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Full text of "Seára em flor"

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ALBERTO  PIMENTEL 


Seara  em  flor 


VOLUME    J 


o  verde  da  mocidade 
pouco  e  leve  tempo  dura; 
e  aquella  alegre  verdura, 
vista  depois  de  outra  idade, 
já  parece  sombra  escura. 

D.  Francisco  M.vkuel — Obras  métricas. 


LISBOA 

LIVRARIA  EDITORA 
VIUVA  TAVARES  CAROOSO 

3  —  LABQO  DE  CAMÕKS  —  6 
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1 


Seara  em  flor 


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O  Auctor  em  1869 


ALBERTO  PIMENTEL 


Seara  em  flor 


VOLUME   I 


o  verde  da  mocidade 
pouco  e  leve  tempo  dura  ; 
e  aquella  alegro  verdura, 
visía  despi  ii  do  outra  idade, 
já  parece  sombra  escura. 

I).   Francisco  -Aíani-kl  -Ofiras  nií-fjicas. 


LISBOA 

LIVRARIA  EDITORA 
VIU\/A  TAVARES  CARDOSO 

5  —  LARQO  DE  CAMÕES  —  6 
1905 


Typ.  a  vapor  da  Emproza  Littcraria  e  Typographi»:;! 
178,  Rua  de  D.  Tcdro,  184  — Porto 


pa 

V.l 


A 


TORRE  DOS  CLÉRIGOS 


Arrojoifa  bitola  dos  pensamentos  altos  e  inipjilsos  revolitciona- 
tíos  que  por  vezes  agitam  o  cérebro  e  o  coração  do  Porto,  ininlia 
/erra  natal ;  balisa  formidável  que  de  longe  orientas  os  navegan- 
tes e  indicas  a  cidade  aos  olhos  saudosos  que  a  procuram  n^unui 
<jvidez  nostálgica  de  pátria  ;  dominador  campanário  que  durante 
vinte  annos  regeste  a  minha  vida,  florente  de  mocidade,  com  a  t7ia 
voz  lesoante  e  solemne  badalando  lentamente  as  horas  de  cada  dia  ; 
gigante  de  pedra  que  pela  tua  audaciosa  altura  me  convidaste  a 
subir  d  região  dos  sonhos  e  das  chimcras,  pela  tua  solida  muscula- 
17/ ra  me  aconselhaste  a  ser  perseverante  e  firme,  pela  tua  elegância 
esculptural  puzeste  no  meu  cihiriío  a  primeira  noção  do  poder  do 
homem  na  expressão  linear  das  concepções  artísticas  : 


cu  te  ofereço  por  gratidão  este  li- 
vro, que  tu  viste  nascei'  outr'' ora,  e 
cobriste  Id  de  cima  com  a  tua  longa 
sombra  protectora,  ó  cinzento  roble 
arborisado  em  granito,  a  cuja  raiz 
labuta  ttma  cidade  activa,  que  me 
ensinou  a  trabalhar  sem  desfdlle- 
cimcntos  nem  intermittencias. 


Lisboa  —  iQoS 


PREFACIO 


K  osía  uma  segunda  edição  doR  meus  i)ri- 
meiros  ensaios  em  prosa,  agora  reunidos  sob 
um  titulo  commum. 

Reuni-os  e  corrigi  apenas  uma  ou  outra 
l)hrase  mais  ingénua,  cerceei  na  linguagem  al- 
guma aresta  mais  viva ;  mas  não  toquei  na 
traça  geral  da  composição,  que  era  para  mim 
sagrada,  embora  fosse  defeituosa  e  inexperiente. 

No  desenho  de  uma  obi-a  liiteraria  reside, 
prin-cipalmente,  a  individualidade  psychica  do 
auclor.  \\  toda  a  sua  alma,  n'um  determinado 
jnomento  biographico,  é  toda  a  sua  physionomia 


inteilectual,  trouxa  ou  pujante,  saudável  ou  ra- 
chitica,  antiga  ou  moderna,  que  se  retrata  ali. 

Esse  desenho  insjjira  respeito  ao  seu  próprio 
auctor,  que  se  vô  reproduzido  n'um  espelho  se- 
vero e  que,  para  esíimular-se  e  corrigir-se,  a  si 
mesmo  se  vai  observando,  como  em  photogra- 
[vliias  que  assignalassem  as  diiíbrentes  oi)Ocas 
da  sua  existência. 

N'isso  não  ha  pôr  mão  relbi-madora ;  seria 
um  desacato,  quasi  um  sacrilégio. 

Limpar  a  tela,  sacudi i^-hie  o  pó,  desempas- 
tiii  as  mancíias  do  tem|)0  não  é  alterar  o  dQ<o- 


iiho,  antes  aclaral-o  para  que  melhor  se  possa 
reconhecer  na  sua  primitiva  identidade. 

Os  quatro  livros,  que  se  fundiram  n'este 
único,  representam  para  mim  a  madrugada  da 
vida  litteraria,  a  alegria  de  compor,  a  pressa 
de  publicar,  a  anciã  de  vencer.  Elles  nào  tive- 
ram maior  publico  que  o  dos  estudantes  do  meu 
tempo  e  da  minha  terra,  dispostos  ao  favor  áii 
camaradagem  e,  portanto,  ao  applauso  immere- 
cido.  Tão  verdes  e  generosos  como  eu  próprio, 
faltava-lhes  a  competência  para  condemnar  o, 
sobretudo,  faltava-lhes  a  vontade  de  fazel-o. 


Um  ou  outro  julgador  idóneo,  a  cujas  mãos 
alguns  d'esses  livrinhos  foram  parar,  preferi- 
ra, deante  das  primicias  de  um  novo,  usar  da 
longanimidade  que  fecha  os  olhos,  não  por  os 
trazer  vendados  como  a  justiça  implacável,  mas 
para  absolver  e  dar  estimulo. 

Castilho  e  Camillo  acolheram-me  com  |)a- 
ternal  bondade  ;  Júlio  César  Machado  mandou- 
me  carinhosas  palavras ;  de  Coimbra,  os  ra|)a- 
zes  da  Folha  foram  tão  amoraveis  para  mim 
como  os  estudantes  do  Porto. 

Adeus  timidez  d.e  principiante ;  adeus  medo 


do  publico,  pavor  da  critica  ;  metti-me  denoda- 
damente ao  caminho,  cantando,  como  os  intré- 
pidos camponezes  minhotos  que  não  sabem  tra- 
balhar senão  com  uma  canção  a  esvoaçar-lhes 
nos  labi,  s. 

Foi  bom  ?  foi  mau  ?  Foi  o  destino.  Sinto  a 
consciência  lavada  e  o  animo  alegre.  Amo  o 
trabalho  como  uma  fonte  de  consolações,  que 
pagam  bem  os  desgostos  da  protlssão  das  let- 
tras.  Um  ódio  pode  sahir-me  á  estrada  como 
salteador  ;  deixo-o  despejar  o  seu  arcabuz  e  sigo 
na  plácida  consciência  de  que  o  não  mereci. 


Outro  caminheiro  abraca-me  cora  bondade ; 
agradeço-lhe  a  benevolência  e  prosigo  com  igual 
placidez.  Devo  á  natureza  o  favor  de  desconhe- 
cer a  ambição,  a  inveja  e  a  vinganra ;  serena 
a  alma,  o  ti*abalho  não  pesa,  ó  mais  uma  can- 
ção do  que  uma  cruz. 

Frederico  Laranjo,  escrevendo  a  respeito 
de  alguns  dos  meus  primeiros  livros,  dizia  que 
elles  se  faziam  querer  pelo  «seu  ar  mocinho». 

A  apreciação,' comquanto  indulgente,  ex[)h'ca 
tudo  o  que  n'esses  livros  i)ode  haver  de  estimá- 
vel :  a  mocidade. 


. 


Peciuenos  volumes  em  16,  elles  levavam  a 
outros  corações  juvenis  a  flor  da  primeira 
seara  do  meu  espirito,  a  ingenuidade,  o  senti- 
mento espontâneo,  a  impericia  inevitável  n'uma 
estreia,  o  contentamento  de  ver  florir  a  prima- 
vera sobre  a  messe  que  se  cultivou  afanosa- 
mente. 

Estas  palavras  bastam  a  explicar  o  titulo 
que  serve  de  traço  de  união  aos  quatro  volu- 
mesinhos  agora  reimpressos. 

Dál-os  novamente  ao  prélo  não  é  uma  vai- 
dade ser,òdia,   mas  apenas  um  como  desejo  de 


renascença,  de   regresso   ao  passado,    que   os 
.velhos  comprehendem  muito  bem,  e  os  moços 
hão  de  comprehender  algum  dia.  Lá  adverte  o 
Apocahjpse: «  Não  te  maravilhes  de  eu  te  dizer: 
laiporta-vos  nascer  outra  vez.»   Sim,  importa 
renascer,  ao  menos  imaginariamente,  para  ca- 
minhar com   firmeza   e   tranquillidade   para  o 
extremo  cabo  da  vida.  A  saudade  é  um  goso 
dulcilicante,   apenas   obscurecido  pela  sombra 
'|ue,  no  conceito  de  D.  Francisco  Manuel,  om- 
pallidece  as   visões   retrospectivas.     Comtudo, 
es.sa  mesma  sombra  é  suaye ;  não  amedronta.' 


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somente  convida  a  evocar  o  passado,  para  re- 
vi vel-o. 

E  o  que  eu  faço  nos  dois  volumes  da  «Seara 
em  flor». 

E  assim  ficam  plenamente  justificados,  creio 
il  eu,  tanto  a  apparição  d'esta  obra  como  o  titulo 
que  lhe  puz. 

Lisboa, 
Janeiro  de  19(]5. 

Alberto  Pimentel. 


17 


'  Ricíirdiíia.   Desejo  que  meu  tio  determine  dia  para  o 
casamento. . . 

—  Sempre  se  realisa  então,  senhor  morpido? 

—  Duvidas  só  as  podia  ter  o  padre  Dominf!;os,  que 
6  um  espirito  fraco  e  vacillante ;  —  um  homem  que  níío 
derruba  um  ninho  ! 

—  São  modos  .de  ver  —  replicou  o  capellão. 

—  Pois  vá-me  lá  —  continuou  o  morgado.  —  Vá- 
me  lá.  Diga  a  meu  tio  que  não  posso  ir  eu  mesmo, 
porque  esta  barafunda  que  revolve  toda  a  casa  está 
pedindo  o  meu  constante  vigiar.  Tome  o  seu  café  e  vá. 

—  Irei,  senhor  morgado,  irei  —  respondeu  o  padre, 
erguendo-se  da  mesa  do  jantar. 


IV 


Foi  padre  Domingos  ao  solar  dos  Xoronhas  desem- 
penhar a  missão   de  que  o  incumbira  o  morgado  de 

Santa  Eulália.  Foi  e  encontrou  Ricardina  sentada 
n'um  dos  bancos  de  pedra,  que  guarneciam  o  lago  do 
jardim.  Tinha  a  desditosa  menina  o  rosto  escondido 
entre  as  mãos  e  via-se-lhe  arquejar  o  seio  violenta- 
mente. Padre  Domingos  queria  fallar-lhe  e  não  ousa- 
va. Ricardina,  porém,  como  ouvisse  agitarem-se  as  fo- 
I  lhas  de  uma  roseira  próxima,  a  que  se  tinha  encostado  o 
capellão,  ergueu  subitamente  a  cabeça.  Deu  com  os 
olhos  chorosos  em  padre  Domingos  e  exclamou : 

—  Ainda  bem  que  não  6  meu  pae !  Posso  chorar 
á  vontade . . . 


18 


—  Chore,  senhora  D.  Eicardina,  chore,  porque  eu 
comprehendo  as  suas  lagrimas... 

Ricardina  entreabriu  os  lábios  n'um  instantâneo 
sorriso  d'agradecimento  e  convidou  o  padre  a  sentar- 
se  ao  lado  d'ella. 

—  A  que  vem,  padre  Domingos?  Seja  franco  para 
commigo. 

—  Yenho  saber,  por  ordem  do  senhor  morgado, 
qual  é  o  dia  marcado  para  o  casamento.  Yenho,  porém, 
com  a  dor  no  coração,  minha  senhora.  Diz-me  uma 
voz  interior  que  grandes  desgraças  vão  cahir  sobre 
o  Paço  de  Santa  Eulália.  Depois  que  entra  por  uma 
porta  a  ambição,  sahe  por  outra  a  alegria :  é  o  que 
está  succedendo  agora.  Y.  exc.^  tinha  direitos  para 
gosar  a  felicidade,  que  sonhava  o  seu  coração  ;  e  o  po- 
bre senhor  Fernando  Tavares  não  merecia  também  que 
o  despenhassem   tão  do  alto  das  suas  esperanças.  .  . 

—  Tem-n'o  visto,  padre  Domingos  ?  —  interrogou 
precipitadamente  Ricardina. 

—  Yi-o  e  fallei-lhe,  poucos  dias  ha.  Pareceu-rae 
verdadeiramente  desgraçado . . . 

—  E  é.  Pobre  Fernando  I  —  murmurou  Ricardina. 
—  E  ó.  Meu  pae  postou  criados  de  confiança  a  todas 
as  portas.   Não  encontrou  um  no  portão  de  entrada? 

—  Lá  o  vi,  minha  senhora. 

—  Lá  devia  estar  a  olhar  com  os  cem  olhos  d 'es- 
pião. Pessoa  que  não  seja  de  Santa  Eulália,  não  en- 
tra. Deu  motivo  a  esta  vigilância  a  apparição  d 'um 
menáigo  que,  ha  dias,  instou  por  fallar  commigo  to- 
mando o  pretexto  de  me  pedir  esmola. 


19 


—  E  esse  mendigo  era ...  ? 

—  Uni  lioniem  que  me  trouxe  uma  carta  de  Fer- 
nando —  disse  Ricardina  abaixando  a  voz.  —  Quei- 
mei-a,  padre  Domingos,  depois  de  a  ler,  de  a  reler, 
de  a  decorar.  Se  meu  pae  a  visse,  matal-o-ia.  Oiça, 
meu  padre,  oiça.  Dizia  assim  : 

^  « Ricardina.  Creio  no  teu  amor  como  creio  em  Deus. 
Vejo-te  de  longe  a  luctar  entre  a  prepotência  de  teu 
pae  e  a  ambição  de  teu  primo  e  não  te  posso  salvar, 
pomba  querida,  d'esse  dilemma  infernal  com  que  te 
despedaçam  o  coração.  Para  onde  quer  que  fugissemos, 
havia  de  correr  atraz  de  nós  a  tyrannia,  a  persegui- 
ção, a  crueldade;  e  haviamos  d'ouvirpor  toda  a  parte 
os  clamores  da  justiça,  que  nos  seguiria  de  perto,  pro- 
vocada por  teu  pae . . .  Depois  o  escarneo  da  sociedade 
cahiria  sobre  mim,  porque  tu  és  muito  rica,  muito  opu- 
lenta, muito  nobre,  e  todos  veriam  no  meu  amor  — 
excepto  tu,  bem  sei  —  a  tentação  que  leva  o  homem 
a  praticar  um  roubo.  E  depois  as  tuas  lagrimas  valem 
mais  do  que  isso.  Como  tu  não  havias  de  chorar, 
quando  ouvisses  trovejarem-te  nos  ouvidos  as  primei- 
ras palavras  de  maldição  paterna !  Xão,  Ricardina, 
não  terás  que  chorar  de  remorsos.  Tu  ficas  no  Paço 
de  Santa  Eulália,  mimosa  no  leito  de  teu  primo  e 
bemquerida  de  todos.  Eu  vou-me  por  esse  mundo  além, 
fugido  dos  homens,  a  pedir  á  arvore  mais  copada  da 
serra  que  estenda  ao  longo  do  caminho  sete  palmos  de 
sombra  onde  me  deixe  dormir  o  somno  eterno.  Mas 
que  somno  atroz  não  será!  Adormecerei  no  silencio  da 


20 


morte,  sentindo  no  coração  as  garras  do  ciúme.  E  tu  sa- 
bes o  que  é  o  ciúme,  Ricardina?  E  a  perdição,  o  deses- 
pero, a  loucura.  Emprestei  ao  morgado  de  Santa  Eu- 
lália, pouco  ha,  os  Ckunes  do  Bardo^  de  Castilho.  Quiz 
mostrar-lhe  intencionalmente  o  que  é  o  ciúme,  essa  la- 
bareda infernal  do  coração.  Ai  do  biltre,  se  não  com- 
prehendeu  esse  livro  e  mandou  preparar  de  cambraia 
e  rosas  o  leito  que  te  aguarda  na  noite  do  noivado. . . 
Adeus,  Ricardina.  Yêr-nos-hemos  no  eco,  se  Deus  sabe 
perdoar  aos  martyres  do  amor.  Adeus. 

Fernando.» 

—  Tremo  por  elle,  senhora  D.  Ricardina  —  bal- 
buciou o  padre.  —  O  final  d'essa  carta  deixa  entrever 
um  doloroso  estado  d'excitação. . . 

—  Olá !  padre  Domingos,  olá  !  —  gritou  de  longe 
Sebastião  Noronha,  pae  de  Ricardina  —  Yenha  cá, 
homem.  Não  me  gaste  o  tempo  todo  em  cumprimentos 
á  noiva.  Deixe  isso  para  depois. 

Padre  Domingos  obedeceu  á  voz  do  fidalgo,  aper- 
tando a  mão  de  Ricardina  e  deixando  fugir,  muito  a 
medo,  estas  palavi-as : 

—  Que  Deus  oUie  por  nós. 

O  que  se  passou  entre  Sebastião  Noronha  e  padre 
Domingos,  ninguém  o  ouviu.  O  que  ó  certo  é  que  o 
capellão  do  Paço  de  Santa  Euhilia  sahira  triste  e  pro- 
nunciando distrahidamente,  de  momento  a  momento, 
estas  palavras : 

—  D'aqui  a  trez  dias,  d'aqui  a  trez  dias. . . 


21 


Kiitrou  em  oasu  e  teve  conferencia  com  o  morga- 
do. Depois  veio  para  a  janella  do  seu  quarto  esperar 
as  andorinhas,  com  os  olhos  absortos  nas  charamas 
que  i)rincipiavam  a  purpurear  o  occidente. 

Pouco  tempo  tinha  decorrido,  ouviu  padre  Domin- 
gos um  chih'ear  álacre  de  passarinhos,  a  distancia, 
que  o  fez  estremecer  e  levantar  subitamente  a  cabeça. 

Eram  ellas,  as  andorinhas,  que  chegavam  em  tro- 
pel. Tornavam  alegres  como  um  batalhão  que  volta  da 
campanha.  Iam  ficando  algumas  pelos  sitios  seus  co- 
nhecidos, quando  viam  ondular  era  baixo  as  comas 
das  arvores  suas  amigas.  Vinha  aproximando-se  a 
tumultuosa  caravana  e  ao  passar  com  a  rapidez  do 
vento  pelo  Paço  de  Santa  Eulália,  duas  andorinhas 
se  apartaram,  batendo  as  azas  em  direitura  ao  portão 
da  quinta. 

—  São  ellas !  —  murmurou  o  padre,  gelado  de 
medo. 

E  eram.  Era  o  casal  que  voltava  a  procurar  a  sua 
habitação  antiga.  Quando  as  duas  andorinhas  deram 
pela  falta  do  ninho,  começaram  a  esvoaçar  de  um  lado 
para  outro,  com  o  desespero  de  quem  vê  aproximar-se 
a  noite  sem  ter  um  tecto  hospitaleiro  que  lhe  de  gua- 
rida. Gastaram  n'isto  alguns  momentos.  Depois  lá  fo- 
ram pelo  céo  fora,  á  procura  de  qualquer  abrigo 
provisório,  soltando  uns  pios  doloridos. 

—  Bem  disse  eu  —  pronunciou  padre  Domingos 
de  si  para  si.  Desgraça  certa.  Bem  disse  eu. 


22 


Trez  dias  depois  das  scenas  descriptas  no  anterior 
capitulo,  celebrou-se  na  capella  do  Paço  de  Santa 
Eulália,  ao  fim  da  tarde,  o  casamento  do  morgado  com 
Kicardina. 

Concorreram  á  festa  os  mais  nobres  fidalgos  de 
sete  léguas  em  redor,  e  era  muito  para  admirar  o  vêl-os 
apearem-se  garbosos  á  porta  do  Paço,  coalhada  de 
camponezes.  Celebrou-se  o  casamento,  como  disse,  na 
capella  da  casa,  cuja  entrada  era  ladeada,  da  direita 
e  da  esquerda,  por  alas  de  criados  e  raparigas  do 
campo.  Quando  a  noiva  sabia  da  capella,  com  os  olhos 
embaciados  de  pranto,  pelo  braço  do  morgado,  as  po- 
bres camponezas  entornaram-lhe  sobre  o  véo  alvís- 
simo uma  chuva  de  flores.  Kicardina,  ao  sentil-as,  pa- 
receu despertar  d'um  longo  somno  para  uma  horrorosa 
realidade.  Soltou  um  grito  estridulo,  e  cahiu  desmaiada 
nos  muitos  braços  que  se  estenderam  para  amparal-a. 
Levaram-n'a  á  pressa  para  o  leito  e  rodearam-n'a  de 
cuidados.  Passados  momentos,  Kicardina  voltava  a  si  e 
adormecia  prostrada  n'um  marasmo  profundíssimo.  As 
festas,  interrompidas  por  este  incidente,  recomeçaram, 
e  o  morgado  de  Santa  Eulália  veio  debruçar-se  n'uma 
das  janellas  do  Paço  para  lisonjear  os  camponezes, 
que  armavam  danças  no  terreiro.  Yinha  subindo  a 
lua,  a  esse  tempo,  de  traz  das  arvores  verdenegras 
da  quinta. 


23 


llaviji  ali;uns  momentos  que  o  morgado  estava  á 
jaiiella,  quando  estalou  subitamente  no  ar  a  detona(;iío 
d*um  tiro ;  e  lo^^o  se  ouviu  também  um  grito  agudis- 
simo.  Era  que  o  morgado  tinha  cabido,  no  pavimento 
da  sala,  ferido  de  morte.  A  turba  dos  camponezes  in- 
vadiu de  roldão  a  entrada  do  Paço  e  espraiou-se  cu- 
riosa ao  longo  dos  corredores,  em  vez  de  procurar 
nas  sombras  da  quinta  o  emboscado  assassino.  Na 
onda  dos  camponezes  vinha  um  homem  que  não  tinha 
assistido  á  festa :  chamava-se  Fernando  Tavares. 

O  desventuroso  moço,  com  o  olhar  chammejante 
e  o  cabello  desgrenhado,  correu  precipitadamente 
todas  as  salas  como  á  procura  d' uma  pessoa  que  ainda 
não  tinha  visto.  A  pessoa  que  Fernando  Tavares  pro- 
curava era  o  capellão  da  casa.  Quando  o  viu,  á  en- 
trada d'uma  sala,  soltou  uma  gargalhada  sêcca,  que 
era  indicio  claro  de  loucura  e  articulou  estas  palavras 
com  desvairada  rapidez : 

—  Matei-o,  padre,  matei-o. 

—  Deus  meu  !  —  exclamara  o  padre  com  os  olhos 
rasos  d 'agua  —  Era  certa  a  desgraça !  Era  certa  a 
desgraça !  Chegaram  as  andorinhas  e  o  morgado  ti- 
nha-lhes  roubado  o  ninho. . . 

Porto  -  Julho  de  1869. 


UM  ANJO 


A  Margarida  era,  ii'esse  tempo,  a  flor  dos  namo- 
rados d'aldeia. 

Requestavam-n'a  muitos,  e  só  um  tinha  a  preferen- 
cia; o  escolhido  era  o  Luiz  de  Travanca.  í]ra  e  é. 
Hoje,  oito  annos  depois  do  seu  casamento,  a  Marga- 
rida, que  ainda  está  uma  fresca  mocetona,  ama-o  com 
os  extremos  apaixonados  de  uma  esposa  carinhosa. 
O  Luiz  vi-o  hontem.  Está  bem  conservado. 

Cuido  que  um  beijo  da  mulher  lhe  basta  para  dis- 
sipar qualquer  nuvem  com  que  o  horisonte  se  euturbe. 
Mas  se  lhe  fallarem  da  filha,  da  Izabelita,  que  lhes 
morreu  ha  dois  annos,  o  Luiz  enternece-se  a  lagri- 
mas e  pede  pelo  amor  Deus  que  lhe  não  fallem  mais 
d'ella.  A  morte  da  pequena,  minha  afilhadinha,  foi 
indubitavelmente  o  primeiro  desgosto  que  entrara 
fundo  n'aquelles  extremosos  corações  de  pães.  Se  foil 
Os  outros  dissabores  passam  por  elles  e  não  deixam 
vestigio;  este  deixou-o  de  lagrimas. 


26 


Margarida  era,  pois,  ha  oito  anu  os,  como  eu  ia 
a  dizer,  o  aijesii  do  logar.  Os  rapazes  faziam-se  en- 
contrados com  ella,  á  volta  d' uma  quelha,  só  para  te- 
lem  a  felicidade  de  fallar-lhe. 

E  o  caso  é  que  ella  se  quedava  de  boa  sombra  a 
ouvil-os.  Não  havia  moça  mais  palreira  em  toda  a  fre- 
guezia ;  mas  também  ainda  se  não  viu  rapariga  mais 
fiel  ao  seu  namorado. 

Os  rapazes  tomavam-lhe  o  passo  e  fallavam-lhe ; 
ella  parava  e  ouvia-os. 

Conversavam  da  romaria  que  estava  próxima,  do 
serão  em  casa  de  fulano,  da  esfolhada  em  casa  de 
sicrano.  Mas  se  alludiam  ao  abrayo  que  lhe  dera  o 
Luiz,  de  Travanca,  quando  achou  o  milho  rei,  Mar- 
garida voltava-lhes  as  costas  e  despedia-se  ligeira  com 
o  pretexto  d'ir  segar  milha  ou  lavar  á  presa. 

Os  pobres  moços  ficavam-se  de  cara  ao  lado,  e 
pasmavam  d'aquillo. 

Um  dia  espalhou-se  n'aldeia  que  a  Margarida  ia 
casar  brevemente  com  o  Luiz. 

Os  rapazes  acreditaram  e  entristeceram -se. 

Acertou,  porém,  de  haver  uma  esfolhada  por 
aquelles  dias:  a  Margarida  teve  convite  e  accei- 
tou-o.  Lá  appareceu  ella  com  toda  a  sua  alegria  do 
costume. 

Os  serandeiros  estavam  receiosos  de  fallar-lhe;  a 
Margarida,  porem,  desafiava-os  á  garrulice.  Era  isto 
n'um  sabbado  á  noite.  Depois  da  esfolhada,  começou 
a  dança  em  plena  eira.  A  Margarida  bailava  louca^ 
mente ;  nunca  a  viram  t^o  alegre, 


27 


Ao  outro  (iiíi. .  .  leu-se  na  i^rejiio  primeiro  bunlio 
o  d'alii  a  um  mcz  certo  celebrou-se  o  casamento. 

Como  os  noivos  eram  felizes  ! 

^íargarida  fez-se  mais  trabalhadeira  e  não  menos 
alegre;  o  Luiz  revia-se  n'ella  e  julií^ava-se  o  mais  di- 
toso dos  homens. 

Xem  eu  sei  que  haja  maior  felicidade  do  que  esta, 
este  abraçar-se  de  duas  almas  irmãs,  que  vivem  con- 
tentes uma  da  outra,  que  não  se  importam  do  mundo 
e. . .  que  até  não  sabem  se  o  ha. 

Como  estou  agora  na  aldeia,  deixo-me  convencer 
d'esta  verdade:   a  felicidade  acha-se  em  toda  a  parte. 

Quantas  existências  não  deslisam  suavemente  n'esta 
vida  socegadissima  do  campo  ! 

Chega  para  viver  aqui  uma  choupana ;  não  ó  pre- 
ciso mais. 

Da  jaqueta  ao  frah^  vai  um  abysmo. 

O  camponez  gasta  exactissimamente  aquillo  de 
que  precisa ;  não  lhe  chega  o  dinheiro  para  superflui- 
dades. De  que  lhe  serviriam  umas  abas  de  panno  co- 
sidas á  ourella  da  jaqueta  ?  Faziam-n'o  gastar  mais  e 
estorvavam -n 'o  no  trabalho. 

A  camisa  não  se  engomma. 

Para  quê?  Lava-se  simplesmente.  Na  limpeza  ó 
que  está  o  aceio  do  corpo  e  no  aceio  do  corpo  o  res- 
peito de  nós  mesmos.  Isto  satisfaz  cabalmente. 

A  vida  ociosa  da  cidade  traz  a  necessidade  d 'um 
homem  se  divertir  com  alguma  coisa,  quando  sahe  a 
passeiar. 

Com  que  se   ha  de,  pois,    distrahir  um   homem  ? 


28 


Leva  a  bengala  na  mào  para  florear  com  ella.  Hoje 
leva-se  a  hadinc^  que  6  uma  espécie  d'esquírola 
extrahida  da  bengala ... 

O  lavrador,  quando  sahe,  leva  comsigo  a  enxada ; 
nada  mais. 

Se  tem  de  se  apegar  n'uma  ladeira,  abordoa-se 
n'ella ;  se  tem  d'encarreirar  uma  agua  que  andava 
desviada  da  presa,  rapidamente  o  pode  fazer. 

Duplicada  commodidade  a  da  enxada ! 

E  acham  que  elles  não  vivem  felizes  ? 

Muitos  dos  lavradores  d 'aqui  nunca  foram  ao 
Porto,  e  não  lhes  peza  isso. 

Se  lá  fossem,  e  vissem  uns  homens  de  luva  cor 
de  flor  d'alecrim,  direitos  como  um  cypreste,  e  de 
chapóo  á  Beiíoiton^  mandavam  dizer  á  familia  que  já 
lá  tinha  começado  o  carnaval  e. .  .  que  o  não  achavam 
grande  coisa. 

Por  fim  de  contas  o  systema  d 'elles  parece  o  único 
racional. 

Yamos,  agora,  em  santa  paz  com  lavradores  e  ci- 
dadãos, á  nossa  historia. 

Uma  filhinha,  galante  como  poucas  creanças,  foi 
o  complemento  da  felicidade  conjugal  de  Luiz  e  Mar- 
garida. 

Estonteavam  d'alegria  os  ditosos  pães. 

—  Uma  mulher  que  não  tem  ainda  filhos  —  dizia 
o  Luiz  —  tem  uma  divida  em  aberto  com  o  homem. 
Quando  uma  pessoa  se  casa,  vai  buscar  familia ;  e 
onde  não  ha  filhos,  não  ha  familia. 

D'aqui  se  pode  inferir  o  contentamento  do  Luiz. 


29 


Por  essa  occiísiíto  cheguei  ii  quinta  do  Villa  Verdo 
e  fui  convidado  pjira  padrinho  da  pequerrucha. 

É  de  notar  que  nMsto  me  quiz  fazer  um  obsequio 
o  bom  do  Luiz;  suppunha  elle  que  ser  padrinho  da 
sua  filhinha,  que  tão  bonita  nascera,  seria  um  conten- 
tamento para  qualquer. 

Eis  aqui  ainda  uma  felicidade  dos  pães,  que  não 
deixa  de  fazer  inveja. 

Baptisou-se  a  pequena  e  chamou-se  Izabel,  em 
homenagem  á  avó  materna,  que  foi  madrinha  e  tinha 
o  mesmo  nome. 

Crescia  a  creança  e  cresciam  as  graças  com  ella. 

Diga- se  a  verdade. 

Poucas  creanças  levavam  as  lampas,  n'aldeia,  á 
minha  afilhadita.  Até  me  julguei  realmente  obse- 
quiado com  o  convite  do  Luiz,  attenta  a  formosura 
da  pequena. 

No  outono,  quando  eu  chegava  a  Yilla  Yerde,  a 
rapariguinha  surdia  de  qualquer  parte  a  pedir- me  a 
benção  e  a  chamar-me  senhor  jjadrinho.  Ha  trez 
annos,  porem,  comecei  a  estranhar  o  amarellido  doen- 
tio da  Izabel,  e  vi  que  os  pães  se  inquietavam  também 
com  isso. 

Os  olhos  de  Margarida  e  Luiz  choraram  as 
primeiras  lagrimas  de  dor,  que  d'alegria  muitíssimas 
tinham  chorado  já. 

Regressei  ao  Porto  e  não  soube  mais  da  pequena. 

No  anuo  seguinte  voltei  a  Yilla  Yerde,  e,  como 
não  visse  a  minha  afilhada,  perguntei  por  ella.  Res- 
ponderam-me  com  lagrimas. 


30 


A  pequenita  tinha  morrido  ! 

Faz  uma  pena  saber  que  as  creanças  morrem  | 
Quem  ha  ahi  que  resista  cl'olhos  enxutos  á  impressão 
pungente  de  vêr  desfeita  no  chão  uma  casinha  de 
musgo  ou  folhas  sêccas  onde  um  pardalinho  se  tinha 
ido  aninhar  e  que,  momentos  antes,  adheria  ao  ramo 
de  uma  arvore  da  encosta  ? . .  . 

Pois  o  berço  6  também  um  ninho  onde  se  implu- 
mam  as  aves  do  futuro ;  quando  ellas  morrem,  fica 
vasio  o  berço  e  é  como  se  se  desfizesse  a  casinha 
verde  d' um  passarinho  qualquer. 

Pobres  creancinhas !  Quando  morrem  e  passam 
para  a  igreja  no  seu  caixãosinho  vermelho,  ficam  di- 
zendo as  estrellas : 

« Irmãsinhas,  adeus  I  Quando  a  sombra  d'um  des- 
g'osto  fazia  noite  no  coração  de  vossas  mães,  éreis  a 
única  estrella  que  lhes  luzia  na  cerração  interior. 
Agora  morreis  vós  e  quem  sabe  se  nós  morreremos 
breve.  . .  Um  dia,  se  a  mão  poderosa  do  Senhor  nos 
despegar  d'este  tecto  de  saphira,  cahiremos  na  terra 
e  converter-nos-hemos  em  lagrimas..  .  » 

E  murmuram,  ao  mesmo  tempo,  as  flores  do  ca- 
minho : 

«  Pobresitas,  adeus !  Morreis  como  nós !  A  mão 
destruidora  da  morte  roubou- vos  ás  caricias  de  vossa 
mãe,  como  o  vento  da  tempestade  nos  rouba  também 
á  haste  em  que  nascemos  !  Adeus,  pobresitas  ! . . .  » 

E  chilriam  os  passarinhos : 

«  Pobre  irmãsinha  !  Ainda  foste  feliz  !  Morreste  a 
cantar   e   não    chegaste  a  conhecer  as   afílicções  do 


31 


mundo.  So  crescessos,  haviam  ellas  de  perseguir-<c, 
como  nos  persoí^^ucm  os  homens,  a  nós,  que  lhes  nílo 
fazemos  mal  nenhum  !  Vai  cm  paz  ao  seio  do  Se- 
nhor. .  .  » 

Morreu,  pois,  a  Izabelinha;  cxplicaram-me  assim 
o  caso  da  sua  morte : 

Certa  manhã,  chamou  a  pequenita  pela  mãe  para 
lhe  contar  um  sonho,  que  tivera  de  noite,  dizia  ella. 

Acercaram-se  a  mãe  e  o  pae  e  Izabelinha  contou- 
Ihes : 

—  Querem  saber?  Sonhei  esta  noite  com  a  Senhora 
dos  Remédios,  que  está  no  altar  da  igreja.  E  eu  estava 
ao  pé  d 'ella,  cercada  de  lindos  meninos,  que  me  cha- 
mavam— sua  irmã.  E  ouvia-se  uma  musica  tão  do- 
ce, que  me  fazia  chorar  d^alegria !  Ah,  minha  mãe, 
como  havia  de  gostar,  se  visse  todos  aquelles  meninos 
a  dançar  ao  redor  da  Senhora!  E  querem  saber  uma 
coisa?  Eu  também  dancei  com  elles.  Se  o  meu  pae  e 
a  minha  mãe  vissem,  admirar-se-iam  até !  Entrava  o 
dia  pela  igreja  dentro,  quando  eu  de  lá  sahi.  E  Nossa 
Senhora  viu-me  sahir  e  chamou-me  outra  vez  para 
dizer-me :  —  Vem  cá,  Izabelinha.  O  minha  mãe,  como 
6  que  Nossa  Senhora  sabe  o  nome  de  toda  a  gente? 

—  Eu  sei  lá,  filha !  —  respondeu  a  pobre  Marga- 
rida com  os  olhos  brilhantes  de  lagrimas  e  o  coração 
alanceado  por  um  triste  presentimento. 

Luiz  arquejava  d'afflicção  e  inclinava-se  todo  so- 
bre o  leito  da  creança,  como  para  ouvil-a  melhor,  e 
entender  o  sentido  de  todas  as  suas  palavras. 

Izabelinha  continuou  : 


32 


—  Olhem  que  a  Senhora  disse-me  que  me  vinha 
buscar  esta  noite,  se  eu  quizesse  ir  com  EUa  para 
um  logar  encantador.  E  disse-me  lambem  que  fosse 
colher  açucenas,  porque  queria  que  eu  levasse  flores, 
para  ir  muito  bonita,  e  que  vestisse  a  minha  sainha 
cor  de  rosa,  que  a  mãe  me  deu  pelo  Natal.  E  olhem 
que  eu  desejo  vestir-me  assim  para  fazer  a  vontade  á 
Senhora. . .  » 

Foi  um  dia  de  lagrimas  n'aquella  casa.  Margarida 
e  Luiz  sentaram-se  á  mesa  do  almoço  com  os  olhos 
vidrados  de  pranto. 

Encararam  um  no  outro . . .  e  não  puderam  comer 
bocado. 

A  pequenita  andava  toda  atarefada  a  colher  as 
açucenas ;  os  pães  andavam  a  olhar  para  ella  e  nem 
podiam  fallar. 

Chegou  a  noite. 

Izabelita  estava  aceiadinha  como  uma  boneca ! 

E  quiz  dormir  assim,  a  segurar  cuidadosa  n'um 
ramalhete  d 'açucenas,  que  tinha  entre  as  mãos. 

Luiz  e  Margarida  velavam.  Estiveram  accordados 
ató  alta  noite ;  depois,  Luiz,  querendo  dominar  com 
um  esforço  de  homem  um  presentimento  de  pae, 
aconselhou  Margarida  : 

—  Yai  deitar-te,  mulher.  Tu  nunca  ouviste  dizer 
que  os  sonhos  não  valem  nada  ?  Olha  a  pequena  como 
está  a  dormir  descançada !  E  ouve-se-lhe  a  respiração 
tão  bem !  Yai  deitar-te,  anda. 

Vendo  que  Margarida  se  deixava  ainda  ficar,  tor- 
nou-lhe  o  homem : 


33 


—  Anda  lá,  que  eu  tambom  vou.  A  gente  ás  vezes 
tom  scismas!.  . .    Anda  lá.  .  . 

E  foram. 

Sobre  a  madruíj^ada,  Mari;'arida  acordou  afflicta ; 
levantou-se  do  leito  em  sobrcsalto  e  foi  ver  a  íilha. 

Achou-a  a  dormir.  Quiz  beijal-a  e,  quando  lhe  to- 
cou a  face,  recuou  de  golpe. 

Estava  fria ! 

Margarida  abriu  a  janella,  chamando  em  altas 
vozes  pelos  visinhos. 

Quando  o  sol  inundou  a  casa,  Margarida  conhe- 
ceu que  sua  filha  dormia  para  sempre  e  viu  um  rancho 
de  borboletas  brancas,  que  esvoaçavam  sobre  a  pe- 
quena. As  açucenas  tinham  emmurchecido. 

Não  sei  descrever-lhes  a  dor  de  Margarida-  e  Luiz  ; 
os  corações  de  mãe  hão  de,  porem,  comprehendel-a. 

Quizeram  os  desventurados  pães  que  a  pequenita 
fosse  a  enterrar  vestidinha  como  estava ;  e  foi. 

Mandaram  ao  carpinteiro  fazer  um  caixãosinho  de 
pau.  O  armador  cobriu-o  de  panninho  vermelho  e 
guarneceu-o  d'espiguilha  doirada.  Estava  tudo  tão 
bonito ! 

E  a  pobre  Margarida  a  chorar,  ao  pé  do  caixão- 
sinho da  filha,  e  Luiz,  do  outro  lado,  a  limpar  as 
lagrimas  ao  canhão  da  jaqueta  e  a  soluçar  constante- 
mente, faziam  muito  dó. 

Quando  anoiteceu,  vieram  quatro  rapazinhos  d 'al- 
deia buscar  a  pequena. 

A  pobre  mãe,  coberta  de  lagrimas,  rompeu  n'este 
delirio : 


34 


—  Oh !  ide  embora,  ide  embora !  Quem  vos  ensi- 
nou a  serdes  maus  e  a  roubar  uma  filha  a  sua  mãe  ? 
Com  que  direito  m'a  levaes,  meus  meninos  ?  Ide  em 
paz  e  dizei  a  vossas  mães  que  não  sejam  severas 
commigo,  porque  a  mesma  desgraça  lhes  pode  succe- 
der  amanhã.  Eu  nunca  fiz  mal  a  ninguém ;  nem  te- 
nho animo  para  isso.  Deixai-me  com  a  minha  filhinha, 
meus  meninos.  Ella  está  fria,  bem  sei ;  mas  os  meus 
beijos  hão  de  aquecel-a,  vereis. . . 

.E  depois,  como  cahisse  prostrada  nos  braços  de 
Luiz,  roubaram-lhe  a  filhinha  n'um  momento. 


Quinta  de  Villa  Verde,  18  d' outubro  de  1868. 


DOIDA  PELAS  ROSAS 


—  Não  sabe  ?  A  Nini  vai  casar. 

—  Quando  ?  —  respondi  eu. 

—  Casa  para  maio,  que  ó  o  itiez  das  rosas. 

—  E  não  sabe  mais  nada? 

—  Mais  nada. 

—  Até  á  vista. 

—  Adeus. 

—  Olhe  —  tornei  eu,  chamando  o  alviçareiro.  —  Se 
souber  do  dia  marcado  para  o  casamento,  avise-me. 
Queria  mandar  á  Nini  um  ramo  de  flores. 

—  Fique  certo.  Adeus. 


II 


Nini  era  o   diminutivo   com  que  as  pessoas  mais 
intimas  a  costumavam  chamar.  O  nome,  que  lhe  puze- 

* 


36 


ram  na  pia  do  baptismo,  era  Leopoldina.  Tinha  ella 
mais  quatro  annos  do  que  eu.  Quando  comecei  a  af- 
frontar  as  difficuldades  grammaticaes  do  D.  João 
de  Castro,  frequentava  a  Mni  o  collegio  francez.  Yia- 
mo-nos  quasi  todos  os  dias.  Na  primavera  era  quando 
eu  mais  gostava  de  vêl-a.  Entrava  a  Nini  para  o  col- 
legio com  o  seu  grande  chapóo  desabado,  de  pallia  de 
Itália,  e  o  seu  vestido  de  cassa  branca  com  guarnições 
cor  de  rosa.  O  criado  transportava  na  sacca  de  velludo 
carmezim  a  grammatica  franceza  q  o  La  Place,  e  a 
Nini  precedia  o  criado,  quasi  sempre  acompanhada 
d'alguma  menina  do  collegio  que  encontrava  no  ca- 
minho, mas  também  quasi  sempre  afadigada  com  um 
ramo  de  flores  que  distribuía  pelas  condiscípulas  e  pe- 
las mestras. 

Era  que  a  Nini  tinha  uma  predilecção  extrema 
pelas  flores,  especialmente  pelas  rosas. 

Muita  vez  lhe  ouvi  dizer : 

—  A  rosa  é  a  rainha  das  flores. 

A  ideia  não  era  nova,  como  sabem,  porque  já  a 
poetisa  de  Lesbos  tinha  dito  o  mesmo,  seiscentos  an- 
nos antes  de  Christo. 

Nini,  porém,  sabia  dizer  isto  com  uma  tão  ma- 
viosa inflexão  de  voz,  tão  natural  e  tão  ingenuamente, 
que  deliciava  ouvil-a  fallar  da  mais  bolorenta  velha- 
ria. 


37 


III 


Nini  tinha  razHo. 

A  rosa  6  inquestionavelmente  a  primeira  das  flores. 
Não  se  sabe  ainda  bem  a  sua  historia,  mas  cre-se 
que  seria  uma  das  flores  dos  jardins  de  Semiramis ;  e 
está  fora  de  dúvida  que  os  gregos  a  cultivaram,  visto 
dizer  Homero  que  eram  cor  de  rosa  os  dedos  da 
Aurora. 

Os  romanos  coroavam  de  rosas  as  estatuas  de  Yenus 
e  Flora,  e  averiguou-se  que  os  casquilhos  de  Roma 
costumavam  oííerecer  ás  suas  namoradas  as  primeiras 
rosas  que  a  primavera  desabotoava. 

Os  turcos  acreditam  que  o  nascimento  da  rosa  é 
devido  a  uma  baga  de  suor  de  Mahomet,  e  conservara 
a  tradição  de  ser  a  flor  predilecta  do  rouxinol. 

Os  romanos  juncavam  as  ruas  com  rosas  nas  festas 
publicas,  costumavam  tapetar  com  ellas  os  triclinios 
nos  banquetes  faustosos,  e  engrinaldavam  d'estas  flo- 
res os  cyathos  a  trasbordar  de  Phalerno,  porque 
Baccho  amava  as  flores,  como  disse  Ovidio. 

A  rosa  tem  sido  sempre  a  flor  querida  dos  poetas 
e  das  mulheres.  Yirgilio  diz-nos  que  a  boca  de  Vénus 
era  de  rosas  e  que  as  faces  de  Lavinia  tinham  a 
mesma  cor  que  os  lábios  da  deusa  de  Cythera.  Sei 
que  desde  Yirgilio  até  hoje  os  poetas  teem  abusado 
da  rosa  nas  suas  composições.  Todavia  o  que  for  bel- 
lo,  embora  seja  commum,  é  sempre  bello.  O  amor  é 
de  todos  os  dias  e  nem  por  isso  deixa  de  merecer 


38 


menos  apreço.  Se  a  esposa  de  Luiz  xiii,  por  uma  no- 
tável aberração  nervosa,  tinha  pronunciada  antipathia 
por  esta  flor,  regosijerao-nos  de  ver  a  princeza  Clotil- 
de, irmã  da  rainha  de  Portugal,  toda  vestida  de  galas 
e  enfeites  cor  de  rosa,  n'um  dos  bailes  das  Tulherias ; 
postoque  Alphonse  Karr  lamente  o  ver  adornada  de 
rosas  contrafeitas  quem  tão  mimosas  as  tem  nos  ale- 
gretes da  pátria. 

