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Í,LflRG0(^MOES,é j^SBoA
A RUA
DO OIRO
DE ALFREDO MESQUITA:
JcLio César Machado (retrato litterario) i vol.
Portugal Moribundo i vol.
Vida Airada i vol.
De Cara Alegre i vol.
Terras de Hespanha i vol.
Cartas da Hollanda i vol.
Lisboa i vol.
Memorias de um Fura-Vioas i vol.
A Rua do Oiro (romance) i vol.
ALFREDO MESQUITA
A RUA
DO OIRO
ROMANCE LISBOETA
LISBOA
Livraria Editora Viuva Tavares Capdoso
Largo de Camões, 3 e 6
igoS
Tjp Piobairo, R. Jiirdim do Regedor, 41
A RUA DO OIRO
Já as Camarás estavam abertas, havia quasi
dois mezes, quando clieguei a Lisboa, numa ene-
voada quarta-feira de Comadres, com grandes
ameaços de chuva, e um vento forte, ás lufadas,
que já dos lados da Barra soprava e espalhava
no céo as cinzas de um aguaceiro, e me levava o
chapéo de coco de rebolao, pela ponte da Alfan
dega, onde desembarcámos, ati á casa do Des-
pacho, onde deyiamos esperar as malas.
Tínhamos que esperar por essas malas !
Eu devia achar-me em Lisboa, segundo os
meus cálculos e os dos meus amigos políticos,
desde os fins de dezembro, para comparecer
nas Cortes logo no dia da abertura, e acompa-
nhar desde esse dia, com muita assiduidade e
zelo, todos os trabalhos parlamentares.
6 A RUA DO OIRO
Para isso havia eu recebido aquelle muito
honroso mandato I
Era bem certo, porém, como sempre ouvira
dizer a minha Tia Maria da Assumpção, senh.ora
de amplas nádegas e de profundos conceitos —
que o homem punha e Deus dispunha. Uma
inesperada angina pectoris surprehendera-me
na véspera da partida, já com a roupa mettida
nas mahis e a passagem tomada no paquete.
Estive dez dias de cama, com febre de trinta
e oito graus, cinco cobertores de papa, e duas
tias á cabeceira : a minha querida Tia Genoveva
Sampaio do Amarai. d\im lado ; e a minha prc-
sada Tia Maria da Assumpção Carneiro de Ama-
rante, do outro.
Ao decimo dia tive alta, que me foi dada pelo
complacente Doutor Tristão, o mais alegre fa-
cultativo que tem exercido clinica com a carta
do curso da Escola Medica da Madeira, e que
era o medico da nossa casa desde que eu me
entendia — mesmo já antes de eu me entender
— pois fora elle quem assistira aos últimos mo-
mentos de minha Mãe, que Deus haja, viuva ao
Sexto mez de gravida, e victima, depois, de uma
peritoniie puerperal, sobrevinda ao parto infeliz
de que eu vim ao mundo.
Mas se eu fizera mal em pedir alta, peor
fizera o Doutor Tristão em m'a conceder prom-
A RUA DO OIRO 7
piamente — sempre muito receioso de que o doen-
te podesse suppôr ter elle empenho em demorar
a doença para augmentar a conta das visitas.
Quiz abreviar a convalescença, sahi de casa
ao segundo dia depois de deixar a cama, apa-
nhei humidade c recahi com febre ainda mais
intensa.
Minhas Tias, embora se guardassem bem de
m'o dizer, tinham tido com essa recahida um
muito intimo jubilo.
A Tia Genoveva, irmã de minha Mãe, e a
quem minha Mãe pedira, á hora da morte,
apertando-lhe muito ambas as mãos, e já com
o vidro dos seus claros olhos azues embaciado
— que não me desamparasse e me amasse tanto
como ella decerto me teria amado, se tivesse
vivido— a Tia Genoveva, dizia eu, fora das qua-
tro filhas do Desembargador Manoel Augusto
Soares do Amaral, a única que se conservara
solteira, e que muito propositadamente quizera
ficar para tia — para minha tia, tendo sido a
mais formosa das quatro irmãs, e a mais re-
questada de todas ellas, já pelas condições de
excepcional encanto com que a natureza a do-
tara, já pelas condições de desusada fortuna
com que a dotara João Maria Soares do Ama-
ral, que tendo voltado do Brazil com uma ri-
queza e um ataque de béri-béri, apaixonara se
b A RUA DO OIRO
também por a sobrinha, mas guardara comsigo
o segredo d'essa paixão, de que só^ se veiu a
saber quando se lhe abriu o testamento, em que
elle constituía minha Tia Genoveva sua universal
herdeira...
Tanto a peito esta bondosa Tia tomou o meu
triste caso de pequenino órfão desamparado,
que só me não deu maminha porque não poude ;
pois de tudo o mais quanto sabe dar-nos em
cuidados, caricias e cueiros sempre frescos, um
verdadeiro amor de mãe, a Tia Genoveva foi
pródiga, e só comparável, nesses extremos por
mim, áquella nossa velha gata maltesa Mange-
rona, que d'uma vez creou e acarinhou com
muito enleio materno, a um canto da estreba-
ria, uma ninhada de patinhos cinzentos, como
se fosse uma ninhada de gatos. '
Quando eu nasci, tinha a Tia Genoveva
vinte annos, engrinaldados de purezas e de en-
cantos simples, como de rosas brancas de tou-
car. O luto de que ella se cobriu por morte de
minha mãe, ainda mais pôz em realce a formo-
sura da sua pelle clara e dos seus cabellos
loiros, e mais amavelmente contornou as ma-
ciesas redondinhas do seu busto.
A nossa casa, que ainda hoje é a mesma, fi-
cava situada no caminho do histórico castello
de São João Baptista, onde se achava aquarte-
A RUA DO OIRO " 9
lado o regimento; e como por ali transitasse,
todos os dias, á ida e á volta do serviço, a
briosa oíficialidade de Caçadores lo, era de vêr,
segundo ainda hoje se conta na familia, a
chamma que brilhava no olho dos alferes,
quando passavam, arrastando e tilintando as es-
padas, por baixo das nossas janellas, e a Tia
Genoveva assomava, descuidosamente, a algu-
ma d'ellas.
Depois, quando se abriu o testamento do Tio
João Maria, e a noticia da herança correu
de serra em serra como corre uma levada,
já não eram só os alferes, eram outros offi-
ciaes de patente superior, majores e coro-
néis, que chegavam a pedir transferencia de re-
gimento, e vinham, todos empennachados, pas-
sar por baixo das nossas janellas, com um
barulho guerreiro de esporas e de espadas, co-
mo nas cargas -rutilantes dos grandes quadros
de Détaillel
Houve um momento em que o espirito oc-
culto da Tia Genoveva influiu poderosamente na
Ordem do Exercito.
E num dia de grande gala, em que o regi-
mento sahia do Castello para vir formar em
frente da Sé, onde havia Te-Deum, ao passar
por casa do Desembargador Amaral, ruidosa-
mente a banda rompeu o Noivado do Sepul-
IO A RUA DO OIRO
chro, que era a musica predilecta da Tia Ge
noveva.
Tia Genoveva, porém, apenas sorria, muito
á flor dos lábios, da maluqueira amoruda
em que a sua pessoa lançava tanto official su-
perior.
Debalde as Primas Rochas e as Primas No-
ronhas, e o Primo Theodosio, secretario dos
amantes e da Administração do Concelho, dili-
genciavam estimula-la ao amor, com aquelle em-
penho que tiveram sempre em arranjar casa-
mentos, para sempre andarem mettidos em bo-
das e em baptisados.
Em vão lhe preparavam ciladas de namoroi
combinando entrevistas, entregando lhe missivas
perfumadas, levando-lhe declarações e amores
perfeitos espalmados entre folhas de livros de
missa.
Com um leve gesto de recusa, a Tia Geno-
veva sacudia-os a todos, galhofando ; e eram
para mim, só para mim, exxlusivamente para
mim, a festa dos seus affectos e a prodigalidade
dos seus mimos.
Tive sete amas, e todas ellas de freguezias
diversas, porque desde que alguma se queixasse
de uma dôrsinha no peito, ou acontecesse ende-
iluxar-se nalguma corrente de ar, logo a Tia
Genoveva a despedia, para que o leite pertur-
A RUA DO OIRO 1 I
bado não me contaminasse de algum mal, e
iontractava outra.
Corri três collegios, e todos elles de meninas,
antes de ser admittido a exame de instrucção
primaria.
Todo o meu curso do Liceu o fiz com sen-
tinella á vista, tendo sido necessário para a rea-
lisação d'este complicado desideratum da Tia
Genoveva, que o Reitor auctorisasse a entrada
nas aulas, como alumno livre, ao Manoel Igna-
cio, creado velho da casa de meu Avô, que an-
dara com minha Mãe e minhas Tias ao collo, e
agora me acompanhava á mathematica e á fí-
sica, para tomar conta em mim, não perder de
vista um único dos meus movimentos.
Tinha quinze annos quando acabei o curso, e
todo um anno mais se passou antes que a Tia
Genoveva se decidisse a separar-se de mim e a
mandar-me para Coimbra cursar Direito, que
era o meu sonho doirado de bacharel embrio-
nário. Ainda se fosse viável a idéa, que a boa
senhora chigou a expender, de mandar o Ma-
noel Ignacio acompanhar-me durante a forma-
tura I . . .
E como depois que me vira embarcar, muito
recommendado ao capitão do navio e ao dispen-
seiro de bordo, nunca mais me tornara a ter
junto de si senão durante o breve tempo de fé-
12 A RUA DO OIRO
rias, agora, que eu regressara á Ilha, com o
meu curso e com o meu diploma, feilo doutor
e homem feito, ella não se atrevia já a exercer
sobre mim a mesma carinhosa vigilância d'ou-
tros tempos, que era bem uma perseguição,
mas uma doce perseguição ; e chegava então a
rejubilar com os meus incommodos de saúde,
desde que esses incommodos me obrigassem a
não sahir de casa, sem que todavia tomassem o
mais leve aspecto de gravidade.
Quanto á Tia Maria da Assumpção, o motivo
que a prendia á minha cabeceira, e o seu parti-
cular contentamento de me ver assim prostrado
no leito da dôr, eram bem outros.
A Tia Maria da Assumpção Carneiro de Ama-
rante, viuva aos trinta e oito annos de idade e
ao segundo amo de casada, de meu Tio Ma-
noel Felisberto de Amarante, irmão de meu
Pae, e grande exportador de laranja para a In-
glaterra, nunca tivera por mim um decidido
aífecto, e bastas vezes me torcera beliscões em
pequeno, para melhor demonstrar, por essa
pratica fácil e muito intuitiva, uma das suas
ponderações favoritas: «que era de pequenino
que se torcia o pepino.»
Sempre embirrara commigo, nunca eu soube
porquê, e me achava insupportavel, chamando-
me de continuo grande bicho fervedoiro e alma
A RUA DO OIRO l3
do diabo, c não sendo cu senhor de mexer um
dedo, nem dizer uma oalavra em sua augusta
presença, sem que ella revirasse logo para mim
o olho verde ameaçador, reprimindo um Ímpeto
e mordendo o beiço de baixo se a Tia (}enoveva
estivesse, chegando me logo um sopapo se eu
estivesse só com ella.
Tendo minha Mãe pedido á Tia Genoveva
que na pia do baptismo me pozessem o nome
de Joaquim (que era o nome de meu Pae) e
tendo depois a Tia Genoveva decretado a toda
a gente da casa, creadas e creados, quinteiros
e quinteiras, que não queria que me tratassem
por — «Joaquimsinho», nem por — «Menino Joa-
quim», mas por esta mimosa abreviatura de
o Quinino», que ainda hoje familiarmente se em-
prega lá em casa, quando se fala de mim —
sempre a Tia Maria da Assumpção tirara d'esta
simples coisa carinhosa, que era agradável á.
Tia Genoveva, e de que eu gostava também,
um estigma de ridículo para lançar sobre a mi-
nha fraca pessoa: e quando a mim se referia,
ou quando por mim chamava, tratando-me tam-
bém por «Quinino», de tal modo transtornava,
e tão propositadamente, o que naquelle diminui-
tivo havia de mimo e de bondade, tal intonação
de dois sentidos lhe dava, que eu bem percebia
querer ella dizer, na sua, que aquelle «Quinino»
14 A RUA DO OIRO
lhe era tão desagradável e antipathico como o
outro quinino que se toma para as febres, e cujo
mau sabor lhe vinha á bocca, desde uma vez
que, ainda em solteira, se lhe esborrachara na
lingua uma hóstia d'esse sulfato.
Só muito mais tarde, depois que concluí o
meu curso do Liceu, e comecei a entrar, ás
apalpadellas, no entendimento aproximado das
coisas d"este mundo, é que me veiu á idéa, na
conjectura retrospectiva de alguns factos e epi-
sódios que mais me haviam impressionado du-
rante as primeiras lettras — que o principio
d^aqueila atroz embirração de m.inha Tia por
mim, coincidira justamente com o periodo agudo
da sua desditosa viuvez, em que a pobre se-
nhora soffrcra de um permanente frenesi, fre-
quentemente acompanhado de ataques de ner-
vos que lhe davam para rasgar as mangas do
•roupão e morder o travesseiro. E cheguei então
a pensar que, se a esse tempo eu já podesse
saber o que depois vim a saber, talvez as coisas
se tivessem harmonisado entre nós, a contento
da Tia Maria da Assumpção e a meu contento,
pois por mais d'uma vez cu pensara, contem-
plando a sua frescura, que muito devia ter cus-
tado ao Tio Manoel Felisberto separar-se d'ella
tão cedo — e para sempre I
Em Coimbra, com as noitadas e regabófes
A RUA no OIRO l5
inherentcs á Faculdade, prejudiquei tanto os
meus bronchios, que, depois de concluir a for-
matura, e de voltar para a Ilha, continuei a sof-
frer d'elles amiudadas vezes; e sempre era o
alegre Doutor Tristão que me prestava os seus
soccorros médicos.
O meu escriptorio de advogado, ao voltar da
Rua da Esperança para a Miragaia, ficava
mesmo defronte da casa da Tia Maria da As-
sumpção ; e de cada vez que eu não ia ao es-
criptorio, era sabido que logo apparecia em
nossa casa a Gertrudes Gaga, sua creada de
fora, a perguntar, com a fala muito tarda e a
expremer-se muito nos quês — se o senhor Dou-
tor Quinino estava doente.-, se já tinha sido
preciso mandar chamar o medico. . .
E se lhe respondiam que sim, ahi largava elia
a correr, a levar a noticia á Tia Maria da As-
sumpção, e ahi tínhamos nós, pouco depois, a
Tia Maria da Assumpção, toda açodada, aos
puxões na borla de lã verde da campainha da
porta, muito aíflicta, a querer que lhe dissessem,
ainda na escada, se já tinham mandado chamar
o Doutor Tristão, e o que tinha elle dito, e se
dissera que voltava.
Depois, sentava-se me á cabeceira, e dir-se-ía
que toda ella se desfazia em cuidados e disve-
los, como se quizesse penitenciar-se para com-
1(3 A RUA DO OIRO
migo, e por esse modo, do muito que me tor-
cera e retorcera em pequenino, como quem tor-
ce e retorce um pepino.
Eu nunca fui de guardar rancores, como cer-
tas creaturas que tenho conhecido em minha
vida, ou como a mula do Papa, que sete annos
guardou o formidável coice ; e depressa esque-
cera, com a ida para Coimbra, os beliscões, as
reprimendas e os maus olhados da Tia Maria
da Assumpção, que tanto me irritavam e me
affligiam.
Mas de cada vez que a via apparecer á porta
do meu quarto de doente, sorridente e affavel
como uma irmã de caridade a consolar um tris-
te, vinha me logo á lembrança o tempo em que
ella me maltratava e me detestava, me chamava
bicho fervedoiro, alma do diabo e Quinino...
mas quinino — sulfato I E attribuindo apenas a
uma questão de tempo e de ausência a profunda
mudança que se havia operado nas nossas rela-
ções, que eram agora evidentemente cordeaes
(como no Discurso da Coroa as relações de Por-
tugal com as demais potencias), dava graças a
Deus por ter cessado esse conflicto, e não pen-
sava sequer em descobrir outras jazÕes.
Bem longe estava eu, bacharel ingénuo em
Direito, de suspeitar que andava sendo intrujado
por tão sabida senhora I
A RUA DO OIRO I7
Minha Tia Maria da Assumpção, vinte annos
volvidos sobre o funeral de primeira classe de
meu Tio Manoel Felisberto, não poderá confor-
mar-se com a pouca sorte de só ter estado ca-
sada dois annos (lapso bem curto, com eífeito,
quando os casados se entendem e de bom grado
se submettem ás leis da Natureza no que res-
peita ás relações dos sexos) ; e todas as suas
attenções de viuva inquieta e inconsolável — in-
consolável não pela perda do primeiro marido,
mas por a falta de um outro — se voltaram para
quem ? Para o Doutor Tristão I
Eu nunca teria dado por tal, se o Theodosio,
ainda hoje secretario da Administração do Con-
celho, m'o não houvesse denunciado, declarando
que era eu, em toda a Ilha, talvez em todo o
Archipelago, a única pessoa que o não sabia.
Mas desde que o Theodosio m'o disse, e entrei
a observar as attitudes de minha Tia quando e
onde quer que estivesse em presença do Doutor
Tristão, facilmente percebi que ella perseguia o
nosso medico com o mais porfiante e descarado
namoro que se possa imaginar. Porque não era
só com os olhos, verdes e fixos, que ella procu-
rava perturbar a invejável tranquillidade de
alma do Doutor Tristão, que tão sabiamente e
parcamente regulava as ♦ necessidades do seu
celibato pelos conselhos prudentes de Raspail :
2
l8 A RUA DO OIRO
era com o pé, pisando o d'elle, de cada vez
que podia ; era com a perna, sempre que se sen-
tava ao seu lado; era com o joelho, se lhe fica-
va na frente.
E auxiliando a acção d"estes meios mais dire-
ctos, mas mais perigosos, de ataque, era com
enormes travessas de fios dovos salpicados de
confeitos, e levados a ponto pelas suas preciosas
mãos ; ou com magnificos cabazes de fructa da
sua quinta de São Carlos ; ou com soberbos ra-
mos de dhalias colhidas no jardim da sua casa
da cidade — que ella se lhe declarava, se lhe
escancarava. . .
Ella confessara uma vez á Tia Genoveva que
fizera a promessa de andar vestida ao Carmo,
com escapulário e correia, até ao dia em que
Nossa Senhora lhe permittisse voltar aos pés do
altar para ser recebida outra vez em casamento.
Mas parecia que Nossa Senhora gostava mais
de a vêr com aquelle habito, de escapulário e
correia, e não a deixava mudar de figurino. O ale-
gre Doutor Tristão ia comendo e saboreando,
ás sobremezas, as travessas de fios d'ovos ; de-
vorava as peras e os pecegos de São Carlos,
cora a casca ; enchia de dhalias sempre frescas
as jarras da sua sala ; e brandamente fugia á
Tia Maria da Assumpção —com a perna e com
o joelho por causa das conveniências, e com o
A RUA DO OIRO IQ
pé por causa dos callos, que os tinha imperti-
nentes, um em cada dedo mindinlio.. .
A minha eleição para deputado tinha-se feito
limpamente, independentemente, sem violência,
sem atropelo, sem carneiro e sem batatas.
Eu sahira eleito pelo voto livre, e esta circums-
tancia anormal em actos eleitoraes, se por um
lado era grata á minha vaidade ainda timida, e
acariciava o meu amor próprio como a festa que
se faz a um gato, passando-lhe a mão sobre o
lombo, ao correr do pêlo, por outro lado im-
punha-me responsabilidades e enchia-me de in-
quietações.
Eleito deputado a sério, eu tinha de ser um
deputado a sério ; e esse caso intimidava-me, as'
sustava-me quasi, porque o papel de uni repre-
sentante do povo a sério, no meio de cento e
tantos que só o eram por troça, tinha de ser
uma verdadeira creação.
Mal eu chegara de Coimbra com o meu curso,
e começara a exercer a advocacia, com uma
certa frescura de loquela a que já não estavam
habituados o auditório e os jurados das causas
crimes da minha Ilha, logo as attençÕes da terra
se haviam voltado para mim, e se pensara e se
dissera, á bocca pequena, que eu devia dar um
20 A RUA DO OIRO
excellente deputado. Mas ninguém se atrevera
ainda a dizé-lo em voz alta, porque o respeito
da tradição, solidamente enraizado nos ânimos
terceirenses, não admittia a tentativa de uma
disputa eleitoral, emquanto fossem vivos o Có-
nego Pinto e o Machado da Botica, progressistas,
o Barão da Terra-Cha e o Pompeu, regenerado-
res, que ha vinte annos se davam a alternativa
nas candidaturas por Angra.
Por isso, dobrado foi o espanto quando, uma
vez, tendo chegado por uma mala inesperada a
noticia de que haviam sido dissolvidas as Gama-
ras, e em plena reunião do Centro regenerador,
presidida pelo ferrenho Maia, grande amigo do
Fontes, e cunhado e sustentáculo do Pompeu ;
e tendo sido dada para ordem da noite «a atti-
tude do partido em face da ultima prepotência
do governo» — o. Doutor Tarquinio, pedindo a pa-
lavra, se assoara e tossira com estrondo, arras-
tara os pés, estabelecera uma silenciosa atmos-
fera de anciedade (porque a sua palavra era
sempre esperada e ouvida como a ultima pala-
vra) e depois de muito ponderar, muito consi-
derar e muito fundamentar a necessidade de es-
colher novos elementos de combate para as lu-
ctas, cada vez mais alterosas, do Parlamento,
abertamente e á queima-roupa alvitrara a minha
candidatura nas próximas eleições !
A RUA DO OIRO 21
O golpe era de mestre, e mestre de maráus.
Toda a gente sabia que o Doutor Tarquinio
não podia vér-me desde que eu abrira escripto-
rio e entrara a advogar — porque advogado era
elle, e para Angra elle bastava. E eu bem o
sentia, sem lhe querer mal por isso, que Tar-
quinio era o meu grande inimigo !
Tarquinio exercia a advocacia desde os tem-
pos remotos em que Tristão começara a exercer
a clinica. Muito antes de mim, e muitos outros
haviam tentado estabelecer na Ilha essa legitima
concorrência de jurisconsultos, a que se oppu-
nham sempre, tão encarniçadamiente, os interes-
ses, aliás também legitimes, do açambarcante
Doutor Tarquinio.
Acobardavam todos, porém, e succumbiam.
Tarquinio, triumfador, tornou se facilmente Tar-
quinio despótico ; c quando eu cheguei, e co-
mecei, tive logo a minha sentença lavrada : Tar-
quinio esborrachar me-ia como se esborracha
uma pulga — sob a pressão implacável do seu
muito saber e da sua unha muito crescida e muito
suja.
Alguns amigos e parentes chegaram a acon-
selhar-me que pozesse de parte a idéa de advo-
gar, e que pensasse noutra coisa. A lia Geno-
veva, essa, foi mais longe : chegou a confessar me
o susto constante em que a trazia agora o receio
22 A RUA DO OIRO
de que Tarquinio exercesse sobre a minha fraca
pessoa alguma forte violência !
Por modo que, quando Tarquinio pediu a pa-
lavra no Centro regenerador para lembrar o
meu nome, quasi para propor a minha candida-
tura, e quando depois, no Club, nessa mesma
noite, e em toda a cidade ao outro dia, tal
se ouviu e se espalhou, a surpreza fora ge-
ral, não atinando ninguém com a explicação que
tão estranho caso poderia ter ; e dos amigos e
correliigonarios políticos do Doutor Tarquinio,
os que não suppunham aquillo uma grande
abnegação, diziam que o seu nobre amigo e
correligionário perdera a mioleira.
Só eu e a Tia Genoveva não creámos illusões
a tal respeito.
Evidentemente, para nós, Tarquinio lá tinha
esta fisgada : preparar-me uma candidatura como
se me preparasse uma embuscada ; fazer-me
eleger como se me fizesse amordaçar ; e despe-
nhar-me no Parlamento, como se me lançasse a
um abismo.
Todas estas imagens, que faziam estremecer
de terror a Tia Genoveva, me fizeram apenas
sorrir a principio, achando divino esse|,Tarqui-
nio em quem Tristão quizera"vêr já um começo
de mania de perseguição, quando aquillo só era,
afinal, um pittoresco e fundo despeito pelo mo-
A RUA DO OIRO 23
desto êxito que eu mal começava a disfructar
no foro.
Porémi, franqueza, franqueza, a idéa da can-
didatura não me fora desagradável de todo em
todo, antes determinara em mim um certo so-
bresalto, que não era outra coisa senão aquella
vã cubica do prestigio e da influencia politica,
de que uma tão risonha noção eu tinha desde o
segundo anno do meu curso de Direito.
Procurei o Doutor Tarquinio, resolutamente,
depuz nas suas mãos todos os penhores da mi-
nha gratidão, e declarei-lhe que não deixava de
me convir a candidatura, embora me sentisse
mal provido de forças para corresponder hon-
rosamente á sua tão espontânea quanto gene-
rosa iniciativa.
EUe rejubilou com a minha annuencia, abra-
çou me paternalmente, dissuadiu-me de piegui-
ces, deu-me conselhos, veiu acompanhar-me até
á porta, e chegou a sahir á rua, em chinelas de
casimira bordadas.
— «O meu amigo está novo, tem todo o san-
gue na guelra, talento não lhe falta, um largo
futuro o espera na politica e na publica admi-
nistração. Folgo muito em que acceite a minha
idéa, porque a sua eleição não será só um grande
bem para o meu amigo, será um grande bem
para a pátria!»
24 A RUA DO OIRO
E como sentisse que era boa a frase, e lhe
seria penoso encontrar outra melhor, ou pelo
menos tão boa, para sellar com. solemnidade
essa nossa primeira conferencia, apertou me
muito sacudidamente a mão, e metteu-se á
pressa para dentro, sem querer ouvir mais
nada.
Na Rua de Jesus, onde Tarquinio morava, não
apparecia viv'alma a essa hora da tarde. Era
tarde de toiros em São João de Deus, e a cidade
parecia morta.
Olhei para o lado da Rocha, olhei para o lado
da Rua da Sé, olhei para todas as casas e para
todas as janellas, ninguém... Tinha ido tudo
para os toiros I
Dominado então por um único pensamento,
que me absorvia e me obcecava nesse instante,
parei a meio do passeio, carreguei o sobr'olho,
estendi um braço para a frente, e disse, em voz
alta :
— «Senhor presidente, peço a palavral»
Uma voz conhecida, diabolicamente occulta
por detrás de mim, respondeu :
— «Tem a palavra o illustre deputado. . .»
Voltei-me, como por um salto de mola. E uma
grande risota correspondeu a esse meu movi
mento.
Era Theodosio, o Primo Theodosio, que de
A RUA DO OIRO 25
longe me vira entrar para casa do Doutor Tar-
quinio, no momento em que atravessava a Rua
da Sé, indo para os toiros; mas, voltando-sc
para trás, e mettendo-sc num portão, ahi se
pozera á espera de que a conferencra acabasse,
para d'ella saber, antes de mais ninguém, o re-
sultado.
Perdera dois toiros, com certeza, e só Deur,
sabia quanto isso lhe custava ; mas não seria a
elle que eu poderia negar ter-me demorado cinco
quartos de hora em casa do Doutor Tarquinio,
a combinar a eleição.
— «Agora, meu caro primo — dizia me Theo
dosio — passas a ter em mim um adversário po-
litico de temer. No meu tempo, a verdadeira
politica era servir os amigos, e d'esse nobre
principio aproveitei eu ainda, que muito galopi-
nei sempre ao lado do Maia, e pelo Maia fui
servido. . . Hoje, está tudo mudado, e o nobre
principio, em politica, é servir os inimigos antes
de mais ninguém. Ora, tu sabes que a Adminis-
tração do .Concelho me dá uma miséria — des-
oito mil e tresentos, a secco. Ando ha cinco
annos a pedir que me nomeiem para a biblio-
theca do Liceu, que está entregue a um contí-
nuo, desde que morreu o João Horácio, e o mais
que tenho conseguido é que ainda não nomeias-
sem outro, á espera, diz agora o Maia, de que os
2b A RUA DO OIRO
regeneradores caiam e voltem os progressistas,
que talvez então me nomeiem... Os progres-
sistas, primo I Nomeado pelos progressistas, eu,
Theodosio, que tenho sido toda a minha vida,
e com muita honra, ó grande inimigo dos pro-
gressistas I»
Um foguete de três respostas estalou no ar,
ao longe, para os lados de São João de
Deus. Devia ser o recolher do segundo toiro.
Theodosio teve um sobresalto, apressou a con-
versa.
— «...Sei que te propões a deputado indepen-
dente. Não faço bem idéa do que seja um de-
putado independente, mas tu lá o sabes, e isso
basta. Mas imagino que os deputados indepen-
dentes se inventaram para contento de progres-
sistas e regeneradores ao mesmo tempo, e eu
preferia então que fosses tu quem me arranjasse
o logar na bibliotheca. Era uma nomeação extra-
partidária, que me deixava os movimentos li-
vres ...»
— «Pois está ditol» respondi eu, para respon-
der alguma coisa.
Mas logo Theodosio tomou essas palavras
ditas no ar, mais para me vèr livre d'elle do
que para outra coisa, como um compromisso
politico. E numa carreirinha, pela rua abaixo,
raspou-se para os toiros.
A RUA DO OIRO 27
Só mais tarde é que cu vim a saber que, em
politica, muitas vezes uma simples palavra dita
no ar vem a trazer-nos depois embaraços muito
peores que os que pode crear-nos uma palavra
de honra.
•II
o meu primeiro cuidado, logo que tive as
malas despachadas, me metti numa tipóia e
cheguei ao Hotel, foi informar-me com precisão
do estado das coisas publicas, e do que se fizera
no Parlamento durante a minha angina pectoris.
O Hotel era o Borges, ao Chiado, no coração
da metrópole, em pleno foco da civilisação, a
dois passos da Havaneza e da missa do Loreto,
que eram as primeiras e grandes emanações
d'esse foco.
O Borges reunia, já então, uma avultada e
distincta clientela de deputados, e embora o
Governo se achasse sempre cm maioria entre
os hospedes, era cordeal o convívio de todos, e
estava-se ali perfeitamente, extra-parlamentar-
mente á vontade.
3o A RUA DO OIRO
O meu quarto era lá em cima, no ultimo an-
dar, numero 55, num dos ângulos do prédio,
cem pouco pé direito mas com muito ar, que
me entrava por duas janellas — uma para a Rua
Serpa Pinto, outra para o Chiado.
Eu chegava a Lisboa quasi sem relações,
porque a maior parte da colónia açoriana fugira
da capital em agosto, com medo do cholera, e
não se atrevera ainda a voltar das Ilhas, apesar
do cholera nunca ter apparecido e já se estar
em fevereiro, que não é tempo propicio a ville-
giatura de micróbios ; e das amisades de Coim-
bra pouco mais duradoiras que as rosas de Ma-
Iherbe, que nunca chegaram a durar o espaço
d'uma formatura, apenas me restavam o Fausto
Guimarães, secretario do Presidente do Conse-
lho, o poeta Chico Patrocínio, chefe da novíssi-
ma escola nefelibata, e a Margarida Tricana,
que o Fausto Guimarães tinha deitado a perder,
e a quem todos nós, mais ou menos, naquella
saudosa republica da Couraça dos Apóstolos,
tínhamos dado alguma coisa a ganhar. . .
No Hotel Borges, porém, as relações eram
fáceis.
Logo no primeiro dia, abrindo a janclla que
deitava para o Chiado, e abeirando-me do an-
teparo que corria em toda a volta da mansarda,
ouvi ao lado um ligeiro trauteado do Boccacto,
A RUA DO OIRO 3l
que então rejuvenescera na Trindade e andava
muito em voga.
Para o lado do trauteado olhei, e deparei com
um cavalheiro idoso, que catav^a uns jacinthos
lindamente creados num caixote, entre o para-
peito da sua janella e o anteparo da mansarda.
Sem que desse pela minha presença, esse ca-
valheiro idoso, que eu logo percebi ser meu vi-
zinho de quarto, continuava catando os seus ja-
cinthos e trauteando a serenata dos três mari-
dos humilhados. . .
A' janella.
Minha bella,
Corre, corre,
Ligeira gazela !
E a miúdo olhava para o quarto andar fron-
teiro, onde asjanellas se conservavam fechadas e
de cortinas corridas, como num luto, ou numa
ausência de inquilinos.
Uma certa curiosidade, e uma tal ou qual in-
tuição dos pequeninos segredos da capital, por
mais algum tempo me prenderam ao parapeito,
na suspeita de que alguma das janellas d'aquella
casa defronte não tardaria a abrir-se, e alguém,
que o meu vizinho esperava, assomaria a ella.
Meu dito, meu feito, e quem appareceu vinha
02 A RUA DO OIRO
a ser, nem mais nem menos, uma grande mu-
lher de magnifica estampa e de cabellos ruivos,
amarfanhados e enrolados em volta da cabeça
como um farto turbante. Vestia uma bata ás
riscas, enviezadas e largas, azues e côr de grão.
E por baixo da bata, bem denunciados, quadris,
braços e seios de tempera rija e de primeira
grandeza. Correspondendo a um respeitoso
cumprimento de cabeça do meu vizinho de
quarto, um complacente sorriso aflorou-lhe á
face, e sobre o lábio superior mais lhe pronun-
ciou a escurinha penugem de ura ligeiro buço.
Nesse momento espirrei, estranhando o cli-
ma; e o meu vizinho, ■ api.nhado de surpreza,
pois provavelmente suppunha que o 55 ainda
estivesse sem gente, voltou -se, deu de cara com-
migo, e corou de leve.
Discretamente, receiando tornar-me importu-
no, e constipar -me, metti-me para dentro, e fe-
chei a vidraça. Ainda espirrei duas vezes, man-
dei preparar um banho morno, e tratei de passar
para as gavetas d"uma commoda, que me atra-
vancava metade do quarto, todi a roupa branca
e o fato melhor que trazia nas malas. Puz a
casaca a arejar nas costas d'uma cadeira, para
perder as rugas que tomara na viajem ; coUo-
quei sobre a meza de cabeceira, e voltado para
a minha cabeceira, o retrato da Tia Genoveva,
A RUA hO OIRO 33
que para esse fim m'o dera, e muito me re-
commendara o logar e a posição em que o
queria, para ter a certeza de que assim, ao
menos em efígie, podia continuar a velar por
mim. Fiz a miniia barba, tomei depois o meu
banho morno com muito sabonete, vesti me de ^f
lavado, perfumei-me um pouco, e desci para o
almoço.
A' meza do almoço fui encontrar, sentado na
minha frente, o meu vizinho de quarto.
Reconhecemo-nos, baixámos a cabeça. Eu
passei-lhe os rabanetes, elle olTereceu-me pali-
tos. Nas alturas de um arroz de marisco, forte-
mente temperado de pimenta que parecia pól-
vora, entalolámos conversa, com o céo dabocca
a arder e as lagrimas nos olhos. A' fructa esta-
belecerase já entre nós uma certa corrente de
simpathia. Durante o café, trocámos cigarros e
algumas impressões.
A respeito das coisas publicas, que era o que
eu queria saber, o meu vizinho do 55 oífere-
ceu-me logo impressões muito peores que os
seus cigarros, da irónica marca — Delicias, capa
de papel. Elle não dizia: — «As coisas publi-
cas...» Singularisava, amesquinhava a expres-
são, dizendo simplesmente, depressivamente: —
«A coisa publica. . . » E teve uma grande satis-
fação quando eu lhe disse que era deputado.
3
4 A RUA DO OIRO
Porque éramos collegas ! Porque também elle
era representante da Nação.
— «Ha vinte annos — accrescentou. Tenho
visto muito, sei muito, conheço tudo e todos.
Não fale Vossa Excellencia a mais ninguém
para lhe abrir os olhos. Aqui tem Vossa Excel-
lencia o meu cartão.
Puxei também por a carteira, tirei um dos
meus cartões, e entreguei-lh'o, agradecendo.
O cartão d'elle dizia :
LIBERATO POÇAS
Deputado da Nação
Conhecia-0 muito berrf de ncme. A fama dos
seus apartes tinha chegado aos Açores. Muitas
vezes eu ouvira o Barão da Terra-Chã, que ti-
nha uma grande memoria e agradável conversa,
referir vários d'esses apartes, que eram a nota
mais pittoresca e mordaz das sessões parlamen-
tares nos últimos vinte annos. Lembrei-me até
de que o Primo Theodosio, tendo vindo uma
vez ao Continente para se tratar em Faro de
uma trabusana que lhe ficara de- emenda — para
nunca mais! — conhecera o senhor Poças em
uma casa de hospedes do Ferregial de Baixo,
e demorara-se dois mezes em Lisboa depois de
curado, só para ouvir a Borghi-Mamo, porque
I
A RUA DO OIRO 35
era doido por operas, e para ouvir o senhor
Poças, porque se pelava por piadas. E disse-lh'o.
O meu vizinho do 55 sorriu, lisongeado, e sem .
fingida modéstia. De facto, o seu maior prazer
— logo a seguir áqutUe que, acima de tudo, e
em primeiro logar, lhe davam as mulheres —
era encontrar um bom dito, e mettê-lo bem a
propósito. As Camarás prestavam-se excellente-
mente para isso. O caso era ir para lá sempre
cedo, antes que abrisse a sessão, e estar sempre
attento, para não perder uma só palavra do que
elles dissessem. Por esse processo, e com uma
certa pratica, como a que elle tinha, dos homens
e dos apartes, as piadas sahiam quasi sem a
gente se sentir . . . Não considerava isto um pri-
vilegio seu: eu que experimentasse, e veria. Mas
a verdade era que, ha vinte annos, disfructava
na Gamara esse exclusivo da piada, e a tal es-
pécie de condão attribuia a circumstancia, muito
curiosa, de se achar sempre de bem com todos
os Governos e com todas as OpposiçÕes . . .
— «Quanto á coisa publica, dizia elle, tenho
muito gosto em informar Vossa Excellencia de
que algumas surprezas e muitas decepções o es-
peram se, como julgo deprehender das suas pa-
lavras, Vossa Excellencia crê. na possibilidade
de que portugueses possam fazer alguma coisa
boa de Portugal, ou em íavor de Portugal. Ha
36 A RUA DO OIRO
uma grande verdade universal, que não carece
de justificação metafísica para ser facilmente
admittida : é que ninguém, nenhuma força jróde
oppôr resistência á chamada e bem conhecida
força do Destino. Ora, meu caro senhor... (e
tornando a olhar o meu cartão de visita, após
uma curta pausa. . .) meu caro senhor Joaquim
Maria do Amaral Amarante, o destino dos por-
tugueses, desde que este reino se tornou, geo-
graficarr.ente, um retalho integral da Peninsula
Ibérica, tem sido o de dar cabo de Portugal. E
em boa verdade ninguém poderá dizer que não
tenhamos cumprido á risca esse nosso destino.
Tem havido alguns díscolos, sem duvida, pois
outra coisa não foram os Gamas e os Albuquer-
ques, e todos os grandes descobridores e conquis-
tadores que Vossa Excellencia conhece. Dobrá-
mos, é certo, o Cabo da Boa Esperança, nave-
gámos até á índia e Ceylão, torneámos o pro-
montório de Singapura, estabelecemo-nos eni
Macau, d'onde explcrámos as costas da China e
do Japão. Ainda, seguindo outro rumo, descobri-
mos e colonisámos o Brazil. Lisboa fci, toda a
gente o sabe, e não serei eu que o conteste?
num dado momento, o entreposto e o centro
de distribuição dos productos do Oriente, e
então attingiu um grau de riqueza e luxo de
que não havia memoria desde a antiga Roma . . .
A RUA DO OIRO 'i']
Como sempre succede durante o período he-
róico da historia das Nações, a Litteratura e a
Arte floresceram para nós. E ahi tem \'ossa
Excellencia outros discolos: Gil Vicente, Sá de
Miranda, Camões... Mas foram poucos. E o
destino cumpriu- se ; e o destino curapre-se.
O Marquez de Pombal foi apenas uma som-
bra. Quem suppozer ainda que elle engran-
deceu Portugal, leia o Camillo, e verá. O Pom-
bal, meu caro senhor, não foi o nosso ultimo
grande ministro; foi o primeiro dos nossos pe-
quenos ministros. Ei cheu se. Fez elle muito b em.
Depois, veiu o Senhcr D. Pedro Quarto e ou-
torgou-nos a Carta. ... Os senhores, lá em An-
gra, e na Praia da Victoria, sabem muito me-
lhor do que eu como isso se passou. Nesse ca-
pitulo da Historia pôde Acossa Excellencia dar-me
quinau, se quizer. .. Mas a partir da implanta-
ção do regimen constitucional para cá, e até aos
nossos dias, prez o me de pcder dizer que pou-
cos sabem tanto da nossa coisa publica, como
eu. Olhe Vossa Excellencia.. . (e foi contando
peles dedos...) Eu assisti á fundação da So
ciedade de Geografia. E viu fazer- se o pacto
da Grania. Eu andei encorpcrado no cortejo cí-
vico do centenário de Camões . . Na rotação
dos partidos, vi o Braancamp succeder vinte ve-
zes ao Fontes, e o Fontes, vinte vezes, succeder
v^
Dõ A RUA DO OIRO
ao Braancamp. Nas finanças, vi contractar oito
empréstimos em menos de oito annos, e vi gas-
tar o dinheiro de cada um d"elles em menos de
oito dias. Na economia, vi organisar o monopó-
lio do tabaco, o monopólio do álcool, o mono-
pólio da carne, o monopólio do pão, o monopo"
lio do fosphoro, o monopólio do adubo, o ndo-
nopolio da viação... Neste momento trata se
de organisar o monopólio do exgôto. Deve ser
excellente. . . O fomento agricola é uma coisa
que só tem servido }"ara arrotear o José Maria
dos Ssntos. A Africa é uma villegiatura — como
agora se diz — para funccionarios do Estado e
administradores de Companhias, ou, na alter-
nativa, vinte annos de Penitenciaria. A balança
do commercio é uma espécie de balança de ta-
lho, que não regula. Toda esta coisa tem du-
rado assim ha muitos annos, e ha de durar
por mais alguns. Mas não muitos. Isto desmo-
rona-se. Quem viver verá. Talvez eu ainda
veja I »
O meu vizinho dt quarto, dizendo isto, e me-
neando a cabeça calva, reluzente, fazia um gesto
de profecia, entendido e profundo, que p(jr um
instante annuviou a clara esperança, em que eu
vinha, de chegar ainda a tempo para algurra
coisa de bom em beneficio da Pátria. Um resto
de café, no fundo da chávena, que distraída-
A RUA DO OIRO Sq
mente levei aos lábios, dcu-me nesse momento
o amargo da duvida. Cuspinhei, repontei cora o
Poças :
— «Mas o que pensa Vossa Excellencia do fu-
turo ?
— «O Futuro, com F grande, a Deus pertence.
O outro, o nosso, com f pequeno, pertence aos
estrangeiros. E' uma questão de tempo, de
pouco tempo. Podemos dizer até que já tudo
isto é d'elles. O trigo é americano ; a manteiga
é inglesa ; a cerveja é allema ; o queijo é flamen-
go ; a mulher é hespanhola ; o bacalhau é no-
rueguez... O gallego, até o gallego, o próprio
gallego — é gallego ! O porto de Lisboa é do
Hersent ; os caminhos de ferro, do Kergall ; a
Africa, do Cecil Rhodes ; a opera, do José Pac-
cini . . . A única coisa verdadeiramente portu
guêsa que ainda temos é — a Divida Externa!»
Elle dizia estas coisas serenamente, convicta-
mente, mas resignadamente, sob um grande peso
de infortúnio, como quem acceita e se conforma
com alguma tremenda determinação fatídica.
Tinha de ser. Deixa-lo ser !
Eu olhava-o, como se olhasse uma esfinge;
e ouvia o, todo ouvidos, como se a sua palavra
fosse um evangelho.
O que, sobretudo, me surprehendia nesse Po-
ças, era o contraste entre o seu devastador pes-
40 A RUA DO OIRO
simismo de hospede do Borges, irritado de vis-
ceras pela cozinha picante do Hotel e o seu con-
temporisador optimismo de homem publico, es-
timado de todos os Governos, cultivando jacin-
thos num caixote, alimentando um namoro de
janella, e sabendo de cór as coplas do Boccacio.
Não o percebi logo ; levei algum tempo para
o perceber; mas vim a percebê-lo.
Poças não era só um grande magico, como
logo suppuz nesse dia, emquanto durou a con-
versa que entre nós se seguiu, e se prolongou,
após esse primeiro almoço. Não era só um
grande ratão, como depois o julguei, quando elle
apparecia na Gamara antes de mais ninguém, c
da Gamara sahia no fim de todos, para não per-
der uma palavra só, d'um só discurso, não se
fiando nos extractos levianos dos jornacs, e me-
nos ainda no texlo official do DiayHo das Ca?7ia-
i^as. . . Poças era bem mais que um tipo : Po-
ças era um simbolo I
Logo nessa tarde fui procurar ao Ministério
o meu amigo Fausto Guimarães, que era um
outro simbolo.
Fui procura-lo ao Ministério da Justiça, onde
Poças me dissera que eu o devia encontrar,
por andar em obras a secretaria do Reino, que
o Ministro d'elle preferia.
A RUA DO OIRO 4I
O Presidente do Conselho accumulava as
duas pastas : a do Reino e a da Justiça — o que
logo eu soube não ser trabalho de Hercules,
porque os serviços do Ministério do Reino alli-
viam muito depois de feitas as eleições, eo Mi-
nistério da Justiça apenas alimenta, em tempos
ordinários, um débil movimento de transferen
cias de juizes e de benefícios ecclesiasticos. As
eleições estavam feitas, os deputados a postos,
os governadores civis em descanço, os adminis-
tradores de concelho entregues aos cuidados do
seu pomar ou do seu pedaço de horta. Agora,
pelo Reino, íipenas corriam alguns assumptos
de Instrucção; e a Instrucçao, em Portugal, não
é coisa que dê muito que fazer a um ministro.
Mesmo a chefia do Governo tornara -se Com
moda e suave.
O momento da grande crise passara, e ha-
via-se entrado num grato periodo de repouso e
de esperança. Tinha-se inaugurado, quasi de um
dia para outro, apenas com alguns artigos de
fundo e uma queda de ministério, uma fase de
prestigio politico a que se convencionara chamar
— de Vida Nova, e á sombra da qual se conse-
guira realisar um novo empréstimo, quando já
toda a gente dizia, dentro e fora do paiz, que
não se arranjaria nem mais uma libra sem a in-
tervenção de uma administração estrangeira.
42 A RUA DO OIRO
Eram de fresca data os acontecimentos mais
pungentes da pátria.
Por muito tempo não se acreditara nos boa-
tos que corriam a respeito de muitos directores
de Bancos e de Companhias, gravemente com-
promettidos em transações illicitas ; e os accu-
sados, de mãos dadas com todos os Governos,
repoltreados nas suas cadeiras do Parlamento,
ingerindo-se em todos os negócios do Estado,
dando leis e distribuindo juros ficticios, desas-
sombradamente continuavam transacionando,
favorecidos pela cumplicidade dos indifferentes
e dos Poças.
Não apparecia quem ousasse atirar a primeira
pedra, como se todo esse formidável escândalo
se passasse em uma cidade inteiramente coberta
de telhados de vidro. E todos esses estabeleci-
mentos de credito, todas essss sociedades ano-
I imas de responsabilidade limitada, haviam es-
palhado em volta de si um certo ruido de pros-
peridade, á sombra de nomes patrióticos, que
inspiravam confiança, illudiam os incautos. Eram
o Banco dos Luziadas, o Banco da Restauração
de Portugal, o Banco 24 de Julho . . . Eram a
Companhia Real das Vias Férreas Luzitanas, a
Real Companhia da Agricultura Pátria, a Com-
panhia de Credito Camoneano — que nunca se
soube o que era.
