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Full text of "A rua do oiro; romance lisboeta"

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A   RUA 


DO    OIRO 


DE  ALFREDO  MESQUITA: 

JcLio  César  Machado  (retrato  litterario) i  vol. 

Portugal  Moribundo i  vol. 

Vida  Airada i  vol. 

De  Cara  Alegre i  vol. 

Terras  de  Hespanha i  vol. 

Cartas  da  Hollanda i  vol. 

Lisboa i  vol. 

Memorias  de  um  Fura-Vioas i  vol. 

A  Rua  do  Oiro  (romance) i  vol. 


ALFREDO  MESQUITA 


A   RUA 

DO   OIRO 


ROMANCE  LISBOETA 


LISBOA 

Livraria  Editora  Viuva  Tavares  Capdoso 

Largo  de  Camões,  3  e  6 

igoS 


Tjp  Piobairo,  R.  Jiirdim  do  Regedor,   41 


A    RUA    DO    OIRO 


Já  as  Camarás  estavam  abertas,  havia  quasi 
dois  mezes,  quando  clieguei  a  Lisboa,  numa  ene- 
voada quarta-feira  de  Comadres,  com  grandes 
ameaços  de  chuva,  e  um  vento  forte,  ás  lufadas, 
que  já  dos  lados  da  Barra  soprava  e  espalhava 
no  céo  as  cinzas  de  um  aguaceiro,  e  me  levava  o 
chapéo  de  coco  de  rebolao,  pela  ponte  da  Alfan 
dega,  onde  desembarcámos,  ati  á  casa  do  Des- 
pacho, onde  deyiamos  esperar  as  malas. 

Tínhamos  que  esperar  por  essas  malas ! 

Eu  devia  achar-me  em  Lisboa,  segundo  os 
meus  cálculos  e  os  dos  meus  amigos  políticos, 
desde  os  fins  de  dezembro,  para  comparecer 
nas  Cortes  logo  no  dia  da  abertura,  e  acompa- 
nhar desde  esse  dia,  com  muita  assiduidade  e 
zelo,  todos   os   trabalhos  parlamentares. 


6  A   RUA   DO    OIRO 

Para  isso  havia  eu  recebido  aquelle  muito 
honroso  mandato  I 

Era  bem  certo,  porém,  como  sempre  ouvira 
dizer  a  minha  Tia  Maria  da  Assumpção,  senh.ora 
de  amplas  nádegas  e  de  profundos  conceitos  — 
que  o  homem  punha  e  Deus  dispunha.  Uma 
inesperada  angina  pectoris  surprehendera-me 
na  véspera  da  partida,  já  com  a  roupa  mettida 
nas  mahis  e  a  passagem  tomada  no  paquete. 

Estive  dez  dias  de  cama,  com  febre  de  trinta 
e  oito  graus,  cinco  cobertores  de  papa,  e  duas 
tias  á  cabeceira  :  a  minha  querida  Tia  Genoveva 
Sampaio  do  Amarai.  d\im  lado ;  e  a  minha  prc- 
sada  Tia  Maria  da  Assumpção  Carneiro  de  Ama- 
rante, do  outro. 

Ao  decimo  dia  tive  alta,  que  me  foi  dada  pelo 
complacente  Doutor  Tristão,  o  mais  alegre  fa- 
cultativo que  tem  exercido  clinica  com  a  carta 
do  curso  da  Escola  Medica  da  Madeira,  e  que 
era  o  medico  da  nossa  casa  desde  que  eu  me 
entendia  —  mesmo  já  antes  de  eu  me  entender 
—  pois  fora  elle  quem  assistira  aos  últimos  mo- 
mentos de  minha  Mãe,  que  Deus  haja,  viuva  ao 
Sexto  mez  de  gravida,  e  victima,  depois,  de  uma 
peritoniie  puerperal,  sobrevinda  ao  parto  infeliz 
de  que  eu  vim  ao  mundo. 

Mas  se  eu  fizera  mal  em  pedir  alta,  peor 
fizera  o  Doutor  Tristão  em  m'a  conceder  prom- 


A  RUA  DO   OIRO  7 

piamente — sempre  muito  receioso  de  que  o  doen- 
te podesse  suppôr  ter  elle  empenho  em  demorar 
a  doença  para  augmentar  a  conta  das  visitas. 

Quiz  abreviar  a  convalescença,  sahi  de  casa 
ao  segundo  dia  depois  de  deixar  a  cama,  apa- 
nhei humidade  c  recahi  com  febre  ainda  mais 
intensa. 

Minhas  Tias,  embora  se  guardassem  bem  de 
m'o  dizer,  tinham  tido  com  essa  recahida  um 
muito  intimo  jubilo. 

A  Tia  Genoveva,  irmã  de  minha  Mãe,  e  a 
quem  minha  Mãe  pedira,  á  hora  da  morte, 
apertando-lhe  muito  ambas  as  mãos,  e  já  com 
o  vidro  dos  seus  claros  olhos  azues  embaciado 
—  que  não  me  desamparasse  e  me  amasse  tanto 
como  ella  decerto  me  teria  amado,  se  tivesse 
vivido— a  Tia  Genoveva,  dizia  eu,  fora  das  qua- 
tro filhas  do  Desembargador  Manoel  Augusto 
Soares  do  Amaral,  a  única  que  se  conservara 
solteira,  e  que  muito  propositadamente  quizera 
ficar  para  tia  —  para  minha  tia,  tendo  sido  a 
mais  formosa  das  quatro  irmãs,  e  a  mais  re- 
questada de  todas  ellas,  já  pelas  condições  de 
excepcional  encanto  com  que  a  natureza  a  do- 
tara, já  pelas  condições  de  desusada  fortuna 
com  que  a  dotara  João  Maria  Soares  do  Ama- 
ral, que  tendo  voltado  do  Brazil  com  uma  ri- 
queza e  um  ataque  de  béri-béri,  apaixonara  se 


b  A  RUA  DO  OIRO 

também  por  a  sobrinha,  mas  guardara  comsigo 
o  segredo  d'essa  paixão,  de  que  só^  se  veiu  a 
saber  quando  se  lhe  abriu  o  testamento,  em  que 
elle  constituía  minha  Tia  Genoveva  sua  universal 
herdeira... 

Tanto  a  peito  esta  bondosa  Tia  tomou  o  meu 
triste  caso  de  pequenino  órfão  desamparado, 
que  só  me  não  deu  maminha  porque  não  poude ; 
pois  de  tudo  o  mais  quanto  sabe  dar-nos  em 
cuidados,  caricias  e  cueiros  sempre  frescos,  um 
verdadeiro  amor  de  mãe,  a  Tia  Genoveva  foi 
pródiga,  e  só  comparável,  nesses  extremos  por 
mim,  áquella  nossa  velha  gata  maltesa  Mange- 
rona,  que  d'uma  vez  creou  e  acarinhou  com 
muito  enleio  materno,  a  um  canto  da  estreba- 
ria, uma  ninhada  de  patinhos  cinzentos,  como 
se  fosse  uma  ninhada  de  gatos.    ' 

Quando  eu  nasci,  tinha  a  Tia  Genoveva 
vinte  annos,  engrinaldados  de  purezas  e  de  en- 
cantos simples,  como  de  rosas  brancas  de  tou- 
car. O  luto  de  que  ella  se  cobriu  por  morte  de 
minha  mãe,  ainda  mais  pôz  em  realce  a  formo- 
sura da  sua  pelle  clara  e  dos  seus  cabellos 
loiros,  e  mais  amavelmente  contornou  as  ma- 
ciesas  redondinhas  do  seu  busto. 

A  nossa  casa,  que  ainda  hoje  é  a  mesma,  fi- 
cava situada  no  caminho  do  histórico  castello 
de  São  João  Baptista,  onde  se  achava  aquarte- 


A  RUA  DO   OIRO  "      9 

lado  o  regimento;  e  como  por  ali  transitasse, 
todos  os  dias,  á  ida  e  á  volta  do  serviço,  a 
briosa  oíficialidade  de  Caçadores  lo,  era  de  vêr, 
segundo  ainda  hoje  se  conta  na  familia,  a 
chamma  que  brilhava  no  olho  dos  alferes, 
quando  passavam,  arrastando  e  tilintando  as  es- 
padas, por  baixo  das  nossas  janellas,  e  a  Tia 
Genoveva  assomava,  descuidosamente,  a  algu- 
ma d'ellas. 

Depois,  quando  se  abriu  o  testamento  do  Tio 
João  Maria,  e  a  noticia  da  herança  correu 
de  serra  em  serra  como  corre  uma  levada, 
já  não  eram  só  os  alferes,  eram  outros  offi- 
ciaes  de  patente  superior,  majores  e  coro- 
néis, que  chegavam  a  pedir  transferencia  de  re- 
gimento, e  vinham,  todos  empennachados,  pas- 
sar por  baixo  das  nossas  janellas,  com  um 
barulho  guerreiro  de  esporas  e  de  espadas,  co- 
mo nas  cargas  -rutilantes  dos  grandes  quadros 
de  Détaillel 

Houve  um  momento  em  que  o  espirito  oc- 
culto  da  Tia  Genoveva  influiu  poderosamente  na 
Ordem  do  Exercito. 

E  num  dia  de  grande  gala,  em  que  o  regi- 
mento sahia  do  Castello  para  vir  formar  em 
frente  da  Sé,  onde  havia  Te-Deum,  ao  passar 
por  casa  do  Desembargador  Amaral,  ruidosa- 
mente  a   banda  rompeu  o  Noivado  do  Sepul- 


IO  A  RUA  DO  OIRO 

chro,  que  era  a  musica  predilecta  da  Tia  Ge 
noveva. 

Tia  Genoveva,  porém,  apenas  sorria,  muito 
á  flor  dos  lábios,  da  maluqueira  amoruda 
em  que  a  sua  pessoa  lançava  tanto  official  su- 
perior. 

Debalde  as  Primas  Rochas  e  as  Primas  No- 
ronhas,  e  o  Primo  Theodosio,  secretario  dos 
amantes  e  da  Administração  do  Concelho,  dili- 
genciavam estimula-la  ao  amor,  com  aquelle  em- 
penho que  tiveram  sempre  em  arranjar  casa- 
mentos, para  sempre  andarem  mettidos  em  bo- 
das e  em  baptisados. 

Em  vão  lhe  preparavam  ciladas  de  namoroi 
combinando  entrevistas,  entregando  lhe  missivas 
perfumadas,  levando-lhe  declarações  e  amores 
perfeitos  espalmados  entre  folhas  de  livros  de 
missa. 

Com  um  leve  gesto  de  recusa,  a  Tia  Geno- 
veva sacudia-os  a  todos,  galhofando  ;  e  eram 
para  mim,  só  para  mim,  exxlusivamente  para 
mim,  a  festa  dos  seus  affectos  e  a  prodigalidade 
dos  seus  mimos. 

Tive  sete  amas,  e  todas  ellas  de  freguezias 
diversas,  porque  desde  que  alguma  se  queixasse 
de  uma  dôrsinha  no  peito,  ou  acontecesse  ende- 
iluxar-se  nalguma  corrente  de  ar,  logo  a  Tia 
Genoveva  a  despedia,  para  que  o  leite  pertur- 


A  RUA  DO   OIRO  1  I 

bado  não  me  contaminasse  de  algum  mal,  e 
iontractava  outra. 

Corri  três  collegios,  e  todos  elles  de  meninas, 
antes  de  ser  admittido  a  exame  de  instrucção 
primaria. 

Todo  o  meu  curso  do  Liceu  o  fiz  com  sen- 
tinella  á  vista,  tendo  sido  necessário  para  a  rea- 
lisação  d'este  complicado  desideratum  da  Tia 
Genoveva,  que  o  Reitor  auctorisasse  a  entrada 
nas  aulas,  como  alumno  livre,  ao  Manoel  Igna- 
cio,  creado  velho  da  casa  de  meu  Avô,  que  an- 
dara com  minha  Mãe  e  minhas  Tias  ao  collo,  e 
agora  me  acompanhava  á  mathematica  e  á  fí- 
sica, para  tomar  conta  em  mim,  não  perder  de 
vista  um  único  dos  meus  movimentos. 

Tinha  quinze  annos  quando  acabei  o  curso,  e 
todo  um  anno  mais  se  passou  antes  que  a  Tia 
Genoveva  se  decidisse  a  separar-se  de  mim  e  a 
mandar-me  para  Coimbra  cursar  Direito,  que 
era  o  meu  sonho  doirado  de  bacharel  embrio- 
nário. Ainda  se  fosse  viável  a  idéa,  que  a  boa 
senhora  chigou  a  expender,  de  mandar  o  Ma- 
noel Ignacio  acompanhar-me  durante  a  forma- 
tura I . .  . 

E  como  depois  que  me  vira  embarcar,  muito 
recommendado  ao  capitão  do  navio  e  ao  dispen- 
seiro  de  bordo,  nunca  mais  me  tornara  a  ter 
junto  de  si  senão  durante  o  breve  tempo  de  fé- 


12  A  RUA  DO  OIRO 

rias,  agora,  que  eu  regressara  á  Ilha,  com  o 
meu  curso  e  com  o  meu  diploma,  feilo  doutor 
e  homem  feito,  ella  não  se  atrevia  já  a  exercer 
sobre  mim  a  mesma  carinhosa  vigilância  d'ou- 
tros  tempos,  que  era  bem  uma  perseguição, 
mas  uma  doce  perseguição  ;  e  chegava  então  a 
rejubilar  com  os  meus  incommodos  de  saúde, 
desde  que  esses  incommodos  me  obrigassem  a 
não  sahir  de  casa,  sem  que  todavia  tomassem  o 
mais  leve  aspecto  de  gravidade. 

Quanto  á  Tia  Maria  da  Assumpção,  o  motivo 
que  a  prendia  á  minha  cabeceira,  e  o  seu  parti- 
cular contentamento  de  me  ver  assim  prostrado 
no  leito  da  dôr,  eram  bem  outros. 

A  Tia  Maria  da  Assumpção  Carneiro  de  Ama- 
rante, viuva  aos  trinta  e  oito  annos  de  idade  e 
ao  segundo  amo  de  casada,  de  meu  Tio  Ma- 
noel Felisberto  de  Amarante,  irmão  de  meu 
Pae,  e  grande  exportador  de  laranja  para  a  In- 
glaterra, nunca  tivera  por  mim  um  decidido 
aífecto,  e  bastas  vezes  me  torcera  beliscões  em 
pequeno,  para  melhor  demonstrar,  por  essa 
pratica  fácil  e  muito  intuitiva,  uma  das  suas 
ponderações  favoritas:  «que  era  de  pequenino 
que  se  torcia  o  pepino.» 

Sempre  embirrara  commigo,  nunca  eu  soube 
porquê,  e  me  achava  insupportavel,  chamando- 
me  de  continuo  grande  bicho  fervedoiro  e  alma 


A  RUA  DO   OIRO  l3 

do  diabo,  c  não  sendo  cu  senhor  de  mexer  um 
dedo,  nem  dizer  uma  oalavra  em  sua  augusta 
presença,  sem  que  ella  revirasse  logo  para  mim 
o  olho  verde  ameaçador,  reprimindo  um  Ímpeto 
e  mordendo  o  beiço  de  baixo  se  a  Tia  (}enoveva 
estivesse,  chegando  me  logo  um  sopapo  se  eu 
estivesse  só  com  ella. 

Tendo  minha  Mãe  pedido  á  Tia  Genoveva 
que  na  pia  do  baptismo  me  pozessem  o  nome 
de  Joaquim  (que  era  o  nome  de  meu  Pae)  e 
tendo  depois  a  Tia  Genoveva  decretado  a  toda 
a  gente  da  casa,  creadas  e  creados,  quinteiros 
e  quinteiras,  que  não  queria  que  me  tratassem 
por — «Joaquimsinho»,  nem  por —  «Menino  Joa- 
quim», mas  por  esta  mimosa  abreviatura  de 
o  Quinino»,  que  ainda  hoje  familiarmente  se  em- 
prega lá  em  casa,  quando  se  fala  de  mim  — 
sempre  a  Tia  Maria  da  Assumpção  tirara  d'esta 
simples  coisa  carinhosa,  que  era  agradável  á. 
Tia  Genoveva,  e  de  que  eu  gostava  também, 
um  estigma  de  ridículo  para  lançar  sobre  a  mi- 
nha fraca  pessoa:  e  quando  a  mim  se  referia, 
ou  quando  por  mim  chamava,  tratando-me  tam- 
bém por  «Quinino»,  de  tal  modo  transtornava, 
e  tão  propositadamente,  o  que  naquelle  diminui- 
tivo  havia  de  mimo  e  de  bondade,  tal  intonação 
de  dois  sentidos  lhe  dava,  que  eu  bem  percebia 
querer  ella  dizer,  na  sua,  que  aquelle  «Quinino» 


14  A  RUA  DO  OIRO 

lhe  era  tão  desagradável  e  antipathico  como  o 
outro  quinino  que  se  toma  para  as  febres,  e  cujo 
mau  sabor  lhe  vinha  á  bocca,  desde  uma  vez 
que,  ainda  em  solteira,  se  lhe  esborrachara  na 
lingua  uma  hóstia  d'esse  sulfato. 

Só  muito  mais  tarde,  depois  que  concluí  o 
meu  curso  do  Liceu,  e  comecei  a  entrar,  ás 
apalpadellas,  no  entendimento  aproximado  das 
coisas  d"este  mundo,  é  que  me  veiu  á  idéa,  na 
conjectura  retrospectiva  de  alguns  factos  e  epi- 
sódios que  mais  me  haviam  impressionado  du- 
rante as  primeiras  lettras  —  que  o  principio 
d^aqueila  atroz  embirração  de  m.inha  Tia  por 
mim,  coincidira  justamente  com  o  periodo  agudo 
da  sua  desditosa  viuvez,  em  que  a  pobre  se- 
nhora soffrcra  de  um  permanente  frenesi,  fre- 
quentemente acompanhado  de  ataques  de  ner- 
vos que  lhe  davam  para  rasgar  as  mangas  do 
•roupão  e  morder  o  travesseiro.  E  cheguei  então 
a  pensar  que,  se  a  esse  tempo  eu  já  podesse 
saber  o  que  depois  vim  a  saber,  talvez  as  coisas 
se  tivessem  harmonisado  entre  nós,  a  contento 
da  Tia  Maria  da  Assumpção  e  a  meu  contento, 
pois  por  mais  d'uma  vez  cu  pensara,  contem- 
plando a  sua  frescura,  que  muito  devia  ter  cus- 
tado ao  Tio  Manoel  Felisberto  separar-se  d'ella 
tão  cedo  —  e  para  sempre  I 

Em    Coimbra,   com   as  noitadas  e  regabófes 


A  RUA  no   OIRO  l5 

inherentcs  á  Faculdade,  prejudiquei  tanto  os 
meus  bronchios,  que,  depois  de  concluir  a  for- 
matura, e  de  voltar  para  a  Ilha,  continuei  a  sof- 
frer  d'elles  amiudadas  vezes;  e  sempre  era  o 
alegre  Doutor  Tristão  que  me  prestava  os  seus 
soccorros  médicos. 

O  meu  escriptorio  de  advogado,  ao  voltar  da 
Rua  da  Esperança  para  a  Miragaia,  ficava 
mesmo  defronte  da  casa  da  Tia  Maria  da  As- 
sumpção ;  e  de  cada  vez  que  eu  não  ia  ao  es- 
criptorio, era  sabido  que  logo  apparecia  em 
nossa  casa  a  Gertrudes  Gaga,  sua  creada  de 
fora,  a  perguntar,  com  a  fala  muito  tarda  e  a 
expremer-se  muito  nos  quês  —  se  o  senhor  Dou- 
tor Quinino  estava  doente.-,  se  já  tinha  sido 
preciso  mandar  chamar  o  medico. .  . 

E  se  lhe  respondiam  que  sim,  ahi  largava  elia 
a  correr,  a  levar  a  noticia  á  Tia  Maria  da  As- 
sumpção, e  ahi  tínhamos  nós,  pouco  depois,  a 
Tia  Maria  da  Assumpção,  toda  açodada,  aos 
puxões  na  borla  de  lã  verde  da  campainha  da 
porta,  muito  aíflicta,  a  querer  que  lhe  dissessem, 
ainda  na  escada,  se  já  tinham  mandado  chamar 
o  Doutor  Tristão,  e  o  que  tinha  elle  dito,  e  se 
dissera  que  voltava. 

Depois,  sentava-se  me  á  cabeceira,  e  dir-se-ía 
que  toda  ella  se  desfazia  em  cuidados  e  disve- 
los,  como  se  quizesse  penitenciar-se  para  com- 


1(3  A  RUA  DO  OIRO 

migo,  e  por  esse  modo,  do  muito  que  me  tor- 
cera e  retorcera  em  pequenino,  como  quem  tor- 
ce e  retorce  um   pepino. 

Eu  nunca  fui  de  guardar  rancores,  como  cer- 
tas creaturas  que  tenho  conhecido  em  minha 
vida,  ou  como  a  mula  do  Papa,  que  sete  annos 
guardou  o  formidável  coice  ;  e  depressa  esque- 
cera, com  a  ida  para  Coimbra,  os  beliscões,  as 
reprimendas  e  os  maus  olhados  da  Tia  Maria 
da  Assumpção,  que  tanto  me  irritavam  e  me 
affligiam. 

Mas  de  cada  vez  que  a  via  apparecer  á  porta 
do  meu  quarto  de  doente,  sorridente  e  affavel 
como  uma  irmã  de  caridade  a  consolar  um  tris- 
te, vinha  me  logo  á  lembrança  o  tempo  em  que 
ella  me  maltratava  e  me  detestava,  me  chamava 
bicho  fervedoiro,  alma  do  diabo  e  Quinino... 
mas  quinino  —  sulfato  I  E  attribuindo  apenas  a 
uma  questão  de  tempo  e  de  ausência  a  profunda 
mudança  que  se  havia  operado  nas  nossas  rela- 
ções, que  eram  agora  evidentemente  cordeaes 
(como  no  Discurso  da  Coroa  as  relações  de  Por- 
tugal com  as  demais  potencias),  dava  graças  a 
Deus  por  ter  cessado  esse  conflicto,  e  não  pen- 
sava sequer  em  descobrir  outras  jazÕes. 

Bem  longe  estava  eu,  bacharel  ingénuo  em 
Direito,  de  suspeitar  que  andava  sendo  intrujado 
por  tão  sabida  senhora  I 


A  RUA  DO   OIRO  I7 

Minha  Tia  Maria  da  Assumpção,  vinte  annos 
volvidos  sobre  o  funeral  de  primeira  classe  de 
meu  Tio  Manoel  Felisberto,  não  poderá  confor- 
mar-se  com  a  pouca  sorte  de  só  ter  estado  ca- 
sada dois  annos  (lapso  bem  curto,  com  eífeito, 
quando  os  casados  se  entendem  e  de  bom  grado 
se  submettem  ás  leis  da  Natureza  no  que  res- 
peita ás  relações  dos  sexos) ;  e  todas  as  suas 
attenções  de  viuva  inquieta  e  inconsolável  —  in- 
consolável não  pela  perda  do  primeiro  marido, 
mas  por  a  falta  de  um  outro  —  se  voltaram  para 
quem  ?  Para  o  Doutor  Tristão  I 

Eu  nunca  teria  dado  por  tal,  se  o  Theodosio, 
ainda  hoje  secretario  da  Administração  do  Con- 
celho, m'o  não  houvesse  denunciado,  declarando 
que  era  eu,  em  toda  a  Ilha,  talvez  em  todo  o 
Archipelago,  a  única  pessoa  que  o  não  sabia. 
Mas  desde  que  o  Theodosio  m'o  disse,  e  entrei 
a  observar  as  attitudes  de  minha  Tia  quando  e 
onde  quer  que  estivesse  em  presença  do  Doutor 
Tristão,  facilmente  percebi  que  ella  perseguia  o 
nosso  medico  com  o  mais  porfiante  e  descarado 
namoro  que  se  possa  imaginar.  Porque  não  era 
só  com  os  olhos,  verdes  e  fixos,  que  ella  procu- 
rava perturbar  a  invejável  tranquillidade  de 
alma  do  Doutor  Tristão,  que  tão  sabiamente  e 
parcamente  regulava  as  ♦  necessidades  do  seu 
celibato  pelos  conselhos  prudentes  de  Raspail : 

2 


l8  A  RUA  DO  OIRO 

era  com  o  pé,  pisando  o  d'elle,  de  cada  vez 
que  podia  ;  era  com  a  perna,  sempre  que  se  sen- 
tava ao  seu  lado;  era  com  o  joelho,  se  lhe  fica- 
va na  frente. 

E  auxiliando  a  acção  d"estes  meios  mais  dire- 
ctos, mas  mais  perigosos,  de  ataque,  era  com 
enormes  travessas  de  fios  dovos  salpicados  de 
confeitos,  e  levados  a  ponto  pelas  suas  preciosas 
mãos ;  ou  com  magnificos  cabazes  de  fructa  da 
sua  quinta  de  São  Carlos ;  ou  com  soberbos  ra- 
mos de  dhalias  colhidas  no  jardim  da  sua  casa 
da  cidade  —  que  ella  se  lhe  declarava,  se  lhe 
escancarava. . . 

Ella  confessara  uma  vez  á  Tia  Genoveva  que 
fizera  a  promessa  de  andar  vestida  ao  Carmo, 
com  escapulário  e  correia,  até  ao  dia  em  que 
Nossa  Senhora  lhe  permittisse  voltar  aos  pés  do 
altar  para  ser  recebida  outra  vez  em  casamento. 
Mas  parecia  que  Nossa  Senhora  gostava  mais 
de  a  vêr  com  aquelle  habito,  de  escapulário  e 
correia,  e  não  a  deixava  mudar  de  figurino.  O  ale- 
gre Doutor  Tristão  ia  comendo  e  saboreando, 
ás  sobremezas,  as  travessas  de  fios  d'ovos ;  de- 
vorava as  peras  e  os  pecegos  de  São  Carlos, 
cora  a  casca ;  enchia  de  dhalias  sempre  frescas 
as  jarras  da  sua  sala ;  e  brandamente  fugia  á 
Tia  Maria  da  Assumpção  —com  a  perna  e  com 
o  joelho  por  causa  das  conveniências,  e  com  o 


A  RUA  DO   OIRO  IQ 

pé   por   causa  dos  callos,  que  os  tinha  imperti- 
nentes, um  em  cada  dedo  mindinlio.. . 


A  minha  eleição  para  deputado  tinha-se  feito 
limpamente,  independentemente,  sem  violência, 
sem  atropelo,  sem  carneiro  e  sem  batatas. 

Eu  sahira  eleito  pelo  voto  livre,  e  esta  circums- 
tancia  anormal  em  actos  eleitoraes,  se  por  um 
lado  era  grata  á  minha  vaidade  ainda  timida,  e 
acariciava  o  meu  amor  próprio  como  a  festa  que 
se  faz  a  um  gato,  passando-lhe  a  mão  sobre  o 
lombo,  ao  correr  do  pêlo,  por  outro  lado  im- 
punha-me  responsabilidades  e  enchia-me  de  in- 
quietações. 

Eleito  deputado  a  sério,  eu  tinha  de  ser  um 
deputado  a  sério ;  e  esse  caso  intimidava-me,  as' 
sustava-me  quasi,  porque  o  papel  de  uni  repre- 
sentante do  povo  a  sério,  no  meio  de  cento  e 
tantos  que  só  o  eram  por  troça,  tinha  de  ser 
uma  verdadeira  creação. 

Mal  eu  chegara  de  Coimbra  com  o  meu  curso, 
e  começara  a  exercer  a  advocacia,  com  uma 
certa  frescura  de  loquela  a  que  já  não  estavam 
habituados  o  auditório  e  os  jurados  das  causas 
crimes  da  minha  Ilha,  logo  as  attençÕes  da  terra 
se  haviam  voltado  para  mim,  e  se  pensara  e  se 
dissera,  á  bocca  pequena,  que  eu  devia  dar  um 


20  A  RUA  DO  OIRO 

excellente  deputado.  Mas  ninguém  se  atrevera 
ainda  a  dizé-lo  em  voz  alta,  porque  o  respeito 
da  tradição,  solidamente  enraizado  nos  ânimos 
terceirenses,  não  admittia  a  tentativa  de  uma 
disputa  eleitoral,  emquanto  fossem  vivos  o  Có- 
nego Pinto  e  o  Machado  da  Botica,  progressistas, 
o  Barão  da  Terra-Cha  e  o  Pompeu,  regenerado- 
res, que  ha  vinte  annos  se  davam  a  alternativa 
nas  candidaturas  por  Angra. 

Por  isso,  dobrado  foi  o  espanto  quando,  uma 
vez,  tendo  chegado  por  uma  mala  inesperada  a 
noticia  de  que  haviam  sido  dissolvidas  as  Gama- 
ras, e  em  plena  reunião  do  Centro  regenerador, 
presidida  pelo  ferrenho  Maia,  grande  amigo  do 
Fontes,  e  cunhado  e  sustentáculo  do  Pompeu ; 
e  tendo  sido  dada  para  ordem  da  noite  «a  atti- 
tude  do  partido  em  face  da  ultima  prepotência 
do  governo»  —  o. Doutor  Tarquinio,  pedindo  a  pa- 
lavra, se  assoara  e  tossira  com  estrondo,  arras- 
tara os  pés,  estabelecera  uma  silenciosa  atmos- 
fera de  anciedade  (porque  a  sua  palavra  era 
sempre  esperada  e  ouvida  como  a  ultima  pala- 
vra) e  depois  de  muito  ponderar,  muito  consi- 
derar e  muito  fundamentar  a  necessidade  de  es- 
colher novos  elementos  de  combate  para  as  lu- 
ctas,  cada  vez  mais  alterosas,  do  Parlamento, 
abertamente  e  á  queima-roupa  alvitrara  a  minha 
candidatura  nas  próximas  eleições ! 


A  RUA  DO  OIRO  21 

O  golpe  era  de  mestre,  e  mestre  de  maráus. 

Toda  a  gente  sabia  que  o  Doutor  Tarquinio 
não  podia  vér-me  desde  que  eu  abrira  escripto- 
rio  e  entrara  a  advogar  —  porque  advogado  era 
elle,  e  para  Angra  elle  bastava.  E  eu  bem  o 
sentia,  sem  lhe  querer  mal  por  isso,  que  Tar- 
quinio era  o  meu  grande  inimigo ! 

Tarquinio  exercia  a  advocacia  desde  os  tem- 
pos remotos  em  que  Tristão  começara  a  exercer 
a  clinica.  Muito  antes  de  mim,  e  muitos  outros 
haviam  tentado  estabelecer  na  Ilha  essa  legitima 
concorrência  de  jurisconsultos,  a  que  se  oppu- 
nham  sempre,  tão  encarniçadamiente,  os  interes- 
ses, aliás  também  legitimes,  do  açambarcante 
Doutor  Tarquinio. 

Acobardavam  todos,  porém,  e  succumbiam. 
Tarquinio,  triumfador,  tornou  se  facilmente  Tar- 
quinio despótico  ;  c  quando  eu  cheguei,  e  co- 
mecei, tive  logo  a  minha  sentença  lavrada  :  Tar- 
quinio esborrachar  me-ia  como  se  esborracha 
uma  pulga — sob  a  pressão  implacável  do  seu 
muito  saber  e  da  sua  unha  muito  crescida  e  muito 
suja. 

Alguns  amigos  e  parentes  chegaram  a  acon- 
selhar-me  que  pozesse  de  parte  a  idéa  de  advo- 
gar, e  que  pensasse  noutra  coisa.  A  lia  Geno- 
veva, essa,  foi  mais  longe  :  chegou  a  confessar  me 
o  susto  constante  em  que  a  trazia  agora  o  receio 


22  A  RUA  DO  OIRO 

de  que  Tarquinio  exercesse  sobre  a  minha  fraca 
pessoa  alguma  forte  violência  ! 

Por  modo  que,  quando  Tarquinio  pediu  a  pa- 
lavra no  Centro  regenerador  para  lembrar  o 
meu  nome,  quasi  para  propor  a  minha  candida- 
tura, e  quando  depois,  no  Club,  nessa  mesma 
noite,  e  em  toda  a  cidade  ao  outro  dia,  tal 
se  ouviu  e  se  espalhou,  a  surpreza  fora  ge- 
ral, não  atinando  ninguém  com  a  explicação  que 
tão  estranho  caso  poderia  ter ;  e  dos  amigos  e 
correliigonarios  políticos  do  Doutor  Tarquinio, 
os  que  não  suppunham  aquillo  uma  grande 
abnegação,  diziam  que  o  seu  nobre  amigo  e 
correligionário  perdera  a  mioleira. 

Só  eu  e  a  Tia  Genoveva  não  creámos  illusões 
a  tal  respeito. 

Evidentemente,  para  nós,  Tarquinio  lá  tinha 
esta  fisgada  :  preparar-me  uma  candidatura  como 
se  me  preparasse  uma  embuscada ;  fazer-me 
eleger  como  se  me  fizesse  amordaçar  ;  e  despe- 
nhar-me  no  Parlamento,  como  se  me  lançasse  a 
um  abismo. 

Todas  estas  imagens,  que  faziam  estremecer 
de  terror  a  Tia  Genoveva,  me  fizeram  apenas 
sorrir  a  principio,  achando  divino  esse|,Tarqui- 
nio  em  quem  Tristão  quizera"vêr  já  um  começo 
de  mania  de  perseguição,  quando  aquillo  só  era, 
afinal,  um  pittoresco  e  fundo  despeito  pelo  mo- 


A  RUA  DO   OIRO  23 

desto  êxito  que  eu  mal  começava  a  disfructar 
no  foro. 

Porémi,  franqueza,  franqueza,  a  idéa  da  can- 
didatura não  me  fora  desagradável  de  todo  em 
todo,  antes  determinara  em  mim  um  certo  so- 
bresalto,  que  não  era  outra  coisa  senão  aquella 
vã  cubica  do  prestigio  e  da  influencia  politica, 
de  que  uma  tão  risonha  noção  eu  tinha  desde  o 
segundo  anno  do  meu  curso  de  Direito. 

Procurei  o  Doutor  Tarquinio,  resolutamente, 
depuz  nas  suas  mãos  todos  os  penhores  da  mi- 
nha gratidão,  e  declarei-lhe  que  não  deixava  de 
me  convir  a  candidatura,  embora  me  sentisse 
mal  provido  de  forças  para  corresponder  hon- 
rosamente á  sua  tão  espontânea  quanto  gene- 
rosa iniciativa. 

EUe  rejubilou  com  a  minha  annuencia,  abra- 
çou me  paternalmente,  dissuadiu-me  de  piegui- 
ces, deu-me  conselhos,  veiu  acompanhar-me  até 
á  porta,  e  chegou  a  sahir  á  rua,  em  chinelas  de 
casimira  bordadas. 

—  «O  meu  amigo  está  novo,  tem  todo  o  san- 
gue na  guelra,  talento  não  lhe  falta,  um  largo 
futuro  o  espera  na  politica  e  na  publica  admi- 
nistração. Folgo  muito  em  que  acceite  a  minha 
idéa,  porque  a  sua  eleição  não  será  só  um  grande 
bem  para  o  meu  amigo,  será  um  grande  bem 
para  a  pátria!» 


24  A  RUA  DO  OIRO 

E  como  sentisse  que  era  boa  a  frase,  e  lhe 
seria  penoso  encontrar  outra  melhor,  ou  pelo 
menos  tão  boa,  para  sellar  com.  solemnidade 
essa  nossa  primeira  conferencia,  apertou  me 
muito  sacudidamente  a  mão,  e  metteu-se  á 
pressa  para  dentro,  sem  querer  ouvir  mais 
nada. 

Na  Rua  de  Jesus,  onde  Tarquinio  morava,  não 
apparecia  viv'alma  a  essa  hora  da  tarde.  Era 
tarde  de  toiros  em  São  João  de  Deus,  e  a  cidade 
parecia  morta. 

Olhei  para  o  lado  da  Rocha,  olhei  para  o  lado 
da  Rua  da  Sé,  olhei  para  todas  as  casas  e  para 
todas  as  janellas,  ninguém...  Tinha  ido  tudo 
para  os  toiros  I 

Dominado  então  por  um  único  pensamento, 
que  me  absorvia  e  me  obcecava  nesse  instante, 
parei  a  meio  do  passeio,  carreguei  o  sobr'olho, 
estendi  um  braço  para  a  frente,  e  disse,  em  voz 
alta : 

—  «Senhor  presidente,  peço  a  palavral» 

Uma  voz  conhecida,  diabolicamente  occulta 
por  detrás  de  mim,  respondeu  : 

— «Tem  a  palavra  o  illustre  deputado. . .» 

Voltei-me,  como  por  um  salto  de  mola.  E  uma 
grande  risota  correspondeu  a  esse  meu   movi 
mento. 

Era  Theodosio,  o  Primo  Theodosio,  que  de 


A  RUA  DO  OIRO  25 

longe  me  vira  entrar  para  casa  do  Doutor  Tar- 
quinio,  no  momento  em  que  atravessava  a  Rua 
da  Sé,  indo  para  os  toiros;  mas,  voltando-sc 
para  trás,  e  mettendo-sc  num  portão,  ahi  se 
pozera  á  espera  de  que  a  conferencra  acabasse, 
para  d'ella  saber,  antes  de  mais  ninguém,  o  re- 
sultado. 

Perdera  dois  toiros,  com  certeza,  e  só  Deur, 
sabia  quanto  isso  lhe  custava ;  mas  não  seria  a 
elle  que  eu  poderia  negar  ter-me  demorado  cinco 
quartos  de  hora  em  casa  do  Doutor  Tarquinio, 
a  combinar  a  eleição. 

—  «Agora,  meu  caro  primo  —  dizia  me  Theo 
dosio  —  passas  a  ter  em  mim  um  adversário  po- 
litico de  temer.  No  meu  tempo,  a  verdadeira 
politica  era  servir  os  amigos,  e  d'esse  nobre 
principio  aproveitei  eu  ainda,  que  muito  galopi- 
nei  sempre  ao  lado  do  Maia,  e  pelo  Maia  fui 
servido. . .  Hoje,  está  tudo  mudado,  e  o  nobre 
principio,  em  politica,  é  servir  os  inimigos  antes 
de  mais  ninguém.  Ora,  tu  sabes  que  a  Adminis- 
tração do  .Concelho  me  dá  uma  miséria  —  des- 
oito  mil  e  tresentos,  a  secco.  Ando  ha  cinco 
annos  a  pedir  que  me  nomeiem  para  a  biblio- 
theca  do  Liceu,  que  está  entregue  a  um  contí- 
nuo, desde  que  morreu  o  João  Horácio,  e  o  mais 
que  tenho  conseguido  é  que  ainda  não  nomeias- 
sem  outro,  á  espera,  diz  agora  o  Maia,  de  que  os 


2b  A   RUA  DO   OIRO 

regeneradores  caiam  e  voltem  os  progressistas, 
que  talvez  então  me  nomeiem...  Os  progres- 
sistas, primo  I  Nomeado  pelos  progressistas,  eu, 
Theodosio,  que  tenho  sido  toda  a  minha  vida, 
e  com  muita  honra,  ó  grande  inimigo  dos  pro- 
gressistas I» 

Um  foguete  de  três  respostas  estalou  no  ar, 
ao  longe,  para  os  lados  de  São  João  de 
Deus.  Devia  ser  o  recolher  do  segundo  toiro. 
Theodosio  teve  um  sobresalto,  apressou  a  con- 
versa. 

— «...Sei  que  te  propões  a  deputado  indepen- 
dente. Não  faço  bem  idéa  do  que  seja  um  de- 
putado independente,  mas  tu  lá  o  sabes,  e  isso 
basta.  Mas  imagino  que  os  deputados  indepen- 
dentes se  inventaram  para  contento  de  progres- 
sistas e  regeneradores  ao  mesmo  tempo,  e  eu 
preferia  então  que  fosses  tu  quem  me  arranjasse 
o  logar  na  bibliotheca.  Era  uma  nomeação  extra- 
partidária,  que  me  deixava  os  movimentos  li- 
vres ...» 

—  «Pois  está  ditol»  respondi  eu,  para  respon- 
der alguma  coisa. 

Mas  logo  Theodosio  tomou  essas  palavras 
ditas  no  ar,  mais  para  me  vèr  livre  d'elle  do 
que  para  outra  coisa,  como  um  compromisso 
politico.  E  numa  carreirinha,  pela  rua  abaixo, 
raspou-se  para  os  toiros. 


A  RUA  DO  OIRO  27 

Só  mais  tarde  é  que  cu  vim  a  saber  que,  em 
politica,  muitas  vezes  uma  simples  palavra  dita 
no  ar  vem  a  trazer-nos  depois  embaraços  muito 
peores  que  os  que  pode  crear-nos  uma  palavra 
de  honra. 


•II 


o  meu  primeiro  cuidado,  logo  que  tive  as 
malas  despachadas,  me  metti  numa  tipóia  e 
cheguei  ao  Hotel,  foi  informar-me  com  precisão 
do  estado  das  coisas  publicas,  e  do  que  se  fizera 
no  Parlamento  durante  a  minha  angina  pectoris. 

O  Hotel  era  o  Borges,  ao  Chiado,  no  coração 
da  metrópole,  em  pleno  foco  da  civilisação,  a 
dois  passos  da  Havaneza  e  da  missa  do  Loreto, 
que  eram  as  primeiras  e  grandes  emanações 
d'esse  foco. 

O  Borges  reunia,  já  então,  uma  avultada  e 
distincta  clientela  de  deputados,  e  embora  o 
Governo  se  achasse  sempre  cm  maioria  entre 
os  hospedes,  era  cordeal  o  convívio  de  todos,  e 
estava-se  ali  perfeitamente,  extra-parlamentar- 
mente  á  vontade. 


3o  A  RUA  DO  OIRO 

O  meu  quarto  era  lá  em  cima,  no  ultimo  an- 
dar, numero  55,  num  dos  ângulos  do  prédio, 
cem  pouco  pé  direito  mas  com  muito  ar,  que 
me  entrava  por  duas  janellas — uma  para  a  Rua 
Serpa  Pinto,  outra  para  o  Chiado. 

Eu  chegava  a  Lisboa  quasi  sem  relações, 
porque  a  maior  parte  da  colónia  açoriana  fugira 
da  capital  em  agosto,  com  medo  do  cholera,  e 
não  se  atrevera  ainda  a  voltar  das  Ilhas,  apesar 
do  cholera  nunca  ter  apparecido  e  já  se  estar 
em  fevereiro,  que  não  é  tempo  propicio  a  ville- 
giatura  de  micróbios ;  e  das  amisades  de  Coim- 
bra pouco  mais  duradoiras  que  as  rosas  de  Ma- 
Iherbe,  que  nunca  chegaram  a  durar  o  espaço 
d'uma  formatura,  apenas  me  restavam  o  Fausto 
Guimarães,  secretario  do  Presidente  do  Conse- 
lho, o  poeta  Chico  Patrocínio,  chefe  da  novíssi- 
ma escola  nefelibata,  e  a  Margarida  Tricana, 
que  o  Fausto  Guimarães  tinha  deitado  a  perder, 
e  a  quem  todos  nós,  mais  ou  menos,  naquella 
saudosa  republica  da  Couraça  dos  Apóstolos, 
tínhamos  dado  alguma  coisa  a  ganhar. . . 

No  Hotel  Borges,  porém,  as  relações  eram 
fáceis. 

Logo  no  primeiro  dia,  abrindo  a  janclla  que 
deitava  para  o  Chiado,  e  abeirando-me  do  an- 
teparo que  corria  em  toda  a  volta  da  mansarda, 
ouvi  ao  lado  um  ligeiro  trauteado  do  Boccacto, 


A  RUA  DO   OIRO  3l 

que  então  rejuvenescera  na  Trindade  e  andava 
muito  em  voga. 

Para  o  lado  do  trauteado  olhei,  e  deparei  com 
um  cavalheiro  idoso,  que  catav^a  uns  jacinthos 
lindamente  creados  num  caixote,  entre  o  para- 
peito da  sua  janella  e  o  anteparo  da  mansarda. 

Sem  que  desse  pela  minha  presença,  esse  ca- 
valheiro idoso,  que  eu  logo  percebi  ser  meu  vi- 
zinho de  quarto,  continuava  catando  os  seus  ja- 
cinthos e  trauteando  a  serenata  dos  três  mari- 
dos humilhados. . . 

A'  janella. 

Minha  bella, 
Corre,  corre, 
Ligeira  gazela ! 

E  a  miúdo  olhava  para  o  quarto  andar  fron- 
teiro, onde  asjanellas  se  conservavam  fechadas  e 
de  cortinas  corridas,  como  num  luto,  ou  numa 
ausência  de  inquilinos. 

Uma  certa  curiosidade,  e  uma  tal  ou  qual  in- 
tuição dos  pequeninos  segredos  da  capital,  por 
mais  algum  tempo  me  prenderam  ao  parapeito, 
na  suspeita  de  que  alguma  das  janellas  d'aquella 
casa  defronte  não  tardaria  a  abrir-se,  e  alguém, 
que  o  meu  vizinho  esperava,  assomaria  a  ella. 

Meu  dito,  meu  feito,  e  quem  appareceu  vinha 


02  A  RUA  DO   OIRO 

a  ser,  nem  mais  nem  menos,  uma  grande  mu- 
lher de  magnifica  estampa  e  de  cabellos  ruivos, 
amarfanhados  e  enrolados  em  volta  da  cabeça 
como  um  farto  turbante.  Vestia  uma  bata  ás 
riscas,  enviezadas  e  largas,  azues  e  côr  de  grão. 
E  por  baixo  da  bata,  bem  denunciados,  quadris, 
braços  e  seios  de  tempera  rija  e  de  primeira 
grandeza.  Correspondendo  a  um  respeitoso 
cumprimento  de  cabeça  do  meu  vizinho  de 
quarto,  um  complacente  sorriso  aflorou-lhe  á 
face,  e  sobre  o  lábio  superior  mais  lhe  pronun- 
ciou  a  escurinha  penugem  de  ura  ligeiro  buço. 

Nesse  momento  espirrei,  estranhando  o  cli- 
ma;  e  o  meu  vizinho,  ■  api.nhado  de  surpreza, 
pois  provavelmente  suppunha  que  o  55  ainda 
estivesse  sem  gente,  voltou -se,  deu  de  cara  com- 
migo,  e  corou  de  leve. 

Discretamente,  receiando  tornar-me  importu- 
no, e  constipar -me,  metti-me  para  dentro,  e  fe- 
chei a  vidraça.  Ainda  espirrei  duas  vezes,  man- 
dei preparar  um  banho  morno,  e  tratei  de  passar 
para  as  gavetas  d"uma  commoda,  que  me  atra- 
vancava metade  do  quarto,  todi  a  roupa  branca 
e  o  fato  melhor  que  trazia  nas  malas.  Puz  a 
casaca  a  arejar  nas  costas  d'uma  cadeira,  para 
perder  as  rugas  que  tomara  na  viajem  ;  coUo- 
quei  sobre  a  meza  de  cabeceira,  e  voltado  para 
a  minha  cabeceira,  o  retrato  da  Tia  Genoveva, 


A  RUA  hO  OIRO  33 

que  para  esse  fim  m'o  dera,  e  muito  me  re- 
commendara  o  logar  e  a  posição  em  que  o 
queria,  para  ter  a  certeza  de  que  assim,  ao 
menos  em  efígie,  podia  continuar  a  velar  por 
mim.  Fiz  a  miniia  barba,  tomei  depois  o  meu 
banho  morno  com  muito  sabonete,  vesti  me  de  ^f 
lavado,  perfumei-me  um  pouco,  e  desci  para  o 
almoço. 

A'  meza  do  almoço  fui  encontrar,  sentado  na 
minha  frente,  o  meu  vizinho  de  quarto. 

Reconhecemo-nos,  baixámos  a  cabeça.  Eu 
passei-lhe  os  rabanetes,  elle  olTereceu-me  pali- 
tos. Nas  alturas  de  um  arroz  de  marisco,  forte- 
mente temperado  de  pimenta  que  parecia  pól- 
vora, entalolámos  conversa,  com  o  céo  dabocca 
a  arder  e  as  lagrimas  nos  olhos.  A'  fructa  esta- 
belecerase  já  entre  nós  uma  certa  corrente  de 
simpathia.  Durante  o  café,  trocámos  cigarros  e 
algumas  impressões. 

A  respeito  das  coisas  publicas,  que  era  o  que 
eu  queria  saber,  o  meu  vizinho  do  55  oífere- 
ceu-me  logo  impressões  muito  peores  que  os 
seus  cigarros,  da  irónica  marca — Delicias,  capa 
de  papel.  Elle  não  dizia:  —  «As  coisas  publi- 
cas...» Singularisava,  amesquinhava  a  expres- 
são, dizendo  simplesmente,  depressivamente:  — 
«A  coisa  publica. . . »  E  teve  uma  grande  satis- 
fação  quando   eu   lhe   disse  que  era  deputado. 

3 


4  A  RUA  DO  OIRO 

Porque  éramos  collegas  !  Porque  também  elle 
era  representante  da  Nação. 

—  «Ha  vinte  annos  —  accrescentou.  Tenho 
visto  muito,  sei  muito,  conheço  tudo  e  todos. 
Não  fale  Vossa  Excellencia  a  mais  ninguém 
para  lhe  abrir  os  olhos.  Aqui  tem  Vossa  Excel- 
lencia o  meu  cartão. 

Puxei  também  por  a  carteira,  tirei  um  dos 
meus  cartões,  e  entreguei-lh'o,  agradecendo. 

O  cartão  d'elle  dizia : 

LIBERATO  POÇAS 

Deputado  da  Nação 

Conhecia-0  muito  berrf  de  ncme.  A  fama  dos 
seus  apartes  tinha  chegado  aos  Açores.  Muitas 
vezes  eu  ouvira  o  Barão  da  Terra-Chã,  que  ti- 
nha uma  grande  memoria  e  agradável  conversa, 
referir  vários  d'esses  apartes,  que  eram  a  nota 
mais  pittoresca  e  mordaz  das  sessões  parlamen- 
tares nos  últimos  vinte  annos.  Lembrei-me  até 
de  que  o  Primo  Theodosio,  tendo  vindo  uma 
vez  ao  Continente  para  se  tratar  em  Faro  de 
uma  trabusana  que  lhe  ficara  de- emenda  —  para 
nunca  mais! — conhecera  o  senhor  Poças  em 
uma  casa  de  hospedes  do  Ferregial  de  Baixo, 
e  demorara-se  dois  mezes  em  Lisboa  depois  de 
curado,  só  para  ouvir  a  Borghi-Mamo,  porque 


I 


A   RUA  DO    OIRO  35 

era   doido   por  operas,   e   para   ouvir  o  senhor 
Poças,  porque  se  pelava  por  piadas.  E  disse-lh'o. 

O  meu  vizinho  do  55  sorriu,  lisongeado,  e  sem . 
fingida  modéstia.  De  facto,  o  seu  maior  prazer 
—  logo  a  seguir  áqutUe  que,  acima  de  tudo,  e 
em  primeiro  logar,  lhe  davam  as  mulheres  — 
era  encontrar  um  bom  dito,  e  mettê-lo  bem  a 
propósito.  As  Camarás  prestavam-se  excellente- 
mente  para  isso.  O  caso  era  ir  para  lá  sempre 
cedo,  antes  que  abrisse  a  sessão,  e  estar  sempre 
attento,  para  não  perder  uma  só  palavra  do  que 
elles  dissessem.  Por  esse  processo,  e  com  uma 
certa  pratica,  como  a  que  elle  tinha,  dos  homens 
e  dos  apartes,  as  piadas  sahiam  quasi  sem  a 
gente  se  sentir . . .  Não  considerava  isto  um  pri- 
vilegio seu:  eu  que  experimentasse,  e  veria.  Mas 
a  verdade  era  que,  ha  vinte  annos,  disfructava 
na  Gamara  esse  exclusivo  da  piada,  e  a  tal  es- 
pécie de  condão  attribuia  a  circumstancia,  muito 
curiosa,  de  se  achar  sempre  de  bem  com  todos 
os  Governos  e  com  todas  as  OpposiçÕes . . . 

— «Quanto  á  coisa  publica,  dizia  elle,  tenho 
muito  gosto  em  informar  Vossa  Excellencia  de 
que  algumas  surprezas  e  muitas  decepções  o  es- 
peram se,  como  julgo  deprehender  das  suas  pa- 
lavras, Vossa  Excellencia  crê.  na  possibilidade 
de  que  portugueses  possam  fazer  alguma  coisa 
boa  de  Portugal,  ou  em  íavor  de  Portugal.  Ha 


36  A  RUA  DO  OIRO 

uma  grande  verdade  universal,  que  não  carece 
de  justificação  metafísica  para  ser  facilmente 
admittida :  é  que  ninguém,  nenhuma  força  jróde 
oppôr  resistência  á  chamada  e  bem  conhecida 
força  do  Destino.  Ora,  meu  caro  senhor...  (e 
tornando  a  olhar  o  meu  cartão  de  visita,  após 
uma  curta  pausa. . .)  meu  caro  senhor  Joaquim 
Maria  do  Amaral  Amarante,  o  destino  dos  por- 
tugueses, desde  que  este  reino  se  tornou,  geo- 
graficarr.ente,  um  retalho  integral  da  Peninsula 
Ibérica,  tem  sido  o  de  dar  cabo  de  Portugal.  E 
em  boa  verdade  ninguém  poderá  dizer  que  não 
tenhamos  cumprido  á  risca  esse  nosso  destino. 
Tem  havido  alguns  díscolos,  sem  duvida,  pois 
outra  coisa  não  foram  os  Gamas  e  os  Albuquer- 
ques,  e  todos  os  grandes  descobridores  e  conquis- 
tadores que  Vossa  Excellencia  conhece.  Dobrá- 
mos, é  certo,  o  Cabo  da  Boa  Esperança,  nave- 
gámos até  á  índia  e  Ceylão,  torneámos  o  pro- 
montório de  Singapura,  estabelecemo-nos  eni 
Macau,  d'onde  explcrámos  as  costas  da  China  e 
do  Japão.  Ainda,  seguindo  outro  rumo,  descobri- 
mos e  colonisámos  o  Brazil.  Lisboa  fci,  toda  a 
gente  o  sabe,  e  não  serei  eu  que  o  conteste? 
num  dado  momento,  o  entreposto  e  o  centro 
de  distribuição  dos  productos  do  Oriente,  e 
então  attingiu  um  grau  de  riqueza  e  luxo  de 
que  não  havia  memoria  desde  a  antiga  Roma . . . 


A  RUA  DO   OIRO  'i'] 

Como  sempre  succede  durante  o  período  he- 
róico da  historia  das  Nações,  a  Litteratura  e  a 
Arte  floresceram  para  nós.  E  ahi  tem  \'ossa 
Excellencia  outros  discolos:  Gil  Vicente,  Sá  de 
Miranda,  Camões...  Mas  foram  poucos.  E  o 
destino  cumpriu- se ;  e  o  destino  curapre-se. 
O  Marquez  de  Pombal  foi  apenas  uma  som- 
bra. Quem  suppozer  ainda  que  elle  engran- 
deceu Portugal,  leia  o  Camillo,  e  verá.  O  Pom- 
bal, meu  caro  senhor,  não  foi  o  nosso  ultimo 
grande  ministro;  foi  o  primeiro  dos  nossos  pe- 
quenos ministros.  Ei  cheu  se.  Fez  elle  muito  b  em. 
Depois,  veiu  o  Senhcr  D.  Pedro  Quarto  e  ou- 
torgou-nos  a  Carta. ...  Os  senhores,  lá  em  An- 
gra, e  na  Praia  da  Victoria,  sabem  muito  me- 
lhor do  que  eu  como  isso  se  passou.  Nesse  ca- 
pitulo da  Historia  pôde  Acossa  Excellencia  dar-me 
quinau,  se  quizer. ..  Mas  a  partir  da  implanta- 
ção do  regimen  constitucional  para  cá,  e  até  aos 
nossos  dias,  prez  o  me  de  pcder  dizer  que  pou- 
cos sabem  tanto  da  nossa  coisa  publica,  como 
eu.  Olhe  Vossa  Excellencia.. .  (e  foi  contando 
peles  dedos...)  Eu  assisti  á  fundação  da  So 
ciedade  de  Geografia.  E  viu  fazer- se  o  pacto 
da  Grania.  Eu  andei  encorpcrado  no  cortejo  cí- 
vico do  centenário  de  Camões  . .  Na  rotação 
dos  partidos,  vi  o  Braancamp  succeder  vinte  ve- 
zes ao  Fontes,  e  o  Fontes,  vinte  vezes,  succeder 


v^ 


Dõ  A  RUA  DO  OIRO 

ao  Braancamp.  Nas  finanças,  vi  contractar  oito 
empréstimos  em  menos  de  oito  annos,  e  vi  gas- 
tar o  dinheiro  de  cada  um  d"elles  em  menos  de 
oito  dias.  Na  economia,  vi  organisar  o  monopó- 
lio do  tabaco,  o  monopólio  do  álcool,  o  mono- 
pólio da  carne,  o  monopólio  do  pão,  o  monopo" 
lio  do  fosphoro,  o  monopólio  do  adubo,  o  ndo- 
nopolio  da  viação...  Neste  momento  trata  se 
de  organisar  o  monopólio  do  exgôto.  Deve  ser 
excellente. . .  O  fomento  agricola  é  uma  coisa 
que  só  tem  servido  }"ara  arrotear  o  José  Maria 
dos  Ssntos.  A  Africa  é  uma  villegiatura —  como 
agora  se  diz  —  para  funccionarios  do  Estado  e 
administradores  de  Companhias,  ou,  na  alter- 
nativa, vinte  annos  de  Penitenciaria.  A  balança 
do  commercio  é  uma  espécie  de  balança  de  ta- 
lho, que  não  regula.  Toda  esta  coisa  tem  du- 
rado assim  ha  muitos  annos,  e  ha  de  durar 
por  mais  alguns.  Mas  não  muitos.  Isto  desmo- 
rona-se.  Quem  viver  verá.  Talvez  eu  ainda 
veja  I » 

O  meu  vizinho  dt  quarto,  dizendo  isto,  e  me- 
neando a  cabeça  calva,  reluzente,  fazia  um  gesto 
de  profecia,  entendido  e  profundo,  que  p(jr  um 
instante  annuviou  a  clara  esperança,  em  que  eu 
vinha,  de  chegar  ainda  a  tempo  para  algurra 
coisa  de  bom  em  beneficio  da  Pátria.  Um  resto 
de   café,   no   fundo   da  chávena,  que  distraída- 


A  RUA  DO   OIRO  Sq 

mente  levei  aos  lábios,  dcu-me  nesse  momento 
o  amargo  da  duvida.  Cuspinhei,  repontei  cora  o 
Poças  : 

—  «Mas  o  que  pensa  Vossa  Excellencia  do  fu- 
turo ? 

—  «O  Futuro,  com  F  grande,  a  Deus  pertence. 
O  outro,  o  nosso,  com  f  pequeno,  pertence  aos 
estrangeiros.  E'  uma  questão  de  tempo,  de 
pouco  tempo.  Podemos  dizer  até  que  já  tudo 
isto  é  d'elles.  O  trigo  é  americano  ;  a  manteiga 
é  inglesa  ;  a  cerveja  é  allema  ;  o  queijo  é  flamen- 
go ;  a  mulher  é  hespanhola ;  o  bacalhau  é  no- 
rueguez...  O  gallego,  até  o  gallego,  o  próprio 
gallego  —  é  gallego !  O  porto  de  Lisboa  é  do 
Hersent ;  os  caminhos  de  ferro,  do  Kergall  ;  a 
Africa,  do  Cecil  Rhodes ;  a  opera,  do  José  Pac- 
cini . .  .  A  única  coisa  verdadeiramente  portu 
guêsa  que  ainda  temos  é  —  a  Divida  Externa!» 

Elle  dizia  estas  coisas  serenamente,  convicta- 
mente, mas  resignadamente,  sob  um  grande  peso 
de  infortúnio,  como  quem  acceita  e  se  conforma 
com  alguma  tremenda  determinação  fatídica. 
Tinha  de  ser.  Deixa-lo  ser  ! 

Eu  olhava-o,  como  se  olhasse  uma  esfinge; 
e  ouvia  o,  todo  ouvidos,  como  se  a  sua  palavra 
fosse  um  evangelho. 

O  que,  sobretudo,  me  surprehendia  nesse  Po- 
ças, era  o  contraste  entre  o  seu  devastador  pes- 


40  A  RUA  DO   OIRO 

simismo  de  hospede  do  Borges,  irritado  de  vis- 
ceras  pela  cozinha  picante  do  Hotel  e  o  seu  con- 
temporisador  optimismo  de  homem  publico,  es- 
timado de  todos  os  Governos,  cultivando  jacin- 
thos  num  caixote,  alimentando  um  namoro  de 
janella,  e  sabendo  de  cór  as  coplas  do  Boccacio. 

Não  o  percebi  logo ;  levei  algum  tempo  para 
o  perceber;  mas  vim  a  percebê-lo. 

Poças  não  era  só  um  grande  magico,  como 
logo  suppuz  nesse  dia,  emquanto  durou  a  con- 
versa que  entre  nós  se  seguiu,  e  se  prolongou, 
após  esse  primeiro  almoço.  Não  era  só  um 
grande  ratão,  como  depois  o  julguei,  quando  elle 
apparecia  na  Gamara  antes  de  mais  ninguém,  c 
da  Gamara  sahia  no  fim  de  todos,  para  não  per- 
der uma  palavra  só,  d'um  só  discurso,  não  se 
fiando  nos  extractos  levianos  dos  jornacs,  e  me- 
nos ainda  no  texlo  official  do  DiayHo  das  Ca?7ia- 
i^as. . .  Poças  era  bem  mais  que  um  tipo  :  Po- 
ças era  um  simbolo  I 

Logo  nessa  tarde  fui  procurar  ao  Ministério 
o  meu  amigo  Fausto  Guimarães,  que  era  um 
outro  simbolo. 

Fui  procura-lo  ao  Ministério  da  Justiça,  onde 
Poças  me  dissera  que  eu  o  devia  encontrar, 
por  andar  em  obras  a  secretaria  do  Reino,  que 
o  Ministro  d'elle  preferia. 


A  RUA  DO   OIRO  4I 

O  Presidente  do  Conselho  accumulava  as 
duas  pastas  :  a  do  Reino  e  a  da  Justiça  —  o  que 
logo  eu  soube  não  ser  trabalho  de  Hercules, 
porque  os  serviços  do  Ministério  do  Reino  alli- 
viam  muito  depois  de  feitas  as  eleições,  eo  Mi- 
nistério da  Justiça  apenas  alimenta,  em  tempos 
ordinários,  um  débil  movimento  de  transferen 
cias  de  juizes  e  de  benefícios  ecclesiasticos.  As 
eleições  estavam  feitas,  os  deputados  a  postos, 
os  governadores  civis  em  descanço,  os  adminis- 
tradores de  concelho  entregues  aos  cuidados  do 
seu  pomar  ou  do  seu  pedaço  de  horta.  Agora, 
pelo  Reino,  íipenas  corriam  alguns  assumptos 
de  Instrucção;  e  a  Instrucçao,  em  Portugal,  não 
é  coisa  que  dê  muito  que   fazer  a  um  ministro. 

Mesmo  a  chefia  do  Governo  tornara -se  Com 
moda  e  suave. 

O  momento  da  grande  crise  passara,  e  ha- 
via-se  entrado  num  grato  periodo  de  repouso  e 
de  esperança.  Tinha-se  inaugurado,  quasi  de  um 
dia  para  outro,  apenas  com  alguns  artigos  de 
fundo  e  uma  queda  de  ministério,  uma  fase  de 
prestigio  politico  a  que  se  convencionara  chamar 
— de  Vida  Nova,  e  á  sombra  da  qual  se  conse- 
guira realisar  um  novo  empréstimo,  quando  já 
toda  a  gente  dizia,  dentro  e  fora  do  paiz,  que 
não  se  arranjaria  nem  mais  uma  libra  sem  a  in- 
tervenção de  uma  administração  estrangeira. 


42  A  RUA  DO  OIRO 

Eram  de  fresca  data  os  acontecimentos  mais 
pungentes  da  pátria. 

Por  muito  tempo  não  se  acreditara  nos  boa- 
tos que  corriam  a  respeito  de  muitos  directores 
de  Bancos  e  de  Companhias,  gravemente  com- 
promettidos  em  transações  illicitas ;  e  os  accu- 
sados,  de  mãos  dadas  com  todos  os  Governos, 
repoltreados  nas  suas  cadeiras  do  Parlamento, 
ingerindo-se  em  todos  os  negócios  do  Estado, 
dando  leis  e  distribuindo  juros  ficticios,  desas- 
sombradamente continuavam  transacionando, 
favorecidos  pela  cumplicidade  dos  indifferentes 
e  dos  Poças. 

