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Full text of "Revista geral de historia antiga e moderna, com reflexões sobre as causas e consequencias d'aquelles acontecimentos que teem produzido mudanças notaveis no estado geral da humanidade"

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Book_    .: i 


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in  2011  with  funding  from 
The  Library  of  Congress 


http://www.archive.org/details/revistageraldehiOOread 


DE 


i  m  a 


COM  REFLEXÕES   SOBRE  AS  CAUSAS  E  CONSEQUÊNCIAS    D AQUELLES 

ACONTECIMENTOS   QUE  TEEM  PRODUZIDO  MUDANÇAS  NOTAYEfS 

NO  ESTADO  GERAL  DA    HUMANIDADE 


ST 

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IA  serie  de  c 


'ELO  autiior  da  revista  geographica  e  histórica  DO  mundo: 

DAS  CARTAS  SOBRE  O  ESTUDO  POLITICO  DA  . EUROPA ; 
DA  HISTORIA  NATURAL,  ETC.  ETC. 

VERSÃO    DE 


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"''ísSeníIís-ís     eesTCsjíOíasSieaale    «la     Aeníl^itãiu.    PlaiSoniatiea. 
«1©   FSào   tle    cSaeieiro 


PONTA  DELGADA 

.»  -- - TVP.  DE  MANOEL  CORRÊA  BOTELHO,  RUA  DA   ESPERANÇA — & 

1874 


387270 


/ 


Do 
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Sendo  universalmente  reconhecida  a  utilidade  d'informa- 
ções  históricas,  uma  tentativa  que  facilite  a  sua  acquisição  não 
deixará  por  certo  de  ser  bem  aceito  do  publico.  Não  será, 
porém,  fora  de  propósito  apresentar  um  esboço  do  plano. 

Comprehender  a  historia  do  mundo,  em  tão  resumida 
obra  como  esta,  parecerá  pertencioso;  e  comtudo,  tanto  quan- 
to merece  archivar-se  na  memoria  poderá,  talvez,  reduzir- se 
a  um  pequeno  âmbito.  Narrativas  de  batalhas  e  cercos,  de 
desolação  e  carnificina,  despidas  inteiramente  de  interesse, 
mil  vezes  repetidas,  com  longo  cortejo  de  circunstancias  mal 
authenticadas  e  muitas  vezes  ficticias,  poderão  agradar  ao  es- 
pirito rude,  mas  pouco  entretenimento  oíferece  ao 
leitor  intelligente,  cujas  idéas  forem  mais  esclarecidas,  e  que 
desejar    circunscrever  as  suas  observações. 

O  espirito  investigador,  desejando  tirar  da  historia  um 
quadro  verdadeiro  da  existência  humana,  contempla  a  ori- 
gem e  progresso  das  sciencias  e  artes,  dos  systemas  e  opi- 
niões, e  da  civilisação  e  commercio;  de  toda  a  massa,  em  snm- 
ma,  dos  melhoramentos  do  homem,  e  adiantamento  progres- 
sivo da  sociedade. 

Os  detalhes  d'estes  importantes  negócios;  ou  são  inteira- 
mente falhos  nos  registos  das  idades  passadas ,  ou  escassos  e 
incertos;   e  não  podemos   (Telles  obter  mais  que  idéas  geraes. 


/?/ 


IV 

O  leitor  que  compulsar  a  historia  com  vistas  de  a  conver- 
ter em  fonte  de  informação  geral,  ou  de  prompta  referencia 
a  acontecimentos  moraes,  com  as  suas  cansas  e  consequên- 
cias, ou  ao  estado  politico,  religiosoe  social  do  género  humano 
nos  differentes  periodos  de  tempo,  precisa  lixar  as  idéas  so- 
bre os  factos  de  mais  vulto,  sobre  os  traços  e  cursos  magis- 
traes  dos  seus  negócios,  sobre  os  acontecimentos  naturaes 
que  teem,  de  um  modo  singular,  mudado  o  aspecto  do  mundo, 
determinado  as  opiniões,  ou  fixado  o  destino  do  homem. 

facilitar  a  acquisíçao  e  reminiscência  da  parte  mais  im- 
portante, interessante,  e  de  facto  a  única  essencial  de  conhe- 
cimentos históricos  ,é  o  intuito  da  seguinte  serie  de  cartas. 

Um  summario  tios  factos  principaes  tia  historia  antiga  e 
moderna  é  apresentado  em  ordem  chronologica,  dividido  em 
dez  periodos  distinctos,  dos  quaes  o  primeiro  abrange  todo  o 
espaço  de  tempo  desde  que  ha  memoria  até  á  subversão  do 
império  Babylonieo;  o  segundo  contem  o  praso  entre  a  fun- 
dação do  império  Tersa,  por  Cyro,  e  a  sua  derrubaeào  por 
Alexandre;  o  terceiro  abraça  o  tempo  que  passa  desde  o  rei- 
nado de  Alexandre  até  á  vinda  de  Christo;  e  o  quarto  Come- 
ça na  era  ehrista  e  acaba  na  elevação  de  Constantino  á  sobe- 
rania do  império  Romano;  o  reinado  d'aquelle  príncipe,  em 
razão  ela  sua  importância  singular  e  effeitos  conspicuos,  ê 
considerado  distiuctamente  no  quarto  período;  o  sexto  co- 
meça pela  morte  de  Constantino  e  finda  com  a  subversão 
do  império:  d'ahi  ate'  ao  reinado  de  Carlos  Magno  eonstitue 
assumpto  do  septimo;  o  oitavo  data  da  morte  de  Carlos 
Magno  e  continua  ate  ao  decimo  quinto  século,  especial- 
mente caracterisado  pelo  renascimento  das  lettras,  invenção 
da  arte  typographica,  descobrimento  da  America  e  incre- 
mento ilo  commercio  etc;  o  nono  coniprehende  aquella  idade 
de  emprezas  e  especulações  que,  começando  pelo  meado  do 
decimo  quarto,  continua  ate  quasi  fins  do  decimo  sexto  se- 
culo;  o  o  decimo  periòdo  data  d'aquella  importante  era,  e 
apresenta  uma  revista  geral  dos  tempos  modernos. 

V  base    histórica    cia   obra  estriba-se  na    authoridade  dos 


V 

mais  notáveis  historiadores;  entre  os  modernos,  os  doutores 
Rnssel  e  Robertson,  o  Albade  Raynal,  GKbbon,  Messance, 
Du  Cange,  e  Montesquieu,  além  de  muitos  outros  que  foram 
oonsultados,  e  coisa  alguma  se  avança  de  natureza  menos 
authentica. 

A  obra  acha-se  mais  oonstruida  sobre  reflexões,  do  que 
sobre  factos  detalhados,  o  sinmnario  histórico  servindo  sim- 
plesmente como  base  necessária  para  observações.  0  intuito 
do  author  tem  sido  tornal-a  um  meio  fácil  para  aquelles  que 
pouco  conhecimento  lêem  d'este  género  de  leitura,,  por  falta  de 
tempo  ou  vocação  para  compulsarem  os  numerosos  e  prolixos 
tratados  que  constituem  a  massa  de  informações  históricas, 
uma  reminiscência  em  sununa  para  os  homens  versados  em 
historia,  e  que  possuem  conhecimentos  minuciosos  de  tudo 
quanto  aqui  ê  tratado  em  globo.  0  desígnio  inteiro  6  con- 
centrar a  óptica  da  historia  do  huniem,  e  delinear  o  esta- 
do do  espirito  humano  em  todas  as  suas  differentes  modifica- 
ções, nascidas  de  causas  externas  e  fortuitas.  Este  trabalho, 
todavia,  não  é  fácil.  A  narração  deve  ser  concisa  e  eloquen- 
te, a  exposição  ajustada  e  pittoresca,  a  investigação  exacta 
e  clara,  as  observações  acertadas  e  persuasivas,  as  reflexões 
justas  e  apropriadas. 

A  sua  utilidade  é  inquestionável  :  o  publico  decidirá  do 
mérito  da  execução. 


CARTA  PRIMEIRA 


Armuindo  ao  vosso  pedido,  tomo  a  liberdade  de  vos  apre- 
sentar algumas  observações  sobre  o  uso  e  importância  do  co- 
nhecimento de  historia ,  acompanhadas  de  varias  reflexões 
sobre  o  modo  porque  a  devemos  considerar,  a  fim  de  a  con- 
verter em  fonte  instructiva  e  agradável  de  informação  geral. 

A  vossa  queda  natural  conduz-vos  ao  estudo  de  historia. 
Desejaes  adquirir  um  conhecimento  geral  da  humanidade,  e 
esta  leitura  é  o  único  meio  efficaz  que  se  vos  offerece. 

Para  vos  prestar  aquelle  auxilio,  que  a  mediocridade  das 
minhas  forças  me  permitte,  aqui  vos  apresento  diversas  re- 
flexões e  observações  sobre  as  causas  e  consequências  dos 
acontecimentos  mais  notáveis  na  historia  do  mundo;  com  a 
mira  em  esboçar  a  condição  geral  do  homem  em  cada  periodo 
saliente. 

A  curiosidade  é  inherente  ao  homem,  e,  até  certo  ponto, 
acompanha  cada  gráo  da  comprehensão  humana,  e  cada  mo- 
dificação do  entendimento.  Desde  o  philosopho  até  ao  cam- 
ponez,  quasi  ninguém  se  encontra  que  não  careça  de  infor- 
mação sobre  um  ou  outro  objecto;  porém,  esta  curiosidade 
dirige-se  a  differentes  pontos,  em  diíferentes  intelligencias,  na 
proporção  da  sna  elevação,  ou  extensão  dos  seus  melhora- 
mentos prévios.  Aquelle  colosso  de  litteratura  e  philosophia 
moral,  o  doutor  Johnson,  diz:  «A  curiosidade   é  um  dos  ca- 


meteres  mais  seguros  de  uma  intelligencia  vigorosa»  e  ainda 
mais:  «A  curiosidade  é,  em  grandes  e  generosos  entendimen- 
dimentos,  a  primeira  e  derradeira  paixão;  e,  talvez,  sempre  a 
predominante  em  proporção  ás  forças  das  faculdades  men- 
taes. »  Estes  são  os  encómios  que  aquelle  grande  observador 
do  espirito  humano  despensa  a  esta  paixão;  porém,  com  toda  a 
deferência  a  tão  respeitável  auetoridade,  o  louvor  é,  talvez, 
antes  devido  ao  curso  que  toma,  que  â  paixão  em  si;  por- 
que podemos  dirigir  a  curiosidade  aos  objectos  mais  insigm* 
ficantes  como  aos  da  maior  importância.  O  inculto  campo- 
nez  limita  as  suas  indagações  á  esphera  da  sua  freguezia,  em 
quanto  que  o  homem  de  mais  elevada  intelligencia,  fita  a  at- 
tenção  nos  negócios  do  mundo  em  grande,  e  apetece  informa- 
ções em  tudo  quanto  interessa  o  homem  em  geral ;  os 
planos  políticos,  os  estratagemas  da  guerra,  as  fluetuações 
do  commercio,  e  o  progresso  das  artes,  sciencia  e  litteratura. 

Esta  activa  curiosidade  do  homem  pôde  satisfazer-se  cie  dif- 
ferentes  modos,  mas  nunca  em  toda  a  sua  plenitude.  O  via- 
jante, ao  subir  unia  eminência,  entretém  o  espirito  na  expecta- 
tiva da  vista  que  vae  gosar  da  sua  summidade;  mas,  em  che- 
gando a  este  ponto,  tão  longe  está  a  sua  curiosidade  satisfei- 
ta, que  ella  opera  com  dobrada  força,  e  excita-lhe  o  desejo  de 
contemplar  o  panorama  que  lhe  fica  fora  do  alcance  da  vis- 
ta, e  que  elle  espera  será  diversa  e  mais  agradável  á  propor- 
ção que  for  progredindo. 

Do  mesmo  modo,  o  homem  de  intelligencia  cultivada, 
em  quanto  investiga  as  maravilhas  da  arte,  ou  os  phenome- 
nos  da  natureza,  traz  a  curiosidade  continuadamente  alimen- 
tada por  objectos  novos;  e  a  bisbilhoteira  da  aldêa,  que  não 
dá  outro  curso  aos  seus  pensamentos  que  não  seja  ao  dos  negó- 
cios domésticos  dos  visinhos,  mantém  a  curiosidade  tão  for- 
te como  incessantemente  excitada  pelo  segredar  do  escândalo, 
e  frivolidades  da  visinhança,  como  pôde  o  philosopho,  quando 
se  entrega  á  investigação  dos  mais  interessantes  phenomenos 
do  mundo  physico,  moral,  ou  intellectual. 

Segue-se  que   a   curiosidade   é  uma  paixão  inherente  ao 


homem  em  todas  as  condições,  desde  o  dourado  palácio  até 
á  choça  de  colmo,  e  opera  com  incessante  actividade  em  to- 
da a  escala  da  comprehensão  humana;  é  um  objecto  de  sum- 
ma  utilidade  e  importância  nos  seus  devidos  termos,  porque 
dirige  as  operações  do  espirito  no  campo  do  aproveitamento, 
e  dá-nos  conhecimentos  do  género  humano,  vasta  sociedade, 
de  que  cada  individuo  é  um  membro.  Para  isto  precisamos 
recorrer  á  leitura.  O  espirito  alimenta  se,  melhora  e  aper- 
feiçoa-se  com  a  leitura  e  instrucção.  O  entendimento  é  um 
claro,  que  se  pôde  encher  com  varias  qualidades  de  matéria, 
e  seja  elle  em  que  escala  for,  é  necessário  ler  e  reflectir  para  o 
robustecer:  E  por  que  ella  falta,  muitos  Platãos,  Aristóteles, 
Ciceros,   muitos   Lockes  e  Newtons  trabalham  d'arado. 

A  leitura  e  a  conversação  são  os  dois  grandes  conducto- 
res  d'informação,  mas  sem  que  se  cultive  a  primeira,  a  segun- 
da é  inefficaz.  O  liomem  que  não  tiver  formado  o  espirito  por 
meio  da  leitura  não  pode  dirigir  uma  conversação,  nem  co- 
lher muita  instrucção  por  aquelle  canal. 

Tem  sido  frequente  e  judiciosamente  observado,  que  a  lei- 
tura só  por  si  não  é  sufíiciente  para  nos  dar  um  completo  conhe- 
cimento da  espécie  humana.  Admittindo  a  justiça  d'esta  obser- 
vação, devemos,  todavia,  considerar  a  leitura  como  base  de 
toda  a  acquisição  intellectual,  que  nos  instrue  na  theoria,  do 
mesmo  modo  que  os  incidentes  reaes  da  vida  e  a  conversação 
nos  ensina  a  parte  practica  a  que  chamamos  conhecimentos 
do  mundo,  ou  do  homem. 

Para  se  obter  este  género  de  conhecimentos,  a  historia 
é  a  leitura  mais  necessária,  e  a  que  mais  conduz,  sem  com- 
paração, a  este  fim. 

Ha  livros  para  todas  as  capacidades  e  inclinações,  porém, 
podemos,  sem  hesitação,  dar  a  preferencia  â  historia  como 
vehiculo  d'informação  geral,  e  diz  Cicero,  que  a  nossa  educa- 
ção começa  no  berço,  e  acaba  na  sepultura,  comprehendendo 
os  variados  géneros,  d 'informação  que  o  espirito  embebe  du- 
rante a  vida,  por  todos  os  meios  tendentes  á  acquesição  de 
conhecimentos. 


A  poesia  presta-se  para  entreter  a  phantasia,  para  exaltar 
a  imaginação,  e  agitar  as  paixões,  mais  do  que  a  instruir  o 
espirito. 

O  poeta  cria,  na  sua  mente,  e  procura  formar  na  dos  ou- 
tros, um  mundo  ideal,  quasi  sempre  mui  diíferente  do  mun- 
do real.  Seus  caracteres  e  descripções  são  ficticios.  E,  como 
a  poesia,  o  romance  não  é  mais  que  uma  effusão  da  imaginação. 

Elle  descreve  em  varias  cores  as  obras,  os  soffrimentos.  ou 
os  successos  de  imaginários  personagens.  A  historia,  pelo 
contrario,  relata  as  acções  dos  homens  que  realmente  existi- 
ram, e  mostra  o  que  soífreram  e  o  que  fizeram.  O  romance 
descreve  o  homem  tal  como  podia  ou  devia  sêr.  A  historia 
representa-o  como  é  ou  fora.  A  primeira,  semelhante  â  poe- 
sia, pede  os  seus  traços  á  imaginação,  a  segunda  recebe-os  da 
natureza. 

A  historia  é*  a  exposição  do  homem  e  da  vida  humana,  e 
a  base  de  conhecimentos  geraes.  Irradia  as  idéas,  alarga  o 
espirito,  e  extirpa  os  prejuisos  mesquinhos  e  menos  liberaes, 
que  obscurecem  e  viciam  o  entendimento.  Desenvolvendo  as 
causas  que  influenciam  e  dirigem  as  opiniões  e  o  comporta- 
mento do  homem,  nas  differentes  idades,  nos  differentes  pai- 
zes,  e  nas  differentes  condiçõos  da  vida,  e  sob  differentes  go- 
vernos politicos  e  religiosos,  a  historia  tende  a  inspirar  senti- 
mentos liberaes  com  um  espirito  de  tolerância  e  benevolência 
universal. 

Em  quanto  contemplamos  os  phenomenos  do  mundo  mo- 
ral, e  as  scenas  infinitamente  diversas  e  complicadas  da  acção 
humana,  a  historia  expõe  em  ordem  suecessiva,  como  em 
quadro  vivo,  todas  as  differentes  gerações.  Ella  demonstra 
os  effeitos  dos  systemas  politicos  e  religiosos  sobre  as  nações 
e  sobre  os  indivicluos,  e  aponta  a  elevação  e  a  queda  d'im- 
perios,  reinos,  e  estados,  com  as  causas  da  sua  prosperidade 
e  declinação. 

Meditando  a  historia  das  nações,  temos  ensejo  para  in- 
vestigar as  circunstancias  que  deram  origem  â  sua  existência, 
que  promoveram  o  seu  engrandecimento,  que  os  precipitaram 


do  seu  apogeu,    ou    effectuaram    a   sua  final    subversão. 

Infelizmente  os  annaes  de  todos  os  paizes  desenvolvem  um 
tal   tecido    de  frande  e  violência,   uma   tal  serie  de   guerras, 
batalhas,  traições  e  estratagemas,  que  muitos  ha  que  tem  de- 
nominado a  historia    um   catalogo    de    crimes  e   misérias  da 
humanidade.    Estas    cousas,  porem,    não  devem  passar  desa- 
percebidas, porque  mostram  de  que  modo  as  paixões  humanas 
operam  nas  differentes  posições  e  circunstancias  da  vida,  eas 
consequências  da    sua   operação,    a  extrema,  instabilidade  de 
todas  as    cousas  sublimares,  e  a  natureza  incerta  de  todas  as 
expectativas  humanas;    porem,   estão  longe   de    constituir    a 
parte  mais  agradável,  ou  valiosa  da  historia.  O  entretenimen- 
to mais    racional,    como    também  a  instrucção   mais    solida, 
ministrados   pelo  estudo  cVhistoria,  nascem  do  ensejo  que  of- 
ferece  para  contemplarmos  o  progressivo    melhoramento   do 
espirito,  a  origem,  adiantamento  e  influencia  das  artes  e  scien- 
cias,  litteratura  e  commercio,  dos  systemas  e  opiniões,  o  esta- 
do geral  do  homem  nas   differentes  idades   e  differentes  pai- 
zes, e  o  seu  adiantamento,  desde  a  vida  selvagem  nos  mattos  e 
bosques,  até  chegar  á  sumidade  de  civilisação  e  conhecimen- 
tos que  se  encontram  nas  cidades,  collegios,  cortes,  e  senados. 
São  objectos  estes  que    fornecem    uma    fonte  inexgotavel  de 
passatempo  racional  e  interessante   informação    para  um  es- 
pirito investigador    e  philosophico ;    e  é  por  esta  razão  que 
cada  leitor  de  historia  deve  muito  attentamente   reparar  n'a- 
quelles  importantes  acontecimentos,    que  constituem  epochas 
na  vida  social,  que  operam   mudanças  permanentes  nas  con- 
dições do  género  humano,   e  que  parece  ter    originado    uma 
nova  ordem  cie  cousas. 

Estes,  como  interessantes  acontecimentos,  devemser  bem 
investigados. 

Estudando  doeste  modo  a  historia,  um  novo  campo  se  nosa- 
bre  ao  nosso  exame.  Veremos  como  os  homens,  estimulados  pe- 
la necessidade,  inventaram  primeiramente  as  artes  mais  necessá- 
rias ás  suas  commodidades  e  bem  estar;  como,  do  necessário,  pas- 
saram aos  objectos  do  commercio,  e  progressivamente  aos  do 


6 

luxo,  caminhando  de  grau  em  grau  d'apuramento  desde  o  a- 
vental  da  folha  de  figueira  até  o  manto  de  purpura  e  capa  de 
arminhos.  Um  espirito  investigador  descubrirá  os  efleitos  que 
que  aquellas  artes  de  necessidade,  conveniência  e  luxo,  teem 
produzido  sobre  as  condições  da  especia  humana,  dando  vida 
ao  commercio  e  a  toda  essa  infinita  variedade  de  omcios  tão 
intimamente  ligados,  a  ponto  de  serem  essencial  e  reciproca- 
mente necessários,  e  que  não  contribuem  pouco  para  cimen- 
tar o  edifício  da  sociedade,  tornando  os  homens  mutuamente 
dependentes  uns  dos  outros.  Observaremos  que  os  homens, 
mal  começaram  a  assentar  e  a  multiplicar,  conheceram  a  ne- 
cessidade de  se  unirem  em  sociedade,  de  definirem  as  suas 
respectivas  posições,  e  segurarem  a  posse  da  propriedade;  de 
estabelecerem  uma  subordinação  regular  na  sociedade,  de  re- 
frearem desejos  desordenados  por  leis  salutares,  e  de  se  sujei- 
tarem a  uma  forma  regular  de  governo;  e  veremos  como  a- 
quelles  governos,  estabelecidos  para  o  bem  commum,  depres- 
sa degeneraram  em  tyranma;  e  como,  por  continuadas  uzur- 
pações,  guerras  e  conquistas,  uns*absorvendo  outros,  se  uni- 
ram, formando  extensos  e  poderosos  impérios. 

Se  os  historiadores,  mormente  aquelles  de  remotas  eras,. 
tivessem  dado  a  esses  interessantes  pontos  toda  a  attenção 
que  lhes  cumpria,  em  vez  d'encherem  volumes  com  pouco 
mais  que  descripções  de  guerras,  batalhas,  sitios,  assassinios, 
uzurpações  e  massacres,  teriam  os  tido  uma  muito  mais  exacta 
emais  interessante  historia  do  mundo  do  que  hoje  possuímos, 
ou  esperamos  nunca  possuir;  mas  infelizmente  os  antigos 
escriptores  prestaram  pouca  attenção  áquelles  objectos,  em 
quanto  dão  nos  detalhados  annaes  de  mortandade  e  dessolação 
com  a  maior  mínuciozidade,  como  se  tivessem  as  scenas  de 
morte  e  sangue  como  único  assumpto  digno  da  attenção  da 
posteridade,  e  que  podesse  recrear  o  leitor.  Se  elles  tivessem 
dado  ás  suas  sanguinolentas  paginas  uma  côr  mais  mimoza, 
animando-as  com  descripções  commerciaes,  scientificas  e  lite- 
rárias, a  historia  seria  muito  mais  instructiva,  deleitoza,  e  ap- 
proveitavel. 


CARTA  SEGUNDA 


Como  sabeis,  tem  sido  observado  por  muitos  e  competen- 
tes juizes,  e  até  mesmo  asseverado  por  alguns  que  faliam  por 
experiência  própria,  que  a  leitura  de  historia  contribue  pode 
rozamentepara  o  desenvolvimento  d'idéasmarciaese  para  dirigir 
o  gosto  da  mocidade  inexperiente  para  a  vida  militar.  Relatam 
alguns  historiadores,  que,  quando  os  godos  foram  convertidos  ao 
christianismo,  eque  a  escriptura  sagrada  foi  vertida  para  o  seu 
idioma,  julgou-se  prudente  omnitir  n'aquella  traducção  os  li- 
vros dos  reis,  por  cauza  das  frequentes  narrações  de  guerra  e 
carnificina,  e  com  receio  que  aquelle  exemplo  estimulasse  seu 
animo  guerreiro  e  selvagem  a  actos  de  violência,  para  os 
quaes  tinham  uma  natural  tendência;  e  que,  por  uma  interpre- 
tação fatal,  pensassem  que  a  guerra,  conquista,  e  rapina,  eram 
sancionados  pela  religião  que  tinham  abraçado.  Se  isto  é  exa- 
cto, claramente  se  vê  a  opinião  que  os  homens  esclarecidos 
d'aquelle  tempo  entretinham  da  influencia  que  tem  as  des- 
cripções  d'emprezas  militares  sobre  o  espirito  inculto.  Toda- 
via, esta  influencia  não  se  attribue  inteiramente  ao  systema  de 
narração  adoptado  geralmente  pelos  historiadores;  mas  tam- 
bém a  errada  intelligencia  da  parte  do  leitor,  ou  á  sua  falta  de 
reflexão. 

O  espirito  juvenil  pode  ser  facilmente  mal  encaminhado  por 
um  louvor  imprudente,  tributado  âquelles  cujos  talentos  milita- 
res os  tornaram  felizes  em  campanha,  até  mesmo  quando  âquel- 
les talentos  se  empregavam  na  uzurpação  de  thronos  a  que  não 
tinham  direito,  ou  na  conquista  de  paizes  cuja  soberania  não  po- 
diam reclamar.  Mas  o  leitor  de  si  mesmo  se  deve  queixar,  se  se 
deixar  seduzir  por  idéas  românticas,  ou  se  tirar  concluzões  er- 
radas, por  menos  justas  e  appropriadas  reflexões  sobre  as  ac- 
ções e  acontecimentos  da  vida  humana  e  suas  consequências. 
Uma  reflexão  qualquer,  não  solhe  daria  uma  idéa  clara  dos  cri- 
mes de  muitos  vultos  da  historia,  como  também  o  convenceria 
da  extrema  incerteza  da  fama  militar. 


8 

Devemos  admittir,  sem  restricção,  o  valor  intrinsico  e  incon- 
testável respeitabilidade  das  qualidades  militares  quando  bem 
dirigidas:  O  abuzo  d'ellas  é  que  tão  somente  se  faz  condern- 
navel. 

A  classe  militar  é,  e  deve  ser  respeitada;  porém  a  necessi- 
dade da  sua  existência  é  que  é  um  mal  moral;  e  o  folgar  em 
guerras  é  culpável.  A  verdadeira  coragem  consiste  em  resis- 
tir ao  infortúnio,  ou  á  agressão,  em  quanto  for  possível,  em 
soffrer  a  adversidade  com  magnanimidade  e  inabalável  forta- 
leza; a  indole  de  maltratar  o  nosso  semelhante  não  é  ca- 
racterístico de  valor,  mas  sim  d'uma  ferocidade  selvagem.  Não 
podemos  demasiadamente  elogiar  aquelles  que,  chamados  em 
defeza  da  pátria,  se  destinguem  pela  sua  coragem  e  bravura 
em  campanha.  A  perícia  militar,  e  o  sangue  frio,  entre  os  hor- 
rores e  os  perigos  da  guerra,  juntos  ao  amor  da  paz,  caracte- 
rizam o  verdadeiro  heroe;  em  quanto  que  o  deleite  sanguiná- 
rio na  carnificina  é  o  signal  inequívoco  do  bárbaro,  e  pró- 
prio d'um  Attila,  d'um  Bajazeto,  ou  d'um  Tamerlão. 

Se  aquelles  que  se  deleitam  em  compulsar  a  historia  de 
feitos  militares  entendessem,  ou  quizessem  reflectir  sobre  a 
natureza  da  guerra,  verião  sobre  que  infinidade  de  cauzas  im- 
previstas e  apparentemente  triviaes,  depende  o  bom  êxito 
d'uma  campanha,  ou  d'uma  expedição  militar,  e  descobririam 
que  aos  exforços  combinados  d'uma  multidão  de  combatentes 
subordinados,  desde  o  chefe  de  divizão,  até  ao  soldado  razo, 
está  dependente  o  resultado  d'uma  acção  e  a  gloria  do  com  - 
mandante.  Se  entrarmos  n'umaj  usta  apreciação  das  acções 
humanas,  acharemos  que  a  maior  parte  dos  heroes  da  histo- 
ria mereceram  antes  o  titulo  de  salteadores  e  assassinos  do 
que  o  de  conquistadores;  mas  a  loucura  dos  homens  sobrecar- 
rega muitas  vezes  de  pompozo  louvor,  aquelles  caracteres  di- 
gnos do  seu  desprezo,  e  em  vez  d'occuparem  um  logar  nos 
annaes  da  posteridade  devião 

«Jazer  esquecidos  a  par  dos  tyrannos, 
E  em  pó  desfazer-se  as  estatuas  e  nomes » : 


9 

Arrepiamos  nos  com  a  idéa  dos  sacrifícios  humanos  dos 
Pkinicios  e  Carthagenezes  e  outras  nações  da  antiguidade; 
dos  Mexicanos,  ha  apenas  três  séculos,  e  ainda  hoje  entre  muitos 
povos  dispersos  nas  ilhas  do  mar  pacifico,  e  recentemente  des- 
cobertas pelos  nossos  modernos  navegadores;  e  não  podemos 
deixar  de  olhar  com  uma  mixtura  de  dó,  desprezo  etedio, 
gentes  que  otíerecem  taes  holocaustos: 

Porque  estranha  illuzão — é  que,  quando  acontece  ver-se  um 
homem,  sobre  cujoaltar  de  ambição  e  avareza,  mais  victimas 
foram  imoladas  em  um  dia,  que  as  referidas  nações  sacrifica- 
ram em  meio  século,  nos  prostramos  e  adoramos  o  ensan- 
guentado idolo  ? — Se,  em  summa,  esse  heroe,  tivesse,  pelo  só 
poder  de  seu  braço,  ceifado  as  fileiras  inimigas  e  reduzido 
centenas  e  milhares  de  creaturas  a  pó,  poderíamos,  talvez, 
respeital-o  como  um  ente  superior,  com  quanto  malévolo,  e, 
pelo  terror  de  seu  nome,  cair  aos  pés  do  grande  destruidor. 
Porém,  infelizmente,  vemos  no  poderozo  conquistador  muito 
apenas  um  homem  fraco  e  enfermo  como  nós,  inferior,  talvez, 
em  coragem  e  forças,  a  muitos  soldados  do  seu  exercito;  e  que 
não  possue  dotes  phisicos  ou  moraes,  pelos  quaes,  em  igual- 
dade de  circumstancias,  podesse  sobresair  a  muitos  indiví- 
duos entre  a  multidão  deseonhecida  que  segue  o  seu  estan- 
darte. 

Se  os  historiadores  teem  offuscado  a  posteridade  com 
as  deslumbrantes  cores  com  que  nos  pintam  os  feitos  dos  seus 
celebres  destruidores  do  género  humano,  o  leitor  perde-se  por 
não  reflectir  devidamente  nas  circumstancias  que  acompa- 
nham aquelles  acontecimentos. 

Lendo  as  façanhas  d'Alexandre,  Scipião,  Hannibal  e  Cezar, 
ou  d'outros  modernos  cabos  de  guerra,  seguimos  attentamen- 
te  o  chefe,  admiramos  a  sua  pericia  militar,  e  sentimo  nos  in- 
teressados na  sua  sorte,  sem  ao  menos  pensarmos  um  momen- 
to na  multidão  d'inferiores  que  caem  a  seu  lado,  e  no  immenso 
numero  de  victimas  sacrificadas,  antes  que  o  idolo  resplende- 
cente  se  eleve  ao  seu  altar.  Se  cada  um,  cuja  imaginação  se 
escandece  denthusiasmo  militar,  tivesse  a  certeza  dalcançar 


10 

toda  a  fama  e  gloria  que  deseja,  a  ambição  teriaalguma  des* 
culpa,  mas  aquelles  que  desejam  obter  nomeada,  dessolando  o 
mundo,  e  destruindo  os  seus  semelhantes,  deveriam  considerar 
que  gloria  e  fama  não  podem  ser  a  partilha  de  todos;  e  que 
nas  legiões  romanas  houve  só  um  ('czar,  e  um  SÓ  Alexendre 
no  exercito  que  conquistou  a  Pérsia.  De  lodos  os  officiaes  su- 
bordinados que  serviram  sob  as  ordens  d'aquelles  celebres 
conquistadores,  quam  poucos  se  acham  enlistados  nos  annaes 
da  gloria  militar  !  Quam  poucos  transmittiraím  seus  nomes  á 
posteridade!  E,  comtudo,  muitos  d  aquelles  heroes  secundá- 
rios eram  iffuaes  em  coragem  e  destreza  ao  eonunandanto 
em  chefe.  Os  Comm andantes  de  destacamentos  e  devizões, 
com  quanto  o  resultado  do  plano  geral  d'operações  dependa 
principalmente  do  seu  merecimento,  raras  vezes  icem  a  for- 
tuna de  verem  seus  nomes  baixar  á  posteridade,  em  quanto 
que  aquelle  do  general  sobresae  nos  annaes  da  historia. 

O  olhar  fixa-se  sempre  sobre  o  commandante  em  chefe. 
Com  quanto  Cezar,  nos  seus  commentarios,  se  nao  recuza  a 
reconhecer  o  mérito,  e  a  descrever  os  feitos  dos  seus  oiHcia.es, 
pouco  saltemos  do  seu  caracter  e  talento.  Do  perigo  e  fadiga, 
da  guerra  da  gallia  partilharam  elles;  a  gloria  da  conquista 
porém  é  toda  de  Cezar. 

Os  grandes  chefes,  que  serviram  com  Alexandre,  com 
quanto  fossem  homens  de  habilidade  militar  consutnmada, 
soldados  de  provado  merecimento  e  coragem,  disciplinados 
sob  os  marciaes  pendões,  e  instruídos  por  Philippe  de  Macedó- 
nia, teriam  passado  desapercebidos,  se  nao  tivessem  apode- 
rado e  dividido  entre  si,  os  domínios  do  seu  victorioso  senhor, 
exterminado  a  sua  família  ,etingido  as  cans  no  sangue  uns 
dos  outros,  fazendo-se  mais  conspícuos  pelo  crime  do  que 
por  seus  talentos  politicose  militares. 

Sc  estudássemos  historia  philosophicamente,  deveríamos, 
lendo  a  descripçao  d'uma  campanha,  em  vez  de  prestar  a  at- 
tenção  inteiramente  ;i  sorte  do  general,  contemplar  igualmen- 
te as  privações  soffridas  pelos  bravos  soldados  que  compõe  o 
seu  exercito,  e  a  cujo  valor  e  esforços  elle  deve  oseu  triumpho 


1! 

e  glotfia.'Se  pensássemos  no  infinito  numero  de   combate 
que  dizima,  não  só  a  espada,  mas  também  aífome,  aépíd< 
e  a  fadiga  iusopcraveis  da  guerra,  é  que  báixãò  á  palia,  d< 
nhecidos  e   sem   distincção,    achar-nos-hiamos  babilitadoí 
formar  melbor  juízo  doa  horrores  das  batalhas  e  descobriríamos 
que  aquelles  brilhantes  feitos  dermas  que  resplandecem  corri 
um  brilho  seductor  nas  paginas  da  historia,  com  quanto  não 
passem  de  farças  recreativas  para  os  leitores,  são   tragedias 
n;i.<  -i  para  um  grande   numero  dos  que  representam  n'éllas, 
como  também  para  milhares  dfoutros  que  sé  acham   ínvolvi- 
dos  nas  suas  consequências. 

Fosse  a  historia  estudada  como  cumpria,  as  mais  trágicas 
descripçdes  que  mancham  eé  suas  ensanguentadas  paginas 
poderiam  approveitar  á  nossa  ínstrucção,  subordinadas  á 
boa  razão. 

8e  ao  menos  attendessemos  ás  lagrimas  da  viuva  e  âO 
orphao,  bc  podessemos  escutar  os  gemidos  dos  feridos  é  inò- 
ríbttndos,  c  se  nos  figurasse  a  apparencia  esplendida  e  bellí- 
cà  à?um  exercito  ao  entrar  em  campo,  comparada  com  o  es- 
pectáculo dolorozo  dos  seus  restos  despedaçados,  depois 
de  renhida  peleja  ou  sanguinolenta  campanha,  ficaríamos 
attonítos,  e  contemplaríamos  horrorizados  os  terríveis  efíeitos 
das  paixões  humanas.  Uma  cabeça  bem  organizada,  deduzi- 
ria destas  considerações  ínstrucção  e  entretenimento;  entre- 
tenimento trágico  de  certo,  porém  que,  fazendo  brotar  emo- 
ções de  dó,  dá  prazer  á  alma  sensível  e  compadecida. 

Para  se  Mrár  o  rerdadeíro  partido  da  historia,  o  leitor 
preciza  examinar1,  reflectir,  e  comparar;  e  preciza  igualmente 
ter  um  coração  dotado  de  sentimento.  O  homem  incapaz  de 
sentir  OS  males  alheios,  insusceptível  dose  impressionar,  olJjan 

do   a  infelicidade   do  seu  semelhante,  sem  poder  coHocar«sé 

no  seu  lo^ar,  a  lim  de  pensar,  sentir  e  obrar  em  idênticas  cir- 
cunstancias, não  tem  a  preciza  dispo  '  -  pari  o  estudo  de 
historia;  porque  do  modo  por  que  escreveram  os  antigos,  e 
ainda  hoje  escrevem  os  modernos  historiadores,  cada  pagina 
é  um  drama. 

3 


12 


Quando  tiverdes  ponderado  estas  reflexões,  e  examinado  a 
sua  justiça  e  propriedade,  não  duvido  que  merecerão  a  vossa 
approvação.  No  entanto,  vamos  entrar  n'um  campo  mais 
aprazível. 


Apresenta-se-nos  agora  um  objecto  interessante  e  digno 
da  nossa  apreciação,  em  que  uma  meditação  judicioza  dliisto- 
ria  contribuo  eminentemente  para  desenvolver  a  natureza  do 
entendimento,  e  para  corrigir   as  nossas  idéas  e  opiniões. 

Em  quanto  o  plyilosoplio  contempla  a  quasi  interminável 
variedade  d'estabelecimentos  políticos  e  religiosos  existentes 
no  mundo,  e  o  curso  das  idéas  do  homem  em  difíerentes  épo- 
chas,  e  em  difíerentes  paizes,  a  historia,  vem  poderosamente 
em  seu  apoio;  e  diiatando-llie  a  vista  e  as  idéas,  extingue  a- 
quelles  prejuízos  menos  liberaes  que  estreitam  o  espirito,  que 
embotam  os  sentidos,  e  obscurecem  o  entendimento.  O  erro  e 
o  prejuizo  teem  uma  quasi  influencia  universal  sobre  o  ho- 
mem; e  é  só  em  proporção  ao  derramamento  de  luz  sobre  o 
espirito,  que  esta  influencia  dimiuue  ou  se  aniquila.  Certas 
preoccupações  se  assenhoreão  de  nós  e  dominam  a  nossa  ra- 
>  desde  a  infância,  desde  o  primeiro  raiar  da  intelíigencia: 
São  inspiradas  por  hábitos  systematicos  embebidos  com  o 
leite,  por  opiniões  correntes,  e  pela  conversação  e  authoridade 
daqueiles que  nos  cercam,  que  nos  são  mais  queridos,  e  que 
exercem  sobre  nós  maior  influencia.  Cada  nação,  cada  seita 
religiosa,  cada  classe  da  sociedade,  tem  prejuízos  particulares 
que  se  fortificam  por  circunstancias  diversas;  adquirem  raiz 
mais  profunda  conforme  os  livros  que  se  estuda,  conforme  o 
paiz  em  que  se  vive,  a  condição  social,  e  milhares  d'outros  inci- 
dentes. Se  pegássemos  em  certo  numero  de  creanças,  cujas  ca- 
pacidades fossem  aproximadamente  as  mesmas,  se  a  todas  dés- 
semos igual  educação,  e  as  coliocassemos  no  mesmo  mister, 
qualquer  ligeira  differença  que  se  notasse    no   seu  aproveita' 


13 

mento,  devido  aos  seus  differentes  graós  de  applicação  e  intel- 
ligeneia,  ou  outras  circunstancias  accidentaes,  sempre  encon- 
traríamos em  todas,  mais  ou  menos,  o  mesmo  pensar,  os  mes- 
mos prejuízos,  as  mesmas  idéas  e  opiniões.  Porém  se,  do  con- 
trario, tiverem  sido  educadas  cada  uma  a  seu  modo,  seguindo 
differentes  caminhos  —  se  de  um  fizermos  soldado ,  — 
d'outra  um  marinheiro, — cVoutra  um  lavrador, — d'outra  um 
negociante, — se  outra  for  educada  em  um  convento,  entran- 
do em  uma  das  ordens  religiosas  da  igreja  Romana, — outra 
ministro  da  igreja  protestante, — outra  enviada  a  um  paiz  ma- 
hometano,  e,  depois  d/uma  educação  própria,  vier  a  ser  mufti 
da  religião  musulmana,  —  se  outra  for  educada  entre  os 
Bhramanes  da  índia, — e  outra  entre  os  Tártaros,  ou  entre  os 
discípulos  de  Confúcio,  ou  adoradores  de  Foe,  na  China  ou 
no  Japão,  viriamos  nos  seus  dimerentes  prejuízos,  opiniões  e 
idéas  geraes,  toda  a  força  e  influencia  das  circunstancias  ex- 
ternas e  eventuaes  sobre  os  homens:  O  prejuízo  por  mil  dif- 
ferentes formas  actua,  mais-  ou  menos,  sobre  cada  individuo 
da  espécie  humana;  mas  especialmente  sobre  o  homem  rude 
e  analphabeto,  sobre  os  escravos  de  hábitos  systematicos,  e  das 
modas;  e  a  sua  influencia  é  prejudicial  á  cultura  do  espirito 
bem  como  á  verdadeira  religião  e  caridade  christã.  Creando 
a  ignorância  e  o  orgulho,  o  prejuízo  tende  a  enfraquecer,  ou  a 
destruir  a  philantropia  universal,  tão  recommendada  pelo 
Author  da  religião  christã. 

Nada  contribue  tanto  para  exterminar  prejuízos  mesqui- 
nhos como  são  os  conhecimentos  geraes  d'aquellas  circunstan- 
cias e  acontecimentos  que  em  differentes  idades,  teem  tido  lo- 
gar  no  mundo,  e  que  teem,  d'um  modo  decidido,  determina- 
do a  condição  e  opiniões  da  humanidade;  e  estes  conhecimen- 
tos provêem  do  judicioso  estudo  da  historia  antiga  e  mo- 
derna. 

D'aqui  nascem  idéas  claras  e  grandiosas,  com  as  quaes 
se  não  casa   o   espirito  de  perseguição  e  intolerância. 

Em  quanto  o  fanático  protestante,  condemna,  talvez,  sem 
apreciação  alguma,  o  que  elle  denomina  os  absurdos  da  ígre- 


14 

ja  catliolica,  o  catholico  fanático  escommunga  o  protestante 
que  nega  obediência  áquella  que  elle  reputa,  igreja  infallivelf 
em  quanto  o  calvinista  condernna  o  arménio  e  o  arménio  ao 
calvinista,  porque  raciocinam  differentemente  sobre  o  mys- 
terioso  plano  da  redempção,  e  dos  decretos  divinos;  em  quan- 
to os  fanáticos  de  cada  crença  se  condemnam  e  perseguem 
mutuamente;  o  pliilosopho  esclarecido,  qualquer  que  seja  a 
sua  crença,  vê  em  cada  homem  um  irmão;  e  considera  a 
massa  collectiva  da  humanidade  como  uma  familia,  filhos  de 
um  Pae  commum.  Em  quanto  o  fanático  não  respira  senão 
intolerância  e  perseguição,  o  christianismo  illustrado  e  bené- 
volo considera  as  diíferentes  nações  do  mundo  como  vivendo 
sob  diverso  regimen,  e  os  entrega  todos  nas  mãos  d'um  Ente 
Divino,  que  rege  e  dispõe  de  tudo  como  julga  conveuienter 
e  d'uma  maneira  que  a  nossa   fraca  razão  não  alcança. 


Colhemos  mais  vautagens  d'um  estudo  judicioso  e  metho- 
dico  de  historia  do  que  se  pode  enumerar;  porém,  para 
seguirmos  este  ramo  de  modo  que  possamos  haver  instrucção 
e  informações  authenticas,  devemos  estar  em  guarda  contra 
os  erros  e   imperfeições  dos  historiadores. 

A  historia  é  uma  parte  útil  e  nobre,  mas  muito  defeituosa,  da 
litteratura.  Se  considerarmos  a  dificuldade  que  se  encontra 
em  apurar  a  verdade  no  tocante  a  factos  acontecidos  nos  nos- 
sos dias,  em  que  a  arte  da  imprensa  concorre  poderosamen- 
te para  o  derramamento  de  conhecimentos,  e  franqueia  os 
carmes  da  informação,  tornando  tanto  a  revelação  da  verdade, 
como  o  descobrimento  da  falsidade  de  mais  íacil  e  rápido  al- 
cance do  que  nos  tempos  passados,  não  podemos  rasoavel- 
mente  ter  plena  confiança  nas  narrações  de  circunstancias 
particulares  que  acompanharam  os  acontecimentos  da  anti- 
guidade. Se  fora  possivel  aos  historiadores  transmittir-nos  as 
intrigas  secretas  das  cortes  e  gabinetes,  e  explorar  as  verda- 


15 

deiras  causas  das  acções  humanas,  a  historia  seria  muito  mais 
valiosa,  porque  apresentaria  um  quadro  mais  exacto  da  hu- 
manidade, demonstrando  com  mais  clareza  as  causaes  secre- 
tas dos  grandes  acontecimentos.  Não  podemos,  porém,  pre- 
sumir que  elles  obtivessem  informações  seguras  sobre  ma- 
térias que  geralmente  se  ajustam  com  o  maior  segredo; 
e  por  tanto  devemo-nos  acautelar  contra  o  que  nos  dizem 
aquelles  historiadores,  que,  para  realçar  os  seus  escriptos, 
recorrem  á  imaginação,  e  fazem  supprir  pela  conjectura  o  lo- 
gar  que  só  devia  occupar  a  informação  authentica.  Taes 
escriptores,  não  podendo  dizer-nos  como  as  suas  personagens 
fallaram  e  procederam  em  certas  occasiões,  obrigam-nos  a 
fallar  e  a  proceder  como  elles  próprios,  em  idênticas  cir- 
cunstancias, fariào.  As  eloquentes  orações  que  apparecem  em 
Tito  Livio,  Jozephus,  Salustio  e  outros  historiadores  antigos 
embellezam  as  suas  obras,  agradam  ao  leitor  e  provam  vanta- 
josamente os  talentos  do  escriptor,  mas  devem  na  maior  par- 
te ser  considerados  como  discursos  do  author,  e  não  dos  in- 
dividuos  a  quem  são  attribuidos.  Alguns  escriptores  tem  o 
arrojo  de  nos  dar  um  detalhe  dos  debates  dos  concelhos  pri- 
vados, das  mais  secretas  conversações  e  intrigas  palacianas, 
com  a  precisão  de  quem  fora  ministro  d'estado  de  principes 
que  viveram  nos  tempos  a  que  se  referem,  e  que  nada  se  pas- 
sara sem  o  seu  conhecimento;  nem  tão  pouco  escrupulisam 
entreter-nos  com  narrações  circunstanciadas  d'uma  batalha, 
ou  d'um  cerco,  ou  mesmo  das  operações  duma  campanha  in- 
teira, feitas  com  tão  pretenciosa  fidelidade,  como  se  elles  em 
pessoa  entrassem  em  campo  com  o  exercito,  e  acompanhas- 
sem cada  destacamento  empregado  nos  differentes  serviços 
durante  toda  a  contenda.  Taes  descripções  devem  ser  recebi- 
das com  reserva,  e,  geralmente  fallando,  inteiramente  des- 
presadas.  Dizia  o  doutor  Johnson :  «  Falíamos  em  historia, 
mas,  não  consideramos  quão  pouca  historia,  realmente  verda- 
deira, temos. 

Não  se  questiona  se  estes  e  aquelles  reis  reinaram,  se  taes  ba- 
talhas se  deram,  se  taes  praças  foram  tomadas,  e  taes  paizes  cob- 


16 

quistados ,    como  se  nos  conta;  mas  convém  notar  que  todo  o 
colorido    de  historia  é  mera  ficção. » 

Tão  somente  os  grandes  traços,  os  mais  importantes  factos 
que  tem  dado  origem  a  effeitos  notáveis,  devem  attrair  a 
nossa  attenção,  excitar  a  nossa  reflexão  e  occupar  logar  na 
nossa  reminiscência.  Este  meio  d'estndar  historia,  fará,  não 
ha  duvida,  circunscrever  os  seuslimites,  e  trazel-a  a  um  circulo 
mais  limitado,  mas  hade  realçar  o  seu  valor,  porque 
rejeita  erros  e  tudo  que  è  supérfluo,  aproveitando  as  informa- 
ções genuínas  que  offerece.  No  que  respeita  a  detalhes  histó- 
ricos, toda  a  vez  que  o  escriptor  os  offerece  ao  exame  do  lei- 
tor, deve,  sob  pena  de  pôr  a  sua  reputação  em  risco,  provar, 
como,  e  d'onde  obteve  as  informações  que  apresenta,  aliás 
tem  de  perdoar  a  incredulidade  dos  vindouros,  se  não  derem 
inteiro  credito  aos  seus  escriptos. 

As  conjecturas  engenhosas  e  racionaes  sobre  as  causas, 
consequências  e  circunstancias,  são  certamente  admissíveis, 
e  até  em  muitos  casos  desejáveis  em  historia,  porque  tendem 
a  auxiliar  as  reflexões  do  leitor,  suggerindo-lhe  idéas  que  lhe 
não  teriam  facilmente  occorrido,  mas  devem  ser  dadas  como 
taes,  e  não  como  factos. 

As  observações  e  deducções  d'um  historiador  sagaz  e 
philosophico  podem  apresentar  o  objecto  debaixo  d'um  ponto 
de  vista  mais  luminoso  do  que  se  constasse  d'uma  simples  re- 
lação do  facto;  mas  o  leitor  cauteloso  deve  sempre  considerar 
as  suas  observações  como  meras  conjecturas,  se  as  probabi- 
lidades não  forem  tão  fortes  que  lhes  estampem  o  cunho  e 
valor  d'uma  authenticidade  inquestionável.  Muitos  historia- 
dores escreveram  séculos  depois  dos  acontecimentos  que  des- 
crevem, e  por  consequência  basearam  as  suas  obras  sobre  re- 
cordações avulsas  e  fragmentos  d'outros  escriptos,  de  cuja 
veracidade  não  poderam  conhecer,  nem  tão  pouco  descobrir 
por  que  meios  aquella  noticia  fora  adquirida  e  a  influencia 
estranha  que  os  dominaram.  Nós  sabemos  sob  que  auspicios 
escreveu  Voltaire  vários  traços  históricos,  e  ninguém  ignora 


17 

que  Josephus  descreveu  as  guerras  dos  judeus  sob  a  influen- 
cia dos  romanos. 

Muitos  tem  cuidadosamente  dado  aos  seus  escriptos  uma 
forma  adequada  a  agradar  aos  seus  protectores,  e  a  attrahir 
amigos  entre  uma  classe  particular.  Outros  temem-se  do  re- 
sentimento  d'homens  collocados  no  poder ,  e  sobre  outros 
actua  a  honra  do  seu  paiz,  ou  o  amor   de  partido. 

O  que  sabemos  dos  acontecimentos  dos  gregos  e  romanos 
vem  d'escriptores  d'essas  nações:  por  consequência,  devemos 
suppor  parcialidade  nas  suas  relações,  com  esta  differença, 
que,  sendo  a  Grécia  dividida  em  muitos  estados  independen- 
tes, rivalisando  em  gloria,  reputação,  e  prosperidade;  e  sendo 
numerosos  os  escriptores  entre  elles,  eram,  de  certo  modo 
íiscaes  uns  dos  outros,  o  que  os  obrigava  a  serem  conscien- 
ciosos, e  isto  não  aconteceu  entre  os  romauos,  que  estando 
unidos  em  um  va^to  corpo  politico,  e  animados  por  fortes 
prejuízos  nacionaes,  estavam  á  vontade  para  escreverem  a 
gosto. 

Comtudo,  se  o  amor  pátrio  dos  gregos  não  teve  tantas 
largas  como  gozaram  os  romanos,  a  viveza  da  sua  imagina- 
ção, e  a  sua  natural  propensão  para  a  idealidade,  forneceram 
ampla  matéria  para  o  engendramento  de  narrações  poéticas, 
e  de  facto,  as  primeiras  historias  gregas  não  se  podem  ter  na 
conta  senão  de  fabulosas.  Muitas  observações  d'estas  sobre  a 
historia  grega  e  romana  podem  applicar-se,  em  larga  escala, 
á  generalidade  de  historiadores  d'outras  nações  e  d'outras  ida- 
des. 

De  todas  as  variedades  d'assumptos  históricos,  a  historia 
ecclesiastica  seria  a  mais  valiosa,  se  podessemos  confiar  na 
sua  authenticidade ;  porem,  infelizmente,  por  um  estranho 
desvio  do  verdadeiro  curso  das  cousas,  aquillo  que  devia  ser 
melhor,  é  pelo  contrario  o  peior  ;  porque,  aqui,  alem  da  má 
informação,  e  outros  defeitos  inherentes  á  historia  em  geral, 
os  prejuizos  religiosos  influem  poderosamente.  Os  annaes  da 
igreja,  são,  na  maior  parte  escriptos  por  ecclesiasticos,  forte- 
mente ligados  a  este  ou    áquelle   ponto  theologico,    que  elles 


18 

consideram  uni  dever  religioso  sustentar,  e  um  meio  para  a 
salvação  eterna.  Não  podemos,  portanto,  esperar  uma  histo- 
ria authentica  e  imparcial  da  igreja  christâ"  sahida  das  mãos 
d'um  fanático  catholico  ou  protestante.  Se,  hoje,  um  author 
se  pozesse  a  escrevel-a,  os  documentos  que  lhe  servissem 
de  base,  seriam  tão  repassados  de  prejuízo  e  espirito  de  seita, 
que  em  breve  tempo  se  perderia  no  intrincado  labyrintho  de 
contendas  religiosas,  e  acharia  a  verdade  tão  corrompida  pe- 
las contradicções  cavilosas  d'escriptores  theologicos,  a  ponto 
d'apresentar  obstáculos  invenciveis  á  execução  do  seu  desí- 
gnio. O  mal  agora  é  por  consequência  irremediável.  Elie 
pôde  comtudo  attenuar-se  pelo  bom  senso  e  penetração  do 
leitor,  observando  restrictamente  esta  regra,  que  na  estima- 
ção do  valor  intrinsico  das  obras  dos  historiadores,  estadistas, 
e  theologos,  mas  particularmente  nas  d'estes  últimos,  deve- 
mos, em  primeiro  logar,  procurar  descobrir  a  influencia  de 
prejuizos,  paixões,  ou  interesses,  sob  os  quaes  se  lançou  mão 
da  pennapara  escrever,  para  então  dar  o  devido  desconto  aos 
effeitos  que  taes  influencias  lhes  devião  necessariamente  pro- 
duzir nos  ânimos.  Este  é  o  fio  que  nos  deve  guiar  atravez  o 
labyrintho  de  asserções  contradictorias,  opiniões  bruscas,  e 
differentes  representações  das  mesmas  acções  e  circunstan- 
cias, que  nos  deve  dirigir  na  apreciação  do  mérito  dos  autho- 
res,  e  determinar  até  que  ponto  podemos  acreditar  o  seu  tes- 
temunho, e  a  deferência  devida  á  sua  opinião.  Sem  este  ex- 
ercício das  faculdades,  os  livros  podem  tanto  desencaminhar- 
nos  como  instruir-nos.  Avaliando  a  authenticidade  de  rela- 
ções históricas,  três  são  as  regras  principaes  a  obsarvar;  a 
probabilidade  ou  incerteza  dos  factos  recordados,  a  natureza 
da  prova  que  os  confirma,  e  até  que  gráo  são  corroboradas  ou 
contradictas  pelas  circunstancias  geraes  do  mundo  ao  tempo 
em  que  tiveram  logar.  Sobre  estes  principios  deverá  o  leitor 
exercer  o  poder  descrecionario  de  acreditar  ou  suspender  o 
seu  juizo;  evitando  todavia  cuidadozamente,  os  dous  extremos 
do  scepticismo  e  da  credulidade,  que  são  igualmente  adversos 
ao  melhoramento  da  instrucção. 


19 

CARTA  QUÍITA 

Outra  consideração  d^igual  peso,  e  ainda  mais  evidente 
importância,  brota  espontaneamente  no  espirito  do  leitor. 

Um  perfeito  conhecimento  de  geographia  e  de  chronolog-ia 
torna-se  indispensável  ao  estudo  de  historia. 

Estas  são  as  duas  grandes  lnzes,  sem  as  quaes  seria  a  his- 
toria um  chãos,  e  sem  a  devida  attenção  ás  circunstancias  de 
tempo  e  iogar,  narração  alguma  seria  intelligivel,  nem  pode- 
ríamos investigar  as  causas  e  consequências  dos  acontecimen- 
tos. A  geographia  é  uma  sciencia  instructiva,  e  o  seu  estudo 
extremamente  deleitoso  5  porém,  á  semelhança  da  historia, 
«stá  sujeita  a  uma  infinidade  d'erros  e  defeitos,  menos  difri- 
ceis,  comtudo,  a  corrigir  do  que  aquelies  da  historia.  A  dis- 
tancia de  mil  léguas,  como  o  decurso  de  mil  annos,  dá  mar- 
gem ao  erro,  e  logar  ao  abuso  de  credulidade  dos  leitores, 
apresentando  descripções  fictícias;  mas  estes  erros,  ou  absur- 
dos ,  d'escriptores  geographos,  estão  sujeitos  á  censura 
e  correcção  de  cada  viajante;  e  só  esta  consideração  basta 
para  afastar  o  escriptor,  que  preza  a  sua  reputação,  de 
empregar  a  falsidade. 

Respeitante  á  correcção  d^erros  e  defeitos,  uma  circumstan- 
cia  notável  e  particular  descrimina  as  obras  dos  geographos 
d'aquellas  dos  historiadores.  A  geographia  presta-se  á  correi- 
ção e  aperfeiçoamento,  em  quanto  que  as  transacções  e  acon- 
tecimentos da  historia,  pertencendo  ao  passado,  de  dia  £>ara 
dia  vão  caindo  em  obscuridade. 

A  verdade  geographica  pode  ser  satisfactoriamente  levada 
á  evidencia,  ou  a  sua  menos  veracidade  descoberta  por  ulte- 
rior inquirição;  porém  os  factos  históricos  apenas  existem 
nos  annaes  do  tempo  e  memoria  da  posteridade.  Um  paiz 
pôde  ser  revisitado,  mas  as  cousas  passadas  não  podem  ser 
invocadas  e  apresentadas  novamente  ao  nosso  exame. 

Os  geographos  podem  ás  vezes,  coma  mira  no  volume  da 
obra,  ou  para   entreter  o  leitor,  entregar-se  um  pouco  á  fic- 

4 


20 

ção  nas  suas  descripçôes  de  paizes  pouco  conhecidos,  ou  ra- 
ramente visitados;  mas  isto  não  acontece  em  relação  aos  pa 
izes  mais  explorados,  sob  pena  de  serem  apanhados  em  fla- 
grante mentira;  e  todas  aquellas  partes  do  mundo  que  tem 
sido  o  theatro  dos  feitos  d'antiga  e  moderna  historia,  são 
tão  bem  conhecidas,  e  tantas  vezfcs  teem  sido  descriptas,  que 
nenhum  erro  importante  deve  receiar-se.  O  estudo  de  geogra- 
phia  ê  extremamente  recreativo,  e  o  conhecimento  d'aquella 
sciencia  é  de  tão  fácil  acquisição,  que  o  ignoral-a  é  imperdoá- 
vel a  quem  aspira  aos  foros  d'uma  educação  litteraria.  E'  igual- 
mente tão  transcendentemente  útil,  e  tão  universalmente  in- 
teressante, que  a  cada  individuo  interessa  mais  ou  menos. 

Qualquer  jornal  torna  se  inintelligivel  a  quem  não  tiver  co- 
nhecimento de  geographia. 

Em  quanto  á  parte  chronologica  de  historia,  vem  muito 
mais  para  ocaso  fixaraidéa  sobre  um  plano  bem  conhecido  de 
caracteres,  ou  acontecimentos  contemporâneos,  do  que  sobre- 
carregar a  memoria  d'aridos  e  trabalhosos  cathalogos  de  datas. 
Quem  se  der  convenientemente  á  leitura  de  historia,  chaman- 
do á  lembrança  qualquer  caracter  natural,  circunstancia,  ou 
periodo  de  tempo,  recorda-se  immediatamente  de  todos  os 
factos  memoráveis  contemporâneos.  Reflectindo  sobre  qual- 
quer periodo  notável  na  historia  de  qualquer  nação,  as  cir- 
cumstancias  politicas,  religiosas  e  civis,  não  só  d'aquella,  mas 
das  circum vizinhas,  se  lhe  apresentarão  logo  á  vista. 

Estará  apto  em  todos  os  tempos  e  occaziões,  a  desenro- 
lar mentalmente  um  quadro  do  mundo  moral,  e  num  golpe  de 
vista,  observar  distinctamente  as  circunstancias  e  condições 
geraes  da  humanidade  em  differentes  idades.  D'igual  modo, 
quem  tiver  extensos  conhecimentos  de  geographia,  achará  fá- 
cil delinear  na  mente,  como  se  fora  sobre  um  mappa,  toda  a 
superfície  conhecida  do  orbe  terraquio,  suas  divizões  naturaes  e 
politicas,  seus  mares,  rios  e  montanhas  etc.  como  também  as 
cidades  de  maior  consideração.  Não  será  fora  de  propósito 
observar  que,  o  que  muito  facilita  a  acquisição  de  conheci- 
mentos  geographicos,    é  acostumar-mo-nos    a  conservar  na 


2i 

memoria  os  logares  collocados  debaixo  do  mesmo  meridiano. 
Isto  contribue  muito  para  o  arranjo  methodico  d' idéas  geo- 
graphicas,  e  ajuda  a  fixar  na  idéauma  verdadeira  representa- 
ção da  superfície  da  terra. 

Poderá  ser  objectado,  que  um  tal  arranjo  methodico  de  co- 
nhecimentos históricos  e  geographicos  é  uma  tarefa  laborioza. 
E',  porém  o  contrario.  A  sua  acquiziçâo  é    perfeitamente    la- 
cil,  e  só  requer  um  pouco    de  methodo  na  reflexão,  e    exame 
d'aquelles  livros  que  tratam  destes  objectos.  A  execução  fácil 
e  expedita  d'um  trabalho,  seja  de  que  natureza    for,    dependa 
mormente  do  meio  que  se  procura  para  se   conseguir    o    fim. 
Lançados  os  ahcerces,  a  mais  consírucção  é  fácil.  Quer   estu- 
demos arithmetica  ou  geometria;  mathematica  ou  os  clássicos; 
qualquer  que  seja  a  sciencia  a  que  nos    dediquemos,   se    não 
for  methodicamente,  pouco  mais  fazemos  que  accumular  idéas 
confuzas  e  mal  digeridas,  que  nunca  se   podem  converter  em 
sciencia.    Muitos  ha  que  lêem  muito    e    aproveitam   pouco, 
porque  não  o  teem  feito  com  methodo  e  reflexão;  esquecem-sè 
do  que  leram  tão  depressa  fecham  o  livro,  e  queixam-se  da  sua 
falta  de  memoria,  ou  multiplicidade  dafTazeres;  mas  a  cauza  está 
mais  na  falta  de  systema  do  que  na  organização,  porque  é  in- 
contestável, que  se  estudarmos  com  methodo,  se   contemplar- 
mos as  couzas  sob  todos  os  pontos  de  vista,  se  as  considerar- 
mos com  todas  as  suas  combinações,  connexõese  dependências, 
possuimo-nos  d  ellas  por  tal  forma,  que   nenhuma   multiplici- 
dade ou  variedade  d'occupações,  nenhum  decurso   de   tempo, 
ou  outra  qualquer  circunstancia,   as  pode  apagar,    salvo   nos 
cazos  de  defeito  phisico  d'espirito  ou  imbecilidade.  E'forçozo, 
porém  confessar  que  uma  multiplicidade  d'afTazeres;   conjunc- 
tamente  com  o  decurso  do  tempo  e  abandono  do  estudo,  apa- 
gam da   memoria  grande  copia  de    circunstancias    minucio  -, 
zas,  mas  a  combinação  das  couzas,  permanecem;   tanto,   que, 
se  alguém  ao  principio  se  achar  perplexo,  qualquer    recorda- 
ção chamará,  e  retocará  na  memoria  as  idéas,  obscuras  e  dis- 
persas sim.  mas  não  de  todo  obliteradas.  Uma  bem  combinada 
e  vinculada  serie  dldéas,  pode  ser  comparada  a  uma  cadêa,  da 


qual,   quebrado   um  ^6  fuzil,  os  demais  seguem   todos  apoz; 

Tudo  quanto  estiver  profundamente  impresso  no  espirito, 
jamais  se  apaga  inteiramente  da  memoria. 

Cada  negoeio,  cada  transacção,  das  quaes  temos  tido  per- 
feito conhecimento  em  todas  as  suas  particularidades,  sempre 
nos  lembra;  e,  comquanto  auzentes  da  imaginação,  depressa 
lhe  afíluem,  em  quanto  que,  couzas  pouco  notadas,  das  quaes 
pouco  conhecimento  tomamos,  e  que  por  consequência  pouca 
impressão  produziram,  escapam  facilmente,  por  haver  deixa- 
do tão  somente  fracos  e  obscuros  traços,  que  depressa  se 
gastam,  e  que  difticilmente  se  reorganizam. 


Não  obstante  os  erros  e  defeitos  a  que  a  historia  está, 
sujeita,  o  seu  estudo  6  indispensável  a  todo  e  qualquer  indi- 
viduo que  aspire  ao  conhecimento  das  sciencias  geraes,  acima 
do  commum. 

E  tanto  isto  é  reconhecido,  que  jamais  houve  vulto  politi- 
co ou  litterario  que  não  enthesourasse  conhecimentos  histó- 
ricos, como  também  geographicos;  tanto,  quanto,  na  idade 
em  que  viveu,  aquellas  sciencias  se  achavam  cultivadas, 
e  hoje  em  dia,  em  todo  o  paiz  aonde  as  sciencias  e  a  litte- 
r atura  florescem,  ninguém,  destinado  ás  lettras,  ou  á  vida  pu- 
blica, se  deixa  ignorante  daquellas  sciencias  que  constituem 
parte    essencial  duma  educação  liberal. 

As  varias  imperfeições  da  historia,  muitas  das  quaes  pro- 
vêem de  causas  absolutamente  inevitáveis,  depreciam  o  seu 
valor,  sem  todavia  supplantar  a  necessidade  que  temos  delia. 
O  orador,  o  poeta,  o  moralista,  e  otheologo,  ali udem  frequen- 
temente a  objectos  históricos  para  solemnisar  acontecimentos 
notáveis,  instituições,  costumes  ou  hábitos  em  difTerentes  ida- 
des e  paizes.  Portanto,  quem  desconhecer  este  estudo,  não 
pôde  entender  bem  as  composições  rhetoricas  e  poéticas;  ou 
as  obras  do  moralista  e  do  theologo. 


23 

Nao  podemos,  porém,  admittir  a  necessidade  da  retenção 
de  toda  essa  massa  de  circunstancias,  pouco  interessantes  e 
menos  authenticas  com  que  os  historiadores  tem.  insuflado  os 
seus  volumes,  na  maior  parte  imaginarias;  mas  quando  as  ti- 
véssemos por  verdadeiras,  quasi  que  nao  mereciam  esse  traba- 
lho. Os  traços  salientes  de  historia,  os  factos  de  primeira  ordem, 
authenticidade  inquestionável,  corroborados  por  consequen- 
as  evidentes  e  circunstancias  comprovativas;  grandes  e  im- 
portantes acontecimentos,  que  teem  deixado  decidida  e  visivel 
influencia  sobre  o  aspecto  geral  dos  negócios  humanos;  ca- 
racteres distinctos  que  tem  sido  agentes  principaes  em  tran- 
sacções notáveis;  a  origem  e  influencia  dissociações  politicas 
civis  e  rehgiozas;  a  condição  geral  da  humanidadade  em  dif- 
ferentes  epochas,  estes  são  os  tópicos  que  reclamam  a  atten- 
ção  do  leitor,  e  que  nào  lhe  devem  escapar. 

Os  caracteres  distinctos  e  os  acontecimentos  memoráveis 
sào  as  balizas  históricas  a  que  nos  podemos  soccorrer,  e  pelas 
quaes  a  ordem  chronologica  d'um  grande  numero  de  cir- 
cunstancias subordinadas  e  dependentes  pode  ser  dirigida 
e  recordada. 

Uma  revizão  geral  e  comprehensivel  da  historia  da  hu- 
manidade, bazeada  n'este  perfil,  seria  igualmente  instructiva  e 
recreativa.  Aprezentaria  á  vista  contemplativa  um  quadro 
das  couzas,  e  um  aspecto  moral  do  mundo,  em  periodos  sue- 
cessivos,  e  concentrando  as  partes  .  mais  apreciáveis  d'infor- 
maçào  histórica,  tornar-se-hia  um  summario  útil  e  convenien- 
te, depois  de  compulsados  os  volumozos  livros  da  historia  an- 
tiga e  moderna. 

CARTA  SÉTIMA 


Olhando  o  grande  perfil  da  historia,  os  acontecimentos 
memoráveis  e  importantes  que  tem  determinado  as  condições 
da  humanidade,  e  tornado  o  aspecto  moral  e  intellectual  do 
inundo  tal   qual   o  vemos  na  actualidade,  descobriremos  am« 


24 

pia  matéria  para  uma  detida  reflexão,  eem  muitos  casos  sere- 
mos obrigados  a  recorrer  á  conjectura,  fundada  sobre  dif- 
ferentes  pontos  de  probabilidade ,  em  muitos  casos  tão 
corroborada  por  circunstancias  geraes  existentes,  que  se 
podem  quasi  reputar  certos. 

Do  estado  primordial  da  humanidade,  pouco  sabemos 
por  informação  histórica,  e  só  por  meio  de  conjecturas, 
fundadas  na  natureza  das  cousas,  podemos  alargar  a  es- 
phera  das  nossas  idéas.  E'  muito  de  suppor  que  o  ho- 
mem tivesse  existido  muito  antes  que  começasse  a  escre- 
ver a  historia  do  que  em  redor  d'elle  se  passava.  Ao 
principio,  toda  a  sua  attenção  se  deveria  circunscrever  ao 
estudo  dos  meios  para  a  subsistência  própria,  e  em  tornar 
a  vida,    até    certo   ponto,    commoda. 

N'aquelle  estado  de  simplicidade,  difficilmente  pensariam 
em  transmittir  os  seus  actos  á  posteridade,  nem  mesmo 
teriam  cousa  digna   de  recordação. 

E'  aqui  que  o  conhecimento  que  temos  do  homem  e 
das  suas  necessidades,  deverão  supprir  a  deficiência  da  his- 
toria. 

Da  própria  experiência  poderemos  imaginar  a  qualidade 
das  casas,  ou  ao  menos  cabanas,  que  elles  construiam  para 
se  resguardarem  da  acção  do  tempo.  A  agricultura  merece- 
ria alguma  attenção,  em  ordem  a  que  a  terra  produzisse  o  ne- 
cessário para  a  alimentação  do  homem;  os  animaes  seriam 
domesticados  e  subordinados  á  sua  vontade;  e  as  artes 
mais  essenciaes  á  commodidade  do  homem,  inventaram-se 
antes  que  fossem  cultivadas  as  lettras,  e  consignado  á  es- 
cripta  o   pensamento. 

D'estas  circunstancias  todas,  poderemos  rasoavehnente 
concluir  que  os  primeiros  traços  históricos  consistiram  nas 
tradições  transmittidas  de  pae  a  filho,  atravez  de  suc- 
cessivas  gerações,  e  de  facto,  constituem  ellas  a  base  das 
primeiras  recordações  históricas.  Taes  são  as  narrações 
fabulosas  dos  primeiros  historiadores  entre  os  gregos.  Ti- 
nham elles   as    legendas   históricas  dos  padres  egypcios  que 


25 

acobertaram  a  religião  e  a  sciencia  com  o  niysterioso  réo 
allegorico  ;  e  os  gregos ,  em  muitos  casos,  interpretando 
mal  os  primeiros  periodos  da  historia ,  presentearam-nos 
com  um  tecido  monstruoso  e  absurdo  de  narrativas  fabu- 
losas de  reis  que  jamais  reinaram,  e  de  heroes  de  descendên- 
cia celeste.  Sendo  a  superstição  natural  ao  homem,  an- 
tes que  a  philosophia  illuminasse  a  sua  razão,  não  é  de 
admirar  que  os  primeiros  historiadores  enchessem  as  suas 
obras  com  contos  da  communicação  dos  deuses  e  semi-deuses 
com  os  homens,  e  da  frequente  interferência  d'agentes  so- 
brenaturaes  nos  negócios  humanos.  A  viva  imaginação  dos 
escriptores  gregos  das  primeiras  idades,  exaltada  pela  su- 
perstição, deu  largas  aos  mais  absurdos  contos.  Por  esta 
razão  o  período  que  decorre,  desde  a  fundação  da  socie- 
dade politica  e  civil  na  Grécia,  até  á  guerra  de  Tróia,  pó- 
de-se  apropriadamente  denominar  a  éra  fabulosa;  e.  de  facto, 
a  maior  parte  do  que  se  nos  conta  concernente  áquella 
guerra,  tem  evidentemente  o  cunho  da  inverosimilhança;  por 
isso  que,  tudo  quanto  sabemos  d'ella  funda- se  nos  rsagos 
poéticos  da  imaginação  creadora  de  Homero.  Em  rigor, 
não  ha  nada  que  possa  reclamar  o  titulo  d'uma  historia 
dos  negócios  gregos,  anterior  ás  guerras  persas.  Em  quan- 
to á  historia  das  outras  nações  pagãs,  não  era  menos 
fabulosa  e  absurda  que  a  dos  gregos;  e,  de  facto,  tudo 
que  d'ellas  sabemos  tem -nos  sido  transmittido  pelos  authores 
gregos. 

Quando  consideramos  o  estado  geral  do  mundo,  nas  pri- 
mitivas idades,  em  relação  ao  seu  adiantamento  politico, 
commercial  e  litterario;  com  quanto  nos  recreamos  com  a 
sua  leitura,  cifra-se  ordinariamente  em  romance  histórico; — 
até  que  os  gregos,  esses  celebres  improvizadores,  ou  pelo  me- 
nos aperfeiçoadores  das  artes  e  sciencias,  cujos  esforços  litte- 
rarios  foram  os  canaes  de  transmissão  de  conhecimentos, 
tinham  attingido  considerável  altura  e  civilização;  e  até  que 
as  artes  mais  necessárias,  chegassem  a  um  soffrivel  gráo  de 
perfeição,  aquelias  de  conveniência,  luxo  e  elegância,  come- 


20 

içaram  a  florir  entre  elles;  período  que  se  não  pode  fixar  mui- 
to antes  da  primeira  guerra  persa,  que  tivera  logar  qui- 
nhentos e  três   annos  antes  de  Cliristo. 

Esta  é  a  epoelia  em  que  começa  a  historia  profana; 
tudo  quanto  for  preciso  colligir  concernente  ao  estado  da 
humanidade,  e  aos  acontecimentos  que  tiveram  logar  no 
mundo,  anterior  áquelle  período,  temos  de  procurar  por 
informação  nos  escriptos  sacros  dos  judeos.  Esta  considera- 
ção naturalmente  conduz-nos  a  voltar  a  nossa  attenção  pa- 
ra os  annaes  da  nação  hebraica,  tidos  come  sagrados  por 
aquelle  povo,  e  cuja  authenticidade  tem  sido  reconhecida 
pela  parte  mais  considerável  e  illustrada  da  sociedade.  Se- 
ria, até,  imperdoável  íVuiii  exame  de  historia  antiga,  não 
tentar  uma  justa  intimação  d'aquellas  celebres  recordações 
que  tanto  tem  attrahido  a  veneração  dos  christãos  e  excita- 
do o  ridículo  dos  infiéis.  N'estes  escriptos  achamos  a  única 
informação  aceitável  da  creaçào  do  mundo,  e  do  principio 
das  cousas;  da  dispersão  da  espécie  humana,  e  origem  d'an- 
tigas  nações,  e,  imparcialmente,  devemos  confessar,  que  a 
narração  d'estes  acontecimentos,  independente  da  authori- 
dade  elevada  que  a  saneciona,  traz  um  cunho  intrinsico 
de  probabilidade.  A  narração  sacra  é  incomparavelmente 
mais  rasoavel  que  as  cosmogonias  dos  gregos;  e  quan- 
do analysada  apparece,  não  só  provável,  mas  estrictamen- 
te  philosophica.  A  narração  sacra  da  creação,  representa  a 
separação  d'essas  particulas  voláteis  da  matéria  que  consti- 
tuem claridade,  d'aquellas  mais  carregadas  e  opacas,  como 
é  a  primeira  obra  do  Creador;  ou,  em  outros  termos,  a 
primeira  operação  da  natureza,  depois  que  a  vontade  do 
Ente  Supremo  pozéra  em  movimento  o  vasto  chãos  de  ma- 
téria informe,   que  fluetuava  na  immensidade  do    espaço. 

O  segundo  periodo  se  nos  representa  como  aquelle  em 
que  as  aguas,  separando~se,  construíram  um  firmamento, 
dividindo-se  as  aguas  das  aguas;  expressão  esta,  que,  até  ho- 
je, se  nos  figura  obscura  e  quasi  inintelligivel;  mas  cujo 
sentido    parece  ser,  que   havendo  mergulhado   as   particulas 


27 

térreas,  formando  corpos  sólidos,  as  partes  aquosas,  sendo 
mais  leves,  boiaram  ao  de  cima,  cobrindo  toda  a  superfí- 
cie da  terra  ;  e  que,  transbordando  as  aguas,  os  plane- 
tas foram  separados  pela  expansão  do  ar,  chamado 
firmamento.  O  primeiro  processo  da  creaçao  foi  a  des- 
cida das  aguas  para  os  valles,  ou  partes  mais  iu vaza- 
das do  globo,  por  cujo  processo  se  formaram  os  mares  e  a 
terra;  ea  terra  ficando  enchuta,  adquirio  a  sua  força  vegeta- 
tiva e  começou  a  produzir.  O  quarto  período  é  descri  pio 
como  aquelle  em  que  as  partículas  voláteis  da  claridade  se 
formaram  em  corpos  compactos,  constituindo  o  sol  cos  astros 
fixos,  que  sito  difierentes  soes  illumínando  difierentes  syste- 
mas.  0  quinto  e  sexto  períodos  distinguem-se  pela  creaçao  da 
vida  animal;  e  por  ultimo,  o  homem,  chefe  dobra  da  nature- 
za, foi  formado;  e  isto  não  podia  ter  logar  em  quanto  a  terra 
não  tivesse  chegado  á  perfeição  da  sua  força  vegetativa,  em 
ordem  a  produzir  o  necessário  para  a  alimentação  d'homens 
e  animaes. 

Esta  hvpothese  de  philosophia  natural,  e  das  propriedades 
da  matéria.,  e  precizainentc  a  que  o  philosopho  poderia 
suppor  que  fosse  o  processo  gradual  da  natureza,  quando  o 
JVulerozO  Fiat  deu  ás  varias  partes  da  matéria  suas  proprieda- 
des difierentes,  c  poz  em  movimento  os  innumeraveis  átomos 
que  constituem  o  universo,  longos  ou  curtos  que  fossem  os 
difierentes  períodos  d'este  trabalho. 

Existem  duvidas  se  aquelles  períodos  eram  dias  naturaes, 
determinados  pela  rotação  do  globo  sobre  o  seu  eixo;  por- 
quanto, durante  os  primeiros  três  períodos,  ou  dias,  a  luz  se 
nos  representa  como  destacada  da  escuridão,  ou  as  partículas 
luminozas  das  opacas,  e  boiando  ao  acazo  no  infinito:  e  o  sob 
e  outros  globos  luminozos,  não  tendo  sido  formados  até  o 
quarto  período,  não  podiam  a  noite  e  o  dia,  até  esse  tempo, 
deseriminar-se  pela  appariçào  e  desapparecimento  dos 
orbes  celestes. 

Quanto  ao  mais  que  hc  segue  concernente  aos  jardins  do 
Éden,    se  não  fòr  uma  np.rraçào  de  factos  positivos,  também 

5 


28 

nada  contem  d 'impossível.  Sobre  a  longevidade  dos  anti 
diluvianos,  se  nâo  temos  provas  collateraes,  e  circunstan- 
cias concorrentes,  que  corroborem  os  sacros  escriptos,  é 
claro  que  as  nâo  podíamos  esperar,  e  nenliuma  evidencia 
contradictoria  temos  para  invalidar  a  sua  authenticidade; 
e  fora,  incontestavelmente,  tão  fácil  ao  Soberano  Distribui- 
dor de  todas  as  cousas,  formar  a  constituição  do  corpo 
humano,  para  resistir  novecentos  annos,  como  a  noven- 
ta. 

O  livro  do  Génesis,  escripto  on  não  por  Moisés,  o  que 
é  muito  provável,  porque  tem,  quasi  inteira  relação  com 
os  factos  acontecidos  antes  da  existência  de  toda  e  qual- 
quer historia  escripta ,  foi  sem  duvida  communicado  ao 
auíhor,  quem  quer  que  fosse,  ou  por  tradição,  ou  por  re- 
velação; e  a  reputal-a  tradição,  era  muito  fácil  introduzir- 
se-lhe  uma  leve  variedade  de  nomes  e  datas,  sem  todavia 
affectar  a  sua  authenticidade.  Dos  subsequentes  escriptes 
de  Moisés,  o  livro  do  Êxodo,  em  parte,  é  histórico,  e  em 
parte  legislativo;  e  o  Levitico  é  totalmente  d'esía  natureza. 
Os  Números  é  na  maior  parte  histórico;  e  o  Deuteronomio  con- 
siste na  repeiição  de  muitas  leis  promulgadas  nos  livros  an- 
tecedentes, com  outras  addicionaes,  intermediadas  d?exhor- 
taçoes  eloquentes  á  obediência;  mas  contem  pouca  matéria 
histórica,  fora  a  morte  de  Moisés,  ^ddi-clonada  por  al- 
gum subsequente  escriptor.  Em  todos  estes  livros,  declara 
Moisés  pozitivamente,  que  as  leis  e  ordenanças  por  elle  da- 
das ao  povo,  são  ordens  do  Ente  Supremo,  a  elle  expressa 
e  inequivocadamente  reveladas ;  mas,  em  quanto  a  factos 
históricos,  appeila  algumas  vezes  para  os  seus  próprios  co- 
nhecimentos, e  outras  para  as  tradições  recebidas  de  seus 
antepassados. 

O  livro  de  Josué  contem  a  narrativa  da  conquista  de 
Canaan  pelos  Israelitas,  e  provavelmente  fora  escripto  pelo 
próprio  Josué,  ou  sob  sua  direcção;  porém,  ignora-se  por 
quem  fusseelaborado  o  livro  de  Juizes  ;  attribuindo-se  a 
diífe  rentes     indivíduos  em   diíferentes   idades;   pois    parece 


n 

uma  collecçao  de  peças  avulsas  de  historia  nas  quaes  se  não 
observa  a  ordem  chronologica,  e  em  alguns  logares  pouco  fá- 
ceis drajustar.  Estas  descripções  pertencem  a  um  periodo 
tumultuoso  e  effervescente;  um  periodo  de  barbarismo,  igno- 
rância e  anarchia,  no  qual  os  Israelitas  incommodados  conti- 
nuamente por  commoçÕes  intestinas,  molestados  por  inimigos 
estrangeiros,  ou  empregados  em  repellir  as  suas  aggressões, 
pouco  vagar  tinham  para  attender  á  exactidão  dos  aimaes 
do  seu  paiz.  Quando  chegamos  aos  livros  de  Samuel,  acla- 
ra-se  um  pouco  o  horizonte.  Os  negócios  dos  Israelitas  princi- 
piaram sob  a  administração  d'aquellejuiz  e  propheta  a  tomar 
um  aspecto  mais  tranquillo;  e  os  historiadores  sacros  escrevem 
com  mais  acerto.  O  livro  dos  Reis  apresenta  exactidão  em 
quanto  á  ordem  chronologica  e  outros  requisitos  essenciaes 
d'historia,  que  lhes  dâo ,  a  este  respeito ,  uma  decidida 
superioridade  sobre  todos  os  outros  apontamentos  da  anti- 
guidade. A  idade  de  cada  um  dos  reis  de  Judá,  ao  tem- 
po da  sua  ascensão  ao  throno,  e  a  duração  do  seu  reinado,,  são 
claramente  desenvolvidos,  tanto  que  não  só  o  termo  de 
vida  de  cada  .um,  mas  toda  a  duração  da  monarchia  Ju- 
daica, desde  David  até  ao  captiveiro  babylor.ico,  facilmente  se 
podem  calcular.  Todos  os  traços  e  factos  salientes  são  descri- 
tos com  tanta  clareza,  e  firmemente  corroborados,  por  evi- 
dencia colateral,  pela  observância  perpetua  de  solemnida- 
des  religiosas,  instituidas  em  commemoração  d'acontecimen- 
tos  importantes,  e  pela  sua  affinidade  com  as  circunstancias 
contemporâneas  doutras  nações  ( particularmente  dos  E- 
gypcios  e  Babylonios,j  que,  consideradas  como  descripção 
d'occorrencias  politicas,  as  recordações  judaicas  teem  o  cunho 
da  authenticidade,  infinitamente  superior  áquelle  que  se  pode 
conceder,  n'esse  respeito,  a  outra  qualquer  historia  do  mes- 
mo tempo.  A  historia  da  nação  Israelita,  durante  o  periodo 
da  sua  existência,  ao  principio  como  um ,  e  depois,  como 
dividido  em  dous  reinos  separados,  é  clara,  concisa  e  chro- 
nologicamente  coherente;  e,  á  excepção  de  poucas  datas  e 
números ,   que    facilmente    se    podem  attribuir    a  erros    de. 


30 

transladação ,  traz  signaes  de  veracidade,,  em  quanto* 
descreve  os  acontecimentos  de  um  período'  em  que  os; 
gregos  assomavam  apenas  d'um  estado  de  barbarismo  f 
e  durante  o  qual  a  sua  historia  consistia  inteiramente  em 
legendas  absurdas  de  deuses  e  heroes,  e  contos  ficticios  de' 
soberanos  que  nunca  reinaram,  e  de  indivíduos  que  nunca 
existiram. 

Teni-se    notado    que    os  historiadores  judaicos   frequen- 
temente  imputam    as  suas    calamidades  nacionaes  aos  vicios 
dos    seus    monarchas.    Se ,    todavia ,    attendermos   ás  medo- 
nhas   aceusações    dos  prophetas   contra     os   nobres,      habi- 
tantes opulentos,    e   mormente    contra  os    sacerdotes,   pode- 
remos concluir   que    as   calamidades   attribuidas    por  alguns 
historiadores    aos    crimes    dos    seus   príncipes,    podiam,  com 
igual    propriedade,     attribuir-se    á    vingança    divina    contra 
os   peccados  dos  padres   e   do   povo.    A  imputação,  todavia, 
não    é  incompatível  com    a    boa    moral.   Diz-nos  a  razão,    e 
confirma- o  a    experiência,  que  os  erros   dos  chefes   são  sem- 
pre  prejudiciaes   á  nação  em  geral  pelas  suas  consequências 
moraes.  A  mesma  observação  pode  fazer-se  em  quanto  á  predic- 
çào  de  calamidades  aos  filhos,  pelos  vicios  dos  pães.  Isto  é  o  mes- 
mo que  dizer  a  um  homem  em  boas  circunstancias,    cuja  des- 
peza  excede  a   sua  receita. — «  Vós  provavelmente   nunca  ex- 
perimentareis faltas,    mas  fareis  incorrer  em   pobreza  a  vossa 
posteridade.»    Alguns  reis  cVIsrael  e  de    Judá,  como   muitos 
mais  príncipes,    alienaram,    com  os  seus    vicios    moraes,   ou 
políticos,  o  espirito  dos    seus  súbditos,    e    conjuraram    uma 
serie  de  circunstancias  desfavoráveis,  que  no  fim  se  tornaram 
fataes   á  posteridade;   e  6   desnecessário  alargar    muito   a  es- 
phera  das  nossas   observações   para  conhecer    que    isto    tem 
acontecido  a   muita  gente    na  vida  privada  e   publica.    Alem 
de   que,   por   uma   expressão  figurativa,  os  vicios  da   nação, 
podem  em  alguns    casos,    chamar  se    os    vicios    do   rei,    seu 
representante   e  chefe;    ou  esta  imagem   pôde  algumas  vezes 
empregar-se    para    designar    os     vicios    predominantes    do 
reinado,  e  não  os  vicios  pessoaes  do  príncipe. 


31 

CARTA  GUTAVA 

O  reinado  de  David  é  illustre  e  interessante;  apresenta-nos 
uni  homem  d'obscura  posição  elevado  ao  throno  d'Israel, 
depois  ^experimentar  os  cambiantes  da  fortuna;  e,  quando 
collocado  em  authoridade,  engrandecendo  o  seu  poder  por 
meio  da  força  militar,  estendendo  os  seus  domínios  pela  con- 
quista, e  enriquecendo-se  a  si  e  aos  seus  súbditos  com  os 
espólios  do  inimigo.  Ao  leitor  que  preferir  contemplar  a  pros- 
peridade d'um  povo,  a  traçar  as  pegadas  sanguinolentas  d'um 
conquistador,  este  reinado  não  deixará  de  ser  interessante. 
Expõe  á  nossa  vista  a  consolidação  duma  monarchia  até 
ahi  tremida  e  precária;  a  instituição  de  regulamentos  e  or- 
denanças religiosas  e  civis,  e  o  progresso  rápido  no  caminho 
da  tranquilidade  e  opulência  d' um  povo,  apenas  sahido  da 
obscuridade  e  ánarchia. 

O  reinado  immediato  de  Salomão,  apresenta  nos  uma 
brilhante  perspectiva  do  reino  dTsrael,  no  zenith  da  sua 
opulência,  felicidade  e  esplendor;  e  gozando  todas  as  delicias 
da  tranquilidade,  de  maneira  tal,  e  por  tanto  tempo,  como 
nunca  aquella  nação  experimentara,  não  só  desde  o  estabe- 
lecimento do  governo  monarchico,  mas  mesmo  em  tempo  al- 
gum anterior   áquelle  período. 

O  reino  d'Israel  pesava  então  na  balança  politica  das 
nações.  Dava  as  leis  a  todos  os  pequenos  domínios  entre  o 
Enphrates  e  o  Levante,  chamado  na  Escriptura  Sagrada  o 
grande  mar;  e  conservou  o  fiel  entre  as  poderosas  monarchias 
do  Egypto  e  da  Assyria. 

Os  canaes  do  commercio  abriram-se,  e  os  seus  recursos 
explorados,  de  tal  modo,  que  deve  parecer  extraordinário, 
em  tão  remota  idade.  As  esquadras  d'Israel,  dirigidas  por 
marinheiros  tyrios,  negociavam  para  as  terras  d'Ophir;  que 
muitos  conjecturam  fossem  na  Costa  da  Incha,  ou  al- 
guma das  Ilhas  orientaes,  em  quanto  outros  as  fazem  existir  nas 
costas  orientaes  cVAfrica.  N'estas  viagens  lucrativas,  augmen- 
tou-se    a    opulência    da   nação    que    David  já  havia,   creado 


32 

•om  03  espólios  da  guerra.  Esta  brilhante  perspectiva,  não 
continua  todavia,  muito  tempo.  Salomão,  infatuado,  se- 
gundo parece,  por  uma  não  interrompida  prosperidade,  não 
põe  limites  ao  seu  luxo  e  magnificência,  e  tributa  pesadamen- 
te o  seu  povo,  para  poder  sustentar  tão  enormes  despezas. 
Estas  duras  contribuições  crearam  desaffeições  entre  os 
seus  súbditos;  e  para  o  fim  do  seu  reinado,  deram  origem  a 
uma  facção  perigosa  e  forte,  que,  por  occasião  da  successão 
do  filho  manifestou-se  em  rebellião ,  e  terminou  na 
completa  revolta  das  dez  tribus  que  sacudiam  o  seu  feudo  á 
casa  de  David. 

As  tribus  revoltosas ,  tendo  eleito  rei  a  Jeroboam, 
a  monarchia  dividiu-se  nos  reinos  d'Israel  e  Judá.  A  alta  po- 
litica do  novo  rei  dlsrael  produzio  uma  separação  religiosa 
também,  porque  Jeroboam,  temendo  que  em  quanto  os  reis 
de  Judá  fossem  senhores  do  templo  onde  se  offereciam  os 
sacrifícios,  e  aonde  todo  o  povo  era  obrigado  a  recorrer  em 
dias  determinados,  teriam  sempre  ascendência  sobre  o  reino 
dlsrael,  e  sendo  os  sacerdotes  e  os  levitas  aífeiçoados  á  casa 
de  David,  íez  construir  um  novo  templo,  instituiu  nova  com- 
munidade  eeclesiastica ,  produzindo  assim  o  scisma  entre  os 
observadores  da  lei  mosaica,  que  nunca  mais  se  extinguiu. 
A  religião  das  dez  tribus,  pouco  depois  d'esta  separação, 
desviando-se  mais  e  mais  da  instituição  original  da  lei,  tornou- 
se  em  breve  um  mixto  de  judaismo  e  idolatria  pagã,  e  assim 
tem  continuado. 

Depois  d'esta  memorável  epocha  da  historia  Israelita, 
pouco  mais  se  encontra  nos  annaes  d'aquella  nação,  alem 
das  trasacções  e  acontecimentos,  que  são  ordinariamente  o 
objecto  das  recordações  politicas.  A  historia  dos  reinos  de 
Israel  e  Judá,  semelhante  á  de  todas  as  nações  antigas,  apre- 
senta nos  uma  continuada  scena  de  guerras  sem  interesse, 
assassinios,  rebelliões  e  uzurpações,  as  quaes  eram  muito  fre- 
quentes no  reino  dlsrael,  em  quanto  que  o  de  Judá  adheria 
cora  inalterável  aífeição  aos  legitimos  descendentes  de  David.  A 
historia,  em  summa,    d'ambas  as  nações,  desde  o  periodo  da 


33 

sua  separação,  é  um '  catalogo  de  crimes  e  calamidades 
d'um  povo  em  declinação,  até  que  vemos  a  total  extincção 
do  reino  das  dez  tribus,  que  foram  transportados  para  a  Assyria 
e  dispersas  por  difTerentes  partes  d'aquelle  paiz,  d'onde  nun- 
ca mais  regressaram;  e  o  povo  rude  deixado  no  paiz,  cruzou- 
se  com  gentes  extranhas,  de  que  nasceram  difíerentes  nações, 
mais  tarde  conhecidas  pelo  nome  de  Samaritanos.  Isto  acon- 
teceu 720  annos  antes  de  Jezus  Christo.  O  tremido  reino 
de  Juclá  ainda  continua  a  gosar  uma  existência  precária,  in- 
vadido varias  vezes  pelos  babylonios,  tornado  tributário,  e 
por  fim  inteiramente  subjugado;  a  sua  metrópole  e  templo 
arrasados  até  os  alicerces  por  Nabuchadonosor,  587  annos 
antes  de  Christo,  e  todas  as  principaes  familias  e  gente  útil 
conduzidas  para  Babylonia. 

Considerando  os  costumes  bárbaros  do  tempo,  e  o  modo 
sanguinário  de  fazer  a  guerra,  vemos  que  o  rei  de  Babylonia 
procedeu  n'esta  conquista  com  quanta  moderação  se  poderia 
esperar,  depois  das  repetidas  provocações  que  recebera  de 
Zedekiah. 

Nabocodonozor  tinha  collocado  a  coroa  sobre  a  cabeça 
d'aquelle  príncipe,  depois  de  haver  deposto  seu  sobrinho  Je- 
comah.  EUe  não  lhe  impozéra  condição  alguma  pesada.  El- 
le  não  exigira  mudança  alguma  na  religião  estabelecida,  ou 
nas  leis  pátrias.  Elle  não  o  obrigara  a  receber  em  Jeruzalem 
uma  guarnição  babylonica,  nem  em  fortaleza  alguma  de  Judá. 
Elle  não  o  privara  da  administração  da  receita  e  depeza  pu- 
blica, nem  da  direcção  dos  negócios  do  estado.  Sob  estas  sua- 
ves condições  de  tributo  e  alliança,  havia  Zedekiah  recebido 
das  mãos  do  monarcha  babylonico  um  sceptro,  que.  sem  o 
seu  favor  e  poderosa  protecção,  nunca  poderia  ter  sus- 
tentado; e  nao  obstante  tão  assignalado  favor,  renunciou  á  ami- 
zade d'aquelle  príncipe,  e,  entrando  em  alliança  com  o  Egypto, 
inimigo  declarado  e  rival  da  grandeza  babylonica,  manifestou 
a  mais  determinada  e  rancorosa  hostilidade  contra  o  genero- 
so bemfeitor,  de  quem  recebera  a  coroa  e  o  reino,  e  a  quem 
jurara   fidelidade   em  nome  do   Deus   dTsrael,  aggravanélo 


34 

assim     a   sua    falta,     juntando    o     perjúrio    á    traição. 

Nao  é  por  tanto  d'admirar,  que  uni  conquistador  ambi- 
cioso c  forte  desse  ao  mundo  um  exemplo  terrível  da  sua 
vingança,  contra  um  príncipe  pérfido,  cuja  consciência  se 
não  ligava  pelo  juramento,  cuja  fidelidade  favor  algum  po- 
dia segurar,    e  de*  quem  recebera  tamanha   ingratidão. 

Comtudo,  não  obstante  as  provocações  que  Nabocodo- 
nozor  recebera  da  nação  judaica  e  do  seu  rei,  não  parece 
que  elle  procurasse  vingar- se  d'aquelle  povo. 

O  monarcha  culpado  sofrreu  como  exemplo  de  justiça  Di- 
vina e  humana,  pelos  detestáveis  crimes  de  perjúrio  e  ingrati- 
dão; e  a  pena  de  morte  foi  immediatamente  applicada  a  to- 
dos os  principaes  ofliciaes  da  sua  corte  e  exercito  que  tinham 
sido  seus  conselheiros  na  revolta:  mas  ao  crime  d'aquelles 
homens  ,  expiado  com  o  seu  sangue  ,  seguio-se  a 
moderação.  Os  principaes  cidadãos  e  os  mais  abalisados  ar- 
tistas, em  todos  os  ramos,  foram  removidos  para  Babylonia, 
aonde  gosaram  consideráveis  privilégios;  e  aos  lavradores  e 
povo,  foram-lhes  adjudicados  terrenos,  posto  ignorarmos  as 
condições  do  seu  arrendamento. 

Alguns  acontecimentos  notáveis,  que  tiveram  logar  du- 
rante o  captiveiro,  vem  transcriptos  no  livro  de  Daniel;  par- 
ticularmente a  erecção  da  estatua  de  Belo,  nas  campinas 
de  Dura,  ou  nas  immediações  de  Babylonia,  ou  dentro  da 
cidade;  e  o  acontecido  a  Sidraeh,  Misach,  e  Abdenago,  por 
occasião  de  se  recuzarem  â  adoração  dos    idolos. 

Merece  aqui  dizer-se,  que,  com  quanto  milhares  de  ju- 
deus, então  residentes  em  Babylonia,  não  partilhassem  a 
idolatria,  nem  por  isso  eram  perseguidos,  e  parece  que 
estes  três  homens,  sendo  pessoas  de  distineção,  empregados 
do  rei,  cuja  graça  possuiam,  foram  apontados  por  conselhei- 
ros intrigantes  e  aceusados  de  desobediência  ás  ordens  reaes. 

A  liberdade  de  culto  era  livre  aos  judeus  em  Babylo- 
nia, e  sendo  este  o  único  caso  conhecido  em  que  fossem 
compellidos  a  outras  formas  de  religião,  ha  toda  a  razão  para 
acreditar  que  o    edicto  do  rei  fora  manejo  de  eortezãos,  que 


35 

queriam  envolver  na  sua  geaéraliilade  certos   indivividuos    a 
quem  nào  eram  affeiçoados. 

A  insânia  de  Nabocodonozor  é  outra  notável  circumstan- 
cia,  e  conta-se  em  termos  tão  figurados,  que  teem  embara- 
çado muitos  leitores  menos  versados  na  phraseologia  biblica. 
Não  lia,  porem,  fundamento  para  questionar  a  sua  veracida- 
de. Será,  talvez,  uma  tentativa  vã,  querer  conciliar  os  cálcu- 
los contradictoriosdos  chronologistas,  sobre  uma  grande  parte 
das  occorrencias  de  remotas  epoclias. — Conquistou-se  Jerusa- 
lém no  decimo  nono  anno  do  reinado  de  Nabocodonozor, 
e  o  captiveiro  durou  setenta  annos; — porem  não,  é  'pós- 
sivel  averiguar  a  duração  d'este  reinado;  e  não  menos  é  pos- 
sivel  descobrir  exactamente  em  que  tempo  foram  coordena- 
dos os  livros  da  escriptura  sagrada;  com  quanto  seja  bem 
sabido  que  isto  teve  logar  pouco  depois  do  regresso  dos  Ju- 
deos  do  captiveiro.  Infere-se,  portanto,  d'aqui  que  esta  estra- 
ordinaria  historia  foi  escripta  cerca  de  cincoenta  annos  depois 
da  emancipação  dos  Judeos.  Nabocodonozor  foi  o  maior  monar- 
cha,  como  também  o  caracter  politico  e  militar  mais  distincto 
do  seu  tempo,  e  a  todos  os  respeitos  a  personagem  mais 
conspicua  que  até  ahi  figurara  no  mundo.  Alguns  Judeos  que 
voltaram  do  captiveiro,  e  mesmo  os  habitantes  idozos  de  Ba- 
bylonia,  poderiam,  talvez,  quando  estes  factos  foram  escriptos, 
recordar-se  do  seu  reinado  e  ascircumstancias  da  sua  insânia. 
Tão  notável  facto,  na  historia  d'um  homem  tão  cunspicuo  e 
celebre,  deveria  ser  conhecido  de  todos  e  publicamente  fana- 
do, tanto  entre  os  Judeos  como  entre  os  Babylonios,  e  qual- 
quer falsidade  inimediatamente  refutada. 

Os  historiadores  sacros  contam,  que  Nabocodonozor  pas- 
seando nos  jardins  de  seu  palácio,  e  absorvido  na  contem- 
plação da  sua  grandeza  e  poder,  esquecido  d'Aquelle  a  quem 
tudo  devia,  ficou  instantaneamente  privado  de  rasão. 

Não  ha  nisto  improbabilidade  alguma  phisica  — Milhares 
de  casos  semelhantes  encontram-se  nos  annaes  da  medicina.  De- 
pois, dizem-nos  que  fora  transformado  ena  animal,  expressão 
figurada  de    que  se  serviram  para  exprimir  a  sua  destituição 

G 


36 

de  rasão,  característico  maior  da  natureza  humana,  que  des- 
crimina o  homem  do  bruto.  Pela  descripção  do  cabello  cres- 
cer-lhe  como  as  penas  da  águia,  e  as  unhas  como  as  garras 
d'um  pássaro,  aquella  deformidade  exterior,  consequência  na- 
tural do  estado  d'insania,  não  é  mais  que  uma  hyperbole. 

Em  quanto  acorrer  pelos  campos  como  os  animaes,  é  pro- 
vável que  o  infeliz  maníaco  passasse  a  maior  parte  do  tempo 
percorrendo  os  jardins  e  os  bosques  do  palácio  debaixo  da 
inspecção  de  pessoas  a  cujo  cargo  estava  a  sua    conservação. 

Parece  que,  durante  a  moléstia  do  monarcha,  Evilmero- 
dach,  seu  filho  e  successor,  governara  o  reino  na  qualidade 
de  regente.  Nabocodonozor,  pelos  seus  talentos  politicos  e 
militares,  suas  extensas  conquistas  e  obras  sumptuosas,  tanto 
em  Babylonia  como  nos  campos  adjacentes,  tinha  indubita- 
velmente adquirido  poderosa  ascendência  sobre  os  ânimos 
dos  seus  súbditos;  e  quando  se  lhe  restaurou  a  intelligencia, 
foi  lhe  o  poder  entregue  inviolável.  O  monarcha,  recuperada 
a rasão,  reflectindo  segundo  parece,  em  seus  crimes  e  soífrimen- 
tos,  concebeu  uma  idéa  clara  da  fraqueza  e  insufficiencia  hu- 
mana, por  mais  elevada  que  seja  a  posição  do  homem;  da  ins- 
tabilidade do  seu  poder  e  grandeza,  e  da  sujeição  absoluta  dos 
maiores  monarchas  á  vontade  do  Ente  Supremo,  que,  segun- 
do os  direitos  imprescriptiveis  da  sua  providencia  dispõe  de 
tudo  como  lhe  aj)raz. 

Estamos  agora  chegados  áquelle  periodo  interessante  da 
historia  dos  Judeosque  se  torna  notável  pela  restauração  d'a- 
quelle  povo  á liberdade,  ao  seu  paiz  e natural  existência,  me- 
diante o  favor  dos  monarchas  persas,  que,  coma  maior  libe- 
ralidade e  munificência  abriram  o  real  erário,  a  fim  de  lhes 
fornecer  os  meios  pecuniários  de  que  precizassem  para  a 
reconstrucção  do  templo  e  da  cidade. 

Na  subjugação  dos  Judeos  e  destruição  de  Jerusalém,  por 
Nabocodonozor,  comparada  com  a  restauração  por  Cyro  e  se- 
guintes reis  da  Pérsia,  temos  uma  exposição  luminosa  da  ma- 
neira maravilhoza  porque  a  Divina  Providencia  dirige  e  go- 
verna os  negócios  humanos. 


37 

Nabocodonozor  é  constantemente  apresentado,  pelos  his- 
toriadores sagrados,  e  pelos  prophetas,  como  ministro  escolhi- 
do, da  ira  de  Deos  contra  um  povo  criminozo,  e  Cyro  é  igual- 
mente apontado  como  instrumento  da  sua  misericórdia:  po- 
rem não  devemos  imaginar  que  semelhantes  considerações  in- 
fluíssem directamente,  na  politica  dos  Gabinetes  de  Babylonia  e 
da  Pérsia.  Nabocodonozor,  na  sua  conquista  da  Judêa.  co- 
mo em  todas  as  suas  emprezas,  era  estimulado  pela  ambição 
e  pela  avareza,  contribuindo  também  a  vingança,  contra  um 
principe  que  o  tratara  com  a  maior  ingratidão,  dando-lhe  por 
tanto  um  pretexto  plausivel  para  engrandecer  o  seu  poder, 
pela  total  subjugação  d'aquelle  paiz,  e  para  se  apropriar 
das  riquezas  da  metrópole  e  do  templo.  Iguaes  motivos,  sem 
duvida,  influíram  em  Cyro  na  guerra  contra  os  Babylonios 
e  na  subversão  da  sua  monarchia.  Aquelle  principe,  bem  como 
os  seus  successores,  fora,  segundo  parece,  favorável  á  religião 
Hebraica/  por  isso  que  os  Persas  detestavam  a  idolatria  dos 
Babylonios. 

Achariam,  provavelmente,  certa  affinidade  entre  aquella 
religião  é  a  sua  própria,  em  razão  dos  sacerdotes  Judaicos 
conservarem  '  sempre  vivo  o  fogo  sagrado,  elemento  ti- 
do pelos  Persas  corno     symbôlo   da  Divindade. 

Pode-se,  porem,  allegar  com  bom  fundamento,  que  os 
reis  Persas  olhavam  com  rivalidade  o  poder  e  população 
da  Babvlonia,  e  a  aversão  de  seus  habitantes  ao  governo  Per- 
sa, que  mais  tarde  rebentou  n'uma  perigoza  e  obstinada  re- 
volta, no  reinado  de  David  Hystaspes;  e  a  partida  de  tão  gran- 
de numero  de  Judeos,  que,  depois  de  tão  prolongada,  resi- 
dência, quasi  se  tinham  naturalizado  em  Babylonia,!  podia 
ser  considerado  como  um  dos  ■>  íeios  mais  efficazes  para  en- 
fraquecer e  reduzir  gradualm-r5  te  aquella  cidade  ao  estado 
de  decadência.  Isto  parece  ter  sido  sempre  uma  das  máximas 
politicas  da  corte  Persa. 

Assim  vemos  que,  tanto  Nabocodonozor  como  Cyro,  fo- 
ram levados  tão  somente  por  motivos  políticos,  mas  tudo  is- 
to andava  subordinado  a   v  a  direcção  invizivel,   e   é  assim 


38 

que  a  Providencia  dirige  as  acções  dos  homens  tornando-as 
instrumento  da  sua  vontade  absoluta,  regulando  os  negócios 
do  mundo  conforme  o  vasto  e  complicado  plano  de  cauzas  e 
effeitos  existentes  desde  séculos  sem  fim,  na  presciência  eterna 
de  Deos,  sem  com  tudo  constranger  a  liberdade  do  homem. 

Esta  serie  de  causas  moraes  e  phisieas,  e  a  continuada 
successão  d'acontecimentos,  são  desde  o  principio  das  couzas, 
presentes  á  intelligencia  Divina;  porém  todos  os  effeitos  são 
regulados  por  uma  combinação  de  circumstancías,  tão  estreita- 
mente ligadas,  que  umas  sem  as  outras  não  podem  subsistir. 
A  historia  do  mundo  è  nada  menos  que  a  historia  da  pro- 
videncia eterna  de  Deos;  e  com  quanto  algumas  das  suas 
paginas  sejam  superiores  â  nossa  comprehensão,  é  todavia 
um  dever    nosso   estudar  este  grande  mysterio. 


U/í 


De  tudo  quanto  a  historia  nos  apresenta  de  curioso  e  in- 
teressante, o  adiantamento  progressivo  do  espirito  humano, 
no  que  respeita  á  perfeição  das  suas  faculdades,  é  o  que  mais 
agrada. 

As  emprezas destruidoras  de  conquistadores,  podem  fascinar 
por  momentos,  mas  as  fadigas  modestas  do  estudante  e  do  ar- 
tista, do  architecto  e  do  lavrador,  que  aformoseam  a  terra  e 
a  convertem  em  um  paraizo  terrestre,  com  quanto  não  bri- 
lhem com  tanto  esplendor,  amenizam  o  quadro  com  cores 
mais  suaves  e  sombras  mais    amenas. 

As  artes  e  as  sciencias  embellezam  o  mundo,  e  a  investi- 
gação da  sna  origem  e  do  seu  progresso  seria  a  mais  brilhan- 
te paginada  historia.  E'  pois  muito  de  lamentar  que  os  antigos 
escriptores  tenham  quasi  inteiramente  desprezado  tão  gran- 
de ebello  assumpto,  e  que  tudo  quanto  sabemos  d'estas  cousas 
seja  colhido  de  fragmentos  e  apontamentos  dispersos,  diffi- 
cilmente  desentranhados  d'uma  massa  confuza  de    factos  sem 


39 

importância,  alguma.  Está,  todavia,  da  parte  do  leitor  delí- 
genciar  enthesourar  noções  geraes  da  historia  do  homem  e  da 
sociedade  civilizada. 

Lancemos  um  golpe  cie  vista,  ebem  passageiro  que  elle  é, 
sobre  o  periodo  que  acabamos  d'atravessar,  e  que  se  descreve 
nos  escriptos  sacros,  periodo  que  abrange  o  tempo  que  vae 
da  creação  do  mundo  até  a  subversão  da  monarchia  babylo- 
nica.  Durante  esta  longa  serie  d'annos,  havia-se  formado 
uma  grande  variedade  cVinstituições  politicas,  civis  e  religio- 
zas;  estabeleceram-se  os  rudimentos  de  diversas  artes  e  sci- 
encias;  o  espirito  humano  tinha,  em  muitos  paizes,  melhora- 
do; e  a  terra  cultivára-se  e  grandes  cidades  e  magnificos 
edifícios  a  embelleceram:  d'estes  interessantes  factos,  pouco 
se  nos  transmittio,  a  não  ser  o  que  respeita  as  leis  e  instituições 
judaicas,  algumas  idéas  vagas  do  commercio  antigo,  e  algumas 
excellentes  amostras  d'estylo  eloquente  nos  Prophetas  enos 
Psalmos.  N'aquelles  venerandos  monumentos  d'antiguidade, 
seguimos  os  Israelitas,  desde  as  idades  patriarchaes,  atravez 
os  tempos  turbulentos  d'ignorancia  barbara,  até  chegarem  a 
um  grau  maito  subido  de  civilisação  e  apuro.  Das  suas 
instituições  civis  e  religiozas,  temos  uma  conta  clara  e  explici- 
ta; mas  em  quanto  á  sua  perfeição  nas  artes  e  nas  sciencias, 
pouca  informação  possuímos,  nem  facto  algum  existe  que  nos 
dê  uma  idéa  muito  lizongeira  d'ellav  Não  parece  que  os  Ju- 
deos  fossem  nunca  uma  nação  scientifica  ou  philosophica.  Infe- 
rimos que  foram  dextros  em  todas  as  artes  de  necessidade  e 
conveniência,  mas  não  que  tivessem  feito  notável  progresso 
naquellas  de  luxo  e  ornamento.  Da  sua  litteratura  podemos 
formar  uma  idéa  mais  exacta. 

Nas  partes  históricas  da  Biblia  encontra- se  um  estylo  no- 
tavelmente claro  e  conciso,  e  nas  partes  didácticas  uma  ma- 
ravilhoza  perspicácia.  Os  escriptos  dos  Prophetas  são,  na  maior 
parte,  compostos  em  estylo  poético,  porem  differentes  uns 
dos  outros,  e  todos  elles  originaes.  A  maior  parte  d'elles  abun- 
dam d'idéas  e  sentimentos  elevadissimos,  repassados  d'ener- 
gia,  e   embellezados  com   os  mais    brilhantes   rasgos  d'ima- 


40 

ginação  oriental.  Isaias,  sobre  todos,  á  viveza  d'imaginação  e 
esplendor  d'idéas,  junta  um  estylo  tão  enérgico  e  tão  doce- 
mente harmonioso  e  eloquente,  que  muitas  vezes  tem  sido  ap- 
pellidado  o  Demosthenes  dos  Hebreus;  e  só  os  seus  escriptos 
bastarião  para  nos  dar  uma  elevada  opinião  da  litteratura  He- 
braica. Quanto  ao  ■commercio  d'aquelles  remotos  tempos,  te- 
mos apenas  idéas  muito  imperfeitas,  e  assim  mesmo,  preci- 
zamos  recorrer  a  circunstancias  geraes,  a  citações  ao  acaso,  e  a 
conjecturas.  —  Deve-se,  comtudo,  notar  que  mesmo  nas  ida- 
des patriarchaes,  o  commercio  era  tão  conhecido,  que  o  ouro 
e  a  prata  serviam  como  meio  para  o  regular,  e  que  as  artes 
ornamentaes,  tanto  eram  cultivadas  em  alguns  paizes,  que 
pulseiras,  anneis  e  outros  artigos  de  vestuário,  estavam  já  em 
uzo.  Aonde  essas  jóias  se  fabricavam,  ignoramos;  mas  prova- 
velmente eram  de  manufactura  egypcia;  por  quanto,  da  anti- 
ga e  numerosa  população  d'aquelle  paiz,  e  por  outras  circuns- 
tancias collateraes,  podemos  rasoavelmente  suppor,  que  entre 
as  suas  obras  engenhozas,  muitas  das  artes  mais  secundarias 
que  deleitam  a  vida  foram  cultivados  pelos  Egypcios  em  re- 
motas eras;  e  a  historia  sagrada  nos  informa  que  os  Ismaeli- 
tas e  Medianitas,  entretinham  trafico  com  o  Egypto,  primei- 
ro commercio  estrangeiro,  talvez,  conhecido  entre  os  homens. 
Nos  tempos  tumultuozos  que  se  succederam  á  idade  pa- 
triarchal,  poucas  informações  existem  concernentes  ao  estado 
do  commercio.  Num  exame  geral,  porem,  percebe-se  que  as  ar- 
tes mechanicas,  e  vários  géneros  de  manufactura,  tinham  fei- 
to em  alguns  paizes  considerável  progresso,  nos  tempos  de 
remota  antiguidade.  Isto  conhece-se  pelos  materiaes  curiosos  e 
ricos  do  tabernáculo. e  paramentos  do  gram  sacerdote.  E'  fo- 
ra de  duvida  que  os  Israelitas  trouxeram  comsigo  do  Egypto 
muitos  conhecimentos  das  artes,  sciencias  e  lettras.  O  Egypto 
de  tempo  immemorial,  adiantara-se ,  progressivamente 
nas  sciencias  e  na  litteratura;  e  durante  a  maior  parte.do  tempo 
que  estamos  agora  contemplando,  tornou-se  celebre  pela 
sua  judicioza  politica  legislativa  e  civil,  como  também  pela 
vasta  extensão  da  sua  população  e  cidades,  pela  magnificência 


41 

de  seus  edifícios,  e  Restado  florescente  da  sua  agricultura. 