A RUA DO OIRO ^3
Cada uma d'essas Companhias e cada um
d'esses Bancos tinha no seu conselho de admi-
nistração, pelo menos, um ministro de Estado
honorário, que era quasi sempre, por uma inex-
plicável coincidência, o ultimo ministro da Fa-
zenda ; e assim mantinham, todas ellas, e todos
elles, Companhias e Bancos, as mais cordeaes
relações com o Governo e, por intermédio do
Governo, com o Thesouro.
Quando o Banco dos Luziadas suspendeu pa-
gamentos, logo os outros se sentiram necessita-
dos de longa moratória.
Houve um grande sobresalto, seguido de um
grande movimento de pânico.
A corrida aos Montepios foi uma coisa pavo-
rosa : eram os pães que salvavam o futuro de
seus filhos I eram as mães que arrancavam, ás
garras d'esses abutres, o dote de suas filhas I
E o assalto, verdadeiro assalto, fazia-se a soco,
a empurrão, a coice. . .
Os accionistas, vendo o seu rico dinheiro a ar-
der, reuniam-se em assembléas geraes, e pediam
sindicâncias em altos berros, como as creanças
que pedem a Emulsão de Scott !
A policia interveiu. Chegou a ser preso, e
mettido no calouço n.° 7, o presidente de um
conselho de administração. Havia desfalques,
havia falsificações, havia gazúas.
44 A RUA DO OIRO
O Cara linda, o Gaitei) o, o Moita e o Cai^-
rasco, tão conhecidos do hábil Antunes, eram
anjos, ao lado d'aquella confraria !
Os Tríbunaes, da primeira instancia ao Su-
premo, foram atulhados de processos crimes.
A Opinião, desvairada, gritou que Portugal
estava sendo governado por ladrões I
Os Jornaes, furibundos, cobriam-se de tarjas
negras e de impropérios em normando.
Toda a gente prudente se abotoava, e não
sahia de casa á noite.
Foi um terror !
Passou-se então esta coisa extraordinária, fu-
nambulesca, única : a debandada dos homens
públicos, dando ás de Villa Diogo com medo da
forca e do candieiro, que es jornaes repubhca-
nos queriam vêr funccionar no meio da praça,
ferozmente, como no tempo em que os falsarios
andavam menos seguros, mas mais seguros an-
davam os dinheiros no erário. Todos esses ho-
mens fugiam, positivamente fugiam, ás respon-
sabilidades conhecidas do passado e ás contin-
gências tenebrosas do que ainda estava por vir.
Fora um riso, e fora uma vergonha I
Era necessário organisar um governo desse
lá por onde desse ; era urgente formar um ga-
binete fosse lá como fosse. Mas os partidos
constitucionaes, desmantelados, abandonavam a
A RUA DO OIRO 4D
Coroa. E até a Coroa se achou desamparada,
quasi desequilibrada, atirada para trás, ás três
pancadas, sobre a primeira cabeça do paiz —
por ordem hierarchica.
Esteve o paiz sem governo por espaço de três
semanas ! E na inquietação e no desespero d'esse
mau bocado, foram chamados ao Paço todos os
politicos que andavam, ha muito, tresmalhados
da Constituição, a pregar no deserto, a apregoar
virtudes, e a mostrar elixires.
Appareceram dúzias d'elles, radiantes, cada
qual sobraçando o seu prograrama de governo,
cada qual desenrolando, aos olhos amortecidos
do paiz, o seu plano de salvação, o seu projecto
de reforma. Ao redor da chamada burra do
Thesouro reuniu-se então uma espécie de junta
de alveitares. E só não foi ministro quem não
quiz sê-lo.
Foi por essa occasião que voltou ao poder o
Martiniano, o grande Martiniano, o incompará-
vel Martiniano I
Martiniano, que já tinha sido por três vezes
ministro da Fazenda, andava de mal com o
Paço. Como toda a gente que anda de mal com
o Paço, mas que cora elle quer estar de bem,
fundara um jornal satírico, a que dera o titulo
de Piada Popular, e ahi começara a cultivar um
género muito apreciado de critica galhofeira.
46 A RUA DO OIRO
mas mordaz, a que elle chamou — «a bisca po-
litica» e que depois guardou esta designação
alegre.
Esse jornal tinha uma divisa, e essa divisa era
esta : — «Arde? é pimenta.» E ardia, que tinha
diabo I Cada artigo da Piada era um cáustico ;
cada folhetim um sinapismo de mostarda ; e as
biscas, espalhadas pelo jornal, eram moscas de
Milão.
O Paço torcia-se, os Ministros torciam-se,
toda a gente se torcia — uns com o. ardor do
tópico sobre a própria pelle, outros com a risota
que o caso provocava sobre a pelle alheia.
Declarada a crise dos Bancos e das Compa-
nhias, Martiniano, que do tempo de ministro le-
vara também sua rasca na assadura, habilmente
desviara de si as attenções, e iniciara no jornal
uma série de artigos furibundos, primeiro de
ataque ás Instituições que haviam acobertado
tanto e tão grosso escândalo, em seguida de al-
vitre e de conselho sobre o que deveria fazer-se,
sem demora, para remediar o mal e entrar no
bom caminho.
Lembro-me que um d'esses artigos começava
assim: — «Bem fazem os que emigram, porque
é um crime apodrecer na contemplação de se-
melhante espectáculo!»
Mas logo um outro, emendando a mão, exor-
A RUA DO OIRO 47
tava os novos d peleja, e dizia: — «SimI Por-
que os novos têm fé, porque os novos têm
coragem para remar contra a corrente. Só falta
um homem que lhes indique o norte, e ein nome
d'esta pala^ ra — Pátria — começará para nós o
periodo das sublimes loucuras.»
O homem, estava-se a ver, era clle.
De dia para dia, os artigos cresciam de inte-
resse; a opinião alarmava-se. D'uma vez, em
que elle dissera isto: — «Não se sabe ao certo
se este paiz é Guatemala, ou Chili, ou Uru-
guay...» e accrescentara, galhofeiramente: «A
nosso vêr, uns dias parece Gerolstein, outros
dias Pantana...» — os estudantes do Liceu,
onde Martiniano era professor de português, fi-
zeram-lhe uma enthusiastica ovação defronte do
jornal, com marcha aiix flambeaux^ vivas á Pá-
tria, á Gramraatica portuguesa e á Piada na-
cional I
Martiniano viera á janella agradecer. Ti-
nham-se reunido muitos populares, arruaceiros
e curiosos, ao grupo, já de si numeroso, dos
estudantes. Uma voz juvenil, vocalisando em
voz grossa, gritou para cima:
— «Fale ! Falei»
E esse grito fora uma chispa que tocara a ex-
tremidade de um rastilho. Todos gritaram:
— «Fale I Fale I»
48 A RUA DO OIRO
E Martiniano falara, e falara a sério.
— «Quereis saber, meus amigos e meus con-
cidadãos, qual é, neste momento, para Portu-
gal, o desequilíbrio entre a sua importação e a
sua exportação r »
E os rapazes, por baixo da janella, respon-
diam em coro :
— «Queremos, sim senhor!»
— «... Quatorze mil contos I »
E um intenso ruido sublinhava, alastrando -se
na multidão, aquella tremenda cifra.
— «Quereis saber, meus senhores, quanto nos
custam, no momento em que vos falo, só os
coupons e os juros do Estado e das Companhias
a pagar no Estrangeiro ?»
E os rapazes, em baixo, outra vez em coro :
— «Queremos, sim senhor I»
— «... Quatorze mil contos I »
E outra vez o mesmo intenso ruido sublinhava
aquella outra cifra. . .
— «Quereis saber, meus presados correligio-
nários — e permitti que assim vos trate quem
só tem, como vós, a mesma politica de digni-
dade nacional. . . — quereis saber, vós, que dc-
testaes as loterias e odiaes a taluda, quereis sa-
ber quanto vos leva em cada anno. para fora da
fronteira, por Villar Formoso e por Barca
d' Alva, a loteria hespanhola ?
A RUA DO OIRO 49
— «Queremos, sim senhor!»
— «... Dois mil contos, meus amigos, dois
mil contos I »
Martiniano, em começando a falar, tinha para
horas. Falou, d'essa vez, cinco quartos de hora
entrecortados de palmas, bravos e vivas. No
fim, dirigindo-se especialmente aos estudantes
do Liceu, disse ainda :
— «Vamos a isto, meus amiguinhos. E não se
diga que o budhismo invadiu a alma de todos
nós. Ainda ha salvação possivel... Aproveite-
mos do passado apenas a lição... E a propó-
sito de lição. . . é verdade ! não se esqueçam de
que temos amanha os pronomes e os verbos !r>
Mettera-se para dentro, cumprimentando, e
descendo a vidraça, que era de guilhotina. Ainda
havia guilhotinas I
No dia seguinte, a Piada trazia um artigo
decisivo. A epigrafe dizia: — Si fetais roi! o.
o artigo mostrava, num resumo hábil, qual a
verdadeira doença de que Portugal enfermava,
e qual a verdadeira cura que havia para essa
doença.
Já da epigrafe se deprehendia claramente o
espirito d'esse artigo, que visava a Coroa, pro-
curando bem indicar-lhe, numa linguagem me-
tafórica, o que ella tinha de fazer, se real-
mente queria fazer alguma coisa. .
4
5o A RUA DO OIRO
. . . Martiniano voltara ao Paço, reconciliara-se
com o Paço.
Ao outro dia, os leitores da Piada apenas
notaram que ella vinha muito semsaborona.
Houve uma suspeita. Poucas semanas depois,
teve-se a confirmação d'essa suspeita: Marti
niano entrava para o Ministério da Fazenda.
Ninguém estranhou. Elle estava, naturalmen-
te, indicado. Nem a Piada se fizera para outra
coisa !
No dia em que Martiniano, chamado aos con-
selhos da Coroa, reappareceu na Arcada, todos
os Partidos reunidos fizeram-lhe uma manifes-
tação de simpathia sem precedentes na nossa
historia tragico-financeira.
Foi um delirio.
Os amigos mais dedicados subiram-no ao cóIo
pelas escadas do Ministério. De todos os lados
irrompiam os vivas:
— «Viva o salvador da Pátria!»
— «Viva o credito do Paiz!»
E o paiz inteiro, a breve trecho, pinchava de
regosijo, acreditando-se salvo.
Martiniano promettera mundos e fundos. O
coupon externo pagar-se-ia integralmente. Os
Bancos saldariam os seus encargos. As Compa-
nhias distribuiriam, como d'antes, os seus divi-
dendos. Estabelecer-se-ia o equilíbrio do Orça-
A RUA DO OIRO 5l
mento. Reduzir-se-iam as despezas. Reformar-
se-iam as repartições do Estado. Modificar-se-iam
os impostos. Consolidar-se-ia a situação econó-
mica. Desenvolver-seiam a Agricultura e a In-
dustria. Assignar-se-iani tratados de commercio.
Aproveitar-se iam as Colónias. O Estado apos-
sar-se-ia de todos os Caminhos de ferro. Resga-
tar se iam os títulos da Divida de Dom Miguel.
Experimentar-se-iam as vantagens do bimetalis-
mo. Viria oiro de Manica. Viriam pérolas de Ba-
zaruto. E a respeito da intervenção estrangeira,
interpelado nas Camarás, Martiniano dissera, pe-
remptoriamente:
— «Isso só se acceita debaixo da bocca dos ca-
nhões!»
Depois de tanta e tão risonha promessa, só
faltava o dinheiro. E Martiniano, o maroto, ar-
ranjara o dinheiro, pondo em movimento todas
as machinas litográficas do Banco da Restau-
ração, fabricando cédulas de meio-tostão, de tos-
tão, de dois tostões, de cinco tostões, de vinte
e cinco tostões, derramando todo esse papel so-
bre o paiz, como numa prodigalidade de bodo.
Os Bancos e as Companhias receberam do
Thesouro, em abonos e avales, quanto lhes foi
preciso para livrar da cadeia os directores. As
cotações da Bolsa entreabriram um sorriso para
os lados de Portugal. Os cartazes de Reillac,
02 A RUA DO OIRO
diífamando nos a Pátria nas ruas de Paris, foram
arrancados pela diplomacia. Os jornaes de chan-
tage que, ainda na véspera, nos lançavam á cara
os exemplos vil pendiosos da Turquia e do Eg}'--
pto em bancarrota, acharam que o nosso caso
não era, afinal, tão desesperado como errada-
mente se suppozera, «como até nós mesmo tí-
nhamos chegado a suppôr» e que muito havia
ainda a esperar da riqueza de Portugal e do ta-
cto administrativo dos estadistas que tanto hon-
ravam o nome d'esta pequenina, mas muito al-
tiva nação! . . .
Foi neste feliz comenos, em que o pau, indo
e vindo, deixava folgar as costas, que eu subi
ao Ministério da Justiça, em procura do meu
amigo e contemporâneo de Coimbra, Fausto Gui-
marães.
— «Nunca tinhas estado em LisboapB pergun-
tou-me Fausto.
— «Já, mas cora pouca demora. De cada vez
que ia a férias, á Ilha. Apenas o tempo neces-
sário para esperar aqui a saída dos paquetes.»
— «Vaes gostar! asseverou-me. — Lisboa é uma
linda cidade. Eu adoro Lisboa. Um dos nossos
peores defeitos é este, que todos temos, de di-
zer mal de tudo quanto é nosso — «naquelle ha-
bito instinctivo de deprimir a pátria» de que se
fala no Mandarim do Eça de Queiroz, quando
A RUA DO OIKO D->
O General Camilloff pergunta. a Theodoro : —
«Sabe chinez, Theodoro?» E Theodoro respon-
de : — «Sei duas palavras só : mandarim . . . e
chá». O General passa a sua mão de fortes cor-
doveias sobre a medonha cicatriz que lhe atra-
vessa a calva, e observa : — «Mandarim., meu
amigo, não é uma palavra chinesa, e ninguém a
entende na China. E' o nome que, no século
XVI, os navegadores do seu bello paiz . .» —
Quando nós tinhamos navegadores. . . » murmura
Theodoro, suspirando ; e o General, continua :
— « . . Que os vossos navegadores deram aos
funccionarios chineses. Yem do seu verbo, do
seu lindo verbo mandar. . . » E Theodoro rosna,
no habito instinctivo de deprimir a pátria : —
«Quando nós tinhamos verbos . . » Ha quem
diga que Lisboa é insupportavel. Eu acho-a
magnifica I»
Também eu achava Lisboa magnifica. Mas
um pouco ainda sob a impressão de enfado que
me causara a impertinência de trinta pobres an-
drajosos atravessando-se-me no caminho desde
o Hotel até ao Ministério, observei:
— «Para quem não está habituado, o que aqui
se torna desagradável deveras é a impertinência
dos mendigos. Parece que toda gente pede es-
mola Ib
— «Ou, pelo menos, parece que toda a gente
D4 A RUA DO OIRO
pede alguma coisa. Ha, porém, uma outra casta
de pedintes muito peor, incomparavelmente peor
do que esses que te perseguem na rua : são os
mendigos dos Ministérios, os eternos pretenden-
tes, os afilhados politicos, todo esse formigueiro
espesso de cavalheiros de chapéu alto que viste
lá em baixo, na Arcada, e que não abandonam
a Arcada desde que o sol nasce até que alcan-
çam despacho. O pobre da rua estende-te a mão,
e passa, cobrindo-te de bênçãos se lhe dás um
vintém, conformando-se com a sua sorte se tu
apenas lhe recommcndas que tenha paciência.
Mas o mendigo do Ministério perseguir-te-ha,
importunar-te-ha, seringar te-ha, constranger-
te-ha a fazer-lhe aquillo que te peça, porque
desde o momento em que te entregou o seu
memorial, que é a sua lamuria escripta, elle só
deixará de sahir á tua frente, a embargar-te o
passo para que te lembres d'elle, no dia em que
o Diário do Governo tenha pubhcado o decreto
que o nomeia, que o promove, ou que o trans-
fere. Elle saberá a que horas tu saes habitual-
mente de casa, para que o vejas á tua porta.
Elle acompanhará, a trote, os cavallos da tua
carruagem, para que, de cada vez que a tua
carruagem pare, seja elle quem te appareçaa
abrir a portinhola. Em seguida, galopando, to-
mará a deanteira, e quando fores a entrar para
A RUA DO OIRO 55
a tua secretaria, será elle ainda quem, sollicita-
mente, te apparccerá a levantar o reposteiro.»
— «E' um pesadelo I»
— «E' uma carraça.»
— «Mas é uma linda situação, a tua, de secre-
tario de ministro. . . »
— a Ha melhores, conforme os pontos de vis-
ta . . Eu prefiro Buenos-Ayres. . . Mas concordo
em que seja uma boa situação »
— «Tu és também deputado, pois não és?»
— «Claro ! E' indispensável. Nem ha outro
meio de furar. Ter um voto nas Gamaras, e fa-
zer valer esse voto, é meio caminho andado para
tudo o mais. Agora é que tu vaes vêr que pre-
cioso tempo andaste perdendo em Coimbra. O
que todos nós, mais ou menos, aprendemos na
Universidade, não nos sen-e aqui para nada.
Tudo isto está bem longe de nos dizer como se
applica um methodo scientifico ao governo das
sociedades I De resto, que nos importa. . . Hoje,
em Portugal, e tanto em politica, como em arte,
como em sciencia, como em litteratura, ganha-se
facilmente uma reputação de grande homem,
apenas com alguma audácia e com algum pe-
dantismo.»
Estas revelações — porque pa:a mim, ilhéo
peludo e parvenu da politica, tudo quanto Fausto
Guimarães acabava de me dizer eram verdadei-
56 A RUA DO OIRO
ras revelações — não me assustavam, nem se-
quer me intimidavam, perante a consciência bem
alta, em que eu vinha, do meu honroso manda-
to. Mas já nessa manha, ao almoço, o Poças se
encarregara de começar o desbaste das minhas
nobres illusÕes, nobres e cerradas ; e comquanto
eu bem houvesse percebido nelle, na sua frase
hostil e no seu gesto amargo, um falso pessi-
mismo, que elle devia envergar em cada ma-
nhã, e ao sahir do seu quarto numero 56 para a
vida publica, como quem enverga um jpjrí/es-
sus^ não deixava de ser certo que a semente da
desconfiança, lançada assim ás mãos ambas por
Fausto Guimarães sob o terreno das rainhas fal-
sas noções, encontrava esse terreno já um pouco
revolvido á superfície. . .
Quiz ouvir mais, não por precavido sentimento
de cautella e caldo de gallinha, que nunca fize-
ram mal a doente, mas por um natural desejo
de me instruir depressa em matéria que, de sur-
presa, se me afigurava inteiramente nova. E in-
sisti :
— «Em todo o caso, não é estadista quem quer,
nem só porque o Rei o quer. Verdadeiro esta-
dista era o Fontes. Verdadeiro estadista é hoje
o teu Ministro I»
— «Talvez, talvez podesse sê-lo. Mas não o é.
Falta-lhe a envergadura I »
A KUA DO OIRO Sy
E chamando mais especialmente a minha at-
tenção para uma estatueta que estava collocada
sobre o mármore saliente do fogão mettido na
parede, observou :
— «Queres a melhor prova ? Olha aquella pés-
sima estatua. Conheces...»
Reparei, conheci.
— «E' a estatua da Justiça, . . »
— «Estás enganado I disse Fausto. E' a esta-
tua da Injustiça. Eu te explico... No dia em
que o meu Ministro aqui entrou pela primeira
vez, possuido de uma verdadeira plethora de
boas intenções, e sobraçando esse magnificente
programma de governo que enterneceu a pro-
víncia, aquella figura, que tu ali vês, tinha a
venda descabida de um lado, e via, por um
olho, tudo quanto lhe convinha, ao mesmo tempo
que um dos pratos da balança pendia mais para
o lado do olho a descoberto. E sabes tu o que
elle fez, mal aqui entrou ? Foi-se á estatua, pu-
xou-lhe a venda para cima, acertou o ponteiro
da balança, e voltando-se para os chefes de re-
partição que tinham vindo cumprimenta-lo,
disse: —«-Fiat jmticia!y> Ora torna a olhar,
fazes favor... Lá tens a venda outra vez dei
tada para baixo, e o ponteiro, outra vez, pen-
dendo para o olho aberto... Emfim, tu vaes
saber o que tudo isto é.»
58
A RUA DO OIRO
Um dos coçados reposteiros de reps verde,
que pendiam da parede alta aos lados do fo-
gão, franziu-se devagarinho, como se alguém,
que atrás estivesse escutando, se decidisse a
apparecer-nos. E logo um nariz descommunal,
de larga venta, e rombo, e cavalgado por uma
luneta desusada de aros de tartaruga, atraves-
sou-se na conversa, entre as maçãs de um rosto
rossdo e luzidio :
— «Perdão. • . Peço perdão. . . Vinha saber se
cá já estava o Ministro. . . »
Era o nariz impertinente de um cavalheiro
exquisito, atarracado e sem barba, mettendo os
pés para dentro e extremamente jovial. Vestia
um casaco de astrakan com botões de madre-
pérola, justo como uma luva, e muito curto,
dando-lhe um grande relevo de formas, princi-
palmente de formas posteriores. Calçava galo-
chas de borracha e luvas amarellas, de ca-
murça. Tinha pouco cabello ; e esse pouco que
tinha, e ralo, apartava o ao meio, com muita
pomada, cheirando forte a jasmim.
Mellifluamente, cumprimentou-me, inclinando
a cabeça para o lado, esboçando um sorriso entre
os lábios grossos, baixando os olhos e arqueando
um pouco os braços, em delicada mesura.
Fausto disse-lhe quem eu era. Teve logo
muito gosto em me conhecer. Ai, Jesus ! Pare-
A RUA DO OIRO St)
cia uma senhora. . . — «A quem tinha eu tam-
bém, já agora I o gosto de falar?»
— « . . . Melecas, só Melecas, creado de ^'ossa
Excellcncia. . . »
E voltando se para Fausto, num reboliço :
— «Como está o meu amigo ? como está sua
esposa,'' como estão os seus filhos ?«
— «Bem, tudo bem. E vossê ? E a Opposição,
como passa ?»
— «Ora, a Opposição I A Opposição só passa
bem quando se acha no governo I»
— «A Opposição é muito exigente I exclamou
Fausto. Parece que Já não lhe basta o actual
regimen de liberdade de imprensai»
— «A liberdade de imprensa, meu caro senhor,
é uma liberdade tão cuidadosamente garantida,
que não ha meio de a gosar devidamente. . . »
E dizendo isto, num risonho saracoteio de
toda a sua pessoa, o pittoresco interlocutor de
Fausto procurava lér me nos olhos se eu já ha-
via percebido que tinha na minha frente um es-
pirito superior.
Fausto troçava-o, voltando-se para mim :
— «Ouve isto e pasma, Joaquim do Amaral !
Este homem, que tu aqui vés, o argucioso Me-
lecas, redactor do Phantasma, ainda esta ma-
nhã publicava uma verrina tremenda contra o
meu Ministro, attribuindo-lhe as peores infâmias,
6o A RUA DO OIRO
arrastando O pelas ruas da amargura, fusti-
gando-o cora o látego venenoso da sua sátira,
que é terrível, e da qual te aconselho a que te
livres. . . E aqui o tens agora, calcando com as
suas formosíssimas galochas de borracha, o ta-
pete do gabinete d'esse mesmo Ministro, com a
mesma semcerimonia Cv^m que amanha o verás
calcar a própria consciência, se elle o despachar
segundo official ! D'aqui a pouco vae chegar o
.Ministro, e tu, que mal conheces o teu paiz,
poderás ver então uma das coisas mais curiosas
que ha para ver em Portugal : o estadista sorrir
ao jornalista que o desancou, e apertar a mão
que lhe bateu até o deixar em sangue . . Ha
uma chamada brandura de costumes e uma li-
berdade de imprensa que consentem tudo isto,
e Melecas ainda ousa achar pouco I»
Já de si aflautada, a voz do outro silvou em
flautim :
— «Ora os ministros I os ministros! Os minis-
tros são todos como aquella grande cocotte que
dizia: «O maior prazer que tenho tido na mi-
nha vida foi o de me sentir deshonrada!»
Era boa a piada. Rimos. E Fausto, applicando
uma sonora palmada ao trazciro do redactor
do Phantasma, riu mais e disse :
— «E vossê, ó Melecas, qual tem sido o maior
prazer de toda a sua vida ?
ÍII
Era de boa politica, mesmo para um deputado
independente, como eu, procurar ensejo de ser
apresentado ao Presidente do Conselho antes
de entrar na Gamara e de prestar juramento.
Fausto sollicitaria para mim essa subida hon-
ra, e no dia seguinte, áquella mesma hora,
quando o Ministro voltasse da assignatura régia,
proporcionar-se-ia o ensejo.
Assim foi.
Eu nunca tinha tido occasião de falar com
um ministro de Estado, a não ser com o Pi-
mentel Gouveia, lente da Universidade, mas
que apenas estivera no governo mez e meio, e
só era ministro de Estado honorário quando an-
dei na aula d'elle. E não era, por isso, sem um
certo sobresalto, e uma tal ou qual intimidação.
62 A RUA DO OIRO
que eu aguardava, no gabinete de Fausto, o
momento em que o meu amigo, correndo o co-
çado reposteiro de reps verde, me chamasse e
me levasse até junto do seu Ministro. . .
Porque emfim, ser recebido no gabinete de
um ministro, falar a um ministro, apertar a
mão de um ministro, mesmo quando se não tem
de um ministro a errada noção que dos minis-
tros tem o povo, considerando-os a todos, indif-
ferentemente, capitães de ladroes ou grandes
homens, segundo as necessidades do Orça-
mento os levaram a crear mais um addicional,
ou as conveniências da Politica os aconselharam
a reduzir um imposto de barreira — não era
caso de todos os dias, neoi dos que menos con-
tam na vida de quem, como eu, Julga imputar
aos factos o seu exacto valor, e de tudo toma
apontamento miúdo nalgum canhenho de me-
morias.
E em vez de procurar desvanecer esse ligeiro
sobresalto, aliás bem natural, emquanto não se
franzia aquelle puído reposteiro de reps verde,
a minha imaginação dava maior vulto, engran-
decia de uma falsa importância o simples caso,
lançava perturbação nas minhas funcçÕes psi-
chicas, atrapalhava-me, em summa...
Para justificar, perante mim mesmo, a minha
atrapalhação, imaginei-me transportado a uma
A RUA DO OIRO 63
extensa e doirada galeria onde se achassem re-
unidos, em desusado congresso, todos os minis-
tros que tem tido Portugal nos últimos sessenta
annos — e imaginei que todos elles, ao verem-me
entrar, assim e sem mais nem menos, naquelle
recinto que lhes era reservado como um pan-
thdon, não occultavam surpreza e apenas procu-
ravam dissimular, mas mal, como que uma certa
suspeita receiosa pela minha inopinada presença
de deputado independente, que vinha ali, sem
duvida, para lhes pedir contas dos seus actos.
Avançando, porém, um passo para mim, cada
um d' elles, e todos, por sua vez, me estendiam
a mão.
Eu passava em revista essa immensa fileira
de conselheiros da Coroa, e de todas as suas
vozes, auctorisadas e convictas, ouvia o mesmo
protesto: — «Eis-nos oíferecidos em holocausto
no altar da Pátria !» E eu pensava que, se os
talentos abriam distancias- entre tantos homens
de Estado, aproximava-os, a todos, o sacrifí-
cio.. .
Mousinho da Silveira, informado de que eu
vinha ás Cortes com propósitos terriveis de re-
forma, chamava-me de parte, deitav^a o rijo
braço sobre o meu hombro débil, dizia-me ao
ouvido : — «Meu caro amigo, peço-lhe que me
poupe . . . Olhe que isto da gente se deixar ser
04 A RUA DO OIRO
ministro, não é pequeno sacrifício. Afiguram-se
marclietadas de estrellas as cadeiras do gover-
no, e são entretecidas de espinhos ! Poupe -me,
poupe-me I»
José da Silva Carvalho e Agostinho José
Freire, que cochichavam no vão de uma janella,
vinham ao meu encontro, enleavam-me em bhm-
dicias ; tinham ouvido já falar de mim, sabiam
já que eu vinha disposto a metter tudo nos ei-
xos, e appelavam para a minha clemência: —
eSe Vossa Excellencia nos vê aqui, um na Fa-
zenda outro na Marinha, é porque cedemos ante
as obrigações que nos impunha a nossa quali-
dade de cidadãos portugueses. . .»
Ainda estes illustres estadistas me não haviam
largado, e já o Duque de Palmella e o Duque
da Terceira me pediam desculpa, se não lhes
fora possível reorganisar as finanças e consoli-
dar o reino á medida dos meus desejos. . .
Joaquim António de Aguiar, receiando ter-se
tornado antipathico a minha Tia Genoveva, com
o seu decreto de abolição das ordens religiosas,
encarregava-me de expor áquella devota senho-
ra as razões ponderosas que o haviam forçado
a desferir esse golpe mortal na influencia dos
miguehstas.
Adeantando-se, com delicadas maneiras. Cos-
ta Cabral desejou saber se eu me achava de ac-
A RUA DO OIRO 65
côrdo com a interpretação que elle dera á Carta,
e se em meu entender fizera bem enfreando a
liberdade de imprensa.
E eu procurava, atabalhoadamente, uma res-
posta amável que lhe desse, sem muito me com-
prometter, quando Saldanha, intervindo, me li-
vrou do embaraço : — «Diga-lhe que sim, Ama-
rante, diga-lhe que sim!» E lá foi seguindo, im-
pávido, sobraçando as suas sete pastas dos seus
sete ministérios.
Perplexo e gaúche, entre tanto espectro illus-
tre, eu vi passar nessa galena extensa, mais
extensa, talvez, que a galeria dos Uffizi de Flo-
rença, todos os ministros de todos os ministé-
rios, desde i832 para cá: os da Restauração e
os da Revolução de Setembro ; os da Revolução
de Abril e os da Reacção de Outubro ; os da
Maria da Fonte e os da Janeirinha ; os da Re-
volta de Maio e os do Ultimatum de Janeiro.. .
E todos esses ministros, de todos esses minis-
térios — cartistas e setembristas, cabralistas e
patuléas, granjolas e barjonaceos — todos quantos
implantaram, viciaram e desfructaram o sistema
de governo parlamentar, em que eu agora inter-
vinha, mettendo o meu bedelho e sobraçando o
meu honroso mandato de representante do Po-
vo, eleito pelo voto livre do Povo, se acercavam
de mim com artes de sedução, Jisonjeando a
5
66 A RUA DO OIRO
minha força para lhe quebrar os Ímpetos, so-
prando a minha vaidade para me verem himpar
e arrebentar como a rã de Hisopete ; e todos
elles, desde o Aguiar ao Fontes, e desde o Sal-
danha ao Bispo de Vizeu, tinham o ar de solli-
citar, de implorar a minha indulgência para os
seus erros, lembrando-me, todos elles, que os
homens que a Opinião precipitou hontem do po-
der, são sempre os mesmos que essa mesma
Opinião, moderada já, irá buscar amanhã para
lhes confiar os seus destinos. . .
...Uma porta rangeu, vi correr-se o repos-
teiro. A um aceno de Fausto, achei me introdu-
zido no gabinete do Ministro. E o que immedia-
tamente se passou, em realidade, foi o perfeito
seguimento, quasi lógico, d'aquella espécie de
allucinação patusca de que me saccudiam — ape-
nas com esta differença : é que já não era o Mi-
nistro que se amolgava perante a independência
do meu honroso mandato, como o Costa Cabral
e como os outros ; era eu, agora, que vergava
o espinhaço na presença do Ministro, e mal me
atrevia a avançar do limiar da porta :
— « . . .Vossa Excellencia dá licença ?...» disse.
— «Entre, faça favor!»
E logo estendendo-me a mão com Ihanesa, c
como se já me conhecesse de ha muito, o Mi-
nistro continuou :
A RUA DO OIRO 67
— «Ainda bem que veiul Já cá estava a fazer
falta. Foi o diabo, essa angina. . . De mais a mais
com recahida. E trinta e oito graus de febre, ein?
Olhem que brincadeira... Já tinha estado cm
Lisboa ?»
— «Já, mas com pouca demora...»
— oVae gostar. Lisboa é uma Unda cidade. . .
E vem decidido a trabalhar deveras na politica?
Parece-lhe que se adaptará bem a este meio?»
Eu já não sabia ao certo onde estava, nem de
que terra era. Disse que sim, ao acaso.
— «Creio que sim. . . Assim o desejo, pelo me-
nos.»
— «Ha-de adaptar-se ! insistiu elle, achando
mole, e carregando. — Sei que possue excellen-
tes qualidades de orador. Seja bemvindo, porque
é justamente d'isso que nós mais precisamos na
Camará. Mas ser orador não basta. Convirá que
adopte qualquer especialidade. . . No Parlamen-
to, como na Medicina, é necessário ser-se um
pouco charlatão, para conquistar rapidamente
uma boa voga. Os especialistas têm sempre
uma percentagem muito avultada para subir de-
pressa Nós temos, como sabe, os especialistas
dos orçamentos, os especialistas dos pareceres,
os especialistas dos apartes, os especialistas dos
apoiados. . . Temos até os especialistas de que-
brar carteiras 1 E' necessário que o meu amigo
68 A RUA DO OIRO
comece desde já a tatear o terreno, para des-
cobrir a especialidade que mais lhe possa con-
vir. . . »
Esta desataviada franqueza de acolhimento,
esta correntia, familiar maneira de dizer, que
desde logo deviam pôr-me á vontade, mais me
perturbavam, me amachucavam. Desconfiado
sempre, ilhéo pelludo, neófito e inexperiente
nas ronhas da politica, eu não atinava em dis-
tinguir o que podesse haver de sinceridade, ou
o que podesse haver de intrujice, em recepção
apparentemente tão aíFectuosa.
Depois, aquella miúda circumstancia de ter
chegado ao conhecimento do Ministro a noticia
da minha angina pectoris, e o facto, quasi en-
ternecedor, d'ella não ter passado de lembran-
ça a esse homem, que tantas e tão graves coisas
devia ter em que pensar, chegando a precisar
até, e depois de tanto tempo, o grau a que su-
bira a intensidade da minha febre, e o caso da
recahida, e os dotes de oratória que me eram at-
tribuidos... — tudo isso me enchia de surpre-
za, me embrulhava e me engasgava em tão dif-
ficultoso lance.
Oscillei, vacillei um instante, encarei Fausto
Guimarães, que observava de lado o meu esta-
do de alma, e sorria.
Fausto, argucioso, rapidamente leu no meu
A RUA DO OIRO 69
olhar uma urgente consulta, e respondeu de
prorapto, com um gesto enérgico, muito d'elle:
que me atirasse eu de cabeça I
Ao mesmo tempo, e sem me darem mais tem-
po para deliberar, uma forte mão invisível cra-
vou-me nas costas os cinco dedos aduncos, em-
purrou-me para a frente. Senti que o chão me
fugia debaixo dos pés, fechei os olhos, mergu-
lhei no abysmo :
— «Eu ponho-me, incondicionalmente, ao dis-
por de Vossa Excellencia.»
Era a mão miserável do miserável Tarquinio!
— a Muito obrigado I» disse o Ministro.
E eu fiquei sem saber se era a mim que elle
agradecia o ter-me eu submettido, ou se era ao
espirito do Doutor Tarquinio que o Ministro
agradecia o ter-me elle empurrado...
Na marcação d'esta scena grotesca, entrava
outra personagem, para quem o Ministro se vol-
tou, tratando-o por — Padre Eterno, e dizendo:
— «Temos aqui (referia-se á minha pessoa) o
vogal que nos faltava para a commissão do Có-
digo. E' necessário aggrega-lo, inicia-lo já. Não
podemos perder mais tempo. . . E a propósito,
diga-me, em que alturas vae a discussão do pro-
jecto ?»
— «Vamos agora no artigo 32...» informou Pa
dre Eterno, pachorrentamente. — A questão das
7© A RUA DO OIRO
provas foi muito demorada. O Manoel de Sá
queria a todo o transe que se dispensassem as
oífensas corporaes . . . Toda a gente sabe que
elle será um dos primeiros, se não o primeiro,
a aproveitar- se da lei do divorcio, mas parece
que não lhe chega o animo para bater na mu-
lher I E quasi toda a sessão de hontem se pas-
sou a ouvi-lo . . . Não vejo meio de apressar a
discussão. . . »
— «Nem ha necessidade d'isso. Pelo contrario.
Convem-me que o projecto se demore na com-
missão até ser votada a reforma dos parochos.
Temos ainda uns quinze dias... Mas também
me convérn que as reuniões da commissão sejam
mais frequentes, para que os jornaes falem, para
que se veja que alguma coisa se faz. . . »
— aNesse caso, concordava o Padre Eterno,
não cortarei a palavra ao Manoel de Sá I»
Este Padre Eterno era o director geral dos
Negócios Ecclesiasticos desde 1847, nomeado
ainda pelo Silva Ferrão — Francisco António
Fernandes da Silva Ferrão, que fora ministro
com o Franzini, e com o Barão de Almofala.
Reconhecio logo, vendo-o entrar no gabinete,
sobre uma caricatura soberba de Bordallo, no
Álbum das Glorias.
Era aquillo mesmo : a mesma hipertrofia
dos tecidos adiposos, a mesma proeminência do
A RUA DO OIRO 7I
mento sensualão ; e a perna curta e cambando
para fora; e a larga venta atulhada de simonte,
e o olho somnolento, de carneiro mal morto,
ensopado na membrana volumosa dos bordos
palp^braes; e todo elle eriçado de cerdas como
um suino, nas sobrancelhas e nas fontes, nas
ventas e nos ouvidos, nos pulsos e nos dedos. . .
E aquella mesma faceira, e a cachaceira espar-
ralhada transbordando da golilha roxa de cóne-
go, como da bocca de um boiao de gordu-
ras ...»
Mudando de tom, para um tom de enfado, o
Ministro perguntou :
— aTraz ahi muita coisa, Padre Eterno?»
— «Trago só o mais urgente, o que não pôde
passar de hoje. — E procurando um .processo
entre os dois grossos maços de processos, que
os seus braços curtos abrangiam a custo, conti-
nuou, passando-o ás mãos do Ministro: — Isto é
o caso do Cónego Boavidinha. . . O Bispo tem
ra/.ão. Na ha meio de lhe valer. Está averi-
guado que os filhos do Administrador são todos
d'elle. O ultimo tem dois mezes... E' um es-
cândalo I O Administrador fechou a mulher
num sótão, e tem-na, vae em três semanas, a
pão e laranjas. O Cónego anda furioso, parece
que armado de um bengalão de marmeleiro, á
procura do Administrador por toda a parte, di-
72 A RUA DO OIRO
zendo a toda a gente que o desanca, se elle não
lhe solta a nr.ulher!»
— «E' espantoso ! E o Administrador o que é
que diz a isso?*
— a O Administrador não apparece na rua, e
vae de casa para a Administração por cima do
muro do quintal, que é pegado. Ainda no do-
mingo passado, que era dia de feira, e houve lá
desordem, por mais que o chamassem não
houve meio de o fazer sahir, e só appareceu á
janella para dizer que não estava em casa! E
foi o próprio Cónego que se pôz á frente dos
guardas e varreu a feira.»
— oE' uma situação insustentável. . . ponderou
o Ministro. — E o que diz o Bispo?»
— «O Bispo ameaçou-o já de que lhe tirava a
missa, e quer que nós o tiremos d'ali p'ra fora.»
— «Mas é o diabo, porque o circulo é d'ellel
Havia uma revolução.»
— «... Se Vossa Excellencia quizesse, talvez
achássemos um meio: trazê-lo para Lisboa.»
— «E como? era que situação?»
— «Fazendo-o deão da Sé.»
— aMas elle não deixa a mulher!»
O Padre Eterno era o decano dos Directores
geraes, e o protótipo, fidedigno, de todos elles-
Era o homem de confiança dos Ministros, o alto
funccionario entre os altos funccionarios, aquelle
A RUA DO OIRO 78
que, dentro dos complicados, tortuosos mean-
dros da burocracia, tudo sabe, tudo resolve,
tudo explica; centralisando sob o domínio da
sua garra todos os negócios ; fazendo depender
do seu juizo todas as deliberações superiores ;
monopolisando no seu conselho todos os conse-
lhos. E creando, e sustentando, e avolumando
embaraços sempre que fosse necessário emba-
raçar; e admittindo, e patrocinando, e procu-
rando facilidades sempre que fosse necessário
facilitar. . .
— «Traz-se também a mulher!» despachou elle.
— A mulher era professora de instrucção pri-
maria, e Sua Excellencia podia, pelo Ministério
do Reino, transferi-la para Lisboa.
— «Mas o marido, o Administrador?»
— «Ora! o marido, se Vossa Excellencia lhe
fizesse constar que o demittia, sob qualquer pre-
texto, largava mais depressa a mulher que a
administração do concelho.»
O Ministro ainda hesitou um momento. To-
lice ! Não havia que hesitar. Mandassem vir o
Cónego; e elle trataria então, pelo Ministério do
Reino, de transferir essa pecora da mestra.
O Padre Eterno escolheu outro processo
metteu-o á cara do Ministro.
— «Temos agora aqui um outro bico d'obra. . .
E' o resultado do concurso para segundos of-
74 A RUA DO OIRO
ficiaes. Tivemos de pôr em primeiro logar o Me-
lecas. . . »
O Ministro deu um salto, empertigou se na
cadeira :
— «Qual Melecas?!»
— «O Melecas. . . o do Phantas}7ia.y>
— «Isso não pôde seri Não, lá isso, meu caro
Padre Eterno, tenha paciência... O Melecas I
nomear eu o Melecas I Esse desavergonhado
Melecas que me tem dito as ultimas... Não,
lá isso, não I»
O Padre Eterno esclareceu :
— «Assim o entendeu o jur}^ Se Vossa Excel-
lencia o preterir, mais o exaspera. . . Se Vossa
Excellencia o nomear, talvez elle se cale.»
— «E as provas?» indagou o Ministro, já mais
manso, tendendo já a uma possível conciliação
de coisas.
— «As provas. . . não foram boas. Mas ^'ossa
Excellencia bem sabe que isto agora não é uma
questão de provas, é uma questão de conveniên-
cia para o Governo.»
— «Pois sim, tem vosse razão. . . Mas. ó meu
caro Padre Eterno, diga-me com franquesa : se
esse Melecas tivesse escripto . a seu respeito o
que de mim tem dito no Phaniasma desde que
eu entrei para o Ministério, e se vossê tivesse de
despacha-lo segundo official, mesmo num con-
A RUA DO OIRO 7^
curso, e com boas provas, vossê despacharão, ó
Padre Eterno? Olhe bem para mim, diga-me
com franquesa . . . »
— oEu não o despachava, não senhor: eu mct-
tia-o num processo I»
— «Mas então. . . »
— «Mas então... E' que o Melecas nunca
escreveu uma linha contra Vossa Excellcncia I
Aquelles artigos não são d'elle. Nem elle sabe
escrever.»
— «Em todo o caso, assigna-os. E se elle nem
sabe escrever, mais uma razão para que eu não
me ache de accordo com a classificação do con-
curso. Quem ficou em segundo logar ?»
— «Em segundo logar, ficou o filho do Conse-
lheiro Paiva. Tem uma lettra magnifica.»
— «E não tem mais nada ? Para segundo of-
ficial, é talvez pouco. . . »
— «Tem o tio, que é presidente do Tribunal de
Contas !»
Sahi d'ali aterrado. Eram então assim os mi-
nistros ! Era então assim a Politica ! Mas não
deviam ficar por ahi as surprezas d'esse dia, já
agora memorável.
Fausto Guimarães descera comigo do Ministé-
rio á Arcada, oíferecera-me logar na cai ruagem
que tinha á sua espera. Chuviscava. E como eu
nada tivesse que fazer de urgente nesse resto da
76 A RUA DO OIRO
tarde, nem o tempo convidasse a um giro na
Baixa, acompanha-lo-ia ao Salitre, onde precisava
deixar uma encommenda, daríamos depois a
volta lá por cima, e elle viria pôr-me á porta do
Hotel á hora do jantar, não me dizendo que
fosse eu jantar em sua casa, porque estavam sem
cozinheiro.
Só o meu querido Fausto me não dava sur-
preza, depois de tanto que o não via, desde que
nos tinhamos separado em Coimbra, na noite da
recita do nosso quinto anno, e na balbúrdia final
d'aquella ceia opípara, que coroara de espumas
de Champagne o nosso curso de Direito. Estava
o mesmo, era sempre o mesmo : expansivo, ale-
gre, bom rapaz, mettendo-nos no coração !
Mas quando descíamos a larga escadaria do
Ministério da Justiça, Fausto deixou-me avançar
três degraus, e observou:
— «O' Joaquim do Amaral! Olha que essa so-
brecasaca não te está nada bem. . . Isso é sobre-
casaca da Ilha, com certeza! Ein? Ora diz lá. . . »
— «Pois está visto que é, e então ?! que defeito
lhe achas?»
— «Não sei . . . não sei. . . Nem admira que o
não saiba : eu não sou o Strauss ! Mas vae-te
mal, vae-te mesmo muito mal, muito curta e
muito larga. . . E a gola a fugir do coUarinho, e
as abas que arreganham . . E' um horror, Ama-
A RUA DO OIRO 77
ral, é um horror ! Vossês, na Ilha, sabem fazer
admiravelmente eleições, mas não sabem fazer
sobrecasacas ! desculpa que t'o diga. »
— «Querias talvez que eu mandasse fazer a mi-
nha roupa a Londres!»
— «Ora essa! e porque não?! Não manda Lon-
dres buscar laranjas á tua Ilha?»
Estava eu muito enganado se ainda julgava que
essa coisa de mandar de Portugal fazer fatos a
Londres era uma pura fantasia dos janotas que
o Eça mettia nos seus romances. Em matéria de
«costumes», como diria o Poças rejubilando com
o trocadilho, tudo nos vinha agora da Inglaterra,
de Londres.
Esquecera-se Kionga, esquecera-se o Ultima-
tum, desembaraçara-se dos crepes d'esse pas-
sageiro lucto nacional a estatua de Camões.
Em menos de seis mezes, coisa curiosa ! ope-
rara-se no animo dos portugueses uma singular
transformação. Estávamos ingleses ! Éramos
ingleses I Queriamos morrer ingleses ! Como se
produzira este fenómeno ? Como se operara esta
transformação ?
Ninguém o sabia !
Mas estava-se na presença de um facto, e de
um facto perfeitamente assente, exacto, irreme-
diável, consummado. Tínhamos de acceita-lo,
assignala-lo apenas, sem controvérsias.
78 A RUA DO OIRO
E Fausto, empurrando-me para o fundo da
sua carruagem, que logo rodou e metteu pela
Rua do Oiro, foi dizendo em que consistira essa
extraordinária mudança de caracter nacional, e
qual a influencia d'essa mudança no animo e
nos costumes da gente portuguesa. . .
Os amigos da Inglaterra faziam da alliança
inglesa o eixo de toda a historia de Portugal —
desde a conquista de Lisboa, assignando Dom
Affonso Henriques o primeiro tratado. Não
havia empreza nossa sem ingleses, e a honra de
ser uma provincia da Inglaterra, como ficámos
sendo depois do tratado de Metwen, não era
pequena honra. A respeito d' esse tratado, ago-
ra, nenhum português de lei poderia deixar de
condemnar a opinião do Oliveira Martins, que
dissera reunir elle, á concisão epigrafica de um
texto romano, a agudeza penetrante de um ne-
gociante carthaginês, ou judeu... Portugal da-
ria fructas e vinho aos ingleses ; os ingleses da-
riam a Portugal manufacturas e comer. Ficáva-
mos sendo uma colónia vinícola da Inglaterra.