Não  apparecia  quem  ousasse  atirar  a  primeira 
pedra,  como  se  todo  esse  formidável  escândalo 
se  passasse  em  uma  cidade  inteiramente  coberta 
de  telhados  de  vidro.  E  todos  esses  estabeleci- 
mentos de  credito,  todas  essss  sociedades  ano- 
I  imas  de  responsabilidade  limitada,  haviam  es- 
palhado em  volta  de  si  um  certo  ruido  de  pros- 
peridade, á  sombra  de  nomes  patrióticos,  que 
inspiravam  confiança,  illudiam  os  incautos.  Eram 
o  Banco  dos  Luziadas,  o  Banco  da  Restauração 
de  Portugal,  o  Banco  24  de  Julho  . .  .  Eram  a 
Companhia  Real  das  Vias  Férreas  Luzitanas,  a 
Real  Companhia  da  Agricultura  Pátria,  a  Com- 
panhia de  Credito  Camoneano  —  que  nunca  se 
soube  o  que  era. 


A  RUA  DO  OIRO  ^3 

Cada  uma  d'essas  Companhias  e  cada  um 
d'esses  Bancos  tinha  no  seu  conselho  de  admi- 
nistração, pelo  menos,  um  ministro  de  Estado 
honorário,  que  era  quasi  sempre,  por  uma  inex- 
plicável coincidência,  o  ultimo  ministro  da  Fa- 
zenda ;  e  assim  mantinham,  todas  ellas,  e  todos 
elles,  Companhias  e  Bancos,  as  mais  cordeaes 
relações  com  o  Governo  e,  por  intermédio  do 
Governo,  com  o  Thesouro. 

Quando  o  Banco  dos  Luziadas  suspendeu  pa- 
gamentos, logo  os  outros  se  sentiram  necessita- 
dos de  longa  moratória. 

Houve  um  grande  sobresalto,  seguido  de  um 
grande  movimento  de  pânico. 

A  corrida  aos  Montepios  foi  uma  coisa  pavo- 
rosa :  eram  os  pães  que  salvavam  o  futuro  de 
seus  filhos  I  eram  as  mães  que  arrancavam,  ás 
garras  d'esses  abutres,  o  dote  de  suas  filhas  I 
E  o  assalto,  verdadeiro  assalto,  fazia-se  a  soco, 
a  empurrão,  a  coice. . . 

Os  accionistas,  vendo  o  seu  rico  dinheiro  a  ar- 
der, reuniam-se  em  assembléas  geraes,  e  pediam 
sindicâncias  em  altos  berros,  como  as  creanças 
que  pedem  a  Emulsão  de  Scott ! 

A  policia  interveiu.  Chegou  a  ser  preso,  e 
mettido  no  calouço  n.°  7,  o  presidente  de  um 
conselho  de  administração.  Havia  desfalques, 
havia  falsificações,  havia  gazúas. 


44  A  RUA  DO   OIRO 

O  Cara  linda,  o  Gaitei)  o,  o  Moita  e  o  Cai^- 
rasco,  tão  conhecidos  do  hábil  Antunes,  eram 
anjos,  ao  lado  d'aquella  confraria  ! 

Os  Tríbunaes,  da  primeira  instancia  ao  Su- 
premo, foram  atulhados   de   processos  crimes. 

A  Opinião,  desvairada,  gritou  que  Portugal 
estava  sendo  governado  por  ladrões  I 

Os  Jornaes,  furibundos,  cobriam-se  de  tarjas 
negras  e  de  impropérios  em  normando. 

Toda  a  gente  prudente  se  abotoava,  e  não 
sahia  de  casa  á  noite. 

Foi  um  terror ! 

Passou-se  então  esta  coisa  extraordinária,  fu- 
nambulesca, única :  a  debandada  dos  homens 
públicos,  dando  ás  de  Villa  Diogo  com  medo  da 
forca  e  do  candieiro,  que  es  jornaes  repubhca- 
nos  queriam  vêr  funccionar  no  meio  da  praça, 
ferozmente,  como  no  tempo  em  que  os  falsarios 
andavam  menos  seguros,  mas  mais  seguros  an- 
davam os  dinheiros  no  erário.  Todos  esses  ho- 
mens fugiam,  positivamente  fugiam,  ás  respon- 
sabilidades conhecidas  do  passado  e  ás  contin- 
gências tenebrosas  do  que  ainda  estava  por  vir. 

Fora  um  riso,  e  fora  uma  vergonha  I 

Era  necessário  organisar  um  governo  desse 
lá  por  onde  desse ;  era  urgente  formar  um  ga- 
binete fosse  lá  como  fosse.  Mas  os  partidos 
constitucionaes,  desmantelados,  abandonavam  a 


A  RUA  DO   OIRO  4D 

Coroa.  E  até  a  Coroa  se  achou  desamparada, 
quasi  desequilibrada,  atirada  para  trás,  ás  três 
pancadas,  sobre  a  primeira  cabeça  do  paiz  — 
por  ordem  hierarchica. 

Esteve  o  paiz  sem  governo  por  espaço  de  três 
semanas  !  E  na  inquietação  e  no  desespero  d'esse 
mau  bocado,  foram  chamados  ao  Paço  todos  os 
politicos  que  andavam,  ha  muito,  tresmalhados 
da  Constituição,  a  pregar  no  deserto,  a  apregoar 
virtudes,  e  a  mostrar  elixires. 

Appareceram  dúzias  d'elles,  radiantes,  cada 
qual  sobraçando  o  seu  prograrama  de  governo, 
cada  qual  desenrolando,  aos  olhos  amortecidos 
do  paiz,  o  seu  plano  de  salvação,  o  seu  projecto 
de  reforma.  Ao  redor  da  chamada  burra  do 
Thesouro  reuniu-se  então  uma  espécie  de  junta 
de  alveitares.  E  só  não  foi  ministro  quem  não 
quiz  sê-lo. 

Foi  por  essa  occasião  que  voltou  ao  poder  o 
Martiniano,  o  grande  Martiniano,  o  incompará- 
vel Martiniano  I 

Martiniano,  que  já  tinha  sido  por  três  vezes 
ministro  da  Fazenda,  andava  de  mal  com  o 
Paço.  Como  toda  a  gente  que  anda  de  mal  com 
o  Paço,  mas  que  cora  elle  quer  estar  de  bem, 
fundara  um  jornal  satírico,  a  que  dera  o  titulo 
de  Piada  Popular,  e  ahi  começara  a  cultivar  um 
género   muito   apreciado   de   critica   galhofeira. 


46  A  RUA  DO   OIRO 

mas  mordaz,  a  que  elle  chamou  —  «a  bisca  po- 
litica» e  que  depois  guardou  esta  designação 
alegre. 

Esse  jornal  tinha  uma  divisa,  e  essa  divisa  era 
esta  :  —  «Arde?  é  pimenta.»  E  ardia,  que  tinha 
diabo  I  Cada  artigo  da  Piada  era  um  cáustico ; 
cada  folhetim  um  sinapismo  de  mostarda  ;  e  as 
biscas,  espalhadas  pelo  jornal,  eram  moscas  de 
Milão. 

O  Paço  torcia-se,  os  Ministros  torciam-se, 
toda  a  gente  se  torcia  —  uns  com  o.  ardor  do 
tópico  sobre  a  própria  pelle,  outros  com  a  risota 
que  o  caso  provocava  sobre  a  pelle  alheia. 

Declarada  a  crise  dos  Bancos  e  das  Compa- 
nhias, Martiniano,  que  do  tempo  de  ministro  le- 
vara também  sua  rasca  na  assadura,  habilmente 
desviara  de  si  as  attenções,  e  iniciara  no  jornal 
uma  série  de  artigos  furibundos,  primeiro  de 
ataque  ás  Instituições  que  haviam  acobertado 
tanto  e  tão  grosso  escândalo,  em  seguida  de  al- 
vitre e  de  conselho  sobre  o  que  deveria  fazer-se, 
sem  demora,  para  remediar  o  mal  e  entrar  no 
bom  caminho. 

Lembro-me  que  um  d'esses  artigos  começava 
assim:  —  «Bem  fazem  os  que  emigram,  porque 
é  um  crime  apodrecer  na  contemplação  de  se- 
melhante espectáculo!» 

Mas  logo  um  outro,  emendando  a  mão,  exor- 


A  RUA  DO   OIRO  47 

tava  os  novos  d  peleja,  e  dizia:  —  «SimI  Por- 
que os  novos  têm  fé,  porque  os  novos  têm 
coragem  para  remar  contra  a  corrente.  Só  falta 
um  homem  que  lhes  indique  o  norte,  e  ein  nome 
d'esta  pala^  ra  —  Pátria  —  começará  para  nós  o 
periodo  das  sublimes  loucuras.» 

O  homem,  estava-se  a  ver,  era  clle. 

De  dia  para  dia,  os  artigos  cresciam  de  inte- 
resse; a  opinião  alarmava-se.  D'uma  vez,  em 
que  elle  dissera  isto:  —  «Não  se  sabe  ao  certo 
se  este  paiz  é  Guatemala,  ou  Chili,  ou  Uru- 
guay...»  e  accrescentara,  galhofeiramente:  «A 
nosso  vêr,  uns  dias  parece  Gerolstein,  outros 
dias  Pantana...» — os  estudantes  do  Liceu, 
onde  Martiniano  era  professor  de  português,  fi- 
zeram-lhe  uma  enthusiastica  ovação  defronte  do 
jornal,  com  marcha  aiix  flambeaux^  vivas  á  Pá- 
tria, á  Gramraatica  portuguesa  e  á  Piada  na- 
cional I 

Martiniano  viera  á  janella  agradecer.  Ti- 
nham-se  reunido  muitos  populares,  arruaceiros 
e  curiosos,  ao  grupo,  já  de  si  numeroso,  dos 
estudantes.  Uma  voz  juvenil,  vocalisando  em 
voz  grossa,  gritou  para  cima: 

—  «Fale !  Falei» 

E  esse  grito  fora  uma  chispa  que  tocara  a  ex- 
tremidade de  um  rastilho.  Todos  gritaram: 

—  «Fale  I  Fale  I» 


48  A    RUA    DO    OIRO 

E  Martiniano  falara,  e  falara  a  sério. 

—  «Quereis  saber,  meus  amigos  e  meus  con- 
cidadãos, qual  é,  neste  momento,  para  Portu- 
gal, o  desequilíbrio  entre  a  sua  importação  e  a 
sua  exportação  r » 

E  os  rapazes,  por  baixo  da  janella,  respon- 
diam em  coro : 

—  «Queremos,  sim  senhor!» 

—  «...  Quatorze  mil  contos  I » 

E  um  intenso  ruido  sublinhava,  alastrando -se 
na  multidão,  aquella  tremenda  cifra. 

—  «Quereis  saber,  meus  senhores,  quanto  nos 
custam,  no  momento  em  que  vos  falo,  só  os 
coupons  e  os  juros  do  Estado  e  das  Companhias 
a  pagar  no  Estrangeiro  ?» 

E  os  rapazes,  em  baixo,  outra  vez  em  coro : 

—  «Queremos,  sim  senhor  I» 

—  «...  Quatorze  mil  contos  I » 

E  outra  vez  o  mesmo  intenso  ruido  sublinhava 
aquella  outra  cifra. . . 

—  «Quereis  saber,  meus  presados  correligio- 
nários —  e  permitti  que  assim  vos  trate  quem 
só  tem,  como  vós,  a  mesma  politica  de  digni- 
dade nacional.  . .  —  quereis  saber,  vós,  que  dc- 
testaes  as  loterias  e  odiaes  a  taluda,  quereis  sa- 
ber quanto  vos  leva  em  cada  anno.  para  fora  da 
fronteira,  por  Villar  Formoso  e  por  Barca 
d' Alva,  a  loteria  hespanhola  ? 


A  RUA  DO   OIRO  49 

—  «Queremos,  sim  senhor!» 

—  «...  Dois  mil  contos,  meus  amigos,  dois 
mil  contos  I » 

Martiniano,  em  começando  a  falar,  tinha  para 
horas.  Falou,  d'essa  vez,  cinco  quartos  de  hora 
entrecortados  de  palmas,  bravos  e  vivas.  No 
fim,  dirigindo-se  especialmente  aos  estudantes 
do  Liceu,  disse  ainda : 

—  «Vamos  a  isto,  meus  amiguinhos.  E  não  se 
diga  que  o  budhismo  invadiu  a  alma  de  todos 
nós.  Ainda  ha  salvação  possivel...  Aproveite- 
mos do  passado  apenas  a  lição...  E  a  propó- 
sito de  lição. . .  é  verdade  !  não  se  esqueçam  de 
que   temos   amanha  os  pronomes  e  os  verbos  !r> 

Mettera-se  para  dentro,  cumprimentando,  e 
descendo  a  vidraça,  que  era  de  guilhotina.  Ainda 
havia  guilhotinas  I 

No  dia  seguinte,  a  Piada  trazia  um  artigo 
decisivo.  A  epigrafe  dizia:  —  Si  fetais  roi!  o. 
o  artigo  mostrava,  num  resumo  hábil,  qual  a 
verdadeira  doença  de  que  Portugal  enfermava, 
e  qual  a  verdadeira  cura  que  havia  para  essa 
doença. 

Já  da  epigrafe  se  deprehendia  claramente  o 
espirito  d'esse  artigo,  que  visava  a  Coroa,  pro- 
curando bem  indicar-lhe,  numa  linguagem  me- 
tafórica, o  que  ella  tinha  de  fazer,  se  real- 
mente queria  fazer  alguma  coisa.    . 

4 


5o  A  RUA  DO  OIRO 

. . .  Martiniano  voltara  ao  Paço,  reconciliara-se 
com  o  Paço. 

Ao  outro   dia,  os  leitores  da  Piada  apenas 
notaram    que    ella    vinha   muito    semsaborona. 
Houve   uma   suspeita.   Poucas  semanas  depois, 
teve-se    a    confirmação  d'essa  suspeita:   Marti 
niano  entrava  para  o  Ministério  da  Fazenda. 

Ninguém  estranhou.  Elle  estava,  naturalmen- 
te, indicado.  Nem  a  Piada  se  fizera  para  outra 
coisa ! 

No  dia  em  que  Martiniano,  chamado  aos  con- 
selhos da  Coroa,  reappareceu  na  Arcada,  todos 
os  Partidos  reunidos  fizeram-lhe  uma  manifes- 
tação de  simpathia  sem  precedentes  na  nossa 
historia  tragico-financeira. 

Foi  um  delirio. 

Os  amigos  mais  dedicados  subiram-no  ao  cóIo 
pelas  escadas  do  Ministério.  De  todos  os  lados 
irrompiam  os  vivas: 

— «Viva  o  salvador  da  Pátria!» 

— «Viva  o  credito  do  Paiz!» 

E  o  paiz  inteiro,  a  breve  trecho,  pinchava  de 
regosijo,  acreditando-se  salvo. 

Martiniano  promettera  mundos  e  fundos.  O 
coupon  externo  pagar-se-ia  integralmente.  Os 
Bancos  saldariam  os  seus  encargos.  As  Compa- 
nhias distribuiriam,  como  d'antes,  os  seus  divi- 
dendos. Estabelecer-se-ia  o  equilíbrio  do  Orça- 


A  RUA  DO   OIRO  5l 

mento.  Reduzir-se-iam  as  despezas.  Reformar- 
se-iam  as  repartições  do  Estado.  Modificar-se-iam 
os  impostos.  Consolidar-se-ia  a  situação  econó- 
mica. Desenvolver-seiam  a  Agricultura  e  a  In- 
dustria. Assignar-se-iani  tratados  de  commercio. 
Aproveitar-se  iam  as  Colónias.  O  Estado  apos- 
sar-se-ia  de  todos  os  Caminhos  de  ferro.  Resga- 
tar se  iam  os  títulos  da  Divida  de  Dom  Miguel. 
Experimentar-se-iam  as  vantagens  do  bimetalis- 
mo.  Viria  oiro  de  Manica.  Viriam  pérolas  de  Ba- 
zaruto.  E  a  respeito  da  intervenção  estrangeira, 
interpelado  nas  Camarás,  Martiniano  dissera,  pe- 
remptoriamente: 

— «Isso  só  se  acceita  debaixo  da  bocca  dos  ca- 
nhões!» 

Depois  de  tanta  e  tão  risonha  promessa,  só 
faltava  o  dinheiro.  E  Martiniano,  o  maroto,  ar- 
ranjara o  dinheiro,  pondo  em  movimento  todas 
as  machinas  litográficas  do  Banco  da  Restau- 
ração, fabricando  cédulas  de  meio-tostão,  de  tos- 
tão, de  dois  tostões,  de  cinco  tostões,  de  vinte 
e  cinco  tostões,  derramando  todo  esse  papel  so- 
bre o  paiz,  como  numa  prodigalidade  de  bodo. 

Os  Bancos  e  as  Companhias  receberam  do 
Thesouro,  em  abonos  e  avales,  quanto  lhes  foi 
preciso  para  livrar  da  cadeia  os  directores.  As 
cotações  da  Bolsa  entreabriram  um  sorriso  para 
os   lados   de   Portugal.  Os  cartazes  de  Reillac, 


02  A  RUA  DO   OIRO 

diífamando  nos  a  Pátria  nas  ruas  de  Paris,  foram 
arrancados  pela  diplomacia.  Os  jornaes  de  chan- 
tage  que,  ainda  na  véspera,  nos  lançavam  á  cara 
os  exemplos  vil  pendiosos  da  Turquia  e  do  Eg}'-- 
pto  em  bancarrota,  acharam  que  o  nosso  caso 
não  era,  afinal,  tão  desesperado  como  errada- 
mente se  suppozera,  «como  até  nós  mesmo  tí- 
nhamos chegado  a  suppôr»  e  que  muito  havia 
ainda  a  esperar  da  riqueza  de  Portugal  e  do  ta- 
cto administrativo  dos  estadistas  que  tanto  hon- 
ravam o  nome  d'esta  pequenina,  mas  muito  al- 
tiva nação! .  .  . 

Foi  neste  feliz  comenos,  em  que  o  pau,  indo 
e  vindo,  deixava  folgar  as  costas,  que  eu  subi 
ao  Ministério  da  Justiça,  em  procura  do  meu 
amigo  e  contemporâneo  de  Coimbra,  Fausto  Gui- 
marães. 

—  «Nunca  tinhas  estado  em  LisboapB  pergun- 
tou-me  Fausto. 

—  «Já,  mas  cora  pouca  demora.  De  cada  vez 
que  ia  a  férias,  á  Ilha.  Apenas  o  tempo  neces- 
sário para  esperar  aqui  a   saída  dos  paquetes.» 

—  «Vaes  gostar!  asseverou-me. — Lisboa  é  uma 
linda  cidade.  Eu  adoro  Lisboa.  Um  dos  nossos 
peores  defeitos  é  este,  que  todos  temos,  de  di- 
zer mal  de  tudo  quanto  é  nosso  —  «naquelle  ha- 
bito instinctivo  de  deprimir  a  pátria»  de  que  se 
fala  no  Mandarim  do  Eça  de  Queiroz,  quando 


A  RUA  DO   OIKO  D-> 

O  General  Camilloff  pergunta. a  Theodoro  :  — 
«Sabe  chinez,  Theodoro?»  E  Theodoro  respon- 
de :  —  «Sei  duas  palavras  só  :  mandarim  . . .  e 
chá».  O  General  passa  a  sua  mão  de  fortes  cor- 
doveias  sobre  a  medonha  cicatriz  que  lhe  atra- 
vessa a  calva,  e  observa :  —  «Mandarim.,  meu 
amigo,  não  é  uma  palavra  chinesa,  e  ninguém  a 
entende  na  China.  E'  o  nome  que,  no  século 
XVI,  os  navegadores  do  seu  bello  paiz  .  .»  — 
Quando  nós  tinhamos navegadores. . . »  murmura 
Theodoro,  suspirando  ;  e  o  General,  continua : 
—  «  . .  Que  os  vossos  navegadores  deram  aos 
funccionarios  chineses.  Yem  do  seu  verbo,  do 
seu  lindo  verbo  mandar. .  . »  E  Theodoro  rosna, 
no  habito  instinctivo  de  deprimir  a  pátria  :  — 
«Quando  nós  tinhamos  verbos  . . »  Ha  quem 
diga  que  Lisboa  é  insupportavel.  Eu  acho-a 
magnifica  I» 

Também  eu  achava  Lisboa  magnifica.  Mas 
um  pouco  ainda  sob  a  impressão  de  enfado  que 
me  causara  a  impertinência  de  trinta  pobres  an- 
drajosos atravessando-se-me  no  caminho  desde 
o  Hotel  até  ao  Ministério,  observei: 

—  «Para  quem  não  está  habituado,  o  que  aqui 
se  torna  desagradável  deveras  é  a  impertinência 
dos  mendigos.  Parece  que  toda  gente  pede  es- 
mola Ib 

— «Ou,  pelo  menos,  parece  que  toda  a  gente 


D4  A  RUA  DO  OIRO 

pede  alguma  coisa.  Ha,  porém,  uma  outra  casta 
de  pedintes  muito  peor,  incomparavelmente  peor 
do  que  esses  que  te  perseguem  na  rua  :  são  os 
mendigos  dos  Ministérios,  os  eternos  pretenden- 
tes, os  afilhados  politicos,  todo  esse  formigueiro 
espesso  de  cavalheiros  de  chapéu  alto  que  viste 
lá  em  baixo,  na  Arcada,  e  que  não  abandonam 
a  Arcada  desde  que  o  sol  nasce  até  que  alcan- 
çam despacho.  O  pobre  da  rua  estende-te  a  mão, 
e  passa,  cobrindo-te  de  bênçãos  se  lhe  dás  um 
vintém,  conformando-se  com  a  sua  sorte  se  tu 
apenas  lhe  recommcndas  que  tenha  paciência. 
Mas  o  mendigo  do  Ministério  perseguir-te-ha, 
importunar-te-ha,  seringar  te-ha,  constranger- 
te-ha  a  fazer-lhe  aquillo  que  te  peça,  porque 
desde  o  momento  em  que  te  entregou  o  seu 
memorial,  que  é  a  sua  lamuria  escripta,  elle  só 
deixará  de  sahir  á  tua  frente,  a  embargar-te  o 
passo  para  que  te  lembres  d'elle,  no  dia  em  que 
o  Diário  do  Governo  tenha  pubhcado  o  decreto 
que  o  nomeia,  que  o  promove,  ou  que  o  trans- 
fere. Elle  saberá  a  que  horas  tu  saes  habitual- 
mente de  casa,  para  que  o  vejas  á  tua  porta. 
Elle  acompanhará,  a  trote,  os  cavallos  da  tua 
carruagem,  para  que,  de  cada  vez  que  a  tua 
carruagem  pare,  seja  elle  quem  te  appareçaa 
abrir  a  portinhola.  Em  seguida,  galopando,  to- 
mará a  deanteira,  e  quando  fores  a  entrar  para 


A  RUA  DO  OIRO  55 

a  tua  secretaria,  será  elle  ainda  quem,  sollicita- 
mente,   te  apparccerá  a  levantar  o  reposteiro.» 

—  «E'  um  pesadelo  I» 

—  «E'  uma  carraça.» 

—  «Mas  é  uma  linda  situação,  a  tua,  de  secre- 
tario de  ministro. . . » 

—  a  Ha  melhores,  conforme  os  pontos  de  vis- 
ta . .  Eu  prefiro  Buenos-Ayres. . .  Mas  concordo 
em  que  seja  uma  boa  situação  » 

— «Tu  és  também  deputado,  pois  não  és?» 
— «Claro  !  E'  indispensável.  Nem  ha  outro 
meio  de  furar.  Ter  um  voto  nas  Gamaras,  e  fa- 
zer valer  esse  voto,  é  meio  caminho  andado  para 
tudo  o  mais.  Agora  é  que  tu  vaes  vêr  que  pre- 
cioso tempo  andaste  perdendo  em  Coimbra.  O 
que  todos  nós,  mais  ou  menos,  aprendemos  na 
Universidade,  não  nos  sen-e  aqui  para  nada. 
Tudo  isto  está  bem  longe  de  nos  dizer  como  se 
applica  um  methodo  scientifico  ao  governo  das 
sociedades  I  De  resto,  que  nos  importa. . .  Hoje, 
em  Portugal,  e  tanto  em  politica,  como  em  arte, 
como  em  sciencia,  como  em  litteratura,  ganha-se 
facilmente  uma  reputação  de  grande  homem, 
apenas  com  alguma  audácia  e  com  algum  pe- 
dantismo.» 

Estas  revelações  —  porque  pa:a  mim,  ilhéo 
peludo  e  parvenu  da  politica,  tudo  quanto  Fausto 
Guimarães  acabava  de  me  dizer  eram  verdadei- 


56  A  RUA  DO   OIRO 

ras  revelações  —  não  me  assustavam,  nem  se- 
quer me  intimidavam,  perante  a  consciência  bem 
alta,  em  que  eu  vinha,  do  meu  honroso  manda- 
to. Mas  já  nessa  manha,  ao  almoço,  o  Poças  se 
encarregara  de  começar  o  desbaste  das  minhas 
nobres  illusÕes,  nobres  e  cerradas  ;  e  comquanto 
eu  bem  houvesse  percebido  nelle,  na  sua  frase 
hostil  e  no  seu  gesto  amargo,  um  falso  pessi- 
mismo, que  elle  devia  envergar  em  cada  ma- 
nhã, e  ao  sahir  do  seu  quarto  numero  56  para  a 
vida  publica,  como  quem  enverga  um  jpjrí/es- 
sus^  não  deixava  de  ser  certo  que  a  semente  da 
desconfiança,  lançada  assim  ás  mãos  ambas  por 
Fausto  Guimarães  sob  o  terreno  das  rainhas  fal- 
sas noções,  encontrava  esse  terreno  já  um  pouco 
revolvido  á  superfície.  . . 

Quiz  ouvir  mais,  não  por  precavido  sentimento 
de  cautella  e  caldo  de  gallinha,  que  nunca  fize- 
ram mal  a  doente,  mas  por  um  natural  desejo 
de  me  instruir  depressa  em  matéria  que,  de  sur- 
presa, se  me  afigurava  inteiramente  nova.  E  in- 
sisti : 

— «Em  todo  o  caso,  não  é  estadista  quem  quer, 
nem  só  porque  o  Rei  o  quer.  Verdadeiro  esta- 
dista era  o  Fontes.  Verdadeiro  estadista  é  hoje 
o  teu  Ministro  I» 

— «Talvez,  talvez  podesse  sê-lo.  Mas  não  o  é. 
Falta-lhe  a  envergadura  I » 


A   KUA  DO   OIRO  Sy 

E  chamando  mais  especialmente  a  minha  at- 
tenção  para  uma  estatueta  que  estava  collocada 
sobre  o  mármore  saliente  do  fogão  mettido  na 
parede,  observou  : 

—  «Queres  a  melhor  prova  ?  Olha  aquella  pés- 
sima estatua.  Conheces...» 

Reparei,  conheci. 

—  «E'  a  estatua  da  Justiça,  . . » 

—  «Estás  enganado  I  disse  Fausto.  E'  a  esta- 
tua da  Injustiça.  Eu  te  explico...  No  dia  em 
que  o  meu  Ministro  aqui  entrou  pela  primeira 
vez,  possuido  de  uma  verdadeira  plethora  de 
boas  intenções,  e  sobraçando  esse  magnificente 
programma  de  governo  que  enterneceu  a  pro- 
víncia, aquella  figura,  que  tu  ali  vês,  tinha  a 
venda  descabida  de  um  lado,  e  via,  por  um 
olho,  tudo  quanto  lhe  convinha,  ao  mesmo  tempo 
que  um  dos  pratos  da  balança  pendia  mais  para 
o  lado  do  olho  a  descoberto.  E  sabes  tu  o  que 
elle  fez,  mal  aqui  entrou  ?  Foi-se  á  estatua,  pu- 
xou-lhe  a  venda  para  cima,  acertou  o  ponteiro 
da  balança,  e  voltando-se  para  os  chefes  de  re- 
partição que  tinham  vindo  cumprimenta-lo, 
disse:  —«-Fiat  jmticia!y>  Ora  torna  a  olhar, 
fazes  favor...  Lá  tens  a  venda  outra  vez  dei 
tada  para  baixo,  e  o  ponteiro,  outra  vez,  pen- 
dendo para  o  olho  aberto...  Emfim,  tu  vaes 
saber  o  que  tudo  isto  é.» 


58 


A  RUA  DO   OIRO 


Um  dos  coçados  reposteiros  de  reps  verde, 
que  pendiam  da  parede  alta  aos  lados  do  fo- 
gão, franziu-se  devagarinho,  como  se  alguém, 
que  atrás  estivesse  escutando,  se  decidisse  a 
apparecer-nos.  E  logo  um  nariz  descommunal, 
de  larga  venta,  e  rombo,  e  cavalgado  por  uma 
luneta  desusada  de  aros  de  tartaruga,  atraves- 
sou-se  na  conversa,  entre  as  maçãs  de  um  rosto 
rossdo  e  luzidio  : 

—  «Perdão.  •  .  Peço  perdão.  . .  Vinha  saber  se 
cá  já  estava  o  Ministro. . . » 

Era  o  nariz  impertinente  de  um  cavalheiro 
exquisito,  atarracado  e  sem  barba,  mettendo  os 
pés  para  dentro  e  extremamente  jovial.  Vestia 
um  casaco  de  astrakan  com  botões  de  madre- 
pérola, justo  como  uma  luva,  e  muito  curto, 
dando-lhe  um  grande  relevo  de  formas,  princi- 
palmente de  formas  posteriores.  Calçava  galo- 
chas de  borracha  e  luvas  amarellas,  de  ca- 
murça. Tinha  pouco  cabello ;  e  esse  pouco  que 
tinha,  e  ralo,  apartava  o  ao  meio,  com  muita 
pomada,  cheirando  forte  a  jasmim. 

Mellifluamente,  cumprimentou-me,  inclinando 
a  cabeça  para  o  lado,  esboçando  um  sorriso  entre 
os  lábios  grossos,  baixando  os  olhos  e  arqueando 
um  pouco  os  braços,  em  delicada  mesura. 

Fausto  disse-lhe  quem  eu  era.  Teve  logo 
muito  gosto  em  me  conhecer.  Ai,  Jesus !  Pare- 


A  RUA  DO  OIRO  St) 

cia  uma  senhora.  .  . —  «A  quem  tinha  eu  tam- 
bém, já  agora  I  o  gosto  de  falar?» 

— « . . .  Melecas,  só  Melecas,  creado  de  ^'ossa 
Excellcncia. . . » 

E  voltando  se  para  Fausto,  num  reboliço : 

—  «Como  está  o  meu  amigo  ?  como  está  sua 
esposa,''  como  estão  os  seus  filhos  ?« 

—  «Bem,  tudo  bem.  E  vossê  ?  E  a  Opposição, 
como  passa  ?» 

—  «Ora,  a  Opposição  I  A  Opposição  só  passa 
bem  quando  se  acha  no  governo  I» 

—  «A  Opposição  é  muito  exigente  I  exclamou 
Fausto.  Parece  que  Já  não  lhe  basta  o  actual 
regimen  de  liberdade  de  imprensai» 

—  «A  liberdade  de  imprensa,  meu  caro  senhor, 
é  uma  liberdade  tão  cuidadosamente  garantida, 
que  não  ha  meio  de  a  gosar  devidamente. . .  » 

E  dizendo  isto,  num  risonho  saracoteio  de 
toda  a  sua  pessoa,  o  pittoresco  interlocutor  de 
Fausto  procurava  lér  me  nos  olhos  se  eu  já  ha- 
via percebido  que  tinha  na  minha  frente  um  es- 
pirito superior. 

Fausto  troçava-o,  voltando-se  para  mim  : 

—  «Ouve  isto  e  pasma,  Joaquim  do  Amaral ! 
Este  homem,  que  tu  aqui  vés,  o  argucioso  Me- 
lecas, redactor  do  Phantasma,  ainda  esta  ma- 
nhã publicava  uma  verrina  tremenda  contra  o 
meu  Ministro,  attribuindo-lhe  as  peores  infâmias, 


6o  A   RUA  DO   OIRO 

arrastando  O  pelas  ruas  da  amargura,  fusti- 
gando-o  cora  o  látego  venenoso  da  sua  sátira, 
que  é  terrível,  e  da  qual  te  aconselho  a  que  te 
livres. . .  E  aqui  o  tens  agora,  calcando  com  as 
suas  formosíssimas  galochas  de  borracha,  o  ta- 
pete do  gabinete  d'esse  mesmo  Ministro,  com  a 
mesma  semcerimonia  Cv^m  que  amanha  o  verás 
calcar  a  própria  consciência,  se  elle  o  despachar 
segundo  official  !  D'aqui  a  pouco  vae  chegar  o 
.Ministro,  e  tu,  que  mal  conheces  o  teu  paiz, 
poderás  ver  então  uma  das  coisas  mais  curiosas 
que  ha  para  ver  em  Portugal :  o  estadista  sorrir 
ao  jornalista  que  o  desancou,  e  apertar  a  mão 
que  lhe  bateu  até  o  deixar  em  sangue  . .  Ha 
uma  chamada  brandura  de  costumes  e  uma  li- 
berdade de  imprensa  que  consentem  tudo  isto, 
e  Melecas  ainda  ousa  achar  pouco  I» 

Já  de  si  aflautada,  a  voz  do  outro  silvou  em 
flautim  : 

—  «Ora  os  ministros  I  os  ministros!  Os  minis- 
tros são  todos  como  aquella  grande  cocotte  que 
dizia:  «O  maior  prazer  que  tenho  tido  na  mi- 
nha vida  foi  o  de  me  sentir  deshonrada!» 

Era  boa  a  piada.  Rimos.  E  Fausto,  applicando 
uma  sonora  palmada  ao  trazciro  do  redactor 
do  Phantasma,  riu  mais  e  disse : 

—  «E  vossê,  ó  Melecas,  qual  tem  sido  o  maior 
prazer  de  toda  a  sua  vida  ? 


ÍII 


Era  de  boa  politica,  mesmo  para  um  deputado 
independente,  como  eu,  procurar  ensejo  de  ser 
apresentado  ao  Presidente  do  Conselho  antes 
de   entrar   na  Gamara  e  de  prestar  juramento. 

Fausto  sollicitaria  para  mim  essa  subida  hon- 
ra, e  no  dia  seguinte,  áquella  mesma  hora, 
quando  o  Ministro  voltasse  da  assignatura  régia, 
proporcionar-se-ia  o  ensejo. 

Assim  foi. 

Eu  nunca  tinha  tido  occasião  de  falar  com 
um  ministro  de  Estado,  a  não  ser  com  o  Pi- 
mentel Gouveia,  lente  da  Universidade,  mas 
que  apenas  estivera  no  governo  mez  e  meio,  e 
só  era  ministro  de  Estado  honorário  quando  an- 
dei na  aula  d'elle.  E  não  era,  por  isso,  sem  um 
certo  sobresalto,  e  uma  tal  ou  qual  intimidação. 


62  A  RUA  DO   OIRO 

que  eu  aguardava,  no  gabinete  de  Fausto,  o 
momento  em  que  o  meu  amigo,  correndo  o  co- 
çado reposteiro  de  reps  verde,  me  chamasse  e 
me  levasse  até  junto  do  seu  Ministro. . . 

Porque  emfim,  ser  recebido  no  gabinete  de 
um  ministro,  falar  a  um  ministro,  apertar  a 
mão  de  um  ministro,  mesmo  quando  se  não  tem 
de  um  ministro  a  errada  noção  que  dos  minis- 
tros tem  o  povo,  considerando-os  a  todos,  indif- 
ferentemente,  capitães  de  ladroes  ou  grandes 
homens,  segundo  as  necessidades  do  Orça- 
mento os  levaram  a  crear  mais  um  addicional, 
ou  as  conveniências  da  Politica  os  aconselharam 
a  reduzir  um  imposto  de  barreira  —  não  era 
caso  de  todos  os  dias,  neoi  dos  que  menos  con- 
tam na  vida  de  quem,  como  eu,  Julga  imputar 
aos  factos  o  seu  exacto  valor,  e  de  tudo  toma 
apontamento  miúdo  nalgum  canhenho  de  me- 
morias. 

E  em  vez  de  procurar  desvanecer  esse  ligeiro 
sobresalto,  aliás  bem  natural,  emquanto  não  se 
franzia  aquelle  puído  reposteiro  de  reps  verde, 
a  minha  imaginação  dava  maior  vulto,  engran- 
decia de  uma  falsa  importância  o  simples  caso, 
lançava  perturbação  nas  minhas  funcçÕes  psi- 
chicas,  atrapalhava-me,  em  summa... 

Para  justificar,  perante  mim  mesmo,  a  minha 
atrapalhação,  imaginei-me  transportado  a  uma 


A  RUA  DO  OIRO  63 

extensa  e  doirada  galeria  onde  se  achassem  re- 
unidos, em  desusado  congresso,  todos  os  minis- 
tros que  tem  tido  Portugal  nos  últimos  sessenta 
annos  —  e  imaginei  que  todos  elles,  ao  verem-me 
entrar,  assim  e  sem  mais  nem  menos,  naquelle 
recinto  que  lhes  era  reservado  como  um  pan- 
thdon,  não  occultavam  surpreza  e  apenas  procu- 
ravam dissimular,  mas  mal,  como  que  uma  certa 
suspeita  receiosa  pela  minha  inopinada  presença 
de  deputado  independente,  que  vinha  ali,  sem 
duvida,  para  lhes  pedir  contas  dos  seus  actos. 

Avançando,  porém,  um  passo  para  mim,  cada 
um  d' elles,  e  todos,  por  sua  vez,  me  estendiam 
a  mão. 

Eu  passava  em  revista  essa  immensa  fileira 
de  conselheiros  da  Coroa,  e  de  todas  as  suas 
vozes,  auctorisadas  e  convictas,  ouvia  o  mesmo 
protesto:  —  «Eis-nos  oíferecidos  em  holocausto 
no  altar  da  Pátria  !»  E  eu  pensava  que,  se  os 
talentos  abriam  distancias-  entre  tantos  homens 
de  Estado,  aproximava-os,  a  todos,  o  sacrifí- 
cio.. . 

Mousinho  da  Silveira,  informado  de  que  eu 
vinha  ás  Cortes  com  propósitos  terriveis  de  re- 
forma, chamava-me  de  parte,  deitav^a  o  rijo 
braço  sobre  o  meu  hombro  débil,  dizia-me  ao 
ouvido :  —  «Meu  caro  amigo,  peço-lhe  que  me 
poupe . .  .   Olhe  que  isto  da  gente  se  deixar  ser 


04  A  RUA  DO   OIRO 

ministro,  não  é  pequeno  sacrifício.  Afiguram-se 
marclietadas  de  estrellas  as  cadeiras  do  gover- 
no, e  são  entretecidas  de  espinhos  !  Poupe -me, 
poupe-me  I» 

José  da  Silva  Carvalho  e  Agostinho  José 
Freire,  que  cochichavam  no  vão  de  uma  janella, 
vinham  ao  meu  encontro,  enleavam-me  em  bhm- 
dicias  ;  tinham  ouvido  já  falar  de  mim,  sabiam 
já  que  eu  vinha  disposto  a  metter  tudo  nos  ei- 
xos, e  appelavam  para  a  minha  clemência:  — 
eSe  Vossa  Excellencia  nos  vê  aqui,  um  na  Fa- 
zenda outro  na  Marinha,  é  porque  cedemos  ante 
as  obrigações  que  nos  impunha  a  nossa  quali- 
dade de  cidadãos  portugueses. .  .» 

Ainda  estes  illustres  estadistas  me  não  haviam 
largado,  e  já  o  Duque  de  Palmella  e  o  Duque 
da  Terceira  me  pediam  desculpa,  se  não  lhes 
fora  possível  reorganisar  as  finanças  e  consoli- 
dar o  reino  á  medida  dos  meus  desejos. . . 

Joaquim  António  de  Aguiar,  receiando  ter-se 
tornado  antipathico  a  minha  Tia  Genoveva,  com 
o  seu  decreto  de  abolição  das  ordens  religiosas, 
encarregava-me  de  expor  áquella  devota  senho- 
ra as  razões  ponderosas  que  o  haviam  forçado 
a  desferir  esse  golpe  mortal  na  influencia  dos 
miguehstas. 

Adeantando-se,  com  delicadas  maneiras.  Cos- 
ta Cabral  desejou  saber  se  eu  me  achava  de  ac- 


A  RUA  DO  OIRO  65 

côrdo  com  a  interpretação  que  elle  dera  á  Carta, 
e  se  em  meu  entender  fizera  bem  enfreando  a 
liberdade  de  imprensa. 

E  eu  procurava,  atabalhoadamente,  uma  res- 
posta amável  que  lhe  desse,  sem  muito  me  com- 
prometter,  quando  Saldanha,  intervindo,  me  li- 
vrou do  embaraço  :  —  «Diga-lhe  que  sim,  Ama- 
rante, diga-lhe  que  sim!»  E  lá  foi  seguindo,  im- 
pávido, sobraçando  as  suas  sete  pastas  dos  seus 
sete  ministérios. 

Perplexo  e  gaúche,  entre  tanto  espectro  illus- 
tre,  eu  vi  passar  nessa  galena  extensa,  mais 
extensa,  talvez,  que  a  galeria  dos  Uffizi  de  Flo- 
rença, todos  os  ministros  de  todos  os  ministé- 
rios, desde  i832  para  cá:  os  da  Restauração  e 
os  da  Revolução  de  Setembro  ;  os  da  Revolução 
de  Abril  e  os  da  Reacção  de  Outubro  ;  os  da 
Maria  da  Fonte  e  os  da  Janeirinha ;  os  da  Re- 
volta de  Maio  e  os  do  Ultimatum  de  Janeiro.. . 
E  todos  esses  ministros,  de  todos  esses  minis- 
térios —  cartistas  e  setembristas,  cabralistas  e 
patuléas,  granjolas  e  barjonaceos — todos  quantos 
implantaram,  viciaram  e  desfructaram  o  sistema 
de  governo  parlamentar,  em  que  eu  agora  inter- 
vinha, mettendo  o  meu  bedelho  e  sobraçando  o 
meu  honroso  mandato  de  representante  do  Po- 
vo, eleito  pelo  voto  livre  do  Povo,  se  acercavam 
de  mim   com  artes  de  sedução,  Jisonjeando    a 

5 


66  A  RUA  DO  OIRO 

minha  força  para  lhe  quebrar  os  Ímpetos,  so- 
prando a  minha  vaidade  para  me  verem  himpar 
e  arrebentar  como  a  rã  de  Hisopete  ;  e  todos 
elles,  desde  o  Aguiar  ao  Fontes,  e  desde  o  Sal- 
danha ao  Bispo  de  Vizeu,  tinham  o  ar  de  solli- 
citar,  de  implorar  a  minha  indulgência  para  os 
seus  erros,  lembrando-me,  todos  elles,  que  os 
homens  que  a  Opinião  precipitou  hontem  do  po- 
der, são  sempre  os  mesmos  que  essa  mesma 
Opinião,  moderada  já,  irá  buscar  amanhã  para 
lhes  confiar  os  seus  destinos. . . 

...Uma  porta  rangeu,  vi  correr-se  o  repos- 
teiro. A  um  aceno  de  Fausto,  achei  me  introdu- 
zido no  gabinete  do  Ministro.  E  o  que  immedia- 
tamente  se  passou,  em  realidade,  foi  o  perfeito 
seguimento,  quasi  lógico,  d'aquella  espécie  de 
allucinação  patusca  de  que  me  saccudiam —  ape- 
nas com  esta  differença :  é  que  já  não  era  o  Mi- 
nistro que  se  amolgava  perante  a  independência 
do  meu  honroso  mandato,  como  o  Costa  Cabral 
e  como  os  outros  ;  era  eu,  agora,  que  vergava 
o  espinhaço  na  presença  do  Ministro,  e  mal  me 
atrevia  a  avançar  do  limiar  da  porta : 

— « . .  .Vossa  Excellencia  dá  licença  ?...»  disse. 

—  «Entre,  faça  favor!» 

E  logo  estendendo-me  a  mão  com  Ihanesa,  c 
como  se  já  me  conhecesse  de  ha  muito,  o  Mi- 
nistro continuou : 


A  RUA  DO   OIRO  67 

—  «Ainda  bem  que  veiul  Já  cá  estava  a  fazer 
falta.  Foi  o  diabo,  essa  angina. . .  De  mais  a  mais 
com  recahida.  E  trinta  e  oito  graus  de  febre,  ein? 
Olhem  que  brincadeira...  Já  tinha  estado  cm 
Lisboa  ?» 

—  «Já,  mas  com  pouca  demora...» 

—  oVae  gostar.  Lisboa  é  uma  Unda  cidade. . . 
E  vem  decidido  a  trabalhar  deveras  na  politica? 
Parece-lhe  que  se  adaptará  bem  a  este  meio?» 

Eu  já  não  sabia  ao  certo  onde  estava,  nem  de 
que  terra  era.  Disse  que  sim,  ao  acaso. 

—  «Creio  que  sim. . .  Assim  o  desejo, pelo  me- 
nos.» 

—  «Ha-de  adaptar-se  !  insistiu  elle,  achando 
mole,  e  carregando.  —  Sei  que  possue  excellen- 
tes  qualidades  de  orador.  Seja  bemvindo,  porque 
é  justamente  d'isso  que  nós  mais  precisamos  na 
Camará.  Mas  ser  orador  não  basta.  Convirá  que 
adopte  qualquer  especialidade. . .  No  Parlamen- 
to, como  na  Medicina,  é  necessário  ser-se  um 
pouco  charlatão,  para  conquistar  rapidamente 
uma  boa  voga.  Os  especialistas  têm  sempre 
uma  percentagem  muito  avultada  para  subir  de- 
pressa Nós  temos,  como  sabe,  os  especialistas 
dos  orçamentos,  os  especialistas  dos  pareceres, 
os  especialistas  dos  apartes,  os  especialistas  dos 
apoiados. . .  Temos  até  os  especialistas  de  que- 
brar carteiras  1  E'  necessário  que  o  meu  amigo 


68  A  RUA  DO  OIRO 

comece  desde  já  a  tatear  o  terreno,  para  des- 
cobrir a  especialidade  que  mais  lhe  possa  con- 
vir. . . » 

Esta  desataviada  franqueza  de  acolhimento, 
esta  correntia,  familiar  maneira  de  dizer,  que 
desde  logo  deviam  pôr-me  á  vontade,  mais  me 
perturbavam,  me  amachucavam.  Desconfiado 
sempre,  ilhéo  pelludo,  neófito  e  inexperiente 
nas  ronhas  da  politica,  eu  não  atinava  em  dis- 
tinguir o  que  podesse  haver  de  sinceridade,  ou 
o  que  podesse  haver  de  intrujice,  em  recepção 
apparentemente  tão  aíFectuosa. 

Depois,  aquella  miúda  circumstancia  de  ter 
chegado  ao  conhecimento  do  Ministro  a  noticia 
da  minha  angina  pectoris,  e  o  facto,  quasi  en- 
ternecedor,  d'ella  não  ter  passado  de  lembran- 
ça a  esse  homem,  que  tantas  e  tão  graves  coisas 
devia  ter  em  que  pensar,  chegando  a  precisar 
até,  e  depois  de  tanto  tempo,  o  grau  a  que  su- 
bira a  intensidade  da  minha  febre,  e  o  caso  da 
recahida,  e  os  dotes  de  oratória  que  me  eram  at- 
tribuidos...  — tudo  isso  me  enchia  de  surpre- 
za,  me  embrulhava  e  me  engasgava  em  tão  dif- 
ficultoso  lance. 

Oscillei,  vacillei  um  instante,  encarei  Fausto 
Guimarães,  que  observava  de  lado  o  meu  esta- 
do de  alma,  e  sorria. 

Fausto,  argucioso,   rapidamente  leu  no  meu 


A  RUA  DO  OIRO  69 

olhar  uma  urgente  consulta,  e  respondeu  de 
prorapto,  com  um  gesto  enérgico,  muito  d'elle: 
que  me  atirasse  eu  de  cabeça  I 

Ao  mesmo  tempo,  e  sem  me  darem  mais  tem- 
po para  deliberar,  uma  forte  mão  invisível  cra- 
vou-me  nas  costas  os  cinco  dedos  aduncos,  em- 
purrou-me  para  a  frente.  Senti  que  o  chão  me 
fugia  debaixo  dos  pés,  fechei  os  olhos,  mergu- 
lhei no  abysmo  : 

— «Eu  ponho-me,  incondicionalmente,  ao  dis- 
por de  Vossa  Excellencia.» 

Era  a  mão  miserável  do  miserável  Tarquinio! 

— a  Muito  obrigado  I»  disse  o  Ministro. 

E  eu  fiquei  sem  saber  se  era  a  mim  que  elle 
agradecia  o  ter-me  eu  submettido,  ou  se  era  ao 
espirito  do  Doutor  Tarquinio  que  o  Ministro 
agradecia  o  ter-me  elle  empurrado... 

Na  marcação  d'esta  scena  grotesca,  entrava 
outra  personagem,  para  quem  o  Ministro  se  vol- 
tou, tratando-o  por  — Padre  Eterno,  e  dizendo: 

— «Temos  aqui  (referia-se  á  minha  pessoa)  o 
vogal  que  nos  faltava  para  a  commissão  do  Có- 
digo. E'  necessário  aggrega-lo,  inicia-lo  já.  Não 
podemos  perder  mais  tempo. . .  E  a  propósito, 
diga-me,  em  que  alturas  vae  a  discussão  do  pro- 
jecto ?» 

—  «Vamos  agora  no  artigo  32...»  informou  Pa 
dre  Eterno,  pachorrentamente. — A  questão  das 


7©  A  RUA  DO  OIRO 

provas  foi  muito  demorada.  O  Manoel  de  Sá 
queria  a  todo  o  transe  que  se  dispensassem  as 
oífensas  corporaes  . . .  Toda  a  gente  sabe  que 
elle  será  um  dos  primeiros,  se  não  o  primeiro, 
a  aproveitar- se  da  lei  do  divorcio,  mas  parece 
que  não  lhe  chega  o  animo  para  bater  na  mu- 
lher I  E  quasi  toda  a  sessão  de  hontem  se  pas- 
sou a  ouvi-lo  . . .  Não  vejo  meio  de  apressar  a 
discussão.  . . » 

—  «Nem  ha  necessidade  d'isso.  Pelo  contrario. 
Convem-me  que  o  projecto  se  demore  na  com- 
missão  até  ser  votada  a  reforma  dos  parochos. 
Temos  ainda  uns  quinze  dias...  Mas  também 
me  convérn  que  as  reuniões  da  commissão  sejam 
mais  frequentes,  para  que  os  jornaes  falem,  para 
que  se  veja  que  alguma  coisa  se  faz. . . » 

—  aNesse  caso,  concordava  o  Padre  Eterno, 
não  cortarei  a  palavra  ao  Manoel  de  Sá  I» 

Este  Padre  Eterno  era  o  director  geral  dos 
Negócios  Ecclesiasticos  desde  1847,  nomeado 
ainda  pelo  Silva  Ferrão  —  Francisco  António 
Fernandes  da  Silva  Ferrão,  que  fora  ministro 
com  o  Franzini,  e  com  o  Barão  de  Almofala. 
Reconhecio  logo,  vendo-o  entrar  no  gabinete, 
sobre  uma  caricatura  soberba  de  Bordallo,  no 
Álbum  das  Glorias. 

Era  aquillo  mesmo :  a  mesma  hipertrofia 
dos  tecidos  adiposos,  a  mesma  proeminência  do 


A  RUA  DO  OIRO  7I 

mento  sensualão  ;  e  a  perna  curta  e  cambando 
para  fora;  e  a  larga  venta  atulhada  de  simonte, 
e  o  olho  somnolento,  de  carneiro  mal  morto, 
ensopado  na  membrana  volumosa  dos  bordos 
palp^braes;  e  todo  elle  eriçado  de  cerdas  como 
um  suino,  nas  sobrancelhas  e  nas  fontes,  nas 
ventas  e  nos  ouvidos,  nos  pulsos  e  nos  dedos. . . 
E  aquella  mesma  faceira,  e  a  cachaceira  espar- 
ralhada  transbordando  da  golilha  roxa  de  cóne- 
go, como  da  bocca  de  um  boiao  de  gordu- 
ras ...» 

Mudando  de  tom,  para  um  tom  de  enfado,  o 
Ministro  perguntou : 

—  aTraz  ahi  muita  coisa,  Padre  Eterno?» 

—  «Trago  só  o  mais  urgente,  o  que  não  pôde 
passar  de  hoje.  —  E  procurando  um  .processo 
entre  os  dois  grossos  maços  de  processos,  que 
os  seus  braços  curtos  abrangiam  a  custo,  conti- 
nuou, passando-o  ás  mãos  do  Ministro:  —  Isto  é 
o  caso  do  Cónego  Boavidinha. . .  O  Bispo  tem 
ra/.ão.  Na  ha  meio  de  lhe  valer.  Está  averi- 
guado que  os  filhos  do  Administrador  são  todos 
d'elle.  O  ultimo  tem  dois  mezes...  E'  um  es- 
cândalo I  O  Administrador  fechou  a  mulher 
num  sótão,  e  tem-na,  vae  em  três  semanas,  a 
pão  e  laranjas.  O  Cónego  anda  furioso,  parece 
que  armado  de  um  bengalão  de  marmeleiro,  á 
procura  do  Administrador  por  toda  a  parte,  di- 


72  A  RUA  DO  OIRO 

zendo  a  toda  a  gente  que  o  desanca,  se  elle  não 
lhe  solta  a  nr.ulher!» 

—  «E'  espantoso !  E  o  Administrador  o  que  é 
que  diz  a  isso?* 

—  a  O  Administrador  não  apparece  na  rua,  e 
vae  de  casa  para  a  Administração  por  cima  do 
muro  do  quintal,  que  é  pegado.  Ainda  no  do- 
mingo passado,  que  era  dia  de  feira,  e  houve  lá 
desordem,  por  mais  que  o  chamassem  não 
houve  meio  de  o  fazer  sahir,  e  só  appareceu  á 
janella  para  dizer  que  não  estava  em  casa!  E 
foi  o  próprio  Cónego  que  se  pôz  á  frente  dos 
guardas  e  varreu  a  feira.» 

— oE'  uma  situação  insustentável.  . .  ponderou 
o  Ministro. — E  o  que  diz  o  Bispo?» 

—  «O  Bispo  ameaçou-o  já  de  que  lhe  tirava  a 
missa,  e  quer  que  nós  o  tiremos  d'ali  p'ra  fora.» 

—  «Mas  é  o  diabo,  porque  o  circulo  é  d'ellel 
Havia  uma  revolução.» 

— «...  Se  Vossa  Excellencia  quizesse,  talvez 
achássemos  um  meio:  trazê-lo  para  Lisboa.» 

—  «E  como?  era  que  situação?» 

—  «Fazendo-o  deão  da  Sé.» 

—  aMas  elle  não  deixa  a  mulher!» 

O  Padre  Eterno  era  o  decano  dos  Directores 
geraes,  e  o  protótipo,  fidedigno,  de  todos  elles- 
Era  o  homem  de  confiança  dos  Ministros,  o  alto 
funccionario  entre  os  altos  funccionarios,  aquelle 


A  RUA  DO  OIRO  78 

que,  dentro  dos  complicados,  tortuosos  mean- 
dros da  burocracia,  tudo  sabe,  tudo  resolve, 
tudo  explica;  centralisando  sob  o  domínio  da 
sua  garra  todos  os  negócios  ;  fazendo  depender 
do  seu  juizo  todas  as  deliberações  superiores ; 
monopolisando  no  seu  conselho  todos  os  conse- 
lhos. E  creando,  e  sustentando,  e  avolumando 
embaraços  sempre  que  fosse  necessário  emba- 
raçar; e  admittindo,  e  patrocinando,  e  procu- 
rando facilidades  sempre  que  fosse  necessário 
facilitar. . . 

—  «Traz-se  também  a  mulher!»  despachou  elle. 
—  A  mulher  era  professora  de  instrucção  pri- 
maria, e  Sua  Excellencia  podia,  pelo  Ministério 
do  Reino,  transferi-la  para  Lisboa. 

— «Mas  o  marido,  o  Administrador?» 

—  «Ora!  o  marido,  se  Vossa  Excellencia  lhe 
fizesse  constar  que  o  demittia,  sob  qualquer  pre- 
texto, largava  mais  depressa  a  mulher  que  a 
administração  do  concelho.» 

O  Ministro  ainda  hesitou  um  momento.  To- 
lice !  Não  havia  que  hesitar.  Mandassem  vir  o 
Cónego;  e  elle  trataria  então,  pelo  Ministério  do 
Reino,  de  transferir  essa  pecora  da  mestra. 

O  Padre  Eterno  escolheu  outro  processo 
metteu-o  á  cara  do  Ministro. 

— «Temos  agora  aqui  um  outro  bico  d'obra. . . 
E'   o  resultado  do  concurso  para  segundos  of- 


74  A  RUA  DO  OIRO 

ficiaes.  Tivemos  de  pôr  em  primeiro  logar  o  Me- 
lecas. . . » 

O  Ministro  deu  um  salto,  empertigou  se  na 
cadeira : 

—  «Qual  Melecas?!» 

—  «O  Melecas. . .  o  do  Phantas}7ia.y> 

—  «Isso  não  pôde  seri  Não,  lá  isso,  meu  caro 
Padre  Eterno,  tenha  paciência...  O  Melecas  I 
nomear  eu  o  Melecas  I  Esse  desavergonhado 
Melecas  que  me  tem  dito  as  ultimas...  Não, 
lá  isso,  não  I» 

O  Padre  Eterno  esclareceu  : 

—  «Assim  o  entendeu  o  jur}^  Se  Vossa  Excel- 
lencia  o  preterir,  mais  o  exaspera.  . .  Se  Vossa 
Excellencia  o  nomear,  talvez  elle  se  cale.» 

—  «E  as  provas?»  indagou  o  Ministro,  já  mais 
manso,  tendendo  já  a  uma  possível  conciliação 
de  coisas. 

— «As  provas. . .  não  foram  boas.  Mas  ^'ossa 
Excellencia  bem  sabe  que  isto  agora  não  é  uma 
questão  de  provas,  é  uma  questão  de  conveniên- 
cia para  o  Governo.» 

—  «Pois  sim,  tem  vosse  razão. . .  Mas.  ó  meu 
caro  Padre  Eterno,  diga-me  com  franquesa :  se 
esse  Melecas  tivesse  escripto  .  a  seu  respeito  o 
que  de  mim  tem  dito  no  Phaniasma  desde  que 
eu  entrei  para  o  Ministério,  e  se  vossê  tivesse  de 
despacha-lo   segundo  official,  mesmo  num  con- 


A  RUA  DO   OIRO  7^ 

curso,  e  com  boas  provas,  vossê  despacharão,  ó 
Padre  Eterno?  Olhe  bem  para  mim,  diga-me 
com  franquesa . . . » 

—  oEu  não  o  despachava,  não  senhor:  eu  mct- 
tia-o  num  processo  I» 

—  «Mas  então. . . » 

—  «Mas  então...  E'  que  o  Melecas  nunca 
escreveu  uma  linha  contra  Vossa  Excellcncia  I 
Aquelles  artigos  não  são  d'elle.  Nem  elle  sabe 
escrever.» 

—  «Em  todo  o  caso,  assigna-os.  E  se  elle  nem 
sabe  escrever,  mais  uma  razão  para  que  eu  não 
me  ache  de  accordo  com  a  classificação  do  con- 
curso. Quem  ficou  em  segundo  logar  ?» 

— «Em  segundo  logar,  ficou  o  filho  do  Conse- 
lheiro Paiva.  Tem  uma  lettra  magnifica.» 

— «E  não  tem  mais  nada  ?  Para  segundo  of- 
ficial,  é  talvez  pouco. . . » 

— «Tem  o  tio,  que  é  presidente  do  Tribunal  de 
Contas  !» 

Sahi  d'ali  aterrado.  Eram  então  assim  os  mi- 
nistros !  Era  então  assim  a  Politica  !  Mas  não 
deviam  ficar  por  ahi  as  surprezas  d'esse  dia,  já 
agora  memorável. 

Fausto  Guimarães  descera  comigo  do  Ministé- 
rio á  Arcada,  oíferecera-me  logar  na  cai  ruagem 
que  tinha  á  sua  espera.  Chuviscava.  E  como  eu 
nada  tivesse  que  fazer  de  urgente  nesse  resto  da 


76  A  RUA  DO  OIRO 

tarde,  nem  o  tempo  convidasse  a  um  giro  na 
Baixa,  acompanha-lo-ia  ao  Salitre,  onde  precisava 
deixar  uma  encommenda,  daríamos  depois  a 
volta  lá  por  cima,  e  elle  viria  pôr-me  á  porta  do 
Hotel  á  hora  do  jantar,  não  me  dizendo  que 
fosse  eu  jantar  em  sua  casa,  porque  estavam  sem 
cozinheiro. 

Só  o  meu  querido  Fausto  me  não  dava  sur- 
preza,  depois  de  tanto  que  o  não  via,  desde  que 
nos  tinhamos  separado  em  Coimbra,  na  noite  da 
recita  do  nosso  quinto  anno,  e  na  balbúrdia  final 
d'aquella  ceia  opípara,  que  coroara  de  espumas 
de  Champagne  o  nosso  curso  de  Direito.  Estava 
o  mesmo,  era  sempre  o  mesmo  :  expansivo,  ale- 
gre, bom  rapaz,  mettendo-nos  no  coração  ! 

Mas  quando  descíamos  a  larga  escadaria  do 
Ministério  da  Justiça,  Fausto  deixou-me  avançar 
três  degraus,  e  observou: 

—  «O'  Joaquim  do  Amaral!  Olha  que  essa  so- 
brecasaca não  te  está  nada  bem. . .  Isso  é  sobre- 
casaca da  Ilha,  com  certeza!  Ein?  Ora  diz  lá. . . » 

— «Pois  está  visto  que  é,  e  então  ?!  que  defeito 
lhe  achas?» 

—  «Não  sei . . .  não  sei. . .  Nem  admira  que  o 
não  saiba :  eu  não  sou  o  Strauss  !  Mas  vae-te 
mal,  vae-te  mesmo  muito  mal,  muito  curta  e 
muito  larga. . .  E  a  gola  a  fugir  do  coUarinho,  e 
as  abas  que  arreganham  . .  E'  um  horror,  Ama- 


A  RUA  DO   OIRO  77 

ral,  é  um  horror  !  Vossês,  na  Ilha,  sabem  fazer 
admiravelmente  eleições,  mas  não  sabem  fazer 
sobrecasacas  !  desculpa  que  t'o  diga. » 

—  «Querias  talvez  que  eu  mandasse  fazer  a  mi- 
nha roupa  a  Londres!» 

— «Ora  essa!  e  porque  não?!  Não  manda  Lon- 
dres buscar  laranjas  á  tua  Ilha?» 

Estava  eu  muito  enganado  se  ainda  julgava  que 
essa  coisa  de  mandar  de  Portugal  fazer  fatos  a 
Londres  era  uma  pura  fantasia  dos  janotas  que 
o  Eça  mettia  nos  seus  romances.  Em  matéria  de 
«costumes»,  como  diria  o  Poças  rejubilando  com 
o  trocadilho,  tudo  nos  vinha  agora  da  Inglaterra, 
de  Londres. 

Esquecera-se  Kionga,  esquecera-se  o  Ultima- 
tum,  desembaraçara-se  dos  crepes  d'esse  pas- 
sageiro lucto  nacional  a  estatua  de  Camões. 
Em  menos  de  seis  mezes,  coisa  curiosa  !  ope- 
rara-se  no  animo  dos  portugueses  uma  singular 
transformação.  Estávamos  ingleses !  Éramos 
ingleses  I  Queriamos  morrer  ingleses  !  Como  se 
produzira  este  fenómeno  ?  Como  se  operara  esta 
transformação  ? 

Ninguém  o  sabia  ! 

Mas  estava-se  na  presença  de  um  facto,  e  de 
um  facto  perfeitamente  assente,  exacto,  irreme- 
diável, consummado.  Tínhamos  de  acceita-lo, 
assignala-lo  apenas,  sem  controvérsias. 


78  A    RUA   DO    OIRO 

E  Fausto,  empurrando-me  para  o  fundo  da 
sua  carruagem,  que  logo  rodou  e  metteu  pela 
Rua  do  Oiro,  foi  dizendo  em  que  consistira  essa 
extraordinária  mudança  de  caracter  nacional,  e 
qual  a  influencia  d'essa  mudança  no  animo  e 
nos  costumes  da  gente  portuguesa. . . 

Os  amigos  da  Inglaterra  faziam  da  alliança 
inglesa  o  eixo  de  toda  a  historia  de  Portugal  — 
desde  a  conquista  de  Lisboa,  assignando  Dom 
Affonso  Henriques  o  primeiro  tratado.  Não 
havia  empreza  nossa  sem  ingleses,  e  a  honra  de 
ser  uma  provincia  da  Inglaterra,  como  ficámos 
sendo  depois  do  tratado  de  Metwen,  não  era 
pequena  honra.  A  respeito  d' esse  tratado,  ago- 
ra, nenhum  português  de  lei  poderia  deixar  de 
condemnar  a  opinião  do  Oliveira  Martins,  que 
dissera  reunir  elle,  á  concisão  epigrafica  de  um 
texto  romano,  a  agudeza  penetrante  de  um  ne- 
gociante carthaginês,  ou  judeu...  Portugal  da- 
ria fructas  e  vinho  aos  ingleses ;  os  ingleses  da- 
riam a  Portugal  manufacturas  e  comer.  Ficáva- 
mos sendo  uma  colónia  vinícola  da  Inglaterra. 
E  dizia- se  agora,  e  escrevia-se  nos  jornaes,  que 
esta  era  a  tradição  de  toda  a  nossa  historia ! 