Vivere  in  rosa,  dor  mire  in  rosa.  É  assim  que  se 
deve  viver  e  dormir.  O'  Nini,  quem  sabe  quantas  ve- 
zes adormecerias  tu  confundindo  os  teus  lábios  com  as 
pétalas  de  uma  rosa?. . . 


lY 


Aos  dezoito  annos,  Nini  tornou-se  scismadora. 
Ficava  devaneiando  á  janella,  todas  as  noites,  cora  os 
olhos  cravados  no  eéo,  como  se  estivesse  lendo  poemas 
ethereos  n'aquelle  infinito  azul.  Emquanto  a  noite 
não  chegava,  Leopoldina  passeava  no  jardim,  a  namo- 
rar as  suas  rosas,  se  já  tinham  desabrochado,  a  trocar 
com  as  flores  palavras  mysteriosas  que  ninguém  mais 
entendia,  porque  sabiam  dos  lábios  d'ella  em  suspiros 
maviosos  e  vinham  dos  cálices  das  flores  em  perfumes 
suavíssimos. , . 

Leopoldina  amava. 

O  coração  materno  ó  um  ninho  de  pombas;  6  lá 
que  se  aprende  a  voar.  Ninguém  como  Leopoldina  tão 
estremecida  pelas  caricias  de  sua  mãe,  e  n'essa  escola 
d'amor  aprendeu  ella  a  bater  as  azas  para  onde  quer 


39 


(|uo  íi  (•hamasso  um  sentimento  sem  macula.  Alóm 
d 'isso,  o  coravAo,  aos  dezoito  annos,  6  como  o  rouxi- 
nol (lue  prefere  cantar  nos  valles  onde  lhe  possa  res- 
ponder um  ecco.  O  coração  6  como  o  rouxinol :  quer 
ouvir  e  responder. 

E  Leopoldina  ouvia  também  protestos  calorosos 
que  sabia  pa^ar  com  doces  juramentos. 

CoraçHo,  tu  és  como  o  rouxinol.  Tens  harmonias, 
quando  o  amor  te  dá  inspiração.  És  o  rouxinol  que 
nos  cantas  no  seio  poemas  dulcissimos. 

Absorve-te  nos  teus  poemas,  coração. . . 


Y 


Era  um  bom  coração  e  uma  nobre  intelligencia  o 
Frederico;  eis  aqui  por  que  Leopoldina  o  amava. 

Frederico  era  filho  natural  d'um  velho  capitalista 
d 'America,  que  o  mandara  a  Portugal  doutorar-se  em 
leis. 

Desembarcou  o  moço  brazileiro  em  terras  de  Por- 
tugal, saudoso  das  auroras  esplendidas  dos  trópicos, 
das  sestas  calmosas  que  dormira  na  rede,  da  natureza 
opulenta  do  novo  continente,  que  era  a  sua  pátria, 
o  seu  berço.  Frederico  trazia  o  coração  a  trasbordar 
saudades  da  pátria,  da  terra  onde  ficaram  chorando  por 
elle  os  olhos  de  sua  mãe,  olhos  que  lhe  não  deram 
nunca  um  raio  de  sol  e  d'esperança,  de  felicidade  e 
d'amor,  por  isso  que  profundo  mysterio  envolvia  o 
nome  da  mulher  que  lhe  dera  a  vida. 


40 


Estava  o  moço  em  Portugal  desamparado  de  aífe- 
ctos,  que  nunca  tivera,  longe  das  plagas  da  America 
e  mal  encaminhado  para  o  futuro  esplendido  a  que 
porventura  chegaria,  se  alguém  lhe  desse  esperanças 
e  conforto  e  quizesse  compartilhar  das  suas  aspirações 
de  gloria. 

Foi  então  que  Frederico  viu  e  amou  Leopoldina. 

Como  elle  havia  d'amar ! 

Já  recolhestes  no  vosso  lar  por  noite  velha  e  tem- 
pestuosa o  caminheiro  exhausto  a  quem  permittistes 
enxugar  as  vestes  húmidas  ao  rescaldo  da  fogueira  ? 

Yistes  a  alegria  com  que  elle  se  aproximou  das 
chammas  azuladas  e  cor  de  rosa  que  se  levantavam 
da  pedra  do  lar,  em  formas  irregulares,  crepitando 
suavemente  ?  Ah !  Então  adivinhaes  de  certo  com  que 
Íntimos  júbilos  não  buscaria  Frederico  o  ineffavel 
conchego  do  primeiro  seio  que  se  abria  para  elle,  o 
encanto  irresistivel  do  primeiro  sorriso  que  lhe  davam, 
das  primeiras  palavras  d'alegria  que  entravam  na  sua 
alma...  Então  comprehendeis  de  certo  o  amor  de 
Frederico. 


VI 


Estava  concluído  o  curso  universitário.  Tinham  de- 
corrido cinco  annos  d'estudo  e  de  vigilias,  consumidos 
na  esperança  de  chegar  a  possuir  uma  carta  de  bacha- 
rel. 

Leopoldina  fora  o  anjo  da  guarda  em  tão  longo 
tempo ;    morria  d 'amores  por  ella  o  moço  estudante. 


41 


Km  toda  a  parte  a  via.  Nas  horas  silenciosas  do  estu- 
do, (luando  lhe  entrava  o  reflexo  saudoso  da  lua  pela 
janella  do  quarto,  via  elle  desenharem-se-lhe  diante 
dos  oliios  os  contornos  vaporosos  d'uma  imagem  phan- 
tastica  que  lhe  parecia  a  de  Leopoldina. 

—  Fada  da  noite  —  dizia  elle  de  si  para  comsigo 
—  desceste  do  azul  ethereo  e  vens  suspensa  n'um 
raio  da  lua,  enfeitiçar-me  d 'amores  I  Bem  hajas  tu, 
fada  da  noite ! 

Pelos  sinceiraes  do  Mondego  apparecia-lhe  ella  ás 
vezes  n'uma  nuvem  de  perfumes  e  harmonias,  que 
subia  até  se  perder  nas  alturas  confundi ndo-se,  aos 
olhos  de  Frederico,  com  o  véo  azulado  que  toldava  o 
mundo  inteiro. 

Foi  d'estes  sonhos  d'amor  que  elle  vivera.  Che- 
gara, emíim,  o  momento  de  despertar  de  tão  iuef- 
faveis  sonhos  para  uma  realidade  não  menos  ven- 
turosa. 

A  este  tempo,  porém,  recebe  Frederico  uma  carta 
do  velho  capitalista  d'America  que,  ao  sentir  cerrar- 
se-lhe  a  noite  do  tumulo,  chama  á  beira  do  leito  o 
filho  que  deseja  legitimar  com  a  benção  paterna. 

Era  preciso  partir  sem  demora.  Mas  Leopoldina? 

Não  havia  tempo  para  pensar,  e  o  paquete  estava 
a  levantar  ferro. 

—  Yai  —  disse  Leopoldina  a  Frederico  —  vai  assis- 
tir aos  últimos  momentos  do  velhinho  que  é  teu  pae. 
Pede-lhe  a  sua  benção  para  ti  e . . .  para  mim.  Não 
duvides  de  mim  nem  um  instante,  Frederico.  A  dú- 
vida é  o  gelo  e   o   teu  coração  tem  chammas.  Já  vês 


42 


que  o  não  pode  saltear  a  dúvida.  Ama-me,  Frederico, 
que  eu  fico-te  esperando  para  o  noivado.  Ania-me. 


VII 


Pude  ver,  depois  do  re^-resso  de  Frederico,  o  seu  T 
diário  escripto  desde  o  dia  da  partida   até  ao   dia  da  . 
ciiegada. 

Copio  ao  acaso  uma  das  muitas  paginas  do  diário. 

A  bordo  do  Extremadure,,  ás  9  horas  da  noite. 

«  O  mar  ó  tamanho  como  a  esperança  do  homem, 
Leopoldina.  Nunca  o  mar  descança  nem  o  coração 
deixa  d'esperar.  Quando  uma  esperança  se  apaga, 
vem  outra;  quando  uma  vaga  expira,  outra  rebenta. 
O  homem  lucta  com  a  esperança  como  lucta  com  o 
mar.  As  vezes  uma  onda  absorve  o  batel,  mas  outra 
onda  o  restitue  á  praia.  Ai  do  homem  que  não  tem 
forças  para  luctarl  Tenho  a  esperança  de  que  has  de 
ser  minha,  Leopoldina.  Se  me  não  acalentasse  esta  es- 
perança, entregava  o  meu  corpo  a  uma  vaga  para 
que  outra  vaga  restituísse  o  cadáver,  amanhã. » 

•  A  meia  noite. 

«O  relógio  da  camará  bateu  doze  badaladas.  Toda- 
via parece-me  que  estou  vivendo  uma  vida  eterna. 

«Dizem  que  o  tempo  6  medido  pela  successão  dos 
acontecimentos,  o  tempo   finito,   que  principiou  e  ha 


43 


de  acabar.  No  mar  6  tal  a  uniformidade  dos  aronteci- 
mcntos,  a  regularidade  dos  movimentos,  a  monotonia . 
!  dos  liorisontes,  que  nos  clieg'a  a  parecer  o  tempo  im- 
I  movei  como  a  eternidade. 

«Amanhecemos  hontem  no  mar  largo,  cercados  de 
montanhas  d'espuma,  descobrindo  vastíssimos  horison- 
'  tes.  Hoje,  quando  rompeu  a  aurora,  parecia  estar  o 
paquete  no  mesmo  sitio  e  á  vista  dos  mesmos  horison- 
tes,  apesar  da  chaminé  fumegar  constantemente  e  de 
termos  galgado  uma  boa  porção  de  milhas. 

«O  tempo  aqui  parece-me  sem  fim  e  lá,  ao  p6  de 
ti,  Leopoldina,    como  as  horas  se  escoam  rápidas  em 
sonhos  d'amor  e  em  devaneios  de  felicidade.  .  . 
«Não  te  esqueças  de  mim,  Leopoldina.» 


YIII 


Eegressára  Frederico  depois  d'uma  ausência  d'um 
anno.  Yi-o  chegar. 

Trazia  a  alegria  no  rosto  e  a  felicidade  no  cora- 
ção. Quando  apertava  a  mão  de  Leopoldina,  dir-se-ia 
que  tinha  enlouquecido  de  jubilo.  O  velho  capitalista 
d'America,  ao  despedir-se  do  mundo,  abraçou  Frede- 
rico e  abençoou  de  longe  Leopoldina. 

Foi  no  momento  solemne  do  passamento  que  o 
moço  bacharel  ouviu  pronunciar  pela  primeira  vez  o 
nome  de  sua  mãe.  Estava  ainda  viva.  Era  uma  se- 
nhora brazileira  que  o  velho  capitalista  desposou  á 
hora  da  morte. 


44 


—  Has   de  conhecel-a,  Leopoldina  —  dizia  Fred 
rico  —  e   verás  que  riqueza  de  sentimentos  enthesoi 
rada  n'aquel]e  coração.  Casaremos  em  maio,  que  ó  o\ 
mez   das   rosas,  as  flores   tuas    dilectas.    Partiremos  J 
depois.  Si 

—  Pois  sim,  partiremos  —  respondia  Leopoldina. 
—  Yiverei  feliz  onde  tu  estiveres.  Quero  abraçar  tua 
mãe  e  mostrar-lhe  que  tu,  longe  d'ella,  tiveste  um  seio 
amigo  onde  reclinasses  a  fronte.  Partiremos,  Fre- 
derico. 


IX 


Yai  ha  um  anno.  Na  véspera  da  partida  do  pa- 
quete e  vinte  dias  depois  do  casamento,  entregava  eu 
a  Leopoldina  um  bouqiiet  de  rosas  d'Alexandria. 

—  Ah  !  —  disse  ella,  ao  vêl-as  —  Não  se  esqueceu 
de  mim.  Obrigada,  meu  amigo,  muito  obrigada. 

—  Era  justo,  minha  senhora  —  tornei  eu.  —  Sei 
que  a  mulher  conserva  ainda  as  predilecções  da 
creança. 

—  E  conserval-as-hei  sempre.  Quando  se  é  feliz, 
como  eu  sou,  não  ha  motivo  para  esquecer  as  flores. 
Obrigada,  meu  amigo,  obrigada.  Praza  ao  céo  que 
seja  muito  feliz. 

—  Oiça-a  Deus,  minha  senhora. 

E  depuz  nas  suas  mãos  delicadas  d  hoiiquet  de 
rosas  d 'Alexandria. 

Porto  —  junho  de  1869. 


MORRER  A  VALSAR 


Estamos  no  solar  dos  fidalgos  de  Santo  Adrião, 
em  dia  d'annos  da  morgada,  senhora  quarentona,  que, 
á  similhança  de  seu  marido,  passa  n'este  mundo  sem 
;  deixar  de  si  lembrança  de  meia  dúzia  de  bagatellas 
para  uma  historia  qualquer.  í^ão  e,  pois,  d'estes  fidal- 
gos que  nos  vamos  occupar. 

Esplende  o  solar  de  Santo  Adrião,  todo  por  dentro 
c  fora  illuminado,  sobranceiro  ás  veigas  extensíssi- 
mas, que  se  lhe  deitam  aos  pós  e  que  a  primavera  de 
1867  começa  a  infiorar  alegremente.  Pela  porta  envi- 
draçada, que  abre  sobre  o  terraço,  espreitemos  para  a 
sala  do  baile  e  deliciemos  olhos  e  ouvidos  no  vertigi- 
noso revolutear  das  valsas  e  nas  ondulações  da  har- 
monia, que  se  espraiam  ao  longo  da  casa  e  vão  mur- 
murando festivamente  por  essas  pradarias  além. 

Está  alli,  no  solar  de  Santo  Adrião,  a  flor  da 
fidalguia  beirôa.  São  muito  para  admirar  as  gentis 
valsistas,  que  se  requebram  nos  braços  dos  garbosos 


46 


morgados  e  passam  no  redemoinlio  da  dança,  touca- 
das de  rosas  e  cobertas  de  pérolas,  que  são  as  rosas 
do  mar.  Referve  estrepitosa  a  valsa  e,  n'este  momento, 
sahem  para  o  terraço,  de  braço  dado,  conversando 
affavelmente,  Affonso  Briteiros  e  Jeronymo  Yallada- 
res. 

Escondamo-nos  n'uma  das  sombras  do  terraço  e 
prestemos  ouvidos  ao  dialogo  dos  dois  fidalgos  beirões, 
dialogo  .que  se  me  antolha  interessante  a  julgar  pelo 
espirito  faceto   d'estes   dois  cavalheiros  da  província. 

• —  Queres  um  charuto,  primo  Briteiros  ?  —  disse 
Jeronymo  Yalladares,  puxando  da  charuteira  de  ma- 
drepérola e  abrindo-a  diante  do  outro. 

—  Sabes  que  não  fumo,  primo  Yalladares,  e  que 
sou  persistente  nos  meus  hábitos.  Agradeço  mas  não 
quero. 

—  Anda  lá,  homem,  fuma.  Uma  noite  de  baile  ó 
uma  noite  de  festa  em  que  a  gente  deve  despir  a  sua 
individualidade  rotineira  para  remoçar  por  algumas 
horas  n'este  jardim  de  suavissimas  fragrâncias. 

—  Não  quero,  primo  Yalladares;  positivamente  não 
quero.  Detesto  o  tabaco  como  detesto  a  valsa.  Os  pas- 
tores de  Yirgilio  não  fumavam  e  foi  por  isso  que  ne- 
nhum d'elles  chegou  a  morrer. . .  envenenado.  Já 
houve  um  papa  que  lançou  excommunhão  a  quem 
cheirasse  tabaco  nas  igrejas  e  teve  razão  que  farte. 
O  uso  do  tabaco  ó  um  suicídio  lento  e  seria  crime  im- 
perdoável o  praticar-se  em  logar  sagrado.  Que  de 
consequências  mórbidas  provenientes  do  uso  do  tabaco  I 

—  Do  uso,  não,  primo;  do  abuso.  Eu  fumo  sóbria- 


i 


47 


mente  c  não  me  sinto  prejudicado  com  isso.  Pelo 
contrario.  Acho  que  o  uso  do  talKico  facilita  conside- 
ravelmente o  desenvolvimento  da  faculdade  pensante. 

—  Queres  dizer  com  isso  que  te  sentes  intellectual- 
mente  melhorado...  Admiro  a  modéstia,  primo  Yal- 
ladares ! 

—  Não  farás  espirito.  Tenho  contra  mim  o  fumar 
pouco,  bem  vês.  Senta-te  e  conversemos  placidamente. 
Temos  aqui  á  nossa  disposição  estes  graciosos  cana- 
pés de  cortiça,  que  aformosentam  elegantemente  o 
terraço. 

—  Conversemos.  Estou  aqui  bem  melhor  do  que 
na  sala.  A  valsa  tem  para  mim  o  único  merecimento 
de  me  fazer  dormir.  É  uma  semsaboria  que  detesto. 
Nunca  pude  comprehender  a  delicia  proveniente  da 
valsa,  este  doidejar  pernicioso,  que  se  não  justifica 
de  maneira  alguma  e  que  tem  o  cunho  selvagem  das 
bacchanaes  romanas. 

—  Não  c  tanto  assim.  Eu  gosto  da  valsa,  d'esse 
febricitante  ondular  de  borboletas,  que  se  espanejam 
ao  longo  das  salas  no  turbilhão  veloz.  Gosto  de  valsar, 
primo  Briteiros.  A  nossa  alma  é  como  o  oceano,  que 
nas  marés  gigantes,  se  não  tem  extenssimos  areaes 
por  onde  a  bel-prazer  se  espreguice,  investe  arro- 
gante contra  as  ribas  escarpadas  que  se  levantam  aos 
ares  diante  d'elle.  N'uma  noite  de  festa  parece  que 
nos  não  cabe  a  alma  dentro  de  nós :  é  o  plenilúnio  do 
enthusiasmo,  do  delirio.  Então  é  que  o  mar  dos  nossos 
sentimentos  trasborda  e  precisa  d'espraiar-se.  O  corpo 
cede  á  influencia  da  vertigem  do  espirito.  N*esses  mo- 


48 


mentos  de  suprema  felicidade  é  que  a  valsa  é  um  doi- 
dejar sublime,  um  alar-se  a  gente  para  outros  mundos,  1 
um  borboletear  alegre  nas  ondulações  da  harmonia.  Ha 
naturezas  tão  delicadamente  sensíveis,  que  se  deixam 
arrastar  pela  vertigem  da  valsa  até  ao  supremo  can- 
çaço,  ao  desfallecimento,  á  morte.  Lembra-me  contar-te 
agora  a  historia  lamentosa  d 'uma  valsista  estrangeira. 

—  Conta  lá,  primo  Yalladares.  Quero  ver  até  onde- 
chega  o  excesso  do  romanticismo  lá  por  fora.  N'estes 
abençoados  reinos  de  Portugal  sei  eu  que  ha  muitas 
imaginações  derrancadas  pela  leitura  perniciosa  d'uns 
certos  livros  resaibados  de  sabor  nocivo,  que,  actual- 
mente, se  dizem  —  românticos.  —  Do  estrangeiro  sei 
pouco  a  este  respeito  e  acolho  de  boa  sombra  os  teus 
informes.  Conta  lá .  . . 

— O  que  tu  deves  querer  saber,  primo  Briteiros,  é 
até  onde  nos  pode  levar  um  temperamento  perigoso. 
Deves  saber  isto,  para  que  possas  agradecer  á  Provi- 
dencia uma  fleugma  inalterável  com  que  ella  te  quiz 
obsequiar.  Ora  ouve.  Tu,  primo  Briteiros,  que  detestas 
as  imaginações  românticas  com  uma  pertinácia  igual, 
n'este  caso,  á  de  D.  Francisco  Lobo,  bispo  de  Yizeu, 
poderás  comprehender  o  que  será  uma  festa  esplendo- 
rosa, onde  as  mulheres  teem  uma  formosura  etherea 
como  os  anjos  e  desmaiam  na  valsa  até  á  pallidez 
marmórea  das  estatuas  ? 

—  Comprehenderei. 

—  Muito  bem.  Imagina  agora,  se  podes,  uma 
d'essas  mulheres  formosíssimas,  que  nós  prescntimos 
aproximar-se  pelo  frémito  das  saias  o  por  uns  olhares 


49 


curiosos  que  de  todos  os  lados  a  esperam,  como  as 
andorinhas  e  os  rouxinoes  esperam  a  clie^ada  festiva 
da  piimavera.  Ima^ina-a  ainda  vestida  de  côr  de  rosa, 
para  que  mais  possa  enganar  os  rouxinoes  e  as  ando- 
rinhas da  sala :  —  os  namorados  e  as  coqnettes, 

«Arredonda-llie  o  seio  e  vela-lh'o  com  rendas  finís- 
simas de  Bruxellas  ate  onde  não  permitte  o  pudor 
que  os  olhos  alcancem.  Sobre  o  relevo  das  rendas,  que 
estremecem  com  o  arquejar  do  seio,  engasta  delicada- 
mente uma  camélia  de  Constantino,  tão  perfeita  e 
rescendente,  que  pudera  enganar  as  borboletas. . .  Do 
relevo  para  cima,  deixa  o  collo  a  descoberto  para  que 
os  olhos,  namorados  de  tamanha  alvura,  possam  adivi- 
nhar o  que  anda  recatado  na  espuma  das  rendas,  o 
qnod  intrinsecus  latet,  dos  Cânticos  de  Salomão. 

«Polvilha  finalmente  as  tranças  doiradas  com  uma 
chuva  de  pérolas,  á  similhança  das  nereidas,  essas 
creações  esplendidas  da  poesia  pagã.  Agora  envolve 
esta  imagem  etherea  n'uma  nuvem  de  sons  e  perfu- 
mes e  fal-a  apparecer  no  salão,  recamado  de  flores  e 
coberto  d'espelhos,  como  o  sol  do  estio  que  entra  por 
uma  floresta  dentro,  inundaudo-a  de  luz,  d'alegria,  de 
vida. . . 

—  Bellissimo  !  primo  Yalladares.  Estou  a  pique  de 
me  enthusiasmar  pelos  românticos  e  pelo  romanticis- 
mo. . . 

—  Ouve,  primo  AfFonso.  A  nossa  concepção  é 
verdadeiramente  um  mytho  e  reúne  á  formosura  etherea 
um  temperamento  delicadíssimo.  Dil-a-ias  a  sensitiva, 
que   precisa  de  sol  para  viver.  Abre,  porém,  o  salão 

4 


50 


de  baile,  u^uma  noite  de  festa,  desencadeia  o  vendaval 
da  harmonia,  descerra  as  urnas  dos  mil  perfumes  ori- 
entaes,  enche  a  casa  de  lumes  e  flores,  e  deixa-a  de-  J 
pois  espanejar-se,  a  ella,  á  nossa  visão,  como  borbo- 
leta que  brinca,  doidejando,  entre  os  alecrins  do 
canteiro.  à 

«A  valsa  para  ella  é  a  felicidade  suprema,  o  ante- 
gosto  d'outra  vida.  Se  tivesse  duas  azas  brancas  cora 
que  pudesse  subir  a  conversar  com  as  estrellas,  não 
voaria  mais,  de  certo,  nem  mais  ligeira,  nem  mais 
tentadora.  É  uma  valsista  infatigável  como  poucas  e 
formosa  como  nenhuma. 

«Aqui  tens,  primo  Affonso  Briteiros,  a  nossa  ima- 
gem, como  eu  a  sonhei  e  tal  qual  devia  de  ser.  Nota 
que  estamos  na  Áustria. . . 

—  Na  Áustria,  primo  Yalladares !  Não  estava  pre- 
venido para  a  viagem  e  confesso  que  me  sobresaltou 
a  surpreza !  Todavia,  se  as  mulheres  austríacas  corres- 
pondem a  esse  ideal  de  belleza  que  tu  sonhaste,  vamo- 
nos  lá  nas  muito  boas  horas,  primo  Jeronymo. . . 

—  É  pois  certo  que  estamos  na  Áustria  e  n'um 
dos  mais  esplendidos  bailes  do  mundo.  Tem-se  valsado 
perdidamente  e  interrompe-se  agora  a  vertigem  da 
dança,  porque  vai  abrir-se  a  sala  da  ceia,  uma  sala 
deslumbrante  onde  parece  dever  servir-se  o  néctar  dos 
banquetes  olympicos.  Keferve  nas  taças  doiradas  o 
vinho  generoso  de  Tokai.  Reflecte-se  nos  mil  crystaes 
da  sala  o  brilho  esplendoroso  dos  candelabros,  que 
pendem  dos  florões  do  tecto  em  numero  infinito. 

«As  mulheres  chilreara  alegreraente  uraas  cora  as 


51 


outras  e  os  moços  namorados  segredam  mysteriosa- 
mento  ao  ouvido  da  sua  dama  palavras  amorosas. 

«Começam  a  levantar-se  da  mesa  os  primeiros  con- 
vidados e  ou  voltam  á  sala  do  baile,  ou  descem  pela 
escada  tapetada  ató  ao  átrio  onde  os  está  esperando  a 
carruagem. 

«A  nossa  fada  ia  a  retirar-se  depois  da  ceia,  pelo 
braço  do  esposo,  quando  eccoou  de  repente  por  toda 
a  casa  a  musica  voluptuosa  d'uma  valsa. 

—  Por  que  me  não  tinhas  dito  que  era  casada  a 
heroina  do  teu  conto,  primo  Yalladares  ? 

—  Para  quê  V  Dar-se-ia  o  caso  de  te  haveres  na- 
morado d'esta  visão  seductora  ?  Eis-te  romântico,  primo 
Briteiros,  e  o  romanticismo  aos  trinta  annos  6  uma 
moléstia  sem  cura ! 

—  Dize  lá  o  resto. 

—  Continuarei.  A  nossa  gentil  valsista  não  pôde 
resistir  á  tentação  da  musica  e,  soltando-se  da  capa 
d'arminhos  em  que  se  envolvia,  deixou-se  cahir  nos 
braços  do  cavalheiro,  que  a  tinha  convidado. 

«Reaccendeu-se  o  enthusiasmo,  o  delirio,  a  loucura ! 

As  formosas  austríacas,  poisando  os  seus  bouquets  no 

mármore  das  mesas,  atiravam-se,  ébrias  d'alegria,  ao 

r  marulhar  da  valsa,   como  a  um  oceano  revolto.  No 

I  momento  porém  em  que  a  musica  attingia  a  máxima 

i  celeridade,  sentira  o  cavalheiro  pender-lhe  mais  lan- 

;  guidaraente  nos  braços  a  gentil  valsista  e,  quando  quiz 

continuar  a  acompanhar  a  vertigem  da  orchestra,  tinha 

um   cadáver   abraçado.   Vibrou  em   toda  a  sala  um 

.  grito  doloroso,  que  soltara  o  cavalheiro  austriaco. 


52 


«Emraudeceu  instantaneamente  a  tempestade  so- 
nora e  affluiu  á  volta  d'elle  a  gente  que  enchia  o  sa- 
lão. Resta-me  dizer-te  agora  qae  o  esposo  d'esta  des- 
venturosa  dama,  Teschenberg,  director  da  Gazeta  de 
Vienna,  enlouquecera  n'esse  momento. 

—  Desçamos  aos  jardins,  primo  Yalladares.  A  tua 
historia  entristeceu-me  e  não  me  sinto  com  grande 
disposição  de  entrar  na  sala. 

—  Desçamos  pois  e  fica  de  sobre-aviso  para  não 
zombares  do  romanticismo,  quando  te  contarem  histo- 
rias como  a  da  des venturosa  esposa  do  director  da 
Gazeta  de  Vienna. 

—  Pobre  anjo,  que  morreu  a  valsar  !  —  concluiu 
Aífonso  Briteiros. 


Porto  — julho  de  1869. 


í 


NA  VÉSPERA  UE  «.  JOÃO 


Ha  uma  noite  no  anno  em  que  o  relento  põe  vir- 
tude ao  corpo :  c  na  véspera  de  S.  João.  Ninguém, 
n'esta  noite,  se  teme  da  viração,  ninguém  se  arreceia 
do  orvalho.  Os  velhos  e  as  creanças  não  teem  somno 
e  dão-se  as  mãos  amigavelmente.  As  raparigas  sahem 
para  a  rua,  porque  as  está  namorando  de  fora  o  cla- 
rão das  fogueiras  e  porque  é  de  tradição  apanhar  as 
orvalhadas  da  meia  noite.  Ninguém  deixa  de  ser  des- 
envolto, para  que  não  pareça  triste.  É  preciso  ir 
saltar  as  fogueiras  e  colher  as  alcachofras.  E  depois 
ó  indispensável  que,  ao  bater  da  meia  noite,  vão  as 
raparigas  beber  um  gole  d'agua  á  fonte  encantada 
onde  as  está  esperando  o  Santo ;  —  fonte  cujas  aguas 
teem  o  brilho  esplendoroso  da  prata  como  diz  a  tra- 
dição : 

S.  João  por  ver  as  moças 
Fez  uma  fonte  de  prata. 


54 


Estremece  o  coração  de  jubilo  e  de  incerteza, 
n'esta  noite.  Qual  será  o  namorado  preferido  pela 
sorte  ?  Lá  ficou,  no  peitoril  da  janella,  o  copo  d'agua 
coalhado  de  bilhetinhos  mysteriosos.  Cada  bilhetinho 
tem  uma  palavra;  cada  palavra  é...  um  nome.  Ao  i- 
nascer  do  sol,  ha  de  estar  aberto  um  dos  bilheti- 
nhos :  o  nome  que  elle  contiver,  será  o  nome  do  es-  | 
poso.  M 

Ninguém  se  deita  n'esta  noite  para  que  o  sorano    ^ 
o  não  prostre  antes  de  repontar  a  aurora.  Quem  tem 
cuidados  não  dorme,  e  é  preciso  ir  á  janella  recolher 
o  copo  d'agua,  mal  que  o  sol  ande  fora. . . 

Era  também   n'esta    mesma   noite.   Para  além  da    ■ 
igreja  d'aldeia,  ha  uma  alameda  copada.  ^! 

A  lua  doirava  as  cimas  do  arvoredo  e  illuminava 
poeticamente  o  quadro.  Os  rapazes  da  aldeia  tinham-se  | 
deitado  na  relva  a  tanger  as  suas  violas  e  a  cantar 
as  trovas  da  noite.  As  raparigas,  despeitadas  talvez 
da  indolência  dos  namorados,  bailavam  de  mãos  da- 
das, cantando,  á  volta  da  laranjeira  secular  que  deter- 
mina o  centro  d'alameda. 

—  Yêde  que  vos  cançaes  —  disse  um  camponez, 
dirigindo-se  ás  raparigas  e  fazendo  parar  a  roda.  — 
Tendes  bailado  toda  a  noite ;  d'aqui  a  pouco  c  sol 
nado. 

—  Bem  hajamos  —  tornou-lhe  uma.  —  Os  rapazes 
da  freguezia  teem  quebranto  nos  joelhos.  Deu-lhes 
mofina  damninha  e  não  se  levantam  do  chão.  E'  bai- 
lar, raparigas,  é  bailar. 

E    recomeçaram   a  dança  interrompida   por   este 


55 


incidente,  f^^inindo  voltas  vertio^inosas  cm  redor  da  la- 
ranjeira. 

Kram  dezoito  as  raparigas  o  todavia  faltava  no 
rancho  Rosália,  a  ramilheteira  do  sitio.  Kosalia  era 
uma  creatura  angélica.  Tinha  uns  bonitos  olhos  cas- 
tanhos e  uns  fartos  cabellos  negros.  E  depois  sempre 
tão  aceiadinha,  sempre  um  lenço  de  cassa  tão  bem 
posto  a  recatar  o  seio  túrgido  e  virginal !  Dava  gosto 
vêl-a  d'açafatinho  no  braço  a  vender  flores  nos  dias 
de  festa,  á  porta  da  igreja,  quando  os  rapazes  do  sitio 
queriam  offerecer  ramilhetes  ás  moças  namoradas. 

O  pae  de  Rosália  tinha  sido  um  trabalhador  hu- 
milde, que  vivera  e  morrera  pobre,  legando  á  filha 
um  casebre  ensombrado  pelas  trepadeiras  e  alguns 
palmos  de  terra,  poucos  eram,  em  redor  do  casebre. 
Fora  uma  doença  prolongada  a  do  pobre  trabalhador, 
<e  succedeu  não  haver  um  vintém  em  casa  no  dia  em 
que  rendeu  a  alma  a  Deus. 

Rosaiia  enxugou  as  lagrimas  que  lhe  cahiam  a 
rodos,  cobriu  a  cabeça  com  o  seu  lencinho  preto  e 
foi  contrahir  uma  divida  a  fim  de  comprar  a  morta- 
lha e  o  caixão  para  o  enterro  do  pae. 

No  dia  seguinte  ao  dos  funeraes,  Rosália  ficou  a 
scismar  no  futuro  e  lembrou-se  de  que  tinha  uma  di- 
vida sagrada.  Em  ultimo  caso^  poderia  vender  o  ca- 
sebre e  pagal-a.  Mas  o  casebre  tinha-lhe  sido  berço 
e  queria-lhe  ella  tanto  que  morreria  na  hora  em  que 
tivesse  de  vendel-o. 

N'este  momento  entrara  um  raio  de  sol  pela  ja- 
nella  dentro ;   parecia   uma  inspiração !  Yira  Rosália 


56 


espanejarera-se   fora,   á   laz  do   dia,   algumas  pobres 
flores  que  tinha  cultivado  em  derredor  da  choupana. 

Yiu-as  e  lembrou-se  de  que  uma  occasião  a  se- 
nhora morgada  de  Pedrouços  lhe  dera  algumas  prati- 
nhas  por  um  ramo  de  violetas.  Fez-se  luz  na  alma 
de  Rosália.  Apegou-se  com  as  flores  para  que  lhe 
protegessem  a  sua  innocencia.  m 

Ha  mulheres  que  por  ambiciosas  precisam  de  ■ 
muito  ouro  para  ser  felizes.  Rosália  tinha  sido  edu- 
cada na  pobreza  e  não  acalentava  ambições.  Emquanto 
outras  desejavam  sedas,  Rosália  aspirava  a  pagar  a 
sua  divida  e  a  ganhar  o  sufficiente  para  a  alimentação 
quotidiana.  Desde  esse  dia  a  pobre  rapariga  tornou-se 
ramilheteira.  % 

Yendia  flores  pelas  casas  nobres  das  freguezias 
mais  próximas.  As  senhoras  morgadas,  quando  viam 
assomar  á  porta  a  innocencia  coberta  de  flores,  rece- 
biam-n'a  alegremente. 

Parece-me  que  seriam  felizes  as  raparigas  des- 
protegidas que  pudessem  seguir  o  exemplo  de  Rosá- 
lia. Em  Portugal  não  se  estimam  as  flores  e  não 
ha  ramilheteiras.  No  estrangeiro  —  e  já  não  quero 
fallar  na  Hollanda  —  criam-se  sociedades  tendentes  a 
proteger  a  floricultura  e  ha  mercados  especiaes  para 
flores. 

Em  Londres  enxameiam  por  toda  a  parte  as  floiver- 
girls^  mulheres  que  vendem  ramilhetes,  e  6  fácil  en- 
contrar pelas  ruas  um  carro  de  pau,  cheio  de  vasos 
com  plantas  e  puxado  por  um  jumentinho.  Além  d'isto 
o  Palácio  de  crystal,  a  Royal  society  of  horticidture 


Õ7 


e  a  Hot/al  Uotnnical  societij  ostcndem  a  sua  protecçlío, 
a  todos  os  floricultores. 

Em  Pariz,  uo  tempo  em  que  Paulo  de  Kock  escre- 
via aquelle  bonito  romance  da  Jenny^  havia  nada 
menos  de  trez  mercados  de  flores.  Estava  um  perto 
do  Palais  de  Justice,  que  se  abria  ás  quartas  feiras 
e  aos  sabbados  e  era  frequentado  pelas  costureiritas 
pobres,  pelos  operários  e  ainda  pelos  estudantes  do 
bairro  Latino.  Havia  outro  ás  segundas  e  quintas,  no 
Boulevard  Saint-Martin,  defronte  do  Chatean  d^Eaii  ; 
e  finalmente  outro,  ás  terças  feiras  e  aos  sabbados,  ao 
pó  da  igreja  da  Magdalena,  que  era  o  mercado  da 
gente  fashionahle. 

p]is  aqui  as  flores  ao  alcance  d'uma  algibeira  bur- 
gueza,  visto  que  «ellas,  como  diz  Paulo  de  Kock, 
são  o  único  supérfluo  que  os  pobres  se  permittera 
comprar.  Um  supérfluo  que  dá  um  momento  de  feli- 
cidade, poderia  ter  quasi  o  direito  de  passar  por  um 
necessário. » 

Izabel,  a  ramilheteira  do  Jockey-Chih^  essa  provê 
de  flores  a  aristocracia,  apesar  de  não  faltarem  ellas 
por  lá  em  qualquer  parte  que  seja.  Em  Itália,  sobre- 
tudo em  Milão,  o  difficil  que  um  viajante  atravesse 
uma  praça  ou  entre  n'um  café,  sem  que  se  veja  cer- 
cado d'um  enxame  de  raparigas  que  lhe  offerecem 
ramilhetes.  «  Os  ramos,  escreve  Júlio  C.  Machado,  não 
são  notáveis  nem  pela  abundância  nem  pela  varieda- 
!de,  mas  são  leves  e  bonitinhos.»  É  justamente  como 
os  eu  quero. 

Deixemos  que  os  reis  se  troquem  houqitets  valio- 


58 


sissimos,  como  o  que,  ha  pouco  tempo  ainda,  oífere- 
ceu  o  imperador  da  Rússia  á  imperatriz  Eugenia. 

A  ostentação  é  própria  dos  reis ;  deixemos  a  elles  : 
o  avaliarem  tudo  pelo  seu  valor..  .  real.  ( 

Aqui  no  Porto,  onde  tanto  abundam  as  flores,  não 
ha  ramilheteiras  como  eu  disse  e  como  todos  sabem,  ^ 
a  não  ser  pelo  carnaval  á  porta  do  Palácio  de  crystal,  \ 
que  ó  só  então  que  nos  apparecem  algumas  rapari- 
guitas  a  vender  violetas  n'uns  açafatinhos  de  verga. 
Faz  pena  ver  engeitar  com  tanto  desamor  o  que  a 
natureza  nos  dá  com  tamanha  abundância,  que  chega 
a  parecer  prodigalidade! 

Yoltemo-nos,   porém,  á  nossa  pobre  Rosália,   que 
já  tem  pago  a  sua  divida  e  continua  a  vender  rami- : 
Ihetinhos.  f 

Adoram-n'a  os  pintalegretes  da  aldeia;  Rosália  nem 
dá  por  isso.  O  Joaquim  da  Portella  foi  um  rapazito  da 
sua  educação,  que  embarcou  para  o  Brazil  aos  quinze 
annos.  Rosália  acostumou-se  a  vêl-o,  e  chorou  muito 
quando  o  pobre  rapaz  sahiu  d'aldeia  com  a  sua  troi- 
xinha  á  cabeça.  Tinham  passado  oito  annos  depois  da 
partida  de  Joaquim  e  o  certo  e  que  elle  nunca  se  es- 
quecera de  escrever  ao  pae  de  Rosália. 

Depois  que  a  rapariga  ficou  orphã,  Joaquim  es- 
creveu apenas  uma  vez.  Rosália  entrisieceu-se  com 
isto.  Pensou  porém  maduramente  sobre  o  caso  e  disse 
de  si  para  comsigo : 

— Ainda  me  estima.  Mas  como  eu  fiquei  sósinha 
no  mundo,  não  quer  dar  rebate  á  freguezia  com  a  sua 
correspondência.  Não  tem  dúvida. 


59 


E    entretanto   a   pobre   raparÍG:a  lá  ia  moirejaiido 

'na  sua  vida  sempre  a  cuidar  das  flores,  sempre  bonita 

e  alei]:re.  Ultimamente,  pelo  S.  João  do  anno  passado, 

dizia-se  na  aldeia  que  Joaquim  voltava,  mas  ninguém 

sabia  ao  certo  quando  chegaria. 

Eis-nos  outra  vez  na  alameda.  A^em  rompendo  o 
dia  e  Rosália  ainda  não  appareceu. 

Anda  colhendo  flores,  porque  o  dia  de  S.  João  ó 
um  dia  de  festa  e  ella  terá  de  vender  innumeros  rami- 
Ihetes.  Levantou-se  ainda  de  noite  para  trabalhar.  As 
outras  raparigas,  que  tinham  posto  os  copos  cora  os  bi- 
lhetinhos no  parapeito  da  fonte,  ao  fundo  d^alameda, 
correm  a  abril-os  e  vêem  saltando  e  dizendo  : 

—  Manoel,  és  o  meu  noivo! 

—  António,  venceste ! 

—  Luiz,  ganhaste  tu  ! 

E  n'este  comenos  aproximava-se  Rosália  cora  o 
seu  açafatinho  de  flores. 

—  Eu  esqueci-me  !  —  apostrophou  ella. 

—  Mas  não  me  esqueci  eu  —  tornou-lhe  uma  rapa- 
riga. —  Deitei  bilhetes  por  ti  e  esperava  que  chegasses 
para  os  ires  tirar  do  copo  por  tua  própria  mão. 

—  Obrigada  —  respondeu  Rosália. 

—  Yaraos  vêr  —  accrescentaram  as  outras  rapari- 
gas. E  foram. 

—  Joaquim  !  —  gritaram  vozes  era  coro  —  O  bi- 
llhete  diz  Joaquira ! 

As  raparigas  derara-se  as  raãos  e  começaram  a  bai- 
lar á  volta  de  Rosália,  pronunciando  tumultuosaraente: 

—  Joaquim! 


60 


—  Joaquim ! 

Kosalici  não  pôde  dominar  a  alegria  qne  sentia  e 
sorria-se  para  as  outras  com  ineífavel  doçura. 

—  Eosalia !  —  disse  alguém  de  súbito  —  Kosaliu  ! 
Era  uma  pequenita  que  a  chamava. 

—  Que  me  queres  ? 

—  Está  alli,  á  beira  do  caminho,  um  homem  que 
vem  de  mando  da  senhora  morgada  não  sei  d'onde  e 
qne  te  quer  comprar  flores. 

—  Esperai  —  disse  Rosália  ás  raparigas  —  esperai, 
que  eu  venho  já. 

D'ahi  a  nada  ouviu-se  um  grito.  A  raparigada 
aííluiu  ao  fundo  d'alameda  precipitadamente  e,  como 
se  todas  as  vozes  se  conglobassem  n'uma  só,  ouviu-se 
exclamar  : 

—  Joaquim  !  E  o  Joaquim  ! 

Era  elle.  Mal  desembarcara,  pôz-se  a  caminho 
para  chegar  á  aldeia. 

—  Inda  6s  o  mesmo  !  —  diz  Rosália. 

—  Mas  parece   um   fidalgo  1 — accrescenta  outra.. 

—  O  que  tu  não  terás  soffrido  !  —  profere  de  novo 
Rosália. 

—  Muito  I  —  responde  Joaquim  —  Muito  !  Esteve 
o  navio  quasi  perdido.  O  vento  era  desabrido  e  o 
mar  levantava-se  em  montanhas.  Era  ao  fim  da  tarde. 
Apesar  de  ser  tão  bonito  ver  pôr  o  sol,  no  mar,  d'aquella 
vez  não  se  lobrigava  pedaço  de  cóo.  Uma  rajada  mais 
forte  soou.  O  navio  rangeu,  nós  estremecemos  todos  e 
o  capitão,  que  era  um  homem  animoso,  descorou.  Ti- 
uha-se  quebrado  um  dos  mastros. . ,  A  tempestade  cou- 


Gl 


tiiiuava  o  nós  contavíimos  morrer  uíi:ari\ados  ás  taboas 
do  navio.  Chamaram  todos  por  Nossa  Senhora  e  eu  — 
que  nossa  Senliora  me  perdoe  —  cliamei  por  ti,  Rosá- 
lia! O  certo  ó  que  pouco  depois  o  mar  foi  serenando 
e  as  sombras  fugindo.  D'ahi  a  uma  hora  via-se  a  lua 
no  céo  e  batia  o  reflexo  nas  aguas.  Depois  continua- 
mos a  viagem  com  felicidade  e  agora  aqui  estou,  ao 
p6  de  ti,  minha  Rosália. . . 

—  Para  seres  muito  feliz,  não  ó  verdade  ?  —  inter- 
rogou ella — E  já  me  ia  esquecendo  que  me  tinhas 
encommendado  flores !  Olha  Joaquim,  como  soubeste 
tu  que  a  tua  Rosália  era  ramilheteira,  se  apenas  me 
escreveste  uma  vez,  depois  da  morte  de  meu  pae  e 
me  não  perguntavas  nada? "Porque  me  uão  escrevias? 

—  Não  queria  —  respondeu  elle,  que  a  gente  da 
freguezia  te  accusasse  de  receberes  cartas  amorosas.  — 
Escrevi  ao  Luiz  Rego  a  perguntar  por  ti  e  soube  que 
vendias  flores.  Respondi-lhe  logo  e  disse-lhe  que  com- 
prasse todas  as  semanas,  em  seu  nome  e  por  minha 
conta,  uma  boa  porção  de  ramos.  .  . 

—  Ah!  Eras  tu  que  mandavas!...  Eu  scismava 
com  a  devoção  do  Luiz  Rego,  que  enchia  de  ramos  a 
igreja,  todos  os  sabbados !  Abençoado  dinheiro !  foi 
com  elle  que  paguei  a  mortalha  de  meu  pae.  Agora  é 
justo  que  não  compres  mais  flores ;  aqui  tens  este 
ramo. 

—  Quero-o  com  a  tua  mão  —  respondeu  elle. 

Porto  — junho  de  1869. 


I 


A  FOLHA  VERDE 


Havia  no  pequeno  quintal  uma  laranjeira  copada 
por  onde  ia  trepando  a  hera  sempre  verde. 

