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Full text of "Recapitulação da historia da litteratura portugueza"

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PHiLO  Braga 


HISTORIA 


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EDADE  MEDIA 


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Editores:  LIVRARIA  CHARDRON,  de  Lél- 
io &  Irmão^^^ —  Rua  das  Carmelitas,  144 


OBRflS  COMPLETAS 


RE  CAPITULAÇÃO 

DA 

HISTORIA  DA  LITTERATURA  PORTUGUEZA 

í 

EDADE  MÉDIA 


RECAPITULAÇÃO 


HISTORIA  DA  LITTERATURA  PORTUGUEZA 


I— Edade  Média.  Porto.  1909.  In-8.<^  de  vin-õ24  p.  1  vol. 
II — Renascença  (Em  publicação). 
III—  Romantismo  (Em  preparação). 


Theõphilo  Braga 


HISTORIA 


UTTERATURA  PORTUGUEZA 


EDADE   MEDIA 


V%  %%  ^%  PORTO — 1^909  %%%%%% 
Editores:  LIVRARIA  CHARDRON,  de  Lél- 
io  &  Irmão  —  Rua  das   Carmelitas,    144 


o  accordo  assignado  no  Rio  de  Janeiro,  em  9  de  Se- 
tembro de  1889,  entre  o  Brazil  e  Portugal,  assegurou  o  di- 
reito de  propriedade  literária  e  artistica  em  ambos  os 
paizes. 


A  presente  edição  está  devidamente  registada  nas  Bi- 
bliothecas  Nacionaes,  de  Lisboa  e  Rio  de  Janeiro. 


Imprensa  OTogerna,  9e  manoel  hello 
R.  aa  Rainha  D.  Rmelia.  61 -PORCO 


Quando  se  faz  um  resumo  sem  a  preparação 
prévia  de  trabalhos  especiaes,  fica  sempre  um 
apanhado  concretamente  mesquinho;  se  provém 
da  condensação  necessária  de  monographias  ex- 
haustivas,  constitue  uma  synthese,  pondo  em  evi- 
dencia o  systema  em  que  assenta  a  obra. 

Já  por  trez  vezes  o  vasto  corpo  da  Historia 
da  Litteratura  portuguesa  tem  sido  submettido  a 
este  processo  de  condensação:  em  1875  ^o  ^^ 
niial  de  Historia  da  Litteratura  portuguesa  (in- 
8.0  de  VI 1-474  p.),  destinado  ás  Hções  oraes.  Em 
breve  ficou  atrazado,  pela  publicação  dos  Cancio- 
neiros trobadorescos,  e  pelo  aperfeiçoamento  do 
methodo  histórico  e  philosophico,  dando  logar  á 
remodelação  do  plano  em.  1885  no  Curso  da  His- 
toria  da   Litteratura  portuguesa   (in-8.0  grande, 


de  412  p.)  Desde  essa  data  até  ao  presente,  o 
campo  da  Litteratura  portugueza  da  Edade  mé- 
dia tem  sido  desvendado  por  insignes  romanis- 
tas  francezes,  allemães,  italianos,  hespanhoes  e 
americanos,  e  foram  publicados  numerosos  textos 
dos  séculos  xiii  a  xv.  Urgia  incorporar  esses 
subsídios  dispersos.  Emquanto  não  realisamos 
esse  empenho  na  reimpressão  dos  Trovadores  por- 
tugueses. Formação  do  Amadis  de  Gaula,  Poetas 
palacianos  e  Os  Historiadores  portugueses,  sup- 
primos  esta  deficiência  de  tempo  com  a  promet- 
tida  Recapitulação  da  Historia  da  Litteratura 
p07'tugueza  da  Bdade  média,  como  a  summula  da 
primeira  Época,  tratada  n'esses  quatro  livros. 

A  vastidão  do  corpo  da  Historia  da  Littera- 
tura portuguesa  corresponde  á  importância  d'esta 


viva  manifestação  do  génio  esthetico  cFeste  povo, 
tão  notável  como  a  sua  energia  activa  na  inicia- 
tiva das  Navegações  e  Descobrimentos  geogra- 
phicos.  A  sua  extensão  impÕe  uma  recapitulação 
clara  para  os  estrangeiros  que  desejam  conhecer 
esta  ignorada  Litteratura  românica,  e  para  os  na- 
cionaes  que  procuram  um  guia  para  o  seu  estudo. 
Os  titulos  de  nobreza  de  Portugal  não  consis- 
tem exclusivamente  em  ter  iniciado  os  grandes 
Descobrimentos  e  occupado  o  primeiro  plano  na 
actividade  d'essa  extraordinária  Éra;  embora  pe- 
queno no  seu  numero,  a  par  da  occupação  de  vas- 
tissimos  dominios,  creou  o  Povo  portuguez  uma 
das  mais  bellas  linguas  românicas,  e  n'ella  os 
seus  Escriptores,  Poetas,  Historiadores,  Viajantes 
e  Philosophos  produziram  uma  opulenta  Littera- 


tura  que  seguiu  a  par  e  com  brilhantismo  a  evo- 
lução das  Litteraturas  meridionaes.  Essa  lingua 
ainda  hoje  se  falia  em  novos  estados,  authenti- 
eando  a  extensão  que  teve  o  dominio  portuguez; 
e  essa  Litteratura  foi  e  ainda  é  hoje  uma  das 
forças  mcraes  que  sustentam  a  nacionalidade  e 
autonomia  de  Portugal. 

Se  está  para  este  paiz  terminada  a  empreza 
dos  Descobrimentos,  mantêem-se  fecundas  as  suas 
faculdades  artisticas,  scientificas  e  philosophicas, 
suscitadas  pela  comparticipação  no  concurso  men- 
tai  europeu,  em  que  acima  de  cada  Nação  se  aftir- 
ma  o  ideal  da  Humanidade. 


HISTORIA 


LITTERATURA  PORTUGUEZA 


O  pequeno  povo,  que  occupa  a  faixa  Occiden- 
tal (la  Hespanha,  constituindo-se  em  nacionali- 
dade autónoma  entre  os  novos  Estados  penin- 
sulares formados  no  século  xii,  que  se  foram 
unificando  até  á  completa  absorpção  castelhana, 
assignalou  pela  energia  da  sua  raça  a  acção  mun- 
dial, realisada  nos  grandes  Descobrimentos  ma- 
ritimos,  que  deram  inicio  á  Era  moderna  da  Ci- 
vilisação  da  Europa.  A  individualidade  ethnica, 
que  o  tornou  inconfundivel  com  o  Ibero,  e  a 
acção  histórica  inolvidável  pelo  seu  influxo  social, 
levam  a  considerar  o  génio  caracteristico  d'este 
povo,  o  cthos,  expresso  nas  creaçÕes  artisticas, 
nas  formas  litterarias,  reflectindo  a  sentimentali- 
dade, o  espirito  de  aventura,  e  a  resignada  espe- 
rança nunca  extincta  na  alma  portugueza. 

Tão  importante  é  a  historia  dos  Descobrimen- 
tos maritimos  dos  Portuguezes,  como  a  da  sua 
Litteratura;  este  poder  de  acção  e  de  creação  es- 
thetica  explica  o   phenomeno  sociológico  da  sua 


HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 


autonomia  politica  através  das  crises  das  naciona- 
lidades peninsulares,  das  conHa^s^racòes  europêas,  e 
do  eni])irism()  ])oçal  dos  seus  próprios  «'over- 
nantes. 

O  p()\'()  })ortiií^"nez,  cuja  raça  foi  caracterisada 
])or  Frederico  Edwards  e  Deniker  como  das  mais 
])uras  da  Europa;  e  cuja  nacionalidade  Pi  y  Mar- 
í>all  aiX)ntou  como  a  de  mais  lógica  formação 
entre  os  \arios  Estados  peninsulares,  conserva  as 
suas  Tradições  poéticas  com  uma  inteireza  ar- 
cliaica.  destacando-se  entre  o  Folk-Lore  Occiden- 
tal ]>ela  sua  ricfueza  e  vitalidade,  como  observou 
Jeanro}'.  Com  estes  elementos  fundamentaes  ou 
orgânicos,  a  elaboração  da  Litteratura  portugue- 
za  é  o  producto  do  cthos  da  raça,  do  sentimento 
da  naci(^nalidade  e  da  consciência  histórica,  acom- 
|;anlian(l()  solidariamente  a  evolução  esthetica  das 
Littcraturas  românicas,  na  Edade  média,  na  Re- 
nascença e  na  época  do  Romantismo,  seguindo  a 
acção  hegemónica  de  cada  uma  d'ellas,  e  por  seu 
turno  influindo  também  na  creação  da  Novella  de 
Cavalleria  e  na  corrente  do  Humanismo.  O  es- 
tudo histórico  d'este  producto  superior  do  génio 
portuguez,  acompanhando-o  nas  suas  relações 
com  as  Litteraturas  modernas,  através  dos  mo- 
vimentos sociaes  e  políticos  da  península  hispâ- 
nica, presta-se  á  applicação  de  processos  críticos, 
((ue  só  podem  realjsar-se  comprehendendo  a  i)sy- 
chologia  collectiva  e  o  pont(~)  de  vista  sociológico. 


lÍLABORAÇAO    ORGÂNICA 


PROLEGOMENOS 


Elaboração  orgânica  da  Litteratura 

A  i)alavra  escripta,  quando  por  ella  se  dá  ex- 
])ressão  ás  emoções  e  concepções  subjectivas,  ou 
se  representam  actos  e  aspectos  da  natureza  obje- 
ctivamente, torna-se  pelos  recursos  estylisticos  a 
mais  elevada  forma  da  Arte,  a  que  na  série  es- 
thetica  se  chama  Litteratura.  Muitos  povos  que 
alcançaram  adiantadas  formas  sociaes  e  consegui- 
ram poderosas  condições  de  existência  politica, 
não  chegaram  a  crear  uma  Litteratura;  é  por 
(|ue  este  phenomeno,  resultante  da  estabilidade 
social  em  que  se  fixam  os  Costumes  que  têm  de 
ser  idealisados,  desenvolve-se  pela  comprehensão 
individual  que  lhe  dá  o  relevo  synthetico.  E'  ex- 
tremamente complexa  esta  transformação.  Para 
que  uma  Litteratura  se  forme  é  necessário  que 
uma  raça  fixe  os  seus  caracteres  anthropologicos 
pela  prolongada  hereditariedade,  que  funde  a 
aggregação  ou  consenso  moral  de  Nacionalidade, 
tendo  o  estimulo  de  resistência  na  sua  Tradição 
e  na  unidade  da  Lingua  disciplinada  pela  escri- 
l)ta,  universalisando  a  relação  psychologica  das 
emoções  populares  com  as  manifestações  concebi- 
das pelos  génios  artísticos. 

Comprehendida  assim  a  Litteratura  é  uma 
synthese  completa,  o  quadro  do  estado  moral  de 
uma  nacionalidade  re])resentando  os  aspectos  da 


HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


sua  evolução  secular  e  histórica.  O  valor  de  qual- 
quer Litteratura  patentêa-se  nas  condições  do  seu 
ílesenvolvimento,  definindo  os  factores  sociaes  que 
a  motivam  e  de  que  ella  é  a  expressão  consciente. 
Na  marcha  histórica  de  qualquer  povo  existe  um 
trabalho  constante  de  synthese  ou  coordenação  es- 
pontânea de  todas  as  suas  energias,  conformando 
os  actos  com  os  sentimentos  e  ideias  dominantes. 
No  estado  presente  da  civilisação,  a  Politica  geral 
tende  a  exercer-se  como  Synthese  activa;  a  Phi- 
losophia,  ratificando  as  concepções  subjectivas  pe- 
los dados  objectivos  e  experimentaes  das  Scien- 
cias,  determinando  a  ordem  physica,  a  ordem  or- 
gânica e  a  ordem  social,  constitue  na  sua  inte- 
gralidade a  Synthese  especulativa;  a  Litteratura 
e  Arte,  cooperam  para  a  urgente  Synthese  affe- 
ctiva,  em  que  a  vida  emotiva  e  a  tradição,  par- 
tindo das  manifestações  da  autonomia  nacional 
recebem  o  relevo  da  solidariedade  humana,  esbo- 
çando o  ideal  da  concórdia  a  que  se  aspira. 

Su]>ordinada  ao  meio  social  pela  sua  origem 
e  destino,  a  Litteratura  reflecte  todas  as  succes- 
sivas  modificações  d'esse  meio,  achando-se,  como 
todos  os  outros  phenomenos  sociológicos,  sujeita 
a  leis  naturaes  de  ordem  statica  ou  de  conserva- 
ção, e  de  acção  dynamica  ou  de  progresso.  Des- 
conhecendo os  elementos  staticos  das  Litteraturas, 
é  impossivel  comprehender  a  sua  origem  e  modo 
de  fonnação;  sem  a  apreciação  das  condições  dy- 
namicas  mal  se  avalianá  o  que  pertence  cá  influen- 
cia individual  dos  escriptores  de  génio. 

As  Épocas  litterarias  de  esplendor  ou  decadên- 
cia, de  invenção  ou  de  imitação  só  podem  ser  liem 


K  L A  R  o  R  AÇAO    O  R  ( ;  A  N  RN 


caracterisadas  pela  dependência  mutua  entre  os 
factores  st  áticos  e  dynamicos.  Bacon,  esboçando 
genialmente  as  bases  da  historia  litteraria  (De 
augmentis  Scientiarum,  liv  ii,  cap.  4,)  indica  os 
factores  staticos  e  dynamicos :  «Antes  de  tudo  o 
historiador  das  Artes  e  das  IvCttras,  deve  preoc- 
cupar-se...  da  natureza  do  paiz  e  da  raça,  sua 
aptidão  ingenita  ou  ao  contrario  sua  incapacidade 
para  as  diversas  sciencias,  as  circumstancias  his- 
tóricas favoráveis  ou  desfavoráveis,  (factores  dy- 
namicos) as  influencias  religiosas,  aquellas  que 
provêm  das  leis  ])oliticas,  emfim,  o  mérito  emi- 
nente e  a  acção  fecunda  dos  individuos  para  o 
progresso  das  letras...» 

E  indicando  do  modo  mais  nitido  o  methodo 
a  seguir,  assenta  o  ponto  de  vista  francamente 
histórico,  e  como  synthese  —  «evocar  d'entre  os 
mortos,  como  por  uma  espécie  de  prestigio,  o  gé- 
nio litterario  d'essa  época...»  Todo  o  progresso 
realisado  até  hoje  na  historia  das  Litteraturas 
comprova  a  suprema  concepção  de  Bacon. 

Como  órgãos  subtrahidos  á  vontade  indivi- 
dual, mas  pelos  quaes  se  exercem  os  processos  da 
concepção  artistica,  constituem  os  elementos  sta- 
ticos das  Litteraturas :  a  Raça,  a  Tradição,  a  Lin- 
giia  e  a  Nacionalidade. 

Quando  uma  sociedade  não  conseguiu  dar  a 
estes  factores  staticos  uma  feição  individual,  a 
Litteratura  não.  passa  de  um  documento  ethno- 
graphico,  que  por  vezes  suppre  a  deficiência  de 
monumentos  históricos;  a.s_ Litteraturas  orientaes, 
importantíssimas  como  documentos  psychologicos 
e  de  reconstrucção  histórica,  só  casualmente  attin- 


III.STOKJA     DA     IJTT^KATURA     I'(>RT  UGL/KZA 


geni  a  expressão  consciente  de  unia  emoção,  que 
se  transmitte  intencionalmente.  A  Littcratura 
grega,  na  evolução  orgânica  do  seu  Lyrisiiio,  da 
sua  Bpopêa  e  do  seu  Theatro,  deriva  da  relação 
harmónica  doestes  elementos  com  a  elaboração  in- 
dividual, sendo  por  isso  o  modelo  perfeito  de  to- 
das as  Litteraturas,  a  norma  do  gosto,  servindo 
de  typo  clássico  de  imitação  pelo  relevo  ideal  que 
as  tradições  hellenicas  receberam  na  expressã(3 
universalista  das  altas  individualidades.  A  Littc- 
ratura latina  abandonando  os  seus  elementos  sta- 
ticos  ou  generativos,  cahiu  em  uma  imitação  ar- 
tificiosa e  no  mechanismo  rhetorico,  ficando  in- 
ferior ao  caracter  social  e  á  funcção  histórica  da 
nacionahdade  que  a  produziu. 

Com  este  critério  apreciaremos  o  grupo  das 
Litteraturas  da  Bdade  média,  ou  românicas,  em 
(jue  a  Litteratura  portugueza  é  a  derradeira  re- 
])resentante :  explica-nos  o  gráo  de  originalidade 
de  cada  uma.  a  rasão  dos  accidentes  que  as  diffe- 
renciaram  nas  suas  épocas  diversas,  e  a  fecundi- 
dade correlativa  do  seu  vigor  nacional. 

Novas  nacionalidades  se  constituíram  na  Eda- 
de  média  depois  da  ruina  da  unidade  imperial 
romana ;  essas  Nacionalidades,  dando  logar  ao  des- 
envolvimento dos  dialectos  vulgares  em  Línguas, 
então,  i)ela  expressão  das  suas  Tradições  oraes  fi- 
xadas na  escripta,  formaram  Litteraturas,  as 
quaes  cooperaram  directamente  n'esta  transição  af- 
fectiva  do  conflicto  das  raças  para  a  sociedade  mo- 
derna. Conforme  os  escriptores  se  aproximaram 
da  cultura  greco-romana,  ou  se  itispiraram  das 
tradições  da  Edade  medieval,  assim  as  modernas 


IvLAnoRACJAO    ORCA  MCA  7 

Litteraturas  tiveram  um  clesenvolvjmento  artifi- 
cial ou  orgânico,  resultando  cFaqui  as  differenças 
dos  seus  caracteres,  embora  pertencendo  todas  á 
mesma  corrente  da  civilisação.  D'entre  essas  Lit- 
teraturas, umas  foram  elaboradas  sobre  elemen- 
tos tradicionaes  antes  do  conhecimento  dos  mo- 
delos greco-romanos  ou  clássicos,  como  a  proven- 
çal, que  se  extingue  por  falta  do  estimulo  de  uma 
nacionalidade,  *sendo  por  essa  causa  substituida 
j)ela  franccisa;  outras  foram  dominadas  pelo  pres- 
tigio das  obras  primas  clássicas,  como  a  italiana, 
((ue  se  vi\iíica  exprimindo  a  aspiração  á  vindoura 
unidade  nacional.  Entre  as  Litteraturas  hispâni- 
cas, duas  correspondem  ás  duas  raças,  a  ibérica  e 
a  lusitana,  que  subsistem  differenciadas  desde  as 
épocas  remotas  até  ás  mais  recentes  crises  histó- 
ricas, e  basta  esta  correspondência  para  descobrir 
o  seu  caracter  tradicional  e  popular  por  vezes  mo- 
dificado pel(j  pedantismo  erudito.  Em  quanto  as 
Litteraturas  castelhana  e  portuguesa  avançam  para 
a  ])erfeição  esthetica,  outras,  como  a  aragonesa, 
valenciana  e  catalã,  que  floresceram,  extinguiram- 
se,  porc|ue  o  apoio  da  nacionalidade  reduziu-se  a 
um  regionalismo  em  revolta  contra  uma  incorpo- 
ração politica  e  administrativa,  como  se  confirma 
\,z\c\  galleziana.  As  Litteraturas  modernas,  como 
observou  Frederico  Schlegel,  oscillam  n^este  dualis- 
mo, entre  os  elementos  orgânicos  tradicionaes  e 
])opulares,  e  os  modelos  clássicos  segundo  a.  in- 
fluencia erudita  dominante. 


IIISTOKIA    DA    I.1TTERATURA    PORTUGUEZA 


Factores  staticos 

O  estudo  da  raça,  reconhecido  como  revelador 
das  condições  da  vida  nacional,  é  o  preliminar 
para  a  comprehensão  da  Litteratura;  com  a  sua 
grande  auctoridade  escreveu  Spencer:  «a  Litte- 
ratura e  as  Bellas  Artes  não  podem  existir  senão 
em  virtude  das  actividades,  que  fazem  que  a  vida 
nacional  exista;  e  é  manifesto  que  a  cousa  tor- 
nada possivel  é  consequência  d'aquillo  que  a  torna 
possivel.»  E'  este  influxo  persistente  da  raça  que 
se  reconhece  i>enetrando  os  seus  caracteres  anthro- 
pologicos.  Uma  das  grandes  conclusões  scienti ficas 
em  (lue  assenta  a  Anthropologia  é  a  presistencia 
das  Raças,  nos  seus  typos  ainda  os  mais  remotos, 
e  a  conservação  dos  seus  costumes  através  dos 
mais  continuados  cruzamentos,  dando  a  revives- 
cência dos  typos  mais  numerosos  e  mais  fortes. 
Por  estes  resultados  a  Anthropologia  torna-se  um 
preliminar  verdadeiramente  reconstructivo  da  his- 
toria primitiva. 

As  concepções  mentaes,  a  intensidade  emotiva, 
as  formas  de  actividade,  e  mesmo  as  instituições 
sociaes  e  religiosas,  differenciam-se  pelas  capa- 
cidades de  cada  raça.  Como  deixar  de  considerar 
as  Litteraturas  como  reflectindo  este  cthosF 

1/^  A  Raça.  —  Segundo  Prichard,  a  designa- 
ção de  raça  comprehende  todas  os  agrupamentos 
de  individuos  que  appresentam  mais  ou  menos  ca- 


factukf:s  staticos 


cacteres  communs  transmittidos  pela  hereditarie- 
dade, deixando  de  parte  e  de  reserva  a  origem 
d'esses  caracteres.» 

Precisando  esses  caracteres  através  das  ma- 
nifestações de  uma  Litteratura  e  explicando  o  por- 
quê das  suas  formas,  não  é  isto  um  abuso  do 
critério  das  sciencias  biológicas  applicado  a  um 
phenomeno  psychico  e  social.  As  Litteraturas  dis- 
tinguem-se  entre  si  pelas  tradições  elaboradas  em 
linguas  escriptas  e  pelo  modo  de  sentir  de  uma 
nacionalidade ;  consequência  d'estes  factores  de 
ordem  moral,  nem  por  isso  estão  independentes  do 
determinismo  biológico,  que  em  anthropologia  são 
as  persistências  atávicas  ou  hereditariedade  dos  ca- 
racteres. 

Em  uma  mesma  nacionalidade,  que  unifica  po- 
liticamente diversos  elementos  ethnicos,  os  cara- 
cterísticos especiaes  d'esses  elementos  transpare- 
cem na  Litteratura,  como  tem  confirmado  a  cri- 
tica: na  Grécia,  sob  a  unidade  atheniense,  distin- 
gue-se  o  génio  dos  Dorios  e  o  dos  Jonios,  em 
arte,  em  politica  e  em  poesia,  como  o  reco- 
nheceu Ottfried  Miiller.  Sob  a  unidade  romana, 
as  tradições  lucerenses  e  ticienses  identificam-se 
com  a  historia,  e  penetrando  de  um  modo  incom- 
pleto na  litteratura  adstricta  á  imitação  da  cul- 
tura hellenica,  tomam  o  seu  maior  desenvolvi- 
mento nas  formas  sacramentaes  e  symbolicas  da 
Jurisprudência,  essa  severa  poesia,  como  lhe  cha- 
mara Viço.  Na  unidade  nacional  da  França,  os 
cantos  épicos  das  Gestas  correspondem  ao  norte  oc- 
cupado  pela  raça  franka,  em  que  preponderava  a 
instituição    feudal   e  monarchica;   as   novellas  da 


10  HISTORIA     DA     I.ITTKKATLKA     TOKT  lOT  KZA 

Tavola  Redonda  desenvolvem-se  onde  a  raça  bre- 
tã se  confinoii  conservando  os  vestígios  niythicos 
(lo  sen  druidismo;  ao  sul  o  elemento  gaulez,  com 
as  instituições  municipaes,  em  que  se  expande  so- 
bre um  fundo  po])ular  o  Lyrismo  trobadoresco, 
(|ue  irradia  da  Pnnença  por  todo  o  Occidente  eu- 
ro])eu,  pela  contiguidade  das  populações  aquita- 
nicas  com  as  duas  ])eninsulas  da  Itália  e  da  Hes- 
panlia.  Este  mesmo  critério  foi  applicado  por 
Taine  á  Litteratura  ingleza,  em  que  o  elemento 
saxão  conserva  o  génio  e  as  tradições  germâni- 
cas, a(j  passo  que  o  noriuando  submette-se  á  dis- 
ciplina da  imitação,  como  se  manifesta  na  dupla 
influencia  de  um  Shakespeare  e  de  um  Pope.  Na 
Litteratura  allemã,  Heinsius  determina-lhe  os  seus 
periodos  pela  preponderância  successiva  dos  as- 
pectos da  raça:  gótico,  até  ao  século  vtii,  franko 
até  ao  advento  dos  Holienstaufen  no  século  xii  ; 
suabio,  ou  dos  Minncsinger,  rhenano  ou  saxoiiio, 
da  erudição  e  das  Universidades  do  século  x  n-  a 
x\i  :  o  silcsio  e  siiisso,  em  (|ue  im])era  a  infiueiicia 
franceza,  e  por  lim  a  integração  allciità,  em 
([ue  a  plêiada  dos  grandes  génios  se  inspira  nas 
tradições  germânicas.  Na  Litteratura  russa,  o  gé- 
nio slavo,  sob  a  pressão  da  ideia  asiática  realisada 
na  soberania  autocrática,  e  das  imixirtações^  occi- 
dciitacs  da  administração,  ha  um  antagonismo  em 
(|ue  o  génio  nacional  se  revela  na  exaltação  mys- 
tica,  no  illuminismo  religioso,  politico  e  humani- 
tarista.  Mesmo,  os  velhos  monumentos  litterarios 
e  artisticos  têm  prestado  dados  ethnologicos  para 
se  discriminarem  raças  que  não  era  ])ossi\el  dis- 
tinguir physiologicaniente. 


l-ACTORlvS.   ST  \1~1C()S 


Sob  este  critério,  ha  um  outro  importante  phe- 
nomeno  a  considerar:  o  encontro  e  fusão  de  duas 
raças  determina  uma  revivescência  de  tradições 
hierologicas  oii  poéticas,  como  se  vê  na  Grécia, 
com  os  elementos  semitas  dos  cultos  orgiasticos 
e  anthropopathicos  nas  Epopêas ;  egual  crise  na 
Europa  medieval  com  as  invasões  germânicas,  que 
determinam  a  elaboração  das  Cantilenas  em  Ges- 
tas ao  norte,  e  com  as  invasões  árabes  ao  sul,  que 
favorecem  com  intuito  social  a  propagação  do  ly- 
rismo  trobadoresco  meridional.  E'  pois  o  estudo 
(la  raça  na  historia  de  qualquer  litteratura  o  meio 
de  descobrir  a  base  tradicional  sobre  que  se  des- 
envolveu, e  d'ella  deduzir  o  que  tenha  de  origina- 
lidade e  feição  nacional. 

Portugal,  desde  que  se  constituiu  em  naciona- 
lidade no  século  xii,  occupa  o  território  da  faixa 
Occidental  da  peninsula  hispânica  desde  o  rio  Mi- 
nho até  ao  Algarve;  este  território  é  ainda  o  que 
foi  occupado  pelas  tribus  lusitanas,  tendo  a  menos 
a  Galliza  e  a  Andalusia,  que  formavam,  segundo 
Stra])ão,  no  seu  conjuncto  a  Lusitânia  dos  an- 
tigos. 

Tratando  de  Portugal,  o  problema  da  raça,  é 
do  mais  alto  interesse.  Existe  de  facto  uma  raça 
portuguczaf 

A  esta  i^ergunta,  respondeu  Alexandre  Her- 
culano negativamente,  considerando  a  Lusitânia 
um  território  differente  do  de  Portugal,  e  o  Lu- 
sos umas  tribus  barbaras,  com  quem  o  povo  \)0\'- 
tuguez  nada  tinha  de  commum,  por  ser  um  ele- 
mento adventício,  transplantado  das  x^sturias  e  do 
reino  de  Leão;   que  pretender   relacionar  os  da- 


]J  HISTORIA    DA    LITTEKATUKA    fOKTlT.UKZA 


dos  de  Strabão  sobre  os  Lusitanos  com  os  por- 
tiiguezes,  era  nma  preoccupaçao  heráldica  dos  hu- 
manistas do  século  XVI.  Como  poderia  o  histo- 
riador comprehender  o  individualismo  ethnico  de 
Portugal?  Peior  do  que  Herculano,  veiu  o  phra- 
sista  Oliveira  Martins,  considerando  Portugal 
essa  horda  de  adventicios  asturo-leonezes  sub- 
mettendo-se  á  aggregaçao  de  uma  nacionalidade 
pelas  ambições  e  esforços  continuados  dos  politi- 
cos  dirigentes.  Assim,  os  dois  historiographos, 
desnacionalisando  Portugal,  como  favorecidos  pela 
dynastia  dos  Braganças  consideravam  ainda  um 
l)eneíicio  providencial  que  ella  explorasse  isto  na 
irresponsabilidade.  Outra  desnaturação  do  typo 
portuguez  é  feita  pelos  eruditos  que  compilam  fa- 
ctos, que  identificam  Portugal  com  um  paiz  de 
Celtas,  sem  conhecerem  nem  a  chronologia  d'esta 
raça,  nem  os  seus  caracteres  anthropologicos  em 
antithese  com  os  dos  portuguezes.  E,  já  é  favor: 
por  que,  para  os  nossos  visinhos  castelhanos  não 
lia  differença  alguma  entre  Hespanhoes  e  Portu- 
guezes, são  um  povo  único! 

A  eterna  divortia,  definida  por  Silio  Itálico, 
na  sua  Púnica,  entre  Iberos  e  Sceltos,  é  ainda 
hoje  implacavelmente  mantida  nas  duas  naciona- 
lidades hispânicas.  Não  é  obra  da  politica,  nem 
completamente  devida  á  acção  mesologica,  mas 
ás  di  ff  crenças  anthropologicas  de  duas  raças,  a 
ibérica  e  a  lusitana,  evolucionando  nas  situações 
primitivas.  A  Peninsula  da  Hespanha  está  dividida 
pelos  Pyreneos  em  duas  vertentes,  a  oriental,  oc- 
cupada  pelos  Iberos,  e  a  occidental  pelos  Lusita- 
nos, mantendo  através  de  todos  os  cataclysmos  so- 


FACTORES    STATICOS  13 


ciaes  e  históricos  as  suas  individualidades  ethni- 
cas,  manifestando-se  ao  fim  de  tantos  séculos  a 
Nacionalidade  castelhana  e  a  Nacionalidade  por- 
tugueza,  sempre  inconfundiveis.  Ha  aqui  alguma 
cousa  acima  das  vontades  individuaes  e  das  am- 
bições transitórias. 

Pela  situação  d'estas  duas  raças  deduz-se  a  sua 
differente  proveniência.  A  Epigraphia  e  a  Lin- 
guistica põem  em  evidencia  o  desenvolvimento  de 
um  povo  emigrante,  revelado  pela  toponymia  e 
pelas  inscripçÕes  votivas  a  deuses  ainda  hoje  ado- 
rados entre  tribus  de  raça  mongolóide;  os  escri- 
ptores  antigos  chamaram  a  esse  povo  cpie  occupou 
a  vertente  oriental  da  Peninsula  /6^ro.y,  emprega; 
dos  na  exploração  dos  jazigos  metalliferos,  prin- 
cipalmente o  estanho  (ah:}').  Segundo  Bergmann, 
pertencem  a  essa  raça  da  alta  Ásia,  que  faz  a 
transição  entre  a  raça  amarella  e  a  ariana.  Per- 
tencem a  este  grupo  ethnico  o  Berber,  o  africano 
l^ranco,  os  Ethiopes  ou  Lybios,  espalhando-se 
pelo  Mediterrâneo  e  occupando  as  suas  ilhas;  es- 
tendendo-se  á  Itália,  França  e  Inglaterra,  consti- 
tuindo um  fundo  ethnico  commum,  que  se  revela 
nos  monumentos  archeologicos,  nos  vestígios  de 
mythos  religiosos,  superstições  e  recorrência  dos 
costumes. 

Na  vertente  occidental  estabeleceu-se  o  Luso, 
ramo  de  uma  raça  navegadora  que  fazia  o  com- 
mercio  do  âmbar,  do  mar  do  Norte,  os  Ligures. 
Distingue-se  esta  raça  pela  sua  estatura  mediana, 
e  cabeça  redonda;  pela  còr  trigueira  da  pelle,  ca- 
bellos  e  olhos  castanhos,  e  leptorhinia.  Póde-se 
considerar  o  encontro  de  Iberos  e  Lusos  na  Hes- 


14  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    PORTUGUEZA 

panha  como  a  unificação  cVaqiiella  grande  raça 
sociológica  de  que  falia  Ephoro,  seguindo  a  geo- 
graphia  hesiodica  e  phenicio-grega,  conforme  a  qual 
a  Europa  era  occupada:  na  região  do  Norte  pelos 
Hyperboreos.  Cimmerios  ou  propriamente  os  Scy- 
thas:  na  região  occidental,  pelos  IJgnres,  também 
denominados  Skeltos  e  Atlantes;  e  na  região  do 
Sul,  pelos  Ethiopes  ou  Lybios,  os  Hamitas  que 
propagam  ao  Egypto  e  Cbaldêa  a  sua  cultura. 
Este  quadro,  conservado  por  Epboro,  com])rehende 
\'erdadeiramente  a  grande  Civilisação  occidental 
ou  íh-onzifera,  que  precedeu  as  civilisações  aria- 
nas, e  que  se  deve  designar  pelo  nome  de  Turania- 
iia,  por  que  assim  a  denominou  o  mundo  avestico 
oriental.  E  este  titulo  de  Turan,  de  uma  grande 
extensão  geograpbica,  proveiu  do  seu  Zodiaco,  le- 
\ado  á  America,  á  índia  e  ao  Egypto,  em  que  o 
curso  do  anno  estival  começava  sob  o  appareci- 
niento  da  Constellação  do  Touro.  Como  facto- 
res (Testa  Civilisação  occidental,  Iberos  e  Lusos 
não  eram  incompativeis ;  as  circumstancias  porém 
foram  fortificando  o  elemento  ibérico  pelas  mi- 
grações do  Busk,  do  norte  da  Europa,  do  Lybio- 
Phenicio,  vindo  da  Africa,  e  mais  tarde  pela  sua 
fusão  com  os  Celtas  errantes  no  vi  século  antes 
da  nossa  éra.  O  Luso  foi  comprimido  na  região 
da  vertente  occidental  da  Hespanba  mas  não  assi- 
milado; o  Ibero  nunca  perdeu  a  sua  tendência 
absorvente,  como  o  mostra  desde  a  época  liistorica 
o  unitarismo  casfcllianisfa. 

Esta  primitiva  extensão  do  território  mostra- 
nos  como  a  população  lusitana  pôde  contrabalan- 
çar-se  com  a  população  ibérica,  cujos  caracteres 


FACTORES    STATICOS 


são  nitidamente  differenciados  pelos  geographos 
gregos  c  romanos.  Eml)ora  diminuído  o  território 
pelas  divisões  administrativas  romanas,  e  pelas  in- 
corporações neo-goticas,  o  ])equeno  Portugal  de 
hoje  nunca  perdeu  a  população  lusitana  que  o  oc- 
cupava,  podendo  affirmar-se  pelos  recursos  da 
comprovação  antbropologica,  que  não  ha  solução 
de  continuidade  do  typo  luso  para  o  portugucc 
actual.  Herculano  errou  quando  af firmou  gratui- 
tamente a  discontinuidade.  As  di  ff  crenças  do  Ibero 
c  do  Luso  ainda  hoje  se  impõem  á  observação  no 
antag(Miismo  politico,  intellectual  e  moral ;  não  os 
separam  fronteiras  materiaes,  nem  tão  pouco  in- 
stituições religiosas  ou  sociaes,  mas  prevalece  uma 
immanente  antinomia.  E'  na  raça  que  ella  se 
hade  encontrar. 

O  Luso  é  um  ramo  da  grande  raça  dos  Ligu- 
res,  ou  pre-celtica :  Hesiodo  assim  chamava  aos 
Povos  do  Occidente,  ix  séculos  antes  da  nossa  era; 
este  mesmo  nome  de  Ligures  era  dado  por  Eschylo 
(vi  século  a.  G.)  á  poderosa  gente  que  occupava 
o  Occidente;  os  povos  que  occupavam  a  península 
hispânica  e  a  Gallia  meridional  eram  chamados 
])or  Heródoto  Ligures,  nome  que  Strabão  diz  que 
no  i\'  século  (a.  C.)  designava,  segundo  Eratosthe- 
nes,  os  povos  do  Mediterrâneo.  Plutarcho  acha 
Iber.os  em  coexistência  com  os  Ligures  na  bacia 
do  Mediterrâneo.  Das  migrações  Hguricas  das 
bordas  do  Báltico,  em  frente  da  Scandinavia,  como 
estai )elece  Martins  Sarmento,  chegaram  á  penín- 
sula hispânica  as  tribus  lusitanas,  que  occuparam 
a  orla  marítima  occidental,  encontrando  já  estabe- 
lecidas mais  ])ara  leste  as  tribus  ibéricas.    Custou 


■ 


l6  HISTORIA    DA    LITTERATURA  •PORTUGUEZA 

muito  a  destacar  este  substratum  ligurico  confun- 
dido com  os  povos  Célticos,  aquelle  ainda  na  civi- 
li sacão  bronzifera,  estes  já  possuidores  do  ferro. 
Belloguet  demonstrou  esta  camada  ethnica  para  a 
França,  Celesia  e  Molon  para  a  Itália,  e  Martins 
Sarmento  para  o  pequeno  estado  fragmentário  de 
Portugal.  Os  Gallos,  os  Ombrios  (reteres  Galli), 
os  Callaici  ou  Gallaici  da  Hespanha  são  anterio- 
res aos  Celtas  e  di  ff  crentes  d'elles  em  typo  an- 
thropologico,  e  caracteres  ethnicos.  Foi  Strabão 
o  que  consignou  este  substratum,  com  que  se  re- 
constitue  a  extensão  da  Lusitânia  dos  antigos; 
diz-nos  (III,  III,  6,  7)  que  os  Lusitanos,  os  Gal- 
lezianos,  os  Asturianos  e  os  Cantabros  tinham  to- 
dos os  mesmos  usos  e  costumes,  e  não  acha  ana- 
logia alguma  com  os  costumes  e  usos  dos  Celtas. 
Quando  fixa  analogias  é  com  os  Ligures,  e  com 
os  Gregos,  nome  dado  a  colónias  do  norte,  i  A  esta 
Lusitânia  pertencia  pela  raça  a  Tartessida,  ou 
Turdetania,  Betica  ou  moderna  Andalusia.  Como 
era  um  povo  aguerrido  e  de  instincto  de  indepen- 
dência, os  Romanos  trataram  de  desmembrar  o 
seu  território,  dividil-o  administrativamente;  se- 
gundo Strabão,  a  Lusitânia  abrangia  toda  a  fai- 
xa Occidental  da  Hespanha  desde  o  Tejo  até  ao 
mar  Cantabrico;  mas  já  no  tempo  de  Plinio,  es- 
tava fora  a  Gallecia,  começando  a  Lusitânia  no 
rio  Douro  e  acabando  no  litoral  do  Algarve.  Por 
este  tracto  de  território,   em  que  veiu  a  consti- 


I     Sarmento,  Lcs  Lusitaniens,  p.  405,  do  Compte-rendu 
do  Coiigrès  anthropologique  de  t88o. 


FACTOKKS    STATlCOS  I7 


tuir-se  um  dia  o  Estado  de  Portugal,  vê-se  que 
essa  nova  nacionalidade  appareceu  no  século  xii 
como  uma  rcvwcsccncia  ethnica.  Sobre  a  impor- 
tância das  povoações  liguricas  escreve  Lemière : 

uEmfim,  era  preciso  que  os  indígenas  da  Ibé- 
ria marítima  fossem  muito  realmente  Ligurcs, 
j)ara  que  um  geographo  tão  instruído  como  Eras- 
tothenes  fallando  das  três  grandes  Peninsulas  da 
Iuu"opa  meridional,  a  que  cliama  promontórios, 
entendesse  poder  designar  com  o  nome  de  Li- 
giisiica  a  que  formava  a  Ibéria.»  i 

Por  esta  importância  se  explica  como  a  inva- 
são dos  Celtas  na  Hespanha  actuou  diversamente 
sobre  os  Iberos  e  sobre  os  Lusitanos.  Martins 
Sarmento,  ao  par  de  todos  os  trabalhos  dos  an- 
tliropologistas  modernos,  define  o  Celta:  araça 
puramente  septemtrional  e  radicalmente  distincta 
physica  e  moralmente  das  populações  occidentaes 
e  meridionaes  da  Europa ;  uma  onda  de  bárbaros 
(jue  entre  o  vi  i  i-vii  século  rebenta  d'além  do  Bál- 
tico sobre  o  continente,  espraiando-se  em  bandos 
mais  ou  menos  numerosos  por  di  ff  crentes  dire- 
cções e  perdendo-se  ])or  fim,  mesmo  como  raça 
característica,  salvo  n'um  ou  n'outro  ponto,  no 
s?io  dos  povos  com  os  quaes  acabou  por  se  fun- 
dir.» 2  Desde  (|ue  os  geographos  e  historiadores 
antigos,  como  diz  Vivien  de  Saint  Martin,  desi- 
gnavam com' o  nome  de  Célticas  as  nações  indis- 
tinctamente  das  regiões  ao  norte  do  Ister   (Ger- 


r     Btude  sur  les  Celtcs  et  las  Gaulois,  p.  71. 

2     Celtas  na  Lusitânia   (Revista  scientifica,  pag.  80). 


iS  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


mania)  e  ao  oeste  do  Rheno  comprehendendo  tam- 
bém a  Hispânia,  fácil  foi  fazer  a  confusão  attri- 
buindo  aos  Celtas  usos,  costumes  e  linguas  de 
outros  povos ;  e  lidos  esses  livros  sem  exame  cri- 
tico, diffundiu-se  o  enigma  céltico,  que  tanto  tem 
perturbado  a  intelligencia  da  historia  e  mesmo  a 
philologia.  I  Em  que  condições  se  operou  a  in- 
vasão dos  Celtas  louros  e  corpulentos  na  Hespa- 
nha?  Sarmento  escreve:  «A  turba...  que  tomou  o 
caminho  do  Rhodano  tem-se  empobrecido  antes 
de  entrar  na  Hespanha  com  os  desfalques  exigi- 
dos pelas  invasões  da  bacia  do  Pó  e  pela  occupa- 
ção  do  litoral  dos  Pyreneus,  onde  deve  ter  ficado 
uma  parte  considerável...»  2  £ni  presença  dos 
Iberos  tiveram  de  afroixar  na  violência  do  ata- 
que, e,  como  observa  Sarmento,  diante  do  facto 
histórico :  «As  hostilidades  acabam  por  uma  trans- 
acção amigável ;  Celtas  e  Iberos  formam  uma  na- 
ção mixta  os  Celtiberos,  uma  verdadeira  federação, 
onde  não  ha  dominadores  nem  dominados  —  fa- 
cto que  parece  es(|uecerem  os  que  nos  faliam  da 
dominação  céltica  na  Hespanha.»  (Ib.,  p.  133.) 
Em  frente  dos  Lusitanos  a  invasão  céltica  foi 
mesquinha,  pela  inferioridade  do  seu  numero  e 
da  sua  cultura ;  os  Celtas  do  Ana  admittidos 
pelos  Turdetanos,  são-lhes  intellectualmente  in- 
feriores, como  observa  Strabao;  e  esses  mes- 
mos, que  se  estabelecem  no  promontório  Ne- 
rio,  quatro  tribus  aSão  os  únicos  que  appareccin 
na  Lusitânia.))    (Ib.)  A  obsessão  dos  Celtas  levou 


1  Celtas  na  Lusitânia  (Revista  scicntifica,  pag.  82). 

2  Ib.,  pag.   132. 


FACTOKKS    STATíCOS  I9 


certos  eruditos  a  vêr  no  onomástico  da  Lusitânia 
nomes  célticos,  e  tiraram  da  sua  hypothese  ar- 
gumento decisivo;  contra  este  argumento  oppõe 
Sarmento :  «a  Ora  maritima  menciona  nas  Ilhas 
Britânicas  e  no  Occidente  da  Hespanha  nomes 
taes  como  Albiones,  Hierni,  Ana,  que  como  se  vê 
não  podem  pertencer  á  onomástica  céltica,  tendo 
aliás  uma  physionomia  céltica  muito  pronunciada. 
Existe  pois  uma  lingua  pre-celtica  que  pôde  ex- 
plicar alguns  nomes  pseudos-celticos.  Porque 
não  hade  explicar  todos  os  outros  que  forem  da 
mesma  natureza?»  (Ib.,  p.  300.)  Mas  a  Celto- 
mania  do  tempo  de  Bullet  reappareceu  com  appa- 
ratos  philologicos,  submettendo  a  processos  pho- 
neticos  comparativos  com  os  dialectos  preceltiços 
existentes  na  Escócia,  Irlanda  e  Bretanha  fran- 
ceza  todas  as  palavras  pretendidas  célticas. 

Escreve  Roisel,  mostrando  que  as  linguas  im- 
])ropriamente  chamadas  Célticas,  o  irlandez,  o 
gadhélico,  erse  e  o  manx  (ramo  gaelico)  e  o 
welche,  o  idioma  de  Cornnwald,  o  armoricano  ou 
baixo  bretão,  pertenceram  a  esse  povo  primitivo 
bronzifero,  que  desceu  do  norte  da  Europa,  e  que 
hoje  se  reconhece  como  Ligiire,  aponta  um  diale- 
cto, o  antigo  moriniano,  f aliado  ainda  em  um  re- 
canto do  noroeste  da  França  entre  o  Lys  e  o  mar. 
(Lcs  Atlantes,  p.  106.)  Quando  nos  poemas  ho- 
méricos se  falia  nos  Hyperboreos,  citam-se  os 
Campos  Elysios,  no  extremo  da  terra;  e  Virgilio 
colloca  esse  extremo  no  «paiz  dos  Morinios,  e  a 
dupla  embocadura  do  Rheno.»  Para  os  escripto- 
res  antigos,  como  Solino,  o  cabo  do  mundo  era 
a  costa  maritima  das  Galhas.»    (Op.  cit.,  p.  136). 


-O  lilSTOKlA    DA    IvlTTKKATUKA     PORTUGUliZA 


A  imasão  d(3s  Celtas  na  Europa  foi  a  ruina 
(la  C'i\iHsaçã()  occidental  on  bronzifera;  esta, raça 
corpulenta  e  nómada,  de  olhos  azues  e  cornada 
fCiiali),  ]x)ssuin(l()  armas  de  ferro,  vinha  á  de- 
pradação  de  um  mundo  rico  pelo  commercio  ma- 
ritimo  e  fluvial  e  pelas  producçÕes  da  agricultura. 
Os  Celtas  iniciaram  a  lucta  ainda  hoje  persistente 
dos  homens  corpulentos  do  Norte  contra  os  ho- 
mens medianos  do  Sul.  No  século  v  da  nossa 
era,  os  Germanos  continuaram  essa  devastação, 
descendo  para  o  sul  e  destruindo  a  civilisação  ro- 
mana, pelas  hordas  de  Lombardos,  Frankos,  Sa- 
xões, Godos  e  Suevos;  ainda  hoje  mantêm  o  mes- 
mo espirito  de  occupação  militar  e  de  espoliação. 

Alas  a  ruina  da  Civilisação  bronzifera  ou  atlân- 
tica durou  desde  o  século  viii  para  vii  antes  da 
era  moderna,  até  que  os  Romanos  dirigindo  a  sua 
conquista  militar  para  o  Occidente,  na  Hespanha, 
nas  Galhas  e  nas  Bretanhas,  influíram  pela  sua 
organisação  administrativa,  fundada  no  reconhe- 
cimento das  garantias  locaes,  que  se  operasse  a 
revivescência  d'essa  antiga  Civilisação  ou  a  renas- 
cimento ligurico.  Historiadores  modernos,  ainda 
desvairados  pelo  prestigio  de  Roma,  consideram 
este  phenomeno  extraordinário  para  quem  desc(v 
nhecer  os  antecedentes,  como  assimilação  da  cul- 
tura latina.  Não  era  em  dois  séculos  que  povos 
bárbaros,  como  pintaram  os  Iberos,  Lusitanos, 
Gaulezes  e  Bretões,  podiam  assimilar  a  alta  civili- 
sação dando  a  Roma  philosophos,  jurisconsultos, 
rhetoricos,  poetas  lyricos,  épicos  e  trágicos,  e  até 
im])eradores.  Tudo  isto  é  na  essência  um  renas- 
cimento ligurico. 


KACTORHS    STATICOS  21 


Nem  a  invasão  já  enfraquecida  dos  Celtas,  na 
Hespanha ;  nem  os  Romanos  pela  sua  falta  de  nu- 
mero entre  os  mercenários  das  suas  legiões,  nem 
os  Phenicios  pela  sua  incommunicabilidade  semita, 
se  mestiçaram  com  os  Lusitanos,  conservando-se, 
como  observaram  Frederico  Edwards  e  Deniker, 
a  raça  mais  pura  da  Europa. 

O  estado  de  pureza  das  tribus  Lusitanas  é  que 
as  fez  resistir  a  outros  invasores,  conservando  ca- 
racteres próprios  cuidadosamente  descriptos  por 
Strabão;  mesmo  certas  analogias  com  costumes 
gregos  são  explicáveis  pelo  contacto  com  colónias 
mercantis  dos  Jonios  do  sul  da  França  e  da  Hes- 
panha; os  Jonios  tinham  seguido  a  exploração  do 
Mediterrâneo  para  oeste,  vindo  encontrar-se  na 
Peninsula  hispânica  com  os  Phenicios.  A  supe- 
rioridade d 'este  ramo  semita  no  commercio  paci- 
fico, não  actuou  na  população  lusitana,  embora 
sejam  phenicias  muitas  designações  topológicas, 
nem  nos  dialectos  precelticos  peninsulares,  embora 
a  sua  influencia  fosse  continuada  por  colónias 
lyl)io-phenicias,  dominio  carthaginez  e  colonisa- 
ções  judaicas.  O  conflicto  das  navegações  e  em- 
pórios dos  Jonios  e  dos  Phenicios  fez  com  que 
aquelles  chamassem  os  Romanos  para  os  substi- 
tuirem  na  lucta,  dando  em  resultado  a  ruina  da 
raça  semita  no  occidente  até  ao  apparecimento  e 
invasão  dos  Árabes.  Na  sua  lucta  contra  os  Ro- 
manos, os  Carthaginezes,  colónia  phenicia  do  norte 
da  Africa,  exploraram  as  povoações  Celtibericas 
acordando-lhes  o  espirito  de  autonomia  para  resis- 
tirem contra  as  legiões  romanas. 

Roma  ia  fixando  o  seu  dominio  em  Hespanha 


I 


22  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

pela  concessão  de  garantias  politicas,  estendendo 
o  direito  itálico  ás  novas  provincias,  vindo  sob  o 
Império  a  realisar-se  a  primeira  unificação  his- 
pânica. Todas  as  luctas  foram  sustentadas  contra 
Roma  pelos  Lusitanos,  e  Viriatho,  o  guerrilheiro 
que  derrotava  os  Procônsules,  fortificava-se  pelas 
allianças  federativas,  que  tornariam  a  Hespanha 
livre.  E'  esse  vulto  extraordinário  que  representa 
esplendidamente  a  raça;  caiu  pelo  assassinato  da 
traição  romana,  e  com  elle  a  independência.  A 
cultura  romana  facilmente  assimilada,  como  se  vê 
pela  biographia  de  Sertório,  em  nada  actuou  na 
raça  lusa;  os  soldados  com  que  Roma  combatia 
e  mantinha  a  occupação  eram  de  ordinário  mer- 
cenários germânicos,  bem  como  o  seu  colonato. 
Dada  a  quasi  semelhança  do  typo  celta  e  do  ger- 
mânico, como  observou  Strabão,  dizendo  —  que 
podiam  passar  por  irmãos,  com  costumes  idên- 
ticos, pôde  distiguir-se  a  sua  influencia  na  mes- 
tiçagem com  as  populações  celtibericas  determi- 
nando uma  regressão  ao  typo  céltico,  loiro,  ao 
passo  que  na  Lusitânia  não  se  modificou  o  typo  tri- 
gueiro e  meã  estatura. 

Escreve  J.  J.  Ampere,  na  sua  Histoire  litterai- 
re  de  la  France  avant  Charlemagne,  (ii,  97) :  «O 
uso  imprudente  de  recrutar  os  exércitos  romanos 
entre  os  bárbaros  fez  progressos  bastante  rá- 
pidos. Probo  deu  o  exemplo  de  uma  reserva  pru- 
dencial,  que  deixou  mais  tarde  de  ser  imitada ; 
elle  determinou  o  numero  de  l)arbaros  que  po- 
deria admittir-se  n'uma  legião;  apesar  d'isso  hou- 
ve legiões  inteiras  exclusivamente  de  bárbaros.» 
D'este  erro  politico  resultaram  duas  consequen- 


FACTORES    STATICOS 


cias :  a  facilidade  da  queda  do  Império  no  sé- 
culo V,  diante  das  invasões  germânicas,  e  a  fácil 
assimilação  da  cultura  latina  pelos  Visigodos  em- 
quanto  á  unidade  imperial  e  emprego  da  lingua 
dos  Códigos  e  nos  tribunaes.  A  Egreja,  adoptan- 
do para  a  sua  liturgia  a  lingua  latina,  e  espalhan- 
do a  traducção  da  Vulgata,  cooperava  também  no 
desenvolvimento  dos  dialectos  hispânicos  com  um 
vasto  vocabulário  latino.  D 'aqui  a  illusão  de  um 
la  fim  rústico  dando  logar  á  creaçao  das  Linguas 
vulgares  chamadas  novo-latinas.  Outra  illusão  é 
a  de  chamar  povos  românicos  ou  raça  latina  ás 
modernas  nacionalidades,  que  pela  restauração  da 
tradição  imperial  nas  monarchias  germânicas,  e 
pelo  processo  civil  romano  nos  tribunaes  durante 
a  Edade  média,  chegaram  no  Occidente  da  Eu- 
ropa a  dar  uma  certa  unidade  á  civilisação  mo- 
derna. 

A  raça  germânica,  continuando  a  lucta  dos  ho- 
mens corpulentos  do  Norte  contra  os  homens  meãos 
do  Sul,  apparece  egualmente  na  Itália  com  a  inva- 
são dos  Ostrogodos  e  Lombardos ;  em  França  com 
a  dos  Frankos  e  Borguinhões;  na  Inglaterra  com 
os  Anglos  e  Saxões ;  na  Hespanha  com  Visigodos, 
Suevos,  e  Alanos.  Dava-se  esta  calamidade  no 
século  V  da  nossa  era.  Esta  similaridade  de  ele- 
mentos ia  actuar  sobre  as  instituições  sociaes,  de- 
terminando os  dois  typos  do  Estatuto  pessoal  e  do 
Estatuto  territorial,  fundados  na  tribu  e  no  can- 
tão; mas  em  quanto  á  mestiçagem  da  raça  pouca 
transformação  podia  produzir,  por  isso  que  essas 
raças  do  norte  rapidamente  se  extinguiram  nos 
paizes   quentes   em   que   estacionaram.     Pela   ex- 


-   1  inSTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 

tensão  da  Lusitânia  a  dos  antigos,  espalharam-se 
as  trihus  germânicas,  os  Suevos  e  depois  os  Vi- 
sigodos na  Galliza;  os  Vândalos  occuparam  a 
Betica,  e  na  parte  central  lusitanica  os  Alanos, 
tribus  que  passaram  para  a  Africa  do  norte,  dan- 
do logar  á  ultima  e  mais  forte  invasão  dos  Vi- 
sigodos, (|ue  se  tinham  fixado  na  Aqnitania.  Se 
a  historia  da  Hespanha  começa  com  o  dominio 
dos  Romanos,  a  formação  da  sociedade  moderna 
começa  com  o  império  \'isigotico.  E'  esta  pro- 
])riamente  a  importância  do  elemento  germânico. 
A  continuidade  das  invasões  fez  com  que  a  ban- 
do guerreira  e  a  banda  agricola  eguaes  como  ho- 
mens livres  (werh-rnan)  se  differenciassem,  pre- 
valecendo os  homens  de  armas  sobre  a  decadência 
da  outra  classe,  que  se  foi  misturando  com  as  po- 
pulações vencidas,  do  colonato  romano,  os  lidi, 
leude,  lazd  ou  Lige.  Nesta  separação  estabelece- 
se  um  antagonismo  mais  profundo,  em  que  a  no- 
breza militar  (os  duques,  condes,  marquezes  e  ba- 
rões) adoptam  as  leis  imperiaes  romanas  do  Có- 
digo tlieodosiano,  abandonam  o  culto  de  Odin 
l)elo  catholicismo  de  Roma ;  a  classe  dos  lites,  (os 
aldios,  lac::i  e  vassns,)  alliam  as  suas  crenças  de 
Hertha  com  o  christianismo  tradicional,  conservam 
os  seus  costumes  e  symbolos  juridicos,  e  numerosas 
tradições  poéticas,  que  se  transmittiam  oralmente, 
e  se  confundiam  com  as  das  preexistentes  raças. 

O  orgulho  aristocrático  cada  vez  se]:)arava  mais 
a  classe  guerreira  ou  senhorial ;  e  a  decadência 
das  garantias  do  antigo  homem-livre  cada  vez  syn- 
crctisava  mais  os  lites  com  as  populações  lusibé- 
ricas,  que  nunca  tinham  sido  destruidas,  nem  es- 


FACTORKS     STATICOS  2=, 

cravisadas.  Era  n'esta  população  numerosa,  que 
procurava  a  estabilidade  territorial  e  a  revives- 
cência das  suas  garantias  (a  fará)  que  havia  de 
organisar-se  a  sociedade  moderna  da  Hespanha. 
Uma  circumstancia  determina  esse  grande  phe- 
nomeno:  a  invasão  dos  Árabes  em  711. 

Se  uma  só  batalha,  a  de  Guadelete,  destruiu 
o  império  visigótico,  é  por  que  elle  se  achava  sem 
apoio,  e  só  sustentado  por  uma  diminuta  classe 
privilegiada.  E'  essa  a  que  constitue  os  refugia- 
dos das  Astúrias,  e  que  fortificando-se  na  unifica- 
ção catholica,  tentam,  ao  passo  que  avançam  na 
reconquista,  restabelecer  os  velhos  privilégios  aris- 
tocráticos com  leis  aprocryphas  e  romanas  forman- 
do o  Código  visigótico.  Mas  sob  o  poder  dos 
Árabes,  tolerantes  em  quanto  á  crença,  garantias 
locaes  e  actividade,  as  populações  sedentárias  dei- 
xaram-se  ficar,  e  foram  evolucionando  em  um  pro- 
gresso social  que  as  levou  a  restabelecerem  as  suas 
primitivas  liberdades  cantonaes,  elevando-se  aos 
pactos  federativos  das  Bchetrias,  para  as  quaes 
mais  tarde  formulariam  os  pequenos  estatutos  tcr- 
ritoriacs,  ou  Cartas  pueblas  e  Foraes.  Do  século 
VI  ]  I  até  ao  século  xi  é  que  se  opera  esta  transfor- 
mação de  classes  servas  e  decahidas  de  liberdade 
em  povos  livres  que  hão  estabelecer  novas  nacio- 
nalidades. Designa-se  esta  população  numerosa  e 
com])lexa  nos  seus  elementos  pelo  nome  de  Mo- 
sarabc,  que  significa  aquelle  que  estando  em  con- 
vivência com  o  Árabe  o  imita  nas  maneiras  exte- 
riores da  existência  ( inost' árabe ) ,  mas  conserva- 
\a-se  na  religião  christã ;  e  as  populações  agríco- 
las e   fabris,   que  para  obterem   uma   diminuição 


j6  ÍIISTOKIA    DA    LITTER ATURA    PORTUGUEZA 


dos  impostos  adoptavam  o  culto  do  Islam,  por 
esta  protecção  eram  chamados  Miilladies  (do  árabe 
manias,  cliente.)  Tal  era  a  vitalidade  d'estes  ele- 
mentos sociaes,  que  a  nobreza  dos  Asturo-leo- 
nezes  debalde  tentou  na  reconquista  do  solo  his- 
pânico restabelecer  as  instituições  senhoriaes;  ao 
passo  que  a  realeza  teve  de  reconhecer  nas  Cartas 
pnchlas  e  Poraes  as  garantias  locaes  dos  Mosara- 
bes  e  Mulladics.  Muííoz  y  Romero  viu  admira- 
velmente a  organisação  d'estes  factores  sociaes, 
em  que  as  formas  civis  e  politicas  appareciam  nos 
Concelhos  e  nos  processos  como  uma  revivescên- 
cia do  germanismo,  mas  fortificando  a  cultura  lu- 
so-iberica.  ^ 

Quando  se  constituiu  a  nacionalidade  portu- 
gueza,  no  século  xii,  foi  essa  população  dos  Mo- 
sarabcs  a  matéria  prima;  era  ella  que  estava  no 
território  da  obliterada  Lusitânia.  Escreve  Her- 
culano: «Dos  territórios  da  Hespanha,  nenhum 
talvez  mudou  mais  vezes  de  senhores  durante  a 
lucta,  do  que  os  districtos  de  Entre  Douro  e  Tejo, 
sobretudo  nm  proximidades  do  oceano,  e  por  ven- 
tura em  nenhum  ficaram  mais  vestigios  da  exis- 
tência da  sociedade  mosarabica,  da  sua  civilisação 
material,  das  suas  paixões,  dos  seus  interesses  en- 
contrados, e  até  dos  seus  crimes.»  -  Por  um  feliz 
lapso  de  penna,  Herculano  chega  a  chamar-lhe 
raça  mosarabc.     Kra    a    intuição   inconsciente   da 


1  Fail  sobre  esta  these  que  trabalhámos  desde  1867 
nos  Poraes,  e  em  1871  nas  Èpopcas  da  Raça  mosarabe, 
mas  sempre  'incomprehendido. 

2  Hist.  de  Portugal,  5  v. 


FACTOR  RS    STATICOS  2J 


persistência  do  antigo  typo  lusitano,  que  tinha 
muitas  vezes  mudado  de  dominadores,  mas  que 
conservava  o  seu  modo  de  ser,  paixões  e  interesses. 

Depois  de  dominada  a  invasão  dos  Árabes  pe- 
los neo-godos,  a  separação  entre  o  Ihero  e  o  Lusi- 
tano ficou  ainda  mais  accentuada.  A  occupação 
dos  árabes  fez-se  principalmente  com  tribus  de 
Mouros  e  Berberes;  e  operando-se  o  cruzamento 
com  os  hispano-godos  estabelecia-se  uma  certa  re- 
corrência de  caracteres  ethnicos  do  Ibero:  na  re- 
conquista as  colónias  maurescas  e  berberes  prefe- 
riram ficar  no  solo  hispânico.  Todas  as  luctas  dos 
Emirados  árabes,  e  todas  as  dissidências  que  em- 
baraçaram a  consolidação  do  Império  árabe  na 
Hespanha,  foram  devidas  ás  luctas  permanentes 
d 'esse  elemento  berbere  e  mauresco,  cujo  typo  phy- 
sico  e  feição  moral  de  impetuosidade  e  sombrio 
fatalismo  transparece  no  hespanhol  moderno. 

O  Lusitano,  realisando  o  ideal  de  povo  livre, 
entrou  na  historia  pelo  caracter  da  raça  ligurica, 
o  génio  das  expedições  maritimas,  que  o  fez  ini- 
ciar a  E'ra  das  grandes  Descobertas;  pela  sua  te- 
nacidade, resistiu  a  todos  os  desvarios  dos  que  o 
governaram  atraiçoando-o,  desde  o  castelhanismo, 
dos  casamentos  reaes  até  á  sua  desmembração  ter- 
ritorial pela  dynastia  bragantina;  e  pela  vitalidade 
das  suas  tradições  e  sensibilidade  affectiva  creou 
uma  bella  Litteratura  nacional. 

2.0  A  Tradição.  —  Emquanto  as  Nacionali- 
dades peninsulares  se  separam  em  organismos  au- 
tonómicos, pela  acção  mesologica  cooperando  com 
a  independência  politica,  os  dialectos  locaes  cor- 


28  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUKZA 


respondem  a  essa  differenciação;  não  se  apagam 
as  primitivas  unidades  ethnicas,  que  subsistem  na 
Tradição,  transmittida  inconscientemente.  Assim 
nos  cantos  populares,  musicas  e  costumes  da  re- 
gião Galecio-Asturo-Portugueza  e  Extremenho- 
Betico-Algarvia  nas  suas  similhanças  reflecte-se 
acjuelle  âmbito  geographico  da  Lusitânia  dos  an- 
tigos descripta  por  Strabão.  Póde-se  estabelecer 
a  continuidade  entre  essas  tradições  poéticas  e 
consuetudinárias  dos  povos  hispânicos  e  as  popula- 
ções actuaes.  Strabão,  citando  o  testemunho  de 
Asclepias  de  Mirleo,  que  vivera  na  Andalusia,  diz 
que  os  Turdetanos  possuiam  Poemas  c  Leis  ry- 
t /únicas  com  mais  de  seis  mil  annos.  O  P.e  Sar- 
miento  propondo  a  leitura  de  et  ou,  que  significa 
anno,  pelo  quasi  homophono  epon,  verso,  inteira- 
mente plausivel,  nota :  «sin  error,  entederemos  por 
Turdetanos  á  los  Portuguezes  e  Andaluces,  mas 
meridionales...»  i  Na  Irlanda,  o  vate,  (files)  era 
conjunctamente  juiz;  e  como  observa  Summer 
Maine,  eram  também  em  verso  as  leis  de  Moel- 
mud.  As  formas  metrificadas  dos  anexins  popu- 
lares, certas  fórmulas  tautológicas  e  aliteradas 
praxes  juridicas  são  ainda  vestigios  (Festa  phase 
emocional. 

As  formas  fundamentaes  da  Poesia,  o  Ly- 
risnio,  a  Bpopea  e  o  Drania  ainda  api)arecem  vi- 
vificadas pelos  actos  quotidianos  do  povo;  são 
como  (|ue  uma  maneira  da  sua  expressão,  uma 
natural  relação  da  vida  domestica  com  a  vida  pu- 
l)lica.    O  casamento,  acompanhado  de  cerimonias 


Memoria,  v,  41. 


FACT(JKKS    STATJCOS 


immensaniente  dramáticas,  como  o  rapto,  a  coem- 
ptio,  a  cohabitação  simulada,  restos  de  outros 
estados  sociaes,  era  o  thema  de  certos  cantos  ly- 
ricos,  que  já  no  tempo  da  occupação  visigótica 
eram  tão  persistentes  no  povo,  que  a  Egreja  os 
condemnaxa  como  pagãos  no  concilio  ilerdiense 
do  VI  século.  Santo  Isidoro  hispalense  no  livro 
das  Btynwlogias  aponta  os  cantos  epithalamicos 
cantados  pelos  escholares  em  louvor  dos  noivos, 
que  foram  regularisados  pela  legislação  neo-go- 
thica.  D'estes  mesmos  cantos  de  Vodas  e  Torna- 
J^odas  explorados  pelos  escholares  vagabundos  fal- 
ia por  experiência  o  Arcipreste  de  Hita :  e  em  uma 
disposição  do  Tombo  do  Aro  de  Lamego,  de  1346, 
que  vem  citado  no  Bhicidario  de  Viterbo,  estabe- 
lece-se  que  no  Tatuo,  ou  festa  nupcial,  se  não  podia 
tanger  adufc  no  mez  de  fevereiro,  e  que  a  melhor 
fogaça  pertencia  ao  mordomo.  A  disposição  pro- 
liibitiva  referia-se  aos  ritos  dos  cultos  chthonianos, 
que  se  praticavam  já  inconscientemente.  As  Rc- 
gncifas  da  Galliza  são  ainda  esses  cantos  de  vodas, 
communs  também  a  Portugal. 

As  cerimonias  funeraes  eram  acompanhadas 
de  cantos  ou  endechas  dos  mortos,  a  que  os  ro- 
manos referindo-se  á  Peninsula  hispânica  cha- 
maram Nenias,  equiparando-as  ás  suas  Landes; 
esses  cantos  eram  acompanhados  de  dansas  lú- 
gubres com  um  caracter  local,  e  Tito  Livio  (Li^'. 
XXVII.  \y.)  chamava-lhe  tripudiis  hispanoniin. 
Silio  Itálico  reconhece  este  caracter  primitivo  da 
Endecha  nacional,  chamando-lhe  barbara  carmina: 
no  funeral  dos  Scipiões  a  cerimonia  constava  tam- 
bém dos  fúnebres  ludi.    Diodoro  Siculo   (v,  34) 


30  HISTORIA    DA    LlTTER ATURA    PORTUGUEZA 

allude  aos  hymnos  guerreiros  dos  Lusitanos,  an- 
tes de  entrarem  em  batalha,  análogos  ao  harritiim 
dos  Germanos;  e  depois  da  batalha,  no  funeral 
dos  guerreiros  cantavam-se  as  narrativas  dos  seus 
feitos,  como  conta  Appiano  do  funeral  de  Viria- 
tho.  Strabão  refere  que  os  Cantabros  repetiam 
os  seus  hymnos  de  guerra,  quando  estavam  pre- 
gados em  cruzes  pelos  vencedores,  onde  morriam 
vociferando  insultos.  Esse  género  de  cantos  fu- 
ndires era  commum  a  todo  occidente  da  Europa, 
e  ainda  hoje  denotam  o  substratum  ethnico  da 
raça  ligurica:  conhecem-se  em  Nápoles  com  o 
nome  de  Lamenti  e  Triholi,  na  Sardenha  com  o 
nome  de  Attitidos,  na  Córsega  com  o  de  Voe  cr  os, 
no  Bearn  com  o  de  Aurust,  na  Vascongadas  com 
o  de  Arirrajo,  e  entre  os  Tupis  da  America  com 
o  de  Areytos.  A  sua  revivescência  na  peninsula 
é  attribuida  por  D.  Joaquin  Costa  (Pões.  pop., 
p.  280)  á  época  visigótica;  em  Portugal  foram 
estes  cantos  fúnebres  conhecidos  pelo  titulo  de 
Clamores,  e  um  alvará  de  D.  João  i  prohibia  o 
bradar  sobre  finados.  Na  litteratura  conservam- 
se  documentos  d'este  género  na  sua  phase  tra- 
dicional, taes  são  as  Seguidilhas  cantadas  por 
dansantes  sobre  a  sepultura  do  Condestavel 
D.  Nuno  Alvares  Pereira,  e  o  Romance  também 
cantado  sobre  a  morte  do  principe  D.  Affonso; 
a  forma  litterariá  chamava-se  Lamentação ,  que  se 
encontra  no  Cancioneiro  de  Resende,  commum 
aos  poetas  cultos  hespanhoes  e  italianos.  O  con- 
cilio 1 1  r  de  Toledo  sob  o  nome  de  Fúnebre  Cár- 
men prohibia  estes  cantos  ou  orações  e  ensalmos 
propiciatórios,  de  que  o  povo  portuguez  conserva 


FACTORES    STATICOS  31 

um  typo  já  satírico,  nas  Maravilhas  do  meu  velho. 

As  crenças  religiosas  e  suas  formas  cultuaes 
foram  themas  essenciaes  ou  orgânicos  de  mani- 
festações poéticas,  que  ainda  hoje  sobrevivem; 
Strabão  cita  algumas  dansas  dos  Celtiberos,  pelo 
plenilúnio  acompanhadas  de  cantares  (liv.  ii,  4, 
§  16.)  Este  costume  passou  para  as  vigilias  dos 
Santos,  prohibidas  pelo  Concilio  toledano  (xvi, 
can.  2;^.),  mas  conservadas  na  Bretanha,  e  em 
Portugal,  nas  romarias  a  sanctuarios  distantes. 
As  Salvas,  as  Chacotas,  as  Alvoradas  e  Serenadas 
são  vestígios  de  uma  herança  de  tradições,  que 
explicando  o  processo  de  elaboração  das  Littera- 
turas,  nos  restabelece  pelos  dados  comparativos 
esse  fundo  commum,  ou  suhstratum  ethnico  da 
Civilisação  Occidental. 

As  formas  lyricas  das  Serranilhas,  Miiinhei- 
ras,  e  Baylias  galecio-portuguezas,  as  Bailatas,  e 
Ballets  francezes,  derivam  «de  um  typo  tradicio- 
nal commum  ás  diversas  populações  românicas» 
como  observaram  Paul  Mayer,  Costantino  Nigra, 
Gastou  Paris,  Jeanroy ;  a  determinação  d'esse 
typo  tem  conduzido  a  hypotheses  provisórias, 
como  a  origem  céltica  apontada  por  Nigra,  ou  a 
origem  franka  proposta  por  Gastou  Paris  e  Jean- 
roy. Mas  no  trama  anthropologico  da  Europa, 
a  raça  dos  Ligures,  trigueiros  e  brachycephalos, 
precedeu  em  occupação  e  em  civilisação  todas  essas 
outras,  que  foram  destructivas.  xA.lém  do  impulso 
da  raça,  os  costumes  sociaes  é  que  impõem  as 
formas  artísticas,  segundo  os  sentimentos  e  con- 
cepções dominantes.  Um.  povo  que  teve  a  com- 
prehensão  do  Anno  solar,  e  que  usou  essa  divisão 


IISTOKIA    DA    JUi'ni;liAXUKA     IHJKTUGUHZA 


clinMiologica  na  sua  vida  social,  relacionou  os 
actos  ci\'is  com  estes  dois  periodos  f undamentaes : 
(lo  começo  do  anno,  ou  Solsticio  estival,  e  do  fim. 
determinado  pelo  Solsticio  hibernal.  Da  alegria 
da  natureza  que  se  rejuvenesce  na  vegetação,  re- 
sultaram as  festas  ao  ár  livre,  da  Entrada  da  Pri- 
mavera, a  representação  das  Maias,  as  dansas  em 
roda  da  arvore  reflorida,  entre  moços  e  raparigas, 
as  cantigas  chamadas  pelos  francezes  Maicrollcs, 
e  também  uma  variedade  enorme  de  Cantos  lyricos 
simultâneos  com  a  dansa  e  o  canto,  que  em  toda 
a  tradição  ])()pular  europêa  conservam  o  mesmo 
typo  mor]:)hologico.  E'  immensamente  interessan- 
te seguir  estas  formas  populares  nos  seus  reflexos 
litterarios  nas  Canções  jogralescas  e  trobadores- 
cas,  que  abundam  nos  Cancioneiros  portuguezes 
da  Ajuda,  Vaticana  e  Coloci-Brancuti ;  e  inver- 
samente, reconhecer  nos  cantos  populares  oraes 
da  Galliza  ou  Traz-os-Montes,  a  vitalidade  d'essas 
formas  medievaes. 

Das  festas  do  Solsticio  hibernal,  ou  a  Entrada 
do  Inverno,  resultaram  formas  dos  cultos  orgias- 
ticos  primitivos  da  morte  do  Joven  heroe.  caído 
prematuramente  e  chorado  ])ela  natureza  inteira, 
(jue  vem  desde  os  mythos  syro-phenicios  e  hel- 
leno-italicos  até  ao  christianismo.  As  nacionali- 
dades semitas,  ])henicias  e  carthaginezas.  com- 
numicaram-nos  cultos  orgiasticos  de  que  subsis- 
tem restos  importantes  nas  superstições  e  praticas 
cultuaes  das  Deusas-Mães.  Com  estas  explicações 
confundem-se  mais  ou  menos  as  explorações  e  es- 
tabelecimentos dos  Joiíios,  na  peninsula.  espa- 
Ihando-se   para  o  extremo  occidente   uma   civili- 


FACTORES    STATICOS 


sacão  hellenica  pela  acção  da  confederação  medi- 
terrânea cujo  centro  era  Marselha.  D'aqui  a  illu- 
são  dos  geographos  gregos  considerarem  a  civi- 
lisação  ligurica,  que  encontravam,  como  sendo 
grega.  N'esta  época  estavam  em  elaboração  as 
Rhapsodias  da  Achilleida,  a  Pequena  I liada,  a 
Destruição  de  Troya,  a  Dolonia,  as  Peregrinações 
de  Ulysses,  a  Telemachia,  o  Regresso  de  Ulysses, 
que  os  aedos  hellenos  levavam  por  todo  o  domí- 
nio dos  Jonios,  Rhapsodias  que  vieram  a  consti- 
tuir os  Poemas  homéricos.  E'  por  isso  que  Stra- 
1)ão,  referindo-se  á  vulgarisação  das  tradições 
troyanas  e  dos  Errores  de  Ulysses,  diz:  «Não 
só  na  Itália  se  conservam  passagens  d'essas  his- 
torias, se  não  também  na  Ibéria  existem  vestígios 
d:  taes  expedições,  assim  como  da  guerra  de 
Troya.»  (Liv.  iii,  c.  2,  §  13.)  Strabão,  notando 
o  facto,  deixava  inconscientemente  consignada 
lima  outra,  —  que  os  Turdetanos,  que  é  o  mesmo 
que  Lusitanos,  possuiam  poemas  com  mais  de  seis 
mil  versos,  em  que  continham  rythmicamente  as 
suas  Leis.  Não  careciam  de  apoderar-se  das  tra- 
dições gregas;  os  modernos  estudos  das  lendas 
odyssaicas,  por  Cailleux,  desde  1878  chegaram  á 
conclusão,  que  as  navegações  mediterrâneas  do 
poema  odyssaico  não  condizem  com  as  referencias 
geographicas,  nem  com  as  distancias  apontadas 
nem  com  os  aspectos  da  natureza.  Trata  doeste 
importante  problema  na  obra :  Poesias  de  Ho- 
mero feitas  na  Ibéria  e  descrevendo  não  o  Me- 
diterrâneo mas  o  Atlântico,  sustentando  a  these: 
«Os  dois  Poemas  de  Homero  são  inteiramente 
extranhos  ao  Mediterrâneo:  a  Ilíada  relata  uma 

3 


34  HISTORIA    DA    LITTEKATURA    PORTUGUEZA 


antiga  guerra  feita  na  Bretanha  pelos  povos  do 
continente;  a  Odyssêa  é  uma  descripção  do  paiz 
e  da  religião  dos  antigos  Celtas.»  N'esta  these 
importa  reparar  na  illusão  céltica,  a  que  ainda 
obedece  Cailleux,  porque  foram  os  Ligures  o  povo 
navegador  que  iniciou  as  explorações  do  Oceano 
Atlântico.  Cailleux,  em  outro  livro  Paires  atlânti- 
cos descriptos  por  Homero,  conclue  também,  «que 
esses  paizes  são  a  Bretanha,  a  Gallia,  a  Ih  cria, 
e  todos  os  Archii^elagos  do  Atlântico  (Açores, 
Madeira  e  Cabo  Verde) ;  a  religião  que  referem 
os  seus  poemas  perpetuou-se  nas  nossas  regiões 
e  encontra-se  nas  nossas  crenças.»  Todos  estes 
paizes  indicados  são  aquelles  em  que  os  Ligures 
precederam  os  Celtas,  que  nada  fundaram,  sendo 
assimilados  pelos  povos  preexistentes.  E  como 
para  reforçar  a  verdade  da  these  de  Cailleux,  o 
insigne  archeologo  portuguez  Martins  Sannento 
publicou  em  1887  a  obra  Os  Argonautas,  na  qual 
recompondo  a  lenda  original  primitiva  i>elos  ves- 
tigios  dos  poemas  orphicos  e  do  de  Apollonio 
Rhodio  com  a  epopèa  homérica,  reconstitue  o  pé- 
riplo de  uma  navegação  atlântica,  cuja  tradição 
foi  plagiada  pelos  gregos  para  uma  situação  me- 
diterrânea sem  a  realidade  correspondente.  Sar- 
mento não  conhecia  a  obra  de  Cailleux,  e  chegan- 
do aos  mesmos  resultados,  attribue  esse  périplo 
primitivo  aos  Phenicios,  que  são  muito  posterio- 
res aos  Ligures.  Estavam  ambos  os  críticos  a 
uma  linha  da  verdade,  mas  interceptada  pela  mi- 
ragem céltica  e  pela  phenicia,  que  não  tem  me- 
nos complicado  a  historia  antiga.  Vê-se  que  a 
affirmativa  de  Strabão  fundava-se  n'uma  realida- 


FACTORES   ST  ÁTICOS  35 


de,  que  elle  invertia;  os  historiadores  da  Renas- 
cença obedeceram  á  miragem  hellenica,  quando 
attribuiram  a  fundação  dos  estados  modernos  da 
Europa  aos  Chefes  gregos,  depois  que  se  dispersa- 
ram do  cerco  de  Troya;  assim  Ulysses  fundava 
Lisboa;  a  França,  como  refere  Warnefried,  e  a 
Escossia  como  afirmava  Eduardo  iii,  -provinham 
dos  heroes  troyanos,  ficções  que  foram  depois  pro- 
pagadas pelo  celebre  falsificador  Anio  de  Viterbo, 
dominicano,  e  que  reproduziu "  com  ingenuidade 
o  chronista  Fr.  Bernardo  de  Brito.  Nos  Cantos 
populares  existem  os  vestigios  ou  rudimentos  épi- 
cos d'essas  lendas  odyssaicas;  segundo  Ampere, 
o  romance  da  Bella  Infanta  ou  a  volta  do  Cru- 
zado ten?  essa  origem  do  regresso  de  um  heroe 
ao  seu  lar,  e  para  comprovar  a  sua  antiguidade 
basta  indicar  a  sua  extensa  vulgarisação,  que  o 
colloca  em  um  fundo  ethnico  commum  ao  occi- 
( lente  da  Europa;  trazem  versões  castelhanas, 
D.  Agustin  Duran;  catalãs,  Milà  y  Fontanals,  e 
Pelay  Briz;  asturianas,  Amador  de  los  Rios  e 
Menendez  Pidal ;  f rancezas,  Tarbé,  De  Puymaigre, 
c  Beaurepaire;  bretãs,  Luzel ;  italianas,  Ferraro, 
Wister  e  Wolf,  Bernoni  e  na  Grécia  moderna 
Marcellus.  A_  situação  primordial,  a  vida  errante 
nos  mares,  e  a  scena  tremenda  da  anthropophagia, 
que  se  descreve  na  Náo  Catherineta,  accentua  mais 
o  caracter  d'esse  cyclo  odyssaico ;  e  este  romance 
popular  portuguez  é  também  commum  aos  povos 
occidentaes,  como  se  pôde  verificar  pelas  versões 
populares  da  Catalunha,  publicadas  por  Fonta- 
nals, da  Provença  por  D.  Arbaud,  da  Bretanha 
por  De  Puymaigre,  de  Bordéus  por  Rathery,  da 


30  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

França  por  Smith,  e  das  Astúrias  por  Menendez 
Pidal.  Quando  regressa  repentinamente  o  heróe 
•  teve  a  fortuna  de  se  appresentar  a  tempo  para  sal- 
var do  casamento  a  que  obedecia  a  sua  namorada ; 
tal  é  o  thema  da  Noiva  arraiana,  publicada  por 
Garrett,  que  se  encontra  na  versão  catalã  com  o 
titulo  La  boda  interrompida :  na  asturiana  com  o  de 
La  Esposa  de  D.  Garcia,  na  f  ranceza  Le  retour  dii 
Mari,  e  na  Grécia  moderna,  o  Rapto.  Perguntam 
os  criticos  —  qual  o  paiz  d'onde  diffluiram  estas 
tradições?  Julgando  assim  explicar  a  sua  simila- 
ridade assombrosa,  uns  diziam  da  Provença ;  ou- 
tros  (lo  norte  da  França;  outros  da  alta  Itália, 
ou  da  Sicilia.  Não  é  do  território,  mas  da  raça 
(fue  ahi  estacionou  c  que  derivam  as  tradições,  e 
portanto  a  resposta  decisiva  só  se  attinge  quando 
bem  se  define  o  substratum  ethnico  commum  a 
essas  regiões  e  jx^vos  actuaes.  Vejamos  como  na 
Peninsula  as  duas  raças  persistiram  em  contacto 
com  os  povos  históricos. 

As  luctas  (los  ]v<»nianos  contra  os  Carthagi- 
nezes  no  solo  hispânico,  e  a  longa  resistência  das 
tribus  Celtibericas  e  principalmente  dos  Lusitanos 
contra  a  incorporação  romana,  influiram  na  per- 
sistência dos  Cantos  heróicos,  que  se  foram  ada- 
ptando como  acontece  com  as  homoplasias  ás  no- 
vas situações  e  acontecimentos.  A  vida  his- 
tórica na  Peninsula  hispânica  começa  com  o 
dominio  romano  conformando  o  seu  municipa- 
lismo com  os  costumes  das  cidades  livres  e  in- 
troduzindo uma  administração  centralista,  que  em 
nada  influia  nas  tradições,  mais  avivadas  entre  o 
povo  pelo  systema  do  colonato,  das  tribus  que  an- 
tes das  invasões  germânicas  se  entregavam  aos 
Romanos. 


FACTORES   STATICOS  Z7 


Depois  da  invasão,  na  peninsula,  os  Visigodos, 
pretendidos  continuadores  do  Império  romanisa- 
rani-se,  prevalecendo  a  banda  guerreira  sobre  os 
homens-livrcs,  estes  decahindo  das  suas  garantias 
(juasi  a  uma  servidão  dos  lifi  ou  laszi,  e  aquelles 
constituindo  uma  aristocracia  militar,  imitand(i  os 
costumes  romanos  e  traduzindo-lhes  os  Códigos. 
Esta  duplicidade  aggrava-se  no  percurso  histó- 
rico, e  da  sua  dissidência  resulta  a  constituição 
da  moderna  sociedade  hispânica.  A  sociedade 
aristocrática  convertida  ao  Catholicismo  romano 
sob  Rekaredo,  soffreu  uma  profunda  desnatura- 
ção pela  decadência  da  lingua  gótica  e  desprezo 
das  suas  tradições  nacionaes,  como  observou  Jacob 
Grimm.  A  classe  popular,  cada  vez  mais  compri- 
mida, só  pôde  evolucionar  socialmente  no  prin- 
cipio do  século  VIII,  quando  a  invasão  dos  Ára- 
bes pela  tolerância  politica  e  religiosa  lhe  permit- 
tiu  a  sua  livre  actividade  e  expressão  das  suas 
crenças.  E'  preciso  distinguir  esta  dupla  influen- 
cia, a  aristocrática  ecclesiastica,  ou  erudita,  a  qual 
pela  circumstancia  da  resistência  contra  os  Árabes 
se  chama  Astiiro-Lconcza,  e  a  popular,  desde  o 
século  XI  conhecida  pelo  nome  de  Mosarahe. 

Os  Visigodos  mantendo  a  unidade  imperial  ro- 
mana acceitaram  a  unidade  religiosa  do  catholi- 
cismo, que  exerceu  uma  acção  absorvente,  domi- 
nando nas  Cortes,  impondo-se  politicamente  nos 
Concilios,  dissolvendo  a  sociedade  politica  pela 
jurisprudência  canónica,  pela  immobilisaçao  da 
propriedade  territorial,  praticando  o  obscurantis- 
mo systematico  do  povo,  alimentando  pela  intole- 
rância religiosa  sanguinários  conflictos  dynasticos, 


38  HISTORIA    DA    LITTERATIRA    l'ORTlJGUKZA 


animando  na  reconquista  contra  os  Árabes  a  de- 
vastação como  meio  de  ataque,  e  por  fim  estabele- 
cendo a  Inquisição  com  os  Autos  da  Fé,  a  subser- 
viência a  todas  as  auctoridades  temporaes  e  a  ne- 
gação do  espirito  scientifico. 

J>lo  longo  periodo  que  vae  do  século  viii  ao 
século  xTi,  a  sociedade  popular  visigótica,  inte- 
grada por  todos  os  elementos  do  colonato  e  das 
raças  hispânicas  nunca  destruidas,  foi  converten- 
do os  seus  Costumes  em  Leis,  que  vieram  a  cons- 
tituir as  Cartas  Pueblas  e  os  Foraes,  como  luci- 
damente explica  Munoz  y  Romero,  que  estudou 
esses  documentos:  symbolos  juridicos,  cantos  ly- 
ricos  e  épicos,  superstições  que  apparentemen^e  nos 
apparecem  como  germânicas,  são-no  como  coexis- 
tindo com  as  revivescências  provocadas  pelas  in- 
corporações ethnicas  ante  as  novas  formas  so- 
ciaes.  O  canto  popular  e  a  lingua,  segundo  Gre- 
gorovius,  conservam  esse  caracter  a  que  os  latinos 
cliamavam  índoles;  é  pelos  cantos  populares,  si- 
multâneos com  a  creação  das  linguas  vulgares  da 
Hespanha,  que  se  determina  a  índole,  que  atra- 
véz  das  transformações  politicas  e  históricas  nos 
revela  essa  unidade  Galecio-Asturo-Portugiicza  e 
Bxtrenicnho-B:tico-AlgarvÍQ,  que  constituiram  a 
primitiva  Lusitânia.  E'  no  periodo  de  formação 
da  sociedade  niosarabe  que  devem  começar  as  in- 
vestigações dos  elementos  tradicionaes  que  vieram 
a  prestar  materiaes  para  a  elaboração  litteraria. 

A  tradição  popular  não  é  ])ropriamente  Litte- 
ratura ;  mas  a  idealisação  individual  que  se  não 
apoia  no  sentimento  collectivo,  íica  uma  aberração 
mental,  incommunicavel,  sem  sentido,  e  de  mero 


FACTORKS   STATíCOS  39 


artificio  académico.  A  intima  relação  entre  a  tra- 
dição nacional  e  a  interpretação  artistica,  é  o  que 
sem  abstracções  metaphysicas,  constitue  o  Bello. 
O  phenomeno  da  tradição  adquire  uma  importância 
extraordinária  observando  as  analogias  dos  cos- 
tumes, crenças,  superstições,  actos  cultuáes,  can- 
tos poéticos,  recitações  heróicas,  jogos  dramati- 
sados,  que  subsistem  entre  os  povos  que  forma- 
ram a  grande  Civilisação  occidental,  e  que  se  con- 
tinua nas  nacionalidades  modernas.  As  formas  ly- 
ricas  da  Provença,  as  Gestas  frankas  de  França, 
os  themas  novellescos  da  Bretanha,  os  typos  po- 
pulares do  theatro  medieval  derivam  de  bases  tra- 
dicionaes,  elaboradas  artisticamente  desde  que  os 
novos  dialectos  se  tornaram  Linguas  litterarias. 
E  da  maior  ou  menor  approximação  do  elemento 
tradicional  se  deduzem  as  características  que  des- 
tacam as  di  ff  crentes  épocas  de  qualquer  Litte- 
ratura. 

3.0  A  Lingua.  —  As  manifestações  mais  com- 
pletas da  linguagem,  na  sua  forma  escripta,  cons- 
tituem a  Liftcrafura,  tornando-se  assim  um  órgão 
de  desenvolvimento  social,  um  estimulo  e  apoio  da 
independência  nacional.  Se  a  lingua  não  recebe  a 
fixação  pela  escripta,  ha  a  incerteza  dos  sons, 
e  das  formas  da  derivação,  nunca  se  estabelece 
a  disciplina  grammatical,  e  a  synonimia  torna-se 
uma  excrecencia  embaraçosa,  confundindo-se  em 
um  rude  polysynthetismo,  consequência  do  esta- 
cionamento de  um  povo.  Por  esta  relação  da  lin- 
guagem oral  para  a  escripta,  observa  Egger:  «A 
Litteratura  não  se  deve  separar  úr  Philologia  e  da 


40  irrsroRiA  da  i.ittekat ura  portugueza 


Historia,  ou  melhor,  a  historia  das  Hnguas,  das 
instituições  e  dos  costumes,  forma  a  verdadeira 
base  sobre  que  assenta  o  juizo  acerca  das  obras 
do  espirito.»  i  Seguiremos  este  critério  no  seu 
duplo  aspecto. 

\  lingua  portugueza  pertence  ao  grupo  das 
linguas  chamadas  por  Schleicher  romanisadas,  por 
Diez  românicas,  ou  geralmente  nov  o -latinas ;  estu- 
dada na  sua  filiação  e  relações  com  esta  grande 
creação  da  cultura  meridional,  comprehende-se  o 
espirito  da  Litteratura,  reflectindo  o  conflicto  per- 
manente entre  a  auctoridade  do  Latim  clássico,  e 
o  génio  popular,  que  representa  de  um  modo  vul- 
gar, espontâneo,  a  tradição  e  a  feição  nacional. 
Conforme  essa  corrente  tradicional  prevaleceu 
nos  povos  pccidentaes,  assim  as  Linguas  româ- 
nicas se  foram  desenvolvendo  pela  construcção 
analytica,  e  dando  ao  sentimento  nacional  a  ori- 
ginalidade de  expressão,  moderna  e  viva.  No 
exame  da  lingua  começa  propriamente  a  com- 
prehensão  das  transformações  da  litteratura,  como 
por  estas  se  discriminam  as  phases  da  decadên- 
cia ou  épocas  do  progresso  da  linguagem. 

a)  Formação  das  Línguas  românicas 

A  creação  das  Linguas  românicas,  em  que  se 
encontram  elementos  dos  vocabulários  latino,  bri- 
tonico,  grego,  germânico  e  árabe,  levou  os  criti- 
cos   sem   a   direcção   do   methodo   comparativo  a 


i     Aí  cm.  de  Littcraturc  ancienne,  p.   xi. 


Factores  staticos  41 


consideral-as  como  um  producto  da  mistura  dos 
povos  romanisados  e  germânicos,  depois  das  in- 
vasões; ao  que  Diez,  em  1827  na  sua  obra  Da 
Poesia  dos  Trovadores,  contrapoz  a  seguinte  base 
fundamental :  «Protestamos  contra  a  influencia 
creadora  attribuida  a  essa  confusão,  considerando 
que  nos  paizes  romanisados,  como  o  testificam 
esses  novos  dialectos,  a  sua  formação  operou-se 
confoniie  a  principios  análogos,  que  nos  condu- 
seni  a  um  typo  commum...))  (Ih.,  p.  277). 

Para  definir  este  typo  commum  devanearam 
os  philologos  antigos  da  renascença  sobre  a  fi- 
liação immediata  das  linguas  vulgares  do  La- 
tim, explicando  por  este  as  suas  grammaticas;  a 
esta  hypothese  succedeu  a  de  uma  origem  do 
Celta,  fundados  em  comparações  de  vocábulos 
dos  dialectos  chamados  neo-celticos ;  seguiu-se  a 
theoria  do  Raynouard,  derivando-as  de  um  dia- 
leto  commum  popular  chamado  o  Romance  de 
que  o  Provençal  era  a  forma  litteraria.  A  theoria 
foi  combatida  por  Schlegel ;  mas  Frederico  Diez, 
em  1827,  acceitava  como  o  typo  commum:  «an- 
tigo romance,  muito  bem  caracterisado  em  si  para 
ser  producto  do  cahos,  acrescentando  que  n'elle 
existiam  vestigios  de  uma  grammatica  fortemen- 
te constituida)).  {Ih.,  p.  278).  Esse  organismo 
próprio,  que  Diez  observa  n'esses  caracteres  com- 
muns,  eram  a  dissolução  das  flexões  do  Latim, 
lingua  synthetica,  e  o  desenvolvimento  progres- 
sivo da  syntaxe  analytica.  Tocava  a  essência  do 
problema;  depois,  estudando  no  seu  conjuncto  este 
grupo  de  Linguas  pelo  exame  dos  seus  processos 
de  derivação  t  morphologia,  e  pelas  construcçÕes 


HISTORIA    1>A    IJTTERATURA    PORTU&UEZA 


syntacticas,  systematisou  todos  esses  iiiíiteriaes  na 
Granuiiatica  das  Línguas  românicas,  publicada  de 
1836  a  1844.  Ficou  considerado  como  o  funda- 
dor da  philolog-ia  românica,  e  domina  no  ensino 
ofíicial. 

Na  successão  das  investigações  a  sua  doutrina 
tem  soffrido  graves  objecções,  deduzidas  dos  ex- 
clusivos pontos  de  vista.  Escreve  Diez:  «Seis 
linguas  românicas  attráem  a  nossa  attenção,  quer 
l>ela  sua  originalidade,  quer  i)ela  sua  importância 
litteraria :  duas  a  leste,  a  italiana  e  a  valacha;  duas 
ao  sudoeste,  a  hcspanhola  e  a  portuguesa:  duas 
ao  nordeste,  a  provençal  e  a  franc::sa...  Todas 
estas  linguas  tem  no  Latim  a  sua  primeira  e  na- 
tural origeun). 

Partindo  d'este  ponto,  affirmava  Schleicher: 
«o  Latim  deu  o  sêr  ás  linguas  filhas,  chamadas 
Linguas  ronumicas...)),  i  e  apontava  como  pro- 
cesso mais  scientifico  «Deduzir  as  linguas  occi- 
dentaes  do  Latim  clássico,  sem  intermédio  da  lín- 
gua chamada  itálica,  vulgar  ou  rústica.»  (Ib..  p. 
195).  Isto  se  pratica  por  meio  de  processos  pho- 
neticos  explicando  como  os  vocábulos  do  latim 
clássico  se  modificaram  nas  linguas  românicas ; 
assim  o  processo  formativo  era  por  Schleicher  ex- 
]>licado  como  «o  idioma  latino  acclimado  aos  di- 
versos oi^gãos  ])honetico-acusticos  das  diversas  na- 
ções para  entre  as  quaes  foi  transportado».  (Ib  , 
p.  2TO). 

Depois  d'estas  af firmaçÕes  exclusi^•as,  ha   ne-' 


I     Les  Langues  de  l'Hurope  moderne,  p.  168. 


FACTORES   STATICOS  43 

cessidade  de  recorrer  á  lingua  romana  rústica, 
dos  escriptores  da  Edade  media,  e  Diez  escreve: 
((Porém,  não  é  do  Latim  clássico,  empregado  pe- 
los aiictores,  que  essas  linguas  derivam,  mas  sim 
da  lingua  popular  dos  Romanos,  usada  ao  lado 
do  Latim  clássico.»  E  quando  via  n'esse  antigo 
romance  vestígios  de  uma  grammatica  fortemente 
constituida,  d'onde  por  principi os  análogos  se  ela- 
boravam as  linguas  novo-latinas,  define  essa  lin- 
gua popular,  usada  nas  classes  inferiores  com  ca- 
racteres (|ue  consistiam  ((em  uma  pronuncia  des- 
curada, na  tendência  paru  lihertar-se  das  regras 
grammaticaes...})  E  querendo  explicar  o  accordo  de 
todos  os  dialectos  românicos  no  emprego  das  pa- 
lavras, das  formas  e  sentidos,  diz  que  isso  «é  a 
mais  segura  prova  da  sua  unidade  originaria;  esta 
unidade  só  a  podemos  suppôr  no  idioma  popular 
dos  Romanos...)) 

Pelo  seu  lado  Schleicher  também  reconhece, 
que:  ((na  região  phonetica  das  linguas  romani- 
sadas,  quando  se  trata  de  formar  palavras,  todas 
ellas  seguem  effectivaniente  um  caminho  diffe- 
rentc  do  seguido  pelo  Latim.»  (Ib.,  p.  208.)  E 
attribue  a  essa  lingua  rústica  ((todas  as  palavras 
communs  ás  linguas  romanisadas,  que  nunca  per- 
tenceram ao  Latim  classicD.»    (Ib.,  211). 

Também  o  grande  glotologo  Max  Muller  es- 
crevia em  volta  d'esta  mesma  ideia:  ((Nós  sabe- 
mos, que  o  italiano,  o  francez,  o  hespanhol  e  o 
portuguez  devem  ter  uma  mesma  origem,  porque 
elles  têm  em  commum  formas  grammaticaes  que 
nenhum  (restes  dialectos  poderia  ter  creado  com 
os  seus  próprios  recursos,  e  que  n'elles  não  têm 


44  HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 

mais  significação,  nem  em  certo  modo  vida.»  i 
E  querendo  indicar  essa  fonte  commum,  avança: 
«Ainda  qitc  seja  possivel  de  uma  maneira  geral 
fazer  remontar  ao  Latim  estes  seis  idiomas  ro- 
mânicos, já  fizemos  observar  que  o  Latim  clássico 
não  nos  poderia  dar  a  explicação  completa  da  sua 
origem.»  (Ib.,  p.  242).  Para  determinar  fora  do 
latim  o  phenomeno  diz,  que  os  dialectos  români- 
cos são  o  latim  de  provincia  fallado  ou  passado 
pòr  boccas  germânicas.»  (Ib.,  243.) 

Todas  estas  vacillaçÕes  e  affirmaçÕes  vagas  dos 
grandes  philologos,  resultaram  de  começarem  a 
applicação  do  methodo  comparativo  pela  Phono- 
logia,  analysando  as  transformações  dos  sons  nos 
vocábulos  clássicos,  e  pela  reacção  contra  a  celto- 
mania  phantasista.  E'  por  isso  que  escrevia  Sch- 
leicher:  «uma  lingua  flexionai,  que  abranja  to- 
das as  viodificaçõcs  phon éticas  e  synctaficas  das 
Linguas  românicas  em  geral...  só  existe  na  ima- 
ginação dos  etymologistas.»  (Ib.,  p.  197.)  Par- 
tindo do  grande  numero  de  vocábulos  latinos  nas 
linguas  românicas,  concluiram  que  era  o  Latim  a 
fonte  das  linguas  vulgares :  e  pelas  palavras  com- 
muns  a  ellas,  que  não  vem  no  léxico  clássico,  que 
um  Latim  popíilar  se  substituirá  ao  urbano,  que 
se  deturpava  na  decadência  das  suas  flexões.  Eis 
o  ]m)blema,  que  C(^nstitue  a  illusão  românica. 

Considerado  o  problema  sob  o  aspecto  synta- 
xico,  reconhece-se  que  o  Latim  é  uma  lingua  syn- 
thetica,  em  que  pela  importância  significativa  das 


I     Science  du  Lanyagc,  p.  -'14. 


FACTORES  STATICOS  45 

flexões,  a  ordem  lógica  prevalece  sobre  a  ordem 
grammatical,  conseguindo  pelas  relações  casuaes 
e  verbaes  seguir  uma  construcção  indirecta,  elli- 
ptica  e  de  uma  belleza  litteraria;  as  Línguas  vul- 
gares ou  românicas,  são  analyticas,  mantendo  a 
ordem  grammatical  antes  da  ordem  lógica,  as  re- 
lações são  expressas  por  preposições  e  pronomes, 
ficando  o  substantivo  absolutamente  independente 
de  todas  as  relações  da  phrase,  e  o  adjectivo  ver- 
balisa-se  facilmente  pelos  auxiliares.  Posto  isto, 
este  processo  analytico  fundamental  é  anterior  á 
decadência  do  Latim,  na  deturpação  das  suas  fle- 
xões casuaes  e  verbaes,  e  mesmo  sem  dependência 
da  lingua  synthetica.  Diez  considerava  esta  trans- 
formação devida  aos  ix)vos  entre  quem  se  im- 
plantem o  Latim;  mas,  em  rigor,  nunca  uma  lín- 
gua synthetica'  se  transnmda  em  lingua  analytica, 
como  se  liade  verificar:  A  lingua  germânica,  le- 
vada pelos  bárbaros  do  norte  para  a  França,  Itá- 
lia e  Hispânia,  não  passou  de  synthetica  para 
analytica,  e  apenas  actuou  nas  linguas  preexisten- 
tes pelo  vocabulário  em  relação  a  elementos  so- 
ciaes.  Os  Árabes  invadiram  e  occuparam  a  Pe- 
ninsula  hispânica,  e  a  sua  lingua  synthetica  não 
deu  logar  á  creação  de  um  dialecto  árabe  analy- 
tico.   O  mesmo  se  deu  com  o  hebreu. 

E  para  mais  comprovar  esta  impossibilidade 
temos  o  Grego  moderno,  que  se  chama  hellenis- 
ta,  byzantino  e  romaico,  o  qual,  provindo  do  gre- 
go clássico,  appresenta  uma  separação  muito  vaga 
do  antigo,  sem  attingir  o  caracter  analytico:  a 
Declinação  grega,  ao  contrario  do  que  se  vê  nas 
linguas  romanisadas,  conservou-se ;  a  Conjugação, 


46  inSTORTA    DA.LITTERATURA    PORTUGUEZA 


perdido  o  dual  e  o  optativo,  approxima-se  do 
grego  antigo,  salvo  certos  tempos  auxiliados,  e 
conservou  o  vcrho  passivo.  Nos  processos  de  de- 
rivação nos  neologismos  volta-se  ás  antigas  for- 
mas das  flexões ;  e  na  linguagem  escripta  a  cons- 
trucção  é  mais  próxima  do  grego  antigo,  do  que 
a  forma  culta  românica  do  Latim,  i  Diante  de 
um  principio  philologico  tão  capital,  como  se  po- 
derá considerar  o  Latim  como  fonte  das  linguas 
românicas?  Por  meio  de  um  Latim  popular,  lin- 
gua  romana  rústica?  Dá-se  a  mesma  antinomia. 
j)orrjue  em  nenluima  das  linguas  syntheticas  da  Eu- 
ropa actual,  ha  uma  divergência  popular  creando 
e  usando  uma  linguagem  analytica. 

Xcni  mesmo  o  Latim  clássico,  escripto,  teve 
uma  antiguidade  tão  grande  de  cultura,  que  o 
separasse  da  lingua  popular;  escreve  Witney,  na 
Ilda  (líi  Liiii^iiagciii :  «O  Latim,  nos  seus  mais 
velhos  monumentos,  não  data  mais  de  três  sé- 
culos aiifrs  da  nossa  éra,  mostrando-se  n'elles  sob 
uma  forma  estranha  e  pouco  intelligivel  para 
aquelles  que  estudaram  a  lingua  cultivada  no  ul- 
timo século  antes  de  Christo.»  (p.  152.)  Três 
séculos  é  pouco  para  se  destacar  e  prevalecer  so- 
bre os  dialectos  itálicos  como  synthetica,  e  pouco 
os  dois  séculos  da  Egreja  para  dar  logar  a  lín- 
guas analyficas  ou  novo  latinas.  Esta  incon- 
gruência já  tinha  sido  notada:  Dominando  Ro- 
ma na  Grécia  conquistada  mais  tempo  do  que 
na   Hespanha,   j-w^rque   não   implantou   ahi   o   La- 


Schleicher,  op.  cit.,  p.  183, 


FACTORKS   STATlCOS  47 


tim?  Fixando-se  numerosas  colónias  romanas  na 
Illyria,  não  se  adopta  o  Latim  entre  esses  povos 
slavos,  ao  passo  que  se  dá  o  contrario,  alastran- 
do-se  nos  Alpes  suissos  por  via  de  uma  occupa- 
ção  de  Engadina  que  durou  poucos  séculos.  O 
philologo  italiano  Gubernatis  pergunta :  Não  ten- 
do os  Romanos  occupado  certos  valles  alpinos 
distantes,  apparece  ahi  o  Latim  substituído  aos 
dialectos  locaes?  E  tendo  os  Romanos  occupado 
a  Bretanha  f  ranceza  e  ingleza,  amda  ahi  se  conser- 
vam os  seus  dialectos  gaèlico  e  kimrico.  A  theo- 
ria  de  Diez.  exaggerada  pelos  seus  discipulos  con- 
finados em  processos  phoneticos  sobre  o  léxico 
tende  a  ser  modificada.  ^ 

Eliminada  a  hypothese  de  Raynouard,  a  hy- 
]X)these  de  Diez  caduca  por  fundar-se  exclusiva- 
mente no  exame  do  Vocabulário  desconhecendo 
as  condições  das  épocas  da  historia.  Como  res- 
ponder então  a  este  problema  da  origem  das  lín- 
guas romanisadas?  Escreve  Edelestand  du  Mé- 
ril :  «Os  estudos  que  só  considcrareiu  a  forma 
das  palavras,  não  chegam  a  resultado  algum;  em 
logar  (l'j  procurarem  a  origem  das  línguas  exclu- 
sivamente Jio  seu  vocabidario,  é  preciso  investí- 
gal-a  pela  historia,  e  na  influencia  que  exerce  cada 


I  .  Do  processo  phonetico  escreve  Brunot :  ^^a  regulari- 
dade absoluta,  que  a  eschola  contemporânea  pretende  in- 
troduzir nas  alterações  phoneticas,  parece-me  chimerica  e 
desmentida  pelos  factos  conhecidos  e  certos.  E'  provável 
que  se  abandone  brevemente  esta  concepção  mechanica  dos 
factos,  por  uma  intelligencia  mais  exacta  e  mais  histórica 
'la  realidade."  (Histoire  de  la  Langue  et  de  la  Litterature 
française,  p.  vt,  nota.) 


48  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

nação  sobre  o  desenvolvimento  e  civilisação  das 
outras.»  Raynouard  recorria  á  lingua  geral,  o 
Romance  (a  Lingua  Romanitatis,  titulo  empre- 
gado por  Lambertus  Ardensis;  ap.  Du  Cange, 
t.  V,  col.  1488.);  mas  não  provou  a  sua  rea- 
lidade e  acção  histórica.  Du  Méril  oppÕe-lhe  as 
seguintes  considerações,  que  abrangem  perfeita- 
mente a,  hypothese  de  Diez : 

«Esta  universalidade  de  um  idioma,  teria  ne- 
cessariamente uma  causa,  e  não  se  pode  ligar  a 
um  facto  que  a  explique :  nenhuma  conquista  a 
im])oz  pela  força  das  armas,  nenhuma  coloni- 
sação  a  transportou  por  t(^da  a  Europa:  ne- 
nhuma preponderância  politica  ou  litteraria  a  tor- 
nou de  um  uso  geral.  Uma  tal  unifomiidade  não 
seria  possível  senão,  —  que  uma  lingua,  alterada 
em  cada  paiz  j^ela  mistura  de  diversos  idiomas, 
sof fresse  por  toda  a  parte  as  mesmas  mudanças ; 
se  corrupções  produzidas  por  causas  cada  dia 
mais  (li  ff  crentes,  se  elementos  cada  vez  mais  con- 
trários formassem  com  o  tempo  novos  idiomas 
que  conservassem  sempre  a  sua  unidade  primei- 
ra. I  Depois  d'este  enunciado,  conclue  Edeles- 
tand  du  Méril :  «Enunciar  as  condições  de  uma 
tal  hy])othese,  é  tornar  supérflua  a  sua  discussão.» 
Com  certeza  a  hypothese  de  Raynouard  não  sa- 
tisfaz aos  dados  d'este  problema;  mas  a  verifi- 
cação de  um  grande  facto  histórico  explica  o  que 
foi  essa  Lingua  romanitatis: 

Existiu  no  Occidente  da  Europa  uma  família 


I     líi^toirc  de  In   Porsir  scandniai^c.  p.  204. 


FACTORES  áTATICOS  49 


de  Línguas  analyticas,  a  que  correspondeu  uma 
Civi  li  sacão  ligurica  ou  pre-celtica,  que  actuou  no 
desenvolvimento  d 'essa  grammatica  dançlo  uni- 
dade aos  di  ff  crentes  grupos  dialectaes  d'esse  po- 
vo. A  civilisação  ligurica  apagou-se  sob  as  inva- 
sões barbaras  dos  Celtas,  mas  sob  a  conquista  ro- 
mana pôde  revivescer  assimilando  facilmente 'a 
cultura  latina,  apropriando-se  do  seu  vocabulário. 
Quando  por  seu  turno  a  cultura  latina  foi  aba- 
fada pelas  invasões  dos  Germanos,  a  decadência 
do  latim  não  a  tornou  lingua  analytica,  mas  sob 
este  typo  linguistico  preexistente  constituiram-se 
as  linguas  nacionaes,  differenciadas  pelos  seus 
elementos  primitivos,  dando-se  a  illusão  ulterior 
de  que  essa  unidade  grammatologica  lhes  pro- 
viera da  origem  latina. 

Na  obra  posthuma  de  Darmesteter,  Curso  de 
Grammatica  histórica,  sustenta  o  insigne  philologo 
acerca  do  Latim  popular  uma  unidade  quasi  com- 
pleta nas  Gallias,  na  Hespanha  e  na  Africa :  «Essa 
unidade  consistia  na  mesma  grammatica  e  na 
mesma  syntaxe,  sem  duvida  no  mesmo  léxico,  que 
dominavam  do  Mar  do  Norte  ao  Atlântico,  e  das 
margens  do  Rheno  ao  Atlas.» 

Uma  tal  unidade  não  provinha  dos  diversos 
processos  de  dissolução  do  Latim  em  tão  variados 
meios :  mas  de  uma  Lingua  analytica,  que  ante- 
cedeu a  extensão  do  latim  pela  acção  histórica  dos 
que  a  fallaram.  Ora,  n'essa  vastissima  região  ma- 
nifestou-se  a  cultura  dos  Hyperboreos,  (Scythas) 
Ligures  e  Lybios  (africanos  brancos).  Quando  a 
denominaram  Romaficium  exprimindo  a  sua  uni- 
dade linguistica,  foi  como  protesto  contra  as  lin- 

4      . 


50  HISTORIA    DA    LíTTERATURA    PORTUGUEZA 

guas  barbaras  dos  germanos  ou  Gothia;  pois, 
como  observa  Mackel,  até  ao  século  vi  todos  os 
dialectos  germânicos  tinham  uma  physionomia 
uniforme. 

Na  Sociedade  para  o  estudo  das  Línguas  româ- 
nicas, em  sessão  de  17  de  Abril  de  1869,  Mr.  Bou- 
cherie,  combatendo  a  opinião  de  ter  sido  substi- 
tuida  a  lingua  dos  Gaulezes  pela  lingua  latina, 
fundamenta : 

«Antes  de  tudo,  quasi  que  se  não  comprehen- 
de  como  um  povo  intelligentissimo  (solertissiina 
gens,  César,  Bell.  galL)  um  povo  compacto  de 
sete  milhões  d^  homens  pudesse  renunciar  tão 
repentina  e  completamente  á  sua  lingua.  Está 
verificado  que  o  gaulez  subsistia  ainda  no  sécu- 
lo III  (Lampridio,  Vida  d' Alexandre  Severo, 
Ulp.),  no  século  iv  (Sulpicio  Severo),  no  co- 
meço do  século  V  (S.  Jeronymo.)  Se  o  gaulez 
cede  o  logar  ao  latim,  isso  só  podia  ser  depois  do 
século  v;  ora  é  precisamente  n'esta  eix)ca  que  a 
Gallia  passa  dos  Romanos  para  os  Germanos. 
Como  suppôr  que  a  Gallia  escolheu  este  UK^mento 
para  renunciar  de  repente  á  sua  lingua  e  apro- 
priar-se  da  lingua  dos  seus  antigos  dominadores? 
Como  suppòr  também  que  os  Gaulezes  do  Occi- 
dente  poderam  esquecer  a  sua  lingua  em  alguns 
annos,  quando  os  seus  irmãos  do  Oriente  conser- 
vavam ainda  a  sua  na  época  em  que  nós  falía- 
mos (  ív  a  v  século,  S.  Jeronymo,)  e  isto  na  Ásia 
Menor,  a  setecentas  léguas  da  mãe  pátria  e  aix)z 
um  intervallo  de  setecentos  annos?» 

Mr.  Boucherie  faz  notar,  que  onde  quer  que 
se  encontra  a  lingua  latina   fora  da  Itália,  mos- 


FACTORES   STATICOS  5I 


tra  a  historia  uma  emigração  gauleza  anterior : 
em  Portugal,  na  Hespanha,  sobre  as  bordas  do 
Danúbio.  —  O  facto  torna-se  claro,  desde  que  o 
nome  de  Gaulez  se  identifique  com  o  possuidor  da 
Civilisaçáo  bronzifera,  que  no  seu  apostolado  es- 
palhou o  Zodíaco  e  a  linha  extraordinária  dos 
Tumuli. 

Os  dialectos  de  norte  da  Itália,  principalmente 
o  inílancz,  o  vcnesiano  e  o  gcnovez,  reflectem  os 
caracteres  da  Lingua  d'Oc,  sendo  chamados  pe- 
los philologos  italianos  gallo -itálicos. 

A  differença  da  Lingua  torna-se  explicável 
pela  invasão  e  incorporação  dos  Celtas ;  essas  qua- 
lidades da  lingua  occitanica,  revelaram-se  por  um 
^renascimento  do  génio  meridional  na  época  tro- 
badoresca.  Essa  dualidade  encontra-se  não  só  no 
Francez  e  Provençal,  mas  no  Hespanhol  e  Por- 
tuguez,  e  nos  dialectos  da  Itália  do  Norte  com 
os  do  sul. 

As  Línguas  romanisadas,  ou  vulgares  tem  uma 
Phonetica  differente  do  Latim,  á  qual  submette- 
ram  os  vocábulos  latinos  com  que  alargaram  o 
seu  léxico.  No  Latim  o  accento  barytonico  oppõe- 
se  á  intonação  da  ultima  syllaba:  dá-se  o  rigor 
do  accento  por  causa  da  flexão  de  consoantes, 
ou  a  quantidade  prosodica.  Nas  linguas  români- 
cas ha  o  desconhecimento  da  quantidade,  e  a  pre- 
ponderância exclusiva  do  accento,  que  pôde  ser 
agudo,  grave,  ou  exdrúxulo,  sendo  esta  colloca- 
ção  na  phrase  a  causa  de  uma  nova  forma  de 
poesia  e  versificação.  As  linguas  românicas  ten- 
dem para  a  contracção  dos  sons  e  abbreviação  das 
palavras,    e    por   isso   as   palavras   latinas,    tanto 


52  HISTORIA   DA    LITTERATURA   PORTUGUEZA 


como  as  germânicas  ou  árabes,  soffreram  a  mes- 
ma adaptação  ao  entrarem  nos  léxicos  vulgares. 

Tv  lei  geral  das  linguas  românicas  a  persis- 
tência (la  vogal  accentuada,  através  de  todas  as 
obliterações  flexionaes  syntheticas,  e  modificações 
consonantaes ;  exemplo :  quadragésima,  no  por- 
tuguez  quaresma,  no  francez  carênie;  rotundus, 
no  francez  rond ;  canalicula,  no  portuguez  quelha. 

Outra  lei  de  adaptação  pbonetica :  —  a  sup- 
pressão  da  vogal  breve,  mostra-nos  como  as  syl- 
labas  latinas  sem  accentuaçao  desappareciam,  con- 
vertendo os  pronomes  em  artigos,  fazendo  dos 
advérbios  um  circumloquio  com  o  sufflixo  mente, 
e  dos  superlativos  uma  redundância.  Não  era  um 
processo  de  decadência,  mas  de  vigor  orgânico. 
Se  a  siippressão  da  vogal  breve  actuou  na  ruina' 
da  flexão  latina  é  por  que  os  povos  modernos  não 
careciam  d'esse  meio  de  expressão  synthetica, 
quando  empregavam  o  vocábulo  na  sua  constru- 
cção  a  n ai y fica. 

Uma  terceira  lei,  egualmente  natural  e  resul- 
tante do  caracter  das  linguas  românicas,  essen- 
cialmente contrabidas :  é  a  queda  da  consoante 
medial.  N'uma  palavra  se  exemplifica:  o  adver- 
bio Metipsissimiis,  que  no  italiano  dá  medesimo, 
no  portuguez  antigo  medes,  e  meesmo,  mesmo, 
e  no  francez  même.  Quando  estas  linguas  come- 
çaram a  ser  escriptas,  os  eruditos  recorreram  ao 
vocabulário  latino,  e  esses  neologismos,  não  tendo 
recebido  as  modificações  populares,  appresentam 
formas  duplas,  e  derivações  de  tbemas  latinos 
que  nunca  existiram  na  linguagem  do  povo. 

Estas  leis  pboneticas  communs  a  povos  affas- 


FACTORES  STATICOS  53 


tados  e  sem  accordo,  e  em  antinomia  com  a  pho- 
netica  do  Latim,  por  certo  que  provieram  de  uma 
Língua  flexionai  analytica,  de  uma  extensão  ter- 
ritorial mais  vasta  do  que  o  Latim.  Basta  vêr  o 
dominio  geographico  em  que  as  linguas  romani- 
sadas  subsistem,  para  avançar  pelos  resultados  da 
anthropologia  para  a  solução  do  problema.  Ter- 
minando o  exame  na  morphologia,  o  caso  da  fle- 
xão nominal  latina  que  apparece  nas  linguas  ro- 
mânicas, o  obliquo,  é  um  duplo  sem  designar  re- 
lação; na  conjugação  o  participio  torna-se  adje- 
ctivo, e  a  forma  passiva  desapparece  como  in- 
expressiva diante  do  auxiliar  ser.  Èm  quanto  á 
Semeiologia,  no  Latim  as  palavras  conservam  uma 
significação  inalterável,  d'ahi  a  importância  da 
lingua  na  Jurisprudência  e  na  Egreja,  durante  a 
Edade  media;  nas  linguas  vulgares  a  palavra 
toma  sentidos  figurados,  e  muitas  tornam-se  pe- 
jorativas. Diez  tinba  visto  claro,  quando  disse, 
que  as  novas  linguas  não  podiam,  provir  da  con- 
fusão, porque  revelavam  uma  fonte  que  possuia 
nina  granunatica  fortemente  constituída. 

A  bypothese  céltica  foi  appresentada  antes  de 
se  conhecer  bem  a  raça  dos  Celtas,  que  os  ro- 
manos confundiram  com  os  Gaulezes.  D'esta  con- 
fusão,  em  que  os  anthropologistas  só  tarde  fize- 
ram luz,  resultou  a  deplorável  illusão  céltica^  que 
hoje  ^"  impõe  com  os  foros  de  methodo  philolo- 
gico  comparativo,  e  que  ainda  perturba  o  pro- 
blema das  origens  nacionaes.  A  raça  brachyce- 
phala,  de  estatura  mediana,  trigueira  e  de  olhos 
castanhos,  precedeu  na  Europa,  e  excedeu  em  ci- 
vilisação  essa  outra  raça  dolichocephala  corpulen- 


54  HISTORIA    DA    LITTP^RATUKA    PORTUGUEZA 

ta,  loira,  e  errante.  Broca  foi  um  dos  primeiros 
que  conseguiu  fazer  esta  separação  do  typo  an- 
thropologico.  Pela  gradação  dos  Índices  cephali- 
cos  chegou-se  a  determinar  a  marcha  de  uma  po- 
pulação brachycephala,  partindo  de  leste  para  o 
centro  da  Gallia,  Ilhas  britânicas,  Itália  e  Hes- 
panha,  sof frendo  invasões  dos  dolichocephalos 
loiros.  E'  esta  raça  brachycephala  que  hoje  se 
reconhece  pelo  nome  de  Ligurc,  pelos  trabalhos 
de  Belloguet,  de  Celesia,  de  Martins  Sarmento, 
e  geralmente  denominada  pre-celtica.  Aonde  es- 
tacionaram essas  povoações  liguricas  ahi  se  for- 
maram as  línguas  chamadas  românicas,  ou  i>er- 
sistem  as  linguas  erradamente  chamadas  neo-cel- 
ticas.  Diz  Zaboronwski :  «Estas  linguas  (se.  cél- 
ticas) parece  com  ef feito  terem  sido  f aliadas  em 
uma  região  para  além  da  Gallia  Bélgica,  aonde 
o  typo  dos  Celtas  (dos  anthropologistas)  nunca 
existiu.»  ^  A  raça  brachycephala,  como  observa 
Hovelacque,  existe  a  leste  dos  Alpes  e  mesmo 
na  Romania  actual ;  os  Ligures  acham-se  na  Pro- 
vença, ao  sul  do  Carona;  as  populações  cen- 
traes  desde  o  alto  Danúbio  até  á  Armorica,  pas- 
sando pela  Saboya  e  Auvergne,  pertencem  tam- 
bém á  raça  brachycephala,  de  estatura  mediana 
e  de  olhos  castanhos;  e  na  população  actual  da 
Inglaterra,  como  observa  Deniker,  o  typo  doli- 
chocephalo  pertence  ás  regiões  occupadas  pelos 
conquistadores  germanos  e  scandinavos,  desta- 
cando-se  os  brachycephalos  de  estatura  pequena  e 


1     Dictionaire  d'Anthropologie. 


FACTORES   STATICOS  55 


olhos  castanhos  em  uma  percentagem  irnportante. 
E'  entre  estes  povos  que  não  são  Celtas  (anthro- 
pologicamente  dolichocephalos,  corpulentos  e  loi- 
ros) que  se  conservam  as  línguas  a  que  se  dá  o 
nome  de  neo-celticas,  as  quaes  se  dividem  em  dois 
grupos :  o  hibernico  ou  gaéiico,  e  o  bretão  ou  kyni- 
rico,  comprehendendo  o  primeiro  o  irlandês,  com 
inscripçÕes  do  século  v,  o  crse^  ou  gaelico  da  Es- 
cossia,  e  o  Manx;  o  segundo  grupo,  contem  o 
gaullois  e  cómico  e  o  bretão  ou  armoricano.  Pelo 
estudo  systematico  feito  por  Edwards  sobre  este 
grupo  de  linguas,  chegou-se  ao  conhecimento  que 
ellas  eram  analyticas;  e  por  isso  póde-se  inferir, 
que  essa  vasta  população  ligurica,  entre  a  qual 
se  encontram  as  Linguas  românicas  analyticas, 
não  abandonou  ou  esqueceu  as  suas  linguas,  ro~ 
inanisoii-as  apropriando-se  do  vocabulário  latino 
para  a  expressão  da  sua  cultura,  que  fora  pertur- 
bada pelas  invasões  dos  Celtas.  Hovelacque  nota 
nas  linguas  chamadas  neo-celtas  phenomenos  ca- 
racterísticos das  românicas :  uma  grande  tendcn- 
cia  para  a  concentração;  no  consonantismo  muita 
af  finidade  com  as  linguas  itálicas ;  o  vocalismo, 
no  irlandez  (século  v  a  viii)  muito  análogo  ao 
do  Latim;  a  Declinação  no  irlandez  e  bretão,  as 
desinências  casuaes  obliteradas  e  o  artigo  per- 
dendo a  diversidade ;  a  Conjugação  gaêlica  e  bretã 
com  o  mesmo  systema  dos  auxiliares.  A  chamada 
lingiia  rústica  ou  sermo  zrnl garis,  em  que  se  des- 
envolvem as  linguas  românicas  analyticas,  era  a 
lingua  analytica,  de  que  subsistem  ainda,  não 
tendo  sof  frido  a  romanisação,  os  dois  grupos  im- 
propriamente chamados  neo-celticos.    Roma  teve 


HISTORIA    DA    LlTTRRATURA    PORTUGUEZA 


de  transigir  com  a  vitalidade  d'essas  linguas, 
como  se  vê  pela  lei  de  Alexandre  Severo  de  230, 
permittindo  fazer  fideicomissos  em  linguas  vul- 
gares. 

Vejamos  como  foram  romanisadas;  a  politica 
romana  acceitava  para  o  serviço  das  armas  mer- 
cenários recrutados  em  todas  as  provincias  do 
Império,  especialmente  tribus  germânicas,  célticas 
e  liguricas;  nas  expedições  e  guarnições  militares 
longinquas  tinha  de  transigir  com  o  emprego  de 
uma  giria  commum,  mais  fácil  pelas  suas  formas 
analyticas.  Depois  de  reconhecer  os  perigos  do 
mercenarismo,  Roma  recorreu  ao  expediente  do 
colonato,  concedendo  terras  a  varias  tribus,  coadju- 
vando a  sua  organisação  municipal,  e  dependên- 
cia administrativa,  com  regulamentos  de  direito 
escripto.  E'  pelas  relações  juridicas  e  pelas  fór- 
mulas do  processo  judiciário  que  o  Latim  se  im- 
põe ás  novas  populações,  ás  provincias  itálicas, 
gaulezas,  bretãs  e  hispânicas,  espalhando  o  seu 
vocabulário,  fácil  de  adoptar  quando  as  palavras 
provinham  de  uma  origem  commum  árica. 

As  classes  elevadas,  que  as  havia,  reconheciam 
a  superioridade  da  cultura  romana,  e  admiravam 
o  vSeu  prestigio  militar  e  administrativo,  e  por 
moda  affectavam  abandonar  as  linguas  e  mesmo 
os  costumes  das  raças  a  que  pertenciam,  para  es- 
creverem como  os  poetas  e  prosadores  de  Roma, 
e  fallarem  como  os  seus  rhetoricos.  Pela  unidade 
legislativa,  expressa  em  latim,  os  dialectos  hispâ- 
nicos unificavam-se  no  mesmo  vocabulário.  Essa 
cultura  tornou-se  de  fácil  assimilação;  Sertório 
fundou  um  centro  de  estudos  em  Osca,  e  Roma 


IfACTORKS  STATICOS  57 


teve  como  continuadores  da  sua  Litteratura  os 
cordovezes  Sextilio  Henna,  Lucano,  Porcio  La- 
tro,  os  dois  Senecas,  Annio  Mela,  os  gaditanos 
Cornelio  Balbo  e  Columella,  Marcial  natural  de 
Catatayud,  e  o  rhetorico  Quintiliano  de  Calahorra. 
Authenticam  esta  assimilação  os  escriptores  his- 
pânicos Cláudio  Apollinario,  Félix,  Marco  Lici- 
nio,  Pomponio  Mela,  Lúcio  de  Tuy,  Allio  Januá- 
rio, Cordio  Sinforo,  Silio  Itálico,  Floro,  Hygino, 
e  os  imperadores  Trajano  e  Adriano. 

A  propagação  do  Catholicismo,  pela  tradu- 
cção  da  Vulgata,  homilias  e  liturgia  ecclesiastica, 
facilitou  um  largo  emprego  do  Latim;  ainda  no 
ultimo  século  do  Império  empregavam  ,o  latim 
na  litteratura  ecclesiastica  os  bispos  Osio  de  Cór- 
dova; Porciano  e  Olympio,  de  Barcelona;  Gre- 
gório Betico  de  Granada;  Potamo  de  Lisboa  e  o 
papa  Sam  Dâmaso;  Dextro,  Juvenco,  Idacio, 
Paulo  Orosio,  Prudencio,  Elpidio  e  outros  mui- 
tos. E'  natural  que  tentassem  reproduzir  a  urba- 
nidadc  latina,  como  os  Chrysostomos  e  os  Basilios 
tentavam,  na  sua  apologética,  restaurar  o  atticismo 
do  grego  que  decahia  em  dialecto  commum.  De- 
pois da  queda  do  Império  a  tradição  romana  fica 
representada  pela  Egreja,  que  impõe  a  lingua  la- 
tina para  os  seus  diplomas  e  cânones,  separando-se 
do  povo,  f echando-se  em  uma  hierarchia  aristo- 
crática e  n'uma  isolada  erudição  claustral.  Co- 
meça a  separação  entre  o  povo,  que  elabora  as 
suas  tradições,  e  as  classes  aristocráticas,  que  se 
romanisam  e  se  submettem.á  erudição  latino-eccle- 
siastica.  Essa  separação,  que  se  observa  na  litte- 
ratura em   Santo  Isidoro,   Paulo  Orosio,   Idacio, 


m 


5^  HISTORIA     DA     MTTERATLTRA    PORTUGUEZA 

^ ^ . 


Viciara,  Santo  Ildefonso,  Isidoro  de  Beja,  Má- 
ximo, em  Draconcio,  poeta,  Florentino,  Eugénio, 
Commancio,  e  Valério,  torna-se  mais  flagrante  na 
condemnação  dos  Concilios  de  Toledo  contra  as 
tradições  populares,  que  se  transmittiram  oral- 
mente até  formarem  os  poemas  do  Cid  e  os  Ro-* 
maneei  ros. 

A  invasão  germânica  na  Hespanha  fez-se  por 
aquelles  povos  que  mais  se  tinham  apropriado  da 
cultura  romana,  os  Visigodos.  Ao  tentarem  sub- 
stituir a  unidade  imperial,  acceitaram  as  leis  e  os 
costumes  romanos;  com  relação  á  lingua  latina, 
que  os  Visigodos  adoptaram  [x^r  causa  da  sua 
conversão  ao  Catholicismo,  abandonando  o  Aria- 
nismo, a  religião  e  a  politica  estavam  de  accordo 
para  a  sua  manutenção  of ficial.  Diez  attribue  a 
decadência  da  lingua  gótica  a  esse  facto  da  con- 
versão de  Rekaredo  ao  Catholicismo  em  587,  uni- 
formisando  os  direitos  entre  os  hispano-romanos 
e  os  visigodos ;  n'esta  fusão  social  entram  elemen- 
tos germânicos  nos  dialectos  ^allgares,  mas  «não 
soffrem  nenhuma  perturbação  essencial  no  seu 
organismo ;  o  grupo  românico  escapou  quasi  com- 
pletamente á  influencia  da  grammatica  allemã.» 
Diez  assim  o  manifesta,  observando:  «que  ha  na 
formação  das  suas  palavras  algumas  derivações  e 
composições  germânicas  —  na  syntaxe  vestigios 
de  allemão,  porém  estas  particularidades  j^erdem- 
se  na  totalidade  da  lingua.»  O  facto  capital,  é  que 
a  lingua  gótica,  que  excedera  em  desenvolvimento 
o  franciko  e  o  lombardo,  na  grande  classe  po- 
pular, que  se  formava,  não  se  transformou  de 
lingua  synthetica,  que  era,  em  lingua  analytica; 


l^ACTORKS    .-^TAllCOS  59 


e  ])ela  romanisação  crescente  dos  dialectos  vul- 
«•ares  em  nada  perturbou  o  seu  organismo  defi- 
nido. Apenas  lhes  enriqueceu  o  léxico  com  os 
recursos  de  instituições  sociaes  e  de  objectos  te- 
chnologicos. 

A  invasão  dos  Árabes  é  outra  grande  expe- 
riência glottologica ;  por  que  a  sua  lingua  syn- 
thetica  também  na  sua  propagação  na  península 
nunca  produziu  um  dialecto  popular  analytico. 
Os  latinistas  ecclesiasticos,  Isidoro  de  Beja,  Se- 
bastião de  Salamanca,  Sampiro,  o  Silense,  Lu- 
cas de  Tuy  e  Álvaro  de  Córdova  descreveram 
com  cores  pessimistas  o  dominio  dos  Árabes  como 
uma  tremenda  calamidade.  Os  factos  históricos 
de  tolerância  e  liberdade  contradictam  essas  nar- 
rativas;  mediante  uma  capitação,  o  djizyeh,  o  his- 
pano-godo  tinha  garantido  a  sua  propriedade,  a 
familia,  a  crença,  e  industria.  Fácil  foi  a  har- 
monia moral  entre  a  população  existente  e  o  in- 
vasor, que  se  apropriara  da  civilisação  hellenica, 
abrindo  novos  focos  de  revivescência  do  génio 
grego  em  Damasco  e  Bagdad.  Os  hispano-godos 
imitaram  o  viver  dos  árabes,  conservando  as  suas 
crenças  christãs,  e  formaram  a  população  dos 
Mosorabes;  as  classes  trabalhadoras,  para  se  apro- 
veitarem da  attenuação  dos  impostos  concedida 
aos  que  abraçassem  o  islamismo,  formaram  os 
MiiUadis,  ou  os  clientes.  Foi  com  estes  elemen- 
tos que  se  constituiu  o  povo  moderno  da  Hes- 
panha.  desde  o  século  viii  até  ao  século  xii,  em 
que  se  definem  os  organismos  nacionaes ,  dos  Es- 
tados peninsulares.  A  extensão  do  dominio  da 
lingua  árabe  no  Occidente  tem  sido  investigada 


6o  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUÊZA 

na  Itália  por  Narducci,  na  França  por  Mareei 
Devic,  em  Hespanha  por  Simonet,  em  Portugal 
por  Fr.  João  de  Sousa,  Engelmann  e  Dozy;  vê- 
se  que  o  vocabulário  românico  enriqueceu-se  com 
termos  technicos,  umas  vezes  subsistindo  o  la- 
tim a  par  do  árabe,  como  sator,  sastre  e  alfaiate; 
outras  vindo  do  árabe,  esquecida  a  forma  anterior 
latina,  como  anfião,  de  aphium,  que  vem  de  opium. 
Muitas  palavras  árabes  são  admittidas  em  sen- 
tido pejorativo,  taes  como  Cachich  (o  sacerdote 
christão)  que  se  tornou  uma  interjeição  de  repu- 
gnância :  Cachicha!  As  palavras  Azaynhrado,  Ma- 
draço,  Leria,  Chiça  e  outras  muitas  árabes  de- 
cahiram  na  giria  popular,  pela  animadversão  ca- 
tholica.  Na  larga  lucta  da  reconquista  christã,  as 
povoações  sedentárias  ficaram  indi  ff  crentes  á  sor- 
te das  batalhas;  a  penetração  da  cultura  do  árabe 
levava  ao  emprego  das  letras  árabes  na  escripta, 
ou  a  aljaniia,  fallava-se  um  dialecto  chamado  ara- 
via,  mas  as  linguas  românicas  nada  tomaram  da 
syntaxe  árabe,  avançando,  por  causa  da  transfor- 
mação social,  para  o  momento  de  se  tornarem  as 
linguas  escriptas,  que  deram  expressão  a  novas 
litteraturas. 

O  triumpho  da  reconquista  christã  pretendeu 
restaurar  integralmente  as  atrazadas  instituições 
senhoriaes  visigóticas;  mas  foi  im])otente  diante 
de  grande  classe  popular,  a  dos  Mosarabcs,  que 
tinham  creado  os  Concelhos,  as  Behetrias  e  redi- 
giam em  vulgar  as  suas  Cartas  pnchlas  e  Porões; 
a  aristocracia  também  punha  em  vulgar  no  Fuero 
jtisgo  privilégios  antigos  mas  irrealisaveis.  E' 
n'este  antagonismo  que  se  desenvolve  a  sociedade 


FACTORES  STATICOS  6l 


moderna  da  Hespanha,  em  que  a  realeza  exerceu 
uma  funcção  coordenadora;  as  línguas  românicas 
na  península,  órgãos  de  novas  nacionalidades,  por 
este  phenomeno  politico,  attingiram  o  mais  in- 
tenso desenvolvimento. 

b)  Filiação  da  Língua  portugueza 
e  suas  épocas  históricas 

o  pensamento  da  unidade  imperial  romana  é 
realisado  entre  os  Frankos  por  Carlos  Magno,  que 
fixa  uma  época  de  estabilidade  para  a  Europa, 
inicio  da  civilisação  moderna;  coUocado  no  centro 
do  Occidente,  na  Gallia,  elle  susteve  as  invasões 
das  tribus  barbaras  do  norte,  romanisando  a  Alle- 
manha  e  pondo  um  dique  á  invasão  dos  Árabes 
no  sul.  Na  creação  de  novas  formas  sociaes  or- 
ganisaram-se  Nacionalidades,  e  o  Occidente,  por 
uma  crença  commum,  chega  á  acção  commum  das 
Cruzadas,  cria  uma  mesma  Arte,  uma  mesma  Poe- 
sia, e  funda  a  liberdade  civil  com  as  mesmas  re- 
\'oltas  communaes.  Todos  estes  factos  tornaram 
escriptas  as  Linguas  românicas  empregadas  em 
dar  expressão  a  esta  grande  synthese  affectiva. 

A'  evolução  social  e  histórica,  que  simultanea- 
mente com  a  reconquista  neo-gotica  ia  desmem- 
brando o  território  e  povoações  tomadas  aos 
Árabes  em  pequenas  nacionalidades  independen- 
tes, corresponde  a  seguinte  divisão  dialectal : 
o  PorHigucz,  o  Catalão  e  o  Castelhano.  São 
trez  nacionalidades,  as  que  mais  profunda- 
mente se  constituíram,  achando-se  ainda  no  sé- 
culo XVII  Portugal  e  a  Catalunha  em  lucta  con- 


02  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


tra  a  unificação  ibérica  castelhana.  Diez  considera 
a  língua  portugueza  com  caracteres  próprios ;  no 
Poema  de  Alexandre  e  no  Poema  do  Cid  encon- 
tro os  typos  formativos  do  castelhano;  nos  versos 
de  Berceo,  em  que  se  conhece  a  influencia  dos 
trovadores,  destacam-se  já  as  feições  peculiares  do 
catalão.  Os  outros  dialectos,  como  o  gallego,  o 
valenciano,  o  malhorquino  e  o  andaluz  estacionam 
por  falta  de  estimulo  nacional. 

Entre  o  Português  e  o  Castelhano  continua-se 
a  differença  do  Lusitano  e  do  libero:  escreve 
Schleicher :  ((cada  um  d'estes  povos  tem  uma  aver- 
são profunda  por  certas  combinações  de  vogaes 
e  consoantes...  Esta  diversidade  phonetico-acus- 
tica  é  baseada  sobre  uma  diversidade  physiologica. 
(Ib.,  p.  221.) — Quem,  por  exemplo,  ousará  ex- 
plicar porque  é  que  o  portuguez  não  gosta  dos 
diphthongos  hespanhoes  ie  e  u.:,  e  em  geral  dos 
diphthongos  tendo  o  accento  sobre  a.  segunda  par- 
te? O  portuguez  conserva  fielmente  o  //  e  <'  bre- 
ves, taes  como  os  tomou  do  latim.  Desconhece 
o  som  guttural  rigorosamente  aspirado  dos  Hes- 
panh(')es ;  substitutue-o  por  um  som  sibilante  des- 
conhecido a  estes.»  (Ib.,  221.)  Ha  porém  formas 
communs  ao  Portuguez  antigo  e  ao  Castelhano, 
que  não  são  explicáveis  pelo  latim,  como  os  par- 
ticipios  em  itdo;  e  na  lingua  portugueza  a  flexão 
de  infinitivo  conjugavel  com  relações  pessoaes, 
que  lhe  é  peculiar.  A  differenciação  do  Portu- 
guez, resultou  de  ter  a  Galliza  i>erdido  as  condi- 
ções de  vida  nacional,  e  de  ter  o  ])equeno  Condado 
Portuculense  attingido  a  autonomia  politica  no 
século  XII. 


FACTORES   STATICOS  63 


a)  Separação  do  Português  do  Gallego.  Des- 
de Fernando  Magno  a  Galliza  estendia-se  até 
ao  Mondego:  ainda  em  1065  pertenciam-lhe  as 
conquistas  ao  norte  do  Mondego  e  do  Alva;  em 
1093  as  suas  fronteiras  estendiam-se  até  á  foz 
do  Tejo,  depois  da  tomada  de  Santarém  e  de 
Lisboa  aos  sarracenos.  Affonso  vi,  de  Leão, 
querendo  fortalecer  a  administração  d'este  vasto 
dominio  da  Galliza,  encarregou  do  seu  governo 
a  Raymundo,  seu  genro,  que  viera  com  os  ca- 
valleiros  frankos  ajudar  o  monarcha  leonez  em 
T083  na  batalha  de  Zalaka.  Por  estes  factos  se 
(leprehende,  como  se  generalisou  a  lingua  fal- 
lada  em  todo  este  território,  dando  uma  certa 
unidade  aos  dialectos  locaes.  Nas  invasões  ger- 
mânicas do  século  V,  a  Galliza  fora  occupada  pe- 
los Suevos,  Alanos  e  Silingos,  incorporados  estes 
últimos  aos  primeiros  quando  Walia  os  forçou 
a  abandonarem  a  Betica  e  a  Lusitânia;  mais  tarde 
os  Suevos  estenderam  o  seu  dominio  sobre  a 
Betica  e  a  Lusitânia  até  serem  submettidos  por 
Leovigildo  á  unidade  visigótica.  Um  mesmo  in- 
fluxo germânico  na  differenciação  de  um  dialecto 
vulgar;  observam  Helfrich  e  Declermont:  «Com- 
l)aran(lo  a  vocalisação  do  dialecto  suabio  actual 
á  do  portuguez,  julga-se  ter  achado  a  solução  do 
problema.  Foram  os  Suevos,  que  primeiro  que 
todas  as  outras  tribus  germânicas,  se  estabeleceram 
na  Galliza,  e  admittindo  que  a  lingua  allemã  re- 
cebesse na  bocca  dos  Suevos,  desde  a  sua  pri- 
meira apparição  histórica,  uma  vocalisação  distin- 
cta  da  do  gótico,  não  custará  a  attribuir  a  into- 
nação  nasal,  particular  ao  dialecto  suabio,  e  que  se 


04  HISTORIA    DA   LITTERATURA    PORTUGUEZA 

encontra  de  uma  maneira  surprehendente  no  por- 
tuguez,  á  influencia  da  lingua  dos  Suevos  sobre 
o  novo-latino  que  acabava  de  se  fonnar  unica- 
mente na  Galliza.»  i  Uma  maior  estabilidade,  du- 
rante o  domínio  dos  árabes  e  no  meio  das  suas 
algaradas,  fez  com  que  a  Galliza  se  tornasse  um 
centro  de  cultura,  e  que  a  sua  Hngua  podesse  ser 
escripta,  influindo  isso  na  prioridade  do  lyrismo 
trobadoresco  ao  norte  e  ao  oeste  da  peninsula. 
Território  e  raça  tudo  influía  para  a  unidade  do 
G  alie  mano.  Na  separação  do  Condado  de  Portu- 
gal, de  que  Henrique  de  Borgonha  toma  posse 
em  1096^  e  de  que  resultou  a  formação  da  Nacio- 
nalidade portugueza,  a  Galliza,  que  tanto  la- 
ctara pela  sua  independência  reduziu-se  á  con- 
dição de  província,  decahindo  a  lingua  no  dia- 
lecto gallego,  que  deixa  de  ser  escripto,  depois 
de  ter  sido  empregado  artificialmente  na  littera- 
tura  de  corte,  como  nas  Cantigas  de  Santa  Maria 
de  Affonso  Sábio,  e  na  Clironica  de  Troya,  e 
ai)esar  dos  esforços  de  renascimento  pelos  poetas 
Villasandino  e  Juan  Rodriguez  dei  Padron. 