Depois,  em  três  grandes  momentos,  essa  al- 
liança nos  servira  para  mantermos  a  indepen- 
dência:  em  i383,  em  1660,  em  1808  ..  E  nin- 
guém lembrava  que,  da  primeira  vez,  o  que  os 


A  RUA  DO    OIRO  79 

ingleses  quizcram  foi  garantir  ao  Duque  de  Len- 
castcr  a  coroa  de  Hespanha  ;  e  consolidar,  da 
segunda,  o  seu  nascente  império  na  índia ;  e 
bater,  da  terceira,  Napoleão,  ateando  em  nós  a 
raiva  de  termos  perdido  Olivença. 

A  Convenção,  o  Comité  de  Salvação  Publica, 
o  Directório  e  o  Junqueiro  teimavam  em  consi- 
derar Portugal  uma  provincia  de  Inglaterra,  e 
não  estavam  contentes  com  isso?  Pois  que  ti- 
vessem paciência  ! 

E  em  cada  manhã  o  Diário  de  Noticias  oífe- 
recia,  na  sua  secção  de  annuncios,  tresentas 
mestras  inglesas,  que  se  promptificavam  a  ensi- 
nar o  inglês  sem  mestre  em  menos  de  quinze 
dias.  E  as  livrarias  reeditavam  e  vendiam  mi- 
lheiros do  Novo  Meihodo  de  Ollendorf  para 
aprender  a  lêr^  escrever  e  falar  a  doce  lingua 
inglesa  em  menos  de  seis  mezes. . . 

As  mercearias,  que  por  occasião  do  Ultima- 
tum  tinham  retirado  das  barricas  de  margarina 
o  lettreiro  de — Manteiga  inglesa,  legitima,  re- 
integravam o  lettreiro  nas  funcçÕes  do  seu  cargo. 

O  Ferrari,  o  Pucci  e  o  Cócó  expunham  nas 
suas  vitrines  apetitosos  exemplares  de  puding 
inglês  —  traduzido  !  , 

A  elegante  camisaria  do  Augusto  Ribeiro,  ao 
Chiado,  vendera  numa  só  tarde  doze  dúzias, 
uma  grosa  I  de  collarinhos  Príncipe  de  Galles, 


8o  A  RUA  DO   OIRO 

i5  centímetros  de  altura,  que  existiam  na  loja 
desde  a  fundação  da  Monarchia. 

Um  grupo  de  homens  de  lettras  e  artistas, 
que  tinham  andado  atrás  do  deputado  Eduardo 
Abreu  na  noite  de  ii  de  Janeiro,  dando  morras 
á  Rainha  Victoria  e  vivas  a  Camões,  percorria 
agora  as  ruas  da  Baixa  em  bandó  precatório, 
pedindo  cinco  tostões  para  uma  manifestação  de 
mesa  redonda  na  Taberna  Inglesa. 

Eduardo  Costa,  á  Pampulha,  lançava  no  mer- 
cado uma  nova  marca  de  bolachas  denominadas 
—  Pic-pockets,  de  delicado  sabor  e  perfume  de 
baunilha. 

Na  lista  das  casas  de  pasto,  as  comidas  mais 
,  vulgares  recebiam  nomes  ingleses,  deploráveis  : 
peixe  frito  era  —friedjish  ;  uma  costeleta  de  vi- 
tela era  — a  peai  ciitlet ;  uma  almôndega  era  — 
a  forced-meat  bali! 

Os  creados,  se  se  lhes  falava  português,  não 
respondiam.  Para  pedir  um  garfo,  era  necessário 
dizer : 

— Give  me  a  fork ! 

E  para  pedir  uma  colher : 

—  Gípe  me  a  spoon ! 

A  conversação  familiar,  a  própria  conversação 
familiar,  isto  a  que  se  chama  conversar  cada  um 
em  sua  casa,  com  a  sua  mulher  e  com  os  seus 
filhos,  tornara-se  uma  verdadeira  massada : 


A  RUA  DO  OIRO  8l 

—  Tem  V.  o  meu  chapéu  ? 

—  Have  you  my  hat  ? 

—  Tenho  o  seu  chapéu.... 

—  /  hare  j'our  hat. 

—  Não  tenho  o  seu  chapéu,  mas  tenho  o  lápis 
do  rapaz  do  seu  sapateiro, 

—  /  havc  tiot  rour  hat,  but  I  hare  the  pencil 
(if  your  shcemaker  s  hoy, . . 

Levados  nesta  impetuosa  corrente  da  Opinião, 
os  jornaes  tinham  inaugurado  plebiscitos  sobre 
as  probabilidades  de  uma  nova  alliança  inglesa, 
e  por  esse  meio  se  averiguara,  se  patenteara  á 
luz  do  nosso  bello  sol,  qiie  a  fina  flor,  o  escol, 
a  nata  da  intellectualidade  de  Portugal  votava 
por  unanimidade  que  se  entrasse  abertamente, 
immediatamente,  nas  negociações  do  tratado 
que  devesse  firmar  a  ambicionada  alliança. 

Respondendo  a  esse  plebiscito,  um  alto  func- 
cionario  do  Estado  dissera :  —  «...  Porque  to- 
dos nós  devemos  compenetrar-nos  d'isto :  a  al- 
liança com  a  Inglaterra  é  o  clarão  de  uma  boa 
esperança —  a  esperança  de  voltarmos  a  receber 
os  nossos  ordenados  em  libras  I» 

Uma  illustre  escriptora  publica  succintamente 
emittira,  nestes  termos,  o  seu  voto  na  matéria : 

—  «Ah!  não  me  perguntem  nada...  Estou 
com  os  Ingleses  I» 

Um    diplomata    e    poeta,    parafraseando    a 

% 


82  A  RUA  DO  OIRO 

Portuguesa,  que  fôra  o  canto  de  protesto  inspi- 
rado pela  humilhação  do  Ultimatum,  compozera 
outro  himno  que  começava  assim : 


Heroes  do  mar,  nobre  povo, 
Nação  valente,  immortal  ! 
Isto  não  é  nada  de  novo 
Entre  Inglaterra  e  Portugal  ! 

A's  armas  1 

A's  armas  I 
Sobre  a  terra,  sobre  o  mar  ! 


—  «Mas  voltando  á  lua  sobrecasaca,  continuou 
Fausto,  permitte-me  que  te  aconselhe  a  que  pro- 
cures o  meu  alfaiate,  e  lhe  encommendes  uma 
outra.  E  desfaz-te  d'essa.  Presenteia  com  ella  o 
guarda-portão  do  Borges,  que  saberá  enverga-la 
com  elegância. . .  O  Parlamento  é  ainda  um  lo- 
gar  de  exhibição.  O  deputado  tem  de  andar  bem 
vestido,  com  boas  luvas. . .  Olha  o  Jaurés,  em 
França,  na  democrática  França,  como  elle  cahiu 
em  ridículo,  por  se  apresentar  no  Parlamento  de 
blusa  socialista  I» 

Eu  ainda  tentei  alguns  argumentos  em  defesa 
dos  meus  princípios  e  da  minha  sobrecasaca. 
Afigurava-se-me  que  o  tempo  não  devia  muito 
sobejar  para  semelhantes  futilidades  de  vestuário 
e  de  elegância  a  quem  quizesse,  deveras,  preoc- 


A  RUA  DO  OIRO  83 

cupar-se  com  as  altas  questões  e  com  os  altos 
assumptos  que  deviam  absorver  a  vida  parla- 
mentar. Mas  Fausto  sahiu-se-me  logo,  e  com  fú- 
ria, aos  impedimentos.  Estava  eu  muito  engana- 
no,  redondamente  enganado !  E  a  nossa  velha, 
e  boa,  e  segura  amizade  não  consentiria  que  elle 
me  deixasse  debater,  espernear  nesse  engano, 
como  uma  mosca  que  se  debate  e  esperneia  na 
teia  de  uma  aranha  ! 

Em  obediência  ao  Regimento,  eu  devia  ser 
introduzido  na  Gamara  por  dois  dos  meus  coUe- 
gas,  deputados.  Convidara-o  já  a  elle,  Fausto 
Guimarães,  para  ser  um  d'esses  meus  padri- 
nhos. . .  (O  outro  seria  o  Poças,  já  convidado 
também).  Pois  ficasse  eu  sabendo  que  elle  não 
limitaria  esse  seu  grato  papel  á  formalidade  do 
Regimento ;  iria  até  onde  a  sua  estima  por  mim 
lhe  permittisse ;  e  a  sua  estima  por  mim  não  só 
lhe  permittia,  impunha-lhe  o  dever  de  bem  me 
encaminhar  naquella  senda  tortuosa  por  onde  eu 
queria  tomar  ás  cegas,  quando  me  era  preciso, 
ao  contrario,  arregalar  muito  os  olhos  ! 

—  «Já  tens  assignatura  em  S.  Gados?»  per- 
guntou-me. 

—  «Nem  pensei  nisso  sequer. . . » 

—  «Pois  tu  não  gostas  de  musica,  homem  da 
fortuna  ?  Uma  coisa  de  que  até  os  selvagens 
gostam ! » 


84  A  RUA  DO  OIRO 

—  «Gosto,  até  gosto  muito ;  mas  ainda  esta 
manhã,  ao  almoço,  se  discutiu  deante  de  mim  essa 
coisa  de  assignatura  em  S.  Carlos.  Parece  que 
é  uma  formidável  burla.  Os  assignantes  ouvem 
sempre  a  mesma  opera,  e  quando  ha  opera  nova 
a  recita  é  extraordinária.  Disse-me  um  hospede 
do  Borges  que,  segundo  os  seus  cálculos,  o  as- 
signante  virá  a  ter,  nesta  época  lirica,  setenta 
e  cinco  por  cento  de  Hugiienotes !  Ora  eu  acho 
preferível  ouvir  as  operas  que  mais  me  agradem, 
a  ouvir  aquellas  que  mais  agradem  ao  empre- 
zario ...» 

—  «Joaquim  do  Amaral,  o  teu  caso  é  outro  ! 
Não  se  trata  de  saber  se  a  opera  é  sempre  a 
mesma,  nem  se  a  empreza  te  intruja.  Quem  tem 
uma  cadeira  em  São  Bento  precisa  ter  uma  ca- 
deira em  São  Carlos.  E  assim  como  para  se  es- 
tar em  São  Bento  o  que  menos  importa  é  fazer 
boa  politica,  assim  para  frequentar  São  Carlos 
o  que  menos  importa  é  que  seja  boa  a  musica. . . 
Depois,  quem  não  tem  uma  idéa  para  apresen 
tar  no  Parlamento,  tem  sempre  uma  casaca  para 
exhibir  na  Opera ;  e  uma  boa  casaca  é  já,  e  só 
por  si,  uma  excellente  recommendação!» 

Risonhamente,  e  com  affavel  malicia,  declarei 
a  Fausto  que  o  achava  insupportavel.  Parecia-me 
uma  personagem  deslocada  do  theatro  do  Du- 
mas filho,  com  a  incumbência  de  animar  o  dia- 


A   RUA  DO   OIRO 


85 


logo  d'e.ssa  comedia  em  que  eu  me  via  mettido, 
fazendo  frases  á  minha  custa...  Que  fim  le- 
vara então  o  meu  Fausto,  aquelle  grande,  e  são, 
e  incorruptível  Fausto  da  Couraça  dos  Apósto- 
los, inimigo  rispido  de  todas  as  convenções  e  de 
todos  os  paradoxos  ? ! 

A  carruagem  parou. 

Fausto  abriu  a  portinhola,  desceu,  foi  tocar 
no  botão  de  uma  campainha  á  porta  da  casa 
que  naquella  rua  (que  era  a  Rua  do  Salitre)  ti- 
nha o  numero  24b. 

Não  teria  demora.  Apenas  entregar  uma  en- 
commenda,  fazer  uma  pergunta,  e  mais  nada. 
Cinco  minutos,  Amaral,  só  cinco  minutos  I 

Um  creado  de  gravata  branca  veiu  abrir.  E 
percebi  que  Fausto  perguntava  se  a  Senhora  D. 
Claudia  estava  em  casa...  Entrou,  fechou-se 
outra  vez  a  porta,  e  cu  esperei,  esperei,  fartei-me 
de  esperar. 

Quando  me  parecia  que  já  era  de  mais  e  olhei 
o  relógio,  tinha  passado  meia  hora.  Eram  cinco 
e  vinte!  Receei  não  chegar  ao  Hotel  a  horas  de 
jantar. . . 

Mas  Fausto  apparecia  nesse  mesmo  instante, 
todo  açodado : 

—  «O'  menino,  perdoa  !  Não  foi  minha  a  cul- 
pa..  . » 

A   culpa   fora  de  D.  Claudia,  que  o  detivera 


86  A  RUA  DO   OIRO 

todo  esse  tempo,  com  mil  perguntas,  mil  re- 
commendações,  mil  coisas;  e  não  o  deixara  sahir 
antes,  apesar  de  saber  que  elle  tinha  alguém  a 
espera-lo,  era  baixo,  no  meio  da  rua.  Era  uma 
seca,  uma  verdadeira  sarna!  E  depois,  menino, 
absorvente,  despótica,  absoluta,  quasi  tirannica! 
Irra,  que  era  demais ! 

Pois  sim.  Podia  elle  ter  carradas  de  razão. 
Mas  eu  é  que  não  sabia  quem  era  D.  Claudia. 

—  a  O  quê,  Amaral?  Pois  tu  não  sabes  quem 
é  a  D.  Claudia  ?  Tu  nunca  ouviste  falar  da  illus- 
tre  D.  Claudia?  Mas  isso  é  o  mesmo  que  não 
saber  quem  foi  Cleópatra,  ou  Agripina !  O  que 
sabes  tu,  afinal,  meu  desgraçado  amigo,  da 
eterna  rotação  da  Terra  em  volta  do  grande 
Sol  ?» 

Pois  nada  sabia,  não.  E  era  eu,  agora,  que 
lhe  pedia  desculpa...  Elle  tomava,  porém,  so- 
bre si,  e  de  motu-proprio,  o  bello  encargo  de 
ser  meu  farol  e  meu  guia,  meu  roteiro  e  meu 
elucidário.  Onde  eu  não  soubesse,  que  lhe  per- 
guntasse I  Não  sabendo  quem  era  D.  Claudia, 
acceitava  o  favor,  e  perguntava. . . 

Vim  então  no  conhecimento  de  que  essa  D. 
Claudia,  essa  «sarna  de  D.  Claudia»  fora  a  im- 
pulsora e  era  hoje  a  chefe  do  (para  mim  igno- 
rado) movimento  de  propaganda  feminista  que 
se  fazia  em  Lisboa,  á  semelhança  das  grandes 


A  RUA  DO   OIRO  87 

capitães,  com  o  complicado  e  perigoso  fim  de 
obter  a  declaração  dos  Direitos  da  Mulher,  como 
consequência  lógica  da  declaração  dos  Direitos 
do  Homem  I 

Nem  eu,  nem  Fausto  — nenhum  de  nós  sabia, 
a  par  d' essa  prerogativa  máxima  que  a  mulher 
moderna  se  arrogava,  o  que  viria  a  ser  de  tudo 
aquillo  a  que,  até  então,  nós  chamávamos,  tal- 
vez com  demasiada  vaidade  —  os  Direitos  do 
Homem !  Tanto  se  pregara  que  a  causa  da  mu- 
lher era  a  grande  causa  do  século ;  tanto  se  dis- 
sera que  o  homem  era  a  força,  e  a  mulher  a 
graça ;  tanto  se  repetira  que  a  escravidão  das 
Evas  se  tornara  indigna  dos  benévolos  Adães  — 
que  as  coisas  tinham  chegado  ao  ponto  de  rebu- 
çado em  que  eu  as  vinha  encontrar. 

Na  discussão  muito  acesa  dos  doutrinários 
modernos,  entre  Stuart  Mill  (que  queria  a  mulher 
emancipada  do  seu  triste  papel  de  serva,  ou  da 
sua  pouco  invejável  situação  de  odalisca)  e  Scho- 
penhauer  (que,  ao  contrario  do  seu  confrade  in- 
glês, apenas  concedia  á  mulher,  e  quasi  que  por 
muito  favor,  as  funcçÕes  domesticas,  a  sujeição 
e  o  trabalho  no  interior  da  casa)  vencera  Stuart 
Mill.  A  escrava  fizera-se  senhora :  Senhora  D. 
Claudia...  A  graça  alargara  com  sorrisos  as 
suas  cadeias  ;  a  fascinação  fizera  cahir  a  seus 
pés  os  seus  dominadores. 


88  A  RUA  DO  OIRO 

Os  legisladores  começaram  então  a  preoccu- 
par-se  com  o  destino  da  mulher  nas  suas  condi- 
ções civis ;  os  pedagogistas  procuraram  mclho- 
rar-lhe  as  condições  de  instrucção  ;  os  economis- 
tas alargaram-lhe  as  condições  industriaes  \  os 
filósofos  acabaram  de  encher-lhe  o  cérebro 
de  minhocas  ;  e  assim  se  viu  a  mulher  açambar- 
car todas  as  profissões  e  todos  os  ideaes  do 
homem. 

Ella  foi,  definitivamente,  tudo  quanto  quiz 
ser.  Ella  foi  advogado,  ella  foi  medico,  ella  foi 
amanuense.  Ella  foi  guarda  livros,  ella  foi  guarda- 
freios,  ella  foi  guarda-fios.  Ella  foi  telegrafista, 
ella  foi  ciclista,  ella  foi  organista. 

Ella  vestiu  calças  e  usou  ceroulas.  Ella  fumou 
de  cachimbo  e  poz  chapéu  de  coco.  Ella  tocou 
pratos  e  foi  clarinete. 

Ella  fez  comícios,  ella  fez  congressos,  ella  fez 
desordens. 

Para  alinhavar  discursos,  ella  deixou  de  apon- 
toar meias ;  para  fazer  frases,  ella.  deixou  de  ter 
filhos. 

Seccaram-se-lhe  os  peitos,  ccrraram-se-lhe  os 
buracos  para  os  brincos,  cresceram  lhe  pellos 
na  barba  e  cabellos  no  coração. 

Em  presença  d'esta  revolução,  attonito,  o  ho- 
mem  nem  pensara  em  reagir.  Conformara-se, 
tivera  ao  menos  o   critério  de  acceitar  sem  re- 


A  RUA  DO   OIRO  8g 

paro  uma  situação  que  tinha  preparado  pelas 
próprias  mãos,  submettera-se. 

Quando  a  mulher  veiu  para  a  rua,  metteu-se 
elle  em  casa.  E  varreu  a  casa,  limpou  o  pó,  la- 
vou as  vidraças,  sacudiu  os  tapetes,  fez  a  cama, 
despejou  a  bacia,  chamou  a  varina  á  escada, 
bateu  as  palmas  da  janella  ao  carvoeiro,  acen- 
deu o  lume,  poz  a  panella  a  geito,  abanou,  aba- 
nou, abanou. 

Foi,  depois,  sentar  se  á  machina  e  coseu,  co- 
seu a  sua  mágua  comsigo  mesmo,  silenciosa 
Singer.  Bordou  a  retroz,  bordou  a  lãs,  bordou 
a  missanga.  Passou  a  roupa  a  ferro,  escovou  as 
botas,  deitou  camfora  nas  roupas. 

Depois,  foi  pôr  a  meza ;  e  quando  tudo  eslava 
prompto,  antes  que  a  senhora  tivesse  voltado 
para  casa,  teve  elle  tempo  ainda  de  conceber 
um  filho.  A  senhora,  quando  voltou,  era  pae  I 
E  elle  foi  depois,  bondoso  e  amoravel,  o  verda- 
deiro modelo  das  mães ...  Só  isto  o  salvava,  e 
o  desculpava,  de  todo  o  seu  descuido  e  de  toda 
a  sua  ignominia  I 

Tudo  aquillo  que  d"antes  constituía  a  feição 
simpathica  e  nobre  da  missão  da  mulher,  e  lhe 
dava  um  risonho  realce  ao  lado  do  esforço  e  do 
sacrifício  do  homerS,  completando-se  ambos  na 
missão  commum,  era  uma  coisa  que  passara  de 
moda,  como  a  crinoline.  Os  Códigos  modernos, 


go  A  RUA  DO  OIRO 

querendo  tudo  aquilatar  segundo  a  melhor  fi- 
losofia da  razão,  haviam  operado  uma  revolução 
assustadora,  sanccionando  conquistas  pavorosas 
da  egualdade  civil  dos  sexos. 

Obtida  a  conquista  da  egualdade  civil,  cami- 
nhava-se  já,  de  fronte  alta,  para  a  conquista  da 
egualdade  politica. 

A  mulher  fora  assim  arrebatada  ao  meio 
em  que  a  sua  dedicação  enchia  de  alegrias 
doces  a  vida  dos  que  ella  amava  —  irmãos, 
pães,  esposo  e  filhos,  quando  toda  ella  se  oc- 
cupava  nas  mil  e  uma  applicações  amoraveis 
da  sua  actividade,  bondosa  de  sua  Índole,  con- 
tente do  seu  destino,  vivendo  para  todos  esses 
pequeninos  sacrificios  ignorados  de  que  se  com- 
põe a  vida  de  uma  mulher  dedicada  :  sacrifício 
do  seu  tempo,  dos  seus  gostos,  da  sua  pessoa  ^ 
alimentando  esse  terno,  luminoso  poema  do  si- 
lencio do  lar,  das  escolas,  dos  hospitaes,  onde 
ella,  mãe,  educadora,  enfermeira,  inteiramente 
se  consagrava  ao  bera-estar  dos  outros,  numa 
lenta  e  benéfica  infiltração  de  bondade,  de  doci- 
lidade, de  meiguice...  A  maternidade  perdera 
os  seus  doces  encantos  de  protecção,  de  vigilân- 
cia, de  carinho,  em  volta  de  uma  pequenina 
creatura  a  quem  era  preciso  desenvolver  o  corpo, 
formar  o  coração,  incutir  o  caracter,  pelo  leite, 
pela  palavra,  pelo  exemplo  ;  e  ficara  sendo,  re- 


A  RUA  DO  OIRO  QI 

pulsivamente,  um  longo  e  doloroso  trabalho  fisio- 
lógico . . . 

Indo  dos  pequeninos  sacrifícios  aos  grandes, 
aos  ruidosos  sacrifícios,  que  sempre  dotaram  de 
mulheres  celebres  a  historia  de  todos  os  povos, 
até  esses  eram  amesquinhados,  quasi  mettidos 
a  ridiculo,  pelo  movimento  empolgante  das  re- 
centes idéas,  que  arbitravam  á  mulher  uma 
grande  força  e  uma  grande  importância,  mas 
uma  força  e  uma  importância  toda  de  ordem 
puramente  moral,  apoiadas  só  na  Opinião  tole- 
rante dos  homens. 

E  só  neste  capitulo,  que  formosa  era,  e  que 
arrogante,  a  tradicção  das  nossas  guerreiras  e 
ardilosas  patrícias  I 

Ahi  tínhamos,  por  exemplo,  aquella  Deusadeu 
Martins,  merecedora  de  que  a  sua  municipali- 
dade adoptasse  por  brazão  uma  mulher  —  que 
fora  ella  —  sobre  as  ameias  de  uma  torre,  com 
dois  pães  nas  mãos,  e  em  posição  de  os  arre- 
messar aos  inimigos.  Exhausta  de  mantimentos, 
ia  a  praça  de  Monsão  render-se  pela  fome.  E 
que  ideou  a  portuguesinha  valente?  De  uns  res- 
tos de  farinha  fez  aquelles  pães,  trepou  á  mu- 
ralha, e  atirou-os  aos  sitiantes,  bradando  que 
havia  pão  dentro  d^  praça  para  dar  e  ven. 
der. . . 

E  a  nossa  Brites  de  Almeida,  a  graciosa  pa- 


V 


i-,LO-'-^ii  ■ 


93  A  RUA   DO  OIRO 

deira,  que  amassara  dentro  de  um  forno  alguns 
castelhanos  fugitivos  ? 

E  o  caso  de  Margarida  de  Abreu,  apunha- 
lando o  rosto  de  um  cavalheiro  que  a  ultrajara  ? 

E  aquellas  que  no  memorável  cerco  de  Diu 
formavam  um  batalhão,  e  acarretavam  pedras, 
e  levavam  os  aprestes  necessários  ao  fogo,  e  ar- 
remessavam contra  os  inimigos  tudo  quanto  lhes 
podia  causar  damno,  «sempre  promptas  e  op- 
portunas  ? » 

A  perturbação  que  esse  movimento  feminista 
vinha  trazer  á  doçura  dos  nossos  costumes,  ao 
socego  dos  nossos  lares,  ao  regalo  das  nossas 
rotinas,  ganhava  terreno  sobre  o  sentimento  na- 
cional, sempre  propenso  á  benevolência,  á  fan- 
tasia e  á  galhofa. 

Esse  golpe  de  audácia  que  a  mulher  portu- 
guesa, a  nossa  querida  mulhersinha  portuguesa, 
tão  recatada,  tão  séria,  tão  bananinha,  e  tão 
boa  filha,  tão  boa  mãe,  tão  boa  dona  de  casa, 
vibrara  na  situação  de  invejável  garantia  que 
disfructava  —  tinha   assarapantado  o  sexo  forte. 

Ella  queria  ser  eleitora  e  queria  ser  ele- 
gível ;  queria  ser  deputada  e  queria  ser  ministra^ 
queria  ser  administradora  e  queria  ser  juiza. 
Mas  em  vez  de  atroar  os  ares  com  um  grande 
grito  de  guerra ;  e  em  vez  de  pegar  em  armas, 
em  pedras  e  cm  pás  do  forno  ;  e  em  vez  de  vir 


A  RUA  DO  OIRO  çS 

para  a  rua,  de  braço  arregaçado,  cabellos  des- 
grenhados, e  o  peito  aberto  ás  balas,  disposta  á 
renhida  lucta  que  bem  sabia  ter  de  travar  para 
obter  a  conquista  dos  seus  direitos  politicos  — 
a  lambisgóia  traçara  outro  plano,  lançara  mão 
de  outras  armas,  gizara  outros  ardis. 

Para  desarmar  os  exércitos,  fundara  a  Liga 
da  Paz.  Para  reunir  e  concentrar  energias, 
creara  a  Associação.  Para  acirrar  os  exaltados, 
annunciara  o  Meeting.  Para  estimular  os  sim- 
ples, abrira  a  Conferencia.  Para  viciar  a  atmos- 
fera, lançara  o  Jornal.  Para  subjugar  os  re- 
beldes, atirara-se  ao  Namoro.  Para  chamar  a 
attenção  dos  indifferentes,  emprehendera  a  Co- 
cega !  E,  finalmente,  para  melhor  trabalhar,  in- 
trigar, agitar,  e  ganhar  a  confiança  dos  gover- 
nos, mettera-se  na  Politica. 

Neste  afan  de  disputar  ao  homem  todas  as 
funcções  da  vida  social,  e  para  isso  de  peito 
feito  a  empregar  todos  os  meios,  todos  os  re- 
cursos, todos  os  expedientes,  a  mulher  portu- 
guesa facilmente  encontrara  do  seu  lado  todos 
os  grandes  pensadores,  todos  os  grandes  filó- 
sofos, todos  os  grandes  pedagogos,  todos  os 
grandes  economistas,  todos  os  grandes  publi- 
cistas, todos  os  grandes  oradores. 

Fizera-se  um  movimento  poderoso  de  vulga- 
risação  das  novas  doutrinas,  todo  um  apostolado 


94  A  RUA  DO  OIRO 

se  erguera  pregando  a  bella  causa,  pozera-se 
em  acção  uma  claque  enthusiastica  applaudindo 
todos  os  dispauterios  que  a  propaganda  femi- 
nista fazia  circular,  já  pelo  artigo,  já  pelo  rela- 
tório, já  pelo  discurso. 

Quando  chegou  o  momento  de  passar  da 
theoria  á  pratica,  e  das  palavras  aos  factos,  a 
mulher  portuguesa,  a  nossa  querida  mulhersi- 
nha  portuguesa,  que  afinal  não  era  tão  simples 
como  se  suppunha,  passou  o  pé  aos  pensadores 
e  aos  filósofos,  aos  pedagogos  e  aos  econo- 
mistas, aos  publicistas  e  aos  oradores  —  e  lan- 
çou-se  nos  braços  dos  ministros. 

Ora  os  ministros  são  homens,  para  determi- 
nados effeitos,  como  os  outros  homens.  E  no  mo- 
mento em  que  eu  chegava  a  Lisboa,  e  entrava 
na  politica,  a  mulher  do  meu  paiz,  tendo  subju- 
gado os  ministros  do  meu  paiz,  convertia  em 
leis  todos  os  seus  projectos. 

— «Já  tu  vês,  dizia-me  Fausto,  que  não  po- 
dias chegar  em  melhor  occasião.  E'  claro  que  o 
bom  jogo  vae  todo  para  os  ministros,  que  levam 
as  reformas  á  Gamara.  Mas  somos  nós  que  vo- 
tamos as  reformas,  e,  por  tabeliã,  sempre  al- 
guma coisa  nos  toca ...» 

Mettido  na  commissão  da  reforma  do  Código, 
achava-me  eu,  sem  o  saber,  ao  serviço  de  D. 
Claudia,  por  amor  de  quem  se  tratava  de  re- 


A  RUA  DO  OIRO  gS 

formar  o  Código.  Tudo  isso  era,  porém,  um 
complicado  enredo  que  levava  muito  tempo  a 
contar,  e  ficava  para  depois. 

Arranjasse  eu  uma  sobrecasaca  contemporâ- 
nea, folheasse  alguns  capítulos  da  Ai^te  de  vi- 
ver na  sociedade,  que  adeantava  já  muito  ao 
Manual  da  civilidade  do  João  Félix  Pereira,  e 
quando  estivesse  prompto  que  lh'o  dissesse, 
para  elle  me  levar  a  casa  de  D.  Claudia,  e 
apresentar-me,  lançar-me. . . 

Chegávamos  ao  Hotel.  Já  não  chuviscava,  o 
céo  aclarara  um  pouco,  havia  mais  gente  nas 
ruas.  A'  porta  do  Borges,  aguardando  o  toque 
da  sineta  para  o  jantar,  encontrámos  o  Poças. 

Defronte  do  Hotel  andava  em  obras  a  cana- 
lisação  do  gaz,  e  fora  lançada  uma  prancha  de 
madeira  sobre  a  valia  aberta  para  dar  passagem 
de  um  lado  ao  outro  lado  da  rua.  E  como  nos 
Martyres  houvesse  lausperenne,  as  pessoas  de- 
votas que  sabiam  da  egreja  e  vinham  para  cima, 
chegavam  ali  e  atravessavam  a  prancha.  O  chão 
revolvido  e  a  chuva  que  cahira  tinham  espapa- 
çado  um  lamaçal  naquelle  ponto  de  maior  pas- 
sagem ;  e  as  mulheres,  resguardando  da  lama  a 
roda  dos  vestidos  e  os  folhos  das  saias  de  bai- 
xo, que  arrepanhavam  em  fru-frus,  mostravam 
muito  a  perna. 

Todo  embebido  no  exame  d'esse  mostruário, 


96  A  RUA  DO  OIRO 

e  perseguindo  com  o  olhar  um  certo  tornoselo 
que   já   ia    longe,   Poças   nem  dera  pela  nossa 
aproximação. 
Da  portinhola  do  coupé,  Fausto  gritou-lhe: 
—  «O'  Poças,  guarda  castidade  I» 
E   só   então    é  que  o  Poças  nos  viu,  e  sahiu 
ao  passeio  para  nos  vir  falar. 

Como   não   houvera   Gamaras,  aproveitara  a 

tarde  para  dar  uma  \  olta ;  mas  o  tempo  trans- 

tornara-se,  não  havia  mulheres  na  rua.  Apenas 

agora,  naquella  estiagem,  appareciam  algumas. 

— iMas  poucas,  e  uns  estafermos!» 


IV 


A  chuva  de  mólha-tolos,  que  cahia  sobre  Lis. 
boa  desde  a  segunda-feira  de  Entrudo,  envol- 
vendo as  collinas  da  cidade  num  panno  de  suja 
gaze,  e  cobrindo  as  casas  da  Baixa  de  uma 
humidade  viscosa,  a  escorrer  dos  telhados  como 
uma  baba,  resolvera-se  por  fim  numa  tremenda 
carga  de  agua  que  durara  dois  dias  sem  abran- 
dar por  instantes,  precipitando  pelo  Chiado 
uma  enxurrada  ruidosa  que  tudo  varria,  e  gal- 
gava em  catadupas  alterosas. 

Fora  uma  providencia,  pois  que  o  cheiro  nau- 
s':;abundo  dos  tremoços,  que  a  fina  flor  da  Aris- 
tocracia despejara  das  janellas  do  Turf  sobre 
os  transeuntes,  desde  o  sabbado  gordo,  e  que 
revestia  o  passeio  de  uma  camada  espessa,  fer- 
mentando, era  um  fedor  que  invadia  tudo,  in- 

7 


g8  A  RUA  DO  OIRO 

supportavel,  e  já  chegara  ao  meu  quarto,  que 
todavia  não  ficava  a  uma  pequena  altitude  1 

Poças  e  eu  não  nos  tinhamos  atrevido  a  sahir 
do  Hotel  durante  esses  dois  dias,  que  já  julgá- 
vamos não  terem  fim,  e  me  lembravam  o  Dilu- 
vio universal. 

—  «Outra  vez  universal,  não  creio...  dizia 
Poças.  Isso  foi  tempo !  Hoje,  se  Deus  pensasse 
em  decretar  de  novo  o  exterminio  da  espécie 
humana,  não  o  faria  de  animo  leve,  como  então. 
A.  moderna  estatística  das  populações  offerecer- 
Ihe-ia  motivo  para  muito  meditar  e  para  muito 
hesitar.  Ha  uma  tendência  assustadora  para  o 
decrescimento ;  e  se  as  coisas  devessem  passar- 
se,  em  caso  d'um  outro  diluvio,  como  se  pas- 
saram no  primeiro,  não  se  afigure  a  Vossa  Ex- 
cellencia  que  seria  bastante  metter  numa  arca 
apenas  um  casal  de  cada  espécie  para  resistir 
aos  destroços  do  grande  cataclismo  .  .  D'uma 
espécie,  pelo  menos,  sei  eu  em  que  um  casal, 
só  por  si,  não  seria  bastante ...» 

— «Que  espécie  é  essa, ó  senhor  Poças?»  quiz 
eu  saber,  intrigado. 

—  «E'  a  espécie  humana  de  Lisboa.  Está  ave- 
riguado. Para  a  propagação  d'esta  espécie,  um 
casal,  isto  a  que  se  chama  em  linguagem  jurí- 
dica, marido  e  mulher,  não  offerece  garantia. 
E'   preciso  que  haja  sempre  um  marido  sup- 


A  RUA  DO  0180  99 

plente   —  para    as    necessidades    bíblicas  ...» 

Achei  forte.  Poças  achou  mais  forte  a  pan- 
cada de  agua  que  nesse  momento  batia  no  te- 
lhado, com  estrondo,  revolvendo  as  telhas. 

Olhámos  para  cima,  instinctivamente,  num 
receio  de  que  o  tecto  se  fendesse,  e  nos  despe- 
jasse no  quarto  a  tempestade.  Fora,  nas  ruas, 
o  vendaval  soprava  e  assobiava.  De  vez  em 
quando,  alguma  vidraça,  sacudida,  estilhaçava- 
se,  e  ouviase  o  tlintar  dos  cacos  na  calçada.  . . 

Para  aproveitar  o  tempo,  comecei  a  pôr  em 
ordem  os  meus  papeis  e  os  meus  livros. 

Durante  a  minha  estada  na  Ilha  depois  da  for- 
matura, e  nos  largos  intervallos  que  a  fama  do 
Doutor  Tarquinio  abria,  como  largas  brechas, 
na  minha  advocacia,  sempre  desviando  para  elle 
as  melhores  causas,  eu  habituara-me  ás  longas 
e  meditadas  leituras,  tendo  principiado  por  de- 
vorar toda  a  livraria  do  Barão  da  Terra-Chá, 
que  m'a  facultara,  e  que  era  vasta  e  escolhida; 
passando  depois  á  Bibliotheca  da  Camará,  enri- 
quecida com  a  herança  de  todos  os  livros  de 
José  Silvestre  Ribeiro ;  embrenhando-me  até  no 
Fios  Santorimi  da  Tia  Genoveva ;  e  acabando 
na  coUecção  do  Diário  das  Camarás  pertencente 
ao  Pompeu,  que  a  mandara  encadernar  em  ve- 
ludo azul  com  fechos  e  cantos  de  prata,  como 
livros   santos,   e   que    «só  por  ser  para  mim»  a 


lOO  A  RUA  DO  OIRO 

deixava   sahir   de  casa,  um  tomo  por  cada  vez. 

Depois,  quando  já  não  havia  na  Ilha  um  hvro 
que  eu  não  tivesse  lido,  incluindo  o  livro  de  ver- 
sos do  João  Hermcto,  árcade,  que  m'o  levara  a 
casa  em  mão  própria,  com  dedicatória  passada 
a  limpo  por  a  filha,  que  tinha  uma  lettra  magni- 
fica, toda  em  grossos  e  finos  —  entrei  a  fazer 
encommendas  ruinosas  á  Livraria  do  Gil,  que 
por  cada  paquete  recebia  de  Lisboa,  e  me  re- 
mettia  para  o  escriptorio,  dúzias  e  dúzias  de 
volumes. 

Frequentando  pouco  o  Club,  pouco  me  de- 
morando na  botica  do  Cunha,  por  onde  fazia 
caminho  para  o  Club,  eu  recolhia  cedo  e 
deitava-me  habitualmente  tarde,  e  assim  enve- 
redei e  vagueei,  durante  quatro  annos,  nas  Lit- 
teraturas  cultas  e  nas  Litteraturas  populares ; 
nas  Religiões  e  nas  Vidas  dos  Santos ;  na  Theo- 
logia,  na  Filosofia  e  na  Historia  da  Filoso- 
fia ;  na  Moral,  na  Economia,  no  Direito ;  nas 
Sciencias  fisicas  Je  nas  Sciencias  naturaes  ;  na 
Geografia  e  nas  Viajens;  na  Historia  Universal 
e  na  Historia  Pátria . . . 

Inspirado  no  moderno  e  fecundo  methodo  da 
observação  e  da  experiência,  acompanhei  de 
longe,  mas  tanto  quanto  me  foi  possível,  o  mo- 
vimento catapultuoso  das  sciencias  novas,  que 
por  todos  os  lados  e  em  todas  as  direcções  re- 


A  RUA  DO   OIRO  lOI 

colhiam  e  ordenavam  os  grandes  factos  positi- 
vos, comparando-os  e  classificando-os,  e  d'elles 
tirando  todas  as  claras  consequências. 

Conheci  então,  nesse  campo  vasto  e  ubérrimo, 
resultados  maravilhosos.  Problemas  que  parecia 
deverem  eternamente  escapar  ao  conhecimento 
do  homem,  eram  abordados,  profundados,  e  em 
grande  parte  resolvidos  luminosamente ;  e  todo 
um  immenso  thesouro  de  factos  novos  não  só 
renovava  as  sciencias  já  conhecidas,  mas  consti- 
tuía matéria  de  outras  novas  sciencias  de  em- 
polgante interesse. 

A  Archeologia  prehistorica  reconquistava,  para 
meu  uso,  na  escavação  paciente  dos  séculos  des- 
apparecidos,  antepassados  de  que  eu  nem  se- 
quer suspeitava;  e  para  meu  uso  reconstituía,  á 
força  de  descobertas,  as  industrias,  os  costumes, 
os  tipos  do  homem  primitivo,  apenas  mal  liber- 
tado ainda  da  animalidade. 
'^  A  Anthropologia  debuxava-me  a  historia  na- 
tural do  grupo  humano  no  tempo  e  no  espaço, 
convidava-me  a  segui-lo  nas  suas  evoluções  or- 
>ganicas,  e  a  estuda-lo  nas  suas  variedades,  nas 
suas  raças  e  nas  suas  espécies,  alumiava-me 
nessas  immensas  questões  da  origem  da  vida, 
da  influencia  dos  meios,  da  hereditariedade, 
dos  cruzamentos,  das  relações  com  os  outros 
grupos  animaes ... 


102  A  RUA  DO  OIRO 

A  Linguistica  explicava -me,  pelo  estudo  com- 
parado dos  idiomas,  as  successivas  formas  da 
linguagem,  analisando  as  e  preparando,  por 
assim  dizer,  toda  uma  historia  do  Pensamento, 
seguida  desde  a  sua  origem  e  através  de  todas 
as  edades. 

A  Mithologia  comparada  dava-me  entrada  no 
rutilante  e  matizado  espectáculo  da  creaçao  dos 
deuses,  ensinava-me  a  classificar  os  mithos, 
permittia-me  estudar  as  leis  da  sua  origem  e  do 
seu  desdobramento  através  das  innumeraveis 
e  pittorescas  formas  religiosas. 

Todas  as  muitas  outras  sciencias  —  a  Bio- 
logia, a  Astronomia,  a  Fisica,  a  Chimica,  a 
Zoologia,  a  Geologia,  a  Geografia,  a  Botânica 
—  eu  as  vi,  sob  a  influencia  do  mesmo  methodo, 
amplificadas,  enriquecidas,  chamadas  a  presta- 
rem-se  um  mutuo  auxilio.  E  essa  influencia  alar- 
gava-se  ás  sciencias  que  a  fantasia  e  o  espirito 
de  sistema  haviam  despojado  de  toda  a  preci- 
são e  de  toda  a  realidade  —  a  Historia,  a  Filo- 
sofia, a  Economia  Politica. . . 

Todas  estas  magnificas  e  surprehendentes 
acquisiçóes  da  livre  investigação,  dispersas  numa 
multidão  de  compêndios,  memorias  e  tratados, 
eu  poderá  condensa-las,  para  meu  uso,  num 
conjuncto  elementar  e  methodico,  obtendo  de 
cada  sábio  a  essência  da  sua  sciencia,  sob  essa 


A  RUA  bO   OIRO  IO 

forma  precisa,  clara  e  accessivel  dos  Manuaes, 
limitado  cada  manual  ao  dominio  em  que  a  com- 
petência do  sábio  me  parecesse  incontestável. 
E  ao  mesmo  tempo  que,  embebido  nestas  cons- 
tantes e  utilitárias  leituras,  mastigando  bem  para 
auxiliar  a  funcção  digestiva,  eu  me  familiarisava 
com  as  conquistas  do  espirito  scientifico  moderno 
e  adquiria  noções  mais  amplas  d'estas  coisas 
que  já  ninguém  hoje  pôde  ignorar  com  decência 
—  Darwinismo,  Atomismo,  Theoria  mecânica 
do  Calor,  Correlação  das  forças  naturaes,  Des- 
cendência do  homem,  Previsão  do  tempo,  Theo- 
rias  cerebraes...  E  sempre,  e  cada  vez  mais? 
eu  considerava  que  era  pela  sciencia  universali- 
sada,  levada  pelos  sábios  a  todas  as  consciên- 
cias, como  quem  fizesse  uma  distribuição  de  ali- 
mento a  domicílios  —  que  a  humanidade  poderia 
pôr  um  termo  á  tremenda  anarchia  intellectual 
do  meu  tempo  I 

Eu  continuava  arrumando  os  meus  papeis  e 
os  meus  livros.  Poças  persistia  no  seu  monó- 
tono e  habitual  passeio,  de  mãos  nas  algibeiras 
das  calças,  dentro  do  limitado  espaço  que  ficava 
livre  entre  a  porta  do  meu  quarto  e  a  janella  do 
lado  do  Chiado.  E  de  cada  vez  que  se  approxi- 
mava  da  janella,  disfarçando,  deitava  olhares 
furtivos,  inquietos,  para  as  janellas  defronte. 

Mas  desde  a  terça-feira  gorda  que  as  cortinas 


104  A  RUA  DO  OIRO 

d'aquellas  janellas  se  conservavam  corridas,  im- 
placavelmente  corridas,  para  desgosto  do  Poças, 
que  não  trauteava,  que  cantava  já,  em  grande 
lamuria,  e  umas  poucas  de  vezes  ao  dia,  imi- 
tando o  Leone,  as  suas  coplas  favoritas  do  Boc- 
cacio : 

A'  janella, 
Minha  bella, 
Corre,  corre, 
Ligeira  gazela  ! 

Toda  a  gente,  no  Borges,  sabia  já  do  namoro, 
que  entretinha  a  mexeriquice  das  creadas  e  di- 
vertia as  hospedas  dos  quartos  que  deitavam 
para  o  Chiado. 

A'  meza  do  Hotel,  ao  almoço  e  ao  jantar,  .as 
piadas  e  as  allusões  ferviam  d'um  lado  e  outro, 
como  uma  fuzilaria  em  volta  de  Liberato  Poças, 
que  fazia  ouvidos  de  mercador,  fingindo  não  per- 
ceber. Umas  meninas  brazileiras,  que  occupa- 
vam  com  a  mamã  os  aposentos  mais  caros  do 
Hotel,  alegres  como  duas  cotias,  e  que  tinham 
começado  a  brincadeira  do  Entrudo  quinze  dias 
antes,  tomavam  o  Poças  á  sua  conta  e  não  havia 
judiaria  que  lhe  não  fizessem,  pregando-lhe  ra- 
bos, pondo-lhe  estalos  tremendos  por  baixo  da 
cadeira,  encharcando-o  com  bisnagas,  despejan- 
do-lhe  no  pescoço  mãos  cheias  de  papel  picado ; 


A  RUA  DO  OIRO 


io5 


e  entre  outras  partidas,  que  já  não  tinham  con- 
to, escreveram-lhe  uma  carta  amorosa  em  nome 
da  vizinha  do  quarto  andar,  e  pagaram  a  um 
creado  para  que,  á  hora  do  jantar,  quando  to- 
dos estivessem  á  meza,  a  fosse  entregar  ao  Po- 
ças, ali  mesmo,  a  ver  a  cara  que  o  Poças  faria. 
E  Poças  cahira  na  ariosca,  como  o  mais  fino 
melro  cae  numa  armadilha. 

A  carta  era  escripta  com  lettra  de  mulher, 
não  havia  duvida,  e  as  baldas  eram  certas.  Fa- 
lava-lhe  do  carinho  que  elle  dava  aos  seus  jacin- 
thos;  pedia-lhe  desculpa  de  que  sem^pre  tão  tarde 
se  abrisse  aquella  janella  a  que  apparecia  alguém 
para  quem  elle  não  era  indifferente  (antes  pelo 
contrario)  mas  a  razão  era  porque  essa  pessoa 
soaria  horrivelmente  de  insomnias,  e  só  também 
muito  tarde,  pelas  madrugadas,  é  que  podia 
conciliar  o  somno  ;  fazia  amáveis  referencias  aos 
seus  dotes  de  orador  parlamentar,  e  ao  seu 
bello  es,->irito  de  piadista  insigne.  E  acabava  por 
dizer  que,  nessa  noite  de  sabbado  gordo,  elle 
encontraria  —  se  quizesse... —  no  baile  de  D. 
Maria,  um  certo  dominó  preto,  «a  quem  seria 
grato  poder  fazer  com  o  senhor  Poças  um  tour 
de  valse ...» 

Tão  embebido  andava  elle  com  aquelle  na- 
moro, que  nem  sequer  lhe  passara  pek  idéa  a 
suspeita  de  uma  brincadeira  de  entrudo. 


106  A    RUA   DO    OIRO 

Poças,  que  de  costume  fazia  todas  as  honras 
á  cozinha  do  Hotel,  servindo-se  abundante- 
mente de  todos  os  pratos  que  viessem  á  meza, 
tendo  merecido  mesmo  a  fama  de  «comilão  do 
Borges»  por  analogia  patusca  com  o  «comilão  de 
Almada»,  estando-se  ainda  no  segundo  prato 
quando  essa  carta  lhe  chegou  ás  mãos,  de  pouco 
mais  se  serviu,  e  debicando  apenas,  a  espaços 
lentos,  o  pouco  mais  de  que  se  serviu. . . 

Aquella  inesperada  missiva  tivera  artes  de 
lhe  tirar  o  apetite;  e  quando  veiu  a  travessa  de 
orelheira  de  porco  com  feijão,  de  que  já  havia 
noticia  desde  o  almoço,  noticia  que  Poças  rece- 
bera com  estrondosa  manifestação  de  regosijo. 
Poças  fez-lhe  cara  e  arredou  a  travessa. 

A  mãe  das  meninas  brazileiras,  que  lhe  ficava 
ao  lado,  e  que  tanto  reparava,- das  outras  vezes, 
na  «impossível  vontádi  di  cómêr  qui  sinhôr  Po- 
ças tinha  sempre...  já  viu,  ên?»  — chegara  a 
perguntar-lhe  se  se  sentia  incommodado. 

Um  major  da  Administração  Militar,  que  tinha 
quarto  fora,  e  só  vinha  ao  Hotel  para  comer,  e 
de  facto  só  para  comer,  pois  não  fazia  outra 
coisa  desde  que  se  sentava  até  que  se  levantava 
da  meza,  vendo  que  Poças  não  quizcra  servir-se 
da  orelheira,  desconfiara  do  caso,  e  perguntara- 
Ihe  ao  ouvido,  emquanto  a  travessa  dava  a  volta 
para  chegar  á  sua  vez  : 


A  RUA  DO    OIRO  IO7 

—  «Foi  alguma  barata  que  Vossa  Excellencia 
encontrou  ?» 

E  como  Poças  lhe  affirmasse  que  não,  o  Ma- 
jor insistia  : 

—  a  Algum  cabello,  talvez  ? . . . » 

E  como  Poças,  já  um  pouco  irritado,  lhe  de- 
clarasse, sob  sua  palavra  de  honra,  que  não  vira 
baratas,  nem  cabellos  na  orelheira  de  porco  com 
feijão,  e  que  se  não  se  servira  fora  apenas  pela 
simples  razão  de  que  não  lhe  apetecera  ser- 
vir-se,  ainda  o  !Major  referira,  cuspinhando  no 
prato  caroços  de  azeitonas,  que  já  uma  vez  en- 
contrara, no  fundo  de  uma  molheira  de  coelho 
á  caçadora,  a  luneta  da  dona  da  casa  de  hospe- 
des onde  semelhante  tragedia  se  passava ;  e  que, 
por  isso,  e  desde  esse  dia,  já  não  havia  surpre- 
zas  para  elle  no  fundo  dos  guizados.  Mas  tinha 
um  grande  nojo  de  cabellos  e  baratas  na  co- 
mida, e  por  isso  perguntava. .  . 

O  mais  importante,  porém,  naquella  partida 
de  entrudo,  era  averiguar  se  Liberato  Poças  ac- 
cedera  ao  convite  e  correra  á  entrevista  com  o 
dominó  preto,  para  fazer- lhe  depois  uma  ruidosa 
montaria. 

Ora  quiz  o  acaso,  que  é  um  grande  brinca- 
lhão quando  lhe  dá  na  veneta  para  o  ser,  que 
fosse  eu  quem  levasse  ás  meninas  brazileiras  a 
alegre  noticia  de  que  o  Poças  não  só  estivera  no 


I08  A  RUA  DO  OIRO 

baile  onde  lhe  fora  marcada  a  entrevista,  mas 
andara  mettido  numa  aventura  de  mil  diabos, 
de  que  me  fez  confidente  ao  outro  dia. 

—  «Imagine  o  meu  amigo,  dizia-me  Poças, 
que  eu  sabia  poder  encontrar  hontem  no  baile 
de  mascaras  de  Dona  Maria  uma  certa  senhora, 
a  quem  não  sou  indifferente,  mas  com  quem  não 
foi  ainda  possível  encontrar-me  face  a  face, 
para  lhe  dizer  meia  dúzia  d' estas  coisas  que  to- 
das as  mulheres  gostam  de  ouvir,  e  a  que  quasi 
todas  ellas  cedem,  se  a  gente  sabe  dizer-lh'as  e 
a  occasião  se  presta...  A  occasião  não  podia 
ser  melhor,  e,  quanto  ao  resto,  ficava  isso  por 
rainha  conta,  pois  não  é  debalde  que  uma  pes- 
soa, chegada  á  minha  edade,  tem  dedicado  me- 
tade da  sua  vida  ao  estudo  aturado  da  psicho- 
logia  feminina. . .  Fui,  e  procurei.  Essa  senhora, 
sabia  eu,  devia  vestir  um  dominó  preto.  Para  si- 
gnal,  era  mal  escolhido,  valha  a  verdade,  por- 
que em  todos  os  bailes  de  mascaras  apparecem 
sempre  muitos  dominós  pretos.  E  logo  que  en- 
trei me  appareceu  um  d'elles,  que  me  metteu  o 
braço  e  me  arrastou  na  onda,  começando  por 
me  dizer:  «Ainda  bem  que  vieste  !»  Cahi  logo 
como  um  pato,  e  não  mais  o  larguei,  e  com  elle 
valsei,  vilipendiosamente,  até  de  madrugada  ! 
Depois,  meu  amigo,  que  seio  !  e  que  perfume 
que   me   vinha   d'esse   seio  I   Por  fim,  já  quasi 


A  RUA  DO  OIRO  lOQ 

sem  poder  comigo  de  tanto  valsar,  lembrei  que 
fossemos  comer  alguma  coisa,  confortar  nos, 
para  maior  empreza  ;  e  fugimos  do  baile,  met- 
temo-nos  num  coupé,  fomos  para  um  gabinete 
do  Tavares...  Veiu  uma  sopa  de  queijo,  que 
estava  deliciosa,  vieram  camarões,  veiu  tudo  ! 
Mas  o  meu  dominó,  que  já  absorvera  dois  pra- 
tos de  sopa  e  pedira  segunda  dose  de  camarões, 
não  consentia  em  levantar  a  viseira. . .  Três  ve- 
zes lh'o  pedi,  três  vezes  m'o  recusou.  Só  então 
suspeitei  de  que  estava  sendo  victima  de  um  for- 
midável equivoco.  Não  era  aquelle  o  dominó 
preto  que  eu  procurava  no  baile !  Deixara  então 
escapar,'  assim,  e  tão  estupidamente,  o  melhor 
ensejo  da  minha  melhor  aventura  !  E  o  deses- 
pero d'essa  suspeita  e  o  meu  amor  próprio  mal 
ferido,  ter-me-iam  dictado  nesse  momento  uma 
grossa  violência,  se  o  Champagne  me  não  hou- 
vesse lançado  já  num  enternecido  quebranto, 
que  me  deixava  estar  por  tudo. . .  Depois,  se  o 
dominó  preto  que  eu  chamara  para  meu  con- 
viva d'essa  ceia  do  Tavares,  não  era  bem 
aquelle  dominó  preto  que  me  chamava  ao  baile 
do  Theatro  de  Dona  Maria,  era  em  todo  o  caso 
um  dominó  condescendente  em  tudo  o  mais  que 
não  fosse  levantar  a  mascara,  e  nessas  alturas 
não  se  me  dava  já  trocar  uma  aventura  por  ou- 
tra, fosse  ella  qual  fosse. . .  Passei-lhe  um  braço 


lio  A    RUA  DO  OIRO 

em  volta,  inutilisei-lhe  toda  a  resistência,  segu- 
rei bem,  e  com  a  mão  que  me  ficava  livre  ar- 
ranquei-lhe  a  viseira...  Deus  meu,  que  não  sei 
de  nojo  como  o  conte  !. . .  Estava  abraçado  ao 
Melecas,  o  Melecas  do  Phantasma  !  O  que  en- 
tão se  passou  foi  uma  coisa  pavorosa.  Atirei-o, 
de  borco,  para  cima  d'uma  chaise-longue  que 
havia  ali  a  um  canto,  deitei-lhe  esta  mão  ao 
pescoço,  assim  aqui,  com  gana,  levantei-lhe  as 
saias  (vinha  de  saias,  o  malandro  !  e  calças  de 
cambraia  com  muitíssimas  rendas)  e  com  esta 
mão  lhe  ferrei  tantas  e  tão  enérgicas  palmadas 
no  sitio  apropriado,  que  lh'o  deixei  da  côr  dos 
camarões  que  o  maroto  comera  á  minha  custa  !» 

Referindo-me  este  caso  extremamente  alegre, 
e  que  uma  nova  surpreza  me  dava  sobre  os  es- 
cândalos recônditos  da  capital.  Poças  mostra- 
va-se  convencido  ainda  de  que  a  carta  que  lhe 
marcava  a  entrevista  no  baile  devia  ser,  com 
effeito,  da  vizinha  do  Hotel ;  e  se  ella  não  lhe 
apparecera  mais  á  janella  depois  d'aquelle  dia, 
a  culpa  fora  d' esse  viscoso  Melecas,  que  o  des- 
viara, o  intrujara. 

E  o  meu  caro  Poças,  cahindo  então  num  pro- 
fundo desalento,  começou  a  soífrer  secretamente 
do  mal  de  amor. 

Vi-o  mergulhar  nesse  estado  mental  e  físico 
que  Bourget  define,  e  que  tudo  deprime,  tudo 


A  RUA  DO   OIRO  1 1  I 

aniquila  nacreatura  liumana  que  uma  vez  cessou 
de  pensar,  de  sentir,  de  desejar,  e  abandonou 
deveres,  e  esqueceu  ambições,  e  perdeu  hábitos 
—  para  toda  se  dar,  toda  se  votar  á  idéa  fixa 
de  um  outro  ser. . .  E  como  certos  doentes 
muito  apprehensivos,  que  procuram  nos  trata- 
dos confusos  da  pathologia  o  conhecimento  da 
origem,  dos  simptomas  e  da  natureza  da  sua 
doença,  e  um  mórbido  goso  experimentam 
quando  descobrem  que  alguma  indicação  dos 
tratados  bate  certo  com  a  origem,  com  os  sim- 
ptomas e  com  a  natureza  do  seu  mal,  elle  se 
deitou  aos  tratadistas  da  pathologia  do  amor. 

Mas  de  todos  o  que  mais  acirrava  o  seu  mal 
era  Bourget.  E,  segundo  Bourget,  Poças  consi- 
derou-se  em  aiiiôr  ~  um  excliiido. 

Pensando  bem,  recordando  bem  todos  os  in- 
cidentes amorosos  em  que  se  achara  envolvido, 
elle  reconhecia  que  atravessara  já  uma  longa 
vida  árida  e  triste  de  solteirão  sem  esperança, 
e  sem  nunca  ter  visto  atear-se,  ao  contacto  do 
seu  ser  esbraseado,  o  incêndio  calamitoso  d'um 
coração  de  mulher. 

— o  Mas  excluido  porquê  ?  grande  Deus  do 
céo  I . . . »  exclamava,  levantando  para  o  céo,  e 
para  o  grande  Deus  do  céo,  ambos  os  punhos 
cerrados,  num  desespero. 

—  «Talvez  por  íimide{. . . »  aventava  eu,  recor- 


112  A  RUA  DO  OIRO 

dando  as  causas  d'essa  exclusão  irreparável,  tão 
espirituosamente  encontradas  no  manuscripto 
posthumo  de  Cláudio  Larcher. 

E,  para  consolar  o-  Poças,  invocava  a  memo- 
ria desditosa  do  grande  Rousseau,  que  fora 
também  um  timido.  Para  companheiro  de  des- 
graça não  poderia  elle  encontrar  melhor.  Mas  se 
esse  não  lhe  bastava,  e  queria  outro,  ahi  estava 
esse  apaixonado  e  infeliz  Sainte-Beuve,  que  ti- 
nha a  mania  das  cozinheiras  (á  semelhança  do 
próprio  Poças  que  já  me  confessara  ter  a  mania 
das  varinas)  e  ao  qual  se  attribuia  aquelle  dito 
tão  profundo  e  tão  revelador,  em  resposta  a 
alguém  que  lhe  perguntava  o  que  teria  elle  que- 
rido ser,  em  vez  do  grande  pensador  que  era  : 
«Sargento  de  cavallaria  ! . . . » 

Mas  Poças  protestava.  Poças  não  era  um  ti- 
mido. Isso  sim !  Antes  pelo  contrario.  E  logo 
referia  dois  ou  três  casos,  comprovando,  em 
que  arriscara  a  pelle  por  sua  audácia  romântica 
á  Paulo  de  Koch,  andando  de  gatas  por  cima 
de  telhados,  escondendo  se  em  armários  de 
roupa,  escorregando  por  chaminés . . .  Timido 
elle,  isso  sim  ! 

—  «Talvez  por  condição  social...  )>  tornava 
eu  então.  E  citava-lhe  as  conclusões  a  que  tinha 
chegado  aquelle  divertido  psichologo  que  se  com- 
prazia na  estatística  comparad  i  das  probabilida- 


A  RUA  DO  OIRO  1 13 

des  que  cada  individuo  tem  para  triumfar  no 
amor,  segundo  íis  suas  condições  sociaes. . . 

Entre  os  juizes,  os  procuradores,  os  escrivães, 
a  percentagem  dos  felizes  era  apenas  de  cinco 
por  cento ;  entre  os  médicos  e  os  músicos,  dez 
por  cento ;  entre  os  romancistas  e  os  poetas, 
quinze  a  trinta  por  cento ;  entre  os  jornalistas, 
os  tenores,  os  caixeiros  de  modas,  cincoenta, 
sessenta  e  noventa  por  cento  ;  entre  os  actores 
cómicos,  noventa  e  nove  por  cento  I 

Ora  Poças  não  era,  e  ainda  bem  para  elle, 
nem  cómico,  nem  tenor,  nem  poeta.  Poças  era 
legislador ;  e  a  percentagem,  entre  os  legislado- 
res, era  muito  limitada,  tão  limitada  como  para 
os  financeiros  e  para  os  agentes  de  cambio  : 
uns  tristes  dois  por  cento.  Mas  havia  peor,  muito 
peor,  pois  que,  segundo  a  estatística,  a  percen- 
tagem para  os  chefes  de  Estado  era  de  um  — 
por  dez  mil. .  . 

Estas  desgraças  alheias  não  o  consolavam  das 
próprias.  E  a  olhos  visto,  Liberato  Poças  aca- 
brunhava-se,  entristecia,  murchava.  Houve  um 
momento  em  que  deveras  cheguei  a  ter  pena 
d'elle.  Ninguém  diria  que  estava  ali  o  mais  ale- 
gre espirito  de  Portugal  I 

Mas  deixemos  o  Poças  —  como  se  diz  nos  ro- 
mances,  quando  alguma  personagem  começa  a 

8 


114  A  RUA  DO  OIRO 

embaraçar  o  fio  do  enredo,  e  o  auctor  não  acha 
outro  meio  de  se  ver  livre  d'elle.  De  resto,  Po- 
ças, que  entrara  neste  romance  para  animar 
com  a  sua  piada  e  com  o  seu  commentario  as 
passagens  a  que  faltasse  a  graça  natural  dos 
factos,  cahira  numa  infinita  tristeza,  uma  d"essas 
tristezas  que  os  francezes  comparam,  não  sei  bem 
porquê,  á  tristeza  d'um  barrete  de  dormir.  E 
todo  aquelle  que  a  si  próprio  priva  da  alegria 
difficilmente  pôde  deseja-la  aos  outros. 

Ao  temporal  succedera  a  bonança,  como  ao 
Entrudo  se  succedia  a  Quaresma. 

Já  então  eu  começara  a  occupar-me  deveras, 
e  com  grande  afan,  da  vida  parlamentar. 

Aquella  nova  atmosfera  agradava-me,  sobre- 
excitava-me  com  satisfação,  e  pouco  a  pouco 
me  fazia  crer  que  eu  fora  talhado  bem  para 
aquelle  meio,  e  que  teria  errado  a  vocação  se 
persistisse  em  fazer  carreira  pela  advocacia,  na 
Ilha,  disputando  os  clientes  ao  Doutor  Tarquinio. 

A  Camará  era  composta  de  rapazes,  na  maior 
parte  imberbes,  cheios  de  saúde  e  cheios  de  ale- 
gria, mal  contidos  no  seu  logar,  e  em  compos- 
tura, pela  tarracha  do  Regimento.  Via-se  que  o 
sangue  lhes  pulava  nas  veias,  e  que  deviam  fa- 
zer os  máximos  esforços  para  conter  os  ímpetos 
d'uma  mocidade  irrequieta. 

O  Parlamento  prolongava  a  Universidade  ;  ti- 


A  RUA  DO   OIRO  I  I  5 

nha  o  aspecto  d'Lim  outro  curso.  E  ao  passo  que 
o  Abreu  Viegas,  na  presidência,  assumia  a  ca- 
tadura de  um  lente,  podia- se  suppôr  que,  quando 
algum  deputado  fazia  uso  da  palavra,  respondia 
^  uma  lição. 

A  representação  nacional  estava  sendo,  posi- 
tivamente, uma  rapaziada  comedida,  com  boas 
notas,  comportamento  exem|..lar. 