A  todos  estes  respeitos  destinguia-se  das  nações  contem- 
porâneas, não  exceptuando  a  própria  Babylonia.  Porem,  o' 
Egypto  nunca  foi  uma  nação  guerreira;-  tanto  que,  estando  ra- 
ras vezes  em  hostilidade  com  os  visinhos,  a  sua  historia  politica 
pouco  se  enlaça  com  a  delias.  Sesostris  é  o  único  dos  con- 
quistadores Egypcios  d'alguma  nomeada  nos  annaes  da  his- 
toria, e  não  obstante  as  ficticias,  ou  ao  menos  incertas  rela- 
ções d'alguns  escriptores,  pouco  sabemos  dos  seus  feitos,  ou  o 
alongamento  das  suas  conquistas;  e  a  discripção  que  d'ellas  en- 
contramos em  alguns  livros  devem  ter-se  na  conta  de  roman- 
ces históricos.  A  verdade  é,  que  a  historia  de  Sesostris,  como 
tão  bem  dos  mais  Reis  Egypcios  é  tão  confusa,  tão  invertida 
e  exagerada,  que  poucos  são  os  factos  authenticos  que  po- 
demos achar  nos  annaes  dos  seus  reinados,  ou  mesmo  na  his- 
toria geral  d'aquelle  paiz,  e  que  não  passa  d'um  tecido  de  contos 
allegoricos  e  legendas  improvizadas  pela  astúcia  de  seus  sa- 
cerdotes, regulados  por  uma  chronologia  ficticia  da  sua  pró- 
pria invenção  e  que  nos  foram  transmittidos  pelos  gregos,  que' 
sendo  naturalmente  apaixonados  do  maravilhoso,  e  admirado- 
res da  philozophia  e  historia  Egypcia,  adoptaram  a  sua  chro- 
nologia ideal.  Os  antigos  tão  frequentemente  suppriam  a  fal- 
ta d'mformações  authenticas,  em  relação  ás  transacções  de  re- 
mota antiguidade,  chamando  em  seu  auxilio  a  mythologia  fa- 
buloza,  que  quanto  mais  estivermos  convencidos  da  utilida- 
de e  valor  da  historia,  mais  nos  devemos  pôr  em  guarda 
contra  as  legendas  dos  sacerdotes  e  dos  politicos,  que  escre- 
veram com  o  fim  de  melhor  dominar  os  ânimos  da  po- 
pulaça. 

Era  monarchico  o  governo  do  Egypto, 

A  longa  dynastia  de  Reis  que  reinaram  anterior  á  subver- 
são da  monarchia  pelos  Babylonios,  denomina-se  alinha  dos 
Pharaós.  Deve-se  notar,  que  Pharaó  não  era  nome  próprio, 
mas  sim  titulo  entre  os  Egypcios,  equivalente  ao  de  Rei  entre 
nós;  assim,  os  appellidos  de  Pharaó  Necko,  Pharaó  Hophani,  si- 
gnificam Rei  Necko,   Rei   Hophani,  etc.    Parece   que  nunca 


42 

fora  absoluta  a  forma  do  governo  Egypcio;  mas  até  que  pon- 
to se  subordinava  a  regulamentos  positivos,  nào  possuímos 
documentos  sufficientemente  autlienticos  para  o  determinar, 
mas,  avaliando  por  cireumstancias  geraes,  podemos  rasoavel- 
mente  concluir  que  Rei  e  povo  estavam  directa,  ou  indirecta- 
mente sob  o  dominio  absoluto  dos  sacerdotes,  e  que  estes  mi- 
nistros da  religião  eram  de  facto  os  soberanos  do  Egypto. 
1  Visto  é  prova  que  quando  os  Reis,  e  pessoas  do  povo,  falle- 
ciam,  syndicava  se  do  seu  comportamento  em  vida,  e  da  sen- 
tença do  respectivo  tribunal  dependia  serem  enterrados  com 
pompas  fúnebres,  ou  privados  d'essas  honras.  Este  extraordi- 
nário tribunal furiccionava  acto  continuo  á  morte  do  individuo; 
o  escrutinio  era  rigorozo,  e  como  fosse  objecto  da  maior  im- 
portância entre  os  Egypcios,  assim  como  entre  a  maior  par- 
te dos  povos  antigos,  pode-se  bem  presumir  que  fora  institui- 
do  pelos  sacerdotes  para  sujeitar  monarcha  e  povo  á  sua  au- 
tlioridade;  e  fácil  é  suppor  qual  seria  a  sorte  do  principe  que 
tivesse  o  infortúnio  de  cair  no  seu  desagrado;  porque  cumpre 
notar  que  a  denegação  d'honras  fúnebres,  entre  os  Egypcios, 
importava  a  exclusão  do  Paraizo,  aonde  as  almas  dos  justos 
atravessam  séculos  eternos  d'indiscriptivel    felicidade. 

O  estado  antigo  de  tão  celebre  paiz  como  o  Egypto,  se 
fosse  possivel  profundal-o,  constituiria  uma  feição  pronunciada 
na  historia  geral  do  mundo:  é,  por  tanto,  uma  grande  pena 
que  tão  pouco  se  tenha  sabido,  a  não  aceitarmos  como  ver- 
dadeiro a  mythologiaallegorica  e  fabulozas  legendas  de  seus 
padres.  Temos,  todavia,  informações  mais  authenticas  das  suas 
íeis  e  politica,  que  da  historia  das  suas  instituições  ou  d'ou- 
tros  acontecimentos,  occorridos  n'aquelle  reino.  E  com  quanto 
não  esteja  no  nosso  programma  tratar  esta  questão  minucio- 
samente, todavia  não  podemos  deixar  de  fallar  na  divisão  do 
povo  em  seitas  distinctas,  que  não  permittia  ao  filho  se- 
guir senão  aquella  que  seguisse  o  pae.  Este  systema  não  se  en- 
contra em  outro  qualquer  paiz  notável,  antigo  ou  moderno, 
á  excepção  da  índia,  que  tem  levado  muitos  a  suppor  que 
os    seus    inhabitantes      foram    originariamente  uma  colónia 


43 

'egypcia,  ou  que  os  egypcios  foram  colónia  da  índia. 

A  origem  das  nações,  na  maior  parte,  acha-se  perdida  na 
noite  dos  tempos,  e  as  emigrações  e  o  encruzamento  da  espécie 
humana  sào  tão  numerosas  e  diversas,  que  é  impossivel  seguir- 
Ihes  o  rasto  at>-avez  tão  difíerentes  ramificações.  O  celebre 
costume  de  dividir  o  povo  em  classes  distinctas,  tem  sido;  to- 
davia, muito  applaudido  por  alguns  escriptores  e  condemna- 
do  por  outros. — Por  muitos  é  julgado  altamente  conducente 
á  perfeição  das  artes  e  sciencias,  fazendo  convergir  para  um 
ponto  a  experiência  accumulada  de  successivas  gerações.  Se, 
todavia,  fosse  um  motor  favorável  aos  resultados  da  expe- 
riência, era  um  obstáculo  invencível  aos  esforços  do  génio, 
restringindo-lhe  o  vôo. 

Alem  de  reprimir  o  génio,  tinha  outro  mal.  Esta  distinc- 
ção  continha  em  si  o  principio  da  desunião,  que,  sfcgundo  as 
nossas  idéas  modernas,  podia  ter  sido  extremamente  perigosa 
e  causa  de  internas  commoções,  á  semelhança  da  não  menos 
odiosa  e  notável  distincçâo,  entre  os  patricios  e  plebeus  de 
Roma  nos  últimos   tempos. 

E'  notável  que  nunca  ouvíssemos  fallar  das  rixas  intes- 
tinas, ou  das  revoltas  dos  povos,  quer  do  Egypto,  quer  da 
índia ;  mas  ha  a  tomar  em  consideração,  que  as  divisões  e 
sub-divisões  do  povo,  sendo  tantas,  se  contrabalançaram,  evi- 
tando que  se  tornassem  perigosas  aos  governos. 

Outra  cireumstancia  importante  nos  occupa  agora.  Estas 
distincções  foram  sanccionadas  pela  religião,  e  especialmente 
introduzidas  no  Egypto  e  na  índia. 

N'este  ponto  os  sacerdotes  egypcios,  e  os  brâmanes  da 
índia,  estão  ambos  d'acordo,  encontrando-se  no  mesmo  campo 
e  em  iguaes  circunstancias. 

Se  procurássemos  este  systema  politico  na  sua  origem  e 
principio  fundamental ,  acreditamos  que  não  passaria 
d'um  artificio  dos  sacerdotes  para  segurarem  o  po- 
der e  influencia,  para  desanimar  todo  u  esforço  aspirativo  do 
génio,  e  extinguir  toda  a  idéa  ambiciona  emprehendedora  n'a- 
quelles  que  elles  procuravam   sujeitar;    como    também   divi- 

7 


44 

ah*  a  grande  massa  da  população  eia  muitas  classes  distin- 
ctas,  contrariando-se  mutuamente,  obstando  pelos  dogmas 
da  religião  á  formação  de  coalisões,  de  modo  que  fossem  o  me- 
nos possível  perigosas  as  suas  authoridades  clericaes,  as  quaes, 
cumpre  notar,  haviam  concedido  que  a  ordem  militar  partilhas- 
se seus  privilégios,  porque  elles  bem  sabiam  que  nem  seme- 
lhante systema  de  governo,  nem  outro  qualquer,  podia  tolerar- 
se  sem  a  força  armada  ;  e  a  ascendência  que  a  religião  lhes 
deu  sobre  um  povo  naturalmente  supersticioso,  forneceu-lhes 
os  meios  de  subordinar  os  militares  á  sua  direcção. 

Se  foi  a  Assyria  ou  o  Egypto  o  paiz  em  que  primeiro  se 
cultivaram  as  sciencias  e  artes,  é  uma  questão  difíicil;  e  per- 
dida como  está  na  noite  dos  tempos,  impossível  até  de  de- 
terminar. 

Comtudo,  se  as  apparencias  merecem  alguma  considera- 
ção; a  conjectura  mais  rasoavel  seria,  talvez,  a  favor  do 
Egypto.  A  regularidade  da  sua  administração  civil;  os  vastos 
diques  do  Nilo;  os  numerosos  canaes  e  outros  trabalhos  admi- 
ráveis para  o  melhoramento  da  agricultura;  as  ruinas  magni- 
ficas da  architectura  egypcia,  que,  ainda  hoje,  têem  resistido 
á  acção  do  tempo;  especialmente  as  pyramides,  aquelles  estu- 
pendos monumentos  da  tosca  magnificência  das  eras  primiti- 
vas; e  as  soberbas  ruinas  de  Thebas,  restos  mais  notáveis 
de  explendor  antigo,  de  que  nenhum  outro  paiz  se  pode  van- 
gloriar, e  da  mais  remota  antiguidade,  fora  mesmo  do  alcan- 
ce de  recordação  histórica;  com  muitas  outras  couzas  que  ex- 
citam a  admiração  dos  modernos  viajantes,  como  acontecia 
aos  philosophos  gregos  que  visitaram  aquellepaiz  ha  mais  de 
dous  mil  annos,  todos  apontam  o  Egypto  como  o  paiz  aonde 
grandes  emprezas  foram  primeiramente  concebidas,  e  aonde 
primeiramente  o  homem  fez  progressos   na  civilisação. 

O  Egypto,  pela  sua  situação  central,  presta-se  admira- 
velmente aos  effeitos  de  commercio  e   navegação. 

O  Nilo,  correndo  em  todo  o  comprimento  do  paiz,  facilitou 
os  meios  de  trafico  interno,  pela  fácil  conducção  de  mercado- 
rias d'um  para  outro  ponto,  e  não  podia  deixar  de  suscitar  aos 


45 

egypcios  idéas  vantajozas  de  navegação;  e  provavelmente 
foram  elles  o  primeiro  povo  que  pensou  n'isto,  posto  que  fossem 
depois  supplantados  pelos  Phinicios.  Qs  Tyrios,  circunscriptos 
em  uma  ilha  de  pequenas  dimensões  e  possuindo  pouco  na  terra 
firme,  estavam  na  necessidade  de  supprirem  os  defeitos  de  lo- 
calidade, tão  desfavoráveis  á  agricultura,  aproveitando  a  sua 
posição  em  beneficio  do  commercio,  e  a  opulência  que  por 
este  meio  adquiriram  os  tornou  poderozos.  Os  Egypcios,  pos- 
suindo um  terreno  da  maior  fertilidade,  não  fizeram  do  com- 
mercio sua  principal  industria,  á  maneira  dos  Tyrios.  Entre 
estes,  o  commercio  era  objecto  de  primeira  ordem;  entre  aquel- 
les  era  secundário;  consequentemente  não  é  para  admirar  que 
os  Tyrios  sobresaissem  no  que  era  objecto  principal  da  sua 
industria,  a  fonte  da  sua  opulência  e  poder,  e  para  o  qual  o 
espirito  nacional  pendia  fortemente  por  circunstancias 
locaes.  Em  epocha  tão  remota  como  o  reinado  de  Da- 
vid, reidTsrael,  cerca  de  145  annos  depois  da  guerra  de  Tróia, 
e  perto  de  1048  annos  antes  de  Jezus  Christo,  immensa^ 
quantidades  d'ouro  e  de  prata  tinham  sido  introduzidas  nos 
paizes  por  elle  conquistados,  situados  todos  entre  o  Euphrates 
e  o  Levante. 

Resta  pouca  duvida  que  aquelles  metaes  tivessem  sido  impor- 
tados nestes  paizes,  grande  abundância  tal,  pelos  canaes  do  com- 
mercio Egypcianno  e  Tyrio,  mas  principalmente  por  estes 
últimos. 

Os  Tyrios  commerciavam  por  differentes  caminhos  para  a 
índia,  e,  sem  duvida,  para  a  costa  d' Africa,  por  meio  do  mar 
vermelho,  que,  com  o  Golpho  Pérsico,  formavam,  os  dous  gran- 
des caminhos  pelos  quaes  se  fazia  o  commercio  para  a  índia  e 
para  Africa.  Desta,  subindo  o  Euphrates  e  o  Tigris,  podiam 
supprir  a  Babylonia  e  a  Assyria  dos  seus  variados  productos; 
e  do  Euphrates,  como  também  do  mar  vermelho,  as  mercado- 
rias do  Oriente  eram  transportadas  por  terra  para  o  Tyro,  e 
dahi  novamente  dissiminadas  por  differentes  paizes.  Deste  mo- 
do as  producçoes  de  differentes  climas  eram  amontoadas,  per- 
mutadas e  enviadas  por  differentes  vias,  por  mercadores  Tyjcios» 


46 

O  período  mais  florescente  deste  commercio  foi  aquelle  dfe> 
tempo  do  reinado  de  Judah.  A  descripção  da  variedade  e  ex- 
tensão d'este  trafico,  e  que  se  vê  no  capitulo  27  d'Exequiel,  é 
o  mais  curiozo  documento  d'esta  espécie  que  se  pôde  encon- 
trar nos  escriptos  da  antiguidade,  pela  razão  que  apresenta 
um  detalhe  claro  e  minuciozo  dos  negócios  commerciaes  do 
povo  mercantil  mais  celebre  d'aquelle  tempor  e  d'onde  podemos 
formar  uma  idéa  mais  clara  e  justa  da  natureza  e  extensão- 
do  commercio  comprehendido  no  velho  mundo,  que  d'outro  do- 
cumento qualquer  de  moderna  data.  O  Tyro,  depois  íum  cer- 
co retardado,  pela  sua  posição  favorável,  por  espaço  de  13  an- 
nos,  cahio  sob  o  domínio  de  Nabucodonozor,  um  anno  apenas 
anterior  á  tomada  e  destruição  de  Jeruzalem;  e  cerca 
d'um  anno  depois  d'aquella  memorável  epocha,  o  Egypto  foi 
preza  do  mesmo  conquistador  feliz. 

Isto  foi  o  golpe  fatal  que  poz  termo  ao  explendor  e  opulên- 
cia dos  dous  antigos  e  celebres  reinos  do  Egypo  e  do  Tyro, 
tão  famozos  nos   annaes  da  sciencia,  civilisação  e  commercio.. 

Depois  d'este  período,  os  espólios  das  nações  e  as  riquezas 
do  mundo  centralizaram-se  naBabylonia;  e  depois  da  conquis- 
ta d'aquella  monarchia  por  Cyro,  os  dominios  da  Pérsia  fica- 
ram sendo  o  theatro  do  commercio,  da  opulência,  e  do  luxo;: 
o  Egvpto,  o  Tyro  e  a  Babylonia  ficaram  comprehendido^ 
dentro  dos  limites  d'aquelle  extenso  e  poderozo  império. 

Lançando  um  golpe  de  vista  retrospectiva  sobre  um  perío- 
do de  tão  remota  antiguidade,  e  do  qual  restam  tão  poucos 
monumentos  históricos,  vemos  a  historia  do  Egypto  d'envolta 
com  a  fabula,  suaphilosophiaetheologia  atravez  um  véo  ^obs- 
curidade hieroglytíca,  e  muitas  de  suas  instituições  politicas  e 
civis  perdidas  no  esquecimento. 

Dos  Assyrios  nada  sabemos,  e  muito  pouco  dos  Babylonios, 
em  relação  ao  seu  viver  civil  e  social,  e  aos  seus  costumes 
nacionaes  e  populares.  A  sua  forma  de  governo  era  monar- 
chica,  e  parece  ter  sido  dispotica;  seu  modo  de  viver,  appa- 
rentemente  magnificente  e  luxuozo;  o  seu  espirito  em  geral 
dado  á  superstição,  e  a  religião  um   systema   da  mais  crassa. 


47 

iidblatria:  podemos  mesmo  suppor,  que  a  idéa  d'um  ente  su- 
premo, preexistente  e  eterno,,  author  da  existência  de  todas  as 
eouzas,  fora  o  principio  original  e  fundamental  da  religião  dos 
Babylonios,  como  também  de  todas  as  outras  nações;  mas  ellas 
parecem,  como  outras  muitas,  haver  perdido,  com  o  andar  do 
tempo,  quasi  de  todo  a  idéa  primordial. 

A  original  adoração  d'um  ente  supremo  degenerara  para  o 
Zabaismo,  ou  adoração  dos  corpos  celestes. 

A  humanidade,  em  todas  as  idades,  tem  sido  tão  sensivel  á 
sua  própria  fraqueza  e  nenhum  merecimento  para  se  aproxi- 
mar ao  throno  do  soberano  regulador  dos  destinos,  que 
vio  a  necessidade  d'um  mediador  entre  si  e  o  Todo  Poderozo, 
a  quem  imaginavam  tão  superiormente  collocado  que  nâo 
podia  attender  ás  sua  preces,  ou  dar  attenção  aos  sens  negó- 
cios. Estas  suposições  e  a  dificuldade  que  elles  encontraram 
para  satisfatoriamente  explicar  certos  factos  em  opposição  a 
outros,  e  a  mescla  dc^  bem  e  dx)  mal,  sob  o  governo  imme- 
diato  de  semelhante  Ser,  levou-os  a  adoptar  a  hypothese  da 
existência  de  diversas  deidades  subordinadas,  governando  o 
mundo  sob  a  direcção  d'um  Ente  supremo*  Como  os  pagãos 
não  tivessem  os  deuzes  subalternos  na  conta  d'entes  suma- 
mente perfeitos,  as  suas  vontades  oppostas  e  violentas  paixões, 
segundo  as  idéas  do  paganismo,  explicaram  de  certo  modo  as 
desordens  do  mundo.  Os  Babylonios  imaginaram  ver  nos  cor- 
pos celestes  aquellas  divindades  medianeiras ;  suppunham  ca- 
da um  dos  astros  a  habitação  d'um  ser  intelligente  e  podero- 
zo, delegado  do  ente  supremo  e  creador  de  todas  as  eouzas, 
para  inspeccionar  e  dirigir  os  negócios  humanos.  Os  sacerdo- 
tes eram  astrónomos;  elles  observavam  activamente  as  revolu- 
ções e  os  movimentos  dos  astros,  attribuiam-lhes  o  governo 
e  influencia  sob  determinados  dias  conforme  a  sua  rotação,  e 
queriam  pelas  suas  diversas  posições  e  configurações,  predizer 
o  futuro.  D'este  modo  nasceu  a  falsa  sciencia  da  astrologia 
judicial,  da  corrupção  da  astronomia  exercida  pela  clas- 
se sacerdotal.  A  Babylonia  foi  o  berço  da  astrologia,  d'onde 
passou  para  o  Egypto.  Muitos  querem  que  ella  se  tivesse  an- 


48 

tes  originado  n'este  ultimo  paiz,  passando  então  para  a  Chal- 
dea.  Qual  destas  duas  supposições  seja  a  verdadeira,  é  uma 
questão  que  se  não  resolve.  A  primeira  opinião,  porém,  é  a 
mais  seguida. 

E'  certo ,  porém,  que  ella  existia  n'um  período  re- 
moto em  ambos  os  paizes;  e  não  é  pouco  extraordinário,  que 
tão  falsa  sciencia  se  fizesse  quasi  universal  em  todo  o  mun- 
do, e  que  chamasse  tanto  a  attenção,  e  influenciasse  tão  po- 
derosamente sobre  as  esperanças  e  receios  da  humanidade  em 
quasi  todas  as  idades  e  paizes,  sob  quasi  todos  os  regimens 
politicos  e  religiosos,  com  quanto  reprovada  e  condemnada 
pelas  doutrinas  christãs. 

Até  mesmo  hoje,  grande  parte  do  vulgo  em  todos  os  paizes 
da  europa,  cré  fortemente  na  predicção  do  futuro  pelo  estudo 
dos  planetas. — Este  facto  só  se  explica  pela  investigadora  cu- 
riosidade do  homem,  sempre  desejoso  de  profundar  o  destino. 
Ultimamente,  a  phylosophia  solida,  e  as  idéas  apropriadas  a 
assumptos  astronómicos  teem  repellido  os  absurdos  e  as  incon- 
sistências da  astrologia;  e  mesmo  assim  ha  quem  de  bom 
grado  faria  reviver  aquella  pertendida  sciencia,  e  restaurar- 
lhe  seu  antigo  credito,  attribuindo  aos  planetas  uma  influen- 
cia sobre  os  acontecimentos  physicos  e  moraes,  pela  cooperação 
de  causas  naturaes. 

Porém  a  phylosophia  e  a  experiência  concorrem  para  de- 
monstrar, que  no  systema  da  natureza  todas  as  cousas  são 
dirigidas  por  causas,  até  certo  ponto,  próximas,  e  não  por 
causas  excessivamente  remotas;  e  a  astronomia  certifica-nos 
que  é  tal  a  distancia  dos  corpos  celestes,  que  não  ha 
margem  a  suppor  que  elles  possam  ter  considerável  influencia 
sobre  a  ordem  physica,  e  muito  menos  sobre  a  moral 
do  nosso  globo,  quer  em  relação  a  nações,  quer  a  individuos. 
Admittindo  a  realidade  d'uma  influencia  planetária  sobre  os 
negócios  de  nações  e  communidades,  seria  necessário,  a  fim  de 
precisar  a  sua  natureza  e  extensão,  que  tivéssemos  uma  cor- 
recta e  bem  authentica  historia  astrológica  do  mundo;  mas 
obra  alguma  d'esta  natureza  se  encontra;  e  quando  mesmo  os 


49 

effeitos  d'esta  influencia  sobre  os  negócios  de  nações  e  corpos 
collectivos  se  podesse  precizar,  ainda  assim  seria  impossivel 
determinar  de  que  modo  actuava  ella  sobre  os  indivíduos. 
Considerando  os  effeitos  terriveis  de  calamidades  publicas,  de 
pestes,  de  terremotos,  ou  a  destruição  da  espécie  humana  em 
batalhas  e  assaltos,  aonde  milhares  d'homens  caem  n'um  só 
dia,  grande  seria  a  nossa  credulidade,  pouco  em  harmonia 
com  a  phylosopha  ou  com  a  boa  razão,  para  admittir  que  tan- 
tos individuos  de  differentes  idades,  vindos  de  difTerentes  pai- 
zes,  e  envolvidos  em  uma  infelicidade  geral,  tivessem  nascido 
sob  a  mesma  influencia  planetária,  e  que  a  sua  sorte  fosse 
determinada  pela  mesma  disposição  dos  corpos  celestes.  Uma 
pertendida  sagacidade  n'esta  imaginaria  sciencia  tem  sido, 
não  obstante  a  sua  incompatibilidade  com  os  dictames  da  ra- 
zão, e  os  princípios  de  verdadeira  phylosophia,  um  instrumento 
útil  nas  mãos  dos  impostores  em  todas  as  idades,  e  em  todos 
os  paizes,  para  o  effeito  de  converter  em  vantagem  própria  a 
ignorância  e  credulidade  do  vulgo;  como  acontecia  entre  os 
sacerdotes  da  Babylonia,  cuja  religião,  á  feição  da  dos 
Egypcios,  parece  ter  sido  um  jogo  complicado  e  mysterioso, 
calculado  para  a  acquisição  de  riquezas  e*  poder;  e  para  se 
assenhorearem  do  espirito  do  povo. 

A  historia  da  humanidade  não  offerece  uma  mais  evidente 
prova  dos  extensos  e  douradores  effeitos  de  systemas  es- 
tabelecidos e  opiniões  geralmente  recebidas,  em  rela- 
ção á  intelligencia  humana,  como  a  predisposição  notável,  pela 
astrologia  judicial,  que,  provavelmente,  nunca  seria  lembra- 
da, se  não  tivesse  sido  creada  pelos  sacerdotes  da  Babylonia, 
com  cujo  systema  theologico  estava  essencialmente  entrela- 
çado, e  por  cuja  sancção  e  authoridade  íoi  acreditada 
por  um  povo  crédulo  e  supersticioso,  com  cujas  idéas  phi- 
losophicas  e  religiosas  estava  de  perfeito  accordo. 

E'  desde  periodo  remoto  que  a  astrologia  se  estendera 
da  Babylonia  aos  paizes  orientaes,  e  com  o  andar  do  tempo 
por  todo  o  mundo  civilizado.  O  apparecimento  da  christanda- 
de  diminuio-lhe  o  credito,  mas  não  a  exterminou    á  maneira 


"50 

doutras  numerosas    superstições  do  paganismo. 

Com  quanto  a  religião  christã  condemnasse  o  estudo  dyes= 
ta  falsa  e  ideal  seiencia;  de  tal  modo  ganhara  terreno,  que 
por  fim  foi  tida  em  tanta  estimação  entre  christãos,  como 
fora  entre  pagãos;  e  hoje  mesmo  muita  gente  da  plebe  dos 
paizes  christãos  cre  piamente  que  o  destino  do  homem  pode  ser 
predicto  pelo  estudo  da  astrologia  judiciosa.  Que  uma  seien- 
cia chimerica,  nascida  de  hypotheses  erróneas  e  absurdas ,  in- 
ventada por  sacerdotes  Babylonios,  adquirisse  tamanha  áurea 
e  uma  influencia  tão  universal  sobre  o  espirito  da  humanidade, 
é  uma  circumstancia  notável  na  historia. 

A  religião  Zabiana  ou  Babylonica,  que.  segundo  o  Doutor 
Russell,  e  outros  investigadores  acreditados  da  antiguidade, 
consistia  principalmente  na  adoração  dos  orbes  celestes, 
como  deidades  invisíveis,  que,  como  imaginavam  os  ido- 
latras, regiam  o  mundo,  subordinados  ao  poder  soberano  d'um 
espirito  eterno,  infinito  e  omnipotente,  degenerou  gradual- 
mente naadoroção  d'imagens,  erguidas  como  symbolos  e  re- 
presentantes d'aquellas  divindades  celestes. 

Todavia,  S.  Jeronymo,  e  outros,  suppõem  que  a  idolatria, 
teve  a  sua  origem  <na  elevação  de  estatuas  em  honra  a  reis  e 
heroes,  que,  no  decurso  do  tempo,  vieram  a  ser  objectos  d'es- 
ta  adoração;  e  asseveram  que  a  estatua  de  Belo,  o  suecessor 
de  Nemrod,  e  rei  de  Babylonia,  fora  o  primeiro  objecto  d'esta 
qualidade  d'adoração.  Talvez  que  estas  circunstancias  ambas 
concorressem  para  produzir  este  effeito.  Cousas,  porém,  de  tão 
remota  antiguidade  não  se  podem  profundar. 

Desde  o  tempo  da  fundação  de  Babylonia  e  de  Nenive,  a 
historia  deixa-nos  quasi  tanto  nas  trevas  em  relação  aos  acon- 
tecimentos polkicos  que  tiveram  logar  no  antigo  império  dos 
Assyrios,  como  acontece  a  respeito  das  suas  leis,  instituições, 
e  costumes  até  a  extineção  do  império  pela  revolta  dos  go- 
vernadores da  Media  e  de  Babilónia,  e  morte  de  Sardanapolo. 

Tudo  que  se  nos  de  Belo,  de  Nino  e  de  Simirimis,  vem 
tão  mal  garantido,  que  nada  que  se  pareça  com  a  verdade 
póde-se  asseverar;  e  mesmo  depois    d'ar^uelles   acontecimen- 


ifcos,  a  historia  cias  nações  é  tão  confusa,  que  não  podemos  ter 
n'ella  confiança. 

Seria  tarefa  árdua  e  desnecessária  ,  procurar  conciliar  a-s 
contradieções  entre  historiadores  e  chronologistas  sobre  a  or- 
dem de  suecessão  e reinados  dos  reis  de  Babylonia,  antes  e 
depois  de  Nabueodonozar.  Cada  escriptor  tem  estabelecido 
uma  hvpothese  sua,  esforç^ndo-se  por  a  sustentar,  e  chrono- 
logistas modernos  íeem  frequentemente  empregado  meios  tra- 
balhosos a  rim  de  descortinar  a  verdade  atravez  as  sombras  da 
contradição. Comtudo,  attendendo  ao  que  nos  dizem  os  antigos, 
e  ás  discobertasdos  modernos,  muito  apenas  sabemos,  que  de- 
pois da  morte  de  Sardanapalo,  o  império  dos  Assyrios  e  dos 
Babylonios  quese  reputa  tudo  e  a  mesma  cousa,  estivera  algu- 
i;  as  vezes  unido,  e  outras  dividido,  até  que  a  cidade  deNenive, 
poi  motivo  da  sua  revolta  foi  completamente  destruída.  Isto 
aeha-se  patheticamente  descripto  pelo  phrofeta  Nainim.  De 
.->te  ac<  mtecimento  não  ha  particularidades  na  historia,  e  por 
consequência  nenhuma  outra  ídea  podemos  d'elle  formar  que 
não  seja  a  que  nos  fornece  o  phrofeta  no  seu  vivo  e  colorido 
quadro.  Do  reinado  victoriosoe  esplendido  de  Nobocodonozor 
nào  possuímos  noticias  suecintas  e  coherentes;  logo  somos 
obrigados  a  reunir  os  factos  dentre  os  fragmentos  da  historia 
sacra  e  proi>na,  e  tissim  mesmo,  de  todos  os  reis  de  Babylonia,  é 
elle  o  unieo  de  quem  temos  algum  conhecimento  digno  de 
credito. 

Do  génio  e  costumes  nacionaes  dos  Babvlonios,  podemos, 
talvez,  formar  alguma  idéa  soffrivelmente  justa  pela  combina- 
rão de   circumstancias  bem  conhecidas. 

Eílès  não  tinham  certamente  feito  considerável  piogresso 
nas  sciencias;  mas  o  seu  entendimento  era  prejudicado  na 
maior  escala  pela  superstição  que  a  sua  religião  tendia  a  inspi- 
rar c  a  nutrir.  D'isto,  a  sua  cultura  da  astrologia,  e  de  todas  as 
outras  artes  d'adevinhação,  com  uma  assiduidade  e  devoção, 
de  que  senão  encontra  exemplo  na  historia  das  outras  nações 
cia  antiguidade,  e  uma  prova   incontestável. 

Os   seus    astrónomos    haviam    feito    considerável    pro- 


>2 

^resso  nesta  sciencia  etinhão  descoberto  eprecizado  a  rotação 
dos  orbes  celestes,  tanto  quanto  os  habilitava  a  prognosti- 
car os  eclipses.  Alguns  dos  primeiros  philosopjios  grego» 
dirigiram  se  a  Babylonia  acolher  informações  sobre  astro 
nomia  e  outros  ramos  scientiíicos;  e  a  este  respeito,  Babylo1 
nia  reclama  um  quinhão  com  o  Egy.pto  nas  honras  cie  haver 
instruído  a  Grécia.  A  plaaice  igual  e  extensa  em  que  era 
situada  Babylonia,  e  a  pureza  da  sua  atmosphera  durante 
uma  grande  parte  do  anuo,  eram  vantagens  consideráveis  pa 
ra  os  astrónomos  chaldeos.  Os  Egypcios  possuíam  também 
as  mesmas  vantagens  d'um  céo  sem  nuvens ;  mas  os  planos 
do  Egypto  não  sendo  em  todas  as  direcções  tão  extensas  co- 
mo os  cia  Chaldea,  não  offereciam  tão  dilatado  horizonte; 
nem  tinham  os  Egypcios,  nem  mesmo  outra  qualquer  nação 
antiga  ou  moderna,  um  observatório  de  tão  estupenda  altura 
como  a  grande  torre  do  templo  de  Belo.  Dizcm-nos  alguns  es 
criptores  que  a  linha  perpendicular  d'esta  prodigiosa  construc- 
çjio  não  era  inferior  a  uma  milha;  mas  quem  ha  que  o  acre- 
dite? Aquelle  elegante  e  erudito  escriptor  o  doutor  Russell 
(que  reunira  e  examinara  acertadamente  a  descripção  feita 
por  aquiles  auíhores  antigos,  que  a  viram,  e  munieiozamen- 
te  se  informaram  das  suas  dimensões)  diz  que  o  templo  for 
mava  um  completo  quadrado,  tendo  cada  uma  das  faces  1:200 
pés.  D 'esta  descripção  elevemos  inferir  que  o  templo  era  de 
forma  cubica,  mas  a  falta  de  declaração  da  sua  altura  torna 
tudo  d  u.  idoso.  Do  centro  cVeste  ediíicio  nascia  a  torre  de 
600  pés  em  quadro  e  outros  tantos  de  altura.  Sobre  o  alto 
d'esta  torre  que  segundo  as  combinações  melhores,  se  eleva- 
va á  enorme  altura  de  1:800  pés,  assentava  o  celebre  obser- 
vatório de  Babylonia,  aonde  os  sacerdotes  faziam  suas  ob- 
servações astronómicas. 

D'esta  extraordinária  altura  o  astrónomo  via  a  terra  e  os 
çeos  expostos  a  uma  larga  e  não  interrompida  prespectiva, 
que,  segundo  os  cálculos  mathematicos,  dando  desconto  á 
curvatura  da   superfície  do    globo,  não  podia  alcançar    uma 

meia  inferior,  sobre  aquelle  pai/  plano,  que  de  50   milhas 


53 

era  todas  as    direcções,  e  por  tanto  abrangiam  consideravel- 
mente maior  extençâo  que  todo  o  terreno  comprehendido    en 
tre  os  diffe  rentes  braços  do  Euplirates  e  do  Tigris.  Por  cima  e 
por  baixo  a  vasta  extençâo  appresentava  uma  perspectiva  ma 
gestoza,    apropriada  a  encher  a  mente  do  expectador  d'uma 
idea  pavoroza  e  elevada  da  grandeza  do  universo,  em  quan 
to  que    proporcionava   aos    astrónomos  Babylonios  occasião 
para  observar    os  movimentos  dos  corpos  celestes,  por  longo 
tempo,  durante  a  sua   apparente  passagem,   desde  alinha  do 
nascente  até  á  extremidade  occidental  de  tão  extenso  horizoB- 
te.   A  prodigioza   altura  d'esta  torre,  com  quanto    certificada 
por  todos  os  historiadores  e  antigos  viajantes,  quazi  que  aba- 
la a  credulidade  dos  tempos  modernos;    e  se  não    attingia    a 
altura  descripta  por  authores  antigos,  devia    necessariamente 
Sér  extraordinária  para  poder  authorisar  exagerações  tão  au- 
daciosas; porque  viajante  algum  se  abalançaria  a  dar  tão  incrí- 
vel elevação  se  não  (ora  realmente  objecto  d'admiração. 

O  génio  dos  Babylonios,  tanto  quanto  podemos  julgar  dç 
acontecimentos  conhecidos,  pendia  para  as  construções  de 
grande  apparato  e  suprema  magnificência  em  architectura, 
como  podemos  conjecturar,  não  só  pela  construcção  do  templo 
de  Belo,  como  também  pela  extensão  do  palácio  real,  da  vas 
ta  cerca,  e  do  massiço  dos  muros  da  cidade.  O  plano,  as  fortifi- 
cações e  embellezementos  de  Babylonia,  fazem  honra  aos  seus 
authores,  quaesquer  que  fossem,  e  dão  nos  uma  idea  elevada 
do  poder  e  grandeza  d'um  povo  que  executou  trabalhos  de  tal 
magnitude. 

Não  deixa  d'admirar,  quanto  os  escriptores  que  nos 
transmittiram  a  descripçào  d'esta  antiga  e  afTamada  ci- 
dade, desharmonizam  entre  si  no  que  respeita  a  extensão  e  " 
altura  das  suas  muralhas,  e  as  suas  noticias  sobre  aquella  par- 
ticularidade attestam  evidentemente  quanto  é  incerto  a  historia 
em  relação  a  detalhes  circunstanciados.  Diodoro  Siculo  diz- 
nos  que  os  muros  de  Babylonia  tinham  45  milhas  em  circun-. 
ferencia.  Clitarcho  descreve  os  como  tendo  365  pés  d'aho,. 
fortificados  com  150  torre-s.  Strabão    diz-uos    que  tinham   48 


5í 


milhas  de  circunferência.  Quinio  Çurcio descreve  a  sua  altura 

como  sendo  de  15()  pés,  .'52  de  largura  e  a  circunferência  em 
4G  milhas.  Heródoto  assevera  que  a  sua  altura  cru  de  3:00 
pés — grossura  75, e  a  sua  circunferência  de  ()0 milhas;  e  com 
quanto  este  ultimo  seja  universalmente  acc usado  dexagera- 
dor,  pendendo  para  a ficçâ* o,  nao  só  hm  descripção,  roas  em 
muitas  outras  circunstancias,  o  engenhoso  Doutor  Kussell  ten- 
de muito  a  dar-lhe  a  preferencia;  por  isso  que  de  todos  quan- 
tos escreveram  acerca  cie  Babylonia,  fora  elle  o  único  que  a 
vio  no  auge  do  seu  explendore  magnificência.  E',  todavia  im- 
possível conciliar  estas  noticias  contradictorias,  posto  que 
d'cllas,  collecti  vãmente  tomadas,  podemos  inferir  que  a 
cidade  era  d'úum  extensão  immensa,  e  as  suas  muralhas  d'es- 
pantósas  dimensões.  Em  quanto  ás  differentes  noções  que 
d'ellas  temos,  devemos  ter  em  vista  (pie  Dário  Hystaspes  as 
reduzira  á  metade  do  que  antigamente  tinham  sido  em  con.se 
quencia  da,  revolta  da  cidade  contra  o  governo  persa,,  de 
modo  que  a  descripção  feita  por  aquelles  que  conheceram  Ba 
byloniá anterior  áquelle  acontecimento,  comparada  com  aquella 
dada  por  quem  a  visitou  depois  deve,  necessariamente,  deferir 
muito.  Air.  d'Anville  denominado  por  muito»,  especialmente 
por  mr.  Gihbon,  o  príncipe  dos  geographos,  diz  que  quando 
for  assentado  em  que  devam  ficaras  antigas  tradicções  sobre  a 
extensão  de  Babylonia  e  de  Thebas,  no  Kgypto,,  deduzida  a 
parte  exagerativa,  e  reconhecidas  as  medidas,  achar  sc-ha  que 
aquellas  famozas  cidades oceupavam  o  grande  mas  nao  incri 
vel  espaço  (\o.  25  ou  3(J  milhas,  hvpolhese  esta  muito  d  i  flo- 
rente do  que  geralmente  se  acredita.  (Memde  1'  academie,  <l'"e.) 
Asnim.  do  concurso  testemunhal  de  todos  os historiador.esan fi- 
gos, e  dos  seus  eouimentadores  modernas,  e<>ni  quanto  dis- 
cordem largamente  em  parricularidesj  podemos  concluir  que 
Babylonia  ultrapassou  em  área  as  nossas  maiores  cidades  eu- 
ropeas;  e  como  fosse  quadrada  a  sua  forma,  igual  a  duas 
juntas  em  quanto  a  extensão;  mas  em  razão  das  eazas  nao  se- 
rem contíguas,  e  as  ruas  muito  largas  e  distantes,  formando 
nas  suas   confluentes  grandes    largos   ajardinados   c    nsesto,^ 


55 

terrenos  cultivados,  nao  se  podo  suppor  que  eguaVisse  em  po 
pulaçao  as  cidades  de  Londres  ou  I'ans.  O  plano,     quer  fosse 
effeito  da  prcniedilaçao,  ou  de  capincfe®,  era  «inandioso,   lindo 
e  Útil,  eombina.ndo  cm  seourança,  recreio  o  salubridade. 

0*  M. marchas  Uabylonieos  quenndo  tornar  a  sua  capi- 
tal inexpugnável  a  toda,  a  sorte  d'assalto,  coidieeida  n'a- 
quelles  tempos,  a  cercaram  d'altos  e  grossos  muros,  ede    fos 

kos  d'uina  largura  c  profundidade  proporoionaes,  cheios 
com  us  aguas  dó  rio  Kuphrates  qvsss  corra  pelo  centro  da  ei 
dâde.  As  runs  eram  dispostas  em  linlias  lactas  em  todo  o 
comprimento  e  largura  da  cidade,  eruzando-se  em  ângulos 
agudos;  de  modo -que  década  encruzilhada,  podiam  vei--.se 
qilatrò  portas  da  Cidade,  formando  cada  rua,  uma  vista  ma^ni 
íica,  inteiramente  dilforente  das  ruas  estreitas  e  tortuosas  das 
nossas  cidades  europeus. 

A  vasta  extensão  ccmprehcndida  entro  os  muros  propor- 
cionava a  cada  oaza  o  seu  quintal  e  admittia  a  cultura  de  cereaes, 
ficando  acidado  livre  dos  receios  da  forno  no  caso  do  ou-eo. 
quazi  inadmissível  em  presença  de  seus  meios  do  deíeza.  — 
1'nia  outra  circunstancia  (1'extraordinai  ia  utilidade,  e  que 
geralmente  tem  passado  desapercebida,  enoontra-r>e  n'este 
plano:  consistia  no  modo  particular  poi  que  souberam  harmo- 
niza r  as  condições  locaes  á  natureza  do  clima;  pois  se  uma 
cidade  como  líabylonin  cercada  de  muros  de  tão  prodigiosa 
altura  sob  a  influencia  d'uma  temperatura  ardente  e  um  solo 
húmido,  edificada  n'um  paiz  baixo  e  plano,  tivesse  sido  fe- 
chada em  um  pequeno  espaço  como  as  nossas  cidades  moder- 
nas, fora  um  poço  de  peste  contagioza.  A  altura  das  mura- 
lhas evitaria  a  circulação  do  ar,  e  tornaria  a  atmosphera  da 
cidade  em  estremo  insalubre  e  fatal  para  os  seus  habitantes; 
e  a  todos  estes  effeitos  perniciosos  se  obstou  pelo  plano 
franco  e  rural  que  presidio  á  sua  construcçao,  combinando  se 
admirável  e  judiciosamente  a  magnificência,  segurança  o 
condições  hygi'  nicas;  circunstancia  digna  d'attençâo  conside- 
rando e  <  p  eha  remota  em  que  se  deu. 

Xabucodonozor,  esperando  som    duvida  estabelecer   uma 


50 

monarehia  too  estável  como  o  próprio  mundo,  dou  comple- 
mento ás  fortiíicaçoes  e  eintaelesrementos  da  cidade.  Todos  os 
seus  vastas  planos,  conitudo,  foram  cedo  reduzidos  a  nada 
por  aquella  providencia  que  tudo  dirige  e  governa,  e  que  po- 
de a  todo  o  tempo  confundir  as  ideas  dos  mais  sábios,  dis- 
pondo com  uma  presciência  incomprehcnsivel,  uma  ordem 
ininterrompida  de  cauzas e  efíeitos  que  determinam  o  resul- 
tado de  todos  os  projectos  humanos.  A  opulência  e  o  poder 
dos  Babvlonios  produziram  depressa  a  negligencia,,  junto  ao 
mais  extravagante  luxo.  Senhores  da  maior  parte  do  mundo, 
os  reis  da  Babvlouia.  succçssores  ^\^  grande  Nabucodonosor, 
longe  de  seguirem  0  seu  exemplo  e  medidas  vigorosas,  entiv- 
garam  se  á  indolência  e  afennnaçào,  Pesprozarani  OS  negoeios 
políticos  e  militares,  e  uma  completa  relaxação  de  deseiplina 
se  inlroduzio  no  exercito.  As  tropas  Bab  vlonias  que,  n O  tempo 
de  Naboeodouo. ior,  pareciam  invencíveis,  estavam  tao  ilegene 
radas  que  na  guerra  contra  OS  Medas  e  Persas,  nào  poderam 
encarar  o  inimigo;  e  soiVreram  uma  continuada  serie  de  revê 
ees.  A  historia  offerece  poucas  noções  que  mereçam  confiança 
aobre  as  cauzas  inunediatas  e  particularidades  daquella  guer 
ra.  Tudo  que  podemos  eolligir  a  esse  respeito  c  que  os  Ba 
bylonios,  quasi  constantemente  batidos,  presenciando  a  sub- 
jugação de  seus  vastos  domínios,  foram  finalmente  obrigados 
n  se  encerrarem  na  sua  capital,  aonde,  estando  concentrada 
toda  a  remanescente  força  Lo  império,  tiaram-se  na  altura  e 
segurança  dos  muros  para,  os  proteger  dos  assaltos  do  inimi- 
go, em  quanto  seus  vastos  eelleiros,  ajudados  pelos  recursos 
dos  terrenos  inter  muros  os  pozèsse  ao  abrigo  das  privações. 
A  corte,  embalada  com  estas  ideas  de  segurança,  e  immersa 
na  sensualidade,   pouco  cuidava  dos  meios  de  defesa, 

A  rainha  Mu>  administrava   o  reino,  e  o  rei  Balthazar  era 
estranho  aos  negócios  públicos. 

Estando   as  cousas  n'esta>  circunstancias,  Cyro    foi  infor 
made    pie    n'u;na  certa   festa  próxima,  toda  a  cidade  se  acha- 
ria mergulhada  no  maior    esta  lo  de  deboche    e  embriaguez. 

K  cebeiulo  estus  n  >tieias,    fonu  >u    o    projecto     de   cortar 


57 

os  diques  do  KuphraVs,  uni  pouco  a  cima  da  cicfadej  e  des- 
pejai' as  suas  correu, !'s  para  dentro  tios  vastos  reservatórios 
feito b  por  Na-bocodonozor  para  receb< ■ícn-i  as  cheias  daquel- 
le  iio,  e  que,  formando  se  na  Mcdea  e  Arménia,  costuma- 
vani  inundar  o  paiz  e  ás  vezes  a,  propr  acidade.  Dando  execik 
i  a  estG  plano  na  véspera,  da,  lesta,,  seccando  o  rio, 
.  krehar  as  suas  tt'0'pas  pelo  leito,  e,  ou  porque  encon- 
trasse os  brônzeos  portões  abertos,  ou  porque  os  forçasse,  en- 
trou na  cidade  sem  oppozição,  e  encontrou  habitantes,  sol- 
dadesca e  toda, a  corte,  entregues  aos  prazeres  da  intemperan- 
ça e  libertinagem.  Dirigindo  se  então  ao  palácio  real,  forçou 
a  sua  entrada,,  e  rei  e  cortezãos  foram  passados  á  espada  no 
meio  da  sua  orgia. 

Assim  cahiu  Babylonia,  a  mais  celebre  cidade  da 
antiguidade,  538  annos  antes  de  Jesus  (Jhristo  no  reina- 
do de  Sérvio  Tullio,  rei  de  liana:  acontecimento  este  que 
c  Misi.it ue  a  primeira  grande  revolução  e  transferencia  de  po- 
der  e  de  propriedade  entre  a  humanidade;  po>*  isso  que  os 
m ■marchas  d'Assyria  e  Habylonia  sempre  se  reputam  uma  ea 
mesma,  sendo  a  ulliina  minto  apenas  uma  continuação  da 
primeira,  sob  uína  dynastia  dilferente  de  príncipes. 

Durante  o  período  de  tempo  em  que  as  margens  do  Nilo, 
do  Tyro  e  do  Kuphrates  foram  o  grande  theatro  das  faça- 
nhas humanas,  e  (pie  os  paizes  aonde  a  civii.saç  «o,  aa  Bcien- 
cias  e  o  luxo  mais  dominavam,  toda  a  Kor.ipa,.  ;i  :.•.  j>çãoda 
;  ireia  achava  se  na  mais  selvagem  ignorância,  s  mo  m  lisleve 
c  inlieoi  mento  de  quaesquer  das  artes  ou  das  cu rrò  m  •  .  Ladés  da 
s.  n-iedade  civdizada.  De  todos  os  rCuropeos  os  í  ,i  regi tm  toram  o 
único  povo  que  começava  a  sair  das  trevas.  Tào  cedo  como  a 
era  de  Moizes,  os  Gregos  tinham  estabelecido  os  rudimentos 
de  um  governo  e  economia  politica,  e  durante  o  periodo  que 
decorre  desde  a  saída  dos  israelitas  do  Kgypto  e  o  estabe- 
lecimento da  monarchia  na  caza  de  David,  os  seus  diílerentes 
reinos e  estados  tinham  tomado  uma  face  regular  e  systema- 
tica,  e  d'ahi  até  a  óra  assignalada  pelo  reinado  de  Nabueodo- 
nozor,  tinham  feito  progresso  ivm  Neiencia*  e  na,  çivilisaciio. 


58 

Nào  foi,  porém,  senão  quasi  no  começo  do  reinado  de 
Nabocodouozor,  que  os  philosopfoos  gregos,  viajando  no  Egy- 
pto  e  na  Chaldea,  principiaram  a  importar  para  o  seu  paia 
as  sciencias  das  outras  nações:  a  epoclia  da  phiíosophia  gre- 
ga data  d'este  tempo. 

Esta  memorável  era  disringue-se  por  uma  tão  bri  hante 
constellação  de  grandes  e  illustres  caracteres,  como  nenhum 
outro  tempo  apresenta;  porque  Nabocodouozor,  que  com  to- 
da a  razào,  pode  ser  considerado  o  fundador  da  monarchia 
babydoniea,  e,  a  quem,  inquestionavelmente,  ella  deveu  a  sua 
grandeza,  foi  contemporâneo  de  Cyro  que  derribou  aquelle 
esplendido  editieio  politico,  e  que  sobre  as  suas  ruinas  fundou 
o  império  persa;  tendo  nascido,  segundo  a  chronologia  mais 
acreditada,  no  quarto  anno  do  reinado  de  Nabocodouozor, 
€00  annos  antes  da  vinda  de  Christo.  N'este  tempo  reinava 
Periandro  em  Corintlio  e  Pesistrato  em  Athenas;  Sólon,  Da- 
niel, como  também  Anaximandro  e  Pythagoras,  foram  coevos 
com  os  mencionados  personagens,  conspieuamente  politicos. 
Em  quanto  a  Grécia  fazia  grandes  adiantamentos  nas  scien- 
cias e  na  legislação,  formava-se  uma  nação  na  Itália,  designa- 
da pela  Providencia  para  dominar  toda  a  humanidade  civili- 
sada. 

Roma,  a  predestinada  senhora  do  mundo,  foi  fundada 
por  Rómulo,  no  reinado  de  Achas,  ou  Alias,  rei  de  Judea 
752  annos  antes  de  Christo,  e  148  anterior  ao  começo  d'a- 
quelle  de  Nabocodonozor,  segundo  os  mais  seguros  aponta* 
mentos  chronologicos.  Não  podemos  comtudo  suppor  que  es- 
ta computação  de  tempo,  em  relação  aos  acontecimentos  de 
uma  epocha  remota  é  obscura,  se  possa  bem  definir;  pode- 
mos apenas  consideraha  aproximada  da  verdade;  mas  o  ana- 
chronismo  de  poucos  annos  é  de  fraca  importância  sob  um 
ponto  de  vista  geral  de  historia  antiga,  em  que  os  próprios 
historiadores  e  chronologistas,  apoz  trabalho  de  iníructifera 
tarefa,  não  vêem  a  um  accordo. 

A  cidade  de  Roma,  quando  ainda  recentemente  edificada 
sobre  o  Monte  Palatino,  continha  cerca  de  mil  casas  ou  eh  o- 


59 

ças,  construídas  de  terra  e  cobertas  de  colmo;  e  o  palácio 
de  seus  reis  compunha-se  dos  mesmos  materiaes:  O  nume- 
ro de  seus  habitantes  capazes  de  pegar  em  armas,  orçava 
por  três  mil,  e  todo  o  território  romano  teria  apenas  oito  mi- 
lhas em  diâmetro.  Os  habitantes  compunhão-se  de  vagabun- 
dos, proscriptos,  endividados  e  malfeitores,  reunidos  por  seu 
selvagem  fundador;  e  para  bem  de  augmentar  o  numero  de 
cidadãos,  foi  refugio  de  todos  os  indivicluos  de  semelhante  laia. 
De  tão  vil  fonte  procedeo  o  maior  e  mais  poderoso  império 
que  jamais  existio. 

Entre  os  cidadãos  da  joven  Roma,  não  podemos,  comtudo 
deixar  de  notar  uma  Índole  grande  e  prudente,  como  também 
um  génio  guerreiro  e  emprehendedor.  Promulgaram  se  leis 
sabias  e  regulamentos  salutares  adequadas  a  um  estado  de  re- 
cente data,  no  reinado  de  Rómulo.  Numa-Pompilio,  segundo 
rei  de  Roma,  amava  a  paz;  e  no  seu  reinado  longo  e  tranqui- 
lo coordenou,  com  minuciosa  attenção  e  exactidão,  as  institui- 
ções civis  e  religiosas  dos  Romanos;  e  pode  ser  considerado 
o  author  das  suas  leis  e  religião.  Rómulo  foi  o  David,  e  Nu- 
ma o  Salomão  dos  Romanos. 

O  aspecto  geral  do  mundo  nos  fins  do  periodo  que  acaba- 
mos de  percorrer,  é  este;  o  império  persa  fundado  sobre 
as  ruinas  da  grandeza  babylonica,  reunindo  as  partes  mais 
ricas,  mais  populosas  e  mais  bem  cultivadas  do  mundo  sob  o 
seu  dominio;  as  republicas  gregas  consideravelmente  adianta- 
das em  matérias  legislativas,  administração  e  na  arte  da  guer- 
ra; Roma  no  seu  começo,  sob  um  governo  absoluto,  mas 
apenas  emancipada  do  barbarismo,  pouco  conhecida,  e  não 
occupando  posição  distincta  na  ordem  das  nações;  e  todo  o 
resto  da  Europa  n'um  estado  semelhante  áquelle  das  tribus 
selvagens  da  America,  quando  primeiro  descobertos  pelos 
hespanhoes. 

Este  obscuro  periodo  pode  ser  apropriadamente  chama- 
do a  infância  da  sciencia  e  da  civilização. 

Estamos  agora  na  apreciação  d'um  periodo  mais  cheio  d/in- 
teresse e  mais  esclarecido,  que  abrange  a  existência  do  impe- 

9 


60 

rio  persa   e  clá  ampla  margem  ás  considerações  do  investiga- 
dor estudioso. 


A  Pérsia,  reino  insignificante  e  dependente,  apoiando-se 
sobre  as  minas  do  império  Babylonico  attinge  o  mais  elevado 
gráo  d' opulência,  poder  e  esplendor,  mas  cedo  começou  a 
desviar-se  do  rigoroso  plano  de  administração  do  grande  Cy- 
ro.  Os  seus  monarchas  occupandoo  supra  summum  da  gran- 
deza humana,  degeneraram  nas  virtudes  que  elevaram  seus 
victoriosos  antepassados  ao  throno  e  adoptaram  a  pompa,  os- 
tentação e  luxo  effeminado  da  corte  dos  monarchas  Babylo- 
nicos,  causa  da  sua  queda,  subversão  do  seu  poder,  e  extinc- 
ção  da  sua  raça.  Esta  severíssima  lição  não  actuara  sobre  os 
reis  Persas. 

A  Pérsia,  mantendo  o  seu  esplendor,  decahiu  do  poder.  A 
administração  se  fez  corrupta,  o  governo  fraco  e  impotente,  e 
a  disciplina  militar  cahiu  em  desmazelo  e  abandono :  o  mo- 
narcha  geralmente,  fallando,  estranho  aos  negócios  públicos, 
e  a  monarchia  descançando  mais  sobre  a  sua  antiga  fama  do 
que  sobre  o  seu  poder  d'então,  em  quanto  que  os  gregos,  seus 
rivaes,  aperfeiçoando-se  diariamente  nas  artes  e  na  guerra, 
começaram  a  desafiar  o  poder  do  grande  rei  e  de  seus  nume- 
rosos mas  indisciplinados  exércitos.  Alguns  dos  monarchas 
persas,  é  verdade,  pareceram  acordar  do  lethargo  e  a  desen- 
volver um  espirito  emprehendedor,  que,  por  um  momen- 
to, prometteu  fazer-lhes  reviver  a  gloria  e  restabelecer-lbes 
seu  poder  decadente;  mas  estes  exforços  eram  vãos,  ef- 
feitos  apenas  d'um  poder  que  declinava.  • 

Dário  Hystaspes  foi  o  primeiro  monarcha  da  Pérsia  que 
emprehendeu  uma  guerra  contra  os  gregos;  mas  os  ensanguen- 
tados campos  de  Marathon  fez-lhe  appreciar  a  coragem,  disci- 
plina e  tacto  militar  dos  seus  inimigos  europeos  ;  e  depois  do 
fim  desgraçado  d'uma  guerra  caracterizada  pela  derrota  por 
parte  dos  persas,   aquelle  principe,  legou   juntamente    com  a 


61 

coroa,  ao  seu  successor,  Xerxes,  a  sua  animosidade  contra  a 
Grécia,  eo  seu  desejo  de  lavar  a  affrontà  da  Pérsia.  Xerxes, 
fez  soar  a  trombeta  da  guerra  em  todas  as  provincias  de  seus 
vastos  dominios,  e  depois  d'extraordinarios  preparativos,  a- 
tacou  a  Grécia  481  annos  antes  de  Jesus  Christo  com  o  mais 
formidável  exercito  de  que  lia  memoria. 

Heródoto  calcula  a  força  de  Xerxes  em  um  milhão  e  sete 
centos  mil  homens  d'infanteria,  e  oitenta  mil  de  cavallaria. 
Trogus  dá  só  um  milhão  de  pé  e  oitenta  mil  de  cavallo.  O  nu- 
mero de  galleões  orçava  por  duas  mil  duzentas  e  oito,  e  os 
navios  de  transporte  em  três  mil.- — Os  historiadores  divergem, 
porem,  muito  em  relação  ao  numero  das  tropas  persas,  como 
sobre  todos  os  assumptos,  quando  nos  querem  dar  uma  conta 
exacta  de  números  e  d'outras  particularidades  minuciosas, 
que  na  maior  parte,  bazeam  nas  versões  populares,  em  lo- 
gar  de  as  procurar  na  fonte  verdadeira.  A  sua  discordância 
respeitante  a  esta  grande  e  importante  transacção  é  apenas  seme- 
lhante a  outros  innumeraveis  factos  d'incerteza  histórica,  em 
relação  a  circunstancias  miúdas,  das  quas  é  quasi  moralmen- 
te impossivel  que  o  historiador  tenha  perfeito  conhecimento; 
e  cumpre  não  ser  demaziado  crédulo  quando  virmos  que  nos 
querem  convencer  d'aquillo  que  elles  próprios  ignoram. 

Não  obstante  estes  erros  inevilaveis  e  discordâncias  pal- 
páveis não  existe,  todavia,  razão  para  duvidar  que  estes  pre- 
parativos bellicos  foram  os  maiores  de  que  ha  conhecimento  ; 
e  prova-se,  até  á  evidencia,  quanto  foram  vastos  os  recursos 
do  império  persa,  e  irresistível  seu  poder,  se  aquelles  podero- 
sos meios  tivessem  sido  bem  applicados,  mas  o  numero  não 
podia  triumphar  da  coragem,,  da  disciplina  militar,  e  do  patrio- 
tismo. A  Grécia,  áquelle  tempo,  formava  um  grupo  d'estados 
independentes  e  ás  vezes  hostis;  porem  a  invasão  estrangeira 
os  obrigou  a  adoptar  medidas  decisivas  em  commum.  Os 
gregos,  pondo  de  lado  todos  os  assumptos  de  descontenta- 
mento e  animosidade  interna  fizeram,  por  interesse  próprio, 
causa  commum.  A'  excepção  dos  thebanos,  todos  os  mais 
estados  que  eram  inteiramente  ligados  aos    interesses    persas 


62 

entraram  lúima  confederação  fundada  no  comuiurn  interesse 
de  repellir  uma  invazão  estrangeira  que  ameaçava  nada  me- 
nos que  a  conquista  e  escravidão  da  Grécia. 

A  historia  não  só  nos  quer  dar  em  detalhe  as  particulari- 
dades desta  grande  contenda,  mas  procura  deleitar-nos  com 
noticias  circunstanciadas  dos  debates  que  houve  nos  conse- 
lhos que  se  reuniram,  tanto  entre  os  gregos  como  entre  os 
persas;  as  opiniões  de  Mardonio,  sobrinho  de  Xerxes,  e  com- 
mandante  do  exercito,  de  Artabazo  e  do  próprio  Xerxes,  e  os 
argumentos  produzidos  por  elles  a  favor  e  contra  esta  grande 
empreza;  com  muitas  outras  minuciozidades  que  poderemos 
considerar  mais  como  embellezamento  histórico,  que  noticia 
verdadeira  de  factos,  já  que  seus  authores  nos  não  dizem  por 
que  meios  vieram  no  conhecimento  cio  que  se  passou  n'a- 
quellas  reuniões  militares  dos  chefes  gregos  e  persas. 

Conservando,  comtudo,  os  detalhes  circunstanciados  como 
mera  ornamentação  histórica  o  que  ha  de  verdadeiro  a  respeito 
cVesta  memorável  expedição,  merece  em  elevado  grana  atten- 
ção  da  posteridade.  O  rei  da  Pérsia  com  a  sua  multidão  sem 
conta,  passou  o  Heilesponto  da  Azia  para  a  Europa.  Os  gre- 
gos foram  compellidos  a  retirar  em  presença  d 'um  exercito 
apparentemente  irresistível;  mas  a  heróica  e  incomparável 
defeza  dos  Thermopilas,  estreita  garganta  nas  montanhas  da 
Thessalia,  oíferecida  por  Leonidas  e  os  seus  espartanos  foi 
para  os  persas  uma  amostra  do  valor  e  disciplina  dos  gregos. 
Vencido  o  rei  de  Sparta  com  o  seu  valente  destacamento,  pe- 
lo numero,  n'aquelle  sempre  memorável  combate,  os  persas 
obtiveram  uma  entrada  sem  obstáculo  no  interior  da  Grécia; 
e  os  athenienses,  na  impossibilidade  "de  defender  a  sua  cida- 
de refugiaram-se  nos  navios.  Xerxes  avançando  com  o  seu 
enorme  exercito,  saqueou  e  devastou  o  paiz  sem  piedade,  ar- 
razou  os  templos  dos  deuzes  da  Grécia,  e  incendiou  Athenas 
á  vista  de  seus  horrorizados  habitantes,  que,,  de  bordo  dos  na- 
vios, eram  espectadores  indignados  das  chammas  que  redu- 
ziram a  cinzas  a  sua  capital,  envolvendo  a  sua  propriedade  e 
os  seus  templos  numa  conflagração  geral. 


63 
•  ______ 

Ao  mesmo  tempo  avançara  a  esquadra  persa,  mas  foi  com- 
pletamente derrotada  pelos  gregos,  que  depois  se  aventura- 
ram a  atacar  os  persas  em  terra.  Mudou-se  então  a  fortuna 
da  guerra.  Os  persas  batidos,  perseguidos  e  desanimados, 
começaram  a  retirar.  Por  esta  occasião  os  gregos,  concerta- 
ram um  plano  digno  de  lição  para  todas  as  nações  em  casos 
semelhantes.  Em  vez  de  cortarem  a  retirada  do  inimigo  ter- 
rorizado,  o  que  lhes  teria  sido  fácil,  proporcionaram-lhe  todos 
os  meios  dmvasão.  Consideraram  prudentemente  que  uma  tão 
numerosa  hoste  d'inimigos  armados,  agglomerada  no  seu  paiz, 
sem  possibilidade  de  retirada,  podia,  levada  do  desespero, 
lançar  mão  de  medidas  enérgicas;  e  certamente,  antes  que  se 
podesse  subjugar  tamanho  numero,  o  paiz  offereceria  um  es- 
pectáculo horrorozo  de  mortandade  e  desolação.  Ainda  mes- 
mo que  se  entregassem  prisioneiros,  o  numero  bastava  para 
produzir  a  fome  n'um  paiz  tão  circunscripto  como  a  Grécia. 
Sob  este  ponto  de  vista  os  gregos  muito  de  propósito  fizeram 
constar  no  campo  inimigo  que  elles  tinham  resolvido  destruir 
a  ponte  de  barcos  que  os  persas  haviam  construido  sobre  o 
Hellesponto,  medida  esta  que  estavam  longe  de  tomarem.  Até 
se  diz  que  Themistocles,  commandante  da  armada  grega,  a 
titulo  d'amizade,  informou  o  rei  Persa  desta  resolução. 

A  consequência,  porem,  foi,  que  Xerxes,  possuído  de  ter- 
ror pânico,  immediatamente  retirou;  e  tendo  deixado  um  exer- 
cito de  400:000  homens,  sob  o  commando  de  Mardonio,  pas- 
sou com  o  resto  das  forças  o  Hellesponto  em  regresso  á  Azia. 
Mardonio  na  campanha  próxima  foi  completamente  derrota- 
do, morto,  e  o  seu  numerozo  exercito,  sufficiente  para  con- 
quistar a  Grécia  inteira,  completamente  aniquilado.  Deste  mo- 
do o  mais  poderozo  exercito  levantado  por  nação  alguma  até 
hoje,  não  experimentou  mais  que  a  derreta  e  infelicidade.  Es- 
ta memorável  expedição  constitue  merecidamente  um  marco 
notável  na  historia  e  é  digno  d'especial  menção.  EUe  apre- 
senta um  povo  bellicozo  e  patriótico  repellindo  a  invasão  for- 
midável dum  inimigo  cujo  numero  e  recursos  eram  dez  ve- 
zes maiores  que  os  seus,  e   apresenta  um   notável   contraste 


64 

entre  o  patriotismo  e  disciplina  militar  d'um  lado,  e  o  luxo, 
effeminação  e  má  direcção  do  outro.  As  campanhas  subsequen- 
tes entre  a  Grécia  e  a  Pérsia  foram  acompanhadas  de  diver- 
sos resultados;  mas  no  todo,  com  vantagem  da  parte  dos 
gregos.  Os  persas  depressa  reconheceram  n'elles  um  inimigo 
terrível  e  perigozo  que  aspirava  a  rivalizar  com  elles  em  po- 
der. Os  monarchas  persas,  procuraram  então  intrigar  as 
republicas  gregas  entre  si,  comprando  os  chefes  mais  activos 
e  indivíduos  de  maior  poder  e  influencia,  eo  seu  ouro,  por 
muito  tempo,  agitou  a  Grécia  com  a  guerra  civil. 

Chegou  a  final  um  período,  em  que  os  negócios  da  Grécia 
tomaram  um  rumo  tão  fatal  ás  liberdades  d'aquelle  paiz,  co- 
mo á  existência  da  monarchia  persa.  Philippe,  rei  de  Macedó- 
nia, um  pequeno, e  até  então  quazi  desconhecido  reino,  fora  na 
sua  mocidade  reféns  do»  Thebanos  e  educado  conforme  a  sua 
jerarchia. 

Tinha  estudado  philosophia  e  rhetorica  com  os  melhores 
mestres,  e  na  carreira  das  armas  foi  dirigido  pelo  grande 
Epaminondas.  Naturalmente  emprehendedor  e  dotado  de  ra- 
zão clara,  soube  aproveitar-se  vantajozamente  da  instrucção 
que  recebera  de  tão  eminentes  homens;  e  subindo  ao  throno 
de  Macedonea  com  estes  auspícios,  começou  por  formar  pla- 
nos gigantescos  para  se  tornar  poderoso.  Por  uma  serie  de 
medidas  politicas  habilmente  concertadas,  fez-se  reconhe- 
cer membro  do  conselho  amphytionico,  ou  assembléa  geral 
dos  gregos,  semelhante,  segundo  parece,  ás  dietas  do  império 
Germânico.  Conseguido  isto,  pelas  armas  e  pela  intriga,  cedo 
adquirio  uma  ascendência  decidida  sobre  os  diíferentes  esta- 
dos gregos,  e  comprando  os  principaes  chefes,  e  empregando 
todos  os  meios  de  força  e  fraude,  subjugou-os  completamen- 
te, tanto,  que  com  quanto  conservassem  o  titulo  de  republi- 
ca, Philippe  era,  na  realidade,  soberano  da  Grécia.  O  reinado 
de  Philippe  é  notável,  e  os  acontecimentos  que  nelle  occorre- 
ram  são  curiosos  e  interessantes;  mas,  por  muito  esplendidos 
que  pareção  ser  seus  talentos  militares  e  políticos,  a  sua  mo- 
ral é  detestável.  Vemos  neste  príncipe    a  mais  luzida  habili- 


65 

dade  aproveitada  para  o  mal.  Não  era  somente  philosopho, 
mas  um  consummado  orador;  e,  fora  de  toda  a  duvida,  um 
dos  maiores  estadistas  e  generaes  que  o  mundo  tem  produzi- 
do. Todas  estas  brilhantes  qualidades  empregou  elle  no  en- 
grandecimento do  seu  poder,  á  custa  da  liberdade  de  seus 
visinhos;  e  a  sua  carreira  toda  é  um  quadro  de  politica  sem 
consciência  e  conducta  sem  principios.  A  parte  mais  louvá- 
vel do  caracter  de  Philippe  era  o  seu  amor  das  bellas  artes; 
e  a  mais  recommendavel  acção  da  sua  vida  o  grande  cuida- 
do que  lhe  mereceu  a  educação  de  seu  filho  Alexandre.  Es- 
colheu um  elegante  palácio,  em  logar  retirado,  como  o  mais 
apropriado  para  esse  efieito,  e  contratou  o  celebre  Aristóteles 
para  seu  preceptor  em  philosophia  e  litteratura,  em  quanto 
elle  próprio  o  exercitou  nas  armas  sob  os  seus  invenciveis  es- 
tandartes. Se  a  vida  de  Philippe  é  digna  da  attenção  do  es- 
tudante, a  sua  morte  é  nada  menos  interessante  e  notável. 
Offerece-nos  ella  uma  prova  claríssima  da  instabilidade  da 
grandeza  humana  e  da  incerteza  de  todos  os  seus  projectos. 
Philippe  resolvera  invadir  o  império  persa,  com  todas 
as  forças  confederativas  da  Grécia  e  da  Macedónia;  medida 
altamente  popular  entre  os  gregos,  que  se  enthusiasmavam 
na  esperança  de  fazer  recair  sobre  aquelle  império  os  males 
que  elles  haviam  soffrido  com  a  invasão  de  Xerxes.  Para  isto 
convocou  o  conselho  geral  dos  estados  gregos.  A  quota  com 
que  deveria  contribuir  cada  um  estado  fora  estabelecida,  e 
Philippe,  sendo  proclamado  generalíssimo  da  confederação 
grega,  empregou  uma  extraordinária  actividade  no  prepara- 
tivo de  formidáveis  aprestes  para  esta  grande  expedição.  O 
seu  exercito  inteiro  estava  já  prompto  para  passar  o  Helles- 
ponto,  no  mais  perfeito  estado  de  disciplina  e  organisação  mi- 
litar, e  apparentemente  nada  se  oppunha  ao  começo  duma 
contenda  que  deveria  decidir  da  sorte  da  Grécia  e  da  Pérsia. 
Nesta  promettedora  conjunctura,  tão  lisongeira  á  sua  ambi- 
ção, Philippe  resolveu-se  ostentar  a  sua  pompa  e  grandeza 
perante  os  gregos  celebrando  as  núpcias  de  sua  filha:  mas 
quanto  não  é  volúvel  o  destino  ?    No    meio    do   espectáculo 


6Q 

mais  brilhante  jamais  presenciado  na  Grécia,  cercado  dos  seus 
guardas  e  primeiros  officiaes  dos  estados  gregos,  que  pouco 
faltavam  para  lhe  renderem  honras  divinas,  Philippe  foi  apu- 
nhalado mortalmente  por  um  assassino  desesperado,  e  imrne- 
diatamente  expirou,  levando  para  o  tumulo  todas  essas  vistas 
lisongeiras  d'uma  monarchia  universal,  deixando  a  seu  filho 
e  successor  Alexandre  a  execução  da  sua  grande  empreza 
contra  o  império  persa.  Assim  terminou  o  importante  reina- 
do de  Philippe,  rei  de  Macedónia,  cujos  planos  gigantescos, 
juntos  ao  seu  extraordinário  tacto  no  gabinete  e  no  campo  de 
batalha,  produziram  a  maior  mudança  nos  negócios  do  mun- 
do até  ahi  conhecido.  Os  seus  projectos  foram  levados  a  ef- 
feito  por  Alexandre,  do  modo  que  todos  sabem. 

Este  principe  em  cerca  de  doze  annos,  tinha  conquistado  o 
império  persa  e  aberto  aquelle  celebre  caminho  para  a  índia, 
tão  fallado  na  historia,  e  depois  do  seu  regresso  d'aquella  fa- 
mosa expedição,  morreu  em  Babylonia  aos  trinta  e  três  ou 
trinta  e  quatro  annos  d'edade,  324  antes  de  Jesus  Christo.  A 
fortuna  e  victorias  d'Alexandre  tinhão  sido  das  mais  brilhan- 
tes de  quantas  a  historia  recorda,  e  o  seu  reinado  constitue 
uma  muito  notável  epocha  nos  negócios  humanos,  apresen- 
tando uma  nova  ordem  decouzas  e  produzindo  uma  mudan- 
ça extraordinária  e  importante  no  aspecto  politico  do  mundo. 
A  subjugação  do  império  persa  por  Alexandre  e  seus  gregos 
desenvolvem  uma  serie  de  cauzas  e  eífeitos  altamente  dignos  da 
attenção  do  historiador,  do  estadista  e  do  philosopho.  As  guer- 
ras entre  a  Grécia  e  a  Pérsia  são  d' uma  natureza  mais  inte- 
ressante que  quaesquer  outras  anteriores.  Durante  todo  o  pe- 
ríodo, que  decorrera  entre  a  primeira  invasão  da  Grécia  por 
Dário  Hystaspes,  e  a  extincção  da  monarchia  persa,  que  te- 
ve logar  por  occasião  da  derrota  e  morte  de  Dário  Codoma- 
no  330  annos  antes  de  Jesus  Christo,  vemos  o  contraste  en- 
tre um  povo  que  se  eleva  e  um  povo  decadente  ;  entre  uma 
nação  fraca  de  recursos,  mas  bellicosa,  activa,  e  emprehen- 
dedora,  e  outra  numerosa  e  opulenta,  possuindo  recursos 
vastos,  mas  luxoza  e  eífeminada;  cujo  poder  era  mais  ficti- 


67 

cio  que  verdadeiro,  cujos  numerosos  exércitos  sustentaram 
um  falso  renome  de  bravura,  e  de  cuja  corte  a  ostentação  of- 
fuscava  a  vista  das  nações  visinhas  com  uma  falsa  demons- 
tração de  poder. 

O  objecto  d'aquellas  guerras  era  na  maior  parte  d^mpor- 
tante  interesse.  Até  então  fora  a  Azia  o  theatro  de  todos  os 
grandes  acontecimentos;  e,  juntamente  com  o  Egypto,  tinha 
sido  a  sede  das  artes  e  sciencias,  da  litteratura  e  commercio, 
e  a  única  parte  do  globo  aonde  se  havia  traçado  profun- 
dos planos  politicos  e  estabelecido  reinos  poderosos.  A  Eu- 
ropa até  então  passara  desapercebida,  mas  começava  já  a 
emancipar  se  do  barbarismo.  A  Grécia  recebera  do  Egypto 
e  da  Babylonia  os  rudimentos  da  civilisação,  adquirindo  al- 
guns conhecimentos  das  sciencias. 

O  seu  povo,  activo,  engenhoso  e  emprehendedor  tinha  es- 
tabelecido colónias  na  Itália,  na  Hespanha,  e  sobre  as  costas 
meridionaes  da  Gallia,  como  também  nas  ilhas  do  Meditterra- 
neo,  e  começado  a  estender-se  commercialmente,  como  tam- 
bém a  adiantar-se  na  philosophia  e  na  litteratura,  Os  gregos 
tinhão,  pelo  seu  génio  activo,  aproveitado  estas  circunstan- 
cias em  seu  próprio  interesse  a  ponto  que  depressa  se  torna- 
ram rivaes  d'aquelle  império  potente  que  dominara  todas  as 
partes  então  conhecidas  da  Azia.  As  guerras  entre  os  gregos  e . 
os  persas  tinhão  de  decidira  grande  questão, se  á  Azia  ou  á  Eu- 
ropa competia  a  supremacia.  Apoz  longa  contenda  a  balança 
pendeu  para  o  lado  da  Europa,  que  então  ganhou  uma  su- 
perioridade sobre  a  Azia,  e  tem-na  mantido  até  hoje.  Nenhum 
acontecimento  precedente  envolvera  consequências  de  tanta 
magnitude  sob  o  ponto  de  vista  moral  ou  politico.  A  expe- 
dição d' Alexandre  contra  a  Pérsia  é  a  empreza  militar  mais 
celebre  na  historia,  e  o  seu  resultado  o  mais  brilhante.  Ella 
effectuou  a  segunda  grande  revolução  de  poderes  que  cons- 
titue  um  marco  notável  na  historia  da  humanidade,  e  deu  a 
Alexandre  o  titulo  do  maior  e  mais  feliz  conquistador  do  mun- 
do— porem  se  elle  pode  reclamar  a  fama  de  consumado  esta- 
dista e  general,  é  um  tanto  duvidozo.  A  sua  habilidade  a  este 

10 


68 

respeito  tem  sido.  não  obstante  o  brilho  da  sua  feliz  carreira 
e  qua  tanto  tem  assombrado  a  posteridade,  avaliado  por  dif- 
ferentès  modos.  Uns  o  applidam  temerário,  outros  lieroe. 
Uns  admiram  a  sua  magnanimidade  e  heroísmo,  e  o  conside- 
ram o  primeiro  entre  os  guerreiros, em  quanto  que  outros  o  re- 
I  entam  como  um  espoiiador  de  nações  e  açoite  da  hu- 
manidade. Na  apreciação  do  seu  caracter  convém,  porem, 
guardar  o  meio  termo.  Na  sua  invasão  da  Azia  elle  certamente 
tinha  um  pretexto  melhor  que  a  generalidade  d'aquelles  que, 
em  "dilfe  rentes  periodos,  teem  aggredido  os  seus  visinhos.  Con- 
siderando o  negocio  sob  o  ponto  de  vista  de  patriotismo,  foi 
certamente  a  empreza  mais  popular  que  se  podia  tentar,  co- 
mo coincidia  perfeitamente  com  os  sentimentos  de  resenti- 
mento  nutridos  pelos  gregos  pelos  insultos  e  injurias  que  re- 
petidamente tinham  soffrido  dos  persas. 

No  que  respeita  âs    circunstancias  especiaes    d'Alexandre, 
era-lhe  imposta  esta  empreza  como  uma  necessidade,  sob  pe- 
na de  perder  a  estima  da  confederação  dos  gregos   e  macedo- 
nios,  seus  súbditos.  Seu  pae  intentara  a  empreza  e  tinha  feito 
todos  os  preparativos  para  a  levar  a  efíeito.    Elle   organisára 
um  exercito   superior  em  táctica  e  disciplina  militar    a  tudo 
quanto  se  conhecera;  e  Alexandre  tinha   muito   apenas  de   se 
collocar  á  sua  frente  e  guial-o  ávictoria  e  á  conquista.  Nesta 
conjunctura  estava  na  absoluta  necessidade  de  acabar   o  que 
Philippe  começara  e  que  teria  levado  avante  se    a  morte  não 
viesse  frustrar  seus  planos  ambiciosos.  Nestas   circunstancias 
não  era  dado  a  Alexandre  desistir  duma  empreza  sem  se  mos- 
trar pusillanime  perante  o  seu  e  vindouros   séculos,    e  conse- 
guintemente   na   sua   invasão     da    Pérsia,     elle    deve    estar 
justificado,  ou  pelo  menos  desculpado,   perante  os  que    refle- 
xionam, visto  que  não  fizera  mais  que  qualquer  outro  homem 
em  circunstancias  semelhantes  se  veria  obrigado  a    fazer.'  A 
sua  subsequente  conducta,  em  diversas  occasiões,   tanto  du- 
rante o  curso  d'aquella  guerra,  como  d'outras   emprezas    foi, 
porem,   tal,  que  a  não    podemos  considerar  subordinada    a 
outros  princípios  que  não  fossem  a  ambição    e    enthusiastico 


69 

amor  cie  gloria  e  que  a  posteridade  classificaria  de  temerário 
arrojo'  se  um  resultado  feliz  não  viesse  imprimir-lhe  o  cunho 
da  magnanimidade.  As  circunstancias,  porem, que  impozeram 
a  Alexandre  o  dever  de  conquistador  tendem  muito  a  dimi- 
nuir, ou  pelo  menos  a  obscurecer,  a  sua  reputação  como  ge- 
neral aos  olhos  do  leitor  intelligente. 

Philippe  concertara  tão  habilmente  seus  planos,  organisára 
tal  exercito,  e  fizera  taes  preparativos  que    o    bom  resultado 
era  quasi  infallivel.  Alguns  escriptores  cVaqueile    tempo,    di- 
zem que  cada  praça    d'aquelle   exercito    tinha  as   qualidades 
precizas  para  ofiicial,  e  que  cada  official    possuía    sufnciente 
táctica  militar  para  o  habilitar  para    o  cominando  em  chefe. 
Em  asserções  d'esta  natureza  convém  dar   algum   desconto, 
era  habitual  aos  gregos  exagerar;   mas   é  fora  de  duvida  que 
a  grande  maioria  do  exercito    d'Alexandre   se  compunha   de 
veteranos,  exercitados  nas  armas  por  aquelle  grande  mestre 
de  táctica  militar,  Philippe,  que  formara  a  phalange  macedo- 
niana  por  tal  modo  impenetrável,  que  era    quasi    impossivel 
romper  o  compacto  das  suas  fileiras.  O  seu  successo,  por  tan- 
to, não  é  para.  admirar,   conduzindo  tal  exercito    contra   um 
inimigo  tão  pouco  guerreiro;  cujas  forças,  com  quanto  nume- 
rozas,  eram  mal  dirigidas  e  sem  disciplina.    Se  Alexandre  não 
estivesse  á  frente    d'esse  exercito,    se  não  fosse  ajudado    pe- 
los conselhos  e  esforços  de  generaes  como  Parmenio,  Sysima- 
cho,  Antigono,  Perdiccas,  Cratero,  Ptolemeu,   e  outros;  ou  se 
elle  tivera  voltado  as  suas  armas  para    o    ponente   contra    os 
aguerridos  romanos  em  logar  de   atacar  os  effeminados  persas, 
os  seus  negócios  terião  provavelmente  tomado  um  differente 
aspecto, e  elle  teria  talvez  brilhado  escassamente^como  conquis- 
tador invencivel,  nas  paginas  da  historia.  Mas  a  todos   é  visí- 
vel, que  nesta    guerra,  as    circunstancias    das    duas    nações 
belliger  antes  e  o  estado  dos  seus  exércitos  era  tal  que  qualquer 
general  d'habilidade  medíocre  no  logar  d' Alexandre,    não  te- 
ria podido  falhar.  Possuindo  todas  as  vantagens  duma  excel- 
lente  educação  litteraria  e  militar,  e  dotado   por  natureza  de 
coragem,  magnanimidade,  e  génio,  Alexandre  parece  talhado 


70 

para  grandes  acommettimentos;  mas  podemos  tão  somente 
avaliar  o  sou  caracter  politico  e  militar  pelo  que  effectiva- 
mente  operou,  e  nesta  estimativa  devemos  admittir  que  cada 
circunstancia  devidamente  pesada,  os  feitos  d'Alexandre  im- 
portaram um  trabalho  menos  árduo  que  os  de  muitos  outros 
guerreiros,  cujo  successo  tem  sido  muito  menos  brilhante  e 
cujos  nomes  tem  um  esplendor  inferior. 

E'  forçozo,  porem,  confessar,  que  muitos  dos  planos  d'Ale- 
xandre  revelam  não  só  espirito  guerreiro  mas  também 
tacto  politico  e  commercial,  e  tendem  mais  a  dar-lhe 
honra  do  que  a  attribuir-lhe  um  desordenado  amor  de 
conquista.  A  sua  fundação  da  cidade  d' Alexandria,  n'uma 
posição  tão  extremamente  vantajosa  para  o  commercio,  pa- 
rece inculcar  idéas  felizes  das  vantagens  provenientes  d'este 
trafico;  e  o  florescente  estado  d'aquella  cidade  em  quanto 
continuou  a  ser  capital  d'um  reino  independente,  como,  mais 
tarde,  sob  os  impérios  romanos  e  byzantano,  prova  a  boa  ra- 
zão da  sua  escolha  de  tão  favorável  posição  para  uma  grande 
cidade  mercantil. 

O  facto  d'elle  mandar  Nearcho  explorar  as  costas  da 
Pérsia  e  da  índia  mostra  também  que  actuava  n'elle  um  espi- 
rito investigador,  a  fora  a  avidez  de  conquista;  e,  se  tives- 
se attingido  idade  avançada,que  não  teria  feito,  quando,  sub- 
jugada a  melhor  parte  do  mundo,  a  conquista  já  não  podes- 
se  offerecer-lhe  as  mesmas  tentações? 

A  historia  dá-nos  noticias  contradictorias  sobre  a  morte  des- 
te conquistador.  Muitos  a  attribuem  aos  effeitos  d'envene- 
namento,  opinião  que,  se  considerarmos  as  suas  arbitrarieda- 
des, a  tantos  respeitos  anthipaticos  aos  gregos  e  macedonios, 
e  sobre  tudo  as  ambições  desmedidas  de  seus  generaes,  não  é 
nada  improvável;  mas  ella  resente-se  egualmente  de  muita 
poesia  como  se  j^ode  ver  em  Plutarcho  e  outros  authores. 
Opinam  outros  que  elle  morrera  de  doença  originada  por 
excessos  e  embriaguez,  porem,  tudo  quanto  podemos  colligir 
d'essas  contradicções  é  que  elle  falleceu  em  Babylonia  de 
febre,  cerca  de  324  annos  antes  de  Christo,  e  215  depois  da 


71 

conquista  d'aquella  cidade,  e  fundação  do  império    persa  por 
Cyro. 

Levados  pela  natureza  do  assumpto  a  fazer  algumas  obser- 
vações geraes  sobre  uma  guerra  a  mais  importante,  coroada 
pelos  mais  esplendidos  resultados  até  então  registados  nos 
annaes  militares,  como  também  sobre  a  Índole  e  condições  do 
mais  celebre  dos  conquistadores,  passemos  a  analysar 
o  progresso  das  artes,  das  sciencias  e  da  litteratura  du- 
rante o  período  de  duzentos  e  quinze  annos  que  decorreram 
desde  a  existência  do  império  persa,  desde  a  sua  fundação  so- 
bre as  ruinas  de  Babylonia  540  annos  antes  de  Christo,  até 
á  sua  final  subjugação  pelos  gregos  sob  o  commando  de  Ale- 
xandre, 330  annos  antes  da  era  do  Senhor.  Voltando  os  olhos 
sobre  a  Grécia  durante  este  interessante  período,  apresenta-se- 
nos  uma  grande  e  magnifica  perspectiva  do  progresso  rápido 
da  intelligencia  humana  em  todos  os  campos  da  sciencia  e 
litteratura.  Os  rudimentos  da  philosophia  e  administração  ci- 
vil, e  de  quasi  todas  as  artes  e  sciencias  que  a  Grécia  rece- 
bera do  Egypto,  tinhão  sido  tão  proveitosamente  cultivados 
e  melhorados  pelo  génio  activo  e  penetrante  de  seu  povo, 
que  no  espaço  de  menos  três  séculos,  desde  os  primeiros  en- 
saios na  civilisação  da  sociedade,  os  gregos  haviam  progredi- 
do por  tal  forma  na  architectura,  na  pintura,  em  estatuária  e 
em  outras  artes  d'ornato,  bem  como  em  toda  a  sorte  de  com- 
posições litterarias,  que  jamais  íoram  excedidos.  Seus  traba- 
lhos em  todos  estes  géneros  teem  sido  considerados  modelos; 
e  os  seu  escriptos,  em  todos  os  differentes  ramos,  são  ainda 
hoje  tidos  como  typo  de  perfeição  litteraria.  Em  sublimidade 
de  idéas  e  clareza  de  raciocinio,  os  seus  philosophos  prendem 
a  nossa  admiração;  e  os  seu  poetas  e  oradores,  se  alguma 
vez  teem  sido  egualados,  nunca  foram  certamente  excedidos 
nem  em  tempos  antigos  nem  modernos.  No  tempo  de  Ale- 
xandre, ou  antes  de  seu  pae,  Philippe,  e  na  idade  immediata- 
mente  anterior,  a  Grécia  apresenta  um  quadro  interessante 
do  estado  cultivadissimo  da  intelligencia  humana.  A  educa- 
ção da  mocidade  era  um  dos  pontos  principaes  entre  as  cias- 


72 

ses  ricas,  sem  o  que  ninguém  podia  aspirar  aos   cargos    civis 
ou  militares,  bastante  numerosos  em  rasão  dos  differentes  es- 
tados em  que  se  devidia  a  Grécia.  Estas  condições  erão   forte 
estimulo  de  industria  e  emulação.  As  frequentes  guerras    que 
os  gregos  declaravam  uns  aos  outros,  como  egualmente  con- 
tra seu  potente  adversário,  o  monarclia    persa,  ubrigaram-nos 
a  entregar-se  ao  estudo  da  táctica  militar  e  exercício    das  ar- 
mas :   de  modo  que  as  artes  e  as  armas,    a  litteratura    e  a  di- 
plomacia   erão  cultivadas   simultaneamente,    e   franqueavam 
caminho  ás  diversas  dignidades  e  honras.  Na  idade  que   pre- 
cedeu o  reinado  de  Philippe   de    Macedónia,    a  Grécia   apre- 
senta-se-nos  como  um  paiz    offerecendo    todos    os    estímulos 
imagináveis  ao  exercício  de  todas  as  faculdades,  e  d'um  povo 
esforçando-se  para  levar  a  intelligencia  do  homem  ao   supre- 
mo grau  de  perfeição.  Contemplando,   porem,    o  aspecto  do 
mundo  na  generalidade,  vemos  que  a  Grécia,  muito    apenas, 
nos  offerece  tão  lisonjeiro  quadro;  o  resto    do  mundo  immer- 
so  em  luxuoza  efieminação,  ou  selvática  ignorância,   apresen- 
tava um  deplorável  e  hediondo  contraste.  A  Pérsia  enchafur- 
dando-se  em  luxo  e  riquezas,  ostentando,  unicamente  magni- 
ficência e  esplendor,  perdeu  de  seu  poder  e  grandeza   primi- 
tiva á  proporção  que  a  Grécia  attingia  o  zenith    da  sua  glo- 
ria. O  Egypto  perdera  seu  antigo  esplendor,  e  estava  sugeito 
á  Pérsia.  N'aquelles  paizes  as    sciencias,    sem    duvida,   esta- 
vam sendo  cultivadas;  na  Pérsia  pelos  magos,    e    no  Egypto 
pelo  clero;  mas  aonde  o  génio  e  a  illustração    não    são    meios 
indispensáveis  ao  engrandecimento,  geralmente  florecem  mui- 
to quando  o  gosto  nacional  toma  um   curso  difFerente.    Sob  a 
influencia   d'um  governo  dispotico  as  sciencias  poucas  vezes 
tomam  incremento  a  não  ser  que  um  príncipe  intelligente  oc- 
cupe  o  throno,  e  saiba  apreciar  e  galardoar  o  génio  e  a  illus- 
tração. Se,  comtudo,  aos  egypcios  e  aos  persas    ainda    tivesse 
ficado  algum   conhecimento  e  gosto  pelas    artes    e  sciencias, 
não  podiam  competir  com  os  gregos,muito  superiores  nas  artes 
e  nas  armas.  Basta  notar  que  a  elevação  da  Grécia  effectuan- 
do  a  quedada  Pérsia,  todos  os   nossos  monumentos    d'antiga 


73 

bciencia  nos  vieram  da  primeira.  Nenhuma  das  obras  dos  ma- 
gos da  Pérsia  ou  dos  padres  do  Egypto  ou  da  Babylonia  da 
antiguidade  nos  foram  transmittidos.  O  tempo  e  as  revolu- 
ções destruidoras  que  tantas  vezes  teem  mudado  a  face  do 
universo  foram  o  naufrágio  universal  de  toda  a  sabedoria  an- 
tiga que  existia  anterior  á  era  da  litteratura  grega.  Qualquer 
que  fosse  o  estado  das  scieneias  entre  os  babylonios,  egypcios, 
e  persas,  nenhum  dos  seus  monumentos  litterarios  baixaram 
até  nós.  Todas  as  noticias  que  temos  d'aquellas  nações,  da 
sua  historia,  do  seu  estado  politico,  da  sua  religião,  dos  seus 
conhecimentos  scientificos  e  litterarios  e  costumes,  á  excepção 
d'aquellas  luzes  que  nos  proporciona  a  historia  sacra,  tem-nos 
vindo  por  meio  dos  escriptores  gregos.  Os  gregos  espoliavam 
os  thesouros  da  litlevatura  de  todas  as  na,ções,  e  qualquer  scien- 
cia  que  lá  achavam^  faziam-na  sua.  Assim,  não  temos  por 
onde  aferir  o  progresso  iitterario  d'outras  nações;  e  da  gran- 
de massa  da  sabedoria  grega  é  impossivel  determinar  quan- 
ta é  da  sua  lavra,  e  quanta  foi  importada  de  fora.  De  todas 
as  nações  da  remota  antiguidade,  os  judeus  são  o  único  povo 
cujas  obras  litterarias  teem,  por  uma  combinação  extraordi- 
nária e  providencial,  chegado  aos  tempos  modernos. 

Não  obstante  a  universal  aniquilação  das  obras  litterarias 
da  Babylonia,  do  Egypto  e  da  Pérsia,  parece  por  circunstan- 
cias geraes,  que  aquellas  nações  não  tinham  feito  grande 
progresso  n'aquelle  ramo.  A  sabedoria  dos  Babylonios  e  dos 
egypcios  é  frequentemente  mencionada  na  escriptura  sagrada. 
Tão  remotamente  como  a  idade  de  Moizés  os  conhecimentos 
scientiíicos  dos  últimos  são  citados,  e  o  legislador  hebraico 
fora,  segundo  se  nos  diz,  instruido  nas  scieneias  dos  egypcios. 
E  o  propheta  Jeremias  dirigindo-se  á  Babylonia,  diz:  «Atua 
sabedoria  e  a  tua  illustração  te  hão  pervertido. »  Estes  e  mui- 
tos outros  trechos,  que  se  encontram  nos  escriptos  hebraicos 
estão- nos  dizendo  que  o  povo  da  Babylonia  era  estudioso  e 
amante  dos  melhoramentos  intellectuaes,  com  quanto  dado 
á  superstição,  e  confundido  no  erro,  como  todos  os  antigos 
pagãos,  cuja  religião  senão  subordinara  á  luz  da  divina  revê- 


74 

lação,  e  cuja  pliilosophia  se  fundara  inteiramente  sobre  con- 
jecturas, e  não  na  experiência.  Em  quanto  aoegypcio,  os  pró- 
prios gregos  não  se  envergonham  de  lhe  tributar  os  maiores 
elogios  pelos  seus  conhecimentos  e  pliilosophia.  As  magnifi- 
cas minas  de  Thebas  não  menos  attestam  o  antigo  esplendor 
do  Egypto,  e  aquelles  de  Persepolis  provam  que  a  Pérsia  fora 
já  a  sede  das  artes  e  d'uma  elegante  magnificência,  e  se  as 
producções  litterarias  dos  persas,  á  maneira  das  dos  gregos, 
nos  tivessem  vindo  ás  mãos,  é*  provável  que  a  nossa  idéa  a 
seu  respeito  fosse  ainda  mais  favorável.  O  fatal  resultado  po- 
rem da  sua  derradeira  contenda  com  a  Grécia,  dando  mesmo 
desconto  á  parcialidade  grega  e  seus  prejuízos  nacionaes,  pro- 
vam evidentemente  o  péssimo  estado  da  sua  administração 
civil  e  militar.  Um  dos  grandes  erros  no  systema  de  governo 
da  Pérsia  era  a  divisão  do  seu  império  em  um  numero  de 
departamentos  desligados  e  quasi  independentes,  cujos  gover- 
nadores cuidavam  tão  somente  da  administração  interna,  sem 
se  julgarem  obrigados  a  tomar  quaesquer  medidas  a  bem  da 
segurança  geral  do  império  como  nos  dizem  as  noticias  que 
temos  das  suas  convenções  com  os  gregos,  e  todas 
as  suas  operações  militares  na  guerra  contra  Alexandre  evi- 
denciam a  maior  falta  de  táctica,  a  par  da  maior  relaxação  de 
disciplina.  Os  seus  numerosos  exércitos  marchavam  mais  pa- 
ra uma  revista  do  que  para  a  batalha,  e  todo  o  seu  material 
de  guerra  era  mais  vistoso  e  rico  do  que  útil. 

Saindo  do  campo  em  que  temos  estado  e  lançando  a  vista 
sobre  os  judeus  e  romanos,  sem  transposição  de  tempo,  ve- 
mos os  primeiros  um  povo  tributário  á  monarchia  persa 
no  goso  de  suas  leis  e  religião,  e  vivendo  pacificamente  sob  a 
sua  protecção;  e  os  últimos  uma  nação  guerreira,  e  patriótica 
no  seu  principio.  Os  romanos  tinham  vivido  sob  um  gover- 
no monarchico  durante  o  espaço  de  245  annos,  a  contar  da 
fundação  da  sua  cidade,  e  durante  este  tempo  tinham  succes- 
sivamente  reinado  sete  soberanos;  mas  a  monarchia  romana 
parece  ter  tido  sempre  um  poder  limitado  e  que  o  senado  e 
o  povo  partilhavam  da  administração.  Tendo    expulso  o  ul- 


75 

timo  de  seus  reis  Lucio  Tarquinio,  por  appellido  o  Soberbo, 
em  consequência  do  rapto  de  Lucretia,  senhora  romana,  por 
seu  íilho  e  d'outros  actos  diversos  de  despotismo  e  oppressão, 
constituíram  uma  forma  republicana  de  governo,  cerca  de 
508  annos  antes  de  Jesus  Christo,  e  27  antes  da  in vazão  da 
Grécia  por  Xerxes,  e  178  antes  da  subjugação  do  império 
Persa  por  Alexandre.  Os  romanos  tinham  já  começado  o  seu 
engrandecimento  por  meio  da  guerra  e  conquista,  mas  as  suas 
conquistas  eram  ainda  de  pequena  importância,  e  passou-se 
muito  tempo  antes  que  estendessem  os  seus  domínios  longe 
das  circumvallaçôes  entrincheiradas  da  sua  cidade.  Ao  tem- 
po que  Alexandre  conquistou  o  império  Persa,  o  território 
romano  não  constituía  uma  porção  maior  da  Itália  que  a 
actual  campanhia  de  Roma;  e  Roma,  mais  tarde,  senhora  do 
mundo,  não  pezava  então  na  balança  politica  das  nações.  Os 
romanos  áquelle  tempo  nenhum  progresso  tinham  feito  nas 
artes  e  na  litteratura.  Falla-se  de  seus  oradores  e  dos  seus 
discursos,  mas  a  sua  eloquência  vinha  d'uma  intelligencia  cla- 
ra e  vigorosa  mas  inculta,  sem  aquella  argumentação  e  estylo, 
sem  aquella  eloquência  estudada  chamada  rhetoríca,  tão  cul- 
tivada e  tida  em  apreço  entre  os  Gregos.  Em  quanto  aos  Ju- 
deus, nunca  foram  con&íderados  como  povo  scientiíico  ;  mas 
durante  este  período  entregaram-se  ao  estudo  da  philosophia 
sufficientemente  para  continuar  as  opiniões  dos  philosophos 
do  oriente  com  os  seus  preceitos  religiosos.  D'aqui  nasceram 
as  duas  seitas  rivaes  dos  phariseos  e  sadduceos  desconhecidas 
durante  a  existência  da  monarchia  judaica,  anterior  ao  capti- 
veiro  de  Babylonia.  D'estas  duas  seitas  celebres  a  dos  sad- 
duceos seguio  rigorosamente  a  lei  de  Moisés,  em  quanto  que 
os  phariseos  adoptaram,  além  de  varias  tradições  judaicas,  as 
opinões  que  haviam  adquirido  nas  suas  relações  com  os  ba- 
bylonicos  e  persas  nos  tempos  do  captiveiro.  A  terceira  seita, 
chamada  dos  Essenes  appareceu  egualmente  entre  os  judeus. 
O  celebre  historiador  Flávio  Josephus  dá-nos  um  detalhe  cir- 
cunstanciado dos  preceitos  religiosos  d'aquellas  seitas. 

Depois  d'este  esboço  politico,  moral  e  intellectual   relativo 

11 


76 

aos  persas,  jucleos,    gregos   e  romanos    no  período  decorrido 
entre  os  reinados  d'aquelles  celebres  conquistadores,  Cyro  e 
Alexandre,  e  que  abrageit  a  existência  do  império  Persa,  faz- 
se-nos  preciso  voltar  a  atíenção    para  o  estado  geral  dos  pai- 
zes  mais  notáveis  do  mundo  moderno  durante  este  interessan- 
te período  da  antiguidade.  Á  Europa  inteira,    á  excepção    da 
Grécia,  euma  diminuta   parte  da  Itália,  era  então    desconhe- 
cida.;Qs  paizes  hoje  tão  florescentes  nas    artes  e  nas    armas, 
aonde  todas  as  sciencias  úteis  e  ornamentaes  chegaram  a  tão 
elevado  grau  de  perfeição,  aonde  cada  ramo  d.e  litter atura  se 
cultiva  tão  esmeradamente,  aonde   todos   os  canaes    de  com- 
mercio  se  exploram  com  tanta  industria,    aonde    se  encontra 
toda  a  elegante  commodidade  da  vida  social,  aonde  o  luxo  rei- 
na em  todas  as  suas   variadas  formas,  aonde   abundam  gran- 
des eipopulosas  cidades,  e    aonde  são  tão  numerosas    e  pros- 
peras as  universidades  e  academias:  esses  paizes  que  hoje  en- 
vião  suas  frotas  para  recolherem  os  productos  de  cada    difie- 
rente  clima,  e  estabelecer  colónias  nas  mais  longínquas  plagas 
do  globo,  estavam  ainda  immersas   na  obscuridade  do  barba- 
rismo, e  tão  pouco  conhecidos  para  o  então  mundo  civilisado 
como  são  para  nós  ainda  os  desertos   da  Arábia  e  da  Tarta- 
ria,  ou  o  interior  d' Africa.    Era   este  o  estado    dos  paizes  de 
maior  nomeada  da  actualidade  ao  tempo  em  que  a  Grécia  che- 
gara ao  zenith  de  seu  esplendor  e  quando  sua  engenhosa  po- 
pulação  tanto    progredira     nos    variados   ramos    da  scien- 
cia  humana.  Quando  Athenas  era   a  sede    das  sciencias   e  da 
litteratura,  abundando  em  seminários,   e  repleta  de  philoso- 
phos,  oradores,  legisladores  e  de  heroes,  Londres  e  Paris,  ho- 
je   os    centros    de    tudo    quanto    é    grande    e   elegante  não 
eram  mais  que  pântanos.  Mudança  espantosa!  Nos  tempos  de 
Philippe  e  Alexandre,  a  Itália,  a  Hespanha  e    a  França  eram 
para  a  Grécia,  o  que  são  hoje  para  nós  os  sertões  da  America, 
e  todo  o  resto  da  Europa,  a  excepção,  talvez,  da  costa  do  sul 
da  Grãn-Bretanha. 

A  Allemanha,  a  Polónia,  a  Rússia,  a  Dinamarca    e  a  Sué- 
cia não  eram  mais  que  vastos  terrenos  demattase  charnecas, 


77 

intransitáveis  pântanos,  desertos  sem  trilho,  habitados  por 
animaes  ou  por  homens  no  mais  selvagem  estado,  in- 
feriores aos  mais  civilisados  tribus  cia  Nova  Zelândia  e  d'ou- 
tras  ilhas  do  mar  do  sul  quando  descobertas.  E  o  Egypto,  quem 
tal  diria,  berço  das  artes  e  sciencias,  aonde  a  philosophia  co- 
meçou ese  desenvolveu  o  génio  do  homem  em  toda  a  sua  va- 
riedade, e  a  Grécia  aonde  a  sabedoria  do  Egypto  se  melho- 
rou, e  aonde  todas  as  artes  e  sciencias  que  podem  embelezar 
uma  nação  foram  levadas  a  um  grau  de  perfeição  que  cau- 
sou a  admiração  da  posteridade,  passaram  ao  estado  da  mais 
crassa  ignorância,  e  de  seus  magníficos  edifícios  apenas  restam 
as  ruínas. 

A  própria  posição  cValgumas  das  mais  celebres  cidades  do 
antigo  mundo,  não  se  pode  hoje  determinar.  Nineve,  tanto 
tempo  a  capital  do  império  Ássyrio,  e  Babylonia  a  gloria  das 
nações  e  o  enlevo  dos  Chaldeos  anniquilaram-se  por  tal  for- 
ma que  ninguém  nos  diz  hoje  aonde  existiam,  e  em  quanto  á 
memorável  cidade  de  Memphis,  muito  tempo  a  metropoli  do 
Egypto,  e  residência  real  dos  Pharaõs,  bem  que  tenhamos  in- 
questionáveis provas  da  sua  extensão  que  uns  dizem  ser  de  17 
e  outros  19  milhas  em  circunferência,  como  também  da  sua 
magnificência,  os  mais  curiosos  gec-graphos  e  antiquários  nãó 
poderam  descobrir  o  logar  aonde  fora  fundada.  Poucas  cir- 
cunstancias da  geographia  antiga  teem  sido  tão  discutidas  co- 
mo a  posição  d^sía  famosa  cidade.  Viajantes  modernos  co- 
mo o  di\  Pocock,  o  capitão  Norden,  mr.  Savary  e  outros  muitos 
teem  procurado  resolver  este  problema, e  cada  um  tem  dado  ra- 
sões  plausiveis  a  favor  da  suahypothese,mas  discordam  entre  si. 

As  testemunhas  de  todos  os  authores  antigos  que  tem  fei- 
to menção  de  Memphis  levam-nos  a  crer  que  assentava  sobre 
a  margem  esquerda  do  Nilo;  mas  em  quanto  que  uns  a  collo- 
cam  aonde  hoje  está  Gise  defronte  do  Cairo,  outros  a  fazem 
15  e  17  milhas  mais  ao  sul,  e  o  capitão  Norden  opina  que  a 
maior  das  pyramides  existia  entre  seus  muros.  O  anniquila- 
mento  total  de  Nineve,  de  Babylonia  e  de  Memphis  são  pro- 
vas em  summa  da  instabilidade  das  cousas  humanas. 


78 
U  nfTPKEUH 


Depois  da  vista  retrospectiva  que  acabamos  de  lançar  so- 
bre um  interessante  periodo  da  historia  do  mundo,  passare- 
mos á  consideração  d'outro,  mais  importante  ainda,  por 
isso  que  nos  aproxima  dos  tempos  modernos. 

O  periodo  em  que  entramos  é  aquelle  que  começa  pela  mor- 
te d' Alexandre  e  finda  no  nascimento  de  Christo.  Ao  principio 
vemos  todas  as  partes  conhecidas  da  Azia,  que  haviam  for- 
mado em  primeiro  logar  os  impérios  da  Assyria  *e  da  Baby- 
lonia,  e  depois  o  império  Persa,  como  também  a  Grécia,  úni- 
co paiz  civilisado  e  scientifico  da  Europa,  sob  o  regimen  abso- 
luto cVurna  força  militar  grega;  Roma,  estado  nascente  e  guer- 
reiro, e  o  resto  da  Europa  como  são  hoje  os  sertões  da  Ame- 
rica para  nós. 

Um  novo  scenario  vae  agora  desenvolver-se.  Começa  a 
predominar  o  poder  romano;  e  ás  victorias  de  Roma  se  deve 
a  civilisação  e  a  instrucção  de  toda  aquella  parte  da  Europa 
que  fica  ao  sul  do  Danúbio  e  ao  oeste  do  Rheno.  A'  medida 
que  nos  afastamos  das  sombras  da  antiguidade  o  quadro  il- 
lumina-se.  As  convulsões  que  abalaram  o  munclo  com 
as  ambições  desenfreadas  dos  successores  d'Alexandre,  teein 
de  sobresair  nestas  paginas.  Durante  a  maior  parte  deste  pe- 
riodo os  acontecimentos  políticos  do  mundo  constituem  dous 
dramas  clistinctos  e  importantes,  cuja  representação  teve  lo- 
gar em  dous  difierentes  theatros.  No  Oriente  as  incessantes 
guerras  dos  generaes  d'Âlexandre  e  de  seus  successores  entre 
si,  fizeram  tremer  toda  a  Grécia  e  os  paizes  occidentaes  da 
Azia,  em  quanto  que  no  occidente  a  ambição  insaciável  e  em- 
prehendedora  de  Roma  trazia  agitada  a  maior  parte  da  Eu- 
ropa, principalmente  na  sua  longa  e  desesperada  contenda 
com  a  republica  de  carthago  sua  grande  rival.  As  reciprocas 
hostilidades,  os  interesses  oppostos,  as  irreconciliáveis  animo- 
zidades,  e  inumeráveis  crimes  dos  generaes  Macedonios  e  dos 
successores  da  sua  uzurpação,  são  suficientemente    desenvol- 


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vícios  pelos  historiadores.  Um  só  golpe  de  vista  sobre  a  con- 
dncta  e  destino  dos  principaes  d'aquelles  usurpadores  basta 
para  despertar  reflexões  sem  as  quaes  a  leitura  simples  de 
historia  é  trabalho  ocioso  e  perdido. 

Tão  depressa  fechou  Alexandre  os  olhos,  os  principaes  che- 
fes se  consultaram  sobre  os  negócios  públicos.  Ptolomeu  vo- 
tou pelo  governo  d'um  concelho  supremo  de  generaes,  e  que 
tudo  que  dissesse  respeito  á  parte  administrativa  fosse  resol- 
vida por  maioridade  d'aquelle  concelho;  em  quanto  outros 
proponham  que  Perdiccas  fosse  eleito  rei.  Neste  violento  es- 
tado de  cousas,  Arhideu,  filho  de  Philippe,  mas  não  de 
01ympias,e  por  consequência  irmão  d'Âlexaudre  só  pelo  lado 
paterno,  foi  aclamado  rei  pelo  exercito,  e  os  generaes  tiveram 
de  confirmar  esta  eleição.  Perdiccas  e  Leonato  sahiram  então 
de  Babylonia,  e  fizeram  matar  Meleagro  pela  parte  activa  que 
tomara  na  eleição  d' Arhideu.  Reuniram  então  o  exercito  nas 
immediações  de  Babylonia  e  apossaram-se  do  rei.  Novo  con- 
celho de  generaes  teve  então  logar  na  qual  dividiram  entre  si 
o  império,  deixando  a  Arrhideu  o  titulo  apenas  de  rei,  e  de- 
ram a  Perdiccas  superioridade  sobre  elle  com  a  denominação 
de  Protector.  Antipater,  a  quem  o  concelho  fizera  governa- 
dor da  Macedónia,  subjugou  a  Grécia,  que  se  lhe  havia  re- 
voltado, guarneceu  militarmente  Athenas,  aboiio  a  forma  de- 
mocrática do  seu  governo  e  meteu  a  administração  nas  mãos 
de  cerca  de  nove  mil  pessoas  de  distincção  e  meios,  estabele- 
cendo deste  modo  uma  aristocracia  em  substituição  do  syste- 
ma  precedente. 

Destituio  o  povo  de  todos  os  direitos  de  sufiragio,  e  fez  pas- 
sar uma  considerável  parte  para  a  Thracia.  Antipater  tentou 
a  morte  do  celebre  orador  Demosthenes.  Vendo  este  grande 
homem  eminente  a  sua  morte  pedio  licença  d'alguns  momen- 
tos a  sós  para  escrever,  e  aproveitando  a  occasião  envenenou- 
se,  para  o  que  andava  já  preparado. 

A  ambição  desenquieta  dos  generaes,  não  tardou,  porem,  a 
produzir  os  maismortiferos  effeitos  e  a  trazer  em  agitação  o 
império  todo.  Ptolomeu,  Antipater,  e  Crater  declararam  guer- 


ra  a  Perdiccas,  o  qual  invaclio  o  Egypto,  província  governa- 
da por  Ptolomeu,  e  foi  morto  por  seus  próprios  soldados. 