A  lingiia  portugueza,  como  factor  nacional 
exoluciona  com  aspecto  menos  archaico.  Para  que 
o  território  das  margens  do  Minho  até  ao  Tejo 
se  desmembrasse  do  Condado  da  Galliza  e  se 
emancipasse  da  unificação  ibérica  da  monarchia 
asturo-leoneza,  não  bastavam  as  ambições  de  Hen- 
rique de  Borgonha,  de  sua  viuva  1).  Thereza,  ou 


I     Aperçu  de  1'Histoirc  des  Langues  neolatines  en  Es- 
tagne, p.  36. 


FACTORES    STATICOS  65 


do  seu  íilho  D.  Af  f onso  Henriques ;  os  Concelhos, 
em  que  as  cidades  livres  no  seu  desenvolvimento 
juridico  se  fortaleciam  na  associação  de  Behetria, 
avançavam  para  a  organisaçao  nacional,  que  foi 
verdadeiramente  uma  revisvescencia  do  hisismo. 
A  vida  nacional  era  suscitada  pela  acção  geogra- 
phica :  a  proximidade  do  mar  não  era  simples 
barreira  defensiva,  mas  um  estimulo  de  activida- 
de; pelo  mar  vinham  as  armadas  que  coadjuva- 
ram a  reconquista,  pelo  mar  se  fizeram  as  in- 
cursões na  costa  do  Algarve  e  se  entrou  depois 
da  integração  do  território  no  periodo  dos  gran- 
des Descobrimentos  geographicos.  A  lingua  por- 
tugueza  seguiu  esta  differenciação  alargando  o 
seu  vocabulário  pelos  neologismos  latinistas  im- 
l)ostos  péla  cultura  litteraria  da  Corte,  da  Egre- 
ja,  e  das  Escholas.  Deu-se  assim  uma  aproxi- 
mação forçada  do  latim  clássico,  levando  á  illu- 
são  de  um  maior  parentesco  originário  d'essa  lin- 
gua, como  o  acreditavam  os  eruditos  da  Renas- 
cença. Na  linguagem  popular  conservaram-se  mui- 
tas formas  gallegas,  que  chegaram  a  manifestar- 
se  nos  escriptores ;  e  o  gallego  por  seu  turno  rece- 
beu a  influencia  do  portuguez. 

b)  Modificações  por  via  do  francês.  —  Toman- 
do conta  do  Condado  Portucalense,  o  cavalleiro 
borgonhez  fixou  no  território  os  homens  de  ar- 
mas que  o  acompanharam,  deu  frankias  ás  coló- 
nias que  chamou  do  seu  paiz,  e  para  as  dioceses 
vieram  bispos  francezes,  como  S.  Geraldo, 
D.  Mauricio,  D.  Hugo,  D.  Bernardo.  Havia  uma 
:ausa  permanente  para  que  o  francez  influi sse  na 
nossa  lingua  nacional;  desde  o  século  xii  era  a 
5 


66  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 


lingua  franceza  a  vulgar isadora  de  todas  as  tra- 
dições poéticas  da  Edade  media;  na  Itália  ava- 
lia-se  o  seu  prestigio  pelas  palavras  de  Brunetto 
Latini :  «/a  parleurc  française  est  la  plus  gracieuse 
et  delictable  de  tous  les  aiitncs  languages...)>  Dan- 
te no  De  vnlgari  Bloqiiio  reconhece  esta  superio- 
ridade; na  Inglaterra,  no  século  xiii  as  procla- 
mações de  reis,  o  ensino  nas  escholas  e  as  bailadas 
do  povo  eram  em  francez;  nos  velhos  romances 
allemães  acham-se  versos  inteiros  em  francez, 
como  no  Tristam  de  Gottfried.  Os  portuguezes 
iam  estudar  a  França,  como  D.  João  Peculiar, 
Gil  Rodrigues;  as  lendas  e  Gestas  carlingias  for- 
mavam a  Nova  mestria,  vulgarisada  pelos  jo- 
graes.  A  corrente  franceza  continuou  na  ejx>ca 
das  luctas  dos  fidalgos  contra  D.  Sancho  1 1 ,  re- 
fugiando~se  os  emigrados  na  corte  de  Sam  Luiz, 
d'onde  acompanharam  depois  para  Portugal 
D.  Affonso  III,  que  deix)z  o  irmão.  D.  Diniz 
foi  educado  pelo  francez  Emeric  d'Ebrard,  de 
Cahors,  e  nas  canções  dos  trovadores  portugue- 
zes ha  além  de  dois  versos  francezes,  allusÕes  aos 
ix>emas  mais  queridos  da  Matéria  de  França  e  de 
Bretanha.  Seguindo  as  primeiras  composições  lit- 
terarias  em  portuguez  este  prestigio  universal  dos 
poemas  francezes,  a  lingua  recel)eria  uma  influen- 
cia que  se  contrabalançava  com  a  latinisação  for- 
çada dos  eruditos  ecclesiasticos.  A  Civilisação 
Occidental  tinha  achado  o  seu  novo  centro  hege- 
mónico, suscitando  o  desenvolvimento  da  lingua 
portugueza  na  expressão  da  litteratura. 

c)  O  português  eojneça  a  ser  escripto.  —  De- 
baixc^  da  inflexão  alatinada  d'essa  lingua  conven- 


FACTORES    STATICOS  d'] 


I 


cional  e  barbara  dos  documentos  jurídicos,  taes 
como  o  Livro  dos  Testamentos  de  Lorvão,  ou  o 
Livro  preto  da  Sé  de  Coimbra,  existem  as  pala- 
vras vulgares  que  mais  tarde  apparecem  com  for- 
ma própria  nos  textos  litterarios.  João  Pedro  Ri- 
1)eiro,  nas  suas  Dissertações  chronologicas  e  cri- 
ticas I  transcreve  documentos  redigidos  em  por- 
tuguez  no  reinado  de  D.  Sancho  i,  em  1192,  e 
deduz  que  no  reinado  de  D.  Affonso  iii,  a  co- 
meçar em  ,1273  é  que  apparecem  com  mais  fre- 
(|uencia  os  documentos  em  portuguez,  tornando- 
se  geral  o  seu  uso  de  1334  em  diante.  Estes  fa- 
ctos são  importantes  para  se  reconhecer  que  exis- 
tia uma  lingua  popular  que  se  impoz  ao  uso  offi- 
cial  ainda  no  século  xii,  e  lucta  com  o  exclusi- 
\ismo  do  latim  da  Egreja  e  da  cúria.  2 

O  uso  litterario  do  portuguez  começou  pelas 
formas  poéticas,  sob  D.  Saflcho  i  (1154-1211) 
e  princii>almente  quando  os  fidalgos  que  regres- 
saram de  França  com  D.  Affonso  iii,  reprodu- 
ziram como  moda  da  corte  o  lyrismo  trobadores- 
co,  que  Dom  Diniz  aproximou  da  tradição  popu- 
lar. A  redacção  em  prosa  começou  pelos  latinis- 
tas ecclesiasticos,  traduzindo  em  portuguez  os 
Evangelhos  e  alguns  livros  moralistas  dos  Pa- 
ch-es  da  Egreja.  A  Livraria  de  Alcobaça  era  ri- 
((uissinia  d'essas  traducções  de  livros  ascéticos, 
compilados  para  uso  dos  clérigos  que  ignoravam 


1  Op.  cit.,  I,  60,  61,  62-68  e  184. 

2  O  testamento  de  D.  Affonso  11,  de  1214  ®é  o  mais 
antigo  diploma  escripto  em  lingua  portugueza.^^  (Rev.  Lusit,, 
vol.  VIII,  p.  82.) 


68  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

O  latim.  A  erudição  claiistral  absorvendo  para 
si  o  exclusivismo  da  instrucção  e  banindo  os  can- 
tos vulgares  da  liturgia,  tornou  o  latim  a  giria 
das  escholas  e  da  poesia  dos  goliardos.  A  re- 
nascença do  Direito  romano,  nas  Universidades, 
fez  com  que  da  parte  do  Poder  real  se  impozesse 
o  latim  nos  tribunaes,  allegaçÕes  juridicas  e  pos- 
tillas  doutoraes.  Assim  se  enriquecia  o  vocabu- 
lário portuguez  pelos  neologismos,  abandonando- 
se  as  formas  populares  no  meio  d'esta  exube- 
rância de  elementos  eruditos.  Raros  foram  os 
escriptores  que  se  libertaram  do  prestigio  da  imi- 
tação latina,  favorecida  pelas  auctor idades  catbo- 
lica  e  académica,  que  afastaram  a  litteratura  por- 
tugueza  das  condições  orgânicas  da  sua  origina- 
lidade. 

Mas  a  lingua  portugueza,  que  differenciava 
uma  raça,  era  meio  de  expressão  do  sentimento 
de  uma  nacionalidade.  A  escripta  fixa-a,  dá-lhe 
a  norma  de  analogia  nas  suas  derivações,  e  mo- 
dificando-a  artisticamente  pelo  estylo  litterario, 
tornada  pelo  génio  dos  seus  escriptores,  um  meio 
de  cohesão  da  própria  nacionalidade.  Terminada 
a  época  dos  Descobrimentos,  os  Quinhentistas  for- 
tificavam a  vida  da  nação  proclamando  a  cultura 
da  lingua;  são  profundamente  sentidos  estes  ver- 
sos do  Dr.  António  Ferreira: 

Floreça,  falle,  cante,  ouça-se,  e  viva 
A  Portuguesa  lingua,  e  já  onde  fôr. 
Senhora  vá  de  si,  soberba  e  altiva. 

Se  'téqui  esteve  baixa  e  sem  louvor, 
Culpa  é  dos  que  a  mal  exercitaram, 
Esquecimento  nosso  e  desamor. 


FACTORES    STATICOS  69 


E  OS  que  depois  de  nós  vierem,  vejam 
Quanto  se  trabalhou  por  seu  proveito, 
Porque  elles  para  os  outros  assim  sejam. 

(Cart.  III.) 

Este  pensamento  dos  Quinhentistas  não  era 
ignorado  pelos  escriptores  estrangeiros,  que  nos 
apontavam  para  exemplo.  Na  Carta  de  D.  Diego 
de  Mendoza,  censurando  o  uso  dos  termos  anti- 
quados na  traducção  do  Orlando,  de  Urrea,  allu- 
de-se  a  este  facto:  «Mas  vos  le  débeis  hacer  por 
imitacion  á  los  Portugueses,  que  han  hecho  ley, 
en  que  deíienden,  que  ninguno  hable  vocablo  cas- 
tellano  ni  estranjero,  si  no  solamente  puro  y  ne- 
to.» Camões,  servindo  o  sentimento  nacional  na 
epoi)êa  dos  Lusíadas,  unificou  a  lingua  popular 
com  a  erudita,  que  é  a  que  se  falia  e  que  se  es- 
creve em  todo  o  paiz. 

Fora  da  Litteratura  a  lingua  i>ortugueza  teve 
um  largo  desdobramento  de  dialectos,  devido  ao 
forte  individualismo  do  povo,  e  em  consequência 
da  expansão  histórica  em  um  vastissimo  dominio 
colonial.  No  século  xvi  escrevia  João  de  Barros 
em  um  dos  seus  Diálogos:  «As  armas  e  os  pa- 
drões ])ortuguezes  postos  em  Africa  e  Ásia,  e  em 
tantas  mil  ilhas  fora  da  repartiçam  das  três  par- 
tes da  terra,  matérias  são  e  póde-as  o  tempo  gas- 
tar ;  pêro,  não  gastará  doutrina,  costumes,  lin- 
guageiu,  que  os  portugueses  nestas  terras  dei- 
xaram.)) A  verdade  d'esta  affirmação  do  nosso 
vigor  nacional  é  bem  evidente  ainda  ao  fim  de  três 
séculos;  temos  o  dialecto  Crioulo  nas  possessões 


70  HISTORIA    DA    I^ITTERATURA    PORTUGUEZA 

da  Africa  e  Cabo  Verde,  o  Matuto,  no  Brasil,  o 
Reinol  ou  Indo-portuguez,  em  Columbo,  capital 
de  Ceylão,  em  Malaca.  Escreve  Radau,  referin- 
do-se  a  Malaca:  «O  idioma  que  ahi  se  falia  hoje 
ao  lado  do  inglez  é  uma  espécie  de  phenomeno 
philologico:  é  o  portuguez  despojado  das  suas  ter- 
minações, e  por  assim  dizer  reduzido  a  raizes.  Os 
verbos  não  têm  tempos  nem  modos,  nem  nú- 
meros e  pessoas;  os  adjectivos  perderam  o  femi- 
nino e  o  plural.  Bu  vai,  significa  eu  vou,  eii  tenho 
ido,  cu  irei,  segundo  as  circumstancias.  Algumas 
palavras  do  malaio  completam  es'a  lingua,  que 
appresenta  um  curioso  exemplo  de  retrocesso  ao 
estado  primitivo.»  i  Os  dialectos  do  portuguez 
são  numerosos  e  tem  sido  estudados  proficiente- 
mente por  philologos  estrangeiros  e  nacionaes;  são 
um  documento  do  poder  de  assimilação  e  de  resis- 
tência do  povo  ix)rtuguez. 

Durante  os  quarenta  annos  da  unificação  ibé- 
rica (1580-1640)  a  lingua  portugueza  trocada  pela 
castelhana  i>ela  aristocracia  e  homens  cultos,  era 
usada  pela  gente  do  povo,  como  o  ultimo  vestí- 
gio da  nacionalidade,  e  foi  ella  também  o  esti- 
mulo da  sua  revivescência. 

á)  A  ]'\^rsificação  portugueza:  Syllabismo. — 
Quando  os  ]jovos  criam  as  suas  linguas,  os 
sons  com  que  as  faliam  são  também  os  mesmos 
com  que  pela  intensidade  as  cantam.  D'esta  ele- 
vação das  intonações  verbaes,  deduziu  Rousseau, 


I     Un  Natur aliste  dans   1'Archipel  M alais.     (Rev.   du 
Deux  Mondes,  t.  83,  p.  679.) 


IfACTORES    STATICOS  "Jl 


que  se  não  pode  fixar  onde  acaba  a  palavra  fal- 
lada  e  começa  o  canto.  A  mesma  lingua,  quando 
constitue  a  expressão  grammatical,  cria  simulta- 
neamente a  sua  versificação;  o  accento  prosodico 
da  palavra,  coincidindo  com  o  accento  melódico 
da  phrase,  deteimina  o  rythmo,  em  que  se  funda 
a  accentuação  métrica.  Uma  lingua  tem  sempre 
um  systema  de  Versificação  que  lhe  é  própria. 
A  poética  das  Litteraturas  românicas  têm  uma 
similaridade,  por  que  deriva  do  génio  das  Lin- 
guas  vulgares  ou  romanisadas,  unificadas  pela 
sua  natureza  analytica.  Como  os  philologos  da 
eschola  de  Diez  quizeram  explicar  a  origem  d'es- 
sas  linguas  meridionaes  como  uma  degradação 
do  Latim,  laboraram  no  prolongado  equivoco,  de 
que  a  sua  Versificação  também  proviera  da  mé- 
trica latina!  Nunca  conseguiram  provar  como 
uma  Versificação  baseada  sobre  a  quantidade, 
podia  transfonnar-se  em  uma  base  incompatível 
com  essa  forma  prosodica,  a  accentuação.  Bas- 
tava este  facto  para  reconhecer-se  o  vicio  do  pro- 
blema respondido  pela  degradação  do  latim.  Hoje 
já  ha  a  tendência  para  abandonar  o  esforço  de 
fazer  confrontos  entre  a  Versificação  vulgar  com 
a  latina.  ^  Na  métrica  da  quantidade,  a  cadencia 
oratória  ou  declamatória  suppria  a  falta  de  coin- 

Icidencia  do  accento  prosodico  com  o  accento  ry- 
thmico,  com  o  ictus,  uma  nova  belleza  ligada  á 


I  Procurava-se  no  verso  adonico,  o  pentasyllabo  vul- 
gar; no  pherecratiano  o  heptasyllaho ;  no  glyconio  ou  jam- 
bo dimetro,  o  octosyllabo;  no  dactylo  trimetro  o  decasyl- 
laho;  e  no  asclepiade  o  alexandrino. 


12  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    PORTUGUEZA 

intonação  do  Radical  da  palavra  e  ao  logar  da 
constriicção  syntaxica  determinado  pelas  flexões. 
Em  linguas  analyticas,  em  que  se  perdeu  a  noção 
do  radical,  e  a  construcção  syntaxica  é  directa 
e  ix)r  meio  de  preposições,  predominou  o  accento, 
graduando  o  numero  certo  das  syllabas  dentro 
da  pausa  métrica,  ou  o  verso,  e  dando  ainda  mais 
relevo  á  sua  expressão  pittoresca  pela  rima. 

A  Versificação  vulgar  é  produzida  pelo  Syl- 
lahismo:  syllabas  contadas,  que  dão  a  estructura 
do  verso.  Para  que  dentro  de  cada  verso,  ou  no 
seu  âmbito  caibam  as  phrases,  é  preciso  que  os 
sons  vocálicos  se  absorvam  eliminando  syllabas, 
ou  ampliando-as  por  meio  das  chamadas  figuras 
de  dicção;  taes  são  as  cesuras,  as  ellipses,  ecthli- 
pses,  syncopes,  aphéresis,  apocopes,  que  antes  de 
serem  admittidas  pelos  rhetoricos  já  estavam 
creadas  pela  phonetica  popular.  A  palavra  que 
entra  na  construcção  do  verso,  também  pela  va- 
ria disi^osição  do  seu  accento  prosodico,  se  col- 
loca  ou  usa  para  alcançar  a  sua  coincidência  com 
o  accento  métrico:  tal  é  a  oxytona  (aguda,  tron- 
chi)  a  par  oxytona  (grave,  piani)  e  a  proparoxy- 
toiía  (esdrúxula,  sdruccioli).  E'  ainda  pela  in- 
lluencia  do  Canto,  que  se  estabelece  a  Estrophe 
ou  o  numero  certo  de  versos,  e  as  suas  rei>eti- 
ções  ou  Refrem,  e  os  versos  metabólicos. 

Do  systema  das  consoantes,  por  onde  se  dis- 
tinguem os  radicaes  nas  palavras,  apenas  se  con- 
serva o  artificio  da  aliteração,  sem  logar  defi- 
nido no  verso.  E'  ef feito  sonoro,  que  distingue 
a  rima  ])erfeita  (siniid  desincns)  da  assonancia 
(siniul  caciois.)    O  verso,  na  sua  extensão,  com- 


FACTORES    STATICOS  "J^) 


põe-se  de  dois  trechos,  ou  hemistychios,  ou  quebra- 
dos :  são  arsis  e  thesis,  como  o  alevantamento  e 
abaixamento  da  respiração.  E'  ainda  o  canto  que 
influe  nos  versos  de  âmbito  curto,  da  sexta  syl- 
laba  para  traz,  (redondilha)  ou  da  sexta  sylla- 
ba  até  á  decima  (endecasyllabo,  ou  endecha).  Por 
meio  dos  hemistychios  ou  quebrados  se  variam 
indefinidamente  as  formas  estrophicas,  quasi  sem- 
pre designadas  pelo  numero  dos  seus  versos : 
terceto,  quadra^  quintilha,  sextilha,  outava,  de- 
cima. Como  é  que  entrou  na  mente  dos  eruditos 
derivar  um  systema  tão  pecuHar  de  Versificação 
de  Línguas  analyticas,  d'essa  mal  comprehendida 
métrica  á2i  quantidade  da  litteratura  latina?  Vê- 
se  que  o  saber  erudito  nem  sempre  é  intelligente. 

Com  estes  recursos,  linguas  prosaicas,  pelas 
suas  palavras  immoveis  (variando  as  relações  por 
pre])osÍQÕes)  conseguiram  realisar  a  incomparável 
expressão  da  Poesia  moderna,  em  tudo  superior 
á  poesia  clássica.  A  similaridade  das  leis  poéti- 
cas fez  com  que  as  Litteraturas  modernas  exer- 
cessem entre  si  uma  mutua  influencia  ou  acção 
hegemónica,  levando  muito  longe  o  espirito  de 
imitação  das  suas  obras  primas,  cooperando  to- 
das na  elaboração  i>erfeita  dos  géneros  litterarios, 
e  da  cultura  estylistica. 

Pelas  suas  transformações  morphologicas  e 
estylisticas,  a  lingua  portugueza  appresenta  as  se- 
guintes épocas  históricas: 

I.  (Séculos  viu  a  xii):  Periodo  oral  e 
de  elaboração  popidar,  até-  á  unificação  nacional. 
—  N 'estes  quatro  séculos  modificam-se  os  sons 
luso-ibericos,  latinos,  germânicos  e  árabes,  estabe- 


74  HISTORIA    DA    LlTTERATURA     PORTUGUEZA 


lecendo  o  caracter  da  phonetica  galleziana.  Dos 
vocábulos  (Vessas  varias  proveniências  amplia-se 
o  léxico  vulgar,  e  este  transparece  sob  a  inflexão 
alatinada  dos  documentos  juridicos.  Pelo  con- 
curso do  nacionalismo,  o  portuguez  destaca-se  do 
gallego  reflectindo  o  progresso  social. 

II.  (Seguidos  xiii  a  xv)  :  Período  de  di- 
ircrgencia  erudita.  —  Modificações  produzidas  pela 
acção  da  cultura  latina;  separação  entre  os  es- 
criptores  e  o  povo,  occupados  nas  traducçÕes  la- 
tino-ecclesiasticas.  Muitas  derivações  fazem-se 
de  themas  latinos  que  não  entraram  na  corrente 
da  linguagem  popular.  Conformação  da  syntaxe 
com  a  latina,  dando-se  na  legislação  a  necessidade 
de  redigil-a  em  linguagem  mais  moderna,  como 
se  manifestou  na  reforma  dos  Foraes. 

rii.  (Skculo  XVI ):  Período  de  disciplina 
graininatical.  —  Dá-se  n'este  século  a  preponde- 
rância das  classes  cultas,  ou  a  Egreja  e  a  Corte 
sob  o  prestigio  do  humanismo.  Fernão  de  Oli- 
veira e  João  de  Barros,  publicam  as  primeiras 
Grammaticas  portuguezas  imitadas  das  gram- 
maticas  medievaes.  A  centralisação  da  capital 
actua  na  decadência  dos  dialectos  ])rovinciaes,  ou 
fallar  de  Kntre  Douro  e  Minho,  da  Beira  e  Alem- 
tejo.  O  ensino  dos  Jesuitas;  imprime  á  gramma- 
tica  ]K>rtugueza  a  disciplina  da  grammatica  la- 
tina nos  séculos  xvi  e  xvii,  confundindo-a  com 
a  rhetorica. 

IV.  (Séculos  xvii  a  xix.):  Unificação  da 
língua  portuguesa  popular  e  escrípta,  em  urna 
língua  comnium  a  toda  a  nação.  —  Opera-se  um 
exame  histórico  e  critico  da  lingua  por  Duarte 


FACTORES    STATICOS  75 

Nunes  de  Leão,  mas  decae  este  estudo  na  di- 
vagação rhetorica  até  ao  apparecimento  de  um 
J^ocabtilario  português  por  Bluteau,  que  serviu 
de  base  ao  Diccionario  de  Moraes  e  Silva  e  a 
todas  as  outras  compilações.  A  Arcádia  lusitana 
sustenta  o  purismo  da  língua  com  os  archaismos 
quinhentistas;  prolonga-se  o  pedantismo  gramma- 
tical  até  ao  apparecimento  do  critério  historico- 
comparativo,  coincidindo  este  processo  com  o  res- 
tabelecimento d'as  bases  tradicionaes  na  Littera- 
tura,  ou  o  Romantismo. 

4.0  A  Nacionalidade.  —  Depois  de  quebrada 
a  unidade  do  Império  gothico  pela  invasão  dos 
Árabes  em  Hespanha,  e  antes  de  começar  o  es- 
forço da  reconquista  dos  refugiados  das  Astú- 
rias, manifestaram-se  as  resistências  locaes  e 
ethnicas,  revelando  os  esboços  de  futuras  nacio- 
nalidades peninsulares.  As  cidades  da  Lusitânia 
que  tinham  resistido  tenazmente  contra  as  legiões 
romanas,  e  que  haviam  conservado  as  suas  ga- 
rantias territoriaes  contra  a  absorpção  germânica 
do  estatuto  pessoal,  foram  as  que  apresentaram  a 
hicta  mais  implacável  contra  a  absorpção  dos 
Árabes,  que  aspiravam  ao  unitarismo  do  kalifado. 
Tvts  focos  combateram  para  a  realisação  da  re- 
conquista christã:  a  região  lusitana  ao  occidente, 
a  região  catalã  ao  oriente,  e  a  região  asturo- 
cantabrico-gallega.  Estes  três  focos  esboçam  as 
nacionalidades  que  se  haviam  de  constituir  com 
a  libertação  da  Hespanha;  dá-se  esse  grande  phe- 
nomeno  histórico  desde  o  século  viii  até  ao  esta- 
belecimento das  monarchias  do  século  xii. 


I 


76  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 


A  resistência  lusa  é  altamente  significativa: 
segundo  a  Chronica  do  mouro  Rasis,  ^  a  po- 
voação da  vertente  occidental  da  peninsula  era 
a  mais  irrequieta  sob  o  jugo  de  Abderaman  i,  o 
qual  com  o  seu  furor  submetteu  a  gente  de  Beja, 
Évora,  Santarém  e  Lisboa  e  todo  o  Algarve.  Esta 
expedição  feroz,  feita  no  anno  de  763  a  764,  foi 
motivada  pelo  auxilio  que  estas  povoações  indi- 
genas  propriamente  lusitanas  deram  ao  caudilho 
Alafá-ben-Magarit,  o  qual,  como  escreve  Simo- 
net,  na  sua  importante  Historia  de  los  Mosara- 
bes  (p.  250)  «quasi  poz  em  perigo  o  novo  im- 
pério árabe.»  Continuava  esta  população  occi- 
dental o  mesmo  impeto  de  resistência  com  que 
combateu  Roma  auxiliando  Sertório.  Foram  vio- 
lentas as  revoluções  de  Merida,  e  graças  a  esta 
vitalidade  da  raça  lusa,  o  dominio  dos'  Ára- 
bes não  passou  a  cima  da  Villa  da  Feira, 
fazendo  apenas  rápidas  incursões  á  Galliza. 
O  Território  portucalense,  assim  libertado  pelos 
lusitanos  do  sul,  manteve  as  condições  para 
revindicar  a  sua  autonomia  da  absorpção  unita- 
rista  asturo-leoneza,  e  constituir  no  século  xii  a 
nação  portugueza.  Por  isto  se  reconhece  o  ca- 
racter resistente  e  persistente  da  raça  lusitana, 
(]ue  sem  o  auxilio  dos  reis  leonezes  luctava  pela 
sua  independência,  por  forma  que  os  árabes  a 
reconheciam  como  (/  gente  mais  irrequieta  da  parte 
occidental  da  Hespanha.  Nas  divisões  ecclesias- 
ticas  da  Lusitânia,  em  780,  que  se  encontram  no 


I     Gayangos,   Xíem.  de  la  real  Academia,  vol.  viu,  p. 
93. 


FACTORES    STATICOS  7/ 


códice  Ovetense  do  Escurial,  enumeram-se  as  se- 
guintes sés :  Emérita,  Pace,  Olissipona,  Ossonoba, 
Egitana,  Conimbria,  Beseo,  Lamego^  Calábria, 
Salamantica,  Abelo,  Ebbora,  Caurio;  e  na  região 
da  Galliza,  Bracara,  Dumio  e  Portocale.  Dois 
arcebispados  dividem  o  novo  território;  o  de  Mé- 
rida,  (Lusitânia)  e  o  de  Braga  (Galicia)  no  qual 
entra  Portocale.  Não  foi  o  território  portuguez 
repovoado  por  colónias  de  asturo-leonezes,  como 
pretendia  Herculano;  numerosas  cidades  se  liga- 
\'am  em  Behetrias,  desenvolvendo-se  a  sua  po- 
pulação agrícola  e  fabril ;  nem  a  autonomia  de 
Portugal  foi  obra  exclusiva  do  Conde  D.  Hen- 
rique e  de  seu  filho  D.  Affonso  Henriques,  por- 
ei ue  obedeceram  ao  impulso  da  autonomia  come- 
çado por  Sisnando.  Nas'  cartas  geographicas  pu- 
blicadas pelo  Visconde  de  Santarém,  encontra-se 
sempre  representada  a  Lusitânia,  com  este  nome 
desde  o  século  vii  até  ao  século  xii.  E'  uma 
realidade,  e  não  uma  designação  rhetorica  dos 
eruditos  da  Renascença,  como  affirmava  Her- 
culano. 

A  par  da  lucta  contra  os  sarracenos  da  banda 
de  oeste,  surgem  os  esforços  da  Restauração  pi- 
renaica  a  leste,  na  republica  montanheza  da  Ca- 
talunha, que  precedeu  na  historia  a  resistência 
gótica  das  Astúrias.  O  primeiro  chronista  chris- 
tão  Isidoro  Menor,  o  Pacefise  (Bejense)  e  os 
chronistas  árabes,  assignalam  grandes  combates 
nas  montanhas  do  norte  e  diante  dos  Pireneos, 
onde  os  generaes  árabes  se  achavam  pessoal- 
mente á  frente  dos  seus  exércitos.  E  apesar  de 
todo  esse  esforço  dos  sarracenos,  os  Estados  Pi- 


/b  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    PORTUGUEZA 

renaicos  (formados  de  antigas  tribus  ibéricas  e 
dos  povos  que  se  lhes  foram  aggregando)  recon- 
quistaram aos  Árabes  parte  da  Vasconia,  Aragão, 
Navarra,  Catalunha,  Valência,  Murcia  e  as  Ba- 
leares. Fundaram  uma  monarchia  ou  unificação 
politica  de  uma  forma  moderadamente  absoluta  e 
sem  luctas  dynasticas.  Sem  esta  reconquista,  que 
fez  sustar  as  incursões  dos  Árabes,  a  reconquista 
empenhada  pelos  refugiados  Asturo-Cantabricos 
não  poderia  ter-se  realisado  com  êxito. 

A  Restauração  Asturo-Cantabrica  começou 
mais  tarde,  depois  da  lusitana  e  da  catalã.  Ter- 
minada a  Chronica  do  Pacense  em  754,  ainda 
elle  não  falia  do  levantamento  da  gente  das  As- 
túrias e  Cantábria;  nem  tampouco  os  Chronis- 
tas  árabes  (citados  por  António  José  Conde) 
faliam  dos  Asturo-Cantabricos,  até  ao  anno  de 
765,  quando  referem  os  combates  com  os  Estados 
Pi  renaicos.  Os  chronistas  christãos  do  século  ix 
chamam  revoltosos  aos  Vascos.  Formaram-se, 
portanto,  os  reinos  de  Astúrias,  Cantábria  e  Gal- 
liza,  por  que  os  árabes  invasores  foram  distra- 
hidos  e  até  envolvidos  em  grandes  combates  pela 
gente  mais  irrequieta  da  região  occidental  lusi- 
tana, e  da  republica  montanheza  da  Catalunha.  A 
restauração  Neo-gotica,  alliando  a  ferrenha  unida- 
de catholica  ao  renascimento  do  velho  imperialismo 
germânico,  foi  sempre  um  elemento  perturbador 
da  organisação  normal  dos  Estados  peninsulares. 
O  estado  dos  Asturo-cantabricos  impoz-se,  a  pre- 
texto da  unidade  catholica,  pelo  mais  audaz  abso- 
lutismo,  dando  sempre  a  espectáculo  odioso  de 


Factores  staticos  79 


crimes  e  usurpações  dynasticas,  accumulando  as 
varias  coroas  com  o  intuito  de  restabelecer  a  uni- 
dade do  extincto  império  gótico,  pela  união  das 
Astúrias  e  Leão  a  Castella,  que  absorve  também 
Aragão  no  fim  do  século  xv.  E'  d'este  momento 
em  diante,  que  o  germanismo  da  Casa  da  Áus- 
tria, realisa  a  unidade  ibérica  por  violências  e 
casamentos  régios  pela  preponderância  exclusiva 
(lo  Castelhanismo.  Os  Reis  de  Castella  possuiam 
todo  o  norte  da  Hespanha :  Leão,  Galliza,  Pro- 
víncias Bascas,  duas  Castellas,  Murcia,  Extre- 
madura,  e  grande  parte  da  Andaluzia;  e  ao  sul, 
desde  a  embocadura  do  Guadiana  até  Tarifa. 
Faltava-lhes  só  incorporar  Granada,  o  que  se  con- 
seguiu em  1482,  e  unificar  Portugal,  o  que  se 
realisou  em  1580  por  casamentos  régios  e  trai- 
ções do  unitarismo  catholico. 

A  historia  da  formação  da  Nacionalidade  por- 
tugueza,  e  das  suas  revoluções  para  manter  a  sua 
autonomia  em  1380,  1640  e  1820,  synthetisa-se 
na  resistência  da  raça  lusitana  contra  a  absorpção 
ibérica,  sustentada  pelo  Castelhanismo.  A  nacio- 
nalidade portugueza  constitue-se  nos  princípios  do 
século  XII,  como  consequência  da  agitação  sepa- 
ratista das  quatro  Monarchias,  Leão,  Castella, 
Navarra  e  Aragão.  Em  1109  é  organisado  o 
Condado  Portucalense;  em  11 28  torna-se  estado 
independente,  sendo  reconhecido  como  a  quinta 
Monarchia  em  1143. 

A  comparação  chronologica  é  eloquente  como 
revelação  d'este  phenomeno  sociológico.  Em  11 34 
dá-se  a  reconstituição  da  autonomia  da  Navarra; 
em  II 26  o  Aragão  readquire  a  sua  independência 


8o  HISTORIA     DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

de  Castella;  em  1170  Castella  readquire  outra 
vez  a  sua  autonomia;  em  1197  estabelece-se  a 
independência  de  Leão.  Emquanto  estes  Estados 
livres  eram  violentamente  annexados  uns  aos 
outros  por  conquista,  usurpação  e  por  casamen- 
tos, e  desmembrados  por  testamentos  dos  seus 
monarchas  e  revoltas  cantonaes,  o  Condado  Por- 
tucalense aproveitou-se  d'esta  corrente  separatis- 
ta, tornando-se  independente  do  reino  de  Leão. 
Em  1 1 28  dá-se  a  revolta  contra  a  regência  de 
D.  Thereza,  viuva  do  Conde  D.  Henrique,  e  na 
batalha  de  Guimarães  annullacja  a  dependência  da 
monarchia  leoneza,  o  joven  D.  Affonso  Henri- 
ques torna-se  o  instrumento  da  revivescência  do 
lusismo  no  território  portucalense. 

Emquanto  os  outros  Estados  se  annexam  e  se 
unificam  nos  dois  centros  de  Aragão  e  de  Cas- 
tella, que  por  seu  turno  se  integram  no  Castclha- 
nismo  em  1469  e  1504,  Portugal  conserva  sem- 
pre a  sua  autonomia  nacional  através  de  todos  os 
cataclysmos  históricos  da  Hespanha.  A  rasão 
(Keste  facto  constitue  toda  a  trama  da  historia 
social,  ix)litica  e  mesmo  mental  d'este  pequeno 
]x>vo,  que  conseguiu  assignalar-se  na  marcha  da 
civilisação  humana. 

A  creação  de  uma  nacionalidade  é  um  ])he- 
nomeno  de  ordem  statica,  indej)endente  da  in- 
tervenção da  vontade  individual;  é  uma  integra- 
ção das  Pátrias  locaes,  quando  uma  aspiração 
ou  um  pensamento  commum  as  une.  E'  pela  syn- 
these  dos  interesses,  ou  o  Direito,  pela  synthese 
dos  sentimentos,  ou  a  Arte  e  a  Moral,  que  este 
órgão  collectivo  se  eleva  até  á  consciência,   que 


l^ACTORIÍS    STATICOS  8l 

em  cada  individuo  não  ia  além  do  ideal  de  Pá- 
tria. A  Litteratiira  dá  expressão  a  esta  tendên- 
cia para  a  unificação  politica,  embora  não  reali- 
sada  como  aconteceu  na  Grécia  ou  procurada  des- 
de um  longo  passado  como  aconteceu  com  a  Itá- 
lia. A  relação  da  Litteratura  com  a  Nacionali- 
dade é  immediata;  as  diversas  instituições  so- 
ciaes,  como  a  Religião,  o  Direito,  a  Politica,  a 
Industria  fortemente  dominadas  pela  paixão  ex- 
clusiva das  crenças  ou  dos  interesses  egoistas  não 
representam  completamente  o  génio  nacional;  so- 
mente as  creaçÕes  estheticas,  tomando  por  base 
as  tradições  da  collectividade  e  recebendo  o  sen- 
tido novo  a  que  se  elevaram  as  capacidades  su- 
periores, estão  sempre  em  uma  intima  relação 
com  o  vigor  da  nacionalidade  que  as  fecunda. 

A  Nacionalidade  portugueza,  constituida  no 
século  XII,  pela  autonomia  do  Condado  Portuca- 
lense, sob  D.  Affonso  Henriques,  no  seu  terri- 
tório era  uma  parte  minima  da  antiga  Lusitânia, 
que  abrangia  da  Galliza  até  ao  Algarve;  com  a 
conquista  sobre  os  Sarracenos,  até  Coimbra,  San- 
tarém e  Lisboa,  foi-se  reunindo  grande  parte  do 
])rimitivo  território,  e  por  assim  dizer,  tornando 
o  facto  da  Nacionalidade  uma  verdadeira  revives- 
cência do  Lusismo.  E'  a  Anthropologia,  nos  seus 
processos  de  differenciação  dos  Índices  cephali- 
cos,  e  a  Etimologia,  estabelecendo  as  sobreviven- 
cias  dos  costumes,  que  hoje  explicam  a  persis- 
tência dos  caracteres  do  Luso  no  mesmo  territó- 
rio hoje  occupado  por  Portugal.  Esse  facto  mys- 
terioso  para  o  historiador  Scheffer,  da  formação 
de  uma  Nacionalidade  sem  ruido,  e  da  sua  resis- 

6 


82  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

tencia  através  de  grandes  conflictos  históricos, 
não  é  obra  dos  politicos,  mas  de  uma  tradição, 
de  uma  aspiração  instinctiva  abafada  desde  o  do- 
minio  dos  romanos.  Desde  o  século  xii  o  Ln- 
sismo,  ou  o  génio  da  independência  dos  peque- 
nos estados  achou-se  em  frente  do  Iberismo  uni- 
tarista  pelo  pensamento  imperial  romano,  germâ- 
nico e  i)elo  catholicismo;  a  historia  de  Portugal 
concentra-se  toda  na  resistência  contra  esta  absor- 
pção  ibérica.  Pela  conquista  do  Algarve  sob 
D.  Affonso  III,  Portugal  estende-se  sobre  esse 
extremo  da  Lusitânia,  mas  a  Monarchia,  moldada 
sobre  o  typo  da  Realeza  da  França,  trabalhava 
para  a  concentração  pessoal  do  poder  soberano 
absoluto.  Acabava  em  D.  Affonso  mo  estabe- 
lecimento de  Foraes,  mas  generalisava-se  o  Di- 
reito romano  imperial;  o  génio  nacional,  compri- 
mido pela  auctoridade  real  e  ecclesiastica,  parecia 
amortecido,  ou  desconhecido,  como  um  simples 
aggregado  provincial.  Foi  a  revolução  de  Lisboa 
o  primeiro  symptoma  de  vida  consciente;  em  1380 
a  soberania  popular,  avocando  o  poder  supremo, 
delega-o  no  Mestre  de  Avis,  elegendo-o  em  1381 
nas  cortes  de  Coimbra.  E'  o  começo  da  existên- 
cia histórica  de  Portugal ;  porque  essa  pequena 
nacionalidade  triumpha  em  Aljubarrota  como  di- 
gna da  sua  independência,  e  reconhecendo,  que 
pela  sua  situação  entre  o  continente  e  o  mar,  for- 
tifica a  sua  autonomia,  iniciava  a  Era  dos  gran- 
des Descobrimentos  maritimos.  Era  o  génio  li- 
gurico,  das  primitivas  explorações  atlânticas,  que 
levava  o  portuguez  á  navegação  do  Mar  Tene- 
broso, á  determinação  do  caminho  maritimo  da 


FACTORES    STATICOS  83 

índia,  e  á  volta  do  mundo.  O  génio  lusitano  rea- 
lisava  esta  missão  histórica,  em  quanto  a  tendên- 
cia ibérica  era  servida  pelos  seus  monarchas,  que 
por  meio  de  casamentos  dynasticos  pretendiam 
reunir  em  uma  só  cabeça  a  coroa  das  Hespanhas. 
O  espirito  popular,  que  se  manifestara  na  revo- 
lução de  Lisboa,  estava  animado  de  uma  profunda 
poesia,  idealisando  o  Condestavel  como  o  Cid 
portuguez,  e  elaborando  o  seu  vasto  Romanceiro, 
como  se  vê  pela  riqueza  das  tradições  dos  Archi- 
pelagos  da  Madeira  e  dos  Açores,  alli  confinadas 
desde  o,  século  xv,  e  trazidas  ás  collecçÕes  im- 
])ressas  ao  fim  de  quatrocentos  annos  de  trans- 
missão oral.  Embora  os  poetas  palacianos  se  afas- 
tassem das  fontes  tradicionaes,  e  da  communi- 
cação  com  o  povo,  n'esse  século  apparecem  os 
trez  grandes  historiadores  Fernão  Lopes,  Eannes 
de  Azurara  e  Ruy  de  Pina.  O  impulso  das  Nave- 
gações dá  ao  génio  lusitano  o  máximo  do  seu 
relevo;  depois  que  Vasco  da  Gama  em  1498  rea- 
lisa  a  viagem  da  índia,  e  Pedro  Alvares  Cabral 
em  1500  descobre  o  Brazil,  opéra-se  uma  trans- 
formação na  sociedade  portugueza  com  a  pre- 
]X)nderancia  de  uma  classe  média  que  pelo  tra- 
balho cria  a  riqueza  publica;  com  essa  burguezia 
apparece  a  creação  do  theatro  popular  por  Gil 
Vicente,  como  fazendo  da  scena  o  meio  de  dar 
expressão  á  opinião  publica ;  cria-se  uma  Arte 
líortugueza,  na  Pintura,  como  se  vê  pela  obra  de 
(jrão  Vasco,  e  na  Architectura  como  se  patentêa 
nos  Jeronymos  por  João  de  Castilho,  na  Ourivesa- 
ria, como  o  documenta  a  Custodia  de  Belém  por 
Gil  Vicente,  primo  co-irmão  do  poeta.    A  lingua 


84  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


portiigueza  recebe  a  sua  disciplina  definitiva  nas 
Gramniaticas  de  Fernão  de  Oliveira  e  de  João 
de  Barros,  e  torna-se  clássica  nas  Décadas  de 
Barros  e  na  epopêa  de  Camões ;  a  própria  Juris- 
prudência, sempre  romanista,  procura  regressar 
aos  costumes  do  reino.  A  vida  portugueza  era  uma 
arrojada  aventura,  como  se  observa  nos  extraor- 
dinários viajantes  Fernão  Mendes  Pinto  e  Fran- 
cisco Alvares,  excedendo  nas  suas  narrativas  as 
maravilhas  de  Marco  Polo  e  Mandeville.  E 
n'essa  época  do  humanismo,  Portugal  deu  á  Eu- 
ropa os  primeiros  pedagogistas,  taes  como  Diogo 
de  Gouvêa  e  André  de  Gouvêa,  principaes  dos 
Collegios  de  Santa  Barbara  e  de  Bordéus,  e  mes- 
tres de  Rabelais,  de  Montaigne,  de  Ignacio  de 
Loyola  e  Calvino.  Entre  os  humanistas  da  Re- 
nascença figuram  dignamente  Ayres  Barbosa,  An- 
dré de  Resende,  Achilles  Estaco,  Diogo  de  Teive, 
Damião  de  Coes,  e  tantos  outros  que  floresceram 
pelas  Universidades  estrangeiras. 

O  génio  de  Camões,  sob  o  influxo  da  Re- 
nascença, soube  alliar  o  enthusiasmo  pelas  obras 
primas  da  civilisação  greco-romana  com  o  sen- 
timento nacional,  formando  a  sua  Eix)pêa  não 
sobre  um  heroe  individual  mas  no  Peito  lusitano 
pela  intuição  genial  de  todos  os  elementos  tra- 
dicionaes  e  lendários  da  historia  portugueza, 
exactamente  como  Virgilio  na  Bficida  revives- 
cera  as  tradições  do  Latium  por  meio  das  formas 
da  ix)esia  hellenica.  Os  escriptores  conheceram 
esse  sentimento  tão  caracteristico  do  portuguez,  a 
saudade,  cjue  desde  Dom  Duarte,  que  o  analy- 
sara  psychologicamente  no  Leal  Conselheiro  até  á 


líACTORES    STATICOS  85 


invocação  de  Garrett  em  1824,  inspirou  todos  os 
nossos  poetas  desde  a  emoção  pessoal  até  á  visão 
da  Pátria,  que  suscitou  os  feitos  de  tantos  heroes. 
O  pensamento  de  uma  Epopêa  nacional,  na  época 
da  descoberta  do  Oriente,  foi  proclamado  por  mui- 
tos escriptores,  como  Castanheda,  João  de  Barros, 
pelos  poetas  António  Ferreira,  Caminha,  Jorge 
de  Monte-Mór  e  Pêro  da  Costa  Perestrello;  mas 
só  Camões,  dominando  o  perstigio  da  erudição 
humanista,  e  tendo,  como  elle  diz,  repartido  pelo 
mundo  a  sua  vida  em  pedaços,  percorrendo  todo 
o  dominio  portuguez  na  Africa,  na  índia,  nas 
costas  da  Arábia,  e  em  Malaca  até  Macáo,  ex- 
I)osto  aos  combates  e  naufrágios,  só  elle  achou  a 
expressão  ideal  do  —  Pregão  do  ninho  seu  pa- 
terno, e  no  verso  immortal :  Bsta  é  a  ditosa  pátria 
minha  amada. 

Repentinamente,  como  o  escreveu  Camões  em 
1572,  Portugal  caiu  em  uma  austera,  apagada  e 
vil  tristeza,  e  o  ix)eta  não  sobreviveu  á  incorpo- 
ração da  sua  pátria  autónoma  na  unidade  ibérica 
do  Castelhanismo,  em  1580.  Como  se  deu  tão 
estupendo  phenomeno?  Dispersa  a  energia  nacio- 
nal nas  grandes  Navegações  e  conquistas,  e  en- 
fraquecida a  vida  local  pelo  centralismo  da  Corte, 
os  reis  como  Carlos  v  e  D.  Manoel  por  casa- 
mentos dynasticos  trabalharam  egoistamente  para 
a  unificação  ibérica;  e  n'este  mesmo  sentido, 
1).  João  III,  servindo  a  unidade  catholica,  deu 
entrada  em  Portugal  á  Inquisição  em  1536,  e  á 
Companhia  de  Jesus  em  1542,  que  começando  por 
extinguir  a  liberdade  de  consciência,  e  atrophian- 
do  as   intelligencias,   apagaram  o   sentimento  da 


86  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGU^ZA 


pátria,  obliteraram  diante  das  grandes  catastro- 
phes,  como  a  de  Alcacer-Kibir,  a  rasão  de  sêr  da 
nacionalidade.  Isto  explica  como  Portugal  rece- 
beu Philippe  II  com  arcos  triumphaes  e  a  egreja 
portugueza  o  consagrou  com  tédeums,  tal  como  o 
repetiu  na  invasão  napoleonica  em  1807.  Em 
trinta  annos  de  educação  jesuitica  (1550-1580) 
operou-se  na  mocidade  portugueza  uma  dcsiia- 
cionalisação  tão  profundia,  que  os  homens  m:iis 
honrados,  como  D.  João  de  Mascarenhas,  entrega- 
vam-se  sinceramente  a  Philippe  11. 

Restaurou-se  a  Nacionalidade  portugueza, 
quando  a  França  pôde  dividir  o  poder  da  Casa 
de  Áustria.  O  sentimento  nacional  apenas  se  re- 
velava pelo  prophetismo,  na  esj>erança  de  um  Sal- 
vador, e  o  hisisnw  tornava-se  o  Sonho  do  Quinto 
Império  do  mundo.  A  nova  dynastia  de  Bragan- 
ça, de  conivência  com  os  Jesuitas,  poz  em  jogo, 
para  a  sua  segurança  pessoal,  a  nação  que  lhe 
delegara  a  soberania.  Não  abandonou  D.  João  iv 
a  Bahia  e  Pernambuco  aos  Hollandezej,  porque  o 
Desembargo  do  Paço  se  oppoz  a  esse  plano  do 
jesuita  P.e  Vieira;  projectou  o  casamento  do 
príncipe  D.  Theodosio  com  a  filha  do  Duque  de 
Longueville,  vindo  o  Conde  governar  Portugal, 
c  indo  D.  João  IV  ser  rei  no  Brasil,  mas  não  se 
rcalisou  este  i)lano  por  (jue  a  noiva  appareceu 
clandestinamente  casada  com  Lauzan;  modificou- 
se  o  plano  para  Mademoiselle  de  Monti^ensier. 
mas  seu  pae,  o  Duque  de  Orleans,  vendo  os  ne- 
gócios de  Portugal  instáveis,  recusou-se  a  isso. 
Tràtou-se  do  casamento  da  infanta  D.  Cathe- 
rina   com    o   Duque   de   Beaufoit,   mas    falhando 


FACTORES    STATICOS  87 


também,  realisou-se  o  casamento  com  Carlos  ii 
de  Inglaterra,  levando  em  dote  Bombaim,  e  ca- 
hindo  successivamente  Portugal  sob  o  ávido  pro- 
tectorado da  Inglaterra.  Portugal  voltava  ao  do- 
minio  da  Hespanha  se  Carlos  ii  de  Hespanha 
consentisse  no  casamento  do  principe  D.  Theo- 
dosio  com  sua  irmã,  em  1649.  Não  acabam  aqui 
os  planos  em  que  era  sacrificada  a  nacionalidade 
portugueza  á  unificação  ibérica,  extensamente  des- 
criptos  por  João  Francisco  Lisboa  na  Vida  do 
Padre  Vieira.  O  abandono  de  Portugal  á  sua 
sorte  foi  um  expediente  de  salvação  para  Dona 
Luiza  de  Gusmão,  para  Dom  José  por  occasião 
do  terremoto  de  1755,  e  foi  levado  á  pratica  em 
1807  quando  D.  João  vi  fugiu  de  Portugal  por 
imp(3SÍção,  do  embaixador  inglez  Strangford  com 
a  sua  fidalguia  e  criadagem  para  o  Brasil  diante  do 
destroçado  exercito  de  Junot.  A  obliteração  do 
sentimento  nacional  permittiu  todas  estas  trope- 
lias praticadas  impunemente  pela  Dynastia  ne- 
fasta dos  Braganças,  que  procuraram  o  seu  apoio 
no  estrangeiro,  a  Inglaterra,  que  determinou  a 
desmembração  do  Brasil  de  Portugal,  que  occu- 
pava  militarmente  pelo  seu  general  Beresford, 
com  o  terror  das  forcas  do  Campo  de  Santa  Anna. 
Os  que  conspiravam  contra  a  occupação  ingleza, 
desde  1818,  foram-se  refugiando  em  França;  um 
sentimento  de  nacionalidade  revivesceu  entre  a 
classe  media  de  jurisconsultos,  magistrados  e  ne- 
gociantes ;  determinando  essa  crise  fecunda  da 
Revolução  de  1820,  que  esboçou  todas  as  liber- 
dades civis  e  politicas,  contra  as  quaes  se  oppoz 
sempre   a   dynastia   bragantina   em    1823   com   a 


88  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 

restauração  do  absolutismo,  e  em  1826  com  o  so- 
phisma  da  Carta  outorgada,  imposta  sempre  á 
soberania  nacional  em  1842,  1847,  ^  1S51,  por 
intervenção  armada  estrangeira  e  por  sophismas 
parlamentares,  burlas  eleitoraes,  e  sangrentas  di- 
ctaduras.  I)'essas  emigrações  para  o  estrangeiro 
em  1823  e  em  1829  regressaram  individualidades 
que  sentiram  a  saudade,  a  intuição  da  vida  na- 
cional, e  tendo-se  batido  i^ela  liberdade  na  Ilha 
Terceira  e  no  Cerco  do  Porto,  de  183 1  a  1834, 
realisaram  a  renovação  da  Litteratura  portugue- 
za,  do  Romantismo,  iniciando  uma  nova  poesia 
lyrica,  um  theatro  original,  o  romance  histórico 
e  a  historia  critica,  e  a  eloquência  da  tribuna.  To- 
das as  vezes  que  os  escriptores  se  retemperam 
nas  tradições  e  consagram  a  aspiração  nacional, 
a  Litteratura  será  mais  vigorosa,  fecunda  e  ori- 
ginal. A  decadência  que  Portugal  accusa  n'este 
momento  resulta  da  obnubilação  do  sentimento  de 
nacionalidade  estolidamente  combatido  por  espí- 
ritos negativistas  mais  ou  menos  inconsciente- 
mente. Na  situação  presente  a  missão  da  Arte, 
da  Litteratura,  da  Politica  e  mesmo  da  sciencia, 
consiste  em  revigorar  Portugal,  restituindo-lhe  a 
consciência  do  seu  lusisnio. 


FACTORES    DYNAMICOS  89 


§  n 

Factores  dynamicos 


As   Épocas   históricas  e   o   meio   social   actuando 
nas  Litteraturas 


Antes  da  concepção  mechanica  dos  pheno- 
menos  do  universo  systematisando  a  astronomia, 
teve  Blainville  a  ideia  luminosa  de  applicar  aos 
phenomenos  biológicos  a  distincção  em  staticos  e 
dyjiauiicQs  coma  a  expressão  mais  completa  das 
condições  da  existência:  o  órgão  apto  para  exer- 
cer-se  é  um  elemento  statico,  sendo  a  funcção  o 
estado  dynamico  da  sua  energia. 

Comte,  applicando  esta  mesma  distincção  aos 
phenomenos  sociaes,  considerou  a  ordem  como  a 
base  st  atiça  da  existência  social,  como  o  progresso 
nas  suas  múltiplas  transfonnaçÕes  o  effeito  dy- 
uajiiico  na  evolução  histórica.  D'esta  concepção 
de  Comte,  escreveu  Alexandre  Bain:  «Mill  tinha 
admittido  a  grande  distincção  estabelecida  por 
Comte  entre  a  statica  social  e  a  dynamica  social, 
e  adoptara-a  para  a  sua  Lógica.  Eu  também  fi- 
quei maravilhado  como  elle,  considerando  qual 
seria  o  valor  d'esta  distincção  como  podendo  ser- 
vir para  a  analyse...» 

A  exemplo  de  Mill,  pôde  este  critério  ser  ap- 
plicado  á  Litteratura,  que,  como  producto  social, 
participa  d'esta  dupla  condicção  de  existência; 
ella  tem  uma  parte  statica,  persistente,  e  alheia  á 


00  HISTORIA     DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


intervenção  individual,  que  são  —  a  Raça,  a  Lin- 
gitagcm,  a  Tradição  e  a  Nacionalidade.  São,  por 
assim  dizer,  o  organismo,  em  que  se  elaboram  as 
itmcções  ou  creaçÕes  litterarias.  O  génio  da  raça, 
os  tliemas  da  tradição,  as  formas  da  linguagem,  a 
aggregação  nacional  escapam  ás  modificações  das 
mais  poderosas  individualidades;  d'ellas  vem  a 
emoção  commum  a  que  os  escriptores  e  artistas 
dão  a  expressão  synthetica,  que  acharam  pelo  seu 
modo  de  sentir  individual  reflectindo  a  marcha 
da  corrente  histórica.  Os  maiores  génios,  são  os 
que  mais  profundamente  representam  uma  civi- 
lisação;  os  poemas  homéricos  representam  inte- 
gralmente a  cultura  hellenica  na  edade  de  bronze ; 
Virgilio  condensa  o  mundo  romano  na  sua  altura 
e  destino  social, — pacis  íiuponerc  morem,  no 
poema  da  í incida;  Dante  mostra-nos  em  toda  a 
sua  luz  a  l£(lade  média  na  grande  lucta  do  poder 
espiritual  e  do  temporal,  emergindo  a  libertação 
da  consciência,  no  julgamento  da  Divina  Come- 
dia; Camões  faz  sentir  a  Renascença  n'esta  lucta 
nova  do  homem  contra  as  forças  da  natureza, 
impondo-lhe  o  seu  im])erio  consciente. 

Na  historia  litteraria  é  imprescindivel  a  luz 
philos()])liica  para  determinar  as  correntes  histó- 
ricas (|uc  caracterisam  as  épocas  do  desenvolvi- 
mento mental,  derivando  (Tahi  a  critica  da  acti- 
vidade individual.  Todo  o  grande  i>ercurso  da 
Civilisação  moderna,  que  abrange  o  quadro  das 
transformações  históricas  do  século  xii  até  ao 
presente,  acha-se  ixirfeitamente  caracterisado  em 
três  épocas  fundamentaes,  a  Bdade  média,  a  Re- 
nascença e  o  Romantismo.    A  Litteratura,  como 


factore;s  dynamicos  91 


um  producto  social,  só  pôde  ser  bem  conhecida 
através  das  modificações  históricas  d'estas  três  cri- 
ses da  civiHsação  que  reflectiram.  Sem  esta  luz 
sobre  a  marcha  evolutiva,  tudo  quanto  produziu  a 
Edade  média  foi  considerado  como  bárbaro,  e 
somente  os  modelos  clássicos  ou  Greco-romanos 
merecem  admiração  e  se  impõem  á  imitação;  e 
assim,  individualidades  geniaes  como  Gil  Vicente, 
Rabelais,  Montaigne,  Shakespeare,  Hans  Sachs, 
são  aleijões  litterarios  comparados  a  qualquer 
correcta  banalidade  académica.  O  génio  de 'Ca- 
mões, sob  o  influxo  da  Renascença,  soube  alliar 
o  enthuziasmo  pelas  obras  primas  da  civilisaçao 
greco-romana  com  o  sentimento  nacional,  for- 
mando a  epopêa  dos  Lusíadas  com  todos  os  ele- 
mentos tradicionaes  e  lendários  da  historia  por- 
tugueza,  tal  como  Virgilio  na  Bneida  fazia  re- 
viver as  tradições  do  Latium  ])or  meio  das  formas 
bellas  da  poesia  hellenica.  As  grandes  individua- 
lidades litterarias  iniciam  as  transformações  es- 
theticas,  e  pelo  dom  da  universalidade  relacionam 
o  seu  tempo  com  a  marcha  da  humanidade.  Como 
órgão  da  grande  Civilisaçao  occidental,  Portugal 
conservou  sempre  uma  forte  solidariedade  com 
as  Litteraturas  românicas  da  Edade  média  até  ao 
Romantismo ;  por  essas  relações,  que  não  signi- 
ficam uma  imitação  banal  mas  uma  cooperação, 
se  demarcam  as  épocas  capitães  do  seu  desenvol- 
vimento litterario,  comprehendendo-se-lhe  o  espi- 
rito pela  sua  solidariedade. 


92  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

a)  Edade  média 

A  transição  da  Antiguidade  para  o  mundo 
moderno  effectuou-se  em  um  periodo  de  dez  sé- 
culos, denominando-se  por  isso  Edade  média. 
N'este  periodo,  crearam-se  novas  classes  sociaes, 
como  o  proletariado,  novas  formas  de  trabalho 
dignificado  na  industria  das  Jurandas,  outras  con- 
cepções religiosas  pelo  sentimento  popular  ou 
christandade,  o  direito  territorial  das  Communas, 
a  Arte  gótica,  a  poesia  lyrica  dos  Trovadores,  as 
Epopêas  das  gestas  feudaes,  o  grupo  das  línguas 
romani  sadas  tornando-se  escriptas,  creando-se 
novas  nacionalidades,  e  a  Europa  reconstituindo- 
se  pela  estabilidade  dos  costumes,  terminadas  as 
guerras  mantidas  pelas  invasões  germânicas  e 
árabes.  A  Edade  média,  nos  seus  complicados 
aspectos,  appresenta  uma  phase  de  dissideticia,  ou 
do  conflicto  das  di  ff  crentes  raças,  que  se  assimila- 
ram em  unificações  nacionaes;  uma  phase  de  con- 
corrência, em  que  os  estados  politicos  procuram 
continuar  a  supremacia  imperial,  romana,  travan- 
do-se  a  lucta  dos  dois  Poderes,  o  Sacerdócio  e  o 
Império;  [>or  ultimo  uma  phase  de  convergência, 
em  que  as  nações  europêas  obedecem,  pela  vaga 
noção  da  sua  occidental  idade  a  uma  acção  com- 
mum,  pela  primeira  vez,  nas  guerras  das  Cruza- 
das, normalmente  substituidas  pela  actividade  in- 
dustrial. 

A  Edade  média  foi  considerada  pelos  historia- 
dores até  ao  século  xv  1 1 1 ,  como  uma  edade  de 
trevas  e  de  anarchia,  vendo-a  apenas  n'essa  de- 
morada i)hase  de  dissidência:  os  historiadores  ca- 


FACTORES    DYNAMICOS  )3 

tliolicos,  observando  que  a  Europa  obedecera 
n'esse  período  anarchico  á  disciplina  moral  da 
Egreja,  que  implantara  de  um  modo  absoluto  o 
seu  Poder  espiritual  pela  organisação  do  Papado, 
exaltaram  o  periodo  da  concorrência,  reclamando 
por  isso  para  a  Egreja  o  prolongamento  da  sua 
intervenção  temporal.  Somente  alguns  escripto- 
res  philosophicos  que  souberam  determinar  pelo 
periodo  de  convergência  a  continuidade  da  Civi- 
lisação  Occidental,  de  que  as  nações  da  Europa 
são  órgãos  solidários,  é  que  puderam  assignar  á 
Edade  média  o  seu  caracter  progressivo,  expli- 
cando-a  historicamente  como  uma  transição  affe- 
ctiva. 

Sem  esta  comprehensão  fundamental  da  Eda- 
de média,  como  relacionar  factos  tão  incongruen- 
tes como  o  antagonismo  do  Poder  espiritual  da 
Egreja  e  o  Poder  temporal  das  Monarchias;  en- 
tre a  classe  senhorial  da  sociedade  feudal  ou  guer- 
reira e  o  Proletariado  que  se  fortifica  pela  indus- 
tria, constituindo  a  nova  classe  da  burguezia ;  j^ela 
lucta  do  direito  territorial  dos  Municípios  entre  o 
privilegio  pessoal  mantido  nas  Dynastias;  pelo 
abandono  da  lingua  latina,  imposta  pela  aucto- 
ridade  dos  eruditos  ecclesiasticos  e  jurisconsultos, 
reagindo  com  toda  a  vitalidade  os  dialectos  vul- 
gares, que  se  tornam  linguas  nacionaes?  Os  his- 
toriadores que  não  penetraram  o  espirito  reno- 
vador d'esta  fecunda  época  da  humanidade,  des- 
orientaram-se  n'essa  por  elles  chamada  noite  da 
Edade  média,  perdendo  o  fio  conductor  com  que 
se  estabelece  a  lógica  dos  successos  da  historia 
moderna  e  contemporânea. 


94  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Uma  i^hrase  luminosa  de  Augusto  Comte, 
condensa  nos  seus  elementos  principaes  todas  as 
forças  activas  da  grande  elaboração  social,  reli- 
giosa, politica,  económica  e  artistica  da  Edade 
média :  «Sob  qualquer  aspecto  que  se  examine  o 
regimen  próprio  da  Edade  média,  vê-se  sempre 
emanar  ou  da  separação  dos  dois  Poderes^  ou  da 
transformação  da  actividade  militar. ^)  (Polit. 
posit.,  III,  459.)  Desdobremos  esta  fórmula  ni- 
tidissima. 

A  separação  dos  dois  Poderes  é  essa  longa  lu- 
cta  entre  o  dominio  espiritual  da  Egreja,  procu- 
rando conservar  como  theocracia  o  poder  tem- 
poral, que  se  destaca  e  exerce  pelo  summo  im- 
pério das  Monarchias.  O  desenvolvimento  do 
Poder  real  realisa-se  pela  elevação  do  proleta- 
riado á  independência  da  burguezia,  que  á  activi- 
dade guerreira  contrapõe  a  actividade  industrial, 
tornando-se  o  poder  militar  meramente  defensivo 
e  estipendiado.  Criam-se  três  meios  sociaes  em  que 
as  Litteraturas  modernas  "encontram  condições  es- 
peciaes  para  o  seu  desenvolvimento:  a  Bgreja,  a 
Corte,  e  a  Burguezia. 

i.o  A  Egreja.  —  Emquanto  a  Egreja  confun- 
diu na  sua  acção  os  dois  poderes,  a  Europa  me- 
dieval esteve  em  certa  forma  sob  um  regimen 
theocratico,  cujo  espirito  dominou  na  politica  dos 
estados  até  á  paz  de  Westphalia.  A  Egreja  fun- 
dou uma  disciplina  moral  e  um  systema  de  edu- 
cação popular  nas  Scholae  das  suas  Collegiadas; 
na  sua  hierarchia  apropriou-se  da  organisação 
administrativa   romana,   conservando   as   autono- 


FACTORES    DYNAMICOS  95 

mias  locaes,  pela  transformação  das  lendas  pagãs 
em  santificações  patronaes;  serviu-se  dos  Contos 
do  povo  para  os  Exemplos  da  sua  prédica,  em 
que  teve  de  empregar  a  linguagem  rnstica  ou  vul- 
gar para  a  propaganda  doutrinaria,  e  as  Canções 
populares  como  Prosas  e  Sequencias  para  a  sua 
liturgia.  Muitas  superstições  são  conservadas 
como  festas  ecclesiasticas ;  e  a  vida  collectiva  do 
proletariado,  sentindo  a  sociabilidade  i^ela  unifica- 
ção da  crença,  construe  as  bellas  Cathedraes,  na 
mais  espantosa  floração  do  génio  esthetico.  - 

E'  na  Egreja,  que  o  Drama  moderno  encon- 
tra o  meio  adaptado  para  o  seu  apparecimento  e 
desenvolvimento  dos  Ludi  litúrgicos :  scenario  es- 
plendido diante  de  uma  multidão  ingénua,  e  actos 
cultuaes  solemnes  representando  em  forma  poé- 
tica as  lendas  evangélicas.  Emfim  o  thema  pri- 
mitivo de  Anno  estival  e  hibernal,  do  joven  Deus, 
que  morre  e  resuscita  nas  cerimonias  da  Paixão 
e  do  Natal,  revivescia  nas  imaginações  crédulas 
com  toda  a  poesia  dos  mythos  decahidos  das  ve- 
lhas raças.  Escreve  Bonloev^.  no  Ensaio  sobre 
o  espirito  das  Litteraturas: 

«Deparam-se  os  primeiros  elementos  do  Dra- 
ma novo  na  própria  liturgia  da  Egreja,  não  so- 
mente nos  dialagos  alternados  entre  o  presbytero, 
o  sacerdote  e  o  povo  nas  Antiphonas  e  respon- 
sos, mas  sobretudo  n'este  cyclo  de  festas  que  glo- 
rificavam universalmente  a  vida,  as  obras  miracu- 
losas e  a  morte  de  Christo.  Mas  era  principal- 
mente a  tragedia  grandiosa  da  Paixão,  a  sua  re- 
presentação nos  dias  da  Paschoa  (com  certeza  a 
festa  mais  sagrada  e  mais  antiga  dos  christãos) 


96  HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 


que  devia  emocionar  e  abalar  a  alma  dos  fieis 
congregados  no  templo.  —  Este  espectáculo  deve 
ser  considerado  como  o  primeiro  veio,  como  o 
primeiro  ponto  de  apoio  a  que  se  ligam  as  tenta- 
tivas tão  numerosas  e  informes  da  Edade  mé- 
dia. —  Como  outr'ora  na  Grécia,  a  lenda  de 
Baccho  dera  origem  á  Tragedia  e  Comedia  an- 
tigas, a  morte  e  o  triumpho  final  de  Christo  fo- 
ram o  ponto  de  partida  da  Tragedia  e  da  Co- 
media modernas.  A  Tragedia  saiu  como  já  se  viu 
(homilia  de  Eusebius  Enisennus,  m.  em  359),  do 
mysterio  da  Paixão;  foi  nas  chamadas  Morali- 
dades ou  Diabruras,  que  se  reconhecem  os  prin- 
cípios da  Comedia.  Na  lucta  contra  Deus,  contra 
Christo  e  todas  as  potencias  santas,  é  sempre  ven- 
cido, repellido,  castigado  com  grande  gáudio  dos 
espectadores,  torna-se  ridiculo.  —  Sempre  assim 
batido,  torna-se  por  fim  inoffensivo  e  fica  o  bobo 
da  scena  christã  com  as  suas  parou  velas  e  sar- 
casmos.» (Op.  cit.,  p.  210.)  Por  fim  a  Egreja 
prohibiu  nas  Constituições  dos  Bispados  estas  re- 
presentações populares ;  separava-se  do  povo,  aris- 
tocratisava-se. 

A  preoccupação  de  manter  o  poder  temporal 
levou  a  Egreja  a  centralisar-se,  subordinando 
diante  do  Bispo  de  Roma  as  Egrejas  nacionaes: 
oppondo  ao  Direito  civil  o  Direito  canónico;  sub- 
mettendo  a  soberania  da  realeza  á  sagração  do 
direito  divino,  e  condemnando  como  heresia  toda 
a  liberdade  do  pensamento.  No  periodo  mais  in- 
tenso da  acção  da  Egreja,  ella  condemna  a  lei- 
tura das  obras  dos  escriptores  da  Antiguidade 
como  profanas,  substituindo  as  especulações  dos 


FACTORES     DYNAMICOS  97 


philosophos  gregos  e  romanos  pelas  homilias  theo- 
logicas;  o  Concilio  de  Roma  (1131)  prohibiu  aos 
monges  o  estudo  do  Direito  romano  e  da  Medi- 
cina, e  o  papa  Honório,  em  1220  estendeu  a  pro- 
hibição  a  todo  o  clero.  Cria-se  o  antagonismo 
entre  o  exclusivismo  clerical  e  espirito  secular. 
Este  antagonismo  era  tão  inconciliável,  que  em 
uma  inscripção  da  egreja  de  San  Martinho  de 
Worms  se  proclamava  ser  mais  fácil  seccar-se  o 
mar,  ou  ir  o  diabo  para  o  céo  do  que  o  clérigo  e 
o  leigo  entenderem-se  como  amigos,  i 

A  mutua  animadversão  explosiu  em  sátiras 
violentas  contra  o  clercois,  descrevendo  a  sua  vida 
desenvolta  com  as  agapetas,  parodiando-lhe  as 
cerimonias  litúrgicas  pelos  goliardos,  fazendo  a 
farsiture  das  orações  latinas  e  dramatisando  os 
mysterios  da  religião.  Todas  as  Litteraturas  da 
Edade  média  reflectiram  este  espirito  sarcástico  e 
irreverente  contra  o  elemento  clerical,  apesar  da 
quasi  unanimidade  do  sentimento  christão.  No 
seu  desprezo  pelo  secular,  o  clérigo,  empregando 
no  culto  a  lingua  latina,  fazia  da  palavra  latino 
synonimo  de  intelligente  (ladino,  ainda  hoje  cor- 
rente em  giria  vulgar)  :  o  nome  de  romano  em- 
pregava-o  continuando  a  sua  contraposição  ao  de 
bárbaro;  a  lingua  do  vulgo  ou  inculta,  não  litte- 
raria,   era  chamada  romance,   2  e   ainda   na  lin- 


T     Cum  maré  sicatur,  et  daemon  ad  astra  levatur, 
Tunc  primo  laicus  fit  clero  fidus  amicus. 

(Ap.  Comparetti,  Virgilio  nel  Médio  Bvo,  t  i,  243.) 

2     No    Isopet,    ms.     do    século  '  xrv,     demaroa-S€    nitida- 

7 


98  HISTORIA    DA    T,lTTKRATrRA    PORTUGUEZA 

guagem  do  século  xvii  romancista  era  o  analpha- 
beto,  sem  estudos.  No  período  em  que  se  consti- 
tuíram as  novas  nacionalidades  europêas,  a  cultu- 
ra latina  apparece  imposta  pelos  eruditos  eccle- 
siasticos  e  pelos  humanistas  da  primeira  Re- 
nascença. 

2. o  A  Corte.  —  O  conflicto  dos  dois  Poderes, 
que  preponderou  em  toda  a  Edade  média,  actuou 
na  constituição  das  Nacionalidades  modernas,  no 
pensamento  politico  da  unidade  imperial  romana 
do  Occidente,  sob  a  acção  dos  Papas  (minor  Dco, 
iiiajor  homine)  ou  pela  auctoridade  temiXDral  dos 
Imperadores.  Cada  um  d 'estes  Poderes,  procu- 
rando restabelecer  a  tradição  de  Roma,  apoiava- 
se  no  prestigio  do  passado:  assim  as  letras  latinas 
eram  estudadas  nos  claustros,  e  os  i>oetas  christãos 
metrificando  em  latim  imitavam  os  poemas  dida- 
ticos  da  decadência,  ou  compunham  sobre  os  mys- 
terios  da  Egreja  poemas  com  ccntdcs  virgilianos. 
Pelo  seu  lado  a  auctoridade  monarchica  mantinha 
todas  as  fórmulas  do  direito  romano,  e  funda- 
mentava o  absoluto  poder  real  com  a  letra  dos 
códigos  imperiaes.    A  tradição  greco-romana  ten- 


mente  o  espirito  culto  do  latinista  e  a  tradição  conservada 
entre  o  vulgo  ou  romance: 

Un  clerc  de  grant  science 
et  de  grant  sapience 
le   fist  prémierement ; 
et  je  le  mis  en  romans 
por  entendre  aus  enfans 
et  (7  la  laye  gent. 


PACTORKS     DYNAMICOS  QQ 


dia  a  renovar-se  na  primeira  Renascença;  as  es- 
cholas  ecclesiasticas  trans fornia vam-se  nos  Estu- 
dos Geraes,  e  a  realeza,  apropriando-se  d'essa 
nova  disciplina  pedagógica  fundava  as  Universi- 
dades, em  uma  rivalidade  na  concessão  da  fa- 
culdade ubíquc  docendi,  em  que  se  envolvia  a 
Theologia. 

A  realeza,  na  sua  forma  imi^erial  e  dynastica, 
n'esta  lucta  para  concentrar  em  si  o  poder  tempo- 
ral, apoia-se  no  restabelecimento  da  tradição  do 
unitarismo  do  Império  romano,  pondo  em  vigor 
o  Digesto,  onde  estava  definida  a  esphera  dos 
direitos  reaes,  criando  um  ensino  secular  ou  leigo 
nas  Universidades  que  começam  no  século  xii, 
para  o  estudo  das  Leis,  da  Medicina  e  da  Ma- 
thematica.  N'esta  organisação  da  Monarchia,  a 
realeza  avoca  a  si  o  privilegio  de  conferir  no- 
breza, sustando  o  desenvolvimento  da  classe  se- 
nhorial ou  feudal  pelo  cadastro  dos  Nobiliários, 
e  favorece  as  revoluções  communaes  contra  a 
l^repotencia  dos  Barões,  chegando  a  converter  os 
seus  Maíres  du  Palais  em  poder  ministerial,  e 
mais  tarde  as  Guardas  do  corpo  nos  exércitos 
permanentes.  Tal  foi  a  marcha  para  o  poder 
absoluto.  Cria-se  a  Justiça  de  rei  ou  o  Ministério 
publico  contra  o  arbitrio  feudal  e  estatuto  local, 
e  o  summo  império  teve  de  ir  abdicando  nos  mi- 
nistros, no  generalato  e  nos  parlamentos. 

As  condições  que  determinaram  as  formas 
das  Monarchias  germânica,  ingleza  e  france- 
za,  n'estas  luctas  do  poder  temporal,  vieram 
da  situação  da  classe  senhorial,  á  medida  que 
se   operava   a    transformação   da  actividade   mi- 


100  HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 

litar.  A  própria  classe  feudal,  qne  conservava  os 
hábitos  guerreiros  das  bandas  germânicas,  entra- 
va em  um  período  de  guerras  defensivas,  como 
se  vê  pela  organisação  da  Cavalleria  para  a  pro- 
tecção dos  fracos  contra  os  fortes  (redresser  les 
torts)  e  i>elo  amor  da  mulher  praticando  todos  os 
feitos  de  valor.  As  guerras  das  Cruzadas  foram 
um  esforço  do  Monotheismo  Occidental  tornado 
defensivo,  contra  o  monotheismo  oriental  que  in- 
vadia a  Europa ;  as  luctas  dos  grandes  vassallos 
converteram-se  em  guerras  privadas,  destacando- 
se  na  tradição  popular  e  poética  os  typos  nacio- 
naes,  como  o  Cid.  Arthur,  Guilherme  Tell,  por 
servirem  os  interesses  da  collectividade.  Foi  este 
heroismo  sociahsado  (|ne  motivou  a  mais  com- 
pleta idealisação  do  typo  de  Carlos  Magno,  cen- 
tro de  todas  as  Gestas  medievaes ;  admirável  pela 
sua  acção  unificadora  do  Occidente,  defendendo-o 
das  invasões  germânicas  do  norte,  e  dos  árabes 
ao  sul  pela  sua  superior  capacidade  militar  e  po- 
litica. 

As  condições  que  determinaram  o  predominio 
do  Poder  temporal  favoreceram  a  livre  commu- 
nicação  com  os  monumentos  da  antiguidade  gre- 
co-romana,  n'essa  Renascença  do  século  xiii, 
abafada  até  revivescer  nos  philologos  do  sécu- 
lo XV.  Os  Reis  tornaram-se  protectores  das  Uni- 
versidades ;  oppozeram  á  nobreza  das  anuas  a 
nobreza  da  toga,  (ccdant  arma  togae)  vindo-se 
por  este  exagerado  prestigio  da  segunda  Renas- 
cença, no  século  xvi,  a  desprezar  a  tradição  da 
Edade  Vnedia  e  a  renegal-a  na  sua  continuidade 
histórica.    Chegou-se  mesmo  a  perder  o  conhe- 


FACTORES    DYNAMICOS 


cimento  da  Edade  média,  explicada  pelos  erudi- 
tos da  Renascença  como  uma  deturpação  da  cul- 
tura greco-romana ;  assim,  para  os  Jurisconsultos 
do  século  xv,  os  Feudos  eram  uma  forma  bastarda 
da  Buphyteuse  e  do  Usofructo  romanos;  para  os 
historiadores  os  modernos  Estados  foram  funda- 
dos por  heroes  foragidos  do  cerco  de  Troya ;  para 
os  artistas  as  ordens  gregas  existiam  syncretica- 
mente  implicitas  na  architectura  gótica,  como 
considerava  César  Cicerano  explicando  a  cathe- 
dral  de  Milão  pelas  regras  de  Vitruvio;  para  os 
theologos  as  doutrinas  evangélicas  eram  susten- 
tadas pela  Dialéctica  de  Aristóteles.  A  par  da 
grande  poesia  épica  da  Edade  média  os  verseja- 
dores desenvolveram  o  Cyclo  troyano  e  de  Ronie 
la  grant;  como  também  os  Goliardos  espalhavam 
entre  o  povo  as  Canções  bacchicas  em  latim,  como 
se  vê  em  Gautier  Maps,  ou  nas  cançonetas  escho- 
larescas,  do  Carmina  Burana. 

Nas  Cortes,  em  que  a  convivência  com  as 
Damas  impunha  a  correcção  de  maneiras  e  a  ga- 
lanteria, as  festas  e  os  passatempos  usuaes  man- 
tinham o  espirito  espontâneo  da  Edade  media, 
nos  Torneios,  nas  Dansas  e  nas  Canções  meló- 
dicas. Essa  modificação  dos  costumes  bárbaros 
dos  homens  de  armas  em  agradável  sociabilidade, 
tornando  affaveis  as  redaçÕes  pessoaes,  recebeu 
o  nome  característico,  que  ainda  persiste  de  Cor- 
tezia.  Foi  nas  cortes  reaes  e  senhoriaes,  que  a 
Canção  do  povo  rece1)eu  a  sua  forma  litteraria,  e 
que  da  sua  melodia  espontânea  nasceu  a  Musica 
moderna. 

N'esses  focos  da  mais  delicada  sociabilidade  é 


102  HISTORIA    DA    I.ITTRRATrRA    PORTUGUEZA 


que  íioresceu  a  poesia  lyrica  dos  Trovadores  e 
se  cantaram  os  bellos  Lais  bretãos,  converten- 
do-se  pelo  interesse  feminino  em  .complicadas  c 
apaixonadas  Novellas  de  Cavalleria.  A  própria 
subalternidade  dos  barões  diante  do  rei,  formando 
a  parada  da  sua  Corte,  veiu  dar  a  esta  litteratura 
courtois  um  desenvolvimento  quasi  exclusivo,  que 
a  par  da  corrente  erudita  da  Renascença  oj^erava 
uma  separação  constante  entre  os  escriptores  e 
o  povo.  Foi  por  isso  que  as  Litteraturas  da  Edade 
média,  tendo  abandonado  os  seus  fecundos  esbo- 
ços ou  formas  rudimentares,  cahiram  successiva- 
mente  no  culteranismo  académico,  até  se  afun- 
darem na  frivolidade.  O  erudito  Luiz  Vives,  no 
livro  De  institutionc  F cem  ince  christiaíUE  con- 
demnava  todos  os  poemas  da  Hespanha,  França 
e  Flandres,  todas  as  Novellas  d'elles  derivados, 
e  todas  as  obras  que  ainda  na  Renascença  conti- 
nuavam a  tradição  medieval,  como  a  Celestina,  e 
as  Facécias  de  Poggio.  As  Litteraturas  româ- 
nicas, foram  umas  mais  do  que  outras  assim  afas- 
tadas do  seu  espirito  nacional. 

3.0  A  Burguezia.  —  A  actividade  industrial  e 
mercantil  coadjuvada  pelos  Descobrimentos  ma- 
ritimos  estimulados  pelas  especulações  scíenti fi- 
cas, começa  nos  burgos  ou  cidades  livres,  e  des- 
envolve-se  pelas  federações  ou  ligas,  como  a  das 
cidades  hanseaticas.  A'  ideal isação  dos  typos 
guerreiros,  representantes  da  vida  publica  ou  na- 
cional, contrapõe-se  uma  nova  idealisação  da  vida 
domestica  e  das  emoções  pessoaes;  a  estabilidade 
social   pela  paz   inspira  sentimentos   benignos  de 


FACTORKS     DYNAMICOS  IO3 


amor,  em  uma  extraordinária  efflorescencia  de 
Canções  ou  Bailadas  que  se  succederam  á  época 
trobadoresca,  ainda  hoje  persistentes  nas  versões 
oraes  do  povo.  A  satisfação  do  bem-estar  era 
expressa  pela  graça  dos  Contos  e  Fabliaux,  que 
se  desenvolveram  no  Romance  moderno.  O  es- 
tabelecimento de  um  poder  moral,  a  Opinião  pu- 
blica, leva  a  crear  um  órgão,  o  Theatro  moderno, 
resolvendo  na  acção  do  drama  como  synthese  a 
collisão  dos  interesses  e  deveres.  Segundo  Gui- 
zot,  o  império  romano  dissolveu-se  por  falta  de 
uma  ciass::  media;  nas  Nações  modernas  a  sua 
força,  riqueza  e  capacidade  creadora  está  na  Bur- 
guezia  ou  propriamente  a  classe  média,  em  que 
predomina  o  bom  senso  pratico,  a  disciplina  mo- 
ral e  costumes  idealisaveis.  E'  d'ella  que  surgem 
as  altas  individualidades. 

b)  Renascença 

Toda  essa  insurreição  mental,  que  appareceu 
no  fim  da  Edade  média,  como  a  aurora  de  um 
renascimento  da  sociedade  moderna,  que  se  fixa 
no  século  xiii,  apagou-se  subitamente;  todas 
essas  doutrinas  philosophicas  foram  perseguidas 
como  heresias,  todas  essas  aspirações  politicas  fo- 
ram abafadas  pela  realeza  como  revoluções,  em 
guerras  religiosas  e  devastações  tremendas.  Ope- 
rava-se  a  separação  dos  dois  Poderes;  a  Egreja 
tornava-se  intolerante  e  a  Realeza  absoluta ;  uma 
queria  submetter  aos  dogmas  theologicos  a  rasão, 
a  outra,  na  transformação  da  actividade  militar, 
organisava  o  exercito.    Deu-se  este  tremendo  re- 


104  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


trocesso,  que  durou  por  todo  o  século  xiv  e  xv, 
porque  essa  insurreição  mental  não  se  apoiava 
sobre  conhecimentos  positivos  ou  scientificos.  Dis- 
solvida a  synthese  catholica,  a  intelligencia  acha- 
va-se  em  um  interregno  theorico. 

Nos  phenomenos  sociaes  predomina  a  comple- 
xidade dos  ef feitos;  no  século  xv  trez  descober- 
tas vieram  suscitar  uma  extraordinária  actividade 
mental  e  social :  foram  a  Bussula,  a  Pólvora  e  a 
Imprensa.  Pelo  emprego  da  Bussula  pôde  esta- 
belecer-se  a  grande  navegação,  pela  iniciativa  dos 
Portuguezes,  que  desde  o  começo  do  século  xv 
encetaram  as  expedições  maritimas  no  Atlântico; 
pela  Pólvora  acabou  a  valentia  individual  do  ca- 
valleiro,  tornando-se  accessivel  essa  força  mate- 
rial ao  braço  do  proletário,  que  se  ia  impondo  pelo 
seu  numero,  auxiliando  a  realeza  contra  o  feuda- 
lismo ;  pela  Imprensa  revivesceu  o  humanismo, 
iniciado  por  Petrarcha  e  as  obras  primas  da  An- 
tiguidade vulgarisaram-se  entre  os  eruditos  re- 
velando que  fora  das  doutrinas  da  Egreja  exis- 
tiu uma  sabedoria  moral  imperecível,  e  incompa- 
ráveis obras  bellas  bem  dignas  de  imitação. 

Estes  inesperados  impulsos  convergiram  no 
principio  do  século  xvi  inaugurando  a  Época  da 
grande  Renascença,  que  enche  o  denominado  — 
maior  século  da  Historia.  Peschel  chama  ao  sé- 
culo XVI,  a  Bra  dos  Descobrimentos.  Foram  os 
Portuguezes,  que  depois  da  exploração  dos  Ar- 
chipelagos  atlânticos  e  reconhecimento  da  costa 
africana,  realisaram  os  descobrimentos  da  rota 
maritima  da  índia,  da  America  boreal,  equatorial 
e  austral,  e  os  descobrimentos  no  Pacifico,  depois 


factore:s   dynamicos  105 

de  terem  conseguido  a  viagem  da  circumducção 
da  Terra.  Tudo  isto  trouxe  extraordinárias  con- 
sequências á  constituição  social  e  politica  da  Ci- 
vilisação  da  Europa,  cujas  nações  entravam  em 
um  novo  equilibrio.  Pela  corrente  humanista,  a 
Renascença  tomou  também  conhecimento  do  pri- 
meiro par  scientiíico,  constituido  pelo  génio  gre- 
go, a  Mathematica  e  a  Astronomia;  estas  disci- 
plinas positivas  vinham  inaugurar  a  systematisação 
do  interregno  theorico.  Por  seguras  deducções  ma- 
thematicas  pôde  Copérnico  demonstrar  a  redon- 
deza da  terra  movendo-se  no  espaço  em  volta  do 
sol;  mas  como  podia  essa  demonstração  impôr-se 
ao  vulgo  e  aos  preconceitos  theologicos,  acostu- 
mados ao  velho  erro  geocêntrico?  Para  Copér- 
nico os  Descobrimentos  maritimos  dos  Portugue- 
zes  foram  a  prova  verificável  da  verdade  de- 
monstrada racionalmente.  Este  accordo  entre  a 
realidade  objectiva  e  a  noção  subjectiva,  é  que 
constituiu  o  triumpho  inabalável  do  espirito  ou  a 
rasão  moderna.  Na  transição  da  Edade  média, 
em  que  se  operava  a  separação  dos  dois  Poderes, 
o  espirito  critico  ou  o  Livre-Pensamento  exerceu- 
se  sempre  por  um  dissolvente  negativismo.  Os  no- 
vos descobrimentos  geographicos  e  scientificos, 
contradictando  a  auctoridade  da  Biblia  e  os  do- 
gmas da  Egreja,  davam  elementos  para  comple- 
tar a  synthese  natural  ou  propriamente  physica; 
era  este  o  scopo  da  transição  medieval,  reatar  a 
continuidade  histórica,  restabelecendo  e  prose- 
guindo  a  cultura  greco-romana.  De  novo  os  ve- 
lhos Poderes,  para  resistirem  á  corrente  de  reno- 
vação,   tornaram-se    ainda    mais    retrógrados;    a 


I06  HISTORIA     DA     IJTTKRATURA    PORTUGUEZA 


Egreja,  pela  organisação  da  Companhia  de  Je- 
sus, tentou  restaurar  a  Thcocracia;  e  a  Realeza, 
tendo  reduzido  a  aristocracia  feudal  a  séquito  do 
apparato  da  sua  Corte,  conseguia,  pela  creação  do 
exercito  permanente,  sustentar-se  em  um  impe- 
rialismo  absoluto.  Nasceu  esta  tendência  monar- 
chica  do  reapparecimento  do  Gcrinanisuio,  no  sé- 
culo XVI,  quando  Carlos  v,  atraiçoando  a  causa 
da  nacionalidade  allemã,  para  se  tornar  o  repre- 
sentante do  Imi>erio  Romano  se  serviu  do  iini- 
tarismo  catholico  coadjuvando  a  Egreja  na  re- 
acção contra  a  Reforma.  O  humanismo  vivificava 
a  tradição  do  Santo  Império ;  todos  os  monarchas 
obedeciam  á  utopia  de  uma  Monarchia  univer- 
sal, formada  pela  incorporação  de  todos  os  Es- 
tados, ou  por  via  dos  casamentos  dynasticos  ou 
pelas  invasões  militares.  Por  via  dos  casamentos, 
a  Casa  de  Áustria  quasi  avassalava  a  Europa,  tor- 
nando-se  esse  perigo  o  principal  objectivo  da  po- 
litica franceza;  Carlos  v,  Francisco  i,  D.  Manoel, 
Henrique  vi  ir,  obedeceram  ao  desvairamento  da 
Monarchia  Universal;  as  novas  nacionalidades 
foram  envolvidas  nas  guerras  dynasticas,  vendo- 
se  a  França  e  a  Hespanha  invadindo  a  Itália,  a 
Hespanha  invadindo  os  Paizes  Baixos  e  a  Ingla- 
terra, occupando  esta  uma  parte  do  Território  da 
França,  e  desapparecendo  a  autonomia  de  Portu- 
gal, reduzido  em  1580  a  provincia  castelhana. 
N 'estas  luctas,  manifestam-se  as  altas  individua- 
lidades estheticas  e  especulativas,  criando-se  o 
ethos  ou  os  caracteres  nacionaes,  representados 
nas  Litteraturas. 

O  curso  da   Renascença  prolonga-se  pelo  se- 


I^ACTORES     DYNAMICOS  107 


ciilo  XVII,  em  que  se  eonstitue  o  segundo  par 
scientiíico,  a  Physica  e  a  Chimica,  dando  logar  a 
uma  nova  actividade  mental  tornada  mais  intensa 
nas  Academias,  dando  logar  á  synthese  physica 
ou  matheseologica  por  Descartes  e  á  systematisa- 
gão  moral  em  Bacon.  O  desenvolvimento  do  Ter- 
ceiro estado,  constituindo  a  totalidade  da  nação 
no  povo,  funda-se  no  trabalho  productivo  colo- 
nial e  financial,  resultante  dos  Descobrimentos 
maritimos,  começando-se  desde  então  a  resolve- 
rem-se  os  conflictos  internacionaes  pelos  recur- 
sos suasórios  da  Diplomacia  e  creação  do  Direito 
das  Gentes.  A  originalidade  do  génio  esthetico 
moderno  emancipa-se  da  subserviente  imitação 
das  obras  greco- romanas,  e  fora  das  Cortes  é  que 
se  criam,  as  bellas  idealisações  da  sociedade  mo- 
derna. A  celebre  Quer  cila  dos  Antigos  c  Moder- 
nos veiu  pôr  em  foco  a  importância  das  novas 
Litteraturas  occidentaes.  Ainda  a  transição  da 
Edade  média  se  reflectiu  no  século  xviii,  quan- 
do essa  insurreição  mental  das  heresias  se  trans- 
formou no  mais  audacioso  racionalismo,  e  quan- 
do a  renascença  scientifica  foi  continuada  no  par 
scientifico,  que  na  sua  forma  geral  e  abstracta 
veiu  a  constituir  a  Biologia  e  a  Sociologia.  A 
esse  espirito  critico,  depressivo  do  século  xviii 
deu-se  o  nome  do  Encyclopedismo,  sendo  os  Lit- 
tcratos  os  que  universalisaram  as  doutrinas,  que 
depois  da  explosão  temporal  da  Revolução  fran- 
ceza,  reorganisaram  a  sociedade  europêa.  Esse 
espirito  critico,  como  negativista,  era  essencial- 
mente destructivo,  por  lhe  faltar  o  sentimento  da 
solidariedade   histórica;   procurando   bases   natii- 


108  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


raes  para  o  direito,  para  a  moral,  para  a  politica, 
para  a  arte,  renegou  a  Antiguidade  clássica  e  a 
Edade  média,  desconhecendo  a  sua  continuidade 
na  civilisação  moderna.  As  phrases  de  Helvetius, 
e  Reynal  sobre  a  Edade  Média,  denominando-a 
trevas  sem  nome  e  estéril  barbárie,  que  tomaram 
curso  nas  opiniões  vulgares,  mostram  a  com- 
pleta ausência  do  senso  histórico.  Foi  este  novo 
critério  da  comprehensão  da  historia,  que  abriu 
ás  intelligencias  mais  largos  horisontes  demar- 
cando uma  época  de  verdadeira  reconstrucção. 

c)  Romantismo 

O  grande  período  do  interregno  theorico  do 
íim  da  Edade  média,  quasi  ao  fechar-se  nos  es- 
forços para  a  constituição  do  par  scientifico  da 
Biologia  e  Sociologia,  complicou-se  com  a  phase 
social,  cuja  explosão  temporal  caracterisa  o  fim 
do  século  XVIII,  — a  Revolução  franceza.  A  sua 
\"asta  repercussão  em  todos  os  estados  da  Europa, 
torna  evidente  que  esse  phenomeno  local  proveiu 
de  causas  geraes  profundas.  Em  todas  as  mani- 
festações do  espirito  e  da  actividade  moderna  é 
indispensável  a  orientação  d'este  ponto  de  par- 
tida; i>or  que  essa  crise  violenta  determina  o  mo- 
mento em  que  impulsos  accumulados  de  ideias  e 
sentimentos  do  passado  produziram  o  movi- 
mento social  procurando  um  novo  equilibrio.  De- 
finem-se  na  sua  generalidade  esses  impulsos  ou 
factos  em  que  se  accentua  a  longa  decomposição 
do  regimen  catholico-feudal,  que  principiou  pe- 
las heresias  religiosas  e  terminou  pelas  revoluções 


) 

FACTORES     DYNAMICOS  lOQ 


politicas.  Desde  a  Paz  de  Westphalia,  que  na  po- 
litica europêa  prevaleceu  o  espirito  secular;  as 
Egrejas  nacionaes  foram  subordinadas  ao  poder 
dos  reis,  e  com  a  queda  dos  Jesuitas  o  regimen 
catholico  soffreu  a  sua  plena  destituição  como 
poder  destinado  a  dirigir  a  sociedade  humana. 
O  regimen  feudal,  representado  ainda  nos  privi- 
légios e  distincçÕes  da  nobreza  estava  concentrado 
com  todos  os  seus  antigos  abusos  nas  Monar- 
chias  absolutas.  A  queda  dos  Jesuitas,  signifi- 
cando a  separação  final  dos  dois  poderes,  o  espi- 
ritual e  o  temporal,  por  que  foram  reis  catho- 
licos  (|ue  decretaram  a  sua  extincção,  veiu  deixar 
a  realeza  em  uma  situação  isolada,  sem  a  subor- 
dinação passiva  mantida  nos  costurhes,  que  a  sua 
feição  medieval  exigia.  A  soberania  absoluta  foi 
discutida,  compararam-se  as  instituições  politicas 
dos  di  ff  crentes  povos,  e  o  vasto  cosmopolitismo 
provocado  pela  circulação  dos  productos  do  tra- 
balho livre,  fez  reconhecer  a  necessidade  de  uma 
reorganisação  social  sobre  outras  bases  de  con- 
córdia, que  não  vetustas  hostilidades  militares. 
Tsto  levara  annos  antes  da  Revolução  franceza, 
a  i)resagial-a  como  inevitável. 

Pela  fatalidade  dos  acontecimentos  a  realeza 
feudal  foi  executada  na  pessoa  de  Luiz  xvi ;  e 
os  privilégios  das  classes  aristocráticas,  represen- 
tantes das  bandas  guerreiras  das  invasões  germâ- 
nicas, derrogados  ante  os  principios  da  —  egual- 
dade  perante  a  lei,  e  da  lei  egual  para  todos. 
As  longas  perturbações  da  época  revolucionaria 
provieram  dos  esforços  para  substituir  os  Poderes 
decahidos  :  o  poder  espiritual  foi  genialmente  esbo- 


IO  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


çado  nas  reformas  pedagógicas  da  Convenção,  mas 
deturpado  pelo  deismo  robespierrista ;  o  poder  tem- 
poral, provisoriamente  substituido  pela  Republica 
democrática  foi  afastado  da  sua  forma  definitiva 
pelo  terror,  que  provocou  a  restauração  da  mo- 
narchia  e  da  egreja,  i^elo  Consulado  e  Império,-  ex- 
plorando uma  execranda  retrogradação  da  Orgia 
militar  napoleonica,  sobre  que  se  enxertou  o  so- 
phisma  das  Cartas  outorgadas,  patrocinado  i>ela 
Inglaterra. 

Estes  grandes  abalos  sociaes  fizeram-se  reHe- 
ctir  nas  idealisações  das  Litteraturas  modernas; 
chamaram  a  essa  crise  esthetica  ou  affectiva  Ro- 
iiiantisrno.  Tem  esta  palavra  dois  sentidos,  um 
puramente  sentimental  e  o  outro  histórico.  Como 
o  romance,  cultivado  no  século  xvii,  nas  litte- 
raturas hespanhola  e  ingleza,  representava  a  exis- 
tência pelo  seu  lado  imaginoso  e  phantastico, 
como  typos  individuaes  contrastando  com  a 
realidade  vulgar,  deu-se  o  nome  de  Romantis- 
mo  á  exagerada  sensibilidade  do  fim  do  século 
XVIII,  ás  tendências  melancholicas  e  contempla- 
tivas com  que  era  idealisada  a  natureza  physica 
para  representar  a  vaga  anciedade  moral,  e  ainda 
aos  protestos  de  um  fino  gosto  em  contraposição 
com  o  utilitarismo  preconisado  pelos  Economis- 
tas e  com  o  bom  senso  pratico  das  classes  bur- 
guezas.  Como  o  romance  designou  as  linguas 
vulgares  dos  povos  que  na  Edade  média  continua- 
ram a  cultura  romana,  reconhecendo  esse  espi- 
rito de  unidade  i>ela  erudição  histórica,  o  Roman- 
tismo exprimiu  bellamente  este  movimento  litte- 
rario  e  artistico  da  Edade  média  filiando  n'essa 
época  fecunda  os  elementos  nneionaes  da  tradição 


FACTORES     DVNAMICOS  III 


de  cada  litteratura.  Por  estes  dois  caracteres,  que 
ainda  coexistem,  vê-se  que  antes  da  época  do  Ro- 
mantismo, iniciada  pela  Allemanha,  foi  antece- 
dido pelas  Litteraturas  hespanhola  e  ingleza,  que 
conservando  na  sua  organisação  social  as  formas 
da  Edade  média,  mantiveram  a  sua  originalidade 
nacional  através  da  auctoridade  e  das  imitações 
clássicas  da  Renascença.  A  este  phenomeno  cha- 
ma-se  propriamente  Proto-Romantismo.  Reco- 
nheceu-se  que  uma  característica  fundamental 
separava  a  arte  moderna  da  arte  antiga:  a  ideali- 
sação  da  vida  domestica  em  vez  da  vida  publica, 
como  obser\'(nt  o  génio  luminoso  de  Comte.  De 
facto  na  litteratura  hespanhola,  séculos  antes  da 
época  romântica,  tem  todos  os  caracteres  do  Ro- 
mantismo obras  como  a  Celestina  /le  Rojas  e  La- 
zarillo  de  D.  Diego  de  Mendoza,  o  Gil  Blas  de 
Lesage,  Gusnian  d\4lfarache,  Picara  Justina, 
e  todos  os  romances  picarescos ;  na  litteratura  in- 
ingleza  o  Tom  Jones  de  Fielding,  Clarisse  Harlozv 
de  Richardson,  toda  a  obra  portentosa  de  Shakes- 
peare. Mesmo  na  litteratura  franceza,  rompeu  a 
inexpressiva  banalidade  do  pseudo-classicismo  o 
Tartufo  de  Molière,  a  Manon  Lescaut,  de 
Prévost,  a  Princesa  de  Cleves  de  Mad.  de  La- 
fayette,  a  Marianna  de  Marivaux,  a  Religiosa  de 
Diderot.  Reconhecia-se  a  necessidade  de  reno- 
var a  expressão  do  sentimento  pela  vulgarisação 
e  imitação  das  obras  estrangeiras ;  chamou-se 
exostismo  a  este  alargamento  para  a  renovação 
'  da  Litteratura  franceza,  tentado  por  Voltaire,  que* 
constitue  verdadeiramente  uma  phase  proto-ro- 
mantica,  do  século  xvttt. 


IIJ  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

A  sensibilidade,  que  se  tinha  revelado  na  as- 
piração ás  grandes  reformas  das  leis  penaes  por 
Beccaria,  na  saniíicação  dos  cárceres,  na  propa- 
ganda por  sacrifícios  pessoaes  para  o  emprego  da 
vacina,  essa  sensibilidade  imprime  á  linguagem 
um  maior  relevo  nas  imagens  e  tropos  dando  al- 
ma ás  cousas  materiaes,  como  se  vê  pelo  novo  es- 
tylo  de  Chateaubriand.  Tudo  conduzia  para  a  reno- 
vação estbetica,  provocada  pela  rigidez  da  aucto- 
ridade  dos  modelos  clássicos  impostos  como  nor- 
mas de  gosto.  Na  transição  do  século  xvi  para 
o  XV II  operou-se  uma  reacção  espontânea  em 
(o(las  as  littcratnras  modernas  contra  esse  ex- 
cesso (la  imitação  clássica  da  Renascença  sob  a 
hegemonia  da  Itália;  chamou-se  a  nova  doutrina 
litteraria  o  Culteranismo  (Concettismo,  Buphuis- 
III o,  PreciosísJiio)  mas  como  não  provinha  de 
uma  noção  histórica  ou  phenomeno  social,  os 
modos  de  sentir  individuaes  degeneraram  em  uma 
intemperança  de  rhetorica,  em  agudezas  de  en- 
genho, conceitos  frivolos,  peiores  do  que  as  ba- 
nalidades pelo  seu  absurdo.  O  que  houve  de  po- 
sitivo n'este  esforço  de  reorganisação  estbetica 
foi  a  polemica  critica  conhecida  na  historia  pelo 
titulo  de  Ouerclla  dos  Antigos  c  Modernos.  A 
reacção  contra  esses  destempêros  rhetoricos  das 
Academias  ou  Tertúlias  foi  a  causa  da  prolon- 
gação  da  influencia  greco-romana  sob  o  nome  de 
classicismo  francez,  durante  todo  o  século  xviii 
em  todas  as  litteraturas  da  Europa. 

A  reacção  contra  o  exagerado  influxo  da  Lit- 
teratura  franceza  da  época  de  Luiz  xiv,  partiu 
do  norte,  da  Allemanha ;  Bodmer,  Lessing,  Wie- 


FACTORES     DYNAMICOS  II3 


lanei  desbravam  o  caminho  trilhado  gloriosamente 
por  Goethe  e  Schiller.  Este  phenomeno,  que  é  de- 
terminado por  causas  accidentaes,  como  a  Guerra 
dos  Sete  annos,  que  aproxima  os  escriptores  alle- 
mães  do  conhecimento  da  poesia  ingleza,  e  a  corte 
de  Weimar,  denominada  a  Athenas  da  Thuringe, 
sob  a  regência  pacifica  de  Anna  Amélia  de  Bruns- 
wich,  onde  se  reúnem  Goethe,  Schiller,  Wieland, 
Herder :  Schlegel,  fulgurando  a  Bra  dos  Génios; 
porém  na  essência,  a  transformação  litteraria  do 
Romantismo  acompanhava  o  movimento  social  da 
Revolução  franceza,  desde  o  negativismo  critico 
dos  Encyclopedistas  até  á  transição  ou  alta  pro- 
visória das  Cartas  outorgadas. 

O  Romantismo  foi  sempre  solidário  com  a 
agitação  politica;  na  Alkmanha  este  impulso  de 
renovação  litteraria  era  mais  do  que  uma  reacção 
contra  os  modelos  francezes  sustentados  por 
Gottsched,  era  uma  continuação  d'esse  sentimento 
do  natural  e  do  individualismo  germânico  que 
fez  a  Reforma,  que  seguindo  o  espirito  anarchi- 
co,  francez,  que  prepara  a  Revolução,  iniciava  a 
emancipação  sentimental  com  o  Romantismo.  Les- 
sing  imita  Diderot  no  theatro :  Goethe  admira 
o  creador  do  Neveu  de  Rameau;  Wieland  reela- 
bora as  gestas  f  rancezas,  como  no  poema  Oheron; 
Schiller  continua  a  tragedia  philosophica  e  é  pro- 
clamado cidadão  francez  pela  Convenção;  Kant 
apropria-se  da  doutrina  philosophica  de  Rousseau 
dando-lhe  deducção,  e  Fichte  define  a  funcção 
histórica  da  Revolução  franceza.  Gervinus  de- 
nomina com  imparcialidade  este  periodo  da  litte- 
ratura  franceza  Proto-Romantismo,  estabelecendo 

8 


114  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUEZA 


a  sua  connexão  com  a  nova  época.  A  instabili- 
dade social  pelas  luctas  da  Revolução  e  pelo  re- 
gimen da  devastação  militar  da  retrogradação  na- 
poleonica  e  reacção  da  Santa  Alliança,  embara- 
çaram a  Litteratura  franceza  de  proseguir  n'esta 
evolução  normal,  vindo  á  Allemanha  a  competir 
essa  missão  de  crear  as  formas  litterarias  em 
relação  com  os  organismos  nacionaes  e  o  espirito 
moderno. 

O  Romantismo  appresentou  os  dois  aspectos 
sentimentalista  e  tradicional  nas  Litteraturas  alle- 
mã  e  ingleza;  o  sentimento,  que  provoca  uma 
actividade  philosophica  e  a  creação  da  Esthetica  é 
representado  na  Allemanha  pelos  irmãos  Schlegel, 
Novalis,  Schleiermacher,  Tieck,  Schelling,  syste- 
matisando  Hegel  a  phase  romântica  como  a  ul- 
tima da  sua  tricotomia  esthetica:  a  parte  tradicio- 
nal, conduzindo  á  comprehensão  scientifica  da  his- 
toria, quer  nacional  e  universal,  é  representada  por 
Herder,  pelos  irmãos  Grimm  e  por  Uhland.  Na 
Litteratura  ingleza,  o  sentimentalismo,  que  fora 
suscitado  pelas  falsificações  ossi-ancscas  de  Mac- 
Pherson,  toma  a  expressão  melancholica  dos  idea- 
lisadores  dos  lagos  de  Cumberland  e  Westmore- 
land,  os  poetas  Wordsworth,  Coleridge,  Southey 
e  Wilson,  denominados  os  Lakistas;  dá-se  a  re- 
surreição  das  velhas  Bailadas  tradicionaes  por 
Percy,  e  Walter  Scott  cria  o  romance  histórico 
reconstruindo  a  Edade  média  nos  seus  costumes 
e  crenças.  Em  Byron  apparecia  a  impetuosidade 
do  saxão  no  mais  revoltado  individualismo,  e  o 
génio  do  Shakesi>eare  aprecia-se  como  a  mais  ge- 
nuína expressão  do  ethos  da  raça. 


FACTORES    DYNAMICOS  II5 


A  designação  de  Romantismo  tinha  um  sen- 
tido verdadeiro,  obtendo  por  isso  curso  unani- 
me; Frederico  Schlegel  applicava-a  á  Poesia  da 
Edade  média  nas  suas  crenças  religiosas  e  cos- 
tumes cavai herescos,  mas  abrangia  a  noção  da 
unidade  de  civilisação  das  modernas  nacionali- 
dades creadas  depois  da  dissolução  do  Império 
romano.  Caminhava-se  para  esta  comprehensão. 
A  Egreja,  na  sua  direcção  espiritual,  renegara  as 
obras  primas  da  Antiguidade  greco-romana,  du- 
rante o  largo  periodo  da  Edade  média;  a  Renas- 
cença negara  por  seu  turno  a  importância  das 
creações  da  edade  mediévica,  copiando  servil- 
mente as  instituições  e  os  productos  estheticos  da 
edade  polytheica;  vem  por  fim  o  século  excepcio- 
nal, o  XVIII,  que  tudo  discutira  no  seu  negativis- 
mo critico,  desligando-se  de  todas  as  relações 
com  as  duas  Antiguidades,  a  clássica  e  a  medie- 
val, retemperando-se  na  fonte  viva  do  estado  na- 
tural entrevisto  pela  rasão  pura. 

Esta  falta  de  comprehensão  da  continuidade 
histórica,  ou  do  concurso  successivo  viciava  todas 
as  concepções,  desviando-as  da  realidade  para  o 
dominio  da  utopia,  aggravando  assim  a  agitação 
anarchica  da  violenta  crise  occidental.  A  supe- 
rioridade da  época  moderna  começou  pelo  conhe- 
cimento progressivo  da  intima  connexão  histórica 
entre  o  mundo  greco-romano  e  a  éra  feudal ; 
começou-se  por  comprehender  a  historia  no  seu 
conjuncto,  como  fizeram  Condorcet,  Kant,  Her- 
der  e  Augusto  Comte.  .  Investigadores  espe- 
ciaes  occuparam-se  com  sympathia  tanto  da  eru- 
dição  clássica,    renovada   pelo  génio   de   Ottfried 


]l6  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Miiller,  como  dos  monumentos  medievaes,  estu- 
dados por  Jacob  Grimm.  Após  a  rehabilitação 
sentimental  da  Edade  média,  pelos  poetas,  seguiu- 
se  o  trabalho  de  erudição,  que  a  investigou  e  es- 
clareceu em  todas  as  suas  creaçÕes;  estudou-se  o 
grande  problema  das  origens  do  proletariado  das 
classes  servas,  operarias  e  agricolas,  conheceu-se 
a  organisação  do  trabalho  livre  das  Jurandas,  in- 
vestigaram-se  as  Catacumbas  de  Roma  e  as  lendas 
populares  que  tão  claramente  explicam  a  propa- 
gação do  Christianismo  no  Occidente  precedido 
]>elo  Mithriacismc^ ;  o  Direito  territorial  das  Com- 
munas  foi  explicado  pelos  documentos  e  pela  apro- 
ximação das  fontes  municipaes,  publicaram-se  as 
Canções  de  Gesta,  as  Canções  lyricas  dos  Tro- 
vadores e  as  Novellas  da  Tavola  Redonda;  a  Ar- 
chitectura  gótica,  longo  tempo  desprezada,  reco- 
nhece-se  como  uma  das  creaçÕes  mais  bellas  de 
uma  civilisação  nova,  digna  de  competir  com  as 
ordens  gregas;  as  linguas  romanisadas,  chamadas 
novo-latinas,  foram  também  analysadas  no  seu 
conjuhcto,  e  (|uando  todos  estes  elementos  precisa- 
vam systematisar-se  em  uma  construcção  synthe- 
tica,  o  estudo  do  sanskrito  e  do  zend,  dos  hiero- 
glyphos  egypcios  e  dos  cuneiformes  na  Chaldêa, 
vieram  prestar  todos  os  materiaes  para  a  consti- 
tuição positiva  da  Sociologia.  Os  monumentos 
litterarios  dos  periodos  védico,  avestico,  brahma- 
nico  e  buddhico,  revelando-nos  a  continuidade  das 
fómias  poéticas  universaes,  conduzindo  a  uma 
melhor  comprehensão  do  polytheismo  helleno-ita- 
lico,  e  simultaneamente  as  Gestas  carlingias  fa- 
ziam ])enetrar  no  problema  da  formação  dos  poe- 


FACTORES    DYNAMICOS  llj 


mas  homéricos.  A  historia  tornou-se  um  critério 
methodologico,  considerando-se  o  preHminar  de  to- 
das as  sciencias  cosmologicas  e  sociaes.  Depois  de 
ter  atravessado  as  phases  reHgiosa  ou  emanuehca, 
liberal,  nacional  e  ultra-romantica,  os  génios  es- 
theticos  superiores  comprehenderam  a  Litteratura 
universalista,  idealisando  a  Humanidade,  e  dan- 
do aos  themas  da  tradição  collectiva  o  relevo  de- 
finitivo das  altas  individualidades. 


Successão   das  Litteraturas  modernas,  e  mutua 
acção  hegemónica 


O  dominio  romano  incorporou  na  sua  uni- 
dade politica  imperial  o  occidente  da  Europa,  a 
Itália,  a  Hespanha,  as  Gallias  e  a  Bretanha;  á 
actividade  social  e  mental  d'estas  raças,  que  im- 
mediatamente  deram  a  Roma  imperadores,  phi- 
losophos,  poetas,  rhetoricos,  com  que  ella  ainda 
dourou  a  sua  decadência,  chamou-se-lhe  roma- 
nisação.  O  império  apenas  explorou  estes  povos 
com  a  sua  absorvente  fiscalidade,  reconhecendo 
])or  urgência  as  suas  instituições  consuetudiná- 
rias :  simplesmente  esta  tolerância  politica  facili- 
tou a  revivescência  da  antiga  Civilisação  occiden- 
tal  ou  ligurica,  que  fora  apagada  pelas  invasões 
dos  Celtas,  os  homens  louros  de  grande  estatura 
na  sua  descensão  do  norte  da  Europa.  Quando 
cessara  esse  tremendo  retrocesso,  e  a  civiHsação 
dos  Italiotas,  Hispanos,  Gaulezes  e  Bretões,  revi- 
vescia  com  o  seu  caracter  de  o ccident alidade,  a 
(jue  se  chamou  roínanisação,  outra  vez  se  repetiu 
a   invasão   dos   homens   corpulentos   e   louros   do 


l8  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Norte,  as  tribus  germânicas,  que  se  apoderaram 
de  todos  os  domínios  do  Império.  A  Edade  mé- 
dia na  sua  phase  germânica  foi  verdadeiramente 
de  trevas  sem  nome  e  de  estéril  barbárie,  como  lhe 
chamaram  Helvetius  e  Raynal ;  mas  o  fundo  de 
cuhura  dos  povos  subjugados  absorveu  essas  tri- 
bus barbaras,  constituindo-se  as  modernas  Nacio- 
nahdades  da  Europa.  Apesar  de  todas  as  diffe- 
renças  e  antagonismos,  um  consenso  tácito  unifi- 
cava morahnente  estes  povos,  diante  da  tradição 
do  Império  e  do  Direito  romano,  e  pela  univer- 
salidade da  lingua  latina  aproximando  pelo  seu 
léxico  os  dialectos  jx^pulares.  O  catholicismo,  co- 
piando na  sua  hierarchia  a  organisação  munici- 
pal, aproveitou-se  para  fundar  a  unidade  de  sen- 
timento (a  christandade)  apropriando-se  dos  ri- 
quissimos  elementos  tradicionaes,  vestigios  das 
crenças  dos  Scythas,  Scandinavos,  Ligures  e  Gau- 
lezes.  Celtas  e  Germanos,  com  que  formou  as 
suas  Legendas  i*eligiosas.  As  invasões  dos  Ára- 
bes no  sul  da  Europa  vieram  provocar  n;>  sé- 
culo VIII  esta  unificação  affectiva  da  crença 
commum,  que  se  elevou  á  manifestação  mental  da 
primeira  Renascença,  quando  das  escholas  árabes 
reflectiram  os  progressos  das  Sciencias  da  Grécia, 
a  Mathematica,  a  Astronomia  e  a  Medicina.  As- 
sim se  elevou  a  civilisaçao  da  Europa  á  affirma- 
ção  consciente  da  sua  oeeidentalidade. 

Entre  os  povos  do  Occidente,  como  a  Itália, 
a  França  meridional,  a  Hespanha,  essa  unidade 
ethnica  fez-se  sentir  muito  cedo  pela  tradição  do 
mesmo  lyrismo,  cpie  irradiou  da  Provença,  de 
eguaes  rudimentos  épicos,  como  os  Romanceiros, 


FACTORES    DYNAMICOS  IIQ 


e  de  costumes  sociaes  e  domésticos,  que  se  transfor- 
maram nas  mesmas  creaçÕes  dramáticas.  Sobre 
este  fundo  commum,  é  que  sobre  a  Gotia  refloriu  a 
Romania.  Assim  como  nos  estados  da  Grécia 
todos  os  elementos  tradicionaes  conservados  com 
intenso  af  ferro  pelos  Dorios,  receberam  dos  Jonios 
em  Athenas,  o  livre  desenvolvimento  das  formas 
artisticas,  ao  fixarem-se  as  Nacionalidades  da 
Edade  média  a  estabilidade  social  e  a  idealisação 
dos  costumes  realisou  esta  passagem  das  tradi- 
ções para  as  formas  conscientes  de  esthetica  indi- 
vidual. O  syncretismo  das  tradições  das  diversas 
raças  produziu  uma  extraordinária  riqueza  de 
elementos  poéticos.  A  unidade  affectiva  do  Occi- 
clente  no  fim  da  Edade  média  realisou-se  pela 
Poesia. 

As  raças  germânicas  deveram  a  sua  incorpo- 
ração na  Civilisação  occi dental  á  propaganda  ca- 
tholica :  os  seus  mytlios  polytheicos  perdendo  o 
sentido  religioso  persistiram  como  themas  poé- 
ticos, elaborando-se  as  Lendas  em  Cantilenas,  que 
vieram  a  fonnar  o  cyclo  germânico  dos  Niebe- 
Iiingcn  e  o  cyclo  franko  das  Gestas  Carlingias. 
O  génio  saxão,  luctando  para  submetter  a  deca- 
liida  raça  britonica,  provoca  a  revivescência  das 
tradições  do  vencido  no  brilhante  cyclo  da  Ta- 
vola  Redonda  e  do  Santo  Graal.  As  Litteraturas 
modernas,  creando-se  na  elaboração  de  tão  varia- 
dos elementos  tradicionaes,  definem  nas  suas  ori- 
gens e  progressos  a  successão  das  Nacionalidades, 
que  ao  constituirem-se  tornaram  escriptas  as  suas 
linguas. 

O  grupo  do  meio  Dia  da  Europa  foi  o  pri- 
meiro a  continuar  a  Civilisação  occidental,  inter- 


120  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


rompida  depois  da  queda  de  Roma;  o  grupo  do 
Norte  só  entrou  na  civilisação  moderna  no  século 
XVI,  desviando  as  energias  guerreiras  para  o  tra- 
balho constitutivo  da  nacionalidade  allemã.  Com  o 
desenvolvimento  da  Civilisação  em  concurso  simul- 
tâneo, foram-se  accentuando  as  similaridades  eth- 
nicas  dos  ramos  da  grande  raça  árica  na  Europa, 
e  as  próprias  instituições  sociaes  hellenicas,  româ- 
nicas, germânicas  e  mesmo  slavas,  foram  unifi- 
cadas em  typos  communs  derivados  da  constitui- 
ção primordial  ariana,  como  o  provou  scientiíi- 
camente  Freeman. 

A  França  foi,  entre  os  novos  estados,  o  cen- 
tro hegemónico  medieval,  que  imprimia  impulso 
e  direcção  a  esta  corrente  que  é  hoje  a  civilisação 
da  Europa. 

a)  Litteratura  da  França.  —  A  hegemonia  da 
França  na  Edade  média  é  uma  expansão  da  cul- 
tura de  génio  gaulez,  que  desde  o  iv  século,  antes 
da  nossa  éra,  se  revelara  pelos  estudos  cosmogra- 
phicos  de  Pytheas  e  Euthymenes  de  Marselha,  e 
de  Erastothenes  da  Narboneza,  de  que  tanto  se 
aproveitaram  Strabão  e  os  geographos  gregos. 
Esse  mesmo  génio  gaulez  actuou  no  norte  da 
Itália  sobre  Roma,  pelo  grande  numero  dos  seus 
l)c)etas,  historiadores  nascidos  na  Gallia  Cisalpi- 
na, contrabalançando-se  com  a  influencia  do  meio 
(Ha  ou  da  Grande  Grécia.  César  foi  discípulo  do 
gaulez  Gnyphon,  Cicero  foi  dirigido  pelo  gaulez 
Roscio,  Tácito  discípulo  de  Marcus  Apes.  Foram 
gaulezes  os  creadores  do  theatro  romano;  e  desde 
que  a  Gallia  foi  reduzida  a  província  romana,  um 


FACTORES     DYNAMICOS  121 

novo  esplendor  se  reflecte  nos  productos  de  génio 
romano.  Junto  de  Trajano  e  de  Adriano  era 
exercida  a  influencia  da  cultura  gauleza  por  Fa- 
vorinus,  e  junto  de  Marco  Aurélio  por  Frontonio. 
Esses  philosophos,  politicos  e  oradores,  pela  sua 
moral  encontram-se  com  os  Stoicos,  e  preparam, 
pelo  contacto  com  o  génio  grego,  o  estabeleci- 
mento de  uma  nova  sociedade  religiosa,  em  que 
a  confraternidade  gauleza  se  tornaria  em  breve  o 
foco  do  Christianismo.  São  das  Gallias  os  gran- 
des Padres  da  Egreja,  como :  Santo  Ireneu,  Santo 
Ambrósio,  Santo  Hilário,  San  Martinho,  S.  Pau- 
lino, Sulpicio  Severo,  Santo  Honorato  e  Vicente 
de  Lerins.  Toda  a  sua  grande  cultura  resistiu 
á  depressão  das  invasões  germânicas,  que  foram 
submettidas  pela  propaganda  moral  ao  christia- 
nismo, atacando  pelo  apostolado  religioso  a  Ger- 
mânia. E'  em  volta  de  Carlos  Magno,  que  se 
reúnem  os  claros  espiritos  dedicados  ao  renasci- 
mento litterario,  histórico  e  philosophico,  como 
Alcuino,  Walfried  Strabo,  Raban  Maur,  S.  Pru- 
dencio,  Hincmar,  João  Scot.  A  cultura  grega, 
cujo  centro  fora  Marselha,  e  a  cultura  romana 
mantida  em  Tolosa  e  em  quasi  toda  a  Gallia  me- 
ridional, integradas  pelo  génio  gaulez,  além  das 
condições  mesologicas,  deram  á  França  (já  incor- 
porado o  elemento  bárbaro)  a  missão  civilisadora 
hegemónica  sobre  todos  os  povos  da  Edade  média. 
Pela  região  da  Aquitania,  propagava-se  á  Itália 
e  á  Hespanlia  a  poesia  trabadoresca  da  Provença 
que  encontrava  as  mesmas  tradições  pre-celticas  e 
os  "mesmos  estimulos  de  contacto  com  os  Árabes. 
Pela  fusão  com  o  elemento  franko,  tinha  a  Fran- 


122  HISTORIA    DA    LITTERATUHA    PORTUGUEZA 

ça  as  condições  para  influir  directamente  sobre  as 
raças  germânicas  da  Inglaterra  pelos  Normandos, 
e  da  Allemanha  pela  communicação  das  Canções 
lyricas,  da  propagação  das  suas  Universidades,  dos 
seus  dogmas  theologicos  e  doutrinas  politicas. 

Como  a  nacionalidade  franceza  foi  a  primeira 
que  se  formou,  assim  mais  cedo  se  creou  a  sua 
Litteratura,  vindo  a  ser  imitada  por  todos  os  ou- 
tros povos  da  Europa.  Dizia  Martin  de  Carrale, 
em  1275,  justificando-se  de  escrever  a  historia  de 
Veneza  em  francez:  aParce  que  Ia  langue  fran- 
çaise  cort  parmi  Ic  monde,  et  est  la  plus  delitahlc 
à  lire  et  à  oir  qu'e  nulle  autre.y)  Desde  a  Edade 
média  até  ao  nosso  século,  a  hegemonia  da  França 
foi  reconhecida  pelos  mais  elevados  espi ritos,  como 
Dante  e  Brunetto  Latini  e  Aldobrandini  de  Sena. 
Observa  Charriere;  «formada  dos  restos  das  na- 
cionalidades feudaes  a  França  chegou  a  esta  ho- 
mogeneidade perfeita  que  faz  viver  um  povo 
como  um  só  homem.  Que  seria  ella  hoje  se  as 
nacionalidades  das  suas  provincias  se  tivessem  des- 
envolvido fora  do  centro  commum  com  as  mil  bar- 
reiras levantadas  i)elos  interesses  de  cada  locali- 
dade, em  logar  do  solido  feixe  que  reuniu  em  uma 
mesma  acção  todas  as  variedades  da  sua  natu- 
reza? Foi  a  ella  cjue  a  França  deveu  esta  socia- 
bilidade tão  fácil,  que  faz  delia  em  todos  os  tem- 
pos a  nação  civilisadora  por  excellencia,  e  que 
lhe  revela  por  tcxla  a  parte,  mesmo  para  os  orga- 
nismos mais  rebeldes  e  antipathicos  um  lado  in- 
telligivel  e  apreciável,  e  que  reproduziu  na  sua 
litteratura  as  feições  especiaes  de  cada  provincia 
sob  uma  physionomia  geral :  em  Cornei  lie,  a  ener- 


FACTORES     DYNAMICOS  123 

gia  rude  e  ousada  da  raça  normanda,  em  Mon- 
taigne e  Montesquieu  a  vivacidade  do  espirito  ^a^- 
cão,  em  Voltaire  o  atticismo  do  espirito  parisien- 
se, etc. ;  concerto  de  intelligencias  semelhante  á 
harmonia  das  cores  que  as  facetas  do  prisma  se- 
param, e  que  condensadas  em  um  raio  único  for- 
mam a  luz  que  allumia  o  mundo.»  (Politique  de 
l'Hisf.,  II,  408.) 

Esta  fusão  de  raças  reproduz  os  seus  caracte- 
res nas  creações  do  espirito:  o  elemento  Gallo- 
roínano  da  França  meridional,  depois  da  primeira 
cruzada  desenvolve  os  germens  tradicionaes  do 
seu  Lyrismo,  das  alvoradas,  das  serenadas,  das 
tenções,  dos  Puy  ou  ajuntamentos  poéticos,  nas 
Canções  escriptas  dos  Trovadores  occitanicos,  que 
se  propagam  e  são  imitadas  no  norte  da  França, 
na  Itália,  Portugal  e  Hespanha,  na  Allemanha, 
onde  apparécem  os  Minncsingers  reproduzindo 
todos  os  artifícios  da  Gaya  S ciência.  O  elemento 
Gallo-Franko  que  apoiou  a  unificação  nacional  da 
França,  desde  Carlos  Magno  até  Joanna  d'Arc, 
idealisou  o  grande  typo  imperial  nas  Epopêas  ou 
Gestas  carlingias  e  na  lucta  dos  grandes  vassallos 
feudaes  contra  a  unificação  monarchica.  E'  ex- 
traordinária e  verdadeiramente  assombrosa  a  dif- 
fusão  d'esta  ef florescência  épica:  na  Allemanha, 
do  século  XII  é  traduzida  a  gesta  de  Roland/ q 
reelaborada  no  principio  do  século  xiii  por  Stri- 
ker;  Aliscans  é  imitado  por  Wolfram  d'Eschen- 
bach  com  o  titulo  de  VVilhelalm.  Na  Neerlandia 
são  conhecidas  as  gestas  de  Roncesvaux,  Gtiite- 
chin,  Floovant,  Ogier,  Renand,  Aiol,  e  os  Lorrains. 
Na   Scandinavia,   a  compilação  do  Karlamagna- 


124  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 

Saga,  abrange  o  Coiironcment  de  Charles,  Doon 
de  la  Roche,  Ogier,  Aspremont,  Otinel,  Ron- 
cesvaux,  Moniage  Guillaumc.  Na  Inglaterra  são 
conhecidos  Fier  abras,  (Sir  Ferumbras),  O  finei. 
Na  Itália,  como  escreve  Léon  Gauthier :  aRoland, 
Ogier  e  Renaud  acham  uma  segunda  pátria.  —  Na 
região  lombarda,  veneziana  é  que  esta  feliz  po- 
pularidade teve  começo,  e  jograes  francezes  ahi 
])rimeiro  os  cantaram.»  Nos  Reali  di  Francia,  de 
Andrea  da  Barberini,  se  condensaram  Fioravante, 
Beuves  de  Hanstonne,  Bnfances  de  Charlemagne 
e  de  Roland.  Sobre  este  cyclo  gallo-franco  tra- 
balharam dando-lhe  forma  artistica  Pulei,  Boiar- 
do  e  Ariosto,  fazendo  a  transição  para  a  epopêa 
histórica.  Na  Hespanha  foi  conhecida  a  Gesta  dé 
Gerars  de  Viane  (única  de  que  ficou  manuscripto), 
Fierabras,  Historia  de  Carlos  Magno  ,c  de  tos 
Pares  de  Francia;  em  Portugal  conheceu-se  a 
gesta  de  Roland,  os  Doze  Pares  e  a  gesta  de  Jeaii 
de  Lanson,  e  muitos  dos  themas  carlingios  en- 
traram na  elaboração  dos  romances  populares.  O 
elemento  Gallo-bretão  propaga  os  poemas  de  amor 
e  de  aventuras^  da  Tavola  Redonda,  do  Santo 
Graal,  de  Tristão  e  Yseult,  de  Flores  e  Branca- 
flor,  de  Percival,  de  Lanceio t  do  Lago,  de  Mer- 
lin,  sympathicos  a  todos  os  povos  do  norte  a  sul 
e  até  ao  Oriente,  confundindo-se  com  o  espirito 
messiânico  da  Cavalleria  celeste,  e  sustentando-se 
no  gosto  através  da  Renascença  nas  Novellas  de 
Cavalleria  escriptas  na  prosa  das  Chronicas  na- 
cionaes.  O  elemento  latino  e  ecclesiastico,  presta 
á  litteratura  franceza  as  interessantes  Lendas  agio- 
logicas.  os  poemas  de  Troie  la  granf,  de  Alexan- 


FACTORES    DYNAMICOS  125 


dre:  as  Canções  latinas  dos  escholares  e  goliardos, 
os  Fabliaux  e  as  Novellas  desenvoltas,  as  Soties  e 
Farças,  em  que  se  elabora  o  theatro  moderno.  A 
cultura  clássica  é  recebida  em  Paris  e  Tolosa,  para 
onde  convergem  os  principaes  espiritos,  como 
Dante,  Brunetto  Latini,  Boccacio,  Petrarcha,  n'es- 
sas  Universidades  mães  onde  os  alumnos  se  agru- 
pam por  nações. 

Sem  conhecer  estes  aspectos  fundamentaes  da 
Litteratura  franceza  não  poderão  ser  bem  apre- 
ciadas as  Litteraturas  românicas  em  quanto  ao 
desdobramento  similar  das  suas  origens.  Póde-se 
dizer  que  até  ao  fim  do  século  xv  a  Litteratura 
franceza  na  evolução  orgânica  dos  seus  elementos 
tradicionaes  nas  formas  lyrica,  épica  e  dramá- 
tica, exerceu  uma  incomparável  acção  hegemó- 
nica. 

b)  Hegemonia  da  Itália.  —  A  Renascença  da 
Antiguidade  clássica  iniciada  pela  Itália  veiu  im- 
primir uma  direcção  uniforme  ás  Litteraturas  ro- 
mânicas, desviando-as  do  elemento  orgânico  e  fe- 
cundo das  suas  tradições ;  renegando  a  Edade 
média  pela  rudeza  dos  seus  esboços  litterarios,  in- 
cutiu o  esmero  das  formas  pela  imitação  dos  mo- 
delos greco-romanos.  E  esse  culto  exaltado  dos 
poetas  e  humanistas  chegou  por  vezes  a  fazer  o 
syncretismo  do  symbolismo  polytheico  com  os 
dogmas  e  representações  catholicas.  A  Itália 
achou-se  em  condições  especiaes  para  a  obra  da 
Renascença:  nunca  o  conhecimento  da  anti- 
guidade se  perdeu  alli  completamente.  As  suas 
escholas  de  jurisprudência  eram  tão  reputa- 
das  como   as   antigas   de   Labeão   e   Capitão;   os 


120  HISTORIA    DA    LITTERATURA    FORTUGUEZA 


seus  monumentos  e  ruinas  foram  educando  os  no- 
vos génios,  para  os  quaes  quando  a  Itália  se  viu 
occupada  pela  Allemanha,  invadida  pela  França, 
conquistada  pela  Hespanha,  atraiçoada  pelo  Pa- 
pado, desgostados  da  vida  publica  e  sem  esperança 
no  futuro  da  sua  pátria,  esse  mundo  sereno  do 
passado  e  da  arte  foi  um  refugio,  consolando-se 
na  reproducção  d 'esse  antigo  ideal  que  tanto  os 
alentava  no  meio  das  catastrophes.  Emquanto  os 
exércitos  francezes  talavam  o  solo  italiano,  os  sá- 
bios discutiam  o  platonismo,  e  os  pintores  e  poe- 
tas, como  outr'ora  Archimedes,  não  sentiam  o  es- 
trépito das  armas  invasoras.  Os  que  conquista- 
vam a  Itália,  admiravam  a  sua  cultura  intelle- 
ctual,  e  a  Itália  exercia  o  seu  prestigio  sobre  o 
vencedor,  tal  como  a  Grécia  subjugada  pelos  ro- 
manos, e  mesmo  Roma  subsistindo  apoz  a  sua 
rui  na  pelo  império  das  Leis.  A  actividade  espe- 
culativa era  o  que  restava  a  essas  altas  individua- 
lidades nascidas  em  um  paiz  sem  liberdade.  Por 
esta  actividade  que  se  exerceu  no  Humanismo, 
estudando  e  publicando  os  monumentos  litterarios 
scientificos  e  philosophicos  da  Grécia  e  de  Roma, 
a  Itália  estava  destinada,  além  dos  seus  antece- 
dentes históricos,  a  ser  o  centro  dos  estudos  das 
lettras  humanas  na  Renascença  do  século  xvi,  in- 
fluindo directamente  na  França  sob  Carlos  vi  e 
Francisco  i,  na  Inglaterra  desde  Chaucer  a  Sha- 
kespeare, em  Hespanha  pelos  lyricos  da  Eschola 
poética  sevilhana,  e  em  Portugal  desde  D.  João  1 1 
até  á  suprema  belleza  do  lyrismo  de  Camões. 
Assim  as  Litteraturas  românicas  foram-se  reci- 
procamente influenciando,  unificando-se  pela  sua 


FACTORES     DYNAMICOS  127 


intima  embora  mal  conhecida  solidariedade.  O 
que  era  o  lyrismo  italiano,  o  dolce  stil  níiovo,  na 
sua  belleza  de  forma  e  profundidade  philoso- 
phica?  O  aperfeiçoamento  definitivo  das  Can- 
ções imperfeitas  dos  Trovadores,  a  que  desde 
Dante  a  Petrarcha,  o  génio  italiano  deu  a  expres- 
são amorosa  com  o  relevo  das  especulações  das 
escholas  neo-platonicas  renovadas  na  Itália.  A 
Epopêa  era  o  esboço  das  Gestas  medievaes  apri- 
morado pela  forma  pura  virgiliana,  deixando  á 
livre  phantasia  a  creação  das  situações  românti- 
cas ligadas  para  produzirem  a  emoção  de  agra- 
dáveis surprezas.  Pelo  estudo  da  Litteratura 
grega  do  periodo  alexandrino,  que  servira  de 
modelo  á  Litteratura  latina,  pôde  a  Itália  appre- 
sentar  á  elaboração  esthetica  a  Epopêa  histórica, 
e  a  Tragedia  philosophica,  sobre  que  foram  mol- 
dadas as  obras  primas  da  arte  moderna.  Os  the- 
mas  novellescos  dos  Fabliaux  perderam  a  forma 
metrificada,  e  foram  redigidos  em  prosa,  em  Con- 
tos, em  que  se  descreviam  as  situações  da  vida 
burgueza,  se  desenhavam  os  tyix>s  e  caracteres,  e 
as  peripécias  imprevistas,  d'onde  provém  por 
ampliação  a  nova  forma  das  litteraturas  ^ —  o  Ro- 
mance. Sobretudo  em  um  povo  em  que  a  vida 
civil  era  sustentada  por  uma  forte  organisação  e 
independência  municipalista,  era  natural  o  desen- 
volvimento da  forma  da  Novella,  creada  por 
Franco  Saccheti,  Fiorentino,  Boccacio;  e  em  que 
a  forma  épica  das  Gestas  carlingias  era  antipa- 
thica  parodiando  grotescamente  esses  quadros  da 
sociedade  feudal,  e  chamando  com  desdém  Ciar- 
latini  aos  cantores  das  praças,  os  jograes  que  re- 


128  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUEZA 

citavam  as  Gestas  de  Carlos  Magno.  O  prestigio 
da  Itália  litteraria  e  artistica  era  absoluto;  em 
França  vimos  Carlos  v  1 1 1  chamar  para  a  sua 
corte  os  sábios  italianos;  Luiz  xii^enriquece  com 
as  bibliothecas  da  Itália  as  livrarias  francezas; 
Francisco  i  é  educado  por  um  pedagogo  italiano, 
e  inscreve-se  como  cidadão  no  Livro  de  Ouro  de 
Veneza.  Na  Inglaterra,  sob  Henrique  viu,  o  es- 
pirito da  Renascença  é-lhe  communicado  pela 
Itália,  inspirando  os  lyricos  Wyat  e  Surrey.  Es- 
crevia em  1592  o  critico  de  Puttenham,  refe- 
rindo-se  a  estes  reformadores ;  «Tendo  viajado 
na  Itália,  iniciaram-se  no  metro  harmonioso  e 
no  estylo  magestoso  da  poesia  italiana.»  O  pru- 
rido latinista  que  dominou  em  Inglaterra  na  es- 
chola  dos  BnpJiuisfas  era  semelhante  ao  da  Plêia- 
de franceza.  Uma  grande  parte  dos  themas  his- 
tóricos das  tragedias  de  Shakespeare  é  tirado  dos 
Varões  ilhistrcs  de  Plutarcho  e  dos  Novellistas 
italianos  como  Boccacio,  Geraldo  Cynthio,  Luigi 
da  Porto,  Belleforest,  e  Bandello. 

Em  Hespanha  a  influencia  da  Itália  data  do 
principio  do  século  xv,  quando  Miccr  Francisco 
Imperial  tornou  conhecidas  as  poesias  de  Dante. 
O  Cancioneiro  de  Stuniga  a  cada  pagina  revela 
que  foi  escripto  por  poetas  que  estiveram  na  con- 
quista de  Nápoles.  Essa  hegemonia  litteraria  im- 
põe-se  no  primeiro  quartel  do  século  xvi  quando 
em  T524  Andrea  Navagero  foi  enviado  como 
embaixador  de  Veneza  a  Carlos  v.  Durante  seis 
mezes  que  esteve  em  Granada,  encontrou-se  Na- 
vagero com  Boscan,  e  nas  suas  largas  conversas 
sobre  litteratura  trouxe  á  observação  do  poeta  os 


FACTORES    DYNAMICOS  I29 

caracteres  particulares  do  metro  endecasyllabo 
italiano  pedindo  que  o  experimentasse  na  metrifi- 
cação castelhana.  Boscan,  satisfeito  com  o  êxito 
da  tentativa,  continuou  a  exercitar-se,  mas  teria 
desfallecido  na  sua  empreza  sob  os  rudes  ataques 
dos  apaixonados  dos  metros  de  redondilha,  se 
Garcilasso,  já  então  conhecido  como  um  eminente 
lyrico,  o  não  viesse  fortalecer  com  a  sua  franca 
adhesão.  A  questão  do  emprego  do  verso  ende- 
casyllabo foi  o  facto  contra  o  qual  se  feriram 
aceradas  pugnas  embaraçando  a  introducçao  do 
gosto  italiano.  Accusavam  o  endecasyllabo  de 
não  ser  nacional,  equiparando-o  ao  verso  alcaico; 
mas  era  um  verso  usado  pelos  trovadores  e  por- 
tanto românico.  Também  depois  de  terem  sido 
frequentadas  as  escholas  de  Itália,  na  primeira 
Renascença,  no  fim  do  século  xv  a  aristocracia 
portugueza  seguiu  o  caminho  da  Itália  «a  fim 
de  se  lhe  formarem  os  costumes,  serem  instrui- 
dos  nas  boas  lettras  e  aprenderem  todas  as  artes 
liberaes,))  como  se  lê  em  uma  carta  do  humanista 
Angelo  Policiano  a  D.  João  ii.  A  Renascença 
italiana,  com  os  seus  aspectos  artistico  e  philolo- 
gico  propagou-se  a  Portugal  influindo  na  grande 
época  dos  Quinhentistas.  Deu-se  aqui  como  na 
Hespanha,  o  conflicto  entre  a  tradição  medieval  e 
a  auctoridade  clássica  ou  italiana.  Sá  de  Miranda 
teve  essa  gloriosa  iniciativa,  dando-se  em  Camões 
a  admirável  conciliação  dos  dois  espiritos,  fe- 
chando a  edade  de  ouro  da  Litteratura  portu- 
gueza. Sá  de  Miranda  conheceu  a  relação  evoluti- 
\a  dos  esboços  provençaes  com  as  formas  defini- 
tivas e  bellas  do  petrarchismo ;  era  um  oonisciTente 
9 


130  lilSToKI  \    l>\    IJTTERATUILV    PORTUGUEZA 


renovador.  Camões  excedeu  os  modelos  italianos, 
dando  á  expressão  das  emoções  pessoaes  o  relevo 
philosophico  d'esse  idealismo  platónico  que  dera 
o  máximo  fulgor  ao  génio  artistico  da  Toscana. 
A  influencia  italiana  exerceu-se  também  na  Ar- 
chitectura  e  na  Pintura,  mas  sem  apagar  a  fei- 
ção nacional  (|ue  prevalece  no  estylo  manuelino,  e 
na  eschola  de  (iram   \  asco. 

c)  Hespanlia  c  Portugal.  —  As  duas  raças 
])eninsulares,  ibcrica  e  hisifaua,  somaticamente  dif- 
fercnciadas  nos  seus  i_\|)os.  eram,  pelas  tendenciais 
sociológicas,  ainda  mais  divorciadas:  o  ibero  uni- 
fica\'a  em  si  todos  os  povos  adventícios,  alar- 
gando o  sen  i)o(ler,  e  con  formando-se  com  a  uni- 
dade politica  fosse  ella  imposta  pelos  conquista- 
dores romanos,  germânicos  e  árabes,  ou  pela  au- 
ctoridade  religiosa  da  intolerância  catholica  em 
uma  quasi  theocracia ;  o  luso,  sempre  apoiado  nas 
suas  liberdades  locaes,  nas  garantias  municipalis- 
tas, embora  se  enfraquecesse  pelo  isolamento,  ti- 
rava da  pureza  da  sua  raça  a  resistência,  com 
cjue  persistiu  através  de  todas  as  invasões,  que 
soffreu  a  Hespanha,  conservando  todos  os  seus 
caracteres  ethnicos. 

