, para que venha elle com seo
provimento impor os preceitos ^ue acabem com os
transvies ; e mais deve elle premiar os bons para
metter brios a quem valha esse incentivo e cas-
tigar os ruins para pôr exemplos aos mal inten-
cionados e turbulentos relapsos, que têm por ins-
tincto a revolta e por sestro a prática de actos sub-
versivos, sem outra razão de ser j^não o gosto sa-
tânico da perturbação e da desordem. Ora, que se
insubordinem e revoltem a mulher, os filhos e os do-
mésticos contra o chefe da família ; que gritem
82 XXVi
todos e ralhem ao mesmo tempo ; que cada um se
governe a seo modo ; que a mulher proclame a sua
emancipação e nao queira subjeitar-se à tutella do
marido e venha propugnar por sua elegibilidade e
direitos à deputação e á senatória; que os rapazes
nao reconheçam mais o jus paterno de um velhusco
que, eivado de doctrinas obsoletas, crê ainda em
Deus e no rei ; e que os domésticos proclamem a
egualdade e fraternidade, e que quando tenham de
ir à fonte buscar o cântaro d'água vao para a ta-
berna e da taberna para a praça pública, vestida
a camisa vermelha do heroe de Caprera^ apregoar
os direitos do homem segundo o Emilio e o con-
tracto sscial de João Jacques.... o que fora por fim
de contas toda esta balbúrdia? uma verdadeira casa
de orates, senão um detestável foco de immorali-
dades, um núcleo de máos exemplos, e um protesto
vivo contra o senso commum d'aquella gente e mais
contra a energia e o juizo recto do oheft* que nao
fióde ou nao sabe pôr cobro em desmandos e trope-
ias de similhante jaez.
Eu quero mil vezes, meo caro Cincinnato, aquelle
velho rei Codro, que se foi metter entre o inimigo e
se deixou matar e morrer porque o Oráculo lhe ha-
via assegurado que da sua morte viria a salvação
de seo povo ; nao quero os trinta patriotas e po-
pulares de Athenas, conhecidos ainda hoje, e isto
ha jà sua meia dúzia de annos, pelos trinta tyran-
nos, posto que eram alli por imposição estranha ;
todavia entre aquelles célebres democratas muitos
eram athenienses e naturalmente patriotas. Nao
quero Pisístratos, pescadores d'aguas turvas, que,
para subirem com estado maior vistoso e luziaio,
que lhes dê lustre e bizarria aos sentimentos de-
mocráticos, em cujo nome ascendem á suprema al-
tura, tenham o máS gosto de se arranharem e es-
murrarem as ventas para obter a canonização de
mártyres da pátria, quando a pobre pátria é que
é mártyr d'elles. Quero Numa Pompilio, Antonino,
Trajano e Vespasiano . Nao falem em tribunos, em
decêmviros, et réliqua^ súcia de libertinos e ambi-
ciosos turbulentos, porque decididamente nao os
quero, e nem os tolero, assim como aos Mários e
Syllas, que, exaltados da obscuridade pelo pobre
povo, que a final é quem paga as favas, foram-no
XXVI 83
lavando em rios de sangue e arrancando-lhe liber-
dades, direitos e tudo quanto os pães dapátriavao
dizendo ao povo que elle tem, e possue, e delega,
e retoma quando lhe apraz.
Meo caro Cincinnato,esta raça de cônsules, de tribu-
nos, de triúm vires e de decêmvirob, v.òtá toda ella sub-
jeita á lei da metempsycose de Pythágoras ; faz sua
incessante transmigração, e depois de animar e vivi-
ficar Marat, Collot d^Herbois, Danton,Billaud Varen-
ne, Rob'»3pierre e tantos outros, que se lembravam
de haver em tempos anteriores incarnado nos seos
ante es^^res Cartucho e Mandrin, veiu fazer sua hy-
póstasis nas figuras ridículas ou hideondas deMazzini,
e de tant )S outros patriotas de blusa e camisa ver-
melha, H a fin-rvl veiu animar os salteadores regicidas,
e tev»* u desfaçumento de vir á luz do dia era pleno
século |j',r em campo e dar vida aos patriotas republi-
canos .'.»"irnunistas, ás associações internacíonaes,
aos r<n grossos da paz, aos phalanstérios, ao sansimo-
niaí:í-]!i ,f^ n quantas extravagâncias podem nascerdes
cérel» > '.>t» 'vertidos dos apóstolos do incêndio, da
devji>? i'^o e da libertinagem, do sacrilégio e dasub-
ver>r.' '■*. indo quanto os homens de bem acatam e
ver' r :
is i i^^-iinnla do esquadrio lazarento de toda esta
díinr I I' abra vem arvorado o lábaro da peste e da
devi • ), com estas três palavras escriptas em
chat •-: dr^ sangne : Liberdade, eguatdade e frater-
júdiK' '^Liio horror, arripiara-se-me as carnes e o
cal"' I ír.ndo vejo estas três palavras fatídicas e
hy;»'. ', •. ^criptas em qualquer tabolêta de fábrica
de ' V i\^-. ; lembra-me a lenda do festim de Bal-
thi/ I |)'*'fíuiaç?lo dos vasos sagrados, as Ires pala-
vras . \ ^. :'io^as dociphradas por Daniel na n''«it^ mal-
dict.» • . •>i'^;''légio e da orgia, a deftruiçâo e a q leda
de H ' f) M^-ia íj o castigo exemplar dos j^rofanadores
íra[)i'. ' .-íí.íTÍlegos, como s(lo os de hoje. Estes taes e
quej.í \'[jj jjuriotas do archote e do cuiello, que vSlo
puii II ♦'. !o jy)r toda parte como cogumelos no ester-
quilÍM'" ?' n dias de chuva, .começaram sempre por
uma •.** :ií\i que importa nao esquecer : principia-
ram D i.f juo.agauda satânica por lisonjear os reis ca-
th»')litvi , i:iduzindo-os a crer na usurpaçfto, que lhes
fazia a Srv;.:ia Sé, de seos direitos e prerogativas ; in-
dispuTih im o rei contra o clero e o clero contra o rei ;
84 XXVI
prepararam a reacção das prímazias do padroado contra
bulias e decretaes pontifícias ; e quando viram que a
reacç&o tomava caminho e que o fim estava preinchido,
acabaram por sulapar os alicerces do throno, depois
de haverem àiffamado as prerogativas, e a sanctidade
do altar.
Esta táctica diabólica é sempre a lenda dos revolu-
cionários. Robespierre, depois de matar os padres,
profanar os templos, fazer de uma mulher das ruas a
Deusa Razão, fez reconhecer por um decreto a exis-
tência do Ente Supremo I ! !
Garibaldi é proposto para Novo Christo, no con-
gresso da paz ; os revolucionários da Itália pOem em
assédio o sancto padre, tomam Roma á Christandade
Cathólica, reduzem a supremacia do Papa a um titulo
vao, porque querem que elle dê preito e homenagem,
e que se despoje do poder temporal, a beneficio de
inventário, na partilha a que se está procedendo, e
querem pôr veto ás decisões de um concílio. Isto tudo
fez-se e continua a fazer-se com uma impudência que
enoja.
Para subverter-se a ordem social, é necessário trans-
tornar a ordem das idéas e desembaraçar o espirito
dos vínculos que o ligam a Deus, desprende ndo-o do
acatamento, do amor e do temor que se lhe deve; é
necessário nSo crer na religião revelada e na auctori-
dade da Egreja ; e no encalço de tudo isto vem a ne-
cessidade de desacatar o Papa e menoscabar os mi-
nistros do altar, como corollário obrigado. Em uma
{)alavra, para se causar tao grande número de mã-
es, cumpre que se atrophie a consciência, porque o
remorso seria um juiz severo e implacável, e para
revolucionários e turbulentos de officio, nao ha re-
morsos.
Como se chegada obter este satânico desideratum?
Pelo atheismo e pela materialidade ; por este bom ca-
minho çhega-se com segurança a regenerador da so-
ciedade, a modo dos iconoclastas, demolidores e mem-
bros da communa. Da têmpera d'estes energúmeno»
eram os Cartuchos, os Lacenaires e os Tropmanns ;
todos estes heroes do crime pertenciam á grei dos e:*-
píritos fortes que se desprendem das peias que os
jungem ao carro do dever, da honra e da veneração
ao que é sancto, e do respeito ao que é nobre e digno, O
homem que tem o verdadeiro sentimento religioso
XXVI ^ 85
bem arraigado no fundo do coração, tem a consciên-
cia muito prompta em accusal-o de qualquer acto
menos lícito que pratique. Quem se accusa e arrepen*
de de qualquer acç&o que julga menos recta, n&o pôde
commetter crimes, nao pôde ser revolucionário ; por
tanto não é chefe de caudilhos, nem capitão môr de
iasurgentes e desordeiros. To las as tropelias de que
a sociedade tem sido víctima, todas as depredares
que tem soffrido a propriedade, todo o sangue que a
humanidade tem derramado, todos os ultrages e sa-
crilégios que tem a religião supportado, teem tido por
mote, em sua bandeira de destruição e de ruínas, estas
palavras fatídicas do diccionàrio da devastação e da
morte: Liberdade, Egualdade^ Fraternidade. E' com
estas três palavras, infeitadas por fora e vazias por
dentro, que se vai embalado a credulidade dos incau-
tos, que não vêem nem sabem que estes três vocá-
bulos sonoros são, no sentido em que os applicam os
pseudo-regeneradores, a antíthese completa da essên-
cia e natureza da pobre humanidade, que Deus creou
assim como ella é, foi e hade ser. Liberdade^ gosam-n'a
todos e d'ella muito grande somma gosa quem a sabe
gosar. Egualdade; isso là, não ; é egual quem o é;
quem não vê qutí o idiota, o ímpio, o revolucionário,
não podem ser egunes ao sábio, ao homem orthodoxo
e ao cidadão pacífico e sustentador da ordem, da lei e
da moral pública e privada ? Frateniidade, vá feito ;
mas em que consiste ella ? em não fazer a outrem o
que não queres que te façam a ti. Respeitae a honra
alheia ; não diffameis o próximo ; soccorrei os desva-
lidos ; curae os infêrmos ; levae consolações e auxilies
aos »ffiictos ; em uma palavra, cumpri as obras de
miãencórdia, e só então tereis direito pleno de pro-
ferir cora significação completa a palavra — frater-
nidade— . •
Não scei, meo caro Cincinnato, onde me levariam
estas reflexões, se eu fosse abrindo campo ao que me
vai suggerindo a idea do que vi e li em tempos que já
lá vão muito longe, porque hoje nada leio, senão os
joraaes do vizinho da encosta.
Estes trabalhos da roça, não me deixam lazeres.
Este s€)rviço com escravos é a cousa mais estúpida que
a egualdads dos homens podia crear para atormentar-
nos a nós, que somos seos eguaes e seos irmãos; porém
estes nossos irmãos da costa de Guiné não nos com-
86 XXVI
prebendem; nao trabalham como mácbinas, que é o
que nós queremos ; comem, dormem e adoecem ; e
ainda em cima de todas estas cousas ruins que elles
fazem, o que é ainda peor, meo amigo, é que se fazem
6ÓCÍ0S comigo nos lucros da Fazenda, sendo eu o com-
manditário, de sorte que uma boa parle da safra vai
sendo passada para a tasca vizinha de um Ambrósio,
que pelos modos pertence á seita dos communistas
e phalansterianos.
E' necessário de uma vez acabarmos cora esta civi-
lização do azorrague. Bem haja a lei de 28 de sep-
tembro, que arrancou de uma e de muitas gerações o
anáthema que a segregava da communhao geral no
gôso de direitos e de pre rogativas sociaes.
Meo bom e illustre Cincinnato, tenho 'nestes últimos
tempos visto em algumas gazetinhas ahi da corte, de
que é assignante o meo vizinho do rumo, de quem jà
vos falei na minha anterior, uma cousa que me tem
feito espécie e me tem dado que seis mar. Todas estas
dietas e referidas gazetinhas sao ou devem ser jornaes
cathólicos e escriptos por cathólicos, segundo cremos ;
pois, meo amigo, todos elles entiiusiasmam-se, extasi-
am-se e glorificam-se deante das doctrinas salvadoras
áoá dous mentecaj .os, Martinho Luthero e João (' .1-
vino,e sobre tudo preconizam, nrbi et orbi,a concepção
hybrida de cohabitaçao sacrílega das duas .^eitas que
deram o aborto infiesado, rachítico e monstruoso a que
puzeram o nome de egreja evangélica ! Annun-
ciam elles todos os dias a hora, o dia e o logar em que
se celebraram, celebram ouhaode celebrar : sessOes da
egreja evangélica presbyteriana, explicações de cathe-
cismo, exercício de doctrina, culto, prégaçflo de evan-
gelho, leitura, themas de epístolas de S. Paulo, e que
scei eu ? E' tudo ijto um armarinho de drogar^ vene-
nosas, que exhalam cheiro mystico de apostasia, senão
de parvoíce selvagem.
Que se tolerem as seitas heterodoxas, como o per"
mitte a lei fundamental, vá. Que vão ouvir ecrei*
n'essas cousas, os que tiver.im a infelicidade de nas-
cer fora do grémio da egreja cathólica, isso compre-
hende-se, parque em summa o cego anda às cabeçadas,
porque íi4o pôde ver. Porem que se façam, aberta, os-
tensiva e acintosamente, propagandas e cathecheses, e
que sejam cathólicos os propagandistas e cathechi -^tas»
XXVI 87
isto é o que s*3 nuo pôde tolerar e causaria compaixão,
se PEo produzisse indignação e asco.
Deante d'est;us extravaii^ancias do espirito humano,
o homem nSo sabe se seja Heraclito ou Demócrito. Eu
nao posso saber a que vem estes desconchavos e con-
traposições de crenças ; nSo corapreliendo este renegar
da fé de seos pães em que pôde servir ; não alcanço
como estes sacrilégios e apostasi as podem aproveitar
como matéria de opposição ao governo; o certo é que
elles lá o sabem, se é que o sabe:n ; o que também é
certo, é que se manifestam por toda a parte os grita-
dores de liberdade e os patriotas do petróleo como pro-
fanadores do altar e demolidores de todas as institui-
ções que nos dãu paz e ordem.
Meo caro Cincinnato, ponho por hoje remate ás re-
flexões que por ahi ficam atiradas a esmo. Não posso
ser operário diligente d'esta boa cruzada de ordem, por
que a nossa vida atarefada de homem da roça, nfo dá
para sobejidões e largas no dizer. No emtanto peço
fervorosamente aos sanctos da rainha devoção que vão
inspirando e dando alento aos homens de bons ins-
tinctos para que sejam atalaias vigilantes, e bradem
muito alto contra a desorganisação, que lavra como a
peste, pervertendo i)elo contágio tanias intelligencias
que se transviam, por desacauteladas, que, não sendo
bem incaminhadas em tempo, se exti aviam pelos la-
byrinthos e ficam irremediavelmente perdidas. Até
outra vez.
O vosso ex-corde
MUCIO SCOBVOLA.
Decima carta de feSeinpronio a Oinclnnato.
OBiíArf DE J. DE ALENCA|l.— A IRACEMA
II
Meo respeitável amigo ;
Volto ainda á faina com o ânimo contristado. Como,
porém, o caso é de consciência, tudo sotoponho, e vou
para deante.
Dice-te na minha preced^?nte (se bem me lembro) que
na Iracema^ o absurdo, o paradoxo, quer de substancia
quer de forma, não fere logo a vista, como no Go 'içho.
Ter-me-hia acaso in<i*anado ?
88 XXVI
Affigura-se-me que o auctor nao passava ainda
então por cima de certas decencias iitterárias. Guar^
dava 05 apparencia^. Como que lhe fazia peso uma
cousa que se chama — opinião^ que elle se interessara
antes em attrahir para apoio seo, do que diligenciara
concitar em seo desfavor.
E' que a sua reputação não estava consolidada.
Aquelle nome ainda não era utn prestígio, um oráculo,
como hoje. Os créditos, que .se accentuavam, podiam ser
varridos e apagrados pelo sopro de qualquer accommet-
tiraento feliz. Nao existia o forte partido, que mais tarde
apavorasse e tornasse in limine impossível a manifea-
tação de toda critica^ por mais espontânea e consciente
de sua serventia que fosse. Por isso refreava o auctor^
como podia, as petulâncias da insolente phantasia.
Tenha, porém, o leitor da Iracema olhares desinte-
ressados e perscrutadores, e attente. para estas floreB
mágicaíí ; ha de perceber o fervilhar do verme, amia-
çando corroer-lhes a juvenil corolla.
A planta está em plena primavera, e no seo matiz se
adivinham pegadas de antecipado outomno. Mais tarde
nos primeiros fructos, conhece-se que já trabalham es-
tragos de corrupção. Aquella deslumbrante florescên-
cia, aquelles fúlgidos pomos aílo passam de productos
de uma vegetação, cuja seiva, uma vez em contacto
com os gazes deletérios da trêfega phantasia, principia
a contaminar-se.
O escriptor propende para a aberração ; a enormidade
o tenta. Queres a prova ? Eil-o mais logo a offerecer-nos
na donzella do salão selecto a creaçao brutesca da
amante que esbofeteia o objecto das suas affeiçOes, ea
quem só verdadeiramente ama depois que se sente por
elle ^injuriada e aviltada, depois que d'elle apanha,
como se fora vil escfava — é a Diva ; ou então um pé
nojento, abominável, immund'», servindo de protogo-
nista da obra, causando horror e asco ao pio leiíor, e
que dirias uma baixa miniatura excogitada do Quasi*
modo — é a Pala da gazella ; ou eniao o hippoceatauro
chato, informe, indecoroso, repulsivo, como typo de cos-
tumes brazilios — e temos finalmente o Gancho.
Eis-nos na actualidade. O escriptor tem chegado á
phase mais coruscante e mais elevada do seo império de
vaidade e de aberração ; isto é, tem }>ttingido o período
decisivo da mais manifesta decadência.
XXVI 89
E' o patriarcha da litteratura brazileira, um génio
talvez, porque crea a torto e a direito, seja o que for, nao
importa o quê ; crea visões ; crea disformidades ; crea
uma linguagem nova;. crea vocábulos já creados, velhos,
incanecidos! Quando eu leio que no século XVII a pri-
meira condição do candidato a génio consistia em que-
brar copos na taberna do dd)oche ; que no século XVI o
homem de génio esgrimia maravilhosamente, embriaga-
va-se todos os dias, e sujava de ti neta e de vinho as pá-
gÍTias do seo Píndaro ; quando leio que Montaigne, Cal-
deron, calmo e sereno, prazenteiro e modesto, Cervantes
ingénuo, e natural Shakespeare, que nao o era menos,
náo realisava, nenhum d'elles, o typo do génio, e a
utodos se fechavam ultrajantemente as portas da glória»
comprehendo entào que se possa no século XÍX ser tido
como tal, por pintar se a natureza inanimada com a
feição da imbecilidade ou da loucura ; por f»zer-se de
grandiosas e gigantéas raças vis caricaturas ou repu-
gnantes monstros ; por converter-se a língua mais opu-
lenta n'uraa saccola de pedinte I
Estamos em pleno império dos Marc Lasphyse, dos
Dubartas, dos Jodelle «triste innovador, adorado do seo
tempo, )» Com este Jodelle, innovador e adorado do seo
tempo^ bem se vai parecendo J. de Alencar.
Hoje em dia entre nós, o candidato a génio deve fazer
versos escabrosos e horripilantes, comédias hybridas,
discursos túmidos, anasarcos, romances loucos. O que
se exige de mais peso, é certo apparente arranjo na es-
tructura para illudir os incautos, e poder, impune e
libérrima, cabecear á vontade a idéa mais paradoxal.
Os romances, repassados do sabor local, adubados do
mais fino sal áttico, sensatos, naturaes, moralisadores,
que sao uma fiel photcgraptíia da nossa sociedade, esses
com qne cada dia nos dota a penna habilíssima de Ma-
cedo, nao silo da iguaria, que mfis gratifica o paladar.
h o Brazil tem um patriarcha e uma litteratura ! O que
o Brazil infelizmente tem é um baixo império nas lettras.
Isto sim.
Admíra-se, exalta-se a imaginação de J. de Alencar.
Admirável é, nao ha dúvida ; agora exaltavel, isso é
que nao.
Deve-se festejar e applaudir a imaginação que re-
produz com incautos novos e novas vivacidados os
gruppos, os accidentes, as attitudes, os recursos da
natureza ; que faz esses grupos interessantes, esses
90 XXVI
accidentes pittorescos, essas altitudes graciosas, es.sas
seenas animadas e felizes. Isto é imaginar, no uso
rigoroso e didáctico da expressão. D'ahi vem que,
quanto mais se appropria o escriptor dos matizes va-
riados da creaçâo, ou das sensações e phenómenos da
vida, e tanto mais fielmente os retrata ou reproduz,
impregnados do cunho da sua pessoal idealisaçfto, tanto
mais se diz ser elle original^ tanto mais génio.
<( Ab'. sa-^se da elasticidade de linguagem, quando
se ousa fallar de intelligencias creadoras. Em defini-
tiva nao ha creaçao ; reproduzir, imitar, eis quanto
nos cabe. Se Homero, Cervantes, Ariosto, Byron ti-
vessem vivido incerrados 'num ergástulo, o-que teriam
podido imaginar ? Que creaçao teriam dado ao mun-
do ? » Logo, a natureza em primeiro logar, e depois
complexa e completa observação — eis os dous ele-
mentos, as duas possantes azas do génio.
E' consequente com estes princípios que o escriptor
define a memória na esphera da esihética >? — thesouro
de lembranças, cuja indigeueia conslitue o que se
chama o idiotismo^ cuja confusão dá em resultado a er-
travagancia, cuja riqueza e plenitude constituem o gé-
nior)
Nao sou relógio de rep.tiçao, como dizes tu ; mas
nunca é ocioso adduzir certas considerações ade-
quadas ao assumpto. Perdoa, pois, a ditFusão.
Paulo e Virgínia é um monumento na litteratura,
justamente porque o theatro descripto, e amor so-
nhado, a ingenuidade, a pureza, o devotamento dos
typos estão na própria natureza, dentro das suas am-
plíssimas raias e múltiplas possibilidades.
Atala é um primor, justamente porqutí os senti-
mentos, os suavíssimos intrechos, a paixão plácida e
morna, as manhas e as tardes bravias e bellíssimas, a
expressão particulartlos characteres, a feição geral dO .
conjuncto, tudo é condigno e próprio do mundo e das
circumstancias do assumpto, que laz o poema.
O Guarany, de J. de Alencar, agrada algum lant^e
interessa ao leitor, justamente porque as descripções
parecem brazileiras. A natureza alli nao pecca por
tao demasiado artificial, como no Gaúcho* O leitor ;.çha
no índio modos, brio,impertérrito valor, sagacidades ^*
recursos vários, dedicação sem limites, que nao des
toam de uma raça, que as florestas embalaram no seo
berço libérrimo de trepadeiras e de folhagens, que c^
XXVI 91
calores do equinóccio retingíram, e a cuja têmpera os
riscos das vicissitudes, as emboscadas d) inimigo ou
da fera, as conspirações da natureza deram a tensão
mais apurada e ampla.
Pery parece-se com o índio do Brazil. Ressum-
bram do seo todo, que é o poncto commum entre
duas nacionalidades, da mesma sorte que na Evaji-
gelina de Longfellow, energia bárbara e affectos,
digamo-lo assim, cultos, que incantam. Selvagem,
realisa o prodígio ; adventício de uma sociedade
civilisada, pratica virtudes limadas.
Nesse tempo o demónio da vaidade nao tentara
ainda J. de Alencar. Elle nao pretendia então ,
(pelo que parece) conquistar nomeada stnSo como
escriptor de cunho nacional, e nao a de génio crea-
dor, no sentido em que alguns hoje o consideram
e que é lícito ajuizar pelas suas últimas obras. Ti-
nha, seguramente, por muito honroso e acertado
voltar-se para o e.spectáculo grandioso da natureza,
6 pedir-lhe alguns traçns de seos painéis de eterna
poesia, alguns ligeiros matizes da sua pompi)sa e
perenne efflorescencia.
Eis que uma nuvem de desgraça empana esse
nome e a face resplandecente da litterdtura natal,
que espargira tao auspici sos brilhos. O escriptor,
longe de cultivar a mina, que a natureza tornara
capaz de inriquecer um mundo, longe ('e exerci-
tar-se e aprimorar-se no género, de.-ípreza-o, talvez
por sediço e commum !
Franklin, Washington, Jeíferson, Governador Mor-
ris, Quincy-Adams, tem medo da imaginação .* dom
magnifico e perigoso •? ^ Em face das verdes sa
vanas, das florestas virgens, dos lagos que sâo
mares, dos rios cujas margens escapam à vista, as
m&sculas virtudes dos heroes ]^uritanos ingrande-
ceram, e sua imaginação permaneceu muda. ^ J.
de Alencar, porém, espírito então ainda novo, ainda
nao feito, e quiçá inexperiente, dá costas á mansão
virgem, que nada pôde egualar na sua majestade
e pompa, e deixa-se arrastar para o poncto procel-
loso — indício certo de próximo e cabal naufrágio
— com que lhe acena o clarão carregado da túr-
bida phantasia. Sua primavera foi fugaz. O Gua-
rany uSo tem irmão. As faculdades creador-s estão
embotadas e corrompidas; José de Alencar esiá Sénío,
92 XXVI
Quando correu que elle tinha em mãos uma obra
destinada a dar o padrão da poesia verdadeiramente
brazileira^ os leitores, que o haviam appreciado no
Guarany, tiveram de sentir grata commoçao.
Pareceu-lhes que o typo nao estaria muito longe;
só, sim, despojado, estreme de toda mescla de ele-
mento estrangeiro, a cousa realisaria o puro ideal
da poesia nativa. A decepção foi tão esmagadora,
quando appareceu a obra, como lisonjeira tinha
sido a espectativa alimentada uurante a despera-
dora gestação.
Se por litteratura nacional se deve intender aquel-
la em que « se reflecte o character de um povo, que
dá vida ás suas tradições e crenças, a harpa fre-
mente em cujas cliordas geme, como um sopro, a
alma de uma nação, com todas as dores e júbilos,
que, atravez dos séculos, a foram retemperando » ;
se (( cada povo tem suas paixões como cada indi-
viduo, e essas paixões constituem a alma de cada
poesia?»: parece de bom aviso, que o candidato a
realisador do typo da litteratura propriamente bra--
zileiray quando já nao era possivel estudar no vivo
as paixões de uma raça quasi desapparecida, ou»
pelo menos, decaída da sua primitiva grandeza,
se voltasse para a história e para o estudo dos mes-
tres, feito sobre o índio colonial, e d'ahi apanhasse
a expressão complexa e fiel d'este, seos costumes,
suas inclinações, sua poesia emfim.
Já havia alguns modelos realisados aobre o the-
ma indígena. Sancta Rita Durão, Basílio da Ga-
ma, Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães ti-
nham quasi todos batido nas mesmas sendas. N&o,
nao podiam haver tomado a nuvem por Juno esses
illustres ingenhos, alguns dos quaes tiveram occa-
sirio de estudar o ftidio em original. Podiam falhar
ou desvairar-se os pormenores, nunca porém a es-
sencÍM, de modo que devesse ser condemnada a ve*
lha escoUi como apócripha.
I)ir-se-hia, pois, com justo fundamento que a eschola
estava inaugurada, a incógnita descoberta, resolvido
o problema. Fora lícito accreditar aue nao restava
neste poncto,a quem ambicionasse colner novos lauréis
para si, e proporcionar novo realce á pátria, mais do
que alargar esses caminhos, afastar o mais possivel
esses horizontes, para que surgisse na máxima pleni*
XXVI 93
tude a perenne mansão de incantos. Nao é o que faz
J. de Alencar.
Principia, contrapondo-se aos mais auctorisados mes-
tres. Sem nunca haver tido occasiao de estudar efi-
cazmente o elemento de que se presume conhecedor,
nutre a vaidade de suppôr que achou o character d'este
na sua mesa de estudo e sem dúvida mediante os
subsídios, devidos aos mesmos escriptores, contra os
quaes rompe.
« O conhecimento da língua indígena é o melhor
critério para a nacionalidade da litteratura, » diz-nos
elle na sua carta final. Ora, como ha de conhecer
essa língua quem nao penetrou nas tribus, quem nao
se achou em contacto com o povo, quem a nao estudou
nos tempos primevos, porque era impossível fazel-o,
nem mesmo nos tempos actuaes em que jâ o verdadeiro
character indígena decahiu e se corrompeu ? Ha de
forçosamente estudal-a nas obras e diccionários que nos
deixaram os nossos predecessores. Pois bem : elle
acha que « de quantas producçOes se publicaram
sobre o thema indígena, nenhuma realisava a poesia
nacional » ; e quanto aos diccionários é o primeiro a
taçhal-os de « imperfeitos e espúrios. »> Ao próprio
G. Dias nega o condão de realisador da poesia ame-
ricana. Diga-nos quem poder e quizer : onde foi J. de
Alencar buscar esse molde de poesia selvagem, fórá dos
diccionários, que « são espúrios », fora das producçoes
Sublicadas, que í* nao arealisam», fora dos modelos
os mestres que « só exprimem idéas próprias do ho-
mem civilisado, e que nao é verosimil tivesse no
estado de natureza ? » No seo gabinete de improvi-
sador.
Ah! justamente por nao havel-o incontrado em
parte nenhuma foi que elle adoptou e nos offereceu
como o verdadeiro padrão essa poesia pedantêsca e
diffusa que se esparrama nas páginas da sua Iracema,
Meo amigo, estou-te escrevendo estas cartas por
honra da firma. Se já m'o promettêra a mim mesmo,
e se ultimamente t'o prometti também a ti... o pro-
mettido é devido. Mas, á fé, que estudos em que só se
tem de apreciar desaires e nSo sublimidades e formo-
suras, cançam a final, o não pedem deixar de levar
á monotonia.
Quando escrevi, ha mezes, as minhas cartas sobre o
Gaiiçho estava cora disposição para a cousa. Também
94 xxvr
era a primeira ceifa, e em <; le campo I Era dar para
a esquerda e para a direita, e cair espiga. Mas
também pelo muito que so vindimou, sobreveiu o
tédio pn • i a repetição das operações.
Se aquellas cartas tivessem sido dadas á imprensa
em tempo, jâ n anàlyse da Iracema^ da Diva e da Pata
da Gazella estariaoi feitas, porque, approveitado o
humor do momento, um só e mesmo fôlego abrangera
tudo.
Mas foi o contrário. Quando eu esnerava recebel-as
publicadas, chega vam-me noticias, dando-me formal
desingano. Lá ficaram por meze.s ; já nao me lem-
brava d'elias, e tinha-as até por extraviadas (que
talve:: fõosse o melhor.)
Eis que vem a questão do elemento servil, o parecer
da commissao da câmara dos deputados, os discursos
parlamentares de J. de Alencar, as tuas magnificas
cartas a Fabrício, e finalmente as Questões do Dia.
Ora, durante todo esse tempo, estive eu cuidando
dos meos verdadeiros interesses (que isto de lettras,
entre nós, nao dá para mandar ao açougue) como
fossem algumas questões forenses, algumas garatujas
para gazetas politicas, etc. Nem me lembrava mais
de Sénio, senFlo como um político, e este velho, des-
crentey como elle mesmo se diz.
A inspiração do momento foi-se. Veiu depois a
doença, que mo forçou a retirar-me para o campo ; e
ahi, quando menos o esperava eu, vejo ressuscitarem
nó teo periódico as minhas defuncthsimas cartas.
Foi quando tive de voltar à cidade, e agora já nao
pareceria de bem que eu deixasse de cumprir a palavra,
que imprudentemente empenhei, a pezar de nao ter
« primeiro calculado das forças mínimas para em-
preza tao grande. »
Pois bem : peço-te |x3rmissao para tomar fôlego e
continuar na seguinte. Até lá.
Teo amigo e admirador
Semprónio.
M:o3iLTLiiieiito a Bocage
Segundo as últimas notícias de Lisboa, os alicerces
que o máo estado do solo exigiu, estavam muito adean-
tados, mas sendo precisos ao menos 15 dias para in-
xugar, e nRo cessando a chuva desde fins de octubro
XXVI 95
«
ate meado novembro, ; trazou isto muito os trabalhos,
por tal motivo de força maior. Para solidificar o ter-
reno, foi mister suterrar estacaria de 9 palmos de al-
tura, e proceder a morosos e inesperados trabalhos.
Apenas segurasse o tempo, o que nao parecia próximo,
ia começar a assentar-se a cantaria. 'Nestes termos, a
solemnidade do dia 21 de dezembro limitar-se-ha pro-
vavelmente á collocacâo dos fundamentos. Os dous
Membros da Comaiissão Central 'nesta corte incumbi-
dos de dirigir esta tarefa, approveiraram estas circums-
lancias para recoramendar que a definitiva inauguração
se reserve para quando S. M. o Sr. D. Pedro Segundo
se ache em Portugal, esperando-se que, com seos au-
gustos parentes, abrilhante o esplêndido acto.
A com missão em Lisboa, de que é Presidente o Sr.
Marquez d' Ávila e Bolama, e Vice-Presidente o Sr.
Visconde de Castilho, prosegue em seos trabalhos, de
accôrdo com a commissao de Setúbal, e ambas com a
Ceutral do Rio de Janeiro.
O Presidf^nte da Comniis^âo especial, que o è tpm-
bem da Câmara Municipal de Setúbal, dirigiu para
esta Corte as suas coinmunicações, das quaes se col-
lige que a Rainha do Sado verá em dia próximo
uma das mais brilhantes festas de que neste género em
Portugal haja memória.
O mesmo cavalhe'iro dirigiu à Commis^ao em Lisboa
um ofiicio do teor «eguinte:
« No empenho louvável de abrilhantar a festa da
inauguração do monumento dedicado ao celebre poeta
Bocage, corapuzerata e ofterecerain á CArnara Muni-
cipal d'este conselho dous liymnovs dt stir.uJos a serem
executados no ar-to da dieta inaiigur-irão, os profes-
sores de musica Carlos Augusto Alves Bim^m, e Antó-
nio do Nascimento e Oliveira, ambos conierràtieos do
poeta, o primeiro residente em Lisbj:.t. e o segando
residente nesta (.idade de Setúbal, onde k^ locoaliocido
o seo mérito artístico, e cujas PhilarmÓLiiv*as tiveram
já partituras do segundo dos indicados hyinr.os.
Julgando a Câmara, por mais acertada drliber^çlo
deixar â illiistn»da commisslo incarregada de dirigir
a solemnidade alludida, tanto a apprccir.cao da poesia
que faz parte do bymno de que a miisica é composta
por António do Nascimento e Oliveira, ccmuo a música
de ambos os hymnos, por isso tenho a honra de os re-
m etter a V. Ex. afim de os fazer presentes âquella Ex*.
96 XXVI
Comraissao, que a tal respeito resolverá do modo que
à sua muita competência e subida illustraçao mais justo
parecer. Deus Guarde a V. Ex. — Setúbal 15 de no-
vembro de 1871. — lUm. Ex. Sr. Visconde de Castilho.
— O Presidente da Câmara António Rodrigues Ma-
nitto.
Quando, porêm, chegou este officio, já as bandas de
música da Guarda Municipal e outros corpos estavam
ínsaiando um lindo hymno, expressamente composio
sob o título Hymno a Bocage.
As RevoluoSes
Como ha por ahi muita gente boa, que sonha com
revoluções, e se os seos desejos fossem satisfeitos,
teríamos ao menos uma por dia, será bom lembrar-lhe
os proveitos que d'ellas se auferem, porque muitos ha
que cuidam que revolução é o mesmo que pfto com
manteiga.
Tomaremos para exemplo a França, que, 'nesse gé-
nero ninguém negará que seja clássica.
A grande revolução franceza, que matou a Lmz
XVI, trouxe o Terror.
Do Terror, que acabou por uma revolução, veiu o
Directório^ com todas as sjias torpezas.
Do Directório, que acabou por uma revolução, veiu
Napoleão com todo o seo despotismo, e a^ giierras do
Império.
De Napoleão, que acabou por uma revolução, veiu a
Restauração com a occupação^ e os milhares de indenmi"
zação.
Da Restauração, que acabou por uma revolução, veiu
Luiz Philippe com todas as suas fraquezas.
De Luiz Philippe, que acabou por uma revolução,
veiu Luiz Napoleão, com todas a.v suas misérias.
De Luiz Napolefb, que acabou por uma rL^Víliiívao,
veiu a occupação pelos Allemães, o pagamento ih nlijuns
milhares de milhões e a communa. e sabe Duus o '[ue
ainda virá.
Arreda de lá o velho, dizia certo sexagenário, .i ij'íem
comptavam que uma grande patuscada tiuha a-.wl^ado
por uma grande desordem.
Otton.
Typ. e lith. — Imparcial— Rua Sete de Setembro n. 146 A.
QUESTÕES DO DIA
]sr. 27
RIO DE JANEIRO, 20 DE DEZEMBRO DE 1871.
Vende-se em casa dos Srs. E. & H.Laemmert. — Agostinho de Freitas Gui-
maries & Corop., 26, rua do General Camará. — Livraria Académica,
Rua de S. JG^e n. 119— Largo do Paço n. C— Preço 200 reis
O !• volume, com perto de 400 paginas— 3$00B.
OBRAS DE J. DE ALENCAR — A IRACEMA
(Oartas a Oincizinato)
III
Meo ilhistre amigo: A Iracema teve por fim des-
empenhar o comprcmisso que o auctor commetteu a
imprudência (palavras suas e dEo dice mal) de contra-
hir, quando escreveu algumas cartas sobre a Confede-
ração dos Tawoyos,
Ora, a Confederação dos Tamoyos pertende as honras
nSo só de poema, porém de poema épico. Sinto nao ter
esta ^bra, que li ha tempos, para agora averiguar a
minha asserção. Quer-me, todavia, parecer que nao
estou em equivoco.
J. de Alencar, criticaado-a, dice que « as tradiçOes
dos indígenas davam matéria para um grande poema»
que talvez um dia alguém appresenta.sse sem ruído nem
apparatu. » Infelizmente ainda nao chegou este dia.
Suppozeram que o auctor se refei^ia a si, e pergunta-
ram-lhe varias pe.iiôaá por elle. Tanto hastou para que
se mettesse em « brios lillerarios, e começasse a oora
com tal vigor que de um fôlegofa levou ao quarto
canto! m
(Vid. a carta final, na pag. 193.)
Depois, por certas considerações, que nao vem ao
caso recordar, f jí o auctor levado a dar « um ensaio
das suas iuéas sobre a poejiia verdadeiramente brazi*
leiva in anima prosaica. » Tal o, Iracema,
Pergunta-sy : o que é lícito conjecturar em face de
todas estas circura.siancias e precedentes, a saber —
depois de uma critica feita a um poema candidato a
98 XXVII
épico, depois de uma solemne promessa de apresentação
de um grcmde poema, jor julgar o crítico que aquelle
não realizava a verdadeira poesia brazileira, e depois
finalmente da amostra em prosa d'essa promeciida e
perguntada obra? Seguramente que esta amostra per-
tende offerecer ao mundo não só o typo d'aquella poesia,
senão também o de um poema épico em contraposição
ao que foi julgado incapaz de satisfazer aquelle deside-
ratum. Com eflFeito !
Ha um grande nome na litteratura hispanhola — don
Juan Ruiz de Alarcon y Mendoza, que um auctor col-
loca acima de Moratin, de Montalvan, e immediata-
mente depois de Lopez de Vega e de Calderon.
Era elle « infernalmente orgulhoso » na pbrAse do
crítico aquém peço estas notícias. Em um dos seos
prefácios se lêem estas memorareis palavras allusivas
ao público (ai volgo) : « Canalha, animal feroz, dirijo-
me a ti ; nada digo aos gentis-homens, que me tractam
melhor do que desejo ; intrego-te as minhas peças ; Saae
d*ellaso que fazes das boas cousas — sê injusto e estú*
pido, como é teo costume. Elias te inçaram e te affron*
tam; seo desprêso para comtigo é soberano. Se as
achares ruins, tanto melhor — é que são boas. Se te
agradarem, tanto peior — é que para nada prestam.
Paga-as, e folgarei de te haver custado alguma
cousa. »
J. de Alencar dá poemas e romances de costumes^ sem
ter estudado a natureza nem os povos, e condemnando
além d'isso os estudos dos mestres e os diccionàrios
existentes, que chama <c espúrios ». Essas obras» elle
as dá do fundo do seo gabinete, assim a modo de
quem expede avisos para um império inteiro. Espé-
cies de encyc^icas litterdria^, trazem o cunho da aucto-
ridade dogmática e infallivel : são matéria de fé. Hou-
ve de certo immen%\ modéstia, quando nos dice que a
Iracema era uma experiência ou amostra. E' que foi
isso ha seis annos antes a esta parte, e têmpora mu*
tantur. Hoje, com a sem cerimónia de quem conhece
o terreno onde pisa, suas palavras para com o público
seriam talvez estas : Canalha imbecil, corja de idio-
tas ou de boçaes, que só tens tido um luus perennis
para os meos caprichos, a minha fatuidade e as mi-
nhas aberrações, toma lá esta.... lUlada brazileira.
Os que conhecem os meos erros e defeitos tractam-me
I
XXVn 99
melhor do que seria para esperar. Graças ao seo
silSacio, filho do p uco caso ou da cobardia, a mioha
reputação pãoica transpôs jâ. os umbraes da posteri-
dade, e perde o tempo ou é parvo f|iiPTii t«ntBr apear-
medo meo pedestal. Paga tu a obra, u ulug*iu-ii por toda
a parte, como tem sido teo co-stume. «
Haveria 'oestas amabilidades alguma cousa pare-
cida com as de Alarcoo, mas, umas ligeiras obser-
vações: o auctor bíspanhol era de tanto génio, que
Corneille vasou o seo Menleur no molde da Veraad
Suspeckosa. obra (jue denomina « a maravilha do thea-
tro, e para a qual nSo se acha, como elle diz, nada
comparável, quer entre os antigos quer entre os mo-
dernos. B Infelizmente as cousas sao muito diversas,
em relação ao caso actual. O Brazil de hoje está
tao di.stante da Hiapanha do século XVI e do século
XVII, quando fornecia assumptos à Itália, á França,
á Inglaterra, a Corneille e a Shakspeare ! O nosso
compatriota, posto que muito illuslre e respeitável,
está tao afastado physica, chpouólogica e litteraria-
meate de Alarcon ! E depois* accresce : J. de Alencar
nao teria razão p^ra m queixar do piiblico : só .Mar-
cou— perspicaz e profundo — desconfiaria d'eR8e pe-
reniie acoihimeuto ás suas obras. Bti-^eamos ao nosso
I aasimpto.
Tu, que és mestre e intendei tSo bom da cousa
como nem ouso pertendel-o 91, achas que a poesia
brasileira tenha incontrado o seo ideal na Iracema ?
A poesia de um povo, que fazia das guerras sua
principal, senão ilníca, fonte de pnixOi-s, nao podia ter
eaa» expressão de flaccidez e de langurir, que faz
a feição completa da obra citada.
Achelos tumultuosos, affectos desinfrendos, pra-
L nres lúbricos, Sí>nsaçAes intensas e bravias, rcstumam
I Intunzir-do era linguagem de outrt* possança ; isto é
f O que nos parece dizerem o senso critico e o es-
tado das primitividades de todos os povos do mundo.
O poeta, intérprete der^sa poesia, n5o tem mais que
apanhar o colorido ardente, e com elle velar as impu-
dldcias ou as fealdades da natureza brutal.
Cumpre mais acnrescentar que a fiirma de tal
[ po&)in, parti cularmi-nle bebida ua fonte grosseira dos
I aealidos, devia tender mais ao plástico, ao material,
do que a uma ideal ísacão que de modo nenhum cabtf
f
100 XXVI!
em aimilbante natureza. Ura moderno archeúlogo e
sábio ing^lez, Lubbock, estudando os costumes dos
aborígenes da América do Norte, diz que o « estylo
da sua música é magro e sem arte. » Sabe-se que
a monotonia faz também um characterisíico das festas,
das danças e dos cantos dos selvagens em geral ;
8 com relação aos do Brazil, é fácil deprehender
do que dizem os competentes, qite lambem era
traço distinctivo da sua linguagem cerio cuubo de
varonilidade, repercussão do estjlo com que cele-
travam suas paixOes tumultuarias.
Só duas fontes vejo onde o poeta açbasse para
beber o character da poesia brazileira: a saber —
specimens na própria lingua vernácula , ou , na falta
d'estes, o dizer dos histopíadores. Ora, a primeira é
sabido que nos talta ; nao só os índios nno escreviam,
mas também quem o podia fazer n nao se dpu ao
trabalho de recolher ou verter era língua portu-
guesa 08 cânticos dos Índios » como diz ura litte-
rato contemporâneo. Resta, portanto, a segunda, que,
longe de auctorizar, conderana a perlensa eschola,
inaugurada por J. de Alencar.
Em verdade, biista uma interpretai; ilo approximada
da história para vermes a medida d'essa poesia.
Um povo dado principal raente íis luctas viol«itas,
d'onde derivam os seos mais assíduos passatempos e
labores nao havia de ser frôxo o débil, quando é
certo que a poesia é o reflexo raaia animado, firme
e substancial das paixOes de ura povo.
Mas o que no.-í dizem os historiadores? Vejamos.
Simão de Vasconcellos diz, — Iractando dos cantos :
«Cantam no me.smo tora arengas de suas valentias e
feitos de guerra com taes Dssobios, palmas p patoadas
que atr.-ara os valles. »
Ferdinand Deny* di;!, occupaudo-se eoni o mesmo
a-"Sumpto : "Cantavam alternadamente as swns faganhcu
em tnm grave e compassado. » E referiu d c-.se a uma
certa dansa accresreota que « do seio da mtilttdno se
levantiiva um choro harmonioso, que celebrimi a glória
dos antepassados e incitava os bravos a novos feitos
de honra, »
Verdade seja que G. Dias nos observa: « Entre os
Tupys era tudo música e poesia — o nascimento <s
jBOrte — a guerra e as festas — o amor e a reli^^^
XXVII 101
— a linguagem e ávida — era tudo poesia Na sua
linguagem harmoniosa e quasi toda labial, travada e
intercalada de vogaes — imitavam o ciciar dâ. brisa a
correr sobre as ondas espalhadas do oceano, a agitar
levemente a igara derivando á tona d'agua, e a inre-
dar-se pelas folhas dos bosques, que aromatizam o
littoral. » Para apoiar esta opini&o declina a de di-
versos auctorizados escriptores, como o padre Figueira,
Laet, Vasconcellos, Du Montei, os qua^s todos s&o
accordes em que a língua geral era muito rica, suave
e elegante.
Devo entretanto produzir duas rápidas observações .
Primeiramente, historiadores) também ha, não menos
abalisados, e entre outros p*Orbigny, que suppoem que
« quasi todas as línguas americanas eram pouco ex-
tensas, grosseiras, e careciam absolutamente de termos
para exprimir um pensamento, uma idéa delicada,
ou mesmo a paixão. » Se coubesse nos estreitos limi-
tes de uma carta, escripta a vôo de pássaro^ algum
desiuvolvimento sobre matéria sem dúvida transcen-
dente , eu reproduziria com Lubbock, Forster, Ellis,
Cook, Kolben, Thunberg, Harris e muitos outros,
factos e considerações que avigoram esta opinião.
Em seguindo logar direi que,mesmo admittida a opi-
nião esposada por G. Dias e pelos outros citados his-
toriadores, essa suavidade, opulência e elegância,
longe de se contraporem à these, que resalta da his-
tória, mais a accentuam e corroboram. Quanto mais
opulenta e elegante fõr a língua, tanto mais em con-
dições 'de ostentar fidalguia e gentileza, quer de
forma, quer de essência. E tanto assim é que o próprio
G. Dias não vasou as suas poesias americanas em outro
molde.
Se dos cantos passámos às dantas, o que vemos?
Refere o próprio Dias : « Essas mesmas dansns não
eram mero exercício de força ou simples distracção.
Simulavam (os guerreiros) nos passos choreográphicos,
j& o caçador em attitude viril e ameaçadora,... já,
mais enérgicos, imitavam com6a(e5 de homem contra
homem, em que se succediam as palavras aos golpes^
etc. » Confirmando esta afiBlrmativa, ajUncta P. Dinys :
a Era antes ( a mais solemne das dansas ) uma ceri-
mónia maixial que uma dansa propriamente dieta. »
102 XXVII
Eis, pois, ainda aqui characterisada a poesia sel-
vagem pela energia e fortaleza, qae imbutiam, diga-
mol-o asáim^ na linguagem, nos gestos, nas acções,
as diversas formas, sempre elevadas, de decantar
assumptos grandíloquos, como as batalhas, os conví-
vios em honra das bárbaras proezz&s, os exercícios e
noviciados béllicos.
Penso, pois, assim : ou a poesia tivesse de exprimir
motivos de essência épicos — as luctas gigantéas, as
glórias marciaes ; ou motivoa melodramáticos, os pra-
zeres eróticos, as magnificências da natureza inani-
mada, os incautos da vida florestal ; ou de referir-se
ás suas práticas e crenças religiosas — em qualquer
doestes casos ser-lh^hia impossível abstrahir do cunho
de vivacidade, do colorido vigoroso, própno do sen-
timento universal de braveza e do modo geral de dizer
que especialmente os assignalava e que era como as
tinctas predominantes de todos os seos phenómenos
sociaes e moraes.
Pensando assim estou de accordo com os dous primi-
tivos patriarchas da poesia brazilica, Basílio da Gama
e Sancta Rita Dur&o, e também com os gfandiosos in-
genhos do Dias e do Magalh&es, que nos tempos actuaes
tamanho impulso deram á eschola nascente, apezar de
ser de data colonial. O Dias foi infatigável, verdadeiro
propagador d'essa eschola, que cultivou como o sacer-
dote mais estrénuo, suctorizadoe feliz. E' elle indispu-
tavelmente o nosso primeiro poeta, e difficilmente teri
um successor que se lhe approxime, se a ingrata sorte
arrabatar cedo á pátriít o astro mágico de Fagundes
Varella, que, no meo fraco intender, é o vate mais
genuíno, opulento e mavioso da moderna plêiade na-
cional.
Ora, se pego a^ora mesmo do Vruguay e o abro ao
acaso, o que incontro ? £' o poncto em que o índio,
Cacambo, se appresenta ao general como parlameu*
tário. Ouçamol-o.
t< O' general famoso,
« tu tens á vista quanta gente bebe
« do suberbo Uruguay a esquerda margem.
« Bem que os nossos avós fossem despojo
«c da perfídia de Europa, e d'aqui mesmo
« co' os n&o vingados ossos dos parentes
^•>
XXVII 103fc
<t se vejam branquejar ao longe os valles,
« eu, desarmado e só, buscar-te venho.
c( Âs campinas que vês, e a nossa terra
í< seo e nosso suor e os nossos braços
« de que serve ao teo rei ? Aqui não temos
4c nem altas minas, nem os caudalosos
a rios de areias de ouro
« Pobres choupanas, e algodões tecidos,
tt e o arco, e as settas, e as vistosas pennas
<c silo as nossas phantàsticas riquezas.
c< Que mais queres de nós? Nao nos obrigues
(( a resistir- te em campo aberto. Pôde
<c custár-te muito sangue o dar um passo ;
« n&o queiras ver se cortam nossas frechas;
« vê que o nome dos reis não nos assusta. »
Mas j& n&o quero este assumpto que podem tachar
de forte em si mesmo, e vou ter a outro de diversa
ordem — o amor. Abro o Caramwrú^ e não é já um guer^
reiro, porém sim uma simples mulher quem fala. Para-
guassii, promettendo a Diogo Alvares oaptizar-se e ser
sua esposa:
« Esposo — abella diz — teo nome ignoro,
« mas n?io teo coração, que no meo peito,
« desde o momento on) que te vi, que o adoro:
« nao scei se era amor jà, s# era respeito ;
«( mas scei do que entSlo vi, do que hoje exploro,
«( que de dous coraçOes um só foi feito :
K quero o baptismo teo, quero a tua egreja
« meu povo seja o teo, teo Deos meo .^eja.
« Ter-me-has, caro, ter-me-has sempre a teo lado,
« vigia tua, se te occupa o somno :
« armada sairei, vendo-te armado;
« tao fiel nas prisões, como 'num throno .
104 xxvn
(( Outrem aao temas que me seja amado :
(( tu só serás seuhor, tu sómsu domuo; »
« Taato lhe diz Diogo, e ambos juraram ;
« e em fé do jurameuto as mios tocaram »
Pois bem 'ne-^se mesmo assumpto nlo ha frouxidão
nem moUeza na expressão ; pelo contrário: a lin-
guagem do nífecto não se deturpa, não se abastarda,
não despe, nos lábios da moça, da selvagem louçania
sempre, em brio e garbo, na altura condigna.
Recorro ao Dias, não no hitnpejante Canlo do guer-
reiro, não no Y — 7iicaP</7Vima -^modelo de pondonor é
de ufania bárbara, nem no Tabyna eminentemente mar-
cial o athlético, mas 'numa poesia da insinuante
sentimentalismo e amor — o Canto do índio. Tu bem
sabes com que pujança* de idéa e galhardia de lin-
guagem o poeta exalta em notas plangentes o amoc
grandioso do selvícola. Ouve :
(( O' virgem, virgem, dos christúos formosa,
« porque eu to visse assim, como te via,
<( calcara agros espinhos sem queixar-me,
« que antes me dera por feliz de ver- te.
(( O tacape fatal eu terra estranha
<( sobre mim sem temor veria erguido;
(( dessem-me a mim somente ver teo rosto
« nas águas, como a lua, retratado....
« Passara a vida inteira a contemplar-te,
<( sem que dos meos irmãos ouvisse o canto,
(( sem que o som do boré que incita á guerra
c( me infiltrasse o valor que me has roubado
<( Escuta, o' virgem dos chrisuios formosa.
u Odeio tanto aos teos, como te adoro ;
(( mas queiras tu ser minha, que eu prometto
(c vencer por 1»o amor meo ódio antigo,
<( trocar a maça do poder por ferros,
« e sor, por te gozar, oseravo d'elles. »
Esta magnificência, este primor comprehemlo eu
como o echo da paixão sumptuosa do selvagem. Esta,
sim, se não foi, presume-se que poderia ser a verdadeira
poesia brazileira. As sensações e as idéas, os estimulou
altivos como o coraçílo, que se expandia nas luctas
eternas, que as eterntis solidões ainda mais solemnes e
XXVII 105
majestosas faziam, têm 'aestas suavíssimas, sem dei-
xarem de ser seguras e másculas vozes, um echo fiel e
intimo, que vai coando na alma. O selvagrem tupy,
victima da paixão como soe brotar en; ânimos de tal
têmpera, ou fala assim, ou não fala.
Quem ha ahi que nao conheça a poe.sia intitulada —
Leilo de folhas verdes — do mesmo inspirado poeta ?
Aquella viração da noite, aquelle rumorejar do bosque,
a mangueira altiva, a flor do tamarindo, o doce aroma
do bogari, valles e montes, lago e terra, a arasoya, a
forisa da manha, tudo nos fala da natureza virgem, e
dos « rendes vous no mato, tão simples e prosaicos em
si mesmos, mas que não obstante deram assumpto a
uma das mais bellas e graciosas composições do Sr. G.
Dias, no dizer de J. F. Lisboa. O poeta tira da paleta
onde guarda as mimosas cores da sua elegante phan-
tasia,as mais appropriadas ao deâenh(>,e combinando-as
com as ameníssimas galas da natureza, entretece o
sendal de variegadas illusOes com que incobre o fundo
material, e quiçá abjecto do motivo. O leitor haure,
como ura deleite,esses esplêndidos versos, sabe o facto
que elles decantam, facto em si mesmo simples e pro-
saico^ e nem uma palavra sequer lhe vem estremecer a
placidez d'esse véo de decência e de poesia, que se di-
ria cobrir o puro leito da inaocencia. E comtudo não
ha exagtiração, o mínimo desvaire no quadro. As cores
são vivazes, a pintui*a é verosímil,
O contrário se dá na Iracema, O estylo em geral
pecca por inchado, por alambicado. As imagens suc-
cedein-se, atropellam-se. Ha um esbanjamento de ima-
ginação, quo, desdíí a primeira vista, se nota que está
muito longe de approximar-se da verdade; para que os
personagens p^desseru falar assim, n'essa perenne fi-
gura, fura preciso suppor *nílles o talento, e talvez a
cultura do próprio auctor, tão ci^toso e trabalhado se
conhecc' ter sido aquelle arranjo ostentoso. De repente,
porém, o que succede, para ainda mais desabonar o
pincel do artista '? O artefacto de roupagens supérfluas
contrahe-í^e, e desnuda em plena luz a mais deslavada
materiali.lade. Exemplo :
Abro o poemiv na pag. 71. Martim tem passado a
primeira noite com a índia na cabana de Araken. Ape-
zar de ter o moço u inchido sua alma com o nome e a
veneração do t-eo Deus — Christo ! Chriato ! » ( como
106 XXVII
diz o auctor ) o seo Deus n&o o preservou de commet-
ter a vilania ( que a foi ) na « caoana hospedeira, »
Depois de ter o auctor contado o tal infortúnio da
moça, que da noite para o dia deixara de ser digna de
guardar os sonhos da jurema e de merecer os afféctos e
as considerações do seo velho pae, com que chave de
ouro achas que se sairia o auctor para fechar este pri-
moroso capitulo ? Ouve :
« As dguas do rio depuraram o corpo consto da recente
esposa I ( Sao textuaes. )
Considera, meo amigo, que o auctor despendeu uma
nota inteira, apag. 169, em justificar a denominação
de — Acaraú — que deu ao rio — Acaracú -- áizenáo ter
a usado alli da liberdade hcraciana. com o fim de evi-
tar em uma obra litterària, obra de gosto e artlstica^nm
som áspero e ingrato.
Que contradicçao flagrante é esta?! No trecho ci-
tado, não ha só a aspereza e ingratidão de um som ; ha
um período inteiro, offerecendo a.> espirito do leitor
uma idéa vil, expressa por palavras indecentes: depois
da baixeza, a india foi tomar banho no rio para ncar
limpa.
Como isso é de gosto e de arte ! E sobretudo, que
fina e edificante poesia !
Nao posso mais por hoje.
Teo amigo certo
Sóptima cart:a. d.e Oinoinnato a Sempronio :
Rio, 15 de dezembro 1871.
Talentoso amigo.
Onde estávamos nós ? Ah, já me lembro ; no Ttxt.
Admirámos os mil modos interessantes empregados
para activar a vendfll do livro monumental, tao supe-
rior a qualquer outra producçao como o til o é ás pa-
lavras a que se superpõe. Interrogava-ire eu a mim
mesmo sobre a explicação d'este apparente puff«
quando me chega ás m&os uma epistola, que esclarf ee
tudo, e não posso deixar de a transcrever. Resa ella
assim :
« Sr. Cincinnato. — De pouco se admira Vm ; e a
sua admiração cessará de todo, quando souber coma
XXVII 107
as cousas correram. O nobre auctor do Til adora afama,
a glória, e a pátria, mas dá n&o menor apreço a certa
cousa tangivei, com que se compram os melões. Foi a
glória que o fez passar de liberal para conservador,
em qualidade de consultor. Foi a glória, que o fez
negociar com a empresa do Diário do Aio, exigindo a
troca de uns papelinhos por moeda bem met&llica.
Foi a glória, que o fez organizar outra folha, com
gordos estipândios para casa. E a glória, que a tantos
sacrifícios taes o tem condemnado, é sempre o seo
pharol nas costas da litteratura. Parece pois que a
Redacção da República ahi caiu 'num laço bem ar-
mado. Acceitou um contracto desint&ressacíOj em que
o glorioso neólogo accedeu a dar gratuitamente o seo
Jortentoso manuscripto, apenas debaixo doestas mo-
estas condições .* — Tirar-se a obra em volume, e
receber d'este 2000 exemplares ; ir logo à porta fron-
teira receber por cada um a 900 rs., e insaccar assim
gloriosamente uma continha surda, e muito bem
ganha, de Rs. 1:800S000 ( Quem de tao gordas lettras
tamanho lucro haja tirado, nao conhece este Império ;
e ainda ha 'nelle quem lhe conteste a glória ! ). Dà-se
por assentado que os Redactores compraram nabos
em sacco, e assim o creio : sejam boas ou más as
doctrinas por esses mancebos apregoadas, ninguém
lhes negará talento, ou supporá possivel que elles
acceitassem similhante embroglio para as suas colum-
nas, se primeiro o tivessem passado pelos olhos. Foi
um fiasco abominável. No final do capitulo 15 da obra,
Íue bem pôde imprimir-se em 15 pernas, pois saiu em
5 pequenos folhetins, já se lâ fim do primeiro volume.
Todas estas tricas sao da eschola do Dr. Carlosbach.
Seja porém como for, ja se comprehendem as reciprocas
barretadas: — O Sr. Alencar ao Jornal: Esta folha é
magnifica— O Jornal ao Sr. AJj^ncar : Este til, e este
senhor sao magníficos. Sao os dous leigos a darem
Reverendíssima um ao outro. Um agradece os 2000
exemplares ; outro quer desforrar-se, angariando 2000
dous vinténs. Tudo é glória, patriotismo, indepen-
dência, desinteressa^ e amor da pátria »
A cousa ia continuando sempre na mesma afínaç&o ;
mas como eu nao creio absolutamente nadada conteúdo
da tal missiva, permaneço na convicção de que o ex-
clusivo intuito do reformador-reitor das lettras, foi
carauguejar mais um paaao uo progreaso do seo re-
gteaso... como dizia o Sr, Vhcoude de Laborira.
Ainda uao tive paciência de passar pelos olhos
senão os primeiros capítulos do TU, mas ja li bastante
para adi^uirir a convicção de que lia mais outras leis
da physica applicaveis à ordem moral.
Todos sabem que um corpo que ahi vera caindo
peios ares nSo percorre espaços pguaes em tempos
eguaes; ao contrário, quanto mais se approxima do
çh5o, mais corre ; o movimento do corpo é então uni-
formemente accelerado, na razSo dos quadrados das
distâncias. Se Atwood applicasse a sua iogeulios»
màchina aos escriptos de Sénio, faria como Kepler,
estendendo a lei da órbita eliiptica do planeta Marte
aos outros planetas, e reconheceria na distincta intel-
ligencia do honrado escriplor uma accele ração de queda,
na razão do cubo das respectivas distâncias. A deca-
dência vai jà de foz em fora, e nao tardará que faça
ralar de inveja a antigos escriptores da rua da Úarioca,
Parecia recommendar a prudência ao preclaro ro-
mancista ( agora que se Ihedesvaneceua fama p&nica,
tí que ja vai sendo coUocado no logar que lhe compete)
algumas férias de imprensa, ou pelo menos que se accon-
selhasse com algum amigo leal que lhe desvendasse
os olhos, ou lhe corrigisse os barbarismos, nao para
reconquistara usurpada posição ja impossível, mas
para nao aggravar mais o ridículo em que como es-
cripfor tem irremsdinvelraente caído. E todavia, ou
não tem um amigo que u desiugane, ou a traiçoeira
vaidade lhe faz fechar ouvidos às admoestações des-
interessadas.
O TU nilo parece um romance, mai uma rebemdita!
.Se até hontem causava pana a successiva decadên-
cia da peuniL de Sénio, hoje produz assombro este
pereuiii? ataque no sei^o commum, revelador, ou do
gniiidc ilesprCsii com que se tracta o pilblico. ou de
mau if e,-t íi pL'<-aii'l>aríio de faculdades.
Sctíi que ó malbaratar o tempo, consaííral-o a lao
fulil occu])ai:ao, mas pouco tenho qne fazer, e quem
teiii va:;";»!', faz ci)lhére3. O tal folhetim e.-!tà indubi-
taveimi:;!!.' nlmixo da critica, porem nao descouvei
collocar um pnurol 'neste.'! pérfidos escolhos do mar d
lettras. Consagremos, pois, algumas p&ginas
inglória tarefa.
XXVII 109
E' mania doesta penna a creação. Tudo para elle
sai do berço, do nada, para só viver quando ba-
fejado por seo divino sopro. Caracol da maledicên-
cia, baba quanto o precedeu ; e assim como, na Re •
laçao do inferno, Bhadamanco sentenciava feitos,
assim chama á sua barra os clássicos, os puros, o^
escriptores, os romancistas, os jurisconsultos, os es-
tadistas, brandindo sobre todos a fera la cariccata.
Já nos proclamou que havia de insinar o que era
a poesia brazileira, a política brazileira, a jurispru-
dência brazileira ; agora diz que nos insma o que
seja o romance brazileiro. Conquistou o universal
monopólio de todas as especialidades ! . . . . Tem-se
visto d'estas aberrações : contam que o poeta Accio^
de tão acanhadas dimensões que orçava por pygmêo,
elevou, no templo das musas, a sua estátua, repre-
sentando-o gigante, e dedicou-a à Eternidade.
Nfto é possivel levar a maior evidência que tu o
tens feito, que nada ha nos romances brazileiros do
Sr Alencar que represente uma litteratura parti-
cular d'estas regiões, O pení?amento de todas as obras
de imaginação, nem têm pátria nrm parallelo ou me-
ridiano. Pode-se sentir com mais ou menos energia,
ser-sb mais ou menos impressionado pela natureza
ambiente, proceder de modo diverso segundo a edu
caç&o ou grande civilização; mas aíBgura-se-me que
o homem nao varia tanto como se aíElrma, c que o
coraç&o dos trópicos nílo tem auricsila^ nem ven-
trículos diflferentes do das regiões polares. E toda-
via,concordo em que a poesia dv^ cada zoaa possua offere-
cer matéria prima especial aos respectivos prodiictores,
incauto especial aos respectivos consuininidores. Ap-
plicando esta regra ao Brazil,è em que deverá con-
sistir a poesia local, a merecedora d(» monçAo, a
que se nfto limite a uma caric^iura i;::riobil, a que
commova, instrua o arrebate, a digna dos applausos
dos intendidos e das turbas?
Parece-me que essa especialidade tem do compor-se
de muitos element-vs:— a reli/:''irio dos incclns, com
todos seos dogmas, liíhurgiaas, bellczjK^. r.s(.s e supers-
tições— as tradições f]>lles, com suns história. , lendas
e mythos — a sua poesia nativa, com seM.s arrojos ou
singelezas, com suas harmonias ou dis 'ordànoias— os
i8eos costumes, com suas generosidades ou baixezas,
110 XXVII
dedicações ou vilanias— as suas Índoles, com as com-
petentes virtudes ou vícios, dignidade ou servilismo —
a sua nfltureza, com as peculiaridades d'ella, com os
seos pheuómenos, as suas grandezas, os seos rios*
mares, catadupas, florestas monumentaes, e o seo admi-
rável reino animal, e as infindas opulências que ia-
cerra o seio d'este magaiflco torrão. Finalmente cum-
pre applicar a observaçFio mais attenta ao estudo de
quanto a mesma natureza offerecc próprio, ingénito, e
ao de quanto a raça humana appresenta de excepcio-
nal em seo temperamento, compleição, génio, condi-
ção, tendências e história.
Quem nao se sentir com pulso para erguer tamanho
peso, nao se ostente creador, nem procure naturalizar
producçoes desvairadas, em paiz que as não conhece
nem tolera. Tudo aquillo demanda muita applicaçSo,
cultura, estudo, e não certas noçOes superfíciaes, hau-
ridas de outiva, e tão pingues e gordas que, do mesmo
modo que nas águas abetumadas do lago Âsphaltites,
tudo bóia na superfície, nada nada até o fundo.
Não ha neste romance do Sr. Alencar (ao metios no
que tenho lido) cousa que justifique a ambiciosa quali-
ficação. Characteres mal desenhados, pessimamente
sustentados, descripções sempre defectivas, diálogos
impróprios, personagens repugnantes, linguagem
muitas vezes abaixo de plebéa ( não só nas falas postas
em bocca das figuras, mas frequentemente nos dizeres
do auctor], deficiência de senso moral e de alcance do
inrêdo magro e descosido, eflFeitos mal preparados, e
perenne artifício impotente. Imagina este e^ríptor
que, por dar, aqui e acolá, os nomes de umas terras
ou cousas do Brazil, dá romance brazileiro! E' um ve-
nerando achaque do espírito,
Nilo chegou ainda o tempo de avaliarmos o romance
synthelicamente, poMue está no princípio, e não scei
de quantos volumes fde 15 páginasj virá a compor-se.
Conseguíutemente o que posso é chamar a tua attençSo
para o chorrilho de bellezas de estylo, de grammática,
de sciencia, e de vernaculidade,*^que pulíulam n*este
vasto tremedal. £' o que farei nas seguintes cartas.
Creio que o coroUário será que ao nobre mestre con-
viria retirar-se da scena para aprender primeiro o mui-
to que lhe falta, para poder insinar. Faria bem de
transportar-se para a sua soledade-çharneca, ou para a
XXVII 111
sua Thebàida. Da separação de toda a sociedade ociosa
saíram os Zoroastros, os Orphâos, os Epiménides, e
outros famosos contemplativos, que passados alguns
anãos reappareceram cheios de sciencias e virtudes.
Faria bem em epimenizar-se.
Portanto para a outra vez proseguiremos na anâlyse
mais miudinha das façanhas linguisticas do Til.
Teo sincero respeitador
ClNCINNATO.
Bil>liosr*aplxla .
Nunca será muito quanto dicer a imprensa sobre
um bom livro, maiormente sobre aquelies que se
destinarem à infância, aos cidadãos, aos mestres; aos
pães de família .futuros.
O poeta saudado em 1862 por toda a imprensa
fluminense, e em seguida pelas demais do Império,
por oScasiao de dar à estampa um volumesinho de
versoSfílenominado flohks e fructos, o mancebo a
quem, por esse tempo, a sympàthica, estudiosa e
intelligente sociedade ensaios litterabios offerecêra
uma rica penna de ouro, o talentoso e illustrado Sr.
Bruno Seabra, querendo também ser agradável e
útil aos nossos concidada isinhos, deu à luz um in-
teressante livro, que lhe dedicou, intitulado O alvorge
DA BOA-RAZÀo. Tcmos à mao um exemplar da nova
edição d'esse livro, e posto, no seo género, nenhum,
que saibamos, se avantaje no accolhimento que me-
receu, sendo, immediatainente depois de publicado,
approvado com louvor pelas Directorias de instruc-
^ão pública das províncias de Minas e da Bahia,
transcrevemos para aqui o seguinte parecer, incerto
n'uma gazeta do Maranhão, da ^mmissao composta
de três membros, nomeada expressamente para sobre
es.^c livro emittir sua opinião.