Ao  pé  do  tronco  estava  o  banquinho  de  pedra  em 
que  se  recostava  ao  fim  da  tarde  aquella  gentil  mulher 
de  cabellos  negros.  Quando  o  sol  começava  a  incli- 
nar-se  para  o  mar  e  os  barcos  de  pesca  desciam  placi- 
damente  a  corrente  do  rio,  quando  os  pescadores 
velhos,  impossibilitados  do  trabalho,  fumavam  pensa- 
tivos no  seu  cachimbo  denegrido,  alguém  atravessava 
o  areial,  a  passos  largos,  em  direcção  á  porta  verde 
que  vedava  a  olhos  profanos  aquelle  jardimsinho  en- 
cantado. 

A  porta  estremecia  levemente  ao  entrar  um  vulto 
escondido  pelo  veo  mysterioso  da  noite. 

D'ahi  a  instantes  chilreavam  de  manso  os  dois 
inamorados  ao  pé  da  laranjeira. , . 

Calava-se  então  o  mar  como  para  lhes  não  inter- 
romper o  dialogo  mavioso.  Da  pai*te  do  levante  subia 


64 


a  lua  raeio-velada  por  uma  faclia  de  pinheiros  irregu- 
lares. Descahia  a  natureza  inteira  na  suavissima  mor- 
bidez d'uma  noite  estiva. 

Era  então  que  se  trocavam  protestos,  que  se  reno- 
vavam sonhos  de  felicidade.  Nada  ha,  ii'este  mundo 
d'invejas  e  ambições  mesquinhas,  que  chegue  a  fazer- 
nos  esquecer,  no  decurso  da  vida,  esses  dulcissimos 
devaneios  d'um  coração  em  flor. 

Permitta-se-me  o  recatar  mysteriosamente  os  ver- 
dadeiros nomes  dos  dois  personagens  d'este  drama  dos 
vinte  annos. 

O  nome  é  uma  palavra  e  as  palavras  fogem  na 
aza  do  vento ... 

Fallemos  pois  d'essas  duas  almas  embriagadas  na 
vertigem  sublime  do  amor  e  vejamol-as  a  bater  des- 
cuidosas  as  azas  brancas  pelo  céo  da  felicidade,  para 
as  contemplarmos  depois  n'aquella  separação  a  que 
obrigam  as  convenções  da  sociedade  e  que  me  quer 
parecer  a  suprema  desventura  d'este  mundo. 

Ha  uma  coisa  peor  que  a  indifferença  :  6  a  ne- 
cessidade de  se  mostrar  a  gente  indifferente. 

Quer  a  sociedade  levantar  uma  barreira  de  gelo 
entre  duas  almas  que  nasceram  uma  para  a  outra.  E 
levanta-se  a  barreira. . .  Ai !  mas  debaixo  d'essa  neve 
immensa  referve  suffocado  o  vulcão  escandecente. 

E  se  um  dia  se  despega  a  massa  enormissima  do 
gelo,  ai  d'aquelle  que  tentar  apagar  as  lavas  que  se 
arrojam  para  cima  como  em  diluvio  de  fogo ! 

Não  me  digam  que  se  deixa  morrer  assim  o  amor 
que  nasceu  hontem. 


I 


65 


Não  dipim.  Ativela-se  a  mascara  da  indiíferença 
sobro  o  rosto,  mas  se  a  mascara  nos  calio  uma  vez 
no  tripudiar  vertiginoso  do  carnaval  perpetuo  —  a  que 
se  chama  vida  —  vcem-se  ainda  nas  faces  os  signaes 
das  lagrimas  que  se  choraram  lia  pouco.  . , 

.    K   os  dois  namorados  segredando  amores  debaixo 
da  laranjeira.  . . 

Algumas  vezes,  porem,  interrompia-se  o  myste- 
rioso  dialogo.  N'essa  occasião  uma  nuvem  sombria 
velava  a  face  da  lua,  e  um  presenti mento  de  desgraça 
escurecia  por  momentos  a  melancólica  alma  do  moço 
scismador. 

—  Que  tens  ?  —  perguntava  a  carinhosa  amante. 

—  Nada.  Passou . . .  Era  uma  nuvem  negra  que 
toldava  o  disco  da  lua.  . . 

Depois  recomeçava  o  dialogo  apaixonado  como 
d'antes.  Aquelle  segredar  dos  dois  era  como  que  uma 
tempestade  d'ideias  a  referver  n'um  mar  de  palavras. 

—  Se  te  amo  !  —  dizia  elle.  Amo-te,  sim.  É  por  ti 
que  eu  desejo  ser  grande,  é  para  ti  que  eu  vivo,  que 
eu  trabalho,  que  eu  estudo.  Quizera  ter  os  loiros  da 
gloria  para  tapetar  com  elles  o  caminho  que  tu  pizas. 
Oh  !  se  te  amo,  luz  eterna  dos  meus  olhos,  flor  per- 
petua da  minha  alma.  . . 

—  Que  Deus  nos  abençoe  —  murmurava  ella.  — 
Sim.  Seremos  felizes  com  as  graças  do  céo.  —  E  de- 
pois arrancando  uma  folha  de  hera,  tornou  vehemente: 
—  Aqui  tens  esta  folhík  Quando  ella  seccar  algum 
dia,  o  teu  amor  lhe  dará  nova  seiva  para  que  rever- 
deça   logo.  D'este    modo    será   eternamente  verde  e 

5 


66 


conservar-se-ha  para  sempre  como  o  symbolo  eterno 
do  nosso  tão  puro  amor. 

—  Ah!  sim,  dizia  elle — recebendo  a  folha. — 
Deixa-me  beijal-a,  ó  anjo,  porque  já  teve  a  suprema 
felicidade  de  receber  o  calor  dos  teus  dedos  de  fada. 
Deixa-me  beijal-a,  porque  ha  de  ser  para  mim  uma 
recordação  preciosa,  e  Deus  sabe  se  uma  saudade. . . 
talvez. 

E  ao  pronunciar  a  palavra  s— saudade  —  descahia- 
Ihe  a  cabeça  e  cerrava  os  olhos  como  para  não  ler  o 
futuro  no  livro  negro  do  Destino. 

Depois . . .  quando  as  estrellas  desmaiavam  no  céo, 
fechava-se   cautelosamente   a   porta  verde  do  jardim. 

Decorreram  os  dias  uns  após  outros  em  sonhos 
de  felicidade;  era  um  viver  de  rosas  que  não  podia 
durar  muito. 

Uma  noite,  ao  fechar-se  a  porta  do  jardim,  sonha- 
ra o  moço  namorado  que  se  fechava  atraz  d'elle  a 
porta  do  paraizo. 

E  realisou-se. . .  o  sonho. 

Quando  ia  atravessando  a  praia,  rompia  a  manhã 
e  voltavam  do  mar  algumas  lanchas.  Em  uma  d'ellas 
vinham  os  pescadores  cantando. 

De  repente  interrompeu-se  o  coro  saudoso  dos  ho- 
mens do  mar,  mas  fora  breve  a  interrupção,  porque 
romperam  as- vozes  pouco  depois  n'esta  lenda  tristís- 
sima da  praia; 


I 


I 


67 


Era  uma  noito  de  lua, 
Das  noites  d;i  beira  mar. 
Nâo  ha  noites  mais  saudosas, 
Nem  mais  saudoso  luar. 

Diziam  amor  os  astros 
Doirando  as  ondas  do  niar. 
—  Amor  —  diziam  as  ondas. 
Namoradas  do  luar. 

Descobria-se  na  praia, 
Como  estatua  erguida  ao  ar, 
Um  vulto  em  pé  sobre  as  fragas 
Embebecido  a  scismar. .  . 

Ciiamou  a  terra  uma  lancha, 
Que  do  noite  ia  a  pescar, 
«  Levai-me  também,  que  eu  pago, 
Mas  quero  hoje  ir  ao  mar.  » 

Decorreram-se  momentos, 
Fizera-sc  a  lancha  ao  mar. 
Os  remos  cortando  a  agua 
E  o  vulto  sempre  a  cantar. 

Foi  cantando  toda  a  noite 
A.té  morrer  o  luar. 
Depois  ergueu-se  na  proa, 
Deixou-se  cahir  ao  mar. . . 

Quedara  o  moço  a  escutar  o  canto  dos  pescado- 
res e  sentiu,  n'esse  momento,  um  braço  de  ferro  a  di- 
lacerar-lhe  o  coração  fibra  a  fibra. 

E  as  lanchas   vinham  aproximando-se,  e  as  vozes 


68 


accordes  dos  pescadores  repetiam  já  perto  de  terra  os 
dois  últimos  versos  da  lenda : 


Depois  ergueu-se  na  proa, 
Deixou-SG  cahir  ao  .mar. 


Ao  entardecer  d'esse  dia  o  mesmo  vulto  atraves- 
sava a  praia.  As  filhas  dos  pescadores  conheciam  aquelle 
homem  de  passar  por  alli  todas  as  tardes  e,  quando 
elle  se  aproximava,  diziam  baixinho  umas  ás  outras: 
—  Olha!  ahi  vem  o  namorado... 

A  porta  do  jardim,  porem,  não  se  abriu  n'essa 
noite...  Era  profundo  o  mysterio !  Decorreram  as 
horas,  e  o  vulto  permaneceu  encostado  á  ombreira  da 
porta^,  como  se  a  mão  de  Satanaz  o  houvera  chumbado 
alli. 

A  lua  tinha  rompido  de  traz  do  pinheiral  linda 
como  na  véspera.  Da  parte  de  fora  do  muro  via-se  so- 
bresahir  á  laranjeira  illuminada  pelo  reflexo  saudoso 
do  luar.  E  a  porta  não  se  abria...  nem  se  abriu 
mais. 

Eu  não  sei  como  o  homem  tira  da  fraqueza  do 
barro  a  coragem  precisa  pai"a  resistir  a  magoas  tacs 
como  esta ! 

Ver  desfazer-sc  o  paraizo  sonhado  cm  tantas  noi- 
tes de  felicidade,  ver  desfolhai'-se  para  sempre  a  gri- 
nalda florida  dos  vinte  annos,  e  não  ir  pedir  á  morte 
o  descanço  eterno  da  matéria  que  ella  aniquila ! 

Abençoado  o  raio  d'amor  que  nos  suspende  á  beira 
do  abysmo. 


09 


Esse  homem. . .  tinha  mãe. 

Bemdito  mil  vezes  o  coração  materno,  urna  de  bál- 
samos para  toda  a  ferida,  cofre  de  thesoiros  para  toda 
a  pobreza,  sacrário  de  consolações  para  toda  a  desven- 
tura. 

Bemdito  o  amor  que  não  morre,  bemdito  o  amor 
que  não  encana,  bemdito  o  amor  que  não  mente. 

Ó  coração  de  mãe,  abre  o  teu  seio  ás  lagrimas 
d'um  filho  e  enxug*a-lh'as  no  sudário  do  teu  amor,  que 
são  muitas  e  muitas.  . . 

Havia  n'uma  aldeia  um  coração  de  mãe  a  chamar 
por  esse  homem  desgraçado.  Partiu  emfim  o  moço 
desventuroso,  dizendo  adeus  ao  bulicio  da  cidade  onde 
lhe  ficavamx  para  sempre  a  mocidade  e  a  esperança, 
na  tarde  em  que  a  mulher  dos  seus  sonhos,  diante  do 
altar,  estendia  a  outro  homem  a  mão  ainda  quente  do 
contacto  da  sua. 

Que  será  partir  para  não  voltar  mais  ?  —  pergun- 
to eu  áquelles  que  andam  chorando  por  longe  e  para 
sempre  saudades  de  tudo  o  que  lhes  era  mais  caro. 
Os  que  nunca  sahiram  da  beira  do  seu  lar,  de  ao  pó 
da  sua  esperança,  esses,  são  tão  felizes  que  nem  che- 
gam a  comprehender  tamanhas  desventuras.  E  nos  lá- 
bios d'elle  nem  uma  palavra  d'azedume,  nem  uma 
queixa  amarga,  nem  um  rugido  de  vingança. 

Todavia  a  folha  de  hera  estava  .  . .    ainda  verde  I 

k  hora  saudosa  em  que  costumava  abrir-se  a  porta 
do  jardim,  partia  elle,  caminho  d'aldeia,  cheio  o  co- 
ração d^immensas  amarguras. 

Ficaram  a  choral-o  os  amigos  Íntimos,  como  que 


70 


lamentando  em  commum  a  perda  que  era  de  todos 
elles. 

Quando  começaram  a  apparecer  as  primeiras  arvo- 
res d 'aldeia,  então  é  que  foi  o  despeitorar  suspiros 
abafados  e  lagrimas  represadas.  Esperavam-n'o  aber- 
tos, na  casa  onde  nasceu,  os  braços  de  sua  mãe.  Ahi 
quiz  Deus  que  se  identificassem  na  mesma  amargura 
aquelles  dois  corações,  que  se  misturassem  na  mesma 
torrente  as  lagrimas  da  mãe  e  do  filho. 

Era  um  coração  a  chorar  pranto  de  dois. 

Entretanto  a  folha  de  hera  estava  . . .  ainda 
verde. 

N'uma  noite  de  lua  debruçava-se  o  moço  pensa- 
tivo na  janella  do  seu  quarto  sobranceira  ao  pomar. 

Tinha  a  carteira  aberta  e  contemplava  ao  clarão 
saudoso  do  luar  a  folha  verde  que  guardava  como 
recordação  eterna.  Deu  tento  a  mãe  do  longo  scismar 
do  filho.  Entrou  ao  quarto  despercebida  e  chegou  á 
janella  no  momento  em  que  uma  sombra  ligeira  enco- 
bria a  lua. 

—  Lagrimas,  meu  filho! — murmurou  ellan'ura 
tom  doloroso. 

—  Já  não  ó  nada  —  respondeu  elle.  —  Passou .  . . 
Era  uma  nuvem  que  velava  a  lua. .  . 

Porto  —  março  de  18G9. 


A  LENDA  DA  BARCA 


Xão  terão  cabimento,  n'este  livrinho  de  prosas 
correntias,  algumas  paginas  em  verso  ?  Por  que  não  ? 

A  lenda  da  barca  é  uma  tradição  que  eu  desejei 
co7itar  ao  correr  da  ijen7ia  e  que,  encarada  por  este 
lado,  não  offende  a  Índole  dos  esboços  despretenciosos 
a  que  vem  associada. 

Quasi  me  não  lembrava  do  publico,  quando  a  com- 
puz.  Escrevi-a  para  o  snr.  Thomaz  Ribeiro,  a  quem 
é  offerecida,  convencido  de  que  havia  d'encontrar  ecco 
saudoso  no  coração  do  cantor  do  —  D.  Jayme — e  da 
—  Delfina  —  a  historia  do  pobre  barqueiro  que  se 
deixou  morrer  d'amores.  Quiz  o  snr.  Thomaz  Ribeiro 
que  me  não  enganasse.  Adiante  verá  o  leitor  o  canto 
mavioso  com  que  o  distincto  poeta  se  dignou  respon- 
der aos  meus  pobres  versos. 

Ahi  vai  pois  a  le7ida  da  barca  com  as  poucas  pa- 
lavras que  a  precederam,  quando  em  abril  d'este  anno 
appareceu  no  Jornal  do  Porto : 


72 


«  Fallaram-me  dos  amores  desventurosos  do  bar- 
queiro Ramiro  n'umas  paragens  tristes  do  Douro.  A 
velha  tradição  d'estes  amores  atravessou  a  barreira  do 
tempo  e  com  o  decorrer  dos  annos  revestiram-n'a  de 
certo  caracter  lendário  os  camponezes  do  sitio,  que 
ensinaram  aos  filhos  a  lição  herdada  dos  pães.  Existi- 
ria o  barqueiro  Ramiro  ou  não  passará  a  tradição 
d'estes  amores  d'uma  phantasia  devida  á  penna  ob- 
scura d'algum  antigo  bardo  d'aquellas  serras?  Não 
sei.  A  ribeira  e  os  rouxinoes,  a  que  se  allude  na  len- 
da, lá  estão  ainda  e  devem  de  estar  como  no  tempo 
do  barqueiro  Ramiro  :  —  a  ribeira  florida  ;  os  rouxi- 
noes palreiros  como  d'antes.  Que  importa  que  não  se- 
jam os  mesmos  d'entãoV 

No  tempo  de  Ramiro  cantavam  uns  que  morreram 
já,  é  verdade.  Esses,  porém,  ensinaram  aos  filhos  o 
thema  mavioso  dos  seus  descantes  nocturnos,  e  a  tra- 
dição transmittiu-se  de  rouxinol  para  rouxinol.  São 
outros  os  rouxinoes ;  os  descantes  os  mesmos.  Deve  de 
acontecer  com  as  aves  o  que  succede  com  os  homens: 
cada  familia  tem  a  sua  tradição,  assim  como  cada  povo 
tem  a  sua  historia. 

Diz  a  lenda  que  os  rouxinoes  cantavam  de  sau- 
dade no  tempo  de  Ramiro;  ainda  assim  6  hoje.  O  the- 
ma e  o  estylo  são  os  mesmos.  Todavia  o  correr  do 
tempo  modifica  a  tradição  popular  de  uma  lenda  qual- 
quer n'um  ou  n'outro  verso  e  ó  de  suppor  que  tenha 
corrompido  n'uma  ou  n'outra  nota  a  partitura  legen- 
daria dos  rouxinoes. 

Ainda   lá  está  na  ribeira  a  pedra  lisa  em  que  as 


73 


lavadeiras  do  sitio  batem  as  suas  roupinhas.  Alli  de- 
veu Rosa  lavar  os  seus  bordados.  E  nHo  fallar  a  pe- 
dra !  O  (jue  ella  nílo  diria  d'aquellas  rendas  alvíssimas 
costumadas  ao  suave  conchego  d'um  seio  virginal ! 

Ramiro  ó  o  typo  dos  namorados  desventurosos. 
Deixou-se  o  pobre  moço  entrar  de  fundas  melancolias, 
quando  olhou  em  si  e  lobrigou  a  sua  barca  a  boiar 
nas  aguas  com  a  pobreza  dentro...  Que  importava 
sentir-se  bom  e  honrado  e  nobre  ?  Tinha  apenas  de 
seu  quatro  taboas  e  dois  remos.  Isto  era  muito  para 
elle  e  pouco...  para  o  mundo.  Cançou-se  de  sonhar 
venturas,  que  não  pudera  ver  realisadas  e  atirou  com 
o  fardo  da  vida  ás  aguas  da  corrente.  Dar-lhe-ia  lagri- 
mas de  saudade  a  sua  Rosa  ?  Xão  sei.  Quero  ató  que 
Ih 'as  não  desse,  para  se  me  affigurar  maior  o  sacri- 
fício. 

Tentei  aproveitar  a  lenda  da  barca,  como  lhe  cha- 
mam n'aldeia.  Vejo,  porém,  que  não  corresponde  a 
obra  aos  meus  desejos.  V.  exc.*,  que  se  digna  acolher- 
me  com  extrema  benevoleiícia,  animará  ainda  d'esta 
vez  os  meus  justos  receios. 

Entro  no  palácio  hospitaleiro  de  Parada  de  Gonta 
com  a  alegria  do  camponez  que  vai  offerecer  ao  cas- 
tellão  um  cabaz  de  flores  silvestres,  embora  os  mais 
opulentos  se  riam  da  mesquinhez  do  presente.  Vou 
alegre  porque  sei  que  hei  de  achar  abertos  os  braços 
d'um  mestre  que  me  inspira  a  máxima  dedicação.» 


74 


A  LENDA  DA  BARCA 


f 


Lá  baixo  onde  ha  os  salgueiros, 
Quasi  ao  pé  d' agua,  depois 
Que  o  sol  transmonta  os  oitoiros. 
Vem  cantar  uns  rouxinoes. 

Entretanto  a  lua  rompe 
E  mostra  o  disco  saudoso.. . 
Ninguém  lá  os  interrompe 
No  seu  cantar  mavioso. 

D' entre  as  gentis  lavadeiras 
Não  ha  uma  só  que  se  affoitc   . 
A  vir  lavar  nas  ribeiras 
Áquellas  horas  da  noite. 

Mal  sobe  a  lua,  n' aldeia, 
Ninguém  se  fica  por  fora. 
Já  em  casa  espera  a  ceia, 
Apenas  chegar  esta  hora. 

Só  o  barqueiro  Ramiro 
Ficou  inda  á  beira  d' agua. 
Prende-o  n'aquelle  retiro 
A  sua  perpetua  magua. .. 

Guardou  cuidadoso  os  remos, 
Prendeu  a  barca  e  depois 
Sontou-se  e  disse  :  «  Escutemos 
As  maguas  dos  rouxinoes. » 


75 


n 


Vinfannos  contava  Rosa, 
A  mais  gentil  lavadeira, 
—  Talvez  a  mais  cuidadosa  — 
Quo  lavava  na  ribeira. 

Sempre  na  beira  do  rio 
Cortava  na  vida  alheia 
O  fallador  mulherio 
Reunido  cm  assembleia. 

Só  Rosa  não  dava  ouvidos 
Por  ser  mais  trabalhadeira. 
Mal  que  apanhava  os  vestidos, 
Era  lavar  com  canceira. 

Batendo  a  saia  de  folhos, 
Ensaboando  os  bordados. 
Muito  a  medo  erguia  os  olhos.    . 
Pareciam  na  agua  cravados. 

Se  ás  vezes  os  levantava 
Com  seu  olhar  feiticeiro, 
Sempre  a  miral-a  encontrava 
O  namorado  barqueiro. 

Ella  baixava-os  corando 
E  então  lavava  e  lavava. . . 
Mas  depois  de  quando  em  quando 
Outra  vez  os  levantava. . . 

Vinha  a  noite,  a  lavadeira 
Voltava  a  casa.  Depois. . . 
Enchiam  toda  a  ribeira 
As  vozes  dos  rouxinoes. 


■\ 


76 


III 

Dize,  Ramiro,  o  segredo 
Do  teu  suspirar  maguado. 
Pois  não  vês  erguer-se  a  medo 
Aquelle  olhar  namorado  ? 

—  Olhar  tão  puro  e  tão  santo  !' 
Tão  expressivo  e  tão  dooe  !  — 
Onde  viste  igual  encanto 
N'um  olhar  d' anjo  que  fosse  ?. . . 

Em  que  scismas  longas  horas 
Na  solidão  da  ribeira? 
Sonhas  talvez  a  deshoras 
Ver  lavar  a  lavadeira? 

Ou  ficas  d' olhos  pregados 
N'aquella  pedra  —  um  thcsoiro  ! 
Onde  firma  os  pés  nevados, 
Se  lava  no  lavadoiro  ? 

Os  rouxinoes  das  ribeiras 
Cantam  bom  ao  desafio. 
Mas  ficar  noites  inteiras. 
Só  para  os  ouvir,  ao  frio  ! 

IV 


Sei  no  que  pensas,  Ramiro  ; 
Não  estranho  a  tua  magua. 
Cantai-lho  n'esse  retiro, 
Rouxinoes  da  beira  d' agua. . 


Ai  !  80  to  ama  a  pobre  Rosa  ! 
Ama-to  muito,  bom  vojo 
Como,  ao  vòr-to,  do  medrosa 
\A\(i  assoma  o  rubor  do  pejo. 

Es  pobre,  Ramiro,  és  pobre, 
Arrostas  o  sol  o  o  frio 
Feia  moeda  do  cobre. 
Que  to  dá  quem  i)assa  o  rio. 

E  a  lavadeira  é  formosa  ! 
Qualquer  lhe  dará  bem  oiro 
Para  beijar  —  pobre  Rosa  I .  . . 
Os  seus  cabellos  côr  d'oiro. . . 

Sei  no  que  pensas,  Ramiro ; 
Não  estranho  a  tua  magua. 
Cantai-lhe  n'esse  retiro, 
Rouxinoes  da  beira  d' agua. 

Queres  fugir  á  desgraça, 
Que  te  espera  qualquer  dia. . . 
Por  isso  a  noite  se  passa 
Na  mesma  melancolia. 


V 


Até  que  emiim  resolveste 
Não  voltar  ao  teu  retiro. 
Veio  a  noite  e  não  prendeste 
A  tua  barca,  Ramiro  ! 

Rio  abaixo  vaes  remando, 
Sem  que  te  cancem  os  braços  ! 
Só  paras  de  quando  em  quando 
E  fitas  mudo  os  espaços . . , 


78 


Suspiram  tristes  as  aguas, 
Que  leva  o  rio  palreiro, 
Como  a  juntar  suas  maguas 
Ás  tristezas  do  barqueiro... 

Passou-se  a  noite ;  ao  ser  dia 
Um  pescador  da  ribeira 
Achou  a  barca  vasia 
Encalhada  na  pesqueira. 

Que  tu,  Ramiro,  deixasses 
A  barca,  —  o  teu  companheiro  ! 
O'  barca,  se  tu  fallasses, 
Que  dirias  do  barqueiro  ?. . . 


Porto  —  março  de  1869. 


Dias  depois  da  publicação  d'esta  lenda^  escrevia- 
me  o  siir.  Tlioraaz  Kibeiro  o  que  se  segue: 

«...  Sabe?  intristeceram-me  aquelles  versos  por- 
que eu  posso  também  dizer : 

—  Amante  fui  triste  e  absorto 
como  Ramiro  o  barqueiro, 
e  achei-me  afogado  e  morto 
nas  maguas  do  amor  primeiro. 

Á  beira  d' agua  assentado 

csp'rci  como  ello  ! . . .  o  depois  V  !   . . 

passei  noites  enlevado 

no  canto  dos  rouxinoos  I , . . 


79 


Dopois  disse  á  pòdrc  calma  : 
ahi  tens  meu  corpo  !  —  lia  quem  remo  ?. 
—  barca  em  quo  andava  a  mi nh' alma 
emquauto  o  amor  lhe  foi  Icmo  ; 

emquanto  a  esp'ran(,'a  foi  vela 
e  nas  trevas  do  aguaceiro 
a  fé  lhe  mostrava  a  estrella  ! . . . 
e  hoje. . .  barca  sem  romeiro  ! 


Sem  presente  e  sem  passado, 
sobre  o  mar  longe  d' um  porto 
sou  barco  desarvorado  : 
pareço  vivo  e  estou  morto. 

Meu  presado  amigo.  Sahiii-me  isso  ao  correr  da 
penua,  quando  acabei  de  ler  os  seus  versos.  Isso  não 
presta  e  só  o  escrevi  n'esta  carta  para  lhe  provar  que 
a  sua  lenda  me  inspirou.» 

D'aqui  renovo  os  meus  agradecimentos  ao  snr. 
Thomaz  Ribeiro,  contente  por  lhe  ter  suggerido  a  ideia 
de  escrever  tão  suaves  endeixas  e  por  mostral-as  aos 
leitores  d'este  livrinho,  que  verão  n'ellas  a  única  coisa 
valiosa  que  se  encontra  em  tudo  isto. 

Porto— julho  de  1869, 


AS  DUAS  FITAS 


COR  DE  ROSA 

Marmier,  na  introducçtão  á  —  Solitude  —  de  Zim- 
mermann,  escreve  o  seguinte:  «Buftbn,  n'um  dos 
seus  melhores  tratados,  fez  notar  a  acção  diversa 
dos  climas  sobre  a  organisação  physica  e  moral  do 
homem.  Um  sábio  e  respeitável  escriptor,  M.  de  Bons- 
tetten,  consagrou  um  livro  inteiro  ao  mesmo  assumpto. » 

O  certo  é  que  Marmier  inclina-se  muito  á  opinião 
de  Buffon  e  Bonstetten  ;  e  eu  vou  também  d'accôrdo, 
n'este  parecer,  com  o  biographo  de  Zimmermann. 

Estou  n'aldeia,  ha  dois  dias,  n'uma  aldeia  solitá- 
ria das  margens  do  Douro,  defronte  do  convento  de 
S.  João  de  Alpendurada  onde  morreu  aquelle  desgra- 
çado bispo  do  Gran-Pará,  Frei  João  de  S.  Joseph  de 
Queiroz.  O  snr.  Camillo  Castello  Branco  escreve,  nas 
Memorias  do  bispo,  com  referencia  ao  convento  de 
S.  João  de  Alpendurada,  o  que  se  segue:    «É  aquelle 


82 


mosteiro  triste,  empinado  n'uns  rochedos  que  se  de- 
bruçam sobre  o  Douro.  É  lá  em  cima  no  monte  Ara- 
dos, onde  as  neves  hybernaes  requeimam  as  raizes  do 
bravio  para  que  alli  não  íloreçam  os  gestaes  em  abril, 
nem  as  tojeiras  no  dezembro  se  dourem  com  os  seus 
festões  amarellos.» 

Não  sei   se   o  snr.  Camillo  já  veio  a    S.  João   de    j 
Alpendurada  ou  se  escreveu  por  informações;  o  que 
sei  é  que  foi  exacto  na  descripção. 

Ora  a  aldeia  em  que  estou,  freguezia  de  Santo 
André  de  Sozello,  resente-se  da  visinhança  do  monte 
Arados ;  quero  dizer,  é  triste  e  solitária  como  elle.  O 
certo  ó  que  me  fiz  aldeão,  cuido  que  por  influencia 
do  clima,  que  actuara  subjectiva  e  objectivamente  so- 
bre a  minha  organisação  moral  e  physiologica. 

Para  me  não  deixar,  pois,  entrar  de  tristezas  pró- 
prias do  sitio,  fui-me  hontem  por  brenhas  e  atallios 
fora  a  espairecer  o  espirito  cançado  da  viagem.  Che- 
guei insensivelmente  a  meio  d'um  cerro  e  rodeei  a 
Casa  dos  olivedos,  propriedade  d' um  rapaz  que  fora 
meu  condiscipulo  em  186G.  Sahiu-me  da  revolta  do 
quinchoso  o  caseiro  da  quinta,  de  enxada  ao  hombro 
e  chapco  na  mão. 

—  Santas  tardes,  meu  homem.  Você  é  caseiro 
da  quinta  ? 

—  Saiba  V.  S.^  que  sim. 

—  Seu  amo  está  em  casa  ? 

—  Meu  amo,  senhor!  Ha  dois  annos  que  não  veio 
á   (piiiita.   Vive   em   Leça  da    Palmeira,  ^cho  que  6' 
perto  do  Porto.  ..   O  senhor  deve  saber  onde  tica.  O 


83 


certo  ó  ({uc  casou  por  lá  c  por  lá  vive,  hii  dois 
aniios. 

—  Pois  seu  unio  vive  em  Le^a,  lia  dois  annos,  sem 
que  eu  o  tenha  visto,  durante  esse  tempo,  uma  vez 
sequer  !  Com  quem  casou  elle  ?  Conte-me  lá  tudo  o  que 
sabe. 

Ahi  vai,  pois,  tudo  o  que  me  contou  o  caseiro  de 
Rodrigo  Sotto-Maior  e  o  mais  que  eu  sei  a  este  res- 
peito. 

O  estylo  fragoeiro  d 'estas  paginas  deve  claramente 
resentir-se  do  meu  rusticar  com  a  gente  do  campo,  do 
perfume  agreste  dos  mattos,  e  da  visinhança  do  mos- 
teiro de  Alpendurada,  solidão  tristissima,  onde  agoni- 
sou  o  bispo  do  Gran-Pará. 


I 


—  O  senhor  conheceu,  por  acaso,  em  Leça,  a  viuva 
do  capitão  Mathias  ?  —  interrogou  o  caseiro. 

—  Do  capitão  Mathias. .  .  —  repizei  eu  —  Conheci. 
Tinha  uma  filha  rasoavelmente  bonita,  a  quem  nós,  os 
banhistas  de  1866,  chamávamos  a  menina  do  tope  ver- 
vicUw. 

—  A  menina  de  quê,  senhor  ?  —  atalhou  o  caseiro 
com  a  palavra  tope  entalada  nos  gorgomilos. 

—  Do  tope  vermelho,  homem.  Chamávamos  assim 
ao  laço  de  fita,  que  ella  usava  no  cabello  com  uma 
galanteria  indisivel.  Mas  a  que  vem  isso? 

—  Pois  foi  ella. . . 

—  A  que  casou  com  o  Rodrigo  ?  Ora  essa  !  Pois 
o  Rodrigo  casou  com  a  menina  do  tope  vermelho  ? 


84 


—  Ha  de  ser  a  mesma.  Foi  com  a  snr.^  D.  Júlia 
Mathias  que  o  snr.  Rodriguiiilio  casou,  ha  dois  aniios. 
Esteve  a  banhos  em  1866  e  acho  que  só  tomou  os 
trez  da  igreja.  Casou  e  não  veio  mais.  E  como  diz  a 
cantiga : 

Quem'stá  bem,  deixa-se  estar. 

—  E  que  sabe  mais  ? 

—  Quasi  nada.  O  que  lhe  posso  dizer  6  que  já 
teem  um  filho  e  que  dizem  que  hão  de  vir  á  quinta 
na  primavera. .  .  Então  o  senhor  era  amigo  d'clle? 

—  Amigo  !  Amicissimo.  Conheço-o  desde  1866.  Foi 
meu  condiscípulo  nas  aulas  e  depois  acompanhei-o, 
frequentes  vezes,  em  Leça. 

—  Pois  aqui  está  o  que  eu  sei. 

—  Bem.  You-me  por  aqui  abaixo,  surprehendido 
com  a  noticia.  Já  se  vai  fazendo  tarde.  Adeus. 

—  Adeus,  meu  senhor. 

Desci  por  uns  atalhos  tortuosos  ató  á  estrada.  Vi- 
nha a  scismar  na  menina  do  tope  vermelho  e  no  ca- 
samento de  Rodrigo  Sotto-Maior,  o  meu  condiscípulo 
de  1866.  I 

No  setembro  d'esse  anno  a  formosura  da  filha  do 
capitão  Mathias  deu  rebate  aos  mais  galliardos  banhis- 
tas de  Leça.  Distinguia-se  a  requestada  senhora,  en- 
tre o  rancho  das  mais  feiticeiras  nereidas  da  praia, 
por  um  tope  de  fita  vermelha,  artisticamente  pregado 
110  cabello,  como  borboleta  d 'escarlata,  que  continua- 
damente estivesse  osculando  a  trança  d*ebano. 

E   depois  tinha  uma  graça  no  andar,  uma  certa 


85 


elepuu'i;i  no  apíiiilmr  dos  vestidos  e,  dipimos  tudo^ 
uma  desenvoltura,  que  lhe  era  natural  e  nao  ehe^ava 
a  ser  liceneiosa  ! 

Kstanceavam  debaixo  das  janellas  de  Júlia  os  pin- 
taleí^i-etes  da  praia  ;  era  um  eonstante  arremetter  de  mi- 
lhafres namoradií^os  á  timida  andorinha,  que  se  esqui- 
vava ainda. 

Uma  tarde  sahi  eu  a  passeiar  com  Rodrigo  Sotto- 
Maior.  Assomamos  á  volta  d'uma  rua  e  vimos,  n\ima 
janella,  uma  mulher  negligentemente  pensativa.  O 
ruido  dos  nossos  passos  despertou  a  contemplativa 
senhora,  que  levantara  a  cabeça  para  ver,  indubita- 
velmente, quem  commettia  a  indiscreção  de  lhe  pertur- 
bar os  poucos  momentos  livres  de  Narcisos  importu- 
nos. Ao  tempo  que  a  visão  da  janella  ergueu  a 
cabeça,  fizemos  reparo  na  fita  vermelha  que  lhe  cingia 
a  fronte.  Não  havia  que  duvidar.  Era  ella!  Era  ella, 
cujo  nome  circulava  de  boca  em  boca,  porque  nenhu- 
ma das  banhistas  de  Leça  tinha  ousado  ainda  derru- 
bar a  realeza  do  tope  vermelho,  imitando  Júlia.  Não 
havia  que  duvidar.  Era  alli  a  habitação  encantada 
d'aquella  mulher  scismadora,  que  se  deixava  embalar 
nas  harmonias  tristes  do  mar. 

Cobrira-nos  Júlia  d'um  olhar  descuidado,  mas  de 
tal  modo  reprehensivo,  que  parecia  acoimar-nos  d'in- 
discretos.  O  certo,  porém,  é  que  Rodrigo  Sotto-Maior 
estremeceu,  como  um  cadáver  impellido  por  uma 
pilha  galvânica. 

Dei  tento  da  impressão  de  Rodrigo  e  nno  pude 
deixar  de  o  apodar  de  namoradiço  ridículo,  capaz  de 


86 


correr  parelhas  com  uns  sujeitos  que  se  andam  nar- 
cisando  pelas  praias  diante  das  ondinas  que-  sahem 
do  banho,  entrajadas  de  baeta  negra. 

Pobres  anjos!  Nem  eu  sei  para  que  as  mulheres 
tomam  banhos  do  mar.  Pobres  anjos !  repetirei  ainda. 
Anti,2;amente  os  mais  rispidos  —  e  tambefn  os  mais 
estúpidos  —  pães  de  familia  negavam  ás  íilhas  a  ins- 
trucção  elementar  do  bastardo  e  do  cursivo,  com  re- 
ceio de  que  as  meninas,  doutoradas  em  primeiras 
lettras,  viessem,  n'um  dia,  a  sustentar  correspondên- 
cias amorosas ! 

Isto  era  o  mesmo  que  dizer  ás  pobres  meninas : 

« Minhas  filhas :  O  cora(,íão  está  dependente  de 
uma  coisa  que  se  chama  o  alphabeto ;  quem  não  sou- 
ber o  a-b-c  não  pode  amar.  É  por  meio  da  combinação 
das  lettras  que  se  escreve,  formando  palavras ;  mas 
com  as  palavras  se  fazem  cartas  e  com  as  cartas  se 
faz  muita  coisa  má,  —  por  exemplo :  escrever !  As 
cartas  são  uma  espécie  d'abanador  assoprando  con- 
stantemente ao  fogareiro  do  coração.  Casai;  mas  casai 
por  interesse  e  por  calculo.  Sede  estúpidas  e  contai  o 
numero  de  vossos  filhos  pelos  dedos.» 

Isto  era  o  que  os  pães  de  ha  sessenta  aunos  pre- 
leccionavam  ás  filhas  analphabetas  em  vez  de  lhes 
dizerem  categoricamente  : 

«Meninas:  Prohibo  expressamente  que  minhas 
filhas  tomem  banhos  do  mar.  Arriscava-me  a  que 
vocês  ficassem  eternamente  solteiras  como  Minerva. 
Sim,  como  Minerva.  Lá  diz  o  meu  Virgilio:  Innupta 
Minerva.  Quer  dizer:  Minerva,  que  costiunava  tomar 


I 


87 


/x/hIíos  </()  itnir  iodos  os  onnos.  V]  a  tradnci,'ão  á  lettra 
para  um  pae  oxiiorionto.  Mulher  que  toma  banhos  do 
mai-  não  casa,  K  uma  (iòr  do  coração  vêr-vos  enfar- 
dclaíhis  n'um  sacco  de  baetaj  com  os  cabellos  empas- 
tados na  cabeva,  verpidas  ao  peso  da  saia  húmida, 
a  tropeçar,  a  escabujar  com  as  ondas,  a  arrastar-vos, 
emlim,  como  salamandras.  Nada!  Quem  se  sentir  mo- 
lestado do  nervoso,  faça  uso  de  anti-hystericos  e  dei- 
xemo-nos  de  mar. » 

Isto  veio  aqui  por  incidente.  É  que  eu  vi  uma 
vez,  em  Leça,  sahir  do  banho  a  menina  do  tope  ver- 
)))clho,  e  tive  pena  de  que  as  prescripções  da  medicina 
fossem  severas  ao  extremo  de  a  despoetisarem,  a  ella, 
a  elegante,  a  graciosa,  a  coqitette! 

Como  eu  ia  a  dizer,  Rodrigo  Sotto-Maior  sentiu-se 
fulminado  com  o  olhar  de  Júlia. 

Ha  mulheres  cujo  olhar,  por  mais  indolentemente 
vibrado  que  seja,  tem  o  condão  fatal  de  produzir  uma 
impressão  rápida  mas  profunda.  O  olhar  de  Júlia  era 
assim. 

Peço  licença  para  abrir  um  parenthesis :  Não  sei 
se  já  virão  serôdias  algumas  explicações  sobre  a  pes- 
soa de  Rodrigo  Sotto-Maior;  todavia  julgo  que  serão 
indispensáveis  e  vou  dal-as. 

Rodrigo  Sotto-Maior  era  filho  d'um  dos  mais  di- 
nheirosos  proprietários  de  Sinfães,  que  morrera  em 
1865  apopleticamente,  deixando  o  filho  com  vinte  e 
quatro  annos  d'idade  e  com  uma  casa  no  valor  de 
quasi  outros  tantos  contos  de  reis.  Fallecido  o  pae, 
veio  o  rapaz  matricular-se  nas  aulas  do  Porto  com  o 


88 


propósito  firme  de  não  estudar  nada.  As  aulas  eram 
para  elle  um  pretexto  com  que  procurava  desculpar  a 
si  mesmo  os  ócios  d'uma  vida  livre  e  abastada.  Ainda 
assim  frequentava  regularmente  as  aulas,  com  as  al- 
gibeiras providas  de  charutos  e  esquecido  dos  com- 
pêndios que  não  chegara  a  comprar.  Este  desamor 
ao  estudo  pode  redundar,  na  opinião  de  muitos,  em 
desabono  da  intelligencia  de  Rodrigo.  Diga-se  a  ver- 
dade. Rodrigo  Sotto-Maior  tinha  larga  capacidade  in- 
tellectual  apurada  na  leitura  dos  melhores  livros,  que 
lhe  fornecia  a  casa  More  todos  os  mezes.  Quando  os 
livros  lhe  chegavam  a  Sinfães,  o  moço,  sedento  de 
novas  leituras,  lia-os,  decorava-os;  e  quando  já  não 
tinha  mais  que  ler,  esperava  nova  remessa,  batendo 
as  moitas,  á  pista  de  coelho,  de  clavina  aperrada. 

Lembra-me  agora  contar-lhes  que  indo  eu  um  dia 
procurar  Rodrigo,  em  Leça,  pude  surprehender  sobre  a 
mesa  de  trabalho  um  álbum  intimo  onde  elle  archi- 
vava  os  devaneios  mais  queridos  do  seu  coração. 

Rodrigo  estava  ainda  recolhido,  quando  o  procu- 
rei. Esperei,  pois,  na  ante-camara  e  logo  se  me  de- 
parou o  álbum  aberto  na  pagina  em  que  se  liam  os 
versos  que  eu,  abusando  da  nossa  velha  amizade,  pu- 
blico. Li-os  e  para  logo  fiquei  namorado  da  singeleza 
suave  da  composição,  que  era  indubitavelmente  dirigida 
á  menina  do  tope  vermelho. 

Como  Rodrigo  se  demorasse  o  tempo  preciso  para 
eu  não  poder  resistir  á  tentação  de  copiar  os  seus 
versos,  copiei-os.  Perdôa-me  tu,  nobre  amigo,  o  ter 
devassado  os  mysterios  do  teu  coração.  Em  nome  dos 


89 


laçOvS  sagrados  que   nos  prenderam  e   que  ainda   nos 
prendoni ,  perdòa-nie. 

Diziam  assim  os  versos: 

CÔR  DE  ROSA 

Ai!  se  me  dósscs  a  fita 

Com  que  prendes  o  toucado . .  . 

Côr  de  rosal  tão  bonita! 

Dá-me  esse  laço  encarnado 
Com  que  seguras  a  trança. 
Foi  bem  escolhida  a  côr ! 
Verde  significa  esp' rança  ; 
Roixo  exprime  auzencia  e  dôr. 
Mas  a  fita  côr  de  rosa 
Diz  tão  bem  no  teu  cabello ! 
Pois  que  a  rosa  cm  si  resume 
Quanto  uma  flor  tem  de  bello, 
Côr,  liiignagevi,  perfume, 
Sois  irmãs  !  A  mão  bemdita 
Do  Senhor  fez- te  tão  rica 
D'aquella  graça  infinita, 
Que  se  vê  e  não  se  explica  I 

Vós  ambas  tendes  perfumes, 
Ambas  a  mesma  innocencia  ! 
Escusaes  de  ter  ciúmes  . . . 
Não  ha  entre  vós  preferencia.  ^ 

Foi  a  côr  bem  escolhida  !    . 
Mas  se  me  desses  a  fita. . . 
Deixando  a  trança  cabida, 
Talvez  fosses  mais  bonita  I 


90 


E  eu  faria  d'ella  algeDia, 
Que  mais  a  ti  me  prendesse. . 
Côr  de  rosa  !  tão  bonita  I 
Quem  não  daria  um  poema, 
Se  tu  lhe  desses  a  fita  V. . . 

Dá-me  esse  laço  —  o  diadema 
Com  que  tu  cinges  a  fronte, 
—  Coroa  própria  de  rainha. 
Pois  se  não  teus  uma  ideia, 
Que  não  seja  tua  e  minha, 
Não  digas  que  te  não  peça 
Essa  fita  côr  de  rosa, 
Que  te  circumda  a  cabeça. .  . 


Dá-m'a.  Sê  boa  e  formosa. 

Ai !  se  me  desses  a  fita 
Côr  de  rosa  !  tão  bonita! 

Os  versos  de  KodrÍ2:o  nasceriam  e  morreriam  na 
obscuridade,  se  os  não  tivesse  offerecido  á  minha  cu- 
riosidade um  feliz  acaso. 

Conheci  então  que  Rodrigo  estava  verdadeiramen- 
te namorado. 

Feche-se  agora  o  parenthesis. 

No  dia  seguinte  áquelle  em  que  viramos  Júlia, 
encontramol-a  de  tarde  casualmente,  se  não  foi  já 
prophecia  do  coração  namorado  de  Rodrigo,  na  Ponte 
de  Leça.  N'um  dos  bancos,  que  se  encostam  ao  para- 
peito da  ponte,  estanceavam  meia  dúzia  de  leões  em- 
pertigados, despedindo  sobre  Júlia  tão  flammantes 
olhares,  que  ella  teria  morrido  n'uma  fogueira  d'in- 
quisiçào  amorosa  se  os  raios  visuaes  dos    moços    na- 


91 


nioradi(,'os  nào  diniiniiissem  a  iiitensidtide  caloriíica  ao 
atravessar  as  lunetas  sem  ^rau. 

Fizemos  reparo  nos  leões  e  os  leões  tizeiam  reparo 
em  nós,  porque  Júlia  dignára-se  volver  um  olhar  ex- 
pressivo para  Kodri<i:o  Sotto-Maior. 

—  Queres  íicar  ?  —  perg-untei  eu,  dando  tento  do 
olhar  de  Júlia. 

—  Não  —  respondeu  seccamente  Rodrigo.  —  Ficar 
era  ridículo. 

Atravessamos  a  ponte,  ladeamos  o  monumento  de 
Manoel  Passos,  e  fomos  sentar-nos  n'um  dos  bancos 
que  lhe  íicam  próximos. 