Esse  fundo  ibérico,  persistente  nas  populações 
bispanicas  e  verificável  nos  costumes,  nas  tradi- 
ções e  superstições  do  vulgo,  acbou-se  syncreti- 
sado  com  as  invasões  dos  Celtas,  formando  o 
typo  mixto  ou  Celtiberico:  tornando-se  adaptável  á 
cobabitação  das  colónias  jónicas  e  da  occupação 
romana :  desnaturando-se  com  os  abundantes  ac- 
crescimentos  semitas  de  pbenicios.  carthaginezes 
e  árabes ;  com  regressões  ao  typo  africano  branco 


ÍACTORKS     DYNAMICOS  I3I 

de  berberes  e  mouros.  Toda  esta  mistura  de  san- 
gues deu  ao  ibero  vários  typos  somáticos,  mas 
ainda  mais  essas  contradições  profundas  de  cara- 
cter, que  confunde  o  heroe  com  o  salteador, 
n'essa  antithese  assombrosa  de  D.  Quixote  e 
Sanclio  Pansa.  Essa  tendência  para  o  imperia- 
lismo ou  unidade  ibérica,  foi-lhe  suscitada  pela 
unidade  catholica  no  fim  da  lucta  contra  o  im- 
]>erio  mussulmano;  tal  é  o  Caskúhanismo,  absor- 
vendo em  si  todos  os  estados  livres  e  nacionali- 
dades da  Hespanlia,  com  a  extincção  das  suas 
esplendidas  energias  creadoras.  A  unificação  na- 
cional da  Hespanha,  realisada  somente  no  fim 
do  século  XV,  foi  um  phenomeno  laborioso,  vio- 
lento e  deprimente,  oi^erado  por  interesses  egoistas 
de  familias  dynasticas,  fundindo-se  Aragão  com 
Castella  sob  Fernando  e  Isabel,  até  Philippe  ii, 
que  servindo-se  da  intolerância  da  Inquisição,  e 
presidindo  á  Liga  Catholica,  consegue  incorporar 
no  Castelhanismo  Portugal.  Durou  pouco  mais 
de  meio  século  (1580  a  1640)  essa  ambicionada 
unidade  ibérica,  regressando  as  duas  raças  ao  seu 
eterno  divorcio. 

As  duas  Litteraturas,  hespanhola  e  portugue- 
za,  encerram  revelações  extraordinárias  do  ethos 
d'estes  dois  povos.  Sob  o  nome  de  Hespanha  en- 
tende-se  desde  o  fim  do  século  xv  a  unidade  po- 
litica e  linguistica  castelhana,  tendo  absorvido  em 
si  a  Coroa  de  Aragão  (com  o  Principado  da 
Catalunha  e  reinos  de  Valência  e  Aragão),  Leão, 
com  as  Astúrias,  Galliza,  reino  de  Navarra  e  pro- 

Ivincias  Vascongadas;  o  reino  de  Murcia,  a  Ex- 
trçmadura  com  os  quatro  reinos  Árabes  da  An- 


132  HISTORIA    DA    LITTÉRATURA    PORTUGUEZA 

clalusia  (Granada,  Jaen,  Córdova  e  Sevilha).  To- 
das estas  nacionalidades  peninsulares  estavam  cas- 
telhanisadas  em  1482;  somente  ao  fim  de  um  sé- 
culo é  que  pela  rede  dos  casamentos  da  Casa  de 
Áustria  hespanhola,  Philippe  11  se  apoderou  de 
Portugal,  castelhanisado  na  sua  aristocracia  fana- 
tisada,  como  herdeiro  dynastico.  Sob  o  nome 
de  Portugal  entende-se  esse  fragmento  da  ver- 
tente Occidental  dos  Pyrenneos,  cujo  território 
era  occupado  pela  grande  raça  lusonia,  chamada 
a  Lusitânia  dos  antigos,  na  phrase  de  Strabão. 

Como  resistiu  Portugal,  a  este  constante  es- 
forço de  absorpção  e  incorporação  castelhana? 
E'  tão  assombrosa  a  formação  da  nacionalidale 
portugueza,  se  fôr  desconhecido  este  problema  da 
raça,  como  é  também  incomprehensivel  a  sua  re- 
sistência contra  o  unitarismo  ibérico  sem  o  apoio 
das  suas  navegações  e  descobrimentos.  A  Litte- 
ratura  portugueza  nasceu  dos  germens  da  tradi- 
ção da  raça  e  do  ideal  da  acção  histórica.  A  com- 
prehensão  sociológica  dos  Descobrimentos  sobre 
a  autonomia  de  Portugal,  é-nos  dada  pelo  phe- 
nomeno  da  perda  da  autonomia  da  Catahuiha 
sob  a  unidade  castelhana.  E'  preciso  relembrar 
como  as  trez  Nacionalidades  de  Castella,  Cata- 
lunlia  e  Portugal  se  definiram  no  esforço  da  re- 
sistência de  séculos  para  a  expulsão  dos  Árabes 
da  Hespanha.  Emquanto  o  elemento  aristocrá- 
tico, fugindo  diante  da  invasão  dos  Árabes,  foi 
crear  no  norte  da  peninsula  esse  centro  de  resis- 
tência dos  Galecio-Asturo-Cantabros,  na  extre- 
midade oriental  dos  Pyreneos  a  republica  da  Ca- 
talunha,   isto   é,    as    5H12LS    cidades    livres    faziam 


N 


FACTORES    DYNAMICOS  133 

sustar  as  incursões  sarracenas.  E  d'essa  época 
de  lucta  incessante  foi  essa  característica  da  Ca- 
talunha formulada  por  Madôz,  que  toda  a  sua 
historia  se  reduz  ás  luctas  para  a  sua  liberdade. 
Na  vertente  do  Oeste,  confessam  os  chronistas 
árabes  que  os  Lusitanos,  eram  os  mais  indomá- 
veis e  sempre  irrequietos,  nao  podendo  estender- 
se  por  causa  d'elles  o  dominio  mussulmano  para  o 
Norte  da  peninsula. 

Quando  esses  refugiados  das  Astúrias  vêm  á 
reconquista  das  cidades  do  sul,  apoderando-se  d'el- 
las  pela  unidade  catholica  a  titulo  de  libertal-as  dos 
infiéis,  visam  logo  a  restaurar  a  unidade  imperial 
neo-gotica,  isto  é  o  absolutismo  da  monarchia 
germânica!  As  quatro  Monarchias  que  se  esta- 
beleceram nos  quatro  planaltos  dos  Pyreneos, 
Leão,  Aragão,  Navarra  e  Castella,  dispendem  as 
suas  energias  nas  luctas  dynasticas  de  unificações 
e  separações,  segundo  esses  estados  eram  con- 
quistados ou  herdados  em  testamentos.  A  esta 
incorporação  castelhana,  veiu  também  a  Catalu- 
nha por  uma  imprevista  fatalidade;  a  sua  auto- 
nomia assentava  sobre  a  sua  actividade  econó- 
mica, exercida  na  navegação  do  Mediterrâneo.  O 
descobrimento  da  America  em  1492,  deslocou 
toda  a  actividade  para  o  oceano  Atlântico.  Sue- 
cedeu-lhe  como  a  Veneza,  na  sua  decadência. 
Esse  facto  do  engrandecimento  de  Castella  pelo 
descobrimento  do  novo  império  colonial,  identi- 
ficou o  sentimento  da  pátria  com  o  imperialismo 
castelhano. 

Portugal  teria  succumbido  á  mesma  fatalida- 
de histórica,  se  depois  da  descoberta  da  America, 


134  HISTORIA    DA    LITT^RATURA    PORTUGUEZA 

não  realisasse  pouco  depois  o  descobrimento  do 
caminho  niaritimo  da  índia  e  do  Brasil.  Hegel, 
na  sua  PhilosopJiia  da  Historia,  explica  a  separa- 
ção da  Hollanda  da  Allemanha  pela  sua  visi- 
nhança  do  mar.  E'  também  a  situação  de  Por- 
tugal :  o  mar  tornou-se  um  campo  de  acção  e 
uma  condição  económica  da  nacionalidade.  No 
seu  livro  De  Ia  Neerlandc,  Alfonso  Esquiros,  fal- 
lando  do  individualismo  nacional  da  Hollanda, 
faz-nos  comprehender  a  independência  de  Portu- 
gal :  ((Os  povos  são  o  que  as  influencias  exte- 
riores os  fazem  ser,  o  que  d'elles  fazem  a  agua, 
o  céo  e  a  terra.  O  valor  d'estas  causas  augmenta 
mais,  quando  a  nação  se  acha  collocada  em  con- 
dições únicas  de  posição,  entre  o  continente  e  o 
mar.  A  geographia  d'este  povo  é  então  o  prefa- 
cio da  sua  historia,  a  origem  dos  seus  costumes, 
das  suas  instituições,  e  do  seu  génio.»  (Op.  cit., 
I,  p.  4.)  Em  um  outro  estudo  ex[)endemos  sobre 
este  cyclo  das  grandes  navegações,  desde  Zarco 
a  Vasco  da  Gama,  que  tornaram  Portugal  o  ini- 
ciador da  Civilisação  moderna :  «A  vida  histórica 
de  Portugal  coincide  com  o  periodo  das  expe- 
(hções  e  (lescol)ertas  maritimas  —  quando  com- 
prehendemos  a  nossa  situação  junto  do  mar,  re- 
agindo assim  contra  a  pressão  do  continente.  Fo- 
mos um  povo  de  mareantes;  o  sentimento  d'esta 
phase  da  vida  nacional,  as  incertezas  da  navega- 
ção, o  acaso  das  descobertas,  a  consciência  da 
nossa  força  e  riqueza,  a  distancia  fazendo  com- 
prehender \)t\a.  saudade  o  ideal  da  pátria,  tudo 
isto  se  reflectiu  na  nossa  pequena  litteratura,  con- 
vergindo para  produzir  uma  obra  única,  em  que 


1'ACTORKS     DYNAMICOS  I35 


mais  accentuadamente  se  determina  este  caracter, 
os  Lusíadas,  que,  apesar  da  sua  origem  individual 
satisfaz  as  exigências  moraes  da  nacionalidade. 
Extingam-se  todos  os  vestigios  da  civili sacão,  to- 
dos os  monumentos,  os  sitios  que  occupamos,  e  o 
espirito  superior  irá  recompor  a  vida  histórica  dos 
portuguezes  pelos  Lusíadas,  como  o  fizeram  já  o 
naturalista  Humboldt,  Schlegel  e  Quinet,  e  com- 
prehenderá  a  sua  alma  aventureira  nas  Relações 
dos  naufrágios,  nos  romances  tradicionaes  e  na 
architectura.»  (Theor.  da  híst.  litt.,  p.  23). 

A  autonomia  das  duas  raças,  ibérica  e  lusa,  ma- 
nifes4ou-se  ainda  mais  nitidamente  n'esta  grande 
crise,  em  que  o  commercio  passou  do  Mediterrâ- 
neo para  os  estados  occidentaes  com  a  navegação 
do  Atlântico.  Da  actividade  dos  hespanhoes  n'este 
periodo  escreve  Heeren,  no  manual  histórico  do 
Systeuia  politico  dos  Estados  da  Europa,  desde  a 
descoberta  das  duas  índias:  «Como  o  novo  mun- 
do não  lhes  appresentou  logo  outros  productos 
de  grande  importância,  o  ouro  e  a  prata,  para 
desgraça  dos  naturaes  dos  territórios,  tornaram- 
se  o  objectivo  único  dos  estabelecimentos  que  em- 
])rehenderam  ahi  fundar.»  Contrapõe-lhes  os  es- 
tabelecimentos coloniaes  dos  Portuguezes:  «A 
maneira  como  foram  feitos  os  descobrimentos  dos 
Portuguezes,  e  a  natureza  das  terras  por  elles  des- 
cobertas, tornaram  os  seus  estabelecimentos  colo- 
niaes essencialuicnte  differentes  dos  dos  hespa- 
nhoes. Como  tinham  chegado  ás  índias  por  uma 
marcha  de  progressos  successivos  e  regulares,  as 
suas  ideias  em  muitos  pontos  tiveram  tempo  de 
se  formarem,  e  a  natureza  do  paiz  não  lhes  dera 


136  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    POFTUGUEZA 


ensejo  para  estabelecer  ahi  colónias  para  explo- 
ração de  minas,  mas  unicamente  feitorias  de 
commercio,  —  não  formaram  grandes  possessões, 
mas  estabeleceram-se  solidamente  sobre  alguns 
pontos  principaes,  próprios  para  as  suas  relações 
mercantis.» 

Essas  riquezas  fabulosas  do  México  e  Peru, 
esses  thezouros  phantasticos  hallucinaram  os  fidal- 
gos, cuja  disciplina  de  guerra  tinha  terminado 
com  a  conquista  de  Granada,  e  o  povo  perdera  a 
noção  da  riqueza  produzida  pelo  trabalho  livre. 
Dá-se  a  flagrante  dissolução  dos  costumes,  e  a 
repressão  religiosa  da  Inquisição  servindo  de  po- 
licia do  estado  germanisado.  Os  grandes  génios 
da  Litteratura  que  dão  todo  o  brilhantismo  á  lín- 
gua castelhana,  pertencem  aos  focos  nacionaes 
apagados,  á  Galliza,  a  Aragão,  á  Andalusia,  dando 
a  illusão  aos  escriptores  reaccionários,  q^ue  esse 
esplendor  foi  devido  ao  influxo  da  Casa  de  Áus- 
tria! Mas  esse  esplendor  em  breve  se  transfor- 
mou em  um  espirito  sarcástico,  de  quem  não  tem 
a  fé  patriótica.  Os  velhos  Romances  tradicionaes, 
a  mais  pura  expressão  do  génio  épico  da  Hes- 
panha,  são  parodiados  nas  Xacaras  ou  narrativas 
dos  crimes  dos  Guapos  e  Temeroncs  nos  feitos 
audaciosos  dos  contrabandistas.  O  romance  no- 
vellesco,  idealisando  a  vida  domestica,  foge  das 
situações  naturaes  para  a  aberração  moral  e  psy- 
chologica,  na  forma  picaresca  da  Lozana  Anda- 
lusa,  de  Gusman  d'Alfarrache,  da  Picara-Jusiina. 
de  Marcos  de  Obregon,  do  Lazarillo.  A  própria 
Novella  de  Cavalleria,  que  tanto  apaixonava  o 
génio  hespanhol,   por  este  intuito  de  parodia  do 


FACTORES    DYNAMICOS  I3; 

espirito  em  revolta,  é  elaborada  por  um  sarcasmo 
sincero,  como  no  Dom  Quixote,  e  na  simulação 
.  de  Lupercio  Argensola  (Avelaneda).  A  falta  de 
liberdade  civil  e  politica,  aggravada  pela  censura 
ecclesiastica  das  obras  escriptas,  foi  compensada 
pela  paixão  do  theatro,  que  não  pôde  ser  elimina- 
do. Escreveu-se  para  a  scena  hespanhola,  para 
servir  esta  avidez  do  vulgo.  Os  tliemas  dos  anti- 
gos Romances  heróicos  foram  passados  da  forma 
narrativa  para  a  acção  dramática,  dando  logar  á 
creação  esthetica  da  Comedia  famosa,  de  capa 
e  espada.  Tornou-se  fácil  essa  transformação,  em 
que  se  mantinha  o  verso  octonario  assonantado 
dos  velhos  romances,  em  três  jornadas  ou  actos, 
com  enredo  duplo,  sendo  um  baseado  no  ponto  de 
honra  e  outro  no  contraste  em  um  typo  popular. 
Da  multiplicidade  dos  themas  dos  Romances  pro- 
veiu  a  infinidade  das  Comedias  famosas  com  que 
a  Litteratura  hespanhola  exerceu  por  sua  vez  a 
hegemonia  nas  litteraturas  franceza,  italiana  e  in- 
gleza.  Basta  notar  como  Corneille  e  Molière  sou- 
beram elevar  a  Comedia  famosa  á  altura  das 
perfeitas  tragedias  e  da  comedia  de  caracter,  to- 
mando esses  typos  hespanhoes  do  Cid  e  de  Don 
Juan.    A  mesma  hegemonia  é  exercida  pela  No- 

tvella  picaresca,  estimulando  o  génio  gaulez  como 
no  Gil  BI  as  de  Santillana,  o  Diabo  Coxo,  o  Bacha- 
rel de  Salamanca.  O  apagamento  do  génio  hes- 
panhol  no  século  xvi  foi  a  consequência  irrefra- 
gavel  do  seu  absorvente  e  material  castelhanismo. 

Portugal.  —  Ao  passo  que  as  outras  litteratu- 
ras liispanicas,  como  a  galleziana,  a  aragonesa,  a 


1^8  HISTORIA    DA    MTTERATURA    PORTUGUEZA 


valenciana  e  catalan  se  extinguiam  com  a  absor- 
pção  das  suas  nacionalidades,  desde  cjue  a  Terra 
Portucalense  se  constituiu  na  Quinta  Monarchia,  o 
seu  individualismo  ethnico  fortaleceu-se  pelo  des- 
envolvimento da  lingua  portugueza  na  creação  de 
uma  bella  Litteratura.  E'  na  raça  lusitana  (Por- 
tugal e  Galliza)  que  se  revela  o  génio  lyrico  tro- 
badoresco,  influindo  nas  outras  cortes  peninsu- 
lares, como  ainda  no  século  xv  o  reconheceu  o 
Marquez  de  Santilhana,  celebrado  poeta  caste- 
lhano. Na  Corte  de  Dom  Diniz,  onde  eram  aco- 
lhidos todos  os  jograes,  segreis  e  trovadores  ara- 
gonezes,  valencianos,  castelhanos  e  gallegos,  a  ly- 
rica  teve  tal  desenvolvimento,  que  n'essa  época 
este  centro  de  cultura  aristocrática  exerceu  uma 
acção  hegemónica  em  todas  as  outras  Cortes  hes- 
panholas  em  que  se  elaboravam  as  novas  littera- 
turas.  Na  evolução  do  gosto  provençalesco,  de- 
pois da  morte  do  rei  D.  Diniz,  prevaleceu  o  gosto 
pelos  Lais  bretãos;  em  Portugal  esses  Lais  nar- 
rativos receberam  a  forma  em  prosa,  ampliada  na 
Novella  do  Amadis  de  Gania,  o  typo  primário  do 
género  da  Novella  de  Cavalleria.  Foi  essa  a  obra 
com  que  o  génio  portuguez,  não  obliterado  sob  a 
crusta  rhetorica  da  amplificação  castelhana,  exer- 
ceu um  influxo  hegemónico  em  todas  as  littera- 
turas  modernas,  que  tanto  a  imitaram  e  desen- 
volveram. No  século  XVI,  quando  a  cultura  ix)r- 
tugueza  se  amoldou  aos  cânones  clássicos  impos- 
tos pelos  eruditos  da  Renascença,  os  Humanistas 
portuguezes  professaram  largamente  nas  Escho- 
las  da  Itália,  e  em  França  os  Gouvêas,  susten- 
tando a   disciplina  pedagógica  em   Paris  e   Bor- 


ÍACTORES     DYNAMICOS  I39 


déos,  foram  os  mestres  de  Montaigne,  de  Rabe- 
lais,  de  Ignacio  de  Loyola,  de  Calvino,  e  tantos 
(Hitros  vultos  do  grandioso  século.  E  no  esforço 
para  crear-se  a  Epopêa  moderna,  digna  de  con- 
trapôr-se  ás  epopêas  homéricas  e  virgiliana,  so- 
mente o  génio  portuguez  soube  descobrir  a  ver- 
dadeira Tradição  épica  occidental  das  rhapsodias 
atlânticas  creando  sobre  o  mais  decisivo  facto  da 
historia  moderna  a  Epopêa  dos  Lusíadas. 

Épocas  históricas  da  Litteratura 
portugueza 

Da  marcha  completa  da  Edade  média  e  das  cri- 
ses sociaes  e  politicas  da  nacionalidade  tiram-se  os 
tópicos  com  que  se  caracterisam  de  um  modo  ni- 
tido  as  modificações  d'esta  litteratura.  Pela  filia- 
ção histórica  reconhece-se  immediatamente  o  que 
a  Litteratura  portugueza  recebeu  das  outras  litte- 
raturas  românicas,  e  por  que  formas  influiu  nas 
mesmas  litteraturas  embora  mais  fecundas,  comple- 
tando assim  o  quadro  da  sua  mutua  solidariedade. 

PRIMEIRA  ÉPOCA:  Edadk  média.— 
Preponderância  dos  elementos  tradicionaes  sob  o 
influxo  dos  esboços  estheticos  franceses;  começo 
da  transição  para  o  estudo  da  Antiguidade  clás- 
sica. 

i.o  Período.  (Século  xii  a  xiv.)  —  Predo- 
mina o  Lyrismo  trobadoresco  em  todas  as  cortes 
europêas,  e  essa  corrente  propaga-se  a  Portugal, 
primeiramente,  acordando  os  latentes  germens  po- 


140  HISTORIA    DA    LITTIÍRATURA    PORTUGUEZA 


pulares,  depois  pelas  relações  da  corte  portugueza 
com  a  de  Leão,  á  qual  convergiam  os  trovadores 
italianos,  como  Sordello  e  Bonifácio  Calvo,  refe- 
ridos e  imitados  nos  nossos  Cancioneiros;  e  por 
fim,  pela  emigração  de  alguns  fidalgos  portugue- 
zes,  que  acompanharam  D.  Affonso  iii,  quando 
Conde  de  Bolonha,  durante  a  sua  permanência  na 
corte  de  S.  Luiz,  que  era  então  o  meio  activo  da 
imitação  da  poesia  provençalesca  modificada  pelo 
norte  da  França. 

Uma  phase  nova  de  desenvolvimento  lyrico 
começa  com  o  rei  D.  Diniz,  que  imita  directa- 
mente a  poética  provençal,  elaborando  ao  mesmo 
tempo  as  formas  tradicionaes  populares  dos  Can- 
tares de  amigo,  das  Serranas  e  Dizeres  gallezia- 
nos.  Por  ultimo,  a  poesia  provençalesca  decae 
do  gosto  da  corte,  sendo  preferidos  os  Lais  bre- 
tãos,  que  pelo  seu  desenvolvimento  narrativo  le- 
varam á  creação  da  Novella  em  prosa  do  Amadis 
de  Gaida.  Os  Lais  narrativos  tinham  dado  the- 
ma  aos  poemas  gallo-bretãos  de  Tristão  e  de  Flo- 
res e  Brancaflor,  muito  lidos  na  corte  portugueza, 
(|ue  também  infiuia  na  corte  castelhana  de  Affon- 
so XI,  depois  da  batalha  do  Salado. 

Na  grande  época  da  primeira  Renascença,  re- 
liectiu-se  em  Portugal  a  cultura  das  Escholas  de 
Paris,  onde  iam  estudar  os  cónegos  de  Santa 
Cruz  de  Coimbra.  Figuram  n'essa  ép)oca  os  gran- 
des luminares  Pedro  Hispano,  cujas  Siunmulas 
lógicas  dominaram  até  ao  século  xvi  em  todas  as 
escholas  da  Europa ;  o  mystico  S.  António  de  Pá- 
dua, e  Frei  Gil  de  Santarém,  que  antes  de  entrar 
na   ordem   dominicana   se   entregou   aos   estudos 


FACTORES     DYNAMICOS  I4I 

médicos.  A  cultura  latina  coadjuva  o  desenvol- 
vimento da  independência  do  Poder  real;  cria-se 
a  Universidade  de  Lisboa-Coimbra,  e  a  lingua 
portugueza,  que  se  mostra  na  sua  belleza  nas  nar- 
rativas episódicas  dos  Nobiliários,  enriquece-se 
por  um  grande  numero  de  traducções  do  latim 
da  Biblia,  dos  Santos  Padres  e  tratados  dos  Mo- 
ralistas. 

2.0  Periodo.  (Século  xv.)  —  Não  se  continua 
o  desenvolvimento  da  Poesia  provençal,  como  suc- 
cedeu  na  Itália,  com  Petrarcha,  e  na  Hespanha  já 
secundariamente  por  Micer  Imperial.  Quando  sob 
a  Regência  do  Infante  D.  Pedro  se  reconciliam 
as  Cortes  de  Portugal  e  Castella,  o  lyrismo  cas- 
telhano da  eschola  de  Juan  de  Mena  é  imitado 
l)elo  proí)rio  Infante  D.  Pedro,  por  seu  filho  o 
Condestavel  de  Portugal,  e  em  Portugal  são  imi- 
tadas e  |X)r  vezes  traduzidas  as  poesias  do  Arci- 
preste de  Hita,  do  Marquez  de  Santilhana,  de 
Jorge  Manrique  e  de  Hernan  Perez  de  Gusman, 
predominando  essa  fascinação  do  castelhanismo 
no  Cancioneiro  geral  de  Garcia  de  Resende.  Ain- 
da a  influencia  gallo-bretã  se  manifesta  na  pre- 
dilecção das  Novellas  da  Tavola- Redonda,  na  De- 
manda do  Santo  Graal,  no  Joseph  ah  Arimathêa, 
e  em  outras  que  o  rei  D.  Duarte  colligira  na  sua 
magnifica  bibliotheca.  A  predilecção  pelas  obras  da 
antiguidade  clássica,  já  se  revela  em  obras  com- 
l^iladas  ou  traduzidas  de  livros  latinos,  como  Sé- 
neca, Tito-Livio,  também  colligidas  na  biblio- 
theca do  rei  D.  Duarte.  A  Historia  recebe  a  sua 
forma  litteraria  sob  o  influxo  do  poder  real,  nos 


142  HISTORIA    i)A    1.1TTEKATUÍL\    PORTUGUKZA 

chronistas  Fernão  Lopes,  Gomes  Eannes  de  Azu- 
rara e  Ruy  de  Pina,  através  das  tentativas  da 
redacção  latina  definitiva  da  historia  nacional.  In- 
troduz-se  a  Imprensa ;  a  mocidade  portugueza  vae 
a  Itália  frequentar  as  escholas  dos  humanistas  da 
Renascença.  Começa  a  Era  dos  grandes  Desco- 
brimentos. 

SEGUNDA  ÉPOCA:  Renascença. —Prí*- 

domína  a  iniitaçCw  da  Antiguidade  clássica;  c  re- 
negada a  Bdadc  média,  chegando-se  ao  esqueci- 
mento das  Tradições  nacionacs. 

i.o  Período:  Os  Quinhentistas  (Século  xvi.) 
—  Corresponde  ao  periodo  de  maior  actividade 
da  nação  portugueza ;  a  elaboração  litteraria  dos 
Quinhentistas  é  simultânea  com  as  grandes  nave- 
gações e  descobrimentos  da  índia  e  Brasil.  Cons- 
titue-se  a  Grammatica  da  Lingua  portugueza  por 
Fernão  de  Oliveira  e  João  de  Barros:  funda-se  (^ 
theatro  nacional,  por  Gil  Vicente,  sobre  as  for- 
mas hieráticas  populares;  a  poesia  lyrica  mantém 
a  forma  medieval  a  par  do  Dolce  stil  nuovo  da 
Itália,  propagado  por  Sá  de  Miranda,  n'esse  con- 
lUcto  dos  Poetas  da  medida  velha  com  os  Petrar- 
chistas.  A  poesia  épica,  esboçada  na  outava  cas- 
telhana em  endechas,  recebe  a  forma  italiana  da 
ottava  rima  de  Ariosto  moldada  sobre  o  poema 
virgiliano  por  Camões.  A  litteratura  portugueza 
do  século  XVI  deriva  d'estes  três  poetas  por  uma 
relação  muito  clara.  Gil  Vicente  é  o  que  repre- 
senta de  um  modo  completo  e  exclusivo  as  formas 
da   litteratura  medieval :  é  imitado  por   António 


FACTORKS     DYNAMICOS  I43 

Prestes,  por  António  Ribeiro  Chiado  e  até  por 
Camões  e  outros  na  fornia  do  AíUo.  Sá  de  Mi- 
randa oppÕe  ás  suas  primeiras  composições  em 
rcdondilhas,  os  novos  cnãccasyllahos,  com  que 
introduz  a  eschola  italiana  em  Portugal,  sendo 
imitado  pelo  Dr.  António  Ferreira,  Pedro  de  An- 
drade Caminha,  Diogo  Bernardes,  D.  Manoel  de 
Portugal,  Falcão  de  Resende,  Francisco  de  Sá  de 
Menezes.  Os  seus  versos  em  rcdondilhas,  é  que 
prevaleceram  na  imitação  do  século  xvii;  verda- 
deiramente a  medida  velha  tinha  a  sustentar-lhe 
o  infiuxo  as  Éclogas  apaixonadas  de  Bernardim 
Ribeiro  e  de  Christovam  Falcão,  e  a  predilecção 
da  corte  de  Dom  João  iii,  no  gosto  feminino. 
Camões,  pela  superioridade  do  seu  génio,  funde, 
estes  dois  elementos  medieval  e  clássico  nos  Lu- 
síadas, da  mesma  forma  que  Shakespeare  em  In- 
glaterra; os  seus  versos  lyricos  foram  largamente 
plagiados,  nascendo  também  depois  do  seu  im- 
pulso todas  as  Epopêas  históricas.  A  justa  rela- 
ção entre  os  elementos  medievaes  e  clássicos  foi 
quebrada  pelo  predominio  dos  Jesuitas  no  ensino 
publico,  em  Coimbra,  em  que  a  Universidade  fica 
dependente  do  Collegio  das  Artes,  e  pela  censura 
dos  livros  estabelecidos  pela  execrando  cardeal 
D.  Henrique. 

O  castclhanismo,  que  tanto  predominou  na 
corte  portugueza,  pelos  casamentos  dos  reis 
D.  Manoel,  D.  João  me  príncipe  D.  João  '(pae 
de  D.  Sebastião)  apparece  escripto  por  todos  os 
poetas  quinhentistas,  que  transigiam  com  a  moda 
palaciana,  mesmo  apesar  do  seu  consciente  nacio- 
nalismo, como  Gil  Vicente  e  Camões.    Mas  ope- 


144  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

rava-se  um  esforço  para  manter  o  uso  da  lingna 
portugueza  na  litteratura,  como  o  proclama  Fer- 
reira na  sua  Carta  iii,  accusando  o  esquecimento 
e  desamor  dos  que  mal  o  exercitavam.  A  bella 
prosa  'portugueza  dá  forma  á  Historia,  cultiva- 
da por  João  de  Barros,  Castanheda,  Damião 
de  Góes  e  Diogo  do  Couto,  uns  perseguidos,  ou- 
tros pobres,  e  todos  elles  sem  a  liberdade  para 
exercerem  a  critica.  Ao  fim  de  trinta  annos  o  en- 
sino jesuitico  exerceu  nas  novas  gerações  uma 
forte  desnacionalisação ,  que  augmentando  o  in- 
fluxo castelhano,  servido  pela  reacção  catholica, 
de  que  era  chefe  Philippe  1 1 ,  levou  ao  espectá- 
culo vergonhoso  de  os  próprios  Governadores  do 
Reino  em  1580  reconhecerem  o  direito  do  De- 
1  nónio  do  Meio  dia  para  incorporar  Portugal  na 
unidade  ibérica.  . 

2.0  Periodo:  Crdteranistas  (Século  xvii.)  — 
Portugal  não  acompanha  o  movimento  scientifico 
(|ue  levou  á  creação  das  Academias  na  Europa. 
Sob  a  forte  compressão  catholica,  estas  corpora- 
ções foram  exclusivamente  rhetoricas,  á  maneira 
(las  Tertúlias  hespanholas.  Toda  a  actividade  dos 
])oetas  dispende-se  em  engrandecer  o  reportório 
castelhano  com  Comedias  famosas  de  capa  e  es- 
pada. No  emtanto  brilham  Francisco  Rodrigues 
Lobo^com  as  suas  Novellas  pastoraes  e  D.  Fran- 
cisco Manoel  de  Mello,  como  ly ricos  continuando 
o  impulso  de  Sá  de  Miranda  e  de  Camões.  A 
Revolução  de  1640  em  que  Portugal  revindica  a 
sua  autonomia,  como  um  movimento  resultante  do 
plano  ;)olitico  para  a  sdsão  da  Casa  de  Áustria  da 


FACTORES    DYNAMICOS  I45 

Hespanha,  não  inspirou  o  sentimento  nacional, 
apesar  das  numerosas  Epopêas  históricas  seis- 
centistas. 

3.0  Período:  Arcadistas.  (Século  xviii.)  — 
O  que  fizeram  os  Jurisconsultos  da  Edade  média 
para  a  emancipação  da  sociedade  civil,  continua- 
ram-no  os  Litteratos,  no  século  excepcional,  pro- 
curando pelas  emoções  artisticas  proclamar  a  li- 
berdade politica.  Em  Portugal  os  escriptores  es- 
tavam totalmente  separados  do  povo,  isto  é,  da 
nação,  confinados  nas  suas  Academias  (Arcádia 
lusitana,  Nova  Arcádia,  Academia  dos  Occultos, 
Academia  de  Humanidades,  etc),  imitando  des- 
enfadadamente  Horácio  e  promovendo  o  gosto  da 
cultura  latina  e  a  auctoridade  dos  modelos  qui- 
nhentistas, contra  qualquer  liberdade  de  elocução 
da  phantasia  culteranista.  N'esta  inconsciência 
da  missão  das  lettras,  acceitavam  o  despotismo 
como  uma  ventura  do  governo  paternal,  e  todas 
as  suas  idealisaçÕes  eram  panegyricos  régios  das 
mais  emphaticas  e  inexpressivas  exagerações. 
Destacam-se  n'estes  numerosos  poetas,  os  quatro 
•  superiores  arcadistas  Garção,  Diniz,  Quita  e  Ma- 
noel de  Figueiredo.  O  génio  lyrico  irrompe  nos 
])oetas  portuguezes  nascidos  no  Brasil ;  e  as  ideias 
revolucionarias  do  século  xviii,  apparecem  nos 
versos  de  José  Anastácio  da  Cunha  e  de  Bocage, 
que  por  isso  se  viram  nas  garras  da  Inquisição. 
O  espirito  scientifico  do  século  entra  em  Portugal, 
pela  inciativa  do  Duque  de  Lafões  e  de  Corrêa 
da  Serra,  fundando  em  1779  a  Academia  das 
Sciencias  de  Lisboa,  chegando-se  ahi  a  lêr  o  Elogio 
10 


146  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


(le  D'Alembert.  Por  essa  obra  se  operou  a  fe- 
cunda tentativa  do  resurgimento  de  Portugal,  re- 
lacionando-se  este  paiz  com  o  movimento  scien- 

tifico  europeu. 

TERCEIRA  ÉPOCA:  Romantismo.  — /^í?- 

-('rcrscciícia  das  Tradições  nacionacs  pela  idealisa- 
çâo  e  rehabilifaçào  da  Bdade  média,  reconhecendo 
a  solidariedade  histórica  da  Antiguidade  clás- 
sica. 

O  contacto  (le  Portugal  com  a  civilisação,  es- 
tabeleceu-se  depois  de  um  terrivel  cerco  da  In- 
tendência geral  da  Policia,  em  181 7,  quando  fu- 
gindo ao  canibalismo  de  Reresford,  se  refugia- 
ram em  França  o  Morgado  de  Matheus,  Masca- 
renhas Neto,  Félix  de  Avellar  Brotero,  Domingos 
António  Sequeira,  Domingos  Bomtempo,  e  ou- 
tros espiritos  cultos  subtrahindo-se  á  perseguição 
contra  os  inculpados  de  jacobinos.  Sob  a  pres- 
são do  governo  militar  de  Beresford  mantido  em 
Portugal  pelo  gabinete  conservador  inglez,  rom- 
peu a  Revolução  de  1820,  em  que  se  manifestou 
a  força  e  a  cultura  da  classe  média.  Todas  as 
energias  da  nação  foram  acordadas,  iniciadas  to- 
das as  reformas  da  sociedade  moderna  nas  suas 
Constituintes;  é  n'esse  movimento,  que  surge  o 
génio  de  Garrett,  cuja  obra  seria  a  própria  nacio- 
nalidade revivescendo.  Pela  reacção  do  absolu- 
tismo apostólico  servido  por  Dom  João  vi,  c  ras- 
gada a  Constituição  de  1822,  e  começa  em  1823 
a  segunda  emigração,  seguindo-se  a  de  1824,  e  a 
de  1828  deix)is  de  abolida  a  Carta  outorgada  de 


FACTORES    DYNAMICOS  I47 


1826,  fugindo  aos  cárceres  e  forcas  miguelinas. 
Assim  se  viu  o  espirito  portuguez  forçado  a  pòr- 
s€  em  contacto  com  os  progressos  intellectuaes  e 
artisticos  da  Europa.  Depois  do  triumpho  da 
causa  liberal  da  transição  ingleza,  o  regresso  dos 
emigrados  fez-se  sentir  na  Litteratura,  iniciando 
as  normas  do  gosto  romântico.  Pela  primeira  vez, 
depois  da  época  dos  Quinhentistas,  a  Litteratura 
se  ligou  á  elaboração  das  lendas  nacionaes  e  nas- 
ceu o  interesse  pela  poesia  das  tradições  popula- 
res. Tal  foi  a  missão  de  Garrett  ensaiando  todas 
as  formas  litterarias,  lyricas,  épicas  e  dramáticas, 
e  realisando  o  mais  bello  estylo  da  prosa  portu- 
gueza;  Herculano,  reconhecendo-se  mais  erudito 
do  que  artista,  n'esta  missão  considerava-se  jun- 
to de  Garrett  como  Thierry  junto  de  Victor  Hugo. 
A  época  constitucional-parlamentar  surgiu  fecun- 
da; as  ambições  politicas  absorveram  todos  os 
talentos,  que  era  preciso  corromper  em  pró  da 
simulação  liberal,  e  a  Litteratura  cahiu  em  uma 
symptomatica  innanidade,  n'essa  estéril  phase  do 
Ultra-Romantismo,  contra  a  qual  reagiu  indisci- 
plinadamente a  chamada  Bschola  de  Coimbra,  i 


I  ^^A  litteratura  portugueza,  no  seu  conjuncto,  tem 
uma  physionomia  á  parte;  posto  que  ella  tenha  por  vezes 
imitado  as  litteraturas  visinhas,  por  seu  turno  em  certas 
épocas  exerceu  certa  influencia  sobre  estas  litteraturas.  D'a- 
hi  a  importância  que  ella  tem  na  historia  geral.  O  caracter 
essencial  da  litteratura  portugueza  original,  é  que  é  lyrica, 
inteiramente  penetrada  de  doçura  elegíaca,  e  de  sentimen- 
talidade enthusiasta.  Em  portuguez  é  que  escreveram  as 
Canções  de  amor  não  só  os  Portuguezes  e  os  Gallegos,  mas 
os  poetas  de  toda  a  Hespanha,  durante  a  primeira  época 
da  Litteratura.    De  Portugal  é  que  proveiu  o  protot3rpo  dos 


148  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


d)  Inglaterra  e  Allenianha.  —  Resta-nos  o 
grupo  das  Litteraturas  do  Norte  nas  suas  rela- 
ções com  as  Litteraturas  meridionaes  ou  româ- 
nicas; sem  o  conhecimento  d'estas  relações  não 
se  avalia  a  acção  reflexa  exercida  pelo  Roman- 
tismo. Ainda  aqui  a  França  exerce  a  sua  acção 
hegemónica;  assim  como  os  dialectos  da  França 
meridional,  do  Languedoc,  da  Provença,  Delphi- 
nado,  Leonez,  Auvergne,  Limousin  e  Gasconha 
pela  latinisação  facilitavam  a  communicação  com 
o  Occidente  europeu,  também  os  dialectos  da 
França  septentrional,  como  o  normando,  o  pi- 
cardo,  o  flamengo  e  o  wallon  tornavam  a  França 
communicavel  a  todos  os  povos  que  fallassem 
qualquer  dialecto  teutonico.  A  primeira  influencia 
da  França  exerceu-se  na  civilisír;ro  da  Inglaterra 
pela  conquista  normanda:  ao  passo  que  Guilher- 
me o  Bastardo  promulgava  as  suas  leis  em  fran- 
cez,  ordenando  que  n'esta  lingua  se  fizessem  as 
rezas  e  os  sermões,  em  França  somente  sob  Fran- 
cisco I  é  que  os  actos  judiciários  deixaram  de 
ser  escriptos  em  latim.  A  lingua  ingleza  consti- 
tuiu-se  sobre  um  "fundo  anglo-saxão  pelo  vocabu- 
lário franko-nomiando,  que  era  a  linguagem  da 
Corte  e  do  governo,  f aliada  durante  três  séculos, 


heroes  dos  romances  de  cavalleria  em  prosa,  o  virtuoso 
Amadis.  Os  primeiros  modelos  do  romance  pastoral,  taes 
como  a  Diana  de  Monte-Mór  são  portuguezes. -- Bastan- 
tes escriptores  portuguezes,  que  se  serviram  da  lingua  de 
Cervantes,  contribuíram  para  enriquecer-se  o  theatro  e  o 
romance  castelhano.* 

D.  Carolina  Michaélis,  La  grande  Bncyclopedie  moder- 
ne,  vb.°  Portugal. 


FACTORE^S    DYNAMICOS  149 

mesmo  depois  dos  reis  de  Inglaterra  terem  per- 
dido a  Normandia.  Os  alumnos  de  Oxford,  ainda 
em  1328  eram  obrigados  a  f aliarem  latim  ou  fran- 
cez.  O  emprego  da  lingua  ingleza  nas  escholas 
(1350)  e  nos  actos  officiaes  (1362)  coadjuvou  a 
independência  da  nação  ingleza  nas  suas  luctas 
contra  a  França.  Na  litteratura  preponderam 
estas  duas  correntes,  a  normanda,  que  representa 
o  elemento  latino  ou  clássico,  e  a  anglo-saxã,  con- 
servadora das  tradições  germânicas  e  medievaes. 
O  vigor  da  nacionalidade  ingleza  affirmava- 
se  no  concurso  de  todas  as  suas  energias  sociaes; 
a  própria  dissidência  religiosa,  sob  Henrique  vi  11 
separando  a  Inglaterra  da  auctor idade  de  Roma, 
não  se  limitou  á  polemica  theologica,  foi  a  con- 
sciência nacional  manifestando  o  seu  individua- 
lismo de  raça ;  por  que  o  Protestantismo  foi  na 
essência  um  abalo  germânico  sob  a  pressão  ro- 
mana. Representante  d'este  momento  histórico, 
Shakespeare-  cria  a  tragedia  moderna,  na  qual 
synthetisa  o  grande  quadro  de  uma  civilisação  que 
decae  em  uma  ruina  inevitável  e  outra  que  surge 
imponente  pelas  suas  energias  sociaes.  As  trage- 
dias idealisando  os  vultos  históricos  de  Roma, 
como  César  e  Coriolano,  e  as  que  vivificam  os  reis 
de  Inglaterra,  encerram  a  lição  profunda  d'este 
impressionante  contraste.  Fora  da  Inglaterra 
Shakespeare,  pelo  seu  extremo  nacionalismo,  não 
podia  ser  comprehendido  senão  em  uma  época  re- 
mota, em  que  o  espirito  universal  soubesse  apre- 
ciar as  suas  revelações  do  drama  subjectivo  dos 
caracteres  e  estados  de  consciência.  Foi  por  isso 
que  a  comprehensão  de  Shakespeare,  a  sua  reha- 


150  HISTORIA    DA    LITTEKATURA    PORTITr.UKZA 


bilitação  estlietica  moderna  definiu  iim  dos  mais 
nitidos  aspectos  do  Romantismo. 

Mas  a  acção  hegemónica  da  Litteratura  in- 
gleza  sobre  as  litteraturas  no  secnlo  xvii  não  foi 
exercida  pela  obra  d'aquelle  génio  incomparável, 
e  incomprehendido;  escriptores  burguezes,  absor- 
vidos nos  conflictos  da  concorrência  social,  in- 
dustriaes  e  magistrados,  fazendo  d 'essas  situações 
vulgares  da  vida  domestica  quadros  emocionantes, 
crearam  a  forma  do  Romance  moderno,  em  que 
a  magestade  da  Epopêa  ou  a  fatalidade  tremenda 
da  Tragedia  antiga  ficam  abaixo  das  collisÕes  so- 
ciaes  e  moraes  em  que  figuram  typos  anonymos, 
até  ao  momento  indi  ff  crentes  para  toda  a  gente. 
Não  eram  eruditos  os  creadores  do  Romance 
moderno :  eram  espiritos  temperados  pela  dura 
realidade  da  vida,  que  a  sabiam  representar  nas 
suas  fatidicas  cruezas :  Daniel  de  Foè,  Fielding, 
Smollett,  Richardson,  Goldsmith,  e  ainda  Swift 
e  Sterne,  criam  maravilhas  em  extraordiná- 
rios Romances  lidos  e  imitados  em  todas  as  litte- 
raturas. O  Rohinson  Crusoc  de  Foè,  é  a  i(hali- 
sação  da  lucta  do  homem  isolado  diante  da  natu- 
reza, cujo  realismo  lhe  foi  suscitado  pelo  caso 
'do  marinheiro  escos^ez  Selkirk;  o  Tom  Joucs  de 
Fielding,  é  o  variadissimo  cjuadro  da  vida  acci- 
dentada  de  um  filho  natural.  N'esses  romances 
de  Smollett,  Rodcnck  Randoii,  Humphry  Clin- 
kcr,  nos  de  Richardson,  como  Panuia,  Clarisse 
Harlow  e  Sir  Charles  Grandisson,  a  minuciosi- 
dade  descriptiva  do  meio  e  das  circumstancias. 
que  deviam  produzir  o  enfado,  chegam  a  repre- 
sentar tão  viva  a  realidade,  que  a  acção  se  torna 


FACTORES    DYNAMICOS  I5I 


de  um  interesse  invencível.  Por  isso  dizia  Di- 
derot,  que  se  estivesse  em  um  cárcere  ou  no  exilio, 
bastavam  trez  livros  para  lhe  occuparem  o  espi- 
rito: Homero,  a  Biblia  e  Clarisse  Harlow.  Goe- 
the, com  o  seu  poder  esthetico,  realisou  no  poema 
Herman  e  Dorothea  esta  transformação  de  uma 
situação  vulgar  da  vida  popular  em  uma  impressio- 
nante Epopêa.  Os  Romances  inglezes  foram  tra- 
duzidos, e  alguns  ainda,  passados  dois  séculos, 
exercem  uma  intensa  fascinação.  Além  da  hege- 
monia da  litteratura '  ingleza,  no  século  xvii,  os 
seus  escriptores  fizeram  valer  a  sua  acção  social, 
ascendendo  á  intervenção  na  vida  publica;  era  um 
esboço  do  poder  espiritual,  que  ainda  não  está 
normalisado.  Pôde  também  considerar-se  como 
expressão  d'esse  influxo  hegemónico,  a  creação 
das  Revistas,  de  que  Daniel  de  Foè  foi  um  dos 
iniciadores.  Pelo  seu  caracter  inteiramente  na- 
cional, a  Litteratura  ingleza  foi  acordar  no  génio 
germânico  o  sentimento  individualista  da  raça,  — 
dando-se  o  assombroso  phenomeno  da  creação  da 
Litteratura  allemã  com  obras  primas  verdadeira- 
mente geniaes,  iniciando  a  época  do  Romantismo. 
Pelo  catholicismo  e  pelas  Universidades,  a 
Allemanha  recebeu  a  cultura  greco-romana,  quan- 
do o  Humanismo  obedecia  ao  movimento  do  Pro- 
testantismo, não  podendo  o  prestigio  da  auctori- 
dade  clássica  abafar  o  individualismo  germânico 
que  se  revelava  no  sentimento  da  nacionalidade. 
A  influencia  do  pseudo-classicismo  francez  sus- 
tentava-se  pelo  prestigio  da.  moda  nas  cortes  abso- 
lutistas :  e  essa  imitação  deu  á  Allemanha  uma 
série   de  escriptores  banaes,   inexpressivos,   como 


152  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Opitz,  Gryphius,  Kley,  Lohenstein,  e  Gottsched. 
Essa  influencia  deletéria  vinha  desde  o  fim  da 
Guerra  dos  Trinta  annos  (1646)  até  aos  .fins  do 
século  XVIII,  quando,  por  occasião  da  Guerra  dos 
Sete  annos,  á  Allemanha,  pela  communicação  com 
a  poesia  ingleza  antiga,  se  lhe  revelou  a  tradição 
germânica  obliterada,  o  elemento  latente  da  vigo- 
rosa Edade  média.  A  comprehensão  d'este  gérmen 
levou  uma  geração  nova  a  dar-lhe  forma  artís- 
tica, como  expressão  do  espirito  nacional.  A  volta 
ao  passado  não  era  um  retrocesso,  mas  uma  orien- 
tação ;  foi  iniciada  essa  nova  corrente  litteraria  por 
Lessing,  Wieland,  Gleim,  Haller,  Mathisson,  Voss 
e  Hoelty;  Goethe  e  Schiller  deram-lhe  o  nome  de 
Romantismo,  abrindo-se  para  a  Allemanha  a  Era 
dos  Génios,  em  que  figuram  Herder,  João  Paulo 
Richter,  Uhland,  os  Schlegel  e  Tieck.  E'  no  pri- 
meiro quartel  do  século  xix,  que  a  Allemanha 
pela  sua  litteratura  exerceu  nas  litteraturas  meri- 
dionaes  a  sua  hegemonia,  pelo  novo  gosto  e  dis- 
ciplina critica  do  Romantismo.  Deram-se  as  fortes 
luctas  doutrinarias  entre  Clássicos  e  Românticos; 
mas  o  problema  foi  complicado  pelo  antagonismo 
politico  entre  a  reacção  do  partido  catholico-feu- 
dal  e  o  negativismo  revolucionário,  que  se  deba- 
tiam na  transição  ou  alta  provisória  das  Cartas 
outorgadas.  Mas  o  que  era  o  Romantismo?  Dis- 
se-o  Stendhal  com  uma  clara  simplicidade:  «Eis 
acfui  a  theoria  do  Romantismo:  é  preciso  que  cada 
povo  tenha  a  sua  litteratura  própria  e  modelada 
sobre  o  seu  caracter  particular,  como  cada  um  de 
nós  traz  o  fato  talhado  para  o  seu  corpo.»  Não 
basta  o  sentimento  nacional  no  seu  exclusivismo. 


FACTORES    DYNAMICOS  I53 


é  preciso  dar-lhe  o  relevo  da  humanidade,  para 
que  uma  litteratura  passe  além  das  fronteiras  na- 
cionaes  e  das  edades;  não  por  simples  exotismo, 
mas  pela  consciência  philosophica  da  solidarie- 
dade humana.  A  renovação  dos  estudos  da  His- 
toria, e  a  creação  da  philosophia  da  Arte,  ou  a 
Esthetica,  em  que  a  Allemanha  foi  uma  iniciadora, 
vieram  completar  esta  hegemonia  litteraria,  cuja 
direcção  final  presentiu  Goethe  na  phase  univer- 
salista das  litteraturas  modernas,  que  Edgar  Qui- 
net  definiu  esplendidamente :  «Racine,  Molière  e 
Shakespeare,  Voltaire  e  Goethe,  Corneille  e  Cal- 
deron  são  irmãos.  E'  preciso  elevar,  ampliar  as 
nossas  theorias,  para  que  haja  ahi  logar  para  to- 
dos... —  Dominando  as  rivalidades,  as  inimizades, 
as  antipathias  dos  climas,  dos  tempos,  dos  loga- 
res,  aspiremos  ao  espirito  universalmente  uno, 
que  está  implícito  nas  obras  inspiradas  de  cada 
povo.  Até  hoje  o  género  humano  esteve  em  guerra 
comsigo  mesmo,  e  n'estas  regiões  supremas  da 
poesia,  em  que  parece  deveria  reinar  a  paz  per- 
petua, ahi  foi  o  conflicto  mais  obstinado.  —  Se  a 
época  em  que  vivemos  tem  alguma  valia,  será 
seguramente  por  que  ella  acabará  de  pôr  em  plena 
luz  esta  unidade  do  génio  dos  modernos.  Em- 
quanto  a  critica  continuava  em  tudo  dividir,  as 
obras,  mais  intelligentes,  aproximavam  já  os  ins- 
ti netos  dos  povos.»  Por  seu  turno  a  critica  tor- 
nou-se  philosophica,  alargando  a  comprehensao 
das  litteraturas :  relacionando-as  com  a  sociedade, 
de  que  ellas  são  a  expressão  (Villemain)  ;  recom- 
pondo por  ellas  a  psychologia  do  temperamento 
individual,  cuja  vida  vale  tanto  ou  mais  do  que  a 


154  HISTORIA    DA    LlTTERATUKA    PORTUGUEZA 

ol)ra  de  arte  (Sainte  Beuve)  ;  e  determinando  por 
ellas  o  fiicio  em  que  actuam  as  grandes  correntes 
da  civilisaçõo  (Taine).  Tudo  converge  para  a  in- 
tegração actual  das  bases  da  critica  na  historia 
litteraria. 


PRIMEIRA  ÉPOCA 

EDA  DE   MÉDIA 

(Skculo  XII  a  xv) 

i.o  Período:    Trovadores  portuguezes 

A  litteratura  portugueza  é  um  phenomeno  so- 
cial simultâneo  com  o  estabelecimento  da  nacio- 
nalidade ;  para  ser  comprehendida  nas  suas  mani- 
festações do  gosto,  que  carecterisam  as  suas  épo- 
cas históricas,  nas  creaçÕes  geniaes  das  altas 
individualidades,  é  preciso  conhecer  as  raízes 
ethnicas  d'este  povo,  que,  mantêm  todas  as  feições 
de  uma  raça  pura,  e  a  sua  acção  de  concurso  na 
marcha  da  civnlisação  humana.  Formada  no  sé- 
culo X 1 1  com  a  nacionalidade,  a  litteratura  por- 
tugueza trouxe  todos  os  caracteres  d'essa  éix)ca 
fecunda  do  desenvolvimento  das  Litteraturas  ro- 
mânicas :  a  lingua  escripta  exerce-se  nas  Canções 
subjectivas  do  lyrismo  trobadoresco,  que  viera 
acordar  os  germens  de  uma  poesia  tradicional,  e 
ao  mesmo  tempo  o  predominio  da  cultura  latina 


156  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 

ecclesiastica  desviou  a  actividade  litteraria  das 
suas  fontes  orgânicas  para  as  traducções  de  len- 
das agiologicas  e  erudição  escholastica.  Estas 
duas  correntes,  a  tradicional  e  a  erudita,  appare- 
cem  em  conflicto  permanente  em  todas  as  litte- 
raturas  da  Edade  média,  variando  o  seu  predo- 
mínio conforme  a  vitalidade  de  cada  povo  em 
frente  da  auctoridade  da  cultura  greco-romana, 
(|ue  se  vae  restabelecendo  pela  civilisação  mo- 
derna. Pela  riqueza  dos  seus  elementos  tradicio- 
naes  ou  orgânicos,  e  pela  estremada  cultura  se- 
nhorial e  ecclesiastica,  coube  á  França  a  hege- 
monia na  formação  de  todas  as  litteraturas  mo- 
dernas. Historicamente  se  verifica,  que  todas  as 
litteraturas  românicas  e  germânicas  no  seu  pe- 
riodo  originário,  imitaram  as  Canções  de  um 
exagerado  subjectivismo  e  de  requintado  artificio 
poético  escriptas  na  lingua  d'oc,  que  se  fallava 
na  parte  meridional  da"  França.  Em  quanto  se 
estudou  esta  poesia  separada  das  suas  origens  po- 
pulares, a  Provença  apontava-se  como  iniciadora 
da  renascença  mental  da  Europa.  Determinados 
esses  germens  tradicionaes,  que  evolucionaram  na 
i:)riorida(le  do  desenvolvimento  do  lyrismo  pro- 
\ençal,  explica-se  a  sua  prompta  irradiação  para  a 
França  do  Norte,  para  a  Itália,  llespanha,  In- 
glaterra e  Allemanha,  suscitando  essa  unita-ção  ;i 
revivescência  dos  seus  elementos  nacionaes.  Quan- 
to mais  vigorosos  fossem  esses  elementos  trad' 
cionaes,  mais  rápidas  e  originaes  seriam  as  mani 
festações  nas  outras  litteraturas.  Assim  se  obser- 
va na  Litteratura  portugueza:  oFoi  entre  1190  c 
T253,  que  a  Arte  provençal,  attingindo  o  seu  auge. 


PRIMEIRA   Época:    edade   média  15: 


se  expandiu  nas  Cortes  directamente  visinhas  da 
Catalunha,  Itália,  Norte  da  França  e  da  Allema- 
nlia,  Inglaterra  e  Sicilia,  e  no  nosso  Portugal, 
fructi ficando  em  toda  a  parte  na  segunda  gera- 
ção, a  contar  de  1275.»  i  Não  á  influencia  directa 
dos  trovadores  ocitanicos,  mas  á  importância  que 
ligaram  aos  cantos  populares  dando-lhes  forma 
litteraria,  é  que  em  Portugal  floriu  no  meado  do 
século  XII  essa  extraordinária  actividade  poética. 

§1 

Influencia   do   sul   da   França   ou   Gallo-romana 

A  zona  geographica  em  que  se  iniciou  esta 
elaboração  poética,  abrange  desde  o  norte  do  Loi- 
re, passando  pela  ponta  do  lago  de  Genebra,  da 
Sèvres  niorteza  para  oeste,  ducado  da  Aquitania, 
Auvergne,  Rodez,  Tolosa,  Provença  e  Vienne. 
Foi  justamente  n'esta  zona,  que  a  raça  gauleza 
ficou  submettida  á  conquista  romana;  ao  fixar  o 
seu  dominio,  não  se  cruzava  com  o  vencido,  e  dei- 
xava-lhe  o  livre  exercicio  das  crenças  religiosas, 
dos  seus  costumes  e  lingua,  comtanto  que  se  sub- 
mettessem  ao  seu  systema  de  administração,  che- 
gando no  periodo  imperial  a  fomentar  o  desen- 
volvimento da  instituição  municipal. 

O  sul  da  França  deveu  á  liberdade  democrá- 
tica do  municipalismo  a  conservação  das  suas  tra- 
dições e  o  vigor  da  sua  cultura.    Sulpicio  Severo 


1     D.  Carolina  Michaèlis,  Cancioneiro  da  Ajuda,  il,  p. 
690. 


158  HISTORIA    DA    trlTTERATURA    PORTUGUÊZA 


escreve  nos  seus  Diálogos,  fazendo  o  contraste 
(Vessa  cultura  meridional  com  a  rudeza  franka, 
(|uando  se  dirigia  aos  que  lhe  pediam  que  tratasse 
de  Sam  Martinho:  «quando  eu  penso  que  sou 
gaulez,  e  que  é  a  Aquifanios  que  eu  vou  fallar, 
tenho  receio  de  of fender  os  seus  ouvidos  muito 
]>olidos  com  a  minha  linguagem  rústica;  vós  me 
ouvireis  como  a  um  labrego  cuja  linguagem  des- 
conhece ornatos  e  a  emphase.»  E  esses  que  falla- 
\am  a'  lingua  (Foc,  insistiram:  ((Fallae  céltico, 
com  tanto  que  seja  de  Martinho.»  Os  Aquitanios 
eram  essa  raça  de  cabellos  pretos  que  os  celtas 
encontraram  na  sua  invasão,  mas  que  se  conser- 
vou intacta  á  mestiçagem  n'essa  região  compre- 
hêndida  entre  os  Pyreneos,  o  Garona  e  o  golfo  de 
Gasconha.  Nas  suas  Memorias  de  Anthropologia 
escreve  Paul  Broca :  «Tudo  induz  a  crer,  que  os 
Aquitanios  pertencem  a  esta  raça  de  cabellos  pre- 
tos, cujo  typo  se  conserva  quasi  sem  mistura  en- 
tre os  Bascos  actuaes.»  (Op.  cit.,  i,  282.)  E 
Jorge  Philipps,  define  esta  população  occidental: 
«Muito  mais  tarde,  isto  é,  no  tempo  de  César,  os 
Iberos  possuíam  ainda  na  Gallia  a  maior  parte  do 
território  situado  entre  o  Garona,  o  Oceano  e  os 
Pyreneos;  elles  se  conservaram  nest.^  triangulo, 
apesar  da  conquista  dos  Ligures  primeiramente,  c 
depois,  de  um  inimigo  terrivel,  a  raça  céltica.»  A' 
])ersistencia  da  raça  corresponde  a  dos  costumes; 
Belloguet,  na  Bfhnogema  gaulesa  (iti,  329)  con- 
sidera as  Cortes  de  Amor,  como  uma  sobrevivên- 
cia do  costume  gaulez  na  intervenção  da  mulher 
nos  negócios  {mblicos :  «Crêr-se-ha  que  a  tradi- 
ção d'estas  mulheres  juizas  e  diplomatas,  desço- 


PRIMEIRA   RPOCA :    hdade;   media  159 

nhecida  no  norte  da  Gallia,  nunca  se  extinguiu 
completamente  no  Meio  Dia,  aonde  os  seus  tribu- 
naes,  com  uma  differente  competência,  é  certo, 
passaram  por  terem  reapparecido  cpiinze  séculos 
mais  tarde  sob  o  nome  poético  de  Cortes  de 
Amor.))  As  assembleias  poéticas  ou  os  Pity  (os 
Outeiros,  portuguezes)  foram  a  persistência  po- 
pular d'essa  antiga  instituição  renovada.  Os  Jo- 
graes  e  menestréis  eram  os  representantes  dos 
antigos  Bardos  decahidos  das  suas  funcções  so- 
ciaes  de  poetas  sacerdotes ;  Belloguet,  f aliando  dos 
Bardos  das  cortes,  observa :  (cesta  instituição  atra- 
N^essou  séculos  e  tornou-se  uma  feição  caracterís- 
tica dos  costumes  gaulezes  e  irlandezes  da  Edade 
média.»    (Ib.,  m,  335-) 

A  rota,  ou  o  instrumento  de  corda  a  que  se 
acompanhava  o  trovador,  é  a  croud  gauleza,  que 
Venâncio  Fortunato  denominava  a  Chrota  britana. 
Certos  cantos  conservavam  o  seu  antigo  caracter, 
como  a  Sirvente,  a  sátira  com  que  os  bardos  gau- 
lezes \erberavam  as  acções  indignas.  As  vaca- 
ç(5es  nocturnas,  provocadas  i>elo  clima  agradável 
da  zona  gallo-romana,  motivavam  as  formas  pro- 
vençalescas  da  Aiibade  e  Serena,  as  alvoradas  e 
serenadas  das  usanças  populares ;  das  dansas  falia 
vSanto  Isidoro  hispalense  alludindo  ao  canto  das 
Balliinastia  (BaUhiiachia  dansa  guerreira?)  e  que 
durante  a  Edade  média  apparecem  nas  Baylata, 
Baylia  e  Ballet,  no  sul  da  França,  Itália  e  Portu- 
gal ligadas  á  poesia  amorosa.  Os  cantos  gaulezes 
eram  exclusivamente  oraes,  por  que  uma  prohibi- 
ção  religiosa  im|>edira  de  serem  escriptos.  Já  sob 
a  disciplina   da   Egreja  catholica   continuou   essa 


l60  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

prohibição  em  vários  Concílios,  como  o  de  Auxer- 
re*  de  578,  contra  os  cantares  das  donzellas,  e  as 
cantigas  satiricas,  dando  nomes  infamantes  aos 
que  os  cantavam,  taes  como  Joculafores  (jograes) 
Minisf rales  (Menestréis),  Histrioncs,  Mimi  e  Jo- 
cístae.  Sob  estas '  maldições  é  que  se  degradou  a 
poesia  popular  meridional,  emíim,  a  tradição  poé- 
tica da  Occidentalidade,  até  ao  momento  em  que 
no  século  xi  a  estabilidade  da  vida  burgueza  fez 
brilhar  essa  poesia,  que  suscitou  a  imitação  de 
Guilherme  ix,  conde  de  Poitiers  e  Duque  de  Aqui- 
tania  (1087)  apontado  como  o  primeiro  Trova- 
dor. O  phenomeno  da  Poesia  provençal  foi  este 
resurgimento  de  uma  tradição  apagada,  que  pene- 
trou nas  Cortes  senhoriaes  e  reaes,  onde  se  des- 
envolveu como  planta  agreste  a  Canção  do  povo, 
cjue  se  tornou  artística.  A  esse  typo  popular  se 
referem  os  trovadores  nas  suas  canções  subjecti- 
vas :  Guilherme  de  Bergadan  faz  uma  canção  em 
um  son  veill  antic;  Cercamons  é  considerado  pelos 
outros  trovadores  como  auctor  de  Pasforellas  no 
gosto  antigo.  K  como  a  Canção  do  povo  era  si- 
multaneamente cantada  e  bailada,  os  trovadores 
distínguiam-se  não  só  pela  arte  de  trovar,  como  de 
«cantar  e  bailar  a  la  provençalesca.  n  Jaufre  Ru- 
dal  fez  hons  vers  el  ah  bons  sons;  Peire  d'Alver- 
gne  fez  //  meillcr  sons  de  vers;  Pons  de  Capduel 
trobava,  viulava  c  cantava  ben;  Peire  Rogier 
trobava  c  cantava  ben.  Pela  entrada  da  poesia 
trobadoresca  nas  cortes,  e  imitada  por  príncipes 
e  reis,  nem  por  isso  esses  cantores  do  lyrismo  occi- 
tanico  perderam  a  sua  origem  plebeia.  D'entre 
a  s^rande  lista   A^^'^   t^^^vadores  provençaes.   vinte 


PRIMEIRA  KPOCA:  EDADE  MEDIA  l'Sl 

são  conhecidos  como  Jograes  de  officio,  quinze 
foram  burguezes  dados  ao  commercio  ou  filhos  de 
commerciantes ;  quinze  eram  escribas  (clercs)  e 
mesteiraes;  assim  EHas  Cairel  era  ourives,  Qui- 
lhem Figueira  alfaiate,  Peire  Vidal  filho  de  um 
peliteiro,  Perdigon  filho  de  pescador,  Bernard  de 
Ventadour  filho  de  um  forneiro,  Albert  e  Elias 
de  Fonsalada  descendentes  de  jograes.  Póde-se 
inferir,  que  uma  das  causas  que  actuaram  na  revi- 
vescência da  tradição  lyrica  occidental  foi  o  des- 
afogo da  vida  burgueza  durante  a  época  das  Cru- 
zadas. A  primeira  Cruzada  publicada  em  1095  fez 
com  que  a  classe  senhorial  se  ausentasse  dos  seus 
castellos  para  a  conquista  do  Sepulchro;  a  esta- 
bilidade civil  desenvolveu  pacificamente  as  suas 
garantias,  em  um  bem  estar  que  levava  a  ideali- 
sar  os  velhos  costumes.  Este  esplendor  poético 
ou  efflorescencia  da  Poesia  provençal  dava-se  no 
periodo  intermediário  das  Cruzadas :  da  primeira 
(1095)  até  á  ultima  (1268)  é  que  o  lyrismo  occi- 
tanico  se  esboça  litterariamente.  ,  Como  se  espa- 
lhou por  todas  as  cortes  da  Europa  esta  nova 
poesia  do  amor?  Não  foi  somente  pelas  viagens 
aventureiras  dos  trovadores  meridionaes,  mas  pelo. 
gosto  que  elles  acordaram  ligando-se  interesse  aos 
cantos  lyricos  populares  em  uma  fecunda  crise 
social.  Canções  lyricas,  que  pareciam  originarias 
da  Provença  appresentavam  similes  em  Itália,  ria 
Galliza  e  Portugal,  em  Valência,  Aragão  e  Cas- 
tella,  taes  como  as  Pastorellas,  as  Bailadas,  as  Ser- 
ranas e  Cantares  de  Amigo.  Extraordinário  pro- 
blema litterario,  por  que  não  provindo  de  uma 
imitação  directa,  revelava  um  typo  primordial  con- 
1 1 


102  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


servado  em  um  fundo  anthropologico-  persistente 
das  populações  meridionaes.  Paul  Meyer  consi- 
derando as  analogias  com  as  antigas  Bailadas 
provençaes  chegou  á  conclusão,  que  —  aforam 
concebidas  segundo  um  typo  tradicional,  que  de- 
vera ter  sido  commum  a  diversas  populações  ro- 
mânicas, sem  que  se  possa  determinar  em  qual 
d^ellas  fora  crcado.))  (Romania,  n.o  6,  p.  265.) 
O  problema  assim  proposto  explica-se  por  esse 
fundo  ethnico  da  Aquitania,  a  que  pertenceu  a 
Gallecia;  esse  typo  lyrico  ainda  persiste  na  poesia 
popular  dos  povos  românicos  colligida  com  inte- 
resse pelos  folkloristas.  Fauriel  foi  o  primeiro 
que,  apesar  de  reconhecer  a  poesia  trobadoresca 
como  uma  floração  do  espirito  da  cavalleria,  teve 
a  intuição  que  ella  provinha  de  uma  raiz  popular, 
que  a  antecedera.  Desde  esta  affirmação  até  á 
sua  plena  prova,  foi  longo  o  trabalho  critico  para 
a  sua  comprehensão.  E  comtudo  não  se  tinha 
perdido  completamente  a  noção  (Festa  proveniên- 
cia, que  se  definia  nos  dois  estylos  dos  trovado- 
res :  empregava-se  o  estylo  plan,  leu  ou  legicr,  ao 
alcance  do  vulgo ;  e  o  estylo  car,  chis,  requintado 
na  forma  e  requintado  nas  argucias  do  sentimento. 
Era  este  o  que  se  desenvolvia  nas  fórmulas  da 
cortezania  que  exprimiam  as  theorias  do  Amor. 
Essas  formas  populares,  de  que  foram  typo  as  Vil- 
lanellas  da  Gasconha,  ^  eram  reproduzidas  pelos 


I  Montaigne  conheceu  o  valor  artístico  d'estas  Can- 
ções populares  da  Gasconha:  «La  poesie  populaire  et  pu- 
rement  naturelle  a  des  naifvetez  et  graces,  par  ou  elle  se 
compare  á  la  principale  beauté  de  la  poesie  parfaite,  selon 


PRIMEIRA    kpoca:    edade    média  163 


trez  mais  antigos  trovadores  da  primeira  metade 
do  século  X,  depois  do  duque  da  Aquitania,  Gui- 
lherme de  Poitiers,  todos  trez  nascidos  na  Gas- 
conha,  para  lá  do  Garona :  Cercamons,  Marcabrus 
e  Peire  de  Valeira,  escrevendo  embora  em  um  dia- 
lecto que  não  é  o  de  sua  terra.  Na  segunda  metade 
do  século  XII,  propriamente  na  edade  de  ouro 
dos  trovadores,  quando  povo  e  burguezes  rivali- 
sam  com  a  nobreza,  o  trovador  Giraud  de  Bor- 
neil,  que  se  sentia  vaidoso  por  lhe  cantarem  as 
suas  Canções  pelas  cortes,  mostra  que  o  seu  desejo 
seria  que  ellas  fossem  cantadas  pelas  raparigas, 
as  filhas  do  povo  quando  vão  á  fonte. 

E'  aqui  que  surge  o  problema  litterario  da 
origem  d'estas  canções  populares  do  estylo  plan 
ou  legier,  que  attribuem  á  França  do  norte  Gastou 
Paris  e  o  seu  discipulo  Jeanroy,  por  ventura  fun- 
dados na  affirmativa  de  Raymond  Vidal,  do  sé- 
culo X 1 1 1  :  iiLa  parladura  francesa  vai  mais  et  es 
plus  avinenz  a  far  roínanz  et  pasturelles;  mas 
cella  de  Lemosin  vai  mais  per  far  vers,  et  cansons 
et  serventes.»  Concilia-se  bem  esta  affirmativa 
com  a  situação  da  origem  meridional;  o  reino 
da  Aquitania,  fora  fundado  por  Carlos  Magno 
para  defender  das  invasões  mussulmanas  as  fron- 
teiras do  seu  império.  Essas  luctas  contra  o  An- 
daluz inspiraram  ])oemas  como  o  de  GiiiUiaume 


Tart;  comme  il  se  veod  es  Villanelles  de  Gascoigne,  et  aux 
chansons  qui  n'ont  coignoissance  d'aulcune  science,  n*y 
meme  d'escripture.^^  Essais,  liv.  i,  cap.  35.  —  Miguel  Lei- 
tão de  Andrade,  no  fim  do  século  xvi  também  dava  este 
■nome  de  Villanellas  ás  Canções  populares  portuguezas, 


104  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

au  court  nec,  e  os  cantos  populares,  que  então  Car- 
los Magno  mandava  colligir  revelam  que  n'esse 
tempo  algumas  melodias  meridionaes  passaram 
para  a  tradição  lyrica  germânica. 

A  eschola  trobadoresca  mais  brilhante  foi  a 
de  Tolosa,  entre  a  Gasconha  e  o  Auvergne,  o 
foco  mais  antigo  e  natural  da  poesia  meridional, 
como  observou  Fortoul,  notando  que  a  Provença, 
entre  o  Rhodano  e  os  Alpes  foi  a  eschola  menos 
fecunda  e  menos  celebre.  O  titulo  de  poesia  pro- 
vençal, torna-se,  pela  sua  extrema  generalidade, 
uma  designação  falsa,  apesar  do  brilhantismo  das 
suas  cortes  aristocráticas.  A  poesia  trobadoresca 
teve  di  ff  crentes  focos,  ou  centros  de  cultura:  no 
fim  do  século  xi  Poitou,  Saintonge  e  Guienne,  em 
que  a  nobreza,  apoz  Guilherme  de  Poitiers  cultiva 
a  Canção  de  amor;  no  começo  do  século  xii,  é  o 
foco  da  Gasconha  e  Auvergne,  em  que  o  gosto 
popular  apparece  simultâneo  com  o  enthusiasmo 
da  nobreza;  em  que  Cercamons,  Marcabrus,  e 
Peire  de  Valeira  revelam  a  dependência  da  tra- 
dição poética,  e  Pierre  de  Auvergne  a  preoccupa- 
ção  litteraria;  entre  a  zona  oriental  e  a  occidental 
ha  o  foco  do  Limousin,  Perigord  e  Quercy,  em 
que  o  povo  e  a  burguezia  rivalisam  com  a  nobreza 
na  arte  e  espirito:  e  abaixo  d'estes  limites  nas 
margens  esquerda  e  direita  do  Rhodano,  a  Pro- 
vença e  o  Languedoc  (Tolosa  e  ]\Iontpellier). 
Pela  determinação  d'estes  focos  é  que  se  caracte- 
risam  as  correntes  do  lyrismo,  como  as  migra- 
ções dos  trovadores,  levando  para '  as  diversas 
cortes  o  interesse  ou  a  moda  do  gai  saber. 

A  propagação  do  lyrismo  á  Itália  é  simulta- 


PRIMEIRA    etoca:    Edade    média  165 


nea  com  a  da  AUemanha;  no  meado  do  século  xii 
e  principio  do  século  xiii  os  imperadores  Fre- 
derico I  e  II,  não  só  imitaram  a  poesia  troba- 
doresca,  como  a  favoreceram  e  animaram  em 
Aries,  revindicada  ao  seu  dominio,  como  em  toda 
a  Lombardia,  onde  faziam  expedições  militares  e 
tinham  a  base  da  sua  politica.  Na  Itália  as  prin- 
cipaes  cidades  do  norte,  como  Génova,  Massa, 
Casal,  Mantua,  Ferrara,  Veneza,  apresentavam  tro- 
vadores naturaes  que  rivalisavam  com  os  de  Mar- 
selha e  Tolosa.  Estas  correntes  lombarda  e  ita- 
liana, foram  conhecidas  em  Hespanha.  A  Ingla- 
terra recebeu  o  influxo  da  poesia  trobadoresca, 
na  segunda  metade  do  século  xiii,  quando  a  sua 
corte  estava  no  meio  dia  da  França,  relacionando 
os  poetas  anglo-normandos  com  os  limosinos. 

Em  Hespanha  a  corrente  dos  trovadores  entra 
não  só  pela  relação  politica  dos  Condes  de  Bar- 
celona com  a  Provença,  como  pelas  cruzadas 
contra  os  mussulmanos,  mais  sympathicas  a  esses 
cantores  do  que  as  expedições  da  Terra  santa.  Os 
Condes  de  Barcelona  eram  senhores  de  Narbona, 
Carcasonne  e  Bearn;  pelo  casamento  de  Ramon 
Beranger  iii,  (1T12)  com  Dulce,  Condessa  de 
Provença,  liga-se  a  peninsula  itahca  á  Hespanha; 
e  Ramon  Beranger  iv,  incorpora  ao  seu  estado 
Aragão  ficando  constituida  a  unidade  catalã.  Ha 
um  esforço  para  acclimar  a  poesia  provençal  no 
sul  dos  Pyreneus,  chegando  ao  seu  esplendor  sob 
Jayme  i,  emulo  do  castelhano  Affonso  o  Sábio. 

A  Castella  propaga-se  essa  nova  poesia  desde 
()  casamento  do  Conde  de  Barcelona  Ramon  Be- 
ranger IV,  com  uma  filha  do  Cid,  como  também 


j66  historia  da  littekatura  portugueza 


pelo  casamento  da  formosa  Berenguella,  irmã  do 
conde  de  Barcelona  Ramon  Beranger  iv,  com  Af- 
fonso  VII  (imperador)  1128.  E'  d'aqui  que  data 
a  cultura  provençal  em  Castella,  encontrando-se 
n'essa  corte  os  trovadores  Marcabrus,  Pierre  de 
Auvergne,  Geraldo  Calansa,  Gavaudan,  Peire  Vi- 
dal, Rambaud  de  Vaqueiras:  assim  também  junto 
de  San  Fernando  e  Affonso  x,  Bonifazio  Calvo, 
Nat  de  Mons,  Giraud  Riquier,  Guilherme  de  Ber- 
gada  e  Hugo  de  San  Cyr.  As  cortes  de  Aragão 
e  de  Castella  abriram-se  aos  trovadores  proven- 
çaes  perseguidos  pelas  guerras  de  exterminio  con- 
tra os  pobres  sectários  albigenses;  operou-se  ahi 
uma  como  restauração  da  poesia  provençal.  Re- 
ferem-se  á  corte  de  Castella  e  de  Affonso  o  Sábio 
os  trovadores  Galceran  de  San  Didier,  Bertrand 
Carbonell,  Ramon  Lator,  Bartholomé  Zorgi,  Pau- 
let  de  Marselha,  Bertrand  de  Rovenhac,  Ber- 
trand de  Born,  filho;  Aymeric,  de  Belenoi,  Hugo 
de  la  Escura,  Elias  Fonsalada,  Arnaldo  Palagués, 
Ramon  de  Castelnau,  Guilhelm  de  Montagna- 
nout,  Fulquet  de  Lunel. 

Na  corte  de  Leão,  antes  de  estar  unida  á  Cas- 
tella, Affonso  IX  protege  os  trovadores,  que  exal- 
tam a  sua  cortezia  c  liberalidade ;  entre  elles  des- 
tacam-se  Hugo  de  San  Cyr,  Guilherme  de  Adhe- 
mar  e  Elias  Cairel.  E  quando  unida  a  Castella. 
sob  Fernando  iii,  o  Santo,  brilham  ahi  Bertrand 
de  Almansor,  Sordello  mantuano,  Azemar  o  Ne- 
gro, Adhemar,  e  Giraud  de  Borneil,  denominado 
o  Mestre  dos  Trovadores.  E  tinham  estes  tro- 
vadores visitado  a  corte  de  Leão  e  Castella,  por 
que  Fernando    1 1 1    «pagabase  de  omes  de  corte 


PRIMEIRA    kpoca:    rdade    média  167 

que  sabian  bien  de  trovar  et  cantar,  et  de  jogla- 
res  que  sobiesen  bien  de  tocar  estrumentos,  ca  de 
esto  se  pagaba  et  entendia  mucho,  et  entendia 
quien  lo  facia  bien  et  quien  no.»  Seguindo  esta 
corrente  de  Catalunha  (Condado  de  Barcelona) 
Aragão,  Navarra,  Castella  e  Leão,  é  que  a  Poesia 
provençalesca  chegou  a  Portugal. 

Como  é  pois  que  o  lyrismo  trobadoresco  portu- 
guez  se  propagou  inicialmente  a  todas  as  cortes 
peninsulares,  como  o  afíirmou  na  sua  celebre  Car- 
ta o  Marquez  de  Santillana?  Este  facto,  que  só 
modernamente  se  explica,  dá  uma  feição  exce- 
pcional e  única  á  Bschola  trobadoresca  portuguesa. 
Ella  estabeleceu-se  fora  de  toda  a  influencia  di- 
recta ou  immediata  dos  trovadores  occitanicos.  Os 
modernos  estudos  sobre  a  litteratura  portugueza 
levaram  á  conclusão  de  que  se  não  descobrira  pro- 
va manifesta  de  qualquer  trovador,  mesmo  dos 
que  frequentaram  as  cortes  de  Leão,  Aragão  e 
Castella,  visitarem  a  corte  de  Portugal.  Deter- 
minada a  época  em  que  floresceu  a  poesia  troba- 
doresca do  meio  dia  da  França,  o  lyrismo  por- 
tuguez  foi  synchronico,  desenvolvendo-se  sobre  os 
elementos  tradicionaes  populares,  quando  a  vida 
nova  da  Nacionalidade  que  se  affirmava  autóno- 
ma se  expandia  por  essa  energia  orgânica  e  pro- 
funda. No  estudo  A  Poesia  provençal  na  Bdade 
média  Jeanroy  apresenta  esta  situação  excepcional 
do  lyrismo  portuguez,  que  pela  sua  linguagem  se 
impôz  ás  outras  cortes  peninsulares:  «Não  é  fácil 
de  explicar  como  Portugal  exerceu  este  influxo 
que  parecia  competir  ao  Aragão  ou  a  Castella. 


l68  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

Effectivamente  as  suas  relações  politicas  com  o 
Meio  Dia  da  França  eram  muito  raras,  e  restri- 
cto  o  numero  dos  trovadores  que  a  visitaram  (isto 
é,  que  alludem  a  Portugal.)  O  que  é  certo  é,  que 
desde  o  inicio  d'esse  século,  a  poesia  provençal 
era  conhecida  em  Portugal,  e  que  durante  uma 
centena  de  annos  pelo  menos,  todas  as  formas 
foram  apaixonadamente  imitadas  pelos  fidalgos 
das  cortes  de  Sancho  ii,  Affonso  iii  e  Diniz, 
que  foi  elle  mesmo  um  dos  mais  hábeis  d'esses 
imitadores :  Esta  floração  foi  mais  rica  do  que 
original :  os  trovadores  gallezianos,  como  os  tro- 
veiros  do  Norte,  foram  simples  traductores,  e  nas 
innumeras  Canções  que  nos  deixaram,  por  ventura 
não  haverá  uma  que  não  seja  um  centão.» 

Ha  evidentemente  aqui  um  absurdo.  Como, 
em  uma  tão  crassa  imitação,  poderiam  exercer 
nas  cortes  peninsulares  frequentadas  pelos  mais 
brilhantes  trovadores  occitanicos,  uma  influencia 
deslumbrante  os  trovadores  gallezianos?  Jeanroy 
prosegue,  precisando  uma  causa,  que  elle  ap)onta 
sem  comprehender : 

«Mas  estes  poetas,  embora  impregnados  de 
f()rmas  estudadas,  tiveram  a  ideia  original  e  en- 
cantadora de  penderem  para  a  poesia  popular,  e 
de  salvarem  do  esquecimento,  remodelando-a  por 
litteratos,  alguns  dos  géneros  que  ahi  subsistiam 
desde  muitos  séculos.  Alguma  cousa  de  análogo 
tinha  sido  tentado  no  Norte  da  França,  mas  com 
esmeros  litterarios  cujo  excesso  desnaturou  com- 
jíletamente  os  géneros,  em  que  só  podia  tocar  uma 
mão  leve  e  respeitosa :  as  nossas  pastorcllas,  as 
nossas  canções  de  alvorada,  da  MaUnaridada,  a 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MEDIA  lÓQ 


mais  das  vezes  requintadas  ou  licenciosas,  não 
são  senão  aldeãs  de  opereta,  tergeiteiras  e  provo- 
cantes. Em  Portugal,  pelo  contrario,  estas  Can- 
tigas de  Amigo,  que  os  poetas  cortezanescos  col- 
locavam  na  bocca  das  ingénuas  raparigas  do  povo, 

—  Canções  de  dansa,  de  romarias  e  de  despedida, 

—  são  por  vezes  maravilhosas  pela  ingenuidade 
ou  travessura;  bem  parece  em  algumas,  que  nos 
achamos  tão  perto,  quanto  possivel  da  fonte  po- 
pular, e  não  é  uma  pequena  surpreza  o  encontrar 
n'estes  enormes  ramalhetes  de  flores  artificiaes, 
que  são  os  Cancioneiros,  algumas  frescas  prima- 
veras, cujo  brilho  nos  parece,  graças  a  este  con- 
traste, mais  vivo  ainda  e  o  perfume  mais  suave. 

((Mas  isto  não  era  mais  do  que  um  feliz  acci- 
dente.  Em  Portugal,  como  na  França  do  Norte, 
a  poesia  cortezã,  não  tem,  por  assim  dizer,  exis- 
tência própria;  ella  não  é  senão  um  reflexo  de 
uma  luz  já  de  si  bem  pallida.»  i 

Esse  caracter  de  ingenuidade  popular  proveiu 
de  uma  existência  própria  e  não  de  uma  imitação 
servil.  O  lyrismo  trobadoresco  portuguez  serviu- 
se  de  uma  lingua  nacional,  que  tornou  Portugal  o 
Poitou  das  cortes  peninsulares,  e  exprimiu  senti- 
mentos do  ethos  luso,  que  não  se  confundem  com 
os  que  se  repetem  nas  Canções  dos  provençaes. 
Henry  Lang,  no  prologo  da  sua  edição'  do  Can- 
cioneiro de  Dom  Diniz  define  este  caracter  origi- 
nal, que  notou  pelos  seus  estudos :  ((O  serviço  que 
os  Provençaes  prestaram  a  Portugal  resume-se  no 


Rev.  des  Deux-Mondes,  1903  (Fevereiro)  p.  687. 


lyO  HISTORIA    DA    LITTERATURA    rORTUíUKZ  \ 


exemplo  que  deram,  abrindo  caminho  á  lyrica  po- 
pular pelo  acto  de  penetrarem  nos  régios  salões... 
Só  sobre  a  base  ampla  de  uma  lyrica  nacional,  e 
graças  ao  talento  poético  e  á  Índole  sentimental  de 
gallegos  e  portuguezes,  é  que  a  lyrica  palaciana 
trobadoresca  pôde  desenvolver-se  viçosa  e  com 
aquella  originalidade  e  graça  que  lhe  assegura  um 
logar  á  parte  na  historia  da  Poesia  meridional.» 
(Õp.  cit.,  p.  cxi.iv.)  E'  o  que  se  chama  acção 
de  presença,  nos  phenomenos  catalyticos;  a  essa 
critica  esthetica  falta  dar-lhe  a  base  histórica. 

ESCHOLA  TROBADORESCA  PORTUGUEZA 

O  governo  de  Dom  Affonso  Henriques,  (nas- 
cido em  1109,  e  batalhando  desde  os  dezenove 
annos  para  manter  a  autonomia  de  Portugal  e 
alargar-lhe  o  seu  território  para  o  sul,  em  uma 
actividade  heróica  que  se  prolongou  por  cincoenta 
e  sete  annos  até  á  sua  morte  provecta  em  1185,) 
não  parecia  prestar-se  ás  galanterias  de  uma  cor- 
te, enaltecida  por  apparatosas  festas,  e  a  attrahir 
os  trovadores  que  pregavam  a  cruzada  contra  os 
Sarracenos.  Mas  esta  mesma  situação  fazia  com 
que  elles  se  lhe  dirigissem  nas  suas  Canções,  in- 
citanclo-o  para  a  lucta.  Fauriel  aponta  o  trovador 
Marcal)rus,  do  ramo  da  Gasconha,  da  Aquitania, 
como  tendo  visitado  as  cortes  christãs  de  áquem 
dos  Pyrenneos  ((nomeadamente  a  de  Portugal,  e 
é  o  único  dos  trovadores  positivamente  conhecido 
l)or  ter  visitado  esta  ultima.»   i    Marcabrus  inci- 


I     Histoirc  de  la  Poesia  provençale,  t.   11,  p,  6.    Não 
se  tem  verificado  em  pesquizas  ulteriores. 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  I7I 

tava-o  a  ligar-se  com  as  pequenas  potencias  do 
Mediterrâneo  para  a  lucta  contra  os  Almohades, 
ajudando  Affonso  vii: 

Al  lavador  de  Portegal 
E  dei  Navar  atretal, 
Al  sol  que  Barsalona  i  a  vir. 
Ver  Toleta  Temperial, 
Segur  poirem  cridar   reial 
E  paians  gen  desconfir. 

(Raynouard,  Choix,  t.  v,  p.  130-150. 

Em  uma  outra  Canção  envia  uma  saudação  a 
Portugal : 

En  Castella  et  en  Portugal 
Na  trametré  aquestas  salutz. 

Um  outro  trovador,  Gavaudan  o  Velho,  inci- 
tando por  uma  canção  os  monarchas  da  Península 
contra  a  invasão  de  Mohamed  ai  Nassir,  que  che- 
gara a  Sevilha  com  cento  e  sessenta  mil  homens, 
allude  a  Portugal,  exclamando  ironicamente: 

Portugales,  Gallicx,  Castellas, 
Navarrs,  Aragonês,  Ferraz, 
Lura  vcn  en  barra  sequitz 
Qu'els  au  rahuzatz  et  unitz. 

(Raynouard.  Choix,  t.  iv,  p.  3Ó,  87). 

Segundo  Baret,  as  Canções  de  Cercamons  e 
Peire  de  Valeira  foram  também  conhecidas  em 
Portugal,  (Ti'ob.,  p.  T19)  assim  como  do  des- 
vairado Peire  Vidal.  O  conhecimento  das  Can- 
ções trobadorescas  tornou-se  mais  directo,  desde 
que  D.  Affonso  Henriques  casou  em  1146  com  a 
princeza  Mahaut    (Mafalda,   de   Saboya  e  Mau- 


HISTORIA    DA    lITTERATURA    PORTUGUEZA 


riana) ;  este  casamento  seria  motivado  pelas  re- 
lações do  Conde  Borgonhez,  por  que 'então  a  Sa- 
boya  formava  parte  da  Borgonha.  Mafalda  era 
bisneta  de  Raymundo  Beranger,  o  Velho;  assim 
estava  relacionado  com  os  Condes  de  Barcelona. 
Pelos  casamentos  de  seu  filho,  D.  Sancho  i,  com 
Dulce,  de  Aragão,  e  de  Mafalda  com  esponsaes 
com  Raymundo  Beranger  de  Aragão,  e  Urraca  com 
o  rei  Fernando  ii  de  Leão,  a  fidalguia  portu- 
gueza  entrava  no  convivio  faustoso  d'essas  duas 
cortes,  pondo-se  em  contacto  com  os  trovadores 
provençaes  e  italianos  que  as  frequentavam. 

Na  Corte  de  Guimarães  não  havia  logar  para 
festas  que  attrahissem  os  trovadores;  D.  Affonso 
Henriques  andava  absorvido  no  esforço  da  inte- 
gração do  território  lusitano,  reconquistando-o 
sobre  os  Árabes,  e  no  desenvolvimento  das  ci- 
dades que  ia  resgatando,  e  ainda  com  as  allianças 
defensivas  com  as  outras  monarchias  hispanas. 
Os  trovadores  occitanicos  proclamavam  a  neces- 
sidade da  união  ibérica  imperial,  e  não  teriam  por 
isso  grande  sympathia  por  este  pequeno  estado 
autónomo  e  altivo,  em  que  na  cultura  ecclesiastica 
predominava  a  influencia  da  França  do  Norte. 
Mas,  apesar  d'esta  omissão  da  presença  de  tro- 
vadores, Guimarães  foi  o  centro  vital  da  primeira 
elaboração  poética:  «dentro  dos  limites  portugue- 
zes,  Guimarães  foi  o  primeiro  centro  de  Artes.»  i 
Fundamentemos.  O  centro  politico  da  recente  na- 
cionalidade portugueza  estabeleceu-se  em  Guima- 


T     D.   Carolina   Michaélis,   Cancioneiro   da   Ajuda,   ii 
p.  766. 


PRIMEIRA    época:    edade    média  173 

rães,  um  burgo  populoso,  que  se  desenvolvera  pelo 
acolhimento  á  protecção  do  Mosteiro  duplex,  fun- 
dado pela  viuva  Mumadona,  pelo  meado  do  sé- 
culo X,  e  pela  segurança  do  Castello  fundado 
sobre  a  montanha  fronteira  para  defender  o  Mos- 
teiro do  perigo  das  incursões  dos  Normandos. 
Sob  D.  Af  fonso  Henriques  ahi  se  estabeleceu  a  sua 
Corte :  é  também  ahi  que  um  Sanctuario  venerado 
attrae  os  crentes  e  as  generosas  of feitas;  é  ahi 
(jue  uma  população  agricola,  mas  essencialmente 
industrial  e  fabril,  se  reúne  como  elementos  or- 
gânicos de  uma  sociedade  nova  e  fecunda.  Essa 
povoação  alegre,  segura  e  rica  tem  o  prazer  do 
canto  e  da  dansa,  como  ainda  hoje  em  todo  o 
Minho ;  e  essa  Corte  e  o  venerando  Sanctuario  vão 
ser  os  meios  onde  as  Cantigas  de  amigo  e  as  Bai- 
lias vão  transformar-se  artisticamente  nas  Can- 
ções e  Sirventes  da  Corte,  e  nas  Sequencias  das 
festas  ecclesiasticas.  O  burgo  cujas  liberdades  e 
costumes  foram  garantidos  pelo  Foral  do  Conde 
D.  Henrique  em  1095,  ^"^  breve  é  o  ponto  em  que 
se  reúnem  em  Cortes  os  próceres  ou  fidalgos,  e 
os  bispos;  é  ahi  que  junto  ao  Castello  se  edificam 
f)S  Paços  reaes,  e  Guimarães  torna-se  o  foco  de 
toda  a  resistência  de  D.  Affonso  Henriques  de- 
fendendo a  autonomia  Portucalense.  Longe  dos 
assaltos  dos  Sarracenos,  a  população  vimaranense 
exerce  a  sua  actividade  na  fiação  do  linho,  na 
serralheria  e  curtimento  dos  couros.  A  vida  bur- 
gueza  vivifica  a  Canção  tradicional,  que  acompa- 
nha os  bailes  de  terreiro  e  as  romarias  distantes. 
O  caracter  burguez  dós  trovadores  occitanicos 
ajuda-nos  a  comprehender  esta  expansão  da  poesia 


174  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


lyrica.  Ondas  de  poesia  brotavam  d'este  centro, 
ciue  encantava  os  fidalgos,  que  não  hesitavam  a 
tomar  conhecimento  d'eíla  e  exhibil-a  nas  cortes 
de  Leão,  Aragão  e  Castella.  A  Galliza  estava 
então  decahida  da  sua  autonomia,  escravisada  na 
incorporação  leoneza;  e  afastada  das  relações  de 
Portugal,  desde  as  luctas  contra  D.  Thereza  e  os 
fidalgos  Gallegos.  Era  uma  efflorescencia  intei- 
ramente portugueza.  A  população  de  Guimarães 
differençava-se  segundo  a  sua  situação:  a  supe- 
rior, junto  do  Castello  de  San  Mamede,  pelo  seu 
desenvolvimento  forma  a  freguezia  (filius  ccclc- 
sicr)  de  San  Miguel,  á  qual  D.  Affonso  Hen- 
riques confere  privilégios  e  jurisdicção  própria; 
a  inferior  agrupa-se  em  volta  da  Egreja  e  mos- 
teiro de  Santa  Maria.  Eram  os  dois  Concelhos 
rivaes,  tendendo  a  absorverem-se,  luctando  pela 
imposição  dos  seus  privilégios  ou  murando-se 
para  segurarem  a  sua  independência.  Esta  riva- 
lidade dos  dois  Concelhos  só  veiu  a  terminar  sob 
D.  João  I,  trazendo  estimulada  as  duas  jx^voaçÕes 
em  uma  energia  social,  em  espirito  de  indepen- 
dência, que  suscitava  o  enthuziasmo  pela  tradi- 
ção poética  semi-apagada  em  outros  concelhos  dis- 
tantes. A  villa  vclJia  c  a  viJla  do  Castello  criaram 
a  energia  po])ular  da  laboriosa  e  rica  Guimarães 
unificada  nas  suas  magistraturas  locaes,  quando 
a  Corte  portugueza  teve  de  deslocar-se  para  o 
sul,  para  Coimbra,  e  pelos  progressos  da  recon- 
quista até  Santarém  e  Lisboa. 

Reconhecendo  o  extraordinário  valor  d'esta 
efflorescencia  da  poesia  popular,  escreve  D.  Caro- 
lina Michaèlis,  accentuando  a  sua  importância:  «a 


PRIMEIRA    rpoca:    edadk    media 


preexistência  de  uma  poesia  nacional  rústica  sacra 
e  profana  especialmente  na  Galliza  —  para  o  pro- 
blema das  origens,  os  contactos  com  os  represen- 
tantes das  diversas  nações  latinas  com  a  Galliza 
d'áquem  e  de  além  Minho,  e  com  o  reino  Asturo- 
leonez  nos  séculos  xi  e  xii,  (digamos  até  12 13) 
são  de  valia  incontestavelmente  superior  aos  que 
tiveram  logar  nos  séculos  xiii  e  xiv:  a  estada 
de  D.  Affonso  iii,  na  corte  de  S.  Luiz,  e  a  sua 
longa  demora  em  Bolonha,  assim  como  a  educação 
de  D.  Diniz  por  Aimeric  (rEbrard  de  Cahors.»  ^ 
Destacamos  esta  preexistência,  n'este  primórdio 
histórico  na  Galliza  de  áqncni  Minho,  onde  actua- 
va o  Ímpeto  de  uma  nação  recentemente  cons- 
tituida. 

A  Galliza,  apesar  dos  seus  antecedentes  ethtii- 
cos  persistentes  e  das  tradições  lyricas  populares 
oraes  pouco  podia  influir  na  expansão  e  florescên- 
cia do  Lyrismo  gallecio  portuguez.  Pouco  durou 
a  sua  independência  como  Condado  livre  em  863, 
sendo  como  consequência  do  espirito  unitarista  da 
reconquista  christã,  annexada  a  Leão  em  885  ;  não 
lhe  valeu  a  resistência  de  vinte  e  cinco  annos  para 
recuperar  a  sua  autonomia,  caindo  outra  vez 
n'essa  unificação  forçada  em  981 ;  e  sob  a  acção 
imperialista  de  Affonso  vi,  foi  incorporada  para 
sempre  a  Castella  em  1073.  E  á  medida  que  a 
Galliza  foi  perdendo  o  espirito  da  liberdade  e  a 
esperança    de    independência,    a    sua    lingua    foi 


I     Cancioneiro  da  Ajuda,  t.   ti,  p.  690;   ideia  tambeni 
sustentada  por  Lang". 


176  HISTORIA    DA    IJTTKRATURA    PORTUGUEZA 


abandonada  pelas  pessoas  cultas,  mantendo-se  no 
simples  uso  popular,  n'uma  atrazada  rusticidade, 
tornando-se  por  isso  muito  raros  os  seus  monu- 
mentos escriptos  ou  litterarios. 

N'esta  situação  miseranda,  que  influencia  po- 
deria exercer  a  Galliza  n'esse  phenomeno  brilhante 
do  apparecimento  do  Lyrismo  peninsular,  que  irra- 
diou do  norte  da  Hespanha,  da  região  galecio  por- 
tugueza?   Nenhuma. 

E  comtudo  o  facto  deu-se ;  reconheceu-o  ainda 
no  meado  do  século  xv  o  Marquez  de  Santillana, 
mas  sem  explical-o.  O  mesmo  succede  ainda  aos 
modernos  críticos,  ao  porem  em  evidencia  a  ex- 
traordinária importância  d'esta  renovação  inicia- 
dora ;  escreve  D.  Carolina  Michaèlis :  «ondas  de 
poesia  popular,  sabidas  do  coração  palpitante  da 
Galliza,  haviam  attingido  ao  mesmo  tempo  o  sul 
(Portugal)  e  o  leste  (Leão)  despertando  em  am- 
bos os  reinos  o  propósito  de,  procedendo  como  os 
provençaes,  catalães  e  francezes,  darem  á  vida  au- 
lica  um  nimbo  poético  de  intellectualidade  e  de  arte 
por  meio  da  cultura  da  Poesia,  da  musica  e  da 
dansa,  aperfeiçoada  segundo  o  gosto  então  do- 
minante da  Provença.»  (Canc.  d'Aj.,  11,  765.) 
Para  explicar  esta  influencia  da  Galliza,  morta 
para  a  autonomia  politica  na  época  da  expansão 
do  lyrismo  trobadoresco,  (1150  a  12 13)  Menendez 
y  Pelayo  recorre  ao  seguinte  argumento:  «O 
grande  feito  da  Peregrinação  compostellana  é  <^ 
que  dá  mais  luz  sobre  as  origens  da  poesia  nova.» 

«...Foi  disposição  providencial...  que  ...inces- 
santes ondas  de  peregrinos,  vindo  de  todas  as  re- 
giões do  Centro  e  Norte  da  Europa,  trouxe:  jem  a 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MEDIA  17/ 

Santiago,  ao  som  do  Canto  de  Ultréa,  os  germens 
da  sciencia  jurídica  e  escholastica  e  as  sementes 
da  Poesia  nova.»  (AntoL,  iii,  p.  xii.)  Menendez 
y  Pelayo  faz  a  Galliza  apenas  o  reflector  de 
uma  extranha  poesia,  sem  attender  aos  seus  vi- 
gorosos germens  tradicionaes ;  D.  Carolina  abra- 
ça este  influxo  das  peregrinações  a  Compostella, 
sem  reparar  que  a  fragmentação  da  Galliza,  cons- 
tituído o  Condado  Portucalense  que  se  tornou  na- 
ção independente  (1139),  deslocara  as  energias  or- 
gânicas para  Portugal  ou  a  Galliza  do  Sul.  A 
decadência  successiva  do  galleziano  e  o  uso  es- 
cripto  da  lingua  portugueza,  ficando  aquelle  um 
simples  dialecto,  proveiu  d'este  facto  decisivo,  o  da 
formação  de  uma  nacionalidade  com  condições  de 
resistência  e  de  acção  histórica.  E  á  medida  que 
Portugal  foi  estendendo  o  seu  dominio,  incorpo- 
rando até  D.  Affonso  iii  cidades  lusitanas  do 
sul,  a  lingua  f aliada  por  essas  povoações  veiu 
differenciar  a  lingua  portugueza,  que  se  exercia, 
da  lingua  gallega,  que  estacionava.  Não  foi  pro- 
priamente illusão  a  affirmativa  do  P.^  Sarmiento, 
que  via  na  linguagem  das  Cantigas  do  rei  Affonso 
o  Sábio  o  ((gallegtw  antiguo,  ai  qual  se  parece  mu- 
cho  el  português.))  Affonso  o  Sábio  não  ia  estu- 
dar uma  lingua  archaica  e  sem  cultura,  quando 
estava  em  relação  intima  de  interesses  e  parentesco 
com  a  Corte  portugueza.  E  não  errou  Argote 
y  de  Molina,  quando  observara  que  na  lingua  por- 
tugueza, se  escreviam  todas  as  coplas,  desde 
D.  Henrique  iii  até  D.  Juan  i.  (Nohl.  d' Andai, 
cap.  148.) 

Agora  comprehender-se-ha  melhor  o  texto  da 

12 


178  HISTORIA   DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Carta  ao  Condestavel  de  Portugal,  em  que  o  Mar- 
quez de  Santillana  accentua  a  prioridade  do  ly- 
rismo  trobadoresco  no  norte  da  Hespanha:  «E 
depois  acharam  esta  Arte,  que  Maior  se  chama,  e 
Arte  conimum,  creio,  nos  reinos  da  GalHza  e  Por- 
tugal, aonde  não  ha  que  duvidar  que  o  exercício 
d'estas  sciencias  mais  do  que  em  nenhumas  ou- 
tras regiões  e  provincias  da  Hespanha  se  acostu- 
mou ;  em  tanto  gráo,  que  não  ha  muito  tempo  quaes- 
quer  Dizidores  ou  Trovadores  d'estas  partes,  ou 
fossem  castelhanos,  andaluzes  ou  da  Extremadura, 
todas  as  suas  obras  compunham  em  lingua  gallega 
ou  portugueza.  E  ainda  é  cer^o  que  recebemos  os 
nomes  de  arte,  como  Maestria  Maior  t  menor,  enca- 
denados,  lexaprem  e  inansobre.))  (§  xv.)  Quando 
este  phenomeno  se  operou  já  de  longos  annos  não 
existia  o  reino  da  Galliza,  reduzida  a  província 
castelhana;  trovadores  portuguezes  frequentavam 
as  cortes  de  Leão,  de  Castella  e  Aragão,  onde 
exhíbiam  os  seus  versos  em  lingua  portugueza;  : 
quando  Santillana  notava  o  facto  «que  não  ha 
muito  tempo»  referia-se  a  essa  revivescência  do 
gallego  do  século  xv,  memorando  Macias,  Vasco 
Pires  de  Camões,  e  ainda  o  Arcediago  cie  Toro. 
Villasandino  e  D.  Diego  de  Mendoza.  Por  tudo 
isto  se  destaca  a  independência  da  Bschola  troba- 
doresca  portuguesa,  que  andou  anachronicamente 
confundida  com  o  elemento  gallego. 

As  referencias  que  se  fazem  ao  génio  e  lingua 
gallega,  no  século  xi  1 1,  correspondem  a  uma  épo- 
ca adiantada  da  Eschola  trobadoresca  portugueza, 
quando  os  Jograes  gallegos  concorreraih  á  Corte 
de  Guimarães.    Xo  Planeta,  de  Diego  de  Campo 


PRIMEIRA     HPOCA:     EDADE    MEDIA  Ijg 


(i2i8)  dirigido  ao  arcebispo  D.  Rodrigo,  exalta: 
((Galaecos  in  loqiuia;))  e  nas  Regras  de  Trobar, 
de  Jofre  de  Foxa  (1288  a  1327),  a  par  da  eschola 
fraiiceza,  provençal  e  siciliana,  cita  o  gallego,  isto 
quando  florescia  o  cyclo  dionisio,  em  cuja  corte  vi- 
\iani  fidalgos  e  jograes  gallegos  compondo  as  suas 
canções  em  portuguez,  renovando  as  melodias  e  as 
cantigas  populares. 

Este  caracter  popular  do  lyrismo  é  que  dá  todo 
o  realce  á  BscJwla  trohadorcsca  portugueza.  No 
s'ícuIo  X  í  r  deu-se  o  phenonieno  da  creação  da 
musica  moderna  pela  harmonia  dos  sons  simultâ- 
neos, que  a  antiguidade  não  conheceu;  eram  prin- 
cipalmente as  mulheres  que  cantavam,  alterando- 
se  o  acompanhamento  para  grave,  em  que  o  Des- 
cante se  fazia  com  terceiras.  Este  phenomeno 
ainda  se  observa  nas  povoações  do  Minho,  e  já 
fora  notado  no  século  xvii  pelo  Marquez  de 
Montebello:  «Com  grande  destreza  se  exercita  a 
musica,  que  é  tão  natural  em  seus  moradores  esta 
arte,  ((ue  succede  muitas  vezes  aos  forasteiros  que 
passam  pelas  ruas,  especialmente  nas  tardes  de 
verão,  parar  e  suspenderem-se  ouvindo  a^  trovas 
que  cantam  em  coros,  com  fugas  e  repetições  as 
raparigas,  que  para  exercitar  o  trabalho  de  que  vi- 
vem, lhes  é  permittido. ))  Nas  Cantigas  de  amigo, 
dos  Cancioneiros  portuguezes  são  as  raparigas  que 
faliam  de  amor,  das  ausências,  e  da  chegada  dos 
seus  namorados;  são  ellas  que  fazem  as  bailias, 
ou  dansas  coreadas,  e  as  que  cantavam  nas  egre- 
jas  os  «psalmos  compósitos  et  vulgares»  a  que  allu- 
de  um  cânon  de  San  Martinho  de  Braga.  Fixando 
este  aspecto  da  Bschola  trohadoresca  portugueza. 


l8o  HISTORIA    DA    IJTTRRATURA    PORTUGU^ZA 


nota  D.  Carolina  Michaèlis:  ((Em  Portugal  são 
—  meninas  em  cabello  as  que  os  peninsulares  ce- 
lebram nos  seus  versos  de  amor,  as  introduzem 
como  figuras  dramáticas  em  Cantares  de  amigo. 
Por  isso  são  tratadas  com  muito  mais  cerimonia  e 
recato.»  D'aqui  tira  a  differença  entre  os  trova- 
dores portuguezes  e  os  provençaes : 

((N'esta  parte  os  de  Portugal  talvez  lhes  levem 
vantagem :  na  sinceridade  dos  sentimentos  e  na 
ingenuidade  com  que  os  exprimem.  Mas  de  que 
vale  isso,  se  esses  sentimentos  são  sempre  os  mes- 
mos, de  uma  delicadeza  e  mesmo  tão  perfeita  que 
chega  a  desesperar? 

((Nos  Dizeres  de  escarneo,  por  ventura  a  pal- 
ma deve  ser  conferida  aos  peninsulares.  E  egual- 
mente  nos  Cantares  de  amigo,  de  caracter  popular, 
que  constituem  o  seu  mais  valioso  património.» 
(Canc.  d'Ajud.,  ii,  682.)  O  illustre  Milá  y  Fon- 
tanals,  que  estudou  os  Trovadores*  catalães  reco- 
nheceu os  caracteres  que  destacam  a  Eschola  tro- 
badoresca  portiigueza:  ((Pela  época  em  que  esta 
começa  a  florescer  e  pelo  tom  que  n'ella  domina, 
pela  ausência  de  erudição  escholastica  e  também 
pela  gerarchia  da  maior  parte  dos  que  a  cultivaram, 
é  entre  as  poesias  lyricas  da  Hespanha,  aquella 
que  com  mais  exactidão  se  pôde  denominar  £.s^- 
chola  de  Trovadores,  e  se  as  suas  composições 
of ferecem  alguma  analogia  com  as  dos  provençae.^ 
que  mais  se  distinguem  pela  naturalidade  e  pel'» 
earaeter  affectivo,  a  esphera  das  ideias  n'aquelles 
é  todavia  mais  limitada,  o  estylo  mais  simples  e 
menos  ambicioso,  o  que,  apesar  da  grande  mono- 


PRIMEIRA     época;     EDADE     MÉDIA  l8l 


tonia,  não  deixa  de  offerecer  certo  attractivo.»  i 
Essa  simplicidade  natural  e  apparente  monotonia, 
é  uma  caracteristica  do  génio  portuguez,  uma  das 
suas  feições  inconfundiveis,  tão  difíicilmente  ap- 
prehendidas  pelos  estrangeiros  ao  primeiro  en- 
contro. Sobre  este  fundo  orgânico  e  preexistente 
é  que  a  Eschola  trobadoresca  portugueza  evolu- 
ciona em  um  periodo  que  vae  de  Dom  Sancho  i 
até  Dom  Pedro  i,  representadas  pelas  formai 
do  seu  Lyrismo  as  trez  Nacionalidades  hispâni- 
cas :  a  Asturo-Galecio-Portugueza,  tendo  como 
chefe  o  rei  Dom  Diniz,  a  Catalana-Aragoneza 
com  Jayme  i,  e  a  Castelhana,  com  Affonso  o 
Sábio.  Foi  n'este  concurso  do  génio  esthetico  que 
competiu  a  Portugal  a  reconhecida  hegemonia. 

Determinada  a  existência  de  um  fundo  tradi- 
cional e  popular  do  Lyrismo  portuguez,  foi  na 
Corte  que  elle  teve  o  pleno  desenvolvimento  artis- 
tico,  conservando  o  seu  caracter  original  a  par  das 
imitações  trobadorescas  e  persistindo  na  littera- 
tura  pela  revivescência  nos  mais  vigorosos  génios 
poéticos.  Como  entrou  e  prevaleceu  na  Corte  este 
rudimento  da  Canção  popular?  Como  resistiu  e 
se  impoz  ás  manifestações  artificiosas  de  uma  poe- 
sia allegorica  com  que  os  trovadores  ocitanicos 
exprimiam  as  doutrinas  do  Amor?  Pelo  conheci- 
mento do  meio  courtois,  nas  suas  relações  com  as 
Cortes  peninsulares,  não  só  pelos  casamentos  reaes, 
mas  ainda  pelos  conflictos  que  forçaram  por  vezes 
muitos  fidalgos  de  Portugal  a  refugiarem-se  n'es- 


I     Os  Trovadores  em  Hespanha,  p.  533. 


l82  HISTORIA    J)A    LlTTlíKATUKA    PORTUGUEZA 


sas  Cortes,  é  que  se  pôde  comprehender  este  phe- 
nomeno  excepcional :  a  originalidade  da  Eschola 
trobadoresca  portugiieza,  e  esse  outro  facto  ex- 
traordinário (Je  ser  a  língua  portiiguesa  a  preferida 
nas  Cortes  peninsulares  para  a  expressão  do  nas- 
cente lyrismo. 

Sobordinada  a  Eschola  trobadoresca  portugue- 
za,  na  sua  evolução,  ás  modificações  por  que  pas- 
sou a  Corte  nas  suas  phases  históricas,  e  em  frente 
dos  documentos  litterarios  chronologicamente 
agrupados,  ella  constitue  estádios : 

—  Cyclo  pre-Affonsino  (1185  a  1248):  que 
abrange  os  três  reinados  de  D.  Sancho  i,  D.  Af- 
f  onso  1 1  e  D.  Sancho  1 1 . 

—  Cyclo  Affonsino  (1248  a  1279)  em  que 
durante  o  reinado  de  D.  Affonso  iii  a  poesia 
lyrica  é  cultivada  principalmente  i>elos  fidalgos 
que  estiveram  com  elle  na  corte  franceza. 

^  —  Cyclo  Dionisio  (1279  a  1385)  em  que  o  rei 
D.  Diniz,  corno  o  mais  fecundo  e  mais  talentoso 
trovador  porttiguez  cultiv^  e  protege  a  lyrica 
artistica  eao  mesmo  tempo  os  que  conservam  a 
sympathia  pelas  cantigas  populares. 

—  Cyclo  post-Díonisio  (1325  a  1357)  em  que 
as  Canções  provençalescas  são  substituidas  pela 
imitação  dos  Lais  bretãos,que  tornando-se  narra- 
tivos determinam  a  forma  da  Novella. 

a)  —  Cyclo  prc-Affonsino:  As  luctas  incessan- 
tes de  D.  Affonso  Henriques  para  manter  a  au- 
tonomia do  estado  de  Portugal  contra  a  absorpção 
castelhano-leoneza,  e  as  campanhas  contra  os  Ára- 
bes para  estender  o  dominio  d'esta  quinta  Monar- 


PRIMEIRA   época:    edade   média  183 


chia  para  o  sul,  encheram  o  seu  longo  reinado,  não 
dando  logar  aos  ócios  da  corte  e  ás  festas  palacia- 
nas, que  attrahiam  os  mais  celebrados  trovadores. 
Nos  seus  perseverantes  estudos  sobre  esta  época, 
chegou  D.  Carolina  Michaèlis  a  esta  conclusão  ne- 
gativa, mas  importante  nas  suas  consequências: 

((Da  vinda  de  Trovadores  a  Guimarães,  Porto, 
Coimbra,  Lisboa,  Santarém,  nada  de  positivo  cons- 
ta todavia,  apesar  das  relações  de  parentesco,  das 
allianças,  da  influencia  das  colónias  frankas,  quer 
antes  quer  depois  de  1200.»  (Canc.  Aj.^  11,  723  ) 
Isto  revela  como  os  germens  tradicionaes  não  fo- 
ram abafados  por  uma  imitação  banal  das  formas 
provençalescas.  Mas  o  gosto  pelo  lyrismo  foi  sus- 
citado pelo  que  se  passava  nas  outras  cortes.  A 
filha  do  primeiro  rei  de  Portugal,  D.  Urraca,  é 
casada  com  Fernando  11,  rei  de  Leão,  (divor- 
ciado por  imposição  do  papa  a  pretexto  de  pa- 
rentesco) ;  d'este  casamento  nasceu  D.  Af  fonso  v, 
pae  de  Fernando  iii,  o  Santo,  esse  que  tanto  prote- 
geu os  trovadores  que  frequentaram  a  sua  corte, 
e  que  reuniu  á  Coroa  de  Leão  a  Coroa  de  Castella. 
Pelas  relações  intimas  com  a  Corte  de  Leão,  po- 
deram  os  fidalgos  portuguezes  conhecer  os  trova- 
dores provençaes  que  a  frequentavam  e  apreciar 
as  suas  Canções.  Sob  a  impressão  dos  cantares  de 
Hugo  de  San  Cyr,  Guilherme  de  Adhemar,  Elias 
Cairel,  de  Beltran  de  Almanon,  Sordello  de  Man- 
tua,  Azemar  o  Negro,  e  do  grande  mestre  dos 
Trovadores  Giraud  de  Borneil,  os  trovadores  ix)r- 
tuguezes  adaptaram  a  lingua  nacional  á  expressão 
do  sentimento  amoroso,  na  sua  forma  métrica, 
vindo  assim  a  tornar  a  lingua  portugueza  exclu- 


l84  HISTORIA    DA    I.1TTERATURA    PORTUGUEZA 


siva  da  nova  poética  nas  Cortes  peninsulares.  No 
seu  esforço  para  manter  a  autonomia  de  Portu- 
gal contra  a  absorpção  castelhana,  D.  Affonso 
Henriques  allia-se  com  a  monarchia  catalano-ara- 
gonesa,  vindo  seu  filho  D.  Sancho  i  a  casar  com 
l).  Dulce,  ou  Aldonça,  irmã  de  Ramon  Beran- 
ger  IV ;  outra  irmã  d'este,  D.  Berenguella,  casa 
com  Affonso  vii  (o  Imperador)  primo  do  pri- 
meiro rei  de  Portugal.  As  festas  d'este  ultimo 
consorcio  foram  celebradas  por  tomarem  parte 
muitos  trovadores  e  jograes.  A  rainha  Beren- 
guella introduziu  na  corte  de  Castella  a  civilisação 
provençal,  e  ahi  nos  apparecem  os  trovadores  Mar- 
cabrus,  Gavaudan  o  Velho  e  Peire  Vidal,  os  úni- 
cos que  nas  suas  Canções  se  referem  directamente 
a  Portugal :  ahi  dois  trovadores  Rambaud  de  Va- 
queiras e  Bonifazio  Calvo  compozeram  Canções 
na  lingua  portugueza!  Por  estas  relações  com  as 
cortes  de  Leão,  Aragão  e  Castella,  alargavam-se 
as  visitas  dos  fidalgos  portuguezes,  tendo  de  com- 
l)etir  com  os  mais  afamados  trovadores,  que  ahi 
concorriam  atrahidos  pela  cruzada  contra  os  sar- 
racenos, ou  pela  protecção  dos  reis  de  Aragão 
so1>eranos  antigos  da  Provença. 

O  rei  D.  Sancho  i,  que  só  occupou  o  throno 
depois  dos  trinta  e  um  annos  de  edade,  foi  tam- 
bcm  trovador,  como  outros  soberanos  peninsu- 
lares: antes  de  estudar  a  Canção  de  amigo,  que 
ainda  se  conserva,  importa  accentuar  estas  rela- 
ções de  parentesco,  que  tanto  actuaram  n'este  cy- 
clo  poético.  Pelo  casamento  de  seus  filhos,  fixa- 
ram-se  mais  intimamente  as  relações  com  estas 
três  cortes  poéticas :  o  seu  primogénito,  D.   Af- 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  185 


fonso  1 1  casa  com  D.  Urraca,  lilha  de  D.  Af fonso 
de  Castella;  o  infante  D.  Pedro,  que  fora  perigri- 
nar,  casa  em  Aragão,  onde  foi  Conde  de  Urgel; 
e  sua  filha  D,  Thereza,  casa  com  Af  fonso  ix  de 
Leão  (divorciada  depois  por  imposição  do  papa.) 
Estas  trez  Cortes  estavam  abertas  para  a  fidalguia 
portugueza,  onde  cultivava  o  gosto  provençalesco, 
longe  das  perturbações  guerreiras  de  Portugal,  em 
uma  lingua  que  era  a  que  se  fallava  no  alto  Mi- 
nho e  Douro.  O  critico  Menendez  y  Pelayo  aponta 
imparcialmente  em  que  consiste  essa  imitação :  «O 
único  resultado,  o  mérito  grande  e  positivo  d'esta 
imitação  provençal  consiste  na  parte  technica,  na 
gymnastica  das  rimas,  na  dura  aprendizagem  que 
converteu  a  lingua  gallaica  no  mais  antigo  typo 
dos  dialectos  ly ricos  da  Peninsula.»  ^  Este  aper- 
feiçoamento artístico  deu-se  na  lingua  portugueza, 
cujos  documentos  coevos  em  prosa  contrastam  pela 
sua  rudeza  morphologica  e  syntaxica.  O  lyrismo 
portuguez  apropriando-se  d'essas  formas  cultas  va- 
riadíssimas, conservava  o  seu  espirito  originário, 
o  sentimento  nosso,  delicado,  ingénuo,  e  por  vezes 
o  reproduziram  conscientemente  adoptando  a  ex- 
pressão portugueza  os  próprios  trovadores  occi- 
tanicos.  A  Eschola  trobadoresca  portugueza  teve 
(kias  fortes  manifestações :  a  efflorescencia  de  Can- 
ções de  amor  e  de  escarneo,  nas  cortes  de  Leão, 
Aragão  e  de  Castella,  onde  foram  colligidos  os 
cadernos  ou  rolos  avulsos  que  se  juntaram  ao 
Cirande   Cancioneiro   portuguez,    e   o   desenvolvi- 


T     Antologia  de  Poetas  líricos  castellanos,  iii,  p.  xv. 


lcS6  HISTORIA    DA    UITTERATURA    FORTUGUÊZA 

mento  orgânico  na  corte  de  Portugal  até  ao  re- 
gresso de  D.  Affonso  iii  de  França,  em  que  o  ly- 
rismo  não  reflecte  um  contacto  directo  com  os  tro- 
vadores provençaes.  Lang  observando  a  ausên- 
cia de  trovadores  provençaes  em  Portugal,  assenta 
sobre  essa  omissão  uma  das  causas  da  indepen- 
dência da  Eschola  lyrica  portugueza.  E  por  que 
não  vinham  esses  cantores  a  Portugal  ?  O  mesmo 
critico  attribue-o  á  instabilidade  da  nova  Monar- 
chia.  E'  certo  que  alguns  d'elles  se  mostravam 
hostis  a  Portuga],  como  o  jogral  Perdigon,  sati- 
risando  D.  Sancho  i  (Canc.  Ajud.,  ii,  733  not.  1 
e  Guilherme  de  Tudela  motejando  D.  Affonso  u. 
O  equilíbrio  politico  da  Hespanha  firmava-se 
na  existência  das  quatro  Monarchias,  Leão,  Ara- 
gão, Navarra  c  Castella;  Portugal,  constituindo  a 
quinta  Monarchia,  era  um  obstáculo  para  reali- 
sar-se  a  unificação  politica  tendo  por  centro  Ara- 
gão ou  Castella.  O  trovador  Peire  Vidal 
(1175-1215)  elogiando  os  Reis  de  Hespanha  falia 
determinadamente  nas  quatro  Monarchias,  omit- 
tindo  a  mais  recente  que  era  a  de  Portugal : 

Ais  quatro  reis  cVEspaign  estai  niont  mal 
quar  no  valen  avcr  patz  entre  lor. 

(Ap.  Bartsch.,  364) 

A  existência  da  quinta  Moíiarchia  era  ainda 
instável:  em  1158  fora  combinado  em  Sahagun, 
entre  os  reis  de  Leão  e  de  Castella  a  suppressão  (U) 
reino  de  Portugal,  plano  ainda  proseguido  por 
1).  F^ernando  11.  As  condições  de  independência 
impunham-se  pela  incorporação  da  faixa  de  oeste 


PRIMEIRA    kpoca:    icdajje;    média  187 


conquistada  aos  sarracenos;  e  esse  espirito  portu- 
guez  nas  cortes  peninsulares  era  também  uma  for- 
ça. O  trovador  Peire  Guilhem,  já  falia  em  uma 
canção  nos  Cinco  Remos  de  Espanha  (Ap.  Milá, 
Trov.,  p.  197.)  As  circumstancias  occorrentes 
afastavam  os  Trovadores  de  Portugal;  pela  to- 
mada de  Jerusalém  em  1187,  recrudesceu  o  delirio 
da  Cruzada,  e  armadas  transportavam  cavalleiros 
de  Dinamarca,  Flandres,  Hollanda  e  Frisia.  O  rei 
D.  Sancho  i,  aproveitou  esta  passagem  dos  cru- 
zados para  tentar  a  tomada  de  Silves,  em  uma 
expedição  commandada  por  seu  cunhado  D.  Men- 
do Gonçalves  de  Sousa,  o  principal  rico-homem. 
mais  conhecido  pelo  titulo  de  Conde  Sousão.  Essas 
campanhas  longinquas,  não  permittiam  os  ócios 
palacianos,  a  que  os  trovadores  concorriam.  Mas 
a  vida  da  guerra  contra  a  mourisma  não  era  in- 
compatível com  as  praxes  da  galanteria,  como  se 
formulara,  consagrando  o  uso,  nas  Leis  de  Par- 
tidas:  «E  aun  porque  se  esforçasen  mas,  tenian 
])or  cosa  guisada  que  los  que  ovicsen  amigas  que 
las  noineassen  en  las  lides  por  que  les  creciesen  los 
corazones  é  tuviesen  verguenza  de  errar.»  O  rei 
D.  Sancho  i  cumprira  á  risca  o  dictame;  depois 
dos  amores  com  D.  Maria  Aires  de  Fornellos,  an- 
dava loucamente  apaixonado  pela  estonteante 
D.  Maria  Paes  da  Ribeira,  a  celebrada  Ribeirinha 
a  quem  fazia  Canções  para  ella  e  as  suas  damas 
cantarem.  Esta  paixão  pela  mulher  fatídica,  de 
quem  teve  muitos  filhos,  durou  até  á  morte  do 
rei  desde  ti 86  até  t2ii.  Eis  a  Canção  que  resta, 
colligida  no  Cancioneiro  Colocci-Brancuti,- n.*^  45: 


l88  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Ay!  eu,  cuitada 
Como  vivo 
Em  gram  cuidado 
Por  meu  amigo, 
Que  hei  alongado! 

Muito  me  tarda 
O  meu  amigo 
Na  Guarda ! 


Ay !  eu  cuitada 

Como  vivo 

Em  gram  desejo 

Por   meu  amigo, 

Que  tarda  e  não  vejo ! 
Muito  me  tarda 
O  meu  amigo 
Na  Guarda. 


IJona  Carolina  Michaèlis  fundamenta  a  au- 
thenticidade  da  Canção  com  a  nota  de  Colocci  a 
H.  loo  ^:  a  Registo:  outro  Rótulo  das  Cantigas 
que  fez  o  mui  nobre  Rei  Don  Sancho  de  Portu- 
gal, c  diz:  —  Ai,  eu  coitada  como  vivo.»  (Ed. 
Molteni,  p.  148.)  E  interpretra  o  refren:  uFoi 
no  anno  de  1 199,  que  D.  Sancho  i  deu  em  Coim- 
bra Foral  á  Guarda  que  acabava  de  fundar  e  po- 
voar, como  que  em  resposta  á  fundação  leoneza 
de  Ciudad-Rodrigo...  N'este  mesmo  anno,  ou  du- 
rante os  trabalhos  da  fundação,  creio  foi  escripto 
])elo  filho  de  D.  Af fonso  Henriques  o  mais  antigo 
entre  todos  os  Cantares  de  amigo  em  disticos...  o 
qual  é  ao  mesmo  tempo  uma  das  mais  archaicas 
poesias  ])()rtuguezas.))  (Canc.  da  Aj.,  t.  11,  393.) 
1).  Carolina  Michaèlis  dá-lhe  a  forma  de  distico 
segundo  o  rythmo  da  dansa  de  mnineira: 


PRIMEIRA    época:    edade    média  189 

Ai,  eu  cuitada,  como  vivo 

Em  gram  cuidado  por  meu  amigo, 

Que  hei  alongado!    Muito  me  tarda 

O  meu  amigo  na  Guarda. 

Ai,  eu  cuitada,  como  vivo 

Em  gram  desejo  por  meu  amigo, 

Que  tarda  e  nem  vejo!   Muito  me  tarda 

O  meu  amigo  na  Guarda! 

Preferimos  o  corte  estrophico  pelas  cadencias 
da  melodia,  indicado  pelas  mudanças  da  rima. 
Apoz  este  Cantar  de  amigo,  segue  a  rubrica  Bi 
Rey  Dom  Affonso  de  Leon;  julgamos  ser  affon- 
so  IX,  sobrinho  de  D.  Sancho  i,  que  também  cul- 
tivou a  poesia,  e  que  se  destaca  de  Affonso  o  Sá- 
bio, que,  dez  Canções  adiante  tem  uma  Canção 
religiosa  (N.o  359)  com  a  rubrica:  Bi  Rey  Dom 
Affonso  de  Castella  e  de  Leon.  São  um  extraor- 
dinário documento  do  uso  da  lingua  portugueza 
nas  duas  cortes  de  Leão  e  de  Castella;  quanto  á 
corte  de  Portugal  é  bem  digno  de  consideração 
o  predominio  da  forma  popular  da  Cantiga  de 
amigo,  muito  antes  da  corrente  jogralesca  que 
irrompeu  no  Cyclo  dionisio,  e  d'essas  Serranilhas 
que  reflectiram  as  Pastorellas  francezas,  das  quaes 
escreve  Menendez  y  Pelayo :  «Nota-se  na  Ser- 
ranilha  artistica  e  provençalisada,  um  giro  mais 
abstracto,  impessoal  e  vago,  menos  intimidade  ly- 
rica,  menor  enlevo  de  poesia  e  mysterio  e  também 
menos  soltura  de  versificação.»  (Antolog.,  iit,  p. 
XXXIV.)  Essas  Cantigas  de  amigo,  compostas  por 
trovadores  do  cyclo  pre-Affonsirío,  reflectiam  a 
pura  tradição  conservada  no  povo  portuguez.  E' 
diante  d'este  facto,  que  antecedeu  a  concorrência 
dos  jograes  gallegos,  que  surge  o  problema  não 


I90  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


já  da  origem  mas  da  sua  maior  intensidade  em 
Portiií^al.    Menendez  y  Pelayo  escreve: 

«Quem  poderá  chegar  até  ás  mais  recônditas 
raizes  d'este  lyrismo  ?  Quem  poderá  surprehender 
seus  primeiros  passos  infantis?  Trata-se  de  um 
fundo  ethnico  commum  a  todos  os  povos  do  Meio 
Dia  da  Europa,  ou  de  algum  próprio  e  caracte- 
rístico do  povo  gallego?  Porque  alvoreceu  alli  a 
poesia  lyrica  com  caracter  mais  popular  do  que 
na  Provença,  e  com  certo  fundo  de  melancholia 
vaga,  mysteriosa  e  devaneadora?  A  todas  estas 
perguntas  tem-se  procurado  dar  resposta,  porém 
até  agora  com  mais  força  de  engenho  e  agudeza 
do  que  de  critica.»  (Antologia,  t.  iii,  p.  xvii.) 
O  fundo  ethnico  ou  substratum  commum  Occi- 
dental está  comprovado  pelos  cantares  narrativos, 
colligidos  pelos  folkloristas ;  nos  cantos  lyricos  é 
a  melodia  que  persiste,  sendo  a  letra  instável,  mas 
ainda  assim  as  similaridades  subsistem.  Para  esta. 
sobrevivência  a  região  gallaica  ou  propriamente 
portugueza  tem  um  caracter  privativo,  fundamen- 
talmente sociológico.  O  reino  de  Portugal  ou  a 
Quinta  Monarchia  constituiu-se  por  aggregação 
de  Cidades  livres  ou  municipalistas,  em  que  o 
Presidente  (ou  Podcstat,  á  maneira  de  Itália)  da 
Behetria  foi  reconhecido  por  um  pacto  politico, 
como  Rei.  Os  Innumeros  Foraes  dados  por  D.  Af- 
fonso  Henriques  e  D.  Sancho  i  ás  Cidades  lusas 
reconquistadas  aos  sarracenos,  são  esses  pactos 
bilateraes,  em  "que  os  soberanos  ou  chefes  milita- 
res não  apagaram  a  autonomia  municipalista  ou 
independência  civil.  A  lucta  na  reconquista  chris- 
tã  até  D.  Af  fonso  1 1 1  manteve  a  energia  d'esta 


PRIMEIRA    época:    edade    media  191 


forte  população  civil,  cujo  poder  democrático  pre- 
valeceu no  desenvolvimento  das  Cortes  com  o  ti- 
tulo de  Braço  popular.  Os  seus  Cantos  tradicio- 
naes  eram  uma  alegria  viva,  que  animara  a  corte 
do  monarcha  e  os  solares  dos  fidalgos.  Emquanto 
ng  sul  da  França  e  na  Itália  apenas  se  conserva- 
ram raros  vestigios  dos  germens  populares  elabo- 
rados artisticamente  pelos  trovadores  occitanicos, 
em  Portugal  o  fundo  lyrico  é  todo  de  caracter  po- 
pular, por  que  este  elemento  social  era  orgânico 
e  exclusivo  da  nacionalidade,  constituida  pelo  pen- 
dor da  época  em  Monarchia.  E'  preciso  ter  sem- 
pre em  attenção  esse  facto  histórico  das  Behetrias, 
para  comprehender  o  caracter  social,  politico  e 
artistico  ou  litterario  de  Portugal,  em  qualquer 
época. 

«O  Doutor  João  Pinto  Ribeiro,  o  homem  de 
T640,  no  seu  tratado  das  Injustas  successões  de 
Castclla,  pretende  provar  que,  quando  os  Portu- 
guezes  acclamaram  Affonso  Henriques,  a  maior 
parte  das  povoações  do  reino  eram  Behetrias,  isto 
é,  não  sugeitas  a  senhorio  algum,  podendo  eleger 
seus  chefes  e  governadores.  D'onde  conclue,  que 
no  tempo  da  acclamação  de  Ourique,  e  no  da  sua 
confirmação  em  Lamego  pelos  prelados,  magna- 
tas e  procuradores,  não  se  commetteu  acto  algum 
de  rebellião  contra  os  reis  de  Castella,  que  de  fa- 
cto não  eram  senhores  do  reino  de  Portugal ;  pois 
as  suas  povoações  gosavam  dos  foros  de  Behe- 
trias, como  fica  dito.  Ainda  depois  de  constituida 
a  monarchia,  houve  terras  que  não  perderam  esta 
qualificação ;  e,  sobre  reconhecerem  o  dominio  ge- 
ral do  rei,  no  mais  conservavam  a  prerogativa  de 


192  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

eleger  o  seu  governador,  e  de  não  poderem  ser 
dadas  em  senhorios  a  ninguém.»  i 

Nos  paizes  em  que  predominaram  as  institui- 
ções municipalistas,  como  na  Alta  Itália  e  em  Por- 
tugal, existiu  uma  vigorosa  poesia  popular,  e  con- 
sequentemente um  florente  lyrismo  artistico  rela- 
cionado com  as  suas  origens  orgânicas.  Na  Lom- 
bardia, com  o  fim  dos  Õttões,  em  1002,  estabele- 
ceram-se  as  Republicas  italianas,  de  Milão,  Como, 
Novara,  Pavia,  Lodi,  Cremona  e  Bergamo:  é 
n'essa  vida  civil,  activa  e  livre  que  se  criam  todos 
os  germens  artisticos  e  capacidades  estheticas  em 
que  o  génio  italiano  se  revela  na  primeira  Renas- 
cença. E  ainda  depois  de  terem  cabido  essas  Re- 
publicas no  século  xii  sob  Frederico  Barba-Roxa. 
ellas  bem  conheceram  onde  residia  a  sua  força 
•  confederando-se  para  a  resistência  na  Liga  Lom- 
barda. Não  admira  que  os  trovadores  occitanicos 
achassem  na  Ttalia  sympathia  pela  arte,  e  que 
muitos  dos  principaes  trovadores  do  século  xii  e 
xTii  sejam  italianos.  As  relações  da  Itália  com 
Portugal  datam  do  começo  de  seu  estabelecimento 
em  Estado  autónomo;  esse  influxo  manifesto  na 
cultura  mental  jurídica  e  theologica,  coadjuvava 
a  intensidade  poética  dos  costumes  populares,  cu- 
jas canções  amorosas  se  escutavam  e  imitavam  na 
corte  de  D.  Sancho  i,  prevalecendo  sobre  os  refina- 
mentos cultos  do  provençalismo.  Este  facto  capital 
das  Bchetrias  ou  Cidades  confederadas  sob  a  fór- 


I     Dialogo  dos  Mortos,  Interlocutores  Padre  Macedo 
—  Padre  Amaro.  Pag.  17.  Londres.  Tn-8.*  (1830,  sem  data.> 


PRIMEIRA   época:   edade   média  193 

ma  monarchia,  com  as  suas  garantias  reconhe- 
cidas em  Cartas  de  Foral,  além  do  génio  da 
raça  e  da  persistência  da  tradição,  explica  o  vigor 
d'esse  fundo  popular,  que  tanto  caracterisa  o  Ly- 
rismo  portuguez,  máo  grado  a  influencia  que  ti- 
nham de  exercer  os  Trovadores  occitanicos  que 
frequentaram  as  Cortes  de  Leão,  de  Aragão  e  de 
Castella,  intimamente  relacionadas  com  a  de  Por- 
tugal pelos  enlaces  matrimoniaes  e  parentescos. 
Na  época  em  que  as  Cantigas  de  amigo  eram  imi- 
tadas na  corte  de  D.  Sancho  i,  dava-se  o  con- 
flicto  com  a  monarchia  de  Leão,  por  motivo  do 
monarcha  portuguez  ter  occupado  Tuy,  Ponteve- 
dra  e  Sampaio  de  Lombe;  a  tradição  popular  gal- 
lega,  n'esta  hostilidade  internacional,  não  teve  o 
acolhimento  que  se  deu  mais  tarde  no  cyclo  dioni- 
sio,  sendo  somente  ahi  verdadeiro  o  facto  procla- 
mado pelo  marquez  de  Santillana:  que  nas  Cor- 
tes peninsulares  era  em  gallego  ou  português, 
que  se  tratava  a  poesia.  A  sympathia  de  D.  San- 
cho I  pela  forma  das  Cantigas  de  amigo  revela 
o  espirito  do  seu  governo,  procedendo  ao  desen- 
volvimento e  defeza  das  cidades,  depois  de  arran- 
cadas do  jugo  sarraceno,  dando-lhes  foraes,  fa- 
zendo o  arroteamento  dos  terrenos  incultos,  fun- 
dando novas  povoações,  defendendo-as  com  for- 
talezas, e  resistindo  ás  terriveis  crises  de  novas 
incursões  dos  Árabes,  de  que  lhe  resultou  a  per- 
da de  Silves  e  de  Alcácer  do  Sal,  e  ás  perturba- 
ções de  fomes  e  de  peste.  A  poesia  lyrica  da  Es- 
chola  trobadoresca  ix)rtugueza  adquire  em  frente 
dos  trovadores  occitanicos  esse  caracter  que  a 
destaca  na  sua  originalidade:  a  Arte  communi, 
13 


194  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


partindo  da  métrica  popular  ou  o  Doble  menor, 
para  as  Canções  de  amor,  e  3.  Arte  maior  ou  Gram 
Mestria  para  as  Canções  de  maldizer,  que  têm 
também  uma  feição  caracteristica :  as  luctas  po- 
liticas do  fim  do  reinado  de  D.  Sancho  i,  de 
D.  Affonso  1 1  e  D.  Sancho  11,  actuaram  no 
desenvolvimento  da  poesia  satirica  ou  de  es- 
carne o. 

Da  allusão  histórica  á  Guarda  deduziu  D.  Ca- 
rolina Michaèlis  que  a  Canção  de  D.  Sancho  i 
era  inspirada  pela  Ribeirinha,  a  formosa  Dona 
Maria  Paes  Ribeiro,  também  celebrada  i^elos  tro- 
vadores portuguezes  palacianos.  Segundo  as  re- 
ferencias dos  Nobiliários,  era  filha  de  D.  Payo 
Moniz  e  D.  Urraca  Nunes :  «ouvea  el  rei  D.  San- 
cho, o  yelho,  por  barregan  e  fez  en  ella  semel; 
depois  que  morreu  este  Rey  D.  Sancho,  casou 
com  João  Fernandes  de  Lima.»  Foi  a  ella,  quan- 
do estava  no  auge  do  seu  favoritismo,  que  o  tro- 
vador Payo  Soares  de  Taveirós  escreveu  a  Can- 
ção n.o  38.  do  Cancioneiro  da  Ajuda: 

e  vós,  filha  de  Don  Pay 
Moniz,  e  bem  vos  semelha 
d'aver  eu  por  vos  guarvaya: 
pois  eu,  mia  senhor,  d'alfaya 
nunca  de  vós  houve,  nen  hei 
valia  de  uma  corrêa. 

A  palavra  guarvaya  apparece  empregada  na 
pragmática  de  1340,  onde  se  falia  em  pannos  de 
sol  ia,  tabardo,  redondel  e  guarvaya,  e  é  permit- 
tida  ao  rei  e  aos  princepes.  Parece  referir-se  a 
uma  veste  de  arminho  ou  de  pelles,  ^  mo  se  de- 
l)reheiíde  do  verso : 


PRIMEIRA    IJPOCA:     EDADE     MÉDIA  IQ5 


Bisclaveret  ad  nom  en  Bretan, 
Garzvall  Tappellent  li  Norman. 

Este  D.  Payo  Moniz  foi  um  dos  que  con- 
firmaram o  Foral  da  Guarda  de  1199.  Dos  amo- 
res com  a  Ribeirinha  nasceram  D.  Gil  Sanches, 
que  foi  trovador,  e  D.  Rodrigo  Sanches,  que 
morreu  na  Lide  do  Porto,  denominado  um  outro 
Rotidandus,  e  duas  filhas,  todos  opulentamente 
dotados  pelo  rei.  No  Cancioneiro  da  Ajuda,  n.^ 
^^2  vem  uma  Canção  de  D.  Gil  Sanches,  no  gosto 
popular,  paralletistica  e  de  refrem;  começa: 

Tu  que  ora  veens  de  Monte-mayor, 
Digas-me  mandado  de  mia  senhor. 

Tu  que  ora  viste  os  olhos  seus, 
Digas-me  mandado  d'ella,  por  Deus. 

Pelo  Livro  velho  das  Linhagens  sabe-se  que  era 
clérigo  dos  mais  considerados  de  Hespanha,  vi- 
vendo em  mancebia  com  D.  Maria  Gomes  de  Sou- 
sa, uma  das  Netas  do  Conde,  do  maior  rico  ho- 
mem de  Portugal,  o  Sousão.  Por  este  enlace, 
D.  Gil  Sanches  era  como  genro  de  D.  Garcia 
Mendes  de  Eixo,  o  primeiro  trovador  da  familia 
Sousão,  e  cunhado  de  outro  trovador  D.  Fernan- 
do Garcia  Esgaravunha.  As  netas  do  Conde  eram 
conhecidas  pelos  apodos  dos  trovadores  pelas  suas 
aventuras  amorosas,  reveladas  pelos  Nobiliários  c 
por  algumas  Canções  do  Cancioneiro  da  Ajuda, 
como  a  de  Martins  Soares,  n.o  398.  Figuram  os 
outras  netas  do  Conde,  filhas  de  D.  Guiomar 
Mendes  de  Sousa  e  D.  João  Peres  da  Maia: 
D.  Thereza  Gil,  favorita  de  Sancho  o  Bravo,  fi- 
lho de  Affonso  o  Sábio,  D.   Elvira  Annes,  que 


196  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

foi  roussada  pelo  infanção-trovador  Ruy  Gomes 
de  Briteiros,  depois  nobilitado;  e  Mari'Annes, 
que  casou  com  D.  Gil  Martins,  partidário  de 
D.  Sancho  11.  O  trovador  Martin  Soares  cele- 
brou em  uma  Canção  as  netas  do  Conde,  e  em  es- 
pecial o  caso  de  D.  Elvira,  como  o  indica  na  ru- 
brica: aBsta  Cantiga  de  cima  fez  Martin  Soares 
a  Ruy  Gomes  de  Briteiros,  que  era  Infançon  (e 
depois  fez-lo  el-rei)  Ric ornem,  por  que  roussou 
Dona  Elvira  Annes,  filha  de  D.  João  Peres  da 
Maia  e  de  D.  Guiomar  Mendes,  filha  dei  Conde 
Mendo.))    Começa: 

Pois  boas  donas  son  desemparadas 
e  nulho  ornem  nó  nas  quer  defender, 
no  n'as  quer'  eu  deixar  estar  quedadas, 
mais  quer'eu  duas  por  força  prender, 
ou  três  ou  quatro,  quaes  m'eu  escolher! 
Pois  non  an  já  per  quem  sejam  vengadas, 
netas  do  Conde  quer'  eu  cometer, 
que  me  seran  mais  pouc'  acosmiadas. 