E dizia- se agora, e escrevia-se nos jornaes, que
esta era a tradição de toda a nossa historia !
Depois, em três grandes momentos, essa al-
liança nos servira para mantermos a indepen-
dência: em i383, em 1660, em 1808 .. E nin-
guém lembrava que, da primeira vez, o que os
A RUA DO OIRO 79
ingleses quizcram foi garantir ao Duque de Len-
castcr a coroa de Hespanha ; e consolidar, da
segunda, o seu nascente império na índia ; e
bater, da terceira, Napoleão, ateando em nós a
raiva de termos perdido Olivença.
A Convenção, o Comité de Salvação Publica,
o Directório e o Junqueiro teimavam em consi-
derar Portugal uma provincia de Inglaterra, e
não estavam contentes com isso? Pois que ti-
vessem paciência !
E em cada manhã o Diário de Noticias oífe-
recia, na sua secção de annuncios, tresentas
mestras inglesas, que se promptificavam a ensi-
nar o inglês sem mestre em menos de quinze
dias. E as livrarias reeditavam e vendiam mi-
lheiros do Novo Meihodo de Ollendorf para
aprender a lêr^ escrever e falar a doce lingua
inglesa em menos de seis mezes. . .
As mercearias, que por occasião do Ultima-
tum tinham retirado das barricas de margarina
o lettreiro de — Manteiga inglesa, legitima, re-
integravam o lettreiro nas funcçÕes do seu cargo.
O Ferrari, o Pucci e o Cócó expunham nas
suas vitrines apetitosos exemplares de puding
inglês — traduzido ! ,
A elegante camisaria do Augusto Ribeiro, ao
Chiado, vendera numa só tarde doze dúzias,
uma grosa I de collarinhos Príncipe de Galles,
8o A RUA DO OIRO
i5 centímetros de altura, que existiam na loja
desde a fundação da Monarchia.
Um grupo de homens de lettras e artistas,
que tinham andado atrás do deputado Eduardo
Abreu na noite de ii de Janeiro, dando morras
á Rainha Victoria e vivas a Camões, percorria
agora as ruas da Baixa em bandó precatório,
pedindo cinco tostões para uma manifestação de
mesa redonda na Taberna Inglesa.
Eduardo Costa, á Pampulha, lançava no mer-
cado uma nova marca de bolachas denominadas
— Pic-pockets, de delicado sabor e perfume de
baunilha.
Na lista das casas de pasto, as comidas mais
, vulgares recebiam nomes ingleses, deploráveis :
peixe frito era —friedjish ; uma costeleta de vi-
tela era — a peai ciitlet ; uma almôndega era —
a forced-meat bali!
Os creados, se se lhes falava português, não
respondiam. Para pedir um garfo, era necessário
dizer :
— Give me a fork !
E para pedir uma colher :
— Gípe me a spoon !
A conversação familiar, a própria conversação
familiar, isto a que se chama conversar cada um
em sua casa, com a sua mulher e com os seus
filhos, tornara-se uma verdadeira massada :
A RUA DO OIRO 8l
— Tem V. o meu chapéu ?
— Have you my hat ?
— Tenho o seu chapéu....
— / hare j'our hat.
— Não tenho o seu chapéu, mas tenho o lápis
do rapaz do seu sapateiro,
— / havc tiot rour hat, but I hare the pencil
(if your shcemaker s hoy, . .
Levados nesta impetuosa corrente da Opinião,
os jornaes tinham inaugurado plebiscitos sobre
as probabilidades de uma nova alliança inglesa,
e por esse meio se averiguara, se patenteara á
luz do nosso bello sol, qiie a fina flor, o escol,
a nata da intellectualidade de Portugal votava
por unanimidade que se entrasse abertamente,
immediatamente, nas negociações do tratado
que devesse firmar a ambicionada alliança.
Respondendo a esse plebiscito, um alto func-
cionario do Estado dissera : — «... Porque to-
dos nós devemos compenetrar-nos d'isto : a al-
liança com a Inglaterra é o clarão de uma boa
esperança — a esperança de voltarmos a receber
os nossos ordenados em libras I»
Uma illustre escriptora publica succintamente
emittira, nestes termos, o seu voto na matéria :
— «Ah! não me perguntem nada... Estou
com os Ingleses I»
Um diplomata e poeta, parafraseando a
%
82 A RUA DO OIRO
Portuguesa, que fôra o canto de protesto inspi-
rado pela humilhação do Ultimatum, compozera
outro himno que começava assim :
Heroes do mar, nobre povo,
Nação valente, immortal !
Isto não é nada de novo
Entre Inglaterra e Portugal !
A's armas 1
A's armas I
Sobre a terra, sobre o mar !
— «Mas voltando á lua sobrecasaca, continuou
Fausto, permitte-me que te aconselhe a que pro-
cures o meu alfaiate, e lhe encommendes uma
outra. E desfaz-te d'essa. Presenteia com ella o
guarda-portão do Borges, que saberá enverga-la
com elegância. . . O Parlamento é ainda um lo-
gar de exhibição. O deputado tem de andar bem
vestido, com boas luvas. . . Olha o Jaurés, em
França, na democrática França, como elle cahiu
em ridículo, por se apresentar no Parlamento de
blusa socialista I»
Eu ainda tentei alguns argumentos em defesa
dos meus princípios e da minha sobrecasaca.
Afigurava-se-me que o tempo não devia muito
sobejar para semelhantes futilidades de vestuário
e de elegância a quem quizesse, deveras, preoc-
A RUA DO OIRO 83
cupar-se com as altas questões e com os altos
assumptos que deviam absorver a vida parla-
mentar. Mas Fausto sahiu-se-me logo, e com fú-
ria, aos impedimentos. Estava eu muito engana-
no, redondamente enganado ! E a nossa velha,
e boa, e segura amizade não consentiria que elle
me deixasse debater, espernear nesse engano,
como uma mosca que se debate e esperneia na
teia de uma aranha !
Em obediência ao Regimento, eu devia ser
introduzido na Gamara por dois dos meus coUe-
gas, deputados. Convidara-o já a elle, Fausto
Guimarães, para ser um d'esses meus padri-
nhos. . . (O outro seria o Poças, já convidado
também). Pois ficasse eu sabendo que elle não
limitaria esse seu grato papel á formalidade do
Regimento ; iria até onde a sua estima por mim
lhe permittisse ; e a sua estima por mim não só
lhe permittia, impunha-lhe o dever de bem me
encaminhar naquella senda tortuosa por onde eu
queria tomar ás cegas, quando me era preciso,
ao contrario, arregalar muito os olhos !
— «Já tens assignatura em S. Gados?» per-
guntou-me.
— «Nem pensei nisso sequer. . . »
— «Pois tu não gostas de musica, homem da
fortuna ? Uma coisa de que até os selvagens
gostam ! »
84 A RUA DO OIRO
— «Gosto, até gosto muito ; mas ainda esta
manhã, ao almoço, se discutiu deante de mim essa
coisa de assignatura em S. Carlos. Parece que
é uma formidável burla. Os assignantes ouvem
sempre a mesma opera, e quando ha opera nova
a recita é extraordinária. Disse-me um hospede
do Borges que, segundo os seus cálculos, o as-
signante virá a ter, nesta época lirica, setenta
e cinco por cento de Hugiienotes ! Ora eu acho
preferível ouvir as operas que mais me agradem,
a ouvir aquellas que mais agradem ao empre-
zario ...»
— «Joaquim do Amaral, o teu caso é outro !
Não se trata de saber se a opera é sempre a
mesma, nem se a empreza te intruja. Quem tem
uma cadeira em São Bento precisa ter uma ca-
deira em São Carlos. E assim como para se es-
tar em São Bento o que menos importa é fazer
boa politica, assim para frequentar São Carlos
o que menos importa é que seja boa a musica. . .
Depois, quem não tem uma idéa para apresen
tar no Parlamento, tem sempre uma casaca para
exhibir na Opera ; e uma boa casaca é já, e só
por si, uma excellente recommendação!»
Risonhamente, e com affavel malicia, declarei
a Fausto que o achava insupportavel. Parecia-me
uma personagem deslocada do theatro do Du-
mas filho, com a incumbência de animar o dia-
A RUA DO OIRO
85
logo d'e.ssa comedia em que eu me via mettido,
fazendo frases á minha custa... Que fim le-
vara então o meu Fausto, aquelle grande, e são,
e incorruptível Fausto da Couraça dos Apósto-
los, inimigo rispido de todas as convenções e de
todos os paradoxos ? !
A carruagem parou.
Fausto abriu a portinhola, desceu, foi tocar
no botão de uma campainha á porta da casa
que naquella rua (que era a Rua do Salitre) ti-
nha o numero 24b.
Não teria demora. Apenas entregar uma en-
commenda, fazer uma pergunta, e mais nada.
Cinco minutos, Amaral, só cinco minutos I
Um creado de gravata branca veiu abrir. E
percebi que Fausto perguntava se a Senhora D.
Claudia estava em casa... Entrou, fechou-se
outra vez a porta, e cu esperei, esperei, fartei-me
de esperar.
Quando me parecia que já era de mais e olhei
o relógio, tinha passado meia hora. Eram cinco
e vinte! Receei não chegar ao Hotel a horas de
jantar. . .
Mas Fausto apparecia nesse mesmo instante,
todo açodado :
— «O' menino, perdoa ! Não foi minha a cul-
pa.. . »
A culpa fora de D. Claudia, que o detivera
86 A RUA DO OIRO
todo esse tempo, com mil perguntas, mil re-
commendações, mil coisas; e não o deixara sahir
antes, apesar de saber que elle tinha alguém a
espera-lo, era baixo, no meio da rua. Era uma
seca, uma verdadeira sarna! E depois, menino,
absorvente, despótica, absoluta, quasi tirannica!
Irra, que era demais !
Pois sim. Podia elle ter carradas de razão.
Mas eu é que não sabia quem era D. Claudia.
— a O quê, Amaral? Pois tu não sabes quem
é a D. Claudia ? Tu nunca ouviste falar da illus-
tre D. Claudia? Mas isso é o mesmo que não
saber quem foi Cleópatra, ou Agripina ! O que
sabes tu, afinal, meu desgraçado amigo, da
eterna rotação da Terra em volta do grande
Sol ?»
Pois nada sabia, não. E era eu, agora, que
lhe pedia desculpa... Elle tomava, porém, so-
bre si, e de motu-proprio, o bello encargo de
ser meu farol e meu guia, meu roteiro e meu
elucidário. Onde eu não soubesse, que lhe per-
guntasse I Não sabendo quem era D. Claudia,
acceitava o favor, e perguntava. . .
Vim então no conhecimento de que essa D.
Claudia, essa «sarna de D. Claudia» fora a im-
pulsora e era hoje a chefe do (para mim igno-
rado) movimento de propaganda feminista que
se fazia em Lisboa, á semelhança das grandes
A RUA DO OIRO 87
capitães, com o complicado e perigoso fim de
obter a declaração dos Direitos da Mulher, como
consequência lógica da declaração dos Direitos
do Homem I
Nem eu, nem Fausto — nenhum de nós sabia,
a par d' essa prerogativa máxima que a mulher
moderna se arrogava, o que viria a ser de tudo
aquillo a que, até então, nós chamávamos, tal-
vez com demasiada vaidade — os Direitos do
Homem ! Tanto se pregara que a causa da mu-
lher era a grande causa do século ; tanto se dis-
sera que o homem era a força, e a mulher a
graça ; tanto se repetira que a escravidão das
Evas se tornara indigna dos benévolos Adães —
que as coisas tinham chegado ao ponto de rebu-
çado em que eu as vinha encontrar.
Na discussão muito acesa dos doutrinários
modernos, entre Stuart Mill (que queria a mulher
emancipada do seu triste papel de serva, ou da
sua pouco invejável situação de odalisca) e Scho-
penhauer (que, ao contrario do seu confrade in-
glês, apenas concedia á mulher, e quasi que por
muito favor, as funcçÕes domesticas, a sujeição
e o trabalho no interior da casa) vencera Stuart
Mill. A escrava fizera-se senhora : Senhora D.
Claudia... A graça alargara com sorrisos as
suas cadeias ; a fascinação fizera cahir a seus
pés os seus dominadores.
88 A RUA DO OIRO
Os legisladores começaram então a preoccu-
par-se com o destino da mulher nas suas condi-
ções civis ; os pedagogistas procuraram mclho-
rar-lhe as condições de instrucção ; os economis-
tas alargaram-lhe as condições industriaes \ os
filósofos acabaram de encher-lhe o cérebro
de minhocas ; e assim se viu a mulher açambar-
car todas as profissões e todos os ideaes do
homem.
Ella foi, definitivamente, tudo quanto quiz
ser. Ella foi advogado, ella foi medico, ella foi
amanuense. Ella foi guarda livros, ella foi guarda-
freios, ella foi guarda-fios. Ella foi telegrafista,
ella foi ciclista, ella foi organista.
Ella vestiu calças e usou ceroulas. Ella fumou
de cachimbo e poz chapéu de coco. Ella tocou
pratos e foi clarinete.
Ella fez comícios, ella fez congressos, ella fez
desordens.
Para alinhavar discursos, ella deixou de apon-
toar meias ; para fazer frases, ella. deixou de ter
filhos.
Seccaram-se-lhe os peitos, ccrraram-se-lhe os
buracos para os brincos, cresceram lhe pellos
na barba e cabellos no coração.
Em presença d'esta revolução, attonito, o ho-
mem nem pensara em reagir. Conformara-se,
tivera ao menos o critério de acceitar sem re-
A RUA DO OIRO 8g
paro uma situação que tinha preparado pelas
próprias mãos, submettera-se.
Quando a mulher veiu para a rua, metteu-se
elle em casa. E varreu a casa, limpou o pó, la-
vou as vidraças, sacudiu os tapetes, fez a cama,
despejou a bacia, chamou a varina á escada,
bateu as palmas da janella ao carvoeiro, acen-
deu o lume, poz a panella a geito, abanou, aba-
nou, abanou.
Foi, depois, sentar se á machina e coseu, co-
seu a sua mágua comsigo mesmo, silenciosa
Singer. Bordou a retroz, bordou a lãs, bordou
a missanga. Passou a roupa a ferro, escovou as
botas, deitou camfora nas roupas.
Depois, foi pôr a meza ; e quando tudo eslava
prompto, antes que a senhora tivesse voltado
para casa, teve elle tempo ainda de conceber
um filho. A senhora, quando voltou, era pae I
E elle foi depois, bondoso e amoravel, o verda-
deiro modelo das mães ... Só isto o salvava, e
o desculpava, de todo o seu descuido e de toda
a sua ignominia I
Tudo aquillo que d"antes constituía a feição
simpathica e nobre da missão da mulher, e lhe
dava um risonho realce ao lado do esforço e do
sacrifício do homerS, completando-se ambos na
missão commum, era uma coisa que passara de
moda, como a crinoline. Os Códigos modernos,
go A RUA DO OIRO
querendo tudo aquilatar segundo a melhor fi-
losofia da razão, haviam operado uma revolução
assustadora, sanccionando conquistas pavorosas
da egualdade civil dos sexos.
Obtida a conquista da egualdade civil, cami-
nhava-se já, de fronte alta, para a conquista da
egualdade politica.
A mulher fora assim arrebatada ao meio
em que a sua dedicação enchia de alegrias
doces a vida dos que ella amava — irmãos,
pães, esposo e filhos, quando toda ella se oc-
cupava nas mil e uma applicações amoraveis
da sua actividade, bondosa de sua Índole, con-
tente do seu destino, vivendo para todos esses
pequeninos sacrificios ignorados de que se com-
põe a vida de uma mulher dedicada : sacrifício
do seu tempo, dos seus gostos, da sua pessoa ^
alimentando esse terno, luminoso poema do si-
lencio do lar, das escolas, dos hospitaes, onde
ella, mãe, educadora, enfermeira, inteiramente
se consagrava ao bera-estar dos outros, numa
lenta e benéfica infiltração de bondade, de doci-
lidade, de meiguice... A maternidade perdera
os seus doces encantos de protecção, de vigilân-
cia, de carinho, em volta de uma pequenina
creatura a quem era preciso desenvolver o corpo,
formar o coração, incutir o caracter, pelo leite,
pela palavra, pelo exemplo ; e ficara sendo, re-
A RUA DO OIRO QI
pulsivamente, um longo e doloroso trabalho fisio-
lógico . . .
Indo dos pequeninos sacrifícios aos grandes,
aos ruidosos sacrifícios, que sempre dotaram de
mulheres celebres a historia de todos os povos,
até esses eram amesquinhados, quasi mettidos
a ridiculo, pelo movimento empolgante das re-
centes idéas, que arbitravam á mulher uma
grande força e uma grande importância, mas
uma força e uma importância toda de ordem
puramente moral, apoiadas só na Opinião tole-
rante dos homens.
E só neste capitulo, que formosa era, e que
arrogante, a tradicção das nossas guerreiras e
ardilosas patrícias I
Ahi tínhamos, por exemplo, aquella Deusadeu
Martins, merecedora de que a sua municipali-
dade adoptasse por brazão uma mulher — que
fora ella — sobre as ameias de uma torre, com
dois pães nas mãos, e em posição de os arre-
messar aos inimigos. Exhausta de mantimentos,
ia a praça de Monsão render-se pela fome. E
que ideou a portuguesinha valente? De uns res-
tos de farinha fez aquelles pães, trepou á mu-
ralha, e atirou-os aos sitiantes, bradando que
havia pão dentro d^ praça para dar e ven.
der. . .
E a nossa Brites de Almeida, a graciosa pa-
V
i-,LO-'-^ii ■
93 A RUA DO OIRO
deira, que amassara dentro de um forno alguns
castelhanos fugitivos ?
E o caso de Margarida de Abreu, apunha-
lando o rosto de um cavalheiro que a ultrajara ?
E aquellas que no memorável cerco de Diu
formavam um batalhão, e acarretavam pedras,
e levavam os aprestes necessários ao fogo, e ar-
remessavam contra os inimigos tudo quanto lhes
podia causar damno, «sempre promptas e op-
portunas ? »
A perturbação que esse movimento feminista
vinha trazer á doçura dos nossos costumes, ao
socego dos nossos lares, ao regalo das nossas
rotinas, ganhava terreno sobre o sentimento na-
cional, sempre propenso á benevolência, á fan-
tasia e á galhofa.
Esse golpe de audácia que a mulher portu-
guesa, a nossa querida mulhersinha portuguesa,
tão recatada, tão séria, tão bananinha, e tão
boa filha, tão boa mãe, tão boa dona de casa,
vibrara na situação de invejável garantia que
disfructava — tinha assarapantado o sexo forte.
Ella queria ser eleitora e queria ser ele-
gível ; queria ser deputada e queria ser ministra^
queria ser administradora e queria ser juiza.
Mas em vez de atroar os ares com um grande
grito de guerra ; e em vez de pegar em armas,
em pedras e cm pás do forno ; e em vez de vir
A RUA DO OIRO çS
para a rua, de braço arregaçado, cabellos des-
grenhados, e o peito aberto ás balas, disposta á
renhida lucta que bem sabia ter de travar para
obter a conquista dos seus direitos politicos —
a lambisgóia traçara outro plano, lançara mão
de outras armas, gizara outros ardis.
Para desarmar os exércitos, fundara a Liga
da Paz. Para reunir e concentrar energias,
creara a Associação. Para acirrar os exaltados,
annunciara o Meeting. Para estimular os sim-
ples, abrira a Conferencia. Para viciar a atmos-
fera, lançara o Jornal. Para subjugar os re-
beldes, atirara-se ao Namoro. Para chamar a
attenção dos indifferentes, emprehendera a Co-
cega ! E, finalmente, para melhor trabalhar, in-
trigar, agitar, e ganhar a confiança dos gover-
nos, mettera-se na Politica.
Neste afan de disputar ao homem todas as
funcções da vida social, e para isso de peito
feito a empregar todos os meios, todos os re-
cursos, todos os expedientes, a mulher portu-
guesa facilmente encontrara do seu lado todos
os grandes pensadores, todos os grandes filó-
sofos, todos os grandes pedagogos, todos os
grandes economistas, todos os grandes publi-
cistas, todos os grandes oradores.
Fizera-se um movimento poderoso de vulga-
risação das novas doutrinas, todo um apostolado
94 A RUA DO OIRO
se erguera pregando a bella causa, pozera-se
em acção uma claque enthusiastica applaudindo
todos os dispauterios que a propaganda femi-
nista fazia circular, já pelo artigo, já pelo rela-
tório, já pelo discurso.
Quando chegou o momento de passar da
theoria á pratica, e das palavras aos factos, a
mulher portuguesa, a nossa querida mulhersi-
nha portuguesa, que afinal não era tão simples
como se suppunha, passou o pé aos pensadores
e aos filósofos, aos pedagogos e aos econo-
mistas, aos publicistas e aos oradores — e lan-
çou-se nos braços dos ministros.
Ora os ministros são homens, para determi-
nados effeitos, como os outros homens. E no mo-
mento em que eu chegava a Lisboa, e entrava
na politica, a mulher do meu paiz, tendo subju-
gado os ministros do meu paiz, convertia em
leis todos os seus projectos.
— «Já tu vês, dizia-me Fausto, que não po-
dias chegar em melhor occasião. E' claro que o
bom jogo vae todo para os ministros, que levam
as reformas á Gamara. Mas somos nós que vo-
tamos as reformas, e, por tabeliã, sempre al-
guma coisa nos toca ...»
Mettido na commissão da reforma do Código,
achava-me eu, sem o saber, ao serviço de D.
Claudia, por amor de quem se tratava de re-
A RUA DO OIRO gS
formar o Código. Tudo isso era, porém, um
complicado enredo que levava muito tempo a
contar, e ficava para depois.
Arranjasse eu uma sobrecasaca contemporâ-
nea, folheasse alguns capítulos da Ai^te de vi-
ver na sociedade, que adeantava já muito ao
Manual da civilidade do João Félix Pereira, e
quando estivesse prompto que lh'o dissesse,
para elle me levar a casa de D. Claudia, e
apresentar-me, lançar-me. . .
Chegávamos ao Hotel. Já não chuviscava, o
céo aclarara um pouco, havia mais gente nas
ruas. A' porta do Borges, aguardando o toque
da sineta para o jantar, encontrámos o Poças.
Defronte do Hotel andava em obras a cana-
lisação do gaz, e fora lançada uma prancha de
madeira sobre a valia aberta para dar passagem
de um lado ao outro lado da rua. E como nos
Martyres houvesse lausperenne, as pessoas de-
votas que sabiam da egreja e vinham para cima,
chegavam ali e atravessavam a prancha. O chão
revolvido e a chuva que cahira tinham espapa-
çado um lamaçal naquelle ponto de maior pas-
sagem ; e as mulheres, resguardando da lama a
roda dos vestidos e os folhos das saias de bai-
xo, que arrepanhavam em fru-frus, mostravam
muito a perna.
Todo embebido no exame d'esse mostruário,
96 A RUA DO OIRO
e perseguindo com o olhar um certo tornoselo
que já ia longe, Poças nem dera pela nossa
aproximação.
Da portinhola do coupé, Fausto gritou-lhe:
— «O' Poças, guarda castidade I»
E só então é que o Poças nos viu, e sahiu
ao passeio para nos vir falar.
Como não houvera Gamaras, aproveitara a
tarde para dar uma \ olta ; mas o tempo trans-
tornara-se, não havia mulheres na rua. Apenas
agora, naquella estiagem, appareciam algumas.
— iMas poucas, e uns estafermos!»
IV
A chuva de mólha-tolos, que cahia sobre Lis.
boa desde a segunda-feira de Entrudo, envol-
vendo as collinas da cidade num panno de suja
gaze, e cobrindo as casas da Baixa de uma
humidade viscosa, a escorrer dos telhados como
uma baba, resolvera-se por fim numa tremenda
carga de agua que durara dois dias sem abran-
dar por instantes, precipitando pelo Chiado
uma enxurrada ruidosa que tudo varria, e gal-
gava em catadupas alterosas.
Fora uma providencia, pois que o cheiro nau-
s':;abundo dos tremoços, que a fina flor da Aris-
tocracia despejara das janellas do Turf sobre
os transeuntes, desde o sabbado gordo, e que
revestia o passeio de uma camada espessa, fer-
mentando, era um fedor que invadia tudo, in-
7
g8 A RUA DO OIRO
supportavel, e já chegara ao meu quarto, que
todavia não ficava a uma pequena altitude 1
Poças e eu não nos tinhamos atrevido a sahir
do Hotel durante esses dois dias, que já julgá-
vamos não terem fim, e me lembravam o Dilu-
vio universal.
— «Outra vez universal, não creio... dizia
Poças. Isso foi tempo ! Hoje, se Deus pensasse
em decretar de novo o exterminio da espécie
humana, não o faria de animo leve, como então.
A. moderna estatística das populações offerecer-
Ihe-ia motivo para muito meditar e para muito
hesitar. Ha uma tendência assustadora para o
decrescimento ; e se as coisas devessem passar-
se, em caso d'um outro diluvio, como se pas-
saram no primeiro, não se afigure a Vossa Ex-
cellencia que seria bastante metter numa arca
apenas um casal de cada espécie para resistir
aos destroços do grande cataclismo . . D'uma
espécie, pelo menos, sei eu em que um casal,
só por si, não seria bastante ...»
— «Que espécie é essa, ó senhor Poças?» quiz
eu saber, intrigado.
— «E' a espécie humana de Lisboa. Está ave-
riguado. Para a propagação d'esta espécie, um
casal, isto a que se chama em linguagem jurí-
dica, marido e mulher, não offerece garantia.
E' preciso que haja sempre um marido sup-
A RUA DO 0180 99
plente — para as necessidades bíblicas ...»
Achei forte. Poças achou mais forte a pan-
cada de agua que nesse momento batia no te-
lhado, com estrondo, revolvendo as telhas.
Olhámos para cima, instinctivamente, num
receio de que o tecto se fendesse, e nos despe-
jasse no quarto a tempestade. Fora, nas ruas,
o vendaval soprava e assobiava. De vez em
quando, alguma vidraça, sacudida, estilhaçava-
se, e ouviase o tlintar dos cacos na calçada. . .
Para aproveitar o tempo, comecei a pôr em
ordem os meus papeis e os meus livros.
Durante a minha estada na Ilha depois da for-
matura, e nos largos intervallos que a fama do
Doutor Tarquinio abria, como largas brechas,
na minha advocacia, sempre desviando para elle
as melhores causas, eu habituara-me ás longas
e meditadas leituras, tendo principiado por de-
vorar toda a livraria do Barão da Terra-Chá,
que m'a facultara, e que era vasta e escolhida;
passando depois á Bibliotheca da Camará, enri-
quecida com a herança de todos os livros de
José Silvestre Ribeiro ; embrenhando-me até no
Fios Santorimi da Tia Genoveva ; e acabando
na coUecção do Diário das Camarás pertencente
ao Pompeu, que a mandara encadernar em ve-
ludo azul com fechos e cantos de prata, como
livros santos, e que «só por ser para mim» a
lOO A RUA DO OIRO
deixava sahir de casa, um tomo por cada vez.
Depois, quando já não havia na Ilha um hvro
que eu não tivesse lido, incluindo o livro de ver-
sos do João Hermcto, árcade, que m'o levara a
casa em mão própria, com dedicatória passada
a limpo por a filha, que tinha uma lettra magni-
fica, toda em grossos e finos — entrei a fazer
encommendas ruinosas á Livraria do Gil, que
por cada paquete recebia de Lisboa, e me re-
mettia para o escriptorio, dúzias e dúzias de
volumes.
Frequentando pouco o Club, pouco me de-
morando na botica do Cunha, por onde fazia
caminho para o Club, eu recolhia cedo e
deitava-me habitualmente tarde, e assim enve-
redei e vagueei, durante quatro annos, nas Lit-
teraturas cultas e nas Litteraturas populares ;
nas Religiões e nas Vidas dos Santos ; na Theo-
logia, na Filosofia e na Historia da Filoso-
fia ; na Moral, na Economia, no Direito ; nas
Sciencias fisicas Je nas Sciencias naturaes ; na
Geografia e nas Viajens; na Historia Universal
e na Historia Pátria . . .
Inspirado no moderno e fecundo methodo da
observação e da experiência, acompanhei de
longe, mas tanto quanto me foi possível, o mo-
vimento catapultuoso das sciencias novas, que
por todos os lados e em todas as direcções re-
A RUA DO OIRO lOI
colhiam e ordenavam os grandes factos positi-
vos, comparando-os e classificando-os, e d'elles
tirando todas as claras consequências.
Conheci então, nesse campo vasto e ubérrimo,
resultados maravilhosos. Problemas que parecia
deverem eternamente escapar ao conhecimento
do homem, eram abordados, profundados, e em
grande parte resolvidos luminosamente ; e todo
um immenso thesouro de factos novos não só
renovava as sciencias já conhecidas, mas consti-
tuía matéria de outras novas sciencias de em-
polgante interesse.
A Archeologia prehistorica reconquistava, para
meu uso, na escavação paciente dos séculos des-
apparecidos, antepassados de que eu nem se-
quer suspeitava; e para meu uso reconstituía, á
força de descobertas, as industrias, os costumes,
os tipos do homem primitivo, apenas mal liber-
tado ainda da animalidade.
'^ A Anthropologia debuxava-me a historia na-
tural do grupo humano no tempo e no espaço,
convidava-me a segui-lo nas suas evoluções or-
>ganicas, e a estuda-lo nas suas variedades, nas
suas raças e nas suas espécies, alumiava-me
nessas immensas questões da origem da vida,
da influencia dos meios, da hereditariedade,
dos cruzamentos, das relações com os outros
grupos animaes ...
102 A RUA DO OIRO
A Linguistica explicava -me, pelo estudo com-
parado dos idiomas, as successivas formas da
linguagem, analisando as e preparando, por
assim dizer, toda uma historia do Pensamento,
seguida desde a sua origem e através de todas
as edades.
A Mithologia comparada dava-me entrada no
rutilante e matizado espectáculo da creaçao dos
deuses, ensinava-me a classificar os mithos,
permittia-me estudar as leis da sua origem e do
seu desdobramento através das innumeraveis
e pittorescas formas religiosas.
Todas as muitas outras sciencias — a Bio-
logia, a Astronomia, a Fisica, a Chimica, a
Zoologia, a Geologia, a Geografia, a Botânica
— eu as vi, sob a influencia do mesmo methodo,
amplificadas, enriquecidas, chamadas a presta-
rem-se um mutuo auxilio. E essa influencia alar-
gava-se ás sciencias que a fantasia e o espirito
de sistema haviam despojado de toda a preci-
são e de toda a realidade — a Historia, a Filo-
sofia, a Economia Politica. . .
Todas estas magnificas e surprehendentes
acquisiçóes da livre investigação, dispersas numa
multidão de compêndios, memorias e tratados,
eu poderá condensa-las, para meu uso, num
conjuncto elementar e methodico, obtendo de
cada sábio a essência da sua sciencia, sob essa
A RUA bO OIRO IO
forma precisa, clara e accessivel dos Manuaes,
limitado cada manual ao dominio em que a com-
petência do sábio me parecesse incontestável.
E ao mesmo tempo que, embebido nestas cons-
tantes e utilitárias leituras, mastigando bem para
auxiliar a funcção digestiva, eu me familiarisava
com as conquistas do espirito scientifico moderno
e adquiria noções mais amplas d'estas coisas
que já ninguém hoje pôde ignorar com decência
— Darwinismo, Atomismo, Theoria mecânica
do Calor, Correlação das forças naturaes, Des-
cendência do homem, Previsão do tempo, Theo-
rias cerebraes... E sempre, e cada vez mais?
eu considerava que era pela sciencia universali-
sada, levada pelos sábios a todas as consciên-
cias, como quem fizesse uma distribuição de ali-
mento a domicílios — que a humanidade poderia
pôr um termo á tremenda anarchia intellectual
do meu tempo I
Eu continuava arrumando os meus papeis e
os meus livros. Poças persistia no seu monó-
tono e habitual passeio, de mãos nas algibeiras
das calças, dentro do limitado espaço que ficava
livre entre a porta do meu quarto e a janella do
lado do Chiado. E de cada vez que se approxi-
mava da janella, disfarçando, deitava olhares
furtivos, inquietos, para as janellas defronte.
Mas desde a terça-feira gorda que as cortinas
104 A RUA DO OIRO
d'aquellas janellas se conservavam corridas, im-
placavelmente corridas, para desgosto do Poças,
que não trauteava, que cantava já, em grande
lamuria, e umas poucas de vezes ao dia, imi-
tando o Leone, as suas coplas favoritas do Boc-
cacio :
A' janella,
Minha bella,
Corre, corre,
Ligeira gazela !
Toda a gente, no Borges, sabia já do namoro,
que entretinha a mexeriquice das creadas e di-
vertia as hospedas dos quartos que deitavam
para o Chiado.
A' meza do Hotel, ao almoço e ao jantar, .as
piadas e as allusões ferviam d'um lado e outro,
como uma fuzilaria em volta de Liberato Poças,
que fazia ouvidos de mercador, fingindo não per-
ceber. Umas meninas brazileiras, que occupa-
vam com a mamã os aposentos mais caros do
Hotel, alegres como duas cotias, e que tinham
começado a brincadeira do Entrudo quinze dias
antes, tomavam o Poças á sua conta e não havia
judiaria que lhe não fizessem, pregando-lhe ra-
bos, pondo-lhe estalos tremendos por baixo da
cadeira, encharcando-o com bisnagas, despejan-
do-lhe no pescoço mãos cheias de papel picado ;
A RUA DO OIRO
io5
e entre outras partidas, que já não tinham con-
to, escreveram-lhe uma carta amorosa em nome
da vizinha do quarto andar, e pagaram a um
creado para que, á hora do jantar, quando to-
dos estivessem á meza, a fosse entregar ao Po-
ças, ali mesmo, a ver a cara que o Poças faria.
E Poças cahira na ariosca, como o mais fino
melro cae numa armadilha.
A carta era escripta com lettra de mulher,
não havia duvida, e as baldas eram certas. Fa-
lava-lhe do carinho que elle dava aos seus jacin-
thos; pedia-lhe desculpa de que sem^pre tão tarde
se abrisse aquella janella a que apparecia alguém
para quem elle não era indifferente (antes pelo
contrario) mas a razão era porque essa pessoa
soaria horrivelmente de insomnias, e só também
muito tarde, pelas madrugadas, é que podia
conciliar o somno ; fazia amáveis referencias aos
seus dotes de orador parlamentar, e ao seu
bello es,->irito de piadista insigne. E acabava por
dizer que, nessa noite de sabbado gordo, elle
encontraria — se quizesse... — no baile de D.
Maria, um certo dominó preto, «a quem seria
grato poder fazer com o senhor Poças um tour
de valse ...»
Tão embebido andava elle com aquelle na-
moro, que nem sequer lhe passara pek idéa a
suspeita de uma brincadeira de entrudo.
106 A RUA DO OIRO
Poças, que de costume fazia todas as honras
á cozinha do Hotel, servindo-se abundante-
mente de todos os pratos que viessem á meza,
tendo merecido mesmo a fama de «comilão do
Borges» por analogia patusca com o «comilão de
Almada», estando-se ainda no segundo prato
quando essa carta lhe chegou ás mãos, de pouco
mais se serviu, e debicando apenas, a espaços
lentos, o pouco mais de que se serviu. . .
Aquella inesperada missiva tivera artes de
lhe tirar o apetite; e quando veiu a travessa de
orelheira de porco com feijão, de que já havia
noticia desde o almoço, noticia que Poças rece-
bera com estrondosa manifestação de regosijo.
Poças fez-lhe cara e arredou a travessa.
A mãe das meninas brazileiras, que lhe ficava
ao lado, e que tanto reparava,- das outras vezes,
na «impossível vontádi di cómêr qui sinhôr Po-
ças tinha sempre... já viu, ên?» — chegara a
perguntar-lhe se se sentia incommodado.
Um major da Administração Militar, que tinha
quarto fora, e só vinha ao Hotel para comer, e
de facto só para comer, pois não fazia outra
coisa desde que se sentava até que se levantava
da meza, vendo que Poças não quizcra servir-se
da orelheira, desconfiara do caso, e perguntara-
Ihe ao ouvido, emquanto a travessa dava a volta
para chegar á sua vez :
A RUA DO OIRO IO7
— «Foi alguma barata que Vossa Excellencia
encontrou ?»
E como Poças lhe affirmasse que não, o Ma-
jor insistia :
— a Algum cabello, talvez ? . . . »
E como Poças, já um pouco irritado, lhe de-
clarasse, sob sua palavra de honra, que não vira
baratas, nem cabellos na orelheira de porco com
feijão, e que se não se servira fora apenas pela
simples razão de que não lhe apetecera ser-
vir-se, ainda o !Major referira, cuspinhando no
prato caroços de azeitonas, que já uma vez en-
contrara, no fundo de uma molheira de coelho
á caçadora, a luneta da dona da casa de hospe-
des onde semelhante tragedia se passava ; e que,
por isso, e desde esse dia, já não havia surpre-
zas para elle no fundo dos guizados. Mas tinha
um grande nojo de cabellos e baratas na co-
mida, e por isso perguntava. . .
O mais importante, porém, naquella partida
de entrudo, era averiguar se Liberato Poças ac-
cedera ao convite e correra á entrevista com o
dominó preto, para fazer- lhe depois uma ruidosa
montaria.
Ora quiz o acaso, que é um grande brinca-
lhão quando lhe dá na veneta para o ser, que
fosse eu quem levasse ás meninas brazileiras a
alegre noticia de que o Poças não só estivera no
I08 A RUA DO OIRO
baile onde lhe fora marcada a entrevista, mas
andara mettido numa aventura de mil diabos,
de que me fez confidente ao outro dia.
— «Imagine o meu amigo, dizia-me Poças,
que eu sabia poder encontrar hontem no baile
de mascaras de Dona Maria uma certa senhora,
a quem não sou indifferente, mas com quem não
foi ainda possível encontrar-me face a face,
para lhe dizer meia dúzia d' estas coisas que to-
das as mulheres gostam de ouvir, e a que quasi
todas ellas cedem, se a gente sabe dizer-lh'as e
a occasião se presta... A occasião não podia
ser melhor, e, quanto ao resto, ficava isso por
rainha conta, pois não é debalde que uma pes-
soa, chegada á minha edade, tem dedicado me-
tade da sua vida ao estudo aturado da psicho-
logia feminina. . . Fui, e procurei. Essa senhora,
sabia eu, devia vestir um dominó preto. Para si-
gnal, era mal escolhido, valha a verdade, por-
que em todos os bailes de mascaras apparecem
sempre muitos dominós pretos. E logo que en-
trei me appareceu um d'elles, que me metteu o
braço e me arrastou na onda, começando por
me dizer: «Ainda bem que vieste !» Cahi logo
como um pato, e não mais o larguei, e com elle
valsei, vilipendiosamente, até de madrugada !
Depois, meu amigo, que seio ! e que perfume
que me vinha d'esse seio I Por fim, já quasi
A RUA DO OIRO lOQ
sem poder comigo de tanto valsar, lembrei que
fossemos comer alguma coisa, confortar nos,
para maior empreza ; e fugimos do baile, met-
temo-nos num coupé, fomos para um gabinete
do Tavares... Veiu uma sopa de queijo, que
estava deliciosa, vieram camarões, veiu tudo !
Mas o meu dominó, que já absorvera dois pra-
tos de sopa e pedira segunda dose de camarões,
não consentia em levantar a viseira. . . Três ve-
zes lh'o pedi, três vezes m'o recusou. Só então
suspeitei de que estava sendo victima de um for-
midável equivoco. Não era aquelle o dominó
preto que eu procurava no baile ! Deixara então
escapar,' assim, e tão estupidamente, o melhor
ensejo da minha melhor aventura ! E o deses-
pero d'essa suspeita e o meu amor próprio mal
ferido, ter-me-iam dictado nesse momento uma
grossa violência, se o Champagne me não hou-
vesse lançado já num enternecido quebranto,
que me deixava estar por tudo. . . Depois, se o
dominó preto que eu chamara para meu con-
viva d'essa ceia do Tavares, não era bem
aquelle dominó preto que me chamava ao baile
do Theatro de Dona Maria, era em todo o caso
um dominó condescendente em tudo o mais que
não fosse levantar a mascara, e nessas alturas
não se me dava já trocar uma aventura por ou-
tra, fosse ella qual fosse. . . Passei-lhe um braço
lio A RUA DO OIRO
em volta, inutilisei-lhe toda a resistência, segu-
rei bem, e com a mão que me ficava livre ar-
ranquei-lhe a viseira... Deus meu, que não sei
de nojo como o conte !. . . Estava abraçado ao
Melecas, o Melecas do Phantasma ! O que en-
tão se passou foi uma coisa pavorosa. Atirei-o,
de borco, para cima d'uma chaise-longue que
havia ali a um canto, deitei-lhe esta mão ao
pescoço, assim aqui, com gana, levantei-lhe as
saias (vinha de saias, o malandro ! e calças de
cambraia com muitíssimas rendas) e com esta
mão lhe ferrei tantas e tão enérgicas palmadas
no sitio apropriado, que lh'o deixei da côr dos
camarões que o maroto comera á minha custa !»
Referindo-me este caso extremamente alegre,
e que uma nova surpreza me dava sobre os es-
cândalos recônditos da capital. Poças mostra-
va-se convencido ainda de que a carta que lhe
marcava a entrevista no baile devia ser, com
effeito, da vizinha do Hotel ; e se ella não lhe
apparecera mais á janella depois d'aquelle dia,
a culpa fora d' esse viscoso Melecas, que o des-
viara, o intrujara.
E o meu caro Poças, cahindo então num pro-
fundo desalento, começou a soífrer secretamente
do mal de amor.
Vi-o mergulhar nesse estado mental e físico
que Bourget define, e que tudo deprime, tudo
A RUA DO OIRO 1 1 I
aniquila nacreatura liumana que uma vez cessou
de pensar, de sentir, de desejar, e abandonou
deveres, e esqueceu ambições, e perdeu hábitos
— para toda se dar, toda se votar á idéa fixa
de um outro ser. . . E como certos doentes
muito apprehensivos, que procuram nos trata-
dos confusos da pathologia o conhecimento da
origem, dos simptomas e da natureza da sua
doença, e um mórbido goso experimentam
quando descobrem que alguma indicação dos
tratados bate certo com a origem, com os sim-
ptomas e com a natureza do seu mal, elle se
deitou aos tratadistas da pathologia do amor.
Mas de todos o que mais acirrava o seu mal
era Bourget. E, segundo Bourget, Poças consi-
derou-se em aiiiôr ~ um excliiido.
Pensando bem, recordando bem todos os in-
cidentes amorosos em que se achara envolvido,
elle reconhecia que atravessara já uma longa
vida árida e triste de solteirão sem esperança,
e sem nunca ter visto atear-se, ao contacto do
seu ser esbraseado, o incêndio calamitoso d'um
coração de mulher.
— o Mas excluido porquê ? grande Deus do
céo I . . . » exclamava, levantando para o céo, e
para o grande Deus do céo, ambos os punhos
cerrados, num desespero.
— «Talvez por íimide{. . . » aventava eu, recor-
112 A RUA DO OIRO
dando as causas d'essa exclusão irreparável, tão
espirituosamente encontradas no manuscripto
posthumo de Cláudio Larcher.
E, para consolar o- Poças, invocava a memo-
ria desditosa do grande Rousseau, que fora
também um timido. Para companheiro de des-
graça não poderia elle encontrar melhor. Mas se
esse não lhe bastava, e queria outro, ahi estava
esse apaixonado e infeliz Sainte-Beuve, que ti-
nha a mania das cozinheiras (á semelhança do
próprio Poças que já me confessara ter a mania
das varinas) e ao qual se attribuia aquelle dito
tão profundo e tão revelador, em resposta a
alguém que lhe perguntava o que teria elle que-
rido ser, em vez do grande pensador que era :
«Sargento de cavallaria ! . . . »
Mas Poças protestava. Poças não era um ti-
mido. Isso sim ! Antes pelo contrario. E logo
referia dois ou três casos, comprovando, em
que arriscara a pelle por sua audácia romântica
á Paulo de Koch, andando de gatas por cima
de telhados, escondendo se em armários de
roupa, escorregando por chaminés . . . Timido
elle, isso sim !
— «Talvez por condição social... )> tornava
eu então. E citava-lhe as conclusões a que tinha
chegado aquelle divertido psichologo que se com-
prazia na estatística comparad i das probabilida-
A RUA DO OIRO 1 13
des que cada individuo tem para triumfar no
amor, segundo íis suas condições sociaes. . .
Entre os juizes, os procuradores, os escrivães,
a percentagem dos felizes era apenas de cinco
por cento ; entre os médicos e os músicos, dez
por cento ; entre os romancistas e os poetas,
quinze a trinta por cento ; entre os jornalistas,
os tenores, os caixeiros de modas, cincoenta,
sessenta e noventa por cento ; entre os actores
cómicos, noventa e nove por cento I
Ora Poças não era, e ainda bem para elle,
nem cómico, nem tenor, nem poeta. Poças era
legislador ; e a percentagem, entre os legislado-
res, era muito limitada, tão limitada como para
os financeiros e para os agentes de cambio :
uns tristes dois por cento. Mas havia peor, muito
peor, pois que, segundo a estatística, a percen-
tagem para os chefes de Estado era de um —
por dez mil. . .
Estas desgraças alheias não o consolavam das
próprias. E a olhos visto, Liberato Poças aca-
brunhava-se, entristecia, murchava. Houve um
momento em que deveras cheguei a ter pena
d'elle. Ninguém diria que estava ali o mais ale-
gre espirito de Portugal I
Mas deixemos o Poças — como se diz nos ro-
mances, quando alguma personagem começa a
8
114 A RUA DO OIRO
embaraçar o fio do enredo, e o auctor não acha
outro meio de se ver livre d'elle. De resto, Po-
ças, que entrara neste romance para animar
com a sua piada e com o seu commentario as
passagens a que faltasse a graça natural dos
factos, cahira numa infinita tristeza, uma d"essas
tristezas que os francezes comparam, não sei bem
porquê, á tristeza d'um barrete de dormir. E
todo aquelle que a si próprio priva da alegria
difficilmente pôde deseja-la aos outros.
Ao temporal succedera a bonança, como ao
Entrudo se succedia a Quaresma.
Já então eu começara a occupar-me deveras,
e com grande afan, da vida parlamentar.
Aquella nova atmosfera agradava-me, sobre-
excitava-me com satisfação, e pouco a pouco
me fazia crer que eu fora talhado bem para
aquelle meio, e que teria errado a vocação se
persistisse em fazer carreira pela advocacia, na
Ilha, disputando os clientes ao Doutor Tarquinio.
A Camará era composta de rapazes, na maior
parte imberbes, cheios de saúde e cheios de ale-
gria, mal contidos no seu logar, e em compos-
tura, pela tarracha do Regimento. Via-se que o
sangue lhes pulava nas veias, e que deviam fa-
zer os máximos esforços para conter os ímpetos
d'uma mocidade irrequieta.
O Parlamento prolongava a Universidade ; ti-
A RUA DO OIRO I I 5
nha o aspecto d'Lim outro curso. E ao passo que
o Abreu Viegas, na presidência, assumia a ca-
tadura de um lente, podia- se suppôr que, quando
algum deputado fazia uso da palavra, respondia
^ uma lição.
A representação nacional estava sendo, posi-
tivamente, uma rapaziada comedida, com boas
notas, comportamento exem|..lar.