O  certo  é  que  Júlia  havia-nos  seguido  com  a 
vista  e  não  desfitava  Rodrigo,  accendendo  a  indigna- 
ção dos  leões  despeitados  com  tão  evidente  preferencia. 

Quando  Júlia  sahiii  da  ponte,  Rodrigo  Sotto-Maior 
nào  quiz  seguil-a.  Vimol-a  desapparecer  na  extremi- 
dade opposta  e  vimos  também  desfilar  pacificamente, 
em  seguida  a  ella,  a  cohorte  dos  galanteadores  offi- 
ciosos. 

Atravessamos  a  ponte,  passado  tempo. 

Na  esquina  d'uma  das  cangostas  tortuosas  de  Leça 
topamos  os  leões  reunidos  em  assembleia  geral.  Yiram- 
nos  e  fizeram-nos  cerco,  isto  é,  montearam -nos  como 
a  lobos  damninhos.  Choveu  sobre  Rodrigo  Sotto-Maior 
uma  alluvião  de  epigrammas,  que  se  resentiam  da 
ridiculez  dos  sujeitos  que  os  dirigiam. 

Rodrigo  arrostou  a  pé  firme  as  iras  dos  monteiros 
indignados  e,  quando  pôde  escapar-se  dignamente  da 
malha,  segredou-me  ao  ouvido ; 


92 


—  Vamos  d'aqiii,  que  me  sinto  nauseado. 

Na  manhã  seguinte,  encontrei-me  na  praia,  á  hora 
do  banho,  com  Rodrigo  Sotto-Maior. 

N'essa  occasião  sahia  Júlia  do  banho,  e  em.quanto 
eu  lamentava  que  a  medicina  obrigasse  uma  mulher 
bonita  e  elegante  a  parecer  feia  e  cambaia,  Kodrigo 
Sotto-Maior  confiava  á  banheira  n'uma  folha  de  papel, 
fechada  em  enveloppe,  as  primeiras  palavras  do  seu 
amor.  Aguardamos  a  occasião  em  que  Júlia  sahisse 
da  barraca;  vimol-a  sahir  e  corar. 

Ao  ensejo  de  corar  a  menina  do  tope  vermelho 
ajustam  uns  dizeres  bonitos  do  snr.  Mendes  Leal: 
«Dirieis  que  o  paniculo  róseo  da  flor  da  bromelia,  des- 
pegada dos  seus  braços  vegetaes,  cahira  sobre  as  pé- 
talas tegumentosas  d'um  cacto  branco  das  selvas. » 

N'essa  noite  —  uma  lindissima  noite  de  luar  — 
passamos,  Rodrigo  e  eu,  debaixo  das  janellas  de  Júlia; 
ouvimol-a  tocar  piano.  Escondemo-nos  na  sombra  d'um 
muro  e  quedamos  a  ouvil-a.  Os  seus  dedos  deviam 
de  correr  vertiginosamente  sobre  as  teclas  do  piano, 
porque  as  notas  afloravam  em  turbilhão  com  a  rapi- 
dez do  relâmpago. 

Ouvimol-a  passar  do  Hernâni^  com  uma  veloci- 
dade eléctrica,  para  o  Roberto^  e  do  Roberto  para  o 
Trovado?'. 

Pouco  depois  o  piano  emmudeceu.  Yimos  Júlia 
aproximar-se  da  janella  e  descer  a  vidraça;  cuido  que 
Rodrigo  lhe  mandara  um  beijo  n'um  raio  da  lua. 

A  sala  ficou  por  momentos  ás  escuras ;  pouco  de- 


f 


93 


pois,  poróm,  uma  claridade  ahpivQ  se  coou  atravós  dos 
vidros,  reflecti ndo-se  na  rua. 

Quem  poderia  duvidar  de  que  Júlia  estivesse,  n'esse 
instante,  respondendo  a  Rodrigo  ? 

EUe  adivinhou-o  e  eu  presenti-o. 

Demoramos  ainda  meia  hora  a  coberto  do  muro ; 
depois  fugiu  a  luz  e  a  janella  fechou-se  de  vez. 

Ao  outro  dia  faltei  na  praia,  mas  veio  Rodrigo  pro- 
curar-me  e  mostrar-me  confidencialmente  a  resposta 
de  Júlia.  Era  apenas  um  bilhete,  com  quatro  linhas, 
de  calligraphia  elegante  e  grammatica  escorreita. 

O  jubilo  interior  de  Rodrigo  irradiava-lhe  no  sem- 
blante e  resaltava-lhe  dos  olhos  em  chispas  luminosas. 

—  És  feliz,  Rodrigo  ?  —  perguntei  eu. 

—  Cala-te  —  atalhou-me  elle  violentamente.  —  Ca- 
la-te,  que  chego  a  ser  egoista  da  minha  felicidade. 

Desde  esse  dia  rarearam  as  visitas  que  Rodrigo 
Sotto-Maior  me  fazia ;  percebi  o  motivo  que  o  impedia 
de  procurar-me,  e  desculpei-o. 

Decorrida  uma  semana,  entrou  Rodrigo  uma  ma- 
nhã, em  rainha  casa,  de  semblante  demudado  e  com 
ares  d'inquietação. 

—  Que  tens  tu,  homem  ? 

—  Eu  sei  lá  o  que  tenho  !  Tenho  o  inferno  no  co- 
ração. A  viuva  ]ííathias  lobrigou  as  minhas  relações 
com  a  filha  e  ameaçou-a  d 'entrar  n'um  recolhimento 
do  Porto.  Parece-me  que  não  tornarei  a  fallar-lhe! 
E  tu  ainda  me  perguntas  o  que  eu  tenho !  Tenho  o 
inferno  no  coração,  bem  te  disse  eu.  Fallava-me  todas 
as   noites  da  janella  abaixo.  Que  bonita,  meu  amigo, 


94 


quaudo  a  lua  lhe  batia  de  frente !  Que  bonita !  Adeus, 
adeus. 

E  desceu  as  escadas  precipitadamente. 

Fiquei  d'espectativa  alguns  dias,  findos  os  qnaes 
Kodrigo  me  procurou  de  novo.  Vinha  completamente 
socegado  e  jovial. 

—  Serenou  a  tormenta,  meu  amigo  —  disse-me  elle. 
—  Post  tejiehras  sol  liicet.  Logramos  engodar  a  pers- 
picácia da  viuva  Mathias.  Falíamos  todas  as  noites  no 
quintal.  Mal  sabes  tu  o  que  eu  passo  para  fallar-lhe. 
Tenho  de  me  engalfinhar  n'uma  cancella,  de  saltar  um 
muro  e  de  me  esconder  depois  n'uns  pardieiros,  que  te 
fariam  estremecer  de  horror,  se  os  visses.  Queres  tu 
ver?—  E  foi  abrindo  a  carteira.  —  Queres  tu  ver? 
Sabes  o  que  isto  é  ? 

—  Isso  é  o  tope  vermelho! — acudi  eu  simulando 
surpreza  —  Isso  é  o  tope  vermelho  ! 

—  Tal  qual.  É  o  tope  vermelho  de  Júlia.  Quiz  pos- 
suil-o  ;  e  obtive-o.  É  elle. .  .  o  tope  vermelho. 

E  Rodrigo  dizia  isto  beijando-o  sofregamente. 

—  Fizeste  mal  em  pedir-lh'o,  Rodrigo.  Usurpaste- 
Ihe,  privando-a  d'esse  laço,  a  coroa  da  realeza.  Foi 
egoismo  da  tua  parte. 

—  Não  ha  tal !  Júlia  não  precisa  de  pedir  á  toiletie 
o  esplendor  com  que  deslumbra.  O  seu  prestigio  está 
na  sua  belleza;  ó  d'ella,  como  eu  sou.  P]ste  laço  ó 
uma  recordação,  uma  lembrança,  uma  saudade  talvez. 
E  meu  1  Felizmente  posso  chamar-lho  meu  !  Adeus. 
São  horas  d 'ir  fallar  com  ella. 

Rodrigo    abandonou    completamente   a    sociedade 


95 


banliista ;  vivia  para  Júlia.  Os  leões  despeitados  con- 
tinuavam a  verberal-o  com  epigrammas  pouco  menos 
de  tolos,  e  elle  nem  dava  por  isso. 

Abençoado  o  amor  que  nos  sobe  a  ecos  tão  plá- 
cidos e  tão  acima  do  charco  immundo  onde  coaxam 
as  rãs  da  maledicência. 

Começava  a  despovoar-se  a  praia  de  Leça.  Entrou- 
xei e  dispuz-mè  a  recomeçar  os  meus  trabalhos  esco- 
lares. Procurei  Rodrigo  em  casa  e  não  o  encontrei ; 
vi-o  depois  casualmente. 

—  Já  de  marcha  !  —  disse-me  elle. 

—  Que  remédio!  Está  o  inverno  comnosco  —  res- 
pondi eu. —  Ainda  ficas  ? 

—  Ainda  fico.  Adeus.  Estimo  que  sejas  feliz  — 
respondeu  elle  querendo  obstar  a  alguma  pergunta 
importuna. 

Os  receios,  porém,  de  Rodrigo,  eram  infundados ; 
não  devia  esperar  indiscreções  da  minha  parte. 

Voltei  para  o  Porto  e,  quando  me  lembrava  do 
caso,  suspeitava  que  o  namoramento  não  podia  vingar 
muito  tempo  nas  condições  em  que  estava.  Agora 
vejo  que  me  enganei  redondamente. 

Rodrigo  Sotto-Maior  não  voltou  de  Leça.  Lá  vive, 
pois,  ha  dois  annos,  n'aquellas  solidões  da  beira  mar, 
a  estreitar  a  esposa  d'enconti-o  ao  peito  e  provavel- 
mente a  rever-se  nas  graças  infantis  do  filhinho. 

Os  poucos  momentos,  que  puder  roubar  á  crean- 
cinha  e  á  mulher,  quem  sabe  se  elle  os  consumirá  a 
tratar  do  plantio  do  quintal  ou  dos  casaes  de  perus, 
que  gluglurejam  na  capoeira?  Não  admira  nada.  O  ge- 


96 


iieral  AValrave  eiitretinha-se,  na  solidão  d'aldeia,  cora 
a  creação  das  gallinhas.  Muitos  deixam  o  socego  dos 
campos  por  o  bulicio  da  cidade ;  outros,  como  Publio 
Scipião,  dizem  que  nunca  estão  menos  sós  do  que 
quando  estão  verdadeiramente  sós. 

E  demais  Eodrigo  Sotto-Maior  tem  ao  lado  a  es- 
posa e  o  filhinho   a  sorrirem-lhe  e  a  affagarem-u'o. 

Perdoa  tu,  meu  amigo,  se  eu  corri  o  vôo  mj^ste- 
rioso  da  tua  vida  intima,  occultando  todavia  o  teu 
verdadeiro  nome. 

Na  primavera  que  vem,  mostra  a  tua  esposa  o  tor- 
rão abençoado  em  que  nasceste.  Que  a  madre-silva 
dos  vallados  perfume  a  atmosphera,  que  as  aves  da 
ramaria  te  enlevem  com  as  suas  toadas  alegres,  que 
teu  filho  te  sorria  e  que  tua  mulher  te  abrace. 

Quinta  de  Yilla  Yorde  —  16  do  setembro  de  1868. 


lí 

CÒR  DO  CÉO 

Procurei  Rodrigo  Sotto-Maior  em  Leça.  Achei-o 
n'um  paraizo  d'amor,  sorrindo  de  verdadeira  felicidade 
á  esposa  estremecida  e  embellczado  na  contemplação 
do  filhinho,  que  passa  metade  do  dia  no  collo  da  mãe 
e  outra  metade  nos  braços  de  Rodrigo.  Fez-me  inveja 
o  socego  suavíssimo  d'aquella  casa  onde  encontrei 
ainda   um  resto  do  viver  patriarchal  dos  tempos  que 


97 


já  iiHo  voltam.  Rodn.e;o  vive  quasi  exclusi vãmente 
para  a  família  o  para  aliz^um  raro  amigo,  (|U0,  de  lon^^e 
a  loiíí^e,  vai  lavar  nas  ai^Mias  d'aqiielle  milagroso  Jor- 
dão a  lepra  das  miiudanidades  estultas. 

Poucos  livros  entram  no  gabinete  de  Rodrigo,  e 
esses  que  entram  são  escolhidos  e  puros;  aos  periódi- 
cos ó  de  todo  em  todo  defesa  a  entrada.  Ha  dois  annos 
que  Rodrigo  não  sabe  quantos  ministérios  tem  havido, 
quantas  pessoas  do  seu  conhecimento  casaram  ou  mor- 
reram, e  quantos  lavradores  da  sua  aldeia  estão  barões 
ou  conselheiros.  Não  se  interessa,  como  vêem,  por 
estas  coisas  attinentes  ao  movimento  politico  da  nossa 
terra,  nem  lhe  sobra  tempo  para  lamentar  as  incon- 
veniências do  sijstema  que  nos  rege,  por  isso  que  se 
deixa  absorver  nas  profundezas  d'um  oceano  d 'amor, 
onde  não  ha  systemas  possíveis  além  do  que  manda 
o  corarão. 

Rodrigo  acolheu-me  affectuosamente.  Subimos  ao 
gabinete  de  leitura  que  tem  duas  largas  janellas  :  uma 
que  deita  para  o  jardim  e  outra  que  olha  para  o  mar. 
Sentamo-nos  e  começamos  a  fumar  com  excellentes 
disposições  d'espirito  para  larga  conversação. 

—  Auctoriso-te  a  accusares-me  da  minha  ingrati- 
dão—  disse  Rodrigo. — Estou  disposto  a  ouvir  a  lei- 
tura do  libello,  apesar  de  não  ter  provas  que  me  favo- 
reçam. 

—  Tens  a  teu  favor  —  respondi  eu  —  este  reman- 
çoso  viver  que  te  absorve  o  coração  e  que  faz  inveja 
a  quem  anda  por  esse  mundo  a  luctar  constantemente 
com   os  vagalhões  da  fortuna.  Ha  dois  annos  que  te 

7 


98 


perdi  de  vista,  e  encontro -te  lioje  tão  feliz  como  sup- 
ponho  que  terás  sido  desde  o  dia  em  que  te  deixei 
de  ver.  E'  uma  felicidade  que  sorri  a  pouca  gente, 
meu  Rodrigo.  O  mundo  não  falia  de  ti,  porque  o 
mundo  não  se  occupa  das  alegrias  serenas.  Es  rico  e 
ainda  assim  vives  obscuramente.  Xão  te  intromettes 
com  a  politica  nem  incommódas  os  periodistas  com  a 
noticia  de  teres  offerecido  um  jantar  aos  presos  ou 
aos  pobres.  A  tua  mão,  se  exerce  a  caridade,  exerce-a 
segundo  o  preceito  do  Evangelho.  Yives  feliz,  Rodri- 
go. Yejo  que  tens  as  tuas  portas  fechadas,  mas  re- 
commendo-te  que  as  mandes  trancar  cautelosamente 
para  que  te  não  possam  assaltar,  n'esta  solidão,  os 
malsins  da  sociedade.  Olha  que  também  já  andam  as 
ambições  pela  aldeia.  Venho  de  ao  pé  das  montanhas 
que  te  viram  nascer,  e  achei  por  lá  vestigios  de  cor- 
rupção. Os  lavradores  dos  teus  sitios  estenderam  a 
vista  para  além  dos  seus  campos,  e  diffamam-se  mutua- 
mente por  causa  das  eleições.  Ha  por  lá  quem  tenha 
esbanjado  a  casa  para  comprar  votos  e  commendas. 
Um  teu  visinho  está  commendador  ;  outro  sahiu,  ha 
dias,  deputado. 

—  E  é  muito  de  suppor  que  o  meu  caseiro  esteja 
a  chegar  ás  alturas  d'um  baronato,  segundo  o  que  tu 
dizes  —  atalhou  Rodrigo. 

—  Ainda  não  aconteceu  assim  por  felicidade  tua. 
O  teu  caseiro  continua  a  trabalhar  no  amanho  das 
terras  e  a  viver  para  a  lavoura.  Lá  o  vi,  arremim- 
gado,  de  enxada  ao  hombro,  na  direcção  do  pomar. 
Foi  elle  que  me  deu  noticias  tuas.  Por  elle  osube  eu 


99 


que  tu  tinliiis  casado  o  que  Deus  te  coroara  a  felici- 
dade conjui;al  com  as  i^raças  infantis  d' um  íilhinho 
estremecido.  Surprehendeu-me  a  noticia  do  teu  casa- 
mento, Rodrigo  !  Despedi-me  do  teu  caseiro  e  vim  por 
uns  atalhos  a  scismar  nos  bons  tempos  de  lia  dois 
annos,  que  foram  o  prologo  da  tua  felicidade;  —pro- 
logo em  que  eu  também  indirectamente  collaborei. 
Dois  dias  depois,  sentava-me  á  mesa  do  trabalho  e 
escrevia  a  historia  feliz  dos  teus  amores,  recatando 
ii'um  pseudonymo  o  teu  verdadeiro  nome  e  recamando, 
aqui  e  além,  de  ficções  românticas  a  tela  onde  dese- 
nhava o  quadro . . . 

—  Pois  fallaste  ? 

—  Fallei.  Has  de  perdoar  este  abuso  de  confiança  ; 
todavia  confesso  a  verdade.  Contei  a  tua  historia  e, 
como  o  mundo  já  se  não  lembra  de  ti,  nenhum  alvi- 
çareiro  se  deu  ao  trabalho  de  farejar  o  teu  rasto.  A 
sociedade  interessa-se  simplesmente  pelos  grandes  es- 
cândalos dos  altos  personagens.  E  preciso  que  um 
sujeito,  que  enriqueceu  no  tráfico  da  escravatura, 
saiba  a  chronica,  quasi  similhante,  d'um  outro  que 
chegou  á  opulência  pelo  fabrico  das  notas  falsas.  Isto 
ó  preciso  para  que  a  sociedade  se  «respeite»  e  para  que 
se  fechem  umas  bocas  com  medo  das  iras  d'outras 
muitas.  D 'aqui  a  necessidade  do  romance  escandaloso, 
o  único  que  tem  leitores  e  compradores  em  Portugal. 
A  tua  historia  era  uma  historia  simples  e  honesta, 
uma  liistoria  que  podia  correr  desde  o  collegio  até  ao 
convento,  duas  casas  onde  a  corrupção  não  é  permit- 
tida  por  lei . .  .  Fallei  em  ti  e  na  menina  do  tope  ver- 

* 


100 


melho,  que  ó  hoje  tua  esposa.  Contei  a  historia  do 
laço  com  pequeno  desvio  da  verdade,  e  a(;abei  por  di- 
zer que  era  muito  de  suppor  que,  á  hora  em  que  eu 
escrevia,  andasses  tu  a  cuidar  do  quintal  ou  dos  pe- 
rus. Yejo  que  me  encanei.  O  teu  quintal  sahiu-me 
nm  jardim,  a  julgar  pelo  que  descubro  d'esta  janella. 
Supponho-me  em  Montmartre  á  beira  dos  alegretes  de 
Alphonse  Karr.  Nem  as  flores  te  faltam  n'este  paraizo  ! 

—  São  os  melhores  livros,  as  flores  —  disse  Rodri- 
go. —  Livros  que  a  natureza  escreveu  em  paginas  de 
mil  cores  e  com  mil  diversas  tintas.  Amo  as  flores 
pelo  que  ellas  são  e  não  pelo  que  os  homens  querem 
que  ellas  sejam.  Tenho  alli  na  estante  livros  de  botâ- 
nica, comprados  em  outro  tempo ;  escuso  de  te  dizer 
que  nunca  os  abri.  Estão  ao  pó  d'outros  de  mathema- 
tica,  que  só  folheei  uma  vez,  como  sabes,  e  que  fechei 
para  sempre,  quando  o  professor,  que  era  um  sujeito 
de  muitas  philosophias,  declarou  do  alto  da  sua  repu- 
tação que  a  minha  negação  para  os  algarismos  impor- 
tava absoluta  inaptidão  para  tudo.  Anda  visitar  as 
minhas  flores,  todas  as  que  eu  tenho,  porque  minha 
mulher,  com  o  nosso  filhinho  ao  pó  de  si,  deve  estar 
a  esta  hora  no  jardim.  Has  de  jantar  comnosco  e, 
depois  do  café,  iremos  sentar-nos  ao  pó  da  capellinha 
de  SanfAnna.  V)  lá,  diante  d'aquolle  panorama  deli- 
cioso, que  eu  te  quero  contar  o  pouco  (pie  tu  ignoras 
da  minha  vida. 

Descemos  ao  jardim. 

Encontrei  a  esposa  de  Rodrigo,  sentada  á  sombra 
d'um    caramanchel,  trabalhando  em  crochet.  Tinha  a 


101 


seu  líido  o  filhinho,  todo  vestido  de  branco,  sentado 
n'unia  cadeira  de  brados.  Kra  um  quadro  de  família 
que  inspirava  respeito. 

Júlia  estava  modestamente  vestida.  Tinha  um  ves- 
tido de  chita  alegre  e  clara,  guarnecido  nos  punhos  e 
no  pescoço  por  uma  renda  fina  mas  estreita.  O  cabello 
dividia-se  em  duas  tranças,  que  livremente  cabiam 
pelas  costas  abaixo.  Não  ha  vestir  mais  modesto  com 
tamanha  elegância,  e,  permitta-se-me  o  substantivo, 
com  tamanha  frescura,  palavra  que  usam  as  mulheres 
com  grandissima  propriedade,  quando  querem  fallar 
de  certos  vestidos  graciosos  e  humildes. 

A  esposa  de  Rodrigo  era  ainda  a  creatura  formosa 
que  eu  vira  debruçada  na  janella,  dois  annos  antes. 
Tinha  o  mesmo  colorido  nas  faces,  a  mesma  alegria  nos 
olhos,  e  a  mesma  serenidade  no  semblante. 

Passei  algumas  horas  felizes  n'aquelle  santuário ; 
conversamos  de  tudo  o  que  nos  lembrava,  borbole- 
teando  d'assumpto  para  assumpto. 

Depois  de  jantar,  acorapanhou-me  Rodrigo  á  ca- 
pellinha  de  SanfAuna.  Sentamo-nos  no  banco  de 
pedra  que  se  encosta  ao  oratório,  e  ficamos  por  algum 
tempo  embellezados  na  paizagem  que  a  natureza  nos 
desdobrava  diante  dos  olhos. 

Foi  Rodrigo  o  primeiro  a  quebrar  o  silencio. 

—  Olha  —  disse-me  elle.  —  Quando  te  chegar  ás 
mãos  um  livro  impregnado  de  má  philosophia,  não  o 
leias.  Nota,  porém,  que  designo  por  má  philosophia 
esta  corrupção  desbragada  que  já  começava  a  envene- 
nar a  sociedade  nos  meus  tempos  de  solteiro,  e  que 


102 


actualmente,  segundo  dizes,  ameaça  absorver  a  huma- 
nidade inteij"a.  Não  creias  no  progresso  que  principia 
por  insultar  a  mulher,  por  aniquilar  a  familia,  por 
offender  a  igreja  e  por  zombar  de  tudo  o  que  ha  de 
mais  casto  e  santo  n'este  mundo.  Vê  se  podes  fugir 
da  lepra  que  vai  lavrando,  e  onde  a  Providencia  te 
mostrar  uma  alma  cândida  e  boa  fica  ahi,  meu  amigo, 
embebecido  n'esse  templo  sacratissimo,  sem  saudades 
do  mundo  exterior,  das  suas  tempestades  e  dos  seus 
tumultos.  Eu  sahi  da  minha  aldeia  com  a  alma  fechada 
para  os  maus  sentimentos.  Queria  conhecer  o  mundo  e 
tinha,  ao  mesmo  tempo,  um  certo  medo  de  o  conhecer 
de  perto.  Quando  do  alto  d' um  monte  vi  de  longe  os 
pinheiros  da  minha  aldeia,  tive  saudades  d'elles  e  estive 
para  retroceder,  mas  animou-me  uma  esperança  vaga 
que  me  enchia  o  coração  e  que  era  indubitavelmente 
o  prenuncio  da  felicidade.  Atravessei  o  mundo  sempre 
a  pensar  nos  pinheiraes  da  minha  terra,  e  fui  cami- 
nhando até  encontrar  um  sitio  que  me  fizesse  lembrar 
da  serenidade  austera  do  meu  Douro  e  onde  encon- 
trasse alguém  que  me  faltava  lá.  Aqui  achei  esse  sitio 
e  aqui  fiquei ;  aqui  encontrei  o  paraizo  e  o  anjo  que 
me  aguardavam  lia  muito.  O  anjo,  bem  sabes  tu,  era 
a  menina  do  tope  vermelho.  Foi  verdadeiramente  uma 
vaga  da  fortuna  que  nos  ajuntou.  Vi-a  e  amei-a.  Has 
de  lembrar-te  d'ella,  meu  amigo,  d'e]la,  aquella  visão 
(la  fita  encarnada,  fita  que  eu  ainda  conservo  no  meu 
relicário  intimo.  Nunca  eu  soube  vasar  na  palavra  o 
sentimento.  D'essa  vez,  poróm,  senti-rae  poeta.  Escrevi 
uns  versos  a  Júlia  e   mandei-lh'os ;   os  versos  eram 


103 


simj)losmento  um  podido.  A  resposta  foi  o  topo  ciicar- 
iiiido  ([lio  lho  prendia  a  trança.  Júlia  tinha  attendido  a 
um  oaprioho  de  namorado. 

—  Aproveito  a  oceasião  —  atalhei  eu  —  para  to 
pedir  perdão  d'uma  deslealdade  que  me  pesa.  Possuo 
os  teus  versos. 

—  Nflo   te   acredito  —  replicou  de  golpe  Rodrigo. 

—  Acredita  e  perdoa.  Copiei-os  ha  dois  aunos,  do 
teu  álbum,  emquanto  esperava  na  sala.  Doeu-me  que 
ficassem  para  sempre  na  obscuridade  e  quiz  possuil- 
os,  confiando  na  tua  amizade,  Rodrigo. 

—  Pois  bem  —  continuou  elle.  —  Deves  então  sa- 
bei' o  resto.  Júlia  substituiu  o  laço  encarnado  por  ou- 
tro azul.  Tive  a  velleidade  de  o  querer  possuir 
também.  Escrevi-lhe  ainda  estes  versos  —  disse-me 
elle  tirando  do  bolço  o  seu  album-carteira. 

Li  e  copiei,  com  assentimento  de  Rodrigo,  os  ver- 
sos que  se  intitulavam  : 

COR  DO  CÉO 

Olha,  a  fita  cor  de  rosa, 
Que  te  pedi,  era  linda. 
Mas  talvez  que  seja  ainda 
Mais  bonita  a  que  puzeste. 
Cor  do  céo,  azul  celeste! 

Tinha  aquella  a  corda  rosa, 
—  Era  d' uma  cor  tão  fina, 
Que  enganara  a  mariposa, 
Se  a  encontrasse  na  campina 


N 


104 


Suspensa  sobre  uma  haste. 
—  Tinha  a  cor  que  tu  mostraste, 
Quando  eu  te  pedi  a  fita 
E  tu,  dando-m'a,  coraste... 


Vê,  pois,  como  era  bonita! 

Todas  as  urnas  cheirosas 
Que  o  mez  de  abril  nos  descerra 
Teem  aquolla  cor.  Na  terra 
São  assim  todas  as  rosas. 


O  azul  ó  raro  nas  flores  ; 
Que  o  Pae  que  tudo  nos  deu 
Variou  no  mundo  as  cores 
Mas  quiz  o  azul  para. . .  o  céo. 


Pintor,  quanto  mais  tu  pintas 
Dando  ao  quadro  um  quê  d'ethereo. 
Na  combinação  das  tintas 
Não  attinges  o  mysterio 
Com  que  o  Divino  Pintor 
Preparou  tão  linda  cor  ! 


Não  sei,  ó  anjo,  se  tenho 
Diante  dos  olhos  um  véo  ; 
Ou  se  a  cor  que  tem  a  fita 
Tanto  a  cor  do  céo  imita 
Que  as  não  discrimino  ou ; 
Ou  se  n'uma  noite  o  vento. 
Descendo  do  firmamento. 
Trouxe  um  retalho. . .  do  céo  1 


105 


Dá-iii'a.  Sabes  quo  mo  faltam 
As  azas  d' um  chorubim. 
Tu  pódos  subir  ao  cóo, 
Trazer  do  lá  mais  setim, 
Mas  eu  não  posso,  mas  eu... 


Querem  uns  o  céo  inteiro 
Para  si ;  tenho-o  ouvido. 
Sou  menos  interesseiro, 
Limito  mais  o  pedido. 
Eu. . .  dava  o  prazer  mais  doce 
Por  um  retalho . . .  que  fosse. 


—  A  belleza  do  pedido  assegurava  d'ante-mao  um 
óptimo  resultado,  meu  Rodrigo. 

—  A  belleza  não ;  deves  dizer  a  sinceridade.  Júlia 
deferiu  ainda  e  euviou-me  a  fita  cor  do  cóo,  perfu- 
mada com  os  aromas  dulcíssimos  das  suas  tranças 
negras.  Depois  tive  pena  de  ver  despida  d'enfeites 
aquella  cabeça  gentil,  e  enviei-lhe  uma  grinalda  de 
flores  de  laranjeira,  na  véspera  do  dia  marcado  para  o 
casamento.  . .  Foi  ao  declinar  da  tarde  que  se  celebrou 
a  cerimonia  religiosa.  Affluiu  á  porta  da  igreja  a  po- 
voação inteira.  O  pae  de  Júlia  foi  um  homem  do  mar, 
um  capitão  de  navios,  que  era  bemquisto  de  todos,  e 
esta  boa  gente  da  beira-mar  continua  a  consagrar  á 
filha  a  dedicação  que  tributou  ao  pae.  Eram  rapazes  e 
raparigas,  homens  e  mulheres  por  toda  a  parte.  Foi 
um  dia  de  festa  em  Leça.  A  tarde  estava  serena  e  a 
noite  vinha  plácida.  Quando  sahimos  da  igreja,  o  tio 
Paulo,    um  pescador  velho   e  agradável,  chegou-se  a 


106 


nós  e  (iisse-nos :  —  Boa  viagem  os  espera.  O  céo  está 
limpo  e  o  mar  6  de  rosas.  Com  tão  bons  prenúncios 
nunca  eu  receei  tempestades.  Hão  de  ser  muito  felizes, 
que  m'o  diz  o  coração.  Yão  em  paz. 

—  O  tio  Paulo  foi  um  vidente  —  exclamei  eu. 

—  Se  foi !  —  acrescentou  Rodrigo  —  Se  foi !  Por 
aqui  ficamos  n'estas  solidões  da  beira-mar,  que  para 
logo  se  povoaram  de  fadas  encantadas.  Era  o  cortejo 
que  precedia  a  chegada  do  nosso  filhinho.  Hei  de  ii* 
agora  com  minha  mulher  e  meu  filho  visitar  as  mon- 
tanhas da  minha  terra.  Quero  dizer  a  Júlia,  quando 
lá  chegar  : —  Detraz  d*aquelles  pinheiros  ha  uma  casa 
de  campo  onde  também  não  entrou  ainda  a  corrupção 
da  cidade.  Alli  foi  o  meu  berço. 

Em  março  d'este  anno  partiu  a  familia  de  Rodrigo 
para  Sinfães.  Lá  devem  de  estar  a  esta  liora,  na  Casa 
dos  olivedos,  sem  que  Rodrigo  tenha  dado  ainda  pela 
falta  do  visinho  commendador  e  do  visinho  deputado. 

Porto — junho  de  1869. 


NO  HluSSAOO 


Em  18G6  fiz  eu  parte  d'uma  tumultosa  caravana 
de  romeiros  que  partia  da  qare  das  Devezas,  por  uma 
formosa  tarde  de  junho,  em  direcção  ao  santuário  ve- 
nerando do  Bussaco.  Esta  nossa  divertida  romagem 
tinha  quasi  o  caracter  d'uma  emio-ração  d'andorinhas 
que  se  fossem  deliciar  u'aquella  primavera  eterna  do 
Libano  portuo*uez,  tão  copada  de  sombras  e  c^orgeada 
de  cantares  festivos.  Chegamos  de  noite  á  Mealhada  e, 
como  quizessemos  adiantar  caminho,  partimos  para 
Luso.  Alii  pernoitamos  nós  na 

HOSPEDARIA    LUZITANNA 

NAS    GAZAS 

DE    \ASILI0  FERNANDES  lORZE 

como  constava  textualmente  da  taboleta  estampada  na 
fachada  do  hotel. 

A    orthoo-rapliia    irregular    do    nosso    hospedeiro 


108 


corria  parelhas,  segundo  experimentamos  e  segundo 
eu  pregoei  para  desengano  dos  incautos  n'um  folhe- 
tim do  Camjjeão  das  Provincms,  com  a  irregulari- 
dade culinária  do  serviço  da  casa.  Deram-nos,  pois, 
os  da  hospedaria  uma  desastrosa  ceia  que  faria  o  de- 
sespero do  doutor  Yéron. 

Nós  todos,  os  romeiros  da  caravana  e  um  académi- 
co de  Coimbra,  cujo  nome  sou  obrigado  a  occultar,  fo- 
mos as  victimas  expiatórias  da  inexperiência  culinária 
do  cosinheiro  de  Luso. 

Não  ha  meio  para  estreitar  relações  d'amizade  como 
a  similhança  de  destinos  em  pessoas  até  alii  desconheci- 
das. Foi  exactamente  o  que  nos  aconteceu  a  nós  e  ao 
académico  de  Coimbra.  No  fim  da  dissaborida  refeição 
não  só  estávamos  conhecidos,  senão  também  amigos.Logo 
traçamos  em  commum  o  roteiro  da  nossa  peregrinação. 
Ficaram  peitados  os  criados  para  que  levantassem  ce- 
leuma ao  desabrochar  da  manhã.  Aquelle  de  nós  que 
se  quedasse  refocillado  no  leito,  depois  do  aviso  es- 
tridulo, incorria  na  pena  de  madraço  exarada  no  có- 
digo que  para  logo  formulamos,  reunidos  em  areópago. 

Ao  entreluzir  da  primeira  aurora,  espertaram-nos 
os  criados.  Nenhum  de  nós  incorreu  na  pena  estatuída; 
houve  completo  respeito  ao  código. 

Os  Índios  não  acatam  de  certo  mais  religiosamente 
os  seus   Vedas. 

Quando  sahimos  do  hotel,  começava  a  animar-se 
a  natureza  e  a  pompear  as  suas  galas  esplendidas.  Do 
Luso  ao  Bussaco  foi  verdadeiramente  um  passeio  bu- 
cólico. 


109 


O  aradomico  de  Coimbra  tiiilia  vindo  alli  innumo- 
ras  vozes  o  para  loí^-o  se  oneroccii  como  riccrotic.  (riiia- 
(los  por  elle  subimos  a  montanha  sem  esbarrarmos  por 
raminhos  travessios.  Ale^c;res  marinhamos  a  coberto 
(l^aqueUas  immensas  abobadas  de  verdura,  que  se  nos 
alVii:;uram  suspensas  no  ar  como  os  jardins  de  Baby- 
lonia,  até  que  defrontamos  com  o  humilde  cenóbio  dos 
carmelitas  descali,'OS. 

A  respeito  do  mosteiro  do  Bussaco  escrevia  eu  a 
um  amigo  intimo,  em  186G,  no  Canipeão  das  Provín- 
cias, as  palavras  que  se  seguem : 

«Subindo  a  um  terrapleno  assombreado  de  fron- 
dosas arvores,  entramos  ao  mosteiro  por  um  zagão 
calçado  de  seixos  e  forrado  a  cortiças,  aberto  em  trez 
arcos  de  cantaria  sobre  os  quaes  assenta  a  fabrica  hu- 
milissima  da  casa.  Em  frente  do  arco  central  do  zagão 
dá  de  rosto  a  porta  do  claustro :  eis  que  nos  ap pare- 
cem logo,  como  para  iniciar-nos  nos  segredos  da  clau- 
sura, os  painéis  mal  allumiados  de  dois  religiosos  da 
ordem.  «  O  da  mão  direita,  ua  expressão  de  frei  João 
do  Sacramento,  está  abraçado  d'uma  cruz,  mj^sterioso 
indicio  de  que  ó,  o  que  dentro  unicamente  se  abraça. 
O  da  esquerda  está,  como  fechando  a  boca  com  dois 
dedos,  aceno  claro  de  silencio,  que  alli  inviolavelmente 
se  observa. »  O  que  te  não  posso  explicar,  meu  amigo, 
é  a  impressão  suavemente  dolorosa,  que  nos  assalta  a 
alma  no  meio  d'aquella  simplicidade  extrema  e  serena 
melancolia  do  mosteiro.  Mal  acredita  a  gente  que  vai 
entrar  em  domicilio  de  frades,  ao  ver  a  pobreza  do 


110 


Zcigão  que,  se  não  foram  os  seus  trez  arcos  de  canta- 
ria almofadados  a  picão  com  frisos  de  escopro,  faria 
apenas  lembrar  a  entrada  para  a  gruta  d'algum  des- 
conhecido eremita,  que  fizesse  vida  de  penitencia  no 
retiro  d'aquelle  monte. 

Mas  ao  entrarmos  no  claustro,  meu  amigo,  onde 
se  respira  em  tudo  um  perfume  de  tristeza,  ao  vermos 
pendentes  das  paredes  os  retratos  li  vidos  dos  monges 
mal  allumiados  da  escassa  claridade  que  alli  entra,  no 
meio  d'aquelle  frio  silencio  de  casa  deshabitada,  que- 
brado apenas  pelo  som  monótono  dos  nossos  passos, 
então,  como  dizia,  sentimos  os  olhos  humedecidos 
de  lagrimas  e  os  pés  como  que  chumbados  ao  lagedo 
do  pavimento.  Ficamos  alli  como  que  petrificados,  in- 
decisos, absortos,  sem  saber  se  devemos  continuar 
a  visita  áquella  casa,  que  tem  os  ares  d 'um  tumulo 
de  vivos,  se  devemos  sahir  para  respirar  desafogada- 
mente no  meio  da  montanha.  Custou-nos,  de  certo, 
muito  mais  o  entrarmos  alli,  porque  vínhamos  de 
fora  com  os  oUios  affeitos  ao  alegre  espectáculo  d'a- 
quella  festa  bucólica,  que  a  natureza  nos  apresenta 
em  todo  o  monte,  e  com  os  ouvidos  já  costumados 
aos  cantares  dulcíssimos  das  aves.  E'  por  isso  que  nos 
foi  muito  mais  sensivel  e  oppressivo  o  contraste. » 

Depois  de  termos  visitado  demoradamente  o  mos- 
teiro o  a  igreja,  caminhamos  para  o  norte,  descendo 
ao  valle,  e  chegamos  á  Fonte  fria,  cuja  agua,  !io  dizer 
de  frei  João  do  Sacramento,  clironista  da  ordem,  sendo 
tein2Je?'ada  de  inverno,  escusa  neve  de  verão. 


111 


Alii,  n'ess{i  sohibni  deliciosissimii  dii  Iuj)tl(t  fria, 
acampou  a  nossa  caravana.  Travoíi-sc  conversa(,'ão 
animada,  c  nem  ou  sei  como  viemos  a  fallar  dos  ho- 
mens políticos  que  as  tempestades  civis  da  nossa  terra 
deportaram  para  o  Bussaco.  Citaram-se  os  nomes  do 
cardeal  D.  Carlos,  que  alli  esteve  por  ordem  do  govei-no 
(^m  1821,  do  arcebispo  de  Braga  D.  Frei  Miguel  da 
Madre  de  Deus,  do  bispo  de  Pinhel  D.  Bernardo  Bel- 
trão e  de  Galvão  Palma,  prior  da  freguezia  de  Mon- 
saraz, ([ue  alli  estiveram  retidos  por  motivos  politicos 
'>m  diíierentes  épocas. 

—  E  quantos  —  disse-me  o  académico  de  Coimbra 
—  não  teem  vindo  esconder  n'estas  sombras  do  Bus- 
saco o  segredo  das  muitas  lagrimas  em  que  deixaram 
afogar  o  coração !  D'um  sei  eu,  que  deveu  morrer 
n'este  sitio  em  que  estamos.  A  vida  d'esse  pobre  i"apaz 
dava  matéria  que  farte  para  um  livro.  Hei  de  contar- 
llra,  antes  de  nos  separarmos. 

—  Pode  ser  hoje  de  tarde  —  i-epliquei  eu. 

—  Seja  —  respondeu-me  elle.  —  Vamos  descançar 
para  o  mosteií-o  doestas  calmas  do  meio  dia.  De  tarde 
voltaremos  aqui  e  contar-lhe-hei  a  historia.  Está  pa- 
ctuado. 

11 

Estávamos,  o  académico  e  eu,  na  Fonte  fria^  á 
hora  saudosa  do  sol-pôr ;  elle  deixava  entrever  no 
semblante  uma  sombra  de  tristeza,  e  eu  mal  podia 
comprimir  a  anciedade  que  me  excitava. 


112 


—  O  heroe  da  historia  que  lhe  von  contar  —  dis- 
se-me  elle  —  era  um  rapaz  da  minha  aldeia,  que  fre- 
quentava o  quarto  anno  juridico,  e  a  quem  eu  fui  re- 
commendado,  quando  entrei  para  a  Universidade.  Como 
sabe,  tiro  este  anno  carta  de  bacharel;  vai,  pois,  isto 
ha  cinco  annos.  Era  um  rapaz  de  mão  cheia,  como 
se  costuma  dizer.  Chamava-se. . .  Quero  eu  que  se 
chame  Eugénio  da  Silveira.  Tinha  elle  uma  grande 
intelligencia  e  um  grande  coração.  Veja  que  era  uma 
d 'estas  creaturas  que  nascem  para  a  desgraça  como 
certas  flores  que  desabotoam  de  noite,  sempre  cober- 
tas d 'orvalhos,  que  são  lagrimas,  e  sempre  saudosas  do 
sol,  que  ó  a  felicidade.  E  uma  verdadeira  desgraça 
nascer  um  homem  com  um  coração  cuja  delicadissima 
sensibilidade  se  não  pode  afferir  pelo  padrão  commum 
da  humanidade.  Eugénio  da  Silveira  tinha  alguns  raros 
momentos  d'alegria  em  que  lograva  conversar  com  ver- 
dadeira jovialidade,  borboleteando  da  facécia  á  satyra 
e  da  satyra  ao  epigramma.  De  repente, porem,  descahia 
n'uma  tristeza  profiindissima  e,  n'esses  momentos  de 
concentração,  não  havia  arrancar-lhe  palavra.  Poucos 
dias  depois  d'elle  ter  concluido  brilhantemente  os  seus 
actos,  dava  eu  de  mão  aos  trabalhos  do  primeiro  anno 
juridico.  Sahimos,  pois,  ambos  de  Coimbra  em  direcção 
á  nossa  aldeia. 

Eugénio  da  Silveira  tencionava,  porem,  ir  a  ba- 
nhos do  mar  para  a  Foz,  em  agosto.  Sahiu  de  Coim- 
bra n'esse  propósito  e  chegou  a  realisal-o. 

Quando  eu"  voltei  a  Coimbra  para  matricular-me 
nas  aulas  do  segundo  anno,  vi-o  lá. 


113 


—  Tom  estudo  na  Foz?  —  porfiou ntei-llic  eu. 

—  Vim  de  lá  liontem  e  para  lá  volto,  lo^í^o  que 
mo  matricule.  Ainda  não  sei  bem  quando  se  abrirão 
as  aulas.  Se  fica  por  aqui,  avise-me  do  dia  da  abertura. 

—  Avisal-o-hei.  Fique  certo. 

b]screvi  a  Eugénio  da  Silveira,  quando  começaram 
as  aulas.  Ficamos  a  habitar  na  mesma  casa  e  ate  no 
mesmo  quarto.  Notei,  porém,  alguma  differença  no 
Eugénio.  Pareceu-me  mais  triste  ou  mais  alheado. 
Rai-as  vezes  entrava  n'um  cavaco  de  rapazes  e  raríssi- 
mas n'uma  questão  scientifica,  que  se  ventilasse  á 
hora  do  jantar.  Nas  ferias  do  Natal  sahiu  de  Coimbra 
o  disse-me  que  seguia  para  o  Porto. 

—  Quer  alguma  coisa  para  lá  ?  —  perguntou-me 
elle,  no  dia  da  partida. 

—  Se  o  não  incommódo,  queria. 

—  O  que  era  ? 

—  Uma  carta  para  a  viuva  do  negociante  Teixeira 
Pinto. 

—  Conhece-a  ? — atalhou  de  golpe  Eugénio,  re- 
cuando e  fitando  em  mim  os  seus  grandes  olhos  cas- 
tanhos. 

—  Conheço.  Foi  uma  das  companheiras  da  meni- 
nice de  minha  mãe.  Esta  carta  leva  o  meu  retrato  e  o 
por  isso  que  eu  desejava  entregal-a  a  portador  de  con- 
fiança. 

—  O  seu  retrato  ?  —  insistiu  Eugénio. 

—  O  meu  retrato.  Quando  vim  para  Coimbra,  vi- 
sitei-a  por  ordem  de  minha  mãe.  Quasi  me  não  lem- 
brava d'ella.  O   certo  6  que  se  reataram  as  relações 

8 


114 


antigas.  Instou  a  viuva  pelo  meu  retrato  para  o  seu 
álbum  e  eu  prometti-o,  com  a  condição  de  o  mandar 
de  Coimbra  porque  me  tinham  esquecido  todos  os  re- 
tratos que  tenho.  E  já  tempo  de  cumprir  a  minha 
promessa. 

—  Que  sentimento  lhe  inspiraram  as  filhas  da  ve- 
lha amiga  de  sua  mãe,  se  ó  licito  perguntar  ? 

— ^  O  do  respeito  simplesmente.  Achei-as  dignas  de 
estima  e  de  felicidade.  Oxalá  que  ellas  a  encontrem. 
A  mãe  deu-me  a  entender  que  estava  próximo  o  ca- 
samento da  Maria  do  Carmo  com  um  sujeito  endi- 
nheirado. 

—  Não  pode  ser  —  exclamou  Eugénio,  mostrando 
nas  faces  uma  pallidez  cadavérica. —  O  senhor  está 
abusando  da  minha  curiosidade  sincera.  Maria  do 
Carmo  ama-me  —  concluiu  elle,  accentuando  as  pala. 
vras  gravemente. 