O  Parlamento  era,  com  effeito,  um  outro  cur- 
so, outro  curso  superior  onde  se  professavam 
todas  as  disciplinas  que  constituem  a  formatura 
dos  estadistas  modernos.  E  eu  verifiquei,  não  sem 
um  certo  receio  pela  responsabilidade  que  pe- 
sava sobre  os  meus  hombros  de  deputado  inde- 
pendente, que  essas  disciplinas  eram :  Velhaca- 
ria  e  Calculo  integral.  Filosofia  e  Cinismo,  Prin- 
cipios  de  descaramento  e  Historia,  Economia 
politica  e  Luvas,  Colonisaçao  e  Sindicatos,  Le- 
gislação e  Bancos,  etc,  etc. 

Nas  sessões  da  Camará,  recebiam  os  alum- 
nos  o  ensino  theorico.  Fora  da  Camará,  era-lhes 
ministrado  o  ensino  pratico.  Para  este  fim  se 
convocavam  as  reuniões  da  maioria  e  os  conse- 
lhos de  administração ;  se  creavam  as  direcções 
geraes,  e  os  commissariados  régios  junto  das 
Companhias ;  se  inventavam  as  concessões  no 
Ultramar,  e  os  Tabacos,  e  os  Fósforos,  e  os  Ca- 
minhos de  ferro . , , 


Il6  A  RUA  DO   QIRO 

Quando  se  encerrasse  a  sessão  parlamentar, 
terminaria  o  curso.  E  toda  essa  mocidade  que 
então  se  sentava  nos  bancos  escolares  de  São 
Bento  se  encontraria  apta  para  se  sentar  nas  ca- 
deiras do  poder — bacharéis  formados,  estadis- 
tas feitos. 

Nestas  condições  de  venturosa  precocidade, 
na  certeza  de  tcío  boas  facilidades,  e  na  prom- 
pta  conquista  de  tantas  regalias,  a  mocidade  do 
meu  tempo  entrava  na  vida  publica  cheia  de 
confiança,  cheia  de  alegria,  e  cheia  de  descaro. 

Da  Universidade,  trazia  ella  a  idéa  de  que  o 
bacharelato  era  uma  blague,  a  competência  dos 
lentes  uma  mistificação,  o  ensino  uma  burla. 
O  Parlamento  é  que  era  a  verdadeira  escola.  O 
Orçamento  é  que  era  o  verdadeiro  livro  da  vida. 

Quando  essa  mocidade  assim  preparada,  as- 
sim educada,  e  assim  investida  no  mandato  da 
indifferença  popular,  entrava  no  seio  da  repre- 
sentação nacional,  nenhuma  surpreza  a  espera 
va,  nem  o  menor  sobresalto,  nem  o  mais  leve 
receio.  Se  algum  mais  timorato,  como  eu,  hesi 
tava  um  momento  antes  de  transpor  o  limiar 
d'aquella  porta,  logo  dois  o  agarravam  e  o  em- 
purravam, e  a  esse  empurrão  se  chamava  o  acto 
solemne  de  introduzir  na  sala  o  novo  deputado. 

Ora  a  verdade  era  que  todos  os  novos  depu- 
tados, quando  entravam  na  Gamara,  já  sabiam 


A  RUA  DO   CIRO  I  17 

que  eram  obrigados  a  deixar  á  porta  a  sua  ben- 
gala e  o  seu  decoro. 

Dentro  do  Parlamento,  todas  as  questões 
se  resolviam  ou  pelo  sofisma,  ou  pelo  socco. 
Aquillo  a  que  noutros  tempos  se  chamava,  num 
sentido  figurado  —  a  lucta  parlamentar,  chama- 
va se  agora,  nu  11  sentido  muito  positivo  —  a 
lucta  pela  vida. 

A  eleição  de  um  deputadj  era  um  producto 
de  mecânica. 

Ao  trabalho  preparatório  da  constituição  das 
Cortes  chamava-se  já,  e  com  muita  propriedade 
—  a  montagem  da  machina  eleitoral. 

A  designação  exacta,  o  termo  próprio  ado- 
ptado pelas  Acadenias,  mettido  nos  dicciona- 
rios,  explicado  nas  escolas,  de  toda  essa  com- 
plicada intriga  de  nomeações  e  transferencias? 
de  beneficios  e  promessas,  de  chafarizes  e  es- 
tradas—  era  a  eugi^eiiagem  do  suffragio. 

Quando  se  verificava  a  impossibilidade  de 
conseguir,  por  meio  d'esta  mecânica,  o  resul- 
tado desejado  de  uma  determinada  eleição,  a 
politica  nacional  encontrava  outra  variante.  Onde 
não  podia  applicar  a  mecânica,  empregíiva  a 
culinária.  E  havia  então  o  prato  do  dia  de  elei- 
ções, que  era  o  nacionalissimo  —  carneiro  com 
batatas. 

Algumas  vezes  acontecia,  porém,  que  onde  a 


Il8  A  RUA  DO   OIRO 

mecânica  pouco  ou  nada  poderá,  e  onde  a  cu- 
linária não  muito  mais  avançara,  a  eleição  se 
perdia.  Mas  a  politica  dos  Governos  é  sempre 
fértil  em  expedientes,  quando  se  trata  de  garan- 
tir a  maioria  dos  Parlamentos ;  e  se  a  mecâni- 
ca falhava  e  a  culinária  esturrava,  vencia  por 
fim,  e  infallivelmente,  a  prestidigitação.  Tinha  se 
a  chapelada. 

D'esta  quasi  infinita  variedade  de  processos 
seguros  e  meios  efíicazes  de  fazer  eleições,  nas- 
ciam o  desplante  e  a  firmeza  com  que  se  annun- 
ciava,  muitos  dias  antes  do  acto  eleitoral,  a 
■vinda  ás  Gamaras  do  Pompeu  ou  do  Machado 
da  Botica. 

Candituras  e  accordos,  combinações  e  ma- 
chinações,  tudo  isso  vinha  minuciosamente  con- 
tado, dia  a  dia,  nos  periódicos,  que  para  esta 
reportage  indecente  abriam  secções  especiaes,  e 
ou  de  caso  pensado  por  conveniências,  ou  em 
caso  diverso  pori  nconveniencias,  assim  se  tor- 
navam do  dominio  publico  todos  os  detalhes  da 
estratégia  eleitoral. 

A  liberdade  do  voto  tornara-se  uma  coisa 
desnecessária.  Para  que  queria  o  Povo  a  liber- 
dade de  voto,  se  de  cada  vez  que  pretendesse 
fazer  uso  d'elle  tinha  a  certeza  de  ser  preso? 

Eu  não  sei  já  que  pensador  eminente  disse, 
assoando-se  —  que   a   grande   força  de  uma  na- 


A  RUA  DO  OIRO  IIQ 

cão  c  O  pudor  das  suas  mulheres.  Mas  por  mais 
de  uma  vez  pensei,  no  decurso  d'aquella  sessão 
legislativa  —  que  a  verdadeira  força  de  uma  na- 
ção era  o  impudor  dos  seus  políticos. 

Viciado  na  sua  origem  e  nos  seus  resultados, 
deshonrado  por  toda  a  parte,  o  sistema  parla- 
mentar era  ainda  uma  instituição  de  muita  utili- 
dade e  muito  decorativa.  Cahido  no  descrédito 
publico  muito  embora,  e  foco  de  corrupção,  o 
parlamentarismo  imprimia  a  sua  influencia  nas 
condições  geraes,  contaminava  os  espíritos,  agi- 
tava a  anciã  das  carreiras,  alimentava  a  intriga 
dos  partidos,  e  tornava-se,  por  uma  espécie  de 
convenção  tacita  entre  esses  mesmos  partidos, 
o  disfarce  ignominioso  das  peores  dictaduras. 

Mas  eu  não  viera  ao  Parlamento  nem  para 
arranjar  dinheiro,  nem  para  chamar  concorrên- 
cia ás  galerias,  nem  para  ser  instrumento  de 
ministros  e  de  sindicatos.  Eu  viera  ao  Parla- 
mento para  fazer,  interpretar,  suspender  e  revo- 
gar leis  ;  para  velar  na  guarda  dos  preceitos  cons- 
titucionaes  e  promover  o  bem  geral  da  Nação ; 
para  fixar  as  despezas  publicas  e  repartir  as 
contribuições.  Eu  viera  ao  Parlamento  para  ser 
o  censor  dos  actos  do  Governo ;  para  estabele- 
cer os  meios  convenientes  ao  pagamento  da  Di- 
vida; para  regular  a  administração  dos  bens  do 
Estado. . , 


120  A  RUA  DO   OIRO 

Mas,  e  acima  de  tudo,  eu  viera  ao  Parla- 
mento para  defender  os  interesses  da  minha 
Ilha,  para  promover  a  felicidade  do  meu  Archi- 
pelago   . . 

Por  esse  tempo  realisava-se,  entre  as  popula- 
ções açorianas,  um  vivo  movimento  de  confra- 
ternisação,  que  tendia  a  estabelecer,  sobre  uma 
solida  base  de  sentimento,  todo  um  amplo  pro- 
gramma  de  independência  moral,  económica, 
administrativa.  E  essa  confraternisação  affirma- 
va-se  numa  boa  e  profícua  realidade,  que  a  in- 
triga da  metrópole  já  não  podia  perturbar,  que 
até  ahi  se  conservara  envolvida  numa  rrodesta 
aspiração  platónica,  mas  que  das  palavras  e  dos 
desejos  passava  agora  a  uma  propaganda  activa 
e  bem  encaminhada,  para  que  do  accordo  re- 
sultante de  mutuas  transigências,  duma  legisla- 
ção admini^ítrativa  homogénea  abraçando  todas 
as  Ilhas,  a  todas  applicada  sem  repugnância, 
não  escravisando  umas  ao  proveito  das  outras, 
resultasse  uma   vida   nova  de  descentralisação. 

Falava  se  muito  do  direito  que  os  açorianos 
tinham  á  sua  independência,  fundamentando-o 
em  muitas  razões  de  desproporcionalidade  de 
garantias,  da  injustiça  e  inconveniência  das  leis, 
da  ingratidão  da  metrópole,  da  errada  gerência 
dos  dinheiros  públicos. 

Na    distribuição   das  garantias  o  favoritismo 


A   RUA  DO   OIRO  121 

era  flagrante,  concedendo-se  ao  Continente  do 
reino  todos  os  melhoramentos  e  regalias  supér- 
fluas, c  negando-se  aos  Açores  as  de  neces- 
sidade mais  urgente,  as  estradas  ordinárias,  as 
docas,  a  melhoria  das  condições  dos  portos. . . 

Atacando-nos  em  todos  os  direitos  de  liber- 
dade e  de  propriedade,  em  favor  gratuito  do 
Continente,  a  ingratidão  dos  governos  esquecia 
quantos  assignalados  serviços,  quantos  heróicos 
serviços  a  Nação  recebera  dos  povos  açorianos, 
e  opprimia-nos  cada  dia  com  novas  leis  vexató- 
rias. As  garantias  da  Constituição,  que  tanto 
sangue  nos  custara,  tinham  sido  violadas  com 
perfídia  ;  á  liberdade  antepunha-se  a  escravidão ; 
ao  direito  da  propriedade,  a  espoliação ;  á 
egualdade  perante  a  lei,  a  mais  aviltante  des- 
proporção e  parcialidade. 

Por  tudo  isto,  e  por  muito  mais,  nos  sorriam 
as  vantagens  que  deviam  resultar  da  indepen- 
dência das  nossas  Ilhas.  E  não  eram  poucos  os 
estranhos  que,  tendo- nos  vizitado,  admirado  e 
estimado,  advogavam  perante  as  nações  civili- 
sadas  o  direito  da  nossa  causa,  quando  os  go- 
vernantes  de  Portugal  mais  nos  escrs visavam. 

Ah  I  que  se  as  minhas  queridas  Ilhas  dos  Aço- 
res, situadas,  como  eram,  a  meio  do  Oceano 
Atlântico,  entre  os  continentes  do  antigo  e  do 
novo  mundo,  e  em  linha  recta  de  communica- 


122  A  RUA  DO  OIRO 

cão  para  todos  os  navios  que  se  dirigem  á  Eu- 
ropa, não  só  das  duas  Américas  mas  de  todas 
as  possessões  da  índia,  da  China,  e  seus  mares 
adjacentes,  estivessem  sob  a  influencia  de  uma 
actividade  commercial,  uma  propriedade  agri- 
cola,  e  uma  geral  industria,  que  naturalmente 
se  levantam  da  concorrência  de  génios  e  empre- 
zas,  entre  os  habitantes  de  um  estado  livre, 
quam  importantes  não  seriam  ellas,  e  inestimá- 
veis os  seus  recursos  ! 

Como  nós  veriamos  aproveitadas  ainda  as 
mais  diminutas  parcellas  do  nosso  grande  ter- 
ritório ;  e  levantarem-se  edifícios  sumptuosos  ;  e 
crearem-se  estabelecimentos,  portos,  docas,  vias 
férreas  e  até  cidades,  que  em  pouco  tempo  con- 
verteriam essas  Ilhas,  tão  deploravelmente  aban- 
donadas, numa  populosa  scena  de  aífluencia,  de 
propriedade  e  de  força. .  E  o  mesmo  commercio, 
auspicioso  protector  da  riqueza  das  Nações, 
ver-se-ia  definitivamente  plantar  o  seu  estan- 
darte nas  praias  açorianas,  como  em  um  dos 
grandes  impérios  do  mundo ! 

Mas  os  governos  de  Lisboa  queriam  manter- 
nos  numa  situação  aviltante,  impedindo-nos  de 
attingir  o  desenvolvimento  a  que  nos  davam  di- 
reito as  tradições  históricas,  a  supremacia  intel- 
lectual  de  muitos  dos  nossos,  a  pujança  do  solo, 
a    salubridade   do   clima,   a   collocação   geogra- 


A  RUA  DO  OIRO  123 

fica,  O  génio  emprehendedor  e  aventureiro  dos 
ilhéos,  a  tenacidade  para  o  trabalho,  e  as  avul- 
tadas sommas  com  que  saciávamos,  em  cada 
anno,  a  voracidade  dos  cofres  públicos. 

Nas  discussões  dos  Centros,  nas  cavaqueiras 
da  botica  do  Cunha  e  nas  palestras  do  Club, 
chegara-se  á  conclusão  de  que  o  nosso  mal  tinha 
uma  etiologia  única  —  o  centralismo  desmedi- 
do e  absorvente  ;  e  um  só  remédio  também, 
um  só  —  a  descentralisação  completa,  estimulante 
e  impulsionadora. 

Lançada  á  terra  a  semente  germinadora  d'essa 
bella  planta  que  nós  quizemos  ver  crear-se  e 
florescer  na  tepidez  do  nosso  clima  ;  assentada 
a  primeira  pedra  d"esse  edifício  que  nós  quize- 
mos construir  como  demonstração  de  capacidade 
mental  e  de  civismo  immaculado,  iniciara-se  en- 
tão o  movimento  de  propaganda,  pedindo  e 
obtendo  a  cooperação  de  todas  as  corporações 
e  vultos  importantes  dos  três  districtos  do  Ar- 
chipelago,  entrai.do  nas  luctas  da  imprensa,  fa- 
zendo comicios  e  conferencias,  elaborando  um 
projecto  de  lei,  que  era  publicado,  e  distribuído 
abundantemente.  Queríamos  a  reforma  do  nosso 
sistema  administrativo,  que  permittisse  gastar-se 
em  proveito  exclusivo  dos  Açores  o  dinheiro  dos 
açorianos,  protegendo  o  nosso  commercio,  acti- 
vando o  progresso  da  nossa  industria,  fixando  a 


I  24  A  RUA  DO  OIRO 

remuneração  do  nosso  trabalho,  agitando,  vivifi- 
cando, fomentando  I 

Por  modo  que,  na  priíreira  opportunidade, 
que  foi  aquella  de  que  eu  sahí  eleito,  os  regene- 
radores e  os  progressistas  congraçaram-se,  e 
resolveram  apoiar  as  candidaturas  independen- 
tes dos  deputíidos  autonomistas.  Foi  nessa  oc- 
casião  que  o  Doutor  Tarquinio,  interpretando 
um  sentimento  muito  geral  entre  os  meus  con- 
terrâneos, lembrou  o  meu  nome  e  propoz  a  mi- 
nha candidatura,  em  sessão  magna  do  Centro 
regenerador. 

Emquanto  esperava  o  propicio  momento  de 
levantar  a  minha  débil  voz  nas  Cortes  para 
fundamentar  e  mandar  para  a  meza  o  projecto 
de  lei  da  autonomia  administrativa  dos  Açores, 
dediquei-me  com  empenho  aos  trabalhos  da 
corr missão  do  Código,  a  que  o  Ministro  me  ag- 
gregara. 

Já  então  me  viera  de  casa  do  Nunes  Correia 
uma  enorme  caixa  de  fato  novo,  acompanhada 
de  uma  conta  pavorosa,  que  eu  paguei  com  lín- 
gua de  palmo,  e  me  deixou  abalado  de  finan- 
ças para  mais  de  um  mez. 

A  sobrecasaca,  de  diagonal  de  duas  libras, 
toda  forrada  de  seda,  cahía-me  no  corpo  conco 
uma  luva.  Fiz  no  Augusto  Ribeiro  um  forneci- 
mento de  coUarinhos  direitos  e  punhos  de  bre- 


A  RUA  DO  OIRO  125 

tanha  finíssima,  tado  o  que  havia  de  melhor. 
Escolhi  vinte  gravatas  ;  quiz  três  dúzias  de  pa- 
res de  piugas  do  mais  caro  fio  da  Escossia  ;  en- 
commendei  três  chapéus  :  um  chapéu  alto,  um 
de  coco  preto,  e  outro  de  coco  cor  de  abóbora, 
que  era  a  côr  da  moda,  trazida  de  Inglaterra 
por  um  ministro  nosso,  arbitro  de  elegâncias,  e 
amigo  do  Principe  de  Galles.  No  Serra,  deixei 
a  medida  para  muito  calçado  de  verniz  e  pelica. 
No  Godefro}',  paguei  vinte  e  três  mil  réis  de 
aguas  para  o  cabello,  de  cosméticos  para  a 
barba,  de  essências  para  o  lenço.  E,  de  cami- 
nho, entrei  na  livraria  do  Gomes,  e  comprei  a 
Ai^te  de  vi  per  na  sociedade  —  que  logo  nessa 
noite  serviu  para  me  adormecer  muito  mais  de- 
pressa, num  sorano  muito  solto. 

Fausto  Guimarães  constatara  que  tudo  estava 
ana  afinação»  e  levara-me  a  casa  de  D.  Claudia, 
onde  agora  eu  era  recebido  e  acolhido  com  de- 
monstrações muito  evidentes  de  sirapathia  — 
por  parte  da  dona  da  casa,  que  ia  precisar  dos 
meus  serviços,  e  por  parte  de  sua  filha,  «sua 
gentilissima  filha»,  que  era  o  superlativo  com 
que  sempre  a  distinguia  o  lUiistrado  no  memo- 
randum  do  seu  high-life,  e  que  em  boa  verdade 
não  precisava  d" esse  favor  do  Illustrado  para 
ser,  com  eíFeito,  e  como  eu  logo  notei,  muito 
gentil. 


1  20  A  RÇA  DO  OIRO 

Chamava-se  Clara.  Na  intimidade  da  casa,  e 
dos   amigos   da   casa,  era  —  a  Clarinha. 

Nesta  grata  intimidade  dos  amigos  da  casa 
entrara  eu  íacilmente,  e  facilmente  fora  dei- 
xando me  enlear  no  convívio  e  na  corrente  de 
curiosidade  que,  pouco  a  pouco,  de  dia  para 
dia,  de  conversa  em  conversa,  de  pequenino  in- 
cidente em  pequenino  incidente,  se  iniciava  en- 
tre nós. 

D.  Claudia  pareceu-me  desde  logo  uma  excel- 
lente  creatura,  mas  despropositadamente  volun- 
tariosa, e  tão  despropositadamente  voluntariosa, 
que  a  um  capricho  fútil,  a  um  desejo  de  coisa 
minima,  a  um  apetite  de  nada,  sacrificaria  a 
melhor  occasião  de  se  mostrar  transigente. 

Não  era  uma  d'estas  creaturas  extravagantes 
que  muito  procuram  dissimular  o  seu  feitio,  e 
que  dizem  uma  coisa  quando  pensam  outra,  e 
tanto  se  arreceiam  do  mundo  qiie  toda  a  sua 
grande  preoccupação  consiste  em  dar  ao  mundo 
uma  idéa  enganosa  d'aquillo  que  realmente  são. 
Não  senhor. 

A  seu  modo,  muito  a  seu  modo,  D.  Claudia 
era  uma  mulher  de  princípios,  e  tinha-os  seus, 
declarando  bem  alto  para  que  quem  quizesse 
ouvir  a  ouvisse  —  que  a  vida  sem  aventuras  e 
sem  caprichos  ruidosos  seria  d'um  fastio  mor- 
tal; e  que  só  a  si  e  a  mais  ninguém,  devia  con- 


A  RUA  DO  OIRO  11'] 

tas  das  suas  acções,  dos  seus  disparates,  dos 
seus  modos  de  vêr... 

Fausto  conhecia  toda  a  historia  de  D.  Clau- 
dia, e  d'ella  me  poz  ao  facto.  Era  de  Lisboa, 
de  muito  boa  gente,  filha  d'um  Pimentel,  que 
fora  juiz  do  Supremo  e  par  do  Reino,  e  d'uma 
senhora  Medeiros,  da  illustre  familia  dos  Arru- 
das de  Medeiros,  que  eram  também  das  Ilhas. 

Esse  Pimentel  esbanjara  duas  fortunas  de  se- 
guida, uma  atrás  da  outra,  a  sua  e  a  da  mulher, 
e  tratara  depois  de  arranjar  um  casamento  bom 
para  a  filha —  mas  que  fosse  principalmente  bom 
para  elle,  que  já  se  enchera  de  dividas,  e  não 
via  outro  meio  de  poder  livrar-se  d'essas,  para 
depois  contrahir  outras. 

Claudia  recebera  de  sua  mãe  uma  educação 
primorosa,  entre  mil  cuidados  de  virtude  e 
advertências  de  bom  critério ;  mas  herdara  an- 
tes, do  pae,  o  temperamento  fogoso  e  o  leviano 
pensar.  E  no  meio  em  que  houve  de  medrar,  e 
em  que  as  suas  graças  floriam,  mais  propicia 
atmosfera  teve  para  a  desenvoltura  a  que  a 
natureza  a  impellia,  do  que  para  o  recato  que 
lhe  teriam  aconselhado  as  lições  e  o  exemplo 
d'aquella  nobilissima  senhora. 

A  esse  tempo,  no  turbilhão  de  prazeres  mun- 
danos em  que  o  imprudente  Pimentel,  juiz  do 
Supremo  e  par  do  Reino,  a  iniciava  e  cxhibia, 


128  A  RUA  DO   OIRO 

com  a  premeditada  astúcia  de  llie  arranjar  casa- 
mento, levando-a  de  vestidos  ainda  curtos  a 
bailes  e  saraus,  kermesses  e  corridas,  já  Clau- 
dia encontrara  o  seu  primeiro  homem.  E  o  des- 
plante coin  que  esse  homem  perturbara  e  facil- 
mente avassalara  aquelle  pequenino  coração  cu- 
biçoso  e  movediço,  fora  até  ao  requinte  de  as- 
sistir elle,  a  pé  firme,  e  bem  impregnado  da 
solemnidade  do  acto,  ao  sacrifício  que  Claudia 
fizera  do  muito  amor  que  lhe  tinha,  consentindo 
nesse  casamento  que  o  senador  Pimentel,  inte- 
gro juiz  do  Supremo,  considerava  ultimo  recurso, 
em  ultima  instancia,  para  o  caso  importante  de 
pagar  as  suas  dividas. 

Poucas  horas  antes  de  se  decidir  a  declarar 
que  annuia  a  semelhante  casamento,  com  aquelle 
mostrengo  de  suissas  grisalhas  e  óculos  defu- 
mados, que  poderia  ser  seu  avô, —  num  repente 
de  despeito  por  esse  homem  que  ella  vira  com 
tão  bons  olhos  e  a  quem  se  teria  offerecido  de 
tão  bom  grado,  e  num  momento  de  piedade 
pela  situação  desesperada  em  que  via  o  pae  — 
Claudia  chegara  quasi  a  implorar  do  namorado 
que  a  livrasse  d'esse  marido  que  lhe  impunham, 
e  que  a  livrasse  fosse  como  fosse...  E  esse 
homem,  o  seu  primeiro  homem,  afastara-a  de  si 
quando  ella  ia  para  se  lhe  deitar  nos  braços, 
dissuadira-a    do    leviano    propósito,    incitara-a. 


A  RUA    DO   OIRO  120 

acirrara-a,  tinha-a  compellido  a  tomar  a  resolução 
que  Claudia  tomara,  por  fim,  num  desespero, 
numa  debulha  de  lagrimas... 

Depois,  que  reprehensivel  audácia !  vendo-a 
casada,  continuara  a  persegui-la,  a  namora-la,  a 
excita-la;  e  o  seu  atrevimento  chegara  ao  ponto 
de  ir  bater  á  porta  do  quarto  de  um  hotel  de 
Cintra  onde  Claudia  fora  vêr  romper  tristemente 
a  sua  lua  de  mel,  informado  de  que  o  marido 
tivera  de  ir  ficar  noutro  quarto,  por  não  haver 
melhores  acommodaçÕes   de   núpcias  no  hotel ! 

Mais  tarde,  vira-a  mãe,  mãe  d'uma  creança 
que  não  era  filha  d'elle,  louvado  Deus  I  mãe 
d'uma  filha  legitima ;  e  nem  esta  circumstancia 
poderá  abrandar  a  fúria  da  sua  perseguição,  nem 
desorganisar  o  plano  da  sua  encarniçada  bata- 
lha. Dir-se  ia  até  que  tal  circumstancia  mais  o 
exasperara  na  impertinência ;  e,  por  fim,  tanto 
fizera,  tanto  andara,  tanto  rodara,  que  tinha 
acabado  por  aproveitar  se  d"essa  pobre  mania 
de  archeologo  que  descobrira  no  marido  de 
Claudia,  levando-o  a- emprehender  intermináveis 
viajens  de  estudo  pelo  paiz,  viajens  que  não  o 
deixavam  repousar  no  seio  da  familia  quinze 
dias  seguidos  em  toda  a  volta  do  anno,  muito 
convicto  e  tomando  muito  a  sério  o  seu  papel  de 
vogal  effectivo  da  commissão  dos  Monumentos 
Nacionaes. 

9 


l3o  A  RUA  DO  OIRO 

E  tão  bem  soubera  conduzir  o  fio  diabólico 
do  scu  diabólico  plano  que,  á  hora  em  que  Fausto 
Guimarães  me  contava  esta  historia,  Claudia 
teria  já  transposto  o  limiar  fatal  das  portas  do 
adultério,  se  o  dedo  da  Providencia  lhe  não 
houvesse  apontado,  num  momento  que,  só  por 
um  tris,  não  fora  para  ella  o  ápice  da  perdição, 
a  sombra  redemptora  da  mamã  Medeiros,  dos 
bons  Arrudas  de  Medeiros,  da  Ilha  ! 

—  «Mas  quem  foi  esse  bandalho?!»  quiz  eu 
saber,  revoltado. 

Fausto  sorriu,  acalmou  a  minha  indignação. 
O  bandalho  fora,  e  era,  o  actual  Presidente  do 
Conselho ! 

Entrou  depois  em  minúcias,  que  recolhi  com 
interesse.  A'  semelhança  de  Kéraban,  o  Cabe- 
çudo, que  não  teria  feito  uma  tão  grande  volta 
se  o  tivessem  deixado,  como  elle  queria,  atra- 
vessar o  Bosforo,  o  Ministro  não  desistira,  não 
desanimara  um  momento,  não  desesperara  um 
instante.  Mettera-se  em  casa  de  Claudia,  perse- 
guira-a  de  perto,  compromettera-a.  Era  um  es- 
cândalo, de  que  até  Já,  por  meias  palavras  que 
bastavam  aos  bons  entendedores,  se  falava  nos 
jornaes  —  emquanto  o  marido  percorria  o  reino 
dos  Algarves,  por  sol  e  por  chuva,  muito  occu- 
pado  nas  suas  cómicas  investigações  acerca  da 
queda  do  Califado  de  Córdova. 


A  RUA  DO   OIRO  l3l 

Habituado  já  á  enxurrada  de  injurias  e  diíFa- 
maçÕes  em  frase  impressa,  o  Ministro  não  fa- 
zia caso,  dizendo  que  todo  o  homem  superior 
devia  libertar-se  do  medo  tolo  que  tanta  gente  tem 
na  presença  de  um  ataque  de  jornal. 

--  «Tornou-se  necessário,  dizia  elle,  que  todo 
o  homem  de  bem  se  adestre  nessa  nova  forma 
de  coragem.  Já  lá  vae  o  tempo  em  que  uma 
descompostura  nos  jornaes  era  o  melhor  memo- 
rial para  o  despacho  dos  ministros!» 

Mas  na  diffamação  do  Ministro  ia  embrulhada 
a  reputação  de  Claudia.  Numa  terra  como  é  Lis- 
boa, onde  toda  a  gente  se  conhece  e  onde  tudo 
se  sabe,  o  Ministro  ganhara,  já  muito  antes  de 
haver  sido  chamado  aos  conselhos  da  Coroa,  a 
fama  de  grande  femieiro.  O  físico  ajudava-o, 
a  audácia  secundava  o  físico,  era  uma  pouca- 
vergonha. 

Transmontano,  e  solido,  e  bem  arcaboiçado 
como  um  granadeiro,  o  olho  vivo,  a  fronte  alta, 
a  sobrancelha  espessa  e  áspera,  o  bigode  farto 
e  forte,  a  narina  ampla,  o  lábio  saliente,  respi- 
rando saúde  e  garantindo  energias,  as  mulheres 
estremeciam  de  o  ver,  revirávamos  olhos, cahiam 
em  convulsões,  como  sibilas  e  pithonisas  no 
seu  delírio  fatídico ;  ou  quedavam-se  em  êxtase 
hipnótico,  contemplando-lhe  o  nariz  alentado  e 
fumegante,  como  brahmanes  abismados  na  con- 


1J2  A  RUA  DO   OIRO 

templação  do  largo  umbigo  de  Brahma.  Que 
belleza  de  homerr  I  pensavam.  E  essa  «belleza 
de  homem»  era  disputada,  quasi  que  a  dentes  e 
unhas,  como  que  numa  bulha  de  gatas  ciumen- 
tas, entre  o  eterno  feminino  das  classes  altas  a 
que  elle  soubera  gaindar-se,  da  modesta  condi- 
ção de  filho  de  um  sapateiro  de  Bragança,  que 
fora  o  seu  principio. 

O  Phantasma  chegara  a  publicar  uma  vez^ 
com  iniciaes  em  que  logo  se  pozera  o  dedo,  adi- 
vinhando os  nomes  por  inteiro,  a  lista  das  aman- 
tes conhecidas  do  Presidente  do  Conselho.  Eram 
trinta  e  seis.  Trez  dúzias  !  Um  serralho !  E 
achara-se-lhe  graça,  e  acha^^a-se  natural. 

As  amantes  constituíam  já  a  esse  tempo,  na 
população  da  capital,  uma  das  parcellas  mais 
avultadas, pelo  seu  numero,  pelo  seu  preço,  pela 
sua  influencia  perniciosa  nos  destinos  da  pátria. 
Sem  profundar  as  causas,  limitando-me  apenas 
a  constatar  os  factos,  deixando  aos  especialistas 
e  aos  estudiosos  do  género  a  busca  das  razões 
climatéricas,  atávicas,  fisiologico-recreativas  do 
fenómeno,  eu  verificava  que  as  amantes  em 
Lisboa  occupavam  sempre  as  primeiras  filas 
onde  quer  que  uma  multidão  feminina  se  agglo- 
merasse,  se  acotovelasse,  se  agitasse :  nas  pri- 
meiras filas  de  São  Carlos,  nas  primeiras  filas 
da  galeria  das  Camarás,  nas  primeiras  filas  das 


A  RUA  DO   OIRO  l33 

batalhas  de  flores,  e  em  todas  as  festas,  e  em 
todos  os  espectáculos,  e  em  todos  os  bazares. 

Existia  já,  cultivava-se  já,  positivamente,  o 
sport  das  amantes,  tendo-se  uma  amante  como 
se  poderia  ter  um  cavallo,  apenas  com  esta  dif- 
ferença :  ser  o  dono  que  estava  á  mangedoura, 
e  gndava  pela  arreata.  E  havia  algumas  tão  ce- 
lebres como  certos  cavallos  da  Historia.  Citava-se 
a  amante  loira  do  fallecido  Conde  da  L. . .  como 
se  poderia  falar  do  cavallo  branco  de  Napoleão. 
A  velha  amante,  já  então  honorária,  de  um  ou- 
tro ministro  de  Estado,  também  muito  falado  e 
também  só  honorário,  era  tão  conhecida  em  Lis- 
boa como  o  cavallo  de  Tróia, 

Quando  uma  amante  aturada  não  significava 
a  natural  satisfação  de  uma  necessidade  fisio- 
lógica d'aquelle  que  a  aturava,  facilmente  e  sem 
escrúpulos  se  admittia,  para  explicação  do  facto, 
qualquer  d'estas  hipotheses :  por  necessidade 
financeira,  por  medida  económica,  por  conve- 
niência politica.  Muitas  vezes,  a  razão  de  ser  de 
uma  amante  era  uma  poderosa  razão  de  estado 

Lisboa  benévola  acceitava  facilmente,  de  animo 
leve  e  coração  á  larga,  os  peores  escândalos  no 
género.  Nunca  a  cidade  ousaria  rir  de  uma  mu- 
lher que  cahisse.  E  quando  a  Opinião  publica  era 
soUicitada  a  manifestar-se  sobre  o  caso  de  um 
ministro  que  acommodara  no  seu  ministério  o  ma- 


i:>4  A  RUA  DO  OIRO 

rido  da  sua  amante,  o  filho  da  sua  amante,  o 
irmão  da  sua  amante  ;  ou  quando  a  justiça  dos 
Tribunaes  era  forçada  a  pronunciar-se  sobre  o 
caso  de  um  recebedor  de  bairro  que  esvasiara 
no  regaço  da  sua  amante  os  cofres  da  recebedo- 
ria ;  ou  quando  um  marido  ultrajado  ia  quei- 
xar-se  á  Policia  de  que  entrando  em  sua  casa,  a 
uma  hora  em  que  não  era  esperado,  se  encon- 
trara substituído  nas  prerogativas  do  seu  pró- 
prio leito  —  a  Opinião  sorria,  a  justiça  dos  Tri- 
bunaes abrandava,  e  a  própria  Policia,  o  próprio 
321  I  se  tornavam  benevolentes. 

Para  os  menos  felizes  que  não  podiam  ter 
uma  amante  só  para  si,  havia  um  provérbio  que 
dizia : 

—  «As  amantes  dos  nossos  amigos,  nossas 
amantes  são  I » 

Entre  as  trinta  e  seis  amantes  do  Ministro,  de 
que  o  Phantasma  dera  a  lista  por  ordem  alfa- 
bética, tinham  apparecido  as  iniciaes  de  um  nome 
que,  a  julgar  pelas  apparencias,  e  por  aquellas 
iniciaes,   bem  podia  ser  o  nome  de  D.  Claudia. 

As  apparencias,  pelo  menos,  eram  muito  com- 
promettedoras. 

Lançada  a  suspeita  de  ser  ella,  nesse  mo- 
mento, a  favorita  do  Ministro,  tudo  concorria 
para  que  a  diífamação  se  propalasse  e  alastrasse 
como  uma  nódoa  gordurosa,  de  azeite. 


A  RUA  DO   OIRO  l35 

A  primeira  celebridade  de  D.  Claudia  viera- 
Ihe  da  sua  belleza,  que  era  grande,  e  muito  no- 
tável num  meio  restricto  e  deploravelmente  mar- 
cado pela  fealdade  das  suas  mulheres,  como  é 
Lisboa,  onde  parece  até  que,  quanto  mais  altas 
são  as  classes  a  que  pertencem,  mais  as  mulhe- 
res se  obstinam  em  ser  feias. 

Não  lhe  perdoava  o  seu  sexo  que,  aos  qua- 
renta annos  quasi  galgados,  nem  um  fio  dos  seus 
cabellos,  negros  como  azeviche  e  finos  como  se- 
tim,  branqueasse  entre  as  dobras  do  seu  pen- 
teado alto ;  nem  que  o  mais  leve  indicio  de  fla- 
cidez ameaçasse  a  elegância  suprema  do  seu 
seio  pouco  desenvolvido  e  erecto ;  nem  que  um 
pequenino  sulco,  uma  pequenina  vesícula,  uma 
pequenina  mancha  de  herpes  lhe  prejudicasse  a 
perfeição  cutânea.  Não  podia  o  seu  sexo  levar 
á  paciência  que,  entre  D.  Claudia  e  Clarinha, 
entre  a  mãe  e  a  filha,  a  differença  apparente 
das  idades  fosse  tão  pouco  sensivel,  que  a  es- 
tranhos acontecesse  supporem-nas  irmãs. 

E  quando  a  celebridade  de  D.  Claudia  se 
alargara  dos  dominios  da  plástica  ás  preponde- 
rancias  da  politica,  onde  a  sua  influencia  foi 
julgada  decisiva,  a  onda  da  inveja,  engrossada 
na  corrente  das  intrigas  e  dos  despeitos,  tinha 
subido,  escumosa  e  revolta,  até  áquella  casa  da 
Rua  do  Salitre,  onde  o  Presidente  do  Conselho 


l36  A  rua' DO   OIRO 

ousadamente  e  condemnavelmente  alçara  a  tenda 
e  fixara  o  seu  quartel  general,  para  a  campanha 
amorosa  que  ha  tanto  tempo  emprehendera,  mas 
de  que  só  agora  parecia  possuir  um  seguro  e 
definitivo  traçado  estratégico. 

Não  era,  pois,  sem  alguma  razão  que  os  bons 
créditos  de  D.  Claudia  andavam  na  bocca  dos 
rafeiros  da  Politica  e  das  cadelas  felpudas  do 
Bom  Tom. 


Os  trabalhos  da  commissão  do  Código  iam 
seguindo  lentamente,  sob  a  presidência  pachor- 
renta e  acommodaticia  do  Padre  Eterno,  que 
para  isso  recebia  instrucçÕes  reservadas  do  Pre- 
sidente do  Conselho. 

Reuniamo-nos  no  Ministério  do  Reino,  na  sala 
grande  contigua  ao  gabinete  do  Ministro.  As 
reuniões  eram  agora  frequentes  e  demoradas, 
mas  a  maior  parte  do  tempo  passava-se  em 
conversa  e  de  galhofa,  discutindo -se  muito  para 
se  chegar  sempre  ás  conclusões  que  mais  con- 
vinham ao  Governo. 

Tinha-se  entrado  no  capitulo  do  casamento, 
que  era  o  ponto  culminante  da  reforma.  Trata- 
va-se  de  introduzir  no  Direito  portuguez  uma  in- 
novação  magnânima :  ia-se  decretar  o  divorcio  ! 


l38  A  RUA  DO    OIRO 

E  estávamos,  um  dia,  numa  d'essas  reuniões, 
quando  fomos  interrompidos  pela  brusca  en- 
trada de  D.  Claudia. 

—  «Bem,  meus  senhores...  dizia-nos  ella 
—  eu  não  vim  aqui  para  interromper  os  tra- 
balhos da  Commissão...  Peço-lhes  que  conti- 
nuem, e  permittam  me  mesmo  que  censure  a 
sua  negligencia  na  discussão  do  projecto.» 

Fausto  desculpou-se  e  desculpou  nos.  A  se- 
nhora D.  Claudia  era  muito  injusta.  Ninguém 
poderia  accusar-nos  de  negligencia — nem  mesmo 
aquelles  que  estivessem  á  espera  de  que  o  pro- 
jecto de  lei  passasse  nas  Camarás  para  reque- 
rer o  próprio  divorcio. . . 

D.  Claudia  empallideceu  ligeiramente.  Fausto 
continuou : 

—  «Vossa  Excellencia  dá  provas  de  uma 
admirável  dedicação  pelo  Governo,  tomando 
tanto  a  peito  a  abundância  de  trabalho  que  elle 
possa  produzir  em  cortes,  mas  esquece  que 
para  todo  o  trabalho  é  preciso  tempo. . . » 

—  «Pois  sim  I  pois  sim  I  Eu  conheço  bem  a 
actividade  das  commissões  parlamentares... 
Quer  o  senhor  persuadir-me,  talvez,  de  que  se 
em  vez  da  reforma  do  Código  se  tratasse  de 
alguma  concessão  de  terrenos  no  Ultramar,  com 
interessados  no  seio  da  Commissão,  não  estaria 
já  tudo  concluído  ?I» 


A  RUA  DO   OIRO  iSq 

—  «Vossa  Excellencia  exagera,  minha  se- 
nhora !  intervinha  o  Padre  Eterno.  Asseguro  a 
Vossa  Excellencia  que  não  nos  seria  possivel  fa- 
zer mais  em  tão  pouco  tempo ...  Eu  tenho 
chegado  a  trazer  para  aqui  o  lunch  I» 

D.Claudia,  vivo  demónio,  soltando  uma  fres- 
ca risada,  ironicou  : 

—  «Nobilissimo  procedimento  o  seu,  meu 
caro  Padre  Eterno  I  O  Governo  tomará  tudo 
isso  na  devida  consideração. . . » 

Depois,  mudando  de  conversa,  e  voltando-se 
para  mim : 

—  «Estou  muito  zangada  comsigo,  sabe?  E  a 
Clarinha  também.  . .  Porque  não  tem  appare- 
cido  ?» 

Gaguejei  uma  escusa  atarantada,  pedi  mil 
perdões.  Tinha  tido  nesses  últimos  dias  uns 
afazeres  de  urgência  que  me  absorviam,  me 
tomavam  todo  o  tempo.  Zangado  ?I  E  porquê  ? 
se  não  tinha  recebido  da  senhora  D.  Claudia  e 
da  senhora  D.  Clara  senão  demonstrações  de 
estima,  que  tanto  me  penhoravam,  tanto  me  en- 
terneciam. .  . 

D.  Claudia  e  o  Ministro  pouco  mais  se  demo- 
raram ;  e  quando  sahiram  da  sala,  o  Padre 
Eterno,  cruzando  os  braços  e  arregalando  muito 
os  olhos  papalhudos  e  injectados  de  ira.  vol- 
tou-se  para  nós,  rouquejando : 


140  A  RUA  DO   OIRO 

—  «Que  me  dizem  os  senhores  a  isto,  ein  ? 
Achar-se  uma  commissão  parlamentar  assim  ás 
ordens  da  amante  de  um  ministro  !  Eu  peço  a 
minha  demissão  ! » 

Uma  tal  attitude  no  Padre  Eterno,  que  todos 
tínhamos  por  demasiado  cordato  e  transigente, 
surprehendeu-nos.  Mas  logo  Fausto  oppoz  áquelle 
rompante  grotesco  a  sua  costumada  troça  iró- 
nica, que  elle  espetava  na  papeira  do  Cóne- 
go como  quem  criva  de  alfinetes  uma  prega- 
deira  : 

—  «Não  faça  isso.  Padre  Eterno,  por  quem 
é . . .  Tome  um  pouco  mais,  para  seu  uso, 
d'essa  mesma  resignação  christã  que  tanto  prega 
aos  outros  I  Dê-nos,  sobretudo,  o  exemplo  da 
sua  cordura  e  da  sua  paciência  evangélica. . .  O 
meu  amigo  bem  sabe  que  nós  não  estamos  aqui 
para  servir  os  caprichos,  nem  as  conveniências 
d'uma  mulher  !  Estamos  cumprindo  um  man- 
dato que  muito  nos  honra,  estamos  attendendo 
a  uma  necessidade  do  Governo!» 

Eu  quiz  também  metter  o  meu  bedelho,  car- 
reguei nos  tropos : 

^  —  €  Estamos  servindo  o  paiz  !» 

í  — tOra  o  paiz  I   o  paiz!  continuou  o  Padre 

Eterno,  mais  irado  ainda  . .  O'  santa  ingenui- 
dade !  Bem  se  vê  que  Vossa  Excellencia  chegou 
agora  da  Ilha  !  O  paiz.  . .   o  paiz  !  Mas  o  que 


A  RUA  DO   OIRO  I4I 

entende  q  senhor  por  servir  o  paiz  ?  Imagina  o 
senhor  que  é  servir  o  paiz  esta  coisa  de  lhe  re- 
formar o  Código  uma  vez  por  anno  ?  Imagina  o 
senhor  que  servir  o  paiz  é  isto,  que  nós  anda- 
mos a  fazer,  levados  como  carneiros,  de  apoiar 
nas  Camarás  quantos  projectos  de  Jei  quer  o 
Governo  para  defender  as  pessoas  e  os  bens  dos 
seus  amigos  politicos?. . .  Imagina  o  senhor  que 
servir  o  paiz  é  isto...  isto  que  nós  estamos 
aqui  a  praticar,  sentados  nestas  cadeiras,  á  roda 
d'esta  mesa,  conscientes,  ainda  por  cima,  como 
eu  e  como  Vossa  Excellencia,  do  nosso  triste 
papel,  que  seria  o  cumulo  do  ridiculo  se  estas 
paredes  tivessem  ouvidos  para  ouvir  as  nossas 
discussões...  E  para  qué,  meus  senhores?  E 
afinal  para  quê  ?  E  no  fim  de  contas  para 
quê  ?. . .  Para  introduzir  no  Código  Civil  Portu- 
guês um  artigo  que  permitia  a  essa  senhora  di- 
vorciar-se  do  marido,  que  já  lhe  não  serve,  e 
poder  casar  com  o  seu  amante  I» 

—  «Oh!  Oh:» 

—  fAh  !  os  senhores  dizem  «oh!»  Querem 
talvez  fazer-me  acreditar  que  eu  lhes  estou 
dando  uma  grande  novidade  ?  Querem  talvez 
dizer  que  isto  não  seja  assim  ?  Querem  talvez 
convencer-me  de  que  andavam  nesta  manobra 
como  Pilatos  no  Credo?!  Pois  tenham  santa 
paciência,   que   os   não    acredito    eu  . .   Os  se- 


142  A  RUA  DO   OIRO 

nhores  sabem  tudo  isto  tão  bem,  estão  tão  far- 
tos de  o  saber,  como  ea  o  sei  e  estou  !» 

—  «Meu  caro  Padre  Eterno,  voltou  Fausto  — 
estou  a  desconhecê-lo...  Essa  sua  attitude  de 
hostilidade,  assim  de  súbito,  assim  de  repente, 
sem  que  se  saiba  porque,  e  desusada  em  pes- 
soa do  alto  critério  de  Vossa  Reverendíssima, 
deixa-nos  estupefactos  I  Uma  bomba,  doestas  mo- 
dernas, de  dinamite  e  bicos  de  pregos,  que 
houvesse  rebentado  aqui,  no  meio  de  nós ;  ou  um 
raio,  fabricado  nas  forjas  de  Vulcano  e  despe- 
dido pela  mão  do  próprio  Júpiter  sobre  as  nos- 
sas pobres  cabeças,  não  nos  teria  causado  um 
tão  grande  assombro!  Nunca,  ninguém,  em  tran- 
ses bem  mais  difficeis,  d'uma  tão  longa  e  ac- 
cidentada  carreira  politica  como  a  sua,  o  viu 
indignado  a  tal  ponto. . .  O  meu  amigo,  que  foi 
o  braço  esquerdo  do  Sá  da  Bandeira  e  o  braço 
direito  do  Fontes  I  O  meu  amigo,  a  quem  as  la- 
grimas correram  em  fio  pela  face  quando  um 
outro  ministro,  seu  amigo  de  infância,  veiu  pe- 
nitenciar-se  perante  as  Gamaras  da  protecção 
que  dispensara,  pelos  cofres  do  Estado,  a  va- 
rias sociedades  anónimas  de  que  era  accionista  I 
O  meu  amigo,  commissario  régio  junto  de  quan- 
tas Companhias  concessionarias  têm  passado  o 
nosso  território  de  Africa  para  mãos  alheias  ! . . . 
O  meu  amigo,  que  é  ao  mesmo  tempo  cónego 
da  Sé  e  grão-mestre  da  Maçonaria  portugueza. . . 


A  RUA  DO   OIRO  148 

O  meu  amigo  a  insurgir-se  assim,  com  toda  essa 
furia,  contra  uma  minúscula  irregularidade  conju- 
gal d'essa  respeitável  senhora,  a  quem  o  animo 
não  chega  para  enganar  o  marido,  e  procura, 
muito  legitimamente,  um  meio  airoso  de  se  vêr  li- 
vre d'elle  I  Não,  não. . .  Com  franqueza,  meu  caro 
Padre  Eterno,  a  sua  attitude  põe-nos  a  dois 
passos  do  fim  do  mundo  I» 

Desvairado,  desembolado,  espicaçado,  como 
um  toiro  numa  praça,  o  Padre  Eterno,  que  ou- 
vira tudo  isto  sem  responder  palavra,  bufando 
e  raspando  com  a  pata  o  chão  da  arena,  avan- 
çou para  nós,  estacou  um  momento  na  frente 
de  Fausto  como  se  esperasse  uma  pega,  enter- 
rou o  chapéo  na  cabeça,  e  disse  : 

—  «Bem,  meus  senhores  !  Eu  não  costumo 
voltar  atrás. . .  A  minha  resolução  está  tomada. 
Quem  quizer  que  me  sigal» 

Metteu  a  pasta  dos  despachos  debaixo  do 
braço,  deu  meia  volta  á  direita,  e  sahiu,  em 
passos  largos,  tão  largos  quanto  lh'o  permit- 
tiam  as  pernas  muito  curtas  e  o  ventre  enorme, 
cahindo  como  um  odre. 

Levantada  assim  a  sessão,  da  qual  com  muita 
propriedade  se  poderia  dizer  que  correra  agi- 
tada, e  deveras  agitada,  Manuel  de  Sá  e  Gon- 
çalinho  Palha  (que  era  também  rapaz  do  meu 
tempo   de   Coimbra,   e  também  deputado  pela 


144  ^  ^^^  ^^  *-*^^^ 

primeira  vez  naquella  legislatura,  e  também  vo- 
gal da  ■  Commissão  do  Código)  despediram-se, 
deixando-me  só  com  Fausto,  que  ainda  sabo- 
reava o  mau  bocado  por  que  fizera  passar  o 
Padre  Eterno. 

Chegou  então  a  minha  vez  de  falar  a  sério. 
Todo  aquelle  episodio  em  que  eu  vira  envolvi- 
dos, sob  aquelle  mesmo  tecto,  e  respirando 
aquella  mesma  atmosfera  de  secretaria  de  Es- 
tado, comn:unicando  por  uma  porta  secreta- 
com  o  gabinete  do  Ministro  —  todo  aquelle 
episodio,  que  me  divertira,  me  irritava  ago- 
ra e  me  lançava  num  desanimo,  m.e  descoro- 
-  coava . . . 

—  «Se  aquillo  a  que  vossés  por  cá  chamam 
politica  não  é  alguma  coisa  de  melhor  e  mais 
alto  do  que  isto,  deve  haver  mais  de  um 
desilludido  entre  os  que  para  ella  entram,  como 
eu .  . .  Pela  parte  que  me  toca,  com  franqueza 
te  declaro  que  me  sinto  desilludido  I  A  noção 
de  politica,  com  que  sahimos  de  Coimbra,  é 
uma  coisa  muito  diversa.  . . » 

Mas  aquelle  maroto  do  Fausto  não  tomava 
nada  a  sério,  positivamente,  cortava-me  logo 
as  vasas : 

—  «Bem  sei. . .  Dizes  muito  bem !  A  íciencia 
politica  I . . .  Parte  da  sciencia  social  que  trata 
dos  fundamentos  do  Estado  e  dos  princípios  do 


A  RUA  DO   OIRO  146 

Governo...    Isso   foi   tempo,  homem  pre-histo- 
rico,  e  da  Ilha  I» 

—  «Mas  ouve  cá,  ó  Fausto,  dize-me  cá... 
Tu  acreditas  que  o  teu  Ministro  seja  homem 
que  se  preste  a  uma  tão  estupenda  combinação 
como  essa  de  que  parece  convicto  o  Padre 
Eterno,  e  que  para  salvar  as  apparencias  de 
um  adultério  seja  capaz  de  levar  ás  Gamaras 
uma  reforma  do  Godigo?!» 

—  tAcredito.  A  minha  única  duvida  está  em 
saber  se  o  adultério  se  deu...  Greio  que  não, 
porque  se  se  houvesse  dado,  já  ellc  teria  pas- 
sado o  pé  a  D.  Glaudia,  como  o  tem  feito  ás 
outras. . .  Quanto  á  depravação  dos  usos  e  cos- 
tumes, esse  Padre  Eterno  falou  e  fala  sempre 
como  um  Evangelho  I  Mas  não  imagines  que 
elle  fosse  d'aqui  pedir  a  demissão,  se  não  ti- 
vesse a  certeza  antecipada  de  que  o  Ministro 
Ih'a  não  dava.  Gom  esta,  é  já  a  terceira  vez  que 
elle  representa  a  mesma  comedia,  e  volta  sem- 
pre atrás,  e  onde  diz  que  disse  diz  que  não 
disse  —  mas  só  depois  de  ter  obtido  algum  novo 
beneficio  que  trouxesse  de  olho.  Não  mette 
prego  sem  estopa.  E"  um  malandro  da  peor  es- 
pécie I  Se  vens  disposto  a  ser  um  grande  homem 
na  Politica,  podes  abandonar  ás  traças  da  tua 
livraria  o  teu  Royer-Gollard,  o  teu  Benjamin 
Gonstant  e  o  teu  Gomte.  Bastará  que  te  dês  ao 

10 


146  A  RUA  DO  OIRO 

trabalho  de  folhear  este  cónego.  E'  um  magni- 
fico tomo  !  E'  um  tratado  completo  I  Comparado 
com  a  sciencia  que  elle  encerra,  tudo  quanto  até 
agora  se  tem  dito  haver  de  boa  lição,  para  a 
gloria  dos  soberanos  e  para  o  bem-estar  dos 
povos,  no  Trincipe  do  Machiavello,  pôde  con- 
siderar-se  lettra  morta. . .» 

Assumi  um  grande  ar  de  gravidade,  endirei- 
tei-me  nos  chumaços  da  minha  sobrecasaca  de 
diagonal  de  duas  libras,  protestei,  serenamente, 
mas  resolutamente  : 

—  «Estás  redondamente  enganado  a  meu  res- 
peito. Fausto.  Eu  bem  sinto,  porque  bem  me 
conheço,  que  nunca  poderei  chegar  a  ser  o 
gi'ande-homem  de  que  tantos  outros  julgam  ter 
em  si  o  gérmen.. .  Mas  se  algum  dia  me  visses 
subir  alto  na  Politica,  ficarias  sab  endo  que  al- 
guém poderá  vencer,  sem  indignidade,  toda 
essa  formidável  barricada  de  ignominias  que  te- 
rias acabado  de  levantar  neste  momento  deante 
de  uma  ambição,  se  eu  porventura  trouxesse 
commigo  essa  ambição  I . . . » 

—  fNesse  caso,  não  tens  tempo  a  perder. 
Corre  ao  teu  hotel,  mette  na  tua  mala  essa  impo- 
nente sobrecasaca  com  que  te  paramentavas 
para  bem  servir  a  tua  pátria,  e  volta,  pelo  pri- 
meiro paquete,  para  a  tua  Ilha.  Não  te  resta 
nada  de  melhor  a  fazer.  Esquece  Lisboa,  es- 


A  RUA  DO   OIRO  147 

quece  a  Politica,  e  esquece-te  de  mim,  como 
deves,  porque  eu  tive  a  desgraça  de  cahir  no 
atoleiro  e  já  para  mim  não  ha  salvação  possí- 
vel !» 

—  «Estou  quasi  a  dar-te  a  razão.  .  Mas  não 
parto  ainda  I  Uma  vez  que  cá  estou,  quero  apro- 
veitar quanto  possa,  observando.  Mas  de  fora, 
mas  de  longe  I  Conhecite  tão  diverso,  encon- 
tro-te  agora  tão  outro,  que  receio  muito  deixar- 
me  também  contaminar  do  mal. . .  Isso  é  coisa 
que  se  pega,  com  certeza  I  Parece-me  que  estou 
ainda  a  vêr-te  nas  festas  do  Centenário,  á 
frente  do  curso,  de  gaforinha  ao  vento,  o  olhar 
illuminado,  a  capa  deitada  para  trás,  dando  a 
Coimbra  uma  idéa  do  que  seria  Robespierre  na 
aurora  da  Revolução...  barafustando  e  gesti- 
culando contra  todos  os  poderes  constituídos, 
insurgindo-te  com  a  forma  do  governo,  com  a 
tirannia  dos  lentes,  com  a  imbecilidade  dos 
compêndios  I . .    » 

—  «E  agora,  que  me  vês  apaziguado,  domes 
ticado,  conformado  com  a  mesma  ordem  de  coi- 
sas que  então  me  exasperavam,  desconheces-me. 
Pois  olha:  sou  o  mesmo.. .  peor  ainda  do  que 
nesse  tempo  —  porque  tenho  visto  e  aprendido 
muito  mais.  Em  todo  o  caso,  vou  fazendo  o  meu 
jogo,   como   os   outros,  mas  sem  querer  vacca 


148  A  RUA  DO  OIRO 

com  elles.  E'  mais  difficil,  é  mais  demorado,  mas 
é  mais  seguro.» 


Talvez  eu  tivesse  feito  as  minhas  malas,  e 
voltado  para  a  Ilha  pelo  primeiro  paquete  — 
talvez  1  se  uma  outra  razão,  que  nada  tinha  que 
ver  com  o  meu  mandato  politico,  me  não  hou- 
vesse já  determinado  a  demorar-me  em  Lis- 
boa. . .  E  se  é  certo,  como  já  disse  não  me  lem- 
bra agora  quem,  que  a  vida  de  cada  um  de  nós, 
bem  contada,  é  só  por  si  um  romance,  poderia 
eu  dizer  que  o  meu  romance  entrava  então  num 
dos  seus  capitulos  mais  interessantes. 

A  desculpa,  que  eu  dera  a  D.  Claudia,  de 
não  ter  apparecido  ultimamente  em  sua  casa, 
fora  uma  desculpa  de  pura  invenção.  O  verda- 
deiro motivo  era  outro ;  mas  esse  não  podia  eu 
dizer-lh'o,  não  o  dissera  a  ninguém,  nem  sequer 
ao  Fausto,  para  quem,  aliás,  não  tinha  outros 
segredos. 

Evitando  a  assiduidade  das  minhas  visitas  á 
Rua  do  Salitre,  procurava  eu  escapulir-me  aos 
perigos  de  uma  seducção  que  logo  nos  primei- 
ros dias  da  minha  ida  ali  começava  a  tecer  os 
seus  fios  de  ferro  em  volta  do  meu  animo  fraco 
e  predisposto  ás  influencias  perturbadoras  do 
fatal  feminino. 


RUA  DO   OIRO  149 

Um  dos  grandes  cuidados  que  a  Tia  Geno- 
veva não  deixara  jamais  esmorecer  na  vigilância 
do  meu  desabrochar  juvenil,  fora  o  de  me  incu- 
tir noções  preventivas  muito  exageradas  contra 
o  fácil  commercio  das  mulheres. 

Afigurava-se  á  boa  Tia  Genoveva  que  Deus, 
encarregando-a  da  minha  educação  christã,  lhe 
dirigira  aquellas  mesmas  palavras  que  outr'ora 
dirigira  ao  seu  profeta :  —  «Dou-te  poder  para 
arrancar  e  plantar,  para  derrubar  e  edificar». 
E  assim  investida  de  taes  poderes,  ella  tratou 
de  me  desviar  do  mal  e  encaminhar  ao  bem, 
combatendo  em  mim  os  germens  instinctivos  e 
originaes  do  peccado,  cultivando  em  mim  as  se- 
mentes de  virtude  e  graça  infundidas  pelo  ba- 
ptismo, mondando  na  minha  alma  pequenina  o 
joio  damnoso,  e  a]udando  a  crescer  o  bom  grão, 
que  mais  tarde  haveria  dq.  fructificar  na  vida 
eterna,  pois  bem  sabia  ella  ser  tal  a  natureza 
humana,  que  temos  desde  o  berço  de  desapren- 
der o  vicio,  cuja  sciencia  nefasta  é  como  que 
innata  em  nossos  corações,  e  de  aprender  o 
bem  á  custa  de  muitos  e  continuos  esforços.. . 

Dividiu  portanto  a  Tia  Genoveva  a  minha 
educação  cm  duas  e  bem  distinctas  partes :  uma, 
a  que  se  poderia  chamar  negativa,  consistiu  em 
destruir  a  obra  antiga  do  Demónio  —  opera  Dia- 
boli;   a   outra,  que  era  a  positiva,  consistia  em 


l5o  A  RUA  DO  OIRO 

conservar  e  cimentar  a  obra  regeneradora  de 
Deus  —  opera  Dei.  E  começando  pela  primeira 
como  que  para  limpar  o  terreno,  ella  emprehen- 
dera,  antes  de  tudo,  o  trabalho  preliminar  de 
me  inspirar  um  horror  intenso  pelo  peccado  — 
como  só  Tobias  soubera  inspira-lo  aos  filhos. 

—  «Foge  do  peccado.  Quinino!  foge  do  pec- 
cado, como  se  fugisses  da  mais  perigosa  e 
mais  venenosa  serpente!» 

Esse  era  o  maior,  o  mais  terrível  de  todos  os 
males !  Mal  perante  Deus,  mal  perante  os  ho- 
mens, mal  do  corpo,  mal  da  alma,  do  tempo, 
da  eternidade  —  o  único  mal  verdadeiro ;  porque 
dos  outros,  muitos  até  vinham  ás  vezes  por  bens, 
e  não  raro  eram  mercês  da  graça  divina  para 
proveito  das  nossas  almas  e  fomento  da  perfei- 
ção christã. 

Depois  de  me  haver  inspirado  a  aversão  con- 
tra o  peccado  em  geral,  a  Tia  Genoveva  tra- 
tava de  precaver-me  contra  cada  peccado  em 
particular. 

Ba  Soberba,  que  avultava  entre  todos,  e  de 
todos  elles  vinha  sempre  á  cabeça  do  rol,  se 
originavam  todos  os  mais.  Não  havia  outro  mais 
grave,  nem  mais  tristemente  fecundo. 

—  aA  Soberba,  dizia-me  a  Tia  Genoveva,  é  a 
mãe  de  todos  os  peccados!» 

Tanto  bastava  dizer-me,  para  logo  querer  eu 


A  RUA  DO    OIRO  l5l 

saber  quem  era  então  o  pae.  E  ainda  me  lem- 
bro —  pois  ha  certas  e  remotas  minúcias  da 
vida  que  não  mais  esquecem  —  do  embaraço 
com  que  ella  me  explicava  terem  os  peccados 
vindo  ao  mundo  sem  pae...  E  como  eu  insis- 
tisse, intrigado,  e  com  essa  natural  curiosidade 
insaciável  da  infância,  que  não  admitte  misté- 
rios, que  quer  logo  tudo  para  ali  em  pratos  lim- 
pos, a  Tia  Genoveva,  já  com  as  faces  vermelhas 
como  as  maçãs  camoesas  que  perfumavam  as 
gavetas  da  sua  roupa  branca,  acabara  por  me 
confessar  que  todos  os  peccados,  filhos  da  So- 
berba, tinham  vindo  ao  mundo,  eífectivamente, 
como  eu  suppunha,  por  obra  e  graça  do  divino 
Espirito  Santo! 

No  encalço  da  Soberba  vinha  logo  a  Avareza; 
e,  neste  ponto,  todo  o  cuidado  da  Tia  Geno- 
veva consistia  em  me  dar  o  exemplo  do  seu  no- 
bre desinteresse,  evitando  que  na  minha  pre- 
sença a  Tia  Maria  da  Assumpção,  maniaca  de 
grandesas,  exaltasse  a  importância  do  Dinheiro 
no  destino  das  gentes,  e  só  considerasse  os  bens 
do  mundo  como  símbolo  da  felicidade.  Para  o 
céo,  para  o  céo,  é  que  era  mister  aferrolhar,  en- 
thesourar,  não  para  a  vida  caduca.  . .  E  ao  sab- 
bado,  dia  de  esmolas,  era  a  mim  que  ella  im- 
cumbia  a  doce  tarefa  de  despejar  o  saquinho  de 
vinténs  na  palma  das  trinta  mãos  sujas  e  mirra- 


102  A  RUA  DO  OIRO 

das,  que  outros  tantos  pobres,  enchendo  o  por- 
tão da  nossa  casa  da  Boa  Nova,  estendiam  para 
mim,  sorrindo  me  e  abençoando-me. 