Eil-a :
<t Illm. Sr — Lemos o livrinho que, para meninos,
sob o titulo ALFORGE UA BOA-RAZAO, dcU à luZ O
Sr. Bruno Seabra, já bastante conhecido entre nos-
sos homens de lettras por suas producções poéticas
de subido q^érito, e cujo exemplar com este resti-
tui mos a V. S.
112 XXVIl
E' nossa opinião que o Alforge da boa-razÃo preen-
che bem 0 fim a que mirou seo intelligente e il-
lustrado auctor, que, em sua preciosa obra, coUi-
gindo grande cópia de preceitos com o fim de im-
primir no espirito da infância, como em branda cera,
os princípios da moral mais sa, fal-o era estylo fá-
cil e natural, dicção correcta e clara, nao menos
que em linguagem pura e de lei ; qualidades que,
amenizando-a, muito recommendam a obra do Sr.
Seabra, pondo-a ao mesmo tempo ao alcance da com-
prehensao infantil d'aquelles a quem se destina.
Inspirado pelo amor paternal, e com desvelo es-
cripto no intuito de dispor o filho para a felici-
dade, incutindo-lhe em verde princípios que, se
'nelles se embeber, necessariamente lh'a darão, e
d'elle faraó um membro utíl à Sociedade, a obra
do Sr. Seabra nao desdiz dos encómios que lhe têm
sido tributados, e merece ser admittida nas nos-
sas escholas provinciaes. Deus guarde a V. S. lUm.
Sr. Dr. Luiz António Vieira da Silva, Inspector da
Instruccao Pública do Maranhão.
Pedro de Sousa Guimarães.^
Luiz Carlos Pereira dé Ca^stro.
Trajano Cândido dos Reis. >*
Transcrevemo-la para estas páginas, crendo pres-
tar algum serviço aos pães de família, indicando-
Ihes, por nossa voz, um livro que, como bem dice
uma illustre penna portugueza, a do Sr. Dr. An-
tónio Xavier Rodrigues Cordeiro, como o Bom ho-
mem Ricardo^ de Franklin^ deve andar nas mãos de
todas as creaiif^aSy pelo insino que lhes dd^ formari'
do-lhes as almas, e pelo modo porque o expõe^ de/et-
tandO'lh'as. E tudo vHo^ e é escripto em portuguez
de lei. *
Corte, 1871.
Varrâo,
Typ. e lith. — Imparcial— Rua Sete de Setembro n. 146 A
QUESTÕES DO DIA
ISr. 28
mo DE JANEIRO,' 23 DE DEZEMBRO DE Iffn.
h^^
Vendesse «m casa- dos Srs. E. ãt H.Laemmert.— Agostinho de Freitas Qui-
naràes ãt Comp., 26, rua do General Gamara. — Livraria Académica,
Bua de S. José n. 119 — Largo do Paço n. C— Prevo 200 reis.
O !• Tolume, com perto de 400 paginas— StfOOO.
OBRAS DE J. DE ALENCAR— A IRACEMA
Cartas a Oix&olni&ato)
IV.
Meo amigo :
Para verdadeiramente dizer-te, é esta a vez que -me
sento com melhor disposição de conversar sobre a
Iracema. Quando a gente leu um livro, de que nfto
gostou «atira-o para um canto, nunca mais pega n'elle ;
as impressões passaram, e se pretende reexperimental-as
e relê a obra , é um íngano!
Isto me acconteceu com a lenda sertaneja de J. de
Alencar, e admira-me que ella me tenha já dado mar-
gem a três epistolas, das quaes algumas crescidinhas.
Nflo importa. Approveito o humor e.... conversemos.
Quando tive occasifto de ler, em livro de auctor es-
trangeiro, um benigno juízo crítico sobre a Iracêmaj
daas impressões me assaltaram — oppostas, postoque
congénitas — uma de prazer, outra de pezar.
Se o escriptor (que reputo compr|ente) se houvesse
limitado a festejar, pura e simplesmente, o illustre no-
me brazileiro, e só a isso, á fé te digo que, na qualidade
de brazileiro, que também sou, tei^me-hia exclusiva-
mente regozijado com l&o fidalgas finezas ; e, sem
descer a indagar se seriam em si justas ou se filhas de
mera vontade de fratemizar com o, por assim dizer,
Go-irmao nas lettras, nem mesmo de relance com ellas
me occuparia na presente occasifto. Sou muito cordato,
6 scei bem até onde deve ir o espirito de nacionalidade.
Mas nao succedeu assim. D*involta com as meiguices
e delicadezas, prodigalizadas a quem certamente conta
114 xxvnr
títulos a attençoes e acato, tópicos se destacam que ia •
justamente desfavorecem reputações feitas, em que a
pátria se re^ê com legitimo orguího — reputações que
j& baixaram da região dos problemas para receberem a
consagração prática do reconhecimento, do respeito e
da admiração nacional. Fora covardia nfto defender
esses numes, sacrificados em bonra de um idolo que, se
tem seo valor (o que ninguém contestp], náo está com-
tudo na altura de merecer que se lhe immolem taes
hóstias.
Leem-se, por exemplo, 'nesse livro, pedaços como
este, tractando-se de Gonçalves Dias :
a Nsio conhecendo esse poema (os Tymbiras)^ n&o
posso formar juizo sobre eile ; mas outros poemetos
indianos, publicados no volunore de versos do grande
poeta brazileiro, edição de Leipsick, auctorisam-me a
suppor que a morte ceifou Gonçalves Dias antes d^elle
ter inaugurado verdadeiramente a litteratura nacional
do Brazil, e que á Iracema do Sr. José de Alencar per-
tence a honra de ter dado o primeiro passo affoito na
selva intrincada e magnificente das velhas tradições.)»
O Sr. Pinheiro Chagas já tem dicto antes que « Qon*
çalves Dias e Magalhães sulcaram o formoso lago
d'uma poesia estranha ás regras e aos hábitos europêos,
mas como o cysne alvejante que só procura semear de
pérolas a cândida plumagem, e que receia inlodar no
vaso do fundo o collo nítido e correctamente airoso, a
aza branca e lisa, a cabeça graciosa e fina. '>
Tem dicto egualmente que « de^^de o Caramurú de
Sancta Bita Durão, o.«; poetas brazileiros têem entrevisto
a mina riquíssima, d'onde podem arrancar diamantes
litterários, tão fulgurantes como as pedras preciosas
que resplandecem por entre as areias de Tejuco, mas até
agora irenhum se ynpregou bastante 'nessa inspiração
selvática.» E conclue dizendo que « a Iracema está
destinada a lançar no Brazil as bases d*uma littera-
tura verdadeiramente nacional. »
E' desculpável, 'num escriptor estrangeiro (postoque
de talento seductor, e postoque já tenha pisado, segundo
cremos, n'estas terras brazueiras, e nos haja brindado
com a sua Virgem Guaraciaba) cair em inganos, que
bem explicam quanto ainda entre próprios irmãos está
desconhecida no seo justo valor a nossa nascente, mas>
já accentuada litteratura. Cumpre, porém, declarar
que o ingano do Sr. Pinheiro Chagas é evidente, é de-
xxvni 115
vido talvez a impressões instantâneas, deixadas por
uma perfunctória leitura da Carta com que J. de
Alencar fecha o seo livro.
Colhe-se com efFeito do dizer do Sr. P. Chagas que
os talentos, que precederam J. de Alenrnr v-y p\iiV>rt)-
çao da mina, cousa nenhuma apanUaram uu a^cuão ia-
significancias, 'nesses campos esmaltados de incantado-
rasgallas, — 'nessas selvas solemnes, regiOes immarces-
siveís da poesia mais melanchólica e mais pathética —
'nessas montanhas majestosas, e nesses valles somhrios
onde ainda se parecem ouvir echos de uma raça de
Atlantes — 'nesses rios gigantôos, que uma vegetação
descommunal horda e veste de eterno viço, de louçania
perenne.
Parece que tudo estava ainda por fazer, que a poesia
dormia na immensidade inexplorada dos ôrmos, ou que,
assim a modo de jaguar ou de ophidio venenoso se
recolhia em antros profundos, 'd'onde os antecessores de
J. de Alencar só a tinham podido exhumar completa-
mente desfigurada ou morta, ou antes onde nao haviam
penetrado. Bom é comtudo observar que alguns d'esses
primeiros exploradores, a quem tão peremptoriamente
se recusam sagradas direitos adquiridos e reconheci-
dos, tiveram, mais de uma vez, occasiao de se acharem
em immediato contacto com a natureza virgem, de
contemplal-a em pessoa, de perscrutar os seos augustos
mystérios e de receber d'ella directos influxos e inspi-
rações. Póde-se acaso dizer outro tanto de José de
Alencar, que, como é sabido, arrancou essa pretensa
poesia brazileira do fundo da sua phantasia palaciana,
6 lhe deu forma sobre a sua mesa de cortezao ¥
Se o symp&thico escriptor portuguez conhecesse me-
lhor as cousas de nossa terra; se soubesse que, ao
passo que Gonçalves Dias percorria^o Brazil do sul ao
norte, penetrou nas intranhas das tribus do Ceará, do
Maranhfto, do Pará, do Amazonas, atravessando rios
caudalosos, margens ínvias, estudando costumes e
dialectos vários, colhendo mil noticias e tradições, José
de Alencar escrevia folhetins impregnados de essências
de salões, frequentava os passatempos da corte, sonhava
louras visOes de luvas de pellica e de crinoline na rua
do Ouvidor ou no Carceller, 'numa palavra hauria a
vida puramente de cidade, de filigranas, de excitações
procuradas, de estimulantes fáceis e á mfto ; se soubesse
que, á proporção que elle ruminava, talvez entre uma
116 XXVIII
chávena de café e um delicioso havaim, sob a abóbada
caricata de um kiosoue artificial, a poesia também arti-
ficial e brunidinha aa Iracema^ Gonçalves Dias combi-
nava na sua grande imaginaçfto, á sombra de um gi-
gante da floresta, ou & mai^gem inundada de emanações
aquáticas, ou no píncaro de uma serra a topetar com a
immensidade, a poesia musculosa e farta, que se per-
cebe palpitar natural, vehemente e livre do menor ren-
cilho nas páginas immortaes do Y-juca-pirama e dos
Tymbiras ; se soubesse, finalmente qual o juízo incon-
trastavel da universalidade brazileira 'neste poncto,
certo nao teria aventurado idéas que nSo açnai^^,
porque nao podiam nem deviam achar, a menor guarida
entre nós.
Se houve já alguma obra de J. de Alencar, a cujo
respeito se nSlo demorasse a manifestar-se, sem hesita-
ção, o juízo público, está certamente em tal caso a
iracétna ; e esse juízo nao lhe foi fevoravel.
Segundo jâ tive occasiao de observar 'numa das pre-
cedentes cartas, o appareciínento da lenda sertaneja,
longe de corresponaer á espectativa suscitada pelo
Guarany^ do mesmo auctor, fêl-^ despenhar^-se na mais
amarga e rude decepç&o. Geral frieza a recebeu, e
quer-me até parecer que appreciaçffes auctorizadas lhe
recusaram os direitos, que também agora lhe contesto,
de filha da terra.
Nem era de esperar o contrário, porque a poesia bra-
zileira estava já entfto verdadeiramente inaugurada no
paiz. Nem é outra senEo a que nos deixaram esplen-
didamente insaiada Basílio da Gama e Sancta Rita
Durão, e que deve ao portentoso pineel de Gonçalves
Dias os contornos accordes, os toques magistraes, as
linhas firmes, as cores feiticeiras e primorosas com que
se arreia, 'numa piilavra as sólidas e inabaláveis bases
em que hoje a vemos definitivamente firmada. O que
J. de Alencar nos deu na sua Iracema foi uma poesia,
de sua invençfto, como de sua invenção nos tem querido
dar uma língua, uma natureza humana e uma natu-
reza inanimada ao avesso. A poesiíBL de um povo nfto
se inventa a mero arbítrio, e dizeiàos que o typo da
Iracema é de pura ficção do auctor, porque elle nJlo se
apoia nem na lettra ou espírito da história, nem nos
modelos e estudos dos mestres.
Fique sabendo o Sr. P. Chagas que no Brazil n9o se
conhece outro padr&o de litteratura indiana com foros
XXVIII 117
para interpretar fielmente o character local, senão
aq\ielle que o paiz deve ao prestimoso talento do Dias,
£sà;e typo j& recebeu o sagrado baptismo das popula-
ções e dos intendidos, e é o único destinado para
perdurar e transmíttír-se & posteridade, porque foi
bebido nas fontes autbênticas do estudo, mais conscien-
temente feito, do nosso aborígene. Pois bem : d'esse
typo é tao essencialmente diversa a Iracema, quanto a
^ua do vinho.
Explica-se o desacerto de J. de Alencar^ emprehen-
dendo contrapor à verdade a ficç&o da sua phantasia.
Ha organísaçOes que h m&xima generosidade preju-
dica primeiro do que beneficia. Guarany tinha visto
a luz, e tendo só direito a ser festejado na razão de 10,
foi-o na razão de 100. Ora, o espirito d'esse auctor nfto
é d'aquelles que as mais exaggeradas ovaçOes não des-
pojam nunca da majestosa calma da consciência, o
brilhante realce das grandes organisaçOes moraes.
Sopitada a çhamma intima, a pretenção mais desbra-
gada tomou o logar & razão e ao bom senso. O homem
reputou-se logo com suficiente auctoridade e cabedaes
para demolir o que a edade e o génio tinham custosa-
mente construido. Mas demolir^ sem ao mesmo tempo
edificar, não era decente nem plausivel. £ depois era
preciso, antes de tudo, mostrar que o novo estava muito
acima dos velhos archi tectos ; d'ahi a idéa de inaugu-
rar eschola, que transmittisse á posteridade o nome do
seo fundador. E então, bom Cincinnato ? Não podia,
como vês, ser mais modesta a aspiração. Loucura!
Nem ao menos reflectiu qssq homem que o seo Guarany
tinha principalmente agradado, porque mostrava certo
Hccõrdo com a conhecida feição histórica e tradicional
do aborígene brazilico !
J. de Alencar escreveu eutão as suas célebres cartai
:&ohre a Confederação dos Tamoyos.^k' sombra dos folhe-
tins, e principalmente do Guarani/ (que se não foi pu-
blicado antes das cartas^ o foi de certo, se bem me re-
cordo, simultaneamente comellas), fizeram carreira e,
comoé natural, visto que ninguém quiz antepor-se-lhe,
novos créditos vieram recommendar o talento do espe-
rançoso escriptor.
Suppondo este, por illusão de óptica da sua vaidade,
haver suterrado o nome, consolidado jà, do poeta Gon-
çalves de Magalhães, com que insânia presumes tu
que seria agora tentado ? Presta attençfio !
118 XXVIIf
Barreira ingente interrompia o tõo àquellas j& des-
comedidas aud&cias. Essa oarreira era o nome pres-
tigioso do Dias — o pae nunca assaz prancteado da poe-
sia brazileira, como Cullen Bryant, Waldo Emerson
e Henry Longfellow o haviam sido da poesia da Amé-
rica do Norte*- do Dias, que conquista elogios <x nfio
incommendados » de A. Herculano, e que Wolff ap-
plaude.
Pois bem, meo amigo. Não ha respeito, nao ha con-
sideração, que o detenha. Eil-o que se arroja contra o
colosso formado, gõtta a gôtta, e dia a dia — stalactite
inaccessivel e sublime do génio, consolidado no con-
ceito de mais de uma naç&o ; somente o assalto é diri-
gido com mais gcito, estratégia e arte : em vez de
simples critica offerece uma obra com todas as seduc-
çOes da novidade; em logar de modos desabridos, prin-
cipia dizendo que « Gonçalves Dias é o poeta nacional
por excellência, e ninguém lhe disputa o conhecimento
da natureza brazileira e dos costumes selvagens » ape-
zar de concluir, declarando que « entretanto os selva-
gens do seo poema f os Tymbiras ) falam uma lingua-
gem clássica e exprimem idéas próprias do homem ci-
vilizado, e que n&o é verosimil tivessem no estado da
natureza. » Ora dize-me : que poeta nacional por ex-
cellência é esse; que conhecimento da natureza brazi-
leira e dos costumes selvagens pôde fazer crer que tem
aquelle que faz dos seos selvagens n&o só homens ci-
vilizados, mas até falando linguagem clássica ? Nao
se vê que a proposição inicial só teve por fím illudir a
agrura, sem diminuir-lhe a intensidade, da proposiç&o
final ? Que o pomo contém verme corrosivo, e a flor
veneno mortífero ? Opportunamente tocaremos *ne8se
presumido classismo e civilização dos selvagens dos
Tymbiras. ^
Em resumo : eis ani duas importantes auctoridades,
duas grandes columnas do nosso modesto templo de
lettra», victimas do c^^martello do verdadeiro icono-
clasta dos nossos primeiros numes. Ah ! n&o s&o so-
mente estes dous sustentáculos, que padecem golpes
de destruiç&o cruel : J. de Alencar tem o descõco de
dizer, mediante aquelle seo eslylo insidioso, que appa-
renta o melhor desinteresse e cordura, mas em reali-
dade perigoso e malfazejo, que das « producçoes que
se publicavam sobre o thema indígena, nenhuma reo-
lizava a poesia nacional^ tal como lhe apparecia no es-
XXVIII 119
tudo da vida selvagem dos autochthones brazileiros ;
que muitos peccavam pelo abuso dos termos indígenas
accumulados uns sobre outros (havemos de ver se elle
nSo caiu ^neste abuso ], o que não só quebrava a har-
monia da lingua portugueza (quem defende a língua!)
como perturbava a intelligência do texto ; que outras
eram primorosas no estylo e ricas de bellas imagens,
r)rém certa rudez ingénua de pensamento e expressão
e H, Iracema satisfez estas condições?^ que devia ser a
linguagem dos indígenas, nao se incontrava alli. »
Logo, meo amigo, a aggressao não se circumscreveu a
Gonçalves Dias e a Gonçalves de Magalhães : Porto
Alegre, Basílio da Gama, Fr. Sancta Rita e todos
ouautos (passados e modernos) tinham escripto sobre o
thema iudígena, a todos esses se dirigem os projectís
d'aquella màchina de arremesso, forjada pela mais
descommunal philáucia litter&ria de que haja noticia
entre nós.
Chegámos emfim a este extremo : antes de J. de
Alencar, ninguém! O bello nacional estava ainda in-
colhido no õvo, e o ôvo escondido, como em ninho
enorme, dentro do regaço opaco da natureza.
Os mais beneméritos e qualificados ingenhos tinham
até então doudejado por fora da colmeia immensa, e
nada de atinar com a intrada e extrahir algumas gõttas
de mel virgem. O próprio Sr. Pinheiro Chagas diz
que haviam sulcado o lago « como o cysne alvejante,
que só procura semear de pérolas a cândida plumagem,
6 que receia inlodar na vasa do fundo o collo nítido. »
Moderno Colombo, J. de Alencar, depois do seo mer-
gulho nas intranhas dormentes e até então impene-
tradas do desconhecido, assoma á superfície, mostran--
do-nos um mundo, ou uma maravilha. As pàllidas
sombras dos nossos avós são evocadas aos túmulos das
edades pelo boato, pela divulgarão do milagre ; e re-
surgem infiadas de vergonha as illustres figuras dos
nossos primeiros épicos,que a inquietitude do ciúme im-
Selle, como trémulas páginas de névuas para o logar
a exhibição.
O que é que vedes, vultos venerandos ? A exemplo
daa miragens do deserto, o sonho dissipou-se e esvae-
ceu-se. Ah I foi tudo de certo um sonho, ou um delírio
de louca phantasia. Perdoae a profanação, que foi
imprudentemente despertar-vos dos vossos jazigos secu-
120 XXVIII
lares. Foi tudo uma farça, e eterno perd&o tos peço
para quem a desempenhou.
Que novo portento de estatuária nos offerecia J. de
Alencar, em substituição ás columnas camartelladas,
mas nao alluidas do templo? Vê bem, meo amigo. O
<c mergulhador de Schiller » tinha-nos trazido, nto
Sérolas ou coraes raros, mas justamente a vasa inloda-
õra do fundo, que G. Dias, Magalhães, Porto Alegre e
outros tiveram a fidalguia de nSLo levantar para nos
pouparem um triste presente. O que se vô na Iracema
e uma composiç&o infezada e anémica, posto que con-
gesta de serosidades e flatulências, para que n&o have-
ria remédio, a n&o ser a morte. É na verdade tfto
depressa nasceu como depressa morreu. A tentativa
abortou. O õvo estava goro. Nao fosse elle posto por
« aquelle applaudido talento » e já d'elle n&o restaria
nem mais a dilacerada casca.
O escriptor portuguez, referindo-se á Iracema^ ao-
code .
u Pela primeira vez apparecem os índios falando a
sua linguagem colorida e ardente ; pela primeira vez
se imprime fundamente o cunho nacional ^num livro
brazileiro ; pela primeira vez sao descriptos os selva-
gens com aquelles toques delicados, que dao realce tao
vivo aos typos do romancista da América do Norte. »
Nao, peço vénia, nao !
Pela primeira vez apparecem os índios falando uma
linguagem banzeira e esmorecida ; pela primeira vez
sao descriptos os selvagens com toques, com tinctas da
affectaçao mais visível , mas tmctas lyinphdticas,
quando o selvagem é simples e singelo na sua majt^a-
tosa grandeza.
Falta-lhes o colorido próprio, expressivo, interes-
sante. O que aquella linguagem tem, sfto demasias de
arte. Debaixo da agglomeraçao fastidiosa de compara-
ções, as mais das vSses fora de villa e termo, e que
haviam de ter custado bom trabalho ao próprio auctor,
a natureza subverteu-se como 'num abysmo. A palli-
dez visivelmente se mostra atravéz das cores postiças,
fugaces e precárias.
O que me parece que se devia achar na Iracáma^
para que se podesse dizer que 'nella estava funda-
mente impresso o cunho nacional, era ruído de grandes
embates, repercuss&o de magnânimas acçOes e geotile*
zas, tanto no amor como em tudo.
XXVIII 131
Quizéramos ver ahí o character do índio, primando
na heroicidade e no valor tradicional.
Quizéramos se nos deparassem scenas pathéticas, e
nao episódios grutêscos e abaixo do nivel de uma raça
que qualidades verdadeiramente superiores tornaram
legendária.
Quizéramos ver travar-se a paixão com força ingente,
o sentimento (principal motor da acção] rasgar situa-
ções grandiosas, surprendentes e dramáticas ; mas só
ach&ioas iutcecho.^ triviaes e insignificantes, perfeitas
bagatellas, que admira como tennam preoccupado um
instante a phantasia de um espirito elevado.
Quizéramos que o modo de expressar essas luctas,
essas energias profundas, esses thesouros insondáveis
de affectos e de smisaçOes bárbaras, fosse impetuoso e
arrogante, correspondendo ás ousadias intimas, e tra-
duzindo cabalmente as expansões abruptas. Mais uma
vez o diremos : J. de Alencar nao tem pulso para es-
crever a epopéa.
A linguagem dos gigantes das selvas primitivas é
qual se fora a de degenerados pygmêos — pállida e fria,
gem alentos, nem vibraç&o.
O amor da indía ó um amor çhorao, enervado,
piegas. A sua compleição physiológica tem alguma
cousa de inane, que repugna á organisação desabro-
chada em pleno trópico, recebendo fluidos de todas as
abundantes fontes damaissuberba natureza do mundo.
Se quiz modelar a Iracema pela Ato/a, errou em claro:
os sentimentos modestos, por assim dizer impalpáveis,
d'esta última s&o d&vidos á influencia poderosa do
christianismo, e por tanto diversissimos no character
e até no seo ser bravio, ardendo perenncmente em todas
as çhammas brutaes da natureza.
Passando do amor ás batalhas,, sancto Deus ! Aqui
o desmoronamento do génio indiglna é completo, des-
perta compaixão.
O guerreiro é poltrão e moUe. Está ausente a inves-
tida eloquente do animo, que tanto o recommenda e
particulariza sempre que pOe em contribuição o seo
brio e as suas glórias.
Hei de mostrar bem ao vivo o que agora apenas de-
nuncio.
£ 'neste gosto tudo vai. Que amostra de poema épico
é estai!
122 XXVIII
O Sr. Pinheiro Chagas ha de afinal convir comigo
em que, apezar do seo extenso olhar critico» andou
errado.
Pois é pena: faço o mais vantajoso conceito do seo-
elegante talento.
Mil desculpas por hoje.
E até amanha.
Teo sempre com todas as veras
á/e^<Uu..
1/ CARTA DE PLAUTO A CINCINNATO
Rio, 20 de Dezembro.
Caro amigo.
Em resposta á tua última carta, em que me per-
guntas o que ha de novo pelos theatros da cõrce, res-
pondo com esta, que terá apenas o merecimento... de
te nao roubar muito tempo.
Intrãmos no tempo das comédias-mègicas.Shakspeare
pede a demissão — Molière retira-se à vida íntima !....
Vêem substituil-os nas suas funcçoes Perrault e M"*
D' Aulnoyl...
Os emprezários convenceram-se, — e, quanto a mira,
nao se inganam, — de que só os contos da carochinha
lhes podiam d&r contos de réis ! . . .
A tragédia, o drama, a comédia de costames e de
typos, retiram-se da scena cabisbaixos, mettendo a
viola no saccol... O palco povôa-se de sylphos' fadas e
ondinas !... de cyclopes, demónios e feiticeiras !.. .
Triumpha o alçapão e o tam-tam I Reina o ouropel
e o fogo azul I.. — De^apparecem os tyrannos que tri
umpham no quarto^acto com a justiça dos hcyfnens^ e,
no quinto, levam para o seo tabaco com e^ justiça de
Deus ! — Somem-se os pães nobres de cabelleira neva-
da, os galans que recitam ao piano, os artistas de mào
calqada^ e os generaes de bigode d* algodão que pa*
decem de gôtta e contam historias massadoras.- O pú-
blico, farto de boas idéas e bom estylo, tem cançado o
bicho do ouvido, e quer gozar pela vista, — e a rampa,
ha tempos a esta parle, tomou a deliberação de não
illuminar nenhum facto que valha menos de quatro
centos mil réis ! . . .
XXVIll 123
E' por isto que a PheniX' dramática põe em acena a
Princ0zaF/^HÍe-mato, com grande satisfaççao dos es-
pectadores e das algibeiras do emprezário. A peça tem
tido inçhentes successivas, e ha até quem se tenba
arriscado a uma gymnástica perigosa para ver do alto
da varanda das galerias, o demóoio que devora gente,
e o dragão, devoto de Baccho, que se embriaga na
fonte.
Nada, porem, d'isto teve comparação com o successo
que alcançou a Pêra de SatanaZj que viu a luz da
rampa no theatro de S. Luiz, e que j& começou a série
de representações que promettem ser intermináveis, se
o gosto do público permanecer como t&o estrepitosa»
mente se manifestou.
Esta nova mágica, meo caro amigo, não é uma peça,
— é um mundo I... Senta-se um homem pacificamente
na sua cadeira da platéa,e transporta-se em duas horas
a todos os paizes conhecidos... e a muitos em que
nunca ouviu falar, — o que aug^menta consideravel-
mente os incautos da viagem... eé sobremodo ins-
tructivol...
Ck)mprehendendo a missão do theatro, e junctando
ao útil o agradável, quer a empreza, divertindo o pú-
blico, alargar-lhe a esphera dos seos conhecimentos!..
Afim de n&o alongar esta carta, peço licença, meo
caro amigo, para sacudir as considerações philosóphi-
cas que n'este momento me accodem aos bicos da pen-
na ; e — seguindo no empenho de apreciar a peça, —
aqui te subscripto e estampilho as impressões que ella
me deixou.
Principiemos pelo principio.
Eis o inrêdo da comédia :
Era uma vez uma princeza muito linda, filha de um
rei muito poderoso -^
E d'ahi, para que heide coatar-te o inrêdo?...
Seria, a meo ver, roubar- te a surpreza da representa-
ção, a que tu, meo amigo, como homem de bom gosto,
n&o deixarás por certo de assistir.
Nfto devo, comtudo, t-^rminar esta carta, sem te dizer
que a peça está opulentamente preparada, e com mais
esplenaor do que em Lisboa.
Adereços, vestuário, machinismo, mise-en-srkne^ —
tudo é digno de ver-se.
124 xxvin
A música ,.composiç&o original de Furtado Coelho, di
á peça um realce admirável, e incerra trechos delicio-
sos, que de certo hao de toruar-se populares.
Quanto ao scen&rio, direi apenas que é simples*
mente admirável, — e que o Sr. Rocha, scenógrapho do
theatro de S. Luiz, é decididamente um dos mais hábeis
artistas que tenho visto. Tem a peça dezoito ou vinte
quadros, e entre elles, são dignos de louvor, principal-
mente—a apotheose, o reino d&s campainhas, a ilha da
harmonia, o palácio das cartas, a casa do pintor, os
jardins do imperador da China — Perdfto. A lista
vai um tanto longa. — Emendemos : — Sfto dignos de
louvor principalmente, .... todos os quadros que a peça
tem ! . . .
Por via de regra,em producçoes doesta natureza,só se
procura satisfazer completamente os olhos. Esta sai do
ramrão. J& te dice que nao meãos a agradecem os
ouvidos, pois prima por mimosa e appropriada a mú*
8ica de Furtado Coelho, o qual toda a compôs e instru*
mentou, sendo também este múltiplo talento que regeu
a orchestra, j& com o piano e j& com a batuta, ao
mesmo tempo que dividia a attençao por outros porme-
nores da represe atacSLo, do scenário e do movimento.
Accresce por último outro mérito raríssimo em taes
producções : A peça de Ed. Garrido (o qual veia cx*
Sressamente de Po/tugal para a pôr em scena) é cheia
e chiste e graça desambiciosa e natural. As situações,
os trocadilhos, os gracejos, tudo é tao conchegado, tao
nosso de lei, que do principio ao fim, a peça se sustenta,
Srovocando a hilaridade legitima, aquella que nasce
a jovialidade innocente, e n&o do reprehensivel sacri-
fício das conveniências.
Se a Pêra de Satanaz deu em Portugal mais de 200
representações com inçhentes, quantas nao dará no
Rio de Janeiro, ondAiao é menos bem representada, e
está |)0:>ta em «^cena com tamanho esplendor! NSo
haverá quem deixe de acudir ao feliz theatrinho,
quando for possível achar legares.
Até cedo.
Teo dedicado,
Plauto.
XXVni 125
MONUMENTO A BOCAGE
Tendo melhorado o tempo, e parecendo consolidado
o terreno s6bre que vai erguer-se o monumento, re-
solven-se collocar a pedra fundamental, e a Câmara
Mnnicinal e a commiss&o filial, de Setúbal, resolve-
ram proceder a essa formalidade com pompa. ^Neste
sentido, o digno Presidente d'aquellas corporações di-
rigiu ao Sr. Visconde de Castilho um officio, onde
se Ha o seguinte :
« Sciente de quanto V. me diz na sua carta de
15 do corrente ( é resposta a outra anterior ) tenho
a responder que na próxima sexta-feira, 24, irei pro-
curar V. em sua casa para o fim a que na dieta carta
se refere
Approveito esta occasiao para declarar a V., que
na ausência da commissao que digna e illustradameute
snperintende na Aireeçao áos prep&rutivos e festejos i^
lativos ao monumento dedicado ao exímio poeta Bo-
cage, resolveram a Câmara Municipal e Commissâo
filial d'esta cidade fazer a cerimonia da coUocaçao da
primeira pedra sobre o alicerce do dito monumento
com modesta mas decente formalidade, na seguinte
quarta-feira, 22 do referido mez, pelas duas horas da
tarde, resolução que peço a V. leve no conhecimento
e submetta & esclarecida appreciaçSo da Exma. Com-
missao d*essa capital etc. >»
Ck>m eflfeito, tomadas as devidas providencias, rea-
lizou-se a cerimonia no dia 22 de novembro, às 2 horas
da tarde, 'coUocando-se sob a pedra um coflf^e açha-
roado, contendo outro de zinco, onde se incerraram:
1.^ um exemplar em pergaminho do jornal SeUdfolense^
doesse dia, 2.^ o auto, também em pergaminho, assig-
nado pela C&mara, pela Commis^o filial, e mais pes-
soas gradas, 3.* moedas de prata e ouro, cunhadas
no anno corrente.
Em toda a praça emtorno fluctuavam flsmmulas ra-
riegadas, mas por sobre todas tremulavaim, próximas
uma da outra, e sem logar de precedência, as ban-
deiras |)ortttgueza e brazileira. No ecto da collocação
da pedra subiram ao ar numerosas girftndolas de fo^
gnetes, e tocaram bandas de musica, tudo coberto
pelos vivas e gritos da immenga multidão, apinhada
na praça, deficiente, apezar da sua grandeza, para
conter tamanho concurso de povo. Foi jà uma bri-
3
126 XXVUI
Ihante solemnidade, que fa-^, antever o que será a
do dia da inauguração.
O suberbo retrato de Bocage, a óleo, e de ta-
manho T^atural, tirado no Rio de Janeiro, pelo ar*
tista MoreaUy do único retracto fidedigno, que é o
ue tirou Henrique José da Silva, no último anno
a vida de Bocage, retrato que é hoje propriedade
do Exm. Sr. Dr. Joaquim José Teixeira, açha-se
já col locado em logar de honra no vasto sal&o do
Paço da Câmara da cidade do Sado ; ficando as-
sim também satisfeita essa resolução que a com-
missão central no Rio de Janeiro commetteu aos
seus dous membros, incumbidos de levar a tarefa
ao cabo.
Tinha sido composto para a festividade um gran-
de hymno, e dous outros foram remettidos de Se-
túbal. No dia 24 vciu o Sr. Dr. Manito a Lisboa
6 com os Srs. Castilhoc e diversos membros da com-
missao Ulyssiponeuse, assistiu no quartel do Carmo
i execução do hymno pela excellente banda de
música da guarda municipal, hymno que ha de ser
executado pela músicd do 2 de infantaria, e yâ-
rias philarmónicas, e que já está impresso para
piano.
Ficavam-se preparando tribunas para a inaugu-
ração, que eflFectivamente parece dever ser hoje, 21
de dezembro. Preparavam-se em Lisboa conducçOes
extraordinárias, e no Barreiro comboios para trans-
portar os visitantes.
Reina em Setúbal grande enthusiasmo, por verem
assim satisfeita esta aspiração, e paga esta .divida
ao primoroso poeta, com que o Sado se honra. A
cidade toda já está em gala : os prédios renovados,
pintados ou caiados, derrubados os casebres aue
desfeavam a praça e suas immediaçOes, coUocaaos
elegantes bancos na praça, similhantes aos que
adornam o Passeio Público de Lisboa.
Dentro em pouco teremos definitivas informações,
mas desde já se pôde asseverar que, a despeito de
contratempos, pôde considerar-se realizada a decido
tomada pelos cavalheiros que em 15 de septembro
de 1865 celebraram no Club Fluminense o jubilêo
do grande poeta portuguez Manoel Maria Barbosa
4u Bocage.
XXVIII 127
F^óx^ma deGovêz^no.
Nas mouarchias absolutas em geral, a mudança d^
uma situação depende da vida do monarcba, que
tanto laais velho quanto mais afferrado é às suas
opiniões. Ser preciso commetter um crime, de que
a hii»tória nos appresenta tantos exemplos, ou e^t&o
esperar por sapatos de defuncto, nao sao cousas agra-
dáveis. Demais, 'nessa espécie de governo, os saltos
são tao grandes que ha muito risco de cair e que-
brar as pernas. De um rei velho, atrazado meio sé-
culo ou mais, o sceptro passa para um moço, que
muitas vezes quer ir adeante do seo tempo. Talvez
se as vidas de Luiz XIV e Luiz XV nao tivessem
sido tao longas, Liiiz XVI nao tivesse ido ao ca-
dafalso.
Nas repúblicas, as grandes questões resolvem-se a
pólvora e baila, no campo da batalha. E' o juízo
de Deus. (Sou muito religioso, mas accredito pouco
na justiça de taes juízos).
Nas monarchias representativas ou parlamentares,
uma quest&o custa mais ou menos palavras, mais
ou menos papel. Os homens sobem e descem como
alcatruzes de nora ; as situações sSlo mudadas com
mais frequência do que conviria á causa pública:
prefiro essa versatilidade â immobilidade. As opi-
niões contrárias, ou apenas diversas, v&o apparecendo
à luz, mixturando-se e confundindo-se de maneira,
que perdendo todas as asperezas, a final se conver-
tem em uma só. E' a história de todos os parla-
mentos.
Otton.
O podex* pesiJoal.
Houve tempo, em que as pobres amas se viam
obrigadas a custosas despezas de imaginação para
conterem os meninos travessos. Phantasmas, lubisho-
*mens, bruçhas, almas do outro mundo, era ahi uma
multidão de cousas, cujos nomes formariam longo
catálogo.
O mundo marchou : tudo isso se reuniu ; e da com-
binação chimica de todos, resultou um novo ente :
um biçharõco! Eu bem o queria descrever.... mas creio
4ue nunca o hei de poaêr conseguir, porque sem
128 XXVIII
o ver, nao pôde ser.... e se elle chegar ao pé de
mim.... fecho os olhos por tal modo, que me ha de
custar a abril-os outra vez.
Çhama-se.... até tenho medo de o dizer : chama*
se PODER PESSOAL. Safa ! Que nome ! Olhem que
só o nome basta para assustar. O poder pessoal f
Agora sim: não ha mais creança manhosa.
O poder pessoal! Como o Sr. Alencar fala muito
'nelle, ainda lhe hei de pedir que nos diga como
elle é.... se é que S. Ex. alguma vez o viu, por-
ue, segundo as suas próprias confissões, muitas vezes
'e virou as costas e fugiu espavorido.
Mas que a cousa foi bem achada, foi. Quando ha
or ahi tanta gente, que quer acab.ir com o podar
o diabo, era preciso crear alguma cousa para pôr
no seo lugar. O poder pessoal é a mais bella in-
venção da humanidade! Otton,
5
Se ruim é quem em ruim conta se tem, que juízo
poderemos nós fazer de uma república, que se ven-
de por dous vinténs, dando ainda de quebra um fo-
lhetim de Nesio ? Otton.
PROBLEMA.
Discute-se nos melhores círculos d'esta capital uma
Juestaò da maior transcendência, e de cuja soluçSo
epende a felicidade do género humano: questão
muito mais importante do que aquella da differenca
entre o jota e o i romano, de que se occupava a
mestre do bom Tolentino. Tracta-se de saber se é o
Nesw^ que com o folhetim quer fazer passar a Re*
pública, se é a República que pertende fazer acceí-
tar o Nésio. Que dous I !
O Sr. Alencar f^da a viver a República ; será
S. Ex. republicano ? Elle diz que n&o, e S. Ex.
n&o é capaz de mentir. O Sr. Alencar é um ho*
mem grandemente charitativo; exerce à lettra os pre-
ceitos do Evangelho : soccorre e auxilia os seos
inimigos. S. Ex. prepara-se para a vida, que em
sua fé julga, que ha de vir : censural-o porque as-
sim cauteloso vai arranjando o seo fardel para um
dia gozar da bemaventurança, é a maior das injustiças.
Otton/
Typ. elith. ^Imparcial— Rua Sete de Setembro n. 146 A.
QUESTÕES DO DIA
n: 39
RIO DE JANEIBO, 28 DE DEZEMBRO DE 1871.
WeÊáD na tm cau dos Srs. E. & HJUemvert—AgcMtfiilio de Freitas Gui-
■Mrtes & Comp., 26, rua do Goieral Gamara.— Livraria Académica,
Bus de 8. José n. 119— Largo do* Paço n. C— Preço 200 reis*
O !• voluBie, coB perto de 400 paginas— 3(000.
OBRAS DE J. DE ALENCAR — IRACEMA.
Omrtas a Oinoianato»
V
Meo charo amigo :
Chegou a dilaç&o das provas e n&o a perco ; é entre-
tanto ao Sr. Pinheiro Chagas que me estou dirigindo,
porque tu já sabes de tudo isto.
Vou dar-me ao trabalho, insano por certo, de co-
piar ipsis verbis um capitulo integral da Iracèmay em
qae se descreve um combate de Índios.
Hartim, Poty e Iracema vao sendo perseguidos
pelos guerreiros tabajáras. E a propósito de Martim :
diz J. de Alencar, na página 9o, que vendo esse
heroe « os verdes mares e as alvas praias, onde as
ondas murmurosas ás vezes soluçam e outras raivam
de fúria, rebentando em frocos de espuma ( o que
quererá elle dizer? ) seo peito suspirou, porque esse
mar beijava também as brancas areias do Potengi,
MO berço natal, onde elle vira a luz americana. » E
mais adeante, na página 180, em%ota : « Potengi—
rio que rega a ciaade do Natal, d*onde era niho
Soares Moreno. »
Tenho minhas dúvidas, com o devido respeito.
Southey, Lisboa, Constâncio, Pompéo e outros nSò
dixem que Martim Soares Mdreno fosse natural do
Bio Grande do Norte. Pelo contrário, alguns até
deelaram que Martim era pairmte do sargento mór
Diogo de Campos Moreno ( português ), o que de'
algum modo faz presumir que Maftim pertencia á
130
mesma nacionalidade. O general A. e Lima, cuja
auctoridade nao se pôde com boas razões contestar,
diz positivamente na sua Synopsts^ a p&gina 70, que
Diogo de Menezes « contentou-se com mviar ao Ceará
um official portuguez, Martim Soares Moreno, que
tinha accompanhado a Pedro Coelho, etc. »
Ssio taes e tantos os testimunhos auctorizados
'neste sentido, que nao será fácil recusar-lhes fé.
Chego um momento, quando vejo contrariado pelo
Sr. Alencar o facto, a suppor que este Sr., dispondo
d'amplos recursos, e açhando-se 'numa corte, onde ha
um Instituto Histórico e uma rica Bibliotheca Nacio-
nal, bebe todas estas novidades em fontes abundantes
e satisfactórias, de que o pobre bisonho provinciano
nao pôde nem de teve provar. Mas occorre-me logo
a anecdota da invenção do verbo afflar e de outros
vocábulos ; da etymologia dos nomes das diversas
localidades do Ceará, que vem aliás no diccionário do
Dr. Martins, e outras galantes graçolas d'esta ordem,
e sou levado a crer que o Sr. Alencar na Iracema é
o mesmo Sr. Alencar da Diva^ do Gaúcho^ da Pata da
Gazella^ etc. Então digo comigo, a sós, depois de
fundo cogitar :
— ^ Só se o Alencar ( assim se diz na auaencia )
açliou isto, ou achou aquilFoutro nas chrónicas incó-
guitas, onde também achou a sua poesia banzeira, os
seos selvagens mandriões, etc. Sendo assim estou
calado.
Mas nao. E' que J. de Alencar nao quer fazer só-
mente uma nova língua, uma nova natureza, uma
nova poesia : quer fazer também uma nova história.
E se o homem diz que inventou o que está claro e
velho nos lexicógraphos, que mais é que dê a Martim
uma pátria a seo geito, quando a história nao é tAo
positiva n'este pon*o quanto fora para desejar ? Temos,
pois, este grande serviço mais a agradecer ao Sr. Alen-
car : o ir explicando e completando por serdes vós quem
sois a história pátria, no que ella tiver de duvidoso ou
pouco preciso. Faz muito oem. E quem fôr homem de
sangue no olho que lhe vá ao incontro. Metta-se
'nisso I
Desculpa a digressão, e volta comigo ao campo
dos tabajáras ; já nao é o dos tabajáras, mas sim o dos
pytiguáras. Havemos de dizer algumas palavrínhai^
XXIX 131
sobre a etymologia que dà o Sr. Alencar a esta nação
de índios. Fica para logo.
Vai travar-se a pugna gigantéa, tremenda entre
duas tremendas e gigantéas hordas inimigas. Pre-
para-te para assistires a uma epopáa dig-na de Atlan-
tes. Attençao I
« Treme a selva com o estampido da carreira do povo
tabajàra.
« O grande Irapuam,* primeiro, assoma entre as
árvores. Seo olhar rúbido viu o guerreiro branco entre
nuvem de sangue ; o grito rouco do tigre rompe de seo
peito cavernobo. (Este tigre é da família : também
timbra em novidades ; até hontem dizia-se que o tigre
bramava ; mas cá este grita I).
« O chefe tabajàra e seo povo, iam precipitar (pôde
deixar de dizer-se: precipítar-se? aqui o verbo preci-
pitar é verbo activo? onde está o paciente? é verbo
reflexo) sobre os fugitivos como a vaga incapellada
que arrebenta no Mocoripe. (Como a vaga só?).
a Eis late o cão selvagem.
tt Poty solta o grito da alegria: /'faz como o tigre).
— O cao de Poty guia os guerreiros de sua taba em
soccorro teo.
<x O rouco búzio (dous roucos t&o junctos 'numa obra
de gôsío e artística l) dos pytiguàras estruge pela flo-
resta. O grande Jacaúna, senhor das praias do mar,
checava do rio das garças com seos melhores guer-
reiros.
« Os pytiguàras recebem o primeiro ímpeto enne-
migo (com este ennemigo depois nos entreteremos) nas
Sentas erriçadas de suas flechas, que elles despedem
o arco aos molhos, como o coandú (fábula I) os espi-
nhos do seo corpo. Logo após sõa a pocêma, estreita-se
o espaço, e a lucta se trava face a faom. »
Quando vejo esses pytiguàras despedindo do arco
flechas aos molhos^ como o coandú os espinhos do seo
corpo, lembro-me do trecho de um crítico appre-
ciando o Washingtorij de Robert Payne, auctor norte-
americano. Bobert Payne também dá a pomposa qua-
lificação de epopèa ruicional á sua obra, que elle foi
levado a compor, despeitado por Channing haver dicto
que os Estados Unidos nao possuíam uma litteratura
nacional. « Robert Payne — diz o crítico —representa
Washington de pé, repellindo com o peito os trovOes a
192 XXIX
empunhando a espada núi^^a modo de conductor eléc-
trico, para dirigir o raio para o oceano, onde vai apa-
gpar-se. Èãte lieróe p&ra-i-aio ê a obra-príma da poesia-
m&china. » Assim também esses heróes-coandú^ P^^
oem-me o nec plus ultra da poesia-mondriice. Conti-
nuemos.
a Jacaúna atacou Irapuam. Prosegue o horrivel
combate que bastara a dez bravos, e nfto esgotou ainda
a {6rça dos grandes chefes. Quando os dons tacapes ae
ineontram, a batalha toda estremece, como um só g^er*
reiro, até as intranhas.
« O irmão de Iracema veiu direito ao estranedro*
que arrancara a filha de Âraken á cabana hospedeira ;
o faro da vingança o guia ; a vista da irmft assanha a
raiva eni' seo peito. O guerreiro Cauby assalta com
furor o ènnemigo. d
Ent&o f J& sèi que estás tremendo de medo da tama-
nha peleja. Â cousa est& mesmo f^ijpí. Mas emfim cora-
gem, bum Cincinnato, que haveinós de contar da festa
sem o mínimo arranhão.
Iracema, unida ao flanco do seo guerreiro e esposo,
vim de longe Cauby e falou assim :
« — Senhor de Iracema^ ouve o rogo da tua escrava;
n&o derrama (II) o sangue do filho de Araken.Se o guer-
reiro Cauby tem de morrer, morra elle por esta mfto,
nfto pela tua.
(c Martim pôs no rosto da selvagem olhos de horror :
<c — Iracema matará seo irm&o ?
(( — Iracema antes quer que o sangue de Cauby
tinja sua mfto que a tua ; porque os olnos de IraoAiaa
vêem a ti, e a elle nfto. (É' uma razfto, como qualquer
outra).
« Travam a lucta os guerreiros,^ Cauby combate
com furor ; o «hristfto delende-se apenas ; mas a setta
embebida no arco da esposa guarda a vida do guerreiro
contra os botes do ennemiço.
« Poty já prostrou o vdho Andirae quantoa guer-
reiros topou na lucta seo válido tacape. Hariim lhe
abandona o filho de Araken, e corre s6bre Irapuam.
«(—Jacaúna é um grande chefe; seo collar de guerra
dá três voltas ao peito. O tabajára pertence ao guer-
reiro branco.
€ — A vingança é a honra do guerreiro, e Jacaúna
ama o amigo de Poty.
133
« O grande chefe pytigaara levou além o formidável
tac&pe* O combate renhíu-se eatre Irapuam e Martim.
A espada do christao, batendo na clava do selvagem,
fesHse em pedaços. O chefe tabajàra avançou contra o
peito inerme do advers&rio.
« Iracema silvou como a boicininga (pois a mulher
silvou ?1 ), e se arremessou ante a fúria do guerreiro
tabajàra. A arma rígida tremeu na dextra possante
do chefe e o braço caiu-lhe desfallecido .
<c Soava a pocâma da victória. Os guerreiros pyti-
guàras, conduzidos por Jacaúna e Poty, varriam a flo-
resta. Os tabajàras, fugindo, arrebataram seo ç lefe ao
ódio da filha de Araken que o podia abater, como a
jandaia abate o prócero coqueiro roendo-lhe o cerne.
(Onde foi que o Sr. Alencar viu isso ?]
« Os olhos de Iracema estendidos pela floresta, viram
o çhao juncado de cadáveres de seos irmãos ; e longe o
bando dos guerreiros tabajàras que fugia em nuvem
negra de pó. Aquelle sangue que inrubecia a terra era
o mesmo sangue brioso que lhe ardia as faces de ver-
gonha
« O prancto orvalhou seo lindo semblante.
tt Martim affastou-se para n&o iavergonhar a tris-
teza de Iracema. Deixou que sua dõr nua se banhasse
nas l&grymas. » ( Uma dor nua a banhar-se em lá-
gTjmBs I )
Acabou-se a batalha, e o capitulo, e, como vês, sftos
e salvos ficámos ; ainda bem.
Ora, eis ahi ao que se pôde mesmo chamar um mo*
dêlo de descripçfto de combates de índios. E um modelo
devia mesmo ser um combate entre chefes taes como
Irapuam (Md Redondo )j Jacaúna, eo Camai^o ; reco-
nheces aoui o grande, o insigne Camz&rao ?
Muito levianos, senão mais que isso, eram esses his-
toriadores da conquista. Chegarem ^ dizer que « estes
americanofiLSSLo tao incarniçados nas suas guerras,que,
emquanto podem meçher com pernas e braços n&o re-
cuami nem dao as costas, combatem incessantemente,
e isto ó 'nelles a cousa mais natural.» Quall histórias
da carochinha. Esses supra mencionados guerreiros,
até 08 mais afamados, n&o passai am de guerreiros
coandús. E a prova está 'nesse mesmo Irapuam, tSo
illustre na história pela sua braveza e perseverança^
que principiou aqui vendo tudo côr de sangtke^ e deu
costas como sendeiro. Tabajáras de uma - figa, co-
134 XXK
vardes tabajâras ! De que vos servia serdes — o povo
SENHOR ? Poty, Jacaúna, Iracema e Martim, isto é^
três homens e uma mulher vos puzeram a trote, a
ver estrellas ao meio dia. Verdade é dizer-nos o
auctor que Jacaúna viera com seos melhores guer-
reiros. Mas também não se presume que Irapuam
viesse com os peiores. E depois que melhores eram
esses, dos quaes um nome se não dice?
Contraponhamos agora a esl» descri pçao, feita por
quem desceu ao fundo do lago e foi ter « ás flores
maravilhosas que desabrocham nas cavernas de co-
ral » aos recifes de madrepérola que expandem na-
carados reflexos sob a transparência das águas » a
descripçao de quem nao passou da superflcie « re-
ceiando inlodar o coUo nitido, e a aza branca e lisa,
a cabeça graciosa e fina » e vejamos quem na ver-
dade se imodou na vasa, quem extrahiu as pérolas
e os coraes. E' Gonçalves Dias que vai pintar uma
lucta entre dous guerreiros (nenhum dos quaes de
valor histórico). Attençao.
Travaram lucta fera os doiís guerreiros.
Primeiro ambos de longe as settas vibram.
Amigos manitõs, que ambos protegem,
nos ares as de.^jarram. Do Gamella
introu a fréçha trémula 'num tronco
e só parou no cerne ; a do Tymbira,
ciciando veloz, fugiu mais longe,
roçando apenas os frondosos cimos ;
incontram-se os tacapes, lá se partem ;
ambos, o punho inútil rejeitando,
•6treitam*se valentes, braço a braço.
Alentando açodados, peito a peito,
revolvem fundo a terra aos pés, e ao longe
rouqueja o peito arfado um som confuso, d
Tudo aqui é natural, meo amigo. A lucta vai-se des-
invoivendo gradualmente. Principiam os guerreiros
despedindo as frechas ; depois brandem os tacapes,
porque aquellas foram desgarradas pelos manitõs (ma-
gistral applicaçfto da tradição ou da crença selvagem) ;
e finalmente, partindo-se estas últimas armas, estrêi-
tam-se, conçhegam-se corpo a corpo, e rugem no agi-
gantado esforço, e revolvem a terra com os pés. Pa-
rece-nos estar vendo a pugna de dous só, mas mi-
rífica. Prosigo.
135
Scena vistosa ! quadro appat-atoso !
Guerreiros velhos, à victória affeitos,
tamanhos campeões vendo na arena,
e a lucta horrível, e o combate accêso,
mudos quedaram de terror tranzidos.
Qual d'aquelles heróes ha-de primeiro
sentir o egrégio esforço abandonai -o ?
perguntam ; mas não ha quem lhes responda.
Sao ambos fortes : o Tymbira hardido,
esbelto como o tronco da palmeira,
flexível como a frecha bem talhada,
ostenta-se robusto o rei das selvas ; -
seo corpo musculoso, immenso e forte,
é como rocha enorme, que desaba
de serra altiva, e cai no valle inteira ;
nao vale humana força desprendel-a
d'alli, onde ella está ; fugaz corisco
bate-lhe a calva fronte sem partil-a.
Separam-se os guerreiros um do outro',
foi d'um o pensamento... a acção foi d'ambos.
Ambos arquejam : descoberto o peito
arfa e estua, eleva-se e comprime-se,
e o ar em ondas sôffregos respiram.
Cada qual, mais pasmado que medroso,
se estranha a força que no outro incontra,
a mal cuidada resis encia o irrita.
— (( itajubal Itajubal os seos exclamam.
Guerreiro, tal como elle, se descora
um só momento, é dar-se por vencido »
O filho de Jaguar voltou-se rápido.
D'onde essa voz partiu ? quem n'o aguilhõa ?
Raiva de tigre annuviou lhe o rosto,
e os olhos cõr de sangue irady pulam.
a — A tua vida a minha glória insulta!/] —
grita ao rival — e já de mais viveste. »
Dice, e como o condor, descendo a prumo
dos astros, sobre o Ihama descuidoso,
pávido o prende nas torcidas garras,
e sobe audaz onde não chega o raio
võa Itajuba sobre o rei das selvas,
cinge-o nos braços, contra si o aperta
com força incrível, o colosso verga,
1^
M.iê
inclina-se, desaba, cai de chofre,
e o pó levanta e atroa forte os echos.
Assim cai na floresta um tronco annoso,
e o som da queda se propaga ao longe/
O fero vencedor, um pé alçando,
« Morre I •— lhe brada — e o nome teo comtigo !»
O pé desceu, batendo a arca do peito
do exânime vencido : os olhos turvos
levou, a extrema vez, o desditoso
&quelles céos de azul, áquellas mattas,
dõce-cobertas de verdura e flores !
Depois, erguendo o esqu&lido cadáver
sobre a cabeça, horrivelmente bello,
aos seos o mostra insanguentado e torpe .
Então por vezes três o horrendo grito
do triumpho soltou ; e os seos três vezes
o mesmo grito em choro repetiram.
Aquella massa emfím voa nos ares ;
porem na dextra do feliz guerreiro
dividem«se entre os dedos as melenas,
de cujo crftneo marejava o sangue ! »
Ora, diga-me sinceramente o Sr. P. Chagas, com o
cavalheirismo que o distingue : em qual doestas duas
descripçoes está fundamente impresso o cunho nacío*
nal — na de J. de Alencar, ou na de G. Dias ! Acha
o illustre critico portuguez que uma pugna sangrenta,
de vida e morte, entre gigantes da floresta, inimigos
sanhudos e feros, como se presume que seriam Irapu-
am e Poty, ou Mel-Redondo e Camar&o, havia de
correr d'ess*arte pl&cida e desinxabida, e sobretudo
teria aquelle desinlace mesquinho e ridículo ¥ Atten-
da-se mais ; que & precedente inimizade entre ambos
accrescôra a recent^uga de Iracema, devida a Mar-
tim, de Iracema, que a turbara osomno do primeiro
guerreiro tabaj ar a » que o fizera descer (c do seo ni-
nho de águia para seguir na v&rzeaa garça do rio»
( Vid a pag. 26. ;
Mas diz-nos o Sr. P. Chagas que <c n&o conhecend o
os Tymbiras (d'onde fizemos o extracto supra), nfto pôde
formar juizo sobre elle; mas outros poemetos indianos,
publicados no volume de versos do grande poeta bn^
zileiro (edição de Leipsick) auctorisam-n'o a suppor
que a morte ceifou Gonçalves Dias antes d*elle ter
XXIX 137
inau^rado verdadeiramente a litteratura nacional do
Brazil. )»
Pois nSo seja esta a dúvida ; temos tanto as Obras
Pósthumas do grande poeta, como os seos Cantos (edi-
ç&o de Leipsick), como suas Poesias (edição novíssima
de Paris, do Sr. Gramier, precedida da biographia do
auctor pelo Sr. cónego Fernandes Pinheiro. )
Abro o volume dos Cantos^s, mesma ediçfio que tem o
Sr. Pinheiro Chagas, e incontro na página 155 outra
descripção de um combate de índios. £' na poesia
intitulada Tabyra.
Eis que os arcos de longe se incurvam ;
eis que as settas aladas jé voam ;
eis que os ares se cobrem, se turvam,
de fréçh&dos, de surdos que s&o.
novos gritos mais altos reboam,
entre as hostes se apaga o terreno,
j& tornado apoucado e pequeno,
j& coberto de mortos o chão !
Mas Tabyra ! Tabyra I que é d'elle t
onde agora se esconde o pujante ?
Nào n'o vedes ? ! Tabyra é aquelle
que. sangrento, impiedoso, lá vai I
Vél-o-heis andar oeojpreadeante,
larga esteira de mortos deixando
traz de si, como o raio cortando
ramos, troncos do bosque onde cai.
« Tem um olho de um tiro frechado I
« Quebra as settas que os passos lhe impedem,
<c e do rosto, em sco sangue lavado,
« frecha e olho arrebata sem^ó !
<c e aos imigo'^, que o campo não cedem
« olho e frecha mostrando extorquidos,
« diz, em voz que mais eram rugidos :
« — Basta, vis, por vencer-vos um só ! »
Pois estas três strophes nao valem, falando sincera-
mente, cem vezes mais que o capítulo inteiro do Sr.
Alencar t
Ao ler^se este episódio do Tabyra, arrancando o
4)lho com a fréçha que o cravara, e que parecerá,
138 XXIX
talvez, exaggerado, como em caso análogo se tem
dicto de Lucf-no, íembro-me de uma história que
nos conta Âudubou, muito em harmonia com aquelle
episódio.
« Defronte de mim, diz o naturalista americano,
estava um índio, com os cotovellos incostados aos
joelhos, e a cabeça ás mãos. Segundo o uso dos in-
dígenas da América, nao se moveu ao çhegar-se-lhe
o homem civilizado.
« Os viajantes nao tem deixado de interpretar como
indício de priguiça, de estupidez, de apathia, esse
silencio nascido do mais altivo orgulho.
« Via-se, incostado á parede, um grande arco, mui-
tas frechas e pássaros mortos espalhados pelo çhao.
O índio nao se meçhia; nem parecia respirar. Di-
rigi-lhe a palavra em francez, idioma de que a mór
parte dos índios d'esses logares sabe ao menos alguns
termos. Levantou a cabeça, mostrando-me com o dedo
um dos olhos saídos da órbita, e o sangue correndo
sobte o rosto; depois, com o outro que lhe restava lan-
çou em mim um olhar singularmente significativo.
« Depois soube eu que, havendo-se a fréçha do seu
arco quebrado no momento em que a chorda estava
tesa, um dos pedaços da arma partida resurtira contra
o olho do índio e 'nelle se cravara.
« Soffria calado. A despeito da viva dor, conser-
vava imperturbada a dignidade altiva. Era bem feito,
ágil, bem disposto; physionomia intell igen te e cân-
dida.
« Adm irei esse valor do selvagem , stóico do deserto,
e stóico sem vaidade. »
Como se vê, G. Dias e Audubon estão accordes ;
quem se separa e fica só, é o Sr. Alencar.
Conhece-se 'neste trecho o índio. Ha notável firmeza
e verdade no finaMo mestre, que viu o original das
estampas que desenha, e nao tem a vaidade de pintar
figuras de sua exclusiva concepção. Bápidos contor-
nos e cores ligeiras destacam o desenho, a que só falta
o movimento da vida. Nem uma dVssas linhas ou
tinctas provoca a menor contestação.
Mas, voltando ao assumpto: o que é que vemos
no capítulo do Sr. Alencar, com o cunho nacional
fundamente impresso ? A bair ininga ( á similhança
da qual silva Iracema ), o tigre (que grita^ ) o coandú,.
etc.
XXIX 139
Mas nos versos do Dias vemos o condor, o Ihama,
também o tigre, etc. Dirão : o condor e o Ihamá
nao sao propriamente do Brazil. Responderei : também
o tigre e o coandú nao sao exclusivamente d'este
paiz — o primeiro incontra-se na Guyanna e Surinam,
e o segtindo na Guyanna e no México. Logo
Estou fatigado em extremo. Continuarei,
Teo do coração
Semprónio
A Xieox*saiilzao3o do t]?a1>aUio
A classe operária e a tndàstria no Brazit. Necessidade da
rehabílitação e melhor organização do trabalho. Con-
siderações sobre o meio de realizar esta grande e gene-
rosa aspiração da sociedade brazUeira,
I
O Brazil acaba de passar por uma profunda e radical
modificação. O dia 28 de septembro de 1871 é o génesis
de sua regeneração social. A lei que indirectamente
aboliu a escravidão no Império é a segunda memorável
épocha de sua bistória. Nova ordem de cousas nasce
d'esse grande accontecimento. Triumpbo esplêndido e
incruento da civilização, foi elle a aurora do progresso
6 da regeneração para este povo, fadado pela Provi-
dencia a sustentar, em futuro n&o muito remoto, a
balança do equilíbrio entre as naçOes da América do
Sul. A terra que da cruz bavia tomado o nome, nOo
Sodia tolerar que 'nella se perpetuasse a escravid&o —
esmentido formal do Evangelbo que professa, contra-
dicçfto viva com as doctrinas libérrimas que prega e
executa — anacbronismo inexplicável e absurdo no sé-
culo de luz em que vivemos
Este importante facto, preparado de ba muito surda
e lentamente, e nos dous últimos ^nos, precipitado pelo
impulso irruptor da civilização, era previsto de longa
data pelos publicistas mais notáveis da Europa, que^
fazendo justiça ao cbaracter brazileiro, viam, como diz
Victor Hugo:
.. .comme une mer sur son ri vage
Monter d' étage en étage
L' irrésistible libené.
Já em 1868 o distincto economista Miguel Cbevalier
escrevia « O vasto Império do Brazil prepara visivel-
mente a grande transformação social. »
140
Sem abalo sensivel, sem a gigantéa e sanguinoleiíta
lucta de que foi theatro a república dos Estado»-
Unidos, conseguimos converter em lei do Estado uma
providencia que, ainda mesmo nao secundada por
outras que mais tarde lhe servirão de complemento,
traria dentro de alguns annos a extincçlo completa da
escravidão no Império.
Abolido no futuro, e no presente diminuido conside-
ravelmente este elemento da populaç&o, que na sua
maioria ou quasi totalidade era o instrumento principal
e quasi exclusivo de producç&o entfo nós, ficam suW
tancialmente alteradas, no que diz respeito ao trabalho,
as relações sociaes. Se se n&o cuidar seriamente em
substituir de prompto, e do modo mais pppropriado e
vantajoso possível, os braços que têm necessariamente
de escacear á lavoura, em consequência da alforria dos
ncLscUuros^ ou da geraç&o que vier ao mundo depois
da lei de 28 de septembro a'este anuo, o paiz passará
por uma crise; suas fontes de producç&o, dimmuindo
em r&pido decrescimento, influirão sôbrt a receita pú-
blica, que hoje tao próspera avulta.
a O grau de potência productiva a que chegou a
indústria moderna ( diz um escriptor contemporâneo )
Sela intervenç&o conjuncta, e crescentemente activa,
a sciéncia e do capital, fez vencer obst&culos, que
outr'ora seriam reputados insuperáveis. Foi assim que
se resolveram proolemas que interessavam á política
geral e á boa ordem do género humano. »
Para comprovar essa verdade tomaremos, como
Dareau um exemplo da história de nossos dias, tanto
mais a propósito, quanto é applicavel a uma situação
similhante &quella em que se acha actualmente o
Brazil.
A escravidão nas co^nias foi abolida pela Inglaterra
em 1833 e pela França em 1848. 'Nessas regí0e8,a8sim
ouasi despovoadas de braços, os proprietários do solo
ncaram em difficil posição. Os escravos alforriados reca-
saram*se tenazmente a trabalhar nos ingenhos de
assucar, que lhes lembravam uma história de dolorosos
padecimentos, em que elleb e as gerações que os haviam
precedido tinham sido as victimas. Residindo em miee*
raveis cabanas « que com as próprias m&os levantavam,
viviam do producto da pesca ou de alflfuns legumes
que lhes davam, ouasi independente de cultÍTO, oa
141
férteis torrões em que lançavam a semente. Poucos d'en-
tre 08 melhores d'esses libertos se prestavam, mediante
salários exaggerados,a ajudar os cultivadores na plan-
taç&o e preparo da canna e dos outros géneros de sua
lavoura.
Com desposas extraordinárias foram para esse fim
importados da índia e da ÇUna os célebres Coolis. Foi
nesta mesma occasiSo que o assucar de beterraba,
preparado por excellentes processos na Europa,
ameaçou destruir, pela mais terrível das concurrtacias,
a indústria sacchanna das colónias.
Mas a concurrência é sempre a mola real da perfeiç&o
na indústria. Foi ella que salvou as colónias aa immi-
nente catástrophe. Eis o como :
As mácbmas e instrumentos aperfeiçoados, que ser-
viam no velho mundo para fabrico do assacar de beter-
raba, foram introduzidas nas ilhas prodnctõras do
assucar de canna. 'Nessas fábricas, dotadas de excel-
lentes apparelhos mechftnicos, os colonos nada mais
tinham que fazer senão depositar a matéria prima ( a
canna ) no mesmo estado bruto em que a colhiam^
sem necessidade de preparai-^ como antigamente. Os
cultivadores davam-Ihes em pagamento de seo tra-
balho um rendimento correspondente a 5 V«i pouco
mais ou menos,do assucar.
Foi por esta forma que a alliança bem combinada
da sciencia e do capital impediram que a emancipai
çfto dos escravos nas colónias inglezas e íranceaas
produzisse os funestos resultados que reduziram a
república do Haiti, outr^ora t&o florescente e rica de
futuro, a um theatro insanguentado, a um horrivel de-
serto, em Que a barbaria assentou seo throno, àes-
truindo pelo assassinato, pelo incêndio e pela de-
vastaçftO) os grandes capitães que a indústria, habil-
mente favoneadd, alli accumulá^.
Imitem o louvável exemplo a'aquelle6 sábios e in-
telligentes capitalistas, que salvaram com sua indús-
tria» servida por t&o admiráveis máchinas, a gran-
deia e riqueza das mencionadas colónias. Dentro de
7 annos ( e nfto é longo o prazo para nreparar o
terreno ) devem começar a tomar-se palpáveis os
effeitoa da lei de 28 de septombro de 1871. Éstenda-se
o manto da protecç&o do governo sobre a nossa in-
dústria manutactureira e fabril, que apenas • começa
a insaiar os titubaates passos n*um terreno ouriçado
142 XXiX
de tropeços. Para isso çhame-se a immigraçao. O
colono se fixará úo Império, se o ligardes ao solo pelo
amor da propriedade ; se, pela abertura de estradas,
que unam o littoral aos centros productores, lhe pro-
porcionardes meios de dar valor a essa propriedade;
se pela lei do casamento civil lhe não creardes emr
baraços à família ; se por uma sábia e previdente
legislação, e por magistrados justos e intelligentes,
lhe assegurardes os seos direitos, o gozo de suas
prerogativas, a fácil execução dos contractos que
celebrar com o governo ou com os particulares.
Urge também, e mais que tudo, que providencieis
sõb.re o futuro da nova geraç&o de homens livres,
nascidos depois da promulgação da lei que aboliu o
infando principio — parias sequUur ventrem.
S&o estes os futuros operários de nossas fábricas,
os manufactureiros que hao de auxiliar poderosamente
o desinvolvimento da nascente indústria brazileira.
Degradados até agora, physica e moralmente, pelas
algemas do captiveiro, os negros n&o podiam con-
currer efficaz e intelligentemente para augmentar a
força productiva do paiz. O trabalho escravo, im-
perfeito, infecundo, e sem character de espontaneidade,
resentia-se da influência do azorrague, da amiaça e do
constrangimento. Educados agora na eschola da li-
berdade, tendo a intelligencia desinvolvida pelas lic-
çOes do pedagogo e do párocho, tereis 'nesses ho-
mens, não meras máchinas de trabalho forçado, não
cegos instrumentos obedientes ao nuto do feitor, não
meios materiaes de producção que não entes, que more
peciidi*m,vao,como outros tantos carneiros de Panúrgio,
seguindo caminho por onde os leva o maioral do rebanho
— e sim intelligencias que voluntariamente se pOem a
serviço de nobres idéas, almas capazes de comprehen-
der os grandes e ganerosos sentimentos, que se unem
com suas irmans para levar seo contingente de suor
e de esforço profícuo para a obra eterna da civili-
zação, para a realização do destino final do género
humano.