Na  segunda  estrophe  allude  ao  facto  das  emi- 
grações de  fidalgos  portuguezes  por  luctas  par- 
tidárias e  conflictos  de  familia  de  se  deitar  a 
Castella.  A  Canção  396,  que  é  uma  tenção  entre 
dois  trovadores  Payo  Soares  e  Martin  Soares, 
tem  uma  preciosa  rubrica:  ^(Bsta  Cantiga  fez 
Martin  Soares  em  maneira  de  Tençon  com  Paay 
Soares,  e  é  descarnho.  Este  Martin  Soares  foi 
de  Riba  de  Limia  .cm  Portugal,  e  trohou  melhor 
ca  todoVos  que  trotaram,  e  assi  foi  julgado  antr 
os  outros  trohadorcs.)) 

Em  uma  das  suas  sirventas  contra  hum 
cavalleyro    que   cuidava   que    trobava   muy    ben, 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  I97 


Soeiro  Eannes,  revela-nos  Martin  Soares  conhe- 
cimento das  Cantigas  populares  i  pondo-as  em 
contraste  com  as  producçÕes  artisticas : 

Os  aldeyãos  e  os  concelhos 

todoros  avedes  per  pagados... 

por  estes  cantares  que  fazedes  de  amor 

em  que  Ihis  acham  as  filhas  sabor... 

Bem  quisto  sodes  dos  alfayates 

dos  paliteiros  e  dos  moedores, 

do  vosso  bando  son  os  trompeiros 

e  os  jograes  dos  atambores 

por  que  lhes  cabe  nas  trompas  vosso  son, 

para  atambores  ar  dizen  que  non 

acham  no  mundo  outros  sons  melhores. 

(Canc.  Vat.,  n.°  965.) 

D.  Carolina  Michaélis,  na  biographia  d'este 
trovador,  resume  as  conclusões  de  Lang,  que  dá 
Martin  Soares  como  tendo  conhecido  as  poesias 
dos  trovadores  Uc  de  Saint  Cir,  de  Aimeric  de 
Pegulhan,  e  ainda  as  de  Peire  Cardinal  e  Raim- 
baut  d' Arenga,  e  accrescenta:  «realmente  as  re- 
lações já  apontadas  com  Affonso  Eannes  de  Co- 
ton  e  Fero  da  Ponte  tornam  incontestável  a  sua  sa- 
hida  de  Portugal,  reinando  aqui  Sancho  o  Ca- 
pello  e  nos  reinos  visinhos  Fernando  o  Santo.» 

Foi  ao  contacto  com  a  plêiada  dos  trovadores 
occitanicos  e  italianos,  nas  Cortes  de  Leão,  Ara- 
gão e  Castella  que  os  trovadores  portuguezes  se 
apoderaram  de  todos  os  segredos  da  technica  da 


I  O  jogral  cantava  para  o  povo;  assim  Guilhems 
Figueira:  mont  se  fez  grazxr  ais  arlots...  et  ais  hostes 
tavernies... 


198  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


poética  provençal  e  adaptaram  a  língua  portugue- 
za  não  só  aos  effeitos  das  combinações  da  rima, 
como  á  expressão  dos  mais  delicados  sentimentos 
do  amor.  Era  um  torneio  de  que  se  colligiram 
esses  numerosos  Rótulos  ou  cadernos  de  compo- 
sições individuaes  que  foram  mais  tarde,  trazidos 
a  Portugal  para  serem  incorporados  em  um  vasto 
Cancioneiro. 

A  morte  de  D.  Sancho  i  veiu  dar  largas  ás 
malevolencias  contra  os  seus  bastardos,  e  anar- 
chisar  a  corte  de  D.  Affonso  11,  que  não  se  pres- 
tava a  cumprir  o  testamento  do  pae,  surgindo  a 
lucta  armada  dos  partidários  de  suas  irmãs.  Dom 
Affonso  II  herdou  também  as  difíiculdades  da 
Coroa  com  a  Cúria  romana,  e  pelo  grande  desen- 
volvimento que  deu  ás  povoações  concedendo-lhes 
Foraes,  vê-se  que  não  firmava  a  sua  soberania  na 
confiança  da  nobreza.  O  seu  curto  reinado  deixou 
de  pé  todos  os  conflictos  que  pezaram  cruamente 
no  seu  successor  Dom  Sancho  11.  Todas  estas 
causas  fizeram  que  muitos  fidalgos  se  deitassem  3 
Leão,  a  Aragão  e  Castella.  O  trovador  D.  Garcia 
Mendes  de  Eixo,  estava  homisiado  em  Leão,  o 
na  Canção  n.o  346,  (Colocci)  emprega  versos 
em  provençal  dirigindo-se  a  Ruy  de  Spanha.  Mas 
apesar  d'este  êxodo  frequente,  as  Canções  de 
amor  acharam  cultores  na  corte  de  D.  Affonso  11, 
sobretudo  em  Santarém  quando  ahi  estacionou 
por  algum  tempo,  ou  no  período  dos  seus  amo- 
res com  D.  Mór  Martins,  de  Riba  de  Vizella.  No 
Cancioneiro  da  Ajuda  encontra-se  um  grupo  de 
Canções  anonymas,  que  se  referem  com  enlevo  a 
essa  temporada  da  Corte  em  Santarém : 


PRIMEIRA    época:    rdade    media  199 


A  mais  fremosa  de  quantas  vejo 
cn  Santarém,  e  que  mais  desejo, 
c  cn  que  sempre  cuidando  sejo, 
non  ch'a  direi,  mais  direi-ch'  amigo; 

Ai  vSantirigo  I  ay  Santirigo  ! 

Al  c  Alfanx'  e  ai  Sesserigo ! 

(Canção  n.°  278.) 

Pêro  eu  vejo  aqui  trobadores, 

senhor  e  lume  d'estes  olhos  meus, 

que  troban  d'amor  por  sas  senhores ; 

non  vejo  aqui  trobador,  por  Deus, 

que  m'entenda  o  por  que  digo : 
Al  e  Alfanx'  e  ai  Sesserigo! 

(Canç.  n.°  279.) 

Amigos,  des  que  me  parti 

de  mia  senhor  e  a  non  vi, 

nunca  fui  ledo,  nen  dormi, 

nen  me  paguei  de  nulha  ren. 

Todo  este  mal  soffro  e  soffri 
des  que  me  vin  de  Santarém. 

(Canç.  n.°  280.) 

Não  ha  inconveniente  em  considerar  o  refren 
Al  e  Alfanx'  e  ai  Sesserigo!  uni  grito  de  guerra 
tradicional,  que  se  tivesse  conservado  desde  a  to- 
mada definitiva  de  Santarém  em  15  de  Março  de 
1147,  por  D.  Affónso  Henriques.  O  casamento 
de  D.  Affonso  11  com  D.  Urraca,  filha  de  Al- 
fonso  IX  de  Castella,  obedecera  á  nova  corrente 
politica  que  deslocava  o  centro  da  unificação  na- 
cional de  Leão.  Castella  era  o  ponto  de  conver- 
gência dos  trovadores  occitanicos,  e  os  fidalgos 
portuguezes  que  sabiam  trovar  encontravam  alli 
uma  corte  florente  onde  eram  admirados  e  imi- 
tados. O  curto  reinado  de  D.  Affonso  11,  e  as 
perturbações   que  o   fizeram  morrer  amargurado 


200  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

em  2^  de  Março  de  1223,  afastaram  da  sua  corte 
todos  os  trovadores  que  tinham  achado  favor 
junto  de  D.  Sancho  i.  A  attracção  da  Corte  de 
Castella,  tornou-se  mais  forte  sob  o  seu  successor 
D.  Sancho  11  casando  com  D.  Mecia,  filha  do 
potentado  biscainho  D.  Lopo  Dias  de  Haro,  o 
maior  favorito  do  monarcha  castelhano,  celebrado 
na  sua  morte  em  1236  em  uma  canção  de  Pêro 
da  Ponte.  Na  corte  de  D.  Sancho  11,  no  meio 
das  perturbações  herdadas  do  governo  de  seu  pae, 
a  poesia  tomou  um  caracter  satírico,  destacando- 
se  entre  os  trovadores  Ayras  Peres  de  Vuyturon, 
com  o  látego  de  fogo  contra  os  adversários  do 
monarcha.  E'  n'esta  crise  violenta,  que  termina 
pela  Lide  do  Porto  em  1245,  em  que  as  facções 
dos  fidalgos  se  conflagraram,  que  se  deu  a  emigra- 
ção dos  vencidos  fixando-se  na  corte  de  Branca 
de  Castella,  em  Paris. 

Martin  Soares,  um  dos  mais  interessantes  tro- 
vadores da  corte  de  D.  Affonso  11  e  D.  San- 
cho II,  é  um  d'aquelles  que  sahiram  de  Portugal, 
e  segundo  Henry  Lang,  conferenciou  pessoal- 
mente com  trovadores  occitanicos,  como  se  de- 
prehende  pelas  ideias  e  modismos  que  apresenta, 
encontrando-os  nas  cortes  peninsulares.  Reco- 
nhece-se  que  sahiu  de  Portugal,  pelas  suas  rela- 
ções com  Affonso  Eannes  de  Coton  e  Pêro  da 
Ponte.  Attendendo  á  época,  observa  D.  Carolina 
Michaèlis:  «Teria  por  tanto  occasião  de  vêr  e 
ouvir  Adhemar  o  Negro,  Elias  Cairel,  Giraut  de 
Borneil,  Guilhem  Adhemar,  e  talvez  Sordelo,  o 
Mantuano.»  (Canc.  Aj.,  11,  335.)  O  jogral  Pi- 
candon  cantava  as  Canções  de  Sordello,  esse  tro- 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MEDIA  201 


vador  italiano  consagrado  por  Dante,  como  pro- 
testo contra  os  que  abandonavam  a  lingua  italiana 
trovando  em  provençal,  lamentando  no  Convito 
a  morte  politica  da  França  meridional.  O  trova- 
dor João  Soares  Coelho  apodava-o: 

Vedes,  Picandon,  soo  maravilhado 
eu  d'En  Sor  dei  que  ouço  en  tenções 
muytas  e  boas,  ey  mui  boos  soes 
como  fui  en  teu  preyto  tan  errado; 
pois  sabedes  jograria  fazer, 
porque  vos  fez  per  corte  guarecer 
ou  vós  ou  el  dad'ende  bon  recado. 

(Canc.  Aj.,  i,  n.°  371.   Vat.,  n."  1021.) 

A  vida  aventureira  de  Sordello  nas  cortes  de 
Itália  e  França,  onde  era  bastante  estimado,  é  aqui 
apontada  por  João  Soares  Coelho,  notando  o  con- 
traste d'esses  iiomini  di  corte,  que  se  faziam  va- 
ler pelos  seus  versos,  com  o  jogral  que  repete  as 
canções  de  outrem.  Sordello  era  considerado  como 
um  grande  mestre  do  gai  saber,  e  Aimeric  de  Pe- 
guilhou terminava  uma  canção  com  este  cabo  ou 
fiida:  «Este  mensageiro  leva  o  meu  fabliau  á 
Marche,  a  Dom  Sordello,  para  que  dê  o  seu  leal 
juizo,  segundo  o  seu  costume.»  As  composições 
mais  celebres  de  Sordello  eram  Tensões,  coplas 
ou  canções  amorosas  e  sirventes,  que  o  faziam 
temido.  Em  lucta  com  o  trovador  Pedro  Ber- 
mont,  replicava-lhe  Sordello :  «E'  falsamente  que 
me  chamam  jogral:  jogral  é  o  que  vae  atraz  de 
outrem;  eu  levo  alguém  atraz  de  mim;  eu  nada 
recebo,  e  dou;  elle,  nada  dá  e  recebe;  tudo  o  que 
traz  em  cima  de  si,  recebeu-o  da  compaixão;  eu 
não  acceito  cousa  que  me  faça  corar;  vivo  do  que 


202  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUEZA 

é  meu,  recusando  tudo  quanto  é  salário,  e  não 
acceito  senão  o  que  é  presente  de  amisade.»  ^  Vê- 
se  que  os  trovadores  já  luctavam  com  a  invasão 
da  classe  interesseira  dos  jograes,  que  explora- 
vam as  cortes;  elles  se  viram  forçados  na  côrtc 
de  Castella  a  estabelecer  estas  distincçÕes.  A's  re- 
lações dos  trovadores  portuguezes  com  os  occi- 
tanicos  e  italianos,  deveram  elles  o  conhecimento 
dos  requintes  da  métrica  provençal,  que  facilmente 
imitaram  nas  suas  canções;  mas  os  próprios  pro- 
vençaes  e  italianos  empregaram  por  vezes  a  lin- 
gua  portugueza  para  comporem  os  seus  versos.  O 
trovador  Bonifácio  Calvo,  de  Génova  (Bmiifaz 
de  Jenoa)  deixou  duas  canções  em  portuguez, 
que  foram  colligidas  no  Cancioneiro  da  Ajuda, 
n.o  265  e  266,  e  que  apparecendo  citadas  no  ín- 
dice do  Cancioneiro  de  Colocci,  n.o  449  e  450, 
foram  depois  encontradas  no  Cancioneiro  Bran- 
cuti,  n.o  341  e  342.  Citaremos  a  primeira  estro- 
phe  de  cada  uma : 


Mui  gram  poder  a  sobre  mi  amor 
poys  que  mi  faz  amar  de  coraçon 
a  ren  do  mundo,  que  me  faz  mayor 
coyta  soffrer;  e  por  todo  esto  non 
ouso  pensar  sol  de  me  queixar  en, 
tan  gran  pavor  ey  que  mui  gran  ben 
me  Ih'  i  fizesse  por  meu  mal  querer. 


I  Fauriel,  Dante  et  les  origines  de  la  Langue  et  de 
la  Litterature  italienne,  t.  i,  p.  529.  —  De  Lollis,  no  seu  li- 
vro Vita  e  Poesie  di  Sordello  di  Goito  (Italle,  1896)  con- 
sidera que  este  trovador  mantuano  viajara  pela  peninsula 
hispânica  antes  de  1230.  (Rev.  crit.  de  Historia  e  Litte- 
ratura,  Ann.  m  (1899)  p.  304 


PRIMEIRA    KP'.)CA  ;    :cdade:    media  203 


Ora  nen  moyro,  neii  vivo,  nen  sey 
como  mi  vay,  nen  ren  de  mi  senon 
a  tanto  que  ey  no  meu  coraçon 
coyta  d'amor  qual  vos  ora  direy, 
tan  grande  que  mi  faz  perder  o  sen 
e  mha  senhor  sol  non  sab'ende  ren. 

Não  admira  que  por  estes  contactos  se  encon- 
trem alguns  italianismos  nas  canções  portuguezas, 
taes  como :  afan,  aquesto,  aquisto,  aval,  hesonha, 
cajon,  camhhar,  color,  cór,  dolçor,  guarra,  guir- 
landa,  ledo,  inensonha,  toste. 

■  Outros  trovadores  occitanicos  empregaram  a 
língua  portugueza,  para  lisongear  as  cortes  penin- 
sulares que  frequentavam,  onde  essa  lingua  era 
ouvida  com  encanto.  Ramon  Vidal  de  Bazoudun 
introduziu  em  uma  novella  versificada  (a  2. a  das 
Cortes  de  Amor)  alguns  versos  em  portuguez: 

Tal  dona  non  quero  servir 
per  me  non  si  denhe  preiar 
já  non  queren  lo  sien  prendir. 

Com  leves  retoques  fica  portuguez  da  época : 

Tal  dona  non  quero  servir 
per  me  non  se  digne  precar, 
já  non  quer'  eu  lo  seu  pram  dir. 

Ramon  Vidal  floresceu  entre  11 75  e  1215, 
sendo  muito  estimado  na  corte  de  Affonso  vi  11 
de  Castella,  e  na  de  Affonso  11  de  Aragão;  (Canc. 
Aj.,  II,  734.)  foi  n'essas  cortes  que  ouviu  tro- 
var e  cantar  em  lingua  portugueza.  Um  outro 
trovador,  .Rambaut  de  Vaqueiras,  em  um  Descort 
escripto  por  1 195-1202,  entre  as  cinco  línguas  que 
emprega,  mette  este  trecho  em  portuguez ; 


204  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUEZA 


Mas  tan  temo  vostro  pleito 

todo  ú  soi  escarmentado; 

per  vos  ei  pena  e  maltreito 

é  mei  corpo  lazerado; 

la  nueit  quant  jatz  en  mei  leito 

soi  moitas  vez  espertado, 

per  vos,  creo  non  profeito 

falhir  ei  en  mei  cuydado. 

I 

Mon  corassó  m'  avetz  treito 
E  mont  con  afan  Tan  furtado. 

Rambaut  de  Vaqueiras  esteve  na  corte  de  Af- 
fonso  VIII.  As  Canções  dos  trovadores  portu- 
guezes  eram  pela  sua  ternura  imitadas  pelos  occi- 
tanicos.  O  próprio  D.  Af fonso  x,  o  Sábio,  não  se 
dedig-nava  de  compor  canções  intercalando  como 
centÕes  versos  dos  trovadores  portuguezes  que  fre- 
quentavam a  corte  de  Castella;  elle  serviu-se  do 
refren  da  Canção  de  João  Soares  Coelho: 

De  mui  bon  grado  queria  a  um  logar  ir, 
e  nunca  m'end'ar  viir. 

(Canç.  i6o.  Ajuda.) 

E  na  Cantiga  de  Dom  Affonso  rei  de  Cas- 
tella e  Leão  (n.o  469.  Colocci)  vem  assim  apro- 
priado : 

De  mui  bon  grado  queria  hir 
logo  e  nunca  vir. 

N'esta  mesma  Canção,  empregou  Affonso  x 


I  Em  alguns  manuscriptos  cabe  aqui  o  verso :  —  Mais 
que  fallir  non  cuide  io.  —  Está  supprimido  em  outro  ma- 
nuscripto  segundo  a  exigência  da  estrophe. 


PRIMEIRA   época:   edade   média  205 


os  versos  d'este  outro  refren  da  Canção  de  João 
Coelho  (n.o  175  do  Canc.  Aj.): 

Moir'eu,  e  mais  per  alguen ! 
E  nunca  vus  mais  direi  en. 

Ainda  n'esta  Cantiga  emprega  o  monarcha 
castelhano  o  refren  da  Canção  de  João  de  Gui- 
Ihade  (n.o  228  Aj.)  : 

porque  moir !  e  quer  'eu  dizer 
quanto  s'ende  pois  saberon : 

Moir'  eu  porque  non  vej'aqui 

a  dona  que  non  vejo  aqui. 

O  próprio  rei  castelhano  D.  Affonso  o  Sábio 
adoptou  para  as  poucas  canções  profanas,  da  sua 
mocidade,  a  lingua  portugueza  como  se  vê  pelo 
grupo  das  que  foram  colligidas  no  Cancioneiro  da 
Vaticana,  n.o  61  a  79,  e  no  Cancioneiro  Colocci, 
"•^  359  3.  478  (série  seguida  no  índice  ms.  de 
Colocci  n.o  467  a  478  e  479  a  496.)  A  lingua 
gallega  estava  em  um  grande  despreso,  desde 
que  decahira  o  foco  da  cultura  leoneza;  e  essa 
decadência  continuou-se,  como  observa  Saralegui 
y  Medina:  «Posteriormente,  desde  a  anarchia  feu- 
dal do  século  XIV,  a  Galliza  não  teve  já  poesia  ori- 
ginal distincta  e  própria;  a  sua  voz  extinguiu-se 
no  vácuo  com  os  últimos  eccos  do  Cancioneiro;... 
Submettida  á  dura  e  cruel  servidão,  debaixo  do 
despótico  jugo  de  uma  nobreza  possuidora  de 
direitos  dominicaes  tão  extensos  —  a  Galliza  dei- 
xou de  existir  na  realidade  para  a  poesia,  como 
não  existia  tampouco  para  a  Architectura,  Arte 
e    industrias,    envolta    na   commum   e   total    rui- 


206  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

na...»  I  A  lingua  portugueza,  que  segundo  Al- 
drete,  ainda  no  tempo  de  D.  Enrique  iii  se 
empregava  geralmente  na  poesia,  deveu  esse  pres- 
tigio ao  seu  predominio  no  lyrismo  nas  cortes  de 
Leão,  Aragão  e  de  Castella,  usada  como  um  dia- 
lecto intermediário  facilmente  catalanisavel,  (como 
se  vê  pela  Canção  de  D.  Garcia  Mendes  d'Eixó 
n.o  346,  Colocci),  ou  castelhanisavel  como  na 
Canção  de  Alfonso  xi.  Este  phenomeno  litte- 
rario  deu-se  também  com  o  dialecto  do  Poitou,  (o 
poitcvin)  que  serv-iu  de  communicação  do  lyris- 
mo provençal  para  o  norte  da  França  e  para  In- 
glaterra. Os  48  trovadores  gallegos  que  figuram 
nos  Cancioneiros  da  Vaticana  e  Colocci  Brancuti 
apontados  por  D.  Manoel  Murguia,  são  quasi  to- 
dos do  fim  do  cyclo  Affonsino.  Notou-o  Menen- 
dez  y  Pelayo:  «A  irupção  da  poesia  popular  na 
arte  culta  tem  de  referir-se  principalmente  ao  rei- 
nado de  D.  Diniz,  em  que  por  gala  e  bizarria  se 
entregaram  princepes  e  fidalgos  a  arremedar  os 
cândidos  accentos  das  Canções  de  romarias,  de 
pescadores  e  aldeãos,  adaptando  sem  duvida  "no- 
vas palavras  á  maneira  antiga.»  (AntoL,  iii,  p. 
XVII.)  A  importância  do  Cyclo  pre-Affonsino 
está  na  facilidade  com  que  os  trovadores  portu- 
guezes  de  1200  a  1245,  se  apoderaram  de  todos 
os  artificios  da  poética  provençalesca  sem  perde- 
rem as  características  do  génio  nacional,  revelado 
no  seu  lyrismo.  Observou  D.  Carolina  Michaé- 
lis,  com  a  intuição  da  sua  feminilidade :    «Tanto 


Um  Trovador  fcrrollano,  p.  5. 


PRIMEIRA   época:   edade   média  207 


nas  adaptações  dos  modelos  estrangeiros,  como 
na  dos  géneros  populares,  o  génio  pátrio  se  ma- 
nifesta. O  sentimento  da  saudade  já  era  familiar 
aos  coevos  de  D.  Diniz.  Em  1200  morrer  de  amor 
já  era  costume  dos  mimosos  de  alma  atormentada : 
os  grandes  olhos  de  criança  das  damas  portuguezas 
inspiravam  pela  sua  meiga  e  dorida  expressão,  ao 
mesmo  tempo  sensual  e  soberanamente  espiritual 
e  casta  amores  apaixonados,  mais  vezes  de  perdi- 
ção do  que  de  salvação.  Sob  a  phraseologia  con- 
vencional de  cortezãos  mensurados  escondem-se 
frequentemente  sentimentos  fervorosos.  —  Mesmo 
a  monotomia  ou  uniformidade  dos  protestos  e 
queixumes  de  amor  é  significativa  e  attrahente.)^ 
(Canc.  Aj.,  i,  p.  ix.)  No  precioso  Cancioneiro  da 
Ajuda  encontram-se  os  trovadores  do  Cyclo  pre- 
Affonsino  que  poetaram  da  ultima  década  do  sé- 
culo XII  até  1245,  supprindo-se  pelo  Cancioneiro 
Colocci  Brancuti  os  trovadores  que  occupavam  as 
folhas  perdidas  do  códice  membranaceo.  (D.  Car. 
Michaèlis,  op.  cit.,  11,  322.)  Vinte  e  dois  trova- 
dores encantaram  a  Corte  de  Guimarães,  Coim- 
bra e  Santarém,  e  inflammaram  com  a  sua  ter- 
nura sentimental  as  Cortes  esplendorosas  de  Leão, 
Aragão  e  Castella,  competindo  com  os  trovadores 
mais  afamados  da  Provença  e  da  Itália.  ^ 


I     D.  Carolina  Michaèlis  apura  a  seguinte  série : 

Vasco  Praga  de  Sandim  —  João  Soares  Somesso  — 
Pay  Soares  —  Martim  Soares  —  Ruy  Gomes  de  Briteiros  — 
Ayras  Carpancho  —  Nuno  Rodrigues  de  Gandarey  —  Ay- 
ras  Moniz  d'Asme  —  Diego  Moniz  —  Osoir'EanneG  —  Monio 
Fernandes  de  Mirapeixe  —  Fernan  Rodrigues  de  Lemos  — 


2C8  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


b)  Cyclo  Affonsino  (1248  a  1279).  No  es- 
tudo dos  Cancioneiros  trobadorescos  portuguezes 
a  observação  estatistica  leva  «a  considerar  como 
edade  mais  fértil  da  arte  trobadoresca  ou  pelo 
menos  da  Canção  palaciana  de  amor  a  edade  af- 
fonsina  de  1245  a  1280  (respectivamente  de  1252 
a  1284.)))  D.  Carolina  Michaèlis  chegou  a  este 
resultado  pela  comparação  dos  grupos  de  trova- 
dores dos  trez  Cancioneiros  da  Ajuda,  Vaticana 
e  Colocci.  (Canc.  Aj.,  11,  600.)  E'  este  o  cara- 
cter mais  brilhante  da  corte  de  D.  Affonso  iii, 
em  que  a  influencia  do  norte  da  França  se  fez 
sentir  através  da  corrente  castelhana  que  se  gene- 
ralisava.  A  sabida  do  principe  D.  Affonso,  irmão 
de  D.  Sancho  11,  em  1229,  por  occasião  do  casa- 
mento de  sua  irmã  D.  Leonor  com  o  princepe 
Waldemar  da  Dinamarca,  deu  ensejo  a  que  se 
demorasse  percorrendo  a  Europa,  entrasse  em  va- 
rias batalhas,  vindo  assistir  uma  temporada  na 
corte  de  San  Luiz,  onde  sua  tia  Branca  de  Cas- 
tella,  exercia  a  laboriosa  regência,  na  menoridade 
de  seu  filho.  Fora  isto  em  1238.  A  rainha  re- 
gente, muito  nova  e  muito  bella,  era  assediada  pelos 
barões  prepotentes,  destacando-se  entre  todos  pelo 
seu  talento  poético  Thibaut,  Conde  de  Champagne. 
N'essa  corte  de  uma  rainha  fomiosa  e  viuva  des- 


D.  Gil  Sanches  —  D.  Garcia  'Mendes  de  Eixo  — Ruy  Gomes 
o  Freire  —  Fernão  Rodrigues  Calheiros  — D.  Fernão  Pe- 
res de  Talamancos  —  Nunes  Eannes  Cerzeo  —  Pêro  Velho 
de  Taveiroz  — D.  João  Soares  de  Paiva  — D.  Rodrigo  Dias 
da  Gamara  —  Abril  Peres  — Pêro  da  Ponte  — Ayras  Pe- 
rez  Vuyturon  — D.  Diego  Lopes  de  Haro  —  Bernaldo  de 
Bonaval  —  Affonso  Eannes  do  Cotom. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  209 


envolveu-se  a  galanteria  e  o  lyrismo  erótico;  era 
iini  meio  de  revelações  atfectivas.  Por  esta  mes- 
ma época  Guillaume  de  Lorvis  elaborava  o  seu 
poema  allegorico  Rouian  de  la  Rose,  cuja  chave 
está  na  interpretação  das  aventuras  numerosas  da 
corte,  algumas  das  quaes  foram  definidas  como  — 
honteiise  eomiiveiiee ;  n'essas  intrigas  a  rainha  fez 
o  casamento  do  garboso  principe  D.  Af  fonso  com 
sua  sobrinha  Mathilde,  a  viuva  Condessa  de  Bou- 
logne.  Ahi  n'essa  corte  beata  e  apaixonada  do- 
minavam as  Cançonetas  lyricas  em  lingua  d'oil  e 
especialmente  em  provençal,  os  sons  poetevins,  as 
Canções  de  refren  do  Auvergne  e  da  Gasconha, 
ahi  postas  em  moda  por  Alianor  de  Poitou.  (Canc. 
Aj.,  II,  719.)  N'este  deslumbramento  corteza- 
nesco  estava  enleiado  o  princepe  D.  Affonso, 
quando,  nos  conflictos  e  resistências  dos  fidalgos 
portuguezes  contra  a  administração  de  D.  San- 
cho II,  vieram  ás  mãos  com  os  partidários  do  rei 
em  1245,  ^"^a  ^íí/í?  do  Porto.  Os  bispos  foram  pre- 
parar junto  do  Papa  a  deposição  de  D.  Sancho  ii, 
e  os  principaes  fidalgos  vencidos  emigraram  para 
França,  aproximando-se  do  princepe  D.  Affonso, 
que  era  apontado  pela  sua  extremada  bravura; 
ahi  se  encontraram  n'esse  foco  de  cultura  e  ele- 
gância fidalgos  da  familia  dos  Bayães,  dos  Por- 
to-Carreros,  Valladares,  Nobregas,  Alvins,  Mellos, 
Sousas  e  Raymundos;  são  estes  os  appellidos  dos 
principaes  trovadores,  que  figuraram  na  corte  de 
D.  Affonso  III,  depois  de  deposto  o  irmão.  D.  Af- 
fonso veiu  a  Portugal  simuladamente  e  obte- 
ve a  homenagem  dos  principaes  Alcaides  por  ve- 
niagas que  foram  objecto  de  sátiras  candentes. 
14 


210  HISTORIA    DA    LITTaRATURA    PORTUGUEZA 


Alfonso  o  Sábio,  quando  considerava  as  suas 
próprias  desventuras,  comparava-se  ao  rei  de  Por- 
tugal : 

Nunca  asy  foi  vendudo 
Rey  Don  Sanch'  en  Portugal. 

(Cant.   Santa  Maria,  235.) 

A  sátira  do  trovador  Ayras  Perez  Veyturon 
(Canc.  Vat.,  n.o  1088)  é  sangrenta,  estampando 
o  nome  d'esses  Alcaides,  e  fazendo  a  farsisture 
com  Versos  latinos  com  que  o  papa  absolveu  os 
traidores;  tem  a  rubrica:  aBsta  outra  Cantiga  c 
de  maldizer  dos  que  deron  os  Castellos  como  non 
deviam  ai  rey  don  Affonso.))  Os  favoritos  do 
novo  rei  retorquiam  também  com  sátiras  á  par- 
cialidade vencida ;  e  assim,  pelo  estimulo  politico  e 
pela  curiosidade  das  canções  de  maldizer  e  de 
escarneo,  se  acordou  o  interesse  pela  poesia  lyrica 
e  como  imitação  e  lembrança  dos  dias  passados 
na  corte  f ranceza.    Martim  Moxa  atacava-os : 

Vós  que  soedes  em  corte  morar, 

d'estes  privados  queria  saber, 

se  lhes  ha  a  privança  muyto  durar, 

cá  os  non  vejo  dar  nem  despender; 

antes  os  vejo  tomar  e  pedir, 

e  o  que  lhes  non  quer  dar  ou  servir 

non  pôde  rcm  com  el  rey  adubar. 

(Canc.  Vat,  n."  472.) 

O  género  mais  cultivado  era  o  da  sátira,  tam- 
bém em  moda  na  Corte  de  Castella;  mas  n'este 
cyclo  affonsino  o  lyrismo  expressava-se  nas  mais 
frescas  e  deliciosas  Pastorellas,  verdadeiramente 
uma  reminiscência  da  corte  franceza  que  assimi- 
lara os  sons  poetevins. 


PRIMEIRA   Época  :   edade   media 


Influencia  do  Norte  da  França  ou  Gallo-frankà 

Attribuia-se  á  influencia  exclusiva  dos  trova- 
dores occitanicos  o  desenvolvimento  do  lyrismo 
nas  modernas  litteraturas,  reservando  ao  génio 
franko  ou  á  França  do  norte  a  creação  das  Epo- 
pêas  feudaes,  ou  as  grandes  Canções  de  Gesta, 
que  idealisaram  como  centro  de  toda  a  acção  he- 
róica a  figura  preponderante  de  Carlos  Magno: 
mas  considerados  os  factos,  a  França  do  norte 
possuia  também  as  formosas  canções  lyricas  das 
Pastorellds,  e  a  França  meridional  assim  elabo- 
rou Canções  de  Gesta,  dos  heroes  da  lucta  con- 
tra as  invasões  sarracenas.  A  verdadeira  critica 
consiste  em  descriminar  estas  influencias  nos  seus 
momentos  históricos,  abandonando  as  affirmações 
absolutas.  A  influencia  do  lyrismo  do  Norte  da 
França  sobre  as  Nações  meridionaes,  como  pre- 
tende Gaston  Paris  e  o  seu  discipulo  Jeanroy,  não 
se  pôde  fixar  na  época  provençal,  quando  a  França 
meridional  era  incorporada  violentamente  na  uni- 
dade monarchica.  D'essa  época  não  se  encontram 
Canções  lyricas  em  lingua  d'oil;  e  Jeanroy  vê-se 
forçado  a  recompòl-as  pelas  canções  portuguezas 
e  italianas  tornando-as  como  reflexo  d'ellas.  Essas 
Canções  de  caracter  objectivo  ou  de  toile,  do  norte 
da  França  somente  se  vulgarisaram  no  século  xv, 
pelo  meio  indirecto  das  melodias  francezas,  como 
vemos  com  Gil  Vicente  introduzindo  uma  d'essas 
cantigas  vindas  de  França  no  Auto  dos  Quatro 


212  TriSTORlA    HA    IJTTERATURA    PORTUGUEZA 

Tempos,  cuja  melodia  se  encontra  no  Cancio- 
neiro musical  do  século  xv,  de  Barbieri.  Quando 
D.  Af  fonso  T 1 1  assistia  na  corte  de  França  com 
os  -fidalgos  i)ortuguezes  que  alii  se  refugiaram 
conspirando  contra  D.  Sancho  ii,  estavam  em 
moda  as  letrilhas  e  cançonetas  em  lingua  d'oil, 
que  eram  compostas  sob  o  influxo  das  Jlllanclas 
da  Gasconha,  dos  refrens  do  Auvergne,  mais  co- 
nhecidos ahi  pelo  titulo  de  Sons  poitevins.  Foi 
esta  forma,  a  Pastorclla  franceza.  que  D.  João  de 
Aboim  e  outros  fidalgos  reproduziram  com  certa 
arte  na  corte  de  D.  Af  fonso  iii  em  Santarém  e 
em  Lisboa.  Sem  attender  ao  elemento  mais  or- 
gânico ou  tradicional  do  lyrismo  dos  Cantares  de 
amigo,  a  illustre  ronianista  D.  Carolina  Michaèlis 
afhrma:  «não  é  a  França  meridional,  mas  sim 
a  do  Norte  cjii:  foi  a  vcnicuicira  corrente,  e  até 
certo  ponto,  mestra  e  guia.»  (Cam.  Aj,,  ii,  683.) 
No  ponto  de  vista  restricto,  essa  corrente  deter- 
mina-se  no  Cyclo  Affonsino,  com  a  imitaçã<^  das 
Pastorellas,  que  se  identificaram  com  as  Bailadas. 
Barcarolas  e  Cantigas  de  amigo,  tratando  themas 
de  predilecção  pertencentes  ao  fundo  ethnico  da 
Europa  Occidental.  Com  este  critério  é  que  a  eru- 
ditíssima romanista  avalia  a  these  de  Jeanroy  da 
origem  franceza  dos  Cantares  no  Norte  na  lyrica 
portugueza:  «O  distincto  investigador  francez 
que  tentou  derivar  todos  os  com  caracter  popu- 
lar de  moldes  franceses  hoje  perdidos,  mas  por 
elle  engenhosamente  reconstruídos  por  deducções 
das  Cantigas  ix)rtuguezas.  conheceu  insuficiente- 
mente a  raça  peninsular,  a  historia  da  sua  civili- 
sação,  os  seus  costumes,  sua  indole,  suas  cantigas  e 


PRIM&IRA    fiPOCA:     SDADfi    MÉDIA 


bailados.  Como  nos  Cancioneiros  modernos  da 
dalliza  e  de  Portngal  se  lhe  deparasse  muitas  ba- 
nalidades e  grosserias,  sem  vislumbre  de  poesia,  as 
(|iiaes  comi^aron  com  a  assombrosa  fcrinulid^uli^  e 
ligeireza  da  musa  gauleza,  não  cjiii/  .iv  uJit.n  (|ne, 
t>utr'ora  opulenta  e  ins])irada  a  musa  indii-i  n.i  po- 
desse  ter  actuado  nos  poetas  cultos,  proporcionan- 
do-lhes  typos,  moldes  e  modelos.  Argumentando 
issim  esqueceu  porém  as  suas  próprias  theorias,  a 
lH)esia  popular  arcliaica  e  da  naçfio  inteira,  tinha 
collalK)ra(lo  em  todas  as  daSvSes.»  (Canc.  Aj\,  ii, 
()40. )  Ji  d'esses  moldes  da  poesia  popular  diz: 
*<  vigentes  no  primeiro  i>eriodo,  —  serviram  de  fon- 
10  de  inspiratcão  aos  imitadores  palacianos,  e  se 
l)orpetuaram  ua  memoria  do  povo  até  ao  dia  de 
boje  n'alguns  recantos  de  Traz  os  Montes,  da 
('.alli/a  e  das  Astúrias...»  (Ib.,  p.  924.)  Paul 
Meyer  reconheceu  na  lyrica  franceza  a  corrente 
meridional,  comprehendendo  melhor  a  phase  por- 
tugueza:  «a  poesia  lyrica  franceza  é  formada  por 
duas  correntes,  uma  propriamente  nacional,  a  ou- 
ira  meridional.  Ivstas  duas  correntes  são  repre- 
sentadas nos  nossos  velhos  Cancioneiros  france- 
ses do  século  XI 1 1  e  XIV,  e  têm  toda  a  apparencia 
(|ue  as  Canções  de  fiandeiras,  canções  de  damas, 
(|ue  formavam  a  parte  mais  preciosa  da  nossa 
antiga  poesia  popular,  nunca  teria  sido  colligida 
se  o  êxito  da  poesia  do  Meio  Dia  não  viesse  pòl-as 
em  consideração.  O  mesmo  aconteceu  em  Portu- 
gal.)) (Roniania,  1876,  p.  267.)  A  Pastorella  fran- 
ceza, reflectindo  o  espirito  meridiomd,  veiu  vivifi- 
car as  nossas  Baylias.  dentro  das  condições  do  na- 
:   cionalismo.   Este  sentimento  da  tradição  é  que  fez 


214  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Dom  João  de  Aboim  comprehender  a  Pastorella 
franceza,  assimilando-a  admiravelmente,  como 
se  vê: 

Cavalgava  n'outro  dia 
por  um  caminho  francês  i 
e  húa  pastor  siia 
cantando  com  outras  três 
pastores,  e  non  vos  pez*; 
e  direy-vos  todavia 
o  que  a  pastor  dizia : 

Nunca  mulher  crêa  pér  amigo, 
pois  s'o  meu  foy  e  não  falou  migo. 

Pastor,  non  dizedes  nada, 
diz  húa  d'ellas  enton, 
se  se  foy  esta  vegada, 
ar  verrâ  s'outra  sazon, 
e  dig'  a  vós  per  que  non 
falou  vosc',  ay  ben  talhada, 
e  é  cousa  mais  guisada 
de  dizerdes  com'  eu  digo : 

Deus!  ora  vehesse  o  meu  amigo, 
e  averia  gran  prazer  migo. 

(Canc.   Vat.,  278.) 


I  ^^N'esta  época  (século  xiii)  não  era  fácil  passar  os 
Pireneos  e  chegar  são  e  salvo  a  Santhiago,  apesar  dos  Có- 
negos de  Santo  Eloy  de  Compostella,  terem  emprehendido 
entre  si  a  policia  dos  caminhos  —  e  de  conduzirem  e  recon- 
duzirem com  segurança  os  peregrinos,  vindos  pelo  grande 
caminho  francês,  que  elles  chamam  ainda  ao  presente,  que 
vem  das  Landes,  de  Bordéos  a  Leão.^^  —  Francisque  Michel 
transcreve  esta  passagem  da  Historia  da  Navarra  de  André 
Favyn,  (p.  221):  e  acrescenta:  ^^Por  todo  o  caminho  entre 
Bordéos  e  S.  Thiago,  existiam  hospicios  destinados  a  estes 
piedosos  viajantes,  nomeadamente  em  Barp,  Belin,  Saint 
Esprit,  S.  João  da  Luz.»    (Le  Pays  Basque,  p.  338.) 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA 


O  trovador  af  fonsino  encaixilhou  no  quadro  da 
Pastorella  o  Cantar  de  amigo ;  transcrevemos  uma 
estrophe  typica  de  pastorella  franceza,  para  veri- 
ficar esse  influxo: 

L'autre  jour  je  chevachoie 
Sor  mon  palefroi  amblait, 
Et  trovai  en  mi  mai  veie 
Pastorelle  agniaus  guardant 
Et  chaipial   faixant 
Partit  á  muguet 
Je  lui  dit :  —  Marguet 

Bargeronette, 
Três  douce  compaignete, 
Doneis  moi  vostre  chaipelet, 
Doneis  moi  vostre  chaipelet.  i 

Pedr'  Amigo  de  Sevilha,  na  Canção  689  em- 
prega este  titulo  de  Pastorella: 

Quando  eu  hun  dia  f  uy  en  Compostella 

em  romaria,  vi  huma  pastor, 

que  pois  fuy  nado  nunca  vi  tan  bela, 

nen  vy  a  outra  que  falasse  milhor; 

e  demandi-lhe  logo  o  seu  amor, 

e  fiz  por  ella  esta  pastorella. 

O  clérigo  Ayras  Nunes  (Canc.  Vat.,  n.o  454) 
cultivou  o  género  com  uma  singular  belleza : 

Oy'  oj'  eu  húa  pastor  cantar, 
d'hu  cavalgava  per  húa  ribeira, 
e  a  pastor  estava  senlheira, 
e  ascondi-me  pola  ascuytar; 
e  dizia  muy  ben  este  cantar : 

Sol-o  ramo  verde  frolido 
vodas  fazen  ao  meu  amigo; 
e  choram  olhos  de  amor. 


I     Paul  Meyer,  Documents  ms.  de  Vancienne  litter ature 
de  Prance, 


2l6  HISTORIA    DA    UTTERATURA   PORTUGUEZA 


E  a  pastor  parecia  muy  ben, 
e  chorava  e  estava  cantando, 
e  eu  muy  passo  fuy-m'  achegando 
pol-a  oyr,  e  sol  non  faley  ren ; 
e  dizia  este  cantar  muy  ben : 

Ay,  estorninho  do  avelanedo, 
Cantades  vós,  e  moir'  cu  c  peno; 
d' amores  ey  mal. 

Seguem-se  mais  trez  estrophes  delicadamente 
bellas ;  é  comparável  á  Pastorella  x  do  ms.  de 
Paul  Meyer: 

L'autrier  un  lundi  matin, 
M'an  aloie  ambaniant; 
J'antrai  en  un  biau  jardin 
Trouvai  nonetée  seant. 

Cellc  chansonette 

Dixoit  la  nonette : 
Longue  demore e  faltes 

Franz  moines  loiah! 
Sc  plui  sui  nonette 
Ains  kc  soit  li  vespres 
Je  morrai  dcs  jolis  maL  etc. 

A  poesia  lyrica  franceza  era  directamente  co- 
nhecida pelos  trovadores  portuguezes,  que  inter- 
calavam como  centões  versos  em  lingua  d'oil  nas 
suas  Canções ;  comprox^a-o  a  Canção  de  Fernão 
Garcia  Esgaravunha,  querendo  por  uma  allusão 
aos  costumes  feudaes  exprimir  o  sentimento  de 
fidelidade  á  sua  dama: 

Dizer-vos  quer'  eu  uma  ren, 

Senor  que  sempre  ben  quige : 
Or  sachic::  vcroyamcn 
que  ic  soy  votre  orne  ligc.   i 

(Canc.  Ai..  T26.) 


I     Laboulaye,   na  Histoirc  dii   Droit  de  propriétc  fon- 
c-.crc  en  Occident,  (p.  448) :    ^^Reparando  para  a  affinidade 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  217 

Dom  Affonso  Lopes  de  Baião,  reproduzindo  a 
forma  épica  da  Gesta  de  Roland,  transforma-a 
em  uma  sirvente  ou  sátira  pessoal  como  uma  pa- 
rodia contrafazendo  o  portuguez  archaico. 

A  Bschola  trohadoresca  portiigiieza  completa 
os  seus  caracteres  próprios,  além  dos  germens 
tradicionaes  e  de  um  sentimento  nacional,  appre- 
sentando  uma  morphologia  poética,  que  lhe  ser- 
viu de  expressão.  Examinando  materialmente  a 
métrica  dos  nossos  trovadores,  nota-se  o  emprego 
quasi  exclusivo  dos  versos  em  rimas  agudas,  e  ra- 
ramente os  versos  são  quebrados;  a  estrophe  ter- 
mina quasi  sempre  com  refren  ou  estribilho,  e 
pelas  exigências  da  musica  a  Canção  é  tripartita. 
Nos  tempos  em  que  Dom  Affonso  iii  com  os 
seus  partidários  assistiu  na  corte  de  França,  é  que 
os  trovadores  do  Cyclo  Affonsino  tomaram  co- 
nhecimento de  todos  os  artifícios  da  poética  tro- 
hadoresca, mais  dominante,  que  era  a  Eschola  de 
Limoges. ,  O  Marquez  de  Santillana,  accusava  esta 
influencia,  na  sua  Carta  ao  Condestavel  de  Por- 
tugal :  «Usaron  e!  Dccir  en  coplas  de  dez  silla- 
bas,  a  la  manera  de  los  liuiosis...))  Chamava-se 
Arte  maior  em  contraposição  ás  redondilhas  ou 
Arte  menor.  E  n'essa  mesma  carta  accrescenta: 
((Estenderam-se,  creio,  d'aquellas  terras  e  comar- 
cas   dos    Limosinos   esta    Arte    aos    Gallaicos...» 


da  condição  do  lite  com  o  colonato,  afíinidade  tão  estreita 
que  leva  a  explicar  a  origem  da  instituição  romana  por 
imitação  dos  usos  bárbaros,  —  é  fácil  de  comprehender 
como  estas  duas  condições  se  confundiram ;  o  nome  de 
Ite  foi  mais  usado  no  Norte,  o  de  colono  ao  Meio  Dia,  mas 
a  tenencia  foi  mais  ou  menos  a  mesma... ^ 


2l8  HISTORIA    DA    LITTERATURA   PORTUGUEZA 


Entrava-se  em  uma  phase  de  disciplina;  e  effe- 
ctivamente  encontrou-se  junto  ao  Cancioneiro  Co- 
locci-Brancuti  o  fragmento  de  uma  Poética  tro- 
badoresca  portugueza,  da  mesma  época  em  que 
D.  João,  sobrinho  de  Affonso  o  Sábio,  escreveu 
uma  Arte  de  trovar,  que  se  não  acha  entre  as  suas 
obras,  i  E'  um  documento  de  valor  histórico, 
como  inferiu  Menendez  y  Pelayo:  «Havia  cer- 
tamente na  Poesia  gallega  uma  disciplina  de  Bs- 
chola,  e  a  exemplo  e  imitação  das  Poéticas  pro- 
vençaes,  chegou  muito  cedo  a  uma  Poética  pró- 
pria, um  verdadeiro  tratado  doutrinal,  que  de- 
veria ter  sido  algo  extenso,  a  julgar  pelos  pre- 
ciosos fragmentos  que  nos  restam  no  Cancioneiro 
Colocci-Brancuti,  que  abragem  3  livros  inteiros  e 
parte  de  outro.»  (Antol.,  iii,  p.  xviii.)  Essa 
Poética,  quasi  illegivel,  e  restituida  plausivelmente, 
constava  de  seis  capitules,  começando  o  fragmen- 
to em  uma  boa  parte  do  terceiro.  N'este  se  de- 
finem os  géneros  lyricos,  taes  como  a  Cantiga  de 
amor  e  a  Cantiga  do  amigo,  a  Cantiga  de  escar- 
ne o,  de  Me  estria  ou  de  rcfren  e  de  Joguete  cer- 
teyro.  Define  depois  o  género  das  Tenções,  feitas 
por  dois  trovadores  ao  mesmo  tempo:  «per  ma- 
neyra  de  razon  que  hun  aja  contra  o  outro  em 
quaes  diga  que  por  l>em  tever  na  prima  cobra  et 
o  outro  responda-lhes  na  outra  dizendo  o  con- 
trario» Também  vem  indicando  um  género  po- 
pular, cujo  titulo  o  aproxima  das   Villanelas  da 


I     Amador  de  los   Rios,  Hist.   crit.   de  la  Litteratura 
espanola,  t.  11,  p.  626. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  2I9 

Gasconha :  «Outras  Cantigas  fazem  os  trovadores 
a  que  chamam  de  Villão.  Estas  Cantigas  se  po- 
dem fazer  d' Amor  ou  d' Amigo  sem  mal  algum, 
nen  son  per  arrabis,  porque  as  não  estimam  mui- 
to.» No  Cancioneiro  da  Vaticana  vem  um  bello 
exemplo,  n.o  1043,  caracterisado  pela  rubrica: 
(.{Diz  uma  Cantiga  de  Villão: 

O'  pee  d'itma  t©rre 
bayla,  corpo'  e  giolo; 

Vedel-o  cós,  ay  cavalleiro,'^ 

Sobre  este  molde  compoz  João  de  Gaia  uma 
canção  «por  aquella  de  cima  de  Villãos,  que  diz 
a  refren  —  Vedei  o  cós,  ay  cavalleyro; — e  fe- 
ze-a  a  hun  villão  que  foy  alfayate  do  bispo  don 
Domingos  Jardo.»  A'  simplicidade  popular  con- 
trapunham-se  os  artifícios  complicadissimos  das 
trovas  de  se  grei.  Lê-se  na  poética  alludida:  «E 
este  segrer  é  de  maior  sabedoria,  por  que  toma 
cada  uma  das  palavras  da  Cantiga  que  segue.)"» 
Póde-se  inferir  que  este  nome  de  Segrel,  dado  a 
determinados  trovadores,  proveiu  da  especial  ca- 
pacidade de  seguir  em  improviso  ou  estudada- 
mente umas  determinadas  palavras,  ou  repetições 
de  rima  e  de  versos.  Quando  uma  estrophe  se 
continua  ou  segue  no  seu  sentido  grammatical  na 
estrophe  immediata,  chama-se-lhes  atehiidas;  ex- 
plica o  género  de  doble,  em  que  a  palavra  se  re- 
pete duas  vezes  na  estrophe,  e  o  7nór  doble,  em 
que  as  mesmas  palavras  mudam  de  tempo.  O 
Marquez  de  Santillana  caracterisou  a  lyrica  do 
noroeste  da  Hespanha  por  este  artificio  dos  ver- 
sos encadenados,  lexapren  e  mansobre.    A  Can- 


220  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


ção  redonda  designava  o  artificio  em  que  o  ul- 
timo verso  da  copla  se  repetia  como  começo  da 
seguinte;  competia-lhe  a  designação  da  encade- 
nada,  quando  a  rima  que  Analisava  a  estrophe 
era  a  primeira  palavra  da  estancia  seguinte.  Diez 
cita  a  rubrica  de  uma  Canção  de  Giraud  Riquier; 
«Canson  redonda  et  encadenada  de  notz  e  de  son.» 
No  Cancioneiro  da  Ajuda  é  frequente  o  encade- 
uado,  sendo  a  primeira  rima  repetida  no  primeiro 
verso  das  demais  estrophes ;  ou  a  ultima  rima 
repetida  sempre  mas  não  como  refren.  O  se- 
gundo artificio  da  poética  trobadoresca  portugue- 
za  é  o  Icxapren,  consistindo  em  repetir  o  ultimo 
verso  da  estrophe  como  primeiro  da  que  se  lhe 
seguia.  A  terceira  forma  ajx^ntada  por  Santil- 
lana  é  o  Mansobrc,  que  consistia  na  rima  repetida 
ora  no  meio  e  fim  do  verso,  e  então  se  chamava 
mansobrc  doble,  ora  no  meio  do  verso,  e  era  o 
mansobre  scncillo  ou  menor.  No  Cancioneiro  de 
Baena,  o  verso :  «Sin  dobl:  mansobre^  sencillo  ó 
menor))  mostra-nos  que  só  no  século  xv  é  que  se 
empregou  esta  forma  na  poesia  castelhana,  sendo 
o  mansobrc  menor  ainda  usado  por  Sá  de  Mi- 
-n-Kla.  De  Mansobrc  doble  encontra-se  um  cu- 
rioso exemplo  no  Cancioneiro  da  Ajnda,  n.o  i6o: 

Vi  eu  viver  coitados,  mas  nunca  tan  coitado 
Viveu  com  oj'  eu  znvo,  nem  o  viu  orne  nado 
Dcs  quando  fui  u  fui,  e  a  que  vol-o  recado : 

De  muy  bon  grado  querria  a  un  logar  ir 

E  nunca  m'ende  ar  viir. 

Também  se  faz  alii  a  distincção  das  rimas  agu- 
das e  graves,  empregando-as  para  ef feito  artisti- 


PRIMEIRA     TvPOCA:     KDADU     media 


CO :  ((As  Cantigas  com'  eu  disse  fazeren  en  ri- 
mas longas  ou  breves  ou  em  todas  misturadas.» 
As  rimas  em  ecco  apparecem  apontadas  no  Fra- 
gmento, reproduzindo  ainda  no  século  xvi  esta 
forma  Gil  Vicente  e  Bernardim  Ribeiro,  repre- 
sentante d'esta  tradição  bem  definida  por  Sá  de 
Miranda.  Os  jograes  que  frequentaram  a. corte 
de  D.  Affonso  iii,  mostrando-se  conhecedores 
d'estes  artifícios  da  métrica,  pretendiam  acober- 
tar-se  com  o  nome  de  segrel;  assim  Picandon 
retorquia  a  uma  tenção  do  trovador  João  Soares 
Coelho : 

Johã  Soares,  logo  vos  é  dado 

e  mostrar-vol-o-ey  em  poucas  rasões; 

gran  dereyt'ey  de  ganhar  does 

e  de  ser  en  corte  tan  preçado 

como  Segrel  que  digo,  mui  ben  vés, 

en  Canções  e  Cobras  e  Sirventes, 

e  que  seja  de  f alimento  guardado. 

A  corte  de  D.  Affonso  tii  foi  assaltada  por 
todos  os  Cantores  vagabundos,  quando  D.  Af- 
fonso o  Sábio  tentou  na  corte  de  Castella  um  re- 
nascimento da  poesia  provençalesca ;  e  deu-se  isto, 
depois  que  D.  Affonso  iii,  desposou  uma  filha 
bastarda  de  Affonso  x,  em  cuja  corte  Giraud  de 
Riquier  em  uma  canção  distinguia  esta  classe  de 
cantores : 

E  ditz   ais   trobadors 
Segries  per  totas  corts. 

No  Regimento  da  Casa  real  de  1258,  D.  Af- 
fonso III  estabeleceu:  ((El  rei  aia  três  j  o  gr  ar  es 
en  sa  casa  e  nom  mais,  e  o  jogral  que  veher  de 


222  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

cavallo  d'outra  terra,  ou  Segrel,  dê-lhe  el  rei  ataa 
cem  (maravedis?)  ao  que  chus  der,  e  non  mais  se 
lhe  dar  quizer.»  i  O  titulo  de  Segrel  era  um 
gráo  acima  de  jogral;  Bernaldo  de  Bonaval,  que 
apparece  citado  no  Cancioneiro  da  Vaticana  como 
Primeiro  trovador,  diz  da  sua  pessoa  em  uma 
Canção  a  D.  Abril  Perez : 

Ca  bem  sabemos,  Don  Bernal,  qual 
senhor  sol  sempre  a  servir  segrel. 

(Canç.  n."  663.) 

E  em  uma  tenção  com  Pêro  da  Ponte  referia- 
se  Affonso  Eanes  de  Coton  a  esta  qualidade  de 
cantor : 

em  nossa  terra,  se  deus  me  perdon', 

a  todo  o  escudeyro  que  pede  don, 

as  mays  das  gentes  lhe  chamam  segrel. 

(Canc.    n.°   556.) 

O  titulo  de  Trovador  é  dado  exclusivamente 
áquelle  que  canta  e  compõe  por  amor,  desinteres- 


I     Portugália;  Monumenta  hist.,  Leges,  i,  193. 

Sobre  a  «tymologia  da  palavra :  século  na  sua  for- 
ma popular  antiga  era  segre,  contrapondo-se  ao  que  é 
religioso  ou  sagrado.  Na  tenção  do  trovador  João  Soares 
e  o  jogral  Picandou,  este  replica-lhe : 

João  Soares,  por  me  doestardes 

non  perc'  eu  por  esso  mia  jograria; 

e  a  vós,  senhor,  melhor  estaria 

d'a  tod'  orne  de  segre  bem  buscardes, 

ca  eu  sei  cançon  muita  e  canto  bem 

e  guardo-me  de  todo  fallimen, 

e  cantarei  cada  que  me  mandardes. 

(Canc.  Vai.,  n."  1021.) 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MEDIA  22,3 


sadamente,  e  por  isso  apparece  como  uma  dis- 
tincção  nobiliarchica  dos  vdhos  livros  de  Linha- 
gens :  que  frobou  hen,  trobador  e  mui  saboroso. 
No  Livro  velho  das  Linhagens  vem  citado  como 
trovador  João  Soares  de  Paiva,  (Port.  Mon., 
i66. );  no  Fragmento  do  Nobiliário  do  Conde 
D.  Pedro,  distinguem-se  nas  séries  genealógicas 
pelo  seu  titulo  de  trovadores  Fernão  Garcia  Esga- 
ravunha,  (Ib.,  p.  192  a  200) ;  Estevam  Annes  de 
Valladares  (p.  199.)  João  Soares  de  Panha  (p. 
208) ;  no  Nobiliário  do  Conde  D.  Pedro,  desta- 
cam-se  com  esse  caracteristico  João  de  Gaia  (p. 
272);  Vasco  Fernandes  de  Praga  (p.  349),  João 
Martins  (p.  302),  e  João  Soares  (p.  352.)  A 
Eschola  trobadoresca  portugueza,  afastando-se 
pelo  artificio  e  prurido  aristocrático  das  fontes  po- 
pulares ia  esgotar-se  na  actividade  banal  das  Can- 
ções de  escarneo,  suscitadas  pelas  dissidências  po- 
liticas. O  que  se  passava  na  corte  de  Affonso  x, 
de  Castella,  reflectia-se  na  corte  portugueza,  n'essa 
abundância  de  Cantigas  de  maldizer.  Era  costu- 
me velho  na  fidalguia  peninsular,  como  se  lê  nas 
Partidas,  que  condemnam  as  ((Cantigas  ó  Rimos  é 
Deytados  maios  de  los  que  han  sabor  de  infamar... 
deitavam-se  nas  casas  dos  fidalgos,  egrejas  e  nas 
praças  das  cidades...)) 

Entre  as  sátiras  do  cyclo  affonsino  destaca-se 
a  Gesta  de  Maldizer,  que  fez  Dom  Affonso  Lo- 
pes de  Baiam,  a  Dom  Mendo  e  a  seus  vassallos; 
é  em  verso  alexandrino  imperfeitamente  metri- 
ficado, em  três  estrophes  monorrimas,  separadas 
pela  celebre  neuma  com  que  terminam  as  deixas 
(laisse)   da  ^hanson  de  Ralaud,  Aoi.    Torna-3e 


224  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUEZA 

pelo  titulo  de  Gesta,  e  pela  sua  forma  uma  prova 
de  que  essa  grandiosa  epopêa  franka  era  conhe- 
cida em  Portugal.  A  sátira  de  D.  Affonso  Lopes 
de  Baiam,  um  dos  mais  validos  ricos  homens  da 
corte  de  D.  Affonso  iii,  visava  o  valimento 
d'esse  infanção  Ruy  Gomes  de  Briteiros  que  por 
ter  seduzido  a  gentil  D.  Elvira  Annes  da  Maia 
foi  elevado  a  rico-homem  p:la  roca,  conforme  a 
linguagem  pittoresca  medieval.  Ruy  Gomes  de 
Briteiros  achou-se  na  Lide  do  Porto  e  esteve  em 
França  junto  do  Princepe  D.  Affonso,  a  quem 
acompanhou  a  Portugal,  quando  veiu  desthro^- 
nar  o  irmão.  Pela  referencia  ao  seu  solar  de 
Longos,  e  ao  nome  de  Dom  Mccndo,  seu  filho, 
é  que  se  desvenda  o  sentido  da  Gesta,  que  mote- 
java das  pretençÕes  heráldicas,  do  descendente  de 
um  Pêro,  natural  da  localidade  de  Longos- Valles 
em  que  os  frades  Cruzios  tinham  um  convento. 
Tanto  Ruy  Gomes  de  Briteiros  como  seu  filho 
Dom  Meem  Rodrigues  de  Briteiros  foram  tam- 
bém trovadores,  de  que  restam  algumas  cançÕ3s, 
tendo  talvez  por  (|ualquer  copla  provocado  os 
chascos  do  poderoso  rico-homem,  que  não  via 
com  bons  olhos  o  seu  favoritismo  junto  de  D.  Af- 
fonso III.  O  nome  de  Belpelho  e  Velpelho  (di- 
minutivo de  Viilpcs,  a  pequena  raposa)  alludia  á 
iiidole  ardilosa  d'esses  oriundos  de  Longos ;  cFesta 
inferioridade  de  solar  fere-os  a  copla : 

Deu  ora  cl  rcy  seus  dinheiros 
a  Belpelho,  que  mostrasse 
en  alarcio  cavalleiros 
e   por   ric'   omen   ficasse 
e  pareceu  a  cavallo 
con  sa  sela  de  badana: 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  225 


Qual  Ric'  omen  tal  vassalo. 
Qual  Concelho  tal  campana. 

(Canc.  Vat.,  n.°  1082.) 

A  Gesta  de  mal  dizer  (ib.  n.o  1080)  descreve 
esse  alardo,  feito  por  D.  Mendo  Rodrigues  de 
Britei ros,  com  toda  a  pompa  épica,  verdadeira  pa- 
rodia quixotesca: 

Sedia-se  don  Velpelho  en  hunha  sa  mayson 
que  chaman  Longos,  onde  elles  todos  son: 
per  porta  lh'entra  Martin  de  Farazon, 
escud'  a  colo  en  qu'é  senha  un  capon 
que  foy  já  poF-eyr'  en  outra  sazon. 
cavai'  agudo  que  semelha  foron, 
en  cima  d'el  un  velho  selegon, 
sen  estrebeyras,  e  con  roto  bardon, 
nen  porta  loriga,  nen  porta  lorigon, 
nen  geolheiras  quaes  de  ferro  son. 


E'  quanto  basta  para  conhecer  a  forma  da 
Gesta  e  os  chascos  da  parodia;  o  que  interessa  é 
determinar  até  que  ponto  se  communicou  a  Por- 
tugal a  corrente  épica  do  norte  da  França.  No 
Livro  das  Linhagens  apparecem  citados  os  Doze 
Pares,  agrupamento  heróico  divulgado  além  da 
Chanson  ae  Roland  pelas  antigas  Gestas  da  Ma- 
téria de  F*-ança,  a  Viagem  a  Jerusalém  e  Reynana 
de  Montauban;  eis  a  referencia:  «muytos  ricos 
homeens,  que  iam  para  lhes  acorrerem  disseram  a 
el  rey  Don  Fernando  que  nunca  viram  cavallei- 
ros,  nem  ouviram  fallar  que  tam  soffredores  fos- 
sem, e  íizeram-nos  em  par  dos  doze  pares.  (Mon. 
híst.,  Script.,  283.  j  No  epitaphio  de  D.  Rodrigo 
Sanches,  bastardo  de  Dom  Sancho  i,  morto  na 
Lide  do  Porto  em  1245,  "^  revolta  contra  D.  San- 

15 


226  HISTORIA   DA    LITTERATURA   PORTUGUEZA 


cho  II,  elle  é  comparado  a  Roland,  no  verso: 
«Laudibus  ex  dignis,  alter  fuit  hic  Rohilandus.)) 
A  forma  Rotnlandus  foi  empregada  por  Radul- 
phus  Tortarius  alatinando  a  forma  germânica 
Hruodland,  usada  por  Eghinard;  e  o  trovador 
Guerau  de  Cabrera,  traz  em  uma  canção  Rotlon, 
d'onde  a  forma  Roldan,  que  se  tornou  popular. 
Na  Canção  de  João  Baveca  (Vat.  np  1066)  en- 
contra-se : 

e  ora  per  Roncesvales  passou 
e  tornou-se  de  Poio  de  Roldan. 

E  no  poema  de  Rodrigo  Yanes,  Crónica  de 
Affonso  Onceno,  descrevendo  a  batalha  do  Sa- 
lado: 

Nin  fue  mejor  cabal lero 
El   arçobispo  Don   Turpin, 
Ni  el  cortes  Olivero 
Ni  el  Roldan  paladin. 

(St.  1793.) 

Muitas  das  referencias  a  Carlos  Magno  nos 
Nobiliários  derivaram  do  Pseudo  Tiirpin  do  Co- 
dex  de  San  Thiago  de  Compostella,  que  «no  livro 
IV  consigna  invenções  fabulosas  e  reminiscências 
dos  Cantares  de  Gesta,»  (Canc.  Aj.,  11,  812)  que 
foram  também  elaboradas  no  romanceiro  penin- 
sular com  caracter  próprio,  como  provou  Nigra 
em  relação  á  cantilena  de  Vifarius  ou  de  Dom 
Gayfeiros.  Nos  paizes  onde  o  feudalismo  não 
chegou  a  estabelecer-se,  as  Gestas  frankas,  que 
em  geral  idealisavam  as  luctas  dos  grandes  vas- 
sallos  contra  o  poder  monarchico,   não  acharam 


PRIMEIRA    época:     EDADE    média  22^ 


sympathia.  Os  jograes,  que  no  século  xiv  e  xv, 
cantavam  pela  Itália  os  feitos  heróicos  de  Carlos 
Al  aguo  eram  com  crescente  despreso  chamados 
Ciartalani;  em  Portugal,  o  nome  de  Roldão  tor- 
nou-se  designativo  de  valentão  grosseiro,  e  Val- 
devinus,  um  tunante  ou  vagabundo.  No  século 
XV  citava  a  faidse  Geste  do  Duque  Jean  de  Lanson, 
Azurara  como  digno  de  memoria,  desconhecen- 
do o  seu  typo  odioso.  Quando  os  trovadores  co- 
meçavam a  alludir  ás  Gestas  francas,  entravam 
na  corte  as  Novellas  amorosas  do  Cyclo  da  Ta- 
vola  Redonda,  que  se  apossaram  do  gosto  e  do 
enthusiasmo.  Era  uma  renovação  das  Canções  ly- 
ricas,  que  vinha  acordar  a  paixão  pelos  poemas 
narrativos  da  Matéria  de  Bretanha. 

O  Cyclo  Affonsino  tocava  o  seu  termo,  quan- 
do a  corte  portugueza  acompanhava  o  recolhi- 
mento do  rei  pela  sua  prolongada  doença.  Para 
resistir  ás  exigências  dos  seus  privados  e  do  clero 
que  lhe  deram  o  throno,  D.  Affonso  iii,  affe- 
ctou  como  valetudinário  crises  de  soffrimento,  di- 
zendo os  documentos  contemporâneos  (s.que  avia 
bem  catorze  (annos)  que  jazia  em  huma  cama, 
e  que  se  nom  podia  levantar.)}  Serviu-lhe  esta 
situação  para  mandar  colligir  um  grande  Can- 
cioneiro trobadoresco,  obtendo  pela  sua  situação 
especial,  os  cadernos  das  trovas  que  existiam  por 
mãos  dos  fidalgos,  nas  cortes  de  Castella  e  Ara- 
gão, e  em  Portugal ;  e  isso  quando  ao  mesmo  tem- 
po dava  a  seu  filho  D.  Diniz  uma  esmerada  edu- 
cação litteraria.  Na  Livraria  do  Rei  Dom  Duarte 
guardou-se  um  códice  com  o  titulo: 

—  Livro  das  Trovas  dei  Rey  Dom  Affonso, 


228  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

encadernado  em  couro,   o  qual   compilou  F.   de 
Montemor  novo. 

Na  mesma  Bibliotheca  se  guardou  o  Livro  das 
Trovas  de  Bl-rei  Dom  Diniz.  Naturalmente  se  es- 
tabelece a  relação  histórica  entre  os  dois  cancionei- 
ros. D.  Carolina  Michaèlis  formulou  essa  plau- 
sivel  hypothese,  que  se  fundamenta  com  segu- 
rança ;  e  descreve  o  plano  de  D.  Af  fonso  1 1 1 : 
«Espectador  das  festas  brilhantes  da  corte  de 
S.  Luiz,  conhecedor  das  emprezas  de  seu  tio-avó 
Al  fonso  II,  de  Aragão,  que  incumbira  um  monge 
do  mosteiro  de  St.  Honorat  de  ajuntar  em  um 
volume  obras  poéticas  em  lingua  d'oc;  sciente  do 
esmero  com  que  seu  sogro,  o  Sábio  de  Castella, 
eternisava  os  seus  Cânticos,  e  também  da  activi- 
dade poética  de  Thibaut  de  Champagne  e  Na- 
varra (servidor  mais  ou  menos  authentico  de  Blan- 
ca  de  Castella  e  herdeiro  de  seu  tio  Sancho  San- 
ches, o  Forte)  o  rei  de  Portugal  não  só  publicou 
decretos  sobre  a  posição  dos  jograes  na  sua  corte, 
mas  concebeu  também,  se  não  me  engano,  o  plano 
de  reunir  em  volume  os  ro fulos  com  versos  dos 
seus  vassallos  e  as  reliquias  que  restavam  dos  rei- 
nados anteriores.»  (Canc.  Aj.,  ii,  233.)  D.  Ca- 
rolina Michaèlis  que  estudou  fundamentalmente 
o  Cancioneiro  da  Ajuda,  reconstituindo-o  nas  par- 
tes truncadas  e  fragmentadas  pelos  logafes  com- 
muns  nos  dois  Cancioneiros  da  Vaticana  e  Co- 
locci-Brancuti,  completando  as  séries  das  canções, 
pôde  pelo  estudo  biographico  e  dados  chronolo- 
gicos  d 'esses  trovadores,  determinar  os  cyclos  au- 
licos  a  que  pertencem.  Sobre  estas  bases  chegou 
á  conclusão,  que  o  Cancioneiro  da  Ajuda:  «é  uma 


PRIMEIRA   época:    EdadE    média  229 


collecção  anterior  independente  de  versos  pre-dio- 
nisiacos,  um  núcleo  primordial,  que  serviu  de 
ponto  de  partida  aos  collectores  subsequentes.» 
(Ib.,  II,  224.)  No  principio  do  velho  pergami- 
nho, figuram  sem  excepção,  os  pre-Affonsinos, 
de  1200  a  1245;  e  prosegue:  «Estudando  as  bio- 
graphias  dos  poetas,  cujas  obras  de  amor  o  Can- 
cioneiro da  Ajuda  nos  conservou,  apura-se  que 
a  maioria  dos  que  materialmente  apparecem  an- 
tepostos aos  Alfonsos  de  Castella  e  Leão  e  a 
D.  Diniz  de  Portugal,  pertencem,  de  facto  ao 
reinado  anterior,  de  D.  Affonso  iii,  o  Bolonhez 
(1245-1279,) ;  e  são  ricos-homens  e  cavalleiros 
da  sua  corte.  Alguns  ainda  alcançaram  o  tempo 
do  filho  e  successor,  ou  em  Castella  o  de  Sancho  iv, 
que  herdou  a  coroa  do  Sábio.  A  vida  dos  dois 
prolongou-se  depois  de  1300.))  (Ih.,  p.  322.)  Das 
310  Canções  de  que  se  compõe  o  Cancioneiro  da 
Ajuda,  246  existem  repetidas  com  variantes  nos 
dois  Cancioneiros  da  Vaticana  e  Colocci ;  isto  nos 
define  com  segurança  o  que  seria  o  conteúdo  do 
Livro  das  Trovas  de  Bi  rei  Dom  Affonso. 

São  trinta  os  trovadores  que  pertencem  a  este 
cyclo,  alguns  dos  quaes  frequentaram  a  corte  de 
Affonso  o  Sábio.  ^ 


I  Apontaremos  alguns:  Dom  João  de  Aboim  —  D. 
Affonso  Lopes  de  Baiam — ^Ruy  Gomes  de  Briteiros  — 
João  Soares  Coelho  —  Fernão  Fernandes  Cogominho  — 
D.  Fernão  Garcia  Esgaravunha  —  Rodrigo  Eannes  de  Vas- 
concellos  —  Rodrigo  Eanes  Redondo  —  D.  Garcia  Mendes 
de  Eixo  —  Pêro  Gomes  Barroso  —  D.  Vasco  Gil  —  Fernão 
Velho.  —  Gonçalo  Eanes  de  Vinhal  —  Affonso  Eanes  do 
Coton  — Ruy  Paes  de  Ribela  —  Pêro  da  Ponte  —  Bernaldo 


230  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 


c)  Cyclo  Dionísio  (1279  a  1325.)  Justa- 
mente no  período  em  que  a  poesia  provençal  de- 
cahia,  entre  1250  e  1290,  é  que  ella  appresentava 
uma  floração  artificial,  uma  como  revivescência 
culta.  Escreve  Paul  Meyer:  «Na  França  do  nor- 
te, na  Itália  e  na  corte  do  joven  Frederico  11,  na 
Toscana,  na  Galliza,  na  corte  do  rei  D.  Diniz, 
compunha-se  em  maneira  de  provençal. )>  Esta 
crise  do  gosto  litterario  reflectia  os  movimentos 
sociaes,  religiosos  e  politicos.  Paul  Meyer  resu- 
me-os:  «A  edade  de  ouro  da  poesia  dos  Trova- 
dores não  foi  longa:  durou  um  século  pouco 
mais  ou  menos;  dos  primeiros  annos  do  século  xii 
á  Cruzada  albigense.  —  A  maior  parte  dos  Tro- 
vadores emigraram  para  Aragão,  para  Castella, 
para  a  Itália,  e  a  poesia  provençal  lançou  ahi  o 
seu  ultimo  fulgor,  emquanto  se  extinguia  lenta- 
mente nos  paizes  em  que  nasceu.»  (Romania, 
1876,  p.  263  e  265.)  A  corte  de  Dom  Diniz  tor- 
nou-se  o  centro  de  convergência  dos  trovadores 
gallegos,  castelhanos,  aragonezes  e  andaluzes,  que 
alli  vinham  encontrar  o  applauso  e  o  premio  dos 
seus  talentos,  no  esclarecido  rei.  Dom  Diniz  era 
uma  organisação  excepcionalmente  constituída, 
que  fora  habilmente  dirigida,  revelando-se  por  uma 
acção  histórica  progressiva  e  consciente.  D.  Af- 
fonso  III,  receiando  que  fosse  perturbada  a  sua 


de  Bonaval  —  Payo  Gomes  Charrinho  —  João  de  Guilhade 
— '  Martin  Soares  —  Ruy  Queimado  —  Vasco  Peres  Pardal 
— João  Vasques — Pedro  Amigo — Pedro  d'Ambrôa  —  Vasco 
Praga  de  Sandim  —  Pêro  Velho  de  Taveiroz  —  Ruy  Gomes 
o  Freire  —  Vasco  Rodrigues  de  Calvelos. 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  23I 


successão  ao  throno,  por  ter  nascido  quando  ainda 
não  estava  divorciado  da  condessa  Mathilde, 
(1261)  nomeou-o  expressamente  como  seu  suc- 
cessor,  e  associou-o  ao  seu  governo.  Dom  Diniz, 
receiando  sempre  que  se  levantasse  como  preten- 
dente o  irmão  nascido  já  em  condições  canóni- 
cas, (1263)  manteve-se  na  linha  de  uma  pratica 
da  justiça,  da  ordem  e  do  bem  publico,  tornan- 
do-se  uma  verdadeira  manifestação  do  poder  tem- 
poral. Nos  dias  descuidados  da  mocidade  teve  por 
seu  mestre  Aymeric  d'Ebrard  que  lhe  fez  conhe- 
cer a  poesia  franceza;  viu-se  cercado  pelos  fidal- 
gos que  estiveram  homiziados  na  corte  de  Sam 
Luiz  e  de  lá  trouxeram  o  gosto  das  Pastorellas; 
conhecia  a  supremacia  mental  de  Affonso  o  Sá- 
bio, seu  avô,  que  tanto  se  empenhava  pela  restau- 
ração da  Poesia  provençal,  e  mandava  traduzir  a 
sua  Crónica  general  de  Espana;  e  foi  na  corte 
de  Aragão,  que  elle  procurou  para  esposa  D.  Isa- 
bel, filha  de  Pedro  iii,  que  também  cultivava  a 
poesia,  e  nas  suas  Ordenações  estabelecera  a 
admissão  dos  jograes  nas  casas  principescas,  acar 
líir  o f fiei  done  alcgria.y)  Foi-lhe  muito  cedo  es- 
tabelecida casa  apartada;  e  os  fidalgos  nomeados 
para  o  seu  serviço  eram  trovadores  affonsinos, 
como  João  Martins  e  Martim  Perez,  o  celebrado 
Dom  João  de  Aboim,  que  depois  da  morte  de 
D.  Affonso  III  assistiu  com  a  rainha  em  uma 
espécie  de  conselho  de  regência.  Dom  Diniz  deu 
largas  ás  suas  predilecções,  cultivando  como  seu 
avô  e  seu  sogro,  a  poesia  com  um  talento  exce- 
pcional, tornando-se  o  principal  trovador  portu- 
guez  pela  sua  fecundidade,  (138  Canções  conhe- 


2J2  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

cidasj  e  pelo  sentimento  delicado  e  finamente  ar- 
tistico.  Devia  exercer  espontaneamente  um  gran- 
de influxo  litterario,  n'essa  época  de  intensa  acti- 
vidade mental,  i  e  ao  passo  que  alentava  o  des- 
envolvimento do  lyrismo,  fundava  a  Universidade 
de  Lisboa,  quando  a  de  Salamanca,  fundada  por 
Affonso  o  Sábio,  parecia  estacionaria.  A  sua  in- 
fluencia n'esta  phase  do  lyrismo  moderno,  acha-se 
assim  caracterisada  por  D.  Carolina  Michaèlis: 
«Considerando  como  apogeu  da  lyrica  palaciana 
os  annos  de  1275  a  1280,  em  que  o  joven  Dom 
Diniz,  rodeado  dos  melhores  trovadores  de  seu 
pae,  dos  veteranos  do  avô  castelhano  e  de  alguns 
artistas  vindos  da  terra  do  seu  sogro  aragonez, 
manifestava  o  excepcional  talento  que  possuia, 
penso  que  o  plano  do  Bolonhez  de  reunir  os  pro- 
ductos  da  Gaia  Sciencia  hispânica,  também  foi 
iniciado  e  continuado  até  1325  pelo  filho.»  (Canc. 
Aj.,  II,  288.)  A  creação  do  Consistório  Tolosa- 
no  em  1323  revela  a  importância  com  que  era 
estudado  o  lyrismo  occitanico,  que,  como  observa 
Paul  Meyer  «revivescia  fora  da  sua  pátria  sob 
formas  novas.»  E'  este  saber  technico  que  se  ma- 
nifesta no  cyclo  dionisio.    O  rei-trovador  alardea 


I  Uma  filha  bastarda  de  Affonso  x.  D.  Beatriz  casou 
com  D.  Affonso  iii;  além  do  rei  D.  Diniz  nasceu  d'este 
casamento  a  Infanta  D.  Branca,  a  quem  Sancho  iv,  em 
data  de  25  de  Abril  de  1295,  deu  o  senhorio  das  Hueígas ; 
para  ella  Mestre  Affonso  de  Valladolid  (Rabbi  Abner 
que  se  converteu  ao  christianismo.)  que  pertencia  á  casa 
da  Infanta  traduzia  em  castelhano  o  Libro  de  las  Batalhas 
de  Dios.  D'aqui  essa  litteratura  da  Corte  Imperial,  Orto 
do  Esposo,  etc. 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  233 


O  seu  conhecimento  das  fontes  puras  do  lyrismo, 
e  separa  a  funcção  mercenária  dos  jcgraes.  Na 
Canção  xliii  (Vat.,  n.o  123)  proclama: 


Quer'  eu  en  maneira  de  provençal 
fazer  agora  um  cantar  de  amor, 
e  querrei  muit'  i  loar  mha  senhor 
a  que  prez  nem  fremosura  nom  fal, 
nem  bondade;  e  mais  vos  direi  en; 
tanto  a  fez  deus  comprida  de  bem, 
que  mais  que  todas  las  do  mundo  vai. 


Na  Canção  xlvii  (Vat.,  n.o  127)  confirma 
a  superioridade  dos  trovadores  Provençaes  pela 
doutrina  do  Amor  que  professam  e  os  inspira, 
distinguindo-os  da  inconsciência  dos  Jograes  que 
vão  cantando  em  dadas  épocas  do  anno,  no  tempo 
da  frol  ou  da  reverdie: 


Proenças  soem  mui  ben  de  trobar, 
e  dizem  elles  que  é  com  amor; 
mais  os  que  trobam  no  tempo  da  frol 
e  nom  en  outro,  sei  eu  bem  que  nom 
am  tam  grã  coita  no  seu  coraçon 
qual  m'eu  por  mha  senhor  vejo  levar. 

Pêro  que  trobam  e  sabem  loar 

sas  senhores  o  mais  e  melhor 

que  elles  podem,  sÕo  sabedor 

que  os  que  trobam  quand'  a  frol  sazon 

a,  e  non  ante,  se  Deus  mi  perdon' 

nom  am  tal  coita  qual  eu  ei  sem  par. 

Cá  os  que  trobam  e  que  s'  alegrar 
vam  em  o  tempo  que  tem  a  calor 
a  frol  comsigu'  e  tanto  que  se  for 
aquel  tempo,  logu'  en  trobar  razon 
nom  am,  nen  vivem  em  qual  perdiçom 
oj'  eu  vivo,  que  pois  m'  a  de  matar. 


254  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


A  razão  de  amor  era  a  doutrina  philosophica 
com  que  os  trovadores  explicavam  o  seu  senti- 
mento af  fectivo  ç  apaixonado,  que  vem  desde  Ar- 
nald  de  Merveil  até  Dante,  appresentando  a  forma 
mystica  do  ideal  da  Virgem,  e  a  cortezanesca  da 
Dama,  que  se  eleva  á  representação  allegorica  das 
Beatrizes  e  Lauras.  O  rei  Dom  Diniz  conheceu  a 
doutrina  do  amor  então  recebida  da  philosophia 
platónica.  Como  determinar  essa  via?  O  Te- 
zoro  de  Bruneto  Latini  foi  conhecido  em  Hes- 
panha  e  estudado  por  Affonso  o  Sábio;  Bruneto 
Latini  é  que  communicou  a  Dante  e  lhe  explicou 
a  philosophia  platónica :  «Foi  elle  também  o  mes- 
tre do  grande  poeta  Guido  Cavalcanti,  elegíaco  e 
por  vezes  pathetico,  outras  sensual,  um  dos  mais 
francos  modelos  do  circulo  epicurista  da  Flo- 
rença.» I  '  Dante  memorou  o  Rei  Dom  Diniz  na 
sua  Divina  Comedia;  2  e  a  protecção  dada  por  este 
monarcha  aos  Templários,  garantindo-lhes  os  seus 
bens  e  conservando-os  com  o  nome  de  Cavelleiros 
de  Christo,  mostram-nos  que  elle  estava  no  co- 
nhecimento das  doutrinas  do  amor  até  no  seu  as- 
pecto mystico  e  heterodoxo. 

O  ideal  do  Amor,  vinha  no  fim  do  século  xi  i 
completar  o  individualismo  heróico  da  Honra,  e 
inspira  uma  nova  poesia  lyrica  cortezanesca: 
«Traz  comsigo  esta  concepção,  grande  em  si,  que 
o  amor  deve  ser  a  fonte  das  virtudes  sociaes. 
Determina  uma  força  nobilitante.  O  amante  deve 
tornar-se  digno  do  sêr  amado,  pelo  duplo  exer- 


1  Gebhart,  Vltalie  mystique,  p.  304. 

2  Del  Paradiso,  canto  xix,   t-  139. 


PRIMEIRA    época:    edadE    media  235 


cicio  da  Valentia  e  Cortesia,  e  o  .Amor  só  deve 
entregar-se  por  este  preço;  por  que  tem  por  fim 
o  realisar  a  perfeição  cavalheiresca. 

«Mas  esta  ideia  vem  da  Provença,  já  velha  e 
exagerada.  O  principio  inspirador  da  poesia  pro- 
vençal é  que  o  amor  é  uma  arte;  e  os  trovadores 
aperfeiçoaram  esta  arte  até  á  minúcia.  Revelaram 
bruscamente  aos  troveiros  uma  completa  rhetorica 
e  uma  casuistica  de  amor,  uma  dialéctica  das  pai- 
xões, um  código  de  cortezania.  Os  sentimentos 
acham-se  ahi  catalogados  e  classificados,  tão  cui- 
dadosamente como  os  géneros  ly ricos,  sujeitos  a 
leis  tão  rigidas  como  a  sirvente,  a  tenção  ou  o  joc- 
JDarti.  Os  poetas  provençaes  ensinam  uma  etiqueta 
cerimoniosa  de  corte,  uma  estratégia  galante  cu- 
jas manobras  são  reguladas  como  os  passos  d'ar- 
mas  dos  torneios.  Visto  que  o  dever  do  amante 
é  merecer  o  ser  amado  e  de  valer  pela  sua  cor- 
tesia, é  esta  a  regra  da  estricta  observância  que 
elle  deve  praticar.  Deve  viver  á  vista  de  sua  dama 
em  uma  perpetua  tremolencia,  como  um  sêr  in- 
ferior e  submisso,  humildemente  suspirando,  há- 
bil, como  um  mestre  de  cerimonias,  em  exercer  a 
propósito  as  virtudes  de  salão.  Deve  estar  diante 
d'ella  como  o  unicórnio,  que  aterrador  para  os 
homens,  se  humilha  e  se  doma  ao  pé  de  uma 
donzella;  ou  como  a  phenix,  que  se  lança  na  la- 
bareda ;  ou  como  o  marinheiro,  que  guia  a  estrella 
polar,  immovel,  serena  e  fria.  E'  um  longo  cor- 
tejo de  banidos,  de  doentes  que  amam  a  sua 
doença  e  de  esperantes  desesperados.  O  amor  já 
não  é  uma  paixão,  é  uma  arte,  peior  ainda,  um 
cerimonial;  vem  a  parar  em  um  sentimentalismo 


236  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

de  romance  para  guitarra,  e  os  tro veiros  passam 
sem  transição  das  paixões  rudimentares  das  can- 
ções de  Gestas  ás  peores  chatezas  do  trobado- 
rismo. 

«Indubitavelmente,  a  poesia  da  Edade  média 
ter-se-ia  rapidamente  mirrado  em  uma  galanteria 
preciosa  e  formalista,  se  a  influencia  céltica  (me- 
lhor, bretã)  não  tivesse  occorrido  logo  servindo  de 
contrapezo  á  dos  trovadores.  Ao  sensualismo  in- 
nocente  e  bárbaro  das  velhas  canções  de  gesta,  á 
galanteria  da  poesia  provençal,  os  cantos  bretãos 
oppÕeni  um  puro  idealismo.  Aqui  não  se  trata 
de  bem  fallar,  nem  de  saber  combinar  rimas,  nem 
de  brilhar  nos  torneios.  Nenhuma  rhetorica  de 
sentimentos.  Não  se  trata  mais  de  valer.  Por 
que  é  Tristão  amado  por  Yseult?  Por  sua  ele- 
gância?... Não;  é  por  que  é  elle,  e  por  que  é  ella. 
A  sua  paixão  acha  em  si  mesmo  a  sua  causa  e  o 
seu  fim.  O  amor,  n'estas  lendas,  é  desprovido  de 
todo  o  alcance  mais  geral :  a  ideia  do  mérito  e 
do  demérito  moral  é-lhes  inteiramente  ausente. 
Concepção  a  mais  ingénua  e  bastante  primitiva, 
mas  profunda.  A  dama  já  não  é,  como  nos  poe- 
mas lyricos  imitados  dos  trovadores,  uma  espé- 
cie de  Ídolo  impassivel,  que  reclama  proezas  de 
torneios  ou  o  incenso  das  bailadas  e  das  canções 
tripartitas.  A'  submissão  do  amante  á  amante, 
succede  a  egualdade  diante  da  paixão.»  i  E'  esta 
nova  corrente  que  inspira  a  expansão  lyrica  de 
Dom  Diniz  na  canção  xvi  (Vat.,  95.)  : 


I    Joseph  Bédier,  Les  Lais  de  Marie  de  France,  (Re- 
vue  des  Deux-Mondes,  1891,  t.  v,  p.  852.) 


PRiMKiRA   época:    edade   média  237 


Pois  que  vos  fez  Deus,  mha  senhor, 
fazer  do  bem  sempre  o  melhor, 
e  vos  em  fez  tam  sabedor, 
unha  verdade  vos  direi, 
se  mi  valha  nostro  senhor : 
erades  bôa  pêra  rei. 

E'  este  refrem  que  dá  um  ef feito  peculiar  á 
estrophe.  E  para  representar  a  paixão  que  o  do- 
mina e  submette  á  passividade,  compara-se  aos 
typos  que  então  synthetisavam  a  fatalidade  do 
amor,  na  Canção  xxxvi  (Vat.  115): 

Qual  mayor  poss',  e  o  mais  encoberto 

que  eu  poss',  e  sei  de  Brancafrol 

que  Ihi  não  ouve  Flores  tal  amor 

qual  vos  eu  ei ;  e  pêro  sõo  certo 

que  mi  queredes  peior  d'outra  ren 
pêro,  senhor,  quero-vos  eu  tal  bem. 

Qual  maior  poss';  e  o  mui  namorado 
Tristam  sei  bem  que  non  amou  Iseu 
quant'  eu  vos  amo,  esto  certo  sei  eu ; 
e  com  todo  esto  sei,  mao  pecado, 

que  mi  queredes  peior  d'outra  ren; 

pêro,  senhor,  quero-vos  eu  tal  bem. 

Estes  amores  tornaram-se  fortes  realidades,  de 
que  são  testemunhos  os  seus  bastardos,  e  como 
seu  pae,  também  trovadores,  o  Conde  D.  Pedro, 
nascido  dos  amores  com  D.  Gracia,  senhora  da 
Ribeira  de  Santarém,  e  o  Conde  D.  Affonso  San- 
ches, nascido  da  vehemente  paixão  por  D.  Al- 
donça  Rodrigues  da  Telha,  i    Mas  estes  delirios, 


I  A  estes  amores  allude  o  trovador  Pêro  Barroso, 
na  Canção  a  Ruy  Gomes  da  Telha,  (Vat.,  n."  1051  a  1057; 
também  na  canção  1052  allude  aos  amores  de  D.   Affon- 


238  HISTORIA   DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


que  tanto  sanctiíicaram  a  rainha  Isabel  de  Ara- 
gão, não  impediam  as  especulações  da  casuistica 
amorosa,  que  eram  o  objecto  das  celebradas  Cor- 
tes de  Amor,  em  que  as  damas  sentenciavam,  es- 
tabelecendo pelas  suas  resoluções  os  Arresta 
Amorum.  No  Cancioneiro  da  Vaticana,  a  Can- 
ção 597  refere-se  a  este  género  de  festa  pala- 
ciana : 

O  meu  amigo  novas  sabe  já 
d'aquestas  Cortes  que  s'ora  faram, 
ricas  e  nobres  dizem  que  seram, 
e  meu  amigo  bem  sei  que  fará 
hum  cantar  em  que  dirá  de  mi  bem, 
ou  fará  ou  já  o  feito  tem. 

Em  aquestas  Cortes  que  faz  El-rei 
loará-mi   e  meu  parecer, 
e  dirá  quanto  bem  poder  dizer 
de  mim,  amigos,  e  fará  bem  sei 
hum  cantar  em  que  dirá  de  mi  bem, 
ou  fará  ou  já  o  feito  tem. 

O  cunhado  do  rei  D.  Diniz,  D.  Pedro  de^  Ara- 
gão (bastardo  de  Pedro  11 1)  visitava  a  sua  corte, 
e  trovava  também  no  novo  género  lyrico  dos  Lais 
de  Bretanha;  lê-se  na  Canção  1147  da  Vaticana: 

Dom  Pedro  est  cunhado  dei  rei, 

que  chegou  ora  aqui  d'Aragon, 

com  l.íí  espeto  grande  de  leitom; 

e  pêro  que  vol-o  perlongarei, 

d'eu  por  vassalo,  de  si  a  senhor, 
faz  sempre  nojo,  non  vistes  mayor. 


so  II  con)  D.  Mór  Martins,  mulher  de  D.  Ponço  de  Baiam, 
falecido  por  qualquer  caso  extraordinário: 

Moir'  eu  do  que  en  Portugal 
morreu  Dom  Ponço  de  Baiam. 

D.    Carolina    Michaélis    indica   sugestivamente   suicídio 
como  resultante  de  ciúme.  (Canc.  Aj.,  il,  399.) 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  239 

Todas  as  correntes  lyricas,  occitanicas,  fran- 
cezas,  bretãs  e  populares  brilhavam  na  corte  de 
Dom  Diniz,  em  que  elle  occupava  a  situação  pri- 
macial pelo  seu  talento.  Nas  cento  e  trinta  e 
oito  Canções  que  formam  o  seu  Cancioneiro,  re- 
flectem-se  estas  phases  poéticas  na  sua  actividade: 
primeiramente  prevalece  o  emprego  do  verso  li- 
mosino  ou  endecasyllabo  em  que  as  Canções  têm 
por  assumpto  essa  vaga  casuistica  sentimental  da 
superioridade  da  creatura  amada,  da  necessidade 
do  segredo  absoluto,  da  severidade  implacável  da 
sua  dama;  quebrando  esta  estructura  de  um  sub- 
jectivismo convencional,  brilham  os  quadros  obje- 
ctivos das  Pastordlas  no  gosto  francez,  nas  bellas 
e  deliciosas  Canções  n.o  xxiii,  l,vii  e  Lxx, 
e  por  fim  predomina  o  género  nacional  das  for- 
mas parallelisticas  dos  Cantares  de  Amigo,  de 
uma  graciosidade  e  ingenuidade  commovente  pela 
pureza  emotiva.  O  recopilador  do  Cancioneiro  do 
Rei  Dom  Diniz  destacou  esse  género  na  compi- 
lação : 

nBm  esta  folha  adiante  se  começam  as  Can- 
tigas d'amigo,  que  o  mui  respeitahrc  Dom  Dinis, 
rei  de  Portugal  fes.)) 

O  fundador  da  philologia  românica  Frederico 
Diez  foi  o  primeiro  que  soube  avaliar  esta  forma 
do  lyrismo  de  caracter  popular  determinando  a 
sua  origem  tradicional  pela  sobrevivência  nas  can- 
çonetas de  Gil  Vicente  e  em  outras  épocas  litte- 
rarias.  i    Era  um  problema  de  um  alto  valor  es- 


I     Ueber  die  erst  portugiesischc  Kiinst  und  Hofpoesie, 
p.    lOO. 


240  HISTORIA   DA   UTTERATURA   PORTUGUEZA 


thetico.  Paul  Meyer  esboça-o:  «No  ponto  de 
vista  do  historiador  litterario,  esta  adopção 
do  género  popular,  que  no  caso  presente  chega 
até  a  conservar  a  assonancia,  é  um  facto  interes- 
santissimo.  Revela-nos  os  poetas  da  corte  de 
D.  Diniz  dotados  de  um  sentimento  de  poesia  na- 
tural, que  honra  o  seu  gosto.  Souberam  alguns  de 
entre  elles  imitar  os  trovadores,  como  o  provou 
Diez  amplamente,  mas  ao  mesmo  tempo  soube- 
ram dar  prova  de  uma  effectiva  originalidade. 
Elles  tem  um  logar  inteiramente  independente  na 
poesia  da  Edade  média,  e  se  lhes  não  dão  até  hoje 
um  maior,  a  culpa  é  dos  eruditos,  que  se  não  em- 
penharam em  trazer  á  publicidade  as  suas  obras.» 
(Romania,  i,  p.  121.)  Essa  originalidade  e  esse 
logar  independente  que  nos  compete  na  poesia  da 
Edade  média  fundamenta  o  titulo  da  Bschola  tro- 
hadoresca  portuguesa,  que  ficará  admittido.  A 
expressão  natural,  espontânea  e  ingénua  do  lyris- 
mo  portuguez,  não  está  exclusivamente  na  forma 
popular,  que  os  trovadores  palacianos  souberam 
imitar  delicadamente;  o  sentimento,  expresso  nas 
cantigas  soltas  do  vulgo,  revelando  o  génio  da 
raça,  comprehende  ou  tem  implicita  uma  doutrina 
completa  de  amor.  Byron  ao  desembarcar  em 
Lisboa  fixou  uma  cantiga  do  povo,  que  elle  tra- 
duziu como  verdadeira  synthese  amorosa  da  alma 
portugueza,  cujos  poetas  morrem  de  amor;  a  can- 
tiga é  a  vibração  d'essa  passividade: 

Tu  chamas-me  tua  vida, 
Eu  tua  alma  quero  ser; 
Que  a  vida  acaba  com  a  morte 
E  a  alma  eterna  hade  ser. 


PRIMEIRA  época:    Edade   média  241 

Foi  esta  profunda  emotividade  que  trouxe  os 
trovadores  fidalgos  e  o  rei  Dom  Diniz  á  repro- 
ducção  das  formas  tradicionaes  da  poesia  popu- 
lar; e  essas  formas  nunca  mais  foram  esquecidas 
pelos  grandes  lyricos  portuguezes,  como  Gil  Vi- 
cente, Bernardim  Ribeiro,  Christovam  Falcão, 
Camões,  D.  Francisco  Manoel  de  Mello,  Thomaz 
António  Gonzaga,  e  mesmo  Garrett.  E  desde  que 
nos  aproximamos  da  tradição,  o  que  se  perde  em 
originalidade  individual,  ganha-se  em  profundi- 
dade de  energia  vital,  em  fecundidade  orgânica. 
A  critica  eleva-se  mais  alto;  escreve  D.  Carolina 
Michaèlis :  a  A  concordância  de  certos  themas 
populares  com  outros  estrangeiros,  notadas  por 
Jeanroy,  explicam-se  |>elas  origens  communs  da 
civilisação  neo-latina,  e  em  parte  também  pela 
identidade  das  influencias  ecclesiasticas ;  as  diver- 
gências pela  evolução  diversa  de  cada  povo,  em 
conformidade  com  a  sua  Índole  e  costumes.  O 
mesmo  vale  das  formações  rythmicas  e  estrophi- 
cas.  Verdade  é,  que  nem  mesmo  as  Cantigas  em 
distichos  ou  tristichos  com  repetições  ou  conca- 
tenaçÕes  de  duas  versões  parallelas,  são  privativas 
da  Galliza,  Ha  vestigios  isolados  do  systema  na 
França,  na  Itália  e  na  Catalunha;  semelhanças 
muito  ao  longe,  entre  Malaios  e  Chinezes.  Mesmo 
o  parallelismo  de  hymnos  espirituaes  vindos  do 
Oriente  e  psalmodiados  nas  primitivas  egrejas 
christãs  á  maneira  de  modelos  hebraicos,  offerece 
pontos  de  contacto  dignos  de  estudo.»  E  como 
fundamentando  a  vitalidade  da  raça  portugueza 
no  seu  ethos  accrescenta: 

«Em  parte  alguma  as  Cantigas  parallelisticas 

16 


242  HISTORIA    DA    LITTERATURA   PORTUGUEZA 


tomaram  todavia  no  meio  do  povo  um  desenvol- 
vimento robusto  como  aqui.  E  o  que  importa 
mais  é  que  em  parte  alguma  as  creaçÕes  rústicas 
entraram  nos  paços  de  el  rei,  desassombradas  na 
sua  desataviada  elegância,  servindo  ali  de  mo- 
delos a  reis,  magnates,  e  enxames  de  poetas  de 
cathegoria  menor.»  (Canc.  Aj.,  ii,  938.)  Entre 
esses  cantores  villãos  e  populares  que  assignam 
canções  de  amor  junto  com  os  fidalgos  figuram 
mais  de  vinte  constituindo  uma  eschola  jograles- 
ca,  mantendo  o  contacto  vivificador  com  a  multi- 
dão. I  E'  esta  a  phase  galleziana,  reconhecida  por 
Menendez  y  Pelayo,  um  lampejo  súbito  e  deslum- 
brante, a  que  se  succedeu  a  obnubilação  completa 
de  um  povo.  Reconheceram  os  jograes  esse  favor 
com  que  os  accolhera  o  rei  D.  Diniz.  O  jogral 
leonez  Joham,  celebrando  em  uma  planh  a  morte 
d'este  monarca,  refere  a  sua  protectora  influencia : 

Os  namorados  que  trobam  d'amor 
todos  deviam  gram  doo  fazer, 
et  nom  tomar  em  si  nenhum  prazer, 
por  que  perderem  tam  bòo  senhor, 
com'  é  el  rey  Dom  Diniz  de  Portugal 
de  que  nom  pode  dizer  nenhum  mal 
homem,  pêro  seja  profaçador. 

Os  trovadores  que  poys  ficárom 
en  o  seu  regno  e  no  de  Leon, 


I  Citaremos  os  nomes  de:  Ayras,  o  Engeitado  —  Ay- 
ras  Vaz  — Fernam  Padram  —  Meendinho  —  João  Zorro  — 
Martim  Campina  —  Fero  Meogo  —  Martin  de  Caldas  —  Fero 
de  Dardia  — Nuno  Feres  —  Fayo  Calvo  —  Golparro  —  Mar- 
tin de  Ginoza  — João  de  Cangas  —  Martim  Codax  —  Fer- 
nam de  Lugo  — João  do  Requeyxo. 


PRIMEIRA   época:    edade   média  243 


no  de  Castella  et  no  de  Aragon 
nunca  poys  de  sa  morte  trobarom; 
et  dos  jograres  vos  quero  dizer 
nunca  cobraram  panos  nem  aver, 
et  o  seu  bem  muyto  desejarom. 

(Canc.  Vat.,  n.°  708.) 

Como  cultor  e  apreciador  da  poesia,  o  rei  Dom 
Diniz  era  julgado  como  um  arbitro;  e  os  jograes 
que  procuravam  a  sua  corte,  não  eram  attrahidos 
tanto  pela  generosidade  como  pela  sua  mestria. 
Depois  da  sua  morte,  diz  a  planh,  os  trovadores 
de  Leão,  de  Castella  e  de  Aragão  não  mais  tro- 
varam. E'  uma  verdade  histórica:  terminado  o 
Cyclo  Dionísio  acabou  também  a  poesia  proven- 
çalesca.  Desthronaram-a  os  Lais  bretãos.  O  bas- 
tardo de  Pedro  iii  de  Aragão,  que  assistira  na 
corte  do  seu  cunhado  D.  Diniz,  fora  um  dos  in- 
troductores  d'esta  novidade. 

Os  filhos  bastardos  de  D.  Diniz,  o  Conde  de 
xA^lbuquerque  e  o  Conde  de  Barcellos,  também  fo- 
ram esmerados  cultores  da  poesia  trobadoresca. 
D.  Affonso  Sanches,  nascido  em  1286,  era  amado 
loucamente  pelo  rei,  provocando  grandes  dissidên- 
cias da  parte  do  princepe  herdeiro.  Lê-se  no 
Nobiliário :  «por  que  se  dizia,  que  el  rei  Dom  Di- 
niz queria  fazer  rei  Dom  Affonso  Sanches,  seu 
filho  de  ganhadia,  que  trazia  comsigo  e  que  elle 
muito  amava.»  i  Os  ódios  continuaram  depois  de 
ser  rei  seu  irmão  D.  Affonso  iv.  No  Cancioneiro 
da  Vaticana  existem  quinze  Canções  de  D.  Affon- 
so Sanches,  extremamente  deturpadas;  ainda  as- 


Mon.  hist.,  Scrip teres,  p.  258. 


244  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

sim  conhece-se  que  tinha  um  elevado  sentimenLo 
poético  e  que  comprehendia  a  belleza  das  formas 
populares.    E'  bella  esta  estrophe  da  Canção  n.o 

Quando,  amigos,  meu  amigo  veher, 
emquanto  Ih'  eu  perguntar  hu  tardou, 
falade  vos  nas  donçelas  entom; 
e  no  sembrant',  amigo,  que  fezer, 
veeremos  bem  se  tem  no  coraçom 
a  donzella  por  quem  sempre  trobou. 

O  outro  bastardo  do  rei  Dom  Diniz,  feito 
Conde  de  Barcellos  em  i  de  Março  de  1304,  sou- 
be vencer  os  ódios  da  fidalguia  contra  estes  bas- 
tardos, que  redundavam  em  dissençÕes  politicas; 
organisou  um  cadastro  das  linhagens,  e  culti- 
vando a  lyrica  provençalesca  compilava  também 
um  Livro  de  Cantigas.  Esta  relação  entre  as  no- 
ticias genealógicas  e  as  collecçÕes  de  cantares  era 
conhecida  pelos  trovadores ;  N'Ucs  de  la  Pena  sabia 
las  generacioncs  deis  grans  hom^cs  de  aquella  con- 
trada.  O  mesmo  se  dava  em  D.  Pedro.  Circum- 
stancia  apreciável ;  o  Cancioneiro  da  Ajuda  con- 
servou-se  fazendo  parte  dos  Nobiliários,  por  ven- 
tura por  se  caracterisarem  ahi  como  trovadores 
alguns  fidalgos.  Existia  effectivamente  tima  in- 
tima relação  histórica  entre  estes  dois  extraordi- 
nários documentos,  completando-se  historicamen- 
te. Escreve  imparcialmente  D.  Carolina  Michaè- 
lis :  ((Livro  de  Linhagens  e  o  Cancioneiro,  duas 
obras  muito  diversas,  mas  que  se  completam  e  ex- 
plicam de  um  modo  feliz  com  relação  á  historia 
da  Civilisação  pátria,  tanto  para  poder  editar  os 
cadernos  da  fidalguia  nos  Monumentos  históricos 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  245 

de  Portugal...  e  ainda  para  desenhar  os  quadros 
da  historia  nacional  até  i2'/ç.  Herculano  teve  de 
arrancar  os  seus  mais  Íntimos  arcanos  a  ambas  as 
obras,  compenetrando-se  do  espirito  da  Edade 
média,  que  n'ellas  respira  e  falia.»  ^ 

Depois  da  morte  de  Dom  Diniz  foi  o  Conde 
D.  Pedro  perseguido  e  desherdado  por  seu  irmão 
D.  Af fonso  IV,  indo  refugiar-se  por  algum  tempo 
junto  de  Af  fonso  xi  de  Castella,  casado  com  a 
formosissima  Maria,  filha  do  monarcha  portuguez. 
O  Jogral  Joham  diz  na  Canção  707:  «E  ai  do 
Conde  f aliemos  —  que  é  irmão  tio  dQ  El  rei.y^ 
Foi  por  um  sentimento  de  gratidão,  que  o  Conde 
de  Barcellos  deixou  por  testamento,  feito  em  30 
de  Março  de  1350  o  seu  Livro  das  Cantigas  a 
Af  fonso  XI.  2  Por  esta  circumstancia  saiu  de  Por- 
tugal tão  singular  monumento.  Da  sua  actividade 
poética  conhecem-se  apenas  dez  Canções  amorosas, 
especialisadamente  satíricas  ou  de  maldizer;  d'a- 
qui  deduzimos  que  o  seu  Livro  das  Cantigas, 
tendo  em  vista  a  sua  aptidão  de  compilador  e  as 
relações  pessoaes  com  a  fidalguia  portugueza  con- 
teria as  composições  dos  trovadores  das  cortes 
de  D.  Diniz  e  de  Af  fonso  xi  de  Castella,  em 
grande  parte  perdidas. 

Representaria    esse    Livro    das    Cantigas    do 
Conde  de  Barcellos  a  realisaçao  do  pensamento 


1  Responde  ao  manhoso  Parecer  de  Gama  Barros, 
apresentado  á  Academia  real  das  Sciencias,  embaraçando  a 
incorporação  dos  Cancioneiros  nos  Portugalics  Monumenta 
histórica  (Scriptores.)     (24  de  Fevereiro  de  1898.) 

2  Sousa,  Provas  da  Hist.  Genealógica,  t.  i,  p.  138. 


246  HISTORIA   DA   LITTKRATURA   PORTUGUEZA 

iniciado  no  Cancioneiro  da  Ajuda  sob  D.  Affon- 
so  III,  organisando  em  um  corpo  systematico  o 
Grande  Cancioneiro  gallecio-portuguez,  de  que  se 
dispersaram  fragmentos  por  Hespanha  e  Itália? 
Pelos  grupos  de  Canções  d'esses  vários  fragmen- 
tos em  que  predominam  certos  géneros  lyricos, 
infere-se  qual  a  disposição  do  grande  Cancioneiro, 
que  assim  se  recompõe  nas  suas  divisões : 

,       (  Cantares  de  Amor  (Gram  Mestria.) 
\  Cantigas  de  Amigo   (Mestria  menor.) 

,,       i  Cantigas  de  Maldizer  e  de  Escarnho. 
\  Coplas  de  burlas  e  Joguetes  certeiros. 

III  —  I  Cantigas  sagraes  (Marial  e  Santoral.) 

As  2019  Canções,  que  possuimos  (descontan- 
do as  310  Canções  repetidas)  são  uma  parte  das 
composições  lyricas  que  andaram  dispersas  nas 
seguintes  collecções  de  que  ha  apenas  noticia  e  nas 
que  se  conservam: 

1  —  Pequenos  Cancioneiros  individuaes: 

Livro  dos  Sons  do  Dayam  de  Cales. 

Os  Cadernos  de  Affonso  Eannes  de  Coton. 

Cantares  de  Lourenço  Jogral;  de  Picandon,  etc. 

2  —  Livro  das  Trovas  de  El  Rei  D.  Affonso: 

Cancioneiro  da  Ajuda. 

II  Libro  di  Portoghcsi. 

Códice  de  Bembo. 

Códice  Icmosino. 

Libro  spagnuolo  di  Romance. 

3  —  Livro  das  Trovas  de  El-Rci  D.  Diniz. 

4  —  Livro  das  Cantigas  do  Conde  de  Barcellos: 

Cancioneiro  da  Bibl.  do  Vaticano. 


PRIMEIRA  época:   edade   média  247 


Cantigas  j  Serranas  e  Dizeres  portugueses,  de 
D.  Meda  Cisneros.  i 

Cancioneiro  de  um  Grande  de  Hespanha  (dos  Du- 
ques do  Infantado,  segundo  Sarmiento?) 

Cancioneiro,  apographo  de  Angelo  Colocci. 

5  —  Cantigas  de  Santa  Maria. 

Milagres  de  Nossa  Senhora.  2 


1  A'cerca  do  volume  de  Cantigas,  Serranas  e  Dizeres 
portugueses  e  gallegos,  que  existia  em  casa  de  D.  Mecia  de 
Cisneiros,  escreve  Sarmiento:  ^^Se  hoje  epcistisse  aquelle 
volume,  códice  ou  Cancioneiro,  teríamos  um  thezouro  para 
discernir  os  Poetas  hespanhoes  mui  anteriores  ao  anno  de 
1400.  Ouvi  dizer  que  os  Senhores  Duques  do  Infantado, 
descendentes  do  Marquez  de  Santillana  possuem  em  Guada- 
lajara  uma  preciosa  Livraria  de  manuscriptos  e  de  impressos, 
que  foram  do  Cardeal  Mendoza,  filho  do  dito  Marquez. 
Acaso  se  achará  alli  o  desejado  Códice  c  outros  semelhan- 
tes?* (Mem.  para  la  Historia  de  la  Poesia  e  Poetas  espa- 
noles,  n.°  562.) 

O  Cancioneiro  visto  por  Varnhagem  em  Madrid,  em 
poder  de  um  grande  de  Hespanha,  cujo  nome  occultou,  não 
será  d'esta  proveniência  indicada  por  Sarmiento?  Varnha- 
gem confrontou-o  com  o  códice  da  Vaticana  e  eram  eguaes. 

No  n.°  833  Sarmiento  falia  outra  vez  da  Livraria  do 
Duque  do  Infantado;  ^^si  supiesse  que  en  el  se  conservaba 
aún  aquel  Cancioneiro  antiguo...  se  me  haria  suave  qual- 
quer trabajo,  unicamente  por  verle  y  registrale.^* 

2  Em  1754  escrevia  Francisco  de  Pina  e  de  Mello  nos 
prolegomenos  do  seu  Poema  Triumpho  da  Religião:  ^^Hoje 
existe  na  Livraria  do  Escurial  um  livro  de  versos  seus  (do 
rei  D.  Diniz)  que  elle  mandou  a  seu  avô,  a  quem  chamaram 
o  Sábio  Cantares  de  loor  de  Santa  Maria,  offerecido  a 
neros,  de  cujas  composições  disse  o  Marquez  de  Santilhana : 
^^àe  las  quales  la  mayor  parte  eram  de  el  rei  D.  Diniz  de 
Portugal..?^ 

O  Códice,  que  segundo  Duarte  Nunes  de  Leão  (Chron. 
P.  I,  t.  II,  p.  76)  se  guardava  na  Torre  do  Tombo  intitulado 
Loores  de  Nossa  Senhora,  seria  o  volume  do  rei  Affonso 
o  Sábio  Cantares  de  loores  de  Santa  Maria,  offerecido  a 
seu  neto  o  rei  D.  Diniz. 

No  Inventario  dos  Livros  da  Rainha  Isabel  de  Castella, 
feito  em  1503,  vem  apontado: 


248  HISTORIA   DA    LITTERATURA   PORTUGUEZA 

No  testamento  do  rei  Affonso  o  Sábio,  de  2.2 
de  Janeiro  de  1284  elle  chama  a  esta  sua  coUecção 
—  Cantares  de  loor  de  Santa  Maria,  e  também 
Cantares  de  Sancta  Maria.  Sobre  a  lingua  em  que 
estão  escriptos  estes  Cantares  diz  o  Marquez  de 
Valniar  ser  mais  culta  do  que  a  usada  pela  gente 
da  Galliza;  aé  por  demais  o  mesmo  idioma  em- 
pregado na  prosa  portugueza  d'aquelles  tempos, 
como  pôde  ver-se  na  Poética  portugueza  (incom- 
pleta) junto  ao  Canc.  Colocci,  do  século  xiv.» 
(Cantigas  de  Santa  Maria,  i,  172.) 

Estes  quatro  Cancioneiros,  da  Ajuda,  da  Vati- 
cana,  Colocci,  e  Cantigas  de  Santa  Maria,  são, 
como  observa  o  illustre  Marquez  de  Valmar,  «sin- 
gularissimos  monumentos  românicos,  são  a  revela- 
ção de  uma  lingua  e  de  uma  litteratura,  que,  ainda 
que  evidentemente  nascida  da  cultura  litteraria  pro- 
vençal, chegaram  a  ter  vida  própria  e  subsistiram 
mais  de  dois  séculos  quanto  era  possível  que  sub- 
sistissem n'aquelles  tempos  de  transformação  e  de 
progresso  histórico.»  (Ib.,  p.  17.)  Essa  transfor- 
mação operava-se  na  poesia  pela  revelação  do  ly- 
rismo  italiano,  e  enthusiasmo  pelos  Lais  bretaos 
desenvolvendo-se  na  forma  narrativa  em  prosa  em 
Novellas  de  Cavallaria. 

Quando  a  Eschola  trobadoresca  portugueza, 
por  causas  geraes  e  históricas  se  extingue  fusio- 
nando-se  com  novas  correntes  litterarias,  synthe- 


—  Otro  libro  de  marca  mayor,  en  romance  en  perga- 
mino  en  lingua  portuguesa,  que  son  los  Milagres  de  Nues- 
tra  Seiiora,  con  unas  coberturas  de  cuero...  apontado  de 
canto  llano.    (Ap.  Barbieri,  Canc.  Musical,  p.,  14.) 


PRIMEIRA   época:   edade   media  249 


tisemos  os  seus  caracteres  fundamentaes  reco- 
nhecidos pelos  grandes  críticos.  Frederico  Diez, 
no  estudo  Sobre  a  antiga  Poesia  artistica  corteza- 
nesca  portuguesa, ^  aprecia  assim  a  sua  morpho- 
logia:  ((Os  seus  últimos  cultores  (da  poesia  ar- 
tistica provençalesca)  procuraram  nacionalisal-a, 
aproximando  a  nova  Arte  dos  géneros  e  da  ma- 
neira indigena  do  povo.  D'ahi  a  predilecção  pelo 
rcfrcn,  a  forma  dialogistica,  e  o  que  é  da  máxima 
importância,  a  imitação  do  estylo  vulgar.  D'ahi 
também  a  renuncia  a  pensamentos  peregrinos  e  a 
todas  as  espécies  que  não  tivessem  correspondido 
a  qualquer  realidade  na  vida  da  nação.»  Por  ex- 
clusões negativas  é  que  Diez  chegou  a  este  deci- 
sivo julgamento.  Em  quanto  ao  sentimento  poé- 
tico da  Eschola,  Bellermann,  que  residiu  algum 
tempo  em  Portugal,  e  que  pôde  aperceber  o  ethos 
d'este  povo,  no  seu  estudo  Os  antigos  Cancio- 
neiros portugueses,  define  com  verdade  a  sua  es- 
thesia:  ((Os  seus  versos  parecem  nascer  de  senti- 
mentos reaes...  Apesar  de  uma  grande  mono- 
tonia, ha  ahi  verdadeira  e  intima  poesia  affectiva, 
que  brota  de  um  coração  commovido,  o  que  lhes 
dá  certa  vehemencia  que  se  impÕe,  um  valor  du- 
radoiro, e  a  primazia  sobre  as  composições  lyricas 
colligidas  nos  Cancioneiros  impressos  na  Penín- 
sula.»  Essa  monotonia,  que  é  uma  feição  ethnica 
do  povo  portuguez  contrasta  profundamente  e  dá 
um  realce  extremo  á  intensidade  do  sentimento. 

d)  Cyclo  post-Dionisio  (1325  a  1357).  Dom 
Affonso  IV,  em  antagonismo  com  os  seus  irmãos 
bastardos,  que  cultivaram  o  lyrismo  trobadoresco, 


250  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

nem  por  isso  era  indifferente  ás  invenções  poé- 
ticas que  appareciam  na  corte,  como  se  confirma 
pela  anedocta  do  Princepe  D.  Affonso  de  Por- 
tugal mandando  modificar  o  caso  de  Briolanja  na 
primeira  redacção  do  Ainadis.  .Não  será  absurda 
a  inferência  de  que  também  versificasse,  como  os 
outros  reis,  como  fundamenta  o  Catalogo  di  Au- 
tor i  porto ghesi,  Ms.  junto  ao  Códice  n.o  3217,  da 
Bibliotheca  do  Vaticano,  onde  se  apontam,  sob  os 
n.os  1323  a  1326,  quatro  Canções  d'este  monar- 
cha.  Infelizmente  o  Cancioneiro  Colocci,  achado 
depois  na  livraria  do  conde  Brancuti,  não  con- 
tém todos  os  poetas  apontados  no  Catalogo  di 
Autori.  A  actividade  dos  trovadores  portuguezes 
e  principalmente  a  sua  Eschola  expandiu-se  em 
Castella,  na  corte  do  rei  trovador  Affonso  xr; 
talvez  pelo  influxo  d'este,  o  Conde  D.  Pedro  rea- 
lisasse  a  grande  compilação  do  seu  Livro  das  Can- 
tigas, abrangendo  todo  o  Cyclo  Dionísio.  Escre- 
ve D.  Carolina  Michaèlis:  «E  sendo  D.  Diniz  o 
ultimo  entre  os  reis  de  Portugal,  que  exerceu  c 
protegeu  efíicazmente  a  Arte  trobadoresca  mais, 
que  quando  depois  do  seu  falecimento  o  rápido 
declinar  se  annunciou;  esse  plano  foi  completado 
reinando  D.  Affonso  iv  (1325-1357)  pelo  Conde 
de  Barcellos,  a  quem  movia  o  duplo  interesse  de 
propagar  os  versos  do  pae  e  os  seus  próprios.  Cada 
geração,  cada  Cancioneiro.»  (Canc.  Aj.,  11, 
228.)  Teria  sido  auxiliado  n'este  emi>enho  pelo 
trovador  Estevam  da  Guarda.    (Ib.,  ii.  282.) 

A  lingua  portugueza  era  empregada  ainda  nos 
fins  do  século  xiv  pelos  poetas  castelhanos;  re- 
conheceu-o  Milá  y  Fontanals,  limitando  a  sua  opi- 


PRIMEIRA    DPOCA  :     EDADE     MÉDIA  25I 

nião  ao  género  lyrico,  segundo  o  P.^  Sarmiento. 
Ha  aqui  um  equivoco,  confundindo  a  revivescência 
da  lingua  gallega,  que  se  dava  no  fim  do  século 
XIV,  com  os  germens  tradicionaes  do  lyrismo  ela- 
borados pelos  trovadores  portuguezes.  Acclara- 
do  o  equivoco,  resumbra  a  luz  nova  nas  palavras 
de  Menendez  y  Pelayo :  «Assim  se  ha  explicado 
satisfatoriamente  a  génese  das  Cantigas  d\3  ser- 
raria do  Arcipreste  de  Hita,  das  Serranilhas  do 
Marquez  de  Santilhana,  de  Bocanegra,  de  Car- 
vajal  e  de  tantos  outros  poetas  do  século  xv, 
buscando  não  na  Provença,  nem  na  França,  como 
até  hoje  se  havia  feito,  se  não  na  fonte  imme- 
diata,  isto  é,  na  Galliza.»  (Antologia,  iii,  p. 
xiviv.)  A  Galliza  estava  em  completa  lethargia 
sob  o  poder  senhorial.  Essa  fonte  immediata  era 
Portugal,  que  no  século  xiv  era  o  refugio  dos 
fidalgos  gallegos,  e  mantinha  ainda  a  fascinação 
do  seu  lyrismo  e  o  uso  da  lingua  portugueza.  De 
um  Cancioneiro  que  pertenceu  á  ex-rainha  Isabel, 
transcreveu  Amador  de  los  Rios,  uma  Canção 
com  que  exemplifica  o  caracter  das  composições 
amorosas  do  gosto  dominante : 


Bien    diré   d'amor 
pues  que  m'el  fez 
quedar  esta  vez 
por  seu  servidor. 

Eu  ten'  vontade 
d'amor  me  partir, 
et  tal   en   verdade 
nunca  o  servir, 
sin   aver   gaardon 
de  minha  senhor. 


252  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Ho  amor  me  dizia 
un  dia  falando, 
si    me   plazeria 
amar  de  seu  bando 
gentil  graciosa 
de  fina  color,  i 


Rocaberti,  auctor  da  Comedia  de  la  gloria  de 
Amor,  cuja  fómia  em  tercetos  e  estylo  denuncia 
a  primeira  influencia  de  Dante  na  poesia  catalã, 
cita  o  poeta  portuguez  Lorenç  de  Cuyna  (Lou- 
renço da  Cunha.)  i  Este  fidalgo  portuguez  fu- 
gira para  Castella,  quando  o  rei  D.  Fernando  lhe 
tomou  para  si  a  mulher,  D.  Leonor  Telles.  Che- 
gou a  vulgarisar-se  uma  Canção  por  elle  composta 
sobre  a  sua  situação,  de  que  as  memorias  coevas 
conservaram  o  verso :  —  «Ai,  donas,  porque  tris- 
tura.» Nos  Cancioneiros  musicaes  do  século  xv 
e  XVI,  ainda  ligadas  á  melodia,  apparecem  poesias 
lyricas  portuguezas ;  quando  a  poesia  castelhana 
avançava  para  a  sua  independência  em  João  de 
Mena,  ainda  o  primitivo  prestigio  do  lyrismo  por- 
tuguez se  reconhecia,  como  se  vê  por  uma  nota 
marginal  primitiva  junto  da  Canção  232  do  Can- 
cioneiro da  Ajuda,  do  trovador  João  de  Guilhade : 
((('  d'este  aprendeu  joam  de  Meita.»  Esse  influxo 
identificando-se  no  fim  do  século  xiv  com  o  re- 
nascimento galleziano,  está  representado  no  Can- 
cioneiro de  Baena,  em  Canções  do  Arcediago  de 
Toro,    de    Affonso    Alvares   de   Villasandino,    de 


T     Na  Hist.  critica  de  la  Litt.  cspan.  t.  vii,  p.  74. 
I     Milá  y   Fontanals,   De   los   Trovadores   en  Espana, 
516. 


PRIMKIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  253 


D.   Diego  de   Mendoza,   de   Macias  e   Rodrigues 
da  Camará. 

As  duas  cortes  de  Portugal  e  de  Castella  afas- 
tadas por  dissençÕes  de  família,  congraçaram-se 
intimamente,  depois  da  estrondosa  victoria  do  Sa- 
lado  em  1340.  O  encontro  dos  cavalleiros  portu- 
guezes  com  os  poetas  castelhanos  e  leonezes,  n'essc 
momento  de  um  perigo  commum  e  de  heroismo, 
teve  uma  acção  característica  na  poesia  palaciana. 
A  Epopêa  castelhana  que  se  elaborara  no  pre- 
domínio da  legislação  foral  sobre  o  Código  vi- 
sigótico, e  «buscou  naturalmente  os  seus  heroes 
não  entre  os  monarchas  leonezes,  mas  entre  os 
grandes  vassallos  rebeldes,  turbulentos  ou  dísco- 
los de  Burgos»  i  era  pela  influencia  portugueza 
elaborada  sobre  o  grande  facto  histórico  a  batalha 
do  Salado,  ganha  pela  liga  passageira  dos  Es- 
tados christãos  dissidentes.  D.  Affonso  iv,  pelo 
seu  desinteresse  dos  despojos  da  campanha,  tor- 
nou-se  o  exemplar  do  heroe.  Em  uma  Canção  de 
Joham  jograr,  morador  de  Leão,  são-lhe  endere- 
çados louvores : 


A    sa   vida   seja   muyta 
d'este  rey  de  Portugal 
que  cada  ano  m'  ha  por  f ruyta ; 
per  o  que  eu  canto  mal... 


Os  rex  mouros,  christãos 
mentre  viver  Ih'  ajan  medo, 
que  el  ha  muy  ben  as  maãos, 
et  o  Infante  Dom  Pedro 


I     Menendez  y  Pelayo,  Antologia,  xi,  p.  177. 


254  HISTORIA    DA   UTTERATURA   PORTUGUEZA 


seu  filho,  que  s'  aventura, 
a  htí  grand'  usso  matar, 
et  desi  et  sempre  cura 
•  d'el  rei  seú  padre  guardar. 

(Canc.  Vat.,  n."  707.) 

Em  outra  Canção  a  Affonso  xi,  remata: 

Se  mi  justiça  non  vai 
ante  rey  tam  justiceiro 
ir-m'  ey  ao  de  Portugal. 

(Ib.,  n.»  553.) 

Os  poetas  portuguezes  e  castelhanos  celebra- 
ram a  victoria  do  Salado  em  Poemas  narrativos, 
tomando  a  forma  de  Chronicas  rimadas.  Faria  e 
Sousa,  no  Bpitome  e  na  Ásia  portuguesa,  citou  um 
poema  que  tinha  por  assumpto  a  batalha  do  Sa- 
lado, escripto  por  um  contemporâneo  do  successo 
Affonso  Giraldes.  D'elle  se  serviu  como  subsidio 
histórico  o  chronista  Frei  António  Brandão  na 
Monarchia  lusitana  (P.  iii,  liv.  10,  cap.  45.) 
Também  na  Bibiotheca  do  Escurial  se  conservou 
manuscripta  até  1863  uma  Crónica  en  coplas  de 
redondilhas  de  Alfonso  Onceno,  escripta  por  um 
contemporâneo  que  tomara  parte  na  batalha 
do  Salado,  Rodrigo  Yanes,  a  qual  fora  achada  em 
Granada  em  1573  por  Diego  Hurtado  de  Men- 
doza.  O  texto  portuguez  é  apenas  conhecido  pelas 
estrophes  transcriptas  pelos  dois  Brandões,  na 
Monarchia  Lusitana,  por  Blateau  e  por  Soares 
Toscano  nos  Parallelos  de  Princepes;  não  se  sabe 
actualmente  onde  pára  o  Poema  em  que  se  des- 
creve o  Successo  da  Batalha  do  Salado  por  Af- 
fonso Giraldes.    Publicado  o  Poema  castelhano  de 


PRIMEIRA   época:    edade   média  255 


Rodrigo  Yanes,  encontram-se  estrophes  eguaes, 
certas  rimas  deformadas  que  se  tornam  perfeitas 
restituida  a  palavra  portiigueza,  os  modismos 
portuguezes  e  a  mesma  forma  estrophica  em  qua- 
dras octosyllabicas,  rimando  o  primeiro  verso  com 
o  terceiro  e  o  segundo  com  o  quarto.  Ticknor, 
historiador  critico  da  litteratura  hespanhola,  pelo 
caracter  de  modernidade  no  castelhano  da  Cró- 
nica en  coplas  de  redondilhas  de  Alfonso  Onceno 
considerava  o  poema  como  elaborado  no  século 
XV :  «Lo  cierto  es  que  son  tan  faciles  y  tan  des- 
nudos de  archaismos  que  no  podemos  consideralos 
escritos  con  anterioridade  á  los  romances  dei  si- 
glo  XV.))  O  senso  critico  de  Ticknor,  embora  er- 
rasse na  data,  revelou-lhe  um  gráo  da  verdade : 
por  que  as  redondilhas  da  Crónica  de  Alfonso 
Onceno,  foram  traduzidas  da  lingua  portugueza, 
que  contrastava  pelo  seu  desenvolvimento  com  o 
estado  archaico  do  castelhano,  como  se  observa 
em  outros  monumentos  litterarios.  A  lingua  por- 
tugueza estava  no  século  xiv  no  estado  a  que  só 
nos  fins  do  século  xv  chegaram  os  Romances  po- 
pulares castelhanos.  O  poema  de  Rodrigo  Yanes 
está  cheio  de  portugne sismos;  versos  errados  na 
metrificação  e  na  rima  ficam  perfeitos  restituin- 
do-os  á  forma  portugueza.  O  professor  de  phi- 
lologia  românica  Dr.  Júlio  Cornu  chegou  á  conclu- 
são pelo  exame  linguistico  que  o  poema  de  Al- 
fonso Onceno  conservava  os  vestigios  de  um  ori- 
ginal portuguez. 

Pelos  pequenos  fragmentos  que  nos  restam, 
esse  original  portuguez  é  o  poema  do  Successo  da 
batalha  do  Salado,  de  Affonso  Giraldes.    O  chro- 


256  HISTORIA   DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 

nista  Fr.  António  Brandão  consultou-o  pela  sita 
veracidade  histórica:  «Um  romance  tenho,  que 
trata  da  batalha  do  Salado,  composto  por  Af fonso 
Giraldes,  d'aquelle  tempo,  em  principio  do  qual, 
entre  outras  guerras  que  se  apontam,  se  faz  men- 
ção d 'esta  que  o  Abhade  João  teve  com  os  mouros 
e  seu  capitão  Almanzor.»  (Mon.  lusif.,  P.  iii, 
liv.  10,  c.  45.)  Amador  de  los  Rios,  na  sua  His- 
toria da  Litteratura  hespanhola,  transcreve  uma 
estrophe  d'esse  poema  que  condiz  com  a  referencia 
de  Brandão : 

Outros  faliam  de  gram  razão 
De  Bistoris  gram   sabedor, 
E  do  Abhade  Dom  João 
Que  venceu  rei  Almanzor. 

Teria  o  erudito  hespanhol  algum  fragmento 
do  poema  inédito?  Depois  de  transcrever  essa 
quadra,  continua :  «Guarda  a  historia  por  ventura 
alguma  parte,  ainda  que  não  da  extensão  que  de- 
sejáramos, das  rimas  de  Affonso  Giraldes,  fi- 
dalgo portuguez,  que  se  achou  na  memorável  ba- 
talha do  Salado.»  (Op.  cit.,  iv,  715.)  Inferimos 
que  um  fragmento  do  poema  se  conserva  em 
Hespanha. 

A  allusão  a  Bistoris  é  uma  reminiscência  bi- 
blica  dos  desfiladeiros  de  Bctzachrah,  onde  Elea- 
zar  praticou  feitos  heróicos ;  a  lenda  da  degolação 
das  mulheres  e  crianças,  por  ordem  do  Ahhadc 
João,  antes  do  ataque  contra  os  mouros,  é  uma 
tradição  gauleza,  referida  por  Belloguet,  que  re- 
vivescia  nas  luctas  da  reconquista  christã.  No 
poema  castelhano  de  Rodrigo  Yanes,  faltam  tam- 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  257 


bem  as  primeiras  estrophes.  Apontemos  as  simi- 
laridades do  poema  castelhano  publicado  por 
Jener  em  1863  com  os  fragmentos  portuguezes. 
Na  estrophe  335  da  Crónica  en  redondillas : 

E  dióles  grandes  franquias 
For  Castella  mas  valer; 
Todas  estas  cortesias 
BI  buen  rey  hizo  fazer. 

No  trecho  com  que  Bluteau,  no  Vocabulário  da 
Lingua  portugueza  (171 2)  exemplifica  a  palavra 
Ai. MEXIA,  escreve:  «Como  acção  própria  d'este 
regno,  cá-ntou  Affonso  Giraldes  esta  distincção 
nas  rimas  que  fez  da  Batalha  do  Salado,  com  os 
versos  que  seguem: 

E  fez  bem  aos  criados  seus, 
E  gran  honra  aos  privados; 
E  fez  a  todos  os  judeus 
Trazer   signaes   divizados. 

E  os  Mouros  almexias, 
Que  os  pudessem  conhecer; 
Todas  estas  cortesias 
Bste  Rey  mandou  fazer. 

Ainda  assim  poderia  parecer  esta  semelhança 
de  dois  versos  uma  phrase  estylistica;  mas  na 
continuação  da  Monarchia  lusitana  (Ih.,  P.  v. 
liv.  16,  c.  13,)  por  Frei  Francisco  Brandão  vem 
transcripta  esta  quadra: 

Gonçalo  Gomes  de  Azevedo 
Alferes  dei  Rey  de  Portugal, 
Entrava  aos  Mouros  sem  medo 
Como  fidalgo  leal. 

No  poema  de  Yanes  lê-se  a  mesma  quadra 
com  inversão ; 
17 


258  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUfíZA 


Todos  yvan  muy  sin  medo 
para  complir  su  perdon, 
B  Gonçalo  Gomes  de  Azevedo 
Levava  el  su  pendon. 

(Est.  1326.) 

Semelhança  de  forma  métrica  e  estrophica,  de 
versos  e  de  rimas,  revelam  que  um  poeta  teve 
presente  o  poema  do  outro,  traduzindo-o.  No 
castelhano  de  Rodrigo  Yanes,  já  estranho  para 
Ticknor,  ha  o  portuguezismo,  que  tanto  actuara 
na  expressão  da  poesia  lyrica.  Affonso  Giraldes 
escrevera  sob  a  impressão  immediata  do  grande 
successo;  d'ahi  a  sua  prioridade  e  originalidade. 
Escreve  Fr.  António  Brandão:  «Affonso  Giral- 
des, que  escreveu  em  rimas  portuguezas  a  bata- 
lha do  Salado,  no  próprio  anno  em  que  ^uccc- 
deu...))  Os  vestigios  do  original  portuguez  appa- 
recem  nas  rimas  da  Crónica  cn  redondillas  de  AI- 
fonso  Onceno,  retocando  as  consoantes  imper- 
feitas do  texto  castelhano : 

Non  ayades  que  temer 
Estes  moros  que  son  poços, 
Con  vusco  cuido  vencer 
Este  dragon  de  Marruccos. 

(Est.    1019.) 

Não  ajades  que  temer 
Estes  mouros  que  são  pôcos, 
Con  vosco  cuido  vencer 
Este  dragão  de  Marrocos. 

La  reyna  vuestra  fija 
Vos  demanda  que  le  dedes 
La  vuestra  muy  real  frota 
Vos    gela    embiedes. 

y  (Est.    1020,) 


prime;ira   kpoca  :    kdadi?   média  259 


A  rainha  vossa  filha 
Vos  demanda  que  lhe  dedes 
A  vossa  real  flotilha, 
Vós  que  lh'a  enviedes. 

Bos,  buen  rey,  non  lo  buscastes 
E  por  bos  cobraré  corona, 
E  pois  me  bien  començastes 
La  sima  sea  muy  buena  agora. 

(Est.  1825.) 

Vós,  bom  rei,  não  o  buscastes 
E  por  vós  cobrarei  coroa 
E  pois  mui  ben  começastes 
Seja  agora  a  cima  boa. 

Si  entramos  en   torneo 
Plase-me,  cá  es  derecho. 
Pongo  Dios  en  el  comedio 
Que  sea  juez  dei  fecho. 

(Est.  1408.) 

Se  entramos  em  torneo 
Apraz-me,  cá  é  direito; 
Ponho  a  Deus  em  o  meio, 
Que  seja  juiz  do  feito. 

Dixo :   Sennor,  si  bos  pias 
En  la  buestra  tienda   folgade 
Dormide  e  avede  paz, 
Non  vos  temades  de  nady. 

(Est.   1491.) 

Dixe :  Senhor,  se  vos  praz, 
Em  vossa  tenda  folgada, 
Dormide  e  avede  paz 
Não  vos  temades  de  nada. 


Fallóla  sobre  a  Algesira 
Con  su  hueste  e  su  pendon, 
El  buen  rey  quando  lo  biera 
Alegro  el  coraçon. 

(Est.  2231.) 


26o  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Achoii-a  sobre  Algesira 
Con  sua  hoste  e  seu  pendão, 
O  bom  rei  quando  o  vira 
Alegrou  o  coração. 

Evidentemente  as  rimas  castelhanas  imperfei- 
tas restabelecem-se  na  forma  portugueza.  O  mes- 
mo com  relação  ao  significado  de  certas  palavras 
que  Yanes  não  comprehendeu,  como  cima,  ter- 
mo, feiclio,  remate.  O  poema  de  Rodrigo  Yanes, 
allude  ao  Leão  DorDicntc,  que  declara  ser  D.  Af- 
fonso  IV,  moroso  em  acudir  ao  seu  genro  Al- 
fonso  XI,  e  o  Porco  selvagem,  symbolisando  o 
poder  dos  Mouros  vencidos  no  Salado;  isto  nos 
mostra  conhecimento  da  Prophecia  de  Merlin, 
([ue  se  tornou  popular  em  Portugal  apparecendo 
no  principio  do  século  xvi  nas  Trovas  de  Ban- 
darra. O  poema  narrativo  foi  escripto  sob  o  in- 
fluxo das  tradições  bretãs,  que  se  manifestavam 
no  lyrismo  dos  Lais,  nos  Contos  e  Novella  cava- 
lheiresca ;  esta  nova  corrente  foi  iniciada  em  Por- 
tugal no  Cvclo  post-Dionisio. 
'^  Na  decadência  do  lyrismo  provençalesco  tanto 
em  Portugal  como  na  Hespanha,  actuava  princi- 
palmente o  grande  desenvolvimento  da  poesia  nar- 
rativa, a  que  Affonso  o  Sábio  ligara  a  importân- 
cia de  dissolver  alguns  d'esses  cantares  tradicio- 
naes  na  prosa  da  Historia  geral  de  Hespanha.  Na 
Crónica  en  redondillas  allude-se  a  esses  can- 
tares : 

E  bien  asy  los  reys  godos 
Vuestros  antecessores 


Deixaron  por  su  testigo 
Romances  muy  bien  escriptos, 

(Est.  147.) 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  201 


Referindo-se  á  classe  popular  e  á  linguagem 
cresses  cantos  narrativos: 


Giellas  e  Moçarabes. 

Dixieron  los  escuderos 
Sabedes  bien  la  araviaf 
Sodes  bien  verdaderos 
De  tornal-a  en  aljamia? 


(Est.  953.) 


(Est.   1293.) 


O  Clianceller  Pêro  Lopez  de  Ayala  chamou  a 
estes  cantares  narrativos  em  redondilha  assonan- 
tada :  Versetes  de  antiguo  rimar,  em  redondilha 
menor  de  cinco  syllabas.  Também  na  litteratura 
portugueza  é  que  se  encontra  um  typo  único  d 'este 
género  reproduzindo  a  forma  épica  tradicional 
popular,  na  Canção  de  Ayras  Nunes  (Canc.  Vat , 
n.o  466)  : 

Desfiar  enviaron 

ora  de  Tudela 

filhos  de  Dom  Fernando 

ai  rei  de  Castella; 

e  disse  el  rei  logo: 

—  Hide  a  lá  Don  Vela 

Desfiade,   e  mostrade 
por  min  esta  razon, 
si  qiiizerem  per  cambio 
do  reino  de  Leon, 
filhem  porém  Navarra 
ou  o  reino  de  Aragon. 


Na  Crónica  de  D.  Sancho  IV  encontrou  D.  Ca- 
rolina Michaèlis  a  narrativa  desenvolvida  sobre 
(|ue  versa  este  romance,   i    N'este  género  de  ro- 


I     Zeitschrift  fur  romanische  Philologie,  vol.  xxvi,  p. 
^219-229. 


-'6j  historia  da  litter atura  portugueza 


mance  narrativo  vem  no  Cancioneiro  Colocci  uma 
Sátira  de  Af fonso  o  Sábio  também  em  sextilhas ; 
começa : 

Don  Gonçalo  pois  queredes 
ir   d'aqui  para   Sevilha 
por  veerdes   voss'  amiga 
(nem  o  tenho  a  maravilha,) 
contar  vos  ei  as  jornadas 
légua  a  légua,  milha  a  milha. 

Ir  podedes  a  Lebrija 
e  torceredes  já  quanto, 
e  depois  ir  a  Alcalá 
sem  pavor  e  sem  espanto, 
que  ajades  de  perder 
a  garnacha  nem  o  manto. 


Eu  porén  eu  vol'©  rogo 

e  vol-o  dou  en  conselho, 

que  quand'  entrardes  Sevilha 

vus  catedes  no  espelho, 

e  non  dedes  nemigalha 

por  min  nem  por  João  Coelho. 


Referia-se  o  Rei  Sábio  ao  trovador  portuguez 
D.  João  Soares  Coelho,  o  mais  fecundo  depois  do 
rei  D.  Diniz;  correu  terras  de  Hespanha  e  f aliou 
com  o  trovador  Sordelo.  Aqui  temos  trez  typos 
de  redondilha  de  cantares  narrativos,  em  volta  do 
Romance  popular,  que  no  século  xv  ia  prevalecer 
nas  litteraturas  peninsulares  pelo  seu  caracter  ar- 
chaico  ou  velho.  Menendez  y  Pelayo,  f aliando  da 
Crónica  de  Alfonso  Onceno,  diz :  «prova  a  influen- 
cia dos  Cantares  do  vul^^^o  na  épica  historial  dos 
versejadores  cultos.»  (AntoL,  xi,  p.  9.)  E  d'este 
«octosyllabo  não  popular  mas  artístico  que  existia 
no  século  xiv,»  acrescenta:  «puramente  lyrico, 
procede   da   poesia   galaico   portuguesa  como   as 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  263 

outras  combinações  métricas  usadas  pelos  trova- 
dores e  que  se  encontra  nas  Cantigas  do  Rei  Sá- 
bio.» (Ib.,  p.  98.)  A  elaboração  dos  Romances 
populares  do  século  xiv  consistiu  na  fusão  ou 
syncretismo  dos  vários  themas  tradicionaes,  fi- 
xando-se  os  quadros  mais  emocionantes,  sendo  as 
formas  mais  nitidas  colligidas  no  século  xv  sob 
o  titulo  de  Romances  velhos.  Escreve  Menendez 
y  Pelayo:  «na  segunda  metade  da  decima  quarta 
Centúria  tinham  começado  a  esgalhar-se  da  ar- 
vore épica  muitos  ramos,  e  começava  a  formar-se 
a  epopêa  fragmentaria,  cujos  últimos  resíduos  são 
os  Romances.))  (Ib.  p.  9.)  As  Gestas  Carlin- 
gias  e  os  Poemas  arthurianos  e  mesmo  as  remi- 
niscências clássicas  e  lendas  nacionaes  tomavam  a 
forma  narrativa  do  romance,  lacónica,  dialogada 
e  incisiva.  Na  Crónica  de  Alfonso  Onceno  vem  o 
primeiro  verso  de  um  dos  romances  velhos  mais 
populares:  «Mal  le  passaron  francezes.»  (^. 
2285.)  O  Romance  lyrico  ou  subjectivo  destaca- 
se  da  musica  a  que  eram  cantados  os  Lais  bretãos, 
também  em  moda  no  século  xiv,  como  se  lê  na 
Crónica  em  redondilhas: 

La  gayta  que  és  sotil 
Con  que  todos  plaser  han, 
Otros  estrumentos  mil 
La  farpa  de  Don  Tristan. 