A'  Soberba  e  á  Avareza,  intimamente  se  li- 
gava a  Inveja,  que  aos  meus  olhos  se  pintou 
como  tristeza  malvada  e  esverdeado  rancor  em 
face  dos  bens  e  das  venturas  alheias.  Movido 
pela  Inveja,  introduzira  o  Demónio  neste  mundo 
a  desobediência  e  a  morte.  Ella  assassinara  o 
meigo  Abel,  perseguira  David,  crucificara  apro- 
pria Divindade.  E  para  melhor  me  compenetrar 
da  hediondez  d'este  mal,  a  Tia  Genoveva  me  ex- 
plicava que  o  invejoso  era  para  si  mesmo  o  mais 
inexorável  verdugo,  pois  o  seu  peccado  era  como 
o  abutre  encarniçado,  cujas  garras  lhe  desfibram 
o  próprio  coração. 

Combatendo  a  desarasoada  tendência  que  eu, 
desde  os  mais  tenros  annos,  manifestava  para 
os  acepipes  e  guloseimas,  dando  frequentes  as- 
saltos ás  travessas  de  croquetes  de  gallinha  e 
presunto,  que  a  nossa  creada  Conceição  Velha 
aviava  por  uma  receita  divina,  e  obrigando  a 
Tia  Genoveva  a  guardar  a  sete  chaves  as  latas 
de  biscoitos,  as  tijelas  de  doce  e  os  bandos  de 
pombas  de  alfenim  que  todos  os  annos  nos  vi- 
nham, em  revoadas,  do  império  dos  Quatro 
Cantos  —  um  dos  exemplos  de  temperança  e 
sobriedade  que  a  Tia  Genoveva  me  citava,  e  que 


A  RUA  DO  OIRO  l53 

muito  me  divertia,  era  aquelle  do  pequenino  e 
ladino  São  Nicolau,  que,  ainda  menino  de  colo, 
espontaneamente  se  abstinha  de  mamar  ás  sex- 
tas-feiras,  «a  não  ser  depois  do  anoitecer,  e  ainda 
assim  uma  vez  só  I  » . 

A  Ira,  fugaz  loucura,  que  assalta  ás  vezes  as 
almas  ainda  as  mais  plácidas,  não  era  em  mim 
essa  natural  condição  do  temperamento  infantil, 
de  que  fala  o  Abbade  Pichenot,  vigário  geral  da 
diocese  de  Sens.  Eu  nunca  fui  irrascivel,  antes 
me  mostrei  sempre  soffredor  paciente  de  repri- 
mendas  e  contrariedades,  propenso  sempre  a 
perdoar  offensas,  e  fácil  em  reconciliações.  Por 
isso  não  dava  á  Tia  Genoveva  o  trabalho  (que 
teria  sido  também  para  ella  um  vivo  desgosto) 
de  reprimir  nem  o  meu  mau  génio,  nem  as 
minhas  violências,  que  não  me  foram  precisas  á 
energia  do  caracter,  nem  á  impetuosidade  pró- 
pria e  inseparável  das  virtudes  viris,  de  que  me 
prezo. 

Também  não  era  o  receio  da  Preguiça  que 
affligia,  a  meu  respeito,  a  Tia  Genoveva.  Eu 
nunca  fui  preguiçoso,  e  com  isto  lhe  proporcio- 
nei contentamento  e  alegria  desde  as  primeiras 
lettras,  em  que  a  nota  da  minha  applicação  foi 
invariavelmente  excellente^  e  até  á  conclusão  do 
meu  curso  de  Direito,  nemiiie  discrepante. 

O  peor,  o  mais  grave,  o  grande  busilis  estava 


ID4  A  RUA  DO   OIRO 

em  preservar-me,  e  instruir- me  de  modo  a  eu 
próprio  me  preservar  do  mais  nefando  de  todos 
03  peccados,  do  maior  de  todos  os  males  da 
alma  (e  que  ás  vezes  redundava  num  dos  peo- 
res  males  do  corpo)  conservando  o  mais  pre- 
cioso e  o  mais  frágil  entre  todos  os  meus 
bens. . . 

Não  ignorava  a  Tia  Genoveva  aquellas  enér- 
gicas palavras  com  que  o  apostolo  São  João  re- 
sumia todos  os  maus  instinctos  da  natureza 
corrompida  pelo  peccado  original:  —  «Quanto 
no  mundo  existe  é  concupiscência  da  carne, 
concupiscência  dos  olhos,  soberba  da  vida!» 
Berr  sabia  ella  que  do  peccado  odioso  da  Luxu- 
ria existe  o  gérmen  em  cada  um  dos  desgraça- 
dos filhos  de  Eva ;  e,  mais  cedo  ou  mais  tarde, 
em  cada  um  de  nós  desperta  esse  sentido  re- 
provado, que  a  somno  solto  e  ditoso  dorme  na 
infância  innocente  e  descuidada. 

Mas  aquillo  com  que  ella,  coitadinha,  não 
podia  atinar,  e  com  o  que  tanto  se  inquietava  e 
affligia  desde  que  eu  deixei  a  escola  das  Senho- 
ras Araujos,  para  me  matricular  no  Liceu  — 
era  a  maneira  mais  segura  de  estabelecer  em 
volta  da  minha  innoccncia  uma  espécie  de  cor- 
dão sanitário  que  me  preservasse  do  contagio 
d'aquelle  mal  que  tão  subtilmente  se  insinua  por 
todos  os  nossos  poros. . . 


A  RUA  DO   OIRO  l55 

Todo  O  seu  cuidado  era  evitar  que  uma  pa- 
lavra imprudente,  uma  reticencia  malévola  po- 
desse  despertar  a  minha  curiosidade,  acender  a 
minha  imaginação,  comprometter  a  minha  inno- 
cencia.  E  que  nem  os  meus  olhos  pousassem 
sobre  alguma  estampa  má  —  como  aquella  que 
ainda  cheguei  a  vêr  na  casa  de  jantar  da  Tia 
Maria  da  Assumpção  antes  que  ella  a  retirasse 
para  o  sótão  a  instantes  pedidos  da  Tia  Genove- 
va, e  em  que  um  frade  barbadinho,  com  a  ca- 
beça perdida,  agarrava  pela  cintura  uma  hespa- 
nhola  toda  engommada  e  de  manton  de  Manilla, 
e  lá  iam  ambos  a  saracotear-se  como  na  zar- 
zuela. . . 

Por  esas  calles 

Va  la  gracia  y  Dics  ! 

E  que  nem  a  minha  attenção  se  demorasse 
no  reparo  do  mais  simples  incidente  de  que  po- 
desse  resultar  sugestão  de  acto  prohibido  — 
como,  por  exemplo,  o  encontro  fortuito,  na  rua, 
por  baixo  das  nossas  janellas,  de  um  cãosinho 
galanteador  com  alguma  cadela  das  suas  rela- 
ções. . . 

E  todos  os  dias  (era  sabido  I)  quando  eu  sahia 
de  casa  para  ir  ao  Liceu,  acompanhado  pelo 
Manoel  Ignacio,   ella  vinha  ao  bota-fóra  na  es- 


l56  A  RUA  DO   OIRO 

cada ,  deitando-me  a  benção  do  patamar  e  re- 
commendando  ao  Manoel  Ignacio  que  tivesse 
sempre  muito  cuidado  commigo,  e  não  me  per- 
desse de  vista,  de  cada  vez  avivando  a  lem- 
brança d'aquella  sabia  indicação  dos  antigos í 
que  mandavam  usar  para  com  a  infância  a  má- 
xima reverencia.  Máxima  debctiir  puero  reve- 
rentia  ! 

Mas,  ai!  Um  dia,  dia  de  meus  annos,  que  já  eram 
quatorze,  e  propositadamente  escolhido  parn 
tão  solemne  fim,  a  Tia  Genoveva,  depois  de  me 
haver  presenteado,  de  surpreza,  com  o  meu  pri- 
meiro fato  de  calça  até  baixo,  de  flanella  azul, 
á  maruja,  chamou-me  ao  oratório,  para  onde  se 
passava  pela  sala  grande  dos  Retratos,  e  onde 
se  podia  dizer  missa  com  licença  de  Roma ; 
prostrou  se  deante  do  altar  onde  havia  um  grupo 
da  Sagrada  Familia  que  era  o  enlevo  do  Doutor 
Tristão,  grande  entendedor  de  obras  de  arte,  e 
disse-me  que  me  ajoelhasse  eu  a  seu  lado,  e 
com  ella  resasse,  a  meia  voz,  a  Salve  Rainha. . . 

Era  uma  terça-feira,  22  de  Julho.  O  velho  re- 
lógio de  pesos,  no  corredor,  acabava  de  dar  as 
duas  horas  da  tarde. 

De  costume,  o  oratório  só  se  abria  aos  sabba- 
dos,  depois  das  Avé-Marias,para  as  longas  resas 
em  que  a  Tia  Genoveva,  a  Tia  Maria  da  As- 
sumpção, a  Conceição  Velha,  a  Gertrudes  Ga 


A  RUA  DO   OIRO  I  b7 

ga,  a  Barbara,  filha  do  Manoel  Ignacio,  e  tam- 
bém nossa  creada,  o  Manoel  Ignacio,  e  eu  — 
nos  afundávamos  durante  três  quartos  de  hora, 
que  eu  já  começava  a  achar  intermináveis  quando 
ainda  o  primeiro  não  chegara  ao  fim. 

E  não  foi  sem  estranhesa  que  segui  a  Tia,  e 
me  ajoelhei  ao  seu  lado,  e  com  ella  resei,  a 
meia  voz,  a  Salvé-Rainha. . . 

Mas  nesse  dia,  e  em  seguida  áquella  incom- 
mensuravel  satisfação  das  .minhas  primeiras  cal- 
ças compridas,  eu  teria  resado  o  Terço,  se  pre- 
ciso fosse,  sem  oppôr  a  menor  objecção,  sem 
que  me  doessem  os  joelhos.  Obedeci,  aguardei 
os  acontecimentos. 

Como  se  quizesse  que  Nossa  Senhora,  o  Se- 
nhor São  José  e  o  Menino  Jesus,  deante  do 
qual  se  podia  falar  á  vontade  (pois  já  Elle  esti- 
vera entre  os  Doutores,  e  mais  coisas  sabia  que 
Pico  de  Mirandola  em  sua  tenra  idade)  fossem 
testemunhas  da  sua  grande  vontade  de  acertar, 
a  Tia  Genoveva,  agora  de  pé,  e  tendo-me  eu 
posto  de  pé  também,  julgou  chegado  o  momento 
de  não  mais  applicar  ao  estado  inferior  do  meu 
desenvolvimento  mental,  aquelle  dito  do  Divino 
Mestre  aos  seus  amados  discipulos  :  —  tMuitas 
coisas  tenho  ainda  que  vos  dizer,  mas  por  ora 
não  podeis  arcar  com  ellas».  E  o  seu  espirito 
tentou   descer   sobre   mim,    como   um   espirito 


1  58  A  RUA  DO  OIRO 

santo,  com  suas  graças  e  seus  dons,  para  com- 
municar-me  a  intelligencia  necessária  ao  enten- 
dimento do  que  ainda  faltava  ensinar-me. 

Tu  não  o  sabias  bem  ao  certo,  boa  e  santa 
Tia  Genoveva !  Mas  lá  te  queria  parecer  que 
aos  quatorze  annos,  espigadinho  como  eu  já  es- 
tava, e  com  um  anno  de  Liceu  para  mais  ajuda, 
não  havia  muito  mais  tempo  a  perder,  não  havia 
muito  mais  tempo  a  esperar. 

E,  a  não  serem  as  paixões,  nada  era,  em  teu 
criterioso  entender,  tão  nocivo  á  infância  como 
a  ignorância,  ou  um  conhecimento  incompleto  e 
superficial  das  coisas. 

Para  eu  poder  resistir  aos  perigos  que  por 
todos  os  lados  sabias  ameaçarem-me,  era  pre- 
ciso que  me  desses  conhecimento  da  existência 
d'esses  perigos  ;  era  preciso  que  eu  entrasse  na 
comprehensão,  tanto  quanto  possível  aproximada 
d'elles,  para  d'elles  aprender  a  livrar  me  por 
mim  mesmo  —  porque  nem  eu  teria  de  andar 
por  toda  a  vida  agarrado  ás  tuas  saias,  nem  se- 
ria possível  que  o  Manoel  Ignacio  me  não  per- 
desse de  vista  também  por  toda  a  vida. . . 

Foi  então  um  supplicio  para  ella,  e  um  sup- 
plicio  para  mim,  esse  momento  solemne.  Por 
que  aquillo  mesmo  sobre  que  a  Tia  Genoveva 
se  esforçava  por  me  elucidar,  entrando  em  com- 
plicados rodeios,  perdendo  se  em  embrulhados 


A  RUA  DO  OIRO  l5g 

circumioquios,  emaranhando-se  em  obscuras 
metáforas  —  eu  o  sabia  já,  ai  de  mim  !  ai  de 
ti  !   ai  meu  bem  I  ai  de  nós  todos  ! .  . . 

E  tudo  aquillo  de  que  ella  me  falava  tão  obs- 
curamente, sem  conhecimento  de  causa,  apenas 
por  informações,  e  voltando  amiudadas  vezes  os 
seus  olhos  limpidos  e  ingénuos  para  Nossa  Se- 
nhora, para  o  Senhor  São  José  e  para  o  Menino 
Jesus,  como  que  a  pedir-lhes  desculpa,  o  co- 
nhecia eu  como  conhecia  os  meus  dedos :  pois 
não  era  debalde  que  a  Barbara,  filha  do  Manoel 
Ignacio,  de  vinte  e  seis  annos  de  idade,  fresca 
como  uma  alface,  robusta  como  uma  bezerra, 
tendo  estado  a  servir  em  casa  do  Major  Elias 
antes  de  vir  para  nossa  casa,  me  atracava  nos 
corredores  ás  escondidas,  me  ferrava  grandes 
beijocas,  e  á  noite,  cmquanto  a  Conceição  Velha 
resonava,  de  braços  cruzados,  encostada  á  mesa 
da  cozinha,  e  a  Tia  Genoveva  passava  pelo  seu 
somno  reparador  antes  da  hora  do  chá,  e  o 
Manoel  Ignacio  sahia  para  ir  á  loja  do  Gaiato, 
ou  do  Francisquinho  das  Flores,  que  era  no 
fim  da  Rua  da  Sé,  a  buscar  assucar,  ou  velas, 
ou  algum  bolo  de  massa  sovada,  demorando-se 
tempos  infinitos  em  cada  um  d'esses  recados  — 
me  puxava  para  o  quarto  dos  bahús  e  muito 
se  divertia  commigo,  numa  brincadeira  a  que  ella 
chamava   «instrucção  de  recrutas»  e  que  apren- 


l6o  A  RUA  DO  OIRO 

dera  na  perfeição    com  o  impedido    do    Major  I 

Toda  a  ruina  peccaminosa  e  irreparável  da 
felicidade  na  Terra,  que  o  Creador  sonhara  e 
quizera  realisar  tão  magnanimamente,  dando  o 
Paraiso  ao  primeiro  Homem  e  á  primeira  Mu- 
lher, fora  devida  á  cubica  nefanda  d'essa  pri- 
meira Mulher.  .  . 

Depois,  em  todos  os  tempos  e  em  todas  as 
historias,  onde  quer  que  se  assignalasse  alguma 
grande  catástrofe,  alguma  grande  desventura,  al- 
gum grande  mal,  quem  procurasse  bem,  quem 
rebuscasse  bem,  lá  iria  encontrar,  na  escavação 
paciente  dos  factos  e  das  lendas,  conduzindo  á 
origem,  o  sulco  pernicioso  d*uma  maldita  mu- 
lher! 

E  para  d'isto  me  certificar,  e  me  convencer, 
a  boa  Tia  Genoveva  empregava  o  seu  melhor 
engenho,  os  seus  melhores  argumentos,  compul- 
sando a  sua  Biblia  e  a  sua  Vida  dos  Santos. 

Ella  teria  querido  que  eu  fosse  como  o  José 
do  Egypto,  casto  e  arisco,  para  sempre  me  sa- 
ber arredado  dos  ardis  perigosos  da  mulher  de 
Putifar. 

Ella  teria  querido  que  uma  fonte  de  miseri- 
córdia, nascendo  do  céo,  gottejasse  sobre  mim, 
tornandome  forte,  como  Santo  Antão,  para  re- 
sistir a  quantas  perturbadoras  e  enternecedoras 
tentações  me  viesse  offerecer  alguma  outra  Rai- 


A   RUA  DO   OIRO  l6l 

nha  de  Sabá. . . —  «Estende  os  teus  lábios,  meu 
amor,  para  que  nelles  recebas  os  meus  beijos, 
que  têm  o  sabor  e  o  perfume  do  mais  saboroso 
e  perfumado  fructo  !  Desprende  os  meus  vesti, 
dos,  querido  eremita,  e  em  mim  descobrirás  os 
infinitos  mistérios  do  goso  que  nunca  sonhaste  ! 
Toca  a  carne  do  meu  hombro  com  a  ponta  de 
um  dedo  teu,  e  sentirás  a  chispa  doirada  do 
amor  percorrer  o  rastilho  que  ha  de  incendiar  o 
sangue  nas  tuas  veias  I. . . » 

Ella  teria  querido  que  eu  vivesse,  crescesse, 
me  desenvolvesse,  tirasse  o  meu  curso  do  Li- 
ceu, adquirisse  a  minha  carta  de  bacharel,  vol- 
tasse para  junto  d'ella  e  junto  d'clla  passasse  o 
resto  da  minha  vida,  sempre  puro  e  virgem 
como  São  Luiz  de  Gonzaga  I 

Mas  nunca  ella  teria  ousado  pedir  á  Senhora 
do  Livramento,  minha  madrinha,  que  me  livrasse 
inteiramente  de  taes  tentações  —  não  só  porque 
o  pedido,  concebido  em  tão  apenados  termos, 
iria  collocar  a  Senhora  do  Livramento  na  con- 
tingência de  não  poder  fazer-lhe  essa  vontade, 
mas  ainda  porque  a  Tia  Genoveva  queria-me 
muito,  era  muito  minha  amiga,  e  não  lhe  chegaria 
o  animo  para  assim  me  privar,  tão  despoticamen- 
te, dos  rasgados  ofPerecimentos  da  Rainha  de  Sa- 
bá, e  assim  obstar  a  que  eu,  algum  dia,  viesse  a 
experimentar,  nessa  mesma  ordem   de  assum- 

11 


lG2  A  RUA  DO  OIRO 

ptos,  outras  coisas  boas  que  São  Luiz  de  Gon- 
zaga, coitadinho,  não  chegara  a  conhecer. 

Agora,  lá  com  respeito  á  mulher  de  Putifar, 
isso  não  senhor  !  Pelo  menos,  com  o  seu  consen- 
timento, isso  nunca  ! . .  .  Porque  essa  era  uma 
mulher  casada,  e  eu  incorreria  assim,  logo  d'uma 
cajadada,  no  desrespeito  de  dois  graves  manda- 
mentos :  o  sexto  e  o  nono ! 

Emfim,  do  mal  o  menos.  Se  não  fui  casto,  fui 
cauto.  E  assim  me  livrei,  por  mais  de  uma  vez, 
das  armadilhas  que  me  preparavam  as  Primas 
Rochas  e  as  Primas  Noronhas,  nos  primeiros 
tempos  que  se  seguiram  ao  meu  regresso  de 
Coimbra. 

Queriam  por  força,  e  á  viva  força,  casar- me, 
na  certeza,  diziam  ellas,  de  que  presenteariam 
a  noiva  com  uma  riquíssima  Jóia,  que  era  eu. 

Mas  eu  resistia,  sorrindo;  e  quanto  mais  re- 
sistia, mais  ellas  se  exasperavam  e  se  encarni- 
çavam no  seu  diabólico  propósito  de  engatadei- 
ras. . . 

—  «Não  me  engatem,  primas !  Não  me  enga- 
tem ! » 

—  «Ora,  deixe-se  d'isso.  Quinino  !  Isso  é  uma 
tolice.  Toda  a  gente  casa...  Porque  não  hade 
o  primo  casar  também?» 

—  aPorque  não  quero,  que  é  a  melhor  das 
razões !  Porque  me  sinto  bem  solteiro. . . » 


A  RUA  DO  OIRO  l63 

E  ellas  ?  Elias  porque  não  tinham  casado  ? 
Porque  também  não  tinham  querido,  muito  na- 
turalmente, e  estavam  no  seu  direito.  Não  por- 
que lhes  tivesse  faltado  occasião  para  o  fazerem 
com  acerto. 

A  esta  idéa  de  casamento,  que  ainda  lhes  sor- 
ria, ellas  sorriam  ainda.  A  mais  nova  de  todas, 
que  era  a  Prima  Aldegundes,  andava  quasi  a 
saltar  os  trinta  e  oito,  e  essa  mesma  já  estava 
condemnada  ao  celibato  pela  vida  inteira.  Mas 
não  perdiam  a  esperança. . . 

—  «Ninguém  diga  :  d'esta  agua  não  beberei...» 

E  fervorosamente  se  encommendavam,  todas 
ellas  em  fila,  de  joelhos  e  mãos  postas,  e  o  olhar 
em  alvo,  a  São  Gonçalo  de  Amarante,  casamen- 
teiro de  durázias. 

Emquanto  lhes  não  chegava  a  sua  vez,  iam 
entretendo  o  tempo  e  a  cobiça  com  arranjar  na- 
moros e  casamentos  para  os  outros,  e  com  isso 
se  consolavam.  Coadjuvadas  pelo  Primo  Theo- 
dosio,  que  as  acompanhava  na  desdita,  consti- 
tuíam como  que  uma  agencia  de  matrimónios  já 
acreditada  e  bem  afreguesada.  E  regalavam-se 
em  dizêlo. 

Pois  quem  tinha  arranjado  o  casamento  do 
Manoel  Torquato  com  a  Zulmirinha  Franco,  se 
não  ellas?  E  o  do  Barão  da  Terra-Chã  com  a 
D.  Elvira  Meyrelles,  naquella  idade,  mais  velha 


164  A  RUA  DO   OIKO 

do  que  elle,  que  já  era  velho  ?  E  a  filha  do  Con- 
selheiro Brito,  filha  única,  herdeira  de  tresentos 
contos  em  águias,  com  o  Jaymesinho  Silva  que, 
não  desfazendo  em  quem  se  achasse  presente,  era 
a  flor  dos  rapazes  finos  da  Ilha  ?  E  não  eram 
felizes,  todos  esses?  E  não  lh'o  tinham  agrade- 
cido ? 

Oh  I  se  eram. . .  Oh  !  se  tinham.  . . 
Então,  como  quem  lhes  abrisse  a  torneira  de 
um  banho  frio  de  chuva  sobre  os  penteados  de 
popa,   muito  complicados  e  lustrosos,   eu  per- 
guntava-lhes  : 

—  «E  quem  arranjou  o  casamento  do  José  Vi- 
ctorino  com  a  Magdalena  Avelar  ?  E  o  casamen- 
to do  General  Ayres  com  a  Maria  Demetilia  ?» 
Quem  tinha  sido,  quem  ? 
O  José  Victorino  e  o  General  Ayres  eram  os 
dois  grandes  bodes  expiatórios  dumas  intrigas 
amorosas  em  que  aquellas  minhas  primas  tinham 
andado  envolvidas,  com  flagrante  registo  na 
chronica  escandalosa  da  Ilha. 

Mal  eu  lhes  tocava  na  ferida,  iam  aos  ares, 
furiosas.  A  sua  responsabilidade,  nesses  casa- 
mentos que  promoviam,  acabava  aos  pés  do 
altar,  no  momento  em  que  o  padre,  lançando 
sobre  os  noivos  a  benção  da  Egreja,  pronuncia- 
va o  irremissível:  — «Eu  vos  conjugo I»  Era 
uma  responsabilidade  limitada. 


A   RUA   DO   OIRO  l65 

D'ahi  por  deante,  o  resto  era  com  elles — não 
com  ellas.  Se  os  casados  se  davam  bem,  se  se 
julgavam  e  eram  considerados  felizes,  muito 
gosto  tinham  em  declarar  bem  alto  que  a  ellas 
o  deviam.  Se  não,  não !  E  d'ahi  varriam,  muito 
peremptoriamente,  a  sua  testada. 

Depois,  já  ma's  serenadas,  acrescentavam: 
— «...Que   afinal   de  contas,  nem  o  General 
se   queixa,  nem  o  José  Victorino  está  arrepen- 
dido  .  .  í 

—  «Ora. .  Oral. . .  Pois  a  quem  queriam  as 
primas  que  o  General  se  queixasse  ?  Ao  Minis- 
tério da  Guerra,  talvez  ?  Faz  elle  muito  bem, 
que  um  general  nunca  deve  dar- se  por  venci- 
do..  .  Quanto  ao  José  Victorino,  claro  que  não  é 
elle  quem  deve  mostrar-se  arrependido :  quem 
deveria  mostrar-se  arrependida  era  a  Magda- 
lena  !» 

—  «O  primo  é  um  vivo  diabo  !»  concluíam  el- 
las, rindo. 

Riamos  todos,  riamos  muito,  muito  riamos  ! 
E  o  Primo  Theodosio,  que  já  desistira  de  me 
chamar  para  o  bom  caminho,  aconselhava  ás 
Primas  Rochas  e  ás  Primas  Noronhas  que  de- 
sistissem também  de  me  procurar  casamen- 
to, porque  perderiam  commigo  o  seu  tempo, 
como  já  o  tinham  perdido  com  a  Tia  Geno- 
veva : 


l66  A  RUA  DO  OIRO 

—  «Com  este,  primas,  não' fazemos  nós  fari- 
nha.» 

E  abandonavam-mc  á  teimosia  do  meu  celi- 
bato, cujas  tristezas  eu  desvanecia,  a  esse  tem- 
po, com  uma  rapariguinha  de  São  Matheus 
que  trouxera  para  a  cidade  sem  escândalo,  e  a 
quem  pozera  casa  numa  d'aquellas  ruasinhas 
discretas  de  Santa  Luzia,  onde  o  meu  peccado 
se  foi  anichar  com  recato,  entre  as  virtudes  fa- 
miliares e  tranquillas  do  alegre  bairro. 

Mas  a  Prima  Aldegundes,  voltando  atrás,  e 
como  o  Theodosio  e  as  outras  já  não  podessem 
ouvi-la,  embicava  commigo  afoitamente,  entre 
portas  : 

—  «Olhe,  Quinino,  sabe  que  mais?  Está-me 
a  parecer  que  o  primo  não  foi  fadado  para  o 
amor. . . » 

Eu  agarrava-lhe  então  ambos  os  punhos,  pu- 
xava a  para  mim  com  força,  sentia-a  toda  es- 
tremecer-me   nas  mãos,  dizia-lhe  entre  dentes : 

—  «Quer  experimentar,  prima  ?  Quer  experi- 
mentar ?» 

—  «Não  I  Não  !» 

E  emquanto  ella,  um  momento,  fingidamente 
se  debatia  para  desenvencilhar-se  de  mim,  eu 
pespegava-lhc  dois  grandes  beijos  na  face  es- 
braseada. 

Clandestinamente,   por  distração,  de  brinca- 


A  RUA  DO   OIKO  IÓ7 

deira,  sim,  minhas  senhoras,  c  com  immcnso 
gosto.  A  sério,  porém,  c  á  face  da  Egrcja,  mu- 
dava o  caso,  e  muito,  de  figura,  fiava  muito  mais 
fino.  Mulheres,  para  casar,  eram  todas  o  mes- 
mo !  E  eu  generalisava  esta  observação,  não  ad- 
mittia  excepções. 

Chegado  a  Lisboa,  uma  das  primeiras  recom- 
mendações  que  me  fizera  Fausto  Guimarães, 
amigo  certo,  fora  esta  : 

—  «Sobretudo,  Amaral,  livra-tc  das  ratoeiras 
para  noivos,  que  são  um  dos  maiores  perigos 
que  aqui  pôde  correr  um  rapaz  na  tua  idade  c 
nas  tuas  condições.  Toda  a  cautela  é  pouca.  Al- 
gumas d'essas  ratoeiras  são  habilmente  armadas 
por  pães  sem  escrúpulos,  que  muitas  vezes  sa- 
crificam os  seus  parcos  vencimentos  de  primeiro 
official  ou  de  guarda-livros  á  mise-enscène  das 
filhas,  passando  penúrias  de  portas  a  dentro, 
em  casa...  Depois,  ha  mistificações  d'este  gé- 
nero :  um  pae  consente  no  casamento  da  filha, 
estipulando-lhe  um  dote  de  trinta  contos,  nomi- 
naes.  Na  occasião  de  se  passar  o  contracto,  en- 
trega elle  ao  noivo,  muito  bem  embrulhados  e 
atados  com  uma  fita  côr  de  rosa,  trinta  contos 
em  acções  da  Companhia  Promotora  da  Agri- 
cultura ou  do  Banco  Lusitano . . .  Quando  o  noi- 
vo abre  o  embrulho,  já  o  casamento  está  feito, 
e  nunca  mais  as  acções  voltam  ao  par !» 


IÒ8  A  RUA  DO   OIRO 

Depois,  não  era  só  Fausto  que  me  punha  de 
pé  atrás.  Era  o  muito  que  eu  tinha  lido  e  ouvi- 
do em  desprestigio  das  mulheres  de  Lisboa. 

Afigurava- se  me  a  capital  uma  estranha  estufa 
onde  a  precocidade  feminina  faz  da  creança  re^ 
cemnascida  uma  rapariguinha  espevitada,  da  ra- 
pariguinha espevitada  uma  mulher  sabida,  e  da 
mulher  sabida  um  monstro  de  perfídia.  E  eu  sa- 
bia que,  em  volta  d'essa  mulher,  só  havia  estra- 
tagemas subtis  e  profundas  malicias,  cujo  segre- 
do era  só  d'ella,  e  onde  ella  se  mexia  e  remexia 
com  a  subtileza  perigosa  da  serpente  que  mor- 
de e  se  esgueira  para  o  seu  esconderijo,  sem  que 
ninguém  a  adivinhe. . . 

E  tanto  eu  estava  nesta  idéa,  e  tão  aferrado 
a  ella,  que  logo  no  primeiro  dia  considerei  D. 
Claudia  uma  vibora  e  Clarinha  uma  vibora  pe- 
quenina. 

Mas  não  fora  preciso  muito  para  que  eu  per- 
desse o  medo,  e  me  sentisse  attraido  paraaquel- 
le  ninho  de  viboras,  d' onde  Clarinha  se  desen- 
roscava  agora,  e  se  transmudava  aos  meus  olhos, 
como  numa  doce  e  luminosa  magica,  em  prin- 
cezinha  de  Perrault,  que  sete  fadas  houvessem 
dotado  com  o  melhor  que  tivessem :  a  formosu- 
ra, a  intelligencia,  a  graça,  o  bom-senso,  a  mei- 
guice, a  candura,  o  amor. . . 

No  meio   em   que   eu  a  encontrava,  em  que 


A   RUA  DO   OIRO  1G9 

ella  vivia,  e  ao  qual  eu,  agora,  procurava  ada- 
ptarme,  não  sem  renitência  e  sem  quebra  de 
enraizados  propósitos  de  dignidade  e  de  intran- 
sigência, o  convivio  de  Clarinha  offerecia-me  um 
suave  parenthesis  de  encanto  honesto,  de  grato 
repouso  e  de  refugio  amável,  intercalando  um 
pouco  de  poesia  na  grosseira  e  prosaica  mixor- 
dia  politica  que  o  Presidente  do  Conselho  e  o 
Padre  Eterno  mexiam  e  remexiam. 

Por  modo  que,  depois  d'aquelle  encontro  ines- 
perado com  D.  Claudia  no  Ministério,  em  que 
ella  me  dissera  que  já  Clarinha  estranhara  a 
minha  ausência  de  tantos  dias,  comecei  a  cor- 
rer, todos  os  dias,  com  uma  viva  pressa,  para  a 
Rua  do  Salitre. 

E  entrei  então  a  sentir,  a  ver,  a  observar  em 
mim,  nos  meus  movimentos,  nas  minhas  idéas, 
nas  minhas  hesitações,  nos  meus  actos,  uma 
mudança  exquisita  do  meu  estado  de  alma  — 
uma  coisa  nova,  absolutamente  nova,  que  eu  não 
sabia  precisar,  que  não  me  era  possível  definir, 
mas  que  me  dava  muita  alegria,  muita  vivacida- 
de, muito  bom  humor,  muito  estimulo. 


VI 


Numa  terça-feira,  que  ei'a  dia  de  grande  gala 
e  não  havia  Gamaras,  fui,  depois  do  almoço, 
com  todo  o  meu  vagar,  até  ao  Campo  de  Santa 
Clara,  para  vér  a  Feira  da  Ladra,  de  que  tanto 
ouvira  falar  e  não  conhecia  ainda. 

Estava  um  dia  lindo,  de  fins  de  março,  azul 
e  desanuviado. 

—  «Um  dia  creador!»  me  dissera  o  Poças,  á 
porta  do  Hotel,  onde  o  deixei,  especado,  na 
persistência  do  seu  namoro  com  a  mulher  da 
bata  ás  riscas. 

Eu  começara  então  a  percorrer  a  capital,  que 
até  ahi  se  tinha  limitado  para  mim  ás  ruas  da 
Baixa,  ao  Salitre,  e  a  São  Bento. 

Afastava-me  já  para  os  bairros  novos,  d'onde 
uma  nova   cidade  surgia,  em  ligeiras  e  breves 


172  A   RUA  DO   OIRO 

construcçÕes,  de  ripas  e  tijolo,  recobertas  de  es- 
tuques claros  e  alegres  azulejos. 

Procedia-se  a  um  plano  geral  de  melhoramen- 
tos que  abrangia  ruas,  praças,  jardins,  edifícios 
públicos  e  particulares,  organisando-se  projectos 
que  deviam  obedecer  a  todas  as  condições  mo- 
dernas e  rigorosas  de  higiene,  decoração,  com- 
modidade,  bom  gosto. 

Queria-se  uma  cidade  cheia  de  luz,  bem  ven- 
tilada, abastecida  de  aguas,  modelar  de  exgo- 
tos.  E  na  execução  do  amplo  e  magnifico  pro- 
gramma,  a  que  presidia  um  Conselho  de  sum- 
midades  diplomadas,  engenheiros,  architectos, 
vogaes  do  Conselho  de  Saúde  Publica,  todos 
com  opíparos  ordenados,  gratificações  á  larga, 
generosas  ajudas  de  custo,  deveria  attender-se 
aos  melhores  sistemas  de  deposito,  desinfecção, 
despejo,  remoção  de  liquidos  e  sólidos  ;  á  dre- 
nagem do  solo,  quando  paludoso  ou  carregado 
de  substancias  orgânicas ;  aos  melhores  proces- 
sos de  encanamentos  de  aguas  e  tubagem  de  il- 
luminação ;  á  amplidão  e  declividade  das  ruas; 
á  conducção  das  aguas  dos  telhados ;  á  altura 
das  edificações  em  harmonia  com  a  larguêsa  das 
vias ;  aos  chanfrados  dos  ângulos  das  esquinas. 

Eram  declaradas  de  utilidade  publica,  e  ur- 
gentes, grandiosas  expropriações,  pagas  sem  re- 
gateio, a  olhos  fechados,  pelo  preço  que  os  ex- 


A  KUA  DO  OIRO  IJJ 

propriados  quizessem.  Fixavam-se  alinhamentos 
e  davam  se  cotas  de  nivel,  tudo  admiravelmente 
estudado  e  calculado. 

Além  do  Governo,  precedendo  auctorisaçÕes 
legislativas,  e  da  Gamara  Municipal,  nos  termos 
do  Godigo  Administrativo,  grandes  empresas 
que  o  Estado  subvencionava,  isemptava  de  im- 
postos e  favorecia  ainda  com  garantias  de  juros, 
metiiam  hombros  titânicos  á  execução  do  mara- 
vilhoso plano,  que  se  afigurava  de  proporções  e 
molde  a  surprehender  o  próprio  Marquez  de 
Pombal,  se  elle  resuscitasse. 

Quem  pretendesse  construir  novos  edifícios  e 
reconstruir  os  antigos,  era  obrigado  a  observar 
disposições  e  regulamentos  apertadissimos,  no 
proveito  do  conjuncto  magnificente  que  se  pre- 
tendia dar  á  capital.  Se  os  terrenos  particulares 
confinavam  com  as  vias  publicas,  eram  os  donos 
constrangidos  a  nelles  realisar  as  edificações  que 
mais  conviessem  ao  embellezamento  das  vias,  e 
intimados  a  não  demorarem  o  cumprimento 
d'esta  deteriTÚnação  absoluta  além  de  um  certo 
praso,  que  lhes  era  dado.  Se  nos  novos  alinha- 
mentos o  proprietário  era  obrigado  a  recuar,  o 
Estado  indemnisava-o,  e  como  o  Estado  é  sem- 
pre «grand  seigneur»  quando  se  trata  de  indem- 
nisaçÕes,  houve  um  momento  em  que  todos  os 
proprietários  quizeram  recuar. . .  Se  um  prédio 


174  '^    í^UA   DO    OIRO 

ameaçava  ruina,  e  o  senhorio  teimava  em  não  o 
demolir,  a  Gamara  Municipal  munia -se  de  pica- 
reta, arremcttia  com  o  prédio,  e  deitava-o  abaixo 
á  custa  do  senhorio. 

Para  obter  a  purêsa  do  ar  atmosférico,  sub- 
sidiar empresas  constructoras,  agitar  os  capitães, 
evitar  sarrasfuscas  dos  operários  sem  trabalho, 
que  todos  os  dias  percorriam  a  Baixa  em  ban- 
dos precatórios,  com  estandartes  vermelhos  e 
ameaças  socialistas,  o  Estado  mandava  traçar 
novas  ruas,  rasgar  avenidas,  fazer  aterros,  plan- 
tar jardins. 

Como  a  cidade  não  fora  primitivamente  cons- 
truida  sobre  um  plano  regular,  que  previamente 
se  houvesse  fixado,  e  que  lhe  desse  configura- 
ção também  regular  e  arruamentos  simétricos, 
devendo  ao  acaso,  depois  da  reconstrucção  pom- 
balina, as  principaes  direcções  das  massas  edi- 
ficadas, havia  então  necessidade  de  alterar,  be- 
neficiar, alindar  o  que  já  existia  feito,  e  que  não 
era  possível  deitar  a  terra. 

Para  modificar  os  effeitos  da  impetuosidade 
dos  ventos,  recorria-se  ás  curv^as  de  grande 
raio.  Para  facilitar  o  escoamento  das  aguas, 
dava  se  ás  ruas  outra  inclinação,  augmentava-se 
o  numero  das  sargêtas.  Para  tornar  suave  o 
rodar  das  carruagens  e  o  piso  dos  peões,  refor- 
mavam-se    as    calçadas,   introduziam-se    novos 


A  RUA  DO  OIRO  l']5 

sistemas  de  empedramento,  derramava-se  um 
mar  de  asfalto  nos  passeios.  Para  attenuar  os 
grandes  calores  de  agosto,  e  alegrar  a  cidade, 
plantavam-se  arvores  de  folha  caduca  ao  longo 
das  ruas,  cobriam-se  de  accacias  as  avenidas. 

As  encostas  revestidas  de  vegetação  transmu- 
davam-se,  enchiam- se  de  fabricas,  armazéns, 
estancias. 

Assignado  o  fabuloso  contracto  com  Hersent 
para  as  obras  do  porto  de  Lisboa,  começava 
agora  a  realisação  d'esse  plano,  que  promettia 
um  sonho  de  riquêsas,  garantidas  pela  posição 
geográfica  e  pelas  excellencias  da  barra  e  da 
bahia  do  Tejo.  Em  todos  os  sentidos  se  cruza- 
vam as  vias.  férreas  interiores ;  um  immenso 
tunnel  abria  as  fauces  no  meio  da  cidade  e  re- 
cebia a  população  que  o  atravessava  e  se  alas- 
trava pelos  arrabaldes. 

Das  antigas  e  abandonadas  cercas  dos  con- 
ventos, arrancadas  as  laranjeiras  e  as  amendoei- 
ras, irrompiam  jardins  talhados  á  inglesa,  toda 
uma  nova  flora,  colorida  e  decorativa,  rebentava 
e  crescia  em  opulentos  macissos,  entre  farturas 
de  relvas  e  de  trepadeiras.  Onde  alguma  velha 
casa  histórica,  abalada  pelos  ventos  e  roída  pe- 
los carunchos,  se  aluía  e  desmoronava,  com  o 
ruído  cavo  de  traves  e  caliças,  logo  um  palácio 
de  nova  arte  se  erguia,  em  cantarias  brancas  e 


176  .A  RUA   DO  OIRO 

madeiras  frescas,  ao  som  matinal  e  cantante  dos 
escopros  e  dos  martelos. 

Nos  seus  aspectos  mais  tipicos,  na  sua  feição 
topográfica  e  esthetica,  Lisboa  transformava  se 
vigorosamente,  sem  que  nessa  evolução  apres- 
sada e  nervosa  attendesse  um  pouco  á  sua  pró- 
pria tradição,  nem  ás  suas  recordações  piedosas, 
nem  á  veneração  dos  seus  archeologos  e  dos 
seus  antiquários,  nem  ao  seu  inventario  históri- 
co,  nem   ao  respeito  devido  aos  seus  archivos. 

O  Poças  observara-me  : 

—  «Se  o  Amaral  quer  conhecer  ainda  a  Feira 
da  Ladra,  não  tem  tempo  a  perder.  Vá  lá. 
Aquillo  é  feira  que  está  já  no  levantar. . .  E  olhe 
que  vale  a  pena.  Desapparecendo  -ella,  com  ella 
terá  desapparecido  uma  das  mais  características 
instituições  do  reino.  Vá,  meu  amigo,  vá,  e  verá 
que  largo  campo  esse  de  divagação  e  entreteni- 
mento para  a  mais  exigente  fantasia  !» 

Porque  na  Feira  da  Ladra  se  encontrava  tudo, 
se  procurava  tudo  quanto  fosse  possivel  desejar 
em  matéria  de  objectos  já  servidos,  factos  velhos 
e  idéas  em  segunda  mão ;  roupas  usadas,  cal- 
çado gasto,  chapéos  acochichados,  trastes  euten- 
silios  da  mais  variada  espécie  e  dos  destinos 
mais  diversos. 

Na  Feira  da  Ladra  iam  alguns  dos  nossos 
mais  laureados  dramaturgos  e  romancistas  dcs- 


A  RUA  DO   OIRO  I  77 

encantar  o  cntrecho  das  suas  peças  mais  applau- 
didas,  a  intriga  dos  seus  romances  mais  palpi- 
tantes. 

Era  á  Feira  da  Ladra  que  as  noivas  cm  más 
circumstancias  iam  comprar  a  flor  de  laran.- 
gcira  com  que  ornrvam  a  fronte  para  o  ma- 
trimonio. 

Na  Feira  da  Ladra  se  encontravam,  em  excel- 
Icntes  condições,  fardas  de  ministros,  bastões  de 
marechaes,  dragonas  de  almirantes,  chumaços 
de  coronéis,  velhas  armas  e  barões  assignalados, 
em  perfeito  estado  de  conservação.  Quanta  no 
breza  fora  lá  buscar  os  seus  antepassados,  e 
quantos  titulares  de  lá  voltaram  trazendo  de- 
baixo do  braço  os  seus  brazões  I 

Grandes  oradores  parlamentares  e  sagrados 
iam  buscar  á  Feira  da  Ladra  os  melhores  dis- 
cursos e  sermões  de  José  Estevão  e  do  Padre 
António  Vieira,  que  depois  de  sacudidos  e  pas- 
sados a  ferro  eram  ouvidos  nas  Gamaras  ou 
em  sexta-feira  da  Paixão,  como  se  fossem  d'el 
les. . . 

Era  á  Feira  da  Ladra  que  as  nossas  socieda- 
des anónimas  iam  escolher  as  suas  mezas  de 
assembléa  geral,  e  onde  as  donas  das  hospeda- 
rias para  pernoitar  iam  adquirir  as  suas  mezi- 
nhas de  cabeceira. 

Era,  finalmente,  na  Feira  da  Ladra  que  alguns 


178  A  RUA  DO  OIRO 

dos  nossos  mais  profundos  pensadores  iam  be- 
ber da  fonte  que  ali  corria  perenne,  a  saciar-lhes 
a  sede  de  verdade  sobre  as  misérias  humanas. 

A  Feira  da  Ladra  fora,  por  largos  annos,  a 
Senhora  dos  Affliclos  para  todas  as  classes  e 
para  todos  os  cérebros  menos  abastados. 

—  «Desapparecendo  ella,  concluia  Poças,' 
sempre  desejarei  que  me  digam  se  toda  essa 
gente  que  ia  vestir-se,  calçar-se,  mobilar-se  e 
encontrar  idéas  na  Feira  da  Ladra,  ha  de  pas- 
sar a  vestir-se  no  Amieiro,  a  calçar-se  no  Serra, 
a  mobilar-se  no  Castanheira,  e  a  encontrar  idéas 
—  na  Academia !» 

Lá  ao  fim,  isolado  do  grande  movimento  da 
feira,  mettido  num  recanto,  junto  do  arco  de 
São  Vicente  de  Fora,  estava  um  pequeno  alfar- 
rabista com  o  seu  taboieiro  cheio  de  livros  ve- 
lhos, de  todos  os  formatos  e  grossuras,  crivados 
uns  pelas  traças,  outros  roídos  dos  ratos,  uns 
sem  principio,  outros  sem  fim,  e  todos  elles 
tresandando  a  espelunca  de  trapeiro,  d  onde  só 
deviam  sahir  ás  terças  feiras  para  aquella.  ara- 
gem, que  não  chegava  a  sacudir-lhes  o  bafio.  E 
enfiados  ao  alto  do  taboieiro,  entre  três  cordéis 
amarrados  á  ponta  de  dois  sarrafos,  muitos  fo 
Ihetos  d'essa  tão  pittoresca  e  ingénua  litteratura 
popular  da  Edade  Média  não  apagada  ainda, 
antes  conservada  e  transmittida  com  afinco  de 


A  RUA   DO   OIRO  1  79 

geração  em  geração,  através  de  uns  poucos  de 
séculos  de  transfc  rraaçÕes  sociaes,  sentiracn- 
taes,  intellectuaes:  eram  o  resumo  dos  antigos 
poemas  carlingios  e  arthurianos,  as  lendas  dos 
Santos  e  as  sátiras,  as  aventuras  facetas  e  os 
apparecimentos  de  monstros  —  a  Malícia  das 
Mulheres  e  a  Historia  dos  Três  Corcovados^  o 
Bertholdo  e  o  Cacasseno,  a  Don\ella  Theodoí  a 
e  a  Imperatri\  Porcina,  mulher  do  Imperador 
Lodonio  de  Roma. . .  — toda  uma  livraria  de  re- 
botalho grosseiramente  impressa,  e  ornada  de 
gravuras  que  me  pareciam  manifestações  de 
uma  esthetica  selvagem,  ou  pre-historica. 

Um. a  estampa  solta,  que  se  me  afigurou  va- 
liosa, attrahiu-me  a  attenção.  Inclinei-me  para 
vêr  melhor;  e  logo  o  alfarrabista,  percebendo 
talvez  que  encontrava  em  mim  o  primeiro  com- 
prador d'esse  dia,  a  puxava  de  baixo  deumpe 
daço  de  ferradura  que  a  livrava  do  vento,  c  m'a 
offerecia  a  exame  de  mais  perto,  quando  uma 
outra  mão,  de  alguém  que  chegara  nesse  mo- 
mento junto  do  taboleiro,  se  precipitou  sobre 
ella  e  a  arrancou  para  si. 

Voltei-me,  encarei  o  malcreado.  Mas  uma  es- 
pontânea alegria  me  desconcertou  no  repente  de 
azedume: 

— «Oh  I  Chico. . . » 

—  «Oh  !  Amarante  !» 


l8o  A  RUA  DO   OIRO 

E  cahimos  nos  braços  um  do  outro. 

Era  o  Chico  do  Patrocínio,  o  poeta,  o  meu 
caro  Chico  do  Patrocinio,  que  fora  meu  con- 
temporâneo de  Coimbra,  e  commigo  vivera,  e 
com  o  Fausto  Guimarães,  naqueila  mesma  e 
sempre  saudosa  republica  da  Couraça  dos  Após- 
tolos. Mas  como  elle  estava  dififerente  !  e  de  bi- 
gode rápido  I  E  que  tremenda  cabelleira  I  Era 
o  caso  de  lhe  perguntar  : 

—  «Mas  Chiquinho,  por  onde  tens  tu  andado, 
que  tão  bom  cabello  tens  creado?!» 

— eOra,  por  onde  tenho  eu  andado!  Na  lua, 
sempre  na  lua  I» 

— «E  que  tens  feito  ?» 

— «Versos!  Tenho  feito  versos...  Pois  que 
queres  tu  que  eu  faça  ? .  . . « 

E  o  curso  ?  Não  acabara  o  curso  !  Dois  annos 
no  quarto  anno,  e  nem  para  trás,  nem  para 
deante.  Tinha  sido  o  diabo,  tinha.  Mas  que  ha- 
via de  fazer  lhe  ?  Desistira,  esmurrara  o  Pimen- 
tel Gouveia  em  pleno  pateo  da  Universidade, 
fugira  para  Lisboa.  Era  amanuense  da  Biblio- 
theca  Publica. 

—  oMas  estás  magnifico,  sabes  tu?  Estás  pie- 
thorico  ! » 

—  íE'  certo.  Tenho  passado  admiravelmente.» 
— €  Ainda  comes  muito  bife  :» 

—  «E  muito  peixe,  muitos  ovos,  muitos  legu- 


A  RUA  DO   OIRO  l8l 

mes,  tudo  brutalmente,  em  doses  máximas !  Os 
versos  puxam  muito  por  nós,  é  preciso  dar-lhes 
que  puxar.» 

— «De  mais  a  mais,  chefe  da  nova  escola, 
tens  que  ter  hombros  largos. . . » 

—  «E  bom  pulso,  Amarante,  e  bom  pulso  ! 
que  isto  de  implantar  uma  escola  litteraria  em 
Portugal,  só  vae  a  socco,  sabes  tu?  e  socco  va- 
lente, para  a  direita  e  para  a  esquerda. .  .  Tens 
lido  os  nefelibatas  ?» 

— «Experimentei.  Não  consegui  entendê-los.» 

—  uNão  digas  isso  duas  vezes,  Amarante  !  E' 
uma  grave  oífensa  que  fazes  a  ti  mesmo.  Não 
nos  entender  é  ser  tolo  I  E  tu  não  és  tolo,  Ama- 
rante, tu  nunca  foste  tolo  !» 

— «Não  sei,  não  sei.. .  Eu  bem  quiz,  eu  bem 
lhe  fiz  a  diligencia,  mas  não  me  foi  possível, 
que  queres  tu  ?  De  resto,  já  um  de  vossês  o 
disse  :  Para  os  raros,  apenas...» 

— «Pois  por  isso  mesmo.  Quero  que  sejas  um 
d'esses  raros  apenas...  Tem  paciência.  Já  te 
não  largo  I» 

Metteu-me  o  braço,  arrastou-me. 

E  a  estampa  ?  A  estampa  não  valia  nada. 
Elle  não  a  queria,  nem  de  graça.  E  atirou  a  com 
desdém,  mas  desdém  de  quem  não  quer  com- 
prar. 

Lembrei  me  então  de  que  já  o  Chico  era,  em 


l82  A  RUA  DO  OIRO 

Coimbra,  muito  entendido  em  livros  e  gravuras 
antigas. 

— oE'  verdade,  tu  ainda  tens  aquella  mania 
de  bibliófilo,  que  tinhas  noutros  tempos  ?  de 
«Bibliófilo  Braga»,  como  te  chamava  o  Faus- 
to...» 

—  «Ainda,  ainda  I  E  complicada  agora  de  uma 
outra:  a  mania  do  bric-à-brac.  Até  faço  nego- 
cio. .  .  V 

—  «Pois  tu  também  me  sahiste  feno  velho,  ó 
Chico  do  Patrocínio?!» 

—  «Que  queres  I  E'  preciso  viver.  E'  preciso 
comer. . .  Muito  bife,  muitos  ovos  I  Custa  tudo 
um  dinheirão  !  E  não  era  com  dezoito  mil  e  oi- 
tocentos, que  recebo  da  Bibliotheca,  que  pode- 
ria aguentar-me. . .  Faço  eLtão  negocio. . .  Ando 
sempre  nisto.  A  pesquizar,  a  rebuscar,  a  fare- 
jar. E  como  tenho  bom  faro,  descubro  ás  vezes 
coisas  maravilhosas,  antigas.  E  aqui  para  nós, 
que  ninguém  nos  ouve,  e  porque  tu  sempre 
foste  discreto  como  um  tumulo  —  quando  as 
coisas  que  descubro  não  são  maravilhosas,  fa- 
ço-as  eu  maravilhosas. . . » 

Poeta  e  ferro  velho,  Chico  do  Patrocínio  pa- 
tenteou-se-me  então  como  um  producto  estra- 
nho, mas  perfeitamente  authenticado,  do  seu 
meio  e  da  sua  época. 

A'  revolução  que  eu  notava  na  topografia  da 


A  RUA   DO   OIRO  l83 

cidade,  no  tipo  das  suas  architecturas,  na  pró- 
pria composição  do  seu  ar  atmosférico,  cor- 
respondia, e  coincidia  nos  simptomas,  uma  ou- 
tra revolução  dos  costumes,  da  arte,  da  littera- 
tura  e  da  opinião. 

Nos  cruzamentos  da  raça,  na  transmissão  da 
sifilis  e  da  tuberculose,  nas  secretas  precauções 
da  lei  de  Malthus,  nos  abusos  do  prazer  mo- 
derno, anniquilavam-se  e  extinguiam-se  os  últi- 
mos representantes  directos  das  nobres  casas  e 
das  tradições  fidalgas. 

Na  agitação  dos  mecanismos  e  das  indus- 
trias, na  ramificação  frondosa  do.  commercio,  no 
estimulo  das  exposições  internacionaes,  nas  ex- 
plorações das  minas  e  da  Bolsa,  enriqueciam-se 
e  engrandeciam- se  os  burguezes. 

Na  corrente  das  idéas  ncvas  de  socialismo,  no 
desrespeito  dos  patrões,  no  incremento  das  co- 
zinhas económicas,  no  êxito  das  repetidas  gre- 
ves, o  operariado  conquistava  todos  os  privilé- 
gios e  todos  os  direitos. 

A  febre  do  dinheiro,  como  uma  febre  epide- 
mica,  atacava  indifferentemente  todas  as  clas- 
ses. 

E  fazia-se  dinheiro  de  tudo. 

O  Estado  vendia  as  colónias,  os  morgados 
vendiam  as  terras,  as  mulheres  vendiam  as 
jóias. 


1S4  A  RUA  DO  OIRO 

Trabalhava-se  o  menos  possível,  gosava-se  o 
mais  que  se  podia. 

Floresciam  então  os  bancos  hipothecarios,  os 
pregos  e  os  agiotas.  Quando  já  não  havia  que 
vender,  recorria-se  ao  empréstimo  ;  e  o  emprés- 
timo era  sempre  feito  com  as  máximas  garan- 
tias sobre  penhores  valiosos. 

Depois,  não  havendo  já  que  empenhar,  jcga- 
va-se.  E  entrava-se  então  no  periodo  áureo  das 
operações  da  bolsa,  da  loteria,  e  da  roleta. 

Feliz  com  mulheres,  infeliz  ao  jogo— o  por- 
tuguês perdia  ao  jogo  o  pouco  que  lhe  restava. 
Chegado  a  esse  extremo,  lançado  nessa  penú- 
ria, ficava-lhe  o  optar  por  uma  d'estas  duas  coi- 
sas: ou  pelo  trabalho,  ou  pelo  suicídio.  E  a  per- 
centagem dcs  suicidas,  sobre  aquelles  que  se 
decidiram  pelo  trabalho,  foi  uma  coisa  pavorosa, 
que  vinha  contada,  todas  as  manhãs,  nas  folhas. 

A  meio  deste  escalavro,  emergindo  doestas 
ruinas,  calcando  este  montão  de  destroços  e  ca- 
dáveres, appareciam  então,  numa  aureola  de  ju- 
bilo, de  bem-estar,  de  desafogo,  radiantes  c  né- 
dios, os  intermediários.  E  estes  intermediários 
eram:  os  ministros,  que  estipulavam  e  contra- 
ctavara  a  transmissão  do  dominio  português 
para  a  posse  do  Estrangeiro ;  os  banqueiros,  que 
promoviam  na  Bolsa  a  alta  e  a  baixa  dos  nos- 
sos fundos  públicos,  á  medida  dos  seus  desejos- 


RUA  DO   OIRO  l85 

OS  cambistas,  que  faziam  andar  a  roda  das  lo- 
terias;  os  prestamistas,  que  dos  juros  onzenei- 
ros constituiam  novos  capitães;  os  commissarios, 
que  tratavam  de  despejar,  por  todo  o  preço, 
nos  toneis  de  Bordéus  as  adegas  necionaes;  fi- 
nalmente, os  ferro  velhos,  que  dos  solares 
d'onde  se  desalojavam  os  últimos  fidalgos,  e 
dos  mosteiros  onde  morriam  as  derradeiras 
freiras,  tudo  compravam,  tudo  levavam,  tudo 
varriam —  mobiliários,  tapeçarias,  jóias. . . 

E  como  não  ha  miséria  que  não  desande  em 
fartura,  a  miséria  de  uns,  neste  caso,  desandava 
em  fartura — para  os  outros. 

— -A  cccasião  era  esplendida  I»  dizia  me  o 
Patrocinio.  Estava  tudo  a  liquidar.  Arranjei 
um  sócio,  puz  então  um  estabelecimento  de  pri- 
meira ordem  no  seu  género.  Has-de  lá  ir,  tem 
muito  que  vêr.  E'  na  Avenida,  a  Grande  Liqui- 
dadora. Seis  salas  enormes,  e  um  pateo  tam- 
bém enorme,  que  mandei  cobrir  de  zinco  e  vi- 
dro, tudo  atulhado  de  coisas  antigas,  precio- 
sas... Vale  a  pena.  Como  a  maior  parte  do 
velho  mobiliário  andava  maltratado  pelos  netos 
e  bisnetos  dos  primitivos  donos,  foi  necessário 
montar  uma  officina  só  para  restaurar  todos  es- 
ses moveis,  e  nella  tenho  restaurado  tudo..    » 

— «Es  ainda  capaz  de  fazer  a  restauração_de 
Portugal !» 


l86  A  RUA   DO   OIRO 

—  «Olé!  se  sou.  ..  Havendo  quem  pague.» 
Tínhamos    sabido    já    do    Campo    de    Santa 

Clara,   para   baixo.    Aquillo    estava   visto.   Era 
uma  triste   coisa,  afinal,  essa  Feira  da  Ladra, 
um  afflictivo  espectáculo.  Dir-se  ia  o  montão  de 
tarecos  de  uma  familia  desditosa  de  empregado 
publico,  que  não  poderá  pagar  a  renda  do  ul- 
timo semestre,  e  a  quem  o  senhorio  dera  man- 
dado de  despejo,  pozera  no  olho  da  rua. 
— «Conheces  a  historia  do  teu  paiz,  ó  Chico?» 
— «Um  poucochinho. .  .  pelos  trastes  !» 
Apontei   com   a   bengala   para  cima,  onde  se 
estendia  a  Feira,  comparei  não  sem  magua: 

—  o  Pois  ali  tens  tu  a  melhor  e  a  mais  triste 
sinthese  d'essa  nossa  historia  :  a  familia  do  em- 
pregado publico  é  a  nossa  familia  portuguesa  ; 
o  senhorio  avaro  é  a  Inglaterra;  e  o  montão  de 
tarecos  o  nosso  pobre  espolio.  Espera  outro  ul- 
timatum,  que  será  o  mandado  de  despejo,  e  ve  • 
rás  como  vamos  todos  para  o  olho  da  rua. . .» 

Entretanto,  e  ainda  para  muitos,  a  vida  ia  ro- 
lando satisfatoriamente,  como  se  o  fosse  sobre 
rodas  de  cautchu,  nas  molas  commodas  e  suaves 
dos  laudaus  modernos. 

Toda  essa  gente,  que  ninguém  síjbia  quem 
era,  nem  d'onde  vinha,  nem  como  enriquecera, 
e  que  era  hoje  a  gente  da  alta  finança,  a  gen- 
te do  alto  commercio,  a  gente  da  alta  roda,  e 


A  RUA  DO   OIRO  187 

que  era  queai  dava  as  cartas  do  bom  gosto  e  do 
bom  tom,  imprimia  á  cidade  e  á  vida  de  Lisboa 
UTi  caracter  novo,  em  tentativas  e  ensaios  de 
cosmopolitismo  galante,  trazendo  e  implantando 
do  Estrangeiro,  no  regresso  das  viajens  (que  a 
frequência  dos  expressos  e  as  regalias  dos  sle- 
epings  tornavam  commodas  e  fáceis)  modas  e  gé- 
neros de  chiquismo,  de  mundanismo,  de  pari- 
sianismo. 

Obtida  uma  fortuna,  que  apparecia  consoli- 
dada de  um  dia  para  outro,  sem  que  a  ninguém 
importasse  saber  como  aquillo  fora ;  arranjado 
um  titulo  de  nobresa  com  a  mesma  facilidade 
que  ha  em  adquirir  um  titulo  da  Divida  Publi- 
ca;  construido  á  pressa  um  palácio  com  os  ma- 
teriaes  ligeiros  e  a  mão  de  obra  rápida  das  enii- 
preitadas  de  fancar  ia  \  recheiada  essa  residência 
de  formosos  moveis,  tapetes  acariciadores,  bron- 
zes de  arte  e  porcelanas,  marfins  e  barros  es- 
culptados,  rendas  e  esmaltes ;  contractada  uma 
mestra  inglesa  para  as  creanças,  e  um  cozinheiro 
francês  para  os  folhados  —  tinha- se  grangeado 
uma  prompta  nomeada  de  elegância  e  distinc- 
ção,  figurava  se  nas  primeiras  linhas  do  hig-hlife 
dos  jornaes,  ganhava-se  a  votação  dos  plebis- 
citos mais  exigentes  em  matéria  de  refinadas 
elegâncias,  dispunha-se,  como  appetecia,  da  opi- 
nião ... 


l88  A  RUA  DO   OIRO 

Essa  gente  promovia  todas  as  festas  aristo- 
cráticas, cobria  as  assignaturas  de  São  Carlos, 
dava  batalhas  de  flores,  andava  em  caçadas,  or- 
ganisava  regatas,  inaugurava  o  gosto  das  corri- 
das de  cavallos  e  reconstituia  toiradas  de  fidal- 
iéos  á  antiga  portuguesa,  fazendo  ella  os  fidalgos. 

Essa  mesma  gente  estimulava,  sob  o  patro- 
nato do  seu  dinheiro  e  da  sua  impostura,  as  ex" 
posições  de  arte,  de  pintura  e  de  esculptura,  en- 
commendava  os  seus  retratos  aos  pintores  recém- 
chegados  dos  pensionatos  de  Paris,  subscrevia 
a  lista  de  fundadores  da  Real  Associação  dos 
Amadores  de  Musica,  enchia  os  primeiros  thea- 
tros  nas  noites  de  primeiras  recitas. 

E  a  cidade  ostentava  um  ar  de  alta  vida,  en- 
caixilhando de  oiro  o  quadro  d'essa  geração  es- 
pontânea, que  conseguia  dar  a  illusão  de  uma 
boa  sociedade,  rica  e  distincta  desde  o  berço  — 
admittindo  que   ella  houvesse  tido  um  berço . . . 

—  «Jantas  hoje  commigo  !•  intimou-me  o  Pa- 
trocínio, quando  chegávamos  ao  Largo  do  Mu- 
seu de  Artilheria,  onde  devíamos  esperar  o  ame- 
ricano. Mas  tinha  passado  um  naquelle  mesmo 
instante,  que  ainda  avistámos  ao  longe,  e  d'ahi 
até  que  tornasse  a  passar  um  outro,  tínhamos  que 
esperar. 

—  «Não  esperamos  !  disse  eu.  Vamos  andando 
a  pé.  Até  appetece,  com  este  tempo.» 


A  RUA  DO   OIRO  1  89 

E  fomos  andando  a  pé.  Andando,  e  conver- 
sando. 

O  Chico  fora  sempre  um  grande  cavaqueador. 
Em  Coimbra,  fizera  elle  os  primeiros  annos  de 
Direito  a  conversar.  Elle  mesmo  o  dizia,  á  hora 
de  entrar  para  as  aulas:  —  «Vamos  então  lá  a 
essa  conversa  I» 

Tinha  graça,  tinha  pilhas  de  graça,  e  tinha 
mais  que  graça :  tinha  pilhéria.  Dentro  do  seu 
pequenino  cérebro  redondo,  que  eu  conhecera 
quasi  rapado,  á  escovinha,  as  idéas,  sempre  sa- 
cudidas, faziam  um  barulho  jovial,  tlitante,  de 
bolinhas  de  metal  dentro  de  um  guiso.  Diver- 
tianos.  Divertia  os  lentes. 

Nas  aulas,  o  seu  sisterra  era  este:  applicava- 
se  com  afinco  ao  estudo,  emquanto  não  era  cha- 
mado á  primeira  lição.  E  a  sua  primeira  lição  era 
sempre,  invariavelmente,  estupenda  de  sabedo^ 
ria.  Já  então  o  lente  não  o  perdia  de  vista,  adi- 
vinhando um  portento.  D"ahi  em  deante,  não  lia 
mais  uma  pagina,  não  abria  mais  um  compen- 
dio, desdenhava  a  sebenta.  Podia  depois  ser  cha- 
mado quantas  vezes  quizessem :  estava  sempre 
prompto  —  para  a  conversa. 