Foi  elle  o  primeiro  dos  generaes  macedonios  sacrificado 
n'aquellas  guerras  civis,  e  á  sua  morte  seguiu-se  a  de  Crate- 
ra, morto  na  batalha  contra  Eumenes.  Ântipater,  depois  da 
morte  de  Perdiccas  foi  feito  Protector,  e  levou  o  rei  e  a  rai- 
nha para  Macedónia,  deixando  Antigono  na  qualidade  de  go- 
vernador, ou  tenente,  cia  parte  aziatica  do  império.  Ântipater 
faleceu  na  idade  de  oitenta  annos:  era  homem  de  letras  e  fo- 
ra estudante  d'Aristoteles.  Polysperchon  foi  então  escolhido 
para  Protector;  mas  Cassandro,,  filho  d'Antipater,  immediata- 
mente  se  revolucionou  contra  elle.  Polysperchou  restaurou  o 
governo  democrático  d'Athenas  e  das  outras  cidades  da  Grre- 
cia,  e  fez  morrer  a  maior  parte  do  partido  aristocrático.  Deste 
modo  foi  a  Grécia  alternativamente  viciima  da  oppressão  da 
aristocracia  ou  da  licensa  popular,  sob  a  tyrannia  dos  usur- 
padores macedoneos  do  império  d'Aiexandre.  A  immediata 
commoção  intestina  foi  uma  guerra  entre  Antigono  e  Eume- 
nes, na  qual  Eumenes,  depois  dos  actos  mais  heróicos  no  cam- 
po de  batalha, onde  desenvolveu  um  talento  degenerai  consum- 
mado,  foi  traindo  pelo  regimento  dos  Ârgyraspides,  ou  escu- 
dos de  prata,  e  entregue  nas  mãos  d'Antigono,  que  o  fez  mor- 
rer. Durante  estes  acontecimentos, Olympias,  mãe  d'Alexandre 
magno^  apossande-se  do  rei  Arrhideu  e  de  Eurydice  sua  rai- 
nha, os  fez  matar,  e  nomeou  o  joven  Alexandre,  íiilio  de  Ale- 
xandre, e  de  Roxena,  herdeiro  do  império.  Cassandro  impre- 
hendeu  então  uma  expedição  contra  Olympias,  que,  com  Ro- 
xena,  seu  joven  filho  Alexandre,  e  toda  a  corte,  encerraram-se 
em  Pydisa.  Olympias  foi  obrigada  a  entregar-se  a  Cassandro, 
e  a  instancias  deste  foi  julgada  e  condemnada,  em  grande  con- 
celho de  officiaes  macedonios,  á  morte;  justo  castigo  dos  seus 
muitos  crimes  d'ambição  e  crueldade.  Assim  cahio  pela  mão 
do  executor,  a  mulher  de  Philippe  de  Macedónia,  e  mãe  d' Ale- 
xandre magno. 

Tendo  Antigono,  pela  traição  dos  Ârgyraspides,   consegui- 
do  anniquilar  Eumenes  seu  prudente  e  corajoso    rival,  asse- 


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nhoreou-se  de  toda  a  Medea  e  Pérsia,  matou  Pithon,  e  correu 
com  Seleuco  para  fora  de  Babylonia;  mas  a  sua  repentina  e 
extraordinária  elevação  levantou  coutra  elle  uma  forte  confe- 
deração dos  outros  generaes.  Ptolomeu,  Cassandro,  e  Seleu- 
co fizeram  causa  commum  para  abater  o  exhorbitante  poder 
de  Antigono,  que  por  este  tempo  assumira  o  titulo  de  rei,  no 
que  foi  imitado  por  Ptolomeu,  Seleuco  e  Sysmacho;  foi  deste 
modo  que  o  império  grego  ou  Macedónio,  que  existio  apenas 
durante  a  vida  d'Alexandre,  perdeu  logo  depois  da  sua  morte 
até  mesmo  a  sua  existência  nominal  e  dividio-se  em  vários 
reinos  independentes  e  hostis. 

Esta  confederação,  porem,  foi  fatal  para  Antigono.  Seleu- 
co readquirio  Babylonia  e  os  paizes  da  Azia  superior:  Tendo- 
se  Antigono  apoderado  de  Cleópatra,  irmã  d' Alexandre  Ma- 
gno que  estava  esposada  a  Ptolomeu,  fel-a  matar,  para  que 
Ptolomeu  não  podesse  approveitar  uma  alliança  com  a  famí- 
lia d' Alexandre,  cuja  memoria  era  cara  aos  soldados  da  Ma- 
cedonea.  Assim  procuraram  aquelles  usurpadores  exterminar 
a  íamilia  inteira  de  seu  victorioso  senhor.  Levando  os  prín- 
cipes confederados  por  diante  a  guerra  contra  Antigono,  Sys- 
macho entrou  também  na  confederação,  e  Antigono  foi  morto 
na  batalha  d'Issus,  perto  da  cidade  d'Ephezo  que  elle  deu 
contra  as  forças  alliadas  de  Seleuco  e  Sysmacho.  D'este  mo- 
do cahio  este  ambicioso  e  desenquieto  uzurpador,  com  oiten- 
ta annos  d'idade.  Morrendo  Cassandro  em  Macedónia,  seu  fi- 
lho Alexandre  foi  mandado  matar  por  Demétrio  Poliorcetes, 
filho  d'Atigono;  e  seu  outro  filho  Autipater,  foi  igualmente 
morto  por  ordem  de  Sysmacho,  cuja  filha  elle  despozára:  De- 
pois d'isto  fez  Sysmacho  matar  seu  próprio  filho  Agathocles, 
cuja  mulher  e  filhos  procuraram  a  protecção  de  Seleuco,  e  o 
levaram  a  declarar  guerra  a  Sysmacho.  N'esta  guerra  mor- 
reu Sysmacho  e  se.us  quinze  filhos  todos  por  differente  modo, 
Sysruacho,  na  idade  de  setenta  e  quatro  annos  cahio  em  ba- 
talha. 

Depois  da  morte  e  derrota  de  Sysmacho,  Seleuco  passou  á 
Europa  a  fim  de  se  apossar  de  Macedónia,  aonde  foi  traiçoei- 


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raruente  assassinado,  contando  então  setenta  e  quatro,  ou  se- 
tenta e  cinco  annos  de  idade. 

Assim  cahio,  por  assassinio,  Seleuco  o  derradeiro  dos  ge- 
neraes da  eschola  de  Philippe  de  Macedónia,  e  que  tinham 
acompanhado  Alexandre  na  sua  brilhante  e  extraordinária 
carreira  de  conquistas,  Ptolomeu  morreu  no  Egypto  pouco 
autes  da  morte  de  Seleuco.  Não  só  era  um  principe  guerreiro, 
mas  humano  e  generoso,  e  de  todos  os  generaes  d'Alexandre 
foi  o  único  que  resistio  ás  tempestades  que  se  incendiaram 
incessantemente  no  horisonte  politico  d'aquelles  tempos  agi- 
tados; porque  Ántipater  morreu  de  velho,  justamente  no  co- 
meço d'aquellas  commoções  internas,  e  por  conseguinte  pou- 
co experimentou  de  seus  horrores. 

Quasi  periodo  algum  da  historia  da  humanidade  apresen- 
ta um  quadro  tão  horroroso  dos  terriveis  efíeitos  das  paixões 
humanas  como  aquelle  que  seguio  a  morte  d' Alexandre.  Os 
generaes  que  serviram  com  elle,  e  que  depois  usurparam  o 
seu  império,  com  quanto  fossem  os  domínios  de  cada  um 
sufíicientemente  extensos  e  ricos,  para  serem  todos  grandes  e 
poderosos,  monarchas,  eram  elles  tão  ambiciosos,  que  sacrifi- 
caram a  um  espirito  turbulento  e  insaciável  toda  a  tranqui- 
lidade e  ventura  da  vida,  convertendo  todos  os  paizes  situa- 
dos dentro  dos  limites  da  sua  jurisdicção,  em  vasto  theatro 
de  sangue  e  de  crimes.  Não  só  exterminaram  a  familia  intei- 
ra de  Philippe  e  d'Alexandre;  mas  diligencearam,  e  por  íim 
conseguiram,  jâ  á  viva  força,  já  á  traição,  a  sua  mutua  des- 
truição. 

Drama  algum  tenha  talvez  havido  no  theatro  moral  cio 
mundo  mais  notável  e  interessante  como  aquelle  que  nos  apre- 
sentam os  generaes  que  se  apossaram  dos  domínios  d'Âlexan- 
dre.  Tinham  sido  disciplinados  por  Philippe  e  visto  a  Ma- 
cedónia, até  então  um  reino  desconhecido,  sair  dum  estado 
abiecto,  tomar  uma  parte  activa  na  politica  do  mundo,  e  ga- 
nhar uma  preponderância  decidida  sobre  a  Grécia.  Tinham 
partilhado  os  trabalhos  de  Philippe  e  esperavam  partilhar  da 
sua  gloria  na  conquista  da  Pérsia.  Tinham   testemunhado    a 


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prematura  queda  de  seu  guerreiro  e  politico  mestre,  e  pre~ 
senciado  a  execução  de  seus  vastos  projectos  por  seu  filho. 
Tinham  sido  os  principaes  actores  na  conquista  do  império 
persa  e,  seguindo  seuvictorioso  estandarte,  tinham  penetrado 
na  Bactria  e  na  índia,  paizes  até  então  desconhecidos  para  os 
gregos.  Tinham  assistido  á  prematura  morte  de  seu  chefe  con- 
quistador, e  ao  termo  de  todos  os  seus  ambiciosos  projectos. 
Tinham  visto  cair  nas  suas  próprias  mãos  as  suas  vastas  con- 
quistas, e,  de  pobres  officiaes  macedonios,  que  tinham  sido, 
vieram  a  ser  príncipes  soberanos,  e  cada  um  talhou  jDara  si 
um  reino  mais  rico  e  extenso  que  aquelle  de  Macedónia.  Ti- 
nham-se  lançado  num  novo  mundo,  e  a  sua  fortuna  excedera 
as  suas  mais  lisongeiras  ambições,  mas  não  lhes  assegurou, 
no  fim  de  suas  vidas,  aquella  tranquilidade  e  repouso,  que  a 
idade,  e  uma  longa  vida  de  continuados  trabalhos  pedem. 
As  suas  mutuas  animosidades  e  hostilidades  intermináveis  en- 
venenaram-lhes  seus  últimos  dias ;  e  depois  de  tão  brilhante 
esteira  de  conquistas,  passaram  á  velhice  no  meio  de  pezares, 
de  desordens  e  carnificina;  e  poucos  d'elles  baixaram  á  terra 
em  paz,  apresentando  á  posteridade  um  exemplo  memorável 
dos  terriveis  eííeitos  d'uma  ambição  illegal  e  insaciável. 

Quando  reflectimos  sobre  a  grande  empreza  d' Alexandre, 
e  a  sua  brilhante  conquista  da  Pérsia,  não  podemos  deixar 
de  notar,  que  pouco  menos  desastrosa  foi  para  os  vencedores 
do  que  para  os  vencidos,  quer  considerada  pelo  lado  das  con- 
veniências nacionaes,  quer  pelo  dos  seus  efieitos,  em  relação 
aos  individuos  mais  interessados  n'ella.  Sob  o  ponto  de  vista 
de  nacionalidade,  a  prematura  morte  d' Alexandre;  o  desmem- 
bramento e  divisão  do  seu  império  pelos  generaes  macedonios, 
e  as  suas  incessantes  guerras,  agitaram  aquelles  paizes  inces- 
santemente, acarretando  immensos  males  aos  seus  habitantes. 
Os  gregos,  principalmente,  sendo  compellidos  a  seguir  o  des- 
tino d'aquelles  uzurpadores  rivaes,  conforme  exigiam  as  dif- 
ferentes  circunstancias  que  imperavam,  estavam,  mais  que 
quaesquer  outros  expostos  aos  horrores  da  guerra,e  á  constan- 
te tyrannia  e  oppressão  de  seus  differentes   senhores;  foram 

12 


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•menos  victimas  de  seus  patrícios  cio  que  teriam  sido  dos  per- 
sas se  elles  tivessem  conquistado  a  Grécia.  Reflectindo  so- 
bre as  consequências  d'estas  memoráveis  conquistas  no  que 
respeita  aos  indivíduos  que  as  fizeram,  vemos  que  foram  fa- 
taes  á  sua  tranquilidade  d'espirito.  Alguns  dos  principaes  che- 
fes, satisfizeram,  é  verdade,  a  sua  ambição  apoderando-se  do 
poder  soberano  e  dos  títulos  de  realeza;  mas  as  suas  coroas 
foram  coroas  cVespinhos.  Atormentados  por  continuas  e  san- 
guinolentas guerras  entre  si,  privados  do  repouso  que  exige 
o  fim  d'uma  vida  gasta  nas  lides  das- batalhas,  a  maior  parte 
foi  victima  da  guerra  ou  da  traição,  e  baixaram  á  sepultura 
com  as  cans  tintas  de  sangue.  Aquelle  invencível  exercito  de 
bravos  veteranos,  educado  por  Philippe  e  conduzido  por 
Alexandre  á  Azia,  gastou-se  em  hostilidades  infructiferas,  e 
poucos  dos  valentes  soldados  que  conquistaram  a  Pérsia  re- 
gressaram   á  sua  terra  natal. 

A  subsequente  historia  dos  reinos  nos  quaes  se  dividio  o  im- 
pério dos  gregos  na  Europa  e  na  Azia,  apresenta  a  mais  he- 
dionda scena  de  hostilidades  e  traições,  d'infelicidade  e  de  cri- 
mes, até*  que  successivamente  caiiam  em  poder  dos  romanos. 
De  todos  elles,  o  Egypto,  fundado  por  Ptolomeu  Sagus,  que 
na  partilha  geral  do  império  d'Alexandre,  se  apossou  d'aquel- 
le  paiz,  foi  o  único  que  floresceu  num  estado  de  estabilidade 
permanente.  Sob  o  reinado  dos  Ptolomeus,  o  Egypto  recon- 
quistou seu  antigo  esplendor  e  aquella  celebridade  que  adqui- 
rira no  tempo  dos  Pharaohs,  seus  príncipes  naturaes  ;  Ale- 
xandria veio  a  ser  o  que  tinham  já  sido  Thebas  e  Memphis, 
e  até  rivalisava  com  Athenas  no  numero  e  fama  das  suas  es- 
colas de  philosophia  e  litteratura.  No  reinado  de  Ptolomeu 
Philadelpho,  o  segundo  príncipe  da  dynastia  grega,  a  escri- 
ptura  sagrada  dos  judeos  appareceu  pela  primeira  vez  tradu- 
zida em  lingua  estrangeira.  O  illustre  protector  das  sciencias, 
desejoso  dearchivar  amassa  inteira  de  conhecimentos  huma- 
nos, empregou  homens  intelligentes  e  sábios,  para  procura- 
rem livros  de  toda  a  parte  onde  fosse  possível  acharem-se  ;  e 
a  seu  particular  pedido  72  judeos  d'instrucção  foram  enviados 


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282  annos  antes  de  Jesus  Christo,  de  Jerusalém,  para  tradu- 
zirem as  escripturas  para  o  grego,  lingua  que  se  fallava  na 
Alexandria,  sendo  a  lingua  egypcia  fallada  taosouiente  pelo 
povo  rude.  As  particularidades  que  dizem  respeito  a  esta  ce- 
lebre traducção  acham  se  detalhadamente  mencionadas  por 
Flávio  Josephus,  que,  pertencendo  á  ordem  dos  sacerdotes,  e 
sendo  pessoa  de  qualidade  e  distincçao.,  tinha,  sem  duvida  en- 
trada nos  archivos  da  nação  hehraica  ;  e  estava  por  conse- 
quência no  caso  d'estar  ao  facto  d'este  negocio  que  devia 
necessariamente  constar  dos  annaes  d'aquella  nação  em  Je- 
rusalém, como  também  dos  archivos  .d' Alexandria. 

Esta  traducção  chama-se  a  Septuagente  foi  sempre  tida  em 
grande  conta  entre  os  primeiros  mestres,  como  entre  muitos 
modernos  theologos  e  criticos.  Ptolomeu  Philadelpho  merece 
a  celebridade  de  ter  sido  um  dos  maiores  protectores  da  litte- 
ratura  antiga  e  na  perseguição  de  tão  louváveis  esforços  co- 
lheu elle  mais  louros  que  os  que  dá  a  sanguinolenta  carreira 
das  conquistas.  Assevera-se  que  chegou  a  formar  uma  biblio- 
theca  de  500:000  volumes  ;  e  o  seu  reinado  é  memorável  nos 
annaes  da  litteratura. 

Se  voltarmos  a  attenção  do  Egypto  para  as  índias,  vere- 
mos que  os  negócios  d'aquella  nação  ofíerecem  assumptos  de 
bastante  interesse  durante  aquelle  periodo.  O  livramento  d'quel- 
le  povo  da  tyrannia  e  oppressão  dos  gregos  pelo  .  heroísmo 
patriótico  de  Judas  Macchabeo  e  seus  irmãos,  é  um  facto 
tão  glorioso  como  qualquer  d'aquelles  practicados  pelos  mais 
illustres  heroes  da  Grécia  e  Roma.  A  sua  origem  assenta  so- 
bre justíssimos  motivos,  e,  todas  as  circunstancias  consideradas, 
foi  mais  árdua  esta  empreza,  e  consequentemente  mais  glorio- 
sa que  não  as  conquistas  da  Pérsia  por  Alexandre,  ou,  talvez, 
que  todas  as  proezas  de  Cezar.  Aquelles  conquistadores  tive- 
ram de  combater  inimigos,  cujas  forças,  por  muito  numero- 
sas, eram  sem  comparação  inferiores  ás  suas  em  disciplina  e 
táctica  militar  ;  porem  Macehabeu  e  seus  irmãos  emprehen- 
deram  uma  lucta  importantíssima  e  perigosa,  com  um  inimigo 
não   só  superior  em  numero,  mas  incomparavelmente    supe~- 


86 

rior  em  disciplina,  e  theoría  ;  e  por  meio  cTuma coragem  per- 
severante, que  difficuldade  alguma  podia  abater,  conseguio 
arrancar  o  seu  paiz  â  oppressão  politica  e  religiosa.  Judas 
cahio  nobremente,  depois  de  conseguir  o  seu  grande  fim,  e  a 
sua  família  continuando  nas  vantagens  obtidas  com  uma  per- 
severança incançavel  firmou  a  independência  do  seu  paiz  ,  e 
mudou  a  sua  forma  de  governo,  d'uma  republica  fraca  e  ins- 
tável que  era,  para  uma  monarchia  vigorosa  e  cfioresente  ; 
porque  JoãoHyrcano,  filho  de  Simão  Macchabeo,  reunindo  em 
si  as  funcções  de  gran-sacerdote  com  as  de  generalíssimo  dos 
exércitos,  e  no  seu  espirito  todos  os  talentos  precisos  para  o 
exercício  de  misteres  clericaes  militares  e  de  realeza,  tendo  si- 
do victorioso  sobre  os  inimigos  do  seu  paiz,  e  firmado  o  seu 
governo,  seus  filhos,  successivamente,  assumiram  não  só  o  po- 
der real  mas  o  titulo  de  rei,  e  o  supremo  sacerdócio  ficou  egual- 
mente  na  familia,  apesar  de  não  estar  reunida  na  pessoa  do 
monarcha.  Os  descendentes  de  Hyrcano  são  conhecidos,  na 
historia  da  nação  hebraica  pela  denominação  de=dynastiaas- 
nioneana.  As  desintelligencias  d'esta  familia  Analisaram  pela 
tomada  de  Jerusalém  por  Pompeo  e  a  sujeição  da  nação  ju  - 
daica  aos  romanos.  Depois  d'este  acontecimento  vemos  nova- 
mente o  restabelecimento  da  monarchia  judaica,  por  favor  e 
soba  protecção  dos  romanos,  que  collocaram  sobre  o  throno 
de  David,  Herodes  o  Grande,  filho  de  Antipater  e  de  Idumea. 
Este  príncipe  demolio  o  velho  templo  de  Jerusalém  e  o  re- 
construioda  maneira  a  mais  magnifica  e  reinou  com  grande  es- 
plendor mas  com  uma  quasi  assignalada  tyrania.  Herodes  foi 
um  príncipe  de  talento  transcendente  mas  sem  consciência 
nem  sentimento,  como  prova  a  morte  que  mandou  dar  a  sua 
formosa  e  querida  esposa  Marianna,  e  a  seus  dons  filhos  prín- 
cipes de  primorosa  educação  e  esperançosos  talentos.  Tinha 
egualmente  condemnado  á  morte  seu  filho  favorito  Antipater, 
mas  a  sua  própria  morte  suspendeu  a  execução  da  sentença. 
A  narração  das  crueldades  deste  príncipe  lê-se  detalhadamen- 
te nas  obras  de  Josephus,  que  pinta,  em  vivissimas  cores,  as 
traições  e  intrigas  da  sua  corte,  e  descreve,  em  estylo  robus- 


87 

to  e  elegante,  o  seu  reinado  turbulento  cheio  de  crimes  e  de 
infelicidade  domestica. 

De  facto,  de  todos  os  principes  cujos  nomes  a  historia  re- 
corda, nenhum  n'esta  ultima  parte  experimentou  maiores  dis- 
sabores. Pouco  depois  da  morte  de  Herodes,  tendo  a  Judea 
passado  por  differentes  mudanças  de  forma  de  governo,  ficou 
por  íim  reduzida  a  provinda  romana,  em  cujo  estado  perma- 
neceu até  ao  tempo  de  que  estamos  tratando. 

Durante  elle,  isto  é,  desde  a  morte  de  Alexandre  e  a  vinda 
de  Christo,  o  rápido  progresso  dos  romonos  nas  artes  e  nas 
armas,  no  engrandecimento  do  poder,  na  acquisição  de  riqne- 
zas  e  na  extensão  de  domínio,  constitue  a  feição  mais  conspí- 
cua no  aspecto  politico  do  mundo  e  um  assumpto  importante 
e  interessante  da  historia. 

No  tempo  d' Alexandre  vimos  o  território  romano  circuns- 
cripto  a  uma  pequena  parte  da  Itália,  e  requeria  volumes  pa- 
ra dar  em  detalhe  a  longa  serie  de  guerras  e  conquistas  que 
levaram  Roma  áquelle  auge  de  poder  e  gloria  a  que  ella  de- 
pois chegou  ;  mas  investigada  a  causa,  vemos  que  abaixo  de 
Deos  deveram  o  seu  engrandecimento  ao  rigor  com  que  ob- 
servavam a  disciplina  militar,  seu  estudo  aturado  da  táctica, 
junto  a  medidas  rigorosas  e  decisivas  nos  seus  conselhos.  A 
arte  da  guerra  e  de  réthorica  eram,  por  muito  tempo  as  únicas 
cultivadas  e  tidas  em  consideração  entre  os  romanos  ;  e  du- 
rante o  periodo  inteiro  da  existência  da  republica  eram  o  prin- 
cipal objecto  do  seu  estudo,  por  isso  que  constituíam  o  único 
caminho  para  a  honra  e  fama,  única  ambição  dos  romanos. 
Ambição  e  não  avareza,  era  a  paixão  dominante  entre  áquel- 
le povo  e  consequentemente  o  commercio  era  pouco  apreciado 
e  seguido.  A  conquista  era  o  íim,  a  guerra  o  meio.  Todo  o  ci- 
dadão era  soldado  e  o  seu  tempo  de  serviço  dez  annos.  O  seu 
modo  de  acampar,  a  regularidade  da  sua  disciplina  e  o  intei- 
ro systema  theorico  que  adoptaram,  são  objectos  curiosos 
d 'investigação. — Uma  descripção  de  tudo  isto  encontra-se  em 
escriptos  anligos,  e  nenhum  clássico  as  pode  ignorar. 

Um  dos  característicos  particulares   da  republica  romana 


88 

é,  que  os  revezes  e  as  derrotas,  não  poderam  nunca  prevales- 
cer  nos  concílios.  A  coragem  romana  mostrava-se  sempre  su- 
perioras difíiculdades  que  tinha  d'ai'rostar.  D'isto,  a  sua  gran- 
de contenda  com  a  republica  de  Caríhago,  sua  rival,  uma  das 
mais  importantes  e  obstinadas,  que  nos  recorda  a  historia,  é 
evidente  prova.  Os  romanos,  com  quanto  reduzidos  ao  ultimo 
extremo,  jamais  desanimaram  nem  afírouxaram  cTesforços. 
Quando  apertados  por  todos  os  lados  por  Annibal,  que  os  ha- 
via derrotado  em  successivas  batalhas,  e  saqueado  o  seu  terri- 
tório até  mesmo  ás  portas  de  Roma,  nenhuma  medida  de  pu- 
sillaninridade  fora  adoptada  pelo  senado;  poz  se  em  acção  tudo 
quanto  era  possível,  e  não  lhes  passou  nunca  pelo  pensamen- 
to a  aceitação  cFuma  paz  ignominiosa. 

Tem  se  geralmente  como  um  erro  grave  da '  parte  d'Anní- 
bal  deixando  d'assaltor  Roma  immediatamente  em  seguida  á 
sua  assignalada  victoria  de  Cannas  ;  e  osechos  da  historia re- 
percutindo-se,  .dizem-nos  que  Annibal  sabia  vencer  mas  não 
tirar  partido  das  victorias.  Todo  o  estudante  conhece  que  so- 
bre o  caracter  de  um  dos  maiores  generfies  que  tem  existido 
em  qualquer  idade  e  em  qualquer  paiz,  se  tem  lançado  este 
stigma,.  mas  não  devemos  precipitadamente  censurar  a  con- 
ducta  de  tão  distincto  militar.  O  seu  plano  d'operações  podia  ser 
determinado  por  causas  desconhecidas  aos  authores  q'  nos  trans- 
mittiram  a  noticia  d'aquelles  acontecimentos.  O  bom  resulta- 
do da  guerra  depende  d'uma  multidão  de  circunstancias,  mui- 
tas das  quaes  poderão  parecer  de  pouca  importância  a  quem 
não  estiver  perfeitamente  ao  facto  das  cousas  ;  e  consequen- 
temente é  impossivel  formar  um  juiso  seguro  de  circunstancias 
que  actuaram  no  momento,  passados  muitos  séculos.  Tanto, 
quanto  podemos  julgar  pelo  que  nos  diz  a  historia,  achamo- 
nos  authorisados  a  repellir  qualquer  idéa  de  pusilanimidade 
da  parte  de  Annibal,  despresando  o  favorável  ensejo  que  lhe 
oííerecia  a  victoria  de  Cannas.  Depois  d'essa  batalha  ganha  so- 
bre tropas  como  eram  as  legiões  romanas,  é  de  crer  que  o  seu 
exercito,  com  quanto  victorioso,  deveria  ter  sonrido  immen- 
so.  Pela  horrível  mortandade  do  lado  dos  romanos,   devemos 


concluir  que  as  perdas  entre  os  curthnglnezes  teriam  sido  con- 
sideráveis. Roma,  apesar  de  ser  a  esse  tempo  incomparavel- 
mente inferior  ao  que  depois  veio  a  ser,  era  já  uma  grande, 
forte  e  populosa  cidade,  e  os  seus  habitantes  dispostos  a  mor- 
rer com  as  armas  na  mão.  Aquelies,  versados  nos  negócios 
militares,  são  os  mais  aptos  para  decidirem  a  questrio,  se  teria 
sido  mais  prudente  da  parte  de  Annibal,  assaltar,  com  os  res- 
tos d'um  exercito  espedaçado  uma  cidade  como  Roma,  defen- 
dida por  gente  como  os  romanos  ;  e  se  poderia  dar  o  assalto, 
ou  intentar  um  cerco  com  alguma  probabilidade  de  bom  suc- 
cesso,  e  comtudo,  o  facto  de  haver  Annibal  abandonado  Ro- 
ma, aquartelando  as  suas  tropas  em  Capua  durante  o  inver- 
no, fossem  quaes  fossem  os  seus  motivos,  apresenta-se  geral- 
mente como  origem  dos  males  que  depois  vieram  aos  cartha- 
ginezes  ;  mas  deve-se  antes  presumir  que  a  verdadeira  causa 
de  seus  desastres  proveio  das  intrigas  dos  inimigos  de  Annibal 
no  senado  de  Carthago;  cujo  ódio  áquelle  illustre  chefe  foi  su- 
perior ao  amor  da  pátria,  e  que  preferiam  antes  seus  exérci- 
tos derrotados  avel-os  victoriosossob  os  seus  estandartes. 

Se  esta  facção  não  tem  adquirido  uma  influencia  predomi- 
nante no  senado  de  Carthago  ha  toda  a  rasão  para  crer  que 
o  poder  romano,  seria,  n'aquella  guerra,  completamente  ani- 
quilado. 

Não  se  podia  esperar  o  contrario  d'um  general  cuja  cora- 
gem e  prudência  o  haviam  coroado  de  louros  ;  cujos  feitos 
brilhantes  o  tinham  tornado  senhor  de  quasi  toda  a  Itália  ;  cu- 
ja carreira  militar  o  fizera  considerar  o  maior  general  da  an- 
tiguidade ;  e  que  jurara  sobre  um  altar  ódio  eterno  a  Roma. 

A  Divina  Providencia,  porem,  não  havia  decretado  o  anni- 
quilamento  de  Roma.  Os  inimigos  de  Annibal  ganharam  de 
dia  em  dia  terreno  e  não  obstante  as  suas  repetidas  exigên- 
cias, nenhum  reforço  lhe  era  enviado  ;  e  por  consequência  mu- 
dou a  sorte  da  guerra.  Os  romanos,  adoptando  medidas  enér- 
gicas, invadiram  a  Africa  ;  e  com  quanto  tão  recentemente 
em  perigo  de  serem  attacados  na  sua  própria  capital,  appare- 
ceram  repentinamente  em  frente  d'aquella  do  inimigo. 


90 

Annibal  que  pouco  antes  avançara  até  ás  portas  de  Roma 
foi  chamado  para  proteger  os  muros  de  Carthago,  e  batido  por 
Scipião  na  celebre  batalha  de  Lama  201  annos  antes  de  Jesus 
Christo,  que  poz  termo  ao  poder  e  grandeza  da  republica  car- 
thagenense  ;  por  que  sendo  os  carthagenezes  obrigados  a 
aceitar  uma  paz  com  condições  desvantajosas,  nunca  mais 
poderam  readquirir  o  seu  poderio  perdido.  Assim  terminou  a 
segunda  guerra  púnica.  Todos  sabem  que  o  resultado  da  ter- 
ceira foi  fatal  para  Carthago.  Aquella  grande  e  florescente 
cidade  foi  totalmente  destruída  146  annos  antes  de  Christo  e 
os  seus  domínios  reduzidos  a  província  romana. 

Até  essa  epocha,  Roma  havia  feito  um  progresso  continua- 
do mas  lento.  Ao  principio  todo  o  seu  território  não  excedia 
25  milhas  em  circunferência  ;  e  quando  Alexandre  conquis- 
tou a  Pérsia,  422  annos  depois  da  fundação  de  Roma,  179 
annos  depois  da  expulsão  dos  reis  romanos,  e  cerca  de  330 
antes  de  Christo,  o  território  de  Roma,  como  já  temos  obser- 
vado mal  excedia  os  limites  da  actual  campania,  e  não  foi  se- 
não 262  annos  antes  de  Christo  e  490  depois  da  construcção 
de  Roma,  que  os  romanos  levaram  as  armas  alem  dos  con- 
fins da  Itália. 

Depois  da  subjugação  de  Carthago,  na  segunda  guerra  pú- 
nica, deixou  Roma  de  ter  rival,  e,  victoriosa  em  toda  a  parte, 
levou  tudo  adiante  de  si.  Á  Macedónia,  a  Grécia  e  os  reinos 
Gregos  na  Ásia,  cahiram  successivamente  nas  suas  mãos  e 
dilatou  o  seu  império  desde  o  Euphrates  até  o  oceano  atlân- 
tico, e  desde  o  Rheno  e  o  Danúbio  até  os  desertos  da  Arábia 
e  da  Africa,  abrangendo  no  seu  território  todo  o  mundo  en- 
tão civilisado  e  conhecido  e  o  seu  aspecto  mudou  completa- 
mente. Os  diíferentes  reinos  e  estados,  que,  durante  uma  lon- 
ga serie  de  annos,  estiveram  entregues  a  continuadas  revolu- 
ções, erguendo-se,  cahindo,  destruindo-se  mutuamente,  foram 
absorvidos  constituindo  todos  um  immenso  e  poderoso  impé- 
rio. Mas  Roma,  já  senhora  do  mundo,  estava  sendo  espeda- 
çada  por  commoções  internas.  A  causa  d'aquelles  males  pa- 
rece coeva  da  mesma  Roma,  ou  pelo  menos  da  sua  forma  re- 


91 

publicana  de  governo.  Era  ella  uma  distincção  odiosa  que  di- 
vidio  os  cidadãos  romanos  em  duas  corporações  distinctas, 
os  patrícios  e  os  plebeus,  ou,  como  diríamos  hoje,  a  classe 
aristocrática  e  a  democrática.  Rómulo,  male  diíicou  Roma,  or- 
ganisou  o  senado,  mas  o  povo  gosava  também  seus  privilé- 
gios e  parece  que  estas  regalias  do  senado  e  do  povo,  como 
também  a  prerogativa  real,  estavam  claramente  definidas, 
com  quanto  seja  difficil,  passado  tanto  tempo,  descriminar  com 
exactidão  os  direitos  do  rei,  do  senado,  e  do  povo.  Os  escri- 
ptores  romanos  pertendem,  é  certo,  possuir  conhecimentos  es- 
peciaes  sobre  aquelle  ponto;  porem  é  tanto  ou  quanto  questio- 
nável, se  os  historiadores,  que  viveram  nas  idades  cultas  de 
Roma  podiam  obter  informações  particulares  sobre  aquelle 
assumpto  como  elles  pertendem 

E'  certo  que  os  annaes  de  Roma,  na  sua  primitiva,  eram 
muito  defeituosos,  porque  no  principio  os  romanos  eram  imi 
povo  sem  instrucção  ;  e  o  estudo  das  lettras  foi,  provavelmen- 
te, introduzido  entre  elles  por  Numa  Pompilio,  seu  segundo  rei. 
Os  dados  históricos  não  authorisam  a  conjecturar  que  Rómu- 
lo, ou  os  seus  súbditos  tivessem  idéas  de  litteratura.  Na  ex- 
pulsão de  seus  reis,  e  fundação  do  governo  republicano,  as 
duas  classes  de  Patrícios  e  Plebeos  foram  tão  perfeitamente 
separadas,  estabelecendo-se  uma  linha  de  demarcação  tão 
pronunciada,  que  constituíram  duas  corporações  distinctas, 
cujos  interesses  eram  diametralmente  oppostos.  Todos  os  car- 
gos da  republica  eram  dados  ás  famílias  patrícias,  mas  o  povo 
tinha  o  direito  d'eleição  para  aquelles  cargos.  Os  plebeus,  po- 
rem, viam-se  excluídos  não  somente  das  honras,  como  também 
dos  emolumentos  da  republica  ;  e  eram  considerados  em  es- 
tado de  pobreza,  em  quanto  os  patrícios  tinham  todas  as  lar- 
gas para  a  acquisição  de  propriedade.  Só  elle  e  os  seus  ínti- 
mos possuíam  as  terras  adquiridas  por  meio  de  conquista,  em 
quanto  que  os  plebeos  que  combatiam  e  perdiam  o  seu  sangue 
nas  lutas  eram  excluídos  nas  partilhas.  Pela  natureza  da  cons- 
tituição romana,  parecia,  que  o  que  fosse  conquistado  pelos 
esforços  reunidos  dos  cidadãos,  devia  ser  dividido  com  egual- 

13 


92 

dade  entre  elles,  por  isso  que  ninguém  era  escuso  do  serviço 
militar.  O  povo  comprehendia  perfeitamente  que  uma  tal  di- 
visão era  um  direito  indisputavelmente  seu,  e  uma  lei  agraria 
era  seu  coustante  e  ambicionado  alvo.  Isto,  porem,  nunca  se 
pode  conseguir.  Os  patricios  encontravam  sempre  algum  pre- 
texto para  deferir  a  sua  promulgação,  e  quanto  mais  se  defe- 
ria, maiores  difficuldades  sobrevinham  para  as  levar  a  eífeito. 
E  por  certo,  passado  tempo,  e  apossados  que  fossem  os  ho- 
mens ricos  d1aquellas  terras,  não  era  possível  a  existência  de 
uma  lei  agraria  sem  lançar  o  paiz  n'ám  estado  de  confusão  e 
anarchia.  O  partido  plebeo,  porem,  fez  repetidas  tentativas 
para  diminuir  o  exorbitante  poder  dos  patricios.  Appellou- 
se  para  uma  lei  chamada  a  lei  liciniana,  que  prohibia  a  qual- 
quer cidadão  a  posse  de  propriedade  excedente  a  500  geiras; 
mas  uma  lei  tão  favorável  ao  povo,  e  tão  contraria  aos  inte- 
resses dos  poderosos,  foi  unanimamente  combatida.  A  primei- 
ra vantagem  d 'importância  obtida  pelo  partido  plebeu,  foi  a 
lei  permittindo  o  enlace  matrimonial  entre  patricios  e  plebeos 
que  gradualmente  aproximou  as  duas  classes  uma  da  ou- 
tra. 

Mas  sobre  tudo,  a  eleição  de  tribunos,  para  proteger  os  inte- 
resses do  povo,  foi  o  golpe  mais  severo  na  authoridade  da  or- 
dem patrícia. 

Todos  que  tem  estudado  a  historia  antiga,  conhecem  as 
lutas  que  se  deram  entre  os  dois  partidos. 

A  historia  recorda-nos  a  retirada  cio  povo  para  o  Monte 
Sacro,  a  conspiração  do  Monte  Arentino,  os  tumultos  promo- 
vidos pelos  graechi,  e  outras  commoções  populares.  Eífecti- 
vamente  a  historia  da  republica  quasi  que  não  apresenta  ou- 
tra cousa  que  constantes  guerras  no  estrangeiro,  e  contendas 
internas  entre  as  duas  classes  adversas  ;  e  o  resultado  de  ca- 
da lueta  era  quasi  sempre  favorável  ao  partido  popular,  até 
que  em  fim,  Caio  Mário,  um  plebeo,  foi  eleito  cônsul  não  obs- 
tante a  maior  opposição  da  parte  da  ordem  patrícia.  Foi  assim 
que  a  victoria,  depois  d'annos  de  perpetuas  contendas  se  de- 
clarou finalmente  pelo  partido  democrático.    Todos  teem  lido 


93 

na  historia  os  males  que  a  ambição  patrícia  e  o  licencioso  fu- 
ror'popular  successivamente  acarretaram  sobre  a  republica  e 
que  a  final  produziram  o  anniquilamento  cTaquella  forma  de 
governo.  As  prescripçoes  sanguinárias  de  Mário  e  de  Sylla, 
aquelle  do  partido  popular  e  este  da  classe  patrícia,  são  factos 
notórios.  A  contenda  finalmente  acabou,  quando  acabou  a 
republica.  Os  patrícios  viram  a  perda,  do  que  consideravam 
seu  direito  constitucional,  com  um  desgosto  igual  á  indigna- 
ção com  que  o  povo  sofíiêra  a  privação  de  seus  privilégios. 
Em  cada  eleição  de  cônsul,  ou  em  outras  occasiões  d'interesse 
publico,  os  velhos  ódios  renasciam,  e  as  duas  facções  op- 
postas  redobravam  d'esforços.  Cada  um  se  alistava  sob  suas 
diflerentes  bandeiras,  como  melhor  lhe  convinha,  e  a  gradua- 
ção de  posto  cedia  ante  os  interesses  pecuniários.  Os  patrí- 
cios que  ambicionavam  o  poder  com  o  apoio  popular  espo- 
savam a  causa  plebea,  e  apregoavam-se  amigos  do  povo,  em 
quanto  que  muitos  plebeos,  por  iguaes  motivos  faziam  causa 
commum  com  os  patrícios.  Cezar,  com  quanto  da  classe  pa- 
trícia, era  o  homem  do  partido  popular,  em  quanto  que  Pom- 
peo  era  o  idolo.do  senado, o  grande  advogado  da  causa  patrí- 
cia e  o  poderoso  supporte  de  seu»  interesses.  Ambos  capi- 
taneavam grandes  exércitos;  e  Pompeo  apesar  de  mais  velho 
que  Cezar,  casara  com  a  filha  d'este;  mas  laço  algum  de 
parentesco  pode  modificar  o  espirito  de  partido,  ou  anniquilar 
o  da  ambição.  Quem  ignora  o  resultado  d'aquellas  contendas 
nada  menos  que  o  extermínio  das  liberdades  romanas  , 
se  é  que  se  pôde  chamar  liberdade  a  um  nun<?,a  interrompido 
estado  de  desordem,  discórdia,  falta  de  segurança  individual, 
e  sujeição  ao  serviço  militar;  e  comtudo  a  historia  tem  dado 
a  tudo  isto  o  pomposo  nome  de  liberdade. 

Apoz  a  derrota  de  Pompeo,  nos  campos  de  Pharsalia,  Ce- 
zar, vendo-se  á  testa  de  quasi  toda  a  força  militar  da  republi- 
ca, cedo  achou  meio  de  vencer  toda  a  opposiçâo,  e  foi  de- 
clarado dictador  perpetuo,  46  annos  antes  de  Christo;  car- 
go este  que  lhe  conferio  o  poder  e  authoridade  real,  faltan- 
do-lhe  apenas  o  titulo  de  rei.  Os  derradeiros  esforços  do  par- 


94 

tido  patriciano,  foi  o  assassinato  de  Cezar  no  senado. 

Seu  sobriuho,  Octávio,  appelliclado  depois  Augusto,  e  seu 
amigo,  Marco  António,  se  constituiram  vingadores  da  sua 
raorte;  e  tendo  derrotado  os  conspiradores  em  Philippi,  asso- 
ciando a  si  Lépido,  assim  formaram  o  segundo  triumvirado; 
e  Lépido,  Octávio,  c  Marco  António,  conjunctamente  gover- 
naram o  império.  A  historia  de  Marco  António  e  de  Cleópa- 
tra, a  celebre  rainha  do  Egypto,  não  menos  famosa  por  seus 
vicios,  que  por  sua  formosura  e  brilhante  talento,  é  conheci- 
da de  mais  para  ser  aqui  discutida,  e  menos  ainda  os  acon- 
tecimentos da  guerra  civil  entre  Octávio,  Cezar  e  Marco  An- 
tónio; que  tendo  terminado  com  o  derrota  e  morte  do  ultimo, 
como  também  da  linda  e  illustrada  Cleópatra,  ultima  da  dy- 
nastia  dos  Ptolomeos,  e  na  subjugação  do  Egypto,  que  ficou 
sendo  provincia  romana,  Octávio,  sem  collega, ou  rival,  reinou 
dignamente  como  imperador  elos  romanos. 

A  singular  sagacidade  e  prudência  com  que  Augusto  esta- 
beleceu a  sua  soberania  em  Roma,  pôde  servir  de  modelo  de 
tacto  politico;  e  durante  o  seu  longo  e  glorioso  reinado  mos- 
trou ser  um  consummado  politico.  E  talvez  homem  algum 
foi  mais  feliz  na  arte  de  governar. 

Profundamente  convencido  da  predilecção  dos  romanos  pe- 
la forma  republicana  de  governo,  não  procurou  abolir  os  car- 
gos e  formulas  da  republica;  mas  combinou  as  cousas  de  mo- 
do que  as  reuniu  em  si,  e  professando  a  maior  deferência  e 
respeito  pelo  senado,  deixou-lhe  apenas  aquelle  poder  que 
julgou  em  harmonia  com  o  seu. 

De  todas  as  suas  medidas  politicas,  a  de  mais  mestria  foi 
aquella  de  limitar  a  sua  administração  por  espaço  de  dez  an- 
nos,  no  fim  dos  quaes  fez  publico  que  tencionava  abdicar,  e 
tendo  sagazmente  disposto  as  cousas,  e  assegurado  uma  gran- 
de maioria  no  senado,  cedendo  ás  vehementes  solicitações  d'a- 
quella  corporação,  e  de  todo  o  povo  romano,  condescendeu 
em  reassumir  as  rédeas  do  governo  por  um  novo  periodo  de 
dez  annos,  e  repetiu  esta  farça,  até  que  viu  consolidado  o  seu 
governo    e    removida  toda   a    idéa    d'opposição    entre   seus 


95 

súbditos.  Vimos  pois  como  as  discórdias  dos  patrícios  e  dos 
plebeos,  depois  de  haver  agitado  a  republica,  acabaram  em 
guerras  civis  que  fizeram  tremer  seus  vastos  dominios  e 
inundar  Roma  com  o  sangue  de  seus  cidadãos;  e  que  finali- 
saram  com  o  aniquilamento  do  governo  republicano,  e  a 
fundação  da  monarchia,  que  foi  sem  duvida  a  forma  mais 
própria  de  governo  para  tão  vasto  império,  composto  de  tan- 
tas differentes  nações.  Se  a  experiência  fundada  em  factos, 
for  admittida  como  base  para  o  raciocínio,  a  monarchia,  quan- 
do o  sceptro  se  acha  nas  mãos  dum  principe  prudente  e  bon- 
doso,  é  preferível  ao  governo  republicana. 

Roma  fez  a  experiência  e  não  teve  motivo  para  lamentar  a 
mudança;  porque  sob  o  equitativo  e  pacifico  reinado  de  Au- 
gusto, os  seus  cidadãos  e  todo  o  império  disfructaram  mais 
tranquilidade  e  segurança,  mais  felicidade  politica  e  civil,  que 
jamais  haviam  experimentado  durante  todo  o  periodo 
da  existência  da  republica.  Apresenta-se  agora  um  novo 
espectáculo,  nunca  antes  presenciado;  o  mundo  civilisado 
reunido  em  um  vasto  systema  politico.  A  França,  a  Itália,  a 
Hespanha  e  Portugal,  a  Suissa  e  a  Bélgica,  a  Grécia  e  os 
demais  paizes  que  constituem  o  império  Ottomano,  tanto  na 
Europa  como  na  Azia,  com  o  Egypto  e  toda  a  parte  septen- 
trional  da  Africa,  que  presentemente  forma  o  império  de 
Marrocos,  e  os  estados  Algerinos,  Tunis,  e  Tripoli,  tudo  sob 
o  dominio  de  Roma:  todos  aquelles  extensos  paizes  reunidos 
em  um  vasto  império,  disfructando  uma  paz  profunda  sob  a 
administração  d'um  imperador,  prudente,  justo  e  pacifico, 
que  possuía  o  senso  de  conhecer  que  os  seus  interesses  e  os 
de  seu  povo,  eram  inseparáveis,  apresentando  uma  perspecti- 
va que  o  espirito  humano  se  deleita  em  contemplar,e  que  for- 
mava um  notável  contraste,  comparada  ao  estado  turbulen- 
to do  orbe  romano  sob  o  governo  republicano.  Authores  ha 
que  discorrem  amargamente  sobre  os  tempos  mais  puros  da 
republica,  a  liberdade  de  seus  cidadãos  e  a  sua  perda  com  a 
usurpação,  como  elles  o  denominam,  de  Júlio  Cezar,  do  car- 
go de  dictador  e  mais  ainda  quando  a  soberania  se  consolidou 


96 

em  Augusto:  mas  perguntaremos  nós  em  que  consistia  a  re- 
publica de  Roma.  Seria  no  forçado  recrutamento  de  todo  o 
cidadão  para  o  serviço  militar,  por  espaço  de  dez  annos,  um 
período  tão  considerável  na  curta  duração  da  vida?  Seria  no 
risco  continuo  de  ser  chamado  áquellas  guerras  sanguinolen- 
tas e  destruidoras  de  que  estão  cheias  as  paginas  da  historia 
romana  e  na  exposição  a  todos  os  perigos  e  inclemências  da 
vida  militar  ?  Seria  nos  tumultos,  nas  discórdias  civis  e  nas 
guerras  de  partido;  ou  seria  no  privilegio  de  perturbar  a  sua 
própria  tranquilidade,  e  a  do  mundo  inteiro  que  assentava  a 
tão  afamada  liberdade  do  povo  romano  ?  Não  nos  deixemos 
illudir  com  as  declamações  eloquentes  de  historiadores.  A  ver- 
dade mascara-se  de  diversos  modos;  nem  sempre  é  necessá- 
rio subsíituil-a  por  falsidade  declarada;  uns  ligeiros  toques 
no  sombreado  do  quadro  desfiguram  ás  vezes  a  scena. 

Uma  pequena  exageração,  ou  uma  exposição  artificiosa,, 
pode,  em  muitos  casos  influir  para  a  creação  d'idéas  falsas. 
Quaesquer  que  sejam  as  cores  com  que  nos  pintem  a  liberda- 
de romana  sob  um  governo  republicano,  é  um  facto  incon- 
troverso que  consistia  principalmente  na  oppressão  do  rico 
sobre  o  pobre,  privilegio  este  que  tem  merecido  em  outros 
paizes  egualmente  o  nome  de  liberdade.  D'este  systema  em 
que  consistia  o  principal  fim  do  Senado  e  da  classe  patricia,  nas- 
ceram as  continuas  hostilidades  em  que  os  romanos  andaram 
envolvidos;  porque  o  Senado  bem  sabia,  que  em  quanto  o  po- 
vo andava  destraido  em  guerras  estrangeiras,  preoccupava-se 
menos  dos  seus  direitos  e  para  lhe  desviar  a  attençao  de  seus 
males,  não  tinham  mais  que  declarar  a  guerra.  O  Senatus  Con- 
sultam, ou  decreto  do  Senado  era  apresentado  ao  povo,  cu- 
jo privilegio  era  confirmar  as  propostas  d'aquella  corpora- 
ção. Um  orador  eloquente,  qualquer,  subia  á  tribuna,  haren- 
gava  aos  cidadãos,  descrevendo-lhes  em  vivas  cores  o  pre- 
juizo  que  soífria  a  republica,  e  os  insultos  cospidos  á  digni- 
dade do  povo  romano.  Era  bastante!  Aquelle  estylo  guindado, 
a  gloria  da  republica  e  a  magestade  do  povo  constituía  o  en- 
canto politico  e  magica  que  operava  irresistivelmente  sobre 


97 

o  espirito  d' um  povo  valente  e  guerreiro,  mas  leviano,  que 
inconsideradamente  votava  aquellas  guerras,  nas  quaes  era 
sempre  a  victima,  em  quanto  os  patrícios  seus  senhores  accu- 
mulavam  riquezas,  honras  e  poder.  Assim,  quando  o  poder 
supremo  parecia  estar  no  povo,  era  elle,  em  realidade,  nada 
mais  que  uma  rnachina  nas  mãos  de  seus  denominadores, 
que,  por  suas  intrigas  eleitoraes,  e  magica  persuasiva  de  seus 
oradores,  o  traziam  completamente  sujeito  á  sua  vonta- 
de. 

JSTeste  notável  periodo,  quando  a  constituição  romana  mu- 
dou da  forma  republicana  para  a  monarchia:  quando  o  impé- 
rio attingio  o  auge  de  seu  engrandecimento  e  extensão;  e 
quando  o  mundo  repousava,  tranquillo,  sob  a  sua  poderosa 
influencia,  o  espirito  investigador  deseja  naturalmente  entrar 
no  conhecimento  dos  hábitos  dos  romanos  e  no  modo  de 
vida  social  d'aquelles  celebres  senhores  do  mundo. 

O  estado  social  dos  romanos  era,  a  muitos  respeitos,  ex- 
tremamente differente  do  que  vemos  entre  as  nações  da  mo- 
derna Europa.  N'estes  paizes,  todo  o  individuo  que  não  pos- 
sue  propriedade,  tem  de  prover  pela  sua  subsistência,  entre- 
gando-se  a  qualquer  industria,  e  tem  de  contribuir  para  a 
sustentação  do  governo  que  lheextende  protecção.  Os  tributos 
recaem,  ou  sobre  a  propriedade,  ou  sobre  os  differentes  arti- 
gos de  necessidade,  conveniência  e  luxo;  de  modo  que  cada  um 
contribue  para  o  estado  na  proporção  de  seus  haveres  ou  das 
suas  despezas.  Assim  acontecia  até  certo  ponto,  na  adminis- 
tração financeira  dos  romanos  em  relação  aos  habitantes  das 
provindas  e  paizes  conquistados;  mas  era  differente  para 
aquelles  que  gosavam  o  privilegio  de  cidadãos  romanos. 

Na  infância  de  Roma,  os  cidadãos  eram  poucos  em  nume- 
ro, e  o  seu  território  de  pequena  extensão,  compondo- se 
tão  somente  de  seus  sete  montes,  e  os  visinhos  pântanos  nas 
margens  do  Tybre:  o  estado  devia  forçosamente  ser  muito 
pobre. 

Não  podemos,  n'esta  era  distante  ajuizar  perfeitamente 
de   que  modo    se   costeava  a    despeza   publica,   durante  os 


98 

reinados  dos  sete  reis  de  Roma  na  primitiva  da  republi- 
ca. 

Nenhum  documento  histórico  existe  já,  que  nos  diga  com 
rideliífade  quaes  fossem  as  instituições  de  fazenda  d'aquelles 
remotos  tempos. 

Os  romanos,  comtudo,  vagarosamente  ao  qriucipio,  e  de- 
pois pela  mais  rápida  carreira  de  victorias  e  conquistas, 
dilataram  os  seus  domínios  do  modo  já  exposto;  e  proviacias 
e  reinos  vieram  a  ser  tributários  da  republica.  Aquelles  tri- 
butos pagavam-se,  parte  em  moeda  e  parte  em  género. 
A  Sicília  produzia  cereaes  e  vinhos:  o  Egypto  fornecia  mi- 
lho; e  todos  os  peizes  conquistados  ministravam  a  Roma  uma 
parção  de  seus  productos. 

A  lei  agraria;  tão  desejada  do  povo  romano,  nunca  se 
pôde  levar  a  effeito;  mas  uma  parte  do  menos,  dos  paizes 
subjogados,  dividiu-se  entre  as  classes  mais  pobres  de  Roma. 
Desde  o  tempo  da  derrota  de  Perseu,  rei  de  Macedónia, 
até  ao  reinado  d'Auguesto  Cezar,  os  cidadãos  romanos  eram 
completamente  isentos  de  tributos. 

Mr.  Grikbon  estima  em  vinte  milhões  de  libras  sterlinas, 
os  tributos  pagos  pelas  províncias  annualmeute;  mas  não  nos 
diz  se  os  cereaes,  os  vinhos,  azeites  e  toucinhos  entravam 
u'aquelle  calculo,  E',  porém,  a  opinião  de  muitos  historia- 
dores que  os  tributos  em  género  não  devem  incluir-se  n'esta 
conta  e  que  as  províncias  pagavam  umu  somma  superior 
aquella  em  espécie.  Quando  Roma  chegou  ao  maior  auge 
do  seu  poder,  e  que  todos  os  paizes  desde  o  Euphrates 
até  ao  Atlântico,  e  desde  o  Danúbio  até  aos  desertos  d'A- 
frica,  vssavam  seus  impostos  para  dentro  de  seus  cofres,  a 
districuíção  era  tão  copiosa  que  dava  para  a  sustentação 
das  classes  inferiores  dos  cidadãos.  Uma  certa  quantia  de  di- 
nheiro, cereal,  vinho,  azeite,  e  toucinho,  e  outros  géneros, 
distribuiam-se  pelos  cidadãos  que  por  seus  poucos  meios  ti- 
nham direito  a  recebel-os.  Aquellas  distribuições,  por  algum 
tempo,  tinham  logar  periodicamente,  aos  trimestres,  mensal- 
mente etc  conforme  pediam  as  circunstancias;  mas  no  decurso 


m 

<àe  tempo  passaram  a  fazer-se  diariamente.  Construiram-âe 
fornos  públicos,  e  em  logar  d'uma  distribuição  mensal  cu 
semanal  de  cereaes,  uma  ração  de  pão  e  vinho  etc.  entre- 
gava-se  diariamente  áqudles  cidadãos  que  a  reclamavam 
legalmente;  e  assim  ficavam  suppridas  as  necessidades  d'um 
povo  soberbo,  preguiçoso  e  imprevidente.  Estas  distribuições 
periódicas,  foram,  fora  de  duvida,  adoptadas  pelo  senado 
com  o  fim  de  contentar  as  massas,  e  desvanecer  a  idéa  dos 
Plebeos  sobre  a  lei  agraria,  e  era  efíecti  vãmente  o  meio  mais 
efficaa  de  os  conservar  em  dependência  absoluta  dos  grandes; 
em  quanto  que  uma  divisão  igual  dos  terrenos  da  republica 
tenderia  necessariamente  para  a  sua  independência.  Os  dema- 
gogos que  chegaram  ao  poder  pelo  favor  popular,  ou  que  a 
elle  aspiravam,  procuraram  augmentar  aquelles  donativos,  de 
modo  que  com  o  correr  do  tempo,  os  mais  pobres  não  pre- 
cisavam trabalhar;  mas  aquella  reunião  heterogénea  que  cons- 
tituia  a  massa  da  população  de  Roma,  como  de  qualquer  ou- 
tra grande  metrópole,  estava  em  circunstancias  differentes. 
Estes  susíentavam-se  á  custa  da  sua  industria,  ou  da  pro- 
priedade que  possuíam. 

A  labutação  eocommercio  de  Roma  eram  feitos  por  escra- 
vos ou  por  estrangeiros;  e  os  negociantes  da  província  e  me- 
chanicos  industriosos,  que  demandavam  Roma,  e  formavam 
o  grosso  de  seus  habitantes,  geralmente  accumulavamimmen- 
sas  fortunas.  Este  systema  de  sustentação  das  classes  pobres 
observava-se  nas  outras  cidades  do  império;  e  com  quanto 
este  meio  de  recolher  e  destribuir  os  impostos  de  província 
deveria  ser  excessivamente  incommodo,  sujeito  a  muitas  va- 
riantes, subsistio  tanto  quanto  durou  o  império,  ou  ao  me- 
nos durante  o  seu  estado  de  florescência. 

Nos  primeiros  tempos  da  republica,  o  vestuário  como 
tudo  o  mais  adoptado  em  Roma,  era  excessivamente  sim- 
ples e  uniforme.  Uma  simples  toga  era  o  vestuário  universal- 
mente uzado  pelos  plebeos,  a  toga  da  ordem  equestre  destin- 
guia-se  por  uma  estreita  orla  de  purpura,  e  a  dos  patricioS 
por  uma  mais  larga  da  mesma  côr,    mas    o  manto    dos  com- 

14 


100 

mandantes  dos  exércitos  era  todo  elle  de  purpura.  Poucos  ca- 
sos haviào  d'um  desvio  deste  trajo  no  começo  da  republica  ; 
mas  á  proporção  que  as  riquezas  augmentavam,  a  variedade 
na  elegância  de  trajar  andava  a  par  do  luxo  em  outros  ramos, 
até  que  por  fim,  mormente  nos  tempos  do  governo  imperial, 
não  tinha  limites.  Os  grandes  de  Roma  entretinham- se  em 
tomar  ar  nos  subúrbios  seguidos  de  numeroso  e  esplendido 
séquito,  e  em  frequentar  os  theatros  e  outros  logares  públicos. 
Os  banhos  públicos  eram  os  sitios  predilectos  das  classes  po- 
bres. Os  jogos  públicos,  e  os  espectáculos  no  circo  eram  o 
grande  divertimento  de  todas  as  ordens  sociaes,  e  proporcio- 
navam amplos  passatempos  aos  cidadãos  indolentes.  De  facto 
não  houve  nunca  outra  cidade,  tanto  no  mundo  antigo  ou 
moderno,  que  offerecesse  tão  brilhantes  festas,  nem  governo 
algum  tão  solicito  em  proporcionar  divertimentos  a  seus  súb- 
ditos. Era  assim  que  os  chefes  mantinham  o  socego  publico. 
A  guerra  no  estrangeiro,  a  distracção  recreativa  no  paiz,  a 
magnificência  dos  jogos  e  espectáculos  públicos,  e  sobre  tudo 
os  soberbos  triumphos  de  seus  generaes  e  victoriosos  exerci- 
tos>  inspiravam  o  povo  romano  d'idéas  exaltadissimas  da 
grandeza  da  republica;  e  logo  que  o  deslumbrasse  a  pompa 
e  sumptuosidade  de  suas  festas  e  divertimentos,  a  invencivel 
bravura  do  exercito,  a  gloria  da  republica,  e  a  magestade  da 
nação,  deixava  se  governar  á  vontade   de  seus  dominadores. 

O  Senado,  porem,  onde  se  achava  investido  constitucional- 
mente o  governo,  com  quanto  conservasse  ostensivamente  a 
sua  autlioridade,  não  podia,  por  aquelles  meios  manter  ver- 
dadeiro poder.  Appareceram  caudilhos  populares,  que  ga- 
nharam a  confiança  do  povo,  e  uma  ascendência  no  próprio 
Senado. 

Uma  mudança  de  cousas  produzio  uma  mudança  de  cos- 
tumes que  influio  sobre  o  systema  em  geral.  Depois  que  os 
espólios  da  Azia  enriqueceram  Roma,  a  exorbitante  riqueza 
corrompeu  a  moral  de  seus  cidadãos,  e  os  romanos  deixaram 
de  ser  o  que  d'antes  eram.  A  corrupção  não  só  reinou  em  to- 
das as  repartições  da  administração,  mas   sendo    a  riqueza  a 


101 

fonte  das  commodidades  da  vida,  tornou-se  o  alvo  de  todos. 
Os  romanos  deixaram  de  ser  aquelles  patriotas  austeros,  que, 
em  todos  os  tempos,  e  em  todas  as  occasiões,  estavam  prom- 
ptos  a  sacrificar  sens  interesses  particulares  aos  interesses  ge- 
raes.  A  avareza  corrompeu  agora  a  sua  moral,  e  mudou  seus 
costumes;  e  o  interesse  pecuniário  antepunha-se  ao  bem  pu- 
blico. Roma,  aonde,  durante  os  primeiros  tempos,  tudo  era 
simples  e  ligeiro,  aonde  a  ornamentação  não  tinha  valor,  mas 
aonde  tudose  reputava  em  relação  ao  seu  uso  e  utilidade,  tor- 
nou-se a  sede  do  esplendor,  da  opulência,  e  do  luxo  que  de 
dia  em  dia  augmentava,  até  que  por  fim  subio  a  um  ponto 
de  que  a  historia  não  apresenta  nada  egual.  O  mixto  do  luxo 
aziatico,  com  a  ambição  romana  deu  incremento  ás  differen- 
tes  facções  de  que  se  compunha  a  republica. 

Muitos  cidadãos  romanos  podiam  hombrear  com  príncipes 
soberanos  em  opulência  e  sumptuosidade  e  poderam  exercer 
sobre  o  povo  aquella  influencia  que  o  Senado,  havia  tanto 
tempo  e  com  tanto  successo,  exercera;  e  as  massas  heterogé- 
neas da  população  estavam  sempre  á  disposição  de  qualquer 
chefe  que  as  recreasse  com  festejos,  e  que  repartisse  dinhei- 
ro ás  mãos  cheias  pela  multidão  facciosa  e  indolente.  A  sol- 
dadesca romana  prompta  sempre  a  seguir  o  estandarte  d'urn 
Mário,  ou  d' um  Scylla,  d'um  Oezar,  ou  d'um  Pompeo,  d'um 
Octávio,  ou  d'um  Marco  António,  tornaram-se  mercenários,  e 
aífeiçoando-se  á  causa  de  qualquer  demagogo,  esqueceram-se 
que  eram  cidadãos  e  soldados  da  republica.  N'este  estado  des- 
moralisador,  não  admira  que  a  discórdia  dos  bandos  faccio- 
sos e  adversos,  que  havião,  já  de  muito,  agitado  a  republica, 
produzisse  um  vulcão  ,  que  ameaçou  o  anniquilamento 
de  Roma,  e  determinou  positavamente  a  abolição  da  forma 
republicana  de  governo. 

O  poder  romano,  á  excepção  d'algumas  insignificantes  con- 
quistas feitas  pelos  imperadores,  chegara  ao  zenith  da  sua 
grandeza;  e  o  império  quasi  que  tomara  as  máximas  propor- 
ções quando  cahio  a  republica  e  se  constituio  o  governo  mo- 
narchico;  mas  se  a  capital  attingira  o  maior  grau  de  popula- 


102 

ção,  é  algum  tanto  duvidoso.  Nenhum  documento  estatístico 
ha  que  resolva  esta  incerteza,  mas  raciocinando  em  presença 
de  circunstancias  geraes,  da  experiência  constante  de  causas 
e  efíeiíos  moraes  e  políticos,  e  sobre  esta  baze,  aventurarmos 
uma  conjectura,  devemos  suppor  que  a  cidade  imperial  nào 
chegava  ao  máximo  da  sua  extensão  e  população,  mas  não  é 
improvável  que  fosse  esta  a  era  da  sua  maior  opulência.  Le- 
vou Roma  700  annos  em  subjugar  e  espoliar  o  mundo  e  con- 
centrando em  si  a  riqueza  accumulada  das  mais  opulentas  na- 
ções chegara  já  ao  termo  das  suas  acquisições  e  achava-se  nos 
primeiros  tempos  da  sua  dissolação. 

A'  excepção  das  províncias^  os  espólios  das  nações,  tinham, 
em  grande  parte,  deixado  (Taba.steçer  seus  cofres,  e  os  seus 
exércitos  voltavam  menos  carregados  de  espólios.  As  guerras 
rarearam,  e  faltavam  já  inimigos  dignos  de  competição  dos  con- 
quistadores. D'aqui  infere-se  que  é  esta  a  epocha  em  que  Ro- 
ma chegou  a  enthesourar  a  maior  massa  de  seus  cabedaes. 
Depois,  quando  as  fontes  destas  riquezas  seexhauriram,  e  que 
as  despezas  desordenadas  cresciam,  grande  parte  da  rique- 
za.accumulada  em  Roma  necessariamente  rtíluio  para  as 
províncias  que,  por  meio  da  sua  industria  contribuíram  lar- 
gamente para  o  luxo  da  metrópole.  O  contrario  acontece  nas 
capitães  da  moderna  Europa.  Nestas  o  incremento  do  com- 
mercio  e  da  riqueza  augmentam  na  proporção  do  luxo.  Ro- 
ma não  era  commercial:  a  sua  opulência  não  lhe  recorda  com- 
mercio,  mas  sim  a  guerra  e  a  conquista,  a  rapina  e  o 
saque;  nem  mesmo  se  pode  presumir  que  ella  fosse  uma  ci- 
dade mercantil  mesmo  nos  seus  tempos  mais  florescentes. 
Alexandria  era  o  império  do  commercio  romano.  Plinio  ob- 
serva quanto  o  trafico  da  índia,  feito  pela  porta  daquella 
cidade,  absorveu  a  riqueza  de  Roma;  e  parece  por  uma  mul- 
tiplicidade de  circunstancias  que  o  commercio  da  cidade  im- 
perial era  geralmente  de  natureza  que  tendia  mais  a  dimi- 
nuir que  a  augmentar  a  sua  opulência;  de  modo  que  com 
quanto  Roma  fosse  embellezada,  e,  talvez  alargada  a  sua 
arca  pelos  imperadores,  não   parece  provável  que  a  sua  opu- 


103 

lencia  fosse  augmentada  depois  da  dictadura  de  Júlio  Cezar, 
ou,  pelo  menos  depois  do  reinado  d'Augusto,  e  qualquer  que 
fosse  a  condição  da  massa  collectiva  do  povo  de  Roma,  é  fo- 
ra, de  duvida,  que  não  obstante  a  immensa  riqueza  d'algunias 
famílias  antigas,  uma  grande  parte  dos  cidadãos  romanos  era 
pobre  como  claramente  o  provam  os  cálculos  que  nos  tem  sido 
transmitticlos  do  numero  de  cidadãos  pobres,  tanto  na  capital 
como  em  outras  cidades  do  império  que  dependiam  inteiramen- 
te dos  donativos  provenientes  dos  impostos. 

A  extincção  de  Carthago.  606  annos  depois  da  fundação 
de  Roma,  184  annos  depois  da  conquista  da  Pérsia  pelos  ma- 
cedonios,  e  perto  de  146  annos  antes  da  era  christã,  consti- 
tue  a  epoclia  memorável  de  que  data  o  poder  colossal  de  Ro- 
ma, e  a  origem  da  sua  immensa  opulência,  com  quanto  fosse 
verdadeiramente  a  conquista  da  Macedónia  e  da  Syria  que 
vasou  nos  seus  cofres  a  enorme  massa  de  riqueza  que  produ- 
zio  uma  mudança  completa  nos  costumes  de  seus  habitantes. 
Roma,  pela  destruição  de  Carthago,  sua  formidável  rival,  su- 
bira acima  de  seus  inimigos,  e  pouco  mais  tendo  a  fazer  que 
voar  de  conquista  em  conquista,  cedo  se  fez  rica  com  os  es- 
pólios das  nações  que  havia  subjugado. 

A  conquista  da  Macedónia  e  cios  domínios  gregos  da  Azia 
importou  o  luxo  da  Azia  juntamente  com  os  seus  thesouros, 
e  uma  predilecção  pelo  faucto  íornou-se  geral  em  Roma. 

Desde  o  tempo  do  primeiro  triunvirato  de  Júlio  Cezar, 
Pompeo,  e  Marco  Cresso,  ou  um  pouco  antes,  os  esplendidos 
e  dispendiosos  festejos  dos  romanos,  suas  equipagens  pompo- 
sas, seu3  séquitos  numerosos,  a  magnificência  dos  seus  espe- 
ctáculos públicos,  e  o  deslumbrante  esplendor  de  seus  tri- 
umphos  excederião  os  limites  da  credulidade,  se  não  fossem 
confirmados  por  historiadores  fidedignos,  cuja  authenticidade 
se  acha  sustentada  por  milhares  de  coincidências  corrobora- 
tivas,  que  lhes  imprime  um  cunho  de  verdade,  inquestioná- 
vel. Descripções  fieis  de  todas  estas  cousas  subsistem  ainda, 
feitas  por  authores  conhecedores  de  cada  uma  circuustancia. 
Os  factos  eram  mesmo  de  muita  publicidade  para  se  desfigu- 


104 

rarera  facilmente,  e  por  consequência  aquelles  que  os  descre- 
viam não  podiam  incorrer  em  erro;  nem  podiam  affoitamente 
apresentar  ao  mundo  uma  falsa  exposição  de  cousas  univer- 
salmente notórias.  Desde  o  primeiro  triunvirato  até  á  queda 
do  império,  a  historia  de  Roma  é  muito  mais  clara  que  a  de 
outra  nação  alguma  antiga,  em  rasão  do  estado  florescente 
do  paiz,  da  celebridade  dos  acontecimentos  corroborados  por 
diversas  circunstancias,  como  também  por  causa  de  seus  nu- 
merosos escriptores,  não  só  historiadores,  mas  também  poe- 
tas, oradores,  e  moralistas,  que  todos  alludiam  frequentemen- 
te ás  circunstancias  geraes,  politicas  e  moraes  do  povo  roma- 
no. Se  o  luxo,  qual  torrente,  invadio  Roma  logo  que  accumula- 
ra  em  si  a  riqueza  do  mundo  por  meio  da  conquista  e  da 
rapina,  devemos  ao  mesmo  tempo  admirar  o  progresso  das 
artes,  da  sciencia,  e  da  litteratura  entre  seus  cidadãos.  Se  nos 
é  forçoso  condemnar  a  corrupção  da  sua  moral,  não  podemos, 
ao  mesmo  tempo,  deixar  de  applaudir  seu  melhoramento  intel- 
lectual.  A  conquista  da  Grécia introduzio  entre  os  romanos  o 
gosto  pelas  artes  d'aquelle  paiz  e  a  sabedoria  e  a  elegância 
grega,  como  também  o  luxo  aziatico. 

Todos  os  cidadãos  de  Roma  que  punham  suas  esperanças 
na  vida  publica,  completavam  seus  estudos  nas  escholas 
de  philosophia  e  rhetorica  de  Athenas,  ou  de  outras  cidades 
da  Grécia.  Romano  algum,  de  posição  ou  meios  deixava  de 
ter  uma  educação  esmerada;  e  Roma  depressa  rivalizou  com 
Athenas  nos  differentes  ramos  de  litteratura.  Era  a  rhetori- 
ca o  estudo  predilecto  dos  romanos,  e  tinha  mesmo  sido,  des- 
de a  fundação  do  governo  republicano,  a  parte  mais  impor- 
tante da  educação.  Como  fossem  elegíveis  todos  os  cargos 
públicos,  e  como  cada  negocio  publico,  depois  de  discutido 
no  Senado,  era  apresentado  ao  povo,  cuja  decisão  não  tinha 
appello  nem  aggravo,  o  dom  da  palavra  era  essencialmente 
necessária  aquelles  que  aspiravam  ás  dignidades  ou  cargos 
do  estado.  Sobresair  no  Senado  pelo  brilho  d'uina  seductora 
eloquência,  e  acordar  as  paixões  e  dispor  do  suffragio  popular 
pela  persuasão  e  energia  do  discurso,  era    o  alvo   principal 


105 

de  seus  esforços  litterariose  a  máxima  perfeição  entre  os  roma- 
nos. Depois  que  as  flores  da  rhetorica  grega  se  enxertaram 
na  eloquência  enérgica  e  varonil  romana,  a  oratória  chegou 
ao  ne  pi  lis  ultra  da  perfeição.  Isto  passava-se  no  tempo  de 
Cicero  que,  com  Júlio  Cezar,  Marco  António  e  outros,  for- 
maram uma  tão  brilhante  eonstellação  cVoradores  eloquen- 
tes como  nunca  fora  vista  no  senado. 

Grécia  e  Roma  eram  o  solo  nativo  da  eloquência,  aonde  esta 
primeiro  se  cultivou,  e  aonde  se  aperfeiçoou.  A  forma  demo- 
crática de  seu  governo  assim  exigia.  Os  talentos  militares  e 
rhetoricos  eram  os  degraus  por  onde  se  subia  para  as  honras 
e  riquezas  tanto  entre  os  gregos  como  entre  os  romanos  ;  e  é 
de  notar,  que  com  quanto  a  experiência  e  recursos  dos  tem- 
pos modernos  tenham  feito  grandes  descobertas  naphysica,  na 
mathematica  e  na  mechamca,  ninguém  os  excedeu  ainda  na, 
elegância  de  seusescriptos,  e  mesmo  é  duvidoso  se  os  temos 
egualado  na  eloquência  verbal.  Nos  governos  modernos,  on- 
de tudo  é  regulado  por  princípios  fixos,  a  rhetorica  não  étão 
necessária  aos  individuos  que  seguem  a  vida  publica  como 
sob  os  systemas  populares  da  Grécia  e  Roma. 

Considerando  os  poderosos  effeitosda  oratória  antiga,  des- 
perta se  nos  naturalmente  a  curiosidade  a  examinar  de  que 
princípios  e  circunstancias  nasceu  tão  extraordinário  motor 
das  paixões,  das  resoluções  e  das  acções  dos  homens.  Deve- 
mos rasoavelmente  suppor  que  os  eífeitos  tanto  da  rethorica 
antiga  como  da  antiga  poesia  nos  são  apresentados  sob  cores 
muito  vivas  e  por  uma  forma  exagerada;  mas  dando-lhe  o  de- 
vido desconto,  é  forçoso  reconhecer  que  o  dom  da  eloquên- 
cia exercia  um  poder  sobre  os  antigos  que  não  poderia,  por 
muito  poderoso  que  fosse,  exercer  hoje. 

Quaesquer  idéas  que  tenhamos  doestado  das  sciencias  en- 
tre os  antigos,  devemos  entender  que  aquelles  conhecimentos 
limitavam-se  a  um  pequeno  numero  d'individuos  de  génio, 
posição  e  riqueza.  Os  philosophos,  os  poetas,  e  os  oradores 
da  Grécia  e  Roma  brilharam  nos  annaes  da  litteratura,  e  a 
celebridade  de  seus  nomes,  junto  á  elegância  das  suas  compo- 


106 

siçòes  Ktterarias,  dão-nos,  ê  verdade,  uma  idéa  elevada  maã 
ao  mesmo  tempo  muito  errónea  da  litteratura  grega  e  roma- 
na. Muitos  de  seus  homens  de  letras  mereciam  todo  o  applau-* 
so  que  os  tempos  vindouros  lhes  conferiram;  mas  é  fora  de 
toda  a  duvida  que  a  grande  massa   do  povo  era  analphabeta. 

Assim  succedia  forçosamente  em  todos  os  paizes  anterior  á 
arte  typographica.  Antes  d'aqnella  era  importante  que  figu- 
ra tão  conspicuamente  na  historia  do  progresso  intellectual, 
fora  impossível  estender  a  educação  ás  classes  indigentes.  As 
obras  em  manuscripto,  pelo  tempo  que  levavam  a  fazer,  sa- 
iriam caríssimas  e  fora  do  alcance  da  maior  parte,  fazendo 
com  que  ninguém  quizesse  escrever,  ou  ensinar  sem  uma  re- 
tribuição avultada. 

D'aqui  podemos  imaginar  o  estado  litterario  de  todas  as  na- 
ções civilisadas  da  antiguidade  e  concluir  que,  não  obstante 
a  tão  apregoada  sabedoria  dos  gregos  e  romanos,  aquelles 
afamados  mestres  da  humanidade,  as  massas  d'aquellas  na- 
ções era  incomparavelmente  mais  ignorantes  que  hoje  são  as 
classes  mais  abjectas  da  Europa  moderna,  porque  em  ge- 
ral sabem  ao  menos  ler;  e  aquelles  que  não  gosam  este  bem 
adquirem  conhecimentos  pela  conversação  diária  com  os  que 
tem  uma  pequena  idéa  de  litteratura  5  porque  ella,  como  o 
commercio,  uma  vez  desenvolvida,  espalha-se  por  mil  diver- 
sos modos  e  n'uma  infinidade  de  direcções. 

O  estado  intellectual  do  homem,  entre  as  nações  da  anti- 
guidade dava  aos  oradores  d'aquelles  tempos  uma  vantagem 
que  não  possuem  os  modernos,  e  contribuía,  talvez,  mais  que 
outra  circunstancia  qualquer  para  o  extraordinário  effeito  da 
sua  eloquência.  Os  oradores  da  Grécia  e  de  Roma  dirigiam  se 
nas  suas  assembléas  populares,  a  um  povo  curioso  e  ávido  de 
novidade,  mas  sem  illnstração  alguma,  dependentes  inteira- 
mente d'elles  para  informações  sobre  o  estado  das  cousas.  Hoje 
a  circulação  de  noticias  é  tão  activa  que  quasi  ninguém  igno- 
ra o  que  se  passa.  As  gasetas  correndo  as  povoações  levam 
os  acontecimentos  do  dia  a  toda  a  parte  e  quasi  todos  os  lêem, 
cu  ouvem  alguma  cousa  do  seu  contheudo,  quando   se  debate 


107 

alguma  medida  cTimportancia.  Deste  modo  preparam-se  aa 
opiniões;  os  nossos  estadistas  não  encontram  a  facilidade  que 
encontraram  os  oradores  gregos  e  romanos  em  accordar  as 
paixões  de  seus  auditórios,  por  isso  que  a  matéria  não  lhes  é 
nova,  sendo  por  tanto  necessário  fallar-lhes  á  rasão  e  ao  enten- 
dimento. O  povo  d'hoje  não  decidiria  tão  apressadamente  co- 
mo entre  os  gregos  e  romanos;  suspenderia  o  seu  juizo  até 
considerar  maduramente  o  negocio,  e  diversos  papeis  e  dis- 
cursos circularião  de  parte  a  parte,antes  que  a  opinião  publi- 
ca se  pronunciasse,  mas  os  cidadãos  da  Grécia  e  Roma  caren- 
tes destes  meios,  só  tinham  conhecimento  dos  negócios  poli- 
ticos,  quandoe  como  lhes  eram  apresentados  da  tribuna,  e  pe- 
lo prisma  da  deslumbradora  eloquência  dos  oradores.  O  dis- 
curso cahia  sobre  os  ouvintes  como  a  claridade  do  relâmpago, 
as  paixões  acendiam-se;  os  ouvidos  lisongeados,  e  a  razão 
vencida  com  as  pomposas  phrases  de,  magestade  do  povo, 
gloria  da  republica,  bem  publico,  e  outras  d'igual  jaez  de  que 
os  homeus  d'estado  tem  sempre  abundante  reserva,  e  de  que 
os  demagogos  não  deixam  nunca  d'empregar  como  meios  mais 
adequados  para  conseguir  os  fins. 

Depois  destas  observações  sobre  a  celebre  republica  de 
Roma,  desde  a  sua  fundação  até  que  tomou  a  forma  monar- 
chica;  depois  d'analysar  os  costumes,  pobreza  e  simplicidade 
d'habitos  nos  primeiros  tempos  da  republica,  e  o  luxo,  sum- 
ptuosidade e  opulência  em  tempos  posteriores;  não  podemos 
deixar  de  fallar  da  condição  duma  classe  numerosa  e  infeliz 
que  abundava  nos  dominios  de  Roma,  e  inquirir  a  causa  d'um 
viver  que  se  não  contempla  sem  horror. 

A  par  do  immenso  poder  e  deslumbradora  sumptuosidade 
dos  estados  romanos,  existia  no  seu  seio  uma  classe  desgra- 
çada d'iudividuos  romanos  que  era  excluída  de  todos  os  pri- 
vilégios da  sociedade,  e  de  todos  os  gozos  da  vida.  Mr.  Gib- 
bon  orça  em  uma  metade  dos  habitantes  d'aquelle  extenso 
império  os  escravos;  e  como  os  habitantes  de  todo  o  império 
romano  não  podiam  ser  em  numero  inferior  áquelle  da  Euro- 
pa dos  nossos  dias,   que    segundo  um    calculo  aproximado 

18 


108 

monta  a  120,000,000,  os  escravos  romanos  deveriao  andar 
por  sessenta  milhões,  facto  que  traduz  evidentemente  a  tyran- 
nia  do  homem  sobre  o  seu  semelhante.  Aquelles  desgraçados, 
á  mercê  do  capricho  de  senhores  absolutos,  desprotegidos  das 
leis,  eram  flagellados  pelas  mais  leves  transgressões.  O  go- 
verno, cônscio  do  seujestado  desesperado,  considerávamos  uma 
classe  perigosa  e  por  tanto  procurava  opprimil-os  o  mais  pos- 
sivel.  Estavam  por  tanto  completamente  á  mercê  de  seus  se- 
nhores, que  podiam  d'elles  dispor  a  seu  bello  prazer.  Cada 
proprietário  d'escravos  tinha  sobre  elles  illimitada  authori- 
dade.  Podia  tortural-os,  mutilal-os,  ou  fazei -os  matar  do  mo- 
do que  o  seu  capricho,  ou  crueldade  dictasse.  Não  era  res- 
ponsável perante  as  leis  pelo  tratamento  que  lhes  desse  ;  na- 
da podia  domar  a  sua  tyrannia  senão  os  seus  sentimentos  de 
humanidade,  ou  o  próprio  interesse  da  sua  conservação.  E' 
uma  consideração  melancholica  que  a  escravidão  existisse 
entre  todas  as  nações  da  antiguidade  de  que  temos  conheci- 
mento, originada  por  diversas  causas.  Umad'ellas  consistia  no 
poder  absoluto  que  em  algumas  nações  tinham  os  pães  sobre 
os  filhos,  que  os  authorisava  a  fazel-os  perecer,  vendei- os,  ou 
dispor  d'elles  á  vontade.  Esta  lei  detestável  foi  uma  das  pri- 
meiras instituições  romanas,  estabelecida  por  Rómulo,  logo 
depois  da  fundação  de  Roma.  Durou  considerável  tempo  en- 
tre os  romanos,  e  era  quasi  geral  nos  tempos  antigos,  á  ex- 
cepção dos  judeos,  que,  por  suas  leis  não  podiam  matar  os  fi- 
lhos sem  consentimento  dos  magistrados;  nem  era  permitti- 
do  vender  um  hebreu  a  qualquer  povo  estranho.  O  castigo 
de  crimes  era  outra  fonte  d'escravatura  como  eram  as  que- 
bras. Estas  penas  estavam  subordinadas  a  differentes  regula- 
mentos em  diversos  paizes  :  entre  os  judeos,  pelo  jubileo  da- 
va-se  perdão  geral;  em  muitas  outras  nações  a  escravidão 
proveniente  d'estas  duas  causas  era  perpetua  e  até  mesmo  as 
mulheres  e  filhos  do  criminoso,  ou  do  devedor,  eram  complica- 
dos n'esta  pena.  Eram  estas,  até  certo  ponto,  tantas  outras 
causas  de  que  nasceu  o  systema  nefando  de  tornar  um  homem 
propriedade  d'outro:  mas  a  captura  de  prisioneiros,  em  tem- 


109 

po  de  guerra,  era  a  fonte  mais  abundante  da  escravaturar 
principalmente  entre  os  romanos.  Em  todo  o  tempo  em  que 
existia  a  republica  romana,  o  estado,  sempre  desinquieto,  es- 
tava envolvido  em  perpetua  hostilidade  com  as  nações  visi- 
nhas:  cada  victoria  e  cada  conquista  augmentava  o  numero 
descravos;  e  como  a  escravidão  passava  de  geração  para  ge- 
ração, não  nos  devemos  admirar  do  extraordinário  numero 
d'escravos  em  Roma  e  outras  partes  dos  domínios  da  republi- 
ca. 

Nenhuns  documentos  existem  de  como  fossem  tratados  os 
escravos  entre  os  assirios  e  babylonios,  persas  e  outras  na- 
ções de  remota  antiguidade.  Entre  os  judeos  não  estavam  in- 
teiramente á  mercê  de  senhores  cruéis  e  arbitrários;  como 
seres  humanos,  com  quanto  escravos,  estavam  sob  a  protec- 
ção das  leis,  que  recommendava  benevolência  e  misericórdia 
para  o  escravo  e  para  o  estrangeiro. 

Estas  recommendações  da  lei  mosaica  faz  sobresair  a  ex- 
cellencia  das  suas  doutrinas  moraes  comparadas  com  as  ins- 
tituições dos  mais  celebres  legisladores  pagãos,  eofferece  uma 
prova  evidente  da  sua  origem  divina. 

Comtudo,  se  ignoramos  como  eram  tratados  os  escravos 
nas  já  mencionadas  nações,  são  indisputáveis  e  melancholicas 
as  provas  do  extremo  rigor  havido  com  esta  desgraçada  clas- 
se entre  os  gregosje  romanos,  mormente  entre  estes  últimos.  E' 
uma  horrível  mas,  talvez,  justa  observação,  corroborada  por 
eminentes  escriptores  que  as  nações,  que  gosavam  geralmente, 
a  máxima  liberdade,  eram  justamente  aquellas  que  mais  mal 
tratavam  os  seus  escravos.  A  ser  isto  assim, o  que  é  difficil  de- 
terminar, custa  attribuir  a  causa  a  um  regimem  constitucio- 
nal, devendo  antes  suppor  que  tivessem  origem  em  outros 
motivos. 

As  mudanças  que  tiveram  logar  nos  negócios  politicos  e 
moraes  de  Roma  produziram,  comtudo,  uma  mudança  ma- 
terial nas  condições  da  escravidão;  e  em  quanto  não  podemos 
deixar  de  lamentar  que  o  engrandecimento  progressivo  de 
Roma,  pelas  victorias  das  suas  armas,  augmentassem  constau- 


110 

temente  o  numero  de  seus  escravos,  ternos  ao  mesmo  tempo 
o  prazer  de  notar,  que  o  luxo  e  opulência  que  as  suas  conquis- 
tas introduziram,  melhoraram  muito  a  sua  sorte. 

Nos  primeiros  tempos  da  republica  em  quanto  os  romanos 
eram  pobres  mas  guerreiros,  alheios  ás  grandezas,  tendo  mais 
em  mira  a  acquisição  que  o  goso,  os  escravos  eram  tratados 
com  excessivo  rigor,  e  empregados  nos  serviços  mais  traba- 
lhosos, a  que  acrescia  a  maior  dureza  que  pode  envenenar  a 
vida.  No  estado  mais  adiantado  da  civilisação,  quando  as  vi- 
ctorias  de  Roma,  e  a  sua  conquista  dos  reinos  Áziaticos  até  o 
Euphrates,  tinha  introduzido  entre  os  cidadãos  o  gosto  pelo 
luxo,  á  proporção  que  augmentavam  em  riqueza  e  que  a  plii- 
losophia  e  a  litteratura  tinham  modificado  a  indole,  começou 
o  corpo  d'escravos  a  sentir  os  benéficos  efíeitos  d'essa  opu- 
lência de  seus  senhores.  Em  logar  de  trabalho  vi-dento  e  mau 
passadio,  uma  grande  parte  empregava-se  como  cosinheíros, 
confeiteiros,  creados  graves  e  outros  misteres  nas  cazas  das 
principaes  familias  e,  como  os  domésticos  da  actuaudade,  pas- 
savam também  como  os  amos.  Havia  exemplos  de  serem  300 
e  400  os  escravos  sustentados  em  casas  particulares  de  cidadãos 
opulentos. 

A  distribuição  dos  fundos  públicos  pelas  classes  desfavo- 
recidas nos  tempos  florescentes  da  republica  era  de  grande 
beneficio  para  a  escravatura  porque,  sendo  degradante  a  um 
cidadão  romano  servir  seu  concidadão,  os  grandes  serviam-se 
com  escravos,  e  a  maior  parte  d'estes  constituía  a  massa  de 
seus  familiares. 

Outra  causa  não  menos  contribuía  para  modificar  a  sorte 
dos  escravos. 

A  propagação  d'esta  classe  devia  necessariamente  augmen- 
tar  e  tornar-se  excessivamente  numerosa  com  o  andar  do 
tempo. 

Na  idade  primitiva  de  Roma  os  escravos  aprisionados  em 
batalha  eram  cVuma  indole  feroz  e  intractavel.  Aquelles  bár- 
baros de  caracter  guerreiro,  inferiores  em  disciplina  militar, 
não  o  eram  em  coragem  e  atrevimento  aos  próprios  romanos 


{li 

e  acostumados  a  um  viver  que  todo  elle  eram  emprezas  milita- 
res e  rapina,  não  era  d'esperar  d'elles  uma  sujeição  passiva  a 
uma  vida  laboriosa  debaixo  da  oppressão  de  senhores  tyran- 
nicos;  e  por  isso  conservavam-se  estes  na  maior  sujeição  e  ex- 
postos a  trabalhos  duros.  Mais  tarde,  a  grande  massa  de  es- 
cravos não  consistia  tanto  em  prisioneiros  de  guerra  cemo 
nos  filhos  d'aquel!es  infelizes  que  tinham  sido  victimas  d'a- 
quella  sorte;  e  os  seus  descendentes,  estando  de  ha  muito  ha- 
bituados aos  romanos,  familiarisando-se  com  os  seus  costu- 
mes, não  tinham  herdado  o  resentimento  e  disposição  indomá- 
vel de  seus  antepassados,iuas  faziam- se,  quando  bem  tratados, 
bons  e  fieis  creados;  circunstancia  esta  que  não  podia  deixar 
de  dispor  os  amos  em  seu  favor;  e  ha  muitos  exemplos|da  de- 
dicação de  escravos  por  seus  senhores  e  da  benevolência  e 
amisade  d'estes  para  com  elles.  Nos  últimos  tempos  dava-se- 
Ihes  carta  d/alforria  em  recompensa  de  bons  serviços,  mas  es- 
te costume  ia-se  tornando  tão  geral  que  o  Senado  julgou  ne- 
cessário difficultar  esta  liberdade.  Como  o  escravo  não  tinha 
pátria  sua,  era  tido  como  cidadão/  depois  de  forro,  do  paiz  a 
que  pertencia  seu  senhor,  e  esta  circunstancia  podia  provavel- 
mente influir  para  que  muitos  libertassem  seus  escravos,  a 
íim  de  terão  seu  dispor  um  numero  de  homens  livres,  que, 
por  motivos  de  gratidão  ou  de  interesse,  geralmente  se  liga- 
vam ao  partido  de  seu  antigo  amo.  Comtudo,  como  a  alfor- 
ria dava  os  íóros  de  cidadão,  a  republica  promulgou  leis  que 
excluía  aquelles  escravos  libertos  e  seus  descendentes,  até  cer- 
ta geração,  dos  cargos  públicos   do  estado. 

O  melhoramento  cia  condição  dos  escravos  é  uma  das  con- 
sequências do  augmento  de  riqueza  em  Roma,  o  que  conside- 
ramos com  praser,  emais  ainda  quando  vemos  que  cidadãos 
illustres  como  Pomponeo  Attico,  Marco  Crasso,  e  outros,  fa- 
ziam educar  aquelles  de  seus  escravos  em  quem  percebiam  ta- 
lento e  génio,  e  parece  que  Crasso  deveu  uma  grande  parte 
da  sua  fortuna  em  mandar  dar  uma  boa  educação  a  seus  es- 
cravos, dispondo  cVelles  depois  com  grande  vantagem;  porque 
ura  escravo  com  habilidade  era  tido  em  grande  conta.    Em- 


112 

pregavam  se  como  mordomos  e  agentes  de  negocio,  e  a  mui- 
tos se  mandava  ensinar  grammatica  e  outros  rudimentos  das 
sciencias  e  litteratura.  Mesmo  muitos  médicos  e  pharmaceu- 
ticos  de  Roma  eram  escravos;  e  a  maior  prova  que  pode  apre- 
sentar-se  do  valor  em  que  tinha  os  escravos,  é  que  em  ca- 
sos de  doença  desesperada,  os  grandes  de  Roma,  se  entrega- 
vam frequentemente  nas  suas  mãos.  Não  obstante  o  fausto  e 
opulência,  o  delicado  gosto  e  aperfeiçoamento  litterario  dos 
romanos,  encontramos  certos  traços,  até  mesmo  nas  mais  cul- 
tas epochas,  que  não  comportam  a  fama  d'um  povo  civilisa- 
do.  O  prazer  que  elles  tomavam  nos  combates  dos  gladiadores 
e  escravos  é  repugnante  á  humanidade.  Tal  era,  comtudo,  o 
gosto  geral  do  povo;  e  os  mais  esclarecidos  e  humanos  entre- 
gavam-se,  em  preferencia  a  tudo,  a  estes  divertimentos  insti- 
tuídos sem  duvida  com  o  intuito  de  preparar  e  incitar  os  âni- 
mos para  a  guerra  e  mortandade;  e  o  habito  tornara  lhes  estas 
scenas  agradáveis,  constituindo  parte  essencial  no  seu  syste- 
ma  politico.  O  cruel  tratamento  aos  prisioneiros  de  guerra  é 
uma  nódoa  nos  annaes  de  Roma;  mas  esta  barbaridade  era 
commum  a  todas  as  nações  da  antiguidade  com  raras  exepções, 
uma  das  quaes  é  a  maneira  honrosa  porque  Alexandre  tratou 
os  captivos  persas.  De  todas  as  nações  da  antiguidade  os  ci- 
vilisados  e  altamente  polidos  romanos  eram  talvez,  n'este  par- 
ticular os  mais  bárbaros.  Poucos  são  os  factos  recordados  pe- 
la historia  d'um  tratamento  generoso  aos  prisioneiros,  mor- 
mente nos  tempos  da  republica.  Os  príncipes  soberanos,  os 
principaes  chefes  inimigos,  que  tinham  a  infelicidade  de  cair 
nas  suas  mãos,  depois  d'expostos  publicamente,  carregados  de 
ferros, para  abrilhantar  os  triumphos  de  seus  vencedores,  eram 
condemnados  a  uma  morte  cruel  ;  em  quanto  que  aqu elles 
d'inferíor  posição  eram  compellidos  a  se  destruírem  mutua- 
mente em  duelio,  ou  a  luctar  com  animaes  ferozes  para  re- 
crear os  bárbaros  espectadores,  que  se  vangloriavam  do  no- 
me de  cidadãos  romanos,  ou  então  eram  sentenciados  a  per- 
petua escravidão.  Se  um  Europeo  moderno  tivesse  presencia- 
do a  sumptuosidade  d'um  triumpho  romano,  por  mais  lison- 


113 

geira  que  fosse  a  idé*a  concebida  do  poder  e  grandeza  da  re- 
publica á  vista  da  pompa  militar  de  semelhante  espectáculo, 
qual  não  seria  o  seu  sentimento  contemplando  a  desgraçada 
sorte  de  tantos  guerreiros,  não  menos  valerosos,  com  quanto 
menos  infelizes,  que  os  seus  vencedores  insultuosos  ?  Quanto 
á  barbaridade  dos  romanas  para  com  a  humanidade  das  na- 
ções civilisadas  da  Europa  n'este  particular,  o  contraste  é  cla- 
ramente em  favor  d'estes,  e  apresenta-nos  um  quadro  hedion- 
do da  inhumanidade  dos  antigos,  especialmente  dos  romanos, 
esses  cultos  senhores  do  mundo  antigo. 

O  esboço  que  damos  do  estado  social  e  politico  de  Roma 
d'aquelles  dias,  é  tão  verdadeiro  quanto  os  documentos  histó- 
ricos, ainda  existentes,  nos  fornecem.  Roma  estava  então  no 
auge  do  seu  poder  e  o  mundo  civilisado,  apoz  annos  de  guer- 
ra e  sangue,  revoluções  e  commoções  politicas  ,  gosava  de 
paz  profunda  á  sombra  de  seus  victoriosos  estandartes  ;  tal 
era  o  estado  das  cousas  quando  o  mundo  estava  nas  vésperas 
d'uma  revolução,  de  natureza  muito  diversa,  e  pela  qual  ainda 
não  passara.  Ia  ter  logar  um  acontecimento  que  deveria  in- 
fluir sobre  a  condição  da  humanidade,  até    á  ultima  geração. 

Annunciava-se  a  era  christã.  Os  erros  mais  crassos  da  reli- 
gião envolviam  então  o  mundo;  e  á  excepção  dos  judeos,  e, 
talvez  os  persaa,  as  massas  da  humanidade  perdia- se  no  cam- 
po inintelligivel  da  mythologia  e  idolatria.  Os  persas,  tanto 
quanto  nos  elucida  a  historia,  nunca  tinham  adoptado  outra 
forma  d'adoração,  nem  admittido  outra  imagem  do  Ente  Su- 
premo, senão  o  sol,  e  o  seu  symbolo,  o  fogo;  pelos  quaes  pro- 
fessavam o  maior  respeito,  como  emblema  vivo  d'aquelle  que 
é  o  creador  e  fonte  da  luz.  E,  com  quanto  esta  religião  se  te- 
nha como  idolatria,  os  persas  não  se  podem  reputar  idolatras. 

Seja  qual  for  a  interpretação  que  se  dê  a  esta  forma  de  ve- 
neração é  um  facto  inquestionável  que  os  persas,  á  semelhan- 
ça dos  judeos,  aonde  quer  que  as  suas  armas  triumphavam, 
aboliam  a  adoração  de  tudo  quanto  representava  entes  supre- 
mos feito  pela  mão  do  homem.  Xerxes  demolio  os  templos  da 
Grécia,  e  destruio  as  imagens  de  seus  deuses ;   nem  foi  mais 


114 

indulgente  com  os  babyíonios,  pois  roubou  e  arrasou  o  tem* 
pio  de  Belo,  que  Cyro,  Cambyses  e  Dário  Hytaspe,  sem  du- 
vida por  motivos  politicos,  pouparam.  A  religião  dos  persas 
inclinava-se  mais  para  o  deísmo  que  para  a  idolatria;  ou,  se- 
ria talvez  um  mixto  dos  dois  systemas.  Os  pliilosophos  d'ou- 
tras  nações,  especialmente  os  egypcios,  gregos,  e  romanos, 
tinham  estabelecido  differentes  formas  e  adoptado  outras  opi- 
niões. Muitos  haviam  concebido  as  mais  elevadas  idé.as  da  es* 
sencia  e  attributos  do  Ente  Supremo  e  universal, mas  as  mas- 
sas de  todas  as  nações,  as  massas  da  humanidade  em  summa, 
ignoravam  completamente  aquellas  concepções  e  entretinham 
as  idéas  mais  absurdas  das  cousas  divinas.  Desde  que  o  ho- 
mem começou  a  raciocinar,  não  obstante  a  debilidade  d'uma 
rasão  inexperiente,  o  mysterio  da  sua  existência  não  podia 
deixar  de  o  surprehender.  Deveria  naturalmente  reflectir  so- 
bre a  sua  situação,  e  diligenciar  descobrir  a  origem  da  sua 
existência,  e  a  do  mundo  em  que  se  achava,  e  não  lhe  deveria 
escapar  a  curta  duração  da  vida.  Depois  que  poderosas  mo* 
narchias  se  estabeleceram,  engrandecendo  se  por  meio  de  con- 
quista, vindo  mais  tarde  a  ser  victimas  d'outros  vencedores; 
depois  que  uma  variedade  de  revoluções  assombrara  aquelles 
que  observavam  attentamente  a  mobilidade  das  causas  huma- 
nas, e  as  numerosas  e  incessantes  vicissitudes  do  mundo  ;  de- 
pois que  a  experiência  trouxera  a  convicção  da  instabilidade 
do  poder  e  grandeza  dos  homens,  é  de  suppôr  que  devia  cres- 
cer o  desejo  de  descortinar  o  author  da  creaçào. 

A  inalterável  lei  do  destino  lhe  teria  necessariamente  tra- 
sido  a  convicção  que  a  vida  tem  um  prazo  fixo,  estabelecido 
por  um  poder  irresistível  que  não  respeitava  testas  coroadas 
nem  as  posições  mais  elevadas  da  humanidade,  e  estas  consi- 
derações o  levarião  naturalmente  a  meditar  se  a  morte  era  o 
anniquilamento  total  do  homem,  ou  se  era  simplesmente  uma 
mutação,  depois  da  qual  elle  tinha  d'existir  com  uma  renova- 
ção de  forças  n'um  estado  qualquer  futuro. 

Em  quanto  a  parte  philosophica  da  humanidade  forcejava 
descortinar  aquelle  mysterio,  as  capacidades  mais  apoucadas 


ilÕ 

nao  podiâo  deixar  de  presentií  a  existência  d'um  ente  supe- 
rior, origem  de  todas  as  cousas  e  que, com  poder  absoluto,  re- 
ge e  dispõe  de  tudo  a  seu  bello  prazer,  e  que  por  consequên- 
cia era  interesse  e  dever  seu  prestar-lhe  homenagem  e  culto 
qualquer. 

A  pliilosophia  então  em  voga  demonstra  como  a  rasão  de- 
sajudada pode  progredir  na  sciencia  divina,  não  obstante  di- 
vergir em  princípios  e  forma  de  culto. 

Temos  já  dito  que  o  Zabaismo  dos  Clialdeus  consistia  em 
adorar  os  corpos  celestes,  systema  este  que  se  generalisára  e  foi 
recebido  no  Egypto  e  na  maior  parte  da  Ásia.  O  homem  em 
todas  as  idades,  cônscio  de  quam  pouco  valia  para  se  aproxi- 
mar do  throno  do  ente  supremo,  sentio  a  necessidade  dum 
mediador;  e  os  babylonios,  cujo  principal  estudo  era  a  astro- 
nomia, imaginaram  que  os  astros  serião  divindades  subalter- 
nas, funccionando  como  mediadores  entre  um  ente  perfeito  e  o 
homem,  creatura  sua;  e  consequentemente  veio  a  ser  parte  essen- 
cial da  sua  religião,  a  invocação  d'aquellas  entidades  por  meio 
dos  sacrifícios  e  celebração  de  certos  ritos.  A  religião  dos  egyp- 
cios  era  um  tecido  de  representações  allegoricas.  Apresenta- 
vam os  attributòs  divinos,  como  também  os  phenomenos  da 
natureza,  sob  o  véo  daallegoria,e  isto  deu  origem  ao  culto  de 
differentes  animaes,  com  especialidade  o  boi,  o  mais  útil  da 
creação  irracional.  Hermes,  o  Egypcio,  que  se  julga  quasi 
contemporâneo  de  Moisés,  como  também  do  persa,  Zoroastro, 
e  entre  os  gregos,  Orpheo,  Anaximenes,  Anaxágoras,  Empé- 
docles, Melisso,  Pherecydes,  Thales,  Pythagoras,  Platão,  Aris- 
tóteles, e  muitos  outros, acharam  invenciveis  rasões  para  provar 
a  existência  dum  ente  eterno  e  infinito,  author  do  universo.  As 
opiniões  de  todos  estes  homens,  diz  Lactancio,  cifram- se  em 
existir  uma  Providencia,  quer  seja  a  luz,  ou  a  razão,  ou  o  en- 
tendimento ou  o  acaso;  é  tudo  aquillo  a  que  nós  chamamos 
Deos. 

Em  quanto  á  origem  do  Universo,  alguns  suppõe  que  fo- 
ra uma  emanação  eterna  da  Divindade;  desta  opinião  foi  Aris- 
tóteles,  senão  o  fundador,    ao  menos  um  dos  principaes  sus- 

16 


116 

íentaculos;  mas  Platão,  e  a  seita  Platónica  toda,  suppunha  qtte 
fora  creado  em  um  determinado  tempo  conforme  um  archity- 
po  ou  modelo  d'eterna  existência  na  mente  divina. 

Anaxágoras  o  philosoplio  de  Clazomena  e  preceptor  de  Péri- 
cles, o  lieroe  Atheniense,  sustentou  a  unidade  do  Ente  Supre- 
mo, e  era  tido  na  Grécia  na  conta  de  atheu,  porque  negava 
aos  astros  attributos  divinos.  (Vide  Platão,  de  leg.  pag.  886) 
Anaxágoras  insistia  que  as  estrellas  eram  soes  e  que  os  pla- 
netas eram  mundos  habitados.  Tão  longe  está  o  systema  da 
pluralidade  de  mundos  de  ser  d'origem  moderna  como  mui- 
tos imaginam. 

Por  outro  lado,  Anaximandro,  contemporâneo  de  Phytha- 
goras  e  que  viveu  cerca  de  600  annos  antes  de  Christo,  pelo 
tempo  do  captiveiro  babylonico,  foi  o  primeiro  que,  segundo 
consta,  negasse  a  existência  d'um  Ente  Supremo,  e  perten- 
deu  attribuir  tudo  á  acção  d'uma  massa  immensa  tomando 
necessariamente  toda  a  qualidade  de  formas.  A  sua  doutrina 
foi  abraçada  por  Leucippo,  Demócrito,  Epicuro, Lucrécio  etc. 
e  combatida  por  Pytliagoras,  Anaxágoras,  Platão,  Sócrates 
Aristóteles  e  muitos  outros  homens  eminentes.  Estas  duas  sei- 
tas, theistas  e  atheistas,  por  muito  tempo  dividiram  a  Gré- 
cia. Pyrrho  formou  então  outra  seita,  cujo  grande  principio 
era  duvidar  de  tudo.  Levou-se  esta  doutrina  ao  maior  auge  de 
loucura,  a  ponto  de  sustentarem  que  tudo  quanto  vemos  não 
passa  d'uma  illusão,  â  semelhança  d'um  sonho  perpetuo.  Ze- 
no  fundou  depois  a  seita  dos  estóicos.  Este  dizia  que  o  Ente 
Supremo  era  omnisciente  e  todo  perfeito  mas  que  a  sua  es- 
sência era  um  puro  ether,  ou  por  outra  que  Deos  não  é*  um 
espirito. 

Quanto  a  um  estado  futuro,  a  maior  parte  dos  philosophos 
da  antiguidade  acreditavam  na  preexistência  da  alma,  ena  sua 
perda,  e  ensinavam  que  as  almas  voltavão  ao  seu  estado  pri- 
mitivo. Esta  doutrina  da  preexistência  da  alma  foi  sustenta- 
da por  muitos  dos  antigos  patriarchas  e  d'aqui  provavelmen- 
te originou  a  idéa  da  transmigração  das  almas,  generalizada 
entre  os  asiáticos,  antiga  e  mesmo  modernamente,  em  toda  a 


117 

parte  da  Ásia    aonde  a  religião  de  Maliomed   se  não   exer- 
ce. 

Com  quanto  muitos  pbilosopbos  d'entre  os  idolatras  entre- 
tivessem  idéas  tanto  ou  quanto  boas  sobre  a  essência  e  attribu- 
tos  do  Ente  Supremo,  tinham  geralmente  formado  uma  opi- 
nião errónea  no  que  respeita  o  modo  porque  elle  dirigia  as 
cousas  do  mundo,  e,  quasi  sem  exepção,  admittiam  um  nume- 
ro de  divindades  subordinadas  aos  quaes  elle  commettêra  o 
governo  das  differentes  parcellas  do  universo.  Esta  doutrina 
é  ensinada  por  Aristóteles,  que  diz:  «Devemos  obediência  a 
um  Ser  primitivo  e  superior,  e  a  diversos  outros,  governan- 
do sob  a  sua  direcção;  e  esta  (diz  elle)  é  a  doutrina  genuina 
dos  antigos.  Plutarcho  um  dos  mais  illustrados  escriptores 
da  antiguidade  diz-nos  :  a  Assim  como  o  sol  ê  um  só  para  o 
mundo  inteiro,  apezar  de  ser  conhecido  por  differentes  nomes, 
nas  diversas  localidades,  assim  existe  apenas  um  Ente  Su* 
premo,  uma  e  a  mesma  Providencia  que  governa  o  mundo, 
com  quanto  o  adorem  sob  differentes  denominações ,  e 
que  tinha  nomeado  diversos  poderes  inferiores  como  minis- 
tros. 

Suppõe  alguns  que  esta  doutrina  da  existência  de  divinda- 
des subalternas  proveio  da  má  interpretação  que  davam  ao 
modo  allegorico  porque  os  Egypcios  fapresentavarn  os  diffe- 
rentes attributos  da  Deidade;  suppõe  outros  que  originara 
da  consequência  que  tinham  os  homens  da  sua  pequenez  e 
necessidade  d'advogado,  ante  o  throno  do  grande  Regulador 
de  tudo,  eque  primeiro  prevalescera  em  Babylonia  aonde  os 
sacerdotes  pela  continua  contemplação  dos  astros,  os  conside- 
raram mediadores  entre  Deos  e  a  creatura.  Entre  outros  o  dr. 
Russell  parece  ser  d'esta  opinião,  e  diz,  que  a  substancia  d'es- 
"ta  doutrina,  diversamente  modelada,  pode  descobrir-se  na 
maior  parte  dos  systemas  religiosos  dos  pagãos,  e  que  os  doze 
principaes  deuzes  dos  gregos  e  romanos  representam  os  sete 
planetas  e  os  quatro  elementos  que  regulavam  tudo  secun- 
dariamente conforme  as  crenças  dos  Chaldeos. 

Em  quanto  a  philosophia  se  perdia  em  conjecturas,  as  mas- 


118 

sas  nem  tinham  vagar,  nem  tendência,  nem  habilitações  para 
aquellas  cogitações.  0  polytheisino  comtudo,  adequava-se 
perfeitamente  ao  gosto  depravado  e  entendimento  do  povo,  in- 
capaz de  comprehender  o  poder  e  energia  d'um  Ente  Supre- 
mo superintendendo  tudo  na  creação,  e  talvez,  apresentan- 
do-se  a  mesma  difiiculdade  aos  philosoplios,  podia,  em  não 
pequeno  grau,  influir  para  admittir  a  hypothese  estabelecida, 
com  a  differença  que  para  os  homens  instruídos  o  polytheismo 
era  subordinado  ao  theismo. 

Os  poetas  aproveitaram  o  systema  como  campo  fértil  para 
espraiar  a  imaginação  eembellcsar  os  seus  poemas.  Os  deuses 
celestiaes,  terrestres  e  os  do  inferno  foram  creados  na  imagi- 
nação ardente  dos  gregos;  os  penates,  os  deuses  dos  rios,  das 
fontes,  dos  bosques  e  dos  campos,  eram  admittidos  n'este  nu- 
mero; e  satyras  e  nymphas,  em  que  habitavam  as  almas  de 
hcroes  fallecidos,  augmentavam  esta  monstruosa  assemblda. 
D'este  modo  a  mythologia  pagã,  mormente  a  dos  gregos  e 
romanos,  tornou-se  um  complicado  e  ininteligível  systema  de 
absurdos  mysteriosos, compondo  uma  phantasmagoria  celestial 
de  entes  ideaes. 

Até  que  ponto  e  com  que  modificação  as  especulações  dos 
philosoplios  e  este  variegado  matiz  de  poesia  estavam  entre- 
laçados  na  religião  popular  de  differentes  povos  pagãos,  é 
impossível  determinar  com  exactidão,  os  estadistas  divergem 
segundo  as  differentes  circunstancias  moraes  e  pliysicas  das 
gentes  que  elles  tinham  a  governar:  e  consequentemente  os 
seus  systemas  eram  tão  variados,  e  tão  desfiguradas  as  idéas, 
que,  determinar-lhes  a  origem,  seria  tão  impossível  como 
inútil.  Mas,  como  as  opiniões  dos  philosoplios  actuavam  pou- 
co sobre  as  massas,  que  as  não  podiam  comprehender,  e  as 
ficções  dos  poetas  não  passavam  d'uma  exposição  ideal,  os 
legisladores  e  os  inventores  de  systemas  religiosos,  entre  os 
antigos,  inventaram  o  meio  d 'instruir  o  povo  fallando-lhe  aos 
sentidos,  e  esta  foi  a  origem  da  idolatria.  Suppõe-se  que  as 
explicações  emblemáticas  dos  attributos  do  Ente  Supremo,  fo- 
ram primeiramente  adoptadas  pelo  clero  egypcio,  que  masca- 


119 

rafa  toda  a  sua  sabedoria  sob  o  véo  da  allegoria  e  expri- 
mia as  suas  idéas  philosdphicas  e  theologicas  por  meio  de 
hyToglificQS,  mas  outros  inclinam-se  a  que  tiveram  origem  em 
Babylonia,  e  que  a  idolatria  teve  eomeço  n'esta  eidade  Quer 
tivesse  origem  entro  os  egypcios,  quer  entre  os  babylonios,  o 
eerto  é,  que  os  estadistas  da  antiguidade,  considerando 
que  a  humanidade  se  impressiona  mais  facilmente  poro  que  lhe 
fere  os  sentidos,  fizeram  erigir  estatuas  áquellas  divindades 
subalternaste  a  instituição  de  festividades  soleinnes  com  sacri- 
fícios e  ceremonias  pomposas  em  honra  sua,  inspirou  no  po- 
vo veneração  pelas  deidades  ideaes  e  por  seus  symbolos  ma- 
teriaes,  o  d'este  modo  enraizou  a  idolatria  e  o  polytheismo  nos 
ânimos  dos  homens. 

E  no  entanto  a  philosophia  não  eserupulisava  cingir-se  á 
religião  das  massas  que  ella  considerava  necessária  como 
instituição  politica  tendente  a  refrear  as  paixões.  Os  testemu- 
nhos de  Eusébio,  Lactaneio,  Santo  Agostinho,  e  outros  pa- 
triarchas  da  egreja  primitiva  o  provam  unanimemente. 

Na  epocha  immediatamente  anterior  á  vinda  de  Ohristo,  a 
philosophia  d'Epicuro  ganhara  preponderância  em  Roma. 
Accommodava-se  á  libertinagem  d'um  tempo  culto,  mas  im- 
moral.  A  corrupção  dos  hábitos,  e  o  seepticismo  religioso, 
estavam  então  no  seu  auge;  e  muitos  dos  homens  mais  illus- 
trados  vacillavam  entre  o  deismo  e  o  atheismo;  entre  os 
quaes  conta-se  o  illustre  Cicero,  posto  que  se  inclinasse  mais 
para  o  primeiro  systema. 

Entregue  a í=i,  o  homem  perdeu-se  no  labyrintho  de  conjectu- 
ras, e  a  imaginação  entre^ou-se  ás  maiores  estravag-ancias  de 
que  ê  susceptível  a  razão  humana,  quando  não  á  convenien- 
temente dirigida. 

Um  estado  moral  e  espiritual  do  mundo  como  fica  des- 
cripto,  e  que  ninguém  averberá  de  desfigurado, claramente  in- 
dica a  necessidade  da  Kevelação  Divina,  que,  apoiando  os  es- 
forços da  razão  humana,  subordinasse  os  voos  da  imaginação, 
e  nos  orientasse  acerca  da  eternidade. 

Este  grande  propósito  tinha   de  ser    cumprido  pela  Revê- 


120 

lação  Christã,  que  tinlia  de  instruir  o  homem  e  dirigir  o  seu 
juizo  sobre  os  attributos  e  acção  do  Ente  Supremo,  dos  meios 
d'obter  perdão,  e  do  modo  mais  aceitável  de  lhe  prestar  culto. 
De  todas  as  revoluções,  esta  era  a  mais  importante  e  os  seus 
effeitos,  extraordinários,  illimitados  e  eternos.  O  engrandeci- 
mento e  queda  dos  impérios  assyrio,  persa,  e  grego,  e  o  seu 
immenso  augmento  em  Roma,  eram  acontecimentos  mesqui- 
nhos e  não  soffriam  o  termo  de  comparação  contrabalança- 
dos pelo  christianismo,  destinado  a  fundamentar  uma  revolu- 
ção d'idéas,  e  a  produzir  uma  mudança  completa  no  estado 
moral  do  mundo. 