E' com apóstolos de uma nova cruzada que de-
vem os homens eminentes do Bi*azil olhar para os
filhos das escravas, nascidos depois da lei emancipa-
dôra. Na obra social que se vai inaugurar, repre-
sentam aquelles obreiros papel importantíssimo. São
elementos autochthonos que muito de proveito hão de
XXIX 143
âer á geraç&o contemporânea e á que lhe vai succeder ;
se nao forem, como é de mister, devidamente apprecia-
dos e approveitadoSy converter-^e-h&o em armas des-
truidoras,que será preciso inutilizar» em obstáculos ao
progresso, que cumprirá remover.
Tremenda será a responsabilidade dos estadistas
brazileiros, se deixarem que esta semente de bene-
fícios e prosperidade, degenere,por falta de solo appro-
priado em que germine, ou por carência de cultivo,
em nocivo joio ou esterilisadôra parasita. Nao se
deixem os grandes homens que dotaram o Brazil
de tao abençoado presente, nao se deixem adormecer
sob os louros, que ainda lhes verdejam nas frontes.
O gabinete de um ministro nao é tenda de repouso,
e sim laboratório de febril actividade, onde se agi-
tam incessantemente as questões capitães que têm
de decidir da sorte de uma nação. O homem pri-
vado pôde descançar no conchego do lar e dissipar
suas horas de ócio sub tegmine fagi^ mas para os que
têm a mao no leme da náu do Estado, um momento
de incúria ou de negligência constituo grave falta,
crime imperdoável, quiçá, que os arrisca a terem a
mesma sorte que o Palinnro, de que fala o poeta
Mantuano. A sombra da faia pôde ser para os Es-
tadistas tao perigosa e fatal como a da manceni-
Iheira.
Alerta pois. Revolvei-vos , Srs., no leito de Pro-
oruste, que nao é outra cousa a cadeira curul da su-
prema administração ; o martyrio, que soffreis. para
servir, a p átria, valer-vos-ha a coroa immarcessivel
dos beneméritos.
No próximo número começaremos a desinvolver
a nossa these, applicando-a especialmente ao estado
actual do Brazil, e á geração que ha de constituir a
nossa futura classe operária. pompeo
IMPRENSA PERIÓDICA DA CORTE
a OoiTJreio do iDruzil »
'Nestes últimos tempos, tem-se notado um conside'
ravel desinvolvimento na imprensa periódica dVsta
corte. Várias folhas antigas e importantes têm ainda
melhorado a su a redacção, e outras novas, mui dignas
de menç>lo, têm visto a luz pública. Na denominada
imprensa barata, appareceram lidadores de valente
144 XXIX
palflo, e até na impressa de grande» dimenoeu se toi^
nou dislineto o progresso.
F6ra injustiça esquecer os grau dessenriços prestados
pelo Jornal do Commértio^ folha yaliosissima, que
tem sabido sempre sustentar-se na altura em que o seo
prudente programma a coUooou. Extranha ú vicissi-
tudes partidárias, têm sempre 'as suascolumnas eetado
francas a todas as opiniões, a todos os debates, a todos
os interesses' honestos,, a todos os legitimoir direitos.
Vastos recursos tém sempre habilitado essa empresa
para prestar serviços reaes & política,ao commércio, ao
tráfego social.
Saudemos porem o apparecimento de mais um bri-
lhante orgam e guia da opinifio. O Correio do BrczU^
jornal de módico preço e grande formato, recem^crea»
do por uma companhia especial, acaba de inaugurar
seos trabalhos com distincçao excepcional. Bedigido
por uma de nossas mais elegantes pennas, coadjuvado
por outras nao menos respeitáveis e por correspon-
dentes adestrados nas lides da imprensa, animaao e
protegido por avultado número de conspícuos cidadllos,
organizado com todos os elementos desejáveis para a
prosperidade e duraçSo de empresas taes, tudo &z
esperar que o novo pharol da civilização cumpra o seo
honroso destino.
Com quanto ainda no berço, ja esta auspiciosa
folha se vai distinguindo por diversas condições jor-
nalísticas, e sobretudo p or úteis e meditbdos artigos
de redacção. Parece que o Co^^eio quer timbrar em
considerar-se hóspede na politiquinha dos corrilhos,
mas militante na grande politica em que se estriba o
futuro e o verdadeiro progresso das naçGes: o estudo
das grandes questões, de applicaçSo prática, e que
prendem com a instrucçao alta, média e popular ; a
scieucia ; o commércio ; a indústria ; as artes ; o me-
lhoramento do homem pela sociedade e da sociedade
pelo homem ; o approveitamento de todas as riquezas
' intellectuaes e materiaes, doadas pelo Creador.
Formando votos por que o strénuo campefto cor-
responda sempre ás fundadas esperanças que já fe?
conceber, fiámos que 'nelle achará a cau^a do pro-
gresso, ligado á ordem, um dos mais firmes sustentá-
culos.
Tjp. e lith.— Imparcial>*Rua Sete de Setembro n. 146 Â.
QUESTÕES DO DIA
N.^SO
RIO DE JANEIRO, IODE JANEIRO DE 1871.
V eode-se em casa dos Srs E. & H.Laemmeil.— Agostinho de Freitas Gui
aoarârs & Ccmp., 16, rua do General Camará. — Livraria Académica,
Rua de S. José n. 119— Largo de Paço n. C.— Preço 200 reis.
O 1» volume, com 20 números e peito de 400 paginas— 3^000.
OITAVA CARTA DE CINCINNATO A SEMPRONIO.
Rio, 29 de dezembro de 1871.
Respeitável amigo.
Nosso Sr. te dê muito boas festas na alma e no corpo,
glória, paz de espírito e prebendas largas. Se nada
d'isto te constitue felicidade^ consulta Varro, p qual
desinvolve 288 opiniões sobre o verdadeiro constitutivo
d'ella ; e a que mais te approuver para estréa de novo
anno, essa te desejo.
Tenho lido com inexcedível interesse as tuas óptimas
cartas, relativas â Iracema, Pena é que tao magistral
dicção, tamanha competência, tao intelligente critica,
se nao applique a mais dignos assumptos : 6 estudo dos
escriptores de boa nota, a appreciaçao de seos defeitos
e suas bellezas, está invocando, em proveito daslettras,
a tua attenção : e affigura-se-me que uma brilhante pá-
gina te será reservada na nossa história crítica. Por ahi,
o uso é deprimir vagamente e sem anályse a obra do
auctor antipàthico ; ou também passar calandra sobre o
panno mais bruto para lustral-o,< applicar ao livro
mais pífio certos termos encomiásticos e bombá.vticos,
taes como : estupendo primor ; esmalte de eloquência e
l)elleza ; au^re de perfeiçno ; fecho de abóbada litterária:
fion plvs ultra da sapiência ; cinta, capitel e coroa da
columna das lettras
Ora, toda esta algaravia, esta cascalheira, o que
significa é o dialecto do elogio mútuo, ou uma bajulação
torpe, ou uma ignorância philauciosa com que vãos sons
perteadem incobrir deficiência de ideas e incompetência
Ae julgamento.
146 XXX
Por isso, quando as palavras de um crítico, honesto
e intelligente, allegam e provam, dissecam e paten-
teiam, argumentam e julgam, estudam e insinam, para
logo se tornam convincentes e auctorizadas, e a sua
sentença é confirmada pelo Supremo Tribunal de Jus-
tiça da Opinião, Taes sao os triumphos reservados a
pennas como a tua.
A minha canoa ahi vai singrando na alheta da tua
nau. Onde eu atiro um piparote, disparas tu o teo ca-
nhão Krupp. Vamos continuando este divertimento
pyrotéchnico, e abramos novamente o Til.
Já aguentei a leitura do que o auctor chama 1*. vo-
lume, em 15 folhetinsinhos. Para indigestão, já ba»-
ta, e direi mal aos meos peccados, quando tiver de ia-
reptar o denominado 2.°
E' isto um acervo de erros e defeitos,que nem por des-
cuido resgata o bruxulear de uma sombra de belleza.
O inrôdo é chato. O diálogo desnaturai, impróprio,
forçado. As imagens sao uma incrível profusão de dis-
parates. A grammática mais elementar geme a cada
linha. Os characteres dos personagens sao todos repel-
lentes, mal trajados e peor traçados. Aqui os velhos
sao creanças, e as creanças sao velhos. Descobre-se a
cada momento o inaudito tractear da imaginação para
gemer sem produzir senão monstros, como seio exhaus-
to que, ao ser sorvido, só deita sangue. A linguagem
compOe-se de uns archaismos inhabilmente extrahidos
de elucidários, e de gallicismos de palmatória, tudo cal-
deado com uns neologismos que se nao comparam com
cousa alguma senão com a eschola senial, na qual dSo
Ka senão um mestre e um discípulo... que é elle mesmo.
A invocação a símiles, das sciencias, nao faz senão re-
velar permanentemente e mais fundamental imperícia
em todas ellas.
De quanto precAe, e de muito mais, fácil fora dar
provas aos cachos. O auctor terá lá uns méritos quaoe*
quer ; é de crer ; mas da língua em que escreve, do
instrumento que toca, nem a escala conhece : e perten-
der alturas épicas quem carece de conhecimentos radi*
mentares, é o mesmo que aspirar a tocar variações de
Thalberg em tambor ou berimbau, O perfeito manu-
sear de um idioma é tao indispensável condição, para
quem affronta a luz pública, que nos diz o mestre:
Em Bumma, sem a lingua» o mais divino auctor»
laça elle o q^e fizer, é péssimo escriptor.
XXX 147
Que será, quando á ignorância da língua se une a
incoherencia das idéas, e o perenne insulto ao senso
commum ? 1
Esta nossa tarefa ha muito se podéra dar por íiiida,
se se tractasse somente da penna analysada ; mas a es-
chola do m&o gosto, e do absurdo ataviado com o nome
(loi modernice, vai indo de foz em fora, e importa que se
ponha dique a um proselytismo stulto e, com capa de
progressista, tremendamente retrógrado. Se ficarem ce-
gos, sejam só os da peor espécie : os que se obstinam
em n5o querer ver.
Admiremos agora as bellezas do romance, dado por
modelo do género. Tinha eu um de dous systemas para
seguir : ou dar as amostras de egual natureza colhidas
em todo o volume, ou il-o successivamente lendo e anno-
tando algumas. Prefiro o segundo expediente, despre-
gando aliás 08 nove décimos das perfeições que doeste
opulento erário puUulam.
O capítulo 1®. do livro começa assim:
« — Eram dous : elle e ella. »
Ja se vê que se toma indispensável travar conheci-
mento com a ella^ e com o elle.
Vamos a vér quem era a ella^ e copiemos para isso a
de.scripçao dos seos movimentos.
Ella, « buliçosa, saltita ; scintilla do prazer de
pular e currer ; voluteia ; deita a currer ; de uma cur-
rida alcança a tronqueira ; sobe de salto pelas travessas;
balança-se com prazer infantil ; ia aos saltos ; saltou
da tronqueira ; alcançou de uma currida ; os pulos que
dava etc. etc. )>
O leitor cuida naturalmente que entra em scena uma
cabrita ; engano d'alma ledo e cego : é uma raparigota,
uma trapalhonasinha muito despresivel, muito mal
oreada, protogonista muito das do gosto do illustre escri*
ptor, pois vai parecendo irmã gécflea de outra heroina
do Gaúcho^ e de outras mais.
A descripção da cabrita é magistral, e com quanto
muito miudinha, sempre interessante, como de costume.
Admiremos estes pormenores eminentemente poéticos .
Eu farei a pergunta, e o ])obre romancista, ipsis verbis^
me dará a resposta.
— PERGUNTA : — Como vai ella de saúde ? —
Muito boa, muito obrigado, a O viço da saúde rebentch-
jhe no incarnado » Podia ser symptoma de congestSo
48 XXX
cerebral, mas nao é ; isso fica reservado para outras
figuras.
— PERGUNTA : — Como tem ella a cara ? — Mais
avelludada que a assucena escarlate recem-aheria ALLI
com os orvalhos da noite. » Estes orvalhos da noite
abrindo assucenas escarlates representam.... analogica-
mente.... representam.... para a outra edição saberemos;
mas o sôbredourado de todos estes descobrimentos, e
que tem um sentido mirífico, é o recem-aberto alli.
— PERGUNTA : — Gomo sao os olhos? — « Límpidos t
brilhantes^ e olhar scintillante, e que retalha^ com o
gume » Mas tudo isto é nada. Queres saber que mais ?
Escuta :
<( Os grandes olhos^ NEGROS, CLAROS e serenos^
como um LAGO CRYSTALLINO IMMERSO NA SOM-
BRA, tinham a DIAPHANA PROFUNDIDADE DO
CÉO, cheia de inUvos e mystérios. »
Assumpto de profunda meditação! meditem e lucrarão.
Temos 1®* uns olhos que são negros e ao mesmo tempo
claros, com privilégio de macha-temea; 2^*. olhares que
sao serenos e retalham com o gume; 3°. lagos crystal-
linos que quando se immergem na sombra ficam serenos^
como os olhos da cabrita ; 4°. olhos negros com profun-
didade diáphana comparável nada menos que com a do
cerúleo céo; 5°. profundidade do céo, cheia de iulêvos.
Admirável ! Em menos palavras, ninguém diz mais
cousas. E' um pào por um olho.
~ PERGUNTA : — Como é o nariz ? — Caret,
— PERGUNTA : — E a bôcca ? — « Mimosa e breve,
conhecia-ee que fora vasada no molde da bejo e do snrriso »
Eu aqui tinha 17 cousas que dizer, mas nao digo nada,
que é melhor ; e passo de largo.
— PERGUNTA : — Como é o surriso?— O seo surriso é
com os lábios! o que nos evita grandes perplexidades de
interpretação :« Noji^esco surriso dos Idiios » Um surriso
dos lábios é ja bem bom, mas um suitíso fresco, muito
melhor; e em todo o caso, é appropriado, porque ja nos
vai insinando que a história nade ser fresca, e que
fresca é a bregeirinha... (Perdão, que a palavra é do livro;
logo veremos ) Lê-se 'noutra parte que ella « se banha
em um suí^^iso de canduras l Percebes ?
Note-se mais que a subjeita leva a vida a rir ; ainda
que lhe digam : O' menina, muito riso pouco .siso, faz
ouvidos de mercador, e vai rinchando para deante.
XXX 149
— PERGUNTA: — A voz ? — « Parecia raiiger-lhe nos
lábios » O leitor faz idea? Pois então tenho-lhe inveja.
— PERGUNTA: — E os cabellos? — « Negros cacheados
( como sao ? sao espigados ? ) longoi^, que lhe estavam
mettendo figas, e zombando das suas pertenções a
rapaz! »
— PERGUNTA : — E o vestuário ? — <c Jaqueta de
flanella escarlate^ mangas compridas, desabotoada sobre
utn camisote /iso, collarinhos largos rebatidos sobre os
honibros como os dos meninos da eschola. Saia de çhita
fMreita, »
— PERGUNTA :— E o toucado ?— <( Çhapeo de palha
fie coco íronçnda »
— PERGUNTA : — Eo calçado?— a Cothurnos gros-
SOS de couro de veado tão altos que pareciayn botas.
— PERGUNTA:— Altura?— (( Pequeuji e e
também de pequena cstaturan
— PERGUNTA : — A cinctura ? — Como em francez se
chama a isso la taille^ muito favor lhe faz o nosso
neólogo em masculinizar o vocábulo. Nós temos talhe^
para significar estatura, feição geral do corpo ; mas
as obras de Sánio insinam-nos que elle naturalizou em
portuguez a cinctura dos francezes.
Ora pois : era « tão delgada e flexível no talhe^ que
dobravorse como o junco da varze » Conheces esta varzc ?
tíu lambem nno ; o caso é que se dobrava como junco,
seja lá d'ondp for ; mas acaso para essa flexibilidade
será indispensável enorme delgadeza ?
C mtinuemos com a descripçílo erótica: n As forma
da graciosa pubescencia, que um corpinho justo debu-
çhara etn doce e palpitante relevo y^ Entre pubescencia
e puberdade ha cartas differencinhas, que não s!Io para
aqui, c lirnito-me a dizer que é preciáft mais cautela no
emprôgo dos vocábulos, quando se entra a dar cabeça-
das ptíUis sciencias cm que se é hóspede, e a que se
ousa ir podir símiles. Quanto a todo o resto, sim
senhor ; está traçado pittorescamente com a penna de
Parnv.
— PERGUNTA — Manhas e dotes physicos ? — « Li-
g-eira, buliçosa, gárrula, scintillante, esbelta, gracioso
vulto, movimíMitos p.ítulantes, mãos pequeninas, ore-
lhas com conchinhas, espanejando-se ! ! >j
150 XXX
« Imprimia certa nerxmra a seos movimentos » Isto
vem em tigella ou em garrafa ? Nervura de movimentos !
As scíenciab naturaes, por culpa da cabrita, andam em
polvorosa : danos a physiologia pupillas injectadas»
a entomologia chrys&lidas d'argilla, a anatomia formas
de pubescencia, a botânica nervuras de movimentos, e
outras bellezas mais. Nervuras eram em portugnez os
filamentos que sobresaem nas folhas ou pétalas das
plantas : teremos de ora avante movimentos movi-
mentos filamentosos, impressos pelas cabritas.
— PERGUNTA— Os modos e índole d'ella?— Agor»
o verás : Tinha « affoutezas de um traquinas ! viva-
cidade de faceira (que termo ridicvio) ! capetinha de mil
peccados I olhardes bregeiros ! tregeitos garotos de um cai-
pirinha I »
« Arrostou a sanha de um assassino cujo senho incu-
tia pavor )) Elegante : matrimoniemos esta carranca
com aquelle furor, este senho com aquella sanha.
(( Deu uma pÍ7*oeta » — Sempre ouvi : fazer piroeta.
(( Sua existen>cia tem a constância da volubilidade. »
Estes 2 substantivos tiveram a honra de se encontrar
pela primeira vez, e fizeram uma careta um ao outro.
Mas ha melhor:
« Na vaga fluctuaf;áo dessa alma^ como no seio da
onrfa, SC desenha o mãindo que a cerca. A sombra apa*ja
a luz. Uma forma desvanece a outra. Ella é a imagem
de tudo^ menos de si própria, » Tudo isto é falso como
Judas. As ondas nao desenham o mundo que as cerca.
Sombra diminuo a luz, mas não ó apagador. Se a
bregeira é como diz, de si própria é que a})enas será
imagem, e nao de outra alguma cousa.
—PERGUNTA— Como ó a alma da moça V— A alma
tem seiva,e então esta seiva brota-lhe pelos lúzios: a Nos
olhos brotava-lh^ a seiva d^almaio Aqui temos mais uma
novidade : este último plural, este lhes nao tem outro
substantivo a que se refira senão aos lábios ; e portanto
a linda phrase completa é : «A seiva da alma d'ella
brotava aos lábios nos olhos. » Ergo, os sentimentos
da alma, traz ella escriptos na palma.
Mas aquella alma estupenda não é só aquillo : e
também « nympha celeste a romper a argilla de sua for-
mosa chrysálida. » Agora aqui temos uma metaphy-
sica entomológica, descoberta, ao que parece, no Ceará.
Sempre se tinha crido que os lepidópteros, antes de :5c
XXX lõl
mudarem em borboletas, e antes mesmo de serem
insectos perfeitos, rompinm um ovinlio tao frágil e
delicado, que houve um basbaque, çLamado Réaumur
que attribuiu o nome de ehrysálidas (de chrusoSy ouro)
aos brilhantes áureos e argênteos reflexos d'este8 in-
sectosinhos; cores produzidas pela decomposição que
86 opera na luz, ao atravessar uma membrana temiis-
sima que incerra as ehrysálidas.
A comparação com a alma da moça está perfeita : o
invólucro da nympha é de argilla, ou barro, ou padra,
ou bronze, emhm tale qual como o objecto comparado.
E ainda estos entomologias sao o menos. Temos me-
lhor : Á nympha rompe a argilla da sua chrysdlida !
Minha Xossa Senhora! Cuida pois que chrysdlida signi-
fica invólucro da nympha. Sapientíssimo ! Nympha
e chrysàlida eram, até hontem, o mesmo bicho; mas de
ora avante, a nympha fíca sendo a gemma d'ovo e a
chrysàlida a casca d'argilla ; tudo i>to em honra das
conveniências da alma da cabrita.
E ainda n^o fíca por alli a tal aima desalmada ;
nem as mágicas da Pêra de Satanaz dão logar a tantas
transformações. Queres ver mais cousas que é esta
alminha sancía V Lê :
K Aquella alma tem jaceias como o diamante; iria-se
e accende uma cor ou outra^ conforme o raio de luz que
a fere. - Aqui, pela officina do lapidàriu, penetrámos
no gabinete de physica. Diií-se-nos que naturalmente
aquella alma tem facetas, como naturalmente tem
facetas o diamante. Ora ha iim equivoco. O Padre
Manoel Bernardes [Luz e Calor pag. 309) diz : Um
diamante com muitas facetas^ e assim se exprimem outros
clássicos, mas nunca alludem ao diamante natural, e
sim ao lapidado : o artista que lavra o diamante vai,
para augmentar-lhe o brilho, procurar as faces em que
elle .se cristallizou, e essas superfícies, assim appresen-
tadas pela arte, é que se chamam facetas. Se já a ima-
gem assim começa falsa, mais falsifícada ainda se os-
tenta na segunda parte. ^ As diversas cores do prisma,
ou do spectro solar, nao • provêm do raio de luz em si
mesmo, mas sim da sua direcção ; é esta que gera a
dispers&o das várias cores.
Oh minha alma! De tantas qualidades estrambóticas
com que te ataviaram, que ficou? nada.
Alma minha gentil, que te partiste!
' Vide : formas de pubescencia).
152
Eis-ahi, parece-me, sufficientes amostras do modo
como o nosso romancista retrata as suas persouagena.
Quanto 'nessas trauscripções se admira,apparece logo ao
intróito do seo Til^ e as outras figuras vao sendo pintadas,
jase vê, com análogas tinctas. Toma elle por observação
fina, imagens elegantes, descripção pittoresca, o que
nao é senão esforço impotente, falso dizer, orientalismo
degenerado, portuguez-tupy.
O Sr. José d' Alencar nunca retrata ^enHO figuras
congéneres, as qiiaes são todas vasadas no nieárao ca-
dinho. Seos pincéis occupam-se mais dos accessórios, e
esses geralmente grutescos. Faz lembrar a mania do
tempo de Luiz XV : os retratistas pouco se importavam
com a similhança ou com a natureza: todas as mulheres
tinham olhões, boquinhas, e faces redoudris onde a
saúde lhes rebentava no incarnado ; só se conheciam as
differenças em estarem trajadas à Diana, à Flora, á
Juno, ou á Amphitrite, como os homens à Marte, â
Acliilles, (>u á Automedonte: ficavam na(^ retratos, mas
painéis ridículos.
O nosso Apelles litteràrio julga que para o romance»
para a história imaginária de um viver curivnte, hade
sempre exhibir-nos figuras div^mtnraos, impossíveis, o
que é antípoda dos preceitos da arte. Ao que elle aspira
é a descrever sempre umas nionsiruo.idade.s humanas.
Nero, se Plínio nao mente, teve a phantasia do mandar
que o piatassem 'nurr.a tela de líOp/is de altura, colosso
que um raio destruiu. As personagens do àSr. Alencar
sâo telas Neronianas, fulminadas polo gôáto e pela
opinião.
Dêmos esto poncto por tractado, o passaremos á coa-
tinuaçao do estudo do Til : ma.-; pois que esta carta ja
ultrapassou as dimensões lícita^-, fiqpe a discussão
addiada.
Too respeitoso admiradur
ClNClNNATO.
XXX 153
Ifçne:e cie Oastro.
Tragedia de Júlio de Castilho. (*)
Júlio de Castilho, o priraogéaito do exímio poeta que,
110 dizer de Cainillo Castello Branco, é honra da pátria^
honra dos que o presam e amara a patina, comprehende â
justa que é dever seo não desdourar o lustre e glória do
nome paterno ; e em tão nobre empenho porfia por mos-
trar que lhe Cíihe
et par droit de coiujuétc, et par droit de naissance,
umdus mais coaspíciíos lugares entre os laureados es-
criptores que ora abrilhantam e opuleutam as lettras
portuguezas.
Dezenove aunos hao passado de^iih^ o dia em que o
Sr. Visconde de Castilho offereceu ao público as primí-
cias poéticas de seo filho mais velho : as bellas estrophes,
publicadas na Hcvolução de Septembro, de 6 de oclnbro
de 1852.
Reveladora d^auspicioso estro, foi essa poesia inthe-
sourada no V Volume' (infelizmente o único) da série
.segunda da Lysia Po(»7?ca,excellente chresí»raathia dada
à estampa no Rio de Janeiro, no anno de 1857, por uma
associação de mancebos, recommendaveis pela intelli-
gencia, nao menos que pelo amor ao estudo.
Lidador esforçado, Júlio de Castilho nao abandonou
'nessfís dezenove annos o estádio das lettras ; e, sen-
tindo-se foríe p<ílos estudos que invalescemas íntelli-
gencias de fina têmpera, abalançou-se a um commetti-
mento realmente gií^unteo, trasladando novamente para
a t{-la ilraiuática os tétricos amores e a morte escura da
inisera e mesquinha,
que di'pois de ser morta, foi minha!
Alem de varias proJ;icçv5v»s litt;írárias de género di-
verso, em cujo número se inclue o romance, que nao
conhecemos,ma5 de que fa;: expressslmençlo o auctor do
Bospiejo histórico da IxUcratnra clássica, grega, latina e
poríuguez í, romance em q:in, segundo a opinião d'esso
(•) IVla última vc/. ohsfirvinvmos quo nos não leconhccemos com di-
reito ilc alterar uma vírgula nos e>cri|)los dos illustrados coUaboradores
d*Còta publicjivào. Pertencem t>)dos a plêiada dos nossos primeiros esorip-
lore>, e desraliido seria o exercício de qualquer censura, mesmo quando
legitimas considerações nos induzissem a pedir licença para introduzir
alguma modilicaçio. Entre os doas useolhoa oppostos, o leitor concordará
«m que ^obrc tudo nos rnmpre e\itar o do parecermos desrespeitoso para
"^om os nossos companheiros de trabalhos.
154 XXX
escriptor, o esposo de Ignez de Castro intentnu eteruisar
em versos seos infortúnios, celebrando a memória da
innocente, fermosa^ humilde e sancta (1) ; da Castro de
António Ferreira, a primeira tragédia clássica conhecidi^^
na península liispiinica, conforme a esclarecida nppre-
ciaçao de Pinheiro Chagas, e da Castro^ de Domingos
dos Reis Quita, que, no pensar de um crítico, bem prova
que o poeta sabia com eg^ual harmonia tocar a trombeta
heróica, como a frauia bucólica ; bastara o simples í'on-
fronto da Ignez de Castro^ de Júlio de Castilho, com a
Nova Castro^ do João Baptista Gomes, tragédia tantas
vezes victoriada por iiinúmeros espectadores commovi-
dos até as làgryraas, ]nira otferecer a medida da impor-
tância e alcance de uma justa Utterária, na«^ condiçAes
perfunctoriamente aponctadas.
Nós, a quem fallecem forças para intrar 'nesses »'er-
tames, mas a quem sobeja outhusiasmo para applau-
dil-os, quando inspirados por generosa emulação, accei-
tàmos com alvoroço de prazer o obsequioso convite com
que se dignou de distingui r-uos o Sr. Conselheiro José
Feliciano de Castilho; e 'nessa disposição de ânimo
assistimos hoje, no Club Fluminense^ à leitura da tra-
gédia Ignez de Castro, de Júlio de Castilho.
Nao basta seguramente uma audição para juljrar tra-
balho de ordem tao elevada o valor tao sabido : j>ra/,-nos
romtudo externar .singelamente as impressões qiu» laais
vivazes em nosso espirito se conservam, tanto niaJN que
lemos a satisfação de saber que nos achámos do accòrdo
com a maioria, se nao unanimidade, dos cavalheiros
presentes á selecta reuuiflo convocada pelo Sr. Cnn-^p-
Iheiro Castilho.
Affigura-se-nos que a composição Utterária de Juho úe
Castilho nao é, rigorosamente falando, uma tragédia ;
é antes ura drama da eschola Shakespeariana, realçada
por amplo trabalho ne restauração histórica da époch»
em que viveram os personagens que o poeta illumina
com a irradiação de seo fulgida talento.
Em seo complexo é, pois, «> trabalho wna íni"?>i<7
rfiuisi prophéíica do passado, 'is rpzcs intuição mais difpr
cultosa que a do futuro. [2)
fl) Verso da tragedia Castro, de A. Ferreira.
(2) Palavras do Sr. A. Herculano, no nionumentMl EPrrtco,
XXX 155
Tractando assumpto jà tractado por e^fcriptores de
alto mérito, inclinãmo-nos entretanto a pensar que Júlio
da Castilho logrou appresental-o, á parte analogfias ine-
▼itayeis, sob novo e quiçá mais elevado aspecto
O infante D. Pedro é o mancebo ardente e impetuoso,
e n&o o algoz sanguisedento em que se transmudou, ao
ver morta ás mãos de assassinos a mal-aventurada
esposa.
AflEbnso IV nao é o cego instrumento de pérfidos conse-
lheiros; é um rei tímido, irresoluto; capaz, porem, de
movimentos generosos, se a voz da esposa estremecida
lhe fala ao coraçfto.
D. Beatriz é uma bella creaçao do poeta. Júlio de Cas-
tilho apresenta-a como a figura rediviva de Isabel, a
sancta, a que trocara em frescas rosas no regaço bem*
dicto esmolas preciosas. (I)
Pacheco, o mais incarniçado perseguidor de Ignez de
Castro, n&o é simplesmente um verdugo cruelissimo ; é
o político vendido ao ouro de Castella e o rival, sempre
humilhado, do infante D. Pedro.
Sao, se a memória nos nao falha, dezoito os perso-
nagens que mais ou menos activamente intervém no
desinvolvimento da acção do drama; falando todos con-
forme a épocha, adaptada porem a linguagem ás neces-
sidades scénicas por forma que, conservando no intender
de juizes competentes o .^abor do estylo do século XIV,
pode ser entretanto bem comprehendida sem auxilio
de glossários e léxicous.
Pareceu-nos bem combinada e deduzida a acção, e
habilmente preparadas as situações e lances de effeito.
Toda a composição, exceptuada a carta de D. Ignez ao
infante, é escripta em versos soltos aprimoradamente
trabalhados.
No 1'. acto a narração do episódio da caçada, que
termina pela morte do javardo, deparou-nos bsllissimos
versos onoraatópicos.
Tao notável pela elevação do pensamento, como pela
belleza da expressão, é a nosso ver, a scena do 2* acto,
entre o infante D. Pedro o, Beatriz, em que a virtuosa
rainha descreve o povo como deve ser considerado : não
a villanagem, mas a força o o poderio dos estados cons-
tituidos.
(1) Versos do Sr. visconde de Castilho.
j
156 XXX
A despedida do infante a D. Igiiez, no í** acto, evo-
cou em no.sso espirito a lembrança da scena incantadora,
em que Julieta, á varanda do palácio paterno, banhada
a fronte gentil pelos argênteos raios da lua, ouve o ci-
ciar melodioso das phrases apaixonadas de Romêo !
E a essa lembrança associou-se a saudosa e indelével
recordação de Rossi e da Palladini, o grande mestre e
a illustre alumna da verdadeira', da sublime arte dra-
mática.
Deixando sunimariamente indicadas algumas das
scenas de que conservamos mais vehemeute impressão,
nao dissimularemos comtudo que o modo admirável
como foi lida a composição levou-nos talvez a louval-a
sem restricções ; sendo aliás possivel que, se calma e
pausadamente a houvéramos estudado, nos occorresse
algum reparo, embora de valor mínimo, se valor de
feito tivesse.
Nem bem, nem mal poderá porem advir da mani-
festaçno de nossas primeiras impressões a respeito da
tragédia Ignez de Castro.
Como taes nos sejam portanto acceitas estas breves e
despretenciosas palavras, que não tem nem podem ter a
arrogada pretenrfio de constituir julgamento áceuca da
superioridade, absoluta ou relativa, da tragédia de
Júlio de Castilho sobre as de A. Ferreira, Quita e Bap-
tista Gomes, tão altamente aquilatadas no conceito de
críticos de legitima competência.
E, pois, como synthese do que havemos escripto,
diremos, fippropritindo-nos das expressões do erudito
•commentador da trnducçao paraphrástica dos Amores
de Ovídio : « Ficar ab lixo de tao pi-echiros predecessores,
não é de.snr ; em os egaalar, li:i mérito ; um vencel-os
íílória. ))
ilio d.í Janeiro, 31 le d;\:eiabro de 1871.
Gil Braz.
XXX 15T
Prograrama
PARA
A INAUGURAÇÃO DA ESTATUA DE BOCAGE
NA
ClDADli DE SETÚBAL
A commissão central do Rio de Janeiro, promotora da
subscripçao para se erigir a estátua de Bocage em Setú-
bal, onde nasceu o insigne poeta, designou o dia 21 de
dezembro de 1871, sexagésimo anniversàrio do seo fal-
lecimento, para a inauguração solemne.
Para este acto se armará na praça de Bocnge uma
tribuna, onde serão recebidas as corporações, auctori-
dades, e mais pe.ssoas que forem convidadas.
3.°
 estátua estará velada com as bandeiras nacionaes
de Portugal e do Brazil.
Serão convidados para esta solemnidade — o ministério?
as auctoridades superiores do districto ; as corporações
scientíficas e litterárias ; a imprensa periódica ; os homens
de lettras, e os súbditos brazileiros mais qualificados,
residentes em Lisboa e Setúbal, como demonstração de
reconhecimento, por haver sido a estátua do Bocage
erigida por subscripçao commum de brazileiros e de
portuguezes residentes no império do Brazil.
Ha um comboio especial, de Lisboa para Setúbal, ida
e volta, no mesmo dia, gratuito para os que receberem
convite com essa declaração.
A hora do embarque na estação do caminho de ferro
do sueste, em Lisboa, será designada nos bilhetes de
convite.
158 XXX
'/ •'
A' uma hora da tarde, as commíssOes filiaes de Lisboa
e Setúbal, a câmara municipal doesta última cidade, e o
esculptor Pedro Carlos dos Reis, descerão da tribuna
para j une to da estátua, e ahi lerá o presidente da com-
missão de Lisboa o discurso inaugural, a que responderá
o presidente da municipalidade de Setúbal.
8.*
Em seguida os membros da mesma commissão, mar-
quez d'Avila e de Bolama, vice-presidente da academia
real das sciencias; conselheiro Miguel Maria Lisboa,
enviado extraordinário e ministro plenipotenciário do
Brazil, em Portugal ; visconde de Castilho ; Dr. António
Rodrigues Manitto, presidente da câmara municipal
de Setúbal, tomarão os cordoes da cortina que vela a
estátua e a descobrirão.
Logo que se descobrir a estátua, as músicas tocartlo
successívamente os hymnos compostos e offerecidos para
esta festividade, pelos Srs. Manoel António Corrêa,
Carlos Augusto Alves Braga e António do Nascimento e
Oliveira.
lO.o
Voltando o préstito para a tribuna, ahi será lido e
assignado o auto da inauguração, que ficará depositado
no archivo da câmara de Setúbal, enviando-se um tras-
lado authentico á commissão central do Rio de Janeiro.
Sala das reuniões da commissão filial de Lisboa, na
Bibliothera Nacional, em 2 de dezembro de 1871.
O Secrbtario
XXX 159
3
F*ara"beiis.
Vivia alli para os lados do ex-Largo do Paço um velho,
ue contava mais de um século de edade, e cuja agra-
avel appareucia attrahia as attenções geraes.
Exercia em larga escala a segunda das obras de miser
ricórdia: dava profusamente de beber a quem tinha sede
uma das mais crystallinas e puras águas, que jamais
correram em bica de chafariz. Em harmonia com todos
os moradores do bairro, era uma das bonitas cousas da
cidade: quem o via, e olhava para o lado direito, e via a
casa do velho Telles, para a esquerda, e via o palAcio dos
antigos vice-reis, e no fundo o ex-convento do Carmo,
conhecia logo que eram bons amigos, do bom velho
teiJipo.
Mas o mundo marcha; e o progresso, assim à maneira
do ar que se respira, entra por todos os buraquinhos.
Em Athenas era crime ser justo; no Bio de Janeiro é
Crime ser velho : sao cousas do tempo, e talvez com o
tempo passem : mas agora são assim mesmo ; é preciso
respeital-as. E se não. digam-me lá, porque razão se têm
andado a chrismar as ruas e praças do Rio de Janeiro,
alguns de cujos nomes faziam parte de nossa história ?
Uma só razão pôde haver: estavam «velhos, estavam.
Ora u lUma. Câmara, a cujo cargo está attender, a que
os olhos de <seos munícipes não sejam oíFendidos por
espectáculos menos agradáveis, incumbiu-se de mandar
lavar, penctear, e vestir camisa lavada ao sobredicto
<Mijo velho, que assim se viu repentinamente transfor-
mado em moço casquilho, namorando as quitandeiras
da Praça do Mercado.
Intendâmo-nos: eu não sei bem se foi a Illma.Càmara.
Deve ter sido; mas como isto de attribuições municipaes
anda meio atrapalhado, pode ser que a cousa não seja
com ella ; vá a quefm tocar. J
Lá por essas Europas, de gosto depravado, taes velhos
são conservados com todo o respeito : até se a roupa se
lhes rompe, procuram remendar-lh'a com pedaços ti-
rados de logar, onde menos falta façam. Mas a Europa
é uma velha incarquilhada ; a América é uma moça
<rarrida. Aqui não se admittem velharias.
Ouvi dizer a alguns patetas que o dinheiro alli gasto
podia ter sido mais bem approveitado. Parvos I Pois nós
precisílmos fazer economias ? O Brazil é o paiz do ouro.
160 XXX
Ainda está nas minas : mas isso o que tem ? Vão lá bus-
cal-o; O nosso dinheiro é de papel ; mas o padeiro dá
pao por elle. Outro offício, meos amigos !
Beber água por chafariz velho é o mesmo que beber
por caneca rachada.
Parabéns, Fluminenses ! parabéns ! Tendes o vosso
chafariz, assim com ares de velho que tinge os cabêllos:
que mais podeis desejar ? Levantae um monumento
de lama ao auctor da idea.
Otton.
A nnuncios.
Desappareceram as ruas Direita, das Violas, dos Pes-
cadores, Largo do Paço, e outros mais logares d'e3ta
corte : quem d^elles der noticias, receberá boas alvíçaras.
Consta que foram subtrahidos pela lUma. Cíimara Muni-
cipal : protestam-se perdas e damnos contra o sub-
tractor.
Otton.
Precisa-se um nome para chrismar... a boa cidade d^
Rio de Janeiro, porque o actual ja está muito usado, em
consequência do que se abre um concurso. Ao auctor da
melhor Memória sobre este objecto se offerecerá em com-
pensação uma penna de peru, animal characterístico de
muita gente que por ahi anda.
Otton
Typ. e Hth. — Imparcial— Rua Sete de Setembro n, 146 A.
QUESTÕES DO DIA
N.°31
KIO DE JA^K^RO, 14 DE JANEIRO DE 1812.
Vende-se em caaa dos srs. B. &^ H. La ammert.— Agostinho de Freitas Gui-
marães 6c Comp., 26, rua de General Camará.— Livraria Académica, Rua de
S. José n. 119- Largo do Paçe n. C— Preço 200 reis.
O r volume, com perto de 400 páginas— 3Í000.
OBRAS DE J. DE ALENCAR— IRACEMA.
OaT*tas a Oliicinnato,
VI.
Meo generoso amigo .
Nas suas Reflexões a respeito dos Annaes Históricos
de Berrêdo, diz G. Dias tstas palavras : « Hei de ser
mais extenso, mais diffuso, do que talvez conviesse,
porque quero ser comprehendido e porque escrevo para
todos. O que fôr de sobra para alguns, será apenas suf-
ficiente para outros. »
Assim eu, Cincinnato de minha alma. Tem paci-
ência.
Mostrei ao Sr. Pinheiro Chagas, que tf. Dias voltara
das suas excursões submarinas trazendo só pérolas^e
coraes, ao passo que J. de Alencar viera do seo mS*-
gulho no lago com muito caramujo e muito lôd^aquá-
tico. O que o primeiro nao extrahiu, nSo foi'porque o
nfio tivesse visto, senão porque o nao achou digno de
apanhar e erguer à altura da superfície.
Verdadeiramente falando : pótl%-se presumir que G.
Dias « a quem ninguém se avantaja na opulência da
imaginaçílo e no conhecimento da natnreza brazileira
e dos costumes selvagens » (palavras do próprio Sr.
Alencar), ignorasi^e que existia no Brazil o prudentt
tamanduá, e quantos auimaes, reptis, peixes, árvores,
flores e objectos ncssos se vêem com profusão inexce-
divel aponctados na Iracema ? E' que o seo tacto deli-
cadíssimo percebia logo onde existia o bello, e nem um
instante se demorava onde uno podia haver senão o
irivial ou o gruttôsco.
162 XXXI
K o ciinlio nacional d'í uma obra consistirá om n?-
pr('duzir ella quanto se «çha ora a natureza, nos costu-
mes (lo p')vo, nos preconciitos e frag^ilidades do uma
raça ?
Sri as-iim Vi :'>, í^-intaria pouco a ser grande poet-i ou
o primeiro r>:iiancista de um*i naclo. So não se exige,
principalmeiíu', p-rjra que .se g^oze de tae.^ foros, que se
colha e se exliiba o que pódc fazer o público deliciar-.e
sem comtudo f izôl-o molestar-se ou corar; S(i o pincel,
que se molha nas tin^Mas finas e elevadas, deve, para
sor tido por completo, cliafurdar tambtím nos resíduos
barrentos e grossí^ros. 'neste caso é certo que faço das
lilteraturas a idéa mais errónea possivel.
Seg'inido penso, moo amigo, (í me parece reom-
mendar a esthética, o artista nao tem o direito de perder
de vistíi o bello ou o ideal, posto que combinando-o
sempre com a natureza.
N?lo fora talvez descabido aqui emiltir o meo hu-
milllssimo parecer sobre o modo de ver de alguns (muito
auctorizados) que intendem que a arte é a imiUição, e
de outros que opinam ser cila a interpretação da natu-
reza. Kicará para logo, se me sobrar tenpo e me aprou-
ver detcr-me 'neste poncto.
Mas o que ainda ninguém se lembrou de pôr em
dúvida é que, ou interpretando-a, ou imitando-a. o
artista visa sempre o alvo de helleza ideal, que debalde
se procuraria 'nessa lenda sertaneja, mais parecida com
um catálogo de zoologia e de botânica cearense, do
(f^e com uma obra d^arte.
Li 4^ precioso livro, intitulado — Á Sciencia do Belfn —
po^^L^ltaue, obra que mereceu ser coroada pir três
Acaaétnlas da França. Nunca njais m*^ esqueci de um
pedacito que lá vem, concebido 'nestes termos : a Se o
romancista nHo é segão o arrolador {grefficr) da vida
de todo.s 03 dias, quero antes a vida cm si mesma, qu<*
é viva, e onde me nao demorarei com a vista senão sobre
o que me interessar, w
Ah í mas eu esjuecia-me que estou dissecando um
poema, e nfio um romance. Pois bem : se se tracta da
poesia, a cousa muda de figura, sim, porém para con-
demnar ainda mais a producção do »Sr. Alencar.» A
poesia ingrandece todos os characteres; entre suas mJlos
o bravo torna-se valente, o prudente torna-se sábio, o
falante torna-se eloquente, o guerreiro um heróe, o
heróe um semi-deus.» Tudo vai precisamente ao in-
XXXÍ 163
verso na Iracema ; o g'uerreiro, que devia affig'urar-se
heróe,*nao passa de imbelle pusillâuime • o heróe da
história, que devia na poesia assumir as pr'>M ^r';;Ao^ do
serni-deus, está abaixo donivel do guerreiro. E' sempre
este destroço dos characteres e da harmonia artística.
Ah ! mas eu csquecia-rae que se tracta da mais su-
blime manifestação da poesia — a poesia épica. A Iracema
nfio se inculca uma amostra no género ? Pois bera :
quanto mais nos olevriraos na escala da arte, tanto mais
desce esí^e bastardo filho de um talento que a vaidade
perdeu como o oi^ulho a Satan.
Sempre que vem á baila falar da epop6a, lembro-me
da Illuida como o modelo por excellencia. Homero é o
primeiro poeta épico, desfie que o mundo é mundo.
E poderia acaso a lUtada servir de modelo a um
poema americano? A vida fel vagem incerra em si
bastante interesse, bastante grandeza, bastante maravi-
lhoso, para sustentar movimentos d'aquelle fôlego e
majestade? D'aquelle nao direi; mas se tivéssemos
um Homero, a mina para as suas explorações não seria
outra. Essa raça, seo passado, suas superstições, é
tudo de tamanho e vigor descommunal. O gentilismo
tem a sua face pomposa e formidável. A epopéa bár-
bara nrio pôde deixar de ser uma das maiores epopéas.
Um dos primeiros elementos do grandeza da Illiada
é o maravillijso, symbolizado na crença pagan. Também
os nossos índios tinham do maravilhoso, e á farta. As
suas superstições — eis. no meo fraco intender, o mús-
culo d'essa poesia ; e esse músculo, força é dizel-o, na%
tem sido desinvolvido e distendido, como acaso cum-
priria, pelos nossos épicos.
O Homero brazileiro acharia na nossa raça primitiva
typos parecidos com Achilles e Ileitores, Priamos <;
Menelàos. Até incontraria uma Melena, sem outro
trabalho mais que o de abrir a nistória. Fernando
Diniz diz : « Os '1'upinambas, depois de haverem toma-
do o recôncavo, dividiram-se também, dando logar á
discórdia no meio d'este povo um drama igual ao qu<»
originou a Illiada. Uma rapariga de certa tribu
da Ilha de Itaparica foi raptada pelos habitantes do
local onde depois se edificou a cidade da Bahia ; e
d'ahi accendeu-se uma guerra terrível. »
Seguramente esse Homero nao havia de intender a
poesia nacional, e muito menos a poesia épica, segundo
a intendeu— van e factícia — J. de Alencar.
164 XXXI
Sim, elle iria belêl-a nas tradições dos iudios» mas
nas tradições que, pingues e plenas^as tinham, nos pai-
néis summos e monumentaes das suas batalhas, que
eram batalhas titânicas. Desde a cilada ao inimigo até
o ineêndio, desde o heroísmo nas luctas até o heroísmo
das hóstias, tudo offerecia elevação própria, que nao
destoaria do drama nem da epopèa.
Bebêl-a-hia principalmente nas superstições, suscep-
tíveis dos episódios mais robustos, de agigantados pro-
dígios, de que a história dá idea que se vê que é pàllida,
mas que bastante colorido incerra para nos fazer conhe-
cer que tinham o calor e a importância de verdadeiras
maravilhas.
Bebêl-a-hia nu que o character selvagem tinha de
sculptural, predominante, e athlético, e nao no que
podia ter de mesquinho, ridículo ou accidental.
De dentro das soturnas cavernas, do seio dos valles
intermináveis, de cima dos rios oceânicos, dos recessos
da mansão opaca das selvas, acordaria os echos de dra-
mas tremendos que ahi jazem adormecidos na uecró-
pole de séculos, evocaria as visões mysteriosas, mythi-
cas da sua theogonia, as sombras das suas divindades,
dos seus lémures, que faria representar papeis pavoro-
samente grandes,como no Hamlet o e no spectro de Bankof
Assim como o poeta grego fazia tremer o Olympo
comum movimento de cabeça de Júpiter, o poeta ame-
ricano faria abalar-se a solidão nos seos fundamentos^
com o simples tanger do maracá do sacerdote inspirado,
representante de Tupan.
Faria emfim dos guerreiros heróes ; dos heróes semi-
deuses; da crença religiosa a primeira fonte do poema —
tudo em poncto grande, compatível coma pujança de
uma raça, indubitavelmente capaz dos commettimentos
mais estupendos. %,
Ou escreveria assim, ou de certo nSo escreveria um
poema. Agora invergonhar a pátria com uma concepção
sem altura de motivos, sem elevação de vistas, sem mo-
vimento, trajada degallas ephémeras,de lentej ou las im-
possíveis, falando linguagem affectada, frouxa e fútil, o
que tudo importa uma antíthese da poesia hemica e do
génio collossal do nosso aborígene, isso é que nao. Te-
ria o bom senso e a generosidade de o não fazer.
Longe me tem levado a divagação, e é tempo de re-
cuar ao assumpto.
XKXI' 165
Mostrei o abysmo que ha entre uma descripçSlo
de combate de índios por G. Dias, e outra por J. de
Alencar. Provei que a deslumbrante e hardida poesia
das batalhas falta na Iracema^ quando, pelo contrário,
se incontra, já nao digo nos Tymbiras ou no Tabyra^
mas no Urugnay e Caramurúy que sao dos tempos da
colónia*
Por exemplo, lê-se no Uruguay:
« Fez proezas Cepé 'naquelle dia.
« Conhecido de todos, no perigo
« mostrava descoberto o rosto e o peito,
« forçando os seos co' o exemplo e co' as palavras.
<c Já tinha despejado a aljava toda,
« e, destro em atirar e irado e forte,
« quantas settas da mao voar fazia,
<c tantas na nossa gente insanguentava.
<( Settas de novo agora lecebia,
« pai*a dar outra vez princípio á guerra.
« Cepé, que o viu, tinha travado a lança,
« e, atraz deitando a um tempo o corpo e o braço,
« a despediu. Por entre o braço e o corpo
« ao ligeiro hispanhol o ferro passa:
« rompe sem fazer damno, a terra dura,
« e treme fora muito tempo a hástea;
<c mas de um golpe o Cepé na testa e psito
« fere o governador e as rédeas corta
« ao cavallo feroz. Foge o cavallo,
« e leva involuntário e ardendo em ira
«f por todo o campo o seo senhor; e ou fô«se
« que regada de sangue aos pés cedia
a a terra, ou que pozesse as m&os em falso,
« rodou sobre si mesmo, e na caída
« lançou longe a Cepé. — Rende- te ou morre!
« grita o governador; e o Tape altivo,
« sem responder, incurva o |rco, e a setta
<c despede, e 'nella preparara a morte.
« Inganou-se esta vez. A setta um pouco
« declina, e açouta o rosto a leve pluma.
« Era pequeno o espaço, e fez o tiro
<( no corpo desarmado estrago horrendo.
<c Viam-se dentro pelas \ õtas costas
<x palpitar as intranhas. Quiz três vezes
<« íevantar-se do çhao, caiu três vezes;
<x e os olhos já nadando em fria morte
« lhe cobriu sombra escura e férreo somno »
WWTWVHW
166 XXXi
L6-se 110 Caramnrú:
1
« Já se avistava bárbaro tumulto
« das inimigas tropas em redondo;
» e antes que empreendam o primeiro insulto
« levanta-se o infernal medonho estrondo;
a os marraques, napés, e o brado inculto,
« todos um só rumor junctos compondo,
a fazem tamanha bulha na esplanada
« como faz na tormenta uma trovoada.
2
« Mas quando tudo com terror fugia,
<( o bravo Jacaré se lhe põe deante:
(( Jacaré, que, se os tigren combatia,
<( tigre não ha que lhe estivesse avante.
« Treme de Jararaca a companhia,
« vendo a forma do bárbaro arrogante,
« que, com pelle coberto de panthera,
(( ruge com mais furor que a própria fe^^a.
3
« Em quanto a selva passeava escura,
« de immortaes arvoredos .rodeada,
« foi Jararaca, que a cuidou segura,
« ferido sobre o pé de uma frechada.
a Ficou-lhe a planta sobre aterra dura
« em tal maneira com o chão cravada,
<( que por mais que arrancal-a d*alli prove
a despedaca-se o pé, mas nao se move.
4
« Corre a turba a salval-o, e em continente
« voam mil settas desde a espessa rama,
t< e cad' árvore alli no bosque ingente
a um chuveiro de tiros lhe derrama:
c( cada tronco é castello: ao lado e frente
t( a occulta multidão bramindo clama;
« e o resto, que em cavernas se escondia
' « ao rumor da victória concurria.
Do que fica ahi copiado verá o illustre Sr. Pinheiro
Chagas que, até antes de (1. I)ias,já se achava nns com-
posições dos primeiros épicos bra/.ileiros fundamente
impresso o cunho nacional. Elles nao tinham só <i entre-
visto a mina » ; tinham-n'a explorado e com largueza e
fiuccesso.
Como seguramente o critico portuguez deve saber, o
visconde de A. Garrett, ajuiza do primeiro poema do
XXXI
1^)7
seg^uinte inudo : « O Urug-uíiy, de José linsilio dn (Jíiina,
éo iiioJenio poema que mais mérito tem, na minlia opi-
nião. Scenaá natiiraes mai bem pintadas, dí* írrauJe e
Lella execução descriptiva; plirase pura, sem affiíctaçílo ;
veráoá naturaes, sem ser prosaicos, e quando cumpre su-
blimes sem ser «guindados; não são qualidades communs.
Os brasileiros principaluKuite lhe devem a 7nc/lwr coroa
de svu poesia^ que 'nelle é verdadeíranienln tuicioiuil^ e
legítima americana. >> K Fernando Diniz, faland) do
Caramurú, diz: « K' uma <q)opéa nacional br.izileira que
interessa e inleva. » Copiamos estes extractos da notícia
que vem annexa a estas duas obras, impressão de
Lisboa, 1845.
Portanto nílo pertence a J. de Alencar (sem querer
falar em (1. Dias) « a honra de ter dado o primeiro
pa.sso atfoito na selva intrincada e mai:i'niíic('nle <las
velhas tradições. »
Não; não só não lhe pertence ^imilhante ^-lória, como
até lhe pertence exclusivamente a triste <-elebridade de
haver offerecido ao mundo como padrão da poesia bra-
zileira, um mixto de vulg'arida(hi e de burlesco, que
será sempre reconhecido ])or quem não for demasiado
benévolo ou demasiado stíctário, como coutra.^te vivo
da história.
Meo amig'o: d.ísejando approv(íitar o vap-u* ;([ue está
prestes a lar^^ar) não vou além por hoje.
lia tanto ainda (\\H) dizer, (|uan!,o á }))li'-i;i dn Iin*i*ua,
notas, carta linal.. !
Mas licide levar a missão ao cabo.
Ha 'nisso algMima C(j;isa d(i cons"ieiici:i o (Li pjitriu-
tisnio. Di^ro: i'ATUionsMo!
Como sempre
Teo iVaco, mas leal amit^*!)
SlCMPUÓNlO.
A ICeoi-fçaiiiziaoâo do ti'aljaIlio.
A (lasst* opvrdrln c a indúslria no linizíl. !\ecrssl(la<lc da
rtlinhiliíanlo c nictlior onjanlzação do Indndho. Con-
,vid(^rfirfies sChre o itirio de realizar esta grande a (jene-
rosa asjjíraçuij da variedade hrazlleira.
W T
n
Corftí tíutr.í nó."> como verdade dr^monslrad.* umà sin-
gular j/píposiclo.
i XXXI
I o Braisil ( repetem lodo:> j è paíx exclusí vãmente
agrícola »
Se íi traduzirem pela frtrraiila «egiiiote: a. O Brazil
até aqui só se lein applicndo & agrricultura» essa pro-
posição sorà apenas a confirmação de 'um facto e expri-
mirá rigorosamenle a verdade das coiisa.s.
•Se, porém, a tomarem, como geralmente acconteca,
por uma revclaçiio da idéa de rjue uno pôde nem deve
liftver no Brazil outra indiistria, alem da da lavoura,
deverá ellaser refutada como confissão explícita de um
árro, que cumpre combater de frente e com todas as
forças.
Quem lançar vistam altentas sobre esta região aben-
çoada, que parece ser a terra da promissiio, que a Provi-
dencia escolheu para 'nella derramar todos "s dons do
suainexhaurivel munificência, quem avaliar a feracissima
uberdadp d'este solo, em que, como uos moatRs que ser-
viram de liêrço e núcleo ao género humano nasce eapon-
tílueo o niais substancial alimento; quem yir piilliilar
d'esta natureza esplêndida todos os thesouros de fecun-
didade, todos os elemento» de riqueza, todos os princí-
pios elementares e matérias priísas, que formam a
indústria fabril e têxtil dos povo8 cultos, que abastecem
com suaa manufactura-i todos os poncto; dn globo, ficará
profundamente surprehendido de que tal opinião ca-
nhasse raízes o tomassp character de axioma.
Quanto a nós, ó mais este um erro, gerado e perpe-
tuado pela existência da escravidão no Império.
O lavrador brazileiro, accostumadoá indolência e ao
luxo, que é um dos vícios mais fataes e derramados em
todas as classes do paíz, vpudo n turra pagar-Iheem
fartas colheitas oesfôrço do trabalho escravo, accreditoa
facilmente, semexame.que nada mai.s tinhaquf.esperar,
para complemento de sua riqueza, do que o produclo da
safra d'e«e3 caunaviaes.cafezaes, e algodoaes, que flores-
ciam « davam fructot, nas falda^í dcS montes e nos
valles de suas extensas fazendas. Accostumado a esse
systema rotineiro do trabalho, c recebundo do nego-
ciante, que facilmentt! Ihoadeantava. dinheiro sobre as
futuras safras, descauçava, n5o cuidoso dos acconteci-
mentos, na esperança dft que a torra nâo cessaria de
expandir-se em messes de dia para dia crescentes, entre-
tanto que o verme roedor do áfí/iío e pesado juro, que
pagava á praça, llie ia oberaudo <i estabeleci mento c
todos os instrumento;) do trabalho. Chegava finalmente a
XXXI 169
hora do despertar d'esse somno de priguiçosa indiffe-
rença; o credor urgia pelo pagamento, e a liquidação
forçada trazia como consequência a venda da fazenda e
dos escravos hypothecados,por metade do valor, e a con-
sequente miséria do outr'ora abastado proprietário de
fertilissimas geiras.
Se o escravo nao existisse, outra e muito mais pro-
fícua seria a applicaçao do braço intelligentemente des-
tinado ao trabalno agncola. Conhecr^ndo que o partido,
que poderia tirar dos couros de seos bois, da pelle de
auas cabras e de seos carneiros, das clinas de seos ca-
vallos, e de todos esses animaes em si, bem como de
outras producçOes das fazendas e ingenbos, o domno do
solo approveitaria melhor e com mais vantagem todos
os elementos da riqueza natural. Nao lhe accontecería
então, pelo hábito do contemplar o quadro do trabalho
escravo, convencer-se de que nada de melhor tivesse que
esperar para sua prosperidade e bem-estar. Podemos
amrmar, sem receio de ser contestados e de cair em
erro, que se outra fosse a organização do trabalho, a
classe operária já existiria entre nós com o consequente
desin volvi mento da nossa indústria manufactureira,
hoje ( infelizmente) embryonária.
Nao ! O Brazil nao é exclusivamente agrícola, e nem
o pôde ser; elle tem todas as proporções para occupar
dentro de poucos annos uma posição brilhante entre os
estados manufactureiros do mundo. Cumpre fecundar
todos ósseos germes de grandeza industrial, e sobre
tudo crear e preparara sua classe operária,approveitando
Sara esse fim a nova geração, que nascer dos escravos
epois da lei de 28 de septembro de 1871.
Uma das principaes f oudiçOes para firmar o futuro
industrial do Império é eitabelecer e proteger a liber-
dade do trabalho.
Debalde a terra brotará os mais ijiros e inexhauriveis
mananciaes de uberdade: debalde a natureza prodi-
galizará aos homens todas as munificencias de fecunda
cornacópia, se o Governo nao anniquilar as peias que
ainda entre nós empecem a livre acçlo do trabalho.
Com ra-çao dizia o sábio auctor do Espírito das Levi
que os p u*/*os eram cultivado*, nlo na razão de sua ferti-
lidade, mas sim de aw^ liberdade.
Assignalarêmos as providencias, que tendem a manter
c a desinvolver em mais larga escala a liberdade da
trabalho.
170 XXXI
Utn:i (las causas intorpeceduras do livre exercício do
trabalho é incoatestaveliiieate amjinia de regulamentar.
A acçrio restrictiva do poder executivo é no Brazil a
grand«*, senão a principal rémora da iniciativa indi-
Yjdual (í do prog're.:so da indústria.
Cumpre, antes de tudo, acabar com as auctorizaçOes
prévias por parte do Governo para o estabelecimento e
fundação de certas indústrias, que manirestamente
tendem a activar as torças vivas da sociedade e a dar
incentivo e inchanças á riqueza pública. Quanto a este
poncto, conviria que. sem perda de tempo, tosstí revista
e profundamente modificada a lei de 2i de ag"òsto de
1860, a mais notável das creacOes du escliola res
triciiva.
Nilo é menos nociva á livn^ marcha do trabalho a
aggravação dos impostos, que oneram alfrumas das ma-
térias primas.
Ksse mal importa a aspliixiacão ua mesma indústria,
porqu(í põe o operário na impossibilidade de produzir,
por não poder concurrer em preço com <js productos es-
trang^eiros.
A ag^gravação das muletas impostas pela violação do^
Rej^u lamentos não é menos hostil á lil)erdade do tra-
balho. "Neste ponclo é preciso fugir de imitar as dispo-
sições anarhronicamciite repressivas do antigo re.gimen,
herança de séculos de ignorância, monumentis d«j des-
potismo, ([ue o presente deve rejeitar como otfensivasda
c*ivilizacão.
Não ha circumslància que mais directa e rapidamente
concorra par.t a liberdade do trabalho do que a liberdade
dos escaimbos internacionaes, ordinariamente denomi-
nada liberdade díí commércio.
Não ha muitos annos que a líuro))a, imiíando o '-os-
tume do Japão, fechava seos portos á inlrada das mer-
cadorias estrangeiras. Debalde o notável economista
Adam Smith na Inglaterra e todos os grandes espíritos
do século, em França, pregando os verdadeiros princí-
pios da sciéncia moderna, tentaram lançar por terra essa
insuperável barreira que as nações erguiam hostilmente
á introducção dos productos de fora ; o erro persistia
sempre, i)eando o vòo da indústria e servindo de obstá-
culo á solidariedade induslrial e comuiercial dví tod^is os
povos, pela melhor satisfacção das necessidades de todos
e d(í cada um.
XXXI 171
O primeiro passo para e.staLeleci mento da iihenlade
do commércio foi dado em 18ÍÍ8 ua Inglaterra com a
fundação da lig^a para abolição das leis sobre os cereaes.
Seonudada por John Brigth e Ricardo Cobdeu, e mais
tarde por sir Robert Peei, qne a opiuino pública arras-
tràra ao poncto de desamparar o systema restrictivo, do
qual era acénúmo defensor, (ísta g*enerosa idéa, appre-
sentada em 184(3 ao parlamento pelo Uuquti de Wel-
lington, foi o começo da revolução alfandegária, que
immortalizou o nome d'este estadista.
Tal, porém, era a forçado systema protector 'naquelle
palz, que as reformas assim iniciadas por aquelles gran-
des vultos não conseguiram abolir o n Aclo de navega-
ção )) de Cromwell, que constituía privilégio exclusivo
a favor dos armadores inglezes. Ainda pela tarifa,
'naquelle tempo promulgada, ficaram taxados vários
artigos, cujos idênticos e similares eram produzidos no
Reino Unido, onde nenhuma taxa supportavam. Koi só
depois da retirada de Peei que esses direitos foram sup-
primidos, ficando o systema proteccionista reduzido
à imposição das taxas sobre os grãos e farinhas e
neos derivados(taxivs aliás moderadas e ([ue tendem a des-
apparecer), e ao imposto sobre o tabaco manufacturado.
D*esta considerável exempção de tilo grande cópia de
artigos, e reducção de taxa-' d'» outros, em vez de resul-
tar diminuição no rendimento das aUTind^^gas inglezas,
proveiu, pelo contrário, grande augmento, de modo que
hoje essa renda é muito mais avultada que em 1841,
anno em que Roberto Peei começou a iniciar a idéa
da diminuição ou suppres.são das taxas que soffriam
as maté.ias primas de indústria.
Foi com excessiva timidez, e depois de longo tempo,
que as potencias continentaes seguiram o salutar exem-
plo da Inghiterra. O primeiro e balbuciante insaio da
França no mesmo sentido rí;alizmi-se em 1847 ; o Poder
Legislativo, porém, ainda não eilucndo pela opinião, re-
pelliu a reforma. Decretos do segundo império diminuí-
ram grandemente alguns direitos sobre géneros alimec-
tícios, especialmente o gado e o vinho ; houve também
reducção quanto á lã, ao fiírro e ao aço.
Novo ^r^ljecto de lei, appresentado ás Camarás em
IBÕõ, foi lambem repellido, mas e.sta rei uctancia contra
o progresso incontrou salutar correctivo no tractado de
"23 d«? janeiro de 1800 (j convencOtís de 12 de octubro
e IG de novembro do mesmo anno, em que Napoleão JII
172 XXXI
estabeleceu a tarifa; pela qual em França deveria ser
regida a intrada das mercadorias inglezas.
Este tractado, seguido por outros entro a mesma
França e outras naçOes do continente trouxe o impulso
e progresso da indústria para todos os paizes europêos ,
pelo iramenso desinvolvimeuto dado ao commércio.
Só a Hispanlia ficou estacionária e estranha a este
civilisador movimento. E' por isso que o commércio
interno e externo definha 'naquella região, c as suas
dificuldades financeiras se aggravam de dia para dia.
O systema proteccionista é o enervamento e a morte da
indústria; e a Hispanha, isolada no continente por sua
tarifa, incontra também, como diz ura escriptor contem-
porâneo, meio de isolar-se pelas estradas de ferro, onde^
por causa do regimen protector, se nao desinvolve a cir-
culação das mercadorias.
Estranho espectáculo é ver assim na retaguarda do
progresso uma nação, que, ha três séculos, foi a pri-
meira potência da Europa e do mundo !
*0s Estados Unidos conservam também uma tarifa
iiltra-protectorista, tendo, em vez de diminuir, aggra-
vado, 'nestes últimos annos os direitos aduaneiros, erro
tanto mais grave quanto os Estados do sul, reduzidos k
miséria, precisam de allívio no preço dos mecanismos
destinados a fecundar o trabalho e de todas as manu-
facturas. Se nao fosse o impulso da concurrência inte-
rior, os effeitos doeste deplorável systema teriam sido
mais fatalmente sentidos 'naquella grande República,
que por certo cederá 'neste poncto á torrente da opinião
universal.
Para fundar completamente a liberdade do commércio,
è de grande auxilio a liberdade de cabotagem. Questão
é esta que occupa seriamente a attençao dos nossos esta-
distas, e que a experiência de mais alguns annos habi-
litará o governo a resdíver.
Grande e fecunda em resultados será para o Brazil a
abertura do Amazonas a todos os pavilhoe.5. O futuro
confirmará as previsões dos que 'nesse grande acconteci-
mento viram o gérmen da grandeza futura do (mpérto,
A reducçao, do número das alfandegas contribuirá
também eficazmente para a liberdade do commércio»
E o governo brazileiro, que ultimamente extinguiu al-
gumas das alfândegas do interior, revelia te!\dência de
dar por este lado protecção ao commércio. Pompeo.
[Continua.)
XXXI 173
Horas vagas.
Poesias
DE
JOAQUIM DA COSTA RIBEIRO.
EiU' nítida edição da Typographia do Imperial Instituto
Artístico acaba de ser reimpresso com leves alterações
um volume, que La 20 ânuos saíra dos prelos de Per-
nambuco, incerrando as entfio primícias litterárias de
um esperançoso talento.
Sobre esse volume se exprimia d'est'arte Alexandre
Herculano, em 22 de julho de 1852 : — « Bem mostra o
auctor 'nestes insaios, que liade vir a ser um dos or-
namentos litterários do seo paiz ».
Em 17 de junho do mesmo anno, dizia do livro An-
tónio Feliciano de Castilho : — « Das três partes essen-
ciaes, de que se compõe um poeta — phantasia — co-
ração — e duvido — , nenhuma, quanto a mim, falta
em quem escreveu este voluminho, antes se vê que as
Íiossue todas em notável grau. Se eu o visse, e nos
alássemos, havia de lhe dar, entre outros, dons conse-
lhos, relativos um á forma, outro ao próprio fundo da
poesia. Quanto á fòrma^ havia de lhe pedir, que em
todos os ponctosa esmerasse com incançavel paciência,
nao se permittindo nem construcçOes exclusivamente
brazíleirasy nem na versificação hyatos, e alguns outros
leves defeitos, que, inlevado nabelleza dos pensamentos,
algumas vezes deixa passar. Quanto ao fmtdo^ recom-
mendar-lhe-hia que, sem renunciar de forma alguma
a moderna eschola de Victor Hugo e Lamartiue, a que
elle me parece pertencer, se applicasse todavia, nfto só
um pouco, porem muito, ao estudo dos clássicos consa-
grados e incontestáveis, e especialmente ao de Virgílio».
Depois de dar desinvolvimento a esta these, conclue
assim : — «Queira V. fazer-lhesconstar, que estas suas
estreias me deram muito prazer, e que eu de.<ejo e au-
guro á sua musa um porvir muito brilhante. »
Quando taes mestres assim q ualificam um livro, está
julgado. Uma segunda edição d'elle nao pôde deixar de
ser expurgada das lacunas e deficiências que a inexpe-
riência dos 4 lustros torna inevitável. Hoje que o fo-
lheto de 179 páginas tomou as proporções de livro de
240, que uma apurada correcção aperfeiçoou, cremos
que as lettras devem considerar esta acquisiçao como
valiosa.
174 XXX^
A poesia, ííorno nós aiule ileinos, vivo no pens-iuieuto,
e roiilçfi-se u.L iórma , arraig'a-so n^i alma, incarna-se na
arte ; quem sente o Deus interior, e ao uiesino tempo
revcote a idéa de trajo esplendido, é poeia, qualquer qm-»
seja ^ applicação ([uo ás suas estrophes lhe apraza dar.