D' uma  vez,  num  exame,  não  me  lembra  já  de 
quê,  teve  o  Chico  o  presentimento  de  que  sahia 
reprovado.  Um  dos  lentes  trazia  o  então  de  pon- 
ta, por  causa  d"uma  famosa  sátira  que  elle  lhe 


190  A  RUA  DO  OIRO 

dirigira  e  publicara  na  Ca^ra.  Não  lh'o  perdoa- 
ria. E  aquelle  seria  o  momento  da  revindicta. 

Chegou-se  ao  acto ;  chegou  a  vez  ao  lente  de 
o  interrogar.  O  lente  era  o  Pedróza,  muito  ver- 
sado e  tido  por  auctoridade  em  questões  de 
filologia,  grande  defensor  da  ortografia  sónica, 
incapaz  de  perdoar  ao  próprio  pae  a  imprópria 
collocação  de  um  acento  tónico. 

Todos  lhe  conheciam  o  fraco.  E  a  propósito 
de  já  não  sei  quê  também,  logo  que  elle  come- 
çou a  interrogar  o  Chico,  aconteceu  falar-se  da 
Oceania,  que  o  Pedróza  dizia — «Oceânia.» 

— oPerdão,  Oceania. . . »  dissera  seccamente  o 
Chico  do  Patrocínio. 

O  Pedróza  deu  um  salto  na  cathedra : 

— «Oceânia,  se  me  dá  licença  !» 

Sem  pestanejar,  o  Chico  repontou : 

— aEu  digo  —  Oceania...  Vossa  Excellencia 
dirá  como  entender.» 

— «Mas  porque  diz  o  senhor  Oceania,  e  não 
quer  dizer  Oceânia,  que  é  como  deve  dizer-se?p 

—  «Porque  Oceania  me  sôa  muito  melhor  ao 
ouvido. . . » 

O  Chico  considerou,  de  soslaio,  a  areia  que 
corria  na  ampulheta.  E  ainda  disse : 

—  «Vossa  Excellencia  terá  então  a  bondade  de 
esclarecer-me  no  meu  erro.  Eu  só  desejo  acer- 
tar.. .  Mas  será  necessário  que  Vossa  Excellen- 


A  RUA  DO   OIRO  IQI 

cia  me  convença  de  que  sou  eu  que  realmente 
estou  em  erro. . .  » 

E  não  disse  mais  nada.  Nem  foi  preciso  mais 
nada.  O  Pedróza  esticou  os  punhos,  atirou  os 
braços  pela  meza  fora,  caiu  a  fundo  na  questão 
do  acento. 

Oceânia,  e  não  Oceania  !  O  facto  de  muita 
gente  dizer  Oceania,  não  era  razão  bastante  para 
que  não  se  devesse  dizer  Oceânia.  . .  E  ahi  vae 
elle,  o  Pedróza,  por  essa  etimologia  fora,  como 
um  cavallo  que  torrou  o  freio  nos  dentes,  largou 
a  toda  a  brida  I  Esqueceu  o  exame,  esqueceu  a 
areia  que  corria  na  ampulheta,  esquecera  a  sá- 
tira do  Patrocinio  na  Cabra. . . 

Quando,  passada  a  hora,  o  Pedróza  serenou, 
se  recostou,  deu  outro  puxão  aos  punhos  e  dis- 
se, soberanamente  concludente; — (íErgo...  Oceâ- 
nia e  nunca  Oceania!» — já  o  Patrocinio  adquiri- 
ra a  certeza  de  que  licava  approvado. 

O  Presidente  tocara  no  braço  ao  Pedróza.  E 
só  então  o  Pedróza  cahíra  em  si.  Mas  tinha  pas- 
sado a  hora.  Fora  comido.  Ainda  teve  um  repe- 
lão. E  a  sátira  ?  Já  não  era  tempo.  Deixa-lo  ! 
Não  se  perdera  tudo.  Oceânia,  e  não  Oceania . 
Ficara  o  acento  no  seu  devido  logar. 

— «Estou  satisfeito  I»  disse. 

Não  estava.  Isso  sim  I  Mas  era  como  se  esti- 
vesse. E  quando  todos,  rindo  á  socapa  d'aquella 


192  A  RUA  DO  OIRO 

deliciosa  mistificação  do  Patrocinio,  imaginavam 
que  não  lhe  restava  outra  coisa  a  fazer  senão  le- 
vantar-se,  cumprimentar  o  jury,  e  passar  ao  ter- 
ceiro anno  de  Direito,  ainda  se  ouviu  elle  dizer 
para  o  Pedróza,  dobrando-se  todo  para  a  frente, 
estendendo  os  braços  e  espalmando  as  mãos 
para  trás,  numa  profunda  contumelia : 

—  «Tcimbem  eu  estou  satisfeito!» 

Andando  e  conversar  do,  tínhamos  chegado  ao 
Terreiro  do  Paço.  Cortámos  pela  Arcada,  pas- 
sámos á  porta  do  Ministerip  da  Justiça,  entrá- 
mos na  Rua  do  Oiro. 

Eram  quasi  cinco  horas. 

Junto  do  marco  postal  que  estava  á  esquina 
da  Rua  dos  Capellistas,  o  Chico  detivera-se  e 
detivera-me  um  instante,  tirara  o  largo  chapéo 
de  feltro,  de  copa  alta  e  fendida  ao  meio,  met 
terá  os  dedos  recurvos  pela  grenha  negra  e  lus- 
trosa, que  lhe  cobria  o  pescoço,  o  collarinho  e 
as  orelhas,  tornara  a  pôr  o  chapéo  de  melhor 
geito,  um  pouco  ao  lado,  mais  fendido  ao  meio. 
Ainda  olhou  as  botas,  que  queriam  ser  engraxa- 
das. Mas  não  fazia  ao  caso.  Ora,  ninguém  lhe 
olhava  para  os  pés.  Aquella  cabelleira  offuscava 
o  resto. 

— «Que  tal  ?» 

— «A'  devida  altura  !  approvei  eu.  E  acrescen- 
tei : —  Pareces  um  tenor!» 


A  RUA  DO  OIRO  IQS 

Metteu-me  o  braço,  entrámos  na  Rua  do  Oiro, 
como  num  paiz  conquistado. 

Dir-se-ia  o  céo  mais  azul  e  o  próprio  ar  mais 
tépido.  Andava  na  rua  um  formigueiro  de  gente 
bem  posta,  arrastando  os  pés  no  asfalto  dos  pas- 
seios, entrando  e  sahindo  das  lojas,  parando 
instantes  no  exame  das  vitrines,  formando,  aqui 
e  ali,  pequenos  grupos,  sacudindo  apertos  de 
mão,  trocando  beijos  e  risadas,  falando  alto,  su- 
blinhando frases,  remoinhando  bengalas,  ator- 
mentando cabos  de  sombrinhas,  riscando  fósfo- 
ros, acendendo  charutos.  Fru-frus  de  ricas 
saias,  perfumes  de  boa  marca,  maciesas  de  ve- 
ludos, caricias  de  pelles  de  bicho,  revoluteios  de 
plumas,  rangidos  de  botinas,  coruscações  de 
jóias,  tudo  se  misturava  e  se  fundia  num  zum- 
bido e  numa  cocega  que  nos  percorria  os  senti- 
dos, a  breve  trecho  excitados  pelo  cubicar  e  pelo 
roçar  das  mulheres  em  grande  numero,  umas 
bonitas,  outras  feias,  umas  formosas,  outras  hor- 
rendas, e  todas  ellas  corrompidas  na  provoca- 
ção do  outro  sexo,  na  scintilla  histérica  dos 
olhos,  na  sasonada  intumescência  dos  seios,  no 
dolente  saracoteio  dos  quadris,  na  fragilidade, 
quasi  quebradiça,  da  cinta,  na  minúscula  esqui- 
sitice do  pé,  na  astúcia  destra  dos  gestos  e  das 
attitudes. . . 

— «Céo  azul,  riso  amarello  !  Aqui   tens  tu  — 

13 


94  A  RUA  DO  OIRO 

dizia-me  o  Chico  —  o  lemma  de  uma  nacionali- 
dade como  a  nossa,  que  não  pôde  ter  no  grande 
concerto  europeu  mais  que  uma  parte  muito  li- 
geira, e  que  tem  de  resignar-se  á  condição  se- 
cundaria que  lhe  cabe,  contentando  se  com 
pouco  em  tudo,  desde  as  chamadas  despezas 
de  representação,  até  ás  mais  Ínfimas  e  vagas 
despezas  geraes,  que  no  diário  d'esta  sociedade 
anónima,  onde  a  gente  se  aborrece,  representam 
as  pequenas  verbas  de  bom  humor  com  que 
cada  um  de  nós  concorre  para  o  custeio,  pouco 
espiritual,  da  vida  de  Lisboa  ! » 

Eu,  porém,  observava  : 

— «Mas  toda  esta  gente,  todos  estes  janotas, 
todas  estas  mulheres,  têm  o  ar  feliz  de  quem 
gosa  a  vida  o  mais  que  pôde,  e  parece  pode- 
rem gosa-la  exuberantemente. . . » 

— «E'  o  clima,  Amarante  !  E'  este  riquissimo 
clima ! » 

Muito  empoleirado  na  sua  própria  pessoa, 
dando-se  uma  grande  linha  de  superioridade  em 
que  quasi  se  podia  acreditar,  envolto  na  nuvem 
de  fumo  do  seu  charuto,  como  convinha  e  com- 
petia a  um  deus,  attrahindo  olhares  e  provo- 
cando sorrisos,  Chico  do  Patrocínio  transfigu- 
rara-se,  de  repente,  aos  meus  olhos,  sem  que 
eu  soubesse  como,  levando  o  pelo  meu  braço.  O 
ferro-velho  dava  logar  ao  chefe  da  escola  nefe- 


A  RUA  DO  OIRO  igb 

libata.  E  eu  levava  agora,  pelo  meu  braço,  o 
poeta  da  moda.  E  senti-me  lisongeado.  Eu 
mesmo  senti  que  partilhava  da  sua  notoriedade 
e  do  seu  triumfo. 

A'  porta  das  livrarias,  muitos  rapazes,  tam- 
bém de  guedelha  comprida,  de  capinhas  curtas 
ou  de  sobrecasacas  enormes,  de  grande  roda, 
com  espantosas  flores  ao  peito,  uns  de  luneta, 
outros  de  monóculo,  cumprimentavam  o  Chico 
com  reverencia. 

Outros,  do  sport,  esguios,  de  calça  muito 
justa,  entalados  em  collarinhos  altos,  reluzentes 
como  vidros,  luvas  amarellas,  acenavam-lhe  de 
longe,  com  a  mão  alta,  familiares. 

Algumas  mulheres  correspondiam  com  af- 
fecto,  entreabindo  os  lábios,  mostrando  os  den- 
tes, aos  rasgados  cumprimentos*  com  que  o 
Chico  se  dignava  obsequia-las. 

E,  de  mais  em  mais  animado,  sem  despegar 
da  conversa,  que  apenas  entrecortava  de  bre- 
ves cortezias  e  risonhos  gestos  para  a  direita  e 
para  a  esquerda... — «Como  estás  tu  ..  Adeus, 
ó  Fialho. . .  Minha  senhora. . .  Creado  de  Vossa 
Excellencia. . .» — o  Chico  proseguia  na  mesma 
ordem  de  considerações. 

Ainda  os  mais*pessimistas  eram  obrigados  a 
reconhecer  que  em  muitos  dias  de  agosto  não  se 
nos  mostrava  o  céo  tão  azul  como  o  tínhamos 


196  A   RUA   DO    OIRO 

visto  nesses  últimos  dias  de  março,  restos  d'um 
inverno  em  que  —  segundo  o  discurso  da  Co- 
roa, do  qual  não  seria  licito  duvidar  —  nem  se- 
quer tinham  esfriado  as  nossas  relações  diplo- 
máticas com  as  nações  onde  o  thermometro 
baixara  vinte  e  cinco  graus  abaixo  de  zero.  Só 
aquelles  que,  porventura,  soífressem  de  dalto- 
nismo,  poderiam  querer  convencer-nos  de  que  á 
vista  dos  seus  olhos  apparecia  arroxeado  e  som- 
brio o  céo,  anilino  e  limpido,  que  a  nossa  vista 
alcançava,  de  norte  a  sul,  e  de  leste  a  oeste. 

Esse  chamado  «horisonte  tenebroso»  da  pu- 
blica administração,  não  era  mais  que  um  tropo. 
A  muito  conhecida  «atmosfera  carregada»  da 
nossa  eterna  questão  colonial,  não  era  senão  um 
effeito  de  theatro  applicado,  já  com  pouco  êxito, 
á  rhetorica  parlamentar,  velho  panno  de  fundo 
esmaecido. 

— «E  todavia,  vês  tu,  sob  este  céo  azul  que 
felizmente  nos  cobre,  e  no  desfructe  amável  das 
instituições  que  felizmente  nos  regem,  nem  o 
animo  nos  chega  para  grandes  enthusiasmos, 
nem  a  alegria  nos  dá  para  grandes  explosões. . . 
Assim  como  a  temperatura  do  clima  nos  não 
deixa  experimentar  a  sensação  dos  mais  inten- 
sos frios,  assim  a  dosagem  dó  humor  nos  não 
permitte  a  bemaventurança  das  fortes  hilarieda- 
des.   A  todos  os  respeitos,  vogamos  em  aguas 


A  RUA  DO  OIRO  I97 

mornas  —  quer  a  metáfora  alluda  á  nau  do  Es- 
tado, quer  se  refiia  ao  batel  da  nossa  fantasia  !» 

Tc  da  a  vida  portuguesa  estava  sendo  bem 
uma  parodia,  de  que  só  a  muito  custo  se  salva- 
vam poucos  factos  e  poucas  individualidades.  Na 
politica  e  na  sciencia,  nas  artes  e  nas  lettras,  na 
moda  e  no  dandismo,  a  parodia  florescia,  como 
a  laranjeira  ao  scl.  Regulamentos  e  leis,  theo- 
rias  e  problemas,  seitas  e  escolas,  estilos  e  gra- 
vatas, tudo  isso  assimilava,  imitava,  adaptava 
ao  meio,  macaqueava,  emfim,  quanto  de  fora 
nos  vinha  na  corrente  impetuosa  das  opiniões, 
nos  artigos  das  revistas,  nos  jornaes  de  figuri- 
nos, nos  mostruários  dos  caixeiros  viajantes. 
Cada  qual  se  julgava  no  direito  de  trazer  para 
a  rua  um  paradoxo  de  Max  Nordau  com  o 
mesmo  enbonpoint  com  que  poderia  envergar 
uma  sobrecasaca  do  allaiate  Amieiro.  Trazia-se 
á  flor  dos  lábios  um  dito  de  fim  do  Figaro 
como  quem  pozesse  na  lapela  uma  camélia  do- 
brada . , . 

— «Uns  bonifrates,  Amarante !  Uns  bonifra- 
tes  que  vivem,  comem,  bebem,  vestem  e  pas- 
seiam por  Lisboa,  pela  simples  razão,  para  cada 
um  d'elles,  de  ver  fazer  o  mesrro  aos  mais.  São 
bonecos  de  engonços,  são  fantoches,  são  saguins 
de  realejo — tudo  quanto  procura  imitar  alma 
christã  pondo  as  mãos  no  ar  !» 


198  A  RUA  DO  OIRO 

Adaptava-se  o  bonifrate  aos  mais  diversos 
meios  ;  accommcdava-se  o  bonifrate  a  toda  a 
ordem  de  principies  ;  invadia  o  bonifrate  as  mais 
variadas  profissões  ;  fingia  assimilar  o  bonifrate 
as  idéas  mais  complexas. 

Na  politica,  o  bonifrate  seria  tudo  quanto 
dentro  d'esse  ramo  de  actividade  humana  fosse 
possivel  ser-se :  galopim,  presidente  de  as 
Sembléa  eleitoral,  representante  em  Cortes,  re- 
lator de  pareceres,  leader  da  maioria,  ministro, 
presidente  de  Conselho  !  Na  sciencia,  seria  o 
medico,  seria  o  mathematico,  seria  o  botânico, 
seria  o  fisico,  seria  o  zoologo.  Nas  artes,  seria 
o  que  pinta,  o  que  esculpe,  o  que  entalha,  o 
que  musica.  Nas  lettras,  seria  o  poeta,  o  dra- 
maturgo, o  romancista,  o  polemista,  o  articu- 
lista. . . 

— aEm  Lisboa,  o  bonifrate  nasce,  vegeta, 
cxhibe-se  e  triumfa,  sem  mais  funcçÕcs  nem 
mais  esforço  que  o  cogumelo,  desde  que  ir- 
rompe do  solo  até  que  é  metlido  em  latas,  de 
conserva.  E"  de  geração  espontânea,  e  não  tem 
vontade  própria.  Dentro  do  seu  cérebro  só 
existe  uma  faculdade  :  a  velhacaria.  E  essa  é  a 
mola  real,  a  potencia  motora  de  todo  o  seu 
modo  de  ser.  .  Ninguém,  como  elle,  para  fazer 
passar  por  sua  a  idéa  que  outro  teve,  nem  para 
vestir  pelo  figurino  por  que  outro  veste.» 


RUA  DO  OIRO  199 

Eu  tentava  respirar.  Mas  não  me  era  pos- 
sível. O  Chico  acolchetava-se  mais  ao  meu 
braço,  redobrava  de  loquacidade : 

—  «E'  isto,  Amarante,  é  isto!  Nem  ha  que 
sahir  d'aqui.. .  Nem  tu  vês  por  ahi  outra  coisa. 
Os  antepassados  uns  espantalhos,  os  descen- 
dentes uma  sucia  !» 

— «E  os  nefelibatas  :» 

. — fOs  nefelibatas  não  contam.  Somos  creatu- 
ras  á  parte.  Somos  os  poetas,  fugidos  da  chol- 
dra d'esta  prosa  para  o  refugio  do  nosso  sonho. 
Achámos  a  dôr  voluptuosa,  e  deitámo-nos  nos 
seus  braços  . .  Os  poetas  foram  sempre  de  to- 
dos os  tempos.  Somos  de  todos  os  tempos.  La- 
martine  ou  Mallarmé,  Soares  de  Passos  —  ou 
eu...  tanto  monta,  tanto  faz  I  A  alma  de  um 
poeta  só  transmigra  para  outro  poeta.  Em  nós, 
apenas  o  invólucro,  o  vil  invólucro,  muda.  Ape- 
nas mudam  as  formas.  Ainda  ha  pouco,  na 
Feira  da  Ladra,  me  dizias  tu  quç  não  eras  ca- 
paz de  perceber  os  nefelibatas...  E  não  és  só 
tu,  é  toda  a  gente.  Que  admiração!  Pois  se  até 
nós  nos  não  percebemos  uns  aos  outros. . .  Ora 
nisto  é  que  está  toda  a  nossa  força,  nisto  con- 
siste o  nosso  disfarce.  Simples  questão  de  for- 
mas. Simples  questão  de  metros  e  de  rimas. 
Que  importa  que  Delfina  se  chame  agora  Brio- 
lanja  ?  Nada.  Não  importa  nada  I  Não  quer  di- 


200  A  RUA  DO  OIRO 

zer  nada!  Mas  imagina  tu  que  eu  apparecia 
agora  em  Lisboa  de  calça  côr  de  flor  de  alecrim 
e  de  bigode  e  pera,  a  fazer  poesias  pela  medida 
e  na  toada  das  Flores  d'Alma,  quando  já  nin- 
guém sequer  se  lembra  do  Dom  Jayme,  que  ha 
tanto  tempo  passou  de  moda !  Corriam-me.  Po- 
sitivamente, corriam-me  !  E  o  que  fiz  eu  então  ? 
Rapei  a  barba,  puz  este  chapéu,  e  implantei  a 
nova  escola.  .  .  Agora,  e  depois  d'esta  elucida- 
ção amiga,  para  os  raros  apenas,  folheia  os  ne- 
felibatas, e  verás. . .  Lá  tens  as  mesmas  flores 
d'alma,  que  se  alteiam  bellas,  puras,  singelas, 
orvalhadas,  vivas  I  As  mesmas,  as  mesmas. 
Simplesmente,  em  vez  de  se  chamarem  Flores 
d' Alma,  chamamos-lhes  —  Silva  isotérica. . . » 

Não  havia  remédio  senão  dar-lhe  razão.  Assim 
era.  O  Chico  punha  as  coisas  em  pés  de  ver- 
dade, era  bem  assim,  como  elle  dizia.  E  toda- 
via, no  meio  d'aquella  embrulhada  comedia  da 
vida  de  Lisboa,  em  que  mesmo  nós,  e  naquelle 
mesmo  instante,  andávamos  contra-scenando,  de 
braço  dado,  em  plena  Rua  do  Oiro,  Patrocínio 
achava-se  claramente  á  vontade  dentro  do  seu 
papel,  e  papel  que,  dada  a  alta  preponderância 
do  seu  metro  e  da  sua  guedelha  no  nosso  meio 
litterario,  não  era  nenhuma  rábula,  antes  me 
parecia,  e  era,  um  dos  melhores  papeis. 

Frisei  o  contraste,  mostrei-lhe  a  flagrância  da 


A  RUA  DO  OIRO  201 

contradição  que  havia  entre  as  suas  palavras  e 
o  seu  modo  de  proceder : 

—  «Mas  porque  é  que  tu,  ó  Chico,  que  lalas 
cumo  um  revoltado,  transiges  como  um  servo  ? 
Porque  não  protestas  alto  com  palavras  e  com 
obras  ?» 

—  «Porque  nem  me  ouviam  as  palavras,  nem 
me  compravam  as  obras. . .  Tu  não  sabes  o  que 
são,  nem  o  que  pensam,  nem  como  se  manifes- 
tam as  multidões  I  Nas  multidões,  quer  activas, 
quer  espectantes,  ha  muita  heterogeneidade, 
Amarante.  Tenho,  a  este  respeito,  uma  infini- 
dade de  observações  curiosas,  de  muito  inte- 
resse. Quando  publiquei  o  meu  livro,  os  Oásis, 
que  foi  o  grito  de  alarme  que  acordou  e  poz  de 
pé,  no  seu  devido  pé,  a  nova  escola,  estabele- 
ceu-se  logo,  em  volta  da  minha  pessoa,  uma 
multidão  espectante,  perfeitamente  caracterisa- 
da,  como  essas  multidões  que  se  aglomeram 
nas  ruas  para  vêr  passar  uma  procissão  ou  um 
homem  celebre.  Que  dose  enorme  de  paciência, 
dirás  tu,  a  d'essa  gente  que  fica  a  pé  firme  qua- 
tro, cinco,  seis  horas,  para  vêr  passar  uma  pro- 
cissão ou  um  homem  I  E  todavia,  nenhum  d'el- 
les  teria  sósinho  a  mesma  pachorra . . .  Reuni- 
dos, estão  sempre  promptos  para  tudo.  E  o  que 
acontece  então  ?  o  que  acontece  sempre  ?  E'  que 
de  toda  essa  multidão,  apenas  os  que  estavam 


202  A  RUA  DO  OIRO 

á  frente,  nas  primeiras  filas,  poderain  vér  o  ho- 
mem celebre  ou  a  procissão  —  o  que  nãoimpede 
que  todos  os  outros  se  dispersem  satisfeitos,  e 
persuadidos  de  que  viram  tudo.  E'  uma  verda- 
deira sugestão  alucinatória,  por  contagio. . .  Pu- 
bliquei os  Oásis,  fiz  barulho,  os  rapazes  amigos 
dos  jornaes  fizeram  também  muito  barulho,  e 
juntou-se  gente,  formou-se  a  multidão  que  me 
quiz  vêr  passar,  homem  celebre,  seguido  do 
meu  cortejo  de  prosélitos  —  eu  com  esta  enorme 
cabelleira,  elles  com  as  suas  capinhas  curtas  e 
os  seus  girasóes  nas  mãos.  .1  Exgotou-se  logo  a 
primeira  edição,  num  abrir  e  fechar  d'olhos, 
fez-se  segunda,  já  vendida,  e  vae  entrar  no 
prelo  a  terceira. . .» 

E  ahi  estava  formada,  e  desviada  para  o  seu 
lado,  a  corrente  da  Opinião. 

Imaginasse  eu,  agora,  que  elle,  Chico  do  Pa- 
trocínio, duas  vezes  reprovado  no  quarto  anno 
de  Direito,  e  expulso  da  Universidade  por  ter 
esmurrado  convenientemente  o  Pimentel  Gou- 
veia, sem  a  carta  de  bacharel,  sem  bens  de  for- 
tuna, e  sem  amigos  na  Politica,  chegava  a  Lis- 
boa com  as  mãos  nas  orelhas  (como  de  facto 
chegara),  e  em  vez  de  farejar  um  meio  de  vida, 
como  fizera,  vinha  para  a  praça  publica  protes- 
tar contra  o  estado  de  coisas  do  seu  paiz,  tra- 
tando  de  ladrões  todos  os  ministros,  conside- 


A  RUA  DO   OIRO  2o3 

rando  imbecis  todos  os  contribuintes,  declarando 
adulteras  todas  as  mulheres !  Elle  bem  sabia 
que  ainda  era  possivel  salvar  d'aquella  baralha 
algumas  honrosas  excepções,  pois  ainda  havia 
ministros  que  não  roubavam  o  Thesouro,  con- 
tribuintes que  não  pagavam  as  decimas,  e  mu- 
lheres casadas  que  não  ludibriavam  os  maridos. 
Mas  suppozessemos  que  elle  não  admittia  exce- 
pções, e  na  sua  fúria  de  haver  perdido  o  curso, 
e  naquelle  desespero  de  se  achar  sem  um  vin- 
tém, media  tudo  pela  mesma  bitola  e  ajustava 
todos  pela  mesma  craveira,  barafustando,  inve- 
ctivando, disparatando... 

—  «Estava  prompto. . .  —  explicava  elle.  — 
Era  um  homem  ao  mar. . .  Era  um  homem  per- 
dido ! » 

Todos  nós  gostávamos  e  nos  regalávamos  de 
dizer  mal  dos  outros,  mas  nenhum  gostava  nem 
se  regalava  de  ouvir  dizer  mal  de  si.  O  nosso 
grande  periodo  pamphletario  passara  e  apaga- 
ra-se  nas  cinzas  do  esquecimento,  como  passara 
e  se  apagara  o  periodo  áureo  das  descobertas  e 
conquistas.  As  Farpas  tinham  tido  a  sua  época, 
que  correspondera  ao  inicio  do  escalavro  nacio- 
nal, mas  a  sua  época  extinguira-se,  passara  e 
apagara-se  também.  As  Farpas  eram  d'um 
tempo  em  que  ainda  se  vivia  no  pleno  e  am- 
plo regimen  de  liberdades  que  o  Senhor  Dom 


204  ^  ^^^  ^^  ^^^^ 

Pedro  IV  nos  outorgara.  Até  ahi  tinha-se  gosado 
de  todas  essas  liberdades  com  conta,  peso  e 
medida,  mas  entrara-se,  e  de  cabeça,  no  abuso 
d'ellas.  Verdade,  verdade,  uma  d'aquellas  de 
que  mais  se  abusara  fora  a  liberdade  de  im- 
prensa. O  commentario  do  abuso  chegara  a  ser 
mais  abusivo,  por  vezes,  que  o  próprio  abuso. 

O  pamphleto,  que  rompera  de  um  nobre  sen- 
timento de  protesto  ou  de  uma  viva  comichão 
de  troça,  tornara  se  meio  violento  de  violentos 
fins,  e  fora  instrumento  perigoso  de  diffamaçao 
e  de  chantage. 

O  espirito  de  imitação,  muito  nacional,  muito 
nosso,  lançara  logo  á  publicidade,  atrás  das 
Farpas,  uma  chusma  de  pequenos  folhetos  de 
mordacidade  e  de  audácia,  que  atulhararrí  o 
mercado.  Eram  as  Garrochas,  eram  as  Banda- 
rilhas,  eram  os  Ferros  curtos,  eram  os  Agiii- 
Ihôes,  tudo  quanto  do  vocabulário  tauromachico 
podesse  dar  uma  idéa  sinonimica  de  ferroada 
no  magro  cachaço  da  sociedade  portuguesa, 
que  se  deixava  correr  e  espicaçar  bonacheirona- 
mente,  como  um  triste  e  derrancado  boi  de  cu- 
riosos. 

As  Farpas,  entretanto,  tinham  cumprido  o 
seu  programma  de  demolição  e  de  reforma. 

Fora  arrasado  o  Passeio  Publico,  considerado 
foco  grandemente  nocivo  de  todos  os  miasmas 


A  RUA  DO  OIRO  2o5 

e  dc  todos  os  males  românticos.  Rolara  no  pó, 
como  um  colosso  apeado  e  conspurcado,  o  terrí- 
vel General  Macedinho,  que  fora  o  principal  ma- 
nutendor  da  desordem  publica.  O  Bazorra  con- 
seguira empregar  o  ultimo  afilhado,  e  dispoze- 
ra-se,  contente,  a  entregar  a  alma  ao  Creador. 
Tinham  sido  retirados  de  scena  os  Lazaristas, 
e  emendada  a  traducção  de  Shakespeare,  do 
fallecido  Rei  Dom  Luiz.  Montara-se  em  Lisboa 
um  estabelecimento  de  banhos  e  duches,  de 
limpeza  e  de  therapeutica.  Todas  as  famílias 
abastadas  tinham  adquirido  uma  banheira,  e  as 
de  mais  modestas  posses  um  bidé,  pelo  m.enos. 
Estabelecera-se  uma  fabrica  de  sabão  em  Alcân- 
tara, e  uma  fabrica  de  escovas  em  Xabregas. 
Na  educação  nacional  introduzira-se  a  gimnas- 
tica,  a  contabilidade,  o  pas  de-quatre  e  o  alle- 
mão.  Os  rapazes  andavam  já  de  calção  até  á 
idade  em  que  todos  elles  emagrecem  e  se  es- 
canzelam ;  e  as  meninas  de  saia  curta  até  á 
idade  em  que  todas  ellas  engordam  e  arredon- 
dam. 

Pouco  a  pouco,  porém,  quasi  sem  que  se 
desse  por  tal,  as  liberdades  iam  sendo  coarcta- 
das. Os  pamphletarios,  que  d' antes  investiam 
como  feras,  iam  sendo  domesticados.  Uns  en- 
travam para  os  conselhos  da  Coroa ;  outros  en- 
travam para  a  Academia  ;  e  assim  foram  en- 


206  A  RUA  DO  OIRO 

trando,  todos  elles,  na  ordem  —  uns  na  Ordem 
de  Christo,  outros  na  Ordem  de  São  Thiago. . . 

No  dia  em  que  só  restava  de  fora  um  único 
pamphletario,  que  teimava  em  não  querer  ser 
ministro,  nem  membro  da  Academia,  nem  com- 
mendador,  não  havendo  outro  meio  de  o  fazer 
calar,  metteram-no  no  Limoeiro  —  para  socego 
e  para  exemplo.  E  foi  assim  que  o  pamphleto 
passou  de  moda. 

—  «Hoje  o  que  vês  tu,  Amaral  ?  Vês  um  mi- 
nistro subir  ao  poder  com  os  rompantes  do  Oli- 
veira Martins,  que  pôz  tudo  em  pratos  limpos, 
declarando  que  não  encontrara  um  ceitil  no 
fundo  dos  cofres  públicos,  que  todos  os  seus 
predecessores  tinham  feito  do  governo  um  ne- 
fando ludibrio  da  Nação  e  dos  credores  exter- 
nos, e  que  para  se  entrar  num  periodo  de  renas- 
cimento e  reacquisição  de  credito  seria  preciso 
metter  tudo  no  são  —  governos  e  governados. 
O  relatório  de  fazenda  do  Oliveira  Martins  foi 
o  primeiro,  e  até  hoje  o  único  que  patenteou  a 
inteira  verdade  aos  olhos  do  Parlamento  estar- 
recido. E  o  que  aconteceu  ao  Oliveira  Martins  ? 
Correram  com  elle. . .  Chasquearam-no. . .  Vês 
um  jornalista,  como  o  Ennes,  fundar  o  seu  jor- 
nal e  iniciar  uma  campanha  tremebunda  contra 
a  dictadura  de  um  governo  desvairado  de  nevro- 
patas  e  de  saltimbancos,  que  fazem  uma  reforma 


A  RUA  DO  OIRO  207 

de  lei  eleitoral  de  cada  vez  que  querem  um  bill 
de  indemnidade  para  se  pôr  a  salvo  da  res- 
ponsabilidade de  quantas  tratantadas  empreen- 
deram e  realisaram. . .  E  o  que  aconteceu  ao 
Ennes  ?  Embucharam-no  com  doze  contos  de 
réis  por  anno,  que  é  uma  bucha  com  que  toda 
a  gente  embucha,  e  assim  se  viram  livres  d'elle... 
Critica  ?  Boa  critica  ?  Critica  de  costumes  ?  Isso 
é  cada  um  em  sua  casa,  com  a  sua  mulher  e  os 
seus  filhos  !i) 

Eu  podia  perguniar-lhe,  e  perguntava  muito 
bem : 

—  tMas  porque  transiges  tu,  ó  Chico  do  Pa- 
trocínio, tu  que  não  queres  ser  ministro,  nem 
membro  da  Academia,  nem  commendador  ?» 

—  «Porque  não  tenho  nada  de  melhor  a  fazer  I 
—  respondia  elle.  —  Eu  ponho  sempre  o  meu  in- 
teresse acima  de  todos  os  interesses  ;  mas  de- 
pois de  servir  o  meu  interesse,  sendo-me  possí- 
vel servir  os  interesses  da  minha  pátria,  dos 
meus  concidadãos  e  até  dos  mieus  amigos,  teria 
nisso  muito  gosto  e  de  bom  grado  o  faria.  . 
Ora  eu  não  posso,  infelizmente,  senão  servir  o 
meu  interesse.  E  o  meu  interesse  é  este  :  ven- 
der os  meus  versos,  e,  por  via  do  reclame  dos 
meus  versos,  encontrar  compradores  para  os 
meus  moveis  antigos..  Aqui  tens  tu.  Outros 
que  barafustem  e  preguem  nos  desertos.  Eu,  e 


208  A  RUA  DO  OIRO 

OS   da   minha  caravana,   descobrimos  os  Oásis, 
e  refagiámo-nos  nelles. . .» 

Quando  chegámos  ao  fim  da  rua,  que  havía- 
mos subido  pelo  passeio  da  esquerda,  e  elle 
propôz  que  cortássemos  para  o  lado  de  lá,  por 
onde  andavam  «outras  caras»,  já  eu  começava 
a  pensar  e  a  dizer  com  os  meus  botões,  que 
aquelle  maroto   do  Chico  talvez  tivesse  razão. 

—  «E  tu,  Amarante,  que  programma  trazes? 
a  que  partido  pertences  ?» 

Eu  nem  trazia  programma,  nem  pertencia  a 
nenhum  partido.  Tinha  vindo  para  a  politica 
um  pouco  ao  acaso,  estava  vendo  em  que  para- 
vam as  modas. 

—  «Homem  !  forma  tu  um  partido. . . » 
Organisar   um   partido   politico   parecia  uma 

coisa  difficil,  e  afinal  era  uma  coisa  fácil.  O  que 
era  difficil  era  achar  para  isso  a  opportunidade. 
Essa  opportunidade  dava-se  agora,  precisamente 
agora,  em  Portugal. 

Acabara-se  o  dinheiro. 

Acabara-se  a  Uberdade. 

Acabara-se  a  esperança. 

Experimentados  um  a  um,  os  homens  de  go- 
verno tinham  dado  o  que  podiam  dar,  dentro 
dos  chamados  partidos  militantes.  Um  a  um, 
todos  elles  haviam  perdido  a  confiança  que  num 
dado   momento   houvera  nos   seus  méritos,  no 


A  RUA  DO  OIRO  209 

seu  pulso,  na  sua  dignidade.  Os  que  não  tran- 
sigiam com  a  força  das  circumstancias,  met- 
liam-sc  em  casa,  liquidados.  Os  que  transigiam 
com  ellas,  eram  victimas  da  própria  transigên- 
cia, e  liquidavam,  egualmente.  O  que  sobejava 
dos  velhos  partidos  constitucionaes,  das  suas 
tradições,  dos  seus  credos,  das  suas  energias, 
pertencia  ao  inventario  dos  museus  e  dos  archi- 
vos.  Eram  velhas  coisas  arrumadas  em  pratelei- 
ras, dispostas  em  panóplias,  mettidas  em  armá- 
rios, enfiadas  em  manequins,  com  números  de 
catalogo,  e  rótulos  summarios  da  sua  historia, 
pregados  com  alfinetes.  O  que  havia  a  fazer 
era  simplesmente  entrega-las  aos  cuidados  d'um 
conservador  que  as  tivesse  sempre  em  ordem, 
mandasse  limpá-las  da  poeira  de  vez  em  quando 
e  tratasse  bem  de  preservá-las  da  traça.  O  José 
Luciano  e  o  António  de  Serpa,  por  exemplo,  pre- 
cisavam bolas  de  naphtalina  nas  algibeiras  da 
sobrecasaca,  e  um  pouco  de  espanejador  nas 
idéas. 

Quem  viria  agora  ? 

Esta  pergunta,  que  andava  na  bocca  de  todos, 
determinava  a  boa  opportunidade  para  a  orga- 
nisação  d'um  partido. 

Bastava  que  uma  só  voz  se  ouvisse,  respon- 
dendo : 

—  «Eu !» 

14 


210  A  RUA  DO  OIRO 

Fosse  de  quem  fosse,  essa  voz  seria  immedia- 
tamente  a  voz  de  um  chefe. 

Todos  se  voltariam  para  o  lado  d'onde  a  voz 
partisse.  Quem  é  ?  Quem  não  é  ?  Levante  o 
braço  quem  foi !  E  então,  um  homem  que  nin- 
guém conhecia,  erguia  e  agitava  no  ar  o  braço 
ousado. 

—  «Ao  estrado  !»  — bradava  a  multidão. 

—  «Que  fale  !»  —  gritava  a  populaça. 

E  o  homem  trepava,  atabalhoadamente,  ao 
estrado,  batia  com  a  mão  espalmada  sobre  o 
peito,  revolvia  a  gaforina,  procurava  meia  dúzia 
de  frases  sonoras,  recorria  á  memoria  de 
quantos  velhos  programmas  de  partido  lhe  ti- 
vessem passado  pelos  olhos,  dando  tudo  isso 
como  novo  e  como  seu,  encolerisava-se  contra 
todos  os  abusos  do  poder,  invectivava  todos  os 
despotismos,  flagellava  todas  as  fraudes,  enu- 
merava todos  os  esbanjamentos,  invocava  to- 
das as  grandes  idéas,  adoptava  todos  os  novos 
princípios,  oíferecia  o  peito  á  defeza  de  todas  as 
santas  causas. . . 

Já  a  multidão,  facilmente  sugestionada,  e 
como  que  toda  ella  percorrida  pelo  mesmo  des- 
conhecido fluido  de  enthusiasmo,  não  ouvia  bem 
o  que  elle  dizia,  nem  já  percebia  a  relacionação 
d'aquillo  que  elle.  dizia  com  os  desconcerta- 
dos  gestos   que   disparava ;   e    só  era  possível 


A  RUA  DO  OIRO  211 

apreender,  por  fim,  claramente  escapas  á  con- 
fusão dos  sons  roucos  em  que  elle  embrulhava 
e  expellia  os  restos  do  discurso,  uma  ou  outra 
palavra,  uma  ou  outra  promessa. . . 

. . .  Regeneração  I 

Pátria  I 

Questão  financeira  I 

Isenção  de  caracter. . . 

Forças  vivas  da  nação  I 

A  situação  angustiosa  do  momento. . .  a  Agri- 
cultura... a  Humanidade...  o  Código  admi- 
nistrativo... o  dia  de  amanhã! 

Tudo  aquillo  andava,  como  se  costuma  dizer, 
no  espirito  de  todos.  Faltava  quem  o  dissesse, 
faltava  quem  o  bradasse,  faltava,  sobretudo, 
quem  promettesse  remediá-lo.  Toda  a  gente  ti- 
nha medo  da  Policia,  e  calava- se.  Tinha  se  medo 
da  Municipal,  e  mettia-se  a  gente  em  casa.  Ap- 
parecia,  porém,  um  homem  que  declarava  não 
ter  medo  nem  da  Policia,  nem  da  Municipal,  e 
que  promettia  todos  os  desafogos,  todas  as  ga- 
rantias, todas  as  liberdades,  desde  que  lhe  pas- 
sassem o  poder  para  as  mãos. 

Mas  quem  era  esse  homem  í 

Mas  o  que  era  o  poder  ? 

O  homem,  ninguém  sabia  quem  era.  O  poder 
era  uma  coisa  que  não  era  de  ninguém,  mas  de 
que  toda  a  gente  podia  dispor.  E  toda  a  gente, 


212  A  RUA  DO  OIRO 

nesse  momento,  dispunha  do  poder  a  favor 
d'esse  homem  que  lh'o  pedia.  Em  Portugal, 
quem  dizia  poder  dizia  Policia  e  dizia  Munici- 
pal. Ter  uma  de  prevenção  e  contar  com  a  ou- 
tra, era  quanto  bastava  para  administrar  um  es- 
tado, onde  as  coisas  se  passassem  como  se  pas- 
savam aqui. 

—  «Bem  !  —  dizia- se  então  a  esse  homem.  — 
Ahi  tem  você  o  poder.  Agora  governei» 

Tinha-se  acabado  a  esperança.  Mas  eis  que  a 
esperança  renascia.  Tinha-se  acabado  a  liber- 
dade. Mas  tornava  a  haver  liberdade.  Tinha-se 
acabado  o  dinheiro...  Era  todavia  forçoso  ar- 
ranjar mais  dinheiro. 

Evidentemente.  Mas  como  ? 

Augmentando  os  impostos. . . 

Não  podia  ser.  O  que  era  preciso  era  redu- 
zi-los. 

Reduzindo  os  juros  da  Divida... 

Peor  ainda.  O  que  convinha  era  que  se  vol- 
tasse a  pagá-los  integralmente,  como  d'antes. 

Cortar  pelos  ordenados  ao  funccionalismo, 
acabar  com  os  empregos  onde  não  houvesse  que 
fazer ... 

O  quê  ? !  O  quê  ?  I 

Só  assim,  meus  amigos,  só  assim!  E'  ter  pa- 
ciência. E'  soffrer.  E'  aguentar. . . 

Nunca  I  Tudo,  menos  isso.  Olhem  que  tal  nos 


A  RUA  DO  OIRO  2l3 

sahiu  o  sujeito,  ein  ?  Então,  não  querem  lá 
vêr?  Não  está  máu  Messias  este,  não  . .  Comí- 
cios I  Toca  a  fazer  comícios.  Nada  de  graças. 
E'  necessário  protestar,  é  indispensável  protes- 
tar. Então,  não  querem  lá  vér  ?  I 

No  domingo  seguinte,  a  mesma  multidão  que 
dera  o  poder  a  esse  homem,  pretendia  reunir-se 
num  comício  ím  que  se  tratasse  de  obstar  a  que 
cUe  viesse  sobrecarregar  com  mais  impostos,  ou 
agravar  com  mais  reduções,  a  vida  nacional. 
Mas  quando  toda  a  gente  chegava  ao  ponto  onde 
combinara  reunir-se,  já  encontrava  lá  uma  força 
de  polícia,  que  a  punha  em  debandada. 

Ella  queria  resistir.  A  policia  prendia-a.  EUa 
recalcitrava.  A  policia  espancava-a.  Ella  engal- 
finhava-se  na  policia.  E  o  homem  de  governo, 
pelo  telefone,  mandava  sahir  a  Municipal,  que  a 
desancava. 

—  «Evidentemente  —  concluía  o  Chico  —  não 
são  estes  os  homens  de  governo  que  o  paiz 
precisa.  Mas  são  estes,  incontestavelmente,  os 
homens  que  a  multidão  merece.» 

Defronte  da  loja  de  modas  do  Lopes  de  Se- 
queira estava  parada  uma  carruagem.  O  Patrocí- 
nio chamou-me  a  attenção,  puxou  me  pelo  braço: 

—  «A  D.  Claudia  e  a  filha. . . » 
Alvorocei-me.  Onde  as  vira  elle  ?  Mas  onde  ? 

E  descrevi  um  semi-circulo  de  relance,  sobre  o 


214  A.  RUA  DO  OIRO 

calcanhar,  numa  viva  pressa,  olhando  para  to- 
dos os  lados.  Do  fundo  do  coupé,  forrado  de 
claro,  destacavam-se  então,  voltados  para  o  nosso 
lado,  os  dois  vultos  conhecidos  de  Clarinha  e 
da  mãe,  quando  os  meus  olhos  se  encontraram 
com  os  olhos  d'ellas. 
Corri  á  portinhola  : 

—  «Oh,  minhas  senhoras. . . » 

E  fora  aquillo  uma  festa  para  mim  e  para 
ellas,  como  se  nos  não  avistássemos  ha  muito 
tempo. j|Pois  ainda  na  véspera  eu  lá  tinha  estado 
em  casa  ! 

—  «Anda  gosando  o  seu  feriado  ?»  disse-me 
D. ^Claudia. 

— ^lAndo  entretendo  o  meu  feriado...  Está 
um  dia  lindo !» 

Mas  Clarinha  quiz  logo  cortar  o  fio  de  bana- 
lidade cerimoniosa  que  já  ia  tecendo  esse  pas- 
sageiro dialogo,  para  lhe  imprimir  o  seu  sainete 
risonho  de  despretenciosa  familiaridade  : 

—  «E  andava  tão  entretido,  que  foi  preciso 
que  o  seu  companheiro  lhe  fizesse  signal  para 
dar  por  nós ...» 

—  «E'  verdade.  Eu  não  tinha  conhecido  a 
carruagem.» 

D.  Claudia  engatilhara  o  lorgnon  sobre  o 
Chico  do  Patrocinio,  media-o  da  cabeça  aos 
pés,  prescrutadora.   Demónio  !  pensei   eu.   Lá 


A  RUA  DO   OIRO  2l5 

está  ella  a  reparar-lhe  nas  botas,  que  tanto  pre. 
cisavam  ser  engraxadas. 

—  «Quem  é  aquelle  rapaz  ?»  perguntou  ella 
depois  de  demorado  exame. 

Inclinei-me  mais  na  portinhola,  informei  com 
certo  gosto : 

—  «E'  o  Francisco  do  Patrocinio. . .  o  poe- 
ta... o  nefelibata  !» 

—  «Ah  !. . .  fizeram  as  duas,  mãe  e  filha,  a 
um  mesmo  tempo.  —  Este  é  que  é  o  Francisco 
do  Patrocinio  ?I» 

E  Clarinha  não  poude  ser  senhora  de  si,  oc- 
cultou-se  precipitadamente  para  trás,  no  fundo 
do  coupé,  e  riu,  a  bom  rir,  do  Chico,  da  sua  fi- 
gura, da  sua  cabelleira,  de  toda  aquella  aureola 
de  reluzente  disparate. 

—  « Que  ratão  !  Mas  que  grande  ratão  ! » 

D.  Claudia,  muito  inquieta,  dizia  entre  den- 
tes, reprehensiva  : 

—  «Oh,  Clarinha,  por  amor  de  Deus  !  olha 
que  elle  está  a  olhar  para  cá. . .  Olha  que  elle  já 
está  desconfiado.  . . » 

Eu  serenei-a,  tomei  a  responsabilidade,  achei 
muita  graça,  e  ri  também,  dissimulando,  como 
se  rissemos  de  coisa  muito  diversa.  Nem  elle 
prestava  attenção.  E  que  prestasse  !  Estava  ha- 
bituado. Elle  mesmo  o  dizia  :  que  até  gostava 
de  que  o  troçassem.  Era  metade  do  seu  êxito. 


2l6  A  RUA  DO  OIRO 

D.  Claudia,  já  interessada  por  estas  singula- 
ridades do  meu  amigo  poeta,  de  quem  fizera 
uma  idéa  muito  diversa  «pelas  poesias»,  mos- 
trou desejo  de  o  conhecer,  de  lhe  falar. 

—  «Vossa  Excellencia  dá  licença  que  o  apre- 
sente ? . . . » 

Mas  ella  receiou  que  Clarinha  não  podesse 
ter  mão  em  si,  se  não  contivesse. . .  Sabia  como 
ella  era,  e  se  a  tomasse  naquelle  momento  al- 
guma das  estridentes  convulsões  de  riso  que 
costumavam  dar-lhe,  era  uma  semsaboria,  era 
uma  inconveniência. 

Clarinha   protestou.    Não,  lá  isso  não.  Tam 
bem   não   era   tanto   assim.    Ora  !   não  era  ne- 
nhuma  creança...    E  pôz-se  muito  séria,  pro- 
metteu  não  nos   comprometter.  E  ella  mesmo 
pediu : 

—  «Chame-o,  chame  o  I» 

Já  o  Chico  percebera,  muito  fino,  fino  como 
um  coral,  que  se  falava  d'elle,  da  sua  pessoa, 
talvez  dos  seus  versos,  com  certeza  da  sua  gue 
delha.  A  um  leve  aceno  meu,  endireitou-se  mais, 
arqueou  alto  o  braço,  levou  a  mão  ao  chapéu, 
adeantou  um  passo  para  a  carruagem,  descre- 
vendo uma  profunda  reverencia  antiga,  restaura- 
da .. 

—  «O  meu  amigo  Francisco  do  Patroci- 
nio . . . » 


A  RUA  DO  OIRO  217 

D.  Claudia  tinha  um  grande  prazer  em  o  co- 
nhecer pessoalmente.  Pelos  seus  versos,  pelos 
seus  lindos  versos,  ha  muito  tempo  que  o  co- 
nhecia, que  o  admirava.  E  elle  !  Oh,  elle,  que 
subida  honra,  senhora  D.  Claudia,  que  bem- 
aventurança !  Ha  quanto  tempo  alimentava  elle 
esse  desejo,  que  agora  estava  sendo  satisfeito, 
de  ouvir  o  divino  verbo  da  grande  propugna- 
dora  dos  direitos  da  Mulher  em  Portugal  ! 
Tanto  empenho  tivera,  tanta  diligencia  empre- 
gara para  assistir  a  alguma  reunião  da  Liga 
Feminista  em  que  a  senhora  D.  Claudia  fi- 
zesse uso  da  palavra,  e  não  o  conseguira,'  uma 
vez  porque  fora  forçado  a  ausentar-se  de  Lis 
boa,  outra  vez  porque  cahira  doente,  ora  por 
isto,  ora  por  aquillo,  mas  sempre  por  alguma 
razão  ponderosa,  por  alguma  causa  inevitável 
ou  inadiável . .  . 

Estavam  preciosos,  ella  e  elle,  realisando 
essa  generosa  transacção  de  elogio  mutuo.  Mas 
já  Clarinha,  dotada  de  uma  precoce  percepção 
de  todos  os  ridículos,  intervinha  para  reduzir 
aos  meus  olhos  a  má  impressão  de  alta  caboti- 
nagem  que  resaltava  da  conversa,  toda  artificial 
e  presumida,  em  que  a  mãe  e  o  meu  poeta  se 
intrujavam  e  delambiam,  como  um  peralta  e 
uma  sécia  na  modelação  de  um  madrigal.  E 
dirigindo-se  ao  Chico  : 


2l8  A  RUA  DO   OIRO 

—  « Quando  publica  outro  livro  de  versos,  se- 
nhor Patrocínio  ?» 

—  t Ainda  não  sei,  minha  senhora...  Tenho 
agora  em  preparação  um  pequenino  poema. . .» 

—  aE"  que  eu  já  sei  de  cór  quasi  todos  os 
versos  dos  Oásis. . .  E  quero  mais  !. . . » 

O  Chico  não  cabia  em  si  de  contente.  Nem 
atinava  com  o  que  dizer.  Teve  até  o  ar  mal 
geitoso  de  quem  suppunha  que  aquillo  fosse 
troça.  Mas  theatral,  reentrando,  apressado,  no 
papel  a  sério,  tomou  a  deixa : 

—  «Vossa  Excellencia  deve  ter  uma  excel- 
lenté  memoria  I» 

—  «Pois  olhe  que  é  verdade  !  confirmou  D. 
Claudia.  —  Eu  ás  vezes  nem  sei  como  ella  pôde 
raetter  tanta  coisa  na  cabeça,  sem  as  baralhar 
umas  com  as  outras. . .  Sabe  de  cór  paginas  e 
paginas  inteiras  de  coisas  que  tem  lido.  . .» 

Eu  abundei  na  asserção,  permitti-me  um  gra- 
cejo : 

—  «Não  se  faz  idéa  !  Chega  a  ser  inacreditá- 
vel... Imagina  tu  que  foi  pela  senhora  D. 
Clara  que  eu  tive  conhecimento  do  ultimo  Dis- 
curso da  Coroa  I  Disse-m'o  todo,  sem  lhe  faltar 
uma  palavra,  como  um  fonógrafo. . . » 

Clarinha  achou  immensa  graça.  Riu  muito. 
, —  oNão  I    Lá   isso  não...   Tudo  quanto  qui- 
zerem.  . .  menos  o  Discurso  da  Coroa  !» 


A  RUA  DO  OIRO  219 

Mas  da  loja  de  modas  sahiu,  a  este  tempo,  e 
veiu  a  meio  do  passeio  trazendo  um  grande 
embrulho.,  um  caixeiro  do  Sequeira.  Clarinha  pe- 
diu-nos  licença  para  receber  o  embrulho  das 
mãos  do  caixeiro,  que  lh'o  passava  pela  porti- 
nhola. D.  Claudia  ainda  fez  qualquer  recom- 
mendação  a  respeito  de  uns  alamares.  E  logo 
que  o  senhor  Sequeira  chegasse  de  Paris  com 
as  sedas,  que  lh'o  mandassem  dizer,  para  ella 
vir  escolher  alguma  coisa  bonita.  Depoiá  pe- 
diu-me  : 

—  «Olhe,  ó  senhorr  Amaral,  faz  favor  de  di- 
zer ao  cocheiro  que  ainda  vamos  pelo  Ferrari ...» 

Eu  transmitti,  lestamente.  Chico  descobriu-se 
outra  vez  á  antiga,  esperou  que  I).  Claudia 
accommodasse  o  embrulho  com  outros  que  já 
trazia  no  coupé,  e  lhe  estendesse  a  mão. 

—  fDê-nos  o  gosto  de  vir  a  nossa  casa,  se- 
nhor Patrocinio.  . .  quando  queira.» 

Clarinha  ainda  insistiu  por  mais  versos.  Chico 
agradeceu,  confundido,  extremamente  penho- 
rado, o  offerecimento  de  uma  e  a  insistência  da 
outra . 

—  «Muito  obrigado  a  Vossa  Excellencia.  mi- 
nha senhora...  Vou  apressar  o  poema,  minha 
senhora ...» 

D.  Claudia  ainda  me  disse  : 

—  «Não  apparece  esta  noite  por  lá  ?t 


'^20  A  RUA  DO   OIRO 

Sem  olhar  Clarinha,  eu  percebia  que  ella  me 
fazia,  com  os  seus  lindos  olhos,  aquella  mesma 
pergunta.  As  suas  mãosinhas  inquietas  procura- 
vam disfarçar  a  sua  pequenina  anciedade,  repu- 
xando e  ajustando-lhe  ao  pescoço  a  pelle  de  bi- 
cho. Estava  bem  galante,  a  Clarinha,  nessa 
tarde,  com  aquelle  vestido  cor  de  coelho  bravo, 
enfeitado  d' uma  formosa  guipure  Colbert,  e  o 
seu  chapéo  de  plumas  escarlates.  Bem  galante  I 
Tive  quasi  vontade  de  lh'o  dizer. 

Talvez.  Talvez  me  fosse  possível.  E  se  me 
fosse  possível,  iria.  Mas  não  queria  dar  a  cer- 
teza. 

—  «Veja  então  se  pôde...»  disse  ainda  D. 
Claudia. 

E  quando  me  arredei  da  portinhola,  e  a  pa- 
relha do  carro  levantou  as  patas  a  compasso 
para  despegar,  outra  vez  os  meus  olhos  se  em- 
beberam nos  olhos  de  Clarinha,  que  me  diziam 
também,  e  com  mais  vehemencia: 

—  «Veja  então  se  pôde  I» 

—  «Muito  interessante  esta  D.  Claudia  I»  — 
dizia  o  Chico. 

j^    —  «E  a  filha  ?» 

—  tTambem  muito  interessante,  muito  gra- 
ciosa. . . » 

Eu  ia  cahindo,  por  um  triz,  em  confidencias. 
Contive-me  a  tempo.  O  Chico  era  um  excellen- 


A  RUA  DO   ©IRO  22 

te  rapaz,  mas  não  tinha  a  lingua  segura,  dava 
muito  com  ella  nos  dentes.  E  apenas  disse  : 

—  «Oh  !  não  imaginas. . .  Muito  graciosa. .  . 
e  muito  intelligente  I» 

—  «Ora  aqui  tens  tu  —  continuou  o  Chico  — 
um  caso  curioso  de  celibato  forçado. . . » 

Eu  não  percebia. 

—  cAqui. . .  onde  ?  qual  caso  ? . . . » 

—  «O  caso  d'esta  rapariga.» 

—  «...  Clarinha  ?  I» 

—  «Sim.  Pois  não  sabes  ?» 

Estremeci.  Fiz  um  grande  esforço  para  do- 
minar a  emoção  que  me  tomava  e  me  resfriava, 
como  se  um  floco  de  neve  me  houvesse  cahido 
entre  o  collarinho  e  o  pescoço,  e  me  fosse  es- 
corregando ao  longo  da  espinha. 

—  «Não...  Não  sei  nada...  Mas  o  que  é  ? 
Conta  lá !» 

—  «E'  uma  coisa  sabida  !  —  foi  o  Chico  di- 
zendo sem  ter  dado  pela  minha  excitação.  — 
Uma  coisa  notória  !  Não  ha  quem  queira  casar 
com  ella.  Coitadinha. . .  Ella  bem  quer,  ella 
bem  lhe  faz  a  diligencia,  mas  não  ha  meio.  . .» 

—  «E  porquê  ?  —  disse  eu  ainda,  gaguejando, 
sentindo  que  um  nó  me  prendia  a  fala,  me  aper- 
tava a  garganta,  —  Algum  escândalo  ?  I» 

—  «Não...  Por  ella,  não.  E'  por  causa  da 
mãe. . .  Isso  sabes  tu.  Vaes  lá,  dás-te  com  ellas 


222  A  RUA  DO  OIRO 

andas   mettido  na  politica,  até  o   deves  saber 
muito  mellior  do  que  eu  I» 

Mas  logo  o  nó  que  me  apertava  a  garganta  se 
tornou  lasso  e  frouxo,  e  me  libertou  a  fala.  Vol- 
tei a  mim,  com  afan;  empolguei  outra  vez,  vigo- 
rosamente, a  minha  estimável  faculdade  de  ra- 
ciocínio, increpei  na  pessoa  do  Chico  do  Patro- 
cínio a  desarrasoada  facilidade,  a  deplorável  in- 
consciência com  que  se  vilipendiava  e  se  man- 
chava de  um  labéo  afrontoso  a  reputação  de 
uma  mulher  I  E  como  essa  mulher  fosse  mãe,  a 
criminosa  leviandade  com  que  se  fazia  derivar 
e  alastrar  sobre  a  vida,  o  futuro,  todo  o  destino 
da  filha  irresponsável,  o  desdoiro  de  uma  accu- 
sação,  que  bem  podia  ser  até  uma  falsa  accu- 
sação  !  Era  uma  indignidade. . .  Era  uma  cana- 
lhice I  Depois,  a  respeito  de  D.  Claudia,  que 
boas  razões,  que  flagrantes  provas  havia  para  se 
acreditar  na  sua  culpa  de  adultério  ? 

—  «Pois  tu  ainda  estás  ahi,  ó  Joaquim  do 
Amaral  ?  I  —  atalhava,  troçando,  o  meu  poeta  e 
meu  amigo.  —  Pois  tu  ainda  queres,  tu  ainda 
exiges  provas  jurídicas  para  que  possas  acredi- 
tar num  caso  de  adultério  ?» 

—  «E  porque  não  ? !» 

—  «Tu  só  admittes  então  a  existência  de  um 
adultério  quando  tenhas  sido  testemunha  ocular 
do  flagrante  delicto  ? . . .  • 


À  RUA  DO  OIRO  223 

—  a  . .  Ou  quando  o  flagrante  delicto  tenha 
sido  presenceado  por  pessoa  idónea!» 

—  «Essa  é  forte,  Amaral !  Essa  é  muito  forte  ! 
Has-de  concordar  que  essa  é  fortissima !  Olha 
que  não  ha  de  ser  fácil ...  A  gente,  quando  se 
mette  nessas  saborosas  aventuras,  quer  sempre 
tirar  d'ellas  os  máximos  proveitos,  e  tem  cau- 
tela, toma  as  suas  precauções.  ..» 

—  «Pois  tanto  melhor  para  quem  as  tome,  se 
é  que  sabe  toma-las  de  modo  a  destruir  as 
provas.» 

—  «Tu  não  ignoras,  com  certeza,  como  essas 
coisas  sempre  se  fizeram,  e  a  perfeição  com  que 
ja  hoje  se  fazem  em  Lisboa. . .  Não  se  corre  o 
menor  risco  I » 

—  «Bem  sei. . .  Os  par\iisos. . .  Como  o  do 
Primo  Bazilio !» 

—  «Ora  adeus,  meu  amigo!  Estás  atrazado 
vinte  annos  na  historia  côr  de  rosa  da  prostitui- 
ção... Os  paraísos  já  não  ofFerecem  seguran- 
ça, todos  os  maridos  os  conhecem,  é  matto  des- 
bravado. Sáo  paraísos .. .  perdidos!  Hoje  ha 
coisa  melhor,  muito  melhor,  incomparavelmente 
melhor  I  Nós  já  temos  por  cá,  á  semelhança  das 
grandes  capitães,  um  d'esses  misteriosos  Ren- 
de\-vous  des  Gourmets  até  onde  sobem,  sem 
correr  a  mais  ligeira  contingência  de  compro- 
mettimento,  algumas  das  mais  illustres  filhas  do 


224  A  RUA  DO  OIRO 

Tejo,  em  parenthesis  de  desvario  no  rigoroso  e 
pautado  cumprimento  dos  seus  deveres  conju- 
gaes.  . .  Olha,  não  vamos  mais  longe. . .  » 

Estávamos  á  esquina  da  Travessa  de  S.  Ni- 
colau. O  Chico  deteve-me  um  instante,  apontou 
um  prédio  fronteiro,  que  formava  a  outra  esqui- 
na, e  deitava  janellas  para  a  Rua  do  Oiro.  K 
continuou : 

—  «Ali  o  tens  tu,  naquelle  prédio.  E'  umn 
casa  que  gosa  de  excellente  reputação  —  no  seu 
género. . .  Installação  de  primeira  ordem,  todo3 
os  requintes  do  luxo  e  do  conforto. . .  Grandes 
espelhos  de  Veneza.  . .  Grandes  pelles  de 
leão...  Estofos  e  molas  magnificas  I  Não  ima- 
ginas !  O  Rendei-vous  é  no  segundo  andar.  No 
primeiro,  como  vês,  é  o  consultório  de  um  den- 
tista. . .  Lá  tem  a  taboleta.  Tal  e  qual  como  se 
faz  lá  fora,  nos  grandes  centros,  nas  grandes 
capitães...  De  modo  que  quem  passa  na  rua, 
e  vê  parada  áquella  porta  a  carruagem  da  Se- 
nhora Baronesa  ou  da  Senhora  Condessa,  o  mais 
que  pôde  suppôr  é  que  essas  illustres  damas  de- 
vem soffrer  horrivelmente  dos  seus  bellos  dentes, 
para  que  tantas  vezes  subam  a  casa  do  seu  den- 
tista !  E'  uma  grande  benemérita  a  dona  d'aquella 
casa. . .  Deves  ter  ouvido  falar. . .  A  Antonieta!» 
E  noutro  tom,  de  quem  não  queria  assumir  a 
responsabilidade  da  calumnia :  o  Ha  quem  diga 


A  RUA  DO   OIRO  225 

que  esta  D.   Claudia  é  uma  das  melhores  fre- 
guezas  . . D 

Redobrei  então  de  indignada  vivacidade.  Quasi 
insultei  o  meu  poeta,  que  sorria.  Aquillo  era, 
por  força,  uma  refinada  mentira,  uma  infundada 
e  asquerosa  diffamação,  ditada  e  propalada  pelo 
ódio  dos  politicos  e  por  invejas  de  mulheres, 
que  não  perdoavam  a  D.  Claudia  nem  a  sua 
poderosa  influencia  no  animo  do  Presidente  do 
Conselho,  nem  o  bello  renome  que  lhe  provinha 
do  ruidoso  movimento  iniciado  com  a  Liga  Fe- 
minista. Elle  o  dissera,  o  próprio  Chico  o  dis- 
sera :  que  eu,  indo  lá  a  casa,  frequentando  já  na 
intimidade  a  casa  de  D.  Claudia,  melhor  o  sa- 
bia, melhor  o  poderia  informar.  E  assim  era. 
E  [com  muito  enthusiasmo  o  dizia  bem  alto: 
não  acreditava  em  nada,  absolutamente  em  nada, 
do  que  se  podesse  dizer  e  infamemente  divulgar 
em  desabono  d'essa  mulher,  que  eu  estimava  e 
respeitava  I 

—  «Bem  I  Bem  I  —  conciliava  o  Chico,  já  ar- 
rependido. —  Não  podia  suppôr  que  tomasses  a 
coisa  tanto  a  sério.  Isto  é  falar,  é  conversar. 
Nem  eu  faço  declaradamente  profissão  de  má 
lingua.  Deixa  estar  que  não  serei  eu  que  me  en- 
tretenha  em  diíFamá  la. . .  Não,  não. . .  que  ella 
compra-me  os  versos  e  ainda  ha  de  comprar-me 
alguns  moveis ...» 