—  Perdão — tornei  eu  entre  humilde  e  pesaroso. — 
Mil  perdões.  O  senlior  Eugénio  da  Silveira  sabe  que 
me  inspira  a  máxima  estima  e  que  sou  incapaz  de 
abusar  da  sua  sinceridade. 

—  Tem  razão  —  amaciou  elle  com  os  olhos  mare- 
jados de  lagrimas.  —  Eu  sou  que  devo  pedir  perdão. 
Excitei-me  n'um  momento  d'angustia,  mas  de  verda- 
deira angustia,  acredite.  Agora  absolva-me.  Eu  amo 
Maria  do  Carmo  desde  os  últimos  dias  d'agosto  d'este 
anno.  Tinha-a  visto  uma  vez  na  minha  vida,  no  Porto, 
o  desde  então  conservei  uma  lembrança  vaga,  mas 
suave,  d'a(iuclla  mulher.  Em  agosto  quiz  Deus  que 
nos  encontrássemos  e  cuido  que  nos  ficamos  amando 


115 


para  toda  a  vida.  8e  Maria  do  Carmo  vai  casar  não 
o  sabe ;  estou  certo  d'isso.  K  incapaz  de  me  en^^anar 
aquelle  anjo.  Tenho  aqui  uma  carta  d'ella  em  (juo 
me  pede  que  vá  vôl-a  nas  ferias.  Hei  de  ir.  (^uero 
saber  a  verdade  e...  morrer  depois.  Dè-me  a  sua 
i'arta  ;  ii'ei  entre^"al-a  pessoalmente. 

Apertamo-nos  as  mãos  e  separamo-nos. 


m 


Quando  Euí;"enio  da  Silveira  voltou  a  Coimbra  — 
continuou  o  académico  —  pareceu-me  vellio.  Disso-me 
que  tinha  entregado  a  minlia  carta  e  que  encontrara 
em  casa  da  viuva  Teixeira  Pinto  o  sujeito  indigitado 
para  noivo  de  Maria  do  Carmo. 

—  Lá  o  vi  — disse  Eugénio.  —  O  senhor  tinha  ra- 
zão. Cuido  que  a  viuva  está  inclinada  para  este  casa- 
mento e  que  levará  a  sua  crueldade*  ate  o  extremo 
de  sacrificar  o  coração  e  a  vida  da  fillia.  Pudemos, 
eu  e  Maria  do  Carmo,  disfarçar  as  nossas  relações 
diante  da  viuva.  Apresentei-me  como  um  homem  ver- 
dadeiramente desconhecido  e  trocamos  apenas  pala- 
vras cerimoniosas.  Estou  todavia  no  propósito  d'ir 
pedil-a  em  casamento  nas  ferias  da  Paschoa ;  será 
minha  no  fim  do  anno  lectivo. 

Decorreram-se  mezes  sem  que  Eugénio  da  Silvei- 
ra recebesse  carta  de  Mai-ia  do  Carmo.  Escrevia-lhe 
regularmente  e  não  recebia  resposta.  Offereci-me  para 
saber  por  minha  mãe  a  verdade  do  que  se  passava. 


116 


x^ào  quiz.  O  pobre  moço  tinha  medo  de  se  desenganar. 

—  Estão  próximas  as  ferias  —  disse-rae  um  dia. 
—  Irei  eii  mesmo.  Maria  do  Carmo  ainda  não  casou; 
cstá-m'o  dizendo  o  coração.  Comtudo  receio  por  ella, 
que  é  crédula  e  pode  dar  ouvidos  ás  infâmias  que 
levantarem  a  meu  respeito,  se  6  que  suspeitaram  das 
nossas  relações. 

Eugénio  da  Silveira  veio  ao  Porto  e  não  viu  Maria 
do  Carmo.  Dizia-se  que  casava  com  o  sujeito  indigi- 
tado. Eis  tudo  o  que  pôde  colher.  Quando  voltou  a 
Coimbra,  lançou-se  nos  meus  braços  e  desatou  a  cho- 
rar. Fazia  pena  vel-o.  Era  preciso  que  eu  o  acompa- 
nhasse para  que  fosse  ás  aulas ;  de  contrario  não  ia. 

Entretanto  definhava  consideravelmente  e  tinha 
cabido  n'uma  melancolia  perigosa.  Fazia  annos  por 
esse  tempo,  o  Eugénio.  No  dia  natalício  brindára-o  a 
velha  esposa  do  seu  correspondente,  que  era  amiga 
de  sua  mãe,  com  um  ramo  de  flores. 

Em  agradecimento  ás  flores  escreveu  Eugénio  es- 
tes versos,  que  eu  decorei  e  que  não  chegaram  a  ser 
lidos  pela  pessoa  para  quem  tinham  sido  escriptos. 


AGKADECENDO  AS  FLORES 

(no  dia  dos  meus  annos) 


Mandaes-mo,  senhora,  ílôros 
—  Bom  sabeis  quanto  as  eu  amo. 
Tão  variadas  nas  coros ! 
Lindas  rosas  I  hndo  ramo  ! 


117 


Foi  bom  acertada  a  escolha, 
Quo  os  tem|)oraos  do  janeiro 
Desfizeram  folha  a  folha 
As  galas  do  meu  jardim. . , 
Está  viuvo  o  jardineiro. . . 
Olhai  o  pobre  de  mim  ! 

Y\  chegar  o  abril  florido, 
Que  vem  sempre  prazenteiro, 
Sempre  lindo  e  bem  vestido. 
Ai !  mas  não  chegaram  ainda 
As  flores  do  meu  canteiro  ! 
Vejo  que  chega  e  que  finda 
Este  mez  de  tantas  flores 
Sem  que  me  traga  comsigo 
Os  meus  tão  queridos  amores  ! . . 
Nem  abril  é  meu  amigo ! 

A  vossa  offerta,  comtudo, 
Engana  a  minha  pobreza.  .  . 
Tenho  flores  sobre  a  mesa, 
E  ó  bem  mais  suave  o  estudo 
Quando  as  tenho  ao  pé  de  mim  ! 
Pobres  flores  !  sou  assim  ! 

Mas  ai  !  quando  eu  vir  pendido 
O  vosso  ramo,  senhora  ! 
Yêr  que  está  tudo  perdido  ! 
Não  ter  o  que  tive  outr'ora  ! 
Baldada  toda  a  canceira  ! 
Toda  a  seara  desfeita  ! 
De  risos. . .  a  sementeira  ! 
De  maguas. . .  toda  a  colheita  ! 

Senhora,  vivo  captivo 
De  mil  lembranças  passadas. 
É  de  saudades  que  eu  vivo. . . 
Esp'ranças,  essas., ,  mirradas! 


118 


Estou  pobre  e  pasmo  agora 
De  ver  tamanha  pobreza  ! 
Olho  toda  a  redondeza . . . 
Não  vejo  nada  de  meu  ! 
Tantas  ílôres  na  montanha  ! 
Tantas  estrollas  no  céo  ! 
—  Ai  !  que  pobreza  tamanha  ! 

O  mundo  tão  opulento 
E  só  eu  me  vejo  assim  ! 
Ha  astros  no  firmamento. 
Tem  flores  qualquer  jardim. 
Nada  é  meu,  pobre  de  mim  ! 

Ai  !  quanto  me  não  penhora 
A  vossa  oííerta,  senhora  ! 

Mas  eraquanto  estas  viçarem 
Não  serei  pobre. .  .  de  flores. 
Depois,  mal  que  descorarem, 
Adeus  rosas  !  —  meus  amores  !  — 
Comtudo  inda  espero  tel-as  ** 

Das  mais  tristes  e  singelas, 
Boninas  d'inculto  chão, 
Ao  pó  d'aquelle  cruzeiro 
Onde  tanto  caminheiro 
Pára  a  fazer  oração   . . 

Que  triste  seria  o  somno  ] 

De  que  níío  se  acorda  mais, 

Sc  as  pobres  ílôres  da  serra 

Deixassem  ao  abandono 

Os  sete  palmos  de  terra 

Onde  todos  são  iguaes  ! . . . 


119 


l)'ossas  esporo  indíi  tol-as   . . 
líom  hajaos,  ílòros  singelas, 
Pobres  ílôros,  bem  hajaos  I 


Vi  quo  se  aggravavam  os  padecimentos  de  Eugé- 
nio e  não  só  avisei  o  correspondente  mas  noticiei  para 
a  minha  aldeia. 

Yeio  a  Coimbra  o  irmão  mais  velho  de  Eugénio, 
que  era  o  senhor  da  casa  e  quiz  trazel-o  para  o  Bus- 
saco,  ainda  com  o  risco  de  perder  o  anno. 

Teimou  o  doente  que  não  sahiria  sem  concluir  o 
curso  e  o  certo  6  que,  com  grave  sacriíicio  da  sua 
pouca  saúde,  terminou  a  formatura.  A  esse  tempo 
cliegou  a  Coimbra  uma  carta  de  Maria  do  Carmo  para 
elle.  O  pobre  moço  mostrou-m'a.  Dizia-lhe  que  tinha 
conseguido  apiedar  a  mãe,  que  tinha  soffrido  muito  e 
que  entrevia  de  novo  a  felicidade,  que  julgara  perdi- 
da. Percebi  que  o  Eugénio  não  podia  escrever  sem 
grande  esforço  e  disse-lhe  que  escreveria  em  seu  nome 

—  Xão  respondo  —  volveu-me  elle.  —  Eu  morri 
para  o  mundo.  A  mulher  que  eu  amava,  morreu  tam- 
bém para  mim.  Não  me  falle  no  nome  d'ella  para  não 
evocar  recordações  dolorosas.  Esperei  muito  tempo 
que  me  escrevesse ;  vi  finalmente  que  não  tinha  que- 
rido roubar  á  sua  felicidade  um  momento  em  que  tra- 
çasse duas  palavras.  A  sua  felicidade  disse  eu;  e  disse 
bem.  Ella  deve  ter  sido  feliz  com  os  sorrisos  do  es- 
poso promettido.  Como  o  senhor  vai  para  ferias — 
concluiu  elle  —  dê  ordem  cá  em  casa  para  queimarem 
todas  as  cartas  que  me  sejam  dirigidas. 


120 


Os  irmãos  Silveiras  sahiram  de  Coimbra  commigo. 
Eu  viuhà  para  o  Porto  e  elles  ficaram  na  Mealhada ; 
d'alli  vieram  para  o  Bussaco. 

Na  véspera  da  nossa  partida,  pediu  Eugénio  ao 
irmão  que  o  deixasse  fazer  a  mala.  O  irmão  annuiu, 
suppondo  que  elle  quereria  guardar  cautelosamente 
as  cartas  de  Maria  do  Carmo.  Como  o  visse,  porém, 
lançal-as  ao  fogo,  suspeitou  do  caso  e  foi  remexer  na 
mala. 

Encontrou  um  reivolver  escondido  entre  uns  casa- 
cos e  uns  livros. 

—  Eugénio  !  —  disse-lhe  o  irmão  com  gesto  repre- 
hensivo —  Procuravas  enganar-me !  Não  te  queiras  dar 
em  holocausto  aos  teus  algozes.  O  mundo  diz  que  o 
suicídio  é  filho  da  loucura,  e  tu  deves  querer  que  o 
mundo  saiba  que  morreste  em  teu  juizo  para  conde- 
mnares  até  o  ultimo  momento  a  deslealdade  trai(;oeira 
da  mulher  que  amaste. 

—  Eu  não  condemno  ninguém  —  respondeu  Eu- 
génio. 


IV 


—  8eparei-me  de  Eugénio  da  Silveira  na  Mealhada 
'  com  a  convicção  profunda  de  não  tornar  a  vôl-o  — 
disse-me  o  académico  com  os  olhos  húmidos  de  lagri- 
mas. —  Quando  cheguei  ao  Porto  puz  todo  o  meu 
empenho  em  não  perder  um  momento,  antes  de  pro- 
curar a  viuva  Teixeira  Pinto.  Fui  visital-a ;  ao  subir 
as  escadas  senti  uma  vertigem,  que  me  fez  demorar 


121 


no  patamar  ali^uns  monientus.  Anniinciuu-me  o  criado 
e  Maria  do  Carmo,  ouvindo  o  meu  nome,  correu  í\ 
sala.  Achei-a  demudada,  cm  verdade.  Tinha  os  olhos 
roixos  de  chorar  e  as  faces  cobertas  d'uma  pallidez 
marmórea. 

—  Onde  está  o  Eugénio  ?  —  interrogou  ella  anciosa- 
raente,  ao  entrar  na  sala. 

—  No  Bussaco,  minha  senhora,  e  cuido  que  não 
voltará. 

—  Está  doente?  Morre  ? 

—  Penso  que  não  resistirá  ao  desgosto  incom men- 
surável que  o  vai  matando  lentamente.  Para  vossa 
excellencia,  porém,  já  morreu  ha  muito  tempo. 

—  Julga-me  então  criminosa  ?  —  disse  ella,  dando 
á  phrase  a  vehemencia  do  desespero. 

—  Julga. 

—  Sabe  Deus  que  o  não  sou. 

—  E  vossa  excellencia  que  provas  tem  em  seu 
favor  ? 

—^0  testemunho  da  consciência. 

—  Todavia  a  consciência  é  um  tribunal  cuja  de- 
cisão não  chega  ao  mundo  exterior. .  . 

—  É  infelizmente  verdade  isso.  Deus  sabe,  porém, 
que  amei  sempre  o  Eugénio. 

—  Por  que  lhe  não  escrevia  então  ? 

—  Porque  m'o  prohibia  minha  mãe.  Porque  me 
tinha  vigiada  a  toda  a  hora.  Porque  me  tinha  encer- 
rada iresta  casa  como  em  clausura  onde  mal  entrava 
o  sol. 

—  Por  que  não  reagiu  ? 


122 


—  E  podemos  nós  reagir  contra  a  vontade  de  nossa 
mãe  ?  —  perguntou  ella  com  uma  timidez  adorável. 

—  Que  dúvida  ?  Quando  a  superioridade  chega  ao 
extremo  d'impôr  deveres  ao  coração,  quando  nos  que- 
rem levar  para  um  futuro  que  nos  repugna,  quando 
usam  da  força  em  vez  da  brandura,  a  reacção  6  legi- 
tima, porque  a  obediência  era  o  servilismo  mais  in- 
digno d'este  mundo. 

—  Cale-se,  que  nos  podem  ouvir  —  murmurou  ella 
timidamente. 

—  Que  oiçam,  muito  embora.  Eu  sei  que  sua  mãe 
ó  boa,  minha  senhora,  e  é  por  isso  que  lamento  que 
tenha  o  espirito  ainda  eivado  d'estes  preconceitos  so- 
ciaes.  Cada  alma  procura  o  seu  rumo,  como  a  agulha 
procura  o  norte.  As  almas  não  se  subjugam ;  é  um 
crime  tentar  subjugal-as.  Todos  nós  caminhamos  para 
o  nosso  fim,  desenvolvendo  as  nossas  faculdades.  Ha 
em  nós  uma  faculdade  d'amar;  amemos,  pois.  Querer 
abafar  em  nós  a  sensibilidade,  6  querer  dominar  a  nossa 
natureza.  O  que  é  o  amor?  O  amor,  como  diz  Ale- 
xandre Herculano,  aquelle  grande  pensador  do  Eurico, 
ó  «o  mais  profundo  e  enérgico  dos  affectos  humanos, 
o  amor,  que  une  dois  espíritos  como  dois  fragmentos 
de  um  todo,  os  quaes  a  Providencia  separou  ao  lan- 
çal-os  na  terra,  e  que  devem  buscar-se,  unir-se,  com- 
pletar-se,  até  irem  depois  da  morte  formar  talvez  uma 
só  existência  de  anjo  no  seio  de  Deus. »  Não  queira- 
mos nós  neutralisar  esta  força  de  cohesão  que  tende 
a  identificar  duas  almas  na  suprema  harmonia  dos 
espíritos.   Sei   bom  que  a  mãe  de  vossa  excellencía  ó 


123 


um  coraçHo  nobilíssimo.  Leva  talvez  a  pobre  scnliora 
as  suas  horas  a  pensar  no  futuro  das  duas  pombas  do 
sou  lar,  que  desde  meninas  ató  moças  lhe  toem  sido 
delicias  e  cuidados.  Sonhou  de  certo,  n'uma  d'essas 
horas  de  profundo  cogitar,  que  entreviu  a  felicidade 
d'uma  das  suas  filhas  dilectas,  e  acenou  de  longe  á 
imagem  que  sonhara  e  que  não  passava  d'um  phan- 
tasma. 

—  É  verdade  —  disse  ao  entrar  na  sala  a  mãe  de 
Maria  do  Carmo,  que  ouvira  as  minhas  ultimas  pala- 
vras. —  E  verdade.  Imaginei  que  a  affeição  de  minha 
filha  fosse  apenas  um  capricho  dos  vinte  annos,  que 
se  vencesse  facilmente  com  uma  opposição  temporária. 
Enganei-me,  porém,  e  Deus  sabe  que  profundas  amar- 
guras me  estão  dilacerando  o  coração  n'esta  hora 
d 'expiação  suprema. 

Pobre  Eugénio  !       murmurou  Maria  do  Carmo, 
abafada  em  la2:rimas. 

—  Pobre  Eugénio  —  repeti  eu.  —  Está  irremedia- 
velmente perdido.  A  vida  do  desventuroso  moço  é 
apenas  o  bruxolear  extremo  da  lâmpada  que  se  ex- 
tingue. E  que  importava  que  uma  força  sobrenatural 
o  salvasse?  O  Eugénio  tem  o  caracter  dos  grandes 
pensadores:  é  propenso  á  dúvida.  As  lagrimas  d'estas 
duas  pobres  senhoras  que  me  escutam,  não  poderiam 
desfazer  a  nuvem  tenebrosa  que  lhe  escurece  a  alma. 
A  duvida  é  fria  como  o  gelo,  sombria  como  a  noite: 
e  o  Eugénio  duvidou  uma  vez,  o  que  equivale  a  dizer 
que  duvidaria  toda  a  vida. 

—  Meus   Deus  !  —  exclamou   Maria  do  Carmo  — 


124 


Quero  vêl-o.  Quero  vêl-o  e  dizer-lhe  que  sempre  o 
amei,  embora  elle  não  acredite  nas  minhas  palavras. 
Se  morremos  meus  braços,  pedirei  á  sua  alma  que  me 
perdoe  e  jurar-lhe-hei  que  não  serei  de  mais  ninguém 
n'este  mundo.  Oh  !  minha  mãe,  deixe-me  vêl-o  uma 
vez . . . 

—  Vêl-o-has,  minha  filha.  Yel-o-has — disse  a  po- 
bre senhora  abraçando-se  em  Maria  do  Carmo. 

—  Comprehendi  —  concluiu  o  académico  —  que 
a  minha  presença  era  importuna  n'aquelle  momento 
solemne,  e  sahi  de  casa  da  viuva  Teixeira  Pinto  com 
o  coração  alanceado  de  tristeza. 


Y 


—  Contou-me  o  irmão  de  Eugénio  da  Silveira  tudo 
o  que  se  passou  desde  a  minha  visita  á  viuva  Teixeira 
Pinto  até  ao  desfecho  lutuoso  d'este  drama  —  dis- 
se-me  o  académico. 

O  pobre  Eugénio  tinha  cahido  n'uma  melancolia 
profunda  e  vivia,  se  6  própria  esta  palavra,  completa- 
mento absorto  no  seu  único  pensamento.  Pouco  dor- 
mia e  quasi  não  fallava,  o  desgraçado  moço ;  ao  aba- 
timento moral  succedôra  uma  lethargia  que  tinlia 
aniquilado  a  immensa  robustez  da  sua  compleição 

Ao  Hm  da  dardo  costumava  vir,  pelo  braço  do  ir- 
mão, sentar-so  aqui  ao  pó  da  fonte,  quem  sabe  se  n'este 
mesmo   banco   em   que  nós  estamos,  se  n'aquelle  que 


125 


nos  fica  fronteiro.  Aqui  se  quedava  esquecido  a  scis- 
mar  |3or  loni;'o  tempo,  com  os  olhos  fitos  n'um  ponto 
(jue  seria  ditficil  determinar,  e  onde  Deus  sabe  se  elle 
veria  sorrir-se-lhe  o  anjo  da  morte  ou  delinear-se-llie 
a  imai;em  saudosa  de  Maria  do  Carmo  ainda  contor- 
nada d'uma  luz  suave  como  a  dos  últimos  clarões  d'um 
crepúsculo  do  estio. 

Vèl-a-ia  elle  n'aquelle  meditar  de  todas  as  tardes  ? 
Quem  sabe?  Eu  inclino-me  para  ahi.  O  nosso  coração 
6  assim.  Morremos  a  beijar  a  mão  que  nos  vibrara  no 
seio  a  punhalada  e  que,  momentos  antes,  diri^í^ia,  no 
mar  da  vida,  o  leme  da  arca  santa  da  nossa  alma. 

Xunca  ninguém  viu  que  o  Eugénio  chorasse.  Ti- 
nlia  os  olhos  sêccos  e  o  coração  cheio  de  lagrimas.  O 
irmão  senta va-se  por  aqui,  perto  d'elle,  a  contem plal-o 
com  a  vista  embaciada  de  pranto.  Para  esse  6  que  era 
o  chorar. 

Quando  se  apagava  no  occidente  o  ultimo  raio  de 
sol,  levantava-se  o  Eugénio,  como  se  não  tivesse  já 
luz  para  ver  a  imagem  querida,  ou  como  se  o  amedron- 
tassem a  escuridade  e  a  solidão,  que  o  faziam  lembrar 
talvez  da  noite  do  tumulo,  que  estava  próxima. 

Então  os  dois  irmãos  davam-se  o  braço  e  voltavam 
ao  mosteiro,  calcando  as  folhas  soltas  no  chão  e  ca- 
minhando por  entre  as  sombras  que  se  abraçavam  aos 
troncos  seculares. 

Devia  de  ser  magestoso  aquelle  grupo ! 

Aqui  interrompeu  o  moço  académico  a  narração 
como  para  desenhar  na  imaginação  os  vultos  dos  dois 


126 


irmãos   e,  n'esse  momento,  vi-lhe  os  olhos  brilhantes 
de  lagrimas. 

Pouco  depois  continuou : 

—  Devo  tel-o  fatigado  com  a  minha  historia,  mas 
prometto  abrevial-a. 

Uma  tarde  estavam  aqui  os  dois  irmãos  Silveiras; 
o  Eugénio  a  scismar,  o  outro  a  contemplal-o. 

O  Eugénio  accordou  n'esse  dia  muitíssimo  peior  e  - 
custára-lhe  até  chegar  ao  seu  pouso  de  todos  os  dias. 
Estava,  pois,  o  irmão  a  contemplal-o,  quando  ouviu 
perto  o  rumor  de  passos.  Ergueu  a  cabeça  subitamente 
e  viu,  a  pequena  distancia,  duas  senhoras  que  se 
aproximavam. 

Uma  d'ellas,  n'esse  momento,  correu  precipitada- 
mente para  Eugénio  e,  ajoelhando-se-lhe  aos  pés  e 
apertando-lhe  os  braços  para  que  levantasse  a  ca- 
beça, exclamou  com  anciã : 

—  Eugénio!  Eugénio!  Sou  eu  que  te  venho  dizer 
que  sempre  te  amei  e  que  estou  innocente.  Eugénio! 
Ycs-me?  Conheces-me?  Olha  para  mim  sequer... 

Então  elle,  como  que  despertando  d'um  somno 
profundo,  empregou  um  esforço  supremo  para  se  sol- 
tar dos  braços  d'ella,  e  levou  as  mãos  aos  olhos  para 
sacudir  uma  nuvem  que  lhe  turbava  a  vista. 

Encarou  em  Maria  do  Carmo  e,  fazendo  menção 
de  se  levantar,  exclamara  apenas : 

—  Ah  !  E'  pois  certo  ! 

Quiz  levantar-se  e  não  pôde.  Cahiu  extenuado  nos 
braços  do  irmão  e  da  viuva  Teixeira  Tinto.  Houve 
uma  pausa  de  silencio  entre  os  trez  espectadores. 


127 


Passados  momentos,  ergueu  a  fronte  lentamente 
e  fitou  de  novo  Maria  do  Carmo. 

—  Perdôa-me  —  murmurou  ella.  —  Perdôa-me  que 
estou  innocente. 

O  Eugénio  qui/  falUir  e  já  não  teve  vida  para 
tanto.  Meneou  a  cabeya  atfirmati vãmente  e  cahiu 
morto  no  regaço  de  Maria  do  Carmo. 


O  académico  e  eu  ficamos  largo  tempo  calados. 

—  Maria  do  Carmo  —  disse-me  elle  momentos 
depois  —  está  n'um  convento  de  Braga,  d'onde  jurou 
não  saij-.  O  cadáver  de  Eugénio  da  Silveira  repoisa  no 
cemitério  da  minha  aldeia,  que  também  era  d'elle,  em 
caixão  de  chumbo.  Se  o  senhor  for  algum  dia  visitar 
as  montanhas  da  minha  terra,  e  eu  lá  estiver,  verá  como 
ha-de  achar  coberta  de  flores  a  sepultura  do  Eugénio. 
Sou  eu  que  liras  vou  lá  pôr.  Tenho  ainda  muito  viva 
no  coração  a  saudade  d'aquelle  homem  e  a  memoria 
d'este  drama. 

Porto— 18G9 


o  MORGADO   DO   URGAL 


Fui  visitar,  ha  dias,  os  pardieiros  do  Urgal.  Vi- 
sitar não  6  a  expressão  própria.  Da  lomba  do  outeiro 
próximo  é  que  eu  avistei  a  casa  em  ruinas,  sotoposta 
a  um  souto  de  castanheiros  seculares. 

A  Ludovina,  uma  lépida  pequerrucha  que  tem 
sido  o  meu  fidus  Achates  n'estas  peregrinações  pela 
aldeia,  acompanhou- me  ao  sitio  onde  cheguei  e  mos- 
trou-me  a  casa,  de  longe,  com  a  sua  pequenina  mão 
queimada  do  sol,  dizendo-me :  —  E  acolá. 

Senti  apertar-se-me  o  coração  diante  d'aquellas 
ruinas.  O  telhado  está  desmantelado,  os  caixilhos  des- 
conj  unctados,  e  as  janellas  cuido  que  trancadas  para 
sempre.  Algumas  trepadeiras  foram  marinhando  pelas 
paredes  e  calafetando  providencialmente  as  juncturas 
abaladas  da  frontaria. 

Pedi  á  Ludovina  que  me  levasse  d'alli ;  estava-me 
fazendo  mal  aquillo. 


130 


Descemos  o  outeiro,  embetesgarao-nos  por  uns 
atalhos  pedregosos  e  fomos  dar  ao  casebre  da  Laiza. 
da  Grranja.  O  pae  de  Ludovina,  avisado  pelo  estré- 
pido  dos  passos,  sahiu  ao  quinteiro  a  receber-me. 

—  Guarde-o  Deus,  sor  fedalgo  —  disse  elle.  —  E 
ha  de  perdoar  o  modo  como  appareço.  Isto  são  nódoas 
de  vinho  novo  —  continuou,  indicando  as  manchas 
arroxeadas  da  camisa. — Temos  andado    na  vindima^ 

—  Essa  é   boa,  Manoel  1    Yocê  está  em  sua   casa. 

—  Mas  lá  como  diz  o  outro,  a  gente  deve  andar 
limpa.  Ora  ó  verdade.  O  caso  é  que  se  não  fosse  a. 
curgidade  de  saber  a  historia  do  morgado  do  Urgal, 
como  me  disse  cá  a  pequena,  ficávamos  d'esta  vez 
sem  ver  o  fedalgo! 

É  de  notar  que  a  palavra  fidalgo,  em  boca  de  ho- 
mem do  campo,  é  synonyma  de  cidadão.  E  não  deve 
estranhar-se  que  elles  nos  concedam  voluntariamente 
^ôro  de  nobreza,  n'uma  época  em  que  os  governos  o 
estão  barateando  abel-prazer.  O  que  me  admira  ó  que 
se  não  anteponham  a  quaesquer  outros  no  gozo  d'estas 
e  quejandas  honrarias ;  sobejavam-lhes  razões  de  pre- 
ferencia. . . 

—  É  verdade,  Manoel,    vamos  á  historia,    se  tem 
occasião  para  isso. 

—  Sim,  senhor,    vamos    lá.    Está-me   fervendo    o 
vinho  no  lagar;  agora  não  ha  que  fazer. 

Sirva  isto  d'introducção  á  biographia  do  morgada 
do  Urgal. 


t 


131 


O  pae  de  Miguel  Soares,  de  quem  se  trata,  era 
Cosme  Soares,  lavrador  activo,  intelligente  e  laborioso, 
que  frequentara  em  tempo  as  aulas  de  Lamego  e  que, 
lembrado  ainda  d'umas  regras  de  latim  que  lá  apren- 
dera, incitava  os  caseiros  e  os  criados  ao  trabalho  dos 
campos  apontando-lhes  esta  máxima  :  Dulce  post  la- 
Ijorein. 

Tinha  Cosme  Soares,  quando  rapaz,  ura  tio  abbade 
na  freguezia,  já  velho  e  rheumatico,  irmão  do  pae, 
que  dera  de  conselho  ao  irmão  mandar  o  sobrinho 
ordenar-se  a  Lamego  no  intento  de  que,  por  sua  morte, 
ficaria  o  rapaz  provido  na  abbadia.  Foi  Cosme  Soa- 
res para  Lamego,  a  despeito  da  mãe  que  o  não 
queria  fora  de  si,  pelo  muito  que  o  amava.  Vencidas 
as  difficuldades  da  lingua  pátria,  viu-se  Cosme  Soa- 
res a  braços  com  a  sphinge  medonha  da  litteratura 
d'aquelles  tempos  —  o  latim. 

Pôde  vencel-a,  porém,  e  preparar-se  quasi  ma- 
chinaímente  para  as  aulas  de  theologia,  quando  um 
accidente  inesperado  veio  pôr  em  sobresalto  o  coração 
do  pae  afflicto  e  dar  rebates  de  alegria  no  seio  aman- 
tíssimo da  mãe. 

Cosme  Soares  estava  namorado. 
Era   uma  senhora    de  Lamego,  formosa    e  rica,  a 
mulher  seductora  que  logrou  prender  nas  algemas  sua- 
víssimas do  amor  o  coração  do  moço  estudante. 

Soube-o  o  pae  de  Cosme  e  dispunha-se  a  resistir 
violentamente  á  vontade  do  filho,  dias  antes  de  lhe 
chegar  ás  mãos  uma  carta  d'elle  em  que  o  moço  de- 
clarava  renunciar    reflectidamente,   segundo    dizia,  a 

* 


I 


132 


uma  vida  para  que  não  tinha  vocação  natural.  O  pae 
regoiigou  de  cólera  ;  acudiu-lhe,  porém,  ao  escabujar 
violento  a  carinhosa  esposa.  Parecia  que  o  velho  per- 
sistia no  propósito  de  ordenar  o  filho.  Mas  era  diffe- 
rente  o  parecer  da  mãe,  que  soube  vencer  a  repu- 
gnância do  marido  e  do  cunhado,  o  abbade,  aformo- 
sentando  na  phantasia  d'arabos  o  quadro  exuberante 
de  poesia  domestica  em  que  Cosme  Soares  apparecia 
ao  lado  da  esposa  formosissima  e  dos  filhos  peque- 
ninos, que  sorriam  de  felicidade  aos  avós  e  ao  tio 
abbade. 

Pôde  a  mãe  de  Cosme  Soares  vencer  o  pleito  a 
favor  do  filho.  Fecharam-se  os  livros  e  casou-se  o  rapaz. 
Houve  completa  alegria  na  casa  do  Urgal,  quando 
Cosme  Soares  e  a  esposa  apontaram  á  porta  ladeada 
de  caseiros  e  criados. 

Não  veio  sombra  de  temporal  —  graças  a  Deus ! 
—  escurecer  o  firmamento  alegre  d'este  hymeneu. 

O  caso  é  que  d'ahi  a  dois  annos  realisavam-se  as| 
prophecias   da    mãe  de   Cosme :    era  já   avó   de    dois 
netos. 

Chamavam-se  os  pequenos  Miguel  e  Manoel ;  Miguel 
era  o  mais  velho. 

O  tio  abbade  quasi  não  sentia  o  rheumatismo 
de  contente  que  andava.  O  pae  de  Cosme  Soares  re- 
via-se  nas  graças  seductoras  das  creanças,  e  a  esposa, 
mais  solícita  do  que  elle,  levantava-se,  noite  velha, 
para  ir  espreitar  os  netos  e  achegar-lhes  das  cabeças 
loiritas  a  coberta  d'algodão. 

O  tio  abbade  e  o  irmão  não  lograram  chegar,  po- 


133 


róm,   á   maioridade  dos    rapazes;  morreram  com   pe- 
queno intervallo  de  um  a  outro. 

N'esse  tempo  tinha  Miguel  dezesete  annos  e  Ma- 
noel dezeseis. 

Cosme  Soares,  a  mãe,  e  a  esposa  vieram  ao  accordo 
de  que  Miguel  se  formasse  em  cirurgia,  favorecendo 
d'este  modo  a  posição  de  Manoel,  que  ficaria  olhando 
e  vigiando  as  propriedades.  Eram  causa  doesta  resolu- 
ção o  génio,  a  intelligencia  e  o  desamor  de  Miguel  á 
agricultura. 

Foi  o  rapaz  estudar  para  o  Porto  e  Manoel  come- 
çou a  orientar-se  na  direcção  da  casa  e  nos  trabalhos 
do  campo. 

Ao  tempo  que  Miguel  Soares  sabia  victorioso 
das  suas  primeiras  lides  litterarias,  dava  a  alma  ao 
Creador  a  velhinha  septuagenária,  que  era  sua  avó. 
Por  esta  occasião  escrevia  Manoel  Soares  ao  irmão, 
dizendo-lhe: 

«  Se  estás  arrependido,  apesar  dos  teus  progressos 
e  da  tua  intelligencia^  da  posição  que  escolheste, 
vem. 

«  A  casa  tua  é ;  eu  sou  apenas  administrador  e  com 
isso  me  contento.  Sabes  que  não  ^enho  aspirações. » 

Miguel  Soares  leu  a  carta  do  irmão  e  não  veio ; 
respondeu  simplesmente: 

« Eu  estou  bem.  Vive  tu  a  teu  modo  e  vela  por 
nossos  pães. » 

Yamos  nós  agora  esmiunçar  qual  era  o  —  bem-es- 
tar  ■ —  do  estudante,  no  Porto. 

O  leitor,  vesado  a  quejandos  enigmas,  deslinda-se- 


134 


magistralmente  d'este.  Succedêra  a  Miguel  Soares  o 
que,  annos  antes,  acontecera  era  Lamego  a  seu  pae. 

Amava  também. 

Ai !  o  amor !  E  quem  haveria  ahi  que  pudesse  resis- 
tir ao  labutar  constante  da  intelligencia,  ás  noites  des- 
veladas sobre  os  livros,  se  n 'estas  agruras  do  estudo 
lhe  não  entreluzisse,  a  espaços,  o  vulto  luminoso  da 
mulher  querida  ?! 

Miguel  Soares  amava;  e  n'esta  phrase  se  resume 
um  céo  de  felicidades  e  esperanças,  raro  aguadas  por 
uma  chuva  de  lagrimas,  a  qual,  na  peior  hipothese, 
servia  para  fazer  brotar  e  reverdecer  novas  felicidades 
e  novas  esperanças. 

As  lagrimas  que  seccam,  que  esterilisam,  que  re- 
queimam  o  coração,  essas  deviam  chegar  mais  tarde;  e 
chegaram. 

Acompanhemos  Miguel  Soares  n'um  dos  dias  mais 
angustiados  da  sua  mocidade,  até  á  porta  da  aula.  E  de 
notar  que  Miguel  Soares  vai  de  luto ;  morreu-lhe  o  pae, 
o  velho  Cosme  Soares,  o  honrado  e  laborioso  proprie- 
tário. 

Morreu  elle,  abraçado  á  esposa,  abençoando  o  des- 
tino dos  filhos,  á  hora  em  que  Manoel  cahia  no  leito 
enfermo  d'uma  ascite,  que  o  levou  á  sepultura  d'ahi 
a  oito  mezes  e  quinze  dias  antes  de  Miguel,  alanceado 
■de  saudades  e  de  mágoas  suas,  longe  do  torrão  em  que 
nascera,  chorar  as  primeiras  lagrimas  torrenciaes  da 
sua  vida. 

Miguel  Soares  tinha  um  amigo  intimo ;  era  um  seu 
•condiscípulo.  Acompanhemol-o,  pois,  n'esse  dia  até  á 

f 


130 


porta  da  aula,  durante  o  curto  espaço  da  parlanda  nos 
corredores. 

—  Que  soubeste  tu  ?  —  perguntou  a  Miguel  Soares 
o  condiscípulo  precipitadamente. 

—  Está  peior;  muito  peior — respondeu  tristemente 
Miguel. 

—  Quem  t'o  disse  ? 

—  A  criada,  esta  manhã. 

N'este  momento  entrava  o  professor ;  o  dialogo 
íicou  interrompido. 

Elucidemos  o  leitor. 

Desaninhára-se  a  serpente  da  desgraça  do  seu  antro 
d 'escuridão  e  viera  empeçonhar  com  a  baba  immunda 
os  roseiraes  floridos  do  paraizo  de  duas  almas. 

Grassavam  a  esse  tempo,  no  Porto,  as  febres  vario- 
losas.  A  mulher  que  Miguel  Soares  amava  do  intimo 
d'alma,  a  única  que  elle  entrevia,  na  solidão  do  seu 
quarto,  nas  horas  do  estudo,  essa,  digo  eu,  cahira  no 
leito,  moça  e  formosa,  para  se  levantar  d'elle  desfigu- 
rada com  as  marcas  profundas  que  lhe  crivavam  a  face. 

Diziam  os  moços  conhecidos  de  Miguel  Soares,  com 
grave  injustiça  ao  seu  caracter  e  á  sua  alma  d 'elle,  que 
abandonaria,  n'aquelle  estado,  a  mulher  que  tinha 
amado  bella  e  formosa  entre  as  outras  que  mais  o 
eram. 

Não  aconteceu  assim. 

Foi  longa  a  doença  e  longa  a  convalescença  tam- 
bém. Miguel  Soares  escrevia  todos  os  dias  á  doente 
para  saber  do  seu  ^estado ;  a  resposta,  porém,  vinha 
quasi  sempre  escripta. 


136 


Instou  por  fallar-lhe,  quando  viu  que  poderia  obter 
o  que  pedia. 

Conseguira  elle   que  a   senhora  assentisse,  emfira. 

Escreveu-lhe  ella  indicando  a  hora  da  entrevista; 
o  papel,  porém,  vinha  húmido  de  lagrimas. 

O  homem  da  Luiza  da  Granja,  que  me  referiu  a 
historia  de  Miguel  Soares,  substituiu,  n'este  lance,  as 
palavras  por  lagrimas.  Eu  não  sei  pintar  tamanha  dor; 
imagine  o  leitor  o  que  seria  aquella  entrevista. 

Foi,  supponho  eu,  um  chorar  anciado  e  afflictivo,. 
um  soluçar  magoado  da  mulher  que  perdeu  para  sem- 
pre a  mocidade  e  a  belleza,  e  do  homem  que  procura 
certifical-a  de  que  para  elle  a  belleza  e  a  mocidade 
eram  exiguos  attractivos. 

Não  vingaram,  porém,  razões. 

Entrou-se  a  consternada  senhora  de  desgosto  pro- 
fundíssimo. Nunca  mais  se  avistou  com  Miguel  Soares ; 
entretanto  escrevia-lhe  e  fallava-lhe  do  céo  e  do  hyme- 
neu  de  duas  almas,  que  veriam  lá  alvorecer  a  sua  au- 
rora de  felicidade. 

Uma  d'essas  cartas  foi  a  ultima;»  a  mulher,  que 
Miguel  Soares  amava,  voou  para  o  mundo  dos  espíritos. 

Elle,  o  desgraçado  moço,  fugiu  com  a  sua  dor  e 
com  os  seus  livros  para  o  regaço  de  sua  mãe,  que  cho- 
rava, a  esse  tempo,  saudades  eternas  d'outro  filho. 

De  dia,  Miguel  Soares  assistia  compadecido  e  ca- 
rinhoso ao  declinar  da  infeliz  velhinha;  de  noite,  liaj 
ou  velava,  entrevendo  a  imagem  saudosissima  nas  vi- 
gílias da  leitura  e  nas  insomnias^da  febre. 

Miguel  Soares  viveu  assim  seis  mezes. 


137 


A  coiisumpçíío  foi  lenta.  Ao  cabo  d'esse  tempo, 
poróm,  a  alma  de  Miguel  Soares  foi  realisar  no  paraizo 
o  hymeneu  aprasado. 

Sahiu  da  quinta  do  Urgal  a  viuva  de  Cosme  Soa- 
res amparada  ao  braço  d'um  criado.  Dizia  ella  que  ia 
morrer  a  Lamego  no  seio  de  dois  irmãos  que  tinha, 
tragando  saudades  dolorosissimas  do  marido  e  dos 
filhos. 

E  lá  morreu. 

Os  irmãos  da  defunta  senhora,  herdeiros  d'ella, 
respeitaram  e  respeitam  ainda  a  casa  fatal,  que  foi 
tumulo  d'uma  familia  inteira.  Não  lhe  puzeram  mão 
reformadora ;  seria  doloroso  para  elles  o  remexer 
n'aquelle  acervo  de  cinzas  e  ruinas. 

Quinta  de  Villa  Verde  —  11  de  setembro  de  1868. 


II 


PEREGRINAÇÕES  N'ALDEA 


Este  livro  é  verdadeiramente  aldeão.  Nasceu 
d' uma  saudade  —  a  saudade  dos  occasos  e  das  alvo- 
radas d' uma  aldeã  —  e  anima-se  d'uma  esperança  —  a 
de  ser  lido  nos  alegres  serões  d'aquellas  serras,  que  o 
Í7ispirarani.  Costumei-7ne  a  viver  no  campo  desde  peque- 
no. Soxello^  uma  aldeiola  que  se  não  encontra,  talvez, 
na  calota  de  Portugal^  era  tudo  o  que  podia  haver  de 
suavemente  delicioso  para  a  minha  infância,  «mea 
regna»,  como  diria  qualquer  estudantinho  de  latini- 
dade. 

Sol  fora,  quando  as  aves  davam  rebate  nas  rama- 
gens do  pomar,  levantava-me  para  ir  ter  com  os 
camponexes  tneus  amigos  e  mais  madrugadores  do 
que  eu.  Já  os  encontrava  na  safra  alegres  e  ififati- 
gaveis.  Conversávamos  todos  os  dias.  Eu  escutava-os, 
sentado  a  vêl-os  trabalhar,  e  elles,  sempre  cuidadosos 
na  tarefa,  contavam  casos  de  bruxas,  historias 
d'amores  e  tradições  do  sitio. 

Admirava-me  eu  de  que  ne7ihum  dos  ceifeiros 
aproveitasse  uma  aberta  para  se  queixar  da  sorte 
que  os  obrigava  ao  rude  trabalho  de  todos  os  dias,  e 


y 


de  que  tão  pequena  povoação  nos  pudesse  dar  assumpto 
de  sobra  para  tão  estiradas  palestras.  A  verdade  era 
que  trabalhavam  contentes  e  que  sempre  tinham  que 
dixer  e  contar.  Invejei-lhes  a  sorte  muitas  vexes  Cj 
quando  entrei  na  safra  das  lettras,  lembrei-me  dos 
ceifeiros  de  Soxello  e  senti  alegria.  Era  um  exemplo 
que  dava  confoi^to. 

Ao  anoitecer  ia  esperal-os  a  estrada  e  aconipa- 
nhava-os  até  que  cada  um  tomasse  pelo  caminho  de 
casa.  D' este  peregrinar  pela  aldeã,  ao  repontar  do  dia 
e  ao  cahir  da  noite,  é  que  nasceu  o  livro  que  hoje  se 
publica.  A  rusticidade  do  nascimento  não  lhe  dá  azo 
para  largas  ambições,  e  sou  eu  o  primeiro  a  dizer 
que  não  as  te^n.  Que  me  leiam  em  Soxello  e  dar-me- ' 
hei  por  bem  pago.  Que  me  leia  o  nosso  regedor.,  um 
mocetão  intelligente,  que  faria  rir  os  meus  amigos 
do  Porto,  se  ouvissem  discretear  reflectidamente  de 
litteraturas  antigas  e  modernas  a  um  homem  de  botas 
de  montar,  jaqueta  de  caçador  e  am,plo  chapéu 
desabado.  Afflz-me  a  medir  os  regedores  por  aquclla^ 
bitola  e  confesso  á  puridade  que  não  pude  ainda  topar 


outro  regedor  que  servisse, . .  para  cabo  de  policia, 
O  que  é  certo  é  que  o  «nosso  regedor  » ,  como  lá  se  dix, 
é  um  lavrador  de  boas  lettras,  que  passa  as  noites 
d'inverno  sentado  á  sua  baiica  d'estudo. 

Que  me  leia  o  professor. . . 

Desconfio  do  êxito  d\im  livro  que  principie  por 
daguerreotfjpar  notabilidades  niontanhexas.  Seja  como 
for,  PEREGRINAÇÕES  N' ALDEÃ  é  o  titulo;  sirva  isso 
de  desculpa. 

O  j^rofessor  é  um  homem  chão,  que  ensina  pelo 
ntethodo  do  snr.  Castilho  e  que  se  delicia  com  ouvir 
cantar  os  rapazinhos  na  sua  escola.  Não  discursa 
philosophias  ás  creanças,  porque  nunca  lhe  paliaram 
u'essas  coisas,  e  empenha-se  por  ensinar  a  ler  e 
escrever  correctamente — o  que,  segundo  penso,  deve 
ser  a  suprema  condição  d' um  professor  dHnstrucção 
primaria. 

Esse  quer-me  parecer  que  hade  abrir  este  livro  e 
lembrar-se  d' um  rapazinho  de  sete  annos  que  peregri- 
nava por  aquellas  serras  com  os  camponezes  do  sitio 
—  o  qual  rapazinho  era  eu. 


Vão  passados  quatorxe  aimos  depois  dHsto  e 
durante  tão  longo  período  tenho  continuado  a  visitar 
a  aldeã  de  longe  a  longe. 