'Neste volume, a máxima parte dos cantos 6 inderes-
sada ao únic.o assumpto com que o génio, aos 20 nnnos,
vê soDredourada a natureza: a inullier. Estas pàg*i nas
nos deparam o sentir ardente, as agonias, as lágrymas
que rebentam de olhos que sabem chorar, de coraçílo
que a dôr com mão robusta estorce. 'Noutros lo;ranís,
surge o amor f«diz, satisfeiío, indeiisado, transmutando
a vida em delícias, o mundo em éden. A saudade, como
a Bernardim Ribeiro, foi um dos sentimentos que mais
cantos dictaram ao poeta, que 'neste incarnou toda
sua alma ; c que nlma parece ser a sua!
Nao St? ahsjrve porém a musa do Sr Ribeiro, exclusi-
vamente nos asíuuiptos eróticos ; distinguem-se 'nesta
collecçâo mimosas poesias dedicadas á religião, como (^
o Psahno ; ao amor filial, como sâo as indeixas Minha
mãe ; ás harmonias da natureza, como é a poesia intitu-
lada Ás flôreSy etc.
Doesta, por exemplo, vejamos alguns quartetos :
Princeza entre as flores, oh límpida ro&íi,
oh glória dos prados, amores do sol,
derrama os teos mimos, derrama orgulhosa,
em quanto do dia não morre o pharol !
Por entre os verdores do arbusto copado
alli da innocencia no branco jasmim
revela-se o emblema, talvez desenhado
por mao invisível de algum seraphim.
Lá brilha a pcrpúlua ; modesta surrind*»
a filha mais linda dos çhaos de Mogor;
diviso-a no gesto, na cor exprimindo
formosos segredos de pudico amor.
Lá vejo a sauí/arfc... saudades acordara.
Lá vejo os sMspiroi... suspiro também.
Que doces imagens que assim se recordam I
Que fundo mystério que as flores contêm !
, . >..■.■«••••.•
Da noiva contente vos leva a capella.
Surris innocentes no altar do Senhor.
Nas salas douradas, na choça singella,
se reinam folgares, lá brilha uma flor.
XaX 175
Té brilh-i dos m orlos uo lúgubre império,
cobriíâdo das campas o pállido horror ;
c ao pí^ do cyjiroste que se er^ue funéreo,
nos fila da morte com risos de amor.
Surri-vos, oli flor'ís, nos oampos, na serra,
no braço da lyra, n^)S cânticos meos !
Vós sois os brilhantf!S mais ricos da terra ;
caístes na t^M-ra de um riso de Deus.
Uitraimos a p'í:iaa, pois muito-; outros trechos trans-
cr^-vfíríamo^, se iv) ; deix. isse^nos arrastar pelo prazer de
multiplicar as pr ivas A') que a harmoniosa lyra do vale
peraambu'!ano é di'^na de vibrar com distincçno ent;e
as que honram ao paíz.
Os nepixtílí canos om Inglaterr-a.
Em Ing^l.iterra lambe-n ha republicanos, isso ha : o
que ou nkn scei é se sao da-; três espécies, em qu*í o g^é-
ner j se divi<le, ou .se apenas os ha de dua-?. Porque o
género repubtícano divide-se em três espécies : pescado-
res dragueis turvas, paleUvi, e alguns de boa fé. Esta
liltima espéci", pcdo [»equeno número de individuos, de
que consta, quasi pôde ser contada c )mo ex.^eprfio.
O; rapublicaaos ingle/,es serão das três espé.-ic:, de
duas, ou só de uma?
Tiveram elles sua reunião, e pregaram ao povo um
sermão, de que se concluía que aquelle paiz tem até
hoje andado pessimamente governado : é uma armadi-
lha, que é príiciso deitar aterra, para a substituir por
um*j república de papo amarello, em que mais nin-
guém hade trabalhar ! o governo havendo dinheiro
(sem que ninguém saiba d'onde lhe hale vir), hade
maníar ai)r)mptar tantos binqui.es. que hão de ser b*.-
▼ado4 em carros "p^las casas, afim de cada ufy se
servir do que qui/.er.
Talvez alguém c.iid'; qu? isto m^.r;ceu g.^^al approva-
cao : (1 uai historia ! cab «ci de mjfle^ é duri: não se
leva assim com duas ra^.ôíí. Ríuaiu-s.^ una porção
d'elle5, que não são dos tae;; também fe/. seo sermão,
em qu-j prjmííteu que por meio; morais e phffsir.os
(e5tà escripto assim mesmo) havia de obstar a que che-
gue essa edade, que não será de ouro, mas será de com í-
zainas. Est*s esturrados parece que pausam que lá em
Inglaterra todo o republicano ou é velhaco ou lolo.
Terião elles razão ? Otton.
176 XXXI
Ao pé do xnal o x*eziiedio.
O Largo do Paço, cLrisin«du, \,ov giaça da JUiiia.
Câmara Municipal em Praça de I). Pedi o II, (com o que
certamenie muito ganhou a salubridade e hforniC.-ta-
menlo d'esta Loa cidade, fim que alei esj-ecialnunie
incumbiu áquella corpgraçao ) o Largo do Paço, dizía-
mos, tem chafariz. Mandaram-lhe fazeraharba, e vesitir
camisa lavada, mas deixaram-lhe o sieo antigo officio, que
é dar de beber a quem tem sede.
E pois quando lhe deixam chegar água ás bicas (o que
nem sempre accontece ), lá continua elle na prática d'a-
quella importante obra de misericórdia. Quem tiver
sede, havendo água em bica, é beber até farlar. Kem
custa dinheiro, cousa que ja é bem rara no Rio de Ja-
neiro. Mas é certo : água de chafariz em primeira rnHo
obtem-se de graça, a nSo [ser alguma bcidoada que o
pobre do preto leva de algum urbano: povtm i.^ho nSo
se conta.
Mas quem bebe água, tem necessidade de a despejar :
isso é dos livros.
A necessidade de um logar acc( mmodado e próprit
nas immediacCes do chafariz, é de intuicfio.
Ora ahi está a razão porque em freme ao tal sòbie
dicto chafariz, mandou a Illnia. colk( ai i.nja Jatrira. on
como melhor nome haja.
Se está collocada bem em frente ao chafariz, é para
poder ser vista dos qued'ella precisarem.
Se não foi accommodada em algum pequeno gabinete
na casa, que próximo áquelle lugar, foi mandada le-
vantar, foi não só porque 'nesse caso deixaria de e>tar
bem á vista, e sobre tudo porque o logar, em que po-
deria estar esse gabinete,, poderá render á lllma. al-
gumas dezenas de mil reis annualmente, o que não é
cousa que se desprese.
E se é um dos priíÉeiros objectos, que incontra um es-
trangeiro, que aporta a nossas praias, é para que logo
possa escrever para a sua terra, fazendo ver como a
nossa municipalidade se occupa de nossos cónimodos e
necessidades, o que não pôde deixar de attrahir ao paia
grande immigração.
Ottox.
Typ. e lith. — Imparcial— Rua Sete de Setembro n. 146 A .
QUESTÕES DO DIA
DST.** 33
RIO DE JANEIBO, 11 DE JANEIRO DE W2.
"Veaáe^se em casa dos srs. E. && H. Lasiumort.— Agoslinho de Freitas Gui-
marães & Comp., 26, rua de General Camará.— Livraria Académica/ Rua de
S. José n. 119- Lar^^o do Paçe n. C— Preçío 200 reis.
O r volume, com perto de 400 páginas— aiJOOO.
I^nez <te Oastx*o.
Tragedia de Júlio de Castilho.
I.
Os amores do infante D. Pedro, e a trágica morte de
D. Ignez de Castro, em 1355, no reinado de El-rei
D. Affbnso IV, que morrea 2 annos depois, sao o quadro
de um amor tão majestosamente sublime, e de uma fero-
cidade tao pavorosamente execravel, que nao tem simi-
Uiame nos annaes do mundo. Ás mythologias do pa-
ganismo, tao imaginativas, e fecundas nas creaçOes do
amor e da crueldade, nada nos indicam de idêntico;
88 chrónicas dos povos, desinrolando os pergaminhos
de 8608 successos notáveis, nada nos aponctam que se
alce ao sublime e horrível d'aquelle singular episódio
da história portugueza.
D. Pedro incoutrára um dia nos aposentos do paço
real, em companhia da rainha sua mae, aquella mulher
formosa, tal como nos bellos dias da arte grega a
haviam sonhado Phidias, Praxiteles e Pamphylo, nos
arrõbos supremos d'aquellas almas tao feitas & imagem
e similhança do Omnipotente. Aquella fada das theo-
gonias, na sua mais esplendida manifestação da formo-
sura ideal, com seo collo de garço^ sua face de neve e
carmim, seos cabellos de ouro em madeixas fluctuantes,
emmoldurando o oval d'aquelle rosto de anjo ; o azul
celeste d'aquelles olhos, todo aquelle complexo excelso
de maravilhas lhe introu pelo intimo d'alma, e alma
d*aquellc8 tempos de glórias portuguezas, tempos de
fé e de gentilezas, tempos honrados pelas conquistas da
Cruz, pelos brios de cavalheiros e pela observância do
juramento.
VâP-at amaV-a, arrebatar-se, sentir-se nobilitado pelo
amor, íncher-se de uma nova vida, adunar-se em corpo
e alma ao objecto que lhe exalçava o espirito e os ex-
37»
XXXII
tremos acima das proporções do nivel conhecido ; foi
tudo principio e fíiii, elfeito e causa, e tudo l^u asinha
ahrtdhado d'aquelle primeiro incnntro, que mais parecia
o súbito arremessar du cratera comprimida no bojo d'um
vukao ou o improviso effeito do raio desprendido das
nuvens, que n ilesbrochnr de uma paixão cm peito de
homem.
Mutuaram-si- affcctos e carinlius, e aquellas duas al-
mas sublimes leram e guardaram uo fundo de coração
a grande epopéa de uni amor que não teye, nem tem
egual na humanidade inteira.
D. Pedro, o infante herdeiro de um throuo nobilitado
e afamado pela mirariilosa vic.ória do Campo d'OuriquB
e pelas glórias nfio menos grandes de Alcácer .lo Sal.
do reino dos Algarves conquistado aos mouros, de. Cas-
iella e de Aragão, de Andaluzia e d'Africa, e dai* mar-
gens do Salado, deapresava toda a linhagem gloriosa de
que vinha, nao ambicionava o throuo glorificado por
seos avoengos, porque seo throno, sua glrtria, .^^eo fu-
turo inteiro, o éJeu de suas esperanças, estava tudo na
alma de sua alma, na vida de sua vida, que tudo isto era
a formosíssima ígnea, de cujo amor não- haviam des-
viai'-© u'ím as forças de Portugal inteiro, nem as amia-
ças da suberba Castella. Oljstâculos o cercavam por
toda a parte; tramavara-se conspirações tenebrosamente,
nada demovia o infante ; cavalheiro, valoroso, leal e
magnânimo, tinha lavrado no livro de aeo coração o
juramento de preito e homenagem á senhora absoluta de
sua vontade, de seos extremos, de suas acçOes e de sua
vida. Nem o sobresenho carregado e amiaçador de seo
pae e seo rei, nem as lágrymas dé sua sancta mfte e
rainha, uem a philauciosa suberba da côrle e dos no-
bres do reino, nem o tumultuar do povo nas ruas etias
praças, que grilava contra a alliança de um príncipe
com H plebea e pea^ Ignez de Castro (ainda quede
muito subida entirpe vinha ellal ; nada de tudo isto
amedrontava o infante, que eraelle, só e desamparado,
H ilàu possante que uo meio do oceauo revolto e negco, e
batida de todos os lados pelas indómitas lufadas de
temporal desfeito, nao se afundava, nem ao menos roçava
a quilha nos alfaques.
No em tanto, assbranceriadorei, o indusimento sinis-
tro dos conselheiros, a suberba jactanciosa dos nobres,
a vozeria estrugidora dos populares, eram o rugir me-
donho de tempestade horrível; ennegrecia-se pavoro-
-ainente aquelie céo infausto , relâmpigos sinistros cru-
XXXII 179
zavani os espaços tenebrosos de uma atmospbera de
lucto ; todo este vertiginoso remoinhar desincadeado dos
elementos era o prenúncio de uma catástrophe que
ainda hoje, ha quasi seis séculos de diôiuucij. I íaz
gelar de horror, humilha e in vergonha a humanidade.
O rei era incerto e vário na resolução, os conselheiros
desalmados e sanguinários no intento, e a victima ex-
piatória estava irremissivelmente votada ao sacrifício,
sem embargo do sentir de nobres e leaes cavalheiros
que exprimiam os sentimentos da humanidade, e o res-
peito ás damas como soía haver 'naquelles tempos
cavalheirosos, em que se contrastavam bravuras e pon-
donores, arbítrios e cruezas. Coimbra, a rainha do
Mondâgo, que corre e se recurva humilhado a seos pés;
Coimbra, debruçada na incosta de seo monte, com seos
afamados campos, seos frondosos salgueiraes, seo admi-
rável aqueducto, e sua Sé, cuja antiguidade se perde
nos tempos, lá tem para memória eterna de um remado
e de um século a Quinta das Idgrymas^ onde geme em
solidão a Fonte dos amores^ tao divinamente celebrada
pelo immortal poeta dos Lusíadas \ lá tem esse monu-
mento de angústias, de martyrio e de ferocidade, ma-
culando uma história e fazendo verter prancto de dó a
todas as gerações que se succedem.
Foi ahi que no infausto dia 7 de janeiro de 1355, os
pérfidos conselheiros Álvaro Gonçalves, Diogo Pacheco
e Pedro Coelho, levando comsigo o rei, de Monte-Mòr
o Velho, foram juizes e algozes a um tempo ; cravando
desapiedadamente punhaes no seio alabastrino da vir-
tuosa Ignez de Castro, a mais esplêndida formosura de
seo tempo, a mais desventurada esposa e mae de que se
faz menção nos annaes da humanidade. Nada pôde
apiedar os tigres sedentos de sangue ; aquella desditosa
aos pés do rei com três innocentes*filhus, netos d'elle ; o
gemer e soluçar d'aquelles anjos, abraçados ás plantas
de seo avô, implorando misericórdia para sua sancta
roSle.... nada, nada abrandou a fúria dos sicários.
E a victima innocente dos preconaaitos de seo século,
caiu áos pés dos implacáveis algozes, como estátua de
alabastro colorida de púrpura ; e a sua voz, intercortada
na tribulação da morte, ainda proferia o nome de seo
prineípe,que, t&o distanciado,nao podia soccorrer aquella
que lhe era a luz e a vida.
Foi sepultada no claustro do mosteiro de Sancta
Clara.
180 XXX ll
D. Pedro volta, e busca o iilolo de sua alma; infor-
mado da catàMtrophe, ullulou como a liyena, corno o-
lao no deserto rugiu feroz e aoiiaçador e. bradou —
Vingança ! ! — Vingança — repetiram os eclios das mon-
tanhas, e o Mondego levava ao oceano a palavra tre-
menda, r|ne por muitci temp) os montes, os valles o os
campos repetiram. Si\bita transformação se operara no
espírito do desditoso infante ; parecia que o homem ia
deshumanar-se ; parecia que lodos os senti mentis de
humanidade se tinham transformado no instincto da
ving^ança. Parece mpsmo que a natureza estremeceu e
se convulsou k vista de tamanho horror e de tilo inau-
dita crueldade e do castigo horrível que tumultuava no
peito do ving-ador.
A 21 de agosto de 1856 um grande terremoto causou
consideráveis estragos, e mezes depois, em maio do
anno seguinte, succumbia o rei D. Affonso IV, que é
appellidado : filho ingralo, irmão injusto, e pae cruel.
O infante, que em vida de seo pne bramira furioso, e
que no excesso de seo desatino pela morte bárbara da
querida Ignez sus, — cego da dor que o excruciava,
pegara era armas, convocam aeos amigos, devastara e
posera a ferro e fogo as províncias do norte do reino,
acabou todavia por ceder aos conselhos prudentes da
rainha sua mfle e do arcebispo de Braga e voltou k vida
de soledade onde quiçá ruminava os planos de seo peu-
samento fixo — a ringanrn.
Dons annos depois da catàstrnphe, subia ao throno o
triste infante, orpham de tanto amor, e era proclamado
pela juncta dos três estados o Sr. D. Pedrol, rei de Por-
tugal, Foi seo primeiro cuidado contrahir ura tractado
de alliança cora Pedro, o Cruel, rei de Casiella, contra
o rei de Aragão, embora contra o voto dos conselheiros,
para obter a intrega das assassinos de Ignei : colheu às
mãos Alvan» Gonçalves e Pedro Coelho, tendo-ao esca-
pado Diogo Pacheco. Inventaram-se os mais satânico»
tormentos ; o rei qne assistia ao supplicio animava os
algozes, e chegou por sua própria mao a fustigar uma
das vlctiraa<!, mandando arrancar o coração a ura p^da
frente, a outro pelas costas ! ! ! Este acto que toca o
apogéo da crueldade, só iucontra escusa no delírio de
um amor sem tênno, na idéa fixa de ura martyrio excru-
ciant«, no pensamento inabalável de uma punição em-
parelhada à crueldade inaudita do assassinato feroz de
uma victima innocente, sacrificada ao rancor do misc-
XXXII 181
Em seguida o rei convoca as cortes, declara e jura
solemnemente seo casamento com D. Ignez de Castro,
tendo sido celebrado em Bragança, presente o bispo da
Guarda e o reposteiro mór; e de tiido se lavrou termo.
Mandou desinterrar o cadáver, cingiu-o das reaes
insígnias, pÕ7<-lhe a coroa de rainha na cabeça, sentou
aquelle corpo inanimado no throno de seos avós, e or-
denou que todos lhe beijassem a mílo como rainha de
Portugal, fazendo-lhe todas as hpuras e ordenando-lhe
depois o saimento para Alcobaça com tamanho esplen-
dor e magnifícência , como nunca se houvera visto,
accompanhado de toda a corte, grandes do reino e fi-
dalgos, todo o clero, prelados e mais dignidades, man-
dando-lhe erigir um magnífico mausolêo reunido a
outro que lhe era destinado ; e quando se lhe ante-
5 unham embaraços na guvernança de seos Estados ia
ebruçar-se sobre q mármore frio do túmulo e pedir
inspirações ás cinzas d'aquella, cujas recordações lhe
ínchiam e occupavam a vida inteira. Todas estas
magnificências, respeitos e acatamentos pósthumos, são
o symbolo sublime do ideal do amor, da saudade eterna,
da lealdade immaculada, e do pungir de uma dor sem
limites.
O principe D. Pedro foi o protótypo da firmeza, e
estabilidade do amor á mulher da escolha de seo cora-
çfto ; foi o modelo da saudade, da reverência e da
dedicação pósthumas ; foi o poeta elegíaco que soube
crear uma epopéa para estampal-a no pórtico de todos
os séculos e achar no coração de cada poeta um echo, e
nos olhos de quantos tiverem alma capaz de sentir, uma
lágryma.
Cumpre porém dizer, que D. Pedro foi como o mar,
negro e furiosamente revolto durante a sanha indómita
da tempestade ; calmo, plácido e sereno no repouso dos
elementos. Aquietado o furoi- da vingança, tornou-se
liomem ; aplacado o allívio do uesaggravo, tornou-se
rei, e é chamado na história — o Justiceiro. —
MUCIO SCOBVOLA.
[Continua.)
NONA CARTA DE CINCINNATO A SEMPRONIO.
Rio de Janeiro, 5 de Janeiro de 1872.
Amigo.
Meo dicto, meo feito ; fui propheta ; e nem admira,
que se sou alveitar, tal me fez o mal dos meos burricos ;
asinha prophetiza (para deante), quem não é senão his-
182 XXXII
toriador (para traz) ; o hontem costuma trazer no bojo o
amanha.
A 29 do passado, escrevia-te eu que « havia críticos'
cuja praxe é applicar ao livro mais pífio certos termo®^
encomiásticos e bombásticos, taes como : estupendo pri-
mor ; esmalte de eloquência e belleza ; auge de perfei-
ção ; fecho de abóbada litter&ria ; non píus idtra da
sapiência ; cinta, capitel e coroa da columna das let-
trás
« Ora, toda esta algaravia, esta cascalheira, o que
significa é o dialecto do elogio mútuo, ou uma bajulação
torpe, ou uma ignorância philauciosa com que vEos sons
pretendem incobrir deficiência de idéas e incompetência
de julgamento. »
E logo no dia immediato me traziam um número do
jornal predilecto do Sr. Alencar, a Repúblka^ o infeliz
pelourinho do Ti/, com um panegyrico, do tal género
pantafaçudo, ao famoso Tronco do Ipô (do que a seo
tempo me occuparei), onde li cousas do arco da velha,
taes como que na língua portiigueza, aqui e alem-
mar, em bem poucos romances se poderá deter a atten-
çao! quando este último quartode século brilha com innu-
meraveis romances originaes,dos qnaes o derradeiro fica
cem léguas acima do melhor do Sr. de Alencar. (*)
(*) Deixo aos outros quahfícar como lhes approuver esta
injustíssima e ingratíssima accusação. E' exactamente no
género romance e contos, que a litteratura d'este último quarto
de século se tem inriauecido opulentamente, e de modo tal que
talvez nenhum outro idioma haja produzido tão elevado número
de jóias litteránas, algumas das quaes de subido valor.
A' testa d'essa aguerrida phalaage fulgura com deslumbrante
brilho Camillo Castello Branco, nfto só de infatigável c as<(om-
brosamente fecundo estro, mas (sobre tudo nos últimoi) 12 an-
nos) de valentia de imaginaçflo, elegância do phrasc, graça
e mimo de expressão, originalidade e naturalidade de inrédos,
riqueza de pensar e sentii^ harmonia da prosa, vernaculidadc do
dizer, inthesourar de termos pittorescos desingastados da lín-
guagem popular ou das páginas dos bons livros, termos c locu-
ções que opulentarão os nossos léxicons ; o que tudo o rolloca
em altura inaccessivel 'nesta especialidade.
Muitos outros peregrinos talentos, porém, se tôm dado a este
ramo, que até verdadeiramente se pôde dizer que nasceu entre
nós ha poucos annos. E pois que importa rebater uma asserc&o,
tendente, como em tantos objectos é do uso de certos patriolas,
a deprimir as nossas cousas 'naquillo mesmo em que ellas mais
louvor merecem, acho conveniente aponctar aqui algumas das
obras de alguns dos modernos auctores, que exactamente se tem
occupado distinctamente de escrever romances, originaes, que o
imparcial crítico stygmatiza como indignos de mençfto 1
XXXII 183
Vai indo aquillo por alli abaixo r.a mesma afinação e
depois dà-rae para o meo tabaco. Denuncia que eu 7ião
tenho espada e não tenho charrua^ faltas estas que me.
£azem muita falta; proclama-me romano degenerado^ e
Krtanto inferior a qualquer ganço do capitólio, d'aquel-
} que nós sabemos; diz que eu não posso lavrar as mo-
destas geiras do meo património ^ do que os meos boi-
sinhos se deram por insultados; e represonta-me in-
capaz de salvar a pátria^ privilégio reservado aos
Salvadores.
Como porém não é a minha triste figura que está em
discussão, passemos ja á apologia do Sr. Alencar. Queres
saber como se responde ás tuas profundas anályses, às
tuas demonstrações, assim como ás minhas respeitosas
dúvidas? Queres ver a argumentação adamantina com
íífto ha necessidade de fixar ordem nem na ohronolopia, nem
no mérito das publicações. Eis-ahi indicações lançadas ao
«caso:
CAMILLO CASTEhLO BRANCO :—Ap:ullia em palheiro— Amor de
perdição — Amor de palvaefto — Anáthema — Annos de prosa —
Aventuras de Basílio Fernandes Inxertado— O bem e o mal —
Bruxa de Monte-Córdova— Carlota Angela— Co raçào, Cabeça,
TÇstôraafro— Cousas espantosas— A Doida do Candal— Doze Casa-
mentos felizes— A Ingeitada— O esqueleto — Kstréllas funestas—
KstrôUas propícias — A filha do arcediago— A filha do Doctor
negro— Um homem de brios— O Judeo— Lágrymas abençoadas —
Livro negro do Padre Diniz— Lucta de gigantes— Memorias de
Guilherme do Amaral— Mystérios de Fafe— Mystcrios de Lisboa
— A neta do arcediago — Noites de Lamego— O olho de vidro —
Onde está a felicidade? — O que fazem mulheres— A queda de
um anjo— O retrato de Ricardina— O Rom«nce de um homem
rico — O Sancto da montanha- O Sangue— Sccnns contemporâ-
neas— O Senhor do Passo de Ninàes— A sereia — Ultima palavra
da Consciência (Solemnia terba) — As três irmans — Vingança
Vinte horas de leitura— As virtudes antigas, ou a freira *que
fszia chagas e o frade que fazia reis— Os brilhantes do brazi-
Iciro— ^Cavar em ruinas— Cousas leves© pesadas— Cousas espaux
tosas — Duas horas de leitura-Taunay— Memórias do Cárcere—
Memórias do Fr. João de S. J. Queiroz— O mosaico— No Bom
Jesus do Monte— Romance de um rapaz pobre— Sccnas da Fóz—
Scenas innocentes da Comédia humana— A mulher fatal.
ALKXANimE IIERCDLANO:— O alcaide de Santarém— O bobo—
Eurico — O Monge de Cister— Lendas e narrativas — O Monás-
ticon.
PEREIRA DA CUNHA :— Brios heróicos de portuguezes -Contos
da minha terra.
ANDRADE CORVO:— Um anno na Corte— O sentimentalismo.
JOSÉ JOAQLIW RODRIGUES DE RASTOS:— O Médico do Deserto.
TEIXEIRA DE VASCONCELLOS :— O Prato d'arroz doce— ROBERTO
VALENÇA— A ermida de Castromino.
ANDRADE FERREIRA :— Tradições c phantasias.
184 XXXÍI
que se pulverizam conscienciosos estudos, e com que se
justificam as taes cousas que nós pergumâmos se nao sao
erros palmares ?
Escuta cá esta mirífica justificação :
1.® O 'B%Qod que com maior brilho ha até hoje inscripto
o nome em nossos annaes litteràrios é, sem contestação
razoável ( cómmodo), José de Alencar. »
Estupendo primor !
2.° « Cada uma de suas novas composições revela o
observador profundo »
Auge dk perfeição !
3.° « Veste de mil incautos a* realidade positiva dos
existências as mais simples » ( é portuguez á moda de
Sénio )
Esmalte de eloquência e belleza !
4." » O Tronco do Ipê é mais uma prova brilhante do
meo asserto »
NON PLUS ULTRA DA SAPIÊNCIA !
5.** « Characteres b^ím delineados, estylo elegantíssimo,
sSo os seos mais notáveis predicados » ( Que taes serfto
os outros ! )
FRANCISCO MANOEL BORDALLO :— Eugénio— Viagem á roda de
Lisboa.
JÚLIO DINIZ (Dr. Joaquim Guilherme Gomes Coelho) — ^Morga-
dinha dos Cannaviaes — Uma Família Inprleza — As Pupillas do
Sr. Reitor— Os Novôllos da Tia Philomella— O Espólio do Sr.
Cypriano — As Apprchensões de uma Mãe — Uma flor d'entre o
golo.
REBELLO DA SILVA :— A tomada de Ceuta— Contos do Seriio —
Raússo por homisío — A mocidade de 1). João V — Lágrymas c
Thesouros — A Casa dos phantasmas — Odio Velho nào cança —
A pena de TaliSio.
DR. A. SILVA GAIO :— Mário.
LOPES DE MENDONÇA:— Memórias de um Doido.
JDLIO DE CASTILHO :— Memórias dos Vinte Annos.
THOMAZ RIBEIRO:— D. Javme— Delphina do Mal.
ANTÓNIO COELHO lousaIa :— Os Tripeiros— A rua Escura— Na
Consciência.
GARRETT :— Arco de SanfAnna.
ARNALDO GAMA:— O Génio do Mal— A Caldeira de Pêro Bote-
lho—O Segredo do Abbade— O Sargento Mór de Villar — A Ultima
Dona de S. Nicoláo— O Motim— Ha cem Annos— O Filho do
Baldaia — Honra ou Loucura— Verdades e Ficções.
EUGÉNIO DE CASTILHO:— Miragens da Felicidade.
A. D. DE PASCHOAL:— A Morte Moral.
FRANCISCO LUIZ GOMES:— Os Brahamanes.
DR. JOAQUIM MANOEL DE MACEDO:— Os Dous Amores— O Moça
Loiro— A Moreninha— llosa— Vicentina— As Víctimas-algozes
— ^Homance de Uma Velha.
.WLIO CfiSAR MACHADO :— Contos a Vapor— ontos ao Luar—
XXXII 185
Fecho de abóbada litteraria !
C.** « Sceuas ha em que o talento da descripçao as-
sume proporções cooperiaaas; e para nao esteader-me
/" a fio comprido ), basta assig^aãlar a narração da scena
do boqueirão E' dVssas obras d'arte que hao-de
passar de geração era geração como representantes de
uma épocha litteraria, e iniciadoras do romance na-
oional. »
Cinta, capitel e coroa da columna das lettras.
Entílo, nao estava eu adivinhando? Agora no campo
republicano é natural esta linguagem para com o neó-
phyto, até que a centessima revira-volta'de amanhã os
tíiça apupar o hoje indeusado. E' a algaravia; é a casca-
lheira; sao os palavrões sesquipedaes; os juizos superfi-
ciaes e bombásticos; as appreciaçOes vagas; os ribombos
pyrotéchnicos, ou as espadas Alexandrinas.
Curiosas rebem ditas ! Deraonstra-se-lhes o contrário
de tudo isto; nao contestam o incontestável; e pur si
ínuove l São a mulher da tesourinha
Allega-se e pròva-se que os characteres sao mal tra-
çados, e como se responde ? « Os characteres são bem
delineados, »
AUega-stí e prova-se que as denominadas observa-
ções do romancista são falsas, e como se responde ?
í< Estas composições revelam o observador profundo. »
Allega-se e prova-se que o nobre escriptor commette,
a cada passo, os mais graves erros da lingua, e como se
Estevam — Histórias para Gente Moça— A Vida em Lisboa— Pas-
seios e Phantasias — Scenas de minha Terra.
MATHEUS DE MAGALHÃES!— Mulher Funesta— Homem Funesto
— ^Receita para curar paixões.
MENDES LEAL:— Calabar— Sonho da Vida— Aventaras de Mar-
çal-Estouro — Mosqueteiros.
D. MARíA PEREGRINA DE SODZA!- Retalho do Mundo— Rhada-
mantho.
PEREIRA DA SILVA :— Manoel de Moiles.
PINHEIRO CHAGAS !- A Corte de D. Jofto V— A Flor Sêcca—
Tristezas á beira-mar— A Virgem Guaraciaba— Contos e Des-
cripçOes .
JOSÉ DE torres: —Lendas Peninsulares.
FAUSTINO XAVIER DE NOVAES:— Mantas de Retalho— Cartas do
um Roceiro .
ESCKAGSOLLE TAUNAY:— A Mocidade do Trajano.
RAUALIIO ORTIGÀO :— Em Paris — Mystério da Estrada de
Oynthra.
D. MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO:— Uma Primavera de
Mulher.
ANTÓNIO D'OLlVEIHA MARRECA:— Manoel de Souza Sepúlveda—
O Conde Soberano de Castella, etr-.etc.
186 XXXII
responde ? « O seo maior predicado é o estylo eleganlis-
simo. »
El sic de ccBteris.
Comprehender-se-hia que, após uma polémica illus-
trada, em que os preclaros adversários lealmente trium-
phassem de ti, e de nós todos, e nos convencessem dos
nossos erros e de que são bellezas o que de ílefeitos qua-
lificamos, rematassem com o^íses ipl ijil livrrahs! i\(r
seo actual ídolo ; mas soUicitarem o plaudile 7)ianibus
antes de abrirem o bico, perdôem-nos os sapientes con-
frades republicanos, nao é das mais razoáveis exigrên-
cias.
'Noutra folha, que ahi vem lá de outra República,ap-
parece também uma correspondência sobre o Guarany^
onde se lêem cousas do arco d'outra velha. Rompe assim:
— n Em J. d'Alencar possuem as leltras bra/àleiras
o seo Chateaubriand. »
E lè-se logo no § immediato, o "2° :
— « Entre Chateaubriand e J. d^Aleucar ha um des-
penhadeiro profundo, ou antes uma revolução! »
E no 3*» § lê-se mais isto :
— (( Approximar-f^tí os dous escriptore^ é um impossí-
vel deanie de suas obras! que o protestam! em presença
da crítica, que, soparando-os, eigue-lhes 2 pedestacs
etc. ctc. »
Preceitos que mais obrigam !
Pedir quem pôde mandar!
Possuímos pois um Alencar que é, tal e qual, um
Chateaubriand ; mas fiquem também certos que o Cha-
teaubriand e o Alencar nao s;i parecem nada ! !
Faz-me lembmr um subjeito do meo conhecimento, e
muito gracioso, que um dia 'numa conversa, caindo era
si, se saiu com um disparate muito galante:
— *0' Cincinnato, viste hoje o Figueiredo?
— Figueiredo ! N%p conheço.
— Esteve hontem comno>co em casa do José Esiàcio,
— Estava lá tanta gente ! Podes dar alguns sig-
naes ?. .
— E' tal e qual como o Possidóuio: a differença está
só em ser mais baixo, menos córádo, cabêllos mais ar-
ripiados. olhos pequenitos, bôcca niuilo maicr, em falar
meio tatibitati, em ter uns "20 fnuos deedade mai;?... e
em nao se parecer nada.
Já SC vê que com similhaníe photograpliia, se j Sr.
Figueiredo passasse 'naquelle momento deante de mim,
exclamaria eu logo : Ecce homo !
XXXII 187
Chateaubriand-Alencar : vide Figueiredo-Possidónio.
No tal artigo sobre o Guarany ( outra producçao que,
se Deus me dér vida e tempo inútil, também hade vir
para a berlinda), egualmente fulguram, entre outras
particularidades, osenthusiasmos laudatórios. Olha aqui:
— « Alencar é grande pelo génio!.... No seo Gna-
rany não se incontra uma lauda inferior ás do Atila e
Naíchezl... Alencar é o creador do drama realista no
Brazil ! Tem todas as elegâncias de um estylo a tras-
bordar de opulências !.... Os personagens de Alencar
remontam-se a um sentir qne se localizai... O Guarany
irá inriquecer as estantes da litteratura européa, como
uma bíblia sancta que recorda a legenda de um povo
talhado para grandes destinos!... Esta scena incerra a
syntheses do romance!... Verdadeiro triumpho é este
para as lettras brazileiras, e mais ainda para as do
universo !... O Brazil conquistou mais uma coroa »
Sim : « CINTA, CAPITEL E CORÔA DA COLUMNA DAS LIÍT-
TBAS. »
O responso está divertido. Um leigo grita: « V. Rev.
é um Octaviano » ( um olho dera elle ao demo ). O outro
diz: « V. Revm. é um Fenimore Coopcr )>. Torna o
primeiro : « V. Revm. vence o auctor de Ontário ». Re-
dargue o segundo : « V. Revm, nao é, mas 6, Chateau-
briand ». E cá o nutro leigo responde-lhes : « Obrigado,
meo povo ; obrigado a Vossas Reverendíssimas. »
Eu sou da mesma opinião, e concordo em que o il-
lustre romancista seja, por um senatus-consulto, pro-
movido a semi-deus, ou a deus e meio^ o que já estes
bons críticos estão, por um és nao és, propondo que o
proclamemos. O Rio de Janeiro está montado acavallo
no trópico de Capricórnio ; ora a reminiscência àePleLÍfío^
e a metempsycose de Pythágoras fizeram dos dous tró-
picos duas portas, pelas quaes sobem e baixam do céo
as almas — por Cancro^ as dos homens — e as
dos deuses, por Capricòrmo, Portanto, e pois que a fá-
bula nao mente, competia cá a este deus baixar á terra,
nao por liaependy, mas pela corte do Rio do Janeiro.
Pouco perde em ter perdido a senatória, quem ganhou
honras divinas.
Se eu me regular por um grande pensador, direi que
embora o errar seja propriedade da natureza humana —
o conhecer o erro é de homem de juízo — o emendal-o é
de homem sábio — o perseverar 'nelle é de stulto — o
patrocinal-o é de demónio.
188 XXXII
Porque sinto um certo cmbrulhamento de estômago,
coutento-me hoje com esta dose homeopáthica, e fica o
Til para a outra vez. Teo dadicado
Cincinuato.
OBRAS DE J. DE ALENCAR -A IRACEMA.
VII
Meo respeitável amigo. Sem mais preâmbulo.
Diz J. de Alencar que Martins Soares Moreno era fi-
lho do Rio Grande do Norte {Iracema^ pag. 93 e 180)
Diz mais que <c em 1603, Pêro Coelho, homem no-
bre da Parahyba, partiu como capitao-mór de descober-
ta, chegou à foz do Jaguaribe, e ahi fundou o povoado,
que teve nome de Nova-Lisbôa » (pag. 15Ô); eque
« 'nesta primeira expedição (porque houve segunda, a
de João Soromenho, como diz J. de Alencar) foi do
Rio Grande do Norte um moço, de nome Martim Soares
Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe
dos Índios do littoral, e seo irmão Poty » (pag. 160)
Ora, que em 1603 partiu Pedro Coelho para colonizar
o Ceará, e que em sua companhia foi Martim Soares
Moreno, dizem-n'o todos os historiadores e chronistas
do tempo. Pois bom; guarda tu bem em memória, que
em 1603 Martim Soares Moreno estava no Ceará com
Pedro Coelho.
Mas pergunto eu : em que data se fez a conquista do
Rio Grande do Norte ? Vai responder por mira um his-
toriador:
u 1397 — 'Neste anno fez-se a conquista do Rio
Grande do Norte por ordem de Philippe I, com o intui*
to de impedir aos francezes a exportação do pàj brazil,
e de domar os Potyguaras, que destruíam todas as
plantações dos moradores da Parahyba, e estorvavam o
progresso d'esta colónia.
a D. Francisco de Souza, Governador e Capit&o
General do Estado Ho Brazil, contribuiu com todas as
despesas, à custa da Real Fazenda. A esquadra que se
aprestara em Pernambuco, levando um Jesuíta por in-
genheiro e um Franciscano por intérprete da língua dos
indígenas, navegou destinadamente à embcccadura do
Rio Grande, que era o porto mais visitado pelos cor-
sários.
a A empresa teve principio com um fortim de ma-
deira, juncto ao logar onde hoje está a fortaleza dos
Reis, e cujo primeiro commandante, Jerónymo de
Albuquerque, t^ve muitos e renhidos combates com os
XXXII 189
indígenas por mais de um anno, até que travando ami-
zade com um dos chefes, chamado áorobabé, por me-
diação de um Índio allisído, teve a opportunidade de
lançar os fundamentos da cidade, que tomou o nome
do Natal, por se incontrar a inauguração da sua matriz
com a festividade do nsiscimento do Redemptor,no anno
de 1599. » [Deducção Chronológica, do General J. I. d**
Abreu e Lima, pa^:. 62).
Do que acabo de citar, o que é que se evidencia ?
Que antes de 1597 nao existia no Rio Grande do Norte
o menor indicio de colonização, e muito menos portu-
gueza ; que só 'nesse anno foi que ahi teve principio o
primeiro estabelecimento, consistente em um fortim de
madeira ; e que, graças à mediaç&o de um Índio allia-
do, que se relacionou com o chefe Sorebabé, foi que
teve Jerónymo de Albuquerque opportunidade de lan-
çar os fundamentos da cidade do Natal. Cumpre adver-
tir, antes de tudo, que esses mesmos fundamentos só
os poude Jerónymo de Albuquerque lançar em 1599,
porque de 1597 até essa última data levou elle em
renhidos combates com os índios. O mesmo auctor, na
pag. 64 da sua citada Deducção^ diz :
« 1599.- 'Neste anno comefoti Jerónymo de Albuquer-
que^ natural de Pernambuco, a fundar a cidade do Na-
tal, hoje capital da província do Rio Grande do Norte. i>
Admittida por tanto a hypóthese (inadmissível, como
se provará) de haver Soares Moreno (segundo afBrroa J.
de Alencar) nascido no Rio Grande, este facto de modo
nephum poderia ter tido logar antes de 1597, porque
doeste anno para traz o Rio Grande estava em pleno
domínio dos selvagens Potyguáras, que, se algumas
transacções tinham, era com Francezes, que « vinham
traficar em páo brazil », como faziam na Parahyba.
O auctor citado refere a pag. 52 o seguinte : « Os Poty-
guáras, naturaes da Parahyba, unMos com os Francezes,
que vinham traficar em páo-brazil, faziam graves dam-
nos aos povoados de Itamaracá e de Iguarassii, etc. i^
Ora, ainda admittida a primeira hypóthese, fora ne-
cessário, pnra que Soares Moreno houvesse nascido logo
no primeiro unno da conquista do Rio Grande, que, ou
a m&e de Moreno houvesse ido na tal esquadra de Jeró-
nymo de Albuquerque, o que nfto é comtudo muito pre-
sumível, porque o guerreiro devia anteceder á família e
preparar-lhe os necessários cómmodos e garantias; ou
qne fosse ella natural do logar, o que.em todo o caso, só
poderia accontecer depois de 1597.
19U XKXII
Mh!í nãi) seja esta a dúvida : dâinos de barato que a
niae de Moreno fôase na expedição g-nerreira de Albu-
querque, e -ãiè que já fosse em eiitado de adesntada g;ra-
viden, de sorte que logo uos primeiros dias da chegada
tivesse o (4eo bom successo.
Cuuibiuatido as datas, a que concluiSo çheguremos*?
A' segiiiuli;. que nSo deixa de ser curiosa e sobretudo
dig-ua do tiileiito ini^eníivo do chefe dn nossa litteratura,
a saber: que Martim Soares Moreno, nascido em 1597,
tinha uecessariamente em 1603. quando accompanhou
Pedro Coelho ao Ceará, tí annos de edade. Será isso
crivei f I^^aminemos.
O citado historiador, na p»g, 70, diz que Diogo de
Meneses « contentou-se con inviar ao Ceará (em 1610)
um ofjiriat poriiijruez, quo linha accompunliado a Pedro
Coelhi} (em 1603) e se havia conduzido bem com os iadios,
t'tc- « Logo, H prevalecer a opiniSo do Sr. Alencar,
temos Martim aos 6 annos de edaue feito ofjinal, e aos
6 annos c-ondazindo-se bem com os Índios. Prodígio!
Esse chefe da nossa litteratura, .se coatiuuar assim, àh
decididamente com a pobresita em pantanal Com a
litteratura só? Coma história também, para gloriado
Brasil e dos idólatras. Ahl RilhafollesI
Mas dirá u tír, Alencar {digo, algunm por elle) que.
abrindo o 2' vol. das Obras de J. F. Lisboa (que subs-
tanciou os diiteres dos mais accreditados historiadores)
se acha uii pag. 74, o seguinte tópico em seo favor :
n Tinha Diogo de Campos um próximo parente, ao
qual de TiHii tpnra edaile fizera accompauhar a expedição
de Pedro Coelho. ■
Sim, senhor ; vi alii essa mui tenra edade. Mas, peço-
llie vénia para coutinuar aleroinesino nuctor.ua mesma
p&gina n no mesmo poncto, e veremos quem tem raitao.
« Tinha Diogo de Campos um próximo parente ao
•jual de mui tenra edaiie fi/era accompaiibar a expedição
de Pedro Coelho, afim de que, aprendendo a língua dos
indígenas, e estudando oa seos coslmnes, se fizesse seo
tilo familiar, que elleso tivessem como amigo, parente
ou compadre, segundo usam de çli^iQ^'' ás pessoas a
quem criam afFeiçao. »
Primeiramente o flm que teve em vista Diogo de
Campjs, mandando Moreno na expedição de Coelho,
foi aprender elle a língua dos indigenfts, e entudor os seos
costumei. Pois bem: ninguém incumbe ura menino de tí
aaiios de tarefa tal, evidentemente fora 4o alcance ain-
da do mais hábil 'nesta edade, A história declara ser
XXXII 191
Martim babil e industrioso. Mas, apezar disso, na\) é
^crivei que era tao verdes annos, o intreg^asse a si somen-
te Diogo de Campos, homem de aviso; e muito menos
que confiasse em que, era taes circumstâncias, surtisse
eflFeito o expediente. Logo as palavras mui tenra edade
se devera intender muito moço^ ou rapaz ^ ou joveii, e nao
menino àe 6 ãunos. 'Naquelles tempos, em que as em-
presas arriscadas só eram confiadas a espíritos maduros,
a homens feitos e provectos, deveria nao só despertar
certo reparo expôr-se um moço a taes provas, como tam-
bém ser pelos chronistas considerado de mui tenra edade
quem talvez se achava em plena infância.
Em seguuuO logar, cumpre ainda dizer que o próprio
citado historiador confirma era seguida esta interpre-
tação, nos seguintes termos :
« Houve-se o Jiiancebo, chamado Martim Soares Mo-
reno, com tanto aviso e discrição^ que, maliograda a
expedição de Pedro Coelho, e lepelliaos depois os dous
padres jevSuitas, elle só continuou a conservar a affeiçao
dos* índios, um dos quaes, o principal, Jacaúna, até o
nomeava filho, e o accolheu com grandes alvoroços e sa-
tisfacçao, quando chegou ao Ceará, despachado capitão
pelo governador geral. »
Ora, priraeiramente nao é verosimil que uraa creança
de 6 annos se houvesse com esse apregoado aviso e dis-
crição; e tanto nao ev^ creança, que o historiador lhe dá
o nome de mancebo ; e depois, releva observar que tam-
bém inverosímil se afigura que o nomeasse capítao-
mór do Ceará o governador geral se elle tivesse 10 an-
nos, edade que, a prevalecer a opinião do chefe da nossa
titteratura^ devia ter Martim, pois que recebeu essa no-
meação em 1610.
Sempre desejara que fosse o próprio Sr. Alencar
quem explicasse estes impossiveis^ e nao ninguém por
nenhum. Esse chefe da nossa litteratura está-me pare-
cendo que tambera pretende os louros de chefe da nossa
história. E que chefe !
Mas nao é tudo. Dêmos de barato que Martim accom-
panhasse a Coelho para aprender a língua e estudar os
costumes dos índios, com H annos ; que com 6 annos se
houvesse com todo aquelle aviso e discrição^ levando as
lampas ao prático aventureiro Pedro Coelho : que, com
10 ânuos obtivesse do governo geral a nomeação de
capitao-mór do Ceará, e que com 11 tivesse aqui fun-
dado o presídio de Nossa Senhora do Amparo, Isto é um
192 XXXII
impossível contra a razão^ mas nada será em face do
impossível contra a natureza:, Prosigamos.
Tendo Pedro Coelho ido colonizar o Ceará em 1603,
ahi só ee achou em 1604 porque, usando de perfídia coro
os Índios e até osalliados, teve de ceder àsiusídiatíe
represálias d'estes, pondo os pés em polvorosa com sua
família para a Parahyba, fuga em que perdeu dous
filhos de menor edade (Vid. a História do Urazil p(»r
Constâncio, porSouthey, etc.)
Pergunta-se ; Martim Moreno, que viera em compa-
nhia de Coelho, accompauhou-o na fuga para o primeirí>
estabelecimento d'este aventureiro na Parahvba? Diz-
nos o Sr, J, de Alencar, que nao ( Iracema^ pag. 10 e
11. ) Ouçamol-o :
« O estrangeiro dice [d india) :
« — Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a
taba nas margens do Jaguaribe, perto do mar, onde ha-
bitam os Pytiguáras ( nunca ouvi dizer que estes se-
nhores habitassem no mar) ennemigos de tua nação.
Meo nome é Martim que na tua língua diz como Slho
de guerreiro ; meo sangue o do grande povo que pri-
meiro viu as terras da tua pátria. Já meos destroçados
companheiros voltaram por mar ás margens do Parahyba,
d'onde vieram ; e o chefe ( Fedro Coelho), desampa-
rado dos seos, atravessa a^ora os vastos sertões do Ano-
dy. Só eu de tantos fiquei, porque estava entre os Py-
tiguáras do Acaraii, na cabana do bravo Po ty, etc.»
Ora, se no momento em que Martim está falando
( agora, diz elle ) Pedro Coelho atravessava em fuga
os vastos sertões do Apody, é evidente que a data em
que Martim falava á índia era 1604.
Logo quer nos parecer que se Martim nasceu no Rio
Grande em 1597, e se em 1603 tinha 6 annos, em 1604
devia necessariamente contar?. Será isto lógico? Tal-
vez ponham em dúfida.
Puis bem : com 7 annrs de edade, Martim Soares Mo-
reno pelejava como guerreiro consummado, desbancava
o famoso chefe Irapuan ( Mel Redondo ), conquistava a
índia Iracema, e tinha d*ella um filho ! Com 7 annos /
Explica-me a cousa, Cincinnato, com as tuas tSo
escolhidas facécias. Faz-me essa obra de caridade.
Teo sempre fiel amigo
Semprónio.
Typ.— IMPARCIAL- Rua Sete de Setembro, 146 A .
QUESTÕES DO DIA
N.^ 33
RIO DE JANEIRO, 21 DE JAMEIRO DE 18^2.
Vende-se em casa dos srs. E. &£ H. Laímmert.— Atfostinho de Freitas Gui-
marães Òí Comp., 26, rua de General Oiinara.— Livraria Académica, Rua de
S. Jose n. 119- Largo do Pa^e n. (.:.— Proç^-o 200 reis.
O r volume, com i)erto de 400 pá^inaií— 3$U00.
IVIoiíixxiierito a Booage.
Açlia-se oonverlido em facto o pensamento da illus-
trada assembléa que, no dia dojiibilêo de Bocage,
resolveu se lhe erigisse um monumento na sua terra
natal. A despeito de mil contrariedades, a idéa
vingou.
E' sabido que a illiístre commisao central, d*esta
corte, delegou em dons de seos membros o incargo de
dirigir a conclusão dos trabalhos, conferindo-lhes para
isso amplos poderes. Em consequência, depois de ter-
minados aquellcs trabalhos, tendo os díctos Delegados
da Commiâsão assentado em que so procedesse àinau-
g^uraçílo da estátua no dia 21 de dezembro, 66. "^ anni-
versário do passamento do grande poeta, pôs-se em
correspondência com a commissao filial em Setúbal, e
ronvídou para em Lisboa se reunirem em commissao,
afim de na solemnidade representarem os brazileiros e
portugueses que no Império promoveram esta manifes-
tação, os Srs. Mar(^uez d' Ávila e Bolama, Visconde de
Castilho, Conselheiro Miguel Maria Lisboa, Conselheiro
J. M. Latino Coelho, Conselheiro L. A. Rebello da
Silva, Conselheiro A. J. Viale, Conselheiro D. António
da Costa de Souza de Macedo, Conselheiro J. da Silva
Mandas Leal, Júlio de Castilho, e António da Silva
TúUio; e agente da mesma commissao central, o Sr.
António Torquato Azedo e Silva.
Todos desempenharam o incargo, menos três doestes
cavalheiros : o Sr. Rebello da Silva, por ter sido inopi-
nadamente arrebatado pela morte ás lettras e & sua pátria
qae honrara. Os Srs. Mendes Leal e Viale, pelos motivos
exarados em ofFicios que dirigiram aos Delegados da
Commissao no Rio de Janeiro, motivos mencionados
uos seguintes extractos :
194 xxxn
Do Exm. Sr, Viale.
íUms. e Exms. Srs.
No número dos amigos das boas lettras, admira*
dores do mimoso, às vezes sublime, e sempre inspirado
y ite Sadino, Manoel Maria Barbosa du Bocage» design-
nados por Vs. Exs. para comporem em Lisboa a Com-
missão incarregada de dirigir a inauguração da est&taa
d'aquelle grande génio na terra do seo nascimento, vi,
com sentimento de verdadeira ufania, incluído o raeo
obscuro nome. Cv^m a mesma ufania e profundo reco-
nhecimento por tao immerecida distincção, acabo de ler
a carta que a este respeito — Vs. Exs. me fizeram a hon-
ra de escrever-me em data de 22 de agosto último. In-
felizmente para mim { e de certo só para mim ) tor-
na-se-me impossivel approveitar-me de tao lisonjeiro
convite. Nao m'o permittem as minhas quotidianas
cccupaçOes — a regência da 2.' cadeira do curso supe-
rior de Lettras — a direcção do mesmo Curso — o exer-
cício das funcções de conservador da Bibliotheca Nacio-
nal — as licçoes a Suas Altezas Reaes.
Sirvam-se pois Vs. Exs. accolher com benignidade
esta minha justificada escusa, e ao mesmo tempo accei-
tar benévolos as expressões sinceras da minha gratidfto,
pela bondade que tiveram de lembrar-se do menos no-
tável dos portuguezes estudiosos e amantes da poesia
nacional, para o associarem aos promotores de uma
manifestação merecidamente solemnee merecidamente
enthusiastica, em honra de um dos mais exímios cul-
tores da mais divina das artes bellas.
Deus guarde a Vs. Exs. Lisboa, 10 de octubro de
1871.
Illms. e Exms. Srs. Conselheiro José Feliciano de
Castilho Barreto e Noronha, e Barão de S. Clemente.
t António José Viole.
Do Exm. Sr, Mendes Leal.
Ilhn. e Exm. Sr. e Amigo presadíssimo —Tenho pre-
sente a carta circular, assignada por V. Ex. e pelo Sr.
Barão de S. Clemente, relativa á inauguração do monu-
mento a Bocage. Escuso diztr, que bastava a alliança
doestes dous grandes nomes— Bocage e Castilho — o se-
gundo, como de razão, tutellando o primeiro, para ea
acceitar com alvoroço e reconhecimento a commÍBSiO
XXXIII 195
conferida pela benemérita Direcçfto dos subscriptores
para o respectivo monumento. Honrado porem por Sua
Majestade com o àrdiio e nao desejado incargo da Le-
gação em Madrid, para onde parto por estes dias, de
todo me é impossivel fazer parte activa da referida
commissilo, como tanto estimava. Isto mesmo rogo a
V. Ex. a fineza de fazer presente ao seo coUega Vice-
Presidente, e aos demais illustres vogaes, certificando a
todos, como o faço aV. Ex., dos meos agradecimentos
pela sua honrosa lembrança, e dos meos sentimentos de
pessoal consideraç&o &.
Quanto á commissSLo filial em Setúbal , eis-aqui o
officio do Presidente e a acta da sua sess&o em 25 de
octubro de 1871.
Ulmo. Exm. Sr.
Satisfazendo ao que por V. Ex. é indicado em sua
carta de 26 de agosto último, tenho a honra de remet-
ter a V. Ex. a inclusa cópia da acta da sess&o da Com-
miss&o filial do Monumento a Bocage, d'esta cidade, pelo
conteúdo da qual V. Ex. tomará conhecimento da de-
liberação tomada pela mesma Commissão.
Com relação à Câmara Municipal, posso asseverar a
V. Ex. que ella fará quanto esteja ao seo alcance para
abrilhantar o acto da inauguração do alludido monu-
mento.
Pelo que respeita à minha pessoa, cumpre-me agra-
decar o honrosíssimo conviíe que T. Ex. se digna fa-
zer-me, e que sobremaneira me pinhora, ao qual seria
descortezia não acceder, reconhecida mesmo a ausência
em mim de qualidades que me tornem merecedor de
tão subida distincção.
Deus Guarde a V. Ex. Setúbal 28 de octubro de
1871.
lUm. e Exmo. Sr. Conselheiro Joíé Feliciano de Cas-
tilho Barreto e Noronha.
António Rodrigues Manitío.
Acta da sessão de vinte cinco de octubro de mil oi-
tocentos setenta e um. Áos vinte cinco dias do mez de
octubro de mil oitocentos setenta e um, estando reunida
a Commissão filial do monumento a Bocage, d'esta ci-
dade, pelo vogal servindo de presidente da mesma foi
196 XXXIII
declarado, que o fim da reunião, era expor & Com-
missão a carta e lembranças adjunctas, que lhe fo-
ram remettidas pelos Exms. Srs. Conselheiro José Fe-
liciano de Castilho Barreto e Noronha, e Barão de Sao
Clemente, representantes da Commissao central do
Rio de Janeiro, incarregada da erecção do monuinento
ao insigne poeta Bocage, e ouvir sobre o seo conteúdo o
parecer da mencionada commissao, na forma que lhe
era indicada. Em seguida foram lidas pelo respectivo
secretário a carta e as lembranças alludidas, concer-
nentes aos festejos que se hao de fazer por occasiao da
inaug«raçao d'aquelle monumento, em tudo próprias
do acto a que se referem, e da subida intelligencia e
apurado gosto de quem as dictou. Discutidos os ponctos
em que á commissao competia resolver, concordou esta,
que não permittindo mais a órbita dos seos poderes,
effectuar-se a cobrança da subscripçao que havia solici-
tado, i?e intregasse a somma realizada à Extna. Câmara
Municipal para ser applicada ás despezas que aquella
digna corporação tem que fazer com a solemnidade
da inauguração, e que a commissao lhe prestasse todo
o auxílio possível nos trabalhos precisos, para que a
dieta solemnidade se faça por modo digno do objecto a
que respeita, e tal qual desejara todos os setubalenses.
Deliberou, mais, que, de quanto fica expendido, se
desse conhecimento á Exma. Commissao do Rio de Ja-
neiro, por intervenção do seo illustrado presidente o
Exmo. Sr. Conselheiro José Feliciano de Castilho Bar-
reto e Noronha ; do que para constar se lavrou a pre-
sente acta, que vai devidamente assignada — Manitta
— Manoel Maria Portella — Joaquim José Barbosa du
Bocage — João Ignacio da Cruz Forte — Carlos Torlades
0'Neill.
Está conforme — Setúbal 28 de octubro de 1871.
• O Secretário da Commissao.
Manoel Maria Portella.
Assim intabolados os trabalhos finaes, os Delegados
noRio de Janeiro deram miúdas instrucções ao seo agente
em Lisboa, Sr. A. Torquato Azedo e Silva, que as
observou c»jm inexcedivel zelo, desinteresse e dedicaç&o;
e dirigiram ás commissOes em Lisboa e Setúbal uma
série de lembranças, das quaes só pequena parte n&o
poude reaiizar-se. Supprimindo aqui outras informa-
XXXIII 197
ções, que já 'nesta publicação appareceram, damos
em seguida o oflflcio que a commissao em Lisboa dirigiu
aos Delegados da Commissao no Rio. A este offício ac-
companhou o auto da inauguração, o que tudo é do teor
seguinte :
lUms. Exms. Srs.
Temos a honra de inviar a V. Exs. o traslado do auto
da inauguração da estátua de Bocage, solemnidade a que
presidimos, por parte da Commissao Central, de que
V. Exs. sao dignos presidentes.
Pela conferência que tivemos com o presidente da
Câmara Municipal de Setúbal, também presidente da
Commissao filial da mesma cidade, reconhecemos nao
serem exequiveis todas as indicações que V. Exs. nos
inviaram em offício de 2 1 de agosto para se formular o
programma da inauguração.
Tudo porem quanto permittiam as circumstâncias
d'aquella localidade, e a actual estação, se executou com
êxito mui satisfactório, conforme o programma impres-
so, quejuncto inviamos.
Agradecendo a V. Exs. o honorífico incargo que nos
confiaram, reiterámos a todos os senhores subscriptores,
o testimunhu de gratidão que Portugal lhes deve, pela
homenagem que prestaram ao insigne poeta do Sado.
Deus Guarde a V. Exs. — Lisboa 23 de dezembro
de 187i.
Ulms. e Exms. Sr.s. Conselheiro José Feliciano de
Castilho e Barão de S. Clemente.
Marquez cV Ávila e Bolama,
Castilho.
M. M. Lisboa.
J. M. Latino Coelho,
José Vicente Barbosa da Bocage.
y, António dh Cosia.
Júlio de Castilho,
A. da Silva Tállio.
A^ixta da iiiau^u.iraoao solemno cia estátua
cLo Booa^ê iia''eiâacLe cLe Setiil>al«
Aos vinte e wm dias do mez de dezembro do anno
de mil oitocentos setenta e um, do nascimento de Jesus
ChrÍ3to,na cidade de Setúbal, e praça de Bocage, no
centro da qual se achava erigida, velada com as ban_
198 XXXIII
deiras nacionaes de Portugal e do Brazil, a estátua de
Manoel Maria Barbosa du Bocage, foram recebidas, na
tribuna armada na mesma praça, as auctoridades do
districto, as corporações scientificas e litter&rias. os re-
dactores dos jomaes políticos e litter&rios, os homens de
lettras e outras pessoas convidadas para este acto, na
conformidade do programma que se imprimiu. Sendo
duas horas da tarde, dirígiram-se para juncto do mo-
numento a commissSo nomeada no Rio de Janeiro pelos
subscriptores para presidir a este acto, a commissfto
filial de Setúbal, a Câmara Municipal da mesma cidade,
o esculptor da estátua Pedro Canos dos Reis ; e ahi
proferiu o excellentissimo marquez d'Avila e de Bolama,
presidente da mesma commissao, o seguinte discurso
inaugural :
« Senhores : Na segunda ametade do século passado,
nasceu ^nesta cidade um homem que, pela força admi-
rável de seo estro, veiu a ser uma das glórias d*este paiz,
e o mestre querido de q^uantos falam a nossa língua
áquem e alem do Atlântico. Este homem eminente, que
pelas suas obras immortaes conquistou a posteridade, foi
Manoel Maria Barbosa du Bocage. Justo era, queosdous
povos irm&os, de Portugal e do Brazil, falando ambos
o idioma que elle tanto realçou, lhe prestassem a home-
nagem a que estamos assistindo, elevando-Ihe um mo*
numento duradouro na sua terra natal. A idéa de
erigir este padr&o á memória do insigne poeta foi ini-
ciada por dous homens illustres, os senhores conselheiro
José Feliciano de Castilho, e seo irm&o Visconde de
Castilho, a quem também as musas embalaram cari-
nhosas, e a litteratura portugueza é devedora de ou-
tros monumentos, nao menos perduráveis. Estes bene*
méritos portuguezes deram assim mais um testimunho
do desvelo, com au% teem constantemente contribuído
Íara o renome e illustraç&o da pátria, que tanto enno-
recém. Foi na capital do Brazileiro Império, outr'ora
visitada por Bocage, e no dia 15 de beptembro de mil
oitocentos sessenta e cinco, centenário do seo nasci-
mento, que os senhores Castilhos congregaram uma
numerosa assembléa de portuguezes e brazileiros, a
qual adoptou unanimemente e com vivo enthusiasmo a
proposta e o plano do monumento, contribuindo logo
todos para que tivesse execuç&o tão magnífica e pa-
triótica idéa. A commissfto a que tenho a honra de
presidir, foi nomeada por aquella illustre assembléa
XXXIII 199
para a representar 'neste acto solemne, a que destinou o
dia de hoje, por ser também um anniversário de Bocage,
o da sua prematura e ainda sentida morte. Cumpriu-se
o intuito dos beneméritos subscriptores, e 'nesta nu-
merosa e respeitável reunião, recebam elles o testi-
munho que lhes damos do nosso reconhecimento por
esíBL homenagem prestada ao dulcíssimo cantor do Sado,
homenagem que é um novo pinhor dos sentimentos de
sympathia e de profundo aiiecto que prendem os dons
povos irmãos, do velho e do novo mundo. Recebam
também os illustres cavalheiros» que compõem a bene-
mérita Câmara Municipal, os nossos agradecimentos,
pela efficaz cooperação que nos prestou, dando t&o me-
recido realce a esta demonstração solemne de gratidão
nacional.
Senhores, a nossa missão está concluida. Cumpre
agora aos representantes doesta formosa cidade velar pela
conservação do monumento erigido á memória do grande
poeta, seo conterrâneo. Não podia confiar-se a mais
dignas maus este piedoso incargo. »
Por parte da cidade de Setúbal, pronunciou o doctor
António Rodrigues Manitto, presidente da Câmara Mu-
nicipal, a seguinte allocução :
Excellentissimos Senhores presidente e membros
da commissão nomeada para presidir â inauguração
da estátua de Bocage. Muito me glorio de ser o
intérprete do júbilo e reconhecimento d'esta cidade,
por ver realizado o grandioso pensamento para que
tanto contribuíram a commissão central, eleita no
Bio de Janeiro, a filial de Setúbal, e a de que V. Ex.
é digníssimo presidente. Setúbal paga no dia de hoje
uma divida, que não era só nossa : era de todos os que
falam a língua portugueza. Está solvida por este padrão,
digno do talento do grande poeta. Aos beneméritos
subscriptoroâ portuguezes e brazil^iros, e a vossas ex-
cellencias, seos representantes, envio, em nome dos ha-
bitantes d esta cidade, os protestes da nossa perpétua
gratidão. Fo>lgo de ver presente a este acto o venerando
escriptor, que foi, com seo illustre irmão, o proponente
d*esta homenagem a Bocage. A litteratura nacional e a
instrucçAo pública deviam-lhes j& muitas fadigas e
muitas obras : este monumento é também obra de
ambos elles. Cumpre-me dar-lhes aqui, perante todo este
povo, o merecido testimunho de agradecimento nacio-
nal. Senhores, a cidade de Setúbal assigna^la entre os
200 XXXIII
maiores dias das suas glórias este da inauguraçlo da
estátua do grande poeta seo conterrâneo. Uo alto d'a-
quella coliiinna .será Boca.ire o incitador da civilização
dos seos patrícios , guia dos nossos progressos ; e ainda
depois de trabalhosa vida, é escudo da sua terra natal.
O auctor, que tanto , opuleatou a poesia portugueza,
eil-o redivivo na m-^sma cidade que lhe deu bôrço. Este
sexagésimo se>wto aauiv/psário d i mníe d) grande can-
tor, é o dia glorioso da sui ap3theóíe. Por parte da
Câmara que tmhi) a honra de presidir, congratulo-me
com Vossas Excelleacias pelo êxito que teve este ge-
neroso empenho de tantos cultores o amigos da littera-
tura nacional. »
Em a'Uo continuo, 03 exc-allentíssim )S marquez d'Avils
e de Bolama, como vlce-prasidente da academia real
dasscitmcias, e o conselheiro Miguel Maria Lisboa, como
Ministro do Brazil em i^ortugal, o visconde de Castilho,
um dos auctores da proposta para a erecção do monu-
mento, e o Dr. António Rodrigues Manitto, presidente
da Câmara Municipal de Setúbal, tomaram os, cordoes
das bandeiras que velavam a estátua e a descobriram.
E logo as musicas reunidas tocarão successivamente os
hymnos compostos e offerecidos para esta festividade por
Mano.íl António Corr.iia, Carlos Augusta Alvi*s Braga e
António do Nascimento e Oliveira.
Dirigindo-se o préstití; para os paços do concelho,
alii foi lido e assignado este auto, lavrado e subscripto
por mim, Secretário da {/oinmissao nomeada para pre-
sidir a esta solemnidade, António da Silva Túllio.
Antoiiio R)drigues Sampaio. Ministro d» Reino.
Castilho, Victí Presidente da Cominissíio de Lisboa.
José Vicente Barbosa du Bocagi».
Carlos Roma du Bocage.
Joaquim José Barl^sadu Bocng^».
António Rodrigues Manitto. Preúdc^nt.^ da Câmara de
Setúbal.
Antoíiio Maria Albino, Vereador.
Francisí^o Manjues da (Jostn, Vereador.
Joaquim José Ferreira da Silva Júnior, Vereador.
José Maria Liverio, Vereador.
Miguel Maria LisbOu, ministro do Brazil e membro da
Commissao.
Marquez d' Ávila e de B dama, presidente da Gom-
mis.sao de Lisboa.
XXXIII 201
José Maria Latino Coelho, vogal da Comraizsao de
Lisboa.
Augusto César Cau da Costa, Governador Civil de
Lisboa.
U. Francisco José de Mello, administrador do con-
celho de Setúbal.
Manoel d' Araújo Porto- Ale^rre, pelo Brazil.
JoPlo Ignacio da Cruz Forte, da Cnnmissáo de
Setúbal,
Carlos F. O' Noill, da Cjmmissão de Setúbal.
Manoel Maria Portella, Secretário da CouiinissSlo
filial de Setúbal
Conde de Fornos d' Algôdre.>, Par do Reino.
António d' Azevedo Coutinho Mello e Carvalho, Par
do Reino.
ttíivmundo de Bulhão Paíto.
nu
O Corninandaate geral das guardas raunicipaes de
Lisboa e Porto, Barão do Rio Zêzere, general de
brigada.
António Maria Barroiros Arrobas, deputado por
Setúbal.
Joio António dosSanctos e Silva, deputado da nação.
Ignácii) Francisco Silveira da Motta, deputado da
uacao.
. •
José de Sande Magalhães Mexia Salema, deputado
da nacao.
José Pedro António Nogueira, deputado da nação.
António AugusL > Pereira de Miranda, deputado da
nacHo.
Albertí) Osório de Vasconcellos, deputado da naçilo.
Júlio de Castilho, secretário da Ci)mmissao.
Simn.0 Paes de Faria Pereira, da Coramissao de
Lisboa.
Joi\o Ignácio Holbeche, Juiz d^ Direito.
Francisco Maria de Souza Brandão, ingenheiro.
Co.istanliUij Lop;)S d' Andrade Poucí»iro, general de
brigada, cominandante militar.
Bernardino Pinheiro, Secn^tário dj Supremo Tribunal
de Justiça.
Manoel Pinheiro Çliagas, deputado da nação.
José Baptista Cardoso Klerck, deputado da naçlo.
Conselh'íiro Augusto Sebastião de Castro Guedes,
commandante da Eschola Naval e da companhia dos
g'\iarda.5 marinhas.
202 XXXIII
José Joaquim Peçanha Póvoa, Brazileiro, advogado.
Joaquim Possidónio Narciso da Silva, presidente da
associação dos archi tectos.
Francisco Gomes d' Amorim, sócio correspondente da
acauemia das sciências de Lisboa.
António José Torres Pereira, infermeiro-mór do Hos-
pital de S. José.
Augusto Soromenho, da academia real das sciências^
professor.
Hermenegildo Pedro d' Alcântara, redactor do jornal
« A Crença. »
José Maria António No^fueira.
João José de Souza Telles, escriptor.
Francisco Simões Margiochi Júnior.
Francisco Maria Ramos, representante da associação
typográphica de Lisboa.
José de Torres, da Academia real das sciâncias.
Pedro Carlos dos Reis, estatuário.