Todos  conhecem  sufficiente mente  o  evangelho,  e  portanto  a 
sua  citação  seria  aqui  deslocada,  e  todos  sabem  que  os  seus  pri- 
meiros propagadores, revestidos  de  coragem  e  perseverança, que 
nas  suas  circunstancias,  nada  d'este  mundo  podia  inspirar,  se 
dispersaram  em  direcções  oppostus, para  annunciar  em  diversos 
paizes  a  bem  vinda  nova  da  salvação.  N'este  accommettirnen- 
to,  grande  em  demazia  para  as  forças  humanas,  encontraram 
todas  as  difficuldacles  e  opposição  que  semelhante  empreza 
poderia  offerecer,  nem  menos  era  d'esperar.  Pobres,  despre- 
sados  e  incultos,  destituídos  de  todas  as  vantagens,  encarre- 
garam-se  de  propagar  e  estabelecer  uma  doutrina  diametral- 
mente opposta  a  toda  e  qualquer  religião  até  ahi  seguida, 
uma  doutrina  que  combatia  altamente  as  paixões  e  os  pre- 
juízos da  humanidade;  uma  doutrina  em  summa  subversiva 
de  tudo  quanto  de  tempos  immemoriaes  se  havia  respeitado. 
A  religião  christã  prégou-se  primeiro  em  Jeruzalern,  theatro 
da  paixão  de  Chrísto,  como  também  dos  principaes  actos  da 
sua  vida. 

Algumas  conversões  se  fizeram,  e  uma  joven  egreja  se  es- 
tabelleceu  na  metrópoli  da  Judéa;  mas  o  novo  systema  fora 
regeitado  pela  grande  maioria  da  nação  judaica,  como  se  de- 
veria esperar.  Em  vista  cio  tratamento  cruel  de  seu  Fundador, 
durante  a  sua  vida,  pouca  probabilidade  podia  haver  que, 
depois  de  morto,  elles  o  reconhecessem  por  seu  Rei  e  Salvador; 
especialmente,   considerando    quanto   estavam  possuídos  da 


i2i 

idéa  d'um  Messias  guerreiro  e  conquistador,  sob  cujos  nctorio* 
sos  estandartes,  elles  sacudirião  o  jugo  romano,  estabelecen- 
do um  império  poderoso  como  o  dos  babylonios,  persas,  e 
mesmo  de  Roma  n'aquelles  dias;  ou  ao  menos  restituir-lhes  o 
antigo  esplendor  e  poderio  dos  tempos  de  David  e  Salomão. 
Era  isto  que  esperavam  os  sacerdotes,  os  chefes  e  quasi  toda 
a  nação  judaica,  e  por  tanto  era  muito  improvável  que  elles 
quizessem  reconhecer  por  Messias  um  individuo  que  elles 
tinham  visto  viver  na  mais  humilde  condição,  e  expirar  no 
meio  de  tormentos  como  morriam  os  malfeitores,  em  virtude 
d'uma  sentença  por  elles  mesmo  proferida,  ou  que  tinham 
feito  preparar  contra  elle. 

Portanto,  o  evangelho,  sendo  regeitado  pelos  judeus,  foi 
levado  para  entre  os  gentios.  Fizeram-se  conversões,  edifica- 
ram-se  egrejas,  em  quasi  todas  as  cidades  do  império  romano; 
na  Antiochia,  em  Damasco,  Philippi,  Corintho,  Athenas, 
Alexandria,  Ephezo,na  Thessalonia,  e  na  própria  Roma;  aon- 
de, segundo  as  melhores  informações  históricas,  os  apóstolos, 
Pedro  e  Paulo,  soífreram  o  martyrio  na  primeira  persegui- 
ção de  Nero,  primeiro  romano  que  promulgou  decretos  san- 
guinários contra  os  christãos;  não  por  indisposição  contra  as 
suas  doutrinas  religiosas,  mas  como  accusação  d'elles  ha- 
verem posto  fogo  á  cidade,  desejando  afastar  de  si  a  imputa- 
ção de    tão  horrivel  attentado. 

O  christianismo  continuou,  porém,  a  fazer  progressos  rá- 
pidos, e  alguns  philosophos  e  homens  de  conhecimentos,  viam 
bons  motivos  para  abraçar  a  sua  doutrina  e  seguir  os  seus 
preceitos.  Esta  religião  cedo  adquirio  uma  nova  prova  da 
sua  divina  origem,  com  a  celebre  destruição  da  cidade  e  tem- 
plo de  Jeruzalem,  e  a  dispersão  da  nação  judaica;  aconteci- 
mento este  circunstanciadamente  predicto  por  Christo,  cerca 
de  40  annos  antes  da  sua  realisação.  Os  promenores  d'aquel- 
la  scena  de  desolação  e  carnificina  acham-se  eloquentemente 
descriptos  por  Flávio  Josephus,  que,  sendo  primeiramente 
um  dos  chefes  n'aquella  guerra  e  depois  prisioneiro  dos  roma- 
nos, estava    bem    ao  facto,    não  só   das  occorrencias  princi- 


132 

pães  que  r/eíla  tiveram  logar,  mas  até  mesmo  dos  segredos 
de  gabinete  a  que  deveu  sua  origem;  como  por  muitas  vezes 
havia  assistido  ás  reuniões  do  grande  conselho,  em  Jeruzalem, 
aonde  a  guerra  fora  decretada  e  combinadas  as  medidas  pa- 
ra a  levar  a  efteito.  Fora  igualmente  espectador  dos  aconte- 
cimentos occorridos  durante  o  ultimo  cerco  de  Jeruzalem;  e 
devemos  confessar  que  elle  mostra  haver  contado  as  cousas 
com  verdade,  e  com  bastante  imparcialidade,  com  quanto  não 
ignoramos  que  elle  escreveu  as  suas  famosas  obras  sob  a  in- 
fluencia romana.  A  destruição  do  templo,  e  o  inteiro  arrasa- 
mento da  cidade  de  Jeruzalem,  offereceram  um  fortissimo  ar- 
gumento a  favor  do  christianisino.  Era  visível  que  o  juizo 
de  Deus  caíra  sobre  aquelle  povo,  e  que,  segundo  toda  a  pro- 
babilidade as  mas  esperanças  de  reganhar  a  sua  nacionalida- 
de, e  de  readquirir  preponderância  na  balança  politica  das 
nações,  acabaram  para  sempre.  Estas  circunstancias  combi- 
nadas com  a  notável  prophecia  de  Christo,  e  outros  muitos 
factos  contemporâneos  não  podiam  deixar  d!iníluir  profunda- 
mente sobre  o  espirito  do  homem  pensador  e  que  sabia  ra- 
ciocinar sobre  os  acontecimentos  moraes  e  suas  causas;  e  co- 
mo a  dispersão  dos  judeus,  e  o  aniquilamento  das  suas  aspira- 
ções á  soberania  temporal  pesavam  muito  a  favor  do  christia- 
nismo,  a  singular  continuação  cVaquelle  povo  no  mesmo  es- 
tado fortificou  de  século  em  século  aquella  crença  até  aos  nos- 
sos dias;  e  a  sua  permanência  como  povo  distincto,  disper- 
so por  todas  as  nações,  sem  incorporação  em  nenhuma, 
apresenta  um  phenomeno  moral  de  que  não  ha  exemplo  na 
historia. 


Chegados  ao  período  em  que  fora  conhecida  a  revelação 
christã,  e  até  certo  modo  propagada  no  mundo,  ainda  que  em 
embrião,  olhemos  o  estado  do  império  romano  que  constitue 
a  feição  principal  dos  tempos  que  estamos  agora  explorando. 


Í23 

TYida  a  serie  de  factos  políticos  e  militares  que  teve  segui* 
inento  sob  o  governo  imperial  está  tão  minuciosamente  trata* 
do  pelos  authores  antigos  que,  ninguém  versado  em  bellas 
lettras,  carece  d'informações  a  este  respeito.  Cumpre  observar 
que  o  império  floresceu  sem  egual  nos  annaes  históricos  das 
nações,  desde  a  sua  fundação  por  Augusto  Cezar,  até  á  mor* 
te  de  Constantino;  ou,  até  mesmo  á  morte  de  Theodosio  e  a 
fatal  divisão  do  império  entre  seus  dous  filhos  Arcádio  e  Ho- 
nório, periodo  que  abrange  430  annos.  N'este  longo  espaço 
de  tempo  o  império  passou  por  vicissitudes  provenientes  de 
revoltas  militares,  de  commoções  intestinas,  dos  vícios  e  inca* 
pacidade  d'alguns  imperadores,  e  de  depredações  d'inimigos; 
mas  o  poder  romano  invulnerável  a  tudo,  venceu  todas  as  dif- 
iculdades e  triumphou  de  todos  os  desastres.  Durante  o  es- 
paço de  quasi  200  annos,  desde  Augusto  até  Antonino  Pio,  o 
poder  romano,  estacionou,  conservando-se  no  maior  auge  do 
Beu  esplendor,  e  Roma  gosou  um  estado  de  prosperidade  po- 
litica e  de  felicidade  que  raramente  é  dado  a  nação  alguma. 
Comprehendendo  nos  seus  vastos  domínios  todas  as  nações 
versadas  nas  artes  e  nas  armas,  affamada  pelo  valor  e  disci- 
plina de  suas  invencíveis  legiões^  possuidora  d'immensos  re- 
cursos, Roma,  pelo  terror  de  seu  nome,  fez  tremer  os  povos 
bárbaros;  e  era  raro  quando  algum  a  desafiava  a  desfraldar 
suas  águias  victoriosas  Quando  a  tanto  se  aventuravam,  a 
contenda  era  de  pouca  dura;  as  victorias  de  Roma  eram  bri- 
lhantes, seus  triumphos  gloriosos,  e  a  derrota  de  seus  inimi- 
gos decisiva  e  fatal.  O  systema  politico  dos  imperadores  era, 
em  geral,  mais  pacifico  que  o  da  republica  nunca  fora,  e  á 
excepção  da  guerra  de  Vespasiano  e  de  Tito  contra  os  ju- 
deos,  e  aquella  de  Trajano  contra  os  Parthos,  encontramos 
poucas  scenas  importantes  de  carnificina  e  devastação  du- 
rante o  periodo  mencionado.  Três  circunstancias  desgraçadas 
apenas  interromperam  a  felicidade  de  Roma,  e  são  os  vicios 
d'alguns  imperadores,  como  Nero,  Vitellio,  e  Domitiano;  a  es- 
cravatura, e  a  perseguição  frequente  dos  christaos.  Muito  se 
tem  escripto  em  desabono  d'imperios  vastos,  mas  ha  também 

17 


124 

muito  bons  argumentos  a  seu  favor.  A  união  d'uma  massa 
enorme  de  gente  sob  um  systema  politico  ê  uma  das  maiores 
seguranças  contra  a  guerra,  porque  a  divisão  d'nm  paiz  em 
differentes  estados,  é  origem  certa  d'hestilMádes,  sangue,  ra- 
pina e  anarchia.  Toda  a  vez  que  um  paiz  se  divide,  começam 
a  apparecer  tantos  e  tão  oppostos  interesses,e  a  desénvolver- 
se  tantas  ambições,  que  os  conflictos  são  inevitáveis,  arras- 
tando  no  seu  vértice  todas  as  classes  da  sociedade.  Era  fácil 
produzir  immensos  exemplos,  mas  basta  citar  o  estado  da  In- 
glaterra no  tempo  da  heptarcbia  para  evidenciar  esta  verda- 
de. N'uma  grande  monarcbia  lia  apenas  um  interesse  poli- 
tico, e  os  alvos  d'ambição,  tenbão  o  attractivo  que  tiverem, 
são  menos,  e  consequentemente  ao  alcance  de  pequeno  nume- 
ro d'individuos;  tudo  converge  para  um  centro  em  iogar  de 
se  desviar  para  as  extremidades.  Um  interesse  eornmum  reú- 
ne a  massa  collectiva  do  povo,  e  as  differentes  províncias  do 
império  gosam  as  vantagens  dum  commercio  livre  e  nunca 
interrompido,  beneficio  incalculável  para  toda  a  communida- 
de. 

Admittindo  mesmo  um  governo  despótico  inira  vasto  im- 
pério, e  que  o  próprio  monarcba  seja  um  tyranno  sanguiná- 
rio; assim  mesmo,  pela  extenção  de  seus  domínios,  poucos  in- 
divíduos, que  quasi  todos  por  vontade  própria  se  acham 
em  contacto  com  elle,  sentem  os  effeitos  da  sua  cruelda- 
de e  despotismo.  Aquelles,  que  por  motivos  d'interesse 
se  aproximam  da  sua  pessoa,  e  que  são  instrumentos  da 
sua  tyrannia,  são  os  que  geralmente  sentem  a  severida- 
de do  tyranno.  As  massas  sentem  menos  a  sua  pres- 
são. Entre  um  e  outros  vae  grande  distancia,  e  os  indiví- 
duos confundem  se  em  multidão,  o  que  não  succede  nos  pe- 
quenos estados  aonde  o  tyranno  tem  os  olhos  sobre  cada  um 
de  seus  súbditos,  e  por  tanto  é  incomparavelmente  meJhor  tel-o 
a  cem  léguas  longe  do  que  á  nossa  porta.  A  historia  univer- 
sal fornece-nos  abundantes  provas  de  quanto  os  grandes  esta- 
dos concorrem  para  a  tranquilidade  do  mundo  e  interesses 
geraes;  e  a  historia  de  Roma  abunda  em  argumentos  convin- 


125 

contes  da  superioridade  do  governo    monarchico    sobre  o  re- 
publicano. 

Alguns  imperadores  eram  monstros  em  vicios  e  crueldade; 
mas  mesmo  assim,  comparando  a  condição  de  Roma  sob  as 
duas  formas  do  governo,  o  estado  de  desassoccgoe  persegui- 
rão a  que  estavam  sujeitos  seus  cidadãos  no  tempo  da  repu- 
blica, o  recenseamento  militar  obrigativo,  os  tumultos,  as  com- 
moções  intestinas  e  incessantes  hostilidades  com  as  nações  vi- 
sinlias,  e  por  outro  lado  o  seu  esplendor  e  tranquilidade  sob 
o  governo  imperial,  tudo  devidamente  apreciado,  não  hesita- 
mos em  declarar  os  romanos  mais  felizes  sob  o  peor  de  seus 
imperadores,  que  sujeitos  ao  systema  republicano.  Ao  menos, 
6  incontroverso  que  disfructavam  maior  socego  em  certos  rei- 
nados, como  por  exemplo  n'aquelíes  de  Augusto,  de  Tibério, 
d'Arianno,  e  d'Antonino  Pio,  que  jamais  conheceram  durante 
todo  o  tempo  da  republica.  Muitos  imperadores  appellidados 
de  tyrannos,  não  só  foram  bem  quistos  da  soldadesca  mas  até 
mesmo  do  povo.  O  principal  objecto  de  perseguição  para  os 
tyrannos  era  o  Senado,  corporação  aristocrática  e  orgulhosa, 
que  por  tanto  tempo  opprimira  o  povo. 

O  periodo  mais  florescente  e  tranquillo  do  governo  impe- 
rial acabou  com  o  reinado  de  Antonino.  No  tempo  de  Marco 
Aurélio,  seu  successor,  os  Quadi,  os  Altermanni  etc.  que  ha- 
bitavam alguns  pontos  da  Áustria,  Bavaria,  e  outros  districtos 
da  Alemanha,  ao  norte  do  Danúbio,  fizeram invazões  terríveis 
no  império,  assim  como  depois  fizeram  os  Dacios  que  occu- 
pavam  a  Moldávia,  a  Transylvania  e  a  maior  parte  da  Hun- 
gria ao  norte  daquelle  rio.  Depois  d'estes  os  Godos  tornaram- 
se  inimigos  terríveis  do  império  romano.  Esta  nação,  tao  cele- 
bre na  historia  do  império,  e  que  tomou  parte  tão  activa  na 
sua  queda,  tinha  primitivamente  a  sua  sede  na  Scandinavia, 
hoje  Suécia  e  Noruega,  e  d'ahi  emigrou  na  era  christã. 

No  tempo  de  Antonino,  occupavam  elles  a  Prússia  e  a  Po- 
merania,  nas  immediações  da  foz  do  Vistula,  e  pelo  mesmo 
tempo  os  vândalos  habitavam  o  norte  da  Allemanha  junto  ás 
costas  do  Báltico,  chegando  até  o  Elba.  Os  Godos  emigravam 


126 

novamente  na  direcção  do  sud-este  e  apossaram-se  da  Utra- 
mia,  e  progredindo  mais  ainda  pelo  sul  dentro,  subjugaram 
os  Dacios,  e  estabeleceram-se  na  Daeia,  d'onde  inquietaram 
terrivelmente  os  romanos.  Os  domínios  dos  Godos  estrema- 
vam-se  a  leste  pelo  mar  Euxino,  ao  sul  pelo  Danúbio,  e  divi- 
diam-se  em  dous  reinos,  o  reino  oriental,  ou  ostrogodos;  e  o 
occidental,  ou  visigodos.  Seus  territórios  comprehendiam  a 
parte  occidental  da  Hungria,  mas  até  onde  chegavam  para  o 
norte  se  não  sabe,  porque  o  império  Godo,  ora  abrangia  uma 
grande  parte  da  Polónia  e  da  Alemanha,  ora  se  limitava  a 
territórios  de  pouca  extensão.  Os  Godos,  tendo-se  apossado 
da  Dacia  durante  o  reinado  de  Philippe  o  Árabe,  passaram  o 
Danúbio  no  tempo  de  seu  successor  o  imperador  Decio,  e  pe- 
la primeira  vez  invadiram  o  império  romano.  Vindo  aquelle 
imperador  ás  mãos  com  elles,  foi  derrotado  e  morto,  sem  que 
jamais  lhe  fosse  encontrado  o  corpo,  e  o  seu  successor,  Gál- 
io, celebrou  um  tratado  de  paz  vergonhoso.  Os  Godos,  era- 
prehendedores  e  aventureiros,  no  reinado  de  Gallieno  atra- 
vessaram o  Enxino  em  três  grandes  divisões,  e  saqueiaram  a 
cidade  de  Nicomedea,  e  toda  a  Ásia  Menor.  Desceram  até  ao 
Hellesponto,  tomaram  Athenas,  e  expoliaram  a  Grécia  toda, 
e  as  suas  reiteradas  invasões  ameaçavam  ,  nada  menos, 
que  a  conquista,  ou  desolação  das  melhores  províncias 
do  império. 

Para  quem  leu  a  historia  de  Roma  é  suffieiente  um  sum- 
mario  dos  acontecimentos,  e  por  tanto  bastará  dizer  que  com 
quanto  aquelles  povos  bárbaros  fossem  a  maior  parte  das  vezes 
derrotados  e  frequentemente  com  grandes  perdas  de  gente, 
não  cessavam  de  renovar  as  suas  invasões,  e  no  reinado  de 
Gallieno,  eram  estas  tão  numerosas  e  tão  repetidos  os  seus 
ataques  ás  fronteiras  romanas  que  o  império  parecia  aproxi- 
mar se  ao  seu  fim.  Além  das  calamidades  d'estas  guerras  vá- 
rios chefes  militares  e  governadores  de  provindas  arvoraram 
o  pendão  da  revolta,  e  o  império  romano  veio  a  ser  victima 
da  anarchia,  apresentando  um  quadro  d'in felicidade  politica, 
tão  negro,  quanto  anteriormente  fora  esplendido  e  prospero.  O 


127 

reinado  de  Gallieno  foi  não  somente  infeliz,  como  tauribem  de 
consequências  humilhantes  para  a  dignidade  do  nome  roma- 
no, porque  o  imperador  Valeriano,  pae  de  Galieno,  estava  sen- 
do prisioneiro  de  Sapor,  rei  da  Pérsia,  que  se  diz  o  tratava 
indignamente,  compellindo-o  a  curvar-se,  fazendo  do  seu  cor- 
po, assim  dobrado,  escabello,  quando  o  soberbo  vencedor  mon- 
tava a  cavallo.  Diz  se  que  Sapor  o  mandara  esfolar  depois  da 
sua  morte,  e  alguns  julgam  que  o  fora  em  vida,  dependurando- 
se-lhe  a  pelle  na  sala  das  audiências  e  ahi  conservada  para  at- 
testar  que  os  romanos  não  eram  invencíveis. 

Em  todo  o  caso  é  fora  de  duvida  que  Valeriano 
jamais  recuperou  a  liberdade;  e  a  sua  desgraçada  sorte  é  uma 
das  muitas  provas  que  offerece  a  historia  de  quanto  é  variá- 
vel a  fortuna.  N'este  infausto  reinado,  as  guerras  civis  e  ex- 
ternas que  conflagravam  o  império  romano  produziram  a  fo- 
me seguida  d'uma  tão  devastadora  peste,  que  por  muito  tem- 
to  morriam  por  dia  cerca  de  cinco  mil  pessoas  na  cidade  de 
Roma,  e  segundo  os  cálculos  d'alguns  authores,  apesar  que  os 
temos  por  exageradores,  uma  metade  quasi  da  população  do  im- 
pério foi  victima  da  guerra,  fome  e  peste. 

O  reinado  de  Gallieno  foi  para  Roma  a  epocha  mais  cala- 
mitosa desde  a  guerra  Púnica  até  ao  reinado  de  Honório. 
Cláudio,  soldado  de  baixo  nascimento,  oriundo  da  Illy ria,  uma 
provincia  ao  sul  do  Danúbio,  confinando  pelo  norte  e  a  lesle 
com  o  mar  Adriático,  sendo  eleito  imperador,  fez  quanto  era 
possível  para,  em  três  anãos  apenas  de  reinado,  restaurar  a 
gloria  do  império,  e  os  reinados  militares e fortes  que  lhe  suc- 
eederam  de  Probo  e  Aurelieno,  ambos  como  Cláudio,  cam- 
ponezes  Illyrios  de  origem,  a  consolidaram. 

As  victorias  de  Probo  egualavam  aquellas  dos  maiores  he- 
roes  da  antiguidade;  e  o  reino  cVAureliano  foi  uma  serie  con- 
tinua de  brilhantes  feitos  d'armas.  No  seu  tempo  os  Altemani 
passando  o  Danúbio,  chegaram  a  Milão,  e  achando  cortada 
a  retirada  pelo  imperador  á  frente  d'um  poderoso  exercito, 
invadiram  a  Itália  com  tamanho  arrojo  que  a  própria  cidade 
imperial  esteve  em  perigo  imminente  de  cair  nas  suas  mãos. 


128 

K'essa  difficil  conjui  rotura,  os  habitantes  de  Roma,  cercaram: 
a  cidade  e  parte  de  seus  subúrbios  com  a  celebre  muralha  a 
que  appellidaram,  aureliana.  Áquelle  imperador,  porem,  tendo 
rechassado  e  quasi  aniquilado  o  exercito  invasor,  foi  assassi- 
nado, estando  em  marcha  contra  os    persas. 

Com  quanto  a  gloria  do  império  se  recobrasse,  e  fossem  os 
seus  domínios  restituídos  ás  suas  antigas  confrontações  por 
aquelles  illusíres  camponezes  das  margens  do  Danúbio;  não  se 
imagine  que  Roma  não  sofTíesse  os  funestos  effeitos  da  guerra 
e  da  anar.chia.  As  nações  da  margem  septentrional  do  Danú- 
bio desde  a  sua  nascente  até  á  confluência  com  as  aguas  do 
Euxino,  adquirindo  informações  sobre  a  riqueza  do  império 
romano,  pairavam  continuamente  nas  fronteiras;  promptas  a 
se  aproveitarem  do  primeiro  ensejo,  para  se  lançarem, 
como  uma  torrente  nas  províncias. 

Roma,  porem,  triumphoiv,  e  os  dois  inimigos  tiveram  de  re- 
cuar ante  o  valor  irresistível  edesciplina  de  suas  legiões  sob  o 
cominando  de  vários  chefes,  como  Diocleciano,  Maximiliano, 
Galerio,  Constâncio,  Cloro,  e  outros  que  haviam  sido  adestra- 
dos sob  aquelles  valentes  imperadores,  Cláudio,  Aureliano  e 
Probo;  e  que,  de  humilde  posição,  tinham,  depois  de  subir  os 
postos  militares,  passado  a  oceuparo  primeiro  logar  no  impé- 
rio do  mundo. 

Pelo  espaço  de  cem  annos  anteriores  ao  reinado  de  Cons- 
tantino, o  império  romano  apresentava  um  caracter  politico 
extraordinário,  pela  rápida  promoção,  degradação  e  assassínio, 
de  imperadores,  revolta  de  chefes  e  com  quanto  fosse  o  tliea- 
tro  da  anarchia  e  guerra  civil,  não  deixava  de  fazer  terrível 
frente  aos  inimio-os  externos. 

E,  não  obstante,  6  forçoso  notar  que  o  povo  gozava  uma 
paz  e  socego  que  não  conhecera  sob  o  regimen  republicano, 
porque  essas  revoluções  limitavam-se  á  classe  militar.  Era  es- 
ta que  obrava  e  soffria  em  todos  os  negócios,  o  povo  nenhuma 
parte  tomava  n'elles,  e  as  invasões  dos  bárbaros  eram  cala- 
midades eventuaes  e  de  pouca  duração:  mas  no  governo  da 
republica  a  guerra  era  um  accessorio  á  sua  constituição  e  qua- 


129 

si  necessária  a  aua  existência.  Cada  cidadão  era  soldado,  e 
Roma  semelhava- se  a  um  acampamento.  As  hostilidades  eram 
continuas;  cada  provincia  apresentava  scenas  de  rapina,  até 
que,  pela  subjugação  se  pacificava.  O  systema  adoprado  pelo 
Senado  era  entreter  o  povo,  conservando-o  n'um  estado  per- 
petuo de  guerra:  aquelle  dos  imperadores  era  cie  adoçar  a  Ín- 
dole militar,  e  preferiam  confiar  a  sua  segurança  pessoal,  ea 
do  império  a  exércitos  permanentes,  acostumados  ao  seu  com- 
inando, affeiçoados  a  si,  e  recrutados  dentre  as  differentes 
classes,  do  que  á  eonscripção  de  cidadãos  orgulhosos  e  refra- 
ctários. 

Durante  o  espaço  de  cincoenta  e  seis  annos  que  decorreu 
entre  a  morte  de  Gallieno  e  a  enthronisaçào  de  Constantino 
no  indiviso  império  do  mundo,  uma  serie  d'imperadores  guer- 
reiros havia  derrotado  em  toda  a  parte  os  bárbaros  e  desa 
frontado  o  nome  romano. 

O  império  recuperara  seu  antigo  esplendor  e  ostentava  a 
grandeza  dos  primeiros  tempos  depois  do  reinado  de  Augus- 
to; mas  durante  os  últimos  trinta  e  sete  annos  d'este  periodo, 
o  poder  imperial  achava  se  dividido. 

Tendo  Diocleciano  repartido  com  Maximiliano  a  sobera- 
nia, estes  imperadores  dividiram  o  império,  reinando  o  pri- 
meiro no  Oriente  e  o  segundo  no  Occidente.  Este  systema  con- 
tinuou e  as  sub-divisões  succederam-lhe,  a  ponto  que  houve 
tempo  em  que  o  império  era  regido  por  seis  imperadores,  Cons- 
tantino, Magnencio,  e  Maximiliano  no  Occidente,  e  Licínio, 
Maximino,  e  Galerio  no  Oriente.  Com  este  singular  systema 
cada  imperador  exercia  authoriclade  soberana  na  sua  respecti- 
va parte,  mas  a  sua  authoridade  unida  extendia  se  a  todo  o 
império;  e  toda  a  legislação  promulgava-se  em  nome  de  todos 
os  imperadores.  A  divisão  do  império  durou  até  que  os  im- 
peradores se  começaram  a  olhar  como  rivaes,  tornando-se  por 
fim  inimigos  declarados,  e  lançaram  o  império  na  guerra  ci- 
vil que  só  terminou  com  a  proclamação  de  Constantino  á  so- 
berania geral,  306  annos  antes  da  vinda  de  Christo. 

Este  imperador  tendo  n'uma  serie  de  campanhas   suecessi- 


Í3Õ 

vaa,  derrotado  Magnencio  c  Licínio,  fazendo  se  senhor  abso* 
luto  do  território  romano,  voltou  as  suas  armas  victoriosas 
contra  os  inimigos  de  Roma.  Passando  o  Danúbio,  entrou  até" 
mesmo  o  coração  da  Dacia,  e  reduzio  os  godos,  e  outros  po- 
vos bárbaros  a  lai  extremidade,  que  durante  a  maior  parte 
do  seu  reinado,  inimigo  algum  pode  attaear  o  império,  que 
então  experimentou  as  doçuras  da  paz,  e  o  seu  poder  chegou 
a  ser  o  que  só  fora  no  reinado  d'Antonino. 

O  regimen  politico  do  governo  imperial   não  tinha    prece- 
dente:  podia  cbamar-se  o  despotismo  desfarçado  pelas  formu- 
las   republicanas  que  ficaram,  não  obstante  existir  o  funccio^ 
nalismo  do   senado  e  consular.  Os  empregos  d'Edis,    de  Pre- 
tor etc.  ficaram  como   no  tempo   da  republica,    mas  existiam 
apenas  em  nome,  e  Augusto  teve  a  sagacidade  de  os  assumir, 
o  que  demonstra  que  aquelle  hábil  estadista   conhecia  bem  a 
influencia  que  exercem  certos  títulos.   O  maior    e  mais  sábio 
de  seus  successores  seguio  o  seu  exemplo,  e  todos  os  impera- 
dores que  sabiam  proteger  os  seus  interesses,,  fingiam  respeitar 
aquellas  formas  republicanas;  e  nos  primeiros  tempos  dogo- 
verno  imperial,  se  o  imperador  nAo  era  eleito    primeiro   pelo 
Senado,  a  sua  approvação  ou  sancção  era  indispensável  para 
validar  o  acto.  Com  o  andar  do  tempo,    o  exercito  julgou  di- 
reito seu  exclusivo  de  eleger  o  imperador,  e  íez-se  arbitro  su- 
premo dos  destinos  do  imperante.  Os  imperadores  eram  elei- 
tos ou  depostos  sómento  pelo  exercito,   e  o  senado,    para  não 
perder  ao  menos  as  apparencias    d'authoridade    apressava-se 
a  confirmar   aquellas  eleições  militares.  A  guarda  Pretoriana 
foi  a  primeira  que  se  arrogou  este  direito   e  o  seu  exemplo  de- 
pressa foi  seguido  pelos   legionários.  Esta  fornia  d'eleição  de- 
generou em  corrupção   aponto,  que  a  guarda  Pretoriana,  ten- 
do deposto  e  assassinado   o  imperador  Pertinax,   vendeu    em 
hasta  publica  o  cargo    imperial,    apresentando   um  facto  de 
usurpação  e  licença  militar  sem  paralello  na  historia;  a  sobe- 
rania do  maior  e  mais  poderoso  império   do  mundo  posto  em 
leilão  e  entregue  a  quem  mais  lançasse  1  O   preço  porque  foi 
vendido  a  Didio  Juliano,  segundo  Mr.    Gibbon    foi  de  6250 


131 

ôlraclimas,  cerca  de  um  couto  cento  e  vinte  mil  reis.  Á  cons- 
tituição de  Roma  era  o  despotismo  militar  puro.  De- 
pois que  se  aboliram  as  assembleas  populares,  no  começo  do 
reinado  de  Tibério,  a  constituição  ostensiva  do  império  fa- 
zia eleger  o  imperador  pelo  senado  como  general  em  chefe 
dos  exércitos  do  império,  ou  como  dizião  ainda  os  romanos, 
da  republica,  de  modo  que  o  senado  era  o  corpo  legislativo, 
mas  o  executivo  estava  todo  nas  mãos  do  imperador.  Mas  a 
constituição  dos  tempos  de  que  falíamos  fazia  dependente  os  im- 
peradores de  eleição  militar,  o  exercito  reinava  e  o  imperador 
era  meramente  seu  agente;  a  peior  forma  de  monarchia  electiva, 
porque  imperador  algum,  por  grandes  que  fossem  as  suas  vir- 
tudes e  merecimento,  podia  sustentar-se  sem  cuidar  de  con- 
ciliar a  graça  do  exercito.  Revestidos  do  poder  executivo  e 
tendo  á  sua  disposição  toda  a  força  militar  do  império,  os  im- 
peradores desprezavam  a  authoridade  legislativa  do  sena- 
do. 

Até  o  reinado  de  Adrianno,  os  imperadores  promulgavam 
leis  na  qualidade  de  magistrados  romanos, Gom  authorisação  do 
senado;  mas  Adrianno  concentrou  em  si  a  lei,  e  depois  do  seu 
reinado,  não  só  a  admininistração  publica,  como  toda  a  ju- 
risprudência do  império  modelava-se  pela  vontade  do  impe- 
rador. 

Temos  jâ  dito  que  os  romanos  nos  últimos  tempos  da  re- 
publica, tinhão-se  afastado  d'aquellas  máximas  que  excluião 
do  exercito  indivíduos  de  classe  inferior,  e  que  Caio  Mário  fo- 
ra o  primeiro  que  as  renovou,  sendo  este  exemplo  seguido  por 
outros  chefes  ambiciosos.  Custa  mesmo  a  acreditar  que  um 
Sylla,  um  Cezar,  ou  um  Pompeo  excluíssem  de  seus  exérci- 
tos quaesquer  pessoas  aptas  para  serviço  activo,  e  consequen- 
temente anterior  á  abolição  do  systema  republicano,  grande 
fora  a  mudança  effectuada. 

Depois  do  estabelecimento  do  governo  imperial,  os  impera- 
dores, preferindo  exércitos  permanentes,  recrutados  nas  por- 
vincias,  á  conscripção  militar  de  cidadãos,  hião  buscar  os  seus 
soldados  entre  as  classes  ínfimas,  e  admittião  gente    sem  dis- 

18 


13á 

tincção  nas  legiões  romanas,  ficando  desde  logo  gozando  o 
foro  de  cidadãos,  que,  em  consequência  da  isenção  cVimpos- 
tos  a  que  estavam  sujeitos  os  provincianos  e  dos  donativos 
públicos  de  dinheiro  como  já  fica  dito,  erão  immunidades 
grandes,  tendo  aquellcs  donativos  antes  augmentado  que  dimi- 
nuído sob  os  imperadores.  O  soldo  animal  d'um  legionário  foi 
fixado  por  Domiciano  em  doze  moedas  d'ouro,  somma  esta 
equivalente  a  quasi  56^000  rs.  e  no  fim  de  20  annos  de  ser- 
viço recebião  560$>000  rs.  ou  seu  valor  era  terrenos. 

O  famoso  corpo,  intitulado  a  guarda  Pretoriana  foi  orga- 
nisado  por  Augusto  para  defeza  própria  e  da  capital.  Tinliào 
dobrados  vencimentos  em  relação  aos  legionários.  Ao  prin- 
cipio compunha-se  de  10000  homens.  Três  cohortes  aquar- 
telavam em  Roma,  e  o  resto  nas  suas  immediações.  Depois 
foram  todos  reunidos  em  Roma  por  Tibério  e  acampados  junto 
ás  muralhas.  Vitelli  elevou  o  seu  numero  a  quinze  mil.  A 
guarda  Pretoriana  recrutava- se  cTentre  a  mocidade  Italiana 
até  ao  reinado  de  Septimo  Severo  que  a  licenciou  como  castigo 
pelo  assassinato  do  imperador  Pertinax  e  pela  venda  do  im- 
pério em  hasta  publica. 

Severo  formou  então  um  novo  corpo  de  guardas  Pretoria- 
nas em  numero  de  50000  composto  dos  melhores  soldados, 
escolhidos  d'entre  as  legiões.  Aquelle  imperador  augmentouo 
soldo  e  gratificações  sem  exemplo  até  ahi,  acostumando-os  a 
extraordinários  donativos  em  todas  as  occasiões  de  festejos  pú- 
blicos. Dioclesiano  e  Maximiliano  dissolveram  o  corpo  preto- 
riano de  seu  antigo  cargo  de  guarda  de  corpo,  connando-o  a 
dois  regimentos  cie  Ihyricos  a  que  chamavam  Jovianos  e  Her- 
culanos,  tomando  elles  próprios  os  appellidos  de  Joviano  e 
Herculano;  querendo,  segundo  parece,  fazer  acreditar  a  seus 
súbditos  que  elles  hombreavam  com  os  deuses,  ou  que  ao  me- 
nos eram  de  origem  celeste.  Constantino  apoz  sua  victoria 
sobre  Maxencio,  receiando  a  manutenção  de  tão  perigoso  cor- 
po dissolveu-o;  e  tendo,  em  consequência  da  sua  opposição, 
tomado  á  viva  força  o  seu  acampamento,  os  distribuio  entre 
as  tropas  das  provincias.  Assim  se  dissolveu  aquelle   celebre 


133 

corpo  do  exercito  que  tantas  vezes  dispozera   do  império  do 
inundo. 

Quando  terminávamos  as  nossas  observações  no  período 
do  reinado  d'Augusto,  contemplamos  Romano  zenitli  da  sua 
gloria,  senhora  do  mundo,  centro  do  poder,  riqueza  e  scien- 
cias,  como  também  do  luxo  e  da  dissipação;  a  sua  riqueza  e 
poder  pouco  mais  poderiào  augmentar;  mas  o  luxo  subio  sob  o 
governo  imperial.  Os  cidadãos  não  sonhavam  já  em  conquis- 
tas e  espoliações,  pensavam  só  em  gozar  pacificamente  o  que 
já  tinham  ganho.  As  suas  guerras  rarearam  depois  d' expirar 
o  regimen  republicano,  e  quando  se  faziào  era  mais  para  de- 
feza  que  para  dilatação  das  fronteiras  do  império. 

Esta  mudança  da  guerra  para  a  paz  deveu-se    em  parte  á 
índole  pacifica  de  vários  imperadores  e  á  pouca  importância 
do   senado  ,  que  já    não   exercia    sobre   o    povo    a    antiga 
influencia    levando-o     a    pegar    em  armas    sob  pretexto    de 
gloria    e    conquista    e,   talvez,  sobre   tudo    á  razão    que    o 
império,   nada    tinha    a    ganhar,   mas    muito   a  perder  hos- 
tilizando   as    nações    visinhas     cujo     estado    não    desperta- 
va   sentimento    algum    d'ambição    ou    cubica.     As    magni- 
ficas representações  no  cerco  eram  de  maior  apparato,    e  os 
jogos  públicos  tinhão  logar  com   mais  pompa    no    tempo   do 
império;  e  os  triumphos  de  vários  imperadores,  com  especia- 
lidade de   Vespaciano,  e    de   seu  filho   Tito,    como    também 
aquelles  de  Trajano,   de  Probo  e  d'Aureliano,  appresentaram 
vistas  d'uma  magnificência  sem  igual.  Parece  que  fora  a  po- 
litica dos  imperadores,  como  já  tinha  sido  do  senado,  trazer  os 
ânimos  entretidos,  proporcionando  ao  povo  espectáculos  gran- 
diosos e  fazendo-lhe  donativos  ricos,  como  também   embelle- 
zar  a  cidade,  que  quasi  todos    os   imperadores,    cujo  reinado 
fosse  de  duração,  não  deixavam  de  fazer,  erigindo  um  ou  outro 
edifício  magestoso  como  padrão  do  seu  governo  e  estima  pe- 
lo povo  romano.  Os  edifícios  de  primeira  ordem,  e  outros  tra- 
balhos estupendos,  que  teem  chamado  a  attenção  da   posteri* 
dade    e    dos    quaes    as  veneráveis    ruínas    ainda   hoje  attes- 
tam    as    aspirações  do    homem,     foram     obra    dos    impera- 


134 

dores;  taes  são  o  ampliitlieatrp  de  Nero  e  Tito,  os  arcos  trium- 
phaes,  a  columiia  de  Trajano,  o  mausoleo  d'Adrianno,  hoje 
castello  de  Santo  Angelo,  os  banhos  de  Diocleciano  e  muitas 
outras  que  seria  fastidioso  enumerar. 

Durante  o  império  é  indubitável  que  a  cidade  fora  muito 
alargada  e  embeílezada,  e  como  acontece  em  todas  as  capi- 
tães ricas  e  luxuosas,  devemos  suppor  que  um  grande  nume- 
ro d'artistas  e  negociantes,  de  todas  as  classes,  terião  concor- 
rido a  um  logar  que  estava  sendo  a  sede  da  prodigalidade. 

Julga-se  que  nunca  Roma  foi  tão  populosa,  nem  mais  ex- 
tensa que  no  reinado  d'Augusto.  Isto,  porem,  é  um  ponto 
impossível  de  precizar  porque  os  historiadores  desprezaram 
as  particularidades  importantes  para  nos  contar  por  miúdo,  o 
que  souberam,  e  que  mesmo  não  souberam,  de  batalhas,  cer- 
cos, revoluções,  e  uzurpações;  enchendo  as  suas  paginas  de 
narrações  de  mortandade  e  dissolação  que  deshonram  a  hu- 
manidade, em  quanto  que  nos  deixão  advinhar  qual  fora  o 
progresso  das  sciencias,  do  commercio  e  das  artes. 

A  um  author  contemporâneo  dos  imperadores  Constanti- 
no, Constâncio  e  Juliano  devemos  a  melhor  descripção  do  lu- 
xo romano  d'aquelles  tempos.  Os  grandes  de  Roma,  diz  elle 
manifestaram  a  sua  posição  e  riqueza  pela  sumptuosidade  de 
seus  carros,  muitos  dos  quaes  eram  de  prata  massiça  d'eaque- 
sito  lavor,  e  os  arreios  dos  cavallos  e  muares  ricameute  embu- 
tidos de  ouro,  ostentando  também  espantosa  magnificência  no 
vestuário.  Seus  compridos  mantos  de  purpura  fluctuamlo  á 
mercê  do  vento,  descobrião,  uma  vez  por  outra,  ricas  túnicas, 
bordadas  a  ouro  com  figuras  d'animaes.  O  exemplo  dos  no- 
bres era  seguido  pelas  damas  e  pelos  plebeos  opulentos  cujos 
carros  se  vião  constantemente  girando  em  volta  da  immensa 
cidade  e  seus  subúrbios.  Em  sumiria,  o  luxo,  nos  ultimostem- 
pos  do  império  foi  excessivo.  As  muzas  tinham  emmudecido 
desde  a  abolição  da  republica.  Sob  o  governo  imperial  foram 
substituidas  por  farças  obscenas,  musica  effeminada  e  pela 
pantomima  muito  em  voga,  ultimamente,  entre  os  romanos. 
Nos  espaçozos  e  magníficos  theatros  de  Roma,  dançavam  três 


135 

mil  bailarinas,  três  mil  cantoras  alem  dos  regentes  dos  difie- 
rentes  coros,  mas  o  divertimento  favorito  do  povo  consistia 
nos  jogos  públicos  e  espectáculos  no  circo.  Pode-se  acres- 
centar a  isto  os  banhos  públicos  a  que  pessoas  de  todas  as  je- 
rarchias  tinham  accesso  por  um  preço  módico  não  excedente 
a  três  reis  do  nosso  dinheiro.  Nenhuma  cidade  oíierecia  tan- 
tos e  tão  esplendidos  passatempos,  táo  baratos,  como  Roma. 
Mas  a  par  do  augmento  do  luxo  declinavam  as  sciencias. 
Os  ajuntamentos  populares  encontraram  opposição  no  tempo 
de  Augusto  e  foram  totalmente  prohibidos  no  reinado  de  Ti- 
bério. A  rhetorica  perdeu  a  sua  importância  e  de  pouco  aer- 
via  a  quem  a  cultivava  e  ao  publico.  Quaesquer  formas  que 
ainda  existissem,  a  constituição  estava  mudada  completamen- 
te. Os  ânimos  no  senado  e  as  paixões  populares  não  se  acor- 
davam já  pela  eloquência.  Despunha  de  tudo  um  chefe  mili- 
tar, engrandecido  com  o  titulo  de  imperator  ou  general  que 
nós  traduzimos  por  imperador,  e  que  entremos  romanos,  signi- 
ficava verdadeiramente  generalíssimo  ou  commandante  em 
chefe  de  toda  a  frrça  armada  da  republica,  como  impropria- 
mente denominavam  ainda  o  império  romano.  Perdido  o 
gosto  pela  oratória,  a  litteratura  deixou  de  progredir  como  nos 
últimos  tempos  da  republica.  Os  mais  distinctos  escriptores 
dos  tempos  modernos  não  tem  podido  exceder  as  composições 
de  Cícero  e  as  da  era  Augustina.  Durante  o  prospero  e  iilus- 
trado  período  que  vae  desde  a  fundação  do  governo  imperial 
ate'  o  reinado  de  Marco  Aurélio  a  declaração  das  lettras  é  me- 
nos sensível;  porque  posto  haver  a  eloquência  do  povo  deca- 
indo muito,  os  imperadores  animavam  a  litteratura  com  o 
seu  exemplo,  como  homens  de  lettras  que  erão,  especialmente 
Augusto.  Adrianno,  Antonino  e  Marco  Aurélio.  Depois  d'este 
período,  as  sciencias  declinaram  rapidamente.  Muitos  dos  im- 
peradores que  lhes  succederam  eram  homens  rústicos,  que, 
por  difTerentes  circunstancias  favoráveis,  havião  saindo  das 
ultimas  classes  da  sociedade  e  cingido  a  purpura  imperial, 
tendo  em  pouca  conta  a  litteratura.  A  phiíosophia  dos  chal- 
deos,  dos  egypcios,  dos  persas,  gregos  e  romanos,    consistia 


136 

principalmente  nos  preceitos  moraes,  ou  nas  sciencias  abs* 
trusas,  em  que  a  rasão,  chegando  até  certo  ponto,  tinha  de 
parar  e  perdia-se  em  conjecturas.  A  sua  philosophia  não  se 
baseava  na  experiência  que  modernamente  tem  resolvido  tan- 
tos pontos  duvidosos  e  feito  tão  importantes  descobertas.  An- 
terior ao  reinado  de  Constantino  todas  as  sciencias  tinhão  de- 
caindo muito.  O  imperador,  porem,  protegeu  os  homens  de 
génio,  e  com  quanto  lhe  faltasse  uma  educação  litteraria  cleli- 
genciava,  quanto  podia,  para  fazer  reviver  o  amor  pela  litte- 
ratura  e  bellas  artes,  mormente  d'estas  de  que  muito  carecia 
para  o  embellezamento  de  Constantinopla;  mas  o  estado  de 
depreciação  era  já  muito  grande  para  melhorar  em  um  só  rei- 
nado, e  aquelles  que  lhe  succederain  foram  desfavoráveis  á 
sua  cultura.  O  reinado  de  Constantino,  porem,  produzio,  ou 
já  achou  feitos  alguns  homens  d'extraordinario  talento  e  eru- 
dição entre  os  christãos,  particularmente  o  eloquente  Lactan- 
cio,  e  o  famoso  Eusébio,  bispo  de  Cesárea,  homem  d'uma 
erudição  rara,  como  provam  os  seus  escriptos;  e  só  em  uma 
das  suas  obras,  cita  nada  menos  que  quatro  centos  authores 
gregos.  N'estes  tempos,  o  estudo  de  tlieologia  começou  a  pie 
valescer  sobre  os  outros. 

O  melhoramento  da  sorte  dos  escravos  mereceu  a  attenção 
do  governo  imperial  e  já  nos  últimos  tempos  da  republica  as 
mudanças  politicas  e  sociaes  tinhão  concorrido  para  benefi- 
ciar esta  classe,  completando  a  sua  acção  sob  o  regimen  dos 
imperadores;  por  isso  que  o  luxo  uma  das  causas  mais  favo- 
ráveis aos  escravos,  tomara  ainda  maior  incremento;  e  o  sys- 
tema  pacifico  dos  imperadores,  desde  o  começo  do  império, 
ató  a  invasão  dos  bárbaros,  fizera  com  que  fosse  pouco  con- 
siderável a  importação  d'escravos;  de  que  resultava  necessa- 
riamente que  o  seu  valor  crescia  a  par  da  sua  escacez,  fazen- 
do com  que  fossem  mais  estimados. 

Os  principios  republicanos,  e  a  distribuição  dos  impostos 
entre  as  classes  pobres  da  socidade,  excluio  toda  a  tendência 
entre  os  ricos  e  toda  a  necessidade  entre  os  pobres  de  certos 
empregos  que,  modernamente,    ninguém  reputa    deshonroso 


137 

c  todos  aquelles  cargos  que  nas  cortes  civilisadas  só  se  dão 
aos  súbditos  de  superior  graduação  eram  tio  tempo  do  impé- 
rio romano  exercidos  por  escravos.  E  de  facto  os  imperado- 
res tinhão  boas  rasões  para  preferir  os  escravos  aos  cidadãos 
romanos  para  o  seu  serviço  domestico.  Imperadores  houve 
que  legislaram  em  beneficio  d'esía  infeliz  classe.  O  imperador 
Adrianno,  com  especialidade,  negou  aos  senhores  poder  ar- 
bitrário sobre  seus  escravos  e  de  que  estavam  na  posse  des- 
de a  construcção  de  Roma,  e  collocou  os  escravos  sob  a  pro- 
tecção da  lei.  E'este  exemplo,  entre  outros  mil,  que  prova  que 
o  governo  monarchico  é  geralmente  mais  favorável  ás  classes 
ínfimas  do  que  o  republicanismo ;  porque  em  todos  os  tempos 
chamados  da  liberdade,  nenhum  regulamento  se  fez  em  fa- 
vor daquella  desgraçada  raça,  que  em  todo  o  tempo  cia  repu- 
blica estivera  sempre  sem  o  abrigo  da  lei. 

Já  temos  notado  que  nos  dias  mais  opulentos  da  republi- 
ca a  alforria  aos  escravos  tornou-se  moda,  ou  por  generosida- 
de, ou  por  interesse. 

O  senado  decretou  leis  para  a  exclusão  dos  escravos  e  seus 
descendentes  dos  cargos  públicos  do  estado.  Estas  leis  porem 
caducaram  no  tempo  do  império  quando  o  recenseamento 
para  o  exercito  conferia  os  direitos  de  cidadão  a  pessoas  de 
todas  as  jerarchias  sem  excepção.  As  distancias  entre  a  es- 
cravidão e  a  liberdade  diminuiram  gradualmente,  e  Diocle- 
ciano, o  filho  d' um  escravo  liberto,  e  que  se  diz  nascera  an- 
tes da  liberdade  do  pae,  tendo  sentado  praça  em  uma  das  le~ 
giôes  romanas  e  subido  os  postos  militares,  cingio  a  purpura 
imperial,  foi  aclamado  imperador  pelo  exercito,  reconhecido 
pelo  senado,    e  reinou  com  distineção  sobre    o  orbe   romano. 

O  que  mais  contribuio  para  fazer  passar  o  governo  impe- 
rial aos  olhos  da  posteridade  como  iníquo  e  tyranno  e  para 
estigmatizar  muitos  imperadores  de  sanguinários  foram  as 
frequentes  e  cruéis  perseguições  entre  os  christãos;  mas  se  exa- 
minarmos bem  o  caso,  muitos  imperadores  ficarão  justifica- 
dos; porque  ê  de  notar,  que  não  obstante  essas  injustas  per- 
seguições, poucos  erão  maus  por  instincto.  Muitos    dos    que 


138 

promulgavam  decretos  sanguinários  contra  os  cliristâos,  nao 
tinham,  como  é  sabido,  indisposição  contra  o  christianismo  ou 
aquelles  que  o  professavam,  e  pelo  contrario  os  nomeavam 
para  empregos  honoríficos  e  lucrativos,  até  que  eram  sedu- 
zidos por  maus  conselheiros,  que,  ou  tinhão  ódio  ás  doutrinas 
enristas,  ou  ciúme  de  certos  indivíduos  d'aquella  religião.  Isto 
dava-se  com  Vaierianno  que,  no  começo  do  seu  reinado,  era 
particularmente  benigno  para  os  christãos  elevando-os  aos 
mais  altos  e  lucrativos  cargos,  até  que  por  occasião  da  in- 
vasão das  províncias  romanas  por  Sapor  rei  da  Pérsia,  dei- 
xou-se  convencer  por  cortezãos  intrigantes  e  pelos  sacerdo- 
tes que  todas  as  calamidades  que  soffria  e  ameaçavam  o  im- 
pério eram  mandadas  pelos  deuzes,  pela  protecção  dada  a 
uma  raça  de  gente,  inimiga  capital  do  seu  culto.  Eram  estes 
os  laços  de  que  se  serviam  para  levar  os  imperadores  a  sanc- 
cionar  as  perseguições  de  que  elles  eram  os  authores. 

As  perseguições  aos  christãos  tiveram  três  causas  ;  os  ciú- 
mes das  pessoas  no  poder,  ou  d'aquelles  que  ao  mesmo  aspi- 
ravam; as  intrigas  dos  sacerdotes  pagãos  e  d'aquelles  empe- 
nhados na  sustentação  do  paganismo;  e  finalmente  a  supers- 
tição das  massas. 

Quem  sabe  o  que  é  a  corte  e  o  que  são  os  cortezãos,  sabe 
o  que  são  os  zelos  dos  favoritos,  dos  candidatos  ás  graças  e  os 
meios  empregados  para  indispor  aquelle  de  quem  ha  depen- 
dência contra  os  seus  rivaes.  Quando  taes  indivíduos  viram 
os  christãos  elevados  aos  cargos  que  elles  ambicionavam,  e 
que  não  encontravam  contra  elles  fundamento  para  os  aceu- 
sar  quer  de  traição,  quer  de  mau  proceder,  lançavam  mão  do 
ultimo  recurso,  e  aceuzavam-nos  d'impiedade,  como  inimigos 
e  desprezadôres  dos  deuzes  do  império.  Assim  fizeram  os 
cortezãos  de  babylonia  em  relação  a  Shadrach,  Meshech  e 
Abdenago,  e  os  persas  a  Daniel.  Quando  os  primeiros  viram 
•os  referidos  três  homens  gozando  a  protecção  de  Nabucodo- 
nozor,  aceuzaram-nos  áquelle  Príncipe  por  não  adorarem  os 
deuses  queelle  adorava, e  os  últimos  por  iguaes  motivos,  quei- 
xaram se  de  que  Daniel  desobedecia  ás  ordens   do    rei.  Con- 


139 

cebe-se  facilmente  como  os  sacerdotes  d'um  culto,  cujas  cere- 
monias  eram  de  grande  pompa,  tinham  a  peito  a  susten- 
tação cVum  principio  d'onde  lhes  provinham  honrarias,  proveito 
e  influencia.  Os  ministros  do  paganismo  não  padiam  deixar 
de  notar  o  progresso  gradual  das  doutrinas  christãs.  Viam 
escacear  o  numero  das  offertas,  diminuir-lhes  o  credito  e  já 
presentiam  os  males  que  ameaçavam  a  sua  religião  declinante. 
Os  philosophos  viam  também  abalados  seus  systemas, 
e  em  perigo  a  sua  reputação.  Os  seus  interesses  coincidiam 
com  os  dos  padres,  e  ambas  estas  classes  arrastavam  com- 
sigo  os  artistas  encarregados  das  obras  e  ornamento  dos  tem- 
plos de  que  temos  um  exemplo  frisante  em  Demétrio,  ourives 
de  Epheso.  O  paganismo  era  todo  de  pompas,  e  grandezas, 
próprias,  não  só  para  fanatisar  as  massas,  mas  mesmo  para 
attrahir  os  homens  cultos.  A  quantidade  e  magnificência  de 
seus  templos,  as  soberbas  estatuas  de  seus  deuses,  e  os  cu- 
riosos e  ricos  adornos  de  que  se  serviam  nos  sacrifícios  e 
ceremonias,  empregavam  grande  numero  de  artistas,  e  as 
festividades  frequentes  e  explendidas  recreavam  o  povo.  De 
todo,  empenhados  em  sustentar  um  systema  de  que  colhiam 
tantas  vantagens,  os  sacerdotes  formavam  á  vanguarda,  e 
não  perdiam  occasião  de  promover  a  perseguição,  quando 
qualquer  calamidade,  como  a  peste,  a  fome,  ou  uma  guerra 
infeliz,  affligiam  ou  ameaçavam  o  império.  Attribuiam  estes 
males  aos  christãos,  e  persuadiam  aos  imperadores  que  a  ira 
dos  deuses,  só  podia  ser  applacada  com  o  sangue  dos  chris- 
tãos. As  representações  dos  padres,  secundadas  por  outras 
classes  interessadas,  operavam  sobre  os  imperadores,  vários 
dos  quaes  tinham,  de  condição  humilde,  subido  ao  throno, 
pelos  seus  merecimentos  militares,  ou  pela  intriga,  ou  pela 
uzurpação,  e  por  tanto  conheciam  quanto  era  precária  a  sua 
conservação.  As  idéas  supersticiosas  do  povo,  vinhaiu  em 
seu  auxilio,  e  a  fúria  popular  obrigava  em  muitos  casos  os 
governadores  de  provindas  a  executar  as  leis  decretadas  con- 
tra os  christãos  com  maior  rigor  do  que,  aliás,  se  observa- 
ria. 

19 


140 

Vú-se  pois  que  differentes  causas  concorreram  para  encher 
os  kalendarios  de  inartyres,  e  povoar  o  céo  de  santos. 

O  Ente  Supremo  tinha,  porem,  resolvido  que  fosse  a  cruel- 
dade cios  homens  que  fizesse  sobresair  a  coragem  e  a  f é  de 
seus  servidores,  e  que  demonstrasse  que  todo  o  poder  e  artifi- 
cio, combinados  contra  o  christianismo,  provasse  apenas 
quanto  são  inúteis  os  exforços  da  creatura,  logo  que  estejam 
em  opposição  com  a  vontade  Divina.  O  sangue  dos  niarty- 
res fora  como  semente  cahida  em  terreno  fértil;  e  o  numero 
de  christàos  cresceu  rapidamente,  não  obstante  o  destroço 
que  lhes  faziam  seus  perseguidores.  Nos  fins  do  terceiro  sé- 
culo a  egreja  descançára  longamente  da  perseguição,  e  du- 
rante este  período  de  tranquilidade,  tornou-se  conspícua  e  opu- 
lenta. O  clero  aprendeu  a  arte  de  permutar  os  bens  espiri- 
tuaes  pelas  riquezas  temporaes  dos  que  tinham  sob  a  sua 
direcção,  e  muitos  prelados  viviam  muito  faustosamente,  co- 
mo aconteceu  a  Paulo  de  Samosata.  Os  christãos  viviam 
tranquillos,  gosando  todos  os  privilégios  dos  súbditos  ro- 
manos por  espaço  de  40  annos,  e  eram  altamente  protegidos 
pelo  imperador  Diocleciano,  quando  sobre  elles  rebentou 
uma  tormenta,  que  parecia  ameaçar  o  aniquilamento  do 
christianismo.  Os  seus  sequazes  tinham  augmentado  tanto,  e 
gosavam  por  tal  forma  o  favor  do  imperador,  que  as  mas- 
sas pagãs  temeram  o  incremento  progressivo  d'uma  crença 
que  os  ameaçava  de  morte,  e  exigiram  do  imperador  que 
fizesse  sustar,  pelo  exterminio  dos  christãos,  a  vingança  de 
seus  deuses,  prestes  a  cair  sobre  o  império,  pela  tolerância 
d'um  culto  contrario.  O  imperador,  com  quanto  tivesse  pas- 
sado a  vida  nas  campanhas,  e  fosse  pouco  versado  em  maté- 
rias religiosas,  mostrou-se  ao  principio  decididamente  adver- 
so a  medidas  d'intolerancia. 

Asseveram  vários  historiadores,  que  se  passaram  seis  me- 
zes  antes  que  o  podessem  persuadir  a  sanccionar  com  a  sua 
authorisação  o  infernal  projecto,  resistindo  com  inabalável 
firmeza  ás  importunações  dos  padres  e  seus  sequazes,  enca- 
xando  com  horror  as  consequência  d'uma  perseguição  contra 


141 

tão  considerável  numero  d'inoffensivos  súbditos.  Maximilianor 
a  quem  elle  fizera  seu  collega  no  cargo  imperial,  havia  já 
dado  seu  assentimento  ás  sollicitacões  dos  inúmeros  do  christia- 
nismo,  e  Diocleciano,  finalmente,  assignou  de  mau  grado  o 
sanguinário  decreto.  Não  tardou  muito  que  elle  se  executas- 
se, e  tudo  quanto  o  infernal  espirito  da  perseguição  pode 
ideiar  de  bárbaro  se  poz  em  pratica  contra  os  adeptos  d'aquel- 
la  religião.  Esta  foi  a  perseguição  mais  rigorosa  que  a  egre- 
ja  nunca  experimentou;  e  julga-se  que  o  numero  de  marty- 
res,  foi  maior  do  que  em  nenhuma  outra.  A  Inglaterra 
foi  a  única  provincia  do  império,  que  se  subtraiu  aos  seus 
eífeitos.  N'este  paiz  os  christãos  encontraram  protecção  e  so- 
cego  sob  o  governo  recto  de  Constâncio  Moro,  pai  de  Cons- 
tantino, o  grande,  que,  com  quanto  fosse  pagão,  era  decidi- 
damente avesso  a  toda  a  qualidade  de  intolerância  em  ma- 
térias religiosas,  sendo  para  elle  doutrina  corrente,  que  at- 
tendendo  á  diversidade  d' opiniões  sobre  o  modo  mais  agradá- 
vel ao  Ente  Supremo  de  lhe  tributar  homenagem,  e  sendo 
todos  filhos  d'um  Pai  commum,  cada  um  estava  no  seu  in- 
contestável direito  de  lh'a  render  como  melhor  entendesse. 
O  espirito  liberal  d'este  imperador  protegeu  os  christãos 
n'aquella  parte  do  império,  sujeita  á  sua  authoridade,  até 
que  Constantino,  seu  filho,  appoderando-se  do  governo  geral 
dos  dominios  do  Occidente,  de  combinação  com  Licinio,  seu 
colíega  no  Oriente,  promulgaram  em  Milão-  seu  famoso  edicto 
de  plena  liberdade  de  consciência,  que  immediatamente  poz 
termo  aos  horrores  da  perseguição  em  todo  o  império. 

Paremos  n'este  ponto  da  historia  da  egreja,  a  íim  de  pre- 
pararmo  nos  para  a  contemplação  duma  nova  e  extraordiná- 
ria revelação  da  Divina  Providencia,  do  triumpho  em  favor 
do  christianismo. 


Olhando  o   novo  e  extraordinário   aspecto  dos  negócios  da 
humanidade  n'esta  melindrosa  crise,    não  podemos  deixar  de 


142 

considerar  o  reinado  de  Constantino  como  um  distincto  e 
importante  período  tanto  na  historia  do  império  romano,  co- 
mo da  religião  cliristã.  Estabelece  a  linha  de  demarcação  en- 
tre o  paganismo  e  o  christianismo,  entre  a  predominação  d'a- 
quelle  systema  de  polytheismo  e  idolatria,  que,  por  tantos 
séculos  envergonhou  a  humanidade ,  e  o  triumpho  das 
idêas  christãs,  que  d'ahi  por  diante  illuminou  com  a  sua  be- 
nigna e  radiante  influencia  a  razão  humana. 

Pôde  asseverar-se,  sem  receio  de  contradicção,  que  o  rei- 
nado de  Constantino,  pelo  facto  da  consolidação  do  christia- 
nismo, adquiriu  uma  influencia  mais  duradoura  sobre  a  con- 
dição moral  da  humanidade,  que  aquelle  de  qualquer  outro 
monarcha  que  jamais  appareceu  no  throno  politico  do  mun- 
do. O  império  romano,  a  que  Constantino  presidiu,  quando 
no  auge  da  sua  grandeza,  já  não  existe;  e  a  cidade  de  Cons- 
tantinopla, que  elle  edificou,  a  fim  de  perpetuar  a  gloria  do 
seu  reinado,  existe  hoje  nas  mãos  cl'um  povo  inimigo  da  reli- 
gião, que  elle  com  tanta  assiduidade  estabelecera,  e  que,  nos 
seus  dias,  era  uma  nação  desconhecida;  mas  na  consolidação 
do  christianismo,  levantou  elle  um  munumento  á  sua  memo- 
ria, mais  duradouro  que  o  bronze,  ou  que  o  mármore,  um  edi- 
fício que  jamais  cairá  em  ruinas,  e  que  o  tempo  tem  demons- 
trado ser  inabalável. 

Sem  entrarmos  em  detalhes  fastidiosos ,  bastará  notar 
numa  breve  exposição  dos  acontecimentos  d'este  importante 
reinado,  que  Constantino,  recebendo  a' noticia  da  enfermida- 
de de  Constâncio  Chloro,  partiu,  ou  antes  evadiu-se  de  Nico- 
media,  onde  então  residia  com  Galeria,  e  viajando  com  extra- 
ordinária rapidez,  chegou  a  York,  precisamente  a  tempo  de 
receber  o  ultimo  suspiro  de  seu  moribundo  pai,  e  suas 
derradeiras  instrucções;  nas  quaes  elle  o  aconselhara  a  go- 
vernar com  rectidão  e  clemência,  recommendando  especial- 
mente á  sua  protecção  os  mal  tratados  e  opprimidos  christãos. 
Morto  Constâncio,  Constantino  foi  immediatamente  procla- 
mado imperador  pelo  exercito  em  York;  onde,  tendo  cingido 
a  purpura  imperial,  e  feito  as  exéquias  e  a   apotheose  de  seu 


143 

defunto    pai,    conforme   o    rito  pagão,  regressou  á  Gallia. 

Não  cabe  na  esphera  da  nossa  obra  detalhar  miudamente 
as  circunstancias  que  concorreram  para  tornar  Constantino 
senhor  absoluto  do  império  romano.  A  historia  deu  conta 
da  sua  assignalada  victoria,  sobre  Maxencio,  junto  á  pon- 
te Milviana  fora  das  portas  de  Roma;  das  duas  guerras  civis 
entre  elle  e  Licínio;  da  grande  batalha  d'Adrianopla,  onde 
se  diz  que  Constantino  obrara  prodígios  de  valor,  sem  igual 
nos  annaes  dos  feitos  militares,  e  declarados  quasi  incríveis, 
pelos  seus  próprios  inimigos;  do  cerco  de  Bysantio,  e  da  der- 
rota final  de  Licínio  na  batalha  de  Chrysopolis,  hoje  Scu- 
tari,  na  costa  da  Ásia  menor,  defronte  de  Constantino- 
pla. 

As  razoes  que  determinaram  Constantino  a  abraçar  o 
christianismo,  depois  de  atravessar  um  mar  de  sangue,  para 
conquistar  a  soberania  do  mundo,  acham  se  descriptas  por 
difíerentes  escriptores,  de  diversas  formas,  e  merecem  immi- 
nentemente  a  attenção  do  historiador  e  da  philosophia  mo- 
derna. E'  hoje  extremamente  difficil  descortinar  os  motivos 
que  o  levaram,  a  dar  tão  importante  passo;  e  com  tudo,  por 
difierentes  circunstancias,  devidamente  estudadas,  podere- 
mos, talvez,  conjecturar  com  muitos  vizos  de  probabilidade, 
esses  motivos,  sem  nos  aflastarmos  muito  da  realidade. 

E',  e  foi  sempre,  opinião  geral,  que  Constantino  abraçara 
a  religião  christã,  por  convicção  da  sua  verdade  divina. 
Com  tudo,  Mr.  Gibbon,  e  alguns  outros  escriptores  d'etes  últi- 
mos tempos,  suspeitam  que  motivos  políticos  o  determinariam 
a  dar  este  passo,  Sem  querer  profundar  os  segredos  d'um  prín- 
cipe que  reinou  ha  mais  de  1400  annos,  diversos  factos  nos 
levam  a  pôr  em  duvida  o  fundamento  das  supposições  de  Mr. 
Gibbon.  Aquelle  mimoso  escriptor  imagina  que  Constantino 
conhecendo  o  génio  turbulento  dos  romanos,  e  quanto 
era  precária  a  conservação  do  poder  imperial,  vendo  ao  mes- 
mo tempo  os  hábitos  pacíficos  dos  christãos,  podia  ter  cal- 
culado que,  abraçando  o  christianismo,  as  sanguinolentas 
revoluções,  que  a  tantos  imperadores  tinham  sido  fataes,  ter- 


144 

minariam;  e  que  chamando  os  christãos  ao  seu  partido,  poderia 
segurar,  para  si  e  para  os  seus  descendentes,  a  soberania,  invo- 
cando o  direito  divino  á  imitação  dos  reis  de  Judá,  que  d'a- 
quelle  modo  haviam  conservado  na  sua  famiiia  a  successão 
no  throno  de  David;  em  quanto  que  os  reis  dlsrael,  que  de- 
viam a  soberania  á  eleição  popular ,  haviam  partilhado  a 
mesma  sorte  que  coube  aos  imperadores  romanos,  cujo  poder 
dependia  da  escolha  do  povo  ou  do  exercito.  Em  apoio 
d  esta  idéa  discorre  Mr.  Gibbon ,  com  a  sua  costuma- 
da fluidez  d'estylo,  e  imaginação  fértil,  como  quem  tem  a 
convicção  do  que  avança;  e  suppoe  que  os  oradores  christãos, 
entre  os  quaes  era  Lactando  o  mais  eloquente,  saudando 
Constantino,  como  o  David  dos  romanos  por  direito  divino, 
lançavam  na  sua  famiiia  os  alicerces  dum  império  que  deve- 
ria passar  de  geração  em  geração  para  sempre.  A  imparcia- 
lidade, porem,  pede  que  se  diga  que  nas  circunstancias  do 
império  romano  d'aquelles  tempos,  nada  ha  que  authorise  a 
opinião  de  que  Constantino  abraçara  a  religião  christã  por  mo- 
tivos políticos,  ou  d'interesse  material;  porque  não  obstante 
o  raciocinio  eloquente,  mas  poético  de  Mr.  Gibbon  os  con- 
tras de  semelhante  passo,  debaixo  do  ponto  de  vista  politico, 
eram  superiores  a  todas  as  razões  que  se  podem  adduzir  em 
seu  favor. 

Ao  tempo  que  Constantino  subiu  ao  throno,  e  durante  to- 
do o  seu  reinado,  o  paganismo  era  a  religião  da  grande  maio- 
ria do  império,  e  a  maior  parte  da  força  militar  estava  nos 
pagãos  e  não  nos  christãos.  Segundo  o  calculo  do  próprio  Mr. 
Gibbon,  o  numero  d'estes  não  excedia  uma  vegesima  parte 
da  população  pagã  do  império,  calculo  que  dá  pouca  margem 
a  suppor  que  o  imperador  seguira  o  christianismo  com  o 
fim  de  segurar  o  poder.  E'  até  para  admirar  que  esta 
apostasia  não  produzisse  uma  revolta  entre  os  pagãos;  e  que 
expirante,  tendo  de  seu  lado  a  força  material,  não  luctasse 
contra  a  sua  queda  iminente.  E'  um  phenomeno  que  só  en- 
contra, abaixo  da  vontade  de  Deus,  explicação  satisfatória  na 
giandc    reputação  militar  do  imperador,  na  affeição  inviolável: 


145 

que  lhe  tributava  o  exercito  em  quanto  vivo.  e  extraordinária 
admiração  depois  da  sua  morte.  A  supposição  de  que  Cons- 
tantino estabelecera  a  religião  christã,  arrogando-se  o  direi- 
to divino,  deve-se  antes  attribuir  á  sua  íê  na  verdade  d'aquel- 
la  religião,  em  consequência  do  que  elle  poderia  esperar  do 
coo  aquelle  auxilio,  com  que  não  poderia  contar  da  parte  de 
seus  súbditos  pagãos. 

Se  a  celebre  visão  de  Constantino,  que  se  diz  elle  tiveYa  na 
marcha  contra  Maxencio,  e  que,  combinada  com  o  seu  so- 
nho anterior,  foi,  como  geralmente  se  cre,  a  causa  principal 
da  sua  conversão;  fosse  aquella  visão  um  facto  positivo,  ou 
meramente  uma  ficção,  aquella  circunstancia  só  por  si  bas- 
taria para  resolver  a  questão,  e  silenciar  todos  os  argumen- 
tos d'íiquelles  que  querem  insinuar  que  elle  adoptara  o  chris- 
tianismo  por  motivos  d'interesse  material. 

Diz-se-nos  que  estando  Constantino  na  Gallia,  fora  convi- 
dado pelo  senado  e  cidadãos  de  Roma  a  emprehender  a 
guerra  contra  Maxencio ,  que  governava  despoticamente 
capital  e  provincia,    que   constituía  a  sua  parte    do  império. 

Tão  depressa  Constantino  recebeu  este  convite,  que  elle 
mesmo  provavelmente  solicitou,  fez-se  immediatamente  em 
marcha  para  a  capital  do  mundo. 

As  suas  tropas  compunham-se  de  soldados  veteranos,  mas 
eram  incomparavelmente  em  numero  inferior  áquellas  que 
elle  sabia  bem  Maxencio  trazia  contra  si.  Elle  marchava 
contra  um  inimigo  de  quem,  no  caso  d'um  revez,  não  pode- 
ria esperar  misericórdia.  A  empreza  em  que  embarcara  era 
summamente  perigosa,  e  o  seu  fim  d'alta  importância  e  magni- 
tude. O  ponto  a  resolver  era,  se  elle  seria  imperador  do  Po- 
nente,  ou  se  seria  expulso  d'aquella  parte  do  império,  já  sob 
o  seu  dominio,   e  a  ambição    o  levou  a  fazer   a  experiência. 

Um  dos  nossos  historiadores  ecclesiasticos  quer,  que 
fosse  n'esta  conjuntura  difficil,  que  Constantino  meditara  se- 
riamente sobre  a  existência  d'um  Ente  Superior,  e  na  inter- 
venção cVum  poder  invisivel,  mas  regulador  das  cousas  do 
mundo;    raciocinando   ao  mesmo  tempo  sobre  a  sorte  tragi- 


ca  da  maior  parte  dos  imperadores  que  haviam  rendido  cul- 
to a  sem  numero  de  deuses;  e  que  seu  pai,  Constâncio,  â 
maneira  dos  philosophos,  adorara  sempre  um  só  Ente  Supre- 
mo e  Soberano  do  Universo,  a  cujo  auxilio  e  protecção  de- 
vera ser  bem  succedido  em  todas  as  suas  emprezas.  Como 
consequência  d'estas  reflexões,  dia  o  hostoriador,  Constan- 
tino ficou  extremamente  perplexo  sobre  o  verdadeiro  objecto 
d'adoração,  e  o  modo  mais  acceitavel  de  culto.  Elle  então  abriu  o 
seu  coração  ao  Senhor  do  Universo,  pediu-lhe  que  visse  a  sua 
sinceridade,  e  que  illuminasse  o  seu  espirito  no  verda- 
deiro caminho  que  lhe  cumpria  seguir  para  invocar  a  sua 
protecção  e  auxilio,  se,  por  intervenção  de  varias  deidades, 
segundo  o  rito  pagão,  se,  como  um  só  e  indiviso  Deus,  como 
ensinavam  as  doutrinas  da  religião  christã.  São  estas  as  en- 
genhosas supposições,   mas  só  supposieões. 

No  estado  precário  em  que  se  achava  Constantino  na  vés- 
pera d'uma  contenda  de  tamanha  magnitude,  de  cujo  resul- 
tado dependia  a  sua  vida  e  fortuna,  é  de  crer  que  elle  reflectis- 
se seriamente  sobre  este  assumpto;  e  como  fosse  costume  en- 
tre os  pagãos,  mais  ainda  do  que  entre  os  christãos,  implo- 
rar o  auxilio  Divino,  não  é  nada  para  admirar  que  Constanti- 
no, com  quanto  não  convencido  da  verdade  ão  christianis- 
mo,  começasse,  bem  como  muitos  outros  pagãos,  a  confiar 
pouco  nos  seus  deuses  e  a  suspeitar  que  o  paganismo  não 
passava  d'uma  impostura. 

N'aquelles  tempos  críticos,  quando  a  falsa  religião  princi- 
piava a  declinar,  e  que  o  christianismo  não  estava  ainda  es- 
tabelecido, é  muito  de  suppor  que  os  ânimos  andassem  agita- 
dos em  relação  a  matérias  religiosas.  Dum  lado  viam  um 
principio,  que  de  tempos  immemoriaes,  merecera  a  venera- 
ção da  humanidade,  caindo  em  descrédito,  menos  entre  a 
classe  sacerdotal  e  mais  interessados.  Viam  que  este  syste- 
ma  não  resolvia  satisfactorimente  o  grande,  o  mais  impor- 
tante, o  mais  difficil,  e  ao  mesmo  tempo  o  mais  interessante 
de  todos  os  problemas,  se  a  morte  era  a  extincção  completa 
da  existência,  ou  simplesmente  a  passagem  para  uma  existência 


147 

futura.  Doutro  lado,  viaixi  unia  religião  nascente  diametral- 
mente opposta  á  antiga;  uma  religião  que  apresentava  idéas 
infinitamente  mais  luminosas  e  rasoaveis  sobre  a  natureza  e 
attributos  d'um  Ente  Supremo  e  dos  deveres  moraes  e  religio- 
sos do  homem,  do  que  nunca  o  Paganismo  havia  dado,  e  que, 
sobre  tudo,  resolvia  o  problema  do  futuro  e  final  destino  da 
humanidade,  ensinando  que  a  vida  presente  não  é  mais  que 
uma  provação,  eque  um  futuro,  incomparavelmente  mais  perfei- 
to, aguarda  o  homem,  e  que  todos  sem  excepção,  teem  de 
comparecer  na  presença  do  Juiz  eterno  a  responder  pelos  seus 
actos  n'este  estado  provisório  de  existência,  e  receber  o  pre- 
mio das  suas  obras.  Esta  solução  fez  dissipar  muitas  outras 
duvidas  que  haviam  fatigado  o  espirito  e  ludibriado  os  maiores 
philosophos  de  todos  os  séculos.  A  revelação  christã  aclarou 
este  mysterio  a  que  a  philosophia  não  respondia  satisfatoria- 
mente. Os  pagãos  tinham  presenciado  a  constância,  a  fortale- 
za, e  até  mesmo  o  prazer  com  que  os  christãos  sofíriam  cruelis- 
simas  torturas  pela  sua  religião  ;  que  elles  não  podiam  expli- 
car, e  que  julgariam  inacreditável,  se  não  fossem  testemunhas 
occulares.  A  parte  pensadora  contemplava,  admirada,  tão  ex- 
traordinário phenomeno  moral,  e  começou  a  crer  que  no  chris- 
tianismo  havia  o  quer  que  era  de  mysterioso.  Não  ha  nos 
annaes  da  historia  epocha  mais  interessante  que  o  quarto  sé- 
culo,durante  o  tempo  que  vae  desde  as  primeiras  perseguições 
de  Diocleciano  e  Maximiliano,  até  á  completa  extincção  do 
paganismo  no  reinado  de  Theodozio  o  Grande.  Durante  este 
tempo,  mas  sobre  tudo  no  reinado  de  Constantino,  o  império 
Romano  vacillava  entre  duas  religiões  diametralmente  oppos- 
tas;  porque,  cumpre  notar  que,  com  quanto  o  christianismo  fos- 
se o  culto  seguido  na  corte,  desde  o  tempo  de  Constantino,  ex- 
ceptuando o  curto  reinado  de  Juliano,  a  maioria  do  povo  con- 
tinuava sendo  pagão,  até  ao  reinado  de  Theodosio.  É  preciso 
também  dizer-se  que  a  questão  que  preoccupava  os  ânimos  n'a- 
quelles  dias  não  era  tanto  em  relação  ás  opiniões  philosophicas} 
como  aconteceu  anteriormente,  mas  sobre  as  formas  e  cere- 
monias,  doutrinas  subalternas  e  outros  objectos  de  pouca  mon- 

20 


i48 

ta,  como  posteriormente  teem  levantado  conflictos  entre  os 
iheologos.  A  questão  prendia  com  doutrinas  e  idéas  essen- 
ciaes   e  fundamentaes. 

Neste  estado  vago  e  indeciso  da  rasào  humana  sobre  os 
negócios  mais  sérios  e  interessantes,  é  naturalíssimo  que  um 
homem  d'intelligencia  vigorosa  como  Constantino  ,  ape- 
zar  da  sua  educação  philosophica,  reflectisse  sobre  assumptos 
de  tanta  importância,  tanto  sob  o  ponto  de  vista  politico  como 
moral.  No  momento  critico  em  que  ellese  dispunha  a  conquis- 
tar o  mundo,  a  magnitude  da  contenda  o  deveria  levar  a  pe- 
sar as  circunstancias  e,  influenciado  pela  sua  combinação,  de- 
vemos admittir  a  versão  dos  historiadores  como  tendo  o  cu- 
nho da  probabilidade  acerca  da  maravilhosa  visão  que  ti- 
vera o  imperador  que,  com  quanto  merecesse,  geral- 
mente, credito  durante  muitos  séculos,  tem  sido  ultima- 
mente disputada  por  vários  historiadores  e  criticos ;  mormen- 
te pelos  inimigos  do  christianismo,  com  cujos  dogmas  se  não 
harmonisa. 

O  facto  alludido  é-nos  transmittido  pela  forma  seguinte  : 
Estando  Constantino  em  marcha  para  Roma,  e  meditando 
sobre  o  arriscado  da  sua  empreza,  plenamente  convencido 
do  illimitado  poder  d'um  Ente  Superior,  cujo  nome  elle  não  sa- 
bia invocar,  ecuja  protecção  não  sabia  também  pedir,  figurou- 
se-lhe  ver  na  atmosphera  uma  cruz  resplandecente,  com  esta  no- 
tável legenda  ;  «ifo  hoc  signo  vinces. »  Tanto,  elle  como  o  seu 
exercito  ficaram  attonitos  ;  mas  ignorando  como  interpretar 
o  aviso  celeste,  e  sem  poder  achar  uma  explicação  satisfacto- 
ria,  segundo  as  regras  do  paganismo,  ainda  vacillou  entre  a 
esperança  e  o  receio,  entre  a  fé  e  a  descrença.  Accrescenta-se, 
porem,  que  na  noite  seguinte  o  próprio  Christo  appareceu  ao 
imperador  em  sonho,  mostrando  lhe  o  mesmo  estandarte 
triumphante  da  cruz  que  elle  vira  na  véspera,  afiançaudo-lhe 
d'um  modo  iniquivoco  a  victoria  sobre  o  seu  antagonista,  sob  os 
seus  auspicios:  Constantino  adoptou  immediatamente  a  cruz 
como  estandarte,  e  fez  abrir  aquelle  emblema  nos  escudos  dos 
soldados ;  c  é  certo  que  a  cruz  com  o  mysteroso  monograrn- 


(49 

mo,  significando  o  nome  de  Christo,  circundada  d'uma  espécie 
de  coroa,  e  collocada  na  parte  superior  usou-se  corno  guião 
imperial,  tanto  durante  o  reinado  de  Constantino,  como  de 
seus  succcssores.  Apoz  esta  milagrosa  visão  e  sonho,  Constan- 
tino marchou  sobre  Roma  cheio  de  confiança,  eás  portas  d'a- 
quella  capital  ganhou  a  Maxencio  aquella  assignalada  victo- 
ria,  que  lançou  por  terra  o  tyranno  e  desembaraçou-o  de 
toda  a  opposição.  O  triumpho  de  Constantino  é  veridico, 
com  quanto  seja  posto  em  duvida  o  milagre  que  o  prece- 
deu. 

Eusébio,  bispo  de  Cezarea,  historiador  de  grande  celebri- 
dade e  geralmente  tido  na  conta  de  verdadeiro,  homem  de 
extraordinária  erudição,  e  intimo  de  Constantino,  é  o  au- 
thor  d'esta  narração;  e  assevera  que  o  ouvio  ao  próprio  im- 
perador em  conversação  particular.  Poucos  acontecimentos 
históricos  trazem  tão  authentico  cunho,  porque  poucas  são 
as  authoridades  tão  respeitáveis  como  esta. 

Mas,  considerando  a  questão  por  outro  lado,  é  de  notar 
que  Eusébio  só  escrevesse  isto  depois  da  morte  de  Constanti- 
no, quando  já  elle  nem  podia  confirmar,  nem  negar  o  facto. 
Esta  circunstancia  colloca  a  questão  em  terreno  menos  fir- 
me; pois  seria  muito  d'admirar  que  o  imperador  não  reve- 
lasse aquelle  acontecimento  a  mais  ninguém.  Mas,  estavam 
aquelles  que  põe  em  duvida  o  que  nos  relata  Eusébio,  cer- 
tos que  o  publico  ignorava  a  circunstancia  da  visão  antes 
que  o  escriptor  se  encarregasse  de  a  transmittir  á  posterida- 
de? Não  parecerá  provável  que  o  facto  fosse  conhecido  an- 
tes   da    sua  publicidade  por    Eusébio? 

Diz-se-nos  que  a  visão  fora  presenciada  por  todo  o  exerci- 
to, composto  de  pagãos  e  christãos;  e  que  Constantino  con- 
sultara os  sacerdotes  e  adivinhos  do  paganismo  e  bem  assim 
os  prophetas  christãos  sobre  a  significação  d 'aquella  apparição. 
Diz-se-nos  mais  que  tendo-lhe  estes  prometíido  a  victoria  sob 
as  bandeiras  invenciveis  da  cruz,  elle  fizera  construir  o  lába- 
ro ou  guião  romano,  que  adoptou  como  estandarte  militar. 
A    ser     isto    veridico,    era   forçosamente    do    domínio     pu- 


150 

btie*  •  mesmo  salta  aos  olhog  que,  se  não  um  facto  fosse  no- 
tório,  Eusébio  não  imporia  ao  mundo  um  conto  romântico, 
que  o  ridicularizaria  aos  olhos  de  pagão»  e  christãos  in- 
telligentes. 

Também  se  nos  diz  que  o  lábaro  não  foi  adoptado  por 
Constantino  senão  muitos  annos  depois  d'aquelle  aconteci- 
mento, porque  não  tendo  ainda  assumido  o  governo  universal 
do  império,  não  julgava  politico  reformar  os  emblemas  mi- 
litares. Sem  interferirmos  n'este  ponto  da  historia,  deve- 
mos francamente  convir  que  não  è  uma  simples  questão  de 
tempo  que  pôde  influir  sobre  a  veracidade  do  facto;  e  é*  na- 
tural que  em  quanto  o  governo  do  império  se  dividia  entre 
vários  imperadores,  seria  da  parte  de  Constantino  impolitico 
e  talvez  perigoso,  adoptar  a  cruz  por  divisa  militar  numa 
parte  do  império,  em  quanto  as  águias  fluctuavam  n'uma  ou- 
tra. A  occasião  mais  própria  seria  sem  duvida  quando  um 
christão  se  fizesse  senhor  absoluto  dos  domínios  romanos. 


DECIMA  QUARTA 


Depois  da  investigação  que  fizemos  para  anaíysar  os  moti- 
vos que  levaram  Constantino  a  proteger  o  christianismo  e  sanc- 
cional-o  no  império,  aquelles  que  se  deleitam  em  seguir  passo 
a  passo  o  progresso  da  humanidade,  terão  curiosidade  de  co- 
nhecer o  estado  da  religião  durante  o  resto  deste  reinado 
memorável,  e  acharão  no  meio  das  suas  inquirições  abundan- 
te matéria  para  a  reflexão. 

Durante  os  primeiros  três  séculos  do  christianismo,  no  seu 
progresso  gradual ,  como  um  principio  que  unia  um  grupo 
d'homens,  sob  certas  regras  e  regimen,  tinha  soffrido  varias 
mudanças,  não  obstante  conservarem-se  intactas  suas  doutri- 
nas fundamentaes.  Princípios  fundados  na  verdade  eterna 
teem  forçosamente  de  se  conservar  puras.  Nem  o  decurso  do 
tempo,  nem  qualquer  mudança  d'opinião  pode  mudar    a   na- 


i5i 

tureza  da  verdade.  lia  formas,  ceremonias  e  opiniões  secun- 
darias ligadas  áquelles  princípios  fixos  que  constituem  a  base 
da  religião,  e  estas  são  mudáveis.  Em  todas  as  communida- 
des,  religiosas  ou  politicas,  ha  certas  leis  e  regulamentos  ne- 
cessários ao  bem  estar  de  seus  membros.  As  leis  e  regulamen- 
tos das  administrações  politicas  fazem-se  conforme  as  circuns- 
tancias especiaes,  physicas  ou  moraes,  de  cada  communidade, 
e  variam  em  harmonia  com  as  variações,  e  vicissitudes  huma- 
nas :  d'aqui    nasce    a  differença  dos  systemas  políticos. 

Na  religião,  as  ceremonias,  com  as  suas  instituições  par- 
ticulares estão  sujeitas  a  modificações  conforme  as  cir- 
cunstancias dos  tempos  e  das  nações,  etem  sido  sempre  con- 
sideradas por  homens  moderados  e  cTespirito  liberal  d'este  modo 
sem  prejuiso  dos  dogmas  e  doutrinas  estabelecidos.  E' isto  que, 
em  matéria  de  religião,  estabelece  a  demarcação  entre  o  essen- 
cial e  não  essencial.  No  começo  do  christianismo,  quando  os 
seus  adeptos  eram  poucos,  e  que  interesses  pessoaes  e  op- 
postos  não  perturbavam  o  socego  da  egreja,  o  systema  eccle- 
siastico  era  como  se  pôde  bem  suppor,  de  natureza  mais  sim- 
ples. A'  proporção  que  crescia  o  numero  de  christãos,  addicio- 
navam-se  novos  regulamentos  para  a  manutenção  da  ordem. 
Os  dignitários  da  egreja  eram  ao  principio  eleitos  pelo  suffra- 
gio  combinado  do  clero  e  do  povo,  mas  com  o  correr  do  tem- 
po o  tumulto  e  a  desordem  que  se  davam  nas  eleições  popula- 
res, fez  pôr  de  parte  o  suffragio  do  povo,  e  o  clero  só  predo- 
minava na  eleição  de  seus  bispos  ;  porem,  depois  que  Cons- 
tantino sanccionou  e  protegeu  a  religião  christã,  a  educação 
dos  prelados  era  dirigida  directa  ou  indirectamente  pelo  im- 
perador. Durante  o  reinado  dos  imperadores  pagãos,  os  chris- 
tãos tinham  se  tornado  uma  classe  opulenta  ;  mas  quando  a 
sua  religião  recebeu  a  sancçâo  imperial,  uma  nova  épocha  se 
offereceu  á  egreja  sob  os  auspicios  de  Constantino.  Esta  foi  a 
idade  d'ouro  dos  ecclesiasticos  :  no  periodo  anterior  algumas 
egrejas  tinham  sido  liberalmente  sustentadas  pela  devoção  • 
zelo  das  pessoas  ricas  ;  mas  ainda  assim  a  posição  do  clero  era 
precária  e  despresivel  aos  olhos  dos  pagãos.  Mais  tard«  viveu 


152 

coei  fausto  de  príncipes,  respeitado  e  estimado  de  todas  as 
classes  do  império.  Dantes  esteve  sumido  nas  trevas  da  obscu- 
ridade ;  mas  agora  deleitava-se  aos  raios  vivificantes  das  hon- 
ras, riquezas  e  protecção  imperial.  Começa  agora  uma  era  no- 
va. O  polytheismo  e  a  idolatria)  que,  de  tempos  immeraoriaes, 
pela  pompa  de  suas  ceremonias  e  esplendor  cias  festividades, 
mereceram  a  veneração  da  humanidade,  cahiram  em  descré- 
dito ;  e  o  christianismo,  que  por  tanto  tempo  fora  o  objecto 
do  desprezo  universal,  e  frequentemente  de  cruéis  persegui- 
ções triumphou  finalmente  de  toda  a  opposição,  e  ficou  sendo 
a  religião  do  estado  dos  senhores  do  mundo.  O  império  roma- 
no viu  magnificas  egrejas  erigidas  ao  culto  do  Deos  Crucifi- 
cado, cujo  nome  fora  desprezado  por  tanto  tempo;  e  os  ritos 
da  religião  christã,  celebradas  com  pompa  e  solemnidades, 
eguaes,  senão  mesmo  superiores,  ao  que  apresentava  o  pa- 
ganismo. Uma  revolução  completa  estava  tendo  logar  em  ma- 
térias religiosas.  Que  diria  a  isto  um  christão  do  tempo  dos 
apóstolos,  ou  mesmo  da  edade  immediata  se  tivesse  resuscita- 
do  ?  E  que  espectáculo  para  os  que  viveram  no  tempo  cias  hor- 
riveis  perseguições  de  Diocleciano,   Maximiliano,  e    Galerio  ! 

Mas  para  estes  havia  ainda  um  outro  ponto  não  menos  ex- 
traordinário. Olhariam  cora  surpreza  a  recente  opulência  e 
explendor  dos  ministros  da  relegião.  Veriam  ecclesiasticos 
vivendo  sumptuosamente  e  disfructanclo  rendas  de  principes. 
Que  diria  o  christão,  cujas  idéas  foram  modeladas  pela  simpli- 
cidade e  desinteresse  dos  tempos  primitivos,  vendo  os  mi- 
nistros do  humilde  Jesus,  que  não  tivera  aonde  abrigar  a 
cabeça,  ostentar  a  magnificência  de  reis !  E  quaes  não  se- 
riam suas  reflexões  olhando  os  privilégios  e  proventos,  ins- 
tituídos pelos  suecessores  d'aquelle  cuja  vida  fora  uma  serie 
continuada  de  pobreza  e  privações,  e  cujas  doutrinas  respira- 
vam completo  desprezo  pelas  cousas  d'este  mundo. 

No  reinado  de  Constantino  a  egreja  floresceu;  mas  é  certo 
que  o  espirito  de  genuíno  christianismo,  em  grande  parte, 
se  extinguio.  O  imperador  estabeleceu  grandes  côngruas  ás 
differentes  dioceses;    e    os  prelados  e    mais   ecclesiasticos  co- 


153 

meçavam  a  se  esquecerem,  não  só  tlá  humildade  e  desprezo 
do  mundo  de  que  dera  tão  vivo  exemplo  o  Anthor  da  religião, 
mas  até  mesmo  da  caridade  e  beneficência  que  ô  chrstianis- 
íiio  tanto  recommenda.  A  historia  ecclesiastica,  que  até  ahi 
apresentara  paginas  tão  negras  e  sanguentas  dos  soffrimen- 
tos  da  egreja  pelas  perseguições  pagãs,  começoií^a  desen- 
volver outras  não  menos  hediondas  de  perseguição  de  chris- 
tãos  a  christãos;  e  com  uma  crueldade  pouco  inferior  á  que 
haviam  exercido  os  sectários -do  paganismo. 

Antes  de  Analisar  a  idade  apostólica,  levantaram-se  confli- 
ctos  entre  os  christãos  sobre  matérias  religiosas.  Não  ê  hoje 
nada  fácil  descortinar  as  opiniões  e  crenças  d'aqueíles  here- 
ges da  antiguidade,  porque  a  maior  parte  dos  escriptos  fo- 
ram destruídos  ou  perdidos;  consequentemente  o  que  d'ellas 
sabemos  provem  dos  argumentos  do  partido  orthodoxo;  e  a 
experiência  quotidiana  bem  demonstra  quanto  os  escripto- 
res  tendem  a  inverter  as  doutrinas  de  seus  adversários.  Com- 
tudo,  algumas  opiniões  tem  atravessado  os  séculos  sem  vicia- 
ção e  tem  achado  sectários.  Cerintho,  herege,  como  o 
appellidavam,  e  que  viveu  nos  fins  do  primeiro  século,  julga- 
se  ter  sido  o  primeiro  que  violou  a  doutrina  do  millennio, 
fundando  se  em  alguma  difíicil  e  obscura  passagem  do  Apo- 
calypse.  Esta  opinião  dura  ainda  hoje,  e  é  sustentada  por 
muita  gente  illustrada,  respeitável  e  piedosa.  Os  Manicheos, 
que  ensinavam  a  existência  simultânea  e  eterna  d'um  prin- 
cipio bom  e  outro  mau,  eram,  não  menos,  uma  seita  notável  nos 
tempos  primitivos;  e  o  scisma  dos  Donatistas  por  muito  tem- 
po dividiu  a  egreja  em  dous  grupos  oppostos.  As  differentes 
seitas  do  christianismo  ,  que  se  tem  estigmatisado  com  o 
nome  de  hereges,  são  demaziadamente  numerosas  para  men- 
cionarmos em  detalhe;  e  muito  menos  podemos  tratar  de  seus 
princípios,  porque  sem  duvida  a  sua  ramificação  é  irnmensa. 

Convém,  todavia,  notar  que  uma  grande,  e  talvez  princi- 
pal causa  da  diversidade  d'opinião  entre  os  christãos  foi  a  di- 
ligencia que  se  fez  para  entrelaçar  os  absurdos  do  paganis- 
mo, e  os  prejuisos  das  tradições  judaicas,    com  as  doutrinas 


154 

do  christianisrno;  e  não  deve  passar  desapercebido,  que  to- 
dos os  proselytos  d'esta  religião,  tendo  sido  educados  naquel- 
la  dos  judeus  ou  dos  pagãos,  muitos  dos  quaes  eram  já  de 
avançada  idade  ao  tempo  da  sua  conversão,  é  naturalíssimo 
que  conservassem  muitos  de  seus  antigos  prejuisos;  e  que 
muitas  idéas  judaicas  e  pagãs  sobre  assumptos  metaphysicos 
se  introduzissem  no  culto  christâo.  Idéas  arreigadas  difficil- 
mente  se  destroem:  alem  de  que,  quando  differentes  indiví- 
duos argumentam  sobre  qualquer  ponto  duvidoso,  é  quasi 
impossível  concordarem  todos.  As  nossas  idéas  e  actos  são 
subordinados  a  mil  eventualidades,  e  vistas  as  cousas  por  dif- 
ferentes formas,  a  differença  d'opiniao  em  matérias  religiosas 
é  inevitável. 

Durante  o  predomínio  do  paganismo  aquellas  contendas 
entre  os  christãos  subjugavam-se.  Em  quanto  christãos,  or 
thodoxos  ou  heterodoxos,  sem  distineção,  viam  a  espada  da 
perseguição  desembainhada  contra  si,  ou  suspensa  sobre  a  ca- 
beça, o  seu  rancor  abrandava,  ou  limitava  se  ao  desabafo  da 
penna,  ou  aos  anathemas  da  intolerância,  mas  tão  depressa 
o  christianismo  triumphante  sobre  o  inimigo  commum,  obti- 
vera a  saneção,  e  podia  reclamar  o  apoio  da  authoridade  im- 
perial, as  differentes  seitas  christãs  começaram  a  manifestar, 
umas  contra  as  outras,  uma  animosidade,  quasi  igual  ao 
rancor  da  perseguição  pagã. 

A  differença  d'opinião  sobre  objectos  theologicos,  origem 
do  scisma  na  egreja,  que  mais  tempo  durou  e  que  avulta 
na  chronica  religiosa  mais  que  nenhum  outro  anterior  á  re- 
volução começada  por  Luthero,  foi  aquelJe  conhecido  pelo 
nome  de  heresia  ariana.  De  todos  os  philosophos  da  anti- 
guidade, Platão  dera  largas  ao  seu  génio  sublime,  procuran- 
do Bondar  a  incomprehensivel  natureza  d'um  Ente  superior, 
causa  primaria  e  author  preexistente  de  tudo.  Este  philoso- 
pho  atheneu  tendo-se  entregue  á  contemplação  da  Deidade, 
não  podia  comprehender  a  essência  divina  senão  sob  a  trí- 
plice modificação  de,  poder  infinito,  sabedoria  perfeita,  e  bon- 
dade illimitada. 


m 

Esta  concepção  denominava  elle  «Primeira  grande  caimã^ 
<ou  origem  de  tudo, — Sabedoria  eterna,  a  que  chamava  Lo- 
gos —  alma  ou  espirito,  que  percorre  e  anima  o  universo. 
A  sua  imaginação  poética  personificou  estas  idéas  abstractas; 
e  no  systema  platónico  estes  três  originaes  princípios  são 
representados  como  três  entidades  distinctas  de  poder,  sabe- 
doria e  bondade  infinitos,  co-iguaeseco-eternas,  e  indissoluvel- 
mente unidas,  formando  a  mysteriosa  trindade  em  uma  uni- 
dade incomprehensiveh 

Esta  sublime  e  mysteriosa  definição  da  Divindade  denomi- 
nasse Trindade  Platónica  e  aproxima-se  mais  das  doutrinas 
fundamentaes  da  revelação  do  que  se  podia  esperar  dos  esforços 
da  razão  desajudada..  Santo  Agostinho,  com  outros  padres 
das  primeiras  idades,  admirando  a  sublime  concepção  de  Pla- 
tão, diz,  que  com  pequena  difíerença,  bem  se  podia  ter  aquel- 
le  grande  philosopho  na  conta  de  christão,  e  os  Platónicos 
asseveraram  que  o  começo  do  evangelho  de  San-João,  fora 
uma  reproducção  fiel  da  sua  doutrina. 

A  confirmação  feita  pela  escriptura  aos  princípios  funda- 
mentaes da  theologia  de  Platão  levou  os  christãos  illustrados 
do  segundo  e  terceiro  século  a  estudarem  os  escriptos  d'aquel- 
le  incomparável  philosopho;  cujo  génio  penetrante,  se  dizia, 
antecipara  as  doutrinas  da  revelação,  concebendo  idéas  sobre 
a  essência  divina  que  o  christianismo  confirmou.  As  conse- 
quências remotas  e  as  illações  possíveis  das  hypotheses  de 
Platão  foram  investigadas  em  todas  as  suas  ramificações;  e 
suscitaram-se  questões  subtis  e  inexplicáveis  em  relação  á  na- 
tureza, egualdade,  e  distincção  das  Pessoas  divinas  da  indivi- 
sa e  mysteriosa  Trindade;  questões  indubitavelmente  superio- 
res á  comprehensão  da  mais  elevada  intelligencia  humana, 
mas  mesmo  assim  a  irrequieta  curiosidade  dos  philosophos  os 
incitava  a  explorar  os  segredos  do  profundo  abysmo :  e  o 
mesmo  espirito  de  curiosidade  influio  sobre  os  theologos  chris- 
tãos, e  philosophos  do  paganismo,  nas  escolas  de  Athenas  e 
Alexandria. 

Estas  indagações,  concernentes  á  incomprehensivel  e  mys- 

21 


156 

íeriosa  JiaUireza  da  Divindade,  não  passaram  de  meras  cem* 
-jeCHiras  philosophicarj  entre  os  pagãos  illustrados.  Não 
aconteceu  quando  a  mesma  questão  começou  a  chamar 
a  attejíçâo  dos  theologos  cbristãos.  Quando  o  eterno 
L'Qgos'j  o  verbo,  ou  o  Filho  de  Deos  foi  revelado  como  objecto 
de  fé"  e  culto,  e  base  das  esperanças  da  humanidade,  uma  idéa 
clara,  ou  antes  uma  crença  implícita  (Testes  insondáveis  mys- 
íerios,  teve- se  como  essencialmente  necessário  aos  interesses 
espirituaes.  Estas  duvidas  subtis  tornaram-se  geraes,  agitan- 
do os  espíritos  dos  cbristãos  em  toda  a  parte,  e  por  fim  lan- 
çou a  egreja  n'um  estado  de  confusão  e  discórdia.  Os  cbris- 
tãos duvidavam  que  opinião  deviam  seguir  em  relação  á  pes- 
soa e  natureza  de  Christo.  Estes  pontos  não  tinham  sido-  de- 
terminados ainda  pela  authoridade  da  egreja  universal  e  cada 
um  modelou  a  sua  opinião  a  seu  modo. 

A  maioria  adoptou  o  principio  da  natureza  divina  de  Chris- 
to e  perfeita  egualdade  das  três  Pessoas  da  Santissima  Trin- 
dade, em  quanto  que  uma  parte  numerosa,  tendo  por  chefe, 
Ario,  um  padre  de  Constantinopla,  sustentava  que  o  Filho  é 
essencialmente  differente  do  Pai  ,  e  subordinado  a  este  ;  que 
é  um  Ente  espontâneo  e  dependente,  creado  pela  Suprema 
vontade  do  Pai,  e  gerado  antes  da  creação  dos  mundos  ;  que 
o  Pai  estampara  nelle  os  raios  da  sua  gloria,  envasando  n'el- 
le  o  seu  espirito  ;  que  elle  fora  o  architecto  do  mundo  e  que 
elle  governa  o  universo  sujeito  e  subordinado  á  primeira 
Pessoa  da  Trindade,  seu  pai  e  Soberano.  Taes  eram  as  idéas 
abstrusas  e  questões  intrincadas  que  agitaram  o  orbe  christão, 
e  que  perturbaram  a  paz  da  egreja  durante  o  longo  período 
de  quasi  trezentos  annos  ;  mas  especialmente  no  quarto  sécu- 
lo, quando  os  que  adoravam  o  Deos  de  misericórdia  e  amor, 
os  pretendidos  sequases  do  benévolo  Redemptor ,  tendo 
adquirido  o  apoio  do  poder  secular,  divicliram-se  em  dous  par- 
tidos oppostos  e  hostis,  fulminando-se  mutuamente  em  nome 
d'Aquelle,  que,  do  cé*o,  desceu  á  terra  para  a  salvação  da  hu- 
manidade. 

Concebe-se  facilmente  que  Constantino,  vendo  aquelles  quo 


Í57    - 

professavam  o  christianismo  divididos  entre  si,  íiao  poderia, 
sem  magoa,  contemplar  um  scisma  que  dividia  a  egreja  e de- 
primia uma  religião  que  elle  tivera  tanto  a  peito  estabele- 
cer. 

Com  o  intuito  de  por  termo  á  discórdia,  e  assentar  um 
principio  de  fé*  cliristà,  convocou  o  celebre  concilio  de  Nice 
no  anno  325,  que  se  compoz  de  378  bispos  e  outros  ecelesias- 
licos  em  numero  de  2048.  Depois  d'uma  sessão  de  dous  me- 
zesaque  o  imperador  assistia  frequentemente,  a  opinião  d'A- 
rio  foi  condemnada,  a  egualdade  das  três  Pessoas  da  Santís- 
sima Trindade  foi  declarada  dogma,  e  as  resoluções  do  conci- 
lio, comprehendidas  no  credo  Niceno,  foram  publicadas  como 
credo  obrigatório  e  único    orthodoxo  da  igreja  christã. 

Antes  que  Constantino  abraçasse  o  christianismo,  estabele 
cera  a  liberdade  de  consciência  sobre  bases  liberaíissimas ;  e 
nào  se  vê  que  elle  perseguisse  os  pagãos,  nem  seria  essa  me- 
dida de  modo  algum  politico,  porquanto,  em  todo  o  tempo  do 
seu  reinado  compunham  elles  a  grande  maioria  de  seus  súbdi- 
tos. Comtudo,  pouco  depois  do  concilio  de  Nice,  começou  a 
perseguir  os  arianos :  banio  Ario  para  a  Illyria,  e  excluiu  o 
clero  ariano  dos  benefícios  de  que  os  catholicos  gosavam  lar- 
gamente. Elle  depois  promulgou  um  edicto,  prohibindo  ex- 
pressamenre  os  ajuntamentos  dos  arianos,  e  d'outras  seitas, 
sob  pena  de  confisco  de  propriedade.  Fora  este  o  primeiro  ca- 
so de  perseguição  de  christãos  contra  christãos  servindo  se  ão 
poder  secular ;  mas  o  exemplo  tem  sido  constantemente  se- 
guido. Não  resta,  porem,  duvida  alguma,  que  o  procedimen- 
to do  imperador  a  este  respeito,  fosse  influenciado  pelo  clero? 
cujos  motivos  particulares  elle  não  podara  conhecer  >  e  mais 
adestrado  no  commando  e  direcção  d'exercitos,  que  não  nos  es- 
tratagemas das  disputas  theologicas,  era  facilmente  arrasta- 
do, pelos  seus  conselhos,  a  medidas  violentas  e  contradicto- 
rias  mesmo.  De  facto,  vemol-o,  a  instancias  d'alguns  bispos,re- 
vogar  a  deportação  de  Ario;  e  tão  mal  encaminhado  fora  por 
falsas  accusaçÕes  qué  nerseguio  Ath^nasio,  o  campeão  do  con* 
eilio  de  Nice  o  streiruo  defensor   das   suas   doutrinas,  que  o- 


Í5S 

imperador  zelosamente  sustentara  como  orthodoxo  da  fé  ess- 
íholic-a. 

O  reinado  de  Constantino  abunda  em  grandes  e  importan- 
tes acontecimentos  *  entre  os  quaes  se  pôde  contar  a  cons-. 
trucçíío  de  Constantinopla  sobre  os  alicerces  da  antiga  Byzan- 
tio,  e  a  transferencia  da  sede  do  império  de  Roma  para  aquel- 
la  nova  capital.  A  residência  da  corte  tinha  sido  de  facto 
mudada  trinta  annos  mais  cedo.  Os  imperadores  associados. 
Diocleciano  e  Maxiniiliano,  não  residiam  em  Roma  :  o  pri- 
meiro residia  na  Necomedia,  e  o  segundo  geralmente  em  Mi- 
lão, Galerio  residia  na  Nicomedia,  Constantino  Cloro  em  York* 
e  por  espaço  de  trinta  annos  antes  da  fundação  de  Constan- 
tinopla, Roma  pouco  disfrutára  a  presença  de  seus  imperado- 
res. 

A  transferencia  da  residência  imperial  de  Roma  para  Cons- 
tantinopla mereceu  a  censura  de  vários  escriptores,  attribuin- 
do-se  como  causa  principal  da  queda  do  império  :  comtudo 
difiicilmente  se  poderá  affirmal-o.  Não  se  pôde  suppor  que  o 
desmembramento  do  império  se  não  effectuaria  subsistindo  a 
sede  do  governo  em  Roma.  As  razões  que  levaram  Constan- 
tino a  preferir  Bysantio  a  Roma  são  desconhecidas.  Suppõe  se 
que  tendo  Diocleciano  e  Maximiliano  combinado  um  plano 
cTadministração  mais  regular  e  systematicamente  despóti- 
co que  aquelle  de  quaesquer  imperadores  precedentes,  e  de- 
sejando abolir  todas  as  formas  republicanas  ainda  existentes, 
e  a  pôr  de  lado  inteiramente  a  authoridade  nominal  que  o  se- 
nado ainda  possuía,  haviam  fixado  a  sua  residência  distante 
da  antiga  capital  do  império,  a  fim  de  se  subtrahirem  ás  repre- 
sentações e  queixas  daquelle  respeitável  corpo.  E'  provável 
que  motivos  eguaes  influissem  sobre  Constantino,  porque  a  sua 
administração  era  mais  despótica  ainda  que  a  de  Dioclecia- 
no e  Maximiliano,  e  seguia  aquelle  systema  despótico  que  es- 
tes imperadores  haviam  começado.  Anterior  ao  reinado  dos 
já  mencionados  imperadores,  era  o  senado  geralmente  consul- 
tado, pro-forma  que  fosse,  com  quanto  em  nada  alterasse  o 
despotismo  do  governo ;  porque  o  senado  rarissimamente  dei- 


159 

xava  de  se  conformar  com  a  vontade  do  imperador,  em  quan- 
to que  este  estava  á  disposição  da  guarda  pretoriana  ou  dos 
legionários.  Diocleciano,  pouco  depois  de  subir  ao  poder» 
adoptou  o  systema  de  governar  sem  a  formalidade  de  con- 
sultar o  senado;  e  depois  que  Constantino  removera  a  sede  do 
império  para  Constantinopla,  o  poder  do  senado  passou  a  ser 
honorário  e  quasi  que  se  não  podia  reputar  um  poder  do  es- 
tado. Muitos  attribuem  a  escolha  feita  por  Constantino  d'uma 
nova  capital  á  indisposição  que  nutria  contra  Roma  em  razão 
da  predilecção  d'aquella  cidade  pelo  paganismo.  E'  forço- 
so porem  confessar  que  a  posição  de  Constantinopla  era,  a  to- 
dos os  respeitos,  quasi,  infinitamente  preferível  áquella  de  Ro- 
ma ;  e  considerando  a  extensão,  localidade  e  circumstancias 
dos  domínios  romanos, Constantinopla e  Milão  eram  indubita- 
velmente os  pontos  mais  apropriados  para  estacionarem  os 
chefes  militares  do  império.  Milão  situado  junto  á  fronteira 
septentrional  da  Itália,  proporcionava-se  admiravelmente  pa- 
ra aquelle  fim  ;  porque  ali  estava  o  imperador  sempre  habili- 
tado a  repellir  as  aggressões  das  nações  germânicas  que,  no 
reinado  de  Aureliano  lançaram  Roma  num  estado  de  alarme  e 
consternação.  Constantinopla  era  o  ponto  mais  importante 
do  império  para  deter  os  Persas,  e  como  barreira  contra  as 
invasões  dos  godos,  aquelles  inimigos  terríveis  de  Roma  que, 
nas  suas  embarcações  de  vime,  saindo  a  foz  do  Danúbio,  na- 
vegavam frequentemente  noBosphoroeHellesponto,  saquean- 
do e  devastando  a  Grécia  e  a  Ásia  menor,  e  que  no  reinado 
de  Galliano  ameaçaram  a  devastação  completa  de  todas  as 
partes  orientaes  do  império  desde  o  Euphrates  até  ao  Adriáti- 
co. Esta  formidável  invasão  não  foi,  sem  grande  difficuldade 
e  prodigiosa  mortandade,  repellidapelo  talento  militar  e  ener- 
gia do  imperador  Cláudio ;  e  no  reinado  de  Phrobo,  tendo  os 
germanos  invadido  aGallia  foram  expulsos  por  este  impera- 
dor com  enormes  perdas.  D'ahi  por  diante,  os  godos  e  ger- 
manos tornaram-se  inimigos  terríveis  de  Roma,  e  tendo  sabo- 
reado as  ricas  prezas  das  suas  províncias  prevalesciam-se  cie 
todas  as  occasiões  para  invadir  e  roubar.     . 


MH) 

Por  estes  motivos  a  residência  dos  imperadores,  com  o  cor- 
po piinoipal-das  forças  militares  em  Milão,  ou  em  alguma  ou- 
tra estação  das  províncias  orientaes,  não  muito  distante  do 
Danúbio  e  do  mar  euxino,  era  mais  necessária  e  mais  condu- 
cente á  segurança  do  império,  que  não  em  Roma. 

Considerando  a  posição  geograpbicaetopograpliica  de  Cons- 
tantinopla com  a  sua  linda  e  pittoresca  disposição  de  terra  e 
mar,  facilmente  comprehendemos  a  razão  da  sua  preferencia 
a  Roma.  Ambas  as  cidades  estão  em  clima  temperado;  fican- 
do Roma  em  41°  50'  de  latitude  e  Constantinopla  em  41°  10'. 
Constantinopla  assenta  sobre  um  terreno  elevado,  suavemen- 
te acci dentado,  subindo  em  amphitheatro  e  sem  aquelles 
valles  profundos  que  separam  os  sete  montes  sobre  os  quaes 
se  aclia  construída  Roma  ;  e  que  com  os  pântanos  juntos  ao 
Tybre  tornam  insalubre  o  ar.  A  cidade  espraia-se  em  forma 
de  triangulo,  cujos  lados  são  o  porto,  o  Bosplioro  eo  Propon- 
to  ou  mar  de  marmora.  O  porto,  ao  norte  da  cidade,  é  vasto 
e  seguro,  tendo  a  entrada  cerca  de  quinhentos  metros  de  lar- 
gura desde  o  Bosplioro  e  correndo,  terra  dentro,  sete  milhas. 
Desde  o  mar  negro  até  á  ponta  do  serralho,  o  Bosphoro  tem 
18  milhas  de  comprido,  variando  entre  milha  e  milha  emeia 
de  largo,  serpenteando  graciosamente.  Navegando  pelo  Pro- 
ponto  em  direcção  a  Constantinopla,  as  mais  encantadoras 
vistas  se  offerecem  ao  viajante,  que,  de  toda  a  parte  d'aquel- 
le  mar  descobre  as  terras  altas  da  Thracia  e  da  Bithynia,  sem 
perder  nunca  de  vista  o  Monte  Olympo,  até  que  por  fim  a 
cidade,  subindo  da  beira  mar,  prende-lhe  a  attenção  com  a 
sua  magnifica  perspectiva. 