O Parlamento era, com effeito, um outro cur-
so, outro curso superior onde se professavam
todas as disciplinas que constituem a formatura
dos estadistas modernos. E eu verifiquei, não sem
um certo receio pela responsabilidade que pe-
sava sobre os meus hombros de deputado inde-
pendente, que essas disciplinas eram : Velhaca-
ria e Calculo integral. Filosofia e Cinismo, Prin-
cipios de descaramento e Historia, Economia
politica e Luvas, Colonisaçao e Sindicatos, Le-
gislação e Bancos, etc, etc.
Nas sessões da Camará, recebiam os alum-
nos o ensino theorico. Fora da Camará, era-lhes
ministrado o ensino pratico. Para este fim se
convocavam as reuniões da maioria e os conse-
lhos de administração ; se creavam as direcções
geraes, e os commissariados régios junto das
Companhias ; se inventavam as concessões no
Ultramar, e os Tabacos, e os Fósforos, e os Ca-
minhos de ferro . , ,
Il6 A RUA DO QIRO
Quando se encerrasse a sessão parlamentar,
terminaria o curso. E toda essa mocidade que
então se sentava nos bancos escolares de São
Bento se encontraria apta para se sentar nas ca-
deiras do poder — bacharéis formados, estadis-
tas feitos.
Nestas condições de venturosa precocidade,
na certeza de tcío boas facilidades, e na prom-
pta conquista de tantas regalias, a mocidade do
meu tempo entrava na vida publica cheia de
confiança, cheia de alegria, e cheia de descaro.
Da Universidade, trazia ella a idéa de que o
bacharelato era uma blague, a competência dos
lentes uma mistificação, o ensino uma burla.
O Parlamento é que era a verdadeira escola. O
Orçamento é que era o verdadeiro livro da vida.
Quando essa mocidade assim preparada, as-
sim educada, e assim investida no mandato da
indifferença popular, entrava no seio da repre-
sentação nacional, nenhuma surpreza a espera
va, nem o menor sobresalto, nem o mais leve
receio. Se algum mais timorato, como eu, hesi
tava um momento antes de transpor o limiar
d'aquella porta, logo dois o agarravam e o em-
purravam, e a esse empurrão se chamava o acto
solemne de introduzir na sala o novo deputado.
Ora a verdade era que todos os novos depu-
tados, quando entravam na Gamara, já sabiam
A RUA DO CIRO I 17
que eram obrigados a deixar á porta a sua ben-
gala e o seu decoro.
Dentro do Parlamento, todas as questões
se resolviam ou pelo sofisma, ou pelo socco.
Aquillo a que noutros tempos se chamava, num
sentido figurado — a lucta parlamentar, chama-
va se agora, nu 11 sentido muito positivo — a
lucta pela vida.
A eleição de um deputadj era um producto
de mecânica.
Ao trabalho preparatório da constituição das
Cortes chamava-se já, e com muita propriedade
— a montagem da machina eleitoral.
A designação exacta, o termo próprio ado-
ptado pelas Acadenias, mettido nos dicciona-
rios, explicado nas escolas, de toda essa com-
plicada intriga de nomeações e transferencias?
de beneficios e promessas, de chafarizes e es-
tradas— era a eugi^eiiagem do suffragio.
Quando se verificava a impossibilidade de
conseguir, por meio d'esta mecânica, o resul-
tado desejado de uma determinada eleição, a
politica nacional encontrava outra variante. Onde
não podia applicar a mecânica, empregíiva a
culinária. E havia então o prato do dia de elei-
ções, que era o nacionalissimo — carneiro com
batatas.
Algumas vezes acontecia, porém, que onde a
Il8 A RUA DO OIRO
mecânica pouco ou nada poderá, e onde a cu-
linária não muito mais avançara, a eleição se
perdia. Mas a politica dos Governos é sempre
fértil em expedientes, quando se trata de garan-
tir a maioria dos Parlamentos ; e se a mecâni-
ca falhava e a culinária esturrava, vencia por
fim, e infallivelmente, a prestidigitação. Tinha se
a chapelada.
D'esta quasi infinita variedade de processos
seguros e meios efíicazes de fazer eleições, nas-
ciam o desplante e a firmeza com que se annun-
ciava, muitos dias antes do acto eleitoral, a
■vinda ás Gamaras do Pompeu ou do Machado
da Botica.
Candituras e accordos, combinações e ma-
chinações, tudo isso vinha minuciosamente con-
tado, dia a dia, nos periódicos, que para esta
reportage indecente abriam secções especiaes, e
ou de caso pensado por conveniências, ou em
caso diverso pori nconveniencias, assim se tor-
navam do dominio publico todos os detalhes da
estratégia eleitoral.
A liberdade do voto tornara-se uma coisa
desnecessária. Para que queria o Povo a liber-
dade de voto, se de cada vez que pretendesse
fazer uso d'elle tinha a certeza de ser preso?
Eu não sei já que pensador eminente disse,
assoando-se — que a grande força de uma na-
A RUA DO OIRO IIQ
cão c O pudor das suas mulheres. Mas por mais
de uma vez pensei, no decurso d'aquella sessão
legislativa — que a verdadeira força de uma na-
ção era o impudor dos seus políticos.
Viciado na sua origem e nos seus resultados,
deshonrado por toda a parte, o sistema parla-
mentar era ainda uma instituição de muita utili-
dade e muito decorativa. Cahido no descrédito
publico muito embora, e foco de corrupção, o
parlamentarismo imprimia a sua influencia nas
condições geraes, contaminava os espíritos, agi-
tava a anciã das carreiras, alimentava a intriga
dos partidos, e tornava-se, por uma espécie de
convenção tacita entre esses mesmos partidos,
o disfarce ignominioso das peores dictaduras.
Mas eu não viera ao Parlamento nem para
arranjar dinheiro, nem para chamar concorrên-
cia ás galerias, nem para ser instrumento de
ministros e de sindicatos. Eu viera ao Parla-
mento para fazer, interpretar, suspender e revo-
gar leis ; para velar na guarda dos preceitos cons-
titucionaes e promover o bem geral da Nação ;
para fixar as despezas publicas e repartir as
contribuições. Eu viera ao Parlamento para ser
o censor dos actos do Governo ; para estabele-
cer os meios convenientes ao pagamento da Di-
vida; para regular a administração dos bens do
Estado. . ,
120 A RUA DO OIRO
Mas, e acima de tudo, eu viera ao Parla-
mento para defender os interesses da minha
Ilha, para promover a felicidade do meu Archi-
pelago . .
Por esse tempo realisava-se, entre as popula-
ções açorianas, um vivo movimento de confra-
ternisação, que tendia a estabelecer, sobre uma
solida base de sentimento, todo um amplo pro-
gramma de independência moral, económica,
administrativa. E essa confraternisação affirma-
va-se numa boa e profícua realidade, que a in-
triga da metrópole já não podia perturbar, que
até ahi se conservara envolvida numa rrodesta
aspiração platónica, mas que das palavras e dos
desejos passava agora a uma propaganda activa
e bem encaminhada, para que do accordo re-
sultante de mutuas transigências, duma legisla-
ção admini^ítrativa homogénea abraçando todas
as Ilhas, a todas applicada sem repugnância,
não escravisando umas ao proveito das outras,
resultasse uma vida nova de descentralisação.
Falava se muito do direito que os açorianos
tinham á sua independência, fundamentando-o
em muitas razões de desproporcionalidade de
garantias, da injustiça e inconveniência das leis,
da ingratidão da metrópole, da errada gerência
dos dinheiros públicos.
Na distribuição das garantias o favoritismo
A RUA DO OIRO 121
era flagrante, concedendo-se ao Continente do
reino todos os melhoramentos e regalias supér-
fluas, c negando-se aos Açores as de neces-
sidade mais urgente, as estradas ordinárias, as
docas, a melhoria das condições dos portos. . .
Atacando-nos em todos os direitos de liber-
dade e de propriedade, em favor gratuito do
Continente, a ingratidão dos governos esquecia
quantos assignalados serviços, quantos heróicos
serviços a Nação recebera dos povos açorianos,
e opprimia-nos cada dia com novas leis vexató-
rias. As garantias da Constituição, que tanto
sangue nos custara, tinham sido violadas com
perfídia ; á liberdade antepunha-se a escravidão ;
ao direito da propriedade, a espoliação ; á
egualdade perante a lei, a mais aviltante des-
proporção e parcialidade.
Por tudo isto, e por muito mais, nos sorriam
as vantagens que deviam resultar da indepen-
dência das nossas Ilhas. E não eram poucos os
estranhos que, tendo- nos vizitado, admirado e
estimado, advogavam perante as nações civili-
sadas o direito da nossa causa, quando os go-
vernantes de Portugal mais nos escrs visavam.
Ah I que se as minhas queridas Ilhas dos Aço-
res, situadas, como eram, a meio do Oceano
Atlântico, entre os continentes do antigo e do
novo mundo, e em linha recta de communica-
122 A RUA DO OIRO
cão para todos os navios que se dirigem á Eu-
ropa, não só das duas Américas mas de todas
as possessões da índia, da China, e seus mares
adjacentes, estivessem sob a influencia de uma
actividade commercial, uma propriedade agri-
cola, e uma geral industria, que naturalmente
se levantam da concorrência de génios e empre-
zas, entre os habitantes de um estado livre,
quam importantes não seriam ellas, e inestimá-
veis os seus recursos !
Como nós veriamos aproveitadas ainda as
mais diminutas parcellas do nosso grande ter-
ritório ; e levantarem-se edifícios sumptuosos ; e
crearem-se estabelecimentos, portos, docas, vias
férreas e até cidades, que em pouco tempo con-
verteriam essas Ilhas, tão deploravelmente aban-
donadas, numa populosa scena de aífluencia, de
propriedade e de força. . E o mesmo commercio,
auspicioso protector da riqueza das Nações,
ver-se-ia definitivamente plantar o seu estan-
darte nas praias açorianas, como em um dos
grandes impérios do mundo !
Mas os governos de Lisboa queriam manter-
nos numa situação aviltante, impedindo-nos de
attingir o desenvolvimento a que nos davam di-
reito as tradições históricas, a supremacia intel-
lectual de muitos dos nossos, a pujança do solo,
a salubridade do clima, a collocação geogra-
A RUA DO OIRO 123
fica, O génio emprehendedor e aventureiro dos
ilhéos, a tenacidade para o trabalho, e as avul-
tadas sommas com que saciávamos, em cada
anno, a voracidade dos cofres públicos.
Nas discussões dos Centros, nas cavaqueiras
da botica do Cunha e nas palestras do Club,
chegara-se á conclusão de que o nosso mal tinha
uma etiologia única — o centralismo desmedi-
do e absorvente ; e um só remédio também,
um só — a descentralisação completa, estimulante
e impulsionadora.
Lançada á terra a semente germinadora d'essa
bella planta que nós quizemos ver crear-se e
florescer na tepidez do nosso clima ; assentada
a primeira pedra d"esse edifício que nós quize-
mos construir como demonstração de capacidade
mental e de civismo immaculado, iniciara-se en-
tão o movimento de propaganda, pedindo e
obtendo a cooperação de todas as corporações
e vultos importantes dos três districtos do Ar-
chipelago, entrai.do nas luctas da imprensa, fa-
zendo comicios e conferencias, elaborando um
projecto de lei, que era publicado, e distribuído
abundantemente. Queríamos a reforma do nosso
sistema administrativo, que permittisse gastar-se
em proveito exclusivo dos Açores o dinheiro dos
açorianos, protegendo o nosso commercio, acti-
vando o progresso da nossa industria, fixando a
I 24 A RUA DO OIRO
remuneração do nosso trabalho, agitando, vivifi-
cando, fomentando I
Por modo que, na priíreira opportunidade,
que foi aquella de que eu sahí eleito, os regene-
radores e os progressistas congraçaram-se, e
resolveram apoiar as candidaturas independen-
tes dos deputíidos autonomistas. Foi nessa oc-
casião que o Doutor Tarquinio, interpretando
um sentimento muito geral entre os meus con-
terrâneos, lembrou o meu nome e propoz a mi-
nha candidatura, em sessão magna do Centro
regenerador.
Emquanto esperava o propicio momento de
levantar a minha débil voz nas Cortes para
fundamentar e mandar para a meza o projecto
de lei da autonomia administrativa dos Açores,
dediquei-me com empenho aos trabalhos da
corr missão do Código, a que o Ministro me ag-
gregara.
Já então me viera de casa do Nunes Correia
uma enorme caixa de fato novo, acompanhada
de uma conta pavorosa, que eu paguei com lín-
gua de palmo, e me deixou abalado de finan-
ças para mais de um mez.
A sobrecasaca, de diagonal de duas libras,
toda forrada de seda, cahía-me no corpo conco
uma luva. Fiz no Augusto Ribeiro um forneci-
mento de coUarinhos direitos e punhos de bre-
A RUA DO OIRO 125
tanha finíssima, tado o que havia de melhor.
Escolhi vinte gravatas ; quiz três dúzias de pa-
res de piugas do mais caro fio da Escossia ; en-
commendei três chapéus : um chapéu alto, um
de coco preto, e outro de coco cor de abóbora,
que era a côr da moda, trazida de Inglaterra
por um ministro nosso, arbitro de elegâncias, e
amigo do Principe de Galles. No Serra, deixei
a medida para muito calçado de verniz e pelica.
No Godefro}', paguei vinte e três mil réis de
aguas para o cabello, de cosméticos para a
barba, de essências para o lenço. E, de cami-
nho, entrei na livraria do Gomes, e comprei a
Ai^te de vi per na sociedade — que logo nessa
noite serviu para me adormecer muito mais de-
pressa, num sorano muito solto.
Fausto Guimarães constatara que tudo estava
ana afinação» e levara-me a casa de D. Claudia,
onde agora eu era recebido e acolhido com de-
monstrações muito evidentes de sirapathia —
por parte da dona da casa, que ia precisar dos
meus serviços, e por parte de sua filha, «sua
gentilissima filha», que era o superlativo com
que sempre a distinguia o lUiistrado no memo-
randum do seu high-life, e que em boa verdade
não precisava d" esse favor do Illustrado para
ser, com eíFeito, e como eu logo notei, muito
gentil.
1 20 A RÇA DO OIRO
Chamava-se Clara. Na intimidade da casa, e
dos amigos da casa, era — a Clarinha.
Nesta grata intimidade dos amigos da casa
entrara eu íacilmente, e facilmente fora dei-
xando me enlear no convívio e na corrente de
curiosidade que, pouco a pouco, de dia para
dia, de conversa em conversa, de pequenino in-
cidente em pequenino incidente, se iniciava en-
tre nós.
D. Claudia pareceu-me desde logo uma excel-
lente creatura, mas despropositadamente volun-
tariosa, e tão despropositadamente voluntariosa,
que a um capricho fútil, a um desejo de coisa
minima, a um apetite de nada, sacrificaria a
melhor occasião de se mostrar transigente.
Não era uma d'estas creaturas extravagantes
que muito procuram dissimular o seu feitio, e
que dizem uma coisa quando pensam outra, e
tanto se arreceiam do mundo qiie toda a sua
grande preoccupação consiste em dar ao mundo
uma idéa enganosa d'aquillo que realmente são.
Não senhor.
A seu modo, muito a seu modo, D. Claudia
era uma mulher de princípios, e tinha-os seus,
declarando bem alto para que quem quizesse
ouvir a ouvisse — que a vida sem aventuras e
sem caprichos ruidosos seria d'um fastio mor-
tal; e que só a si e a mais ninguém, devia con-
A RUA DO OIRO 11']
tas das suas acções, dos seus disparates, dos
seus modos de vêr...
Fausto conhecia toda a historia de D. Clau-
dia, e d'ella me poz ao facto. Era de Lisboa,
de muito boa gente, filha d'um Pimentel, que
fora juiz do Supremo e par do Reino, e d'uma
senhora Medeiros, da illustre familia dos Arru-
das de Medeiros, que eram também das Ilhas.
Esse Pimentel esbanjara duas fortunas de se-
guida, uma atrás da outra, a sua e a da mulher,
e tratara depois de arranjar um casamento bom
para a filha — mas que fosse principalmente bom
para elle, que já se enchera de dividas, e não
via outro meio de poder livrar-se d'essas, para
depois contrahir outras.
Claudia recebera de sua mãe uma educação
primorosa, entre mil cuidados de virtude e
advertências de bom critério ; mas herdara an-
tes, do pae, o temperamento fogoso e o leviano
pensar. E no meio em que houve de medrar, e
em que as suas graças floriam, mais propicia
atmosfera teve para a desenvoltura a que a
natureza a impellia, do que para o recato que
lhe teriam aconselhado as lições e o exemplo
d'aquella nobilissima senhora.
A esse tempo, no turbilhão de prazeres mun-
danos em que o imprudente Pimentel, juiz do
Supremo e par do Reino, a iniciava e cxhibia,
128 A RUA DO OIRO
com a premeditada astúcia de llie arranjar casa-
mento, levando-a de vestidos ainda curtos a
bailes e saraus, kermesses e corridas, já Clau-
dia encontrara o seu primeiro homem. E o des-
plante coin que esse homem perturbara e facil-
mente avassalara aquelle pequenino coração cu-
biçoso e movediço, fora até ao requinte de as-
sistir elle, a pé firme, e bem impregnado da
solemnidade do acto, ao sacrifício que Claudia
fizera do muito amor que lhe tinha, consentindo
nesse casamento que o senador Pimentel, inte-
gro juiz do Supremo, considerava ultimo recurso,
em ultima instancia, para o caso importante de
pagar as suas dividas.
Poucas horas antes de se decidir a declarar
que annuia a semelhante casamento, com aquelle
mostrengo de suissas grisalhas e óculos defu-
mados, que poderia ser seu avô, — num repente
de despeito por esse homem que ella vira com
tão bons olhos e a quem se teria offerecido de
tão bom grado, e num momento de piedade
pela situação desesperada em que via o pae —
Claudia chegara quasi a implorar do namorado
que a livrasse d'esse marido que lhe impunham,
e que a livrasse fosse como fosse... E esse
homem, o seu primeiro homem, afastara-a de si
quando ella ia para se lhe deitar nos braços,
dissuadira-a do leviano propósito, incitara-a.
A RUA DO OIRO 120
acirrara-a, tinha-a compellido a tomar a resolução
que Claudia tomara, por fim, num desespero,
numa debulha de lagrimas...
Depois, que reprehensivel audácia ! vendo-a
casada, continuara a persegui-la, a namora-la, a
excita-la; e o seu atrevimento chegara ao ponto
de ir bater á porta do quarto de um hotel de
Cintra onde Claudia fora vêr romper tristemente
a sua lua de mel, informado de que o marido
tivera de ir ficar noutro quarto, por não haver
melhores acommodaçÕes de núpcias no hotel !
Mais tarde, vira-a mãe, mãe d'uma creança
que não era filha d'elle, louvado Deus I mãe
d'uma filha legitima ; e nem esta circumstancia
poderá abrandar a fúria da sua perseguição, nem
desorganisar o plano da sua encarniçada bata-
lha. Dir-se ia até que tal circumstancia mais o
exasperara na impertinência ; e, por fim, tanto
fizera, tanto andara, tanto rodara, que tinha
acabado por aproveitar se d"essa pobre mania
de archeologo que descobrira no marido de
Claudia, levando-o a- emprehender intermináveis
viajens de estudo pelo paiz, viajens que não o
deixavam repousar no seio da familia quinze
dias seguidos em toda a volta do anno, muito
convicto e tomando muito a sério o seu papel de
vogal effectivo da commissão dos Monumentos
Nacionaes.
9
l3o A RUA DO OIRO
E tão bem soubera conduzir o fio diabólico
do scu diabólico plano que, á hora em que Fausto
Guimarães me contava esta historia, Claudia
teria já transposto o limiar fatal das portas do
adultério, se o dedo da Providencia lhe não
houvesse apontado, num momento que, só por
um tris, não fora para ella o ápice da perdição,
a sombra redemptora da mamã Medeiros, dos
bons Arrudas de Medeiros, da Ilha !
— «Mas quem foi esse bandalho?!» quiz eu
saber, revoltado.
Fausto sorriu, acalmou a minha indignação.
O bandalho fora, e era, o actual Presidente do
Conselho !
Entrou depois em minúcias, que recolhi com
interesse. A' semelhança de Kéraban, o Cabe-
çudo, que não teria feito uma tão grande volta
se o tivessem deixado, como elle queria, atra-
vessar o Bosforo, o Ministro não desistira, não
desanimara um momento, não desesperara um
instante. Mettera-se em casa de Claudia, perse-
guira-a de perto, compromettera-a. Era um es-
cândalo, de que até Já, por meias palavras que
bastavam aos bons entendedores, se falava nos
jornaes — emquanto o marido percorria o reino
dos Algarves, por sol e por chuva, muito occu-
pado nas suas cómicas investigações acerca da
queda do Califado de Córdova.
A RUA DO OIRO l3l
Habituado já á enxurrada de injurias e diíFa-
maçÕes em frase impressa, o Ministro não fa-
zia caso, dizendo que todo o homem superior
devia libertar-se do medo tolo que tanta gente tem
na presença de um ataque de jornal.
-- «Tornou-se necessário, dizia elle, que todo
o homem de bem se adestre nessa nova forma
de coragem. Já lá vae o tempo em que uma
descompostura nos jornaes era o melhor memo-
rial para o despacho dos ministros!»
Mas na diffamação do Ministro ia embrulhada
a reputação de Claudia. Numa terra como é Lis-
boa, onde toda a gente se conhece e onde tudo
se sabe, o Ministro ganhara, já muito antes de
haver sido chamado aos conselhos da Coroa, a
fama de grande femieiro. O físico ajudava-o,
a audácia secundava o físico, era uma pouca-
vergonha.
Transmontano, e solido, e bem arcaboiçado
como um granadeiro, o olho vivo, a fronte alta,
a sobrancelha espessa e áspera, o bigode farto
e forte, a narina ampla, o lábio saliente, respi-
rando saúde e garantindo energias, as mulheres
estremeciam de o ver, revirávamos olhos, cahiam
em convulsões, como sibilas e pithonisas no
seu delírio fatídico ; ou quedavam-se em êxtase
hipnótico, contemplando-lhe o nariz alentado e
fumegante, como brahmanes abismados na con-
1J2 A RUA DO OIRO
templação do largo umbigo de Brahma. Que
belleza de homerr I pensavam. E essa «belleza
de homem» era disputada, quasi que a dentes e
unhas, como que numa bulha de gatas ciumen-
tas, entre o eterno feminino das classes altas a
que elle soubera gaindar-se, da modesta condi-
ção de filho de um sapateiro de Bragança, que
fora o seu principio.
O Phantasma chegara a publicar uma vez^
com iniciaes em que logo se pozera o dedo, adi-
vinhando os nomes por inteiro, a lista das aman-
tes conhecidas do Presidente do Conselho. Eram
trinta e seis. Trez dúzias ! Um serralho ! E
achara-se-lhe graça, e acha^^a-se natural.
As amantes constituíam já a esse tempo, na
população da capital, uma das parcellas mais
avultadas, pelo seu numero, pelo seu preço, pela
sua influencia perniciosa nos destinos da pátria.
Sem profundar as causas, limitando-me apenas
a constatar os factos, deixando aos especialistas
e aos estudiosos do género a busca das razões
climatéricas, atávicas, fisiologico-recreativas do
fenómeno, eu verificava que as amantes em
Lisboa occupavam sempre as primeiras filas
onde quer que uma multidão feminina se agglo-
merasse, se acotovelasse, se agitasse : nas pri-
meiras filas de São Carlos, nas primeiras filas
da galeria das Camarás, nas primeiras filas das
A RUA DO OIRO l33
batalhas de flores, e em todas as festas, e em
todos os espectáculos, e em todos os bazares.
Existia já, cultivava-se já, positivamente, o
sport das amantes, tendo-se uma amante como
se poderia ter um cavallo, apenas com esta dif-
ferença : ser o dono que estava á mangedoura,
e gndava pela arreata. E havia algumas tão ce-
lebres como certos cavallos da Historia. Citava-se
a amante loira do fallecido Conde da L. . . como
se poderia falar do cavallo branco de Napoleão.
A velha amante, já então honorária, de um ou-
tro ministro de Estado, também muito falado e
também só honorário, era tão conhecida em Lis-
boa como o cavallo de Tróia,
Quando uma amante aturada não significava
a natural satisfação de uma necessidade fisio-
lógica d'aquelle que a aturava, facilmente e sem
escrúpulos se admittia, para explicação do facto,
qualquer d'estas hipotheses : por necessidade
financeira, por medida económica, por conve-
niência politica. Muitas vezes, a razão de ser de
uma amante era uma poderosa razão de estado
Lisboa benévola acceitava facilmente, de animo
leve e coração á larga, os peores escândalos no
género. Nunca a cidade ousaria rir de uma mu-
lher que cahisse. E quando a Opinião publica era
soUicitada a manifestar-se sobre o caso de um
ministro que acommodara no seu ministério o ma-
i:>4 A RUA DO OIRO
rido da sua amante, o filho da sua amante, o
irmão da sua amante ; ou quando a justiça dos
Tribunaes era forçada a pronunciar-se sobre o
caso de um recebedor de bairro que esvasiara
no regaço da sua amante os cofres da recebedo-
ria ; ou quando um marido ultrajado ia quei-
xar-se á Policia de que entrando em sua casa, a
uma hora em que não era esperado, se encon-
trara substituído nas prerogativas do seu pró-
prio leito — a Opinião sorria, a justiça dos Tri-
bunaes abrandava, e a própria Policia, o próprio
321 I se tornavam benevolentes.
Para os menos felizes que não podiam ter
uma amante só para si, havia um provérbio que
dizia :
— «As amantes dos nossos amigos, nossas
amantes são I »
Entre as trinta e seis amantes do Ministro, de
que o Phantasma dera a lista por ordem alfa-
bética, tinham apparecido as iniciaes de um nome
que, a julgar pelas apparencias, e por aquellas
iniciaes, bem podia ser o nome de D. Claudia.
As apparencias, pelo menos, eram muito com-
promettedoras.
Lançada a suspeita de ser ella, nesse mo-
mento, a favorita do Ministro, tudo concorria
para que a diífamação se propalasse e alastrasse
como uma nódoa gordurosa, de azeite.
A RUA DO OIRO l35
A primeira celebridade de D. Claudia viera-
Ihe da sua belleza, que era grande, e muito no-
tável num meio restricto e deploravelmente mar-
cado pela fealdade das suas mulheres, como é
Lisboa, onde parece até que, quanto mais altas
são as classes a que pertencem, mais as mulhe-
res se obstinam em ser feias.
Não lhe perdoava o seu sexo que, aos qua-
renta annos quasi galgados, nem um fio dos seus
cabellos, negros como azeviche e finos como se-
tim, branqueasse entre as dobras do seu pen-
teado alto ; nem que o mais leve indicio de fla-
cidez ameaçasse a elegância suprema do seu
seio pouco desenvolvido e erecto ; nem que um
pequenino sulco, uma pequenina vesícula, uma
pequenina mancha de herpes lhe prejudicasse a
perfeição cutânea. Não podia o seu sexo levar
á paciência que, entre D. Claudia e Clarinha,
entre a mãe e a filha, a differença apparente
das idades fosse tão pouco sensivel, que a es-
tranhos acontecesse supporem-nas irmãs.
E quando a celebridade de D. Claudia se
alargara dos dominios da plástica ás preponde-
rancias da politica, onde a sua influencia foi
julgada decisiva, a onda da inveja, engrossada
na corrente das intrigas e dos despeitos, tinha
subido, escumosa e revolta, até áquella casa da
Rua do Salitre, onde o Presidente do Conselho
l36 A rua' DO OIRO
ousadamente e condemnavelmente alçara a tenda
e fixara o seu quartel general, para a campanha
amorosa que ha tanto tempo emprehendera, mas
de que só agora parecia possuir um seguro e
definitivo traçado estratégico.
Não era, pois, sem alguma razão que os bons
créditos de D. Claudia andavam na bocca dos
rafeiros da Politica e das cadelas felpudas do
Bom Tom.
Os trabalhos da commissão do Código iam
seguindo lentamente, sob a presidência pachor-
renta e acommodaticia do Padre Eterno, que
para isso recebia instrucçÕes reservadas do Pre-
sidente do Conselho.
Reuniamo-nos no Ministério do Reino, na sala
grande contigua ao gabinete do Ministro. As
reuniões eram agora frequentes e demoradas,
mas a maior parte do tempo passava-se em
conversa e de galhofa, discutindo -se muito para
se chegar sempre ás conclusões que mais con-
vinham ao Governo.
Tinha-se entrado no capitulo do casamento,
que era o ponto culminante da reforma. Trata-
va-se de introduzir no Direito portuguez uma in-
novação magnânima : ia-se decretar o divorcio !
l38 A RUA DO OIRO
E estávamos, um dia, numa d'essas reuniões,
quando fomos interrompidos pela brusca en-
trada de D. Claudia.
— «Bem, meus senhores... dizia-nos ella
— eu não vim aqui para interromper os tra-
balhos da Commissão... Peço-lhes que conti-
nuem, e permittam me mesmo que censure a
sua negligencia na discussão do projecto.»
Fausto desculpou-se e desculpou nos. A se-
nhora D. Claudia era muito injusta. Ninguém
poderia accusar-nos de negligencia — nem mesmo
aquelles que estivessem á espera de que o pro-
jecto de lei passasse nas Camarás para reque-
rer o próprio divorcio. . .
D. Claudia empallideceu ligeiramente. Fausto
continuou :
— «Vossa Excellencia dá provas de uma
admirável dedicação pelo Governo, tomando
tanto a peito a abundância de trabalho que elle
possa produzir em cortes, mas esquece que
para todo o trabalho é preciso tempo. . . »
— «Pois sim I pois sim I Eu conheço bem a
actividade das commissões parlamentares...
Quer o senhor persuadir-me, talvez, de que se
em vez da reforma do Código se tratasse de
alguma concessão de terrenos no Ultramar, com
interessados no seio da Commissão, não estaria
já tudo concluído ?I»
A RUA DO OIRO iSq
— «Vossa Excellencia exagera, minha se-
nhora ! intervinha o Padre Eterno. Asseguro a
Vossa Excellencia que não nos seria possivel fa-
zer mais em tão pouco tempo ... Eu tenho
chegado a trazer para aqui o lunch I»
D.Claudia, vivo demónio, soltando uma fres-
ca risada, ironicou :
— «Nobilissimo procedimento o seu, meu
caro Padre Eterno I O Governo tomará tudo
isso na devida consideração. . . »
Depois, mudando de conversa, e voltando-se
para mim :
— «Estou muito zangada comsigo, sabe? E a
Clarinha também. . . Porque não tem appare-
cido ?»
Gaguejei uma escusa atarantada, pedi mil
perdões. Tinha tido nesses últimos dias uns
afazeres de urgência que me absorviam, me
tomavam todo o tempo. Zangado ?I E porquê ?
se não tinha recebido da senhora D. Claudia e
da senhora D. Clara senão demonstrações de
estima, que tanto me penhoravam, tanto me en-
terneciam. . .
D. Claudia e o Ministro pouco mais se demo-
raram ; e quando sahiram da sala, o Padre
Eterno, cruzando os braços e arregalando muito
os olhos papalhudos e injectados de ira. vol-
tou-se para nós, rouquejando :
140 A RUA DO OIRO
— «Que me dizem os senhores a isto, ein ?
Achar-se uma commissão parlamentar assim ás
ordens da amante de um ministro ! Eu peço a
minha demissão ! »
Uma tal attitude no Padre Eterno, que todos
tínhamos por demasiado cordato e transigente,
surprehendeu-nos. Mas logo Fausto oppoz áquelle
rompante grotesco a sua costumada troça iró-
nica, que elle espetava na papeira do Cóne-
go como quem criva de alfinetes uma prega-
deira :
— «Não faça isso. Padre Eterno, por quem
é . . . Tome um pouco mais, para seu uso,
d'essa mesma resignação christã que tanto prega
aos outros I Dê-nos, sobretudo, o exemplo da
sua cordura e da sua paciência evangélica. . . O
meu amigo bem sabe que nós não estamos aqui
para servir os caprichos, nem as conveniências
d'uma mulher ! Estamos cumprindo um man-
dato que muito nos honra, estamos attendendo
a uma necessidade do Governo!»
Eu quiz também metter o meu bedelho, car-
reguei nos tropos :
^ — € Estamos servindo o paiz !»
í — tOra o paiz I o paiz! continuou o Padre
Eterno, mais irado ainda . . O' santa ingenui-
dade ! Bem se vê que Vossa Excellencia chegou
agora da Ilha ! O paiz. . . o paiz ! Mas o que
A RUA DO OIRO I4I
entende q senhor por servir o paiz ? Imagina o
senhor que é servir o paiz esta coisa de lhe re-
formar o Código uma vez por anno ? Imagina o
senhor que servir o paiz é isto, que nós anda-
mos a fazer, levados como carneiros, de apoiar
nas Camarás quantos projectos de Jei quer o
Governo para defender as pessoas e os bens dos
seus amigos politicos?. . . Imagina o senhor que
servir o paiz é isto... isto que nós estamos
aqui a praticar, sentados nestas cadeiras, á roda
d'esta mesa, conscientes, ainda por cima, como
eu e como Vossa Excellencia, do nosso triste
papel, que seria o cumulo do ridiculo se estas
paredes tivessem ouvidos para ouvir as nossas
discussões... E para qué, meus senhores? E
afinal para quê ? E no fim de contas para
quê ?. . . Para introduzir no Código Civil Portu-
guês um artigo que permitia a essa senhora di-
vorciar-se do marido, que já lhe não serve, e
poder casar com o seu amante I»
— «Oh! Oh:»
— fAh ! os senhores dizem «oh!» Querem
talvez fazer-me acreditar que eu lhes estou
dando uma grande novidade ? Querem talvez
dizer que isto não seja assim ? Querem talvez
convencer-me de que andavam nesta manobra
como Pilatos no Credo?! Pois tenham santa
paciência, que os não acredito eu . . Os se-
142 A RUA DO OIRO
nhores sabem tudo isto tão bem, estão tão far-
tos de o saber, como ea o sei e estou !»
— «Meu caro Padre Eterno, voltou Fausto —
estou a desconhecê-lo... Essa sua attitude de
hostilidade, assim de súbito, assim de repente,
sem que se saiba porque, e desusada em pes-
soa do alto critério de Vossa Reverendíssima,
deixa-nos estupefactos I Uma bomba, doestas mo-
dernas, de dinamite e bicos de pregos, que
houvesse rebentado aqui, no meio de nós ; ou um
raio, fabricado nas forjas de Vulcano e despe-
dido pela mão do próprio Júpiter sobre as nos-
sas pobres cabeças, não nos teria causado um
tão grande assombro! Nunca, ninguém, em tran-
ses bem mais difficeis, d'uma tão longa e ac-
cidentada carreira politica como a sua, o viu
indignado a tal ponto. . . O meu amigo, que foi
o braço esquerdo do Sá da Bandeira e o braço
direito do Fontes I O meu amigo, a quem as la-
grimas correram em fio pela face quando um
outro ministro, seu amigo de infância, veiu pe-
nitenciar-se perante as Gamaras da protecção
que dispensara, pelos cofres do Estado, a va-
rias sociedades anónimas de que era accionista I
O meu amigo, commissario régio junto de quan-
tas Companhias concessionarias têm passado o
nosso território de Africa para mãos alheias ! . . .
O meu amigo, que é ao mesmo tempo cónego
da Sé e grão-mestre da Maçonaria portugueza. . .
A RUA DO OIRO 148
O meu amigo a insurgir-se assim, com toda essa
furia, contra uma minúscula irregularidade conju-
gal d'essa respeitável senhora, a quem o animo
não chega para enganar o marido, e procura,
muito legitimamente, um meio airoso de se vêr li-
vre d'elle I Não, não. . . Com franqueza, meu caro
Padre Eterno, a sua attitude põe-nos a dois
passos do fim do mundo I»
Desvairado, desembolado, espicaçado, como
um toiro numa praça, o Padre Eterno, que ou-
vira tudo isto sem responder palavra, bufando
e raspando com a pata o chão da arena, avan-
çou para nós, estacou um momento na frente
de Fausto como se esperasse uma pega, enter-
rou o chapéo na cabeça, e disse :
— «Bem, meus senhores ! Eu não costumo
voltar atrás. . . A minha resolução está tomada.
Quem quizer que me sigal»
Metteu a pasta dos despachos debaixo do
braço, deu meia volta á direita, e sahiu, em
passos largos, tão largos quanto lh'o permit-
tiam as pernas muito curtas e o ventre enorme,
cahindo como um odre.
Levantada assim a sessão, da qual com muita
propriedade se poderia dizer que correra agi-
tada, e deveras agitada, Manuel de Sá e Gon-
çalinho Palha (que era também rapaz do meu
tempo de Coimbra, e também deputado pela
144 ^ ^^^ ^^ *-*^^^
primeira vez naquella legislatura, e também vo-
gal da ■ Commissão do Código) despediram-se,
deixando-me só com Fausto, que ainda sabo-
reava o mau bocado por que fizera passar o
Padre Eterno.
Chegou então a minha vez de falar a sério.
Todo aquelle episodio em que eu vira envolvi-
dos, sob aquelle mesmo tecto, e respirando
aquella mesma atmosfera de secretaria de Es-
tado, comn:unicando por uma porta secreta-
com o gabinete do Ministro — todo aquelle
episodio, que me divertira, me irritava ago-
ra e me lançava num desanimo, m.e descoro-
- coava . . .
— «Se aquillo a que vossés por cá chamam
politica não é alguma coisa de melhor e mais
alto do que isto, deve haver mais de um
desilludido entre os que para ella entram, como
eu . . . Pela parte que me toca, com franqueza
te declaro que me sinto desilludido I A noção
de politica, com que sahimos de Coimbra, é
uma coisa muito diversa. . . »
Mas aquelle maroto do Fausto não tomava
nada a sério, positivamente, cortava-me logo
as vasas :
— «Bem sei. . . Dizes muito bem ! A íciencia
politica I . . . Parte da sciencia social que trata
dos fundamentos do Estado e dos princípios do
A RUA DO OIRO 146
Governo... Isso foi tempo, homem pre-histo-
rico, e da Ilha I»
— «Mas ouve cá, ó Fausto, dize-me cá...
Tu acreditas que o teu Ministro seja homem
que se preste a uma tão estupenda combinação
como essa de que parece convicto o Padre
Eterno, e que para salvar as apparencias de
um adultério seja capaz de levar ás Gamaras
uma reforma do Godigo?!»
— tAcredito. A minha única duvida está em
saber se o adultério se deu... Greio que não,
porque se se houvesse dado, já ellc teria pas-
sado o pé a D. Glaudia, como o tem feito ás
outras. . . Quanto á depravação dos usos e cos-
tumes, esse Padre Eterno falou e fala sempre
como um Evangelho I Mas não imagines que
elle fosse d'aqui pedir a demissão, se não ti-
vesse a certeza antecipada de que o Ministro
Ih'a não dava. Gom esta, é já a terceira vez que
elle representa a mesma comedia, e volta sem-
pre atrás, e onde diz que disse diz que não
disse — mas só depois de ter obtido algum novo
beneficio que trouxesse de olho. Não mette
prego sem estopa. E" um malandro da peor es-
pécie I Se vens disposto a ser um grande homem
na Politica, podes abandonar ás traças da tua
livraria o teu Royer-Gollard, o teu Benjamin
Gonstant e o teu Gomte. Bastará que te dês ao
10
146 A RUA DO OIRO
trabalho de folhear este cónego. E' um magni-
fico tomo ! E' um tratado completo I Comparado
com a sciencia que elle encerra, tudo quanto até
agora se tem dito haver de boa lição, para a
gloria dos soberanos e para o bem-estar dos
povos, no Trincipe do Machiavello, pôde con-
siderar-se lettra morta. . .»
Assumi um grande ar de gravidade, endirei-
tei-me nos chumaços da minha sobrecasaca de
diagonal de duas libras, protestei, serenamente,
mas resolutamente :
— «Estás redondamente enganado a meu res-
peito. Fausto. Eu bem sinto, porque bem me
conheço, que nunca poderei chegar a ser o
gi'ande-homem de que tantos outros julgam ter
em si o gérmen.. . Mas se algum dia me visses
subir alto na Politica, ficarias sab endo que al-
guém poderá vencer, sem indignidade, toda
essa formidável barricada de ignominias que te-
rias acabado de levantar neste momento deante
de uma ambição, se eu porventura trouxesse
commigo essa ambição I . . . »
— fNesse caso, não tens tempo a perder.
Corre ao teu hotel, mette na tua mala essa impo-
nente sobrecasaca com que te paramentavas
para bem servir a tua pátria, e volta, pelo pri-
meiro paquete, para a tua Ilha. Não te resta
nada de melhor a fazer. Esquece Lisboa, es-
A RUA DO OIRO 147
quece a Politica, e esquece-te de mim, como
deves, porque eu tive a desgraça de cahir no
atoleiro e já para mim não ha salvação possí-
vel !»
— «Estou quasi a dar-te a razão. . Mas não
parto ainda I Uma vez que cá estou, quero apro-
veitar quanto possa, observando. Mas de fora,
mas de longe I Conhecite tão diverso, encon-
tro-te agora tão outro, que receio muito deixar-
me também contaminar do mal. . . Isso é coisa
que se pega, com certeza I Parece-me que estou
ainda a vêr-te nas festas do Centenário, á
frente do curso, de gaforinha ao vento, o olhar
illuminado, a capa deitada para trás, dando a
Coimbra uma idéa do que seria Robespierre na
aurora da Revolução... barafustando e gesti-
culando contra todos os poderes constituídos,
insurgindo-te com a forma do governo, com a
tirannia dos lentes, com a imbecilidade dos
compêndios I . . »
— «E agora, que me vês apaziguado, domes
ticado, conformado com a mesma ordem de coi-
sas que então me exasperavam, desconheces-me.
Pois olha: sou o mesmo.. . peor ainda do que
nesse tempo — porque tenho visto e aprendido
muito mais. Em todo o caso, vou fazendo o meu
jogo, como os outros, mas sem querer vacca
148 A RUA DO OIRO
com elles. E' mais difficil, é mais demorado, mas
é mais seguro.»
Talvez eu tivesse feito as minhas malas, e
voltado para a Ilha pelo primeiro paquete —
talvez 1 se uma outra razão, que nada tinha que
ver com o meu mandato politico, me não hou-
vesse já determinado a demorar-me em Lis-
boa. . . E se é certo, como já disse não me lem-
bra agora quem, que a vida de cada um de nós,
bem contada, é só por si um romance, poderia
eu dizer que o meu romance entrava então num
dos seus capitulos mais interessantes.
A desculpa, que eu dera a D. Claudia, de
não ter apparecido ultimamente em sua casa,
fora uma desculpa de pura invenção. O verda-
deiro motivo era outro ; mas esse não podia eu
dizer-lh'o, não o dissera a ninguém, nem sequer
ao Fausto, para quem, aliás, não tinha outros
segredos.
Evitando a assiduidade das minhas visitas á
Rua do Salitre, procurava eu escapulir-me aos
perigos de uma seducção que logo nos primei-
ros dias da minha ida ali começava a tecer os
seus fios de ferro em volta do meu animo fraco
e predisposto ás influencias perturbadoras do
fatal feminino.
RUA DO OIRO 149
Um dos grandes cuidados que a Tia Geno-
veva não deixara jamais esmorecer na vigilância
do meu desabrochar juvenil, fora o de me incu-
tir noções preventivas muito exageradas contra
o fácil commercio das mulheres.
Afigurava-se á boa Tia Genoveva que Deus,
encarregando-a da minha educação christã, lhe
dirigira aquellas mesmas palavras que outr'ora
dirigira ao seu profeta : — «Dou-te poder para
arrancar e plantar, para derrubar e edificar».
E assim investida de taes poderes, ella tratou
de me desviar do mal e encaminhar ao bem,
combatendo em mim os germens instinctivos e
originaes do peccado, cultivando em mim as se-
mentes de virtude e graça infundidas pelo ba-
ptismo, mondando na minha alma pequenina o
joio damnoso, e a]udando a crescer o bom grão,
que mais tarde haveria dq. fructificar na vida
eterna, pois bem sabia ella ser tal a natureza
humana, que temos desde o berço de desapren-
der o vicio, cuja sciencia nefasta é como que
innata em nossos corações, e de aprender o
bem á custa de muitos e continuos esforços.. .
Dividiu portanto a Tia Genoveva a minha
educação cm duas e bem distinctas partes : uma,
a que se poderia chamar negativa, consistiu em
destruir a obra antiga do Demónio — opera Dia-
boli; a outra, que era a positiva, consistia em
l5o A RUA DO OIRO
conservar e cimentar a obra regeneradora de
Deus — opera Dei. E começando pela primeira
como que para limpar o terreno, ella emprehen-
dera, antes de tudo, o trabalho preliminar de
me inspirar um horror intenso pelo peccado —
como só Tobias soubera inspira-lo aos filhos.
— «Foge do peccado. Quinino! foge do pec-
cado, como se fugisses da mais perigosa e
mais venenosa serpente!»
Esse era o maior, o mais terrível de todos os
males ! Mal perante Deus, mal perante os ho-
mens, mal do corpo, mal da alma, do tempo,
da eternidade — o único mal verdadeiro ; porque
dos outros, muitos até vinham ás vezes por bens,
e não raro eram mercês da graça divina para
proveito das nossas almas e fomento da perfei-
ção christã.
Depois de me haver inspirado a aversão con-
tra o peccado em geral, a Tia Genoveva tra-
tava de precaver-me contra cada peccado em
particular.
Ba Soberba, que avultava entre todos, e de
todos elles vinha sempre á cabeça do rol, se
originavam todos os mais. Não havia outro mais
grave, nem mais tristemente fecundo.
— aA Soberba, dizia-me a Tia Genoveva, é a
mãe de todos os peccados!»
Tanto bastava dizer-me, para logo querer eu
A RUA DO OIRO l5l
saber quem era então o pae. E ainda me lem-
bro — pois ha certas e remotas minúcias da
vida que não mais esquecem — do embaraço
com que ella me explicava terem os peccados
vindo ao mundo sem pae... E como eu insis-
tisse, intrigado, e com essa natural curiosidade
insaciável da infância, que não admitte misté-
rios, que quer logo tudo para ali em pratos lim-
pos, a Tia Genoveva, já com as faces vermelhas
como as maçãs camoesas que perfumavam as
gavetas da sua roupa branca, acabara por me
confessar que todos os peccados, filhos da So-
berba, tinham vindo ao mundo, eífectivamente,
como eu suppunha, por obra e graça do divino
Espirito Santo!
No encalço da Soberba vinha logo a Avareza;
e, neste ponto, todo o cuidado da Tia Geno-
veva consistia em me dar o exemplo do seu no-
bre desinteresse, evitando que na minha pre-
sença a Tia Maria da Assumpção, maniaca de
grandesas, exaltasse a importância do Dinheiro
no destino das gentes, e só considerasse os bens
do mundo como símbolo da felicidade. Para o
céo, para o céo, é que era mister aferrolhar, en-
thesourar, não para a vida caduca. . . E ao sab-
bado, dia de esmolas, era a mim que ella im-
cumbia a doce tarefa de despejar o saquinho de
vinténs na palma das trinta mãos sujas e mirra-
102 A RUA DO OIRO
das, que outros tantos pobres, enchendo o por-
tão da nossa casa da Boa Nova, estendiam para
mim, sorrindo me e abençoando-me.
A' Soberba e á Avareza, intimamente se li-
gava a Inveja, que aos meus olhos se pintou
como tristeza malvada e esverdeado rancor em
face dos bens e das venturas alheias. Movido
pela Inveja, introduzira o Demónio neste mundo
a desobediência e a morte. Ella assassinara o
meigo Abel, perseguira David, crucificara apro-
pria Divindade. E para melhor me compenetrar
da hediondez d'este mal, a Tia Genoveva me ex-
plicava que o invejoso era para si mesmo o mais
inexorável verdugo, pois o seu peccado era como
o abutre encarniçado, cujas garras lhe desfibram
o próprio coração.