Augusto Ernesto de Castilho e Mello, bacharel for-
mado em mathemática, antigo deputado da naçfto, e
primeiro oficial da Secretaria do Remo.
Albano Coutinho Júnior, jornalií?ta.
Costa Goodolphim, escriptor.
José Eduardo de C. Vilhena, jornalista e Procurador
â juncta geral d' Aveiro.
Philippe Zeferino da Trindade Carvalho, da Corres-
pondência de Portugal.
António José Pacheco, tenente coronel, veterano da
Liberdade.
Manoel da Costa Alves, presidente da Câmara d' Al-
cochete.
D. José Carlos Menezes d' Alarcão, ingenheiro-
agrónomo, sócio da academia real das sciências e de
outras academias estrangeiras.
Júlio d' Andrade, jornalista.
José Miguel de Barros e Seixas.
Caetano Augusto Lecor Buys.
José António Pinto, escrivão da Câmara Municipal
de Setúbal.
Duarte Gonzalez de Gargamala, vice-consul de
Hispanha.
Júlio Caldas Aulete. deputado da nação.
António Torquato Azedo e Silva, agente da Com-
missão do Brazil em Lisboa.
O Commendador António Gonçalves Lamarfto, syn-
XXXIII 203
dico 6 presidente da Câmara dos corretores da praça
de Lisboa.
O Commissario dos Estudos, Mariano Ghira.
Adriano Gaspar Coelho, secretário da redacç&o do
Di&rio de Noticias, correspondente do Diário Mercantil
do Porto e do jornal do Recife de Pernambuco.
Pedro Wenceslau de Brito Aranha.
Albino Augusto de Souza Pimentel.
Luiz Philippe Leite, antigo correspondente do Diário
de Pernambuco.
Henrique Midosi, pelo Jornal do Commércio.
António da Silva TúUio, pela Bibliotheca Nacional
de Lisboa.
Está conforme com o original ^ue fica depositado no
archiyo da Câmara de Setúbal. Lisboa, 23 de dezembro
de 1871.
A . da Silva Túllio.
A exposição, que ora se segue, é colhida de um minu-
cioso rmatório du digno agente da commissao do Rio de
Janeiro em Lisboa, e das descripçOes de vários jornaes,
taes como Gazeta Setubalense^ Diário de NaticiaSy Jornal
do Commércio^ de Lisboa, Revolução de Septembro^ Jor*
nal da NoUe^ Gazeta do Povo etc. Supprimindo o muito
que poderíamos transcrever de communicaçôes anterio-
res, vimos já ao que se refere á inauguração da es-
tátua.
Dicémos como se effectuara, no dia 22 de novembro,
a coUocaç&o da primeira pedra. A descripçflo do mo-
numento é conhecida dos nossos leitores, restando
accrescentar que abaixo do primeiro degrau se coUocou
em torno um lagedo de meio metro, e sobre elle uma
elegante gradaria, d*onde sobresaem grandes lampiões.
A commiss&o em Lisboa presida pelo sr. Marquez
d'Avila e Bolama, applicou-se desveiadamente a diri-
gir 08 trabalhos ; e, se entre tantos é licito distinguir,
mencionaremos o seo digno secretário,sr. 5ilva TúIIio^
que foi incauçavel, applicando á realização do pensa-
mento o mais inexcedivel zelo.
A* c&roara Municipal de 5etubal, e especialmente ao
seo digne Presidente, são devidos louvores pela nobre
coadjuvação que prestaram.
Ao 5r. Germano José de Salles, com officina de es-
culptura em Lisboa, é egualmente devido o maior ap-
plauso, pois correspondeu perfeitamente á confíanç^
204 XXXllI
que 'uelle depositara o Prosidente da Commissao Central
do Rio de Janeiro, quando o incumbiu do honroso in-
cargo, que o Sv. Salles satisfez com summa intelligen-
cia, actividade, e dedicaçlo ; é de crer que a tâo cir-
cumspecto artista se dirijam as localidades que pre-
tenderem honrar os seos varões illustres cora egual tes-
timunho de veneração.
O Sr. Pedro Carlos dos Reis, incarregado pelo 5r. Sal-
les de f-izer a estátua, merece nao menos agradecimento
pelo modo digno como se desempenhou da tarefa.
Fugimos de especializar mais nomes. Todos satisfi-
zeram quanto de cada um se esperava.
No dia 2 de dezembro, a commissao de Lisboa tomou
as deliberações constantes do programma que já publi-
cámos ;e alem d'essis, outras relativas a pormenores.
Taos foram, por exemplo, as que tendessem a manifestar
que esta festa era tao brazileira como portugueza. Para
isso, alem da inscripçílo gravada no monumento, re*
soiveu-se que as bandeiras que velassem a estátua
fossem abraçadas as das duas nações ; que as flammulas e
galhardet(3s fossem das cores de aml)as ellas ; que re-
presentantes do Brazil e Portugal puçhi;ssem os cordões
das cortinas ; que se tocassem alternadamente os res-
pectivos hymnos nacionaes ; e até que ninguém da
com;nissíl» collocas^e sòb.^e as suas fardas no dia da
inauguração decorações senão dos dons paízes.
Kmfim dispostas Iodas as cousas, raiou o dia 21 d*^
dezembro, a Gazeia Selubalcnse consagrou quasi toda a
sua folha ao assumpto que occupava exclusivamente o
pensainenio dos habitanies da rainha do Sado. O illus-
trado membro da (tommissa) filial 'naquella cidade,
Sr. Manoel Maria i\)rt^lla, sob o títuh) Homenagem ao
mérito, consagrou um artigo a transcrever o que elle
íIenoininv)u Oinniões deifiizes auclorízados^ relalivamente
ao mhvito íiUonírio S Bocage^ extraiítando trechos de
Filinto Elysio, J. A. de Macedo, F. J. Biiigre, A. M.
do Couto, Link, F. J. U. Torrezão, Medina, J. R. Pi-
mentt^l e Maia, Sanctos e Silva, Nvílasco da Cunha, D.
M. Torres, A. Herculauí), Costa e Silva, F. P. Cardoso,
D. Gas;ai), F. C. Coutinho, Condessa d'Oyenhausen,
Pato Moni;^, Mendes Bordallo, Borges de Figueiredo,
Rebelloda Silva, Anto;iio Feliciano de Castilho; J. F.
de Castilho Barreto e Noronha, Pinheiro Chagas. De-
dicaram 'nesse número outros valiosos artigos a Bocage a
Sra. D. Marianna Angélica d'Andrade, o Sr. Costa
XXX III • 20e=>
Goodolfim, H Redacção do Jori^al &. Todas as folhas de
Lisboa chamavam 'nesse dianattençao do público para
agrando soleronidade que se ia verificar.
Bocage tinha ainda algum peccado que pagar, e fo-
ram os que virijaram até Setúbal que saldaram es.^a
conta. Durante 15 dias, até 20 do mez, embora frio,
esteve mais lindo tempo que nos melhores dias de verfio»
A's 2 horas da tarde de 20 passou o vento ao sul, chu-
viscou á noite, e conser'/ou-se a atmosphera carregada,
mas sem chuva. Pelas 9 horas da manha de 21, reco-
nieçou a chuviscar. O embarque foi ás lO 1/2 horas,
mas depois de cheio o segunde vapor, é que se abriram
as cataractas do céo, pai*a mais nao pararem até a
noite. No Diário de Notícias^ de 25 de dezembro, foi
publicado um chistoso artigo do Sr. Pinheiro Chagas,
que descreve as tribulações dVste dilúvio. Como o nao
podemos transcrever na Integra, extrahimos d*elle uma
pequena parte :
<( Pobre poeta ! Amargurou-te o destino a tua própria
apotheóse! Saíste do mundo, no vigor da mocidade,
quando se rasgavam ao teo génio novos horizonies,
quando o teo estro fogoso, vendo passar nos ares- o vôa
scintillante d'essa águia que se chamava Byron, excla-
maria talvez: n Anh*io son poeta » o, desferindo as azas,
iria pairar nos céos onde adejava sublime, e soltando
gritos de selvagem desespero, a musadeChild-Harold.
Qiiem mais do que tu teve a imaginação potente, a
phantasia arrebatada, o íntimo enthusiasmo? Perdeu-te
esse claro auditórioy que só te podia as bagatellas do
repentista, o slrass do glosador, quando da mina inex-
haurivel do teo génio podia arrancar diamantes, que
reflectissem nas suas mil facetas o resplendor de um
novo sol de poesia! Consumiste ávida n'uraa longa lucta
cora as conveniências, os hábitos, as tradições da socie-
dade avelhenta-la que te cercava: morreste porque fal-
tava o ar aos teos pulmões ancio.fts de respirarem o há-
lito embalsamado da poesia verdadeira ; morreste por-
que eras vulc?io, o exigiam-te fogos de Bengala, foga-
chos pàllidos e insignificantes, porque represaste a lava
candente, e arrojaste apenas as escórias de mil sonetos
e de mil glozas. Vestiram-te a libré mesquinha da Ar-
cádia, a ti que eras da estitura dos grandes poetas, que
surgiram quando tu caíste na arena ; pozeram-te nas
mans a lyra clássica banal, quando os teos dedos con-
vulsos procuravam as chordas da harpa fremente ao sopro
206 XXXllI
da iuâpiracFío ; quando os teos lábios sêccos buscavam a
taça de ouro do ideal, incoatravas o copo dos dythiram-
bos mesquinlios. Devorou-te a sede de desconhecidos
gõsos : matou-te a nostalgia de um mundo que vaga-
mente entrevias, e que julgavas incontrar talvez no
âmbito mysterioso das regiões de alem-túmulo.
c( E agora que voltas, ó pàllido poeta, invõlto no
manto luminoso da tua immortalidade, agora que te er-
gues, estátua, acima dos rumores confusos do mundo
que atravessaste, scismando, tens ainda os horizontes
nebulosos, o gemido do vento, e os hymnos truncados
de uma apotheóse incompleta. Procuras com os olhos
vagos o límpido sol, e invoíve-te ainda o manto plúmbeo
do firmamento. Ah I mas depois do hynverno virá a pri-
mavera ! E nao tardará que sintas em torno de .ti o v6o
ligeiro da andorinha, o, perfume das laranjeiras, e os
raios de ouro do sol; nao tardará que contemples orgu-
lhoso o firmamento sem nuvens; não tardará que vejas
projectar-se na face da terra a tua sombra immensa ;
também assim a tua glória, escurecida primeiro tanto
pelas invectivas injuriosas como pelos frívolos applau-
sos, se foi a pouco e pouco desprendendo das nuvens que
a involviam, e resplandece hoje puríssima no nosso fir-
mamento litterário. Desappareceu o gladiador das ignó-
beis contendas, o tro vista de botequim, o glosador de
alambicados motes, e os gritos do teo enthusiasmo, ó
cantor melodioso, poeta de Leandro e HerOy hSo de se ir
repercutindo de echo em echo até á mais remota poste-
ridade.
« Estas reflexões devo confessar que as faço aqui pla-
cidamente ao canto do raeo gabinete, porque em Setú-
bal mal tive tempo de admirar o magnífico soneto de
Castilho, único poeta que herdou de Bocage o segredo
da música do verso, e que ainda opulentou o legado,
aportuguezando o alexandrino, e dando-lhe essa harmo-
niosa majestade, qu»se nota nos quatorze versos, fun-
didos d'um só jacto, do soneto a que alludo. »
Por conta e ordem da commissao do Rio de Janeiro,
tiuham-.^e posto á disposição dos convidados, vapores do
Tejo e carruagens da via férrea. Prepararam-se bilhetes
especiaes. O Ministro e o Cônsul do Brazil receberam os
que indicaram precisar para súbditos brazileiros; a com-
missão de Lisboa dispôs dos que lhe approuve exigir;
grande número foi distribuído por auctorídades, litte-
XXXni 207
ratos, associações, e particulares distinctos, a todos os
quaes se facilitou assim passagem gratuita,de ida e volta.
Muitas pessoas tinham partido na véspera, pelo vapor
da carreira ordinária, de modo que nao havia era Se-
túbal um só logar livre nas estalagens, e poucas casas
particulares deixavam de estar apinhadas de visitantes.
Partiram pois de Lisboa os dous vapores D. Carlos e
D. Affonso, atopetados de gente. Philarmónicas, du-
rante a viagem, e apezar do péssimo tempo, foram to-
cando os hymnos de Bocage, de D. Luiz, brazileiro, da
independência, e da Carta.
Antes do meio dia largava da estaç&o do Barr eiró um
comboio com 31 carruagens, que pouco depois da uma
hora chegava à estação de Setúbal. Ahi eram os visi-.
tantes esperados pela câmara municipal, auctoridades
civis e militares, grande concurso de cidadãos, e uma
philarmónica. Todos os vehiculos da cidade estavam
''naquelle logar, por delicada lembrança dos dignos
membros da commissao de Setúbal. O cortejo p6z-se
sem detença a caminho para a praça de Bocage.
Magnífico era o aspecto da praça. Os lados d'ella esta-
vam guarnecidos de louro, e entremeados de columnas
sobre que assentavam vasos de flores, d'onde saíam fes-
toes de buxo, estendidos em torno. Nas intradas, dos
lados do sul e norte, hnvia figuras empunhando lyras,
5ob as quaes apparecia o nome do poeta.
Por conta e ordem da commissao do Rio levantaram-
se estrados e um pavilhão era frente do monumento,
forrado de tafetá azul, amarello, branco e vtrde, cores
nacionaes de Portugal e Brazil, com cortinas também de
seda ; alcatifas forravam o pavilhão, estrados e degraus,
et«, 'Neste visioso pavilhão se achava um excellente
bufete, e sobre elle uma escrevaninha, e a penna de
ouro, que já havia servido para assignatura do auto
d*inauguraçao do monumento aCamOes, penna ofiferecida
pelos portuguezes de Porto-Alegí% (província de S. Pe-
dro) ao Sr. visconde de Castilho, por occasiao do perdão
que este alcançou para um velho compatriota, com uma
epistola dirigida a S. M. a Imperatriz do Brazil. Ao
lado do pavilhão, havia tribunas descobertas, as quaes
foram completamente occupadas por damas e cava-
lheiros.
Tropa em grande uniforme estava postada á esquerda
da estátua; o centro da praça occupavam-n'o 4 bandas
de música.
208 XXXllI
Na varanda dos paços do conselho viain-se bandeiras^
galhardetes, vasos de flores, e doestes havia em todos
os degraas das escadas atapetad.is.
Nas janellas dos prédios, adornadas todas de sanefas,
cortinas e ricas colchas, viani-se as mais distincías da-
mas da sociedade setnbalense, trajando esnieradauicnte;
e muitas casas do vice-consules e de particulares acha-
vam-se embandeiradas.
Pompeavam por toda a praça as bandeiras portugueza
e brazileira, e innúmeros galhardetes com as cores das
duas nací^es.
Assim doscripto o scenário, nu próximo número com-
pletaremos a narração da formosa solemnidade.
ADVERTÊNCIA.
No precedente número, CincíQDato, repclliodo a injusta accusaçáo áh
que em bem poucos romances d'ctqui e dalem-mar se pode deter a atten-
çdo, cstaheloccu quo cm romances e contos, a litteratura do nosso idioma
cleu, 'neste quarto de sérulOf numcr(>>as e esplêndidas provas de adeanU-
mento. *Numa nota se indicaram nada menos de 33 auctores de romance»
c contos, c muito mais largo poderia ser este catálogo, tanto de outros
auctores, como de outras oliras dos mesmos. Na lista porem que, se man-
dou copiar, não houve todo o esmero. Producções ha, que |)or serem em
veri^o e chamadas poemas, qualiticAmos de romances. Obras ha, quo con-
tendo alguns contos, hcm cabiam 'naquella classificação» embora também
tractcm outras matérias. Mas passaram na cópia, ou na revisão das probas,
ciTos que os intendidos Icrào logo emendado. Por exemplo: Entre as obras
de Camillo Castcllo- Branco, indir^ram-se indevidamente como originaes
Fanny (ic-se Taunay), e Uomance de um rapaz pobre. Em vez do Solemnia
Verba, lllima palarra da sciéncia, lé-se LUima palavra da consciência
(Solemnia Verba) — Era Pereira da Cunha, os Brios heróicos dê portugue-
zcui foi amii indevidamente classificado— O lloberto Valença^ do Sr. Tei-
xeira de Vasroncellos, devia est^nr composto cm typo corrente — Em Arnaldo
Gama, O motim. Ha cem annos, leia-sc Lm motim ha cem annos^ etc. Ha-
verá mais alguns erros, para os quaes supplicâmos \énia, mas que em nada
alteram a exactidão da these quo dcfenoemos.
T.vpoi^rBphiii e litho^raphia —IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro, 146 A
QUESTÕES DO DIA
isr.^34:
BIO DE JANEIRO, 25 DE JANEIRO DE 18^2.
Teode-Be em casa dos srs. E. & H. La?mmert.^Agostinho de Freitas Gn-
joarães U Comp., 26, rua de General Camará.— Livraria Académica, Rua de
S. José D. 119- Largo do Paçe n. C— Preço SOO reis.
O 1* volume, com perto de 400 pá^imis— 3ff000.
Eram duas horas da tarde, qaande dos paços do con-
aelho desceram as commissoes fíliaes de Lisboa e Seta-
haly Ministro do Reino, Câmara Municipal, auctorldades
cíyís e militares, e muitas pessoas gradas, em direcçfto
ao pavilhão, onde foram proferidos os discursos; depois
do que 00 cavalheiros portugiiezes e brazileiros, nomea-
dos para tirarem os cordoes da cortina, que velava a
estátua, composta das bandeiras de Portugal e Brazil, se
dirigirany para o monumento, e procederam do modo in-
dicado no auto de inauguração. Foi momento de indizi-
vel enthusiasmo aquelle em que appareceu descoberto o
Tulto do poeta, ao som da marcha Éomenagem a Bocage,
tocada a um tempo por várias bandas de música, ao
estrépito de innumeraveis girândolas, e em presença da
tropa, que appresentava armas. A despeito das torrentes
de chuva, todas as cabeças se descobriram; tudo era vida
e animação : o rumor das vozes, o ondear dos lenços
nas janellas, toda aquella alegria tomava o momento
aolemne.
Emquanto durava esta scena esplêndida, foi distri-
buído pelas turbas um soneto do visconde de Castilho.
Bem era que a homenagem ao Petrarcha portuguez, ao
primeiro mestre, em qualquer língua, da difficu forma
métrica, soneto, revestisse a Bocagiana forma por excel-
lènda, realçada ainda, mormente para emprego alti-
loquo, pelo uso do roçagante alexandrino. O dicto soneto
áeste:
Tu, qi:e nos revelaste a mágica harmonia,
na lyra nacional antes de ti latente ;
espirito de luz, relâmpago esplendente,
que descobriste á pátria um mundo de poesia ;
210
ao Capitólio d'arte ascende entre a alegria,
entre os vivas da lusa e da brazilea gente.
Se um sepulchro nao tens, do berço teo florente,
qual phenix immortal, resurges 'neste dia.
Emmudeceste á inveja os pérfidos agouros ;
reduzistel-a ao nada, ao pó d'onde provinha.
Em vez de cy prestai, rodeiam-te só louros.
O vate lê no fado, e os tempos adivinha ;
nao debalde exclamaste aos séculos vindouros :
— « Zoilos, estremecei! Posteridade, és minha t
Logo em seguida distribuíu-se a seguinte poesia do
digno setubalense, Sr. M. M. Portella, membro da res-
pectiva commiss&o filial, e ornamento da imprensa do
Sado. Eil-a :
HOMENAGEM
A'
MEMORU DO DISTINCTO POETA
MANUEL MARIA DE BARBOSA DU BOCAGE
POR OCCAfilIO DB SBP INAUOUBADO O 8BO
Moxi.iixKi.exito exn Setul>als
PRESTADA PELO SEO ADMIRADOR B CONTERRÂNEO
M. M. PORTELLA
(f Este com quem se ufana a pedra erguida.
(BOCAGE).
em quanto o mundo
!}C lembrar de Camões» de Tasso e Milton,
lhe ha de lembi ar também de Elmano o nome.
(J. A. MACEDO).
Cumpriu-3e a predicçao, Nao foi uma luz fátua
(jue o vate alumiou ; alçou-se emfím a est&tua!.**
O applauso reapparece ; escuta-se a ovação ;
e unida a voz do docto á voz da multid&o^
em júbilo é i^udada a coroada fronte
do vulto que destaca em lúcido horizonte.
Após nao curta edade esplende o grão fanal ;
não o sumiu a crypta, o génio é immortal I
Posteridade, és sua ! o monumento a Elmano,
tal qual elle o predice, agora se ergue ufano I
Paga-se o justo preito em honra do saber ;
extingue-se o labéo, cumprido o que é dever.
Julga-te, sem razão, ó século presente,
o parcial censor em erro permanente,
s
XXXIV 211
negando-te o sentir, a crença, a fé, a luz,
sem vêr que quanto nega em ti, melhor traduz
o apreço ao que o merece, e que incessaut.' provas
no tributo ao talento e em mil idéas novas,
arcanos a romper, prodígios a operar,
com a m&o do progresso o mundo a transformar,
mais que aquelle abandono em que antes pereciam
quantos a si, os seos e a p&tria ennobreciam.
O sábio então só tinha o cárcere e o hospital;
e o bárbaro poder de occulta lei fatal
nem o exempla do horror que inspira essa fereza
aquella majestade, essa alta realeza,
que conta por palácio a gruta de Macau,
or cortez&o e amigo, um indigente, o Jau !...,
ue oppróbrio nos transmitte a invelhecida história
a par da heroicidade em c^ue se faz notória !..,
Obelisco nao ha, nem lápide sequer,
legada do passado, onde se possa ler
por honroso dever que nos poupasse a ultrage
aos olhos do estrangeiro — Aqui nasceu Bocage !...
Na chara pátria minha entreteceu-lhe amor
o berço perfumado em laranjaes em flor.
O límpido regato a serpear na relva,
o perfume, a frescura, os cânticos da selva,
o valle d'onde surge á tarde a viraç&o
que afaga o tenro arbusto, a voz da solid&o
que lá do algar repete a queixa ao triste amante,
a sombra da quebrada, o prado verdejante,
em fim este vergel onde ha perenne abril,
provoca, attráhi, incita a musainda infantil...
Para cantar fadado o cysne da harmonia
revela o seo destino, apenas balbucia.
O Sado a murmurar insina-lhe á canç&o
que repete depois dos mares na amplid&o,
de nostalgia oppresso, em seo destino vário,
03 longes do occidente olhando, solitário.
Cresce, adeja anhelante aos cimos (^ue fitou ;
que assombro! quasi implume e rápido chegou
aonde poucos v&o em dilatado espaço I
A frauta do Delille, hymnos d'Ovídio e Tasso
vai escutar attento apenas trovador,
extráhi-lhes a magia, a música, o primor
e volve endeusado; e o canto que desata
captiva a quem n'o ouve, as almas arrebata I...
212 XXXIV
Misterioso ingenho, harmonioso ser,
difficil de attingir e mais de comprehender,
ora sereno lago em que se espelha a lua,
ora revolto mar, que avança e que recua,
e na indomável sanha, entre hórrido bramir,
pretende, intumecido, as rochas demolir !
Rival de Anacreonte, inflora a doce lyra
que inleia os corações na m&gua em que suspira ;
mas transmutado em breve, a sátyra mordaz,
penetrante, despede, iroso e mais que audaz,
e em cego delirar, de victimas sedento,
na insânia que o devora ainda é um portento !
Impondo á musa a phrase e modo varonil,
fulmina o ousado inepto, o torpe, o que é servil ;
•« passa triumphante ; e a multidão que o acclama
lhe vai da voz suspensa e o ^segue como a fama !
Refeito 'nesse applauso e no melhor que dflo
os versos de Piiinto, as odes de Garç&o,
revoa ao infinito, excede o que ha sublime
na flamma em que sefaz,no verbo em que s'exprime!
Coroas aos montões e feixes de trofeos
s&o despojos da lucta aos pés do semideus t
e da glóna o clara o dardeja rutilante
sobro o laurel que cinge a fronte do gigante
que os émulos venceu, os zoilos suffocou,
e o tempo, o olvido, a morte altivo dominou!...
Mas como a sorte adversa o mérito persegue !
como quem o possue ao damno deixa intregue !...
Quão caro custa a Elmano o universal louvor !
quanto tempo passado em indigência e dor !...
Porque, vendo surgir da liberdade a aurora
pbrenétíco a saúda e •d'ella se enamora,
e d&diva do céo a crê feita aos mortaes,
o hypócrita ardiloso em tramas infernaes
lhe tira o que mais ama e quasi do ar o priva,
tiranlhe a liberdade, em ferros quer que viva...
Accusa-o de impiedade... Elmano ímpio n&o é ;
transi uz-lhe Deus na mente e 'nalma abriga a fé.
Se alguma vez errou na ardente mocidade,
quem mais do que elle exalta e preza essa verdade
que segue desde o berço e origem é do bem ?
quem mais exprobra o crime e mais horror lhe t^mt. .
Assim contricto, um dia, achou silencioso
o termo da fadiga, o leito do repouso,
e os olhos que cerrava, entre milhões de soes.
XXXIV 213
sem demora reabriu na turba dos heroes,
que sempre a batalhar, tnumpham pela idéa
e duram como dura o bronze ou a epopéa !
Bocage nfto morreu, nos séculos por vir
hade o seu nome egrégio o mundo repetir.
Distribuiram-se outras producções, taes como um fo-
lheto, intitulado Salve^ Bocage I etc.
Regressou o cortâjo aos paços do conselho, onde pelo
infatigável e benemérito Sr. éilva Túllio, secretário da
commissão de Lisboa, foi lido o j& transcripto auto
d^nauguraçfto, do qual veiu um exemplar para a com-
miss&o do Rio de Janeiro.
Por um nobre acto de cortezia, o Sr. Marquez d'Avila«
que j& havia offerecido o seo cordfto da cortina ao Sr.
Ministro do Reino, que alli estava representando a naçfto
portugueza, convidou os parentes de Bocage, que esta-
vam presentes, para assignarem o auto antes de S. Ex.«
como o demostra a exacta transcripçfto que d'esse auto
dêmos.
Poucas pessoas, entre as muitas centenas que na praça
se apinhavam « poderam, por falta de tempo, sotopõr as
suas assignaturas ; mas n&o era inferior a hierarchia
de innumeraveis cavalheiros presentes, cujos nomes o
auto não poude mencionar. Em quanto durava esta
tarefa, ouviam-se as bandas de música, e os hymnos
portuguez, brazileiro, e de Bocage.
Aberto o grande sal&o da câmara municipal, offerecia
aspecto deslumbrante : janellas com ricas bambinellas ;
çhfto alcatifado , reposteiros de magnifico damasco ;
mobília faustosa ; balcão ao centro da sala, ornado de
vasos de mármore cheios de flores; suberbos cristaes ; ao
fundo um bufete, com todo o serviço de prata ; e um
confortante e variado copo d*àgua (que a Commiss&o do
Rio mandara offerecer, mas que i»C&mara Municipal
pediu para tomar a si].
Havia-se disposto para as senhoras um toucador, de
muita elegância, na casa dos paços, onde funccionara
a antiga juncta do sal. Estava atapetada, guarnecida
de mobilia á Voltaire, e arranjada com o maior gosto.
As casas da Câmara estiveram abertas para serenai
vistas pelas pessoas que as quizessem visitar. A sala
principal tem as paredes forradas de pannos de raz, re-
presentando quadros bíblicos e retratos dos reis, até â
Sn. D. Maria I, em cujo reinado se construiu o edifício.
214 XXXIV
e tem figuras em poncto grande, e algumas bellas,
embora se conheça que os annos ji as têm detenorado.
Da imprensa periódica figuraram os,e gumtes repre-
sentantes, na cerimónia da inauguração, posto que nem
todos podessem firmar o auto : — Do Jornal do Ct^mUr-
do— Diário do Governo— Revolução de Sepiembro—Ihdno
ãe Noticias —Diário Popular — Jornal da Noite— Gajeta
do Povo— Crença — BoUtim do CUro e do Professorado—
Partido Constituinte — Gazeta Setubalense— Pnm^ro de
Janeiro — Didrio Mercantil e Jornal do Recife, dt Per-
iuifnbuco.
Findo o lunch, retirou-se para Lisboa o maior número
di^s pessoas que haviam assistido & festa, a qufel houvera
sido de inexcedivel esplendor, se a inclemência do tempo
(vento, frio e chuva torrencial) a nfto houvesse nostoli-
zado táo pertinazmente.
Chegada a noite, logo se atulhou o theatro, que ?stava
convenientemente decorado, assistindo as auctondades
civis e militares, e a Câmara ao espectáculo, em cama-
rotes ornados de damasco e ouro, e reinando sempre a
melhor ordem, da parte de tfto selecto piiblico, que a
cada momento patenteava o seo júbilo.
Começou o espectáculo, recitando o Sr. Carlos d Al-
meida os seguintes versos do Sr. Eduardo Coelho :
Salve, Bocage!
Ànniversário triste e jubiloso dia,
Setúbal veneranda, é este em tua história ;
a portentosa voz gelou-a a terra fria,
mas tu, zelosa mEe, resgatas-lhe a memória.
Raiara o génio aqui ; brisas do Sado amenas
no berço a doce luz lhe ateiam brandamente :
— n Das fachas inluntis (cantou) despido apenas,i>
cc sentia o sacro fogo arder na inquieta mente. »
A chamma cresce mais ; domina a frágil pyra,
transborda, alastra e banha em divinal calor
as creaçoes de Deus. O povo absorto admira
o canto ardente e audaz de Elmano, o trovador.
Mas essa inspiração que o século deslumbra
ò corpo consumiu que débil a abrigava ;
Bocage cedo a face esconde na penumbra
dia morte, onde o «tropel...» do génio.. .o «arrastava!»'
XXXIV 215
O' flor do Sado, orgulhar-te
Jodes, por ter sido o berço
o Deus d^harmonia, da arte
o numen, o rei do verso ;
de alma aos lábios lhe acudia
em jorros de melodia
a mais súbita poesia
que inda escut&ra o universo !
No estro febricitante
refervia-lhe um vulcão,
que o tornava delirante
nas convulsões da paixão :
mas que loucura sublime !
Com que magia se exprime !
e em áureos versos redime
08 erros do coraçfto I
Quer soltando a voz em hymnos,
gemendo» ou vertendo pranctos,
sentia êxtases divinos
ao formular os seos cantos ;
concentravanse um momento...
de repente.... o pensamento
irrompia-lhe violento
jorrando ethéreos incautos.
Como é bello, a natureza
pintando, ou cantando o amor I
ou descrevendo a crueza
do çiume queimador !
ou se o fere a atroz inveja,
como a sátyra troveja ,
e o epigramma dardeja,
e esmaga o provocador!
Os moldes da vida antiga ^
pozeram-lhe ao estro peias ;
^'a miséria sempre em briga
nfto lhe quebrara as cadeias ;
ae o inspira a liberdade,
que a França agita e invade,
qufto úteis, humanidade,
te foram suas ideias !
As musas grega e romana
abriram*lhe os seos thesouros ;
conheceu da história humana
as virtudes e os desdouros ;
avistou nos voos seos
quanto ha grande em terra e céos ;
do g'éQÍo Da froute Deufi
lhe pò3 os eternos lourow
Se intregue aos « prazeres vãos, »
(I seos sócios » e 11 aeo-'* tyrannoM, •'
abrira co'aA próprias mãos
« o abyítino dos desinganos . n
80 das paixOeã iio delírio
o queiras o fúnebre cync
da morte ; após o mariyrio
fica aol entre ns humanos !
Luz fecunda, que derrama
a sua memória, é tal,
que inuDd& em vívida chamma
este sec'ln em Portugal.
Nobi^n reconhecimento
lhe rri^e esse monumento,
anto o qual o povo attento
diz : — « Bocage, és immortal ! "
O' bella flor do Sado, alegra a fronte ; o dia
é data immorradoura em lua illustre bititória ;
a portentosa voz gt;loii-a a terra fria,
mas tu bradas-lbe, ó m&fí : " Renasce para a glória í »
Recitada esta poesia com ralor, e accolhida cora ap-
plausus, pediram unanimemente os espectadores que m
orchestra tocasse a marcha Homenagem a Bocage, o qac
foi feito, em meio de geral enthustasmo; e sempre em
egual disposiçfio de ânimos foi seguindo a repre>entaçao.
Ao mesmo tempo, havia um concorrido baile no club.
Seis banda» de miisica percorriam todas as ruas, e ea-
tacionando ante os pyos do conselho, o odiflcio do Seia-
bixiense e outros logares. abi locavam ,a Homenafiam a
Bocage ti outros hymnos, lançavam ao ar ^riràndolas. e
trocavam-se discursos.
As philarraónicas iam, uma após ontfa.lucar, e atB(»r
foguetes, em frente da casa ondp nas<'qu Bocage, na
rua de S. DomínEros.
Estava preparada na praça de Bocage uma G^cellenta
illuminaçS,o a gas, de que •• tempo não perraituii sacar
todo o partido : roas grande número de casas da cidade
rstiveram illumioadas. haviíudo, em al^nrans, transpa-
eentes « allegoria.'*.
XXXIV 21T
Também foi devido ao máo tempo o nfto se ter lan-
çado o fogo d*artifício, que se mandara preparar para
remate dos festejos d 'aquelle dia.
Quando o comboio partiu, tendo alguns dos convi-
dados ficado em Setúbal, accolheram-se á provada bene-
volèacia do digno Presidente da Municipalidade, e dos
mais vereadores, que com a mais sympáthica delicadeza
tractaram aquelles seos hóspedes, incbendo-os de atten-
çOes e obséquios.
O edifício da câmara municipal conservou-se interior
e exteriormente adornado, assim como todas suas im-
mediações, para uma jnova solemnidade, a qual se
realizou no dia 24 do mesmo mez, ainda em honra do
mesmo grandioso vulto, e por iaiciativa da commissão
do Rio.
Com eflFeito, é j& sabido que tendo ella tido a fortuna
de descobrir em poder do prestante 5r. Dr. Joaquim
José Teixeira o famoso execnplar original do retrato que
Henrique José da Silva fez de Bocage, no anno de seo
passamento, mandou tirar d'elle uma excellente cópia,
muito mais perfeita que o original, e em poncto
muito maior, cópia que ficou de inexcedivel similhança,
sendo portanto o único retrato que existe authêntico,
e o que teve a honra de servir para modâlo da estátua.
Levou-o comsigo para Portugal o Presidente da Com-
miss&o do Rio, que o depositou nos paços do Conselho
de Setúbal, declarando que viria a ficar propriedade
d^ella, se a Commissao central isto approvasse ; e pois que
assim succedeu, pertence elle hoje 4 Câmara de Satubal,
que o conservava, até receber a decisão, no antigo ora-
tório ou capellada municipalidade, casa muito digna de
admiração, por ser toda de legítimo xarao e de primo-
roso trabalho.
Foi a inauguração d'esse retrat^ no salão do conselho
que motivou terceira festividade, no dia 21. em honra
do Sadino. A municipalidade convidou muitos dos seos
hóspedes, do dia 21. Repeciu-se então a festa toda, com
ílluminaçôes, músicas, theatro, baile etc.
Em conformidade com as instrucçoes da commissfto
central, do Rio, foi o photógrapho Roquini, de Lisboa,
com um ajudante, para tirar na própria oceasi&o da
inauguração 2 photDgraphias, uma pela frente, outra
fmlas costas do monumento ; lambem isto nao saiu per-
éito, por causa do tempo ; mas, tendo o photógrapha
218 XXXIV
ficado em Setúbal, poude depois, com quanto nfto tivesse
um raio de sol, tirar as incgmmendadas vistas, embora
desaccompanhadas da animação que o espcct&culo da
inauguração houvera devido imprirair-lhes.
Também serão mandados para o Rio alguns exempla-
res da marcha Homenagem a Bocage, tanto para piano
como para banda Regimental.
Eis ahi de que modo foi realizada a idea, proclamada
na Assembléa do Club Fluminense, a 15 septembro de
186t5, isto é, no dia em que se completavam cem annos,
do nascimento do laureado vate Manoel Maria Barbosa
du Bocage.
O Ooi3Lsex*vatoi*io de iMLiisloa
Noticia histórica e descriptiva da inauguuacào do
edifício, e origem da instituição.
I
No seio doesta esplêndida natureza, cercado doestas
maravilhas que se estampam no azul dos céos, uo ver-
dor dos campos, no iriar das flores, no serpear dos rios;
que se molduram na aspereza dos granitos que topetam
com as nuvens, na rugosidade dos troncos que Be exal-
çam aos ares ; que se traduz no perennal concerto dos
pássaros, do ciciar dos bosques, do rugir das feras e do
estrondar das cascatas, porque se conserva o brazileiro
indifferente ao amor do bello e ás suas divinas creaçOes?
Porque, hao de ser, na terra fecunda, immensa, do
Cruzeiro as obras do Creador tao bellas, t&o portentosas,
e as da creatura tao feias, tao rachitícas ¥
Porque, como os helenos, sob um céo tao formoso,
pascendo os olhos por tao pittorescas paysagens, nfto
amamos nós a arte at^á iaolatria, nem rendemos ao
bello o preito devido?
Porque somos nós, os filhos doesta terra que Deus se-
meou com mao generosa de tantos, tao vários e tfto
raros primores, os que menos comprehendemos esta laxa-
riantenatureza,que nenhuma do globo supera em pompa?
Será que os brazileiros herdassem de seos avoengos o
tao vergonhoso desamor que votámos ao bello?
E' sempre essa a desculpa com que de prompto nos
defendemos do nosso atrazo artístico : desculpa, que
nao passa de calúmnia lançada aos nossos antepassadost
porque nao foram elles indifferentes aos esplendores
XXXIV 219
d*esta natureza tropical, nem avessos ao cultivo das
artes, còmb nos esforçamos por insinuar.
Ahi estão esquecidos sob o pó dos tempos os Infolios
dos chronistas portnguezes, como Gabriel áoares, Simão
de Vasconcellos, Rocha Pitta e outros, que em estylo
terso e fluente descreveram as bellezas agrestes d*este
faracissimo solo ; ahi est&o ennegrecidas pelo perpassar
dos a*)no8 as grandiosas fachadas dos nossos velhos
templos, os chafarizes de arrendados contornos, os con-
Tentos de severo mas imponente aspecto, e a altiva e
sólida arcaria da canalizaç&o das águas da Carioca ^ a
desmentirem-nos, e a provarem que esses nossos avós
almejavam perpetuar suas obras em honrada posteri-
dade.
Nfto ; nao foram elles que nos legaram o intranhado
desamor que temos ao beilo ; outra, qualquer que seja,
é a origem do nosso atraso artístico ; origem que a
estreiteza da presente noticia nfto deixa indagar, nem
a acanhada intelligência ae quem estas linhas traça
pôde tfio accuradamente profundar quanto a transcen-
dência do assumpto o estaria soUicitando.
D'emtre os quatro ramos principaes de bellas-artes, a
architectura é, sem dúvida, a que mais atrazada lan-
guesce entre nós ; e é todavia ella que, no dizer de
Laboulaye, d& ás physionomias dos edifícios o cunho de
uma edade e 'nelles imprime as aspirações de uma
raça.
 architectura é uma das faces mais legíveis do cha-
racter de um povo ; nas suas producçoes gravam-se, em
typos indeléveis, os períodos do ingrandecimento ou
decadência de uma nacEo. Nas formas de um edifício,
JA vastidão ou exiguidade de suas proporções, mede-se
e avalianse a nobreza ou a vilania de quem o construiu.
« E' na architectura, diz o er*^ito Dr. Velho da Sil-
va, onde se revela o verdadeiro poeta, o sonhador de
ideas abstractas ; e quereis saber o porque "? E' que a
pintura busca tyjpos nos grandes quadros das obras da
creaçdo ; a esculptura é perigrina dos três reinos da
natureza, conduz preciosidades do infinito pára o finito,
imita, affeiçôa, traz illusões para os olhos, illude-se á
si mesma com os seos traslados, arrebata o f5go do ceo
para imprimir calor e vida na estátua de mármore frio
uue viveu e sentiu, porque era a mais perfeita imitação
aa obra mais perfeita de Deus. A architectura, porem,
n&o tem modelos na natureza, n&o acha typo na crea-
I
220 xxxrv
çKo : aqui o artista concentra em sua imag'inação, com')
era fdco Iuqiídoso, tudo que sealfi. pensa, e combimi-u
de raodo que transmitta aos outros a percepção e o aen-
timento do seo ideal ; aqui tudo é o resultado do génio,
das luzes, das paixOef; do artista, do ^õsto do seo paii; e
do seo tempo. «
A architectura tem merecido dos povoa civilizador;,
antig;os e modernos, toda a solicitude que para o seo a-
perfe iço amento é preciso ter incessaute : e é a esse des-
vello que as grandes cidades européas. e mesmo dos
Estudos Unidos, devem a grandeza dos seos monumen-
toa, a belleza de suas edificações, a regularidade dos
seos arruamentos.
Entre nós, o gosto da architectura é ainda deficiente,
e até geralmente menospresado,
A' iudifferença que temos para com tudo quanto pro-
duz a arte em suas differentes manifestações é que deve-
mos a irregularidade e rudeza dos nossos ediffcio.-í, par-
ticulares e piiblicus.
A falta de gosto dos nossos misteiraes, unida á suft
supina ignoríincia, aao parte para que os nossos e-
dificios públicos não passem de servil imitação dos eu-
ropéos, (jne mesmo assim sariam toleráveis se nao Ilies
amesquin liassem as formas, diminuindo consideravel-
mente na cópia as proporções, e applicando muila-s vezes
a fins assaz diversos a caricatura do que vão procurar
em longes pla^as-
Quem se n9,o doe da mutilação que se perpetrou aqui
na cópia da stiberba estai;3o da estrada de terro de Stras-
burgo, admirável construcçilo moderna, que Lahonlayi!
reputa ;i primeira no seo génerii ? Qu5o inhabilment»*
nilo foi macaqueada na façhadn da estação central da
estradii de ferro de D- Pedro II".? Quem pôde vur de
&nimo iranquillo um lios mais bellos edifícios das es-
cholan belga.1 iristementie caricaturado na rscliola da
praça OiizR de Junho"?
Para o novo edifício da Praça do Commércio da ca-
pital do imp^rin du Brazil [uma das mais importan-
tes do mundo), adoptoií-se um risco acanhado e de es-
tyio florido, alambicado e cheio de arabescos, antípodas
do fim para ijue o dbstinam, ao passo que o do Con-
servatório de mi'(Jiic.it é pesado h -iombrii» como um pa-
lácio de Justiça t
Cerrit-.-íe-uos a alma dfi tristeza, vemlo empregada
XXXIV 221
t&o avultada somma em construcçSLo que para tudo será
appropriada, menos para o mister a que vai applicar-se.
E' para lamentar que a primeira eschola que o Bra-
zil po&sue, de um dos mais cultos ramos da arte, tenha
habitaç&o de formas tao communs e de tão mesqui-
nhas proporções. E' para sentir, qne» ligando se a
história do Conservatório de música ao nome de um
artista tfto eminente como Francisco Manoel, n&o pos-
sa d'elle dar idóa, mais alta nas formas grandiosas
que deveria ter o edifício devido aos esforços incessan-
tes de tao inspirado músico.
O espirito pouco desinvolvido das associações e em-
presas, a falta de acoroçoamento à iniciativa particular,
(nao da parte do Governo, mas do povo que a ella com-
pete auxiliar), inocularam-nos o péssimo principio de
que tudo devemos esperar dos poderes do Estado, e que
só à custa dos cofres públicos é que deve também ser
feito quanto fõr de geral utilidade e concorrer para o in-
grandecimento da pÀtria. E' a este vulgar systema que
devemos as grandes anomalias das nossas instituições e
por consequência a injustiça com que se lança ao Go-
verno unicamente a culpa de tudo quanto de máo ahi se
faz entre nós.
Nenhuma associação se funda no Brazil, com intuito
de concurrer para a prosperidade de qualquer dos ramos
dos conhecimentos humanos, sem protecç&o do Estado, e
nenhuma prospera sem subsidio do thesc»uro! D'ahi
nasce esse amalgama de instituições semi of&ciaes, semi-
particulares, com administrações electivas, mas depen-
dentes da approvaçfto do Governo.
E' assim que o Conservatório de música^ instituído por
uma sociedade particular, forma hoje a quinta secç&o da
Academia de bellas artes ; estando sob a direcção geral
d'esta tem economia separada e ainda pertence á associa-
ção que o estabeleceu; e constituindo os seos professores
parte da congregação da AcaderrAa têm ordenados meno-
res do que os doesta, e recebem-n'os do património da
sociedade, cujo thesoureiro serve gratuitamente.
O resultado de similhantes inconsequencias é que
sendo o edifício do conservatório quasi todo feito a ex-
pensas dos coffres públicos, deve sua má e deffeituosa
construcção ao director da sociedade que o fundou ; no
emtanto,o Yulgo,auctorizado por aquelles que sem crité-
rio nem consciência dão a Deus o que é de César ,e a César
o què é de Deus, imputa ao Governo todos os defeitos
222 XXXIV
d'aquella e(lifiv*açao,e até,atropellaado a própria história
dos nossos dia;», chega a suppõr que foi o actual Sr. Mi-
nistro do Império quem auctorizou a feitura d'essa ohra,
quando ella começou em 1863.
Âccreditando-se, sem a mais leve indagaç&o, que o
edifício do conservatóy^io é trabalho d'estes dous últimos
ânuos, çhega-se também a emprestar a auctoria de simi-
Ihante obra ao Sr. Bettencourt da Silva, que apenas foi
incarregado de dirigir a sua conclusão, modificando
quanto podesse, para melhor, o seo plano primitivo.
Levaao por estas considerações, seja-nos permittido
bosquejar a largos traços a narrativa da fundaçilo do
Conservatório^ antes de aqui fazermos a rápida descrip-
çao da sua festa inaugural, de que nos achámos incarre-
gados por quem confiou por demais em nossos débeis
recursos.
OaPHEO.
{Continua.)
A faixiiiia.
A família é de instituiçSo natural, e é a base de todas
as associações políticas. São theoremas, que nao preci-
sam demonstração.
A família recebe o homem ao nascer, accompanha-o
durante toda a sua vida, e nos últimos transes, um dos
maiores desejos do moribundo é açhar-se cercado de
sua família.
O amor de família bebe-se com o leite; dosinvolve-se
com os brincos da infância; fortalece-se cora a puberda-
de, buscando uma companheira: produz seos fructos na
virilidade, e abriga na velhice.
O amor da família é a mais valente de todas as leis
divinas e humanas. A maior parte dos homens sao con-
tidos, não porque o código lhes prohibe esta ou aquella
aroao, ou porque na vjda futura poderão ter este ou a-
quelle castigo. Intremos em nós. A maior parte de nós,
só deixa de praticar certas acções, porque tem mulher,
porque tem filhos, porque tem um velho pae ou velha
raae, ás vezes até porque tem um irmSo, ou irmSr.
A natureza dice ao homem e á mulher, que um por
outro deixaria a casa de seos pães, e que unidos gera-
riam e creariam filhos, que por muito tempo neces&ita-
riam de sua pfotecção, e assim deu nascimento á socie-
dade familiar. Porém ao mesmo tempo, dando a todos
XXXIV 223
forças limitadas, e aptidões diversas, obrigou-os a sepa-
ra^^-se. As instituições humanas vieram dar mais força
a esta necessidade. As differentes proHssOes, se tendem
a conservar unidos certos homens, tendem a desunir, os
membros de uma família.
Nem o corpo nem o espírito podem estar em conti-
nuado trabalho. A natureza deu-nos a noite para o
descanço.
Mas o próprio Deus no Sinai, e após elle todos os le-
gisladores reconheceram que a noite nao bastava : por-
que se bastava com o descanço, isto é ao indivíduo,
nao approveitava à família. Um por fatigado, outro
por ausente, não poderia approveitar-se das vantagens,
que proporcionam as relações familiare.^.
Para reunir os membros das famílias dispersas, crea-
ram-ae os dias de descanço. O artesão, o jornaleiro, e
outros de outras profissões, no dia de descanço ficam em
casa : contam a sua vida, e ouvem a vida dos mais.
Estabelecem a communhao.
O catholicismo foi mais longe. Creou grandes festas,
em que muitos dias de descanço seguidos dessem logar
a grandes reuniões. Era assim que víamos, ainda nao
ha muitos annos, que o dia de Natal reunia à roda da
mesa do chefe da família todos os membros d'ella : se
algum faltava, era objecto de solicitude geral : e mui-
tas discórdias ahí tinham fim, muitos interesses eram
ahi regulados, que hoje sao origem de incóm modos
processos.
Em Roma, pelas leis das doze tábuas, o pae de famí-
lia tinha poder discricionário sobre toda ella : mulher,
filhos, e escravos : podia vendêl-os e até mactal-os.
Conta-9e de Catão o antigo, que cedera ou antes vende-
ra Márcia sua mulher a um seo amigo, recebendo-a de
novo por morte d*este.
Nos tempos do feudalismo, ainda depois, famílias
houve tao unidas e poderosas, que os reis eram obriga-
dos a combatêl-as a mao armada. Era demais.
Os legisladores modernos tem tractado de acabar cora
a família, e tudo quanto a pode conservar e sustentar.
Direitos de marido sobre a mulher, do pae sobre os fi-
lhos, do amo sobre os creados, ou estão extinctos ou
quasi; no poncto a que as cousas v&o chegando, é o
excesso contrário.
Sem respeito á família, nao ha moral. O homem hada
achar sempre mil meios de escapar á sancçao externa
224 XXXIV
das leis; somente a sancç&o interna o pôde conter.
Mas esta é preciso que seja immediata : o mal remoto
assusta pouco. Não ha quem n&o espere confessar-se à
hora da morte, e receber absolviç&o.
Isto para quem crê : para quem n&o crê, o mal é peor.
Pequenas forças nfto podem offerecer grande resis-
tência ; porém também não podem produzir grande
acç&o. Caminhar pelos extremos é correr o risco de
a cada momento precipitar-se. Para avançar com se-
gurança, é mister seguir pelo meio.
Nos séculos passados, os homens trabalhai fim para
suas famílias: procuravam feitos, que podessem passar
á posteridade. Hoje cada qual trabalha por si com a
quasi certeza de que seos filhos, e a certeza absoluta
de que seos netos, de nada se approveitar&o.
Acabaremos tudo hoje, porque amanhan havemos
de morrer, dizia a phílosophia de Epicuro, e dizemos
nós hoje.
Com este systema, vamos direitinhos à barbaridade.
O livro está substituído pelo jornal ; o estudo pela
leitura.
Para que mais ? A sepultura que devorar o corpo,
devorará também o nome. '
Ha emulação entre amigos, vizinhos ou parentes.
Tirada a família, é tirado um grande principio de emu-
lação, e por consequência de aperfeiçoamento.
Destruir a família é tirar a auctoridade á experiência.
O homem que procura relaxar os laços da família,
certamente nunca os comprehendeu. Ottok.
Galex*a a duas amax*x*a8
O marquez de Mirabeau era, como todos sabem*
grande liberal * seo irmão, o conde do mesmo titulo*
tinha logar distincto no partido da corte : e este dizia
áquelle : Irmão 1 estamos bem ; se vencer a corte» cá
estou eu para tesalvarf se vencer o partido liberal, lá
estius tu para me acudir.
O Sr. Alencar incarnou em si as duas pessoas : pro-
clamou-se conservador na Câmara, mas escreve para a
República. E assim preparou colxão em ambos os lados,
accendendo uma vela a Dtms, outra ao Diabo.
Por amizade, que lhe temos, lembr&mos-lhe que a
demaí^iada prevenção muitas vezes produz effeito con*
trário. Otton.
Typograpbia e lithographia ->l]áPARCIAL^ Rua Sete de Sete iii)>«t\ ]«6
J
QUESTÕES DO DIA
2Sr.°35
RIO DE JAKEIBO;2r7D£ JAKEIRO DE 1972.
-r-m- — 1^ -»_ ■ Ml ■ M — «r i i-nt" • '
TeDde-8e«m casa dos sra. B. Ac H. Laammert.— Agoetinlio de Freitas Ou-
maries &c Ckimp., 36, roa de General Camará.— Livraria Académica, Rua de
S. José n. 11^- Largo do Pace n. C— Pre^ !KX> reis.
O r volume, com perto de 400 páginae— 34000.
lii8tx*ixcQSo Populaz*.
CARTAS DE CÍCERO AO SR. DR. CUNHA LEITÃO.
I
Confrade e amigo.
Ab Jove prindpitmi ; começftmoB pelos deuses, como
diriam aquelles honestos e bons poetas, que, despren*
didos das misérias da vida, passavam as horas do lazer,
dedilhando as chordas do alaúde, e atirando aos ventos
que susurravam na copa das árvores eançOes t&o triste-
mente melanchólicas» que é prazer 161<ts e sensaçfto
indefinida lembral-as. Como «qnelles bons pães da velha
litteratura portuguesa, furtftmo-nos por um momento
ao borborinho do mundo, que se agita, oscilla e passa,
para muito & puridade, terra a terra comvosco, roubar-
Tos um pouco do tempo precioso, que tfto generosamente
votais ás cousas do paíz. Grande e sublime cousa é o
assumpto que me traz arrastado I t&o grande e nobre
que por elle me vejo obrigado a dizer-vos que o vosso
nome cresce, depois que se consagrou inteiro a esses la-
bores, que intendem comii dissemina^ do insino a
todas as classes sociaes. E sinto-me cheio de contenta-
mento, porque ao nome venerando e por todos os títulos
respeitável de Castilho António, que em Portugal se
pôs a evangelizar dia e noite em prA da instrucç&o pú-
olica, ostentando-se como apóstolo e martyr, como
licçfto e exemplo, ajunctando á palavra fecunda e elo-
qnente a acçfto magnânima e produetora, vem hoje
alliar-se o nome esperançoso, cheio de promessas eauspi-
CÍ080 de muito futuro, qual o vosso, cnaro amigo e con-
frade ! Nfto, nlo me nirto a dizeUo, porque o sinto ;
vosso talento e vossas obras em matéria de instrucçfto
pública no Brazil v&o levantando um ruido que ha de
crescer como crescem todas as sementes, caídas em solo
affeiçoado e orvalhadas pelo rocio da madrugada.
r
t
226 X.XXV
Actualmente as intelligências estiolaiD-se nas lucta^
estéreis de politica meãquaha, e os talentos perdeiD-se
como a borboleta de mil cô.es, que volita, doideja,
osciils DOS ares e vale apeDa:s o pó auurado que espaneja
das azas; mas o vosso talsiito e todos os vossos estudos
de muito sabere iUustraçãa aão rutilam apeuas um ins-
tante como aquella «strellinha que sarg-e no canto do
céo e se somo det^fazendo-se em sombras, nao; de si
acho eu confronto verdadeiro na ave, que hoje insaiou
06 primeiros voos para amanhã elevar-se í altura das
nuvens e incarar sobranceira os raios do sol.
Parabéns vos dou pela intelUgência que trabalha e
pelo espifito que se cultiva no manuzear e no intender
a licçao e doctrina de bons livros, oa melhores amig-os
que conheço, que aos estão ahi todos os dias negace-
andoe derramando na alma uma esteira de luz, quês
mfto do tempo nunca apag^a. Agora permitti que entre
no assumpto da conversação, que me impelle a dirigir-
V03 estas linhas.
Ferida a ultima pugna d'essa gfuerra que o Império
travou nos serros e plainoa do Paraguay, volveram-se
aa vistas do paíz para questões de mór valia, que affe-
ctavam de perto interesses de ordem politica, económica,
social, philosúphica. A lei da Uberdade do ventre, e a
reforma judiciária, realizadas pelo partido constitu-
cional, eram necessidades impresciudiveis do paiz : mas
outra ha, que eslá ahi supplicando o auxilio de todas as
intelligências, o concurso de tod^s as forças, e a activi-
dade de. todas as faculdados, o^ estudos de toijoa oa
cidadãos, e o pairiotismo de toi'.>sque amam terra tao
rica e fadada a preincher deitiuos tnormes. A inu-
trucçao piiblíca, mais que qualquer outra, é a reforma
capital, o poncto de purtida de iodas as reformas úteis,
progressivas, civilizadoras.
Nao d o paiz corAdo por immensa rede de estrad&s
de ferro, oem de fio eléctrico ; nao e o palz inself-govem-
ment, do auffrágio universal, dos plebiscitos, e dos
meolings, o mais aJeantado >6 por isso, o mais liberal e
o mais progressista. Pura qu>' um povo adquira foros,
cumpre que sejn illuslrado ■ e o confrade e amigo Babe
que era trevas uHo ha inie idei^-se de immunidades e
prerogativas de cidadão e hunitíin livre.
Estas verdades esiao na inentc de tdos, e é sem dd-
vida por isso que em todos fh ângulos do império se le-
rsDta a escbola, como outr'ora se erguia a cathedral.
XXXV » 227
A eschola hoje é o logar aprazado do presente ; d'ella
partem as caravanas, em busca de melhores tempos.
A vós, um dos mais estrénuos propugnadores do in. ino
popular, cabem-Yos parabéns pela eloquente defesa que
ides fazendo da causa do povo. Emquaato falsos após-
tolos levantam tribunas, d'onde deixam cair invenenadas
theorias de republicanismo e democracia, emquanto se
armam até os dentes para derrubar a monarchia e o
altar, a constituição e os bons costumes, summariando
já o inventArio da djnastia, vós pregais a instrucç&o,
a necessidade do insino, o direito que o povo tem de
Bshet ler e escrever, e o dever que tem o Estado de in^
sinar e disseminar nas cidades, nos municípios, nas
villas, nos povoados, escholas e mais escholas, escholas
e muitas e^icholas. Que parallelo entre elles e vós ? EUes
que falam na liberdade dos Estados Unidos, e vós que,
modesto, sem ruido, sem apparato, transformais som-
bras em luz, desertos em cidades !
Mas, que fiquem em paz esses devaneadores, que se
gritam é porque ainda as massas populares se n&o bap-
tizaram todas nas &guas lustraes do Jordão da instrucção,
Iue as ha de transformar em advogados de seos próprios
ireitos e prerogativas.
Na sessSU) do anno atrazado^ apresentastes na Assem-
bléa Provincial do Rio de Janeiro um projecto de ins-
trucção primária, obrigatória, fundamentando-o com um
discurso, em estylo nobre e cheio, que é por sem dúvida
um prodi$2:io de hermenêutica e eloquência. A nomea-
ção que de vós fez o Governo Imperial para Presidente
de Sergipe, distinguindo em tao verdes annos vossos
talentos e méritos, levou-vos para uovu terreno, onde
devia levantar-sea vossa estrella, esplendente de irra-
diação.
A vossa bella administração abriíi-se fle-de logo, de
m')lo descommunal, assignalanJojse por um acto, que
ha de ser sempre memorado nas páginas >\'i história de
Siirgipe, que* vem a ser i instituiçílj d«- um ciirso de
auias nocturnas f tanto de instrucçao jirun iria, como de
innrucç&o secundária. Este gt^nero^o pt^ns imento rea-
lizoa-se de modo digno de encómios, nlo só para quem
o cjncebôu e o pôs por obra, como para a |ji*ovincia de
Sergipe. A imprensa do Império di *o jikí t«scrangeiros
e nacionaes, professores e pessoas hIóu^ms «1'^ character
respeitável, e lidas em matéria de iusiio..** o rereceram —
piHi leccionarem gratuitamente a todos ^titintos se ma
228 XXXV
tricaltussem no curso nocturno, Nfto pái^ ahi a minha
admiraç&o, scei mesmo que inaugui^astés o ciirso com
subido número de matrículas e que fostes alvò de uma
das mais solemnes e estrondosas manifestações po{)o-
lares. O povo é sempre grato : aquelles operários rudes
e honestos, aquelles homens do trabalho manual , aquel-
les artífices e obreiros que foram ao palftcio saudar- vos
sabiam que o curso nocturno rasgava diante d^elles ho-
rizonte, que seos olhos ainda n&o podiam medir^ porque
até então andavam perdidos em trevas.
Transporto aqui para esta carta alguns trechds da
manifestação popular, no meio da qual o Jornal So Ara-
caju dá como gemmas de inestimável preço as palavras
elocj^uentes com que agradecestes tao honrosa e nobi*
lissima festa.
c( Derrame-se pois, diz a fnamfestttíãopoputar^ a xúb-
truoç&o a <c laicos jorros sobre a calaça do povo, »
e elle, banhado 'nesse novo Jordso, bemdirá a mSlo
quslhe prodigalizou a agualuertit^l doip6fí:$áhiêilto.
a Instruir, instrtfir muito e iuãrtrtiir ^mpi^e : tal disve
de ser o esforço de todo o governo livte e píatemaL
« Felizmente, trao tem sido V. Ex. surdo e iihpAssi-
vel a esse grande reclamo da civilii^ftò é doa áeòs
governados, mas apóatolo da gi^ande causa, dedicado
administrador de um povo digno de altos deatíáds :
illustrado, tacteando-lhe o pulso setitindò-lhe 'a f&Mte
de conhecimentos que o devora, acAba de concedér-lhe
o refrigerante que, extinguindo-lhe a idBicçao, êm èeo
lugar geráta o gõso.
« Sim, Exm. Sr., já n&o sso prt)btema as Vantagens
do Curso Nocturno — em bom dia imaginado e pMo ém
prática por V. Efa. »
« S. Exa. o Sr. Dr. Cunha Leitão respondeu a essas
manifestações com um brilhante e eloquentisaimo im-
proviso, em cujo com||p> entre ^pplausos, disâe S* Eta.:
« líeos senhores, as vossas maniféstaçfiíes pinhoram o
meo reconhecimento. A vida política é toda çhtfa
de flores e espinhos. Agradeço- vos as floras qoe faojé
me .trazeis. A maior satisfacÇ&o do homem piiblico
está na consciência de haver feito algum beneficio em
favor do povo ; isso que hoje me vindes dizer, pro-
clamando como um benefido a creaçAo das aulas noc-
turnas, enche a minha alma de júbilo, satitfaz as
minhas aspirações de administrador. »
N&o parastes }K>rèm em meio do caminho : o i^ano de
XXXV 229
inatrucç&o que queríeis desinvolver era bem combinado
e matbeiaaticamepte infallivel no^ resultados . Apte o
curso nocturno^ creastes as conferências populaces, con-
vidando por charta ao Director da lustrucçao Pública de
Seiígipe para inicial«as. Permitti que me detenha, por
instantes na conversaçAo que levo inceptada desde o
principio e me aventure em breyes e ligeiras coosiden^-
çOes , mas por n4o fatigar-vos, peço licença para resQc-
var para outra missiva e^s^outras considerações.
CiCBRo. (Continua).
OBRAS DE J. DE ALENCABr^A IRACEMA.
VIII.
lUustre e docto escriptor : Parece-me haver provado,
de modo irrecusável, carecer a Iracema do vigor e bri-
lho, que a genuína interpretação da história attribúe &
poesia indígena brazília.
Provei, cotejando capítulos inteiros ds^ obra de J. de
Alencar, com extractos dos nossos nrimeirts modelos,
que essa falta se lhe nota, até quanao menos o fora de
esperar, isto é quando se tracta das próprias guerras —
foco principal, senfto único, das paixões doesse povo. E
como nao havia de ser assim, se isso mesmo introu nos
planos do Sr. Alencar — assignalar eçsa poesia, — obra
sua— pelo character que lhe dí^ em todas as condições,
circumstãncias e assumptos da vida sielvagem ? Fi^Ui^s
illusfto, que só o mais desregrado e bi^lõfo orgulho
explica.
Eis o que incontro n'um historiador :
c( Tudo nos Tupys (os índios que figuram na Iracema
sfto todos doesta raça) respirava guerra : o nascimento,
a educaç&o, o casamento e a morte, os seos hábitos, i^
soas idéas e a sua religião. Se a in&e chorava com as
dores da maternidade, aquellas l^rymas podiam cair
sobre o coraç&o do menino e tornal-o covarde : convinha'
portanto mactal-o. (Laet, Ind. Occ, L. 17, cap. 15.)
« Apenas nascidos, eram pintados com as cores d^
guerra, o urucú e o genipapo, como se o negro e o ver-
melho d^aquellas tinctas symbolizassem o sangue e o
lucto ; a seo lado depositavam um arco e frechas, que
os accompanhariam meninos, jovens, adultos, guerrei-
ros, e depois de velhos, e depois de mortos.
<c Apenas saldos da infância, um baptismo de sangue
os aguardava ; furavam-lhes os l&bios e os lóbulos das
230 XXXV
I
orelhas, e davam-lhes um nome que com aquella pro-
vança mereciam [Belation du voyage de Roulox Baro^
Trad. de Morau, pag. 233.)
« Cresciam no meio de exercícios physicos que Ihea
desinvolviam todas as forças do corpo ; tomavam-se
homens no meio de fadigas, e só eram recebidos guer-
reiros á força de martyríos. Para o casamento era pre-
ciso conquistar uma mulher, e fazer um prisioneiro, ou
levar a palma aos outros em força e agilidade ; na morte
só os grandes iriam para além das altaa montanhaSt
onde os seos maiores amigos e parentes os esperavam
na deliciosa beatitude do ócio entremeado dos prazeres
da caça e da pesca.
« Um cântico . de guerra os accompanhava do berço &
sepultura, e fabricavam as suas armas ao som de canti*
gas que narravam os aggravos recebidos dos seos em
tempos anteriores, e como todos aquelles que prezam em
primeiro logar as forças physicas e a coragem.» G.(Dias,
Obr. PosL, vol. VII, pag. 204 e 205).
Ora, se « entre os Tupys era tudo poesia )» e se, por
outro lado, a tudo 'nelles respirava guerra » como con-
ceber-se que pretenda realizar o legitimo tvno orna
poesia que, além de forçada, é imbellc c molieirona,
qual a aa IratAna^i !
Porém nao é só 'nisso que o auctor tracta de resto,sem
auctoridade nem razão, a história. Adoptado o dissol-
vente systema de demolir ou innovar quand méme^ leva
j^eante o sacrilégio contra o legado que 03 tempos nos
transmittiram, nSo para que o proran&ssemos, senfto
para que lhe rendêssemos a veneraç&o, legitimamente
devida ks relíquias augustas do ingenho e da observa-
ção ; n&o para que apagássemos a lâmpada, sen&o para
que nos ella servisse de pharol, tanto no presente como
nas edades porvindoiyas.
Mas o que queres, meo amigo ? Se o Sr. Alencar in*
tende, por ser quem é, que em tudo tem carta branca
para devaneiar Se até na jurisprudência criminal,de
natureza puramente positiva — (stricti júris — ) tem ellaa
singular pachorra de deduzir, do silêncio da lei, pena
de prisão... i Já viste espirito mais liberal ed^nulo?
Ha de ser difficil.
Ld-se na Iracema^ pag. 5.
«c Ergue a virgem os olhos, que o sol n&o deslumbra ;
sua vista perturba-se. Deante d*ella, e todo a contem-
içlal-o, está um guerreiro estranho, etc. (E' Martim)...
XXXV 231
Foi rápido, como o olhar o gesto de Iracema. A flecha,
embebida no a^cOy partiu, d
Lê-se na pag. 27 :
<c A virgem retrabiu d'um salto o avanço, e vibrou
o arco. »
Lê-se na pag. 45 :
« A virgem, avistando a figura sinistra de Irapuam,
saltou sobre o arco, etc. »
Lê-se na pag. 85 :
a ... O cnristao defende-se apenas ; mas a setta em*
bebida no arco da esposa, etc. »
Esse constante uso que faz a índia das armas guer-
reiras é desmentido pela história. Só entre os Tapuyas,
mais embrutecidos e bárbaros, se permittia ás mulheres
usal-as. Entre os Tupys^ porém, <x ciosos da sua digni-
dade », ás mulheres nao era licito trazerem armas; nEo
caçavam e muito menos pelejavam. O Sr. Alencar
ignora isso? Nso ignora, mas nfio acceita, está acabado.
Lô-se na pag. 24 :
«c Iracema sentiu que sua alma se escapava para em-
beber-se no ósculo i^rdente. »
E na pag. 53 :
a Iracema tomou a mSU) do guerreiro branco e beijoii^a.i>
Recorrendo-se ao Glossário do Dr. Martins, incontra-se
com effeito o yerbo tupico pUer (ou pêUra, segundo o
muito accreditado Vocabulário do Padre M. J. S., lente
de Língua Geral no Seminário Episcopal do Pará) com
a accepção de — beijar. Esta accepçSo é, porém, evi-
dentemente figurada, ou adoptada na carência do termo
primitivo ; a própria é chupar, sorver, vindo de pHêma
ou petu/m ou pitum, tabaco, fumo, como se dicessem —
sorver, aspirar a fumaça.
Isto me confirma a crença de que, no puro estado sel-
vagem, 08 nossos índios n&o conheciam o beijo, e que
este lhes foi transportado e insim^o pelos colonizadores;
muito menos como signal de reconhecimento, digo de
gratidão, qual o emprega o auctor na segunda das pas-
sagens citadas. «O oeijo — diz-nos uma grande auctori-
dade no assumpto — se nos appresenta como a express&o
natural da affeiç&o ; todavia elle era inteiramente des-
conhecido dos habitantes do Taití, dos Neo-Zelandezes
(D'Urville, vol. II, pag. 561), dos Papuás (Freycinet,
Yol. I, pag. 56), dos aborígenes da Austrália, dos Es-
Suimaus ( Journal de Lyon, pag. 353.) )) E porque n&o
OH selvagens do Brazil ?
232
Lê-se na pag. 79 :
« A virgem pendeu a fronte; velando-se com as longva
tranças.... recolheu em seo pudor.»
Ena pag. 70 :
« Quando veiu a manhan, ainda achou Iracema alli
debruçada.... Em seo lindo semblante accendia o pejo
vivos rtJ)ores etc. »
Rubor, pôjo ? Têl-os-hiam acaso ?
'Numa sociedade, em que os instinctos e sentimentoB
da honestidade feminil se gastavam desde os mais verdes
annos, ao attrito e ao espectáculo permanente da vida
licenciosa, que esgotava toda a sorte de abominações e
turpitudes, poder-se-hia levar à puberdade o que só a
recato alimenta e guarda ? Por outra : podiam elles ter
o que nSLo tinham por essência da sua própria sociedade?