Constantinopla  pode,  pela  sua  posição,  dispor  do  commer- 
cio  das  vastas  regiões  do  norte  pelo  mar  negro  e  pelos  rios 
Don  e  Dnicper  que  no  mesmo  dtsaguam  peloHellesponto  que 
communica  o  Proponto  com  o  Mediterrâneo,  como  o  Bospho- 
ro dá  passagem  do  mar  negro  para  o  Proponto,a  sua  posição 
favorece  egualmente  o  commercio  do  sul  e  do  ponente ;  o 
quando  o  Egypto  lhe  está  subordinada,  a  sua  localidade  pres- 
ta-se  admiravelmente  parao  trafico  da  índia  e  costas  orientaes 


161 

iTAfrica.  Em  summa,  dizem-uos  o*  g-eographos  em  gorai  que 
Constantinopla  á  o  ponto  emmnercial  de  mais  importância 
que  pode  haver;  e  quando  lançamos  os  olhos  sobre  o  mappa, 
geographico  assim  parece.  Â  sua  posição  tem  porem  um  gran- 
de defeito,  eommercialmente  f aliando,  e  n'este  sentido  está 
muito  inferior  a  Londres,  a  Lisboa  e  vários  outros  portos.  O 
Hellesponto  tem  não  menos  que  vinte  léguas  de  comprido  e 
a  sua  largura  em  geral  não  excede  a  uma  légua,  havendo 
partes  em  que  ainda  é  mais  estreito.  Uma  forte  corrente  esta- 
belece se  no  Bosphoro,  no  Proponto  e  no  Hellesponto  desde  o 
mar  negro  até  ao  a^rchipelago  grego,  e  um  vento  rijo  do  norto 
sopra  frequentemente  n'aquellas  paragens  mezes  suecessivos, 
que  junto  á  corrente  na  mesma  direcção,  atravez  um  canal  tão 
estreito,  torna  Constantinopla  inaccessivel  aos  navios  proce- 
dentes do  mediterrâneo.  Aquelles  portos  que  demoram  nas 
costas  do  oceano,  ou  nas  margens  dos  grandes  rios,  tem  van- 
tagens que  não  possuem  aquelles  sitos  em  mares  fechados,  co- 
mo são  o  mediterrâneo,  o  mar  negro,  o  Báltico  etc.  ou  noa 
rios  que  n'elle  desaguam,  em  razão  cias  marés  que  facilitam  a 
navegação  nos  casos  de  calmas  ou  ventos  contrários,  em  quan- 
to que  senão  pôde  sem  grande  difficuldade  arrostar  as  forças 
combinadas  do  vento  e  das  correntes.  Estas  circumstancias 
são  altamente  desfavoráveis  ao  commercio  e  navegação  de 
Constantinopla  :  em  compensação,  talvez  não  tenha  rival  em 
belleza  e  amenidade  de  clima. 

Com  quanto  alguns  escriptores  entendam  que  a  transferen- 
cia da  corte  contribuiu  para  a  queda  do  império,  é  incontes- 
tável que  a  occupação  de  Constantinopla  poz  ponto  á  passa- 
gem dos  bárbaros  pelo  Bosphoro,  que  jamais  poderam  forçar 
aquella  invencivel  barreira  ;  e  a  Grécia,  como  também  a 
Ásia  menor  escaparam  aos  seus  assaltos,  até  que  Valens  inad- 
vertidamente deixou  os  godos  passar  o  Danúbio,  e  recebeu 
suas  hostes  armadas  no  coração  do  império.  Tempos  depois 
Constantinopla  apresentou  um  obstáculo  insuperável  ao 
progresso  dos  Persas  sob  o  commando  de  Chosroes,  e  offere- 
ceu  resistência  aos  ataques  dos  ar&kes,    dos    godos,  e  outros 


\Ú2 

iuhnigos  do  norte.  Durante  a  existência  do  caliphado,  aquellá 
cidade  foi  o  baluarte  da  Europa  contra  os  sarracenos;  e  só 
cahio  nas  mãos  dos  turcos  em  1453,  mil  e  quarenta  e  três  an* 
nos  depois  que  Roma  foi  tomada  e  saqueada  por  Alarico  e 
nove  centos  e  setenta  annos  posteriores  á  inteira  subversão  do 
império  occidental.  De  facto,  rasão  alguma  plausivel  ha  para 
que  se  diga  que  o  império  não  podia  ser  também  defendido 
estando  a  sede  do  governo  em  Constantinopla  ;  e  não  é  nada 
improvável  que,  se  Roma  fosse  sempre  a  capital,  todas  as  par* 
tes  orientaes  do  império  teriam  cabido  em  poder  dos  persas, 
líuui  lado,e  dos  godos  pelo  outro,  sem  dilatar,  considerável* 
mente,  a  existência  do  império  do  occidente. 

Entre  outras  considerações  que    naturalmente  se  nos  apre- 
sentam ao  contemplar  um  período  tão  importante  e  interessan- 
tíssimo, como  é  o  reinado  de  Constantino,    ha    a    notar  que, 
comquanto  elle  governasse  o  império  romano   com  mais  peri* 
cia  que  a  mór  parte  de  seus  predecessores,  e  fosse  geralmente 
bem  suecedido  tanto  nas  suas  medidas  politicas,  como  nas  suas 
emprezas  militares,  a  sua  tranquilidade  d'espirito  foi  considera- 
velmente abalada  pelos  conflictos  dos  theologos  e  pelas  intri- 
gas ecclesiasticas.  A   sua  felicidade    domestica   perturbou-se 
egualmeute,  pela  necessidade  real  ou  imaginaria  da  sua  parte 
em  fazer  morrer  seu  filho  Crispo,    príncipe  de  grandes  espe* 
ranças;  cuja  intelligencia  fora  cultivada  pelo   erudito    e    elo- 
quente Lactando  que  havia  sido  disciplinado  na  carreira  das 
armas  sob  as  victoriosas  bandeiras  de  seu  imperial  pai,  e  que 
provara  tão  distinctamente    o  seu  valor  na  memorável  passa- 
gem do  Hellesponto  na  ultima  e  decisiva  contenda  entre  Cons- 
tantino e  Licínio.  As  particularidades  d'este  desgraçado  acon- 
tecimento contam-se  de  diversas  formas;  e  o  negucio  todo  tem 
um  caracter  tão  mysterioso,  que  apenas  sabemos  com    certe- 
za da  existência  do  facto  sem  podermos  descortinar  nenhuma 
de  suas  peripécias  e  causas.  Comtudo,  é  forçoso  confessar  que, 
ou  Constantino  commetteu  um  crime  enorme,  ou  foi   victima 
d' um  grande  infortúnio.  Impedernido  deve  ser  o  coração  que 
condemna  á  morte  um    filho    assim    esperançoso    sem    plena 


163 

•convicção  de  tão  terrivel  passo  ;  e  grande  fora  a  desgraça  M 
tal  necessidade  não  existisse.  F/  um  facto  digno  de  menção  que 
muitos  homens  notáveis,  tanto  da  antiguidade  como  dos  ten> 
pos  modernos,  tem  sido  extraordinariamente  infelizes  na  vida 
privada. 

A  revolta  d'Absalão  contra  David,  seu  pae,  e  seu  Trágico 
fim;  o  assassinato  de  Sennaclierib  no  templo  do  deus  Nisricli 
commettido  por  seus  próprios  filhos  Adrammelicke  Sharezar; 
a  severidade  que  Augusto  Cezar  fora  obrigado  a  ter  com 
sua  filha  única,  Júlia,  em  razão  do  seu  comportamento  escan- 
daloso; e  o  destroço  que  Herodes  o  Grande  fez  na  sua  famí- 
lia, matando  sua  formosa  e  adorada  mulher  Mariamne,  seus 
dous  mais  esperançosos  filhos,  e  outros  parentes  mais  próxi- 
mos, podem  apresentar-se  como  exemplo,  entre  outros  rnur- 
t-os  que  se  encontram  na  historia  antiga  que  nem  sempre 
nas  altas  regiões  do  poder  e  gTandeza  humana  existe  a  felici- 
dade domestica. 

A  estes  factos  ajuntaremos  outros  d'igual  natureza,  aconte- 
cidos em  tempos  mais  modernos,  entre  os  quaes  sobresaem 
as  trágicas  catastrophes  de  D.  Carlos,  filho  de  Philippe  2.° 
de  Hespanha  e  do  Czarowitz,  filho  do  immortal  Pedro  e 
Grande  da  Rússia. 


CâRTÃ  GEGIÍM  DOTO 


Conclui  a  minha  ultima  com  algumas  reflexões  sobre  a 
inconstância  do  poder.  O  subsequente  estado  de  Roma  des^ 
de  esta  epocha  da  sua  não  igualada  grandeza,  apresenta  um 
facto  memorável,  de  que  a  grandeza  das  nações,  como  também 
a  dos  individues,  está  sujeita  ás  mais  melancholicas  vicissitu- 
des; e  que  a  prosperidade  e  ventura,  tanto  nacional  como  in- 
dividual, são  d'incerta  duração. 

Recaindo  as  nossas  observações  sobre  aquelle  período  em 
que  Roma,    não  sendo  já  considerada  como  sede  do  império^ 

4i 


164 

liavia  passado  o  zertitli  de  seu  esplendor,  e  via  começar  a 
diminuição  da  sua  gloria;  a  nossa  curiosidade  leva- nos  natural- 
mente a  examinar  aquella  cidade  celebre  no  auge  da  sua  o- 
pulencia.  Teria  sido  bom  se  algum  dos  antigos  escriptores  nos 
tivesse  fornecido  meios  de  estabelecermos  um  termo  de  com- 
paração entre  as  mais  notáveis  cidades  da  antiguidade  com 
aquehas  dos  tempos  modernos,  mormente  no  que  respeita  a 
população.  E'  esta  uma  lacuna  na  historia  que  se  não  pode 
remediar;  e  é*  particularmente  extraordinário  que  nenhum 
dos  historiadores  romanos  nos  deixasse  relação  alguma  so~ 
bre  a  população  de  Roma. 

Não  se  pôde  presumir  que  os  seus  cálculos  íòssem  exactos; 
mas  deveriam  ter  encontrado  documentos  authenticos  sufíi- 
cientes  para  nos  dar  uma  idéa  aproximada  do  numero  de 
habitantes  d'aquella  celebre  metrópole  do  mundo,  e  se  os 
seus  cálculos  não  se  apartassem  muito  da  verdade,  podiam 
servir  para  regular  o  nosso  juizo  a  esse  respeito.  Os  moder- 
nos que  lêem  estudado  este  assumpto,  e  dado  um  resultado 
de  suas  investigações,  divergem  de  tal  modo  entre  si,  que  em 
logar  de  nos  elucidar,  tornam  mais  complicada  a  questão. 
Basta  apontar  alguns  factos  para  demonstrar  quão  pouco 
credito  merecem. 

Mr.  Martin,  nas  suas  viagens,  diz-nos  que  no  reinado  do 
primeiro  Cláudio,  os  habitantes  de  Roma  subiam  a  6,986.000; 
mas  acrescenta  que  este  calculo  abrange  os  subúrbios,  e  estes 
estendiam-se  em  distancia  de  40  milhas  em  redor,  O  mesmo 
author  diz  que  a  cidade  conta  13  milhas  em  circunferência,  e 
outros  dizem  que  são  15. — Diz  mais  que  Roma  antes  de  Au- 
reliano,  tinha  apenas  nove  milhas  em  circuito,  e  que  pouco 
differia  do  tempo  em  que  reinou  Sérvio  Tullio. 

Na  noticia  que  nos  dá  Mr.  Martin  da  população  de  Roma, 
ou  ha  um  erro  crasso,  ou  elle  conta  como  subúrbios  a  maior 
parte  das  cidades  e  villas  de  Campania.  Seu  engano  parece 
provir  do  recenseamento  dos  cidadãos  romanos  feito  no  rei- 
nado de  Cláudio,  que  succedeu  a  Calígula  no  império.  Este 
recenseamento  dava  uma  população  de  6,945.000;  mas  cum- 


Í65 

pre  notar  que  este  não  era  o  numero  de  habitantes  na  cidade 
de  Roma,  mas  sim  dos  cidadãos  romanos  dispersos  por  todo 
o  império,  e  que  como  Mr.  Gribbón  assevera,  podiam,  com  um 
numero  proporcionado  de  mulheres  e  creanças  montar  a 
20,000,000.  Mr.  Gibbon,  descrevendo  a  cidade  de  Roma  co- 
mo existia,  sob  o  regimen  imperial,  diz-nos  «A  circunferên- 
cia das  muralhas  foi  medida  com  exactidão  pelo  mathemathi- 
co  Ammonio  e  achou  ser  de  21  milhas  em  forma  quasi  cir- 
cular. O  architecto  Vitruvio,  que  viveu  no  tempo  d'Augusto, 
diz  que  as  innumeraveis  habitações  dos  romanos  se  entende- 
riam muito  alem  dos  limites  da  cidade,  e  que  sendo  o  espaço 
comprehendido  entre  muros  muito  tomados  pelos  parques  e 
jardins  dos  cidadãos  opulentos,  adoptou-se  o  expediente  de 
levar  as  casas  a  uma  extraordinária  altura,  tanto  que  foi  re- 
petidamente legislado  no  tempo  d' Augusto  e  Nero,  que  ne- 
nhum edifício  particular  excedesse  a  70  pés  d'alto,  mas  te- 
mos sobejas  provas  em  Plinio  e  outros  authores,  que  nos 
demonstram  a  inefficacia  d'aquelles  edictos,  tendentes  á  de- 
masiada altura  dos  edifícios.  Muitas  familias  se  hospedavam 
em  um  ediricio,  como  em  Paris;  cada  familia  occupava  um 
andar.  Alguns  authores  modernos  escrevem  que  no  reinado 
d'Àugusto  ,  Roma  tinha  50  milhas  de  circunferência  e 
comportava  463,000  homens  capazes  de  pegar  em  armas, 
que,  com  um  numero  proporcional  de  mulheres,  creanças  e 
velhos  etc.  deveria  fazer  subir  a  população  de  Roma  a  cerca 
de  três  milhões  d 'ai  mas. 

Aquelle  acreditado  escriptor,  Mr.  de  Messance,  nos  seus 
«Recherches  stir  la  population»  dá  a  Paris  23,565  casas, 
71,124  familias,  e  576,000  habitantes;  e  Mr.  Gibbon  escre- 
ve que  se  calcularmos  o  numero  de  habitantes  d'aníiga  Ro- 
ma, segundo  os  princípios  de  Mr.  de  Messance,  podemos  es- 
timal-os  em  1,200,000,  calculo  nada  improvável;  um  numero 
nada  excessivo  para  aquella  metrópole  do  mundo,  com  quan- 
to excedente  á  população  das  maiores  cidades  da  moderna 
Europa.  Em  presença  de  tão  contradictorias  noticias,  ne- 
nhum calculo  aproximado  é  possível.  Comtudo,  o  numero  to- 


m 

Saí  cte  e&sas  aoha-.se    fielmente  deseripto  numa  descripção  d'$- 
Koma  no  reinado  de  Theodosio,  cerca  de  50  ou  60  annos  de- 
pois  da  trasladação  da  sede  do  império  para  Constantinopla;, 
ti  consequentemente  em.  tempo,,  quando  a  antiga  capital  devia 
estar  na  declinação.   N'aquella    narração  o  numero  de  domi- 
cílios dos  homens   ricos  era  de  1.780;  e  o  das  casas  dos  ple- 
beos  de  46,602.    Na  estimativa    da   população   de  Roma,    a 
mais  segura  base  que   podemos   tomar  é  a  construcção  parti- 
cular adoptada  em  Roma,  levando  as  casas  a  uma  enorme  al- 
tura  como    i.á  fica  dito;,  a.  extensão  da  cidade  e  o  numero  de 
casas  d  ruas»  Se  a  muralha  Aureliana  encerrava  a  vasta  área 
de  21  mil  lias,  era  a  cidade  fora  de  duvida.de  grande  extensão;. 
e  dado  o  caso  que  fosse  circular  a  sua  forma,  como  era  quasi> 
deveria  conter  38  milhas  quadradas,  uma  área  quasi  duas  ve- 
zes do  tamanho  da  que  occupa  Londres.    Uma  tão.  grande 
superfície  com    casas   d'enorme  altura,  indica  uma  vasta  po- 
pulação; mas  as  ruas  de  Roma  eram  poucas,  em  numero.  não> 
excedente    a    424.,  circunstancia  que  faz  acreditar    que  uma* 
grande  parte    do  terreno  se    compunha  de  quintas  e    outros 
pertences:  comtudo  o  numero  de   casas  de  que  ha  uma   con- 
ta exacta,  tomada  no  tempo  de  Theodosio  parece  provar  que. 
não,  deveria  haver  muito  terreno  desoccupado:    segundo  esta 
descripção  Roma  não  oecupava  uma  área  duas  vezes  o  tama- 
nho de    Paris,  e  comtudo  os  edifícios  n'aquella  cidade  exce- 
diam o  dobro  d'esta.   De  Ninive   pouco    ou    nada  sabemos  a 
não  ser  o  que  se  colhe  do  livro  de  Jonas,  aonde  se  descreve- 
corno  uma  cidade  excessivamente  grande,  de  três  dias  de  jor- 
nada, provavelmente,  para  a  contornear.  Também  se  dia  que 
ella  continha  cento  e    vinte  mil  pessoas,  que  não  distinguiam 
a  mão  direita  da  esquerda,  o  que  se  deve  subentender  por  ado- 
lescentes.   Se  o  giro  de  Ninive  se  fazia  em  três  dias,  devemos 
suppor  que  ella  assentava  sobre   uma  grande  planície    como 
Babylonia,  e  talvez   mais  dispersos    os  edifícios  do  que  mes- 
mo n'aquella  cidade. — Isto   mesmo  se  infere  quando    se  nos 
diz  que  continha  muito  gado,  o  que  authorisa  a  crer  que  en- 
cerrava campinas,    e  se  o  que  ee  diz  da  sua  população  deve- 


te*     sentido     figurado,    conforme    o    estylo    orientar,    cada* 
um  ajuisará  como  melhor  entender. 

De  Babylonia    sabemos  tão  pouco    em    relação   aos    seus. 
habitantes  e  dos  meios  empregados  para  o  seu  sustento,  como. 
sabemos  de  Ninive,  a  nienosque  grandes  porções  de  terreno  nos. 
encruzamentos  das.  ruas  serviam  para  as.  necessidades  da  vi- 
da, mas  o  plano  d'aquella  cidade  é  uma  prova  evidente  que 
a  sua  população  não  estava  em  relação  com  o  espaço  que  oc- 
cupava    segundo  as   idéas  que  nós   temos,  das  populações  de 
grandes  cidades,  e  que  os  sens  habitantes  proporcionalmente 
nâo  excediam  a  metade  dos  de  Londres  ou  Paris.  Mas  a  jul- 
gar de  Roma,  da  sua    extensão  e  numero  d'edificios,  os  seus. 
habitantes  deveriam,   exceder    os  de  Paris  no  dobro  e  consi- 
deravelmente a  qualquer    das    populosas  cidades  do  mundo;: 
porque   por   muito  exageradas   que  sejam  as  descripções  que- 
ixos dão  de  Constantinopla,   do  Cairo  e  de  Pekin,  é  certo  que 
nenhuma  (Testas  cidades  egu-ala  a  Londres- em  numero  de  ha- 
bitantes.   Dos  documentos   mais  authenticos  em  que  n©s  po- 
demos basear,    é  claro  que   Constantinopla  não  pôde  conter 
mais  gente  que  Paris,   e  que  nenhuma,  das  duas  contem  tanta, 
como  Londres.   Pekim  é  hoje  indubitavelmente  a  maior  cida- 
de do  mundo.    Mr.  Anderson,  no  seu  relatório  da  embaixada 
de  Lord  Maeartney  na.  China,  diz  que  é  um  quadrado  de  três, 
legtias  em  cada  face,  mas  acrescenta  que  as  ruas  são.  de  14G; 
pés  de    largura,    e    que  todas  as    casas     á  excepção  das  dos-. 
mandarins,    são  apenas    d'um    andar,   (Tende    se  infere  facil- 
mente que  não  obstante  a  sua  área,  a  sua  população  não  pôde 
egualar  a   de  Londres,   e  é  muito   singular  a  supposição   do 
que    nem  Ninive,   Babylonia   ou.  Roma,   tivessem  sufficiente- 
comraercio  para  sustentai*  suas  numerosas  populações,  quan- 
do dão  a  Pekim,  pela   sua  posição    no  interior  do  paiz,   com 
condições  menos  favoráveis,  uma  população,  duas  vezes  maior- 
que  a   de  Londres.  Calculasse  geralmente   as  populações  das. 
grandes  cidades  sem  base  segura.  Uns  dão  a  Paris  800,000- o 
outros  600,000,  mas  o  primeiro  calculo  parece  ser  o  mais  a^ 
proximado  á  verdade.  —-Á  supposição  de  que  Roma  se  sustm-^ 


iCS 

íava  á  maneira  do  Londres,    de  seu   commercio,  é*  errónea:  a 
riqueza   d'esta  cidade    vem  das    suas  relações  commerciaes, 
niiis  Roma  pelo  contrario,    vivia   do   roubo   e  da  violência — ■ 
Londres  6  o  império  do  commercio:  Roma  foi  covil  de  ladrões 
c  residência   dos   devastadores   do    mundo.  Se  por   um  lado 
Londres  se   enriquece  do  commercio   estrangeiro,  não  menos 
é  rica  de    seu    commercio   interno,  em    rasão  de  ser  a  sede  e 
residência  da  corte,  nobreza  e  burguesia,  e  bastava  ser  a  ca- 
pital da  Gran-iJretanha  para  ser  uma  grande  e  populosa  cida- 
de, independente  de  seu  commercio  externo.    Á  capital  d 'um 
opulento   império    tem    sempre  um    trafico    activo  e    chama 
muita  gente  a  quem   emprega,  ministrando  as  conveniências 
da  vida  aos  abastados  favorecidos  da  fortuna. — E' principal- 
mente o  commercio  interno  que  sustenta   as  numerosas  hos- 
pedarias, lojas  e  estabelecimentos   mechanicos.  Paris  é   uma 
prova.    Esta    grande  capital   pela   sua  localidade  não  possuo 
vantagens  algumas   commerciaes,  mas    mesmo  assim  excede 
em  esplendor  e  luxo  todas  as  cidades  do  inundo  e  só  a  Lon- 
dres é  inferior  em  população.   Isío    provem    tão    somente  de 
ter  sido    de   longa   data,   capital   d' um  a  grande  e  florescente 
nação  e  residência   duma    corte  brilhante  e   duma  numerosa 
e    opulenta  nobreza,    como  também  o  recurso  dos  viajantes . 
d'outros  paizes.    Todas  estas  vantagens  tinha  Roma.  Esta  ci- 
dade duranío  quasi  sete  centos  aníios  de  suecessivas  guerras 
e  rapina,  accumulára  a  riqueza  de  todas  as  nações  visinhas  — 
Ninguém  ignora  as  immensas  riquezas  e  enorme  dispêndio  de 
muitos  de  seus  priíicipaes  cidadãos. — O  luxo  e  esplendor  com 
que  viviam  os  grandes  de  Roma  e  nos  suberbos  edifícios  que 
construíram  necessariamente    empregaram    grande    numero 
d'artistas.    Os   paizes    de  que    são  capitães   Paris  e   Londres 
são  de  pequena  extensão  e  população  comparativamente  com 
o  império  romano.  Londres  é  a  metrópole  d' um  paiz  enrique- 
cido pelo  seu  commercio,  e  os  seus  homens  de  negocio    riva- 
lisam  em  opulência  com  a  nobreza  da  maior  parte  dos  paizes, 
mas  é  muito  duvidoso  se  todos   os  seus  opulentos  negociantes 
egualam  os  opulentos  cidadãos  d'aníiga  Roma.    O  que  é  fora 


WJ 

de  duvida  é,  que  haviam  individuas  que  possuíam  proprieda- 
des de  muito  maior  exteução  do  que  hoje  se  encontra  cm 
qualquer  moderna  capital. — Em  quanto  ao  emprego  e  supri- 
mento das  classes  pobres  deve  notar-se  que  nem  só  estas  es- 
tavam isentas  de  contribuições,  mas  dependia  quasi  intei- 
ramente cie  donativos;  a  opulência  dos  ricos  deveria  forne- 
cer trabalho  a  muita  gente  das  provindas  que,  adquirindo 
fortuna,  vinha  por  seu  turno  a  hombrear  com  os  grandes,  co- 
mo é  frequente  \èr-se  nas  grandes  cidades.  Estabelecidos  es- 
tes princípios  apoiados  em  factos  conhecidos  e  authorisados 
por  evidentes  provas  históricas,  é  claro  qne  nenhuma  com- 
paração, debaixo  do  ponto  de  vista  commercial,  pôde  estabe- 
lecer-se  entre  Roma  e  Londres.  Não  ha  a  minima  semelhança 
entre  as  suas  circunstancias  politicas  ou  sociaes,  sua  econo- 
mia ou  meios  de  se  supprirem — Londres  prospera  pelo  com»- 
mercio — Roma  prosperava  pela  rapina  de  seus  tempos  primi" 
tivos:  porem  á  semelhança  de  Londres,  Paris  e  outras  gran- 
des capitães  deveria  manter  um  commercio  interno,  bas- 
tante activo,  mas,  em  que  escala,  não  se  pôde  saber. 


:%s\ 


Procuramos  delinear  o  aspecto  do  império  romano,  fett» 
nindo  os  fragmentos  dispersos  da  historia,  desde  o  comece* 
do  governo  imperial  no  tempo  d 'Augusto,  até  os  fins  do  bri- 
lhante e  importante  reinado    de  Constantino. 

Passemos  agora  a  revistar  os  acontecimentos  que  tiveram? 
logar  desde  a  morte  d'aquelle  imperador,  a  fim  de  seguir  o 
rasto  não  só  da  historia  politica  do  império,  mas  também  da> 
revolução  das  idéas  humanas. 

E'  bem  sabido  que  Constantino  julgando  que  o  império  ro- 
mano, pelas  suas  proporções,  oíiereeia  amplo  património  para 
todos  os  seus  descendentes,  dividiu  seus  vastos  domínios  en- 
tre seus  três  filhos,  Constâncio,  Constante   e  Constantino,  nc 


m 

1  :t-!ic  ^dmníétteú  um  erro  fatal. 

Três  annos  não  eram  ainda  passados  depois  da  morte  cie 
seu  pai  e  já  Constante  invadia  os  domínios  de  seu  irmão 
Constantino  que,  victima  da  emhuseada  que  este  lhe  prepa- 
rara, o- deixou  senhor  de  dois  terços  do  mundo  romano;  mas 
pouco  depois,  Magencio  revoltando  se  contra  Constante,  sur- 
prehendeu-o  numa  cacada  -e  fel-o  perecer.  Por  seu  tramo, 
MagescLo,  sendo  derrotado  por  Constâncio,  suicidou-se;  e  d'es- 
le  modo  pela  desastrada  sorte  de  seus  irmãos  ficou  Constân- 
cio -imperador  único — 853  annos  depois  de  Christo.  Vem 
pouco  a  propósito  descortinar  aqui  as  causas  que  deram  o- 
rigem  a  estas  guerras  civis  nem  qual  foi  seu  resultado^  mas 
o  que  nào  podemos  deixar  de  notar  é  que  estas  divisões  fataes 
esgotaram-as  forças  do  império,  e  que  o  valore  a  disciplina 
romana  converteram-se  contra  si,  em  vez  de  se  empregar 
contra  es  inimigos  do  estado. 

Por  morte  de  Constâncio,  361  annos  depois  de  Jesus 
Christo,  Juliano,  chamado  o  apóstata,  filho  de  Júlio  Con-stan- 
"cio  e  sobrinho  de  Constantino,  o  Grande,  assumiu  o  septro. 
O  curto  reinado  d'este  imperador,  apresenta  uma  prova  as- 
signaladadas  maravilhosas  disposições  da  Providencia  a  favor 
da  religião  enrista,  que  merecem  a  consideração  da  posteri- 
dade. 

Marchando  contra  os  persas,  deixou-se  seduzir  de  tal  modo 
"pelas  idéas  de  conquista,  que  fez  destruir  aponte  de  barcos 
qne  tinha  sobre  o  Tibre  e  imprudentemente  internou -se  n'um 
paiz  inimigo^  deixando-se  attrair  por  espiões  fingidos  deser- 
tores do  rei  da  Pérsia,  e  que  o  fizeram  persuadir  que  este  se 
não  atrevia  a  dar-lhe  batalha  e  fugia  diante  d'elle. 

Esta  farça  foi  mantida  até  que  o  exercito  romano  tendo  se 
internado  n'um  paiz  desconhecido,  foi  (malmente  involvido 
•no  meio  de  areaes  desertos  e  começou  a  sentir  os  efíeitos  da 
fome.  N'esta  critica  coujunctura  seus  guias  desappareceram 
subitamente  e  o  monarcha  persa  se  lhe  apresentou  então 
com  todas  as  forças  militares  de  seu  reino.  O  imprevidente 
imperador  conheceu  então  seu  erro.  A  falta  de  viveres  tornou 


IÍ71 

vtaeoessaria  a  retirada;  entre  esta  medida  ou  morrer  á  míngua 
não  havia  meio  termo.  A  retirada  foi  portanto  resolvida ,  rfe 
em  quanto  se  eifcctuava  os  romanos  eram  constantemente 
perseguidos  poios  persas,  que  cuidadosamente  evitavam  um 
eneontro  séYio.  As  legiões  de  pesada  armadura  nem  esta- 
vam acostumadas,  nem  preparadas  para  este  modo  de  com- 
bate e  nenhum  partido  tiravam  contra  aeavallaria  persa,  que  as 
encommodavam  a  eada  passo,  e  que  tâo  clepressadispersava co- 
mo se  cncorporava,  renovando  o  ataque.  O  exercito  romã- 
lio,  que  á  sua  entrada  na  Pérsia  era  o  melhor  que  jamais  o 
império  equiparara,  apresentava  agora  um  desastroso  espec- 
táculo. N'estas  lastimosas  ■■circunstancias  os  romanos  ganha- 
ram finalmente  as  margens  do  Tigre  que,  por  falta  de  pon- 
te, mandada  loucamente  destruir  por  Julião,  não  poderam 
passar.  A  historia  militar  não  recorda,  nem  a  imaginação  po- 
de bem  conceber  uma  -situação  mais  desgraçada  do  que  aquelía 
éo  exercito  romano  exhausto  de  forças,  morto  de  tome, 
com  um  rio  fundo  e  caudaloso  na  frente  e  todo  o  poder  ar- 
mado da  Pérsia  na  retaguarda.  N'esta  conjuntura  o  rei  da 
Bersia  assai  toai,  durante  a  noite  o  acampamento  romano.  Seguiu- 
se  uma  scena  de  tumulto,  confusão  e  carnificina,  espantoza,  até 
que  atinai  o  valor  romano  conseguiu  repellir  o  inimigo;  mas 
no  meio  dos  horrores  d'aquella  noite  o  imperador  foi  mor- 
talmente ferido,  e  em  poucas  horas  teve  de  comparecer  pe- 
rante o  tribunal  d'aque!ie  Juiz.  cujo  rito  elle  abolira  e-eujo 
nome  quiz  apagar  da  memoria  dos  homens. 

Diz-se  que  Julião,  tomando  então  um  punhado  do  seu  pró- 
prio sangue  o  lançara  ao  alto,  esclamando:— -Viciste  Gàíileeo.; 
viciste! — Venceste  oh  Gralileo,  venceste;  sendo  Galileu  o  ne- 
me  que  por  escarne©  dava  a  Christo.  Esta  circunstancia,  bem 
qu«  tenha  seu  romance,  casa-se  <som  o  caracter  d'aqu elle 
imperador,  e  não  deixa  de  ter  seus  visos  de  probabilidade 
attenta  a  aversão  que  Julião  professava  á  religião  chris- 
oaas  por  outro  lado  ha  a  considerar  que  11'uma  conjuntu- 
ra tão  interessante  para  o  império  e  -sobretudo  para  o  partido 

•christão.  não  é  para  admirar  que  os  eseriptores  exagerassem® 

$2 


172 

©ti  se  deixassem  seduzir  pelas  noticias  que  de  propósito  fízesè* 
sem  circulai*.  E  comtudo,  a  morte  do  imperador  Julião  é  uni 
acontecimeto  que  merece  particular  atterieão,  por  isso  que, tal- 
vez, não  influenciasse  pouco  sobre  o  actual  estado  religioso  da 
Europa.  Nenhuma  duvida  existe  de  que  o  seu  intento  era 
aniquilar  o  ckristiauismo;  e  se  a  Providencia  houvesse  per- 
mittido  que  o  seu  reinado  tivesse  a  duração  do  de  Constanti- 
no  e  alguns  outros  imperadores,  quem  sabe  a .  influencia  que 
poderia  ter  tido;  porque  este  imperador  divergia  muito  de 
seus  antecessores.  Jâ  notamos  quede  todos  os  imperadores  pa- 
gãos, muito  poucos,  se  algum  mesmo  houve,  perseguio  volun- 
tariamente os  christãos ;  em  quanto  que  outros  foram  indíffeí  en- 
tes, a  ponto  que  só  muito  instigados  pelo  clero,  prestavam  aí  ten- 
ção ao  progresso  do  christianisnto.  Julião,  pelo  contrario,  era 
seu  inimigo  declarado.  Fora  educado  no  grémio  christão  e 
não  só  abjurou  suas  doutrinas,  mas  maniíestou-ihes  a  mais 
profunda  aversão,  começando  jâ  a  adoptar  todos  os  meios- 
para  abolir  a  nova  religião. 

A  morte  d'um  tal  homem  num  momento  tão  critico  pode 
por  tanto  ser  considerada  um  dos  elos  d'aquella  mysíeriosa 
cadêa  de  causas  e  effeitos  que  constituem  o  plano  da  Divina 
Providencia.  Os  possíveis  effeitos  de  causas  moraes  não  se  po- 
dem calcular  com  exactidão,  mas  se  não  fora  a  influencia  do» 
acontecimentos  no  reinado  de  Constantino,  e  a  desastroza  s<  r- 
te  de  Juliano,  poderíamos  ainda  hoje  dobrar  o  joelho  perante 
os  densos  da  Roma  pagã,  ou  d'outros,  horríveis  ídolos  das 
nações  septentrionaes. 

Devemos  observar  que  se  Julião  tivesse  mdieaóp,  ou  o 
exercito  eleito,  outro  imperador  de  princípios  egualmente 
adversos  ao  christianismo,  a  sua  morte  não  teria  dissipado  a 
tempestade  que  ameaçava  o  horisoníe  christão;  mas  Julião, 
naturalmente  supersticioso,  vendo  na  sua  prematura  morte 
um  signal  desapprovador  dos  deuses,  temia  incorrer  mais 
ainda  no  seu  desagrado,  designando  suceessor;  e  Juliano,  of- 
íicial  christão,  foi  eleito  imperador,  que  na  situação  desespe- 
rada do  exercito,  foi  obrigado  a  tratar  uma  paz  desvantajosa.. 


173 

com  a  Pérsia  e  comprar  uma  retirada  segura  com  a  cessão  d& 
Mesopotâmia  e  a  forte  cidade  de  Nisibia  etc. 

Ninguém  rios  diz  que  os  soldados  de  Julião  impugnas- 
sem a  sua  crença  religiosa,  nem  possuimos  documento  pelo 
qual  possamos  saber  se  a  maioria  do  exercito  se  compunha 
de  cliristàos  ou  cVidolatras.  E'  comtudo  certo  que  grande  nu- 
mero de  christãos  serviam  nas  fileiras  de  Julião,  inimigo  ju- 
rado do  christianismo,  assim  como  era  grande  a  massa  de 
pagãos  que  seguiam  o  estandarte  de  Constantino,  e  se  ê  para 
sm-prehender  que  nenhuma  revolta  pagã  se  desse  no  tempo 
de  Constantino,  não  é  menos  extraordinário  que  os  christãos 
nunca,  manifestassem  disposições  hostis  ás  medidas  de  Ju* 
liã •>.  Parece  que  christãos  e  pagãos  accordaram  n'aquelles 
tempos  primitivos  a  respeitarem  mutuamente  suas  crenças. 

Morrendo  Juliano  pouco  depois  da  sua  eleição,  e  conclu- 
são da  paz  com  a  Pérsia,  Valentiniano,  outro  chefe  militar 
ohrisrão,  foi  investido  com  a  purpura  e  associou  seu  irmão 
Yaiens  no  poder,  cedendo-lhe  a  parte  oriental  em  quanto  elle 
reinou  no  occidente.  No  reinade  de  Valens  teve  logar  um 
acontecimento  singular,  que  para  muitos  historiadores  é  con- 
siderado o  primeiro   passo  para  a  queda  do    império. 

Os  Hunos,  povo  Tártaro,  sendo  expulsos  de  seu  paiz  pe- 
los Sienipi,  depois  de  suecessivas  emigrações,  vieram  com 
irresistível  impeto  sobre  os  godos  ao  norte  do  Danúbio. 
Subjugado  aquelle  paiz,  uma  herda  immensa  de  godo3  apre- 
senta se  nas  margens  d'aquelle  rio,  solicitando  asylo  nos  do- 
mínios romanos,  o  que  lhes  foi  concedido  sob  condição  da 
entrega  das  armas  e  das  creanças.  Estas,  ao  menos  as  das 
classes  elevadas,  foram  entregues  como  reféns,  mas  por  um 
acto  impolirico  dos  governadores  d'aquellas  províncias,  se 
lhes  permittio  conservar  as  armas.  Calcula  se  em  200,000  o 
numero  de  godos  armados  que  n'aquei!a  occasião  passaram 
o  Danúbio  com  suas  mulheres  e  filhos.  Então  appareceu  novo 
exercito  nas  margens  do  rio  a  pedir  asylo,  mas  sendo-lhe 
negado,  entrou  sem  licença,  e  achando-se  faltos  de  viveres  to- 
dos os  godos  unidos    começaram  uma  guerra  contra  o  impe* 


rio;  e  depois'  de  vários  combates  o  imperador  Valens,  nao- 
obstante  achar  se  o  sobrinko  em  caminho  para  o  soccorrer,  e 
não  querendo  partilhar  com  outro  a  gloria,  offcreceu  batalha 
aos  godos  nas  campinas  d'Adrianopola  e  foi  completamente 
derrotado.  A  perda  do  lado  dos  romanos  foi  immensa,  e  es- 
ta derrota  foi  considerada  a  maior-  desde  a  batalha  de  Gani- 
rias.— O  imperador  Valens  nunca  mais  foi  visto  e  suppõe-se 
que  perecera  no  incêndio  d'uma  casa  aonde  se  refugiara. 
Isto  aconteceu  no  anno  378  da  era  christã. 

Depois  d'este  terrível  desastre,  Theodosio,  natural  cias  Hes-- 
panhas,  foi  feito  imperador  do  Oriente,  e  em  quatro  annos  e 
meio  poz  termo  á  guerra,  na  qual  desenvolveu  consummada 
habilidade  e  prudência  Os  godos  tinham  íeiras  que  lhes  fo- 
ram doadas  nas  provincias  romanas,  e  prestavam  obediência 
ao  governo  romano,  mas  dirigiam-se  pelas  suas  leis,  forrimn- 
do  um  império,  no  império. 

Theodosio  foi  a  todos  os  respeitos  um  secundo  Constanti- 
no. — Como  eíle,  fez  íriumphar  o  império  de  seus  inimigos, 
apasiguou  as  comrnoçces  internas  e  estabeleceu  a  orthodoxia 
christã  sobre  bases  solidas;  e  linalmente,  segundo  seu  exem- 
plo, dividio  o  império  entre  seus  dois  filhos  Arcádio  e  Hono» 
rio,  entregando  ao  primeiro  o  Oriente  e  ao  segundo  o  Ocei- 
dente. — Esta  foi  a  ultima  e  fatal  divisão  do  império  romano, 
que  d7este  período  em  diante  é  geralmente  considerado  pelos 
historiadores  como  dois  estados  separados  e  independentes  e 
esía  parece  ser  a  principal  causa  que  apressou  a  sua  queda. 
As  duas  differentes  monarchias  em  que  Koina  foi  então  divi- 
dida, se  tornaram  pouco  a  pouco  estranhos  e  olhavam-se  com 
rivalidade. 

Quando  o  império  do  occidente  se  achou  atacado  de  todos 
os  lados  pelos  invasores  do  norte,  o  império  oriental  tornou- 
se  insensível  ás  suas  calamidades,  o  nenhum  esforço  fez  pa- 
ra impedir  a  eminente  catastrophe.  Esta  alienação  foi 
àugnièntandò  em  cada  reinado  successivo;  e  depois  d'uma 
',  serie  d'iníertimios,  de  que  a  historia  nos  fornece  pagi- 
nas ensanguentadas,    Roma.  a  sonho ra  do  mundo,  foi   preza-. 


175' 

dos  cotios  em  quanto  que  Constantinopla  olhava,  testemunliao 
impassível,  os  acontecimentos.  Antes  que  inimigos  de  fora  sa- 
queassem a  cidade  imperial,  o  império  do  occidente  havia 
muito  quê  dera  signaos  de  decadência;  mas  mesmo  assim  a 
immensa  mole  cahio  gradualmente  e  foi  por  muito  tempo 
susrentada  peio  valor  e  disciplina  do  exercito.  As  legiões  ro- 
manas d  erro- ''aram  muitas  vezes  os  bárbaros,  mas  á  adminis- 
tração publica  faltava  inergia,  e  a  corte  imperial,  por  pusilani- 
midade,  encerrou  se  em  Ravanna,  cidade  inaccessivel  de  to- 
dos os  lados  por  causa  dos  pântanos.  N'est;á  vantajosa  posi- 
ção conservou-se  algum  tempo  á  sombra  da  grandeza  impe- 
rial, mas  todo  o  império  apresentou  uma  seena  deplorável 
oUuiarchia,  cahindo  as  províncias  umas  apoz  outras  em  po- 
der dos  invasores  do  norte,  que  cabiam  em  enxames  sobre  o 
império  e  cujo  numero  nem  a  derrota  nem-, a- mortandade  di- 
minuíam. 

Em  quanto,  até* certo    ponto,  se  ostentava  em  Ravanna  o - 
fâustõ    do    poder    e   que    a  corte    imperial,     n'uma   posição. 
htaGCèèsivel,  cercada  de  pântanos,  provia  pela  sua  segurança', 
o  resto  da  Itália    estava    sendo  devastado   pelo  inimigo.  Ala- 
ricí),  o  chefe  dos  godos,    tendo  assignado  a  paz  com  o  impé- 
rio orienta^    sob  condição   de    ser    seu  o  domínio  do  oriente- 
foi  i  mmed  ia  t  a  mente  proclamado  rei  dos  visigodos  na  era  3#& 
e  dois  ânuos  depois  invádio    a  Itália,  mas   foi  derrotado  em 
Polencia  por  Stilicho,  general  romano.    A  Itália  foi  em  segui- 
da invadida    por  Rliad'agasio$  outro  chefe  septentrional,  que- 
eercou  Florença  e  ameaçou  a  própria   Roma. —  Este   invasor 
foi  também  derrotado    e  morto    por    Stilicho,  e   todo    o  seu, 
exercito  aniquilado  no  anno  do  Senhor  de  406. 

Deixa-se  pois  ver  que  os  restos  da  disciplina  romana,  quan- 
do a  inergia  não  íaltava  ao  governo,  continha  as  hostes  inimr- 
gas  dos  bárbaros. — A  corte  imperial,  porem,  apressava  a  sua; 
queda:  Stilicho  foi  substituído  por  líonorio  traiçoeiramente 
assassinado  em  408.  —  Assim  cahio  aquelle  grande  general,, 
cujos  feitos  d'armas  nvalisaram  com  os  dos  maiores  heroes 
qr.e  Roma,   nos  mais  brilhantes    tempos   da  sua,  gloria,   havia. 


Í7G 

produzido  e  que  fôra,  havia  muito,  o  esteio  do  império  va« 
cillante  e  o  anjo  tutelar  da  imperial  cidade.  Alarico  renovou 
imniediatamente  a  guerra  e  sitiou  Roma.  D'essa  vez,  porem, 
aceitou  um  rasgate,  recebendo  5000  libras  de  peso  d'ouro, 
30,000  de  praia,  3000  peças  de  panno  escarlate,  4000  man- 
tas de  seda  (que  maquelle  tempo  tinham  grande  valor,  a  se- 
da valendo  seu  peso  em  ouro)  e  3000  libras  de  pimenta  que 
valia  então  15  dinheiros,  ou  2;800  réis  do  nosso  dinheiro  em 
libra.  Alarico,  porem,  com  pretexto  desconhecido,  voltou  no 
aimo  seguinte,  mas  depois  retirou. 

Finalmente,  á  terce  rã  vez  sitiou  Roma,  tomou  a  d'assalto 
e  deu -.lhe  saque;  levando  a  immensa  riqueza  que  se  accumu- 
lá-ra -n'uma  longa  serie  :de  guerras  felizes. — Assim  Roma,  & 
imperial;,  que  por  séculos  levara  a  espoliar  as  nações  e  que 
reinara  senhora  absoluta  do  mundo,  foi  tomada  e  espoliada 
pelos  godos  no  anuo  410.  cerca  de  mil  cento  e  cineoenta  e 
dons  annos  depois  da  sua  fundação. 

Alarico,  pouco  depois,  morreu  no  vigor  da  vida,  e  seu  ir- 
mão Adolfo,  sendo  eleito  rã  dos  godos  fez  a  paz  como  impe- 
ri--;  e  tendo  evacuado  a  Itália  e  casado  com  Plácida,  irmã  do 
imperador  H  uiorio,  marchou  para  a  Gaulia,  onde  fundou  o 
reino  gotlnco  de  Tolouse,  que  eomprehendia  as  províncias  si- 
ífiadas  entre  o  Loire  e  o  Graronna  e  que  depois  foi  annexado 
ao  reino  da  França  por  Cl  >vis  primeiro  rei  christão  d'aquel- 
le   paiz. 

O  império  parecia  agora  sorrir  lhe  a  paz;  mas  a  sua  qiiè 
cia  estava  registada  nos  livros  do  destino. — Se?i  grande  adver- 
sário godo  era  agora  seu  amigo  e  alliado,  mas  hordas  inimi- 
gas continuavam  a  invadil  o.  O  período  que  vai  de  435  a 
453  é"  memorável  pe'o  reinado  d'Attila,  rei  dos  hunos. —  Este 
carrasco  espaihára  por  toda  a  parte  o.  horror  e  a  desolação. 
Elie  atacou  o  império  do  oriente  e  devastou  as  suas  provin- 
das, até  mesmo  ás  portas  de  Constantinopla  no  anno  do  Se- 
nhor de  441. — Depois  de  assignar  a  paz  com  aquelle  império, 
invadio  a  Gallia  e  sitiou  Orleans. — Os  planos  de  Chalons  na 
Chatnpagne  se  tornaram  famosos  pelo    confiicto  o  mais  san- 


177 

gtunolenío  de  que  ha  recordação  na  historia,  onde  o  rei  doi 
hunos  foi  completamente  denotado  pelo  exercito  alliado  ro- 
mano e  godo,  commandado  pelo  general  romano  Aecio  e 
Theodorico,  rei  godo  de  Toulouse.  Com  quanto  os  historiado- 
res diffiram  em  particularidades,  todos  são  concordes  em  que 
batalha  alguma  apresentou  jamais  uma  mortandade  egúâf. 
0  calculo  menor  dá  aos  hunos  uma  perda  de  130  mil  ho- 
mens, mas  o  geral  dos  escriptores  dão  unia  cifra  muito  supe- 
rior. Attilà, ewjo  appellídode  «Castigo de  Deus»  casara  perfeita- 
mente com  o  seu  caracter,  não  obstante  esta  derrota,  inva- 
dio  pouco  depois  a.  Itália  e  levou  a  devastação  até  ás  portas 
de  Roma.  Um  anno  depois  mordeu  d'uífi  aneurisma  no  an- 
í  o  453 — ficando  o  mundo  livre  d 'um  dos  maiores  inimi<ros 
da  humanidade.  Não  é  já  possível  determinar  os  limites  dos 
domínios  d'este  chefe;  mas  suppõe-se  que  elles  abrangiam  a 
maior  parte  da  Alemanha  e  da  Polónia,"  como  também  da, 
Hungria  e  a  antiga  Dacia,  mas  cré  se  que  o  seu  império,  de- 
pois da  sua  morte,  se  dis-ioiveu,  porque  nenhum  de  seus  suc-- 
eessores  figura  na  historia. 

N*estes  tempos  calamitosos,  tanto  os  crimes  como  os> 
infortúnios  dos  romanos,  ultrapassaram  todos  os  limites. 
O  imperador  Valentiniano  terceiro,  apunhalou  com  a  sua, 
própria  mão  o  patrieio  Aeeio,  a  ultima  colUmna  do  império  e 
a  quem  se  devia  a  sua  prolongação.  Valentiniano  mesmo  foi 
morto  numa  parada,  um  anno  depois  d'aqueíle  crime.  Era 
o  ultimo  descendente  de  Theodosio  o  grande. 

Aecio  quebrara  a  força  dAttila  na  memorável  batalha1  dos- 
'Campos  de  Chalons;  nma  os  inimigos  de  Roma  não  estavam 
exterminados,  nem  pela  derrota  nem  pela  mortie  daqueile  de- 
lapidador.  Genserico,.  rei  dos  vândalos,  tomou  Roma  e  deu 
lhe  saque  no  anno  445.  Desde  a  morte  de  Valentiniano  em 
455  até  476,  o  império  ainda  continuou  a .existir,  mas  já  mo- 
ribundo, sob  nove  differentes  imperadores,  até  que  Odoacro,- 
cheíe  dos  herulos,  sentou  se  no  fchreno  dos  Cezares  e  com  elle 
morreu  o  império  do  occidente. 

Quem  attender  na    serie   de    calamidades    d  aquelles    tem 


T7t 

■pos  o  considerar  lia  serio  cie  'circunstancias  que  originaram 
a  queda  da  mais  maravilhosa  obra  politica  do  mundo,  verá 
que  a  uma  variedade  de  causas  se  deve  o  effeito.  O  luxo  dos 
romanos  e  o  despotismo  do  governo  imperial  abateram  os  a- 
nimos  do  povo  e  o  inhabili-tou  para  as  emprezâs  militares. 
isto  é  mais  que  suppssiçào;  parece  ter  sido  verdadeiramente 
a  causal.  Durante  os  últimos  tempos  de  Roma,  a  contar  do 
remado  do  Commodo,  a  forçado  império  exliaurira-se,  e  mui- 
to de  sen  melhor  sangue  fora  derramado  em  contendas  es- 
téreis entre  os  chefes. —  Estas  causas  contribuíram  indubita- 
velmente para  a  queda  do  império;  e  uma  variedade  d'ouíras, 
demasiadamente  numerosas  para  se  poderem  examinar  detalha- 
damente, muitas  talvez  inteiramente  desconhecidas,  formam  uni 
conjuncto  de  circunstancias  que  decidiram  a  sorte  do  impé- 
rio, mas  nenhuma  certamente  contribuio  tanto  como  foi  a 
•sua  divisão  em  dois  estados  disiinctos  e,  quem  sabe,  talvez 
•systema  algum  politico,  coragem  ou  disciplina  militar,  teria 
■evitado  a  destruição  d'este  poder  collossal.  Uma  causa  exter- 
na havia  que  com  com  o  tempo  viria  a  vencer  iodos  os  obstá- 
culos que  se  lhe  podessem  antepor, 

'  As  nações  do  norte  tinham  sido,  desde  o  tempo  de  Mário; 
inimigos  formidáveis  de  Roma.  A  republica  teve;  então,  com 
os  Cimbros  uma  das  mais  arriscadas  guerras  que  jamais  em- 
prehendera  e  que  não  acabou  sem  immensa  mortandade,  para 
ro  inimigo.  Durante  os  tempos*  felizes  do  império-;,  o  nome  ro- 
-mano  era  uma  formidável  barreira, mas.  em  cada  oceasiào  pro- 
picia elles  recomeçaram  as  suas  delapidações  nas  fronteiras  e 
com  quanto  fossem  constantemente  rechassados  nao  desaiai- 
mavam.  Âqueiíes  povos  vivendT)  \  ida  traga!,  ignorantes  das 
artes,  alheias  á  civilisaçào  que  contribuem  para  a  sustentação 
das  associações;  pouco  conhecedores  da  agricultura  e  menos 
ainda  do  comnaerciq  e  manufacturas,;  achavam  fracos  os  meios 
de  subsistência  e  insufficieute  o  espaço  para  seu  numero,  sem- 
pre crescente,  nas  geladas  regiões  do  norte.  Dotados  despin- 
to ■•aventureiro  eemprehendedor  estavam  sempre  clespostos  a 
•emigrar  para  os  climas  mais  férteis  e  amenos  do   sul    mas  o 


4  70 

"predomínio  do  Roma  que  se  extendia  desde  o  Euphrates  atè 
•ao  Atlântico,  offerecia-lhes  em  toda  a  parte  tão  invencível 
barreira,  que  os  detinha  nos  paizes  ao  norte  do  Rkeno,  do 
Danúbio  e  do  mar  negro.  Pela  ordem  natural  das  cousas 
áqúellas  nações  deveriao  ter  augmentado  extraordinariamen- 
te e,  no  seu  estado  inculto,  tiveram,  com  o  andar  do 
tempo,  a  procurar  vasante  para  a  parte  supérflua  da  popula- 
ção. Isto  tem  sempre  acontecido  em  todos  os  paizes  bárba- 
ros, e  desde  os  mais  remotos  tempos  a  historia  apresentamos 
repetidos  factos  da  emigração  dos  povos  do  norte  para  os 
temperados  climas  do  sul.  Em  cada  paiz  o  solo  não  pôde 
sustentar  senão  um  determinado  numero  de  habitantes,  e 
este  numero  è  maior  ou  menor  em  proporção  á  sua  natural 
fertilidade  e  conforme  a  temperatura  do  clima  e  o  aperfeiçoa- 
mento da  agricultura.  Toda  a  vez  que  a  população  excede 
esta  proporção,  uma  parte  tem  necessariamente  de  emi- 
grar até  que  se  descubra  meio  para  a  sustentação  da 
parte  superabundante  ;  e  isto  só  o  pôde  eífectuar  o  corn- 
mercio  e  a  industria.  O  systema  manufacturario  é  uma  gran- 
de fonte  de  recursos  para  os  povos,  porque  os  differentes  ar- 
tigos d'industria  são  exportados  para  aquelles  paizes  que 
d'elles  carecem,  e  cujos  produetos  superabundantes  rever- 
tem em  beneficio  das  classes  manufacturarias  d'aquelles  que 
os  não   possuem  na  quantidade  precisa. 

As  nações  não  civilisadas  não  possuem  estes  recursos  e 
conseguintemente  quando  a  sua  população  superabunda,  a 
emigração  e"  a  consequência  necessária.  D'aqui  devemos  in- 
ferir que  mais  tarde  ou  mais  cedo  as  nações  septentrionaes 
invadirião  o  império  Romano  que,  pela  extensão  de  fron- 
teira, se  lhes  oppunha  em  toda  a  parte,  a  não  ser  que  aquel- 
les povos  abraçassem  a  civilisação,  ou  que  a  quantidade  su- 
pérflua fosse  destruída  nas  guerras  com  os  romanos.  As 
circunstancias  physicas  e  moraes  do  caso  não  admittiam 
meio  termo.  Os  vastos  paizes  que  se  extendem  ao  norte 
desde  o  Rheno,  Danúbio  e  o  mar  negro,  comprehendendo  a 
Allemanha,  Polónia,    Rússia,  Suécia,  Dinamarca  e  Noroega^ 


180 

eram,  por  assim  dizer,  um  immenso  viveiro  da  espécie  m> 
manft.  As  nações  mais  septentrionaes,  avançando  para  o  sul 
e  subjugando  as  tribus  meridionaeS,  assemelhavam-se  a  um 
diluvio,  cujas  ondas  se  impelliam  mutua  e  successivamente, 
até  que  a  grande  massa  de  bárbaros  se  accumulou  sobre  as 
fronteiras  romanas,  como  succedeu  com  os  godos  e  com  os 
hunos  no  reinado  do  imperador  Valente.  Durante  os  últimos 
annos  do  império  aquellas  invasões  succediam-se  umas  apoz 
outras.  Vemos  que  no  reinado  de  Galleno,  o  império,  que 
parecia  desabar,  fora  ainda  sustentado  pela  consummada  pru- 
dência e  vigorosos  esforços  d'aquelles  imperadores  guerrei- 
ros, Cláudio,  Probo,  e  Aureliano;  e  a  sua  grandeza  a  muito 
custo  mantida  por  Diocleciano,  Maximiano,  Galerio  e  outros, 
Constantino  lke  restaurou  a  sua  antiga  grandeza  e  poder;  e 
a  sua  grande  fama  militar,  reunida  a  energia,  real,  ou  apparente 
de  seu  governo,  repellio  as  tentativas  dos  inimigos  de  Roma; 
ruas  no  curto  reinado  de  Valentiniano  e  de  Valente,  os  go- 
dos e  outras  nações  do  norte,  renovaram  as  suas  invasões  e 
durante  quasi  um  século  não  cessaram  seus  ataques  contra 
o  império  em  todos  os  pontos  da  linha  da  sua  fronteira 
septentrional  desde  a  foz  do  Rheno  até  á  foz  do  Danúbio. 
Com  a  resistência  do  império  do  oriente,  o  inimigo  voltou  as 
armas  contra  o  império  occidental,  até  que  o  poder  romano 
succumbio  aos  seus  reiterados  ataques,  e  a  própria  cidade  im- 
perial cahio  nas  mãos    dos  invasores. 

Para  que  o  império  romano  podesse  resistir  a  semelhantes 
hordas  selvagens,  deveria  ter  ficado  indiviso,  e  que  os  seus 
imperadores  fossem  um  Cláudio,  um  Probo,  um  Aureliano, 
ou  um   Constantino. 

Vemos  a  opulência,  o  luxo  e  o  esplendor,  e  procuramos 
estimar  a  extensão  e  população  de  Roma  no  zenith  da  sua 
grandeza.  Do  seu  estado,  n'aquelles  tempos  da  sua  declinação, 
é  difíicil  formar  idéa,  e  se  ella  começou  entre  o  reinado  de 
Theodosio  o  Grande,  e  a  sua  tomada  por  Alarico,  é  difficil  de 
precisar.  Comtudo,  é  natural  que  assim  acontecesse  e  que  a 
capital  se  resentisse  do  desmembramento  do  império.  A  per- 


1-81 

da  das  provindas,,  umas  apoz  outras  e  consequentemente  dos 
respectivos  tributos,  não  só  produziria  um  desfalque  nos  ren- 
dimentos públicos,  mas  os  cidadãos  romanos,  dos  quaes  as 
classes  pobres  dependiam  dos  donativos,  deveriam  ter  expe- 
rimentado grandes  faltas.  Muitos  grandes  de  Roma  perde- 
rião  necessariamente  as  suas  propriedades  situadas  nas  pro- 
víncias oceupadas  pelo  inimigo;  mas  mesmo  assim  não  ve- 
mos que  o  luxo  diminuísse  nos  primeiros  tempos.  N'uma 
cidade  onde  se  concentrara  a  principal  riqueza  do  mundo, 
um  grande  desarranjo  deveria  dar-se  na  administração  pu- 
blica e  uma  grande  diminuição  na  vida  particular  antes  que 
um  povo  luxuoso  apresentasse  symptomas  visíveis  de  pobre- 
za. Alem  de  que  é  muito  de  suppôr  que  muitos  indivíduos  ri- 
cos das  províncias  se  refugiassem  na  capital  contra  as  depre- 
dações do  inimigo,  seguindo-se  d'aqui  que  uma  considerável 
parte  das  riquezas  do  império  se  agglomeraram  na  cida- 
de imperial  que,  por  esta  rasão,  só  mais  tarde  come- 
çou a  declinar.  O  que  parece,  porem,  certo  é  que  a  de- 
clinação de  Roma  começou  depois  de  ser  Constantinopla  a 
sede  do  gqverno,  com  quanto  contasse  48:802  edifícios  no 
reinado  de  Theodosio,  sessenta  annos  depois  da  mudança  da 
residência  imperial.  Deve-se  suppôr  que  certo  numero  de  ri- 
cos e  ambiciosos  cidadãos  de  Roma  abandonassem  n'esta 
occasião  a  velha  metrópoli  e  se  mudassem  para  Constanti- 
nopla, muito  mais  que  Constantino  seduzia,  com  a  conces- 
são de  grandes  propriedades,  aquelles  que  fixassem  a  sua  re- 
sidência na  nova  capital.  E  considerando  que  Ravenna  de- 
pois que  a  corte  do  império  do  occidente  se  mudou  pa- 
ra lá,  começou  a  florescer  com  a  affluencia  dos  grandes 
de  Roma,  é  fácil  concluir  que  Roma  deveria  ter  decaído 
muito  de  grandeza  e  esplendor,  antes  que  fosse  victima  da 
expoliação  dos  godos.  Em  quanto  aos  costumes  em  geral 
dos  romanos,  é  de  notar  que  degeneraram  consideravelmen- 
te nos  últimos  tempos  do  império.  Encontram-se  vestígios 
palpáveis  no  período  que  se  seguio  ao  reinado  de  Constanti- 
no. Raros  factos  de  patriotismo  apparecem  nos  reinados  pos- 


in- 
teriores,   e  o  espirito  publico  parece  liaver-se  extincto..  A  fãt-- 
$a.  denergia  no  governo,  o  luxo,  a  effeminação  e  uma  depra- 
vação   geral  de  costumes,  começam  a  caracterisar.  o  império, 
romano. 

Passemos  agora  a  investigar    o  estado  da  religião  durante 
os  tempos  que  acabamos  de  percorrer,. 


■xm  sétima  carta 


A  historia  religiosa  do  império  romano  depois  da  morte 
de  Constantino,  merece  attenção.  Á  religião,  verdedeira  oiu 
falsa,  ê  uma  importante  feição  na  historia,  da  humanidade. 
Tudo,  por  tanto,  que  dia  respeito  a  um  systema  que  até  ho- 
je exerce  influencia  politica  e  moral,  que  dá.  um  curso  parti- 
cular ás  idéas  e  que  forma  a  base  das  nossas  esperanças,  de- 
ve interessar  consideravelmente.  Tão  depressa  faltou  Cons-. 
tantino  que  o  seu  favorito  concilio  de  Nicea  começou  a  perder 
a  sua  influencia  e  authoridade  e  o  arianismo  triumphou.. 
O  partido  orthodoxo  vio  se  supplantado  e  quasi  todas  as 
grandes  dignidades  ecclesiasticas  do  império  oriental  foram 
conferidas  aos  arianos.  Temos  já  notado  a  perigosa  situação 
da  christandade  no  reinado  de  Juliano  e  a  sua  providencial 
salvação  com  a  morte  d'aquelle  imperador  na  guerra  com  a 
Pérsia.  D'ahi  para  cá  nenhum  pagão  cingio  a  purpura;  mas 
Valente,  o  imperador  do  oriente,  era  fortemente  partidário  do 
arianismo  e  perseguia  os  orthodoxos. 

Depois  da  desastrosa  sorte  de  Valente  na  batalha  de  Adria- 
nopla  na  guerra  com  os  godos,  foi  eleito  imperador,  Theoclo- 
sio  o  grande,  no  oriente.  Elle  esposara  o  dogma  da  San- 
tíssima Trindade  e  privou  os  arianos  das  suas  preferen- 
cias ecclesiasticas,  alem  d'outros  procedimentos  rigorosos  que 
adoptou  contra  elles;  e  se  não  extirpou,  ao  menos  subjugou 
inteiramente  aquella  heresia,  que  nunca  mais  ergueu  o  collo 
^10   império.    Este   imperador,    tornando-se  único   senhor  do» 


Í83 

orbe  romano,  aboliu  a  idolatria  em  todo  o  império;  e  no  sani 
reinado  o  senado  romano  abraçou  o  christianismo  no  anno? 
de  388. 

Durante  um  periodo  de  40  annos,  que  vai  da  morte  de- 
Constantino  ao  triumpho  da  orthodoxia  no  tempo  de  Theo- 
dosio,  Constantinopla  fora  a  sede  do  arianismo,  e  a  crença, 
dos  imperadores,  dos  prelados  e  da  população,  d^quella  me- 
tiópoli,  foi  regeitada  nas  aulas  de  theologia  de  Roma  e  Ale- 
xandria. 0  celebre  Athanasio,  bispo  d^Alexandria,  de  quem  o 
credo  athanasiano  deriva  a  sua  denominação,  foi  o  strenuo 
defensor  da  doutrina,  catbolica  d&  Trindade  e  soffreu  por  is- 
so muitas  perseguições. 

A  controvérsia  era  a  ordem  do  dia  e  o  assumpto  favorito 
das  multidões  ociosas  de  Constantinopla;  e  não  só  os  artistas, 
mas  até  mesmo  os  escravos  eram  profundos  theologos,  e  per- 
tendiam  descortinar  os  mysterios  da  Santissima  Trindade  e 
a  natureza. incomprehensivel  do  Ente  Supremo.  A  historia  da 
igreja,  a.  este  tempo,  apresentava  as  scenas  degradantes  da^ 
facção,  perseguição  e  anarchia;  bispos  condemnando  bispos,., 
ooncilios  fulminando  concílios  com  toda  a.  acrimonia  do  fana- 
tismo. 

A  promoção  cie  Gregório  Nazianzeno  á  sê  arehipiscopal  de- 
Constantinopla    no  anuo    de  380  assignalou    o  triumpho  do* 
partido  orthodoxo.  O  imperador  Tlieodosio    em  pessoa  acom- 
panhou Gregório,    collocou-o  sobre  o  throno  archipiscopal  e: 
os  arianos. foram  expulsos  das  igrejas  â  viva  força. 

Tão  depressa  começou  o  arcebispo  a  pregai?  a  doutrina  da 
Santissima  Trindade  e   a  divindade  de  Christo,  um  bando  de- 
frades  e  vagabundos  assaltaram   a  igreja,  e  não  sem  difficul-- 
dade   foi  obrigado  a  retirar.    A- fim   d'acabar    com  todos   os 
pretextos  para  duvidas  e  disputas. sobre  a  natureza  das   Pes- 
soas da  Santissima  Trindade,  Theodosio  convocou  a  Constan- 
tinopla um  concilio  de  cento  e  cincoenta  bispos,  no  qual   foi 
debatido  o  systema  theologico  do  concilio  de  Nicea  e  clara- 
mente definido;  e   a  divindade  do  Espirito   Santo,  a  respeito., 
da  qual  se  tinham  levantado  algumas  duvidas,   foi  declarado. 


184 

dogma  de  fé,  e  constitue  parte  essencial  do  credo  do  chrisfia- 
nismo.  O  concilio  de  Constantinopla  é  considerado  o  segun- 
do concilio  geral,  e  completamente  defmio  e  estabeleceu  a  fé 
sobre  aquelles  pontos.  Nos  reinados  de  Theodosio  e  Arcádio, 
seu  filho,  diversos  grandes  caracteres  resplandeceram  na 
igreja  christã,  especialmente  San  Gregório  e  João  Chry- 
sostomo, ambos  successivamente  arcebispos  de  Constantino- 
pl  a. 

A  corrupção  da  língua  é  visível  ein  quasi  todos  os  padres 
da  igreja  latina  d'aquelle  tempo;  mas  os  exemplos  de  San 
Gregório  Nazeanzeno  e  San  Chrysostomo  são  todos  como 
modelos  d'eloquencia;  San  Chrysostomo,  especialmente,  foi 
sempre  reputado  o  mais  elegante  escriptor,  como  fora  o  mais 
eloquente  pregador  de  todos  os  padres  dos  primeiros  tempos. 
Fora  originariamente  sacerdote  d'Antliiocliia  e  depois  de  ser 
arcebispo  de  Constantinopla,  foi  perseguido  e  exilado  pelo 
imperador  Eudoxio,  no  anno  de  404;  não  sem  uma  revolta 
popular  em  seu  favor,  que  elle,  não  obstante,  desaprovou  e 
com  difíiculdade  apasiguou. 

Este  grande  homem  morreu  no  desterro  em  407  e  os  seus 
restos  foram,  com  grande  solemnidade,  trasladados  para 
Constantinopla  pelo  imperador  Theodosio  2.°  no  anno  do  Se- 
nhor de  438. 

Depois  que  Theodosio  o  grande  eífectuâra  a  suppressão  do 
arianismo,  a  fé  ortliodoxa  passou  a  ser  a  religião  de  todo  o 
império  romano.  Os  godos  e  varias  outras  nações  limitrophes 
tinham  sido  já  em  parte,  ou  no  todo,  convertidos  ao  christia- 
nismo,  mas  como  tivessem  embebido  seus  princípios  religio- 
sos, na  maior  parte,  dos  arianos,  expulsos  pelo  partido  ortho- 
doxo  no  reinado  de  Constantino ,  ou  pelos  missionários  de 
Constantinopla,  durante  os  reinados  dos  imperadores  arianos; 
a  sua  religião  era  o  arianismo.  Em  consequência  da  perse- 
guição dos  arianos  sob  Theodosio,  e  a  expulsão  dos  bispos  e 
outros  clérigos,  que  se  recusaram  a  reconhecer  os  artigos  de 
fé  dictados  pelos  concilios  de  Nicea  e  Constantinopla,  um 
grande   numero  d'aquelles  ecclesiastieos  se  refugiou  entre    os 


Í85 

godos,  aonde  as  suas  doutrinas  eram  íoclas  semelhantes  áê 
da  igreja.  Estes  sacerdotes  eram  bem  recebidos  entre  as 
nações  barbaras,  respeitados  como  viçtimas  da  religião  e  fo- 
ram extraordinariamente  bem  succedidos  na  propagação  das 
suas  doutrinas;  tanto  que  o  arianismo  tornou-se  a  crença  de 
todos  os  povos  do  norte,  convertidos  antes  da  subversão  do* 
império  romano.  Pondo  de  parte  as  difierentes  seitas  que  de 
tempos  a  tempos  appareeiam,  e  que  tem  sido  acoimadas  de 
heréticas,  será  bastante  notar  que  o  orbe  christão  se  dividia 
em  dous  grandes  partidos ,  o  dos  orthodoxos  e  dos  arianos, 
um  que  defendia  a  divindade  de  Christo  como  pessoa  insepa- 
rável da  Santissima  Trindade;  e  o  outro  ensinando  a  supe- 
rioridade do  Pae.  Esta  era  a  crença  do  império  do  oriente 
e  aquella  do  occidente,  desde  o  reinado  de  Constantinopla  até 
Theodosio;  e  desde  esse  tempo  a  doutrina  trinitaria  passou  a 
ser  a  religião  de  todo  o  orbe  romano,  e  o  arianismo  a  de  todas 
as  mais  nações  que  abraçam  o  christianismo;  até  depois  da 
queda  do  império,  quando  começaram  umas  apoz  outras  a 
seguir  a  religião  catholica  romana  e  adoptaram  a  doutrina 
da  Santissima  Trindade,  conforme  os  decretos  dos  concilios 
de  Nicea  e  Constantinopla. 

Nas  eras  que  agora  esboçamos  appareceram  homens  que 
figuraram  no  theatro  politico  e  religioso  do  mundo,  e  cujas 
noções  da  Divindade  formam  uma  feição  distincta  e  notável 
na  historia  da  humanidade.  N'aquelles  tempos  tenebrosos  de 
perseguição,  que  começaram  no  reinado  duplo  de  Dioclecia- 
no e  Maximiliano,  uma  nova  doutrina  appareceu  na  igreja. 
António  e  Paulo,  dois  eremitas  egypcios,  tinham  abandona- 
do o  mundo,  entregando  se  á  vida  contemplativa  e  á  oração 
nos  desertos  de  Thc-baida.  Vários  outros,  ou  desejosos  de  se 
porem  ao  abrigo  da  perseguição,  ou  para  fugirem  âs  seduc- 
ções  do  mundo,  ou  talvez,  por  natural  inclinação,  aparta- 
ram-se  da  sociedade  para  melhor  se  entregarem  ao  serviço  de 
Deos. — António  reunio  alguns  e  os  constituio  em  commu- 
nidade  regular  no  anno  do  Senhor  de  305. 

Numero  considerável  de  pessoas,  dotadas  cTespirito  religio* 


8  e'ii 


86 

%o  dedicou-se  a  este  modo  devida:  muitos  adoptaram  regias 
excessivamente  austeras,  convictos  que  uma  vida  de  morti- 
ficação voluntária  seria  bem  aceita  de  Deos.  Descobrir  a 
origem  ou  examinar  as  regras  e  instituições  cVestas  differen- 
fces  ordens  religiosas,  que  foram,  em  differeutes  tempos  esta- 
belecidos na  igreja,  excederia  os  limites  apropriados  a  uma 
revista  geral  da  historiada  humanidade.  Bastará  dizer  que 
no  reinado  de  Constantino  e  de  seus  successores,  a  vida  as- 
cética tornou  se  moda  dominante,  e  Santo  Hilário  fundou 
■conventos  na  Palestina  em  328,  pouco  mais  ou  menos:  em 
Roma  em  341.  San  Basilio  no  Ponto  no  anno  de  360;  San 
Martinho  na  Gallia  em  37'0;  e  em  pouco  tempo  generalisaram- 
se  em  todas  as  partes  do  mundo  christão.  Estes  religiosos,  pela 
sua  real  ou  apparente  sanctidade,  começaram  a  gosar  de  gran- 
de reputação.  Eram  tirados  das  suas  solidões,  apresentados 
nas  grandes  cidades  e  villas,  e  erigiam-se-lhes  mosteiros  su- 
berbos  para  suas  residências  com  magníficos  templos  para 
-n  celebração  da  missa. 

Com  o  andar  do  tempo,  a  piedade  e  a  superstição  tam- 
bém doaram  estes  estabelecimentos  de  grandes  rendimentos. 
Deste  modo  aquelles  devotos,  que  haviam  renunciado  ao 
mundo  e  feito  voto  de  pobreza  tornaram-se  senhores  de  gran- 
des cabedaes;  e  com  quanto  individualmente  pobres,  pos- 
suindo tudo  em  co  min  uru,  formaram  oommunidades  opulen- 
tíssimas. 

Fallando  d'uma  classe  d'individuos  religiosos  que  consti- 
íue  uma  feição  distincta  de  historia,  seja-nos  permittido  an- 
tecipar a  ordem  das  cousas  e  do  tempo,  para  umas  obser- 
vações que  pertencem  a  outro  período,  mas  que  por  analo- 
gia do  assumpto,  tem  melhor  cabimento  aqui.  Não  ê  diíficil 
perceber,  que  por  muito  grande  que  fosse  a  veneração  pela 
vida  monástica  em  tempos  mais  remotos,  não  se  casa  com  o 
gosto  moderno.  Os  povos  que  abraçaram  a  religião  reforma- 
da abandonaram  as  instituições  monásticas.  Nos  paizes  ca- 
tholicos  romanos  perderam  geralmente  seu  antigo  prestigio, 
<e  o  seu  numero  tem  diminuído  consideravelmente,  Na  França 


187 

í  outros  paizes  for: im  inteiramente  abolidos,  e  figm  , 
por  tudo  quanto  vemos,  que  os  conventos  terão  acabado  de 
todo  antes  d'acabar  o  soculo  presente»  Em  quanto  ás  vanta- 
gens d'estas  instituições,  muitas  são  as  razões  apresentadas 
contra  a  sua  existência,  umas  com  bons  fundamentos,  ou- 
tras que  tem  por  base  princípios  errados,  e  falsos  precon- 
ceitos. O  homem  cie  boa  fé,  porem,  olhará,  despido  de  pai- 
xão e  prejuiso,  as  cousas,  não  pelo  prisma  d'espirito  faceio^ 
so,  mas  á  luz  da  verdade  e  formará  seu  juiso  com  imparciali- 
dade. 

Para  bem  ajaisar  da  utilidade  das  instituições  monásticas, 
devemos  consideral-as  sob  um  ponto  de  vista  tanto  religioso 
como  politico,  visto  prender  com  ellas  a  devoção  e  o  interes- 
se da  sociedade.  Em  quanto  á  parte  religiosa,  parece  matéria 
indiíferente.  O  Ente  Supremo,  que  domina  o  universo  e  en- 
che a  immensidade  com  a  sua  presença,  pôde  ser  adorado 
em  todos  os  logares,  dentro  dos  muros  d'um  convento,  ou 
entre  as  turbas  d'uma  cidade;  no  meio  do  tumulto  dum  a- 
campamento,  ou  no  meio  do  esplendor  d'uma  corte.  Nem  o  re- 
tiro do  claustro,  nem  o  bulício  da  turba  pôde  facilitar  ou  im- 
pedir a  aceitação  da  sincera  veneração  da  creatura.  Se,  por- 
tanto, um  agregado  de  pessoas  convém  em  se  associar,  a  fim 
cVempregar  o  tempo  na  contemplação  e  na  prece,  debaixo 
d'aquellas  regras  e  preceitos  que  entende  apropriadas  e 
conducentes  á  sua  conveniência  mutua,  taes  associações  não 
podem,  por  principio  algum  religioso,  ser  prohibiclas,  mais 
que  quaesquer  outras  sociedades  litterarias:  mas  não  são  a 
qualquer  respeito  essencialmente  necessárias  á  religião  e, tal- 
vez, dispensáveis  mesmo. 

As  instituições  monásticas,  imparcialmente  consideradas, 
sem  a  menor  sombra  de  prejuiso,  e  julgadas  como  objecto 
secundário,  sob  o  ponto  de  vista  religioso,  devem  ser  estuda- 
das politicamente,  a  fim  de  se  conhecer  se  são  d'utilidade  ou 
de  prejuiso  á  sociedade,  o  que  depende  muito  de  diíferentes 
circunstancias,  idades  e  paizes. 

Tem-se  apresentado  as  casas   religiosas    como    asylos  d'è 

m 


I8S 

ociosidade,  e  os  monges  como  indivíduos  imiteis  á  sociedaclèc 
Este  argumento  pôde  parecer  á  primeira  vista  plausível,  mas 
cae  por  falta  de  base  na  generalidade.  Admittmdo,  comtudo, 
ser  verdadeiro,  como  cm  parte  é,  aquelle  principio,  é  forço- 
so convir  que  os  conventos  não  são  as  únicas  guaridas  de 
ociosidade.  Quantos  asylos  d'estes  não  se  encontram  por 
alii,  particulares  ?  A  chusma  de  familiares  que  compõe  o  sé- 
quito dos  grandes  e  opulentos  de  todos  os  paizes  são  de  pouca 
utilidade  publica,  a  não  ser  que  na  qualidade  de  consurn- 
midores,  contribuam  para  a  actividade  cia  industria  e  corn- 
mercio;  mas  as  ordens  religiosas  são  cTeste  modo  úteis  á  so- 
ciedade. Em  todos  os  paizes,  e  com  todo  o  systema  politico 
lia  immensa  gente  que  em  nenhum  trabalho  útil  se  emprega. 
Nem  todos  são  obrigados  a  trabalhar.  Aquelles  que 
possuem  propriedade  sufficiente  para  a  sua  sustentação  e  que 
se  lhes  proporciona  os  meios  de  viverem  com  commodidade, 
raras  vezes  se  occupam  na  cultura  cios  seus  terrenos,  ou 
em  qualquer  outra  industria  proveitosa  á  sociedade.  D'aqui 
podemos  igualmente  argumentar,  que  se  as  cercas  dos  con- 
ventos não  fossem  sustento  dos  frades,  seriam  d'outros  in- 
dividuos igualmente  ociosos,  e  tanto  esta  propriedade  como  a 
de  particulares,  demandam  cultura  e  por  consequência  é  o 
arrimo  d'aquelles  que  a  trabalham.  O  homem  é  demasia- 
damente susceptível  a  deixar-se  levar  pelas  primeiras  im- 
pressões e  não  reflecte  maduramente.  Se  tivéssemos  a  cer- 
teza que  cada  conventual,  no  estado  secular  se  empregas- 
se em  beneficio  commum,  melhor  fora  que  o  mosteiro  não 
existisse;  mas  isto  está  longe  d'acontecer:  em  todos  os  pai- 
zes ha  muita  gente,  cujo  tempo  e  talento  são  de  menos  pro- 
veito que  os  dos  frades.  Suppõe-se  que,  antes  da  revolução, 
o  numero  de  religiosos  d'ambos  os  sexos  nos  conventos  de 
França,  não  era  inferior  a  duzentos  mil.  Toda  esta  gente 
não  se  empregava  em  utilidade  do  estado;  mas  ao  mesmo 
tempo  havia  n'aquelle  paiz  o  dobro  talvez  daquelle  numero 
tio  mesmo  modo  inútil  á  sociedade,  e  certamente  mais  peri- 
gosa. Era  sem  duvida  grande  o  numero   de  casas  religiosas 


189 

na  França,  mas  se  outros  tantos  francezes  se  tivessem  en> 
tregue  á  vida  mystica,  não  teria  sido  talvez,  peior  para  si  e 
para  a  Europa.  Na  Inglaterra  mesmo  lia  indubitavelmente 
muitos  milhares  d'individuos  que  se  empregariam  melhor  es- 
tando em  conventos  do  que  está  acontecendo  fora. 

Isto  de  representar  os  frades  como  uma  classe  ociosa  e 
inútil,  constitue  uma  falsa  apreciação  do  caracter  da  insti- 
tuição monástica.  Que  muitos  são  cVaquella  Índole  é  fora  de 
questão;  mas  outros  ha  d'uma  classe  muito  differente.  Os  fra- 
des não  só  conservaram  a  sabedoria  no  meio  do  barbaris- 
mo dos  godos,  mas  muitos  d'elles  foram  authores  das 
sciencias  modernas,  e  instrumentos  activos  do  renascimento 
das  lettras,  na  dispersão  das  trevas  da  ignorância  e  da  bar- 
bárie que  por  tantos  séculos  envolveu  a  humanidade.  Se 
não  são  os  monges,  tinha-se  irremediavelmente  perdido  to- 
da a  li tteratura  antiga,  e  a  historia  dos  tempos  passados  no 
naufrágio  geral.  Faltar-nos-hião  hoje  as  composições  dos  poe- 
tas e  oradores  da  Grécia  e  Roma,  e  como  conservadores  d'a- 
quellas  brilhantes  produeções  de  génio  e  eloquência,  são  cre- 
dores ao  reconhecimento  da  posteridade. 

A  devassidão  que  reinava  em  algumas  casas  religiosas,  é-- 
nos  descripta  por  alguns  authores  nas  mais  negras  cores,  e 
comtudo  temos  incontestáveis  provas  que  muitos  monges 
foram  homens  sábios  e  piedosos;  e  como  taes  ornamentos 
da  idade  em  que  viveram.  Que  muitos  eram  o  opposto  tam- 
bém é  inquestionável,  mas  isto  acontece  em  todas  as  cor- 
porações. Um  corpo  militar  não  deve  ser  julgado  pusilânime, 
porque  conta  meia  dúzia  de  cobardes  no  seu  seio,  nem.  uma 
nação  inteira  taxada  d'immoral,  porque  alguns  malfeitores 
morreram  ás  mãos  do  carrasco.  A  boa  razão  não  nos  deixa 
suppôr  devotos  todos  os  frades,  nem  castas  todas  as  freiras, 
é  também  igualmente  desrasoavel  e  menos  caritativo  jul- 
gar a  todos  impios  e  incastos.  O  prejuiso  não  deve  influir 
sobre  nós  a  ponto  de  nos  induzir  a  condemnar  uma  com- 
munidade  inteira,  por  causa  dos  crimes  d'alguns  de  seus 
membros;    e  a  nossa  boa  razão  não  deve   subordinasse  a  faL 


sas  argumentações;  Cumpre-nos  estudar  maduramente 
uma  questão  qualquer  por  ambas  as  faces,  antes  de  julgar  o  nos- 
so semelhante,  seja  de  que  seita,  partido  ou  denomi- 
nação for.  Finalmente,  figurássemos  que  as  instituições 
monásticas,  não  tendo  por  base  preceito  algum  divino-,  não 
constituem  parte  essencial  da  religião,  e  por  tanto  só"  po- 
dem ser  consideradas  como  obra  do  homem,  e,  â  semelhan- 
ça d'outros  estabelecimentos  politicos  e  civis,  a  sua  proprie- 
dade e  merecimento  devem  ser  apreciados  conforme  os  fins 
para  que  foram  estabelecidos  e  conforme  as  idades  e  paiaes 
em  que  existem.  No  tempo  dos  godos  e  da  idade  media, 
quando  todo  o  orbe  christão,  ou  aquella  parte  ao  menos,  que 
se  compunha  da  igreja  latina  luctava  com  a  ignorância  e 
commoções  perpetuas;  quando  os  alarmes  incessantes  da 
guerra  e  o  estado  geral  militar  da  Europa,  privava  seus  ha- 
bitantes de  tempo,  e  mesmo- da-  vontade,  para  a  cultura  das 
sciencias  e  d'aquelles  estudos  que  illuminam  e  abrilhantam 
a  intelligencia;  quando  eram  estas- as  circunstancias  dos  pai- 
zes  christãos,  parecemos  altamente  acertado  que  uma  classe 
dliomens,  estranhos  ao  bulicio  do  mundo  e  ao  abrigo  da 
violência  dos  partidos,-  pela  veneração  publica  que  gosava, 
tratasse  unicamente  da  parte  intellectual,  instruindo  as  mul- 
tidões ignorantes  e  conservando  os  restos  da  litteratura 
antiga.  O  clero  envolvia-se  demasiadamente  nos  negócios 
públicos  e  commoções  d'aquelles  tempos  turbulentos  para 
cuidar  convenientemente  das  lettras  e  artes,  e  instituição  al- 
guma se  prestava  tanto  para  este  fim,  como  era  a  monásti- 
ca; mas  como  esses  tempos  já  não  existem,  aquelles  estabe- 
lecimentos deixaram  de  ter  a  utilidade  que  tinham  e  prova- 
velmente não  tardará  que  acabem  de   todo». 


As   reflexões  que*  passamos    a  fazer  teem   pouco  d' agracia* 
feia-  Depois    da  queda  do  império  romano,  succede  um  pe?- 


m 

riodo  tenebroso,  que  forma  como  nm  abysmo  na  historiai 
da  humanidade.  Desde  aquella  epocha  memorável,  até  ao-- 
remado  de  Carlos  Magno,  os  annaes  da  Europa  por  mais  dej 
três  séculos  descrevem  uma  nunca  interrompida  serie  de  sam 
gue  e  anarchia.  As  paginas  da  historia  reproduzem  as  in- 
cessantes e  sanguinolentas  revoluções  que  tiveram  logar  noa 
reinos  e  nos  estados  que  as  nações  do  norte  levantaram  so- 
bre as  minas-  do  império  romano;  e  os  escriptores  que  tra- 
tam d'aquelles  tempos,  enchem  as  suas  narrativas  de  mal 
authenticadas  descripções-  de  batalhas,  cercos,  traições  e  as- 
sassinatos, que  merecem  apenas  a  attenção  da  posteridade^ 
por  nos  darem  uma  idéa  como  se  formaram  os  reinos  e  os 
estados    da   Europa  moderna. 

Os  godos  tinham  estabelecido  o  seu  reino  na  Hespanhar 
no  anno  de  472,  e  Clóvis  estabeleceuamonarchiafrance- 
za  pelos  fins  do  quinto  século. 

Os  saxonios  entraram  na  Inglatera  em  449  e  o  sexto  sé- 
culo foi  testemunha  da  heptarchia  saxonia  n'este  paiz,  a  con- 
quista da  Borgonha  e  Aquitauia  pelos  francezes,  e  o  comple- 
to estabelecimento  da  monarchia  franceza.  O  reino  d'Odoa~ 
cro  na  Itália  foi  conquistado  por  Theodorico,  rei  dos  godos^- 
que  era  subsidiado  e  commissionado  pela  corte  de  Constan- 
tinopla, e  reinou  na  Itália  por  saneção  e  authoridade  do  im- 
perador do  oriente,  de  quem  se  reconheceu  vassallo.  Theo- 
dorico é  representado  como  príncipe  de  grandes  qualidades-1 
diplomáticas,  mas  de  tal  modo  ignorante  que  nem  sabia  fa- 
zer o  seu  nome.  No  entanto,  a  Itália  floresceu  no  seu  reinado. 
EUe  conservou  os  godos  e  os  italianos  como  duas  nações  dis- 
tinctas,  reservando  a  primeira  para  a  guerra  e  a  segunda  pa- 
ra a  paz.  A'  morte  de  Theodorioo  o  seu  reino  passou  á  sua- 
formosa  e  instruida  filha,  Amalasontha,  cujo  exilio  e  morte,, 
teve  logar  no  anno  do  Senhor  de  535* 

Theodorico  reinara  com  a  confirmação  da  corte  imperial 
de  Constantinopla,  e  com  quanto  rei  da  Itália,  era  alliado  e- 
vassallo  e  como  tal  se  houve  sempre  para  com  o  império  do- 
oiúente;    mas  depois  do  exilio   e  morte,  da  filha   os    godos  da- 


192 

Itália  recusaram-se  a  reconhecer  a  authoridade  absoluta  daí 
corte  imperial,  e  quebraram  todas  as  suas  relações  com  o 
império.  Então  Justiniano  reinou  no  oriente  e  mandou  seu 
general,  Belisario,  para  a  Itália.  Belisario  entrou  em  Roma, 
onde  foi  sitiado  pelos  godos.  A  sua  heróica  c  quasi  incrivel 
defeza  d'esta  cidade,  apenas  com  5000  veteranos,  contra  um 
numeroso  exercito  de  godos,  commandado  por  Vitiges,  seu 
rei,  durante  um  anno  inteiro  em  537,  ê  considerada  um  dos 
mais  assignalados  feitos  militares  que  recorda  a  historia;  com 
quanto  se  deve  suppôr  que  ella  exagera  um  pouco,  por 
quanto  seuauthor  Procopio  era  affecto  a  Belisario.  Os  feitos 
d'armas  d'este  grande  general,  são  comtudo  suhiciente- 
mente  garantidos,  para  que  seu  nome  se  immortalisasse. 
Belisario  fez  varias  sortidas  arrojadas  e  felizes,  e  só  n'uma 
d'ellas,  se  diz  haver  os  godos  perdido  30:000  homens.  Fo- 
ram obrigados  a  levantar  o  cerco  á  chegada  de  novas  tro- 
pas de  Constantinopla.  Belisario,  finalmente,  subjugou  o  rei- 
no godo  da  Itália.  Viteges,  seu  rei,  entregando-se  com  con 
dições,  foi  enviado  a  Constantinopla,  e  Justiniano  deu-lhe 
Dará  sua  manutenção  uma  lucrativa  propriedade  na  Ásia 
menor,  e  quando  reconheceu  o  rito  athanasiano,  conferiu- 
lhe  o  grau  de  patricio  e  senador  que  ainda  continuavam  a 
ser  titulos  honoríficos  no  império.  Gulimer,  rei  dos  vânda- 
los, disfructava  igualmente  grande  propriedade,  mas  não  po- 
dia gosar  de  titulo  algum  honorifico  por  serem  incompatí- 
veis com  o  arianismo  que  elle  professava.  Os  godos  nova- 
mente se  revoltaram  com  Tetila  á  sua  frente,  a  quem  haviam 
eleito  rei,  levando  Belisario,  pela  segunda  vez  a  entrar  na 
Itália.  Roma  foi  então  tomada  pelos  godos  no  anno  de  547 
sendo  Belisario  mandado  recolher,  Roma  foi  de  novo  toma- 
da pelo  inimigo.  O  commanclo  do  exercito  da  Itália  foi  en- 
tão confiado  a  Narses,  eunucho,  homem  de  consummada 
táctica  militar  e  de  extraordinária  coragem.  Este  general  ma- 
tou Tetila,  o  rei  godo,  e  fez  se  senhor  de  Roma  no  anno  de 
552.  Também  bateu  e  fez  perecer  Teia,  que  succedêra  a 
Tetila,  como  rei  dos    godos  em  553.    Logo  em  seguida  teve 


m 

logar  uma  formidável  invasão  na  Itália  pelos  Francos,  cúá 
jos  exércitos  inundaram  aquelle  paiz;  mas  aquelles  invaso- 
res foram  derrotados  por  Narses,  com  prodigiosa  mortanda- 
de no  anno  de  554.  A  Itália  ficou  então  sendo  província  do 
império  oriental,  ou  Bysantino,  estabelecendo-se  um  gover- 
no sob  a  denominação  de  exarchado,  do  qual  o  eunucho 
Narses,  que  se  distinguira  por  seus  brilhantes  feitos  d'armaS) 
talentos  militares  e  insigne  valentia,  era  o  primeiro  exarcha. 
A  longa  e  sanguinolenta  serie  de  reiteradas  invasões  e  der- 
rotas, de  saques,  depredações  e  carnificina  que,  desde  o  rei- 
nado de  Honório,  no  occidente,  até  áquelle  de  Justiniano  no 
oriente,  por  espaço  de  quasi  cento  e  cincoenta  annos,  des- 
solou  a  Itália  e  enchem  volumes  d'historia  d'aquelles  calami- 
tosos tempos,  mereciam  antes  ser  entregues  ao  eterno  esque- 
cimento que  relembrar  factos  de  tanto  horror  a  não  ser 
que  um  relance  passageiro  sirva  para  nos  demonstrar  como 
cahiu  o  império  romano  e  como  as  nações  do  norte  estabe- 
leceram o  seu  dominio  sobre  as  ruinas  daquelle  collosso.  No 
meio,  porem,  de  tão  revoltantes  scenas,  a  historia  cVaquelles 
tempos  apresenta-nos  alguns  grandes  e  extraordinários  ca- 
racteres, que  merecem  logar  na  memoria  da  posteridade  ;  es- 
pecialmente o  imperador  Justiniano  e  seus  celebres  generaes 
Belisario  e  Narses.  A  fortuna  parece  haver  favorecido  Jus- 
tiniano d' uma  maneira  singular.  Elle  deveu  a  sua  elevação  a 
seu  tio,  Justino,  filho  de  gente  obscura  da  Dacia  ao  norte  do 
Danúbio,  que  com  outros  dous  homens  rústicos,  abandonando 
a  lavoura  e  mal  aprevisionados,  dirigiram-se  para  Constan- 
tinopla em  busca  de  fortuna  n'aquella  capital,  então  centro 
do  movimento  do  mundo  e  o  theatro  mais  adequado  para  o 
desenvolvimento  do  génio.  Não  ha,  talvez,  nada  na  historia 
da  humanidade  mais  agradável  e  mais  digno  d'attenção  como 
é  considerar  as  singulares  vicissitudes  que  caracterizam  as 
vidas  d'alguns  personagens  extraordinários  e  que  parecem 
destinados  pela  Providencia  a  desempenharem  algum  pa- 
pel de  primeira  ordem.  Justino,  tão  depressa  chegou  a  Cons-- 
tantinopla,  em  rasão  das  suas  forças  physicas  e  estatura   foi 


Í04 

''kdmittido  no  corpo  de  guardas  cio  imperador  Leão.  Nos  doas 
reinados  immediatos, .  Justino,  de  pobre  e  obscuro  passou  a 
ser  rico  e  grande.  Tendo-se  destinguido  na  guerra  contra  os 
persas,  seu  merecimento  obteve-lhe  successivos  postos  d'ac- 
cesso  militar  até  que  foi  nomeado  Senado v  e  commandantè 
da  guarda  imperial.  Estava  nesta  vantajosa  posição  quando, 
morrendo  o  imperador  Anastácio,  aproveitou  a  occasião  de 
se  elevar  á  soberania  do  império  do  Oriente  valendo-se  da 
sua  posição  e  influencia  militar,  contando  então  G8  annos 
d'idade. 

Justino  á  semelhança  de  Theodorico  rei  dTtalia  era  com- 
pletamente analphabeto^  e  não  deixa  de  ser  um  facto  singular 
que  dons  soberanos  contemporâneos  dos  mais  poderosos  fos- 
sem destituídos  de  instrucção.  Justino  tirou  seu  sobrinho  Jus- 
tiniano do  mesmo  obscurantismo  era  que  fora  creado.  Deste 
modo  foi  subitamente  este  joven  elevado  e  reconhecido  her- 
deiro presumptivo  do  império.  Recebeu  uma  excellente  edu- 
cação litteraria  em  Constantinopla,  e  com  todas  as  vantagens 
em  seu  favor  subio  ao  throno  imperial  por  morte  de  seu  tio 
no  anno  de  527.  Pela  conquista  da  Itália  e  da  Africa  deu  ao 
império  do  Oriente  um  explendor  e  extensão  que  até  então 
não  tivera  desde  a  sua  separação  do  império  occidental;  e  tor- 
nou-se  distincto  por  seu  consumado  tacto  politico  e  legislati- 
vo durante  um  longo  reinado  de  trinta  e  oito  annos,  appre- 
sentando  um  exemplo  de  continuada  prosperidade  que  talvez 
se  não  encontre  outra  na  historia. 

Vários  imperadores  romanos  como  Cláudio,  Probo,  Aure- 
liano,  Deocletiano,  Maximino,  Galerio  e  outros  d'humilde  con- 
dição tinham  chegado  a  elevar -se  ao  império  do  mundo ;  mas 
a  sua  elevação  tinha  sido, ou  o  premio  de  provado  mérito,  ou 
a  consequência  de  grandes  crimes.  Aquelles  imperadores  ti- 
nlião  gasto  a  sua  mocidade  nos  perigos  e  sacrifícios  da  guer- 
ra, alguns,  em  posição  subalterna,  não  tiveram  nunca 
occasião  de  se  educarem  para  occupar  o  elevado  car- 
go para  que  depois  foram  chamados.  O  mesmo  se  pode  dizer 
d'alguns  imperadores  do  Oriente   depois  de  Justiniano,  como 


195 

Basilio  o  Macedoniano. 

Temos  igualmente' visto  no  ultimo  século  Nadir  Sliali,  gò 
ralmentc  conhecido  por  Kouli-Khan  que  de  chefe  de  salteado- 
res, fez-se  rei  da  Pérsia,  conquistou  o  império  do  Mogol  e  tor- 
nou-se  rival  do  poder  Ottomano.  Nunhum  dos  felizes  aventu- 
reiros aqui  citados  tiveram  educação  liberal,  vida  ditosa,  e 
reinado  glorioso,  como  Justiniano. 

A  fortuna  juncou-lhe  a  estrada  de  flores  desde  a  mocida- 
de, e  sem  esforço  algum,  sem  azares  e  legalmente,  do  estado 
mais  humilde  subio  ao  apogeo  da  grandeza  humana,  tor- 
nando-se  distincto  durante  uma  longa  vida.  A  gloria  de  cur- 
ta duração  e  tão  custosamente  obtida  dos  outros  imperado- 
res deveu-se  a  mérito  militar,  mas  a  boa  fortuna  de  Justinia- 
no antecipou  a  siia  celebridade. 

Para  o  tornar  um  completo  typo  de  felicidade,  déra-lhe  a 
natureza  génio,  vigorosa  intelligencia,  constituição  robusta  e 
uma  saúde  perfeita. 

Alguns  escriptores  ha  que  procuram  denegrir  a  sua  re- 
putação, mas  estes  eram  inimigos  do  christianismo,  com  os 
quaes  não  era  favorito,  e  elle  não  só  se  distingnio  em  devo- 
ção e  zelo  pela  religião,  edificando  a  soberba  cathedral  de 
Santa  Sophia,  como  também  na  qualidade  de  'strenuo  de- 
fensor das  doutrinas  da  egreja. 

Parece  mesmo  que  a  única  mancha  no  caracter  de  Justi- 
niano era  de  ser  beato.  Os  seus  mais  declarados  inimigos 
concordam  no  seu  merecimento  como  .phiíosopho,  politico,  le- 
gislador, e  homem  versado  nas  lettras  e  artes.  Legou  um  no- 
bre monumento  no  seu  código,  tido  como  fonte  da  jurispru- 
dência moderna  com  quanto  modificada,  conforme  as  exigên- 
cias do  tempo.  Ò  magnifico  templo  de  Santa  Sophia,  hoje 
mesquita  mahometana,  e  do  qual  elle  fora  um  dos  principaes 
architectos,  attesta  a  sua  perícia  em  architectura.  Deveu 
seus  conhecimentos  a  um  estudo  aturado,  ajtrtlado  de  ta- 
lento natural.  Era  sóbrio  na  dieta  e  homem  de  pouco 
repouso.  Depois  de  dormir  uma  hora,  erguia-se  frequentemen- 
te para  se  entregar  ao  estudo  até  de  manhã.   Uma  grande  in.â 

96  " 


196 

reiligencía  esmeradamente  cultivada,  uma  actividade  d'espiri- 
to,  uma  saúde  vigorosa  no  decurso  d'uma  longa   vida  fizeram 

i  (pie  fossou:  vastos  os  seus  conhecimentos.  O  seu  tacto  po- 
;  o  manifesto  u-se  no  modo  porque  dirigia  a  guerra,  e  na  esco- 
lha de  seus  generaes  a  cuja  habilidade  consummada  se  deveu 
seremos  reinos  Godo  e  Vândalo  da  Itália  e  d' Africa  annexados 
ao  império  Bysantino  que  carecia  tão  somente  da  Hespanha, 
França  c  Grran-Bretanha  para  lhe  dar  aquella  grandeza  que  o 
império  romano  indiviso  adquirira  quando  no  zenith  do  seu 
explendor. 

Belizario  e  Narses  são  caracteres  pouco  menos  notáveis,  ou 
distinctos  na  historia.  Erão  ambos  d'origem  obscura  e  creados 
mcdiocremente.  Ambos  elevaram-se  e  se  distinguiram  pe- 
la sua  coragem  nas  crises  mais  sérias,  dando  uma  incontesta- 
vel  prova  do  descernimento  de  Justiniano  em  lhes  descobrir 
tanto  merecimento  occupando  logares  tão  secundários.  Tem- 
se-nos  entretido  com  um  conto  ricliculo  dliaver  sido  Belizario 
privado  de  vista  e  reduzido  á  pobreza  em  rasão  da  confisca- 
ção das  propriedades,  ficando  obrigado  a  pedir  esmola. 

O  que  ha  de  verdade  é  que  Belizario  sendo  accusado  de 
conspirar  contra  o  imperador  fora  encarcerado ;  mas  verifican- 
do-se  estar  innocente  foi  absolvido;  com  quanto  Justiniano  lhe 
confiscasse  a  maior  parte  da  sua  immensa  propriedade. 

No  reinado  de  Justiniano,  o  império  do  Oriente,  então  no 
zenith  da  sua  gloria  experimentou,  como  também  a  maior  par- 
te do  globo,  calamidades  de  natureza  physica  impossiveis  d'evi- 
tar.  Tremores  de  terra  espantosos  tiveram  logar  quasi  todos 
os  annos  em  todo  o  império;  mas  a  maior  fatalidade  n'este  rei- 
nado foi  a  peste  que  primeiro  se  manifestou  nas  visinhanças 
de  Peluso,  no  Egypto,  uma  cidade  situada  nas  margens  cio  Ni- 
lo. Este  terrível  contagio  extendeu-se  á  maior  parte  da  Azia, 
'Africa  e  Europa,  e  poucos  foram  os  logares  que  lhe  escaparam. 
Por  espaço  de  três  mezes  de  cinco  a  dez  mil  pessoas  morriam 
diariamente  em  Constantinopla;  muitas  cidades  do  Oriente 
foram  igualmente  desimaclas  e  em  alguns  logares  da  Itália  as 
coaras  apodreceram  nas  terras.  Esta  epidemia    manifestou-se 


197 

fiq  decimo  quinto  anno  do  reinado  de  Justiniano  e   íbi  de  tão 

longa  duração  que  só  se  cxtinguio  no  fim  de  cihcoenta  e  dons 
annos. 

A  sujeição  da  Itália  e  Africa,  com  quanto   engrandecesse  o 
poder  de  Justiniano  e  estendesse  o  seu  império,  foi  um  acon- 
tecimento que  influio  menos  sobre  os  destinos  dos  tempos  que 
lhe  succederam,  que  as  emprezas   de    natureza  commercial  e 
que  datam  cVeste  reinado.  Os  effeitos  da  primeira  depressa   se 
apagaram,  aquelles  das  segundas  teem  sido  permanentes ;   el- 
les  sobreviveram  ao"  império,  e  ainda  se  fazem    sentir  na  mo- 
derna Europa.  Desde  o  período  em  que  Roma,  tendo  attingi- 
do  o  zeniíh  de  seu  poder  e  grandeza,  começou  a  dissipar  por 
meio  do  luxo  as  riquezas  que  adquirira   pelas  armas,  a  seda 
era  um  cVaquelles  artigos  de  despeza  faustuosa  que  contribuio, 
] nais  que  tudo,  talvez,  para  passar    para    as    partes  orientaes 
d'Azia,  as  riquezas  accumuladas  nos  saques  cie  todos  esses  pai- 
zes  entre  o  Euplirates  e  as  columnas  dTIercules.  A  seda  cons- 
tituirá, havia  já  muito  tempo,  uma  muito   considerável  parte 
do  trafico  entre  Roma  e  índia  pelo  porto  cVAlexandria  duran- 
te o  período  mais  florescente  do  império.  Nos  últimos  tempos, 
quando  a  cidade  imperial  foi  preza  das  nações  septentrionaes, 
e  que  o  império  oriental  estava    fraca   e  vacillante,    os  Persas 
tinhão,  por  vários  meios,  cortado  frequentemente  a  communi- 
cação  entre  o  Oriente  e  o  Occidente,  e,  até  certo   ponto,  feito 
monopólio  do  commercio  da  seda.  A  Usbec  Tártara,    situada 
quasi  no  centro  da  Azia,  é  um  paiz,  que,   com  quanto  pouco 
conhecido  aos  Europeos,  tem  sido  ha  muito  notado   pelo  espi- 
rito industrial  e  mercantil  cie  seus  habitantes,  como  também 
pela  fertilidade  de  seu  solo.  Foi  aqui  que,  em  outros    tempos, 
ZinghisKhan  fundou  um  império,  que  depois  Tamerlâo  revi- 
veu e  igualou   áquelle    cia  antiga  Roma  em  extensão  de  ter- 
ritório. 

Aqui,  também,  em  epocha  muito  anterior,  commerciava-se 
com  ambos  os  paizes  orientaes  e  occiclentaes  da  Azia. 

No  reinado  de  Justiniano  e  nos  tempos  que   o  precederam, 
as  caravanas  de  Samarcand  traziam  sedas  da  China,  que  eram 


138 

geralmente  compradas  por  negociantes  persas,  concorrentes 
bis  feiras  nas  fronteiras  dòs  dons  impérios,  e  que  abasteciam 
Roma  deste  valioso  artigo  de  luxo.  Com  quanto  fosse  uma 
mercadoria  que  comportava  um  grande  valor  em  pequeno, 
volume,  o  que  deveria  diminuir  as  despezas.  do  transporte,  a 
jornada  das  caravanas  era  longa  e  perigosa  atravez  os  im- 
mensos  desertos  que  se  estendem  desde  o  Jax.artç  até  ás  fron- 
teiras da  China,  e  nos  quaes  as  hordas  nómadas  teem.  sempre 
considerado  o  viajante  como  objecto  de  legal  rapina. 

A's  vezes,  para  escaparem  ás  hordas  Tártaras,  as  carava- 
nas da  seda  tomavam  um  caminho  mais  ao  sul,  e  atravessai!-., 
do  as  montanhas  do  Thibet,  desciam  pelo  Indo,  e  esperavam 
nos  portas  de  Guzerat  ou  de  Malabar  a  chegada  das  frotas 
annuaes  procedentes  do  mar  vermelho  e  do  golpho  Pérsico. 
Mas  a  fadiga  e  perda  de  tempo  em  atravessar  aquelles  cami- 
nhos pouco  frequentados  não  eram  menos  intoleráveis  que  os 
perigos  do  deserto  e  aquelles  que  uma  vez  os  experimentasse, 
raras. vezes  repetião  a  experiência.  Comtudo,  o- oceano  abria- 
se  á  cominunicacâo  geral. 

Os  chins  valião.-se  doesta  vantagem  e  estabeleceram  uma 
navegação  para  os  estreitos  de  Malacca;  e  provavelmente  es- 
tendiam a  sua  derrota  até  á  ilha  de  Sumatra.  D'aqui,  a  dis- 
tancia cm  linha  recta  a  Ceylão  orça  por  3.00  léguas,  e  al- 
guns authores  querem  que  elles  navegaram  até  lá. 

Os  chins  e  os  navegadores  indios,  favorecidos  pela  moi>. 
çào,  talvez  atravessassem  aquelle  grande  espaço  de  mar; 
porém  é  certo  que  os  mercadores  de  sedas,  reunindo  nas  suas.;. 
viagens  o  aloés,  o  cravinho  da  índia,  a  noz,  moscada,  .  e  ou- 
tras especiarias,  mantinham  nos  portos  de  Malacca,  ou  n'a- 
quelles-das  já  mencionadas  ilhas,  francas  e  proveitosas  rela-, 
coes  comas  nações  circunvisinhas  do  már  vermelho  e  golpho 
pérsico.  A  proximidade  em  que  estavam  os  persas  dos  mer- 
cados da  índia  dava-lhes  uma  decidida  vantagem  sobre  os 
súbditos  de  Justiniano,  e  facilita vam-lhes  o  monopólio. 

Havia  muito  (pie  a  seda  se  tornara  um  objecto  de  luxo,  e 
.!<>  mesmo  modo  que  esgotara  as  riquezas  de  Roma,  esgotou, 


199 

ra  Constantinopla.  Sommas  immensas  eram  enviadas  an- 
ruralmente  para  fora  do  império  em  troca  de  manufacturas 
estrangeiras,  sem  o  minimo  beneficio  para  a  industria  do  paiz; 
é  uma  considerável  parte  dos  lucros  d'este  commercio  cabia 
nas  mãos  dos  persas,  inimigos  implacáveis  de  Constantino- 
pla. Fosse-  qual  fosse  o  modo  de  fazer  este  commercio,  é 
certo  que  a  importação  d'um  artigo  tão  despendioso  e  em 
tão  grande  escala,  deveria  forçosamente  empobrecer  o  impé- 
rio.— Justiniano  tinha  querido,  desde  muito,  fazer  romano, 
este  lucrativo  commercio,  mas  obstáculos  invenciveis  tinham- 
se  anteposto  aos  seus  projectos. 

Aquellas  dificuldades,  porém,  que  toda  a  diplomacia  do 
imperador  não  teve  força  para  vencer,  foram  superadas  pela 
emprehendedora  sagacidade  de  dous  monges  persas,  que, 
na  qualidade  de  missionários,  tinham  residido  havia  muito 
tempo  na  China. — No  meio  das  suas  occupações  religiosas, 
tinham  podido  descobrir  e  estudar  a  maneira  de  manufactu- 
rar a  seda  n'aquelle  paiz,  tinham  visto  milhões  de  bichos  de 
seda,  e  qual  o  seu  tratamento.  Conheceram  a  impossibilida- 
de d'importar  um  insecto  tão  delicado  e  tão  ephemero  de  tal' 
distancia;  mas  imaginaram  que  os  ovos  podiam  ser  conser- 
vados, e  por  este  meio  reproduzir-se  o  bicho. — Sabendo 
quão  agradável  seria  na  corte, de  Constantinopla  a  realisa- 
ção  d'esta  empreza,  chegaram  depois  de  longa  jornada  á 
capital  do  império  romano;  e  tendo  revelado  ao  imperador  o 
seu  intento,  foram  animados  a  progredir  n'elb  pela  libera- 
lidade de  suas  dadivas  e  esplendor  de  suas  promessas. 

Os  dous  monges,  tendo  regressado  á  China,  e  esconden- 
do as  ovas  do  bicho  de  seda  n\im  canudo  de  canna,  engana- 
ram um  povo  ciumento  do  seu  commercio,  entrando  triumphan- 
tes  em  Constantinopla  com  as  riquezas  do  Oriente,  conquista 
maior  que  todas  aquellas  de  Justiniano,  ou  do  seu  celebre 
general,  Belisario. — Sob  a  direcção  dos  monges  foram  as  ovas 
desenvolvidas  a  calor  artificial;  os  bichos  foram  sustentados 
com  a  folha  da  amoreira,  e  com  os  cuidados  empregados 
propagaram-se  em  larga  escala.  A   experiência  e  o  estudo  de-- 


:>0G 

ssa  corrigem  defeitos  inevitáveis  nos  primeiros  ensaios; 
e  em  pouco  tempo  os  súbditos  de  Justiniano  egualavam  os 
chins  no  tratamento  dos  bichos  e  na  manufactura  da  seda. — 
De  Constantinopla  passou  este  importante  ir>  secto  para  o  sul 
da  Europa,  e  o  seu  produeto  é  hoje  manufacturado  em  toda 
a  parte  do  mundo.  t)'este  modo,  e  devido  a  uma  circunstan- 
cia singular  nos  animes  do  commercio,  que  se  julga  ter  oc- 
corrido  no  anuo  de  552,  a  moderna  Europa  gosa,  a  preço 
módico,  um  dos  objectos  de  mais  luxo  e  despeza  da  antigui- 
dade, limitado  á  China,  e  cujo  valor  em  Roma  era  tal  que  se 
vendia  a  peso  cVouro. 

.  Em  quanto  o  reinado  de  Justiniano  constituia  o  mais  bri- 
lhante período  da  historia  do  império  Bysantino,  a  Europa 
apresentava  um  notável  contraste  com  a  esplendida  grande- 
za de  Constantinopla.— A  Itália  nadava  em  sangue  por  causa 
das  guerras  dos  godos,  o  reino  de  França  não  se  achava  con- 
solidado, os  francos,  e  os  borgonhezes  etc,  mas  suas  mui- 
tas contendas  fizeram  da  França  e  da  Alemanha  um  campo 
de  carnificina  e  devastação,  e  a  Inglaterra  era  o  theatro  de 
continuada  guerra  entre  os  bretões  e  os  saxonios,  que  estabe- 
leceram a  sua  heptarchia  n'este  paiz  durante  o  reinado  de 
Justiniano.  Poucas  são  as  noções  que  temos  dos  costumes 
cVaquelles  tempos  tumultuosos,  mas  póde-se  affoutamente 
dizer  que  eram  elles  bárbaros,  guerreiros,  e  supersticio- 
sos. 

As  artes  e  sciencias  estavam  quasi  extinctas,  e  a  própria 
litteratura  entre  as  nações  do  norte,  cuja  vocação  era  para  a 
emigração  e  conquista;  tornando-se  objecto  de  desprezo  todo 
aquelle  que  amasse  a  paz  e  a  civilisação. 

O  império  Bysantino  era  a  parte  única  do  mundo  co- 
nhecido que  se  podesse  dizer  com  propriedade  civilisada;  e 
Constantinopla,  o  centro  de  tudo  que  era  grande  e  de  méri- 
to na  litteratura  e  nas  artes.  Cada  estudo  destinado  a  servir 
d'embelezamento  ao  espirito  humano,  e  desenvolvimento  das  fa- 
culdades intellectuaes,  estava  em  completo  abandono  e  pro- 
vavelmente se  teria  perdido  inteiramente  no  Occidente,  a  não 


20  i 

o  haver  os  monges  conservado,  tanto  quanto  lhes  era  possível . 
do  naufrágio  universal. 

Pouco  depois  da  morte  de  Justiniano  o  império  oriental 
começou  a  declinar  d'esplendor  e  em  seguida  aos  reinados  de 
Justino  2.°  e  de  Tibério,  que  preencheram  o  intervallo 
entre  a  morte  de  Justiniano,  acontecida  no  anuo  de  565,  a- 
té  que  suecedeu  Maurício  em  582,  um  espirito  faccioso  e  de 
revolta  principiou  a  fermentar  em  Constantinopla,  que  final- 
mente acabou  em  despotismo  e  na  morte  de  Maurício,  elegen- 
do-se  então  Phceas,  o  Centurião  em  602. — Phceas  por  seu 
turno  foi  deposto  e  mandado  matar  por  Heraclio,  cujo  reina- 
do*foi  celebre  por  uma  contenda  das  mais  renhidas,  conheci- 
da na  historia,  e  que  fo^  entretida  longos  aimos  entre  o  impé- 
rio do  oriente  c  a  Pérsia;  sendo  as  suas  consequências  fataes 
para  esta  e  quasi  também  para  o  primeiro  d'estes  poderosos 
impérios.  Esta  guerra  entre  os  impérios  bysantino  e  pérsico 
é  notável  pela  obstinação  com  que  foi  sustentada  e  pelos  es- 
forços extraordinários  dos  contendentes;  e  mais  memorável 
ainda  como  preludio  d'uma  serie  d 'acontecimentos  imprevis- 
tos, mas  que  d:everiào  espantar  o  inundo.  Alludimos  á  fun- 
dação do  mahometanismo. 