Não  encontro  nunca  diff crença :  a  mesma  sereni- 
dade e  o  mesmo  remanço.  Muitos  dos  camponezes  do 
logar,  que  eram  velhos  ha  quatorze  anrios^  morreram 
já.  Escuso  de  ijerguntar  por  iim  que  falte;  é  olhar 
para  o  cemitério  e  ver  uma  cruz,  a  mais. .  . 

De  resto  está  tudo  como  era :  Os  m.esmos  tectos 
colmados,  o  mesmo  presbyterio  voltado  ao  occidente 
e,  6771  opposição  ao  preshyte7'io^  a  77iesma  casa  de 
escola^  pequena  como  qualquer  cohiiea^  a  olhar  para 
o  levante,  que  é  d'o7ide  apparecem  os  ast7^os , . .  Sem- 
27re  se  7ne  affigurou  que  devera  ser  esta  a  verdadeira 
posição  das  escolas.  E,  de  manhã  ou  de  tarde,  os 
mes7nos  murmúrios  nas  ra7naxje7is,  a  mesma  festa  7io 
ar  e  a  mesma  t7^anquillidade  7io  coração! 


i 


Ju7iho  de  1870. 


os  SINOS  D'ALPENDUIIADA 


(ao  snr.  j.  j.  rodriguí:s  de  freitas) 


Os  sinos,  collocados  em  campaná- 
rio de  parochia  aldeian  ou  de  mosteiro 
solitário,  são  uma  coxisa  poética  e 
santa ;  os  sinos,  pendurados  nas  torres 
garridas  de  garridissimas  igrejas  das 
cidades  de  hoje,  são  uma  cousa  estú- 
pida e  mesquinha. 

ALEXANDRE  HERCULANO. 


Solidão,  tu  és  para  o  nosso  espirito  o  espelho  do 
passado,  o  eterno  livro  das  saudades  eternas.  Dos 
teus  cerros  desertos  vê  o  homem  perpetuamente  aberto 
diante  de  si  o  livro  angustioso  da  sua  vida  passada 
e  sente  sobre  o  peito  o  enorme  peso  do  tempo  que 
tem  vivido.  A  tristeza  e  a  saudade  são  tuas  filhas,  ó 
•solidão.  Não  ha  sentimentos  que  mais  pareçam  irmãos, 
porque  não  ha  tristeza  sem  a  consolação  da  saudade, 
nem  saudade  sem  o  travor  da  tristeza. 

É  pelas  horas  mortas  da  noite,  no  maior  silencio 

10 


146 


do  maior  dezerto,  que  o  nosso  espirito  anda  a  pairar, 
como  abutre  esfaimado,  sobre  os  mil  cadáveres  das 
gerações  que  foram. 

Com  ruinas  recompõe  o  homem  cidades,  com  ca- 
dáveres reorganisa  sociedades  e,  fazendo  estancar  a 
curso  da  existência  para  o  reatar  depois,  volta  sobre 
o  caminho  do  passado  e  segue  com  os  olhos  do  espi- 
rito as  mil  evoluções  das  sociedades  na  área  de  mil 
cidades,  que  se  levantam  do  tumulo,  como  corpos 
reanimados  por  milagre  da  sciencia. 

E  que  sciencia  é  esta?  O'  saudade,  ó  filha  da 
solidão,  és  tu  e  só  tu,  que  és  um  como  sentido  interna 
do  homem  e  vales  mais  do  que  todos  os  cinco  sentidos 
do  corpo  És  tu  e  só  tu,  ó  saudade.  O  corpo  humano 
é  uma  machina  d'abstracções,  disse  um  philosopho,  por- 
que cada  sentido  tem  aptidão  especial  para  determina- 
das percepções,  e  ó  o  nosso  espirito  que  chega  á  syn- 
these  reunindo  em  grupo  os  conhecimentos  abstractos. 
Apaguem  o  sol  e  digam  aos  olhos  que  vejam ;  não  dê- 
em ao  homem  a  possibilidade  de  transpor  as  distancias 
e  mandem-n'o  tactear  os  objectos  remotos.  Tu,  porém, 
vês  na  escuridão,  ó  saudade,  ouves  tudo,  tudo  sentes 
e  de  tudo  te  aproximas.  Embora  sejam  imperfeitos  e 
pouco  desenvolvidos  os  sentidos,  sempre  tu  sabes 
desenhar  intimamente  o  quadro  das  nossas  recordações 
com  a  mesma  clareza.  Não,  tu  não  estás  dependente  da 
matéria.  Como  o  homem  n'um.  sonho  ou  n'um  delirio, 
tens  sempre  a  mesma  sensibilidade,  sem  a  intervençãai 
dos  órgãos  externos  e  sem  a  acção  de  objectos  i-eaes 
Saudade,  tu  és  a   consciência...  do   passado.  Por  ti  s6 


147 


adquires  conliecimentos,  por  ti  só  chegas  á  synthese 
das  cousas,  por  ti  só  operas  milagres.  És  um  senti- 
mento ou  uma  ideia,  vives  no  coração  ou  no  cérebro, 
dize-me  quem  tu  és,  ó  saudade? 

Sinto  que  te  aproximas  de  mim  e  adivinho  a  tua 
mão  invisivel  a  apontar-me  para  as  solidões  do  monte 
grados,  que  se  debruçam  sobre  o  Douro,  namoradas 
da  corrente.  Vejo  d'aqui  alvejar  a  velha  casa  dos  pa- 
dres de  S.  Bento,  uma  legoa  acima  de  Eiitrnnbolos 
Rios^  como  dizem  as  chronicas,  entre  as  arvores  fron- 
dosas da  cerca  e  ao  lado  do  campanário  magestoso  do 
templo.  Os  últimos  clarões  do  sol  coroam  de  fogo  as 
montanhas  do  occidente.  Tudo  6  silencio  e  saudade. .  . 

Embaixo,  no  valle,  deslisa  sereno  o  rio.  Em  fren- 
te, na  margem  esquerda,  ergue-se  o  rústico  presbyte- 
rio  de  Sozello,  olhando  para  o  poente.  D'um  lado  e 
d'outro  do  Douro  fumegam  as  cabanas  e  as  casas  de 
campo.  Aproxima-se  a  noite  e  morre  o  dia. 

Ouvem-se  os  sinos  d'Alpendurada. . .  Trez  vezes 
soaram  vagarosos  e  sonoros.  Ave-Maria^  dizem  os  tra- 
balhadores que  voltam  da  safra,  descobri ndo-se  e  pa- 
rando . . . 


II 


Tinha  desabado  sobre  as  margens  do  Guadalete  o 
colosso  da  monarchia  visigótica  arreigado  ao  chão  das 
Hespanhas  pelo  lento  decurso  de  muitos  annos.  Estre- 
meceu a  Península  ao  desabar  do  gigante,  que  expel- 
lia    o  derradeiro  alento  pela  garganta  do  moribundo 


148 


Ruderico  e  que  sentia,  sobre  o  corpo  exhausto,  refer- 
ver a  onda  tumultuosa  da  soldadesca  musulmana.  Es- 
praiou-se  a  turba  ambiciosa  ao  longo  do  terreno  con- 
quistado, não  sem  frequentes  luctas  travadas  entre 
vencidos  e  vencedores,  não  sem  derrubar  as  barreiras 
que  empeciam  a  marcha  triumphante.  Havia,  porém? 
um  ponto  de  defeza,  que  não  tinha  sido  vencido ;  uma 
selva  de  franskisks  o  resguardava.  O  baluarte  inven- 
cível eram  as  montanhas  das  Astúrias.  Era  lá  que  um 
punhado  de  godos  mettia  hombros  á  molle  gigantesca 
da  multidão  agarena. 

Onde  não  appareceu  o  braço  de  Pelagio,  fácil  foi 
a  conquista.  Grande  era  a  matança  e  grande  era  a  mi- 
na. Serenada,  porém,  a  febre  da  victoria,  a  tolerância 
árabe  deixou  respirar  menos  anciosamente  a  popula- 
ção christã.  Todavia  a  raça  germânica  preparava  na 
obscuridade  a  guerra  da  reconquista  para  expulsar  da 
Península  o  leão  do  dezerto,  a  raça  semítica,  que  tinha 
arrastado  comsigo  o  luto  e  a  desesperação.  Então  os 
árabes,  conhecendo  a  reluctancia  da  sociedade  roma- 
no-goda,  faziam  pesar  sobre  as  cidades,  que  domina- 
vam, o  seu  jugo  de  ferro,  immenso  e  oppressor. 


III 


I 


Era  uma  formosa  dama  aquella  por  quem  se  mor- 
ria  d'amores  o  namorado  Munio  Viegas.  N'ella  só  pen-.  • 
sava,   a  ella  só  queria.  Senhor  de  vastas  propriedades 
nos  terrenos  próximos  d' Alpendurada,  estava  prestes 


149 


a  desposar  a  sua  noiva,  e  cada  dia  mandava  arreiar 
de  novos  brocados  a  alcova  nupcial,  que  preparava 
para  o  noivado. 

Quantas  noites  de  luar  não  passou  elle  a  olhar 
para  a  corrente  saudosa  do  Douro,  que  se  espreguiçava 
no  valle,  como  que  a  perguntar  ás  aguas  do  rio  se 
não  se  realisaria  emfim  o  hymeneu  desejado  ! 

O  verdadeiro  amor  tem  d'estas  maguas  e  d'estes 
doloridos  receios.  Parece  que  lhe  foge  o  mundo  e  o 
tempo,  porque  para  o  verdadeiro  amor  todo  o  mundo 
é  pequeno,  toda  a  eternidade  ó  breve.  .  . 

A  esse  tempo  o  sacerdote  Yelino  tinha  recebido, 
em  sonhos,  inspirações  celestes.  Uma  voz  sobrenatu- 
ral o  avisara  para  que  levantasse,  entre  a  Agoa  de 
irez  Sequeyros  e  das  Lagoas,  como  refere  o  tomo  se- 
gundo da  —  Benedictina  Lusitana  —  um  templo  votado 
a  S.  João  Baptista. 

Sentiu-se  Yelino  fraco  de  mais  para  tamanho  com- 
mettimento  e  chamou  em  seu  auxilio  a  Arguirio,  homem 
honesto  e  reverente  a  Deus.  Foram-se  os  dois  a  des- 
cobrir o  sitio  marcado  pelo  dedo  da  Providencia.  Yelino 
não  conhecia  o  logar  designado  como  por  si  mesmo  o 
confessa  n'um  pergaminho  do  cartório  do  mosteiro  de 
Alpendurada  : 

« Ignorava  eu  qual  fosse  o  logar  marcado.  Sol  fora, 
ergui-me  e  fui-rae  a  Campanellas  em  demanda  d'Ar- 
guirio.  » 

Conchavaram-se  os  dois  no  segredo  revelado  pelo 
ceu  a  ambos  elles,  por  isso  que  o  bom  Arguirio  tinha 
.recebido  inspiração  igual  á  do  sacerdote  Yelino.  Des~ 


150 


coberto  o  terreno,  começaram  os  trabalhos  da  edifica- 
ção do  oratório,  que  no  mesmo  anno  se  concluiu,  de- 
baixo da  protecção  do  bispo  do  Porto,  D.  Sesnando, 
primeiro  do  nome.  Imaginai  agora  o  que  seria  aquelle 
templosinlio  rústico  quasi  escondido  entre  sarças  e 
continuadamente  guardado  pela  vigilância  piedosa  do 
sacerdote  Veliuo. 

A'  hora  do  sol-pôr,  alguém  ia  ajoelhar-se  nos  de- 
graus do  oratório  e  fazer  oração  por  longo  tempo.  Alli 
se  ficava  esquecido  o  cavalleiro  Munio  Yiegas  a  pra- 
ticar com  Deus.  Era  aquella  uma  oração  de  todos  os 
dias  em  que  o  moço  namorado  repetia  sempre  a 
mesma  supplica  :  desposar  a  sua  dama.  E  uma  chuva 
de  lagrimas,  que  pareciam  sempre  as  mesmas,  por  iss 
que  eram  sempre  abundantes  e  ardentes,  vinha  rocia 
a  quotidiana  prece.  Quando  o  sacerdote  Yelino  se 
aproximava  para  accender  a  lâmpada  que  allumiava 
o  altar  da  sua  ermida,  erguia-se  o  cavalleiro  e  lá 
se  ia  pelo  caminho  fora  entregue  aos  mesmos  pensa-| 
mentos  da  véspera  e  do  dia  seguinte. .  . 

D'ahi  a  pouco  a  campa  sonora  da  ermida  de  S. 
João  Baptista  trez  vezes  soava  compassada  as  badala- 
das da  oração  da  tarde. 


lY 


Um    dia    um    cavalleiro   árabe   contemplara  coi 
olhos   apaixonados   uma   dama   formosíssima,  Elle, 
guerreiro   indomável,   que    se  não   temia   das   hostes 


151 


('hristàs,  sentiii-se  fulminado  pela  belleza  esplendida 
d^aqiiella  angélica  mulher.  E  foram-se-lhe  os  olhos  no 
feminil  enranto  das  formas  vaporosas.  P]  anciava-lhe 
o  peito  por  arrancar  ao  dominio  paternal  a  creatura 
formosa  que  seria  leve  de  mais  para  a  garupa  d'um 
cavallo  acostumado  ao  retinir  das  batalhas. 

Resolvera  o  cavalleiro  árabe  possuir  a  dama  en- 
cantadora como  a  fada  das  lendas  orientaes.  Tel-a  e 
não  a  possuir,  era  o  supplicio  de  Tântalo.  Chegara  a 
occasião  em  que  o  guerreiro  das  hostes  musulmanas 
defrontíu-a  cora  o  velho  christão,  pae  da  formosa  se- 
nhora. Fora  solemne  a  conferencia.  Ura  abysmo  pro- 
fundo, iraraenso,  insondável,  separava,  na  raesraa  sala, 
os  dois  interlocutores. 

Essa   barreira   que    os   distanciava  a  arabos  era  a 
desigualdade    das    raças,  a  differença  enorrae  do  san- 
gue,  a  sobranceria   do  vencedor  e  o  orgulho  do  ven- 
cido, a  crença  religiosa  e  a  crença  politica,  tudo  quanto 
podia  emfim    separar    o    cavalleiro    christão,  de  san- 
gue godo,   do  guerreiro  agareno,  usurpador  das  Hes- 
panhas.  E  depois  os   castos  amores  da  timida  donzel- 
linha  cora  o  castellão  Munio  Viegas  ?  E  o  dia  aprasado 
para  as  núpcias?  E  as  flores  que  a  noiva  já  tinha  re- 
cebido? E  os  protestos  que  tinha  feito  em  paga?  E 
o  coração  que  estalava  d'araores  ?  E  os  olhos  que  chora- 
vam de   esperança  ?  E   as  supplicas  na  erraidinha  de 
S.   João    Baptista?    E.  ..  o    amor,  o  amor,  com  estes 
encantos  que   tem,    cora  estas  alegrias  que  traz,  com 
todo  este  mundo  que  é  seu  ? 

—  Gil  !    não,  mil   vezes  não  !  dissera  o  cavalleiro 


152 


christão   em  resposta  á  petição  calorosa  do  guerreira 
árabe. 


V 


Fora  memoranda  esta  liicta  travada  entre  dois  ho- 
mens de  crenças  e  raças  differentes.  Não  teria  sido  de- 
certo mais  perigosa  e  menos  encarniçada,  se  se  hou- 
vessem arremessado  nm  contra  o  outro  com  a  fúria 
sanguinária  de  dois  leões  do  dezerto.  Para  ambos  de- 
cidia da  vida.  O  guerreiro  agareno  daria  a  existência 
por  possuir  a  dama.  O  cavalleiro  christão,  se  ficasse 
vencido,  cahiria  fulminado  de  morte  com  o  peso  da 
deshonra. 

—  Oh,  não,  mil  vezes  não  !  repetiu  ainda  embra- 
vecido  o   velho,   aprumando-se   solemne  e  magestoso.    \ 

—  Oh,  não,  mil  vezes  não  !  dissera    de  novo,  se  a    í 
morte  lhe  não  viesse  interceptar  a  voz  na  garganta. 

E  cahira  no  chão,  morto  ás  mãos  do  cavalleiro  da 
Islam,  sem  poder  puxar  da  espada  curta  e  larga,  que 
tinha  herdado  de  seus  avós  nobilissimos. 

Ao  baque  do  cadáver  acudira  a  turba  dos  criados 
e  a  filha  lacrimosa,  espirito  archangelico,  que,  se  nãa 
visse  seu  pai  morto,  fugiria  do  sangue  que  espadanava 
das  feridas  como  a  pomba  deve  fugir  d'um  banquete 
de  tigres.  | 

O  guerreiro  árabe,  ao  vel-a,  recuou  como  por  um 
movimento  instinctivo  e,  passados  alguns  momentos, 
xjuando  queria    estreitar  nos  braços    a  visão  formosa, 


1Õ3 


seiítiii-se  petriticado  diante  de  um  espectáculo  me- 
donho. A  dama  cliristã,  tirando  da  sua  fraqueza  fe- 
minil o  supremo  esfor(,'.o  do  desespero,  havia  arrancado 
do  seio  paterno  o  ferro  ensanguentado  para  o  cravar 
heroicamente  no  próprio  seio. 

Quando  a  noticia  da  catastrophe  chegou  aos  apo- 
sentos de  Munio  Yiegas,  recebeu-a  elle  de  olhos  en- 
xutos, sem  descorar  nem  tremer. 

Lançou  mão  das  suas  armas,  embraçou  o  escudo 
dos  Viegas,  que  tem  quatro  bandas  de  prata  sobre 
campo  axid  e  por  timbre  um  leão  pardo  picado  de 
prata,  e  relanceou  saudosamente  os  olhos  ao  redor  do 
aposento. 

Volvidos  momentos,  alguém  o  viu  sahir  em  di- 
recção á  capelliuha  de  S.  João  Baptista. 

Que  supplicas  dirigisse  a  Deus,  ninguém  o  soube. 
Ao  afastar-se,  sahiu-lhe  ao  encontro  o  sacerdote  Ve- 
lino. 

As  palavras  que  Munio  Viegas  lhe  dirigiu,  foram 
estas : 

—  A  vingança  chama  por  mim,  padre.  Quizera 
empoçar  no  chão  das  Hespanhas  todo  o  sangue  das 
tribus  agarenas  para  afogar  n'elle  o  assassino  infame. 
Ora  por  mim  e  vai  accender  a  lâmpada  da  tua  er- 
mida. Adeus,  Velino. 

Pouco  depois  soavam  Ave-Marias  na  campa  da 
ermidinha.  Munio  Viegas  ouviu,  a  curta  distancia,  as 
trez  badaladas  e  por  muito  tempo  julgou  ouvil-as  ainda. 


154 


YI 


O  peregrinar  de  Munio  Yiegas  seria  o  voo  compas- 
sado e  doloroso  da  andorinha,  que  vai  ferida,  ou  a 
carreira  impetuosa  do  leão  sedento  e  faminto  ?  Uma  e 
outra  cousa  era. 

Ora  parava  para  descançar  e  então  se  ficava  a 
chorar  e  a  scismar  por  longo  tempo,  ora  caminhava 
velozmente,  como  se  a  terra  tentasse  fugir-lhe  e  elle 
a  quizesse  reter  debaixo  dos  pés.  Que  saudade  e  que 
tristeza,  quando  sentia  ainda  nos  ouvidos  o  som  já  ex- 
tincto  dos  sinos  da  ermidinha !  Que  ferocidade  selva- 
gem, quando  um  pensamento  de  vingança  lhe  incen- 
diava o  cérebro  e  o  coração  ! 

Onde  Munio  Yiegas  se  encontrou  com  os  mouros, 
não  dizem  as  chonicas.  Sabe-se  apenas  que  muitas 
vezes  tingira  a  sua  espada  no  sangue  dos  soldados 
agarenos  e  que  ficara  prisioneiro  em  uma  das  refregas. ' 

Estava,  pois,  no  captiveiro,  como  refere  o  per-| 
gaminho  do  cartório  de  Alpendurada.  Oh!  longas, 
noites  de  luar  em  que  se  ficava  a  espreitar  o  ceu 
íizul  pelas  grades  estreitas  da  prisão,  quantas  vezes  a 
vossa  serenidade  lhe  não  vinha  embalar  a  alma  nas 
harmonias  dos  coros  angélicos  em  que  distinguia  a 
voz  dolorida  da  sua  noiva?...  Dias  de  viuvez,  horas  de 
captiveiro,  que  ha  de  infernal  e  horroroso  que  se  vos 
possa  comparar?  E,  no  meio  d'estas  tribulações  de 
martyr,   ainda  um  pensamento   de  doçura  —  Deus  — , 


155 


aindii  uma  aurora —  o  ccu  — ,  ainda  uma  esperança  — 
o  noivado  d 'além  da  campa ! 

Ouvira  Munio  Viegas  contar,  no  captiveiro,  os 
milagres  do  santo  da  ermidinha  e  para  logo,  dia  e 
noite,  prometteu  servil-o  reverentemente,  se  voltasse 
livre  e  lograsse  morrer  em  sitio  onde  se  derramassem 
as  harmonias  do  pequeno  sino,  que  tantas  vezes  escu- 
tara, á  hora  do  sol  pôr. 

Consummou-se  o  milagre,  e  voltou  Munio  Viegas. 
Demudado  vinha,  porém.  Quando  o  sacerdote  Velino 
olhou  n'elle,  desconheceu-o.  Munio  Viegas  vinha  velho, 
triste,  alquebrado. 

Largo  espaço  praticou  com  Velino  e  com  o  monge 
Exameno,  que  a  esse  tempo  auxiliava  o  sacerdote, 
sobre  os  prodígios  do  santo  e  as  tribulações  do  cap- 
tiveiro. Revelou-lhes  o  intento  em  que  estava  e,  poucos 
dias  depois,  fazia  doação  de  todos  os  seus  bens,  que 
muitos  eram,  a  S.  João  Baptista,  orago  da  capellinha. 


VII 


O  oratório  levantado  pelo  sacerdote  Velino  é  hoje 
o  mosteiro  de  S.  João  de  Alpendurada  ou  Pendurada, 
derivando-se  o  nome,  como  escreve  o  padre  Carvalho 
na  sua  —  Corographia,  —  de  um  alpendre  da  porta^ 
ou  do  despenho  que  fax  para  o  Douro.  Não  sei  por 
qual  das  duas  origens  me  decida. 

Parece-me  boa  a  primeira,  que  confirma  a  anti- 
guidade do  mosteiro,  por  isso  que  o  padre  João  Chrj- 


156 


sostomo  da  Yeiga,  no  tomo  primeiro  da  —  Historia 
universal^  —  escreve  o  seguinte :  «  Os  templos  tinham 
um  alpendre  á  porta  principal  para  os  penitenciados; 
e  aquelles,  aonde  ainda  hoje  ha  vestigios  d'estes 
tectos,  são  os  mais  antigos.»  Antolha-se-me  também 
acceitavel  a  segunda  origem,  pois  que  o  mosteiro  fica 
pendurado  das  rochas  do  monte  Arados  sobre  o  rio 
Douro. 

Seja  como  for.  O  que  é  certo  é  -que  eu,  ao  escu- 
tar os  sinos  de  Alpendurada,  sinto  reviver-me  na 
memoria  a  historia  dolorosa  do  cavalleiro  desventuroso. 
Pode  dizer-se  dos  sinos  d'este  mosteiro  o  que  um 
chrouista  escreveu  dos  sinos  do  Bussaco  :  São  igual- 
mente sonoros  e  saudosos. 


HISTORIA  AZUL 


A  quelque  tcuips  de  lá,  une 
âme  saiote  vit  deux  formes  lunii- 
ueuses  raonter  vers  le  ciei. .  . 

Lamennais. 


Joãosinho,  meu  querido  irmão,  vou  escrever  esta 
historia  para  a  tua  pequenina  pessoa.  Gosto  muito  dos 
meninos  da  tua  idade  que  são  puros  como  um  raio  de 
sol.  Muito  mais  gosto  de  ti,  porém,  que  és  a  alegria 
da  nossa  casa,  a  felicidade  do  nosso  lar.  Quando  a 
gente  te  colhe  nos  braços,  sente-se  ufana  como  se 
tivesse  cingido  o  globo  d'um  novo  mundo,  que  mais 
tarde  hade  mover-se  nos  espaços  com  as  suas  tre- 
vas e  com  os  seus  crepúsculos.  Consola  a  alma  ou- 
vir-te  pipitar  esse  dialecto  misterioso  dos  dois  se- 
res mais  irmãos  da  creação  —  os  passarinhos  e  as 
creanças. . . 

Jesus  Christo  morria-se  d'amores  pelos  meninos, 
porque  sabia  que  innefPavel  doçura  ressumbra  d'aquel- 
las  almas.  Fico-me  muitas  vezes  a  contemplar  o 
quadro  de  Benjamim  West,  que  representa  o  Senhor 
acolhendo  as  creanças,  conforme  a  passagem  do  evan- 


158 


gelho  de  S.  Matheus.  E'  um  delicioso  poema  d'amor 
aquelle  quadro  I  Encanta  ver  como  o  Homem-Deus  se 
desentranhava  em  affectos  ao  receber,  á  porta  da  vida, 
as  pequeninas  creaturas  ainda  não  maculadas  pelo 
contacto  dos  homens. 

Joãosinho,  meu  pequenino  irmão,  faze  por  não 
desplumar  nos  silveiraes  da  vida  as  azas  brancas  que 
te  deu  a  innocencia.  Quando  um  passarinho  desce  á 
terra,  deve  evitar  a  traição  dos  maus  rapazinhos  d'aldea, 
que  andam  armando  no  prado.  Se  pôde  fugir  incólume, 
recebeu  um  aviso.  Se,  ao  esqui var-se,  deixou  uma 
penna  nas  sebes  insilveiradas,  sentiu  a  primeira  dor. 
Se  os  rapazinhos  o  aprisionaram,  perdeu  a  felicidade 
e  melhor  seria  ter  perdido  a  vida.  Perder  a  felicidade 
6  viver  a  vida  da  tristeza,  do  silencio  e  da  solidão. 
Depois  que  está  presa  a  pobresinha  da  ave,  que  impor- 
ta que  seja  doirada  a  sua  gaiola  ou  que  lh'a  cinjam  de 
folhagens  verdes  para  provocar  o  canto?  São  tudo 
primaveras  fingidas,  opulências  de  vegetação  tecidas 
pela  mão  do  carcereiro.  A  gaiola  6  uma  prisão,  por 
isso  6  triste  e  odiosa. . . 

Esta  historia,  que  te  vou  contar,  é  um  aviso.  O 
que  acontece  com  os  passarinhos  acontece  com  os 
homens.  De  sentir  a  primeira  dor  a  perder  a  felici- 
dade vai  o  tempo  preciso  para  a  nossa  alma  percor- 
rer toda  a  escala  dos  soffrimentos  humanos:  —  um 
momento.  Se  forem  doiradas  as  algemas  que  nos  ro- 
xeam  os  braços,  somos  duplicadamente  desveuturosos. 
Perder  a  felicidade  6  mau ;  ter  a  consciência  de  que 
se  perdeu,  c  peior.  O  sol,  ao  espelhar-se  no  metal  doirado 


159 


das  nossas  cadeias,  niostra-as  claramente  aos  olhos 
marejados  de  lagrimas. 

Este  quer-me  parecer  o  máximo  supplicio  da  vida. 

Absorve-te  no  trabalho,  que  ó  o  paraíso ;  põe  de 
parte  a  ambição,  que  ó  o  inferno.  E'  ainda  a  ambição 
de  ter  duas  pátrias,  a  do  ceu  e  a  da  terra,  o  que  perde 
os  passarinhos.  Se  não  descessem  das  alturas,  evita- 
riam as  redes  que  lhes  armam. 

Ouve-me  agora ;  mais  tarde  pensarás  n'isto.  Quero 
ensinar-te  a  respeitar  as  dores  alheias,  para  que 
respeitem  as  tuas,  se  acontecer  rasgares  as  azas  nos 
espinhaes  da  tua  carreira, 

Chama-se  Historia  azul  o  que  te  vou  contar. 
Por  que? 

Porque  é  uma  historia  mais  do  ceu  que  da  terra, 
mais  das  estrellas  que  dos  homens ... 


Tinha  o  Julinho  sete  annos,  quando  a  mãe  o 
levava  ao  adro  d'aldea,  á  hora  do  sol  pôr,  para  o 
ensinar  a  resar  diante  da  cruz  de  pedra,  que  defronta 
com  o  templo.  Era  triste  e  doente  aquella  senhora 
fidalga  da  quinta  de  Covas,  casada  com  um  homem 
que  passava  os  dias  a  conversar  com  os  feitores  sobre 
projectos  de  novas  plantações,  porque  nunca  se  viu 
proprietário  mais  ambicioso  ou  mais  trabalhador. 

A  casa  de  Covas  fica  entre  dois  montes  cobertos 
de  pinheiraes,  que  projectam  sombras  na  corrente  do- 


160 


Paiva, — um  rio  triste  e  negro,  que  banha  o  pomar  da 
quinta  e  vem  desaguar  no  Douro. 

Por  alli  tenho  peregrinado  vezes  sem  conto  e 
sempre  me  sinto  opprimido,  quando  do  cimo  do 
monte  olho  para  as  aguas  escuras  e  tumultuosas  do 
rio  e  vejo  ao  lado  a  casa  de  Covas  afogada  em  pinhei- 
raes,  n'aquelle  dezerto  medonho  . . . 

A  senhora  D.  Maria  das  Dores  vivia  triste,  como 
já  dissemos.  Momentos  d'alegria,  mas  deixem-me 
dizer  assim,  d'a]egria  melancólica,  só  os  tinha,  quando 
apertava  contra  o  seio  o  filhinho  de  sete  annos,  que 
estranhava  ver  lagrimas  nos  olhos  de  sua  mãe,  cujas 
faces  cobria  de  beijos.  Por  que  chorava  aquella  pobre 
senhora  ?  Estes  mysterios  do  coração  são  impenetráveis 
para  a  razão  fria  do  homem,  que  procura  explicar 
todos  os  segredos  da  creação  por  uma  sciencia  frivola, 
que  para  si  creou.  O'  philosophos,  que  gastaes  a  vida 
a  tentai'  resolver  os  phenomenos  da  terra  sobre  que 
andaes  e  de  que  vos  julgaes  senhores,  dizei-me  por  que 
razão  nasce  o  lirio  pendido  para  o  chão  com  geito 
de  tristeza  em  vez  de  se  erguer,  orgulhoso  de  si,  como 
as  outras  flores  suas  irmãs  ?  Não  quero  já  pedir-vos 
que  me  expliqueis  as  maravilhas  celestes,  nem  que 
me  falíeis  da  pluralidade  dos  mundos,  por  que  me 
apavora  até  saber  que  ha  tantos  planetas  na  immensi- 
dade  dos  espaços,  quando  attento  na  humanidade  e  a 
vejo  commodamente  n'uma  nesga  de  um  único  planeta. .^ 
Não  vos  peço  que  me  digaes  d'essas  coisas,  que  hão-de 
ser  para  vós  uma  duvida  eterna,  uma  anciã  de  saber 
só  comparável  á  sede  afílictiva  do  viajante  no  dezerto. 


161 


Fallae-me  do  que  ó  terreno,  do  que  todos  os  dias 
tacteaes,  por  assim  dizer;  de  tudo  o  que  estudaes  desde 
que  a  terra  se  move  e  os  homens  a  povoam.  Níío 
sabeis  ;  que  bem  vos  vejo  disfarçar  a  commum  ignorân- 
cia com  palavras  arrevesadas  do  vosso  vocabulário. 
A  sciencia  que  vós  apregoaes,  ó  sábios  do  mundo,  não 
nasceu  de  vós  mesmos,  não  partiu  d'um  raio  lumi- 
noso do  vosso  espirito. 

Sois  navegadores,  é  verdade,  mas  dizei-me  se  não 
aprendestes  a  navegar  com  essas  grandes  ilhas  fluctuan- 
tes,  pequenos  mundos  de  verdura,  que  pairam  á  flor 
dos  oceanos,  e  com  e5sas  enormes  montanhas  de  gelo, 
que  sulcam  os  mares  dos  pólos  e  fazem  lembrar  aber- 
tas em  arcarias,  abobadas  de  cristal  doiradas  pelo  sol. 

Sois  aeronautas  ?  Confessae  com  franqueza  que 
as  avesinhas,  menos  vaidosas  que  vós,  vos  ensinaram 
a  devassar  os  ares,  remando  com  as  suas  pequeninas 
azas;  — exemplo  que  vos  deu  também  grandíssimo 
auxilio  para  a  navegação  dos  rios  e  dos  oceanos. 

Sois  exploradores  ?  Devassaes  o  seio  da  terra  para 
desentranhar  metaes  preciosos  ?  Dizei-me,  porém,  se 
não  aprendestes  nada  da  toupeira  e  do  coelho,  que  mi- 
nam a  montanha  para  se  esconderem  dos  discípulos 
ingratos.  * 

Sois  architectos  ?  Levantaes  ao  ar  as  vossas  con- 
strucções  trabalhosas  ? 

•  Déclarae-me  então,  sem  fumaças  de  vaidade  fátua, 
se  não  aproveitastes  com  o  exemplo  do  castor,  que  edi- 
fica a  sua  casa  consoante  os  conhecimentos  d'uma 
geometria  instinctiva  e  natural. 

11 


162 


Não  invejo  a  vossa  sciencia,  ó  sábios  do  mundo. 
Pergiuitei  por  que  chorava  aquella  pobre  senhora  da 
quinta  de  Covas ;  e  sei  que  ninguém  cabalmente  me 
poderia  responder. 

Não  a  festejava  o  marido  com  sincera  ternura,  aa 
almoço,  á  hora  do  jantar  e  quando  á  noite  recolhia 
de  andar  nos  campos  a  espionar  os  quinteiros  ?  Não  o 
amava  ella  como  se  ama  uma  alma  que  é  um  comple- 
mento da  nossa,  uma  vida  que  nos  pertence  e  dâ  qual 
dependemos  também  ? 

Não  era  aquelle  filho  o  filho  do  seu  amor,  o  alli- 
vio  dos  seus  desalentos,  o  luar  saudoso  das  noites  do 
seu  coração  ?  Por  que  chorava,  pois,  D.  Maria  das 
Dores  lagrimas  que  não  tinham  justificação  possivel? 
Não  sei,  não  sabe  ninguém.  Melancolias  dos  espíritos 
fracos,  que  só  uma  alma  confidente  pode  dissipar. 

Manoel  de  Noronha  era  ambicioso,  e  esta  tendên- 
cia da  sua  alma  aggravava  as  tristesas  da  esposa  me- 
lancólica, que  se  via  só  com  o  filhinho.  Detesto,  abor- 
reço a  ambição  dos  homens,  que  me  parece  a  causa 
primaria  de  se  infamarem  uns  aos  outros,  como  se 
não  fossem  irmãos. 

Seria  a  melancolia  de  D.  Maria  das  Dores  um  pre- 
sentimento  aliitientado  pela  solidão  e  pela  visinhança 
lúgubre  do  rio  Paiva  ?  Quem^sabe !  Mas  os  presenti- 
mentos  são  extravios  da  imaginação,  dizem  os  sábios, *j 
e  os  sábios  passam  pelo  que  mostram  sei*. . . 


i 


163 


II 


O  adro  da  aldeã  ó  d'ama  simplicidade  solemiie. 
Fechado  por  uma  sebe  de  flores  silvestres  para  impe- 
dir a  invasão  das  manadas  que  pastam  nos  lameiros 
próximos,  não  tem  mais  do  que  uma  cruz  de  pedra, 
que  domina  os  cômoros  arrelvados  —  leitos  mortuários 
de  muitos  camponezes  do  sitio.  O  quadro,  como  vêem, 
não  pode  ser  mais  singelo  nem  mais  tocante. 

Sou  grande  respeitador  do  culto  devido  aos  mortos 
e  inclino-me  a  pensar  com  Michelet  no  seu  livro  = 
Nos  fils  =  que  esta  adoração  pelos  mortos  depende 
directamente  do  amor  pela  familia. 

Não  sei  como  o  homem  possa  viver  feliz  longe  do 
remanço  dos  lares  e  da  (,'ompanhia  das  pessoas  que  o 
viram  nascer. 

Um  dia  a  vida  d'uma  d'essas  pessoas  extingue-se 
nos  nossos  braços,  e  quando  ha  um  logar  vasio  á  nossa 
mesa  enche-se  mais  uma  campa  no  cemitério,  que 
também  nos  espera  a  nós. 

Por  que  razão  não  havemos  de  ir  visitar  á  sua 
ultima  morada  a  pessoa  que  nos  falta  e  que  nos  iria 
visitar  também  ao  mesmo  logar,  se  nos  sobrevivesse  ? 
Quem  não  faz  isto  não  paga  o  que  deve,  creio  eu,  e 
revela  uma  alma  dura  como  a  rocha  e  fria  como  o 
.gelo.  Estas  cousas,  quando  se  sentem,  dizem-se  sem 
rebuço,  embora  os  meticulosos  as  tomem  á  conta  de 
próprio  encarecimento. 


164 


«  O  cemitério,  escreve  Michelet,  é  um  órgão  essen- 
cial da  cidade,  uma  potencia  de  moralidade.  Uma  terra 
sem  cemitério  é  uma  terra  barbara,  árida  e  selvagem.  » 
Quer-me  isto  parecer  sublime  verdade. 

Uma  cidade  que  se  vá  levantando  sobre  cadáveres 
que  não  venera,  affigura-se-me  que  cedo  deve  ruir 
em  terra,  porque  é  uma  cidade  edificada  apenas  sobre 
cinzas ... 

Este  anno,  no  dia  em  que  se  celebrou  a  festa  da 
Lapa,  entrei  no  cemitério  com  Souza  Yiterbo,  o  meu 
amigo  de  infância.  Passamos  por  entre  as  campas  co- 
bertas de  flores  e  de  luzes  e  fomos  visitar  o  tumulo 
de  Soares  de  Passos,  que  transbordava  de  bouquets 
e  folhas  soltas. 

Estávamos  em  muda  contemplação  diante  d'aquelle 
tumulo  venerando,  quando  se  aproximou  uma  senho- 
ra que,  escondendo  o  rosto  na  marquezinha  azul-ce- 
leste,  pousou  o  seu  ramilhete  na  pedra  tumular  do 
poeta  do  =  Firmamento.  ■■=  Ficamos  extáticos  diante 
d'essa  veneração  espontânea,  rendida  a  um  homem 
que  já  não  vive. 

Souza   Yiterbo,   despertando  de  um   como  sonho, 
arrojou   para  dentro    da   grade,   com   um  movimento  ^ 
febril,  uma  rosa  franceza  que  trazia.  i 

Esta  visita  ao  cemitério  da  Lapa  deixou-nos  recor-* 
dações  para  sempre,  supponho  eu. 

Ponhamos  poróm  de  parte  estas  cousas,  que  se  não 
devem  dizer  com  similhante  franqueza;  e  voltemos  a 
fallar  da  senhora  fidalga  da  quinta  de  Covas. 

Costumava  ella  visitar  o  cemitério  todas  as  tardes. 


165 


Alli  se  demorava  com  o  Hlhinlio,  sentada  nos  degraus 
do  cruzeiro,  a  olhar  para  os  cômoros  que  escondiam 
os  cadáveres  das  pessoas  da  sua  familia  — ■  pai  e  mãe. 
Ás  vezes  voltava-se  para  o  Juliuho  e  dizia-lhe  com 
ineffavel  doçura : 

—  Julinho,  meu  íilho,  quando  eu  morrer,  has  de  vir 
rezar  por  mim  a  esta  mesma  hora,  pois  não  has  de  ? 

O  menino  chorava,  passava  a  mão  pequenina  pela 
face  pallida  da  mãe  e  respondia  convulso : 

—  Não  diga  isso,  mamã,  que  me  faz  ter  vontade  de 
chorar. 

Um  dia  D.  Maria  das  Dores  senti u-se  mais  triste 
do  que  nunca,  chamou  a  si  o  filhinho,  cobriu-lhe  as 
faces  de  beijos  e  apertou-o  contra  o  éeio  com  doloro- 
síssima anciã. 

Momentos  depois  iam  mãe  e  filho  em  caminho  do 
cemitério.  Declinava  a  tarde.  E'  preciso  ter  vivido 
n'aldea  para  comprehender  a  suave  melancolia  d'aquella 
hora.  Parece  que  toda  a  vida  orgânica  se  suspende 
n'um  extasi,  e  quando  momentos  depois  despertamos 
para  a  realidade  da  vida,  sentimos  tédio  do  contacto 
dos  homens.  D.  Maria  das  Dores  sentou-se  n'um  de- 
grau do  cruzeiro.  O  Julinho  teve  a  lembrança  de  co- 
lher flores  silvestres  e  pediu  a  mãe  que  lhe  entrete- 
cesse uma  coroa. 

—  Para    que?    perguntou    D.    Maria    das  Dores. 
— •  Para  pendurar  no  cruzeiro,  como  fazem  as  ra- 
parigas, quando  é  dia  de  romagem. 

Vibraram  as  badaladas  da  Ave-Maria.  Tinha  expi- 
rado o  dia ;  era  aquelle  o  signal. 


166 


D.  Maria  das  Dores  parou  muitas  vezes  no  cami- 
nho a  olhar  para  o  adro,  como  se  tivesse  saudades 
da  coroa  que  entretecera  e  orvalhara  de  lagrimas... 
Lá  estava,  a  distancia,  essa  grinalda  singela  pendente 
d' um  braço  da  cruz,  n^aquella  immobilidade  que  nós 
estranhamos  em  certos  objectos,  quando  os  havemos 
tacteado,  convulsos  e  deslembrados  de  que  a  matéria 
inanimada  não  pode  partilhar  e  receber  as  nossas 
próprias  sensações. 


III 


N''essa  mesma  noite  disse  Manoel  de  Noronha,  á 
mesa  da  ceia,  estas  palavras,  que  dilaceraram  o  coração 
de  D.  Maria  das  Dores : 

—  Sabes  uma  cousa  ?  E'  preciso  mandar  o  Júlio 
para  a  cidade. 

—  Para  a  cidade  ?  atalhou  ella  sobresaltada. 

—  Sim.  Está  era  idade  de  entrar  n'um  collegio. 
Sou  lavrador  e  não  gosto  de  vida  que  não  seja  a  dos 
campos.  Conheço,  porém,  que  me  corre  obrigação  de 
mandar  educar  o  pequeno,  de  modo  que  possa  entrar 
á  companhia  dos  fidalgos  seus  parentes.  Não  sou  egoista. 
Trabalhei  e  trabalho  ainda  para  evitar  que  meu  filho 

rabalhe.  Este  entendo  eu  que  ó  o  verdadeiro  amor  sem 
tintura  de  cousa  estranha  a  um  coração  de  pai. 

—  Dizes  bem,  respondeu  D.  Maria  das  Dores  repri- 
mindo na  garganta  um  grito  de  afflicção. 

Depois,  dolorosamente  salteada  por  uma  ideia  horri- 
vel,  perguntou  de  súbito : 


167 


—  E  quando  tencionas  que  vá  ? 

—  Por  estes  dias.  O  primo  Gaspar  de  Paiva  vai 
ao  Porto  ;  eu  vou  com  elle  e  levo  o  pequeno.  Sei  que 
has  dg  ter  saudades,  mas  não  imponlio  ao  teu  coração 
um  sacrifício  que  não  tenha  sido  experimentado  pelo 
commum  das  mães.  Estes  ^'olpes  são  para  todas.  Pouco 
tempo  me  demoro ;  trez  ou  quatro  dias,  apenas. 

D.  Maria  das  Dores  não  respondeu.  Momentos 
depois  sahiu  da  sala,  correu  ao  quarto  do  filho,  debru- 
çou-se  sobre  o  leito  onde  elle  dormia  o  plácido  somno 
da  infância,  e  pôde  chorar  livremente. 

Trez  dias  passados,  havia  na  casa  de  Covas  o  silen- 
cio lúgubre  dos  túmulos.  Tinha  partido  o  Julinho.  Não 
posso  descrever  o  que  fosse  aquelle  quebrar  de  amoro- 
síssimas cadeias  na  hora  da  partida.  O  que  sél  é  que 
as  criadas  de  Covas  trouxeram  a  fidalga  desmaiada 
para  o  leito,  e  que  os  criados  partiram  para  Sinfães  e 
Castello  de  Paiva  a  procurar  os  médicos  d'estas  loca- 
lidades. 

Xão  era  preciso,  porém,  tamanho  alvoroço.  D.  Maria 
das  Dores  voltou  a  si,  e  com  a  turbada  memoria  de 
quem  desperta  d'um  somno  profundíssimo,  perguntou 
placidamente  o  que  tinha  acontecido.  Receiaram  as 
criadas  aggravar  a  conjunctura  com  palavras  Indiscre- 
tas, e  calaram-se.  A  fidalga  passou  a  mão  pela  testa, 
afastou  as  tranças  negras  que  lhe  cobriam  os  hombros 
e  disse  com  tranquillidade  : 

—  Já  sei.  Roubaram-me  o  meu  filho. 
Quiz  encostar-se  á  travesseira  e  não  pôde. 
Ajudaram-n'a  a  deitar-se ;  e  sentiram-n'a  cahir  em 


168 


somno.  Quando  D.  Maria  das  Dores  acordou,  volvidas 
horas,  viu  ao  lado  do  leito  o  medico  de  Castello  de- 
Paiva,  amigo  da  casa. 

Um  criado  velho,  que  tinha  quasi  as  honras  de 
mordomo  pela  antiguidade  do  serviço,  esperou  o  doutor 
no  pateo  e  inÇiiiriu  da  saúde  da  fidalga. 

—  Está  gravemente  doente,  disse  o  facultativo. 
Já  perguntei  lá  em  cima  quando  o  fidalgo  viria  e 
disseram-me  que  tencionava  voltar  dentro  de  trez  dias.. 
Foi  gravissima  indiscreção  tirar  o  filhinho  a  esta  pobre 
senhora,  cujo  temperamento  é  extremamente  delicado. 
O  que  .julgo  melhor  é  mandarem  ao  Porto  chamar  o 
fidalgo.  Os  criados  que  soltem  rédeas  aos  cavallos  e 
que  se  não  demorem  nas  estalagens.  O  snr.  D. 
Manoel  de  Noronha  que  se  não  demore  também  e 
que  traga  o  filho  comsigo. 

O  doutor  cavalgou,  estimulou  a  égua  com  os  aci- 
cates e,  ao  transpor  o  portão,  tornou  a  dizer : 

—  Que  traga  o  filho  comsigo.  Pode  ser  um  remé- 
dio efficaz. 