G. Dias, de todos os historiadores de índios o que mais os
favorece, e ameniza a sua rudeza e fragilidades, diz (e
é sabido) que a as mulheres em splt^iras.se prostituiam
fddlmente. » Fala-nos elle — é verdade — de um cha-
mado pudor ; mas em que consistia este 1 Eis o que refere
o illustre escriptor : dO seo pudor (falando daa mulheres)
revelava-se na honestidade dos gestos e maneiras^ e no
mai5 consistia em aao mostrarem nuuca signaes de....
que, ou n&o tinham pelo frequente uso de banlioa, etc.»
N&o se vê que aqui o pudor, esboçado com cores tao
vagas e indistinctas, parece antes generosa concessão do
poeta?
Mas observa o Sr. Alencar na sua carta final : « O
estudo da língua indígena, é o melhor critério para a
nacionalidade da litteratura. Elle nos dá nao só o ver-
dadeiro estylo, como as imagens poéticas do selvagem,
os modos do seo pensamento, as tendências do seo espi-
rito, e até as menores particularidades da sua vida.»
Entre parêntheses : esta idéa não é do Sr. Alencar,
bem que só elle lhe haja dado tamanha latitude. Hum-
boldt, que o Sr. Alen^r nfto quiz citar, sem dúvida por
nao conhecer auctoridade acima de si, nem mesmo
Humboldt (que loucura!) dice: «(Creio que se fòssem
bem estudados os idiomas dos selvagens, açhar-se-hiam
nelles mais riqueza, e gradações mais delicadas, do que
se devera esperar do estado inculto dos que falavam.»
D'Orbígny abunda na mesma opiní&o, que é commum a
muitos outros historiadores. Caberiam aqui outras or-
dens de considerações sobre alguns poactos mais da carto
do Sr. Alencar, que todavia nos reservamos para ptor»
XXXV 233
duzir quaado tractarmos especialiueate da reftírída carta,
por assim o acconselhar a melhor distribuição daan&lyse.
Abro o Glossário do Dr. Martius, e iacontro com effeito
o vocábulo pouçú^ trazeado a seguinte sigaificaç&o :
respeitar com alg^m pejo, pejo ; e esfoutro — poçúçabUf
naturalmente derivado do primeiro, com a significação
de — acatamento. Â' excepção d*estes dous vocábulos,
nenhum outro ha, que eu saiba, da língua geral, expri^
mindo a idéa do attributo moral.
Mas pergunta-se : pelo simples facto de virem con-
signados ahi estes termos, devem ser elles recebidos sem
quarentena ¥ Ninguém dirá que sim, porque ahi lambem
vêm vocábulos evidentemente intercalados na língua dos
selvagens pelo tracto d'estes com os europêos ; por exem-
plo : coaracyrangàbay relógio de sol, coatiçàra, escrivão,
ifniràrerecoáray meirinho, imirarereoçú, ouvidor, e mui-
tos outros. Logo, cumpre fazer a devida digest&o.
Primeiramente, a nossa razão indaga se a idéa expressa
repugnava, ou, se, pelo contrário, era comoativel com o
estado moral da sociedade dos Íncolas primevos. Com
bons argumentos ninguém dirá que tal idéa o era«
Em segundo logar, sendo assim, somos inclinados a
presumir que os vocábulos foram, como tantos outros,
introduzidos pelos colonos estrangeiros. Além dos mo-
tivos já expendidos, fortalecem-me a crença de serem
esse^ vocábulos oriundos da necessidade de exprimir
idéas adventícias, estas duas considerações : 1* o dar o
Dr. Martius o termo poUj;A na qualidade de duvidoso ou
incerto, perguntando se será portuguez ; 2* o vir este
termo (somente escripto deste modo — possa) no Voca-
bulário já referido, com as accepções de — respeitar,
ter respeito. Ora, respeito não é o mesmo que pejo ; e a
idéa de respeito não só não repugna, como a outra, se
não que é toda conforme com qualquer sociedade bárbara.
Quanto a mim, pois, é manifestamente preferível a
accepção trazida pelo Vocabulário,' obra de auctor na-
cional, mais no caso por isso de ter estudado melhor a
língua !
Mas diz o Sr. Alencar que «c os diccionáríos são im-
perfeitos e espúrios » (a idéa não é d'elle, como pro-
varemos opportunamente.) Quem nos dará, pois, a
âoluçao do problema'? O Sr. Alencar não nos insina o
meio de sairmos doesta difficuldade, mas insinam-nol-o
a razão e o bom seus d. Voltemo-nos para aquelles, que
têm estudado as raças selvagens no meio d^ellas ; e os
234 XXXV
seos estudos nos servir&o de guia ou de phaual 'neste
oceano de dúvidas e incertezas. Mi nait, nas suas R&-
cherches et aventures chez les insulaires des Andamanf diz
que estes selvagens (e s&o selvagens modernos) sfto
« destituídos de todo sentimento de pudor^ e muitos
dos seos hábitos assimilham-^e aos do bruto. r> O capit&o-
Cook em sua Voyage au pôle sud diz que os habitantes
do Taiti s&o absolutamente carecedores de toda idéa de
decência^ ou antes de indecencia, » a Sem dúvida — ao-
crescenta Lubbock, que cita Cook— isto provinha em
Sarte de serem as suas habitações abertas, e nSo divi-
idas em compartimentos separados » (como eram as
dos nossos índios). Gabriel Soares no seo Rcteiro diz:
« Como os pães e as mães vêm o^ filhos com meneios
para conhecer mulher^ elles lh*a buscam^ e os Insinam
como a saber&o servir : as fômeas muito meninas^ es*
peram o macho, etc. » 'Neste sentido haveria innúm&-
ras citações que fazer, cada qual mais auetorizada.
Onde, pois, a idéa de pudor? e, se a n&o havia nem
*num nem 'noutro sexo, como existiria o termo, senão
depois do tracto com os europêos ?
O Sr. Alencar dice que o pejo accendeu vivos rubores
na Iracema. Como rubores? N&o se incontra 'nesses
mesmos espúrios diccionários termo que signifique —
corar. No Vocabulário açha-se o verbo puçanú com
esta accepç&o, mas é erro, por — curar. Tanto é erro,
que no Glossário vem os termos poçanoug e poçanga^ o
Srimeiro exprimindo — curar, e o segundo — medicina,
pix e Martins asseguram que os nossos Índios « nfto
sabiam o que era corar, e q^ue somente depois de longas
relações com os europêos foi que a cdr se tomou — entre
elles o indicio de uma commoç&o da alma. » [Reise in
Brazilien, vol 1. pag. 376.)
No diccionário da língua tupy — austral, incontra-se o
Tocábulo — corar ^ mopiranyapó (fazer vermelho). Mas,
além de se presumir importado, como se demonstrou,
accresce aue n&o era esta língua a que se falava entre
os ndios ao Ceará.
Devo declarar, meo amigo, que, se desço a taes mi-
nudências, que talvez pareçam exaggerado rigor, e que
eu de certo n&o teria sen&o para o chefe apregoado e ae-
cantado de uma litteratura^ é porquê elle diz que os seus
selvagens tem a «t rudez ingénua de pensamento e ex--
pressão, que devia ser a linguagem dos indígenas, xr
XXXV 23&
Está inganado ; n&o a tem tal, n&o só no que fica dicto,
como também no que a seo tempo se dirá.
Lê-se na pag. 31 :
(c — Teo hóspede fica, virgem dos olhos negros : elle
fica para ver abrir em tuas faces a âdr da alegria, e para
colher, como a abelha, o mel de teos lábios.
<( Iracema soltou-se dos braços do mancebo, o olhou-o
com tristeza :
c( — Guerreiro branco I Iracema é filha do Ptigé^ e
guarda o segredo da jurema. O guerreiro, que possuísse
a virgem de Tupan morreria.
Martim toma a si e responde :
« — Os guerreiros de meo sangue trazem a morte
comsigo, filha dos Tabajaras. N&o a temem para si,
n&o a poupam para o ennemig^. Mas nunca fora do
combate éíi^ deixaram aberto o camocin da virgem. x>
Dize-me uma cousa : se tu n&o soubesses o que em
língua geral significa — camocin^ depois d'aquelle introilo
do diálogo, que idéa ficarias fazendo d'esse camocifi
aberto da virgem ?
E a pia leitora como n&o coraria até que verificasse o
sentido do vocábulo túpico ?
Estou fatigado. Continuarei amanh&.
Teo Teal amigo e respeitoso admirador
Sbmpbónio.
DE CINCINNATO A SEMPRONIO.
Rio 10 Janeiro 1872.
Amigo
Prosigamos no estudo do !•. volume do Til, que é a
parte doeste conto de carochinha que perpassei pelos
olhos. Por tal arte pullulam vegetações frondosas
doeste ubérrimo solo, que 'nelle acharia um Maury ma-
téria para nos patentear todos o^ recursos da humana
eloquência.
Travámos conhecimento com a ella d'elle (e de quan-
tos a quizerem). Já sabes uma porç&o dos characte-
rísticos, entVe os quaes sobresai o de uma vis saltitan-
dí, que induz a pensar ter a subjeita molas nas pernas,
âue a faziam pular destemperadamente. Fr. Jo&o dos
anctos, na sua Ethiopia^ p. o9, dá noticia de um peixe
do rio de Sofala, a que chamam o saltão^ por ser peor
ue uma pulga, nos pinotes que está sempre dando.
!u suspeitaria que fosse avô da menina, se nos n&o di-
cessem que elle tem a forma de uma tainha ; mas uma
i
236
t^aíoh.a uSlo é capaz de gerar formas de pubescencia,
e também não consta que o salt&o da Sofala tenba alma
de nympha embrulhada em argilla de chrysàlida.
— Or» agora a moça^ lida.no seo Molière(Du cõté de la
barbe eat la toute-puissance.) era meio homem, e ás
vezes homem e meio ! Julgávamos nós que bastava
ser mulher para instinctivamente se rodear um. ente
de certa atmosphera de delicadeza ; mas cá esta pim-
Sopa era mal-creada como 4 petroleiras ou como 7
eusas da Raz&o todas junctas. Eis-aqui por exemplo,
como ella faz trombas ao namorado, logo a primeira
vez que abre o bico, que é quando o parvo está fitando
os olhos 'nella ; copio tintim por tintim :
— (íQue mô estd olhando ahi? Nunca me viu? Ex^
clamoUy travada sempre da petulância que animava4he
(leia-se : que lhe ammava) todos os movitnentos )»
Já sabem que o auctor nos denuncia, com o mais
apuradQ gdsto, com o mais incorrupto atticismo, que a
sereia tinha um a bregeiro olhar ^ o tregeito garoto de nm
caipirinha: era um capelinha de "nU peccados; com. viva^
cidade de traquinas j e prelençoes a rapaz. n Todas estas
elegâncias leem-se logo no intróito da história . assim
como que a capMinha caprichava em destruir um vestU
gio do seo sexo. » Que vestígio será *i Eu n&o perce-
bo bem 9^ destruição, mas accredito, accredito que hade
ter bem destruído tudo.
Fica portanto demonstrado que entra em scena uma
desalmada virago ; e que se Acixilles se tivesse mudado
de Scyros para a confluência do Atibaia com o Piraci-
caba, outro gallo lhe cantara. N&o curria perigo de de*
nunciar-so, quando escolheu o sabre de son père, porqujs
isso nao delatava sexos, e na dieta confluência achava
Quem desbancasse nao só a Joanna do Arco, a Padeira
d' Aljubarrota e a Maria da Fonte, mas ao próprio discí-
pulo do centauro. #
Quanto ao elle, também era digno de menç&o:
tt Calcava o chão sob o grosseiro sócco da bota. » Calcar
debaixo da bota, em vez de calcar com a bota, já era
uma habilidade do heroe; mas onde o escriptor me
corre a sapateta é quaudo eji matéria de bota, bota os
bofes pela bõcca, para nos convencer da sua sciencia em
technologia sapateiral ; e sen&o, é vêr aquella varie-
dade de conhecimentos: — a alp^goÂas de couro cru *>
(as alpargatas ou alparcâs, que eu conheço nao sfto cal-
çados de brutamontes/ — « grosso^ cothumos de couro
XXXV 23^
de veado, tfto altos que míiis pareciam botas d — « ta-
cão do cothumo» — «botas de bezerro armadas» etc. etc.
Ora como tudo isto é theatral da cabeça até os pés,
bom é que estes manifestem, no calçado, que ha 'neste
conto matéria para rir e pranctear : sócco e cothumo.
Isto jà eu aprendi, mas o que tu me hasde insinar, se
soiibere«(, é o que significa sócco da bota ; será o mesmo
que tac&o ? n&o me constava.
Nem te dedignes de estudar disciplinas próprias das
lucubraçOes de um ininistro d'£stado, visto como esta
especialidade é de mui antiga data, pois se affirma que
Luiz XII chamava sapateiros aos ministros de Justiça,
dizendo que a estendiam as cousas, como os sapateiros
o couro com os dentes. » Podia aquelle soberano, se
tivesse lido um capitulo inteiro a descrever um pin-
tainho feio {A sura)y e similhantes ductilidades litterÃ-
rias, applicar a sua compáraçilo ào preclaro auctor do
Til: sutor ultra crepidam.
— Começa o auctor, descrevendo uma rechan, e diz:
— « Pela ramagem das arvores pbrcbbia-sb a proximi-
dade de umíi maiftancial. » Em que língua se escreveu
isto ? Se é em francez (com a simples desinência portu-
gueza ) , entfto nfto digo nada : os francezes tém o seo
apercevoir significando começar a vôr, descobrir de lon-
fe» distinguir, que é a accépç&o deste percebiarsey que o
r. Alencar em|$rega em muitos logares; mas Suppunha
eu que o nosso perecer n&o tinha essa significação, como
a nfto tinha operbipere dos latinos: comprehender^ avisar^
receber^ ordenar j appardhár-se^ acautelar-se^ isso tudo
pôde dar o nosso perceber ou perceber-se^ mas avistar^ ou
cousa que com isso se pareça, creio que nfto pôde sér.
— Vamos aprendendo mais :
-^ « Entre as trepUaçôes da brisa nas folhas^ como um
tom opaco doesse harpejo da solidão^ ouvionse o murmure
soturno do Piracicaba. y> ^
NSo te pergunto se isto é guindada, ou se é um d*estes
effeitos que Mme. de Staêl diz que nunca se acham
Juando assim se procuram. O que, sim, peço, é que te
ignes traduzir-me esta algaravia em linguagem acce^si*
vel cá ás nossas ínfimas posses. — Eu nunca vi este Sr.
murmure ( intenda-se bem, em portuguez ); múrmur^
murmúrio ou murmuro^ isso sim. — Denominar harpejo
( eu escrevo arpejo, porque o italiano, que nos deu o
termo, diz a'tpeggio ) ao som monótono de uma currente
d' água, parece-me um símile, tao outorgado pela arte
238 XXXV
musical como o sfio os similes pedidos ás scieucia^. N&o
ha arpejo onde se ouve um som único; para que haja
arpejo é mister que diversos tons, e pelo menos dous,
se modulem r&pida e continuamente. — Arpejo de solidão j
nem anàlyse comporta. — E finalmente pretender que
haja opacidade ou transparência 'num som ou 'num tom,
amguTa-se-me, que nao tem tom nem som. — Nfto me
demoro; tenho muito que andar.
— <c Septe horas aa manhã haviam de ser » — ^Este
^rro, que o Sr. Alencar perpetra a cada passo, e em que
tem por sócias todas as cusinheiras da cidade, é formal
ataque a um dos mais sabidos idiotismos da hngua,
segundo uns, ou a uma philosóphica regra d'ella, se-
gundo se me aífigura.Seja porâni qualfôr a quàlificaçfto,
recebamos o facto, que é diametralmente opposto ao
emprego que o Sr. Alencar costuma dar á 3.* pessoa do
veroo haver. Ouçamos por ex. C&ndido Lusitano:
« Na concordância do verbo com o seo nominativo,
temos um particular idiotismo do verbo haver , porque
nas 3." pessoas do número singuhir nSlo concorda em
número com o seo nominativo. Os ignorantes, e também
muitos dos que presumem não o ser^ guvernando-se pelas
regulares conjugações dos outros verbos, teem por erro
crassíssimo ouvirem dizer: — Houve homens que nunca
haviam de ter nascido, em logar de houveram homefisA —
Havia muitas iguarias no banquete em vez de haviam
iguarias. Porem estes presumidos s&o os que erram,
porque com tod )s os clássicos da nossa língua se prova,
que o estar este verbo no singular, e o seo nominativo
homens ou iguarias no plural, é um idiotismo e gram-
mática irregular, muito piópria da nossa linguagem. ^
Repetirei aqui ser atteadivel o reparo d*e*te ôrro, que
é o C')mmettido pelo Sr. Alencar, e ir eu maia longe,
pois supponho nflo ser isso um idiotismo, mas o bom
talar ; porque se ha homens^ havia festas, houve tempos,
haverdcasosÁ fôáseoi^eabiiente discordâncias de número
enire siibjeito e verbu, nem se deveriam, nem se pode-
ria n desculpar: a iiliisao está em cai«1ar-se que o verbo
haoer si*^nitíca exustir. Logo que se advirta em que haver
é derivado do habere, e com a mesm;i significação de ter,
fica manifesto que o erroneamente çha nado subjeiío ou
agente nao é senão complemento obiectivo ou paciente ;
e que o agente ou sul jt^ito real se deixou occuiio, para
couforuiar con o uso recebido. Assim: —Ha homens^
completa -se d*este modo — O homem ha [tem) homens.
XXXV 239
O que estes modos de dizer são por tanto é ellípticos ;
« nfto se confunda ellipse com idiotismo.
No próprio francez, tão naturalizado por Sénio, é mui
similhante o uso do verbo avoir^ derivado, como o
nosso haver ^ da mesma raíz latina, ecom idântí ca signi-
ficação. Enilya des hommes (ha homens), o subjeito é
il (equivalente de le monde) ; o complemento objectivo,
4es hommes.
Desculpa, se, uma ou outra vez, me vejo forçado a
assumir apparência pedagógica; só o faço quando as
phrases analysadas não são propriedade exclusiva do
escriptor insigne, mas também usadas por outros. Não
quer isto dizer que a razão esteja sempre pela minha
parte: ego non sum papa. Em cada jcaso competirá
sempre a ti e aos competentes dissiparem os meos erros,
quando seja eu que 'nelles labore.
Sigpamos, como a cabrita, aos pulos por hi abaixo.
— « O c^o, essa immensa tela azul que foi cúpola de nm
berço (o da /uz), e serd mais tarde véo de um leito (o da
vida)^ a alma só o procura^ só o contemplay quando a dôr
a prostra. »
Esta cousa, que não scei se ata nem desata, começa
por ser um plágio. Já outro collega coimbrão (Sr. An-
thero do Quintal), tinha dicto :
Oh f o noivado bárbaro ! o noivado
sublime ! onde os céos, os céos ingentes
serão leito de amor, tendo peadentes
os astros por docel e cortinado.
E no Fiat luxy diz também que o velho Chãos, o Oleiro
do Infíuíto, cançou-se de amassar mundos, e como não
tinha mais barro, esfregou as mãos que estavam sujas,
e deixou cair d'ellas por esse abysmo alem um pó ( que
ora morcego).
migalhas dos banquetes do Principio,
triste parto das sombras, atirado
sobre o borco de luz do firmamento,
que era um filho ingeitado, qúe se escondia pela
sombra dos muros &
E' claro como um prego, ser um plágio coimbrão
aquelle bArço de luz e cortinado de leito^ e mais claro
aitiia, que d luz surgindo es «léndída e instantânea-
m^^nte, ao simples seja I te\^e u n berço, que foi na tela
azul ; e que o cé) axul ha le Sv3r vèo de leito da vida ; e
quem nlo encend-jr nada, é pori^e é obtuso.
E d'ahi... talvez nem plágio seja. Ocárebro-vulcão do
240 XXXV
nosso romancista Bra bem capaz de gerar coudas d'
aquellas, e poderá dizer dos collegas coimbrões o ^ue
em caso auálogo dice Piron :
Lears écrits sont des vois qu'ils nous ont fait d'avanc6.
Com o que eu porém desadoro é com aquella ca delia
d'alma, que nunca se lembra de S. Bárbara, senfto ao
estampido dos trovões I Quando as cousas lhe correm
bem, olha só para o çhao ; quando se lhe atrapalham,
levanta o lúzio para o ar, com risco de que o céo lhe
responda : <i Oh senhora, deiíte-me ! quem lhe oomca a
carne, que lhe rôa o osso.»
Nfto tenho mais tempo para estragar, e a minha lan-
chara aqui a ferro por hoje. E' desnecessário currcr
mais ; chi va ptano, t)a sano; chi va mno^ và lontano.
Tudo isto, como as tuas profundas criticas, hadè ficar
sem resposta, pois é mais cómmòdo aos thuribuláríoa
incensar que redarguir : pára isto é precido estudo (que
sempre aborrece), e razftò (qtie se nfto tem); para
aquillo, basta pulmão ou penná ( dè qu^ ha fartura ).
Amanha virfto esses célebres comparsas & sua Hosan-
futh Raòba, & áua festa dos tabérníU:ulos, clam&tido que
só Âpollo é AjpoUo e Alencar o seo propheta; s&ò os só-
cios de Uiysses, mimoseados por Circe. Assiâi como o
abbade cantar, hade o acólyto accòmpanhak*.
Todavia, sempre te duero dizer que o pimpão, que
continuo a cohsiderar digno int«^rpréte de Sénio, espé-
cie de demónio familiar de Sócrates, salu-se (mais uma
vez, que me conste) com outtas parvòiçadas qtie infdn-
diam dó, mas que fizeste bem em aespre8ar,como eu tam*
bem o fíz. Trazia 1& umas histórias de zenitbs, vulcOes
etc. impagáveis, e tfem pretendido roer-me os calcanhar
res e satyrizar-me, como se isto de s&tyras fosse para
sátyros !
Nas f&bulas de Es^o, segundo leio, é célebre o ju-
mento que, vendo que o senhor assentado na mesa dava
boccadishos a um caosito, que se levantava èm pé e Ihè
fazia festa, imaginou que lhe succederia o mesmo ; tats
levantando as m9os, e atirando com ellas ao peito do
senhor, deu com ellè e com a cadeira no çhao. Acudi-
ram os creados, e com p&os moeram ao asno. Graças
asininas s&o chamarizes de trancas.
Agora adeus, até quando o tempo me der vâo.
Teo admirador — CIiícinn^to.
Typographia e lithographia -IMPARCIAL-- Rua Sete de Seie mbro, 146
QUESTÕES DO DIA
]Sr.^36
RIO DE JANETEO, 31 DE JANEIRO DE 1872.
Vende-se em casa dos srs. E. &c H. La3inmert.~Âgt>stiiiho de Freitas Gn-
marSes &c Comp., 26, rua de Qeneral Camará.— Livraria Académica, Rua de
S. José n. 119- Largo do Paoe n. C— Preço 300 reis.
O r volume, com perto de 400 páginas— 319000.
ln.stz*iicçao Popixlar».
CARTAS DE CÍCERO ÂO SR. DR. CUNHA LEITÃO.
Continuando o assumpto tractado em minha carta an-
terior, ponderarei agora que as conferências populares
tSLO um pensamento civilizador, que nos paízes majis
prósperos da Europa dao de si aprimorados fructos. Vós
Í)orém, Sr., talhastes as conferências em Sergipe com
eição de insino popular ; e sendo o primeiro que ini-
ciastes no paiz tao robusta concepç&o, apropriastel-a aos
costumes, instituições e índole do povo. 'Nisto, alem de
muita sagacidade, revelastes talentos de estadista e admi-
nistrador. E' por isso que as conferências no Aracaju
excitaram estímulos, accenderam brios, acordaram intel-
ligdncias que se perdiam na inércia, e o povo curreu a
ouvir a palavra de oradores, ainda moços, ainda inexpe-
rientes, mas robustecidos de fé e alimentados pelo fogo
sagrado do patriotismo. Cabem também aqui umas refle-
xões sobre a charta que inderessastes ao director da
instrucçfto pública e que tfto bons resultados produziu :
é uma peça litterária, talhada no molde d'aquellas bel-
las epistolas que Duruy sabia escrever de 18d7 a 1869,
quando dirigia a pasta do ministério dos cultos e instruo-
ç&o pública do segundo império francez ; além d*isto é
cousa nova no paíz e dieta em estyk» terso e abundante.
Continuando no poncto, em que alarguei os pannos do
assumpto, tenho a signifícar-vos um pesar, e vem a ser
o de que em todo o Brazil se nfto propagasse o gosto
d*aquelle discursar ameno, fácil e instructivo das con-
ferências. Entre nós, descendentes dos latinos, com uma
língua tfto opulenta, seria isso facillimo e n&o é raro
açharem-se vocações decididas para a tribuna e talentos
jà provados na oratória.
Dejpois das conferências, creastes nas cinco cidades de
Sergipe aulas públicas nocturnas, para os adultos, onde
242 XXXVI
elles fossem receber instrucçfto primária elementar gra-
tuitamente.
Louvar mais essa nobilíssima creaçSlo, seria repetir
um a um os liymnos que a imprensa do Brasil vos inde-
reçou. Cabe-me porém fazer um reparo : de todas as
instituições úteis e humanitárias, que o vosso géuio fez
surgir á luz, a que mais me inçheu de enthusiasmo foi a
da creaçao de uma aula para os presos da penitenciária
do Aracajá. A isto chamo eu guerra aos problemas do
socialismo^ morte ás sombrias theorias do communismo —
charidade evangélica, sancta, que só peitos christaos
sabem sentir ! E' semente atirada a um solo até entfto
subventâneo e infecundo ; é orvalho do céo descido para
mitigar a sede de infelizes, sepultos nas masmorras de
uma detenção. Verdadeira philosophia, que sabe que
onde se abre uma eschola, se fecha um cárcere ; onde
ha irradiações, fogem as sombras !
A vossa presidência em Sergipe foi curta, mas deixou
muita luz. Os jornaes do Norte e do Sul, e nomeada-
mente os de Sergipe, resumiram em um bello artigo a
synopse brilhante de vossa administração. Nâo me furto
ao prazer de mais uma vez transcrever essas phrases
que já curreram todo o império. E' tao bom o mister da
imprensa, quando edifica ; é tao nobre recompensar-se de
modo público os que se afadigam em cousas que trazem
bem para a nação !
« A administração do Sr. Dr. Cunha Leitão (diz o
orgam sergipano transcripto em outras provindas) posto
que de curta duração, como a passagem de um meteoro,
deixa comtudo traços luminosos e indeléveis, que jamais
serão obliterados da memória do povo sergipense. »
Verdades são essas tao poderosas que, ao sairdes do
Aracaju, recebestes as provas inequívocas das sympa*
thias d'aquelle povo generoso.
Deixando a cadeiíg de primeiro magistrado de uma
província, viestes tomar assento entre os legisladores
da província do Rio de Jai^eiro, mostrando-vos desde
logo apóstolo por excellência do insino popular.
A instrucçlo obrigatória, com cujo projecto iniciastes
vossa vida pública no anuo anterior, projecto que tanto
honra ao nome illustre do seo auctor, como ás luzes da
Assembléa que oapprovou, foi o primeiro assumpto que
mereceu as attenções do vosso talento.
A instrucçao obrigatória tem sido ventilada e deba-
tida nos paizes mais adeantados da Europa. Melhores
XXXVI 243
que os longos discursos e que os arrazoados , em
que cada um mette maior número de consequências, s&o
as vantagens que os cantOes da Sulssa e quasi toda a
Állemanha do Norte têm tirado de um systema de insino,
em prol do qual militam publicistas eminentes e libera-
lissimos, como Tocqueville e Pelletan. A assemblea le-
gislativa do Rio de Janeiro, ouvindo a vossa voz elo-
quente na defesa de um projecto já de si fecundo, votou
por elle ; e a imprensa da Corte nao se esqueceu de
tributar ao vosso nome os louvores mais espontâneos. Um
jornal inglez, memorando este facto, diz o seguinte :
c< The assemblyof lhe Province o f Rio de Janeiro has passed
a lato making it obrigatory on parents and guardians to
sendthe children^ ofeither sex^ in their ctiarge, to viiblic or
private schools, from lhe age ofl to 14 years. ChUdren
for whom^ ovoing to poverty^decent clothing cannot other-
wise be obtained^ are to be clad at the cost ofthe provincial
treoÃwry,
« The autor ofthe bil!^ Dr. António Cândido da Cunha
Leitão, deserves the highest praiae for a measure tohich
unhappy experience has proved is needed to overcome the
indifference of the poorer classes to the education of their
children^and whichhas been employed with síich advanta-
geous results in Prússia^ and other states of Germany. Dr,
Cunha Leitão^ has thus proved that he is ofthe stuff from
which genuine and practical refomiers aremadc^and it
would be well for the country, icere more ofhis kind to he
found in its representation, »
Após o luminoso projecto de iastrucçno obrigatória,
necessidade imprescindível na província do Rio de Ja-
neiro, por isso que, alem de ser gr..taita, já se decretara
o insino livre ; apresentastes o projí^cto das esc/io/íw pú-
blicas nocturnas de instrucçao primária para OvS adultos
do sexo masculino, em todas as cidades e víUas da pro-
víncia. A utilidade d'essas iusiituiç^s de índole demo-
crática, era que o homem, moco uu velho, nascido em o
fundo d'ura sert&o, ou em centro populoso, pôde, nas
horas do descanço, á noitinha, receber o alimento e a
lu# do espírito, é por sem dúvitln manifesta. As socie-
dades litterárias, os grémios políticos, os homens ver-
dadeiramente patriotas estão 1» vantando escholas. De-
pois que instituístes o curso nocturno do Aracaju, quan-
tos cursos e aulas nocturnas n&o tem produzido a
felicíssima propaganda da disseminação do ensino po-
pular ! E' uma cruzada sancta, a que se junctam todos
244 XXXVI
os talentos, todas as vocações e todos os espíritos bem
intencionados. Lamento porém que o município, o re-
presentante fiel dos direitos do povo, desde as iuctas da
edade média até nossos dias, nSo se tenha podido adean-
tar etn reformas taes. Que honra e glória para as câ-
maras municipaes, se d'ellas partisse a iniciativa de
crear escholas ! mas a decadência dVstabella insiituiç&o,
tfio mal approveitada no ^aíz, tem-lhe tirado o cunho
characteristico da sua autonomia e reduzido à ultima
penúria os seo9 orçamentos I Comprehendeis que esfés
s&o os sentimentos que nutro a favor de uma causa,
que não é só de uma cidade, mas de um paiz: nfto só de
um paíz, mas da humanidade. A causa da instrucç&o,8aa
disseminação, sua universalidade, entram por certo nas
utopias dos philósophos. Creio mesmo que é assim que
a humanidade ha de ir por deante ; emquanto porém o
insino nao fér livre, a instrucçao primária obrigatória, e
emquanto se nao multiplicarem as bibliothecas> os jor-
naes, os livros, se nao estabelecerem conferências gra-
tuitas e cursos nocturnos, nfto poderá haver progresso
senão lento, imperceptível quasi.
E é» por sem dúvida, louvando-vos 'nestas ideaa que
appresentastes um projecto, creando bibliothecas popu-
lares. Aquillo, sim, que é trabalhar e preparar o terreno,
d'onde deve rebentar a esplêndida messe do futuro.
Deixemos Volney parado ante as ruínas de Palmyra e
Troya, calcando aos pés as ossadas descommunaes de
cem cidades batidas das areias esbrazeadas do deserto ;
deixemol^ lamentar o passado ; e sintamos antes ale-
gria com os apóstolos do progresso, admirando o desiii-
volvimento phenomenal dos Estados Unidos, onde a in9-
tracção se áerrama de modo extraordinário : todos os
municípios, todos os homens ricos votam taxas propor-
cionaes e legam dotações enormes para museos, bibliothe-
cas e escholas. Na 4^11emanha, principalmente na Prús-
sia^ ha contribuições directas, especiaes, que são votadas
no reichstagy e cumpridas escrupulosamente. Mas, indo-
lência nossa, apenas despontam os primeiros albores da
uma luz no horizonte I E será aurora ou crepúsculo ?
A creaçfto das biòlioihecctó popular es , moldada também
á feiç&o da índole do povo, vai ja excitando reparo entre
nós. A imprensa, que é sempre quem anda na van-
guarda da opiniso nacional ( íalo-vos aqui da imprensa
nobre e generosa; da outra nao me occupo eu, que a^
baixo n&o volvo os o|ihos ) , revelou-a como utiUssima ;
XXXVI 246
e não o diria de outro modo, a menos que fechasse os
olhos às consequências benéficas que o gosto das lettras,
o amor ao estudo, produzem sempre. Cabe- vos a palma
da prioridade de tao bom pensamento, que já o. tinheis
manifestado em Sergipe, quando em carta official ao Di-
rector da Instrucção Pública o convidastes a inceptar a
série de conferéTudas nocturnas.
Grande contentamento deve ser o vosso, em bem servir
o paíz que vos viu nascer. A que maior glória poderia
aspirar o vosso bello talento do que essa de, na prima-
vera da vida, na estação esperançosa dos vinte annos,
contar já tantos e tao assignalados serviços ao paiz e á
causa do povo, inflorar tão virentes louros na eorôa
brilhante que ha de ser o vosso futuro ? A vossa glória
cresce de poncto, quando vos cabem os títulos de terdes
iniciado no Brazil as melhores ideas, ainda n&o cui-
dadas, sobre a instrucção pública. São vossos foros em
Sergipe o curso nocturno^ as conferências populares^ cls
escholoà nocturnas pa/ra achUtos e a aula para os presos do
Aracaju ; no Rio de Janeiro os projectos de mstrueção
primária obrigatória^ aulas nocturnas para adultos, e
bibliothecoà populares
Quem por esse modo principia a vida pública, deve ir
longe. A intelligência, quando mais trabalha, mais es-
plende: é o diamante a despedir de si mil scintillaçoes. E,
confrade e amigo, o paiz não pôde ser indifferente aos
commettimentos nobilíssimos em que se embarca o vosso
afortunado génio. Hoje, mais que nunca, a nação tem
direito de exigir o concurso de vosso espírito, os labores
de vosso intendimento. Trabalhae, que o alicerce de
vosso futuro o firmou a vossa actividade; agora é perse-
verar. Saúdo desde já as alvoradas de um porvir, que
ha de ser semeador de boas obras, e generosas ideas.
Falei-vos do futuro, e não esconderei que Deus reservou
para os seos eleitos — os príncipes c|^ talento, os illumi-
nados do fogo celeste — as murmurações dos zoilos, as
objurgatórias dos parvos, as injúrias dos obcecados,
muito fel, muita provação; mas dir-vos-hei também
ue, quando o sol rutila, ençhem-se de luz os cabeços
as montanhas e o fundo dos valles, as campinas esmal-
tadas de flores e os pântanos, onde se escondem os reptis
que lhe não supportam a luz. Caminhae, que, como ao
saudoso Elmano^ a posteridade é vossa.
ClCBBO.
i
246 XXXVI
OBRAS DE J. DE ALENCAR— A IRACEMA.
IX
Meo amigo.
Cumprimento-te, e continuo.
Lê-se na pag. 84 da Iracema: « — ....Se o guerreiro
Cauby tem de morrer^ morra elle por esta mão, e não pela
tiui.
« Martim pôs no rosto da selvagem olhos de horror :
nlracêma matará seo irmão ? — Iracema antes quer que o
sangue de Cauby tinja sua mão qve a tua\ porque os
olhos de Iracema vêem e a ti, a dia não. »
Explica-me esta filigrana, que o Sr. Alencar n&o
achou planta exótica 'numa sociedade, onde o sangue,
longe de iafamar, exaltava, porque era prova de gen-
tileza e bravura.
Entretanto, ao passo que tinha tal fineza para o
amante, n&o vacillava deante do extermínio da tribu
inteira, que uma palavra sua poderia salvar. Assim, lê-
se na pag. 52:
— «O estrangeiro estd salvo /'diz ella) ; os irmãos de
Iracema vão morrer ^ porque ella não falará, »
'Nestes irmãos, além de Cauby, estava comprebendido
o próprio pae, o page. Será tudo, muito poética, muito
romântica, menos lógica, similhante sensibilidade.
N&o só isso, como também o que se segue, é prova de
que ella n&o sentia là grande affecto a esse pae, apezar
de a estimar elle em tanto. Assim, lê-se na pag. 143:
— « Ainda vive Araken sobre a terra ? ( perguntava
a índia a Cauby, que fora ter com ella ás praias do mar).
— <íL Pena ainda ; depois que tu o deixaste^ sua cabeça
VERGOU para o peito ^ b não se ergueu mais.
— <( Dize-lbe que Iracema é morta j&, para que elle
se console. »
E foi preparar a rg^eiç&o, armar a rede, etc.
Para n&o offender Martim, que ella, como se tem
visto, superpunha às mais naturaes affeições, deixou de
chamar aos Potyguáras (s, cuja tribu pertencia Poty,
amigo de Martim). Potyguáras^ nome que davam os Ta-
bajàras(dil-ooSr. Alencar^àquellesporescàrneo, signi-
ficando comedores de camarão fVid. a pag. 51)
Mas, se ella observava tal delicadeza, que faria inveja
a muita gente civilizada da sociedade em que vivemos,
onde n&o só nos offendem na pessoa dos nossos amigos,
mas até nos assacam a nós próprios pelos diários toda
XXXVI 247
sorte de doestos, nós temos sido doestes victimas, como
n&o evitava a Martim a protecção impertinente que o des-
gosta/va (f&g, 45) ^ dando logar a Mel-Redondo dizer a
elle : a — Vil é o guerreiro, que se deixa proteger por
uma mulher » (pag. 28) Se se mostrava tso íina e escru-
pulosa alli, tractando-se de um amigo do amante, como
n&o o fazia quando aqui se tractava do pondonor, do
brio (que era tudo entre os selvagens) d'elle próprio ?
Ali! Iracema, tu foste o primeiro fructo, ábsonojà, da
árvore estranha, que devia mais tarde produzir a Diva,
et reliqua I
Em mais de um passo se notam arranjos de pbrase,
que se afiguram só próprios da linguagem polida.
Assim, lê-senapag. 21:
— « Iracema nunca sentiu a frescura do seq
SURRISO. »
Scei que posiiuiam os Tupys o vocábulo yroiçang^
frescura, viração. Mas nfto obstante,ninguem contestará
que frescura de surriso seja um dizer figurado, só pos-
sível na lÍBguagem de uma sociedade de outra ordem,
que não a dos selvagens. Entre nós mesmos, só nas
classes mais elevadas se poderá usar de tal melindre e
bellezaáe pensamento e de expressão.
Ha um grande erro de forma na obra do Sr. Alencar :
Essa linguagem, sempre figurada, que elle poi a cada
instante na bõcca dos bárbaros, como se fossem todos
poetas.
Está iuganado ; o uso, que faziam dos tropos, era
determinado tão somente pela necessidade, quando
tinham de exprimir as idéas abstractas, para as quaes
lhes faltavam termos. Fora disso, o seo modo de expri-
mir-se havia de ser grosseiro, rústico e simples, porque
a mais lhes não permittia subir o estado de embruteci-
mento intellectuai e moral, em que o seo espirito jazia
immerso. E' o que dizem todos os %uctores.
Ld-se na pag. 12 :
« — Estrangeiro^ Iracema não pôde ser tua serva. E*
Ma que guarda o segredo da jurema e o mystério do sonlto.
Sua mão fabrica para o page a bebida de Tupan, »
E na pag. 32 :
«t — O guerreiro^ que possuísse a virgem de Tupan^mor-
reria. »
Inverosímil, porque a virgindade entre elles nunca
foi signal de distincção ou valia, de sorte que a perda
d'ella importasse oppróbrio ou menospreço; e ainda
248 XXXVI
porque, se o fabrico da tisana da jurema era segredo
d'alta importância, pois que d'elle dependia o prestigio
do page, nao lh'o teria este confiado. Os pagés, por isso
que eram impostores, deviam necessariamente ser, e o
eram, também muitíssimo ciosos da sua auctoridade, e a
não exporiam (como a nao expunham) á mulher, ente
reputado vil entre elles. Falando dos pagés, diz G. Dias:
« Eram anachoretas austeros, que habitavam cavernas
hediondas, nas quaes,so& pena de morte^ não penetravam
profanos.» (Prim. Cant.^ not.) E mais : « Fugindo d^essa
tal qual sociedade que tinham, retiravam-se a cabanas
affastadas e obscuras, ao õco das árvores, á lapa dos
rochedos ou &s cavernas tenebrosas, onde nenhum guer-
reiro intrava, e de cuja vizinhança se abstinham. »
[Ohr. Post.) E mais: « Os segredos, que possuíam, ob-
tidos pela observação e experiência, ou herdados dos
seos antecessores, eram como o sdh da sua auctoridade^
e o characterístico do seo valimento para com Deus. »
(Ibid.) Como, })ois, intregaria Araken a outrem (fdsse
quem fosse ] a ulma da sua impostura, que se poderia
converter de chofre em arma contra elle próprio?
Se o Sr. Alencar intendeu poder justincar a anomalia
com o que refere Gr. Dias 'nestes termos : « Um prestí-
gio de tal ou qual considey^ação rodeava as mulheres no
seo estado de virgindade, porque só ds virgens era per-
mittido mastigar a mandioca para fabricar o cauim »
inganou-se ; primeiramente, o próprio G. Dias cita Do-
brizhoffer, que « tractando do çhiçha^ que é uma espécie
de cauim, parece indirar que só os velhos o fabricavam» :
em segundo logar carapre dizer que se os homens re-
mettiam esse direito, ou melhor essa obrigação para as
mulheres, era porque, segundo diz Levy » julgavam
elles que isso lhes fazia mal, e o reputavam indigno do
sexo. » Mas o mesmo se poderia acaso intender do fa-
brico da bebida de T^pan^ que incerrava o mysUrio do
sonho ?
O que, porém, principalmente admira, meo amigo, é,
já nao digo achar-se senhora dos segredos do sacerdote
uma mulher, mas ser a cabana d'este accessivel a pro-
fanos, estrangeiros, e até inimigos!
Por exemplo : na pag. 44 lê-se :
c( Araken viu intrar na sua cabana o grande chefe da
nação tabajàra. y* O chefe nao só introu, como ^nella
amiaçou o page ; é o que se vê da pag. 46 : « — ....a ta
que amiaças em sua cabana o velho Page. »
XXXVI 249
Mas emfim, como se tracta do chefe, o grande Ira-
puam, dou de barato que o fizesse, bem que os historia-
dores Q&o assignalem excepção de espécie nenhuma, e
digam positivamente, como se viu, que incorria em
pefia de morte quem ousava penetrar na habitação do
sacerdote de Tupan.
Com espanto vemos o próprio sacerdote dizer & filha,
na pag. 54 ;
a —Se os guerreiros de Irapuam viessem contra a
cabana, levanta a pedra e esconde o estrangeiro no seio
da terra. »
Devo dar algumas explicações. Quando Irapuam in-
vadiu a cabana de Araken, com o fim de apoderar-se de
Martim, de quem tinha ciúmes, pela Iracema, o velho
<K avançou até o meio da cabana (palavras do Sr Alen-
car), e alli ergueu a graude pedra e calcou o pé com
força no çhfto : súbito, abriu-se a terra. Do antro pro-
fundo saiu um medonho gemido, que parecia arrancado
das intranhas do rochedo. »
O Sr. Alencar explica o prodígio em nota a pag. 175.
Eis as suas palavras : « Todo esse episódio do rugido da
terra é uma astúcia, como usavam os pagés e os sacer-
dotes de toda a nação selvagem, para imporem à imagina-
ção do povo. A cabana estava assentada sobre um ro-
chedo, onde havia uma galeria subterrânea que com-
municava com a várzea por estreita abertura ; Araken
tivera o cuidado de tapar com grandes pedras as duas
aberturas, para occultar a gruta dos guerreiros. 'Nessa
occasiao a fenda inferior estava aberta e o Page o sabia;
abrindo a fenda superior, o ar incanou-se pelo antro
espiral com estridor medonho, e de que pôde dar uma
idéa o susurro dos caramujos. O facto é pois natural ;
a apparência, sim, é maravilhosa.»
Vemos, portanto, que essa astúcia, que devia ter cus- .
tado a Araken, e que estava vl(P seo interesse manter
mysteriosa e imperscrutável, a fim de impôr-se d imor-
gtnação do povo, de repente a desvenda elle próprio, e
a intrega a um desconhecido, que, saindo d' alli, poderia
ir apregoar a impostura, dando logar a decair do pú-
blico conceito quem só a ella devia o prestígio, que o
fazia respeitado e terrível. Certamente os pagés, pôstoque
selvagens, nao cairiam em tamanha indiscrição, que
importaria o suicídio de seo maravilhoso poder.
Mas emfiin, não só Araken ordenou á filha que escon-
desse o estrangeiro na caverna, senão que [o estrangeiro
250 XXXVI
çheg-ou a penetrar effectivamente 'uella, como se vê da
pag. 60 : « Iracema ce?Ta a mão do guerreiro^ e o tevo á
borda do a/ntro. Somemse ambos nas intranhaa da
terra.y)
D'eât'arte os preconisados sigillos e mystérios das
cavernas dos pagés e dos seos ritos, de que positiva e
terminantemente nos d& noticia a história, ficam ^ndo
mera burla em face do capricho do Sr. Alencar. Como
comprehendeu mal o Sr. Alencar as tradições e crenças
dos índios, de que fez tamanho alarde nas suas Cartas
sobre a Confederação dos TamoyosI Profanos e estra-
nhos penetram nos recônditos recessos, vedados sem
excepção a todos, menos ao sacerdote, representante de
Deusy Iracema leva o estrangeiro ao bosque sagrado
(pag. 26); dà-lhe a beber do liquor prestigioso, reservado
aos guerreiros (pag 23) ; o que mais resta ? Está tudo
anniquilado. Ingano-me; ha cou^a ainda mais aggra-
vante. Queres ver, meo amigo? Pois é já.
Lê-se na pag. 63 :
a Iracema e o christao, perdidos nas intranhas da terra,
descem à gruta profunda. Súbito uma voz que vinha
reboando pela crasta, inçheu seos ouvidos.»
De quem avalias tu que seria a voz que profana a
gúélla de Tupan? De algum guerreiro de Irapuam ? Nao-
De alguma mulher? Não. De algum desconhecido ou
forasteiro, como Martim? Também nao. Ouve tu :
« — O guerreiro do mar escuta a fala de seo irm&olf
« — E' Poty, o amigo de teo hóspede — dice o
christao para a virgem.»
Sim, meo amigo, era Poty, o grande chefe Potyguára,
Poty, o implacável inimigo dos Tabajáras, Poty «i cuja
fama (textual) subiu das ribeiras do mar ás alturas da
serra » ; Poty contra quem « rara é a cabana onde já
não rugiu o grito de vingança, porque em quasi todas
o golpe do seo válido ^acape deitou um guerreiro taba-
jára em seo camocim. » (pag.' 52.)
Eis o page exposto, desmascaiado o seo embuste, por
terra o seo incauto e poder, exposta também a tribu, na
pessoa do seo sagrado ministro ! Tudo estava nas m&os
do inimigo. Eis ao que dá logar fazer-se de uma mu-
lher (contra o uso inveterado) acólyto do sacerdote, ou
iniciarem-n'a' nos solemnes e profundos arcanos de
Tupan !
E, em definitiva, quem é que tem a culpa da rude
inversão, t&o estranhamente operada nos estylos, quer
XXXVI 251
civiSy quer de religião, da familia bárbara ? Se nSo é
sempre o amor, nao deixa de ser elle em grande parte.
O amor de Iracema a Martim leya-a a estancar o san-
gue que ella mesma derramou da face do guerreiro, e
no mesmo instante em que o fez (nao muito natural] ; a
vibrar, em sua defeza, o arco e a frecha (contra os
usos) ; a dar-lhe a beber a tisana do sonho, a penetrar
com elle no bosque do sacrifício, e, por consenso e até
por ordem do page I na furna sagrada (contra o rito).
O Sr. Alencar parece ter a paixão de demolir. Basta
pertencer ao passado para provocar as suas iras ; basta
ser venerando para leval-o ao sacrilégio. Que índole !
Que natureza I E çhama-se aquillo conservador !
Queres tu saber, meo amigo, o que intendo que se
deveria fazer, no caso do auctor da Iracema ? Ouve lá .
Intendo que se deveria pôr o amor em lucta com a su-
perstição— a paixão bárbara bracejando com a crença
bárbara ; Iracema loucamente amando, mas firmemente
respeitando a liturgia gentílica. D'ahi, que embates de
sentimentos, que acerbos desesperos, acçoes grandiosas,
episódios tremendos, sacrifícios inauditos, satisfacçoes
ineffaveis I — « Guerreiro branco (diria a india a Mar-
tim), a gruta do sacerdote é absolutamente inaccessivel
e impenetrável ; alli está o segredo do prestígio e do
poder; a ninguém é dado, nem mesmo a Irapuam, sondar
o mystério do abysmo ! Se lograsses recolher-te 'nesse
asylo, estarias salvo ; quem se atreveria a ir disputar-te
a Tupan ? Ah ! mas como não se viola impunemente o
rito tremendo, eu expiarei por ti a profanação sem
egual ; salva-te, que Iracema te irá esperar na deliciosa
mansão das montanhas azues.» Isto, sim, estava na *
Índole e na paixão decidida, heróica, stoica, do selvagem,
que soffria o sacrifício rindo e cantando.
Não seria mais lógico e talvez mais bello, do que
a relaxação, que se nota do i^ntimento religioso da
parte do próprio, que tinha interesse em cada vez for-
talecer mais o elemento da superstição ?
Responde-me : está ou não anniquilada, na obra do ^r.
Alencar, a theogonia dos Brazís ? Quem mactou o
gaúcho, infirmou se nãp mactou também o índio!
Mil attencoes do
Teo amigo certo
Semprónio.
252 XXXVI
o Ooiisex*vato]?lo de iviixsloa
Noticia, histórica e descriptiva da. inauguração do
edifício, e origem da instituição.
II
Em 1841 uma modesta associação musical d'esta cõrte
requereu & Âssembléa geral legislativa a concessão de
dezeseis loterias para com o seo producto fundar e man-
ter um Conservatório de música, Defferída satisfactoria-
mente esta petição, por decreto de 27 de novembro
d'esse mesmo anno, foi mandada executar a lei da Âs-
sembléa, fazeado-se extrahir duas loterias annuaes até
completar se o número das que foram solicitadas e con-
cedidas.
Por decreto de 21 de janeiro de 1847, sendo ministro
dos negócios do império o Sr. Conselheiro Joaquim Mar-
celino de Brito, estabeleceu o Governo, de accõrdo com
a Sociedade de miísica^ conforme a determinaç&o da su*
pracitada lei de I84I,as bases do Conservatório, com seiB
cadeiras de professorado, sendo : três de rudimentos de
solfejo e canto, uma de instrumento de chorda, uma de
instrumento de sopro, e uma de harmonia e composiçfto ;
ficando também estabelecido nas referidas bases que o
producto das loterias seria convertido em apólices e com
os juros d'estas se fariam as despesas da manutenção das
aulas, capitalizando-se o excesso da receita, para ser
applicadoà compra de uma casa para estabelecimento
das me-mas, e que o Conservatório ficaria sob a adminia*
traç'3o de uma directoria de três membros, tirados da
Sociedade de músicxL.
Pelas portarias de 28 de janeiro d'esse mesmo anno
foram nomeados : Francisco Manoel da Silva, director
do Conservatório, o padre Manoel Alves Carneiro, th^
soureiro, e Francisco da Motta, secretário ; concedendo-
se uma das salas do pai^imento térreo do Muséo nacional
para exercício da aula de rudimentos de solfejo, e no-
meando-se para professor da respectiva cadeira Fran-
cisco Luiz Pinto, com o vencimento de 600$00O an-
nuaes.
Em 10 de agosto de 1848, em presença do ministro do
império, então o Sr. Conselheiro José Pedro Dias de
Carvalho, inauguraram-se solemnemente as aulas do
Conservatório, coUocando-se 'nessa mesma occasiao o
busto, esculptarado em gesso, do grande músico brazi-
leiro,o padre José Maurício, cujo nao vulgar talento
253
mereceu as maiores distincçoes que o Sr. D. João VI
costumava conceder aos artistas de sua predilecção, j&
nomeando-o mestre da sua real capella, j& condeco-
rando-o com o grau de cavalleiro da ordem de Christo,
bonra esta que 'naquelles tempos era reputada como
prova do mais alto e merecido apreço.
Por portaria de 31 de octubro de 1853, sendo ministro
do império o Sr. Conselheiro Luiz Pedreira do Couto
Ferraz, hoje BarSo do Bom Retiro, foi o Conservatório
auctorizado a estabelecer a aula de rudimentos de sol-
fejo para o sexo feminino, no CoUégio de Saneia Thereza,
da Sociedade Amante da Instrucção, em falta de melhor
logar ; sendo nomeado por outra portaria da mesma
data, o finado Francisco Manoel para professor d'essa
aula com os mesmos vencimentos que percebia o da aula
idêntica do sexo masculino, Francisco Luiz Pinto, que,
no anno seguinte, pedindo a sua demissão d'aquelle
incargo, foi substituído, a 3 de junlio de 1854, pelo
maestro Dionysio Vega.
Por decreto de 23 de janeiro de 1855 foi reorganizado
o Conservatório com a creaçao de novas cadeiras, con-
firmando-se as nomeações anteriormente feitas, de Fran-
cisco Manoel e Dionysio Vega, para professores de rudi-
mentos de solfejo para os sexos masculino e feminino, e
nomeando-se para a de harmonia e contrapoftcto Joa-
quim Giannini, de flauta Jo&o Scaramella, de clarineta
António Luiz de Moura, de rebeca Demétrio Rivera e
de violoncello e contrabaixo José Martini.
A 14 de março de 1855 abriram-se solemnemente as
noras aulas, executando-se por essa occasifto o primeiro
concerto dado pelo Conservatório y no qual tomaram parte
44 alumnas e ôO alumnos do mesmo. A 14 de maio do
mesmo anno, por decreto imperial, foi a^uella eschola
unida k Academia de beUas artes e constituída em quinta
secç&o da mesma academia. #
A 16 de março de 1856 deu o Conservatório o seo se-
gundo concerto, pela primeira vuz executado no palácio
da Academia das beUas artes como complemento & festi-
vidade da distribuiç&o de prémios entre os alumnos de
uma e outra instituiç&o.
A portaria de 31 de março de 1857 approvou a es-
colha que o Conservatório fez do seo discipulo Henrique
Alves de Mesquita para primeiro pensionista do Estado
nos Conservatórios ae Paris e Milfio.Este notável maestro^
que é hoje do Conservatório braziUirOj acaba de ser no-
254 XXXVI
meado professor de uma das cadeiras doesta eschola pelo
Sr. Conselheiro Jon o Alfredo, digno e actual ministro
do império, que por essa forma deu mais uma prova do
seo amor ás bellas artes,e de quanto deseja fazel-as pros-
perar, animando e recompensando os bons artistas pela
escala do mérito e importância real de cada um, e n&o
pela fama que lhes emprestam artigos anónymos, muitas
vezes escriptos pelo próprio punho dos interessados.
Em junho de 1857 comprou a Sociedade de miisica
metade da casa da rua da Lampadosa n. 76 e o Governo
a outra metade, e por egual forma foram também com-
pradas as dos ns, 74 e 78 da mesma rua, sendo todas
três demolidas e os seos terrenos destinados â edificação
de uma casa especial e appropriad:<, ao Conservatório,
Pela portaria de 3 de janeiro tlí 1860, concedeu o
Governo a Francisco Manoel e Dioiíysio Vega uma gra-
tificaçfio de 2008000 rs. annuaes a cada um. que gene-
rosa e espontaneamente foram cedidos pelos gratifi-
cados ao património do Conservatório, Tanto era a amor
e a dedicação que votavam á música estes dous notáveis
professores, que, apezar de pobres como eram, abriam
mão de uma quantia um tanto valiosa para quem nada
possue, a favor de uma eschola da arte que tao digna-
mente professavam.
Em 15 de março de 1860 deu o Conservatório ura
esplêndido concerto, do qual fez parte a execução da pri-
meira composição de António Carlos Gomes, então dis-
cípulo d'aquella eschola, e hoje um dos seos maiores
ornamentos.
A 15 de agosto do mesmo anno, falleceu o professor
Joaquim Giannini, compositor de grande ingenho, que
no Brazil viveu quasi ignorado e morreu totalmente
esquecido ; três mezes depois doesta triste occurrencia,
outra, nao menos lamentável, cobriu novamente de lucto
o Conservatório: a 16 d^ novembro desceu & sepultura o
insigne pianista Dionysio Vega, que tfto frenético.^
applausos colhera tantas vezes de magnas asserableas,
que dtí ouvidos attentos escutaram absôrptas as má-
gicas melodias que seos adestrados dedos arrancavam
de um frio teclado.
Em 30 de octubro de 1862 approvou o Governo impe-
rial o plano e orçamento do novo edifício para o Co^isfr-
vatório, sendo o seo director Francisco Manoel, poraviáo
de 15 de janeiro do anno seguinte, auctorizadoa man-
dal-o construir sob a direcção do Ingenheiro José Carlos
:XXXVI 255
de Carvalho, valente e brioso militar que primeiro fez
iiastear a bandeira brazileira em terras paragaayas, na
ilha da Redempção, que lhe foi capitólio e túmulo.
A 15 de março de 1863, em presença de S. M. o Im-
perador e de numeroso concurso de pessoas de todas
as classes da sociedade, foi lançada a pedra fundamental
do edifício para o Conservatório, que d'essa data em
deante se constituiu em o único objecto dos mais inces-
santes desvellos e incançaveis esforços que para concluil-
o debalde empregou o maestro Francisco Manoel, que
morreu antes de se realizarem os seos mais ardentes e
patrióticos desejos.
A 2i de novembro de 1863, approvou o Governo Im-
perial a escolha que o Conservatório fez do seo discípulo
Carlos Gomes, para segundo pensionista do Estado na
Europa, afim de estudar música. Esta escolha valeu
mais tarde aos que a fizeram as bençams da pátria,
quando viu aquelle seo illustre filho coroado de immar-
cessiveis louros, e victoriado com retumbantes palmas,
no primeiro theatro lyrico do mundo, a Scala de Milão,
onde pela primeira vez se cantou a formosa opera 11
Giiarariy.
Cançado dos annos e dissabores, que sâo partilha do
talento e do patriotismo, Francisco Manoel, o immor-
tal compositor do hymno nacional, esse esplêndido verbo
do enthusiasmo, sentindo que se lhe esvahiam as forças
vitaes, s dlicita do Governo Imperial um seo substituto
na direcção do Conservatório^ do qual por mais do
dezoito annos fora o braço robusto e válido quo o guiou
por entre alfaques e cachopos ao seguro abrigo ; mas
quando prestes a tocal-o perdeu alfirn o seo adestrado
palinuro.
Por proposta do próprio Francis -o Manoel é nomeado
a 17 de dezembro de 1865 o Sr. Conselheiro Thomaz Go-
mes, para substituil-o na dirc^^ao do Consm*vatório\
no dia seguinte ao doesta nomeação morre o maestro^ le-
gando á pátria um renome illustre e à sua família uma
pobreza honesta. Dir-se-hia que a alma do grande com-
positor só esperava por um successor nas lides da terra
para voar a receber o prémio das suas virtudes no
empyreo, onde em remanso eterno goza a perenne íeli-
cidade que Deus reserva a seos eleitos.
Com a morte de Francisco Manoel paralisaram-se 0.5
trabalhos do novo edifício do Conservatório^ que já esta-
vam em grande parte muito adeantados , a;í obras ex-
256 XXXVI
teriores açhavam-se quasi concluidas; e das interiores
faltavam apenas pequena parte dos soalhos, algumas
portas e janellas, o portão de ferro, a escada principal,
a pintura, e outros pequenos reparos, que nem para esses
possuíam numerário sufficiente os exbaustus cofres da
Sociedade de música.
Mais de três annos esteve o inacabado edifício quasi
em completo desamparo ; e, em consequência da sua má
construcçao, até mesmo a ameaçar ruína. Fazendo parte
do primeiro ministério d'esta ultima restauração, no
poder, do partido conservador, foi que o Sr. Conselheiro
Paulino, na qualidade de incarregado dos negócios do
império, por aviso de 30 de junho de 1869, ordenou ao
Sr. Commendador Bettencourt que examinasse o estado
do edifício, estudasse o meio de melhoral-o quanto pos-
sível, e calculasse a importância da somma precisa para
a sua conclusão.
Em cumprimento d'estas ordens, procedeu o Sr. Betten-
court aos respectivos estudos e cálculos, communicando
ao Sr. ministro o resultado de seo exame e apresentando
as bases sobre as quaes se contractou, de empreitada com
o mestre Couto, a conclusão das obras, debaixo da
direcção d'aquelle notabilíssimo architecto, que, com a
proficiência que lhe é peculiar, introduziu grandes me-
lhoramentos ne plano interno do edifício, e poude ainda
disfarçar certas rudezas das formas externas por demais
pesadas ou singellas.
Orpheo.
(Continua.^
Charada sem sentido.
Entre septe irmans perversas }^
deram-me o quarto logar, J
e de me ver quasi cega í ,
tive gana ft chorar I )
sou cousa ruim como o todo, ? j
como o todo cousa má. )
Valho, dizem, quando muito,
o Lundu de mon roi.
Un TILL (*)
{*] Oqu&aassignatura seja em portu^ezn&o scei eu; mas
em inglez parece ser uma promessa. Sendo assim, promet*
tido é devido. (Tudo isto tem cara de sibyUino).
Typographia e litbograpbia —IMPARCIAL— Rua Sete de Setembro, m
QUESTÕES DO DIA
RIO DE JA^EIR0,2DE FEVEREIRO DE 18r72.
Yende-6e em casa dos srs. E. & H. La ?mmert.— Agostinho de Freitas Gn-
marães òí Ck)mp., 26, rua de General Camará.— Livraria Académica, Rua de
S. José n. 119- Largo do Paçe n. C— Preço 200 reis.
O r volume, com perto de 400 páginas— 3i)000.
OBRAS DE J. DE ALENCAR — A IRACEMA.
(Cartas a Oinciniiato)
X.
Meo amigo :
Na minha 3* carta falei-te da víllania commettida por
Martim na cabana hospedeira.
Sabes como a cousa se passou ? Sonhando, meo amigo,
sonhando.
EUe tomou o eléxir para gozar sem abusar^ mas foi
peior a emenda que o soneto ; tão depressa o ingoliu,
quanto prestes a rola (até então arisca — pag. 32) curreu
fiôfirega a cair entre as garras do milhafre, que, por
estar adormecido e inerte, nem por isso foi menos carni-
ceiro. Nunca tao facilmente « perdeu Tupan uma vir-^
gem na terrados Tabajàras^K Prodígio da jurema!
Queres que te diga uma cousa ? AUi houve finura do
Martim. Là que o homem tinha saberêtes, tinha-os ;
para se disfarçar na facção dos bárbaros que abordou a
náu hollandeza, chegou a coatyar-se ! (O neologismo é
do Sr. Alencar — Vid. a pag. 185.J
Mas. . . . discutamos. Poder-se-hia exercer no espírito
do homem culto a influência da droga do gentio ? Tenho
minhas dúvidas.
Reconheço que só à sciência competiria proferira últi-
ma palavra na questão. E', porém, de crer que ^neste,
como em tantos outros ponctos, a imaginação dos sel-
vagens, dada á exaltação e ao maravilhoso, avultava
effeitos, que, quando muito, seriam narcóticos.
Sabe-se que os vegetaes que tinham d'efita propriedade,
eram estimados em muito apreço pelos índios. Aspirando
o tabaco era que Caraíbas e Pagés transmittiam aos guer-
^58
XXXVII
reiros o « eupíriío da força.» Nfto proclamavam os agou-
ros, nem celebravam as s\ias tnai^ .solenines festividades
011 cerímóuías, abstrahindo do uso desta planta.
Sem dúvida, uma vez conhecido que cila produzia o
somno, tornando assim possível occorrerem os sonhos,
q^ue eram eatre elles d<i maí^ alta importância, pulsou a
ser considerada agente de sobreiíaturaes virtudes e a ter
esta lata applicaçso. Da identidade de préstimo é lícito
seguramente orig-inar o conceito em que era tida a acácia
jurema.
Quem tiulia « feitiços, que as mais das vezes uilo pas--
savam de osso de algium animal caruívoro, de uma
aranha dessecada, dos membros de sapo, ou mesmo de
alguma producçSo mineral ou vrffelal sem préstimo, ramo
sem virtude » não admira, que, depois de haver bebido
uma preparação apregoada pelos pagos e reputada por
todos miraculosa, possuísse ou fruísse em sonho, ou
anteãem treavarío, aquillo que, em seo juízo — anhelava.
Cabe todavia notar que, tautu para mim como para
muitos, a quem tenho ouvido, é inteiramente novo o
mérito attribuído pelo Sr. Alencar áquella mimoseàcea
— de fazer a pessoa fruir no sonho melhor do que na
realidade. Nunca ouvi referir à beheragera da jurema
nutro mister que nfto fosse o de — fazer ver no futuro.
Para mais força, declino a auctorídade de Pompeo, que
ninguém dirá nao ser competente : « — Jurema ]iríta —
planta commum em todos os taboleiros e várzeas do
scrtflo. Sua casca é tónica, án natureza eãtupefacíente :
os índios preparavam com ella uma tisana narcótica, e
com o seo uso caiam em uma espécie de magnetismo,
em cujo estado pretendiam ver o f>ititrú.» [Ens. Esl. do
Ceará, vol. I. pag. 173) O Sr. AlencarnSosó lhe attri-
búe u virtude de fazer gozar-se em sonho o que se al-
mejava, como precisamenie a de fazer ver e reviver no
■passado : Martim, tSido bebido do elixir bárbaro. « sen-
tiu perpassar nos olhos o somno da morte ; porém logo
a luz inundou os seios da alma ; a fArça exhuherou no
coração. Reviveu os dias passados meihor do que os
tinha vivido: fruiu a realidaik de sua.'^ bellaí esperanças.»
{Iracfma, pag. 23)
Outra observação me occorre adduzir : os selvageos
fundavam, em geral as suas usanças nas analogiad ; um
exemplo : a Para os homens escolhiam nomes que ex-
primissem a fdrça, a robustez, s coragem ; era a anta,
o tigre, o ipâ, a palmeira, a frecha, o arco ; — para as
1
XXXVII 259
mulheres os dos objectos jnais .brandos, mais doces,
mais delicados — das aves, dosfructos e das flores : era
o romper d*alva, o cipó flexivel, a junca do brejo.»
Nao deixa pois de ser estranhavel^que, para S2 trans-
migrarem a bizarras delícias usassem de uma bebida de
sabor amargo e de cheiro acre e nauseabundo, quando
tinham o cauin — o seu liquor por excellência — , e outros
muitos vinhos, de que, no dizer de Fernando Dinys
<( se n&o contavam menos de trinta e duas castas. » A
operação de adivinhar era árdua, arriscada e de grave
compromettimento ; nao admira, antes é lógico, que se
servissem, para intrarem no espirito prophétíco, de uma
bebida desagradável, que fosse tida como á conta de
provação para conseguirem o grandioso fim. Mas poder-
se-ha dizer o mesmo da operação de gozar *?
Como quei que fosse, prevaleça a opinião isolada e
inexplicável do Sr. Alencar, ou a de Pompêo, que está
de accôrdo com a geral tradição e com a lei invariável
das analogias entre o objectivo e o subjectivo, o que pa-
rece dever presumir-se fora de toda dúvida é que taes
ef feitos (quaesquer que fossem) n&o se exerceriam senão
no espirito visionário, carregado de abusões innúmeras
do índio.
Martim nao estava 'neste caso ; era espírito mais ou
menos culto e sobretudo forte ; nao é natural que par-
ticipasse de boa fé do fetiçhismo e crendices dos bár-
baros. Entretanto do que nos previne a seo respeito o
Sr. Alencar ? Além do que consta da citada pag. 23,
offerece-nos o seguinte, que reproduzo por extenso para
toda clareza :
« Quando Iracema foi de volta, já o Page nao estava
na cabana. (Este Page parece que quiz mesmo favore-
cer o estellionato, porque, estiyjido a princípio « no
recanto escuro e tendo soltado um gemido quando o
estrangeiro premia (apertava) ao seio a moça » (pag 67)
retirou-se depois a deshoras e a propósito, deixando-os
sós e á vontade) Tirou do seio o vaso, que alli trazia
occulto ::ob a carioba de algodão entretecida de pennas.
Martim ih'o atTebatou das mãos (que gana !), e libou as
gôttas poucas do verde e amargo liquor. Nao tardou
que a rede recebesse seo corpo desfallecido.
a Agora podia viver com Iracema, e colher nos seos
lábios o beijo, que ali viçava entre risos, como o fructo
na corolla da flor. Podia amal-a, e sugar d'esse amor
260 XXXVIt
o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da
virgem.
« O gozo era vida, pois o sentia mais vivo e intenso ;
o mal era sonho e illusao, que da virgem elle nao pos-
suía mais que a imagem.» (Nao intendo.]
<c Iracema se affastàra oppressa e suspirosa
« Abriram-se os braços do guerreiro e seos lábios; o
nome da virgem resoou docemente ; etc, etc, etc.
(pag. 69)» O capítulo conclue-se com estas significa-
tivas palavras : « A jandaia nSlo tornou à cabana.
Tupan já nao tinha sua virgem na terra dos Tabajáras.»
A jandaia, conforme se vê, parecia ter mais sentimento
moral do que a Índia (que nao quiz guardar a fé do seo
cargo), do que o próprio Martim (que abusou, é verdade
que em sonho ^ da confiança e da hospedagem.)
Com effeito, depois da catástrophe, a tal avesinha
emigrou e foi-se, até que uma vez reappareceu, quando
c( a formosa filha de Araken se lamentava á beira da
lagoa da Mocejana Iracema lembrou-se ent&o que
tinha sido ingrata para a jandaia, esquecendo-a no
tempo da felicidade. » (pag. 126.) Admira que, repu-
tando-se ingrata para a jandaia, nao se reputasse tal
para seo pae e os seos, tanto que « nao se arrependera
ainda de os ter abandonado.» /pag. 125) « A linda ave nao
deixou mais sua senhora ; ou porque depois da longa
ausência não se fartasse de a ver, ou porque adivinhasse
que ella tinha necessidade de quem a accompanhasse em
sua solidão » (ibi.) Nao parece que a penna que lançou
estas idéas, teria mais tarde de lançar estas outras,
senão as mesmas e nas mesmas? expressões, referindo-se
a uma égua : « Antevia que tinha necessidade do homem,
carecia do seo auxilio, etc. » ? (Vide Gaúcho.) Voltemos
a Martim.