No  começo  da  guerra,  Chosroes,  monarcha  persa,  tinha 
invadido  os  domínios  bysantinos,  conquistado  a  Syria  e  a 
Palestina,    e  saqueado  Jerusalém. 

Pouco  depois  acerescentou  ás  suas  conquistas  o  Egypto 
e  a  Ásia  Menor. 

Por  espaço  de  doze  aimos,  de  610  a  622,  o  iurperio  do  o- 
riente,  apresentou  um  quadro  de  desastres  sem  exemplo. 
Em  todo  este  tempo  as  provindas  desde  os  confins  do  Adriá- 
tico até  aos  subúrbios  de  Constantinopla,  foram  assaltados 
pelo  Khan  dos  Avars,  que  havia  subjugado  os  hunos,  e  re- 
sidia na  real  villa  d:Attila  na  grande  planicie  da  Hungria. 
O  exercito  persa  esteve,  dez  annos,  acampado  em  Calcedonia, 
hoje  Scutari,  sobre  as  margens  do  Bosphoro,  exactamente 
em  frente  de  Constantinopla.  A  consternação  geral  era  tal 
que  o  imperador  esteve  para  sair  da  cidade  e  passar-se,  lêvan- 


202 

_ 

do  coinsigo  os  thesouros  do  palácio  imperial,  para  Cartliago. 
quando  o  patriarcha  lhe  embargou  a  fuga,  e  conduzindo-o 
ao  altar  da  egreja  de  Santa  Sophia,  fel-o  jurar  que  viveria 
e  morreria  com  o  seu  povo. 

Heraclio  tendo-se  obrigado  por  este  solemne  juramento  a 
defender  a  sua  pátria,  deu  um  passo  arrojado,  mas  perigoso, 
transportando-se  com  um  exercito  ao  coração  dos  dominios 
persas  pelo  mar  Euxino;  e  entregando  seus  filhos  ao  cuida- 
do e  protecção  do  povo,  dirigiu-se  primeiro  ás  partes  meri- 
dionaes  da  Azia  menor,  aonde  derrotou  completamente  os 
persas,  e  regressou  a  Constantinopla,  a  fim  de  preparar  nova 
expedição  contra  o  território  persa. 

Deixando  a  authoridade  militar  e  civil  em  mãos  compe- 
tentes, e  dando  poderes  descripcionarios  ao  patriarcha  e  ao 
senado  para  defender  ou  entregar  a  cidade,  com  forme  as 
circunstancias  exigissem,  o  imperador,  com  um  séquito  esco- 
lhido, fez-se  de  vela  em  Constantinopla  para  a  Trebisonda, 
onde  reunio  todo  o  exercito,  e  marchou  sobre  o  Tauro  na  Me- 
dia. 

Em  toda  a  parte  extinguiu  o  fogo  sacro  e  destruio  os  tem- 
plos dos  Magos,  demolindo  as  estatuas  de  Chosroes,  arrasan- 
do a  cidade  d'Ormia,  e  libertou  500,000  captivos.  Condu- 
ziu então  seus  exércitos  victoriosos  ás  cidades  de  Casbin  e 
Ispahhan,  e  derrotou  totalmente  as  numerosas  forças  da  Pér- 
sia. Chorões  esgotou  a  força  do  seu  reino,  e  dividio  as  suas 
levas  em  três  formidáveis  exércitos;  o  primeiro  marchou  con- 
tra Heraclio,  o  segundo  para  obstar  á  juncção  d'este  com  seu 
irmão  Theodoro,  e  o  terceiro  destinado  a  operar  contra  Cons- 
tantinopla, marchou  para  a  Calcedonia.  Do  lado  Europeu,  os 
Avars,  com  um  exercito  de  80,000  homens,  sitiaram  aquella 
cidade,  que  se  achava  completamente  cercada,  e  por  espaço 
de  dez  dias  successivos  a  atacaram  sem  resultado.  Heraclio 
fez  alliança  com  os  turcos,  que,  por  esta  occasião  figuram  na 
historia  pela  primeira  vez,  e  obteve  d'elles  um  reforço  de 
40,000  homens  de  cavallo. 

•Fendo  reunido  e  passado  revista  ao  exercito  alliado.^  deu. 


20 


o 


batalha  campal  nas  margens  do  Tigris,  no  próprio  sitio  onde 
se  presume  existira  Nineve.  N'aquella  batalha  foi  morto  o 
commandante  em  chefe  dos  persas,  e  todo  o  seu  exercito  des- 
baratado. Heraclio,  fez  prodigios  de  valor,  segundo  se  diz, 
matando  com  a  sua  própria  mão  três  chefes  notáveis  do  exer- 
cito inimigo. 

Então  assollou  a  Asyria,  e  penetrou  até  ao  Dastagar- 
do,  residência  real  de  Chosroes,  logar  de  magnificência 
sem  egual,  que  saqueou  e  ineendiou,  levando  a  devastação  e 
•a  morte  ao  coração  dos  dominios  da  Pérsia.  Tão  continuados 
■desastres  provocaram  uma  revolta  geral  da  parte  dos  persas, 
contra  Chosroes,  que  sendo  deposto,  Siroes,  seu  filho  foi  pro- 
clamado rei.  Siroes  mandou  então  matar  o  pae  e  desoito  ir- 
mãos, e  fez  a  paz  com  Heraclio,  em  consequência  do  que  fo- 
ram restituidas  as  antigas  fronteiras  dos  impérios  bysantino  e 
persa. 

As  nações  do  norte,  que  haviam  subjugado  o  império  Rema- 
no,  estavam  ainda  em  estado  desassocegado,  e  a  Europa  conti- 
nuava a  apresentar  um  aspecto  repugnante  de  barbarismo  e 
anarchia;  em  quanto  que  Constantinopla  triumphára  apoz 
uma  guerra  feliz  que  ameaçara  nada  menos  que  o  aniquila- 
mento do  império  bysantino.  Era  este  o  aspecto  politico  do 
mundo,  quando  aquelle  império  esteve  para  ser  assaltado 
por  perigos  de  magnitude  egual  ou  superior  ainda  áquelle  a 
que  acabava  de  subtrahir-se  pelos  mais  desesperados  esforços: 
e  o  oriente  pouco  lhe  faltou  para  apresentar  scenas  d'horror 
semelhantes  áquellas  com  que  o  occidente  se  familiarisára  no 
decurso  de  dois  séculos;  cuja  causa,  porem,  fora  de  natureza 
mais  extraordinária  e  inesperada.  Um  phenomeno  politico, 
religioso,  e  moral  appareceu  no  mundo,  que,  depois  da  propa- 
gação e  estabelecimento  do  Chiistianismo  tem  exercido  uma 
influencia  maior  e  mais  duradoura  nas  idéas  e  condições 
da  humanidade  que  outro  algum  acontecimento  registado  pe- 
la historia.  No  anno  de  599,  pouco  mais  ou  menos,  Mahomed, 
árabe,  natural  da  cidade  de  Mecca  situada  não  distante 
da  costa  oriental  do  mar  vermelho,    assumindo  o  caracter  de 

27 


204 

propiíeta  enviado  pelo  Altíssimo,  encarregado  da  missão  ex- 
traordinária de  levar  seus  compatriotas  a  aberrarem  o  zabaismo 
e  a  idolatria,  e  da  conversão  cio  género  humano,  tinha 
com  estas  pretençoes  chamado  contra  si  a  malversação 
de  uma  parte  de  seus  concidadãos,  em  consequência  do  que  foi 
obrigado  a  fugir  com  alguns  parentes  e  apóstolos  de  Mecca 
para  Medina  no  anno  do  senhor  de  622.  N'esta  cidade,  á  sua 
qualidade  de  Phropheta  juntou  a  de  militar  e  tendo  feito  mui- 
tos proselytos  e  reunido  um  bando  de  homens  destemidos  cuja 
coragem  animou  com  promessas  d'um  paraizo  cheio  de  deli- 
cias sensuaes,  especialmente  para  aquelles  que  fossem  victimas 
da  sua  causa,  atacou  e  tomou  d'assalto  Mecca,  subjugando, 
uns  apoz  outros,  todas  as  tribus  Árabes. 

Apreciando-se  devidamente  o  caracter  d'este  homem  extra- 
ordinário, o  esj)irito  mais  acanhado  e  mais  dado  a  prejuízos 
não  pode  deixar  de  fazer  justiça  ao  seu  tacto  politico  e  parti- 
cular talento  para  conhecer  os  homens.  Elle  soube  tirar  partido 
da  natural  tendência  sensual  dos  Árabes  e  dos  povos  dos  pai- 
zes  vizinhos;  e  inventou  um  paraizo  apropriado  ao  seu  gosto 
e  nas  circunstancias  de  lhe  ganhar  proselytos. 

Não  desconhecia  as  propensões  humanas,  e  embalou  as  mas- 
sas com  esperanças  fagueiras  de  facilmente  obter  isso  mesmo 
a  que  o  geral  da  humanidade  aspira,  e  sobre  estes  princípios 
fundou  o  seu  systema  religioso,  inspirando  deste  modo  os  seus 
compatriotas  de  coragem  para  levar  â  execução  seus  planos 
de  conquista. 

Considerando  avoluptuoza  disposição  dos  povos  d'aquel!e 
paiz,  elle  permittio  a  polygamia;  mas  expressamente  prohibio 
o  uzo  do  vinho,  e  bebidas  espirituosas,  a  que  naturalmente 
não  erão  propensos  e  cuja  privação  lhes  não  era  sensível. 

Diz-se  que  Mahomed  adoptara  esta  abstenção  do  vinho  pela 
experiência  das  funestas  consequências  da  embriaguez,  tendo 
sido  em  certa  occazião,  surprehendido  pelo  inimigo,  e  em  im- 
minente  perigo  de  vêr  aniquilada  a  sua  tropa,  n'uma  occazião 
em  que  ella  estava  entregue  á  embriaguez.  Fosse,  ou  não,  este 
o  motivo  verdadeiro  que  o  levou  a  prohibir  as  bebidas  cspiri- 


205 

tuozas,  parece  fora  de  duvida  que  Mahomed  reputava  a  em- 
briaguez uni  dos  vicios  que  mais  degradava  a  humanidade  e 
indispunha  o  homem  para  as  grandes  cmprezas.  Descriminando 
com  agudeza  d'espirito  entre  as  tendências  impostas  pela  na- 
tureza e  aquellas  adquiridas  por  habito,  deu  as  máximas  lar- 
gas á  primeira,  mas  nenhumas  á  segunda.  O  seu  systema  de 
religião  parece  bazear-se  n'um  estudo  de  varias  circunstancias 
e  na  apreciação  das  tendências,  prejuízos,  e  idéas  da  humani- 
dade. 

Notou  que  a  crença  em  um  só  Deos  era  a  crença  dos  Jude- 
deus  e  dos  Christãos  e  q'  ella  triumphára  de  todos  os  difleren- 
tes  systemas  de  paganismo  estabelecidos  entre  os  antigos.  Com 
quanto  Mahomed  fosse  completamente  analfabeto  havia,  por 
meio  d'um  longo  trato  com  os  christãos  da  Palestina,  e  especi- 
almente pelos  conhecimentos  obtidos  na  convivência  com  o 
monge,  Sérgio,  seu  coadjutor,  podido  iniciar-se  nos  preceitos 
da  religião  christâ,  nas  circunstancias  da  sua  propagação  e  es- 
tabelecimento, e  seu  recente  triumpho  sobre  o  paganismo. 

Podia,  provavelmente,  também  considerar  a  unidade  do  Ente 
Supremo  uma  doutrina  tão  rasoavel  que  não  podia,  por  fim  de 
tudo,  deixar  de  prevalescer  contra  todos  os  systemas  de  polythe- 
simo  e  idolatria;  e  por  consequência  que  religião  alguma  podia 
sem  aquelle  principio  capital  estabelecer-se  no  mundo.  Com- 
prehendeu  também  que  os  christãos,  com  quanto  divididos 
em  seitas  differentes,  e  cVuma  moralidade  pouco  austera,  ti- 
nham uma  tal  veneração  pelo  nome  de  Christo,  que  com  pou- 
cos proselytos  devia  contar  entre  elles,  se  pretendesse  negar 
completamente  a  sua  divina  missão.  Por  tanto,  reconheceu  a 
divina  authoriclade  de  Jesus  Christo,  mas  regeitou  o  princi- 
pio da  divindade  da  sua  pessoa. 

Este  ultimo  não  podia  elle  de  facto  admittir,  por  que  o  seu 
reconhecimento  seria  incompatível  com  o  seu  plano  de  se  in- 
culcar primeiro  propheta.  Partindo  d'estes  princípios,  Maho- 
med declarou-se  o  maior  dos  prophetas  do  Altíssimo  ;  aiian- 
dou  pregar  a  unidade  da  natureza  Divina,  e  o  verdadeiro  culto 
do  Ente  Supremo. 


Depois  cie  haver  associado  um  numero  considerável  de  pro- 
selytos  e  achar-se  suficientemente  preparado  para  tomar  a 
offensiva,  proclamou  a  sua  missão  divina,  que  o  autliorisava 
a  usar  de  meios  compulsórios,  quando  os  persuasorios  não< 
fossem  sufficientes  para  triumphar  a  sua  propaganda.  As  or- 
denações que  sobre  esse  assumpto  publicou,  inf orçavam  que 
elle,  e  seus  partidários  fieis,  se  achavam  inves-tidos  do  direi- 
to de  fazarem  valer  a  força  armada,  em  ordem  a  compellir 
a  humanidade  inteira  a  abraçar  as  doutrinas  do  alcorão,  que 
elle  declarava  publicamente  ter-lhe  sido  transmittido  do  céo 
pelo  anjo  Gabriel;  e  que,  no  caso^  de  recusa,  sendo  judeus  ou 
christãos,  ser-lhes-hia  permittido  o  livre  exercido  da  sua  reli- 
gião, sob   condição  de  pagarem  tributo. 

Aos  pagãos  não  concedeu  elle  o  direito  drescolha,  e  não  lhes 
deixou  outra  alternativa  senão  converterem-se  ou  morrerem. 
Tornandô-se  vencedoras  as  asmas  de  Mahomed,  a  Arábia  in- 
teira foi  depressa  subjugada,-  mas  apesar  cTentrar  em  guerra 
com  o  império  oriental,  três  anno&  aproximadamente  antes 
da  sua  morte,  que  occorreu  na  idade  de  64  annos,  6321  annos 
da  era  cliristã,  pouco  se  extendeu  alem  das  fronteiras  da  Ará- 
bia. Seu  suecessor,  Abubekar,  começou  a  guerra  contra  a. 
Pérsia,  que  ainda  se  não  restabelecera  da  desordem1  em  que  & 
deixara  a  sua  terrivel  contenda  com  o  império  do  oriente  no 
reinado  de  GhosroeSy  eque  tão  fatal  foi  áquelle  principe  e  aos- 
seus  estados. 

Abubekar  morreu  no  anno  63:4,  depois  do  curto  reinado- 
de  dois  annos,  succedendo-lhe  Ornar,  em  cujo  reinado  de  dez 
annos,  fizeram-se  consideráveis  conquistas  no  império  bysan- 
tino.  A  Syria  foi  conquistada  por  Caled  e  Abu  Obeida,  gene- 
ral d'Omar;  e  Amrú,  outro,  general  seu,  apoderou-se  do  E- 
gypto  no  anno  do  Senhor  de  638..  Estes  golpes  foram  fataes 
ao  exercito  oriental,  que  jamais  recuperou  seu  antigo  poder 
e  explendor.  A  perda  do  Egypto  não  podia  deixar  de  ser 
severamente  sentida  pelo  povo  de  Constantinopla,  por  isso 
que  aquelle  paiz  fora  sempre  considerado  o  celleiro  da  capi. 
tal:,   e  toda  a  Syria  estando  em   poder  do  inimigo,   abria  ca- 


207 

jaiinlio  á  Azia  menor,  e  deixou  todas  as  províncias  do  impe1- 
rio  bysantino  na  Azia,  expostas  á  invasão. 

Os  acontecimentos  occorridos  no  remado  de  Heraclio  apre- 
sentam provas  visiveis  da  incerteza  da  politica,  e  quanto  é  li- 
mitada a  espliera  da  previsão  humana.  O  império  bysanti- 
no julgou-se  livre  de  perigo,  pelo  triumpho  adquirido  sobre- 
um  inimigo  implacável,  poderoso  e  por  muito  tempo  victorio- 
so,  e  que  ameaçara  o  seu  anniquilamento-;  e  de  seu  lado  a 
Pérsia,  reduzida  e  enfraquecida  como  estava,  não  parecia,  pe- 
lo menos  nos  primeiros  tempos  nas  circunstancias  de  lhe  dar 
sérios  motivos  de  receiov  N'este-  prospero-  estado  d&  cousas,, 
Constantinopla  julgava  haver  attingido,  a  todos  os  respeitos,, 
©  supra  summum  de  segurança  e  felicidade  politica  pela  sujei- 
ção da  sua  grande  e  perigosa  rival,  mas  esta  depressão  dk 
Pérsia  foi  um  grande  passo  para  o-  engrandecimento  do  im- 
pério Saraceno.  O  assignalado  suecesso  de  Heraclio  contra 
Chosroes,  enfraquecendo  e  esgotando  as-  foiças  da  monarchia» 
Persa  fez  com  que  caísse  em  poder  dos  cáliphas  mahometa- 
nos;  que,  com  a  acquisição  de  tão  vasto  território  tornaram-se* 
mais  formidáveis  ao  império  do  Oriente  do  que  nunca  os  Per- 
sas tinham  sido.  Se  não  fora  a  guerra  entre  Heraclio  e  Chos- 
roes e  que  esgotou  os  recursos  entre  os  impérios-  persa  e  by- 
santino nunca  os  sarracenos  se  teriao  tornado  tão  poderosos.. 
Conservando-se  a  monarchia  Persa  no  goso  de  seu  poder  e- 
grandeza  como  antes  da  desastroza  guerra,  teria  contrabalan- 
çado o  poder  do  Cálipha  que  deste  modo  se  teria  tornado  me- 
nos formidável  ao  império  do  oriente.  Quando  Heraclio,  por 
quasi  inexcediveis  esforços,  destruio  inteiramente  o  poder  da. 
Persia,  podia  eonjecturar-se  com  muito-  boas  probabilidades,, 
que  o  império  de  Constantinopla  estava  livre  de  seu  mais  for- 
te e  perigoso  inimigo,  e  que  nada  mais  tinha  a  temer  do  lado* 
Asiático;  quando,  contra  toda  a  expectativa,  a  queda  da  Pér- 
sia deu  força  a  um  poder  nascente,  que  muitas  vezes  ameaçou 
a  subversão  do  império  do  oriente,  e  que  de  facto  lhe  estrei- 
tou seus  domínios. 

Quasi  ninguém  ignora  o  que  se  diz  da  destruição  da  famo- 


208 

bibliotheca  3.' Alexandria.  attribuidaa  Amru,  depois  da  tomada 
d'aquella  cidade:  lia  porem  razões  para  duvidar  da  suaauthen- 
ticidade.  Eutychio,  patriarchà  d 'Alexandria ,  que  escreveu 
circunstanciadamente  sobre  a  conquista  sarracena  não  falia  da 
conflagração  da  bibliotheca;  e  alguns  authores  modernos  dizem 
que  Abulpharagio,  que  escreveu  seis  centos  annos  depois  d'a- 
quelle  acontecimento,  ea  duzentas  léguas  do  sitio  aonde  teve 
logar,  é  o  único  author  d'essa  historia.  E'  com  tudo  im- 
possível saber  de  que  documentos  se  serviu  quando  escre- 
veu; e  o  silencio  d 'Eu  ty  chio,  que  era  mais  antigo  que  A- 
bulpharagio,  com  quanto  nos  faça  vacillar  sobre  o  facto, 
não  invalida  de  todo  o  testemunho  do  primeiro.  Um  author 
pôde  ás  vezes,  por  mero  esquecimento,  ou  pouco  caso,  ou 
outra  circunstancia  qualquer,  omittir  um  ou  outro  facto  im- 
portante, que  nem  por  isso  deixou  d'existir.  A  authenticida- 
de  do  incêndio  da  bibliotheca  d'Alexandria  não  se  pode  pois 
arnrmar  nem  negar,  porem  é  certo  que  esta  celebre  collecção 
de  sciencia  tinha  diminuido  muito  antes  d'aquelle  tempo.  Nos 
reinados  dos  Ptolomeus,  ha  quem  lhe  dê  500,000  volumes  e 
outros  700,000.  Era  n'aquella  épocha  o  maior  deposito  de 
litteratura  existente  no  mundo,  e  provavelmente  encerrava 
vastos  conhecimentos  dos  antigos  Egypcios.  Hoje  é  impossi- 
vel  investigar  as  causas  da  sua  decadência,  mas  é  certo  que 
muitos  volumes  de  sciencia  antiga  perderam-se  no  tempo  da 
guerra  Alexandriaca  por  Cezar,  e  não  poderam  ser  restaura- 
dos. 

O  calipha  Ornar  morreu  644  annos  depois  de  Christo;  e 
no  tempo  d'Ottomano,seu  successor,  a  conquista  da  Pérsia  foi 
ultimado  por  Caled.  N'este  reinado  Abdallah,  um  dos  gene- 
raes  d'Ottomano,  invadio  as  provindas  Africanas  ainda  sujei- 
tas a  Constantinopla;  e  aquella  parte  d'Africa  que  antigamen- 
te estivera  sob  o  dominio  dos  Romanos,  e  mais  tarde  o  impé- 
rio bysantino  e  que  se  extendia  desde  o  Egypto  até  o  Atlân- 
tico, e  desde  o  Mediterrâneo  até  o  gram  deserto,  cahio  em 
poder  dos  caliphas  Mahometanos  no  anno  do  Senhor  de  709. 
A  invasão  dlíespanha,  por    Tarik  general  de  Muza,  que  go- 


vernou  na  Africa  na  qualidade  de  Vice-Iiei,  pelo  Calipha  We- 
lid,  teve  logar  em  710,  e  antes  do  fim  de  713  levou-se  a  efieito 
a  conquista  de  todo  o  reino,  á  excepção  d'algumas  partes  mon- 
tanhosas do  lado  do  noroeste,  para  onde  alguns  chefes  hespa- 
rinoés  se  retiraram  com  seus  partidários  e  valentemente  sus- 
tentaram a  sua  independência. 

A  historia  do  mundo  não  tinha,  anteriormente  a  este  perio- 
do,  podido  recordar  uma  tão  extraordinária  serie  de  conquis- 
tas como  aquellas  feitas  pelos  caliphas  mahometanos,  que, 
no  espaço  d'oitenta  annos  depois  da  morte  de  Mahomed,  ha- 
viam-se  assenhoriado  da  Pérsia,  da  Syria,  do  Egypto,  de 
todos  os  paizes  septentrionaes  d' Africa,  do  reino  de  Hespa- 
nha,  extendendo  seu  império  desde  o  oceano  indico  ao  ocea- 
no atlântico.  As  conquistas  d'Alexandre  tinham  sido,  de  facto, 
mais  rápidas  e  quasi  tão  extensas,  mas  muito  menos  notá- 
veis e  extraordinárias  no  seu   género. 

As  circunstancias  politicas  e  militares  dos  gregos,  que 
subjugaram  o  império  persa,  diíferiam  largamente  d'aquel- 
las  dos  árabes,  ou  saracenos.  Alexandre,  á  testa  dos  exér- 
citos alliados  da  Macedónia  e  da  Grécia,  como  já  se  tem 
dito,  tinha  a  seu  favor  a  disciplina,  a  táctica  militar,  e  um 
equipamento  até*  então  nunca  visto.  Mas  os  árabes,  surgindo 
de  seus  áridos  desertos,  nem  eram  numerosos  nem  discipli- 
nados. Os  gregos  tinham  fama  de  longa  data,  sobre  todas 
as  nações  do  mundo,  de  superioridade  nas  armas,  e  os  ma- 
cedonios  tinham,  pelos  talentos  e  exforços  do  seu  rei,  guer- 
reiro e  estadista,  Philippe,  adquirido  uma  reputação  de  dis- 
ciplina e  táctica,  egaal,  senão  mesmo  superior  aos  projjrios 
gregos. 

Mas  os  sarracenos  do  deserto  e  tribus  selvagens  das  dif- 
ferentes  partes  da  Arábia,  nunca  tinham  sido  classificados  de 
povos  guerreiros.  Não  apresentavam  eropreza  bellica  de  que 
se  podessem  vangloriar.  O  seu  paiz  não  tinha  nome  nos  an- 
naes  da  guerra.  A  sua  historia  não  recordava  conquistas.  A 
que  causa  pois  attribuir  o  progresso  rápido  e  irresistivel  das 
suas  armas  ?  E'  esta  uma  pergunta  que  o  intelligente  leitor 


naturalmente  faz,  mas  descendo  á  analvse  do  estado  das  cem* 
sas  d'aquelle  tempo,  vêr-se-ha  que  duas  notáveis  causas  pro- 
duziram este  phenomeno.  Em  razão  da  ruinoza  contenda, 
tanto  tempo  sustentada  entre  Heraclio  e  Cliosroes,  com  uma 
pertinácia  sem  parellelo  na  historia  das  nações,  a  monarchia 
Persa  foi  lançada  n'um  estado  de  fraqueza  e  anarchia;  e  o 
império  bysantino,  com  quanto  ultimamente  vencedor,  ti- 
nha, por  muitos  annos,  vacillado  ás  bordas  do  abysmo, 
e,  depois  da  feliz  terminação  da,  guerra,  achou  seus  recursos 
exhauridos  totalmente  em  consequência  dos  grandes  esfor- 
ços feitos.  D'este  modo  estes  dous  poderosos  impérios,  que 
sustentavam  a  balança  da  politica  no  oriente,  tinham  sido 
abatidos  e  ficado  á  mercê  de  qualquer  novo  e  inesperado  ini- 
migo, A  Pérsia  caio  nas  mãos  do  caliphado,,  e  o  império  do 
oriente  achou-se  impotente,  e  destituído  d'eneargia  para  impe- 
dir o  progresso  d'um  invasor  desesperado  e  enérgico. 

O  estado  enfraquecido  dos  impérios  bysantino  e  persa, 
n'esta  critica  conjunctura,  foi  a  grande  causa  politica  que  fa- 
cilitou o  progresso  dos  cáliphas  sarracenos  nas  suas  conquis- 
tas e  propaganda  da  sua  religião.  O  enthusiasmo  com  que 
Mahomed  soube  inspirar  seus  partidários,  foi  a  causa  essen- 
cial e  activa  do  suecesso  rápido  das  suas  armas,  e  constitue 
uma  circunstancia  interessante  na  historia  da  humanidade. 

Numerosos  factos  são  citados  dos  surprehendentes  effei- 
tos  do  zelo  religioso  sobre  o  espirito.,  mas  tornam- se  cons- 
pícuos e  notáveis,  quando  nações  e  communidades  inteiras 
são  animadas  d'este  sentimento.  O  enthusiasmo  militar  e 
religioso,  pôde  em  certos  casos  produzir  effeitos  nobres  e 
louváveis,  e  acordar  no  homem  impulso  para  acções  as 
mais  gloriosas  ;  mas  por  outro  lado  o  demasiado  .zelo  é 
excessivamente  perigoso,  e  geralmente  causa  do  desassocego 
da  humanidade.  O  enthusiasmo  dos  conquistadores  sarrace- 
nos é,  talvez,  o  facto  mais  notável  desta  natureza  recorda- 
do na  historia.  Tinha  por  base  seus  princípios  religiosos. 
O  systema  que  Mahomed  estabeleceu  era  particularmente 
calculado  a   excitar    este    sentimento;  e  pôde  ser    tido  como 


âii 

chefe  d'obra  cm  politica,  superior  a  tudo  que  até  então 
concebera  homem  algum  d'estado. 

Lisongeando  as  esperanças  e  as  tendências  de  seus  parti- 
distas com  a  idéa  d'um  paraiso  de  delicias  sensnaes;  paraí- 
so accommodadò  á  coinprehcnsão  e  adequado  aos  sentimen- 
tos natura  es  do  homem,  e  promettendo  a  todos  aquelles  que 
abraçassem  e  sustentassem  a  sua  causa,  uma  entrada  im- 
mediata  n'este  céo  de  felicidades,  inspirou-lhes  o  mais  pode- 
roso estimulo  de  coragem  e  dedicação.  Ao  mesmo  tempo  que 
inculcava  a  doutrina  de  predestinação  absoluta,  ou  de  inevi- 
tável fatalidade,  elle  destruía  aquelle  primeiro  e  mais  pode- 
roso motivo  de  cobardia,  persuadindo-os  que  a  pusillanimi- 
dade  não  lhes  podia  prolongar  a  vida  e  que  a  maior  precau- 
ção contra  o  perigo  não  retardava  a  aproximação  da 
morte.  Estes  princípios  serviram  de  base  áquelle  fervor 
que  tornou  invencíveis  os  Árabes  do  deserto,  em  quan- 
to que  o  exhausto  estado  dos  já  mencionados  impérios  dei- 
xava francos  seus  domínios  á  invasão  de  seus  conquista- 
dores. Por  espaço  de  quarenta  e  dois  annos  que  vão  desde 
a  conquista  da  Hespanha  á  revolta  d'aquelle  paiz  e  que 
completou  a  tripla  divisão  do  cáliphado,  o  império  sarraceno, 
floresceu  na  plenitude  de  poder  d'uma  monarchia  indivisa. 
A  sede  de  conquista  socegou,  como  sempre  acontecece, 
principalmente  nas  nações  que  devem  o  seu  engrandeci- 
mento á  conquista  e  do  saque  e  a  ambição  cedeu  logar  ao  de- 
sejo do  goso.  Esta  mudança  é  natural;  a  experiência  mostra- 
nos  que  isto  sempre  foi,  e  a  razão  diz-nos  que  sempre  será. 
Entre  indivíduos  podem  haver  excepções,  devido  a  naturaes 
tendências  ou  excentricidade  de  caracter;  mas  em  respeito 
a  communidades,  a  grande  machina  social  move-se  á  vonta- 
de das  maiorias;  e  em  todas  as  nações  a  maioria  obra  em 
conformidade  com  as  propensões  da  natureza  humana. 

O  systcma  politico  do  cáliphado  era  o  monarchico  absolu- 
to. A  authoridade  dos  cáliphas  era,  indubitavelmente,  tão 
despótica  como  qualquer  outra  que  tenha  existido,  porque 
o  poder  supremo,  tanto   espiritual,   como  temporal  residia  na 


212 

pessoa  do  raonarcha,  que  era  ao  mesmo  tempo,  rei  e  summo 
pontífice  da  religião  mahometana,  e  por  consequência  pos- 
suía toda  aquella  authoridade  que  pode  dár  ao  homem  po- 
der e  influencia  sobre  o  seu  semelhante.  Não  vemos,  porem, 
que  os  eáliphas  exercessem  a  sua  authoridade  com  injustiça, 
ou  crueldade.  Eram  os  interpretes  da  lei,  mas  não  a  sua  fon- 
te. O  Alcorão  era  a  lei  universal  e  obrigatória  que  deveria 
dirigir  a  condueta  do  soberano  e  do  vassallo.  Examinando 
os  princípios  políticos  e  religiosos  do  cáliphado  parece  que  o 
governo,  com  quanto  despótico  era  d'uma  natureza  essen- 
cialmente patriarchal.  O  cálipha  não  se  considerava  tão  so- 
mente chefe  d' uma  grande  e  poderoza  nação  mas  também  pri- 
meiro ministro  da  religião  e  pai  dos  fieis.  Se  o  desvio  cVestes 
princípios  da  parte  dos  eáliphas,  ou  o  exercício  cValgum  acto 
tyrannico,  deu  causa  á  revolta  das  províncias  e  ao  desmem- 
bramento do  seu  império,  é  objecto  do  qual  a  historia  nos  não 
fornece  informações  certas;  porque  possuímos  apenas  poucos 
traços  conspícuos  da  historia  do  cáliphado,  e  pouco  sabemos 
das  intrigas  politicas  e  circunstancias  domesticas  cVaquelle 
império.  O  que  sabemos  ao  certo,  é,  que  depois  da  revolta  do 
Egypto,  os  domínios  do  cáliphado,  na  Hespanha,  seguiram  o 
exemplo,  e  uma  tripla  divisão  do  império  teve  logar  no  anno 
de  755.  quarenta  e  dons  annos  depois  das  ultimas  conquistas 
sarracenas.  Os  três  cáliphados  distinctos,  comtudo,  floresceram 
por  espaço  de  180  annos  :  mas  pelo  meado  do  decimo  século, 
o  cáliphado  do  Oriente,  do  qual  era  Bagdad,  sobre  o  Tygre, 
sede  do  governo,  baqueou  e  o  seu  poder  temporal  foi  comple- 
tamente aniquilado  pela  revolta  de  suas  províncias  pro- 
movida por  chefes  facciosos.  Depois  d'este  período  não  possuí- 
ram mais  que  um  titulo  vão  e  a  sua  jurisdicção  não  passava 
dos  negócios  religiosos  ;  até  que  finalmente,  expirou  seu  po- 
der espiritual  também. 

A  historia  do  cáliphado  é  mui  pouco  conhecida,  nem  exis- 
tem documentos  authenticos  que  lancem  um  raio  cie  luz  sobre 
este  campo,  e  cumpre  aqui  notar  uma  circunstancia  digna  de 
recordação  que  o  prova.   Quando  os  portuguezes,   sob  Vasco 


213 

da  Gama,  dobraram  o  cabo  da  Bôa  Esperança,  e  explora 
ram  as  costas  d'Africa  e  da  índia,  acharam  tanto  a  costa  o- 
riental  d'Africa  como  do  Malabar  em  poder  de  povos  que  pro- 
fessavam a  religião  maliometana,  fallanclo  o  árabe  e  dando 
evidentes  provas  de  serem  d'origem  árabe;  e  não  tendo  os  há- 
bitos e  costumes  dos  mahometanos  do  Hindostão,  evidente- 
mente formavam  uma  raça  á  parte.  Descobertas  subsequentes 
tem  demonstrado  que  o  estado  das  difíerentes  ilhas  no  mar 
indiatico  era,  como  quasi  até  hoje,  idêntico  áquelle  da  cos- 
ta do  Malabar. 

As  costas  de  quasi  todas  aquellas  ilhas  eram  possuídas  por 
mahometanos,  fallando  um  árabe  viciado,  e  fera  de  duvida, 
de  origem  árabe:  em  quanto  que  o  interior  era  povoado  por 
pagãos  de  tez  diversa,  e  fallando  lingua  diíferente.  Se  esta 
emigração  teve  logar,  devido  ao  génio  emprehendedor  e  a- 
ventureiro  dos  árabes,  nos  tempos  prósperos  do  cáliphado 
ou  se  as  costas  d' Africa,  da  índia  e  das  ilhas  orientaes  se 
colonisaram  por  emigrados  que  abandonaram  o  seu  paiz 
quando  o  cáliphado  cahio  em  anarchia,  e  fez-se  preza  da 
tyrannia  de  usurpadores  e  inimigos  estrangeiros,  é  uma 
questão  que  documento  algum  histórico  nos  vem  illucidar. 

Depois  d'esta  revista  da    origem   do  Islanismo,    das    rápi- 
das   conquistas    dos  primeiros  cáliphas,    successores  de   Ma--- 
homed  e   das  suas  causas,  não   será  fora  de  logar  voltarmos 
a  attenção  sobre  o  génio  e  hábitos  dos  árabes,  estado  da  sua 
littcratura  e  scieneia  no  tempo  do  cáliphado. 


Depois  do  engrandecimento  do  cáliphado,  cessou  a  sede 
de  conquista  e  enfraqueceu  o  impulso  do  fervor.  Esta 
transformação  trouxe  outra  não  menos  importante  e  interes- 
sante. Os  árabes  até  então  analfabetos  e  despresadores  dos 
estudos,  começaram  a  cultivar  as  sciencias,  mormente  a  phi- 
losophia  natural,  a  chimlca  etc.   illustrando-se  com  o  estudo- 


éía  htteratura.  Estes  estudos^  com  tudo,  tomaram-,  ao' dite 
parece,  um  curso  difíerente  âquelle  seguido  pelos  gregos  e 
romanos.  Nos  seus  estudos  scientificos  e  litterariòs,  o  seu 
gosto  foi  provavelmente  determinado  pelos  seus  princípios  re- 
ligiosos, diametralmente  em  opposição  áquelles  dos  gre'gôs  e 
romanos  e  todas  as  mais  nações  do  paganismo  da  antiguida- 
de; A  ínythólogia  pagã  era  um  syStenia  esplendido  e  varie- 
gado, calculado  a  deslumbrar  o  espirito  pelo  bello  e  românti- 
co de  seus  principios  e  formas,  e  proporcionava  um  vasto 
campo  para  <>  estudo  da  estatuária,  esculptura,  arcliitectura  e 
pintura. 

A  sua  religião  prohibia  aosÁrábes  a  cultura  das  artes  imi- 
tativas;  sendo  expressamente  vedado  pelo  alcorão  lazer  uso 
dá  representação  de  qualquer  vivente.  A   natureza    dera   aos 
árabes  uma.  imaginação  viva  e  poética;  mas  a,  sua,   poesia  era, 
diversa  ú  poesia,  dos  gregos,  e  cVoutras  nações  que  tiiiliam  to- 
mado por  modelo- o*  estylo  grego,  incompatível    Com    o  rigor 
de   seus   princípios    religiosos,    não     podião    aceitar  o    ma- 
ehinismo  Inythologico  de  deuses  e  heroes,  com  que  os  pagãos 
embellezavato  seus  poemas,  e  que  os  christãos,   menos  escru- 
pulosos e  menos  enthusiastas não  hesitaram  adoptar  julgando 
não  haver  n'isso  perigo',  exíineto  como  estava  o  paganismo; 
com  quanto  seja  certo  que  durante  os  primeiros  ires    ou  qua- 
tro séculos,  os  christãos  não  serião  menos  escrupulosos   que  os 
mahometanos  a,  este  respeito;  e  (pie  antes  do  paganismo  estai' 
completamente  abolido,  elirislao  algum  teria inyocado  Apollo, 
ou  as  Muzas,  ou  decorado  seus  poemas  coma  intervenção   de 
deuzes  c  semideuv.es.  O  gosto,  as  idéas,   os   hábitos    dos    ho- 
mens modellam-se  conforme  as  circunstancias.    A    poesia  dos 
árabes  semelhava-se  áquella  dos  hebreus;  e  em  logar  da,   my- 
thologia    pagã,    embcllesavam  seus  poemas  com  allusões  aos 
i  .1  mios  e  sumptuosos  objectos  da  natureza. 
Este  íôrn  sempre  o  gosto  dos  orientaes,  e  qUem    prestar  ai 
tenção  ás  brilhantes  imagens  semeadas  na  escriptura  sagrada, 
mormente  nas  Prophecias  o  nos  Psalmos,  q.ue  outra  cousa  não 
Lo  que  composições  poéticas,   confessará   que  contem    mais 


215 

naturalidade,  mais  instrucção  e  interesse  què  não  nos  dos 
gregos  que  não  offerecem  mais  que  um  scenario  fictício,  pbanr 
tasmagoria  <!<•  representações  ill/usorias. 

0  systema  politico  do  cáHphado  irifluio,  nâo  pouco,  ná  lit- 
terátura  dos  árabes.  A  eloquência  oratória  dos  gregos  c  ro- 
manos1,  <|iic  entría  elles^  era  o  ponto  principal  diurna  educa- 
ção litteraria,  era  imiti!,  c  por  consequência  não  esifcavSa-  em 
moda  entoe  um  p<>v<>  que  vivia  sob  o  governo  despótico  d'um 
monarchàj  era  cuja  pessoa  se  reunia  a  auíthoridadfi  espiritual 
etemporal;  que  era  o  supremo  interprete  da  lei,  a-ssina  como 
era  <>  supremo  juiz.  Esta  forma  degoverno  explica  o  abando- 
no do  eôtudo  de  rethorica  entreos  sarracenos,  que  pouca  nc- 
cessidade; tinham  de  fallarrein  publico^  Os  seus  principaes 
estudos  litterarios  eram  a  historia  e  a  poesia,  com  alguns 
commentõs  sobre  o  alcorão;  mas  os  seus  estudos  theologi- 
cos  eram  circunècriptos  a  um  campo  estreito,  por  que  o  cáli- 
pha  em  virtude  do  seu  officio  de  summo  pontífice  e  supre- 
mo arbitro  em  negócios»  espirituaes  e  temporaes,  era  juiz  dé 
tudo  quanto  se  escrevia  em  matéria  religiosa,  e  a  sua  sane- 
c;'io  ou  desaprovação  decidia  a  sorte  de  cada  obra.  Em  phi- 
losophia  natural,  pqrem^  em  medicina,  em  chimica^  os  ára^ 
l;es  fizeram  algumas  descobertas  úteis.  Adiantáramise  iguala 
mente  na  álgebra; e  ;i  ellés  devemos  as  figuras  arithmeticaSj 
<iii  caracteres  hoje  em  uso,  e  que  incomparavelmente  são  de 
maior  conveniência  e  mais  adaptados  aos  cálculos  numeri- 
eos,  que,  antes  da  invenção  das  cifras  pelos  árabes^  se  usa- 
vam nas  operáfções   arithmeticas. 

O  (pie  podemos  obter  sobre  os  hábitos  sociaés  dosara* 
bes,  das  vagas  informações  que  nos  offerece  a  historia,  pare- 
ce que  eram  polidos  e  humanos,  ao  menos  comparativamen- 
te '-(i)ii  íis  Europeos  d'aquellas  epochas;  e  que  no  auge  da. 
florescência  do  seu  império  nunca  se  entregaram  aos  exces- 
sos do  luxo,  que  dominava  na  maior  parte  das  primeiras  e 
mais  poderosas  nações. 

Em  quanto  a  commercio  n'aqúellas  remotas  idades,  pode- 
mos,  em   termos  geraes,   dizer  queiestáva   de  todo  nas  mãos 


210 

do  cáliphado  e  do  império  bysantino,  ambos  situados  no  cen- 
tro do  continente,  e  senhores  de  todos  os  canaes  de  com- 
mimicação  entre  a  parte  oriental  e  o.ccidental  do  globo.  An- 
tes do  engrandecimento  do  cáliphado,  o  império  do  oriente 
dispunha  do  commercio  do  mundo;  e  Constantinopla  e  Ale- 
xandria eram  os  grandes  mercados  de  todo  o  commercio. 
Depois  que  os  cáliphas  conquistaram  o  Egypto  e  a  Syria;  a 
communicaçâo  entre  Constantinopla  e  o  Oriente  estava  intei- 
ramente interceptada,  fazia-se,  por  tanto,  necessário  explo- 
rar outro  caminho  para  a  índia,  e  uma  nova  via  de  commu- 
nicaçâo para  o  Oriente,  abriu-se  pelo  már  negro,  depois  por 
terra  até  o  már  caspio. 

Por  esta  longa  e  fastidiosa  derrota  se  fazia  o  transporte 
para  Constantinopla  das  ricas  mercadorias  da  índia.  Os  ára- 
bes, senhores  do  Egyto  disfructavam  uma  situação  magni- 
fica para  o  commercio  do  Oriente;  e,  com  o  fim  d'abrirem  a 
communicaçâo  entre  o  mar  vermelho  e  o  Mediterrâneo,  cana- 
lizaram o  Nilo  até  áquelle  mar.  Este  canal  passava  pela  cida- 
de do  Cairo,  edificada  pelos  sarracenos  ;  porem,  á  maneira 
d'outros  canaes  abertos  para  aquelle  efíeito  por  diversos  reis 
do  Egypto,  crê-se  que  nunca  preencheram  perfeitamente  o  pro- 
jectado fim.  No  entanto,  o  Egypto  pela  sua  posição  central 
entre  a  parte  oriental  e  occidental  do  continente,  possuindo 
vantagens  superiores  a  qualquer  outro  paiz,  continuou  sob  o 
império  dos  cáliphas  a  entreter  um  considerável  commercio. 
Em  quanto  que  a  Europa,  não  restaurada  ainda  do  abalo  que 
soffrêra  com  a  queda  do  império  romano,  e  o  estabelecimento 
de  tantos  reinos  e  principados  sobre  as  suas  ruinas,  apresenta- 
va em  toda  a  parte  um  estado  de  barbarismo  e  anarchia,  o  cá- 
liphado, florescente  de  litteratura  e  sciencia  occupava  o  pri- 
meiro logar  na  politica  do  mundo. 

O  império  bysantino,  com  quanto  perseguido  pelos  cáli- 
phas, repellia  vigorosamente  as  suas  aggressões,  e  não  só  a- 
presentava  uma  attitude  respeitável  ao  inimigo,  mas  susten- 
tava as  apparencias  de  poder  e  grandeza;  e  durante  todo  o 
tempo  da  duração  do  império  sarraceno  foi  seu  único  rival  e 


217 

seu  mais  temido  inimigo.  Constantinopla  foi,  efíeetivamente, 
o  baluarte  do  cliristianismo  contra  o  poder  exorbitante  do 
cáliphado. 

Durante  a  contenda  entre  os  dous  poderes,  os  sarracenos 
por  duas  vezes  pozeram  cerco  â  capital.  Da  primeira  vez  foi 
bloqueada  do  lado  do  Proponto  pela  esquadra  sarracena  de 
668  a  675  da  era  christã.  O  segundo  cerco  de  Constantinopla 
tornou-se  notável  pela  descoberta  do  fogo  grego,  facto  impor- 
tante na  historia  militar.  Consistia  em  uma  composição  bitu- 
minosa,  que  ardia  com  incrivel  intensidade  debaixo  d 'agua  e 
só  podia  ser  apagada  com  urina  ou  arêa.  Foi  invenção  de  Ca- 
linio,  engenheiro  de  Hierapolis,  no  Egypto;  e  por  muito  tem- 
po ignorada  fora  de  Constantinopla,  onde  a  reputavam  um 
thesouro  do  estado. 

Com  o  andar  do  tempo  foi  devulgado  o  segredo  aos  sarra- 
cenos e  outras  nações  circunvisinhas  e  os  cruzados  experi- 
mentaram seus  effeitos  destruidores.  Das  informações  -d'aquel- 
les  que  voltavam  das  guerras  da  cruzada  sabe-se  que  o  modo 
empregado  eraexpellil-o  por  meio  de  grandes  tubos  de  metal 
á  semelhança  das  descargas  d'artilheria  moderna. 

Esteve  em  uso  entre  os  gregos  e  sarracenos  até  que  foi  subs- 
tituido  pela  pólvora ;  mas  parece,  que  o  segredo  nunca  foi  di- 
vulgado ás  nações  occidentaes.  N'este  memorável  cerco  pas- 
saram os  sarracenos  o  Hellesponto,  e,  com  um  numeroso  exer- 
cito, attacaram  a  cidade  pelo  lado  da  terra,  bloqueando-a  ao 
mesmo  tempo  com  uma  formidável  esquadra  composta  de  mil 
e  oito  centas  embarcações  que  foram  totalmente  destruidas  e 
Constantinopla  salva  pela  recente  invenção  do  fogo  grego  no 
anno  de  716.  O  inimigo  foi  obrigado  a  levantar  o  cerco,  com 
enormissimas  perdas  e  depois  de  concluir  uma  paz  desvanta- 
josa. 

A  historia  da  igreja  christã  não  offerece  n'estes  tempos  car- 
regados e  tumultuarios,  um  aspecto  agradável.  O  progresso 
do  mahometanismo  foi  um  acontecimento  não  menos  desfa- 
vorável ao  christianismo,  que  fatal  ao  poderio  e  brilho  do  im- 
pério do  oriente;  por  isso  que  depois  constituiram    o  império 


218 

cios  cáliphas  á  excepção  da  Arábia  e  da  Pérsia.  Para  contra- 
balançar esta  perda  a  orthodoxia  tinha  triumphado  do  aria- 
nismo e -presenciado  o  sen  aniquilamento  com  a  conquista  do 
reino  vândalo  d' Africa;  pouco  depois  do  que,  Becaredo,  rei 
dos  ksigodos,  na  Hespanlia,  com  a  sua  gente  abjurou  o  aria- 
nismo, e  abraçou  a  doutrina  ortliodoxa.  Já  dissemos  que  de- 
pois do  reinado  de  Theodosio  o  Grande,  a  doutrina  ortliodo- 
xa da  Santíssima  Trindade  foi  dogma  de  fé  em  todo  o  impé- 
rio romano,  sendo  o  arianismo,  a  crença  das  mais  nações  que 
haviam  abraçado  o  cliristianismo  ;  mas  durante  o  tempo  que 
vae  da  queda  do  império  do  occidente,  todas  as  nações  que  se 
haviam  construído  sobre  as  suas  ruinas  tinham  adoptado  a 
sua  religião,  entre  os  quaes  foram  os  últimos  os  visigodos  da 
Hespanlia,  tendo  abjurado  o  arianismo  no  anno  de  586,  con- 
formando-se  com  as  doutrinas  da  igreja  catholica,  como  aquel- 
la  estabelecida  e  definida  pelos  decretos  dos  concílios  geraes 
de  Nicea  e  Constantinopla.  Desde  esta  epocha  a  doutrina  or- 
tliodoxa da  Santíssima  Trindade,  e  da  divindade  de  Christo 
passaram  a  ser  dogma  de  todo  o  orbe  catholico.  Muitos  prin- 
cípios secundários  e  ordenações,  não  observadas  nos  primei- 
ros tempos  da  igreja  foram-se  gradualmente  introduzindo. 
Entre  estas  instituições  modernas,  a  mais  notável,  em  conse- 
quência da  divisão  que  causou  na  igreja,foi  a  introducção  das 
imagens,  ponto  que  em  todos  os  tempos  da  igreja  tinha  trazi- 
do divididas  as  opiniões,  a  propriedade,  ou  impropriedade  do 
qual  e  que  está  subordinado  a  circunstancias  especiaes,  tem 
sido  objecto  de  discussão  da  maior  importância. 

A  introducção  d'irnagens  nas  igrejas  teve  origem  sem  du- 
vida na  real  ou  supposta  conveniência  de  fazer  representar  os 
objectos  ausentes  por  symbolos  visíveis,  como  meio  d'instruir 
aquelles  que  pela  sua  ignorância  eram  incapazes  de  os  conce- 
ber com  o  simples  exercício  das  faculdades  íntellectuaes.  Nas 
idades  anteriores  á  invenção  da  imprensa,  o  povo  em  todos  os 
paizes  era  extremamente  ignorante,  e  escaços  os  meios  d'ad- 
quirir  conhecimentos. 

Foi,  e  será  sempre  um  cargo  difHcil   imbuir  a    instrucção 


219 

•aonde  não  lia  outras  idéas  alem  d'aquellas  suggeridas  por 
objectos  familiares.  E' reconhecida  a  difliculdade  de  íixar  idéas 
abstractas  cm  espíritos  incultos.  Se,  por  estas  considerações  po- 
demos ajuizar  imparcialmente  do  procedimento  d'aquelle-s  pri- 
mitivos mestres  da  igreja,  cujo  orneio  era  guiar  o  esphi:o  hu- 
mano nos  negócios  importantes  da  religião  e  explicar  os  mys- 
•terios  do  christianismo  a  um  povo  rude  e  ignorante,  a  dimcul- 
dade  que  necessariamente  tinham  d'arrostar  explica  a  conve- 
niência da  adopção  dos  symbolos  ou  representantes  visiveis 
de  Christo  e  dos  Santos,  como  meio  fácil  de  lhes  recordar  os 
soffrimentos  e  a  santidade  d'aquelles  gloriosos  personagens  ar- 
rebatados á  sua  vista.  Eis,  sem  duvida  o  que  originalmente 
se  pertendeu  não  obstante  degenerar  em  algumas  partes  em 
abuzo  pela  astúcia  do  clero  ou  fanatismo  do  povo.  Os  adver- 
sários d'imagens,  comtudo,  guerreavam  vehementemeníe  a 
sua  presença  nos  templos  com  fundamento  de  que  era  um 
retrocesso  para  a  idolatria;  mas  nos  nossos  dias  a  igreja,  sem 
excepção,  repelle  toda  a  idéa  d'adoração  d'quelles  repre- 
sentantes visiveis,  e  só  admitte  a  de  simples  veneração. 
Nos  templos  do  Oriente  são  as  imagens  substituídas  pela  pin- 
tura. Se  na  preferencia  do  colorido  para  a  symbolisação  da 
divindade  ha  mais  .sanctidade  ou  menos  criminalidade  do  que 
na  escolha  de  matérias  mais  duráveis  em  bronze  ou  em  mármo- 
re é  ponto  que  deixamos  ao  theologo  profundo  decidir.  A 
igreja  romana  admitte  uma  e  outra  forma  nos  seus  templos, 
como  meio  de  chamar  mais  a  attenção  das  massas  menos  ins- 
■truidas;  concorrendo  também  para  o  seu  embelleaamento  in- 
terno. Esta  igreja  tolera  a  veneração  por  aquelles  symbolos, 
que  todavia  degenera  ás  vezes  em  uma  apparente  idolatria  re- 
provada pela  parte  illustrada  dos  catholicos. 

As  eontendas  sobre  este  ponto  entram  .aqui  tãosomente  sob 
um  ponto  de  vista  histórico,  mas  convém  dizer  que  ponto 
algum  foi  mais  debatido, chegando  a  produzir  o  primeiro  scis- 
ma  entre  as  igrejas  grega  e  latina,  acabando  na  .sua final  sepa- 
ração. 

A  igreja  christã,  tinha,,  desde  a  extineção  da  Arianismo,  no 

29 


220 

sexto  século,  gozado  tranquilidade  e  união. 

A  disputa  sobre  a  admissão  ou  não  admissão  das  imagens" 
teve  logar  no  anuo  do  720,  no  reinado  de  Leão,  o  Isaureano 
que  se  distingue  na  historia  como  o  primeiro  dos  imparadores 
iconoclastas  ou  destruidores  cVunagens.  Como  a  contenda  não 
podesse  ser  resolvida  amigavelmente,  reunio-se  um  concilio  em 
Constantinopla  em  754  composto  de  388  prelados  do  império 
oriental.  Neste  concilio  todos  os  symbolos,  á  excepção  d'aquel- 
le  da  eucharistia,  foram  comdemnados  como  heréticos  e  man- 
dados destruir.  Este  debate,  comtudo,  entre  os  protogonistas 
e.  adversários  das  imagens  não  foi  só  o  primeiro  passo  para  a 
separação  da  igreja  latina  da  grega,  mas  em  grande  parte  a 
causa  immediata  dá  separação  da  Itália  do  império  do  Orien- 
te, que  se  reA^oltou  no  decimo  anno  do  reinado  de  Leão  o 
iconoclasta  ;  dando  logar  ao  estabelecimento  d' uma  nova  re- 
publica romana,  que,  não  podendo  manter  a  sua  independên- 
cia contra  os  Lombardos,  foi  socorrida  por  Pepino,  rei  de 
França,  cujo  filho  e  successor,  Carlos  Magno,  recebeu  do  Pa- 
pa Adriano  4.°  o  titulo  e  dignidade  d'iinperador  dos  romanos 
o  que  deu  origem  ao  novo  império  do  Occidente,  hoje  chama- 
do império  Germânico,  ou  em  phrase  deplomatica,  império 
romano. 

Os  decretos  do  concilio  de  Constantinopla,  comtudo,  não 
sustentaram  por  muito  tempo  a  sua  authoridade. 

Irene,  donzella  Atheniense,  cuja  formosura  c  dotes  natu- 
raes  tinhão  elevado  ao  throno  imperial,  começou,  de  combi- 
nação com  seu  filho  Constantino  G.°,  a  reinar  enr  Constantino- 
pla no  anno  de  780. 

Esta  imperatriz,  d'uma  ambição  tão  desmedida  que, estranha 
ás  affecçõesmaternaes,  a  ponto  de  mandar  tirar  os  olhos  a  seu  fi- 
lho Constantino  para  que  fosse  imperante  única  no  Oriente, 
inclinava-se  fortemente  á  restauração  das  imagens.  O  segun- 
do concilio  de  Niceia  conhecido  pelo  sétimo  concilio  de  Cons- 
tantinopla restaurou  as  imagens  em  787.  Esta  contenda  de 
quejâ  originara  o  scisma  temporariamente  aplanou  o  cami- 
nho para  a  completa  separação  das  duas   igrejas  do  Oriente  e 


221 

Occidente  que  jamais  se  congraçaram  cordealniente.  A  igreja 
do  Oriente  havia  de  facto  restaurado  as  imagens  ;  mas  Cons- 
tantinopla não  restituirá  á  Sé  de  Roma  os  estados  da  Calá- 
bria e  a  diocese  lllyriana,  de  que  se  havião  apossado  os  im- 
peradores e  patriarchas  iconoclastas  durante  a  contenda. 

Nas  eras  carregadas  e  tenebrosas  que  sobrevieram  á  des- 
truição, do  império  romano,  cousa  alguma  quasi  suecedeu  na 
historia  da  Europa  digna  d'attenção.  Podemos  notar  que  os 
francos,  nação  habitando  primitivamente  as  margens  oppostas" 
do  Rheno,  tinhãojá  no  anuo  400  começado  a  invadir  a  Gral- 
ha, estabelecendo-se  n'aquella  provincia  sob  a  raça  Merovin- 
giana  de  reis.  Clóvis,  primeiro  rei  çliristão  da  França,  ha- 
vendo por  meio  de  conquista  annexado  o  reino  gothico  de 
Toulouse  á  sua  monarchia  no  anno  de  508  estabeleceu  a  ca- 
pital dos  seus  domínios  em  Paris,  e  por  sua  morte  dividio-os 
entre  seus  quatro  filhos.  Depois  _d'isto  a  monarchia  franceza 
foi  alternativamente  unida  e  dividida,  entre  os  descendentes 
de  Clóvis;  mas  a  feição  saliente  da  historia  da  França  é  o  ex- 
horbitante  poder  que  se  arrogaram  os  ministros  chamados 
mordomos  do  palácio.  Os  monarchas  cahiram  n'uma  espécie 
de  turpor,  abandonaram  os  negócios  públicos,  e  entrega- 
ram a  sua  direcção  inteiramente  ao  cuidado  d'aquelles  of- 
ficiaes.  Pepino  d'Heristal,  assim  -  chamado  por  derivar  o 
seu  nome  do  seu  palácio  d'Heristal  ,  sobre  as  margens 
do  Meuse,  tendo-se  engrandecido  á- custa  do  seu  soberano, 
adquirira  uma  authoridade  illimitada,  e  só  lhe  faltava  o  titulo 
de  rei,  em  quanto  que  o  monarcha  era  uma  pura  nullidade. 
Carlos  Martel,  affamado  pela  assignalada  derrota  dos  Sarra- 
cenos no  anno  de  732,  suecedeu  a  seu  pae  no  cargo  de  mordo- 
mo mór  do  palácio,  que  aquelles  ambiciosos  ministros  havião 
conseguido  tornar  hereditário  e  morrendo  em  741,  foi  suecedi- 
do  por  seu  filho  Pepino,  depois  rei  de  França.  Tendo  Pepino 
feito  enclausurar  seu  soberano  n'um  mosteiro,  subio  ao  thro- 
no,  succedendo-lhe  por  sua  morte  seu  filho  Carlos  Magno,  cu- 
j  o  reinado  feliz  e  governo  enérgico  constitue  uma  epocha  na 
historia  da  Europa. 


TencTo  subjugado  a  Lombardia  ao  norte  da  Itália,  como- 
também  a  melhor  parte  da  Germânia  e,  pela  sua  conquista  da 
Itália,  libertado  Roma,  foi  coroado  imperador  dos  romanoSy 
pelo  papa  Adriano  4.°  no  anno  de  800;  e  sendo  Carlos  Magno 
rei  de  França,  reinou  sobre  a  Germânia  e  a  Itália  como  im- 
perador dos  romanos.  D'aqui  vemos,  a  um  tempo,  a  origem 
tanto  do  império  germânico  ou  romano- como  do  poder  tempo- 
ral dos  papas. 

Carlos  Magno  é*  um  vulto  distincto  nos  annaes  da  Europa. 
Viveu  nos  tempos  mais  bárbaros  da  ignorância  gothica,  e 
contava  já  40  annos  antes  que  apprendesse  a  escrever,  prova 
convincente  do  estado  inculto  d'aquelles  tempos.  Mas  elle  a-nir 
mou  a  litteratura  e  deu  a  mão  aos  sábios  aonde  quer  que  os 
encontrava.  Fundou  a  universidade  de  Paris,  e  muitos  outros 
seminários  de  litteratura  em  difrerentes  pontos  dos  seus  ex- 
tensos domínios,  e  fez  quanto  a  seu  alcance  estava  para  a  res- 
tauração das  letras;  porem  a  nuvem  que  obscurecia  então  o 
intellecto  humano  era  demasiadamente  densa  para  ser  dissipa- 
da e  alguns  homens  de  génio  e  erudição  que,  pelos  seus  co- 
nhecimentos litterarios  se  distinguiram  n'aquella  epocha,  não 
foram  mais  que  meteoros  passageiros,  brilhando  por  um  mo- 
mento no  meio  das  trevas  e  desaparecendo.  Carlos  Magno, 
fez  quanto  um  principe  podia  fazer,  n'uma  epocha  de  barba- 
rismo; mas  as  circunstancias  geraes  da  Europa  contrabalança- 
ram seus  esforços.  O  reinado,  portanto  dreste  principe  não  pas- 
sou d'um  clarão  transitório;- depois  do  que,  as  trevas  que  obs- 
curecião  a  atmosphera  litteraria  serraram-se  de  novo; 

O  estado  do  mundo  durante  o  espaço  de  quatro  séculos,  ti- 
nha sido  deplorável.  A  Europa  n'um  estado  d'anarchia  e  bar- 
barismo; e  o  império  do  oriente  apenas  apresentando  signaes 
de  civilisação,  por  algum  tempo  florescente,  mas  depois  cer- 
ceado na  metade  de  seus  domínios  pela  conquista  dos  cáliphas 
mahometanos.  Os  quatro  séculos  que  decorrem  da  morte  de 
Theodozio  o  grande  ao  reinado  de  Carlos  Magno,  pode  certa- 
mente ser  tido  como  o  período  mais  calamitoso  na  historia  da 
humanidade,  pela  effusão 


223 

tro3  tempos  antigos  e  modernos.  No  reinado  de  Carlos  Ma- 
gno o  mundo  tomara  um  aspecto  mais  socegado  do  que  até 
então.  Todo  o  mundo  conhecido,  a  esse  tempo,  dividia-se  em 
três  grandes  potentados;  o  império  do  Oriente  ou  Constanti- 
nopla; o  caliphado,  que,  com  quanto  então  fraccionado,  pode 
pela  homogeniedade  de  hábitos,  religião  e  origem,  reputar  se 
uma  nação;  e  o  império  do  occidente  de  Carlos  Magno.  De  to- 
dos estes  três  impérios  o  caliphado  sobresaia  em  conhecimen- 
tos litterarios;  e  Constantinopla,  com  quanto  decaída  a  esse 
respeito,  desde  os  tempos  de  Nazianzeno  e  San  Chrisostomo 
ainda  conservavam  o  segundo  logar  na  hierarchia  litteraria 
defferindo  pouco  de  seus  visinhos  árabes.  A  Europa  fazia 
progressos  no  mesmo  sentido  mas  a  que  uma  conjuncção  de 
circunstancias  desfavoráveis  fez  abortar.  As  condições  politicas 
e  sociaes  da  Europa  erão  taes  a  esse  tempo  que  todas  as  ten- 
tativas para  a  restauração  dalitteratura  eram  mallogradas. 

No  primeiro  século  depois  da  morte  de  Carlos  Magno,  a 
Europa  começou  a  cair  no  mesmo  estado  d'anarchia  politicai. 
Aquelle  principe,  seguindo  os  exemplos  perniciosos  de  Cons- 
tantino e  1  heodosio,  em  dividir  o  império  remano,  partilhou 
o  império  entre  seus  filhos.  Em  pouco  menos  d'um  século  a 
família  de  Carlos  Magno  desappareceu  e  os  nobres,  cujo  po- 
der tinha  sido  muito  sopeado  pelas  mãos  vigorosas  d'aquelle 
imperador,  tornaram-se  independentes  nos  reinados  de  seus 
suecessores  mais  fracos  e  começaram  a  opprimir  tyrannica- 
inente  o  povo. 

Qualquer  que  fosse  d'antes  a  condição  das  massas,  tornou- 
se  agora  insupportavel.  O  systema  feudal  foi  primeiro  com- 
pletamente estabelecido  na  França  e  na  Germânia  sob  os  im- 
potentes successores  de  Carlos  Magno,  a  nobreza  d'aquelles; 
paizes  assumiram  um  poder  pouco  inferior  ao  do  soberano,, 
nos  seus  respectivos  districtos,  reduzindo  o  rei  ao  goso  do  ti- 
tulo, mas  sendo  elles  que  de  facto  exereião  a  authoridade 
real.  Somos  levados  a  crer  que  o  systema  feudal  existia  já 
desde  tempos  immemoriaes,  mais  ou  menos,  entre  quasi  todas- 
as  nações  do  norte;  mas  como  este,    á  maneira    de    todos  os- 


224 

outros  system as  políticos  é  susceptível  de  modificações,  não 
sabemos  em  que  escala  existia,  quaes  os  regulamentos  a  que 
estava  subordinado,  e  a  que  mudanças  esteve  sujeito  entre 
um  povo  inculto,  durante  tantos  séculos.  Não  temos  a  míni- 
ma noção  da  sua  historia  até  ao  tempo  das  invasões  que 
fizeram  no  território  romano;  cumprindo  notar  que  os  seus 
costumes  e  instituições  passaram  por  consideráveis  ainda 
que  gracluaes  modificações  pela  adopção  dos  costumes  ro- 
manos, religião  romana  etc.  conservando  com  tudo  os  cara- 
cterísticos mais  proeminentes  dos  costumes  gotliicos.  De- 
pois da  extincção  da  raça  de  Carlos  Magno  o  systema 
feudal  attmgio  o  auge  da  sua  grandeza.  A  uzurpação  de  Hu- 
go Capeio  enraizou  o  seu  poder  na  França,  mediante  a  con- 
firmação de  privelegios  feita  por  aquelle  príncipe  aos  nobres. 
.Na  Germânia  ena  Itália  dava-se  o  mesmo:  os  nobres  appro- 
veitando-se  da  fraqueza  dos  imperadores  e  das  continuadas 
desavenças  entre  elles  e  os  papas,  tornaram-se  senhores  in- 
dependentes, reconhecendo  tão  somente  um  feudo  nominal  ao 
imperante,  como  chefe  commum  aquém  obedecião  oa  não  con- 
forme seus  caprichos  ou  interesses.  Muitos  prelados  do  império 
seguião  o  mesmo  principio  e  fazião-se  soberanos  nas  suas  res- 
pectivas diocezes;  e  algumas  cidades  e  villa.s  com  esses  exem- 
plos constituíram-seem  republicas  independentes.  D'estas  con- 
tendas, e  d'esfe  estadofluetuante  da  anthoridade  soberana  nas- 
ceram os  pequenos  principados  cia  Itália.  D'aqui  também  a 
constituição  germânica,  que  consistiô  em  um  numero  dis- 
tados ecclesiasticos  e  temporaes,  e  de  soberanias,  individual- 
mente independentes,  mas  unidos  em  uma  confederação  po- 
litica sob  um  só  chefe.  Tal,  como  algumas  ligeiras  difíeren- 
ças,  era  o  estado  cia  França  até  o  reinado  de  Luiz  onze.  que 
foi  o  primeiro  a  cercear  o  exhorbitante  poder  da  nobreza  ;  e 
cujas  medidas  foram  seguidas,  até  aniquilar  a  sua  perigosa 
independência,  na  enérgica,  posto  que  sanguinária  administra- 
rão do  cardeal  de  Richelieu  no  meado  do  século  17.  Na  Po- 
lónia existia  o  mesmo  systema  até  os  nossos  dias  na  sua  ple- 
nitude e  com  todos  os  seus  horrores,  até  que  uma  parte   coií» 


225 

sideravel  cVesse  desgraçado  povo  foi  libertado  d'esse  jugo 
oppressor,  por  aquillo  a  que  se  deu  absurdamente  o  nome  de 
extincção  da  liberdade  da  Polónia,  pelos  três  poderes  que  a 
partilharam  entre  si.  Nada  mais  absurdo  que  chamar  aquel- 
la  partilha  a  perda  de  liberdade,  porque  é  fora  de  duvida  que 
aquellas  partes  da  Polónia  que  pertenceram  á  Áustria,  á  Rús- 
sia e  á  Prússia  gosam  uma  liberdade  sob  aquelles  governos 
que  nunca  haviào  gozado  nos  tempos  do  seu  governo  feudal. 

Estudando  o  estado  da  Europa  nas  idades  medias,  não  se 
pode  imaginar  um  quadro  mais  revoltante. 

Reis,  cujo  poder  era  apenas  nominal  e  cuja  posição  era 
precária  e  incerta.  Nobres  em  guerra  continua  uns  com  os 
outros,  ou  em  revolta  contra  seu  soberano.  O  povo  opprimi- 
do,  tratado  como  animaes  e  á  mercê  dos  grandes.  O  paiz  abun- 
dava de  castellos,  viveiros  de  revoltas,  receptáculos  de  la- 
drões e  pilhagens,  e  focos  de  motins  e  debauche.  Esses  que 
teem  profundado  os  annaes  da  idade  media  que  digão  se  ha 
aqui  exageração;  ou  se  é  possivel  sobrecarregar  o  quadro  d'a< 
quelles  tempos  cie  desordem  e  infelicidade.  Parece-nos  que  o 
systema  feudal  na  Inglaterra  não  chegou  nunca  áquelle  esta- 
do d'independencia  da  coroa  como  aconteceu  em  outros  pai- 
zes  mas  em  quanto  a  oppressão  do  povo  não  lhe  ficava 
atraz;  e  a  historia  diz-nos  que  no  começo  do  reinado  de  Hen- 
rique 2.°,  existia  para  cima  de  mil  castellos  fortificados  n'es- 
te  paiz.  Comparemos,  por  um  momento  o  estado  moderno  da 
Europa  com  aquelle  da  idade  media.  E'  inegável  que  nos  úl- 
timos tempos  as  guerras  hão  sido  frequentes.  Paz  perpetua  é, 
talvez,  incompatível  com  a  imperfeita  natureza  da  humanida- 
de; mas  as  calamidades  da  guerra  não  menos  são  deploráveis. 
No  systema  moderno  da  Europa,  a  sorte  das  armas  restrin- 
ge-se  a  poucos  potentados;  e  as  operações  da  guerra  são  con- 
duzidas por  uma  classe  que  se  dedica  exclusivamente  ao  es- 
tudo da  arte  militar.  Aquellas  localidades  apenas  que  são 
tlieatro  da  guerra  soffrem  as  calamidades  inlierentes,  e  estas 
mesmas  são  consideravelmente  modificadas  pela  humanidade 
que  distingue  as  raças  d'hoje  comparativamente  com  as  atro- 


220 

cidades  da  antinguidade.  A  tranquilidade  das  outras  partes 
do  paiz  continua  sem  pei turbação  e  as  outras  classes  da  so- 
ciedade que  não  fazem  da  guerra  profissão,  gozam  no  meio 
d'ella  a  segurança  e  doçuras  da  paz. 

Para  a  generalidade  da  nação,  os  effeitos  da  guerra  fazem- 
se  sentir  pelo  augmento  de  contribuições  ou  pela  diminuição  do 
commercio.  Nos  séculos  onze  e  doze,  depois  que  se  dividio  o 
império  de  Carlos  Magno  em  muitos  estados  independentes  e 
adversos,  assumindo  os  mais  poderosos  chefes  a  realeza,  a  sua 
revolta  foi  seguida  pela  debellação  da  anarchia.  O  senhor  de 
cada  castello  arrogava-se  os  foros  de  soberano,  e  desdenhando 
daautboridade  das  leis,  appellavapara  a  sorte  das  armas.  To- 
do o  paisano  era  soldado,  e  cada  aldeã  uma  fortaleza ;  cada 
campo  era  banhado  de  sangue,  ecada  valle  e  cada  bosque  eram 
theatros  de  assassinatos  e  rapina.  Tal  era  o  estado  deplorá- 
vel da  sociedade,  n'esta  quarta  parte  do  globo  na  idade  me- 
dia 

Apreciem  pois  as  gerações  presentes  a  tranquilidade  e  se- 
gurança que  hoje  disfructam,  desconhecidas  não  só  nos  tem- 
pos do  feudalismo  mas  mesmo  nos  apregoados  governos  re- 
publicanos da  Grécia  e  Roma. 

Em  quanto  o  estado  politico  e  social  da  Europa  era  como 
aqui  se  descreve,  o  estado  cio  caliphado  nãooíferecia  um  qua- 
dro mais  animador.  No  decimo  século  o  império  sarraceno 
retalhado  á  maneira  d'aquelle  de  Carlos  Magno  pela  revolta 
de  chefes  facciosos,  em  um  numero  de  estados  independentes 
teve  finalmente  uma  sorte  semelhante  á  de  Roma  antiga;  por 
que  o  império  dos  turcos,  e  d'outras  nações  barbaras  da  Azia 
do  norte  q'  derrubando  o  seu  poder,  adoptaram  a  sua  religião 
do  mesmo  modo  que  Roma  quando  foi  preza  das  nações 
septentrionaes  da  Europa,  que,  desfazendo  o  machinismo  po- 
litico, conservaram  e  abraçaram  a  sua  religião. 

Com  a  queda  do  caliphado  morreu  a  litteratura  árabe  do 
mesmo  modo  que  havião  decaindo  as  artes  e  lettras  de  Roma 
com  a  invasão  dos  bárbaros  do  norte,  em  monoscabo  de  tudo 
quanto  tendia  a  iilustrar  o  espirito.  O  império    do  Oriente  era 


227 

então  a  sede  d'esse  resto  de  litteratura  ficara;  e  Constantino- 
pla ficou  .sendo  o  centro  da  sciencia,  e  commercio,  das  artes 
e  civilisaçào  até  ao  tempo  em  que  cahio  sob  o  .domínio  Qtto- 
mano. 


.IMA   CAI 


O  estado  politico  e  social  da  Europa  conservou-se  sem 
alteração  por  muitos  séculos,  depois  da  fundação  dos  prin- 
cipaes  reinos  em  que  finalmente  se  dividio,  nada  ofterecen- 
do  de  notável  alem  d'aquelles  acontecimentos  políticos 
eommuns  a  todas  as  nações  em  meia  civilisaçào,  e  sob  um 
regimen    de  governo  sem  estabilidade. 

Uma  novidade  porem,  com  visos  do  romântico,  começou  a 
mar  as  attenções  pelo  anuo  1096.  ISPaquelles  tempos  o- costume 
de  romarias  ao  Santo  Sepulchro  em  Jerusalém  tornou-se  tão 
geral  que,  cerca  de  trinta  annos  anteriores,  o  arcebispo  de 
Metz,  com  os  bispos  dTJtrecht,  de  Bamberg  e  de  Ratis- 
bona,  e  alguns,  sete  mil  companheiros,  tinham  ido  em  ro- 
maria a  Jerusalém  render  homenagem  ao  ííedemptor.  Sob  o 
culto  império  dos  cáliphas,  aquellas  romarias  eram  favoreci- 
das, e  tanto  individuo  como  propriedade  encontravam  pro- 
tecção da  parte  do  governo.  Áquelles  príncipes  mahometa 
nos,  obedecendo  aos  princípios  de  boa  politica,  conheciam 
as  vantagens  que  vinham  aos  seus  domínios  d'esta  concor- 
rência annual  d'estrangeiros,  muitos  cios  quaes  eram  pessoas 
distinctas.  Porem  os  bárbaros  que -haviam  derrubado  o  cálipha- 
do,  nao  só  vexavam  os  peregrinos  com  impostos  pesadíssi- 
mos, mas  juntavam  a  isto  o  insulto.  Um  Pedro,  eremita, 
Gpie  tinha  visitado  o  Santo  Sepulchro,  homem  fogoso  e  cie 
zelo  ardente,  indignado  com  as  extorsões  e  vexames  a  que 
os  peregrinos  estavam  expostos,  pregou  no  seu  regresso  a 
cruzada  para  recuperar  da.  mao   dos  intieis  a  Terra  Santa. 

Este  agitador  teve  a  felicidade  de  merecer  ao  prpa  a  ap~ 
píòvacão   do  seu  projecto:  e  como  estivesse    no  gosto  da  epe- 

30 


elia,  os  príncipes  e  nobres  da  Europa  promptamente  abraça- 
ram a  idéa. 

O  mais  romântico  espectáculo  de  zelo  religioso,  e  ardor 
militar,  manifestou-se  em  toda  a  Europa  subsistindo,  com 
alguns  pequenos  intervallos,  por  espaço  de  quasi  duzentos 
annos,  desde  a  expedição  da  cruzada  em  1095,  até  á  perda 
d' Acre  e  de  toda  a  Palestina  em  1291.  A  historia  da  cruzada  é 
digna  de  lêr-se,  por  isso  que  apresenta-nos  a  exaltação  das 
paixões  humanas  no  máximo  ponto  pela  religião  e  ardor 
militar  dViquelles  tempos;  e  descreve-nos  nas  mais  vivas  co- 
res, as  terríveis  calamidades  que  um  mal  entendido  zelo  pôde 
trazer    â   humanidade. 

Os  annaes  do  mundo  talvez  não  offerecem  casos  d'ardôr  re- 
ligioso tão  frenético  e  de  tão  lamentáveis  effeitos  como  aquellas 
contendas  entre  a  cruz  e  o  alcorão;  mormente  os  cercos  de 
Antiochia,  de  Jerusalém  e  d' Acre.  Nunca  as  chammas  do 
zelo  arderam  com  mais  exterminadora  fúria,  nem  se  desenvol- 
veu nunca  maior  heroísmo  e  valor,  levado  ao  desespero  de 
parte  a  parte.  Os  historiadores  divergem  sobre  a  mortan- 
dade, como  sempre  acontece;  mas  o  que  é  incontestável  è 
que  aquellas  memoráveis  guerras  podem  citar-se  como  pa- 
drões de  sanguinolenta  ferocidade  e  horror.  Legiões  sem 
conta  armavam-se  na  Inglaterra,  na  França,  na  Alemanha, 
nos  Paizes-baixos,  na  Itália  etc,  e  animados  por  um  fanatis- 
mo religioso  pozeram-se  a  caminho  para  exterminar  as  popu- 
lações da  Syria  e  da  Palestina.  A  princeza  A  ima  Commena, 
filha  do  imperador  Aleixo  Commeno,  descrevendo  aquelles 
exércitos  do  Occidente,  alguns  dos  quaes  ella  vira  na  sua 
passagem  por  Constantinopla,  diz-nos  que  parecia  que  a  Eu- 
ropa se  deslocava  para  cair  sobre  a  Azia.  E  com  tudo  aquel- 
les inauditos  esforços  não  produziram  os  erTeitos  esperados, 
não  deixando  todavia  de  ser  um  facto  notável  e  que  n'aquel- 
les  tempos  era  olhado  como  de  bom  agouro,  o  da  entrada 
de  Godefroi,  conde  de  Bologna,  em  Jerusalém,  em  sexta  feira 
santa,  ás  três  horas  da  tarde,  dia  ehora  da  paixão  de  Christo, 
deuois    de  um    desesperadíssimo    assalto,   atravessando    rios 


229 

de  sangue  de  setenta  mil  mahometanos.  Este  memorável  a- 
contecimento  teve  logar  em  1099,  e  Grodefroi,  como  bem  me- 
recera por  seu  heróico  valor,  foi  em  plena  reunião  dos  che- 
fes guerreiros  ploclamado  rei  da  Cidade  Santa  e  seus  distric- 
tos  circunvisinhos.  A  curta  duração  d'este  reino  ehristão  de 
Jerusalém  em  razão  da  sua  conquista  por  Saladino  em  1187 
ministra-nos  uma  prova  evidente  de  que  ao  todo  Poderoso, 
Deus  de  paz  e  misericórdia,  não  lhe  são  agradáveis  estes  ho- 
locaustos de   sangue  humano. 

Um  dos  mais  extraordinários  acontecimentos  occorridos  no 
decurso  d'aquellas  guerras,  religiosas  no  nome,  mas  na  reali- 
dade, românticas,  foi  a  tomada  da  cidade  de  Constantinopla 
pelos  latinos,  que  fez  cair  o  império  do  Oriente  nas  mãos 
de  um  bando  de  aventureiros  italianos,  francezes  e  flamen- 
gos. _ 

O  imperador,  Isaac  Angelo,  tendo  sido  desthronado,  e  pri- 
vado da  vista  por  seu  deshumano  irmão,  seu  filho  Aleixo,  a- 
dolescente,  ainda  escapou-se  para  a  Itália,  e  encontrou  um 
grupo  de  barões  francezes  e  flamengos,  que  andavam  n'uma 
d'estas  emprezas  das  crusadas,  e  que  tinham  vindo  a  Vene- 
za, áquelle  tempo  a  primeira  potencia  marítima  da  Europa, 
aonde  haviam  contractado  com  a  republica  os  navios  neces- 
sários para  poderem  levar  a  eífeito  seus  planos.  O  joven  A- 
leixo  entrou  em  negociações  com  os  francezes  e  venezianos,  e 
assignarnm  um  tractado,  pelo  qual  se  comprometteram  a  col- 
locar  de  novo  seu  pae  no  throno  imperial  do  Oriente;  com- 
promettendo-se  elle  pela  sua  parte  a  unir  as  igrejas  latina  e 
grega.  Os  francezes  e  os  venezianos,  dando  outro  rumo  á 
sua  esquadrilha,  cujo  destino  primitivo  fora  contra  as  costas 
da  Syria  e  do  Egypto,  navegaram  pelo  Hellesponto  acima 
até  Constantinopla,  romperam  a  cadêa  do  porto,  e  atacaram 
a  cidade  por  mar  e  por  terra.  Os  assaltantes-  quando  esta- 
vam já  a  entrar  na  cidade,  o  usurpador  Aleixo  evadio-se. 
Isaac  Angelo,  e  seu  filho,  o  joven  Aleixo,  foram  acclamados 
imperadores;  pelo  que  cessaram  as-  hostilidades;  mas  tão  de- 
pressa foi  sabido  do  clero,    e  principalmente   dos  monges,  as- 


230 

Condições  estabelecidas  pelos  alliados  e  aceitas  por  Aleixo.» 
a  idéa  d'união  com  a  sé  de  Roína  foi  reprovada,  e  o  povo 
excitado  a  pegar  em  armas..  Esta  insurreição  geral  foi  tam- 
bém atiçada  por  Aleixo  Mourzouste,  da  família  dos  Ducasr 
que  assumiu  o  sceptro,.  prendeu  o  imperador  Isaac,  e  fez 
perecer  o  joven  Aleixo. 

Interrompida  d'este  modo  a  legitima  suecessâo  do  knpe- 
rio  grego,  os  francezes  e  os  venezianos  recomeçaram  a  guer- 
ra. Depois  d-um  cerco  de  mais  de  três  mezes,  atacaram  a 
cidade  pelo  lado  do  porto,  e,  não  obstante  a  superioridade 
numérica,  levaram-na  d'assalto  no  anno  1204,  cerca,  d'oi- 
to  centos  e  oitenta,  annos  depois  da  sua  fundação.  Tendo 
sido  a  cidade  entregue  ao:  saque  pelos  latinos,  avaliou-se  o 
roubo  em  400,000  marcos,  quasí  equivalente  a  800,000  li- 
bras sterlinas,  somma  enorme,  excedente  ao  quádruplo  da  re- 
ceita publica  annual  de  qualquer  estado  da  Europa  maquel- 
les  tempos.  Esta.  massa  enorme  de  riquezas  foi  a  maior  en- 
contrada até  então  em  cidade  alguma,  conquistada^  e,  como 
bem  diz  Villehardouin,  cavalheiro  da  Cliampaigne  na  sua 
descripçâo  d'aquelles  feitos — «Aquelles  indigentes  conquis- 
tadores acharam-se  repentinamente  opulentos  cidadãos. »  Bal- 
derico  também,,  na  sua  epistola  a©  papa  Innocencio  3.°  diz 
que  nunca  preza  alguma  fora  feita  de  tão  grande  valor. 
A  pilhagem  particular  suppõe-se  exceder  mesmo  ao  saque 
ofíicial,  apesar  das  penas  d'excommunhão  e  de  morte  mes- 
mo decretadas  contra  aquelles  que  a  praeticassem.  Na  distri- 
buição publica,  a  cada  soldado  d'infanteria  era  dado  um 
quinhão,  dois  a  um  de  cavallaria,  quatro  a  cada  cavallciro  e 
aos  barões  e  príncipes,  em  relação  ás  suas  eathcgorias.  A. 
Bonifácio,  marq.uez  de  Monserrate,  coube  em  quinhão  o  rei- 
no de  Macedónia,  na  divisão  territorial.  Henrique  Dondolo, 
Doge  de  Veneza,  que  commandava  os  venezianos,  não 
obstante  ter  perto  de  noventa  annos  e  ser  quasi  cego  foi 
um  dos  primeiros  a  escalar  as  muralhas  no  assalto  geral. 
( )s  venezianos  ficaram  com  a  maior  parte  das  costas  mari- 
Sirnas,  conjunctamente    com  ires  outavas  partes   da  cidade  de 


^3Í 

I ^nstantinopla.  Baiderico,  conde  de  Flandres,  foi  eleito  im- 
perador com  n m  quarto  do  império  na  partilha.  O  resto  di- 
vidio-sc;  em  feudo/pelos  cavalleiros,  (knights)  e_ "barões  con- 
forme o  systema  feudal  que  entáo  existia  nos  paizes  oceiden- 
taes  da  Europa,  sob  o  senhorio  do  imperador, 

Villehardouin  suppõe  que  Constantinopla  possuia  ífaquel- 
h  tempo  400,000  homens  em  armas,  mas  por  todos  os  da- 
dos que  temos  semelhante  numero  é  grandemente  exagerado. 
Mr.  le  Beau  (Histoire  du  bas  Empire)  suppõe  que  esta  capi- 
tal continha  ao  tempo  que  foi  tomada  pelos  latinos  uniim- 
hVio  d'habitantes  e  ao  presente  quatro  centos  mil,  calculo  es- 
te o  mais   rasoavel. 

Depois  d'este  desastre,  os  gregos  fundaram,  estados  inde- 
pendentes em  Nice,  na  Trebisonda  e  no  Epiro.  Os  latinos 
mio  foram  bem  suecedidos  nos  negócios  da  sua  nova  acqui- 
sicào.  As  dissenções  que  predominavam  entre  os  barões  ex- 
punham seus  dominios  aos  ataques  dos  gregos,  que  continua- 
mente ganhavam  terreno.  Os  búlgaros  revoltaram-se,  e  o  im- 
perador Baiderico  de  Flandres,  sendo  batido  e  feito  prisionei» 
ro  por  elles,  morreu  no  captiraro,  snecedendo-lhe  seu  irmão 
Henrique  em  1206.  Bonifácio,  Marquez  de  Monserrate,  foi  no 
mesmo  anno  morto  pelos  Búlgaros.  Henrique  de  Flandres  é  a» 
presentado  como  um  príncipe  sábio  e  valente,  apto  tanto  para  go- 
vernar em  tempo  de  paz  como  dè  guerra.  Era  eguahnente  dota- 
do de  sentimentos  liberaes,  tolerante  em  principioSy  &  repri- 
rnio  a  perseguição  que  o-  delegado  do  papa  fazia  aos  gregos 
sysmaticos.  Depois  da  sua  morte,  em  1216-,  o  império  lati- 
no de  Constantinopla  declinou  gradualmente;  e  tão  excessi- 
vas eram  as  exigências  do  estado,  que  Baiderico  2.°,  derradeiro 
imperador  da  dynastia  latina,  empenhou  a  coroa  d'espinhos, 
que  se  diz  ser  aquella  que  pozeram  sobre  a  fronte  de  Christo,, 
aos  venezianos,  de  quem  a  remio  San-Luiz,  Hei  de  França,. 
que  também  comprou  a  Baiderico  uns  fragmentos  da  cruzr 
a  lança  com  que  feriram  o  Senhor,  a  vara  cie  Moizes,  e  ou- 
tras reliquias  em  grande  veneração  n'aquelles  tempos,  e  que 
depositou  na  santa  capella  de  Paris  era    1225.   Os  gregos  dai 


232 

Azia,  ganhando  constantemente  terreno,  Miguel  Paleologo, 
tendo  usurpado  o  império  -grego  de  Nicea,  seu  general  Alei- 
xo Strategopulo,  com  uma  força  pouco  considerável  surpre- 
liendeu  e  reconquistou  Constantinopla  em  1261,  e  d'este 
modo,  no  fim  de  57  annos  aquella  metropoli  voltou  ao  do- 
minio  dos  gregos,  mas  uma  parte  considerável  da  cidade  ti- 
nha sido  destruída  por  três  grandes  incêndios,  que  tiveram 
logar  por  ocèasião  do  cerco  feito  pelos  latinos,  e  nunca  mais 
Constantinopla  recuperou  seu  antigo  esplendor,  nem  o  impé- 
rio oriental  sua  primitiva  grandeza  e  poder. 

A  historia  das  cruzadas,  com  quanto  apresente  um  espectá- 
culo lastimoso  de  fanatismo  e  mortandade,  descobre  também 
um  adiantamento  considerável  nas  sciencias.  Em  consequência 
d'aquellas  guerras  destruidoras,  causa  da  morte  de  tantos  Eu- 
ropeus na  Palestina,  os  habitantes  dos  paizes  ao  occidente 
^adquiriram  noções  a  respeito  da  parte  oriental  que  não  ti- 
nham, especialmente  do  império  Grego,  ou  Constantinopolita- 
no.  Os  conhecimentos  geographicos  dos  europeus  melhora- 
ram, a  sua  esphera  politica  alargo u-se,  e  introduziram-se  os 
rudimentos  de  varias  artes  e  sciencias  desconhecidas  no  oc- 
cidente. Um  dos  eífeitos  mais  importantes  das  cruzadas  foi  o 
cerceamento  do  poder  e  numero  dos  nobres  facciosos,  que 
muito  concorreu  para  a  abolição  do  feudalismo.  Muitos  no- 
bres a  hm  de  arranjarem  dinheiro  para  aquellas  expedições 
religiosas  dispozeram  dos  seus  estados;  e  muitos  pequenos 
príncipes  venderam  seus  principados  ao  soberano,  como  por 
•exemplo  Roberto,  duque  da  Normandia,  que  fez  venda  do  seu 
ducado  a  seu  irmão  Guilherme,  vindo  assim  a  ser  annexado 
<i  coroa  d'Inglaterra.  Estas  vendas  lançaram  muitos  dos 
principaes  chefes  na  dependência  do  throno.  Muitos,  também 
dos  nobres  facciosos  foram  anniquilados  n'estas  emprezas  ro- 
manescas e  morrendo  alguns  delles  sem  suecessão,  devolve- 
ram seus  feudos  á  coroa.  As  cruzadas,  em  fim,  contribuíram 
muito  para  enfraquecer  e  derrubar  o  systema,  feudal  e  pou- 
co depois  de  cessar  o  fanatismo  pelas  cruzadas,  começou  a 
Europa   a   apresentar  um   aspecto    mais  agradável.    O  poder 


233 

dos    soberanos   adquirio  mais    estabilidade   e  promulgaram- 
se   leis  mais  benignas   e  favoráveis  ao  povo.   Os  principes  da 
Europa,    conhecendo  seus  próprios  interesses   adoptavam   in- 
variavelmente os    meios   de  diminuir  o  poderoso    poder  dos 
nobres,    elevando  a  burguezia  até   certo    ponto  na   escala  po- 
litica.   De   todas   as  medidas   tomadas  pelos  principes   euro- 
peus,   para  o  complemento  d'este  grande  propósito,  nenhum 
mais  eflicaz   que  a  dadiva  da  constituição  e  privilégios  a  cida- 
des  e  villas,    cujos  habitantes    ficaram  libertos    do    domínio 
feudal,  c  que,    a  pouco  e  pouco  deu  logar   á    emancipação  a 
toda  a   massa   da  população.   A  abolição,  porem,    do  feuda- 
lismo, foi  obra  do  tempo,  e  não  se  realisou  de  todo  senão  no 
fim  d'alguns  séculos.    O  seu  progresso  foi  lento,  c  não  obstan- 
te os  esforços  de  muitos  principes  da  Europa   nada  se  conse- 
guiria sem  o  melhoramento  da  civilisação,  e  o  augmeuto  das 
transacções  commerciaes.    Os  privilégios  das    cidades    livres 
proporcionaram    ás  suas  populações  os  meios  de   alargar  o 
seu    commercio,    e  a  explorar    diíferentes   canaes  para  a  sua 
ramificação;    e    assim  augmentou   a  riqueza  publica   e   a  im- 
portância das  classes  plebeias.    Os   rendeiros    em  vez  de  pa- 
gar as  rendas  em  espécie  começaram  a  pagar  a  dinheiro,    e 
os  senhorios  não  tardaram  a  achar  esta  forma  de  pagamento 
mais  commodo,  e  habilitou  os  nobres   a   viverem  com   mais 
commodidades  e  elegância;  ao  passo  que  o  povo  estava  mais 
independente  dos  barões   e  mais  sujeito  á  coroa.  De  facto,  a 
abolição  do  feudalismo  foi  um  bem  para  todas   as  classes  sem 
excepção   dos  próprios  senhores   feudaes,  mas   não  foi  simul- 
taneamente em  todos  os  paizes.  Na  Hungria  ainda  continuou 
a    subsistir  em  1785,  com  quanto   a  illustrada  Maria  There- 
za    o    tivesse   subordinado  a    leis  humanitárias   em  1764:    a 
abolição    total    só    se    effectuou    na    Hungria  ,     sob    o    rei- 
nado de  José  2.°,  ena  Bohemia  em  1781.    Ainda  existe  mais 
modificado  na  Polónia  e  na    Rússia,    com  quanto  a  immortal 
Catherina  2.a,  cuja  memoria  será  sempre  venerada,  pelas  suas 
leis  e  regulamentos,   esforços   continuados    pelo  melhoramen- 
to do  império  a  seu  cargo,  e  felicidade  de    seus  súbditos  fez 


234 

quanto  ponde  em  tão  curto  espaço  de  tempo,  para  a  liberda- 
de dos  povos.  O  commercio  internacional  e  a  civilisação  pro- 
duziram a  pouco  e  pouco  seus  efteitos  recíprocos,  mas  em 
quanto  os  qjovos  não  estiverem  civilisados  não  estão  nas  cir- 
cunstancis  de  gosar  a  liberdade;  e  até  mesmo  seria  perigoso 
dár-lha:  A  natureza  humana  é  sempre  propensa  ao  abuso,  e 
não  se  julgue  que  por  isso  que  temos  dito  do  systema  feudal 
que  a  humanidade  fosse  mais  depravada  antigamente  do  que 
hoje,  nem  que  os  senhores  fendaes  se  comprazessem  em  ty~ 
ranisar  os  povos.  A  mutabilidade  das  circunstancias  é  que 
produz  a  mudança  d'habitos,  d'idéas,  e  costumes  da  socie- 
dade. Muitos  dos  antigos  nobres  da  Europa  eram  homens 
de  grandes  viríudes,  como  o  são  hoje  em  dia.  Muitos  dos 
barões  da  Inglaterra,  de  quem  descende  a  nobreza  d'este 
paiz,  ennobreciam  a  sua  pátria  e  a  humanidade,  não  me- 
nos distinctos  por  sua  bravura  que  por  suas  virtudes. 
Da  sua  piedade  e  zelo  pelo  bem  publico  existem  innumera- 
-veis  monumentos.  As  desordens  d'aquelles  tempos  provinham 
da  instabilidade  social,  e  as  circunstancias  especiaes  que  en- 
tão predominavam.  O  systema -feudal  estava,  talvez,  tão  a- 
propriado  á  ordem  de  cousas  d'então,  como  outro  qualquer  tem- 
po em  rasão  da  necessidade  d'um  jugo  de  ferro,  para  conter  as 
naturaes  tendências  barbaras  d'um  povo  ignorante,  e  era 
consequência  necessária  da  escacez  de  numerário,  e  a  impos- 
sibilidade em  que  se  estava  de  pagar  as  rendas  senão  com 
o  produeto  das  terras.  Tão  depressa  começou  o  commercio  a 
florir,  e  a  crescer  a  prosperidade  publica,  esta  necessidade 
cessou  d'existir,  eo  regimen  a  que  dera  causa  depressa  desa- 
pareceu. 

Desde  o  reinado'  de  Carlos  Magno,  a  historia,  tanto  ecle- 
siástica como  politica  da  Europa  está  subordinada  ao  espirito 
próprio  do  seu  tempo;  e  até  á  reforma  nada  apresenta  de  no- 
tável, a  não  ser  o  progresso  gradual  da  egreja;  que,  á  seme- 
lhança do  systema  feudal,  pôde  ser  olhada  como  consequên- 
cia necessária  das  circunstancias  da  epocha,  e  do  estado  da 
Hvilisação  dos  povos.    Deve   notar-se  que  das  dhferentes  na- 


235 

do  norte  que  vieram  estabelecer-se  sobre  as  ruínas  d© 
império  romano,  algumas  eram  pagas  e  aquellas  que  haviam 
previamente  abraçado  a  religião  enrista,  tinham  apenas  obs- 
curas noções  das  suas  doutrinas.  Alem  de  que  eram  baldos 
de  1  itteratura,  e  sem  as  qualidades  precisas  para  tempos  de 
paz  e  administração  regular  :  o  clero  era  a  única  clas- 
se apta  para  presidir  aos  tribunaes,  ou  para  tomar  assento 
nos  conselhos  d'estado,  de  modo  que  póde-se  bem  affirmar 
que  a  Europa  houve  a  sua  religião,  conhecimentos  e  leis  do 
clero   romano. 

Estas  circunstancias  deram  a  esta  classe  uma  extraordiná- 
ria influencia,  e  que  elia  soube  aproveitar.  A  elevação  de 
Carlos  Magno  á  dignidade  imperial  deu  um  acerescimo  de 
poder  á  Igreja.  Como  aquelle  príncipe  recebeu  o  diadema 
por  influencia  do  bispo  de  Roma,  entendeu  que  lhe  cumpria 
engrandecer  a  influencia  e  poder  da  Santa  Sé*.  Nos  tempos 
de  discórdia  e  anarchia  que  seguiram  o  desmembramento  do 
império  de  Carlos  Magno,  prelados  e  fidalgos,  não  perderam 
occasião  alguma  de  se.  engrandecerem. 

As  contendas  pelo  poder  entre  os  e eclesiásticos,  semelhan- 
tes a  todas  d'igual  natureza  entre  o  resto  da  humanidade, 
deram  logar  a  muitos  interesses  oppostos,  que  produziram 
scismas  perigosos  na  igreja.  A  contenda  a  respeito  d'ima- 
gens  deixara  uma  animosidade  entre  as  igrejas  do  oriente  e 
do  occidente,  que  nunca  devera  subsistir  entre  christãos. 
Photio,  arcebispo  de  Constantinopla,  homem  de  extraordiná- 
ria habilidade  e  applicação,  distincto  por  seus  volumosos  es- 
criptos,  cheios  d'erudição,  era  inimigo  declarado  da  Sé  Roma- 
na e  resolveu  romper  de  todo  com  a  Igreja  latina.  Occupou  a 
cadeira  archipiscopal  de  Constantinopla  por  espaço  de  29  ân- 
uos desde  857  até  886;  e  em  todo  esse  tempo  levaram,  elle 
e  o  papa  a  fulminar  um  contra  o  outro  excommunhões  e  a- 
nathemas.  Depois  da  morte  de  Phocio  estabeleceu-se  uma  es- 
pécie de  armistício  entre  as  igrejas  grega  e  latina;  mas  em 
1054  os  delegados  do  papa  excommungaram  o  patriarcha,  e 
toda    a    igreja    de  Constantinopla,    Aquelles  mútuos  anathe- 

31 


236 

mas  eram  certamente  em  deshàrmonia  com  o  espirito  genuí- 
no do  christianismo,  e  com  o  amor  pregado  por  Jesus 
Chrisío,  que  veiu  ao  inundo  abençoar  e  não  amaldiçoar 
a  humanidade.  No  ultimo  quartel  do  século  treze,  o  im- 
perador, Miguel  Paleologo,  a  fim  d'evitar  a  cruzada  que  os 
latinos  meditavam  contra  Constantinopla,  entrou  era  negocia- 
ções com  o  papa,  e  ultimou  uma  concordata  entre  a  igreja 
grega  e  a  latina;  mas  por  sua  morte,  em  1282,  esta  união 
dissolveu-se. 

O  imperador,  Manoel  Paleologo,  vendo  o  império  acerca- 
do por  todos  os  lados  peles  Turcos,  visitou  Londres  e  Paris 
em  1400,  no  reinado  de  Henrique  4,°  de  Inglaterra  e  de 
Carlos  6.°  da  França,  a  demandar  apoio,  mas  as  circunstan- 
cias d'aquelles  paizes  não  lhes  permittiam  enviar  forças  para 
a  manutenção  do  império  do  Oriente.  Este  príncipe  diligen- 
ciou igualmente  estreitar  relações  com  a  Santa  Sé,  mas  sem 
resultado  permanente.  Porem,  João  Paleologo,  seu  filho  e 
suecessor,  concluiu  um  tratado  de  paz  em  Florença,  com  o 
papa  Eugénio  4.°,  mas  as  corporações  em  peso  dos  monges 
e  clérigos  de  Constantinopla  o  reprovaram  formalmente. 
Por  espaço  de  quasi  seis  séculos  desde  o  tempo  do  patriar- 
cha  Phoeio,  até  á  extineção  do  império  grego  uma  inimisade 
inveterada  existiu  da  parte  do  clero  c  povo  de  Constantino- 
pla contra  a  igreja  latina.  Quando  tinha  logar  uma  recon- 
ciliação temporária,  era  sempre  fictícia  e  promovida  pela  cor- 
te imperial  com  as  vistas  de  obter  auxilio  das  nações  occi- 
dentaes,  quando  ameaçado  de  perigo.  João  Paleologo  havia, 
anterior  â  sua  morte,  renunciado  á  união  que  fizera  com  a 
-Sé  de  Roma,  vendo  a  indisposição  do  povo.  Comtudo,  seu 
filho  e  suecessor,  Constantino,  renovou-a  quando  temeu  um 
cerco  projectado  pelos  turcos.  Um  cardeal  delegado,  de  Ro- 
ma, foi  admittido  em  Constantinopla,  mas  quando  elle  cele- 
brou missa  na  cathedral  de  Santa  Soplha,  o  clero  reputou  o 
templo  profanado,  e  deixou  de  o  frequentar;  e  Pranza  confes- 
sa que  o  próprio  imperador,  com  os  poucos  que  assignaram 
o  íi atado  com  a  Santa  Sé.   não  estavam  cie  bôa  fé,    e  que  os 


237 

monges,  e  toda  a  cidade  de  Constantinopla,  deram  as  maio- 
res demonstrações  de  fanatismo  e  indisposição  contra  a  igreja 
latina. 

O  scisma  e  irreconciliável  indisposição  entre  as  duas 
igrejas  attribuem  diversos  escriptores  a  differentes  causas; 
querem  alguns  que  fosse  a  causa  necessária  da  divisão  do 
império  e  diversidade  de  lingua.  Não  se  pode,  porem,  presu- 
mir que  a  differença  de  lingua  contribuísse  só  por  si  para 
uma  differença  de  religião. 

Os  differentes  idiomas  das  nações  europeas,  que  seguiam 
a  igreja  latina  não  influíam  sobre  os  seus  princípios  religio- 
sos. Permaneceram  longo  tempo  unidas  á  Sé  de  Roma  e  não 
foi  esta  circunstancia  que  deu  logar  á  reforma:  á  divisão  do 
império  mais  facilmente.  A  divisão  da  Europa  em  tantos 
reinados  e  estados  não  produziu,  porem,  esses  eífeitos;  to- 
dos unanimemente  submetteram-se  aos  dictames  da  igreja 
mãi,  sujeição  coeva  á  authoridade  do  pontífice  romano  e  por 
consequência   natural  e    voluntária. 

A  igreja  grega,  pelo  contrario,  considerou  a  supremacia 
dos  bispos  de  Roma  uma  usurpação,  á  qual  nunca  de  bôa 
mente  se  poude  submetter.  Desde  a  fundação  do  christia- 
nismo  a  sede  do  império  passou  de  Roma,  e  Constantinopla 
ficou  sendo  capital.  Não  era,  por  tanto,  nada  provável  que 
os  patriarchas  da  metropoli  se  quizessem  curvar  á  authorida- 
de do  bispo  de  Roma,  cidade  que  estivera  longo  tempo  em 
poder  d'aquelies  que  o  povo  de  Constantinopla  denominava 
bárbaros,  e  sob  este  ponto  de  vista,  teve  para  si,  que  se  a  igre- 
ja precisava  d'um  chefe  visível,  o  patriacha  de  Constantino- 
pla tinha  mais  direito  a  esse  titulo  do  que  não  o  bispo  de  Ro- 
ma; e  por  conseguinte  não  admira  que  os  arcebispos  e  o  clero 
de  Constantinopla  preferissem  renunciar  toda  a  communica- 
ção  com  a  igreja  latina,  a  submetterem-se  á  suprema  authori- 
dade da  Sé  romana.  Esta  é  que  parece  ser  a  causa  real  do  scis- 
ma entre  as  duas  igrejas,  servindo  a  divergência  de  certas 
doutrinas  secundarias,  instituições  de  disciplina  e  questões 
theologicas  muito  apenas  de  pretexto  para  assoprar   a  cham- 


238 

na  dia  discórdia  e  alargar  a  brecha. 

No  seio  da  igreja  latina  as  discórdias  ecelesiasticas  tinham 
qua si  produzido  os  mesmos  effeitos.  Durante  o  longo  perio- 
[e  quarenta  aimos  desde  1378  até  1418,  contava-se  dons 
pontífices,  um  em  Roma  e  outro  em  Avignón:  A  França,  Sa- 
bóia-, Secilia,  Aragão,  Oastellá,  Navarra  e  a  Escócia  adheri- 
rara  á  Se  de  Avignon;  a  Itália,  Alemanha,  Portugal  e  os  pai- 
zes  baixos,  e  os  reinos  do  norte,  encostaram-sè  á  Sé  de  Ro- 
ma. Este  scisma  perigoso  acabou  com  a  deposição  dos  dons 
ante  papas,  e  com  a  eleição  de  Martinho  5.°  ao  pontiíi 
reunido  no  concilio  de  Constança  em  1418. 

O  extraordinário  engrandecimento  da  igreja  foi  a  consequên- 
cia necessária  das  circunstancias  especiaès  da  idade  media. 
IsTestes  tempos  esclarecidos  nada  peior  nem  mais  repulsivo 
do  que  esta  usurpação  espiritual  á  primeira  vista  ;  mas  consi- 
derando as  cousas  desapaixonadamente,  e  o  estado  da  huma- 
nidade nas  epoehas  de  que  tratamos  veremos  que  não  só  es- 
tava em  harmonia  comas  circunstancias  cl? então,  como  mesmo 
mais  adequado  ao  estado  da  Europa.  Para  o  bem  geral  da  se- 
riedade ê  necessário  que  o  poder  esteja  depositado  nas  mãos 
d'um  de  seus  membros ;  e  se  considerarmos  quam  poucos. 
n'aquellas  idades  obscuras,  possuíam  os  conhecimentos  pre- 
cisos para  bem  dirigir  os  negócios  do  estado,  devemos  confes- 
sar que  o  clero  era  a  única  classe  nas  circunstancias  para  tão 
importante  encargo.  Daqui  a  sua  extraordinária  influencia  e 
não  é  cia  natureza  humana  renunciar  uma  authoridade  que 
lhe  veio  naturalmente  ter  ás  mãos.  Attehdendo  ao  estado  bár- 
baro e  inculto  dos  povos  d  aquelle  tempo,  concorreu  sem  du- 
vida para  a  tranquilidade  publica  o  facto  de  estar  o  poder 
investido  nas  mãos  d  nornens  que  pela  sua  especial  posição 
eram  os  únicos  a  impor  respeito  ao  povo;  foi  talvez  necessário 
á  própria  existência  do  christianismo  durante  tantos  séculos 
de  ignorância  e  barbaridade.  Os  actos  da  Divina  Providencia 
são  i-mprescruptiveis,  c  muito  alem  da  nossa  compreliensão  ; 
e  (juaesquer  incidentes  que.  aos  menos  illustrados  pareçam 
ó'ii!radietoi'ios  na  direcção  moral  ej         íca  do  globo,   não   se 


239 

pode  negar  que  no  iodo  reina  uma  harmonia  perfeita. 

Depois  que  cessou  o  zelo  pelas  cruzadas,  a  Europa  Come- 
çou atenuar  uma  face  mais  tranquilla.  A  litteratura  fez  pro- 
bos lentos  mas  regulares  e  nas  seiencias  nota-sc  melhora- 
mentos. Alguns  homens  d'extrardinario  génio  e  erudição  ap- 
pareceram  em  diííerentes  periodos  e  brilharam  deslumbrantc- 

ntè  nomeio  das  trevas  universais.  Entre  estes  o  illustre 
frade  Rogério  Bacon  fez  honra  á  nação  ingleza,  e  á  univer- 
sidade de  Paris  aonde  completou  os  seus  estudos.  Pedro  Lam- 
bert, Abelard,  e  outros  de  grande  merecimento,  foram  sueces- 
sivamente  ornamentos  d'aque!la  universidade  que  n'aquelles 
tempos  fora,  segundo  parece, o  primeiro  seminário  e  centro  da  lit- 
teratura europea.  Tarde,  porem,  produziram  os  esforços  d'a- 
quelles  sábios  qualquer  mudança  sensível  no  aspecto  litterario 
da  Europa.  As  densas  trevas  não  se  dissiparam  facilmente. 

Em  todo  este  tenebroso  perioclo,  e,  depois  da  extineção  do 
cáliphado,  Constantinopla  com  quanto  em  continuada  decli- 
nação era  o  ponto  onde  se  concentrava  a  sabedoria  e  sciencia 
do  mundo.  O  decimo  século  que  foi  um  dos  mais  obscuros 
períodos  da  ignorância  gothica  nos  paizes  do  occidente,  cons- 
íituio  a  mais  florescente  era  da  litteratura  bysantina,  sob  os 
reinados  de  Leão  o  phiíosopho  e  de  seu  íilho  Constantino  Por- 
phyrogenito.  O  primeiro  compilou  uni  tratado  bem  elabora- 
do de  táctica,  e  o  ultimo  uma  longa  e  minuciosa  descripção 
do  império  em  relação  ao  seu  estado  geographico  e  politico, 
o  cerèmonial  da  corte  e  outros  muitos  particulares.  Neste  ad- 
ministratio  imperii  de  Constantino  Porphyrogenito,  encon- 
tramos a  primeira  noção  a  respeito  dos  russos.  O  império  rus- 
so alargava-se  desde  o  mar  negro  ao  Báltico;  Kiow  no  Uktrai- 
ne,  c  Novagorod  no  norte,  eram  as  capitães  do  império  e  os; 
dous  centros  de  seu  commercio,  Era  então  poderoso  e  flores- 
cente, mas  depois  cahio  cm  poder  dos  tártaros,  ficando  então* 
eclipsado.  Devemos  aqui  notar  que  os  russos  abraçaram  o 
ehristianismo  pelo  anuo  088,  reinando"©  Gran-duque  Wlada- 
mir:  e  como  lhes  viesse  a  religião  cie  Constantinopla  e  não  de> 
Roma  como  acontecera  ás  nações  occidentaes  da  Europa,  num- 


240 

ca  se submetteram  áauthoridade  do  Papa  nem  fizeram  causa 
commum  com  a  igreja  latina.  No  reinado  do  Gran-duque  Wla- 
damir,  um  bando  de  aventureiros  russos  alistou-se  no  serviço 
do  imperador  grego  e  foi  empregado  sob  a  denominação  de 
Varangianos,  e  não  é  menos  notável  que  outro  bando  d'aven- 
tureiros  inglezes,  fugidos  ao  tempo  da  conquista  entrasse  no 
serviço  do  império  bysantino.  O  tempo  que  estes  corpos  mi- 
litares se  conservaram  no  império  grego  é  desconhecido,  mas 
é  sabido  que  ambos  fizeram  um  papel  conspicuo  na  famosa 
batalha  de  Durazzo,  quando  o  imperador  Aleixo  Commeno 
foi  batido  pelo  normando  Roberto  Guiscard,  duque  d'Apulea 
em  1081. 

Os  repetidos  esforços  d'individuos  de  consummada  erudi- 
ção e  talento,  que  de  tempos  a  tempos,  derramam  um  raio 
de  luz  sobre  a  crassa  ignorância  da  Europa,  começou  finalmen- 
te a  dissipar  as  nuvens  que  por  tanto  tempo  obscureceram  o 
hemisjDherio  da  litteratura.  Aquelles  homens  illustres  que  ti- 
nham por  seus  aturados  estudos  conseguido  dissipar  a  igno- 
rância d'aquelles  tempos,  tinham  quasi  sem  excepção  alguma 
saido  d'entre  o  clero,  particularmente  dos  monges,  que  nos 
seus  retiros  monásticos  disfructavam  um  descançoque  aanar- 
chia  que  reinava  nas  idades  medias  tinha  geralmente  negado 
ao  clero  secular.  A'  proporção  que  os  governos  adquirião  for- 
ça e  que  a  civilisação  começava  a  ganhar  terreno  começavam 
a  prosperar  os  esforços  dos  que  promoviam  a  litteratura. 

Varias  circunstancias  favoráveis  concorreram  para  mudar 
os  hábitos  e  o  gosto  da  Eurapa.  Canstantinopla,  durante  o 
periodo  do  barbarismo  europeo,  tinha  sido  não  só  a  sede  das 
scicncias  como  também  de  riqueza,  commercio  e  esplendor. 

Os  cruzados  que  visitavam  aquella  metropoli  admiravam- 
se  das  suas  riquezas,  magnificência,  commercio  e  população 
que  não  podiam  deixar  de  os  impressionar  profundamente 
comparada  com  a  mesquinha  apparencia  de  Londres,  Paris, 
o  outras  capitães  europeas,  cujas  ruas,  âquelle  tempo,  eram 
estreitas,  tortuosas  e  irregulares;  e  cujas  casas  á  excepção  das 
d'alguns  maioraes,  eram  construidas  de  madeiras,    destituidas 


24  i 

de  chammniés,  sendo  esta  utilíssima  parte  da  architectura  in- 
troduzida em  Londres  em  1160. 

Durante  a  idade  media  os  castellos  dos  poderosos  barões 
construídos  de  pedra  não  passavam  cVenormes  massas  sem 
elegância  e  destinados  mais  para  defeza  do  que  para  commo- 
didadc  e  ornamentação.  Porem  a  epocha  das  cruzadas  ou 
aquella  que  lhe  succedeu  parece  haver  introduzido  na  Euro- 
pa um  novo  e  mais  refinado  gosto  cVarchitectura  como  se  pode 
ver  nas  antigas  cathedraes. 