Combatendo a desarasoada tendência que eu,
desde os mais tenros annos, manifestava para
os acepipes e guloseimas, dando frequentes as-
saltos ás travessas de croquetes de gallinha e
presunto, que a nossa creada Conceição Velha
aviava por uma receita divina, e obrigando a
Tia Genoveva a guardar a sete chaves as latas
de biscoitos, as tijelas de doce e os bandos de
pombas de alfenim que todos os annos nos vi-
nham, em revoadas, do império dos Quatro
Cantos — um dos exemplos de temperança e
sobriedade que a Tia Genoveva me citava, e que
A RUA DO OIRO l53
muito me divertia, era aquelle do pequenino e
ladino São Nicolau, que, ainda menino de colo,
espontaneamente se abstinha de mamar ás sex-
tas-feiras, «a não ser depois do anoitecer, e ainda
assim uma vez só I » .
A Ira, fugaz loucura, que assalta ás vezes as
almas ainda as mais plácidas, não era em mim
essa natural condição do temperamento infantil,
de que fala o Abbade Pichenot, vigário geral da
diocese de Sens. Eu nunca fui irrascivel, antes
me mostrei sempre soffredor paciente de repri-
mendas e contrariedades, propenso sempre a
perdoar offensas, e fácil em reconciliações. Por
isso não dava á Tia Genoveva o trabalho (que
teria sido também para ella um vivo desgosto)
de reprimir nem o meu mau génio, nem as
minhas violências, que não me foram precisas á
energia do caracter, nem á impetuosidade pró-
pria e inseparável das virtudes viris, de que me
prezo.
Também não era o receio da Preguiça que
affligia, a meu respeito, a Tia Genoveva. Eu
nunca fui preguiçoso, e com isto lhe proporcio-
nei contentamento e alegria desde as primeiras
lettras, em que a nota da minha applicação foi
invariavelmente excellente^ e até á conclusão do
meu curso de Direito, nemiiie discrepante.
O peor, o mais grave, o grande busilis estava
ID4 A RUA DO OIRO
em preservar-me, e instruir- me de modo a eu
próprio me preservar do mais nefando de todos
03 peccados, do maior de todos os males da
alma (e que ás vezes redundava num dos peo-
res males do corpo) conservando o mais pre-
cioso e o mais frágil entre todos os meus
bens. . .
Não ignorava a Tia Genoveva aquellas enér-
gicas palavras com que o apostolo São João re-
sumia todos os maus instinctos da natureza
corrompida pelo peccado original: — «Quanto
no mundo existe é concupiscência da carne,
concupiscência dos olhos, soberba da vida!»
Berr sabia ella que do peccado odioso da Luxu-
ria existe o gérmen em cada um dos desgraça-
dos filhos de Eva ; e, mais cedo ou mais tarde,
em cada um de nós desperta esse sentido re-
provado, que a somno solto e ditoso dorme na
infância innocente e descuidada.
Mas aquillo com que ella, coitadinha, não
podia atinar, e com o que tanto se inquietava e
affligia desde que eu deixei a escola das Senho-
ras Araujos, para me matricular no Liceu —
era a maneira mais segura de estabelecer em
volta da minha innoccncia uma espécie de cor-
dão sanitário que me preservasse do contagio
d'aquelle mal que tão subtilmente se insinua por
todos os nossos poros. . .
A RUA DO OIRO l55
Todo O seu cuidado era evitar que uma pa-
lavra imprudente, uma reticencia malévola po-
desse despertar a minha curiosidade, acender a
minha imaginação, comprometter a minha inno-
cencia. E que nem os meus olhos pousassem
sobre alguma estampa má — como aquella que
ainda cheguei a vêr na casa de jantar da Tia
Maria da Assumpção antes que ella a retirasse
para o sótão a instantes pedidos da Tia Genove-
va, e em que um frade barbadinho, com a ca-
beça perdida, agarrava pela cintura uma hespa-
nhola toda engommada e de manton de Manilla,
e lá iam ambos a saracotear-se como na zar-
zuela. . .
Por esas calles
Va la gracia y Dics !
E que nem a minha attenção se demorasse
no reparo do mais simples incidente de que po-
desse resultar sugestão de acto prohibido —
como, por exemplo, o encontro fortuito, na rua,
por baixo das nossas janellas, de um cãosinho
galanteador com alguma cadela das suas rela-
ções. . .
E todos os dias (era sabido I) quando eu sahia
de casa para ir ao Liceu, acompanhado pelo
Manoel Ignacio, ella vinha ao bota-fóra na es-
l56 A RUA DO OIRO
cada , deitando-me a benção do patamar e re-
commendando ao Manoel Ignacio que tivesse
sempre muito cuidado commigo, e não me per-
desse de vista, de cada vez avivando a lem-
brança d'aquella sabia indicação dos antigos í
que mandavam usar para com a infância a má-
xima reverencia. Máxima debctiir puero reve-
rentia !
Mas, ai! Um dia, dia de meus annos, que já eram
quatorze, e propositadamente escolhido parn
tão solemne fim, a Tia Genoveva, depois de me
haver presenteado, de surpreza, com o meu pri-
meiro fato de calça até baixo, de flanella azul,
á maruja, chamou-me ao oratório, para onde se
passava pela sala grande dos Retratos, e onde
se podia dizer missa com licença de Roma ;
prostrou se deante do altar onde havia um grupo
da Sagrada Familia que era o enlevo do Doutor
Tristão, grande entendedor de obras de arte, e
disse-me que me ajoelhasse eu a seu lado, e
com ella resasse, a meia voz, a Salve Rainha. . .
Era uma terça-feira, 22 de Julho. O velho re-
lógio de pesos, no corredor, acabava de dar as
duas horas da tarde.
De costume, o oratório só se abria aos sabba-
dos, depois das Avé-Marias,para as longas resas
em que a Tia Genoveva, a Tia Maria da As-
sumpção, a Conceição Velha, a Gertrudes Ga
A RUA DO OIRO I b7
ga, a Barbara, filha do Manoel Ignacio, e tam-
bém nossa creada, o Manoel Ignacio, e eu —
nos afundávamos durante três quartos de hora,
que eu já começava a achar intermináveis quando
ainda o primeiro não chegara ao fim.
E não foi sem estranhesa que segui a Tia, e
me ajoelhei ao seu lado, e com ella resei, a
meia voz, a Salvé-Rainha. . .
Mas nesse dia, e em seguida áquella incom-
mensuravel satisfação das .minhas primeiras cal-
ças compridas, eu teria resado o Terço, se pre-
ciso fosse, sem oppôr a menor objecção, sem
que me doessem os joelhos. Obedeci, aguardei
os acontecimentos.
Como se quizesse que Nossa Senhora, o Se-
nhor São José e o Menino Jesus, deante do
qual se podia falar á vontade (pois já Elle esti-
vera entre os Doutores, e mais coisas sabia que
Pico de Mirandola em sua tenra idade) fossem
testemunhas da sua grande vontade de acertar,
a Tia Genoveva, agora de pé, e tendo-me eu
posto de pé também, julgou chegado o momento
de não mais applicar ao estado inferior do meu
desenvolvimento mental, aquelle dito do Divino
Mestre aos seus amados discipulos : — tMuitas
coisas tenho ainda que vos dizer, mas por ora
não podeis arcar com ellas». E o seu espirito
tentou descer sobre mim, como um espirito
1 58 A RUA DO OIRO
santo, com suas graças e seus dons, para com-
municar-me a intelligencia necessária ao enten-
dimento do que ainda faltava ensinar-me.
Tu não o sabias bem ao certo, boa e santa
Tia Genoveva ! Mas lá te queria parecer que
aos quatorze annos, espigadinho como eu já es-
tava, e com um anno de Liceu para mais ajuda,
não havia muito mais tempo a perder, não havia
muito mais tempo a esperar.
E, a não serem as paixões, nada era, em teu
criterioso entender, tão nocivo á infância como
a ignorância, ou um conhecimento incompleto e
superficial das coisas.
Para eu poder resistir aos perigos que por
todos os lados sabias ameaçarem-me, era pre-
ciso que me desses conhecimento da existência
d'esses perigos ; era preciso que eu entrasse na
comprehensão, tanto quanto possível aproximada
d'elles, para d'elles aprender a livrar me por
mim mesmo — porque nem eu teria de andar
por toda a vida agarrado ás tuas saias, nem se-
ria possível que o Manoel Ignacio me não per-
desse de vista também por toda a vida. . .
Foi então um supplicio para ella, e um sup-
plicio para mim, esse momento solemne. Por
que aquillo mesmo sobre que a Tia Genoveva
se esforçava por me elucidar, entrando em com-
plicados rodeios, perdendo se em embrulhados
A RUA DO OIRO l5g
circumioquios, emaranhando-se em obscuras
metáforas — eu o sabia já, ai de mim ! ai de
ti ! ai meu bem I ai de nós todos ! . . .
E tudo aquillo de que ella me falava tão obs-
curamente, sem conhecimento de causa, apenas
por informações, e voltando amiudadas vezes os
seus olhos limpidos e ingénuos para Nossa Se-
nhora, para o Senhor São José e para o Menino
Jesus, como que a pedir-lhes desculpa, o co-
nhecia eu como conhecia os meus dedos : pois
não era debalde que a Barbara, filha do Manoel
Ignacio, de vinte e seis annos de idade, fresca
como uma alface, robusta como uma bezerra,
tendo estado a servir em casa do Major Elias
antes de vir para nossa casa, me atracava nos
corredores ás escondidas, me ferrava grandes
beijocas, e á noite, cmquanto a Conceição Velha
resonava, de braços cruzados, encostada á mesa
da cozinha, e a Tia Genoveva passava pelo seu
somno reparador antes da hora do chá, e o
Manoel Ignacio sahia para ir á loja do Gaiato,
ou do Francisquinho das Flores, que era no
fim da Rua da Sé, a buscar assucar, ou velas,
ou algum bolo de massa sovada, demorando-se
tempos infinitos em cada um d'esses recados —
me puxava para o quarto dos bahús e muito
se divertia commigo, numa brincadeira a que ella
chamava «instrucção de recrutas» e que apren-
l6o A RUA DO OIRO
dera na perfeição com o impedido do Major I
Toda a ruina peccaminosa e irreparável da
felicidade na Terra, que o Creador sonhara e
quizera realisar tão magnanimamente, dando o
Paraiso ao primeiro Homem e á primeira Mu-
lher, fora devida á cubica nefanda d'essa pri-
meira Mulher. . .
Depois, em todos os tempos e em todas as
historias, onde quer que se assignalasse alguma
grande catástrofe, alguma grande desventura, al-
gum grande mal, quem procurasse bem, quem
rebuscasse bem, lá iria encontrar, na escavação
paciente dos factos e das lendas, conduzindo á
origem, o sulco pernicioso d*uma maldita mu-
lher!
E para d'isto me certificar, e me convencer,
a boa Tia Genoveva empregava o seu melhor
engenho, os seus melhores argumentos, compul-
sando a sua Biblia e a sua Vida dos Santos.
Ella teria querido que eu fosse como o José
do Egypto, casto e arisco, para sempre me sa-
ber arredado dos ardis perigosos da mulher de
Putifar.
Ella teria querido que uma fonte de miseri-
córdia, nascendo do céo, gottejasse sobre mim,
tornandome forte, como Santo Antão, para re-
sistir a quantas perturbadoras e enternecedoras
tentações me viesse offerecer alguma outra Rai-
A RUA DO OIRO l6l
nha de Sabá. . . — «Estende os teus lábios, meu
amor, para que nelles recebas os meus beijos,
que têm o sabor e o perfume do mais saboroso
e perfumado fructo ! Desprende os meus vesti,
dos, querido eremita, e em mim descobrirás os
infinitos mistérios do goso que nunca sonhaste !
Toca a carne do meu hombro com a ponta de
um dedo teu, e sentirás a chispa doirada do
amor percorrer o rastilho que ha de incendiar o
sangue nas tuas veias I. . . »
Ella teria querido que eu vivesse, crescesse,
me desenvolvesse, tirasse o meu curso do Li-
ceu, adquirisse a minha carta de bacharel, vol-
tasse para junto d'ella e junto d'clla passasse o
resto da minha vida, sempre puro e virgem
como São Luiz de Gonzaga I
Mas nunca ella teria ousado pedir á Senhora
do Livramento, minha madrinha, que me livrasse
inteiramente de taes tentações — não só porque
o pedido, concebido em tão apenados termos,
iria collocar a Senhora do Livramento na con-
tingência de não poder fazer-lhe essa vontade,
mas ainda porque a Tia Genoveva queria-me
muito, era muito minha amiga, e não lhe chegaria
o animo para assim me privar, tão despoticamen-
te, dos rasgados ofPerecimentos da Rainha de Sa-
bá, e assim obstar a que eu, algum dia, viesse a
experimentar, nessa mesma ordem de assum-
11
lG2 A RUA DO OIRO
ptos, outras coisas boas que São Luiz de Gon-
zaga, coitadinho, não chegara a conhecer.
Agora, lá com respeito á mulher de Putifar,
isso não senhor ! Pelo menos, com o seu consen-
timento, isso nunca ! . . . Porque essa era uma
mulher casada, e eu incorreria assim, logo d'uma
cajadada, no desrespeito de dois graves manda-
mentos : o sexto e o nono !
Emfim, do mal o menos. Se não fui casto, fui
cauto. E assim me livrei, por mais de uma vez,
das armadilhas que me preparavam as Primas
Rochas e as Primas Noronhas, nos primeiros
tempos que se seguiram ao meu regresso de
Coimbra.
Queriam por força, e á viva força, casar- me,
na certeza, diziam ellas, de que presenteariam
a noiva com uma riquíssima Jóia, que era eu.
Mas eu resistia, sorrindo; e quanto mais re-
sistia, mais ellas se exasperavam e se encarni-
çavam no seu diabólico propósito de engatadei-
ras. . .
— «Não me engatem, primas ! Não me enga-
tem ! »
— «Ora, deixe-se d'isso. Quinino ! Isso é uma
tolice. Toda a gente casa... Porque não hade
o primo casar também?»
— aPorque não quero, que é a melhor das
razões ! Porque me sinto bem solteiro. . . »
A RUA DO OIRO l63
E ellas ? Elias porque não tinham casado ?
Porque também não tinham querido, muito na-
turalmente, e estavam no seu direito. Não por-
que lhes tivesse faltado occasião para o fazerem
com acerto.
A esta idéa de casamento, que ainda lhes sor-
ria, ellas sorriam ainda. A mais nova de todas,
que era a Prima Aldegundes, andava quasi a
saltar os trinta e oito, e essa mesma já estava
condemnada ao celibato pela vida inteira. Mas
não perdiam a esperança. . .
— «Ninguém diga : d'esta agua não beberei...»
E fervorosamente se encommendavam, todas
ellas em fila, de joelhos e mãos postas, e o olhar
em alvo, a São Gonçalo de Amarante, casamen-
teiro de durázias.
Emquanto lhes não chegava a sua vez, iam
entretendo o tempo e a cobiça com arranjar na-
moros e casamentos para os outros, e com isso
se consolavam. Coadjuvadas pelo Primo Theo-
dosio, que as acompanhava na desdita, consti-
tuíam como que uma agencia de matrimónios já
acreditada e bem afreguesada. E regalavam-se
em dizêlo.
Pois quem tinha arranjado o casamento do
Manoel Torquato com a Zulmirinha Franco, se
não ellas? E o do Barão da Terra-Chã com a
D. Elvira Meyrelles, naquella idade, mais velha
164 A RUA DO OIKO
do que elle, que já era velho ? E a filha do Con-
selheiro Brito, filha única, herdeira de tresentos
contos em águias, com o Jaymesinho Silva que,
não desfazendo em quem se achasse presente, era
a flor dos rapazes finos da Ilha ? E não eram
felizes, todos esses? E não lh'o tinham agrade-
cido ?
Oh I se eram. . . Oh ! se tinham. . .
Então, como quem lhes abrisse a torneira de
um banho frio de chuva sobre os penteados de
popa, muito complicados e lustrosos, eu per-
guntava-lhes :
— «E quem arranjou o casamento do José Vi-
ctorino com a Magdalena Avelar ? E o casamen-
to do General Ayres com a Maria Demetilia ?»
Quem tinha sido, quem ?
O José Victorino e o General Ayres eram os
dois grandes bodes expiatórios dumas intrigas
amorosas em que aquellas minhas primas tinham
andado envolvidas, com flagrante registo na
chronica escandalosa da Ilha.
Mal eu lhes tocava na ferida, iam aos ares,
furiosas. A sua responsabilidade, nesses casa-
mentos que promoviam, acabava aos pés do
altar, no momento em que o padre, lançando
sobre os noivos a benção da Egreja, pronuncia-
va o irremissível: — «Eu vos conjugo I» Era
uma responsabilidade limitada.
A RUA DO OIRO l65
D'ahi por deante, o resto era com elles — não
com ellas. Se os casados se davam bem, se se
julgavam e eram considerados felizes, muito
gosto tinham em declarar bem alto que a ellas
o deviam. Se não, não ! E d'ahi varriam, muito
peremptoriamente, a sua testada.
Depois, já ma's serenadas, acrescentavam:
— «...Que afinal de contas, nem o General
se queixa, nem o José Victorino está arrepen-
dido . . í
— «Ora. . Oral. . . Pois a quem queriam as
primas que o General se queixasse ? Ao Minis-
tério da Guerra, talvez ? Faz elle muito bem,
que um general nunca deve dar- se por venci-
do.. . Quanto ao José Victorino, claro que não é
elle quem deve mostrar-se arrependido : quem
deveria mostrar-se arrependida era a Magda-
lena !»
— «O primo é um vivo diabo !» concluíam el-
las, rindo.
Riamos todos, riamos muito, muito riamos !
E o Primo Theodosio, que já desistira de me
chamar para o bom caminho, aconselhava ás
Primas Rochas e ás Primas Noronhas que de-
sistissem também de me procurar casamen-
to, porque perderiam commigo o seu tempo,
como já o tinham perdido com a Tia Geno-
veva :
l66 A RUA DO OIRO
— «Com este, primas, não' fazemos nós fari-
nha.»
E abandonavam-mc á teimosia do meu celi-
bato, cujas tristezas eu desvanecia, a esse tem-
po, com uma rapariguinha de São Matheus
que trouxera para a cidade sem escândalo, e a
quem pozera casa numa d'aquellas ruasinhas
discretas de Santa Luzia, onde o meu peccado
se foi anichar com recato, entre as virtudes fa-
miliares e tranquillas do alegre bairro.
Mas a Prima Aldegundes, voltando atrás, e
como o Theodosio e as outras já não podessem
ouvi-la, embicava commigo afoitamente, entre
portas :
— «Olhe, Quinino, sabe que mais? Está-me
a parecer que o primo não foi fadado para o
amor. . . »
Eu agarrava-lhe então ambos os punhos, pu-
xava a para mim com força, sentia-a toda es-
tremecer-me nas mãos, dizia-lhe entre dentes :
— «Quer experimentar, prima ? Quer experi-
mentar ?»
— «Não I Não !»
E emquanto ella, um momento, fingidamente
se debatia para desenvencilhar-se de mim, eu
pespegava-lhc dois grandes beijos na face es-
braseada.
Clandestinamente, por distração, de brinca-
A RUA DO OIKO IÓ7
deira, sim, minhas senhoras, c com immcnso
gosto. A sério, porém, c á face da Egrcja, mu-
dava o caso, e muito, de figura, fiava muito mais
fino. Mulheres, para casar, eram todas o mes-
mo ! E eu generalisava esta observação, não ad-
mittia excepções.
Chegado a Lisboa, uma das primeiras recom-
mendações que me fizera Fausto Guimarães,
amigo certo, fora esta :
— «Sobretudo, Amaral, livra-tc das ratoeiras
para noivos, que são um dos maiores perigos
que aqui pôde correr um rapaz na tua idade c
nas tuas condições. Toda a cautela é pouca. Al-
gumas d'essas ratoeiras são habilmente armadas
por pães sem escrúpulos, que muitas vezes sa-
crificam os seus parcos vencimentos de primeiro
official ou de guarda-livros á mise-enscène das
filhas, passando penúrias de portas a dentro,
em casa... Depois, ha mistificações d'este gé-
nero : um pae consente no casamento da filha,
estipulando-lhe um dote de trinta contos, nomi-
naes. Na occasião de se passar o contracto, en-
trega elle ao noivo, muito bem embrulhados e
atados com uma fita côr de rosa, trinta contos
em acções da Companhia Promotora da Agri-
cultura ou do Banco Lusitano . . . Quando o noi-
vo abre o embrulho, já o casamento está feito,
e nunca mais as acções voltam ao par !»
IÒ8 A RUA DO OIRO
Depois, não era só Fausto que me punha de
pé atrás. Era o muito que eu tinha lido e ouvi-
do em desprestigio das mulheres de Lisboa.
Afigurava- se me a capital uma estranha estufa
onde a precocidade feminina faz da creança re^
cemnascida uma rapariguinha espevitada, da ra-
pariguinha espevitada uma mulher sabida, e da
mulher sabida um monstro de perfídia. E eu sa-
bia que, em volta d'essa mulher, só havia estra-
tagemas subtis e profundas malicias, cujo segre-
do era só d'ella, e onde ella se mexia e remexia
com a subtileza perigosa da serpente que mor-
de e se esgueira para o seu esconderijo, sem que
ninguém a adivinhe. . .
E tanto eu estava nesta idéa, e tão aferrado
a ella, que logo no primeiro dia considerei D.
Claudia uma vibora e Clarinha uma vibora pe-
quenina.
Mas não fora preciso muito para que eu per-
desse o medo, e me sentisse attraido paraaquel-
le ninho de viboras, d' onde Clarinha se desen-
roscava agora, e se transmudava aos meus olhos,
como numa doce e luminosa magica, em prin-
cezinha de Perrault, que sete fadas houvessem
dotado com o melhor que tivessem : a formosu-
ra, a intelligencia, a graça, o bom-senso, a mei-
guice, a candura, o amor. . .
No meio em que eu a encontrava, em que
A RUA DO OIRO 1G9
ella vivia, e ao qual eu, agora, procurava ada-
ptarme, não sem renitência e sem quebra de
enraizados propósitos de dignidade e de intran-
sigência, o convivio de Clarinha offerecia-me um
suave parenthesis de encanto honesto, de grato
repouso e de refugio amável, intercalando um
pouco de poesia na grosseira e prosaica mixor-
dia politica que o Presidente do Conselho e o
Padre Eterno mexiam e remexiam.
Por modo que, depois d'aquelle encontro ines-
perado com D. Claudia no Ministério, em que
ella me dissera que já Clarinha estranhara a
minha ausência de tantos dias, comecei a cor-
rer, todos os dias, com uma viva pressa, para a
Rua do Salitre.
E entrei então a sentir, a ver, a observar em
mim, nos meus movimentos, nas minhas idéas,
nas minhas hesitações, nos meus actos, uma
mudança exquisita do meu estado de alma —
uma coisa nova, absolutamente nova, que eu não
sabia precisar, que não me era possível definir,
mas que me dava muita alegria, muita vivacida-
de, muito bom humor, muito estimulo.
VI
Numa terça-feira, que ei'a dia de grande gala
e não havia Gamaras, fui, depois do almoço,
com todo o meu vagar, até ao Campo de Santa
Clara, para vér a Feira da Ladra, de que tanto
ouvira falar e não conhecia ainda.
Estava um dia lindo, de fins de março, azul
e desanuviado.
— «Um dia creador!» me dissera o Poças, á
porta do Hotel, onde o deixei, especado, na
persistência do seu namoro com a mulher da
bata ás riscas.
Eu começara então a percorrer a capital, que
até ahi se tinha limitado para mim ás ruas da
Baixa, ao Salitre, e a São Bento.
Afastava-me já para os bairros novos, d'onde
uma nova cidade surgia, em ligeiras e breves
172 A RUA DO OIRO
construcçÕes, de ripas e tijolo, recobertas de es-
tuques claros e alegres azulejos.
Procedia-se a um plano geral de melhoramen-
tos que abrangia ruas, praças, jardins, edifícios
públicos e particulares, organisando-se projectos
que deviam obedecer a todas as condições mo-
dernas e rigorosas de higiene, decoração, com-
modidade, bom gosto.
Queria-se uma cidade cheia de luz, bem ven-
tilada, abastecida de aguas, modelar de exgo-
tos. E na execução do amplo e magnifico pro-
gramma, a que presidia um Conselho de sum-
midades diplomadas, engenheiros, architectos,
vogaes do Conselho de Saúde Publica, todos
com opíparos ordenados, gratificações á larga,
generosas ajudas de custo, deveria attender-se
aos melhores sistemas de deposito, desinfecção,
despejo, remoção de liquidos e sólidos ; á dre-
nagem do solo, quando paludoso ou carregado
de substancias orgânicas ; aos melhores proces-
sos de encanamentos de aguas e tubagem de il-
luminação ; á amplidão e declividade das ruas;
á conducção das aguas dos telhados ; á altura
das edificações em harmonia com a larguêsa das
vias ; aos chanfrados dos ângulos das esquinas.
Eram declaradas de utilidade publica, e ur-
gentes, grandiosas expropriações, pagas sem re-
gateio, a olhos fechados, pelo preço que os ex-
A KUA DO OIRO IJJ
propriados quizessem. Fixavam-se alinhamentos
e davam se cotas de nivel, tudo admiravelmente
estudado e calculado.
Além do Governo, precedendo auctorisaçÕes
legislativas, e da Gamara Municipal, nos termos
do Godigo Administrativo, grandes empresas
que o Estado subvencionava, isemptava de im-
postos e favorecia ainda com garantias de juros,
metiiam hombros titânicos á execução do mara-
vilhoso plano, que se afigurava de proporções e
molde a surprehender o próprio Marquez de
Pombal, se elle resuscitasse.
Quem pretendesse construir novos edifícios e
reconstruir os antigos, era obrigado a observar
disposições e regulamentos apertadissimos, no
proveito do conjuncto magnificente que se pre-
tendia dar á capital. Se os terrenos particulares
confinavam com as vias publicas, eram os donos
constrangidos a nelles realisar as edificações que
mais conviessem ao embellezamento das vias, e
intimados a não demorarem o cumprimento
d'esta deteriTÚnação absoluta além de um certo
praso, que lhes era dado. Se nos novos alinha-
mentos o proprietário era obrigado a recuar, o
Estado indemnisava-o, e como o Estado é sem-
pre «grand seigneur» quando se trata de indem-
nisaçÕes, houve um momento em que todos os
proprietários quizeram recuar. . . Se um prédio
174 '^ í^UA DO OIRO
ameaçava ruina, e o senhorio teimava em não o
demolir, a Gamara Municipal munia -se de pica-
reta, arremcttia com o prédio, e deitava-o abaixo
á custa do senhorio.
Para obter a purêsa do ar atmosférico, sub-
sidiar empresas constructoras, agitar os capitães,
evitar sarrasfuscas dos operários sem trabalho,
que todos os dias percorriam a Baixa em ban-
dos precatórios, com estandartes vermelhos e
ameaças socialistas, o Estado mandava traçar
novas ruas, rasgar avenidas, fazer aterros, plan-
tar jardins.
Como a cidade não fora primitivamente cons-
truida sobre um plano regular, que previamente
se houvesse fixado, e que lhe desse configura-
ção também regular e arruamentos simétricos,
devendo ao acaso, depois da reconstrucção pom-
balina, as principaes direcções das massas edi-
ficadas, havia então necessidade de alterar, be-
neficiar, alindar o que já existia feito, e que não
era possível deitar a terra.
Para modificar os effeitos da impetuosidade
dos ventos, recorria-se ás curv^as de grande
raio. Para facilitar o escoamento das aguas,
dava se ás ruas outra inclinação, augmentava-se
o numero das sargêtas. Para tornar suave o
rodar das carruagens e o piso dos peões, refor-
mavam-se as calçadas, introduziam-se novos
A RUA DO OIRO l']5
sistemas de empedramento, derramava-se um
mar de asfalto nos passeios. Para attenuar os
grandes calores de agosto, e alegrar a cidade,
plantavam-se arvores de folha caduca ao longo
das ruas, cobriam-se de accacias as avenidas.
As encostas revestidas de vegetação transmu-
davam-se, enchiam- se de fabricas, armazéns,
estancias.
Assignado o fabuloso contracto com Hersent
para as obras do porto de Lisboa, começava
agora a realisação d'esse plano, que promettia
um sonho de riquêsas, garantidas pela posição
geográfica e pelas excellencias da barra e da
bahia do Tejo. Em todos os sentidos se cruza-
vam as vias. férreas interiores ; um immenso
tunnel abria as fauces no meio da cidade e re-
cebia a população que o atravessava e se alas-
trava pelos arrabaldes.
Das antigas e abandonadas cercas dos con-
ventos, arrancadas as laranjeiras e as amendoei-
ras, irrompiam jardins talhados á inglesa, toda
uma nova flora, colorida e decorativa, rebentava
e crescia em opulentos macissos, entre farturas
de relvas e de trepadeiras. Onde alguma velha
casa histórica, abalada pelos ventos e roída pe-
los carunchos, se aluía e desmoronava, com o
ruído cavo de traves e caliças, logo um palácio
de nova arte se erguia, em cantarias brancas e
176 .A RUA DO OIRO
madeiras frescas, ao som matinal e cantante dos
escopros e dos martelos.
Nos seus aspectos mais tipicos, na sua feição
topográfica e esthetica, Lisboa transformava se
vigorosamente, sem que nessa evolução apres-
sada e nervosa attendesse um pouco á sua pró-
pria tradição, nem ás suas recordações piedosas,
nem á veneração dos seus archeologos e dos
seus antiquários, nem ao seu inventario históri-
co, nem ao respeito devido aos seus archivos.
O Poças observara-me :
— «Se o Amaral quer conhecer ainda a Feira
da Ladra, não tem tempo a perder. Vá lá.
Aquillo é feira que está já no levantar. . . E olhe
que vale a pena. Desapparecendo -ella, com ella
terá desapparecido uma das mais características
instituições do reino. Vá, meu amigo, vá, e verá
que largo campo esse de divagação e entreteni-
mento para a mais exigente fantasia !»
Porque na Feira da Ladra se encontrava tudo,
se procurava tudo quanto fosse possivel desejar
em matéria de objectos já servidos, factos velhos
e idéas em segunda mão ; roupas usadas, cal-
çado gasto, chapéos acochichados, trastes euten-
silios da mais variada espécie e dos destinos
mais diversos.
Na Feira da Ladra iam alguns dos nossos
mais laureados dramaturgos e romancistas dcs-
A RUA DO OIRO I 77
encantar o cntrecho das suas peças mais applau-
didas, a intriga dos seus romances mais palpi-
tantes.
Era á Feira da Ladra que as noivas cm más
circumstancias iam comprar a flor de laran.-
gcira com que ornrvam a fronte para o ma-
trimonio.
Na Feira da Ladra se encontravam, em excel-
Icntes condições, fardas de ministros, bastões de
marechaes, dragonas de almirantes, chumaços
de coronéis, velhas armas e barões assignalados,
em perfeito estado de conservação. Quanta no
breza fora lá buscar os seus antepassados, e
quantos titulares de lá voltaram trazendo de-
baixo do braço os seus brazões I
Grandes oradores parlamentares e sagrados
iam buscar á Feira da Ladra os melhores dis-
cursos e sermões de José Estevão e do Padre
António Vieira, que depois de sacudidos e pas-
sados a ferro eram ouvidos nas Gamaras ou
em sexta-feira da Paixão, como se fossem d'el
les. . .
Era á Feira da Ladra que as nossas socieda-
des anónimas iam escolher as suas mezas de
assembléa geral, e onde as donas das hospeda-
rias para pernoitar iam adquirir as suas mezi-
nhas de cabeceira.
Era, finalmente, na Feira da Ladra que alguns
178 A RUA DO OIRO
dos nossos mais profundos pensadores iam be-
ber da fonte que ali corria perenne, a saciar-lhes
a sede de verdade sobre as misérias humanas.
A Feira da Ladra fora, por largos annos, a
Senhora dos Affliclos para todas as classes e
para todos os cérebros menos abastados.
— «Desapparecendo ella, concluia Poças,'
sempre desejarei que me digam se toda essa
gente que ia vestir-se, calçar-se, mobilar-se e
encontrar idéas na Feira da Ladra, ha de pas-
sar a vestir-se no Amieiro, a calçar-se no Serra,
a mobilar-se no Castanheira, e a encontrar idéas
— na Academia !»
Lá ao fim, isolado do grande movimento da
feira, mettido num recanto, junto do arco de
São Vicente de Fora, estava um pequeno alfar-
rabista com o seu taboieiro cheio de livros ve-
lhos, de todos os formatos e grossuras, crivados
uns pelas traças, outros roídos dos ratos, uns
sem principio, outros sem fim, e todos elles
tresandando a espelunca de trapeiro, d onde só
deviam sahir ás terças feiras para aquella. ara-
gem, que não chegava a sacudir-lhes o bafio. E
enfiados ao alto do taboieiro, entre três cordéis
amarrados á ponta de dois sarrafos, muitos fo
Ihetos d'essa tão pittoresca e ingénua litteratura
popular da Edade Média não apagada ainda,
antes conservada e transmittida com afinco de
A RUA DO OIRO 1 79
geração em geração, através de uns poucos de
séculos de transfc rraaçÕes sociaes, sentiracn-
taes, intellectuaes: eram o resumo dos antigos
poemas carlingios e arthurianos, as lendas dos
Santos e as sátiras, as aventuras facetas e os
apparecimentos de monstros — a Malícia das
Mulheres e a Historia dos Três Corcovados^ o
Bertholdo e o Cacasseno, a Don\ella Theodoí a
e a Imperatri\ Porcina, mulher do Imperador
Lodonio de Roma. . . — toda uma livraria de re-
botalho grosseiramente impressa, e ornada de
gravuras que me pareciam manifestações de
uma esthetica selvagem, ou pre-historica.
Um. a estampa solta, que se me afigurou va-
liosa, attrahiu-me a attenção. Inclinei-me para
vêr melhor; e logo o alfarrabista, percebendo
talvez que encontrava em mim o primeiro com-
prador d'esse dia, a puxava de baixo deumpe
daço de ferradura que a livrava do vento, c m'a
offerecia a exame de mais perto, quando uma
outra mão, de alguém que chegara nesse mo-
mento junto do taboleiro, se precipitou sobre
ella e a arrancou para si.
Voltei-me, encarei o malcreado. Mas uma es-
pontânea alegria me desconcertou no repente de
azedume:
— «Oh I Chico. . . »
— «Oh ! Amarante !»
l8o A RUA DO OIRO
E cahimos nos braços um do outro.
Era o Chico do Patrocínio, o poeta, o meu
caro Chico do Patrocinio, que fora meu con-
temporâneo de Coimbra, e commigo vivera, e
com o Fausto Guimarães, naqueila mesma e
sempre saudosa republica da Couraça dos Após-
tolos. Mas como elle estava dififerente ! e de bi-
gode rápido I E que tremenda cabelleira I Era
o caso de lhe perguntar :
— «Mas Chiquinho, por onde tens tu andado,
que tão bom cabello tens creado?!»
— eOra, por onde tenho eu andado! Na lua,
sempre na lua I»
— «E que tens feito ?»
— «Versos! Tenho feito versos... Pois que
queres tu que eu faça ? . . . «
E o curso ? Não acabara o curso ! Dois annos
no quarto anno, e nem para trás, nem para
deante. Tinha sido o diabo, tinha. Mas que ha-
via de fazer lhe ? Desistira, esmurrara o Pimen-
tel Gouveia em pleno pateo da Universidade,
fugira para Lisboa. Era amanuense da Biblio-
theca Publica.
— oMas estás magnifico, sabes tu? Estás pie-
thorico ! »
— íE' certo. Tenho passado admiravelmente.»
— € Ainda comes muito bife :»
— «E muito peixe, muitos ovos, muitos legu-
A RUA DO OIRO l8l
mes, tudo brutalmente, em doses máximas ! Os
versos puxam muito por nós, é preciso dar-lhes
que puxar.»
— «De mais a mais, chefe da nova escola,
tens que ter hombros largos. . . »
— «E bom pulso, Amarante, e bom pulso !
que isto de implantar uma escola litteraria em
Portugal, só vae a socco, sabes tu? e socco va-
lente, para a direita e para a esquerda. . . Tens
lido os nefelibatas ?»
— «Experimentei. Não consegui entendê-los.»
— uNão digas isso duas vezes, Amarante ! E'
uma grave oífensa que fazes a ti mesmo. Não
nos entender é ser tolo I E tu não és tolo, Ama-
rante, tu nunca foste tolo !»
— «Não sei, não sei.. . Eu bem quiz, eu bem
lhe fiz a diligencia, mas não me foi possível,
que queres tu ? De resto, já um de vossês o
disse : Para os raros, apenas...»
— «Pois por isso mesmo. Quero que sejas um
d'esses raros apenas... Tem paciência. Já te
não largo I»
Metteu-me o braço, arrastou-me.
E a estampa ? A estampa não valia nada.
Elle não a queria, nem de graça. E atirou a com
desdém, mas desdém de quem não quer com-
prar.
Lembrei me então de que já o Chico era, em
l82 A RUA DO OIRO
Coimbra, muito entendido em livros e gravuras
antigas.
— oE' verdade, tu ainda tens aquella mania
de bibliófilo, que tinhas noutros tempos ? de
«Bibliófilo Braga», como te chamava o Faus-
to...»
— «Ainda, ainda I E complicada agora de uma
outra: a mania do bric-à-brac. Até faço nego-
cio. . . V
— «Pois tu também me sahiste feno velho, ó
Chico do Patrocínio?!»
— «Que queres I E' preciso viver. E' preciso
comer. . . Muito bife, muitos ovos I Custa tudo
um dinheirão ! E não era com dezoito mil e oi-
tocentos, que recebo da Bibliotheca, que pode-
ria aguentar-me. . . Faço eLtão negocio. . . Ando
sempre nisto. A pesquizar, a rebuscar, a fare-
jar. E como tenho bom faro, descubro ás vezes
coisas maravilhosas, antigas. E aqui para nós,
que ninguém nos ouve, e porque tu sempre
foste discreto como um tumulo — quando as
coisas que descubro não são maravilhosas, fa-
ço-as eu maravilhosas. . . »
Poeta e ferro velho, Chico do Patrocínio pa-
tenteou-se-me então como um producto estra-
nho, mas perfeitamente authenticado, do seu
meio e da sua época.
A' revolução que eu notava na topografia da
A RUA DO OIRO l83
cidade, no tipo das suas architecturas, na pró-
pria composição do seu ar atmosférico, cor-
respondia, e coincidia nos simptomas, uma ou-
tra revolução dos costumes, da arte, da littera-
tura e da opinião.
Nos cruzamentos da raça, na transmissão da
sifilis e da tuberculose, nas secretas precauções
da lei de Malthus, nos abusos do prazer mo-
derno, anniquilavam-se e extinguiam-se os últi-
mos representantes directos das nobres casas e
das tradições fidalgas.
Na agitação dos mecanismos e das indus-
trias, na ramificação frondosa do. commercio, no
estimulo das exposições internacionaes, nas ex-
plorações das minas e da Bolsa, enriqueciam-se
e engrandeciam- se os burguezes.
Na corrente das idéas ncvas de socialismo, no
desrespeito dos patrões, no incremento das co-
zinhas económicas, no êxito das repetidas gre-
ves, o operariado conquistava todos os privilé-
gios e todos os direitos.
A febre do dinheiro, como uma febre epide-
mica, atacava indifferentemente todas as clas-
ses.
E fazia-se dinheiro de tudo.
O Estado vendia as colónias, os morgados
vendiam as terras, as mulheres vendiam as
jóias.
1S4 A RUA DO OIRO
Trabalhava-se o menos possível, gosava-se o
mais que se podia.
Floresciam então os bancos hipothecarios, os
pregos e os agiotas. Quando já não havia que
vender, recorria-se ao empréstimo ; e o emprés-
timo era sempre feito com as máximas garan-
tias sobre penhores valiosos.
Depois, não havendo já que empenhar, jcga-
va-se. E entrava-se então no periodo áureo das
operações da bolsa, da loteria, e da roleta.
Feliz com mulheres, infeliz ao jogo— o por-
tuguês perdia ao jogo o pouco que lhe restava.
Chegado a esse extremo, lançado nessa penú-
ria, ficava-lhe o optar por uma d'estas duas coi-
sas: ou pelo trabalho, ou pelo suicídio. E a per-
centagem dcs suicidas, sobre aquelles que se
decidiram pelo trabalho, foi uma coisa pavorosa,
que vinha contada, todas as manhãs, nas folhas.
A meio deste escalavro, emergindo doestas
ruinas, calcando este montão de destroços e ca-
dáveres, appareciam então, numa aureola de ju-
bilo, de bem-estar, de desafogo, radiantes c né-
dios, os intermediários. E estes intermediários
eram: os ministros, que estipulavam e contra-
ctavara a transmissão do dominio português
para a posse do Estrangeiro ; os banqueiros, que
promoviam na Bolsa a alta e a baixa dos nos-
sos fundos públicos, á medida dos seus desejos-
RUA DO OIRO l85
OS cambistas, que faziam andar a roda das lo-
terias; os prestamistas, que dos juros onzenei-
ros constituiam novos capitães; os commissarios,
que tratavam de despejar, por todo o preço,
nos toneis de Bordéus as adegas necionaes; fi-
nalmente, os ferro velhos, que dos solares
d'onde se desalojavam os últimos fidalgos, e
dos mosteiros onde morriam as derradeiras
freiras, tudo compravam, tudo levavam, tudo
varriam — mobiliários, tapeçarias, jóias. . .
E como não ha miséria que não desande em
fartura, a miséria de uns, neste caso, desandava
em fartura — para os outros.
— -A cccasião era esplendida I» dizia me o
Patrocinio. Estava tudo a liquidar. Arranjei
um sócio, puz então um estabelecimento de pri-
meira ordem no seu género. Has-de lá ir, tem
muito que vêr. E' na Avenida, a Grande Liqui-
dadora. Seis salas enormes, e um pateo tam-
bém enorme, que mandei cobrir de zinco e vi-
dro, tudo atulhado de coisas antigas, precio-
sas... Vale a pena. Como a maior parte do
velho mobiliário andava maltratado pelos netos
e bisnetos dos primitivos donos, foi necessário
montar uma officina só para restaurar todos es-
ses moveis, e nella tenho restaurado tudo.. »
— «Es ainda capaz de fazer a restauração_de
Portugal !»
l86 A RUA DO OIRO
— «Olé! se sou. .. Havendo quem pague.»
Tínhamos sabido já do Campo de Santa
Clara, para baixo. Aquillo estava visto. Era
uma triste coisa, afinal, essa Feira da Ladra,
um afflictivo espectáculo. Dir-se ia o montão de
tarecos de uma familia desditosa de empregado
publico, que não poderá pagar a renda do ul-
timo semestre, e a quem o senhorio dera man-
dado de despejo, pozera no olho da rua.
— «Conheces a historia do teu paiz, ó Chico?»
— «Um poucochinho. . . pelos trastes !»
Apontei com a bengala para cima, onde se
estendia a Feira, comparei não sem magua:
— o Pois ali tens tu a melhor e a mais triste
sinthese d'essa nossa historia : a familia do em-
pregado publico é a nossa familia portuguesa ;
o senhorio avaro é a Inglaterra; e o montão de
tarecos o nosso pobre espolio. Espera outro ul-
timatum, que será o mandado de despejo, e ve •
rás como vamos todos para o olho da rua. . .»
Entretanto, e ainda para muitos, a vida ia ro-
lando satisfatoriamente, como se o fosse sobre
rodas de cautchu, nas molas commodas e suaves
dos laudaus modernos.
Toda essa gente, que ninguém síjbia quem
era, nem d'onde vinha, nem como enriquecera,
e que era hoje a gente da alta finança, a gen-
te do alto commercio, a gente da alta roda, e
A RUA DO OIRO 187
que era queai dava as cartas do bom gosto e do
bom tom, imprimia á cidade e á vida de Lisboa
UTi caracter novo, em tentativas e ensaios de
cosmopolitismo galante, trazendo e implantando
do Estrangeiro, no regresso das viajens (que a
frequência dos expressos e as regalias dos sle-
epings tornavam commodas e fáceis) modas e gé-
neros de chiquismo, de mundanismo, de pari-
sianismo.
Obtida uma fortuna, que apparecia consoli-
dada de um dia para outro, sem que a ninguém
importasse saber como aquillo fora ; arranjado
um titulo de nobresa com a mesma facilidade
que ha em adquirir um titulo da Divida Publi-
ca; construido á pressa um palácio com os ma-
teriaes ligeiros e a mão de obra rápida das enii-
preitadas de fancar ia \ recheiada essa residência
de formosos moveis, tapetes acariciadores, bron-
zes de arte e porcelanas, marfins e barros es-
culptados, rendas e esmaltes ; contractada uma
mestra inglesa para as creanças, e um cozinheiro
francês para os folhados — tinha- se grangeado
uma prompta nomeada de elegância e distinc-
ção, figurava se nas primeiras linhas do hig-hlife
dos jornaes, ganhava-se a votação dos plebis-
citos mais exigentes em matéria de refinadas
elegâncias, dispunha-se, como appetecia, da opi-
nião ...
l88 A RUA DO OIRO
Essa gente promovia todas as festas aristo-
cráticas, cobria as assignaturas de São Carlos,
dava batalhas de flores, andava em caçadas, or-
ganisava regatas, inaugurava o gosto das corri-
das de cavallos e reconstituia toiradas de fidal-
iéos á antiga portuguesa, fazendo ella os fidalgos.
Essa mesma gente estimulava, sob o patro-
nato do seu dinheiro e da sua impostura, as ex"
posições de arte, de pintura e de esculptura, en-
commendava os seus retratos aos pintores recém-
chegados dos pensionatos de Paris, subscrevia
a lista de fundadores da Real Associação dos
Amadores de Musica, enchia os primeiros thea-
tros nas noites de primeiras recitas.
E a cidade ostentava um ar de alta vida, en-
caixilhando de oiro o quadro d'essa geração es-
pontânea, que conseguia dar a illusão de uma
boa sociedade, rica e distincta desde o berço —
admittindo que ella houvesse tido um berço . . .
— «Jantas hoje commigo !• intimou-me o Pa-
trocínio, quando chegávamos ao Largo do Mu-
seu de Artilheria, onde devíamos esperar o ame-
ricano. Mas tinha passado um naquelle mesmo
instante, que ainda avistámos ao longe, e d'ahi
até que tornasse a passar um outro, tínhamos que
esperar.
— «Não esperamos ! disse eu. Vamos andando
a pé. Até appetece, com este tempo.»
A RUA DO OIRO 1 89
E fomos andando a pé. Andando, e conver-
sando.
O Chico fora sempre um grande cavaqueador.
Em Coimbra, fizera elle os primeiros annos de
Direito a conversar. Elle mesmo o dizia, á hora
de entrar para as aulas: — «Vamos então lá a
essa conversa I»
Tinha graça, tinha pilhas de graça, e tinha
mais que graça : tinha pilhéria. Dentro do seu
pequenino cérebro redondo, que eu conhecera
quasi rapado, á escovinha, as idéas, sempre sa-
cudidas, faziam um barulho jovial, tlitante, de
bolinhas de metal dentro de um guiso. Diver-
tianos. Divertia os lentes.
Nas aulas, o seu sisterra era este: applicava-
se com afinco ao estudo, emquanto não era cha-
mado á primeira lição. E a sua primeira lição era
sempre, invariavelmente, estupenda de sabedo^
ria. Já então o lente não o perdia de vista, adi-
vinhando um portento. D"ahi em deante, não lia
mais uma pagina, não abria mais um compen-
dio, desdenhava a sebenta. Podia depois ser cha-
mado quantas vezes quizessem : estava sempre
prompto — para a conversa.