Eil-o, pois, presa também das abusões dos selvagens,
crendo nos sonhos dosl^etiçhes, nos manitôs sem dúvida,
nas pernas da aranha e nos membros de sapo.
Nao colhe o dizer o Sr. Alencar em a nota a pag.
165 : <( Desde já advertimos que nao se estranhe a ma-
neira porque o estrangeiro se exprime falando cora os
selvagens; ao seo perfeito conhecimento dos usos e
língua dos indígenas, e sobretudo a ter-se conformado
com elles a poncto de deixar os trajos europêos e pintar-
se, deveu Martim Soares Moreno a influência que adquí*
riu entre os índios do Ceará. » Nao colhe, repetimol-o
porque todos sabem que, assim fazendo, nao leve
XXXVII 261
Martim em vista senão captar a confiança e a amizade
d'elles em favor dos seos reservados fíns.
Sendo assim, todos têem razão de estranhar que o Sr.
Alencar pintasse o portuguez ( que nada tinha de sim-
plóHOj e sim tudo de sagaz ) crédulo ao poncto de beber
a jurema, e ver e gozar no imaginário sonho o que só
com os selvagens se poderia dar por força da superstição
grosseira em que jaziam immersos.
Ora dize-me ; nao seria pelo contrário verosimil que,
em logar de ser bebida a tisana só por Martim, o fosse
também pela índia ? Que Martim, incontrando da parte
d*ella objecção na circumstância de ser filha do page e
guardar o segredo da jurema ( vid. a pag. 32 ) a
fizesse crer que, tomando egualmente comelle do elixir,
fruiriam em sonhos sem risco o que ambos anhelavam
e 'neste inlêvo a possuísse ? A ser vilão, vilão com a
verosimilhança e com a natureza.
Meo amigo : visto que estou inçhendo alguns claros
deixados em cartas precedentes, por nfto querer tornar-
me então demasiado extenso, passo a fazer agora uns
ligeiros extractos, no sentido de mostrar mais uma vez,
quão mal o Sr. Alencar comprehendeu o amor bárbaro,
quer na lioguagem, quer nas acçOes dos typos. £ ainda
antes de começar a operação, quatro palavras, que se
devem intender complemento de quanto dice na minha
última carta com relação á theogonia tupy.
Fala-se 'nesta Iracema, poema selvagem brazílio, de
um bosque sagrado^ de vasos de sacrifício, de uma virgem
consagi^ada a Tupan, etc: Parece que o auctor tresleu, se
não sou eii que estou treslendo.
Não ha, que eu saiba, um só escriptor de quantos se
têem occupado com a matéria, que atteste a existência
de taes ritos entre os selvagens brasUicos, quer da língua
gerai ou Tupys, quer Tapuyas.
Pelo que respeita a estes últimos fíndios da língua tra-
vada, para me servir da expressão de Theberge) chegou
a parecer a auctores de nota e a viajantes que com os taes
conviveram e tiveram occasião de observal-os de perto,
que elles desconheciam inteiramente uma religião. £'que
a que tinham era «mui pouco complicada» no dizer de G.
Dias ), e reduzia-se ao «c ridículo tabernáculo, de impor^
t&ncia immensa, sob o nome de maracd, emblema sym-
bólico da divindade » ( na phrase de Fernando Dinys ).
Quanto aos Tupys <c em quem admiraremos um tal ou
qual desinvolvimento metaphysico, que parece characte-
I
262 XXXV U
risal-os » o seo Tuptin a diviadade grande, majestosa,
tremenda n que tinha por essência o bem « nfto carecia
de preces para inclinar-se á compaixilo, nem o sangue
mançh^rin os seos altares, quando os tir.esso Se al-
gum culto lhe tributavauí, era sómeute o intervo. i> Para.
dizer de uma vez: tanto Tupijs^ como Tapuijívi, tinham
seos pagéa ou vidantes, o maracd. o.s manilôs, Tupan,
etc. SSo estas as idéas geralmente assentadas a respeito
dos nossos aborígenes.
Onde foi portanto buscar o auctor da Imcfma esse
bosque sagrado, essa virgem, espécie de sacerdotiza, etc?
A religião dos Quixúas, o culto dos Incas, de certo lhe
nfto deram insançhas para isso. Nao será mais presu-
mível que os tivesse ido pedir à religião dos Uallos 1
íiBaão-se os MystiÍTÍos do Pox^o, incontra-se ahi o epi-
sódio da virgemda ilha de S^n, muito parecido em mais
de um poncto com o poema do Sr. Alencar. Lá é a tribu
de Karnak, aqui é a tribu do.s Tabajàras; lá. Hêna, Slha
de Joel, aqui Iracema, filha do Araken; \h o bosque sa-
grado dos carvalhos, cá o bosque sagrado das jurámas;
lá a dniidica de Hósus, cá.... a sacerdotiza de Tupan; lá
um desconhecido, que fora recebido como traosviado
em casa dopaede Hêna, ó o íkefe dos cem valles; aqui
um desconhecido qun se perdera e fora dar á caban;i do
{lae de Iracema — é Martim. Singular e pasmosa ana-
ogía ! (Vid. Myst. doPovo,voL III.)
Mas quem suppozéra que tamanha similhança havia
de terminar pela contraposição mais formal o surprea-
dente ? ! Hêna, por esse heroísmo innsto e patriótico do
bárbaro, e por esse fervor lúgico danatureza contempla-
tiva, ofFerece-se em holocausto a Hésus para que livre a
Gállia, sua pátria, do jugo dos Romanos, u — A lilha de
Joel — cantou ella com uma voz pura como sua alma — a
filha de Joel e de Margarida vem com alegria sacrificar
aHèsualO' Todo-Poieroso..,. do estrangeiro livra a
terra dos nossos paetí.' Galloi da Bretanha, vós tendes
lança e espada! A filha de JohI e de Margarida nfto
possile mais que o seo sangue; offerece-o voluntaria-
mente a fiésus! O' Deus omnipotente, torna invencíveis a
lança e a espada gallus! O' Hésus.... acceitameo sangue,
pertonce-le.... salva nossa saucta pátria! i>
Isto 6 beroismOjbem que feroz e cruento, nem jmr isso
miinos admirável e grande; e sobretudo de naturalidade,
de lógica iri-efra^uvel. Ão passo porém, que a vestal daa
Gállías se dá como hóstia pura que sua pátria seja lirre
XXXVII 263
do jugo de estrangeiro » a impossivel vestal do Sr.
Alencar é a primeira que em bem do estrangeiro profana
com a presença d*este a majestade do bosque sagrado,
▼iola o segredo imperscrutável da gruta do druida túpico,
anniquila e calca aos pés a theogonia pagãnica mais
venerada do seo povo ' E' o bello defronte do horrível;
a elevação, a nobreza bárbara deante da vileza, da tur-
pitude selvagem I
Ha um abysmo immenso, insondável, eterno, entre os
Mystèriosdo Povo e a Iracema, entre Eugénio Sue.génio
cheio de liberdade e de amor, que escrevia em nome da
humanidade, e José de Alencar.... que escreve em nome
do seo nome.
Ninguém ignora que é incerta a origem dos nossos
autocthones ; que alguns os fazem descender das tribus
de Israel ; outros de um cataclismo que houvesse sepa-
rado o único continente terrestre em porções diversas,
dando logar & dispersão de famílias, k variedade de
formas e & multiplicidade de línguas, e nao sendo os
differentes povos do globo senSlo contemporâneos, entre
fii mesmos; outros dos Índios da Ásia, dos Egyp-
cios, dos Carthaginezes, dos Lacedemónios ; outros dos
Germanos, com quem acham a maior similhança pos-
sível.
Dever-se-ha acaso suppor que o Sr. Alencar, querendo
como de costume offerecer-nos uma theoria que se diga
sua sobre a matéria, apezar de j& t&o elucidada, tivesse
em vista, ao dar-nos 'numa lenda túpica-cearense esse
mutilado arremedo da mythologia galla, insinuar que
08 nossos aborígenes vieram da Gàllia? Seria dimcil
jastifícal-o, em face do estado actual da sciência, e prin-
cipalmente depoÍH de se ter lido esse magnífico capítulo
de Herder, que se inscreve sob a epígraphe^Or^am^o-
fão dos Americanos — (Vid. este auctor, Phílosoph. de Vhis-
toir. de Vhuman. vol. I, pag. 296.)
Viria a(jui a pêllo tractar daíquestao^se os Ameri-
canos cammhavam para o progresso ou para a decadên-
cia, no tempo da conquista ; mas, alem de reputal-a do
maior pézo para os meos huroillíssimoshombro5, accresce
que iá te tenho roubado muito tempo por hoje, e urge
eoDcluir. Peço-te comtudo vénia para só o fazer, depois
de haver transcnpto as seguintes palavras, de um emi-
nente sábio moderno :
« A opinlfto commum — diz esse auctor — é que os sel-
TAgens n&o sfto, em these, senfto miseráveis restos de
264 XXXVII
nações outr*ora, mais civilizadas ; mas, posto que exis-
tam casos bem estabelecidos de decadência de nações,
nada nos auctoriza scientificainente a admittir que cons-
titua isso o caso geral.
« Sem dúvida, ha muitos exemplos de nações, que»
outr'ora progressivas, nao somente cessaram de avançar
em civilização, mas até recuaram. E comtudo, se com*
paramos as relações dos primeiros viajantes com o es-
tado de cousas actualmente existente, nao achamos
prova em apoio da theoria de um geral declínio.
« Os Australianos, os Boschimanos e os naturaes da
Terra do Fogo viviam, ao tempo em que pela primeira
vez foram observados, quasi exactamente como vivem
hoje.
<c Em muitas tribus selvagens achámos até traços de
progresso ; os Baçhapinos, quando Burchell os visitou,
acabavam de introduzir em seo seio a arte de trabalhar
no ferro ; o maior edifício do Taiti foi construído pela
geração contemporânea da visitado capitão C.ok, e
tinham, havia pouco, renunciado a prática do canniba-
lismo ( Forster, Observ, de voyag. autour du mondei pag.
372) ; e se certas raças, como por exemplo muitas das
tribus americanas^ retrogradaram, este resultado é tal-
vez menos devido a uma tendência inherenle que ao mao
effeito da influência dos Europeos. »
No meo fraco pensar, seria indispensável para quem
pretendesse dar-nos o typo de uma poesia « verdadeira-
mente nacional^ haurida nn língua dos selvagens>y assentar
idéas 'neste sentido: se elles progrediam ou se decaíam»
quando foi do descobrimento. D'ahi se projectaria graa-
de somma de luz sobre a procedência ou n&o do pretenso
typo; a poesia, tanto na forma como na essência, de
um povo que progride, nfto pôde ser a mesma que a de
um povo que j^ecaí.
Entretanto o Sr. Alencar, tendo de romper contra o
padrão secular da poej^ia brazileira, tido e havido, quer
por nós, quer pelo estrangeiro, como o genuíno e puro
nosso, nem de relance mostrou ter meditado, instantes
sequer, sobre o assumpto ; nao nos dice d'ondt^ veitt,
como se se nao fizesse mister sabêl-o para bem ter-ôe
idéa da sua marcha e do seo destino. Singular modo de
fazer eschola, este I
E comtudo um forte apoio se offerece para quem
quizesse desinvolver um estudo mais vasto e mais
seguro a respeito do character dos nossos aborígenes, do
XXXVII 265
•660 estado social, da sua acanhada indústria, do seo
{irogresso emfim na escala da humanidade ; é a archeo-
ogia.
Se applicássemos ao exame das toscas obras e instru-
mentos que nos deixaram os nossos selvagens, os pro-
cessos e méthodos d'esta sciência, parece-nos que pode-
ríamos sem contestação classifícal-os na épocha a néo-
líthica » ou « edade das pedras polidas », isto é na
segunda das grandes edades, conforme a divisão feita
pela archeologia moderna.
Ha quem diga positivamente com toda auctoridade
estas palavras : « E' evidente que alguns povos, taes
como os naturaes da ilha do Fogo e os das ilhas d'Au-
daman, estão ainda presentemente na edade de ped^a. »
As edades da archeologia ante-historica dividem-se
em quatro, a saber : primeira, a do dilúvio ou « paloe-
olíthica » ; segunda, a das pedras polidas ou a neo-
líthica » ; terceira a edade de bronze ; e quarta a edade
de ferro.
Posto que alguns archeólogos opinem que a pedra, o
bronze e o ferro foram simultaneamente empregados no
fabrico das armas e instrumentos, a classificação acima
parece-nos tão consentânea com o instincto do progresso
ascensional e gradual dos povos, que a adoptamos de
plena convicção.
Ora, prevalecendo essa classificação, é fora de dúvida
que os nossos selvagens se achavam ainda na edade de
pedra, como os habitantes do Paiz do Fogo, segundo o
provam os instrumentos de que se serviam, e a sua
inteira ignorância do metal, a não ser o ouro ou a prata,
de que não faziam caso ; logo, é também innegavel que
elles iam em marcha ascendente, e não descendente, na
escala da humanidade.
A hypóthese de tamanha decadência, que houvessem
completamente esquecido o uso d^ ferro e do bronze, é
inadmissivel ; primeiramente, porque não consta ter-se
íncontrado d'elles o menor objecto fabricado de algum
doestes metaes,o que certamente teria succedido se hou-
vessem existido, ainda da mais remota antiguidade ; em
segundo logar porque, por muito que descesse um povo
em todos os sentidos, nunca perderia o uso de objectos e
instrumentos tão immediatamente ligados ás práticas
materiaes e necessárias da vida.
L nge^ pois, de pensarmos com G. Dias,collocando-se
entre Martins eChateaubriand,o primeiro que reputa os
266 XXXVII
■
nossos índios decaidos de um alto grau de culturSi e o
segundo que opina estarem ainda por dar os primeiros
passos no caminho da civilizaç&o, confessãmo-nos intei-
ramente de accôrdo com este último, que nos parece
mais verdadeiro e mais lógico em sua conjectura his-
tórica.
E sem me ter apercebido, meo amigo, ia-me arris-
cando no inextricável labyríntho, e desviando-me do
assumpto, que prende com o objecto da presente carta !
Desculpa. O estudo das antiguidades tem para mim
tal seducç&o, apezar do nada, do verdadeiro nada (cré
que sou sincero) que me reconheço ser ^isso, como em
tudo mais I
Vou concluir por esta vez.
Tivessem, ou n&o, vindo os nossos índios dos Scy-
thas, dos Phenícios, ou mesmo dos Gallos, o que n&o
pôde duvidar-se é que elles n&o possuíam bosque sagrado^
nem sacerdotizas^ e muito menos virgens voUdas a
Tupan.
Logo, a Iracema 'neste poncto, coma em outros, n&o
passa de mero inxêrto, filho de uma imaginaç&o dada a
arrojos que nada justifica, porque n&o precisa trans-
plantações exóticas quem tem, como nós, a mais guapa
e inexhaurivel flora.
Teo amigo
Sbmprónio.
Deoima Oai?ta
DE CINCINNATO A SEMPRONIO.
Rio 20 Janeiro 1872.
Respeitável amigo
Ecce iterum Chrispinus, et est mihi saepe vocandus.
Vamos continuando a admirar o Til, se dás licença,
e deleitando-nos agor%[ com os estudos de vernaculi-
dade, estylo, elegancia,^ imagens, poesia e senso com-
mum (se n&o é como dous).
— Entra em.scena uma figura de tombai ôbos, um
trangalhasdanças, de camisola de baeta preta, com
faca de ponta. «Em uma das bandoleiras trazia o polva-
rinho e munição; na outra suspendia um bacamarte,
cuja bòcca negra e sinistra apparccia-lhe na altura do
joelho esquerdo, como a fauce de um dragão que Ibp
servisse de rafeiro. »
XXXVII 267
Toca a esmerilhar.
Bandoleira, é o cinto d'onde o bacamarte pôde pen-
der; mas c& este bandido traz bandoleiras aos pares,
ou antes chama bandoleira ao que o é, e ao que tal
n&o é.
Accresce que,seguindo este falar,pólvora nao é muni-
ção.
Temos mais um bacamarte de bocca negra e sinistra.
— Sinistra ; porque ?
— Porque aquelle bacamarte disp&ra tiros que matam.
— Ai, meo senhor, mas ent&o isso é só aquelle ? Eu
nunca vi bacamartes destinados a disparar violetas nem
água de colónia. E agora negra^ porque ?
— Porque o metal d'aquelle bacamarte ^ de côr es-
cura.
— Ai, meo senhor, mas então isso é só aquelle ? ! Eu
nunca vi bacamartes verdes nem côr de rosa.
Conseguintemente, bacamarte de bõcca negra e si-
nistra é... mel doce, segundo Plínio.
Mas as bellezas máximas d'este trecho est&o no resto:
— bôcca sinistra e negra I —na altura do joelho I^— como
fauce de dragão I — servindo-lhe de rafeiro I Noli me
tangere ; 'nestas arcas sanctas é defeso tocar ; todo o
commentário seria pallido; sSLo sol que é sol; patenteiam-
ae de per si; ellas sao quem sfto.
— 1( Uma aba larga occultava-lhe grande parte da
physiognomia. »
Nós cá, simples mortaes, diriamos que lhe occultava
parte da fronte, do rosto, das feições, do semblante, ou
qualquer outra loeuçfto tfto pedestre quanto o é a idéa
que se representa ; mas lá os Deuses do Olympo lêem
por outro oreviário (elles tém breviário ?) : Ostentam-se
às Semeies ccruscantes e tonitruantes, com o intuito de
manifestarem á pequenina humanidade açhar^se já
transfundido para as suas pess§as o disputado poder
pessoal.
Suppondo porém que, em estylo aspirante a elevado,
se possa substituir semblante por physionomia (n&o quero
multiplicar questões), só o que pergunto é d'onde veiu
a transformação doeste vocábulo em physiognomia^ como o
Sr. Alencar escrevbu 20 vezes 'nesle volume com que
me flagellei ? O termo que as linguas modernas adop-
taram foi physionomia, derivado do grego physis^ na-
tureza ou Índole, e nomos^ lei, ou indicio, ou regulador ;
d'onde se coilige que o sentido verdadeiro do termo
268 XXXVII
(antes de passarão figurado) é— complexo de feiçOes re-
veladoras da iudole do indivíduo.
Nao seria descabido empregar a palavra physiognomia^
ou antes physiognoinonia^ porque os gregos tinham
também o seo gnomé^ ou gnomos^ ou antes gnoinon (in-
dicador ; mas a sciencia reservou esse vocábulo, nao
para exprimir, como o Sr. Alencar, a cara de um lio-
mem, mas para denominar uma verdadeira ou supposta
arte que insina a conhecer o temperamento e as incli-
nações e qualidades do homem pelas feições do rosto e
formas do corpo. Já Aristóteles lançara as primeiras
linhas d'esta arte, asseverando que os génios de cada
subjeito eram similhantes aos de um ou outro volátil ou
quadrúpedcr, com quem por força se parecia. Ha os
Tractados do velho Amâncio De physiogiiornica^ e de J. B.
Porta De humana physiognomica \ e entre outras muitas
obras análogas, ha as Tentativas physiognoniónicasy de
Lavater, depois do qual vieram Bacharach e outros. E'
pois uma arte curiosa, que nem mesmo é lícito senten-
ciar de çharlataria, e que d e da phrenologia dá e re-
cebe auxílio. Parece que da convicção d'esta verdade,
veiu o annexim dos nossos antigos : — Máos bofes e boa
cara, se elle ha d'isso, é cousa rara.
A que vem pois, no Til^ o nunca empregado neologis-
mo de physiognomia'^ Virá elle inçher algum vácuo? nao,
que se a palavra pfti/5Ío?iomíaj a dá isso, cá a tínhamos
na largo tempo. Mostrar a sciencia do neólogo ? per-
dôe-nos elle, que só serviu para patentear sua ignorân-
cia em assumptos, sobre que nao tem obrigação de ser
profissional, mas que melhor faria em deixar lá onde
estão, desde que os nao intende.
— O número lim, logo 'neste 1° capitulo, de que ainda
me nao foi possível arrancar-me, apparece 600 vezes,
e o auctor lá tem suas trazões : — Bizarria de um prín-
cipe— por U7na reçhan — um grande manancial — nin
tom opaco — um sol esplendido — o firmamento é tima
terra — uma d 'essas occasioes — um cardeal — tima pal-
meira— um poncto além — uma lividez — um homem—
com uma camisola — uma das bandoleiras — um baca-
marte— íim dragão — um gesto de contrariedade — um
asco mixto — uma travessura — um passo — um bera a
mim — um arquejo — lim pulo — um fungar.... E isto
tudo, logo 'num capitulinho, de meia dúzia de linhas,
o primeiro, e o mais aprimorado do livro!
XXXVII 269
O que isto significa é um despréso da língua; é uma
incorrecção pouco decente ; é um gallicismo de légua e
meia. Se nfto todos, pelo menos as três quartas partes
doestes uns seriam supprimidos por quem soubesse es-
crever. O francez (por outros motivos) segue lá outra
regra, que lhe derrama nas suas páginas esse dilúvio
de uns ; mas no portuguez, constitue este surdo mar-
tellar, menos ainda uma ingrata monotonia, que um
erro grammatical. O um^ em portuguez, nao é cavilha,
partícula sem sentido, arbitrariamente entremeada nas
orações, como os cantores italianos entremeiam ad li-
bitum o siy quando lhes faz conta : o nosso um tem
missão especial, e é a de limitar o respectivo nome
individualizautto-o, isto é, separando-o dos da mesma
espécie. Com esse adjectivo articular deve pois ter-se
cuidado, porque gera — ou incorrecção, quando empre-
gado desnecessariamente — ou erro formal, quando des-
virtuada a sua índole. Com o Sr. Alencar dá-se uma ou
outra d'estas hypótheses, nos nove décimos dos casos.
« — ..• assomo de terror, que lhe embotava os brios
de valente e galhardo. »
Aqui, depois de darmos graças a Deus, por ja uma
vez, por ingano, apparecer, o lhe collocado em seo de-
vido logar, admiremos logo em seguida a facúndia do
valente e galhardo. Galhardo (quando nao na intenção de
elegante e bem feito ) pôde significar animoso^ mas nao
tem a força, áenommBÀa inlimativa, da palavra valente^
com quanto represente exactamente a mesma ordem de
ideas ; ergo, valente e galhardo é um dizer que vai de bispo
a moleiro, e orça por óptimo e menos mdo.
— « E, promovendo um passo....»
Promover passos parece-me outro neologismo desne-
cessário c inadmissível. Como porém quero sempre
ficar bem com a minha consciência, e nem a um sabedor
dos teos quilates seria prudente iabmetter observações
infundadas, permitte-me desinvolver-te o sentido da
minha hesitação.
Diz-se incontestavelmente em bom portuguez mover
os passos. Assim Manoel de Galhegos, no seo Templo da
Memória^ cant. I. est. 114, escreveu:
Ní»m quando a Aurora aljôfre e raios chove,
com tanta bizarria os passos moi:e.
E classicamente foi traduzido o famoso el incessu pa-
tuit Dea^ por : u E na bizarria com que moina os passos^
mostrou que era deusa. » &. Isto é tudo de fidalga
270 XXXVII '
procedência, pois os latinos, (como Séneca, Tr.,) diziam
também movere grndum.
Mas o que me nao consta é que ninguém escrevesse
jamais promover passo, nem promovere gradum^ e isto
por um motivo muito simples, eé ter Deus feito o ho-
mem com um tarso, metatarso e phalanges, tudo vira-
do só para deante ; e ter a perna músculos, dos chamados
da vida animal, dispostos para o movimento natural
'naquella mesma direcção. Portanto, quem só dicer
mover o passOj ja se sabe que significa para deante^ e a
addição da preposição latina pro, nem aquenta nem
arrefenta, sendo uma innovaçao para que o Sr. Alencar
nao tem direito, e completamente ociosa, ou antes pre-
judicial, porque, sem addiccionar . ombra de idea, viria
multiplicar inconvenientemente a^ accepçOes, ja dema-
siadas, de um verbo, que tem sentido diverso.
— « Açhou-se o facínora a rosto com o rapaz. »
Concordo em que o vocábulo fadnora^ nascido, nao ha
muitos annos, entre os estudantes de Coimbra, é porahi
frequentemente repetido.Direi porem que, quasquer que
sejam os lábios que o profiram, representa ura dizer des-
necessário e incorrecto i— .desnecessário^ porque temos
facinoroso, criminoso, perverso, flagicioso,assassino, ma-
tador, malvado, scelerado, nefário, desalmado, ímpio,
iníquo, protervo, ímprobo, homicida, sicário, e outros
muitos nomes,entre os quaes o auctor pode achar a me-
nor oumaior energia,que lhe convenha applicar; — incor-
recto,porque, derivando-se do latim, a palavra era 'nesse
idioma tomada á boa ou má parte: quando á boa ( como
em Sallústio, ingenii egrégia facínora^ productos egré-
gios de ingenho), nao pôde dar origem á tal interpre-
tação ; quando á má, nunca em Ifetim se referiu a quem
pratica o attentado, mas só ao próprio attentado.
Pelo que toca ao a 'rosto j também nao conheço. Rosto
a rosto, sim Sr., tenh(f visto muita vez, por ex, na Ma-
laca Conquistada :
Quando vi o céo a meo valor opposto,
e nao ha com Miguel pôr rosto a rosto ;
mas a rosto com o rapaz, persuado-me que nunca fora
dicto.
Onde iria eu dar comigo, se analysasse um baca-
marte, de já 3 volumes, denunciando todas suas bellezas,
como o tenho feito a «Igiimas so do 1* capitulo do ro-
mance ? E' um livro de estudo, é • quem bem o meditar,
lucrará ; é vernáculo, neólogo, docto, elegante e fa-
X XX vil , 271
cundo. Â respeito de eloquência tal, por mim repito as
grandes palavras : Eloquência ! artífice peritíssima, que
sabe usar todo o género de instrumentos, e 'nelles des-
tramente se converte: prende como cadeia; alumia
como tocha ; pica como espora ; reprime como freio ;
corta como espada ; defende como escudo ; inunda como
torrente ; fere e derruba como raio ; inventa como o
lUm, Sr. C. Urso.
Para a outra vez dobraremos este Cabo Tormentório,
denominado — O Capanga, primeiro capitulo do TU.
E^ confesso que ainda nao tenho opinião bem assente
sobre o intuito que preside & publicação d'este deno-
minado romance. ;Vir com uma cousa assim à praça I
Será zombar do público ou do editor ? Explicação plau-
sível só a entrevejo, no facto da mercancia : a República
dá muitos exemplares ; o auctor produz muitos volu-
mes ; o editor paga muitos tostões ; e a história vai
currendo como um manso ribeiro.
Um predecessor do nosso digno ex-ministro çhamava-
se Mazarino. Entre as muitas anecdotas que d'este narra
a Princeza Palatina, acho graça a esta : PuUulavam
contra Mazarino os libellos, os artigos, as cantigas ;
Mazarino mandava perseguir e apprehender tudo aquillo;
augmentava assim o appetite da leitura ; logo em se-
guida, mandava secretamente vender as sátyras appre-
hendidas ; ganhou assim muito honradamente dez mil
escudos.
Modus vivendi ; desde que a cousa pinga, pinga ou bri-
lhante, ó deixar ir.
Teo sincero admirador
ClNCINNATO.
ILill>ex*dacle politica
Em todos os tempos têm havido certas expressões bom-
básticas, com o privilégio de fascinar os homens, e
leval-os a fazer muita asneira, em quanto que, exami-
nadas com alguma seriedade, conhece-se que nfto sSlo
mais que bolhas de sab&o» ou lindas miragens, cuja rea-
lidade é zero.
Âs palavras liberdade política s&o das que mais fortuna
têm feito, e que menos deviam fazer, porque contêm em
272 XXXV n
si um antagonismo, que as nunca devia deixar andar
junctas.
A liberdade politica é a liberdade que nao é livre. A
liberdade políiica deveria existir nas associações políti-
cas ; mas uma associação politica nunca foi livre. A
união política de muitos homens suppoí sempre a
existência de uma entidade superior, que tem direito de
mandar, e á qual todos devem obedecer.
A idéa governo está tao implicitamente comprehen-
dida na idea associação politica, como a idea figura está
implicitamente comprehendida na idéa corpo. Mas a idéa
governo tem outra, que lhe é correlativa : é a idéa gu-
vernado ou súbdito.
Nao ha definição de liberdade, que nao contenha a
idéa de conformidade com a lei : o homem é livre porque
tem a faculdade de fazer o que lhe a lei nao prohibe: o
que quer dizer que o homem é livre,emquanto lh'o a lei
consente. E como a lei é a vontade do legislador, segue-
se que o homem em sociedade tem apenas a somma de
liberdade, que lhe consente ou permitte o legislador,,
que nao é mais do que um homem.
Lembra-se o legislador de que se nao ande a certas
horas, nao se anda; — de que se fechem as portas a certas
horas,feçham-se as portas a certas horas; — de que se nfto
reúna certo número de indivíduos,sem satisfazer a certas
práticas, nao se reúnem — e assim milhares de outras
cousas. Em alguns casos até prescreve as horas a que
se deve comer, e nao observadas.
Onde então está a liberdade política ? Nem no direita
de eleger existe,porque esse direito,e o seo exercício, está
subordinado ás prescripções de legislador.
Dir-me-hao que tudo isto é assim exigido pelo bem
commum. Mas quem dafine o bem commum, é ainda o
legislador.
O homem nasceu para a sociedade e nao para a plena
liberdade ; a sociedade e a liberdade sao duas cousas
muito differentes.
Otton.
Typoerraphia e lithoeraphia —IMPARCIAL— Rua Sete de Sete mbro, 146
QUESTÕES DO DIA
isr.°38
RIO DE JANEIEO, 9 DE FEVEREIRO DE !»».
Tcode-m em caaa dos sn. K. te B. La>mmett.— AcoKtinho de Freitas Oui-
marSes Ac Comp., 36, rua de Oeneral Gamar».— Livraria Académica, Rua de
S. Joaé n. 119- Largo do Paço n. C— Preço 200 reis.
O I* volume, com perto de 400 pÉ^nas— 8R000.
OBRAS DE J. DE ALENCAR— A IRACEMA.
(Cartas a Olnolnnato)
XI
Meo charo amigo.
Fiquei de mostrar- te ao vivo como o Sr. Alencar con-
cebeu o amor bárbaro abaixo das forças da natureza e
jnrejudicando usanças e reputações históricas, de subido
Talor. E' esta a occasiSo.
Abrindo o poema.... «prosaico» (experiência tn anima
prosaica o çbama o auctor) na pag. 25, leio :
a — Iracema ! exclamou o guerreirO;^ recuando. »
« — Anhangá turbou sem dúvida o somno de Ira-
puam, que o trouxe perdido ao bosque da jurema, onde
nenhum guerreiro penetra sem a vontade de Araken. »
(Só Martim, estrangeiro e desconhecido, teve d'este pri-
Tilégio. )
« — Nao foi Anhangá, mas a lembrança de Iracema,
?ue turbou o somno do primeiro guerreiro tabajara.
rapuam desceu de seo ninho de águia para seguir na
Tinea a garça do rio. Chegou, e Iracema fugiu dos
£608 olhos. D (Devia ser um grandeii mor este, que fazia
o próprio chefe tentar contra o rito— cousa inaudita entre
tacs povos I — Vejamos porém que de prodígios fará esse
amor.)
« — As vozes da taba — continuou elle — contaram ao
envido do chefe, que um estrangeiro era vindo á caba-
na. »
• A virgem estremeceu. O guerreiro cravou 'nella o
olhar abrazado.
« O coração, aqui no peito de Irapuam, ficou tigre.
Pulou de raiva. Veiu farejando a presa. O estrangeiro
«8tá DO bosque,e Iracema o accompanhava. Quero beber-
274 XXXVIII
lhe o sangue todo : quando o sangue do guerreiro braa-
CO currer nas veias do chefe tabajàra, talvez o ame a
filha de Araken. » (Um chefe, dos quilates de Irapuam^
ou antes qualquer guerreiro, que sentisse para com a sa-
cerdotiza vehemente paixão, ao poncto de postergar
'nisso o preceito religioso, jà estaria em face do felix
rival.
« A pupilla negra da virgem scintillou na treva, e do
seo lábio borbulhou como gôttas do leite cáustico da
euphórbia, um surriso de desprezo » (O que seria natu-
ral é que ella se aterrasse, e negasse o facto : a culpa, ft
em condições tao graves, sempre acobarda o espirito que
pela primeira vez commette o crime.
cc — Nunca Iracema daria seo seio, que o espirito dô
Tupaa habita só, ao guerreiro mais vil dos guerreiro»
tabajàras I Torpe é o morcego, porque foge da luz e be-
be o sangue da victima adormecida I )> (Que razlo ha-
via para tal desabrimento ?)
« — Filha de Araken I Nao assanha o jaguar ! »
(Estava um jaguar muito discreto e tolerante este)»
<( O nome de Irapuam voa mais longe que o goanâ do
lago, quando sente a chuva além das serras. Que a
guerreiro branco venha, e o seio de Iracema se abra
para o vencedor. » (O pseudo-heróe só tinha vistas e
parolas).
<c — O guerreiro branco é hóspede de Araken. (EntSo^
por ser hóspede, tinha charta branca para fazer das suas?)
A paz o trouxe aos campos do Ipú. Quem offeudera
estrangeiro, offende o Page » (E quem oíFendesse a reli-
gião, nao oflfenderia também o Page ?
(( Rugiu de sanha o chefe tabajàra :
« — A raiva de Irapuam só ouve agora o grito da
vingança. O estrangeiro vai morrer. » (Beaucoup de
bruit pour rien. )
« — A filha de Araken é mais forte que o chefe dos
guerreiros, dica Iracema, travando da indbia. Ella tem
aqui a voz de Tupan, que chama o seo povo. » (Or&>
convertido em juiz e com que poderes? I )
(c — Mas ella nao chamará ! respondeu o chefe, es-
carnecendo.
í( — Não, porque Irapuam vai ser punido pela mâa
de Iracema. Seo primeiro passo, éo passo da morie«
<( A virgem retrahiu d'um salto o avanço que Lomir-
ra, e vibrou o arco. » (Lembro-me d'aqUelle trecho dU>
gaúcho : » A égua retrahiu o flanco sobre os quadris
XXXVIIl 275
-agachados, e esse corpo, que se fizera bomba, estou^
rouy>).[0 chefe cerrou ainda o punho do formidável taca-
pe ; mas pela vez primeira sentiu que pesava ao braço
robusto. O golpe .que devia ferir Iracema, ainda nao
alçado, já lhe trespassava, a elle próprio, o coração. »
(Mesmo depois do que via e ouvia ? Chefe imbelle,
. guerreiro maricas] )
A final Irapuam desappareceu entre as árvores, e Ira-
cema voltou a proteger o somno do estrangeiro no bos-
que sagrado.
Pensas tu, bom Cincinnato, que esse chefe que sur-
prendêra assim o nefando sacrilégio ; que tantas provas
recolhera, até uma declaração confessa da sacerdotiza,
de que o desconhecido estava no bosque onde era veda-
do penetrar ; que, além do mais, se devia reputar atroz-
mente ultrajado pelo desprezo infligido ao seo desvaira-
do amor, e pela preferencia tributada ao forasteiro; pen-
sas tu que esse chefe saí.sse d!ahi para dar o grito de
alarma, delatar o crime, exigir a punição immediata
dos delinquentes, ser fervorosamente coadjuvado (como
fora de esperar) na applicaçao dos castigos tremendos
para cabal desaffronta dos preceitos postergados, e
• exemplo estrondoso a presentes e pósteros? Qual, meo
amigo ! Vais ver o que acconteceu.
Irapuam cousa nenhuma communicou ao page até á
tarde seguinte, quando, com cem guerreiros, foi tomar
o estrangeiro ao Cauby, irmão de Iracema. Seguramen-
te o chefe ter-lhe-hia contado í ao iiltimol os successos
da noite ; mas longe de ficar esce, como era natural, es-
candalizado,na dupla qualidade da guern»iro e de irmão
da moça, suas palavras foram estas :
« — Mactae Cauby antes ! »
Eis reboa o rouco som da inúl):a j)ela mata ; ostaba-
járas estremecem, reconhecendo 'nesse annúncio a voz
inimiga do búzio dos Pytiguàrus. AbinJonam Martim
e seo protector, batem as matas, procuram, esmerilham,
e nada incoutram.
Suppõi com razdo Irapuam qui^ o aviso falso fora ardil
de Iracema para fazer diver^sao ao ódio d'elle, e entre-
mentes dar escapula ao amante : e só então procura o
Page para referir-lhe o arcontecido.
«( — Araken, a vingança dos tabajáras espera o guer-
reiro branco, Irapuam veiu buscal-o. »
Queres saber a resposta do sacerdote, instituído para
•velar perennemente pelo rito, e impedir por todos os
276 XXXVIU
meios ao aeo alcance que elle chegasse a ser de leve
estremecido? Ouve lá;
« — O hóspede é amigo de Tupan ; quem oflFender o-
estrangeiro ouvirá rugir o trovão. »
Qué dizes a isto ? Ura quero confundir es^e 'page re-
misso e refractário, que n&o sahe exercer o seo oficio,
com uma licç&o que me ministra G. Dias, insinando como
era intendida a hospedagem entre os verdadeiros Índios
— a hospedagem, que o Sr. Alencar tornou elástica, áo
poncto de fazêl-a absorver um dos mais accentnados
characterlsticos do povo bárbaro — a veneraç&o das suas
práticas religiosas. « Hospitaleiros para com os estra-
nhos— diz o historiador — os seos próprios inimigo»
achavam accolhimento e gazalhado nas suas tabas » E
mais adeante : a Desconfiado o índio com os estranhos^
principalmente quando 'nelles percebia deslealdade (é o
caso}, um indício, um vislumhre de intenção sinistra,
bastava muitas vezes para o tornar suspeitoso, e da sus-
peita, sem mais exame^ precipitava-se na traiçEo.D Ora,
vô lá se com índios d*esta ordem, Martim e Iracema te-
riam feito septe montes!
Mas emfim, Irapuam torna a Âraken :
a — O estrangeiro foi quem offendeu a Tupan, rou-
bando a tua virgem, que guarda os sonhos da jurema.
« — Tua bôcca mente como o ronco da giboia — excla-
mou Iracema, d
O chefe insta e insiste pela vingança ; até que a Âra<
ken ergueu a grande pedra e calcou o pé com fôvea no
çhao » e ouviu-se o ronco de Tupan. Irapuam, por outro-
lado, bem merecia d'isso, attenta a sua frouxid&o. Dous
insêjos, cada qual mais propício, perdeu de dar de
garra ao estrangeiro — um no bosque, onde, se este
penetrou, com maioria de razão poderia penetrar aquelle
que ia punir um sacrílego, e a quem a opposiçao de
uma fraca mulher, nrincipal culpada, nao deveria de-
ter ; outro, quando, tendo cem guerreiros de seo lado,
o foi incontrar só com Cauby. Eis ahi o cacique esculp-^
tural da Ibyapaba ! Que amor o ibeo, que sentimento ae*
vingança, que denodo, que desvelo pela defeza do rito t
Uma mulher (que e!le já devia então odiar] o amiaçava^
eil-o tolhido ; incon trava o rival (que nao era só isso»
mas também profanador da liturgia sagrada) a sós com
o irmão da mulher que o ultrajara, e tanto bastava
para frustrarem-se os seos ímpetos, apezar de açhar*8e
accompanhado de cem guerreiros !
XXXVIII 877
Na batalha em que mais tarde se empenha com os
Pityguáras, como já 7Ímos, nSo faz maiores prodfgios
4e bravura ; e, para incurtar razoes, là se foram sem uin
arranhão Martim e a índia ; e esse preclaro cabecilha,
que nos dizem as chrónicas mandar sobre mais de 30
aldeias, que nos diz o próprio Sr. Alencar a tantas vezes
tsr guiado os seos guerreiros ao combate, quantas à
TÍCtória » (pag. 61) volta cabisbaixo e derrotado, dando
•o mais formal e vergonhoso desmentido ao passado re-
nome ! Eitt como são reduzidos a zero typos colossaes,
que o valor e o poder illustraram nas guerras da con-
quista ! O Sr. Alencar pôde jactar-se de intendedor da
história, e de chefe da nossa htteratura. Tem dôdo !
O typo de Poty, posto que njienos falso que o de Mel
Bedondo, fica ainda assim muito somenos & grande fi-
.^ra, que subsiste e perdurará indelével entre os brilhos
áe homérico heroismo nas nossas p&ginas da restau-
nçfto.
O que faz, na verdade, Poty, na lenda do Sr. Alen-
car, que se mostre na altura das altas façanhas d*es8e
braziliano, no período da guerra hollandeza ¥ Accom-
panhemol-o, desde que apparece até ao fim da lenda.
Martim está na cabana do page. cc Levantado no re-
^omno da noite um grito vibrante, que remonta ao céo »
ípag. 5n,E* o grito da gaivota, que ires vezes resôa
(pag. (55), ou antes é a voz de Poty, que de dentro do
tanque da aldeia dava signal a Martim.
Nos sertões do Ipú n&o ha gaivota, tanto que a índia
•desconhece esse grito, o que Martim acha muito natural,
TÍsto como a gaivota é « a garça do mar » ; ao passo que
Iracema é a a virgem da serraj que nunca desceu ás
(Uvas praias r> (pag. 51)
Mas se o grito da garça do mar er^ desconhecido da
índia, presume-se que também o fosse dos guerreiros ta-
bajàras em incessantes guerras com os pityguáras, e
senhores dos seos costumes e modos de aununciar-se ?
Decerto que nao. Ora, se o nao era, presume-se que
Poty, prudonte e matreiro, se arriscasse de tal modo
4t no resomno da noite » e ao alcance immediato dos ini-
migos f E isso, quando a aldeia suspeitosa deveria estar
4e sôbr'aviso, depois do facto de haver soado « o búzio
guerreiro dos Pityguáras» que horas antes a tinha alar-
mado (pag. 42)? O verdadeiro Camarão nao se teria met-
278 xxxviir
tido em tal giqui. (1) E é tao verdade que em tal situa-
ção estava exposto o prudente abaete, que a índia a foi
direito ao logar d'onde partiu o grito e chegou à borda
do tanque » (pag. 55.) Se a índia foi, como nao iriam
os Índios?
^ D'aqui o vamos achar no combate na floresta, do qual
já te dei noticia na minha V carta, e que, sem embar-
go de ser travado entre figuras tao legitimamente afa-
madas, taes como Mel Redondo, Jacaúna, Camarão e
Soares Moreno, appresenta, como visle, a feição burlesca
da caricatura (é o termo).
O que fez de certo digno de si o Camarão 'nesse prélio
de athletas? O Sr. Alencar o vai dizer : « Poty já pos-
trou o velho x\ndira e quantos guerreiros topou na lucta
seo válido tacape. » Verdade é que conclúe 'nestes ter-
mos ; » Martim lhe abandona (a Po^yj o filho de Ara-
ken, e corre sobre Irapuam. » O íilho de Araken, —
Cauby — é certo — parece que era am guerreiro moço e
valoroso; mas também certo é que Poty lhe nao levou
grande e cabal vantagem, pois que o vemos apparecer
depois nas praias do Ceará, onde foi ter com a irmã
sao como um pêro (pag. 142). Logo, em rigor e subs-
tanciando, em que se resumem os grandes feitos ou
proezas do Camarão 'nesse renhido combate ou antes em
toda a lenda ? Em prostrar o velho Andira. O velho l
Terás idéa approximada do valor d'este, pelas seguintes
palavras de Irapuam, que o invectivou com acerbo me-
noscabo, quando elle votou contra o combate: « — Fica
tu, escondido entre as igaçabas de ninho, fica, velha
morcego, porque temes a luz do dia, e só bebes o san-
gue da víctima que dorme »> (pag. 19) Eis ahi quem
Poty prostrou.
E depois d'isso, nada mais occorre na altura de r©-
commendar este último. Vemol-o pintar Martim com
os <<riscos vermelhos e pretos, que ornavam a grande
nação pityguara " (pag. 11.:!), frechar o camoropim de
cima do coqueiro, ou do morro do Mocoripe etc.
Cousas d'estas. E acabou-se. Será este o próprio Cama-
rão grande, ou o Camarão, le petit ? Que houve diver-
sos Camarões, dil-o a história.
Antes de fazer poncto por hoje, permitte-me trasla-
dar ainda uns ligeiros extractos.
1) Armadilha selvagem de pegar camarão.
XXXVIII 279
Lè-se na pag. 10 do poema :
« - Bem vieste ! O estrangeiro é senhor na cabana de
Araken. Os Tabajàras tem mil guerreiros. »
E na pag. 52 .*
" - Nao vale um guerreiro só contra mil guerreiros. »
Se o vocábulo — mil — foi empregado aqui na acce-
pç&o de — grande número, muitos, pa^se ; mas se o foi
na accepçao de dez vezes cem — seria isso tao grossei-
ro erro, que d'elle nao reputo capaz o Sr. Alencar.
Os nossos Índios só para os números l,2,3,e 100 tinham
termos próprios, a saber; um, oiepen ; dous, mocôtn;
três, moçapoêr; cem, papaçà. De quatro a 10 contavam
c^ompoudo 03 niimoros com os três primeiros, d'este
modo ; quatro, m,òcoia — mocòin ; cinco, pò (mao, ou
cinco dedos); seis, moçapuer — moçapuer ; eic. (Vide o
Vocabulário do padre M. J. S.)
A lingua Kechàa tinha o vocábulo huaranca^ mil ;
sias seria erro usar do termo entre índios que falavam
s lingua geral, como os tabajàras, ou melhor como todos
es nossos aborígenes.
O Sr. Alencar, seguramente seguindo 'nisso d'Orbi-
gny, que opina haver em toda a América meridional
uma só religião— a dos Quichúas^ intercala nas prag-
máticas bárbaras dos Índios do peará práticas que eram
evidentemente peculiares aos Incas, que professavam
esta religião. A supposta festa que nos dá, sob o nome
sonoro e pomposo de festa <( á lua das flores » está 'neste
caso.
Os chronistas nao falam de tal instituição entre es
«utochthones brazileiros. Ainda aqui,portanto,o corajoso
e temerário romancista quiz dar-nos um mero producto
do seo génio inventivo ou creador.
Mas, além do mais, foi infeliz na lettra do liymno,
que saiu chilro e çhôçho,como vais ver:
« Veiu no céu a mae dos gu|rreirrs; já volta o rosto
para vêr seos filhos. Ella traz as águas, que enchem os
rios e a polpa do caju.
« Já veiu a esposa do sol: já surri ás virgens da terra,
'filhas suas. A doce luz accende o amor no coração dos
{guerreiros e fecund^a o seio da joven mae. » (pag. 72).
E mais nao dic**.
A qualificação de esposa do sol applicada á lua, é pro-
priamente da religião dos Incas, segundo a qual aPaçha-
€ana4i^ deus invisível, creador de todalas cousas, tinha
ZOU JLAiLVUJ.
O podâr supremo, imperava sobre o sol e a lua sua mur-
Iher, »
Como a cousa não vai também a morrer, nfto me de-
terei mais DO texto e passo às notas.
Teo leal amigo e admirador.
Sbmprónio*
Ignez de Oastro.
POR
JULIO DE CASTILHO.
II.
Houvemos como necessário expor a syaopsis do epi-
sódio da história portugueza. E' ella, pelo teor por que
à fizemos, o pequeno esboço de um quadro granae.
Tivemos para nós ^ue era mister lembrar o accoate-
cimento e suas peripécias, para que se mostre o porquft
tantos ingenlios portentosos se teem occupado d'e9te
assumpto e sempre com garal assenso e beneplácito dos
intendidos. Foi o insigne doctor António Ferreira^
desembargador e lente na universidade de Coimbra, o
primeiro que urdiu e p5s na scena aquelle triste e Ia*
ctuoso successo; e só viu a luz em Portugal a primeira
tragédia d^ Ignez de Castro, cerca de 250 annos depois
da espantosa catástrophe dos paços de Coimbra. Foi eia
1598 que veiu á imprensa o escripto do insigne juris-
consulto e poeta portuguez. Escreveu elle a sua exeel-
lente tragédia— Castro— em 5 actos e em versos deca-
syllabos soltos, eatresaçhando-a de choros e concluiada
p4^ acto por 38 versos sáphicos. Sao 8 as pessoas d&^
tragédia, afora o choro das moças de Coimbra,
Consta o 1*" acto de longos diálogos entre Castro e
sua ama, em que se expoim miudamente os amores do
infante e de Castro; o casameato forçado d*aquelle com
Constança, de Castell^ a morte d'esta; o casamento
occulto d'ella com Castro, a escolhida de seo coraçaoi
constando mais este acto de extensos diálogos entre o^
secretário e o infante, em que aquelle ancião e velho
servidor do reino procura com argumentos enârgioos,
e a maior insistência, dissuadir o infante de uma paiicSo
que o transvia, de um amor que o abate e ame^uitiba
aos olhos de seo pae, da corte e dos populares; seoa
argumentos, suas razões de Estado, sao rebatidas, oc&
XXXVIII 281
*com súpplicas e calma em que transparece a raz&o em
repouso, ora com o ímpeto e a violência de um coração
cheio de amor ardente e contrariado por quem nSlo sabe
nem pôde comprehendêl-o. Doesta lucta tremenda entre
o coração de um mancebo, incendido nas çbammas de
uma paix&o que lhe domina os sentidos, e a razfto calma
de um ancião cujo espirito gélido não pôde compre-
hender aquelle mundo de amor, ternura e dedicação sem
exemplo ; d'esta pugna longa e tenaz, em que se esfor-
çavam tao denodados cam piões, venceu a paix&o do
príncipe ; e o adversário retirou-se derrotado e conven-
^cido de que nenhum poder humano seria capaz de ar-
rancar d'aquelle peito uma paixão que lhe havia senho-
reado todo o alvedrio.
Entram no 2.' acto el-rei D. Affonso IV, Diogo Lopes
Pacheco e Pêro Coelho.
Sao thema d'este acto os conselhos pérfidos e sangui-
nários de Pacheco e Coalho, e as hesitações do rei, que
ora antepoi aos conselhos a grande crueldade de mactar
uma innocente, ora cede ás razões com que insistem
-aquelles espíritos maléficos. O 3.^ acto consta de mono*
iogos entre Castro e a ama, narrando aquella os sonhos
fatídicos e aterradores que a haviam assaltado durante
a noite ; vindo o choro annunciar-lhe a resoluç&o irrevo-
gável do conselho em que se lhe havia decretado a morte,
6 que perto vinham os assassinos p5r em execução o que
se tinha resolvido em conselho, com assentimento do rei.
O 4." acto é verdadeiramente o último e principal suc-
cesso da tragédia. Âçham-se em scena, e em face uns dos
outros, o rei, Castro! Paçliêco e Coelho. A lucta ó tre-
menda. Castro e seos iunocentes filhos, ajoelhtidos aos pés
do Rei; as tribulações daquella almainnocentee cândida
desataudo-se em guaieis excruciantes ; seos rogos e ge-
mi^los; o çhura^r e soluçar d*aquellas creanças tão sem
•culpa; as incertezas do rei, que tuctua entre a piedade
e as instancias d'aquelles malvados conselheiros ; a te
nacidade satânica daquelles monstros ávidos de sangue;
e a retirada do rei , deixando a víctima, fraca e despro-
tegida, intregue á fúria implacável de ferozes algozes ;
tudo isto forma um complexo de contraposições onde ha
tanta acção, tanto movimento e tamanha exuberância
ÁQ vida, que nos dá razão do sobra para admirarmos o
grande ingenho, creador d'este transumpto sublime de
inaudito successo histórico dos paços de Óoímbra.
I
282 XXMV III
O 5." acto da tragédia da Ferreira, é curlo e descai ;
consta apenas de um mensageiro que vem dar ao deso-
lado infante a triste nova, e das imprecaçOe;; do inÍBnle,
promettendo vincar a morte da sua idolatrada Castro,
e fazer-llie as lioiirad pósthumas de ralulm de Porlng-al.
Escreveu também sobre este assumpto o insigiii poeta
portiiguez Domingos dos Reis Quita; e em llún foi dada
à luz da imprensa, a sua tragédia - Castro. Este melo-
dioso po3la concentrou o pensamento da obra, redu-
zindo'Ibe as dimensões; sua triig^édia é em 3 actos. SfW>
actores o príncipe U. f edro, D. Iguez de Castro, el-rei
11. Affonso IV, Coelho e Faoliêco, um embaixador de
Uispanha, Aliâeida conKdentu de D. Pedro, e Leonor,
aia de D Ignez, pnssaudo-se a scena nu jardim da
Quinta das Làgrymas.
Apparecetii no M' acto os assassinos com as espadas
tiuctas do smi^ne, e em uma porta ao fundo o cadáver
de Igmrfz de Castro. A verdade histórica è aqui um
pouco sacrificada, porque o embaixador de Hispanha,
que vem a Fonugal exigir, em nome de seo rei, cum-
primento de contractos, e satisfacçOes por siippostus of-
fensas. ficando cimmovido e interessando-se pela desdi-
tosa Castro, é o primeiro que desiste de suns preteurOes
e que intercede em neo favor e reconhece a validade do
cousórciol!! leto é inverosimil e inadmissivel.
E', sem duvida alguma, amais popular de to<In.s as
tragédias escriptas na língua portugueza,a — Nova Castro
— de João Baptistb Gomes Júnior. Este joven eacriptor,
que tilo m^iço foi arrebatado às lellras, e que jà nos
havia dado as IriiducçOes de Faiei, de Arnaud, e Aos Ma-
cliabè.ja, de Lamotte, em bons vnrsos portugueses, era-
simples guarda-livrfs de uma casa coinraercial no Porto
(d'onde era nniural), qnHiido escreveu a sua popularís-
sima— Nova Castro — t4a3 lia quem lhe nao tenha de cór
ãcciías inteiras; nao h^ pelo menos, quem lhe nao saiba
muito verso, que por ser^m muito vií^toa e muito repe-
tidos, cairam jà em uma espécie de trivialidade .\ ver-
siticarão é túrgida; o pensamento liy^ierbólico; ha .sohe-
jidoes no dizer e demasias nos epillictus; mas por pouco
que ,se conheça a eschola do tempo e que se considere
no PStylo dos árcades, e sobre tmlo no chamado elaia-
nieuio, que ainda dominou por muito tempo, vèr-se-ha
que o estjlo de JoSo Baptista era o da ischola d'>mi-
nante, e que tem tantos esplendnre-^ ii tantas galas, que
hnde ser adminida sempre pela riq^ieza de língua que
XXXVIII 283
possuíam aquelles beneméritos das lettras e a quem hoje
ninguém, com as lisuras e simplicidades apregoadas,
póde,nem sabe imitar.
E' H tragédia de Joíio Baptista Gomes em 5 actos ; en-
tram n'ella nove personagens e maisdousmeninos,fillios
de D. Pedro e de D. Ignez; a scena é em Coimbra, 'numa.
sala do palácio; é composta em versos decasyllabos
soltos, .gnez de Castro é a mulher tímida, visionária,
sonhando sempre com espectros, tendo sempre deante
dos olhos scenas lúgubres, e misturando aos poucos mo-
mentos de ventura, que lhe sao curtos e fugidios, sécu-
los de amargura, de pranctos e terrores.
O príncipe é um character impetuoso e arrebatado
sem trégua; o rei é um tyranno violento; em suas curtaS'
e passageiras intermissOes inclina-se á piedade ; porém
essa estrel asinha, que apparece 'naquelle horizonte tene-
broso, s(íme-se logo debaixo das nuvens espessas d'a-
quelle céo de tormentos e nevueiros.
Pacheco e Coelho sao dous monstros sanguinários,
sedentos do sangue innocente da miseranda Castro; não
se descobre, desde a perfídia do Conselho até o commet-
timento cobarde do assassinato, um motivo de simi-
Ihante atrocidade ; nílo ha uma razfto que justifique a
idéa fixa dos conselheiros e algozes que tudo ao mesmo
tempo o foram. O terceiro acto d*esta tragédia é uma
verdadeira tempestade, de princípio afim; parece que,
desincadeados os elementos, não ha mais repouso, nem
trégmas 'naquelle oceano de fúria»?. Como na tragédia de
Quita, cá apparece também o compassivo embaixador
de Hispanha, que entra furibundo e amiaçador nqg
paços do rei, proraettendo afogar tudo em guerra para
sustentar com toda a força o decoro do throno e da filha
do seo rei, que ja pisa as fronteiras dos domínios do rei
portuguez, e depoia por sua c^nta e risco delibera por si;
pede perdão para Ignez de Castro; re?ponzabiIiza-se
pelo bom resultado da negociação; e volta em boa paz
com a princeza lá para sua Hispanha, e tudo ficou como
se nada tivesí?e havido !!! fato mostra que Jojío Baptista
Gomes vasou boa parte de sua, aliás formosa, tra<rédia
no molde de Quita. Esta tra^rédia, que foi impressa em
1813, tem tido muitas edições, e ha d'ella uma versão
allema em verso.
Escreveram sobre este assumpto, e em diversos tempos
e no género de que traclamos, muitos distinctos poeta?
^4 xxxvin
tr&gicos portugaezes que eternizaram espleadidamente
a luctuosa catástrophe
, ... da misera e mesquinha
que depois de ser morta foi rainha.
Escreveram, com maior ou menor felicidade na
concepção e no desempenho, Nicolau Luiz em 1760,
António d' Araújo e Azevedo, Joaquim José Sabino,
âouza da Câmara e outros; e nao só . portuguezjs têm
invocado e alcançado favor da musa trágica n*este as-
sumpto tao seo, senão também grande número de poetas
trágicos francezes, hispanboes e italianos. O colher
incessante de t&o sazonados fructos 'neste campo, dá-nos
prova do que vale para os coraçOes sensíveis e para os
oons ingenhos esse memorável e lachrymoso episódio
da história portugueza.
MUCIO SCOBVOLA.
{Continua.)
Oax*ta Px^iimeix^a*
DE CINCINNATO A CUJÁCCIO.
lUustrado Cujáccio.
Dizes tu que lês habitualmente as Questões do dia^ e
'nessa publicação te chamam a attençao de um modo
muito particular as eruditas cartas de Semprónio.
Accrescentas que recentemente viras 'numa d'ellas um
trecho, que deixa em dúvida os conhecimentos jurídicos
do venerando Sr. Alencar, tão apregoados, ao menos
^or elle mesmo. Perguntas-me sobre esta matéria a
minha opinião, e, emb'ora desauctorizada, não devo
occuUar-t'a.
Persuado-me eu aue, tendo-se aquelle senhor appli-
cado a tanta cousa, toi vicflma de uma lei da pkysica :
o que ganhou em superfície, perdeu-oem profundidade.
N&o se pode accumular a universalidade das superiori-
dades, porque essa perfeição só pertence ao Ente Su*
Íremo, e elle ainda o não é, posto para lá caminhe,
erá de contentar-se com ser estupendo romancista, e
litterato, e prosador, e poeta, e dramaturgo, e jornalista»
e político, e orador. Como a jurisprudência lhe ficou
para as horas vagas, 'nella a cada passo claudica e
esbarra.
XXXVIII 285
S&0 innumeraveis as provas, que ySo ahi por todo
esse foro, da infelicidade do perito jurisperto. Admira
não teres seguido também, pela imprensa, algumas das
polémitaí^ jurídicas, em que o nosso causídico tem sido'
anniquillado por muito mais habilitadas pennas.
Nfto alludirei aqui a pònctos controvertiveis. Não só*
as sciências positivas se prestam frequentemente a boa
ãustentação de theses oppostas, mas um advogado, obri*-
gado a defender o seo cliente, nem sempre tem con*-
vicçao da sua justiça absoluta, e d'est'arte vè-se obri-
gado a sustentar doctrinas, pelo menos duvidosas.
Concedendo porém tanto á profiss&o de advogado, há
uma barreira que lhe nfto é lícito ultrapassar. Nenk
pôde contrariar os princípios elementares do direito,
nem ignorar cousas sabidas por qualquer triste fiel dè
feitos. N&o scei se o distincto lettrado nao estará 'neste
caso. E como tenho o hábito do allegado e provado,
vejamos alguns factos, ou desconhecidos, ou já tra-
ctados pela imprensa. E como d'estes mostras nsio ter
notícia, por elles começarei.
Ainda ha poucos mezes se agitou pela imprensa uma
discussão jurídica entre o Sr. Alencar e outro muito
mais valente e competente contendor, o Sr. Lafayette
Bodrigues Pereira. O epílogo doesta polémica foi uni
artigo em que se resumia o que do debate resultara, e
que o Sr. Dr. Lafayette formulou nas seguintes pa-
lavras:
... c( ExplosSLo da vaidade offendida; é o odre qu-e
arrebentou. O sábio conselheiro que, de ha ânuos a esta
parte, traz ás costas um pesado fatr<xs litterário, andava
a campar de jurisconsulto de polpa. A discussão rom- <
peu-lhe as falsas bulias, que, é verdade, se tinham tor-
nado um pouco suspeitas, depois da publicação de uns^
célebres projectos de reforma judiciária, que a esta hora
já terão sido approveitados p^ra alguma encyclope-
diana.
<c As estupendas heresias jurídicas que o sábio conse-
lheiro, com invejável gravidade!, denomina fructos de
fneditação^ mbsidios da sciência^ puzeram patente a do-
ctos e a indoctos uma verdade pungente, e que fora
melhor se conservasse occulta ; a saber : que S. Ex. não
andava muito familiarizado com as Pandectas.
« Ntinca me passou pela mente desconhecer os subli-
mes (alentos do sapientíssimo conselheiro, como folhe-
tinista, poeta, roíiiaucista e auctor de dramas. E, para
286 XXXVIll
•^prova da miiilia sinceridade, approveito a occasiao para
lhe dizer que desde muitos aunos professo a mais viva
admiração pelos inoiísirengos laoraes c\wq ornam a sua
linguagem litterària, e pela língua divina que falam,
língua que a nós, míseros mortaes, pôde p«recer fcrfr-
ba7*a estropiada. »
Ja vês, amigo, como um distiiicto jurisconsulto avalia
3, sciência do Sr. Alencar. Nem se diga que apenas
alludia a uma dissidência em poucto de diictrina. Quem
argiie a outrem de proferir heresias jurídicas, de cam-
par com bulias falsas, de desconhecer as Pandectas, etc,
characteriza a sciência d'osse outrem em matérias ge-
raes de direito, e nfio em q lalquer especialidade.
Foi o referido artigo re- posta ao último do Sr. Alen-
car, intitulado Simples advertências, repleto das mais
Audaciosas baforadas, e onde apparecem dos taes dizeres,
que sao propriedade exclusiva d'este .senhor. Por
exemplo :
— c( O amor próprio e o despeito sao fumo do coração»
que tolda o espírito e obscurece o intendimento. »»
Bravo ! Temos aqui obscurecido um intendimento quô
.nao é espírito, e toldado um espírito que nao é intendi-
mento, e tudo isto defumado polo despeito, que é fumo,
e fumo de que 1 do coração. Impagável I
Diz que « Ov^ídio entre os Getas escreveu este veeso
Barbarus ego siim, quia non inielligor illis »
como se Ovídio fizesse versos errados ; sendo este vêso
de nunca citar certo, um dos elementos da minha con-
vicção de que o famoso V., das Palestras^ n5o era
mais que um copista do patrão.
, Emfira deixemos essas minúcias, e venhamos ao as-
sumpto, que então se agitou.
Involvi:i elle muitas circumstâncias era que a contro-
vérsia era tolerável, mas um poncto ha que docios e
indoctos reconhecerão j^rimà /acíe, que o Sr. Alencar
errou desastradamente.
Um devedor hypothecário, nao satisfazendo o seo
débito, foi executado ; procedeu-se a avaliações, que se
dizem exaggeradas, dos respectivos immoveis, os quaes
por quantia muito superior ao débito foram adjudit^ados
Ao credor, que nao quiz consignar o valor do denominado
excesso, no praso que lhe foi marcado.
Queria o Sr. Alencar que o credor adjudicatário fosse
levado á prisão, e 'nella permanecesse até que eatrô^
^asse o tal chamado excesso !
XXXVIII 287
Existe alguma lei no Império que tal cousa prescreva?
Nao ; mas o liberalismo do actual ueóphyto republicano
é Hdsim : liberdade do cidadão é para elle uma insi-
gnificância, um brinco ; deroga a constituição ; estabe-
lece umas theorias cerebrinas, que se convertem em
práticas iuquisitoriaes ; incarcera....por analogias! A
detenção corporal, a pena, susceptivel sim de restrin-
gir-se, nunca de ampliar-se, o novo Torquemada a ful-
mina arbitrária, despótica, tyrannicameute, sem sombra
•de legislação em que se estribe. Se o legislador, excep-
cional e raramente, preveniu algum caso de commina-
ção de prisão, circumscreveu-o, limitou-o, definiu-o. Se
em dadas hypótlieses, a lei permittiu esse meio contra
depositários e arrematantes, nunca o auctorizou contra
08 adjudicatários, que nem arrematantes nem depositá-
rios são.
Tudo isto é eiemeutar ; mas o Sr. Alencar, que já nos
seos projectos de reforma judiciária se patenteara adora-
dor dos cárceres, masmorras e ergástulos, quiz ir j&
fazendo experiências in anima vili de um cidadão. Para
elle, a liberdade natural é um abuso, ou pelo menoa
uma mercê de S.Ex., que assim pode ací /i&iíum coarctal-a!
Para honra do paiz, cumpre declarar que não houve
uma só voz no foro, no paiz, nos tribunaes, que fizesse
choro com a menos inquisitorial que absurda doctrina.
Consultados, todos os advogados unanimemente clama-
ram contra a stulta pretenção ; egual uniformidade se
repetiu nos tribunaes ; egual, na opinião dos sabedores
de direito, e até dos mais extranhos ao estudo da juris-
prudência. Ficou S. Ex. collocado na menos invejável
unidade ; foi o pur si muove do absurdo. «
Por hoje aqui me fico ; proximamente trarei outras
brilhaturas do digno jurisperito ao teo conhecimento.
Teo respeitoso amigo
^ C1NCINNA.T0,
Os inglezes e 09 x*epiil>iioaiios.
Ha três meios efificazea de convencer : o raciocínio, o
pão e o dinheiro.
A grande maioria da nação ingleza intendeu que
convém convencer os republicanos d'aquella terra, a que
não tentem mudança na forma do seo governo.
Mas também intendeu, que o raciocínio nem sempre
é eflicaz, pirque uns não podem, e outros n&o querem,
comprehender.
288 xxxvm
o dinlieiro tem o inconveniente da água na hydropi-
sia: quanto mais se desse, mais fora preciso dar. Tudo^
ahi ficava republicano, só para receber a maquia.
Resta o tercejro meio. A grande maioria da naçfio-
ingleza proclamou aos &eos patrícios republicanos, que
os hade levar a soco (se nâo for a páo). Assim está es-
cripto no Boletim do Jornal do Commércio^ de 5 do cor-
rente.
Socos em republicanos ! Como sfto ignorantes aquelles
inglezes I Un republicano ou liberal de papo amarello
tem direito de mactar, esfolar, roubar, incendiar, estu-
prar, fazer emfim o que lhe der na cabeça : mas é pri-
vilégio exclusivo : nao tem correlativo.
Otton.
Pelo dedo o gl^axite.
Em todos os tempos gustaram os homens de deixar de
jsi recordações á posteridade. Antigamente esses monu-
mentos affrontavam os séculos : eram as pyràmides do
Egypto ou o colosso de Bhodes, e mais pjoximamente
Belém ou a Batalha em Portugal, o Escurial em His-
panha, e outros por ahi adeante.
Vao-se os homens amesquinhando, e com elles aa
Buas obras. O marquez de Pombal mandou levantar a
estátua equestre de D. José I, no Terreiro do Paço, em
Lisboa ; porém mandou ao mesmo tempo fazer uma
praça condigna. Quem tem visitado aquella capital
sabe que a praça em que existe a estátua, poucas eguaes
tem na Europa*. No Rio de Janeiro mandou-se levantar
a estátua equestre de D. Pedro I, porém a praça ficoa
^1 Qual era : nenhuma providência se tomou para o seO
melnoramento.
A illustrissima câmara actual n&o quiz ficar atraz de
suas antecessoras. — « Efga-se, disseram os illustríssi-
mos, um monumento que atteste aos vindouros, que nós
passamos por esta terra. Fique memória de nósl » —
E ficou.
Lá está no ex-Largo do Paço, actual praça de
D. Pedro II, lá está... uma latrina pública, exhalanda
suavíssimos perfumes, com que sao deleitados es nari-
zes de quantos passam pela estrada.
E pelo monumento se conhece quem o mandou le-
vantar. Otton.
L Typographia e lithographia —IMPARCIAL— Rua Sete de Setembm, 146 A **
QUESTÕES DO DIA
RIO DE JANEIRO, 15 DE FEVEREIRO DE 1872.
Teode-Be em casa dos srs. E. & H. La^mmert. — AgfObtinho de Freitas Gui-
maries & Comp., 2G, rua de General Camará.— Livraria Académica, Rua de
S. Jobé n. 119- Lar^o do Paço n. C— Preço 200 reis.
O r volume, com i.erto de 400pá£icas— 3|?GC0.
OBRAS DE J. DE ALENCAR— A IRACEMA.
(Cartas a Oiixoinnato)
XII
Meo amigo :
Nao entro no argumento histórico da lenda, nem na
questão da nacionalidade do Camarão.
Do primeiro já dice quanto se me oflferecia, em
referência a Martim Soares Moreno; quanto à segunda,
dou-me por «suspeito, com o fím de me poupar uma col-
lisfto.
Explico-me : de um lado, sou natural da província
para a qual reclama o Sr. Alencar a glória do haver
dado o berço ao Camarão ; do outro, vejo no commen-
dador Mello, que ao Ceará contesta essa glória, além de
uma auctoridade, um amigo, cuja illustre ancianidade,
litter&ria como politica, desde muito me accostumei a
venerar.