O  estylo  cVarchitectura  introduzido  então,  demasiadamen- 
te carregado  e  sombrio  para  casas  d'habítação,  presta-se  ad- 
miravelmente para  os  templos,  já  pela  valentia  de  construcção, 
e  jâ  pelo  respeito  que  inspira  a  solemnidade  de  que  se  reves- 
te e  que  não  tem  as  ordens  gregas  sem  duvida  mais  gracio- 
sas; e  caracterisa  o  povo  da  idade  media  naturalmente  som- 
brio, bravo  e  romântico.  Constantinopla  tinha  sempre  susten- 
tado um  grau  de  esplendor,  superior  a  tudo  quanto  se  conhe- 
cia nos  mediocramente  civilisados  paizes  da  Europa.  O  palá- 
cio imperial  foi,  por  onze  séculos,  a  admiração  dos  viajantes. 
Estava  situado  entre  o  Hyppodrome  e  o  magnifico  templo  de 
Santa  Sophia;  e  os  seus  jardins  de  plataforma  em  plataforma 
chegavam  até  ás  praias  do  Proponto.  O  edifício  primitivo  cons- 
truido  por  Constantino  devia  rivalisar  com  a  residência  im- 
perial cia  antiga  Roma  que  assentava  sobre  o  Monte  Palatino; 
e  posteriormente  os  seus  suecessores  augmentaram  a  sua  ma- 
gnificência. No  século  treze,  Lintprand,  bispo  de  Cremona, 
embaixador  do  imperador  Otho  perante  Nicephoro  Phocas 
faz  menção  d'elle  n'estes  termos:  «O  palácio  imperial  de  Cons- 
tantinopla excede,  não  só  em  belleza  e  magnificência,  mas  em 
valentia  de  construcção  todos  os  palácios  e  castellos  que  te- 
nho visto » .  Depois  d'esse  periodo  os  imperadores  da  dynastia 
Commeniana  continuaram  a  embellezal-a  e  não  admira  por 
consequência  que  se  encontre  tantos  elogios  nos  escriptos  de 
quantos  escreveram  n7aquelles  tempos.  Depois  da  conquista 
latina,  a  pilhagem  da  cidade  e  dos  incêndios  que  tiveram  lo- 
gar,  recobrou  seu  antigo  esplendor;  e  a  grandeza  do  império, 


242 

Tbem  como  o  brilho  e  opulência  cia  capital  declinaram   rapida- 
mente. 

Durante  os  tempos  da  declinação  do  império  do  Oriente, 
em  quanto  a  ignorância,  e  barbarismo,  a  superstição  e  a  anar- 
cliia  feudal  prevalesciam  nos  paizes  occidentaes  da  Europa. 
Quasi  toda  a  Azia  andava  agitada,  sentindo-se  seus  efteitos 
nas  partes  mais  remotas  d'aquelle  extenso  continente.  A  his- 
toria d'aquellas  nações,  ou  tribus  que  habitaram  as  vastas 
regiões  do  norte  da  Azia,  è  pouco  conhecida;  e  não  obstante 
as  profundas  investigações  d'alguns  modernos  e  sábios  histo- 
riadores nada  authentico  se  tem  podido  descobrir,  a  não  ser 
alguns  factos  salientes  como  são  aquellas  emigrações  e  con- 
quistas extraordinárias  que  produziram  as  revoluções  nos  pai- 
zes meridionaes  cuja  historia  ê  mais  conhecida.  Aquellas  re- 
giões immensas  que  se  alargam  por  sobre  o  norte  da  Azia  e 
parte  do  norte  da  Europa,  desde  o  ponto  do  Oceano  Pacifico, 
chamado  pelos  modernos  descobridores  o  Archipelago  Septen- 
trional  até  o  mar  Báltico;  e  desde  os  mares  Caspio  e  Euxino 
e  fronteiras  da  Pérsia,  índia  e  China  até  os  extremes  limites 
habitados  do  norte,  eram  pelos  antigos  coinprehendidos  sob  a 
denominação  geral  de  Scythia  c  os  seus  povos  scythios.  Os 
russos,  que  desde  o  século  nono,  ou  talvez  desde  o  século 
quinto  nos  quaes  se  edificaram  as  cidades  de  Kiof,  na  Uka- 
riia,  e  Norogorod,  tendo  feito  um  progresso  gradual  em  civi- 
lisação,  augmentando  rapidamente  nos  tempos  posteriores  são 
d/origem  Scythia,  e  o  seu  império  exíende-sc  sobre  a  maior 
parte  da  antiga  Scythia,  cujas  differentes  nações  e  tribus  uni- 
ram sob  um  vasto  systema  politico.  Do  estado  antigo  d'aquel- 
les  grandes  paizes,  da  original  população,  e  das  imigrações, 
cruzamentos,  guerras,  e  revoluções  que  tiveram  logar  entre 
aquellas  tribus  nómadas,  comprehendidos  antigamente  sob  a 
geral  denominação  de  scythios,  e  ultimamente  de  tártaros, 
pouco  ou  nada  sabemos,  nada  nos  dizendo  a  historia  com  ca- 
racter de  verdade.  Em  certos  periodos  as  suas  emigrações  e 
conquistas  figuram  conspicuamente  nos  annaes  politicos  da 
humanidade,  e  originaram  revoluções,  cujos  effeitos  foram  ex- 


243 

tensos  c  duradouros.  Os  turcos,  que  fizeram  tão  dis-tincto  pa- 
pel nos  séculos  quinze,  deseseis  e  desesete,  e  cujo  império  è 
ainda  tão  extenso  e  populoso,  são  d 'origem  Tártara  ;  assim 
como  também  os  mouros  da  índia. 

A  mais  notável  o  ocorrência  na  historia  dos  antigos  scythios 
que  se  transmittio  ao  conhecimento  da  posteridade  é  a  gran- 
de invasão  daquelles  povos  nos  paizes  meridionaés,  que  se- 
gundo as  conjecturas  dos  melhores  escriptores  teve  logar  no 
reinado  de  Josias,  rei  de  Judá.  O  periodo  exacto  d'esta  emi- 
gração e  conquista  não  se  pode  saber  ao  certo,  nem  tão  pouco 
até  que  ponto  extenderam  as  suas  conquistas.  Asseverasse  ge- 
ralmente que  elles  dominariam  a  Azia  Menor  por  espaço  de 
vinte  annos,  opprimindo  extraordinariamente  os  Medas  e  Ba- 
bylonios.  Se,  porem,  é  certo  que  o  domínio  Scytha  acabou  um 
anno  ou  dous  antes  de  começar  o  reinado  de  Nabochodono- 
zor,  a  conjectura  de  Sir  Walter  Raleigh  não  é  nada  imprová- 
vel, e  consiste  em  que  depois  de  enfraquecido  seu  poder  e  que 
muitos  d' elles  tinham  regressado  ás  suas  terras  nativas  do 
norte,  muitos  de  seus  bandos  guerreiros  se  alistaram  ao  ser- 
viço d'aquelle  príncipe  e  contribuíram  consideravelmente  para 
aquella  serie  de  victorias  que  tanto  engrandeceram  o  império 
Babylonico.  Esta  opinião  acha~se  corroborada  também  pelas 
tradições  das  nações  do  norte,  seguindo  o  estandarte  deNabo- 
uhodonozor  e  que  se  não  pode  entender  com  os  babylonicos, 
assyrios  e  outros  súbditos  naturaes  d'aquelle  monarcha. 

Os  períodos  mais  notáveis  da  historia  dos  tártaros,  descen- 
dentes dos  antigos  Scythas,  são  aquelles  que  se  distinguem 
pelas  conquistas  de  Zinghis  Khan,  e  seus  suecessores,  no  sé- 
culo treze;  e  por  aquellas  de  Tamerlam  nos  fins  do  século  qua- 
torze  e  começo  do  século  quinze.  Zinglis  Khan  começou  a  sua 
carreira  conquistadora  em  1206  e  tendo  subjugado  uma  par- 
te da  China,  Pérsia  etc.  morreu  em  1227.  Seus  suecessores 
durante  o  periodo  que  váe  desse  tempo  a  1272  conquistaram 
toda  a  China,  Pérsia  e  Azia  Menor  ;  e  penetraram  até 
Neustão  na  Áustria  que  limitou  a  sua  invasão  pelo  lado  Occi- 
dental. Tamerlam,  que,   á  semelhança  de  Zinglis  Khan,    era 

o  a 

9& 


â44 

da  tribu  Mogul,  amais  celebre  e  entrepida" das  nações  Taipa- 
ras, começou  a  remai"  pelo  anuo  1370,  e  morreu  na  idade  de 
63  em  1405,  em  cujo  período  conquistou  a  Pérsia,  a  Turquia, 
a  maiorparteda  Rússia,  uma  considerável  perto  do  Hindostão, 
e  aSyria;  deu  saque  a  Aleppo, Bagdade  Damasco;  conquistou 
a  Azia  Menor  e  aprisionou  Bajazeío,  imperador  dos  turcos  na 
batalha  d.' Angora;  depois  do  que  voltou  para  Samarcand,  ca- 
pital do  seu  império,  e  tendo  projectado  uma  expedição  contra 
a  China,  morreu  no  caminho. 

D'este  modo  parece  que  os  invasores  do  norte  foram  tão 
turbulentos  na  Azia  como  na  Europa  e  deram  logar  a  revo- 
luções não  menos  importantes,  com  quanto  menos  conhecidas 
pelo  pouco  que  se  sabe  d^aquellas  nações,  mas  que  mudaram 
a  face  da  Azia,  e  que  se  fazem  lembradas  em  rasãó  de  have- 
rem revirado  o  antigo  império  Hindoo  da  índia,  tornando  a- 
quelle  paiz,  desde  esse  tempo,  um  theatro  de  anarchia. 

O  império  Mogol  dos  Tártaros  floresceu  extraordinariamente 
por  espaço  de  dous  séculos.  No  tempo  de  Tamerlão  era  Sa- 
marcand a  capital;  mas  ignora-se  aonde  era  a  sede  do  império 
no  reinado  de  Zinglis  Khan  e  de  seus  suecessores. 

A  opinião  de  Mr.  Palias,  que,  pelos  soberbos  mausoleos 
suppõe  ter  assentado  a  capital  do  império  tártaro  entre  os  rios 
Yaik  e  Irtish,  ao  sul  de  Tobolsld  nos  parece  a  mais  bem  fun- 
dada e  o  sábio  Muller  da  academia  de  Moskow concorda  tam- 
bém com  aquelle  escriptor.  Lançando  os  olhos  sobre  o  Conti- 
nente Aziaíico  e  contemplando  as  antigas,  opulentas  e  gran- 
des nações  da  sua  parte  oriental,  surprelíende-nos  termos  tão 
limitados  conhecimentos.  Porem,  assim  é:  uma  linha  de  per- 
petua e  completa  separação  parece  ter  sido  traçada  entre  a 
parte  oriental  e  occidental  da  Azia.  Os  nossos  historiadores  - 
menção  alguma  fazem  dos  negócios  dos  Índios  e  dos  chins  cu- 
ja religião,  costumes,  e  constituições  differem  tanto  dos  povos 
occidentaes,  antigos  e  modernos,  como  se  uma  barreira  insu- 
perável tivesse  cortado  entre  elles  toda  a  cormnunicação  ;  e 
ti  té  á  em  pelo  Cabo  da  Boa  Esperança  a 

mesma  gfcographià  das  partes  òrientaes   cia    A^ia  era  tão  obs- 


245 

cura  como  a  sua  historia  ;  circunstancia  que  teremos  occasião 
de  notar  com  mais  particularidade  no  decurso  das  nossas  con- 
siderações sobre  as  variabilidades  da  humanidade. 

Se  arredarmos  a  vista  das  revoluções  que  trouxeram  a  Azia 
em  continuadas  e  violentas  comrnoções,  resultado  das  conquis- 
tas dos  tártaros,  e  dirigirmos  a  attenção  para  o  império  gre- 
go ou  constantinopolitano,  temos  a  lamentar  um  estado  de- 
decadencia,  effeito  da  falta  total  d'energia.  Constantinopla,  que 
por  tantos  séculos  resistira  a  todos  os  ataques,  e  que  desafia- 
ra os  esforços  hostis  dos  godos,  dos  hunos,  dos  avars  e  dos 
sarracenos,  tinha-se  exposto  por  suas  dessidencias  internas,  e 
pelos  crimes  de  seus  chefes,  â  pilhagem  dos  crusados,  e  o  im- 
pério cahira  nas  mãos  d'um  bando  d'aventureiros  francezes  e 
italianos. 

Apoz  aquelle  severo  golpe,  com  quanto  o  império  se  resta- 
belecesse e  a  capital  fosse  reconquistada  pelos  gregos,  o  pri- 
meiro estava  muito  enfraquecido  para  poder  de  novo  ostentar 
a  sua  antiga  grandeza  e  opulência. 

E  de  facto  o  império  bysantmo  desde  a  extincçao  da  dy- 
nastia  commeniana  pelo  bárbaro  mas.  talvez,  bem  merecido 
assassinato  do  imperador  Audronieo,  ultimo  d'aquella  raça, 
apresentara  o  quadro  d'um  poder  decaindo  e  exhausto  de 
recursos,  d'um  governo  sem  vigor,  e  d'um  povo  sem  virtudes, 
signaes  inequívocos  d' um  estado  na  declinação.  Pouco  depois 
de  Bajazeto  subir  ao  throuo  ottomano,  pelo  começo  do  século 
quinze,  o  império  grego  estava  tão  cerceado  a  ponto  de  se 
achar  reduzido  a  um  pequeno  território  entre  o  Proponto  e  o 
mar  negro,  não  contando  mais  que  mil  e  quinhentas  milhas 
quadradas  e  pouco  maior  que  qualquer  província  d  outros  pai- 
zes;  e  mesmo  assim  este  pequeno  ponto,  restos  melancholicos 
do  mais  poderoso  império  do  mundo,  era  theatro  de  crimes  e 
facções  politicas  que  duraram  por  espaço  de  50  annos  até 
1453  quando  Constantinopla,  apoz  um  cerco  de  53  dias,  foi 
tomada  pelos  turcos  sob  o  cominando  de  Mahomet  2.°.  As 
forças  militares  que  atacaram  a  celebre  metropoli  são  aprecia- 
das diferentemente   pelos  historiadores,    como   quasi  sempre 


246 

acontece  n'estas  occasiões.  Pliilelplio  dá  ao  exercito  turco 
60:000  homens  d'infanteria  e  de  cavallaria  20:000.  Esta  cifra 
acha-sc  augmentada  por  Ducas  Chalcondyles  e  Leonardo  de 
Chias,  que  lhe  dão  300:000;  mas  Phranza,  que  foi  testemu- 
nha occuiar  cliz-nos  que  os  turcos  montavam  a  258:000  ho- 
mens. Fossem  quaes  fossem  as  forças  inimigas  é  certo  que  a 
gente  em  armas  para  a  defeza  da  cidade  era  em  numero  insi- 
gnificante, e  prova  a  degeneração  cVaquella  raça  que  ainda 
arrogava  a  si  o  titulo  de  romanos,  e  ennobrecia  a  estreita  lín- 
gua de  terra  que  occupava  com  o  pomposo  nome  dluiperio. 
Phranza  escreve  que  se  não  pode  alistar  para  cima  de  4,-970 
voluntários  e  incluindo  os  alliados  italianos  as  forças  defenso- 
ras não  excediam  a  oito  mil  homens. 

O  imperador  Constantino  Paleologo  sustentou  uma  defeza 
heróica;  e  quando  a  cidade  fora  levada  cPassalto,  depois  de 
haver  nobre  mas  imprudentemente  recusado,  uma  capitulação 
em  termos  muito  vantajosos,  cahio  heroicamente  na  brecha 
por  onde  o  inimigo  penetrou  na  praça.  Phranza  descreve  pa- 
theticamente  a  horrível  scena  que  se  seguia.  Á  população  e  a 
propriedade  foi  posta  por  Mahomet  á  disposição  do  exercito  ; 
e  o  povo  aterrado  tendo-se  refugiado  na  cathedral  de  Santa 
Sophia,  e  outros  asyios,  foi  arrastado  para  as  ruas  e  sem  dis- 
ti noção  de  sexo  ou  catliegoria,  acorrentado  e  vendido  como 
escravos,  facto  que  horrorisa  a  humanidade  e  que  estabelece 
um  contraste  entre  as  inauditas  barbaridades  nas  guerras  da 
antiguidade  e  os  males  muito  minorados  das  nações  civilisadas 
dos  nossos  tempos.  Tal  foi  a  horrível  catastrophe  de  Constan- 
tinopla, outr'ora  a  capital,  e  por  muito  tempo  a  única  lem- 
brança existente  do  império  romano.  D'este  modo,  assim  co- 
mo fora  sede  d?aquelle  império  passou  a  sel-o  do  império  otto.-- 
mauo  em  1453  até  hoje. 

O  império  grego  de  Constantinopla  andava  tão  tremido  e 
eram  tão  evidentes  os  signaes  da  sua  extineção,  que  ninguém 
podia  duvidar  da  sua  sorte  imminente. -Muitos  homens  de  let- 
tras  e  outros,  entenderam  ser  uma  necessidade  procurar  asy- 
lo  mais  seguro  em  outros  paizes,  a  fim  de  não  se  verem    en- 


247 

volvidos  nas  ruínas  do  seu  que  não  só  parecia  inevitável,  mas 
muito  próximo;  porque  a  existência  do  império  grego,  pelo 
conjuncto  de  diferentes  causas  prolongou-se  mais  do  que  ra- 
soavelmente  se  podia  suppor;  e  o  seu  aniquilamento  teria  tido 
loirar  oOannos  mais  cedo,  anão  serem  as  victorias  de  Tamer- 
Iam  que  frustraram  os  planos  de  Bajazeto. 

Entre  os  litteratos  de  Constantinopla  que  se  dissiminaram 
por  entre  os  latinos,  conta-se  Leo  Pilato  que  foi  o  primeiro 
professor  grego  em  Florença,  e  o  primeiro  que  introduzio  o 
gosto  pela  lingua  grega  no  occidente  pelo  armo  de  1360, 
Manoel  Chrysolcrio  estabeleceu  este  estudo  solidamente  na 
Itália,  e  depressa  ficou  sendo  um  ramo  d'educação  entre  os 
italianos.  Alguns  illustres  protectores  da  litteratura  começa- 
ram a  apparecer  entre  os  príncipes  e  primeiros  homens  da  Eu- 
r®pa,  especialmente  na  Itália.  Cosmo  e  Lorenzo  de  Medíeis 
foram  no  século  quinze,  os  pretectores  das  sciencias  e  artes; 
e  não  menos  vigorosos  e  eíficazes  foram  os  esforços  emprega- 
dos pelo  pontífice  Nicoláo  5.°  para  a  restauração  das  lettras  em 
Roma,  rivalisando  com  os  Medíeis  em  Morença. 

Estamos  agora,  depois  d'uma  viagem  fatigante,  em  que 
temos  atravessado  caminhos  ásperos  por  entre  as  trevas  da 
ignorância  e  do  vandalismo,  entrando  em  plena  civilisaçãar 
litteratura  e  commercio,  o  que  excede  infinitamente  as  mais  bri- 
lhantes epochas  da  antiguidade. 


O  período  em  que  entramos  agora  é  infinitamente  mais 
agradável  e  interessante  comparativamente  com  aquelle  que 
acabamos  d'atravessar:  trasborda  de  grandes  acontecimentos 
que  são  outras  tantas  epochas  memoráveis  nos  negócios  hu- 
manos. Defmira-se  a  posição  das  diíferentes  nações  da  Euro- 
pa na  balança  politica;  e  não  se  vêem  poderosos  impérios  era- 
grandecendo-se  exhorbitantemente,  e  absorvendo   os  estados 


248 

visinhos  corno  em   antigas  eras.    Os  mais    notáveis    aconteci- 
mentos d 'estes  últimos  tempos  contrastam  com  aquelles  da  an- 
tiguidade mas  não  são  menos  recreativos.  O  renascimento  das 
artes,  sciencias  e  lettras  e  seu  rápido  progresso,    a  invenção  e 
aperfeiçoamento  d 'artefactos,  a  exploração  do  globo,  a  desco- 
berta de  paizes  até  então  desconhecidos,  a  extensão  do   com- 
mercio,  e  o  progresso  da  civilisação  com  todos  os  seus  melhora- 
mentos e  commodidades,  caracterisam  eminentemente  o  periodo 
que  finda  pelo  meado  do  século  quinze,  era  em    que  a  renas- 
cença das  lettras  e  bellas  artes  se  desenvolveu  tornando-se  no- 
tável por  um  facto  memorável  na  historia.  Foi  este  a  invenção 
cia  arte  typographica,  único  meio  que  podia  descobrir-se  para 
arrancar  a  grande  massa  da  humanidade  d'aquelle    profundo 
abysmo  d'ignoráncia  em  que  mesmo  nas  eras  mais  illustradas 
estiver;!,  immersa.  Esta  descoberta  fez  grande  falta  nas  idades 
florescentes  da  litteratura  grega  e  romana,  quando,    como  já 
se  tem  dito,  ninguém  que  não  fosse    d 'alta  jerarchia   e  riqueza 
podia  aspirar  a  conhecimentos  litterarios.  Tal   tinha  de    ser  a 
sorte  de  todas  as  nações,  a  não  ser  a  invenção    da    imprensa, 
que  reduzi  o  os  livros    a  uma  centésima    parte    do  seu  antigo 
valor,  facilitando  e  dilfundindo  a  sabedoria   por  entre  o  povo. 
Sabemos  de  bôa  fonte  que  pelo  anno  de  1215,    a  condessa 
cVAnjou  deu  duzentos   carneiros,   cinco   quartéis    de   trigo,  e 
igual  quantidade  de  cevada,  por  um  volume    de  sermões,   tal 
era  a  carestia  de  livros  n'aqueííes  tempos;  e  com  quanto  seja 
muito  possível  que  tivessem  abuzado  da  condessa,  é  Mr.  Gib- 
bon  que  no-lo  diz  que  o  valor  de  copias  manuscriptas   da   Bí- 
blia, para  o  uso  dos  monges  e  do  clero,  orçava  por  quatro  cen- 
tas  a  quinhentas  coroas,  em  Paris,  que  segundo  o  valor  relati- 
\  o  do  dinheiro  n'aquelie  tempo  comparado  com  o  de  nossos  dias 
pôde  calçul.ar-se  sem  exageração  equivalerem  outras    tantas  li- 
bras sterlinas.  Estes  manuscriptos  eram  em  pergaminho,  e  sem 
duvida  executados  com  primor;  mas,  admittindo    mesmo  que 
tivesse  havido  exageração   e  avaliando    pelo    mínimo,   livros 
•jfaquelle  tempo  deverião  custar  cem  vezes  mais  do  custo  ac- 
tual. A  difíiculdade  d'aequisição  de  conhecimentos,  em  rasão 


£49 

da  escacez  e  careza  de  livros  cansara  necessariamente  uma 
falta  de  mestres,  e  estas  difficiildádes  accnmnladas  apresenta- 
vam tropeços  invencíveis  á  diffusão  da  litteratura  :  de  modo 
que  por  maior  que  fosse  o  gosto  pelas  lettras,  as  vantagens 
limitavam-se  aos  grandes  e  opulentos,  e  aos  monges  que  ti- 
nham á  sua  disposição  as  livrarias  de  seus  conventos.  Os  aii- 
thores  da  arte  typographiea  contribuíram  mais  para  o  melho- 
ramento da  sociedade  e  para  a  civilisação  em  geral,  que  todas 
as  phyJosophias  especulativas  da  antiguidade  e  todas  as  intrigas 
dos  theologos  dos  tempos  modernos,  e,  se  forem  aquilatados 
conforme  seu  valor  intrínseco,  e  apreciado  o  seu  mérito  em 
relaÇâo  ao  proveito  que  trouxeram  á  humanidade,  devem  seus 
nomes  preferir  aos  de  Cezar  e  Alexandre,  e  d'outros  conquis- 
tadores celebres  na  historia  como  dizimadores  da  humanidade. 
Se  alguma  vez  os  bemfeitores  da  raça  humana  mereceram 
que  se  lhes  erigissem  estatuas  em  seu  louvor,  são  certamente 
estes  homens.  Abaixo  do  Christianismo  facto  algum  ha  tão 
importante. 

A'  descoberta  d'esta  excellente  quão  útil  arte  seguio  outro 
acontecimento  não  menos  interessante  e  importante,  com 
quanto  de  natureza  diversa.  Foi  o  descobrimento  da  Ameri- 
ca que  operou  uma  mudança  completa  no  systema  politico  e 
commercial  da  Europa.  A  descoberta  das  propriedades  da 
agulha  de  marear,  no  principio  do  século  quatorze,  por  um 
natural  ou  habitante  de  Amalri,  cidade  mercantil  do  rei- 
no de  Nápoles,  tornara  comparativamente  segura,  commocla 
e  abreviada  a  navegação  do  alto  mar,  evitando  um  sem  nume- 
ro de  contrariedades,  perigos  e  demoras  inevitáveis  nas  via- 
gens longas.  D'ahi  por  diante  continuados  melhoramentos  se 
fizeram  na  arte  marítima,  principalmente  por  parte  dos  vene- 
zianos, genovezes  e  outros  povos  italianos.  Os  portuguezes 
depressa  hombrearam  com  as  potencias  marítimas  da  Itália  e 
a  situação  da  Hespanha  não  permittia  que  esta  nação  ficasse 
muito  tempo  na  retaguarda.  Os  portuguezes,  comtudo,  con- 
ceberam primeiro  que  todos  o  plano  das  descobertas  distantes. 
Os  monarchas  de  Portugal,  vendo  o  seu  reino  pesar  pouco  na 


250 

balança  da  Europa,  e  frustradas  todas  as  esperanças  d'engra.11- 
deci mento  no  Continente,  pela  natureza  de  seus  domínios  que 
se  limitavam  a  uma  tira  estreita  de  terra  na  costa  do  Atlânti- 
co, comceberam  o  nobre  desígnio  de  doarem  seu  reino  e  povo 
com  riquezas  e  importância,  promovendo  o  espirito  da  desco- 
berta e  do  commercio.  Já  no  anno  de  1412  D.  Joào  1.°,  rei 
de  Portugal  apromptou  uma  armada  para  este  fim» 

Muitas  outras  emprezas  de  difíerente  natureza  foram  succes- 
sivamente  tentadas,  e  dirigindo-se  sempre  para  o  sul, os  portu- 
guezes  fizeram  descobertas  progressivas  na  costa  d'África,  e 
finalmente  alcançaram  a  sua  extremidade;  mas  os  ventos  tem- 
pestuosos e  péssimo  tempo  impediram-nos  de  dobrar  aquellc 
promontório  que,  por  esse  motivo,  denominaram  o  Cabo  das 
Tormentas,  e  que  depois  tomou  o  nome  mais  auspicioso  de  Ca- 
bo da  Boa  Esperança.  Este  promontório  mais  avançado  do 
Continente  africano  foi  descoberto  por  Bartliolomeu  Dias,  no 
reinado  de  D.  João  2.°,  que  ao  passo  que  as  suas  frotas  ex- 
ploravam acosta  occidental  d'Africa,emprehenderam  a  desco- 
berta e  commercio  das  partes  orientaes  d  aquelle  continente, 
enviando  uma  embaixada  ao  imperador  d'Abyssinia,  pelo  an- 
no de  148G.  Quando  os  reis  de  Portugal,  inspirados  pela  am- 
bição do  poder  e  engrandecimento,  sentimento  infinitamente 
mais  rasoavel  e  mais  digno  do  coração  d'um  monarclia  do  que 
o  desejo  extravagante  e  criminoso  de  gloria  que  caracte- 
risa  a  maior  parte  dos  sanguinolentos  heroes  d'aquellas  eras, 
andavam  no  affan  das  explorações  longínquas  de  partes  des- 
conhecidas do  globo,  abrindo  assim  novos  canaes  de  riqueza 
publica,  Cliristovam  Colombo,  natural  de  Génova  concebeu  o 
projecto  mais  arrojado  até  então  empreliendido  pelo  homem. 
O  commercio  da  Índia  fora,  em  todas  as  idades,  considerado 
objecto  de  primeira  ordem  c  importância,  e  sempre  chamara, 
mui  particularmente  a  attenção  do  mundo  mercantil.  Os  tjrios 
e  os  egypcios,  como  também  os  judeus  no  tempo  de  Salomão, 
não  eram  estranhos  a  este  trafico.  Ornar  vermelho e  o  golpho 
pérsico,  foram  os  canaes  por  onde  o  commercio  indio  se  effe- 
'•i iiava  na  maior  parte;  ea  Syria  e  o  Egypto,  paizes,  que  pela 


251 

.  -  posição  geograpbica.,  formavam  o   centro  cie  comínim 

entre  as  partes  orientaes  e  occidentaes  do  globo.  No  tem- 
po da  prosperidade  de  Tyro,  esta  cidade  rivalisava  com  oEgy- 
pto  no  trafico  com  o  oriente:  mais  tarde,  porém,  os  egypcios 
apoderaram-sc    da  maior  parte  d'elle.  A   posição    central  do 

pio  6  particularmente  adequada  ao  commereio  da  índia; 
e  se  aquelle  paiz  tivesse  a  necessária  actividade  e  tacto  com- 
mprcial,  e  um  povo  enrprehendedor,  poderia  ainda  lioje,  como 
já  em  tempos  remotos  o  fizera,  monopolisar  o  commercio  do 
oriente.  Sob  a  dvnastia  dos  Ptolomeus,  e  mesmo  depois  da 
sua  extracção,  e  a  reducção  do  reino  a  província  romana,  o 
Egypto  continuou  a  ser  o  centro  commercial  do  oriente  e  do 
oceidente;  c  Alexandria  era  o  grande  empório  do  trafico  in- 
diatieo.    O   trafico  com    o  oriente  era  feito   pelos  mercadores 

peies  c  Árabes;  e  as  mercadorias  da  índia  importadas  de 
Musiris,     mercado   para  aquelle    commercio,    nas  costas    do 

bar,  entravam  no  Egypto  pela  Alexandria,  por  canaes 
que  communicavam,  senão  de  todo,  em  parte,  o  Mar  Ver- 
melho c  o  Nilo,  ou  então  por  terra,  o  que  não  era  diflicil.  aí- 
•  "endo  a  que  a  distancia  íransponlia-se  em  ires  ou  quatro 
dias  de  jornada,  e  a  que  a  mercadoria  fazia  pouco  volume. 
Alexandria  manteve  esta  posição  eminente  no  inundo  com- 
mercial, pelo  estabelecimento  rio  reino  Grego  do  Egypto,  por 
Ptolomeu  Lagos,  pelo  anno  de  310  antes  de  Christo,  até  á 
sua  conquista  por  Amrou,  tenentedo  CálipLa  Ornar,  em  638 
depois  de  Christo,  abrangendo  um  periodo  de  cerca  de  948 
annos;  e,  anterior  á  construcçã o  de  Constantinopla,  fora  sem- 
pre tida,  tanto  cm  extensão,  população,  magnificência,  e  rique- 
za, como  a  segunda  cidade  do  império  romano.  Depois  da  sua 
sujeição  aos  Sarracenos,  os  desgostos  e  revoluções  difíerentes 
que  sobreviveram,  prejudicaram  extraordinari  mente  seu  com- 
mercio. As  frequentes  guerras  entre  o  império  do  oriente  e  o 
Cáliphado  obrigáramos  negociantes  de  Constantinopla  a  abri- 
rem um  meio  de  commumeação,  novo  mas  commedo  piara  o 
commercio  da  índia  pelo  mar  negro,  emlogarde  ofazrempor 
terra  entre  aquelle  mar  c  o  Caspio,   e   mais  tarde  pelo   rio  G- 


252 

xus  para  o  qual  os  commerciantes  índios  traziam  suas  mer- 
cadorias. 

Este  meio,  porém,  de  transporte  diffieultoso  e  demorado, 
não  podia  deixar  de  augmentar  o  valor  das  mercadorias  da 
índia  em  Constantinopla,  e  o  commercio  do  oriente  voltou 
finalmente  á  sua  antiga  estrada  natural.  Os  sarracenos  ti- 
nham génio  commercial  e  os  cáliphas  animavam  as  emprezas 
commerciaes,  mas  durante  o  estado  florescente  do  cáliphado, 
a  Europa  conserváva-se  sem  commercio  e  quasi  sem  civilisa- 
ção.  As  commoçoes  intestinas  que  dividiram  em  dois  o  im- 
pério dos  cáliphas,  e  agitaram  particularmente  o  Egypto 
com  varias  e  frequentes  revoluções,  obstaram  a  que  aquel- 
le  paiz  tomasse  a  ascendência  commercial  para  que  parecia 
destinado.  Tão  depressa,  porém,  os  estados  Italianos  co- 
meçaram a  sair  da  anarchia  e  barbarismo  das  idades  go- 
thicas,  começaram  a  commerciar  com  o  Egypto.  Os  vene- 
zianos e  os  genovezes,  particularmente,  dirigindo  as  suas 
vistas  espirituosamente  para  os  negócios  maritimos  e  com- 
merciaes, depressa  deram  consideração  ao  conimercio  do 
Egypto  e   da  índia. 

A  Alexandria  tornou-se  mais  um  vez  o  empório  do 
commercio  oriental,  e  os  venezianos  e  os  genovezes,  pelo 
monopólio  d'aquelle  trafico,  attingiram  um  estado  d'opulencia 
e  grandeza  que  assombrou  o  mundo.  As  outras  nações  da 
Europa,  emergindo  gradualmente  do  barbarismo  para  a  ci- 
vilisação  começaram  a  seguir  aquelles  exemplos  e  sem  duvi- 
da desejariam  descobrir  os  meios  de  partilharem  d'aquelle 
commercio  que  elevara  e  dera  tamanha  importância  aos,  até 
ahi,  insignificantes  estados  de  Veneza  e  Génova.  Foram  os 
Portuguezes  os  primeiros,  porém,  que  conceberam  a  idéa  de 
rivalizar  com  os  Italianos  no  seu  lucrativo  trafico,  abrindo 
algum  outro  canal  de  commuuicação  com  a  índia»  Fora  es- 
te o  grande  objecto  de  todas  as  viagens  de  descoberta  que 
se  haviam  emprehen elido  nos  fins  do  século  15.  Mas  em  quan- 
to os  Portuguezes  avançavam  gradualmente  sul,  costeando  o 
continente  Africano,    Colombo  emprehendeu   a  viagem   á  In- 


253 

dia  atravez  o  Atlântico.  E'  para  notar  que  este  grande  pro- 
jecto se  fundara  n'um  erro  dos  geographos  d'aquella  idade 
e  das  idades  precedentes,  em  relação  á  situação  da  índia  e 
d'outros  paizes  orientaes  da  Azia.  Os  geographos  da  Grécia 
e  de  Roma  não  tinham  nunca  podido  obter  noticias  exactas 
sobre  a  posição  d'aquelles  paizes,  nem  podia  esperar-se  na 
idade  media.  Marino  Tyrio  faz  o  paiz  dos  Seres  ou  a  China 
a  225  graus  leste  do  primeiro  meridiano,  atravessando  as 
Canárias  ou  ilhas  Afortunadas.  Ptolomeu,  que  floresceu  no 
segando  século  da  era  christã,  reduzio  a  longitude  da  China 
a  180  graus;  mas  a  verdadeira  longitude  da  fronteira  Occi- 
dental da  China,  hoje  é  sabido  estar  a  105  graus  leste  das 
Canárias. 

Alguns  aventureiros  da  idade  media,  especialmente  Benja- 
min, Judeu  de  Tudela,  na  Navarra,  pelo  anno  de  1160,  e 
Marco  Polo,  de  nobreza  veneziana  em  1265,  haviam  pene- 
trado até  ás  extremidades  orientaes  da  Azia;  mas  segundo 
parece  estes  aventureiros  emprehendedores  eram  destituídos 
dos  necessários  conhecimentos  mathematicos,  faltando-lhes  os 
instrumentos  indispensáveis  para  determinar  a  longitude  dos 
logares  que  visitaram.  Tinham  igualmente  formado  opiniões 
erróneas  quanto  á  extensão  e  posição  geographica  dos  pai- 
zes orientaes  da  Azia,  collocando-os  mais  a  leste  do  que  real- 
mente ficam.  Aristóteles,  muitos  tempos  antes,  cahio  no  mes- 
mo erro,  e  julgou  que  a  índia  não  demorava  longe  dos  es- 
treitos de  Gibraltar. 

Aristóteles,  de  Coelo,  Livro  2.°,  artigo  14  e  Séneca  haviam 
abraçado  as  mesmas  idéas,  e  com  tanto  ardor,  que  chegaram 
a  affirmar  que,  com  vento  favorável  era  possivel  passar  da 
Hespanha  á  índia  em  poucos  dias.  Colombo  estudara  pro- 
fundamente a  navegação  e  cosmographia,  adquirindo  conhe- 
cimentos senão  superiores,  ao  menos  iguaes  a  qualquer  pes- 
soa erudita  dos  seus  tempos,  mas  deixando-se  impressionar 
pelas  opiniões  reinantes  e  pelas  absurdas  posições  de  diffe- 
rentes  paizes,  segundo  os  imperfeitíssimos  máppas  geographí- 
cos   de   então,    imaginou  não  muito    demorada  a   viagem  á 


Índia,  seguindo  sempre   para  o  Oeste. 

Via  pelo  mesmo  prisma  d'aquèllès  tempos  e  as  suas  con- 
clusões não  eram  más  com  quanto  fundadas  em  princípios 
erróneos.  Se  fora  nos  tempos  de  Colombo  conhecida  a  geo- 
grapliia  dos  paizes  orientaes  como  actualmente  é,  nem  elle 
nem  outro  qualquer  explorador  teria  concebido  a  idéa  de  a- 
fcràvessar  o  Atlântico  para  ganhar  a  índia;  porque  a  viae 
por  mui  longa  deveria  inevitavelmente  ser  fatal  a  quem  a  in- 
tentasse. Suppõe-se  geralmente  que  Colombo  entretinha  suas 
esperanças  de  encontrar  maquellas  regiões  do.  globo  immen- 
sas  porções  de  terra,  mas  isto  não  passa  de  conjectura,  por 
isso  orne  o  grande  fim  do  navegador  era  encontrar  alguns 
paizes  mais  avançados  da  Azia,  que  elle  supponha  extender- 
se  muito  para  leste  e  por  consequência  não  distarem  muito 
das  costas  occidentaes  da  Europa  e  África.  De  facto  esta  o- 
pinião  prcvalescia  tão  universalmente,  que  quando  se  avistou. 
terra,  Colombo  imaginou  ser  uma  parte  da  índia,  até  qne  a 
miséria  e  estado  selvagem  dos  habitantes  o  convenceu  do 
contrario.  Em  todas  as  suecessivas  descobertas  das  diííereií- 
tes  ilhas  e  paizes  ■  .  uinente  Americano,  subsistiam  as 
inesi  ías;    e  pássára-se  muito  tempo   antes  que  os  Euro- 

peus podessem  resolver  se  a  America  era  na  realidade  um  ou- 
tro continente,  ou.  méraihe.ntG  ama  continuação  do  continente 
Ãziatioo. 

Apreciando  o  Carácter  de  Colombo,  não  podemos  hesitar 
em  o  pronunciar  u:u  dos  primeiros  entre  os  homens.  Era  fo- 
ra de  duvida  dotado  de  grande  capacidade  para  conceber,  o 
grande  coragem  para  executar.— Uma  constância  que  eon- 
tratempo  algum  pòcl  um  animo    que  perigo  algum 

podia  abaier;   s  nina  b  fiiíle  d-ej  qifè  nenhumas 

■  :     suldades' '(Xèá  tavam",     ÍJics    iram    es    earecteristieos 

s.iiòtavei  ■-  i    .  ■        iiem  conLu'ja'rái'iiíosv os  seus. 

leitos  corn  as  façanhas  da  maior  pane  dos  heroes  da  historia, 

Ls   suas  éiiipr-ezáé  é- 
taihacl  ■:.    d  eh  to    da  s.ciénciá  e  da  extensão 

r;ão    da    humanidade.    Elle 


255 


[órává  è  iíãõ  despovoava  o  globo.   Se  dos  seus  deseobri- 
itos    vieram    cor  iiifciàs    nocivas1  á  humanidade,  riem 

vYíc  as  podia  prevê:1  -  -  ofo&tar.  Quando  estabelecemos  um 
paralelio  entre  as  em; prezas  de  Colombo  e  aqucílas  cios  nossos 
modernos   nave !  :;,    devemos   confessar   imparcialmente 

elle  oecupa  o  primeiro  logar  no  roL  Aqnelles  que  o  suc- 
aim  andaram  nas  suas  pizadas,  Nenhum  como  elle  se 
eiífrfegoú  aos  mares  d'um  novo  mundo;  nenluun  se  aventurou 
a.  atravessar  o  occeano  hnmenso,  enjos  limites  eram  desconhe- 
cidos. A  navegação  atravez  o  Oceano  Pacifico  pelos  fíespa- 
nhoes  foi  de  grande  arrojo;  mas  a  esse  tempo  já  se  conhe- 
êíátó  as  latitudes  de  Acapulco  e  de  Manilha,  e  consequente- 
mente, a  distancia  das  ilhas  orientaes  á  costa  occidental  do 
México  era  ponto  determinado  por  meio  de  observações  as- 
tronómicas. Estes  principies  fixos  faltavam  a  Colombo.  Os 
conhecimentos  geographicos  daquelle  tempo  tinham  limites, 
muito  estreitos  e  tudo  alem  d'aquelle  pequeno  circulo  mio 
passava  de  vã  conjectura,  A  arte  da  navegação  estava  ainda 
A  um  estado  imperfeito  e  sem  de  modo  algum  querer  cercear  a 
gloria  dos  modernos  descobridores,  para  quem  todo  o  elogio 
é  pouco,  diga-se  com  verdade  qiie  at:emleudo  aos  conhecimen- 
tos náuticos  e  ueoíia-anhieosda  actualidade,  a  differenea  dViui- 
pamentos  e  aprestes  de  toda  a  ordem,  empreza  alguma 
,;::;  o  caracter  arrojado  e  aventureiro  da  empreza  de  Colom- 
bo; a  quem  a  posteridade  deve  a  descoberta  d'um  novo  mun- 
do, a  creação  d'uai  novo  svstema  commercial  e  politico,  co- 
mo também  uma  iuiinidade  de  novos  hábitos  e  arranjos  em  to- 
das as  ordens  da  sociedade. 

Depois  de  oito  annos  de  fastidiosas  petições  sempre  balda- 
das ás  clifíerentes  potencias  da  Europa,  pelas  quaes  na  maior 
parte  fora  o  seu  projecto  considerado  romântico  e  extravagan- 
te, toda  a  força  que  pôde,  depois  de  continuadas  contrarieda- 
des e  demoras,  obter  da  corte  de  Hespanha,  foi  de  três  peque- 
nos navios,  tripulados  com  apenas  noventa  homens,  na  maior 
parte  marinheiros,  e  o  resto  de  cavalheiros  de  génio  empre- 
hendedor;  com  tudo,  dotado  d'animo  superior  a   todo  e   qual- 


256 

quer  obstáculo,  emprehendeu,  com  esta  insignificante  força, 
a  passagem  do  vasto  e  nunca  navegado  Atlântico  cujos  limites 
eram  desconhecidos,  manifestando  um  exemplo  de  resolução 
decedida  sem  igual.  Os  particulares  d'esta  interessante  expe- 
dição são  conhecidos  de  todos,  e  constitue  um  assumpto  im- 
portante na  historia  moderna. 

Depois  do  regresso  de  Colombo  do  descobrimento  do  novo 
mundo,  começaram  a  apparecer  novos  acontecimentos,  abrio- 
se  novo  campo  para  se  exercitar  o  espirito  emprehendedor, 
primeiro  na  Hespanha,  e  depois  por  toda  a  Europa.  Aven- 
tureiros audazes  sahiram  da  Hespanha  para  este  theatro  d'es- 
peculações.  Estabeleceram-se  colónias :  colonisaram-se  as  ilhas 
d'Hespaniola,  Cuba  e  outras;  e  finalmente  Fernando  Cortez 
conquistou  o  México,  depois  d'uma  serie  d'aventuras  succes- 
sivas  inigualadas  na  historia  e  mesmo  no  romance.  A  con- 
quista do  México  terminou  pela  tomada  da  metrópole,  depois 
d'um  cerco  de  setenta  e  cinco  dias  no  anno  de  1521;  e  doze 
annos  o  Peru  cahio  nas  mãos  de  Francisco  Pizarro  e  Diogo 
Almagro,  de  combinação  com  Fernando  Lugnes,  ecclesiastico, 
aquém  pertencia  recrutar  gente  e  arranjar  munições.  A  con- 
quista do  Peru,  com  quanto  contrariada  no  seu  começo  por 
inúmeras  difíiculdades,  e  acompanhada  de  grandes  desastres 
levou-se  a  efíeito  com  menos  difíiculdade  e  perigo  que  não  a 
do  México;  mas  as  desavenças  que  nasceram  entre  os  pró- 
prios conquistadores  estiveram  para  lhes  ser  fatal.  Seguiu-se 
a  guerra  civil,  na  qual  sendo  Almagro  feito  prisioneiro,  foi 
mandado  matar  por  Pizarro;  três  annos  depois  foi  o  mesmo 
Pizarro  assassinado  no  seu  palácio  por  Almagro  filho;  e  no 
decurso  d'um  anno,  o  joven  Almagro  foi  aprisionado  por 
Vasco  de  Castro,  e  decapitado  em  Cusco,  em  1542.  Nunes 
Vela  foi  derrotado  e  morto  por  Gonçalo  Pizarro,  em  1546;  e 
este  ultimo,  irmão  de  Francisco  Pizarro,  o  conquistador,  e 
que  desempenhara  um  importante  papel  na  conquista  do  Pe- 
ru, como  também  nas  guerras  civis  que  succederam,  sendo 
abandonado  pelos  seus  soldados,  foi  feito  prisioneiro,  e  con- 
junctamente  com  o  valente  Francisco  Carjoval  sentenciados  á 


257 

morte  em  1548.  por  Pedro  de  IaGrasca,  ecclesiastico  mandado 
da  Hespanha  para  subjugar  os  rebeldes  do  Peru,  e  governar 
aquclle  paiz  na  qualidade  de  vice-rei.  Assim  as  principaes 
pessoas  envolvidas  na  conquista  do  Peru  cahiram  ás  mãos 
uns  dos  outros,  ou  em  batalha,  ou  no  cadafalso,  ou  por  cons- 
piração e  assassínio.  E'  digno  de  notar-se  que  as  persona- 
gens que  emprelienderam  esta  importante  conquista,  todas 
sem  excepção,  passavam  de  sessenta  annos  d'iáade,  ao  tempo 
do  começo  d'esta  tão  arriscada  empreza  e  cujo  bom  succes- 
so  póde-se  comparar  áquella  dos  macedonios  e  dos  gregos, 
que,  sob  Alexandre,  conquistaram  a  Pérsia.  Os  hespanhoes 
que  conquistaram  o  Peru,  á  semelhança  dos  conquistadores 
macedonios,  accumularam  immensa  riqueza  e  poder;  mas, 
como  elles,  envolveram-se  em  guerras  civis  que  lhes  amar- 
guraram o  resto  de  seus  dias,  acabando  na  sua  ruina.  A  em- 
preza arrojada  e  perigosa  a  que  se  entregaram  os  conquista- 
dores do  Peru  em  uma  quadra  tão  avançada  da  vida  é  uma 
prova  da  avareza  e  ambição  que  actuaram  sobre  os  primei- 
ros aventureiros  do  novo  mundo,  como  também  d'aquella 
febre  ardente  e  aventureira  que  mui  particularmente  cara- 
cterisou  o  decimo  quinto  século,  e  para  o  qual  muito  concor- 
reu a  descoberta  da  America.  A  idade  que  a  succedeu  e  da 
passagem  do  Cabo  da  Boa  Esperança  pôde,  com  justa  razão, 
chamar-se  a  idade  das  emprezas  e  aventuras;  estas  duas  des- 
cobertas reanimaram  os  espíritos  d'homens  de  fortuna  arrui- 
nados, e  acordou  em  quasi  toda  a  Europa  o  espirito  da  es- 
peculação, e  tanto  que  um  império  maior  que  a  metade  da 
Europa  e  contendo  mais  ouro  e  prata  que  todo  o  resto  do 
mundo,  fora,  antes  do  meado  do  decimo  sexto  século,  annexa- 
do  á  coroa  de  Hespanha,  devido  aos  esforços  de  particula- 
res que,  a  expensas  próprias,  e  sem  auxilio  do  governo,  im- 
portaram para  o  território  Hsspanhol  capitães  enormes.  Foi 
d'este  modo  que  Carlos  5.°,  que  reunia  os  títulos  de  impera- 
dor d'Alemanha,  rei  de  Hespanha,  e  soberano  dos  Paizes  Bai- 
xos, como  igualmonte  d'uma  grande  parte  da  Itália,  tornou- 
se,   pela  conquista  do  México,   do    Peru,   e    dos  outros  pai- 


558 

£es  da  America  inliola,  senhor    de  riquezas    c  domínios 

mais  extensos  que  mqnarcha  algum  *d'antes  possuíra,  sem 
despender  um  seitii  de  seus  cofres,  até  que  as  colónias  se 
achavam  nas  condições  necessárias  para  reembolsar  o  estado 
da  despeza  feita  pelo  p;ovcrno  cm  armadas  e  tropas  na  sua 
za. 

As  privações  soífridas  pelos  primeiros  aventureiros  lies 
nlioes,  as  diffieuldades  arrostadas,  a  firmeza  manifestada,  a 
coragem  persistente  e  o  indomável  espirito  emprehendedor 
que  caracterizaram  aquelles  homens  desesperados  quasi  que 
não  tem  paralello  na  historia.  Alguns,  porem,  adquiriram  ri- 
quezas enormes.  Dos  hespanljoes  que  conquistaram  o  Peru, 
nenhum  era  praça  assalariada  com  quanto  alguns  receberam 
sominas  adiantadas  para  as  primeiras  despezas,  Na  partilha, 
do  resgate  do  Inca  cada  soldado  dunfanteria  recebeu  4,000 
pesos,  somina  que  correspondia  a  outras  tantas  libras  sterii- 
nas  da  moeda  actual;  cada  soldado  de  ca v aliaria  8,000  pesos, 
c  os  ofticiaes  proporcionalmente;  ediz-nos  Herrera  que  o  saque 
da  cidade  de  Cusco  importou  em  4,000  pesos  por  cabeça. 
Alem  cVesta  preza  *immensa,  o  pai z  foi  todo  retalhado  pelos 
conquistadores  tornando-se  cada  hespanhol  senhor  de  pro- 
priedade em  relação  á  sua  jerarchia . 

O  descobrimento  d'um  novo  mundo  estimulou  por  diver- 
sas formas  a  Europa  inteira.  A  colonisação  da  America  abria 
campo  á  industria  pacifica,  como  já  tinha  offereçido  pasto  á 
cobiça  e  conquista. 

A  colonisação  pelos  hespanhoes  e  sancclonado  pelo  seu  go- 
verno, segundo  o  abbade  Raynal,  era  regulada  peio  seguinte 
modo.  Na  distribuição  de  terras  entre  os  conquistadores  da 
America,  cada  infante  recebeu  5,000  pés  quadrados  para 
construcções,  1,885  toezas  quadradas  para  jardim,  7,543  toe- 
zas  quadradas  para  pomar,  9 4, 2 8 8. para  trigo,  e  1,448  para 
milho,  alem  do  chão  necessário  para  a  creação  de  dez  porcos, 
vinte  cabras,  cem  carneiros,  vinte  bois,  e  cinco  cavaiios.  O 
quinhão  de  cada  homem  de  cavallaria  andava  pelo  dobro  do 
terreno  dado  para  construcções  e  o  quintuplo  do  resto.  As  ci- 


259 

dades  foram  construídas  por  individuos  activos  e  opulentos, 
sujeitos  a  condições  e  restricções  impostas  pela  corte  que  lhe? 
conferia  certos  privilégios,  como  também  áquelies  que  fixavam 
a  sua  residência  e  a  quem  se  concedia  terrenos  em  relação  aos 
fundadores.  As  demais  terras  indivisas  d'aquelles  immensos 
territórios  ficaram  na  pacifica  posse  dos  naturaes  do  paiz,  que 
se  reuniram  em  povoações  e  eram  governados  pelos  seus  caci- 
ques, segundo  as  leis  coloniaes  promulgadas  pelo  concelho  das 
índias  na  Hespanha,  sob  a  authoridade  da  corte.  As  outras 
nações  que  estabeleceram  colónias  nas  ilhas,  ou  no  continente 
americano,  adoptaram  pouco  mais  ou  menos  os  mesmos  prin- 
cipios  geraes,  com  algumas  modificações,  segundo  as  circuns- 
tancias especiaes.  No  decurso  do  tempo  numerosas  colónias 
se  tinham  estabelecido  em  differentes  partes  do  novo  mundo. 
A  historia  da  descoberta,  conquista  e  colonisação  da  Ame- 
rica tem  um  interesse  particular.  Desenvolve  o  progresso  gra- 
dual da  cultura  e  commercio  de  paizes  d'antes  não  cultivados 
e  cobertos  de  pântanos  intransitáveis  e  florestas  impenetráveis. 
A  colonisação  é  um  processo  que  em  todos  os  tempos  tivera 
logar  em  todos  os  pontos  do  globo;  e  os  desertos  da  America 
representavam  o  que  succedera  já  no  velho  mundo.  A  histo- 
ria antiga  nada  nos  diz  em  relação  aos  trabalhos  Hercúleos 
em  transformar  uma  immensa  charneca  n'um  paraizo  terres- 
tre, pelo  processo  de  drenagem  (esgoto)  e  cultura;  ou  ao  mui- 
to insinua  que  no  reinado  de  certos  príncipes  alguns  pântanos 
se  esgotaram  etc.  Se  os  sacerdotes  do  Egypto  tivessem  legado 
um  relatório  exacto  do  processo  seguido  na  drenagem,  tornan- 
do habitável  aquelle  paiz  que  antes  dos  diques  do  Nilo,  levan- 
tados pelo  trabalho  e  industria  do  homem,  não  passava  d'um 
immenso  pântano,  sobre  o  qual  aquelle  rio  extendia,  sem  op- 
posiçâo  alguma,  suas  aguas,  terião  feito  um  serviço  de  muito 
mais  proveito  e  mais  digno  da  nossa  gratidão  do  que  todos  esses 
contos  allegoricos  e  legendas  embusteiras  em  que  instruíram  os 
gregos,  Todos  os  particulares  relativos  ás  primeiras  popula- 
ções e  primeira  cultura  dos  difíerentes  paizes  do  velho  conti- 
nente estão  envolvidos  em  perpetuo  esquecimento;  e  é  tão  so- 

34  . 


3£i 


mente  na  historia  do  novo  mundo  que  se  nos  proporciona  occa- 
siâo  de  presenciarmos  estas  acenas;  Mr.  L'Abbe  Haynal  na  sua 
«Revista  Pliilosopliica »  da  côloliisaçãó Europea descreve  d'um 
modo  explicito  e  circunstanciado  as  particularidades  do  esta- 
belecimento das  differentes  colónias.  O  descobrimento  d' Ame- 
rica offerece  novidades  á  consideração  do  naturalista  e  do 
philosopho. 

No  novo  mundo  quasi  tudo  difíeria  da  Europa:  aves,  ani- 
maes,  arvores  e  plantas,  totalmente  differentes  do  que  se  via 
na  Europa,  chamavam  a  attenç.ão  de  quem  visitava  o  novo 
continente;  e  a  natureza  humana  ahi  se  exhibia  com  modifica- 
ções de  que  o  velho  mundo  não  offerecia  parallelo.  Paia  algum 
conhecido  dos  europeos  apresenta  o  homem  no  seu  estado  pri- 
mitivo. A  natureza  n'este  sentido  só  se  podia  contemplar  na 
America.  As  idéas  d/estes  homens  selvagens  differia  como  se 
pode  imaginar  d'aquei!as  dos  habitantes  dos  paizes  civilisados 
e  os  primeiros  descobridores  que  nada  tinham  de  philo- 
sophos,  attribuiram  a  sua  falta  de  comprehensão  em  re- 
lação ás  regras  porque  se  dirigia  a  sociedade ,  e  suas 
idéas  de  nações  civilisadas,  a  um  defeito  natural  de  capacida- 
de, sem  considerarem  que  o  seu  estado  de  iuciviiisação  lhes 
não  proporcionava  os  meios  de  firmar  outras  idéas  que  não 
fossem  as  impostas  por  objectos  familiares.  Isto  notava-se  par- 
ticularmente quando  se  tratava  de  os  instruir  na  religião 
enrista*  Abraçavam  promptamente  esta  religião  e  seguiam-naT 
mas  via-se  perfeitamente  que  não  compreliendiam  as  suas  dou- 
trinas. As  forças  do  seu  entendimento  eram  tão  limitadas,  as 
suas  observações  e  reflexões  circunscreviam-se  a  um  circulo 
tão  estreito  que  pareciam  incapazes  de  formarem  idéas 
abstractas,  e  não  possuíam  mesmo  os  termos  para  as  expri- 
mir. Para  espíritos  n'este  estado,  as  sublimes  doutrinas  do 
christianismo  eram  incomprehensiveis. 

Poucos,  por  consequência,  dos  natura  es  da  America  foram 
julgados  pelos  ecclesiasticos  hespanhoes  dignos  de  gosarem 
os  privilégios  dos  sacramentos  da  igreja.  Um  syuodo  con- 
vocado  em  Lima,    pronunciou  os    Americanos    incapazes   de 


201 

se  lhes  administrar  a  Eucharistia;  e  decretou  consequente- 
mente a  sua  excluzão  d'aqueile  privilegio.  O  soberano  Pontí- 
fice, Paulo  3. "resolveu  porem,  com  melhor  bom  senso  e  libera- 
lidade d'opinião,  na  sua  famoza  Bulia  de  1537,  declarando  os 
Americanos  criaturas  racionaes,  intitulados  aos  direitos  da 
natureza  humana  e  aos  benefícios  da  sociedade  em  commum 
com  todos,  e  nos  termos  de  gozarem  os  benefícios  dos  sacra- 
mentos, e  de  receberem  mesmo  ordens  sacras.  Porem  ainda 
hoje  poucos  são  os  índios  a  quem  ellas  se  conferem,  e  menos 
ainda  oceupam  posições  elevadas  na  igreja. 

A  peior  de  todas  as  consequências  do  descobrimento  da 
America  foi  a  introducção  da  escravatura  preta.  Os  primeiros 
aventureiros  Hespanhoes  tratavam  os  habitantes  do  paiz 
recentemente  descoberto  como  animaes  de  carga,  impondo- 
lhes  trabalhos  incompatíveis  com  as  suas  delicadas  constitui-, 
coes.  Os  naturaes  d'aquellas  partes  da  America  conquistadas 
pelos  hespanhoes,  habitavam  paizes  aonde  a  fertilidade  do 
solo  produzia  espontaneamente  tudo  que  lhes  era  mister  para 
a  sua  existência,  e  a  natural  benignidade  do  clima  excluía  a 
necessidade  de  vestimenta.  N'este  estado  os  Americanos, 
alheios  ás  necessidades  e  commodidades  da  vida  civilisada, 
não  estavam  aífeitòs  á  actividade  nem  de  corpo  nem  d'intel- 
ligencia. 

Esta  habitual  indolência  e  o  calor  do  clima  enfraque- 
cia-os  e  tornava-os  totalmente  incapazes  para  o  trabalho. 
A  difíerença  de  força  muscular  e  constituição  entre  os  natu- 
raes da  America  comprehendidos  na  zona  tórrida,  compara- 
da com  a  dos  europeus  era  tal,  que  um  hespanhol  desempe 
nhava  o  mesmo  trabalho  e  exigia  a  mesma  quantidade  de 
alimento  dada  a  cinco  ou  seis  Índios;  e  os  americanos  admi- 
ravam-se  das  quantidades  consumidas  pelos  hespanhoes,  que 
é  o  povo  mais  sóbrio  da  Europa,  como  também  do  trabalho, 
que  eram  capazes  de  fazer.  Homens  acostumados  a  esta  in- 
dolência e  simplicidade  de'  díéta,  eram  totalmente  inhabeis 
para  supportar  os  trabalhos  do  campo,  e  das  minas  que  os 
colonisadòres  lhes  impunham. 


262 

Incapazes 'de  soffrer  o  pesado  cargo  com  que  seus  conquis- 
tadores os  opprimiam,  milhares  destes  infelizes  encontravam 
na  morte  um  doce  allivio  a  seus  males.  Hespaniola,  Cuba  e 
outras  ilhas,  estavam  sendo  despovoadas  antes  que  a  corte  de 
Hespanha  tivesse  conhecimento  d'aquelles  factos  e  provesse 
de  remédio.  A  tyTannia  cTestes  homens  sem  principios  in- 
dignou e  commovcu  alguns  benévolos  hespanhoes,  tanto  lei- 
gos como  ecclesiasticos ,  testemunhas  d'aquellas  scenas  de 
horror.  Entre  estes  amigosfda  humanidade  nunca  pode  ser 
esquecido  o  nome  do  padre  líartholomeu  de  las  Casas.  Este 
humano  ecelesiastico,  cuja  coragem  nada  podia  domar,  e  cu- 
ja firmeza  vencia  todos  os  obstáculos,  presenciara  indignado 
os  vexames  soffridoa  pelos  pobres  naturaes  das  mãos  dos.  co- 
lonisadores, e  elevou  a  sua  voz  protestando  contra  semelhan- 
te deshumanidade  e  oppressão..  Passando  da  America  para  a 
Hespanha,  procurou  por  todos  os  modos  possíveis  commover 
a  corte  em  favor  de  seus  semelhantes  opprimidos.  Este  ho- 
mem benévolo,  cujo  nome  será  sempre  objecto  de  veneração, 
empregou  todos  os  meios  para  acordar  a  indignação  da  corte 
de  Hespanha  e  de  Roma  contra  aquelles  algozes  da  humani- 
dade. Por  seu  lado.  os  colonisadores  não  dormiam.  Apresen- 
tavam os  naturaes  como  uma  raça  inferior  de  seres  nascidos 
para  a  escravidão  e  incapazes  de  comprehenderem  os  desti- 
nos do  christianismo.  Esta  degradação  dos  americanos  foi 
porem  rejeitada  e  condemnada  pelas  decisões  de  Roma  e  Hes- 
panha, aonde  a  indignação  publica  se  pronunciou  contra  a 
deshumanidade^dos  tyrannos  colonisadores.  O  padre  de  las 
Casas  e  outros  homens  humanitários  eram  incansáveis  nos 
seus  esforços;  e  deleita  vêr  os  ecclesiasticos  hespanhoes  do 
século  deseseis  saírem  a  campo  como  advogados  e  defensores 
do3  direitos  inabaláveis  e  naturaes  da  humanidade.  A  corte 
de  Hespanha  tomou  um  acalorado  interesse  na  causa  da  op- 
pressao e  resolveu  adoptar  medidas  para  a  sua  repressão.  Os 
colonisadores  pela  sua  parte,  vendo  que  a  sua  causa  perdia 
terreno  de  dia  paia  dia,  e  temendo  os  anathemas  da  egreja, 
como  também  a  indignação  da  mãe  pátria,    entrincheiram-se 


âG3 

))'utu  campo  novo,  que  suppunham  e  de  facto  veio  a  ser 
inexpugnável.  Representaram  sobre  a  necessidade  de  braços 
]>;i» :l  ;i  cultura  da  terra  e  trabalho  dns  minas  sem  o  que  te- 
riam de  as  abandonar,  ficando  sem  effeito  todas  as  vantagens 
da  descoberta  e  conquista  d'estc  riquíssimo  pai/;  e  apresen- 
taram os  indígenas  como  uma  raça  indolente,  a  quem  nenhum 
salário,  ou  recompensa  tinha  poder  para  os  impeliu*  a  fazer  o 
mais  pequeno  trabalho  útil.  Esta  representação  não  era  des- 
tituída de  fundamento..  O  seu  viver  indolente  tornara  os 
mhabeis  e  pouco  dispostos  para  qualquer  género  de  trabalho, 
Desacostumados,  como  sempre  foram,  ao  luxo  da  vida  civili- 
sada,  na  ignorância  do  que  lhes  convínha,não  imaginavam  que 
merecesse  a  pena  a  sua  acquisição,  e  admiravam-se  que  os  euro- 
peus trabalhassem  para  si,  ou  que  outros  se  votassem  ao  traba- 
lho para  a  posse   de  objectos  dispensáveis   a  sua  sustentação. 

Ouro  e  prata  eram  artigos  de  nenhum  valor  para  elles; 
não  W'  tinham  nunca  servido  d'estes  metaes,  a  não  ser  alguns 
bocados  que  achavam,  e  que  usavam  como  ornamento;  e  não> 
podiam  conceber  o  que  induzia  os  hespanhoes  a  revolver  as 
entranhas  da  terra,  e  a  estabelecer  um  systema  de  trabalhos 
árduos  na  acquisiçào  d'aque]les  metaes,  que  lhes  pareciam 
de  pouco  ou  nenhum  merecimento,  e  sem  o  que  podiam  pas- 
sar perfeitamente.  E'  claro  pois  que  com  este  modo  de  pen- 
sar não  havia  lucros  que  os  estimulassem  a  trabalhar,  por 
que  é  um  principio  invariável  da  natureza  humana  não  tra- 
balhar para  a  posse  d'um  objecto,  reputado  sem  valor. 
Este  argumento,  por  tanto ,  dos  colonisadores  era  irree* 
pondivel. 

O  projecto  de  sacar  enormes  riquezas  do  novo  mundo 
não  se  podia  por  de  parte.  Eram  necessários  braços  para  a 
cultura  do  solo  e  para  o  trabalho  das  minas.  Os  naturaes 
não  queriam  trabalhar  pagando-se-lhes;  era  preciso  portan- 
to compelli-los.  Estas  circunstancias  excluíam  a  póssibiKd» 
de  da  sua  emancipação.  Os  escorços  dos  amigos  da  humani? 
«bule  abortaram  :  prevaleceu  a  sede  do  -ouro — mas  não 
deixaram  com  tudo  de  produzir  alguns  benefícios,   A  corte,  de 


264 

Hespanha  estudou  seriamente  os  meios  de  melhorar  a  sorte 
dos  Americanos;  e  formaram-se  vários  planos  e  adoptaram-se 
diversas  medidas  para  este  fina.  Todo  e  qualquer  regulamento 
com  relação  aos  negócios  coloniaes  era  favorável  á  causa  dos 
opprimidos.  Corno  fora  impossível  tirar  vantagens  das  minas, 
e  os  naturaes  não  quizessem  trabalhar  por  paga,  circunstan- 
cia que  obrigava  a  recorrer  a  meios  coercivos,  foi  determina- 
do, que  ficassem  libertos  da  oppressão  tyraimiea  de  seus  se- 
nhores, e  obrigados  a  trabalhar  por  turnos,  recebendo  salários 
certos  nos  dias  em  que  se  empregavam.  Este  era  de  facto  o 
meio  mais  rasoavel  de  triumphar  gradualmente  da  indolência 
habitual  e  enraizado  tédio  ao  trabalho,  fazendo  cVeiles  mem- 
bros úteis  â  sociedade.  No  Peru  um  sétimo,  e  no  México 
um  vigésimo  quinto  da  população  podia  ser  chamado  a  um 
tempo  para  o  trabalho  das  minas  situadas  na  área  de  dez  lé- 
guas das  suas  moradas,  e  n'estas  levas  de  gente  os  salários 
eram  620  por  dia,  que  parece  ser  uma  remuneração  con- 
digna, attento  o  valor  do  ouro  e  prata  n'um  paiz  abundan- 
te n'estes  metaes. 

Não  obstante  estas  medidas  humanitárias  adoptadas  pela 
corte  de  Hespanha,  os  advogados  da  liberdade  não  estavam 
satisfeitos;  e  o  padre  de  las  Casas,  cujo  caracter  sobresaia 
pela  firmeza  e  zelo  com  que  defendia  a  sua  causa  favorita, 
decidiu-se  a  empregar  outros  meios  para  con&eguir  a  emanci- 
pação completa  dos  naturaes  do  novo  mundo,  e  no  seu  lou- 
vável afan,  originou  infelizmente  o  desesperado  expediente  da 
escravatura  negra,  alliviando  d'este  modo  os  males  da  Ame- 
rica á  custa  da  raça  Africana. 

A  historia  falia  á  razão  e  ao  sentimento,  apresentando-lhe  o 
revoltante  espectáculo  da  escravatura  em  larga  escala  entre 
as  nações  da  antiguidade.  Temos,  n'um  quadro  geral  do  sys- 
tema  social  de  Roma,  sob  os  governos  da  republica  e  do  im- 
pério, presenciado  o  rigoroso  tratamento  dos  escravos  nas  ida- 
des da  primitiva,  e  notado  com  prazer  o  seu  melhoramento 
nos  últimos  tempos  dos  imperadores. 

Esta  feliz  mudança  na  sorte  dos  escravos  proveio,  como  já 


265 

se  notou,  de  varias  causas;  o  a  instituição  do  christianismo 
finalmente  acrescentou  a  sua  influencia  benigna  para  suavi- 
sar  a  condição  cVaquelies  infelizes,  collocados  n'aquelle  estado 
de  abjecção  e  desgraça.  A  religião  christã  foi,  na  verdade, 
particularmente  destinada  a  produzir  este  effeito.  'Ensinando 
que  escravoe  senhor  teein  uin  dia  de  comparecer  sem  distinc- 
çào  perante  o  tribunal  do  Imparcial  Julgador  da  humanida- 
de inteira,  aconselhava  ao  primeiro  paciência  para  soffrer  a 
sua  sorte,  era  quanto  que  inspirava  ao  segundo  sentimentos  de 
humanidade  para  com  aquelíes  que  a  Providencia  submettê- 
ra  á  sua  autlioridade.  E  com  quanto  o  sysíema  da  escravatu- 
ra não  fosse  completamente  abolido  com  a  fundação  do  ehris- 
tianismo,  as  suas  durezas  foram  consideravelmente  suavisa- 
das;  chrisíão  algum,  digno  do  nome,  podia  tratar  seus  escra- 
vos com  crueldade,    ou  desnecessário  rigor. 

Os  Turcos  e  outros  povos,  que  supplantaram  o  império  dos 
Câliphas,  renovaram  o  systema  de  reduzir  á  escravidão  seus 
prisioneiros  de  guerra;  e  o  mesmo  em  represália  faziam  os 
cruzados.  Depois  do  entlmsiasmo  febril  das  guerras  religio- 
sas, e  á  proporção  que  o  espirito  humano  se  esclarecia,  a  reli- 
gião ficou  sendo  comprehendida  melhor,  melhor  practicada,  e 
á  proporção  que  o  commercio  e  a  civilisação  espalhavam  a 
riqueza  por  todas  as  classes,  a  escravatura  foi  gradualmente 
desapparecendo,  e  o  próprio  systema  feudal,  por  um  conjuncto 
de  circunstancias  abolido  em  algumas  partes  da  Europa. 
E'  porem  um  facto  para  lamentar  que  a  abolição  da  escrava- 
tura na  Europa  fosse  seguida  da  sua  instituição  na  America. 
Acabamos  de  ver  ccmo  varias  causas  differentes  concorreram 
para  tornar  inevitável  este  resultado. 

Na  vida  o  mal  anda  associado  ao  bem  e  a  criatura  na  sua 
fragilidade  não  compreliende  os  desígnios  da  Providencia,  que 
na  sua  infinita  sabedoria  tem  permittido  aquellas  scenas  de 
horror.  A  escravidão  ê  uma  taça  amarga,  mas  quantos  não 
tem  bebido  d'ella,  a  que  naturalmente  dá  logar  a  perguntar- 
mos : — Com  que  direito  exerce  o  homem  acção  despótica  so- 
bre o    seu   semelhante?  Para  os  christãos  é    esta  questão  da 


2G6 

inaior  importância  e  seriedade,  que  devem  ás  suas  consciên- 
cias, por  isso  que  crêem  no  juizo   final. 

A  instituição  da  escravatura  foi  determinada  por  uma  com- 
binação de  circunstancias  que  a  tornou  necessária.  O  padre  de 
las  Casas,-  o  cardeal  Ximenes,  e  outros  illustres  advogados 
da  liberdade  Americana,  tinham  inquestionavelmente  as  me- 
lhores tenções  quando  planearam  e  promoveram  a  escravatu- 
ra preta. 

Se  os  naturaes  da  America  tivessem  abraçado  o  trabalho 
voluntariamente  mediante  uma  recompensa  pecuniária,  a  hu- 
manidade e  a  justiça  da  corte  da  Hespanha  tel-os-hia  iguala- 
do aos  trabalhadores  europeos,  e  nunca  teria  lembrado  im- 
portar escravos  d' Africa;  mas  a  sua  invencivel  repugnância 
para  o  trabalho  não  abrandava  e  os  meios  coercivos  empre- 
gados para  os  obrigar  a  trabalhar  viria  a  dár  n'um  extermínio 
geral  da  raça.  Os  authores  do  projecto  da  escravatura  pre- 
ta, homens  indubitavelmente  humanitários  e  bem  intenciona- 
dos, imaginaram  que  arrancando  d' Africa  aquelles  que  escra- 
vos já  eram,  prisioneiros  nas  guerras  que  frequentemente  ti- 
nham logar  entre  as  tribus  selvagens  d'aquelle  continente,  ou 
aquelles  julgados  como  malfeitores  e  sentenciados  á  morte, 
fariam  d'elles  homens  úteis  á  sociedade. 

E'  provável  que  calculassem  mesmo  que  escravos  importados 
d'um  paiz  distante,  e  comprados  caros  deveriam  esperar  me- 
lhor tratamento,  por  isso  que  eram  os  seus  senhores  os  primei- 
ros interessados  em  lhes  conservar  a  vida  e  a  saúde,  o  que 
não  acontecia  com  os  malaventurados  naturaes  d' America 
que  para  os  colonisadores  não  tinham  valor  algum.  Accrescia 
também  que  o  negro  não  tinha  aquella  grande  aversão  ao  tra- 
balho que  caracterisava  os  habitantes  do  novo  mundo,  e  que 
as  suas  robustas  constituições  os  tornavam  aptos  para  suppor- 
tar  as  fadigas  que  ameaçava  exterminar  os  oriundos  da  Ame- 
rica. E'  natural  que  fossem  estas  as  considerações  que  influi- 
ram  sobre  o  animo  dos  authores  do  projecto  da  escravatura 
Africana,  e  suficientemente  evidenciam  a  rectidão  das  sus  in- 
tenções. As  consequências,  é  certo,  foram  uma  vergonha  para 


267 

ide,.- mas -não  era  possível  prevél-as.  O  homem  e 
eptivel  de  errar;  e  muitos  vêem-se  em  circunstancias  tão 
extraordinárias  que  a  mais  leve  falta  commettida  produz  as 
mais  fataes  consequências,  ou  para  si  mesmos,  ou  para  outros; 
se  comtudo  compulsarmos  ■  a  historia  da  humanidade  fa- 
cilmente reconheceremos  que  muitos  homens  se  teem  visto 
collocados  em  situações  semelhantes  ás  que  deram  origem  á 
escravidão  d' Africa. 

Mr.  1'Abbé  Raynal,  calculou  a  importação  na  America  de  ne- 
gros em  oito  a  nove  milhões,  e  que,ao  tempo  que  escreveu,não 
restava  milhão  e  meio.  Se  este  calculo  é  verdadeiro,  offerece-nos 
um  quadro  de  devastação  da  espécie  humana  de  que  a  historia 
nos  fornece  poucos  exemplos,  e  que  se  deve  attríbuir  a  uma  in- 
finidade de  maus  trates  de  eterna  vergonha  para  a  humanidade. 
Imputar  esta  mortandade  á  mudança  de  clima,  não,  porque  os 
paizes  d'onde  se  tiravam  os  negros  ficam  na  zona  tórrida,  com 
clima  igual  ao  das  colónias  Americanas;  e,  á  excepção  da  Ba- 
tavia,  poucos  paizes  ha  no  globo  mais  insalubres  e  quentes 
que  a  Negrolandia  e  a  Guinea.  Esta  singular  e  atterradora 
mortandade  dos  infelizes  Africanos,  pôde,  sem  duvida,  attri- 
buir-se  á  violenta  separação  de  seu  paiz  e  parentes,  e  áquelle 
abatimento  de  espirito  filho  da  escravidão, 

Aquelle  horrível  trafico,  offensivo  ao  christianismo,  detes- 
tável aos  olhos  de  Deus,  e  que  o  devia  ser  aos  do  homem,  até 
ao  ultimo  quartel  do  decimo  oitavo  século,  não  mereceu  aquel- 
3a  attenção,  nem  incorreu  n'aquella  censura  como  era  d'espe- 
rar  dos  princípios  moderados  e  dos  preceitos  evangélicos  que 
então  reinavam  na  sociedade.  A  primeira  tentativa  para  a  sua 
abolição  começou  entre  os  Quakers  (a)  da  America;  e  na 
Gran-Bretanha  esta  mesma  sociedade  humanitária  collocou- 
se  na  vanguarda  d'esta  santa  causa,  apresentando  no  parla- 
mento Inglez  uma  representação  em  favor  dos  opprimidos  A- 
fricanos.    A   causa  tornou-se  depressa  popular,  publicaram-se 

(a)  Seita  religiosa  que  diííere  cm  muitos  pontos  da  religião  protestante, 
adoptada  pelo  Estado.  Esta  comrminidade  dislingue-se  por  sua  pureza  â<è 
costumes  e  acções  humanitárias. 

38 


vários  escriptos  sobre  este  assumpto  de  que  se  oceuparam  al- 
gumas das  mais  distinctas  peimas  do  Reino.  Muitos  ecelesi- 
asticos  de  grande  saber  tornaram-se  advogados  d'ella  no  púl- 
pito, e  as  duas  Universidades  e  algumas  das  principaes  cida- 
des e  corporações  da  Inglaterra  dirigiram  á  legislatura  suas 
petições. 

Mr.  Pitt,  Mr.  Wilberforce,  e  Sir  William"  Dolben,  foram  os 
primeiros  senadores  Britannicos  que  advogaram  a  causa 
dos  negros  perante  o  parlamento,  no  dia  9  de  Maio  de  1788. 
Durante  a  sessão,  lavraram-se  varias  actas  tendentes  a  mino- 
rar os  sofirimentos  dos  escravos  nas  viagens.  Desde  então  a 
abolição  da  escravatura  preta  tornou-se  o  principal  assumpto 
entre  os  pliilantropos  da  Gran-Bretanha,  e  em  quasi  todas  as 
sessões  do  parlamento  promulgavam-se  leis  sobre  este  objecto. 
Á  causa  dos  infelizes  Africanos  íoi  esposada  e  defendida  elo- 
quentemente por  todos  aquelles  grandes  oradores  Pitt,  Burke, 
Fox,  Wilberforce,  alem  d'outros  demasiadamente  numerosos 
para  (Telles  fazer  menção,  e  Mr.  Fox,  tomou  tanto  a  peito  es- 
ta medida  que  declarou  que,  se  depois  de  serviços  de  qua- 
renta annos  no  parlamento,  tivesse  a  felicidade  de  obter  a 
abolição  de  tão  abominável  trafico,  retirar-se-hia  da  vida  pu- 
blica satisfeito.  Consigne-se  com  honroso  louvor  os  nomes  cl'es- 
tes  campeões  da  justiça,  religião  e  humanidade. 

Mas  se  por  um  lado  a  medida  foi  valentemente  sustentada, 
por  outro  foi  longa  e  vehementemente  combatida.  Os  defen- 
sores dos  Africanos,  porem,  persistiram  com  um  ardor  que 
nada  podia  esfriar.  As  maiorias  contra  o  projecto  cVabolição 
foram  gradualmente  diminuindo,  e  em  1806  este  projecto 
humanitário  passou  em  ambas  as  casas  do  parlamento  por 
grande  maioria.  O  que  restava  era  dirigir  uma  mensagem  ao 
rei,  pedindo-lhe  para  tomar  as  medidas  convenientes  e  preci- 
sas, a  fim  d'obter,  por  tratados,  a  concorrência  d'outras  po- 
tencias e  a  execução  dos  regulamentos  que  se  houvesse  de 
confeccionar  para  aquelle  effeito.  Estas  medidas  foram  propos- 
tas e  na  paz  geral  de  1814,  a  abolição  da  escravatura  foi  as- 
signada  por  todos  os  poderes  contractantes.    Mas    com  quan- 


269 

to  os  respectivos  governos  çondemnem  este  trafico  anti-christão, 
alguns  particulares  de  vários  paizes  com  muito  custo  se  re- 
solveram abandonar  um  campo  de  que  auferiam  tantos  lu- 
cros; e  se  não  fora  o  cruzeiro,  é  muito  de  suppôr  que  este  tra- 
fico illicito  continuaria  com  a  mesma  impunidade.  E'  para 
lamentar  que  a  religião,  a  justiça  e  a  humanidade  exerçam 
tão  fraca  acção  sobre  a  consciência,  quando  esta  se  acha  en- 
durecida por  considerações  d/interesse. 

Quando  a  escravatura  oceupava  a  attenção  do  senado  e  po- 
vo inglez,  um  novo  phenomeno  espantava  o  mundo — a  consti- 
tuição d'um  império  negro  alem  do  Atlântico.  Entre  as  com- 
moções  nascidas  da  revolução  Franceza,  a  gente  de  cor  na 
Hespaniola,  a  maior  e  a  mais  fértil  das  West  índias,  expulsou 
os  brancos,  sob  cujo  jugo  haviam  gemido,  e  emancipando-se 
do  poder  da  França,  proclamou,  depois  d'uma  luta  sanguino- 
lenta, uma  republica  independente,  com  o  nome  de  Hayti, 
original  denominação  d'aquelle  paiz  antes  do  seu  descobrimen- 
to por  Colombo,  Os  haytianos  tem  completamente  desmenti- 
do os  argumentos  d'aquelles  que  queriam  apresentar  os  ne- 
gros como  uma  raça  inferior,  abaixo  da  escaravelha  geral  da 
humanidade;  porque  o  seu  progresso  na  politica,  no  commercio, 
nas  lettras,  e  artes,  promette  dar-lhes  um  distincto  logar  entre 
as  nações  civilisadas. 

E'  ainda  para  lamentar  que  a  abolição  da  escravatura  não 
tenha  produzido  todos  os  seus  benéficos  eífeitos  e  que  apesar 
de  tudo  continue,  posto  que  clandestinamente,  este  trafico, 
mas  devemos  confiar  que  com  o  tempo  as  circunstancias  da 
parte  transatlântica  do  globo  soffram  uma  mudança  tal,  que 
desappareçam  todos  os  argumentos  politicos  ou  commerciaes 
em  favor  da  sua  necessidade. 


VIGÉSIMA  SEGUIDA  CÃBTA 

Passamos  agora  a  analysar  uma  das  mais  notáveis    conse- 
quências do  descobrimento  d' America,  isto  é,  a  sua  influencia 


270 

sobre  os  preços  dos  artigos  de  primeira  necessidade  nos  diffe- 
penftes  paizes  da  Europa. 

A  descoberta  dAmerica  é  um  d'estes  importantes  aconte- 
cimentos de  que  resultou  uma  mudança  completa  e  duradou- 
ra no  systema  dos  negócios  da  humanidade.  Tem-se  já  nota- 
do que  este  facto  acordou  o  espirito  das  emprezas,  a  que  se 
seguio  o  systema  da  colonisação  que  o  mundo  até  então  des- 
conhecia; como  também  que  deu  origem  a  um  novo  systema 
de  escravatura  que  a  humanidade  deplora,  com  quanto  se  não 
possa  desde  já  realisar  a  sua  completa  abolição. 

A  agricultura  Americana  tornou  baratas  e  abundantes  um 
numero  de  conveniências  e  commodidades  da  vida,  d'antes 
excessivamente  caras  e  escassas;  e  introduzio  muitas  outras 
inteiramente  desconhecidas.  A  canna  d'assuear  cnltivára-se  de 
tempo  immemorial  em  alguns  logares  da  Azia  e  Africa;  e  o 
assucar  foi  um  d'aquelles  artigos  de  luxo,  com  o  que  o  tranco 
do  porto  cTÁlexandria  supprio  Roma  e  outras  partes  do  impé- 
rio. 

O  assucar  era  conhecido  aos  romanos  com  o  nome  de  < sac- 
charum»,  mas  era  muito  raro  e  caríssimo,  tanto  que  não  ser- 
via senão  como  remédio  ou  nas  mezas  da  opulência,  A  cul- 
tura da  canna  iraportou-se  na  Sicilia  pelo  meado  do  século  do- 
ze. Da  Sicilia  veio  para  as  províncias  meridionaes  da  Hes- 
panha.  t)'ahi  íbi  levada  á  Madeira  e  á-s  Canárias,  e  d'aquellas 
ilhas  para  a  América,  aonde  o  solo  e  clima  favoreceram  de  tal 
modo  a  sua  producção,  que  ficou  sendo  um  artigo  permanen- 
te de  commercio  em  varias  colónias.  O  café,  oriundo  d'Abys- 
sinia,  tinha  sido  mui  remotamente  transplantado  para  a  Ará- 
bia, e,  como  a  canna,  constituio  um  artigo  de  commercio  na 
Alexandria,  mas  era  pouco  conhecido  na  Europa.  Esta  plan- 
ta também  se  importou  na  America,  aonde  floresce  perfeita- 
mente; e  os  lucros  provenientes  d'estes  dois  artigos  estimu- 
lando os  colonisadores  a  uma  cultura  extensa,  as  quantidades 
trazidas  para  a  Europa  os  tornou  baratos  e  abundantes.  O 
tabaco  também  se  não  conhecia  n'estas  partes  do  globo  até 
que  foi  importado   na  Inglaterra  pelo    capitão  Lane,  que  re- 


271 

conduzia  algumas  pessoas  mandadas  por  Sir  Walter  Raleigli 
para  estabelecerem  uma  feitoria  na  Virgínia.  Este  artigo,  á  se- 
melhança do  assucar,  torno u-se  geral. 

A  introducção  de  muitos  artigos  de  luxo,  desconhecidos  dos 
gregos  e  romanos,  como  também  a  generalisaçâo  d'outros,  que, 
em  razão  da  sua  escaeez  e  alto  preço,  podiam  apenas  appare- 
cer  nas  mezas  dos  ricos  e  poderosos  entre  os  antigos,  não  foi 
com  tudo  a  alteração  mais  importante  no  systema  commercial 
e  social  áa  Europa,  devida  ao  descobrimento  e  colonisação 
do  novo  mundo.  A  vasta  e  continua  importação  de  ouro  e 
prata  das  minas   Americanas  na  Europa,   tornando   aqueiles 

:  -es  incomparavelmente  mais  baratos  que  cVantes  eram,  e 
diminuindo  consequentemente  seu  valor,  alteou  os  preços  de 
toda  a  producção  Europea,  e  em  geral  de  toda  a  qualidade  de 
propriedade.  Este  augmento  extraordinário  de  valor  da  pro- 
priedade na  Europa,  devido  ás  entradas  da  riqueza  America- 
na, em  £>ouco  dobrou  e  quadruplicou  e  em  alguns  casos  che- 
gou ao  clécuplo  e  constituía  a  feição  mais  saliente  que  distingue 
aquelle  grande  acontecimento.  O  augmento  e  generalisaçâo  de 
riquezas  progredira  tão  vagarosamente  na  Europa,  antes  da.- 
inundação  do  ouro  Americano,  que  ainda  em  1531  quando  a 
conquista  do  Peru  não  se  completara,  e  que  aquelia  do  Méxi- 
co e  da  Terra  Firme,  e  outros  paizes  ricos  apenas  se  consoli- 
dava, tendo  vindo  por  consequência,  ainda  poucas  riquezas 
para  a  Europa,  as  despezas  feitas  por  occasião  d'uma  grande 
festa  publica,  que  teve  togar  em  Londres  custou  o  seguinte: 

LSD 


24  bois  a 

1 

6, 

8 

100  carneiros  gordos  a 

0 

2, 

10 

51  bezerros  a 

0 

4, 

8 

gallinhas  a 

0. 

o, 

2 

27  dúzias    de     pombas 

(por  dúzia)  0. 

o, 

2- 

350       a         de  calhandras 

(        .        )  0. 

o, 

5 

Henrique  oitavo,  e  a  rainha  Catharina  d' Aragão,  honraram 
esta  festividade  com  a  sua  presença,  e  o  seu  custo  foi  tão  in- 


272 

significante  que  não  o  acreditaríamos  se  não  conhecêssemos 
as  circunstancias  especiaes  cTaquelle  tempo.  Iníbrma-nos  o 
mesmo  author  que  em  153G  os  moinhos  do  Priorado  de  Bir- 
mondsey  arrenclaram-se  por  6  libras  eterlinas. 

A  circulação  d'aquelles  metaes  preciosos  em  differentes  ida- 
des, e  em  diversas  partes  do  globo,  é  um  estudo  curioso  e 
interessante.  Segundo  parece  usavam-se  como  intermédio  de 
cornmercio  já  nos  tempos  de  Abraham,  e  como  artigos  orna- 
mentaes  em  epochas  pouco  mais  remotas;  e  de  facto,  com 
quanto  não  tenhamos  informações  authenticas  em  relação  a 
esta  especialidade  é*  muito  provável  que  servissem  como  tal  an- 
tes que  determinassem  o  valor  dos  objectos.  Deprehendemos 
da  historia  sagrada  que  o  ouro  e  a  prata,  bem  como  certas  qua- 
lidades de  pedras  preciosas,  abundavam  no  Egypto  no  tem- 
po do  egresso  dos  Israelitas;  por  isso  que  as  valiosas  offertas 
do  povo  para  a  construcção  do  tabernáculo,  com  todos  os  ri- 
cos materiaes  de  que  o  mesmo  se  compunha,  come*  também 
da  magnificência  dos  paramentos  do  summo  pontífice,  e  de 
todas  as  ceremonias  religiosas,  sahiram  d'aquelles  thezouros 
que  elles  tinham  trazido  d'aquelle  paiz;  nem  mesmo  se  expli- 
ca por  outro  modo  a  posse  em  que  estavam  os  Israelitas  de 
objectos  de  tanto  valor.  Expolio  d'inimigos  não,  por  que  a 
guerra  com  os  Medianitas  foi  a  primeira  e  posterior  á 
construcção  do  tabernáculo.  Pelo  cornmercio  também  não, 
porque  em  parte  alguma  consta,  nem  ha  recordações  d'actos 
commerciaes  d'onde  viessem  aos  Israelitas  tamanha  somma 
de  materiaes  valiosos  em  tão  pouco  tempo  depois  da  sua  en- 
trada no  deserto.  Na  sua  conquista  das  terras  de  Canaan, 
houve  considerável  espolio;  mas  não  é  senão  no  tempo  de 
David  que  se  vê  uma  profusão  de  riquezas  que  espanta  em 
tão  remoto  período  da  antiguidade;  e  a  abundância  de  ouro  e 
prata  no  reinado  que  succedèu  de  Salomão  tem  feito  vacillar 
a  muitos  leitores  iniciados  na  historia  Judaica.  A  historia  das 
guerras  de  David  faz  crer  que  consideráveis  quantidades  de 
ouro  e  prata  foram  por  quaesquer  meios  introduzidos  nos 
paizes  situados  entre    o  Euphrates    e  o  mar  do  Levante,  e  é 


,      273 

de  suppor  que  aquella  aecumulação  de  riquezas  foi  em  gran- 
de parte  eífeito  do  trafico  conduzido  pelos  Tyrios  e  Egypcios 
com  as  partes  orientaes  e  meridionaes  do  globo. 

As  relações  commereiaes  entre  Salomão  e  os  Tyrios  produ- 
ziram enormes  riquezas;  e  parece  que  havia  grande  abundân- 
cia d'ouro  e  prata  no  Egypto,  nas  partes  occidentaes  da  Ásia 
d'este  lado  do  Eupbrates,  e  na  Assyria  e  Clialdea,  antes  que  a 
conquista  de  Sardes  e  de  Babylonia  tivessem  transferido  uma 
grande  parte  da   sua  riqueza  para  as  mãos  dos  Persas,  que 
anterior  áquelle  período  parecem  haver  passado  da  pobreza  e 
obscuridade  á  opulência  e  poder.   Nenhum  documento  histó- 
rico, porem,  existe  que  nos  elucide  sobre  os  meios  pelos  quaes 
entrou  tantas  riquezas  íVaquelles  paizes  e  nem  a  historia  anti- 
ga ou  moderna,  sacra  ou  profana  allude  ao  menos  á  existência 
de  minas  iraquellas  ou  em  outras  partes  do  mundo.  N'este,  co- 
mo em  muitos  outros  pontos,  estamos  muito  atrazados  e  a  suppo- 
sição  melhor  é  que  o  ouro  e  a  prata  dos   antigos  vinham  da 
Africa,  aonde  aquellesmetaes,  especialmente  o  ouro,  abundam, 
tanto  no  interior  como  nas  partes  orientaes,  sobretudo  na  Mo- 
nomoj)ata,    Monceningi,   e  Sofala,  que  muitos  suppõem  ser  a 
terra  d'Ophir,  para  aonde  se  dirigiam  as  frotas  de  Salomão, 
em  quanto  outros,  com  menos  bom  fundamento  julgam  ser  a 
ilha  de  Ceylon  ou  outras  partes  da  índia,   ou  ilhas  orientaes. 
Quaesquer,   porem,  que   fossem   as    partes  da  Africa    ou  da 
Ásia  aonde  estes  metaes  se  encontrassem,  ha  toda  a  probabi- 
lidade de  que  foram  introduzidos  no  Egypto,  e  nas  partes  oc- 
cidentaes da  Ásia,  pelos  negociantes  Árabes,  Egypcios  e  Ty- 
rios.   Os  Egypcios  principalmente  podiam   trazer  uma  consi- 
derável parte  cfessas  riquezas  nas  suas  caravanas  que  de  tem- 
pos immemoriaes  viajavam  para  a  Ethiopia,  sob  cuja  denomi- 
nação se  comprehenclia   todo  o  interior  e  sul  d' Africa;    assim, 
as  caravanas  da  Ethiopia  vinham  ao  Egypto.  Nas  idades  flo- 
rescentes da  Grécia,  o  ouro  e  prata  entraram  abundantemente 
n'aquelle  paiz,    mormente  depois  da  conquista  da  Pérsia  por 
Alexandre,   estendendo  a  circulação  da  riqueza  d'aquelíe  im- 
pério para  o  occidente.  Em  quanto  isto  se  passava  Roma  era 


274 

extremamente  pobre,  c  os  seus  cidadãos  possuíam  nina  miu 
diminuta  quantidade  d'aqiielles  preciosos  metaes,  até  que  a 
conquista  da  Macedónia  e  dos  reinos  gregos  da  Ásia  fez  afrluir 
para  aquella  cidade  as  riquezas  do  oriente.  Depois  que  os 
Godos  e  outras  nações  do  norte  começaram  a  invadir  com. 
bons  resultados  o  império  romano,  o  espolio  das  suas  provín- 
cias deu-llies  a  posse  d'uma  parte  das  suas  riquezas,  e  o  ouro  e 
a  prata,  que  até  então  lhes  eram  inteiramente  desconhecidos, 
foram  introduzidos  entre  elles  depois  d'aquel!as  guerras  devas- 
tadoras. Depois  da  queda  total  do  império  occidental,  as  rique- 
zas que  Roma  accumulára  no  decurso  de  tantos  séculos  de 
feliz  rapina  foram  gradualmente  dispersas  por  toda  a  Europa, 
e  os  metaes  preciosos  penetraram  nas  regiões  do  norte.  À 
abundância  dé  ouro  e  prata  que,  como  nos  diz  a  historia,  se 
expunha  com  profusão  nos  palácios  e  decorava  o  vestuário  e 
armamento  dos  antigos  parece  fabuloso  anos  modernos,  e  não 
sem  alguma  razão  perguntamos  —  que  fim  se  deu  a  uma  tal 
quantidade  de  metaes  que  aquelles  paizes  possuíam,  por 
exemplo  Jerusalém  e  Judah  nos  tempos  antigos,  e  por  que  os 
não  vemos  na  mesma. profusão  depois  das  descobertas  das  mi- 
nas d' America?  Â  resposta,  porem,  é  fácil.  Antigamente  o  ou- 
ro c  a  prata  nao  entravam  na  circulação  como  hoje  acontece. 
N'aquelles  tempos  a  riqueza  circunscrevia-se  a  um  circulo  es- 
treito. O  Egypto  e  aquelle  pequeno  districto  da  Ásia  que  se 
extende  desde  o  Levante  e  o  Archipelago  Grego,  até  ao  Euphra- 
tes,  conjunctamente  com  a  Assyria  e  a  Chaldea,  eram  os  úni- 
cos paizes  de  que  a  historia,  quer  sacra  ou  profana,  faz  men- 
ção de  tamanha  abundância  de  ouro  e  prata.  Estes  metaes. 
não  circulavam  fora  d'aquelles  paizes  e  não  passavam  de  cer- 
tas mãos.  Eram  propriedade  tão  somente  dos  príncipes  e  dos 
grandes. 

O  commercio  não  tinha  n'aquèlle  tempo  deitado  ramificações 
e  por  tanto  não  estavam  dessirninados  pelo  povo.  E'  esta  a 
razão  por  que  se  viam  profusamente  em  certos  c  determina- 
dos logares  e  em  poder  de  poucos  indivíduos.  Vemos  a  sua 
importação  nos  domínios  israelitas  pelas  armadas  de  Salomão; 


275 

mas  é  muito  provável  que  este  trafico  fora  monopolisado  pe- 
la coroa,  e  não  obstante  o  extraordinário  apparaío  de  opulên- 
cia em  Jerusalém,  não  se  supponha  que  tamanha  quantidade 
de  ouro  e  prata  andava  em  circulação  entre  lavradores,  nego- 
ciantes e  artistas  como  entre  iguaes  classes  de  muitos  paizes 
europeus;  nem  que  todo  o  ouro  accumulado  no  reino  de  Sa- 
lomão sofTra  comparação  com  o  numerário  circulante  na  In- 
glaterra e  na  França.  A  riqueza  então  junta  n'um  ponto  do  glo- 
bo, espalhou-se  depois  por  entre  os  persas,  depois  entre  os  gre- 
gos e  carthaginenses  e  mais  tarde  entre  os  romanos;  e  final- 
mente por  toda  a  Europa,  aonde  nenhum  ouro  e  prata  se  des- 
seminava  até  então.  Os  thezouros,  que  pareceram  immensos 
quando  concentrados  n'um  pequeno  espaço,  tornarain-se  in- 
significantes n'esta  grande  subdivisão  e  esta  circunstancia  fez 
o  ouro  e  a  prata  escassos  em  extremo  quando  tinham  pareci- 
do d'antes  tão  abundante.  O  ouro  era  mesmo  tão  raro  que 
foi  só  no  decimo  oitavo  anno  do  reinado  de  Eduardo  3.°, 
1345,  que  pela  primeira  vez  se  cunhou;  nem 'mesmo  prata  se- 
não em  pequenas  moedas. 

Note-se  também  que  nas  transacções  de  compra  e  venda 
de  propriedade  a  libra  normanda  era  uma  libra  de  peso  em 
prata,  segundo  o  bispo  de  Fleetwood,  Sir  Roberto  Atkins  e 
outros;  e  Mr.  Folke  diz-nos  que  esta  libra  normanda  equivalia 
a  14:860  moeda  fraca  (11:888  rs.  fortes).  Nos  tempos  dos 
reis  normandos,  antes  de  Eduardo  3.°,  as  únicas  moedas 
neste,  e  talvez  em  qualquer  outro  paiz  da  Europa,  eram  os 
Bysanthos  de  Constantinopla.  Á  fluctuação  do  valor  das  moe- 
das torna  diíricil  ajuizar  do  valor  da  propriedade  em  outras 
eras;  mas  é  evidente  que  os  preços  dos  difierentes  artigos  de 
producção  europea  augmentavam  lentamente,  e  que  o  ouro  e 
prata  continuavam  a  ser  escassos  até  á  abertura  das  minas  do 
novo  mundo.  A  ostentação  d'aquèlles  metaes  em  quanto  se 
restringiam  ao  ICgypto  e  outros  paizes  occidentaes  da  Ásia  e 
a  sua  escacez  depois  da  sua  dessiminação  por  tantas  nações 
di; /crentes,  mostra  que  o  produeto  das  minas,  aonde  quer  que 
existissem,  não  eram  suííieieníemente   abundantes   para   que 

36 


276 

essem  contrabalançar  os  effeitos    da  sua  extensiva    dessi- 

s  o  eommércio  não  fora  sufficientemente 

activo  e  florescente  para  crear  uma  importação  de  rnetaes  dos 

;es  da  sua  producção.  Ambas  estas  causas  poderião  ter 
concorrido  para  produzir  a  escacez  do  euro  e  da  prata  por 
tanto  tempo  na  Europa.  Uma  terceira  causa  podia  ter  contri- 
buído para  esta  mingua,  alem  da  dessiminação  d5estes  metaes 
e  a  insufficiencia  da  sua  producção  ou  importação.  Não  se  po- 
de duvidar  que  grandes  íbesouros  tivessem  sido  enterrados  nos 
tempos  d'aquellas  guerras  devastadoras,  conquistas  e  violentas 
revoluções,  que  tão  frequentemente  agitavam  o  velho  mundo  : 
e  por  consequência^  uma  parte  considerável  do  ouro  e  prata, 
d'antes  tão  abundantes  nos  primeiros  tempos  d'antiguidade, 
desappareceram  por  este  meio. 

O  descobrimento  da  America,  e  a  exploração  das  suas  mi- 
nas produziram  um  effeito  magico  sobre  o  systema  so- 
cial e  çommercial  da  Europa.  A  entrada  das  riquezas  ameri- 
canas na  Hespanha  e  Portugal,  que  d'esse  tempo  em  diante 
por  innumeros  canaes  commerciaes,  circulou  rapidamente  nos 
difTerent.es  paizes  da  Europa  produzia  uma  depreciação  imine- 
diata  no  valor  do  ouro  e  prata  e  um  augmento  relativo  nas 
producções  Europeas.  Afim  de  ajuizar  do  augmento  d'aqueb 
les  metaes  na  Europa,  desde  a  exploração  das  minas  da  Ame- 
rica, bastará  notar  que  o  dr.  Robertson,  historiador  de  credito 
c  conhecido  pela  elegância  de  seu  estylo,  diz-nos,  que,  segun- 
do um  calculo  rasoavel,  a  quantidade  de  ouro  e  prata  impor- 
tada na  Hespanha  da  America  monta,  termo  médio  animal, 
de  14.92  a  1775  á  somma  de  quatro  milhões  de  libras  esterli- 
nas, que '  n'aquelle  período  importava  em  1132,000,000 
libras  esterlinas;  e  que  se  levarmos  em  conta  o  que  entrou 
clandestinamente,  podemos  reputar  o  valor  dos  metaes  que  a 
Hespanha  importou  das  suas  colónias  em  não  menos  que  dous 
mil  milhões  de  libras.  O  abbade  Raynal  também  assevera  que 
durante  o  período  que  decorre  desde  o  descobrimento  do  Bra- 
zil  até  1756,  cem  milhões  de  libras  esterlinas,  em  ouro,  entrou 
em  Lisboa  d'aquella  colónia.  Diz-nos  o  mesmo  escriptor,  dam 


277 

do-nos  ura  exemplo  do  giro  d'aquelles  nietaes  por  melo  do 
commercio,  que  nao  obstante  esta  importação  de  ouro  ém 
Portugal,  o  numerário  em  circulação  n'este  reino,  segundo  os 
mais  seguros  cálculos,  nao  excedia  a  833,333  libras  esterli- 
nas, e  que  a  divida  nacional  andava  a  esse  tempo  por  166,600 
libras  esterlinas.  Nao  se  poderasoavelmente  julgar  estes  cál- 
culos exactos;  mas  podem  ser,  e  sem  duvida  são  sufficiente- 
mente  seguros  para  nos  habilitar  a  fazer  uma  estimativa,  apro- 
ximadamente verdadeira,  não  só  das  enormes  quantias  de  ou- 
ro e  prata  trazidas  da  America,  como  também  das  forças  da 
industria  empregadas  na  agricultura,  nas  manufacturas  e  no 
commercio,  para  attraliir  as  riquezas  de  outros  paizes;  porque 
é  fora  de  duvida  que  a  maior  parte  dos  thesouros  vindos  para  a 
ílespanhae  Portugal,  param  na  Inglaterra,  França  eHollanda. 
À  imputação  da  riqueza  americana  para  o  velho  mundo 
tem  alterado  o  valor  relativo  do  ouro  e  prata  por  isso  que  as 
minas  eram  mais  ricas  neste  ultimo  metal.  Esta  alteração, 
porem,  inílue  mais  naquelles  paizes  que  tem  relações  commer- 
ciaes  com  a  America.  A  proporção  entre  o  valor  do  ouro  e 
da  prata,  era  segundo  o  Abbade  Raynal,  na  antiga  Grécia, 
na  rasão  dum  para  treze.  Em  Roma,  ao  tempo  da  morte  da 
republica,  como  um  para  dez;  e  sob  o  império  de  um  para 
treze.  Na  Europa,  na  idade  que  precedeu  immediatamente  o 
descobrimento  da  America,  como  um  para  doze  no  Japão,  e 
presentemente  como  um  para  oito.  Na  China,  como  um  para 
dez.  Na  índia,  um  para  onze;  e  mais  tarde  um  para  doze  ; 
treze  ou  quatorze  á  medida  que  se  avançava  para  o  poente  ; 
e  na  Hespanha,  e  em  todos  os  paizes  da  moderna  Europa,  na 
rasão  de  um  para  deseseis.  Este  valor  relativo  dos  dois  me- 
taes tende  a  soffrer  alterações  â  proporção  que  forem  appare- 
cendo  minas  d'ouro  e  desapparecendo  as  de  prata^Quando  as 
minas  do  Potosi  foram  primeiro  exploradas  a  prata  estava  em 
relação  com  o  minério  na  rasão  de  cincoenta  por  cento;  pre- 
sentemente, porem,  a  mesma  quantidade  de  minereo  produz 
apenas  dois  por  cento.  As  minas  na  America  Hespanhola 
constituião  propriedade  do  descobridor.    Concedia-se-lhe  uma 


278 

determinada  extensão  de  terreno,  mas  a  exploração  é  objecto 
tão  despendioso  e  tão  incerto  que  muita  gente  tem  sido  ar- 
ruinada n'estas  emprezas.  A  prata  diminue  consideravelmente 
em  quanto  que  a  descoberta  das  minas  de  ouro  aagmenta. 
Para  os  fins  do  século  passado  foram  encontradas  quantida- 
des tão  avultadas  d'aquelle  metal  em  alguns  logares  da  Ame- 
rica hespanhola  que  surpreliendeu  aquelles  mesmos  acostu- 
mados ás  ricas  producções  daquelles  paizes.  N'uraa  colina  nas 
immediações  de  Pamplona,  Nova  Granada,  um  simples 
trabalhador  juntava  n'um  só  dia  uma  centena  de  pesos  e  um 
dos  últimos  governadores  de  Santa  Fé  trouxe  para  a  Xiespa- 
nha  uma  pedra  d'ouro  puro  avaliado  em  740  libras  esterlinas. 
Esta  amostra,  a  maior  encontrada  nas  minas  do  novo  mundo, 
foi  depositada  no  museu  de  curisiodades  de  Madrid.  Em  quan- 
to a  prata  não  temos  conhecimento  de  minas  de  consideração 
d'este  metal.  As  minas  argentinas  da  Styria  produzem  uma 
quantidade  que  concorre  muito  para  a  riqueza  da  casa  d' Áus- 
tria; mas  não  tanto  que  produza  sensivei  augmento  na  circu- 
lação; e  aquelias  de  Kongsberg,  na  Norwuega  satisfazem  muito 
apenas  o  costeio.  Estas  circunstancias  tomadas  colleetamen- 
te  authorisam  a  julgar  que  se  o  augmento  na  importação  do 
ouro  venha  a  contrabalançar  a  diminuição  da  prata,  virá  no 
decurso  do  tempo  a  influir  no  seu  valor  comparativo  sem  al- 
terar em  nada  o  valor  relativo  da  moeda  em  relação  aos  pre- 
ços das  necessidades  da  vida  e  dos  vários  artigos  da  proprie- 
dade e  producçào  da  Europa.  A  este  respeito  o  descobrimen- 
to da  America  é  uma  causa  primaria  que  opera  no  systema 
commercial  com  incessante  actividade  até  aos  nossos  dias,  e 
tem  necessariamente  dexercer  mais  ou  menos  influencia  pa- 
ra sempre;  por  .que  se  fora  possível  chegar  um  periodo  em 
que  se  esgotassem  as  minas  auríferas  e  argentinas,  as  mas- 
sas enormes  já  lançadas  em  circulação,  tem  dado  tal  impulso 
e  actividade  á  navegação  e  commercio,  que,  segundo  toda  a 
probabilidade,  não  deixará  jamais  de  actuar  sobre  as  empre- 
zas e  especulações  mercantis  que  encontrarão  sempre  inú- 
meros canaes  de  circulação. 


279 

Os  effeitos  da  descoberta  e  colonisação  d' America  não  só 
são  eminentemente  notáveis  e  conspicuos  no  systema  politi- 
co e  commercial  do  mundo  como  também  claramente  percep- 
tíveis no  que  respeita  á  religião.  O  christianismo  soffrêra 
um  grande  desfalque  de  poderio  e  grande  influencia  em  con- 
sequência do  progresso  do  Mahometanismo,  e  a  perda  d'aquel- 
les  ricos  e  extensos  paizes  que  compunham  o  império  dos  ca- 
lifas. Em  compensação  d'estas  perdas  todas  as  nações 
septentrionaes  da  Europa  converteram-se  ao  christianismo. 
Depois  que  os  Turcos  estabeleceram  seu  império  na  Ásia,  in- 
vadiram a  Europa,  e  favorecidos  pelas  continuas  desavenças 
entre  os  christãos  e  muito  principalmente  pela  rivalidade  in- 
veterada entre  a  egreja  grega  e  latina  ganhavam  gradual- 
mente terreno;  até  que  Constantinopla,  baluarte  inexpugná- 
vel da  Europa  contra  o  poder  do  califado,  caliio  em  poder 
dos  mahomentanos  então  temíveis  para  toda  a  Europa.  O  po- 
der e  os  interesses  do  christianismo  soffreram,  e  foram  consi- 
deravelmente cerceados  com  a  perda  do  império  do  Orienter 
e  d'aquelles  férteis  e  florescentes  paizes,  a  Grécia  e  a  Mace- 
clonea  etc.  que  então  passaram  ao  domínio  Ottomano.  O 
christianismo  soffreu  esta  perda  pelo  meado  do  século  quin- 
ze, tendo  sido  tomada  Constantinopla  em  1453;  mas  para  os 
fins  do  mesmo  século  foi  amplamente  compensado  com  a  des- 
coberta d'America  em  1492,  e  cinco  ânuos  depois  com  a  pas- 
sagem para  a  índia  pelo  cabo  da  Bôa  Esperança.  Estes  des- 
cobrimentos e  a  importação  de  riquezas  conjunctamente  com 
o  aug mento  proporcional  de  poder  deram  ás  nações  enristas 
decidido  predomínio  na  escala  politica  do  mundo;  e  o  chris- 
tianismo adquiiio  uma  influencia  que  nunca  até  então  possuí- 
ra, de  facto,  o  génio  emprehendedor  destas  nações,  a  sua 
superioridade,  tanto  nas  artes  como  nas  armas,  sobre  todos 
os  demais  povos  do  globo,  a  que  aceresciarn  outras  cir- 
cunstancias consideradas  collectiva mente  parecem  authorisar- 
nos  a  esperar  que  a  religião  de  Christo  venha  a  ser  a  única 
predominante  em  todo  o  mundo,  e  considerando  as  circunstan- 
cias physicas  e  moraes  da  humanidade,  um   tal  resultado  ti- 


280 

nhã  manos  ^extraordinário  que  a  sua  primeira  propagação  e 
estabelecimento. 

Em  quanto  os  hespanhoes  se  empregavam  em  projectos  de 
descobertas,  conquistas  e  de  colònisação  no  novo  mundo,  os 
portuguezes  nào  desenvolviam  menos  energia  no  mesmo  cam- 
po com  quasi  igual  importância.  Cinco  annos  depois  da  des- 
coberta d' America  por  Colombo,  Vasco  da  Gama  dobrou  o 
Cabo  da  Boa  Esperança,  explorou  a  costa  oriental  da  Africa 
e  aportou  á  costa  occidental  da  península  Indiaíica,  chamada 
geralmente,  a  costa  do  Malabar.  Depois  d'aquella  felis  via- 
gem, os  portuguezes  estabeleceram  varias  feitorias  em  quasi 
toda  a  costa  d'Af  rica,  e  fizeram  ricas  e  extensas  conquistas  sob 
o  cominando  do  intrépido  e  celebre  Affonso  d*  Albuquerque,  que 
tomou  a  cidade  de  Goa  e  conquistou  toda  a  costa  do  Malabar; 
como  também  Malacca  e  Ormuz,  e  emprehendeu  algumas  ex- 
pedições pelo  mar  Vermelho  dentro.  Depois  de  haver  desen- 
volvido um  talento  extraordinário,  tanto  na  guerra  como  em 
matéria  d'admmistração,  morreu  em  Goa  em  1515,  deixando 
os  portuguezes  senhores  de  todo  o  trafico  da  índia  e  da  Afri- 
ca, e  d' um  império  commercial  sem  parallelo  nos  annaes  dos 
tempos  passados.  Esta  vasta  extensão  de  dominio  e  commer- 
cio  adquirida  tilo  rapidamente,  foi  comtudo  quasi  tao  rapi- 
damente perdida  depois  do  dominio  dos'Philippes  em  Por- 
tngual.  O  commercio  da  índia  e  as  colónias  portuguesas  mais 
importantes  cahiram  nas  mãos  dos  hollandezes,  e  pouco  mais 
ficou  a  Portugal  que  a  sua  cidade  e  ilha  de  Goa  e  alguns 
estabelecimentos  na  costa  d* Africa. 

Pouco  depois  d'estas  grandes  e  importantes  descobertas, 
outro  facto  de  differente  natureza,  mas  não  menos  importante, 
começou  a  demonstrar-se  na  Europa. 

O  enorme  poder  da  egreja,  que  havia  tantos  annos  hia  em 
angmento,  começou  a  ser  considerado  em  muitos  paizes  co- 
mo um  dominio  usurpador  das  consciências;  e  a  immoralida- 
de,  como  também  o  despotismo  do  clero,  pediam  uma  refor- 
ma. Muitos  ecclesiasticos  e  prelados  da  egreja  estavam  con- 
vencidos d'esta  necessidade  no  que^clizia  respeito  á  disciplina, 


28! 

e  desejavam  a  reunião  d'um  grande  concilio  para  regular  a 
herarchia,  e  acabar  com  aquelles  abusos,  que,  pela  imperfei- 
ção da  natureza  humana  se  insinuam  quasi  insensivelmente 
em  todos  os  systemas  religiosos,  e  em  tudo  concernente  aos 
negócios  humanos.  A  obra  da  reforma  porem,  não  foi  em- 
prehendida,  por  que  raras  vezes  vemos  uma  communidade 
religiosa  ou  politica  reformar-se  a  si  mesma  em  quanto  a  is- 
so não  ê  compellida  por  alguma  causa  imprevista,  Esta  ne- 
gligencia na  reforma  de  abusos,  que  gradualmente  se  propa- 
gam nos  systemas  religiosos  e  politicos,  produz  muitas  vezes 
aquellas  violentas  reformas  que  trazem  comsigo  consequên- 
cias fataes  aos  mesmos  systemas  e  subversivas  da  ordem  esta- 
belecida das  cousas.  Foi  o  que  aconteceu  á  egreja  no  século 
deseseis.  A  corte  de  Roma  julgando -se  na  posse  segura  duma 
authoridade  e  poder  illimitados,  em  logar  d'examinar  e  regu- 
lar a  disciplina  da  egreja  e  os  seus  abusos  que  facilmente  se 
teriam  corrigido,  preferio  esmagar  toda  a  qualidade  d'oppo- 
sição  por  medidas  arbitrarias;  e  a  obra  da  reforma,  que  podia 
ter-se  effectuado  sem  perturbar  em  nada  a  tranquilidade  do 
christianismo,  estava  reservada  a  um  Martinho  Luthero,  fra- 
de de  génio  arrojado  e  -impetuoso,  cuja  violenta  opposição  á 
arbitrariedade  da  santa  sé,  combinada  com  o  orgulho  e  tei- 
mosia da  corte  de  Roma  produzio  uma  divisão  e  traçou  uma 
demarcação  na  egreja  christã  que,  segundo  todas  as  probabi- 
lidades,   jamais    desapparecerá. 