D' uma vez, num exame, não me lembra já de
quê, teve o Chico o presentimento de que sahia
reprovado. Um dos lentes trazia o então de pon-
ta, por causa d"uma famosa sátira que elle lhe
190 A RUA DO OIRO
dirigira e publicara na Ca^ra. Não lh'o perdoa-
ria. E aquelle seria o momento da revindicta.
Chegou-se ao acto ; chegou a vez ao lente de
o interrogar. O lente era o Pedróza, muito ver-
sado e tido por auctoridade em questões de
filologia, grande defensor da ortografia sónica,
incapaz de perdoar ao próprio pae a imprópria
collocação de um acento tónico.
Todos lhe conheciam o fraco. E a propósito
de já não sei quê também, logo que elle come-
çou a interrogar o Chico, aconteceu falar-se da
Oceania, que o Pedróza dizia — «Oceânia.»
— oPerdão, Oceania. . . » dissera seccamente o
Chico do Patrocínio.
O Pedróza deu um salto na cathedra :
— «Oceânia, se me dá licença !»
Sem pestanejar, o Chico repontou :
— aEu digo — Oceania... Vossa Excellencia
dirá como entender.»
— «Mas porque diz o senhor Oceania, e não
quer dizer Oceânia, que é como deve dizer-se?p
— «Porque Oceania me sôa muito melhor ao
ouvido. . . »
O Chico considerou, de soslaio, a areia que
corria na ampulheta. E ainda disse :
— «Vossa Excellencia terá então a bondade de
esclarecer-me no meu erro. Eu só desejo acer-
tar.. . Mas será necessário que Vossa Excellen-
A RUA DO OIRO IQI
cia me convença de que sou eu que realmente
estou em erro. . . »
E não disse mais nada. Nem foi preciso mais
nada. O Pedróza esticou os punhos, atirou os
braços pela meza fora, caiu a fundo na questão
do acento.
Oceânia, e não Oceania ! O facto de muita
gente dizer Oceania, não era razão bastante para
que não se devesse dizer Oceânia. . . E ahi vae
elle, o Pedróza, por essa etimologia fora, como
um cavallo que torrou o freio nos dentes, largou
a toda a brida I Esqueceu o exame, esqueceu a
areia que corria na ampulheta, esquecera a sá-
tira do Patrocinio na Cabra. . .
Quando, passada a hora, o Pedróza serenou,
se recostou, deu outro puxão aos punhos e dis-
se, soberanamente concludente; — (íErgo... Oceâ-
nia e nunca Oceania!» — já o Patrocinio adquiri-
ra a certeza de que licava approvado.
O Presidente tocara no braço ao Pedróza. E
só então o Pedróza cahíra em si. Mas tinha pas-
sado a hora. Fora comido. Ainda teve um repe-
lão. E a sátira ? Já não era tempo. Deixa-lo !
Não se perdera tudo. Oceânia, e não Oceania .
Ficara o acento no seu devido logar.
— «Estou satisfeito I» disse.
Não estava. Isso sim I Mas era como se esti-
vesse. E quando todos, rindo á socapa d'aquella
192 A RUA DO OIRO
deliciosa mistificação do Patrocinio, imaginavam
que não lhe restava outra coisa a fazer senão le-
vantar-se, cumprimentar o jury, e passar ao ter-
ceiro anno de Direito, ainda se ouviu elle dizer
para o Pedróza, dobrando-se todo para a frente,
estendendo os braços e espalmando as mãos
para trás, numa profunda contumelia :
— «Tcimbem eu estou satisfeito!»
Andando e conversar do, tínhamos chegado ao
Terreiro do Paço. Cortámos pela Arcada, pas-
sámos á porta do Ministerip da Justiça, entrá-
mos na Rua do Oiro.
Eram quasi cinco horas.
Junto do marco postal que estava á esquina
da Rua dos Capellistas, o Chico detivera-se e
detivera-me um instante, tirara o largo chapéo
de feltro, de copa alta e fendida ao meio, met
terá os dedos recurvos pela grenha negra e lus-
trosa, que lhe cobria o pescoço, o collarinho e
as orelhas, tornara a pôr o chapéo de melhor
geito, um pouco ao lado, mais fendido ao meio.
Ainda olhou as botas, que queriam ser engraxa-
das. Mas não fazia ao caso. Ora, ninguém lhe
olhava para os pés. Aquella cabelleira offuscava
o resto.
— «Que tal ?»
— «A' devida altura ! approvei eu. E acrescen-
tei : — Pareces um tenor!»
A RUA DO OIRO IQS
Metteu-me o braço, entrámos na Rua do Oiro,
como num paiz conquistado.
Dir-se-ia o céo mais azul e o próprio ar mais
tépido. Andava na rua um formigueiro de gente
bem posta, arrastando os pés no asfalto dos pas-
seios, entrando e sahindo das lojas, parando
instantes no exame das vitrines, formando, aqui
e ali, pequenos grupos, sacudindo apertos de
mão, trocando beijos e risadas, falando alto, su-
blinhando frases, remoinhando bengalas, ator-
mentando cabos de sombrinhas, riscando fósfo-
ros, acendendo charutos. Fru-frus de ricas
saias, perfumes de boa marca, maciesas de ve-
ludos, caricias de pelles de bicho, revoluteios de
plumas, rangidos de botinas, coruscações de
jóias, tudo se misturava e se fundia num zum-
bido e numa cocega que nos percorria os senti-
dos, a breve trecho excitados pelo cubicar e pelo
roçar das mulheres em grande numero, umas
bonitas, outras feias, umas formosas, outras hor-
rendas, e todas ellas corrompidas na provoca-
ção do outro sexo, na scintilla histérica dos
olhos, na sasonada intumescência dos seios, no
dolente saracoteio dos quadris, na fragilidade,
quasi quebradiça, da cinta, na minúscula esqui-
sitice do pé, na astúcia destra dos gestos e das
attitudes. . .
— «Céo azul, riso amarello ! Aqui tens tu —
13
94 A RUA DO OIRO
dizia-me o Chico — o lemma de uma nacionali-
dade como a nossa, que não pôde ter no grande
concerto europeu mais que uma parte muito li-
geira, e que tem de resignar-se á condição se-
cundaria que lhe cabe, contentando se com
pouco em tudo, desde as chamadas despezas
de representação, até ás mais Ínfimas e vagas
despezas geraes, que no diário d'esta sociedade
anónima, onde a gente se aborrece, representam
as pequenas verbas de bom humor com que
cada um de nós concorre para o custeio, pouco
espiritual, da vida de Lisboa ! »
Eu, porém, observava :
— «Mas toda esta gente, todos estes janotas,
todas estas mulheres, têm o ar feliz de quem
gosa a vida o mais que pôde, e parece pode-
rem gosa-la exuberantemente. . . »
— «E' o clima, Amarante ! E' este riquissimo
clima ! »
Muito empoleirado na sua própria pessoa,
dando-se uma grande linha de superioridade em
que quasi se podia acreditar, envolto na nuvem
de fumo do seu charuto, como convinha e com-
petia a um deus, attrahindo olhares e provo-
cando sorrisos, Chico do Patrocínio transfigu-
rara-se, de repente, aos meus olhos, sem que
eu soubesse como, levando o pelo meu braço. O
ferro-velho dava logar ao chefe da escola nefe-
A RUA DO OIRO igb
libata. E eu levava agora, pelo meu braço, o
poeta da moda. E senti-me lisongeado. Eu
mesmo senti que partilhava da sua notoriedade
e do seu triumfo.
A' porta das livrarias, muitos rapazes, tam-
bém de guedelha comprida, de capinhas curtas
ou de sobrecasacas enormes, de grande roda,
com espantosas flores ao peito, uns de luneta,
outros de monóculo, cumprimentavam o Chico
com reverencia.
Outros, do sport, esguios, de calça muito
justa, entalados em collarinhos altos, reluzentes
como vidros, luvas amarellas, acenavam-lhe de
longe, com a mão alta, familiares.
Algumas mulheres correspondiam com af-
fecto, entreabindo os lábios, mostrando os den-
tes, aos rasgados cumprimentos* com que o
Chico se dignava obsequia-las.
E, de mais em mais animado, sem despegar
da conversa, que apenas entrecortava de bre-
ves cortezias e risonhos gestos para a direita e
para a esquerda... — «Como estás tu .. Adeus,
ó Fialho. . . Minha senhora. . . Creado de Vossa
Excellencia. . .» — o Chico proseguia na mesma
ordem de considerações.
Ainda os mais*pessimistas eram obrigados a
reconhecer que em muitos dias de agosto não se
nos mostrava o céo tão azul como o tínhamos
196 A RUA DO OIRO
visto nesses últimos dias de março, restos d'um
inverno em que — segundo o discurso da Co-
roa, do qual não seria licito duvidar — nem se-
quer tinham esfriado as nossas relações diplo-
máticas com as nações onde o thermometro
baixara vinte e cinco graus abaixo de zero. Só
aquelles que, porventura, soífressem de dalto-
nismo, poderiam querer convencer-nos de que á
vista dos seus olhos apparecia arroxeado e som-
brio o céo, anilino e limpido, que a nossa vista
alcançava, de norte a sul, e de leste a oeste.
Esse chamado «horisonte tenebroso» da pu-
blica administração, não era mais que um tropo.
A muito conhecida «atmosfera carregada» da
nossa eterna questão colonial, não era senão um
effeito de theatro applicado, já com pouco êxito,
á rhetorica parlamentar, velho panno de fundo
esmaecido.
— «E todavia, vês tu, sob este céo azul que
felizmente nos cobre, e no desfructe amável das
instituições que felizmente nos regem, nem o
animo nos chega para grandes enthusiasmos,
nem a alegria nos dá para grandes explosões. . .
Assim como a temperatura do clima nos não
deixa experimentar a sensação dos mais inten-
sos frios, assim a dosagem dó humor nos não
permitte a bemaventurança das fortes hilarieda-
des. A todos os respeitos, vogamos em aguas
A RUA DO OIRO I97
mornas — quer a metáfora alluda á nau do Es-
tado, quer se refiia ao batel da nossa fantasia !»
Tc da a vida portuguesa estava sendo bem
uma parodia, de que só a muito custo se salva-
vam poucos factos e poucas individualidades. Na
politica e na sciencia, nas artes e nas lettras, na
moda e no dandismo, a parodia florescia, como
a laranjeira ao scl. Regulamentos e leis, theo-
rias e problemas, seitas e escolas, estilos e gra-
vatas, tudo isso assimilava, imitava, adaptava
ao meio, macaqueava, emfim, quanto de fora
nos vinha na corrente impetuosa das opiniões,
nos artigos das revistas, nos jornaes de figuri-
nos, nos mostruários dos caixeiros viajantes.
Cada qual se julgava no direito de trazer para
a rua um paradoxo de Max Nordau com o
mesmo enbonpoint com que poderia envergar
uma sobrecasaca do allaiate Amieiro. Trazia-se
á flor dos lábios um dito de fim do Figaro
como quem pozesse na lapela uma camélia do-
brada . , .
— «Uns bonifrates, Amarante ! Uns bonifra-
tes que vivem, comem, bebem, vestem e pas-
seiam por Lisboa, pela simples razão, para cada
um d'elles, de ver fazer o mesrro aos mais. São
bonecos de engonços, são fantoches, são saguins
de realejo — tudo quanto procura imitar alma
christã pondo as mãos no ar !»
198 A RUA DO OIRO
Adaptava-se o bonifrate aos mais diversos
meios ; accommcdava-se o bonifrate a toda a
ordem de principies ; invadia o bonifrate as mais
variadas profissões ; fingia assimilar o bonifrate
as idéas mais complexas.
Na politica, o bonifrate seria tudo quanto
dentro d'esse ramo de actividade humana fosse
possivel ser-se : galopim, presidente de as
Sembléa eleitoral, representante em Cortes, re-
lator de pareceres, leader da maioria, ministro,
presidente de Conselho ! Na sciencia, seria o
medico, seria o mathematico, seria o botânico,
seria o fisico, seria o zoologo. Nas artes, seria
o que pinta, o que esculpe, o que entalha, o
que musica. Nas lettras, seria o poeta, o dra-
maturgo, o romancista, o polemista, o articu-
lista. . .
— aEm Lisboa, o bonifrate nasce, vegeta,
cxhibe-se e triumfa, sem mais funcçÕcs nem
mais esforço que o cogumelo, desde que ir-
rompe do solo até que é metlido em latas, de
conserva. E" de geração espontânea, e não tem
vontade própria. Dentro do seu cérebro só
existe uma faculdade : a velhacaria. E essa é a
mola real, a potencia motora de todo o seu
modo de ser. . Ninguém, como elle, para fazer
passar por sua a idéa que outro teve, nem para
vestir pelo figurino por que outro veste.»
RUA DO OIRO 199
Eu tentava respirar. Mas não me era pos-
sível. O Chico acolchetava-se mais ao meu
braço, redobrava de loquacidade :
— «E' isto, Amarante, é isto! Nem ha que
sahir d'aqui.. . Nem tu vês por ahi outra coisa.
Os antepassados uns espantalhos, os descen-
dentes uma sucia !»
— «E os nefelibatas :»
. — fOs nefelibatas não contam. Somos creatu-
ras á parte. Somos os poetas, fugidos da chol-
dra d'esta prosa para o refugio do nosso sonho.
Achámos a dôr voluptuosa, e deitámo-nos nos
seus braços . . Os poetas foram sempre de to-
dos os tempos. Somos de todos os tempos. La-
martine ou Mallarmé, Soares de Passos — ou
eu... tanto monta, tanto faz I A alma de um
poeta só transmigra para outro poeta. Em nós,
apenas o invólucro, o vil invólucro, muda. Ape-
nas mudam as formas. Ainda ha pouco, na
Feira da Ladra, me dizias tu quç não eras ca-
paz de perceber os nefelibatas... E não és só
tu, é toda a gente. Que admiração! Pois se até
nós nos não percebemos uns aos outros. . . Ora
nisto é que está toda a nossa força, nisto con-
siste o nosso disfarce. Simples questão de for-
mas. Simples questão de metros e de rimas.
Que importa que Delfina se chame agora Brio-
lanja ? Nada. Não importa nada I Não quer di-
200 A RUA DO OIRO
zer nada! Mas imagina tu que eu apparecia
agora em Lisboa de calça côr de flor de alecrim
e de bigode e pera, a fazer poesias pela medida
e na toada das Flores d'Alma, quando já nin-
guém sequer se lembra do Dom Jayme, que ha
tanto tempo passou de moda ! Corriam-me. Po-
sitivamente, corriam-me ! E o que fiz eu então ?
Rapei a barba, puz este chapéu, e implantei a
nova escola. . . Agora, e depois d'esta elucida-
ção amiga, para os raros apenas, folheia os ne-
felibatas, e verás. . . Lá tens as mesmas flores
d'alma, que se alteiam bellas, puras, singelas,
orvalhadas, vivas I As mesmas, as mesmas.
Simplesmente, em vez de se chamarem Flores
d' Alma, chamamos-lhes — Silva isotérica. . . »
Não havia remédio senão dar-lhe razão. Assim
era. O Chico punha as coisas em pés de ver-
dade, era bem assim, como elle dizia. E toda-
via, no meio d'aquella embrulhada comedia da
vida de Lisboa, em que mesmo nós, e naquelle
mesmo instante, andávamos contra-scenando, de
braço dado, em plena Rua do Oiro, Patrocínio
achava-se claramente á vontade dentro do seu
papel, e papel que, dada a alta preponderância
do seu metro e da sua guedelha no nosso meio
litterario, não era nenhuma rábula, antes me
parecia, e era, um dos melhores papeis.
Frisei o contraste, mostrei-lhe a flagrância da
A RUA DO OIRO 201
contradição que havia entre as suas palavras e
o seu modo de proceder :
— «Mas porque é que tu, ó Chico, que lalas
cumo um revoltado, transiges como um servo ?
Porque não protestas alto com palavras e com
obras ?»
— «Porque nem me ouviam as palavras, nem
me compravam as obras. . . Tu não sabes o que
são, nem o que pensam, nem como se manifes-
tam as multidões I Nas multidões, quer activas,
quer espectantes, ha muita heterogeneidade,
Amarante. Tenho, a este respeito, uma infini-
dade de observações curiosas, de muito inte-
resse. Quando publiquei o meu livro, os Oásis,
que foi o grito de alarme que acordou e poz de
pé, no seu devido pé, a nova escola, estabele-
ceu-se logo, em volta da minha pessoa, uma
multidão espectante, perfeitamente caracterisa-
da, como essas multidões que se aglomeram
nas ruas para vêr passar uma procissão ou um
homem celebre. Que dose enorme de paciência,
dirás tu, a d'essa gente que fica a pé firme qua-
tro, cinco, seis horas, para vêr passar uma pro-
cissão ou um homem I E todavia, nenhum d'el-
les teria sósinho a mesma pachorra . . . Reuni-
dos, estão sempre promptos para tudo. E o que
acontece então ? o que acontece sempre ? E' que
de toda essa multidão, apenas os que estavam
202 A RUA DO OIRO
á frente, nas primeiras filas, poderain vér o ho-
mem celebre ou a procissão — o que nãoimpede
que todos os outros se dispersem satisfeitos, e
persuadidos de que viram tudo. E' uma verda-
deira sugestão alucinatória, por contagio. . . Pu-
bliquei os Oásis, fiz barulho, os rapazes amigos
dos jornaes fizeram também muito barulho, e
juntou-se gente, formou-se a multidão que me
quiz vêr passar, homem celebre, seguido do
meu cortejo de prosélitos — eu com esta enorme
cabelleira, elles com as suas capinhas curtas e
os seus girasóes nas mãos. .1 Exgotou-se logo a
primeira edição, num abrir e fechar d'olhos,
fez-se segunda, já vendida, e vae entrar no
prelo a terceira. . .»
E ahi estava formada, e desviada para o seu
lado, a corrente da Opinião.
Imaginasse eu, agora, que elle, Chico do Pa-
trocínio, duas vezes reprovado no quarto anno
de Direito, e expulso da Universidade por ter
esmurrado convenientemente o Pimentel Gou-
veia, sem a carta de bacharel, sem bens de for-
tuna, e sem amigos na Politica, chegava a Lis-
boa com as mãos nas orelhas (como de facto
chegara), e em vez de farejar um meio de vida,
como fizera, vinha para a praça publica protes-
tar contra o estado de coisas do seu paiz, tra-
tando de ladrões todos os ministros, conside-
A RUA DO OIRO 2o3
rando imbecis todos os contribuintes, declarando
adulteras todas as mulheres ! Elle bem sabia
que ainda era possivel salvar d'aquella baralha
algumas honrosas excepções, pois ainda havia
ministros que não roubavam o Thesouro, con-
tribuintes que não pagavam as decimas, e mu-
lheres casadas que não ludibriavam os maridos.
Mas suppozessemos que elle não admittia exce-
pções, e na sua fúria de haver perdido o curso,
e naquelle desespero de se achar sem um vin-
tém, media tudo pela mesma bitola e ajustava
todos pela mesma craveira, barafustando, inve-
ctivando, disparatando...
— «Estava prompto. . . — explicava elle. —
Era um homem ao mar. . . Era um homem per-
dido ! »
Todos nós gostávamos e nos regalávamos de
dizer mal dos outros, mas nenhum gostava nem
se regalava de ouvir dizer mal de si. O nosso
grande periodo pamphletario passara e apaga-
ra-se nas cinzas do esquecimento, como passara
e se apagara o periodo áureo das descobertas e
conquistas. As Farpas tinham tido a sua época,
que correspondera ao inicio do escalavro nacio-
nal, mas a sua época extinguira-se, passara e
apagara-se também. As Farpas eram d'um
tempo em que ainda se vivia no pleno e am-
plo regimen de liberdades que o Senhor Dom
204 ^ ^^^ ^^ ^^^^
Pedro IV nos outorgara. Até ahi tinha-se gosado
de todas essas liberdades com conta, peso e
medida, mas entrara-se, e de cabeça, no abuso
d'ellas. Verdade, verdade, uma d'aquellas de
que mais se abusara fora a liberdade de im-
prensa. O commentario do abuso chegara a ser
mais abusivo, por vezes, que o próprio abuso.
O pamphleto, que rompera de um nobre sen-
timento de protesto ou de uma viva comichão
de troça, tornara se meio violento de violentos
fins, e fora instrumento perigoso de diffamaçao
e de chantage.
O espirito de imitação, muito nacional, muito
nosso, lançara logo á publicidade, atrás das
Farpas, uma chusma de pequenos folhetos de
mordacidade e de audácia, que atulhararrí o
mercado. Eram as Garrochas, eram as Banda-
rilhas, eram os Ferros curtos, eram os Agiii-
Ihôes, tudo quanto do vocabulário tauromachico
podesse dar uma idéa sinonimica de ferroada
no magro cachaço da sociedade portuguesa,
que se deixava correr e espicaçar bonacheirona-
mente, como um triste e derrancado boi de cu-
riosos.
As Farpas, entretanto, tinham cumprido o
seu programma de demolição e de reforma.
Fora arrasado o Passeio Publico, considerado
foco grandemente nocivo de todos os miasmas
A RUA DO OIRO 2o5
e dc todos os males românticos. Rolara no pó,
como um colosso apeado e conspurcado, o terrí-
vel General Macedinho, que fora o principal ma-
nutendor da desordem publica. O Bazorra con-
seguira empregar o ultimo afilhado, e dispoze-
ra-se, contente, a entregar a alma ao Creador.
Tinham sido retirados de scena os Lazaristas,
e emendada a traducção de Shakespeare, do
fallecido Rei Dom Luiz. Montara-se em Lisboa
um estabelecimento de banhos e duches, de
limpeza e de therapeutica. Todas as famílias
abastadas tinham adquirido uma banheira, e as
de mais modestas posses um bidé, pelo m.enos.
Estabelecera-se uma fabrica de sabão em Alcân-
tara, e uma fabrica de escovas em Xabregas.
Na educação nacional introduzira-se a gimnas-
tica, a contabilidade, o pas de-quatre e o alle-
mão. Os rapazes andavam já de calção até á
idade em que todos elles emagrecem e se es-
canzelam ; e as meninas de saia curta até á
idade em que todas ellas engordam e arredon-
dam.
Pouco a pouco, porém, quasi sem que se
desse por tal, as liberdades iam sendo coarcta-
das. Os pamphletarios, que d' antes investiam
como feras, iam sendo domesticados. Uns en-
travam para os conselhos da Coroa ; outros en-
travam para a Academia ; e assim foram en-
206 A RUA DO OIRO
trando, todos elles, na ordem — uns na Ordem
de Christo, outros na Ordem de São Thiago. . .
No dia em que só restava de fora um único
pamphletario, que teimava em não querer ser
ministro, nem membro da Academia, nem com-
mendador, não havendo outro meio de o fazer
calar, metteram-no no Limoeiro — para socego
e para exemplo. E foi assim que o pamphleto
passou de moda.
— «Hoje o que vês tu, Amaral ? Vês um mi-
nistro subir ao poder com os rompantes do Oli-
veira Martins, que pôz tudo em pratos limpos,
declarando que não encontrara um ceitil no
fundo dos cofres públicos, que todos os seus
predecessores tinham feito do governo um ne-
fando ludibrio da Nação e dos credores exter-
nos, e que para se entrar num periodo de renas-
cimento e reacquisição de credito seria preciso
metter tudo no são — governos e governados.
O relatório de fazenda do Oliveira Martins foi
o primeiro, e até hoje o único que patenteou a
inteira verdade aos olhos do Parlamento estar-
recido. E o que aconteceu ao Oliveira Martins ?
Correram com elle. . . Chasquearam-no. . . Vês
um jornalista, como o Ennes, fundar o seu jor-
nal e iniciar uma campanha tremebunda contra
a dictadura de um governo desvairado de nevro-
patas e de saltimbancos, que fazem uma reforma
A RUA DO OIRO 207
de lei eleitoral de cada vez que querem um bill
de indemnidade para se pôr a salvo da res-
ponsabilidade de quantas tratantadas empreen-
deram e realisaram. . . E o que aconteceu ao
Ennes ? Embucharam-no com doze contos de
réis por anno, que é uma bucha com que toda
a gente embucha, e assim se viram livres d'elle...
Critica ? Boa critica ? Critica de costumes ? Isso
é cada um em sua casa, com a sua mulher e os
seus filhos !i)
Eu podia perguniar-lhe, e perguntava muito
bem :
— tMas porque transiges tu, ó Chico do Pa-
trocínio, tu que não queres ser ministro, nem
membro da Academia, nem commendador ?»
— «Porque não tenho nada de melhor a fazer I
— respondia elle. — Eu ponho sempre o meu in-
teresse acima de todos os interesses ; mas de-
pois de servir o meu interesse, sendo-me possí-
vel servir os interesses da minha pátria, dos
meus concidadãos e até dos mieus amigos, teria
nisso muito gosto e de bom grado o faria. .
Ora eu não posso, infelizmente, senão servir o
meu interesse. E o meu interesse é este : ven-
der os meus versos, e, por via do reclame dos
meus versos, encontrar compradores para os
meus moveis antigos.. Aqui tens tu. Outros
que barafustem e preguem nos desertos. Eu, e
208 A RUA DO OIRO
OS da minha caravana, descobrimos os Oásis,
e refagiámo-nos nelles. . .»
Quando chegámos ao fim da rua, que havía-
mos subido pelo passeio da esquerda, e elle
propôz que cortássemos para o lado de lá, por
onde andavam «outras caras», já eu começava
a pensar e a dizer com os meus botões, que
aquelle maroto do Chico talvez tivesse razão.
— «E tu, Amarante, que programma trazes?
a que partido pertences ?»
Eu nem trazia programma, nem pertencia a
nenhum partido. Tinha vindo para a politica
um pouco ao acaso, estava vendo em que para-
vam as modas.
— «Homem ! forma tu um partido. . . »
Organisar um partido politico parecia uma
coisa difficil, e afinal era uma coisa fácil. O que
era difficil era achar para isso a opportunidade.
Essa opportunidade dava-se agora, precisamente
agora, em Portugal.
Acabara-se o dinheiro.
Acabara-se a Uberdade.
Acabara-se a esperança.
Experimentados um a um, os homens de go-
verno tinham dado o que podiam dar, dentro
dos chamados partidos militantes. Um a um,
todos elles haviam perdido a confiança que num
dado momento houvera nos seus méritos, no
A RUA DO OIRO 209
seu pulso, na sua dignidade. Os que não tran-
sigiam com a força das circumstancias, met-
liam-sc em casa, liquidados. Os que transigiam
com ellas, eram victimas da própria transigên-
cia, e liquidavam, egualmente. O que sobejava
dos velhos partidos constitucionaes, das suas
tradições, dos seus credos, das suas energias,
pertencia ao inventario dos museus e dos archi-
vos. Eram velhas coisas arrumadas em pratelei-
ras, dispostas em panóplias, mettidas em armá-
rios, enfiadas em manequins, com números de
catalogo, e rótulos summarios da sua historia,
pregados com alfinetes. O que havia a fazer
era simplesmente entrega-las aos cuidados d'um
conservador que as tivesse sempre em ordem,
mandasse limpá-las da poeira de vez em quando
e tratasse bem de preservá-las da traça. O José
Luciano e o António de Serpa, por exemplo, pre-
cisavam bolas de naphtalina nas algibeiras da
sobrecasaca, e um pouco de espanejador nas
idéas.
Quem viria agora ?
Esta pergunta, que andava na bocca de todos,
determinava a boa opportunidade para a orga-
nisação d'um partido.
Bastava que uma só voz se ouvisse, respon-
dendo :
— «Eu !»
14
210 A RUA DO OIRO
Fosse de quem fosse, essa voz seria immedia-
tamente a voz de um chefe.
Todos se voltariam para o lado d'onde a voz
partisse. Quem é ? Quem não é ? Levante o
braço quem foi ! E então, um homem que nin-
guém conhecia, erguia e agitava no ar o braço
ousado.
— «Ao estrado !» — bradava a multidão.
— «Que fale !» — gritava a populaça.
E o homem trepava, atabalhoadamente, ao
estrado, batia com a mão espalmada sobre o
peito, revolvia a gaforina, procurava meia dúzia
de frases sonoras, recorria á memoria de
quantos velhos programmas de partido lhe ti-
vessem passado pelos olhos, dando tudo isso
como novo e como seu, encolerisava-se contra
todos os abusos do poder, invectivava todos os
despotismos, flagellava todas as fraudes, enu-
merava todos os esbanjamentos, invocava to-
das as grandes idéas, adoptava todos os novos
princípios, oíferecia o peito á defeza de todas as
santas causas. . .
Já a multidão, facilmente sugestionada, e
como que toda ella percorrida pelo mesmo des-
conhecido fluido de enthusiasmo, não ouvia bem
o que elle dizia, nem já percebia a relacionação
d'aquillo que elle. dizia com os desconcerta-
dos gestos que disparava ; e só era possível
A RUA DO OIRO 211
apreender, por fim, claramente escapas á con-
fusão dos sons roucos em que elle embrulhava
e expellia os restos do discurso, uma ou outra
palavra, uma ou outra promessa. . .
. . . Regeneração I
Pátria I
Questão financeira I
Isenção de caracter. . .
Forças vivas da nação I
A situação angustiosa do momento. . . a Agri-
cultura... a Humanidade... o Código admi-
nistrativo... o dia de amanhã!
Tudo aquillo andava, como se costuma dizer,
no espirito de todos. Faltava quem o dissesse,
faltava quem o bradasse, faltava, sobretudo,
quem promettesse remediá-lo. Toda a gente ti-
nha medo da Policia, e calava- se. Tinha se medo
da Municipal, e mettia-se a gente em casa. Ap-
parecia, porém, um homem que declarava não
ter medo nem da Policia, nem da Municipal, e
que promettia todos os desafogos, todas as ga-
rantias, todas as liberdades, desde que lhe pas-
sassem o poder para as mãos.
Mas quem era esse homem í
Mas o que era o poder ?
O homem, ninguém sabia quem era. O poder
era uma coisa que não era de ninguém, mas de
que toda a gente podia dispor. E toda a gente,
212 A RUA DO OIRO
nesse momento, dispunha do poder a favor
d'esse homem que lh'o pedia. Em Portugal,
quem dizia poder dizia Policia e dizia Munici-
pal. Ter uma de prevenção e contar com a ou-
tra, era quanto bastava para administrar um es-
tado, onde as coisas se passassem como se pas-
savam aqui.
— «Bem ! — dizia- se então a esse homem. —
Ahi tem você o poder. Agora governei»
Tinha-se acabado a esperança. Mas eis que a
esperança renascia. Tinha-se acabado a liber-
dade. Mas tornava a haver liberdade. Tinha-se
acabado o dinheiro... Era todavia forçoso ar-
ranjar mais dinheiro.
Evidentemente. Mas como ?
Augmentando os impostos. . .
Não podia ser. O que era preciso era redu-
zi-los.
Reduzindo os juros da Divida...
Peor ainda. O que convinha era que se vol-
tasse a pagá-los integralmente, como d'antes.
Cortar pelos ordenados ao funccionalismo,
acabar com os empregos onde não houvesse que
fazer ...
O quê ? ! O quê ? I
Só assim, meus amigos, só assim! E' ter pa-
ciência. E' soffrer. E' aguentar. . .
Nunca I Tudo, menos isso. Olhem que tal nos
A RUA DO OIRO 2l3
sahiu o sujeito, ein ? Então, não querem lá
vêr? Não está máu Messias este, não . . Comí-
cios I Toca a fazer comícios. Nada de graças.
E' necessário protestar, é indispensável protes-
tar. Então, não querem lá vér ? I
No domingo seguinte, a mesma multidão que
dera o poder a esse homem, pretendia reunir-se
num comício ím que se tratasse de obstar a que
cUe viesse sobrecarregar com mais impostos, ou
agravar com mais reduções, a vida nacional.
Mas quando toda a gente chegava ao ponto onde
combinara reunir-se, já encontrava lá uma força
de polícia, que a punha em debandada.
Ella queria resistir. A policia prendia-a. EUa
recalcitrava. A policia espancava-a. Ella engal-
finhava-se na policia. E o homem de governo,
pelo telefone, mandava sahir a Municipal, que a
desancava.
— «Evidentemente — concluía o Chico — não
são estes os homens de governo que o paiz
precisa. Mas são estes, incontestavelmente, os
homens que a multidão merece.»
Defronte da loja de modas do Lopes de Se-
queira estava parada uma carruagem. O Patrocí-
nio chamou-me a attenção, puxou me pelo braço:
— «A D. Claudia e a filha. . . »
Alvorocei-me. Onde as vira elle ? Mas onde ?
E descrevi um semi-circulo de relance, sobre o
214 A. RUA DO OIRO
calcanhar, numa viva pressa, olhando para to-
dos os lados. Do fundo do coupé, forrado de
claro, destacavam-se então, voltados para o nosso
lado, os dois vultos conhecidos de Clarinha e
da mãe, quando os meus olhos se encontraram
com os olhos d'ellas.
Corri á portinhola :
— «Oh, minhas senhoras. . . »
E fora aquillo uma festa para mim e para
ellas, como se nos não avistássemos ha muito
tempo. j|Pois ainda na véspera eu lá tinha estado
em casa !
— «Anda gosando o seu feriado ?» disse-me
D. ^Claudia.
— ^lAndo entretendo o meu feriado... Está
um dia lindo !»
Mas Clarinha quiz logo cortar o fio de bana-
lidade cerimoniosa que já ia tecendo esse pas-
sageiro dialogo, para lhe imprimir o seu sainete
risonho de despretenciosa familiaridade :
— «E andava tão entretido, que foi preciso
que o seu companheiro lhe fizesse signal para
dar por nós ...»
— «E' verdade. Eu não tinha conhecido a
carruagem.»
D. Claudia engatilhara o lorgnon sobre o
Chico do Patrocinio, media-o da cabeça aos
pés, prescrutadora. Demónio ! pensei eu. Lá
A RUA DO OIRO 2l5
está ella a reparar-lhe nas botas, que tanto pre.
cisavam ser engraxadas.
— «Quem é aquelle rapaz ?» perguntou ella
depois de demorado exame.
Inclinei-me mais na portinhola, informei com
certo gosto :
— «E' o Francisco do Patrocinio. . . o poe-
ta... o nefelibata !»
— «Ah !. . . fizeram as duas, mãe e filha, a
um mesmo tempo. — Este é que é o Francisco
do Patrocinio ?I»
E Clarinha não poude ser senhora de si, oc-
cultou-se precipitadamente para trás, no fundo
do coupé, e riu, a bom rir, do Chico, da sua fi-
gura, da sua cabelleira, de toda aquella aureola
de reluzente disparate.
— « Que ratão ! Mas que grande ratão ! »
D. Claudia, muito inquieta, dizia entre den-
tes, reprehensiva :
— «Oh, Clarinha, por amor de Deus ! olha
que elle está a olhar para cá. . . Olha que elle já
está desconfiado. . . »
Eu serenei-a, tomei a responsabilidade, achei
muita graça, e ri também, dissimulando, como
se rissemos de coisa muito diversa. Nem elle
prestava attenção. E que prestasse ! Estava ha-
bituado. Elle mesmo o dizia : que até gostava
de que o troçassem. Era metade do seu êxito.
2l6 A RUA DO OIRO
D. Claudia, já interessada por estas singula-
ridades do meu amigo poeta, de quem fizera
uma idéa muito diversa «pelas poesias», mos-
trou desejo de o conhecer, de lhe falar.
— «Vossa Excellencia dá licença que o apre-
sente ? . . . »
Mas ella receiou que Clarinha não podesse
ter mão em si, se não contivesse. . . Sabia como
ella era, e se a tomasse naquelle momento al-
guma das estridentes convulsões de riso que
costumavam dar-lhe, era uma semsaboria, era
uma inconveniência.
Clarinha protestou. Não, lá isso não. Tam
bem não era tanto assim. Ora ! não era ne-
nhuma creança... E pôz-se muito séria, pro-
metteu não nos comprometter. E ella mesmo
pediu :
— «Chame-o, chame o I»
Já o Chico percebera, muito fino, fino como
um coral, que se falava d'elle, da sua pessoa,
talvez dos seus versos, com certeza da sua gue
delha. A um leve aceno meu, endireitou-se mais,
arqueou alto o braço, levou a mão ao chapéu,
adeantou um passo para a carruagem, descre-
vendo uma profunda reverencia antiga, restaura-
da ..
— «O meu amigo Francisco do Patroci-
nio . . . »
A RUA DO OIRO 217
D. Claudia tinha um grande prazer em o co-
nhecer pessoalmente. Pelos seus versos, pelos
seus lindos versos, ha muito tempo que o co-
nhecia, que o admirava. E elle ! Oh, elle, que
subida honra, senhora D. Claudia, que bem-
aventurança ! Ha quanto tempo alimentava elle
esse desejo, que agora estava sendo satisfeito,
de ouvir o divino verbo da grande propugna-
dora dos direitos da Mulher em Portugal !
Tanto empenho tivera, tanta diligencia empre-
gara para assistir a alguma reunião da Liga
Feminista em que a senhora D. Claudia fi-
zesse uso da palavra, e não o conseguira,' uma
vez porque fora forçado a ausentar-se de Lis
boa, outra vez porque cahira doente, ora por
isto, ora por aquillo, mas sempre por alguma
razão ponderosa, por alguma causa inevitável
ou inadiável . . .
Estavam preciosos, ella e elle, realisando
essa generosa transacção de elogio mutuo. Mas
já Clarinha, dotada de uma precoce percepção
de todos os ridículos, intervinha para reduzir
aos meus olhos a má impressão de alta caboti-
nagem que resaltava da conversa, toda artificial
e presumida, em que a mãe e o meu poeta se
intrujavam e delambiam, como um peralta e
uma sécia na modelação de um madrigal. E
dirigindo-se ao Chico :
2l8 A RUA DO OIRO
— « Quando publica outro livro de versos, se-
nhor Patrocínio ?»
— t Ainda não sei, minha senhora... Tenho
agora em preparação um pequenino poema. . .»
— aE" que eu já sei de cór quasi todos os
versos dos Oásis. . . E quero mais !. . . »
O Chico não cabia em si de contente. Nem
atinava com o que dizer. Teve até o ar mal
geitoso de quem suppunha que aquillo fosse
troça. Mas theatral, reentrando, apressado, no
papel a sério, tomou a deixa :
— «Vossa Excellencia deve ter uma excel-
lenté memoria I»
— «Pois olhe que é verdade ! confirmou D.
Claudia. — Eu ás vezes nem sei como ella pôde
raetter tanta coisa na cabeça, sem as baralhar
umas com as outras. . . Sabe de cór paginas e
paginas inteiras de coisas que tem lido. . .»
Eu abundei na asserção, permitti-me um gra-
cejo :
— «Não se faz idéa ! Chega a ser inacreditá-
vel... Imagina tu que foi pela senhora D.
Clara que eu tive conhecimento do ultimo Dis-
curso da Coroa I Disse-m'o todo, sem lhe faltar
uma palavra, como um fonógrafo. . . »
Clarinha achou immensa graça. Riu muito.
, — oNão I Lá isso não... Tudo quanto qui-
zerem. . . menos o Discurso da Coroa !»
A RUA DO OIRO 219
Mas da loja de modas sahiu, a este tempo, e
veiu a meio do passeio trazendo um grande
embrulho., um caixeiro do Sequeira. Clarinha pe-
diu-nos licença para receber o embrulho das
mãos do caixeiro, que lh'o passava pela porti-
nhola. D. Claudia ainda fez qualquer recom-
mendação a respeito de uns alamares. E logo
que o senhor Sequeira chegasse de Paris com
as sedas, que lh'o mandassem dizer, para ella
vir escolher alguma coisa bonita. Depoiá pe-
diu-me :
— «Olhe, ó senhorr Amaral, faz favor de di-
zer ao cocheiro que ainda vamos pelo Ferrari ...»
Eu transmitti, lestamente. Chico descobriu-se
outra vez á antiga, esperou que I). Claudia
accommodasse o embrulho com outros que já
trazia no coupé, e lhe estendesse a mão.
— fDê-nos o gosto de vir a nossa casa, se-
nhor Patrocinio. . . quando queira.»
Clarinha ainda insistiu por mais versos. Chico
agradeceu, confundido, extremamente penho-
rado, o offerecimento de uma e a insistência da
outra .
— «Muito obrigado a Vossa Excellencia. mi-
nha senhora... Vou apressar o poema, minha
senhora ...»
D. Claudia ainda me disse :
— «Não apparece esta noite por lá ?t
'^20 A RUA DO OIRO
Sem olhar Clarinha, eu percebia que ella me
fazia, com os seus lindos olhos, aquella mesma
pergunta. As suas mãosinhas inquietas procura-
vam disfarçar a sua pequenina anciedade, repu-
xando e ajustando-lhe ao pescoço a pelle de bi-
cho. Estava bem galante, a Clarinha, nessa
tarde, com aquelle vestido cor de coelho bravo,
enfeitado d' uma formosa guipure Colbert, e o
seu chapéo de plumas escarlates. Bem galante I
Tive quasi vontade de lh'o dizer.
Talvez. Talvez me fosse possível. E se me
fosse possível, iria. Mas não queria dar a cer-
teza.
— «Veja então se pôde...» disse ainda D.
Claudia.
E quando me arredei da portinhola, e a pa-
relha do carro levantou as patas a compasso
para despegar, outra vez os meus olhos se em-
beberam nos olhos de Clarinha, que me diziam
também, e com mais vehemencia:
— «Veja então se pôde I»
— «Muito interessante esta D. Claudia I» —
dizia o Chico.
j^ — «E a filha ?»
— tTambem muito interessante, muito gra-
ciosa. . . »
Eu ia cahindo, por um triz, em confidencias.
Contive-me a tempo. O Chico era um excellen-
A RUA DO ©IRO 22
te rapaz, mas não tinha a lingua segura, dava
muito com ella nos dentes. E apenas disse :
— «Oh ! não imaginas. . . Muito graciosa. . .
e muito intelligente I»
— «Ora aqui tens tu — continuou o Chico —
um caso curioso de celibato forçado. . . »
Eu não percebia.
— cAqui. . . onde ? qual caso ? . . . »
— «O caso d'esta rapariga.»
— «... Clarinha ? I»
— «Sim. Pois não sabes ?»
Estremeci. Fiz um grande esforço para do-
minar a emoção que me tomava e me resfriava,
como se um floco de neve me houvesse cahido
entre o collarinho e o pescoço, e me fosse es-
corregando ao longo da espinha.
— «Não... Não sei nada... Mas o que é ?
Conta lá !»
— «E' uma coisa sabida ! — foi o Chico di-
zendo sem ter dado pela minha excitação. —
Uma coisa notória ! Não ha quem queira casar
com ella. Coitadinha. . . Ella bem quer, ella
bem lhe faz a diligencia, mas não ha meio. . .»
— «E porquê ? — disse eu ainda, gaguejando,
sentindo que um nó me prendia a fala, me aper-
tava a garganta, — Algum escândalo ? I»
— «Não... Por ella, não. E' por causa da
mãe. . . Isso sabes tu. Vaes lá, dás-te com ellas
222 A RUA DO OIRO
andas mettido na politica, até o deves saber
muito mellior do que eu I»
Mas logo o nó que me apertava a garganta se
tornou lasso e frouxo, e me libertou a fala. Vol-
tei a mim, com afan; empolguei outra vez, vigo-
rosamente, a minha estimável faculdade de ra-
ciocínio, increpei na pessoa do Chico do Patro-
cínio a desarrasoada facilidade, a deplorável in-
consciência com que se vilipendiava e se man-
chava de um labéo afrontoso a reputação de
uma mulher I E como essa mulher fosse mãe, a
criminosa leviandade com que se fazia derivar
e alastrar sobre a vida, o futuro, todo o destino
da filha irresponsável, o desdoiro de uma accu-
sação, que bem podia ser até uma falsa accu-
sação ! Era uma indignidade. . . Era uma cana-
lhice I Depois, a respeito de D. Claudia, que
boas razões, que flagrantes provas havia para se
acreditar na sua culpa de adultério ?
— «Pois tu ainda estás ahi, ó Joaquim do
Amaral ? I — atalhava, troçando, o meu poeta e
meu amigo. — Pois tu ainda queres, tu ainda
exiges provas jurídicas para que possas acredi-
tar num caso de adultério ?»
— «E porque não ? !»
— «Tu só admittes então a existência de um
adultério quando tenhas sido testemunha ocular
do flagrante delicto ? . . . •
À RUA DO OIRO 223
— a . . Ou quando o flagrante delicto tenha
sido presenceado por pessoa idónea!»
— «Essa é forte, Amaral ! Essa é muito forte !
Has-de concordar que essa é fortissima ! Olha
que não ha de ser fácil ... A gente, quando se
mette nessas saborosas aventuras, quer sempre
tirar d'ellas os máximos proveitos, e tem cau-
tela, toma as suas precauções. ..»
— «Pois tanto melhor para quem as tome, se
é que sabe toma-las de modo a destruir as
provas.»
— «Tu não ignoras, com certeza, como essas
coisas sempre se fizeram, e a perfeição com que
ja hoje se fazem em Lisboa. . . Não se corre o
menor risco I »
— «Bem sei. . . Os par\iisos. . . Como o do
Primo Bazilio !»
— «Ora adeus, meu amigo! Estás atrazado
vinte annos na historia côr de rosa da prostitui-
ção... Os paraísos já não ofFerecem seguran-
ça, todos os maridos os conhecem, é matto des-
bravado. Sáo paraísos .. . perdidos! Hoje ha
coisa melhor, muito melhor, incomparavelmente
melhor I Nós já temos por cá, á semelhança das
grandes capitães, um d'esses misteriosos Ren-
de\-vous des Gourmets até onde sobem, sem
correr a mais ligeira contingência de compro-
mettimento, algumas das mais illustres filhas do
224 A RUA DO OIRO
Tejo, em parenthesis de desvario no rigoroso e
pautado cumprimento dos seus deveres conju-
gaes. . . Olha, não vamos mais longe. . . »
Estávamos á esquina da Travessa de S. Ni-
colau. O Chico deteve-me um instante, apontou
um prédio fronteiro, que formava a outra esqui-
na, e deitava janellas para a Rua do Oiro. K
continuou :
— «Ali o tens tu, naquelle prédio. E' umn
casa que gosa de excellente reputação — no seu
género. . . Installação de primeira ordem, todo3
os requintes do luxo e do conforto. . . Grandes
espelhos de Veneza. . . Grandes pelles de
leão... Estofos e molas magnificas I Não ima-
ginas ! O Rendei-vous é no segundo andar. No
primeiro, como vês, é o consultório de um den-
tista. . . Lá tem a taboleta. Tal e qual como se
faz lá fora, nos grandes centros, nas grandes
capitães... De modo que quem passa na rua,
e vê parada áquella porta a carruagem da Se-
nhora Baronesa ou da Senhora Condessa, o mais
que pôde suppôr é que essas illustres damas de-
vem soffrer horrivelmente dos seus bellos dentes,
para que tantas vezes subam a casa do seu den-
tista ! E' uma grande benemérita a dona d'aquella
casa. . . Deves ter ouvido falar. . . A Antonieta!»
E noutro tom, de quem não queria assumir a
responsabilidade da calumnia : o Ha quem diga
A RUA DO OIRO 225
que esta D. Claudia é uma das melhores fre-
guezas . . D
Redobrei então de indignada vivacidade. Quasi
insultei o meu poeta, que sorria. Aquillo era,
por força, uma refinada mentira, uma infundada
e asquerosa diffamação, ditada e propalada pelo
ódio dos politicos e por invejas de mulheres,
que não perdoavam a D. Claudia nem a sua
poderosa influencia no animo do Presidente do
Conselho, nem o bello renome que lhe provinha
do ruidoso movimento iniciado com a Liga Fe-
minista. Elle o dissera, o próprio Chico o dis-
sera : que eu, indo lá a casa, frequentando já na
intimidade a casa de D. Claudia, melhor o sa-
bia, melhor o poderia informar. E assim era.