Que  de  los  puntos  doblados 
Con  que  falaga  ai  loçano, 
Todos  los   enamorados 
En  el  tiempo  de  verano. 

(Est.  409  e  seg.) 


204  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

§  III 

Influencia  armoricana  ou  Gallo-bretan 

Nos  fins  do  século  xiii,  o  lyrismo  trobado- 
resco,  pelo  seu  intenso  subjectivismo  e  tendência 
allegorica  desligava-se  da  musica  para  a  idealisa- 
ção  philosophica.  Não  era  uma  decadência,  mas 
uma  renovação;  realisou-a  o  génio  italiano.  A 
creação  da  Musica  moderna  era  simultânea  com 
esta  crise;  e  o  desenvolvimento  das  Melodias  po- 
pulares veiu  provocar  uma  renovação  poética.  Es- 
palharam-se  pelas  cortes  os  Lais  bretãos,  de  amor 
e  novellescos.  O  trovador  aristocrata  Guerau  de 
Cabrera  da  corte  de  Affonso  ii  de  Aragão,  em 
uma  canção  posterior  a  1170,  acoima  o  jogral 
Cabra,  por  não  saber  tocar  na  viola  e  cantar,  nem 
terminar  com  a  cadencia  ou  tempradura  bretã: 

Mal   saps   viular 

E  pietz  chantar 
Del  cap  tro  en  la  fenizon, 

Non  sabz  finir 

Al  mieu  albir 
A    tempradura   de  Breion. 

E  fundamenta,  que  não  pôde  mostrar-se  ins- 
truido,  quem  não  fôr  fora  da  sua  terra: 

Jes  gran  saber 

Non  potz  aver, 

Si  fors  non  iers  de  ta  rejon. 

O  trovador  enumera  todos  os  Cyclos  poéticos 
que  interessavam  a  imaginação  d'esse  tempo, 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MEDIA 


i 


De  la  gran  gesta  de  Carlon... 
Del  setge  qe  a  Troja  fon... 

Enumera  em  seguida  os  poemas  de  amor  que 
foram  conhecidos  em  Portugal,  de  Flores  e  Bran- 
caflor  e  de  Tristan,  citados  pelo  rei  Dom  Diniz. 

Ni  de  Tristan 
Q'  amiva  Yceut  a  lairon 
Ni  de  Giialvaing... 

Pelo  casamento  de  D.  Diniz  com  D.  Isabel, 
filha  de  Pedro  iii  de  Aragão,  e  pela  vinda  do 
seu  cunhado  D.  Pedro  á  corte  portugueza,  é  que 
se  propagaram  os  cantos  lyricos  dos  Lais  bretãos, 
e  os  cantares  narrativos,  que  eram  já  conhecidos 
na  forma  de  Novellas.  O  conhecimento  directo 
das  ficções  bretans  deu-se  no  primeiro  quartel  do 
século  XIV,  n'esse  periodo  de  syncretismo  em  que 
as  Gestas  frankas  se  convertiam  em  Chronicas 
históricas,  e  as  narrativas  poéticas  eram  prosifi- 
radas.  O  Conde  de  Barcellos  no  seu  Nobiliário 
tit.  TT,  segue  a  Historia  Brítonmn  de  Geoffroy 
de  Monmouth ;  a  genealogia  do  Rey "  Arthur  é 
cfHi forme  os  poemas  da  Tavola  Redonda,  citando 
como  individualidades  reaes  Lançarote  do  Lago, 
Galvan  (Gauvain)  a  Ilha  de  Avalon  (Islavalon;) 
seguindo  o  Roman  de  Brut,  descreve  as  aventuras 
trágicas  do  Rei  Lear  (Leyr)  e  do  propheta  ou 
bardo  Merlin. 

Esboçando  estas  correntes  tradicionaes,  che- 
gamos ao  plienomeno  capital  da  formação  da  No- 
vella  portugueza  do  Am  adis  de  Gania,  que  tão 
profundamente  actuou  na  litteratura  novellesca 
da  Europa  até  ao  século  xvii. 


?66  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


a)  Os  Lais  amorosos.  —  As  melodias  e  os  ins- 
trumentos músicos  britonicos  apparecem  conhe- 
cidos na  corte  dos  Merovingios,  como  se  vê  pela 
referencia  de  Venâncio  Fortunato  á  rhota  britana, 
percorrendo  a  Europa  desde  o  século  vi  ao  xii, 
cantores  vagabundos,  como  o  descreve  Villemar- 
(jué.  Xo  poema  de  Guílhanme  an  Cour-nez,  acha- 
se  um  \'estigio  do  fervor  com  que  nas  cortes  eram 
ouvidos  os  Lais,  citando-se  entre  os  grandes  pra- 
zeres da  vida,  a  par  do  bom  vinho  e  da  caça,  o 
ouvir  os  cantos  britonicos,  que  eram  especialmente 
agradáveis  ás  mulheres.  Dil-o  Denys  Pyramus : 
(<Lais  soulent  as  dames  plaire.»  No  Lai  de  VB- 
pinc  de  Marie  de  France,  confirma-se  o  caracter 
britonico  (Festa  forma  ix)etica,  referindo-se  ao  ir- 
landez,  que  com  ternura  cantava  na  rhota  o  Lai 
de  Aielis: 


Le  Lais  ecoutent  d* Aielis 
Que  uns  yrois  doucement  note 
Mont  le  some  en  sa  rote. 


A  rota  é  a  chrota  britana,  que  deu  o  nome  ao 
género  lyrico  da  Rotnenges;  a  rota  era  equipa- 
rada á  cithara  ou  hith  (Lcii,  lou,  luz) ,  o  que  leva 
a  derivar  o  nome  do  Lai,  como  proveniente  da 
designação  do  instrumento  musico.  F'  frequente 
este  processo  como  no  género  da  Lira,  em  que  o 
instrumento  dá  o  nome  á  Canção  especial. 

Do  caracter  musical  dos  Lais,  lê-se  no  Ro- 
luan  de  Brut: 


II  avait  apris  à  chanter 
Et  Lais  e  notes  á  harper. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  267 

E  cita  OS  differentes  géneros  ou  estylos  dos 
Lais  segundo  os  instrumentos  músicos  que  se  fo- 
ram empregando: 

Lais  de  vieles,  Lais  de  notes 
Lais  de  harpe  et  de  fretiax. 

No  poema  de  Gilles  de  Chin  aponta-se  a  gran- 
de vulgarisação  do  género  lyrico : 

Cil  vieleur  vielent  Jais, 
Cançonetez  et  estampiez. 

No  romance  de  Raul  d-:  Cambrai,  apontam-se 
os  melhores  harpistas  como  bretões : 

Grand  fu  la  joie,  se  sachiez  de  verité, 
Harpcnt  Bretons,  et  vielent  jongler. 

Os  themas  poéticos  das  tradições  britonicas 
começaram  a  servir  de  pretexto  ou  letra  d'essas 
melodias,  e  assim  os  Lais  se  foram  tornando  nar- 
rativos ;  Marie  de  France,  no  Lai  de  Chevrefeil,  o 
manifesta: 

Por  les  paroles  remembrer 
Tristan  ki  bien  saveit  harper 
En  aveit  feit  un  nouvel  lai. 

(Pões.,  I,  398.) 

Em  Portugal  no  fim  do  Cyclo-Affonsino  o 
descrédito  das  Gestas  francezas  apparece  na  pa- 
rodia satirica  da  Canção  de  mal-dizer  de  D.  Af- 
fonso  Lopes  de  Baião,  e  o  enthuziasmo  crescente 
Ideias  novellas  bretãs  de  Tristão  e  Yseut,  de  Flores 
e  Br  anca  flor,  em  uma  evolução  completa.  Em 
uma  Canção  de  Gonçalo  Eannes  do  Vinhal  os 
Cantares  de  Cornivall  merecem-lhe  uma  referen- 
cia como  a  de  Guerau  de  Cabrera  ao  jogral : 


j68  HISTORL-.    DA    LITT.HKATURA    l^ORTUGUEZA 


»Maestre,  todolos  vossos  cantares 
já  que  filham  sempre  d'um  a  razom, 
e  outrosi  ar  filhan  a  mi  son, 
e  nom  seguades  outros  milhares; 
se  non  aquestes  de  Cornoalha, 
mays  estes  seguides  ben  sem  falha, 
e  nom  vi  trobar  por  tantos  logares. 

(Canc.  Vat.,  n.°  1007.) 

Nas  Cantigas  de  Santa  Maria,  D.  Affonso  o 
Sábio  memora  um  jogral,  que  entoava  Lais  á 
Virgem,  conforme  as  melodias  britonicas: 

Un  jograr  que  seu  nome 
era  Pedro  de  Sigrar 
que  mui  ben  cantar  sabia 
e  mui  melhor  violar, 
et  en  todalas  eigreijas 
da  Virgen  que  non  a  par, 
un  seu  lais  sempre  dizia 


aquell  lais  que  el  cantava 
era  da  Madre  de  Deus. 


(Cant.,  8.) 


Em  uma  Canção  de  Fernan  Rodrigues  Re- 
dondo é  chasqueado  D.  Pedro  de  Aragão,  o  bas- 
tardo cunhado  do  rei  D.  Diniz,  que  residiu  em 
Portugal  de  1297  a  1325  : 

Dom  Pedro,  o  cunhado  d'El-rei. 
que  chegou  ora  aqui  d'Aragon, 
com  um  espelho  grande  de  leitom 
e  pêra  que  vol-o  perlongarei... 
Muy  ledo  scend'  hu  cantara  seus  lays 
a  sa  lidice  pouco  Ihi  durou... 

(Canc.  Vat.,  n."  1147) 

Pêro  da  Ponte  (ib.  canç.,  n.o  1T70)  chasquêa 
de  Soeyro  Eannes,  mostrando  a  imperfeição  com 
(|ue  imita  os  lais: 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  26g 


E  por  esto  não  sei  no  mundo  tal 
home  que  lh'a  el  devess  'a  dizer, 
de  nem  Ihi  dar  mui  ben  seu  aver, 
ca  Suer'  Eanes  nunca  Ihi  fal 
razon  des  qu'el  despagado  vay 
em  que  Ihi  troha  tan  mal  e  tan  lai, 
porque  o  outro  sempre  Ihi  quer  mal. 

No  Poema  de  Rodrigo  Yanes  sobre  a  Bata- 
lha do  Salado,  fazem-se  referencias  ao  fervor  que 
produziam  os  cantares  de  Tristan;  e  o  Arcipreste 
de  Hita  (1342)  leva-nos  a  determinar  a  transfor- 
mação que  se  estava  operando  nos  Lais  lyricos 
para  narrativos: 

cá  nunca  fue  tan  leal  Brancaflor  a  Flores 

nhi  CS  agora  Tristan  con  todos  sus  amores. 

Corresponde  esta  indicação  chronologica  ao 
facto  de  se  estar  elaborando  o  thema  de  Tristão 
em  forma  novellesca.  «E'  do  primeiro  terço  do 
século  XIV  o  fragmento  de  Tristão  em  castelhano, 
em  prosa,  achado  por  Monaci  em  um  códice  da 
bibliotheca  do  Vaticano,  e  publicado  em  fac-si- 
mile.  —  Outro  fragmento  foi  achado  por  Bonilla 
na  bibliotheca  de  Madrid,  nas  guardas  de  um  ma- 
nuscripto  d'essa  época  mas  aproximado  do  texto 
impresso  de  1528.»    (Men.  y  Pelayo.) 

N'este  processo  de  desenvolvimento  do  thema 
novellesco  em  prosa  desci  íptiva  e  dialogada,  exa- 
geradamente discursiva,  os  Lais  lyricos  receberam 
uma  transformação  objectivando-se  para  matiza- 
rem as  situações  em  que  eram  intercalados.  Deu- 
se  este  phenomeno  nas  Novellas  francezas.  No 
Cancioneiro  de  Colocci  acham-se  colligidos  cinco 
Lais,   importantíssimos,   cuja   forma   franceza  se 


270  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


conservou  entre  a  prosa  de  novellas  inéditas.  Re- 
ferem-se  a  situações  das  aventuras  amorosas  de 
Tristan.  Como  vieram  estes  Lais  a  ser  incorpo- 
rados no  Cancioneiro  de  Colocci?  Póde-se  inferir 
que  elles  pertenceram  a  essa  redacção  em  prosa 
da  Novella  do  Tristan^  de  que  appareceram  os 
dois  fragmentos  do  século  xiv  em  castelhano.  O 
mesmo  aconteceu  com  o  lai  de  João  Lobeira,  que 
apparece  em  parte  no  Cancioneiro  Colocci  e  em 
parte  no  texto  castelhano  do  Amadis  de  GauU, 
transformado  por  Montalvo  com  amplificações  rhe- 
toricas.    Um  caso  explicará  o  outro. 

b)  Os  Lais  no%'cUescos.  —  E'  positivo  o  conhe- 
cimento das  Novellas  da  Tavola  Redonda  na 
corte  do  rei  D.  Diniz,  alludindo  em  uma  Canção 
aos  Poemas  de  Piores  c  Br  anca  flor  e  de  Tristão 
e  Yseult.  Também  o  trovador  João  de  Guylhade, 
na  canção  n.f^  358  emprega  as  mesmas  allusÕes: 

Os  grandes  vossos  amores 
que  mi  e  vós  sempre  ouvemos 
nunca  Ihi  cima  fizemos 
com  'a  Brunchafrol  c  Piores. 

O  trovador  Estevan  da  Guarda,  escrivão  da 
puridade  de  D.  Diniz,  em  uma  Canção  (Vat.,  nP 
930)  faz  referencias  á  lenda  da  morte  de  Merlin 
pela  perfídia  da  fada  Viviana : 

Com  'aveo  a  Merlin  de  morrer, " 
per  un  gram  saber  que  el  foy  mostrar 
a  tal  molher,  que  o  soub  'enganar ; 
por  esta  guisa  se  foy  confonder 
Martim  Vasques,  per  quanto  lh'eu  oí 
que  o  tem  morto  uma  molher  assi, 
a  que  mostrou  por  seu  mal  saber. 


prime:ira    época:    edadk    media  271 


Sei  que  Ih'  é  muyto  grave  de  teer 
per  aquello  que  Ih'  el  foy  mostrar, 
com  quem  sabe  que  o  pód'ensarrar 
en  tal  logar  hu  conven  d'atender 
a  tal  morte  de  qual  morreu  Merlín, 
hu  dará  vozes  fazendo  sa  fim, 
ca  non  pod  'el  tal  morte  escaecer. 

Na  Canção  1140  do  Cancioneiro  portuguez  da 
Vaticana,  Fernand'  Esquio,  allude  ao  monstro 
produzido  por  um  incesto,  a  Besta  ladrador,  da 
Novella  do  Graal: 

Disse  hun  infante  ante  sa  companha 

que  me  daria  besta  na  fronteyra, 

e  non  será  já  murzela,  nen  veyra, 

nen  branca  nen  vermelha  nen  castanha; 

pois  amarella,  nem  parda  non  fòr 

a  pram  será  a  Besta  ladrador 

que  Ih'  aduzam  do  Reyno  de  Bretanha. 

O  Conde  D.  Pedro,  traz  no  seu  Nobiliário  a 
lenda  do  Rei  Lear,  colligida  da  Chronica  brito- 
nica  de  Geoffroy  de  Monmouth,  resumindo-a  nos 
traços  capitães ;  i  para  fundamentar  a  origem  ma- 
ravilhosa da  Casa  de  Haro  traz  a  lenda  do  Coouro 
da  Biscava,  e  do  Cavallo-fada  Par  dali  o  (nome 
grego  Pardalis,  dado  á  panthera,  na  Hist.  naf.  de 
Aristóteles,  liv.  vi,  cap.  6.)  E  como  o  conheci- 
mento das  obras  de  Aristóteles  fora  revelado  í 
Europa  por  via  dos  Árabes,  pela  corrente  árabe 
vieram  também  Contos  e  Fabulas  orientaes,  fi- 
gurando no  Nobiliário  a  lenda  de  Gaya,  e  as  Ra- 


I  Portug.  Mon..  Scriptores,  fase.  11,  p.  228.  Trans- 
crevemol-a  e  discutimos  na  Historia  da  Poesia  popular 
portúgueza,  t.  11,  p.  161  a  164 


2-]!  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

posias  vulgarisadas  com  vários  Exemplos,  que  sa- 
hiram  de  Kalila  e  Dimna  para  a  transmissão  oral. 
A  obra  de  D.  João  Manoel,  o  Conde  de  Lucanor, 
é  o  documento  d'esta  nova  corrente  litteraria  que 
veiu  fortificar  o  castelhanismo  pela  revivescência 
dos  seus  elementos  ethnicos  resultantes  da  occu- 
pação  sarracena.  E  emquanto  o  génio  ibérico  se 
compraz  com  os  Fabularios  orientaes  pelo  in- 
tuito moral  coadjuvando  a  propaganda  catholica, 
o  génio  lusitano  foi  attrahido  para  as  galanterias 
do  mais  exaltado  e  desinteressado  amor,  dos  poe- 
mas como  o  de  Antar,  de  Medjnim  c  Lcila,  Jtíssuf 
e  Zoleika.  Esta  corrente  affectiva  do  amor  mys- 
tico,  entrara  na  Egreja  na  doutrina  do  Pastor 
de  H ermas,  e  renovava-se  pela  interpretação  alle- 
gorica  dos  amores  da  Sulamite  do  Cântico  dos 
.Cânticos,  recebendo  todo  o  relevo  religioso  no 
culto  da  Virgem.  Em  quanto  o  génio  castelhano 
se  exerce  nas  Cantigas  de  Santa  Marin,  em  Por- 
tugal esse  amor  idealisa  a  mulher  elevando-a 
acima  do  desejo  sensual  e  da  paixão  invencível 
dos  poemas  britonicos;  transformando  os  amores 
de  Tristão,  de  Lancelot  e  Percival  na  adoração  de 
Amadis.  Foi  assim  que  o  génio  portuguez  reno- 
vou esses  themas,  que  se  syncretisavam  em  sopo- 
ri feras  amplificações.  Todos  estes  factos  disper- 
sos, por  onde  se  reconstitue  o  estado  das  ficções 
novellescas  na  transição  do  século  xiii  para  o 
XIV.  são  indisi:>ensaveis  para  reduzir  a  uma  con- 
sequência natural  esse  extraordinário  producto  da 
Corte  de  D.  Diniz,  a  Novella  do  Amadis  de  Gaula. 
Esse  cataclysmo  que  se  deu  na  civilisação  por- 
tugueza,  que  lhe  fez  perder  e  esquecer  as  gran- 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE    MÉDIA  273 

des  riquezas  da  sua  Poesia  lyrica  trobadoresca, 
abrangeu  também  a  quasi  totalidade  das  creações 
das  suas  Novellas  em  prosa,  que  a  critica  moderna 
está  reconstituindo.  O  Marquez  de  Santillana,  na 
sua  celebre  Carta  ao  Condestavel  de  Portugal, 
a f  firmando  que  a  língua  portuguesa  era  a  empre- 
gada nas  Canções  ly ricas,  não  estendeu  esta  affir- 
mativa  ás  Novellas  em  prosa,  por  não  entrar  esse 
assumpto  no  seu  quadro  histórico.  A  esta  omissão 
observa  D.  Carolina  Michaèlis,  com  justiça:  «se 
foram  os  gallego-portuguezes  que  exploraram  e 
nacionalisaram  as  Pastorellas,  a  Baleia  e  os  Lais 
de  Bretanha^  por  que  não  se  havia  de  explorar  e 
nacionalisar  também  poemas  diluidos  em  prosa? 
—  Se  no  reinado  de  Affonso  x  e  Affonso  iii  os 
Cantares  de  Cornoalhas  estavam  vulgarisados  na 
peninsula  a  ponto  de  um  trovador  se  poder  apro- 
priar do  seu  son,  sendo  imitado  por  outros,  como  o 
mestre  cujos  seguires  D.  Gonçalo  Eannes  do  Vi- 
nhal agride  na  cantiga  1007,  não  ha  motivo  para  se 
chamar  arrojada  a  conjectura,  que  no  mesmo 
reinado  tão  litterariamente  fecundo,  houvesse 
quem  juntamente  com  os  sons  britonicos  tentasse 
senhorear-se  da  Matière  de  Bretagne,  traduzindo 
os  Lais  e  a  Novella  em  prosa.»    (Cano.  Aj.,  11, 

519) 

No  Cancioneiro  apographo  de  Colocci  foram 
colligidos  cinco  Lais,  de  uma  extraordinária  im- 
portância historico-litteraria :  estão  acompanhados 
de  rubricas  explicativas  das  situações  novellescas 
a  que  se  referiam  e  em  que  foram  intercalados. 
D.  Carolina  Michaèlis,  pelo  seu  tino  critico,  des- 
cobriu  entre   os  manuscriptos   francezes   da   No- 

18 


-74  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


vella  de  Tristan,  o  texto  poético  de  que  foram 
paraphrasticamente  vertidos  trez  dos  Lais  do 
Cancioneiro  de  Colocci,  e  determinou  as  situações 
novellescas  para  que  foram  versificados;  são  o  i.^, 
2. o  e  5.0.  O  4.^  Lai,  apresenta  a  sua  musica  pri- 
mitiva na  obra  sobre  a  forma  dos  Lais,  por  F. 
Wolf.  (p.  240.)  Esta  descoberta  é  um  triumpho 
da  critica.  ^  O  facto  irrefragavel  da  traducção 
versificada  d'essees  três  Lais,  leva  a  inferir  pela 
forma  libérrima  da  versão,  que  esse  trabalho  era 
concomitante  de  uma  adaptação  portugueza  da 
prosa  da  Novella  do  Tristão,  tal  como  5>e  achava 
na  sua  phase  cyclica.  O  estudo  d'esses  cinco  Lais, 
conduz  á  conclusão  >  de  que  existiu  um  texto  por- 
tuguez  de  Tristão,  em  que  elles  estavam  interca- 
lados. Seria  esse  Tristan  em  portuguez  o  que  se 
guardava  na  livraria  do  rei  Dom  Duarte;  e  o 
fragmento  em  prosa  castelhana  de  Tristan  não 
resultaria  da  apropriação  do  texto  portuguez. 
como  se  deu  com  o  texto  de  Amadis?  Estas  pro- 
vas fazem-se  por  conjuncto  de  factos. 


I  *Sendo  conhecido  o  facto  de  varias  Novellas  fran- 
ce/as  sobre  Maticre  de  Bretaqne  e  especialmente  os  roman- 
ces de  Tristan,  encerrarem  Lais  lyricos,  a  necessidade  de 
ahi  procurarmos  não  só  os  assumptos  mas  os  próprios  mo- 
delos dos  Lais  portuguezes  impunha-se  desde  o  momento 
da  publicação  de  Molteni  (1880)...* 

^^Desde  que  um  dos  discípulos  de  Gaston  Paris  (Lo- 
seth)  nos  deu  em  t8qi  a  analyse  comparada  dos  romances 
de  Tristan,  a  nossa  empreza  se  tornou  comtudo  viável. 
Por  ora  conduziu  á  descoberta  de  trez  entre  os  cinco 
Lais,  que  serviram  de  fooite  ao  adaptador  peninsular, 
assim  como  ao  achado  das  scenas  todas  a  que  as  rubricas 
alludem...*  D.  Carolina  Michaélis,  Lais  de  Bretanha,  p.  2. 
— Id.   Canc.    Vat.    11,  479. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  275 

Vejamos  como  os  Lais  ix>rtuguezes  do  Can- 
cioneiro levam  ao  reconhecimento  da  novela  Por- 
tng-ueza  de  Tristan.  No  Cancioneiro  Colocci- 
Brancuti  acha-se  um  começo  de  rubrica  com  o 
primeiro  verso  de  um  Lai,  cuja  cópia  interrom- 
pida se  completa  no  segundo  Lai : 

«Bsta  Cantiga  é  a  primeira  que  achamos  que 
foi  feita,  e  fezeron-a  quatro  donzellas  en  el  tem- 
po de  Rey  Artur  a  Maraot  d' Irlanda  por  la  (tray- 
çon?)  c  tornada  en  lenguage  palavra  por  palavra 
r  diz  assi:)) 

A  Cantiga  foi  transcripta  em  segundo  logar, 
com  esta  nova  rubrica,  pela  qual  se  descobre  a  si- 
tuação da  Novella: 

«Bsta  Cantiga  fezeron  quatro  donzellas  a 
Marote  d'Irlanda  en  tempo  de  Rey  Artur,  por 
que  Mauriit  filhava-  todalas  donzelas  que  achava 
em  guarda  dos  cavaleiros,  se  as  pedia  conquerer 
d' eles;  c  enviava-as  pêra  Irlanda  pêra  seeren  en 
servidon  da  terra.  B  esto  fazia  d  per  que  fora 
morto  seu  padre  per  razon  dlma  donzela  que 
levava  en  guarda.)^ 

Discutindo  a  forma  da  Cantiga  ou  Bailada, 
(|ue  esta  rubrica  explica,  conclue  D.  Carolina  Mi- 
chaèlis ;  «segundo  a  chronologia  da  Novella,  de- 
via occupar  o  primeiro  logar...  Nenhum  dos 
versos  analysados  por  Loseth  e  novamente  exa- 
minados a  meu  pedido  em  Paris  e  Vienna  con- 
tém esta  Cantiga.  E  nenhum  conta  os  aconteci- 
trientos  de  que  ella  parece  derivar,  pelo  modo  in- 
dicado na  rubrica,  comquanto  o  Morhout  figure 
em  todos  (os  versos)  de  maneira  bem  saliente  c 
])ertença  não  só  á   versão  primitiva  e  ás  secun- 


2/6  HISTORIA    DA    LTTTKRAT URA    PORTUGUEZA 

darias,    mas   também   aos   poemas   que   a   prece- 
deram. 

(íKste  facto,  estranhavel  em  si,  mais  singular 
se  torna  em  vista  de  uma  informação  do  velho 
compilador  portuguez,  o  qual  classifica  exacta- 
mente esta  Cantiga  —  e  só  esta  —  como  traduzida 
verso  a  verso.»  (Lais  de  Bretanha,  p.  lo.)  A 
confissão  do  poeta:  a  tornada  em  linguagem  pala- 
vra por  palavra^)  encobre  a  originalidade  e  inde- 
pendência do  adaptador.  Achada  a  situação  allu- 
dida  no  Lai,  observou  D.  Carolina  Michaèlis : 
«As  divergências  nos  dizeres  do  Portuguez  são 
bem  notáveis.»  Trata-se  da  libertação  de  um  Tri- 
buto de  Donzellas.  «Mais  tarde,  quando  este 
(Tristan)  feito  cavalleiro,  vive  na  corte  de  Marc 
de  Cornoalha,  o  Morhout  passa  o  mar  e  vem  exi- 
gir certas  páreas,  já  pagas  aos  soberanos  da  Ir- 
landa durante  dois  séculos.  Informado  de  que  o 
reino  podia  ser  livrado  do  horrivel  treiiage,  com- 
posto de  loo  donzellas,  loo  mancebos  e  outros 
tantos  cavallos  de  preço,  se  alguém  vencesse  o 
Irlandez,  Tristan  vae  reptal-o.  Na  ilha  de  Saint 
Sanson,  onde  os  dois  abordam  sem  acompanha- 
mento e  no  próprio  dia  consagrado  ao  santo,  é 
que  é  a  lide...  O  Morhout  succumbe  mortalmente 
ferido...  com  um  estilhaço  da  espada  de  Tristan 
no  cérebro.  Tristan  ferido  egualmente  de  uma 
seta  envenenada,  leva  comsigo  além  da  arma  com 
que  ferira  o  Morhout.  a  liarpa  c  rota...» 

A  situação  a  cjue  corresponde  o  lai  portuguez 
diverge:  «Donzellas  conquistadas  uma  a  uma  c 
mandadas  em  senndão  ao  reino  do  vencedor,  sub- 
stituem as  do  tributo,  com  quanto  essas  também 


PRIMEIRA   época:    edade   média  277 

fossem  einmenées  en  servage.  E  a  motivação  do 
costume?  O  pae  de  Morhout?  A  donzella  a  que 
este  havia  servido  de  guarda.  De  nada  d'isso  ha 
o    menor    vestigio    nos    textos    francezes.»    (Ib., 

Conclue-se  sem  violência,  que  existia  um  Tris- 
taii  em  portuguez  nos  principios  do  século  xiv; 
comprova-o  a  existência  de  uma  outra  bailada 
no  gosto  do  estavillar  asturiano,  em  que  se  ce- 
lebra a  libertação  do  Tributo  das  Donzellas,  que 
os  estados  christãos  pagavam  a  Mauregato  (Mor- 
hout,) sobre  que  se  fez  a  lenda  genealógica  do 
Peito  Burdclo,  e  se  fundamenta  o  censo  dos  Vo- 
tos de  Santhiago.  Appareceu  esta  lenda  pela  pri- 
meira vez  no  século  xiii,  em  Lucas  de  Tuy  e 
no  Arcebispo  D.  Rodrigo  Ximenez;  a  data  da- 
nos a  corrente  tradicional  em  que  estavam  no 
maior  prestigio  as  aventuras  de  Tristan.  Facil 
foi  dar-lhe  á  sua  popularidade  o  sentido  religioso, 
para  a  Egreja  exigir  a  prestação  dos  Votos  de 
vSanthiago  que  na  batalha  de  Clavijo  apparecera 
em  um  cavallo  branco,  lil^ertando  os  estados  chris- 
tãos do  criminoso  tributo  do  Mauregato.  ^  E'  a 
bem  conhecida  Canção  do  Figueiral,  compilada 
no  Cancioneiro  do  Conde  de  Marialva,  d'onde 
Soriano  Fuertes  transcreveu  a  melodia  popular,  - 
ligada  ao  seu  texto.  Nas  canções  portuguezas  do 
século  XIV,  Morhout,  é  o  Mouro,  (Morhaus,  cod. 
de  Vienna)  que  tem  prezas  as  donzellas: 


T     Historia    da    Poesia    popular    portuguesa,    t,    11,    p. 
lOT  a  139. 

2    Historia  de  la  Musica  en  Bspana,  Hv.  11,  12  e  13. 


78  HISTORIA    IM    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Mouro  que  las  guarda 
cerca  lo  achey; 
mal  las  'meaçára 
eu  mal  me  anogey; 
troncon    desgalhara... 
Todolos   machuquei... 

A  situação  da  iio\Tlla  de  Tristan  que  pro- 
duziu o  Lai,  tornou-se  popular  e  ainda  hoje  é 
celebrada  no  romance  do  Algarve  Dom  Almendo 
(Amoroldo,  no  italiano)  incorporado  no  Ro- 
manceiro geral  portuguez : 

Para  ella  avança  o  Mouro, 
Pensando    a    deteria; 
Ao  puchar  pela  infanta 
A  mão  aos  pés  lhe  cahia... 

Dona  Carolina  Michaèlis  escreve:  «Notarei 
que  uma  forma  com  a  (Marlot,  Marolte  por 
Morholt)  se  emprega  tam]:)em  no  Aniadis  (liv.  i, 
cap.  IO)  onde  já  encontramos  Sansonha  (ilha  de 
Saint-Sanson)  e  os  louvores  tradicionaes  ao  poder 
sublimante  do  Amor.»  (Lais,  p.  12.)  No  ro- 
mance de  Doin  Gaifciros  também  se  indica  San- 
sonha, e  nos  romances  do  Conde  Nino  ou  Olino, 
elle  canta  um  cantar  com  que  se  denuncia  á  prin- 
ceza;  e  quando  os  dois  amantes  morrem  das  suas 
sepulturas  nascem  ramos  que  se  entrelaçam  no 
ár;  no  romance  de  D.  Auscnda  (Ausêa,  de  Yseult) 
ha  a  erva  fadada  ou  a  fonte  cuja  agua  têm  o 
poder  genésico,  como  o  philtro  que  desvairou  os 
dois  apaixonados,  como  o  comprehendeu  o  rei 
Marcos.  Como  se  poderiam  tornar  populares  es- 
tes episódios,  que  receberam  a  forma  de  roman- 
ces velhos,  se  não  proviessem  de  uma  redacção 
portugueza  do  Tristan? 


i-RiMKiRA    kpoca:    Kdade    media  279 


o  designado  primeiro  I^ai  no  Cancioneiro  de 
Colocci,  tem  esta  rubrica : 

nBsie  lais  fez  Blias  o  Baço  que  foi  duc  de  San- 
sonha,  qiMndo  passou  a  gran  Bretanha,  que  ora 
cJiainain  Inglaterra.  E  passou  lá  no  tempo  do  Rei 
Artur,  pêra  se  combater  con  Tristan,  por  que  lhe 
matara  o  padre  en  ua  batalha.  B  andando  un  dia 
cn  sa  busca,  foi  pela  Joysa  Guarda  u  era  a  Rai- 
nha Yseu  de  Cornoalha.  B  viu-a  tan  fremosa  que 
advir  lhe  poderia  no  mundo  achar  par.  Bnamo- 
ruu-sc  enton  d' ela  e  fez  por  ela  este  laix: 

Amor,  des  que  m'a  vos  cheguei 
bem  me  posso  de  vos  loar, 
ca  mui  pouc',  ant,  a  meu  cuidar 
valia;  mais,  pois  enmentei... 

Segiiem-se  mais  nove  quadras,  na  forma  bri- 
tónica  (a  b  b  a);  em  um  dos  mss.  de  Paris 
achou  o  original  f  rancez : 

Amor,  de  vostre  acointement 
me  lou  le  molt,  se  dex  mament! 
quant  a  vos  ving  premierement 
petit   valoie    voirement... 

Dona  Carolina  resume  a  situação  da  novella 
manuscripta  franceza,  concluindo  também  pela 
divergência  da  redacção  portugueza  alludida  na 
rubrica  do  Lai  de  Elis:  «As  particularidades  que 
distinguem  a  rubrica  portugueza  são  a  alcunha  O 
Baço  (Le  Brim)  apposta  a  Helys;  e  a  substitui- 
ção da  Cornoalha,  como  paiz  invadido  pela  Gram- 
Bretanha.  Com  relação  a  esta  particularidade, 
não  esqueço  que  segundo  Gastou  Paris,  um  dos 
traços  característicos  da  versão  rimada  ingleza  ou 


28o  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

anglo-noniianda,  é  o  representar  a  Marc  como 
rei  da  Inglaterra  inteira,  e  não  exclusivamente  da 
Cornoalha;...  A  fóninila  —  aliás  vulgarissima  — 
a  Graiu  Bretanha,  que  ora  chamam  Inglaterra, 
encontra-se  também  no  Livro  de  Linhagens  do 
Conde  de  Barcellos  em  paragraphos  extractados 
da  Historia  Britonum.  A  palavra  diic,  posterior- 
mente nacional isada  em  duque,  ahi  se  acha  egual- 
mente,  assim  como  no  lais  de  Tróia...  Nem  falta 
no  Nobiliário  o  gallicismo  Soisnes,  nem  tamix>uco 
Sansonha,  forma  nasalisada  de  Saxonia.  Esta 
passou  também  para  alguns  romances  épico-ly- 
ricos  de  Castella,  e  para  o  Amadis,  o  que  é  signi- 
ficativo. 

((N'este  livro  de  cavalleria,  em  cuja  primeira 
parte  ha  numerosos  trechos  que  parecem  deri- 
var do  Cancioneiro  gallaico-portuguez  e  cuja  re- 
lação de  parentesco  com  as  Novellas  britonicas 
não  posso  deixar  de  apontar  aqui,  encontro  um 
elogio  do  Amor,  n'um  monologo  de  Amadis, 
que  muito  se  parece  com  as  primeiras  coplas  do 
nosso  Lais.  E  diz:  —  Amor,  amor,  mucho  tengo 
que  vos  gradecer  por  cl  hien  que  de  vos  me 
viene...  (Liv.  ii,  c.  3.)» 

O  terceiro  lai  tem  a  rubrica :  Dou  Tristan 
o  Namorado  fes  esta  Cantiga.  A  illustre  roma- 
nista achou  o  texto  em  um  dos  manuscriptos  fran- 
cezes ;  a  forma  ix^rtugueza  é  de  uma  das  tenções 
mais  bellas  do  cydo  dionisio,  superior  ao  tornei 
da  novella : 

Mui  gran  temp'a,  por  Deus,  que  eu  nom  vi 
quen  de  bondade  vence  todo  ren!... 

Crant  tcmps  a  que  te  ne  vi  ceie 
qiti  totf  ren::  vaint  de  biauté... 


PRIMEIRA    época:     EDADE     MÉDIA  281 


O  trovador  portuguez  desenvolveu  a  estrophe 
uiiica  em  uma  bella  canção  tripartita,  ou  de  mes- 
tria. A  situação  a  que  allude  «é  logo  depois  da 
batalha  contra  Helys,  o  de  Sansonha,  que  Tristan 
atravessa  uma  floresta  primaverilmente  engala- 
nada, onde  o  canto  das  aves  evoca  a  saudosa  me- 
moria de  Iseut,  longe  da  qual  vivera  mais  de  um 
anno  como  cavalleiro  errante.»     (Lais  de  Bret., 

P-   14.) 

O  quarto  Lai  de  Tristan  (Colocci)  é  o  Lai 
de  pior,  nos  manuscriptos  francezes,  de  que  Wolf 
publicou  a  musica.    Transcrevemos  uma  estrophe : 

Dom  Amor,  cu  cant'  e  choro, 
e  todo  me  ven  dali, 
da  por  que  eu  cant'  e  choro 
e  por  me  mal'  dia  vi. 

Damor  vient  mon  chant  et  nion  pior 
e  diluec  prendent  naissement 
ceie  fait  que  orendroit  pior 
qui  mera  fait  chanter  sovent... 

A  situação  novellesca,  é  quando  Tristan  mal 
restabelecido  segue  caminho  da  Cornoalha,  e  ou- 
viu de  noite  uma  donzella  cantar  o  lai  composto 
por  Yseult,  o  Lai  du  Boivre  amoureiíx.  E'  depois, 
(jue  Tristan  compoz  o  Lais  de  Plour. 

O  quinto  Lai  tem  esta  rubrica:  Bste  laix 
fe.zeron'  donzelas  a  don  Ançaroth  qimndo  estava 
na  Insoa  da  Lidiça  quando  a  rainha  Geneura 
achou  con  a  filha  do  rei  Peles  e  Ihi  defendeo  que 
non  parecesse  ant'ela. 

Escreve  D.  Carolina  Michaèlis :  «Também 
(resta  vez  a  redacção  franceza  falta  nas  novellas 
de  Tristan,  com  quanto  os  nomes  todos  e  os  fa- 
ctos a  que  a  rubrica  allude,  occorram  em  algu- 


JÒ^  HISTORIA    DA    IJTTKRATIJKA    POKTUGUEZA 


mas  das  versões  cyclicas.  E  occorrem  ainda  na 
novella  de  Lancelot  e  na  Demanda  do  Santo 
Graal,  visto  o  heroe  do  canto  ser  o  Cavalleiro  do 
Lago.  Em  volta  de  seu  escudo  donzelas  dansain 
c  cantam  jubilosas  por  elle  ter  alcançado  qualquer 
victoria.»  Depois  de  ter  resumido  este  quadro 
de  dois  manuscriptos  parisienses,  da  Isle  de  joie, 
conclue:  «E'  depois  da  victoria  sobre  Albano, 
que  imagino  dever  collocar  a  balleta.  —  O  suc- 
cesso  romântico  que  motivou  a  desgraça  e  lou- 
cura de  Lancelot  a  que  se  allude  na  rubrica,  como 
se  fora  simultâneo  á  bailada,  é  uma  aventura  no- 
cturna, passada  um  decennio  antes,  na  corte  do 
rei  Artur,  a  que  o  heroe  da  Demanda  e  modelo 
de  Amadis,  o  casto  Galaaz,  deveu  o  seu  sêr,  e 
que  por  isso  mesmo  forma  o  ponto  de  ligação 
entre  o  Lancelot  e  o  Graal.  Enganado  por...  um 
philtro...  Lancelot  julgando-se  em  presença  da 
Rainha  Geneura,  abraça  a  filha  do  rei  Pelles,  des- 
lealdade de  que  em  seguida  se  penitencia,  magoa- 
dissimo,  meio  louco  e  esquecido,  vivendo  longos 
annos  —  afastado  da  rcm  do  mundo  que  el  mais 
queria.))  (Ih.,  p.  17  e  18.) 

Entre  os  romances  velhos  do  Romanceiro 
castelhano  h^  esta  situação  de  Lancelot,  no  seu 
regresso  de  Bretanha,  em  que  as  damas  o  servem 
com  regosi jo ;  por  certo  que  estas  aventuras  não 
foram  vulgarisadas  pelas  narrativas  francezas. 
Diz  D.  Carolina  Michaèlis:  «Sem  que  a  maticre 
de  Bretagne  tivesse  penetrado  nas  cortes  penin- 
sulares, quem  se  teria  lembrado  de  compor  ou  de 
traduzir  essas  novidades,  levado  ])or  mero  inte- 
resse   litterario    ou    musical?    A    existência    dos 


pRi.MKiKA    í;poca:    edadi:    média  283 


cinco  Lais  é,  a  meu  vêr,  indicio  não  só  forte  mas 
irrespondivel  da  existência  de  romances  de  Tris- 
fan  e  Lancelot  em  prosa.  Pôde  ser  que  o  traductor 
da  prosa,  resolvido  a  apropriar-se  os  intermezzos 
ly ricos  todos,  desistisse  a  meio  do  caminho... 
Ou  ainda,  que  o  collector  do  Cancioneiro  esco- 
lhesse apenas  as  amostras,  que  mais  lhe  agrada- 
vam, por  motivos  que  é  impossivel  adivinhar.» 
(Ib.,  p.  20.) 

Este  ultimo  caso  é  o  que  se  repete  no  Can- 
cioneiro Colocci  com  a  Canção  de  João  Lobeira, 
que  andava  ligada  a  um  episodio  da  novella  do 
Amadis  de  Gaula,  «a  primeira  e  principal  imita- 
ção das  novellas  de  IWistan,  Lancelot  e  Graal.)) 
Pelo  caracter  lyrico  d'esta  Canção  ou  Lai  de  Leo- 
noreta,  determina-se  a  época  em  que  foi  composta 
á  qual  pertence  a  primeira  redacção  da  novella 
portugueza.  A  publicação  do  Cancioneiro  Colocci 
em  1880  trouxe  sob  os  n.os  230  e  232  dois  fra- 
gmentos de  uma  Canção  de  João  Lobeira,  que  são 
um  documento'  decisivo  para  demonstrar  a  origem 
portugueza  do  Amadis  de  Gaula,  e  dar  realidade 
a  um  certo  numero  de  tradições  acerca  d'esta  no- 
vella cavalheiresca.   Começa  a  Canção  pelo  refrcn: 

Lonoreta 

Sin  rosçta, 
Bella  sobre  toda  flor, 

Sin    roseta 

Non   me   meta 
Em  tal  coita  vosso  amor. 

Es!f  estribilho  ou  tornei,  como  se  lhe  chama 
na  Poética  trobadoresca  |)ortugueza,  conserva-se 
também  nos  versos  da  Canção  intercalada  no  tex- 


254  HISTORIA    DA    LITTERATURA   PORTUGUEZA 

to  castelhano  do  Amadis  de  Gaula  (liv.  ii,  cap. 
1 1 )  na  paraphrase  rhetorica  de  Garci  Ordones  de 
Aíontalvo.  Sobre  a  forma  poética,  nota  D.  Caro- 
lina Michaèlis:  «esse  lais-ballada  de  Lobeira  cin- 
ge-se  rythmicamente  a  dois  cantares  de  Af fonso  x, 
ou  então  aos  modelos  da  litteratura  provençal 
com  a  estrophe  coiic:,  que  o  rei  seguia.  E  essa 
fónna  foi  transmittida  (aabaab)  aos  trovadores 
gallaico-castelhanos  da  2. a  época  lyrica,  que  a 
empregaram  (vid.  Cancioneiro  de  Baena  e  congé- 
neres) exactamente  nos  géneros  denominados  lais 
e  dcscordos,  evocando  assim  a  suspeita  de  o  Ama- 
dis primitivo.»  (Ib.j  p.  26.)  De  facto,  o  pró- 
prio Montalvo  revelou  a  existência  de  uma  re- 
dacção primitiva  na  sigla  da  emenda  por  ordem 
do  princepe  D.  Affonso  de  Portugal  no  episodio 
dos  amores  de  Briolanja.  A  primeira  redacção 
do  Amadis  citado  por  poetas  do  Cancioneiro  de 
Baena  constava  de  três  livros;  seriam  estes  escri- 
ptos  pelo  trovador  João  Lobeira,  pertencendo  o 
quarto  á  remodelação  de  seu  filho  Vasco  de  Lo- 
beira, que  Azurara  deu  como  vivendo  no  tempo 
do  rei  D.  Fernando.  A  erudição  do  chronista  Azu- 
rara não  permittia  um  engano  tam  capital,  dis- 
tanciando-o  do  Lobeira  trovador  do  cyclo  Dioni- 
sio.  Eis  a  Canção  de  João  Lobeira,  reconstruída 
dos  dois  fragmentos : 

Senhor    genta 

Mi   tormenta 
Voss  'amor  en  guisa  tal; 

Que  tormenta 

Que    eu    senta 
Outro  nom  nv  é  ben  nem  mal, 
Mais  la  vossa  m'é  mortal. 


PRIMEIRA     KPOCA  :     EDADE     MEDIA  28^ 


Leonoreta 

Sin   roseta. 
Bela  sobre  todo  fror, 

Sin    roseta 

Non   me   meta 
Em  tal  coita  vosso  amor. 

Das    que    vejo 

Non   desejo 
Outra  senhor  se  vos  nom 

E    desejo 

Tan  sobejo 
Mataria  un  leon, 
Senhor  do  meu  coraçom. 

Leonoreta 

Sin   roseta,    etc. 


Mha   ventura 

En  loucura 
Me  meteu  de  vos  amar ; 

E'   loucura 

Que   me    dura 
Que  me  non  posso  quitar. 
Ay  fremesura  sem  par ! 

Leonoreta 

Sin  roseta, 
Bela  sobre  toda  fror, 

Sin    roseta 

Nom  me  meta 
Em  tal  coita  vosso  amor.  i 


I  Monaci,  editor  do  Cancioneiro  de  Colocci  escrevia- 
nos  em  carta  de  13  de  agosto  de  1880,  dando  noticia 
d'este  facto:  *Vi  troverai  in  csso  (Canc.  Colocci)  un  do- 
cumento molto  interessante  per  la  questione  dei  Amadigi. 
E  la  poesia  dei  Lobeira  Leonoreta  sin  roseta,  chi  se  retrova 
in  una  forma  molto  piu  corretta  ed  autentica  che  non  nella 
dei  Romanzo  di  Amadigi,  e  quindi  offre  un  bell'  argu- 
mento in  favore  delia  opinione  sustenuta  da  te.^' 


286  HISTORIA    DA    LTTTERATURA    PORTUCUEZA 

Importa  comparar  as  formas  da  Canção  inter- 
calada na  prosa  castelhana  do  Auiadis  de  Gania, 
reconhecendo-se  que  o  traductor  Montalvo  con- 
servou inconscientemente  os  vestígios  de  um  texto 
primitivo  portuguez.  Não  comprehendeu  a  es- 
tructura  estrophica,  nem  o  lexapren  da  rima,  en- 
contrando mais  estancias,  que  faltam  no  Cancio- 
neiro, em  que  se  verifica  o  estado  de  inter- 
polação (n.os  230  e  232.)  Vê-se  que  a  necessi- 
dade da  traducção  o  obrigou  a  alterar  o  typo  poé- 
tico; e  conservando  a  ((Canção  que  por  amestro 
amor  Amadis  fizo  siendo  viicstro  caballero))  dei- 
xou a  prova  irrefragavel  de  úm  texto  elaborado 
na  corte  do  rei  D.  Diniz,  onde  florescia  João  Lo- 
beira,  na  menoridade  do  princepe  D.  Affonso 
(o  iv),  como  se  confirma  pela  declaração  da 
emenda  do  caso  de  Rriolanja.  (liv.  i,  cap.  40.) 
Eis  a  versão  castelhana  por  Montalvo : 

Leonoreta  sin   roseta, 
Blanca  sobre  toda  flor. 
Sin  roseta  no  me  meta 
En  tal  cuita  viiestro  amor. 

'    Sin  ventura  yo  eu  locura 
Me  meti  de  vos  amar, 
Es  locura  que  me  dura 
Sin  me  poder  apartar. 
Oh  hermosura  sin  par, 
Que  me  dá  pena  y  dolçor. 

Sin  roseta  no  me  meta 

En  tal  cuita  vuestro  amor. 

De  las  que  yo  veo  no  deseo 
Otra  si  no  a  vos  servir; 
Bien  veo  que  es  devaneo 
Do  no  me  puedo  partir ; 
Pues  que  no  puedo  huir 
De  ser  vuestro  servidor, 

No  me  meta  sin  roseta 

En  tal  cuita  vuestro  amor. 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDTA  2\^-^ 


Aiinqiie  mi  queja  parece 
Referir-se  á  vos,  senor, 
Que  mi  vida  desfallece, 
Otro  és  la  vencedor, 
Otra  és  la  matador, 
Blanca  sobre  toda  flor; 

Sin  roseta  no  me  meta 

En  tal  cuita  vuestro  amor. 

De  me  hacer  toda  guerra 
Aquesta  tiene  el  poder, 
Que  muerto  vive  so  tierra 
Aquesta    puede    hacer 
Sin  yo  gelo  merecer; 
Blanca  sobre  toda  flor, 

Sin  roseta  no  me  meta 

En  tal  cuita  vuestro  amor. 

Não  transcrevemos  aqui  a  forma  deturpada 
do  texto  castelhano,  isto  é,  versos  transpostos  e 
mal  cortados,  que  mostram  a  apropriação  de  um 
texto  primitivo ;  ha  o  typo  estrophico  de  João  Lo- 
beira,  mas  sem  seguir  o  encadeado  da  rima;  não 
tem  a  estrophe  n.o  230  da  lição  de  Colocci,  mas 
apresenta  mais  duas  estrophes  que  faltam  ao  Can- 
cioneiro. D'estas  omissões  mutuas  entre  o  Can- 
cioneiro e  a  Novella,  infere-se  que  a  Canção  dj 
A  III  adis  andou  na  tradição  oral,  d'onde  foi  colli- 
[.pda  por  causa  da  melodia  para  o  Cancioneiro  tro- 
badoresco,  sendo  a  versão  da  Novella  mais  com- 
]>leta  ix)r  provir  de  um  texto  litterario,  de  que  fa-- 
zia  parte.  Este  encontro  dos  dois  textos,  escriptos 
como  prosa  c  mal  cortados  os  versos  nos  seus  he- 
mistichios,  é  um  facto  decisivo  e  irrefutável  para 
fundamentar  a  elaboração  novellesca  portugueza 
do  Am  adis. 

De])ois  dos  ]:)rimeiros  críticos  hespanhoes,  Milá 
V   Fontanals  e   Mcnendez.  v   Pelavo  terem  accei- 


288  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

tado  as  conclusões  sobre  a  prioridade  do  texto 
l)()rtiiguez  da  Novella  do  Am  adis  de  Gaida  por 
Vasco  de  Lobeira,  dois  novos  argumentos  fo- 
ram trazidos  cá  discussão  recentemente,  em  sen- 
tido contrario.  Pelo  facto  de  ter  sido  encontrada 
])or  Ernesto  Monaci  na  Bibliotheca  do  Vaticano 
uma  folha  solta  de  uma  traducção  castelhana  do 
século  XIV  da  novella  áo  Trístan,  quiz  concluir  o 
professor  Gottfried  Baist,  no  seu  estudo  do  Quadro 
das  Litteraturas  românicas,  que  á  mesma  corrente 
deve  pertencer  um  texto  castelhano  do  Amadis  de 
Gania :  sendo  em  1342  citado  o  Trístan  como  re- 
cente na  voga  (agora),  pelo  Arcipreste  de  Hita, 
é  collocada  a  elaboração  da  novella  do  Amadis  em 
meados  do  século  xiv.  E  avançando  nas  suas  de- 
ducções,  Baist  reconhece  a  superioridade  lyrica 
dos  portuguezes,  mas  nega-lhes  toda  a  prioridade 
de  textos  em  prosa,  incluindo  n'esta  negação  o 
Amadis  de- Carda,  e  até  quer  que  a  Demafida  do 
Santo  Graal  fosse  traduzida  de  textos  caste- 
lhanos. 

Diante  do  facto  de  apparecer  na  redacção  cas- 
telhana de  Amadis  de  Montalvo  intercalada  uma 
Canção  de  João  Lobeira,  entendeu  Baist  invalidar 
esse  argumento  a  favor  da  prioridade  portugueza 
por  uma  supposição  capciosa :  «que  o  traductor 
castelhano  se  cingira  á  moda  do  tempo,  escolhen- 
do para  textos  lyricos  o  idioma  gallego-portuguez» 
e  (|ue  o  Lai  de  Leonoreta  fora  uma  interpollação 
tardia  e  espúria  se  não  do  século  xiv,  pelo  menos 
no  texto  do  Montalvo.  Todos  os  esforços  de 
Baist  visam  a  provar  que  a  redacção  em  prosa  do 
Amadis  de  Gaida  data  da  mocidade  do  chanceller 
Avala,  isto  é  do  meado  do  século  xiv. 


PRIMEIRA  época:   edade  mêdia 


Pelo  seu  lado,  D.  Carolina  Michaélis  (Canc. 
da  Ajuda,  t.  ii)  attenuando  as  afíirmativas  de 
Baist,  que  caracterisa  como  singelas  e  seductoras, 
sente  a  necessidade  de  collocar  a  elaboração  da 
Novella  de  Am  adis  também  no  século  xiv,  rela- 
cionada como  está  com  o  Lai  de  João  Lobeira : 
«Com  respeito  á  edade  dos  Lais  e  da  Novella  em 
prosa  a  que  pertencem,  eu  adoptaria  de  boamente 
a  data  do  primeiro  decennio  do  século  xiv.  —  Bem 
desejava  consideral-os  como  remate  da  época  gal- 
laico-portugueza,  transição  para  o  período  dos 
Romances  de  Cavalleria,  epilogo  (e  não  falso 
preambulo)   dos  Cancioneiro.s  trobadorescos.» 

Que  facto  se  oppõe  a  que  tão  justa  conclusão 
critica  se  não  verifique  e  se  torne  effectiva?  Res- 
pondera-se:  um  anachronismo. 

Como  existiu  na  corte  portugueza  um  João 
Loheira,  que  figura  em  documentos  officiaes  de 
1258  a  1285,  filho  illegitimo  de  Pêro  Soares  Al- 
\'im,  e  que,  segundo  Brandão,  na  MonarcJi.ia  lu- 
sitana, assigna  João  Pires  Lobeira,  acceitou-se 
que  esse  individuo  era  o  trovador  João  Lobeira, 
auctor  do  Lai  que  se  acha  incluso  no  Amadts. 
Assim  recuava  para  os  principios  do  reinado  de 
D.  Af.fonso  1 1 1  o  conhecimento  dos  Lais  bretãos, 
e  o  começo  da  elaboração  em  prosa  do  Amadis; 
d'ahi  as  contradictas  sensatas  de  Baist,  e  a  ver- 
dade das  observações  de  D.  Carolina  Michaélis. 

Comparando  a  forma  da  Canção  de  João  Lo- 
beira, chega  a  insigne  romanista  a  este  resultado : 
«esse  Lais-bailada  de  Lobeira  cinge-se  rythmica- 
mente  a  dois  cantares  de  Affonso  x,  forma  trans- 
mittida  aos  trovadores  gallaico-castelhanos  da  2.^ 

19 


2()0  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


época  lyrica,  que  a  empregaram  exactamente  nas 
espécies  que  denominam  Lais  e  Descordos.  (Op. 
cit.  II,  515.)  Depois  da  deducção  d'estes  caracte- 
res poéticos,  e  apesar  de  admittir  as  datas  ana- 
chronicas  de  1258  a  1285  referentes  a  João  Lo- 
beira,  diega  lucidamente  a  reconhecer:  «o  Ama- 
dis  de  Lobeira  pertenceria  ao  primeiro  quartel  do 
século  XIV  (ao  i.o  do  seguinte)...»  «E  esse  facto 
ojjrigaria  a  coHocar  o  primeiro  Tristan  peninsular 
no  reinado  de  D.  Affonso  me  Affonso  x.»  E 
na  necessidade  de  conciliar  as  datas  anachronicas 
do  supposLO  João  Lobeira  com  o  Lai,  que  está 
intensamente  ligado  ao  episodio  de  Leonoreta  no 
Aniadis,  D.  Carolina  Michaèlis  recorre  á  «hypo- 
t].L.s:',  ([uc  espiritos  avançados,  influenciados  por 
contacto  directo  com  auctores  francezes,  prepara- 
ram intrepidamente,  no  reinado  do  Bolonhez  e  do 
Sábio,  o  advento  do  novo  gosto  por  Novellas  em 
prosa.»  (Op.  cit.,  11,  516.)  E  sentindo  a  neces- 
sidade de  aproximar  a  data  do  Lai  lyrico  de  João 
L^obeira  da  data  da  elaboração  da  Novella  do 
Aniadu,  continua  D.  Carolina  Michaèlis: 

«Sc  as  apparençias  não  mentem,  a  Cantiga 
que  graciosamente  principia  com  o  refren  Leono- 
reta... foi  ideada  como  intermezzo  lyrico  da  pri- 
meira e  principal  imitação  peninsular  das  novellas 
d'^  Tristan,  Lancelot  e  Graal. 

«Dirigindo-a  ostensivamente  á  pequena  irmã 
(•a  amada  —  segundo  o  systema  tantas  vezes  re- 
commendado  pelos  trovadores,  —  Amadis  falia 
no  texto :  sub  rosa  com  Oriana  a  sem  par,  que 
amava  a  furto.  —  No  Amadis,  de  Montalvo  (IL 
11),  onde  surge  em  versão  castelhana,  a  poesia 


PRIMEIRA    ÉPOCA :     EDADE     MÉDIA  2gi 


é  cantada  por  um  coro  de  Donzellas,  que  dan- 
sam  coroadas  de  rosas  e  capitaneadas  pela  Infan- 
tinha.  O  episodio  é  muito  secundário,  e  não  se 
vê  por  que  motivo  teria'  tido  maior  desenvolvi- 
mento  na   redacção   primittiva...»    (Canç.   d'Aj., 

E  como  o  professor  Baist  entende,  que  da 
existência  dos  Lais  se  não  podia  inferir  um  co- 
nhecimento cabal  das  Novellas  bretãs  e  muito  me- 
nos da  sua  nacionalisação  pelos  trovadores  por- 
tuguezes,  responde-lhe  D.  Carolina  Michaèlis: 
«Se  foram  os  gallegos-portuguezes  que  explora- 
ram e  nacionalisaram  as  Pastorellas,  a  Bailada  e 
os  Lais  lyricos  de  Bretanha,  porque  não  haviam 
de  explorar  e  nacionalisar  também  poemas  dilui- 
dos  em  prosa?  Não  poderemos  considerar  No- 
vellas de  Amor  como  pertencentes  á  Gaia  Scien- 
cia?»  (Ih.,  II,  519).  E  atacando  de  frente  as 
(abjecções  de  Baist,  escreve  a  eminente  romanis- 
ta :  «A  existência  de  um  Tristan  castelhano  an- 
tes de  1342  (época  em  que  o  Arcipreste  de  Hita 
allude)  e  a  de  um  Amadis  em  tempo  de  Pêro  Lo- 
pez  de  Ayala,  implica  necessariameote  a  não  exis- 
tência de  um  Tristan  e  Amadis  gallego-portuguez 
anterior?»  (Ib.,  11,  547.)  «Do  portuguez  foram 
transpostas  para  castelhano  numerosas  -poesias  ly- 
ricas  dos  epigones,  que  encontramos  estropeadas 
nos  Cancioneiros  do  século  xv.»  (Ib.,  pag.  518.) 
Todas  as  negativas  de  Baist  e  laboriosas  concilia- 
ções de  D.  Carolina  Michaèlis  recebem  uma  nova 
luz  diante  da  existência  de  um  João  de  Lobeira  pae 
de  Vasco  de  Lobeira,  cujo  testamento  é  datado  de 
1386,  collocando-nos  assim  no  século  xiv  a  simul- 


292  HISTORIA   DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 

taneidade  dos  Lais  lyricos  com  as  narrativas  no^ 
vellescas. 

Quando  se  tornava  difíicil  coordenar  estes 
dois  elementos,  o  chronologico  e  o  artistico,  fo- 
ram achados  em  Elvas  valiosos  documentos  que 
authenticam  a  individualidade  de  João  Lobeira  e 
de  seu  filho  Vasco  de  Lobeira;  coube  essa  gloria 
aos  perseverantes  esforços  do  grande  folk-lorista 
da  província  do  Alemtejo,  o  nosso  amigo  Antó- 
nio Thomaz  Pires. 

Por  occasião  do  seu  feliz  achado,  escrevia-nos 
em  24  de  Novembro  de  1903,  entrevendo  logo  a 
parte  essencial  do  problema: 

((Está  absolutamente  averiguado  que  Vasco 
de  Lobeira,  auctor  do  Amadis  de  Gaula,  floresceu 
no  reinado  de  D.  Diniz?  Se  não  está,  terá  então 
valor,  e  grande,  um  pergaminho  que  tenho  pre- 
sente, e  que  se  refere  a  um  João  de  Lobeira,  pae 
de  um  Vasco  de  Lobeira  —  o  qual  João  de  Lo- 
beira em  1386  (era  de  César)  instituiu  por  seu 
testamento  uma  capella  chamada  de  Santa  Suzana, 
na  egreja  de  Santa  Maria  dos  Açougues,  da 
(então)  villa  de  Elvas. 

((O  pergaminho  é  enorme  e  contém  uma  sen- 
tença acerca  da  Capella  instituida.  Eis  um  tre- 
cho d'elle,  em  linguagem  corrente  para  a  trasla- 
dação me  ser  menos  trabalhosa,  e  visto  não  me 
sobrar  agora  tempo :  —  ((que  em  a  dita  villa  de 
Elvas  houvera  um  mercador  por  nome  chamado 
João  de  Lobeira,  que  foi  casado  com  uma  mulher 
que  chamavam  Maria  Domingues.  Esta  lhe  mor- 
rera e  casara  depois  com  Aldonça  Annes,  filha 
de  Domingos  Joannes  Cabeça:  estando  assim  ca- 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  293 

sado  com  ella  fizera  um  testamento  na  éra  de  mil 
e  trezentos  e  oitenta  e  seis  annos,  no  qual  to- 
mara certos  bens  seus...  e  da  dita  Maria  Domin- 
gues, sua  primeira  mulher,  —  cujo  testamento 
disse  que  fizera,  e  mandara  que  o  enterrassem  em 
a  dita  Capella  de  Santa  Suzana,  que  fizera  o  dito 
Domingos  Joannes  Cabeça,  seu  sogro.  E  por  os 
ditos  bens  que  a  isso  tomara,  mandara  que  lhe 
cantassem  dois  capellães  para  sempre,  deixando  a 
cada  um  certa  quantia  de...  em  cada  um  anno 
por  sua  soldada;  e  isto  fizera  sem  fazendo  anne- 
xamento  algum,  mandando  que  a  dita  Aldonça 
Annes  sua  derradeira  mulher  fosse  administra- 
dora da  dita  Capella  se  se  não  casasse,  e  casan- 
do-se  dera  poder  aos  Juizes  e  Procurador  do  con- 
celho de  Elvas  que  logo  a  desapoderassem  de  todo, 
e  que  deixem  a  seu  filho  maior  a  dita  adminis- 
tração. E  a  dita  Aldonça  Annes  se  casara  logo 
com  Miguel  Sanchez,  cavalleiro  castellão,  mora- 
dor em  Badajoz.  E  o  dito  Concelho  e  Juizes  e 
procurador  tomaram  a  dita  administração  e  a  de- 
ram ao  seu  filho  maior  por  nome  chamado  Vasco 
de  Loheira,  o  qual  possuirá  até  o  tempo  de  sua 
morte,  etc.» 

O  documento  pela  relação  com  esse  dois  no- 
mes históricos  e  data  de  1386,  patenteou-se  de  uma 
importância  capital  para  o  problema  pendente.  Em 
carta  de  18  de  março  de  1904,  escrevia-nos  António 
Thomaz  Pires :  «Durante  o  trabalho  da  copia  da 
sentença,  occorreu-me  o  seguinte:  Não,  seria  o 
Ainadis  composto  por  Vasco  de  Lobeira  na  lingua 
castelhana?  Ou,  se  o  compoz  em  portuguez,  não 
o  passaria  elle  próprio  para  o  castelhano  ?  E'  que  a 


294  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


lingua  castelhana  devia  ser-lhe  bastante  familiar. 
Como  se  vê  na  sentença,  a  mãe  d'elle  Aldonça 
Annes,  logo  depois  de  viuvar  de  João  de  Lobeira, 
casou  com  Miguel  Sanchez,  cavalleiro  castelhano, 
morador  em  Badajoz,  e  se  bem  que  Vasco  de  Lo- 
beira era  obrigado  pela  instituição  do  morgado 
a  viver  em  Elvas,  não  passaria  grande  parte  da 
sua  existência  junto  de  sua  mãe  e  seu  padastro, 
attenta  a  pequena  distancia  que  ha  entre  Elvas  e 
Badajoz? 

«Outro  caso.  João  de  Lobeira  ou  João  Lo- 
beira, e  ainda  João  Delobeira  —  diz  a  sentença, 
que  era  mercador  em  Elvas;  será  o  trovador  do 
Q^íucionóvol  Mercador  e  troveirof!  Verdade  é  que 
esse  mercador  tinha  como  concunhado  nada  me- 
nos que  —  Álvaro  Gonçalves,  mordomo-mór  de 
D.  Af  fonso  IV,  —  como  a  mesma  sentença  diz.» 

Interessado  no  valor  histórico  d'este  documen- 
to, António  Thomaz  Pires  não  cessou  nas  suas  in- 
vestigações ;  pelo  i^ergaminho  da  camará  muni- 
cipal de  Elvas,  descobriu  que  o  testamento  de  João 
de  Lobeira  estava  transcripto  no  Tombo  1.°  da 
Provedoria  de  Elvas,  actualmente  depositado  no 
governo  civil  de  Portalegre.  Foram  extraordiná- 
rios os  esforços  empregados  para  poder  consultar 
esse  Tombo  i.o  A  final,  em  carta  de  25  de  cKitu- 
bro  de  1904,  escrevia-nos  jubiloso: 

((Até  que  consegui  do  governo  civil  de  Porta- 
legre o  empréstimo  do  Tombo  iP  da  Provedoria 
da  camará  de  Elvas,  onde  está  trasladado  na  in- 
tegra o  testamento  de  João  de  Lobeira,  e  onde  tam- 
bém está  trasladado  o  testamento  (com  codicillo) 
do  sogro  d'ell€  —  o  Domingos  Joannes  Cabeça  — 


PRIMEIRA    época:    EDADE    MÉDIA  295 


testamento  do  anno  1374.  São  enormes,  mas  in- 
teressantíssimos a  vários  respeitos,  estes  documen- 
tos. Abrangem  17  folhas  do  Tombo,  que  é  de 
grande  formato.  Vale  muito  a  pena  publical-os; 
e  a  esse  respeito  vou  consultar  o  meu  bom  ami- 
go...» I 

Que  Vasco  de  Lobeira  estava  ligado  a  Elvas 
pela  tradição  histórica,  dil-o  Barbosa  Machado  na 
sua  Bihliotheca  lusitano,  ao  biographar  o  auctor 
do  Amadis  de  Gmda:  «a  maior  parte  de  sua  vida 
assistiu  em  Elvas,  onde  instituiu  um  morgado  que 
depois  veiu  aos  Abreus  de  Alcarapinha.»  Tam- 
bém Jorge  Cardoso,  no  Agíologio  lusitano,  attri- 
buindo  a  composição  do  Amadis  de  Gaula  a  Pe- 
dro Lobeira,  dá-o  como  tabellião  em  Elvas,  (t. 
I,  410.)  D'onde  proviria  esta  tradição,  espalhada 
nos  séculos  xvii  e  xviii?  Jorge  Cardoso  apon- 
ta como  seu  informador  de  antiguidades  a  Ma- 
nuel Severim  de  Faria:  e  Barbosa  Machado  refe- 
rindo-se  ao  Morgado  de  Alcarapinha  leva-nos  á 
inferência  derivada  do  mesmo  informador,  por- 
que um  dos  possuidores  do  morgado  foi  D.  Chris- 
tovam   Manuel,   que  casou  em  segundas  núpcias 


I  Com  o  mais  extraordinário  desinteresse,  António 
Thomaz  Pires  entregava-me  esses  documentos  para  entra- 
rem na  segunda  edição  do  livro  Formação  do  Amadis  de 
Gaula.  Mas  essa  nova  remodelação  do  meu  estudo  vem 
longe,  o  que  prejudicava  o  conhecimento  de  tão  extraor- 
dinário descobrimento.  Assim,  a  bem  dos  que  estudam, 
acabam  de  apparecer  á  luz  no  fascículo  vii  dos  Estudos  e 
Notas  Blvenscs,  de  que  é  editor  o  benemérito  escriptor  An- 
tónio José  Torres  de  Carvalho.  Acompanhou  estes  docu- 
mentos António  Thomaz  Pires  com  algumas  notas  que 
muito  o  esclarecem. 


296  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

com  D.  Joanna  de  Faria,  filha  de  Gaspar  Seve- 
rim  de  Faria;  e  esse  morgado  foi  herdado  por 
D.  Sancho  Manuel,  i.o  Conde  de  Villa  Flor,  que 
casou  com  uma  sua  sobrinha,  filha  de  Gaspar  Gil 
Severim.  Vê-se  pois  que  a  tradição  do  auctor  do 
Am  adis  de  Gaula  ser  esse  possuidor  do  morgado 
e  assistir  ou  ser  natural  d'Elvas,  era  conhecida 
pelo  antiquário  Manuel  Severim  de  Faria.  Os 
documentos  achados  e  agora  publicados  por  An- 
tónio Thomaz  Pires  referem-se  irrefragavelmente 
ao  novellista  e  a  seu  pae,  authenticando  com  toda 
a  luz  a  época  em  que  viveram. 

Como  veiu  o  seu  morgado  e  capella  de  Santa 
Suzana  aos  Abreus  de  Alcarapinha?  Pelos  docu- 
mentos vê-se,  que  Vasco  de  Lobeira,  pelo  casa- 
mento de  sua  mãe  Aldonça  Annes  com  o  caste- 
lhano Miguel  Sanchez,  entrou  na  posse  do  mor- 
gado, deixando-o  por  sua  morte  a  um  filho  ille- 
gitimo  Martim  de  Lobeira.  Por  esta  circumstan- 
cia  foi  a  herança  impugnada,  obtendo  sentença  a 
seu  favor  Gonçalo  Cerveira,  que  morrendo  em 
1425,  o  deixou  a  um  seu  primo  Gonçalo  Brandão. 

Como  este  Cerveira,  primo  de  Vasco  de  Lo- 
beira, era-o  por  parte  da  mãe  e  não  dos  Lobeiras, 
veiu  em  1427  a  ser  o  morgado  dado  a  Martim  de 
Abreu. 

Também  se  julgava  o  appellido  de  Lobeira  de- 
rivado de  uma  terra  da  Galliza;  mas  este  nome 
vem  em  documentos  de  Elvas  de  1343  das  grandes 
propriedades  no  Valle  de  Lobeira  e  Herdade  de 
Lobeira  no  termo  do  Redondo.  Este  facto  excluc 
toda  a  ideia  de  um  trovador  gallego  de  appellido 
Lobeira,  que  emigrasse  para  Portugal  no  tempo  de 
D.  Fernando. 


PRIMEIRA    época:    edade   media  297 


Diante  dos  documentos  achados  e  publicados 
por  António  Thomaz  Pires,  apura-se,  que  o  João 
Loheira,  que  assignou  como  testemunha  o  testa- 
mento do  Bispo  de  Lisboa  D.  Ayres  Vaz  em  1258, 
e  que  como  filho  bastardo  de  Pedro  Soares  Al- 
vim, foi  legitimado  por  D.  Af fonso  1 1 1  em  6  de 
maio  de  1272,  e  que  assigna  em  1321,  no  instru- 
mento de  compromisso  entre  o  Rei  D.  Diniz  e  a 
Camará  de  Lisboa,  não  é  o  poeta  da  Canção  de 
Leonoreta,  cuja  imitação  dos  Lais  bretões  accusa 
também  uma  época  muito  ulterior.  Frei  António 
Brandão  escreve  na  Mofmrchia  lusitana: 

((D'este  João  Lobeira  descendem,  ao  que  en- 
tendo, os  que  ha  em  Portugal  d'este  appellido.)) 
Os  documentos  actualmente  descobertos  justificam 
esta  inferência;  e  o  facto  de  João  Lobeira  ser  mer- 
cador em  Elvas,  e  não  querer  que  na  posse  do 
Morgado  entre  cavalleiro,  revela  o  orgulho  da 
sua  estiri:)€  burgueza,  que  se  continuou  em  seu 
filho  Vasco  de  Lobeira,  armado  cavalleiro  depois 
dos  sessenta  annos,  como  se  interpreta  pelo  epi- 
sodio de  Mocandon,  em  1384,  (N.  1324  +  1403, 
79  annos.) 

A  época  da  morte  de  Vasco  de  Lobeira,  fixada 
em  1403,  por  Barbosa  Machado,  poderá  •  confir- 
mar-se  pelo  litigio  demorado,  em  que  seu  primo 
Gonçalo  Cerveira  entra  na  posse  do  morgado  de 
Santa  Suzana,  excluindo  Martim  de  Lobeira, 
como  illegitimo.  Por  morte  de  Gonçalo  Cerveira, 
é  que  este  deixou  a  um  seu  primo  Gonçalo  Bran- 
dão, em  1425,  o  morgado,  que  foi  sentenciado 
vago,  por  falta  de  representantes  de  João  de  Lo- 
beira, vindo  em  1427  aos  Abreus  de  Alcarapinha. 


298  HISTORIA    DA    LTTTERATURA    PORTUGUEZA 


E'  depois  de  1404,  que  se  torna  muito  f aliado 
o  Ajiiadis  de  Gaula  pelos  poetas  do  Cancioneiro  de 
Baena  e  por  Pedro  Lopez  Ayala;  não  se  acha 
por  elles  reconhecida  uma  redacção  castelhana. 
Essa  versão  fez-se  pois  sohre  o  texto  portuguez, 
remodelando-se  já  com  um  quarto  livro  que 
não  estava  no  plano,  realisado  somente  em  três 
livros. 

A  descoberta  de  António  Thomaz  Pires  vem 
dar  ás  objecções  do  professor  Gottfried  Baist  uma 
resposta  decisiva.  Por  ella  temos  datas  que  pre- 
cisam a  época  em  que  João  de  Lobeira  e  Vasco 
de  Lobeira,  seguiram  a  corrente  do  gosto  bretão, 
realisando  uma  evolução  completa  do  Lai  lyrico 
para  o  narrativo  e  sua  evolução  em  Novella  em 
prosa.  E,  apparecendo  no  Cancioneiro  Colocci- 
Brancuti  os  Lais  lyricos  do  Tristão  em  portuguez. 
é  também  plausivel  que  essa  folha  da  Novella  do 
Tristão  em  lingua  castelhana  fosse  resultante  de 
uma  primitiva  forma  portugueza,  que  se  justi- 
fica pelas  relações  de  Vasco  de  Lobeira  com  ca- 
valleiros  castelhanos  pelos  laços  de  família.  ^ 


I  Na  sua  valiosissima  descoberta,  António  Thomaz 
Pires  levou  o  requinte  de  patriotismo  a  dedicar-nos  o  seu 
trabalho:  ^^Persuadindo-me  que  semelhantes  documentos, 
authenticos  e  até  agora  ignorados,  podem  efficazmente  con- 
tribuir para  a  solução  do  tão  discutido  problema  litterario 
—  a  nacionalidade  do  Amadis.  resolvi,  desde  o  momento 
que  os  salvei  do  pó  dos  archivos,  offerecel-os  a  v.  para  os 
utilisar  na  segunda  edição  —  já  annunciada  do  seu  precioso 
livro  —  formação  do  Amadis  de  Gaula.^  E'  certo  que  so- 
bre estas  bases  novas  todo  esse  livro  será  remodelado:  mas 
d'aqui  até  esse  dia,  que  vem  longe,  importa  tornar  conheci- 
do tão  excepcional  descobrimento,  que  directamente  in- 
flue  no  problema,  presentido  por  novas  criticas  subjecti- 
vistas  e  que  os  dados  históricos  resolvem  definitivamente. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  299 

Origem  portugueza  do  Amadis  de  Gaui.a 

Todos  os  grandes  poemas  da  Tavola  Redonda 
tinham  terminado  a  sua  evolução  desde  o  desen- 
volvimento dos  Lais  narrativos  em  que  primeiro 
foram  esboçados,  como  o  Tristan  e  Lanceio t,  e 
transformando-se   em  prosa  agruparam-se   cycli- 
camente,  constituindo  em  1250  o  que  se  chamou 
a  Abateria  de  Bretanha.    Portugal  não  ficou  ex- 
tranho  a  este  enorme  trabalho  de  idealisação,  em 
que  Chrétien  de  Troies  teve  uma  parte  prepon- 
derante desde  o  Tristan  e  Lanceio t  ao  Percival, 
cujo  assumpto  tomou  de  um  poema  que  de  In- 
glaterra lhe  trouxera  Filippe  de  Flandres,  Conde 
de  Alsacia,  marido  de  Thereza  de  Portugal.    Não 
podiam  estes  poemas  ser  desconhecidos  na  corte 
de  D.  Affonso  iii;  a  existência  da  novella  da 
Demanda  do  Santo  Graal  em  prosa  portugueza  do 
século  XIV  o  fundamenta.    A  revivescência  do  ly- 
rismo  provençal    sob   Dom   Diniz,    absorveu   um 
pouco  o  interesse  dos  poetas  da  corte ;  mas  o  gosto 
das  Novellas,  pelos  seus  quadros  de  aventuras  ma- 
ravilhosas  e   de   amores  hallucinantes   prevaleceu 
sobre  a  casuistica  passional  dos  trovadores;  a  li- 
vre imaginação  tomava  os  personagens  secundá- 
rios, como  Sagram or,  como  Ivain,  como  Amadas, 
e  bordava-lhes  uma  biographia  ideal,  em  que  en- 
quadrava todas  as  situações  mais  bellas  dos  me- 
lhores poemas  da  Matéria  de  Brjtanha.    Gaston 
Paris,  dá-nos  o  conjuncto  da  biographia  poética 
de  um  d'esses  heroes:    «Um  joven  cavalleiro  des- 
conhecido, as  mais  das  vezes  sem  familia,  acaba 
de  chegar  á  corte  de  Arthur,  quando  uma  aven- 


300  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


tiira  qualquer,  considerada  por  toda  a  gente  como 
irrealisavel,  lhe  estimula  a  sua  coragem;  deixa 
a  corte,  vae  correr  a  aventura,  triumphar  em  muitas 
outras,  e  acaba  por  desposar  a  donzella  n'isso  en- 
volvida, e  que  em  dote  lhe  traz  um  reino.»  (Litt. 
franç.  au  Moyen-age,  §  58.)  Com  leves  modifi- 
cações é  este  o  typo  e  o  thema  do  Am  adis  de  Gan- 
ia; accrescentando  situações  episódicas,  a  loucura 
por  amor,  como  no  Lai  da  Folie  de  Tristan  repro- 
duzida no  poema  do  Amadas,  ou  a  tradição  do 
morto  reconhecido,  de  Richard  le  Beau,  no  poema 
inglez  do  Sir  Amadace,  chega-se  da  Chanson 
dlnstoire  á  formação  cyclica  da  grande  Novella 
em  prosa.  O  valor  moral  da  fidelidade  inquebran- 
tável do  amor,  através  de  todas  as  suggestÕes,  e 
tirando  d'esse  amor  a  energia  para  realisar  as  em- 
prezas  quasi  impossiveis,  eis  o  thema  que  se  des- 
taca, de  todos  os  poemas  e  Lais  narrativos,  e  que 
deu  ao  Amadis  de  Gania  a  primazia  sobre  todas 
as  Novellas  de  Cavalleria. 

Na  época  em  que  foi  composto  o  Amadis  de 
Gaída,  na  corte  de  Dom  Diniz,  já  as  Novellas 
da  Tavola  Redonda  estavam  transformadas  em 
prosa.  Gaston  Paris  assentou  este  principio  cri- 
tico para  o  conhecimento  d'essas  novellas:  que  os 
textos  em  verso  as  precederam  e  são  mais  antigos. 
Com  o  Amadis  de  Gaula  deu-se  este  phenomeno; 
antes  da  sua  redacção  em  prosa  no  século  xiv,  foi 
precedido  de  poemas  em  verso  no  século  xiií, 
taes  como  o  Amadas  et  Ydoine,  em  francez,  e  Sir 
Amadace,  em  inglez. 

No  Discurso  sobre  o  Estado  das  Lettras  no 
Século    xTi\    Victor   Le    Clerc,    f aliando   do    rei 


PRIMEIRA  época:  EDADE  MÉDIA  J^I 

D.  Diniz,  como  fundador  da  Universidade  de 
Coimbra,  censura  seu  filho  D.  Affonso  iv:  «tra- 
balhou também  para  aperfeiçoar  a  sua  lingua  na- 
cional, e  assignalar-se-ia  já  agora  nos  annaes  das 
lettras,  se  podesse  attribuir-se  com  certeza  a  Vas- 
co de  Lobeira,  morto  segundo  dizem  em  1403,  a 
primeira  redacção  do  famoso  Amadis  de  Gaula, 
que  todavia,  não  é,  como  se  vê  pelo  texto  mais 
antigo  hoje  conhecido  o  hespanhol,  senão  uma 
imitação  prolixa  dos  poemas  da  Tavola  Redonda  e 
dos  romances  de  Aventuras,  taes  como  o  nosso  ro- 
mance de  Amadas.))  i  O  grande  critico  esboçava 
uma  direcção  para  o  estudo  da  novella.  Littré  com 
seguro  senso  nota:  (.(.Amadas  lembra  o  cyclo  dos 
Amadises,  que  certamente  hespanhol  no  século  xv, 
tem  por  ventura  ligações  com  as  mais  antigas 
composições  francezas.»  2  Para  determinar  essas 
origens  e  fomiação  importa  conhecer  os  processos 
litterarios  da  Edade  média,  na  evolução  das  for- 
mas, e  no  syncretismo  dos  variados  poemas  nas 
amplificações  cyclicas.  E  não  bastando  ainda  estes 
recursos  contra  a  falta  de  documentos,  o  senso  es- 
thetico  revelará  as  harmonias  orgânicas  ou  as  in- 
congruências;  assim  o  comprehende  Du  Méril,  no 
prefacio  de  Blanchefleur:  «Os  hábitos  litterarios 
da  Edade  média  complicam  desgraçadamente  to- 
das as  questões  de  origens  com  difficuldades  in- 
solúveis, se  se  não  deixar  ao  sentimento  tirar  as 
conclusões,   quando,   escaceando   os   dados   preci- 


1  Op.  cit,  t.  I,  p.  153. 

2  Dictionaire,  Compl,  de  la  Préface,  p.  Liv. 


302  HISTORIA   DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


SOS,  O  raciocínio  se  dá  como  incompetente.»    (p. 

XXXV II.) 

Seguindo  as  phases  da  evolução  do  plano  poé- 
tico do  Aniadis,  chegaremos  ao  apparecimento  ló- 
gico c  histórico  da  Novella  portugueza,  consti- 
tuindo-se  com  os  elementos  dominantes  na  sua 
época,  ou  os  poemas  que  entraram  na  sua  cons- 
trucção  cyclica;  e.caracterisando  pelo  sentimento 
a  sua  nacionalidade  litteraria  revelada  no  ethos 
portuguez. 

i.'i  Phase:  Lenda  agiologica.  —  A  tendência 
para  a  ]>ersonificação,  faz  com  que  muitas  pala- 
vras qualificativas  se  convertam  em  entidades;  é 
nma  das  bases  da  legendogonia.  Assim  a  pala- 
vra lonke,  a  lança,  tornou-se  a  individualidade  de 
í.onguinhos,  o  designativo  vera  ícon,  estampado 
no  sudário,  anthropomorphisou-se  em  Verónica. 
Foi  assim  que  A  matos,  um  qualquer  designativo 
foi  personificado  por  San  Jeronymo  como  um  dis- 
cípulo do  eremita  Antão.  ^  l)'aqui  a  crear  a  le- 
genda áurea  de  um  Santo  é  evolução  espontânea 
em  uma  éix)ca  de  credulidade  e  de  fecunda  sancti- 
ficação  popular.  Como  as  grandes  Epopêas  deri- 
\'am  as  suas  legendas  heróicas  de  uma  origem 
mythica,  também  algumas  Canções  de  Gesta  da 
lulade  media  foram  a  transfonnação  de  lendas 
agiologicas:  a  Canção  de  Aiol  derivou-se  da  le- 
genda latina  de  Santo  Aginlpho,  ^  o  santo  Ab- 
bade  de  Lerins,  do  século  vii,  torna-se  na  Ges- 


1  Journal  Asiatiquc  de  1900;  n.°  i,  p.  24. 

2  Acta  Sanctorum,  t.  i,  p.  728,  7^Z- 


PRIMEIRA   época:   edade   média  303 


ta  um  estrénuo  cavalleiro,  que  defende  o  impera- 
dor Luiz,  filho  de  Carlos  Magno,  da  revolta  dos 
seus  barões,  e  se  retira  para  o  claustro,  aonde 
expira  em  santidade.  Guilhaumc  au  Conrt-nez, 
cujas  façanhas  são  celebradas  em  dezoito  Gestas, 
é  a  transformação  heróica  do  typo  devoto  de 
Saint  Guilhaume  de  Gellone,  da  legenda  do  sé- 
culo X,  colligida  pelos  Bollandistas.  i  O  mesmo 
processo  tradicional  se  dá  com  a  Gesta  de  Miles 
et  A  mil  es,  tendo  por  base  uma  lenda  agiologica.  2 
O  que  é  todo  o  Cyclo  do  Santo  Graal,  senão  o  des- 
envolvimento épico-novellesco  do  Evangelho  apo- 
crypho  de  Nicodemus?  Na  Novella  do  Amadis  de 
Gania  encontra-se  o  fio  tradicional  que  liga  o  ca- 
valleiro typo  da  fidelidade  ao  prototypo  de  um 
Sancto;  lê-se  na  redacção  castelhana:  «Este  es 
Amadis...  y  este  nombre  era  alli  muy  preciado, 
por  que  asi  s:  llamaba  un  Santo  á  quien  la  don- 
cella  lo  encomendo.»  Nas  Actas  dos  Bollandistas 
encontra-se  a  legenda  de  um  Sanctus  Ainandius 
Gallesinus.  3  No  Isop?t  II  traduzido  de  um  texto 
inglez  do  século  xii  de  Walter  TAnglais,  vem 
na  fabula  da  cigarra  a  exclamação:  Par  Saint 
Aniand!  E  no  poema  de  Amadas  et  Idoyne,  (T 
3092 ) :  (íVenez,  dame,  par  Saint  Amant.yy  Era 
este  o  Santo  mais  popular  e  querido  na  época  da 
elaboração  doestes  ];X>emas,  como  se  lê  na  Histo- 
ria litteraria  da  França;  que  na  Edade  média  as 


1  Acta  SS.  Maii,  t.  vi,  p.  809. 

2  Léon  Gautier,  Les  Epopées  françaiscs,  t.  i,  p.  89. 

3  Acta  SS.  Febr.,  p.  816. 


304  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 


vidas  dos  Santos  eram  muitsis  vezes  tratadas  em 
verso :  «Outras  vidas  de  Santos  em  versos  pro- 
vençaes  parecem  remontar  ao  século  xi,  como  a 
de  Sd-nto  A  VI  and  ius,  bispo  de  Rodhez...»  (t.  xxii, 
p.  240.)  No  catalogo  de  uma  bibliotheca  monás- 
tica do  século  XII,  junto  com  o  poema  de  Miles 
et  Amiles:  «Milo  unus,  cum  SM  Arnandis  vita  me- 
trice  compósita.»  ^ 

As  relações  d 'esta  lenda  agiologica  com  a  No- 
vella  são  imi>ortantes :  Santo  Amândio  foge  da 
casa  de  seus  pães,  e  esconde-se  na  Ilha  Ogia;  no 
poema,  Amadas  também  se  ausenta  da  casa  pa- 
terna, e  na  novella,  refugia-se  na  Ilha  da  Penha 
pobre,  aonde  faz  vida  eremitica.  As  relações  en- 
tre o  poema  e  a  Novella  são  mais  interessantes: 
tanto  Aniadis  como  Amadas  servem  na  corte  de 
um  rei,  por  cuja  filha  Oriana  ou  Idoine  se  apai- 
xonam, e  para  merecerem-na  vão  nobilitar-se  pelas 
armas,  correr  aventuras,  até  receberem  o  gráo  de 
cavalleiros.  N'este  largo  decurso  de  provas,  os 
dois  amantes  dão  o  exemplo  de  uma  inquebrantá- 
vel fidelidade;  depois  de  terem  salvado  as  suas 
amantes  de  i>erigosos  encantamentos,  casam  a  fi- 
nal e  herdam  o  reino  do  pae,  que  se  oppozera  a 
este  enlace.  Paulin  Paris  e  Leon  Gautier  consi- 
deram como  excepcional  a  transfomiação  de  uma 
lenda  agiologica  em  uma  Gesta  heróica ;  no  caso 
de  Santo  Amandiíis  Gallesinus,  bastava  a  sua 
muita  popularidade,  para  esse  nome  entrar  na 
corrente  da  idealisação  cavalheiresca,  como  tan- 


I     Btdl.  de  Mcademic  de  Bruxelles  (1843)  t.  11,  p.  59i- 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  305 


tos  nomes  mythologicos  e  de  personagens  gregos 
e  romanos,  que  serviram  de  thema  a  muitas  Chan- 
sons  dliistoire. 

Quando  começaram  a  elaborar-se  os  Lais  nar- 
rativos ou  poemas  sobre  o  Amadisf  Pôde  deter- 
minar-se  essa  data  por  um  processo  negativo :  é  de 
1 1 70  a  celebre  Canção  de  Guerau  de  Cabrera,  ^ 
que  ennumera  todos  os  poemas  que  andavam  na 
transmissão  oral,  do  cyclo  Carlingio  e  da  Tavola 
Redonda,  da  mythologia  clássica  e  da  biblia,  e 
entre  essas  preciosas  referencias  nada  se  encontra 
allusivo  ao  Ainadis.  Comtudo  ahi  se  apontam 
Tristan  e  Lancclot,  que  animariam  o  thema  novo 
que  ia  ser  elaborado  em  Lais  narrativos.  Nos  fins 
do  século  XII,  é  que  se  espalham  as  Chansons  de 
toile  sobre  o  Aniadis. 

2.ÍI  Phase :  Lais  narrativos.  —  No  poema  f  ran- 
cez  de  Amadas  et  Ydoine  refere-se  a  extensão  im- 
mensa  que  as  suas  aventuras  tinham  na  Europa, 
nos  principios  do  século  xiii,  a  que  pertence  esse 
poema : 

Tout  droitement  par  Alemaigne, 
Puis  fait  son  tour  parmi  Bretaigne 


Espandiie  est  já  por  Bourgoigne 
De  lui  la  haut  renommé. 

Qu'il  n'a  diisqu'  as  pars  à'Espagne 
Dont  si  grans  est  la  renommée 
De  lui  par  tuit  le  mont  alée 
Que  áAngletcrre  jusqn'  a  Rome... 


I     Publicou-a   com  valiosas   notas   interpretativas   Milá 
y  Fontanals,  nos  Trovadores  en  Espana,  p.  273  a  284. 
20 


306  HISTORIA    DA   LITTERATURA    PORTUGUEZA 


De  facto,  em  todos  estes  pontos  indicados  no 
poema  francez  encontram-se  vestígios  da  tradi- 
ção poética  de  Amadas.  O  poeta  Maèrlant,  refor- 
mador da  poesia  neerlandeza,  e  falecido  em  1291, 
faz  uma  referencia  ao  Amadis;  i  n'essa  lingua  an- 
davam já  os  poemas  de  Tristan,  e  Lanceio t,  que 
lhe  serviam  de  modelo.  Do  seu  conhecimento  em 
Inglaterra,  temos  a  cantilena  de  Si?'  Amadac:,  2 
do  século  XIV,  e  em  França  o  Roman  d' Amadas 
et  Ydoone,  acabado  de  copiar  por  João  de  Mados. 
Foi  grande  a  popularidade  d'este  thema,  cujas 
Canções  narrativas  apparecem  mencionadas  em 
numerosos  poemas  da  Edade  média  e  em  catálo- 
gos de  eruditos.  No  Donat  dcs  Amants,  vem  ci- 
tado o  Amadis  como  o  prototypo  da  fidelidade : 

Que  fist  Didoum  par  Eneas, 
E  Ydoine  par  Amadas. 

E  no  pequeno  poema  romanesco  Gauti:r  d'Au- 
pais,  na  forma  das  Gestas,  vem  apontado;  no 
poema  de  Gower,  Confessio  Amantis,  (liv.  vi,) 
de  que  existiu  uma  traducçao  portugueza  na  Bi- 
bliotheca  do  rei  D.  Duarte : 

Is  fed  with  redynge  of  romance 
Of  Idoyne  and  Amadas. 


1  Jonckbloet,  Hist.  de  la  Littcratura  neerlandeza,  t.  i, 
p.   161. 

2  Edição  de  1842.  Pertence  este  poema  ao  século  xrv, 
segundo  o  prof.  Brandi.  (Gundriss  der  gernianischen  Phi- 
lologie,  t.  II,  p.  665.)  No  Archiv  der  romanischen  Philo- 
logic,  t.  Lxxxi,  p.  141,  vem  um  estudo  do  Dr.  Hipp,  mos- 
trando que  o  poema  do  ^S";>  Amadacc  é  o  thema  oriental 
do  Morto  agradecido.  O  prof.  Breuster  traduziu-nos  do 
velho  inglez  este  poema,  illegivel  para  quem  não  fosse  um 
philologo, 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :     EDADE    MÉDIA  307 


X'o  lai  inglez  de  Bniare,  é  também  memorado : 

Tn  tath  on  korner  mad  was 
Idoyne  and  Amadas... 

No  manuscripto  de  Guido  de  Columna,  Regi- 
iiicnto  de  Príncipes,  traduzido  por  João  Garcia 
de  Castroreges,  por  1350,  vem  citado  o  Amadis, 
junto  com  Trisfan  e  Cif  ar.  No  legado  de  Jean 
de  Safres  em  1365  ao  capitulo  de  Clervaux,  junto 
com  os  livros  da  Tavola  Redonda  vae  também  um 
Amadas.  ^  Foi  uma  d'estas  versões,  que  no  sé- 
culo XVI  Herberay  des  Essarts,  ao  traduzir  do 
castelhano  a  novella  de  Montalvo,  declara  ter 
visto  escripta  em  língua  picarda;  Du  Tressan,  no 
século  XVIII,  ao  fazer  o  resumo  da  versão  fran- 
ceza,  confessa  tel-a  encontrado  na  bibliotheca  do 
Vaticano  no  fundo  doado  pela  rainha  Christina  da 
Suécia.  2  Estas  duas  affirmações  ficaram  pro- 
vadas desde  que  veiu  á  luz  publicado  por  Hippeau, 
em  1863,  o  poema  de  Amadas  et  Ydoine.    Publi- 


1  Victor  Leclerc,  Histoire  litteraire  de  la  France,  t. 
I,  335- 

2  ^^Durante  uma  assistência  de  quatro  mezes  que  o 
autor...  fez  em  Roma,  S.  E.  o  Cardeal  Querini  honrou-o 
com  a  sua  amisade  e  a  Bibliotheca  do  Vaticano  foi-lhe 
aberta...  A'  parte  direita  guarda-se  a  bibliotheca  da  celebre 
rainha  Christina...  Esta  rainha  altiva  e  instruída,  tinha  re- 
unido durante  a  sua  estada  em  França  uma  prodigiosa  quan- 
tidade de  antigas  edições  e  de  manuscriptos  f rancezes.  —  Foi 
alli  que  se  lembra  ter  visto  o  Amadis  de  Gaula  em  uma 
antiquadíssima  linguagem,  que  Herberay  caracterisa  deno- 
minando-a  langue  picarde,  fundado  em  que  o  dialecto  pi- 
cardo  é  ainda  o  mesmo  dos  romancistas  do  fim  do  reinado 
de  Filippe  Augusto  e  dos  reinados  de  Luiz  vi  11  e  de  S. 
Luiz.>^    (T.  I,  p.  XXII.) 


308  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

cado  desde  1810  o  poema  de  Sir  Amadace,  e  co- 
nhecido o  romance  de  Aiidefroi  le  Bastará,  Belle 
Idoyne,  que  é  um  episodio  de  Fleur  et  Blanchefleur, 
reconhecia-se  a  necessidade  de  explicar  por  elles 
o  processo  formativo  da  novella  em  prosa  do 
Am  adis  de  Gatda.  No  seu  discurso  Estado  das 
Lettras  no  secido  XIV ,  escrevia  Leclerc:  «Quan- 
do o  ix>ema  francez  (te  Amadas,  que  em  1365 
fazia  parte  dos  livros  de  um  cónego  de  Langres, 
e  que  ainda  subsiste,  tiver  sido  vulgarisado,  quando 
o  poderem  comparar  ao  Amadace  inglez,  áquelle 
l)ravo,  que  os  fragmentos  publicados  em  1840  e 
1842,  segundo  differentes  textos  manuscriptos, 
concordam  em  represental-o  como  o  mais  brilhante 
modelo  de  lealdade,  de  bravura  e  de  respeito  cava- 
lheiresco; quando  principalmente  se  fizer  uma 
ideia  mais  justa  e  mais  completa  da  alluvião  dos 
romances  em  prosa,  que  nos  primeiros  cento  e  cin- 
coenta  annos  da  imprensa,  para  corresponder, 
tanto  em  Hespanha  como  em  França,  ao  enthu- 
siasmo  da  moda,  multiplicaram  á  compita  os  nos- 
sos antigos  poemas,  alongando-os  com  digressões 
importunas,  conversas  alambicadas,  com  uma  am- 
pla brigada  de  gigantes,  de  fadas,  encantadores, 
será  occasião  então  de  i^erguntar,  se  foi  sem  fun- 
damento ou  se  com  rasão  que  o  velho  traductor 
francez  do  Amadis  hespanhol,  Herberay  des 
Essarts,  nos  disse  que  descobrira  alguns  fragmen- 
tos escriptos  á  mão  em  lingua  'picar da,  e  decidir 
se  este  romance  de  aventuras,  cujo  plano  pouco 
se  prestava  aos  embellecos  do  i>er feito  amor,  por 
isso  que  começa  por  onde  os  outros  acabam,  nas- 
ceu em  Portugal,  em  Hespanha  ou  em  qualquer 


PRIMEIRA    época:    EDADE    MÉDIA  309 


outra  parte.»  O  problema  está  magistralmente 
posto,  indicando  Victor  Leclerc  ainda  o  espirito 
critico:  «Nos  Amadises,  os  quaes  são  derivados 
dos  Lane  cl  o  t  e  dos  Tristan,  e  nos  quaes  se  tem 
querido  vêr  o  ideal  do  amor  cavalheiresco,  a  bella 
Oriana  concede  tudo  antes  do  tempo  tão  esperado 
em  que  os  imperadores  e  os  reis  hão  de  vir  assis- 
tir ás  núpcias.»  (Ib.,  p.  483.) 

D 'este  processo  critico  chega-se  ao  conheci- 
mento que  o  thema  do  Amadis  era  generalisado 
na  poesia  medieval,  na  Europa  no  século  xiii;  e 
que  entre  esses  poemas  de  toile,  em  lingua  picar- 
da,  inglez  e  neerlandez,  e  a  redacção  castelhana 
do  fim  do  século  xv,  houve  uma  elaboração  inter- 
mediaria, em  lingua  portugueza  nos  começos  do 
século  XIV. 

Tendo-se  operado  no  século  xiii  a  transfor- 
mação dos  poemas  versificados  para  a  forma  no- 
vel lesca  em  prosa,  as  analogias  entre  o  Amadas  et 
Jdoinc  e  o  Amadis  de  Gaula  não  devem  procu- 
rar-se  na  forma  mas  nas  situações  do  thema  tra- 
dicional :  ambos  são  egualmente  inspirados  pelo 
mesmo  sentimento  da  fidelidade  no  amor.  Tanto 
Amadas  como  o  Amadis  servem  na  corte  de  um 
rei,  por  cuja  filha  Idoine  ou  Oriana  se  apaixo- 
nam, e  para  merecem-as  vão  ambos  nobilitar-se 
nas  armas  para  serem  armados  cavalleiros.  E'  du- 
rante as  suas  longas  e  arriscadas  aventuras,  que 
tanto  o  donzel  como  a  filha  do  rei  se  mostram 
animados  de  uma  absoluta  fidelidade,  terminando 
a  acção  pela  posse  merecida  que  sonhavam.  Eis  a 
situação  que  fez  nascer  esse  amor,  que  pelo  senti- 
mento da  fidelidade  encantou  a  Edade  média;  o 


310  HISTORIA   DA   LITTERATURA    PORO^UGUEZA 


Duque  de  Borgonha  dera  um  grande  festim,  e  o 
Senescal  n'esse  dia  veiu  servil-o  á  mesa  como  lhe 
competia;  a  seu  lado  ia-o  ajudando  seu  filho  Ama- 
das, se  não  quando  o  duque  mandou  o  Donzel  ser- 
vir sua  filha  Idoine. 

Et  Amadas  devant  son  pére 
Devant  son  pére,  á  la  table  ere, 
Cui  puis  avint  maint  aventure. 
Li  dus  l'apela  á  droiture, 
Le  mes  li  commande  á  porter 
Sa  belle  filie  et  presenter, 
Qui  tint  á  une  part  sa  feste. 
Com  pucele  haut  geste. 
Li  damoisiaz  bien  ensengniés, 
Comme  courtois  et  afailiés, 
De  cest  message  se  íist  prest. 

(y.  209  a  219.) 

En  Tesgarder  de  la  pucede 
Li  saut  au  cuer  une  estincelle. 
Qui  de  fine  amor  Ta  espris ; 
Já  en  est  tos  mas  e  souspris, 
Et  entres  en  si  grant  effroi, 
Qu'  il  ne  set  nul  conseil  de  soi ; 
Ne  set  s'il  a  joie  ou  doleur 
Ou  amertume,  ou  douccur ; 
Ne  set  se  il  la  vit  ou  non 
Par  songe  ou  par  avision... 

(y.  243  a  252.)   I 

Agora  a  mesma  situação  com  Amadis;  apesar 
do  seu  alto  nascimento,  teve  uma  infância  obscura, 


I  Amadas  et  Ydoine.  Edição  de  Hippeau.  Paris.  1865. 
—  No  Zcitschrift  far  romanischc  Philologie,  vol.  xiii,  p. 
85,  vem  mais  286  versos  de  2  folhas  de  um  pergaminho 
de  Guettingue. — Romania  vol.  xviii,  p.  197. 

<<No  Amadas  et  Ydoine  encontra-se  a  primeira  ideia 
da  scena  do  tumulo,  que  faz  o  desenlace  de  Romeu  e  Ju- 
lieta de  Shakespeare.»  L.  Cladat,  VEpopée  courtoise  (Hist. 
de  la  litt.  franç.  i,  332.) 


PRIMEIRA   época:    edade   média  ^ii 

e  só  pelo  seu  garbo  e  gentileza  é  que  foi  tomado 
pelo  rei  Laiiguinés  de  Escossia  para  a  sua  corte. 
Foi  na  chegada  de  Oriana,  vinda  da  Dinamarca, 
na  festa  que  na  sua  corte  lhe  deu  o  rei  Languinés, 
que  Amadis  viu  e  se  apaixonou  pela  filha  do  rei 
Lisuarte.  Lê-se  na  novella :  nAmadis  tinha  então 
doze  annos,  mas  pelo  seu  corpo  e  pelos  seus  mem- 
bros bem  parecia  ter  quinze;  servia  a  Rainha  e 
era  muito  amado  d'ella  e  de  todas  as  damas  e  don- 
zelias ;  mas  logo  que  alli  chegou  Oriana,  filha  do 
rei  Lisuarte,  a  rainha  deu-lhe  o  donzel  do  mar 
para  a  servir,  dizendo :  —  Amiga,  eis  aqui  um  gar- 
ção que  vos  servirá.  Ella  respondeu:  que  do  seu 
agrado  era.  Esta  palavra  penetrou  de  tal  forma 
o  coração  do  donzel,  que  d'alli  em  diante  nunca 
mais  lhe  sahiu  da  lembrança.  E  nunca,  como  esta 
historia  o  contará,  em  dias  de  sua  vida  se  enfa- 
dou de  a  servir,  e  seu  coração  lhe  foi  sempre  de- 
dicado, e  este  amor  durou  tanto  quanto  ambos  vi- 
veram.» I  Nas  redacções  em  prosa,  que  se  succe- 
deram  tanto  pela  corrente  cyclica  como  pelo  gosto 
do  tempo,  os  innumeros  episódios,  as  historias  ge- 
nealógicas e  os  longos  discursos,  fazem  esquecer 
o  simples  trama,  não  deixando  determinar  as  rela- 
ções com  o  texto  poético  originário  d'onde  proveiu. 

3.a  Phase :  Novella  cyclica  em  prosa.  —  No 
século  XIV  encontram-se  nos  ix)etas  hespanhoes 
numerosas  referencias  á  novella  do  Amadis,  e  este 
nome  torna-se  um  symbolo  e  uma  designação  sym- 


I     Libros  de  Cahellcrias,  p.  30.  (Ed.  Ribad.) 


312  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    PORTUGUEZA 

pathica.  O  rei  D.  João  i,  de  Castella,  poz  a  dois 
dos  seus  cães  os  nomes  de  Ogier  e  de  Amadis;  i 
e  symbolisando  a  fidelidade  instinctiva  do  cão  é 
com  este  nome  representado  nos  monumentos  se- 
pulchraes.  Don  Aurelian  Fernandez  Guerra  desco- 
briu em  um  sepulchro  da  egreja  da  Universidade 
de  Sevilha,  onde  está  representado  um  cavai  lei  ro 
estendido  com  os  pés  encostados  a  um  cão,  um  si- 
gilai da  vasta  popularidade  do  Amadis  em  Hespa- 
nha ;  o  cavalleiro  representa  D.  Lorenzo  Soares 
de  Figueiróa,  avô  do  Marquez  de  Santillana,  que 
fora  Mestre  de  Santhiago  e  servira  nas  amias  sob 
Henrique  iii,  D.  João  i  e  ii  e  faleceu  em  1409; 
tem  aos  pés  o  cão  com  o  nome  de  —  Amadis,  duas 
vezes  inscripto  na  colleira.  2  Era  esta  mesma  pre- 
dilecção que  fazia,  como  conta  Pablo  de  Céspe- 
des, que  o  Amadis  fosse  o  assumpto  de  muitas 
telas  pintadas  no  século  xv.  No  Nobiliário  do 
Conde  D.  Pedro,  bastardo  do  rei  D.  Diniz,  o  nome 
de  Oriana  já  apparece  muito  usado  na  fidalguia 
portugueza,  como  prova  histórica  da  influen- 
cia do  Amadis  em  Portugal  no  principio  do  sé- 
culo XIV.  O  descobrimento  da  Canção  de  Leono- 
reta  pelo  trovador  João  Lobeira,  que  foi  inter- 
calada na  redacção  castelhana,  fundamenta  a  rea- 
lidade histórica  de  uma  primeira  redacção  por- 
tugueza em  prosa  na  corte  de  D.  Diniz,  como  o 
affirmara   Miguel   Leite   Ferreira,   dando  noticia 


1  Milá   y    Fontanals.    Trovadores   cn    Espana,   p.    501, 
not.  6. 

2  Amador  de  los  Rios,  Scvilla  Pintorcsca,  p.  236. 


PRIMEIRA    época:     EDADE     MÉDIA  ^1$ 


do  texto  portuguez  na  casa  do  Duque  de  Aveiro: 
((ua  linguagem  que  se  costumava  neste  reyno  em 
tempo  dei  Rey  D.  Dinis,  que  lie  a  mesma  em  que 
foi  composta  a  historia  de  Amadis  de  Gatda  — 
cujo  original  anda  na  Casa  de  Aveiro.)) 

Ha  ainda  um  outro  facto,  que  leva  a  precisar 
esta  primeira  redacção  portugueza,  que  constava 
aj>enas  de  tre:;  livros,  como  o  declara  o  poeta  do 
Cancioneiro  de  Baena,  Pêro  Ferrús,  que  em  1379 
escrevera  um  Dizer  á  morte  de  Enrique  11. 

i.a  Redacção  portuguesa  (de  João  Lobeira). 
Montalvo,  explicando  o  movei  da  sua  paraphrase 
castelhana  do  Amadis  de  Gania,  falia  «de  los  an- 
tiguos  originales  que  estaban  corruptos  y  com- 
puestos  en  antiguo  estilo  por  falta  de  los  diff cren- 
tes cscriptores...))  Logo  adiante  confirma  a  exis- 
tência de  um  texto  do  Amadis  em  trez  livros,  como 
revelara  Pêro  Ferrús:  «E'  yo  esto  considerando, 
y  deseando  que  de  mi  alguna  sombra  de  memoria 
quedasse,  no  me  atreviendo  á  poner  mi  flaco  in- 
genio  en  aquello  que  los  mas  cuerdos  sábios  se  ocu- 
jjaran,  quiselo  juntar  con  estes  postrimeros  que 
las  cosas  mas  livianas  y  de  menor  sustancia  escri- 
bieron,  por  ser  á  el,  segun  su  flaqueza,  mas  con- 
formes, corrigiendo  estes  três  libros  de  Amadis, 
que  por  falta  de  los  maios  escriptores  ó  compone- 
dorcs  muy  corruptos  ó  viciosos  se  leian...  y  tras- 
ladando y  emendando  el  libro  ciiarto...  que  hasta 
aqui  no  es  memoria  de  ninguno  ser  visto,  etc.» 
:\uthenticada  essa  primeira  redacção  em  três  li- 
2'ros,  que  eram  entremeados  de  Canções  á  maneira 
das  Novellas  da  Matéria  de  Bretanha,  o  trovador 
do  Lai  de  Leonoreta,  João  Lobeira,  pae  de  Vasco 


314  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

de  Lobeira  como  se  sabe  pelo  seu  testamento  de 
1386,  torna-se  assim  o  auctor  do  texto  em  prosa 
do  Ainadis.  Do  estado  do  episodio  de  Leonoreia 
na  redacção  castelhana,  D.  Carolina  Michaèlis  tira 
uma  conclusão:  «O  episodio  é  muito  secundário. 
Mas  por  ventura  feria  mais  desenvolvimento  na 
redacção  primitiva,  cuja  perda  obriga  a  tantas  con- 
jecturas e  discussões.»    (Lais  de  Bret.,  p.  26.) 

O  que  se  deu  com  este  episodio,  tornou-se  mais 
patente  com  o  episodio  da  princeza  Briolanja;  na 
lógica  da  acção,  Amadis  para  não  quebrar  a  leal- 
dade que  sustentava  pela  princeza  Oriana,  tinha 
de  não  acceder  á  ternura  de  Briolanja,  que  se  lhe 
entregara  por  gratidão.  Isto  determinou  uma  re- 
modelação da  novella,  por  determinação  do  In- 
fante D.  Affonso  de  Portugal.  No  texto  caste- 
lhano de  Montalvo  ficou  intercalada  uma  sigla  com 
essa  declaração  interessante.  E'  uma  nótula,  que 
encerra  um  poderoso  argumento  histórico  para 
authenticar  a  origem  portugueza  do  Amadis  de 
Gania:  aatinqne  el  senor  Infante  Don  Alfonso  de 
Portugal,  habiendo  piedad  doesta  fermosa  donzella 
(Briolanja)  de  outra  guisa  lo  mandase  poner.  Bn 
esto  hiso  lo  que  su  mercê  fuc,  mas  no  aquello  que 
en  effecto  de  sus  amores  se  escribia.))  Este  Infante 
D.  Affonso  de  Portugal,  que  mandou  modificar 
o  episodio  era  o  herdeiro  do  throno  de  Dom  Di- 
niz, que  teve  muito  cedo  casa  apartada  (1297), 
e  que  dizia,  segundo  a  Chronica  de  Nunes  de 
Leão :  ^ 

Para  amores  e  revezes 

Ninguém  melhor  que  os  portuguezes. 


r 


PRIMEIRA   kpoca:   edade   media  515 

Na  edição  dos  Poemas  lusitanos  do  Dr.  An- 
tónio Ferreira,  seu  filho  affirma  que  esse  infante 
de  Portugal  er^  effectivamente  o  successor  do  rei 
D.  Diniz.  De  Puymaigre,  reconheceu  que  h  allu- 
são  era  «a  um  princepe  que  foi  rei  sob  o  nome 
de  Affonso  iv,  e  que  nasceu  em  Coimbra  em  1290. 
Este  infante  devia  contar  vinte  annos  em  13 10,  e 
estava  em  edade  de  poder  interessar-se  pela  Brio- 
lanja.»  ^  O  princepe  D.  Affonso  veiu  a  reinar  em 
1325;  por  tanto  desde  1304,  entrado  na  puberda- 
de, podia  ter  compaixão  da  formosa  donzella,  e 
mandar  fazer  o  retoque  na  Novella.  Podia  muito 
bem  João  Lobeira  ir  escrevendo  os  cadernos  do 
Am  adis,  da  mesma  forma  que  fez  João  de  Barros 
com  a  novella  do  Clarimundo,  escripta  aos  ca- 
dernos para  comprazer  com  o  princepe  que  foi  rei 
com  o  nome  de  D.  João  m.  D'aqui  se  infere 
que  já  em  1367  podia  o  Chanceller  Pêro  Lopez  de 
Ayala  citar  o  Am  adis  no  seu  Rimado  de  Palácio, 
mesmo  como  reminiscência  da  sua  mocidade, 
(1355)  sem  comtudo  dar-se  esse  anachronismo 
imaginado  por  D.  Pascoal  de  Gayangos.  No  rei- 
nado de  D.  Affonso  iv  apagou-se  o  interesse  pelo 
lyrismo  trobadoresco ;  quanto  elle  seguia  o  espirito 
cavalheiresco  das  Novellas,  que  dominavam  no 
gosto,  vê-se  no  modo  desinteressado  como  pro- 
cedeu na  batalha  do  Salado.    O  seu  caracter  va- 


I  Vieux  Auteurs  castillans,  11,  183;  corrige  o  erro 
intencional  de  D.  Pascoal  de  Gayangos,  pretendendo  inva- 
lidar a  nótula  com  dizer  gratuitamente  que  já  era  conhecido 
em  Hespanha  o  Amadis  cm  1359,  e  que  D.  Affonso  de  Por- 
tugal ainda  não  era  nascido  em  1370!  (Libros  de  Cahalle- 
rias,  p.  XXIII.) 


3l6  HISTORIA    DA    LITTERATIJRA   PORTUGUEZA 

ronil  e  forte,  quando  infante,  andando  sempre  em 
lucta  contra  seu  pae,  revela-se  na  emenda  que 
mandou  fazer  em  contrario  do  que  dos  amores  de 
Briolanja  se  escrevia:  onde  Amadis  recusava  a 
offerta  do  seu  corpo  excusando-se  com  muitas  la- 
grimas choradas  ix)r  Oriana,  manda  que  lhe  faça 
dois  filhos  de  um  só  ventre! 

Amador  de  los  Rios,  deduz  d'esta  modificação 
ter  existido  uma  redacção  anterior  e  mais  pura: 
((E'  pois  evidente  que  Montalvo  conheceu  uma  re- 
dacção em  que  interviera  D.  Affonso  de  Portugal, 
por  ventura  a  attribuida  a  Lobeira;  porém  tam- 
isem parece  ter  tido  noticia  de  outra,  em  que  se 
conservava  riiais  fielmente  o  caracter  cavalleiresco 
do  Amadis,  que  reconhecia  por  base  capital  a  fi- 
delidade dos  s:us  amores  por  Oriana;  pois  só  com 
este  conhecimento  podia  rejeitar  como  r>^..^"'^.i: -tó- 
rio, sui>erfluo  e  vão,  o  episodio  dos  amores  da 
donzella  Briolanja,  introduzido  na  versão  poitu- 
gueza.))  I  Esta  primeira  redacção  tinha  a  singe- 
leza da  ingenuidade;  a  acção  não  era  complicada, 
seguindo  directamente  para  o  seu  natural  desen- 
lace, subordinada  aos  modelos  conhecidos  da  corte 
de  D.  Diniz,  os  poemas  de  Flores  e  Brancaflor,  e 
de  Tristan;  notou  Amador  de  los  Rios  esta  fei- 
ção, destacando-a  da  redacção  ulterior :  «A  ideia 
geradora  do  Amadis  é  a  fidelidade  do  amor  que 
se  professam  por  toda  a  vida  os  amantes,  fideli- 
dade que  serve  de  purificação  e  de  talisman  para 
vencer  todos  os  obstáculos  e  encantamentos,  como 


JJisi.  critica  de  ia  IJtteratura  cspanoia,  1.  v,  p.  94. 


PRIMEIRA    Época:    edade    média  ^ij 


acontece  na  Ilha  Firme;  esta  ideia  levada  assim 
ao  extremo,  deriva  indubitavelmente  da  historia 
de  Tristan,  e  por  ventura  com  mais  exactidão  de 
Flores  c  Brancaftor,  espelhos  de  enamorados;  e  tão 
clara  é  a  semelhança,  que  não  ha  poeta  do  século 
XIV  que  ao  louvar  a  constância  e  verdadeira  ter- 
nura de  amor,  deixc  de  citar  egualmente,  como 
modelos  aquelles  formosissimos  pares.»  i 

Por  estes  caracteres  separa  Amador  de  los 
Rios  os  trcz  livros  do  Amadis  como  pertencendo 
a  uma  primeira  redacção:  «A  singeleza,  a  exces- 
siva candura  e  infantil  credulidade  que  se  revela 
na  narração  dos  maravilhosos  impossiveis  que 
n'ella  se  accumulam,  a  ingenuidade  nativa  das  des- 
cripções,  e  o  vigoroso  e  ás  vezes  aprazivel  colorido 
que  anima  a  suas  romanescas  scenas...  o  sabor 
archaico  dos  meios  expositivos,  da  dicção  e  da 
phrase,  especialmente  nos  três  primeiros  livros, 
bastante  di  ff  crentes  n'este  ponto  do  ultimo,  que 
não  seria  extranho  a  Garci  Ordoííez  de  Montalvo 
a  antiga  Historia  de  Amadis,  conhecida  e  com 
tanta  frequência  mencionada  pelos  mais  notá- 
veis ix)etas  da  segunda  metade  do  século  xiv.»  - 
O  poeta  Pêro  Ferrús,  em  um  Dizer  dirigido  a 
Pêro  Lopez  de  Ayala,  allegando-lhe  o  exemplo  do 
cavalleiro  Amadis  na  resistência  resignada,  falia 
nos  três  livros  da  celebrada  novella : 

Amadis,  el  nuiy  fermoso, 
las  lliivias  y  las  ventiscas 
nunca  las  fallo  ariscas 


1  Historia  crit.  de  la  Lit.  espahola,  t.  v,  p.  85,  nota. 

2  Ibid.,  t.  V,  p.  94. 


.3l8  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

por  leal  ser  é  famoso : 
sus  proezas   fallaredes 
cn  três  libros,  e  di redes 
que  le  Dios  dé  santo  poso. 

(Canc.  Baena,  i,  p,  322.) 

Além  da  redacção  das  proezas  do  Amadis  em 
//'(\s'  livros,  aqui  authenticada,  também  se  infere 
pelo  Dizer  do  Pêro  Ferrús,  que  a  acção  do  Auia- 
(íis  de  Gaula  não  estava  terminada,  anciando  o 
poeta:  ((Que  le  Dios  de  santo  poso.»  Como  ob- 
serva Amador  de  los  Rios,  a  situação  achava-se  no 
resgate  de  Orianá  do  poder  dos  Romanos,  sendo 
entregue  por  Lisuarte  a  Amadis,  que  vae  a 
caminho  da  Ilha  Firme  esperar  o  termo  d'aqueila 
aventura:  «de  maneira  que  estava  muito  distan- 
ciado Amadis  do  santo  repouso,  a  que  Ferrús  allu- 
dia.»  (Ib.,  p.  93,  not.)  A  matéria  dos  três  livros 
primitivos  acha-se  também  destacando  pela  sua 
unidade  esta  primeira  redacção  da  Novella.  Reco 
nhece  Amador  de  los  Rios,  que  Amadis,  Galaor, 
Florestan,  com  o  intimo  Agrajes,  revelam  uma 
impressão  da  Gesta  dos  Quatro  Filhos  d'Aymon, 
formando  uma  trama  principal :  ((Na  historia  dos 
três  paladinos  de  Gaula  cuja  unidade  assenta  prin- 
cipalmente n'aquelle  laço  do  sangue  (os  três  fi- 
lhos do  rei  Feriou)  liga-se  á  de  Agrajes  modelo 
de  fidelidade  áquelles  três  irmãos  votados  á  gloria 
da  familia  por  um  próximo  parentesco.  Estes 
(juatro  personagens  nos  quaes  insiste  a  acção  da 
Novella,  pertenceram  á  priíneira  redacção  como 
bases  indispensáveis  da  mesma.»  (Op.  cit.,  p.  85.) 
E  ainda  discrimina  os  trcs  livros  do  Amadis  de 
Gaula,  pela  confissão  do  próprio  Montalvo,  que 


PRIMEIRA   época:   edade   média  ^iq 


diz  que  os  corrigiu  e  ejiiendotí,  e  declarando  ter 
fraduaido  o  quarto  livro. 

Vê-se  d  aqui  que  ainda  se  não  tinha  entrado 
na  grande  elaboração  cyclica,  encadeando  episó- 
dios colhidos  das  variadas  Novellas,  para  compli- 
car as  aventuras  cavalheirescas;  essa  phase  litte- 
raria  é  que  determinou  a  remodelação  e  amplia- 
ção do  quarto  Livro  do  Amadis  de  Gaula. 

2. a  Redacção  portuguesa  (Vasco  de  Lobeira.) 
Sente-se  através  das  ingénuas  narrativas  um  pru- 
rido de  apropriação  e  de  referencias  ás  novellas 
do  grande  cyclo  da  Tavola  Redonda.  Observa 
Amador  de  los  Rios  este  caracter  que  a  Novella 
appresenta  principalmente  no  quarto  livro  do  Ama- 
dis: «as  citações  e  allusões  expressas  que  encon- 
tramos no  Amadis,  taes  como  as  que  se  referem 
ao  Santo  Graal,  a  Tristão  e  Lanceio t,  contidas  no 
quarto  livro,  accrescentado...  dá-nos  o  auctor  co- 
nhecimento desde  as  primeiras  paginas,  de  que  era 
familiar  da  historia  =  do  muy  virtuoso  Rei  Ar- 
thur,  que  foi  o  melhor  rei  dos  que  alli  (em  Bre- 
tanha) reinaram  =  reflectindo-se  no  pensamento  e 
composição  de  toda  a  ol^ra  o  mesmo  conhecimento 
dos  outros  livros  cavalheirescos.»  A  corte  do  Rei 
Lisuarte  é  remodelada  segundo  a  do  bom  Rei  Ar- 
thur;  Archeláo,  o  maligno  Encantador  é  como 
Tablante  de  Ricamonte  no  poema  de  Jofre  y  Bru- 
ncsinda;  o  episodio  de  Briolamja  é  mui  seme- 
11; ante  ao  da  rainha  Conduiramor  no  Percival,  ^ 


I  Lê-se  na  Romania,  vol.  vii,  p.  151,  dando  conta  da 
critica  allemã :  ^^O  episodio  de  Briolanja  é  tomado  do  ro- 
mance francez  de  Ãgravain.'^ 


3^0  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 


assim  como  o  reconhecimento  de  Amadis  e  Galaor 
egual  ao  de  Feravis  e  Percival.»  (Ih.,  p.  86.)  Era 
este  o  processo  cyclico,  que  foi  geral  na  litteratura 
novellesca,  a  que  pertence  a  elaboração  detemii- 
nada  pela  alteração  dos  amores  de  Briolanja,  feita 
por  Vasco  de  Lobeira  no  esboço  de  seu  pae.  Foi 
este  texto  o  que  Montai vo  conheceu  e  ampliou 
no  fim  do  século  xv,  notando  a  sua  incongruência, 
condemnando-o  como  alheio  ao  plano  da  Novella : 
((Todo  lo  que  mas  desto  en  este  libro  primero  se 
dice  de  los  amores  de  Amadis  y  d'esta  hermosa 
reyna  (Briolanja)  fué  acreccntado,  como  ya  se 
os  dijo;  é  por  esso,  como  supérfluo  c  vano  se  de- 
jará  de  recontar,  pues  no  hace  ai  caso;  antes  esto 
no  v:rdadero  contradiria  é  danaria  lo  que  con 
nias  razon  esta  grande  historia  adelante  contará.» 
(Libr.  de  CabalL,  p.  103.)  Como  é  que  Montalvo 
poderia  condemnar  este  episodio  de  Briolanja,  ex- 
pungil-o,  e  ao  mesmo  tenipo  prometter  des- 
envolvel-o  no  quarto  livro,  como  declara:  «Esto 
lleva  mas  rason  de  ser  creida,  porque  esta  fre- 
mosa  reyna  (Briolanja)  casada  fué  con  Galaor, 
como  el  quarto  libro  lo  cuenta.»?  Como  é  que  o 
rbetorico  Montalvo  podia  reprovar  este  episodio  e 
tornar  a  alludir  a  elle  no  fim  do  livro  segundo,  na 
scena  em  que  Oriana  e  Briolanja  conversam  acerca 
de  Amadis,  e  em  que  esta  lhe  dá  conta  como  teve 
d'elle  dois  filhos?  D'aqui  se  vê  que  Montalvo  não 
pôde  apagar  completamente  na  sua  redacção  cas- 
telhana o  caracter  do  antigo  texto  ix)rtuguez,  que 
os  poetas  do  Cancioneiro  de  Baena  conheceram 
nos  primeiros  annos  do  século  xv,  na  forma  que 
lhe  deu  Vasco  de  Lobeira.    Transparecendo  atra- 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MEDIA  32I 

vés  d'estas  contradicçÕes,  Montalvo,  preoccupado 
com  a  amplificação  rhetorica,  tão  característica  do 
fim  do  século  xv,  não  comprehendeu  o  nexo  entre 
a  mesma  situação  do  primeiro  e  do  segundo  livro. 
Braunfels  n'um  pretendido  Estudo  critico  sobre 
o  Amadis  de  Gaida,  (Leipzig  iSjó)  para  negar  a 
origem  portugueza  d'esta  novella,  diz  que  não 
achou  no  fim  do  livro  segundo  a  situação  da  con- 
fissão dos  amores  de  Briolanja,  de  que  nasceram 
os  dois  filhos.  Mas  lá  está  o  sentido,  implicito 
n'estas  palavras  :  «Assi  estuvieron  ambas  de  consu- 
no  con  mucho  plazer  hablando  en  las  cosas  que  mas 
le  agradaban,  é  contando  Briolanja  entre  otras 
cosas  por  mas  principal  lo  que  Amadis  per  ella 
federa,  c  como  le  amaba  de  coraçon.))  O  que 
Briolanja  contou  era  de  natureza  que  exigia  um 
inviolável  segredo :  «Mas  quiero  que  vejais  lo  que 
en  esto  me  acontecio,  c  guardadlo  en  pnridad,  como 
tal  senora  guardalo  debe;  que  yo  lo  acometi  esto 
{|ue  agora  dejistes,  é  probé  de  lo  haber  pêra  mi  en 
casamiento,  de  que  sempr?  me  occurre  verguensa 
cíiando  á  la  memoria  me  torna.y)  (Ed.  Rib.,  p 
15 1.)  Que  segredo  era  este,  e  que  motivo  de  ver- 
gonha tinha  Briolanja  ao  reconhecer  que  Amadis 
pela  sua  fidelidade  a  Oriana  a  não  quiz  desposar, 
se  não  o  facto  de  haver  o  cavalleiro  accedido  aos 
desejos  d'ella,  de  que  resultaram  dois  filhos.  '\ 
refutação  de  Braunfels  é  capciosa,  por  que  cin- 
gindo-se  materialmente  á  letra,  exime-se  á  intel- 
ligencia  do  texto. 

O  episodio  de  Briolanja,  impressionando  os 
poetas  do  século  xvi,  em  Portugal,  deu  azo  a  que 
se  conservasse  uma  positiva  affirmação  histórica 

21 


322  HISTORIA   DA   I.ITTERATURA   PORTUGUEZA 


da  origem  portugueza  do  Am  adis  de  Gaula.  O 
Dr.  António  Ferreira,  tendo  começado  a  coorde- 
nar os  seus  Sonetos  em  1557  na  collecção  intitu- 
lada Poemas  hisitanos,  no  Soneto  34  do  i.o  livro 
escripto  em  linguagem  antiga,  trata  da  anecdota 
dos  amores  de  Briolanja: 


Bom  Vasco  de  Lobcira  e  de  gram  sen 
De  pram  que  vós  avedes  bem  tratado 
O  feito  de  Amadis,  o  namorado 
Sem  quedar  ende  per  contar  hi  rem 


O  nome  de  Vasco  de  Lobeira,  como  auctor  do 
Amadis  de  Gaula  apparece  pela  primeira  vez  ci- 
tado por  Azurara,  na  Chronica  do  Coíide  D.  Pe- 
dro de  Menezes,  que  ficou  inédita  até  1792;  e  tam- 
bém nas  Antiguidades  de  Anfre  Douro  e  Minho 
pelo  Dr.  João  de  Barros,  que  ainda  estão  inéditas : 
por  tanto  o  Dr.  António  Ferreira  leu  o  texto  por- 
tuguez.  Pela  sua  morte  na  peste  grande  de  1569. 
ficaram  os  Poemas  lusitanos  inéditos  até  1598,  em 
que  seu  filho  Miguel  Leite  Ferreira  lhes  deu  pu- 
Ijlicidade.  No  verso  do  frontispicio,  entre  algu- 
mas linhas  de  erratas,  accrescentou  o  filho  do  poe- 
ta esta  explicação:  «Os  dous  Sonetos,  que  vão  a 
íl.  24  fez  meu  pae  na  linguageni  que  se  costumara 
neste  reyno  em  tempo  dei  R:y  D.  Diniz,  que  he 
a  mesma  em  que  foi  composta  a  historia  de  Ama- 
dis DE  Gaula  por  Vasco  de  Lobeira,  natural  da 
cidade  do  Porto,  cujo  original  anda  n-a  Casa  de 
Aveiro.  Divulgaram-se  em  nome  do  Infante 
D.  Affonso,  filho  primogénito  dei  Rey  D.  Diniz, 
por  quam  mal  este  princepe  recebera  (como  se  vê 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  323 

da  mesma  historia)  ser  a  fermosa  Briolanja  em 
seus  amores  maltratada.» 

A  importância  d'este  documento  é  capital.  O 
pae  do  poeta  quinhentista,  Martim  Ferreira,  era 
vedor  da  fazenda  de  Dom  Jorge,  Duque  de  Coim- 
bra, cujo  titulo  fora  mudado  pelo  rei  D.  Manoel 
para  o  de  Duque  de  Aveiro.  Era  fácil  ao  poeta 
vêr  esse  manuscripto  do  Amadis  original,  conser- 
vado na  Casa  de  Aveiro;  o  Dr.  António  Ferreira 
era  amigo  intimo  do  Duque,  para  ter  fácil  accesso 
á  sua  livraria;  bastava  o  herdeiro  do  duque  ser 
também  poeta,  como  se  vê  pelos  Poemas  lusitanos, 
para  se  communicarem  estas  amenidades  littera- 
rias.  Na  Ode  iii,  na  Écloga  xii,  na  Carta  v  e 
IX,  vê-se  quão  intimo  amigo  foi  o  Dr.  António  Fer- 
reira de  D.  João  de  Lencastre,  filho  do  Duque  de 
Aveiro;  o  seu  poema  de  Santa  Comba  dos  Valles 
é  dedicado  a  D.  Jorge,  Marquez  de  Torres  Novas 
e  a  seu  irmão  D.  Diniz,  filhos  do  velho  Duque. 
Viviam  em  perfeita  communhão  intellectual ;  isto 
justifica  como  Miguel  Leite  Ferreira,  sempre  esti- 
mado na  Casa  de  Aveiro  podia,  ainda  em  1598, 
a f firmar  de  visu  que  o  original  do  Amadis  an- 
dava na  Casa  de  Aveiro.  Contra  este  documento 
positivo,  D.  Pascual  de  Gayangos  no  seu  Dis- 
curso sobre  as  Novellas  de  Cavalleria,  para  refutar 
a  origem  portugueza  só  teve  um  meio  —  a  nega- 
ção da  existência  da  nota  de  Miguel  Leite  Fer- 
reira no  exemplar  dos  Poemas  lusitanos  de  1598! 
Demais,  D.  Nicoláo  António,  (em  1684)  "a  sua 
Bibliotheca,  referindo-se  ao  original  conservado  na 
Casa  de  Aveiro,  confessa  ter  visto  a  nota  dos 
Poemas  lusitanos:     «Hujus  autographum   lusita- 


324  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


num  extare  penes  Dynastas  Aveirenses  notatum 
inveni  in  qiiadam  nótula,  quse  post  Antonii  Fer- 
rei rse  Lusitani  poetse  opera  edita  est.»  ^ 

Como  refuta  Gayangos  a  auctoridade  do  ce- 
lebre bibliographo?  Considerando  a  affirmativa 
como  alludindo  a  uma  sigla  manuscripta  de  um 
qualquer  curioso!  Eis  as  próprias  palavras,  que 
serão  sempre  uma  vergonha  contra  o  critério  de 
Gayangos :  «La  nota  attribuida  ai  hijo  de  Fer- 
reira, con  que  se  pretende  probar  la  existência  dei 
manuscripto  original  en  el  palácio  de  los  Duques 
de  Aveiro,  y  la  que  se  asegura  puso  igualmente  ai 
Soneto  relativo  ai  incidente  de  Briolanja  no  se  hal- 
lan  en  la  edicion  de  tjçS,  única  antigua  que  se 
conoce  de  los  Poemas  lusitanos.  Anadidas  poste- 
riormente en  la  reimpresion  de  los  Poemas  hecha 
cn  T772,  son  obra  de  Editor  moderno  y  no  dcl 
hijo  de  Ferreira.  El  testimonio  queda  pues,  redu- 
eido  á  la  simples  asercion  de  Don  Nicolas  António, 
quien  sin  duda  vió  algun  ejemplar  con  una  nota 
marginal  y  manuscripta  de  lector  ocioso  y  autor 
descíMiocido,  puesto  que,  á  'ser  hijo  de  Ferreira, 
este  la  hubiese  intercalado  en  el  texto  impresso.» 

Não  ha  n'isto  só  a  impudência  da  má  fé,  ha 
também  a  ignorância  voluntária:  Gayangos  ima- 
ginou duas  notas,  e  ao  mesmo  tempo  que  uma 
trellas  devia  estar  junto  dos  Sonetos  archaicos,  c 
que  a  outra  era  manuscripta  escripta  á  margem 
por  um  curioso.  Isto  que  elle  inventa,  é  o  que 
refuta,  com  um  argumento  da  inintelligencia  do 


I     Bibl  J^cfus,  t.  II,  lib.  7,  cap.  7. 


PRiMiíiRA   ^poca:    edade    média  325 

prologo  escripto  pelo  erudito  académico  Pedro 
José  da  Fonseca  á  edição  dos  Poemas  lusitanos 
de  1772,  onde  no  seu  estudo  biographico  trans- 
creve as  linhas  das  erratas  do  exemplar  de  1598 
com  a  informação  histórica  do  filho  do  Dr.  An- 
tónio Ferreira,  i 

O  documento  mais  antigo  qui  cita  o  nome  de 
Vasco  de  Lobeira  como  auctor  de  Amadis  de  Gan- 
ia, é  de  1454,  a  Chronica  do  Conde  D.  Pedro  de 
Meneses  (cap.  63)  escripta  pelo  chronista  do  reyno 
Gomes  Eannes  de  Azurara.  Eis  o  texto  authen- 
tico :  ((Estas  cousas,  diz  o  Commentador,  que  pri- 
meiramente esta  Istoria  ajuntou  e  escreveo,  vão 
assy  escriptas  pela  mais  chã  maneira  que  elle  pôde, 
ainda  que  muitas  leixou,  de  que  se  outros  feitos 
menores  que  aquestos  poderam  fornecer... ;  ou  seja 
que  muitos  auctores  cubiçosos  de  alargar  suas 
obras,  forneciam  seus  livros  relatando  tempos  que 
os  Princepes  passavam  em  convites,  e  assy  festas  e 
jogos,  e  tempos  alegres,  de  que  se  nom  seguia  outra 
cousa  se  nom  a  deleitaçam  d'elles  mesmos  assi 
como  sam  os  primeiros  feitos  de  Ingraterra  que 
se  chamava  Grani  Bretanha,  e  assi  o  Livro  d'A- 
MADis,  como  que  somente  este  fosse  feito  a  pra- 
zer de  um  homem  que  se  chamava  Vasco  de  Lo- 


I  A  bronca  comprehensão  de  D.  Pascual  de  Gayangos 
deu  a  seguinte  conclusão  lógica  de  Amador  de  los  Rios : 
^'pero  como  observa  Don  Pascual  de  Gayangos,  no  exis- 
t lendo  la  dicha  nota  en  la  edicion  de  1598,  y  hallandose  en 
la  reimpression  hecha  en  1772,  hay  razon  para  creer  que 
fué  posta  después  y  carece  por  tanto  de  la  autoridad  que 
se  le  ha  attribuido.'^  Hist.  crit.  de  la  Litteratura  espanola,  t. 
V.  p.  83. 


320  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

beira,  em  tempo  d 'El  Rei  Don  Fernando,  sendo 
todalas  cousas  do  dito  Livro  fingidas  do  Au- 
cfor...»  I  Azurara  referia-se  ao  grande  Cyclo  Ar- 
thuriano,  c|uasi  todo  conhecido  pelos  exemplares 
guardadas  na  Bibliotheca  do  rei  D.  Duarte,  e  ao 
texto  único  do  Amadis  de  Gaida,  que  devera  exis- 
tir na  Livraria  de  D.  Af fonso  v,  de  quem  o  chro- 


I  Braunfels,  no  Kritischcr  Vcrsuch  nbcr  dcn  Roman 
Amadis  vou  Gallicn,  pretendeu  invalidar  o  texto  de  Azu- 
rara, esforçando-se  com  subtilezas  para  provar  que  esta 
parte  do  capitulo  63  em  que  Azurara  se  refere  ao  Livro 
Jr  A)nadis  é  interpolada  e  apocrypha  !  E  o  critico  D.  Juan 
Valera,  como  bom  castelhano  accerta  como  ouro  de  lei  esse 
latão  germânico:  ^^El  principal  esfuerzo  y  trabajo  dei  Dr. 
Braunfels  tira  a  demonstrar  que  todo  el  passaje  ó  parrafo 
que  dicha  noticia  era  incluida  fue  nota  marginal  en  algun 
Códice  de  Zurara,  interpolada  lucgo  ó  adrede,  ó  per  des- 
cuido en  el  texto  de  la  obra.^^  (La  Academia,  vol.  11,  p.  34.) 
Braunfels  desconhece  a  historia  externa  do  texto  da  Chro- 
nica  do  Conde  D.  Pedro  de  Menezes,  que  a  Academia  real 
das  Sciencias  imprimiu  em  1792  no  seu  estado  authentico, 
sem  interpolações,  e  em  uma  época  em  que  o  Amadis  de 
Cniula  estava  totalmente  esquecido.  Braunfels  também  igno- 
ra, que  Azurara  escrevendo  essa  Chronica  se  serviu  de 
memorias  particulares,  a  que  segundo  a  erudição  do  sé- 
culo XV  se  chamavam  Commentarios.  Assim  as  phrases: 
^4ístas  cousas  diz  o  Commentador,  que  primeiramente  esta 
historia  ajuntou... ^^  querem  dizer,  que  servindo-se  Azu- 
rara de  memorias  particulares,  quando  trata  das  qualida- 
des domesticas  do  Conde  D.  Pedro  de  Menezes,  pouco 
encontrou,  porque  esses  Commentarios  estavam  escriptos 
de  uma  maneira  chã,  narrando  apenas  feitos  gloriosos  não 
se  occupando  com  as  descripções  de  festins  e  outras  sum- 
ptuosidades  principescas.  Braunfels  imaginou  que  Com- 
mentador significa  um  annotador  ou  glosador  de  um 
texto  definitivo,  e  por  isso  julgou  invalidar  o  texto  de 
Azurara  pela  phantastica  fusão  com  um  glossa ! 

Lemke  considera  como  um  grave  erro  de  Braunfels 
a  negação  da  existência  de  um  texto  portuguez  do  Amadis. 
(Romania,  vol.  vi,  p.  475-) 


PRIMEIRA     KPOCA  :     EDADE     MEDIA 


nista  era  bibliothecario;  ^  e  infere-se  isto,  por  que 
o  original  da  Novella  veiu  á  posse  da  Casa  de 
Aveiro,  do  Duque  D.  Jorge  de  Lencastre,  bas- 
tardo de  D.  João  1 1 ,  ao  qual  foi  dedicado  um  dos 
ramos  cyclicos  do  Amadis  de  Gaula,  intitulado 
Lisuarte  de  Grécia.  Ha  no  testemunho  de  Azu- 
rara um  dado  chronologico,  quando  diz  que  Vasco 
de  Lobeira  florescera  a^;;?  tempo  dei  Rey  Dom 
Fernando.))  Precisa  perfeitamente  a  época  de 
1367  a  1383,  em  completa  concordância  com  a  sua 
filiação  do  trovador  João  Lobeira,  e  em  condi- 
ções de  transformar  e  ampliar  o  plano  da  No- 
vella cyclicamente ;  e  concilia-se  admiravelmente 
com  o  que  escreve  Duarte  Nunes  de  Leão  tra- 
zendo o  nome  de  Vasco  de  Lobeira  na  lista  dos 
que  foram  feitos  cavalleiros  depois  da  batalha  de 
Aljubarrota  em  1384.  Fixada  essa  época  por  Azu- 
rara, temos  também  restituida  a  comprehensão 
histórica  das  referencias  á  Novella  do  Amadis  de 
Gaula  pelos  poetas  hespanhoes  do  fim  do  século 
XIV.  Comecemos  pelo  Chanceller  Pêro  Lopez  de 
Ayala,  que  esteve  •  prisioneiro  em  Portugal  com 
os  vencidos  de  Aljubarrota;  refere  elle,  no  seu 
Rimado  de  Palácio,  escripto  no  seu  desterro  em 
Inglaterra  em  1367,  que  o  deliciava  na  sua  mo- 
cidade : 

oyr  mucbas  vegadas 

Libros  de  devaneos  et  mentiras  probadas, 
Amadis,  Lançarote  et  burlas  assacadas... 


I  O  insigne  cosmographo  Visconde  de  Santarém  con- 
siderou que  todas  as  obras  citadas  por  Azurara  nas  suas 
Chronicas  pertenciam  á  Livraria  real,  de  que  elle  era  bi- 
bliothecario. 


328  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


A  sua  mocidade  coincide  com  a  eixx:a  em  que 
o  lyrismo  trobadoresco  estava  destituído  pela  pai- 
xão das  Novellas  de  aventuras;  e  n'esta  transfor- 
mação litteraria  ainda  a  lingua  portugueza  era 
cultivada  em  Castella,  podendo  ser  lido  o  Livro 
dç  AniadiSj  na  redacção  de  João  Lobeira  ou  na 
remodelação  de  seu  filho  Vasco  de  Lobeira,  desde 
1360,  em  que  Ayala  já  toma  parte  nos  distúrbios 
de  Castella.  A  Pêro  Lopez  de  Ayala  se  dirigiu 
o  poeta  Pêro  Ferrús,  apontando-lhe  a  abnegação 
de  Am  adis,  como  se  conta  nos  trcs  livros  das  suas 
proezas.  Mas  este  poeta,  alludia  nos  seus  versos 
ás  façanhas  de  Enrique  1 1  e  as  suas  victorias  em 
Portugal  sobre  el-rei  D.  Fernando: 

No  dexó  per  lavajal 
de  llegar  hasta  Lisbona, 
é  onrró  la  sua  corona 
três  veces  en  Portugal. 