Ao  outro  dia  de  manhã  chegaram  ao  Porto  dois 
criados  da-  quinta  de  Covas.  Criados  e  cavallos  vinham 
extenuados  d'aquelle  jornadear  por  serras  da  beira 
Douro. 

Costumava  Manoel  de  Noronha  hospedar-se  na 
rua  do  Sol  em  casa  d'uns  parentes  nobres,  quando 
vinha  ao  Porto. 

Foram  os  criados  á  rua  do  Sol  e  perguntaram 
pelo  amo.  A  resposta  que  lhes  deram  orçou  por  isto  : 

—  O  primo  Noronha  e  o  menino  chegaram  hontem 


169 


á  meia  noite.  O  menino  vinha  doente;  foi  preciso 
chamar  facultativo.  O  primo  passou  toda  a  noite  em 
claro ;  de  madrugada,  quando  viu  o  filho  ^nenos 
delirado,  recolheu-se. 

—  Pois  o  menino  esteve  delirado  ?  perguntou 
subitamente  um  dos  criados. 

—  Esteve.  Entrou  aqui  nos  braços  do  snr.  Gaspar 
de  Paiva,  que  a  pobresinha  creança  não  tinha  forças 
para  guiar  o  seu  cavallo.  O  primo  ííoronha  vinha 
triste,  que  fazia  dó  I 

N'isto  abriu-se  uma  porta  que  dava  para  a  escada. 
D.  Manoel  de  Noronha  ouviu  do  seu  quarto  a  voz  do 
criado,  conheceu-a  e  levantou-se  n'um  ímpeto. 

—  Que  ha  ?  perguntou  elle  anciosamente. 

—  A  snr.^  fidalga  está  em  perigo  de  vida.  Cha- 
mou-se  o  doutor  de  Castello  de  Paiva  e  por  sua  or- 
dem viemos  trazer  aviso  a  v.  ex.^  e  ao  menino,  res- 
pondeu um  dos  criados. 

—  O  doutor  disse  mais,  acrescentou  o  outro  cria- 
do,  que  v.  ex.*  devia  partir  immediatamente  e  levar 
comsigo  o  menino  —  o  menino  que  podia  ser  o  único 
remédio  para  a  snr.»  fidalga. 

—  Que  desgraça  eu  fiz  !  exclamou  D.  Manoel  de 
Noronha.  A  pobresinha  creança  não  pode  ir,  que  está 
cheia  de  febre  e  passou  toda  a  noite  a  pronunciar  o 
nome  da  mãe.  O  facultativo  recommendou  a  maior 
discreção. 

Disse  e  pareceu  meditar  alguns  momentos ;  depois, 
como  assentando  n'uma  resolução,  exclamou  : 

—  Eu  vou  com  vocês.  O  menino  fica  entregue  aos 


170 


cuidados  d 'esta  família,  que  é  sua  parente  e  ha  de  ve- 
lar por  elle  como  eu.  Não  ha  outro  meio  de  sahir 
d'esta  rede  de  desgraças,  que  involuntariamente  teci. 


lY 


Deixemos  em  silencio  os  acontecimentos  de  qua- 
renta e  oito  horas. 

Dois  dias  depois  de  D.  Manoel  de  Noronha  encon- 
trar a  esposa  gravemente  enferma,  recebeu  noticias  do 
Porto  e  soube  que  o  menino  peiorava  de  hora  a  hora. 
Na  noite  d'esse  dia  D.  Maria  das  Dores  encostou-se 
nos  braços  do  marido  e  disse  em  anciãs,  que  pare- 
ciam de  morte,  que  estava  a  ver  o  filho,  envolto  em 
roupagens  luminosas,  a  charaal-a  do  cóo. 

Dizia  isto,  e  sorria  com  ineffavel  doçura. 

A'  meia  noite  tornou  a  fallar  do  filho,  que  conti- 
nuava a  chamal-a  das  alturas ;  e  fez  menção  de  se 
levantar,  como  a  ave  que  tenta  desferir  voo.  N'este 
movimento  impotente  foi-se-lhe  a  vida.  D.  Maria  das 
Dores  cahiu  adormecida  para  sempre  nos  braços  do 
esposo  angustiado. 

É-nos  dado  vêr  o  que  se  passava,  uma  hora  depois, 
na  casa  da  rua  do  Sol,,  no  Porto. 

Contorcia-se  o  menino  em  dolorosos  soffrimentos. 
Queixava-se  de  que  lhe  faltava  o  ar. 

Fallou  com  extrema  difficuldade  em  sua  mãe  e 
disse  que  ella  estava  no  cóo.  Depois  acrescentou  que 


171 


desejava  vel-a,  e  pediu  que  o  abeirassem  da  janella. 
As  senhoras  da  casa  accederam. 

—  Oh  !  lá  está  a  mamã !  exclamou  elle  indicando 
uma  estrella  brilhante  que  luzia  na  direcção  da  ja- 
nella. 

E  morreu  a  contemplar  essa  estrella. 

As  primas  de  D.  Manoel  de  Noronha,  que  tinham 
os  olhos  postos  no  céo,  viram  que  uma  estrella  ca- 
dente correra  ao  longo  da  tela  azulada  do  firmamento 
como  que  em  demanda  d'aquella  que  o  menino  tinha 
indicado. 

Era  o  filho  que  procurava  a  mãe. . . 

O  Julinho  estava  no  céo ;  e  ainda  não  tinha  ama- 
rellecido  a  coroa  de  flores  silvestres  pendente  do  cru- 
zeiro do  adro. 


Joãosinho,  meu  irmão,  respeita  estas  dores  immen- 
sas  da  vida  e  crê  n'estes  mysterios  de  Deus,  que  os 
homens  motejam,  se  queres  attingir  a  verdadeira  feli- 
cidade. De  mim  te  declaro  que  me  julgo  venturoso,  por- 
que respeito  tudo  o  que  ha  de  sublime  e  que  a  razão 
humana  não  pôde  comprehender.  A  duvida  é  a  febre 
da  vida ;  mata  lentamente. 

Que  a  Historia  azul  te  sirva  de  conselho.  Aos 
que  te  disserem  que  é  imprópria  a  denominação  da 
narrativa,  porque  este  quadro  revela  angustias  verda- 
deiramente terrenas,  dize-lhes  que  ha  em  tudo  isto, 
para  os  que  não  duvidam,  um  raio  de  luz  divina  eja- 
culado do  azul  puríssimo  do  céo. 


A'  BEIRA  D'UM  BRRCO 


(ao  snr.  A.vroxio  Feliciano  de  c\stilho) 


Deixae  os  meninos  e  não  embaraceis 
que  venham  a  mim,  porque  d'estes  taes 
é  o  reino  dos  céus. 

Evang.  de  S.  Matheus. 


Quando  OS  meninos  riem,  alegra-se  o  céo ;  quando 
elles  choram,  entristece-se  Deus.  Faz  pena  vel-os  chorar, 
a  elles,  que  nos  dão  alegria  quando  chilriam  á  volta 
da  mesa  do  jantar,  a  elles,  que  nos  pagam  com  beijos 
um  gesto  d'aborrecimento.  Na  casa  onde  ha  creanças, 
ha  bençans  e  alegria.  Preservam  a  familia  das  iras  do 
céo;  são  como  uns  anjos  da  guarda,  ioiritos  e  rosados, 
que  nos  cercam  d'um  ambiente  de  felicidade.  Os  me- 
ninos parecem-se  com  as  flores  e  com  as  aves. 
Afíligí-os  e  dar-vos-hão  sorrisos.  Roubae  uma  flor  á 
hastea  em  que  brotou,  á  terra  em  que  nasceu ;  a  pobre- 
sinha,  em  vez  de  chorar  saudades  e  mostrar  resenti- 
mentos,  perfuma-vos  o  ar  e  alegra-vos  a  casa.  Mos- 
trae  que  sois'  maus,  dando  caça   aos  passarinhos  que 


174 


são  livres,  prendei-os,  encarcerae-os ;  os  captivos,  em 
paga  da  vossa  crueldade,  hão  de  encher-vos  a  casa  de 
musicas  e  alegrias. 

Hontem  ia  eu  a  meio  d'um  caminho  e  topei  com 
um  rancho  de  creanças,  que  sahiam  da  escola  e  vi- 
nham pipilando  pela  estrada  fora.  Senti-me  contente  de 
vel-as.  Pobres  rapazitos,  que  mal  entraram  ainda  no 
mundo  pela  porta  da  innocencia  e  já  andam  trabalhando 
todos  afadigados  para  a  obra  do  futuro  ! 

Ao  ouvil-os  chilrear  como  um  bando  de  pardalitos 
joviaes,  lembrei-me  de  Yictor  Hugo  e  de  Castilho 
conj  respeito  e  admiração.  Almas  sublimes  de  poetas, 
que  sabeis  entender  as  palavras  de  Christo  e  vos  des- 
entranhaes  em  effectos  para  as  creanças,  abençoadas 
sejaes. 

Castilho,  o  poeta  infeliz,  que  tem  os  olhos  eterna- 
mente annuveados  pela  escuridão  eterna,  olhaô  como  é 
solicito  em  fazer  alvorecer  auroras  brilhantes  nas  ca- 
becinhas  loiras  das  creanças,  levando-lhes  a  instrucção 
embalada  na  suavidade  da  musica !  Bem  sabe  elle 
que  o  cantar  6  dos  passarinhos  e  que  os  rouxinoes 
dos  sinceiraes  ensaiam  novas  volátas  estudando  em 
communidade  nas  noites  de  primavera.  Que  as  ben- 
çans  do  céo,  meu  prosado  mestre,  chovam  a  esmo  so- 
bre a  vossa  cabeça  de  poeta,  porque  sois  amigo  das 
creanças  e  bafejaes  as  pobresinhas  que  se  andam  a 
implumar  para  futuras  empresas. 

Yictor  Hugo,  o  proscripto  saudoso,  vede  como 
espairece  as  tristezas  do  desterro  acoUiendo  as  crean- 
cinhas  que   o  rodeiam  d'alegrias  e  suavidades !  E  de- 


I 


175 


pois   notae   como  lhes   prepara  as    festas   infantis,   a 
consoada  e  o  folar,  para  lhes  dar  contentamentos. 

Lembrei-me  ainda  de  Victor  Hugo  porque,  ao  ver 
os  pequenitos  que  vinham  de  sacca  ao  hombro  pelo 
caminho  fora,  occorreram-me  de  prompto  e  a  ponto 
os  versos  do  poeta  exilado : 

Je  ris  quand  chaquo  soir  de  l'ecole  voisine 
Sort  et  s'echappe  en  foule  une  troupe  enfantine. 

Iam,  pois,  enchendo  a  estrada  d'uma  toada  alegre, 
depois  de  terem  polido  uma  pedra  para  o  edifício 
d'amanhã.  Eram  como  uns  trabalhadorsitos,  que  hou- 
vessem despegado  do  labor  quotidiano  e  fossem  des- 
cançar  pai-a  recomeçar  a  tarefa  no  outro  dia,  até  que 
emfim  chegue  o  sabbado  do  futuro  em  que  hão  de 
receber  a  feria. 

Bem  sei  eu  que  lhes  ha  de  custar  aquelle  traba- 
lhar de  todos  os  dias,  a  elles,  que  são  fraquitos  como 
a  haste  d'um  lirio  e  pequenos  como  um  pintasilgo. 

Bem  sei  isto.  Mas  lá  os  está  esperando  em  casa  o 
seio  flácido  da  mãe,  que  já  lhes  tem  prompta  a  me- 
renda e  que  lhes  vae  fazer  —  ella  mesma  —  a  cama 
tão  clara  e  bonita  como  se  fora  de   um    principe... 

Nos  versos  de  Victor  Hugo,  o  professor  reprehende 
os  pequenos  que  se  demoram  ao  sahir  da  eschola, 
dizeudo-lhes : 

Hátez-vous,  il  est  tard,   vos  mères  vous  attetideat,  . 
Bem  sabe,  pois,  o  poeta  com  que  extremo  cuidado 


176 


está  a  pobre  mãe  a  olhar  para  a  porta,  a  contar  os 
minutos,  a  estremecer,  a  duvidar. , .  e  a  delirar  de 
jubilo,  quando  o  filho  assoma  ao  limiar  a  pedir-lhe  a 
bençam  e  a  sorrir-se  para  ella  ! 

O  ver  as  crianças  fez-me  lembrar  da  Quinta  da 
Primavera  onde,  ura  anno  antes,  eu  tinha  assistido, 
n'uma  das  vastas  quadras  da  casa,  ao  mais  suave 
espectáculo  d'este  mundo. 

Acompanhae-me  áquella  sala  onde  se  respirava 
amor. 

Sentia-se  a  gente  bem  n'essa  atmosphera !  Eu 
estava  alli  tão  identificado  com  as  personagens  do 
quadro,  que  me  sentia  entristecer  quando  me  lem- 
brava de  que  não  fazia  parte  da  familia. 

O  berço  de  uma  creança  loira,  absorta  em  sonhos 
do  céo,  estava  sendo,  n'essa  occasião,  o  foco  calorífico 
em  torno  do  qual  as  nossas  almas  se*  aqueciam  todas 
a  um  raio  d'amor.  Havia  alli  um  certo  conchego,  um 
certo  bem-estar,  que  é  o  verdadeiro  contraste  da  atmos- 
phera corrupta  das  grandes  salas  onde  as  mãos  trocam 
officialmente  cumprimentos  cerimoniosos  e  os  olhos 
cruzam,  ao  mesmo  tempo,  olhares  envenenados  de 
malquerença. 

Estávamos  como  que  revendo  na  nossa  imagina- 
ção uma  aurora  que  ha  de  surgir,  um  sol  que  lia  de 
brilhar,  um  rouxinol  que  ha  de  ter  voz,  uma  flor  que 
se  ha  de  abrir  aos  primeiros  clarões  do  dia  de  áma^ihã. 

Era  um  ninho  afofado  de  cambraias,  o  berço  d'a- 
quella  creança.  Poucas  vezes,  como  n'essa  noite,  chega 
a  gente  a  lembrar-se  tanto   a  fundo  de    que  o  berço  é 


177 


mais  do  que  ura  leito  e  uma  creança  mais  do  que  um 
ser  que  chega  ao  limiar  da  vida. 

«  Pelo  filho,  diz  Paulo  Janet,  se  prende  a  familia 
á  humanidade. » 

Eis  aqui  o  papel  importante  da  creanya  de  hojej 
que  ha  de  ser  homem  amanhã. 

E  o  bergo?  O  que  será  elle,  pois? 

Pode  dizer-se  do  berço  o  que  diz  Michelet  a  res- 
peito do  ninho  das  aves : 

«O  berço  é  uma  creação  d'amor. » 

E*  pelo  sentimento  da  maternidade  que  as  aves  são 
artistas,  quando  fabricam  o  ninho  onde  se  ha  de  ir 
abrigar  a  prole.  E'  também  por  este  mesmo  sentimento 
que  as  mães  attingem  o  artificio  das  aves,  quando  pre- 
param o  berço  ao  filho  que  ha  de  nascer. 

Sente-se  a  ave  mãe  trabalhada  das  dores  da  ma- 
ternidade. Lá  vai  o  esposo,  solicito  e  cuidadoso,  pro- 
curar os  raateriaes  para  a  construcção  da  casinha 
aérea.  Que  trouxe  elle  ?  Linho  ou  crina. 

Nada  d'isto  serve.  A  pobresinha  da  ave  parece 
dizer,  n'um  extremo  de  amor,  ao  esposo  querido,  que 
o  linho  é  frio  e  a  crina  é  dura. 

Parte  de  novo  o  esposo.  Yolta,  passado  tempo, 
trazendo  o  cotão  de  certos  vegetaes,  que  pode  servir 
para  um  colchão  macio.  Isso  sim  que  é  flácido  e 
agradável.  Jubila  a  futura  mãe ;  e  o  esposo  fica  con- 
tente de  si.  '■ 

Trata-se  agora  de  ser  artista  na  construcção  do 
ninho.  Mas  é  precisa  uma  precaução :  a  defeza  e  se- 
gurança dos  ovos.  Como  ha  de  ser?  No  modo  por  que 


178 


a  ave  garante  aos  filhos  a  segurança  do  berço  é  que  se 
revela  o  seu  instincto  artístico.  E  não  devem  estra- 
nhar se  lhes  eu  disser  que  não  é  raro  dividir-se  o 
ninho  de  modo  que  fiquem  mãe  e  filhos  n'uma  como 
alcova  independente  do  vestíbulo,  onde  o  macho  vigia 
pela  defeza  da  casa  e  da  família. 

jS^otemos  agora  o  que  fazem  as  mães. 

Oh  !  Ninguém  como  ellas  para  saber  de  que  maté- 
ria se  ha  de  fazer  o  colchão  para  o  bercinho.  E'  pre- 
ciso que  seja  molle  e  brando  para  não  molestar  a 
creança.  Que  altura  ha  de  ter  o  colchão  ?  E'  necessário 
que  não  seja  tão  alto  que  exponha  ao  ar  o  recemnascido, 
nem  tão  baixo  que  o  deixe  soterrado  no  berço.  Só  o 
coração  materno  é  que  discrimina  o  meio  termo  n'esta 
conjunctura,  E  atravesseirinha?  Torna-se  indispensá- 
vel que  não  offenda  o  craneosinho  delicado.  E'  ainda 
a  mãe  que  ha  de  escolher  a  matéria  para  se  fazer  a 
travesseirínha !  E  a  coberta  do  berço  ?  Importa  que  a 
mãe,  por  um  instincto  inimitável,  escolha  o  único 
estofo  conveniente. 

Eis  aqui  o  berço  sendo  mais  alguma  cousa  do  que 
um  simples  leito  e  apparecendo-nos  agora  como  uma 
verdadeira  creação  d'anior.  E  pelo  que  toca  ao  bem 
estar  da  creança !  E'  ainda  a  mãe  igual  á  ave  que 
procura  garantir  a  segurança  dos  filhinhos.  Ninguém 
como  a  mãe  para  saber  em  que  sítio  do  quarto  se 
ha  de  coUocar  o  berço.  Mais  para  aqui,  na  direc- 
ção da  porta,  ficaria  exposto  a  uma  corrente  de  ar. 
Mais  para  acolá,  quasi  ao  meio  da  sala,  estaria  mal 
collocado  pela  excessiva  claridade  das  janellas.   Nem 


179 


aqui  nem  acolá.  E'  preciso  que  o  berço  fique  n'este 
sitio,  exactamente  n'este,  diz  a  mãe,  para  que  o  me- 
nino esteja  bem. 

Faz  rir  e  chorar  a  um  tempo  esta  anciedade  ex- 
trema de  uma  mãe  dedicada:  e  eis  aqui  resolvida  a 
questão  dos  philosophos  Proethes  e  Cyestris,  philoso- 
phos  que,  seg'undo  diz  algures  Victor  Hugo,  discuti- 
ram a  possibilidade  d 'uma  pessoa  rir  e  chorar  simul- 
taneamente. 

Até  aqui  creio  que  a  ave  está  á  altura  da  mulher 
e  que  o  berço  das  creanças  ó  tanto  uma  creação 
d'amor  como  o  ninho  dos  passarinhos.  A  mãe  exige 
para  o  filhinho  uma  cama  flácida,  e  só  ella  —  e  nin- 
guém como  ella  ! — sabe  preparar  o  leito  que  deve  re- 
ceber o  seu  mimo  d'amor. 

Se  a  mãe  desconfiasse  de  que  uma  caminha  de 
'  flores  era  mais  macia  de  que  ura  colchão  de  sumahu- 
ma,  colmaria  de  rosas,  todas  as  noites,  o  berço  do 
filhinho  e  viveria  contente  arrulando  o  anjo  que  dor- 
misse n'esse  jardim    em  miniatura. 

E  as  aves  não  fazem  o  mesmo  ? 

Poderia  referir  milhares  d 'exemplos,  mas  conten- 
to-me  com  fallar  aqui  do  pendidino^  que  tem  o  cui- 
dado de  acolchoar  o  ninho  com  o  cotão  das  flores  do 
salgueiro,  e  de  o  pendurar  a  um  ramo  por  uma  fibra 
de  cânhamo  para  que  o  vento  embale  aquelle  berço 
aéreo  e  adormente  a  ninhada. 

Comparemos  a  mulher  com  a  ave  na  restante  edu- 
cação dos  filhos  d'ambas. 

Apparece-nos  a  ave  no  trabalhoso  periodo  da  incu- 


180 


bação  e  a  mulher  na  demorada  tarefa  de  amamentar 
o  filhinho. 

Rejeitemos  a  hypothese  de  não  querer  acumular 
as  funcções  de  ama  e  de  mãe.  Pois  se  Deus  fez  brotar 
d'um  seio  o  néctar  que  deve  alimentar  uma  vida,  como 
é  que  a  mulher,  excepto  o  caso  d'impossibilidade  or- 
gânica, quer  inutilisar  o  jorro  que  lhe  rebenta  do  peito, 
roubando  o  que  era  de  seu  filho  ? 

Deixemos  isto,  que  é  feio  e  desconsola ;  e  continue- 
mos no  cotejo  da  ave  com  a  mulher. 

Ahi  temos  nós  a  ave  aquecendo  o  ovo  no  periodo 
da  incubação.  Ella  ahi  está  immovel,  presa,  solicita, 
para  o  não  deixar  resfriar  e  atravessando-o  com  a  vista, 
por  assim  dizer,  como  quem  deseja  devassar  um  se- 
gredo, que  lhe  absorve  a  vida. .  . 

Estudemos  agora  a  mulher  que  se  inclina  cuida- 
dosa sobre  o  berço,  entregando  aos  lábios  do  filho  o 
botão  róseo  do  seio,  sem  pensar  em  mais  nada,  esque- 
cendo tudo  e  concentrando  todas  as  suas  faculdades 
n'esta  tarefa  tão  espinhosa  como  suave.  . . 

Mas  o  passarinho  quebrou  agora  o  inii7'o  da  sua 
jjrisão,  como  diz  Michelet,  e  a  creança  chegou  á  occa- 
sião  d'abandonar  o  berço. 

A  ave  começa  a  querer  ensinar  o  filho  a  voar. 

Abre  as  azas  e  desfere  voo  como  para  lhe  mostrar 
que  o  infinito  das  regiões  ethereas  não  6  o  abysmo, 
mas  a  pátria.  Provo ca-o,  dasafia-o  a  voar.  O  passari- 
nho treme,  vacilla,  duvida. 

A  mãe  insta,  o  filho  recusa.  Mas  quando  a  mãe 
insta,  o  filho  não  pode  recusar  por  muito  tempo... 


181 


O  passarinho  voou. 

Vejamos  ag"ora  a  niae  a  esforvar-se  para  que  o 
tilho  comece  a  andar. 

Promette   beijai- o,  se  ello  arriscar  um  passo. 

O  pequenito  quer  andar  e  receia ;  esforça-se  e 
cae...  Mas  a  mãe  não  desanima  e  procura  dar-lhe 
alento  com  o  exemplo:  anda  também. 

O  pequenito  deseja,  mas  teme.  E  a  mãe  insta,  e 
espera-o  com  os  braços  abertos... 

E  o  pequenito  anceia  cahir  nos  braços  da  mae  ([ue 
são  feitos  de  ternura,  como  nota  Victor  Hugo  nos 
Miseráveis.  E  a  mãe  anhela  estreitar  o  corpo  d' oiro 
de  seu  filho,  o  corpo  d'oiro^  como  diz  a  canção  d'Eo^as 
Moniz.  E  a  creança  treme  e  a  mãe  anima-a. 

E   o  pequenito  começou  a  andar. 

Ha  todavia  um  ponto  na  educação  dos  filhos  com 
que  as  aves  se  afadigam  muito  mais  do  que  a  mulher:  — 
a  educação  da  voz.  E'  preciso  attendermos  a  que  o  can- 
to, como  Buffon  nol-o  diz,  «é  uma  qualidade  em  parte 
da  natureza  e  em  parte  adquirida.  »  A  ave  nasceu  para 
cantar,  é  verdade;  mas  a  sua  voz  pode  ser  modificada 
por  mil  influencias  estranhas. 

As  aves  teem  também  as  suas  escolas  de  canto, 
os  seus  conservatórios  de  musica.  Os  pães  e  as  mães 
costumam  ser  os  preceptores  n'estas  escolas,  mas  ha 
todavia  casos  dos  passarinhos  serem  ensinados  uns 
pelos  outros  e  ainda  pelos  homens. 

Conta  Michelet  que  nos  palácios  da  Rússia  ha 
escolas    de    canto   oiide  os  rouxinoes    novinhos    vão 


182 


ensaiar  as  suas  volatas  na  presença  d'outro  que  passa 
por  ser  musico  di  cartello. 

E  escreve  Bufibn  que  a  maior  parte  das  cotovias 
modificam  admiravelmente  o  seu  canto  natural  sendo 
auxiliadas  por  qualquer  instrumento  musico;  ha 
casos    de    chegarem  algumas  a  cantar  árias  inteiras! 

Eu  não  sei  por  que  as  mães  não  acostumam  as 
creanças,  desde  a  primeira  infância,  a  certa  educação 
musical. 

A  musica  dulcifica  os  génios  ásperos,  amenisa 
lentamente  as  Índoles  que  não  são  boas,  apura  a 
sensibilidade  e  prepara  a  alma  para  as  concepções 
grandiosas. 

E'  tempo  de  voltarmos  á  sala  onde  estávamos. 
Despertara  a  creança  que  dormia,  saudando  a  todos 
com  um  sorriso  em  que  brotavam  graças  infantis. 
Como  já  não  havia  receio  de  perturbar  o  somno  da 
innocencia,  abriu-se  o  piano  e  uma  senhora  percorreu 
com  as  mãos  o  teclado,  fazendo  ouvir  as  primeiras 
notas  da   Valsa  das  flores. 

Era  uma  musica  alegre  a  que  enchia  a  sala,  e  a 
creança  sorria-se  ainda  como  enlevada  n'uma  suspen- 
são celeste.  Depois  cerrou  as  pálpebras  como  para  se 
concentrar  na  impressão  dulcíssima  da  musica  e,  ó  in- 
fluencia magnética  d'essa  linguagem  dos  anjos  I  — 
adormeceu  sorrindo-se  e  cuido  que  sonhou.  É  ainda 
um  milagre  da  musica  o  fazer  cerrar  as  pálpebras 
para  se  poder  sonhar. 

Ao  outro  dia,  enviava  eu  á  mãe  d'aquella  fornio- 
8issima  creança  os  seguintes  versos  : 


183 


Não  acordeis  o  anjo  alvo  e  rosado, 

Qiio  dorme  entre  cambraias  cor  de  neve. . . 

Vinde  vèl-o  a  dormir  tao  socegado  ! 

Mas  não  o  desperteis  ;  entrae  de  leve. . . 

Descerram-se-lhe  os  lábios  n'um  sorriso. 
Não  ha  sonhos  mais  lindos,  mais  serenos  I 
Entrevê  os  irmãos  do  paraíso, 
Anjos,  também,  rosados  c  pequenos. 

A  sonhar !  Vede  agora  que  se  move.  . . 
Affastai  mansamente  o  cortinado... 
Quem  é  que  ao  vel-o  assim  se  não  commove  ? 
Perturbar  este  somno  era  peccado. 

As  madeixas  do  sou  cabello  loiro 
Esparzidas,  n' alvura,  uma  por  uma. 
Fazem  lembrar  á  gente  fitas  d' oiro 
Enastradas  n'algum  rolo  de  espuma,  c . 

Que  formoso  a  dormir  I  E  ao  pé  do  leito 
Um  coração  de  mãe,  cheio  de  vida. 
Aquecendo  no  fogo  do  seu  peito 
O  porvir  da  creança  adormecida. . . 

Inclino-me  ante  o  berço  das  creanças. 
Como  se  fosse  o  ninho  alegre  e  obscuro, 
D'onde,  um  dia,  n'aurora  das  esp'ranças 
Hão  de  voar  as  águias  do  futuro   . . 

D'ali  hão  de  sahir  novos  Atlantes 
Que  sustentem  a  nova  architectura.    . 
Águias,  hão  de  subir  como  gigantes. 
Seguindo  o  voo  da  águia  á  mesma  altura. 


184 


Yel-as-hemos  suspensas  no  infinito, 
Medindo,  no  seu  voo,  a  profundeza 
Do  poema  de  Deus  que  está  escripto 
Nos  abysmos  sem  fim  da  natureza.  . . 

E  quando  uma  roçar  a  poeira  d' oiro 
Dos  astros  que  são  fachos  do  universo, 
Quem  dirá  que  era  ella  o  anjo  loiro. 
Que  vimos  a  dormir  hontem  no  berço? 

Pois  se  as  aves  aquecem  cuidadosas, 
Nas  sombras  do  seu  ninho,  a  cada  ovo, 
E  sem  descanço  escondem  anciosas 
Debaixo  d'uma  aza  um  mundo  nov^o; 

(Um  mundo  que  se  esmaga  com  dois  dedos, 
Mas  que  nos  furta  á  vista  o  ser  implume 
Que  ha  de  amanhã  soltar  nos  arvoredos 
Um  cântico  d' amor  ou  de  ciúme. .  .) 

Pois  se  as  aves  nos  dão  sempre  este  exemplo 
De  desmedido  amor,  cheias  d^esperanças, 
O'  mães,  sabei  que  o  berço  é  como  um  templo,. 
Em  cujo  altar  se  adoram  as  creanças. 

Velai  por  ellas  sempre,  noite  e  dia. 
Não  deixeis  apagar  no  vosso  seio 
A  lâmpada  do  amor  que  as  allumia. .. 
Sede  mães,  sede  luz  e  sede  esteio. 

Deixemos  as  aves  e  as  mulheres  a  aprenderem  ex- 
tremos de  mãe  umas  com  outras.  Kespeitem-se  as 
mulheres  que  se  inclinam  sobre  o  berço  do  homem 


18Õ 


(Vammihã  e  iiào  enipevamos  o  voo  da  ave,  que  vae 
cruzando  o  espado  em  caminho  do  ninho  de  seus 
fillios. 

Matar  uma  ave  é  talvez  roubar  a  vida  de  qualquer 
mãe ;  e  roubar  a  vida  da  mãe  6  levar  a  morte  aos  filhi- 
nhos. Para  que  havemos  d'atirar  aos  pombos,  como 
se  fazia  em  Pariz,  ha  poucos  annos,  apostando  um 
luh  pela  vida  de  cada  um,  se  os  pobresinhos  vivem 
no  seu  paraizo  d'amor,  sem  se  intrometterem  comnos- 
co ! 

O  que  admira  é  que  as  senhoras  da  melhor  socie- 
dade parisiense  fossem  as  mais  denodadas  apologistas 
do  tiro  aos  pombos,  uotando-se  entre  ellas  a  duqueza 
de  A^alezay,  que  difficilmente  errava  a  pontaria  da  sua 
pequena  clavina. 

Fecho  por  aqui  estas  recordações  da  Quiiita  da 
Primavera.  Pouco  disse  em  relação  ao  muito  que  de- 
sejava dizer.  Receba  o  snr.  António  Feliciano  de  Cas- 
tilho, o  poeta  amantíssimo  das  creanças  e  das  aves, 
estas  linhas  que  dizem  respeito  ás  aves  e  ás  creanças 
e  saiem  da  peuna  obscura  do  mais  obscuro  rabiscador 
portuguez. 


I 


I 


: 


O  CATRE  DO  BISPO 

(  AO     SXR.     CAMILLO     CASTELLO     BRANCO  ) 


Toinette 

Mais.   monsieur,    mettez  la  maiu  à  la  consciea- 
ce  :  est-ce  que  vous  étes  malade  ? 

Argan 

Corament,  coquine,  si  je  suis  malade  !  si  je  suis 
malade,  impudente  ! 

MOLiERE.  — Le  malade  imaginaire. 


Podem    servir  de   introducção  a  esta  narrativa  os 
fragmentos  d'algumas  cartas  que  vamos  publicar. 

Do  auctor  ao  snr.  Cainillo  Castello  Branco  : 


«  Postas  estas  palavras,  vou  consultar  v.  ex.*  sobre 
um  caso  que  prende,  talvez,  com  a  biographia  do  bispo 
•do  Grão-Pará,  fr.  João  de  S.  Joseph  Queiroz.  Falia  v. 
ex.*  do  Mosteiro  d^Alpendurada,  na  introducção  ás 
Memorias,  com  muita  verdade  descriptiva,  e  quer-me 
parecer  que  já  peregrinou  em  terras  visinhas  do  hos- 


188 


picio  benedictino.  Se  sim  ou  não,  ignoro.  Na  margem 
esquerda  do  Douro,  parallela  ao  mosteiro  d'AlpendQ- 
rada,  estende-se  a  freguezia  de  Sozello.  É  ahi  que, 
entre  meia  dúzia  d'arvores  de  boa  sombra,  ha  uma 
choupana,  que  abrigou  os  meus  antepassados  e  que 
ainda  hoje  hospeda  frequentes  vezes  a  minha  família. 
Quero  áquella  aldeia  e  áquella  choupana  como  se  me 
fossem  pátria  e  berço.  Tenho  pena  de  ter  nascido  na 
cidade.  Queria  poder  dormir  o  somno  da  morte  n'um 
cemitério  aldeão,  visinho  do  alpendre  onde  tivesse  nas- 
cido. Na  casa  da  quinta  de  Yilla  Verde,  —  denomi" 
nação  verdadeiramente  bem  cabida  a  propriedade,  — 
havia,  ha  poucos  annos,  um  leito  de  pau  preto,  com 
insígnias  episcopaes  gravadas  na  cabeceira.  Era  de 
tradição  na  familia  o  chamar-se  áquelle  leito  o  leito 
do  bis-po  d' Alpendurada.  Na  resfcricção  d' Alpendurada 
havia  manifesta  mentira.  Nem  que  o  mosteiro  fosse 
diocese !  Contava  a  lenda  que  costumava  dormir 
n'aquelle  leito  um  bispo  velho  e  triste,  que  d'Alpen- 
durada  ia  de  visita  ao  nosso  alpendre.  D'aqui  veio 
o  dizerem  os  quinteiros,  por  ignorância,  bispo  d' Al- 
pendurada. Permitta  v.  exc*  que  não  attribua  este 
erro  aos  meus  antepassados  que,  posto  fossem  boas 
pessoas  de  poucas  lettras^  não  eram  completamente 
analphabetos. 

Seria  este  bispo  o  pobre  Queiroz  que,  por  minorar 
as  maguas  do  seu  desterro  d' Alpendurada,  passasse  na 
barca  para  o  outro  lado  em  demanda  do  tugúrio  hos- 
pitaleiro de  pessoas  piedosas?  Mas  se  elle  tinha  sido 
desterrado  por  ordem  d'aquelle  severíssimo  conde  d'Oei- 


189 


ras,  será  licito  sappôr  que  consentissem  os  frades 
n 'estas  diíj^ressões,  postoqiie  breves,  frequentes  ? 

Eis  aqui  o  que  não  sei.  O  leito  desconjuntou-se 
de  velho.  Guarda-se,  hoje,  apenas  a  cabeceira  na  casa 
de  Yilla  Verde.  Tenho  vivido  tranquillos  dias  n'aquel- 
las  paragens  e  quero-lhes  como  o  Júlio  Machado, 
creio  que  posso  dizer  nosso  commum  amigo,  quer  á 
sua  Durruivos. 

Queira  v.  exc*  dizer-me  do  caso  o  que  pensar, 
com  a  franqueza  indefeza  ao  seu  mais  reconhecido 
admirador  e  discípulo 

Alberto  Pimentel 


Do  snr.  Camillo    Castello    Branco    ao  auctor  : 


« O  bispo  do  G-rão-Pará,  sem  embargo  de  ter  sido 
desterrado  pelo  Pombal,  é  bem  de  crer  que  sahisse 
do  mosteiro  quando  bem  quizesse,  já  porque  era 
prelado  insigne,  já  porque  era  benedictino  e  estava 
entre  os  seus.  Quanto  ao  leito,  se  tem  o  espaldar  de 
columnas  em  rosca,  sem  duvida  era  coevo  do  bispo, 
porque  esse  feitio  de  catres  é  o  da  renascença,  que 
principiou  no  começo  do  século  xviii.  Mas  quem  man- 
dara abrir  as  insígnias  episcopaes?  Os  antepassados 
de  V.   em  honra  do  seu   hospede  ?  Ou  elle  mesmo? 


190 


Não  é  natural  a  segunda  hypothese.  Se  bem  me 
recordo,  o  desterrado  viveu  alguns  mezes  escassos 
em  Alpendurada.  De  certo  não  cuidaria  em  com- 
modos  de  cubículo,  e  menos  em  pompas  nobliar- 
chicas.  Seria  mais  acceitavel  que  os  hospedeiros 
amigos  Âe  Yilla  Verde  o  honrassem  com  essa  prova 
de  reverencia.  Mas  a  brevidade  do  bispo  em  Alpen- 
durada daria  tempo  a  isso?  Ha  sêllos  de  segredos  que 
nunca  se  abrem.  Eu  tenho  tido  horas  de  aftlicção  a 
scismar  em  bagatellas  d 'esta  natureza.  Quando  era 
novo  passava  dias  a  interrogar  umas  pedras  amon- 
toadas no  viso  d'uma  serra,  que  sobranceava  a  aldeia 
onde  passei  a  infância  em  Traz-os-Montes.  Eu  queria 
que  fossem  antas  célticas  o  que  não  passava  d'uns 
calháos  sobre  os  quaes  uns  pastorinhos  jogavam  o 
Rapa. 

Estive  á  porta  do  Mosteiro  d'Alpendurada  com 
José  Augusto  Pinto  de  Magalhães,  da  casa  de  Lodei- 
ro,  em  Sancta  Cruz  do  Douro.  E'  o  personagem  d 'um 
fragamento  de  um  livro  que  intitulei:  No  Bom  Jesiis 
do  Monte,  Era  em  dezembro  de  1850.  Ha  20  annosi 
A  minha  alma  de  hoje  comprehende  melhor  o  frio 
aspérrimo  e  o  local  onde  estivemos  uma  hora  a"  apos- 
trophar  o  barão  que  substituiu  o  frade. 


Seide— Abril  70. 

(\  Castello  Jii^anco. 


191 


Do  aiictor  ao  snr.  Camillo  Castello  Branco: 


i 


O  leito  do  bispo  6  perfeitamente  da  renascença. 
Aventemos  agora  hypotheses  sobre  o  caso  das  insigni- 
as  do  espaldar.  E'  de  sappôr  que  já  houvesse  o  catre 
na  casa  de  Yilla  Verde,  e  que  talvez,  depois  da  pri- 
meira visita  do  bispo,  mandassem  ao  Porto  abrir  os 
emblemas  nobiliarchicos  a  qualquer  samblador.  O  bis- 
po viveu  em  Alpendurada,  segundo  v.  exc*  diz  nas 
Memorias,  cerca  d'oito  mezes.  Do  cães  de  Foutellas 
saiem  barcos  de  carreira  para  o  Porto  todos  os  domin- 
gos. A  facilidade  do  transporte  e  o  pouco  trabalho 
artístico  das  insígnias  do  catre  auctorizam  o  suppôr-se 
que  os  meus  avoengos  quizeram  honrar  o  seu  illustre 
hospede  com  esta  distincção. 

Este  leito,  onde  o  prelado  do  Gão-Pará  dormiu 
as  longas  noites  de  Yilla  Yerde,  tem  ainda  uma  histo- 
toria  que  eu  desejo  contar  em  folhetim.  Peço  vénia  a 
V.  exc*  para  publicar  a  sua  carta  no  prologo  da  mi- 
nha narrativa,  por  isso  que  v.  exc*  corroborou  a  sup- 
posição  da  fidalguia  do  leito. 

Li  até  em  Yilla  Yerde,  o  anno  passado,  o  livro 
No  Bom  Jesits  do  Monte  e  já  conhecia  o  caracter 
sympathico  de  José  Augusto.  Pareceu-me  um  grande 
espirito  o  d'aquelle  homem  e  um  grande  anjo  aquella 
Fanny  Owen.  O  livro  impressionou-me  e  se  as  nossas 
visitas    de   Yilla    Yerde    entendessem  boa  litteratura 


192 


(salvas   algumas  poucas  excepções)  ter-lhes-ia  lido  as 
maviosas  paginas  nos  serões  d 'aldeia. 

De  V.  exc.a 

Discipulo,  admirador  e  criado 

Alberto  Pimentel 


Ahi  vai,  pois,  a  historia  que  anda  ligada  ao  catre 
do  bispo,  seja  ou  não  seja  o  do  Grrão-Pará,  Frei  João 
de  S.  Joseph  Queiroz. 


I 


Não  aventuremos  hypotheses  sobre  as  causas  que, 
no  principio  d'este  século,  obrigaram  Martinho  de 
Teive  a  abandonar  temporariamente  a  casa  solarenga 
de  Castro-Daire  para  vir  tractar  de  perto  com  Silves- 
tre da  Cunha,  proprietário  no  concelho  de  Bouças. 

Negócios  attinentes  ao  tracto  commercial  deveram 
ser,  que  ambos  estes  nomes  representam  duas  das  não 
muitas  casas  que,  a  esse  tempo,  mais  semeavam  e  co- 
lhiam na  província. 

Os  Teives  de  Castro-Daire  eram  nobres  e  dinhei- 
rosos.  Penso  que  essa  familia  deveu  proceder  d 'algum 
varão  romano  das  hostes  conquistadoras  da  penín- 
sula;—  talvez    um    dos  que  edificaram  sobre  um  ou- 


193 


teiro,  lavado  dos  ventos,  o  castro  que  deu  nome 
áquellas  paragens.  Mas  se  ao  fidalgo  appellido  de  Teive 
se  pode  assignalar  com  certeza  origem  romana,  não 
n'o  sei  eu,  nem  isso  faz  ao  meu  propósito. 

Martinho  de  Teive  era,  pois,  no  principio  d'este 
século,  um  dos  mais  acatados  senhores  de  Castro 
Daire,  e  o  mais  querido  das  donas  da  sua  terra. 

Era  uma  alma  sem  refolhos  aquelle  homem,  posto 
que  muito  propenso  a  melancolias  e  ao  remanso  la- 
reiro  da  sua  casa  solarensra. 

No  inverno,  quando  os  ventos  açoitavam  as  arvo- 
res da  serra.  Martinho  de  Teive  mettia-se  na  cama, 
pregoando  aos  criados  soffn mentos  gravissimos,  que, 
em  verdade,  não  tinha. 

A  ideia  da  morte,  que  era  o  galardão  da  vida 
para  Santa  Catharina  de  Sensi  e ganho  e  (?tferesse  para. 
Sam  Paulo,  apavorava  o  fidalgo  de  Castro  Daire. 
Muito  devia  contribuir  par.i  estes  terrores  imaginários 
a  solidão  a  que  o  obrigava  o  celibato. 

Aconselharam-n'o  a  casar-se.  Martinho  de  Teive 
tinha  anciãs  d'uma  esposa  solicita,  que  fosse  boa  amiga 
e  boa  enfermeira,  mas  salteava-o  o  receio  de  se  lhe 
mostrar  excessivamente  ridículo  n'aquelles  lances  entre 
cómicos  e  melodramáticos  em  que  dizia  estar  prestes 
a  ser  victima  de  um . . .  aneurysma. 
^  Os  cuidados  da  administração  da  casa  valiam-lhe 
m  ainda  para  espairecer  o  espirito  cançado  de  visualidades 
■  tétricas.  Havia  trez  annos  que  Martinho  de  Teive  viera 
|B  ao  Porto  consultar  os  médicos ;  por  essa  occasião 
^Ltrouxe  comsigo  um  grande  receio  e   uma  grande  es- 

I 


194 


peraoça.  Vinha  com  o  propósito  de  saber  ao  certo  se 
os  médicos  dissipariam  ou  confirmariam  as  suspeitas 
do  aneurysma. 

Sujeitou-se  á  auscultação.  Os  médicos  portuenses 
olharam-se  d'uma  maneira  significativa.  Martinho  de 
Teive  esteve  a  ponto  de  cahir  fulminado.  Perguntou- 
Ihes  anciosamente  se  em.  verdade  era  aneurysmatico. 
Os  médicos  soltaram  um  frouxo  de  riso  e  disseram- 
Ihe  que  estava  mais  perto  da  monomania  que  da 
aneur3^sma.  O  fidalgo  de  Castro-Daire  remunerou-os 
generosamente  e  recolheu  serenado  ao  remanso  dos 
lares. 

Passados  dias,  porém,  succedeu  abrir  ao  acaso 
um  livro,  que  era  a  vida  de  D.  Frei  Bartholomeu 
dos  Martyres,  por  Frei  Luiz  de  Sousa.  Acertou  de 
ler  o  relanço  em  que  o  arcebispo  está  enfermo  d'um 
tabardilho.  Ora  o  prelado  bracharense  costumava 
dizer,  quando  os  médicos  entravam: — «Já  vem  os 
trampOes  e  bem   trampões.» 

Declarava-se  depois,  escreve  Frei  Luiz  de  Sousa, 
e  dizia  que  trampões  eram  uns  advogados  que  com 
manhas  e  astúcias  dilatavam  as  demandas  e  entre- 
tinham a  justiça. 

Martinho  de  Teive  fechou  subitamente  o  livro; 
para  logo  se  sentiu  despenhado  do  ceu  da  sua  felici- 
dade. 

—  Os  médicos  ou  não  sabem  ou  enganaram-me  !... 
Disse  elle  de  si  para  comsigo. 
E  os  receios  voltaram. 


195 


II 


Era  Silvestre  da  Cunha  o  verdadeiro  tyi^o  do  la- 
vrador portuguez,  iraquelles  tempos. 

A  sua  casa  de  Bouças  tinha  nomeada  de  riqueza 
em  todo  o  Porto.  Parte  d 'esta  riqueza  fora  herdada 
d*avoeng'os  enriquecidos;  outra  parte  amontoára-a 
elle  na  faina  constante  da  agricultura.  Segundo,  pois, 
conjecturamos,  foram  negócios  de  gravidade  os  que 
obrigaram  Martinho  de  Teive  a  vir  ao  Porto  tratar 
com  o  lavrador  de  Bouças. 

Silvestre  da  Cunha,  dias  antes  de  sahir  de  casa 
com  o  intuito  d'esperar  no  cães  da  Ribeira  o  de 
Castro-Daire,  disse  á  mulher  : 

—  Xão  quero  que  o  fidalgo  fique  sósinho  na  esta- 
lagem do  Porto.  Consta-me  que  é  doente  e  triste. 
Havemos  d'hospedal-o,  emqiianto  se  quizer  demorar. 
Além  d'isso,  temos  uma  filha  que  está  casadoira  e  o 
fidalgo  não  ó  noivo  que  se  desprese. 