E [com muito enthusiasmo o dizia bem alto:
não acreditava em nada, absolutamente em nada,
do que se podesse dizer e infamemente divulgar
em desabono d'essa mulher, que eu estimava e
respeitava I
— «Bem I Bem I — conciliava o Chico, já ar-
rependido. — Não podia suppôr que tomasses a
coisa tanto a sério. Isto é falar, é conversar.
Nem eu faço declaradamente profissão de má
lingua. Deixa estar que não serei eu que me en-
tretenha em diíFamá la. . . Não, não. . . que ella
compra-me os versos e ainda ha de comprar-me
alguns moveis ...»
15
220 A RUA DO OIRO
Ainda encontrámos outras pessoas conheci-
das : o Padre Eterno, carregado de papeis ; o
Melecas, cheio de noticias ; o Gonçalinho Palha,
todo perfumado de trevo. Eu queria que o Chico
viesse jantar commigo no Hotel. Ficaria mal jan-
tado, pois que o Borges despedira o antigo co-
zinheiro e tinha agora lá um hespanhol que tem-
perava a comida com explosivos. Mas era só
pelo prazer da companhia, pois já ia longe, e
sem deixar vestígios, aquelle momento de mau
humor. E o Chico, annuindo, quiz que tomásse-
mos absintho.
Desapparecia o sol, já poucas mulheres anda-
vam na rua, recolhiam apressadas. Escurecia
brandamente. Entrámos no Café Áurea.
— «Aqui me encontrarás todos os dias, inva-
riavelmente, a esta mesma hora. . . — dizia-me
elle. — Quando quizeres vêr-me, já sabes. Nesta
mesma mesa. Não falho».
Deitando o absintho nos copos e deixando
correr depois, gotta a gotta, a agua que o tur- .
vava, como na attenta observância de um pre-
ceito ritual, o Chico continuava a falar, a falar,
a falar... Mas entre os dedos compridos, ter-
minando em compridas unhas, da sua mão os-
suda, onde se engastava uma formosa ame-
thista de Ceilão (que estivera no annel de Frei
Bartholomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga)
A RUA DO OIRO 227
a garrafa da agua oscillava, precipitando as
gottas. Elle apoiava então o cotovello sobre o
mármore da meza, mas nem assim evitava as
oscillações.
— «Tu entras muito pelo absintho, Patrocí-
nio?»
— aNão. . . Muito não. Mas já não passo sem
elle ! Grandes males, grandes remédios I En
cas de doute, abs/nthes-toi . . . O grande remé-
dio da duvida é o absintho.»
— tMas faz-te mal.»
— «Eu perdoo o mal que elle me faz por o
muito bem que me sabe. ..»
— «Pois sim ! E um beilo dia, sem saberes
porque, nem como, começas a perder essas co-
res, esses hombros, esse aprumo ...»
— «Bem sei. . . Perturbação de funcções, en-
fraquecimento de força muscular, perda de me-
moria, anesthesia completa. . . Deixa lá. . . Deus
é grande ! »
— cE a forçasinha genésica ?»
— «Grande também, por emquanto !»
E tomou do copo dois abundantes goles.
Depois, desviando-me a attenção para o lado
da rua :
— «Descobri aqui, para meu uso, o espectá-
culo mais barato e um dos mais divertidos que
é possivel des-fructar em Lisboa. Além do que,
228 A RUA DO OIRO
O espectador tem direito a quantas bebidas qui-
zer, pagando-as. . . Através d'aquelle vidro
fosco das portas passam por aqui, em diversos
andamentos, ao sabor de qualquer musica trau-
teada, quadros e figuras das mais pittorescas que
tem a capital. Três minutos na presença d'este
animatografo bastam para dar uma idéa da curio-
sidade do espectáculo. Passa, por exemplo, um
ministro a pé. Logo atrás, a cavallo, passa o
correio do ministro. Porquê ? Porque o correio
tem direito ao cavallo e o ministro não tem o
mesmo direiío ao trem. E d'este simples caso
decorre, naturalmente, com a fácil moralidade
de uma fabula, a conclusão patusca, filosófica,
de que o correio é o mais feliz dos três. .. No
momento em que o ministro passa, ura pobre
estende a mão — a vêr se chove. O ministro
espirra. E um outro transeunte, illudido com o
movimento da mão do pobre, coincidindo com o
borrifo que o nariz do ministro espalha, abre
rapidamente o guarda-chuva, e apressa o passo.
Dez, vinte, trinta pessoas que se cruzam no
passeio, abrem no mesmo momento os guarda-
chuvas ; outras levantam a gola, outras arrega-
çam a saia. Durante quatro segundos tem-se a
mais completa illusão da chuva — uma verda-
deira chuva de mólha-tolos. Ha então um cava-
lheiro de chapéo alto, abrigado num portal, que
A RUA DO OIRO 229
faz O mesmo movimento do pobre d'inda agora,
não querendo metter o chapéo fino á chuva ; e
uma senhora caridosa, que passa, pára, pro-
cura qualquer coisa no seu saquinho de velludo,
e mette um vintém na mão do cavalheiro de
chapéo alto. Do outro lado da rua cresce, em
linha recta ao vidro, a sombra de um cão sem
dono. Chega á porta, cheira, alça a perna, e es-
guicha.. . a Salsaparrilha e soda!» grita um
creado ao balcão. Um vulto de maltrapilho
distribue prospectos. Passa outro de grandes
barbas, quer um prospecto também. O homem
diz-lhe que não. Não? Porque não?! Porque o
outro usa crescida a barba e o prospecto an-
nuncia navalhas para a barba... Mas o que é
isto? que disparate é este?... Isto é a vida.
O que não quer dizer que muita gente não
ache a vida uma coisa divertida, mas muito di-
vertida !»
VII
Uma noite, Já tarde, entrando no Hotel, ines-
peradamente encontrei no meu quarto um volu-
moso masso de cartas e jornaes da Ilha, vindos
por um navio da carreira da America.
Eu recolhia massado, «esbodegado» — como
diziam as meninas brazileiras dos quartos mais
caros — após um demorado e muito animado
serão em casa de Antonieta, com quem eu es-
treitara relações, e de quem recebera um bi-
lhetinho convidando-me a apparecer nessa noite,
sem falta, para me encontrar com «um antigo
conhecimento» que me havia de dar grande pra-
zer.
Intrigado, e confiado nos bons créditos da
casa, que primava na escolha dos seus artigos,
para lá eu correra á hora indicada, cora prés-
232 A RUA DO OIRO
surosa pontualidade. E fora, com effeito, uma
boa surpreza, que muito prazer me dera.
O antigo conhecimento era (mal poderia eu
suspeitá-lo!) a Margarida Tricana, que estava
uma maravilha, e que eu não poderá reconhe-
cer á primeira vista, tão mudada ella estava '
Fora até muito bem preparada a surpreza, pois
quando eu entrava na sala azul onde Antonieta
recebia as suas visitas mais intimas, e achando-
se já ali algumas amigas da casa em attitudes
expectantes, e cada uma d'ellas com o seu nome
de guerra mirabolante, nenhum d'esses nomes
me recordava qualquer creatura que houvesse
conhecido noutros tempos em Coimbra, durante
a formatura, ou em Lisboa nas férias, de pas-
sagem para a Ilha. De modo que quando a An-
tonieta, affectando um grande ar de cerimonia,
concluía as apresentações, e eu já estava per-
suadido de que o antigo conhecimento não che-
gara ainda, pois não o vira ali, uma unisona e
fresca gargalhada rompia d'aquelle grupo ga-
lante de mulheres, coroando o êxito da intriga
que me tinha sido preparada. E uma d'ellas,
então, avançando para mim, e plantando-se
na minha frente, com mais viva jovialidade me
dissera :
— «Pois tu já não me conheces, ó ingrato ?!»
E só assim eu a reconhecera, e só assim a
A RUA DO OIRO
233
teria reconhecido, porque estava inteiramente
mudada, a nossa querida e saudosa Margarida
Tricana ! Ella, que era magra, miudinha e dé-
bil, apparecia-me agora cheia, fortalecida, rija.
Ella, que era tiniida, modesta e encolhidita, es-
tava agora desinvolta, pomposa, imponentís-
sima ! Ella, que d'antes tinha o cabello mais
lindamente castanho d'este mundo e do outro,
era agora loira, d'um. loiro fulvo, excessivamente
loiro ! Quem poderia tê-la reconhecido, quem ?!
Mas estava muito melhor, incomparavelmente
melhor. Estava soberba. Estava óptima. Como
se fizera uma tão grande e bella transformação?
Como fora aquillo ?
Contou-me tudo. Para mim não havia segre-
dos desde o tempo da Couraça dos Apóstolos.
E depois, era um amigo, oh ! um velho e bom
amigo. . .
Depois que eu e o Fausto tínhamos sahido de
Coimbra, ella não poderá mais aguentar-se por
lá. Affeiçoara-se-nos tanto, tanto se identificara
comnosco e com a nossa alegria, que nunca
mais, depois da nossa partida, poderá resignar-
se a ficar e a viver por lá. Era do nosso curso,
concluirá também o «seu curso». E lançara
mão do primeiro ensejo para também fugir.
Offereceralhe esse ensejo um actor do Porto,
um tal Bravo, que andava no verão por terras
234 ^ Í^UA DO OIRO
da província com troupes de opereta. Gostara
d'elle, deixara que elle a levasse para o Porto.
Mas sahira-Ihe um mariolao, que a maltratava,
e que á custa d'ella, e chegando a bater-lhe, ti-
nha querido viver uma temporada de inverno
em que não arranjara theatro.
Deixara- o, fugira para Lisboa.
Foi a sua felicidade. Uma vez em Lisboa,
tudo lhe correra ás mil maravilhas. Por inter-
médio de uma prima, que tinha casa de hospe-
des, arranjara um encosto muito vantajoso com
um hospede que chegara do Brazil no mesmo
dia em que ella chegara do Porto. Fora issp um
romance. O homemsinho era de Braga, engei-
tado e creado por uma pobre gente que o
tinha levado para Manaus, ainda muito pe-
queno. Marido e mulher, que eram, por lá ti-
nham morrido. Elle trabalhara e enriquecera,
chegara aos cincoenta annos solteiro, sem filhos,
com um aneurisma e uma fortuna. Com o pre-
sentimento de que morreria cedo, sem uma
affeição sobre a terra alheia, e com um grande
desejo de vir morrer a Portugal e de voltar a
ver Braga, mettera-se no primeiro paquete e
abalara por ahi fora.
Um companheiro de quarentena, no Lazareto,
indicara-lhe a casa de hospedes da prima de
Margarida, onde elle seria tratado e amimado
A RUA DO OIRO " 235
como pessoa da família. E assim acontecera.
A Margarida Tricana, emquanto não arranjava
pé de vida, e como tivesse vendido os últimos
oirinhos para fugir do Porto, não tendo génio
para estar ás sopas da prima sem ao menos lh'o
pagar com trabalho, declarara que tomava á sua
conta o arranjo dos quartos, e nessa lida se fora
aproximando do «brazileiro», que chegara muito
amachucado da viajem, e passara quasi todo o
dia na cama, sobre as roupas. Boasinha como
era, como rós sempre a tinhamos conhecido, a
Margarida, bem mais por bondade que por in-
teresseiro calculo, insinuara-se no animo do hos-
pede novo, e em tão boa hora, e com tanta
sorte, que pouco tempo depois estava em casa
sua, que elle lhe pozera em seu nome, com pro-
messas de mais grossa e mais choruda fatia.
Então a vida entrara a ser para a Margarida
Tricana uma boa coisa compensadora do seu
pequenino sacrifício junto d'aquelle homem doen-
te, que temia excitações e se contentava com
aspirar o fresco perfume de saúde que d'ella se
desprendia, da sua carne e da sua seiva. E ar-
redondara, e engordara.
Por seu lado, o homemsinho tinha encontrado
também, e finalmente, um bom affecto na terra.
E assim durou ainda seu anno e meio, contente,
sereno, confiado. Tão confiado e tão sereno,
236 A RUA DO OIRO
que o aneurisma, farto de esperar um sobre-
salto, resolvera rebentar assim mesmo, no meio
d'aquella confiança e d'aquella serenidade.
Margarida vestiu ainda, pelas suas próprias
mãos carinhosas, o cadáver do seu homem, cho-
rou-lhe sobre o caixão, e chorou deveras. Mas
não quiz mais ficar naquella casa, onde o morto
lhe apparecia entre todas as portas e nos vãos
de todas as janellas. Agora, era minha vizi-
nha. . .
— «Minha vizinha?»
— «Sim. Tua vizinha. Muitas vezes, das mi-
nhas janellas, te tenho visto á janella do teu
quarto. . . E' verdade : e como está o teu col-
lega Poças ?»
Cahi das nuvens ! Pois era ella, a Margarida
Tricana, a nossa vizinha do terceiro andar da
esquina ! Pois era por ella que o Poças andava
apaixonado? !
Nem mais, nem menos. Mas pediu-rae logo
as máximas reservas. Não queria que o Poças
suspeitasse, nem por sombras, das nossas anti-
gas relações, e que nem sequer podesse sonhar
do nosso encontro, naquella noite e naquella
casa.
Tantas precauções e receios aguçaram a mi-
nha curiosidade. Queriam ver que era ella já a
amante do Liberato Poças ?
A RUA DO OIRO zSy
— «Não, não! Palavra d'honra que não...»
Elle apenas lhe falara uma vez, furtivamente,
no jardim da Escola Politechnica. Correspon-
diam-se por carias. E eram cartas a sério, de
que a Margarida pretendia tirar partido, «se ca-
lhasse».
— «Tenho soffrido muito, sabes ? — dizia-me
ella. — E agora, que tenho alguma coisa de meu,
que me deixou o «brazileiro» e já não preciso
andar por ahi á gandaia, quero também ser
gente... Um homem sério, assim como o Po-
ças, convém-me. Depois, ou gosto d'elle, ou não
gosto. Se gosto, tanto melhor I se não gosto, o
menos que falta por ahi são homens de quem a
gente gostei Tudo se ha-de arranjar.»
Ella dizia estas coisas só para mim, a meia
voz, muito em confidencia. Já as outras tinham
abalado, e Antonieta, por sua vez, deixara-nos
sós. Sós, a um canto mais velado da salinha
azul, mergulhados numa chaise-longue, recordá-
mos com mais activa saudade os nossos tempos
de Coimbra e as noites da Couraça.
— «Por amor de Deus — recommendava
ella ainda á despedida — não digas nada d'is-
to ao Poças... an ? Olha que eu confio em
ti ! . . . »
— «Podes confiar — assegurei. — Nem pala-
vra!»
238 A RUA DO OIRO
E quando entrei no Hotel, já tarde, vinha
moído, vinha derrancado.
No grosso masso de cartas e jornaes da Ilha,
logo ao de cima, conheci a lettra apurada do Primo
Theodosio, que puz de lado, para o fim. Depois,
vinha a lettra graúda, muito egual, bem medida
e bem lançada, do Doutor Tarquinio. Depois, a
lettra confusa, deitada, corredia, do Doutor Tris-
tão. E só depois d'essas e de muitas outras,
umas conhecidas, outras novas, é que me appa-
recia a mais desejada de todas, a única desejada
entre todas, naquelle momento de somnolento
cançaço : a lettra miúda, muito compacta e acon-
chegadinha, sem maisculas e sém parágrafos,
da Tia Genoveva.
Era uma carta enorme, de três folhas atulha-
das. Havia novidade, com certeza, e novidade
de vulto, para que a Tia Genoveva tanto escre-
vesse, ella que tanta difficuldade tinha em es-
crever ! Logo ao voltar da primeira para a se-
gunda lauda, dadas as noticias costumadas da
saúde de todos, que era boa (Deus louvado !) e
das coisas de nossa casa, que lá iam continuan-
do na mesma — percebi que a Tia Genoveva
ensaiava complicados rodeios e se perdia em
atormentados circumloquios, antes de entrar
claramente no assumpto que tanto parecia affli-
gi-la e que já começava também a preoccupar-
A RUA DO OIRO l.
me, á medida que mais crescia a periferia dos
circumloquios e rodeios.
«... Emquanto foi o Tlieodosio e tua Tia
Maria da Assumpção, e também as Noronhas,
que encontrei no domingo na missa de São Gon-
çalo, eu não fiz grande caso, nem pensei sequer
em t'o dizer, para q-.ie não te aborrecesses. Mas
imagina que susto eu tive quando hontem me
appareceu aqui o Doutor Tristão a dar-me conta
do que se dizia de ti e do que se tramava con-
tra ti, meu querido Quinino ! Eu ainda lhe pedi
que te escrevesse e te dissesse a ti mesmo o
que eu 'acabava de saber de certeza, mas re-
cusou-se, poz os pés á parede, como se costuma
dizer, e que lhe pedisse eu tudo menos isso,
porque nunca tivera geito para se metter em
vidas alheias nem para vehiculo de intrigas. Vi-
nha dar-me parte do que ouvira e lhe constava,
e trazia-me até um periódico que falava contra
ti, para que eu t'o mandasse, pois que nem isso
mesmo elle queria fazer directamente. Coitado,
é assim, todo cheio de escrúpulos, e sempre
assim o conheci. Nosso amigo é elle, e deveras.
Só Deus sabe também quanto me custa affli-
gir-te com estas coisas, mas parece que melhor
é tu saberes tudo. Aqui, toda a gente começa a
estar descontente comtigo, meu querido Quini-
no, por já se terem passado três mezes depois que
240 A RUA DO OIRO
ahi chegaste e nada constar do que tenhas feito a
bem d'esta terra. O Doutor Tarquinio, que tanto
tomou a peito a tua eleição (embora nós bem
soubéssemos com que reservado fim) anda como
doido, e já brigou com o Pedro AíFonso, que te
tinha dado trinta votos por lhe terem promettido
que as Obras Publicas arranjariam a canada do
Posto Santo, onde tem a quinta, para poder
passar por lá com o carro, e que de tal coisa
nunca mais se falou. O Pedro Affonso fez-lhe
uma espera á porta do Tribunal, e dava conta
d'elle, se não tivesse acudido gente que sahia da
audiência. Isto tem dado muito que falar e até
d"isso se diz que tu é que tens a culpa, porque
se tu quizesses já as Obras Publicas tinham
mandado arranjar a canada... No Centro Re-
generador tem havido reuniões secretas, mas
não tão secretas que se não saiba que nellas se
tem falado muito contra ti e contra o Doutor
Tarquinio, a quem já por lá chamam — o Trai-
dor I E tanta troça lhe fizeram na botica do Cu-
nha e no Club, que já ninguém o vê apparecer
á noite em parte alguma. . . »
Por alto, vi que a Tia Genoveva nada mais
me dizia de terrífico. O resto eram conselhos e
recom.mendações. Mas tudo aquillo me irritara,
me espalhara o somno. Canalhas I Sempre que-
ria vê-los no meu logar, e saber o que fariam !
A RUA DO OIRO 24I
Elegiam-mc deputado independente, entrega-
vam-me um mandato todo de arrogância e de
isenção, encommendavam-me um sermão de al-
tivo protesto paradizer nas bochechas do Poder
Central — e queriam que eu, á capucha, e por
detrás da cortina, continuasse a servir os mes-
quinhos interesses da politica do circulo, arran-
jando lanços de estrada, obtendo empregos, aco-
bertando contrabandos e emigrações clandesti-
nas, livrando latagÕes do recrutamento, promo-
vendo transferencias, exercendo vinganças...
Canalhas !
Num frenesi, rasguei o envelope da carta do
Doutor Tarquinio. Escrevia-me pouco, com ma-
nifesto desgosto; mas discretamente, vendo bem
as coisas, avaliando as circumstancias. Sabia o
que era o Parlamento, sabia o que eram os Mi-
nistérios. Por sua parte estava eu desculpado^
largamente desculpado. Até me dava toda a ra-
zão na attitude reservada em que eu lhe decla
rara manter-me perante as seduções do Go-
verno. Ou bem que era deputado independente,
ou bem que o não era. Mas fossem lá dizer isso
aos outros — aos Pedros Aífonsos I Estavam.os
bem servidos... A autonomia que esses que-
riam era uma autonomia que lhes permittisse
gastar em seu proveito todo o dinheiro que até
agora se mandava para a metrópole, não dis-
16
242 A RUA DO OIRO
pensando porém a metrópole de lhes mandar
mais algum. E o que acontecia ? Acontecia que
os Pedros Affonsos de ambos os partidos (pois
não ha partido nenhum que não tenha o seu
Pedro AíFonso) queriam dar agora o dito por
não dito, e quebrar o accordo de que eu sahira
eleito, cortando-me todas as vazas no Parla-
mento, desprestigiando-me o mandato, se as
primeiras tentativas da ignominiosa campanha
que tramavam me não levassem a depô-lo im-
mediatamente.
— «Pois não hão-de ter esse gosto, sucia de
malandros!» esbravejei, ferrando um valente
murro sobre a commoda, que toda estremeceu.
E não quiz ler mais nada, não quiz saber de
mais nada.
Despi-mc apressadamente, aos repellões. Um
botão de punho mais renitente em sahir da
casa, saltou ao tecto, quebrado pelo pé. Cada
uma das botas foi para seu lado, no desespero
de não ter eu ali, naquelle instante, e a geito, o
trazeiro d'esse velhaco do Pedro Affonso, onde
podesse experimentar-lhes a resistência das bi-
queiras. E mettido na. cama, e assoprada a
vela, antes de puxar as roupas, de me ferrar no
somno e esquecer aquella corja, com os punhos
cerrados e rilhando o dente, ainda investi na
treva, ameaçando-os de desforra !
A RUA DO OIRO 243
Ai de mim ! Eu já não era o senhor, o antigo
senhor, absoluto e ríspido, da minha própria
vontade. Distrahido, contaminado, empolgado
pela Capital, deixava-me agora levar, sem bús-
sola e sem leme, todo o meu querer desmante-
lado, na corrente impetuosa da sedução da Ca-
pital. . .
Admittindo que o homem não é outra coisa
senão um animal, que acha a vida péssima, ou
que acha a vida óptima, conforme nelle se de-
moram ou se abreviam as digestões, eu, animal,
digerindo sem difficuldade a comida ruinosa do
Borges, achava a vida excellente.
Bem longe andava eu de ser como aquelles
catechumenos antigos, que depois de terem as-
sistido ás visões terríveis de certos mistérios,
podiam bem continuar a viver, mas nunca mais
podiam rir. Iniciado e já quasi familiarisado no
mecanismo da alta politica portuguesa, que me
oíferecera surprezas mas não me inspirara ainda
fundas repugnancias ; desfructando todas as re-
galias e todas as estimas devidas á minha con-
dição, e estimuladas pela minha*natural affabi-
lidade no commercio dos políticos, dos frequen-
tadores da Havaneza, dos commensaes do
Borges ; achando fácil e grato o trabalho que
me era distribuído nas commissões da Camará,
para que me haviam escolhido, ainda mesmo
244 A- RUA DO OIRO
naquella de que fora nomeado relator (que era
a commissão de Instrucção) pois de todo esse
trabalho eu me desempenhava folheando dois
ou três livros e com uma perna ás costas ; re-
cebendo amiudadas vezes o mot d'ordre do Go-
verno, por intermédio do meu amigo Fausto,
para não ir á Camará nos dias em que ao Go-
verno convinha que não houvesse numero \ fre-
quentando, talvez já com demasiada assiduidade,
os serões galantes da Antonieta, a respeito dos
quaes o Illustrado guardava uma absoluta re-
serva, mas que nem por isso eram menos agra-
dáveis do que muitos outros de que nelle sempre
vinha noticia minuciosa ; inscripto como sócio
do Turf, onde o meu magico chapéo de coco
cor de abóbora me franqueara a entrada, dis-
pensando o inquérito acerca dos meus titulos de
nobreza, como ordenava o estatuto, e onde me
era grato assomar á varanda entre viscondes, á
hora buliçosa da tarde a que passavam na rua
as viscondessas — a vida de Lisboa desabro-
chara para mim, sob a tépida caricia do céo já
bem azul d'esses princípios de junho, a grande
flor fatal da sedução ! E eu aspirei então, com
delicias, e no goso da minha inadvertência, o
perfume venenoso d'essa bella flor. . .
Ao primeiro periodo de jubilosa actividade
que inaugurara a minha carreira politica, e em
A RUA DO OIRO 24b
que eu quiz abraçar e profundar todas as gran-
des questões do meu paiz — as de ordem poli"
tica e as de ordem moral, as de ordem finan-
ceira e as de ordem económica — revolvendo a
Historia, compulsando os Tratados, comparando
as Legislações; sem abalo brusco de transição,
sem que me fosse dado, sequer, apreciar a
fase de mudança, seguira-se porém um outro
periodo de fadiga intensa, d'uma exagerada
sensibilidade pervertida, d'uma nonchalance per-
sistente, d'uma generalisada irritabilidade, d'um
desequilíbrio funccional, emfim, que me voltava
o miolo, não me deixando já fixar as idéas que
procurava nos livros, deixando-me ler paginas
inteiras c seguidas, capitulos até ao fim, sem
que de tudo isso me fosse possivel fixar uma
noção, nem uma formula, nem sequer uma
frase, chamando-me incessantemente para algum
ponto opposto áquelle onde eu me achasse, ati-
rando-me para cima de todos os divans que os
meus olhos descobrissem, obrigando-me a cha-
mar carruagens para transpor as mais curtas
distancias, mole, mole, espapaçado. . . Sentiame
victima de uma lida que excedia muito as mi-
nhas forças de adaptabilidade nervosa, desalen-
tava, parava, recuava — e acabava sempre, fati-
gado, por dar fundo na Rua do Salitre, onde já
não me era consentida uma ausência de mais de
246 A RUA DO OIRO
vinte e quatro horas sem boas justificações e
mil desculpas.
Tudo quanto a Tia Genoveva me insinuara, e
tudo quanto eu depois aprendera e chegara a
conhecer de nocivo e de fatal no convívio
muito intimo da mulher, parecia tê-lo esquecido
inteiramente, repentinamente, desde que trans-
pozera o limiar da casa de D. Claudia. E todos
os manejos, todas as ronhas, todos os ardis e
todos os embustes attribuidos ao perigoso e
eterno Feminino, tudo isso eu juntava agora,
numa nova estrofe, ao himno límpido e sonoro
do Mérito das Mulheres, sob a influencia ena-
morada dos encantos de Clarínha, avassalado
pela soberania da sua graça irresistível.
Muitas vezes, em sua casa, nos encontrámos
sós, absolutamente sós, na mais descuidada e
mais doce intimidade. E ahi, e assim, passavam
para nós horas^esquecidas — ella occupada com
algum bordado, eu collocado em frente do seu
bastidor, ora lendo em voz alta algum livro
novo, ora entrecortando a leitura de largos tre-
chos de conversa.
— «Parece-lhe que vá bem aqui este ama-
rello tão vivo ?» perguntava-me ella, a propósito
da applicação de alguma seda ao bordado.
— «Acho lindo. . .»
— «E d'este desenho, gosta?»
A RUA DO OIRO 24
— «Gosto muito ! E' uma idéa sua, ou tirada
de algum jornal ?»
— «Creio que é uma idéa minha. Admira-se ?
E o senhor nunca teve uma idéa ?»
— «Já não ha meio de ter idéas novas. . . »
— aE para quê ? Os jornaes dizem tudo.
Basta ler os jornaes.»
— «E' o que eu faço.»
— «E quando encontra alguma que lhe serve
fa-la depois passar como se fosse sua ...»
— «Não, lá isso não ! Seria fácil perceber o
truc, sobretudo quando se tratasse de alguma
idéa boa. . . »
— «O senhor é muito modesto. Precisa cor-
rigir-se. A modéstia é uma péssima virtude.»
— «Mas isto não é ser modesto. . . Isto é ser
exacto.»
— «Pois então, fique sabendo que não é nada
d'isso. Quer que eu lhe diga o que o senhor
realmente é ?»
— «Pois diga. . . »
— «E' um intrujão !»
Eu ria, animava-me, protestava. Ella teimava,
deliciosa :
— «Certissimo ! Um grande intrujão. Nunca
ninguém lh'o disse, talvez. . . Talvez nem o se-
nhor mesmo o suspeitasse... Pois é, digo-lh'o
eu !»
248 A RUA DO OIRO
— «Bem. Acredito. Vossa Excellencia que o
diz. . . »
Batia o pé, numa raiva. Torcia o narizito.
— «Vossa Excellencia ! Outra vez ! Que mas-
sada... Porque não me pede licença para tra-
tar-me por tu ?»
— «Não me atreveria. . . »
— «Pois atreva-se, ande I Já não será sem
tempo. Ha três mezes que me conhece^ que
vem aqui, que me diz coisas amáveis a meia
voz. . . E hontem ?. . . que quasi me obrigou a
fazer um pequenino esforço para lhe fugir com
a mão, que o senhor teimava em apertar, depois
de a ter beijado. . . »
— «E o que podia haver nisso de mal ? Um
beijo na mão ...»
— o Um só, decerto. . . Nenhum mal ! Mas é
que o senhor se preparava para me dar se-
gundo ! E olhe que não foi para que m'o não
desse que lhe fugi . . . Foi para que não podesse
dizer depois que eu lh'o acceitara.»
— «Mas se eu tivesse segurado bem a sua
mão, c sempre lh'o desse, afinal ?»
— «Se fosse necessário segurar-me a mão,
era porque essa mão lhe fugia. Nesse caso, da-
va-me o senhor o direito da defeza, com a mão
que me restasse livre. E eu teria sabido usar
d'esse direito. . . »
A RUA DO OIRO 249
Depois, mudando de conversa :
— «Quando faz o seu debute na Gamara ?»
— «Quando se discutir o projecto da reforma
do Código. . .»
— «Ah ! Isso é sério. De costume, para os
discursos de debute não se escolhem coisas sé-
rias. . . Decididamente, o senhor vem disposto a
coisas espantosas !»
— «Pois olhe, não fui eu que escolhi. Foi a
senhora sua mãe que m'o impoz...»
— «Não diga isso outra vez, senhor Amaral ! Um
homem no seu caso não obedece a imposições
de ninguém. Faz o que quer. Faz o que julga
melhor. Teria o senhor preferido outra occasião
para falar pela primeira vez na Gamara?»
— «Não tinha pensado ainda nisso, quando
sua mãe me fez essa mesma pergunta. E então
ella, muito naturalmente, ' disse-me : «Porque
não aproveita a discussão da reforma do Go-
digo ? Porque não defende a questão do divor-
cio ?» E accrescentou, como se me fizesse uma
indicação : «... Até me seria muito agradá-
vel... » A lembrança sorriu me, vi a possibili-
dade de tirar d'ahi alguns effeitos, acceitei o al-
vitre. . . »
Glarinha suspendera o trabalho do bordado,
afastara- se um pouco do bastidor para mais se
approximar de mim ; e como se tomasse, afinal,
25o A RUA DO OIRO
uma deliberação difficil depois de muito hesitar,
e de muito deixar amadurecer um certo propó-
sito, cujo segredo me ia confiar, disse-me as-
sim :
— «Minha mãe, quando fala com os se
nhores, nunca diz nada muito naturalmente.
Guarde isto só para seu uso, como prova da
muita estima e da muita confiança que tenho
em si. Quero que o senhor o saiba, para seu
governo. Faça a sua estreia quando quizer, e es-
colha o pretexto que muito bem quizer. . . Mas
livre-se de que alguém supponha que minha
mãe se serve de si, como de tantos outros, para
conseguir os seus fins!»
Vindo da rua, da Liga, dos Ministérios,
D. Claudia entrava nesse momento. Clarinha
fez-me signal para que me calasse.
D. Claudia não esperava enconirar-me. Mas
não mé fez a festa do costume. Mal sorriu. Eu
estranhei e attentei no seu aspecto, que deno-
tava uma desusada fadiga, um evidente esforço
de dissimulação.
— «A estas horas por cá? E' caso! Aposto
que não houve Camarás. . . »
— «Deve ter havido, mas passaram hoje sem
mim. .. »
Depois, chegando-se ao bastidor, examinando
com attenção o bordado que Clarinha retoma-
A RUA DO OIRO 25 1
ra apressadamente, quando a sentira entrar :
— «Bravo ! O crisântemo fica lindo. Está
um apetite.»
Deu-lhe um beijo nos cabellos. E descalçou
lentamente as luvas, foi tirar o chapéo, collocou
num frasco, sobre uma étagère, umas rosas sol-
tas que lhe dera o Plantier.
— tSabes que combinámos ir á exposição do
Grémio ? disse Clarinha. — Dás licença ? Estava,
mos á tua espera.»
— «De mil vontades. Acho muito bem. O que
me parece é que não terão muito tempo. . . São
quatro horas.»
— «Não é tarde. Só fecha ás seis. Damos
uma volta. . . Podemos ver o melhor.»
■ — «Pois vão. — E voltandose para mim : —
Mas veja lá senhor Amaral, não vá compromet-
ter-se. . . »
— «Não, minha senhora. . . Creio bem que
não.»
Clarinha deixou-nos, por instantes, para ir
apromptar-se, concertar um pouco os cabellos.
D. Claudia insistiu :
— «Não sei, não sei... Veja lá! — E cha
mando por alguém que entrara com ella, mas
ficara na ante-sala : — Entre para aqui, ó Me-
lecas !»
E eu vi entrar o Melecas, o Melecas do Phan-
252 A RUA DO OIRO
tasma^ rebolando-se de contentamento como
um mops de estimação, e sobraçando duas
enormes pastas de carneira vermelha. Arreou
aquelle enorme peso sobre a secretária-ministre
onde D. Claudia se instalara já, veiu compri-
mentar-me, com immenso gosto.
Abrindo uma das pastas, e começando a tirar
papeis, que dispunha em diversos montes,
D. Claudia continuou, dirigindo-se-me :
— «O senhor não teme as más linguas?»
— «Absolutamente nada.»
— «Não conhece então o Dom Bazilio?»
— «Quem o não conhece!»
— «E não lhe acha razão? Não acredita que
de toda a calumnia alguma coisa fica?»
Respondi firmemente :
— «Não acredito.»
A'oltando-se então para Melecas, gracejou :
— «E vossê. Melecas, o que pensa?»
D'olho em alvo, melado como um alfenim,
Melecas sorriu :
— «Eu, minlia senhora, peço desculpa, mas
não penso nada 'n
Vivamente, continuando o gracejo, D. Claudia
increpou o :
— «Para que anda então o senhor a apren-
der esgrima, se arranja sempre maneira de não
ter uma opinião ?»
A RUA DO OIRO 253
— fSaber esgrima, senhora D. Claudia, é
uma excellente coisa para evitar os duelos. Mal
isso consta, ninguém mais se mette comnos-
co.»
— «Ora ahi tem Vossa Excellencia — disse eu
— uma excellente opinião I»
Clarinha voltava, já prompta.
— «Vamos lá ?»
Mas a mãe levantara-se, fora escolher uma
rosa do ramo que tinha trazido, e chegando-se a
mim, pelas suas próprias mãos quiz collocar-ma
no casaco.
— «Deixe-me flori-lo um pouco.»
A lapela, porém, estava ainda fechada.
— «Mas espere. . . Este casaco está novo em
folha. . .»
— «Precisamente em folha, não está. Mas não
tive ainda occasião de lhe pôr uma flor.»
Clarinha, então, intromettia-se, obstando a
que a mãe rompesse a lapela :
— «Deixa, mamã. . . Talvez não goste, cjuem
sabe ? Não teimes ...»
— «Gosto, sim, minha senhora! affirmei viva-
mente. Gosto até muito ! E que não gostas-
se-.. »
Mas D. Claudia retirara subitamente a flor :
— «Não, lá isso não I Diga com franqueza se
gosta, ou se não gosta . . . Uma lapela deve es-
254 ^ ^^^ DO *^í^o
tar sempre aberta — ou fechada! E vossê, Me-
lecas, também gosta de flores?»
Melecas estremecia, de goso :
— «Oh ! as flores. . . Quem ha que não goste
d'ellas...»
— «Pois sim! dizia D. Claudia, frenética. —
Mas as rosas não se fizeram para os Melecas !
Para os Melecas fizeram-se as commendas!»
— «Talvez, minha senhora. . .E' possivel. , . »
— «Pois deixe estar que eu lhe arranjarei
ainda uma commenda !d
Clarinha despediu-se. Eu procurava o meu
chapéo e a minha bengala, que o Melecas avis-
tara a um canto e correra a buscar, sempre
amável, extremamente serviçal.
— «Não se demorem muito!» disse ainda D.
Claudia.
E sahimos sós — eu e Clarinha.
Por que artes se introduzira Melecas em casa
de D. Claudia? perguntara eu mais de uma vez
a mim mesmo, sem atinar com a explicação de
tão espantoso acontecimento. Melecas era o re-
dactor do Phantasma, e o Phantasma esse pas-
quim que chegara a publicar, numa supposta
lista das amantes do Presidente do Conselho, as
iniciaes de D. Claudia I
A RUA DO OIRO 255
Mas da própria bocca de Melecas vim a saber
como aquillo fora.
— «Eu passava uma vez naquelle corredor
do Ministério do Reino que fica por cima da es-
cada principal, sabe ? quando percebi que uma
voz de mulher altercava com alguém na sala do
Conselho de Estado, onde acabava de reunir a
commissão do Código. Estava uma porta entre-
aberta, puz o ouvido á escuta, achei que valeria
a pena deter- me por ali alguns minutos e, por
dever de officio, escondi-me atrás do repos-
teiro. . . D
As traças tinham aberto, dir-se ia que de pro-
pósito, uns pequeninos orifícios no estofo, por
onde me era permittido assistir á impagável
scena que ali se estava passando.
D. Claudia puxava por um braço do Padre
Eterno, que resistia, declarando: — «Não, mi-
nha senhora... Tudo menos isso! Lá isso,
nunca ! »
Ella teimava, puxando sempre, encolerisada
já.
— «Não, minha senhora ! Tudo menos isso !
Lá isso, nunca !»
Por fim, ella empurrou-o com violência, obri-
gou o a sentar-se na cadeira da presidência, e
carregando-lhe nos hombros, como se quizesse
pregá-lo bem no assento:
256 A RUA DO OIRO
— «Sente se ahi, já lhe disse I Hque se ahil
E saiba que não tornará a levantar-se d'esse le-
gar emquanto não estiver tudo isto acabado, e
bem acabado, ouviu? Muito lhe tenho eu atura-
do, ao senhor, e não estou disposta a aturar- lhe
muito mais. Ha de ficar, digo lh'o eu, até qu^ o
mandem embora!»
O Padre Eterno resignava-se; não resistia já :
— «Bem. . . Que remédio I Manda quem pô-
de.. . E quando Vossa Excellencia quizer, para
variar. . . aqui tem a outra face. . . »
Mas D. Claudia não o tomava a serio:
— tDeixe se de farças, reverendo! Bem sabe
que não ha mão que lhe bata que não fique a
arder. Mas hei de amarrotá-lo!»
— «Bem, minha senhora. . . Eu fico.»
— fNecessariamente ! tornava ella, exaltadis
sima. Mas por quanto? Preço fixo, ouviu? Não
me obrigue ainda a ter de regatear. . . »
O Cónego já estava apopletico. Vi o momento
em que lhe dava algum ataque.
— «Ou Vossa Excellencia procede de má fé,
o que não está nos seus hábitos, ou o seu tacto
a illude, senhora D. Claudia I Isto não é tão
mole como parece ...»
— «Deixe-se d'isso, já lhe disse. O senhor é
Um sapo ! Tem a pelle resistente doesse reptil
batrachio. Pôde pôr-selhe um pé em cima,
A RUA DO OIRO 267
e carregar, que não estala. E' lepugnante!»
— «Eu já não sei, com franqueza, rouquejava
o Padre Eterno, o que mais admirar em Vossa
Excellencia : se a enormidade da sua audácia,
se os seus profundos conhecimentos de historia
natural ! . . . »
Bufou de raiva, afogueado, levantou-se e sahiu.
D. Claudia, que parecia uma leoa excitada den-
tro duma jaula, andava á roda da mesa numa
grande agitação, e quando o viu encaminhar-se
para a porta estacou, ainda lhe lançou um olhar
rancoroso como uma chicotada que o envolvesse
todo, da nuca ao calcanhar, e disse alto :
— «Mariolai»
Eu não podia mais conter o meu enthusiasmo.
Ergui o reposteiro, corri para D. Claudia, cahí-
Ihe aos pés:
— «Bravo, minha senhora I Bravo I. . .»
Qualquer outra mulher, naquella situação e
naquelle momento, ter-se-ia sobresaltado com a
minha inopinada apparição. EUa não. Até sere-
nou. E pergutou-me friamente :
— «Quem é o senhor?»
— «Não me pergunte Vossa Excellencia quem
eu sou, nem d'onde venho... Só desejo di-
zer-lhe que vou. . . para Onde Vossa Excellencia
quizer I Ha muito tempo que eu pasmava dos
altos dotes que ornam o caracter de Vossa Ex-
i7
258 A RUA DO OIRO
^ellencia, mas nunca se me oíferecera occasião
para tão bem poder avaliá-los, como agora. . .»
EUa insistiu :
— tMas quem é o senhor, afinal ?»
— lEu sou o Melecas, minha senhora ! O Me-
lecas do Phantasma — para servir ^'ossa Excel.
lencia, voltado ! Todas as minhas antigas con-
vicções politicas baquearam neste instante, sob
o império das palavras de Vossa Excellencia
exprobrando esse Director Geral !»
D. Claudia sorriu, como decerto não sabem
sorrir os anjos.
— iTrata-se então de uma profissão de fé ?»
— tPerfeitamente I»
— «De boa fé ?d
— «Da melhor fé I»
Estendeu-me a mão, que eu beijei, e ainda
disse:
— tMas conhece bem o senhor o meu credo
politico ?»
— «Se conheço! Na minha qualidade de re-
pórter, tenho seguido todos os passos de Vossa
Excellencia através da publica administração,
como um cão fiel segue o dono. E cheguei á
conclusão de que Vossa Excellencia pode hoje
dizer, como outr'ora dizia o grande rei de Fran-
ça:— «O Estado sou eu!» Ha uma coisa para
mim, nesta vida, que eu ponho acima de tudo,
A RUA DO OIRO 25g
e que é o amor pela minha pátria. E se Vossa
Excellencia me vê, neste momento, rendido a
seus pés, é porque eu sinto bem que o único
homem capaz ainda de pôr tudo isto a direito —
é Vossa Excellencia!»
— «Como pôde o senhor justificar-se então
d'essa ignominiosa campanha que tem movido
contra o meu programma de governo, atacando
tão desapiedadamente o meu poder executivo,
tendo mesmo chegado a ferir com algumas allu-
sões muito directas a minha pobre pessoa irres-
ponsável ? Não sabe o senhor, acaso ! que numa
mulher não se deve bater nem com uma flor. . .
de rhetorica?!»
Ahl meu caro senhor Amaral, que divina
mulher! que mulher divina! Eu nem Já pro-
curava justificar-me, eu só queria arrepender-
me; e disse-lh'o :
— «Vire-me Vossa Excellencia I Vire-me Vos-
sa Excellencia, e verá como um péssimo jorna-
lista da opposição dá, do avesso, ura excellente
jornalista do governo, . .»
Ella obrigou- me então, solemnemente, no mo-
mento de passar para as suas fileiras, a jurar-
Ihe fidelidade,
E eu jurei I»
Hoje, era o seu secretario particular. Mandara
o Phantasma ao diabo, para que fizesse d'elle o
26o
A RUA DO OIRO
melhor uso que entendesse. E já não sabia como
podesse haver quem gostasse de estar na oppo-
sição ! Estar na opposição, afinal, o que era ? Era
estar por baixo, era andar por baixo, sempre por
baixo, até por baixo das mesas, como elle che-
gara a andar para colher algumas migalhas de
noticias. Não era sem tempo que passava da cepa
torta. Chegara-lhe também a vez de andar de
cabeça alta ! Agora todas as portas se abriam
na sua frente, todos os mistérios se lhe desven-
davam, via-se no segredo dos Deuses I Estava
ah e estava segundo oííicial. . .
Mas, arre I que não fora sem custo. Tinha ar-
ranjado uma tal reputação de jacobino com essa
burrice de assumir a responsabilidade de arti-
gos, que nunca elle escrevera, contra as Insti-
tuições, que só Deus sabia as difficuldades, as
penúrias em que se tinha visto para manter urra
certa hnha. . . Mas era uma inclinação, era uma
vocação, era uma paixão pelo jornalismo, que
abandonara tudo — tudo! — o commercio, a fa-
mília, a vergonha.. . para se lançar na impren-
sa ! Fizera a sua estreia no Pitnpão. Com uma
charada em verso. Uma charada só para ho-
mens. Depois mudara de género, e passara a
coUaborar no Almanach das Senlioras ... E
pouco tempo depois abandonava a loja de mo-
das, onde estavc quasi a ser promovido a pri-
RUA DO OIKO 2Ò I
meiro caixeiro, para ir dirigir o Pirolito, uma
vez por semana, para ambos os sexos. Ao fim
de seis mezes de Pirolito — que bate, que ba-
te, teve de suspender a publicação, o que não
era coisa de espantar num paiz de seis milhões
de analfabetos ; e andara outros seis mezes sem
emprego, sem exame de instrucçao primaria, e
quasi sem botas I
Afinal, um bello dia, encontrando-se num
grande aperto, lançou mão de um jornal e co-
meçou a ler os annuncios, por distração. E des-
cobrira o annuncio em que se pedia um jorna-
lista com alguma pratica, e robusto, para assu-
mir sem desdouro a responsabilidade de uma
série de artigos violentos, garantindo-se-lhe de-
pois uma situação desafogada na imprensa...
Correra, correra, imaginando ingenuamente que
corria a salvar- se. Fora a sua perdição. Os ar-
tigos foram logo querelados, elle assumira a
responsabilidade, e toda essa comedia se lhe
acabara em tragedia, com seis mezes de Li-
moeiro e alguns conselhos do juiz, que ainda
se ria por cima dos óculos, recommendandolhe
que, para outra vez, fosse menos atrabiliário. . .
Cumprida a sentença, e voltando á vida activa
dos jornaes, achara-se compenetrado de que em
realidade era, como lhe dissera o juiz, um jor-
nalista atrabiliário. E teimara em conservar-se
2Ò2 A RUA DO OIRO
na opposição. Mas tanto soíFrera, tanto, que lhe
chegou o momento em que não poude mais. Pas-
sara então uma borracha por cima do passado
de jornalista independente, virara a casaca, em-
brulhara as suas convicções num velho jornal
como quem embrulha um feto, e fora deixá-las á
porta do Directório. . .
Depois cahira, politicamente rendido, aos pés
de D. Claudia!
VIII
No dia em que resolvi embrenhar-me nas
Secretarias e comecei a distribuir pelos sete Mi-
nistérios os numerosos memoriaes que deixara
accumular de seis correios da Ilha, eu adquiri
a certeza de que nunca poderia vir a dar um de-
putado de geito.
Essa funcção subalterna de agente de negó-
cios junto das Repartições, esse mister de pro-
curador zeloso de mesquinhas causas, esse oííi-
cio de corretor de empregos, de mercês e de
obras publicas, esse sagrado dever de me pôr
incondicionalmente ao serviço de todos os inte-
resses privados de cada um dos meus eleitores
— eram coisas que, positivamente, mas positiva-
mente ! não se davam com o meu feitio.