(Canc.  Baena.  i,  323.) 

Referia-se  Pêro  Ferrús  á  morte  de  Enrique  1 1 
em  1379,  e  por  tante)  a  sua  poesia  ao  Chanceller 
Ayala  morto  em  1407,  precisa-nos  htm  quando 
foi  escripta.  Por  tanto  a  allusão  ao  Amadis  entre 
1379  c  1407,  concorda  plenamente  com  a  época 
da  vulgarisação  da  Novella  portugueza  em 
llespanlia.  Gayangos  servindo-se  das  referencias 
d'esses  trovadores  -do  Cancioneiro  de  Baena, 
força  a  verdade  recuando  a  data  das  suas  com- 
13<:)siçÕes,  ([ue  á  mais  simples  leitura  se  verifica 
que    foram    escriptas    depois    de    1406.     Julgava 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  329 

assim   invalidar   a   redacção   portugueza.     A   pri- 
meira citação  do  Ainadis  é  de  Fray  Miguel:  • 

Amadis  aprés, 

Tristan  é  Galas.  Lançarote  dei  Lago, 
é  otros  aqnestos,  decitme  qual  drago 
trago  todos  estos,  é  dellos  que  és. 

(Canc.  de  Baena,  i,  46.) 

Na  rubrica  que  acompanha  esta  poesia  lê-se  a 
sua  data  de  1406:  «Este  Dezir  fizo  fray  Miguel 
de  la  Orden  de  Sant  Jeronymo,  capellan  dei  onr- 
rado  obispo  de  Segóvia  Don  Juan  de  Tordesyllas, 
quando  fino  el  dicho  senor  rey  Don  Enrique  en 
Toledo...»  Em  uma  poesia  de  Affonso  Alvares 
de  Villasandino,  em  uma  rubrica  determina  com 
rigor  esta  data  do  Dizer  de  Fray  Miguel :  «quan- 
do el  dicho  seííor  rey  don  Enrryque  íinó  en  To- 
ledo, el  domingo  de  navidat  ^  dei  ano  de  mil  e  qua- 
tro cientos  c  sycte.))  (Ih.,  i,  p.  38.)  O  trovador 
Micer  Francisco  Imperial,  cantando  o  nascimento 
de  D.  Juan  it,  desejava-lhe  mais  felizes  amores: 

Que  los  de  Paris  et  los  de  Vyana, 
Et  de  Amadis  et  los  de  Oriana 
Rt  que  los  de  Rlancaflor  et  Flores. 

(Canc.   Baena,   i,  204.) 

A  rubrica  inicial  que  acompanha  esta  poesia 
declara  que  fora  escripta  em  1405.  «Este  Decir 
tizo  é  ordeno  micer  Francisco  Imi>erial...  ai  nas- 


I  Como  o  anno  novo  se  contava  da  noite  de  natal  em 
diante,  conclue  sr  que  o  rei  Henrique  11 1  morreu  ainda 
em  1406. 


330  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    PORTUGUEZA 

ciniiento  de  nostro  sefuji-  el  rey  Don  Juan,  quando 
nasció  en  la  cindat  de  Toro,  afio  de  MCCCCVo..,)) 
Por  occasião  (Keste  nascimento,  a  rainha  D.  Ca- 
terina  mandou  fazer  um  torneio  em  Valladolid, 
e  n'elle  entraram  alguns  cavalleiros  portuguezes, 
como  se  vê  por  este  Dizer  de  Ferrant  Manoel  de 
Lando : 

De  dentro  de  Portugal 
vino  un  noble  cavallero 
Fernando   Portocarrero... 

Estas  communicações  indicam  como  as  Xo- 
vellas  portuguezas  passavam  a  Castella.  No  Mar 
de  Historias  de  Fernan  Perez  de  Gusman,  aponta- 
se  a  Dcinanda  do  Santo  Graal  como  não  estando 
ainda  em  castelhano:  «Esta  historia  non  se  falia 
en  latiu,  sinon  cu  jianccz,  é  dizese  que  algunos 
nobles  la  escrivieron.»  (Cap.  xc\a.)  N'este  fim 
do  século  XIV  já  se  achava  paraphraseada  em  por- 
tuguez  a  Demanda  do  Santo  Graal,  achada  em 
Viena  ao  fim  de  cinco  séculos  da  ruina  do  nosso 
grande  espolio  mediévico.  Em  outra  passagem  de 
Micer  Imperial  refere-se  aos  elementos  generati- 
vos do  Am  adis: 

Et  otrosy  de  Tristan 

Que  fencsció  por  amores, 

De  Amadis,  et  Blanca  et  Flores... 

O  poeta  Villasandino  aponta  o  rei  Lisuarte, 
pae  de  Oriana,  como  o  espelho  de  cavalleiros : 

si  le  comple  sufrir 

Fasta  que  el  grant  Lisuarte 
Se  faga  rey  ó  le  farte. 


PRIMEIRA    época:    edade    media  331 


Ainda  se  encontra  uma  outra  referencia,  a  um 
personagem  da  Novella  de  Amadis;  é  em  um  Di- 
zer de  Ferrant  Manoel  de  Lando  «declarando  a 
la  dicha  coronacion  en  Saragoça:  (1414. ) 

Pues  que  tengo  otro  sentir 
quiso  ser  con  gran  razon 
el    segundo    Mocandon... 

Como  se  lê  pela  lista  dos  Cavalleiros  armados 
em  Aljubarrota,  em  que  Vasco  de  Lobeira  figura 
sendo  já  muito  velho,  quiz-se  vêr  no  personagem 
de  Mocandon  armado  cavalleiro  em  provecta  eda- 
de, uma  representação  do  novellista  a  si  próprio ; 
as  noticias  biographicas  apontam  a  sua  morte  por 

1403- 

O  trabalho  de  Vasco  de  Lobeira  não  ficara 
terminado  no  quarto  livro  do  Amadis  de  Gania: 
ahi,  f|uando  Amadis  gosava  os  seus  amores  na 
Ilha  Firme  com  Oriana  e  seu  filho  Esplandian, 
chega  a  noticia  da  terrivel  aventura  do  Rei  Li- 
suarte  ter  cabido  debaixo  do  poder  do  Encantador 
Archelaus.  Os  amigos  e  alliados  que  vão  á  Ilha 
Firme  levar  a  sinistra  nova  offerecem-se  a  Oria- 
na para  lhe  irem  libertar  o  rei  seu  pae;  mas  Es- 
plandian é  armado  cavalleiro  para  ir  iniciar  as 
suas  cmprezas  heróicas  pelo  resgate  do  seu  avô. 
Vê-se  que  o  quarto  livro  não  continha  o  quadro 
completo  da  Novella,  promettendo  o  auctor  con- 
tinuar essas  façanhas  alludindo  ás  aventuras  de 
Leonorina,  filha  do  Imperador  da  Grécia.  Por 
certo  a  novella  ficou  interrompida  no  quarto  livro 
pelo  falecimento  de  Vasco  de  Lobeira  em   1403. 

Gayangos  e  Vedia,  nas  notas  á  sua  traducção 


332  HISTORIA    DA    LITTÊRATURA    PORTUGUEZA 


(la  Historia  da  Lifteratura  hespanhola  de  Ticknor, 
escrevem :  «ha  rasÕes  muito  poderosas  para  crer 
que  o  quarto  livro  foi  accrescentado  posterior- 
mente á  obra,  se  não  pelo  mesmo  Montalvo,  ao 
menos  por  algum  escriptor  cujos  originaes  vieram, 
a  parar  ás  mãos  d'este.))  (Op.  cit.,  t.  i,  p.  520.) 
Reconhecem  as  differenças:  «o  caracter  e  assum- 
pto do  quarto  livro,  no  nosso  modo  de  vêr,  é  mui 
diverso  dos  três  livros  primeiros,  embora  n'elle 
se  pinte  Amadis  mais  como  um  rei  sábio  gover- 
nando com  justiça  os  seus  estados  e  recebendo  em- 
baixadas dos  outros  reis,  do  que  um  cavalleiro  an- 
dante.» (Ib. )  Também  Ticknor  reconheceu  no 
quarto  livro  do  Amadis  um  facto,  que  lhe  serve 
de  differenciação:  lamenta-se  o  auctor  no  quarto 
livro,  capitulo  53,  das  perturbações  sociaes  que  se 
estavam  passando.  Observa  o  historiador  ameri- 
cano, que  esta  circumstancia  não  podia  referir-se 
ao  reinado  dos  reis  catholicos  Fernando  e  Isabel : 
(Hist.  litt.  esp.,  t.  I,  p.  239)  e  effectivamente  essas 
prolongadas  perturbações  deram-se  entre  o  rei 
D.  Diniz  e  seu  filho  o  princepe  D.  Affonso;  entre 
este  quando  rei  com  seu  filho  Dom  Pedro  i,  cujo 
reinado  foi  de  incertezas  è  violências;  e  ainda  os 
tempos  de  D.  Fernando  em  lucta  com  Enrique 
de  Trastamara,  até  a  revolução  de  Lisboa  e  ba- 
talha de  Aljubarrota,  em  que  Vasco  de  Lobeira 
tomara  parte.  E  esta  allusão  vem  revelar-nos  essa 
fácula  tenebrosa,  que  decorre  do  fim  do  reinado 
de  D.  Affonso  iv  até  ao  de  D.  João  11,  de  uma 
esterilidade  na  litteratura  portugueza. 

3.-1  Terceira  redacção  portugueza  (Pedro  Lo- 
beira.)   Sem  alterar  o  plano  fundamental  da  no- 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  T,Ò3 

vella,  o  conhecimento  de  outras  composições  cava- 
lheirescas obrigava  a  incorporar-lhe  os  surprehen- 
(lentes  episódios  que  mais  suscitavam  a  imagina- 
ção. Montalvo  no  prologo  da  sua  paraphrase  cas- 
telhana falia  de  aios  antiguos  originales . . .  de  los 
differ entes  escriptores.,.))  Isto  leva  a  considerar 
essa  tradição  conservada  por  Jorge  Cardoso,  no 
Agiologio  lusitano  (t.  i,  410)  de  que  o  Infante 
D.  Pedro,  o  que  correu  as  Sete  partidas  do  mundo, 
pedira  a  Pedro  Lobeira,  escrivão  em  Elvas,  para 
fazer  algumas  modificações  no  Amadis  de  Gaula.  i 
Pôde  a  tradição  ser  rejeitada  como  facto, con- 
creto, mas  é  certo  que  na  corte  de  D.  João  i  foram 
conhecidas  as  novellas  inglezas  como  o  revela  a 
Confissão  do  Amante  de  Gower,  traduzida  para 
portuguez  por  Roberto  Payno,  e  que  foi  parar  á 
Bibliotheca  do  Escurial ;  e  essas  fontes  até  ahi  igno- 
radas vieram  avivar  os  estimules  esgotados  das 
Novellas  francezas,  taes  como  as  Viagens  de  San 
Brendan,  que  Azurara  cita.  na.  Ch7'onica  da  Conquis- 
ta da  Guiné  como  aproveitadas  pelos  nossos  primei- 
ros navegadores ;  a  ilha  encantada  de  Barontus,  as 
prophecias  do  sábio  Merlin,  ou  as  Fabulas  de 
Ysopct    II    de    Walter    o    Inglez.     Houve    uma 


I  Sc  ha  algum  fundamento  na  interpretação  do  Ama- 
dis de  Gaula,  achando  ahi  allusões  ás  luctas  dos  Planta- 
j,aMietas  e  á  morte  do  arcebispo  Thomaz  de  Cantorbery,  em 
que  occupara  José  Gomes  Monteiro  os  seus  processos  com- 
parativos, seria  esta  parte  da  historia  da  Inglaterra  intro- 
duzida n'esta  terceira  redacção  portugueza  da  novella  pelo 
influxo  do  Infante  D.  Pedro.  Bernardo  Tasso,  que  tra- 
duziu o  Amadis  de  Gaula  da  redacção  castelhana,  consi- 
derava-o  de  origem  ingleza, 


334  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

recrudescência  de  enthuziasmo  cavalheiresco  na 
corte  de  D.  João  i.  As  tradições  britonicas  con- 
servadas até  ao  século  xii  no  seu  confinamento 
insular,  estimulo  d'essa  raça  vencida  contra  a 
raça  invasora  dos  Saxões,  tinham-se  dif fundido  na 
Europa  por  via  do  successo  histórico  do  trium- 
pho  dos  Normandos  sobre  os  Saxões  odiados; 
esta  corrente,  veiu  reflexamente  acordar  as  tradi- 
ÇÕ3S  da  Bretanha  continental,,  combatida  também 
pela  intolerância  dos  dogmas  catholicos,  fortifi- 
cando-se  pelo  enthuziasmo  das  lendas  insulares. 
A  redacção  litteraria  de  Robert  Wace,  no  Ro- 
inan  de  Briit,  suppriu  a  transmissão  oral,  sendo 
lido  na  vida  sedentária  das  cortes  com  a  predile- 
cção crescente  que  ia  faltando  ás  Gestas  Carlin- 
gias.  A  importância  social  da  mulher,  exaltada 
pelo  lyrismo  trol)adoresco,  radicava  o  interesse 
pelas  novellas  de  aventuras  da  Tavola  Redonda, 
servindo  de  elemento  histórico  para  a  redacção 
synthetica  das  Chronicas  e  para  as  hallucinações 
religiosas  do  cyclo  da  Cavalleria  celeste  da  De- 
manda do  Santo  Graal.  Na  éjXDca  de  D.  João  i. 
Portugal  luctando  pela  sua  indej^endencia  era  uma 
pequena  Bretanha  sob  a  ameaça  do  invasor;  era 
o  enthuziasmo  cavalheiresco  o  que  multiplicava  o 
valor  dos  que  formavam  a  Ala  dos  Namorados 
e  a  phalange  dos  Cavalleiros  da  Madre  Silva,  e 
a  imitação  das  virtudes  do  cavalleiro  parthenio, 
que  levava  o  Condestavel  D.  Nuno  Alvares  Pe- 
reira a  imitar  a  virgindade  de  Galaaz,  como  relata 
a  sua  Chronica  anonyma. 

Fernão  Lopes,  na  Chronica  de  Dom  João   i, 
cita  esta  significativa  anecdota   passada  entre  o 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDI.v 


335 


nionarcha  e  os  seus  cavalleiros  no  cerco  de  Coria : 
«Gram  mingoa  nos  fizeram  hoje  este  dia  os  boos 
cavalleiros  da  Tavola  Redonda,  cá  certamente 
elles  foram,  nós  tomariamos  este  logar.  Estas 
palavras  nom  pode  ouvir  com  paciência  Mem  Ro- 
drigues de  Vasconcellos,  que  logo  nom  respon- 
desse e  disse  :  —  Senhor,  nom  fizeram  aqui  mingoa 
os  Cavalleiros  da  Tavola  Redonda;  que  aqui  está 
Mem  Vasques  da  Cunha  que  é  tam  bom  como 
Dom  Galaaz,  e  Gonçalo  Vasques  Coutinho,  que 
é  tam  bom  como  Dom  Trista-m ;  e  ex  aqui  Johan 
Fernandes  Pacheco,  que  he  tam  bom  como  Lan- 
çarote; (e  de  outros  que  viu  estar  acerca;)  e  ex- 
me  eu  aqui,  que  valho  tanto  como  Dom  Ouça: 
assi  que  nom  fizeram  aqui  mingoa  estes  Caval- 
leiros que  vós  dizeis :  mas  feeze-nos  a  nós  aqui 
gram  mingoa  o  bom  Rcy  Artliur,  flor  de  lis,  se- 
nhor d'elles,  que  conhecia  os  bons  servidores:  fa- 
zendo-lhes  mercês  por  que  aviam  desejo  de  o 
bem  servir.  El  rey  vendo  que  o  haviam  por  in- 
juria, respondeu  entonce  e  disse:  —  Nem  eu  esse 
nom  tirava  a  fora,  cá  assi  era  companheiro  da 
Tavola  Redonda,  como  cada  um  dos  outros.»  (Op. 
cit.,  II,  cap.  y6.) 

O  fervor  pelas  tradições  britonicas,  desde  a 
corte  de  Dom  Diniz  até  a  época  de  D.  João  i 
correspondia  á  situação  da  nacionalidade  portu- 
gueza.  Desde  Dom  Af  fonso  1 1 1  estavam  termina- 
das as  guerras  de  conquista;  as  povoações  orga- 
nisadas  em  concelhos  governavam-se  pelas  suas 
Cartas  de  Foral ;  pelo  uso  do  direito  romano 
iam-se  regulando  as  prepotências  senhoriaes  sub- 
mettendo  os  ricos-homens  á  auctoridade  real.    As 


2,2»^  HISTORIA    DA   LITTERATURA    PORTUGUEZA 

Gestas  feudaes  não  tinham  uma  relação  vital  com  a 
sociedade  portugneza;  a  Matéria  de  Bretanha  li- 
sonjeava a  sentimentalidade  de  um  povo  onde  os 
seus  poetas  morriam  de  amor  como  o  apaixonado 
Tristan.  Nenhuma  corte  peninsular  tinha  então 
a  estabilidade  para  a  cultura  artistica,  para  a  ga- 
lanteria das  damas,  para  os  passatempos  littera- 
rios  das  Cortes  de  Amor.  Esta  situação  moral, 
que  suscitou  essa  extraordinária  efflorescencia 
lyrica  dos  Cancioneiros  da  Ajuda,  Vaticana  e 
Colocci ;  pela  tendência  da  época  e  j^elo  impulso 
do  génio  da  raça  lusa,  pela  assimilação  dos  Lais 
narrativos  e  dos  mais  saboreados  poemas  amo- 
rosos da  Tavola  Redonda,  conduziu  a  uma  syn- 
these  poética  —  a  invenção  singular  do  Aniadis 
de  Gaula.  Passava-se  o  contrario  na  Hespanha 
ibérica,  aonde  a  guerra  da  reconquista  christã 
somente  acabou  no  fim  do  século  xv,  e  as  luctas 
contra  os  grande  vassallos  só  levaram  o  poder 
real  a  fundar  muito  tarde  a  unidade  monarchica 
na  concentração  absorvente  do  castelhanismo.  A 
disposição  da  Lei  de  Partidas,  que  impunha  aos 
fidalgos,  que  só  ouvissem  Cantares  que  fossem  de 
feitos  de  armas,  correspondia  á  elaboração  que 
se  estava  passando  das  Epopêas  hespanholas,  so- 
bre heroes  nacionaes  de  perfeita  realidade  histó- 
rica. Menendez  y  Pelayo,  reconhecendo  a  origem 
portugueza  do  Amadis  de  Gaula,  confessa  esta 
antinomia :  «todos  os  heroes  das  Gestas  hespa- 
nholas são  eminentemente  realistas.  Vivem  na 
atmosphera  do  seu  tempo  e  d'ella  recebem  a  sua 
grandeza.  Suas  emprezas  até  quando  são  fabu- 
losas, quadram  com  a  realidade  histórica,  e  sem. 


PRIMEIRA   época:    edade    media  S^y 


í^rande  difíiculdade  identificam-se  com  a  historia 
(locniiientada.  —  Não  é  preciso  amontoar  exem- 
plos :  lembremo-nos  de  todos  os  nossos  typos  épi- 
cos :  Bernardo  dei  Carpio,  Fernan  Gonsales  e  seus 
successores;  os  Infantes  de  Lara  e  seu  vingador 
Mudarra;  finalmente  sobre  todos  o  Cid...  Pois 
bem,  o  Amadis  é  a  negação  de  tudo  isto,  —  appre- 
senta  os  caracteres  mais  directamente  opix>stos  á 
genuina  epopêa  castelhana. 

((Havia  na  Peninsula  hispânica  alguma  raça 
mais  preparada  do  que  a  de  Castella  para  receber 
o  influxo  do  Amadis  de  Gaulaf  Só  uma  existia, 
afastada  nas  regiões  occidentaes,  céltica  (britoni- 
ca)  sem  duvida  alguma  de  origem...  O  Amadis 
de  Gania  teve  por  typo  os  Poemas  da  Tavola 
Redonda...  Aonde  devia  i>egar  esta  semente 
senão  nas  regiões  da  Hespanha  —  únicas  que 
alimentavam  crenças,  superstições  e  costumes 
análogos  aos  dos  bretões,  e  únicas  portanto  que 
podiam  comprehender  e  sentir  aquella  poesia  que 
rcsòa  tão  exótica  a  ouvidos  castelhanos,  arago- 
nezes  e  catalães?  Em  these  geral,  pois,  parece 
nmi  verosímil  a  opinião  que  colloca  o  berço  do 
Aijiadis  de  Gania  na  região  galaico-portugueza, 
cujos  poetas  deram  carta  de  naturalisação  ])ela 
primeira  vez  entre  nós  aos  nomes  de  Tristan  '^; 
Yscult  e  de  Lançarote,  e  cujos  cavalleiros  gosta- 
vam, no  fim  do  século  xtv,  de  honrar-se  e  distin- 
gui r-se  com  sobrenomes  tirados  dos  poemas  do 
Cyclo  bretão,  —  a  ausência  de  todo  o  elemento 
tradicional  e  histórico  na  Novella,  phenomeno 
inexplicável  se  tivesse  nascido  em  Castella,  e  mui 
verosímil  pelo  contrario;  em  Portugal,  que  foi  das 

22 


338  TlISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

• 

nacionalidades  il^ericas  a  mais  tardia  a  formar-se, 
e  a  que  careceu  da  base  épica,  porque  chegou  á 
vida  em  tempos  inteiramente  históricos;  e  por  ul- 
timo o  facto  mesmo  da  tradição  continuada  e  im- 
perturbável em  Portugal  e  ausência  em  Castella  de 
todos  os  antecedentes  a  respeito  do  auctor  ou  da 
época  das  primeiras  redacções  do  Ainadis,  levam- 
nos  se  não  a  crer  a  suspeitar  que  os  portuguezes 
tiveram  grande  parte  na  creação  d'esta  rarissima 
Novella.» 

O  antagonismo  entre  os  génios  luso  e  ibérico 
])osto  em  evidencia  pela  creação  do  Ainadis,  foi 
notado  por  Milá  y  Fontanals :  «Foi  tardia  em  Cas- 
tella a  introducção  do  Cyclo  bretão  ou  do  Rei  Ar- 
thur  e  da  Tavola  Redonda.  Enlaçado  com  uma 
nova  cavalleria  menos  heróica  e  mais  refinada  do 
que  a  do  Cyclo  Carlingio,  não  se  comprazia  com  o 
caracter  grave  da  Castelhana.»  Menendez  y  Pe- 
layo  conclue  deliberadamente  por  essa  differen- 
ciação:  «Assim  como  em  Castella,  povo  heroica- 
mente enamorado  das  grandezas  da  acção  e  das 
realidades  da  vida  pegou  facilmente  a  semente  das 
narrações  do  Cyclo  Carlingio,  também  no  povo 
galaico,  inclinado  por  temperamento...  á  saudade, 
á  melancholia  e  ao  devanear  inquieto  e  phantas- 
tico,  arreigaram-se  mais  do  que  em  outra  parte 
as  historias  e  os  lais  do  Cyclo  bretão.»  ^ 

Seguindo  este  mesmo  critério,  Amador  de  los 
Rios,  que  adoptara  os  resultados  de  Gayangos 
sobre  o  castclhanismo  do  Am  adis  de  Gaula,  vê-se 


T     Antologia  de  Poetas   líricos,  t.    iii,   p.   xl. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  339 

forçado  a  pòl-o  em  contraste  com  o  génio  hes- 
panhol :  «para  os  heroes  reaes  da  poesia  nacional 
taes  como  Fernan  Gonzales  e  o  Cid  Campeador, 
é  lei  suprema  a  palavra  empenhada;  para  os  pala- 
dinos do  Amadis  é  o  juramento  o  mais  íii*me  laço 
da  vida.»  (Ih.,  p.  87.)  Não  era  por  mera  religio- 
sidade este  juramento,  mas  pelo  costume  da  ga- 
rantia dos  Foraes  das  Cidades  livres  de  Portugal, 
e  da  prova  judicial  dos  Juratores  nas  defezas  cri- 
minaes,  pelo  direito  foraleiro. 

Em  relação  á  mulher,  ainda  Amador  de  los 
Rios  appresenta  inconscientemente  egual  contras- 
te: «as  damas  que  figuram  no  Amadis,  emborn 
idealisadas  pela  exaltada  imaginação  dos  caval- 
leiros,  ainda  que  acatadas  coiti  um  respeito  que  to- 
cava pela  idolatria,  são  demasiado  fáceis  para  os 
seus  amantes;  e  não  só  acontece  isto  com  as  don- 
zellas  das  encruzilhadas  que  vão  em  procura  de 
aventuras  se  não  com  as  mais  esclarecidas  prin- 
cezas,  com  Elisena  e  Aldava,  com  Olinda,  Bran- 
dueta  e  Oriana.  Satisfeitas  com  a  fama  de  inven- 
civeis  que  gosam  Perion  e  Agrajes,  Galaor  e  Ama- 
dis, além  de  corresponderem  benevolamente  aos 
seus  amores,  chegam  também  a  provocal-os ;  cír- 
cuinstancia  que  as  separa  da  mulher  histórica  c 
poética  de  Castella,  confrontando-as  com  as  damas 
heróicas  romanescas.»  (Ih.,  p.  88.) 

Fernando  Wolf  considera  o  Amadis  de  Gania: 
«uma  composição  meramente  artística  e  totalmente 
fictícia,  sem  base  historico-tradicional,  nascida  sem 
duvida  em  um  paiz  aonde,  como  em  Portugal, 
estavam  em  voga  os  livros  de  Cavallerias  de  ori- 
gem franceza  ou  ingleza,  já  de  todo  prosi ficados. 


340  HISTORIA    DA    IJTTKRATURA    PORTUGUEZA 

não  só  nas  suas  formas  senão  também  no  seu 
espirito,  já  desvairados  e  extravagantes:  nascida 
sem  duvida  em  uma  época  em  que,  como  na  se- 
g-unda  metade  do  século  xiv,  o  espirito  creador 
do  cavalheirismo  ideal  já  se  havia  extinguido, 
quando  as  ideias  (lue  o  dirigiam  passaram  a  ser 
formas  ocas  sem  vida  real,  e  como  sempre  em  tal 
caso,  a  caricatura  de  um  sêr  que  foi.  Por  tanto, 
nem  o  Amadis,  nem  as  suas  imitações,  nem  mes- 
mo os  romances  tirados  d'ellas,  poderam  ser  po- 
pulares em  Hespanha...»  (Introducção  á  Prima- 
vera y  Pior  de  Romances  )  .E  accentuando  esta 
carência  de  toda  a  base  nacional  ou  historico-tra- 
dicional,  e  como  arremedo  dos  modelos  já  de  si 
bastante  alterados  e  disfigurados,  considera  os  Li- 
vros de  Tirant  il  Blanco  e  do  Amadis  de  Gaida, 
sem  a  minima  duvida,  puras  ficções  e  com  toda  a 
probabilidade  de  origem  portugueza.»  (Nota  28, 
á  Primavera.) 

Também  D.  Agustin  Duran,  no  Romanccro 
^^cneral  (p.  xx)  mostra  que  o  Amadis  de  Gania 
não  podia  ser  hespanhol :  ((Que  épocas,  que  cir- 
cumstancias  retratavam  os  Amadises?  Que  typo 
necessário  e  |X)pular  existiu  d'elles  entre  nós?  — 
O  cavalheirismo  exagerado  e  inútil  dos  Amadises 
só  ix)dia  representar-se  a  homens  de  corte  cuja  ca- 
ricatura foi  o  Don  Quixote.  De  mais,  prova  que 
as  referidas  fabulas  não  tinham  o  selo  da  nossa 
verdadeira  e  arreigada  civilisação.» 

Amador  de  los  Rios  teve  informações  de  Fer- 
nando J.  Wolf  de  que  vira  uma  versão  hebraica  do 
Amadis  de  Gania  na  escolhida  livraria  de  Oppe- 
nheimer :  e  observa :  ((se  esta  edição  se  fez  antes  da 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  .  34I 

de  Montalvo  (1508  e  15 10)  a  sua  importância  é 
de  milito  vulto  nas  nossas  lettras.  Lastima  é  que 
Wolf  não  desse  um  extracto  do  seu  argumento 
para  avaliar  se  constava  dos  trez  livros  que  indi- 
cou Pêro  Ferrús,  ou  dos  quatro  hoje  conhecidos.» 
(Op.  cit.,  V,  90.)  E'  possivel  mesmo  que  por 
essa  traducção  feita  por  algum  judeu  portuguez 
se  podesse  reconstruir  o  primitivo  texto  do  Ajna- 
(iis.  Nos  Cantos  populares  dos  Judeus  do  Le- 
vante, quasi  todos  sahidos  de  Portugal,  acha-se 
com  frequência  o  nome  de  Aiiiadi,  reminiscência 
(le  um  typo  de  namorado,  e  Conde  Aiiiadi.  1 
Nunca  na  tradição  portugueza  se  obliterou  o  co- 
nhecimento d'esta  creação  bella  do  seu  génio. 

Antes  de  ser  escripta  a  traducção  castelhana  por 
1492,  ainda  a  tradição  do  Amadis  de  Gaula  era 
vivissima  na  corte  de  Dom  João  i  t  ;  no  celebre 
certame  poético  do  City  dar  e  Suspirar,  invocaram 
()  nome  de  Oriana  a  apar  de  Iseut,  o  velho  Cou- 
del  mór  c  Nuno  Pereira : 


Alcgaes-me   vós   Iseu, 
Oriana  com   ella... 


Se   o   dissesse   Oriana 
E  Iseu,  alegar  posso... 

E  a  aristocracia  portugueza  usava  os  nomes 
civis  de  Briolanja  e  Oriana,  de  Lisuarte,  perso- 
nagens da  Novella  portugueza,  como  também  os 
nomes  dos  apaixonados  que  lhes  serviram  de  mo- 


I     Mcnendez  y  Pelayo,  Antologia,  vol.  x,  p.  309. 


342  HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 

(leio  como  Iseii  e  Tristaii,  Genebra  e  Laiicelot, 
Percival  e  Arthiir. 

Em  Hespanha  antes  da  versão  de  Montalvo, 
viilgarisada  em  1508,  era  do  Atnadis  de  Gania  por- 
tngiiez  que  se  faziam  as  referencias,  taes  como 
a  de  Urgaiida  a  desconhecida,  que  vem  na  novella 
catalan  de  Martorell,  o  Tiranf  il  Blanch,  dedicado 
ai  scrcnissiino  Pr  ince  pe  dou  Fernando  de  Portu- 
gal (irmão  do  rei  D.  Áffonso  v),  escripto  em  1460 
e  impresso  em  1490.  ^ 

D'aqui  taml)em  a  referencia  de  D.  Luiz  Za- 
pata,  embaixador  de  Carlos  v,  em  Portugal,  por 
1550:  «era  fama  en  aquel  reyno,  que  el  Infante 
Don  Fernando,  bija  (irmco}  de  D.  Alfonso,  ba- 
bia  compuesto  el  Libro  de  Amadis.))  (Memoria 
de  los  Zapatas.  Ms.  de  Bibl.  nac.  de  Madrid.  — 
Gayangos,  Op.  cit.,  p.  xxii.)  D.  Fernando  era 
pbantastico  vaporoso  e  poeta,  o  que  justifica  esta 
relação  com  as  duas  novellas. 

Em  umas  trovas  de  D.  Alfonso  de  Cartagena 
também  a])parece  o  nome  de  Oriana  designando 
o  ideal  da  namorada : 


E'  es  tan  cruel  sin  medida 
La  belleza  de  Oriana, 
Que  si  dos  mil  prezos  gana, 
No  torna  nin^uno  á  vida. 


I  Lê-sc  no  fim  de  Tirant  il  Rlanch  a  declaração:  «Lo 
qual  fou  traduit  de  Anglçs  cn  Iciiç/ua  porUigucza  e  apres  en 
volgar  lengua  valenciana.'^  D'aqui  a  falsa  attribuição  ao 
infante  portugucz  d'essa  imaginaria  traducção. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  J43 


Nas  Coplas  de  disparates,  glosando  o  roman- 
ce Oh  Belerma!  oh  Belerma,  do  Cancioneiro  de 
íxar,  também  se  allude  aos  amores  de  Oriana: 


No  fué  discreto  en  murirse, 
Si  murió  de  mala  gana, 
No  menos  pude  sofrirse, 
Que  qu-edar   sin   escribirse 
Los  amores  de  Oriana. 


Don  Pascual  de  Gayangos,  que  tão  contrario 
se  mostrou  á  origem  portugueza  do  Aniadis  de 
Gania  na  introducção  aos  Libros  de  Caballerias, 
na  nota  á  traducção  de  Ticknor,  acceita  como 
provado,  que  a  primeira  redacção  do  Ainadis  cons- 
tava somente  de  três  livros;  que  o  quarto  livro 
foi  accrescentado  posteriormente,  isto  é  depois  de 
1379,  em  que  só  os  três  livros  eram  citados  pelos 
poetas  d'essa  época ;  concluindo :  «que  todas  as 
probabilidades  são  que  Montalvo  reunira  os  três 
livros...  com  o  quarto  de  auctor  desconhecido,  e 
os  traduzira  para  castelhano  formando  um  corpo 
e  corrigindo,  como  elle  declara,  os  antigos  ori- 
ginaes,  tirando  muitas  palavras  supérfluas  e  pondo 
outras  de  mais  polido  e  elegante  estilo.  Só  d'este 
modo  se  conciliam  aquellas  três  palavras,  ajuntan- 
do, trasladando  e  emendando.))  (Hist.  de  la  Litf. 
espan.,  t.  í,  p.  522,  notas.) 

4.0  -^-  A  redacção  paraphrastica  castelhana. 
(1492).  —  E'  facto  assente  que  o  texto  único  co- 
nhecido i>ela  impressão  (1508)  do  Amadis  de 
Gania,  é  em  lingua  castelhana,  sob  o  nome  de 
um  certo  Garci  Ordonez  de  Montalvo,  que  a  >i 
mesmo  se  chama   «Regidor  de  la  noble  villa  de 


344  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

AJedina  dei  Campo.»  A  época  em  que  começou 
o  seu  trabalho  de  adaptação  ao  estylo  dominante 
de  amplificação  rhetorica  pôde  fixar-se  em  1492 
e  1504  por  que  allude  á  tomada  de  Granada  sob 
l^^ernando  e  Isabel,  1  quando  diz  no  prologo: 
((pues  si  en  el  tiempo  de  estos  oradores,  que  mas 
en  la  fama  que  de  intereses  ocupaban  sus  juicios 
y  fatigaban  sus  espiritus,  acaescera  aquella  con- 
quista que  el  nucstro  muy  esforçado  y  catholico 
rey  D.  Fernando  hizo  dei  reino  de  Granada,  cuán- 
tas  flores,  cuántas  rosas,  asi  en  lo  tocante  ai  es- 
fuerzo  de  los  caballeros...»  Para  corresponder  a 
este  espirito  novo  da  hegemonia  do  castelhanismo. 
(jue  ia  impôr-se  a  toda  a  península  também  pelo 
descobrimento  da  America,  é  que  Ordoííez  de 
Montai vo  foi  renovar  os  antigos  originales  do 
Aniadis  de  Gaida,  sob  o  influxo  do  pedantismo 
rbetorico,  que  t?.ntc  ^/'':'^v  ^  humanismo  hespa- 
nhol  no  fim  do  século  xv.  -    lisáa  versão  caste- 


1  Falecida  em  1504. 

2  A  inferioridade  das  Sergas  de  Esplatidian,  em  que 
Montalvo  continua  o  Amadis  de  Gaula,  põe  em  evidencia, 
que  as  duas  Novellas  não  foram  escriptas  pelo  mesmo 
auctor.  Cervantes  o  reconheceu ;  quando  na  celebre  scena 
(lo  Cura  e  o  Babeiro.  condenma  á  fogueira  o  Bsplandian 
"não  salvando  o  filho  a  bondade  do  pae.^^  Ticknor  é  de 
opinião,  que  Montalvo  antes  de  ter  feito  a  traducção  cas- 
telhana do  Amadis,  já  tinha  composto  a  sua  continuação. 
(Hist.  da  Litt.  cspan..  i.  241.)  E  aponta  a  irreverência  com 
que  trata  a  idealisação  que  lhe  não  pertencia:  «Nos  feitos 
heróicos  de  Bsplandian  procura  offuscar  as  façanhas  es- 
plendorosas de  Amadis;  não  conserva  aos  personagens  da 
novella-mãe  os  seus  typos  consagrados,  alterando-os  absur- 
damente, a  encantadora  e  bella  Urganda  transforma-a  em 
uma    bruxa    selvagem    e    feroz;    assim   também   o   sábio   e 


PRIMKIRA     ÉPOCA  :     EDADK     MÉDIA  345 


lhana  chegou  muito  cedo  a  Portugal;  no  Catalo- 
go da  livraria  do  Rei  Dom  Manoel  apparece  apon- 
tado o  Aniadis  de  Gaiila,  que,  pelas  suas  relações 
com  a  corte  de  Fernando  e  Isabel  seus  sogros, 
evidentemente  se  reconhece  ser  um  exemplar  im- 
presso. Foi  sobre  essa  leitura  que  Gil  Vicente  fez 
e  representou  na*  corte  a  tragi-comedia  do  Ania- 
dis  de  Gania;  e  foi  como  protesto  contra  essa  pre- 
ponderância que  adquiriu  a  redacção  castelhana, 
que  o  Dr.  João  de  Barros  protestou,  quando  no 
seu  livro  Antiguidades  e  cansas  notáveis  de  Antre 
Douro  c  Minho,  referindo-se  á  cidade  do  Porto, 
escreveu:  «E  d'aqui  foi  natural  Vasco  de  Lo~ 
BEIRA,  que  fez  os  primeiros  quatro  livros  de  Ama- 
dis,  o1)ra  certo  muito  útil  e  graciosa  e  aprovada 
de  todos  os  galantes;  mas  como  estas  cousas  se 
secam  em  nossas  mãos,  os  Castelhanos  lhe  mu- 
daram a  linguagem  e  attrihuiram  a  obra  a  si.)y 
A  tradição  portugueza  não  se  perdia,  e  em  1589  o 
filho  do  Dr.  António  Ferreira,  authenticava  a  exis- 
tência da  (diistoria  do  Aniadis  de  Gaula,  por  Vasco 
DE  L0BEIRA,  cujo  original  anda  na  Casa  de 
Aveiro.)) 

Resta  determinar,  pela  persistência  d'estas  tra- 
dições quando  se  perdeu  a  noticia  do  original  por- 
tuguez  do  Amadis.    Na  Conta  dada  pelo  Conde 


mestre  Elizabad.  Nenhum  dos  caracteres  já  conhecidos 
nem  dos  inventados,  está  traçado  com  tino  e  habilidade.^^ 
(Ib.,  p.  243.)  "Não  tem  a  eloquência  que  brilha,  em  muitas 
passagens  do  Amadis...  o  argumento  em  verso  de  cada 
capitulo,  é  tudo  quanto  ha  de  mais  prosaico,  e  muito  in- 
ferior aos  versos  esparsos  pelo  Amadis?*  (Ib.) 


34Ó  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

da  Ericeira  á  Academia  de  Historia  ix)rtugueza 
em  31  de  Maio  de  1726,  appresentando  extracto 
do  catalogo  das  riquezas  da  Livraria  do  Conde 
de  Vimeiro,  que  a  esse  tempo  estava  entregue  á 
guarda  de  um  velho  creado,  cita  sob  o  N.o  19, 
um  Catalogo  d'essa  Livraria  que  traz  apontado 
como  existente  ali  em  18  de  Março  de  1686,  o 
—  Amadis  de  Gania  em  Português. 

Na  sua  Conta  á  Academia  diz  o  Conde :  «Ser- 
vindo esta  memoria  para  que  se  vejam  os  que  fal- 
tam com  tam  justo  sentimento  de  curiosos  e  para 
que  a  boa  fé  os  restitua  a  este  Archivo  litterario.» 

Pela  corrente  geral  das  Litteraturas  moder- 
nas determina-se  também  a  origem  portugueza  do 
Amadis  de  Gania.  Emquanto  as  Epoi^êas  fran- 
cezas  eram  assimiladas  pelas  litteraturas  româ- 
nicas, a  Hespanha  elaborava  activamente  as  suas 
Epo}3êas  nacionaes  históricas.  A  Itália  fez  o  syn- 
cretismo  das  Gestas  Carlingias  nos  Reali  di  Fran- 
cia,  Biioz'0  dAntona,  Spagna,  e  Rrgimi  Ancroja, 
chegando  ás  bellas  formas  artisticas  de  Pulei, 
Boiardo  e  Ariosto.  Portugal  identificou-se  com  o 
sentimento  das  Novellas  amorosas  e  de  aventuras 
do  Cyclo  arthuriano  da  Tavola  Redonda,  e  fez 
a  synthese  esthetica  do  Amadis  de  Gania,  com 
que  exerceu  nas  litteraturas  modernas  uma  plena 
hegemonia.  ' 


I  Fornutloii-a  Cervantes,  no  D.  Quixote;  "es  el  me- 
jor  de  todos  los  libros  que  de  »_sto  género  se  han  compuesto. 
y  asi,  como  único  en  su  arte,  se  debe  perdonar.**  (P. 
I,  cap.  6j 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  ^4'/ 


§  IV 

Cultura  latino-ecclesiastica 

Desde  Carlos  Magno  em  que  se  fizera  a  inte- 
gração politica  da  Europa,  que  se  revelava  a  in- 
tuição entre  uma  grande  parte  dos  estados  mo- 
dernos de  uma  unidade  de  ideias  e  aspirações  pre- 
valecendo sobre  as  diversidades  nacionaes.  Sob  o 
ponto  de  vista  religioso  era  a  synthese  affectiva 
da  Chrístandade;  no  seu  aspecto  social  era  a  au- 
ctoridade  da  Lei  civil,  definida  pelos  Códigos  ro- 
manos, com  que  q  Poder  real  se  impunha  ao  Feu- 
dalismo e  á  Theocracia.  Este  antagonismo  dos 
dois  Poderes,  nos  conflictos  do  Sacerdócio  e 
Império,  abre  a  éra  da  grande  revolução  Occi- 
dental, em  que  se  inicia  a  edade  moderna,  pela 
dissolução  successiva  do  regimen  theocratico-feu- 
dal.  Preparada  a  sociabilidade  moderna  pela 
transição  romana  (activa)  e  medieval,  (affecti- 
va) os  povos  europeus  alcançaram  as  condições 
para  se  continuar  a  elaboração  especulativa  da 
Grécia.  E'  esta  orientação  que  suscita  e  caracte- 
risa  essa  assombrosa  primeira  Renascença  da  An- 
tiguidade clássica,  em  que  a  Revolução  moderna 
se  appresenta  mais  como  intellectual  do  que  social. 
Na  fervente  anarchia  tbeorica  o  Scholaticismo 
dissolve-se  no  Realismo,  no  Nominalismo,  no  Con- 
ceptualismo,  e  nas  idealisaçÕes  mysticas,  e  a  au- 
dácia individual  decompõe  pela  dialéctica  os  do- 
gmas e  discute  a  lei,  avançando  até  ás  heresias  e 
ás  revoltas.    E'  a  revivescência  da  cultura  greco- 


348  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


romana  que  não  deixa  obliterar-se  esta  unidade 
especulativa  pela  nova  corrente  do  Humanismo. 

N'este  momento  histórico  de  uma  commum 
admiração,  merece  uma  attenção  especial  o  syn- 
cretismo  das  tradições  clássicas  ou  greco-romanas 
com  as  tradições  heróicas  das  raças  da  Europa  já 
constituidas  em  nações.  Ha  poemas  germânicos 
com  forma  latina,  como  o  ÍValtharius;  e  surge 
uma  classe  de  poetas  e  escriptores  intermediários 
ao  povo  e  aos  eruditos,  os  G  o  liar  d  os,  os  vagos 
Scholarcs,  que  versificavam  em  latim  as  canções 
populares,  e  reduziam  a  métrica  latina  da  quanti- 
dade á  acccntuação  e  rima  do  vulgo,  compondo  os 
Cantos  farsis,  em  que  os  versos  latinos  se  alter- 
navam nas  estrophes  dos  dialectos  românicos.  Era 
natural  este  phenomeno  provocado  i>eIo  génio  da 
parodia;  diversas  raças,  como  Ligurios,  Iberos, 
Celtas,  Illyrios,  sob  o  dominio  romano,  discipli- 
naram as  suas  linguas  analyticas  pelo  latim  syn- 
thetico,  enriquecendo-as  com  o  vasto  vocabulário 
d'essa  cultura,  por  forma  que  ao  desenvolverem-se 
em  organismos  nacionaes,  acharam-se  através  das 
suas  differenciaçÕes  ethnicas  instinctivamente  so- 
lidarias com  a  cultura  greco-romana  e  continua- 
doras d'ella.  Enumerando  as  fontes  tradicionaes 
dominantes  da  Edade  média,  Jean  Bodel  na  Chan- 
sou  dcs  Soissons,  aponta  este  elemento  greco-ro- 
mano : 


Xe  sont  que  trois  Maticres  à  mil   liomme,  cntendent, 
J)e  F rance,  de  Bretagne  et  de  Rome  la  grand. 


'rodos  estes  trez  cydos  foram  conhecidos  em 
Portugal :  o  carlingio  ou  f  ranko,  o  arthuriano  ou 


PRIMARA    época:    EdadE    media  349 

l:)retão,  e  o  greco-romano,  que  chegou  a  syncre- 
tisar-se  por  via  da  eschola  dos  falsos  Chronicoes 
com  as  nossas  origens  históricas.  Mas,  da  Anti- 
guidade clássica,  como  observou  Joly,  só  procu- 
ravam apprehénder  a  forma,  o  lado  romanesco ;  o 
espirito  era-lhes  completamente  fechado,  e  em  vez 
do  lado  esthetico  consideravam  o  problema  moral 
do  paganismo.  Popularisando  essas  formas  bellas 
pelas  parodias  goliardescas  e  imitações  scholares- 
cas,  a  Antiguidade  clássica  aproximava  os  dois 
elementos  Clercois  e  Coiirtois,  nos  conflictos  dou- 
trinários da  Theologia  e  da  Philosophia,  das  Es- 
cholas  Geraes  e  das  Universidades. 

a)  Os  Estudos  quadriviaes 

Junto  das  Collegiadas  existiram  Escholas  des- 
tinadas ao  ensino  ecclesiastico ;  eram  regidas  pelo 
Cahiscol  (Caput  Scholse)  e  frequentavam-as  os 
Montinhos  ou  Moziíihos  -(os  Mocinhos)  para  os 
(juaes  o  Bispo  I).  Paterno  fundou  em  1086  em 
Coimbra,  junto  á  sé  um  Collegio.  O  Abbade  de 
Alcobaça  fundara  em  1269  1^0  mosteiro  de  Santa 
Maria  os  estudos  da  Grammatica,  Lógica  e  Theo- 
logia, não  só  para  os  monges,  como  para  quan- 
tos quizessem  frequental-os.  O  Bispo  D.  IJoniin- 
gos  Jardo,  admittia  no  Hospital  de  Sam  Paulo  em 
1266  ao  estudo  de  Latim,  Grego,  Theologia  e  Câ- 
nones seis  escholares.  Porém  a  corrente  domi- 
nante attrahia  os  espiritos  para  as  Escholas  Geraes 
ou  leigas,  e  os  estudos  em  vez  de  um  fim  ecclesias- 
tico faziam-se  com  um  fim  humanista.    Nas  Li- 


350  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 

vrarias  dos  Bispos  cio  Porto  Di  Vasco  (1331)  e 
D.  Vicente  (1334)  predominavam  os  livros  de 
direito  civil  e  canónico,  mais  do  que  as  obras  li- 
túrgicas e  moraes.  Em  um  livro  traduzido  por 
Fr.  Roque  de  Thomar,  se  lê  que  é  feito  ((para  os 
Clérigos  minguados  de  scicncia,  c  por  que  lie  assi 
como  mendigado  e  apanhado  dos  Livros  do  Di- 
reito e  da  Sagrada  Tlieologio.))  (Cod.  ccLii.) 
Alargava-se  o  quadro  dos  estudos. 

i.o  Philosophia  e  Theologia.  —  As  Escho- 
las  das  Collegiadas,  Abbaciaes  e  Episcopaes,  em 
que  se  ensinavam  as  disciplinas  da  Grammatica, 
Rhetorica  e  Dialéctica,  ou  o  Trivium,  foram  alar- 
i^adas  no  seu  quadro  pedagógico,  facultando  r^ 
Egreja  o  ensino  de  outras  sciencias,  como  a  Theo- 
logia, a  Philosophia,  esboçando  assim  o  organismo 
universitário.  Foi  uma  consequência  da  crise  men- 
tal do  século  XIII.  «Durante  este  rápido  momen- 
to de  fervor  os  dois  Poderes,  espiritual  e  tem- 
ix)ral,  acharam-se  de  accôrdo  para  favorecerem 
a  renovação  dos  Estudos,  embora  a  Egreja  pre- 
ferisse a  cultura  da  Theologia  e  da  Philosophia, 
e  a  Realeza  ligasse  a  máxima  importância  ás 
Escholas  de  Jurisprudência.  E'  n'este  momento 
transitório  de  um  accôrdo  que  ia  quebrar-se  pela 
antinomia  entre  o  dogma  e  a  rasão,  que  ap]xi- 
recem  os  sábios  pontífices,  como  Urbano  iv, 
dando  em  Roma  uma  cathedra  a  San  Thomaz 
de  Aquino  para  ensinar  Moral  c  Physica,  Cle- 
mente IV  protegendo  o  génio  innovador  de  Ro- 
gério Bacon,  Innocencio  v  elevando-se  ao  pa- 
pado pelos  seus  talentos  de  orador,  canonista  e 


PRIMJ5IRA  Época:   edade   média  351 


metaphysico,  e  João  xxi  (o  nosso  Pedro  Julião, 
mais  conhecido  pelo  nome  de  Pedro  Hispano)  que 
dota  as  Escholas  da  Europa  com  as  Suiii mulas  lo- 
gicales,  o  primeiro  compendio  que  prevaleceu  com 
auctoridade  até  ao  fim  da  Kdade  média.»  i 

A  cultura  theologica  degenerava  na  dialéctica, 
criando-se  as  rivalidades  das  Escholas;  Domini- 
canos e  Franciscanos,  aos  quaes  os  papas  confia- 
ram o  ensino  da  Theologia,  eram  inconciliáveis 
no  seu  antagonismo  doutrinário,  seguindo  embora 
a  Philosophia  de  Aristóteles.  Os  Dominicanos 
eram  thomistas,  por  que  San  Thomaz  conciliara 
os  processos  criticos  dos  Nominalistas  com  a 
Theologia  especulativa;  os  Franciscanos  entrega- 
vam-se  ao  subjectivismo  dos  Realistas,  defenden- 
do as  opiniões  de  Alexandre  de  Halés,  por  que 
lhes  auctorisava  os  devaneios  do  Mysticismo. 
Como  observa  Hauréau,  na  sua  obra  Da  Philo- 
sophia Scholastica:  a  A  paixão  do  século  xiii  é  a 
Philosophia ;  os  chefes  dos  partidos  belligerantes 
são  commentadores  de  Aristóteles ;  os  problemas 
cuja  solução  agita  as  consciências,  pertencem  ao 
dominio  das  cousas  abstractas.»  Estas  duas  cor- 
rentes, como  se  lê  na  Historia  da  Universidade  de 
Coimbra,  dominicana  e  franciscana,  foram  supe- 
riormente representadas  por  portuguezes  fora  de 
Portugal :  a  thomista  pelo  afamado  Pedro  Hispa- 
no, e  a  mystica  pelo  não  menos  e  in-yiiortalisado 
Santo  António  de  Lisboa,  que  professou  em  Mont- 
pellier,  em  Pádua  e  Tolosa. 


I     Historia  da  Universidade  de  Coimbra,  t.   i,  p.  43. 


35-2  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

Entre  os  grandes  Doutores  da  Edade  média, 
Pedro  Hispano  teve  a  singular  gloria  de  ficar 
memorado  por  Dante,  na  sublime  E^x^pêa  da  Di- 
vina  Comedia: 


Ugo  da  San  Vittore,  é  qui  con  elH 

E  Pietro  Mangiator,  c  Pirtro  Hispano 

Le  qual  già  Ince  in  dodcci  libelli. 

(Pardiso,  C.   xii.) 


Dante  referia-se  ás  Sunimulas  logicalcs,  cele- 
bres em  todas  as  Escholas,  as  quaes  se  dividiam 
em  doze  tratados:  i.o  Da  enunciação  (das  Pcri- 
hermcneis,  de  Aristóteles) ;  2.0  Dos  cinco  uni- 
versaes  (dos  Predicáveis  de  Porphyrio) ;  3.0  Dos 
Predicamentos  (Predicam.^^nta,  de  Aristóteles) ; 
4.0  Do  Syllogismo  simpliciter  (Liber  Priorum, 
de  Aristóteles) ;  5.0  e  6.0  Das  Falácias  (Elencos. 
de  Aristóteles).  .A  estes  seis  tratados  segiiiam- 
se  os  outros  seis  conbecidos  pelo  titulo  geral 
De  parvis  logicalihns,  divididos  arbitrariamente 
nas  Escholas:  7.0  Da  Supix>sição;  8.0  Da  Relaçã»  ; 
9.0  Da  Amplificação;  lo.o  Da  Appellação;  11. o  Da 
Restricção;   12.0  Da  Distribuição. 

As  Simimiilas  logicales  de  Pedro  Hispano 
eram  um  claro  resumo  do  Organon  de  Aristóte- 
les, que  Hauréau,  o  erudito  critico  da  Philosophia 
Scholastic^  considera:  «feito  com  gosto  e  intelli- 
gencia,  e  que  mereceu  tornar-se  o  manual  dos 
professores  e  dos  estudantes.»  Kaebler,  nas  No- 
ticias sobre  o  Papa  João  xxi,  celebre  medico  c 
philosopho  sob  o  nome  de  Pedro  Hispano,  (Got- 
ting,    1760)   escreve:  «é  a  elle  que  pertence  sem 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  353 

duvida  o  engenhoso  quadro  das  diversas  espécies 
de  Argumentos,  reproduzido  frequentemente  d'aii 
em  diante.»  Allude  ás  formas  em  Baralipton, 
Bar  oco,  Datisis,  etc,  que  systematisaram  os  pro- 
cessos dialécticos  em  todo  o  ensino  europeu.  Pe- 
dro Julião  era  natural  de  Lisboa,  do  appellido  do 
orago  da  sua  freguezia,  arcediago  de  Vermoim, 
Dom  Prior  da  Collegiada  de  Guimarães  e  figura 
como  Bispo  de  Braga  sob  D.  Af fonso  1 1 1 ;  foi 
nomeado  Cardeal  pelo  papa  Gregório  x,  no  Con- 
cilio de  Leão  em  1274,  succedendo  no  pontificado 
a  Adriano  v,  em  1276,  eleito  em  Viterbo,  em  15 
de  Septembro.  Um  dos  primeiros  actos  d'este 
Clcricus  universalis,  assim  chamado  por  ser  gra- 
duado em  todas  as  Faculdades,  foi  estabelecer  a 
concórdia  entre  Philippe,  rei  de  França  e  Alfonso 
o  Sábio  de  Castella;  em  uma  das  Canções  deste 
Rei-trovador,  allude  a  elle,  e  a  um  Canonista 
compostellano  chamado  Garcia  Bernardo: 

Pêro  que  ey  ora  mengoa  de  companha, 
Nen  Pêro  Garcia,  nem  Pcro  d'Espanha 

Nen    Pêro   galego 

Non  iran  comego. 

E  ben  volo  juro  por  Santa  Maria, 
Que  Pcro  d'Bspanha,  nem  Pêro  Garcia 

Nen   Pêro  galego 

Non  iran  comego... 

Canc.  Gol.,  n.°  365. 

Rcro  Hispano,  que  seguia  o  aristotelismo  aver- 
roista,  adoptara  o  mesmo  auctor  árabe  nos  seus 
estudos  médicos,  Cânones  medicinales  e  Thesau- 
rus Paupernm.  Martinho  de  Fulda  f aliando  d'es- 
ta  obra,  escreve:    «.Fuit  magnus  jnedicus.))    Da- 

23 


^54  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

reniberg,  na  Historia  das  S ciências  medicas,  (vol. 
I,  282)  aponta-o  como  um  dos  continuadores 
de  Bartholomíeus,  de  Cophon,  de  Maurus  e  dos 
outros  mestres  da  Eschola  de  Salerno,  em  que 
prevalecia  o  caracter  menos  individual,  com  um 
methodo  dialéctico.  Ainda  depois  da  sua  morte, 
alguns  dos  seus  tratados  foram  traduzidos  em 
grego.  As  relações  de  Pedro  Hispano  com  Affon- 
so  o  Sábio,  actuariam  no  emi^enho  de  Dom  Di- 
niz em  fundar  a  Universidade  de  Lisboa. 

A  corrente  mystica  representada  pelos  Fran- 
ciscanos, no  século  xiv  brilha  com  a  excelsa  fi- 
gura de  António  de  Lisboa,  sancti  ficado  nas  poé- 
ticas lendas  ix>pulares,  pela  influencia  da  sua  pré- 
dica, e  finando-se  aos  trinta  e  sete  annos.  San 
Francisco  de  Assis  mandara-o  seguir  os  cursos 
de  Artes  (Grammatica,  Lógica  e  Rhetorica)  e  de 
Theologia  no  mosteiro  em  Vercelli,  onde  ensinava 
Thomaz  Gaulez,  vindo  depois  ensinar  1'heologia 
em  Bolonha,  junto  de  Rolando  Bandinelli  (papa 
Alexandre  1 1 1 )  e  como  suppõe  Tiraboschi,  ao 
lado  de  S.  Thomaz  de  Aquino.  Um  bello  docu- 
mento litterario  apparece  restituido  a  Santo  An- 
tónio ;  escreve  Renan.  que  o  Cântico  delle  Crea- 
tiirc,  de  San  Francisco  de  Assis,  fora  posto  em 
verso  pelo  nosso  insigne  portuguez:  «O  texto 
italiano  que  se  i)ossue,  é  uma  traducçao  de  uma 
versão  portugueza,  que  tamisem  fora  traduzido 
do  hespanhol.»  i  N'esta  é]X)ca  a  litigua  caste- 
lhana (só  modernamente  chamada  hespanhol)  não 


I     Nouvellcs  lítudcs  dllist.  rcUgicuse,  p.  331. 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  355 


era  empregada  no  lyrismo,  tendo  o  próprio  rei  de 
Castella  Affonso  o  Sábio  adoptado  o  portuguez. 
Para  italiano  tradnzin-o  rimando-o  Frei  Pacifico. 

Essa  corrente  mystica  da  Edade  média  appre- 
senta.  a  par  da  ortodoxa  representada  por  Joachim 
de  Flores  no  Evangelho  Eterno,  uma  outra  hete- 
rodoxa ou  materialista,  resumida  no  livro  ima- 
ginado dos  Três  Impostores,  que  foi  memorado 
em  Portugal  por  um  tal  Thomaz  Scot,  prezo  em 
Lisboa  ((por  ter  ousado  repetir  por  toda  a  parte, 
que  houve  no  nunido  Três  Impostores  (Três 
fnisse  in  imindo  deceptores).))  Colhendo  esta 
noticia  de  um  manuscripto  intitulado  Collyrium 
Fidei  eontra  hacreseos,  escreve  Victor  Le  Clerc: 
«Cíjmo  é  que  esta  impiedade  tão  antiga,  e  que 
Gabriel  Barlette  no  seu  sennão  sobre  Santo  An- 
dré attribue  por  antecipação  a  Prophyrio,  teria 
chegado  a  Lisboa?» 

Lxplica-se  perfeitamente  pelo  aristotelismo 
averroista,  que  dominava  em  Portugal ;  Renan  no 
seu  admirável  estudo  sobre  Averroes,  escreve: 
(fVé-se  que  não  foi  sem  alguma  rasão  que  a  opi- 
nião attribuiu  a  Averroes  o  pensamento  criminoso 
do  parallelo  das  religiões  e  do  titulo  dos  Três 
Impostores.  Este  pensamento  que  perseguia  como 
um  pezadello  todo  o  século  xtti,  era  em  parte  o 
fructo  dos  estudos  árabes...»  Pela  cultura  dos 
Árabes  é  que  se  generalisou  a  Philosophia  de 
Aristóteles  em  Portugal  modificando  a  corrente 
dialéctica  cjue  considerava  a  Philosophia  ancilla 
Theologice.  No  Nobiliário  do  Conde  D.  Pedro 
cita-se  a  auctoridade  do  stagirita:  ((Esto  diz  Aris- 
t o  til l es,   que   sse   os   homeens   ouvessem   antre   si 


J56  HISTORIA    DA    LlTTIvRATURA    PORTUGUEZA 


amisade  verdadeira  nom  averiam  mester  rreys  nen 
justiças,  cá  amisade  os  faria  viver  seguramente... 
(Mon.  hist.,  Scriptores,  i,  230.)  Um  outro  cory- 
pheo  do  aristotelismo  averroista  em  Portugal  foi 
Gil  de  Roma,  o  auctor  do  De  Regimine  Prínci- 
puni,  que  Dom  João  i  citava  aos  seus  cavalleiros 
durante  o  cerco  de  Ceuta,  e  que  o  Infante  D.  Pe- 
dro traduzia  para  portuguez. 

2.0  As  Traducções  latinas.  —  O  exame  dos 
catálogos  das  Livrarias  claustraes,  episcopaes  (t 
reaes  revelam-nos  as  fontes  eruditas  e  tradicio- 
naes,  que  exerceram  o  desenvolvimento  litterario 
das  modernas  linguas  nacionaes  e  suscitaram  no- 
vas idealisaçÕes  poéticas.  Predominavam  as  obras 
de  jurisprudência  canónica  e  cesárea  nas  Livra- 
rias dos  bispos  do  Porto,  D.  Vasco  de  Sousa, 
(1331)  de  Dom  Vicente  (1334);  os  nossos  bis- 
pos, como  observa  Villa-Nova  Portugal,  que  an- 
daram sempre  no  caminho  de  Roma,  traziam  de 
França  e  da  Itália  as  Compilações,  principalmente 
de  Graciano,  —  as  obras  de  Durant  chamado  o 
Speculator^  de  Alberico  de  Rosate,  de  Guido  Pa- 
pa, que  todos  escreveram  por  1280  até  1300  e  á^i 
outros.  A  Livraria  do  Mosteiro  de  Alcobaça 
(hoje  em  grande  parte  guardada  na  Torre  do 
Tombo  e  na  Bibliotheca  nacional)  era  riquissima 
de  traducções  em  lingua  portugueza,  que  vem  dv) 
século  XI  ao  século  xiv.  O  erudito  Visconde  (.h 
Santarém  que  visitou  essa  opulenta  Livraria  an- 
tes da  extincção  das  Ordens  religiosas,  em  notas 
addicionaes  á  carta  ao  Barão  de  Mielle,  aponta 
um  documento  do  século  xi,  a  traducção  da  Re- 


PRIMEIRA   época:    Edade    média  357 


gra  de  San  Bento;  dez  do  século  xii;  setenta  e 
dois  do  século  xiii :  «notando  especialmente  dois 
J3iccionarios  geographicos  latinos  do  monge  Bar- 
tholomeu ;  um  Vocabulário  latino  por  Fr.  Af f onso 
do  Louriçal ;  e  uni  exemplar  das  C o Ji fissões  de 
Santo  Agostinho,  copiado  por  Frei  António  de 
Condeixa;»  do  século  xiv,  setenta;  e  vinte  e  cinco 
do  século  XV.  D'estas  enormes  riquezas  philolo- 
gicas  e  litterarias  em  portuguez  está  publicada  uma 
diminuta-  parte. 

Frei  Fortunato  de  S.  Boaventura  publicou  a 
traducção  dos  Actos  dos  Apóstolos,  os  D  es  Man- 
damentos, fragmento  da  Regra  de  San  Bento,  e 
as  Historias  d' abreviado  Testamento  Velho,  se- 
gundo o  mecstre  das  historias  scolasticas  e  segun- 
do outro  que  as  abreviaram,  e  com  dezeres  d'al- 
giins  doctorcs  c  sabedores,  i  Aponta  esta  parte 
apelo  menos  do  século  xiv,  foi  trasladada  do  la- 
tim de  Pedro  chamado  Comestor,  e  que  sendo  te- 
cida pela  maior  part:  das  palavras  formaes  do 
texto  sagrado,  e  na  jiarte  da  historia,  que  falta 
n'este,  seguindo  litterariamente  a  Flávio  Jose- 
pho...»  Na  Bibliotheca  dos  Bispos  de  Lamego 
existia  uma  copia  d'esta  traducção  do  Velho  Tes- 
tamento, que  «pertenceu  a  Francisco  de  Sá  e  Mi- 
randa.» Com  estas  traducções  do  século  xiv,  com 
a  dos  Actos  dos  Apóstolos  do  século  xv,  com  as 
traducções  integraes  do  P.  João  Ferreira  de  Al- 
meida do  século  XVII,  e  António  Pereira  de  Fi- 


I     Collecção    de   Inéditos   portugueses   do   século    xiv, 
Coimbra,  1829.  3  vol.  in-8." 


558  IIJSTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUEZA 

gueiredo  temos  documentadas  todas  as  modifica- 
ções morphologicas  porque  passou  a  lingua  por- 
tugueza. 

O  mais  antigo  documento  que  reproduz  Frei 
Fortunato  de  S.  Boaventura  é  a  Regra  de  Sau 
Bento,  que  pertenceu  ao  Convento  de  S.  Paulo 
de  Almaziva  a  par  de  Coimbra.  Transcrevo  as 
suas  primeiras  linhas:  «Filho,  ascuita  os  prece- 
ptos  do  mestre,  e  inclina  a  orelha  de  teu  coraçom 
e  recil^e  de  boamente  o  amoestamento  do  padre 
piadoso,  e  afficadamente  o  comple,  por  que  te 
tornes  per  trabalho  de  obediência  a  aquel  do  qual 
te  partiste  per  prigiu'ça  de  desol3ediencia.))    fín^-d., 

h  249.) 

O  Códice  n.o  37  (cclvi),  in-4.0  magno  do  fim 
do  século  xTv,  traz  os  seguintes  textos  em  por- 
tuguez : 

P^ida  angélica  do  infante  Josafat,  filho  d<: 
Avenir,  rei  indiano.  ^ 


1  Publicado  em  1898  nas  Memorias  da  Academia  real 
das  Sciencias :  Lenda  dos  Santos  Barlaão  e  Josafat.  (O 
texto  foi  copiado  pelo  paleographo  Aires  de  Sá.)  No  Ms. 
tem  o  nome  do  traductor  Frei  Hilário  da  Lourinhã,  em  le- 
tras do  século  XVI II.  E'  a  celebre  lenda  budhica  extrahida 
do  'Latita  Vistara,  como  o  prova  Max  Muller  (Essais  de 
Mythologie  comparée,  p.  451  a  467.)  O  nome  de  Josaphai, 
empregado  pelos  christãos  orientaes  na  forma  de  Joasaf, 
apparece  alterado  em  Budaf.  por  falta  dos  pontos  diacri- 
ticos  de  Bododliisathva.  (Renan,  Etudes  d'Hist.  rclig.,  p. 
133)  Attribuiu-se  esta  versão  primitiva  a  S.  João  Damas- 
ceno, mas  pertence  ao  monge  João  de  Damasco,  anterior 
a  Mahomet  a  sua  vulgarisação  em  grego,  e  a  Surio  em 
latim.  Os  Bollandistas  acceitaram  esta  vida  lendária  de 
Budha   nas  Acta  Sanctorum  de  27  de   Novembro.    O  tra- 


PRIMEIRA    KPOCA  :     EDADE    MEDIA  359 


Vida  de  Santa  Buphrosina,  filha  de  Panucio. 
Vida  de  Santa  Maria  Bgypciaca. 
Vida  de  Santa  Tarsis.  i 
Vida  de  Santo  Aleixo,  Confessor. 
Vida  de  certo  Monge. 

Exposição  do  Decálogo,  segundo  a  Doutrina 
da  Bgreja. 

Narração  da  morte  de  S.  Jeronymo. 

O  Conto  de  Amaro.  - 

Historia  do  Mouro  que  desejou  ir  ao  Paraíso. 

Historia  do  CavaUeiro  Tubuli  (Tundal. ) 

No  Códice  n.o  244  da  Bibliotheca  nacional,  de 
í\.  90  a  104  vem  uma  outra  versão : 

—  Bstoria  d' hum  Cavalleyro  a  que  chamava 
TuNGUivO,  ao  qual  foram  mostradas  visivelmente 
c  no  per  outra  revclaçõ  todas  as  penas  do  inferno 
c  do  purgatório.  B  outrosi  todos  os  beês  e  glorias 
que  ha  no  santo  parayso,  aúdando  sempre  hú  an- 
geo  eõ  el.    Bsto  lhe  foy  demostrado  por  tal  que 


(luctor  portnguez  termina  com  a  seguinte  declaração :  ^^Ora 
diz  Johã  de  maceno  que  esta  estorya  screpveo  em  lingu- 
gem  grego :  Eu  escrepvi  este  sermõ  segundo  m>eu  poder, 
assy  como  apprendy  de  mui  honrrados  e  verdadeyros  barõoes 
que  m'o  assy  contarõ.  E  dos  que  vyra  que  este  reconta- 
mento  escrevia  a  proveyto  das  almas  de  nos  outros  que  o 
leemos  ê  tal  guisa  que  merecemos  seer  contados  ê  a  parte 
dos  Santos  Barlaão  e  Josaphat  bem  aventurados  amigos 
de  nosso  senhor.^^ 

1  Publicadas  pelo  Dr.  Jules  Cornu,  na  Romania,  vol. 
XVI  (1887)  de  pag.  357  e  390.  —  Também  publicou  no  vol. 
XI  da  Romania,  sob  o  titulo  de  Anciens  Textes  portugais. 
excerptos  do  Orto  de  Esposo. 

2  Publicado  na  Romania,  vol.  xxx,  por  Otto  Klob. 
Paris.  1901. 


3^0  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


SC  oiivessc  de  cor  reger  e  emendar  dos  seus  pec- 
cados  e  de  suas  maldades,  i 

O  Códice  ccivXxiii  contém: 

Orto  do  Esposo  de  vários  lo  gares  da  Bscri- 
ptura,  dos  Prophetas  e  Santos  Padres,  dividido 
em  diversos  capitidos  com  muitos  Exemplos.  Por 
Frei  Hermenegildo  de  Tancos.  No  códice  seguin- 
te \'eni  outra  versão  do  Orto  do  Esposo.  2  São  nu- 
merosos os  Exemplos  ou  Contos  moraes,  que  for- 
mavam a  elaboração  originalissima  das  Littera- 
turas  modernas:  Exemplo  das  três  Donzellas  (fl. 
16);  Trajano  e  a  Viuva  (fl.  20);  é  assumpto  de 
um  panno  de  raz  do  tempo  de  D.  João  1 1 ;  o 
Avarento  (fl.  48) ;  O  rei  que  anda  de  noite  (fl. 
54);  O  homem  beberrão  (fl.  55  T):  O  que  se 
fa^  pelo  melhor  (fl.  63  T);  O  rei  Alburno  (fl. 
97);  O  criado  que  casa  com  a  ama  (fl.  89  T); 
Os  dois  irmãos  (fl.  90  T) ;  A  Papisa  Joanna  (fl. 
99) ;  Os  Ladrões  (fl.  105)  ;  O  Cavalleiro  que  em- 
pobreceu (fl.  120)  ;  Os  esposos  piedosos  (fl.  125)  ; 
O  Imperador  e  o  filho  (fl.  122  y,^):  Os  dois  Irmãos 
(fl.  127);  A  arte  das  mulheres,  (fl.  139.)  3 


1  A  traducção  do  Cod.  cclvii,  fl.  124  a  137,  está  pu- 
blicada na  Rc7'{sta  Lusitana,  vol.  viii,  p.  249,  por  J.  J.  Nu- 
nes. Esta  outra  redacção  do  Cod.  ccxliv.  fl.  90  a  104,  foi 
também  publicada  na  Rcz'ista  Lusitana,  vol.  iii,  p.  loi,  por 
Esteves  Pereira.  Attribue-se  a  primeira  traducção  a  Frei 
Hilário  da  Lourinhã,  e  a  segunda  a  Fr.  Hermenegildo  de 
Payopelle.  Apontam-se  muitas  versões  d'esta  lenda  nos 
mosteiros  da  peninsula.   Mussafia.  SuIIa  Visione  di  Tundalo. 

2  O  Dr.  Julcs  Cornu  copiou  estes  dois  textos,  e  pre- 
para uma  edição  critica  do  Orto  do  Esposo. 

3  Alguns  d'estes  Contos  e  Eitemplos   foram  publica- 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  361 

Outros  Códices  da  Livraria  de  Alcobaça,  são 
versões  portuguezes  de  livros  ascéticos,  como  o 
Liuro  ascético  intitulado  Castello  perigoso;  a  Vida 
de  San  Bernardo,  traduzida  por  Fr.  Francisco  de 
Melgaço,  e  o  Espelho  de  Monges,  pelo  mesmo. 

A  Lenda  de  Santo  Bloy.  i 

Vida  de  S.  Nicolau.  2 

Vida  da  Rainha  Santa  Isabel.  —  Apparece 
este  documento  pela  primeira  vez  referido  no  tes- 
tamento do  Infante  D.  Fernando,  o  Santo,  feito 
antes  da  partida  para  Tanger:  «Item,  o  Livro 
da  Rainha  Santa  Blisabet.»  Este  livro  veiu  parar 
ao  Mosteiro  de  Santa  Clara,  de  Coimbra,  d'onde  o 
copiou  Frei  Francisco  Brandão  em  1751.  (Mo- 
narch.  Lusít.,  P.  vi.)  Uma  copia  existe  no  Vati- 
cano como  documento  para  o  processo  da  sua  ca- 
nonisação.  O  códice  de  Santa  Clara,  Relação  da 
Vida  gloriosa  de  Santa  Isabel  Rainha  de  Portugal 
tem  no  principio  "a  sua  imagem  vestida  com  ha- 
bito, cordão,  manto  e  véo  da  ordem;  na  mão  di- 
reita um  crucifixo  e  na  cabeça  uma  coroa  de  es- 
pinhos ;  a  seus  pés  a  coroa  e  sceptro,  com  a  letra : 
CriLv  et  spinea  corona  Domini  mei,  sceptrum  et 
corona  mea.  Um  pequeno  excerpto  fará  conhecer 
a  antiguidade  do  seu  texto:  «Em  sa  casa  se  cria- 
vam filhas  de  muitos  nobres  homens,  e  filhos  cb 
cavalleiros  e  d'outros  homens,  e  dos  que  eram  de 
edade,  e  achavam  casamentos  a  si  eguaes,  casa- 


dos  nos   Contos   tradicionaes  do   Povo   português,  vol.   11, 
p.  38  a  60. 

1  Impressa  por  Hincker.  em  1900 ;  começou  a  publica- 
ção no  Instituto,  de  Coimbra,  vol.  xlvii. 

2  Dois  fragmentos  publicados  por  P.  A.  de  Arevedo. 
1905 


362  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUIÍZA 

va-os,  e  outros  punha  em  ordem  a  cada  uma  Deus 
procurava,  e  dava  a  elle  de  seu  haver,,  segundo 
a  i>essoa  que  era  e  o  estado  que  filhava.  Outros 
muitos  e  muitas  que  non  eram  de  sa  casa,  que  o 
a  ella  demandavam,  fazia  ella  ajuda  para  casarem 
seus  filhos  ou  para  necessidades  outras  que  hou- 
vessem:... E  per  hu  ella  hia  non  ficavam  empa- 
redadas, nem  gafos,  nem  prezos,  que  sa  esmola 
non  recebessem  parte.»  As  lendas  poéticas  que  en- 
volveni  a  vida  de  Santa  lsa])el,  como  a  do  pagem 
lançado  ao  forno,  ou  como  a  das  esmolas  conver- 
tidas em  rosas,  acham-se  nos  cantos  ix)pulares  por- 
tuguezes ;  a  primeira  apparece  na  sua  forma  mais 
antiga  em  um  Fableau,  publicado  por  Legrand 
Aussy,  na  Gesta  Romanorum,  nas  Cento  Novelle 
antieJie,  e  nas  de  Geraldo  Cynthio,  e  ainda  na  Can- 
tiga Lxxxviii  das  Cantigas  de  Santa  Maria  de 
Affonso  o  Sábio:  a  das  rosas  figura  também  na 
Vie  de  Sainte  Elisabeth  de  HiDigrie. 

b)    o  Poder  real  protege  o  HVM\y\syio 

A  sociedade  civil  no  século  xiv  estaljelecia 
pela  acção  dos  Jurisconsultos  e  do  proletariado, 
apoiados  no  poder  temporal  da  realeza,  as  condi- 
ções da  sua  secularisação  e  independência.  Tal  é 
o  sentido  da  divisa:  As  Universidades  sennn 
fiara  ensinar,  em  contraposição  com  o  ensino  cle- 
rical das  Collegiadas:  as  Jurandas  serzriu  para 
edificar,  em  contraposição  cá  actividade  guerrei- 
ra dos  barões,  fortificando-se  a  classe  obreira  com 
espirito  e  disciplina  da  associação:  e  na  ordem  po- 
litica, os  Estados  servem  para  governar,  contraba- 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  363 

lançando-se  assim  a  vontade  popular  com  a  pre- 
potência senhorial  em  um  accôrdo  de  que  resultou 
o  reconhecimento  do  principio  supremo  da  sobe- 
rania nacional  definida  i>elos  Jurisconsultos.  A' 
sombra  d'este  impulso  de  reorganisação,  procu- 
rou o  Poder  real  estabelecer  a  sua  independência, 
submettendo  á  lei  escripta,  estabelecimento,  códi- 
go geral  ou  ordenação  a  arbitrariedade  dos  ba- 
rões. Para  isso  tratou  de  coadjuvar  a  emancipação 
das  classes  servas,  de  garantir  as  franquias  com- 
munaes  das  Cartas  pueblas  ou  dos  Foraes,  fixa- 
das pelo  costume  ou  direito  consuetudinário ;  as-  "^ 
sim  se  real i sou  a  elevação  do  terceiro  estado,  de- 
frontando com  os  estados  clerical  e  aristocrático. 
Pela  protecção  aos  estudos  humanistas  atacou  o 
poder  espiritual  da  Egreja,  que  se  impunha  pelo 
ensino  das  CoUegiadas,  o  único  que  então  existia 
na  Europa;  e  fazendo  renascer  o  ensino  e  o  uso 
do  Direito  romano,  em  que  estava  definida  a  es- 
phera  dos  direitos  reaes,  atacou  a  classe  senho- 
rial, avocando  a  si  o  direito  de  levantar  hoste,  de 
bater  moeda,  de  ter  justiças  próprias,  e  o  privile- 
gio de  conferir  nobreza.  O  emprego  da  lingua 
vulgar  para  as  obras  litterarias  e  jurídicas,  a  fun- 
dação de  uma  Universidade,  e  a  coordenação  dos 
Nobiliários  ou  Livros  de  Linhagens  são  factos  ca- 
pitães que  nos  relacionam  com  a  marcha  da  civi- 
lisação  moderna  n'esta  phase  ephemera  mas  ful- 
gurante da  primeira  Renascença. 

i.o  Fontes  poéticas  da  Antiguidade  clássica. 

—  Libertado  o  sentimento  poético  da  Edade  mé- 
dia da  obsessão  religiosa  das  Lendas  agiologicas 


3^4  HISTORIA    DA    UITTIÍRATURA    PORTUGUKZA 

■ k „ 

e  das  Gestas  guerreiras  do  Feudalismo,  o  génio 
esthetico  foi  encontrar  novos  themas  para  a  ideali- 
sação  nos  poemas  gregos,  romanos  e  orientaes. 
Remodelaram-se  n'essa  livre  phantasia  dos  trovis- 
tas  a  Illiada  de  Homero,  a  Eneida  de  Virgílio,  a 
Thebaida  de  Stacio,  a  Pharsadia  de  Lucano,  as 
Mctainorphoses  e  os  Amores  de  Ovídio.  Era, 
como  observa  Constans  «uma  esclnola  em  que  se 
apropriava  a  matéria  antiga  ao  gosto  e  aos  cos- 
tumes do  século  XV,  tomando  da  Kpopêa  clássica 
e  da  Historia  lendária  os  assumptos  novos  mais 
apropriados  do  que  as  antigas  Gestas  a  um  es- 
tado de  civilisação  já  menos  rude,  graças  á  influen- 
cia crescente  do  Meio  Dia  e  da  sua  brilhante  poe- 
sia.» I  No  Roman  de  Flamenca,  vem  enumeradas 
as  Gestas  eruditas  que  constituíam  este  cyclo  dos 
poemas  greco-romanos,  uns  que  ficaram  na  for- 
ma rudimentar  do  Lai  narrativo  e  outros  deram 
grandes  ix)emas,  como  a  Historia  de  Troya,  o  ro- 
mance de  Thebas,  Bneas,  Jtdio  César  e  Alexan- 
dre: ((Um  canta  de  Priamo,  outro  de  Piramo;  ou- 
tro, da  bella  Hellena,  como  Paris  foi  á  sua  pro- 
cura e  depois  a  trouxe:  outro  canta  de  Ulysses, 
outro  de  Heitor  e  de  AchiUes.  Outro  cantava  de 
Encas  e  de  Dido  e  como  por  elle  ficou  triste  e 
desolada:  outro  cantava  de  Lavinia...  de  AppoUn- 
nice,  de  Tideii,  de  Etidiocles...  Um  canta  de  Ale- 
xandre, outro  de  Leandro  e  de  Hero.  Um  de  Ca- 
dmo  e  sua  fuga,  e  de  Thebas  como  se  edificou. 


I     VEpopcc  antique  (Na  Hisf.  litteraire,  de  Julleville, 
t.  I.  p.  184.). 


PRIMEIRA  época:  EDADE  MÉDIA  36; 


Outro  cantava  de  Jason  e  do  Dragão  que  desco- 
nhecia o  somno;  outro  cantava  de  Hercules  e  da 
sua  valentia;  outro,  como  Philis  attenta  contra  si 
pelo  amor  de  Demophonte.  Um  diz  como  o  bello 
Narciso  se  afogou  na  fonte  onde  se  mirava.  Um 
diz  de  Phitão  como  roubou  a  Orpheo  a  sua  bella 
esposa...  Um  canta  de  Júlio  César,  como  passou 
sósinho  o  mar,  por  que  não  sabia  o  que  era  o  me- 
do...» Joly,  no  vasto  estudo  critico  que  acompa- 
nha o  poema  da  Historia  de  Troya  de  Benoit  de 
Sainte  More,  dá-nos  a  conclusão  critica  sobre  este 
grande  cyclo  poético:  «Sabe-se  o  que  fizeram  os 
velhos  troveiros  da  Epopêa  clássica.  Na  reali- 
dade a  sua  obra  nada  tem  de  antigo,  nem  litteraria 
nem  moralmente.  Das  qualidades  litterarias  das 
obras  primas  da  Grécia  e  de  Roma  nada  têm; 
nem  a  sciencia  da  composição,  nem  o  sentimento 
da  unidade,  nem  a  largueza  dos  desenvolvimen- 
tos, nem  a  perfeição  da  forma,  nada  emfim  do 
que  constitue  o  artista.  E  mesmo  por  isso,  estes 
poemas  appresentam  um  interesse  que  os  excede, 
por  assim  dizer,  lançam  uma  viva  luz  na  poesia 
da  Edade  média  inteira.»  ^  Benoit  de  Sainte  Mo- 
re, não  conheceu  directamente  a  Illiada  de  Ho- 
mero; como  lhe  chegaram  as  tradições  troyanas? 
Desde  o  século  iii,  que  ellas  eram  conhecidas  por 
Aeliano,  no  século  ix  por  Macelas,  no  x  por  Cons- 
tantino Prophyrogeneta,  no  xi  por  Suidas,  e  no 
século  XIII    por  Isac   Prophyrogeneta,   Constan- 


I     Benoit  de  Sainte  More  et  le  Roman  de  Troie,  t,   i, 
P.  391. 


S66  HISTORIA    DA    LlTTÊRATURA    PORTUGU^ZA 


tino  Manasses,  João  e  Isac  Tzetzés.  E'  por  tanto 
explicável  como  pela  tradição  scholaresca  veiíi  esta 
corrente  fecundar  a  poesia  medieval  jogralesca.  O 
pedantismo  erudito  fez  com  que  essas  relações  ima- 
ginosas da  ruina  de  Tróia  se  convertessem  em  fa- 
ctos históricos.  O  Conde  Dom  Pedro,  o  que  legou 
a  í).  Affonso  xi  de  Castella  o  seu  Livro  das  Can- 
tigas, transcreve  no  seu  Nobiliário  grandes  pe- 
ripécias da  Historia  de  Troya.  Isto  nos  explica  o 
facto  de  Affonso  xi  mandar  traduzir  da  lingua 
portugueza  para  o  castelhano  uma  Historia  de 
Troya.  O  archivista  André  Martinez  Salazar,  que 
publicou  este  monumento  considerado  como  es- 
cripto  em  gallego,  observa :  «O  Códice  acha-se  em 
bom  estado  de  conservação.  —  Tem  guardas  de 
pergaminho,  e  capa  de  chagrin  verde  com  ferros 
lendo-se:  Crónica,  Troiana,  Em  Português. 
Formou  parte  da  Bibliotheca  do  Marquez  de  San- 
tillana.» 

Sobre  a  lingua  da  Historia  de  Tróia,  impressa 
como  gallega,  escreve  o  consciencioso  editor :  «Não 
tem  unidade  linguistica,  contendo  formas  de 
todos  os  dialectos  da  região,  umas  litterarias, 
e  outras  populares,  que  são  as  que  ainda  se 
conservam  na  linguagem  fallada  actualmente:  (p. 
XIV.)  E  em  nota:  «A  lingua  portuguesa  concor- 
reu mais  ou  menos  para  estas  formas  litterarias 
archaicas.))  Accrescentando  em  seguida:  «Nos 
escriptos  portuguezes  do  século  xv  é  difficil  quan- 
do não  impossivel  distinguir  o  gallego  do  portu- 
guês, a  não  ser  pelas  formas  dialectaes  e  locaes 
c  pela  ortographiú...  mas  não  negaremos  a  pos- 
sibilidade de  que  esta  versão  gallega  tenha  pas- 


PRIMEIRA    KPOCA:     EDADE    MÉDIA  Z^ 

sado  por  outra  portugjLieza...»  (p.  xv.)  Vê-se  que 
o  copista  gallego  pelas  simples  alterações  gra- 
phicas  naturalisou  o  texto,  que  em  tudo  ficou  por- 
tuguez  do  século  xiv;  d'esta  Historia  de  Troya 
mandou  Affonso  xi  fazer  uma  traducção  cas- 
telhana. I 

Para  formar-se  ideia  do  texto  portuguez  da 
Historia  de  Troya,  basta  um  excerpto  do  Nobiliá- 
rio do  Conde  D.  Pedro:  «,0  primeiro  rrey  que 
pobrou  a  Troya  ouve  nome  Dardanus,  e  por  esto 
as  g-entes  da  terra  forom  chamadas  dardanides. 
Esto  foy  no  tempo  d'Abraham,  quando  sayo  das 
cidades  dos  caldeus.  —  Depois  de  Dardanus  ouue 
hi  outro  rrey  Ilius ;  aqiielle  fez  o  catello  de  Troya. 
E  por  este  rrey  Ilius  ouve  o  castello  nome  Ylom. 
E  depois  do  rrey  Ylius,  rreynou  Leomedon.  Este 
Leomedon,  per  a  maa  colhença  que  fez  a  Jason, 
neto  de  Peltus,  quando  vençeo  Tarson,  do  ouro 
fiue  era  na  Ilha  de  Calcus.  E  por  esta  rrasom 
([uando  se  tornou  Jason,  rrogou  seus  amigos  e  pa- 
rentes. E  veerom  com  grande  oste  sobre  a  Troya. 
e  cercou-a  e  tomou-a,  e  matou  rrey  Leomedon,  e 
tomou  huma  sa  filha  que  avia  nome  Esiona,  le- 
voua  cativa  e  foy  a  cidade  destroyda.  P^ste  rrey 
Leomedon  avia  hum  filho  que  aA'ia  nome  Priamo, 


I  Escreve  Menendez  Pidal :  **Creio  que  a  castelhana, 
que  está  no  Escurial,  ainda  que  feita  também  na  corte  de 
Àlfonso  XI  e  de  Pedro  i.  se  fez  sobre  a  gallcga,  contra  o 
que  affirma  Amador  de  los  Rios.  Digo  isto  por  que  al- 
guns galleguismos  descobri  na  do  Escurial. ^^  Carta  ao 
Dr.  Rennert.  Revista  gallcga,  anno  viii,  n."  361.  (1901.) 
A  anterioridade  da  versão  gallaico-portugueza  sobre  a  cas- 
telhana está  provada  pela  chronologia  litteraria  d'essa  época. 


368  HISTORIA    DA    UITTRRATURA    PORTUGUEZA 


e  era  ido  com  grande  hoste  sobre  seus  emiigos,  e 
iiom  foy  no  destroimento  da  cidade.  E  quando 
tornou  achou  seu  padre  morto  e  a  cidade  destroi- 
da,  e  pobroua  outra  vez.  E  cercoua  outra  vez 
darredor  de  boom  muro  e  fezea  a  mais  forte  que 
pode  pêra  se  defender  de  seus  emiigos.  —  Este 
rrey  Priamo  ouve  cinquo  filhos  de  sua  mulher,  que 
foram  muy  boons  cavalleiros,  hum  ouve  nome 
Eytor,  e  outro  Paris,  e  o  terceiro  Troillos,  e  o 
(juarto  Deifebus,  e  o  quinto  Elenus.  E  consse- 
Ihou-se  rrey  Priamo  com  seus  filhos  e  seus  ami- 
gos, e  enviou  Paris  seu  filho  a  Greçia  per  clamar  o 
torto  que  lhe  aviam  feito  os  rreys,  de  Leomedon  e 
de  seu  padre  que  lhe  matarom,  e  de  sua  irmãa 
Esiona,  que  tinham  cativa.  E  Paris  foy  á  Greçia, 
e  levou  XII  naaos  e  duzentos  cavalleiros  e  gran- 
des gentes  de  pee  e  asy  veo  a  Greçia.  E  entom  avia 
pervemtuira  que  era  hi  ajuntada  toda  a  gente  da 
terra  a  humma  festa  que  hi  faziom.  E  era  hi  Ele- 
na  a  mulher  de  rrey  Menelaos  irmão  de  Game- 
non,  que  era  a  mais  fremosa  dona  de  toda  a  ter- 
ra. Paris  quebrantou  todo  o  templo  e  destroyu 
toda  a  gente  que  hi  era  e  cativou  os  que  quizerom. 
í\  filhou  a  rainha  Elena  e  levoua  a  Troya  para 
ssa  molher.  E  per  esta  rrazon  moveromsse  todas 
as  gentes  das  terras,  e  veerom  sobre  Troya  e  te- 
verom  a  cercada  dez  annos.  E  ouve  hi  grandes 
fazendas  e  mortes  grandes  cavallarias  assy  como 
falia  na  ssa  cstoría.  E  a  cabo  de  dez  annos  foy 
preza  a  cidade  per  gram  arte  e  per  grande  engano 
de  traiçom  que  hi  ouve  feita.  E  todos  os  que  ouve 
na  cidade  forom  mortos,  e  a  cidade  foy  destroyda 
e  queimada.» 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  36^) 

Depois  do  conhecimento  da  Hstoria  de  Troya, 
de  Benoit  de  Sainte  More,  revela  o  Conde  Dom 
Pedro  conhecimento  do  Romance  de  Bneas^  ela- 
borado sobre  o  poema  de  VirgiHo :  «Avia  hi  huum 
ricomem  em  a  cidade  que  avia  nome  Eneas  e  avia 
per  molher  a  filha  dei  rrey  Priamo,  que  avia  nome 
Aquilea.  E  prendeu  esta  molher  em  a  prisom  da 
cidade.  Este  Eneas  escapou  do  destroimento  da 
cidade  de  Troya.  E  ouve  trezentos  cavalleiros  e 
uíjue  naaos  e  meteosse  no  mar  e  trabalhou  hi 
muito  tanto  que  chegou  a  Cartago.  E  avia  hi  hum- 
ma  rainha  que  avia  nome  Dido.  E  rreçebeo  muy 
])em  e  amouo  muito  e  deu-lhe  seu  corpo  em  poder 
e  foy  senhor  de  ssa  terra.  E  a  cabo  de  tempo  par- 
tiosse  Eneas  delia  a  furto,  assy  que  ella  nom  o 
soube  e  leixoua.  E  depois  que  ella  o  soube  de  pe- 
sar que  ouue  matousse  com  humma  espada  que 
Eneas  lhe  avia  dado.  —  Eneas  aportou  en  Itália, 
bonde  ora  he  Roma...»  ^ 

Os  eruditos  do  século  xiv  explicavam  a  An- 
tiguidade clássica  identificando-a  com  a  sociedade 
feudal:  Troya  era  um  casteUo ;  os  filhos  de  Pria- 
mo hoons  cavalleiros,  Helena  uma  fremosa  dona. 
Eneas  um  ricomem.  Observa  Joly  no  seu  estudo 
sobre  Benoit  de  Sainte  More:  «Nos  séculos  xii 
exiii  a  Edade  média  era  ainda  impenetrável  ao 
espirito  da  Antiguidade  como  também  ás  suas  qua- 
lidades litterarias.  Tinha  muita  juventude  e  uma 
individuahdade  bastante  forte  para  poder  ser  ou- 
tra cousa  a  não  ser  ella  própria.    Immediatamente 


I     Mon.  hist.  —  Scriptores,  p.  236. 
24 


370  HISTORIA    DA    I^ITTERATURA    PORTUGUEZA 


instinctivamente,  inconscientemente  imprimia-lhe  a 
sua  original  e  forte  feição,  transformava  na  sua 
própria  substancia  tudo  quanto  tocava.»    (Op.  cit., 

II,  393-) 

No  fim  da  Edade  média  cessou  esta  visão  phan- 
tastica  da  Antiguidade  clássica,  mas  as  ficções  poé- 
ticas foram  reelaboradas  como  documentos  his- 
tóricos, postos  em  circulação  pelo  dominicano  Anio 
de  Viterbo,  que  considerava  como  de  origem 
troyana  todas  as  nacionalidades  modernas.  Já 
os  velhos  chronistas  Fredegario,  Roricon,  e  Pau- 
lo Warnefried  consideravam  os  Frankos  de  ori- 
gem troyana,  e  em  documento  de  Dagoberto  se 
lê:  Bx  nobilíssimo  et  antiqua  Trojanorum  reli- 
quiarmn  sanguine  nati.  Em  uma  carta  de  Eduar- 
do III  ao  papa,  mostrando-lhe  a  superioridade  da 
Inglaterra  sobre  a  Escossia,  allega  as  suas  ori- 
gens troyanas.  Um  bairro  de  Veneza  povonea- 
va-se  por  povoado  pelos  foragidos  de  Troya ;  e  no 
Bdda  de  Snorre  confundem-se  as  origens  scan- 
dinavas  com  as  lendas  troyanaâ.  Os  estudos  hu- 
manistas da  Renascença,  já  quando  a  crença  chris- 
tã  estava  abalada  pelo  protestantismo,  e  o  regi- 
men feudal  substituido  pela  realeza  absoluta,  de- 
terminaram a  negação  da  Edade  média,  transitan- 
do da  lenda  de  Trova  para  a  da  grandeza  de  Ro- 
ma, elaborando  a  ficção  politica  da  Monarchia  uni- 
versal. Estas  duas  tradições  emditas  reflecti ram- 
se  em  Camões,  quando  nos  Lusíadas  canta : 

Ulysses  c  o  que  i^z  a  santa  casa 
A'  deusa  que  lhe  dá  lingua  facunda, 
Que  se  lá  na  Ásia  Troya  insigne  abrasa. 
Cá  na  Europa  Lisboa  ingente  funda. 

(Cant.  VII,  est.  5.) 


PRIMEIRA     KPOCA  :     EDADE     MÉDIA  371 

2.0  Fundação  da  Universidade  de  Lisboa.  — 

A  cultura  greco-rpniana,  que  a  Egreja  renegara, 
appareceu  no  Occidente  nas  Escholas  árabes;  em 
529,  Justiniano  mandara  fechar  as  escholas  phi- 
losophicas,  e  Damascio,  Simplício,  Eulamio,  Pris- 
ciano,  Isidoro  de  Gaza,  Hermias  e  Diógenes  de 
Phenicia  refugiaram-se  na  corte  dos  Sassanides. 
Tal  foi  o  ponto  de  partida  da  communicação  das 
sciencias  da  Grécia  aos  Árabes,  por  via  dos  quaes 
se  tornaram  conhecidas  as  obras  mathematicas  de 
Euclides,  o  Almagesto  de  Ptolomeu,  as  obras  me- 
dicas de  Hipócrates,  o  Organon  de  Aristóteles, 
o  Phedon,  o  Cratylo  e  as  Leis  de  Platão.  Esta 
influencia  das  Escholas  Árabes  é  considerada  por 
J.  J.  Ampere  como  uma  primeira  Renascença.  Os 
que  haviam  frequentado  as  escholas  árabes  eram 
procurados  individualmente,  e  em  volta  da  sua 
cathedra,  em  um  logar  isolado  agrupavam  os  es- 
píritos sequiosos  de  saber.  A  organisação  das 
Universidades  foi  o  reconhecimento  d'este  novo 
modo  de  ensino,  de  que  tanto  a  Egreja  como  a 
Realeza  trataram  de  se  apoderar.  A  influencia  e 
o  conflicto  do  poder  papal  e  real  transparece  nos 
dois  titulos  Universidade  e  Estudo  Geral,  no  cargo 
de  Canccllario,  representando  o  antigo  inspector 
das  Collegiadas,  a  par  do  Rector  escolhido  pelos 
estudantes  ou  nomeado  pelo  rei;  na  intervenção 
dos  bispos  nos  gráos  doutoraes,  e  na  transferen- 
cia das  aulas  para  onde  residia  a  Ciôrte.  A  este 
periodo  da  creação  das  Universidades  no  século 
X 1 1  r ,  chamou  Ampere  a  segunda  Renascença. 
Os  reis  fundavam  Universidades  para  centrali- 
sarem  o  ensino,  evitando  assim  que  os  estudiosos 


,77-^  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

fossem  frequentar  as  Universidades  estrangeiras, 
de  Bolonha  ou  de  Paris.  Quando  Dom  Diniz  fun- 
dou em  1291  a  Universidade  de  Lisboa,  já  muitos 
portuguezes  se  tinham  distinguido  nas  Universi- 
dades itahanas  e  francezas.  A  Universidade  de 
Lisboa  foi  dotada  pelos  Abbadés  de  Alcobaça,  de 
San  Bento,  e  do  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coim- 
bra, e  Reitores  de  certas  egrejas  seculares.  Pela 
bulia  do  Nicolao  iv,  approvando  a  applicação  dos 
subsidios  aos  estudos  de  c:rta  faculdade  pcrmitti- 
da,  limitava-se  a  conceder  aos  lentes  e  escholares 
o  privilegio  de  foro  ecclesiastico,  sugeitando  os 
gráos  á  confirmação  do  bispo  de  Lisboa:  «que  os 
escholares  nas  Artes  e  nos  Direitos  canónico  e  civil, 
e  na  Medicina,  possam  ser  licenciados  na  sobre- 
dita sciencia  pelo  bispo  de  Lisboa  que  n'esse  tem- 
po o  fôr,  e  quando  estiver  sede  vacante  por  meio 
do  vigário  capitular.»  As  differenças  de  foro  e 
os  privilégios  dos  escholares  produziram  dissen- 
çÕes  com  os  habitantes  de  Lisboa,  tendo  o  rei 
sob  esse  pretexto  de  transferir  a  Universidade 
para  Coimbra  em  1307.  Prevalecia  uma  razão 
mais  funda ;  não  era  i>ermittido  o  ensino  da  Theo- 
logia  na  Universidade  de  Lisboa,  e  para  incor- 
porar n'ella  essa  disciplina,  que  se  cultivava  no 
Mosteiro  de  Santa  Cruz,  por  mestres  que  iam 
estudar  a  Paris,  mudou-se  para  Coimbra  a  Uni- 
versidade, considerando-se  esse  facto  como  sendo 
inaugurado  radicalmente  o  Estudo  Geral.  Os  pri- 
meiros Estatutos  foram  dados  por  Dom  Diniz  em 
1309,  sof frendo  novas  modificações  em  I347- 
Para  manter  o  seu  caracter  real,  foi  reinando 
D.  Pedro  i,  transferida  a  Universidade  para  Lis- 


PRIMEIRA     ÉPOCA  ;     EDADE     MEDIA  ^J^ 


boa,  por  estar  ahi  a  corte,  negando-se  por  isso  os 
Ahbades  e  Priores  a  contribuirem  com  o  subsidio 
da  quota  parte  dos  seus  rendimentos.  Por  car- 
ta de  i6  de  Agosto  de  1338,  que  mudava  a  Uni- 
versidade de  Coimbra  para  Lisboa,  fundamenta- 
se,  pela  ^assistência  que  n'esta  cidade  fama  Bi 
Rei  a  maior  parte  do  anno.))  Outra  vez  em  1354 
é  trasladada  a  Universidade  para  Coimbra  em 
virtude  dos  privilégios  que  então  o  papa  lhe  con- 
cede do  jus  ubique  docendi,  que  como  observa  De- 
nifle,  era  muito  raramente  obtido  pelas  Univer- 
sidades. Tendo  de  contractar  mestres  no  estran- 
geiro era  difíicil  trazel-os  para  a  vida  confinada 
da  provincia ;  para  vencer  esse  óbice,  o  rei  D.  Fer- 
nando em  1379  transfere-a  outra  vez  por  causa 
(l(^s  Lentes  estrangeiros  quererem  residir  em  Lis- 
l)oa.  Sob  o  governo  de  D.  João  i,  e  quando  a  corte 
teve  estabilidade,  é  que  em  1384  este  monarcha 
ordenou  que  para  sempre  a  Universidade  ficasse 
em  Lisboa,  sendo  estabelecida  «a  porta  de  Santo 
Vndré  —  da  parte  de  fora,  contra  o  arrabalde  dos 
mouros.»  E  assim  se  manteve  em  uma  vida  apa- 
gada durante  todo  o  século  xv,  até  á  reforma  de 
I).  João  III,  que  a  transferiu  definitivamente  para 
Coimbra  em  1537. 

3.0  Nobiliários.  —  No  século  xiv  a  organisa- 
ção  dos  Livros  de  Linhagens  correspondia  a  uma 
necessidade  social.  O  Poder  real  definindo  a  es- 
phera  dos  seus  direitos  soberanos,  avocava  a  si 
o  direito  de  conferir  nobreza.  Nas  Leis  de  Par- 
tidas, que  foram  traduzidas  em  portuguez,  impÕe- 
se   aos   fidalgos,    «que  escrivian  sus  nomes,   e  el 


374  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

liiiage  onde  venian  e  los  logares  onde  eran  natu- 
rales  en  el  Libro  que  estavan  escritos  los  nomes  de 
los  otros  caballeros.»  i  Em  uma  lei  portugueza  en- 
corporada  na  Ordenação  Afformna  (Liv.  i,  tit. 
63)  explica-se  mais  claramente,  impondo  a  nobreza 
por  foro  de  el  rei:  «nenhum  homem  dos  concelios 
de  sua  terra  não  podem  ser  cavalleiros  se  nom  por 
mim  ou  per  meu  mandado.»  O  phenomeno  foi 
geral  em  todos  os  estados  da  Europa.  Este  traba- 
lho suscitou  uma  certa  actividade  litteraria  e  his- 
tórica. Quatro  são  os  monumentos  conhecidos :  c 
Livro  velho  das  Linhagens,  com  um  fragmento, 
publicado  por  D.  António  Caetano  de  Sousa,  2 
Fragmento  de  Nobiliário  que  andava  junto  ao 
Cancioneiro  da  Ajuda,  e  o  Nobiliário  do  Conde 
D.  Pedro,  que  se  guarda  na  Torre  do  Tombo, 
achando-se  todavia  encorporados  em  edição  paleo- 
graphica  nos  Portugalice  M onumenta  (Scriptores, 
p.  230  a  390)  sob  a  direcção  de  Alexandre  Her- 
culano. O  velho  linhagista  dá  a  razão  da  sua  obra : 
((Porém  eu  Dom  Pedro,  filho  do  muy  nobre  rey 
Dom  Dinis,  ouve  de  catar  por  gram  trabalho  por 
nniytas  terras  escripturas  que  fallavam  das  linha- 
gens. E  veendo  as  escripturas  com  grande  estudo 
e  em  como  fallavam  de  outros  grandes  feitos, 
coinpnjc  este  livro  por  gaanhar  o  seu  amor  e  por 
meter  amor  e  amisade  antre  os  nobres  fidalgos  do 
Hespanha...»  E  enumerando,  as  razoes  que  fun- 
damentam um  tal  trabalho,  aponta:  ((])or  os  reys 


1  Partida  11,  tit.  20,  liv.  22. 

2  Provas  da  Historia  genealógica,  t.  t,  p.  145, 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  375 


averem  de  conhecer  aos  vivos  com  mercês  por  os 
merecimentos  e  trabalhos  e  grandes  lazeiras  que 
receberam  os  seus  avóos  em  se  gaanhar  esta  terra 
de  Espanha,  por  elles.»  E  referindo-se  aos  impe- 
dimentos canónicos  até  ao  sexto  gráo,  que  faziam 
a  instabiHdade  dos  casamentos:  «pêra  saberem 
como  podem  casar,  sem  j>eccado  segundo  os  casa- 
mentos da  Egreja.»  Vê-se  que  através  dos  mo- 
tivos, era  o  principal  o  fixar  o  cadastro  das  fami- 
Has  de  nobreza  reconhecida,  para  d'ahi  em  diante 
admittir  somente  a  nobreza  de  foro  do  rei.  Ape- 
sar das  Hstas  fatigantes  dos  nomes,  apparecem 
entremeadas  tradições  maravilhosas  da  origem  dos 
Solares  como  da  Casa  de  Haro,  dos  Marinhos,  as 
grandes  prepotências  da  arbitrariedade  senhorial 
como  o  incêndio  de  castellos,  o  rapto  e  violação 
de  mulheres,  como  o  da  decantada  Ribeirinha, 
D.  Maria  Paes  da  Ribeira;  a  cegueira  infligida 
por  vindicta  particular,  a  herança  do  crime  e  a  vin- 
dicta pessoal  e  o  ódio  inveterado  entre  familias. 
Ahi  se  allude  á  penalidade  symbolica,  como  a  da 
hurrdla,  e  os  factos  históricos  como  o  Lide  do 
Porto,  no  conflicto  decisivo  entre  os  partidários 
de  D.  Sancho  1 1  e  os  de  seu  irmão,  e  os  appelli- 
dos  caracteristicos  de  alguns  fidalgos :  o  trobador, 
o  que  trobou  bem,  trobador  e  niuy  saboroso,  refe- 
rencias, que  revelavam  uma  ignorada  actividade 
poética  na  época  pre-dionisia,  em  que  floresceram. 
Essas  relações  do  parentesco  fixadas  pelos  Nobi- 
liários espalham  uma  intensa  luz  sobre  a  realidade 
das  situações  idealisadas  nos  Cancioneiros  troba- 
dorescos  portuguezes.  Para  a  philologia  e  para  :i 
historia  litteraria  estes  livros  são  preciosos  pelas 


yjG  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

fónnas  archaicas  da  linguagem,  i>elos  excerptos 
históricos  que  lhe  servem  de  introducção,  e  se  inter- 
calaram accidentalmente.  No  Fragmento  do  No- 
biliário, que  anda  junto  ao  Cancioneiro  da  Ajuda 
encontra-se  uma  extensa  relação  da  Batalha  do 
Salada,  também  celebrada  em  redondilhas  por 
Affonso  Giraldes.  Pode-se  dizer  que  é  a  pagina 
histórica  mais  perfeita  a  que  chegou  a  litteratura 
portugueza  no  século  xiv.  O  genealogista  bem  co- 
nhece que  aquella  narração  histórica  não  pertence 
a  essa  ordem  de  escriptos  genealógicos :  «e  se  al- 
guns ouvesse  contar  as  maravilhas  e  bondadas 
que  faziam,  seeria  o  livro  tan  grande  que  os  que 
o  lessem  com  a  grande  escriptura  se  anojariam 
e  os  outros  de  que  aqui  nom  falassem  ficariam  re- 
prehendidos.  Des  i  por  que  este  livro  he  de  linha- 
gens nom  faz  mester  de  en  el  falar  de  todo  salvo 
de  algumas  cousas  maravilhosas...»  (op.  cit.  p. 
190.)  O  genealogista  colloca  na  bocca  dos  seus 
personagens  allocuções,  como  no  estylo  de  Tito 
Livio,  pouco  depois  tornado  conhecido  pelo  chan 
celler  Lopez  de  Ayala.  Eis  como  falia  de  D.  Af- 
fonso IV,  o  heroe  do  Salado:  «E  el-rei  Dom 
Affonso  de  Portugal  era  de  grandes  feitos,  e 
({uanto  mais  olhava  \xy\os  mouros,  tanto  Ihi  mais 
c  mais  crecia  e  esforçava  o  coraçom  como  home 
(jue  era  de  grancles  dias  e  tinha  que  deus  Ihi  fe- 
zcra  gram  mercê  en  n  chegar  áquel  tempo  hu 
podia  fazer  cmmenda  de  seus  peccados  i)er  salva- 
çom  de  sa  alma  e  rece1)er  morte  por  Jhesu  Chris- 
to.  El  de  t(^do  boom  contenente  falou  ali  com  os 
seus  e  disselhes  assi :  —  Meus  naturaes  e  meus  vas- 
sallos,  sabede  l>em  en  como  esta  terra  da  Espa- 


PRIMEIRA     IÍPOCx\  :     EDADE;     MEDIA  2)11 


Ilha-  foy  perdida  por  rei  Rodrigo  e  ganhada  pelos 
mouros,  e  em  como  outra  vez  entrou  Almançor, 
e  em  como  os  nossos  avoos  donde  descendedes  por 
gram  seu  trabalho  e  por  mortes  e  lazeiras  ganha- 
rom  o  reino  de  Portugal,  en  como  el  rei  dom 
Affonso  Anriquez  com  que  a  eles  ganharom  Ihis 
(leu  onras  e  coutos  e  liberdades  e  contias  por  que 
vivessem  honrados,  e  noni  tam  solamente  fez  esto 
a  eles,  mais  por  a  sua  onra  dava  os  maravedis  aos 
filhos  cjue  jaziam  nos  berços  e  os  padres  serviam 
por  eles.  En  como  os  reys  que  despois  el  veerom 
aguardarom  esto.  Eu  despois  que  vim  a  este  logo 
fiz  aquello  que  estes  reis  fezerom,  e  se  alguma 
cousa  hy  a  pêra  emendar  eu  a  corregerei  se  me 
deus  d'aqui  tira.  Olhade  por  estes  mouros  que 
nos  querem  ganhar  a  Espanha  de  que  dizem,  que 
estam  esforçados  e  oie  este  dia  a  entendem  de 
cobrar  se  nós  não  formos  vencedores.  Poede  em 
vossos  corações  de  usardes  do  que  usarom  aquel- 
les  donde  viides  como  nom  percades  vossas  mu- 
lheres nem  vossos  filhos,  e  o  em  que  ande  viver 
aqueles  que  despois  de  nós  veerem,  os  que  hy  mor- 
reren  e  viverem  seerom  salvos  e  nomeados  pêra 
sempre.  —  Os  fi(lalg'os  j)ortugueses  Ihi  responde- 
rom :  —  Senhor,  os  que  aqui  estam  oie  este  dia 
vos  farom  vencer  ou  hi  todos  prenderemos  morte. 
Elrei  foi  desto  muyto  ledo.»  {Ih.,  p.  i8^:)  Se- 
riam estas  as  tradições  ou  Estorças,  que  Fernão 
Lopes  poz  em  Caronica?  Assim  a  Historia  como 
forma  litteraria  tem  uma  origem  e  desenvolvi- 
mento simultâneo  e  análogo  ao  da  Poesia.  A  sua 
differença  está  no  modo  de  tratar  a  fonte  com- 
mum  —  a  tradição. 


578  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

4.0  Chronicas  e  Relações  históricas.  —  Nas 

Memorias  para  Ia  Historia  de  la  Poesia  espaíiola, 
escreveu  o  P.^  Samiiento:  «Este  siglo  decimo 
quarto,  que  con  razon  se  poderá  llamar  el  siglo 
de  las  Crónicas  verdaderas,  se  poderá  llamar  tam- 
bien  de  las  Crónicas  fingidas.»  (Op.  cit.,  p.  330.) 
Estas  duas  formas  litterarias  apparecem  digna- 
mente tratadas  j^elo  génio  portuguez  n'este  periodo 
fecundo.  Das  Chronicas  phantasiosas  deixámos 
um  monumento  que  seria  bello  em  extremo  se 
conservássemos  a  sua  forma  primitiva  —  o  texto 
portuguez  do  Amadis  d,:.  Gania;  das  Chronicas 
históricas  restam  documentos,  que  se  destacam 
dos  registos  latinos  ou  Obituários  e  Dietarios,  que 
se  usavam  nos  claustros.  O  apparecimento  súbito 
do  grande  chronista  Fernão  Lopes  no  inicio  do 
século  XV,  e  a  série  das  Chronicas  dos  Reis  de 
Portugal,  que  apographos  e  plagiários  lhe  des- 
membraram, não  se  comprehende  sem  detemiinar 
a  filiação  d 'essas  narrativas  que  elle  integrou  em 
uma  forma  da  historia  como  a  comprehendeu 
Froissart  e  os  grandes  chronistas  da  sua  época. 

A  Chronica  mais  antiga,  escripta  em  lingua 
vulgar,  que  temos,  é  anonyma,  e  trata  desde  a 
fundação  da  monarchia  até  Dom  Diniz.  Acha-se 
publicada  em  o  titulo  de  Chronica  brez^e  do  Ar- 
cliivo  nacional,  e  está  intercalada  no  livro  iv,  fl. 
6  das  Inquisições  de  D.  Affonso  iir.  Foi  trasla- 
dada em  1429  da  éra  moderna:  «ata  a  presente 
éra  que  ora  corre  do  nacimento  de  nosso  sennor 
Jeshu  Christo  de  mil  quatro  centos  e  vynte  e  nove 
annos.)}  Explica  a  sua  intenção:  «A  qual  rre- 
menbrança  serve  a  proll  p(Mque  muytas  vezes  mos- 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MÉDIA  379 

tram  perante  El  Rey  nosso  sennor  e  perante  os 

seus  juizes  algumas  doações  e  outras  escripturas, 
que  fazem  em  prejuízo  dos  direitos  e  cousas  da 
coroa  dos  Regnos,  fazendo  taaes  cartas  de  doa- 
ções e  escripturas  mençom  que  forom  outorgadas 
per  hum  Rey  o  qual  segundo  a  data  d'essa  escri- 
ptura  já  era  finado:  E  pêra  tirar  estas  duvidas 
aproveitam  muito  estas  eras.»  A  Chronica,  confes- 
sa o  auctor  para  justificar  o  seu  laconismo:  «faz 
mençom  quando  cada  hum  Rey  começou  de  rre- 
gnar,  e  quando  se  finou,  e  onde  jaz  sepultado.» 
Traz  um  traço  pittoresco  acerca  de  Dom  Sancho  i : 
«E  entom  filhou  El  Rey  huma  dona  de  que  se  non 
pode  saber  o  nome...  E  filhou  Dona  Maria  Paes 
da  Ribeira,  a  que  elle  deu  Villa  do  Conde...»  A 
linguagem  da  Chronica  não  é  muito  antiga;  ape- 
nas se  encontra  uma  palavra  franceza  adaprés  da 
cidade  de  Lisboa.»  Segundo  a  auctoridade  indis- 
cutivel  do  colleccionador  dos  Portugália:  Monu- 
incnta  histórica,  é  a  chronica  em  vulgar  mais  an- 
tiga que  nos  resta. 

A  Chronica  ou  Relação  da  Conquista  do  Al- 
garve, descoberta  por  Fr.  Joaquim  de  Santo  Agos- 
tinho na  Camará  municipal  de  Tavira  em  1788 
(Tomos  velhos,  i,  p.  207  a  213),  embora  esteja 
retocada  por  um  copista  do  século  xv,  foi  escripta 
por  quem  não  estava  muito  afastado  da  data  d'essa 
conquista.  O  narrador  allude  ás  ossadas  que  exis- 
tiam no  sitio  das  Antas :  «e  quando  chegou  ás 
Antas  e  vio  os  cavalleiros  mortos  começou  com 
os  mouros  muy  dura  pelleya,  e  morreu  tanta  gente 
d'elles,  que  ainda  hoje  em  dia  jas  alli  a  ossada 
d'elles,  e  desde  que  os  venceo  seguiu  ho  alcance 


í8o  HISTORIA    DA    I^ITTÊRATURA    P0RTUGUE2A 


fazendo  grande  estrago  em  elles...»  i  A  tendên- 
cia para  a  fonna  liistorica  no  ultimo  quartel  do 
século  xrv  é  uma  prova  da  data  d'esta  nar- 
rativa. 

Era  conhecida  em  Portugal  a  Crónica  general 
de  Espana;  este  livro  mandado  traduzir  por  Dom 
Diniz  do  original  castelhano  foi  um  dos  primeiros 
ensaios  e  um  grandioso  modelo  em  que  se  exer- 
ceu a  lingua  portugueza  para  fixar  as  formas  se- 
veras da  Historia.  Fernão  de  Oliveira,  na  sua 
Grammatica  portugueza  refere-se  a  esta  tradu- 
cção :  «As  dicções  velhas  são  as  que  foram  usa- 
das, mas  agora  são  esquecidas,  como...  ruão. 
que  diz  cidadão,  segundo  eu  julguei  em  um  livro 
antigo,  o  qual  foi  trasladado  em  tempo  do  mui 
esforçado  rei  Dom  João  de  boa  memoria,  o  pri- 
meiro d 'este  nome  em  Portugal :  por  seu  mandado 
foi  o  livro  que  digo  escripto,  e  está  no  mosteiro 
de  Peralonga  e  se  chama  Bstorea  Geral,  no  qual 
achei  estas  com  outras  anteguidades  de  falar... )> 

Da  Crónica  general,  escreveu  Menendez  Pidal, 
considerando-a  como  obra  de  Alfonso  o  Sábio: 
«Ella  marca  o  desjiertar  de  uma  éra  na  historio - 
graphia,  pois  i>ara  ella  converge  uma  multidão  de 
imitações,  que  seguindo  a  eschola  do  Rei  Sábio 
no  mesmo  plano  e  critério  formam  uma  rica  lit- 
teratura  historial,  anonyma  e  inteiramente  popular 
que  se  renovava  continuamente.»  -  A  uma  cir- 
cumstancia  allude.  (juc  nos  revela  a  importância 


r     Memorias  de  Litteratura,  da  Acad.,  t.  i. 

_'     La  Legenda  de  los  Siefe  Infantes  de  Lara.  p.  54. 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MÉDIA  381 

da  traducção  mandada  fazer  pelo  rei  D.  Diniz : 
O  grande  numero  de  Manuscriptos  da  Cronícj 
general  não  permitte  fixar  qual  fosse  a  sua  fórm% 
mais  primitiva  e  authentica ;  é  pois  admissivel,  que 
o  texto  portuguez,  d'entre  esses  trinta  e  um  ma- 
nuscriptos, provindo  directamente  do  monarcha 
castelhano  como  offerta  a  seu  neto,  tenha  exce- 
pcional importância  para  determinar-lhe  a  au- 
thenticidade. 

C(}m  egual  titulo  se  conservou  na  Bibliotheca  do 
Rei  Dom  Duarte  (n.o  24)  ;  e  na  Bibliotheca  na- 
cional de  Paris  o  manuscripto  portuguez :  His- 
toria geral  de  Hespanlia,  composta  em  castelhano 
por  Bi  Rei  de  Leão  c  Castella,  Dom  Affoivso  o 
Sábio,  trasladada  em  portiigncz  por  rei  Dom  Di- 
niz ou  por  sen  mandado.  A  esta  traducção  foram 
ajuntando  os  copistas  os  successos  da  historia  de 
Portugal,  vindo  por  isso  ampliado  o  titulo:  e  con- 
tinuada na  parte  que  dis  respeito  a  Portugal  até 
ao  anno  de  1433  no  reinado  de  Dom  Affonso  v. 

Era  uma  traducção  reduzida  da  Crónica  de 
Alfonso  o  Sábio;  pertencera  ao  Condestavel  de 
Portuga]  Dom  Pedro,  primitivamente. 

Na  Bibliotheca  da  Academia  real  das  Sciencias 
de  Lisboa  existe  um  códice  pergaminaceo  d'esta 
Chronica  geral;  ahi  se  lê:  «E  despois  per  tempo 
arribarom  onde  agora  chama  o  Porto  huas  gentes 
en  naves  que  eram  degradados  de  sua  terra,  os 
quaaes  erã  chamados  Galases;  e  estes  pobrarÕ  huã 
grande  parte  da  Galliza,  que  era  herma,  e  esta 
era  antre  dois  rryos  a  que  chama  a  hú  doyro  e 
o  outro  mynho;  e  enton  poserom  nome  aa  terra 
composto  de  duas  partes,  convém  a  saber  Portu- 


382  HISTORIA    DA    UTTERATURA   PORTUGUEZA 

galcsrs,  ma.s  despoVvS  o  enciirtarom  e  peseromlhe 
nome  Portugal.)}  No  século  xv  nas  Memorias  bre- 
*  ves  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  citava-se  como 
fonte  histórica  a  Chronica  de  Espanha.  Não  admi- 
ra que  Fernão  Lopes  revelasse  a  sua  justa  com- 
prehensão  da  Historia. 


2. o  Período:  Os  Poetas   Palacianos 

(Século  xv) 


Elaboração  do  Lyrismo  provençal  pelo  génio  italiano 
(Phase  allegorica) 


Os  trovadores  occitanicos  tinham  encontrado 
sympathia  nas  cidades  italianas,  que  constituiam 
pequenas  republicas ;  a  Canção  amorosa  idealisava 
situações  da  vida  domestica,  que  ia  ser  o  thema 
fundamental  das  litteraturas  modernas.  Os  bur- 
guezes  opulentos  que  transformaram  alg'umas 
d'essas  republicas  em  Principados,  attraíam  para 
as  suas  festas  e  palácios  os  trovadores  que  trans- 
punham os  Alpes.  A  poesia  lyrica  italiana  come- 
çou a  ser  elaborada  por  esta  imitação  e  impulso 
social;  e  quando  a  Poesia  trobadoresca  se  extin- 
guiu sob  as  violências  sangrentas  da  cruzada  con- 
tra os  Albigenses,  ou  da  realeza  do  norte  contra 
o  municipalismo  do  sul,   esse  lyrismo  occitanico 


384  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

renascia  pelo  génio  italiano,  que  dos  esboços  poé- 
ticos soube  tirar  as  fónnas  bellas,  definitivas  da 
Canção,  do  Soneto,  da  Elegia,  e  insuflar-lhes  o 
sentimento  pelo  idealismo  platónico  da  Primeira 
Renascença  e  pela  exaltação  mystica  christan,  que 
davam  todo  o  relevo  á  emoção  do  Amor.  Os  tro- 
vadores italianos  foram  considerados  os  grandes 
mestres  do  Amor:  souberam  interpretar  allegori- 
camente  as  indefinidas  emoções  da  alma  moderna, 
na  consagração  da  mulher.  Elles  crearam  a  lin- 
gua  nacional,  avançando  para  a  unificação  syn- 
thetica  das  suas  diversidades  dialectaes :  Sordelo, 
na  Itália  do  Norte  cria  uma  linguagem  poética  com 
os  fallares  de  Cremona,  de  Brescia,  de  V^erona, 
cidades  convisinhas  de  Mantua,  sua  terra  natal ; 
Dante,  e  os  cortezãos  de  Frederico  11,  criam  i)ela 
unificação  d'esses  dialectos  da  vertente  direita  e 
esíjuerda  do  Aj^enino  a  lingua  toscana,  que  i>ela 
acção  politica  e  pela  litteratura  se  torna  a  lingua 
nacional,  séculos  antes  da  Itália  realisar  a  sua  uni- 
ficação |x>litica.  A  eschola  toscana  era  represen 
tada  por  Guido  Guinicelli,  que  Dante  immortalisou 
nos  seus  versos,  imitando  ao  mesmo  tempo  Ar- 
naldo Daniello,  Guido  Cavalcanti  e  Dante  de 
Maiano,  (jue  subordinados  ainda  aos  trovadores 
lhes  compete  a  gloria  de  terem  fecundado  o  seu 
génio.  Dante  foi  o  primeiro  epigone  (Kesta  reno- 
vação esthetica,  elevando-se  dos  eslx)ços  proven- 
çalescos  aos  admiráveis  Sonetos  e  Canções  do  mais 
])ur(>  idealismo.  Por  Dante  se  exerceu  a  influen- 
cia do  Lyrismo  italiano  fora  da  Itália,  em  todo  o 
século  XV :  é  a  phase  allegorica.  Petrarcha  era  en- 
tão exclusivamente  estudado  como  moralista  e  eru- 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  385 

dito,  e  somente  no  começo  do  século  xvi  é  que  o 
seu  Canzoniere  communicou  ás  Litteraturas  da 
Renascença  as  formas  definitivas  do  Lyrismo.  A 
poesia  italiana  em  Dante  e  nos  Fieis  do  Amor.  e 
depois  em  Petrarcha  destacou-se  dos  modelos  pro- 
vençaes  pelo  idealismo  recebido  em  as  doutrinas 
platónicas,  que  se  desenvolveram  mais  tarde  na 
Academia  florentina  dos  Medicis.  Dante  conheceu 
essas  doutrinas  em  Cicero,  Boecio,  Ricardo  de  Sam 
Victor,  Sam  Boaventura  e  Sam  Thomaz;  como 
moralista  Petrarcha,  depois  reagindo  contra  o 
aristotelismo,  seguia  no  seu  estudo  Platão,  Santo 
Agostinho,  San  Bernardo  e  imitava  Boecio.  Esta 
nova  poesia,  de  um  vago  subjectivismo,  era  pelas 
suas  origens  eruditas  sympathica  aos  espiritos 
superiores  que  seguiam  a  corrente  do  humanismo 
do  século  XV. 

A  Hespanha  abraçou  muito  cedo  o  lyrismo 
italiano,  na  sua  phase  allegorica;  Micer  Francisco 
Imperial  introduziu  em  Sevilha  o  conhecimento  de 
Dante  e  da  Divina  Comedia,  no  fim  do  século  xiv, 
e  querendo  o  Marquez  de  Santillana  prestar  ao 
seu  talento  a  homenagem  devida,  empregou  uma 
designação  erudita,  que  bem  caracterisa  o  século 
do  humanismo:  «ai  qual  yo  no  llamaria  decidor  ó 
trovador,  mas  poeta.))  O  influxo  crescente  da  cor- 
rente italiana  fez  com  que  a  Poesia  castelhana 
prevalecesse  no  século  xv  sobre  as  outras  littera- 
turas peninsulares,  a  gallega,  a  aragoneza  e  a  por- 
tugueza. 

Porque  não  actuou  a  Poesia  italiana  directa- 
mente em  Portugal,  continuando  a  evolução  tro- 
l)adoresca?   Por  que  esgotadas  as  formas  proven- 

25 


386  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

çalescas,  o  génio  portuguez,  pela  fácil  assimilação, 
apoderou-se  da  corrente  novellesca,  qne  lisongean- 
do-lhe  o  espirito  de  aventura  o  inij^elliu  á  acção 
histórica.  Nas  luctas  entre  Pedro  Cruel  e  seu  ir- 
mão bastardo  Enrique  de  Trastamara,  interveiu  o 
aventureiro  bretão  Bertrand  Duguesclin,  dando 
assim  ás  ficções  bretãs  uma  realidade  suggestiva; 
as  relações  com  a  corte  ingleza  vieram  accentuar 
mais  o  interesse  pelas  novellas  bretãs.  Tudo  nos 
afastava  da  passividade  lyrica ;  e  conquistada  Ceu- 
ta por  D.  João  I,  como  a  chave  do  império  de 
Fez,  seguiu  essa  série  de  feitos  na  occupação  do 
norte  da  Africa,  «dando  um  sentido  real  e  verda- 
deiramente histórico  ao  espirito  aventureiro,  nas- 
cido das  ficções  cavalheirescas,  emprehendendo-se 
e  levando-se  a  cabo  outras  não  menos  afortunadas 
emprezas...»  i  A  exploração  da  costa  occidental 
africana  e  as  navegações  atlânticas  imprimiram  á 
sociedade  portugueza  uma  vida  em  qu^  a  activi- 
dade intensa  a  afastava  das  idealisações  do  ly- 
rismo.  De  1350  a  1445,  observa-se  uma  grande 
falha  na  producção  litteraria  portugueza;  ainda 
assim  a  sua  antiga  influencia  em  Castella  conti- 
nuou-se  até  aos  reinados  de  Don  Juan  11  e  En- 
rique IV,  como  o  reconheceu  Menendez  y  Pelayo. 
Pelo  seu  lado  Amador  de  los  Rios  também  ob- 
serva: «o  dialecto  gallaico-lusitano,  tradicional- 
mente conservado  entre  ambos  os  paizes,  escre- 


I     Amador   de   los   Rios,  Hist.   crit.   de  la  Litteratura 
espan.,  vi,  p.  22. 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :     EDADE    MÉDIA  387 


vem  n'esse  dialecto  Pêro  Gonzalez  de  Mendoza,  o 
Arcediago  de  Toro,  Affonso  de  Villasandino  e 
outros  tantos,  que  n'aquella  edade  (século  xiv) 
illustram  o  parnaso  castelhano.»  (Hist.  litt.  esp., 
VI,  2Z.) 

O  Cancioneiro  de  Baena  suppre  essa  falha  que 
se  determina  na  litteratura  portugueza;  acham- 
se  alli  poetas  que  floresceram  desde  1368,  em  que 
nasceu  Pedro  Cruel,  até  1406  em  que  começa  o 
reinado  de  D.  Juan  11,  que  foi,  como  notou  Me- 
nendez  y  Pelayo,  uma  florente  corte  poética.  Re- 
presentam esse  elemento  gallaico,  Pêro  Gonzalez 
de  Mendoza,  avô  do  Marquez  de  Santillana,  que 
conservou  a  tradição  lyrica  das  Serranillas,  o 
chanceller  Lopez  de  Ayala,  micer  Francisco  Im- 
perial, Pêro  Ferrús,  Garci-Fernandes  de  Jerena, 
Affonso  Alvares  de  Villasandino.  O  facto  de  se 
encontrarem  n'este  Cancioneiro  versos  de  Vasco 
Pires  de  Camões  respondendo  a  outros  que  lhe 
são  dirigidos,  define  bem  o  espirito  de  revives- 
cência do  génio  gallego,  n'essas  luctas  politicas, 
em  que  Portugal  e  Galliza  se  aproximavam.  O  rei 
D.  Fernando,  de  Portugal,  acobertando  as  suas 
pretenções  ao  throno  de  Castella  com  o  pretexto 
de  vingar  a  morte  de  Pedro  Cruel,  achou  apoio 
em  muitas  cidades  da  Galliza,  como  Ciudad  Ro- 
drigo, Ledesma,  Alcântara,  Valência  d'Alcantara, 
Zamora,  Tuy,  Corufia,  Santhiago,  Lugo,  Orense, 
Padron  e  Salvaterra.  N'esta  lucta  de  ambições, 
D.  Fernando  mostrou-se  menos  hábil  do  que  En- 
rique de  Trastamara,  que  chegou  a  invadir  Por- 
tugal. Incapaz  de  sustentar-se  na  lucta,  o  mo- 
narcha  portuguez   offereceu  azylo   no  seu   reino 


30Í5  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

aos  fidalgos  gallegos  que  se  comprometteram  pela 
sua  causa.  D'esta  emigração  resultou  a  vinda  de 
Vasco  Pires  de  Camões,  o  terceiro  avô  do  grande 
épico,  para  Portugal;  vieram  outras  familias  de 
que  descendem  os  poetas  Sá  de  Miranda  e  An- 
drade Caminha,  que  brilhando  na  renascença  ita- 
liana não  abandonaram  as  formas  da  medida  ve- 
lha, do  lyrismo  tradicional.  Vasco  Pires  de  Ca- 
mões, tendo-se  declarado  em  1384  pelo  partido  de 
D.  Fernando,  refugiou-se  em  Portugal,  obtendo 
numerosas  doações  regias,  que  o  faziam  considera- 
do como  favorito  do  monarcha,  comparando-o  n'is- 
to  a  João  de  Mena,  o  poeta  favorito  de  D.  Juan  1 1, 
de  Castella.  O  fidalgo  Manoel  Machado  de  Aze- 
vedo fallava  d'esse  favoritismo,  dizendo  como  se 
podia  —  ser  mais  medrado,  que  Camões  e  João 
de  Mena.  O  Marquez  de  Santillana,  na  sua  Carta 
ao  Condestavel  de  Portugal,  de  1448,  depois  de 
indicar  muitos  trovadores  portuguezes  da  eschoía 
provençalesca,  aponta  os  que  pertenceram  a  esta 
phase  galleziana :  «despues  destos  venieron  Basco 
Perez  de  Camões  e  Ferrant  Casquicio,  é  aquel 
gran  enamorado  Macias,,.))  Mas  não  era  só  o 
Marquez  de  Santillana,  que  pelas  tradições  do- 
mesticas conhecia  estes  monumentos  gallaico-por- 
tuguezes;  os  -trez  grandes  poetas  da  corte  de 
n.  Juan  II,  João  de  Mena,  Fernan  Perez  de  Gus- 
man  e  elle  próprio,  mantinham  através  da  cultura 
castelhana  ainda  a  impressão  da  poesia  gallaico- 
portugueza.  João  de  Mena  conserva  a  endecha, 
a  que  se  chama  de  gaita  gallega,  de  preferencia 
ao  endecasyllabo  italiano;  Fernão  Perez  «seguiu 
na  sua  primeira  época  a  tradição  dos  trovadores 


PRIMEIRA     KPOCA  :     EDADÊ     MÉDIA  389 


gallegos  (isto  é  portuguezes).»  i  E  de  Santil- 
lana,  escreve  o  mesmo  critico :  «Na  poesia  lyrica 
é  grande  mestre;  por  elle  se  acclima  ao  parnaso 
castelhano  a  Serranilha  gallega ;  se  teve  predeces- 
sores na  sua  família,  elle  os  excedeu  n'isto,  como 
em  tudo...»  E  recapitulando  as  influencias  litte- 
rarias  que  actuaram  na  corte  castelhana  de  D.  Juan 
ri,  aponta  antes  das  formas  allegoricas  de  Dante 
combinadas  com  reminiscências  de  Petrarcha,  es- 
pecialmente nos  Triumphos,  —  a  tradição  litte- 
raria  dos  antigos  Cancioneiros  gallegos,  visivel 
nas  Serranilhas,  Villancicos,  Esparsas,  Canções  e 
Motes,  em  geral  em  todas  as  poesias  ligeiras  e 
cantáveis.  Isto  nos  explica  o  facto  de  figurarem 
nos  Cancioneiros  castelhanos  do  século  xv  muitos 
poetas  portuguezes,  achando-se  ahi  uma  coplilha 
do  Infante  D.  Pedro;  na  bibliotheca  do  Escurial 
apparece  uma  traducção  de  Juan  de  Cuenca  da  ver- 
são portugueza  da  Confissão  do  Amante ^  do  poeta 
inglez  João  Gower,  pelo  cónego  de  Lisboa  Rober- 
to Payn.  2  Mas  todo  este  influxo  teve  de  ceder 
diante  da  florescência  do  castelhanismo,  nas  trez 
cortes  de  D.  João  11,  Enrique  iv,  e  dos  Reis  ca- 
tholicos,  em  que  se  manifestaram  génios  prima- 
ciaes,  e  em  que  a  politica  da  unificação  ibérica  era 
a  preoccupação  dos  casamentos  régios. 

i.o    A    influencia    castelhano-aragoneza. — 

Quando  a  poesia  provençalesca  decahira  em  Fran- 


1  Antologia,  t.  v,  p:  lxv  ;  p.  lxxix. 

2  Ap.  Rios,  Hist.  crit.,  vi,  p.  46,  nota. 


390  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORTUGUfíZA 

ça,  em  Tolosa  procurou-se  sustentar  a  sua  cul- 
tura pela  organisação  da  Sohregaya  companhia 
deis  sept  Trovadores  de  Tolosa,  em  1323;  para 
Barcelona,  onde  era  a  corte  habitual  dos  Reis 
de  Aragão,  passaram  estas  .instituições  trobado- 
rescas,  que  os  monarchas  protegiam  como  um 
meio  de  resistência  contra  a  penetração  da  lingua 
e  poesia  castelhanas.  Em  1388,  o  rei  de  Aragão 
D.  João  I  pediu  a  Carlos  vi  de  França  para  os  tro- 
vadores tolosanos  virem  a  Barcelona  fundar  um 
Consistório  poético,  effectivamente  creado  em 
1390.  Mas  o  castelhanismo  começou  em  Aragão 
desde  o  compromisso  de  Caspe  em  141 1,  admit- 
tindo  como  rei  um  príncipe  castelhano,  o  Infante 
de  Antequera  (141 6)  D.  Fernando.  O  que  se  con- 
servou dos  Provençaes,  como  observa  Menendez 
y  Pelayo,  era  a  tradição  métrica  mais  ou  menos 
degenerada  em  mãos  dos  trovadores  do  Consis- 
tório. Era  preciso  vivificar  estas  formas  pela  idea- 
lisação  allegorica-dantesca.  Sob  Fernando  o  Justo 
a  eschola  trobadoresca  teve  novo  impulso.  D.  En- 
rique de  Villena,  que  foi  director  do  Consistório, 
traduz  a  Divina  Comedia  (1427)  e  as  composições 
em  dialecto  catalão  e  valenciano  eram  applau- 
didas  e  apreciadas.  O  Marquez  de  Santillana  elo- 
giava no  seu  poemeto  La  Coronacion,  os  poetas 
lyricos  catalães  Ausias  March  e  Jordi,  intimamente 
italianisados.  E'  este  novo  gosto  allegorico-dan- 
tesco  o  que  irmana  litterariamente  com  Castella, 
que  se  torna  um  centro  hegemónico  da  poesia  pe- 
ninsular no  século  xv. 

O  centro  da  actividade  de  Castella  foi  a  corte 
de  T).  João  11   (1407  a  1454)  não  só  pelas  altas 


PRIMEIRA     época:     IÍDADE    MEDIA  39I 

individualidades  que  floresceram  n'ella,  mas  pela 
própria  personalidade  do  rei,  que  recebera  uma 
excellente  cultura  litteraria  dirigida  pelo  chan- 
celler  Pablo  de  Santa  Maria,  e  além  da  Moral  phi- 
losophica,  lingua  latina,  e  arte  oratória  e  poéti- 
ca, segundo  o  testemunho  de  Mossen  Diego  de 
Valera,  sabia  musica,  cantava  e  tocava,  ouvia  com 
agrado  Dizeres  rimados  e  apreciava  a  historia, 
como  o  revelou  o  celebrado  poeta  Hernan  Perez 
de  Gusman.  i  Apezar  das  grandes  luctas  dos  In- 
fantes de  Aragão,  e  do  seu  privado  D.  Álvaro  de 
Luna,  esse  esplendor  litterario'  tornou  essa  época 
a  mais  gloriosa  da  lingua  e  da  litteratura  caste- 
lhana, vindo  a  produzir  os  seus  effeitos  politicos 
no  tempo  dos  Reis  Catholicos. 

Em  Aragão,  D.  Affonso  v,  primo  de  D." Juari 
II,  assim  como  seu  irmão  rei  da  Navarra,  rece- 
beram não  menos  esmerada  cultura,  competindo 
com  o  centro  castelhano.  D.  Affonso  v,  no  seu 
governo  de  Itália,  cercou-se  de  todos  os  gran- 
des hum.anistas,  que  preparavam  a  Renascença.  O 
que  se  passava  na  região  central  da  Hespanha 
(Castella)  e  com  egual  fervor  na  região  orien- 
tal (Aragão),  reflectiu-se  inevitavelmente  em 
Portugal,  pela  sua  dupla  influencia.  Pelo  receio 
da  absorpção  castelhana,  que  levara  os  poetas  ara- 
gonezes  a  sustentarem  em  composições  littera- 
rias  a  sua  lingua  nacional,  também  depois  da  vi- 
ctoria  de  Aljubarrota  (1385)  os  portuguezes  afas- 
taram-se  politica  e  litterariamente  de  Castella.    O 


I     Menendez  y  Pelayo,  Antologia,  v,  p  jcxv. 


392  HISTORIA    DA    LITTERAXURA    PORTUGUEZA 

rei  D.  Duarte  casa  com  D.  Leonor,  filha  de 
D.  Fernando  de  Antequera,  rei  de  Aragão;  para 
sua  mulher  escreveu  a  sua  encyclopedia  moral  do 
Leal  Conselheiro,  e  na  sua  Livraria  existiam  um 
exemplar  de  Valério  Máximo  em  aragoez,  uma 
Historia  de  Troya  per  aragoez,  e  a  seu  filho 
D.  Fernando  dedicou  Martorell  a  novella  de  Ti- 
rant  il  Blanch.  O  Infante  D.  Pedro,  duque  de 
Coimbra,  casou  com  D.  Isabel,  primogénita  de 
D.  Jayme  o  Desditoso,  ultimo  Conde  de  Urgel, 
que  segundo  Belaguer,  também  cultivava  a  Gaya 
sciencia.  Como  principal  herdeiro  dos  direitos 
do  Conde  de  Urgel,  o  Condestavel  D.  Pedro 
de  Portugal,  acceitou  a  coroa  de  Aragão,  offe- 
recida  por  uma  deputação  catalã,  em  1464.  Na 
celebre  carta-Proemio,  que  lhe  dirigiu  o  Marquez 
de  Santillana,  citava  com  louvor  os  poetas  ara- 
gonezes,  como  «grandes  officiaes  d'esta  arte, 
como  Jorde  de  Sant  Jordi,  e  Ausias  March,  gran- 
de trovador  e  homem  de  assas  elevado  espirito.» 
O  Condestavel  de  Portugal  conheceu  esta  poesia 
aragoneza  que  revivificara  a  tradição  da  métrica 
provençal  com  o  subjectivismo  italiano,  e  d'ella 
recebeu  a  expressão  allegorica  que  tão  bem  se 
quadrava  corh  a  sua  melancholica  sentimentali- 
dade. No  Cancioneiro  geral  de  Garcia  de  Resen-' 
de,  apezar  do  seu  extremo  castelhanismo,  appa- 
recem  por  vezes  as  allegorias  amorosas  do  gosto 
aragonez. 

A  influencia  castelhana  na  poesia  portugueza, 
não  só  pela  importância  litteraria,  como  pelos  en- 
laces matrimoniaes,  tinha  de  predominar  inteira- 
niente.    Em  quanto  o  esplendor  litterario  da  Côr- 


PRIMEIRA  época:  EdadE  média  393 

te  de  D.  Juan  ii  é  sustentado  pelos  talentos  su- 
periores de  Juan  de  Mena,  Fernan  Perez  de  Gus- 
inan  e  Marquez  de  Santillana,  Álvaro  de  Luna 
faz  o  casamento  do  rei  castelhano  com  a  Infanta 
portugueza  D.  Isabel,  sobrinha  do  Infante  D.  Pe- 
dro. 

O  mesmo  esplendor  litterario  continua-se  na 
corte  de  Enrique  iv,  (145 5- 1474)  casado  com 
D.  Joanna,  irmã  do  rei  de  Portugal  D.  Af fonso  v ; 
é  n'este  periodo  que  brilham  os  lyricos  gallegos 
Juan  Rodriguez  dei  Padron  e  Macias  el  Enamo- 
rado, que  tanto  são  memorados  pelos  poetas  pala- 
cianos portuguezes.  Dado  o  conflicto  transitório 
(lo  roubo  dos  direitos  de  successão  de  D.  Joanna 
(a  Beltraneja)  por  sua  tia  Isabel  de  Castella,  fo- 
ram tão  intimas  depois  as  relações  da  Corte  dos 
Reis  Catholicos  (1474  a  1504),  que  D.  João  11 
de  Portugal  casou  o  príncipe  herdeiro  D.  Af  fonso 
com  uma  filha  de  Fernando  e  Isabel,  tendo  em 
vista  a  futura  incorporação  ibérica  a  que  falta  esta 
parte  da  Hespanha  Occidental.  N'esta  época  lit- 
teraria  dos  Reis  Catholicos,  em  que  o  appareci- 
mento  do  Amadis  de  Gaula  symbolisa  a  absorpção 
castelhana,  brilham  Gomes  Manrique  e  seu  sobri- 
nho Jorge  Manrique,  e  Garci  Sanchez  de  Badajoz 
accende  esse  fogo  da  paixão  amorosa  que  se  pro- 
paga em  Portugal  a  Bernardim  Ribeiro,  e  Juan 
dei  Encina  acorda  o  génio  dramático  de  Gil 
Vicente. 