A  corte  de  Roma  mantendo  seus  princípios  resolveu  si- 
lenciar Luthero,  impondo-lhe  preceitos  positivos,  que  elle, 
achando-se  apoiado  por  um  grande  partido,  corajosamente 
despresou  e  mais  "audaz  se  tornou  á  proporção  que  a  santa  sé 
procurava  esmagal-o  violentamente.  Luthero,  por  muito  tem- 
po, manifestou  desejos  de  submetter-se  ás  .decisões  d'um  con- 
cilio geral  e  vários  príncipes  christãos  imploraram  ao  papa  a 
sua  convocação,  a  fim  de  assegurar  a  tranquilidade  da  egreja 
e  a  sua  unidade.  Por  motivos  porem,  desconhecidos,  estas 
solicitações  foram  desattendidas,  e  foi-se  sempre  deferindo  a 
reunião  do  conselho,  até  que  finalmente   o  papa,  cedendo  ás 


ítostancias  do  imperador  Carlos  quinto,  convocou  o  concilio 
de  Trento  em  1 545,  vinte  oito  annos  depois  que  LtitLero  er- 
guera o  estandarte  da  opposiçâo,  intervallo  sufíiciente  para  o 
seu  partido  adquirir  forças  e  obter  o  apoio  de  muitos  prínci- 
pes germânicos  e  outros  homens  d'elevada  posição,  alem  de 
muita  gente  de  todas  as  ciasses  da  sociedade,  inclusivamente 
ecclesiasticos  que  abraçaram  as  suas  doutrinas  e  recuzàram- 
se  a  reconhecer  a  authoridade  da  santa  sé. 

Era   já  demasiadamente  tarde  para   que  os  decretos  d'um 
concilio  sarasse  as  feridas  abertas    quando    tão   considerável 
parte  da  egreja  repudiara   a  authoridade   papal.  Se   tivessem 
reunido  um  concilio  geral  no  começo  d'aquellas  disputas,  ter- 
se-hia,  sem  duvida,  restabelecido  a  tranquilidade  e   harmonia 
da  egreja  sem  difficuldade.    Ha  todas  as  razões  para  crer  que 
se  hoje  se  dessem   desintelligencias  na  egreja    a  moderação  e 
sentimentos    liberaes  cia    epocha   illustrada  em  que  vivemos 
abateria  aquellas  animosidades,  que  ao  tempo  da  reforma  nas- 
ceu entre  os  partidos  oppostos,  e  tanto  assim  que  quando  na 
França  se  fez  opposiçâo  á  authoridade  do  papa   as  hostilida- 
des contra  Roma   subiram  a  maior  ponto  e  comtudo  fizeram- 
se  concessões  de    parte  a  parte,    reconciliando-se   os  partidos 
adversos.  Se  o  mesmo  espirito  de  moderação  prevalecesse  ao 
tempo  da  reforma,  íinha-se  indubitavelmente  acabado  com  os 
abuzos  sem  se  effectuar  a   separação  da  egreja.   Mas  as  cir- 
cunstancias   da   epocha   actual   são  differentes    d'aquellas  de 
meado  do  século  deseseis.    ISPaqueJle  tempo  Roma  julgava-se 
toda  poderosa;  mas  presentemente  conhece  melhor  a  sua  posi- 
ção e  que  a  sua  influencia  e  poder  dependem  inteiramente  dos 
príncipes   catholicos;  e  o  soberano  pontífice  tem   hoje   a  con- 
vicção que,  com  quanto  respeitem  o  seu  poder  espiritual,  nem 
todos  se  querem  sujeitar  ao  seu  poder  temporal. 

Os  effeitos  da  reforma  como  aquelles  de  quasi  todos  os  a- 
contecimentos,  tem  um  mixto  do  bem  e  do  mal,  mixto  inhe- 
rente  ao  actual  estado  da  humanidade.  D'ontro  lado,  a  teimo- 
sia dos  partidos  oppostos,  que,  em  vez  de  obedecerem  a  sen- 
timentos christãos  de  caridade,  trabalhavam  continuadamente 


283 

para  alargar   a  brecha   e  tornar  irreparável  o  mal  atearam  o 

fogo  da  animosidade,  seguindo-se  as  mais  horríveis  consequên- 
cias. Considerações  temporaes  como  quasi  sempre  acontece, 
acobertaram-se  com  pretextos  espirituaes;  e  quaesquer  que 
fossem  as  intenções  d'alguns  indivíduos  de  sentimentos  pios 
e  desinteressados  d'um  e  outro  lado,  animados  d'um  zelo  sin- 
cero por  aquillo  que  criam  ser  a  verdadeira  religião  de  Chris- 
to,  muitos  outros  em  nome  de  Deus  procediam  de  maneira 
mui  diversa. 

Os  chefes  da  reforma  estavam  desejosos  de  sacudir  o  jugo 
de  Roma,  em  quanto  que  a  corte  estava  na  resolução  de  em- 
pregar todos  os  meios  para  os  reduzir  á  obediência.  D'este 
zelo  desmedido  seguiram-se  consequências  de  tenebrosa  recor- 
dação. Roma  não  poupou  anathemas  e  perseguições  para 
sujeitar  â  sua  authoridade  aquelles  que  se  lhe  opp unham;  e 
o  partido  reformista  não  perdia  occasião  para  se  desforçar 
logo  que  se   achava  com   poder    suíficiente. 

Uma  scena  de  perseguição  manifestou-se  em  quasi  toda  a 
Europa,  e  os  protestantes  divididos  em  varias  seitas,  perse- 
guiam-se  mutuamente  com  uma  animosidade  egual  á  que  de- 
senvolviam contra  a  authoridade  do  Papa.  As  guerras  religio- 
sas da  Alemanha  e  da  França,  como  também  a  revolta  da  In- 
glaterra no  reinado  do  infeliz  Carlos  1.°,  são  provas  tristíssi- 
mas do  fanatismo  do  decimo  sexto  e  decimo  sétimo  século  e 
d'aquelle  espirito  de  intolerância  contrario  ao  Christianis- 
mo  e  que  actuava  sobre  as  difTerentes  seitas  de  Christâos. 

Contemplando  os  effeitos  da  reforma  sob  outro  ponto  de 
vista,  veremos  que  este  notável  acontecimento,  depois  que 
as  commoções  a  que  deu  origem  diminuíram,  contribuio  em 
não  pequeno  grau  para  o  melhoramento  da  humanidade,  não 
só  libertando  os  espíritos  d'uma  authoridade  ingovernavel 
anteriormente  exercida  por  juizes  espirituaes  como  também 
pelas  controvérsias  profundas  que  nasceram  d'essas  disputas 
religiosas;  por  isso  que  em  toda  a  matéria  questionada  o  en- 
contro de  opiniões  oppostas  faz  rebentar  faíscas  de  génio  que 
esclarecem  com  a  sua  claridade   o  espirito    ávido  de   conheei- 

37 


284 

mentos.  Diversas  investigações  sobre  objectos  complicadíssi- 
mos exercitando  as  funcções  mentaes  amadurecem  e  robuste- 
cem a  intelligencia.  Quando  uma  questão  se  torna  interessan- 
te pelas  circunstancias  que  a  reveste,  a  conversação  ea  leitura 
sobre  aquelle  objecto  vem  illucidar  melhor  a  matéria.  For- 
mam-se  novas  combinações  e  a  espliera  de  conhecimentos 
alarga  e  as  razões  multiplicam-se.  O  olho  vigilante  da  opposi- 
ção  sempre  prompto  á  censura  e  á  revelação  das  faltas  dos 
adversários  concorreu  para  a  morigeração  do  clero  das  diffe- 
rentes  seitas  religiozas.  Foi  uma  necessidade  que  o  clero  de 
todas  as  denominações  do  christianismo  regulasse  o  seu  pro- 
cedimento de  modo  que  não  compromettesse  a  sua  posição, 
expondo-se  ao  despreso  eá  censura  de  seus  inimigos,  circuns- 
pecção que  sem  duvida  não  teria  observado  se  não  fosse  o 
receio  da  censura. 

E  é  um  facto  que  talvez  ninguém  ponha  em  duvida  que  o 
clero  de  toda  a  egreja  christã  tornou-se  em  consequência  da 
divisão  mais  illustrado  e  mais  devoto. 

ÁdifTerença  d'opinião  em  matérias  religiosas  ê  inevitável. 
Aquelles  que  pouco  reflectem  poderão  aceitar  uma  opinião 
qualquer  e  seguil-a  e  em  geral  a  humanidade  abraça  doutrinas 
que  se  não  pode  bem  dizer  que  acreditam,  por  isso  que  nun- 
ca as  discutiu,  nem  diligenciou  profundar  a  verdade  d'ellas; 
mas  não  é  de  crer  que  aparte  pensadora  entretenha  idéas  em 
tudo  semelhantes  em  matéria  complicada  e  abstracta  e  que 
não  podemos  subordinar  ás  faculdades.  A  divergência  portan- 
to em  assumptos  religiosos,  não  produziria  effeitos  perniciosos, 
se  os  homens  no  exercício  livre  da  consciência  concedessem 
aos  outros  egual  direito;  mas  é  para  lamentar  que  o  espirito 
diabólico  da  intolerância,  e  perseguição,  seja  a  consequência 
necessária,  e  não  n'estaou  n'aquella  seita,  mas  em  quasi  todas. 
Aquelles  que  mais  clamam  contra  a  perseguição,  quando 
victimas  d'ella,  são  os  que  menos  escrupulizam  em  a  exer- 
cer contra  os  outros  ;  e  logo  que  tenho  gonho  força, 
acham  sempre  pretextos  para  impor  aos  outros  o  queelles  tan- 
to  lhes    reprovavam.  Mas  por    muito  que  o  homem  se  illuda, 


£85 

todos  os  pretextos    para  o  avanço  da   gloria    de  De©s  ou  dos 
interesses  da  religião  por  meios  intolerantes,  são  negativos. 

O  Senhor  conhece  a  fraqueza  e  a  incapacidade  das  suas  crea- 
turas,  a  natureza  e  alcance  das  suas  forças  intellectuaes,  e  a 
curteza  da  comprehensão  humana,  e  contempla  misericordiozo 
as  faltas  provenientes  d'um  erro  d'entendimento  e  não  de  más 
intenções.  Deve  pois  o  homem  no  seu  orgulho  arrancar  das 
mãos  do  Creador  a  vara  da  justiça  para  exercer  a  crueldade  e 
oppressão  em  nome  do  Deus  de  misericórdia  e  amor?  Não 
devem  esses  usurpadores  das  divinas  attribuições  receiar  os 
mais  severos  castigos  ?  Riscaram-se  felizmente  esses  dias  de 
fanatismo  religioso  e  as  difíerentes  seitas  de  christãos,  discor- 
dando sobre  um  ou  outro  ponto  e  no  ceremonial  da  egreja, 
estão  todas  d'acôrdo  em  liberdade  de  sentimento  e  tolerân- 
cia religiosa. 


A  nossa  revista  dos  tempos  passados  está  chegando  a  uma 
conclusão,  e  aproximâmo-nos  já  dos  nossos  dias  que,  menos 
férteis  em  acontecimentos  extraordinários,  não  são  menos  in- 
teressantes. 

Desde  o  principio  do  mundo,  periodo  algum  se  tornou  tão 
notável  por  uma  cadêa  suecessiva  d'acontecimentos  importan- 
tes como  é  aquelle  que  se  conta  entre  1440  a  1560,  que  a- 
brange  a  invenção  typographica,  a  tomada  de  Constantino- 
pla, a  descoberta  d' America  e  da  passagem  para  a  índia,  a 
conquistado  México,  do  Peru,  e  d'outras  partes  do  novo  mun- 
do, e  da  exploração  das  ricas  minas  d'aquelles  paizes  pelos 
hespanhoes ;  a  conquista  de  Goa  com  a  costa  do  Malabar, 
d'Ormus  e  Malacca  pelos  portuguezes;  a  que  se  seguio  o  es- 
tabelecimento d'ÍDnumeraveis  colónias  no  Occidente  pelos 
primeiros,  e  no  Oriente  e  na  Costa  d'Africa  pelos  últimos;  a 
reforma  da  religião;  o  engrandecimento  da  Casa  d'Austria 
pela  união  de  muitos  estados  europeus,  sob  o  dominio  de  Car- 


286 

los  5.°  com  a  posse  e  accumulaçao  de  riquezas  do  novo  mun- 
do.  A  cada  um   d'estes  notáveis  acontecimentos  seguiram-se 
consequências  que  influíram  d'um  modo  decisivo  sobre  as  condi- 
ções da  humanidade  nos  nossos  dias,  e  continuarão  a  produzir 
seus  efíeitos  em  futuras  eras.  Podemos  também   accrescentar 
as  descobertas  e  melhoramentos  na  navegação,   commercio, 
philosophia,  artes,   sciencias    e  manufacturas  que  então  tive- 
ram logar;  e  que  com  quanto  de  menos  importância  em  rela- 
ção aos  grandes  factos  que  distinguem  aquelle  período   sobre 
todos  os  outros,  como  a  idade  das  emprezas  aventureiras,  e  dos 
melhoramentos,    não  têem  deixado  de  actuar  sobre  o  systema 
geral.  A  pólvora  fora  a  invenção  d'um  frade  Alemão,  anterior 
ao  meado  do  século  quatorze;  o  seu  aperfeiçoamento,  e  as  suas 
varias  applicações   foram    obra  d' um  periodo  mais  recente;  e 
foi  só  para  os  fins  do  decimo  quinto  século,  princípios  do  de- 
cimo   sexto  que  as  armas  de  fogo  chegaram  a  certo   grau  de 
perfeição.    Querem    muitos  que   as  primeiras  armas   de  fogo 
fossem    usadas  pelas  Inglezes,    no  tempo  de  Eduardo  3.°,  na 
batalha  de  Cressy,  mas  não  se  acha  esta  noticia  comprovada 
por  facto  algum   authentico,  nem    se  sabe  com    mais  certeza, 
aonde,  ou  em  que  tempo  se  empregou  pela  primeira  vez  o  ca- 
nhão, com  quanto  é    quasi  fora  de  duvida  que  o  uso  da  pól- 
vora era  conhecida  entre  os  indios  e  chins  muitos  séculos  an- 
tes que  fosse  conhecida  dos  europeus.  Esta  descoberta,  porem, 
ê  um  objecto  interessante   e    de  considerável  importância  na 
historia  militar,  por  isso  que  produzio  uma  mudança  comple- 
ta na  arte  da  guerra  e  em  todas  as  operações  militares.  A  in- 
venção  da  pólvora  deu    logar  a  uma  grande  opposição  con- 
tra a  introducção  d'um  material  tão  clestructivo;  mas  é  certo 
que  as  batalhas  e  assaltos  tem   sido  acompanhados  de  menos 
efíusão  de  sangue  desde  então,  como    se  pôde  conhecer  com- 
pulsando a  historia. 

Os  acontecimentos  occorridos  desde  o  decimo  sexto  século, 
com  quanto  muitos  tenham  sido  bastante  interessantes  não 
têem  produzido  efíeitos  de  tamanha  magnitude,  nem  exercido 
uma  influencia  sobre  o  systema  geral  dos  negócios  da  huma- 


287 

nidade  como  aquelles  anteriores.  O  tempo  decorrido  desde 
aquelle  período  apresenta  uma  linda  perspectiva  da  extensão 
do  commercio,  da  díffusão  de  riquezas,  do  adiantamento  da 
civilisação,  da  declinação  das  perseguições  religiosas,  da  in- 
troducção  de  sentimentos  liberaes  e  humanitários,  do  rápido 
progresso  da  sciencia  e  litteratura,  e  do  avanço  geral  em  cada 
ramo  dos  conhecimentos  humanos.  Este  quadro  geral  de  me- 
lhoramento são  consequências  necessárias  dos  acontecimentos 
que  tiveram  logar  nos  séculos  quinze  e  deseseis,  e  evidente- 
mente demonstram  a  potencia  d'aquellas  causas,  que  então 
começaram  a  operar,  e  cuja  influencia  jamais  se  pode  extin- 
guir nem  esgotar-se  seus  eííeitos. 

As  transformações  por  que  passaram  as  nações  europeas, 
desde  o  meado  do  decimo  sexto  século,  são  fielmente  des- 
cripías  por  grande  numero  de  historiadores  com  uma  preci- 
são de  que  não  ha  memoria  na  historia  d'eras  mais  remotas. 
Como  fatiássemos  no  engrandecimento  da  casa  d'Áustria  no 
começo  do  século  deseseis,  devemos  também  notar  a  declinação 
do  ramo  hespanhol  cFaquella  casa  no  ultimo  quartel  d'aquel- 
Ie  século,  pela  revolta  dos  Paizes  Baixos  que  exhaurio  os  re> 
cursos  da  Hespanha  e  deu  origem  a  uma  nova  potencia  mari- 
tima  que  teve  uma  longa  duração.  Fora  esta  revolta  a  conse- 
quência de  medidas  violentas  e  arbitrarias  de  Philippe  2;.CV 
As  sete  províncias  unidas  deixaram  de  pertencer  á  coroa  de 
Hespanha  e  converteram-se  em  republica  hostil  e  o  mais  in- 
veterado e  incommodativo  inimigo,  como  também  rival  peri- 
goso do  poder  marítimo  d'aquella  monarchia.  A  força  naval 
da  Hespanha,  a  mais  formidável  da  Europa,  recebeu  também 
um  golpe  fatal  na  derrota  da  armada  invencível  que  Philippe 
destinava  para  invadir  a  Inglaterra  em  1588. 

O  engrandecimento  da  França  veio  completar  o  abatimen- 
to da  Hespanha,  tornando-se  aquella  tão  poderosa  no  tempo 
de  Luiz  14.°  a  ponto  de  ameaçar  a  subjugação  da  Europa,  e 
mirar  á  soberania  universal.  O  equilíbrio,  porem,  do  poder 
das  nações  tem  sido  tão  bem  entendido  e  tão  firmemente  es- 
tabelecido nos  últimos  dois  séculos  que  é  muito  provável  que 


288 

assim  continuarão  os  negócios  politicos. 

O  engrandecimento  da  Rússia  e  o  progresso  das  artes,  sci- 
encias  e  civilisação  n'aquelle  império,  como  também  no  seu 
poder  naval  e  militar,  e  importância  politica  pelo  génio  e  es- 
forços do  immortal  Pedro,  o  Grande,  seguido  d-.outros  gran- 
des monarchas  seus  successores,  com  especialidade  Catharina 
2.a  constituo  uma  feição  notável  na  historia  do  século  desoito, 
o  offerece  uma  agradável  perspectiva  áquelles  que  se  delei- 
tam na  contemplação  do  progresso  da  civilisação  e  melhora- 
mento da  espécie  humana. 

A  Europa  não  podia  ver,  sem  espanto,  uma  grande  e  ele- 
gante metrópole,  embellezada  com  magníficos  edifícios  e  a  to- 
dos os  respeitos  própria  para  a  residência  d'uma  corte  brilhan- 
te, erguer-se  nos  pântanos  medonhos  da  Ingria  e  cobrirem-se 
as  lamacentas  margens  do  Neva  de  palácios  esplendidos,  con- 
vertendo-se  em  um  paraizo  terrestrial.  A  cidade  de  San  Pe- 
tersburgo  dá  a  medida  da  industria  humana,  e  é  um  monu- 
mento eterno  do  génio  emprehendedor  de  Pedro  o  Grande. 

Entre  os  acontecimentos  mais  notáveis  d'estes  últimos  tem- 
pos, vemos  a  creação  de  novos  impérios  alem  do  Atlântico, 
que  sem  duvida,  igualavam  em  poder,  extensão  e  população 
áquelles  do  velho  mundo,  sem  mesmo  exceptuar  Roma.  De- 
pois da  imperfeita  colonisação  das  melhores  partes  d'America 
pelas  nações  europeas  as  colónias  reconheceram  a  soberania 
da  mãe  pátria,  da  qual  estavam  dependentes  e  estas  como 
indenmisaçao  monopolisavam  o  seu  commercio  e  impunham- 
lhes  aquellas  restricções  que  julgavam  necessárias. 

Ás  colónias  não  desconheciam  as  desvantagens  da  sua  posi- 
ção, mas  não  se  achando  com  forças  para  reagir,  submette- 
ram-se  á  authoridade  do  seu  respectivo  paiz.  Tão  depressa, 
porem,  foram  augmentando  em  população,  riqueza  e  força, 
começaram  a  aspirar  á  sua  independência.  Isto  não  era  mais 
que  a  consequência  natural  da  oppressão,  por  que  não  era 
possível  que  um  continente  vasto  e  fértil  como  o  Americano 
permanecesse  sempre  sujeito  á  Europa,  que  virá  a  exceder  em 
população  assim   como  a   excede  em   território.   As  colónias 


289 

Britannicas  marcharam  na  vanguarda  desta  grande  car.za. 
Depois  de  muitas  divergências  e  contendas  com  a  mãe  pátria, 
declararam-se  independentes,  e  apoiados  pela  França  e  pela 
Hespanha,  foi  a  sua  independência  finalmente  reconhecida  na 
paz  geral  de  1783  pela  Grani  Bretanha.  As  colónias  Hespa- 
nholas,  tanto  do  México  como  da  America  do  sul  começaram 
em  1810  a  manifestar  disposições  semelhantes  para  se  revolta- 
rem contra  a  Hespanha  e  estando  este  paiz  exhausto  de  re- 
cursos em  razão  da  sua  guerra  com  a  França,  proclamaram 
a  sua  independência  depois  d'uma  longa  e  sanguinolenta  luc- 
ta  sem  auxilio  estrangeiro.  O  rico  e  extenso  Brazil  pelo  mes- 
mo tempo  saccudio  o  jugo  de  Portugal  e  constituio-se  um 
império  independente  sob  o  governo  de  D.  Pedro  filho  pri- 
mogénito do  Rei  de  Portugal,  que  assumio  o  titulo  de  Impe- 
rador. 

Importantes  revoluções  geralmente  produzem  génios  e  re- 
velam á  energia  nacional.  O  império  anglo  americano  deve, 
em  grande  parte,  a  sua  independência  aos  dons  politicos  e 
militares  do  general  Washington;  e  a  America  do  Sul  é  deve- 
dora da  sua  ao  general  Dom  Simão  Bolivar.  Estes  dous  cau- 
dilhos, um  no  norte,  outro  no  sul  do  Novo  Mundo  mostraram- 
se  iguaes  em  talento  e  dedicação  civica  aos  maiores  homens  da 
Grécia  ou  de  Roma  nos  seus  tempos  esplendidos. 

O  homem  observador  politico  e  philosophico  facilmente  co- 
nhecerá que  a  independência  da  America  do  Norte  e  do  Sul 
devem  com  o  tempo  produzir  effeitos  importantes  d'um  al- 
cance muito  superior  a  tudo  quanto  podemos  imaginar. 

Não  se  pode  duvidar  que  os  anglos  americanos,  com  o  an- 
dar do  tempo  deverão  estender  o  seu  poder  sobre  todo  o  con- 
tinente desde  o  Atlântico  até  ao  Oceano  Pacifico  e  desde  o 
Golpho  do  México  ás  partes  habitáveis  mais  longínquas  do 
norte;  mas  o  que  resta  saber  ê  se  os  seus  immensos  territó- 
rios continuarão  a  constituir  uma  vasta  republica  federal  ou 
se  se  desconjunctará  formando  diversos  estados  hostis. 

No  velho  mundo  temos  visto  erguer-se  impérios,  florescer, 
declinar  e  finalmente  extinguir-se — Monarchias   teem-se  tor- 


290 

nado  em  republicas  e  republicas  em  monarcliias,  e  a  America  tem 
necessariamente  de  passar  por  iguaes  commoções.  No  decur- 
so d'alguns  séculos  a  America  tem  de  passar  por  novas  pka- 
ses.  O  deserto  immenso  do  seu  interior  tem  de  ser  cultivado 
e  essas  vastas  regiões  inkabitadas  encher-se-hão  de  cidades 
e  villas.  Então  a  America  será  o  que  hoje  é  a  Europa;  e  quem 
pode  prever  as  revoluções  porque  tem  de  passar ;  que  novas 
formas  de  governo  a  estabelecer  e  que  novas  republicas  ou 
monarcliias  poderão  nascer  ?  Difficilmente  porem  podemos 
suppôr  que  o  império  americano  do  norte  passados  alguns  sé- 
culos continuará  unido  n'um  governo  federal  como  presente- 
mente. 

Sem  querer  levar  as  conjecturas  demasiadamente  longe  6 
regulando-nos  simplesmente  pela  ordem  natural  das  cousas  e 
conjuncto  de  circunstancias  moraes,  é  de  crer  que  algumas 
consequências  devem  necessariamente  nascer  do  augmento 
enorme  de  população,  extensão  e  grandeza  crescente  que  os 
impérios  americanos  do  Norte  e  do  Sul  estão  tendo.  Deixamos 
já  dito  que  a  importação  do  ouro  e  prata  das  minas  do  novo 
mundo,  diminuindo  o  valor  relativo  d'aquelles  metaes,  padrão 
pela  qual  se  afere  o  valor  de  toda  a  propriedade,  actuou  mais 
decididamente  sobre  o  systeraa  commercial  do  que  outros 
quaesquer  acontecimentos  nos  negócios  humanos.  A  entrada 
de  riquezas,  producto  das  minas  americanas,  que  dos  portos 
de  Lisboa  e  Cadiz  circulou  por  toda  a  Europa  e  pela  maior 
parte  dos  paizes  aonde  os  europeos  possuem  colónias  ou  in- 
fluencia, é  uma  causa  activa  actuando  continuamente  sobre  o 
commercio  nas  suas  numerosíssimas  ramificações  e  sobre  o  va- 
lor dos  productos  europeos  e  sua  propriedade.  A  actividade 
d'este  potente  moter  ha  de, segundo  todas  as  apparencias,  con- 
tinuar em  quanto  o  mundo  for  mundo;  muito  embora  soffra 
suas  modificações.  Quando  se  cobrir  o  continente  americano 
desde  o  Oceano  Atlântico  até  ao  Pacifico,  e  desde  o  polo  ar- 
tico  até  aos  estreitos  de  Magalhães,  ao  Cabo  Horn  mesmo, 
d' uma  população  activa  e  industriosa,  florescente  nas  artes  e 
nas  sciencias,  no  commercio  enas  manufacturas,  o  seu  trafi- 


291 

cd  c  circulação  interna  absorverá  indubitavelmente  a  maior 
parte  dos  productos  das  minas  até  hoje  descobertas,  e  quando 
isto  acontecer  a  importação  do  ouro  e  prata  na  Europa  dimi- 
nuindo considera  velmente,aconsequencia  será  um  depreciamen- 
to  gradual  no  valor  da  propriedade  Europea,  a  fi&o  aer  que  ou- 
tras cauzas,presentemente  impossíveis  de  prever,venhão  contra- 
balançar a  influencia  d  esta.  baixa  no  fluxo  da  riqueza  ameri- 
cana para  o  velho  mundo. 

Outra  circunstancia,  histórica  dos  últimos  tempos  é  o  au- 
gmento  rápido  e  extraordinário  da  força  naval  da  Gran-Bre- 
tanha  desde  o  reinado  da  rainha  Izabel,  que  foi  quando  dm- 
significánté  que  era,  começou  a  adquirir  importância,  até  que  at- 
trahio  a  attenção  e  a  admiração  da  Europa  pelo  triumpho  com- 
pleto que  teve  sobre  a  armada  hespanhola.  A  marinha  ingleza 
desde  esse  tempo  foi  sempre  em  progressivo  augmento;  mas  foi 
só  depois  da  paz  d'Áix  la  Chapelle  que  se  tornou  formidável 
a  ponto  de  desafiar  o  poder  naval  unido  de  todo  o  mundo. 

A  natural  consequência  d'esta  superioridade  naval  é  a  so- 
berania indisputável  dos  mares,  com  estabelecimentos  em  todo 
o  globo,  e  um  commercio  como  não  tem  outra  nação  alguma. 
A  maior  parte  do  commercio  para  as  índias  Orientaes  e  para 
a  China  está  nas  mãos  dos  inglezes  e  a  companhia  das  índias 
acha-se  na  possessão  d'um  território  muito  superior  em  dimen- 
sões ao  reino  unido  da  Gran-Bretanha,  contendo  cento  e  cin- 
coenta  mil  milhas  quadradas  em  Bengalla,  Bahar,  e  Orissa 
e  doze  mil  mais  no  districto  de  Benarez,  de  modo  que  o  im- 
pério da  índia  contem  cento  e  sessenta  e  duas  mil  milhas 
quadradas,  trinta  mil  milhas  quadradas  mais  que  a  Inglater- 
ra e  Irlanda;  e  a  sua  população  monta  a  onze  milhões;  alem 
de  vários  estabelecimentos  e  sitios  fortificados  destacados  e 
que  não  entram  n'este  calculo. 

Mais  tarde  o  acontecimnto  mais  notvel  foi  a  revolução  fran- 
ceza  que  sendo  dos  nossos  dias  dispensa  commentarios. 
Diremos  tão  somente  que  constitue  um  attentado  extraordiná- 
rio e  sem  precedentes  na  historia  que  teve  por  fim  destruir  a 
religião  e  o  systemá  politico  da    Europa;    terminando  de  um 

38 


292 

modo  não  menos  singular.  Depois  d'uma  luta  prolongada  en- 
tre a  infidelidade  e  as  crenças  estabelecidas,  na  qual  a  primei- 
ra teve  por  muito  tempo  a  ascendência,  a  contenda  acabou  no 
triumpho  e  restabelecimento  do  Chrisíianismo,  sobre  bazes 
liberaes.  Temos  visto  o  começo  e  o  fim  de  guerras  que  nasce- 
ram d'esta  revolução;  guerras  que  deixaram  ensanguentadas 
as  paginas  da  historia,  que  envolveram  as  nações  em  dividas  co- 
mo não  lia  exemplo,  e  como  outros  muitos  acontecimentos  de- 
monstraram a  instabilidade  das  cauzas  humanas.  Guerras 
algumas  talvez  tenhão  havido  em  que  se  dessem  tantas  e  tão 
sanguinolentas  batalhas,  e  que  apresentem  tantas  vicissitudes 
em  tão  curto  espaço.  Os  esforços  da  França  não  tem  paraleíío 
na  historia  das  nações;  e  não  obstante  as  victimas,as  conquis- 
tas, e  os  triumphosde  Roma,  todos  quantos  conhecem  a  histo- 
ria romana  reconhecem  necessariamente  que  as  façanhas  mi- 
litares d'aquelle  celebre  povo  nunca  egualaram  aquelías  da 
I1  rança,  nem  .produziram  effeitos  tão  promptos  em  tão  pouco 
tempo. 

Em  quanto  a  nação  Franceza  excitava  a  admiração  da  Eu- 
ropa, a  Gran-Bretanha  não  menos  se  tornava  notável  pelos 
gigantescos  esforços  que  empregava  para  lhe  fazer  fren- 
te, tornando-se  baluarte  da  Europa,  manifestando  ao  mes- 
mo tempo  sentimentos  liberaes  e  espirito  de  conciliação,  na 
generoza  protecção  e  apoio  do  clero  perseguido  d'um  paiz 
estranho,  e  de  diíTerente  communhâo;  circunstancia  que  lhe 
traz  tanta  gloria  como  mesmo  seus  brilhantes  feitos  d'armas 
por  mar  e  por  terra. 

Depois  da  republica  seguio-se  o  império  sob  o  celebre  Na- 
poleão Bonaparte  que,  por  seus  talentos  militares  e  extraordi- 
nária felicidade  fez-se  chefe  administrativo  e  militar  sob  o  ti- 
tulo de  primeiro  Cônsul;  e  pouco  depois,  por  uma  serie  de 
bem  combinados  planos,  elevou  se  á  dignidade  imperial  e  foi 
solemnemcnte  coroado  imperador  dos  francezes.  Para  descre- 
ver as  campanhas  d'este  homem  extraordinário  seria  mister 
volumes  d'historia  e  não  é  este  o  logar  para  commemorar  de- 
talhadamente as    victorias  esplendidas  de  Áusterlitz,  de  Jena, 


293 

de  Wagram  e  Friedland  que  pozeram  a  Europa  inteira  a  seus 
pés.  Basta  observar  n'esta  revista  geral,  que  no  decurso  cVestas 
guerras  os  exércitos  francezes,  ou  sob  o  seu  imperador,  ou 
sob  os  seus  generaes,  entraram  em  triumpho  em  quasi  todas 
as  capitães  da  Europa,  como  por  exemplo,  Roma,  Veneza 
Nápoles,  Madrid,  Lisboa,  Berlin,  Vianna,  e  Moscow.  A  espe- 
dição  do  imperador  francez  a  Moscow  é  especialmente  notável 
como  sendo  o  Ne  plus  ultra  das  suas  conquistas,  trincheira 
fatal  que  poz  termo  á  sua  carreira  politica  e  successo  militar, 
•sem  paralello  na  historia,  e  que  foi  assignalado  por  uma  mor- 
tandade sem  exemplo  nos  tempos  modernos» 

Pelos  fins  de  junho  de  1812,  o  imperador  dos  francezes  in- 
vadio  os  territórios  russos  á  frente  d'um  exercito  não  inferior 
a  tresentos  mil  homens  no  maior  primor  d^quipamento  e  dis- 
ciplina. Depois  de  muitos  sanguinolentos  encontros  e  assigna- 
ladas  victorias  avançou  sobre  Moscow. 

No  dia  15  de  setembro  entrou  n^aqnella  metrópole,  fixou  o 
seu  quartel  general  no  Kremlin  e  assentou-se  no  throno  dos 
Czars.  Mas  aquella  cidade  tendo  sido  incendiada,  o  invasor 
achou-se  entre  ruínas  fumegantes.  Napoleão  offereceu  então 
paz  ao  monarcha  russo,  que  regeitou  as  suas  propostas  humi- 
lhantes. N'esta  conjunctura  conhecendo  a  impossibilidade  de 
procurar  abastecimentos  para  o  inverno  que  se  aproximava, 
começou  o  imperador  francez  a  sua  retirada,  no  dia  18  d'ou- 
tubro,  na  qual  achou-se  exposto  a  incessantes  ataques  da  par- 
te dos  exercito»  russianos  reunidos  de  todos  os  ângulos  do  im- 
pério. N'estes  encontros  sanguinolentos  os  francezes  eram  cons- 
tantemente derrotados,  e  o  inverno  sobrevindo  prematuramen- 
te e  com  uma  severidade  pouco  vulgar  mesmo  n'aquelle  clima 
inhospito,  este  immenso  exercito  invasof  foi  quasi  aniquilado, 
apresentando  um  quadro  de  carnificina  sem  igual  nos  annaes 
dos  povos  desde  a  retirada  de  Xerxes  da  Grécia.  Os  victorio- 
sos  russos  proseguiram  nas  suas  victorias  caminho  de  Alle- 
manha;  e  os  prussianos  e  mais  alguns  estados  aproveitaram 
o  ensejo  para  sacudirem  o  jugo  do  imperador  francez. 

T^ndo  Napoleão  deixado  na  retaguarda  os  fragmentos  das 


294 

suas  destroçadas  forças  effectuou  a  sua  retirada  para  Paris, 
fez  esforços  prodigiosos  para  reunir  um  novo  exercito,  e  logo 
que  o  eonseguio  invadio  novamente  a  Aílcmanlm  e  recomeçou 
uma  campanha  activa  e  vigorosa. 

Por  algum  tempo  a  fortuna  mostrou- se-lhe  duvidosa,  ate 
que  finalmente  a  balança  pendeu  para  o  lado  do  imperador 
francez,  e  não  obstante  as  suas  immensas  perdas  na  retirada 
de  Mosco w  no  anno  precedente,  o  mundo  presenciou,  confun- 
dido, os  exércitos  da  Rússia  e  da  Prússia  em  debandada  adian- 
te d'elle.  Interromperam-se  as  hostilidades  temporariamente 
por  meio  d'imi  armistício  a  fim  de  negociar  um  tratado  de  paz  ; 
mas  sendo  julgadas  inadmissíveis  as  propostas  de  Napoleão  ; 
seu  sogro,  o  imperador  d'Ausfcria,  que  já  anteriormente  assu- 
mira a  posição  d'uma  neutralidade  armada,  reunio  a  grande 
confederação  contra  a  França,  como  também  tinham  feito  os 
reis  da  Suécia  e  da  Baviera,  a  que  a  Dinamarca  foi  compellida 
a  annuír.  D'esíe  modo  todas  as  grandes  potencias  da  Europa, 
apoiadas  por  enormes  subsídios  da  Gran-Bretanha  pozeram 
em  campo  as  suas  forças  combinadas  contra  o  imperador  fran- 
cez e  a  guerra  recommeçou  com  redobrado  encarniçamento» 
As  series  d'operações  militares  desde  esta  critica  conjunctu- 
ra  até  ao  fim  da  guerra  pela  destreza  de  combinações,  rapidez 
de  movimentos.,  carnificina  e  importância  de  resultados,  não 
tem  paralello  na  historia  moderna  nem  mesmo  doa  tempos 
antigos.  A  sanguinolenta  batalha  de  Leipsig  dada  em  dous 
differentes  dias,  16  e  18  d'outubro  do  1813,  na  qual  as  tro- 
pas da  Saxonia,  passando  em  numero  de  quinze  mil  para  os 
alliados,  decidiram  da  sorte  do  imperador  francez,  que  foi 
completamente  derrotado  com  a  perda  de  noventa  mil  hcmens 
mortos,  feridos  e  prisioneiros,  obrigando-o  a  evacuar  precipi- 
tadamente a  Allemanha  como  no  anno  anterior  acontecera  na 
Rússia.  Foi  immediatamente  seguido  pelos  alliados ,  que,  pas- 
sando o  Rheno  em  vários  pontos,  entraram  na  França. 

Depois  de  tantos  annos  haver  desempenhado  o  papel  d'ag- 
gressor,  Napoleão  vio-se  d'esta  vez  atacado  na  sede  e  cora- 
ção de  seu  poder,  e  durante  uma  activa   campanha,    o  balan- 


295 

ço  da  fortuna,  parecia  manter-se  em  equilíbrio,  até  que  a  final 
conseguindo  os  alliados  tomar  posições  entre  o  exercito  fran- 
cez  c  a  capital,  tomaram  a  deliberação  de  marchar  com  to- 
das as  suas  forças,  entre  duzentos  e  tresentos  mil  homens  e 
caíram  sobre  Paris.  Teve  então  logar  um  sanguinolento  en- 
'  contro  sobre  as  alturas  de  Mont-martré  e  Bellevue,  no  qual 
os  alliados  tiveram  grande  superioridade  tanto  em  numero 
como  em  disciplina.  Os  írancezes  foram  derrotados;  Paris  ca- 
pitulou: Luiz  18.°  foi  chamado  ao  throno,  e  uma  paz  assigna- 
da.  Napoleão  foi  obrigado  a  resignar  a  soberania.  A  ilha  d'El- 
ba  foi-lhe  pelos  exércitos  alliados,  designada  como  residência, 
com  o  titulo  d'imperador,  eortando-se  honrosos  subsidios  aos 
differentes  ramos  da  sua  família.  N'este  asylo  pacifico  devia 
julgar-se  contente,  se  uma  ambição  desmedida,  que  o  lançara 
da  summidade  da  grandeza  humana,  o  não  tivesse  aguilhoa- 
do,  causando-lhe  a  sua  ruina. 

Premeditando  nova  tentativa  para  reganhar  o  poder,  reunio 
mil  e  cem  aventureiros  desesperados,  á  frente  dos  quaes  de- 
sembarcou na  França,  e  o  exercito,  adherindo  ao  movimento, 
marchou  sobre'  Paris  sem  disparar  um  tiro  e  foi  novamente 
reconhecido  imperador.  Luiz  18.°  com  a  sua  família  e  a  corte, 
tendo  previamente  procurado  refugio  na  Bélgica,  fixou  a  sua 
residência  em  Ghent. 

Em  razão  d'este  inesperado  acontecimento,  a  Europa  in- 
teira preparou-se  de  novo  para  a  guerra.  Uma  poderosa  for- 
ça de  Inglezes,  Hanoverianos,  e  Belgas  juntou-se  nos  Paizes 
Baixos,  apoiada  por  um  poderoso  exercito  prussiano,  comman- 
dado  pelo  marchai  de  campo,  o  príncipe  Blucher;  em  quanto 
que  os  grandes  exércitos  da  Áustria,  Prússia,  Baviera  e  Sué- 
cia estavam  em  marcha  sobre  a  França.  Napoleão  para  po- 
der lazer  frente  a  tão  poderosas  forças  reunio  um  grande 
exercito  c  uni  formidável  trem  d'artilheria  e  com  elle  lançou- 
se  na  Bélgica,  aonde  derrotou  completamente  o  exercito  prus- 
siano. Mas  a  celebre  batalha  de  Waterloo  em  18  de  Junho 
de  1815  decidio  a  sorte  do  imperador  dos  francezes,  que  em 
pessoa  commandava  o  exercito,    sendo  derrotado  pelos   allia- 


2% 

dos  sob  o  duque  de  Wellington.  Os  destroços  dos  francezes 
foram  perseguidos  junto  a  Paris.  Esta  metrópole  rendeu-se 
por  capitulação,  e  Napoleão  depois  d'assignar  segunda  abdi- 
cação e  ançiar  errante  algum  tempo  pela  França  entregon-se 
aos  inglezes,  embarcando  para  bordo  d'um  navio  de  guerra 
britannico  para  não  cair  em  poder  de  seus  inimigos  continentaes. 

Luiz  18.°  subiu  novamente  o  throno  de  seus  antepassados 
•6  a  paa  restabelecen-se   na  Europa. 

Napoleão  fm  conduzido  como  prisioneiro  d'estado  para  a  ilha 
áe  Santa  Helena,  obstando  assim  a  que  perturbasse  a  tran- 
quilidade do  mundo. 

•Ahi  pe#m»neeera  perto  de  seis  annos  até  á  sua  morte,  que 
teve  logaf  fto  dia  5  de  março  de  1821,  contando  então  52  an- 
nos d'idadi,  miecumbindo  a  um  ataque  de  fígado,  acompa- 
nhado d'um  cancro  no  estômago,  moléstia  que  levara  o  pae 
aos  38  afino*. 

A  carreira  politica  e  militar  d'este  homem  extraordinário, 
que  por  tanto»  afinos  foi  &  admiração  e  o  terror  do  mundo, 
fornece-nos  amplíssima  matéria  para  considerações.  Subira 
elle  da  obscuridade  e  pobreza  a  uma  altura  de  grandeza,  po- 
derio, e  fama  militar  a  que  mortal  algum  jamais  chegara. 
Devemos  porem  ter  em  attençâo  que  nos  tempos  da  sua 
maior  prosperidade,  no  aenith  da  sua  gloria,  e  quando  junta- 
va louros  sobre  louros,  o  seu  paiz  escorria  sangue  por  todos 
os  poros;  a  os  aítisonos  nomes  de  Marengo,  Austerlitz,  Jena, 
Friedland,  e  Wagram,  não  enchugaram  as  lagrimas  das  viu- 
vas e  orphãos  da  França.  A  sua  queda  foi  mais  estrepitosa 
que  a  sua  ascenção,  e  oíferece  um  exemplo  das  vicissitu- 
des da  fortuna  de  que  a  historia  não  apresenta  paralello  na 
vida  d'outro  qualquer  individuo*  Demomtr»  salientemente, 
os  effeitos  d'uma  desmedida  ambição,  ê  presumpção  impru- 
dente, que,  com  quanto  apoiadas  por  um  consummado  talen- 
to militar,  coroadas,  por  muitos  annos,  de  fortuna  sem  igual, 
arrastaram-no  finalmente  para  o  abysmo,  e  depois  de  victo- 
rks  esplendidas  ed'um  poder  exorbitante,  levaram-no  a  morrer 
captivo  n'u:na  ilha  longinqua. 


297 

Nunca  guerras  algumas  emprehendidas  pela  Gram  Bretã-- 
nlia  chamaram  mais  a  attenção  publica  e  provocaram  maior 
divergência  d'opiniâo,  que  os  dois  memoráveis  conflietos  com 
as  colónias  americanas  e  o  governo  revolucionário  da  França, 
Cada  um  foi  por  seu  turno  debatido  no  parlamento  britanni- 
co  com  toda  a  subtileza  d'argumentação  de  que  é  susceptível 
a  razão  humana,  e  com  aquella  energia  e  flores  d'estylo  que 
a  rhetorica  pôde  desenvolver.  Burke,  Pitt,  Fox  e  Sheridan, 
com  muitos  outros  oradores  inglezes  disputaram  a  palavra  a 
Cicero  e  Demosthenes,  e  o  resto  dos  oradores  celebres  da  Gré- 
cia e  Roma,  cujos  discursos  teem  «ido  considerados  chefes 
d'obra,  d'eloquencia,  e  primor  de  rhetorica. 

Não  foi,  porem,  tão  somente  no  senado  que  aquelle  impor- 
tante assumpto  se  discutia.  O  espirito  publico  insinuava-se 
por  todos  os  ângulos  do  paiz  e  a  agitação  não  conhecia  limites. 
Em  todos  os  paizes,  e  em  todas  as  occasiões,  o  povo,  com 
quanto  não  possua  nem  as  habilitações  nem  as  informações 
necessárias  para  que  possa  julgar  dos  actos  d'aquelles  que  es- 
tão no  poder,  está  sempre  disposto  a  censurar  as  suas  medi- 
das e  a  attribuir  cada  mal  politico  a  uma  má  administração. 
Os  que  condemnam  os  actos  d'aquelles  a  quem  estão  con- 
fiados os  destinos  da  nação  deviam  considerar  seriamente 
nas  dificuldades  com  que  estão  a  braços,  devido  ás  perpetuas 
vicissitudes  dos  negócios  políticos  ,  que  dependem  d'uma 
serie  de  circunstancias  tão  complicadas  e  notáveis,  ora 
augmentando,  ora  contrabalançando  influencias  d'uns  e 
outros,  a  ponto  de  produzir  consequências  impossíveis  de  pre- 
ver. 

A  tendência  para  os  princípios  revolucionários  sempre  cres- 
cente, e  as  conspirações  traiçoeiras  do  partido  jocobino  no 
paiz,  obrigou  o  governo  inglez  a  romper  com  todas  as  com- 
municações  com  uma  nação  aonde  o  systema  revolucionário 
dominava  absoluto.  Consideradas  bem  as  circunstancias  poli- 
ticas da  Europa,  n'aquella  momentosa  crize,  a  posição  da 
Gram  Bretanha  tornára-se  extremamente  crítica,  e  a  impar- 
cialidade cândida,  sem  influencia  de  paixões  ou  preconceitos, 


298 

convirá  que  os  seus  ministros  achavam-se  n'uma  posição  sem 
precedente,   difíicil  como  não  havia  exemplo. 

Aqueiles  sempre  dispostos  a  censurar  os  actos  dos  outros 
nos  negócios  complicados,  devem  ter  em  vista  que  é  absolu- 
tamente incerto  se  medidas  diíferentes  d'aquellas  adoptadas 
teriam  sido  mais  vantajosas.  Vemos  as  consequências  do 
que  se  fez,  mas  não  se  pôde  avaliar  as  do  que  se  deveria  ter 
feito.  A  experiência  só  é  que  as  pôde  demonstrar.  Sabe-se 
quaes  foram  as  consequências  da  guerra  com  a  França,  mas 
é  impossivel  prever  quaes  ellas  teriam  sido  se  a  Gram  Breta- 
nha tem  optado  pela  neutralidade,  por  que  se  não  experimen- 
tou, e  por  tanto  a  grande  questão  da  conveniência  ou  incon- 
veniência da  guerra  ficará  sempre  por  decidir. 

Não  se  pôde  negar  que  a  divida  nacional  do  paiz  cresceu 
desmedidamente  em  consequência  das  despezas  da  guerra;  e 
que  as  contribuições  augmcntaram  em  proporção  ás  exigências 
nacionaes.  Na  theoria  expeculativa  isto  é  um  grande  mal,  mas, 
depois  cVuma  apreciação  bem  combinada,  achar-se-ha  que  a 
realidade  não  é  tão  assustadora  como  parece  á  primeira 
vista, 

A  lei  tributaria  encontra  uma  opposição  universal,  mas  é 
pouco  comprehendida.  Os  desaffectos  e  os  ignorantes  de  to- 
dos os  paizes  a  consideram  um  gravame,  e  as  facções  demagó- 
gicas e  os  cabeças  de  motim  não  falham  nunca  em  fazer  das 
contribuições  objecto  de  seus  discursos,  servindo-se  da  igno- 
rância das  massas  e  mascarando  seus  próprios  desígnios  si- 
nistros com  o  falso  pretexto  de  reformar  abusos.  E'  inegável 
que  os  tributos  teem  immediata  influencia  sobre  os  artigos  de 
consumo,  tanto  de  primeira  necessidade  como  de  luxo  ou  con- 
veniência; por  que  o  valor  total  do  consumo  nacional  é*  sem- 
pre augmentado  pela  somma  aggregada  do  interesse  da  divi- 
da nacional,  e  da  despeza  annual.  Este  augmento  do  valor 
do  consumo  nacional  é  o  eífeito  principal  e  mais  prejudicial 
da  lei  tributaria.  A  idea  de  que  as  contribuições  pesadas  em- 
pobrecem uma  nação  é  um  erro.  Quaesquer  que  sejam  os  im- 
postos  levantados  n'um  paiz,  se  forem  despendidos  no  pro- 


S9'9 

dueto  nacional  imo  o  podem  empobrecei;  produzem  apenas 
uma  circulação  mais  activa,  porque  o  numerário  levantado 
no  paiz  reflue.  para  o  mesmo  paiz  por  mil  difíerentes  cana/es. 
O  produeto  d'uma  nação  e  suas  colónias  fornecem  em  parte  ou 
no  todo  os  equipamentos  militares  se  é  em  tempo  de  guerra 
e  o  abastecimento  da  população  em  tempo  de  paz.  Os  salá- 
rios do  funceionalismo  publico  consomem-se  no  paiz,  e  as  o- 
bras  publicas  e  varias  construcções  empregam  os  seus  artis- 
tas. A  importação  dos  artigos  que  um  paiz  não  produz  con- 
corre para  estimular  o  commercio  e  crear  mercados  pa- 
ra a  proclucção  e  manufacturas  próprias,  que  as  nações  es- 
trangeiras não  receberiâo  senão  em  retorno  d'uma  remessa 
proporcional  ás  suas. 

Se  os  effeitos  dos  impostos  são  elevar  os  artigos  de  consu- 
mo como  não  se  pode  negar,  as  nações  nem  por  isso  são  mais 
pobres  nem  o  povo  mais  oprimido;  porque  o  valor  da  produe- 
çao.  e  o  preço  do  trabalho  estarão  sempre  em  relação.  Esta  de- 
lineação  do  caso  funda-se  obviamente  na  razão,  e  a  sua  vera- 
cidade funda-se  na  experiência;  porque  é  um  facto  inquestio- 
nável que  apesar  das  grandes  dividas  nacionaesas  classes  me- 
dias e   o  povo  não  passam  peior. 

Observamos  já  e  não  pód«  escapar  a  ninguém  que  o  in- 
fluxo d 'ouro  e  prata  da  America  foi  á  principal  causa  e  a 
primaria  da  extraordinária  subida  que  desde  a  descoberta 
cTaquelle  continente  tem  havido  nas  producções  da  Europa, 
que,  como  é  natural,  augmentou  em  proporção  á  diminuição 
do  valor  do  ouro  e  prata  á  medida  que  avultava  no  velho 
mundo.  D'aqui  é  claro  que  se  a  quantidade  de  numerário 
em  giro  dobrasse  na  circulação,  dobraria,  igualmente  o  valor 
da  propriedade  e  yice-versa :  a  actividade  do  commercio  não 
só  se  resente  pela  quantidade  em  circulação,  mas  também 
por  qualquer  cousa  que  o  represente;  e  o  credito  estabeleci- 
do opera  a  este  respeito  do  mesmo  modo  que  o  numerário 
circulante. 

Nos  paizes  aonde  a  moeda  é  escassa  e  o  commercio  fraco, 
tudo  é  barato,  o  soldo  do  militar  é  pequeno  e  baixos  os  sala- 

39 


300 

rios  do  artista  e  do  operário;  os  salários  do  funccionalismo 
são  fracos  e  todas  as  verbas  de  despeza  publica  na  mesma 
proporção. 

Exemplificaremos  esta  hypothese ,  estabelecendo  urna 
comparação  entre  a  Inglaterra  e  a  Rússia.  N'este  paiz,  segun- 
do Mr.  Cox,  um  dos  modernos  viajantes  mais  intelligentes  e 
escriptor  imparcial,  a  sua  receita  não  pode  estimar-se  em  mais 
de  sete  milhões  de  libras  sterlinas.  (a)  Com  este  rendimento, 
q ue  não  chega  a  um  quinto  do  rendimento  animal  da  Gran 
Bretanha,  a  Rússia  tem  em  pé  de  guerra  uma  força  de 
400:000  homens  de  cav  aliaria  e  infanteria,  alem  cias  suas  es- 
ouadras;  e  não  só  exerce  uma  influencia  preponderante  na 
balança  politica  da  Europa, como  conduz  as  suas  operações  de 
guerra  e  administração  com  energia  e  em  grande  escala,  gas- 
tando som.mas  immensas  na  construcção  de  magníficos  edi- 
fícios e  apresentando  um  espectáculo  cie  esplendor  publico 
nada  inferior  a  qualquer  das  primeiras  cortes  da  Europa,  íi- 
cando-lhe  ainda  sufíiciente  para  a  remuneração  do  mérito, 
promoção  das  artes  e  sciencias,  e  da  litteratura  e  tudo  o  mais 
cia  dependência  dos  governos.  Se  osproductos  agrícolas,  salá- 
rios cio  artista,  do  jornaleiro,  do  soldado  etc.  estivessem  altos, 
ou,  em  outras  palavras,  se  o  numerário  abundasse  na  Rússia 
como  na  Inglaterra,  o  governo  d'aquelle  império  seria  obri- 
gado a  levantar  os  impostos  cinco  ou  seis  vezes  mais  do  que 
na  actualidade. 

Tomando  a  Gran-Bretanha  como  exemplo  da  nenhuma 
inconveniência  dos  pesados  tributos,  é  fora  de  duvida  que  os 
seus  grandes  impostos  é  a  consequência  necessária  da  sua 
immensa  riqueza,  e  que  povo  algum  tem  menos  direito  cio 
Gueixa  contra  os  seus  impostos  como  é  o  povo  inglese,  porque 
nenhum  outro  está  tanto  no  ciso  de  os  pagar;  e  também  por 
que  os  inglezes  em  troca  do  dinheiro  desembolsado  para  as 
despezas  do  estado  gozam  uma  segurança  individual  e  de  pro- 
priedade desconhecida  nos  tempos  antigos  e,  quando    não  su- 

ía)  Âo  tempo  que  esta  obra  foi  escripta. 


301 

perior,  nunca  interior  a  qualquer  outro  governo  d'estas  eras. 
Cumpre  também  aqui  notar  que  o  súbdito  britannico  alem  da 
prerogativa  que  tem  de  se  impor  as  suas  contribuições  por 
meio  de  seus  representantes,  tem  por  assim  dizer  a  regalia 
de  fixar  o  seu  quantitativo,  porque  á  excepção  das  contribui- 
ções prediaes  que  são  inevitáveis,  os  outros  impostos,  pelo  fa- 
cto de  serem  indirectos, podem  ser  diminuídos  prescindindo-se 
de  certas  regalias  ou  objectos  de  luxo, o  que  não  acontecia  com 
o  systema  instituído  pelos  romanos  e  adoptado  por  muitos 
outros  povos.  E'  ainda  muito  duvidoso  se,  paga  a  divida  na- 
cional e  abolidos  os  impostos,  o  paia  seria  mais  rico.  O  valor 
dos  productos  nacioriaes  e  da  propriedade  diminuiria  e  as 
classes  pobres  da  sociedade  nada  lucrarião  por  isso  que  os  sa- 
lários sofíreriâo  uma  baixa  proporcional. 

Parece,  por  tanto,  que  os  fundos  levantados  pelo  sys; 
tema  tributário,  gastos  que  sejâo  nas  producções  do  paiz, 
reverteu i  ás  nascentes  d'onde  foram  derivados,  e  como  aqueí- 
la  parte  consumida  em  productos  estrangeiros  tende  a  dar 
grande  vigor  e  actividade  ao  commercio,  uma  grande  divida 
nacional,  e  o  augmento  de  contribuições,  que  deve  necessaria- 
mente ser  a  consequência  dos  grandes  juros,  são  males  de 
muito  menos  considerar ã-0  do  que  geralmente  se  representa. 
Podia  talvez  íigurar-se-nos  sob  uma  analyse  miúda  que  o  mal 
maior  e  o  único  real  e  considerável  é  actuar  sobre  a  indus- 
tria interna  pela  sua  irresistiveí  tendência  a  fazer  subir  os 
preços  do  trabalho  em  proporção  â  elevação  dos  preços  dos 
artigos  de  primeira  necessidade;  porque  é  obvio  que  o  indus- 
trial, que  não  pôde  sustentar-se  por  menos  ■  d' um  tanto  por 
dia,  nào  poderá  reputar  os  seus  artefactos  pelo  mesmo  preço 
por  que  os  pode  vender  áquelle  para  quem  uma  somma  me- 
nor seja  suíÈcieníe,  suppondo  mesmo  que  ambos  comprem  a 
matéria  prima  peio  mesmo  preço;  e  consequentemente  quan- 
do as  mercadorias  são  trazidas  para  o  mercado,  este  ha  de 
vender  por  menos  do  que  aquelle,  a  não  ser  que  o  primeiro 
possa  contrabalançar  as  suas  desvantagens  por  uma  mão 
d'obra  superior;    ou    então  que,  possuidor  de  grande  capital. 


302 

e  extenso  commercio  possa  negociar  em  escala  que  o  interes- 
se menor  fique  compensado  pela  superioridade  do  seu    trafico.. 

Como  circunstancias  análogas  devem  operar  d' um  modo 
análogo  sobre  a  industria  d'um  milhão  de  homens  como  sobre 
o  trabalho  d'um  só  individuo,  as  consequências  mais  de  te- 
mer dos  elevados  impostos  são  que  a  nação  pesadamente  tri- 
butada, pôde,  em  razão  dos  altos  preços  dos  géneros  de  pri- 
meira necessidade  vér-se  na  impossibilidade  de  desfazer-se 
dos  seus  artefactos  nos  mercados  estrangeiros  pelos  mesmos 
preços  por  que  o  podem  fazer  outras  nações  aonde  a  vida  ê 
mais  barata.  Toda  a  vez  que  duas  nações  eommereiaes,  Fres- 
tas circunstancias  rivalizam  no  mesmo  género  de  manufactu- 
ra e  exportam  as  mesmas  espécies  de  mercadorias,  aquella 
cujos  operários  não  poderem  sustentar-se  senão  por  mais  altos 
preços,  não- pode  co-mpatir  com  a  sua  rival  no  mercado  estran- 
geiro, a  não  ser  que  a  qualidade  superior  da  mercadoria,  ou  a 
barateza  de  capital  contrabalancem  a  desigualdade.  Isto  é  o 
que  suecede  com  a  Inglaterra;  os  seus  operários  vencem 
maiores  salários  do  que  em  outros  paizes,  mas  fazem  mais 
e  melhor  trabalho,  e  por  isso  as  suas  manufacturas  tem 
maior  procura  e  são  mais  estimadas  fora.  O  seu  cemmercio< 
é  também  sustentado  por  um  capital  immenso  e  conduzido 
em  uma  escala  maior  do  que  não  acontece  em  muitos  outros 
paizes.  E  se  por  outro  lado  ella  tem  a  vantagem  de  reputar 
melhor  as  suas  mercadorias,  a  sua  opulência  e  extenso  trafico 
habilitada  a  pagar  bem  as  commodidades  que  importa  para 
seu  próprio  consumo. 

Sob  um  ponto  de  vista  politico  como  moral,  os  males  da 
guerra  estão  longe  de  serem  de  pequena  monta.  A  riqueza  e 
a  prosperidade  d'itm  estado  augmentam  necessariamente  á 
proporção  que  os  seus  súbditos  se  exercem  aproveitosamente; 
e  as  riquezas  de  cada  eonnn unidade  cresce  na  razão  do  nu- 
mero de  seus  membros  úteis.  Deve  por  tanto  ser  uma  gran- 
de calamidade  que  desde  as  primeiras  idades  um  tão  consi- 
derável numero  de  úteis  súbditos  se  não  empregue  senão  no 
exterminio  de  seus  semelhantes 


303 

A'  perda  de  trabalhos  de  utilidade  em  beneficio  da  commu- 
nidade  accresee  as  quantidades  de  mercadorias  etc.  frequen- 
temente destruídos  pelo  inimigo,  ou  que  se  corrompem  pelo 
tempo  que  estão  em  deposito. 

Compulsando  as  ensanguentadas  paginas  da  historia,  o  lei- 
tor não  pode  deixar  de  lamentar  os  eífeitos  desastrosos  d'a- 
quellas  guerras  que  tantas  vezes  tem  deso'ado  os  mais  for- 
mosos paizes,  e  envolvido  um  sem  numero  de  victimas  nas 
maiores  calamidades.  Parece,  porem,  considerando  as  cir- 
cunstancias do  mundo  e  as  imperfeições  da  natureza  humana 
que  as  frequentes  hostilidades  são  males  inseparáveis  do  esta- 
do presente  da  humanidade.  Em  certos  estados  e  communi- 
dades  existe  uma  authoridade  legislativa  que  promulga  leis  e 
regulamentos  tendentes  a  refrear  as  paixões  desordenadas  e  a 
Conciliar  os  interesses  oppostos  de  seus  membros,  como  ha 
também  uma  força  executiva  para  impor  a  sua  obediência,  e 
é  evidente  que  sem  estes  elementos  não  ha  sociedade  possiveL 
Mas  quando  se  levantam  contendas  entre  nações,  não  ha  tri- 
bunal na  terra  a  que  appellar.  Á  decisão  n'este  caso  é  por 
meio  das  arniaS.  A  guerra  por  tanto  pôde  ser  encabeçada 
Ti'aquellas  mysteriosas  disposições  da  Providencia,  por  meio 
das  quaes  as  más  paixões  da  humanidade  são  castigadas  por 
si  mesmas. 

O  systema  tributário  é  uma  d'estas  feições  que  distingue 
o  systema  politico  moderno  do  antigo.  N'este,  tanto  as  des- 
pezas  ordinárias  como  extraordinárias  eram  votadas  no  mo- 
mento d'urgencia,  pezando  por  tanto  sobre  os  súbditos  que 
não  estavam  preparados  para  satisfazer  âs  exigências  publicas. 
Muitas  vezes  reconhecia-se  a  impossibilidade  de  levantar  os 
fundos  necessários,  e  não  poucas  vezes  acontecia  debandar 
um  exercito  nos  momentos'  mais  criticos,  na  véspera  mesmo 
da  victoria  e  conquista  por  falta  de  meios  para  a  sua  susten- 
tação. Os  tributos  nacionaes  quando  assim  cobrados  esta- 
vam sujeitos  a  serem  arrestados  pelo  inimigo  de  que  ha  mui- 
tos factos  na  historia.  Este  e  outros  muitos  males  deixaram 
cVexistir   ou  se  modificaram  muito   com  a  adopção  do  syste- 


304 

ma  da  contribuição  indirecta,  estabelecendo  um  meio  regular 
e  suave,  equiparando  a  receita  do  thezouro  ás  despezas  pu- 
blicas e  providenciando  para  os  casos  extraordinários,  sem 
vexame  nem  exigências  exorbitantes  e  onerosas  para  a  na- 
ção. 

Como  o  systema  de  contribições  é  próprio  ao  systema  mo- 
derno de  finanças,  desconhecido  dos  antigos,  assim  a  balança 
do  poder,  desde  o  extraordinário  engrandecimento  da  casa 
d'xlustria  sob  Carlos  5.°  tem  sido  um  dos  pontos  salientes  no 
systema  geral  da  politica  europea  e  motivo  para  o  derrama- 
mento de  rios  de  sangue.  Milhares,  para  não  dizer  milhões 
de  creaturas  humanas  tem  sido  sacrificadas  ao  phantasma  e 
mesmo  alguns  dos  principaes  poderes,  parecem  ter  pouca  in- 
fluencia no  systema  politico;  até  hoje  a  Gran  Bretanha,  a 
França,  a  Áustria  e  a  Rússia  são  as  únicas  que  pezam  na 
balança  politica  e  que  decidem  da  sorte  do  mundo,  até  que 
os  dous  impérios  americanos  adquirão  no  novo  mundo  aquel- 
!a  ascendência  que  os  outros  poderes  possuem  no  velho. 

Como  sejão  aquelles  os  traços  mais  robustos  no  quadro 
politico  do  globo,  assim  o  progresso  rápido  da  civilisação  e 
suas  appendices  constitue  uma  feição  distincta  no  quadro  da 
moderna  sociedade.  Vimos  já  como  uma  serie  complicada  de 
causas  teem  operado,  atravez  uma  longa  successão  de  idades, 
para  o  adiantamento  ou  retardamento  da  civilisação  e  melho- 
ramento da  espécie  humana.  O  poder  da  liberdade,  o  adian- 
tamento dos  conhecimentos,  a  descoberta  ou  melhoramento 
das  artes,  sciencias,  e  manufacturas,  a  extensão  do  eommer- 
cio,  a  descoberta  da  America,  e  a  importação  de  riquezas  d'a- 
quelle  ponto  do  globo  constitue  um  conjuncío  de  causas  que, 
por  operações  reciprocas  c  combinadas,  produziram  a  civilisa- 
ção da  moderna  Europa. 

Uma  visível  e  necessária  consequência  d'esta  civilisação 
geraJ  Ú  a  difíusão  da  riqueza  e  consequentemente  do  luxo  en- 
tre o  povo.  A  prevalência  do  luxo  entre  todas  as  classes  da 
Europa  dos  nossos  dias,  forneceu  amplo  motivo  de  discussão 
apra  reformistas,  moralistas  e  semi-politicos.  Não  é  porem  em 


305 

realidade  mais  que  a  necessária  consequência  do  progresso  dá 
civilisaçâo  e  a  Requisição  de  meios,  em  cooperação  com  aquelie 
principio  universal  da  natureza  humana  que  leva  o  homem  a 
srozar  aquillociue  nossue.  Aquelles  declamadores  recorclam-nos 
qiteoluxo  causou  a  queria  des  maiores  impérios  da  antiguida- 
de, edalai  querem  inferir  que  os  seus  efieitos  devem  ser  os 
mesmos  sobre  todas  as  nações  da.  moderna  Europa  ;  mas  nào 
parece  que  fosse  o  luxo  do  povo,  mas  sim  aquelie  d'uma  corte 
afeminada,  que  occasionou  ou  pslo  menos  apressou  a  queda 
das  monarchias  de  Babyionia,  Pérsia  e  dVuitras  nações.  Aquel- 
ie luxo  que  se  difTunde  por  um  paiz  todo,  que  se  extende  a  to- 
das as  classes  da  sociedade,  não  tem  aquelki  fatal  tendência, 
ao  contrario,  é  o  principal  sustento  do  commercio  e  das  manufa- 
cturas, eo  grande  estimulo  da  industria  nacional  e  individual. 
Ha  igualmente  uma  outra  differença  essencial  entre  os  go- 
vernos e  os  systemas  politicos  dos  antigos  e  dos  modernos  ; 
os  primeiros,  peia  maior  parte,  devem  a  sua  opulência  como 
também  o  seu  engrandecimento  ás  suas  conquistas,  e  quando 
o  enthusiasmo  militar,  a  que  deviam  a  sua  grandeza,  se  apa- 
gava, cabiam  victimas  do  primeiro  invasor  bárbaro.  As  nações 
da  moderna  Europa  pelo  contrario,  devem  a  sua  riqueza  e  a 
maior  parte  dos  seus  melhoramentos  ao  commercio  ;  e  se  o  lu- 
xo produz  a  degeneração  d'um  povo,  cuja  Índole  é  inteira- 
mente militar,  elíe  excita  a  industria  e  acorda  os  brios  n'uma 
nação  commercial.  Nào  é  por  tanto  o  luxo,  mas  sim  o  abando 
no  e  a  indolência  que  sãoprejudiciaes  aos  estados.  O  luxo  e  o  es- 
plendor d'uma  corte  nào  são  incompatíveis  com  os  negocio» 
públicos;  nem  o  luxo  individual  destoa  da  administração  par- 
ticular. Os  gritadores  populares  contra  es  vicies  politicos  e 
moraes  da  actualidade  farião  bem  em  considerar  que,  como  o 
luxo  não  pode  bem  ser  definido  como  outra  cousa  que  não  seja 
uma  despeza  extravagante,  demasiadamente  pesada  para 
aquelie  sobre  quem  recae  a  imputação,  não  é  fácil  determinar 
o  que  é  luxo  em  difrerentes  situações  da  vida;  porque  o  que 
é  luxo  em  um,  em  outro  é  muito  apenas  uma  commodidade. 
O  luxo.  começa  sempre  onde  a  commodidade  acaba,  mas  a  dif- 


300 

nculclade  está  em  lhe  fixar  a  linha  da  demarcação. 

Depois  de  contemplar  o  estado  d'aquella  parte  do  systema 
moral  de  que  temos  mais  conhecimento  e  em  que  somos  mais 
interessados,  se  estendermos  as  nossas  observações  mais  lon- 
ge e  olharmos  a  natureza  humana  sob  um  ponto  de  vista  mais 
largo,  influenciada  como  ella  é  e  modificada  por  sys  te  mas  po- 
líticos e  religiosos,  theorias  intellectuaes  e  hábitos  sociaes,com 
quanto  vemos  o  christianismo  de  dia  para  dia  adquirir  dia- 
riamente mais  áurea,  em  rasão  do  vasto  império  de  Colombo, 
c  poder  sempre  crescente  da  republica  da  America  do  Norte, 
como  também  pelo  engrandecimento  cio  império  E-usso,  que  se 
extende  sobre  todas  as  regiões  do  norte  da  Azia,  como  tam- 
bém pelas  colónias  da  Grran-Bretanha  c  seus  missionários  nas 
nações  europeus;  mesmo  assim  vemos  a  maior  parte  da  Azia  e 
quasi  toda  a  Africa  sob  o  poder  do  despotismo  e  influenciada 
superstição.  Todas  as  regiões  septenírionaes  da  Africa,  o  Egy- 
pto,  a  Arábia,  os  dominios  turcos,  a  Pérsia,  uma  grande  par- 
te da  índia  e  a  Tartaria,  professam  a  religião  Mahometana, 
em  quanto  que  uma  parte  ainda  maior  dos  Índios  e  tártaros 
adhereá  religião  das  Bhramanes  e  a  da  Lama  do  Thibet.  Os 
habitantes  dos  vastos  e  populosos  paizes  da  China,  do  Ja- 
pão, da  Turquia  e  da  Cochin  China  seguem  os  vários  sys- 
temas de  Foe  e  de  Confúcio,  ou  então  os  de  Thibet;  e  cada 
um  d'estes  sys  tem  as,  estabelecidos  n'estas  nações  do  Oriente, 
se  ramificam  c  se  subdividem. 

Os  grandes  paizes  de  Sião,  Pegu,  Ava  etc.  sitos  ao  nascen- 
te dabahia  de  Bengallatem  systemas  propriamente  seus, igual- 
mente absurdos;  e  o  vasto  interior  d'Aírica  e  suas  partes  me- 
ridionaes  á  excepção  do  império  da  Abyssinia,  aonde  a  reli- 
gião compõe-se  d'um  mixto  de  judaísmo  e  christianismo,  e  tal- 
vez d'algumas  ídéas  mahometanas,  estão  immersas  n'um  bar- 
barismo profundo.  Pouco  se  sabe  dos  systemas  políticos  e  re- 
ligiosos estabelecidos  em  muitos  dos  paizes  já  mencionados'. 
Pouco  frequentados  por  viajantes  intelligentes,  a  historia  não 
nos  oíferece  informações  algumas  sobre  a  origem  e  forma 
cl/essas  differentes  instituições.  Sabe-se,    porem,    o  suficiente 


307 

'para  se  ver  que  depois  cVuma  longa  serie  de  períodos,    aiiti 
inanidade  sábio,  ainda  que  vagarosamente,  da  ignorância  &  do 
barbarismo;  e  que  a  radiante    illuminação    do   clnistianlsmo, 
por  em  quanto,  esclarece  muito  apenas  uma  pequena  parte  da 
raça  liumana. 

Entre  as  numerosas  questões  históricas    e   moraes    que  se 
podem  apresentar  e  que  é  impossivel  resolver,  podíamos  per- 
guntar porque  ê  que  existe  tamanha  diíferença  entre   os  me- 
lhoramentos intellectuaes  de  difíerentes   nações,    e  porque  as 
artes  e  as  sciencias,  a  litteratura  e  a  civilisação,  tem  feito  tan- 
to progresso  em  alguns  paizes,  quando  em  outros  estão  ainda 
no  berço.  Os  mais  notáveis  elos    d'aqiiella   grande    cadeia  de 
causas  e  efTeitos  que  produziram  esta  distincção  entre   as  na- 
ções, antigas  e  modernas,  de  cuja  historia  temos  conhecimen- 
to, são  até  certo  ponto  visíveis.    As  circunstancias  que  deram 
origem  ao  nascimento,    progresso  e   declinação   das   artes  e 
•sciencias  e  dos   conhecimentos  litterarios   na  Babylonia  e   no 
Egypto,  como  também  entre  os  gregos    e  romanos,  e   o  seu 
ap  pare  cimento  entre  os  modernos  europeus   sobresaem   suffi.- 
cieníemente  d'entre  a  turba  d'occorrencias  moraes  que  enchem 
as  paginas  da  historia,  e  pelos  efTeitos  que  hão  produzido,  tor- 
nam variadíssimo' o  colorido  do  inconstante  quadro  da  existên- 
cia humana.  Da  historia  de  muitas  outras  nações,    comtudo, 
nada  sabemos  absolutamente;  mas  algumas,  segundo    parece, 
não  passaram  nuuca  das  artes  necessárias;  em  algumas  vemos 
que  se  attendeu  só  ao  que  era  de  pura  conveniência,    em  ou- 
tras certo  grau  de  luxo,   mas   com  pequenos   melhoramentos 
intellectuaes.  Algumas  nações,  como  por  exemplo,  os  hindoos 
e  os  chinas,  fizeram  segundo  se  vê  considerável  progresso   no 
campo    das   sciencias    e   artes    e  no  embellezamento  da  vida 
civilisada  em  remota  epocha.  E'  fora  de  duvida  que  estas  na- 
ções orientaes  haviam  feito  não    pequeno  adiantamento    n'a- 
quellas  cousas,  antes  mesmo  que  se  descobrissem    signaes  de 
civilisação  nas  nações  mais  cultas  da  moderna  Europa,   e  pro- 
vavelmente antes  que  os  próprios  romanos  e  gregos  tivessem 
feito  progresso  nos  difíerentes  conhecimentos;    comtudo  nu*i~ 

39 


308 

ca  os  melhoramentos  scientiíicos  ou  litterarios  foram  levados 
a  tão  alto  grau  entre  as  nações  orientaes  como  entre  os  gregos 
e  romanos  e  os  modernos  europeus  ;  pelo  contrario,  parecem 
ter  ficado  estacionários  n'aquelles  paizes.  A  declinação  da  lit- 
teratura  dos  liindoos  n'estes  últimos  tempos,  pode-se  attribuir 
facilmente  á  circunstancia  da  subversão  do  seu  poder  e  im- 
portância politica,  e  á  sua  sujeição  ao  jugo  dos  invasores  tár- 
taros que  estabeleceram  a  religião  mahometana  e  o  império 
Mogol  da  índia  e  tornaram  aquelle  celebre  paiz  o  theatro  de 
revoluções  e  de  crimes.  E'  difficil,  porem,  achar  uma  rasão 
satisfactoria  para  que  o  chinas  depois  de  haver,  em  remotas 
epochas,  feito  progresso  na  sciencia  e  na  litteratura  su- 
perior á  maior  parte  das  nações  occidentaes,  parassem  de  to- 
do nos  melhoramentos  começados,  sem  nada  adiantarem 
no  decurso  de  tantos  séculos.  E'  um  tanto  difficil  ex- 
plicar este  phenomeno  ;  se  estivéssemos  mais  ao  facto 
da  historia  antiga  e  moderna  daquelle  povo,  a  diffieul- 
dade  desappareceria,  ou  se  aplanava.  Os  chinas,  segundo 
os  annaes  d'aquella  nação,  escriptos  pelos  seus  próprios  histo- 
riadores, estiveram  sempre  menos  expostos  ás  invasões  estran- 
geiras, menos  perseguidos  por  guerras  de  fora  e  menos  agi- 
tados por  commoções  internas  do  que  outra  qualquer  nação: 
em  tão  longo  periodo  d'existencia  politica  outra  alguma  passou 
portão  poucas  revoluções;  porque  a  conquista  teirtara,  uma  das 
mais  importantes  revoluções  porque  atravessou  a  China,  não 
foi  mais  que  a  transferencia  da  soberania  d'uma  familiapara  ou- 
tra, e  pouca  ou  nenhuma  alteração  produzio  nas  instituições 
nacionaes  e  na  indole  do  povo,  por  isso  que  foram  os 
tártaros  que  se  cingiram  a  todos  os  respeitos,  até  mesmo  no 
vestuário,  aos  costumes  chinas  no  que  deram  provas  d'um 
grande  tacto  politico. 

Este  golpe  de  vista  sobre  a  historia  da  China  traçado  em 
vista  das  narrações  de  seus  próprios  escriptores,  parece,  con- 
siderando as  circunstancias  locacs  d'aquelle  paiz,  uma  justa 
apreciação. 

A  China,  em  periodo  distante,  repleta  d'habitantes  e  orga- 


309 

nisada  com  um  systema  politico  regular,  foi  decididamente  o 
império  mais  populoso  e  poderoso  da  Azia  oriental.  Separada 
por  immensos  desertos  dos  paizes  occidentaes  pouco   tinha  a 
recciar  um  ataque  por  aquelle  lado.  As  nações  do  sul  ou    do 
su-oeste  eram  muito  inferiores  em  forças  e  estavam  na  maior 
parte  sob  o  poder,  ou  ao  menos  sob  a  influencia,  do  império  chi- 
nez.  Pelo   nascente  confina  com  o  mar,  e  por  consequência  a 
fronteira  do  norte  era  o  unicoponto  vulnerável  ed'onde  a  Chi- 
na podia  temer-se  d'uma  invasão  inimiga.  Esta  fronteira  fora 
fortificada  com  aquella  celebre  muralha  tão  fallada,  e  que  com 
quanto  seja  um  monumento    da  industria   da    nação   chineza 
não  foi  sufficiente  para  resistir  aos  assaltos  dos  tártaros,   úni- 
co inimigo    que  o  império    podia  receiar.    A   invasão  e   con- 
quista d'aquelle  paiz,  pelos  successores  de  Zinghis  Khan,  foi 
comtudo  de  natureza  estéril  e  não  parece  que  produzisse  uma 
rttvoluçãoconsideravel  na  indole,  hábitos,  e  geral    estado  do 
povo;  e  a  ultima  conquista  tártara,  como  já  se  disse,    não  foi 
mais  productiva  que  a  primeira.  Em  tal  estado   de  segurança 
local  e  estabilidade  politica,  reunindo  as  vantagens  d'um  solo 
fértil  e  clima  benigno,  é  para  admirar    que  os  chinas,   tendo 
na  antiguidade  desenvolvido  a  actividade   de   sua  indole    na- 
cional  no  progresso    das  artes,    sciencias    e  philosophia    co- 
mo   outra  qualquer  nação  do  seu  tempo,   tivesse  chegado   ao 
ne  plus  ultra  das  suas  conquistas   scientificas  e   litterarias,  e 
que  permanecessem  até  hoje  no  mesmo  estado  em    que  esta- 
vam ha  séculos.  As  causas  pois  só  as   poderemos    attribuir  a 
um  apego  invencivel  a  systemas   estabelecidos,  usos  e  costu- 
mes que  extingue  o  espirito  d'investigação  e  o  desejo  de  melho- 
rar   o    seu   estado.    O    Creador ,      preenchendo   a     immen- 
sidade  do  seu  plano,  povoou  o  globo  de  difíerentes    ordens  de 
seres,  desde  o  homem,    até   ao  ultimo  insecto,   e  na  sua  in- 
finita sabedoria,   julgou    melhor  estabelecer   uma  differença 
de  forças  intellectuaeg  entre  as  diversas  nações;  mas  nós  que 
vemos  a  natureza  humana  modificada   e  influenciada  por  mil 
diversas   circunstancias,    não   podemos   comprehender  a  ra- 
zão   nem    conceber  em    que  grau   pod«w   as  circunstancia» 


310 

physicas  operar  sobre  as  faculdades  mentaes   dos  habitantes 
de  difíerentes  climas. 

Contemplando  e  comparando  o  estado  presente  e  antigo  da 
Itália  e  da  Grécia,  como  também  de  todas  as  nações  da  mo- 
derna Europa,  e  reflexionando  sobre  a  declinação  da  littera- 
tura  grega  e  do  valor  romano,  como  também  do  extraordi- 
nário progresso  das,  outr'ora  nações  barbaras  da  Europa, 
em  todas  as  espécies  de  melhoramentos  intellectuaes,  parece- 
rá que  as  faculdades  do  homem  são  mais  poderosamente  in- 
fluenciadas e  o  seu  progresso  na  seieneia  mais  decididamente 
fixado  por  circunstancias  physicas.  Em  respeito  á  força  corpó- 
rea e  constituição,  as  causas  physicas  tem  provavelmente  uma 
influencia  poderosa.  Os  habitantes  dos  paizes  meridionaes  sao 
geralmente  descriptos  como  inferiores  em  força  e  coragem 
áquelles  dos  paizes  do  norte;  mas  não  obstante  esta  supposi- 
çâo,  temos  d'admittir  um  grande  numero  d'excepções  ;  pro- 
vavelmente na  generalidade  assim  não  aco  nteça,e  estamos  lon- 
ge de  poder  dizer  que  os  povos  d'Africa  e  algumas  partes  da 
Azia  meridional  sejam  inferiores  a  esse  respeito  aos  europeus 
e  aos  aziaticos  do  norte.  E'  comtudo  certo  que  os  climas 
quentes  abrandam  as  molas  de  vitalidade  e  tornam  os  habi- 
tantes menos  dados  a  exercícios  violentos  tanto  do  corpo  co- 
mo do  espirito. 

A  riqueza  e  a  abundância,  filhas  geralmente  do  solo  fértil 
e  clima  benigno  das  regiões  do  sul  na  supposição  d'a)guns- 
dão  aos  seus  naturaes  esse  amor  pelo  luxo,  mas  isto  é  um  erro. 

As  nações  do  sul  não  vivem  mais  luxuosamente  do  que  as 
do  norte;  o  seu  luxo,  comtudo,  é  de  differente  natureza  com 
um  sainete  de  molleza  e  indolência,  dando  margem  a  sup- 
pôr  que  por  este  motivo  tem  ellas  sido  tão  frequentemente 
vencidas  pelas  do  norte.  Convém  notar  que  as  maiores 
imegrações  d?  raça  humana  se  teem  feito  do  norte  para  o  sul  e 
que  os  povos  d/estas  regiões  tem  sido  geralmente  victimás 
dos  seus  conquistadores  do  norte;  emquanto  que  o  povo  dos 
paizes  mais  quentes  não  teem  nunca  levado  as  suas  conquis- 
tas muito  para  o.  norte.    Nem  os  babylonioSj    nem  os  persas,. 


311 

nem  os  serracenos,  os.  mais  meridionaes  de  todas  as  grandes 
nações  victoriosas,  penetraram  nunca  muito  norte  ;  mas  de- 
vemos ter  em  vista  que  nada  os  induzia  a  levar  as  suas  ar- 
mas para  aquellas  regiões.  As  nações  septentrionaes  tinham 
muitas  e  fortes  rasões  para  imigrarem  e  procurar  conquistas 
e  riquezas  nos  paizes  férteis,  risonhos  e  opulentos  do  sul:  mas 
o  povo  d'estes  paizes  não  experimentavam  tentações  que  os  in- 
duzissem a  invadir  as  charnecas  e  pântanos  das  regiões  frias: 
e  esta  é  provavelmente  a  rasão  porque  os  povos  do  norte  não 
eram  conquistadas  pelos  do  sul  e  que  poderá  ter  operado  mui- 
to mais  poderosamente  a  esse  respeito  do  que  a  supposta  in- 
ferioridade de  força  e  coragem,  e  outras  qualidades  bellicas, 
dos  differentes  povos. 

Se  podessemos  ver  claramente  toda  a  variedade  de  cir- 
cunstancias que  tem,  durante  successivas  idades,  mudado  e 
determinado  as  condições  das  nações,  encontraríamos  talvez 
uma  serie  de  causas  moraes  formando  uma  infinidade  de  com- 
binações e  operando  uma  diversidade  infinita  d'influen^ 
cias,  que  tem  determinado  o  grau  de  perfeição  intellectual  a 
que  podem  chegar,  como  também  da  posição  qu«  devem  oo~ 
cupar  na  escala  politica  e  que  nenhuma  differença  physica 
essencial  existe  entre  as  differentes    nações. 

Lançando  uma  vista  retrospectiva  sobre  as  revoluções  das 
idades  passadas  e  contemplando  a  variada  scena  da  existên- 
cia humana,  surprehende-nos  a  maravilhosa  exposição,  e  não^ 
podemos  deixar  de  reflectir  seriamente  sobre  a  instabilidade 
das  cousas  do  mundo.  Quando  se  pensa  na  queda  d'imperios 
e  de  conquistadores,  na  extincçao  de  suas  familias  e  na  inefi> 
cacidade  de  seus  projectos  efeitos  vê-se  de  quão  curta  dura- 
ção é  a  ambição  humana.  Os  reis,  os  heroes,  e  os  conquista- 
dores da  antiguidade  não  existem  já,  e  os  seus  nomes  não 
são  mais  que  uma  palavra  vã  sem  sentido.  A  sua  posteridade 
ou  se  extinguio,  ou  os  seus  descendentes  confundem-se  com 
as  massas  sem  clistincção.  Muitos  descendentes  em  linha  recta 
dos  mais  celebres  personagens  da  antiguidade  encontram-se 
entre,  os  pobres  trabalhadores  e  artistas  dos  nossos  dias,   e  em 


312 

quanto  os  seus  progenitores  dominaram  a  humanidade,  os 
antecessores  dos  príncipes,  os  philosophos  e  os  litteratos  do 
moderno  mundo  levaram  uma  vida  nómada  e  selvagem  nos 
immensos  escampados  da  Dinamarca,  Norwuega,  Suécia,  Rús- 
sia, Polónia  e  Allemanha,  paizes que  estavam  num  estado  de 
barbarismo  quando  a  Grécia  e  Roma  estavam  florescentes 
nas  artes  e  nas  armas,  e  no  apogeo  da  sua  gloria.  Tão  com- 
pletamente revirado  tem  sido  todo  o  poder  humano,  que  uni 
dos  mais  celebres  escriptores  do  século  passado  diz,  que  se 
não  encontra  uma  só  familia,  quer  em  Roma,  quer  em  parte 
alguma  da  Itália,  que  com  certeza  possa  provar  a  sua  descen- 
dência dos  antigos  romanos.  Taes  são  as  vicissitudes  d'esta 
mutibilidade  que  apresenta  o  mundo  moral. 

O  philosopho  que  lançar  um  golpe  de  vista  sobre  o  passa- 
do da  humanidade  e  que  contemplar  com  reflexão,  o  com- 
plicado e  interessante  drama  da  sua  existência,  no  decurso 
das  suas  suceessivas  e  variadas  scenas,  desde  as  mais  remo- 
tas datas  históricas  até  aos  nossos  dias,  notará  sem  difficulda- 
de  que  circunstancias  imperiosas  regem  os  destinos  das  na- 
ções e  dos  indivíduos;  que  varias  combinações  de  causas  moraes 
e  pbysicas,  incalculavelmente  numerosas,  e  extremamente  com 
plexas,  determinam  a  condição  politica,  religiosa,  intellectual 
«  social  da  humanidade;  que  tudo  concorre  para  o  comple- 
mento d'um  vasto  e  mysteiioso  plano;  e  que  a  historia  dos 
negócios  humanos  e  a  historia  da  Divina  Providencia,  são 
essencialmente  uma  e  a  mesma. 

Estas  observações  e  reflexões  sobre  a  historia  da  nossa 
espécie  são-vos  oííerecidas  a  vosso  próprio  pedido;  e  sem  du- 
vida reflectireis  sobre  as  vicissitudes  das  cousas  do  mundo. 
Por  muito  elevada  que  seja  a  posição  de  qualquer  indi- 
viduo, por  muito  larga  e  notável  a  sua  esphera  d'acção, 
ã  sua  duração  é  extremamente  curta.  O  decurso  d'alguns  an- 
nos  põe  termo  a  todas  as  distincções,  trazendo  ao  mesmo  nivel 
o  grande  e  o  pequeno,  o  rico  e  o  pobre,  o  vencedor  e  o  ven- 
cido. Deveríeis  vir  por  tanto  a  esta  conclusão,  que,  como 
■'uma  representação  dramática,  pouco  importa  desempenhar 


313 

o  papel  de  príncipe  ou  de  servo,  uma  vez  que,  acabada  a 
representação,  fiquem  todos  iguaes.  Do  mesmo  modo  deve  ser 
objecto  de  nenhuma  importância  o  papel  que  somos  chamados 
a  fazer  no  drama  da  vida,  sendo  a  grande  questão  desem- 
penhar bem  a  parte  que  nos  foi  distribuída. 


FIM 


OARTÀ  PRIMEIRA 

A  curiosidade  é  inlierente  ao  homem;  importância  em  lhe 
dar  um  curso  regular.  Necessidade  da  leitura  e  da  conversa- 
ção para  adquirir  conhecimentos.  Differença  entre  a  poesia, 
romance,  e  historia;  preferencia  devida  a  esta  ultima.  Obser- 
vações geraes  sobre  a  natureza  e  aproveitamento  da  historia» 
Negligencia  dos  historiadores  antigos,  relativamente  ás  mais 
importantes  matérias.  Progresso  das  artes,  sciencias,  littera- 
tura  e  commercio  etc.  (1  a  6) 

CARTA    SEGUNDA 

Se  o  estudo  de  historia  deixa  impressões  tendentes  a  inspirar 
um  ardor  guerreiro.  As  razões  porque  muitas  vezes  pôde  pro- 
duzir aquelles  effeitos  sobre  ânimos  juvenis.   (7  a  12). 

CARTA   TERCEIRA 

A  vantagem  de  conhecimentos  históricos  para  exterminar 
prejuízos  mesquinhos  e  menos  liberaes,  pela  exposição  da  in- 
fluencia de  aystemas,  e  opiniões  abraçadas.  (12  a  14) 

CARTA    QUARTA 

Innumeraveis  vantagens  que  resultam  do  estudo  da  histo- 
ria; difficuldade  em  descriminar  entre  a  verdade  e  a  ficção  •; 
os  meios  a  empregar  para  aquelle  fim.  Observações  sobre  os 
■escriptos  históricos  dos  gregos  e  romanos.  Observações  sobre 

40 


316 

a  historia  ecclesiastica;  circunstancias  que  se  devem  ter  em 
conta  íia  estimação  da  probabilidade  de  factos  e  authentici- 
dade  geral  d'inforrnações  históricas.   (14  a  18) 

CARTA  QUINTA 

Necessidade  de  conhecimentos  de  geografia  e  de  chronolo- 
gia  na  leitura  d'historia  ;  erros  geográficos  mais  facilmente 
emendados  do  que  enganos  históricos  e  más  interpretações. 
Attenção  á  geographia  e  chronologia  muito  conducente  â  re- 
tentiva  bem  como  á  perfeita  comprehensão  das  informações 
históricas.   (19  a  22) 

CARTA   SEXTA 

Os  conhecimentos  de  historia  e  geographia  essenciaes  n'uma 
educação  liberal. — A  reminiscência  dos  detalhes  minuciosos 
ciosos  da  historia,  nem  possível  nem  necessária;  basta  que 
uma  perspectiva  geral  de  historia  se  estampe  no  entendi- 
mento; grandes  traços,  factos  notáveis  e  acontecimentos 
importantes  de  fácil  retenção.  (22  a  23) 

CARTA   SÉTIMA      . 

Uma  noção  geral  da  historia  do  género  humano — primeiras 
idades;  período  fixado  para  datar  o  começo  da  historia  pro- 
fana. Revista  geral  da  Escriptura  Sagrada;  conjecturas  phi- 
losophicas  sobre  a  creação;  descripção  mosaica  da  creaçâp  em 
perfeita  harmonia  com  os  princípios  conhecidos  dapbilosoj  ma 
natural;  conformidade  dos  seis  dias  de  trabalho  na  creação, 
segundo  a  exposição  de  Moizes,  com  aquelles  princípios,  con- 
cisamente examinados  e  explicados.  Os  livros  da  Escriptura 
Sagrada  considerados  distinctamente;  breves  erros  acciden- 
taes  na  historia  sacra  não  destroem  a  sua  authenticidade  ge- 
ral e  não  colhem  argumento  solido  contra  a  Divina  Authori- 
<dadé  da  religião  enrista.  (23  a  3,0) 


3Í7 

CARTA   OITAVA 

Revista  da,  historia  sagrada  continuada,  e  observações  es- 
peciaes  sobre  a  família  de  Nabocodonozor.  (31a  38) 

CARTA  NONA 

Exame  geral  do  género  humano  durante  o  período  que 
abrange  a  historia  sagrada;  estado  da  instrucção  e  commer- 
cio  entre  os  índios,  Egypcios,  Tyrios  etc.  Observações  ge- 
raes  sobre  Egypcios  e  Babylonios;  origem  do  Zabaismo  ou 
adoração  na  Babyionia  dos  corpos  celestes;  origem  da  astro- 
logia na  Babyionia;  futilidade  infundada  daquella  sciencia  ; 
analogia  com  as  idé"as  dos  babylonios  e  menos  conformida- 
de com  a  philosophia  natural;  sua  extensa  propagação  e  conti- 
nuada influencia  sobre  o  espirito  humano.  Degeneração  do 
Zabaismo  em  idolatria,  obscuridade  da  historia  dos  assyrios 
e  babylonios.  Varias  conjecturas  sobre  o  espirito  nacional  dos 
babylonios.  Descripçào  do  observatório  e  torre  de  Belus.  Des- 
cripçào de  Babyionia.  Vantagens  provenientes  do  plano  vas- 
to e  rural  de  Babyionia.  Degeneração  dos  babylonios  depois 
da  morte  de  Nabocodonozor.  Conquista  de  Babyionia  por  Cy- 
ro.  Aspecto  geral  do  mundo  no  tempo  do  império  babyloni- 
co.  Fundação  de  Roma.  Estado  primitivo  de  Roma.  (38  a  60) 

CARTA  DECIMA 

Estado  da  monarchia  persa.  Invasão  da  Grécia  por  Dário 
Hytaspe;  por  Xerxes;  retirada  de  Xerxes;  derrota  de  Mar- 
donio  em  Platea.  Subsequentes  acontecimentos  na  Grécia  e 
Pérsia;  devoção  e  caracter  de  Philippe,  rei  de  Macedónia,  seus 
preparativos  para  a  guerra  da  Pérsia,  sua  morte  trágica. 
Observações  sobre  o  aspecto  geral  e  importância  das  guerras 
entre  os  gregos  e  persas;  caracter  politico  e  militar  d'Alexan- 
dre;  dispõe-se  para  a  guerra;  fundação  d'Aiexandria;  sua  mor- 
te em  Babyionia; — Observações  geraes  sobre  o  progresso  das 


318 

artes,  sciencias,  litteratura  etc.  entre  os  persas,  egypciòs}, 
hebraicos  e  gregos  durante  o  período  que  decorre  entre  a  con- 
quista- de  Babylonia  por  Gyro  e  do  império  da  Pérsia  por 
Alexandre,  estado  de  Roma  durante  aquelíe  tempo.  Estado 
selvagem  da  Europa  n'aquellas  idades,  reflecções  geraes  so- 
bre a  vicissitude  dos  acontecimentos  e  os  admiráveis  designios^ 
da  Providencia.  (60  a  77) 

CARTA  UNDÉCIMA 

As  consequências  da  morte  d' Alexandre;  dissensões  e  tra- 
gica  sorte  dos  generaes  da  Macedónia;  effeitos  da  conquistada 
Pérsia  considerados.  Estabelecimento  do  reinado  grego  do 
Egypto  por  Ptolomeo  Lagos;  Alexandria  feita  capital;  funda- 
ção da  livraria  Alexandrina  por  Ptolomeo  Philadelpho  ;  tra- 
ducção  da  historia  sagrada  por  sua  ordem.  Negócios  dós  He- 
breus; fundação  do  reino  Asmoneano  pelos  judeos;,  destrui- 
ção d'aquella  monarchia  pelos  romanos;  seu  restabelecimento 
na  família  de  Herodes  o  Grande;  reducção  final  da  Judea  a 
província  romani*.  Gradual  mas  vagaroso  adiantamento  do 
poder  romano;  pequena  extensão  do  território  romano  ;  cos- 
tumes dos  primeiros  romanos;  anaíysedo  comportamento  de 
Hanibal  deixando  de  sitiar  Roma  em  seguida  á  batalka  de 
Cannas;  rápido  engrandecimento  de  Roma  depois  da  conquis- 
ta de  Carthago;  suas  com  moções  internas  provenientes  dos- 
partidos  oppostos  de  patrícios  e  plebeos,  que  acabaram  coma 
estincção  do  systema  republicano  do  seu  governo.  Fundação 
do  governo  imperial  de  Roma;  aspecto  geral  d'aquelle  impé- 
rio; estado  deplorável  de  Roma  sob  o  systema  republicano; 
exame  do  que  individamente  se  chamava  liberdade  romaua  ; 
tstado  geral  da  sociedade  entr©  os  romanos;  se  Roma  foi  em 
algum  tempo  mais  opulenta  do  que  no  reinado  d'Augusto;  pro- 
gresso da  sciencia  e  litteratura  entre  os  romanos  durante  o- 
governo  republicano.  Introducção  do  luxo  aziatico  em  Roma. 
Considerações  sobre  os  poderosos  eífeitos  da  eloquência  anti- 
ga e  a  causa  da  sua  força  no  estimulo  das  paixões;  estado  dai 


319- 

escravatura  entre  os  antigos,  especialmente  os  romanos  ;  cau- 
sas da  sua  existência  e  progressivo  melhoramento  d'aquella. 
infeliz  condição;  causas  d'aquelle  melhoramento.  Reflexões  so- 
bre a  deshumanidade  dos  romanos  para  com  os  »eus  prisio- 
neiros de  guerra;  estado  do  espirito  humano  em  relação  a  idéas 
religiosas,  antes  da  promulgação  do  christianismo;  systema 
dos  philosophos;  opiniões  populares  dos  philosophos  sobre 
divindades  intermediarias  e  subordinadas;  uma  futura  vida; 
origem  de  Polytheismo,  mythologia  dos  gregos  e  romanos  ; 
origem  da  idolatria;  promulgação  do  christianismo;  rasões  da 
sua  rejeição  pelos  Índios;  seu  progresso  entre  os  gentios  p 
provas  da  sua  authoridade  divina  dadas  aos  gentios  d'aquelle 
tempo  e  idades  posteriores  na  destruição  total  da  cidade  e 
templo  de  Jerusalém  e  final  dispersão  dos  judeos.   (68  a  120) 

CARTA  DUODÉCIMA 

Golpe  de  vista  sobre  o  império  romano;  summario   das  oe- 
correncias  mais  notáveis  durante  o    governo  imperial  ;    seu.) 
systema  politico  mais  pacifico  que    o  do   governo  republica- 
no; vantagens  d'uma  monarchia  vasta;  os  seus  súbditos    mais- 
felizes  do  que  os  dos  pequenos  estados.  O  governo   monarchi- 
eo  preferivel  ao  governo  republicano;:  os  romanos  mais  feli- 
zes sob  o  prirneiro  que  o  segundo.    Invasão  dos  Quacli,  Alle- 
mães  e  Godos  no  império;  infausto  reinado  de  Galliano;  os  bár- 
baros rechassados  e  o  império  restituido  ao  seu  antigo  esplen- 
dor por  Cláudio,  Probo,   Aureliano  etc.  Divisão  do  império 
por  Diocleciano,  Maximiniano  etc;  plano    d'aquella   divisão;:, 
elevação   de  Constantino   á   soberania    indivisa.   Revista    da 
constituição  romaria  sob  o  governo  imperial;  systema  militar 
dos  imperadores;  soldo  e  privilégios  dos  soldados  das  legiões; 
creaçâo  do  famoso  corpo  de  guardas   Pretorianas,  seu  soldo 
etc.  numero  e  abolição  final.   Augmento  do  luxo  e  embellesa- 
mento  da  cidade    de  Roma  no  tempo   dos  imperadores;    ves- 
tuário, divertimentos  etc.  dos  romanos,  declinação  da  littera- 
tura  romana  durante  aquelle  período;  melhoramento  da  con- 


320 

dição  dos  escravos  sob  o  governo  imperial. — Perseguição  dos 
christãos  no  tempo  dos  impérios;  investigação  das  causas  re- 
aes  d 'estas  perseguições;  desculpa  dos  imperadores;  cessa  a  per- 
seguição com  a  elevação  de  Constantino  ao  poder.  (122  a  14 i) 

CARTA  DECIMA  TERCEIRA 

O  reinado  de  Constantino  constitue  um  periodo  importan- 
te e  interessantíssimo  na  historia  do  mundo;  sua  influencia 
nas  idades  posteriores;  vista  geral  das  occurrencias  politicas 
e  militares  d'este  reinado. — Investigação  dos  motivos  que  le- 
varam Constantino  a  abraçar  e  estabelecer  a  religião  enris- 
ta; fundamento  das  suspeitas  de  Gibbon,  examinado;  ana- 
lyse  critica  da  authentieidade  da  visão  de  Constantino. 
(141  a  150) 

CAFtTA  DECIMA  QUARTA 

Estado  da  religião  no  reinado  de  Constantino,  origem  da 
differença  d'opiniões  entre  os  christãos. — Concilio  de  Nicea; 
perseguição  dos  arianos. — Construcção  de  Constantinopla  e 
remoção  da  sede  do  impeiio;  rasões  d'esta  mudança;  situa- 
ção de  Constantinopla  muito  preferível  á  de  Roma;  varias 
observações  sobre  a  situação  de  Constantinopla  em  relação  ás 
suas  vantagens  e  desvantagens  commerciaes;  consequências 
da  remoção  da  residência  imperial  examinadas;  aquellas 
consequências  mal  representadas  por  historiadores;  infelici- 
dade domestica  de  Constantino;  reflexões  sobre  a  infelicida- 
de domestica  de  muitos  que  tem  gosado  de  prosperidade  na 
carreira  publica.   (150  a  163) 

CARTA  DECIMA    QUINTA 

Inquerição  critica  do  estado  d'antiga  Roma  em  rela- 
ção á  sua  área,  opulência  e  população,  numero  de  habitantes 
de  Roma  no  reinado  de  Theodozio;  observações  sobre  uma 
nota   n'um  tratado    popular    de   geographia,    comparação  de 


321 

Babylonia ,  Roma  e  Londres  em  relação  á  sua  área  e  popu- 
lação, Londres  uma  cidade  commerciaí — -Roma  não  commer- 
eial ;  observações  sobre  a  estimação  da  população  de  Constan- 
tinopla, Cairo,  Pekin,  Moskow  e  San  Pefcersburgo  como  nos 
dão  os  nossos  livros  de  geographia.  (163  a  169) 

CARTA  DECIMA  SEXTA 

Estado  politico  do  império  romano  áesde  a  morte  de  Cons- 
tantino até  á  sua  final  subversão  pelas  nações  do  Norte; 
observações  sobre  a  morte  de  Juliano;  admissão  dos  Godos 
no  império  por  Valens;  consequências  deste  passo;  derrota  e 
trágica  morte  de  Valens;  reinado  de  Theodozio;  final  divisão 
do  império,  consequências  cTaquella  divisão:  invasão  das  na- 
ções septentrionaes;  saque  de  Roma  por  Alarico;  reinado 
sanguinário  d'Alarico;  subversão  total  do  império  do  Occi- 
dente;  investigações  das  suas  causas;  estado  das  nações  do 
norte  meios  pelos  qnaes  a  vasta  popalação  de  nações  civili- 
sadas  se  sustenta;  mostt  a-so  como  esses  meios  são  carentes 
nos  povos  bárbaros;  conjecturas  sobre  o  estado  geral  do  im- 
pério e  da  cidade  imperial  anterior  â  sua  queda.  (169  a  182) 

CARTA  DECIMA  SÉTIMA 

Estado  da  religião  depois  da  marte  de  Constantino;  o  aria- 
nismo triumpba  em  Constantinopla  e  na  maior  parte  do  0- 
riente  até  ao  reinado  de  Theodozio;  concilio  geral  de  Cons- 
tantinopla; Gregerio  Nazianzeno;  João  Chrysostomo;  sup- 
pressàono  arianismo  no  império  romano;  abolição  total  do  pa- 
ganismo por  Theodozio;  o  arianismo  é  a  religião  dos  godos 
n'aqueí  e  tempo;  divizão  do  orbe  christão  em  duas  grandes 
i  ixas  e  arianas. — Origem  das  instituições  monás- 
tica;-.; .não  vantagens  e  desvantagens  consideradas  sob  o  pon- 
to de  vista  religioso  e  politico;  probabilidade  da  sua  próxi- 
ma abolição  em  todos  os  paizes.  Bellos  effeitos  das  mesma» 
nas  idades  gothicas.  (182  a  189) 


322 

CARTA  DECIMA  OUTAVÂ 

Estado  da  Europa  depois  da  destruição  do  império;  ori- 
gem da  mornarchia  franceza.;  estabelecem-se  os  saxonios  na 
Bretanha;  reino  gothico  da  Itália;  conquista  da  Itália  por  Be- 
lizario  e  Narses;  reinado  de  Justiniano;  sua  prosperidade  e 
caracter;  comparação  da  sua  fortuna  com  a  de  muitos  outros 
dos  mais  florescentes  príncipes;  caracter  de  Belizario  e  de 
Narses;  estado  do  império  do  oriente  no  tempo  de  Justinia- 
no.— Introducção  da  seda  na  Europa  vinda  do  Oriente. — 
Estado  do  império  do  Oriente  depois  da  morte  de  Justiniano; 
guerra  destruidora  entre  aquelle  império  e  a  Pérsia;  factos 
notáveis  d'aquella  guerra — aspecto  geral  do  reinado  naquel- 
le  período. — Origem  do  mahometanismo;  politica  de  Mahomet; 
plano  e  principies  do  seu  systema;  suecessos  extraordinários 
de  Mahomet  e  dos  seus  suceessores  em  consequência  dista- 
rem exhaustos  e  debilitados  os  dous  impérios  de  Constantino- 
pla e  Pérsia  pelos  esforços  mútuos  empregados  um  contra  o 
outro;  observações  sobre  a  destruição  da  bybliotheca  d'Ale- 
xaudria;  conquista  dos  califas  mahoinetanos;  seus  feitos  mi- 
litares mais  espantosos  que  os  d'Alexandre;  investigação  das 
causas  a  que  se  devem  attribuir;  systema  politico  do  império 
dos  califas;  varias  conjecturas  sobre  o  estabelecimento  dos 
árabes  na  península  da  índia  e  Ilhas  Orientaes.  (190  a  213) 

CARTA  DECIMA  NONA 

Desenho  do  génio  e  hábitos  dos  árabes  e  sarracenos;  pro- 
gresso da  sciencia  e  litteratura  sob  os  califas;  notável  diífe- 
rença  entre  a  sua  litteratura  e  estudos  scientificos  e  aquelle s 
dos  gregos  e  romanos;  commercio  naquellas  idades;  aspecto 
geral  do  mundo;  da  Europa;  do  império  do  Oriente;  do  cali- 
fado; guerras  entre  estes  últimos;  invenção  do  fogo  grego; 
seus  effeitos;  estado  da  egreja  christã;  conversão  das  nações 
arianas;  introducção  das  imagens  nas  egrejas;  causas  a  que 
se  deve  attribuir;  suas  consequências;  rompimento  entre  as 
egrejas  grega  e  latina  por   este  motivo;  segundo  concilio  de 


323 

Constantinopla;  vista  da  Europa  durante  aquelle  período^ 
elevação  de  Pepino  e  Carlos  Magno;  fundarão  do  império 
germânico;  esforços  de  Carlos  Magno  em  favor  da  restaura- 
ção da  litteratura. — Desmembramento  do  império  de  Carlos 
Magno;  rápido  desenvolvimento  do  systema  feudal;  obser- 
vações sobre  este  systema;  origem  da  constituição  germâni- 
ca; desmembramento  do  califado;  estado  do  império  do  Orien- 
te; origem  e  frequência  das  romarias  a  Jeruzalem.  (213  a  227) 

CARTA  VIGÉSIMA 

Origem  das  cruzadas;  revista  d'aquellas  guerras  religiosas; 
conquista  de  Jeruzalem;  fundação  e  queda  do  império  chris- 
tâo  do  Jeruzalem;  tomada  de  Constantinopla  e  arrazamento 
d'aquelíe  império  pelas  cruzadas  francezas  e  venezianas;  im- 
mensa  preza;  fundação  do  império  latino  de  Constantinopla 
e  do  império  grego  da  Nicea;  recuperação  de  Constantino- 
pla pelos  gregos  e  queda  do  império  latino;  efifeitos  das  cru- 
zadas; progressiva  abolição  do  systema  feudal;  observações 
geraes;  poderio  da  egreja  e  da  sé  papal;  animosidade  en- 
tre a  egreja  latina  e  grega;  diligencias  para  a  sua  reconcilia- 
ção; investigação  das  causas  d'aquella  animosidade;  grande 
scisma  na  egreja  latina;  procura-se  saber  a  causa  extraordi- 
nária da  elevação  da  egreja  e  do  p^der  do  papa;  estado  da 
Europa  depois  das  cruzadas;  estado  do  império  do  Oriente  e 
da  litteratura  bysantina;  primeiras  noticias  históricas  do  im- 
pério russiano;  renascimento  da  litteratura  e  das  artes  na 
Europa;  estado  da  cidade  de  Constantinopla,  de  Londres  e 
d'outras  capitães  europeas;  palácio  imperial  de  Constantino- 
pla; conquistas  dos  tártaros  sob  Gengis  Khan  e  seus  succes- 
sores  sob  Tamerlan;  decabimento  do  império  de  Constan- 
tinopla; tomada  d'aquella  cidade  pelos  turcos;  eífeitos  da  to- 
mada de  Constantinopla;  sobre  a  litteratura  europea;  intro- 
ducção  da  lingua  grega  na  Europa.  (227  a  247) 

CARTA  VIGÉSIMA  PRIMEIRA 

Progresso  rápido  da  litteratura  e  artes  na  Europa;  in  veti- 


324 

çfto  da  imprensa;  incalculáveis  benefícios  draquella  descober- 
ta; rápidos  melhoramentos  no  commercio;  viagens  de  desco- 
brimento pelos  Portuguezes;  descobrimento  da  passagem  para 
a  Ilidia  pelos  Portuguezes;  estado  do  commercio  da  índia  an- 
terior áquelle  acontecimento;  descobrimento  d'America;  con- 
quista do  México  e  Peru  pelos  hespanhões  ;  observações  ge- 
raes;  origem  da  escravatura;  effeitos  salutares  do  estabeleci- 
mento do  christianismo  sobre  o  systema  d'escravatura  entre 
os  romanos;  desapparecimento  progressivo  nas  condições  da 
escravatura  negra,  probabilidade  do  seu  futuro  acabamento; 
observações  sobre  a  revolta  de  San  Domingos.    (247  a  269) 

CARTA  VIGÉSIMA  SEGUNDA 

Consequências  importantes  do  descobrimento  d'America; 
introducção  de  novos  artigos  de  luxo;  afHuencia  na  Europa  do 
ouro  e  prata  da  America  e  seus  effeitos  sobre  o  systema  so- 
cial e  commercial;  diminuto  valor  da  propriedade  europea  an- 
terior ao  descobrimento  do  novo  mundo;  observações  geraes 
sobre  a  circulação  d'ouro  e  prata  em  differentes  idades  e  pai- 
zes;  investigação  de  varias  questões  curiosas  e  interessantes 
levantadas  sobre  este  objecto.  Effeitos  dos  descobrimentos 
d'Amerioa  em  relação  á  propagação  do  christianismo.  Esta- 
belecimentos feitos  pelos  portuguezes  no  Oriente  sob  o  cele- 
bre general  Albuquerque;  vasto  império  commercial  dos  Por- 
tuguezes; sua  elevação  e  queda;  reforma  de  religião;  suas  cau- 
sas, progresso  e  effeitos  ;  as  perseguições  religiosas  não  se 
compadecem  com  a  rasão  e  caridade  ehristà;  feliz  predomínio 
do  espirito  de  liberdade  religiosa.  (269  a  285) 

CARTA  VIGÉSIMA  TERCEIRA 

Progresso  de  melhoramentos  geraes  nos  tempos  modernos; 
observações  sobre  as  consequências  da  invenção  da  pólvora; 
vista  passageira  sobre  as  transacções  transcendentes  nos  mo- 
dernos tempos;  engrandecimento  da  casa  d^Austria,  sua  de- 
pressão; revolta  dos  Paizes  Baixos;  fundação  da  republica  de 
Batavia;   armada   hespanhola;    engrandecimento    da    França 


■-- 

sob  Luiz  14:  civilisaçào  e  engrandecimento  da  Rússia:  revolta 
(TÀmerica;  fundação  da  republica  americana:  observações  so- 
bre as  consequências  remotas  ruas  certas  d'aqueile  aconteci- 
mento: mudanças  que  forçosamente  hão  de  produzir  sobre  os 
negócios  do  velho  mundo:  observações  sobre  o  incremento 
rápido  e  extraordinário  do  commercio  e  poder  naval  da  Grran 
Bretanha;  sobre  a  revolução  franceza  e  guerra  que  depois 
suecedeu:  esforços  extraordinários  da  Fiança  e  Gran-Breta- 
nha:  differentes  opiniões  e  sua  analyse  sobre  as  vantagens  d'a- 
quella  guerra;  consequências  prováveis  se  a  Gran-Bretanha 
se  conserva  neutral ;  posição  diincil  do  gabinete  britâni- 
co naquella  conjunctura:  inconsideração  por  parte  d'aquelles 
que  querem  censurar  as  medidas  dos  seus  superiores  sem  co- 
nhecimento de  causa.  Observações  sobre  a  divida  nacional  e 
contribuições;  a  contribuição,  objecto  pouco  comprehendido; 
os  seus  efieitos  não  são  aquelles  que  geralmente  se  suppõe; 
exame  da  questão,  até  que  ponto  a  divida  nacional  e  pesadas 
contribuições  tendem  a  empobrecer  uma  nação:  efieitos  recí- 
procos de  riqueza  nacional  e  contribuições  pezadas  entre  si  e 
sobre  a  sociedade;  contribuições  altas  são  consequências  neces- 
sária de  grande  riqueza  nacional;  exemplificação  do  assum- 
pto na  comparação  entre  a  Gran-Bretanha  e  a  Rússia;  os  súb- 
ditos britânicos  podem  melhor  pagar  contribuições  que  os  de 
qualquer  outro  paiz;  influenciadas  contribuições  sobre  as  ma- 
nufacturas. Observações  sobre  as  consequências  e  tendência 
da  guerra;  vantagens  do  systema  tributário  observações  so- 
bre a  difiusão  de  opulência  e  luxo  nos  tempos  modernos;  ob- 
servações sobre  a  natureza  e  consequências  do  que  se  chama 
luxo-  Estado  das  nações  d' Azia  e  Africa;  investigação  das 
causas  porque  algumas  nações  tem  excedido  outras  em  me- 
lhoramentos scientificos  e  litterarios  e  porque  muitas  se  achão 
ainda  no  estado  selvagem;  observações  especiaes  acerca  dos 
índios  e  chinas  concernentes  a  este  importante  ponto;  in- 
querição  geral  se  a  differença  que  notamos  no  estado  do  espi- 
rito humano  em  differentes  partes  do  mundo  provem  d'uma 
.differença  essencial  nas  espécies. 


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Deacidified  using  the  Bookkeeper  process. 
Neutralizing  agent:  Magnesium  Oxide 
TreatmentDate:  ÂpR  2002 

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