Depois, naquelle caminho de perdição que eu
264 A RUA DO OIRO
seguia para ir do Borges ao Terreiro do Paço,
descendo o Chiado, cortando á Rua Nova do
Carmo, dobrando para a Rua do Oiro — eu ha-
bituara-me já, irremediavelmente, a uma vida
regalada de lagarto ao sol, que acabava por não
me consentir o mais leve esforço, a diligencia
mais fácil.
E quando naquelle dia, e logo a um dos pri-
meiros deferimentos que eu sollicitava ccom
muito empenho» para um dos meus eleitores,
vi crearem-se os primeiros empecilhos burocrá-
ticos, entre os lábios risonhos d'um Chefe de Re-
partição «que todavia muito desejaria ser-me
agradável e prestavel» sempre que alguma dis-
posição legal se não oppozesse, como naquelle
caso, a esse seu desejo — enfiei pelo primeiro
corredor que conduzia á rua, galguei escadas,
e procurei o ar livre, e jurei nunca mais voltar
ás Secretarias para patrocinar memoriaes. Era
uma coisa decidida !
Depois, galhofando, contei isto mesmo na Rua
do Salitre. Clarinha bateu as palmas de con-
tente, julgando já ganha uma aposta, que com-
migo fizera, teimando ella que eu não seria ca-
paz de seguir carreira pela politica, teimando eu
que sim. . . E logo D. Claudia disse :
— cPasse-me o senhor para cá todos esses
papeis. Eu me encarrego d'isso. E pôde contar
A RUA DO OIRO
265
com o despacho que precise pára todos elles.
Não se incommode mais com essas ninharias.
Trate-me de coisas sérias. E quando tiver mais
não os demore nas gavetas, traga-m'os. . . »
Que aliivio, e que pechincha-! Aquillo foi dito
e feito. No primeiro paquete, que sahiu d'ahi a
seis dias, logo expedi para a Ilha vinte e tantas
cartas communicando o almejado despacho a
vinte e tantos eleitores. Era um corno de abun- .
dancia que eu despejava no circulo. «Mas d'esse
corno, dizia eu em carta ao Doutor Tarquinio,
como o meu amigo verá, o Pedro AfFonso não
apanha nem sequer a ponta. Elle que se con-
tente com aquellas que já tem.»
E eu continuava, entretanto, arrastando neu-
rasthenicamente o remorso da minha preguiça,
quando recebi uma carta do Fausto, escripta
pela mulher, communicando-me que recolhera' á
cama com um forte ataque de"gripe, precisamen-
te no momento em que, tendo já tudo preparado
para escrever o relatório sobre o projecto do di-
vorcio, se dispunha a metter mãos á obra. Che'
gara a enthusiasmar se pela idéa, achava a coisa
muito viável mesmo sem escândalo (uma vez que
o Ministro influisse nos Bispos e os Bispos in-
fluíssem no resto para se evitar algum movi-
mento prejudicial da padralhada) e tinha pena,
deveras, de se achar agora impossibilitado de
266 A RUA DO OIRO
concluir o trabalho. D'ahi a dois ou três dias a
commissão teria acabado de discutir o projecto,
e o Ministro querici fazê-lo passar immediata-
mente nas Gamaras. Era portanto um caso de
força maior, uma questão de urgência. E já ti-
nha combinado com o Ministro que a tarefa vi-
ria ter ás minhas mãos. Tivesse eu paciência e
era escusado procurar evasivas. Concluindo,
dizia :
<tDe mais a mais, terás assim bella occasião
de prestar um serviço relevante, (d'estes que
vão ao Diário do Governo com justos galar-
dões) á nossa muito considerável e boa amiga
D. Claudia. Ella está sobre brazas, pobre se-
nhora! Façamos-lhe a vontade.»
E em post-scriptum:
«Remetto-te tudo quanto cheguei a reunir so-
bre o divorcio, livros e apontamentos. Afunda- te
bem nisso, meu grande mandrião. Meu grande
mandrião e meu grande felizardo : porque vaes
ter um assumpto para discurso de estreia, como
hoje já poucos se encontram. E as galerias, nesse
dia, apinhadas de mulheres bonitas, que pedem
o divorcio como pão para a bocca, cobrindo te
de bênçãos, atirando te beijos, mandando-te as
moradas !. . . Arranja- me conclusões de arromba
para esse relatório, ouviste ?»
Já então era para mim ponto de fé que D.
A RUA DO OIRO 267
Claudia, á semelhança do deputado Naquet,
queria fazer votar a lei do divorcio para apro-
veitar-se d'ella, e porventura, como se dizia,
contrahir novo matrimonio com o Presidente do
Conselho.
Mas que tinha eu com isso ? Que me impor-
tava a mim que assim fosse ? Que duvida pode-
ria eu ter em prestar a D. Claudia esse peque-
nino serviço de defender o seu projecto nas Ca-
marás ? Se eu nem conhecia o marido !
Depois, olhando de mais alto, não era ver-
dade que esse projecto trazia á nossa legislação
civil uma bem útil e grandiosa reforma ? Não
era uma sociedade inteira que viria a colher o
precioso, saboroso fructo d'essa galharda e fe-
cunda iniciativa do Governo ? E não sentia eu
mesmo, e bem vibrantemente, que o grito
d'essa verdade se repercutia na minha consciên-
cia como o echo de um clamor universal de jus-
tiça ?
Para que era eu então deputado independente
senão para que a minha opinião só reconhe-
cesse a soberania da minha consciência ?!
Portugal, que tão rasoavelmente acompanhava
os outros poizes nas modernas applicaçÕes da
sciencia juridica, não podia ficar-se n'ura Código
que trinta annos antes representava talvez a me-
lhor obra de legislação civilista, mas que já não
208 A RUA DO OIRO
servia para agora, quando os códigos modernos e
as resoluções justas dos Tribunaes tudo aquila-
tavam segundo a filosofia da razão. Tudo se
transformara — o modo de sentir como o modo de
pensar. A' tradição romanista e canónica suc-
cedia-se uma orientação mais social e natural,
mais livre e humanitária. E, todavia, essa idéa
tão simples e de tanta justiça natural, e tão ne-
cessária á dignidade do matrimonio e á felici-
dade dos casados, não poderá ser ainda consi-
gnada na legislação portuguesa, quando o di-
vorcio era já uma instituição em quasi todos os
paizes do mundo civilisado.
Hoje, era uma necessidade instante, inadiá-
vel. E aproveitando se no nosso Código Civil
uma certa orientação de tolerância que nelle
havia, e que admittia, a par do casamento reli-
gioso o casamento civil, o divorcio continuaria e
completaria essa orientação.
Entre os livros que Fausto me remettera
para o Hotel, havia um, muito recente, que eu
não conhecia ainda e que logo me forneceu um
dos melhores, dos mais seguros effeitos do meu
relatório. Era — O Crime, de César Lombroso,
onde todo um substancioso e lúcido capitulo de
estatísticas comparadas estabelecia a conclusão
de que a criminalidade era tenebrosamente maior
nas sociedades sob o regimen da simples sepa-
A RUA DO OIRO 269
ração do que naquellas que tão gloriosamente
se orgulhavam de já terem o divorcio. E fácil
me foi estabelecer, em aguilhoada frase, que
sendo o divorcio uma questão de moral social,
a sua negação levava a muitos crimes.
Conheci, manuseei, revolvi numa noite as le-
gislações de todos os paizes onde, por ordem
alfabética, fui encontrando o divorcio. E encon-
trei-o na Allemanha, na Áustria e na Hungria, na
Bélgica, na China, na Dinamarca, nos Estados
Unidos, na França, na Inglaterra, na Grécia, no
Japão, na Noruega, nos Paizes Baixos, nos Pai-
zes Musulmanos, na Rússia, na Suécia e na
Suissa. . .
Todos esses allemães, todos esses austríacos,
todos esses chineses, todos esses dinemarquê-
ses, todos esses americanos, todos esses france-
ses, todos esses gregos, todos esses japoneses,
todos esses noruegueses, todos esses hoUandê-
ses, todos esses musulmanos, todos esses rus-
sos, todos esses suecos e todos esses suissos re-
conheciam, admittiam, proclamavam que, sendo
o casamento um ideal de amor entre dois indi-
víduos de sexo differente, devia elle ser em
absoluto livre, tão livre e tão espontâneo como
era o Amor !
As sociedades atravessavam, porém, um pe-
ríodo transitório e tutelar. O Estado regulari-
270 A RUA DO OIRO
sava ainda a constituição da sociedade familiar
de modo a evitar asfallencias. Porque na as
sociação familiar, como nas outras associações,
a intensidade e a variabilidade da vida traziam
a desillusão, e a desillusão, em taes casos, era
a fallencia aberta.
O que todos elles teriam querido seria pode-
rem casar e continuar a casar, sem que a socie-
dade tivesse o direito de intervir na associação
do homem e da mulher, e sem outros deveres
que não fossem os que só nascem do Amor e
com o Amor se apagam... Mas isso, que a
tradição canónica confundia com a promiscuidade
brutal da primeira fase da familia humana, era
a suprema idealisação do Amor livre, era a re
quintada aspiração da Humanidade, a eterni-
dade no Amor I
E como a vida, em realidade, não deixara
ainda de mostrar que bastas vezes os esposos
se illudiam, e não existiam entre elles as afini-
dades que tinham supposto haver ; e como o
chamado santuário da familia se transmudava
ainda com frequência num pequenino inferno
insuportável ; e como não deixara ainda de ha-
ver sogras, nem adultérios, nem incompatibili-
dade de génios — o Estado, que regularisara a
constituição da familia, e fizera quanto estivera
ao seu alcance para garantir o bem-estar dos
A RUA DO OIRO 27 1
cônjuges, não tendo podido consegui-lo, restituía
os associados ao seu anterior estado de liber-
dade, para poderem constituir novas socieda-
des, em que os negócios viessem a correr me-
lhor. . .
Logo que eu recebera a carta do Fausto, in-
cumbindo-me da elaboração do relatório, fora
procurar o Presidente do Conselho, e com elle
tinha tido uma larga conferencia, em que ficara
bem assente que eu não teria a preoccupar me
com o supra-naturalismo da Gamara.
— «Sciencia positiva, meu amigo ! Muita filo-
sofia social ! — dissera-me o Ministro. — E dei-
xe. . . »
Na grata posse d'esta carta branca, e com as
costas bem quentes, regalei-me então em atacar
o casamento indissolúvel, «ideal da sociedade
domestica, conquista preciosa de uma civilisa-
ção que traz o cunho dos séculos ...»
Todo esse largo trecho, bem adubado de ri-
cas razões, do meu relatório, eu o lancei dex-
tramente ás folhas de papel, deliciado com o
antegoso do seu eífeito terrífico no animo das
Primas Rochas e das Primas Noronhas, para as
quaes seria sempre incompleta a natureza do
vinculo, frustrando radicalmente o fim que se
almejava, se a união matrimonial se celebrasse
a termo ou sob condição. . . Que o mesmo era
272 A RUA DO OIRO
suprimir a solidariedade e a intimidade do vin-
culo conjugal, a perpetuidade de dois seres
numa só natureza (e eu via-as meditarem nisto
com os seus olhos inquietos em alvo). Ter-se-
ia assim um vinculo meramente provisório,
inteiramente destituido de valor e contheudo
ethico !
Ah I Ah ! Pois sim, ricas primas, primas do
meu cojação... Mas quando acontecesse que
algum ou ambos os elementos componentes do
organismo familiar, achassem difficuldade em
cumprir a missão a que eram destinados (e ahj
tinham ellas o General AjTes, por exemplo, ma.
rido insufficiente da Maria Demitilia) de modo
que a união forçada fosse causa de mal estar
para o mesmo, de turbação e desordem para
os outros órgãos similares, e até mesmo para o
organismo social de que faziam parte ? Que me
diziam ellas a isso ? . . .
Nada. Pois claro ! Nem tinham que dizer.
Desde que se observasse uma tal desordem pa-
thologica, uma lei suprema de necessidade so-
cial queria que se restituísse a cada uma das
moléculas que compunham o organismo soffredor
a sua primitiva liberdade, para que podessem
entrar em nova união com outra molécula mais
adequada e indicada pela força espontânea da
attração, e assim dar logar a novos organismos
A RUA DO OIRO- 2-73^
susceptíveis de cumprirem com regularidade a
fuiicção social integrante e reproductora da es-
pécie. . .
E eu deliciava-me, ria sósinho, só com o ima-
ginar as figuras das Rochas c das Noronhas
quando tal lessem no Diário das Camarás, que
eu já fazia tenção de lhes enviar com sublinha-
dos a lápis azul — corando todas ellas até á
ponta das orelhas com essa historia de desafo-
radas moléculas descontentes, procurando ou-
tras moléculas a que melhor se adequassem, se
adaptassem... Gomo se o casamento podesse
vir a ser uma pouca-vergonha de mulheres da
Rocha !
Dando uma no cravo, outra na ferradura, eu
admittia que o casamento, productor de uma
funcçáo eminentemente social, deveria subsistir
Sempre que fisiologicamente se ajustasse ao pro.
prio mister. Mas nunca depois que o delicto, a
infidelidade, vicios incuráveis, aversão completa
e producto invencivel de causas graves e per-
manentes rompessem a solidariedade do vinculo
conjugal, tornando a vida marital uma coisa in-
tolerável.
Concebido o divorcio como lei de alta mora-
lidade, chegado o momento de estabelecer e
justificar as suas causas, em harmonia com o
projecto de lei de iniciativa do Governo, eu já
18
274 ^ RUA DO OIRO
sabia onde encontrar, para a minha substan-
ciosa argumentação de relator, a papinha. feita.
E excluia desde logo o Código Napoleónico, que
admittia o mutuo consentimento como causa de
divorcio — e alentava a inconstância, favorecia
a ligeireza das propostas, facilitava a especula-
ção dos interesses. Nada d'isso I
Um apontamento do Fausto, com a observa-
ção de muito importante ao alto, chamara-me
já a attenção para um projecto de lei apresen-
tado na Gamara italiana, da iniciativa fervorosa
de Salvador Morelli, e moldado nos trabalhos
persistentes de Naquet. Esse, e um outro do
ministro Villa, também italiano, que nem se-
quer fora admittido á discussão, eram para mim
uma verdadeira mina.
Para obstar a que o divorcio podesse tor-
nar-se o premio de uma culpa, a lei portuguesa
não concederia ao cônjuge culpado a faculdade
de o pedir.
Quando a separação pessoal dos cônjuges e o
consequente divorcio tivessem por causa o adul-
tério de um d'elles, declarado por sentença, o
cônjuge culpado não poderia contrair casamento
com o seu cúmplice. Neste caso, o casamento
não seria considerado nullo, o cônjuge culpado
seria condemnado a prisão pelo tempo de três
mezes até um anno ; e a nullidade do casamento
A RUA DO OIRO 2']b
e a condemnação não se poderiam declarar se-
não a pedido do cônjuge offendido. Isto pare-
cia-me uma disposição de arromba. A parte fi-
nal, sobretudo, permittindo aos esposos oífendi-
dos, mas facilmente reconciliáveis e pacientes, a
reparação da oíFensa por três mezes de cadeia,
(c até um anno para os mais exigentes) e admit-
tindo que depois tudo continuasse como d'antes,
era assombrosamente filosófico. E ainda talvez
se conseguisse que a pena de prisão podesse ser
remivel a dinheiro, o que seria então, como que-
ria o Ministro, verdadeira filosofia positiva !
A vida vagabunda do marido era admittida
também como causa do divorcio. E era esta a
disposição premeditada para condemnar o ma-
rido de Claudia, que continuava percorrendo o
reino dos Algarves, nas suas intermináveis in-
vestigações archeologicas de membro da Com-
missão dos Monumentos Nacionaes.
A dissolução do casamento não ficaria depen-
dente de mero capricho dos cônjuges, mas per-
mittia-se o divorcio sempre que o crime, a infi-
delidade, a sevicia, a injuria grave, o ódio pro-
fundo e inextinguível tornassem legalmente in-
supportavel a subsistência do vinculo domestico.
Assim o divorcio pacificaria os ânimos, faria
cessar causas de ódio, de aversão, de crime ;
diminuiria o perigo social das uniões illegitimas
276 A RUA DO OIRO
e dos nascimentos clandestinos ; satisfaria á ma-
nutenção, á instrucção, á educação da prole ;
regeneraria, em summa, a nossa familia moder-
na, corroída e pervertida nas suas raizes mais
profundas . . .
Ao cabo de dois dias e duas noites de traba-
lho afincado, em que li, ruminei, digeri e assi-
milei tudo quanto a respeito do divorcio se acu-
mulou no meu quarto "do Hotel, por cima da
mesa, por cima da commoda, por cima das ca-
deiras e até por cima da cama, apenas me res-
tava dar uma redação definitiva ao relatório.
Fora um trabalho violento, quasi ininterrupto,
absorvente, febril. O Fausto tinha razão : era
assumpto excellente, era assumpto óptimo, de
bem seguros effeitos. E um momento houve em
que me senti envaidecido com as probabilidades
de um grande êxito, na Gamara. Vi recuperado,
nessas quarenta e oito horas, ao fim de um pe-
queno esforço, todo o tempo perdido desde que
chegara da Ilha e tomara o meu logar no Par-
lamento.
O meu ouvido allucinado suppoz ouvir o
que diria então, a berrata que faria, o clamo-
roso triumfo em que iria explodir o Doutor
Tarquinio, no Centro Regenerador, na botica do
Cunha e no Club, logo que o Portugal, Ma-
deira e Açores, distribuido no cães á chegada
A RUA DO OIRO 277
do paquete, lhe levasse a boa nova do meu
grande êxito I Tardava, mas arrecadava.
— aDá licença?» — disse uma voz conhecida
no corredor, ao mesmo tempo que uns nós de
dedos batiam na porta.
— aEntre, faça favor!»
Era o Poças, que ha muitos dias ninguém via
á mesa do Hotel, nem na Camará, nem na Ha-
vaneza. Justamente nessa manhã, a Augusta, a
creada, perguntando eu que fim levara o senhor
Poças, me tinha dito:
— «Esteve cá na sexta-feira, de fugida. Veiu
encher uma mala de roupa branca, mandou-a
por um moço não sei para onde. . . E ninguém
mais o viu.»
— a Assim é, meu amigo — dizia-me o Poças
com a bocca cheia de satisfação, e uma buliçosa
alegria a bailar-lhe nos olhos. — A minha vida
vae entrar, finalmente, numa definitiva e con-
soladora fase. . . »
Não era já o Libcrato Poças dos meus pri-
meiros tempos do Borges, azedo e desalentado,
que eu tinha ali no meu quarto, sentado na mi-
nha frente, occupando com regalo o meu único
fauteuil esfarrapado, que eu reservava e offere-
cia ás visitas. Era um outro Poças — era uma
outra luz, uma outra claridade ! E tudo me foi
explicado em muito breves palavras : a sua longa
278 A RUA DO OIRO
ausência do Hotel, a sua falta na Gamara, o seu
desapparecimento da Havaneza. Andara em
procura de casa, ia pôr casa, já tinha casa. Ca-
sava.
— «... Palavra ? ! »
— «Palavra. Está tudo prompto. E' d'aqui a
três dias.»
— «E a noiva ?»
— «O Amaral conhece-a. . . »
Tive um sobresalto. Pois seria possivel ? Se-
ria com eíFeito a Margarida Tricana ? Oh ! Mas
fiz-me inteiramente de novas, portei me á al-
tura.
— «Não posso suppôr quem seja...»
O Poças, intrujado, gosava com demorar a
pequenina intriga :
— «Veja lá se se lembra. . . »
Recordei-me então de que elle em tempos me
falara de um começo de namoro com a Baro-
neza do Paul, um distinctissimo estafermo, em
São Carlos:
— «Casa com a Baroneza!»
Elle já nem de tal se lembrava :
— «Qual Baroneza ?»
— «A Baroneza do Paul ...»
— «Ora! Ora! Onde isso vae. . . Coisa me-
lhor, muito melhor, incomparavelmente me-
lhor!»
A RUA DO OIRO 279
Ainda fingi um esforço de memoria, d'olho no
vago, mordendo um dedo polegar. Mas não ha-
via meio. Decididamente não havia meio.
Poças não se conteve então por mais tempo,
descerrou o mistério :
— «E' a nossa vizinha, senhor! A nossa vizi-
nha ali defronte I»
Emquanto durara este curto dialogo, eu tinha
estado perplexo entre a promessa que fizera á
Margarida Tricana, de nada revelar do seu pas-
sado a Libçrato Poças, e o desejo, que um mur-
múrio de consciência inquietava, de tudo lhe re-
velar. Deveria dizer ? Não deveria dizer ? Mas no
momento em que elle, tão contente, me decla-
rava quem era a noiva, eu entendia que, afinal,
não deveria dizer-lh'o. E o que apenas disse foi
isto :
— aBravo ! Sim senhor. . . A julgar pelas ap-
parencias, é caso para muitos parabéns. — De-
pois accrescentei, lisongeando-lhe o bom dedo :
— E parece-me bem que neste caso as apparen-
cias não enganam. . . »
— f Também me parece. . . « — disse elle.
Já de pé, não podendo demorar se, e cumprin-
do aquelle dever — pois não esquecera o Poças
quanto mau humor eu lhe tinha aturado por
causa d'aquelle namoro que ia ter agora o seu
desejado remate — Poças interessou-se por esse
38o A RUA DO OIRD
excesso de trabalho em que julgava ter vindo
desastradamente interromper-me. Contei lhe en-
tão o que se tinha passado, a gripe de Fausto,
a pressa do Ministro, as linhas geraes do rela-
tório.
Elle andava alheio a tudo isso, não sabia
nada d'isso. E, o que era mais, eu percebi que
elle não se importava absolutamente nada com
isso.
Por brincadeira, ainda lhe disse :
— «Se o meu amigo deseja que se introduza
no projecto de lei alguma disposição que lhe
convenha, agora que está para casar. . . Ainda
estamos a tempo. E' só dizer ! Bem sabe que as
leis, em Portugal, sempre se fazem á vontade
dos amigos, e para servir os amigos ...»
Poças sorria jubilosamente :
— «Assim é, assim é ! Mas eu não preciso. —
E estendendo-me a mão, muito apertada na luva
cor de sangue de boi : — Em todo o caso, muito
obrigado, como se acceitasse. . . »
F^óra da porta, no corredor, ainda teimei, mais
risonho :
— «Veja lá. . . Não faça cerimonia. Que ff ais
não seja senão como rr.edida preventiva. . . »
Elle já ia descendo a escada, nos primeiros
degraus, quando um hospede novo, que ainda
nós não conheciamos, vinha subindo, em chine-
A RUA PO OIRO 281
las, depois do jantar das cinco, palitando os
dentes. Poças esperou um momento, deu-lhe
tempo de subir, e logo que o outro voltou cos-
tas, sumindo-se para cima, baixou a voz e con-
siderou :
— o Quem casa, meu amigo, nunca pensou em
divorcio nas vésperas do casamento I d
A' semelhança do investigador de bactérias,
que se fechou por dentro no seu laboratório, e
na anciã de saber se afundou no estudo e labo-
rou nas experiências ; e na busca de um teme-
roso bacillus se picou e inoculou em si o virus
do mal que queria evitar aos outros; tanto eu
me afundei, mexi e remexi na questão do casa-
mento (que era o grande mal, tal como elle se
achava ainda, indissolúvel) que não tardei a sen-
tir, a observar em mim a apparição successiva
de todos os signaes de quem já trazia comsigo,
assolapado e recôndito, o bacillus temeroso.
Era o divorcio uma grande, uma bella, uma
humanitária idéa. Mas era o casamento, tal como
o sonhavam e o queriam os seus mais fervorosos e
vehementes partidários, uma idéa menos bella?
Não era o casamento uma concepção bem clara
da felicidade na terra, quando se imaginasse o
casamento o encontro natural de dois entes que
282 A RUA DO OIRO
se identificaram na observação um do outro e
que unem os seus destinos, e põem em commum
o melhor do seu coração, a intimidade da alma
e da carne, pactuando uma alliança que os acol-
cheta para a alegria e para a adversidade, para
o prazer e para a dôr, para a vida e para a
morte ? Não seria esia a maior, a mais clara, a
mais luminosa verdade humana ?
Casar no ar, casar só por casar, casar por
curiosidade, casar por impulso apenas sexual ou
calculado interesse ; casar para fugir á condição
inquietante da vida que se tenha; casar á ven-
tura, casar para outro fim que não seja o do ca-
samento por amor — não ! Casar como em ge-
ral se casa, quando se não attendeu a que o
casamento é uma tão decisiva provação, nem á
perturbação que elle exerce na alma de uma
mulher, nem se presupoz o que poderão produ-
zir as mutuas reacções dos caracteres, dos gos-
tos, dos sentimentos, das opiniões ; casar ao fim
de um curto namoro de janella, na missa e ro
theatro, pelo telefone, por cartas e nos annun-
cios do Diário Illustrado, em cifra — não ! mil
vezes não I
Mas casar depois que tudo bem se pesou, se
avaliou, se preveniu, rodeando o casamento de
todas as possíveis garantias ; casar sem que ape-
nas baste o consentimento dos dois cônjuges, ca-
A RUA DO OIRO 283
sar não apenas segundo a doutrina jurídica da
Egreja, e segundo o Código, mas casar tornando
o casamento outra coisa mais alta que a cerimo-
nia religiosa, um contracto civil, uma associação
com estatuto ; casar só depois de bem attentar
no rifão: cAntes que cases vê o que fazes» — c
só depois que ambos, elle e ella, mutuamente
se sujeitaram a todas as provas admissíveis, de-
liberando juntar-se por fim, e pondo nessa deli-
beração o propósito firme, sereno, irreductivel,
inabalável, de não admittirem nunca uma causa,
nem sequer uma probabilidade de arrependi-
mento ou desquite ; casar por amor, em summa,
mas o amor alto, o amor quanto possível idea-
lisado, o amor que quer dignidade, que quer
bom senso, que quer respeito, que quer recato,
que quer santidade — isso sim I Isso sim... E
sendo assim, podendo ser assim, que bella coisa
o casar !
E assim pensando, eu ascendi, pela mão fina
e tremula de Clarinha, a essa solida serenidade
que nasce da justa e firme percepção das coi-
sas. . .
Humano e são, eu tive o sentimento instinctivo
das qualidades que me seria necessário encon-
trar na mulher que houvesse de escolher para
c minha mulher». E foi na doce atmosfera da
sua intimidade, sob a temperatura branda do
284 A RUA DO OIRO
seu affecto, acarinhado pelo delicado, subtil cui-
dado com que ella encetou e encaminhou até ao
fim essa sua tarefa de suave jardinagem, que ir-
rompeu, enfolhou, floriu, vicejou em mim esse
sentimento.
Senti-me talhado para as doces alegrias do
matrimonio e do lar. Tive uma outra concepção,
muito diversa, do amor, da dignidade, da vida.
O casamento era, de certo, uma arrojada em-
preza, e muito embora tivesse, como todas as
emprezas, o seu caderno de encargos, Clarinha
estimulava-me para esse arrojo, mostrando-me
bem, dentro do nosso caso, quão agradável seria
para mim (segundo esse caderno) a maior res-
ponsabilidade que ao marido cabe : a responsa-
bilidade de uma grande parte da educação da
mulher — a educação da esposa — pertencendo
a elle, só a elle, modelar a seu grado, formar
segundo a sua idéa, elevar á dignidade dos seus
sentimentos esse novo coração e esse novo es-
pirito. . . Ella tudo via, ella tudo julgava ; e as
suas maneiras de ver e de julgar, contrabalan-
çando no meu espirito os arrebatamentos e os
dispauterios da mãe, pouco a pouco desvanece-
ram, tornaram bruxuleante, apagaram em mim,
a seu respeito, o preconceito da hereditarie-
dade.
Se o casamento era um abismo, eu achei-me,
A RUA DO OIRO 28S
sem a mais leve sombra de receio, á borda
d'esse abismo, até onde chegara sem o suspei-
tar, com os olhos fitos naquelia pequenina es-
trella de felicidade que illuminava o meu ca
minho !
IX
A Divina Providencia, sob cujos auspicios o
Discurso da Coroa collocara a obra governamen-
tal durante aquella sessão legislativa, não tendo
até ahi intervindo em nenhum voto das duas
Gamaras, nem numa só das deliberações minis-
teriaes, entendera chegado o momento de tomar
em consideração o appello que tão solemnemente
lhe fora dirigido no dia 2 de Janeiro, e para tal
fira se incarnara e disfarçara, por um suave mi-
lagre, na humilde pessoa do Melecas, a quem
D. Claudia falara nestes termos :
— «Eu preciso possuir uma flagrante prova
de que o Presidente do Conselho tem relações
muito intimas com a mulher d'esse alto funccio-
nario de que fala hoje o Thantasma. Trate de
arranjar isso com urgência. Deve saber que eu
288 A RUA DO OIRO
não fico a dever os bons serviços que me pres-
tem. . . »
Melecas pozera em acção todas as suas ines-
timáveis faculdades de repórter, instruirá conve-
nientemente a sua policia secreta, estendera a
uma grande área os seus imperceptíveis fios de
informação como os fios de uma teia imperce-
ptível, e tudo isso por tal modo que, breves dias
decorridos, elle sabia dar noticia de quantos
passos fazia o Presidente do Conselho desde
que sahia de casa até que voltava a entrar em
casa para não tornar a sahir. E no dia em que
não lhe restava a menor duvida sobre o caso es-
candaloso que quizera averiguar. Melecas apre-
sentou-se, offegante, na Rua do Salitre.
— cTrago-lhe a verdade, senhora D. Claudia!
A pura verdade, como a não chegou a encontrar
Diógenes. . . »
— «O que averiguou então ? Que passos deu ?»
— quizera elle saber, numa viva ancia.
— *0 verdadeiro repórter, minha senhora,
tem uma divisa que lhe prohibe revelar os pas-
sos que deu para conseguir os seus fins . . . Não
digas como . . é a nossa divisa. Se assim não
fosse, nunca nós teríamos chegado á perfeição a
que chega hoje a reportagem em Portugal, para
que quando um ministro queira, por exemplo,
fazer o elogio dos seus próprios actos, ou des-
A RUA DO OIRO 289
compor em lettra redonda alguns dos seus col-
legas de gabinete, chame o repórter e lhe dite,
palavra por palavra, o artigo que no dia seguinte
apparece nos jornaes. . . »
— «Bem. Adeante !»
— «Todos os ministros têm os seus defei-
tos . . . Um ministro é um homem — e um gato
é um bicho ! O nosso Presidente do Conselho
tem o fraco das mulheres. Tudo aquillo nelle é
moléstia. . . O que elle quer é variedade. En-
gano d'alma ! As mudanças no amor são como
as mudanças de casa: de cada vez que se muda,
sempre se quebra alguma coisa.»
Mas D. Claudia estava sobre brazas, e queria
as provas, as provas !
i^ — «A grande prova — dissera então Melecas
— eu só posso fornecê-la se Vossa Excellencia
quizer assistir a um encontro do Presidente do
Conselho com a adultera!»
— «E como será isso possivel ?»
— oMuito simplesmente. Diga só Vossa Ex-
cellencia se assim o quer. . . »
EUa não hesitara um instante. Dissera logo
que sim. E Melecas, mexendo-se e remexendo-se
dentro d'aquella intriga como uma barata no fun-
do d'uma bacia, pozera D. Claudia em relações
com Antonieta, em casa de quem o Presidente
do Conselho se encontrava com a sua nova
19
290
A RUA DO OIRO
amante. D. Claudia entrara, levianamente, em
pleno dia, apenas disfarçada numa toilette de
luto rigoroso, cobrindo-lhe o rosto um espesso
véo de viuva, em casa de Antonieta !
Ah ! que se o Chico do Patrocinio* a visse
nesse momento, e podesse reconhecê-la sob
aquelle disfarcei. . .
A uma grande distancia de datas, o acaso
collocara aquelle mesmo homem — que era
hoje o primeiro Ministro — no caminho d'es-
sas duas mulheres. Muito antes que elle hou-
vesse entrado nas relações de Claudia, havia
sido das mais intimas relações de Antonieta,
desfructando, quanto poderá, o capricho amo-
rudo em que ella o envolvera. A esse tempo,
já Antonieta não era rapariga, e ainda elle
andava na Escola Polytechnica. Por sua cau^a
ella arruinara-se, arruinara um recebedor do
3.° Bairro, e teria arruinado todo o 3.° Bairro,
se isso possível fosse. Empenhara-se, para o vêr
sempre bem vestido, bem calçado, bem conten-
te! E o garoto atraiçoava-a. Uma madrugada,
andando já com a pedra no sapato, e como elle
não lhe apparecesse em casa, Antonieta saltara
da cama, mettera-se numa tipóia, e gritara ao
cocheiro :
— «Bate para o Dafundo ! »
Chega ao Dáiundo e, seu dito seu feito : es-
A RUA DO OIRO 29 1
tava o tratante abancado, em grande regabófe de
coelho á caçadora e muita vinhaça, com duas
hespanholas do Arco do Bandeira. Quailto ella
se raiara e quanto emagrecera I Até cahira doen-
te. Depois o tempo, que tudo cura, curara-a.
Mas tiniia-llie jurado uma desforra I Tiniia-llie
dado «sua palavra de honra»... Era o mo-
mento de cumprir.
E a desforra seria tremenda.
O Ministro chegara a esse ponto em que o
amor começa a não querer correr aventuras, e
procura já o socego e a segurança no prazer,
resolvera pensar a sério em casar-se. Claudia
era ainda, e sempre, a sua grande preoccupa-
ção. Na lucta que travara, e tão tenazmente
sustentara para a possuir, como tinha possuído
tantas outras, sentia-se já vencido, dispunha-se a
entregar-se. E resolvera, emfim, fazer votar a lei
do divorcio, para que Claudia, liberta, podesse
ser sua mulher.
Agora, era uma coisa decidida. Tudo estava
preparado. Em poucos dias seria votado o pro-
jecto. E elle despedia-se, á pressa, e sem sau-
dade, da sua vida romanesca de solteirão, mar-
cava as ultimas entrevistas ás suas três dúzias
de amantes, de que falava o Phantasma com
commentarios eróticos.
Dera uma d'ess£? s entrevistas em casa de An-
292 A RUA DO OIRO
tonieta, no dia em que Claudia ali devia ir. E
Claudia vira-o enlaçar nos seus braços fortes
de transmontano a mulher do Conselheiro
Araújo, aquella pérola da Isabelinha Araújo,
que desde as Salesas era a grande, a maior, a
amiga mais intima de Claudia, e que Claudia
lizera eleger secretária perpetua da sua Liga
Feminista I
Mas uma coisa só ha que se compare á inten-
sidade de emoção com que uma mulher chega
a amar o homem que ella suppoz ser-lhe orga-
nicamiente necessário, aquelle que ella idealisou
capaz de completá-la, e a quemi sacrificou ou
teria sacrificado, com tcdo o seu amor, toda a
sua vontade e todo o seu raciocínio : é essa ce-
leridade com. que essa mesma mulher esquece
aquillo que para ella, e num dado momento, foi
tudo.
Serenada a crise violenta de despeito que a
tomou na constatação d'aquella prova irrecusá-
vel, Claudia pensava:
— «E muito singular, tudo isto! Mas o que
era então que me impellia para esse homem, e
me trazia presa d'essa obcessão ? Era tudo isto
apenas uma questão de temperamento? E pode
assim o temperamento il!udir-nos, a ponto de
nos convencer de que uma grande parte do que
sentimos se passa no nosso coração? Depois,
A RUA DO OIRO 293
num momento, num repente, todo este despren
dimento I Como se nada fosse. . »
Foi nesta excellente opportunidade que eu,
ignorando ainda, e absolutamente, tão imprevis-
tas peripécias, e tendo resolvido romper com
embaraços e hesitações, bem decidido a definir
uma situação que me preoccupava deveras, ousa-
damente falei a D. Claudia.
Era o dia dos annos de Clarinha. Desenove
annos. Mil parabéns ! E d'essa vez, como todos
os annos, era dia de festa na Rua do Salitre.
Emquanto estivera no Collegio de Bemfica,
ella tinha vindo sempre passar esse dia em casa
e a sua vinda abria um parenthese de trégua,
ajustava um grato armistício entre o pae e a
mãe belligerantes. Mas d'esta vez o papá falta-
va, pela primeira vez. Grande pezar, grande
tristeza, no meio d'aquelle Algarve como no
meio d'uma Africa, em dia de tanta e tão que-
rida festa I lamentava elle, em carta recebida
cá, na véspera. O dever, porém, acima de tudo!
a pátria acima de família ! E elle bem sabia que
a pátria o contemplava, nesse momento em que
elle honrava a pátria, a pé firme e ao sol, no
alto d'um descampado até onde o tinha condu-
zido o fio d'uma recente investigação, dirigindo
elle mesmo as escavações pacientes, chegando
elle mesmo a revolver, com os dedos exreri-
•294 A RUA DO OIRO
mentados no tactear archeologico, a terra que
parecia incandescente, como se cobrisse numa
delgada camada a própria cúpula do Inferno !
Estava-se na força do verão. «Tivemos hoje, aqui,
quarenta graus de calor á sombra!» dizia elle
no fim da carta. E um pingo de suor, despren-
dido da sua testa esbrazeada, caindo sobre a
escripta, diluirá e espapaçara no papel a tinta
d'estas ultimas palavras.
Vinham á noite todos os amigos da casa e al-
guns amigos do Governo. Viria também, a ins-
tancias de Clarinha, o poeta Chico do Patrocínio,
que se achava muito penhorado e promettera al-
guma coisa de inédito para essa festa.
Mas ao jantar, de fora, seriamos apenas quatro
pessoas: o Presidente do Conselho, o Fausto e
a mulher, e eu. E fui eu o primeiro a chegar.
Clarinha, por mim prevenida, deixou me só
com a mãe. Não havia tempo a perder. Disse
tudo.
— «Senhora D. Claudia. . . Vossa Excellencia
quer, em seu proveito, fazer-me o favor de
acreditar na sinceridade de alguma coisa grave
que eu tenha a dizer-lhe ?
— «Porque não ?»
— «E consente que eu lhe diga tudo o que
tenho a dizer como poderia consentir que lh'o
dissesse um verdadeiro amigo?»
A RUA DO OIRO 29S
— «Consinto, o senhor Amaral bem sabe que
o considero meu verdadeiro amigo.»
Não foi preciso mais nada. Apontei, disparei.
— a O seu procedimento, minha senhora, que
Vossa Excellencia não soube encobrir, como
talvez devesse ter feito, nessa malfadada ques-
tão do divorcio, não podia passar-me desaperce-
bido, ainda mesmo que eu assim o tivesse de-
sejado. . . »
— aE vê o senhor nisso, porventura, algum
sentimento condemnavel ?»
— «Não, minha senhora, pelo contrario. Admi-
ro-a. Mas o meu fim é outro. Agora, que Vossa
Excellencia vae readquirir a sua inteira liber"
dade de mulher, é ao seu coração de mãe que
falo ...»
Claudia cahia, pouco a pouco, num grande
abatimento, os braços quebrados estendidos so-
bre os braçus longos do fauteuil, os olhos baixos
e fixos no desenho polichromo do tapete persa.
E apenas murmurou :
— «Diga. . . Diga o que quizer. . . »
Achei mole, carreguei :
— «Sua filha, minha senhora, apesar de muito
nova e inexperiente, não é já tão creança que
ignore o verdadeiro destino de todas as mulhe-
res. Não sei porquê, entendeu ella que eu seria
capaz de apreciar e guardar algumas das suas
296 A RUA DO OIRO
confidencias, e pôz me ao corrente de todas as
suas maguas, que não podem ser muitas, bem
de ver, mas que nem por isso deixam de mere-
cer-me o cuidado de lhes procurar algum remé-
dio. . . A intelligencia d'essa menina é uma intel-
ligencia precoce, e o seu raciocínio não briga,
por modo algum, com a sua intelligencia. D'aqui
a impossibilidade, com que tive de luctar, para
a persuadir de alguma coisa bem opposta a esta
convicção, muito nitida, em que ella vive : a con-
vicção de que se nenhum homem, dos muitos
que a têm conhecido na boa sociedade que fre-
quenta, se atreveu ainda a falar-lhe de casamento,
é porque alguma razão muito poderosa os afasta,
um preconceito os afugenta. . . »
Vi-a estremecer, num anceio.
— «E essa razão ? . . v perguntou.
— « . . Essa razão, minha senhora, quanto a
ella e quanto a mim, é a errada iriterpretação
que se chegou a dar aos mais insignificantes
actos da vida de ^'ossa Excellencia I»
Claudia endireitou-se no fauteuil, encarou-m e
bem, levantou a voz, muito excitada :
— aE qual a minha culpa ?!»
— «Eu não accuso Acossa Excellencia. Nem
accuso, nem defendo. Quem a accusa é toda a
gente ; quem a defende é sua própria filha. E
eu apenas me julgo na obrigação de pedir a
A RUA DO OIRO 297
Vossa Excellencia que cuide de destruir o erro
da accusação e mostre a justiça da defeza.»
— tE crê o senhor que essa liberdade de
acção que cu tratava de obter não fosse o único
remédio ?»
— iCom certeza. O que Vossa Excellencia
tem tomado como remédio é precisamente o ve-
neno. Mas ainda estamos a tempo de tudo
evitar ...»
— «E Clarinha ?b
— «O futuro da senhora D. Clara está neste
momento dependendo, por um fio, um tenuis-
simo fio, da resolução de Vossa Excellencia. . . »
— «Neste momento ?!»
— «Neste momento I Vossa Excellencia tem
deante de si alguém que, em boa consciência,
sabe que nenhum perigo real existiria para a fe-
licidade do homem que desposasse a senhora
D. Clara, se sua mãe persistisse em aproveitar-
se da lei do divorcio e contrahir outro casa-
mento, mas alguém que ainda é bastante timido
para também se deixar vencer pelo precon-
ceito . . , D
Como em lance decisivo de bem urdida come-
dia, um \ailto branco entrou e illuminou toda
a sala d'uma clara e suavíssima luz. Era Clarinha.
toda vestida de cassa branca, fina e vaporosa,
infinitamente linda aos meus olhos enamorados.
gS A RUA DO OIRO
Calei-me. E ouvi então, mal acreditando o
que ouvia, D. Claudia dizer :
— «Vieste muito a tempo, Clarinha. . . O senlior
Amaral tinha acabado de me pedir a tua mão ...»
Clarinha, num salto, deitou-lhe os braços ao
pescoço, soluçando. E eu vi os olhos de Clau-
dia arrazarem-se de agua.
X
«... Castevaes, Anadeis,
Infançoens, nédios Bispos, Menestréis,
almafres, cetras, balsas, alfarazes,
cavalleiros marcados de gilvazes !
O' fulgido pretérito !
Hoje. irra 1 Iridia Rua da Irrisão!
Esquálida e clownica procissão,
torpe bando de só brandos dandys pandos,
bêbados de brandys, liquidos nefandos,
alcatea surrada de mancipios,
consciências sem fé e sem principios.
Vejo-os passar sob o docel dos Astros,
vil, asthenica prole d'esses Castros,
párvulos fructos pecos,
de Ínclitos Aibuquerques e Pachecos . ..
^00 A RUA DO OIRO
E no Meu Peito, safaro calvário,
só cresce um cardeo lirio solitário:
A Saudade! a Saudade!
A incongrua Saudade d'Outra Edade.
Quando o Chico do Patrocínio, alisando para
trás com a mão tremula a guedelha, que se lhe
desconcertara na vehemencia da recitação, disse
o ultimo d'aquelles extraordinários versos que
nos trouxera do seu novo livro inédito, e uma
vibrante salva de palmas estrugiu, Fausto per-
guntou :
— «Que titulo dás tu ao poema ?»
— tA Rua do Oiro!* noticiou o Chico.
Fausto não percebia, ou fingia não perceber,
para melhor desfructar o chefe da escola nefeli-
bata, e repontava :
— «Mas que tem que vêr a Rua do Oiro com
isso ?»
— «Ora o que tem! Pois não comprehendes ?
E' um símbolo... E' o poema da ficção: a fic-
ção do Amor, a ficção do Talento, a ficção do
Luxo, a ficção da Honra... Tudo o que luz,
mas que não é oiro ! »
Depois, sobre esta frase do meu poeta, a mi-
nha vida entrou, precipitadamente, num capítulo
novo de boa e de corrente prosa.
A RUA DO OIRO 3oi
Ao mesmo tempo que D. Claudia declarava
ao Ministro desistir do empenho que tivera em
fazer votar a lei do divorcio, o marido morria
subitamente, no Algarve. E D. Claudia — mi-
nha sogra — exonerada, a seu pedido, da presi-
dência da Liga Feminista, retirada da Politica,
serenada de nervos, e conservando-se viuva vae
em três annos, a um e um tem quebrado os
dentes, agudos e esverdeados, que a calumnia
lhe arreganhou um dia. Vendeu a casa da Rua do
Salitre, deixou Lisboa, e aqui está hoje com-
nosco, na Ilha.
Quando, do escaler que nos trazia de bordo
do Açor^ bem picado de remos, me foi possí-
vel reconhecer as pessoas que sobre a ponta do
Cães aguardavam a nossa chegada, avistei logo,
á frente, como uma filarmónica, as Primas Ro-
chas e as Primas Noronhas, com o Primo Theo-
dosio, esbracejando e regosijando. Sumptuosa
de plumas brancas e vidrilhos, a fronte alta,
protocollar, da Tia Maria da Assumpção Car-
neiro de Amarante, sobresaía do grupo, um
pouco atrás. E a seu lado, irradiando jubilo,
os óculos de oiro do Doutor Tristão coruscavam.
Amigos políticos — nem um! Ainda bem!
Eu bem sabia que, para os ter, era necessário
creá-los. E eu não soubera creá los. A única
coisa que tinha pedido com empenho, e que con-
302 A RUA DO OIRO
seguira, fora a nomeação de Thedosio para a
bibliotheca do Liceu. Trazia-lhe o decreto. E
logo elle, em paga, me dava a noticia de que
Tarquinio, o terrível, definitivamente arr azado
pela diabetes, tinha recebido os últimos sacra-
mentos nessa madrugada.
— «Já não deve pertencer ao numero dos vivos!»
ajuntou o Doutor Tristão, que lá tinha ido a
casa, a uma junta.
Tia Genoveva, essa, não tinha vindo ao Gaes.
Esperava-nos em casa, sobre o patamar da nossa
larga e puída escada de pedra, na olorosa sim-
plicidade do seu avental branco e dos seus ban-
dós, enternecida e tremula, emquanto a Goncei-
ção Velha e a Gertrudes Gaga, atabalhoadas de
contentamento, vinham abaixo para ajudar o
Manoel Ignacio a subir as malas de mão, as cai-
xas de chapéus, os embrulhos. ..
O único desgosto que tenho tido depois que
casei começa a dissipar-se agora, como névoa
que pouco a pouco se funde numa aurora, em
uma suave, inexprimível alegria. Clarinha sente-
se gravida. Já não ha duvida. Mas custou ! Es-
távamos casados ha dois annos.. .
Se for uma rapariguinha, ha-de chamar-se Ge-
noveva.
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AS ALEGRES CANÇÕES DO NORTE J',í^f g^^^j!
nho. — Aspectos da naiureza e da vida.— Filões poéticos
do vocabulário minhoto. — As danças aldeãs.— Origem
mylhicada Caninha Verde.— Aventuras Domjuanescas do
Malhão.— Trabalhos agricclas— Folga e folias.— Peregri-
nações torreuluosas. — A do Sameiro em 1904 -Espe- \
ctabulo formidável de um exercito de crentes. — Roma-
rias e arraiaes. — .Noite de S. João. -Sua relação com o
culto solar.— O \atal, a consoada, as Janeiras, os Heis
Magos e os autos hieráticos, por Alberto Pimentel, l vol il. fiOO
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9261 A rua do oiro
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