Se nao tivermos attenções para esses últimos Aben-
cerrages das priscas eras da pátria — lumes serenos, que
o s&pro impiedoso da morte está amiaçando apagar-nos
a caaa instante, quem nol-as merecerá melhor? Aca^o
fechos improvisados de hontem, c^ja çhamma afc guea-
da por insólito egoísmo, nntes no.b desvaira do que nos
guia nos parcéis da história ? N^o vou para ahi.
A primeira nota que ^e nos depara, inscrcve-se sob a
«pfgraphe — Onde canta a jandaia. 'Nella agita-se a
queatao de sater d'onde veiu a palavra Ceará. Já dice
a esse respeito em outro Igar o que é escusado repetir
Do verbo rw^ í/ar, que o auctor compôs, como declara,
auctorizado pelo exemplo de Filinto Elysio, que creou
Tvídar (de ruído) tractarei quando houver de arriscar
290
tímidas considerações sobre a polícia da língua. Hoje a
meo despretencioso exame limita-se á parte própria:-
mente indígena ; e d'esta áquelles termos que devem
ao Sr. Alencar etymologia com que me nao conforma .
Principiemos.
Lê-se :
« Gard, — Ave palludal, muito conhecida pelo nome
de Guard. Penso eu que esse nome anda corrompido de
sua verdadeira oriorem que é — ij, agua — e ard arara^
arara d'agua, pela bella côr vermelha. »
A esta opponho as opiniões auctorizadas do Martios
e do Dias.
Diz o primeiro :
a Guard Contracção de Guá, variegado, eGtdraz
Guaguirà, ave multicor, porque, pequena, cobre-se de
pennas brancas, adulta de pennas pretas, e por ultimo
de incarnadas. »
Agora o Dias :
<c Guard, ave ; nasce branca, torna-se preta, e por
fim, de um incarnado vivíssimo. »
Se é certo que a ave passa por todas estas transfor-
mações, d'ella characteristicas, quem nos auçtoríxaa
despresar a etymologia que cabalmente as exprime parm
ir buscar outra, errónea, alem do mais ? De ser ella
errónea, fornece-me prova o próprio Alencar na nota
seguiu 3, para a qual çham,o a tua attençao :
<c Árd — periquito. Os indígenas como augmentativo
usavam repetir a ultima syllaba da palavra e às vezea
toda a palavra — como murémuri. Maré — frauta — munS-
muro grandt? frauta. Ardra vinha a ser pois o augmeií-
tativo de ard, e significaria a espécie maior do género.»
Se elles dobravam a syllaba, e até a palavra, quando
quoriam exprimir augLuentativo, segue se que 'neste
caso, querendo exprimir — ardra d^agua^ diriam gardra^
iáto é dobrariam ard, oiicí singella significa simplus-
mente — periquito: e nao diriam garà, como que só
teriam — periquito d*àgaa. O Sr. Alencar morre com as
suas próprias armas.
Na vau pretençSo de tudo poetizar no seo aborto de
poema (succede o contrário as mais das vezes) a cami-
nhos directos e fáceis prefere tortu jsos rodeios. Nfta foi
outro seguramente o motivo que o levou a ingeudrar a
etymologia de Pi/í^-jwara.s, quando «» nome evidentemente
verdadeiro é o de Poliguaraa ou — guerreiros do Camarfto.
Lè-se :
XXXIX 291
« Pitiguaras. — Grande nação de índios que habitava
o littoral da província e estendia-se desde o Paraahyba
até o Rio Grande do Norte. A orthographia do nome
anda mui viciada nas differentes versões, pelo que se
tornou difficil conhecer a etymologia.
a Iby significa terra; ihy — tira veiu a significar serra,
ou tçrra alta. Aos valles chamavam os indígenas iby —
tira — cua — cintura das montanhas. A desinência jara,
senhor, accrescentada, formou a palavra Ibyticuara —
que por corrupção deu Pilygudra — senhores dos valles»
Nao procede, ao nosso ver, a combinação. De Iby —
ti — cua—jàra (como fica a palavra composta, e nao Iby
— ii^-ma—ra^ como diz o escriptor ) vai grande diflfe-
rença para Pity-guara-, nada menos que absorver o /
inicial, mudar o 6 em p, supprimir a syllaba ra de tira^
mudar o c de cud em g para dur guáj supprimir a syl-
laba ja de jdra. Só bem se executam taes absorpções e
mutilações no gabinete, onde a penna corta impune e á
vontade; o povo, até mesmo o selvagem, é mais respei-
tador do que pareça das relíquias do passado.
Al accresce, que devo lembrar: a opinião do escriptor
levaria ao contrasenso. Ibitiracud^ significando — cintura
da montanha^ não podia significar valle, porque valle
nunca foi cintura de montanha.
O que é valle ? « Planície juncto, ao pé de monte, ou
entre montes » diz o lexicógrapho. Se é ao pé, como
pôde ser cinturay que dá idéa de meio de cousa ou pessoa?
Ao valle chamavam elles Ibyty-^godya ou ibyitygoaia
e não Ibyticud.
O Sr. Alencar quiz dar origem de sua lavra, e fez
esta confusão inadmissível combinação, que não traz gló-
ria, porque não fora diflBlcíl, com diccionários e folga e
sobretudo fama, preparar laes in:iêrtos. Queres tu vêr
quantas combinações arrumo 'num momento sem o mí-
nimo esforço, sem folga, sem fama e sem grandes
recurso n pliilológicos sobre a pretendida origem da pa-
lavra Pilygudra ou Potigudra "? Ouve lá.
Py — pé, /j/roàra— misturar* com água, ou — pés mo-
lhados, por frequentarem esseí selvagens os rios,
visto como (( habitavam as praias e viviam em grande
parle da pesca » segundo diz o próprio J. de Alencar
na pag. l70. Não se faça beiço á denominação de —
pis molhadosy por quanto havia os Índios Uotuys ou de
—pás virados.
292 XXXIX
Pd— rnSlo e tycuàra^ ou indios de mílos molhadas,
na mesma conformidade.
/py— primeiro, iby terra, e juára - senhor, ou —
primeiros senhores da terra, na accepçao de prioridade
de domínio, ou de supremacia do \alf>r guerreiro.
Ipy e tecuàra^ ou os que estão primeiro.
Iby -terra, íecò— poder, e vdra senhor, ou — podero-
sos senhores da terra.
Quando sejam illegltimas taes raízes, nao o serão
mais do que a raiz do Sr. Alencar. Mas aiuda
que o fossem, poderiam caber no caso, à vista daa
seguintes palavras de ura historiador de nota :
a Nao é posíivel intenderem-se os escriptores ácêrca
dos nomes próprios das hordas selvagens do Brazil, lao
variados sao e discordantes entre si. O certo é que Po-
tyguarés, Putyguaras, Pitiguarés ou Pitagoares, tao
diversos em suas escripturas, sao comtudo uma e a
mesma casta de indios, que h.ihitavam desde Pernam-
buco até o Piauhy, e ainda além, como querem al-
guns Só por isto se pôde ver quão estúpida
nao é a pretençao do tal que queria subraetter
todos estes nomes a uma escriptura sua, inventando
com este fim uma orthographia selvagem : tao certo é
que ha no mundo gente para tudo. »
Lê-se :
« Boicininga — ó a cobra cascavel: de boia^ cobra, e cv-
ningay chocalho. '>
Referindo-me eu 'noutra occasi3o e 'noutro logar a
esta nota da Iracema, tive de ajunctar a obs<^rvaçao se-
guinte ; « Entretanto áiA G. Dias que o vocábulo boia^
na composição, vrecede o adjectivo, e pospõi-se ao subs-
tantivo ; e dá exemplo: ardra—boyn, cobra de ar&ra,
bóia ' pinimay cobra pintada. Ora, por esta regra o
termo cinmga ixTio po4e significar chocalho, e deve ser
adjectivo para que sq posponha à hoia. Ignoro o termo
cininga etc.
Nao tinha eu então o Glossário, onde agora Sti me
offerecem elementrs para decifrar o enigma.
« Cobra Hnnidó^í^a » a chama o Glossário y do 6o ia e
ocinimy tinnir.
Tivo, do mais, occasiao de ver que no tupy— austral
(d*on(1o vem ocinim ou antes ôsinim) o termo boiciínm
significa-assobiar. D'onde, pois, se originou em defini-
tiva a exp-es.-:ao : do cascavel ou do silvo da cobra ?
XXXIX 293
9
Devo afinal declarar que se confirma a regra estabe-
lecida por G. Dias ; cininga pospoi-se a òoya, porque,
longe de significar chocalho, como erradamente diz o
Sr. Alencar, isto é longe de ser substantivo, é adjectivo
com a accepçao de cousa, que tinne.
Lê-se :
a Poíyuara — comedor de camarão de poty — e uàra.
Nome que por desprezo davam os ennemigos aos piti-
guàras, que habitavam as praias e viviam em grande
parte da pesca.
c< Este nome dao alguns escriptores aos pityguàras,
porque os receberam de seos ennemigos. »
O Sr. Alencar foi sem dúvida levado a conceber taes
idéas, depois de ter lido no Glossário (pag. 523) o
seguinte :
« Potiguares, Potijaras^ Potyuaras ^laáios da gente
de Tupi, que comem poti. »
Fosse então lógico, e nao restringisse ao nome Poty-
uaras a qualidade que indistinctamente se attribúe nao
só a este, como também aos dous primeiros termos. Mas
discutamos a etymologia.
Guará, yara ou iara^jara ou uara jamais teve a signi-
ficação de comedor, mas sim a de guerreiro, ou senhor,
ou habitante : Poliguara — guerreiro de Poti ; Tabajara
ou Tabayara ou Tabaiara, senhor da aldeia ; Parduara^
habitante do Pará, e Capinara habitante do Capim. ( Vid.
o Diccionário Tupy).
Mas S3 quer dizer que a palavra se compOe de Poiy, o
verbo u-comer, e a partícula pospositiva ara, ainda assim
está em erro, porque a esta partícula sempre .se juncta
um ç : Capiçara, o que penteia actualmente. /'Vid. o
Dicciondrio).
Convém ainda notar que, no final dos veibos, ella
sempre indica a pcs>oa que na actualidade exercita a sua
significação, como no exemplo dado.
Asáim, pois, para que procedesse a errónea intelli-
gência dada pelo Sr. Alencar de — comedore.? de camarão
— áquelle nome, deveria elle ser escripto—Po/yi/para; e
fora além d*isso mister que os dictos índios levassem toda
sua vida a comer camarão, porqur, como já se dice, a
partícula indica exercício actual da pessoa a que se dá o
no.ne. Ora isto é o cúmulo do absurao.
Mas, ainda quando, com postergação flagrante dos
preceitos da língua, se applicasse a denominação aos
guerreiros do chefe Poty, d'onde, ou de quem houve o
294 XXXIX
Sr. Alencar a notícia de que tal denominação lhes era
applicada pelos inimigos em mostra de desprezo ?
O que se presume com toda razão é que o fariam com o
fim simplesmente decharactcrizal-os, como era de costu-
me entre elles.
Tao plausiveis nos parece serem taes conjecturas que
o próprio chefe da tribu nao se desdourava de çhamar-se
— o Camarão.
Lê-se :
« Senhor do caminho — assim chamavam os indígenas
ao guia de py — caminho, e gvara senhor. »
Abro o diccionário do idioma vulg-ar — tupy, e vejo
que ao caminho chamavam— p/?.
No dialecto dos índios Apiacàs çhamavam-n-o pea.
No dialecto dos Cayowàs pe.
No dos Om águas o mesmo.
No da língua geral por G. Dias, idem.
No diccionàrio da Lingua Tupypelo Martins, idem.
Porque, pois, ha de o Sr. Alencar dizer pyguara e nao
peguara? O terem-n-o jà outros dicto antes de si nao é
razão para o nao acceitar, e menos para attribuir ao vo-
cábulo significação que nao tem.
-Py significa-pé, e nao — caminho.
Lê-se :
« Gíboia. Cobra conhecida: de gi machado, e bóia cobra.
O nome foi tirado da maneira porque a serpente lança o
bote, similhante ao golpe do machado; pôde traduzir-se
bem, cobra de arremesso. »
Parece-me forçada esta etymologia.
O arremesso ou bote, além de ser commum a muitas
castas de cobras, nao é a qualidade que mais distingue
o individuo emquesta.. Seo principal characterístico é
inlaçar a vlctima; esta especialidade nao podia escapar
aos índios para que deixassem de deduzir d'ella a cor-
respondente expressão, c
Duas combinações offereco em substituição.
Primeira: tj— água, e bo2/a ou— cobra d'água, por ser
insigne nadadora. (Ver Hist. Nat. Pop. por Austet.)
Segunda: yefcj/ — affogar, apertar, e boya, ou cobra que
aperta, que affoga. A corrupção poderia haver dado, sem
ser admiração, jeboia, como alguns escrevem, ou mesmo
jyboia.
Esta se me affigura d^entre todas a mais exacta ety-
mologia. ^
295
Lê-se :
« Sucury — A serpente gigante que habita nos grandes
lios e ingole um boi. De Smi^ animal, e cury ou cnrUy
roncador. Animal roncador, porque de feito o ronco da
sncury é medonho. »
Pois quem diz — animal roncador — dá idéa da sucury?
Acho manifestamente errónea, nao só no heniido
como nos termos. Curu e menos airy é palavra que nílo
conheço na liugua geral.
Curvrúca^ sim; é o verbo neutro — rosnar, rugir,
roncar.
Nao virá melhor de çoo, animal, acú de açú grande,
^ Ay água, ou grande animal ou monstro do rio ou das
águas ? E' curioso quanto acerca d*este ophid^o vem
nas scenas de viagem do tenente A. de Taun^y, pag. 96.
Eis aqui, para concluir por agora, os nomes das di-
versas localidades que o Sr. Alencar diz serem de cunho
original, e que no emtanto se incontram no Glossário, e
alguns também no Ensaio Estatístico da Província do
Ceard^ por Pomneo.
« Ipú. — Chamam aiiida h(»je no Ceará certa quali-
dade de terra muito fértil, que forma grandes coroas ou
ilhas no meio dos taboleiros e sertões, e ô de preferência
procurada para a cultura. D'ahi se deriva o nome d'e.>sa
comarca da província. » { Iracema^ pag. 164 )
« Estes terrenos çhamam-se vulgarmente Ypús, e sno
d'um barro preto, massapé, que tem muito húmus ve-
getal, ou decomposirilo veg^Hal e animal, que as águas
aicarretnm das serras, e por i^so muito substancioso. E'
'nestes F/>í/.v ou valles, (jue >e fazem as maiores planta-
ções de cannas » [Ens. EHal. vol. i, pag, 140)
a Bífpa^fa, Ipaiie corr. e //.///aie, tudo água ; d'onde os
hrazileirns usam da vo-^s pflí/c5 para qualqut r água es-
tarque ou alagadiça, n { Gloss. fag 502 )
a Aracaty, — SigniSca este nome bom tempo : de ara e
caíú. Os selvagens do sertão assim çliamavam as brisas
do mar que soprauj regularmente ao ca\r da tarde, e
cnrrecdo pelo valle do Jaguaribe se derramam pelo in-
terior e refrigeram da calma abrazadora do verão. D'ahi
resultou rh?»Tnar se Árnraty o lojrnr d'nnflp vinha a
monçSlo. Aintiii h<»je no icó o nome é conservado á brisa
da tarde, que sopra do mar. » ( Irac. pag. 171)
€ Aracaty. — Ara tempo, catú bom; vento do Norte^
^tc. » ( Glos. pag. 49 1 )
.Jlli.. _ 1L^^W"1"1P*^
296 XXXIX
« No sertão, principalmente no valle do Jag'usribe9
reina um vento forte em tempo de sêcca que se çhams
— Aracaiy - vi apparece ao cair da noite quasi de repente.
Este vento é uma providência para os habitantes do paíz,
porque vai refrescar a atmosphera elevada a um alto
grau de calor etc. » ( Ens. Estat. pag. 123 vol. 1. )
« Meruóca, — Demerw, mosca, e oca, casa. Serra juncta
de Sobral, fértil em mantimentos. »( Irac. pag. 180 )
a Meruóca ( Ceará, Serra. ) — merui — oca^ casa de
moscas. » [Glos. pag. 515. )
« Uruburetama — pátria ou ninlio de urubus: terra
bastante aUa. » ( Irac. pag. 180 )
« Uruburetama, ( Ceará, Serra ) — urubu retè taba —
casa de muitos urubâs. » ( Gloss. pag. 532 )
« As saborosas Irahiras. — E' o rio Trahiry trinta lé-
guas ao norte da capital. De trahíriy peixe e y, rio. Hoje
é povoação e districto de paz. » [Irac. pag. 180.)
(( Trahiri (Ceará, Povoação)— taraira^hy ^rio das
Taraíras » [Gloss. pag. 530.)
« Pirapora — Ri) do "Mirnníru ipe, notável pela fres-
cura de suas áí>'ua.s e oxcellências dos banhos chamados
de Pirapjra, iiologar das caçho^dras. Provêm o nome de
P/ra peixe, /n^re salto: salto do peixe. » [Irac. pag. 183.)
(( Pira;)ora 'i^Miiias, etc.) ^/rirapore salto de peixe oa
porá habUante — Lo^ar onde os peixes saltam ou habi-
tam » [G'os. pa^^. 5'i2.)
(( Púcaldha à^ paca e tuba, leito ou couto das pacas.
Rííceiíle, :nas imi)ort-.:ite ])ovoaí;jLu em um bello valle
da .s M*ra da Ai-aiinha. » {Iiac. ]).ig. 18i,)
« Paca-uba —[>òi'g[Oi, Alúei-i) paca ty ha — L»gar do
aniniril /'-./crt » [(jlos. pag. -317.)
Vem ua iraceiua uma nota, que nâo quero deixar
passir sem re;jaro.
(( Giiayab'i- [iv/^ o au?cor.j — D » goaia, valle, y, àgua^
jur, vir, /;e, ;)i)r onde ; por onde vem as águas do valle.
Rio, que nns^- ; ua Aiatanlia, ele. »
O. ide .foi í|;ie o Sr. A.Ieii.:ai' achou joaia sigaífícando
valle "? Vallí é ihyUgoúa. j*or si vSÓ, g )aia r-erve de desi-
nência, qie en:rit na co in)osiçílo da palavra ; sem ilfli
non'aíev-^ n n-.Tençlo d<' vnl.t».
A quví veiu ciáií ./a/' / l^hvh favorecera deuomiuaç3o
poética Já se vè) que lhe approuve dar ao io — pur onde
vem as águis do valle? Que prejuízo!
JXXXIX 297
Porque nSlo hade o Sr. Alencar perder o mâo costu-
me de improvizar, com mostras e tom de sapiência? Isto
nao accredita nem eleva.
A etymologia exacta é a qiie vem no Glossário, que o
Sr. Alencar nao teve razão de desprezar, 'neste, quando
tanto se tem d'elle servido em outros muitos vocábulos.
Prosigamos.
« Jacarecunga — Morro de areia na praia do Ceará,
afamado pela fonte de água puríssima. Vem o nome de
Jacaré, crocodilo e acanga cabeça » [Irac. pag. 187.)
« Jacaracanga (Bahia, Povoação) — Jacaré crocodilo,
acanga cabeça. C.beça de jacaré. » {Glos. pag. 507.)
« Bahia dos papagaios — E' a bahia da Jericoacura, de
jeruj papagaio, ena, várzea, coara, buraco ou seio ; in-
seada da várzea dos papagaios. E' um dos bons portos
do Ceará. » [Irac. pag 188. j
«c Jericoacara (Ceará : Enseada, Morro, Povoação) —
jerú, ajerií ave, papagaio, gúa variada, coara buraco.
Morada de variegados papagaios. » [Glos. pag. 510.J
Onde foi que o' Sr. Alencar achou cua significando
várzea ? Significa cintura, e portanto nao cabe aqui ; o
que cabe é guà como diz Martins. Para que improviza?
Nao posso mais. Estou exhausto.
A princípio nao me pareceu haver tanto que colher,
lugauei-me. Podes crer que a mina é inexgotavel.
Quanto mais me detenho 'nestes ligeiros estudos, mais
o illustre auctor desce no meo conceito.
Má hora em que me resolvi a emprehendel-os. Têem-
se-me ido tantas illusOes... !
Teo de veras
Sempronio.
Undécima Oar*ta
DE CINCINNATO A SEMPRONIO.
Rio, 3 de Fevereiro, 1872.
Preclaro amigo.
Começo, contando-te uma história.
Como dos perennes títulos de glória do Sr. Alencar
ainda faltava um para expor á admiraçflo do público —
o de seos triíimphos scênicos — commetti essa tarefa a
um illustrado amigo, competentíssimo na matéria, a
quem roguei que imparcialmente emitti^se a sua opi*
niao sobre algum drama do infatigável escriptor.
298 XXXI X
Já se sabe por morar longe, ignorava elle que o arco
de S. Ex. tivesse também essa chorda (vergonhosa igno-
rância ; áquelle arco que chorda faltará?). Pediu-me
lhe mandasse uma das taes cousas ; apressei-me em
satisfazel-o, remettendo-lhe As azas de um anjo. Cái-me
a cara no çhao : quando eu esperava uma anályse detida,
um pnnegyrico, uma viagem extática, recebo uma carta,
d'onde transcrevo os seguintes trechos litteralmente:
— «Li. Esperava muito, porem tanto nao. Aquillo 6
menos que coUegial. Como se hade intrar com obra de
taes dimensões, tao semsabor que se nao presta á pilhéria,
6 tao nulla que o analysal-a é dar-lhe corpo e força ?
Confesso que nao scei. Trascrever trechos seria a melhor
anályse ; mas começar a transcrever, era copiar a peça
toda. Aquillo é abaixo de toda a critica.»
Em carta posterior, accrescenta : — « E' uma produc-
çao inaccreditavel. Eu li as primeiras duas scenas e nao
pude continuar. Passados dias, vencendo a repugmlncia^
como quem tem de tomar um cálix de óleo de rícino^
recomecei, e cheio de tédio, levei ao cabo tal leitura.
Nao acho por onde se pegue em similhante escripto :
tudo alli é tao nojoso, tao ascoroso, tao puerii, tao
néscio e tao immoral, que o peor serviço que ao auctor
se pôde fazer é propagar tal obra.
« Aquellas figuras sao vulgaríssimas, e nada as accen-
tua vigorosamente. As inverosimilhanças puUulam a
cada phrase. O meio em que se arrastam aquelles im-
possiveis actos é ignóbil. Aquelles typos nao commo-
vem, nao instruem, nao moralizam, nao divertem;
enojam. Em ponctos de estylo e linguagem, isso então
^nem toquemos ; nao se imaj^ina, sem ter lido.
« 'Numa palavra tudo que d'aquillo se dicesse em
lettra redonda e:*a uma superfluidade : a própria expro-
braçao, precedida de anályses d'aquelle intreçho t
d'aqnellas personagens, ^ d*aquelle dizer, seria hrnra
monumental a um escripto, para que já a gargalhada é
favor. Um homem está delinido, quando chama azas
de anjo a umas fitas que uma tola deixa cair da ca-
beça, etc, etc, etc.»
Eu nem me atrevo a tnanscrever o mais que por alli
vai, nao senhor. Que os anjos tenham azas, ou sejam
desazados, sao espiritei relestes com que se nao brinca ;
e portanto continuemos cora o nosso Til.
Acabou-se o capitulo 1', ficando ainda por fazer duas
dúzias de refiexOes ; mas como se eu continuasse com o
XXXIX 299
mesmo méthodo, inçhería 50 volumes só com esta aná-
lyse, agora toca por ahi adeante segando e respiganda
aqui e acolá. Vamos a isto :
O titulo do 2** cap. é — Na tronqueira — Paremos já
'neste êrro. Ou seja porque ignore o valor dos vocábulos,
ou porque intenda que desde que uma cusinheira pro-
fere um termo, entra este logo no thesouro da língua,^
tem o Sr. Alencar por costume semiar nas suas páginas
os termos mais vulgares, os vocábulos mais corruptos,
o que é altamente censurável. Que taes corruptelas figu-
rem no diálogo de analphabetos, tolera-se, uma vez que
d'ellas nao esteja a cada passo destoando o restante dizer;
mas que o auctor, próprio Marte^ empregue essas desa-
certadas palavras,
non homines, non di, non concessere columnce.
N'estas circumstâncias está o termo tronqueira^ que sem
dúvida é proferido, mas por lábios rudes. A palavra por-
tugueza é tranqueira^ porque se tranca com uma tranca.
— Leio que se deu uma « lucta, que era procella a
subverter o pélago insondável da consciência. » Como se
faz esta habilidade ? Que uma procella turve e revolva
o mar, concebe-se ; mas que o subverta ! ha de lhe dar
o váo pela barba.
— « Custava-lhe a arrancar do çhao a palma do pé »
Palma do pó ! Isto agora nem a tal cusinheira o diria,
porque este êrro é tao crasso, que nem nas ínfimas clas-
ses se commette. Nunca, desde que o portuguez foi
idioma, se dice senão palma da mão, planta do pé ; dizer
palma do pé valh) tanto como dizer cotovelo do nariz. O
sábio 6r. conselheiro, que tao bem conhece e cita o latim,
ganharia a dous carrilhos era ler nos Prov, de Vai. Má-
ximo : Supra plantam ascendere^ d'onde colligiria 1' que
lá 03 latinos chamavam planta á tal palma do pé, 2° que
usavam esta phrase para insinuar que nSo deve um ho-
mem guindar-se acima das suas habilitações, nem falar
do que não sabe.
E' curiosa a infelicidade do docto escriptor : está sem-
pre a caçar nas terras das sciôncias, e .^empre a falhar o
alvo. E' por exemplo cômo a phrase que tu citaste na
tua X í*firta : « biijo que viçava entre risos, como o
fructo na corolla da flor.» Comparar um fructo com um
beijo, é fino ; m^is o superlativo são os fructos viçando
nas ror^llas das flores I
O illustrado naturalista fez bem em aos certificar de
que era das corollas das flores que elle nos falava, para
"■-»-- JB "1 ■«. 1-IC_ M' • • . LJ
300 XXXIX
nSo ficarmos em dúvida se seria das coroUas das. ..dos...
das nao sei que, pois de outras nao conheço. Mas o
curioso é a applicaçao do seo poder pessoal até ás obras
da natureza. Frudos viçando em coroUas I E' assim
mesmo.
Até agora intendia-se que a coroUa era um cortinado
dethàlamo nupcial (frequentemente gracioso, brilhante
€ perfumado) destinado a cercar e proteger os orgaos
da flor, estames e pistillo ,• que lá no fundo do pistillo é
que ficava o ovário ; que doeste nascia o fructo ; que
finalmente quando o fructo chegava a pompear, era uma
vez corolla ; já nao havia.
De ora avante, ficam intimados os fructos para viça-
rem nas coroUas, assim como os pés para terem palmas.
Profundidades Aíencariuas de sciências botânicas e ana-
tómicas.
— (( Admiração pela coragem da companheira. » Esta
incorrecção apparece a cada passo. E' admiração de;
nao por. Seria interminável se fosse reproduzir todos
os por incorrectos que puUulam 'nesta obra, trazidos
da Gállia em linha recta.
— « Sentia elle uma íincia, qual tem-na (qual a íem,
ou a sente) o artista, olhando o tÓ7*o de mármore d'onde
seo cinzel vai crear uma estátua. Mas essa, que lhe vive
e palpita 'nalma, ainda o mármore nao a recebeu, e quem
sabe se poderá eíle nunca moldal-a como a desenhou a
imaginação.»
Que imaginação esta, tao de foz em fora !
Começa pelo toro de mármore ; nao conheço : brelho,
canto, seixo, matacão, e outras variantes, sim; mas toro
para mármore, suspeito ser outra novidade.
<( Mas essa ( mulher ) que lhe palpita na alma^ ainda
o mármore a nao recebeu. » Como vai esta comparação?
que significa este masl Poíh o toro, d'onde hade ser
creada a estátua, já, efh sua qualidade de toro, a tinha
recebido ?
Também aquelle moldar, se se refere ao mármore,
deixa me muita dúvida: é verbo menos de esculptor que
de ourives ou fundidor. Molda-se, vasando metal derre-
tido em molde feito de matéria appropriada. Também
se modela^ fazendo em chumbo, cera, barro, ou análoga
substância, uma imagem que depois se imite em poncto
grande; porem moldar uma esrátua de mármore, para
significar o acto de cini^elar (de a jplicar o maço e o
oiuzel) creio nao ser o termo da estatuária.
XXXIX 301
Vamos por hi deante aos pulos, como a cabrita.
— « Alli os infelizes se ficav-dm insepultos e devo-
rados pelos urubus » Como faziam aquelles infelizes
similhante infelicidade ? Se elles eram devorados pelos
urubus, ndo ficavam alli insepultos ; se ficavam alli
insepultos, é que os urubus os nao devoravam.
— Aqui me cai agora, nSto debaixo do escalpello,mas
do mais vivo sentimento d^ admiração, a descripçao da
metamorphose da phisiognomia do João Fera. Nao per-
camos uma virgula; é tau incrivel como inimitável :
— « O perfil adunco e chanfrado (!) que revestia a
belleza (!) feroz e sinistra (!) do abutre, embotou a ris-
pidez (!) saturando-se (!) de uma bruteza alvar (I).
latumeceram-se as faces, pouco antes crispadas pela
cerração habitual das maxillas (I), e tornou a ter um
tom fouveiro (I), indicio da ebulição do sangue a fer-
ver-lhe em bolhas (l) no coração.
<c As fulvas (!) pupillas que se incovavam pelas têin-
fforas (!) como tigres nas furnas, saltaram das órbitas
I), dilatadas (!) por um fluido espesso que tinha a phos-
pliorescencia felina (!). De ordinário avincava-lhe a
fronte uma ruga saliente (!) que depois de fender-lhe
o sobr'ôlho (!) partia-se em duas plicas profundas (!)
como gilvazes a lho cortarem o rosto (l). A temulência
da paixão, injectando os músculos (/).... » &
Safa ! Nao posso mais. Olha por ahi abaixo todos
esses poucos de admiração. A tua intelligência e pers-
picácia instantaneamente fará justiça a todos e cada
um d'esses dizeres, antípodas ou du gosto, ou da sciên-
cia, ou da linguagem, ou do senso commum.
Pois ha ahi uma phraso que sequer mereça anályse ?
Injuriaria eu a tua intelligiJncia, especificando os hor-
rores de locução d'es.=5as espaniosas linhas, que até estão
inspirando coiipaixao do .•'co auctor, por transluzir
d'ellas que ficou muito satisfeho de si, ao ^rnçal-asl
Tudo isto ó novidade, meo amigo, 6 novidade; e esta
palavra justificai á a quem descrever o mar como incar-
nado, e o círculo como bicudo. Quando porém uma vez
o génio se incarapitou no zenith da omnisciência e da
irresponsabilidade, deixam-.^e cair d'estas e nao se
a.iÍTaxn mai^garidas a porcoí^; n*Io se dAo satisfacçoes.
Dizem que, tendo Euripides introduzido 'numa tra-
gédia certa sentença, o povo a quem elln desagradara
iutrcu a exigir em altos brados, que a supprimisso im-
medíatamente ; o poeta que estava 'num dos cúneos,
302 SXXIX
arremessou-.- 'í ao proscénio, e de lá, com voz stento-
riaaa, exclamou'- — Ku com[Hjiiho as miuhas tragèdius
para os insinar a vobcês, e nao para vobcês me iosi-
iiarem a inim ! n E o mais é que o applaudiratn. O Sr.
Alencar já é Ctateaubriaml; poiy eutao também o ser
Eurípidas [até uo tal vobcês, do gregoj lhe fica a mactar.
Tout fi toi
ClNClNNATO.
;Meii(lloltlade estx'angeii^a compara ti va-
Temos á vista ura mapp;i da polícia de Buenos- Ayres,
em cujos descarnados algm Íamos achámos ioexcedivei
eloquência. E' sabido que !i tendência dos imraigTiintes
é especialmente de ttaliauns para as repúblicas platinas,
como o é de porLng;uezes para o Brazll. Não admira pois
qua 'naquellas re^ifies seja, ua respectiva proporçHo,
mais avultado o coutiiigeute dos italianos em todas as re-
laçOes socÍaes;mas por maior que essa desigualdade seja,
nunca poderíamos nccreditar, se documeotos ofliciaes
nol-o nao revelassem — nem que tao enorme fosse a men-
dicidade dos e.strangeiros na cidade de Buenos Ayres —
nem sobretudo que seja tao desproporcionada a dos ita-
liauos. Veja-se este sudário :
Mendigos argeatin'3s 109
» hispaahóes ,...,. 72
M iuglezes ....... 11
» francezes 29
a " italianos 682 f
» de várias nacionalidades . 101
lOlS
Em quanto no Brazil ^mendicidade é rara, nas re~
públicas vizintias vê-se quantos hóspedes que haviam
sonhadj ir ahi achar Eldorados, só incontram a miséria.
Em quanlo uo Brazil os naiuraes immigraates, portu-
guezes, vindos em muito mais larga escala que os ita-
lianos para o Rio da Prat:i, acham immediatameiite
occupaçio e trabalho, os que ae transportam para aquel-
las repúblicas vêem ja tarde as suas illusOes desvane-
cidas
Aquelles algarismos deveriam eer reproduzidos em
todas as folhas do Império e da Europa. Constituem ellea
em I
lea I
XXXIX 303
a synthese comparativa das instituições e da riqueza dos
doas paizes ; e coavencem da preferência que os emi-
grantes europêos deveriam dar ás plagas brazileiras.
Vlx^tizs post XLumxnios
Para resolver as nossas questões de dinheiro, algumas
bem insignificantes, susteritârnos numeroso corpo de ma-
gistrados, de quem requeremos avultadas provas,a quem
impomos grave responsabilidade, a quem pagámos bons
vencimentos, e dos quaes exigimos severo estudo da
causa.
Para resolver nossas questões acerca da nossa liber-
dade, honra e vida, colligimos ahi uma porção de no-
mes, cuja habilitação consiste em ter duzentos mil reis
de renda(metade do que realiza qualquer preto do ganho);
lançâmol-os em uma urna : e d'alli tiramos certo número
& sorte, e sejam ricos ou pobres, sábios ou ignorantes,
velhos ou moços, solteiros ou casados, probos ou velha-
cos, reunímol-os em uma sala; e nem lhes permittindo
que ao menos se acconselhem, obrigãmol-os a decidir; e
a sua decis&o diremos que é a verdade — veredictum.
Da decisão dos magistrados ha recurso ; da decisão do
jury não o ha I
Consequência lógica:
Os jurados são mais aptos para julgar que os desem-
bargadores, ou o dinheiro vale mais que liberdade,
honra e vida.
E ha quem se admire de ver dar tanta consideração
ao di jheiro, e ter em tão pequena conta a virtude I
Otton.
IV(aiox*ias
Pretende-se que o governo sejac]^ maiorias : concordo.
Mas porqi^í ? Porque a maioria tem força para se fazer
obedecer. Quem não tem força nlo é obedecido; quem não
é obedecido, não governa. Ém uma disputa entre dous
pretendentes, o vencido é rebelde;porque não teve torça :
o vencedor é heróe, porque leve o que faltou ao seo con-
trário.
Organizem a sociedade como quizerem : só será go-
verno quem do seo lado tiver a força.
Otton.
304 XXXIX
Oj?d.eiis irellglosas
Na Itália, Hiápanlm, e Portugal deu-se cabo das or-
dens religiosas, tirando os bens aoá religiosos : no Bra-
zil pretende-se chegar ao mesmo resultado, tirando os
religiosos aos bens.
E ainda dizem que no Brazil procurámos imitar; qual l
Originaes como nós, ninguém.
Otton.
I-ill>oi?d.ad.e e Indepondêncla cia
Egrej a.
Dia feliz ! a Egreja ha de ser livre e independente I
Quer dizer : o Thesouro nao pagar/v mais côngruas, em-
b'ora continue a receber os direitos de imj:oriaçao, que
substituíram os dízimos, que eram pagos pelos fieis para
sustentação do culto.
a»
E' preciso confessar que ha muita palavra bonita, para
illudir papalvos !
Otton.
Typographia e lithograibia —IMPARCIAL— Buu Sete de Setembro, 146 A
QUESTÕES DO DIA
BIO DE JANEIRO, 20 DE FEVEREIRO DE 18TO.
TcBd«-8e em casa dou srs. E. & H. LaBinmert.—A^roRtinho de Freitas Oni-
aMTies (k Comp., 36, rua de Oeneral Camará.— Livraria Académica, Rvado
S. Joaé n. 119- Largo do Paeo n. C— Preço SOO reis.
O r Tolome, com perto de 400 páginas—SflOOO.
Xieforaia Jucllclax*la.
I.
{Considerações gerties.)
Pmra o discreto exame de uma lei, nao costumam os
espiritou rectos tomar como base principal a maior ou
menor força concedida ao principio da auctoridade^ ou
ao demento popular. O que cumpre, antes de tudo^ é
investigar com escrúpulo a opportunidade dos pre-
ceitos legislativos, e o accôrdo em que deverfto estar
com as condições peculiares do paiz.
O que valem as leis sem bons costuma ? Axioma trivial,
one nem por isto tem sido devidamente attendido, em
Ineoria ou na pr&tíca, por algumas das nossas intelli-
gdncías superiores, deslumbradas — talvez — pela auréola
da popularídade,ou por um falso prisma na appreciaç&o
das circumstâncias.
*Neste momento presumimos somente a bôa fé das
opiniões, sem contarmos com o espirito de novidade^
capricho, ftncia de renome, cubica do mando, e outros
motivos que podem ser movei de especuladores, mais ou
menos disfarçados.
Pessoas que parecem considerar a sociedade brazi*
laira no caso de acclimar desde logo em seo seio as idéas
mais adeantadas^ quanto à liberdade e franquezas^ argu-
mentam com a bôa índole do povo. Todos nós folgámos
de reconhecer que esta feliz predisposição existe em
gr&n subido : mas ainda ha muito que fazer para corro-
boral-a e desinvolvâl-a pela educaç&o intellectual, mo-
raU religiosa e politica.
Sem este preparo indispensável pôde acontecer que
certas instituições precoces produzam pernicioso effeito
jBÒhre essa mesma índole, tfto justamente louvada.
306 XL
ííonaidere-se iim Impérja tW .il.7i>0,(Kll' lia^itíiiites (')
etó^ai^dis 'Dbtjà irea quê; iíd.iépMhij-íi^^v/^jÍív Amé-
rica do Sul e contòm prDYiiiciaw luaiorçá i[ne alguns
Estados da Europa ;(dfc4íizaoiííC d'e3áa exttíusao umas
2.311.974 raillias de superfície, pada a Jua da civilizaçJU»
uao penptróii ; atteiida-se á 'éxístè'i!icíà de 1.'40D.000 ea-
ft«weae-59O;000 indígenas Enraiiie.'; tioí bosqups ;ac-
CcesceQte-se, .finalmente, a esUis ligoirns traços uma.
edncaçxo ainda pouco efficaz, qiiandu nriti dnacuiada, a
deficiência da prédica na parócliia, a inJoIPncià que
alimenta os víciosj a e^cas^ez da fòrçH públtc» e de
outros meios. para a pravoíiçiloe naftreesio dos delictoa.
Tudo isto ponderado, imagíne-se mu systema iie legisla^
çao que tenha por fim aMrgar Ímpriide:iteiaenl« a fti-
lada esphera das franqueias fopitlaí'es, e debilitar a acç8»
do poder púhlico, que jii nao sendo de si mui vig^oroso,
-pela insufficifinn.ia dos clPmen-tos materiaôs: qliasi que
'tira fí 860 maior presti>;Ío de' cerlo tlpparaío do attribni-
-çOtíS, alem do acatamento que òs fuuccionàrios possam
merucer porseós predicados pessbaes.
UtOA veE iufraquecido o priórlpio da' aucloridadb, &
consequência será o afrouxalraeiíto progressivo dos laços
de obediência e respeito, a relactflueia. a animação J»».
o crime.
Assim Scarà desnaturado o tinimo tílo dócil 'd'este
excelíentfl povo. E se p,irventurB surg'Íro intf^tilo de
reapçao fora da lei, como remídio ao mal qii^ se déixotz
de prevenir, importará este facui consequências graTOS.
além do fúio contraste entre a tbeuria e prática.
A este respeito nos occorre, a par de outros factos co-
nhecidoíi. o que se deu 'nnma das mais impurtanies pn>-
■'.Incias do Império. O respeito devido ao túmulo, e o
despjo de evitar 'neste escrípto o mais leve resaíbo de
invectiva pessoal obriga-nos a omittir o nome do pi^o-
goiíisia. g
Dominava o partido liberal. As reuniões piiblicag, as
putseiatas com vivna est^epilo^■os, tudo emfim concurria
para lisonjear e (ixcitar as liliimas camadas da populs-
^o. 'Em uma noite de festividade, o entliusiasmo coQ-
verteu-íie em delírio ultra-patriótico,e passou âs olfenss»
pbysica^, involvendo também os estrangeiros, O próprio
chefia de policia coiifessára-se impotente para restabole-
j, [•) Eteaienlos EsíatlslUos do Dr Ferreira Soares,
?L . 307
cer a. ordefn e se&^urafiça individual. Em ífto triste ^mer-
j^ôiiciá. ò allatlidp'p^oto»bnis^, aeai.'iiçliar-so,^'ç,v>;3tido
■■"díi.cíiàfiiclei* "dé'aHctonlà(lei arremessou-de acavállo e
' 'dé' vergasta' óiii'pwijhòj'.solJ'ro' a. miiltidaòe..., hqteu-a,
dispersando á procissOpaTiártljica.
',,', "Predía-se o tacto, nátiirfilméiitQ á.ura commentàrio
edificante. Õ d'eiiiocráta'que pouco arités advogava com
tanta vel, ■■.■■■. 'i i ■ 'ij^íiliii- ]i ; /-.i-'- ;,(ju'e cíaliava o
'^['&m<ir-^rL ■•■ ■ ; i huii . • ; -i[i.líj-.seapar'd'elle
'^é'bòijaúc] ■ . ■ iao'ti,.:"i .:■, ■ ■u-i {jthinlio: que
''itínóciíla . (ia''fj' ., ■ . ;. ■ i:i^ '.V ^ '>■■■■-,
','^e cjut: ti l'a iizi - , ,.■■■-■ l"
" ",çJieÇár'i os fru ■ ~"'
diividou.ciijpreí^ar um intíii; ■ .. j .;'.-i .-i,
porque parEicipava dá respc ■/t".
Aióân' issim, o bafejo à.i paixces populares deixou
feúuaiia gérmen para uma conspiração posterior, e mais
tarde uma sublevação ioeanguentada, que teve por chefe
principal o mesmo distincto cidadão — tao empenhado
outr'orti'ém déVellar o motim dá'p'ráça publica'.
' Se recordfimo3'tae3 áaccessos, nSO é coiri a mttligna
intenção d'e revolverão passado pbr espirito partidário.
Nosso fito é demonstrar, 'Cdm um exemplo d'entre tan-
tos, o grave írro do polític? P(i legislador que estimula
aspiraç^íes de certa ordem, aem attender ao estado do
■pírtzí * ' -1
■' Podem algrtns apóitolos oao drerqneas sequâhcias de
''Sua doctrÍn;i fxcedam Certos termos. ..' Mis é que,
■ aherto o dltjiie, {"lleí próprios à3.o incapa/'''^ de conter a
impetiiósídadc da torrente, que tam,bè*ii os arrasta. . .
como a história noa insiua em liccflt.',-! Li^vcraa, tflo mal
appfOTeitadas. . . ■
Convencidos d'esta verdade, rarossfio úslinm;ms leaes
qufl, percorrendo rrrto estádio, nílc sinwm moder.ir-sc a
sOffregft exaltação de suas teiiifinfia-; ref.trmialas.
Alguns nem precisam attingir a edad'.: provocia: desil-
■ ludcm-so ao clnWo de qualquer expiTJâm-ia profícua.
Ha IiomPii."? dotados de tao nobr,í fran.jufiza que nem
sophismam a retractaçao. Outros recuam lentamente, o
chegam d tranaformaV-se de todo, se a mono os nao
' eurprendo antes do insejo para uma deceii',p e completa
' transição.
Poucos slío o3 que morrem aferrados aonlcorno de suas
"utopias. Se algum se mostra irapenitíule, vSde que o
308 XL
domina a coheréncia ão capriçHo, o orgulho que nfto
petmitte confessar o erro, ou grande ambiç&o que vai ao
túmulo agarrada & esperança de triumpho proveitoso ou
da aura popular de uma glória pósthuma.
Da propagação de idéas perigosas, ou exaggeradas,
também se usa no propósito de obter concessões, incu-
tindo medo.
Mas elevada o propagandista â cúpola do podér,e ddmos
que elle se nOo revele um nerverso condemnado a cair
sob o peso de suas iniquidaaes ; se na prática nfto reagir,
aberta ou disfarçadamente, contra as próprias doctrinas,
tornar-se-ha mais tíbio no seo enthusiasmo, senão pela
vos da consciência, ao menos pelos desinganos, emba-*
raços e exigências inherentes & missSo do mando.
Ulpiako.
(Continua)»
O <7oxidex*vatox^Io de Mixsioâ.
Noticia histórica b obscriptiva da inauouraçIo zx>
bdificio, e obigbm da instituição*
111
(Conclusão)
Graças aos incessantes exforços do Sr. Commeiliâa*
dor Bettencourt da Silva, notabilissimo artista que
comprehende e desempenha dignamente o sacerdócio
da honrada profissão que exerce, concluiu-se afinal o
edifício do Conservatório de música, melhorado em
grande parte no*plano interior, que, segundo o primi-
tivo risco, ficaria, quasi se pôde dizer, incompleto,
quer pela má disti4buiç&o das salas das aulas, quer
pela tal ta dos compartimentos secundários de que nSo-
podebfi prescindirmos edifícios destinados ao insino,
principalmente para sexos diversos.
A casa destinada ao conservatório de música estava
sendo feita sem reservados e nem sequer um quarto
fiara toucador das alumnas ; n&o havia água no esiabe-
ecimento, nem canalisaçâo para o gas. Todas essas
faltas reparou-as o illustrado architecto Bettencourt,
e, nao satisfeito com tao grandes melhoramentos, ap-
proveitou ainda os fundos do salão dos concertos do
pavimento superior, e^^paço vazio e inútil no primitivo
plano, para 'nelle construir um pequeno palco, com a
ZL 300
sua caixa de movimentos, guarda-roupa, camarins
etc. ; idéa essa de subido alcance para dous fins que o
Conservatório pôde obter a um tempo, sem dispêndio,
se o Sr. Ministro do Império attender & necessidade
palpitante que temos de uma eschola dram&tica e de
ópera nacional.
A' similbança do Conservatório de música de Paris,
pôde também ao nosso addicionar-se uma eschola dra-
m&tica, creaç&o que muito deve concurrer para próxi-
mo e preciso desinvolvimento de um dos ramos de arte
em que mais cuidam as nações cultas e que entre nós
vegeta em condemnavel esquecimento.
O theatro nacional, pôde hoje dizer-se, está de todo
extincto : o velho e histórico theatro de S. Pedro jaz
em vergonhoso desaií]t)aro, e os três pequenos, Gymna-
sio, S. Luiz e Phenix, ou repetem cançadas peças dos
antigos repertórios de melhores tempos, ou exhibem
mágicas e paródias, nas quaes a immoralidade corre pa-
relhas com a semsaboria. O público, indifferente a tudo
S tanto n&o tiver cunho de esc&ndalo, n&o procura o
eatro senão como passatempo, e passatempo que o
faça rir a larga, emb'ora com grande prejuizo da ho-
nestidade e do bom senso ; se o sábio Governo de S*
M. imperial nao tomar a si a regeneração da arte de
Talma, com certeza nao passaremos tao cedo de povo
inculto e avesso ao gosto do bello.
• O Sr^ Bettencourt da Silva,iucançavel lidador do pro-
gresso, infatigável operário da cívilisaçao, offereceu no
anuo próximo passado as suas luzes o» conhecimentos ao
Oovérno Imperial para dirigir uma eschola dramática; e
até,se nos n&o falha a memória, chegou a organisal-a,de
accõrdo com o Conservatório dramático, com nessoal
escolhido e habilitado; até o presente porém aincía n&o
começou a f unccionar es^n institui^o, da qual tanto tem
.;ue esperar o theatro nacional. Se esse marasmo pro-
vinha, como pensámos, da falta de local appropriado,
ahi tem o Sr. Ministro do Império o Conservatório de
música que pôde preincher satisfactoriamente essa
lacuna.
Cônscio de quanto ama e deseja a prosperidade das
bellas artes, temos fé que o Sr. Conselheiro Jo&o Al-
fredo n&o deixará de pôr em prática essa patriótica idea
do fundador do importantíssimo Lycêo de artes e oSicios,
310 XL'
hoje a primeira esrfholà' de; iòsinò .pópúlar, riáiV ^ó áa
Brazil, bòxno íàtvêz 'dá Amérita do Sul^* ' •
..Ao, Sr. .Çonsell^eiro Jo.ap . A.lfrê^o muito i)ov(uu os
filhos, dp:ZUu/DÍcip;p jpieutTQv DP i^ino.das ,belW,artç£ o
primeiras lettras. Para o aformoseamento d'estu cidâdi?
e desiuvolvimento d!esses dous ramos de instrucçaô.prí-
hlicA, muito tem feito 'S.Ex/uestes últimos tempo-^ ; $6
os mbàumentaeâ edifícios para * eschdlas primárias das
fregiièizías de St.'* Rita elGlóría,* que se estaò ergíi(^ndt>
sot a direcção e plaUo dò' Sr. Commendador Betíencoiift
da Silva, na praça Dilque dé Caxias é rua da Harmoiiia,
hastariam, se tanto.4 outrpâ títulos o n^o recomraòndns-
semv paraqueonbmié doi.actaálSr. Ministro do Império
passasse á posteridade'.' :« . ' • .
Dedicado pòrêin â causa ào'irigTàndecimentò dopalz,
úao se. tem limitado o Sr. Conselheiro Jôáo Alfredo à
construcçáô d^aquelles grandiosos edificib.^i; pn^loii'
tamberii todo o sep Valioso áújjclTiónara à cbúchisaó díV
Conservatóri j de música; e matidou procederá desappró-
priaçaòdé umas casas dá ruo- da Lampádosa e praça da'
Coifisíituiçao, para .romper 6 proloiji^amento da rua D,
Léoppldínk atíS está '^raòa/ nielhotaipento esseâiièto-
rizado pela Assèmblea (jera? ha maís de trinta annos.
Graças ja S. Ex. e áindá ad prestimoso árchitecto RetT
tencoúrt da Silva, á pequena mas elegant:^. fachada do
palácio da Academia das Bèll as Artes dèsvenda-se hoje
ás vistas da praça em que s» levanta o perdurável mo-
nnmento do immortal fundador d'68te império*
Para ».. tríplice festa. dí^ ioauguraçfto dp . edifício dó'
Conjseirvatório, à^, aber.tu^a da rua, ^e distribuição .d^
prémios aosalumnQS,4ã Academia^ desigjjiofi S, A. .Im-
perial á Senhoria ,Priuceza Regente p dia 9 d? janeijro do
currQuie annq, çm o tu,al a história mçirca a • memorável
data em que o Príncipe ds^. Beira, mais, t^rde D. Pedro .1,
6 sucoesçivíimeinte o glorioso. Dvique d^. Br^igança, de-
clarou ficar upiPrazil, qi^e ante^ de.decurrida um aniw
çra império livre e independente. ..• . '
Seriam cinco horas da tarde d^aquelle memorável dia;
o sol illuminava com seos raios esp^endentes* a .fo^niqsa
pátria d^ Monte Alv^rne ; quando, a excelsa Princejsa e
sep augusto espojo, acpomp^nhadus de pes3Ó)!is,,.da maia
alta bierarchia ei compz^cta m>í&sa de,j^v6^ tf iljmr^in a
nova rua que pòs em communicaçaò directa ouuicô
XL 311
monumento que possuímos cora o edifício único também
de TáloT artistico. ' -
Aborta a rua D. Ltíopo^dima, S. A. Imperial, seo con-
sorte) o 'Sr. Mioist;ío do Império, Direcítor, Oo Agregação
da Academia, e grai>de mimerod'e^convidados,pa$saram-'
ee para 'O recem-eonsti*nido edifício do Conservatório de
m^ca «na principal siala do mesmo assiístiram h ití-
naram: parte no cerímoiliAi da inauguração e distri-
buição de prémios. ; < »
Desmando b Sr. Oons^lbi^írí) Thomaz Gomes ãòs San-
dos, dtgnissimo direciw da Academia de BeHas Artes,
que o di^scurso inaugural fôttèíe feito por quem mais con-
Gorrdu para a realisaçS^odo tao ^mptuosa festa urtíistica,
designou o Sr. Commei^cjl^or Bettencourt da Silva para;
preinc^ier esâa formalidade, que por nenhum outro
melhor .seria satisfeita, .cpmo realmente o foi com unâ^-
nime applauso dos assistentes, doctos e ind(^tos.
Debalde tentou aii;iyej£^^umesquinhar a subida, valia
de 1A0 brilhante or^içao, , censurando aorimonioa^mente
os louvores 'pella tecidps. ao Sr; Cpa»QUieiro Jo3uo Al-
fredo; debalde tentou o despeito morder upméri to do
orador, propalando .^ibivosauienik^. pe^a impt^jilsa que
elleali fora, em falta do competente ; oç applausos dos
homens illustres e dos litteratos que alli concurreram a
ouvil-o, tríumpharam d'essas e outras mesquinhas. odip7
aidades; mais uma cdrõa de virentes louros iuramou.^
j4 laureada fronte do poeta-artista.
Acoimarem-n'a de lisonjeiro para como Sr. Conse-
lheiro João Alfredo I Que ministro do império,' 'ne^es
últimos vinte annos, concnrreu maf& do qiie elle para o
desinvolvimento das bellas artes e derramamento 'do
insiao público?
Para provar os relevantes serviços prestado^ 0.0 pajz,
pelo actual Sr. Ministro do impíjio, .basta aponctar ps
dous primorosos edifícios para escholas de 3t/ Rita ei
Glória* em via de construcçao, a abertura da rua D.
L'3opoldína, o uonativo d« um espaçoso terreno na rua.
da Guarda- velha para 'nelle se construir um edificip ap-
propriado ao Lycêo *e artes e officios, a instituição ao
Conservatório dramático, q as remunerações honoríficas :
concedidas M írrande númoro de nrtistas, naciohaes e es-
trangeirofj, do !nconte>tavel merecimento. \ .
E* defeito nosso, velho e arraigado,,. tudo censurar,
eem mais detido exam3 nem reflexão, nós actos dos que
312
âe dedicam & causa pública, até os niak bem ioteneio-'
nados. Se a indiffereaça e a critica affectasse os nobrw
e elevados seatimeatos dos que se applicam ao serviço
público, ai de nós e da pátria, que nenhum se animaria
aaffrontaros doestos da inveja por puro patrioiisoio ;
felizmente porem aos beneméritos dà o Senhor alma
forte e coraç&o generoso, para, despresando a calúmnia
dos maldizentes, proseguirem ousados na senda do
progresso e da civilização. O Sr. Conselheiro Jofto Al-
fredo tem bastante consciência dos seos actos para que
se doesse da ingratidão com que uns e a parcialidade ooot
que outros o stygmatisassem.
O discurso do Sr. Commendador Bettencourt da
Silva é, por todos os títulos, uma bella peça litterária,
que não pôde nem deve ficar no limbo dos seus valiosos
inéditos ; seja elle pois dado a lume da publicidade, que
^ assim o requerem as artes e as lettras.
Depois da brilhante oração inaugural, executou^-se
uma linda abertura do maestro Fiorito, por elle meamo
regida, e em seguida fez-se a distribuição dos prémioB,
que a estreiteza do espaço de que aqui immerecida*
mente dispomos nos não deixa memorar.
Após os prémios, executou-se o hymno das artes» mú-
sica do inspirado Francisco Manoel, e lettras de Porta
Alegre, que serviu de introducção ao concerto vocal e
instrumental, que constou das peças seguintes :
Grande clássico^ para piano, rebeca e violonorilo^
do Sr. Carlos Cavalier, executado pelo mesmo Sr. e
Rivera e José MartinK
O joven Carlos Cavalier é approveitado discípulo do
nosso Conservatório de música, que concluiu os teos
estudos no de Paris, do qual é professor adjuncto. Qua-
lidade essa que muitu honra a nossa eschola musical.
Balata da ópera Guafany, de Carlos Gomes, cantada
por D. Maria das Dores.
Dizer o que é e o que vale esse mimoso trecho daf
assaz conhecida ópera do nosso grande maestro, è tarafa
que não cabe em tão rápida noticia qual a oue bosque-
jámos ; quanto á execução da Sra. D. Maria aas Dores^sá
nos cumpre mais uma vez depor justo<^ louvores aoa
pés da digua condiscípula de Carlos Gomes.
Grande phantasia de Allard, executada no violino por
Vicente Cernicchiari.
XL âl3
O Sr. Ceraicchrari é discípulo do nosso Conservatório,
que promette muito ; dotado de grande talento e su m-
ma aptid&o para o instrumento que maneja com pe-
rícia, é de esperar que venha a ser um dos ornamentos
da arte musical do Èrazil ; possa elle, guiado pelos con-
selhos de seos bons mestres, vencer as sérias dificul-
dades e graves embaraços que se antolham na carreira
que tao brilhantemente incepta.
40 — Dueto da opera do Vagabundo^ de Henrique de
Mesquita, cantado pela Sra. Pazzi e o Sr. Dupont.
O Vagaíywndo nfto é, sem dúvida, ópera cómica de alto
merecimento, mas é innegavelmente exhuberante prova
da génio n&o vulgar do seo inspirado auctor ; muito é
para lastimar que Henrique de Mesquita, vocação fe*
45unda e creadora, nfto empregue o seo valioso tempo e
os recursos de seo possante talento em compor ópera de
grande força, que para tanto dispõi elle de sobejos
meios intellectuaes.
A Sra. Pazzi, cantora de muito merecimento, inter-
pretou magistralmente a sua parte ; outro tanto se n&o
pôde com justiça dizer do Sr. Dupont : no emtanto am-
bos receberam enthusiasticos appíausos ; sendo todavia
á primeira que maior somma coube das palmas com qu»
foram saudados.
5* — FincU sonata de Weber, executada pelo Sr. Ca-
▼alier.
6"^ — Grande hymno de Mercadante, cantado por todos
os alumnos do Conservaiório, sob a regência do maestro
Fiorito.
Assim terminou essa grande* festa artística que nos
«nnaes da história marca épocha memorável para as artei^
nacionaes, e illuatra o curto mas admirável periodo da
regência no segundo reinado, regência que constitue j&
uma p&gina de ouro para a biographia da excelsa Prin-
ceza Imperial, de qnem tanUf tem de esperar o Brazil
/"oxalá todavia que bem tarde), quando vier a reger os
destinos d*este vasto e florescente Império.
Orpbbo.
[
Xfe
Ovi-v«rao barato.
IÍ-. O
Noa Estados Unidos o pag^atoenlo db'!iil^ííSÍ<íM*él'
uniforme : emquanto em nas estadia si pafíii triarfl/efil-
outros se paga menoí. Em Boston 'por exernpin p!i;,-ani- ■
SC amitiulmenK; 36 duilars por cnbeça, emqiVAmo eiíi'
New-York se pagam sura^mle 29 dollats: ' ■ ''
S II PP unham os porém este liltimo nlg^ftrisino, o ;i^-Wb^'
remos que cada americano paga ao thesour-J' TiH' uliL
réis anmiaes. . i ..m '. . ;
A renda g^ral do Brazi! »■ inftírior a 90 (hil cínntOB r*
supponhíVmoa porém este algariamo, e acct^SfteiitéiúAs
mai.s 50 por cento para rendas provineinee e itt'wniei"'
paes. o que aliíií é ir alftm do possível, teremos 1^'
mil contos, que, divididos por 10 milhões de haliilftlf^
tes, mínimo a que podetnoa levar a população do -Idí^-
pérío, dar-Dos-hao treíB mil e quinhentos rpM por'
cabeça. ' '
Esles algarismos respondam tiírmiuanferaeiíte, áijuel-
les, quojulg-am muito i!aro o nosao guvérnO,' e preten-
dera tornal-o barato, proclamando nnia TepúbHHa."
Pergunta Injioconte
A um menino que fazia exame de doctriua para séT'
admittido ao coUegio do Pedro 11 quiiium eliaminaditr,
sacerdote, explicar o ' mystério da Encarnação, fazeo-
do-o compreheuder, como S. José nilo era pae do Jesusi
Chriato, apezar de íier oaaado com a míiCL
* Este padre é lolo, nfto é ? , Oitnn. ib
O Juízo dos pax*et«
O jiirj éojuizo dos pares. Mas quando? aníeS dé"
julgar, quando jillga, ou depois? Aiiteâ nem depois nSO-
pode ser, porque ojury s6 existe qusudo julga. Dú-*
rante o julgamento, a paridade nan é má : sao pares un»
que pode mandar inforcar o pobre diabo, e o pobre
diabo que nao pode rugir nem mugir. E com estes pa-
lavrões eeguveraao mundo.
Otton.
XL âl5
Um. livro Impor jtaixte
Anda ahi nas mãos dos meninos, que- frequentam así.
escholas pública? um livro que diz que na Austrália, no
hynverno, nâo se vê o sol.
Queín será maissagaa: quem escreveu o livro^ ou
quem o approTOu ? ' Qlton, -
QUESTÕES DO X>I-A.
Eis-nos chegados ao tôrmo do segnindo volume d'esta^
publicação, a que deram importância os esoriptos das
primeiras pennas do paíz, taes como as que adoptaramr
os cryptónymos de Sémprónio, Pompêo,Múcio Scoevola,'
Otton, Gil Braz, e restantes collaboradores, a todos os
quaes tributámos cordiaea agradecímenteâ.
Sem recurrer a meios artíficiaes, sem assumir com-'
promisso algum, jsem empregai» o recurso dos encómios
incommendados pela imprensa, ahi temos sàccessiva**
mente, ha uns 6 mezes, submettido à publicidade essas
páginas desprçtenciosas, mas que n&o deixar&m de cor*
responder à intenção que ao seo apparecimento
presidiu.
Tencionamos inceptar 3." volume, e progrediremos em
quanto nos nao abhorrecermos do incargo. Aos nossos
benévolos leitores agradecemos, porém nada prometr-
temos : liberdade antes de tudo.
Fácil seria dar a esta publicação mais regularidade,
mais desinvolvimeuto, mais utilidade. Sendo as 16 p^
ginas de cada número de matéria sempre original, pou-
cas folhas periódicas dao^-jA— ioje tanta escriptura
inédita ; mas se convertêssemos esta em diária, muito
mais ampla poderia ser a su« missão.
'Num dos últimos números da Bibliographia da França^
lemos que a casa Victor Palme, de Paris, se preparava
para dar á luz, sob o nosso titulo : Questões do dia^ uma
série de folhetos populares, precedidos do motto : União
dos homens de bem. Segundo aquelle projecto sympj^
tbico, eis-aqui alguns dos aí?sumptos que os auctores se
propunham a tractar :
A internacional — A questão romana — O catholicismo
e o progresso — A religião na França em 1871 — A de-
pravação dos costumes, origem das desordens sociaes
"^16 XL
—A decadência da familia — O despovoar dos campos — >
A lei do domingo— O ínsino — A instrucçfto primária —
As classes oper&rias e as instituições de charidade — A
liberdade pública, para cá de 17a9 - A fortuna e a pros-
peridade pública, depois da revolução— As fontes do
«uffrágio universal — A descentralisaç&o— O direito das
gentes na Europa civi lizada — A bandeira da França —
Os direitos feudaes &.
Já se vé a que altura se eleva o plano das Questões do
dia^ parisienses, e de que vantagem nfto poderfto ser, se
as pennas forem dignas da missão, para revocarem ao»
{princípios da liberdade pela ordem e da ordem pela
iberdade os espíritos transviados, que abundam 'na-
quella grande sociedade, cujo pêndulo oscillará ainda
antes de (como importa á religi&o, á liberdade, à digni-
dade humana^ á civilização) cair a prumo.
Todas aquellas matérias sa.o de suprema actualidade
para a França e Europa ; e muitas d'ellas nos tocam
egualmente por casa ; mas se é certo que outras nos s&o
mais estranhas, nao menos o é que muitos problemas
S»li ticos sAo peculiares á nossa sociedade, e estão pe*
ndo o concurso de todas as intelligêucias superiores,
de todos os corações bem intencionados. Resolva-os
quem se sentir com a capacidade, que a Providencia s6
aos seos eleitos liberaliza.
XL
317
das matérias contidas 'neste 2^ Yolime.
i\r. B, — ^0 que vai aponctado eín cifra romana indica o número^,
que se estende de XXi a XL. O que vai em cifra arábica indica a
página do yo>ame.
ÀRTIGe DB UlPIANO.
Beforma Judiciaria (l.*) XL 30&
Artigo de Junius.
A sinceridade das acções opposicionistás . . XXI 3
Artigos de ^ifpâo.
A República e os Estudantes /!.• art.) . • . XXII 17
Id. (2.« art.) . • . XXIIT 83
A reorganisaçáo do trabalho (!.• art.) . . . XXIX 189
Id.^ (2.« art.) . . . XXXI 187
Artigos de Muao Scoevola.
i.* Sobre os abusos da liberdade XXII 22
2.« Id XXVI 81
3.» Ignez de Castro, tragédia de Júlio de Cas-
tilho m • . . . . XXXII 177
4.- Id. (II) XXXVIII «80
Artigos de Orphbo.
O conservatório de músicaVl*; XXXIV 218
Id, (2.<^ XXXVI 252
Id. (3.*) XL 308
Artigo de Varrão.
Um liTro do Sr. Bruno Seabra ' . XXVII 111
Artigo de Gil Braz.
Ignez de Castro, tragédia de Júlio de Castilho . XXX 153
Carta de Plauto a Cikcinnato.
Sobre thcatro XXVIII 122
^B
•318 XL
'■ ■ •■ . ■^.
C :{TAS DE SeMPRÓMO a ClNCINNATO.
9.« As Palestras. Plano da anályse das obras
do Sr. Alencar XXIV 53
10.» (2l) a Iracema (h^) XXV 68
10.» (b) Id. A litteratura nacional (2.») . XXVI 87
11.» Id. (3.«) XXVII 97
12.» Id. r4.V XXVIII 113
13.» Id. r5.»j XXIX 129
U.» Id. fO.^V] '. i.Jí j.V^ 1 . • XXXI 161
15.» Id. n-'). . . ^ . . • . . XXXII 188
16.» Id. (8.»; XXXV 229
17.» ^,Id. (9,»). .... ..... . . . . XXXVI 246
18.» rd. (10.^). . ' . .• '. ' .' .'' ' . ' XXXVII 257
19.» Id. fll.»). . XXXVIII 273
20.» Id, fl2.N XXXIX 289
t- ' ' * • ■ ' ■■■ ... -i .■•'•• : ' ■ '. . . • ' '■.■.■•:■■■ i .«. . • - A
Cartas de Cincinnvto a Semprókio-
5.» (aj O Gaúcho, As Palestras do DiáHo . . XXI 7
• S.» (h) Id. A carta do Sr. Alencar á Re-.i .- . , .
pública XXIII 39
6.» A raça dos charlatães. O Til '. • . XXV 72
7.» . O r«? . .' XXVII 106
8.» ' ' Id. . . ..... ... XXX 145
9.» Os thuriferárioa. Os romancistas, em
portuguez XXXII 181
^ Advertência. . . . . . . •. . XXXIII, 208
aO.»/aYOra. . . . : XXXV 235
^10.» (b) Id .....;. XXXVII 266
^11.» Id. O Sr. Alencar, como dramaturgo. XXXIX 297
Cartas dk Cincinnato a Fabrício.
16.» Osalbums XXII 25
• Carta de Cincinnato a Cujácoio.,
* 1.» O Sr. Alencar, como jurisconsulto. . XXXVIII 284
Carta de Cincinnato ao Redactor das
Questões do dia.
Sobre as cartas dfe Semprónio XXIV 49
Cartas de Cícero.
Instrucção popular. Ao Sr. Dr. Cunha Lei-
tão (!.») XXXV 225
Id. (2.*; XXXVI 241
XL
319
57
96
127
127
128
128
159
160
175
232
224
272
287
288
303
303
304
304
314
315
314
314
Artigos de Oiton.
O meo nome v\írr
As revoluções. yyvttt
Forma de guvérno vvttttt
O poder pessoal Íyvttt
Pergunta , ,rTTT
Problema XXVIII
Parabéns qq^
Annxmcios yyyt
Os republicanos em Inglaterra vvvAr
A família yyvÍv
Galera a duas amarras yyyvtt
Liberdade politica yyyvttt
Os infçlezes e os republicanos yyvttt
Pelo dedo o gigante ^Í^yty
Virtus post nummos ^ yt v
Maiorias yyyty
Ordens religiosas ^"^ Iy
Liberdade e independência da egreja . • . ^^^j
Guvôrno barato XL
Um livro importante Xi^
Ojuizodos pares X*^
Pergunta innocente XL
Artigos sem assignatura.
Biographia de S. M. o Imperador do Brazil. . XXV 65
Monumento a Bocage .... XX\ 94 — „„«.,,, o/^
XXVIII 125 -XXX 157 - XXXII) 193- XXXIV 209
Imprensa periódica da corte. O Correio do
Brazil XXIX 14á
Horas vagas, Poesias, de Joaquim da Costa -.-^^t i»w
Ribeiro XXXI HS
Mendicidade estrangeira comparativa . . • XXaIA w^
Questões do Dia . . . , XL 31»
ARTrr.os DO Jornaj. f O Brazil; »
O Brazil .- . . . XXI
Pantheon Maranhense XXI
SuppressSLo da escravidão no Brazil .... XXII
Colonizac&o do Brazil (art. L°j XXIi
* Id. (art. 2,^ XXIÍI
Júlio de Castilho (tragédia Ignez de Castro^ . XXiV
Epigrammas e contos.
De Quintiliano . . . XXII 32- XXIII 48. XXIV 63
De Archíloco XXIIl 47
De Pompôo XXIV 63
DeUnTill XXXVI 256
14
16
29
30
45
59
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