15 


220  A  RUA  DO    OIRO 

Ainda  encontrámos  outras  pessoas  conheci- 
das :  o  Padre  Eterno,  carregado  de  papeis ;  o 
Melecas,  cheio  de  noticias  ;  o  Gonçalinho  Palha, 
todo  perfumado  de  trevo.  Eu  queria  que  o  Chico 
viesse  jantar  commigo  no  Hotel.  Ficaria  mal  jan- 
tado, pois  que  o  Borges  despedira  o  antigo  co- 
zinheiro e  tinha  agora  lá  um  hespanhol  que  tem- 
perava a  comida  com  explosivos.  Mas  era  só 
pelo  prazer  da  companhia,  pois  já  ia  longe,  e 
sem  deixar  vestígios,  aquelle  momento  de  mau 
humor.  E  o  Chico,  annuindo,  quiz  que  tomásse- 
mos absintho. 

Desapparecia  o  sol,  já  poucas  mulheres  anda- 
vam na  rua,  recolhiam  apressadas.  Escurecia 
brandamente.  Entrámos  no  Café  Áurea. 

—  «Aqui  me  encontrarás  todos  os  dias,  inva- 
riavelmente, a  esta  mesma  hora. . .  —  dizia-me 
elle.  — Quando  quizeres  vêr-me,  já  sabes.  Nesta 
mesma  mesa.  Não  falho». 

Deitando  o  absintho  nos  copos  e  deixando 
correr  depois,  gotta  a  gotta,  a  agua  que  o  tur-  . 
vava,  como  na  attenta  observância  de  um  pre- 
ceito ritual,  o  Chico  continuava  a  falar,  a  falar, 
a  falar...  Mas  entre  os  dedos  compridos,  ter- 
minando em  compridas  unhas,  da  sua  mão  os- 
suda, onde  se  engastava  uma  formosa  ame- 
thista  de  Ceilão  (que  estivera  no  annel  de  Frei 
Bartholomeu  dos  Mártires,  Arcebispo  de  Braga) 


A  RUA  DO  OIRO  227 

a  garrafa  da  agua  oscillava,  precipitando  as 
gottas.  Elle  apoiava  então  o  cotovello  sobre  o 
mármore  da  meza,  mas  nem  assim  evitava  as 
oscillações. 

—  «Tu  entras  muito  pelo  absintho,  Patrocí- 
nio?» 

—  aNão. . .  Muito  não.  Mas  já  não  passo  sem 
elle !  Grandes  males,  grandes  remédios  I  En 
cas  de  doute,  abs/nthes-toi . . .  O  grande  remé- 
dio da  duvida  é  o  absintho.» 

—  tMas  faz-te  mal.» 

—  «Eu  perdoo  o  mal  que  elle  me  faz  por  o 
muito  bem  que  me  sabe. ..» 

—  «Pois  sim  !  E  um  beilo  dia,  sem  saberes 
porque,  nem  como,  começas  a  perder  essas  co- 
res, esses  hombros,  esse  aprumo ...» 

—  «Bem  sei. . .  Perturbação  de  funcções,  en- 
fraquecimento de  força  muscular,  perda  de  me- 
moria, anesthesia  completa. . .  Deixa  lá. . .  Deus 
é  grande  ! » 

—  cE  a  forçasinha  genésica  ?» 

—  «Grande  também,  por  emquanto  !» 

E  tomou  do  copo  dois  abundantes  goles. 
Depois,  desviando-me  a  attenção  para  o  lado 
da  rua  : 

—  «Descobri  aqui,  para  meu  uso,  o  espectá- 
culo mais  barato  e  um  dos  mais  divertidos  que 
é  possivel  des-fructar  em  Lisboa.  Além  do  que, 


228  A  RUA  DO   OIRO 

O  espectador  tem  direito  a  quantas  bebidas  qui- 
zer,  pagando-as. . .  Através  d'aquelle  vidro 
fosco  das  portas  passam  por  aqui,  em  diversos 
andamentos,  ao  sabor  de  qualquer  musica  trau- 
teada, quadros  e  figuras  das  mais  pittorescas  que 
tem  a  capital.  Três  minutos  na  presença  d'este 
animatografo  bastam  para  dar  uma  idéa  da  curio- 
sidade do  espectáculo.  Passa,  por  exemplo,  um 
ministro  a  pé.  Logo  atrás,  a  cavallo,  passa  o 
correio  do  ministro.  Porquê  ?  Porque  o  correio 
tem  direito  ao  cavallo  e  o  ministro  não  tem  o 
mesmo  direiío  ao  trem.  E  d'este  simples  caso 
decorre,  naturalmente,  com  a  fácil  moralidade 
de  uma  fabula,  a  conclusão  patusca,  filosófica, 
de  que  o  correio  é  o  mais  feliz  dos  três. ..  No 
momento  em  que  o  ministro  passa,  ura  pobre 
estende  a  mão  —  a  vêr  se  chove.  O  ministro 
espirra.  E  um  outro  transeunte,  illudido  com  o 
movimento  da  mão  do  pobre,  coincidindo  com  o 
borrifo  que  o  nariz  do  ministro  espalha,  abre 
rapidamente  o  guarda-chuva,  e  apressa  o  passo. 
Dez,  vinte,  trinta  pessoas  que  se  cruzam  no 
passeio,  abrem  no  mesmo  momento  os  guarda- 
chuvas ;  outras  levantam  a  gola,  outras  arrega- 
çam a  saia.  Durante  quatro  segundos  tem-se  a 
mais  completa  illusão  da  chuva  —  uma  verda- 
deira chuva  de  mólha-tolos.  Ha  então  um  cava- 
lheiro de  chapéo  alto,  abrigado  num  portal,  que 


A  RUA  DO  OIRO  229 

faz  O  mesmo  movimento  do  pobre  d'inda  agora, 
não  querendo  metter  o  chapéo  fino  á  chuva  ;  e 
uma  senhora  caridosa,  que  passa,  pára,  pro- 
cura qualquer  coisa  no  seu  saquinho  de  velludo, 
e  mette  um  vintém  na  mão  do  cavalheiro  de 
chapéo  alto.  Do  outro  lado  da  rua  cresce,  em 
linha  recta  ao  vidro,  a  sombra  de  um  cão  sem 
dono.  Chega  á  porta,  cheira,  alça  a  perna,  e  es- 
guicha.. .  a  Salsaparrilha  e  soda!»  grita  um 
creado  ao  balcão.  Um  vulto  de  maltrapilho 
distribue  prospectos.  Passa  outro  de  grandes 
barbas,  quer  um  prospecto  também.  O  homem 
diz-lhe  que  não.  Não?  Porque  não?!  Porque  o 
outro  usa  crescida  a  barba  e  o  prospecto  an- 
nuncia  navalhas  para  a  barba...  Mas  o  que  é 
isto?  que  disparate  é  este?...  Isto  é  a  vida. 
O  que  não  quer  dizer  que  muita  gente  não 
ache  a  vida  uma  coisa  divertida,  mas  muito  di- 
vertida !» 


VII 


Uma  noite,  Já  tarde,  entrando  no  Hotel,  ines- 
peradamente encontrei  no  meu  quarto  um  volu- 
moso masso  de  cartas  e  jornaes  da  Ilha,  vindos 
por  um  navio  da  carreira  da  America. 

Eu  recolhia  massado,  «esbodegado»  —  como 
diziam  as  meninas  brazileiras  dos  quartos  mais 
caros  —  após  um  demorado  e  muito  animado 
serão  em  casa  de  Antonieta,  com  quem  eu  es- 
treitara relações,  e  de  quem  recebera  um  bi- 
lhetinho convidando-me  a  apparecer  nessa  noite, 
sem  falta,  para  me  encontrar  com  «um  antigo 
conhecimento»  que  me  havia  de  dar  grande  pra- 
zer. 

Intrigado,  e  confiado  nos  bons  créditos  da 
casa,  que  primava  na  escolha  dos  seus  artigos, 
para  lá  eu  correra  á  hora  indicada,  cora  prés- 


232  A  RUA  DO  OIRO 

surosa  pontualidade.  E  fora,  com  effeito,  uma 
boa  surpreza,  que  muito  prazer  me  dera. 

O  antigo  conhecimento  era  (mal  poderia  eu 
suspeitá-lo!)  a  Margarida  Tricana,  que  estava 
uma  maravilha,  e  que  eu  não  poderá  reconhe- 
cer á  primeira  vista,  tão  mudada  ella  estava ' 
Fora  até  muito  bem  preparada  a  surpreza,  pois 
quando  eu  entrava  na  sala  azul  onde  Antonieta 
recebia  as  suas  visitas  mais  intimas,  e  achando- 
se  já  ali  algumas  amigas  da  casa  em  attitudes 
expectantes,  e  cada  uma  d'ellas  com  o  seu  nome 
de  guerra  mirabolante,  nenhum  d'esses  nomes 
me  recordava  qualquer  creatura  que  houvesse 
conhecido  noutros  tempos  em  Coimbra,  durante 
a  formatura,  ou  em  Lisboa  nas  férias,  de  pas- 
sagem para  a  Ilha.  De  modo  que  quando  a  An- 
tonieta, affectando  um  grande  ar  de  cerimonia, 
concluía  as  apresentações,  e  eu  já  estava  per- 
suadido de  que  o  antigo  conhecimento  não  che- 
gara ainda,  pois  não  o  vira  ali,  uma  unisona  e 
fresca  gargalhada  rompia  d'aquelle  grupo  ga- 
lante de  mulheres,  coroando  o  êxito  da  intriga 
que  me  tinha  sido  preparada.  E  uma  d'ellas, 
então,  avançando  para  mim,  e  plantando-se 
na  minha  frente,  com  mais  viva  jovialidade  me 
dissera : 
—  «Pois  tu  já  não  me  conheces,  ó  ingrato  ?!» 
E   só  assim  eu  a  reconhecera,  e  só  assim  a 


A  RUA  DO   OIRO 


233 


teria  reconhecido,  porque  estava  inteiramente 
mudada,  a  nossa  querida  e  saudosa  Margarida 
Tricana  !  Ella,  que  era  magra,  miudinha  e  dé- 
bil, apparecia-me  agora  cheia,  fortalecida,  rija. 
Ella,  que  era  tiniida,  modesta  e  encolhidita,  es- 
tava agora  desinvolta,  pomposa,  imponentís- 
sima !  Ella,  que  d'antes  tinha  o  cabello  mais 
lindamente  castanho  d'este  mundo  e  do  outro, 
era  agora  loira,  d'um.  loiro  fulvo,  excessivamente 
loiro  !  Quem  poderia  tê-la  reconhecido,  quem  ?! 

Mas  estava  muito  melhor,  incomparavelmente 
melhor.  Estava  soberba.  Estava  óptima.  Como 
se  fizera  uma  tão  grande  e  bella  transformação? 
Como  fora  aquillo  ? 

Contou-me  tudo.  Para  mim  não  havia  segre- 
dos desde  o  tempo  da  Couraça  dos  Apóstolos. 
E  depois,  era  um  amigo,  oh  !  um  velho  e  bom 
amigo. . . 

Depois  que  eu  e  o  Fausto  tínhamos  sahido  de 
Coimbra,  ella  não  poderá  mais  aguentar-se  por 
lá.  Affeiçoara-se-nos  tanto,  tanto  se  identificara 
comnosco  e  com  a  nossa  alegria,  que  nunca 
mais,  depois  da  nossa  partida,  poderá  resignar- 
se  a  ficar  e  a  viver  por  lá.  Era  do  nosso  curso, 
concluirá  também  o  «seu  curso».  E  lançara 
mão  do  primeiro  ensejo  para  também  fugir. 

Offereceralhe  esse  ensejo  um  actor  do  Porto, 
um  tal  Bravo,  que  andava  no  verão  por  terras 


234  ^  Í^UA  DO  OIRO 

da  província  com  troupes  de  opereta.  Gostara 
d'elle,  deixara  que  elle  a  levasse  para  o  Porto. 
Mas  sahira-Ihe  um  mariolao,  que  a  maltratava, 
e  que  á  custa  d'ella,  e  chegando  a  bater-lhe,  ti- 
nha querido  viver  uma  temporada  de  inverno 
em  que  não  arranjara  theatro. 

Deixara- o,  fugira  para  Lisboa. 

Foi  a  sua  felicidade.  Uma  vez  em  Lisboa, 
tudo  lhe  correra  ás  mil  maravilhas.  Por  inter- 
médio de  uma  prima,  que  tinha  casa  de  hospe- 
des, arranjara  um  encosto  muito  vantajoso  com 
um  hospede  que  chegara  do  Brazil  no  mesmo 
dia  em  que  ella  chegara  do  Porto.  Fora  issp  um 
romance.  O  homemsinho  era  de  Braga,  engei- 
tado  e  creado  por  uma  pobre  gente  que  o 
tinha  levado  para  Manaus,  ainda  muito  pe- 
queno. Marido  e  mulher,  que  eram,  por  lá  ti- 
nham morrido.  Elle  trabalhara  e  enriquecera, 
chegara  aos  cincoenta  annos  solteiro,  sem  filhos, 
com  um  aneurisma  e  uma  fortuna.  Com  o  pre- 
sentimento  de  que  morreria  cedo,  sem  uma 
affeição  sobre  a  terra  alheia,  e  com  um  grande 
desejo  de  vir  morrer  a  Portugal  e  de  voltar  a 
ver  Braga,  mettera-se  no  primeiro  paquete  e 
abalara  por  ahi  fora. 

Um  companheiro  de  quarentena,  no  Lazareto, 
indicara-lhe  a  casa  de  hospedes  da  prima  de 
Margarida,  onde  elle  seria  tratado  e  amimado 


A  RUA  DO   OIRO  "    235 

como  pessoa  da    família.    E   assim  acontecera. 

A  Margarida  Tricana,  emquanto  não  arranjava 
pé  de  vida,  e  como  tivesse  vendido  os  últimos 
oirinhos  para  fugir  do  Porto,  não  tendo  génio 
para  estar  ás  sopas  da  prima  sem  ao  menos  lh'o 
pagar  com  trabalho,  declarara  que  tomava  á  sua 
conta  o  arranjo  dos  quartos,  e  nessa  lida  se  fora 
aproximando  do  «brazileiro»,  que  chegara  muito 
amachucado  da  viajem,  e  passara  quasi  todo  o 
dia  na  cama,  sobre  as  roupas.  Boasinha  como 
era,  como  rós  sempre  a  tinhamos  conhecido,  a 
Margarida,  bem  mais  por  bondade  que  por  in- 
teresseiro calculo,  insinuara-se  no  animo  do  hos- 
pede novo,  e  em  tão  boa  hora,  e  com  tanta 
sorte,  que  pouco  tempo  depois  estava  em  casa 
sua,  que  elle  lhe  pozera  em  seu  nome,  com  pro- 
messas de  mais  grossa  e  mais  choruda  fatia. 

Então  a  vida  entrara  a  ser  para  a  Margarida 
Tricana  uma  boa  coisa  compensadora  do  seu 
pequenino  sacrifício  junto  d'aquelle  homem  doen- 
te, que  temia  excitações  e  se  contentava  com 
aspirar  o  fresco  perfume  de  saúde  que  d'ella  se 
desprendia,  da  sua  carne  e  da  sua  seiva.  E  ar- 
redondara, e  engordara. 

Por  seu  lado,  o  homemsinho  tinha  encontrado 
também,  e  finalmente,  um  bom  affecto  na  terra. 
E  assim  durou  ainda  seu  anno  e  meio,  contente, 
sereno,  confiado.  Tão  confiado   e  tão  sereno, 


236  A  RUA  DO   OIRO 

que  o  aneurisma,  farto  de  esperar  um  sobre- 
salto,  resolvera  rebentar  assim  mesmo,  no  meio 
d'aquella  confiança  e  d'aquella  serenidade. 

Margarida  vestiu  ainda,  pelas  suas  próprias 
mãos  carinhosas,  o  cadáver  do  seu  homem,  cho- 
rou-lhe  sobre  o  caixão,  e  chorou  deveras.  Mas 
não  quiz  mais  ficar  naquella  casa,  onde  o  morto 
lhe  apparecia  entre  todas  as  portas  e  nos  vãos 
de  todas  as  janellas.  Agora,  era  minha  vizi- 
nha. . . 

—  «Minha  vizinha?» 

—  «Sim.  Tua  vizinha.  Muitas  vezes,  das  mi- 
nhas janellas,  te  tenho  visto  á  janella  do  teu 
quarto. . .  E'  verdade  :  e  como  está  o  teu  col- 
lega  Poças  ?» 

Cahi  das  nuvens  !  Pois  era  ella,  a  Margarida 
Tricana,  a  nossa  vizinha  do  terceiro  andar  da 
esquina !  Pois  era  por  ella  que  o  Poças  andava 
apaixonado? ! 

Nem  mais,  nem  menos.  Mas  pediu-rae  logo 
as  máximas  reservas.  Não  queria  que  o  Poças 
suspeitasse,  nem  por  sombras,  das  nossas  anti- 
gas relações,  e  que  nem  sequer  podesse  sonhar 
do  nosso  encontro,  naquella  noite  e  naquella 
casa. 

Tantas  precauções  e  receios  aguçaram  a  mi- 
nha curiosidade.  Queriam  ver  que  era  ella  já  a 
amante  do  Liberato  Poças  ? 


A  RUA  DO   OIRO  zSy 

—  «Não,  não!  Palavra  d'honra  que  não...» 
Elle  apenas  lhe  falara  uma  vez,  furtivamente, 

no  jardim  da  Escola  Politechnica.  Correspon- 
diam-se  por  carias.  E  eram  cartas  a  sério,  de 
que  a  Margarida  pretendia  tirar  partido,  «se  ca- 
lhasse». 

—  «Tenho  soffrido  muito,  sabes  ?  —  dizia-me 
ella. — E  agora,  que  tenho  alguma  coisa  de  meu, 
que  me  deixou  o  «brazileiro»  e  já  não  preciso 
andar  por  ahi  á  gandaia,  quero  também  ser 
gente...  Um  homem  sério,  assim  como  o  Po- 
ças, convém-me.  Depois,  ou  gosto  d'elle,  ou  não 
gosto.  Se  gosto,  tanto  melhor  I  se  não  gosto,  o 
menos  que  falta  por  ahi  são  homens  de  quem  a 
gente  gostei  Tudo  se  ha-de  arranjar.» 

Ella  dizia  estas  coisas  só  para  mim,  a  meia 
voz,  muito  em  confidencia.  Já  as  outras  tinham 
abalado,  e  Antonieta,  por  sua  vez,  deixara-nos 
sós.  Sós,  a  um  canto  mais  velado  da  salinha 
azul,  mergulhados  numa  chaise-longue,  recordá- 
mos com  mais  activa  saudade  os  nossos  tempos 
de  Coimbra  e  as  noites  da  Couraça. 

—  «Por  amor  de  Deus  —  recommendava 
ella  ainda  á  despedida  —  não  digas  nada  d'is- 
to  ao  Poças...  an  ?  Olha  que  eu  confio  em 
ti  !  .  .  .  » 

—  «Podes  confiar  —  assegurei.  —  Nem  pala- 
vra!» 


238  A  RUA  DO  OIRO 

E  quando  entrei  no  Hotel,  já  tarde,  vinha 
moído,  vinha  derrancado. 

No  grosso  masso  de  cartas  e  jornaes  da  Ilha, 
logo  ao  de  cima,  conheci  a  lettra  apurada  do  Primo 
Theodosio,  que  puz  de  lado,  para  o  fim.  Depois, 
vinha  a  lettra  graúda,  muito  egual,  bem  medida 
e  bem  lançada,  do  Doutor  Tarquinio.  Depois,  a 
lettra  confusa,  deitada,  corredia,  do  Doutor  Tris- 
tão. E  só  depois  d'essas  e  de  muitas  outras, 
umas  conhecidas,  outras  novas,  é  que  me  appa- 
recia  a  mais  desejada  de  todas,  a  única  desejada 
entre  todas,  naquelle  momento  de  somnolento 
cançaço  :  a  lettra  miúda,  muito  compacta  e  acon- 
chegadinha,  sem  maisculas  e  sém  parágrafos, 
da  Tia  Genoveva. 

Era  uma  carta  enorme,  de  três  folhas  atulha- 
das. Havia  novidade,  com  certeza,  e  novidade 
de  vulto,  para  que  a  Tia  Genoveva  tanto  escre- 
vesse, ella  que  tanta  difficuldade  tinha  em  es- 
crever !  Logo  ao  voltar  da  primeira  para  a  se- 
gunda lauda,  dadas  as  noticias  costumadas  da 
saúde  de  todos,  que  era  boa  (Deus  louvado !)  e 
das  coisas  de  nossa  casa,  que  lá  iam  continuan- 
do na  mesma  —  percebi  que  a  Tia  Genoveva 
ensaiava  complicados  rodeios  e  se  perdia  em 
atormentados  circumloquios,  antes  de  entrar 
claramente  no  assumpto  que  tanto  parecia  affli- 
gi-la  e  que  já  começava  também  a  preoccupar- 


A  RUA  DO   OIRO  l. 

me,  á  medida  que  mais  crescia  a  periferia  dos 
circumloquios  e  rodeios. 

«...  Emquanto  foi  o  Tlieodosio  e  tua  Tia 
Maria  da  Assumpção,  e  também  as  Noronhas, 
que  encontrei  no  domingo  na  missa  de  São  Gon- 
çalo, eu  não  fiz  grande  caso,  nem  pensei  sequer 
em  t'o  dizer,  para  q-.ie  não  te  aborrecesses.  Mas 
imagina  que  susto  eu  tive  quando  hontem  me 
appareceu  aqui  o  Doutor  Tristão  a  dar-me  conta 
do  que  se  dizia  de  ti  e  do  que  se  tramava  con- 
tra ti,  meu  querido  Quinino !  Eu  ainda  lhe  pedi 
que  te  escrevesse  e  te  dissesse  a  ti  mesmo  o 
que  eu  'acabava  de  saber  de  certeza,  mas  re- 
cusou-se,  poz  os  pés  á  parede,  como  se  costuma 
dizer,  e  que  lhe  pedisse  eu  tudo  menos  isso, 
porque  nunca  tivera  geito  para  se  metter  em 
vidas  alheias  nem  para  vehiculo  de  intrigas.  Vi- 
nha dar-me  parte  do  que  ouvira  e  lhe  constava, 
e  trazia-me  até  um  periódico  que  falava  contra 
ti,  para  que  eu  t'o  mandasse,  pois  que  nem  isso 
mesmo  elle  queria  fazer  directamente.  Coitado, 
é  assim,  todo  cheio  de  escrúpulos,  e  sempre 
assim  o  conheci.  Nosso  amigo  é  elle,  e  deveras. 
Só  Deus  sabe  também  quanto  me  custa  affli- 
gir-te  com  estas  coisas,  mas  parece  que  melhor 
é  tu  saberes  tudo.  Aqui,  toda  a  gente  começa  a 
estar  descontente  comtigo,  meu  querido  Quini- 
no, por  já  se  terem  passado  três  mezes  depois  que 


240  A  RUA  DO  OIRO 

ahi  chegaste  e  nada  constar  do  que  tenhas  feito  a 
bem  d'esta  terra.  O  Doutor  Tarquinio,  que  tanto 
tomou  a  peito  a  tua  eleição  (embora  nós  bem 
soubéssemos  com  que  reservado  fim)  anda  como 
doido,  e  já  brigou  com  o  Pedro  AíFonso,  que  te 
tinha  dado  trinta  votos  por  lhe  terem  promettido 
que  as  Obras  Publicas  arranjariam  a  canada  do 
Posto  Santo,  onde  tem  a  quinta,  para  poder 
passar  por  lá  com  o  carro,  e  que  de  tal  coisa 
nunca  mais  se  falou.  O  Pedro  Affonso  fez-lhe 
uma  espera  á  porta  do  Tribunal,  e  dava  conta 
d'elle,  se  não  tivesse  acudido  gente  que  sahia  da 
audiência.  Isto  tem  dado  muito  que  falar  e  até 
d"isso  se  diz  que  tu  é  que  tens  a  culpa,  porque 
se  tu  quizesses  já  as  Obras  Publicas  tinham 
mandado  arranjar  a  canada...  No  Centro  Re- 
generador tem  havido  reuniões  secretas,  mas 
não  tão  secretas  que  se  não  saiba  que  nellas  se 
tem  falado  muito  contra  ti  e  contra  o  Doutor 
Tarquinio,  a  quem  já  por  lá  chamam  —  o  Trai- 
dor I  E  tanta  troça  lhe  fizeram  na  botica  do  Cu- 
nha e  no  Club,  que  já  ninguém  o  vê  apparecer 
á  noite  em  parte  alguma.  . . » 

Por  alto,  vi  que  a  Tia  Genoveva  nada  mais 
me  dizia  de  terrífico.  O  resto  eram  conselhos  e 
recom.mendações.  Mas  tudo  aquillo  me  irritara, 
me  espalhara  o  somno.  Canalhas  I  Sempre  que- 
ria vê-los  no  meu  logar,  e  saber  o  que  fariam ! 


A  RUA  DO   OIRO  24I 

Elegiam-mc  deputado  independente,  entrega- 
vam-me  um  mandato  todo  de  arrogância  e  de 
isenção,  encommendavam-me  um  sermão  de  al- 
tivo protesto  paradizer  nas  bochechas  do  Poder 
Central  —  e  queriam  que  eu,  á  capucha,  e  por 
detrás  da  cortina,  continuasse  a  servir  os  mes- 
quinhos interesses  da  politica  do  circulo,  arran- 
jando lanços  de  estrada,  obtendo  empregos,  aco- 
bertando contrabandos  e  emigrações  clandesti- 
nas, livrando  latagÕes  do  recrutamento,  promo- 
vendo transferencias,  exercendo  vinganças... 
Canalhas ! 

Num  frenesi,  rasguei  o  envelope  da  carta  do 
Doutor  Tarquinio.  Escrevia-me  pouco,  com  ma- 
nifesto desgosto;  mas  discretamente,  vendo  bem 
as  coisas,  avaliando  as  circumstancias.  Sabia  o 
que  era  o  Parlamento,  sabia  o  que  eram  os  Mi- 
nistérios. Por  sua  parte  estava  eu  desculpado^ 
largamente  desculpado.  Até  me  dava  toda  a  ra- 
zão na  attitude  reservada  em  que  eu  lhe  decla 
rara  manter-me  perante  as  seduções  do  Go- 
verno. Ou  bem  que  era  deputado  independente, 
ou  bem  que  o  não  era.  Mas  fossem  lá  dizer  isso 
aos  outros  —  aos  Pedros  Aífonsos  I  Estavam.os 
bem  servidos...  A  autonomia  que  esses  que- 
riam era  uma  autonomia  que  lhes  permittisse 
gastar  em  seu  proveito  todo  o  dinheiro  que  até 
agora   se   mandava  para  a  metrópole,  não  dis- 

16 


242  A  RUA  DO  OIRO 

pensando  porém  a  metrópole  de  lhes  mandar 
mais  algum.  E  o  que  acontecia  ?  Acontecia  que 
os  Pedros  Affonsos  de  ambos  os  partidos  (pois 
não  ha  partido  nenhum  que  não  tenha  o  seu 
Pedro  AíFonso)  queriam  dar  agora  o  dito  por 
não  dito,  e  quebrar  o  accordo  de  que  eu  sahira 
eleito,  cortando-me  todas  as  vazas  no  Parla- 
mento, desprestigiando-me  o  mandato,  se  as 
primeiras  tentativas  da  ignominiosa  campanha 
que  tramavam  me  não  levassem  a  depô-lo  im- 
mediatamente. 

—  «Pois  não  hão-de  ter  esse  gosto,  sucia  de 
malandros!»  esbravejei,  ferrando  um  valente 
murro  sobre  a  commoda,  que  toda  estremeceu. 
E  não  quiz  ler  mais  nada,  não  quiz  saber  de 
mais  nada. 

Despi-mc  apressadamente,  aos  repellões.  Um 
botão  de  punho  mais  renitente  em  sahir  da 
casa,  saltou  ao  tecto,  quebrado  pelo  pé.  Cada 
uma  das  botas  foi  para  seu  lado,  no  desespero 
de  não  ter  eu  ali,  naquelle  instante,  e  a  geito,  o 
trazeiro  d'esse  velhaco  do  Pedro  Affonso,  onde 
podesse  experimentar-lhes  a  resistência  das  bi- 
queiras. E  mettido  na.  cama,  e  assoprada  a 
vela,  antes  de  puxar  as  roupas,  de  me  ferrar  no 
somno  e  esquecer  aquella  corja,  com  os  punhos 
cerrados  e  rilhando  o  dente,  ainda  investi  na 
treva,  ameaçando-os  de  desforra  ! 


A  RUA  DO  OIRO  243 

Ai  de  mim !  Eu  já  não  era  o  senhor,  o  antigo 
senhor,  absoluto  e  ríspido,  da  minha  própria 
vontade.  Distrahido,  contaminado,  empolgado 
pela  Capital,  deixava-me  agora  levar,  sem  bús- 
sola e  sem  leme,  todo  o  meu  querer  desmante- 
lado, na  corrente  impetuosa  da  sedução  da  Ca- 
pital. . . 

Admittindo  que  o  homem  não  é  outra  coisa 
senão  um  animal,  que  acha  a  vida  péssima,  ou 
que  acha  a  vida  óptima,  conforme  nelle  se  de- 
moram ou  se  abreviam  as  digestões,  eu,  animal, 
digerindo  sem  difficuldade  a  comida  ruinosa  do 
Borges,  achava  a  vida  excellente. 

Bem  longe  andava  eu  de  ser  como  aquelles 
catechumenos  antigos,  que  depois  de  terem  as- 
sistido ás  visões  terríveis  de  certos  mistérios, 
podiam  bem  continuar  a  viver,  mas  nunca  mais 
podiam  rir.  Iniciado  e  já  quasi  familiarisado  no 
mecanismo  da  alta  politica  portuguesa,  que  me 
oíferecera  surprezas  mas  não  me  inspirara  ainda 
fundas  repugnancias  ;  desfructando  todas  as  re- 
galias e  todas  as  estimas  devidas  á  minha  con- 
dição, e  estimuladas  pela  minha*natural  affabi- 
lidade  no  commercio  dos  políticos,  dos  frequen- 
tadores da  Havaneza,  dos  commensaes  do 
Borges ;  achando  fácil  e  grato  o  trabalho  que 
me  era  distribuído  nas  commissões  da  Camará, 
para  que  me  haviam  escolhido,  ainda  mesmo 


244  A-  RUA  DO  OIRO 

naquella  de  que  fora  nomeado  relator  (que  era 
a  commissão  de  Instrucção)  pois  de  todo  esse 
trabalho  eu  me  desempenhava  folheando  dois 
ou  três  livros  e  com  uma  perna  ás  costas ;  re- 
cebendo amiudadas  vezes  o  mot  d'ordre  do  Go- 
verno, por  intermédio  do  meu  amigo  Fausto, 
para  não  ir  á  Camará  nos  dias  em  que  ao  Go- 
verno convinha  que  não  houvesse  numero  \  fre- 
quentando, talvez  já  com  demasiada  assiduidade, 
os  serões  galantes  da  Antonieta,  a  respeito  dos 
quaes  o  Illustrado  guardava  uma  absoluta  re- 
serva, mas  que  nem  por  isso  eram  menos  agra- 
dáveis do  que  muitos  outros  de  que  nelle  sempre 
vinha  noticia  minuciosa ;  inscripto  como  sócio 
do  Turf,  onde  o  meu  magico  chapéo  de  coco 
cor  de  abóbora  me  franqueara  a  entrada,  dis- 
pensando o  inquérito  acerca  dos  meus  titulos  de 
nobreza,  como  ordenava  o  estatuto,  e  onde  me 
era  grato  assomar  á  varanda  entre  viscondes,  á 
hora  buliçosa  da  tarde  a  que  passavam  na  rua 
as  viscondessas  —  a  vida  de  Lisboa  desabro- 
chara para  mim,  sob  a  tépida  caricia  do  céo  já 
bem  azul  d'esses  princípios  de  junho,  a  grande 
flor  fatal  da  sedução  !  E  eu  aspirei  então,  com 
delicias,  e  no  goso  da  minha  inadvertência,  o 
perfume  venenoso  d'essa  bella  flor. . . 

Ao  primeiro  periodo   de  jubilosa  actividade 
que  inaugurara  a  minha  carreira  politica,  e  em 


A  RUA  DO    OIRO  24b 

que  eu  quiz  abraçar  e  profundar  todas  as  gran- 
des questões  do  meu  paiz  —  as  de  ordem  poli" 
tica  e  as  de  ordem  moral,  as  de  ordem  finan- 
ceira e  as  de  ordem  económica  —  revolvendo  a 
Historia,  compulsando  os  Tratados,  comparando 
as  Legislações;  sem  abalo  brusco  de  transição, 
sem  que  me  fosse  dado,  sequer,  apreciar  a 
fase  de  mudança,  seguira-se  porém  um  outro 
periodo  de  fadiga  intensa,  d'uma  exagerada 
sensibilidade  pervertida,  d'uma  nonchalance  per- 
sistente, d'uma  generalisada  irritabilidade,  d'um 
desequilíbrio  funccional,  emfim,  que  me  voltava 
o  miolo,  não  me  deixando  já  fixar  as  idéas  que 
procurava  nos  livros,  deixando-me  ler  paginas 
inteiras  c  seguidas,  capitulos  até  ao  fim,  sem 
que  de  tudo  isso  me  fosse  possivel  fixar  uma 
noção,  nem  uma  formula,  nem  sequer  uma 
frase,  chamando-me  incessantemente  para  algum 
ponto  opposto  áquelle  onde  eu  me  achasse,  ati- 
rando-me  para  cima  de  todos  os  divans  que  os 
meus  olhos  descobrissem,  obrigando-me  a  cha- 
mar carruagens  para  transpor  as  mais  curtas 
distancias,  mole,  mole,  espapaçado. . .  Sentiame 
victima  de  uma  lida  que  excedia  muito  as  mi- 
nhas forças  de  adaptabilidade  nervosa,  desalen- 
tava, parava,  recuava  —  e  acabava  sempre,  fati- 
gado, por  dar  fundo  na  Rua  do  Salitre,  onde  já 
não  me  era  consentida  uma  ausência  de  mais  de 


246  A  RUA  DO  OIRO 

vinte  e  quatro  horas  sem  boas  justificações  e 
mil  desculpas. 

Tudo  quanto  a  Tia  Genoveva  me  insinuara,  e 
tudo  quanto  eu  depois  aprendera  e  chegara  a 
conhecer  de  nocivo  e  de  fatal  no  convívio 
muito  intimo  da  mulher,  parecia  tê-lo  esquecido 
inteiramente,  repentinamente,  desde  que  trans- 
pozera  o  limiar  da  casa  de  D.  Claudia.  E  todos 
os  manejos,  todas  as  ronhas,  todos  os  ardis  e 
todos  os  embustes  attribuidos  ao  perigoso  e 
eterno  Feminino,  tudo  isso  eu  juntava  agora, 
numa  nova  estrofe,  ao  himno  límpido  e  sonoro 
do  Mérito  das  Mulheres,  sob  a  influencia  ena- 
morada dos  encantos  de  Clarínha,  avassalado 
pela  soberania  da  sua  graça  irresistível. 

Muitas  vezes,  em  sua  casa,  nos  encontrámos 
sós,  absolutamente  sós,  na  mais  descuidada  e 
mais  doce  intimidade.  E  ahi,  e  assim,  passavam 
para  nós  horas^esquecidas  —  ella  occupada  com 
algum  bordado,  eu  collocado  em  frente  do  seu 
bastidor,  ora  lendo  em  voz  alta  algum  livro 
novo,  ora  entrecortando  a  leitura  de  largos  tre- 
chos de  conversa. 

—  «Parece-lhe  que  vá  bem  aqui  este  ama- 
rello  tão  vivo  ?»  perguntava-me  ella,  a  propósito 
da  applicação  de  alguma  seda  ao  bordado. 

—  «Acho  lindo. . .» 

—  «E  d'este  desenho,  gosta?» 


A  RUA  DO  OIRO  24 

—  «Gosto  muito !  E'  uma  idéa  sua,  ou  tirada 
de  algum  jornal  ?» 

—  «Creio  que  é  uma  idéa  minha.  Admira-se  ? 
E  o  senhor  nunca  teve  uma  idéa  ?» 

—  «Já  não  ha  meio  de  ter  idéas  novas. . . » 

—  aE  para  quê  ?  Os  jornaes  dizem  tudo. 
Basta  ler  os  jornaes.» 

—  «E'  o  que  eu  faço.» 

—  «E  quando  encontra  alguma  que  lhe  serve 
fa-la  depois  passar  como  se  fosse  sua ...» 

—  «Não,  lá  isso  não  !  Seria  fácil  perceber  o 
truc,  sobretudo  quando  se  tratasse  de  alguma 
idéa  boa. . . » 

—  «O  senhor  é  muito  modesto.  Precisa  cor- 
rigir-se.  A  modéstia  é  uma  péssima  virtude.» 

—  «Mas  isto  não  é  ser  modesto. . .  Isto  é  ser 
exacto.» 

—  «Pois  então,  fique  sabendo  que  não  é  nada 
d'isso.  Quer  que  eu  lhe  diga  o  que  o  senhor 
realmente  é  ?» 

—  «Pois  diga. . .  » 

—  «E'  um  intrujão  !» 

Eu  ria,  animava-me,  protestava.  Ella  teimava, 
deliciosa  : 

—  «Certissimo  !  Um  grande  intrujão.  Nunca 
ninguém  lh'o  disse,  talvez. . .  Talvez  nem  o  se- 
nhor mesmo  o  suspeitasse...  Pois  é,  digo-lh'o 
eu !» 


248  A  RUA  DO  OIRO 

—  «Bem.  Acredito.  Vossa  Excellencia  que  o 
diz. . . » 

Batia  o  pé,  numa  raiva.  Torcia  o  narizito. 

—  «Vossa  Excellencia  !  Outra  vez  !  Que  mas- 
sada...  Porque  não  me  pede  licença  para  tra- 
tar-me  por  tu  ?» 

—  «Não  me  atreveria. . .  » 

—  «Pois  atreva-se,  ande  I  Já  não  será  sem 
tempo.  Ha  três  mezes  que  me  conhece^  que 
vem  aqui,  que  me  diz  coisas  amáveis  a  meia 
voz. . .  E  hontem  ?. . .  que  quasi  me  obrigou  a 
fazer  um  pequenino  esforço  para  lhe  fugir  com 
a  mão,  que  o  senhor  teimava  em  apertar,  depois 
de  a  ter  beijado. . . » 

—  «E  o  que  podia  haver  nisso  de  mal  ?  Um 
beijo  na  mão ...» 

—  o  Um  só,  decerto. . .  Nenhum  mal  !  Mas  é 
que  o  senhor  se  preparava  para  me  dar  se- 
gundo !  E  olhe  que  não  foi  para  que  m'o  não 
desse  que  lhe  fugi . . .  Foi  para  que  não  podesse 
dizer  depois  que  eu  lh'o  acceitara.» 

—  «Mas  se  eu  tivesse  segurado  bem  a  sua 
mão,  c  sempre  lh'o  desse,  afinal  ?» 

—  «Se  fosse  necessário  segurar-me  a  mão, 
era  porque  essa  mão  lhe  fugia.  Nesse  caso,  da- 
va-me  o  senhor  o  direito  da  defeza,  com  a  mão 
que  me  restasse  livre.  E  eu  teria  sabido  usar 
d'esse  direito. . .  » 


A  RUA  DO   OIRO  249 

Depois,  mudando  de  conversa  : 

—  «Quando   faz  o  seu  debute  na  Gamara  ?» 

—  «Quando  se  discutir  o  projecto  da  reforma 
do  Código. . .» 

—  «Ah  !  Isso  é  sério.  De  costume,  para  os 
discursos  de  debute  não  se  escolhem  coisas  sé- 
rias. . .  Decididamente,  o  senhor  vem  disposto  a 
coisas  espantosas !» 

—  «Pois  olhe,  não  fui  eu  que  escolhi.  Foi  a 
senhora  sua  mãe  que  m'o  impoz...» 

— «Não  diga  isso  outra  vez,  senhor  Amaral !  Um 
homem  no  seu  caso  não  obedece  a  imposições 
de  ninguém.  Faz  o  que  quer.  Faz  o  que  julga 
melhor.  Teria  o  senhor  preferido  outra  occasião 
para  falar  pela  primeira  vez  na  Gamara?» 

—  «Não  tinha  pensado  ainda  nisso,  quando 
sua  mãe  me  fez  essa  mesma  pergunta.  E  então 
ella,  muito  naturalmente, '  disse-me  :  «Porque 
não  aproveita  a  discussão  da  reforma  do  Go- 
digo  ?  Porque  não  defende  a  questão  do  divor- 
cio ?»  E  accrescentou,  como  se  me  fizesse  uma 
indicação  :  «...  Até  me  seria  muito  agradá- 
vel... »  A  lembrança  sorriu  me,  vi  a  possibili- 
dade de  tirar  d'ahi  alguns  effeitos,  acceitei  o  al- 
vitre. . . » 

Glarinha  suspendera  o  trabalho  do  bordado, 
afastara- se  um  pouco  do  bastidor  para  mais  se 
approximar  de  mim ;  e  como  se  tomasse,  afinal, 


25o  A    RUA   DO    OIRO 

uma  deliberação  difficil  depois  de  muito  hesitar, 
e  de  muito  deixar  amadurecer  um  certo  propó- 
sito, cujo  segredo  me  ia  confiar,  disse-me  as- 
sim : 

—  «Minha  mãe,  quando  fala  com  os  se 
nhores,  nunca  diz  nada  muito  naturalmente. 
Guarde  isto  só  para  seu  uso,  como  prova  da 
muita  estima  e  da  muita  confiança  que  tenho 
em  si.  Quero  que  o  senhor  o  saiba,  para  seu 
governo.  Faça  a  sua  estreia  quando  quizer,  e  es- 
colha o  pretexto  que  muito  bem  quizer. . .  Mas 
livre-se  de  que  alguém  supponha  que  minha 
mãe  se  serve  de  si,  como  de  tantos  outros,  para 
conseguir  os  seus  fins!» 

Vindo  da  rua,  da  Liga,  dos  Ministérios, 
D.  Claudia  entrava  nesse  momento.  Clarinha 
fez-me  signal  para  que  me  calasse. 

D.  Claudia  não  esperava  enconirar-me.  Mas 
não  mé  fez  a  festa  do  costume.  Mal  sorriu.  Eu 
estranhei  e  attentei  no  seu  aspecto,  que  deno- 
tava uma  desusada  fadiga,  um  evidente  esforço 
de  dissimulação. 

—  «A  estas  horas  por  cá?  E'  caso!  Aposto 
que  não  houve  Camarás. . . » 

—  «Deve  ter  havido,  mas  passaram  hoje  sem 
mim. .. » 

Depois,  chegando-se  ao  bastidor,  examinando 
com  attenção  o  bordado    que    Clarinha  retoma- 


A  RUA  DO  OIRO  25 1 

ra  apressadamente,    quando   a    sentira   entrar : 

—  «Bravo !  O  crisântemo  fica  lindo.  Está 
um  apetite.» 

Deu-lhe  um  beijo  nos  cabellos.  E  descalçou 
lentamente  as  luvas,  foi  tirar  o  chapéo,  collocou 
num  frasco,  sobre  uma  étagère,  umas  rosas  sol- 
tas que  lhe  dera  o  Plantier. 

—  tSabes  que  combinámos  ir  á  exposição  do 
Grémio  ?  disse  Clarinha.  — Dás  licença  ?  Estava, 
mos  á  tua  espera.» 

—  «De  mil  vontades.  Acho  muito  bem.  O  que 
me  parece  é  que  não  terão  muito  tempo. . .  São 
quatro  horas.» 

—  «Não  é  tarde.  Só  fecha  ás  seis.  Damos 
uma  volta. . .  Podemos  ver  o  melhor.» 

■ —  «Pois  vão.  — E  voltandose  para  mim  :  — 
Mas  veja  lá  senhor  Amaral,  não  vá  compromet- 
ter-se. . . » 

—  «Não,  minha  senhora. . .  Creio  bem  que 
não.» 

Clarinha  deixou-nos,  por  instantes,  para  ir 
apromptar-se,  concertar  um  pouco  os  cabellos. 
D.  Claudia  insistiu : 

—  «Não  sei,  não  sei...    Veja   lá! — E  cha 
mando   por  alguém   que  entrara  com  ella,  mas 
ficara  na  ante-sala  : — Entre  para  aqui,  ó  Me- 
lecas !» 

E  eu  vi  entrar  o  Melecas,  o  Melecas  do  Phan- 


252  A  RUA  DO  OIRO 

tasma^  rebolando-se  de  contentamento  como 
um  mops  de  estimação,  e  sobraçando  duas 
enormes  pastas  de  carneira  vermelha.  Arreou 
aquelle  enorme  peso  sobre  a  secretária-ministre 
onde  D.  Claudia  se  instalara  já,  veiu  compri- 
mentar-me,  com  immenso  gosto. 

Abrindo  uma  das  pastas,  e  começando  a  tirar 
papeis,  que  dispunha  em  diversos  montes, 
D.  Claudia  continuou,  dirigindo-se-me  : 

—  «O  senhor  não  teme  as  más  linguas?» 

—  «Absolutamente  nada.» 

—  «Não  conhece  então  o  Dom  Bazilio?» 

—  «Quem  o  não  conhece!» 

—  «E  não  lhe  acha  razão?  Não  acredita  que 
de  toda  a  calumnia  alguma  coisa  fica?» 

Respondi  firmemente : 

—  «Não  acredito.» 

A'oltando-se  então  para  Melecas,  gracejou  : 

—  «E  vossê.  Melecas,  o  que  pensa?» 
D'olho    em   alvo,    melado   como  um  alfenim, 

Melecas  sorriu  : 

—  «Eu,  minlia  senhora,  peço  desculpa,  mas 
não  penso  nada  'n 

Vivamente,  continuando  o  gracejo,  D.  Claudia 
increpou  o : 

—  «Para  que  anda  então  o  senhor  a  apren- 
der esgrima,  se  arranja  sempre  maneira  de  não 
ter  uma  opinião  ?» 


A  RUA  DO  OIRO  253 

—  fSaber  esgrima,  senhora  D.  Claudia,  é 
uma  excellente  coisa  para  evitar  os  duelos.  Mal 
isso  consta,  ninguém  mais  se  mette  comnos- 
co.» 

—  «Ora  ahi  tem  Vossa  Excellencia  —  disse  eu 
—  uma  excellente  opinião  I» 

Clarinha  voltava,  já  prompta. 

—  «Vamos  lá  ?» 

Mas  a  mãe  levantara-se,  fora  escolher  uma 
rosa  do  ramo  que  tinha  trazido,  e  chegando-se  a 
mim,  pelas  suas  próprias  mãos  quiz  collocar-ma 
no  casaco. 

—  «Deixe-me  flori-lo  um  pouco.» 

A  lapela,  porém,  estava  ainda  fechada. 

—  «Mas  espere. . .  Este  casaco  está  novo  em 
folha. . .» 

—  «Precisamente  em  folha,  não  está.  Mas  não 
tive  ainda  occasião  de  lhe  pôr  uma  flor.» 

Clarinha,  então,  intromettia-se,  obstando  a 
que  a  mãe  rompesse  a  lapela : 

—  «Deixa,  mamã. . .  Talvez  não  goste,  cjuem 
sabe  ?  Não  teimes ...» 

—  «Gosto,  sim,  minha  senhora!  affirmei  viva- 
mente. Gosto  até  muito !  E  que  não  gostas- 
se-.. » 

Mas   D.    Claudia  retirara  subitamente  a  flor : 

—  «Não,  lá  isso  não  I  Diga  com  franqueza  se 
gosta,  ou  se  não  gosta . . .  Uma  lapela  deve  es- 


254  ^  ^^^  DO  *^í^o 

tar   sempre  aberta  —  ou  fechada!  E  vossê,  Me- 
lecas, também  gosta  de  flores?» 
Melecas  estremecia,  de  goso  : 

—  «Oh !  as  flores. . .  Quem  ha  que  não  goste 
d'ellas...» 

—  «Pois  sim!  dizia  D.  Claudia,  frenética. — 
Mas  as  rosas  não  se  fizeram  para  os  Melecas  ! 
Para  os  Melecas  fizeram-se  as  commendas!» 

—  «Talvez,  minha  senhora. .  .E'  possivel. , .  » 

—  «Pois  deixe  estar  que  eu  lhe  arranjarei 
ainda  uma  commenda  !d 

Clarinha  despediu-se.  Eu  procurava  o  meu 
chapéo  e  a  minha  bengala,  que  o  Melecas  avis- 
tara a  um  canto  e  correra  a  buscar,  sempre 
amável,  extremamente  serviçal. 

—  «Não  se  demorem  muito!»  disse  ainda  D. 
Claudia. 

E  sahimos  sós  —  eu  e  Clarinha. 


Por  que  artes  se  introduzira  Melecas  em  casa 
de  D.  Claudia?  perguntara  eu  mais  de  uma  vez 
a  mim  mesmo,  sem  atinar  com  a  explicação  de 
tão  espantoso  acontecimento.  Melecas  era  o  re- 
dactor do  Phantasma,  e  o  Phantasma  esse  pas- 
quim que  chegara  a  publicar,  numa  supposta 
lista  das  amantes  do  Presidente  do  Conselho,  as 
iniciaes  de  D.  Claudia  I 


A  RUA  DO  OIRO  255 

Mas  da  própria  bocca  de  Melecas  vim  a  saber 
como  aquillo  fora. 

—  «Eu  passava  uma  vez  naquelle  corredor 
do  Ministério  do  Reino  que  fica  por  cima  da  es- 
cada principal,  sabe  ?  quando  percebi  que  uma 
voz  de  mulher  altercava  com  alguém  na  sala  do 
Conselho  de  Estado,  onde  acabava  de  reunir  a 
commissão  do  Código.  Estava  uma  porta  entre- 
aberta, puz  o  ouvido  á  escuta,  achei  que  valeria 
a  pena  deter- me  por  ali  alguns  minutos  e,  por 
dever  de  officio,  escondi-me  atrás  do  repos- 
teiro. . .  D 

As  traças  tinham  aberto,  dir-se  ia  que  de  pro- 
pósito, uns  pequeninos  orifícios  no  estofo,  por 
onde  me  era  permittido  assistir  á  impagável 
scena  que  ali  se  estava  passando. 

D.  Claudia  puxava  por  um  braço  do  Padre 
Eterno,  que  resistia,  declarando:  —  «Não,  mi- 
nha senhora...  Tudo  menos  isso!  Lá  isso, 
nunca ! » 

Ella  teimava,  puxando  sempre,  encolerisada 
já. 

—  «Não,  minha  senhora !  Tudo  menos  isso  ! 
Lá  isso,  nunca  !» 

Por  fim,  ella  empurrou-o  com  violência,  obri- 
gou o  a  sentar-se  na  cadeira  da  presidência,  e 
carregando-lhe  nos  hombros,  como  se  quizesse 
pregá-lo  bem  no  assento: 


256  A  RUA  DO  OIRO 

—  «Sente  se  ahi,  já  lhe  disse  I  Hque  se  ahil 
E  saiba  que  não  tornará  a  levantar-se  d'esse  le- 
gar emquanto  não  estiver  tudo  isto  acabado,  e 
bem  acabado,  ouviu?  Muito  lhe  tenho  eu  atura- 
do, ao  senhor,  e  não  estou  disposta  a  aturar- lhe 
muito  mais.  Ha  de  ficar,  digo  lh'o  eu,  até  qu^  o 
mandem  embora!» 

O  Padre  Eterno  resignava-se;  não  resistia  já : 

—  «Bem. . .  Que  remédio  I  Manda  quem  pô- 
de.. .  E  quando  Vossa  Excellencia  quizer,  para 
variar. . .  aqui  tem  a  outra  face. . .  » 

Mas  D.  Claudia  não  o  tomava  a  serio: 

—  tDeixe  se  de  farças,  reverendo!  Bem  sabe 
que  não  ha  mão  que  lhe  bata  que  não  fique  a 
arder.  Mas  hei  de  amarrotá-lo!» 

—  «Bem,  minha  senhora. . .  Eu  fico.» 

—  fNecessariamente  !  tornava  ella,  exaltadis 
sima.  Mas  por  quanto?  Preço  fixo,  ouviu?  Não 
me  obrigue  ainda  a  ter  de  regatear. . . » 

O  Cónego  já  estava  apopletico.  Vi  o  momento 
em  que  lhe  dava  algum  ataque. 

—  «Ou  Vossa  Excellencia  procede  de  má  fé, 
o  que  não  está  nos  seus  hábitos,  ou  o  seu  tacto 
a  illude,  senhora  D.  Claudia  I  Isto  não  é  tão 
mole  como  parece ...» 

—  «Deixe-se  d'isso,  já  lhe  disse.  O  senhor  é 
Um  sapo !  Tem  a  pelle  resistente  doesse  reptil 
batrachio.    Pôde  pôr-selhe  um  pé    em    cima, 


A  RUA  DO  OIRO  267 

e   carregar,    que    não    estala.  E'  lepugnante!» 

—  «Eu  já  não  sei,  com  franqueza,  rouquejava 
o  Padre  Eterno,  o  que  mais  admirar  em  Vossa 
Excellencia :  se  a  enormidade  da  sua  audácia, 
se  os  seus  profundos  conhecimentos  de  historia 
natural  ! . . . » 

Bufou  de  raiva,  afogueado,  levantou-se  e  sahiu. 
D.  Claudia,  que  parecia  uma  leoa  excitada  den- 
tro duma  jaula,  andava  á  roda  da  mesa  numa 
grande  agitação,  e  quando  o  viu  encaminhar-se 
para  a  porta  estacou,  ainda  lhe  lançou  um  olhar 
rancoroso  como  uma  chicotada  que  o  envolvesse 
todo,  da  nuca  ao  calcanhar,  e  disse  alto : 

—  «Mariolai» 

Eu  não  podia  mais  conter  o  meu  enthusiasmo. 
Ergui  o  reposteiro,  corri  para  D.  Claudia,  cahí- 
Ihe  aos  pés: 

—  «Bravo,  minha  senhora  I  Bravo  I. . .» 
Qualquer  outra  mulher,   naquella  situação  e 

naquelle  momento,  ter-se-ia  sobresaltado  com  a 
minha  inopinada  apparição.  EUa  não.  Até  sere- 
nou. E  pergutou-me  friamente  : 

—  «Quem  é  o  senhor?» 

—  «Não  me  pergunte  Vossa  Excellencia  quem 
eu  sou,  nem  d'onde  venho...  Só  desejo  di- 
zer-lhe  que  vou. . .  para  Onde  Vossa  Excellencia 
quizer  I  Ha  muito  tempo  que  eu  pasmava  dos 
altos  dotes  que  ornam  o  caracter  de  Vossa  Ex- 

i7 


258  A  RUA  DO  OIRO 

^ellencia,  mas  nunca  se  me  oíferecera  occasião 
para  tão  bem  poder  avaliá-los,  como  agora. . .» 
EUa  insistiu : 

—  tMas  quem  é  o  senhor,  afinal  ?» 

—  lEu  sou  o  Melecas,  minha  senhora  !  O  Me- 
lecas do  Phantasma  —  para  servir  ^'ossa  Excel. 
lencia,  voltado !  Todas  as  minhas  antigas  con- 
vicções politicas  baquearam  neste  instante,  sob 
o  império  das  palavras  de  Vossa  Excellencia 
exprobrando  esse  Director  Geral !» 

D.  Claudia  sorriu,  como  decerto  não  sabem 
sorrir  os  anjos. 

—  iTrata-se  então  de  uma  profissão  de  fé  ?» 

—  tPerfeitamente  I» 

—  «De  boa  fé  ?d 

—  «Da  melhor  fé  I» 

Estendeu-me  a  mão,  que  eu  beijei,  e  ainda 
disse: 

—  tMas  conhece  bem  o  senhor  o  meu  credo 
politico  ?» 

—  «Se  conheço!  Na  minha  qualidade  de  re- 
pórter, tenho  seguido  todos  os  passos  de  Vossa 
Excellencia  através  da  publica  administração, 
como  um  cão  fiel  segue  o  dono.  E  cheguei  á 
conclusão  de  que  Vossa  Excellencia  pode  hoje 
dizer,  como  outr'ora  dizia  o  grande  rei  de  Fran- 
ça:—  «O  Estado  sou  eu!»  Ha  uma  coisa  para 
mim,  nesta  vida,  que  eu  ponho  acima  de  tudo, 


A  RUA  DO  OIRO  25g 

e  que  é  o  amor  pela  minha  pátria.  E  se  Vossa 
Excellencia  me  vê,  neste  momento,  rendido  a 
seus  pés,  é  porque  eu  sinto  bem  que  o  único 
homem  capaz  ainda  de  pôr  tudo  isto  a  direito  — 
é  Vossa  Excellencia!» 

—  «Como  pôde  o  senhor  justificar-se  então 
d'essa  ignominiosa  campanha  que  tem  movido 
contra  o  meu  programma  de  governo,  atacando 
tão  desapiedadamente  o  meu  poder  executivo, 
tendo  mesmo  chegado  a  ferir  com  algumas  allu- 
sões  muito  directas  a  minha  pobre  pessoa  irres- 
ponsável ?  Não  sabe  o  senhor,  acaso !  que  numa 
mulher  não  se  deve  bater  nem  com  uma  flor. . . 
de  rhetorica?!» 

Ahl  meu  caro  senhor  Amaral,  que  divina 
mulher!  que  mulher  divina!  Eu  nem  Já  pro- 
curava justificar-me,  eu  só  queria  arrepender- 
me;  e  disse-lh'o : 

—  «Vire-me  Vossa  Excellencia  I  Vire-me  Vos- 
sa Excellencia,  e  verá  como  um  péssimo  jorna- 
lista da  opposição  dá,  do  avesso,  ura  excellente 
jornalista  do  governo, .  .» 

Ella  obrigou- me  então,  solemnemente,  no  mo- 
mento de  passar  para  as  suas  fileiras,  a  jurar- 
Ihe  fidelidade, 

E  eu  jurei  I» 

Hoje,  era  o  seu  secretario  particular.  Mandara 
o  Phantasma  ao  diabo,  para  que  fizesse  d'elle  o 


26o 


A  RUA  DO   OIRO 


melhor  uso  que  entendesse.  E  já  não  sabia  como 
podesse  haver  quem  gostasse  de  estar  na  oppo- 
sição !  Estar  na  opposição,  afinal,  o  que  era  ?  Era 
estar  por  baixo,  era  andar  por  baixo,  sempre  por 
baixo,  até  por  baixo  das  mesas,  como  elle  che- 
gara a  andar  para  colher  algumas  migalhas  de 
noticias.  Não  era  sem  tempo  que  passava  da  cepa 
torta.  Chegara-lhe  também  a  vez  de  andar  de 
cabeça  alta !  Agora  todas  as  portas  se  abriam 
na  sua  frente,  todos  os  mistérios  se  lhe  desven- 
davam, via-se  no  segredo  dos  Deuses  I  Estava 
ah  e  estava  segundo  oííicial. . . 

Mas,  arre  I  que  não  fora  sem  custo.  Tinha  ar- 
ranjado uma  tal  reputação  de  jacobino  com  essa 
burrice  de  assumir  a  responsabilidade  de  arti- 
gos, que  nunca  elle  escrevera,  contra  as  Insti- 
tuições, que  só  Deus  sabia  as  difficuldades,  as 
penúrias  em  que  se  tinha  visto  para  manter  urra 
certa  hnha. . .  Mas  era  uma  inclinação,  era  uma 
vocação,  era  uma  paixão  pelo  jornalismo,  que 
abandonara  tudo  —  tudo!  —  o  commercio,  a  fa- 
mília, a  vergonha.. .  para  se  lançar  na  impren- 
sa !  Fizera  a  sua  estreia  no  Pitnpão.  Com  uma 
charada  em  verso.  Uma  charada  só  para  ho- 
mens. Depois  mudara  de  género,  e  passara  a 
coUaborar  no  Almanach  das  Senlioras ...  E 
pouco  tempo  depois  abandonava  a  loja  de  mo- 
das,  onde   estavc  quasi  a  ser  promovido  a  pri- 


RUA  DO  OIKO  2Ò  I 

meiro  caixeiro,  para  ir  dirigir  o  Pirolito,  uma 
vez  por  semana,  para  ambos  os  sexos.  Ao  fim 
de  seis  mezes  de  Pirolito  —  que  bate,  que  ba- 
te, teve  de  suspender  a  publicação,  o  que  não 
era  coisa  de  espantar  num  paiz  de  seis  milhões 
de  analfabetos ;  e  andara  outros  seis  mezes  sem 
emprego,  sem  exame  de  instrucçao  primaria,  e 
quasi  sem  botas  I 

Afinal,  um  bello  dia,  encontrando-se  num 
grande  aperto,  lançou  mão  de  um  jornal  e  co- 
meçou a  ler  os  annuncios,  por  distração.  E  des- 
cobrira o  annuncio  em  que  se  pedia  um  jorna- 
lista com  alguma  pratica,  e  robusto,  para  assu- 
mir sem  desdouro  a  responsabilidade  de  uma 
série  de  artigos  violentos,  garantindo-se-lhe  de- 
pois uma  situação  desafogada  na  imprensa... 
Correra,  correra,  imaginando  ingenuamente  que 
corria  a  salvar- se.  Fora  a  sua  perdição.  Os  ar- 
tigos foram  logo  querelados,  elle  assumira  a 
responsabilidade,  e  toda  essa  comedia  se  lhe 
acabara  em  tragedia,  com  seis  mezes  de  Li- 
moeiro e  alguns  conselhos  do  juiz,  que  ainda 
se  ria  por  cima  dos  óculos,  recommendandolhe 
que,  para  outra  vez,  fosse  menos  atrabiliário. . . 

Cumprida  a  sentença,  e  voltando  á  vida  activa 
dos  jornaes,  achara-se  compenetrado  de  que  em 
realidade  era,  como  lhe  dissera  o  juiz,  um  jor- 
nalista  atrabiliário.   E  teimara  em  conservar-se 


2Ò2  A  RUA  DO  OIRO 

na  opposição.  Mas  tanto  soíFrera,  tanto,  que  lhe 
chegou  o  momento  em  que  não  poude  mais.  Pas- 
sara então  uma  borracha  por  cima  do  passado 
de  jornalista  independente,  virara  a  casaca,  em- 
brulhara as  suas  convicções  num  velho  jornal 
como  quem  embrulha  um  feto,  e  fora  deixá-las  á 
porta  do  Directório. . . 

Depois  cahira,  politicamente  rendido,  aos  pés 
de  D.  Claudia! 


VIII 


No  dia  em  que  resolvi  embrenhar-me  nas 
Secretarias  e  comecei  a  distribuir  pelos  sete  Mi- 
nistérios os  numerosos  memoriaes  que  deixara 
accumular  de  seis  correios  da  Ilha,  eu  adquiri 
a  certeza  de  que  nunca  poderia  vir  a  dar  um  de- 
putado de  geito. 

Essa  funcção  subalterna  de  agente  de  negó- 
cios junto  das  Repartições,  esse  mister  de  pro- 
curador zeloso  de  mesquinhas  causas,  esse  oííi- 
cio  de  corretor  de  empregos,  de  mercês  e  de 
obras  publicas,  esse  sagrado  dever  de  me  pôr 
incondicionalmente  ao  serviço  de  todos  os  inte- 
resses privados  de  cada  um  dos  meus  eleitores 
—  eram  coisas  que,  positivamente,  mas  positiva- 
mente !  não  se  davam  com  o  meu  feitio. 

Depois,  naquelle  caminho  de  perdição  que  eu 


264  A  RUA  DO  OIRO 

seguia  para  ir  do  Borges  ao  Terreiro  do  Paço, 
descendo  o  Chiado,  cortando  á  Rua  Nova  do 
Carmo,  dobrando  para  a  Rua  do  Oiro  —  eu  ha- 
bituara-me  já,  irremediavelmente,  a  uma  vida 
regalada  de  lagarto  ao  sol,  que  acabava  por  não 
me  consentir  o  mais  leve  esforço,  a  diligencia 
mais  fácil. 