Para  chegar  á  clareza  d'estas  trez  phases  cas- 
telhanas, foi  preciso  que  os  eruditos  hespanhoes 
Amador  de  los  Rios  e  Menendez  y  Pelayo  des- 
embrulhassem dos  anachronismos  dos  vastos  Can- 


394  HISTORIA    DA    l^lTTERATURA    PORTUGUEZA 


cioneiros  maniiscriptos  do  século  xv  o  fio  condu- 
ctor  que  nos  dá  o  encadeamento  histórico.  N'este 
periodo  do  século  xv,  ou  dos  Poetas  palacianos, 
a  influencia  castelhana  mascara  com  o  gosto  da 
imitação  da  poesia  esta  penetração  que  se  estava 
exercendo  pelas  relações  politicas  que  deram  o 
êxito  ambicionado  pela  Casa  de  Áustria. 

Entre  a  Itália  do  século  xiv,  em  que  brilha  a 
eschola  toscana,  e  a  Hespanha  do  século  xv,  em 
que  floresce  o  lyrismo  castelhano,  ha  uma  verda- 
deira similaridade  de  condições  do  meio  social ; 
esclarece-a  a  sympathia  pela  obra  de  Dante.  Gi- 
del,  no  seu  estudo  Os  Trovadores  c  Petrarcha, 
notou:  «A  Itália  sugeita  a  ávidos  conquistado- 
res; a  ardentes  inimigos  destmindo  a  sua  liber- 
dade; a  crimes  e  a  acções  heróicas;  no  esforço  de 
cidades  para  fundarem  uma  independência  glo- 
riosa ;  as  artes  nascendo  no  meio  das  conflagra- 
ções politicas,  taes  foram  os  grandes  trabalhos 
com  que  foi  ferida  a  imaginação  do  poeta.»  (p. 
83.)  Ainda  n'este  meio  em  que  vibrava  a  con- 
sciência nacional,  Dante  apontava  os  trovadores 
(jue  eram  dignos  de  serem  imitados,  Bertrand  de 
Born  para  as  Canções  marciaes,  Arnaldo  Da- 
niello  para  as  Canções  de  amor,  e  Giraud  de 
Borneilh  para  os  encómios  da  virtude. 

Em  Castella  as  perturbações  sociaes  não  fo- 
ram menos  profundas  e  calamitosas  no  século  xv : 
é  n'esse  fragor  de  traições  de  fidalgos,  de  insur- 
reição de  ])otentados  senhoraes,  de  conflictos  de  fa- 
milias  dynasticas,  que  se  cria  a  bella  poesia  clás- 
sica de  Castella,  e  a  litteratura,  que  se  tornou  o 
titulo  glorioso  d'essa  época.    Antigos  trovadores 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  395 


italianos  como  Sordello,  de  Mantua,  e  Bonifácio 
Calvo,  de  Génova,  frequentaram  as  cortes  de  Ara- 
gão e  Castella,  deixando  aqui  esses  germens  que 
determinaram  nas  duas  dôrtes  o  interesse  pela 
obra  de  Dante  e  dos  Fieis  de  Amor.  Em  Cas- 
tella, que  se  tornava  um  centro  de  preponderância 
politica,  a  nova  poesia  italiana  era  communicada 
pelas  traducções  e  imitações  dos  poetas  aragone- 
zes,  e  por  directas  relações  dos  seus  homens  cultos 
com  a  Itália.  Teve  Castella,  no  meio  das  prolon- 
gadas perturbações  do  reinado  de  D.  Juan  ii, 
poetas  primaciaes  como  Juan  de  Mena,  Hernan 
Perez  de  Gusman  e  o  Marquez  de  Santillana,  que, 
continuando  a  antiga  influenda  gallaico-portugue- 
za,  souberam  vivificar  as  esgotadas  formas  tro- 
badorescas  com  a  belleza  litteraria  suscitada  i>elo 
conhecimento  das  creaçÕes  do  génio  italiano.  João 
de  Mena  foi  ò  chefe  prestigioso  d'esta  reforma 
poética,  no  seu  Lahyrintho ,  ou  as  Trezentas  ou- 
tavas  de  synthese  histórica  e  moral ;  elle  mesmo 
traduz  do  latim  a  Ilíada.  Diz  Menendez  y  Pe- 
layo:  «Com  João  de  Mena  compartilha  o  Mar- 
quez de  Santillana  o  primado  da  Eschola  allego- 
rica  derivada  de  Dante,  e  naturalisada  em  Cas- 
tella por  Micer  Francisco  Imperial.»  (Ant.,  v, 
p.  Lxxx.)  «Foi  um  grande  discipulo  dos  Italianos 
o  Marquez  de  Santillana,  e  um  dos  mais  quali- 
ficados precursores  de  Boscan.»  Elle  introduzia 
o  metro  endecasyllabo,  como  o  reconheceu  pri- 
meiramente Hernando  de  Herrera.  Os  quarenta 
e  dois  Sonetos  que  escreveu  o  Marquez  de  San- 
tillana são  como  elle  mesmo  indica  ai  modo  ita- 
liano; e  na  Dedicatória  confessa  a  origem:    «Esta 


396  HISTORIA    DA    LITT^RATURA    PORTUGUEZA 

arte  falló  primeramente  en  Itália  Guydo  Caval- 
gante, é  después  usaron  d'ella  Checo  d'Ascoli  é 
Dante,  é  iniicho  mas  que  todos  Francisco  Pe- 
trarca, poeta  laureado.»  Como  observa  Menendez 
y  Pelayo:  «Não  tinha  chegado  a  Castella  a  época 
da  dominação  poética  de  Petrarcha;  mas  em  com- 
pensação, o  Petrarcha  humanista  e  moralista  era 
um  dos  auctores  mais  lidos  e  mais  frequente- 
mente allegados.»  (Ib.,  v,  p.  viv.)  E  definindo 
as  influencias  que  actuaram  na  litteratura  caste- 
lhana do  século  XV,  depois  das  tradições  do  lyrismo 
dos  Cancioneiros  galaico-portuguezes,  mostra  o 
citado  critico  como  prevaleceu  a  forma  allegorica 
de  Dante  combinada  por  vezes  com  reminiscên- 
cias de  Petrarcha,  especialmente  nos  Triumphos, 
e  de  algum  outro,  poeta  italiano...»  (Ih.,  xxij.) 
E'  também  forte  o  influxo  de  Boccacio,  tradu- 
zido integralmente  em  castelhano,  destacando-se  o 
poema  de  Fiamcta  que  dá  origem  ás  Novellas  sen- 
timentaes,' do  Siervo  libre  de  Amor,  do  apaixonado 
João  Rodriguez  dei  Padron,  que  tanto  encantou 
na  corte  de  Enrique  iv,  e  C areei  de  Amor  de  Die- 
go  de  San  Pedro.  Recebem  a  cultura  italiana 
além  do  Marquez  de  Villena,  Juan  de  Lucena, 
Alonso  de  Palencia,  Pedro  Dias  de  Toledo,  Car- 
deal Mendoza;  Juan  dei  Encina  assistira  em  Ro- 
ma, onde  esteve  também  João  de  Mena,  sendo  no 
seu  regresso  nomeado  secretario  das  cartas  la- 
tinas. 

O  conhecimento  da  poesia  castelhana  em  Por- 
tugal no  século  xv  foi  introduzido  pelo  Infante 
D.  Pedro,  amigo  e  admirador  de  João  de  Mena : 
seu   filho  o  Condestavel   D.    Pedro   também  me- 


PRIMEIRA   época:    EdadE   média  397 


receu  a  amisade  do  Marquez  de  Santillana  a  quem 
pediu  as  suas  obras  poéticas.  Se  não  fossem  as 
grandes  desgraças  que  cahiram  sobre  a  familia 
do  Infante  D.  Pedro,  esta  iniciação  litteraria 
teria  tornado  mais  fecundo  este  periodo  dos  Poe- 
tas palacianos. 

O  Infante  D.  Pedro,  que  acompanhou  seu  pae 
na  tomada  de  Ceuta,  em  21  de  Agosto  de  141 5, 
foi  no  começo  do  anno  seguinte  feito  Duque  de 
Coimbra,  emprehendendo  depois  as  suas  viagens 
longinquas  e  demoradas  por  vários  paizes  da  Eu- 
ropa. No  livro  da  Tragedia  da  insigne  Rainha 
Dona  Isabel,  allude  o  Condestavel  seu  filho  a  esse 
cyclo  de  Viagens  d'  «aquel  que  passando  la  grande 
Bretanha  y  las  galicas  e  germânicas  regiones  a 
las  de  Hiigria,  de  Bohemia  e  de  Boria  partes  per- 
^^ino,  guerreando  contra  los  exércitos  dei  grand 
Turco  por  tiempo  estuvo,  e  retornando  por  la 
maravilhosa  çibdat  de  Venecia,  venido  a  las 
ytalicas  e  esperias  provincias,  escodrinó  é  vido  las 
insignes  é  magnificas  cosas,  e  llegando  a  la  çibdat 
de  Querino  tanjó  las  relíquias  respeitando  honor 
é  grandíssimas  glorias  de  todos  los  princepes  e 
reynos  que  vido.»  i  Não  allude  o  Condestavel 
f^.  Pedro  ás  viagens  de  seu  pae  ao  Oriente, 
Jerusalém,  Cortes  do  Soldão  de  Babylonia;  foram 
apontadas  na  tradição  que  se  idealisou  sob  o  ti- 
tulo das  Sete  Partidas  do  Infante  D.  Pedro,  vul- 
garisada  no  folheto  de  cordel  attribuido  a  Gomes 
de  Santo  Estôvam.    No  século  xvii  D.  Francisco 


I     Ed.  D.  Carolina  Michaèlis,  p.  57,  Madrid,  1899. 


398  HISTORIA    DA    UTTERATURA    PORTUGUEZA 


Manoel  de  Mello  faz  uma  referencia  jocosa  ás 
Sete  Partidas,  e  Gongora  pelo  seu  lado  escreve 
no  mesmo  espirito : 

os  envio  ese  inventario 
de  las  partidas  que  os  debo; 
que  es  como  se  os  enviara 
las  dei  Infante  Don  Pedro. 

Quando  o  Infante  D.  Pedro  regressou  a  Por- 
tugal, esteve  na  corte  de  D.  João  ii,  onde  tomou 
amisade  com  João  de  Mena,  que  em  umas  copla- 
allude  ás  suas  viagens  de  estudo : 

Nunca  fué  despues  ni  ante 
quyen  vyesse  los  atavios, 
e  secretos  de  Levante, 
sus  montes,  insuas  y  ryos, 
sus  calores  y  sus  frios, 
como  vós,  seiíor  Ifante. 

(Canc.  geral,  t.  ii,  72.) 

Na  sua  passagem  por  Veneza  a  Senhoria  offe- 
receu-lhe  a  co])ia  das  Viagens  de  Marco  Polo,  que 
em  Portugal  muito  suscitaram  a  empreza  dos 
Descobrimentos  geographicos.  Quando  se  achava 
em  Bruges  escreveu  a  seu  irmão  D.  Duarte  em 
1428,  aconselhando  certas  reformas  na  Universi- 
dade de  Lisboa,  á  qual  convinha  agregar  Colle- 
gios,  como  se  usava  em  Paris  e  Oxonia.  Era  ani- 
mado do  espirito  da  erudição  humanista  e  mora- 
lista do  século  XV,  cultivando  também  a  poesia, 
e  são  d'elle  apenas  conhecidas  as  coplas  que  en- 
viou a  João  de  Mena,  chronista  do  rei  D.  João  11, 
(de  1429  a  1445)  chamando-lhe  acoronysfn 
abastante.»  Pelo  seu  lado,  João  de  Mena  allude 
ás  suas  funcções  soberanas  de  Regente  do  reino 


PRIMEIRA    época:    Edade   media  399 


na  menoridade  do  seu  sobrinho  D.  Affonso  v 
(1440):  «por  serdes  byen  regido  —  dios  vos  fizo 
su  regente.}}  O  Duque  de  Bragança,  seu  irmão 
bastardo  que  elle  dignificara,  tomou-lhe  um  ódio 
mortal  depois  que  as  Cortes  de  1441  auctorisaram 
os  esponsaes  de  D.  Isabel,  filha  do  Infante,  com 
seu  primo  o  rei  D.  Affonso  v :  esse  ódio  tornou- 
se  uma  complicada  intriga  que  determinou  o  assas- 
sinato do  Infante  D.  Pedro  em  20  de  Maio  de 
1449,  quando  vinha  justificar-se  perante  o  mo- 
narcha.  Um  poeta  do  Cancioneiro  de  Resende, 
Luiz  de  Azevedo,  em  uma  Elegia  em  nome.  do 
illustre  princepe,  conta  este  lance  quasi  parricidio : 

Eu  andei  por  muitas  partes 
e  por  muitas  boas  terras, 
muita  paz  e  também  guerras 
vi  tratar  por  muitas  artes. 
Mas  aquelle  dia  martes 
foi  infeliz  para  mim ; 
o  meu  sangue  me  deu  fim 
e  rompeu  meus  estandartes. 

Dom  Affonso  v  decretou  perseguições  até  ao 
quarto  gráo  a  todos  aquelles  que  acompanharam 
seu  tio  o  Infante  D.  Pedro;  é  crivei  que  isto 
actuasse  no  desapparecimento  das  suas  obras  poé- 
ticas. A  esta  phase  das  relações  litterarias  com  a 
corte  de  D.  João  11  de  Castella,  sob  o  influxo  do 
Infante  D.  Pedro,  podemos  attribuir  varias  tra- 
ducções  para  portuguez  de  poetas  castelhanos. 
Na  Bibliotheca  do  rei  D.  Duarte  guardava-se 
um  exemplar  das  composições  do  Arcipreste  d'' 
Hita;  e  na  bibliotheca  municipal  do  Porto  guar- 
da-se  uma  folha  avulsa  de  pergaminho  com  de- 


400  HISTORIA   DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


zoito  coplas  escriptas  a  duas  columnas,  em  que 
as  quadras  castelhanas  em  endechas  estão  redu- 
zidas a  outavas  em  redondilha.  Esse  fragmento, 
em  portuguez,  corresponde  ás  estrophes  90  a  93, 
95  a  100,  e  113  a  120  dos  exemplares  do  Arci- 
preste de  Hita. 

De  Hernan  Perez  de  Gusman,  publicou  Frei 
Fortunato  de  Sam  Boaventura  (attribuindo-as  ao 
Dr.  Frei  João  Claro,  da  Universidade  de  Lisboa) 
a  versão  do  Te  Deum  laudamus  e  as  paraphrases 
de  Padre  nosso  e  Ave-Maria^  que  no  Cancionero 
general  de  Castillo  vem  em  nome  do  illustre  pró- 
cere castelhano.  Nos  Inéditos  de  Caminha,  vem 
em  nome  de  Ayres  Telles  de  Menezes  fragmen- 
tos vertidos  de  uma  Canção  do  Marquez  de  San- 
tillana,  que  iniciava  o  joven  Condestavel  de  Por- 
tugal no  conhecimento  histórico  das  differentes 
escholas  poéticas  peninsulares. 

D.  Pedro  de  Portugal,  filho  do  Infante  D.  Pe- 
dro, nasceu  em  1429;  foi  nomeado  Condesta- 
vel em  1443,  sob  a  regência  de  seu  pae,  do  que 
se  originou  o  ódio  implacável  do  duque  de  Bra- 
gança, que  pretendia  que  esse  cargo  fosse  here- 
ditário na  sua  familia  por  ter  casado  com  uma 
filha  de  D.  Nuno  Alvares  Pereira.  Aos  dezeseis 
annos  foi  commandar  uma  expedição  de  dois  mil 
infantes  e  seiscentos  cavallos,  a  Castella,  em  1445, 
em  auxilio  de  D.  Álvaro  de  Luna,  contra  os  In- 
fantes de  Aragão;  esteve  na  batalha  de  Olmedo, 
onde  conheceu  pessoalmente  o  Marquez  de  San- 
tillana,  ao  qual  mandou  pedir,  em  1449,  a  colle- 
cção  das  suas  obras  Cancioncs  é  Decires.  O  Mar- 
quez enviou-as  para  Portugal,  com  um  Proemio 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :     EDADE    MÉDIA  4OI 


OU  Carta  do  mais  alto  valor  histórico.  Por  esta  ' 
época  da  expedição,  o  Regente  contractou  o  ca- 
samento de  D.  Isabel,  sua  sobrinha,  com  o  rei 
D.  João  1 1  de  Castella,  pensando  assim  abrandar 
o  ódio  do  Bragança  que  pretendia  casar  esta  sua 
neta  com  o  joven  rei  D.  Affonso  v.  A  estes  fa- 
ctos allude  o  Condestavel  D.  Pedro  na  Tragedia 
da  insigne  Rainha,  f aliando  de  seu  pae:  «Aquel 
que  ai  rey  Johan  de  Castella  sostuvo  la  real  co- 
rona en  la  cabeça  e  la  moneda  de  Portugal  en  los 
exércitos  por  el  embiados,  de  los  quales  tã  fuerte 
duque  e  conductor,  hizo  tomar  a  los  Castellanos 
ai  precio  de  la  própria  tierra  e  casou  a  la  reyna 
dona  Ysabel  sii  sobrina  con  el  rey  Don  Johan  de 
Castella  e  a  su  íija  con  el  rey  de  Portugal.»  (p. 
58.  Ed.  Mich.)  Esta  rainha,  que  deveu  o  seu 
casamento  á  influencia  de  D.  Álvaro  de  Luna, 
actuou  fortemente  na  perda  do  seu  favoritismo  e 
ruina.    D'ella  escreveu  o  Marquez  de  Santillana: 

Dios  vos  fizo  sin  enmienda, 
De  gentil  persona  é  cara, 
E  somando  su  contienda, 
Qual  Gioto  no  vos  pintara. 

O  Condestavel  D.  Pedro,  durante  a  Regên- 
cia de  seu  pae,  vivia  nos  seus  castellos  de  Elvas  e 
Marvão,  no  Mestrado  de  Christo,  entregue  aos 
seus  estudos  litterarios.  Teve  repentinamente  em 
Março  de  1449  de  abandonar  Portugal,  pelo  de- 
sastre de  Alfarrol>eira,  onde  foi  assasinado  seu 
pcie  pela  parcialidade  do  duque  de  Bragança  e  do 
Conde  de  Barcellos.  D.  Affonso  v,  seu  primo, 
destituiu-o  de  todos  os  seus  cargos,  entregando  o 

26 


402  HISTORIA    DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


Mestrado  de  Christo  ao  Infante  D.  Henrique. 
Nas  prosas  da  Tragedia  da  insigne  Rainha,  al- 
lude  á  situação  do  Regente :  «Aquel  que  con  tanta 
reverencia  e  lealtad,  con  tanto  acatamiento,  con 
tanta  humanidat  despues  de  puesto  las  sus  manos 
próprias  ai  su  pequeíio  rey  Alfonso  en  la  real  silla, 
por  nove  aííos  lo  crio,  en  tanta  alteza,  entre  tan- 
tas e  buenas  doctrinas...  (p.  58.)  Aquel  que  ré- 
gio los  reynos  de  los  Portuguezes  por  tanto  tiem- 
po  con  tanta  sabieza,  con  tanta  justiçia  e  clemên- 
cia.» Tudo  isto  foi  pago  pela  execranda  embos- 
cada de  Alfarrobeira,  a  que  succedeu  o  requinte 
da  lei  malvada  de  10  de  Outubro  de  1449,  P^^" 
seguindo  até  á  quarta  geração  aquelles  que  acom- 
panhavam o  Infante.  Toda  a  sua  familia  foi  des- 
membrada. Durante  os  nove  annos  de  desterro 
o  Condestavel  de  Portugal  procurou  consolação 
das  desgraças  de  seus  irmãos,  escrevendo  varias 
composiçõ-ís  poéticas,  que  traduzia  para  caste- 
lhano seguindo  o  gosto  allegorico,  imitando  o  La- 
byrinto  de  Juan  de  Mena  e  a  Comedicta  de  Ponza 
do  Marquez  de  Santillana.  A  sua  irmã,  a  rainha 
D.  Isabel,  esposa  de  D.  Affonso  v,  dirigiu  a  com- 
posição allegorica  intitulada  Safira  de  felice  e  in~ 
felice  vida,  que  declara,  na  carta  que  serve  de  de- 
dicatória ser  «el  primero  fructo  de  seus  estúdios.» 
Fora  primeiramente  escripta  em  portuguez,  mas 
durante  o  desterro  traduziu-a  para  castelhano 
«mas  costrenido  de  la  necessidad  que  de  la  vo- 
luntad.»  D'esta  obra,  guardada  na  Bibliotheca  na- 
cional de  Madrid,  deu  extensa  noticia  Amador  de 
los  Rios,  e  Octávio  de  Toledo,  achando-se  hoje 


PRIMEIRA     ÉPOCA  :     EDADE     MEDIA  40^ 

publicada  por  Paz  y  Melia.  ^  Por  1457  escreveu 
outra  composição  allegorica  entremeiada  de  prosa 
e  verso,  Tragedia  de  la  insigne  Rainha  D.  Isabel, 
dirigida  a  seu  irmão  D.  Jayme,  que  morreu  em 
Florença,  sendo  Cardeal-Bispo  de  Pafos  em  1457. 
Esta  obra  existe  actualmente  publicada  e  com- 
mentada  pela  sapiente  romanista  D.  Carolina  Mi- 
chaèlis.  2  Foi  ainda  do  seu  desterro  de  Castella, 
quando  a  rainha  D.  Isabel,  sua  irmã,  procurava 
reconcilial-o  com  D.  Affonso  v,  que  elle  dirigiu 
ao  monarcha,  seu  cunhado,  as  Outavas  castelha- 
nas Del  mcnosprecio  é  contempto  de  las  cosas  for- 
mosas dei  mundo.  Na  dedicatória  diz  ao  rei : 
«que  con  graciosos  e  amigables  oios  tu  leas  los 
mil  versos  mios  acompanados  de  algunas  glosas: 
los  quales  yo  caminando  por  deportar  é  passar 
tiempo  a  la  feria  pasada  de  Medina,  en  mi  viaje 
hove  la  introduçion  e  la  invencion  dellos  feria- 
do...» No  Catalogo  da  Bibliotheca  do  Condes- 
tavel  de  Portugal,  publicado  por  Belaguer,  y  Me- 
rino, n.o  82,  vem  indicado  um  livro  —  «intitulat 
en  la  cuberta,  ab  letres  dor.  Safira  de  contento 
dei  mundo:  reservat  en  un  stoig  de  cuyre  forrat 
de  drap  negre.»  Estas  cento  e  vinte  e  cinco  ou- 
tavas foram  duas  vezes  impressas  no  fim  do  sé- 
culo XV,   sem  data,   apparecendo  nos  exemplares 


1  Bibliófilos  Espaiioles,  vol.  xxix:  Opúsculos  lite- 
rários de  los  Siglos  XIV  a  xv. 

2  Na  Homenage  á  Mencndes  y  Pelayo  en  el  ano  vi- 
gésimo de  su  professorado,  com  uma  introducção :  Uma 
obra  inédita  do  Condestavel  D.  Pedro  de  Portugal.  Ma- 
drid, 1899. 


404  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    FORTUGUEZA 


vistos  por  José  Soares  da  Silva  e  por  Hain,  ru- 
bricas manuscriptas,  dando-as  como  impressas 
aseis  annos  depois  que  foi  achada  em  Basiléa  a 
Arte  da  impressão»  e  anove  annos  depois  de  in- 
ventada a  famosa  Arte.»  Quando  Garcia  de  Re- 
sende no  primeiro  quinquennio  do  século  xvi,  pu- 
blicou o  seu  Cancioneiro  geral,  n'elle  incorporou 
estas  Outavas,  attribuindo-as  ao  Infante  D.  Pe- 
dro, e  supprimindo-lhe  os  commentos  em  prosa, 
em  que  se  revela  o  verdadeiro  auctor.  Esta  errada 
attribuição  prevaleceu  na  litteratura ;  e  Amador 
de  los  Rios  justificava-a  por  uma  referencia  iso- 
lada mostrando  que  ahi  era  chamado  D.  Álvaro  de 
Luna  cl  Maestre,  Senor  (FEsaclona,  sendo-lhe 
dado  este  titulo  em  1445,  depois  da  morte  do  In- 
fante I).  Enrique  pelos  ferimentos  da  batalha 
de  Olmedo.  (Hist.,  vii,  75.)  Mas  em  seguida  a 
esta  allusão,  o  poeta  falia  na  morte  desgraçada  de 
D.  Álvaro  de  Luna  em  1453: 

Mirad  el  Maestre  si  vivio  penando 
Mirad  liiego  juncto  su  acahamicnto. 

(Est.  12.) 

Por  este  facto  o  critico  Octávio  de  Toledo  poz 
em  evidencia  que  o  Infante  D.  Pedro,  morto  em 
1449,  "ão  podia  ser  o  auctor  das  estancias  em  que 
se  commemorava  um  acontecimento  de  1453.  Os 
commentos  em  prosa  authenticam  a  composição  do 
Condestavel  de  Portugal  escripta  nas  formas  ge- 
neralisadas  por  Juan  de  Mena,  e  seguindo-lhe  o 
mesmo  espirito  da  historia.  D.  Affonso  v  res- 
tituiu ao  Condestavel  D.  Pedro  o  seu  mestrado  de 
Christo,   e  este  acompanhou-o  á  exp>edição  afri- 


PRIMEIRA   época:    edadE   média  405 

cana,  achando-se  com  o  rei  em  Ceuta  em  1463. 
Novas  fatalidades  surgiam,  para  lhe  atormentar 
a  sua  existência  contemplativa.  Falecido  em  1463 
o  Principe  D.  Carlos  de  Viana,  também  como 
elle  grande  apaixonado  da  litteratura,  foi-lhe  of fe- 
recido  por  uma  deputação  de  Catalães  o  Princi- 
pado e  Coroa  de  Aragão.  O  Condestavel  acceitou, 
partindo  logo  para  Barcelona,  vendo-se  immedia- 
tamente  empenhado  na  lucta  que  lhe  promovia  o 
Princepe  Fernando,  sendo  vencido  em  Prados 
d 'El  rey.  Refugiou-se  na  Catalunha,  falecendo 
em  1469  em  Granallers,  com  quarenta  annos  de 
edade.  A  'sua  livraria  (de  96  volumes)  continha 
obras  clássicas,  poemas  italianos  e  francezes  e  tra- 
tados de  moralistas.  Era  um  dos  mais  illustres 
espi ritos  do  seu  século. 

O  desenvolvimento  da  poesia  palaciana  seria 
um  facto  inexplicável,  se  a  creação  definitiva  do  po- 
der monarchico  não  reduzisse  a  aristocracia  a  uma 
posição  subalterna  e  parasita.  Deu-se  este  phe- 
nomeno  social  no  typo  da  Monarchia  francçza, 
que  prevaleceu  em  Hespanha  e  Portugal.  Depois 
cie  atacada  a  nobreza  no  seu  foro,  primeiramente 
l>elo  estabelecimento  dos  Livros  de  Linhagens,  em 
seguida  pela  adoi>ção  de  um  Código  ou  Ordena- 
ção commum;  atacada  na  sua  parte  vital  a  pro- 
priedade pela  revogabilidade  das  doações  regias, 
pela  necessidade  das  confirmações  geraes,  e  ainda 
por  essa  ficção  romana,  a  emphytense ;  reduzida  í 
inactividade  por  ter  acabado  a  reconquista  sobre 
o  poder  mussulmano;  e  privada  da  acção  indivi- 
dual por  que  a  sua  justiça  arbitraria  tomara  um 
caracter  abstracto  na  instituição  do  Ministério  pA- 


406  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


blico,  n'estas  condições  em  que  se  occuparia  a  No- 
breza? Esgotada  nas  revoltas  contra  o  poder  real 
ou  luctando  pelo  favoritismo,  acercou-se  do  rei, 
fez-se  palaciana,  inventou  festas,  torneios,  divi- 
sas, brazões,  e  para  encher  os  ócios  tediosos  dos 
serões  do  paço  fez-se  também  poeta. 

O  Coudel-mór,  dando  instrucções  a  um  sobri- 
nho para  tratar  o  paço,  recommenda-lhe :  aApu- 
par  alto  lhe  rima...  E  é  bom  ser  rifador...» 
Passava-se  este  phenomeno  nas  cortes  peninsu- 
lares; nas  cortes  de  D.  João  ii,  de  Castella,  de 
Enrique  iv  e  na  dos  Reis  catholicos  floresceram 
os  grandes  fidalgos  e  grandes  poetas,  como  os 
Marquezes  de  Vilhena  e  de  Santillana,  Hernan 
Perez  de  Gusman,  os  dois  Manriques.  Em  Por- 
tugal, nas  cortes  de  D.  Affonso  v  e  D.  João  ii, 
agrupam-se  o  Coudel-mór  Fernão  da  Silveira,  o 
Conde  de  Marialva,  Álvaro  de  Brito,  D.  João 
de  Menezes.  As  duas  cortes  aproximando-se  pe- 
los casamentos  reaes,  poetas  portuguezes  figuram 
com  numerosas  composições  nos  Cancioneiros  cas- 
telhanos, e  um  grande  numero  d'elles  escreve  em 
castelhano  os  seus  versos.  A  poesia  palaciana, 
aparte  algumas  composições  allegoricas  de  um  me- 
lancholico  idealismo,  tornou-se  exclusivamente  pes- 
soal, anecdotica  e  satirica,  procurando,  pela  erudi- 
ção, o  uso  da  mythologia  clássica  para  dar  algum 
colorido  ás  apagadas  expressões  convencionaes. 
Este  género  de  poesia,  tanto  em  Hespanha  como 
em  Portugal,  deu  logar  á  formação  dos  numero- 
sos Cancioneiros  manuscriptos,  sendo  os  princi- 
paes  o  de  Ixar,  de  Stuniga,  o  Palatino,  o  de  Gallar- 
do  e  o  da  Bibliotheca  de  Paris,  vindo  o  de  Hernan 


PRIMEIRA    época:     EDADE    MÉDIA  4O7 


de  Castillo  por  via  da  impressão  a  influir  no  tra- 
balho de  Garcia  de  Resende  do  Cancioneiro  geral 
portuguez,  publicado  em  15 16. 

2.0    Formação    do    Cancioneiro    geral.  — 

Quando  Garcia  de  Resende  começou  a  colligir 
as  poesias  da  fidalguia  portugueza  do  século  xv, 
escrevia,  como  justificação  do  seu  trabalho:  «muy- 
tas  cousas  de  folguar  e  gentylezas  ssam  perdidas 
ssem  aver  d'elas  noticia.  E  sse  as  que  ssam  per- 
didas dos  nossos  passados  se  poderam  aver,  e  dos 
presentes  s'escreveram,  creo  que  esses  grandes  poe- 
tas, que  per  tantas  partes  ssam  espalhados,  nam 
teveram  tanta  fama  como  tem.»  Referia-se,  como 
homem  erudito,  á  poesia  castelhana,  italiana  e 
franceza,  cujos  exemplares  enriqueceram  as  livra- 
rias de  D.  Duarte,  do  Condestavel  D.  Pedro  c 
de  D.  Affonso  v.  Resende  accusa  essa  grande 
fácula  na  litteratura  portugueza  na  transição  do 
século  XIV  para  o  xv.  Os  desastres  da  invasão 
castelhana  sob  D.  Fernando,  a  que  succedeu,  sob 
D.  João  I,  o  triumpho  de  Aljubarrota,  a  empreza 
guerreira  no  norte  da  Africa  iniciada  pela  con- 
quista de  Ceuta,  as  desgraças  da  corte  do  rei 
D.  Duarte,  que  não  pôde  libertar  seu  irmão 
D.  Fernando  morto  no  cativeiro  em  Fez,  o 
assassinato  do  Infante  D.  Pedro,  em  Alfarrobeira, 
e  a  morte  mysteriosa  de  seus  filhos  D.  Isabel, 
esposa  de  D.  Affonso  v,  e  D.  João,  rei  de  Chy- 
pre;  a  perseguição  contra  o  Condestavel  D.  Pe- 
dro, e  contra  seu  irmão  D.  Jayme,  dão-nos  um 
quadro  bem  sombrio  para  fundamentar  o  descui- 


408  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

cio  por  essas  muytas  cousas  de  folgiiar  e  gcnty- 
Iczas,  a  cuja  perda  allude  Resende. 

Para  emprehender  a  compilação  do  Cancio- 
neiro geral  achava-se  Garcia  de  Resende  em  uma 
situação  privilegiada;  entrara  muito  criança  para 
moço  da  camará  de  D.  João  ii,  que  começou  a 
reinar  em  1481.  Brilhava  a  poesia  palaciana  na 
corte  dos  reis  catholicos;  a  grande  importância 
que  elle  via  dar  no  paço  á  poesia,  que  formava  a 
parte  mais  interessante  dos  seroes,  levou  Garcia 
de  Resende  a  cultivar  também  a  poesia  e  a  sa- 
bel-a  julgar.  O  seu  talento  de  musico  e  dese- 
nhador deu-lhe  a  sympathia  do  monarcha.  D.  João 
1 1  confessara-lhe  que  a  ]X)esia  era  uma  singular 
manha.  Na  chronica  de  D.  João  11,  descreve  elle 
este  quadro  intimo:  «E  estando  uma  noite  na 
cama  já  despejado,  me  perguntou  se  sabia  as 
trovas  de  Jorge  Manrique,  que  começam:  Rc- 
cucfd  el  alma  dormida,  etc,  e  eu  lhe  disse,  que 
sim;  fez-m'as  dizer  de  cór,  e.  'depois  de  ditas 
me  ^ disse  que  folgava  muito  de  m'as  vêr  saber, 
e  que  tão  necessário  era  em  um  homem  sabel-as. 
como  saber  o  Pater  nostcr,  e  gabou  muito  o 
trovar  de  singular  manha,  e  isto  ix>r  (jue  eu  hz 
vontade  de  o  aprender  e  fazer  saber.»  (Cap.  cc. ) 
Com  um  caracter  jovial  fleugmatico,  com  que  res- 
pondia aos  apodos  contra  a  sua  obesidade,  esti- 
mado pelo  monarcha  que  apreciava  as  suas  va- 
riadas prendas,  tudo  o  collocava  em  condições 
para  obter  os  pequenos  Cancioneiros  particulares, 
os  cadernos  ou  rolos  de  coplas  avulsas,  e  consti- 
tuir com  elles  um  grande  Cancioneiro  geral.  Al- 
guns fidalgos,  como  Jorge  de  Vasconcellos,  pro- 


PRIMEIRA    época:     KDADE     MEDIA  409 

vedor  dos  Armazéns,  excusavam-se,  não  podendo 
a  final  resistir  á  sua  insistência ;  ou  como  o  Abbade 
d'Alcobaça,  a  quem  enviara  um  emissário. 

A  collecção  portugueza,  que  encerra  compo- 
sições de  trezentos  e  cincoenta  e  um  fidalgos,  foi 
iormada  ao  acaso,  sem  ordem  chronologica,  nem 
de  géneros  poéticos,  salvo  a  parte  final  reservada 
a  Cousas  de  folgar.  Pôde  comtudo  estabelecer-se 
uma  coordenação,  localisando  pelos  Livros  das 
Moradias  os  poetas  palacianos  que  pertenceram 
ás  oôrtes  de  D.  Affonso  v,  D.  João  ii  e  que 
ainda  figuraram  na  corte  de  D.  Manoel.  Os 
nobiliários  manuscriptos  também  esclarecem  os 
elementos  biographicos  d'esses  fidalgos  e  as  suas 
frequentes  homonymias.  Importante  para  o  co- 
nhecimento da  vida  intima  da  corte,  o  Cancio- 
neiro tem  alto  valor  pelas  referencias  históricas 
d'esta  laboriosa  época  da  transformação  social  que 
se  inicia. 

Provavelmente  determinou  esta  coUeccionação 
o  certame  poético  que  se  deu  na  corte  entre  vá- 
rios poetas  que  debatiam  a  questão  subjectiva  do 
Ciiydar  e  o  Suspirar,  em  1483.  A  estima  que  Re- 
sende encontrava  em  D.  João  11,  fez  com  que 
pudesse  alcançar  da  Livraria  de  D.  Affonso  v, 
ou  de  D.  Philippa  de  Lencastre  as  ix>ucas  obras 
que  restavam  do  Infante  D.  Pedro,  seu  pae,  e 
do  Condestavel  de  Portugal,  seu  irmão.  Descre- 
vem-se  n'essas  composições  os  grandes  successos 
do  tempo,  taes  como  as  festas  da  Imperatriz,  por 
occasião  do  casamento  da  Infanta  D.  Leonor  com 
o  Imperador  da  Allemanha  em  1451;  os  ricos 
Momos  que  o  Infante  D.  Fernando  fez  então; 


410  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

descobre-se  ahi  o  regresso  do  Condestavel  D.  Pe- 
dro á  corte  de  D.  Af  fonso  v  em  1464,  nos  versos 
do  Coudel-mór  «a  el  Rei  Dom  Pedro,  que  che- 
gando á  corte  se  mostrou  servidor  d'uma  senhora 
a  quem  elle  servia.))  ^  Alludem  também  á  desco- 
berta da  Mina  em  1459  e  á  batalha  de  Toro  em 
1474;  ás  celebres  Cortes  de  Monte-mór  em  1477; 
á  morte  de  D.  Af  fonso  v  em  148 1,  e  á  morte  do 
Duque  de  Bragança  executado  em  1483 :  amas 
isto  veo  no  tempo  da  morte  do  Duque-))  N'este 
anno  se  fez  o  certame  do  Cuydar  e  Suspirar,  imi- 
tando as  Cortes  de  Amor.  Em  uns  versos  refere 
Pêro  de  Sousa  Ribeiro  a  grande  festa  de  1490: 
aquando  el  rei  nosso  senhor  veo  de  Santyago,  que 
fez  o  singidar  Momo  de  Santos...))  O  torneio  e 
as  Divisas  por  occasiao  do  casamento  do  prin- 
cepe  D.  Affonso  com  uma  filha  de  Fernando  e 
Isabel,  em  1491,  e  a  lamentação  de  Álvaro  de 
Brito  pela  sua  morte  desastrosa;  o  enterro  e  tras- 
ladação de  D.  João  n  em  1495,  tudo  alli  pulsa 
na  corda  plangente  ou  chistosa,  fazendo  do  Can- 
cioneiro geral  um  verdadeiro  monumento  da  vida 
moral  da  sociedade  aristocrática  portugueza,  no 
século  XV.  Já  n'este  Cancioneiro  figura  Mestre 
Gil  Vicente,  (Mestre,  titulo  do  graduado  em  Ar- 
tes) que  entrou  no  paço  como  mestre  de  Rheto- 
rica  de  D.  Manoel.  E  como  na  historia  tudo 
é  evolutivo,  os  Momos,  Crisaufos,  Bntremeses  e 
Dansas  de  retorta,  da  corte  de  D.  João  n,  tudo 


I  São  os  versos  d'este  rei  D.  Pedro  (de  Aragão)  os 
que  se  attribuiram  irreflectidamente  ao  amante  de  D.  Ignez 
de  Castro. 


PRIMEIRA     época:     EDADE     MEDIA  4II 

vem  integrar-se  no  génio  dramático  de  Gil  Vi- 
cente, como  as  recordações  dos  f aliados  Serões  d' 
Portugal  acordaram  o  génio  lyrico  de  Sá  de  Mi- 
randa e  de  Bernardim  Ribeiro. 

Considerado  como  obra  de  litteratura,  o  Can- 
cioneiro é  essencialmente  lyrico,  de  ordinário  sa- 
tirico  nos  improvisos  provocados  nos  accidentes 
dos  serões  do  paço.  Empregam-se  as  Voltas ,  Vil- 
lancetes,  Esparsas,  Apodos,  Canções  e  Endechas; 
nas  composições  elegiacas  emprega-se  a  forma  es- 
trophica  das  celebres  Coplas  de  Jorge  Manrique. 
Ha  no  Cancioneiro  Poemetos  narrativos  ou  hii- 
toricos,  endecasyllabos  ou  endechas,  á  morte  do 
Princepe  D.  Affonso,  e  de  D.  João  ii,  e  á  to- 
mada de  Azamor.  Eram  puras  imitações  da  for- 
ma das  Trezentas  de  João  de  Mena,  constituindo 
um  género  usado  também  por  Santillana  sob  ti- 
tulo de  Lamentações.  Os  versos  de  Garcia  de 
Resende  em  forma  de  Romance  á  morte  de 
D.  Ignez  de  Castro,  são  tão  bellos,  que  se  não 
existisse  o  episodio  dos  Lusíadas,  seriam  a  expres- 
são artistica  d'essa  grandiosa  tradição  affectiva. 
Da  forma  dramática  contém  apenas  um  rápido  es- 
boço no  Momo  do  Anjo,  feito  pelo  Conde  de  Vi- 
mioso, quando  namorado.  A  maior  parte  das 
composições  do  Cancioneiro  eram  improvisos  so- 
bre qualquer  pretexto  para  animar  os  Serões  do 
paço:  um  poeta  propunha  um  thema  em  forma  de 
Pergunta,  sobre  qualquer  descuido  de  uma  da- 
ma, qualquer  trajo  menos  galante  de  um  caval- 
leiro,  como  aconteceu  com  as  ceroulas  do  chama- 
lote  de  Manoel  de  Noronha,  ou  com  a  gangorra 
de  solya.  ou  com  os  pombos  que  uma  dama  atirou 


412  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    PORTUGUEZA 


(le  unia  janella ;  os  poetas  que  entravam  no  Apodo 
vinham  em  Ajuda,  e  destacavam-se  em  duas  par- 
cialidades, atacando  e  defendendo  ás  vezes  em 
serões  successivos.  Outras  vezes  tomava  a  feição 
de  um  processo  forense  simulado,  em  que  a  pró- 
pria rainha  D.  Leonor  vinha  dar  a  sentença,  como 
succedeu  com  o  apodo  feito  a  Vasco  Abul.  ,  Re- 
sende também  foi  alvo  de  enormes  cargas  satí- 
ricas a  que  elle  próprio  deu  publicidade  e  em  que 
se  íixam  alguns  traços  da  sua  vida.  Esta  ordem 
de  composições  entrou  tão  profundamente  nos 
costumes  palacianos,  que  difíicil  foi  a  introducção 
dos  novos  metros  da  Eschola  italiana  petrarchista, 
no  principio  .do  século  xvi,  oppondo-se  obstina- 
damente ao  dolcc  stil  ntiovo  as  trovas  em  redon- 
dilhas  ou  da  medida  velha.  Também  ^oi  essa  a 
primeira  maneira  dos  grandes  poetas  quinhentis- 
tas, ensaiando  as  azas  n'esse  estylo  de  Caíicionei- 
ro.  Entre  aquella  alluvião  de  poetas  que  metrifi- 
caram ix>r  feição  aristocrática,  alguns  se  desta- 
caram, representando  com  altura  esta  época,  como 
Álvaro  Barreto,  Álvaro  de  Brito,  Fernão  Bran- 
dão e  Diogo  Brandão,  Garcia  de  Resende,  e  João 
Rodrigues  de  Sá,  que  nas  suas  Heroides,  tradu- 
zidas de  Ovidio,  accentua  a  tendência  erudita  do- 
minante. 

Embora  a  principal  actividade  ix)etica  do  sé- 
culo XV  esteja  colligida  no  Cancioíieiro  geral, 
muitos  Cancioneiros  particulares  existiram,  uns 
completamente  perdidos  e  outros  no  esquecimento 
dos  manuscriptos.  Além  das  obras  poéticas  do 
Condestavel  D.  Pedro  já  estudadas,  ha  a|>enas  no- 
ticia do: 


PRIMEIRA   Época:    edade   media  41  > 


a)  Lkro  das  Trovas  de  Bi  Rei  D.  Duarte. 
—  Sabe-se,  i>elo  Catalogo  dos  seus  Livros  de 
uso,  achado  na  Cartuxa  de  Évora,  da  exis- 
tência d'este  Cancioneiro.  O  rei  D.  Duarte  sa- 
bia trovar,  como  a  maior  parte  dos  reis  peninsa- 
lares,  e  as  suas  composições  apresentariam  pel'i 
seu  caracter,  uma  feição  didáctica,  moralista,  coi  i 
imitações  dos  Trinmphos  de  Petrarcha,  e  versões 
dos  hymnos  ecclesiasticos,  como  fizera  Fernan 
Perez  de  Gusman.  Perdido  o  Livro  das  Trovas 
de  Bi  Rey,  podemos  fazer  ideia  da  sua  aptidão 
poética,  pela  versão  de  um  hymno  ecclesiastico  do 
século  X  feita  a  pedido  da  rainha  D.  Leonor,  sua 
mulher:  «E  por  que  por  vosso  requerimento  tor- 
nei em  linguag-em  simplesmente  rimada  de  seis 
pés  de  um  consoante  a  Oraçon  do  Justo  Juiz  Jesu 
Christo,  vol-a  fiz  aqui  screver,  a  (jual  pêra 
fazer  consoar  nom  pude  compridamente  dar  sua 
linguag-em,  nem  a  fiz  em  outra  melhor  forma  por 
concordar  com  a  maneira  e  tençon  que  era  feita 
em  latim.»  i  Transcrevemos  duas  estrophes  para 
conhecer-se  a  metrificação  do  poeta : 


I  Leal  Conselheiro,  p.  477.  Diz  o  editor:  ^^Fizemos 
grande  diligencia  por  descobrir  esta  Oração  latina,  mas 
com  pesar  nosso  a  não  pudemos  enconseguir;  etc.^^  Tive- 
mos nós  essa  ventura ;  é  um  hymno  latino  do  século  x  do 
Ms.  n."  30  da  Academia  de  Historia  de  Madrid,  publicado 
por  Helffrich  e  de  Clermont,  no  Aperçu  de  1'Histore  dcs 
Langues  Neolathies  en  Espagne,  p.  48.  —  João  de  Barros, 
na  Compilação  de  Obras  varias,  p.  55,  traz  uma  versão  em 
prosa. 


414  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

Justo  Juiz  Jesu  Christo 
Rey  dos  Rex  e  boo  Senhor, 
Que  com  Padre  regnas  sempre 
Hu  he  d'ambos  hun  amor; 
Praza-te  de  me  ouvir, 
Pois  me  sento  peccador. 

Tu,  que  do  ceeo  descendiste 
En  o  ventre  virginal, 
Hu  tomando  logo   carne 
Livraste  o  segre  de  mal 
Por  teu  sangue  precioso 
De  perdiçom  eternal...   i     ^ 

Também  existem  algumas  Oiitavas  em  ende- 
chas,-na  forma  castelhana,  com  Preceitos  contra 
a  peste.  Dominava  nas  litteraturas  o  fervor  das 
traducções  dos  poetas  gregos,  latinos,  italianos, 
inglezes  e  francezes;  é  de  presumir,  que  a  ten- 
dência erudita  de  D.  Duarte  o  levasse  a  exercer 
n'este  campo  a  sua  j^ericia  métrica.  Existiriam 
n'esse  Livro  das  Trovas  composições  lyricas  de  seu 
irmão  o  Infante  D.  Pedro,  de  que  mui  pouco  resta, 
e  que  elle  tanto  admirava. 

b)  Cancioneiro  portngu:z.  —  Falia  d'este  li- 
\r()  Gil  Vicente,  citando  composições  que  se  não 
encontram  no  Cancioneiro  geral ;  o  que  leva  a  in- 
ferir ser  uma  collecção  independente.  N'este  Can- 
cioneiro escreveu  um  poeta  de  Thomar,  chamado 
Affonso  TvOpes  Sampaio,  este  rifão: 


I     Eis  a  primitiva  forma  latina: 

Justus  judex  Jesu  Christe,  regum  rex  et  domine, 

Qui  cum   Patre  regnas  semper,  et  cum  sancto  flamine 

Te  digneris  preces  meãs  clemente  suscipere. 

Qui  de  ccelis  descendisti  Virginis  in  uterum, 

índe  summens  veram  carnem  visitasti  saeculum, 

Tuum  plasma  redimendo  sanguinem  per  proprium... 


PRIMEIRA   época:    EPADE   média  415 


Matou-me  moura  e  não  mouro, 
E  quem  m'a  lançada  deu 
Moura  ella  e  mouro"  eu. 

Trovando  sobre  este  versos,  traz  Gil  Vicente 
a  rnbrica:  «Affonso  Lopes  Sampaio,  christão 
novo  que  vivia  em  Thomar,  fez  um  rifão,  que  an- 
dava no  Cancioneiro  portugiiez;  ao  rifão  se  fize- 
ram muitas  trovas  e  boas.  Pediu  o  Conde  do 
Vimioso  a  Gil  Vicente  que  fizesse  também  e  elle 
fez  esta  trova.» 

c)  Cancioneiro  português  da  Bihliotheca  de 
Madrid.  —  Fez  o  hespanhol  D.  José  Thoma'!, 
em  1790,  descripção  d'este  códice,  contendo: 
«obras  burlescas  na  lingua  portugueza,  recopiladas 
segundo  parece  no  século  decimo  quinto.  Corr.- 
prehende  96  folhas  de  folio,  e  ainda  é  maior  o 
numero  dos  auctores  de  poesias  n'elle  conteúdas, 
as  quaes  são  todas  coplas  reaes,  compostas  de  duas 
redondilhas  de  cinco  versos  cada  uma,  outra  de 
quatro:  algumas  mixtas;  poucos  villancicos  e  re- 
dondilhas de  quatro  versos  com  alguns  tercetos. 
A  maior  parte  dos  versos  são  dos  que  chamamos 
de  redondilha  menor  ou  de  seis  syllabas,  e  se  en- 
contra frequentemente  o  verso  quebrado.»  Será 
este  Cancioneiro  esse  referido  por  Gil  Vicente. 
Bem  merecia  ser  copiado  para  a  Bibliotheca  na- 
cional ou  para  a  Academia  real  das  sciencias. 

d)  Cancioneiro  do  Abbade  D.  Martinho.  — 
Quando  Garcia  de  Resende  colligia  materiaes 
para  o  Cancioneiro  geral,  soube  d'esta  com- 
pilação e  desejou  exanimal-a  para  extractar  algu- 
mas composições.  Assim  o  revela  Resende  em 
uma:    «Trova  sua  a  Diogo  de  Mello,  que  partia 


4l6  HISTORIA    DA    I^ITTERATURA    PORTUGUEZA 


<ie  Alcobaça,  e  havia-lhe  de  trazer  de  lá  nm  Can- 
cioneiro d 'um  Abbade  que  chamam  Frey  Mar- 
tinho : 

Decoray  pelo  caminho 
té  chegardes  ó  Mosteiro, 
qu'  hade  vir  o  Cancioneiro 
do  Abbade  frey  Martinho. 

(Can.  ger.,  iii,  634.) 

e)  Cancioneiro  de  D.  Francisco  Coutinho, 
Conde  de  Marialva.  —  No  fim  do  século  xvi 
apparece  pela  primeira  vez  uma  referencia  a 
este  Cancioneiro,  por  Frei  Bernardo  de  Brito,  a 
propósito  da  transcripção  das  trovas  ou  Canção 
do  Figneiral:  «E  porque  em  matérias  onde  faltam 
auctores  vale  muito  a  tradição  vulgar,  e  as  cousas 
que  antigos  traziam  entre  si  como  authenticas  e 
verdadeiras  e  as  ensinavam  a  seus  descendentes 
nos  Romances  e  Cantares  que  então  costumavam, 
porei  parte  d'aquelle  cantar  velho  que  vi  escripto 
em  um  Cancioneiro  de  mão,  que  foi  de  Dom  Fran- 
cisco Coutinho,  Conde  de  Marialva,  o  qual  veiu  á 
mão  de  quem  o  estimava  em  bem  pouco...»  (Mo- 
narch.  Lusit.,  f{.  296,  1609.)  E  accrescenta:  n: 
depois  ouvi  cantar  na  Beira  a  lauradores  antigos 
com  alguma  corrupção...))  De  facto  essa  melodia 
foi  transcripta  no  Cancioneiro,  d'onde  a  extrahiu 
em  1855  em  Barcelona,  D.  Marianno  Soriano 
Fuertcs,  publicando-a  na  sua  Historia  de  la  Mu- 
sica en  Físpana.  Em  que  consistiria  a  corrupção 
notada  ;ia  tradição  oral  ?  Da  sua  forma  dansada 
em  coro  de  estavillar,  passou  para  a  cantilena  em 
verso   de    redondilha   maior   assonantada,   que   c 


PRIMEIRA  época:  EdadE  media  417 

como  ainda  hoje  se  repete  no  Algarve.  Concorda 
com  o  que  d'esta  Canção  escreveu  no  fim  do  sé- 
culo XVI  Miguel  Leitão  de  Andrade,  na  sua  Mis- 
cellanea:  «A  qual  me  lembra  a  mim  ouvil-a  can- 
tar muito  sentida,  a  uma  velha  de  muita  edade 
natural  do  Algarve,  sendo  eu  muito  menino.» 
(Nascera  em  1555.)  Além  das  Trovas  dos  fi- 
gueiredos, publicou  Miguel  Leitão  na  Miscellanea 
(p.  458  e  460)  duas  Cartas  de  Egas  Moniz  Coe- 
lho a  sua  dama,  e  as  Outavas  da  Perda  de  Hes- 
panha  (ib.,  p.  456)  sem  declarar  que  eram  extra- 
hidas  do  Cancioneiro  de  D.  Francisco  Coutinho, 
quando  as  intercalou  no  meio  de  uma  novella. 
Frei  Bernardo  de  Brito,  publicou  na  Chronica  de 
Cister  (Liv.  VI,  c.  i)  os  Versos  a  Ouroana,  tam- 
bém sem  tornar  a  ref erir-se  ao  Cancioneiro  do 
Conde  de  Marialva.  Como  verificar  este  conteii- 
do?  O  Cancioneiro  só  torna  a  apparecer  citado 
no  fim  do  século  xviii  pelo  erudito  académico 
Dr.  António  Ribeiro  dos  Santos,  Blpino  Diiriense, 
referindo-se   ás   supra-mencionadas   composições : 

—  Cancioneiro  do  Doutor  Gualter  Antunes. 
—  «Vimos  em  tempos  passados  um  Cancioneiro 
Ms.,  que  parece  letra  do  século  xv,  em  que  se  tra- 
tavam Louvores  da  Lingua  portuguesa,  em  que 
vinha  esta  Canção  de  Hermingucs  (a  Oriana),  o 
fragmento  do  Poema  da  perda  da  Hespanha,  e  as 
duas  Cartas  de  Bgas  Moniz,  com  as  Cantigas  de 
Goesto  Ansures  (Figueiral),  e  com  variantes  em 
alguns  termos  que  iremos  notando  em  seus  loga- 
res  competentes ;  este  códice  era  da  escolhida  li- 
vraria do  Doutor  Gualter  Antunes,  erudito  cida- 
dão da  cidade  do  Porto,  que  nol-o  mostrou  e  d*elle 

27 


4l8  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

copiamos  as  ditas  obras.»  As  variantes  foram 
notadas  confrontando  as  lições  conhecidas  pelos 
textos  do  século  xvii,  de  Fr.  Bernardo  de  Brito 
e  Leitão  de  Andrade.  Por  este  processo  ficou  iden- 
tificado o  Cancioneiro  do  Dr.  Gualter  Antunes, 
ms.  do  século  xv,  com  o  Cancioneiro  de  D.  Fran- 
cisco Coutinho  pelo  sábio  philologo  Dr.  António 
Ribeiro  dos  Santos.  ^  Contra  esta  identificação 
oppÕe  D.  Carolina  Michaèlis  um  reparo  infun- 
dado: (íMas  esse  volume  (Ms.  Gualter)  era  um 
opúsculo  ém  prosa  portugiieza,  entremeado  de  do- 
cumentos i Ilustrativos,  entre  os  quaes  avultava 
uma  d'essas  cinco  relíquias.»  Encontravam-se  ahi 
as  cinco  peças  vulgarisadas  no  século  xvii,  e  ou- 
tras composições  em  verso,  com  transcripçao  de 
musica,  o  que  bastava  para  denominar  esse  manus- 
cripto  do  século  xv  um  Cancioneiro.  Como  se  ix)de 
affirmar  isto,  depois  d'este  dado  fornecido  pelo  Dr. 
Ribeiro  dos  Santos :  «Por  morte  do  Doutor  Gualter 
Antunes  não  sabemos  onde  foi  parar  com  os  mais 
Mss.,  livros  e  preciosidades  do  seu  precioso  gabine- 
te.» Em  1855,  ^-  Marianno  Soriano  Fuertes,  pu- 
blicando a  sua  Historia  de  la  Musica  en  Espana, 
indicava  a  pista  d'este  Cancioneiro:  «Para  dar 
alguma  ideia  da  poesia  portugueza  no  século  xtt 
(!)  e  principios  do  século  xiii,  copiaremos  uma 
Canção  extractada  de  um  Cancioneiro  antigo,  que 
foi  de  D.  Francisco  Coutinho,  Conde  de  Ma- 
rialva.»   E  a  Canção  que  transcreve  é  effectiva- 


I     Mss.    Vol.    vTii,   p.    233-251.     (Nzi    Bibliothtca    na- 
cional). 


PRIMEIRA  época:  edade  media  419 


mente   em   velho  portuguez,   e   acompanhada,   de 
musica;  começa: 

A   Reyna   groriosa 

tan  é  de  gran  santidade, 

que  con  esto  nos  defende 

do  demónio  de  sa  maldade; 

e  tal  razon  com'esta 

um  miragre  contar  quero, 

que  fez  a  Santa  Maria, 

aposto  e  grande  e  fero, 

que  nom  foi  feito  tan  grande 

ben  des  lo  tempo  de  Nero, 

que  emperador  de  Roma 

foi  d'aquella  gran  cidade... ^^ 

Esta  cantiga  foi  apontada  por  Amador  de  los 
Rios  como  pertencente  a  Affonso  o  Sábio;  e  de 
facto  no  livro  das  Cantigas  de  Santa  Maria,  pu- 
blicado pelo  Marquez  de  Valmar  tem  o  numero 
ivxvii.  Soriano  Fuertes  ignorava  a  sua  preciosa  e 
authentica  origem,  o  que  mais  valorisa  a  trans- 
cripção,  bem  como  a  sua  melodia.  ^  D'esse  mesmo 
Cancioneiro,  que  tinha  mais  do  que  os  Louvores 
(la  lingua  portugueza,  transcreveu  a  Canção  do 


I  D.  Carolina  Michaèlis,  querendo  invalidar  esta  des- 
coberta do  Cancioneiro  de  D.  Francisco  Coutinho,  força 
a  nota  irónica :  *^^Parece  todavia  que  resurgiu  no  nosso 
-cculo,  momentaneamente  em  Barcelona  apparecendo  a  um 
musicographo  privilegiado.  Creio  que  em  sonhos !  Soriano, 
cujos  juizos  em  matéria "litteraria  são  de  uma  leveza  inau- 
dita, diz  ter  colhido  no  Cancioneiro  do  Conde  de  Marialva 
uma  cantiga  do  século  xii  ou  xiii.  E  communicou-a  com 
a  notação  egual  á  que  se  vê  nas  Cantigas  de  Affonso  o 
vSabio.  Isto  não  admira  visto  ser  de  facto  obra  do  próprio 
rei,  colhida  em  qualquer  apographo  secundário.*  Em  1855 
ainda  não  estavam  publicadas  as  Cantigas  de  Santa  Maria, 
c  Soriano  transcreveu  essa  de  ura  apo^apho,  que  era  O 
Cancioneiro  de  D.  Francisco  Coutinho, 


420  HISTORIA   DA   LITTERATURA    PORTUGUEZA 

Pigneiral,  também  com  a  musica  que  ahi  estava 
notada;  este  facto  identificava  decisivamente  o 
Cancioneiro  do  Dr.  Gualter  Antunes  com  o  de 
D.  Francisco  Coutinho.  Para  invalidar  este  fa- 
cto, oppÕe  D.  Carolina  Michaèlis,  depois  de  ter 
dito  que  Soriano  Fuertes  vira  em  sonhos  o  Can- 
cioneiro, uma  hypothese  gratuita:  «O  texto  ti- 
rou-o  evidentemente  da  Monarchm  hisifana.»  E  a 
musica  que  acompanhava  a  Canção?  Convenci- 
da de  què  o  Cancioneiro  foi  visto  em  sonhos  pelo 
musicographo  hespanhol,  condemna  os  textos  do 
Códice  do  fim  do  século  xv  como  fabricação  litte- 
raria  do  século  xvii:  «O  romance  (do  appare- 
cimento)  emparelha  provavelmente  com  as  mes- 
mas reliquias  da  arte  nacional,  em  prosa  e  verso* 
que  appareceram  no  tempo  das  mudanças  mara- 
vilhosamente a  ponto  para  fornecer  certas  patra- 
nhas e  doutrinas  históricas,  genealógicas  e  littera- 
rias,  então  em  moda.»  (Canc.  Aj.,  ii,  268.)  Quer 
referir-se  ao  tempo  das  alterações,  depois  da  pêrdí^ 
de  Alcacer-kibir,  em  que  se  simularam  sátiras  e 
prophecias,  em  um  fervoroso  apocryphisnio.  Nos 
fins  do  século  xv  é  que  irrompeu  o  apocryphismo 
litterario,  iniciado  por  Anio  de  Viterbo  revelando 
Annaes  egypcios  e  chaldeus,  e  dando  logar  em 
Hespanha  cá  eschola  pseudo-erudita  dos  falsos 
Chronicões,  com  um  syncretismo  de  lendas  do 
cyclo  troyano  e  de  poemas  árabes.  O  Cancioneiro 
de  D.  Francisco  Coutinho  não  era  trohadoresco. 
mas  uma  miscellanea.  como  reconheceu  a  iílustre 
critica:  isto  explica  o  apocryphismo  de  algumas 
das  composições  colligidas,  cujo  valor  consiste 
n'e5ta  característica  do  seailo  xv.    O  q  le  é  in- 


PRIMEIRA  época:  édadé  média  421 

acceitavel  por  absurdo,  anachronico  e  estúpido, 
são  as  circumstancias  que  revestem  essas  compo- 
sições, marcando-lhes  phantasiosamente  épocas, 
personagens,  auctores  e  situações  históricas.  João 
Pedro  Ribeiro,  o  fundador  da  diplomática  por- 
tugueza,  rejeitou  em  bloco  tudo  isso,  envolvendo 
as  composições,  sem  lhes  determinar  a  forma  lit- 
teraria,  que  revelaria  um  apocryphismo  do  século 
XV,  com  certo  valor  artistico.  Ribeiro  dos  San- 
tos fez  o  exame  dos  vocábulos,  para  determinar 
o  seu  valor  archaico,  sem  notar  que  se  simula 
antiguidade  com  palavras  obsoletas.  Não  era  esse 
o  verdadeiro  critério  para  apreciar  as  cinco  com- 
posições do  Cancioneiro  de  D.  Francisco  Cou- 
tinho, que  se  vulgarisaram  avulsas  no  século 
XVII,  apenas  pelo  espirito  de  compilação  curiosa. 
Consideremol-as  á  luz  do  apocryphismo  do  sé- 
culo XV,  que  immediatamente  se  verifica : 

Fragmento  do  Poema  da  perda  de  Hespa- 
nha.  —  São  quatro  outavas  em  endechas,  ou  de 
gaita  gallega,  forma  já  usada  por  Af  fonso  o  Sábio, 
mas  posta  em  voga  por  João  de  Mena,  no  meado 
do  século  XV,  nas  suas  Trezentas  em  bellas  nar- 
rativas históricas.  Esta  forma  foi  empregada  nas 
narrativas  históricas  do  Cancioneiro  de  Resende, 
e  ainda  pelo  chfonista  João  de  Barros,  fazendo 
um  esboço  da  Epopêa  portugueza.  O  thema  da 
invasão  de  Hespanha  vulgarisou-se  com  todo  o 
impressionismo  da  lenda  poética,  desde  que  Pe- 
dro dei  Corral,  publicou  em  1443  a  Crónica  Sar- 
racina,  e  a  Crónica  dei  Rey  D.  Pedro  con  la  Des- 
frucion  de  Espana;  elle  emprega  tiradas  da  Cro- 
nyca  Troyana^  e  lances  tomados  do  Amadis.    O 


4^  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

nome  de  Cava,  (do  árabe  Cahha,  rameira)  filha 
de  D.  Faldrina,  irmã  de  D.  Opas,  muda-se  no 
de  Florinda  na  Verdadeira  historia  de  D.  Rodri- 
go, por  Miguel  de  Luna.  i  O  nome  de  Mira- 
molini  (Emir  el  mumenin)  só  foi  usado  do  sé- 
culo XII  por  diante.  Essas  quatro  Outavas  eram 
uma  Lamentação  da  perda  de  Hespanha,  segundo 
o  género  de  Lamentação,  de  que  falia  o  Mar- 
quez de '  Santillana,  das  luctas  f)oliticas  do  rei- 
nado de  D.  Juan  ii  e  Enrique  iv. 

Canção  do  Pigueiral.  —  Desprezadas  as  cir- 
cumstancias  de  que  Frei  Bernardo  de  Brito  cer- 
cou este  cantar  velho,  e  o  nome  de  Goesto  An- 
sures,  fica  uma  Canção  bailada,  ligada  a  um  epi- 
sodio da  lenda  de  Tristão  da  novella  do  século 
XIII  e  XIV.  E  podemos  mesmo  consideral-a  um 
Lai  primitivo  do  perdido  texto  do  Tristão  por-^ 
tuguez.  Outros  Lais  de  Tristão,  foram  colligi- 
dos  muito  deturpados  no  Cancioneiro  Collocci 
Brancuti.  Não  será  o  do  Figueiral  um  d'esses 
que  pela  melodia  tradicional  se  conservou  por 
seu  turno  no  Cancioneiro  de  D.  Francisco  Cou- 
tinho? A  lenda  do  Tributo  das  Donzellas,  pago 
a  Morhouet  da  Irlanda,  foi  transformada  no 
Peyto  burdelo  que  recebia  Mau  regato,  servindo 
D  milagre  da  sua  libertação  para  fundamento  do 


I  Estas  Chronicas  são  paraphrases  da  Crónica  de 
D.  Rodrigo  anonyma,  onde  se  agglomeraram  as  tradições 
da  Torre  ou  Cova  encantada  de  Toledo,  os  amores  da  Cava 
e  a  Penitencia  do  Rei  Rodrigo,  Pedro  dei  Corral  também 
se  serviu  amplamente  da  Chronica  do  Mouro  Rasis  (Ahmed- 
Ar-Rasi)  na  ^^traducção  castelhana  do  século  xiv  fundada 
sobre  outra  portuguesa  feita  pelo  mestre  Mohamed  e  o 
clérigo  Gil  Pires.»  (Pelayo,  Origines,  p.  CCCLv.) 


PRIMEIRA   época:    EDADE   MÉDIA  423 

Censo  ou  Votos  de  San  Thiago.  Antes  da  No- 
vella  de  Tristão^  a  lenda  do  Tributo  das  Don- 
zellas  derivava  do  mytho  dos  Dragões,  a  quem 
se  pagavam  Donzellas,  que  os  heroes,  como  per- 
sonificação solar,  resgatavam.  O  mytho  dissol- 
veu-se  em  lenda  épica  e  novellesca,  e  também 
agiologica.  Vemos  esta  transição  no  Lai  de  Guin- 
gamor,  a  que  Af  fonso  o  Sábio  deu  forma  de  lenda, 
conhecida  em  Portugal  no  enlevo  de  um  monge 
de  Villar  de  Frades.  Também  o  Lai  do  Piguei- 
ral  apparece  na  lenda  agiologica  de  San  Thiago 
libertando  as  Donzellas,  na  tradição  de  Simancas, 
Veiga  de  Carrion,  lenda  heráldica  dos  Queiroz, 
de  Betanços  ou  Peito  Burdelo,  em  Hespanha;  e 
em  Portugal,  Figueiredo  das  Donas,  em  Vizeu, 
Alfandega  da  Fé,  Castro  Vicente,  Chacim  e  Bal- 
semão. Foi  o  interesse  clerical  que  propagou  a 
tradição  novellesca  dando-lhe  feição  agiologica. 
E'  absurdo  desprezar  uma  Canção  novellesca  pro- 
pagada no  fim  do  século  xiv,  e  que  mão  pie- 
dosa coUigiu,  a  par  de  uma  Cantiga  de  Af  fonso 
o  Sábio,  em  um  Cancioneiro  do  fim  do  século  xv. 
As  duas  Canções  de  Bgas  Moniz.  —  Appare- 
ceram  pela  primeira  vez  publicadas  por  Leitão  de 
Andrade,  attribuindo-as  gratuitamente  a  um  ca- 
valleiro  da  corte  de  D.  Af  fonso  Henriques;  pela 
forma  poética,  vê-se  que  essas  quadras  com  dois 
versos  de  redondilha  maior,  com  quebrados  de  re- 
dondilha  menor,  foram  empregadas  pelo  Arcediago 
de  Toro  no  fim  do  século  xiv,  não  apparecendo 
nos  Cancioneiros  trobadorescos  portuguezes  dos 
séculos  XII  a  xiv;  pela  linguagem  intencional- 
mente de  uma  rudeza  archaica,  conhece-se  uma 


424  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


intenção  satírica  (como  na'  Gesta  de  mal  dizer). 
Esse  Egas  Moniz,  em  nome  do  qual  se  fez  a  Can- 
ção, é  um  fidalgo  do  fim  do  século  xiv,  que  atrai- 
çoou D.  João  I ,  passando-se  para  Castella,  —  como 
diz  a  Cantilena :  «Cambiastes  a  Portugal  —  Por 
Castilla...»  Pela  Pedatura  lusitana  (m,  fl.  7.) 
era  filho  de  Pêro  Coelho;  «casara  com  D.  Maria 
Gonçalves  Coutinho,  filha  de  Gonçalo  Vaz  Cou- 
tinho, d'onde  procedem  os  Condes  de  Marialva.» 
Restituídas  as  circumstancias  lendárias  aos  seus 
resíduos  de  verdade,  as  duas  Canções,  como  do 
século  XV,  certo  que  João  Pedro  Ribeiro  com  todo 
o  seu  rigor  diplomático  as  apreciaria  como  docu- 
mento litterario  da  Bschola  gallaico-portugueza, 
em  que  escreviam  Pêro  Gonzalez  de  Mendoza  e 
Gomez  Manrique. 

—  A  Canção  de  Oiiroafia.  —  Publicada  por 
Frei  Bernardo  de  Brito  na  Chronica  de  Cister  (p. 
713)  acceitamol-a  pov  existir  no  Cancioneiro  do 
Dr.  Gualter  Antunes,  onde  a  leu  o  Dr.  Antó- 
nio Ribeiro  dos  Santos  em  grande  estado  de  de- 
turpação. Desprezemos  todas  as  circumstancias  e 
attribuiçÕes  phantasiosas  do  chronista,  que  sendo 
bom  poeta,  poderia,  com  o  seu  intuito  apocryphis- 
ta  dar-nos  uma  Canção  legível.  Más  d'essa 
mesma  deturpação  se  tira  uma  certa  luz.  A 
Canção  dirige-se  a  Ouroayia,  nome  da  amante  de 
Amadis  de  Gaula,  celebrada  no  século  xv  por 
D.  Alonso  de  Cartagena,  e  sendo  thema  de  me- 
lodias ou  Chacones.  i    O  rapto  de  Oriana  salva 


I  No  Catalogo  da  Bibl.  de  Musica  de  D.  João  iv, 
cita-se:  Triumpho  de  Oriana,  a  5  e  6  vezzes,  de  Michel 
Est.  e  outros. 


PRIMEIRA  época:  êdadE  mêdia  425 

por  Amadis  do  poder  do  Magico  Archeláo  teria 
sido  o  thema  de  uma  das  Canções  perdidas  da 
novella  na  sua  forma  portugueza.  A  Canção  de 
João  Lobeira  explica  estas  perdas.  Até  aonde  se 
degradam  os  versos  intercalados  na  musica,  vê-se 
no  Cancioneiro  de  Barbieri,  do  século  xv.  Na 
Canção  a  Ouroana  cita-se  a  forma  da  Chacone, 
ainda  no  século  xvi  commum  á  Itália  e  Hespanha, 
e  em  Portugal  existe  a  Chacoina  no  povo  de  Friel- 
las,  e  a  Chacoula  no  Alemtejo. 

Dos  Cancioneiros  trobadorescos  portuguezes 
até  ao  Cancioneiro  geral  de  Garcia  de  Resende 
vae  um  grande  hiato,  um  vácuo,  que  em  parte 
pode  ser  preenchido  pela  ennumeração  dos  poe- 
tas portuguezes  que  figuram  nos  vastos  Cancio- 
neiros hespanhoes,  e  pela  somma  espantosa  de 
Motes  velhos,  Cantigas,  Esparsas,  Dizeres,  que 
passaram  para  a  geração  quinhentista,  e  que  lhe 
suscitaram  a  delicada  sentimentalidade,  ou  susten- 
tando a  resistência  dos  poetas  da  medida  velha. 

3.0  Existência  de  um  elemento  popular.  — 

No  século  XV,  como  observou  Gaston  Paris,  flo- 
resceu subitamente  na  Europa  a  poesia  popular 
na  sua  forma  lyrica  e  épica;  são  os  Romances 
velhos  em  Hespanha,  as  Aramas  em  Portugal, 
as  Canzone  e  Straniboti  italianas,  os  Gwerziou  na 
Bretanha,  as  Ballads  na  Inglaterra  e  Escócia,  os 
í/^olkslieder  na  AUemanha,  as  Chansons  à  toile 
na  França,  e  os  Kampviser  scandinavos.  Cor- 
respondia este  facto  a  uma  transformação  social, 
em  que  as  classes  servas  da  Edade  média  eram 
um  terceiro  estado  que  se  integrava  entre  os  po- 


420  HISTORIA    DA    I.ITTJÍRATURA    PORTUGUEZA 


deres  da  nação,  tal  como  escrevia  um  embaixador 
de  Veneza :  ache  per  você  commune  si  puo  chia- 
)iiare  popolo.»  E  emquanto  a  aristocracia  ou  o 
elemento  court  o  is  e  a  Egreja  ou  o  elemento  cler- 
cois,  se  confinavam  em  uma  erudição  morta,  em 
um  separatismo  degenerescente,  o  elemento  po- 
pular, constituindo  a  classe  média  productora  e^ 
numerosa,'  inspirava-se  da  realidade  da  vida,  que 
lhe  sorria,  aspirava  a  uma  nova  ordem  social.  O 
desenvolvimento  litterario  da  lingua  portugueza 
e  a  exagerada  cultura  latina  dos  seus  escriptores 
determinam  o  afastamento  c\o  povo;  a  litteratu- 
ra,  como  a  planta  fora  do  húmus  fecundo,  desde 
que  se  não  alenta  na  tradição  nacional  estiola-se 
procurando  a  luz  nas  correntes  do  gosto  por  uma 
imitação  submissa.  Assim  nos  aconteceu  com  o 
casfelhanisiiio.  O  iX)vo  portuguez,  que  pela  sua 
organisação  social  em  Behetrias  se  elevou  muito 
cedo  á  unificação  nacional,  possuia  caracteres 
accentuados  de  individualidade,  tinha  costumes 
idealisaveis,  festas,  cantos  e  tradições  maravilho- 
sas, como  a  das  Ilhas  encantadas.  Tudo  nos  in- 
dica, que  essa  crença  veiu  excitar  a  imaginação 
dos  navegadores  portuguezes  no  século  xv,  le- 
vando-os  á  exploração  do  oceano  Atlântico,  do 
Mar  Tenebroso  dos  antigos.  Nas  celebres  via- 
gens do  Barão  de  Rosmital,  de  1465  a  1467,  vem 
(lescripta  a  sua  digressão  em  Portugal,  e  ahi 
aponta  a  narrativa  de  uma  Ilha  encantada  a  que 
aportaram  os  navegadores  portuguezes:  «que  um 
dos  reis  de  Portugal  mandara  construir  navios  e 
os  enchera  de  todas  as  cousas  necessárias,  e  pu- 
zera  em  cada  navio  doze  escreventes,  provendo-os 


PRIMEIRA  época:  edade  média  427 

de  viveres  para  quatro  annos,  para  que  d'aquelle 
logar  navegassem  pelo  espaço  de  quatro  annos  até 
o  mais  longe  possivel,  e  lhes  mandou  escrever 
u  que  vissem,  os  paires  desertos  a  que  chegassem, 
e  finalmente  os  contratempos  que  no  mar  expe- 
rimentassem. Estes,  portanto,  segundo  nos  foi 
contado,  tendo  sulcado  o  mar  pelo  espaço  de  dois 
annos  completos,  chegaram  a  umas  certas  trevas, 
das  quaes  sahindo,  passado  o  espaço  de  duas  se- 
manas aportaram  a  uma  ilha.  Alli,  chegados  os 
navios  á  praia,  tendo  desembarcado,  encontraram 
debaixo  da  terra  casas  construidas,  abundantes 
de  ouro  e  prata,  das  quaes  comtudo  não  se  atre- 
veram a  tirar  nada.»  A  lenda  contada  pelo  via- 
jante Rosmital,  é  muito  dramática  e  extensa, 
tendo  recebido  outras  redacções  curiosas  em  dif- 
ferentes  épocas.  A  crença  popular  das  Ilhas 
empoadas  (Ilhas  brancas)  é  alludida  por  Gil  Vi- 
cente e  D.  Francisco  Manoel  de  Mello,  e  segundo 
os  crédulos  ainda  se  avistam  dos  Açores  e  das 
Canárias. 

Refere-se  também  Rosmital  ás  Endechas,  ou 
Clamores  e  brados  sobre  finados,  que  se  prohibi- 
ram  no  tempo  de  D.  João  i :  «Ha  também  alli 
certa  costumeira:  morrendo  alguém,  levam  para 
a  egreja  vinho,  carne,  pão  e  outras  comidas;  os 
parentes  do  morto  acompanham  o  funeral  ves- 
tidos de  roupas  brancas  próprias  dos  enterros,  com 
capuzes  á  maneira  dos  monges,  com  o  qual  se  ves- 
tem de  um  modo  admirável.  Aquelles  porém,-  que 
são  assalariados  para  carpirem  o  defuncto  vão 
vestidos  com  roupa  preta,  e  fazem  um  pranto 
como  o  d 'aquelles  que  entre  nós  pulam  de  con- 


HISTORIA   DA   I^ITTÊRATURA    PORTUGUEZA 


tentes  ou  estão  alegres  por  terem  bebido.))  Es- 
tes costumes  denunciam  a  vitalidade  'de  uma  poe- 
sia popular  semelhante  aos  A  urus  ta  de  Bearn, 
aos  Areytos  hispânicos,  aos  Tribuli  e  Prócer  o  da 
Itália  e  da  Córsega.  Encontram-se  na  Chronica 
dos  Carmelitas  do  P.^  Pereira  de  Santa  Anna, 
as  Caritigas  que  o  povo  de  Eisboa  entoava  na  se- 
pultura do  Condestavel  D.  Nuno  Alvares  Perei- 
ra, com  que  perpetuavam  a  memoria  do  santo 
guerreiro  na  tradição  nacional;  pela  Paschoa  flo- 
rida vinham  as  mulheres  cantar-lhe  varias  se- 
guidilhas  sobre  a  sua  sepultura;  e  os  moradores 
do  Restello  pela  segunda  outava  do  Espirito  San- 
to, e  os  moradores  de  Sacavém  pelo  seu  anniver- 
sario.  Já  em  vida,  á  porta  do  Convento  onde  o 
Condestavel  se  recolhera,  vinham  os  pobres  sau- 
dal-o  como  santo  em  sinceras  cantilenas.  Por  dif- 
ferentes  chronicas  se  encontram  intercaladas  can- 
tigas do  povo,  pelo  seu  espirito  epigrammatico, 
e  grande  parte  d'ellas  serviram  como  Motes  ve- 
lhos nas  trovas  dos  Cancioneiros,  e  foram  glo- 
sadas pelos  génios  ly ricos  do  século  xvi,  salvan- 
do-se  algumas  entre  as  composições  melódicas  dos 
contrapontistas.  Contra  a  Canção  popular  no  sé- 
culo XV  prevalecia  a  Canção  allegorica  dos  poe- 
tas i)alacianos;  contra  o  Romance  ou  canção  nar- 
rativa deblaterava  com  desprezo  a  erudição  do? 
humanistas.  Assim  o  Marquez  de  Santillana,  na 
sua  Carta  ao  Condestavel  de  Portugal,  com  a 
auctoridade  do  seu  talento  e  grande  saber,  soltava 
esta  condemnação:  «ínfimos  son  aquelles  poetas, 
que  sin  regia  ni  cuento  facen  aquelles  Cantares 
e  Romances  de  que  la  gente  baja  e  de  servil  con- 


PRIMEIRA  época:  EdadE  media  429 


dicion  se  alegra.»  Era  o  grito  de  separação  en- 
tre os  escriptores  e  o  povo,  que  ia  caracterisar  a 
Renascença  no  século  xvi.  Mas  apesar  de  todo 
esse  desprezo  os  Romances  tradicionaes  tinham 
raizes  fundas,  e  mesmo  nas  Cortes  foram  glo- 
sados e  reelaborados.  No  Cancioneiro  de  Resende 
allude-se  a  dois  romances  Nunca  fiie  pena  maior, 
e  a  Bella  mal  mandada.  No  século  xv  canta va-se 
o  romance  dos  amores  do  rei  D.  Fernando  com 
a  mulher  de  João  Lourenço  da  Cunha,  conser- 
vado entre  os  Judeus  do  Levante;  romances  po- 
pulares sobre  os  amores  de  D.  Ignez  de  Castro 
foram  assimilados  por  Garcia  de  Resende  e  accom- 
modados  em  vários  romances  anonymos  caste- 
lhanos e  catalães:  as  aventuras  verídicas  dos 
amores  de  D.  Pedro  Nino  com  a  princeza  D.  Bea- 
triz deram  motivo  para  o  romance  do  Conde  Ni- 
nho (Olino)  ;  existem  colligidos  os  romances  á 
morte  do  princepe  herdeiro  de  Castella,  D.  João, 
e  do  Princepe  D.  Affonso  de  Portugal,  em  1491, 
com  toda  a  energia  pathetica  da  alma  popular. 
Observa  Menendez  y  Pelayo,  sobre"  a  transforma- 
ção dos  Romances  populares :  «E'  certo  que  quasi 
todos  os  Romances  que  chamamos  velhos,  adqui- 
riram no  século  xv  a  forma  que  ainda  conser- 
vam, ou  como  mais  próxima  a  ella;  porém  é  ra- 
ríssimo, principalmente  os  históricos  (que  são  o 
nervo  da  nossa  poesia  popular  e  o  mais  caracte- 
rístico d'ella)  aquelle  que  não  tenha  origens  mui- 
to mais  remotas  e  possa  suppôr-se  então  com- 
posto pela  primeira  vez.»  (AntoL,  v.  p.  xvii.) 

Nos    romances   tradicionaes   portuguezes   no- 
tam-se  duas  formas  de  versificação :  o  metro  qui-^ 


430  HISTORIA    DA   LITTERATURA    PORTUGUEZA 


nario,  de  redondilha  menor,  que  prevaleceu  até  ao 
século  XV,  emquanto  o  romance  foi  dansado  e 
cantado,  a  que  o  Chanceller  Ayala  chamava  Ver- 
setes  de  antiguo  rimar;  e  o  metro  octonario  ou  de 
redondilha  maior,  que  prevaleceu  do  século  xv 
em  diante,  quando  os  romances  separados  da  dan- 
sa  e  da  musica,  como  exclusivamente  narrativos 
eram  resados  (recitados).  Esta  forma  fácil  e  es- 
|x>ntanea  facultou  aos  eruditos  a  transformação 
dos  romances  velhos  no  thema,  mas  actualisados 
ao  século  xv,  glosados  e  parodiados,  até  se  tor- 
narem subjectivos.  O  nome  de  Romance,  que 
para  os  eruditos  significava  a  linguagem  vulgar, 
também  designava  esses  Cantares  sin  regia  ni 
cuento,  deprimidos  por  Santillana;  o  povo,  que 
conservava  oralmente  o  seu  thezouro  tradicional, 
dava-lhe  o  nome  de  Aramas.  As  populações  por- 
tuguezas  confinadas  nos  Archipelagos  da  Madeira 
e  dos  Açores  desde  o  meado  do  século  xv,  con- 
servaram na  mais  estupenda  integridade  o  grande 
romanceiro  tradicional  tal  como  existia  na  pe- 
nínsula hispânica  n'essa  época:  basta  vêr  os  mais 
completos  paradigmas  dos  Açores  e  Traz-os-Mon- 
tes,  com  os  focos  tradicionaes  das  Astúrias  e  da 
Catalunha,  estendendo  as  comparações  para  os 
cantos  da  França  meridional  e  da  Alta  Itália.  E 
este  fundo  poético  portuguez  ainda  se  enriquece 
com  os  Cantos  tradicionaes  dos  Judeus  portugue- 
zes,  que  se  refugiaram  no  Levante. 

Nas  Memorias  avulsas  de  Santa  Cruz  de 
Coimbra,  lê-se:  «E  este  Mem  Moniz  era  muv 
ardido  cavallejro  e  sabia  mui   bem   falar  a  ara- 


PRIMEIRA  época:  edade  média  431 


via...))  I  No  século  xv  os  poetas  do  Cancioneiro 
de  Resende  empregavam  a  palavra  aravia  para 
designar  a  falia  do  vulgo,  nos  seus  ditos  e  chascos : 

D'estas  novas  nom  dou  mais, 
porque    será    demasia, 
querer  falar  aravia 
com  vos  que  a  ensinaes. 

(Canc.  ger.,  11,  300.) 
Dois  pontinhos  de  aravia. 

(Ih.,  130.) 
E  falia  mil  ar  avias... 

(Ih.,  III,  186.) 

Pareceys  por  aravia, 
grande  couvão  de  vesugos... 

(Ih.,  III,  617.) 

Coincide  o  emprego  d'esta  palavra  com  a  desi- 
gnação açoriana  de  Aravia;  nas  colónias  hespa- 
nholas  de  México  também  se  encontra  o  nome  de 
Yaravi  designando  cantares  heróicos  em  versos 
octosyllabicos  assonantados.  O  missionário  Acos- 
ta, na  Historia  natural  da  índia,  referindo  o  gosto 
dos  mexicanos  pela  musica,  e  da  vantagem  que 
d'isto  se  tirava  para  a  catechese,  diz:  «Tambien 
han  puesto  en  su  lingua  composiciones  y  tonadas 
nuestras,  como  de  Cauciones,  de  Romances  de 
redondilhas;  y  es  maravilla  quan  bien  los  toman 
los  Índios  y  cuanto  gustan.»  (Op.  cit.,  p.  47.) 
Eis  «aqui  uma  evidente  connexao  entre  a  Aravia 
açoriana  e  a  Yaravi  mexicana,  reportando-nos  a 
um  fundo  ethnico  commum  a  Portugal  e  Hespa- 
nha  entre  a  população  mosarabe.    O  romance  po- 


I     Pcri.  Mon.   (Scriptores)   i,  p. 


432  HISTORIA   DA   LITTERATURA    PORTUGUEZA 


pular  chegou  a  ser  desconhecido  pelos  escripto- 
res,  mas  não  se  obliterou  na  tradição  portugiieza, 
considerada  pelos  folk-loristas  como  a  mais  ar~ 
chaica  e  bella  da  Europa.  E'  para  notar,  que  na 
invasão  do  castelhanismo  na  litteratura  portugueza 
do  século  XVI,  os  escriptores  que  crearam  os  Au- 
tos populares,  nacionalisando  o  theatro  pela  re- 
presentação dos  costumes,  intercalaram  com  si- 
gnificativa graça  muitos  romances  tradicionaes  que 
andavam  na  versão  oral  antes  da  publicação  das 
collecçÕes  castelhanas.  O  theatro  portuguez  es- 
boçava-se  no  século  xv  sobre  os  elementos  socraes 
da  Edade  média.  Uma  grande  parte  dos  costu- 
mes portuguezes  ainda  hoje  nos  apresenta  formas 
dramáticas,  como  os  Descantes  das  Janeiras,  das 
Maias,  dos  Colloquios  da  Lapinha  ou  Presépios, 
e  muitos  actos  da  vida  usual,  como  as  malhadas 
do  centeio  no  Minho,  a  apanha  da  azeitona  no 
Alemtejo,  e  o  enterro  das  Sestas,  a  festança  da 
obra  nova  ou  páo  de  fileira,  terminando  com  pa- 
radas e  apodos  satiricos.  No  século  xv  encon- 
tram-se  muitas  referencias  a  divertimentos  thea- 
traes ;  lê-se  no  Leal  Conselheiro  do  rei  D.  Duar- 
te: ((em  tal  maneira  que  nom  pareça  que  os  al- 
bardaães  teem  mais  sabedoria  que  nós,  porque 
elles  nom  se  trabalham  d'arremedar  as  estorids 
niAhores,  mas  que  lhe  som  mais  convenientes. 
Pois  estas  cousas  taes  esguardará  o  albardam  na 
zombaria,  e  nom  as  veerá  o  homem  sabedor  en 
sua  vida...»  fOp.  cit.,  p.  321.)  Esta  palavra  em- 
pregada pelo  Arcipreste  de  Hita,  é  por  Gil  Vi- 
cente transformada  para  exprimir  a  sua  predi- 
lerrqo   TW']c\^   divertimentos    dramáticos,    dando-sc 


PRIMEIRA  Época:  edade  média  433 


figuradamente  por  filho  de  um  alhardeiro.  No 
Cancioneiro  geral  Álvaro  de  Brito,  em  1496,  allu- 
de  a  uma  forma  theatral : 

Estudantes   pregadores 
metem   Santas   Escrituras 

em    Sermões ; 
derivados   em  amores, 
fazem  de   falsas   fegiiras 

tentações. 

(Canc.  ger.,  i,  189.) 

Em  uma  carta  de  perdão  de  D.  João  11,  de  2^ 
de  abril  de  1482,  esclarece-se  este  costume  de 
que  fora  accusado  o  estudante  pregador  Rodrigo 
Alves,  escollar  de  Artes,  morador  em  Setúbal, 
tendo  sido  prezo  por  andar  «pregando  como  o  ita- 
lião,  e  remedava  Judeus  em  maneira  de  capellão  e 
arrabi,  e  dezia  Da-lhe,  da-lhe,  a  que  respondia  o 
Juiz  e  tabelliães  e  alcayde  em  som  de  missa,  e  que 
dezia  uma  paixom  de  um  Frade  e  de  uma  Freira 
e  um  Veredyno  (vére  dignum)  de  um  Crerigo 
(jue  roubarom  em  um  caminho,  e  se  acabava  em 
uma  você:  Bibamus...))  E'  um  completo  repertó- 
rio bazochiano.  Gil  Vicente,  que  se  graduou  Mes- 
tre em  Artes,  pertencera  na  época  dos  seus  estu- 
dos a  este  elemento  escholaresco.  Tudo  o  impel- 
lia  para  a  creação  dotheatro  nacional.  A  forma 
aristocrática  do  theatro  estava  também  esboçada 
no  século  xv.  No  Archivo  da  Camará  do  Porto 
acham-se  os  recibos  da  despeza  feita  pelo  Con- 
celho da  Cidade  para  o  Tablado  e  com  os  que 
tangeram  nas  Matinadas,  por  occasiao  do  baptis- 
mo do  Infante  D.  Henrique  de  20  a  22  de  Ou- 
tubro e  de  7  a  8  de  Novembro  da  era  de  1432- 

28 


434  HISTORIA    DA   UTTERATURA    PORTUGUÊZA 

(Perg.  Liv.  3.0,  da  fl.  40.)  Nas  festas  do  paço 
também  se  usavam  Momos  e  Bntremezes ;  pelo 
casamento  da  Infanta  D.  Leonor  ficaram  na  me- 
moria os  que  então  se  fizeram : 

Eram  vossos  tempos  Autos 
nas  festas  da  Imperatriz. 

(Canc.  ger.,  fl.  47  T.) 

Duarte  de  Resende  e  Álvaro  de  Brito  faliam 
nos  novos  entremezes ;  no  casamento  do  princepe 
D.  Affonso,  em  1491,  fizeram-se  em  Évora  Mô- 
mos,  em  que  tomou  parte  D.  João  1 1  envencionado 
cm  Cavallciro  do  Cisne.  No  Cancioneiro  geral  ha 
referencia  ao  singular  Momo  de  Santos. 

O  theatro  hierático  era  também  dramatica- 
mente suggestivo;  certas  commemorações  históri- 
cas foram  celebradas  com  Procissões,  como  as  qua- 
tro de  Corpo  de  Deus,  ordenadas  por  D.  João  11, 
além  da  instituição  da  Eucharistia  no  dia  do  mi- 
lagre da  cera,  em  véspera  de  Santa  Maria  de 
Agosto  pelo  vencimento  da  batalha  real,  e  no  dia 
da  victoria  de  Toro  e  Samora.  Para  se  vêr  de- 
finida a  forma  dramática  basta  transcrever  do 
regimento  d*essa  procissão:  «Os  homens  d'ar- 
mas,  estes  todos  bem  armados  sem  nenhuma  co- 
bertura, e  com  as  espadas  nuas  nas  mãos,  e  le- 
varão San  Jorge  muy  bem  armado  com  page  c 
uma  Donsella,  para  matar  o  Drago.))  Os  grandes 
descobrimentos  marítimos  do  fim  do  século  xv 
crearam  uma  effectiva  riqueza  publica,  que,  am- 
pliando as  relações  da  vida  civil,  proporcionaram 
o  desenvolvimento  da  arte  e  litteratura  no  gran- 
dioso século  quinhentista. 


PRIMEIRA  época:  edadE  media  435 


§  II 

As   Novellas  portuguezas  da  Tavola   Redonda 
e  do  Santo  Graal 

Os  romances  da  Tavola  Redonda  franceza, 
fundados  sobre  antigos  poemas  anglo-normandos 
de  base  gaèlica,  foram  os  que  mais  se  prestaram 
ás  adaptações  portuguezas  no  fim  do  século  xiv. 
Xa  sua  forma  mais  primitiva,  quando  os  Lais  nar- 
rativos se  desenvolviam  em  poemas,  era  o  Amor 
o  sentimento  exclusivo  que  movia  os  Cavalleiros 
nas  suas  emprezas,  segundo  o  génio  britonico; 
no  seu  desenvolvimento  pelos  troveiros  norman- 
dos prevaleceu  a  Cortezia,  sendo  o  amor  e  o  va- 
lor apenas  os  recursos  ou  estimulos  para  fazer 
brilhar  esse  cerimonial  ou  culto  externo  da  ga- 
lanteria. Esta  feição  é  que  no  século  xv  fez  que 
nas  Cortes  fossem  apreciadas  as  Novellas  cava- 
lheirescas, dando-lhes  um  novo  alento  não  de  in- 
venção mas  de  estylo  na  sua  prolixidade  rheto- 
rica.  O  advento  do  Mestre  de  Avis  ao  throno  de 
Portugal,  se  representa  o  momento  histórico  em 
que  a  nacionalidade  teve  a  consciência  da  sua  so- 
berania, assignala  também  a  elevação  de  um 
obscuro  bastardo  á  realeza,  que  para  a  conservar 
não  se  peja  de  sacrificar  um  povo  livre  á  depen- 
dência de  um  alliado  protector.  D.  João  i  mudou 
a  politica  seguida  por  D.  Afforíso  iv  e  D.  Fer- 
nando para  com  a  Inglaterra,  pela  Convenção  de 
Londres  de  9  de  Maio  de  1386,  obrigando  Por- 
tugal a  servir  a  Inglaterra  com  armas  e  galés  á 


43à  HISTORIA   DA   LITTERATURA    PORTUGUEZA 

sua  custa,  para  assim  lhe  garantirem  o  throno. 
Os  chronistas  d'este  reinado  calaram  a  Convenção, 
hoje*  conhecida  pelas  Poedera  de  Rymer,  pela  qual 
se  explica  o  pensamento  politico  proseguido  por 
outros  bastardos  seus  descendentes.  Não  só  pela 
vaidade  de  uma  realeza  recente  como  pelo  casa- 
mento com  uma  filha  do  Duque  de  Lencastre, 
D.  João  I  deu  todo  o  relevo  á  sua  corte  por 
exageração  de  fórmulas  cavalheirescas.  As  No- 
vellas  cavalheirescas,  como  em  um  pre-quixotis- 
mo,  pautavam  a  vida  palaciana.  O  Infante  D.  Pe- 
dro, mandando  compilar  as  Ordenações  Affon- 
sinas,  fez  ahi  introduzir  o  Regimento  de  Guer- 
ra, em  que  minuciosamente  se  reproduzem  as  ce- 
rimonias da  investidura  dos  gráos  da  Cavalleria 
com  o  ritual  da  época  das  cruzadas.  Os  Poemas 
(la  Tavola  Redonda,  communicados  pelo  séquito 
de  D.  Phillippa  de  Lencastre  e  relações  com  a 
corte  ingleza,  eram  lidos  com  fervor  pelos  ca- 
valleiros  dedicados  á  nova  dynastia  e  o  próprio 
D.  João  I  tratava  os  cavalleiros  no  cerco  de  Coria, 
pelos  nomes  dos  companheiros  do  bom  Rei  Ar- 
thur,  que  com  elle  se  sentavam  á  Meza  Redonda. 
O  prurido  cavalheiresco  era  extemporâneo,  mas 
acirrado  pelas  Novellas  de  cortezania;  o  Condes- 
tavel  D.  Nuno  Alvarez  Pereira  imitava  a  vir- 
gindade heróica  de  Galaaz  que  tomava  para  mo- 
delo das  suas  acções.  Esta  p^hase  das  Novellas 
de  Cavalleria,  com  os  seus  sentimentos  ficticios, 
penetraram  nos  costumes  da  sociedade  portugueza; 
apparecendo  empregados  na  aristocracia  como  no- 
mes civis  os  nomes  dos  principaes  heroes  dos 
poemas  arthurianos.    Percorrendo  documentos  do 


PRIMEIRA  í:poca:  edadE  média  437 


século  XV,  acham-se  no  onomástico  usual,  Dona 
Iseu  Perestrello,  Dona  Iseu  Pacheco  de  Lima ;  são 
vulgares  os  nomes  de  Genebra,  Oriana  e  Viviana; 
figuram  Tristão  Teixeira,  Tristão  Fogaça,  Tris- 
tão da  Silva;  Lançarote  Teixeira,  Lançarote  de 
Mello,  Lançarote  de  Seixas,  Lançarote  Fuás;  Li- 
suarte  de  Andrade,  Lisuarte  de  Liz;  Percival  Ma- 
chado; Arthiir  de  Brito,  Arthnr  da  Cunha.  Os 
Votos  denodados,  e  as  aventuras  galantes  da 
Ala  dos  Namorados,  dos  Cavalleiros  da  Madre 
Silva,  dos  Doze  de  Inglaterra  resultam  de  uma 
moda  cortezanesca  estimulada  pelo  género  littera- 
rio  dominante.  Nas  Bibliothecas  portuguezas  do 
século  XV,  como  as  de  D.  Duarte,  Infante  Santo, 
Condestavel  D.  Pedro  abundam  os  poemas  da  Ta- 
vola  Redonda  em  lucta  com  o  elemento  erudito, 
moralista  e  histórico.  Operava-se  um  syncretis- 
mo  dos  themas  da  Tavola  Redonda  com  os  do 
cyclo  do  Santo  Graal;  isto  exaltou  mais  as  ima- 
ginações em  que  a  emoção  mystica  acordava  a  apa- 
gada paixão  amorosa.  Este  o  caracter  com  que  se 
elaboraram  as  Novellas  portuguezas  do  século  xv. 
O  Cyclo  da  Tavola  Redonda  abrangeu  as  tra- 
dições britonicas  da  lucta  contra  a  invasão  dos 
Saxões,  sendo  o  Rey  Arthur  o  heroe  em  que  se 
encarnara  toda  essa  resistência  e  a  inextinguivel 
esperança  de  resurgimento  e  triumpho.  Para  se 
vivificarem  estas  tradições  guerreiras,  ligaram-se 
na  credulidade  popular  ao  espirito  religioso  das 
lendas  da  introducção  do  Christianismo  em  In- 
glaterra (Egreja  proto-cathédrica)  pelo  discipulo 
de  Jesus,  Joseph  ab  Arimathéa,  que  trouxe  o  Cálix 
(o  Santo  Graal)  ou  escudela  por  onde  o  Salvador 


43^  HISTORIA    DA    LlTTKRATUKA    PORTUGUEZA 

bebera  na  ultima  ceia  com  os  apóstolos.  Para  a 
busca  cUeste  Cálix,  perdido  desde  o  incêndio  do 
mosteiro  de  Glastombury,  instituiu-se  a  Ordem 
da  Cavalleria  celeste  entre  os  Cavalleiros  da  Ta- 
vola  Redonda.  Assim  se  fundiram  os  dois  the- 
mas  poéticos  em  uma  nova  elaboração  artistica. 
Charles  d'Hericault,  determina  uma  phase  em  que 
os  dois  themas  foram  independentes:  «E'  vero- 
símil que  nos  dados  primitivos,  anteriores  aos  ro- 
mances que  chegaram  até  nós,  estas  duas  ordens 
de  poemas  eram  bem  distinctas.  Póde-se  inferir, 
segundo  o  grande  numero  de  traços  abafados  no 
conjuncto,  que  a  Cavalleria  do  Santo  Graal  re- 
presentava uma  ideia  puramente  reHgiosa;  ella 
queria  mostrar-nos  o  ideal  do  guerreiro  christão 
na  lucta  contra  as  paixões  e  contra  o  inimigo  ex- 
terior da  Egreja  de  Deus.  Mas  esta  preoccupa- 
ção  appareceu  nitidamente  só  nos  poemas  alle- 
mães.  Na  Epopêa  franceza,  o  poema  do  Santo 
Graal  e  o  de  Percival  le  GaUois,  são  os  únicos  que 
appresentam  uma  theoria  mystica  e  que  se  preoc- 
cupam  sinceramente  do  âanto  Cálix.  Nos  outros 
poemas  Arthur  é  o  personagem  preponderante 
e  vêem-se  brilhar  os  aspectos  mundanos  da  Ca- 
valleria, a  guerra  e  o  amor,  ou  antes  o  habito  da 
guerra  e  a  galanteria  do  amor.  Os  cavalleiros, 
companheiros  do  Rei  bretão,  partem  á  demanda 
do  Santo  Graal ;  foram  investidos  para  estas  eni- 
prezas,  mas  parecem  sempre  esquecer  o  seu  pr  )- 
jecto  e  fim  da  sua  instituição  no  meio  de  mil  aven- 
turas que  surgem  na  sua  ])assagem.»  i 


Essai  sur  Vorigine  de  1'Epopée  française,  p.  49. 


PRIMí:IRA    flPOCA:    íjDADfí    MEDIA  439 

No  começo  do  século  xiii  Robert  de  Boron 
emprehendeu  narrar  em  prosa  toda  a  historia  do 
Santo  Graal,  tomando  de  Gautier  a  tradição  de 
que  esse  Cálix  pertencera  a  Joseph  de  Arimathéa, 
o  apostolo  da  Bretanha.  Esta  primeira  parte,  tem 
por  fonte  o  Evangelho  apocrypho  de  Nicodemus. 
Todo  este  vasto  Cyclo  prosiíicado  e  ampliado  por 
Boron,  existiu  adaptado  á  lingua  portugueza. 
D'esta  primeira  parte  intitulada  Livro  de  Josep 
ah  Arimathéa,  achamos  uma  referencia  no  Can- 
cioneiro geral,  em  uns  versos  de  Álvaro  de  Brito 
á  morte  do  Infante  D.  Pedro  em  1449 : 

Do  comprido  Mestre  Bscolla 
ou   Josep    Baramatya. 

(Canc.  ger.,  11,  278.) 

No  manuscripto  n,°  643  da  Torre  de  Tombo, 
tem  esta  Novella,  no  fim  do  volume,  esta  decla- 
ração: «Este  Eivro  mandou  fazer  João  Sanches, 
mestre  escolta  de  Astorga,  no  quinto  anno  que  o 
estudo  de  Coimbra  foy  feito  e  no  tempo  do  papa 
Clemente  que  destruiu  a  ordem  dei  Templo  e  fez 
Concilio  geral  em  Viana,  e  posto  o  entredito  em 
Castella,  e  n'este  anno  se  finou  a  rainha  D.  Cons- 
tança em  São  Fagundo,  e  casou  o  Infante  D.  Phi- 
lippe  com  a  filha  de  D.  A.o  anno  de  13  bij  anno.)^ 

Foi  este  texto  do  Mestre  Bschola  de  Artorga, 
conhecido  em  Portugal  por  1449;  podemos  des- 
crevel-o  com  as  palavras  de  um  copista  do  meado 
do  século  XVI :  «O  qual  Livro  segundo  por  elle 
parece  he  scripto  em  pergaminho  e  illuminado  e 
a  caise  de  duzentos  annos  que  foi  scripto,  trata  de 
muitas   anteguidades   e  matérias   boas   e   sabor  o- 


440  HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 


sas.»  Este  livro  ficou  perdido  até  principios  do 
século  XVI,  em  que  foi  achado  pelo  Dr.  Manoel 
Alvares,  do  qual  fez  uma  copia  que  offereceu  a 
I).  João  III,  ficando  esta  mesma  também  desco- 
nhecida até  1846  em  que  Varnhagem  tomara  nota 
d'ella  em  Lisboa.  Eis  o  seu  titulo  com  a  parte  da 
Dedicatória  mais  interessante : 

Livro  de  Josep  ab  Aram  afia,  intitulado:  A  pri- 
meira i^arte  da  Demanda  do  Santo  Greal  até  a 
presente  idade  nunca  vista.  Treladada  do  próprio 
original  por  ho  Doutor  Manoel  Alvarez  Corre- 
gedor da  Ilha  de  Sã  Miguel.  Derigida  ao  muy 
alto  e  poderoso  princepe  el  Rei  D.  João  ho  3.^ 
d'este  nome,  El  Rei  nosso  Senor.  i 

Na  Dedicatória  fixa-se  a  data  da  offerta: 
«E  de  quantos  mosteiros  e  casas  piadosas  por 
vossa  gloriosa  memoria  ajais  edificado  e  nas  da 
Unwersidade  de  Coimbra  per  V.  A.  principiada  e 
acabada,  e  com  vossos  nestoreos  annos  será  mui 
acabada.»    Allude  ás  reformas  de  1537  e  1549. 

Depois,  justificando  a  offerta,  dá  estas  noticias 
litterarias:  «fora  muy  estranha  cousa  e  por  certo 
dina  de  grande  castigo  ser  o  presente  Livro  en 
vosso  Reino  achado,  e  dar-se  a  Princepe  extranho, 
e  ainda  que  nê  menos  de  estranhar  pareça  em  mim 
esta  ousadia  e  de  emprehender  a  trasladação  da 
presente  obra...  E  com  esta  ousadia  comecei  a 
trasladação  do  presente  Livro,  que  a  V.  A.  offe- 
reço,  o  qual  eu  achey  em  Riba  Dancora  (he  uma 


I  Foi.  em  papel  de  linho,  com  311  folhas,  e  cxix 
Capítulos,  com  diversas  letras  do  século  xvi.  Ms.  n.*  643 
da  Torre  do  Tombo. 


PRIMEIRA  época:  edadE  media  441 


freguesia)  em  poder  de  uma  velha  de  muy  an- 
tiga idade  no  tempo  que  meu  paay  C.oi"  de  vossa 
Corte,  servia  V.  A.  de  C.oi"  Dantre  Douro  e  Mi- 
nho.» E  dizendo  que  era  em  pergaminho  com 
ilkmiinuras,  revela-nos  uma  obra  principesca.  Con- 
tinua :  «E  porém  a  letra  cÕ  a  muy  ta  antiguidade 
nã  ser  tam  legivel  e  asi  por  muitos  vocábulos  irem 
na  antiguidade  d'aquelle  tempo  que  agora  inin- 
telligiveis  nos  parecem,  tomei  d'isto  por  escudo 
vossa  muita  clemência  e  beninidade,  que  d'este 
temor  me  defenderão...  d'elle  não  mudei  senão 
hús  vocábulos  inintelligiveis,  que  se  podem  enten- 
der na  antiguidade  d'aquelle  tempo  os  leixei  hir.» 

Este  apographo,  perdido  da  corte  de  D.  João 
III,  tem  a  nota :  «Livro  da  Cartuxa  de  Scala 
Coeli,  do  qual  o  Ill.nio  Rev.mo  Snr.  D.  Theotonio 
de  Bragança  Arcebispo  de  Évora  e  fundador  da 
mesma  Casa  fez  doação.»  i 

A  segunda  parte  da  Demanda  do  Santo  Graal 
contem  a  historia  de  Merlim,  inspirando-se  Boron 
da  Vita  Merlini  de  Geof  froy  de  Monmouth.  Esta 
parte  foi  desenvolvida  na  litteratura  peninsular, 
achando-se  hoje  publicado  o  texto  castelhano  de 
1498,  Baladro  do  Sábio  Merlim,  sendo  uma  am- 
plificação do  Tristan  com  o  nome  de  Bret  de  Luce 
de  Gast.  Na  Bibliotheca  do  rei  D.  Duarte  vem 
a])ontado  um  Merli;  ::i  da  rainha  Isabel  a  Catho- 


^  I  D'esta  Primeira  parte  da  Demanda  do  Santo  Graal, 
está  publicado  o  cap.  i.xvi :  Dos  grandes  trabalhos  que 
Mordain  na  pena  passou  e  das  tentações  que  o  diabo  lhe 
fez  e  do  que  lhe  Deus  disse,  fl.  105.  (Na  Chrestomatia  ar- 
chaica  de  J.  J.  Nunes,  p.  56  a  62.  Lisboa,  1906.) 


442  HISTORIA    DA    I.ITTERATURA    PORTUGUEZA 


lica,  uni  caderno  manuscripto  «en  romance  que 
se  dice  de  Merlín  con  cobertura  de  papel  de  cuero 
blancas,  é  habla  de  Josef  ah  Arimathéa.))  D'este 
livro  restam  ainda  na  tradição  portugueza  al- 
gumas estrophes  propLeticas  nas  Trovas  do  Ban- 
darra. Na  Hespanha,  em  vez  de  tomar  os  Saxões 
como  os  inimigos  da  fé,  substituiram-lhes  os  Sar- 
racenos nas  prophecias  merlinicas;  e  desde  as  vi- 
ctorias  de  D.  x\ffonso  iv,  na  batalha  do  Salado, 
e  de  D.  Affonso  v  em  Arzilla,  até  D.  Sebastião  e 
D.  João  IV  não  se  apagaram  as  esperanças  do  acor- 
dar do  Leão  dormente. 

Ainda  nos  costumes  populares  persistiram  re- 
miniscências da  novella  de  Merlin;  no  regimçnto 
da  Procissão  do  Corpo  de  Deus  em  Lisboa,  como 
se  vê  em  um  apontamento  da  Camará  municipal  de 
1493,  indicando  as  figurações  de  cada  mister,  le- 
se: «Peliteiro  com  o  Guato  paull.))  Era  a  catk 
Palay,  felino  monstruoso  do  Lago  de  Genebra 
celebrado  em  muitas  variantes  de  Merlin.  Na 
novella  de  Cifar  ha  uma  referencia  a  este  Gato 
paull:  ((viu-se  o  rei  Arthur  em  maior  aperto  com 
o  Gato  Paus,  que  nos  vemos  nós  outros  com  aquel  - 
les  malditos.» 

Escreve  Menendez  y  Pelayo,  nas  Originas  de 
la  Novella,  sobre  os  vestigios  d'este  cyclo  em 
Portugal :  «E  o  que  são  as  próprias  Trovas  do 
sapateiro  Bandarra,  estranho  apocalypse  dos  Se- 
bastianistas, se  não  uma  sobrevivência  das  de  Mer- 
lin?   (Op.  Cit.,  p.  CLXXVII.) 

A  terceira  parte  da  Demanda  do  Santo  Graal, 
ainda  existe  na  lingua  portugueza,  no  esplendid  ) 
manuscripto  n.o  2594  da  Bibliotheca  de  Vienna, 


PRIMEIRA  época:  EdadE  média  443 


do  fim  do  século  xiv  com  o  titulo  de:  A  historia 
dos  Cavalleiros  da  Meza  Redonda  e  da  Demanda 
do  Santo  Graal.  Consta  de  199  folhas  de  perga- 
minho. I  O  texto  francez,  que  foi  liberrimamente 
paraphraseado  em  portuguez,  intitula-se  La  tierce 
partie  de  Lancelot  du  Lac  avec  la  Qneste  du  Sainte 
Graal  et  la  dernièrè  partie  de  la  Table  Ronde.  Na 
Livraria  de  Isabel  a  Catholica,  n.o  143,  existia  tam- 
bém a  Tercera  parte  de  la  Demanda  dei  Santo 
Grial  en  romance;  e  na  do  Princepe  de  Viana, 
de  1461,  também  um  manuscripto  dei  Sangreal 
em  francez.  Na  folha  129  do  texto  portuguez  faz- 
se  referencia  ao  texto  latino  romanceado  por  Ro- 
berto de  Boron:  «ca  o  nom  achei  em  francês  nem 
Boron  no  diz,  que  eu  mais  achei  na  grande 
storia  do  latim,  de  quanto  vos  eu  conto.»  Seria 
allusão  ao  Liber  Gradalis,  contendo  a  lenda  da 
vinda  de  Joseph  ab  Arimathéa  á  Bretanha,  feita 
por  um  monge  do  século  vi  11  e  amplificada  por 
Geoffroy  de  Monmouth.  A  parte  secreta  d'essa 
lenda,  era  a  pretenção  da  Egreja  da  Bretanha  á 
independência  da  Egreja  de  Roma,  por  ser  tam- 
bém proto-cathédrica.  A  isto  allude  na  fl.  21: 
«Mas  esto  nom  ousou  mudar  Roberte  de  Boron, 
do  francez  em  latim,  porque  as  puridades  da  santa 
egreja  nom  os  quis  elle  descobrir;  ca  nom  con- 
vém que  os  saiba  home  leigo.)) 

Na  redacção  portugueza  d'esta  terceira  parte 
da  Demanda  do  Santo  Graal  deu-se  uma  alteração 


í  Estão  publicadas  até  fl.  70  pelo  Dr.  Karl  von 
Reinhardstoettner.  Berlin.  1887.  O  Dr.  Wechssler,  con- 
sidera-a  uma  traducção  do  texto  francez.  Na  Revista  lu- 
sitana, vol.  V,  está  publicado  um  excerpto  da  parte  inédita. 


444  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

profunda  em  que  Lancelot,  por  causa  do  seu  amor 
adultero,  é  substituído  por  Galaa^,  o  Cavalleiro 
parthenio.  i  Predominava  em  Portugal  a  tendên- 
cia para  separar  os  dois  Cyclos,  tratando  no  de 
Santo  Graal  a  theoria  mystica,  em  que  a  sua  em- 
preza  era  realisada  pelo  poder  da  perfeição  moral 
do  Cavalleiro.  Cledat,  no  estudo  sobre  a  Epo- 
péa  cortezã,  observa :  «Tem-se  reparado  quanto  é 
extravagante,  que  a  lenda  do  Santo  Graal  ou  o 
triumpho  da  castidade  a  mais  perfeita  se  enxer- 
tasse na  lenda  arthuriana,  que  é  a  gloriíicação  do 
amor  o  mais  sensual  e  o  mais  apaixonado.  Esta 
opposição  das  duas  lendas  está  indicada  nitida- 
mente e  a  siiá  fusão  é  engenhosamente  explicada 
pelo  auctor  do  Lancelot  em  prosa  no  episodio  da 
concepção  de  Galaaz.»  2  Q  Condestavel  D.  Nuno 
Alvares '  Pereira,  imitando  a  virgindade  heróica 
de  Galaaz,  como  refere  a  sua  Chronica  anonyma, 
lera  na  sua  mocidade  este  desfecho  da  grande 
novella  em  prosa,  que  vae  do  nascimento  de  Lan- 
celot até  a  sua  morte,  ás  aventuras  de  Percival, 
mas  em  que  a  gloria  da  conquista  do  Graal  com- 
pete a  Galaad.  Eis  o  trecho  da  Chronica  do  Con- 
destavel: «E  com  esto  avia  gram  sabor  de  leer 
livros  de  estarias,  especialmente  usava  leer  a  es- 
taria de  Galaa:2,  em  que  se  continha  a  somma  da 
Tavola  Redonda.  E  por  que  em  ella  achava  que 
])er  vertude  de  virgindade  que  em  elle  ouve,  e 
em  cjue  perseverou  Galaaz,  acabara  muy  notáveis 
feytos,  que  outros  nom  poderam  acabar.   E  elle  de- 


1  Menendez   y    Pclayo,    Origines   de   las   Novellas,   p. 

CLXXXII. 

2  Na  Hist.  litteraire,  de  Julleville,  t.  i,  p.  324. 


PRIMEIRA  época:  EdadE  media  445 

sejava  muito  de  o  parecer  em  alguma  guisa,  e 
muitas  vezes  em  sy  cuidava  de  ser  virgem...» 
(Gap.  III.)  No  Catalogo  dos  Livros  de  uso  do 
rei  D.  Duarte,  vem  apontado  O  Livro  de  Galaaz; 
d'onde  se  pode  inferir,  que  teve  um  desenvolvi- 
mento importante  para  substituir  o  de  Lancelot. 
Tudo  revela  que  existiram  em  portuguez  todas 
as  Novellas  cortezanescas  do  Cyclo  do  Santo  Graal, 
que  soffreram  essa  calamidade  que  dispersou, 
quando  não  destruiu,  o  nosso  opulento  espolio  lit- 
terario. 

Na  novella  manuscripta  de  Josep  ab  ■Ariína- 
théa,  trata-se  por  vezes  da  lenda  do  Imperador 
Vespasiano;  basta  apontar  a  summula  de  alguns 
capitulos :  «Como  o  Emperador  perguntou  se 
J.  C.  creia  nos  Ídolos  (cap.  4.)  — Como  o  Empe- 
rador enviou  buscar  as  reliquias  de  J.  C.  pelo  seu 
mestre  sala  (cap.  5.) — Como  Vespasiano  foi 
gafo  (cap.  21.)  —  Como  a  Verónica  veio  a  Ro- 
ma, e  como  Vespasiano  foi  são...  (cap.  23.)  — 
Vespasiano  havendo  promettido  não  queimar  nem 
enforcar  a  Cai f ás,  o  manda  metter  em  uma  barca 
aventura,  (cap.  27.)» 

Algumas  d'estas  summulas  são  eguaes  á  de  ca- 
pitulos da  Historia  de  Vespasiano,  impressa  em 
Lisboa  por  Valentim  de  Moravia  em  1496.  Per- 
tencendo esta  novella  ao  Cyclo  do  Santo  Graal, 
pelo  seu  desenvolvimento  contamina-se  com  o 
Cyclo  greco-romano  e  as  lendas  apocryphas  dos 
Actos  de  Pilatos,  i   O  moderno  editor  d'esta  rari- 


i     Edição  de  1905,  por  Esteves  Pereira.  In-8.°  de  114 
pag.  comprehendendo  prologo,  texto,  e  appensos. 


446  HISTORIA    DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


dade  bibliographica  dá-nos  preciosas  indicações 
sobre  a  origem  d'esta  novella  histórica.  «A  for- 
ma mais  antiga  d'esta  narração  parece  encontrar- 
se  em  um  apocrypho,  de  que  ha  duas  redacções: 
uma  pubhcada  por  Tischendorf,  com  o  titulo 
Vindicta  Salvatoris,  e  outra  pubhcada  por  Mansi 
com  o  titulo  Cura  sanitatis  Tiberíi  Ccusaris  Aii- 
gnsfi,  por  que  n'esta  redacção  é  o  imperador  Ti- 
bério, que,  atacado  da  doença,  foi  sarado.  Em 
uma  segunda  forma  da  mesma  redacção,  muito 
mais  vulgar  na  Edade  média,  é  o  imperador  Ves- 
pasiano  que  foi  atacado  de  lepra  e  miraculosa- 
mente sarado,  e  emprehende  a  vingança  de  Jesus 
Christo...;  esta  íorma  da  narração...  teve  um 
successo  immenso  —  e  foi  traduzida  em  quasi  to- 
das as  linguas  falladas  na  Europa  central  e  Occi- 
dental.» Embora  não  tenha  sido  encontrada  esta 
redacção  latina,  determina-se  a  sua  existeHcia 
«porque  diversas  redacções  em  prosa  feitas  em  pro- 
vençal, francez,  catalão  e  castelhano,  presuppõem 
um  texto  original  commum,  tanto  pela  egual  dis- 
posição da  narração,  como  também  pelo  modo 
de  dizer.»  Attribue-se  á  segunda  metade  do  sé- 
culo Xira  redacção  latina :  as  relações  entre  Josep 
ah  Arimathéa  e  a  Historia  de  Vcspasiano,  a  pri- 
meira mais  extensa,  remontando  ao  século  xiv, 
c  texto  differente,  assentam  sobre  esse  originai 
latino,  sendo  a  do  século  xv  derivada  da  reda- 
cção franceza  La  destruction  de  Jerusaletn  ou 
La  vengeance  de  Jesus  Christ,  de  1491.  Existe 
uma  traducção  castelhana,  impressa  in-4.0,  sem 
data,  de  que  dá  noticia  o  Catalogo  da  Livraria  de 
Fernando   Colombo,   filho  do  Almirante  das  In- 


PRIMEIRA  época:  edade  média  447 

dias,  e  que  elle  comprara  em  Sevilha  por  outo  ma- 
ravedis. I  Será  uma  edição  de  Juan  Vasquez,  de 
Toledo,  cujas  impressões  terminam  ern  1486,  ou 
uma  outra  de  1490.  Esteves  Pereira  conclue: 
«que  a  redacção  portugueza,  posto  que  conforme 
com  a  franceza  na  sua  disposição  geral,  differe 
comtudo  d'ella  em  pequenos  accidentes;  emquan- 
to  que  ella  concorda  com  a  redacção  castelhana, 
não  só  na  sua  disposição  geral  mas  também  nas 
menores  particularidades,  de  modo  que  uma  pa- 
rece ser  traducção  verbal  da  outra.»  A  edição 
castelhana  da  Historia  de  Vespasíano  de  1499, 
pela  sua  grande  conformidade  do  texto  e  das  es- 
tampas da  nossa  impressão  de  1496,  como  o  af- 
firma  Esteves  Pereira:  «permittem  conjecturar, 
([ue  o  texto  da  impressão  castelhana  de  1499  é 
uma  retraducção  da  redacção  portugueza,  como 
as  estampas  são  uma  copia  com  ligeiras  modifi- 
cações das  estampas  da  impressão  portugueza  » 
As  relações  intimas  da  corte  portugueza  com 
a  de  Castella  determinavam  estas  communicaçÕes 
litterarias;  pelo  casamento  de  D.  Joanna,  irmã  de 
D.  Affonso  V,  com  Enrique  iv  de  Castella, 
(juando  o  prurido  da  erudição  humanista  aba-' 
fava  o  lyrismo  allegorico,  a  galanteria  da  corte, 
com  as  suas  intrigas  amorosas,  provocou  o  enthu- 
ziasmo  Ideias  Novellas  cavalheirescas.  O  Ama- 
(lis  de  Gania,  ainda  na  sua  redacção  portugueza, 
era  h'do  com  predilecção,  dando-nos  noticia  do 
seu  auctor  o  chronista  Gomes  Eanes  de  Azurara, 


I     Gallardo,  Biblioteca,  t.  ji,  p.  530. 


448  HISTORIA    DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


como  quem  o  tinha  diante  dos  olhos.  A  novel) a 
estava  em  uma  nova  elaboração  cyclica,  e  em  Cas- 
tella,  encabeçavam  nas  narrações  dos  feitos  do 
Amadis  os  de  seu  irmão  Plorestan;  allude  a  este 
ramo  o  poeta  João  Affonso  a  D.  Juan   ii,  por 

1433: 

Jo  lei  dei  Capitan 
et  grand  duque  de  Ballon, 
de  Narciso  e  de  Jason, 
de  Ercoles  e  de  Roldan, 
Carlo-Mano    et   Florestan, 
de  Amadis  e  Lançarote 
Valdevinos    é    camelote 
de  Galãs  et  de  Tristan. 

(Co  d.  Gellardo,  Fl.  34  v.) 

Gayangos  considera  a  mais  antiga  novella  cas- 
telhana Bi  Caballero  Cif  ar  como  uma  das  imita- 
ções do  Amadis;  Menendez  y  Pelayo,  reconhe- 
cendo que  esta  novella  pode  ser  mais  antiga  como 
ficção,  af firma  que  não  têm  relações  entre  si.  Baist 
entende  que  Cif  ar  é  mais  antiga,  mas  o  syncre- 
tismo  dos  elementos  agíographico,  cavalheiresco 
e  didáctico  provam  o  contrario,  porque  o  effeito 
moral  que  se  procura,  sacrificando-lhe  o  processo 
artistico,  é  já  uma  degenerescência.  Os  novel- 
listas  tinham  sempre  diante  de  si  como  typos  de 
imitação  os  personagens  da  novella  do  Amadis; 
na  novella  catalan  do  século  xv,  Curial  y  Guelfa 
(p.  498)  citam-se  entre  os  mais  celebrados  aman- 
tes Amadis  e,  Oriana.  (Pelayo,  Orig.,  p.  cem.) 
Os  poetas  castelhanos,  como  Fernan  Perez  de  Gus- 
man,   referiam-se  sempre  a  esse  ideal   feminino: 

Ginebra  e  Oriana 
E  la  bella  reyna  Iseo. 

(Canc.  Baena,  n."  572.) 


PRIMEIRA   época:    EDADE   MÉDIA  449 

A  influencia  do  Amadis  apparece  reflectida 
no  Tirant  il  Blanch,  que  Martorell,  vivendo  na 
corte  de  D.  Affonso  v,  por  1460,  escreveu  na 
lingua  portugueza,  traduzindo-o  depois  para  ca- 
talão, como  reconhece  Menendez  y  Pelayo.  Ap- 
l)arece  também  essa  influencia  na  novella  do  poe- 
ta gallaico  da  corte  de  Enrique  iv,  João  Rodri- 
guez  dei  Padron;  na  sua  novella  Siervo  libre 
de  Amor,  o  episodio  da  Historia  de  los  amo- 
res de  Ardenlier  é  Liessa  foi  o  gérmen  que 
suscitou  mais  tarde  Bernardim  Ribeiro  a  crear 
a  sua  novella  autobiographica.  Também  na  Cró- 
nica Sarracina,  de  Pedro  dei  Curral,  as  aventu- 
ras de  Amadis  são  adaptadas  ás  narrativas  len- 
dárias da  Perda  de  Hespanha  pelo  rei  D.  Ro- 
drigo. I  Porventura  este  processo  litterario  sus- 
citou Garci-Ordonez  de  Montalvo  a  reelaborar  o 
Amadis  de  Gaida,  para  consagrar  a  conquista  de 
Granada  como  termo  do  dominio  sarraceno  em 
Hespanha.  A  recente  introducção  da  Imprensa  na 
peninsula,  universalisando  as  novellas  typicas  de 
Cif  ar  e  Amadis  de-Gaida,  deu  vigor  a  esta  repre- 
sentação do  génio  medieval  através  da  corrente 
fascinadora  dos  estudos  clássicos  da  época  da  Re- 
nascença. Mas  a  corrente  humanista,  como  se  vê 
pela  Confectio  Catoniana,  manuscripto  do  século 
XV,  considerava  já  uma  leitura  inútil  as  volumo- 
sas historias  de  Tristão,  de  Lancelot  ou  do 
Amadis. 

Paliando  das  poucas  referencias  dos  poetas 
portuguezes  do  século  xv  ao  Amadis  de  Gaida, 


I     Menendez  y  Pelayo,  Origines  de  la  Novella,  p.  cciv. 
29 


450  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


Menendez  y  Pelayo  relaciona  o  facto:  «conside- 
rando que  qnasi  todo  o  cabedal  poético  da  pri- 
meira metade  do  século  xv  desappareceu,  ficando 
uma  grande  lacuna  entre  os  Cancioneiros  da  es- 
chola  gallaica,  que  propriamente  termina  no  rei- 
nado de  D.  Affonso  iv  e  o  Cancioíteiro  de  Re- 
sende, compilado  nos  primeiros  annos  do  século 
XVI  com  obras  de  auctores  que  floresceram  os 
mais,  depois  de  1450,  e  appareceram  inteiramente 
dominados  pela  influencia  de  Castella.»  ^  D'esta 
obra  em  que  se  revela  o  génio  de  um  povo,  diz  o 
critico  Menendez  y  Pelayo:  «obra  capital  nos 
annaes  da  ficção  humana,  e  uma  das  que  por  mais 
tempo  e  mais  profundamente  imprimiram  o  seu 
sello  não  só  no  domínio  da  phantasia  como  tam- 
l)em  nos  hábitos  sociaes.»   (Ihid.,  p.   cxcix.) 

§  III 
Predomínio   da   Erudição  latina 

O  século  XV  continuou  a  primeira  Renascença 
interrompida  iniciando  a  época  da  erudição,  pelos 
moralistas,  jurisconsultos  e  hiunanistas.  Desponta 
por  toda  a  parte  a,  Renascença  sob  o  aspecto  phi- 
lologico  e  artístico.  Não  se  opera  de  um  modo 
brusco  a  negação  da  Edade  média;  os  espiritos 
cultos  ao  passo  que  se  apaixonam  pelas  obras  da 
Antiguidade  greco-romana,  afastam-se  do  conta- 
cto com  o  povo,  confinando-se  nas  escholas  e  na 


Origines  de  la  Novella,  p.  cciv. 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :    EDADE    MÉDIA  451 

cúria,  na  corte  e  na  egreja,  desprezando  o  ele- 
mento tradicional  da  litteratura.  A  coexistência 
(las  (In as  correntes,  a  medieval  e  a  clássica,  appa- 
rece  de  um  modo  nitido  nas  transformações  que 
recebe  a  lingua  portugueza  escripta,  e  na  escolha 
das  obras  das  bibliothecas  principescas,  antes  da 
\'ulgarisação  da  Imprensa. 

i.t»  Estado  da  lingua  portugueza:  Formas 
populares  e  eruditas.  —  Como  a  litteratura,  a  lin- 
gua nacional  recebeu  também  um  desenvolvimen- 
to erudito,  modiíicando-a  e  imprimindo-lhe  um 
caracter  differente  d'aquelle  que  teria,  se  os  es- 
criptores  do  século  xv,  em  vez  de  augmentarem 
o  léxico  com  palavras  tomadas  directamente  do 
latim  ciceroniano,  se  reconhecessem  obrigados  a 
escrever  para  o  povo,  em  uma  linguagem  ver- 
nácula que  elle  entendesse.  Se  a  lingua  portugueza 
seguisse  uma  evolução  natural,  chegaria  organica- 
mente a  essa  contracção  das  palavras,  que  tanto 
se  exerceu  na  lingua  franceza,  submettida  so- 
mente no  século  xvi  á  auctoridade  dos  eruditos, 
quando  já  não  podiam  alterar  a  sua  morpholo- 
gia,  não  obstante  as  innovações  do  seu  léxico.  A 
lingua  portugueza  desde  que  começou  a  ser  es- 
cripta foi  fixando  as  suas  formas  ao  arbítrio  dos 
traductores ;  por  isso  as  duas  leis  phoneticas  — 
sup  pressão  das  voga  es  mudas  e  queda  das  con- 
soantes mediaes,  exerceram-se  continuamente  na 
linguagem  oral,  mas  foram  modificadas  na  lingua- 
gem escripta.  Sob  esta  divergência  os  vocábulos 
appresentam  formas  duplas,  conforme  a  palavra 
p'T>veiu  do  fundo  popular  modificada  pela  lei  das 


45- 


HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUEZA 


alterações  phoneticas,  ou  introduzida  inimediata- 
mente  do  latim  dando-lhe  os  eruditos  a  simples  ter- 
minação portugueza;  além  d'isso  as  diversidades 
de  accei>ção  ou  sentido,  pelo  processo  semeiolo- 
gico,  augmentam  a  duplicidade  da  mesma  pa- 
lavra. I 

As  formas  populares,  em  que  prevalece  o  ar- 
chaismo,  só  foram  introduzidas  accidentalmente 
nos  textos  como  vicio  de  escripta ;  as  formas  eru- 
ditas introduzidas  com  pretenção  culta,  tornaram 
a  lingua  litteraria  convencional,  á  qual  o  rei 
D.  Duarte  chamava  lingua  ladina  ou  ladinJia;  lin- 


I     Eis  alguns  exemplos  do  phenomeno 


Popular: 


Erudito: 


Ancho   Amplo  

Almalho    Animal    ... 

Amêndoa   Amygdala 

Bodega  Botica    .... 

Bago   Báculo   .... 

Caldo   Cálido   

Couto  Covado    ... 

Combro  Cômoro  ... 

Delgado    Delicado   .. 

Deão    Decano    ... 

Enxabido  Insípido 

Eira   


Latim  : 

.\mplus 

Animalis 

.Vmygdala 

Apothoca 

Báculo 

Calidus 

Cubitus 

romoru.s 

Delicatus 

Decanus 

Insipidus 


Área    Área 


Froixo    Flácido   . 

Frio    Frigido   . 

Freima  Fleuma   . 

Oníde    Glúten 

Insosso   Insulso    . 

Lidimo  Legitimo 

ívobrego   Lúgubre 


Meolo 


Flacidus 

Frigidus 

Flegraa 

Glúten 

Insulsus 

Legitiniuf 

Lugubr 


Medula    Medula 


Mezinha    Medicina    

Nédio    Nitido   

Olho  Óculo   

Paço    Palácio  

Pardo    Pálido  

P6   Pólvora  

Parola    Palavra     (Parábola) 

Quedo   Quieto  

Relha   Regra  

Sí^stro  Sinistro   

Telha    Tecla  

Vedro    Velho  


Medicina 

Nitidus 

Occulus 

Palatium 

Palidus 

Pulvis 

Parábola 

Quietus 

Regiila 

Sinistrus 

Tegula 

Vetulus 


PRIMEIRA  época:  Edade  media  453 


guagem  que  se  tornou  de  uso  corrente  entre  as 
classes  illustradas,  a  ponto  de  já  no  fim  do  sécu- 
lo XV  se  julgar  a  linguagem  popular  de  tal  modo 
archaica  que  se  tornou  necessário  traduzir  para  a 
linguagem  corrente  os  documentos  officiaes  anti- 
quados, o  que  motivou  a  reforma  dos  Foraes  ainda 
no  tempo  de  D.  João  ii.  Quando  se  colligem  do 
(lictado  popular  as  cantigas,  romances  e  contos  c 
que  se  nota  quanto  hoje  mesmo  a  phonologia,  a 
morphologia  e  a  syntaxe  da  lingua  do  povo  se 
affastam  da  linguagem  escripta.  Na  morphologia 
distinguem-se  os  substantivos  pelo  suffixo  mento 
em  vez  de  ão;  ha  incerteza  nas  formas  em  om  e 
aiii;  emprega-se  o  pronome  ornem  e  homem  como 
indefinido;  formas  verbaes  em  ades  (aes),  par- 
ticipios  em  udo  (ido),  e  toma-se  directamente  do 
latim  o  suffixo  issimo  para  a  formação  dos  su- 
])erlativos,  que  antes  do  século  xv  eram  compostos 
com  o  adverbio  mui,  muito  e  mui  muito.  No  Leal 
Conselheiro  do  rei  D.  Duarte  fixa-se  a  introdu- 
cção  d'este  superlativo  litterario:  «porque  nos  Se- 
nhores esta  virtude  antre  todas  muyto  recebe  gran- 
de louvor,  onde  por  especial  d'ella  som  chamados 
illnstrissimos  e  sereníssimos,  mostrando  que  som 
assy  claros  em  verdade...»  (p.  213.)  E'  d'esta 
mesma  época  o  documento  sobre  Behetrias,  onde 
se  lê :  ((Conde  de  Barcellos,  filho  do  muito  vir- 
tuoso e  vitorissimo  rey  D.  Joham.»  i  Nas  cortes 
de  Évora  de  148 1  apparecem  os  seguintes  super- 
lativos santissinia,  christianissimo]  grandissima.  A 


I     Mem.  de  Litteratura  portuguesa,  t  i,  p.  182. 


454  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


natureza  d'estes  últimos  documentos  revela-nos, 
que  também  os  jurisconsultos  na  traducção  das  leis 
romanas  imprimiram  certo  cunho  litterario  á  lin- 
guagem vulgar ;  na  phraseologia  juridica  o  archais- 
mo  popular  por  vezes  encontra-se  como  neologis- 
mo, assim  na  fórmula  teúdo  e  manteúdo;  nasci- 
turo, novimestre,  etc. 

As  traducções  do  latim.  —  A  actividade  dos 
traductores  das  lendas  medievaes  e  dos  patrolo- 
gistas,  no  século  xiv,  revelada  pelos  códices  de 
Alcobaça,  foi  continuada  no  reinado  de  D.  João  i 
com  mais  fervor  e  enthusiasmo  pelos  moralistas 
e  cultores  da  erudição  clássica.  Influiu  este  facto 
no  augmento  do  léxico  pelos  neologisnios  enidi- 
tos,  e  nas  construcções  clássicas  que  se  foram  tor- 
nando ellipticas.  Egual  phenomeno  actuava  nas 
linguas  romanisadas.  Pedro  de  Bercheure  tradu- 
zindo Tito  Livio,  introduziu  nas  linguas  moder- 
nas as  palavras  auguro,  auspicio,  cohorte,  colónia, 
facção,  fastos,  iuauguração,  magistrado,  senado, 
transfuga,  triumpho:  Oresme  traduzindo  Aristó- 
teles introduz  os  novos  vocábulos:  aristocracia, 
demagogia,  democraciO',  déspota,  insurreição,  mo~ 
narchia,  oligarchia,  sedição,  tyrannia.  O  poeta 
castelhano  João  de  Mena,  ampliando  pela  boa 
cultura  humanista  a  linguagem  poética,  introduz 
no  seu  Labyrinto,  as  palavras  compostas :  armig:- 
ro,  belígero,  eviterno,  nubifero;  e  os  neologismos 
dulcido,  exilio,  fido,  funéreo,  minas,  mendacia, 
pi  gr  o,  superno,  tabido,  túrbido,  ultrk:  e  os  ver- 
bos :  insuflar,  prestigiar,  trucidar.  Em  Portugal  o 
Infante  D.  Pedro,  ao  fazer  a  compilação  dos  sete 
livros  de  Séneca,  usa  d'esta  mesma  liberdade  neolo- 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :    EDADE    MÉDIA  455 


gica,  desculpando-se :  «E  os  que  menos  letrados 
forem  do  que  eu  sou,  nem  se  anojen  d'algumas 
palavras  latinadas  e  termos  scuros,  que  en  taes 
obras  se  nam  podem  escusar.»  ^  Do  secretario 
do  Infante  D.  Fernando,  Frei  João  Alvares,  abba- 
de  de  Paço  de  Sousa:  «E  que  não  fez  o  aliás 
erudito  Frei  João  Alvares?— Parece  quiz  trasladar 
todas  as  palavras  latinas  para  o  nosso  idioma.»  ^ 
A  abundância  e  a  facilidade  dos  neoterismos, 
actuava  sobre  o  estudo  da  synonimià ;  assim  obser- 
va o  Infante  D.  Pedro,  na  Virtuosa  Bemfeituria: 
«A  taes  prazeres  como  este  chamam-se  em  latim 
Jucunditates.  E  nós  por  não  termos  em  nossa  lin- 
guagem vocábulo  apropriado,  podemol-os  chamar 
Sobreavondante  e  extremada  alegria.»  O  rei 
D.  Duarte  também  se  entrega  a  estas  considera- 
ções synonimicas :  «Da  yra,  seu  próprio  nome  em 
nossa  linugagem  é  sanha.»  (Leal  Cons.,  p.  gô.) 
Já  com  caracter  philosophico  procura  estabelecer 
a  synonimià  da  lingua :  «Antre  nojo  e  tristeza  eu 
faço  tal  diferença;  por  que  a  tristeza,  por  qualquer 
parte  que  venha,  assy  embarga  sempre  contynua- 
damente  o  coraçom,  que  nom  dá  spaço  de  poder 
em  ai  bem  pensar  nem  folgar;  e  o  nojo  é  a  tem- 
pos, assy  como  se  vee  na  morte  de  alguns  paren- 
tes e  amigos,  onde  aquel  tempo  que  per  justa  falia 
ou  lembrança  se  sente,  o  sentymento  é  muito  rijo; 
porém  taaes  hi  ha  que  passado  o  dia  logo  riim, 
faliam,  e  despachadamente  no  que  lhes  praz  pen- 


1  Ms.  da  Virtuosa  Bemfeituria,  liv.  i,  cap,  2. 

2  J.  Pedro  Ribeiro,  Reflexões  philologicas,  N."  4,  p.  42, 


456  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


sani.  E  a  tristeza  nom  consente  fazer  assy,  por 
que  he  húa  door  e  continuado  gastamento  como 
apertamento  de  coraçom;  e  o  nojo  nom  continua- 
damente, salvo  se  tanto  se  acrecenta  que  derriba 
em  tristeza.  E  tal  deferença  se  faz  antre  nojo  e  o 
pesar;  porque  o  nojo  no  spaço  que  o  sentem  faz 
em  aquel  que  o  ha  grande  alteração,  mostrando 
many  festos  sygnaes  em  chorar,  sospirar,  e  outras 
mudanças  de  contenença,  o  que  nom  mostra  o 
pesar  solamente,  ca  bem  veemos  que  das  mortes 
de  alguns  nos  pesa  muyto,  e  nom  nos  derriba 
tanto  que  façamos  o  que  o  nojo  nos  constrange 
fazer,  e  menos  caymos  em  tristeza,  nem  d'elles 
avemos  sanha,  mas  propriamente  sentimos  no  co- 
raçom um  pesar  com  assas  de  sentido...  O  des- 
prazer he  já  menos,  porque  toda  cousa  que  se  faz, 
de  que  nos  nom  praz,  podemos  dizer  com  verdade 
(jue  nos  despraz,  aynda  que  seja  tam  ligeira  que 
pouco  sintamos.»  —  «E  o  avorrecimento  avemos 
de  algumas  pessoas  que  desamamos,  ou  de  que  ave- 
mos enveja,  posto  que  seja  em  nossa  secreta  ca- 
mará do  coraçom,  e  dos  desgraciados,  enxabidos  ou 
sensabores,  e  aquesto  do  que  fazen  que  a  nós  nom 
pertença  nem  nos  torve;...  E  a  snydade  nom  des- 
cende de  cada  húa  d'estas  partes,  mas  he  hum 
sentido  de  coraçom  que  vem  de  sensualidade  c 
nom  de  razom,  e  faz  sentir  aas  vezes  os  sentidos 
da  tristeza  e  do  nojo.)"»  (Ih.,  cap.  xxv.)  Os  pro- 
cessos que  assim  actuaram  sobre  a  degenerescên- 
cia da  lingua  jxM-tugueza,  reduzem-se  á  innovação 
dos  traductores.  e  á  influencia  do  meio  litterario 
cm  que  os  escriptores  pensavam  e  viviam.  O  bom 
saber  consistia  na  arte  de  bem  traduzir,  em  que 


PRIMEIRA  época:  edadE  media  457 

predominava  a  forma  paraphrastica.  O  rei 
D.  Duarte  expõe  as  regras :  Da  maneyra  para 
bem  tornar  alguma  leitura  em  nossa  linguagem: 
«Primeiro,  conhecer  bem  a  sentença  do  que  a  to- 
mar, e  poella  enteiramente,  nom  mudando,  acre- 
centando,  nem  minguando  alguma  cousa  do  que 
está  escripto.  O  segundo,  que  nom  ponha  pala- 
vras latinadas,  nem  d'outra  Hnguagem,  mas  todo 
seja  em  nossa  Hngua  scripta,  mais  achegadamente 
ao  geeral  boo  costume  de  nosso  f  aliar  que  se  poder 
fazer.  O  terceiro,  que  sempre  se  ponham  palavras 
que  sejam  direita  linguagem,  respondente  ao  la- 
tim, nom  mudando  umas  por  outras,  assy  onde 
desser  per  latin  scorregar,  nom  ponha  afastar,  e 
assy  en  outra  semelhante,  entendendo  que  tanto 
monta  uma  como  outra,  porque  grande  deferença 
faz  para  se  bem  entender  serem  estas  palavras  pro- 
priamente escriptas.  O  quarto,  que  nom  ponha  pa- 
lavras, que  segundo  o  nosso  costume  de  fallar  se- 
jam havidas  por  deshonestas.  O  quinto,  que  se 
guarde  aquella  ordem  que  egualmente  deve  guar- 
dar em  qualquer  cousa  que  se  escrever  deva, 
scilicet,  que  escrevam  cousas  de  boa  sustancia  cla- 
ramente para  se  l)em  poder  entender,  e  fremoso 
o  mais  que  elle  poder,  e  curtamente  quando  for 
necessário,  e  para  esto  aproveita  muito  paragra- 
phar  e  ])autar  bem.  Se  um  rasoar  tornando  do 
latim  em  linguagem,  e  outro  escrever,  achará  me- 
lhoria de  todo  juntamente  per  hum  só  feito.»  (Ih., 
p.  476.)  O  sábio  monarcha  exemplificou  estas  re- 
gras \'ertendo  em  redondilhas  o  hymno  Juste 
Judex. 