E  quando  naquelle  dia,  e  logo  a  um  dos  pri- 
meiros deferimentos  que  eu  sollicitava  ccom 
muito  empenho»  para  um  dos  meus  eleitores, 
vi  crearem-se  os  primeiros  empecilhos  burocrá- 
ticos, entre  os  lábios  risonhos  d'um  Chefe  de  Re- 
partição «que  todavia  muito  desejaria  ser-me 
agradável  e  prestavel»  sempre  que  alguma  dis- 
posição legal  se  não  oppozesse,  como  naquelle 
caso,  a  esse  seu  desejo  —  enfiei  pelo  primeiro 
corredor  que  conduzia  á  rua,  galguei  escadas, 
e  procurei  o  ar  livre,  e  jurei  nunca  mais  voltar 
ás  Secretarias  para  patrocinar  memoriaes.  Era 
uma  coisa  decidida ! 

Depois,  galhofando,  contei  isto  mesmo  na  Rua 
do  Salitre.  Clarinha  bateu  as  palmas  de  con- 
tente, julgando  já  ganha  uma  aposta,  que  com- 
migo  fizera,  teimando  ella  que  eu  não  seria  ca- 
paz de  seguir  carreira  pela  politica,  teimando  eu 
que  sim. . .  E  logo  D.  Claudia  disse : 

—  cPasse-me  o  senhor  para  cá  todos  esses 
papeis.  Eu  me  encarrego  d'isso.  E  pôde  contar 


A  RUA  DO   OIRO 


265 


com  o  despacho  que  precise  pára  todos  elles. 
Não  se  incommode  mais  com  essas  ninharias. 
Trate-me  de  coisas  sérias.  E  quando  tiver  mais 
não  os  demore  nas  gavetas,  traga-m'os. . . » 

Que  aliivio,  e  que  pechincha-!  Aquillo  foi  dito 
e  feito.  No  primeiro  paquete,  que  sahiu  d'ahi  a 
seis  dias,  logo  expedi  para  a  Ilha  vinte  e  tantas 
cartas  communicando  o  almejado  despacho  a 
vinte  e  tantos  eleitores.  Era  um  corno  de  abun-  . 
dancia  que  eu  despejava  no  circulo.  «Mas  d'esse 
corno,  dizia  eu  em  carta  ao  Doutor  Tarquinio, 
como  o  meu  amigo  verá,  o  Pedro  AfFonso  não 
apanha  nem  sequer  a  ponta.  Elle  que  se  con- 
tente com  aquellas  que  já  tem.» 

E  eu  continuava,  entretanto,  arrastando  neu- 
rasthenicamente  o  remorso  da  minha  preguiça, 
quando  recebi  uma  carta  do  Fausto,  escripta 
pela  mulher,  communicando-me  que  recolhera' á 
cama  com  um  forte  ataque  de"gripe,  precisamen- 
te no  momento  em  que,  tendo  já  tudo  preparado 
para  escrever  o  relatório  sobre  o  projecto  do  di- 
vorcio, se  dispunha  a  metter  mãos  á  obra.  Che' 
gara  a  enthusiasmar  se  pela  idéa,  achava  a  coisa 
muito  viável  mesmo  sem  escândalo  (uma  vez  que 
o  Ministro  influisse  nos  Bispos  e  os  Bispos  in- 
fluíssem no  resto  para  se  evitar  algum  movi- 
mento prejudicial  da  padralhada)  e  tinha  pena, 
deveras,   de  se   achar  agora  impossibilitado  de 


266  A  RUA  DO  OIRO 

concluir  o  trabalho.  D'ahi  a  dois  ou  três  dias  a 
commissão  teria  acabado  de  discutir  o  projecto, 
e  o  Ministro  querici  fazê-lo  passar  immediata- 
mente  nas  Gamaras.  Era  portanto  um  caso  de 
força  maior,  uma  questão  de  urgência.  E  já  ti- 
nha combinado  com  o  Ministro  que  a  tarefa  vi- 
ria ter  ás  minhas  mãos.  Tivesse  eu  paciência  e 
era  escusado  procurar  evasivas.  Concluindo, 
dizia  : 

<tDe  mais  a  mais,  terás  assim  bella  occasião 
de  prestar  um  serviço  relevante,  (d'estes  que 
vão  ao  Diário  do  Governo  com  justos  galar- 
dões) á  nossa  muito  considerável  e  boa  amiga 
D.  Claudia.  Ella  está  sobre  brazas,  pobre  se- 
nhora! Façamos-lhe  a  vontade.» 

E  em  post-scriptum: 

«Remetto-te  tudo  quanto  cheguei  a  reunir  so- 
bre o  divorcio,  livros  e  apontamentos.  Afunda- te 
bem  nisso,  meu  grande  mandrião.  Meu  grande 
mandrião  e  meu  grande  felizardo :  porque  vaes 
ter  um  assumpto  para  discurso  de  estreia,  como 
hoje  já  poucos  se  encontram.  E  as  galerias,  nesse 
dia,  apinhadas  de  mulheres  bonitas,  que  pedem 
o  divorcio  como  pão  para  a  bocca,  cobrindo  te 
de  bênçãos,  atirando  te  beijos,  mandando-te  as 
moradas !. . .  Arranja- me  conclusões  de  arromba 
para  esse  relatório,  ouviste  ?» 

Já  então  era  para  mim  ponto  de  fé  que  D. 


A  RUA  DO   OIRO  267 

Claudia,  á  semelhança  do  deputado  Naquet, 
queria  fazer  votar  a  lei  do  divorcio  para  apro- 
veitar-se  d'ella,  e  porventura,  como  se  dizia, 
contrahir  novo  matrimonio  com  o  Presidente  do 
Conselho. 

Mas  que  tinha  eu  com  isso  ?  Que  me  impor- 
tava a  mim  que  assim  fosse  ?  Que  duvida  pode- 
ria eu  ter  em  prestar  a  D.  Claudia  esse  peque- 
nino serviço  de  defender  o  seu  projecto  nas  Ca- 
marás ?  Se  eu  nem  conhecia  o  marido  ! 

Depois,  olhando  de  mais  alto,  não  era  ver- 
dade que  esse  projecto  trazia  á  nossa  legislação 
civil  uma  bem  útil  e  grandiosa  reforma  ?  Não 
era  uma  sociedade  inteira  que  viria  a  colher  o 
precioso,  saboroso  fructo  d'essa  galharda  e  fe- 
cunda iniciativa  do  Governo  ?  E  não  sentia  eu 
mesmo,  e  bem  vibrantemente,  que  o  grito 
d'essa  verdade  se  repercutia  na  minha  consciên- 
cia como  o  echo  de  um  clamor  universal  de  jus- 
tiça ? 

Para  que  era  eu  então  deputado  independente 
senão  para  que  a  minha  opinião  só  reconhe- 
cesse a  soberania  da  minha  consciência  ?! 

Portugal,  que  tão  rasoavelmente  acompanhava 
os  outros  poizes  nas  modernas  applicaçÕes  da 
sciencia  juridica,  não  podia  ficar-se  n'ura  Código 
que  trinta  annos  antes  representava  talvez  a  me- 
lhor obra  de  legislação  civilista,  mas  que  já  não 


208  A  RUA  DO  OIRO 

servia  para  agora,  quando  os  códigos  modernos  e 
as  resoluções  justas  dos  Tribunaes  tudo  aquila- 
tavam segundo  a  filosofia  da  razão.  Tudo  se 
transformara  —  o  modo  de  sentir  como  o  modo  de 
pensar.  A'  tradição  romanista  e  canónica  suc- 
cedia-se  uma  orientação  mais  social  e  natural, 
mais  livre  e  humanitária.  E,  todavia,  essa  idéa 
tão  simples  e  de  tanta  justiça  natural,  e  tão  ne- 
cessária á  dignidade  do  matrimonio  e  á  felici- 
dade dos  casados,  não  poderá  ser  ainda  consi- 
gnada na  legislação  portuguesa,  quando  o  di- 
vorcio era  já  uma  instituição  em  quasi  todos  os 
paizes  do  mundo  civilisado. 

Hoje,  era  uma  necessidade  instante,  inadiá- 
vel. E  aproveitando  se  no  nosso  Código  Civil 
uma  certa  orientação  de  tolerância  que  nelle 
havia,  e  que  admittia,  a  par  do  casamento  reli- 
gioso o  casamento  civil,  o  divorcio  continuaria  e 
completaria  essa  orientação. 

Entre  os  livros  que  Fausto  me  remettera 
para  o  Hotel,  havia  um,  muito  recente,  que  eu 
não  conhecia  ainda  e  que  logo  me  forneceu  um 
dos  melhores,  dos  mais  seguros  effeitos  do  meu 
relatório.  Era  —  O  Crime,  de  César  Lombroso, 
onde  todo  um  substancioso  e  lúcido  capitulo  de 
estatísticas  comparadas  estabelecia  a  conclusão 
de  que  a  criminalidade  era  tenebrosamente  maior 
nas  sociedades  sob  o  regimen  da  simples  sepa- 


A  RUA  DO  OIRO  269 

ração  do  que  naquellas  que  tão  gloriosamente 
se  orgulhavam  de  já  terem  o  divorcio.  E  fácil 
me  foi  estabelecer,  em  aguilhoada  frase,  que 
sendo  o  divorcio  uma  questão  de  moral  social, 
a  sua  negação  levava  a  muitos  crimes. 

Conheci,  manuseei,  revolvi  numa  noite  as  le- 
gislações de  todos  os  paizes  onde,  por  ordem 
alfabética,  fui  encontrando  o  divorcio.  E  encon- 
trei-o  na  Allemanha,  na  Áustria  e  na  Hungria,  na 
Bélgica,  na  China,  na  Dinamarca,  nos  Estados 
Unidos,  na  França,  na  Inglaterra,  na  Grécia,  no 
Japão,  na  Noruega,  nos  Paizes  Baixos,  nos  Pai- 
zes Musulmanos,  na  Rússia,  na  Suécia  e  na 
Suissa. .  . 

Todos  esses  allemães,  todos  esses  austríacos, 
todos  esses  chineses,  todos  esses  dinemarquê- 
ses,  todos  esses  americanos,  todos  esses  france- 
ses, todos  esses  gregos,  todos  esses  japoneses, 
todos  esses  noruegueses,  todos  esses  hoUandê- 
ses,  todos  esses  musulmanos,  todos  esses  rus- 
sos, todos  esses  suecos  e  todos  esses  suissos  re- 
conheciam, admittiam,  proclamavam  que,  sendo 
o  casamento  um  ideal  de  amor  entre  dois  indi- 
víduos de  sexo  differente,  devia  elle  ser  em 
absoluto  livre,  tão  livre  e  tão  espontâneo  como 
era  o  Amor ! 

As  sociedades  atravessavam,  porém,  um  pe- 
ríodo transitório  e  tutelar.  O  Estado  regulari- 


270  A  RUA  DO  OIRO 

sava  ainda  a  constituição  da  sociedade  familiar 
de  modo  a  evitar  asfallencias.  Porque  na  as 
sociação  familiar,  como  nas  outras  associações, 
a  intensidade  e  a  variabilidade  da  vida  traziam 
a  desillusão,  e  a  desillusão,  em  taes  casos,  era 
a  fallencia  aberta. 

O  que  todos  elles  teriam  querido  seria  pode- 
rem casar  e  continuar  a  casar,  sem  que  a  socie- 
dade tivesse  o  direito  de  intervir  na  associação 
do  homem  e  da  mulher,  e  sem  outros  deveres 
que  não  fossem  os  que  só  nascem  do  Amor  e 
com  o  Amor  se  apagam...  Mas  isso,  que  a 
tradição  canónica  confundia  com  a  promiscuidade 
brutal  da  primeira  fase  da  familia  humana,  era 
a  suprema  idealisação  do  Amor  livre,  era  a  re 
quintada  aspiração  da  Humanidade,  a  eterni- 
dade no  Amor  I 

E  como  a  vida,  em  realidade,  não  deixara 
ainda  de  mostrar  que  bastas  vezes  os  esposos 
se  illudiam,  e  não  existiam  entre  elles  as  afini- 
dades que  tinham  supposto  haver  ;  e  como  o 
chamado  santuário  da  familia  se  transmudava 
ainda  com  frequência  num  pequenino  inferno 
insuportável ;  e  como  não  deixara  ainda  de  ha- 
ver sogras,  nem  adultérios,  nem  incompatibili- 
dade de  génios  —  o  Estado,  que  regularisara  a 
constituição  da  familia,  e  fizera  quanto  estivera 
ao  seu  alcance  para  garantir  o  bem-estar  dos 


A   RUA  DO  OIRO  27 1 

cônjuges,  não  tendo  podido  consegui-lo,  restituía 
os  associados  ao  seu  anterior  estado  de  liber- 
dade, para  poderem  constituir  novas  socieda- 
des, em  que  os  negócios  viessem  a  correr  me- 
lhor. . . 

Logo  que  eu  recebera  a  carta  do  Fausto,  in- 
cumbindo-me  da  elaboração  do  relatório,  fora 
procurar  o  Presidente  do  Conselho,  e  com  elle 
tinha  tido  uma  larga  conferencia,  em  que  ficara 
bem  assente  que  eu  não  teria  a  preoccupar  me 
com  o  supra-naturalismo  da  Gamara. 

—  «Sciencia  positiva,  meu  amigo  !  Muita  filo- 
sofia social  !  —  dissera-me  o  Ministro.  —  E  dei- 
xe. . . » 

Na  grata  posse  d'esta  carta  branca,  e  com  as 
costas  bem  quentes,  regalei-me  então  em  atacar 
o  casamento  indissolúvel,  «ideal  da  sociedade 
domestica,  conquista  preciosa  de  uma  civilisa- 
ção  que  traz  o  cunho  dos  séculos ...» 

Todo  esse  largo  trecho,  bem  adubado  de  ri- 
cas razões,  do  meu  relatório,  eu  o  lancei  dex- 
tramente ás  folhas  de  papel,  deliciado  com  o 
antegoso  do  seu  eífeito  terrífico  no  animo  das 
Primas  Rochas  e  das  Primas  Noronhas,  para  as 
quaes  seria  sempre  incompleta  a  natureza  do 
vinculo,  frustrando  radicalmente  o  fim  que  se 
almejava,  se  a  união  matrimonial  se  celebrasse 
a  termo  ou  sob  condição. . .  Que  o  mesmo  era 


272  A  RUA  DO    OIRO 

suprimir  a  solidariedade  e  a  intimidade  do  vin- 
culo conjugal,  a  perpetuidade  de  dois  seres 
numa  só  natureza  (e  eu  via-as  meditarem  nisto 
com  os  seus  olhos  inquietos  em  alvo).  Ter-se- 
ia  assim  um  vinculo  meramente  provisório, 
inteiramente  destituido  de  valor  e  contheudo 
ethico ! 

Ah  I  Ah  !  Pois  sim,  ricas  primas,  primas  do 
meu  cojação...  Mas  quando  acontecesse  que 
algum  ou  ambos  os  elementos  componentes  do 
organismo  familiar,  achassem  difficuldade  em 
cumprir  a  missão  a  que  eram  destinados  (e  ahj 
tinham  ellas  o  General  AjTes,  por  exemplo,  ma. 
rido  insufficiente  da  Maria  Demitilia)  de  modo 
que  a  união  forçada  fosse  causa  de  mal  estar 
para  o  mesmo,  de  turbação  e  desordem  para 
os  outros  órgãos  similares,  e  até  mesmo  para  o 
organismo  social  de  que  faziam  parte  ?  Que  me 
diziam  ellas  a  isso  ? .  . . 

Nada.  Pois  claro  !  Nem  tinham  que  dizer. 
Desde  que  se  observasse  uma  tal  desordem  pa- 
thologica,  uma  lei  suprema  de  necessidade  so- 
cial queria  que  se  restituísse  a  cada  uma  das 
moléculas  que  compunham  o  organismo  soffredor 
a  sua  primitiva  liberdade,  para  que  podessem 
entrar  em  nova  união  com  outra  molécula  mais 
adequada  e  indicada  pela  força  espontânea  da 
attração,  e  assim  dar  logar  a  novos  organismos 


A  RUA  DO  OIRO-  2-73^ 

susceptíveis  de  cumprirem  com  regularidade  a 
fuiicção  social  integrante  e  reproductora  da  es- 
pécie. . . 

E  eu  deliciava-me,  ria  sósinho,  só  com  o  ima- 
ginar as  figuras  das  Rochas  c  das  Noronhas 
quando  tal  lessem  no  Diário  das  Camarás,  que 
eu  já  fazia  tenção  de  lhes  enviar  com  sublinha- 
dos a  lápis  azul  —  corando  todas  ellas  até  á 
ponta  das  orelhas  com  essa  historia  de  desafo- 
radas moléculas  descontentes,  procurando  ou- 
tras moléculas  a  que  melhor  se  adequassem,  se 
adaptassem...  Gomo  se  o  casamento  podesse 
vir  a  ser  uma  pouca-vergonha  de  mulheres  da 
Rocha  ! 

Dando  uma  no  cravo,  outra  na  ferradura,  eu 
admittia  que  o  casamento,  productor  de  uma 
funcçáo  eminentemente  social,  deveria  subsistir 
Sempre  que  fisiologicamente  se  ajustasse  ao  pro. 
prio  mister.  Mas  nunca  depois  que  o  delicto,  a 
infidelidade,  vicios  incuráveis,  aversão  completa 
e  producto  invencivel  de  causas  graves  e  per- 
manentes rompessem  a  solidariedade  do  vinculo 
conjugal,  tornando  a  vida  marital  uma  coisa  in- 
tolerável. 

Concebido  o  divorcio  como  lei  de  alta  mora- 
lidade, chegado  o  momento  de  estabelecer  e 
justificar  as  suas  causas,  em  harmonia  com  o 
projecto  de  lei  de  iniciativa  do  Governo,  eu  já 

18 


274  ^  RUA  DO  OIRO 

sabia  onde  encontrar,  para  a  minha  substan- 
ciosa argumentação  de  relator,  a  papinha. feita. 
E  excluia  desde  logo  o  Código  Napoleónico,  que 
admittia  o  mutuo  consentimento  como  causa  de 
divorcio  —  e  alentava  a  inconstância,  favorecia 
a  ligeireza  das  propostas,  facilitava  a  especula- 
ção dos  interesses.  Nada  d'isso  I 

Um  apontamento  do  Fausto,  com  a  observa- 
ção de  muito  importante  ao  alto,  chamara-me 
já  a  attenção  para  um  projecto  de  lei  apresen- 
tado na  Gamara  italiana,  da  iniciativa  fervorosa 
de  Salvador  Morelli,  e  moldado  nos  trabalhos 
persistentes  de  Naquet.  Esse,  e  um  outro  do 
ministro  Villa,  também  italiano,  que  nem  se- 
quer fora  admittido  á  discussão,  eram  para  mim 
uma  verdadeira  mina. 

Para  obstar  a  que  o  divorcio  podesse  tor- 
nar-se  o  premio  de  uma  culpa,  a  lei  portuguesa 
não  concederia  ao  cônjuge  culpado  a  faculdade 
de  o  pedir. 

Quando  a  separação  pessoal  dos  cônjuges  e  o 
consequente  divorcio  tivessem  por  causa  o  adul- 
tério de  um  d'elles,  declarado  por  sentença,  o 
cônjuge  culpado  não  poderia  contrair  casamento 
com  o  seu  cúmplice.  Neste  caso,  o  casamento 
não  seria  considerado  nullo,  o  cônjuge  culpado 
seria  condemnado  a  prisão  pelo  tempo  de  três 
mezes  até  um  anno ;  e  a  nullidade  do  casamento 


A  RUA  DO  OIRO  2']b 

e  a  condemnação  não  se  poderiam  declarar  se- 
não a  pedido  do  cônjuge  offendido.  Isto  pare- 
cia-me  uma  disposição  de  arromba.  A  parte  fi- 
nal, sobretudo,  permittindo  aos  esposos  oífendi- 
dos,  mas  facilmente  reconciliáveis  e  pacientes,  a 
reparação  da  oíFensa  por  três  mezes  de  cadeia, 
(c  até  um  anno  para  os  mais  exigentes)  e  admit- 
tindo  que  depois  tudo  continuasse  como  d'antes, 
era  assombrosamente  filosófico.  E  ainda  talvez 
se  conseguisse  que  a  pena  de  prisão  podesse  ser 
remivel  a  dinheiro,  o  que  seria  então,  como  que- 
ria o  Ministro,  verdadeira  filosofia  positiva  ! 

A  vida  vagabunda  do  marido  era  admittida 
também  como  causa  do  divorcio.  E  era  esta  a 
disposição  premeditada  para  condemnar  o  ma- 
rido de  Claudia,  que  continuava  percorrendo  o 
reino  dos  Algarves,  nas  suas  intermináveis  in- 
vestigações archeologicas  de  membro  da  Com- 
missão  dos  Monumentos  Nacionaes. 

A  dissolução  do  casamento  não  ficaria  depen- 
dente de  mero  capricho  dos  cônjuges,  mas  per- 
mittia-se  o  divorcio  sempre  que  o  crime,  a  infi- 
delidade, a  sevicia,  a  injuria  grave,  o  ódio  pro- 
fundo e  inextinguível  tornassem  legalmente  in- 
supportavel  a  subsistência  do  vinculo  domestico. 
Assim  o  divorcio  pacificaria  os  ânimos,  faria 
cessar  causas  de  ódio,  de  aversão,  de  crime ; 
diminuiria  o  perigo  social  das  uniões  illegitimas 


276  A  RUA  DO  OIRO 

e  dos  nascimentos  clandestinos  ;  satisfaria  á  ma- 
nutenção, á  instrucção,  á  educação  da  prole ; 
regeneraria,  em  summa,  a  nossa  familia  moder- 
na, corroída  e  pervertida  nas  suas  raizes  mais 
profundas . . . 

Ao  cabo  de  dois  dias  e  duas  noites  de  traba- 
lho afincado,  em  que  li,  ruminei,  digeri  e  assi- 
milei tudo  quanto  a  respeito  do  divorcio  se  acu- 
mulou no  meu  quarto  "do  Hotel,  por  cima  da 
mesa,  por  cima  da  commoda,  por  cima  das  ca- 
deiras e  até  por  cima  da  cama,  apenas  me  res- 
tava dar  uma  redação  definitiva  ao  relatório. 
Fora  um  trabalho  violento,  quasi  ininterrupto, 
absorvente,  febril.  O  Fausto  tinha  razão :  era 
assumpto  excellente,  era  assumpto  óptimo,  de 
bem  seguros  effeitos.  E  um  momento  houve  em 
que  me  senti  envaidecido  com  as  probabilidades 
de  um  grande  êxito,  na  Gamara.  Vi  recuperado, 
nessas  quarenta  e  oito  horas,  ao  fim  de  um  pe- 
queno esforço,  todo  o  tempo  perdido  desde  que 
chegara  da  Ilha  e  tomara  o  meu  logar  no  Par- 
lamento. 

O  meu  ouvido  allucinado  suppoz  ouvir  o 
que  diria  então,  a  berrata  que  faria,  o  clamo- 
roso triumfo  em  que  iria  explodir  o  Doutor 
Tarquinio,  no  Centro  Regenerador,  na  botica  do 
Cunha  e  no  Club,  logo  que  o  Portugal,  Ma- 
deira e  Açores,  distribuido  no  cães  á  chegada 


A  RUA  DO   OIRO  277 

do  paquete,   lhe   levasse   a   boa   nova  do  meu 
grande  êxito  I  Tardava,  mas  arrecadava. 

—  aDá  licença?»  — disse  uma  voz  conhecida 
no  corredor,  ao  mesmo  tempo  que  uns  nós  de 
dedos  batiam  na  porta. 

—  aEntre,  faça  favor!» 

Era  o  Poças,  que  ha  muitos  dias  ninguém  via 
á  mesa  do  Hotel,  nem  na  Camará,  nem  na  Ha- 
vaneza.  Justamente  nessa  manhã,  a  Augusta,  a 
creada,  perguntando  eu  que  fim  levara  o  senhor 
Poças,  me  tinha  dito: 

—  «Esteve  cá  na  sexta-feira,  de  fugida.  Veiu 
encher  uma  mala  de  roupa  branca,  mandou-a 
por  um  moço  não  sei  para  onde. . .  E  ninguém 
mais  o  viu.» 

—  a  Assim  é,  meu  amigo  —  dizia-me  o  Poças 
com  a  bocca  cheia  de  satisfação,  e  uma  buliçosa 
alegria  a  bailar-lhe  nos  olhos.  —  A  minha  vida 
vae  entrar,  finalmente,  numa  definitiva  e  con- 
soladora fase. . . » 

Não  era  já  o  Libcrato  Poças  dos  meus  pri- 
meiros tempos  do  Borges,  azedo  e  desalentado, 
que  eu  tinha  ali  no  meu  quarto,  sentado  na  mi- 
nha frente,  occupando  com  regalo  o  meu  único 
fauteuil  esfarrapado,  que  eu  reservava  e  offere- 
cia  ás  visitas.  Era  um  outro  Poças  —  era  uma 
outra  luz,  uma  outra  claridade  !  E  tudo  me  foi 
explicado  em  muito  breves  palavras :  a  sua  longa 


278  A  RUA  DO  OIRO 

ausência  do  Hotel,  a  sua  falta  na  Gamara,  o  seu 
desapparecimento  da  Havaneza.  Andara  em 
procura  de  casa,  ia  pôr  casa,  já  tinha  casa.  Ca- 
sava. 

—  «...  Palavra  ? ! » 

—  «Palavra.  Está  tudo  prompto.  E'  d'aqui  a 
três  dias.» 

—  «E  a  noiva  ?» 

—  «O  Amaral  conhece-a. . . » 

Tive  um  sobresalto.  Pois  seria  possivel  ?  Se- 
ria com  eíFeito  a  Margarida  Tricana  ?  Oh !  Mas 
fiz-me  inteiramente  de  novas,  portei  me  á  al- 
tura. 

—  «Não  posso  suppôr  quem  seja...» 

O  Poças,  intrujado,  gosava  com  demorar  a 
pequenina  intriga  : 

—  «Veja  lá  se  se  lembra. . . » 
Recordei-me  então  de  que  elle  em  tempos  me 

falara  de  um  começo  de  namoro  com  a  Baro- 
neza  do  Paul,  um  distinctissimo  estafermo,  em 
São  Carlos: 

—  «Casa  com  a  Baroneza!» 
Elle  já  nem  de  tal  se  lembrava : 

—  «Qual  Baroneza  ?» 

—  «A  Baroneza  do  Paul ...» 

—  «Ora!  Ora!  Onde  isso  vae. . .  Coisa  me- 
lhor, muito  melhor,  incomparavelmente  me- 
lhor!» 


A  RUA  DO  OIRO  279 

Ainda  fingi  um  esforço  de  memoria,  d'olho  no 
vago,  mordendo  um  dedo  polegar.  Mas  não  ha- 
via meio.  Decididamente  não  havia  meio. 

Poças  não  se  conteve  então  por  mais  tempo, 
descerrou  o  mistério  : 

—  «E'  a  nossa  vizinha,  senhor!  A  nossa  vizi- 
nha ali  defronte  I» 

Emquanto  durara  este  curto  dialogo,  eu  tinha 
estado  perplexo  entre  a  promessa  que  fizera  á 
Margarida  Tricana,  de  nada  revelar  do  seu  pas- 
sado a  Libçrato  Poças,  e  o  desejo,  que  um  mur- 
múrio de  consciência  inquietava,  de  tudo  lhe  re- 
velar. Deveria  dizer  ?  Não  deveria  dizer  ?  Mas  no 
momento  em  que  elle,  tão  contente,  me  decla- 
rava quem  era  a  noiva,  eu  entendia  que,  afinal, 
não  deveria  dizer-lh'o.  E  o  que  apenas  disse  foi 
isto : 

—  aBravo  !  Sim  senhor. . .  A  julgar  pelas  ap- 
parencias,  é  caso  para  muitos  parabéns. — De- 
pois accrescentei,  lisongeando-lhe  o  bom  dedo : 
—  E  parece-me  bem  que  neste  caso  as  apparen- 
cias  não  enganam. . . » 

—  f Também  me  parece. . . «  —  disse  elle. 

Já  de  pé,  não  podendo  demorar  se,  e  cumprin- 
do aquelle  dever  —  pois  não  esquecera  o  Poças 
quanto  mau  humor  eu  lhe  tinha  aturado  por 
causa  d'aquelle  namoro  que  ia  ter  agora  o  seu 
desejado  remate  —  Poças  interessou-se  por  esse 


38o  A    RUA   DO    OIRD 

excesso  de  trabalho  em  que  julgava  ter  vindo 
desastradamente  interromper-me.  Contei  lhe  en- 
tão o  que  se  tinha  passado,  a  gripe  de  Fausto, 
a  pressa  do  Ministro,  as  linhas  geraes  do  rela- 
tório. 

Elle  andava  alheio  a  tudo  isso,  não  sabia 
nada  d'isso.  E,  o  que  era  mais,  eu  percebi  que 
elle  não  se  importava  absolutamente  nada  com 
isso. 

Por  brincadeira,  ainda  lhe  disse : 

—  «Se  o  meu  amigo  deseja  que  se  introduza 
no  projecto  de  lei  alguma  disposição  que  lhe 
convenha,  agora  que  está  para  casar. . .  Ainda 
estamos  a  tempo.  E'  só  dizer !  Bem  sabe  que  as 
leis,  em  Portugal,  sempre  se  fazem  á  vontade 
dos  amigos,  e  para  servir  os  amigos ...» 

Poças  sorria  jubilosamente  : 

—  «Assim  é,  assim  é  !  Mas  eu  não  preciso.  — 
E  estendendo-me  a  mão,  muito  apertada  na  luva 
cor  de  sangue  de  boi :  —  Em  todo  o  caso,  muito 
obrigado,  como  se  acceitasse. . .  » 

F^óra  da  porta,  no  corredor,  ainda  teimei,  mais 
risonho : 

—  «Veja  lá. . .  Não  faça  cerimonia.  Que  ff  ais 
não  seja  senão  como  rr.edida  preventiva. . . » 

Elle  já  ia  descendo  a  escada,  nos  primeiros 
degraus,  quando  um  hospede  novo,  que  ainda 
nós  não  conheciamos,  vinha  subindo,  em  chine- 


A  RUA  PO  OIRO  281 

las,  depois  do  jantar  das  cinco,  palitando  os 
dentes.  Poças  esperou  um  momento,  deu-lhe 
tempo  de  subir,  e  logo  que  o  outro  voltou  cos- 
tas, sumindo-se  para  cima,  baixou  a  voz  e  con- 
siderou : 

—  o  Quem  casa,  meu  amigo,  nunca  pensou  em 
divorcio  nas  vésperas  do  casamento  I  d 


A'  semelhança  do  investigador  de  bactérias, 
que  se  fechou  por  dentro  no  seu  laboratório,  e 
na  anciã  de  saber  se  afundou  no  estudo  e  labo- 
rou nas  experiências  ;  e  na  busca  de  um  teme- 
roso bacillus  se  picou  e  inoculou  em  si  o  virus 
do  mal  que  queria  evitar  aos  outros;  tanto  eu 
me  afundei,  mexi  e  remexi  na  questão  do  casa- 
mento (que  era  o  grande  mal,  tal  como  elle  se 
achava  ainda,  indissolúvel)  que  não  tardei  a  sen- 
tir, a  observar  em  mim  a  apparição  successiva 
de  todos  os  signaes  de  quem  já  trazia  comsigo, 
assolapado  e  recôndito,  o  bacillus  temeroso. 

Era  o  divorcio  uma  grande,  uma  bella,  uma 
humanitária  idéa.  Mas  era  o  casamento,  tal  como 
o  sonhavam  e  o  queriam  os  seus  mais  fervorosos  e 
vehementes  partidários,  uma  idéa  menos  bella? 
Não  era  o  casamento  uma  concepção  bem  clara 
da  felicidade  na  terra,  quando  se  imaginasse  o 
casamento  o  encontro  natural  de  dois  entes  que 


282  A  RUA  DO  OIRO 

se  identificaram  na  observação  um  do  outro  e 
que  unem  os  seus  destinos,  e  põem  em  commum 
o  melhor  do  seu  coração,  a  intimidade  da  alma 
e  da  carne,  pactuando  uma  alliança  que  os  acol- 
cheta  para  a  alegria  e  para  a  adversidade,  para 
o  prazer  e  para  a  dôr,  para  a  vida  e  para  a 
morte  ?  Não  seria  esia  a  maior,  a  mais  clara,  a 
mais  luminosa  verdade  humana  ? 

Casar  no  ar,  casar  só  por  casar,  casar  por 
curiosidade,  casar  por  impulso  apenas  sexual  ou 
calculado  interesse ;  casar  para  fugir  á  condição 
inquietante  da  vida  que  se  tenha;  casar  á  ven- 
tura, casar  para  outro  fim  que  não  seja  o  do  ca- 
samento por  amor  —  não !  Casar  como  em  ge- 
ral se  casa,  quando  se  não  attendeu  a  que  o 
casamento  é  uma  tão  decisiva  provação,  nem  á 
perturbação  que  elle  exerce  na  alma  de  uma 
mulher,  nem  se  presupoz  o  que  poderão  produ- 
zir as  mutuas  reacções  dos  caracteres,  dos  gos- 
tos, dos  sentimentos,  das  opiniões ;  casar  ao  fim 
de  um  curto  namoro  de  janella,  na  missa  e  ro 
theatro,  pelo  telefone,  por  cartas  e  nos  annun- 
cios  do  Diário  Illustrado,  em  cifra  —  não !  mil 
vezes  não  I 

Mas  casar  depois  que  tudo  bem  se  pesou,  se 
avaliou,  se  preveniu,  rodeando  o  casamento  de 
todas  as  possíveis  garantias  ;  casar  sem  que  ape- 
nas baste  o  consentimento  dos  dois  cônjuges,  ca- 


A  RUA  DO  OIRO  283 

sar  não  apenas  segundo  a  doutrina  jurídica  da 
Egreja,  e  segundo  o  Código,  mas  casar  tornando 
o  casamento  outra  coisa  mais  alta  que  a  cerimo- 
nia religiosa,  um  contracto  civil,  uma  associação 
com  estatuto ;  casar  só  depois  de  bem  attentar 
no  rifão:  cAntes  que  cases  vê  o  que  fazes»  —  c 
só  depois  que  ambos,  elle  e  ella,  mutuamente 
se  sujeitaram  a  todas  as  provas  admissíveis,  de- 
liberando juntar-se  por  fim,  e  pondo  nessa  deli- 
beração o  propósito  firme,  sereno,  irreductivel, 
inabalável,  de  não  admittirem  nunca  uma  causa, 
nem  sequer  uma  probabilidade  de  arrependi- 
mento ou  desquite  ;  casar  por  amor,  em  summa, 
mas  o  amor  alto,  o  amor  quanto  possível  idea- 
lisado,  o  amor  que  quer  dignidade,  que  quer 
bom  senso,  que  quer  respeito,  que  quer  recato, 
que  quer  santidade  —  isso  sim  I  Isso  sim...  E 
sendo  assim,  podendo  ser  assim,  que  bella  coisa 
o  casar ! 

E  assim  pensando,  eu  ascendi,  pela  mão  fina 
e  tremula  de  Clarinha,  a  essa  solida  serenidade 
que  nasce  da  justa  e  firme  percepção  das  coi- 
sas. . . 

Humano  e  são,  eu  tive  o  sentimento  instinctivo 
das  qualidades  que  me  seria  necessário  encon- 
trar na  mulher  que  houvesse  de  escolher  para 
c minha  mulher».  E  foi  na  doce  atmosfera  da 
sua  intimidade,   sob   a  temperatura  branda  do 


284  A  RUA  DO  OIRO 

seu  affecto,  acarinhado  pelo  delicado,  subtil  cui- 
dado com  que  ella  encetou  e  encaminhou  até  ao 
fim  essa  sua  tarefa  de  suave  jardinagem,  que  ir- 
rompeu, enfolhou,  floriu,  vicejou  em  mim  esse 
sentimento. 

Senti-me  talhado  para  as  doces  alegrias  do 
matrimonio  e  do  lar.  Tive  uma  outra  concepção, 
muito  diversa,  do  amor,  da  dignidade,  da  vida. 
O  casamento  era,  de  certo,  uma  arrojada  em- 
preza,  e  muito  embora  tivesse,  como  todas  as 
emprezas,  o  seu  caderno  de  encargos,  Clarinha 
estimulava-me  para  esse  arrojo,  mostrando-me 
bem,  dentro  do  nosso  caso,  quão  agradável  seria 
para  mim  (segundo  esse  caderno)  a  maior  res- 
ponsabilidade que  ao  marido  cabe  :  a  responsa- 
bilidade de  uma  grande  parte  da  educação  da 
mulher  —  a  educação  da  esposa  —  pertencendo 
a  elle,  só  a  elle,  modelar  a  seu  grado,  formar 
segundo  a  sua  idéa,  elevar  á  dignidade  dos  seus 
sentimentos  esse  novo  coração  e  esse  novo  es- 
pirito. . .  Ella  tudo  via,  ella  tudo  julgava  ;  e  as 
suas  maneiras  de  ver  e  de  julgar,  contrabalan- 
çando no  meu  espirito  os  arrebatamentos  e  os 
dispauterios  da  mãe,  pouco  a  pouco  desvanece- 
ram, tornaram  bruxuleante,  apagaram  em  mim, 
a  seu  respeito,  o  preconceito  da  hereditarie- 
dade. 

Se  o  casamento  era  um  abismo,  eu  achei-me, 


A  RUA  DO  OIRO  28S 

sem  a  mais   leve   sombra   de   receio,  á  borda 
d'esse  abismo,  até  onde  chegara  sem  o  suspei- 
tar,  com  os  olhos  fitos  naquelia  pequenina  es- 
trella   de   felicidade    que   illuminava  o  meu  ca 
minho  ! 


IX 


A  Divina  Providencia,  sob  cujos  auspicios  o 
Discurso  da  Coroa  collocara  a  obra  governamen- 
tal durante  aquella  sessão  legislativa,  não  tendo 
até  ahi  intervindo  em  nenhum  voto  das  duas 
Gamaras,  nem  numa  só  das  deliberações  minis- 
teriaes,  entendera  chegado  o  momento  de  tomar 
em  consideração  o  appello  que  tão  solemnemente 
lhe  fora  dirigido  no  dia  2  de  Janeiro,  e  para  tal 
fira  se  incarnara  e  disfarçara,  por  um  suave  mi- 
lagre, na  humilde  pessoa  do  Melecas,  a  quem 
D.  Claudia  falara  nestes  termos  : 

—  «Eu  preciso  possuir  uma  flagrante  prova 
de  que  o  Presidente  do  Conselho  tem  relações 
muito  intimas  com  a  mulher  d'esse  alto  funccio- 
nario  de  que  fala  hoje  o  Thantasma.  Trate  de 
arranjar  isso  com  urgência.  Deve  saber  que  eu 


288  A  RUA  DO  OIRO 

não  fico  a  dever  os  bons  serviços  que  me  pres- 
tem. . . » 

Melecas  pozera  em  acção  todas  as  suas  ines- 
timáveis faculdades  de  repórter,  instruirá  conve- 
nientemente a  sua  policia  secreta,  estendera  a 
uma  grande  área  os  seus  imperceptíveis  fios  de 
informação  como  os  fios  de  uma  teia  imperce- 
ptível, e  tudo  isso  por  tal  modo  que,  breves  dias 
decorridos,  elle  sabia  dar  noticia  de  quantos 
passos  fazia  o  Presidente  do  Conselho  desde 
que  sahia  de  casa  até  que  voltava  a  entrar  em 
casa  para  não  tornar  a  sahir.  E  no  dia  em  que 
não  lhe  restava  a  menor  duvida  sobre  o  caso  es- 
candaloso que  quizera  averiguar.  Melecas  apre- 
sentou-se,  offegante,  na  Rua  do  Salitre. 

—  cTrago-lhe  a  verdade,  senhora  D.  Claudia! 
A  pura  verdade,  como  a  não  chegou  a  encontrar 
Diógenes. . . » 

—  «O  que  averiguou  então  ?  Que  passos  deu  ?» 
—  quizera  elle  saber,  numa  viva  ancia. 

—  *0  verdadeiro  repórter,  minha  senhora, 
tem  uma  divisa  que  lhe  prohibe  revelar  os  pas- 
sos que  deu  para  conseguir  os  seus  fins . . .  Não 
digas  como  . .  é  a  nossa  divisa.  Se  assim  não 
fosse,  nunca  nós  teríamos  chegado  á  perfeição  a 
que  chega  hoje  a  reportagem  em  Portugal,  para 
que  quando  um  ministro  queira,  por  exemplo, 
fazer  o  elogio  dos  seus  próprios  actos,  ou  des- 


A  RUA  DO   OIRO  289 

compor  em  lettra  redonda  alguns  dos  seus  col- 
legas  de  gabinete,  chame  o  repórter  e  lhe  dite, 
palavra  por  palavra,  o  artigo  que  no  dia  seguinte 
apparece  nos  jornaes. . . » 

—  «Bem.  Adeante  !» 

—  «Todos  os  ministros  têm  os  seus  defei- 
tos . .  .  Um  ministro  é  um  homem  —  e  um  gato 
é  um  bicho  !  O  nosso  Presidente  do  Conselho 
tem  o  fraco  das  mulheres.  Tudo  aquillo  nelle  é 
moléstia.  .  .  O  que  elle  quer  é  variedade.  En- 
gano d'alma !  As  mudanças  no  amor  são  como 
as  mudanças  de  casa:  de  cada  vez  que  se  muda, 
sempre  se  quebra  alguma  coisa.» 

Mas  D.  Claudia  estava  sobre  brazas,  e  queria 
as  provas,  as  provas ! 

i^  —  «A  grande  prova  —  dissera  então  Melecas 
—  eu  só  posso  fornecê-la  se  Vossa  Excellencia 
quizer  assistir  a  um  encontro  do  Presidente  do 
Conselho  com  a  adultera!» 

—  «E  como  será  isso  possivel  ?» 

—  oMuito  simplesmente.  Diga  só  Vossa  Ex- 
cellencia se  assim  o  quer.  . . » 

EUa  não  hesitara  um  instante.  Dissera  logo 
que  sim.  E  Melecas,  mexendo-se  e  remexendo-se 
dentro  d'aquella  intriga  como  uma  barata  no  fun- 
do d'uma  bacia,  pozera  D.  Claudia  em  relações 
com  Antonieta,  em  casa  de  quem  o  Presidente 
do    Conselho   se   encontrava   com   a   sua   nova 

19 


290 


A  RUA  DO  OIRO 


amante.  D.  Claudia  entrara,  levianamente,  em 
pleno  dia,  apenas  disfarçada  numa  toilette  de 
luto  rigoroso,  cobrindo-lhe  o  rosto  um  espesso 
véo  de  viuva,  em  casa  de  Antonieta ! 

Ah !  que  se  o  Chico  do  Patrocinio*  a  visse 
nesse  momento,  e  podesse  reconhecê-la  sob 
aquelle  disfarcei. . . 

A  uma  grande  distancia  de  datas,  o  acaso 
collocara  aquelle  mesmo  homem  —  que  era 
hoje  o  primeiro  Ministro  —  no  caminho  d'es- 
sas  duas  mulheres.  Muito  antes  que  elle  hou- 
vesse entrado  nas  relações  de  Claudia,  havia 
sido  das  mais  intimas  relações  de  Antonieta, 
desfructando,  quanto  poderá,  o  capricho  amo- 
rudo  em  que  ella  o  envolvera.  A  esse  tempo, 
já  Antonieta  não  era  rapariga,  e  ainda  elle 
andava  na  Escola  Polytechnica.  Por  sua  cau^a 
ella  arruinara-se,  arruinara  um  recebedor  do 
3.°  Bairro,  e  teria  arruinado  todo  o  3.°  Bairro, 
se  isso  possível  fosse.  Empenhara-se,  para  o  vêr 
sempre  bem  vestido,  bem  calçado,  bem  conten- 
te!  E  o  garoto  atraiçoava-a.  Uma  madrugada, 
andando  já  com  a  pedra  no  sapato,  e  como  elle 
não  lhe  apparecesse  em  casa,  Antonieta  saltara 
da  cama,  mettera-se  numa  tipóia,  e  gritara  ao 
cocheiro : 

—  «Bate  para  o  Dafundo ! » 

Chega  ao  Dáiundo  e,  seu  dito  seu  feito :  es- 


A  RUA  DO   OIRO  29 1 

tava  o  tratante  abancado,  em  grande  regabófe  de 
coelho  á  caçadora  e  muita  vinhaça,  com  duas 
hespanholas  do  Arco  do  Bandeira.  Quailto  ella 
se  raiara  e  quanto  emagrecera  I  Até  cahira  doen- 
te. Depois  o  tempo,  que  tudo  cura,  curara-a. 
Mas  tiniia-llie  jurado  uma  desforra  I  Tiniia-llie 
dado  «sua  palavra  de  honra»...  Era  o  mo- 
mento de  cumprir. 

E  a  desforra  seria  tremenda. 

O  Ministro  chegara  a  esse  ponto  em  que  o 
amor  começa  a  não  querer  correr  aventuras,  e 
procura  já  o  socego  e  a  segurança  no  prazer, 
resolvera  pensar  a  sério  em  casar-se.  Claudia 
era  ainda,  e  sempre,  a  sua  grande  preoccupa- 
ção.  Na  lucta  que  travara,  e  tão  tenazmente 
sustentara  para  a  possuir,  como  tinha  possuído 
tantas  outras,  sentia-se  já  vencido,  dispunha-se  a 
entregar-se.  E  resolvera,  emfim,  fazer  votar  a  lei 
do  divorcio,  para  que  Claudia,  liberta,  podesse 
ser  sua  mulher. 

Agora,  era  uma  coisa  decidida.  Tudo  estava 
preparado.  Em  poucos  dias  seria  votado  o  pro- 
jecto. E  elle  despedia-se,  á  pressa,  e  sem  sau- 
dade, da  sua  vida  romanesca  de  solteirão,  mar- 
cava as  ultimas  entrevistas  ás  suas  três  dúzias 
de  amantes,  de  que  falava  o  Phantasma  com 
commentarios  eróticos. 

Dera  uma  d'ess£?  s  entrevistas  em  casa  de  An- 


292  A   RUA  DO   OIRO 

tonieta,  no  dia  em  que  Claudia  ali  devia  ir.  E 
Claudia  vira-o  enlaçar  nos  seus  braços  fortes 
de  transmontano  a  mulher  do  Conselheiro 
Araújo,  aquella  pérola  da  Isabelinha  Araújo, 
que  desde  as  Salesas  era  a  grande,  a  maior,  a 
amiga  mais  intima  de  Claudia,  e  que  Claudia 
lizera  eleger  secretária  perpetua  da  sua  Liga 
Feminista  I 

Mas  uma  coisa  só  ha  que  se  compare  á  inten- 
sidade de  emoção  com  que  uma  mulher  chega 
a  amar  o  homem  que  ella  suppoz  ser-lhe  orga- 
nicamiente  necessário,  aquelle  que  ella  idealisou 
capaz  de  completá-la,  e  a  quemi  sacrificou  ou 
teria  sacrificado,  com  tcdo  o  seu  amor,  toda  a 
sua  vontade  e  todo  o  seu  raciocínio  :  é  essa  ce- 
leridade com.  que  essa  mesma  mulher  esquece 
aquillo  que  para  ella,  e  num  dado  momento,  foi 
tudo. 

Serenada  a  crise  violenta  de  despeito  que  a 
tomou  na  constatação  d'aquella  prova  irrecusá- 
vel, Claudia  pensava: 

—  «E  muito  singular,  tudo  isto!  Mas  o  que 
era  então  que  me  impellia  para  esse  homem,  e 
me  trazia  presa  d'essa  obcessão  ?  Era  tudo  isto 
apenas  uma  questão  de  temperamento?  E  pode 
assim  o  temperamento  il!udir-nos,  a  ponto  de 
nos  convencer  de  que  uma  grande  parte  do  que 
sentimos   se  passa  no  nosso   coração?  Depois, 


A  RUA   DO   OIRO  293 

num  momento,  num  repente,  todo  este  despren 
dimento  I  Como  se  nada  fosse.  .    » 

Foi  nesta  excellente  opportunidade  que  eu, 
ignorando  ainda,  e  absolutamente,  tão  imprevis- 
tas peripécias,  e  tendo  resolvido  romper  com 
embaraços  e  hesitações,  bem  decidido  a  definir 
uma  situação  que  me  preoccupava  deveras,  ousa- 
damente falei  a  D.  Claudia. 

Era  o  dia  dos  annos  de  Clarinha.  Desenove 
annos.  Mil  parabéns  !  E  d'essa  vez,  como  todos 
os  annos,  era  dia  de  festa  na  Rua  do  Salitre. 

Emquanto  estivera  no  Collegio  de  Bemfica, 
ella  tinha  vindo  sempre  passar  esse  dia  em  casa 
e  a  sua  vinda  abria  um  parenthese  de  trégua, 
ajustava  um  grato  armistício  entre  o  pae  e  a 
mãe  belligerantes.  Mas  d'esta  vez  o  papá  falta- 
va, pela  primeira  vez.  Grande  pezar,  grande 
tristeza,  no  meio  d'aquelle  Algarve  como  no 
meio  d'uma  Africa,  em  dia  de  tanta  e  tão  que- 
rida festa  I  lamentava  elle,  em  carta  recebida 
cá,  na  véspera.  O  dever,  porém,  acima  de  tudo! 
a  pátria  acima  de  família  !  E  elle  bem  sabia  que 
a  pátria  o  contemplava,  nesse  momento  em  que 
elle  honrava  a  pátria,  a  pé  firme  e  ao  sol,  no 
alto  d'um  descampado  até  onde  o  tinha  condu- 
zido o  fio  d'uma  recente  investigação,  dirigindo 
elle  mesmo  as  escavações  pacientes,  chegando 
elle   mesmo    a   revolver,   com  os  dedos  exreri- 


•294  A  RUA  DO  OIRO 

mentados  no  tactear  archeologico,  a  terra  que 
parecia  incandescente,  como  se  cobrisse  numa 
delgada  camada  a  própria  cúpula  do  Inferno  ! 
Estava-se  na  força  do  verão.  «Tivemos  hoje,  aqui, 
quarenta  graus  de  calor  á  sombra!»  dizia  elle 
no  fim  da  carta.  E  um  pingo  de  suor,  despren- 
dido da  sua  testa  esbrazeada,  caindo  sobre  a 
escripta,  diluirá  e  espapaçara  no  papel  a  tinta 
d'estas  ultimas  palavras. 

Vinham  á  noite  todos  os  amigos  da  casa  e  al- 
guns amigos  do  Governo.  Viria  também,  a  ins- 
tancias de  Clarinha,  o  poeta  Chico  do  Patrocínio, 
que  se  achava  muito  penhorado  e  promettera  al- 
guma coisa  de  inédito  para  essa  festa. 

Mas  ao  jantar,  de  fora,  seriamos  apenas  quatro 
pessoas:  o  Presidente  do  Conselho,  o  Fausto  e 
a  mulher,  e  eu.  E  fui  eu  o  primeiro  a  chegar. 

Clarinha,  por  mim  prevenida,  deixou  me  só 
com  a  mãe.  Não  havia  tempo  a  perder.  Disse 
tudo. 

—  «Senhora  D.  Claudia. . .  Vossa  Excellencia 
quer,  em  seu  proveito,  fazer-me  o  favor  de 
acreditar  na  sinceridade  de  alguma  coisa  grave 
que  eu  tenha  a  dizer-lhe  ? 

—  «Porque  não  ?» 

—  «E  consente  que  eu  lhe  diga  tudo  o  que 
tenho  a  dizer  como  poderia  consentir  que  lh'o 
dissesse  um  verdadeiro  amigo?» 


A  RUA  DO   OIRO  29S 

—  «Consinto,  o  senhor  Amaral  bem  sabe  que 
o  considero  meu  verdadeiro  amigo.» 

Não  foi  preciso  mais  nada.  Apontei,  disparei. 

—  a  O  seu  procedimento,  minha  senhora,  que 
Vossa  Excellencia  não  soube  encobrir,  como 
talvez  devesse  ter  feito,  nessa  malfadada  ques- 
tão do  divorcio,  não  podia  passar-me  desaperce- 
bido, ainda  mesmo  que  eu  assim  o  tivesse  de- 
sejado. . . » 

—  aE  vê  o  senhor  nisso,  porventura,  algum 
sentimento  condemnavel  ?» 

—  «Não,  minha  senhora,  pelo  contrario.  Admi- 
ro-a.  Mas  o  meu  fim  é  outro.  Agora,  que  Vossa 
Excellencia  vae  readquirir  a  sua  inteira  liber" 
dade  de  mulher,  é  ao  seu  coração  de  mãe  que 
falo ...» 

Claudia  cahia,  pouco  a  pouco,  num  grande 
abatimento,  os  braços  quebrados  estendidos  so- 
bre os  braçus  longos  do  fauteuil,  os  olhos  baixos 
e  fixos  no  desenho  polichromo  do  tapete  persa. 
E  apenas  murmurou : 

—  «Diga. . .  Diga  o  que  quizer. . .  » 
Achei  mole,  carreguei : 

—  «Sua  filha,  minha  senhora,  apesar  de  muito 
nova  e  inexperiente,  não  é  já  tão  creança  que 
ignore  o  verdadeiro  destino  de  todas  as  mulhe- 
res. Não  sei  porquê,  entendeu  ella  que  eu  seria 
capaz   de   apreciar  e  guardar  algumas  das  suas 


296  A    RUA    DO    OIRO 

confidencias,  e  pôz  me  ao  corrente  de  todas  as 
suas  maguas,  que  não  podem  ser  muitas,  bem 
de  ver,  mas  que  nem  por  isso  deixam  de  mere- 
cer-me  o  cuidado  de  lhes  procurar  algum  remé- 
dio. . .  A  intelligencia  d'essa  menina  é  uma  intel- 
ligencia  precoce,  e  o  seu  raciocínio  não  briga, 
por  modo  algum,  com  a  sua  intelligencia.  D'aqui 
a  impossibilidade,  com  que  tive  de  luctar,  para 
a  persuadir  de  alguma  coisa  bem  opposta  a  esta 
convicção,  muito  nitida,  em  que  ella  vive  :  a  con- 
vicção de  que  se  nenhum  homem,  dos  muitos 
que  a  têm  conhecido  na  boa  sociedade  que  fre- 
quenta, se  atreveu  ainda  a  falar-lhe  de  casamento, 
é  porque  alguma  razão  muito  poderosa  os  afasta, 
um  preconceito  os  afugenta. .  . » 
Vi-a  estremecer,  num  anceio. 

—  «E  essa  razão  ?   . .  v  perguntou. 

—  « . .  Essa  razão,  minha  senhora,  quanto  a 
ella  e  quanto  a  mim,  é  a  errada  iriterpretação 
que  se  chegou  a  dar  aos  mais  insignificantes 
actos  da  vida  de  ^'ossa  Excellencia  I» 

Claudia  endireitou-se  no  fauteuil,  encarou-m  e 
bem,  levantou  a  voz,  muito  excitada : 

—  aE  qual  a  minha  culpa  ?!» 

—  «Eu  não  accuso  Acossa  Excellencia.  Nem 
accuso,  nem  defendo.  Quem  a  accusa  é  toda  a 
gente ;  quem  a  defende  é  sua  própria  filha.  E 
eu  apenas   me   julgo   na   obrigação   de  pedir  a 


A  RUA  DO   OIRO  297 

Vossa  Excellencia  que  cuide  de  destruir  o  erro 
da  accusação  e  mostre  a  justiça  da  defeza.» 

—  tE  crê  o  senhor  que  essa  liberdade  de 
acção  que  cu  tratava  de  obter  não  fosse  o  único 
remédio  ?» 

—  iCom  certeza.  O  que  Vossa  Excellencia 
tem  tomado  como  remédio  é  precisamente  o  ve- 
neno. Mas  ainda  estamos  a  tempo  de  tudo 
evitar ...» 

—  «E  Clarinha  ?b 

—  «O  futuro  da  senhora  D.  Clara  está  neste 
momento  dependendo,  por  um  fio,  um  tenuis- 
simo  fio,  da  resolução  de  Vossa  Excellencia. . .  » 

—  «Neste  momento  ?!» 

—  «Neste  momento  I  Vossa  Excellencia  tem 
deante  de  si  alguém  que,  em  boa  consciência, 
sabe  que  nenhum  perigo  real  existiria  para  a  fe- 
licidade do  homem  que  desposasse  a  senhora 
D.  Clara,  se  sua  mãe  persistisse  em  aproveitar- 
se  da  lei  do  divorcio  e  contrahir  outro  casa- 
mento, mas  alguém  que  ainda  é  bastante  timido 
para  também  se  deixar  vencer  pelo  precon- 
ceito . . ,  D 

Como  em  lance  decisivo  de  bem  urdida  come- 
dia, um  \ailto  branco  entrou  e  illuminou  toda 
a  sala  d'uma  clara  e  suavíssima  luz.  Era  Clarinha. 
toda  vestida  de  cassa  branca,  fina  e  vaporosa, 
infinitamente  linda  aos  meus  olhos  enamorados. 


gS  A  RUA  DO   OIRO 

Calei-me.  E  ouvi  então,  mal  acreditando  o 
que  ouvia,  D.  Claudia  dizer : 

— «Vieste  muito  a  tempo,  Clarinha. . .  O  senlior 
Amaral  tinha  acabado  de  me  pedir  a  tua  mão ...» 

Clarinha,  num  salto,  deitou-lhe  os  braços  ao 
pescoço,  soluçando.  E  eu  vi  os  olhos  de  Clau- 
dia arrazarem-se  de  agua. 


X 


«...  Castevaes,  Anadeis, 
Infançoens,  nédios  Bispos,  Menestréis, 
almafres,  cetras,  balsas,  alfarazes, 
cavalleiros  marcados  de  gilvazes  ! 

O'  fulgido  pretérito  ! 

Hoje.  irra  1  Iridia  Rua  da  Irrisão! 
Esquálida  e  clownica  procissão, 
torpe  bando  de  só  brandos  dandys  pandos, 
bêbados  de  brandys,  liquidos  nefandos, 
alcatea  surrada  de  mancipios, 
consciências  sem  fé  e  sem  principios. 
Vejo-os  passar  sob  o  docel  dos  Astros, 
vil,  asthenica  prole  d'esses  Castros, 

párvulos  fructos  pecos, 
de  Ínclitos  Aibuquerques  e  Pachecos  . .. 


^00  A  RUA  DO   OIRO 

E  no  Meu  Peito,  safaro  calvário, 
só  cresce  um  cardeo  lirio  solitário: 

A  Saudade!  a  Saudade! 
A  incongrua  Saudade  d'Outra  Edade. 


Quando  o  Chico  do  Patrocínio,  alisando  para 
trás  com  a  mão  tremula  a  guedelha,  que  se  lhe 
desconcertara  na  vehemencia  da  recitação,  disse 
o  ultimo  d'aquelles  extraordinários  versos  que 
nos  trouxera  do  seu  novo  livro  inédito,  e  uma 
vibrante  salva  de  palmas  estrugiu,  Fausto  per- 
guntou : 

—  «Que  titulo  dás  tu  ao  poema  ?» 

—  tA  Rua  do  Oiro!*  noticiou  o  Chico. 
Fausto  não  percebia,  ou  fingia  não  perceber, 

para  melhor  desfructar  o  chefe  da  escola  nefeli- 
bata, e  repontava  : 

—  «Mas  que  tem  que  vêr  a  Rua  do  Oiro  com 
isso  ?» 

—  «Ora  o  que  tem!  Pois  não  comprehendes ? 
E'  um  símbolo...  E'  o  poema  da  ficção:  a  fic- 
ção do  Amor,  a  ficção  do  Talento,  a  ficção  do 
Luxo,  a  ficção  da  Honra...  Tudo  o  que  luz, 
mas  que  não  é  oiro  ! » 

Depois,  sobre  esta  frase  do  meu  poeta,  a  mi- 
nha vida  entrou,  precipitadamente,  num  capítulo 
novo  de  boa  e  de  corrente  prosa. 


A    RUA  DO   OIRO  3oi 

Ao  mesmo  tempo  que  D.  Claudia  declarava 
ao  Ministro  desistir  do  empenho  que  tivera  em 
fazer  votar  a  lei  do  divorcio,  o  marido  morria 
subitamente,  no  Algarve.  E  D.  Claudia  —  mi- 
nha sogra  —  exonerada,  a  seu  pedido,  da  presi- 
dência da  Liga  Feminista,  retirada  da  Politica, 
serenada  de  nervos,  e  conservando-se  viuva  vae 
em  três  annos,  a  um  e  um  tem  quebrado  os 
dentes,  agudos  e  esverdeados,  que  a  calumnia 
lhe  arreganhou  um  dia.  Vendeu  a  casa  da  Rua  do 
Salitre,  deixou  Lisboa,  e  aqui  está  hoje  com- 
nosco,  na  Ilha. 

Quando,  do  escaler  que  nos  trazia  de  bordo 
do  Açor^  bem  picado  de  remos,  me  foi  possí- 
vel reconhecer  as  pessoas  que  sobre  a  ponta  do 
Cães  aguardavam  a  nossa  chegada,  avistei  logo, 
á  frente,  como  uma  filarmónica,  as  Primas  Ro- 
chas e  as  Primas  Noronhas,  com  o  Primo  Theo- 
dosio,  esbracejando  e  regosijando.  Sumptuosa 
de  plumas  brancas  e  vidrilhos,  a  fronte  alta, 
protocollar,  da  Tia  Maria  da  Assumpção  Car- 
neiro de  Amarante,  sobresaía  do  grupo,  um 
pouco  atrás.  E  a  seu  lado,  irradiando  jubilo, 
os  óculos  de  oiro  do  Doutor  Tristão  coruscavam. 

Amigos  políticos  —  nem  um!  Ainda  bem! 
Eu  bem  sabia  que,  para  os  ter,  era  necessário 
creá-los.  E  eu  não  soubera  creá  los.  A  única 
coisa  que  tinha  pedido  com  empenho,  e  que  con- 


302  A  RUA  DO   OIRO 

seguira,  fora  a  nomeação  de  Thedosio  para  a 
bibliotheca  do  Liceu.  Trazia-lhe  o  decreto.  E 
logo  elle,  em  paga,  me  dava  a  noticia  de  que 
Tarquinio,  o  terrível,  definitivamente  arr azado 
pela  diabetes,  tinha  recebido  os  últimos  sacra- 
mentos nessa  madrugada. 

— «Já  não  deve  pertencer  ao  numero  dos  vivos!» 
ajuntou  o  Doutor  Tristão,  que  lá  tinha  ido  a 
casa,  a  uma  junta. 

Tia  Genoveva,  essa,  não  tinha  vindo  ao  Gaes. 
Esperava-nos  em  casa,  sobre  o  patamar  da  nossa 
larga  e  puída  escada  de  pedra,  na  olorosa  sim- 
plicidade do  seu  avental  branco  e  dos  seus  ban- 
dós, enternecida  e  tremula,  emquanto  a  Goncei- 
ção  Velha  e  a  Gertrudes  Gaga,  atabalhoadas  de 
contentamento,  vinham  abaixo  para  ajudar  o 
Manoel  Ignacio  a  subir  as  malas  de  mão,  as  cai- 
xas de  chapéus,  os  embrulhos. .. 

O  único  desgosto  que  tenho  tido  depois  que 
casei  começa  a  dissipar-se  agora,  como  névoa 
que  pouco  a  pouco  se  funde  numa  aurora,  em 
uma  suave,  inexprimível  alegria.  Clarinha  sente- 
se  gravida.  Já  não  ha  duvida.  Mas  custou !  Es- 
távamos casados  ha  dois  annos.. . 

Se  for  uma  rapariguinha,  ha-de  chamar-se  Ge- 
noveva. 


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TERRA  VIRGEM  "Tòf"''*  .°"*.'°'l'..^". *!''."'. ''l''^'''     «oo 

Al_Bfc_R"ro    CAIS/1ROS 

O  LIVRO  DE  UM  JORNALISTA  ;;;;;™;»,,p°^'fíj; 

coordenação  e  notas  de  Zuzarie  de  Mendonça^  I  vol  . . .      õOO 

AS  ALEGRES  CANÇÕES  DO  NORTE  J',í^f  g^^^j! 

nho. — Aspectos  da  naiureza  e  da  vida.— Filões  poéticos 
do  vocabulário  minhoto.  —  As  danças  aldeãs.—  Origem 
mylhicada  Caninha  Verde.— Aventuras  Domjuanescas  do 
Malhão.— Trabalhos  agricclas— Folga  e  folias.— Peregri- 
nações torreuluosas.  —  A  do  Sameiro  em  1904 -Espe-  \ 
ctabulo  formidável  de  um  exercito  de  crentes.  —  Roma- 
rias e  arraiaes.  —  .Noite  de  S.  João. -Sua  relação  com  o 
culto  solar.— O  \atal,  a  consoada,  as  Janeiras,  os  Heis 
Magos  e  os  autos  hieráticos,  por  Alberto  Pimentel,  l  vol  il.      fiOO 


PQ     Mesquita,  Alfredo 
9261      A  rua  do  oiro 


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