Sob  a  influencia  do  rei  D.  Duarte,  fez  o  sábio 
bispo  de  Burgos,  D.  Af fonso  de  Cartagena,  quan- 


458  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


do  esteve  como  enviado  na  corte  portugueza,  a 
traducção  da  Rhetorica  de  Cicero :  «Fablando  con 
vos,  princepe  esclarecido,  en  matérias  da  scicn- 
cia  en  que  vos  sabedes  fablar,  en  algunos  dias  de 
aqiiel  tiempo  en  que  la  vuestra  corte,  por  mandad.j 
dei  rey  catbolico  mi  senor,  estaba,  viúvos  a  vo- 
Juntad  de  haber  de  la  Arte  de  la  Retórica,  en 
claro  linguage,  por  conocer  algo  de  las  doctrinas 
de  los  antiguos  dieron  para  fermoso  fablar.  Et 
mandasteme,  pues  yo  a  esta  sazon  parecia  haber 
alguno  espacio  para  me  occupar  en  cosas  estudio- 
sas, que  tomase  un  pequeno  trabajo,  e  pasase  de 
latin  en  nuestra  lengua  la  Retórica  que  Túlio  com- 
puso.»  í  Para  o  rei  D.  Duarte,  quando  princepe, 
compilou  dos  moralistas  antigos  um  Tratado  de 
Virtud;  n'elle  se  lê:  «Porque  las  cosas  nobles  e 
provechosas,  mientras  mas  se  extienden  ai  pro  co- 
mun,  non  solamente  mas  nobles,  mas  aun  divinas  se 
facen.  segund  que  lo  escribio  Aristóteles  en  el  tomo 
de  las  Etílicas.  Commigo  pensando  determine 
trasladar  en  nuestra  comun  lengua  castellana,  un 
gracioso  e  noble  tratado  que  de  virtudes  fallé,  el 
cual  de  los  dichos  de  los  Morales  filósofos  compuso 
el  de  loable  memoria  D.  Alfonso  de  Santa  Maria, 
obispo  de  Burgos,  ai  muy  illustre  é  muy  Ínclito 
sr.  D.  Duarte,  rey  de  Portugal,  seyendo  primero 
princepe,  ai  cual  Memorinl  de  Virtudes  intitulo.»  ^ 


1  Fl.  45,  T  do  Libro  de  Marcho  tulio  çiçeron,  que 
se  llama  de  la  Retórica,  trasladado  de  latin  en  romance, 
por  el  muy  reverendo  D.  Affonso  de  Cartagena,  obispo  de 
Burgos  a  ynstancia  dei  muy  esclarecido  Princepe  D.  Eduar- 
te  Rey  de  Portugal.    (Bihl.  do  Escurial) 

2  Ap.  Oallardo,  Biblioteca,  t.  tt,  p.  255. 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :    EDADE    MEDIA  459 


A  rainha  D.  Isabel,  filha  do  Infante  D.  Pedro, 
mandara  também  traduzir  a  Vita  Christi,  de  Lu- 
dolpho  Cartusiano;  este  livro  andava  na  Casa  real 
desde  D.  Duarte,  que  traduzira  o  capitulo  septi- 
mo  da  primeira  parte  que  intercalou  no  Leal  Con- 
selheiro, (cap.  28.)  No  tempo  d'este  monarcha 
era  ainda  essa  obra  considerada  de  auctor  ano- 
nymo :  «aquel  livro  Vita  Xpõ,  que  fez  segundo  di- 
zem, que  per  el  nom  se  nomêa,  huú  freire  da  or- 
dem dos  Cartuxos.»  (Ih.,  cap.  85.)  A  rainha 
D.  Isabel,  mãe  de  D.  João  11,  «mandou  trasladar 
de  latim  em  linguagem  portug-uez,  ao  muy  pobre 
de  vertudes  dom  Abbade  do  moesteiro  de  S.  Pau- 
lo.» A  rainha  D.  Leonor  encarregou  da  impressão 
d'esta  obra  a  Valentim  de  Moravia  e  Nicoláo  de 
Saxonia  a  sua  estampa;  e  como  em  1495  a  lin- 
guagem parecesse  muito  antiquada,  encarregou  o 
seu  pregador  Frei  André,  franciscano,  da  revisão 
do  texto.  Os  philologos  portuguezes  do  século  xv  i 
reconheceram  este  extraordinário  phenomeno;  es- 
creve Duarte  Nunes  de  Leão:  «Do  tempo  da  rai- 
nha D.  Philippa  e  de  seus  filhos  para  cá,  houve  er. 
Portugal,  na  policia  e  tratamento  das  pessoas  reaes 
muita  dif ferença  e  bons  estylos  e  muita  differença 
na  linguagem  e  nos  conceitos.))  ^  Também  Fr.  Ma- 
noel do  Sepulchro  assignala  o  mesmo  facto:  «E 
não  ha  duvida,  que  maior  mudança  fez  a  lingua 
portugueza  nos  primeiros  vinte  annos  do  reinado 
de  D.  Manoel :  como  vemos  pelos  escriptos  em 
verso  e  prosa  de  uns  e  outros  tempos.»  2   A  carta 


1  Chron.  D.  João  i,  cap.  86. 

2  Refeição  espiritual,  §  2,  n."  3, 


46o  flISTORlA    JM    UTTKRATURA    PORTUGUEZA 

regia  de  22  de  Novembro  de  1497  reconheceu  a 
necessidade  de,  modernisar  o  texto  dos  Foraes. 
Esta  rápida  transformação  não  se  operou  na  lín- 
gua castelhana  no  fim  do  século  xv;  e  quando 
Garci  Ordonez  de  Montalvo  corrigiu  o  Amadis 
de  Gaula,  em  1492,  de  los  antiguos  origi/nales, 
que  estaban  corruptos  é  compnestos  en  antigtw  es- 
tilo, era  sobre  um  texto  portuguez  que  praticava 
esta  modernisação  «na  linguagem  e  nos  concei- 
tos.» 

Bihliothecas.  —  Somente  os  reis  e  princepes  é 
cjue  podiam  jxDssuir  livros,  antes  da  descoberta  da 
Imprensa,  por  causa  dos  seus  preços  extraordi- 
nários segundo  o  esmero  dos  copistas  e  illumina- 
dores  e  das  luxuosas  encadernações.  Os  livros  que 
se  facultavam  aos  estudiosos  eram  concatenatí, 
prezos  por  cadeias  á  estante,  como  bem  se  declara 
no  testamento  do  Doutor  Mangancha,  de  1448: 
uc  que  os  meus  livros  se  po  cessem  en  hum  a  Li- 
vraria per  cadeas.))  Entre  esses  livros  cita-se  um 
Chino,  o  celebrado  Commentario  de  Cino  da  Pis- 
toia  aos  nove  primeiros  livros  do  Código,  ponto  de 
resistência  dos  civilistas  contra  os  decretalistas. 
Encontram-se  os  nomes  dos  vários  copistas  que 
trabalharam  nas  livrarias  regias  e  principesca^.; 
em  documento  de  2  de  Novembro  de  145 1,  falla- 
se  en  Johan  Gonsalves,  scripvain  que  foe  dos  li- 
vros do  ifante  D.  Pedro;  Domingos  Vicente  ap- 
parece  aposentado  do  cargo  de  escrivão  dos  livros 
do  rei  D.  Duarte,  em  25  de  Janeiro  de  1446;  o 
rei  D.  Affonso  v  tinha  um  illmniiwdor  Vasco, 
c  em  3  de  julho  de  1452  dá  uma  tença  a  Gon- 
çalo Eanes,  creliguo,  capellam,  nosso  illuminador 


PRIMEIRA   época:   EDADE   MÉDIA  461 

dos  livros...  I  Conhece-se  a  Bibliotheca  do  rei 
D.  Duarte  pelo  Catalogo  dos  seus  livros  de  uso 
encontrado  na  Cartuxa  de  Évora ;  n'ella,  como  nas 
dos  seus  contemporâneos,  acham-se  promiscua- 
mente  representados  o  elemento  medieval,  e  o  gre- 
co-romano  e  humanista,  tendendo  a  prevalecer  este 
ultimo,  a  ponto  de  no  século  xvi  os  poemas  da 
Edade  média  serem  desprezados  e  até  esquecidos. 
Na  bibliotheca  do  rei  D.  Duarte  guardava-se  a 
Dialéctica  de  Aristóteles,  um  Valério  Máximo,  Sé- 
neca commentado,  Cicero,  Vegecio,  Tito  Livio, 
Júlio  César,  as  obras  dos  Santos  Padres  e  mora- 
listas ecclesiasticos.  O  elemento  medieval  tam- 
bém se  achava  brilhantemente  representado,  figu- 
rando o  Livro  de  Tristão,  o  Amante  (Confessio 
Amantis)  de  Gower,  Merlin,  o  Livro  de  Galaaz, 
a  Historia  de  Troya  em  aragonez,  traducçao  de 
Jacques  Coresa  do  francez  de  Benoit  de  Sainte 
More;  o  Livro  do  Conde  de  Lucanor  de  D.  João 
Manoel,  a  Gran  Conquista  de  Ultramar,  as  obras 
do  Arcipreste  de  Pysa  (Hita),  o  Livro  das  Tro- 
vas do  Rei  D.  Diniz,  e  o  das  Trovas  do  Rei 
D.  Affonso.  Pelo  caracter  austero  e  estudos  phi- 
losophicos  do  rei  D.  Duarte,  deve  considerar-se 
esta  parte  da  sua  livraria  como  núcleo  da  Livra- 
ria real  de  D.  João  i.  Outros  livros  da  Edade 
média  eram  lidos  na  corte  de  D.  Duarte,  taes  como 
o  Ovidio  da  Velha  (De  Vetula)  traduzido  por 
l^ichard  de  Furnival,  que  apparece  citado  no  ma- 


I  Documentos  publicados  pelo  Dr.  Sousa  Viterbo,  na 
sua  memoria  A  Livraria  real,  especialmente  no  reinado  de 
D.  Manoel. 


402  HISTORIA    DA    LlTTÉRATURA    PORTUGUEZA 


nuscrito  da  Corte  Imperial:  «bem  sabedes  que  húa 
grande  poeta  muy  genhoso  e  mui  sotil  antre  os 
outros  poetas  foi  o  que  ouve  nome  Ovidio  Naso 
e  foi  gintil.  E  este  fez  muitos  livros,  o  qual  antes 
de  sua  morte  compoz  húu  livro  que  chama  Ou- 
vidio  da  velha,  e  este  livro  foy  achado  em  no 
muymento...»  Este  poema  exemplifica  o  syncre- 
tismo  das  duas  correntes  medieval  e  clássica,  que 
o  século  XV  ia  separar  implacavelmente. 

A  pequena  livraria  do  Infante  D.  Fernando 
acha-se  apontada  no  testamento  que  fez  antes  da 
expedição  de  Tanger;  n'essa  lista  destacam-se  en- 
tre as  obras  mysticas :  um  livro  de  linguagem  cha~ 
Hiado  Rosal  d\4mor.  Item,  outro  livro  que  cha- 
inaiii  Isac,  em  linguagem...  Item  o  livro  da  Rai- 
nha D.  Ilizabeth...  Item,  o  livro  de  linguagem  que 
chammn  Hermo  espiritual.  Predominavam  na  sua 
livraria  as  obras  dos  Santos  padres. 

A  Bibliotheca  do  Condestavel  D.  Pedro,  como 
se  vê  i)elo  seu  catalogo  de  30  de  junho  de  1466, 
constava  de  noventa  números,  contendo  obras  ex- 
tremamente raras  e  com  as  mais  esplendidas  en- 
cadernações. N'esta  livraria  tem  egual  impor- 
tância o  elemento  medieval  e  o  clássico  com  a  eru- 
dição humanista;  apontaremos  o  poema  de  Ale- 
xandre en  ffrances.  Deis  fets  de  la  Cavallerie  en 
ffrances,  Boecio  de  Consolacion  en  vulgar  eas- 
tellã,  Conquesfas  de  Ultramar  en  vidgar  castella, 
Sidracho  lo  philosopho,  Les  Cent  halades,  Troya 
en  leti,  Joan  Bocaci.  Entre  os  livros  da  corrente 
greco-romana  destacam-se  o  Sonho  de  Scipião,  as 
obras  de  Aristóteles,  Bthica,  Politica  e  Econó- 
mica:   Suetonio,    a    Vida   de    César,    Tullio,    D<: 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :    EDADE    MÉDIA  463 


Officiis,  Valério  Máximo  en  vulgar  francez,  as 
Epistolas  de  Séneca  en  vulgar  francês,  Plutarcho, 
Liber  de  Viris  illustríbus;  Virgilio,  Les  Bnehi- 
des,  Tito  Livio,  de  secundo  bello  púnico;  Josepho, 
De  bello  judayco;  Plinio,  de  la  natural  istoria; 
Cornelio  Tácito ;  Commentarios  de  César,  Justino ; 
Declamações  de  Séneca ;  Ovidio,  M etamorphoseos ; 
Liber  Ysopetis,  etc. 

Da  Livraria  de  D.  Af fonso  v  falia  o  chronista 
Ruy  de  Pina,  dizendo:  «que  ajuntou  bÕos  livros 
e  fez  Livraria  en  seus  paços.»  Em  uma  quitação 
passada  a  Fernão  Dias,  almoxarife  do  Castello  e 
paço  de  Lisboa,  lê-se  em  data  de  i  de  janeiro  de 
1452:  ((Item,  deu  e  pagou  cinquenta  e  cinquo  rs. 
a  Symon  carpinteiro  do  feitio  de  duas  mezas,  que 
fez  para  a  casa  honde  está  a  nossa  livraria,  que 
foram  postas  em  ella.»  Não  existe  um  Catalogo 
da  Livraria  de  D.  Af  fonso  v;  mas  pelas  varias  e 
eruditas  citações  do  chronista  Gomes  Eanes  de 
iVzurara,  na  Chronica  da  Conquista  de  Guiné  re- 
constitue-se  em  parte,  pelo  que  se  lê  no  fim  d'essa 
obra,  terminada  em  1453  •  ^^E  acabou-se  esta  obra 
na  livraria  que  este  rey  fez  em  Lisboa.,. yy  Cita 
successivamente  S.  Thomaz  e  S.  Gregório,  Oro- 
sio,  Marco  Polo;  as  Metamorphoses  de  Ovidio;  as 
tragedias  de  Séneca,  Phedra  e  Hypolito;  Lucas 
de  Tuy,  continuador  da  Chronica  de  Isidoro  de 
Sevilla;  Cicero,  S.  Jeronymo;  a  Bthica  de  Aris- 
tóteles, Lucano,  S.  Chrysostomo,  as  Viagens  de 
S.  Brendan,  de  Civitate  Dei  de  Santo  Agostinho. 
Décadas  de  Tito  Livio,  Valério  Máximo,  Summa 
da  Historia  romana;.  Rodrigo  de  Toledo,  Flávio 
Josepho,   das  Antiguidades  dos  judeus,   Gualter, 


464  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

das  gerações  de  Noé;  as  obras  dos  Romãos  (Ges- 
ta Roínanoriini)  Vegecio,  De  re  mUitari,  a  Bíblia, 
Bernardo,  Regimento  da  casa  de  Ricardo^  Frei 
Gil  de  Roma,  Regimento  de  Princepes,  Tolomeu, 
Homero,  Bsiodo,  Mestre  João  o  Ingres  (Duns. 
Scoto)  Hermas,  o  Pastor;  Pedro  Lombardo,  Al- 
berto Magno;  e  a  Gesta  do  Duque  Jean  de  Lan- 
son  a  par  da  Chronica  do  Condestavel.  Na  outra 
obra,  Chronica  do  Conde  D.  Pedro  de  Menezes, 
cita:  «aquelle  famoso  poeta  Dante,  na  sua  pri- 
meira Cantica,  etc.»  Por  esta  enumeração  se  com- 
prehende  o  sentido  da  phrase  de  Ruy  de  Pina 
((ajuntou  bõos  livros,»  comprando-os  aos  livrei- 
ros estrangeiros;  a  descoberta  da  Imprensa  veiu 
satisfazer  esta  anciedade  de  possuir  os  livros  ra- 
ros, mas  nem  por  isso  D.  Affonso  v  e  o  seu  suc- 
cessor  deixaram  de  occupar  os  seus  calligraphos  e 
illuminadores.  Vieram  para  Portugal  impressores 
estrangeiros,  e  livreiros,  como  se  vê  pela  carta 
de  privilegio  de  D.  Affonso  v  de  19  de  Maio  de 
1483,  passada  a  Guilherme  e  Francisco  de  Mon- 
trete,  e  a  Guido  ((estantes  em  a  nossa  cidade  de 
Lixboa,  teemos  por  bem  e  queremos  e  nos  praz  que 
de  todolos  livros  de  forma  que  elles  em  a  dita 
nossa  cidade  teveren  e  trouverem  ou  mandarem 
trazer  de  fora  da  terra  a  estes  ditos  nossos  regnos 
nom  ])aguem  d'ello  nenhuma  sissa  de  sy  e  das  par- 
tes a  que  os  venderem...»  ^ 

A  Imprensa  em  Portugal.  —  Sobre  a  data  do 
estabelecimento  da  Imprensa  em  Portugal  encon- 


I     Ap.  Dr.  Sousa  Viterbo,  A  Livraria  real,  p.  6.  Lis- 
boa, 1901. 


PRIMEIRA  época:  edade  média  465 


tra-se  uma  noticia  que  se  fundamenta  pelo  que 
já  era  sabido  da  iniciativa  do  Mosteiro  de  Santa 
Cruz  de  Coimbra.  Escreve  Buckmann:  «Em  1460 
alguns  negociantes  d'esta  cidade  de  Nuremberg 
informaram  o  governo  real  de  Portugal  da  des- 
coberta e  utilidade  da  Imprensa,  feita  por  Gu- 
temberg  e  Faust  em  Mayença.  Um  cardeal  ou  o 
Prior  de  um  grande  Convento  de  Coimbra  man- 
dou vir  em  1465  os  primeiros  typographos  de  Nu- 
remberg para  Portugal,  onde  elles  imprimiram  de 
1465  a  1473  em  um  convento,  os  auctores  gregos 
e  latinos  e  muitos  livros  ecclesiasticos,  como  por 
exemplo  Thomaz  de  Aquino,  etc.  ^—  Segundo  uma 
velha  chronica,  estes  impressores  que  vieram  para 
Portugal  eram  Emanuel  Semons  (Simões)  eChris- 
tophe  Soll,  de  Altdorf,  um  burgo  próximo  de  Nu- 
remberg, ensinaram  muitos  discipulos,  e  immedia- 
tamente  a  typographia  espalhou-se  por  todo  o  reino 
de  Portugal.»  i  No  Mosteiro  de  Santa  Cruz  de 
Coimbra  é  que  se  estabeleceu  uma  imprensa  para  1 
reproducção  de  livros  gregos  e  latinos  e  grammati- 
cas  para  uso  dos  seus  escholares.  Um  dos  primeiros 
trabalhos  dos  prelos  portuguezes  foi  o  opúsculo 
sobre  o  Menosprecio  do  Murido  do  Condestavel 
D.  Pedro:  apesar  de  terem  sido  impressas  sem 
data  essas  Coplas,  certas  notas  manuscriptas  coe- 
vas apontam  aproximadamente  o  anno  da  sua  pu- 
blicação. Segundo  o  académico  José  Soares  da 
Silva,  existia  um  exemplar  d'este  rarissimo  mo- 
numento «na  Livraria  que  foi  do  Cardeal  Sousa, 


I     Boletim  da    Sociedade   de   Geographia,  2.'  série,  p. 
684,    (1881.) 

30 


406  HISTORIA    J3A    IJTTEKATURÀ    PORTUGUEZA 


e  existe  na  Casa  dos  Duques  de  Lafões,  Mar- 
([uezes  de  Arronches.»  Descrevendo  o  exemplar, 
declara  trazer  no  fim  a  sigla  de  que  fôraestam- 
])ado  (uwve  annos  depois  de  inventada  a  famosa 
Arte  de  Inipresão.))  Também  o  Conde  da  Eri- 
ceira, relatando  á  Academia  de  Historia  ix)rtu- 
gueza  o  estado  da  livraria  do  Conde  de  Vimeiro, 
escreve :  «Também  entre  os  impressos  peniiane- 
cem  muitos  exquisitos,  e  entre  elles  as  obras  do 
Infante  D.  Pedro  (aliás  do  Condestavel,  seu  fi- 
lho), com  esta  declaração  no  fím:  =  Bste  livro 
se  iniprimiu  seis  annos  depois  que  em  Basilea  foy 
aehada  a  famosa  Arte  de  Impressão.  =  O  que  ser- 
ve muito  para  averiguar  a  época  d'este  admirável 
invento,  e  disputar  a  gloria  a  Moguncia,  e  mos- 
trar a  brevidade  com  que  se  introduziu  em  Por- 
tugal.» Sendo  a  Imprensa  introduzida  em  Basile.i 
em  1474  é  fácil  de  inferir  que  em  1480  foram 
estampadas  as  Coplas  do  Condestavel  D.  Pednx  1 
Os  judeus  ix>rtuguezes  também  empregaram  muito 
cedo  a  Imprensa  para  a  reproducção  dos  livros 
biblicos;  em  1489,  os  judeus  Samuel  Zora  e  Ru- 
bem, imprimiram  o  Conunentario  sobre  o  Penta- 
teuco,  e  em  149 1  fizeram  a  edição  do  Pentateuco 
em  caracteres  hebraicos.  Os  trabalhos  esplendidos 
da    Tm])rensa   portugueza    foram    protegidos   pela 


I  Houve  duas  edições  sem  data,  que  se  podem  de- 
terminar por  essas  duas  notas  manuscriptas.  Fixada  a 
descoberta  da  Imprensa  em  1456,  nove  annos  depois  foi 
impresso  o  opúsculo  do  Condestavel  em  1465;  tomando  a 
data  de  1474  como  aquclla  em  que  se  estabeleceu  a  Im- 
prensa em  Basilêa,  temos  seis  annos  depois  uma  nova  edi- 
ção das  Coplas  do  Condestavel  em  1480. 


PRIMEIRA  Época  :  edade  média  467 


rainha  D.  Leonor,  esposa  de  D.  João  11,  a  mes- 
ma illustre  senhora  que  foi  em  Portugal  a  insti- 
tuidora das  Misericórdias,  a  que  soube  conhecer 
o  talento  de  Gil  Vicente,  o  ourives  seu  lavrantc,  e 
que  actuou  no  outro  Gil  Vicente,  mestre  de  rhe- 
torica  de  D.  Manoel,  com  directas  instancias  para 
que  escrevesse  novos  Autos  para  os  Seroes  do 
Paço  e  para  as  festas  religiosas.  O  livro  da  Vita 
Christi  foi  por  ella  mandado  imprimir  a  Valentim 
de  Moravia  e  Nicoláo  de  Saxonia,  sendo  esse  es- 
plendido trabalho  terminado  em  1495.  Valentim 
de  Moravia  figura  até  15 14  em  Portugal  com  o 
nome  de  Valentim  Fernandes;  em  1496  imprime 
a  Isforia  do  muy  nobre  Vespasiano;  em  1500,  as 
obras  de  Cataldo  Siculo,  servindo  já  a  corrente 
do  humanismo,  —  Aquel  Siculo  elegante,  —  que 
por  estes  reinos  vi  no,  como  aponta  Fray  Juan 
d'Avila,  apodando  os  eruditos;  em  1501  imprime 
as  Coplas  de  Jorge  Manrique,  de  que  tanto  gos- 
tava D.  João  II,  circumstancia  que  leva  a  pre- 
sumir a  intervenção  da  rainha  D.  Leonor;  em 
1502  imprime  as  Viagens  de  Marco  Polo,  tra- 
zidas para  Portugal  pelo  Infante  D.  Pedro  e  se 
guardaram  na  livraria  do  rei  D.  Duarte.  O  in- 
teresse por  essas  Viagens  de  Marco  Milhão,  como 
lhe  chamavam  na  Itália,  apparece  revelado  no  seu 
aspecto  maravilhoso  no  Cancioneiro  de  Resende : 

Outros   metem  mais   Mylham 
do    mesmo    pontificado... 

(Bd.  Stutt.,  I,  141.) 

A  corrente  litteraria  da  época  forçava-nos  a 
abandonar  as  ficções  medievaes  pela  erudição,  e 


408  HISTORIA   DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

a  realidade  dos  conhecimentos  levava-nos  ás  nar- 
rativas históricas  em  vez  das  aventuras  novel- 
lescas. 

2. o  Humanistas,  Moralistas  e  Philosophos. 

—  Xo  Catalogo  dos  Livros  de  uso  do  rei  D.  Duar- 
te cita-se  Alvxandre,  que  era  a  forma  lacónica  de 
designar  o  Doutrinal  áç^  Alexandre  de  Villa  Dei. 
em  que  se  achavam  compilados  os  tratados  gram- 
maticaes  de  Sérvio,  Varrão  e  Prisciano,  que  se 
estudava  com  grande  arriiido;  em  1494  já  se  men- 
cionam mestres  de  grammatica  da  Arte  velha  e 
da  nova.  Era  a  corrente  dos  novos  estudos  hu- 
manistas, que  penetravam  em  Portugal,  qtiando 
Ayres  Barbosa,  cooperando  com  Nebrija,  impri- 
miam «aos  estudos  de  Humanidades  a  forma  c 
organisação  definitiva  que  haviam  de  conservar 
no  glorioso  século  xvi...»  i  Cataldo  Siculo,  que 
ensinara  rhetorica  em  Pádua,  veiu  a  Portugal  para 
educar  D.  Jorge,  bastardo  de  D.  João  11,  e 
D.  Manoel,  desenvolvendo-se  então  na  corte  a  edu- 
cação (obrigatória  dos  moços  fidalgos,  inscriptos 
nas  Moradias  aos  doze  annos.  Durante  a  Edade 
média  a  litteratura  epistolar  teve  uma  importân- 
cia esi)ecial,  sendo  cultivada  com  o  titulo  de  Ars 
dictandi:  na  época  da  Renascença  a  carta  era  um 
pretexto  para  os  htimanistas  brilharem  pela  imi- 
tação do  estylo  ciceroniano,  que  se  tornou  uma 
monomania.  Não  fallando  das  Cartas  de  D.  Duar- 
te, do  Infante  D.  Pedro,  do  Marquez  de  Santil  - 


I     Menendez  y  Pelayo,  Antologia,  t.  v,  p.  xi. 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :    EDADE  ^ÉDIA  469 


lana  e  de  Angelo  Policiano,  nas  suas  relações  com 
Portugal,  destacam-se  por  um  notável  vigor  de 
pittoresco  realismo  as  Cartas  de  Lopo  de  Almeida, 
escriptas  da  Allemanha  em  145 1,  dirigidas  a 
D.  Affonso  V,  contando-lhe  a  jornada  e  as  festas 
do  casamento  da  imperatriz  D.  Leonor,  irmã  do 
monarcha.  i  A  preoccupação  rhetorica  do  século 
XV  fez  que  o  Magister  dictaminis,  se  tornasse  na 
corte  o  moço  da  escrivaninha,  como  Garcia  de 
Resende  junto  de  D.  João  11,  ou  Bernardim  Ri- 
beiro secretario  da  camará  de  D.  João  m. 

Pertence  a  esta  phase  humanista  o  manuscri- 
pto  do  Livro  de  Bsopo,  traducção  portugueza  do 
século  XV  da  collecção  medieval  intitulada  Ro- 
mídus  viil garis  ou  ordinarius,  derivado  das  Fa- 
bulas de  Phedro;  nas  48  folhas  de  um  texto  pu- 
blicadas pelo  Dr.  Leite  de  Vasconcellos,  2  com- 
prehendem-se  as  seguintes  fabulas,  a  que  a  lin- 
guagem archaica  dá  um  pittoresco  relevo:  O 
gallo  e  a  pedra  preciosa,  O  lobo  e  o  cordeiro,  O 
rato,  a  rã  e  o  minhoto,  O  cão  que  cita  o  carneiro 
em  juizo,  O  cão  e  a  posta  de  carne,  O  leão  que 
vae  com  outros  animaes  á  caça,  O  casamento  do 
ladrão  e  do  sol,  O  lobo  e  o  grou,  A  cadella  que 
pediu  a  casa  a  outra,  O  villão  que  recolhe  a  ser- 
pente, O  rato  da  cidade  e  da  aldeia,  A  águia  que 
arrebata  o  filho  da  raposa,  A  águia  e  o  cágado, 
O  corvo  e  a  águia,  O  leão  velho,  o  asno,  o  touro 
e  o  porco,  O  l)ranchote,  o  seu  senhor  e  o  amo,  O 


1  Provas  da  Hist.  genealógica,  t  i,  p.  633. 

2  Na  Revista  lusitana,  t.  viu,  p.  12. 


4/0  nibiuKiA  j).\  1,1  i  1  i-,K.-A  1  l;ra  portlíguhza 

calvo  e  a  mosca,  A  raposa  e  a  cegonha,  O  lobo  e 
a  cabeça  do  homem  morto,  O  corvo  enfeitado  com 
as  pennas  do  pavão. 

D 'entre  estas  fabulas  merece  destacar-se  como 
um  excellente  trecho  litterario  a  lenda  da  Ma- 
trona de  Bpheso,  que  ahi  tem  o  titulo  A  viuva  e  o 
alcaide  (Fab.  xxxiv.) 

Os  Exemplos  da  Edade  média  renovavam-so 
pelas  Fabulas  da  litteratura  clássica,  que  se  pren- 
diam ás  preoccupações  dos  moralistas  e  das  es- 
peculações philosophicas.  Segundo  a  velha  clas- 
sificação das  Sciencias  por  S.  Boaventura,  remo- 
delada por  LuUo,  a  Grammatica,  Rhetorica  e  Ló- 
gica formavam  a  Philosophia  racional,  e  a  Phy- 
sica,  a  Mathematica  e  a  Metaphysica  constituiam 
a  Philosophia  natural,  como  a  Monástica,  Eco- 
nomia e  Politica  a  Philosophia  moral.  O  interesse 
por  este  quadro  de  estudos  fez  com  que  o  rei 
D.  Duarte,  conhecedor  das  doutrinas  raymonistas, 
mandasse  traduzir  a  Rhetorica  de  Cicero  e  a 
Btliica  de  Aristóteles,  cujo  Canon  dominava  em 
Portugal  sob  a  forma  do  averroismo.  Os  livros 
philosophicos  d'esta  época  tem  o  caracter  de  com- 
pilações encyclopedicas,  prevalecendo  sempre  o  do 
gfmatismo  moral  sobre  as  suas  conclusões ;  doestas 
obras,  escriptas  em  portuguez  no  século  xv,  ape- 
nas se  acha  impresso  o  Leal  Conselheiro  do  rei 
D.  Duarte;  a  Virtuosa  Bcnifcitnria  do  Infante 
D.  Pedro,  e  a  Corte  Imperial  jazem  inéditas  nas 
bibliothecas  municipal  do  Porto  e  da  Academia 
real  das  Sciencias. 

O  rei  D.  Duarte,  cultivando  os  estudos  litte- 
rarios,  tinha  o  exemplo  de  grande  numero  de  mo- 


PRIMEIRA  época:  iídadi:  media  471 


narchas  da  Europa;  em  casa,  o  rei  D.  Diniz  e 
seus  bastardos  Conde  D.  Pedro,  e  D.  Affonso 
Sanches,  depois  D,  João  i,  e  Infante  D.  Pedro, 
pae  e  irmão,  impelliam-no  ao  esmerado  estudo  das 
boas  lettras.  Elle  próprio  confessa  este  motivo  da 
sua  determinação :  «E  semelhante  o  muy  excel- 
lente  e  virtuoso  Rey,  meu  Senhor  e  Padre,  cuja 
ahna  Deus  aja,  fez  húu  livro  das  Horas  de  Santa 
Maria,  e  Salmos  certos  pêra  os  finados,  e  outro 
de  Montaria;  e  o  If fante  D.  Pedro,  meu  sobre 
todos  presado  e  amado  irmão,  de  cujos  feitos  e 
vida  som  contente,  compoz  o  livro  da  Virtuosa 
Benifeituria,  e  as  Horas  da  confissom;  e  aquel 
honrado  Rey  D.  Affonso  estroUogo,  quantas  mul- 
tidões fez  de  lecturas  ?  E  assy  Rey  Sallamon,  e 
outros  da  ley  antiga  e  d'outras  crenças,  seendo 
en  real  estado,  filharam  desejo  e  folgança  em 
screver  seus  livros  de  que  lhes  prouve,  os  quaaes 
me  dam  para  semelhante  fazer  nom  pequena  au- 
toridade.» (Cap.  XXVII.)  ^o  \\YVo  ádi  Ensinança 
de  bem  cavalgar,  confessa  que  a  exemplo  de  Júlio 
César  escreve  como  elle  no  desenfado  dos  negó- 
cios graves :  «E  sentyndo  esto  o  vallente  empe- 
rador  Jullyo  César,  por  guardar  e  reter  seu  cuy- 
dado,  por  muyto  que  ouvesse  de  fazer,  sempre 
quando  avia  spaço,  seguya  o  estudo,  e  algunas 
obras  de  novo  screvya.  E  veendo  que  meu  co- 
raçom  nom  pôde  sempre  cuydar  no  que,  segundo 
meu  estado  seria  melhor  e  mais  proveitoso;  al- 
guns dias  por  andar  a  monte,  caça  e  camynhos,  ou 
desembargadores  nom  chegarem  a  mim  tam  cedo, 
estar  como  ocioso,  ainda  que  o  corpo  trabalhe  por 
nom  filhar  em  tal  tempo  algum  cuidado  que  em- 


472  HISTORIA    DA    TvITTERATURA    PORTUGUEZA 

pecimento  me  possa  trazer,  e  por  tirar  outros  de 
que  me  nom  praz,  achey  por  boo  e  proveitoso  re- 
médio alguas  vezes  pensar,  e  de  minha  mão  scre- 
ver  em  esto  por  requerymento  da  vontade,  e  fol- 
gança que  em  ello  sento,  ca  doutra  guysa  nunca  o 
faria,  por  que  bem  sey  quanto  para  mym  presfi 
fazello  ou  leixallo  de  fazer.»  (Prol.,  p.  498.) 

Quem  lê  o  Catalogo  dos  livros  de  uso  do  rei 
D.  Duarte,  reconstitue  a  historia  inteliectual  áo 
século  XV,  e  entreverá  o  conteúdo  do  Leal  Con- 
selheiro, vasta  encyclopedia  da  Theologia,  Moral, 
Medicina,  Lógica,  Pedagogia  e  Grammatica  de 
envolta  com  rápidas  memorias  pessoaes,  ainda 
com  a  ingenuidade  médievica,  tempi  delia  vlrtu 
sconochiuta.  A  compilação  era  o  processo  habi- 
tual com  que  o  rei  D.  Duarte  exercia  a  sua  apti- 
dão calligraphica,  prenda  rara  no  século  xv  en- 
tre os  altos  i^ersonagens.  A  coordenação  d'esses 
elementos  proveiu  da  vontade  de  comprazer  com 
a  rainha.  Com  o  Leal  Conselheiro  dá-se  o  factj 
que  tanto  caracterisa  a  litteratura  do  século  xv,  a 
separação  entre  os  sábios  e  o  povo:  «E  tal  trau- 
tado  me  parece  que  principalmente  deve  pertencer 
para  os  homens  da  corte,  que  alguma  cousa  sai- 
bam de  semelhante  sciencia,  e  desejam  viver  vir- 
tuosamente, porque  aos  outros  bem  penso  que  nom 
muyto  lhes  praza  de  o  ler  nem  de  ouvir.»  Ape- 
sar de  escripto  sob  o  regimen  da  importuna  eru- 
dição, o  Leal  Conselheiro  pela  sua  origem  fami- 
liar e  domestica  mostra  na  sua  redacção  «esta 
ordem  de  escrever  na  geral  maneira  de  nosso  f al- 
iar natural.»  Sob  este  aspecto  é  um  importante 
documento  philologico  para  a  historia  da  lingua 
portugueza. 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :    EDADE    MEDIA  4/3 

O  livro  da  Virtuosa  Bemfeituria,  que  se  guar- 
dava na  bibliotheca  do  rei  D.  Duarte,  é  um  tra- 
tado de  moral  em  forma  de  compilação,  escripto 
por  seu  irmão  o  Infante  D.  Pedro.  No  Leal  Con- 
selheiro cita-o  como  auctoridade :  «e  o  Infante 
D.  Pedro,  meu  sobre  todos  presado  e  amado  ir- 
mão... compoz  o  livro  da  Virtuosa  Bemfeitu- 
ria...)) O  chronista  Ruy  de  Pina  caracterisa-o : 
«foi  bem  latinado  e  assas  mis  tico  (encyclopedico ) 
em  sciencias  e  doutrinas  de  letras,  e  dado  muito 
ao  estudo;  elle  tirou  de  latim  em  lingagen  o  Re- 
gimento de  Princepes,  que  Frey  Gil  Correado 
compoz,  e  assim  tirou  o  Livro  dos  Officios  de 
Tullio,  e  Vegecio  De  Re  militari,  e  compoz  o  livro 
que  se  diz  da  Virtuosa  Bemfeituria.))  i  E'  uma 
compilação  dos  sete  tratados  de  Séneca;  existem 
dois  apographos  na  Academia  real  das  Sciencias  e 
bibliotheca  municipal  do  Porto. 

O  rei  D.  Duarte  possuia  um  outro  livro  in- 
titulado Corte  Imperial;  existe  ainda  hoje  na  bi- 
bliotheca do  Porto;  -  eis  como  explica  o  seu  ti- 
tulo: «e  tal  nome  lhe  he  feyto,  porque  asy  como 
na  corte  do  Rey  ou  do  emperador  ou  d'outro  alto 
princepe  ssoê  a  seer  trautados  os  grandes  negó- 
cios e  os  altos  feytos,  e  as  árduas  questões  deter- 


1  Chron.  de  D.  Affonso  V ,  cap.  125. 

2  Manuscripto  em  pergaminho  de  134  folhas :  ^^Bste 
livro  he  chamado  Corte  emperial,  o  qual  livro  he  dafons 
]'asques  de  Calvos  morador  na  cidade  do  Porto?'^  Sabe-se 
pelos  livros  de  linhagens,  que  este  Calvos  foi  creado  do 
duque  de  Bragança  em  1442,  e  que  em  1446  alcançou  o 
ser  isento  por  privilegio  de  servir  de  vereador  nem  ter  al- 
gum officio  da  cidade. 


474  HISTORIA    J)A    IJTTKRATURA    PORTUGUEí:A 


minadas,  asy  este  livro  tracta  de  grandes  cousas 
e  de  niuy  altas  questões  asy  como  —  a  essência 
de  Deus  e  da  trindade  e  da  encarnação  divinal  e 
d'outras  matérias  proveitosas  para  conhecer  e  en- 
tender o  senhor  deus,  segundo  o  jxxier  da  fra- 
queza humanai,  provando  tudo  por  auctoridades 
da  santa  escriptura  cõ  declarações  e  exposições 
de  doutores  e  per  rasões  evidentes  e  dizeres  de 
barões  sabedores  declarados  de  latim  em  lingua- 
gem portuguez...»  Por  esta  obra  se  pôde  sa- 
ber o  estado  do  conhecimento  dos  livros  árabes 
em  Portugal  em  uma  eix>ca  em  que  nos  paizes 
mais  civilisados  da  Europa  eram  desconhecidos. 
Vejamos  algumas  citações :  «segundo  podedes 
veer  por  seus  livros  antre  os  qu^es  fuy  húu  que 
houve  nome  hcrmogc,  em  húu  livro  que  chamam 
logosteleos...  (cap.  xii)  — Ca  mafamede  en  seu 
livro  alcarõ  em  que  he  escripto  a  vosa  ley  e  pre- 
ceptos  que  vos  ele  deu,  o  qual  livro  he  principal  e 
authentico  antre  vós.»  (Ib.) 

3.0  Universidade  de  Lisboa;  Jurisconsultos; 
Codificação.  —  O  espirito  de  secularisação  sub- 
siste no  desenvolvimento  da  Universidade  no  sé- 
culo XV.  Como  no  tempo  de  D.  João  i  se  fixou 
a  corte  em  Lisboa,  assim  quiz  este  monarcha,  em 
1384,  que  a  Universidade  fosse  para  sempre  em 
Lisboa,  como  ligada  ao  poder  real.  Havia  classes 
de  estudantes  ricos,  medianos  e  pobres.  Durante 
as  suas  viagens  o  Infante  D.  Pedro  escreveu  ex- 
tensamente ao  rei  D.  Duarte,  seu  irmão,  lembran- 
do-lhe  a  reforma  da  Universidade,  fundando  jun- 
to d'ella  Collegios  a  exemplo  dos  de  Oxonia  c 


PRIMEIRA    RPOCA  :    EDADp;    MEDIA  475 


Paris,  O  Infante  D.  Henrique  coUocou  a  Uni- 
versidade em  casa  própria  em  143 1  «para  as  sete 
artes  liberaes,  grammatica,  lógica,  rhetorica,  ares- 
metica,  musica,  geometria  e  astrologia...»  Em 
1442  o  Infante  D.  Pedro  fundava  em  Coimbra 
uma  Universidade,  como  uma  prerogativa  regia; 
d'aqui  talvez  os  ódios  e  intrigas  que  o  victimaram 
na  cilada  de  Alfarrobeira.  Para  estudantes  pobres 
instituiu  o  Dr.  Mangancha  um  Collegio,  no  seu 
testamento  de  3  de  dezembro  de  1447.  O  Infante 
D.  Henrique  no  seu  testamento  de  1460  instituiu 
um  cadeira  de  Theologia  dotada  com  doze  marcos 
de  prata.  Prevaleceu  o  espirito  clerical  na  Uni- 
versidade, entregando  D.  Affonso  v  em  1476  o 
governo  e  protecção  do  Estudo  Geral  ao  bispo 
D.  Rodrigo  de  Noronha.  A  Universidade  de  Lis- 
boa ficou  estéril  até  á  primeira  reforma  de  1504, 
envolvida  nos  conflictos  scholasticos  de  Scotistas 
e  Thomistas.  A  necessidade  de  irem  frequentar  as 
escholas  humanistas  da  Itália  os  filhos  das  famí- 
lias fidalgas  portuguezas,  prova  a  insufficiencia 
do  quadro  dos  nossos  estudos.  Por  1489  os  filhos 
do  chanceller  João  Teixeira  frequentavam  os  cur- 
sos humanistas  de  Angelo  Policiano,  e  Henrique 
Caiado  attribue  ás  lições  de  Cataldo  Siculo  a  sua 
cultura  litteraria.  Os  estudantes  de  Theologia  di- 
rigiam-se  especialmente  para  a  Universidade  de 
Paris. 

O  século  XV  é  também  a  época  dos  Juriscon- 
sultos, que  preparavam  a  independência  do  Poder 
real ;  o  Doutor  Diogo  Affonso  de  Mangancha,  que 
se  fizera  notado  em  Bolonha  pela  sua  erudição, 
quando  foi  por  Adjunto  á  embaixada  que  o  rei 


470  HISTORIA    DA    LITTKRATURA    PORTUGUKZA 

D.  Duarte  mandou  ao  Concilio  de  Basilêa,  era 
Regedor  da  Casa  da  Supplicação;  e  já  no  reinado 
de  D.  Affonso  v,  figura  Vasco  Fernandes  de  Lu- 
cena, Desembargador  do  Paço,  Chanceller  da  Casa 
do  Civel,  tendo  desempenhado  trez  embaixadas. 
Nas  cortes  de  1481  e  1482  convocadas  para  Évo- 
ra, elle  fez  a  oração  de  abertura. 

Os  Jurisconsultos  foram  os  primeiros  huma- 
nistas da  Renascença ;  conhecedores  do  systema 
das  leis  romanas,  trataram  de  codificar  as  diffe- 
rentes  ordenações  especiaes,  formando  um  corpo 
geral  que  veiu  a  destruir  a  legislação  foral.  Com 
o  titulo  de  Leis  antigas,  achou  o  escrivão  Jorge 
da  Cunha  entre  o  lixo  da  Torre  do  Tombo  um 
pergaminho  de  168  folhas,  em  1633,  que  procu- 
rado seis  annos  depois  pelo  Procurador  da  Coroa 
Thomé  Pinheiro  da  Veiga  já  não  foi  encontrado. 
Em  uma  certidão  do  Mosteiro  de  S.  João  de  Ta- 
rouca da  era  de  1459,  cita-se  o  Livro  das  Orde- 
nações que  anda  na  Chancellaria;  é  crivei  que 
fosse  o  código  mandado  organisar  por  D.  João  i 
ao  seu  jurisconsulto  João  Mendes  Cavalleiro.  Na 
bibliotheca  do  Rei  D.  Duarte  «que  en  sendo  In- 
fante foi  Regedor  da  Casa  da  Supplicação»  en- 
contra-se  designado  o  Livro  das  Ordenações  dos 
Reis:  e  no  código  affonsino  cita-se  o  Livro  das 
Ordenações  do  Reino  e  também  o  Livro  das  Leis 
que  anda  na  Casa  do  Civcl.  (Liv.  iii,  tit.  6,  §  i ; 
e  tit.  15,  §  29.) 

As  occupações  de  D.  Duarte  quando  Infante 
levaram-o  a  emprehender  uma  nova  codificação 
das  leis.  Uma  copia  das  Ordenações  de  D.  Duarte 
chegou  ao  poder  do  ministro  José  de  Seabra  da 


PRIMEIRA    KPOCA  :    EDADE    MEDIA  477 


Silva,  vindo  outra  copia  do  desembargador  Joa- 
quim Pedro  Ouintella  a  pertencer  a  seu  filho  o 
barão  de  Quintella;  constavam  de  450  folhas  nu- 
meradas, segundo  a  descripção  que  fez  João  Pe- 
dro Ribeiro.  Acham-se  hoje  publicadas  as  Or- 
denações de  D.  Duarte  pela  Academia  real  das 
Sciencias  na  coUecção  Portugalice  Momimenta  his- 
tórica. Durante  a  Regência  do  Infante  D.  Pedro, 
na  menoridade  de  D.  Affonso  v,  elle  mandou  co- 
dificar sob  o  titulo  de  Ordeimções  Affonsinas  as 
leis  dispersas  dos  diversos  reis  ainda  da  primeira 
dynastia;  cada  um  dos  seus  titulos  é  precedido  de 
um  preambulo  litterario,  com  ideias  dos  moralis- 
tas greco-romanos,  misturando  com  ellas  o  sym- 
bolismo  pittoresco  da  Edade  média,  no  Regimento 
de  Guerra.  (Tit.  51.)  Como  obra  de  litteratura 
as  Ordenações  Affonsinas  são  um  vasto  reposi- 
tório de  locuções  e  costumes  populares,  da  vida 
social  no  século  xv.  Predomina  n'ellas  a  eschollí 
bartholista,  que  impõe  acima  de  todas  as  leis  pri- 
vilegiadas, ecclesiasticas,  locaes  e  senhoriaes  o  foro 
do  rei,  forma  transitória  da  unificação  civil.  No 
século  XV  os  Jurisconsultos  eram  homens  de  le- 
tras, cuja  disciplina  se  continuou  no  espirito  de 
Cujacio  e  da  eschola  histórica  do  direito.  Os  Ju- 
risconsultos encarregados  de  codificarem  as  leis 
portuguezas,  como  João  Mendes  Cavalleiro  por 
D.  João  I ,  e  Doutor  Ruy  Fernandes  por  D.  Duarte 
e^  D.  Affonso  v,  devem  considerar-se  como  repre- 
sentantes da  cultura  humanista. 


478  HIÇTORIA    DA    IvlTTlSRATURA    PORTUGUEZA 


§  IV 

Desenvolvimento  da  forma  histórica 

A  realeza  travou  a  sua  ultima  lucta  contra 
o  poder  senhorial;  o  movimento  realisado  por 
Luiz  XI  contra  o  Duque  de  Borgonha,  teve  tam- 
bém em  Portugal  e  Castella  repercusão  análoga, 
na  execução  do  Duque  de  Bragança,  e  na  de 
D.  Álvaro  de  Luna.  O  século  xv,  d'estas  ix)de- 
rosas  conspirações  da  aristocracia  e  da  sangrenta 
rasão  de  Estado,  legou-nos  Memorias  particula- 
res e  pessoaes.  A  velha  Chronica  ingénua  e  des- 
tacando-se  da  tradição  da  Epopêa,  veiu  encontrar 
nos  factos  da  vida  social,  nos  interesses  da  ordem 
politica,  na  transformação  das  relações  civis  o 
objecto  das  suas  pittorescas  narrativas.  As  na- 
cionalidades recentemente  constituídas  reclamaram 
dos  eruditos  a  invenção  das  suas  genealogias  his- 
tóricas, indo  os  graves  eruditos  filial-as  nos  he- 
roes  de  Troya  foragidos  em  França,  Veneza,  em 
Hespanha  e  Portugal.  Os  estados  geraes  ou  Cor- 
tes queriam  que  se  fixassem  authenticamente  as 
rasÕes  das  reformas  que  estatuíam,  e  os  Chro- 
nistas  eram  lisongeados  pela  realeza  para  justi- 
ficarem os  seus  arbítrios  e  crimes;  conta  Damião 
de  Góes,  que  Affonso  de  Albuquerque  presen- 
teava com  jóias  a  Ruy  de  Pina  para  lhe  ser  fa- 
vorável nas  Chronícas.  No  meio  d'estas  preten- 
ções  de  uma  vaidade  erudita,  appareceram  os  Co- 
mines, os  Platina,  os  Olivíer  de  la  Marche ;  Frois- 
sart  viaja  por  França  para  colligir  os  successos 
do  seu  tempo:    «Faltava-lhe  alguma  cousa  a  di- 


PRIMEIRA    UPOCA  :    EDADE    MÉDIA  479 

zer  sobre  as  guerras  de  Hespanha,  e  precisava  para 
isso  o  testemunho  dos  portuguezes.  Assegura- 
ram-lhe  que  muitos  cavalleiros  d'esta  nação  esta- 
vam em  Bruges.  O  cavalleiro  andante  da  His- 
toria parte  para  Bruges;  alli  sabe  que  um  outro 
portuguez  valente  e  sábio  estava  na  Zelândia; 
eil-o  a  caminho  para  a  Zelândia  para  saber  dos 
acontecimentos  de  Portugal.  Alli  encontra  o  seu 
homem  gracieux  et  accointablc,  e  com  elle  está 
durante  seis  dias  fazendo-lhe  contar  as  historias 
e  anecdotas,  que  vae  reduzido  a  escripto.  Depois 
de  ter  exhaurido  a  memoria  d'este  cavalleiro,  parte 
para  outra  investigação.»  i  Com  este  mesmo  es- 
pirito Fernão  Lopes  percorre  Portugal  para  es- 
crever a  historia  de  cada  reinado,  e  Azurara  visita 
as  conquistas  do  norte  da  Africa.  A  realeza 
preoccupava-se  com  a  organisação  das  Chronicas 
do  reino,  e  convidava  latinistas  italianos  como 
Matheus  Pisano,  Frei  Justo  Balduino,  e  Angelo 
Policiano  para  traduzirem  paifa  latim  as  memo- 
rias nacionaes.  De  D.  João  ii,  escreveu  Damião 
de  Góes :  «era  tão  curioso  de  fazer  vir  em  luz 
todos  os  feitos  d'este  Conde  D.  Duarte  e  do  Conde 
D.  Pedro  seu  pae,  e  hos  dos  Reys  passados,  que 
para  se  divulgarem  em  lingua  latina,  mandou  vir 
de  Itália  D.  Justo,  frade  da  ordem  de  S.  Domin- 
gos, a  quem  por  este  respeito  fez  Bispo  de  Se- 
pta...»  2  Veiu-nos  d'este  frade  a  perda  incalcu- 
lável   dos   melhores   materiaes   colligidos   para   a 


1  Lef ranc,    Hist.    crit.    de    la    Litterature   française  — 
Moycn-Age  — p.  395. 

2  Chron,  de  D,  Manoel,  P.  vi,  38,  fl.  49. 


48o  HISTORIA    DA    LlTTERATURA.    PORTUGUEZA 


nossa  historia,  por  causa  do  seu  falecimento  re- 
pentino. Angelo  Policiano  não  accedeu  ao  con- 
vite de  D.  João  ii.  No  século  xv  propala-se  a 
tradição  das  Quinas^  das  Armas  nacionaes,  ex- 
plicando-as  pela  lenda  do  milagre  de  Ourique,  re- 
ferida por  Olivier  de  la  Marche ;  o  Bispo  D.  Gar- 
cia, orando  diante  do  Papa,  emprega  no  seu  discur- 
so humanista  o  nome  de  Lusitânia  identiíicando-o 
com  o  de  Portugal;  Herculano  motejou  d'esta 
designação  ethnica  ^desconhecendo  os  Mappas  do 
século  VI  a  x  1 1 ,  em  que  o  nome  de  Lusitânia  de- 
signa sempre  a  região  que  veiu  a  ter,  o  nome  de 
Portugal. 

Apesar  do  exagerado  respeito  pelos  latinistas 
estrangeiros  é  no  século  xv  que  appa recém  os 
grandes  historiadores  portuguezes  escrevendo  na 
lingua  nacional,  com  um  admirável  relevo  pit- 
toresco  e  com  um  elevado  bom  senso.  A  reda- 
cção ix)rtugueza  julgar-se-hia  então  provisória, 
sendo  destinada  á  amplificação  do  latim  cicero- 
niano, como  se  pode  inferir  da  despreoccupação 
do  estylo  em  Fernão  Lopes,  e  dos  variados  plá- 
gios que  d'este  chronista  fizeram  outros  que  lhe 
succederam.  A  fundação  de  um  Archivo  nacional 
(Torre  do  Tombo),  e  a  creação  do  cargo  de  Chro- 
nista do  Reino,  inherente  aos  guardas  d'esse  Ar- 
chivo, actuaram  directamente  sobre  o  desenvol- 
vimento da  forma  histórica,  determinando  as  ca- 
pacidades de  Fernão  Lopes,  Gomes  Eanes  de  Azu- 
rara e  Ruy  de  Pina. 

i.o  Conversão  das  Estorias  em  Caronicas. 

—  Na  carta  escripta  pelo  rei  D.  Duarte,  de  San- 


PRIMEIRA  Época:  edade  média  481 


tarem  em  19  de  Março  de  1434,  a  Fernão  Lopes, 
encarregava-o  «de  poer  em.  caronica  as  estorças 
dos  Reys  que  antigamente  em  Portugal  foram; 
eto)  Herculano  ligou  a  estas  duas  palavras  sen- 
tidos dif ferentes :  a  estoria  designava  as  memorias 
tradicionaes,  os  registos  latinos,  os  obituários,  as 
legendas  mesmo  oraes.  De  facto  no  syncretismo 
da  Edade  média  os  cantores  narrativos  foram 
chamados  histriones^  e  Gesta  a  historia  de  feitos 
lieroicos;  como  ainda  hoje  na  ilha  da  Madeira  os 
romances  populares  são  chamados  Estorias.  A 
Chronica  era  a  epheméride  palaciana  com  o  ca- 
racter de  um  registo;  os  seils  redactores  eram 
como  os  Logographos  gregos.  Para  se  chegar 
ás  formas  bellas  e  superiores  das  chronicas  do 
século  XV,  convém  indicar  os  esboços  isolados  em 
que  as  narrações  eram  ainda  moldadas  pela  con- 
cepção limitada  do  século  xiv. 

2i)  A  Chronica  da  fundação  do  Moesteyro  de 
S.  Vicente.  —  No  principio  do  século  xv  fez-se 
uma  traducção  da  relação  latina  intitulada  Indi- 
cuhtm  fundationis  Monasterii  Sancfi  Vicentii,  es- 
cripto  no  reinado  de  D.'  Af fonso  1 1 ;  ^  guardava- 
se  esta  traducção  com  o  mais  rigoí"oso  affêrro  na 
livraria  do  Mosteiro  de  S.  Vicente,  em  Lisboa. 
Na  Chronica  dos  Eremitas  de  Santo  Agostinho 
(t.  T,  fl.  993)  refere  Frei  António  da  Purifica- 
ção :  ((também  me  admira  o  notável  cuidado  que 
se  tem  no  Convento  de  S.  Vicente  sobre  a  guarda 
d'aquella  escriptura  latina  da  sua  fundação,  e  do 


I     Herculano,  Hist.  de  Portugal,  t.  i,  p.  506,  Not.  xvi: 
3I' 


482  HISTORIA   DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 

Ordinário  de  S.  Rufo,  não  consentindo  que  pes- 
soa alguma  as  tome  na  mão  para  as  lêr...  Porque 
as  escondem  não  só  a  nós,  mas  até  aos  outros  his- 
toriadores e  Chronistas  do  Reino.»  Em  1538 
mandou  D.  João  11 1  imprimir  este  vedado  ma- 
nuscripto  traduzido  ((em  a  própria  língua  antigua 
em  que  foi  achado.))  Diverge  este  texto  do  que 
existe  na  Torre  do  Tombo  e  foi  em  1861  publi- 
cado nos  Monumentos  históricos.  ^  Sobre  a  Chro- 
nica  dos  Vicentes  falia  Herculano:  ((Tem-se  offe- 
recido  algumas  duvidas  sobre  a  sua  authentici- 
dade.  O  que  se  pôde  ter  por  certo  é  que  não  foi 
escripta  nos  primeiros  annos  do  reinado  de 
D.  Sancho  i,  como  ahi  se  indica:  ou  que  é  copia 
tirada  posteriormente...  A  letra  porém  do  manus- 
cripto  de  S.  Vicente  é  semelhante  em  grandeza, 
em  forma,  em  tudo  á  de  um  volume  de  Chancel- 
laria  de  D.  Affonso  11  (Maço  de  Foraes  an- 
tigos, n.<^  3.)  2  A  Chronica:  dos  Vicentes,  além 
de  ser  um  valioso  documento  do  estado  da  lingua 
portugueza  no  século  xv  é  inapreciável  para  o  es- 
tudo histórico  dos  primeiros  annos  da  nação  por- 
tugueza; alli  se  encontram  tradições  poéticas  liga- 
das á  memoria  dos  francezes  que  ajudaram  á  con- 
quista de  Lisboa,  como  a  sentidissima  lenda  do 
cavalleiro  Henrique  e  da  fidelidade  do  seu  pagem, 
que  com  tanta  arte  idealisou  Camões  nos  Liisiadas 
alludindo  á  palma  que  nascera  sobre  a  sepultura 
do  Cavalleiro. 


1  Portugalico  Monumenta  hist.  —  Scriptores,  p.  407. 

2  Op.  cit..  t.  I.  p.  506. 


PRIMEIRA  época:  Edade  média  483 


b)  Vida  de  D.  Tello.  —  E'  a  historia  no  seu 
elemento  biographico;  a  vida  d'este  arcediago  de 
Santa  Cruz  de  Coimbra  foi  escripta  em  latim  no 
século  XII,  e  encerra  muitas  circumstancias  da 
historia  nacional  não  referidas  em  outros  monu- 
mentos. Traduziu-a  para  portuguez  mestre  Ál- 
varo da  Mota,  dominicano,  o  nomeado  reitor  da 
Universidade  de  Coimbra  fundada  pelo  Infante 
D.  Pedro ;  lê-se  no  seu  prologo :  ((Aqui  se  começa 
a  obra  que  fala  do  fundamento  do  moesteiro  de 
Santa  Cruz  de  Coimbra  e  quaes  foram  aquellas 
pessoas  que  este  ordenaram,  e  fala  mais  da  vida 
de  D.  Tello  e  d'outros  homens  seus  companhei- 
ros. Esta  obra  está  em  latim  no  livro  do  erda- 
mento  de  Santa  Cruz,  e  foi  tornado  em  lingua- 
gem por  que  o  entendessem  muitos,  a  requeri- 
mento de  Pedrcanes,  prior  de  podentes,  irmão 
de  Affonso  annes,  conigo  de  santa  cruz.  E  esto 
foy  em  tempo  de  dom  gomes,  prior  de  santa  cruz, 
homem  de  santa  vida,  que  primeiro  foi  abbade 
de  frorença.  E  esta  trasladaçam  fez  do  latim  em 
linguagem  mestre  Álvaro  da  Mota,  da  ordem  dos 
pregadores,  o  maior  letrado  da  ordem,  estando 
em  santa  cruz  com  o  prior  dom  gomes  no  anno 
I.V,  no  mez  de  Novembro.»  A  linguagem  da  Vida 
de  D.  Tello  appresenta  f(3rmas  já  não  emprega- 
das por  escriptores  seus  contemporâneos;  ahi  se 
lê :  ((Vinham  muitos  velhos  cãaos  fazendo  grande 
chanfo  por  D.  Tello...»  A  forma  vulgar  de  cãoos 
(canos  ou  encanecidos)  desappareceu  por  causa 
da  homonymia  com  cão,  conservando-se  a  forma 
feminina  caii  por  não  ter  esse  inconveniente.  Chan- 
fo era  a  forma  vulgar  de  planctus,  que  desappa- 


484  HISTORIA   DA    I^ITTERATURA   PORTUGUEZA 

receii  diante  da  forma  erudita  de  pranto,  ficando 
a  forma  chantar  proveniente  de  plantare.  O  tra- 
balho da  erudição  ia  reconhecendo  estas  homo- 
nymias  e  homophonias,  avançando  para  a  disci- 
plina da  lingua  pela  escripta. 

c)  Chronica  do  Condestabre.  —  O  auctor  ano- 
nymo  d'esta  chronica  classifica-a  no  seu  pequeno 
prologo  como  estaria;  Azurara  compara-a  sob  o 
aspecto  biographico  á  Gesta  do  Duque  João  de 
Lanson:  ((Antigamente  foi  costume  fazerem 
memoria  das  cousas  que  se  faziam,  assi  erra- 
das, como  dos  valentes  e  nobres  feitios.  Dos 
erros,  porque  d'elles  se  soubessem  guardar;  e  dos 
valentes  e  nobres  feitos  aos  boos  fezessem  cobiça 
aver  pêra  as  semelhantes  cousas  fazerem.»  K' 
com  este  intuito  que  exemplifica  os  feitos  errados 
com  a  faulse  geste,  e  os  nobres  feitos  com  a  Chro- 
niea  do  Condestavel  D.  Nuno  Alvares  Pereira.  O 
elemento  tradicional  predomina  n'este  importante 
quadro  em  que  nos  mostra  o  Condestavel  apaixo- 
nado pela  leitura  dos  poemas  da  Tavola  Redonda : 
((.avia  grani  sabor  de  leer  estarias.))  Alli  também 
se  encontra  a  lenda  da  Espada  encantada  que  lhe 
entregara  o  alfageme  de  Santarém  (cap.  xvii) 
sobre  a  qual  Garrett  fundou  um  drama  nacional. 

d)  Crónica  do  Santo  e  virtuoso  Infante 
D.  Fernando,  por  Frei  João  Alvares.  Foi  publi- 
cada em  Lisboa  em  1527,  na  imprensa  de  German 
Galharde,  Na  Bibliotheca  nacional  de  Madrid  exis- 
te um  texto  manuscripto  em  portuguez  do  século 
XV,  com  o  titulo:  Fernando  Infante,  filho  de 
D.  João  I  de  Portugal.  Sua  vida.  N'elle  se  de- 
clara o  auctor:    ((Johã  alvares,  cavalleiro  de  Avis 


PRIMEIRA   época:    EDADE   MÉDIA  485 


e  da  casa  do  S.o^  Infante  D.  Anrique,  que  foi 
creado  e  secretario  do  muito  virtuoso  8.°^  Yfante 
D.  Fernando.»  João  Pedro  Ribeiro  caracterisou 
esta  Chronica  como  um  continuado  neologismo  la- 
tino. Quanto  á  narrativa  histórica,  escreveu  Fray 
Hieronymo  Roman  na  Historia  do  los  religiosos 
Infantes  de  Portugal,  criticando  também  a  remo- 
delação de  Fr.  Jeronymo  Ramos  de  1577:  «todos 
quedaron  cortos,  ix>r  que  no  vieron  los  papeies  de 
la  Torre  de  Tombo  ó  Archivo  de  Lisboa  ni  los 
dei  Convento  de  Avis,  ni  otros  memoriales  que 
vinieron  á  mis  manos.» 

2.0  Fundação  do  Archivo  Nacional  (Torre 
do  Tombo. )  —  Nas  Chronicas  de  D.  Pedro  i  e 
de  D.  Fernando,  falia  Fernão  Lopes  da  Torre 
alvará  ou  do  aver,  construida  primitivamente  para 
se  gitardar  o  Thezouro  real.  (Cap.  12;  e  cap.  48. ) 
A  cargo  do  Vedor  da  Fazenda,  já  no  tempo  do 
rei  D.  Fernando  (1367- 1383)  ahi  se  depositavam 
como  em  archivo  estável  os  livros  findos  das  Chan- 
cellarias,  na  Torre  de  Menagem  do  Castello  de 
Lisboa.  D'aqui  o  nome  de  Torre  do  Tombo, 
(tomo)  de  Re  cabe  do  Regni,  inventario  dos  bens 
próprios  nacionaes,  e  direitos.  Tinha  um  escrivão 
privativo,  que  se  tornou  depois  Guarda-mór,  Con- 
tador da  Fazenda,  que  authenticava  os  diplomas 
das  provisões  e  certidões,  em  nome  do  soberano  e 
l)em  assim  as  allegações  dos  titulos  e  documen- 
tos. Os  primeiros  Guardas  da  Torre  do  Tombo 
ainda  não  estavam  separados  nas  suas  attribuições 
dos  empregados  do  thezouro;  assim  foram  João 
Annes,  vedor  da  Fazenda  por  1373;  Gonçalo  Es- 


486  HISTORIA   DA   WTTERATURA    PORTUGUEZA 


tevês,  Contador  dos  Contos  de  Lisboa,  encarre- 
gado do  serviço  da  Torre  em  1403,  vencendo  o 
mantimento  e  vestir,  posto  que  não  trabalhasse 
nos  Contos,  o  que  leva  a  fixar  a  separação  do 
cargo  de  Archivista  do  de  Thezoureiro  em  1403; 
seguiu-se-lhe  Gonçalo  Gonçalves,  Contador  dos 
Almoxarifados  de  Setúbal  e  Óbidos,  incumbido 
do  serviço  do  Archivo  em  14 14  e  exercendo-o  até 
14 18.  Em  Outubro  d'este  anno  estava  já  de  posse 
d'este  logar  Fernão  Lopes,  o  fundador  da  historia 
portugueza.  O  facto  de  apparecer  nomeado  em 
vida  de  Gonçalo  Gonçalves  leva  a  induzir  que 
as  attribuições  de  archivista  e  de  thezoureiro  fo- 
ram completamente  separadas  e  tornadas  com 
esta  nomeação  independentes.  A  competência  de 
Fernão  Loi>es  seria  reconhecida  durante  o  exer- 
cicio  de  secretario  do  princepe  D.  Duarte  e  in- 
fante D.  Fernando.  Desde  14 18  até  1420  ha  bas- 
tantes documentos  assignadòs  por  Fernão  Lopes 
m  que  d'iCsto  he  dado  seu  especial  encarrego  de 
guardar  as  chaves  das  dietas  escripturas  r  o  tras- 
lado d' cilas.)) 

Fernão  Lopes  exerceu  durahte  trinta  e  seis 
annos  este  cargo,  pedindo  a  sua  exoneração  ((já 
tam  velho  e  flaco,  que  p:r  si^  não  pode  bem  servir 
o  dito  officio...))  A  nomeação  do  novo  archivista 
recahiu  em  Gomes  Eanes  de  Azurara,  indigitado 
pelo  próprio  Fernão  Lopes:  ((per  seu  pradmcnto, 
e  per  fazer  a  elle  mercê,  como  he  razom  de  se 
dar  aos  boos  senndores.))  Sobreviveu  Fernão  Lo- 
pes ainda  cinco  annos  á  sua  aposentação.  Azu- 
rara preencheu  o  seu  encargo  até  1490,  em  que 


prime;ira  Época:  edads  média  487 


lhe  succede  Ruy  de  Pina,  severo  na  critica  his- 
tórica em  que  serve  intuitos  pohticos,  sob  a  pres- 
são ofíicial.  Erradas  comprehensões  fizeram  que 
as  Chancellarias  dos  primeiros  reinados  fossem 
destrui  das  e  muitos  documentos  originaes  se 
substituíssem  por  resumos  e  Índices  summarios, 
e  se  reduzissem  a  leitura  nova  (1495-1557)  tra- 
tando do  luxo  exterior  da  calligraphia-  e  illumi- 
nuras  inçando  essas  copias  de  erros  palmares. 

Os    GRANDES    ChRONISTAS    DO    SE:CUIvO    XV 

Depois  de  Portugal  ter  affirmado  consciente- 
mente a  sua  autonomia  nacional,  e  iniciado  as 
navegações  modernas,  que  haviam  de  determinar 
a  éra  pacifica  da  actividade  industrial,  revelou-se 
o  génio  histórico  nos  seus  grandes  clironistas, 
como  uma  consequência  lógica  d'esse  individua- 
lismo'heróico.  Formulou  Frederico  Schlegel  com 
notável  tino:  ((Feitos  memoráveis,  grandes  suc- 
cessos  e  largos  destinos  não  bastam  para  nos  pren- 
der a  attenção  e  determinar  o  juizo  da  posteri- 
dade. Para  que  um  povo  tenha  este  privilegio, 
é  preciso  que  elle  possa  dar  conta  das  suas  acções 
c  dos  seus  destinos.))  Isto  nos  mostra  que  a  forma 
litteraria  da  Historia  não  foi  um  producto  da  eru- 
dição e  do  influxo  official,  mas  um  producto  or- 
gânico, que  no  século  xv  competiu  dignamente 
com  as  obras  históricas  dos  grandes  chronistas 
europeus,  seguindo  a  evolução  completa  d'este  gé- 
nero, que  pela  Grécia  fora  realisado  na  sua  inte- 
gralidade.   Para  apreciar  os  Chronistas  portugue- 


488  HISTORIA    DA   I^lTTERATURA   PORTUGUEZA 


zes  do  século  xv,  basta  observar  como  elles  se  ele- 
varam na  evolução  ascendente  d'este  género  lit- 
terario.  O  chronista  Fernão  Lopes,  pelo  realismo 
das  suas  narrativas  destacando-se  pelo  bom  senso 
das  tradições  poéticas  mas  conservando-lhes  o  sen- 
tido do  ethos  nacional,  é  comparável  a  Heródoto, 
e  a  quantos  seguiram  esta  forma  ingénua  e  pitto- 
resca  da  objectividade  das  pessoas  e  dramatisação 
dos  factos  anecdoticos,  pondo-se  a  par  de  Froissart, 
e  de  Joinville.  O  chronista  Gomes  Eannes  dè  Azu- 
rara, já  se  serve  do  processo  subjectivo,  dando-nos 
os  discursos  dos  personagens  e  o  aspecto  politico 
do  meio  social,  auctorisando-se  com  antigos  exem- 
plos, aproximando-se  das  formas  narrativas  de 
Thucydides,  embora  não  fosse  geralmente  co- 
nhecido o  historiador  grego.  •  Em  Ruy  de  Pina  ha 
a  consciência  do  poder  do  julgamento  da  historia 
sobre  os  factos  occorridos,  cuja  relação  os  nar- 
radores não  accentuam,  mas  que  conduzem  o  es- 
pirito critico  á  formação  da  noção  synthetica.  E' 
o  grande  mestre  d'esta  phase  pragmática  da  histo- 
ria Polybio,  o  primeiro  modelo,  que  só  podia  ser 
seguido  quando  a  Civilisação  moderna  se  reve- 
lasse no  seu  conjuncto,  aos  Ranke,  aos  Michelet, 
Bukle,  Thierry.  A  acção  mundial  exercida  pela 
nação  portugueza,  exige  ser  tratada  na  sua  His- 
toria pelas  formas  syntheticas  de  Polybio,  para 
a  sua  verdadeira  comprehensão.  Até  hoje  ainda 
não  foi  escripta  por  este  processo,  apezar  dos  seus 
factos  estarem  já  esclarecidos  no  vasto  quadro  da 
civilisação  moderna.  Merece  um  interesse  vivís- 
simo, como  na  marcha  da  nação  portugueza  para 


PRIMEIIRA   E^OCA:    EDADE   MÉDIA  489 

OS  grandes  feitos  mundiaes,  se  vae  affirmando  a 
consciência  histórica  dos  seus  Chronistas: 

i.o  Fernão  Lopes.  —  E'  o  verdadeiro  funda- 
dor da  Historia  de  Portugal;  para  elle  o  narrar 
os  factos,  e  julgal-os  é  como  achar-se  investido 
da  missão  grave  e  conscienciosa  de  proferir  uma 
sentença  perante  a  posteridade;  assim  tendo  de 
referir  um  acto  indigno  do  rei  D.  Pedro  i,  de- 
clara :  «O  fruito  principal  da  alma  he  a  verdade, 
e  ella  hade  ser  clara  e  nom  fingida,  mormente  nos- 
Reys  e  senhores.»  —  «e  posto  que  escrito  achamos 
d'el-Rey  de  Portugal  que  a  toda  a  gente  era  man- 
teedor  da  verdade,  nossa  tençon  he  nom  o  louvar 
mais;  pois  contra  seu  juramento  foi  consentidor 
em  tam  fea  cousa  como  esta.»  Refere-se  á  troca 
dos  castelhanos  refugiados  em  Portugal  pelos  as- 
sassinos de  D.  Ignez  de  Castro.  Era  este  sentimento 
da  verdade  que  o  dirigia  na  sua  investigação  com 
uma  incansável  actividade,  esgotando  todas  as 
fontes  de  consulta;  diz-nos  elle  no  começo  da 
Chronica  de  Dom  João  i;  que:  «com  cuidado'  e 
diligencia  vira  grandes  volumes  de  livros  e  des- 
vairadas linguagens  e  terras,  e  esse  mesmo,  mui- 
tas cscripturas  de  muitos  cartórios  e  outros  loga- 
res,  nos  quaes,  depois-  de  longas  vigilias  e  gran- 
des trabalhos,  mais  certidam  aver  nam  pode  do 
conteúdo  em  esta  obra.»  O  chronista  Eannes  de 
Azurara  caracterisa  de  egual  forma  o  trabalho  do 
venerando  mestre :  «em  andar  pelos  Moesteiros  e 
Igrejas  buscando  cartórios  e  os  letreiros  d'ellas, 
para  aver  sua  informação;  e  não  só  em  este  Rey- 
nc,  mas  ainda  no  Reyno  de  Castella  mandou  el 


490  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

rei  D.  Duarte  buscar  muitas  escripturas,  que  i 
esto  pertenciam.»  i  Todo  este  trabalho  era  accu- 
mulado  para  a  formação  da  Chronica  de  Portu- 
gal^ que  existiu  na  Livraria  do  rei  D.  Duarte.  Co- 
nhecendo a  sua  excepcional  competência,  o  rei 
D.  Duarte,  por  carta  de  19  de  Março  de  1434,  deu: 
«o  carrego  a  Fernão  Lopes  seu  escripvam,  de  poer 
em  caronyca  as  estorias  dos  Reys  que  antigamente 
em  Portugal  foram ;  esso  meesmo  os  grandes  fei- 
tos e  altos  do  mui  vertuoso  e  de  grandes  vertudes 
el  Rey  seu  senhor  e  padre,  cuja  alma  deos  aja;  e 
per  quanto  em  tal  obra  elle  ha  assas  trabalho  e  ha 
muito  de  trabalhar;  porém  querendo-lhe  agallar- 
doar  e  fazer  graça  e  mercê,  mando  que  el  aja  de 
teença  em  cada  hum  anno  em  todollos  dias  da 
sua  vyda,  des  primeiro  dia  do  mez  de  janeyro  que 
ora  foy  da  era  d'esta  carta  em  diante,  pêra  seu 
mantimento  quatorze  mil  libras  em  cada  hum  an- 
no, pagadas  aos  quartees  do  anno.»  Vem  esta 
carta  inclusa  em  uma  outra  datada  <ie  3  de  junho 
de  1449  iicom  accordo  do  Yfante  Dom  Pedro,  seu 
tyo  defensor  por  el  (D.  Affonso  v)  dos  ditos  Re- 
gnos  e  senhorios...» 

A  capacidade  sui:)erior  de  Fernão  Lopes,  re- 
conhecida pelos  dois  mais  illustres  filhos  de 
D.  João  I,  acha-se  proclamada  por  Azurara,  f al- 
iando com  profundo  resi:>eito  do  seu  caracter :  «no- 
tável pessoa,  homem  de  communal  sciencia  e  gran- 
de auctoridade:  escrivão  da  puridade  do  Infante 
D.  Fernando ;  ao  qual  El  Rei  D.  Duarte,  em  sendo 


I     Azurara,  Chron.  de  D.  João  i,  P.  iii,  cap.  2. 


PRIMEIRA   ÉPOCA  :    EDADE    MÉDIA  49I 


Infante,  commeteo  o  cargo  de  apanhar  os  avisa- 
mentos  que  pertenciam  a  todos  aquelles  feitos 
(guerra  entre  Portugal  e  Castella)  e  os  ajuntar  e 
ordenar  segundo  pertencia  á  grandeza  d'elles,  e 
authoridade  dos  princepes  e  outras  notáveis  pes- 
soas que  os  fizeram.»  Tanto  pela  carta  do  rei 
D.  Duarte  como  por  esta  citação  da  Chronica  de 
Azurara,  se  vê  que  Fernão  Lopes  escreveu  unia 
Chronica  geral  do  Reino;  allude  a  esta  a  carta  de 
mercê  de  D.  Af f onso  v,  feita  em  Lisboa  em  1 1  de 
janeiro  de  1449:  «pelos  grandes  trabalhos  que  elle 
ha  tomado  e  ainda  hade  tomar  em  fazer  a  Chro- 
nica dos  feitos  dos  Reys  de  Portugal... )y  Tanto 
José  Soares  da  Silva  como  Mendo  Trigoso,  se- 
guiram a  auctoridade  de  Damião  de  Góes,  que 
transcreveu  a  mercê  de  D.  Affonso  v;  assim  nas 
Memorias  de  D.  João  i,  escreve  Soares  da  Silva : 
((Gomes  Annes,  no  ultimo  capitulo  da  Chronica 
do  Conde  D.  Pedro,  primeiro  capitão  de  Ceuta, 
que  elle  compoz,  na  qual  para  verificar  a  jornada 
dos  Infantes  a  Tanger,  cita  a  Fernão  Lopes,  na 
Chronica  geral  do  Reino,  assim  como  o  allega  em 
partes;  dando  d'ella  testemunho  no  principio  do 
segundo  capitulo  da  sua  historia  de  Ceuta...»  Fer- 
não Lopes  completou  este  vasto  trabalho  com 
a  Chronica  de  Dom  João  i,  encommendada  pelo 
rei  D.  Duarte.  Por  fatalidade  injustificada  esse 
monumento  foi  roubado  e  fragmentado  em  Chro- 
nicas  especiaes,  conservando-se  apenas,  com  o  no- 
me de  Fernão  Lopes  as  Chronicas  de  D.  Pedro  i 
e  de  Dom  Fernando,  e  a  de  Dom  João  i,  incomple- 
ta; todos  os  outros  livros,  passando  por  copias 
ou  alterações  continuadas,  appareceram  em  nome 
de  outros  auctores. 


492  HISTORIA    DA   LITT^RATURA   PORTUGU^ZA 


Damião  de  Góes,  na  Chronica  de  Dom  Manoel, 
restituiu  pela  primeira  vez  por  um  processo  cri- 
tico a  Fernão  Lopes,  desde  o  Conde  D.  Henrique 
até  D.  Affonso  iv,  as  Chronicas  ^idos  Reis  que 
antigamente  em  Portugal  foram.))  Confirmando  a 
auctoridade  de  Damião  de  Góes,  escreve  acerca 
d'estes  plágios:  «E  ainda  que  algumas  d'estas 
Chronicas  se  acham  accrescentadas  ou  recopiladas, 
como  são  a  de  -D.  Affonso  Henriques  por  Duarte 
Galvão  (a  quem  o  grande  João  de  Barros  na 
terceira  Década,  liv.  i,  cap.  4,  chama  seu  apura- 
dor,) d,  de  D.  Duarte  por  Gomes  Annes  ou  Ruy 
de  Pina,  as  dos  nove  reis  por  Duarte  Nunes  de 
Leão;  sempre  as  substancias  e  o  principal  d'ellas 
é  de  Fernão  Lopes.))  K^s»  summulas  feitas  por 
Acenheiro  roçam  pela  imbecilidade.  A  tendência 
dos  chronistas  das  primeiras  duas  dynastias  em 
plagiarem  Fernão  Lopes,  provem  de  ter  esse  espi- 
rito iniciador  esgotado  as  fontes  docummentaes. 

Apesar  de  terem  conservado  o  seu  nome,  as 
trez  Chronicas  hoje  impressas  sobre  apographos, 
essas  mesmas  se  perderam,  restando  traslados  mo- 
dernisados,  summariados  ou  ampliados.  O  con- 
fronto d'esses  differentes  textos  revela  por  ve- 
zes os  subsídios  de  que  o  chronista  se  servia,  ou 
também  como  os  plagiários  se  iam  appropriando 
das  suas  narrativas  ou  mesmo  fazendo-lhes  con- 
tinuações até  ao  fim  do  século  xvi. 

Examinando  os  manuscriptos  das  Chronicas 
dos  Reys  de  Portugal,  Dom  Pedro  o  i.^  doeste 
nome  e  dos  Reys  o  viii,  e  dei  Rey  Fernando,  o 
i.o  de  nome  e  dos  reis  o  ix,  que  se  guardam  na 
bibliotheca  nacional  de  Madrid,  o  illustre  lusita- 


pRiMiSiRA  Época:  edade  média  493 

nophilo  Sanchez  Moguel,  fez  varias  observações 
sobre  a  importância  d'estes  textos,  não  só  da  in- 
fluencia que  no  critério  histórico  de  Fernão  Lo- 
pes exerceu  o  grande  chronista  Pêro  Lopez  de 
Ayala,  como  a  revelação  de  factos  da  historia  de 
Hespanlia  que  são  omissos  em  Ayala  e  que  se  en- 
contram referidos  por  Fernão  Lopes.  A  edição 
da  Chronica  de  D.  Pedro  i  feita  pelo  P.<^  Bayam, 
considerada  pelas  deturpações,  pareceu  ao  saloio 
académico  que  a  reimprimiu  em  18 16  nos  Inédi- 
tos da  Historia  portuguesa,  absolutamente  neces- 
sário consideral-a  ainda  como  realmente  inédita. 
Apesar  de  se  ter  seguido  o  texto  manuscripto  da 
Torre  do  Tombo  com  o  maior  escrúpulo,  San- 
chez Moguel,  conhecendo  outros  códices  portu- 
guezes  e  o  madrileno,  chegou  á  conclusão :  «Falta 
pois  uma  verdadeira  edição  de  ambas  as  Chroni- 
cas,  tal  como  se  entendem  hoje  estes  trabalhos, 
tendo  em  conta  todos  os  códices  e  todas  as  va- 
riantes, e  o  que  mais  importa,  estudando  o  con- 
teúdo, comparando  estas  Chronicas  com  as  penin- 
sulares e  estrangeiras  d'aquelles  tempos  ou  que 
aos  mesmos  feitos  se  referem,  enriquecendo-as 
com  os  documentos,  illustrações  e  notas  corres- 
pondentes; eto)  Sanchez  Moguel,  encetando  este 
estudo,  chegou  ás  conclusões :  Que  a  Chronica  de 
Dom  Pedro  i  se  serviu  de  fontes  hespanholas  an- 
teriores ;  e  que  se  narram  n'ella  feitos  importantes 
puramente  hespanhoes,  que  nas  Chronicas  de  Hes- 
panha  foram  omittidos,  ou  incompletamente  se 
relatam,   i    Na  Chronica  em  que  Fernão  Lopes 


I    Reparaciones  históricas,  i,  p.  43.  1894. 


494  HISTORIA   DA   LlTTERATURA    PORTUGUEZA 

trata  da  grande  guerra  e  muito  criia  antre  el  Rei 
D.  Pedro  de  Aragom,  «seguiu  passo  a  passo,  com- 
pendiando-a  fielmente,  até  ao  ponto  de  reproduzir 
as  mesmas  phrases  e  locuções,  quasi  sempre  tra- 
duzidas á  letra,  a  Crónica  dei  Rey  D.  Pedro  de 
Castella,  do  Chanceller  López  de  Ayala.»  Funda- 
menta-o  com  o  schema  dos  capitulos  communs  ás 
duas  Chronicas,  e  determinando  que  o  texto  se- 
guido pelo  escriptor  portuguez  foi  o  da  Chronica 
abreznada.  ou  vulgar  de  Ayala.  Mas  na  Chronica  de 
Fernão  Lopes  acham-se  tratados  largamente  factos 
apenas  alludidos  por  Ayala ;  escreve  Moguel :  «Das 
relações  que  mediaram  entre  os  dois  Pedros,  rei 
e  sobrinho,  pouco,  e  apenas  o  essencial,  é  o  que 
nos  refere  Ayala;  muito,  em  comparação,  o  que  o 
chronista  portuguez  nos  conta.  —  Refere  Ayala 
o  iniquo  facto  pelo  qual  ambos  os  monarchas  se 
obrigaram,  o  castelhano  a  entregar  a  seu  tio  os 
assassinos  de  D.  Ignez  de  Castro,  refugiados  em 
Castella,  e  o  portuguez  em  troca,  a  seu  sobrinho, 
os  cavalleiros  castelhanos  que  tinham  ido  para 
Portugal  fugindo  das  suas  crueldades;  o  chro- 
nista portuguez,  conforme  no  essencial,  accres- 
centa  á  narrativa  castelhana  factos  e  noticias  im- 
portantes, como,  por  exemplo,  a  fuga  de  Diogo 
Lopes  Pacheco,  com  todos  os  seus  poéticos  por- 
menores. 

«Falla-nos  Ayala  do  projectado  casamento  de 
D.  Beatriz,  filha  do  castelhano  D.  Pedro  cotn 
D.  Fernando,  filho  do  de  Portugal ;  e  a  Chronica 
d 'este  rei,  estende-se  sobre  a  matéria,  dando-nos 
a  conhecer  negociações  e  contractos  celebrados 
não  só  sobre  este  matrimonio,  como  no  tocante 


PRIMEIRA  época:  edade  média  495 


a  outros,  de  filhas  do  rei  de  Castellacom  filhos  do 
nionarcha  portuguez,  dos  quaes  nada  disse  o  Chan- 
celler  na  sua  Chronica. 

((N'esta  pouco  se  lê  relativo  á  ida  de  D.  Pe- 
dro de  Castella  a  Portugal,  fugindo  do  seu  vi- 
ctorioso  irmão,  e  antes  de  sahir  para  Bayona  e 
pôr  sua  causa  em  mãos  dos  inglezes.  Pelo  con- 
trario, a  Chronica  portugueza  nos  relata  com  mais 
riqueza  de  noticias  a  sahida  de  D.  Pedro  de  Se- 
vilha, os  th?30uros  que  possuia  e'  tentou  tirar  de 
Castella,  as  negociações  e  desaccordos  que  se 
deram  logo  entre  os  reis  castelhano  e  portuguez, 
e  a  carta  que  este  escreveu  ao  Princepe  de  Gales 
((/>or  se  desculpar  do  que  el  Rei  Don  Pedro  dizia  j) 
—  «Para  concluir :  na  Chronica  portugueza  acha- 
mos referidos  factos  importantes  da  historia  de 
D.  Pedro  de  Castella  que  o  seu  chronista  passa  em 
silencio,  que  tem  sido  imperfeitamente  conheci- 
dos, e  que  só  podem  ser  claramente  apreciados 
pelo  que  na  Chronica  portugueza  se  contém.» 
N'este  rápido  estudo  da  Chronica  de  D.  Pedro  i 
por  Fernão  Lopes  conclue  Sanchez  Moguel  a  su- 
perior influencia  que  o  chanceller  Pêro  Lopez  de 
Ayala  exerceu  sobre  o  fundador  da  Historia  por- 
tugueza :  «entre  o  que  o  chronista  portuguez  e 
o  castelhano  relatam  não  ha  contradição  que  se 
note,  o  que  abona  altamente  ambos  os  chronis- 
tas,  e  é  prova  mais  eloquentíssima  da  gravidade 
histórica  do  Thucidydes  hespanhol,  mestre  e  guia 
do  chronista  portuguez  na  narração  e  no  senso  cri- 
tico, como  o  foi  mais  tarde  do  maior  dos  histo- 
riadores aragonezes,  o  grão  Zurita,  também  seu 
discipulo,))    (Op.  cit.,  p.  53.) 


496  HISTORIA    DA    LITTHRATURA    PORTUGUEZA 

Da  Chronica  de  Dom  João  i  impressa  pela 
Academia  real  das  Sciencias  nos  Inéditos  da  His- 
toria portugueza,  póde-se  dizer  que  o  texto  ma- 
niiscripto  da  Torre  do  Tombo  é  um  apographo 
mais  moderno  do  que  esse  de  Pêro  Vaz  Soares, 
que  foi  estrebeiro  mór  da  Excellente  Senhora,  ^ 
que  existe  na  Casa  de  Tarouca,  que  nos  restitue 
quanto  possível  a  sua  forma  authentica.  D'este 
texto,  faz  uma  interessante  e  nitida  descripção 
o  l)r.  José  de  Arriaga,  que  elaborou  o  Catalogo 
d'aquella  rica  bibliotheca.  Transcrevemos  as  suas 
])alavras  de  uma  communicação  á  Academia  real 
das  Sciencias : 

«Escripto  em  estylo  mui  antigo,  quasi  con- 
temporâneo dos  factos,  é  de  incontestável  valor. 
Fazendo  uma  relação  mui  desenvolvida  dos  fidal- 
gos que  na  batalha  de  Aljubarrota  acompanharam 
a  D.  João  I,  e  referindo-se  aos  que  sahiram  do 
reino,  accrescenta  o  chronista :  =  dos  quaes  allgús 
já  morrerõ  assy  como  ho  allmirante  e  o  conde  de 
Viana,  Aires  Gomes  da  Sylva,  etc.  =  Donde  se 
conclue  que  ainda  no  tempo  d'elle  existiam  alguns 
dos  que  entraram  na  guerra.  Ha  mais  provas 
d'isto. 

((A  obra  parece  composta  de  trez  partes.  A  pri- 
meira trata  da  conspiração  contra  o  Conde  de  An- 
dei ro,  de  que  o  auctor  faz  princii)al  protagonista  a 
Rui  Pereira.    A  segunda  abrange  o  periodo  desdo 


I  Lê-se  no  testamento  da  Excellente  Senhora.  —  Iten, 
seyscentas  dobras  a  Pêro  Vaz  Soares,  que  foi  meu  estri- 
beiro  mór  em  galardão  de  seus  serviços.^*  (Archivo  hist  por- 
tuguês, t.  I,  p.  IO.) 


PRIMKIRA  época:  EdadE  média  497 

a  acclamação  de  D.  João  até  á  paz  com  Hespanha. 
E'  a  que  existe.  A  terceira  abrangeria,  talvez,  o 
periodo  importante  desde  a  paz  de  Hespanha  até 
á  morte  do  rei. 

«E'  mui  importante  o  que  o  auctor  narra  da 
batalha  de  Aljubarrota.  Combatendo  os  exageros 
dos  auctores  portuguezes  e  hespanhoes,  pretende 
fazer  um  calculo  imparcial  das  forças  que  entra- 
ram em  lucta.  Diz  que  é  esse  o  dever  do  chro- 
nista.» 

O  Dr.  José  de  Arriaga  foi  confrontar  este 
texto  trasladado  por  Pêro  Vaz  Soares  com  os  có- 
dices da  Torre  do  Tombo,  e  com  a  edição  da  Aca- 
demia real  das  Sciencias:  «Resultou  doeste  es- 
tudo a  convicção  de  que  todas  as  Chronicas  de 
D.  João  I  até  agora  encontradas,  são  copias  mais 
ou  menos  infiéis  da  de  Fernão  Lopes,  cujos  au- 
tographos  desappareceram,  talvez  por  cumplicida- 
de de  alguns  dos  que  desejaram  passar  por  au- 
ctores. Desgraçadamente  os  originaes  á  face  de 
que  se  fez  a  impressão,  são  das  copias  mais  re- 
centes e  infiéis.  —  A'  sua  escolha  não  presidiu  bom 
critério.  Basta  apontar  o  facto  estranho  de  o  por- 
tuguez  e  ortographia  da  primeira  parte  serem  de 
uma  época  posterior  á  da  segunda.  N'aquella  já 
se  usa  o  ão  da  ultima  reforma  da  ortographia  por- 
tugueza;  n'esta  ultima  emprega-se  o  antigo  on. 
N'uma  e  n'outro  são  frequentes  os  desleixos  e 
até  as  alterações  dos  copiadores. 

(íAs  copias  mais  antigas,  por  nós  conhecidas, 
são  a  de  Couto  de  Vasconcellos  e  a  d*este  archivo 
(de  Pêro  Vaz  Soares.)  Uma  e  outra  são  escri- 
ptas  em  caracteres  da  época,  como  os  manuscriptos 

32 


HISTORIA    DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


das  Chronicas  de  D.  Pedro  e  de  £>.  Fernando.  — 
N'elle  usam-se  geral  e  invariavelmente  as  vogaes 
e  consoantes  duplas;  o  artigo  o  vem  sempre  com 
h,  bem  como  as  palavras  começadas  por  vogaes. 
Ainda  é  costume  antepôr-se  a  letra  a  a  muitos 
vocábulos. 

((No  manuscripto  de  Couto  de  Vasconcellos 
tudo  isto  desappareceu.  Só  em  casos  excepcio- 
naes  se  empregam  as  vogaes  duplas,  e  se  antepõe 
o  h  a,  algumas  palavras.  —  Se  a  copia  de  Couto 
de  Vasconcellos  mostra  ser  mais  moderna  do  que 
a  de  Pêro  Vaz  Soares,  o  que  diremos  da  que  ser- 
viu de  autographo  para  a  edição :  —  Couto  de 
Vasconcellos  teve  empenho  em  fazer  divergir  a 
segunda  parte  da  primeira ;  o  editor,  ao  contra- 
rio, quiz  harmonisal-as.  Conservou  as  mutilações 
d'aquelle  copiador  que  lhe  convinham  e  metteu 
excerptos  de  sua  casa...» 

((Em  nossa  humilde  opinião  é  a  copia  (de  Pêro 
Vaz  Soares)  mais  antiga  e  mais  fiel  até  hoje  co- 
nhecida. —  Este  manuscripto  pode  abrir  caminho 
a  novas  investigações  e  derramar  luz  sobre  cousas 
até  agora  não  suspeitas.»  i 

As  Chronicas  de  Fernão  Lopes  são  intensa- 
mente dramáticas;  os  ditos  e  apodos  populares, 
(jue  definem  um  typo  ou  uma  situação,  cruzam-se 
]>or  entre  as  reflexões  sensatas  do  narrador,  que 
os  vae  acareando  com  os  documentos;  os  costu- 
mes públicos  foiTnam  o  fundo  d'este  quadro  ani- 


I    Boletim  da  Segunda  Classe  da  Acad.  real  das  Scien- 
cias,  Vol.  I,  p.  II  a  i8. 


PRIMEIRA  época:  EdadE  média  499 


niado,  em  que  a  linguagem  é  —  ingénua  e  quasi 
vulgar  —  em  uma  construcçao  francamente  clara, 
n'essa  justa  proporção  que  só  o  bom  senso  na- 
tural sabe  encontrar.  O  espirito  de  um  Froissart 
educado  por  um  Montaigne,  é  que  nos  daria  o 
equivalente  da  superioridade  de  Fernão  Lopes  não 
só  em  Portugal,  mas  a  par  dos  grandes  Chro- 
nistas  do  século  xv.  Quando  em  uma  boa  edi- 
ção critica  das  suas  Chronicas  se  restituirá  este 
vulto  á  civilisação  europêa? 

2. o  Gomes  Eannes  de  Azurara.  —  A  prasi- 
iiicnto  de  Fernão  Lopes,  que  já  pela  muita  edade 
não  podia  continuar  as  investigações  históricas, 
succedeu-lhe  Azurara,  compondo  a  Tomada  de 
Ceuta,  que  forma  a  terceira  parte  da  Chronica 
de  D.  João  i,  escripta  trinta  e  quatro  annos  de- 
pois da  interrupção  de  Fernão  Lopes.  D.  Affon- 
so  V  encarregara  d'este  trabalho  a  Azurara,  seu 
bibliothecario,  posição  que  lhe  facilitou  essa  affe- 
ctação  de  citações  eruditas,  que  foi  um  prurido 
do  humanismo  do  século  xv;  mas  a  erudição  não 
destruiu  de  todo  a  ingenuidade  do  seu  estylo;  como 
Fernão  Lopes,  elle  também  procurava  a  impres- 
são local  dos  acontecimentos,  visitando  o  campo 
da  acção.  Para  descrever  as  guerras  no  norte  de 
de  Africa,  Azurara  residiu  bastante  tempo  em  Al- 
cácer Ceguer  podendo  assim  descrever  com  forte 
relevo  a  tomada  de  Alcácer,  de  Arzilla  e  de  Tan- 
ger; transcreve  um  ditado  popular,  que  disse  Go- 
mes Freire,  um  dos  que  lançaram  a  escada  ao 
muro  da  fortaleza : 


500  HISTORIA   DA   LITTERATURA   PORTUGUEZA 


—  Oh  noite  má, 

P'ra  quem  te  apparelhas? 

Que  se  completa  pelo  que  ouvimos  na  tradi- 
ção oral  da  Foz  do  Douro: 

^^P'rós  pobres  soldados 
E  pastores   de  ovelhas. 

—  E  os  homens  do  mar 
Aonde    os    deixas? 
^^Esses,  ficam  metidos 
Até  ás  orelhas. 

Escreveu  as  Chronicas  de  Dom  Pedro  de  Me- 
nezes e  de  Dom  Duarte  seu  filho,  e  uma  Chronica 
de  Dotu  Affonso  V  até  á  morte  do  Infante  D.  Pe- 
dro, da  qual  se  apropriou  depois  Ruy  de  Pina 
ampliando-a  e  continuando-a.  Por  que  faria  Ruy 
de  Pina  este  plagio?  Podemos  inferir  que  o  fez 
por  ordem  superior;  Azurara  escrevera  sob  o  pa- 
tronato de  D.  Affonso  v,  tratando  de  o  justificar  da 
iniquidade  e  ingratidão  com  que  procedeu  contra 
o  Regente,  o  Infante  D.  Pedro  seu  tio.  Ruy  de 
Pina,  escrevendo  sob  a  auctoridade  de  D.  João  ii, 
que  reconhecera  esse  attentado  suggestionado  pela 
intriga  do  Bragança,  teve  de  modificar  essa  chro- 
nica, ampliando-a  e  continuando-a.  Damião  de 
Góes  tratou  lucidamente  este  facto  de  ser  o  tra- 
balho de  Azurara  aproveitado  pelo  chronista  Ruy 
de  Pina.  (Chr.  D.  Manoel,  P.  iv,  cap.  38.)  Para 
a  Chronica  da  Conquista  de  Guiné  serviu-se  Azu- 
rara de  uma  Relação  escripta  por  Affonso  Cer- 
veira: teve  n'esta  narrativa  o  intuito  de  constituir 
uma  vida  do  Infante  D.  Henrique  dando-lhe  a 
exclusiva  iniciativa  dos  Descobrimentos  maríti- 
mos.  D'este  propósito  de  bajulação,  proveiu  a  len- 


PRIMEIRA  época:  edade  media  501 

da  dos  Infantistas,  calando  os  esforços  das  Par- 
cerias do  Algarve  que  o  Infante  com  os  rendi- 
mentos do  Mestrado  de  Christo  auxiliava  para  a 
participação  dos  lucros,  e  phantasiando  uma  Es- 
chola  cosmographica  de  Sagres.  Na  Historia  de 
Ceuta,  confessa  Azurara  ter  accrescentado  á  Chro- 
nica  de  D.  João  i  de  Fernão  Lopes  vários  suc- 
cessos  da  guerra  de  Portugal  e  Castella.  Escre- 
vendo na  opulenta  bibliotheca  do  rei  D.  Af  fonso  v, 
matiza  as  suas  narrativas  com  sentenças  tiradas 
de  Aristóteles,  de  Valério  Máximo,  Tito  Livio. 
Ovidio,  Lucano,  Séneca,  e  dos  Santos  padres,  para 
fundamentar  o  seu  juizo.  Apesar  de  tanta  capa- 
cidade, o  prestigio  da  erudição  fez  que  fosse  cha- 
mado o  frade  italiano  Frei  Justo  para  escrever  as 
chronicas  em  latim. 

3.0  Ruy  de  Pina.  —  Nos  ofíicios  de  guarda- 
mór  da  Torre  do  Tombo  e  Chronista  mór  do  icino 
succedeu  a  Azurara  Ruy  de  Pina,  que  floresceu 
desde  o  reinado  de  D.  Af  fonso  v  até  ao  começo 
do  de  D.  João  iii.  Ruy  de  Pina  era  escrivão  da 
camará  de  D.  João  11,  e  bastante  considerado  pelo 
implacável  monarcha;  em  carta  datada  de  Évora, 
de  16  de  Fevereiro  de  1490,  nomêa-lhe  um  ama- 
nuense para  o  ajudar  ano  carrego  e  negocio  de 
escrever  cm  nossos  feitos  famosos  e  de  nossos 
Reynosj)  Com  egual  data  lhe  manda  D.  João  n 
passar  uma  carta  de  tença  de  nove  mil  quinhentos 
e  sessenta  reis.  Ruy  de  Pina  achava-se  em  uma 
situação  delicada;  tinha  de  historiar  toda  a  cons- 
piração dos  Braganças  desde  a  morte  do  Infante 
D.  Pedro  traiçoeiramente  em  Alfarrobeira,  e  en- 


502  HISTORIA    DA    I^ITTERATURA    PORTUGUEZA 

venenamento  da  joven  rainha  D.  Isabel,  sua  íilha, 
até  á  traição  castigada  com  a  degolação  do  duque 
em  1483.  Ruy  de  Pina  achou-se  de  posse  das 
Chronicas  dos  Reis,  que  formavam  o  corpo  da 
Chronica  geral  do  Reino,  como  o  relata  João  Ro- 
drigues de  Sá  de  Menezes  a  Damião  de  Góes  em 
Novembro  de  1558,  tendo  então  mais  de  oitenta 
annos.  Transcrevemos  um  trecho  d'essa  carta  do 
velho  poeta  do  Cancioneiro  geral  e  Alcaide  mór 
do  Porto,  pela  qual  se  pôde  fazer  uma  ideia  do 
estado  dos  trabalhos  históricos  n'este  periodo  da 
actividade  de  Ruy  de  Pina :  Damião  de  Góes  acha- 
va-se  então  encarregado  de  escrever  a  Chronica 
de  D.  Manoel: 

«Folguo  muito  de  lhe  darem  o  carguo  da  Chro- 
nica dei  rei  dom  Bmanoel,  quomo  me  escreve,  por 
que  sei  que  a  fará  muito  bem  por  a  devoçam,  e 
amor  que  teve  a  seu  serviço  e  ás  suas  cousas,  e 
parece  esta  conta  que  dá  de  quomo  andou  de  mão 
e  mão  esta  Chronica  o  que  se  escreve  das  Rha- 
psodias  de  Homero,  e  assi  foram  as  Chronicas 
dos  Reis  passados  de  'Portugal,  que  se  perderam 
em  poder  de  Frei  Justo,  Bisix>  de  Septa,  italiano, 
que  El  rei  D.  Affonso  mandou  buscar  a  Itália 
pêra  lh'as  escrever  em  latim,  e  elle  morreu  da  peste 
em  Almada,  e  aí  se  perderam.  Ruy  de  Pina,  em 
tempo  de  D.  João  1 1 ,  houve  a  mão,  por  mandado 
de  el  rei,  umas  Chronicas  dos  Reis  antiguos,  que 
mingoavam,  de  hum  homem  d'esta  cidade  mui 
principal,  que  se  chamava  Fernam  Novaes,  e  um 
seu  filho  que  se  chamava  Fernam  Novaes  couk^ 
elle,  me  mostrou  a  carta  de  el-rei,  com  o  conhe- 
cimento   de    Ruy    de    Pina;    e    regnando    el-rei 


PRIMEIRA  kpoca:  edadE  media  503 


D.  Emanoel,  elle  ou  por  ter  estas  Chronicas  ou 
também  por  estar  em  seu  poder  o  Tombo,  em  que 
estavam  as  cousas  d'aquelles  tempos,  e  por  Chro- 
nicas de  Castella,  se  offereceu  a  el  Rei  a  lhe  fazer 
as  Chronicas  que  faleciam,  e  a  isso  veo  da  Guarda 
a  Lisboa,  e  as  fez  com  grande  gosto  de  el  rei,  e 
com  lhe  fazer  muita  mercê  por  isso.  Depois  de 
acabadas,  muitas  pessoas  vi  descontentar-se  d'el- 
las,  á  minha  vontade  sem  rasão,  posto  que  o  es- 
tylo  de  Ruy  de  Pina,  pelos  muitos  adjectivos  e 
epithetos  que  se  usavam  n'aquelle  tempo,  he  muito 
afeitado.»  i 

Em  carta  dada  em  Évora  em  24  de  Junho 
de  1497,  D.  Manoel  concedeu  a  Ruy  de  Pina 
uma  tença  de  doze  mil  reis  annuaes,  e  nomeando-o 
«Coronista  Moor  das  Coronicas  e  das  cousas  pas- 
sadas e  presentes  e  por  vir  de  nossos  Regnos  e 
Senhorios ;»  e  também  o  nomeou  seu  bibliothecario 
com  «o  carrego  e  a  chave  da  nosa  Livraria,  que 
está  nos  nossos  paços  da  cidade  de  Lisboa,  o  qual 
officio  e  carrego  queremos  que  o  dito  Ruy  de 
Pina  aja  assy  e  pela  guisa  que  ho  tinha  o  doutor 
Vasquo  Fernandes  do  nosso  conselho  e  nosso 
chanceller  en  a  casa  do  Civel  que  no  lo  deixou 
pêra  o  dannos  ao  dito  Ruy  de  Pina  por  satisfação 
que  lhe  delle  demos  de  que  foy  contente,  e  como 
o  tiveram  outros  coronystas  d'ante  elle.» 

Sobre  este  trabalho  da  historia  acham-se  in- 
teressantes noticias  em  uma  petição  de  seu  filho 
Fernão  de  Pina  a  D.  João  iii,  para  succeder  nos 


I     Na  Chronica  de  D.  Manoel,  P.  iv,  cap.  38,  fl.  50. 


504  HISTORIA    DA    LlTTERATURA    PORT  JGUEZA 


officios  de  guarda-mór  da  Torre  do  Tombo  e  de 
Chronista  mór  do  reino,  desempenhados  por  seu 
pae.  Esse  documento  é  dos  fins  de  1522,  ou  do 
começo  de  1523,  porque  Fernão  de  Pina  foi  no- 
meado Chronista  Mór  do  Reino  por  carta  de  23 
de  Abril  de  1523.  Na  sua  petição  dizia  que  desde 
a  mocidade  se  creara  para  servir  estes  cargos,  dan- 
do-se  ao  latim  e  ao  grego ;  e  pediu  também  a  tença 
de  vinte  mil  reaes,  resto  dos  trinta  mil  reaes  que 
D.  Manoel  dera  para  seu  pae  fazer  a  Chronica 
de  Bi  rei  Dom  Affonso  V,  a  de  Dom  Manoel,  alle- 
gando  mais,  que  elle  e  seu  cunhado  Fernam  Bran- 
dão acabaram  a  Chronica  do  rei  D.  Manoel,  que 
está  por  fazer  (talvez  redigir?) ;  accrescenta  ainda 
na  petição,  que  o  rei  D.  Manoel  dera  sessenta 
mil  reaes  de  ouro  para  seu  pae  fazer  a  Chronica 
de  Blrei  Dom  Sancho  i  até  Blrei  Dom  Diniz:  e 
pela  de  Bi  Rei  Dom  Duarte  lhe  deu  mil  cruzados 
<le  ouro,  e  pela  de  Dom  Affonso  V  e  de  seu  filho 
(Princepe  D.  João)  os  trinta  mil  acima  ditos  da 
tença,  i  Ruy  de  Pina  frequentava  os  seroes  do 
paço ;  em  uns  apodos  e  chistes  feitos  em  1498  a 
Manoel  de  Noronha,  filho  do  Capitão  donatário  di 
Ilha  da  Madeira,  por  que  mandara  fazer  umas 
ceroulas  de  chamalote,  lêem-se  estes  versos  de  An- 
rique  Corrêa : 


I  Archivo  histórico  português,  vol.  vi,  p.  312.  Braan- 
caiiip  Freire  fixa  o  falecimento  de  Ruy  de  Pina  pouco 
antes  de  i8  de  Novembro  de  1522,  por  que  em  documento 
desta  data  se  diz:  Ruy  de  Pina  que  Deus  perdoe. 


PRIMEIRA  época:  edade  média  505 


Esta  cousa  he  muito  dina 

para  no   Tombo   jazer; 

aa  mister  qu'a  Ruy  de  Pina 

se  faça  logo  saber, 

por   ficar   d'el]a  memoria 

he  razam, 

que   s'escreva   esta   envençam. 

(Canc.  ger.,  iii,  137). 

Em  carta  de  24  de  junho  de  1497  ^ôra  no- 
meado Ruy  de  Pina  Chronista-mór  do  reino. 
Pelas  suas  relações  na  corte,  casou  sua  filha  Isabel 
de  Pina  com  o  poeta  palaciano  Fernam  Brandão, 
filho  do  Contador  do  Porto  João  Brandão;  seu 
filho  Fernam  de  Pina  era  também  poeta  dos  se- 
rões manoelinos,  restando  d'elle  um  apodo  a  Si- 
mão de  Sousa  d'Ocem,  por  que  veiu  ao  terreiro 
de  Almeirim  em  uma  mula  com  largas  esporas  da 
gineta  esmaltadas  e  com  chapins : 

Eu  como  homem  teu  amigo, 
quiz  saber  tua  praneta, 
e  achey  que  na  gineta 
te  vya  hum  gram  perigo. 
E  como  te  vi  aqui 
metido  n'essas  esporas, 
logo  disse,     essas  horas, 
ex  aqui 
o  perigo  que  lhe  vi. 

(Canc.  geral,  iii,  252.) 

Este  apodo  fixa-se  em  15 10,  por  uma  copla 
de  Garcia  de  Resende: 

Na  éra  de  Jesu  Christo, 
de  mil  quinhentos  e  dez, 
no  terreiro  de  Almeirim 
foi  um  homem  em  mula  visto 
com  larga  espora  de  l^ez, 
calçada  sobre  chapim. 


5ou  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 


N'este  tempo  Garcia  de  Resende,  que  fora 
moço  da  escrivaninha  de  D.  João  ii,  era  estimado 
na  corte  nianoelina,  e  na  intimidade  com  o  chro- 
nista  e  bibliothecario  de  D.  Manoel  achou  occa- 
sião  para  trasladar  a  Chronica  do  Princcpe 
D.  João,  que  publicou  em  seu  nome  em  1554, 
fiado  em  que  ficaria  inédita  a  Chronica  de  Ruy 
de  Pina.  Seria  esse  plagio  imposição  official,  para 
eliminar  qualquer  affirmativa  com  que  Ruy  de 
Pina  justificava  o  rei  D.  João  11.  No  século 
XVI  foi  eliminada  de  vez  a  liberdade  da  historia. 
Em  Ruy  de  Pina  teniiina  o  cyclo  dos  grandes 
Chronistas  do  século  xv,  individualidades  que  em 
qualquer  das  litteraturas  da  l:!yUropa  teriam  fun- 
dado a  sciencia  da  historia,  e  á  qual  deram  todo 
o  relevo  que  já  tinha  n'essa  época. 


Os  extraordinários  successos  do  século  xv, 
como  a  invenção  da  Imprensa,  favorecendo  repen- 
tinamente a  corrente  do  Humanismo:  da  Pólvo- 
ra, immediatamente  influindo  no  império  da  for- 
ça material  nos  confiictos  politicos  do  novo  equi- 
líbrio europeu ;  e  a  applicaçao  da  Bússola,  actuando 
definitivamente  nos  assombrosos  Descobrimentos 
geographicos,  accumularam  novas  condições  que 
determinaram  uma  Éra  nova  da  Humanidade, 
desde  logo  considerada  como  Renascimento.  Esse 
culto  da  civilisação  greco-romana,  que  se  impoz 
pelo  seu  deslumbrante  prestigio;  essa  actividade 
que  se  expandia  na  occupação  da  terra,  contras- 
tavam com  a  apathia  da  Edade  média,  o  cosmo- 
politismo com  o  isolamento  do  ascetismo  christão. 


PRIMEIRA    ÉPOCA  :    EDADE    MEDIA  507 

N'esse  enthuziasmo  da  nova  Era,  a  Edade  média 
foi  menosprezada,  esquecida,  quebrando-se  a  con- 
tinuidade até  ao  século  xix,  que  pela  critica  scien- 
tiíica  soube  reconhecer  —  questi  tempi  delia  virtu 
sconoschiuta.  O  periodo  medieval  ou  orgânico  das 
Litteraturas  modernas  ficou  obliterado  e  esquecido. 
A  Litferatura  da  Bdade  média  tão  fecunda  e  na- 
cionalmente original,  foi  uma  das  mais  truncadas 
ficando  totalmente  ignorada  até  ao  momento  em 
que  a  critica  philosophica  vivificou  a  erudição  mo- 
derna. Grandes  thezouros  litterarios  estão  hoje 
perdidos  irreparavelmente ;  obras  preciosas  e  ines- 
timáveis foram  descobertas  nas  collecções  manus- 
criptas  pelas  bibliothecas  europêas ;  e  um  espolio 
valioso  está  actualmente  publicado.  ^    Urgia  com- 


I  Perdas  de  monumentos  da  Litteratura  portugueza 
do  século  XII  a  xv;  e  enumerações  d'aquelles  que  foram 
encontrados  ou  estão  publicados : 

,  Canções  de  D.  Sancho  i  e  D.  Affonso  iv. 

Livro  das  Trovas  de  BI  Rei  Dom  Dini::. 

Cancioneiro  de  Nossa  Senhora. 

Cancioneiro   da  Ajuda. 

Livro  das  Trovas  do  Conde  de  Barcellos. 

Livro  velho  das  Linhagens,  e  Nobiliário  do  Conde 
De  Pedro. 

Cancioneiro  de  D.  Maria  de  Cisneros. 

Amadis  de  Gaula. 

Historia  de  Troya  (traduzida  em  gallego). 

Tristão. 

Historia  geral  de  Hespanha. 

As   Partidas,   em  portuguez. 

Chronica  do  Mouro  Rasis  (Ahmed-Ar-Rasi)  traduzida 
em  portuguez  por  Gil  Pirez,  e  d'esta  lingua  para  castelhano. 

Traducção  das  Obras  do  Arcipreste  de  Hita. 

Demanda  do  Santo  Graal. 

Baladro  de  Merlin. 

Livro  de  Josep  ah  Arimathia. 


508  HISTORIA    DA    LITTERATURA    PORTUGUEZA 

pendiar  todo  esse  material,  vestígio  de  um  vasto 
ii  ventar io  desbaratado,  construindo  o  quadro  da 
primeira  Época  da  Littèratura  portugueza,  em  que 
se  fundamenta  com  eloquentes  documentos  o  indi- 
vidualismo e  fecundidade  do  nosso  génio  nacional. 
E'  o  que  se  intenta  n'este  livro. 


Poesias  do  Infante  D.  Pedro,  e  varias  traducções  dos 
Moralistas. 

Leal  Conselheiro  de  D.  Duarte. 

Livro  das  Trovas  de  El-rei  D.  Duarte. 

Sátira  de  felice  e  infelice  vida  do  Condcstavel  D.  Pedro. 

Tragedia  da  insigne  rainha  D.  Isabel  pelo  mesmo. 

O  Amante  de  Gower,  traducção  de  Roberto  Payno. 

Baarlam  e  Josaphat;  Amaro  e  Visão  de  Tundal. 

Livro  de  Bsopo. 

miada  de  Homero,  6  cantos. 

Vida  da  rainha  santa  Elisabett. 

Traducções  da  Biblia  (Livraria  de  Alcobaça). 

Chronica   dos   Vicentes. 

Ordenações'  de  Dom  Duarte. 

Chronica  geral  do  Reino,  por  Fernão  Lopes. 

Azurara,  Chronica  da  Guiné;  Chronica  do  Conde  D.  Pe- 
dro de  Meneses. 

Chronicas  de  Ruy  de  Pina. 

Obras  de  Frei  João  Claro. 

Poesias  portuguesas  nos  Cancioneiros  castelhanos. 

Cancioneiro  portuguez  da  Bibliotheca  de  Madrid. 

Sonetos  sagrados  de  D.  João  da  Silva  (Beato  Amadeo.) 

Obras  inéditas  da  Livraria  de  Alcobaça;  e  obras  da  Bi- 
l)H()thoca  do  rei  D.  Duarte,  do  Condestavel  de  Portugal,  e 
do  D.  Affonso  v,  que  se  dispersaram. 


índice 


HISTORIA  DA  LITTERATURA  PORTUGUEZA 

(RE  CAPIXTJl^  A.ÇÀO) 


Explicativa         v 

O  ethos  expresso  na  litteratura     1 


PROLEGOMENOS 
Elaboração  orgânica  da  Litteratura 

Creação  das   Lltteraturas        3 

Consideradas  como  Synthese  affectiva 4 

Concepção  de  Bacon  sobre  as  influencias  litterarias 5 

A  litteratura  grega  exemplo  completo  da  evolução  orgânica  O 

As  lltteraturas  modernas  e  o  dualismo  tradicional  e  clássico  7 


§  I 

Factores  staticos 

1.»  A  Raça.  —  Seu  caracter  através  da  Litteratura 8 

Na  Litteratura  grega,  segundo  Ottfried  Múller O 

Ma    Litteratura    franceza    e    allemã     10 

Existe  uma  raça  portugueza 11 

—  sua  differcnça  do  typo  ibérico 13 

A  grande  Confederação  occidental  e  o  elemento  ligurlco...  14 

Extensão  da  Lusitânia  dos  antigos     16 

Tardia  e  debll  invasão  dos  Celtos  na  Península 17 


510  ÍNDICE 


Ruina  (ia  Civilisaçao  bronzifcra     lmi 

Estado  de  pureza  das  tribus  lusitanas li  I 

As    invasões   germânicas    continuam    a   acção   dos   homens 

corpulentos   do   Norte      28 

I'ersistoncia  do  elemento  popular 24 

A    invasão    dos    Árabes    e    a    população    dos    Mulladis    e 

Mosarabes l:" 

A  aspiração  nacional  de  um  povo  livre _(. 

2.0  A  Tradição.  —  Mantém  as  primitivas  unidades  ethnicas  27 

Continuidade  das  tradições  poéticas  nas  populações  actuaes  28 

Formas  tradicionaes  do  Lyrismo 31 

As   Maias   e   Maierolles 32 

O  tliema  épico  odyssaico 33 

Os   romances   da  Bella  Infanta  e  Náo    Catherineta 35 

A  Noiva  arraiana     36 

O  imperialismo  germânico  e  a  unidade  catliolica     37 

Formação  da  sociedade  mosarabe 38 

8."    A    Ling:ua.  —  Actua   no   desenvolvimento    social    e    in- 
dependência  nacional       .80 


a)  Formação  das  Línguas  românicas 


Sob  princípios  análogos,  que  conduzem  a  um  typo  commum  40 
Conservam  vestígios  de  uma  Grammatica  fortemente  cons- 
tituída   41 

Diez  doriva-as  da  lingua  popular  dos  romanos 18 

Segundo    Schleiger,    seguem   differente    caminho   do   que   o 

de  latim      4.1 

Para  Max  Muller,  o  latim  clássico  não  explica  completa- 
mente  a   sua   origem        44 

Imi)ossibilidade    de    uma    lingua    synthetica   produzir    lín- 
guas analyticas 45 

O    latim    pela    sua    vida    de    trez    séculos    não    prevaleceu 

sobre   os   dialectos   Itálicos     46 

O   que   foi   a    Lingua  romanitalis 48 

Familia   de    línguas    analyticas     49 

TTnidade  determinada  por  Darmesteter 49 

Plionetica  das   línguas   romanisadas     51 

O  domínio  geographico 53 

Acção  litterarla  do  latim  nas  classes  cultas 56 

Os  germânicos  que  invadiram  a  Hespanha  tinham  a  cul- 
tura romana      58 

A  occupação  dos  Árabes  não  produziu  um  dialecto  popular  "'^ 


b)  Filiação  da  Língua  portugueza  e  suas 
ÉPOCAS  históricas 


o   Portuguez,   Catalão  e   Castelhano   correspondem  a   trez 

nacionalidades 61 


índice 


511 


a)  Separação  ão  Portugnez  e  do  Gallego... 
A  Galliza  deoao  na  situação  da  província... 
A  autonomia  nacional  actua  no  desenvolvimento  da 

portugueza  

b)  Modificações  por  via  do  francez     

Influencia   litteraria   da   França 

c)  O  portvguez  começa  a  ser  escripto 

Documentos   de   1192   e   1214 

Os  dialectos  portuguezes 

d)  A    Versificação   portugueza:   Syllahismo... 
Nenhuma  relação  com  a  métrica  de  quantidade 
Épocas  históricas  da  lingua  portugueza     ... 


lingua 


PAG. 

63 

64 

65 

65 
66 

66 
66 
69 

70 
71 

73 


4."  A  Nacionalidade.  — ■  Os  trez  focos  de  resistência  contra 

os  Árabes ■ 

A  resistência  lusa,  segundo  Rasis 

As    divisões    ecclesiasticas    da    Lusitânia    no    século    VIII 

são   as   actuaes...      

A    restauração   lusitana   precede    a    asturo-cantabra... 

A    Terra    Portucalense    toma-se    estado    independente    em 

1128    

Reconstitue-se  parte  da  antiga  Lusonia  até  ao  Algarve 

A   vida   histórica   da   Nacionalidade     

A  expressão  do  génio  nacional  por  CamSes 

As  consequências  do  novo   equilíbrio  europeu  da   Casa  de 

Áustria       

Obliteração    do    sentimento   nacional    sob   os    Braganças.. 


75 

76 

77 
78 

79 

81 
82 
84 

85 

87 


§    II 

Factores  dynamicos 


—  As  Épocas  históricas  e  o  meio  social  actuando 
nas  Litteraturas 


A  Concepção  de  Comte,  seguida  por  Stuart  Mlll  e  Bain. 
As    trez    phases    da    cultura    moderna 


89 
90 


a)    EdADE;    MÉDIA 


Caracter   complexo  d'esta   época 

Conflicto   do    Poder   espiritual    e   temporal. 


92 
93 


512  índice 


PAG. 

l.o  A  Egreja.  —  A  educação  popular  nas  Collegiadas 94 

Exemplos    e    Contos    populares     95 

Moralidades  e  Diabruras 90 

Parodias   goliardescas      97 

2."  A  Corte.  —  Contrapõe  as  Escholas  ás  Universidades...  98 

Os    typos   das    Monarchias     99 

A    Cavalleria    e    os    typos    ideaes 100 

Focos   de   sociabilidade 101 

3."   A    Burguezia.  —  A    actividade    pacifica 102 

Creação  de  uma  classe  média 103 


b)    R:eNASCKNÇA 


A  insurreição   mental  no  século  XIII 103 

A   Éra   dos   Descobrimentos 104 

A  Monarcbia  Universal 105 

A  diplomacia  e  a  Querella  dos  Antigos  e  Modernos 107 

Caracter   do   Século   excepcional 108 


c)  Romantismo 


Fim    da   crise   revolucionaria 108 

A    sensibilidade    romântica     110 

()  Proto-romantismo 111 

A  Era  dos  Génios,  na  AUemanha 113 

Influencias  da  AUemanha  no  Romantismo 114 

Kehabilitação  da  Edadc  média     Iin 

A  historia  com  critério  methodologlco 11  ti 


II  —  Successão   das   Litteraturas   modernas,   e   mutua 
acção   hegemónica 


Kevivcscencia  da  antiga  Civllisação  occidental 117 

O  grupo  do  Meio  Dia  da  Europa 119 

a)  Litteratura  da  Fiiinça     120 

Sua  acção  sobre  as  litteraturas  medlevaes 121 

b)  Jlcfjemonia  da  Itália I--'» 

c)  llcspanha  e  Portugal j;;<» 

As  duas  Litteraturas  differenciadas  pelo  ethos  d'estes  dois 

povos 131 

Como  resistiu  Portugal  á  absorpção  do  Castelhanismo     ...  132 

Purtufjdl    r(>voln    o   génio   da   raça   no    seu    lyrlsmo 138 


índice  513 


Épocas  históricas  da  Litteratura  portugueza 


PAG. 

Primeira    Época:    Edade    média     139 

1."   Período    (Século  XII  a  XIV)    Predomínio  do  Lyrísmo 

trobadoresco       139 

2.0  reríodo   (Século  xv)    Influencia  do  Lyrísmo  castelhano 

e  a  erudição  latina 141 

Segunda  Época:  Renascença 142 

1."   Período:    Os   Quinhentistas    (Século  XVI)    Quadro  da 

maior   actividade    da   nação    portugueza     142 

2."   Período:     Culteranistas :    (Século  XVII)    As   Tertúlias 

e  Comedias  famosas 144 

3.»   Período:   Arcadistas    (Século   XVIII)    O   pseudo-classi- 

cismo  francez     145 

Terceira  Época:  Romantismo    (Século  XIX)    Revivescência 

das  Tradições  nadonaes 146 

Caracter  da   litteratura   portugueza     147 

d)   Inglaterra  e  Alleinanha      148 

Acção   da   litteratura   ingleza   no    século   XVII 150 

A  influencia  allemã 151 

O    espirito    universalista    nas    litteraturas 153 


primeira  época 

EDADE    MÉDIA 

(Século  XII   a  XV) 
i."  Período:  Trovadores  portuguezes 

Formação  da  litteratura  simultânea  com  a  nacionalidade...        155 

A  corrente  tradicional  e  a  erudita 156 

Influencia  provençal   entre   1190  e   1253      156 

§   I 

Influencia    do    sul   da    França    ou    Gallo-romana 


A  liberdade  democrática  e  a  cultura  do  sul  da  França...  157 

As  Cortes  de  Amor 158 

Auhade    e    Serena    159 

As    Pastorellas    no    gosto    antigo 160 


33 


5M  índice 


Unidade  das  Ctvnções  lyricas  da  Provença,  Itália.  Galliza, 

Portugal,  Valência.  Aragão  e  Casteíla 161 

Sua  origem   meridional 163 

Eschola  de  Tolosa 164 

Propagação    do    lyrismo    á    Itália 164 

^  em  Hespanha        165 

Trovadores   na    Corte   do    Leão     ...  166 

Como  se   propagou  o   lyrismo  portuguez   Tis   Cortes  penin- 
sulares          167 

Preponderância    do    elemento    popular 168 

A  Eschola  trobadoresca  portugueza 

Marcabrus  visitou  Portugal 170 

Gavaudan   o   Velho,    Cercamons    e    Peire    Vidal    referem-se 

a    Portugal         171 

A   Corte  de   Guimarães 172 

As   Cantigas   de  Amigo   e  a  pequena   burguezia  do  Minho  173 

A   Galliza   d'áquem   Minho      175 

Errada  importância  attribuida  á  Galliza  do  Norte  por  Me- 

nendez  y  1'elayo        170 

Comprehensão   do   texto   de  Marquez   de   Santillana 178 

As  mulheres  cantoras  no   lyrismo  portuguez     179 

Naturalidade  e  caracter  affectivo 180 

Fundo  tradicional  do  lyrismo  portuguez     181 

Phases  históricas  da  Eschola  trobadoresca  portugueza     ...  182 

a)  Ciiclo   pre-Affonsi'110    (1185   a    124'8)    O   gosto   do    Ly- 

rismo   trobadoresco    suscitado    pela   corte   de    Leão   e 

Aragão        ...  182 

D.    Sancho   I,    trovador 184 

A  Quinta  Monarchia        185 

Os    amores    de    D.    Sancho    1 187 

Canção  á  Ribeirinha  no  gosto  popular 188 

A  Serranilha  artística  precedeu  os  Jograes  gallegos 189 

Fontes  sociaes  d'este  lyrismo 190 

As    Cidades    livres    ou    Behetrias... 191 

O    trovador    Payo    Soares    de   Taveiró 194 

As  Netas  do  Conde  apodadas  pelos  trovadores 195 

Õ    trovador    Martim    Soares ;..  196 

Trovadores   portuguezes  que  emigram   para   Leão,  Aragão 

e  Casteíla 198 

Na     corte    de     Santarém 199 

Martim   Soares,  da  corte  de   D.   Sancho  II 200 

João  Soares  Coelho  e  Sordello  de  Mantua 201 

Canções  do  Bonifazio  Calvo  em  portuguez 202 

Kamon   Vidal  e  Rambant  de  Vaqueiras  trovam   >  m  portu- 
guez       203 

Affonso  o  Sábio  centonisa   versos  de  .loão  de  <  iillhade  e 

do  João  Coollio 205 

A  anarchia  feudal  actua  na  degradação  da  Galliza 205 

O    sentimento   caractoristico   do    lyrismo    portuguc: 207 

Trovadores   pre-Affonsinos      207 

b)  Cifclo   Affonsino    (1248   a    1279)    A   edade   mais   fértil 

da    Arte    trobadoresca     208 

Assistência   do   D.   Affonso   III   na   corte   de   França 20S 


IX Dl CE 


515 


Fidalgos  portuguezes  quo  ahi  se  refugiaram  depois  da 
Lide  do  Porto 

A  Sátira  contra  os  Alcaides  traidores  por  Ayres  Perez 
Veytura       


PAG. 

209 

210 


II 


Influencia    do   Norte    da    França    ou    Gallo^franka 


As    Canções    lyricas    da    lingua    d'oil 

D.   João  de  Aboim   e  as   Pastorellas  "francezas... 
Esgaravunha    emprega    um    retornello    em    francez. 
Affonso  Lopes  de  Baião  parodia  a  Gesta  de  Roland. 

Poética    trobadoresca    portugueza 

O  Segrel      

Gesta  de  Maldizer  contra  Ruy  Gomes  de  Briteiros. 
Conhecimento   das   Canções   de   Gesta   em   Portugal. 

Seria  D.  Affonso  III  também  trovador?     

O  Cancioneiro  da  Ajuda  contém  a  maioria  dos  trovadores 
que  pertenceram   á  corte  de  D.   Affonso   III      

C)  Cyclo  Dionísio  C1279  a  1325)  A  corte  do  rei  D.  Diniz 
centro  de  convergência  dos  trovadores  gallegos,  cas- 
telhanos,  aragonezes   e  andaluzes 

Aymeric   d'Ebrard,    de   Cahors.    mestre   de   D.    Diniz 

Apogeu  da  lyrica  palaciana 

Revivescência   do   lyrlsmo   provençal 

A  rasão  de  amor,  ou  a  doutrina  philosophica  dos  trova 
dores   

Os  amores  de  I).  Diniz 

Sua  imitação  do  lyrismo  popular 

O  sentimento  aproximou  os  trovadores  d'esta  origem  po 
pular 

Convei-gencia  de  trovadores  <«  jograes  de  Leão,  Castella 
e  Aragão     

Relação  entre  os  Cancioneiros  e  os  Nobiliários 

Livro  das  Cantigas  do  Conde  ãè  Barcellos 

Systematisação    do    Grande    Cancioneiro    troljadoresco 

Os  quatro  Cancioneiros  fundamentaes 

d)  C.uclo  post-Dioni-fío  (1325  a  1357)  Na  corte  de  D.  Af- 
fonso IV     

A    lingua   portugueza    usada    pelos    trovadores    castelhanos 

Canção  do   Infante  D.  Pedro 

O    Poema    da    Batalha   de    Salado 

Relações  com  a  Crónica   de  Affonso   Onceno 

Foijuas  portuguezas  sob  o  texto  castelhano 

Ver.setes  de  antiguo  rimar     

Os   romances   velhos 


211 
212 
216 
217 
218 
219 
224 
225 
228 

229 


230 
231 
232 
233 

234 

2."  10 

241 

242 
244 
245 
246 

248 


249 
250 
251 
253 
255 
258 
261 
263 


§    III 
Influencia    armoricana    ou    Gallo°bretan 


Os  Lais  bretães  no  fim  do  século  XII L 
As  tradições  bretans  em  Portugal... 


264 
265 


5i6 


índice 


a)  Os    Lais    amorosos 

líoferencias   nos   trovadores   portuguezes     ... 

b)  Os    Lais    novellescos 

O   amor   ideal   e  desinteressado     

Cantares  de  Cornoallias 

Os  Lais  de  Trístão  intercallados  nas  Norellas. 

Lai   do   Tributo   das    Donzellas     

O  original  francez  dos  Lais  de  Tristão 

Lai   de   Leonoreta   da   Novella    de   Amadis... 

Restituição   da   sua   forma   estrophica 

Confronto    com    a    apropriação    castelhana... 

Chronologia  da  forma  do  Lai 

João   Lobeira,  pae  de  Vasco  de   Lobeira 


PAC. 

266 

269 

270 
272 
273 
274 
277 
279 
283 
284 
286 
288 
292 


Origem  portugueza  do  Amadis  de  Gaula 


Prosificação    dos    poemas    bretãos... 
O  thema  do  Amadis  de  Gaula 


3(»0 


1.»   Phase:   Lenda   agiologica 

Pactos   similares   de   outros   poemas 


302 
303 


2. a    Phase:    Lais    narrativos 

Vulgarisação  dos  Lais  do  Amadis 

Elementos    do    Lai    de    Amadis    communs    ao    Poema    e 
Novella        


30r. 
306 


30» 


8.«    J'íiase:    Xorella    cifcUca    em    prosa ;>]  1 

Forma  portugueza  do  fim  do  século  XIV     312 

l.a  Redacção  portugueza.  em  três  livros   (de  João  Lobeira)  313 

Reto(iue  do  episodio  de  Bilolanja 314 

Belleza  d'<>sses  três  livros  na  tradicção  castelhana 317 

2."    Redacção    portugueza     (Vasco    de    Lobeira) 319 

Elementos    accrescentados       320 

Referencias  a  este  texto  nos  fins  do  século  XIV 322 

O  Livro  de  Amadis  de  Gaula  na  Casa  do  Duque  de  Aveiro  322 

Testemunho  de   Azurara 325 

Referencias  dos  poetas  do  Cancioneiro  de  Baena     328 

Trabalho   de   Vasco  oe   Lobeira     ...      331 

3."    '1'erceira    redacção   portugueza    (Pedro   Lobeira) 332 

Enthuziasmo    pelas    tradições    britonicas     335 

O  ethos  portuguez  reflectido  na  Novella  de  Amadis 337 

Os   criticos   hespanhoes   e  allemães   reconhecem   o   seu    ca- 
racter   portuguez       338 

4."  .4    redacção  paraphrastica   castelhana    (1492)      343 

Inferioridade  das   Sergas  de  Esplandian     344 

Até  quando  ha  noticia  do  texto  portuguez •!4.~» 


índice 


SI  7 


§  IV 


Cultura  latino-ecclesiastica 


Elaboração   erudita   da   primeira   Renascença     ... 

a)  Os  Estudos  quadriviatês 


347 


As  Escholas  da^  Collegiadas 

l.o   Philosophia  e  Theologia 

Pedro   Hispano   e   António   de   Lisboa 

A  corrente  mystica 

O    Aristotelismo    averroista    

2.°   As   tradições   latinas 

Ttarlam    e   Josaphat 

Visão  de  Tundal       

Orto  do  Esposo         


34^ 

350 
351 
352 
353 

356 
358 
359 
360 


b)  o  Poder  reae  protege  o  Humanismo 


A   divisa   do   estado   social     

I."    Fontes   poéticas   da   Antiguidade   clássica 

As   lendas   do   Cyclo   troyano 

Historia  de   Troya  em   portuguez 

2.0  Fundação  da  Universidade  de  Lisboa 

Os  primeiros  Estatutos 

3.0   Nobiliários 

Facto  social  que  os  originou 

Seus    elementos    históricos     

4.0   Chronicas  e   Relações  históricas 

Chronica  da   Conquista   do   Algarve     ... 
A   Chronica   geral   de   Hespanha    


362 

363 
365 
366 

371 
372 

373 
374 
375 

378 
379 
380 


2°  Período:   Os  Poetas  Palacianos 
(Século  XV) 

§  I 

Elaboração   do   Lyrismo   provençal   pelo   génio   italiano 
(Phase  allegorica) 


Depois  da  extinção  da  Poesia  trobadoresca . 
Dante  inicia  a  nova  elaboração  esthetica. 
Sua  influencia  em  Hespanha 


388 
384 
385 


51^  índice 


1."   A   influencia  caâtelhano=>aragoneza 389 

Actividade  politica  da  cÔrto  do  D.  Juan  II 390 

()    Infante  D.   Pedro  e   Juan   de   Mena 392 

O   Condestavel  de  Portugal 400 

Tragedia   da  insigne   Rainha 401 

Sátira  de  felice  e  infelice  Vida 402 

Coplas    de    Contento    dei    mundo 403 

2."  Formação  do  Cancioneiro  geral 407 

Elemento    histórico   no    Cancioneiro     409 

a)  Livro   das   trovas   dei  El  Rei  Dom   Duarte 413 

b)  Cancioneiro    portuguez      ^14 

c)  Cancioneiro  portuguez  da  BihliotJieca  de  Madrid 415 

d)  Cancioneiro  do  Abl)ade  D.  Martinho     415 

e)  Cancioneiro   de  D.   Francisco   Coutinho   Conde  de  Ma- 

rialva   416 

Como    se    identifica    com    o    Cancioneiro    do    Dr.    Gualter 

.Vntunes      417 

Manuscripto  do  século  XV     418 

Documenta   o   apocryphismo   lltterario   d'essa  época 420 

Analysc!   morphologrica  e   tbematica  das   cinco  composições  421 

3."    Existência   de    um   elemento   popular      425 

Expansão  da  poesia  popular  no  século  XV 425 

Ilhas   encantadas      426 

Romances  velhos  sobre  João  Lourenço  da  Cunha  e   Prin- 

cepe   D.   Affonso        429 

Centros  poéticos  de  Açores  e  Madeira 431 

Rudimento   do   theatro   popular     ... 433 

Thoiítro     hierático     4^4 

S  II 

As   Novellas    porti.-};uezas   da    Tavola    Redonda   e    do   Santo  Graal 

O  Amor  o  Coiíczia  bases  das  Novellas  cavalheirescas     ...  435 

Transformação    d'estes    Cyclos    em    Portugal      437 

Livro  de  Josep  ah  Ariwathéa 439 

Demanda    do    Santo    Oraal     441 

Merlin  —  Gato  l'aul  e  Prophecias  do  Bandarra 442 

Galaas    substitue    Lancelot      444 

Historia    de    Vespasiano 445 

O  texto  portuguez  de  Ariiadis  em  Castella 447 

Florestan    448 

.\s  imitações  do  Amadis  do  Gaula 449 

Sua    inliuencia  social        450 

§    III 
Predomi/iio   da   Erudição   latina 

Transição  para   a   grande   Renascença 450 

1.0    Efitado    da    língua    portugueza    (Fõrtvaa    populares    e 

eruditas)     451 

Os    duplos 452 


índice  519 


PAG. 

As    tradvcções   latinas     454 

Influencia  do  Rei   D.   Duarte 457 

Versão  da  Vita  Ghristi 459 

Bibliothecas        460 

—  do  rei  D.  Duarte 461 

—  do    Condestavel    D.    Pedro 462 

—  de   D.   Affonso  V 463 

A  Imprensa  em  Portugal 464 

2.0   Humanistas,   Moralistas   e   Philosophos 468 

Arte    velha    e    nova     ...          468 

Livro  de  Esopo,  traducção  portugueza 469 

O  rei  D.  Duarte  e  o  Leal  Conselheiro 471 

Virtuosa    Bemfeituria      473 

3.°   Universidade   de   Lisboa;   Jurisconsultos;   Codificação...  474 

Collegios    junto    da    Universidade 474 

Os  Jurisconsultos  eram  humanistas     476 

Ordenações  de  D.  Duarte  e  Affonsinas 477 

§  IV 
Desenvolvimento   da   forma   histórica 

Preponderância    social    da    Realeza     478 

1.0   Conversão  das   Estorias   em   Caronicas 480 

a)  Chronica  da  fundação  do  Moesteyro  de  San  Vicente...  481' 

b)  Vida  de  D.  Tello , , 483 

c)  Chronica   do    Condestaltre.. 484 

d)  Crónica  do  santo  e  virtuoso  Infante  D.  Fernando 484 

2.0   Fundação   do  Archivo  nacional    (Torre  do   Tomho)      ...  485 

Separação  do  cargo  de  Archivista  do  de  Thezoureiro     ...  486 

Os    GRANDES    ChRONISTAS    DO    SÉCULO    XV 

Como    se    acordou    o    génio    histórico 487 

1."   Fernão   Lopes      489 

Formação   da    Chronica   de   Portugal ...  490 

Como   se   desmembrou   a   sua    Chronica   geral   do    Reino...  491 

Relações   com   o   Chronista  Ayala 493 

Os  textos   da  Chronica  de  D.  João  1 496 

A  copia  de  Pêro  ^'az   Soares 497 

2.''   Gomes  Eanes  de  Azurara 499 

Sou    caracter    litterario 500 

3."    Ruy    de    Pina      501 

Influencia  de  D.  .João  II...      502 

Contratado  para  escrever  a  Chronica  de  D.  Manoel 503 

Como  foram  plagiadas  as   suas   Chronicas 504 

Decadência  da   forma  histórica     506 

Synthese    do    século    xv 506 

As   grandes   perdas   da    Litteratura   portugueza 507 


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Historia  popular  de  Porta^jL^Jj^    ,     .     ,    .     ,        ff.)  r,) 


Visão  l^^^^pos 

Epopéa  da  Humanidade  (Édí^ací  integral)  4  vol.      284i^) 
Bodas  de  Ouro  na  Litteratura  (1858  a  190o).  Ver- 
sões polygiotas  da  Visão  dos  Tempos    .      .      .  i'lj*i 

Alma  portuguezá 

RUapsodias  da  grande  Epopèa  d'um  pequeno  Pov<i 

F/riaí/io.  Narrativa  epo-historica,  1  voL     ...  i   < 

Frei  Gil  de  Santarmí  (Fausto  portuguez)  1  vol.  <     • 

Os  Doze  de  Inglaterra  (Poema)  1  vol.  T 

Gomes  Freire  (drama  histórico)  1  vol,     .... 

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Historia  da  Litteratura  portuguezá 

Introducção  e  Theoria  da  Historia  da  Litferatifrn 
portuguezá,  1  vol 

Bernardim  Ribeiro  e  o  Bucolismo,  1  vol 

Gil  Vicente  e  as  origens  do  Theatro  nacional,  1  vo1.  ^   > 

Escliolade  Gil  Vicente  e  o  dcAiencolvimento  do  Tliea- 
tro  na/yional,  l  vol. 

Sá  de  Miranda  e  a  Éschola  italiana,  1  vol.  .     . 

Camões -^Vida  e  Época,  1  grosso  vol.      ... 

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Camões  e  o  Sentimento  nacional^  1  vol.    . 

A  Arcádia  hisHana,  l  \o\.  .     ...     .     .     .     .     ,         -  > 

Filinto  e  os  Dissidentes  da  Arcádia,  1  vol.   ...       •.  ^ 

Bocage,  sua  vida  e  época Jitteraria,  l  Yo\.    ... 

Garrett  e  o  Bomantismo,!  yol.    .    ...    .    . 

Garrett  e  os  Dramc^s  românticos,  1  vol.  *.  ':  '.    .     .       ' 

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ll  —  Benascençaf  1  vol     ....... 

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