Silvestre  da  Cunha  era  homem  de  largos  espíri- 
tos. Sabia-o  perfeitamente  a  mulher.  O  elogio  do  de 
Castro-Daire,  na  sua  bocca,  queria  dizer :  —  É  pre- 
ciso prendel-o  nas  redes  esponsalicias,  dê  la  por 
onde  der. 

Poucos  dias  depois,  entrava  Martinho  de  Teive 
na  casa  de  Bouças.  Teve  uma  recepção  digna  do  hos- 
pede. 

Silvestre  da  Cunha  apresentou  chanmente  a  sua 
família,  quer  dizer,  a  mulher  e  a  filha. 


196 


—  Aqai  tem  o  osso  do  meu  osso,  disse  elle  indi- 
cando a  mulher.  E  depois,  chamando  a  filha :  —  Anda 
cá,  Yirginia.  Yem  cumprimentar  um  fidalgo  de  sete 
costados  e  o  mais  guapo  moço  lá  das  serras  do  Douro. 

A  rapariguinha  tremeu  d'acanhamento,  e  cumpri- 
mentou timidamente.  Martinho  de  Teive  —  diga-se 
em  abono  da  formosura  da  filha  do  lavrador  —  esque- 
ceu-se,   ao  contemplal-a,  do  aneurysma. 

Não  sei  se  aquella  terra  de  Bouças  é  logar  azado 
para  ninho  de  amores. 

Averiguando  a  etymologia  da  palavra  — ■  Bouças 
—  topo  com  duas  opiniões  differentes,  que  não  auxi- 
liam o  meu  propósito. 

Uns  a  derivam  do  grego  —  Bossis  —  que  signi- 
fica —  pasto  ;  —  outros  do  phenicio  —  Boses  — ^  que  é 
a  denominação  d'uns  penedos  da  Palestina.  Dos  ro- 
chedos e  do  ervaçal  não  vem  cousa  que  dê  ao  ter- 
reno o  que  quer  que  seja  de  paradisíaco. 

Appello  para  a  visinhança  poética  do  rio  Leça, 
sem  cuidar  de  tirar  a  limpo  se  este,  e  não  o  Cávado, 
éo  —  Gelando  —  ou,  como  outros  querem,  o  ^  Le- 
thes. 

Por  alli  fica,  não  longe,  a  quinta  de  Santa  Cruz, 
propriedade  dos  bispos  do  Porto,  que  tantos  desvelos 
mereceu  a  D.  Rodrigo  Pinheiro.  Ahi  deveu  o  prelado 
portuense  ler  a  interessante  correspondência  do  poeta 
Cadabal  Gravio,  que  lhe  mereceu  amizade  e  a  quem, 
em  1568,  mandou  imprimir,  em  Lisboa,  uma  grave  e 
elegante  descripção  d'esse  suave  retiro  episcopal  de 
Santa  Cruz. 


11)7 


Nao  ó  preciso,  poróm,  procurarmos  poesia  em  redor 
de  Martinho  de  Teive  e  de  Virgínia.  Tinham-n'a,  qiio 
farte,  aqiielles  dons  corações.  Quando  o  amor  accende, 
no  peito,  auroras  interiores,  não  cuidamos  de  cousa 
que  seja  material  e  estranha,  porque  ó  chegada  a  hora 
de  nos  divinisarmos,  alheando  o  quebradiço  do  barro 
primitivo.  D'aqui  infira  o  leitor  que  dulcíssimos  júbilos 
alvorejaram  para  aquelles  dous  corações. 

Martinho  de  Teive  e  Yirgina. .  .  amavam-se. 


III 


Silvestre  da  Cunha  via  coroados  os  seus  desejos. 
Concluídas  as  transacções  com  o  hospede,  convidou-o 
a  um  passeio  pelos  campos  e  ageitou  o  dialogo  de 
maneira  e  dizer : 

—  Que  lhe  parece  minha  filha,  snr.  Martinho  de 
Teive  ? 

—  Parece-me  uma  boa  e  interessante  menina. 

—  E  mais  nada?  perguntou  o  de  Bouças  com 
rústica  simplicidade. 

—  Olhe,  snr.  Silvestre  da  Cunha,  devo-lhe  a  verdade. 
Eu  amo  sua  filha . . . 

—  Isso  suspeitava  eu. 

—  Era  natural. 

—  E  que  tenciona  fazer  ? 

—  Quereria  desposal-a,  mas  sou  um  homem  ex- 
cessivamente doente  e  receio  infelicitar  a  mulher 
com  quem  casar. 


198 


—  Deixe-se  d'isso,  fidalgo,  disse  Silvestre  da  Cunha. 
Verdade  é  que  a  sua  appareiícia  não  ó  de  robus- 
tez, mas  também  não  vejo  motivo  para  tamanhos 
receios. 

—  Sofíro  muito,  snr.  Silvestre  da  Cunha.  Tenho 
um  aneurysma,  meu  amigo,  e  presinto  que  o  mal  vai 
adiantado. 

O  de  Bouças  esbugalhou  os  olhos.  Ouvia  simi- 
Ihante  palavra  pela  primeira  vez  e  perguntou : 

—  O  que  vem  a  ser  isso  ? 

—  Aneurysma,  propriamente,  é  um  temor  devido 
á  dilatação  d'uma  artéria,  mas  exprime-se  também 
por  esta  palavra  a  dilatação  de  uma  ou  de  todas  as 
cavidades  do  coração. 

Silvestre  da  COnha  sentiu-se  pouco  melhorado 
com  esta  explicação  pathologica  e  reperguntou : 

—  E'  de  perigo  essa  moléstia  ? 

—  O  aneurysma  !  Morte  certa. 

—  Então  também  a  tenho,  disse  com  jovialidade 
zombeteira  o  lavrador. 

—  Por  que? 

—  Porque  hei  de  morrer  sem  remissão  nem  aggra- 
vo.  .  . 

—  Não  graceje,  snr.  Cunha.  Esta  ó  a  minha  mo- 
léstia embora  os  médicos  digam  que  não. 

Silvestre  da  Cunha  comprehendeu  que  a  enfermi- 
dade do  seu  hospede  não  passava  d'uma  apprehensão 
e  disse: 

' —  Qual  lorisma  nem  meia  lorísma !  Coma,  beba 
€  divirta-se,  fidalgo.  Não  ande  a  chorar  o  landum. 


199 


—  Diz-nio  isso,  siir.  Cunha!  ex''lcun()ii  u  Teive  com 
iissomos  d'aleíi'ria. 

—  -  Sim  senhor,  digo-lhe"  isto. 

—  Pe(,*o-llie  a  mão  de  sua  filha, 

—  Da  meliior  vontade,  snr.  Martinlio  de  Teive.  O 
peior  ó  que  minha  íilha  não  tem  nobreza.  Lá  para  a 
ceia  ha  de  ella  levar. 

—  Não  procuro  íidalg-uia  nem  nobreza.  Quero  uma 
mulher  que,  simplesmente,  me  estime. 

—  E  a  Virgínia  ha  de  estimal-o  de  veras,  por  que 
o  ama. 

—  Assim  o  creio,  snr.  Silvestre  da  Cunha.  Eu 
também  a  amo  e.  .  .  muito. 


lY 


Cuidou-se  desde  logo  nos  apercebimentos  do  noi- 
vado. Martinho  de  Teive  andava  '  alegre  e  absoluta- 
mente esquecido  da  sua  imaginaria  lesão.  Yirginia 
deixava  adivinhar  no  semblante  o  muito  amor  que  ti- 
nha no  coração  enamorado.  Silvestre  da  Cunha  e  súa 
mulher  deliravam  de  contentamento. 

Chegou  o  dia  das  núpcias.  Foi  a  melhor  festa  de 
Bouças,  n'aquelles  tempos.  As  raparigas  do  sitio 
prepararam  festas  e  descantes.  Os  pintalegretes  do 
concelho  sahiram  a  terreiro  com  as  suas  violas. 

Silvestre  da  Cunha  mandou  fazer  ao  Porto  balões 
de  cores  para  illuminar  as  arvores  do  pomar. 


200 


Concorreram  ás  bodas  muitos  convidei  dos,  das 
visinhanças  de  Bouças ;  outros  vieram  de  Castro-Daire 
por  honrar  Martinho  de  Teive. 

Permitta  o  leitor  que  reatemos  o  fio  da  narrativa 
um  mez  depois  do  dia  das  bodas  para  lhe  uão  darmos 
tratos  á  paciência. 

Martinho  de  Teive  parece  triste.  Yirginia  vê  na 
tristeza  do  marido  aborrecimento  temporào,  chora  e 
occulta  de  todos  as  suas  lagrimas. 

O  fidalgo  de  Castro-Daire  manda  buscar  ao  Porta 
o  medico  mais  em  voga,  porque  a  ociosidade  fel-o 
lembrar  dos  antigos  padecimentos  e  diz  que  não  pode 
viver  muito  tempo. 

Foi  o  medico.  Auscultou-o  e  ouviu-o  com  a  máxi- 
ma attenção. 

—  Não  tem  nada,  concluiu  o  doutor.  O  senhor 
deve  tudo  o  que  soffre  á  imaginação.  Yá  viajar, 
divirta-se,  e  não  pense  mais  n'isso. 

Silvestre  da  Cunha  esperava  á  porta  do  quarto. 

—  Que  tem  meu  genro  V  perguntou  com  anciedade 
ao  medico  que  sahia. 

—  Padecimento  real  não  o  tem.  Soífre  apenas . . , 
da  cabeça,  que  é  um  mau  soífri mento.  Está  a  meio 
caminho  da  loucura,  se  se  não  dominar.  Receitei  leves 
tónicos.  E'  apenas  uma  grande  desafinação  nervosa  e 
mais  nada. 

Quando  o  medico  descia  as  escadas,  dizia  Martinho 
de  Teive  á  esposa,  pondo  os  olhos  amortecidos  n'um 
painel  da  Virgem : 

—  Sinto-me   morrer,   Yirginia.  Que  infelicidade  ! 


201 


Que  Nossa   Senhora  me  dô   só  mais  alguns  dias   de 
vida  para  ir  morrer  á  casa  onde  nasci... 

—  Ha  de  dar,  meu  amigo.  Tu  não  tens  nada  — 
dizia  em  anciãs  a  carinhosa  e  dedicada  menina.  —  Olha 
o  que  disse  ainda  agora  o  doutor.  Mas  vamos  para 
Castro-Daire,  vamos  para  onde  tu  quizeres.  O  que 
eu  desejo  é  vêr-te  tranquillo. 

E  n'isto  entrava  no  quarto  a  mãe  de  Virgínia. 
Abeirou-se  do  leito  e  apalpou  os  pés  do  imaginário 
doente. 

—  Jesus,  como  os  tem  frios !  disse  a  indiscreta  e 
anafada  creatura.  Que  será  isto  !  Os  médicos  ás  vezes- 
sabem  tanto...  como  nada!  Yai  buscar  uma  botija^ 
Yirginia. 

—  Estou  a  morrer,  gritava  Martinho  de  Teive.  Já 
tenho  os  pés  frios !  Agora  é  certo.  Não  saias,  Yir- 
ginia, não  saias. 

E  passou  uma  hora...  dois  dias,  muitos  dias  e 
ainda  estava  vivo  e  a  dizer  que  sentia  roçar  pela 
garganta  a  foice  implacável  da  morte. 


Quinze  dias  depois  da  visita  do  medico,  desem- 
barcaram no  cães  de  Fontellas,  que  defronta  com  o 
mosteiro  de  Alpendurada,  Martinho  de  Teive  e  Yir- 
ginia. Tinha  sido  triste  e  longa  a  viagem  pelo  Douro 
acima,  n'um  d'aquelles  ronceiros  barcos  d'espadella, 


L 


202 


que  vemos   a  toda  a  hora  amarrados  no  ancoradouro 
da  Ribeira. 

Estavam  prevenidos  os  criados  para  trazer  •as  ca- 
valgaduras ao  cães.  Era,  porém,  quasi  noite,  quando    -^ 
o  barco  abicou  á  gandra.  Martinho  de  Teive  não  quiz    ,, 
metter-se   ao  caminho.  Virginia  tinha  o  coração  dila-   |j 
cerado  de  soífrimento  e  sentia  medo  do  silencio  e  da 
solidão  d'aquellas  agrestes  paragens.  Lembrou-se  Mar- 
tinho   de   Teive  de  pedir  gazalhado   na  casa  de  Yilla- 
Yerde.  Yirginia  approvou. 

Foram.  Os  caseiros  dos  meus  antepassados  re- 
ceberam-os  bem,  logo  que  reconheceram  Martinho  de 
Teive,  que  era  visita  da  casa.  Prepararam-lhes  camas. 
O  íidalgo  disse  que  se  sentia  mal,  pediu  agua  e  la- 
mentou ter  de  morrer  em  casa  estranha.  De  repente 
reparou   Yirginia    no  catre   de  emblemas    prelaticios. 

—  De  quem  é  este  leito?  perguntou-lhe  ella. 
Era  ahi  que  costumava  dormir,  ha  cerca  de  cin- 

coenta   annos,  o  bispo  cV Alpendurada,  quando  vinha 
visitar  os  nossos  amos,  disse  a  mulher  do  caseiro. 

—  Seria  virtuoso  ?  interrogou  com  curiosidade 
Yirginia. 

—  Mal  me  lembro  d'elle.  Era  pequena,  quando  o 
vi.  Mas  pareceu-rae  triste  e  doente. 

—  Eaça-me  um  favor.  Deixe  deitar  meu  marido 
n'aquella  cama. 

—  Pois  sim,  minha  senhora.  Apezar  de  que  nin- 
guém ainda  se  deitou  n'ella;  nem  as  pessoas  da 
casa. 

Martinho   de  Teive  deitou-se   no  catre  do  bispo. 


203 


dormiu  tranquillameiíte.  Entretanto  Vir^^inia  ajoelhou, 
cheia  (i'esperani,*a,  e  invocou  a  alma  do  prelado.  Le- 
vantou-se  confortada.  Sento u-sc  n^uma  cadeira  ao 
lado  do  leito  e  adormeceu. 


Ao  romper  da  manhã,  Martinho  de  Teive  acordou 
jovial  e  despertou  Virgina.  Dizia  que  se  sentia  melhor. 
Sahiram  de  Afilia  Yerde  em  direcção  a  Castro-Daire, 
que  fica  distante  trez  léguas,  se  tanto. 

Nunca  mais  fallou  no  seu  aneurysma.  Viveu  so- 
cegadamente  mais  quinze  annos  e  morreu  do  que 
nunca  pensou  morrer  —  ....  de  um  ty pho.  Yirginia 
morreu  ha  cinco  annos.  Era  uma  velhinha  que  eu 
ainda  conheci  e  que  me  obsequiava,  frequentes  vezes, 
com  um  cestinho  d'alperches  do  seu  pomar,  em  atten- 
ção  a  ser  eu  da  familia  de  Yilla  Yerde. 

—  Aquillo  foi  um  milagre !  dizia  a  pobre  senhora. 
Foi  um  milagre  manifesto  !  Não  que  dizem  que  os 
não  ha ! 


I 


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HERBARIO--.  FUMA  SÓ  FLOR 


f 


—  SCENAS  INTIMAS 


(a.    J.   FREDERICO  LÂRANJO) 

Pour  exprimer  ramour    ses   fleurs  semblent  eclore, 
Leur  langage  est  ua  raot,  mais  il  est  plein  d'appas. 
Dans  la  main  des  amaats  elles    disent  encore: 
«Aimez  moi,  ne  iu'oubliez  pas.» 

AnrÉ  Martin. 


r« 


Rosinha  bordando  á  janella.  Ouve-se  o  chilrar  festivo 
das  andorinhas  nas  arvores  do  pomar.  Toda  a  aldeia 
parece  saudara  chegada  da  primavera.  O  dr.  Cornelio, 
um  rapaz  gentil,  impeiliudo  a  porta  meio-cerrada : 

—  Xão  serei  indiscreto,  Rosinha  ? 

—  Pode  entrar,  sr.  doutor. 

—  Venceu   a   cotovia  com  tamanha  madrugada  ! 

—  Despertaram-me  as  andorinhas... 

—  Veja,  porém,  que  as  andorinhas  ainda  não 
trabalham.  Por  emquanto  cantam  o  hymno  da  manhã. 

—  Também  o  snr.  doutor  me  parece   mais  jtraba- 


206 


Ihador    qae    as    descuidosas    avesiiihas.    Levantoií-se- 
cedo  I 

—  Os  meus  doentes,  l^siuha.  . . 

—  Tem  algum  em  perigo  ? 

—  A  Mariannita,  de  Fontellas,  com  mal  de  amores 
e  quasi  tysica. 

—  Pobresinha  Marianna  ! 

—  Talvez  a  salve,  ( Aproximando-se  do  bastidor ) 
Deixa-me  ver  o  que  está  bordando  ? 

—  Se  não  deixo!  É  uma  flor  do  campo,  um  — 
não-me-esqueças  —  azul  como  o  firmamento. 

—  Bonito  deveras !  Chamam-lhe  na  cidade  myó- 
sotis.  Namorou-se  do  azul,  não  é  verdade,  Rosinha? 
As  estrellas. . . 

—  Inverta  o  galanteio.  Diga  antes — as  ando- 
rinhas. Também  ellas  se  namoram  do  azul. 

—  E  verdade !  Formoso  azul  o  d'este  ceu  da 
primavera  que  as  chamou  de  louges  terras !  Um 
pedido.  Rosinha.  .  . 

—  Diga,  sr.  doutor. 

—  Dá-me  este  myosótis,  que  lhe  serve  de  modelo  ? 

—  Aqui  o  tem 

—  Obrigado.  Não  quero  recebel-o  sem  que  conclua 
o  bordado. 

—  Como  quizer.  O  snr.  doutor  gosta  muito  de 
flores  ? 

—  Se  gosto  ! 

—  Ah  I  também  eu.  Nem  que  a  gente  se  esmere 
no  bordado  chega  a  imitar  as  flores  do  campo,  e  com- 
tudo  são  as  mais  singelas ! 


207 


—  E'    que    ii    singelesa    do    campo    6  inimitável. 
Exemplo. .  . 

—  As  flores. 

—  Não,  ii  Rosinha.    . 

(  Ouve-se  chamar  da  alcova:  Rosiniia  !  Rosinha!) 

—  Já  lá  vou,  minha  mãe. 

—  E'    venlade  !    Tinha-me    esquecido    a    minha 
doente. 


II 


Trez  dias  depois. 

Rosinha  e  o  dr.  Oornelio  debruçados  á  janella. 
Esmorece  a  tarde.  A  suavidade  d'aquelle  formosíssimo 
occaso  convida  á  meditação. 

—  Chora,  Rosinha  ? 

—  Xão  choro,  sr.  doutor.  Era  uma  nuvem  negra 
que  passava  e  rociava  as  flores  d  "alma  com  ligeiro  or- 
valho .  .  . 

—  Pensava,  talvez,  no  futuro  ? 

—  Eu^    . 

—  Com  francjueza,  minha  amiga.  Ha  meia  hora 
que  lhe  lia  no  rosto  as  tempestades  do  espirito.  Res- 
peitei o  seu  doloroso  recolhimento,  esperando  que 
chorasse.  Yi-lhe  os  olhos  marejados  de  pranto  e  per- 
cebi que  queria  esconder  as  lagrimas.  Estava  salva! 
Chorar  ó  converter  bagas  de  fel  em  estrellas  de  cr^^s- 
tal...  Chore,  Rosinha.  É  sol-posto  no  seu  coração  de 
filha.  Sua  mãe,  a  boa  e  santa  velhinha,  não  pode  es- 


208 


perar  a  luz  de  muitas  alvoradas.  Kesvala  para  o  tumulo 
<?ada  dia  com  a  rapidez  d'uma  existência  que  se  ex- 
tingue de  cansaço,  hora  a  hora.  Vamos  vel-a,  Rosinha. 
Enxugue  o  seu  pranto  e  venha  comigo. 

—  E'  que  realmente  não  posso  abeirar-me  do  leito 
^  reprimir  as  lagrimas.  Minha  mãe,  quando  me  vê 
chorar,  tem  momentos  d'uma  anciã  agitadíssima.  Chega 
a  delirar.  Corre  as  suas  mãos  tremulas  ao  longo  das 
minhas  tranças  e  diz  que  lhe  custa  morrer  por  ter 
de  me  deixar  sósinha  no  mundo.  Depois,  muito 
-excitada,  solta  palavras  desvairadas,  que  não  com- 
prehendo.  Pobre  mãesinha !  Fico  sósinha  no  mundo, 
é  verdade,  mas  fica  também  comigo  o  meu  anjo  da 
guarda.  Meu  pae  morreu  pobre ;  ainda  o  sr.  doutor 
não  tinha  vindo  para  a  nossa  aldeia.  Era  um  homem 
verdadeiramente  lionrado.  A  sr.""  morgada  da  Quinta 
d'Azenlui  era  minha  amiga ;  ensinou-me  a  ler  e 
dava-me  livros  tão  lindos !  cuja  leitura  me  conso- 
lava. Um  dia...  meu  pae  succumbiu  ao  trabalho. 
Quiz  minha  mãe  substituil-o  na  faina  dos  campos. 
Moirejou  e  trabalhou  como  poucas.  Os  nossos  campi- 
nhos  não  valem  nada,  mas  nas  mãos  de  minha  mãe 
rendiam  muito.  Agora  a  pobresinha  sente  que  vai  mor- 
rer. Vê  que  eu  não  sei  nada  do  amanho  das  terras  e 
conhece  que  fico  desamparada. . . 

—  Nunca  pensou  em  Deus?  atalhou  o  dr.  Cornelio 
passando  a  mão  pelo  rosto  para  apagar  o  vestigio  de 
algumas  lagrimas. 

—  Se  tenho  pensado,  sr.  doutor !  Deus  ha  de  pro- 
teger-me.  Nunca  fiz  mal  a  ninguém  e  o  meu  anjo  da 


201) 


liuardii  ha  de  cobri r-ino  com  us  suas  azas.  Irei  pedir 
abrigo  a  a  lignina  pobro  faniilia  do  lo^^ar,  que  se  encar- 
regará do  olhar  pohis  nossas  terrinhas.  Esta  casinha, 
que  me  foi  ber(,*o,  ha  de  o  sr.  doutor  recebel-a,  não  como 
i-ecom pensa  dos  seus  desvelos,  mas  como  penhor  da 
orphã  aí^radecida. 

—  Cale-se,  Rosinha,  cale-se  que  me  dilacera  o 
coração. 

—  Perdoe,  sr.  doutor.  Ha  muito  que  lhe  queria 
dizer  isto  e  não  tinha  animo  para  tanto.  ,. 

—  Por  Deus,  Rosinha.  Cale-se  por  Deus.  Yenha 
comigo.  En^^ugue  as  suas  lagrimas  e  seja  forte.  Olhe, 
n'estes  momentos  de  atribulação,  lembre-se  que  ha 
uma  palavra  que  resume  um  mundo.  Eleve  o  seu 
pensamento  a  Deus, 

—  Que  Deus  me  proteja. 

—  Ha  de  protegel-a,  minha  amiga,  ha  de  prote- 
gel-a. 


in 


Na  alcova  da  doente. 

O -doutor  Cornelio  sentado  á  cabeceira.  Rosinha 
debruçada  aos  pés  da  cama  e  occultando  o  rosto  en- 
tre as  mãos. 

—  Snr.  doutor,  pronuncia  dolorosamente  a  pobre 
velhinha,  não  tenho  palavras  com  que  possa  agrade- 

Icer-lhe.  Tem  sido  um  verdadeiro  amigo.  Se  não  fosse 
ler  compaixão   de  nós,  não   sei  quem   nos  havia  de 


210 


valer.  E'  triste  morrer,  snr.  doutor,  quando  a  alma 
tem  de  se  partir  em  duas  metades :  —  uma  que  fica  e 
outra  que  vai.  Não  me  põe  medo  a  morte  por  ter  de 
ser  julgada  no  tribunal  de  Deus.  Rosinha  era  o  meu 
único  mundo.  . . 

—  Não  falle,  que  se  cança. 

—  Perdão,    snr,   doutor.    Creei    Rosinha  como   se 
cria   uma   flor  que  a  gente  tem  á  janella  para  ver  a 


i 


toda   a  hora.  Lia  e  gostava  que  lesse,  porque  a  snr.*  ^ 
morgada  d'Azenha  não  havia  de  lhe  dar  livros  maus. 
E    olhe  que   eu    nem  pensava  em  morrer,  absorvida 
como  andava  no  trabalho  de  todos  os  dias.  As    vezes 
lá  vinha  uma  nuvem  ao  coração.  Era  um  momento  ; 
dissipava-se.  A  Rosinha  sabia  coisas  bonitas.  Não  sei 
se    as   lia   ou  se  as  botava  da  sua  cabeça.  Uma  vez  ^ 
disse  o  Manuel  do  Açude,  na  nossa  cozinha,  que  não 
havia    outro    mundo.    Rosinha    corou    e    respondeu : 
«Olhe  era  volta  de  si,  snr.  Manuel.»   Não  foi  assim, 
Rosinha?    Lembro-me   agora    muito    bem,   e  poucas 
vezes  me   acontecia  isto !   Mas  disse-lhe  ella :    « Olhe 
em  roda  de  si.  Não  é   preciso   tanto.  Ponha  os  olhos  j 
n'este  castanheiro.   D^onde   nasceu   elle  ?   D'outro.  E 
esse?  D'outro.  E   o   primeiro   de   todos?   E    a   terra 
d'onde  6  que  sahiu  ?»  O  Manuel  deitou  a  vista  ao  cas- 
tanheiro e  disse  muito  passado  :  —  «  E'  verdade.  Ro- 
sinha!»  De   Deus   é  que    veio  tudo,  continuou  ella., 
J^ois  Deus,  snr.  Manuel,  ha  de  premiar  os  bons  e  cas- 
tigar os  maus.  Ha  muita   gente   que   não   faz  mal 
ninguém   e   que  não  ó  feliz,  e  ha  outra  que  faz  ma 
ao  próximo  e  ó  venturosa.  Em  alguma  parte  hade  ha 


211 


ver  verdadeira  jastiça,  porque  existindo  Deus  n'Elle 
devem  estar  todas  as  virtudes  e  todos  os  merecimen- 
tos. Se  Deus  não  ó  bom  e  justo,  clai-o  parece  que  não 
pode  ser  Deus.»  Não  pensa  assim,  snr..  doutor?  A 
Rosinha  disse  a  verdade,  pois  não  disse? 

—  Rosinha  disse  o  que  era. 

—  Assim  me  queria  parecer. 

—  E,  como  prova  do  que  Rosinha  disse  ao  Manuel 
do  Açude,  vou  eu  dizer  uma  cousa.  A  felicidade  do  parai- 
zo  faz-se  muitas  vezes  sentir  aos  que  foram  bons  ainda 
áquem  dos  umbraes  da  eternidade.  A  snr.^  Margarida 
fez  bem  a  toda  a  gente.  O  seu  mundo  era  Rosinha, 
como  nos  disse  lia  pouco.  Mas  sempre  viveu  pobre 
e  pobre  morrerá.  Pouco  é  o  que  tem  e  menos  terá 
para  o  futuro.  Deus,  porém,  inspira-me  para  lhe  an- 
nunciar  a  felicidade,  que  a  espera  ainda.  Se  vê  que 
eu  saberei  estimar  a  que  tanto  adorou  na  terra,  se  vê- 
que  eu  saberei  ser  marido  bom  e  dedicado,  conceda- 
me  a  mão  de  Rosinha  e  não  atormente  com  essa  an- 
ciã estas  lioi"as  dolorosas  de  sofírimento. 

--  Senhor  doutor  !  exclamou  a  velhinha,  tentando 
sentar-se  no  leito  e  sorrindo  um  sorriso  mais  do 
céu  que  da  terra. 

—  Senhor. .  .  balbuciou  Rosinha,  sem  poder  repri- 
mir uma  expansão  de  intimo  jubilo ;  mas  detendo-se 
logo  n'um  anceio  de  commoção. 

—  Rosinha  é  boa  e  dedicada,  continuou  placida- 
mente  o  doutor:  amei-a. 

—  Também  eu.  . .  o  amo,  atalhou  Rosinha,  escon- 
dendo,   de    medrosa  e  timida,  o  rosto  entre  as  mãos. 


212 


A   velhinha    enferma  sorria  enlevada  em  extasis. 

—  Amei-a.  Sondei  as  profundezas  d'aqiiella  alma 
e  achei  lá  escondido  muito  oiro  de  subido  quilate. 
Sou  pobre  como  Rosinha.  Vivo  do  meu  trabalho 
honrado  e  constante.  Devo  á  benevolência  d'um  tio 
rico  a  posição  que  hoje  tenho.  Foi  elle  quem  me 
formou,  dois  annos  antes  de  esposar  uma  formosa  me- 
nina da  província.  Tem  já  dois  filhos,  que  são  her- 
deiros de  muitas  quintas.  Quer-me  parecer,  porém, 
que  sou  mais  feliz  do  que  para  o  futuro  hão  de  ser 
meus  primos.  Tenho  necessidade  de  trabalhar.  . . 
Nasci  no  Porto.  Meu  pae  era  ne^^ociante.  Foi  um 
homem  cujo  natural  pundonor  não  lhe  permittiu  mor- 
rer rico.  í^o  coramercio,  quem  quizer  levantar-se  em 
pedestal  doirado,  precisa  pôr  de  parte  certos  prin- 
cípios de  honra.  Os  que  não  transigem,  morrem  des- 
graçados. Foi  o  que  succedeu  a  meu  pae.  Minha 
mãe  ficou  a^viver  era  companhia  de  uma  filha,  casada 
com  um  empregado  publico.  É  a  única  irmã  que 
tenho.  Yivo  só  e,  devo  dizel-o,  vivo  triste.  Parecem- 
me  longas  as  horas  da  noite,  depois  que  recolho  de 
ver  os  meus  doentes.  Kosinha  será  o  anjo  do  meu 
paraizo,  a  minha  companheira,  a  miaha  felicidade  su- 
prema . . , 


lY 


Disse   a  doente   que   se   sentia  anciada.  P]ra  por 
noite  a  dentro. 

—  Fez-me  mal  esta  alegria  !  —  murmurou  ella  com 


213 


difHculdade.  Deus  teve  piedade  de  mini.  Quero  a^iTa- 
dccer-LIíe.  Se  não  fosse  tão  tarde,  mandava  pedir  o 
Vi  a  ti  CO. 

—  Nunca  ó  tarde  para  cumprir  um  dever,  obtem- 
perou o  doutor.  You  eu  mesmo  avisar  o  abbade. 
D'aqui  a  pouco  tempo  lia  de  receber  a  desejada  visita. 

—  Como  o  bom!  como  Deus  liro  ha  de  agradecer, 
sr.  doutor!  disse  a  velhinha,  estendendo  os  braços 
para  Cornelio. 

—  Também  eu  cumpro  um  dever,  replicou  elle. 
Reconheço  a  superioridade  do  medico  que  vou  cha- 
mar e,  sem  abandonar  o  meu  posto,  delego  a  missão 
em  quem  melhor  a  pode  desempenhar. 

Mal  que  o  doutor  Cornelio  sahiu.  Rosinha  encostou 
ao  peito  a  cabeça  da  doente  e  cobriu-a  de  beijos.  Era 
aquelle  um  despedir-se  extremoso  de  dois  corações 
costumados  a  sentir  como  um  só. 

—  Minha  mãe  !  minha  mãe  ! 

—  Morro  feliz,  Rosinha.  Xão  chores ;  não  tens 
razão  para  chorar.  Mereceste  a  Deus  o  noivo  que  en- 
contraste. O  doutor  Cornelio  é  um  coração  como 
poucos . 

—  Se  é,  minha  mãe !  Quero  que  viva  para  ser 
testemunha  da  nossi,;  felicidade.  Sente-se  anciada,  não 
sente  ?  E'  que  lhe  fez  mal  esta  alegria  tamanha,  que 
não  esperava.  Eucoste-se  bem  para  mim  e  descance 
DO  meu  seio. 


214 

y 


Hora  e  meia  depois  checava  o  Yiatico  A  velhinha 
parecia  sorrir-se  para  alguém...  que  se  iicão  via. 
Rosinha  e   Cornelio    ajoelharam    aos  lados  do  catre. 

Fora  solemne  aquelle  momento.  Quando  o  abbade 
entrou  no  quarto,  expiravam  á  porta  da  casa  as  der- 
radeiras notas  do  cântico  sagrado.  Toda  a  aldeia  se 
tinha  alvoroçado  para  vir  prestar  a  ultima  prova  de 
dedicação  á  honrada  velhinha.  Apoz  o  padre  entraram 
homens  e  mulheres.  Rosinha  levantou-se  para  amparar 
a  cabeça  da  moribunda  quando  o  abbade  se  abeirou 
do  leito  com  o  vaso  das  partículas.  Tremera m-lhe, 
porém,  os  braços  e  Rosinha  vacillou.  N'este  momento 
assomou  á  porta  do  quarto  um  vulto  de  mulher.  A 
multidão  abriu  caminho  respeitosamente.  Era  a  sr.* 
morgada  d'Azenha,  que  chegava.  A  boa  senhora, 
afastando  docemente  Rosinha,  colheu  a  doente  nos 
braços.  O  dr.  Cornelio  ergueu-se  de  golpe  e  pronun- 
ciou com  voz  firme  : 

—  Aproveito  este  momento  solemne  para  declarar 
que  sou  o  noivo  de  Rosinha.  A  sr.*  morgada  d'Aze- 
nha  ser-lhe-ha  mãe  até  que  o  sr.  abbade  nos  de  a 
benção  nupcial.  Não  ó  verdade  que  tudo  isto  6  da 
sua  vontade  ?  perguntou  o  doutor  á  doente. 

A  mãe  de  Rosinha  respondeu,  sorrindo,  com  um 
movimento  affirmativo.  O  sacerdote  ministrou  o  sacra- 
mento. Pouco  depois  ouvia-se  ao  longe  o  —  Bondiio 
despertando  os  ,eccos  do  valle. 

—  Sinto-me    descançada,    murmurou    a    doente. 


21Õ 


Yenluim  cá,  meus  filhos,  deixem-me  beijal-os.  A  sr.* 
moipida  ha  de  permittir  que  também  lhe  beije  a 
mno.  K'  tão  doce  morrer  entre  pessoas  que  nos 
estimam  !  Agora  descansarei  um  bocadinho.  Parece- 
me  que  vou  dormir. 


YI 


Meia  hora  depois  dizia  Rosinha  á  morgada  d'Aze- 
uha : 

—  Está  a  dormir,  não  está  ? 

—  É  provável  que  não  acorde,  Rosinha. . . 

—  Minha  senhora ! 

—  Ajoelhe-se  comigo  e  rezemos  todos  trez.  A  boa 
alma  já  não  é  da  terra. . . 


YII 


Oito  dias  depois  do  passamento  de  sua  mãe,  sahia 
Rosinha  da  quinta  d'Azenha  para  desposar  o  doutor 
Cornelio.  Yamos  encontrar  os  noivos,  volvido  um  mez, 
na  casinha  do  valle,  escondida  na  sombra  das  arvores 
do  pequeno  pomar.  Rosinha  escolhe  algumas  flores, 
■das  muitas  que  estão  espalhadas  sobre  a  mesa,  para 
'._  -compor  um  ramo.  Cornelio  entretem-se  a  collar  n'uma 
folha  da  sua  carteira  o  myósotis  que  serviu  de  modelo 
ao  bordado  de  Rosinha,  já  concluído. 

—  Olha,  como  está  bonito.  Rosinha  !  disse  Cornelio 
mostrando  a  flor  deseccada  e  artisticamente  disposta 
no  cartão. 


216 


—  Bonito  deveras ! 

—  Muito  inferior,  poróm,  ao  teu  bordado. 

—  Estás  lisonjeiro,  Coi-iielio  ! 

—  Estou    penliorado    por   não    teres    esquecido  O' 
meu  pedido. 

—  E  eu  estou  reconhecida  por  te  haveres  lembrado 
da  minha  felicidade.  .  . 

—  Estimo  sinceramente  esta  flor.  Orvalhaste-a 
com  as  tuas  lagrimas,  na  manhã  em  que  t'a  pedi,  e, 
como  as  tuas  lagrimas  eram  ardentes,  desbotaram  o 
azul  das  pétalas.  Dias  depois  sahiste  d'esta  casa  coberta 
de  luto.  Tiveste,  poi-ém,  o  cuidado  de  guardar  o  — 
7ião  me  esqueças,  —  como  tu  dizias,  dentro  de  um  dos 
teus  mais  queridos  livros.  A  chave  do  enigma  6  um 
livro  de  amores;  foi  acertada  a  escolha.  i\qui  está  a 
pagina  sobre  que  deixaste  o  myósotis.  (Pondo  o  livro^ 
ainda  aberto,  diante  de  si  e  correndo  a  lauda  com  a 
vista.)  Notável  coincidência,  Rosinha  !  Ouve  lá  : «  Quem- 
sabe  até  o  que  ii-á  de  mysterios  nas  flores  e  nas  ar- 
vores !  que  idillios,  que  elegias,  que  divinos  poemas 
não  correrão  nas  florestas  com  o  murmurinho  doS" 
ventos  em  ostrophes  de  aromas,  intelligiveis  ás  ar~ 
vores  congéneres,  e  ás  flores  da  mesma  espécie!.  . .» 
Ha  aqui  verdade  sublime.  Esta  flor  possuia  o  segredO' 
da  nossa  felicidade.  As  flores  devem  ser  como  as 
estrellas :  nascem  umas  pai*a  chorar,  outras  para  sor- 
rir. As  hj/ades  são  as  estrellas  que  choram  ;  por  isso 
um  poeta  romano,  Horácio,  disse  que  eram  tristes. 
As  flores  que  partilham  o  destino  das  hyades  são  a 
perpetua  e    o   goivo,  as  flores  do  cemitério.  Lncifer 


217 


como  quem  diz  ii  estrella  que  mais  brillui,  precede  a 
manliã  e  entremostra-se  no  ceu  ás  tlôres  que  se  bem- 
querem.  Inclino-me  a  acreditar  que  as  estrellas  da  terra 
desempenham  missões  difterentes  como  as  suas  irmãs 
do  ceu  ;  —  ha  flores  que  nascem  unicamente  para  o 
coração.  Ora  o  amor  nasce  d'um  sorriso  e  d'uma 
lagrima,  d'uma  tlôr  e  d'um  espinho.  Succede,  pois, 
orvalharmos  de  pranto  a  flor  que  encerra  o  segredo- 
da  nossa  felicidade.  Por  isso  tu  choraste  sobre  este 
myósotis,  Rosinha. 

—  Meu  amigo... 

—  Era  eu  ainda  estudante  no  Porto,  quando  li 
um  livro  de  versos  francezes,  publicado  trez  mezes 
antes  da  morte  do  auctor,  que  se  chamava  Hégésippe 
Moreau.  Um  verdadeiro  poeta  que  morreu  tysico, 
de  vinte  e  oito  annos,  no  hospital  da  Caridade,  em 
Pariz  !  Adivinhas  como  se  chamava  esse  livro,  Rosinha  ? 

—  Xão  adivinho  . . . 

—  Mijósotís.  O  nome  d 'esta  flor. 

—  Ah  ! 

—  Durante  a  leitura  senti  abrir-se  a  minha  alma 
a  sentimentos  dulcissimos.  Admirei-me  até  !  Estava 
lendo  poemas  de  um  talento  des venturoso  e  sentia-me 
alegre.  Era  um  presentiraento  de  felicidade.  .  . 

P         —  Se  era  ! 

—  Encontrei-te  ao  bastidor  n'aquella  manliã.  Bor- 
L  davas  um  myósotis.  Era  a  flor  do  poeta  francez.  Reno- 

varam-se-me  as  sensações  da  leitura.  Pedi-te  a  flor  e 
jubilei  no  intimo  da  alma,  quando  tu  pronunciaste  — 
não  me  esqueças.  —  que  tanto  o  myósotis  significa. 


21^ 


—  Eucantas-me,  Cornelio ! 

—  Hei  de  trazer  esta  flor  na  minha  carteira  sobre 
o  coração.  Âs  vezes,  ao  lado  d' um  moribundo,  é  pre- 
ciso que  o  medico  tenha  um  braço  mysterioso  e  invi- 
sivel  que  o  ampare  para  não  cahir.  São  espectáculos 
que  dilaceram  o  coração.  Valer-me-ha  então  esta 
carteira,  —  herbario. .  .  d'uma  só  ílôr  —  que  guarda 
o  segredo  da  nossa  felicidade. . . 


YIII 


—  Tens  o  teu  ramo  prompto,  Eosinha.  Eu  estava 
esquecido  a  fallar  dos  nossos  amores.  Yamos  depor 
esta  recordação  de  cada  domingo  na  campa  de  tua 
mãe. 

—  Custar-me-ia  deixar  de  fazei- o. 

—  Tens  rasão.  Consola  ir  TDresentear  os  mortos. 
Quando  Yirginia  morreu  —  ó  isto  uma  das  mais  bo- 
nitas passagens  do  livro  de  Saint-Pierre  —  as  indias 
de  Bengala  deram  liberdade  sobre  a  campa,  ainda  mal 
fechada,  ás  avesinhas  que  tinham  reclusas  em  gaiolas. 
Nós,  imitando  as  indias  de  Bengala,  vamos  render 
liomenagem  á  memoria  de  tua  mãe  o  levamos-lhe 
flores. 

—  Homenagem  de  dois  filhos.  . . 

—  Que  se  amam  para  sempre. 

—  Olha,  Rosinha  —  disse  Cornelio,  pondo  a  mão 
direita  sobre  o  coração — tenho  aqui  o  meu  herbario... 
d' uma  só  flor. 


ARMANIJINHA 


(a    JÚLIO    CESAU  MACHADO) 


Nilo  sabe  o  que  é  padecer, 
Quem  o  filhinho  que  adora 
Nao  viu  ainda  morrer  ! 

Bulhão  Pato. 


A  tia  Leonarda  sabia  historias  de  fadas  como  niii- 
gLiem.    Foi   uma  pena  morrer,  que  já  não  ha  n'aldea 
•quem   divirta   os   camponezes   nos    serões  d'inverno. 
Parece-me    ainda  ouvil-a  contar  este  caso  sobrenatu- 
ral, que  me  prendeu  a  curiosidade  por  algum  tempo. 
IJI      Era  d'uma  vez  um  anjo. ..  Mandou-lhe  o  Senhor 
•que  descesse  á  terra  a  buscar  a  alma  d'um  justo,  que 
estava  em  artigos  de  morte.  Ha  sempre  um  cherubim 
para  acompanhar  um  espirito  bom,  que  se  parte  d'este 
mundo.    Quando    o    anjo   poisou    na  terra,    achou-se 
n'um  valle  ameno,  copado  d'arvores,  onde  corria  uma 
veia  d'agua  tão  brilhante,  que  parecia  coberta  d'aljo- 
fares.  . . 


b 


220 


E  ouvia-se  um  concerto  longínquo  de  passannhos| 
que  fazia  lembrar  o  assobiar  do  oriolo  e  o  chilrear  da  *■ 
andoiinha.  .  . 

Sentiu  o  anjo  tentação  de  se  banhar  e,  despindo 
as  azas  brancas,  pendurou-as  nos  ramos  d'um  salgueiro 
da  margem.  Metteu-se  á  agua  e  deixo u-se  ir  a  sara' 
cotear  pela  corrente  abaixo.  Parecia-lhe  que  estava 
ainda  no  mesmo  sitio,  porque  sempre  havia  arvores 
que  se  lhe  affiguravam  as  mesmas  e  sempre  via  as 
sombras  a  tremerem  na  superfície  do  rio .  . .  Depoi 
ouvia  também  o  mesmo  pipilar  de  passarinhos,  a  dis 
tancia . . . 

Se  se  tivesse  lembrado  de  olhar  para  o  salgueir 
onde  pendurara  as  azas,  havia  de  conhecer  que  s 
deixara  ir  sem  reparar  que  estava  longe.  Mas  s 
tudo  era  tão  bonito  e  tão  doce  !  Yinha  descendo 
noite  e  o  anjo  teve  medo  da  própria  agua,  que  lhe 
parecia  negra.  Procurou  as  suas  azas.  Não  as  viu. 
Foi  correndo  pela  margem  acima,  triste  que  mettia  dó,. 
a  vôr  se  encontrava  o  salgueiro.  .  . 

Tudo  era  escuro  ;  não  podia  ver.  Levantou  os  olho 
para  o  ar  e  descobriu  as  estrellas.  Lembrou-se  da  pa 
tria.  Conheceu  então  que  se  havia  esquecido  de  des-; 
penar  o  justo  e  que  tinha  desobedecido  ao  Senhor  dái 
alturas.  Sentiu  um  pezo  no  coração  e  teve  vontade  d 
chorai'.   O    Senhor  condoeu-se  e  restituiu-lhe  as  azas.j 
Pouco  depois  entrava  no  ccu  a  alma  de  um  justo  qu 
deixara  a  terra,  e  um  anjo  que  tinha  recebido  orde 
para  acompanhal-a. 

Eis  aqui  a  historia  que  me  contou  a  tia  Leonarda, 


221 


Lembrei-me  d'esto  caso  outro  dia,  (juando  pensei 
lia  morte  da  Armandinlia.  A  vida  da  snv^  morgada 
d'Azenha  não  dá  thema  para  longo  escrever.  Tem 
amado  e  soffrido  aquella  boa  senhora.  Casou  aos  de- 
zoito annos  e  ama  ainda  o  marido  como  no  dia  em 
que  noivou.  Teve  só  uma  tilha;  era  a  Armandinha. 
Olhava  a  gente  para  tão  formosa  creança  e  lembra- 
va-se  dos  anjos.  Era  bonita?  Talvez  não  fosse.  Tinha 
as  faces  desmaiadas  e  os  cabellos  loiros.  A  verdade 
é  que  parecia  do  ceu.  Por  que  ?  Diz  a  gente  isto  c  não 
sabe  por  que. .. 

Entra-se  para  a  casa  d'Azenha  por  uma  longa 
avenida  toldada  de  trepadeiras,  as  qiiaes  se  atira  iam 
do  muro  da  quinta  para  as  arvores  que  formam  uma 
alêa  parallela  ao  muro.  VJ  um  tecto  levantado  pela 
mão  da  natureza.  A's  vezes  vai  a  gente  a  passeiar 
poi"  aquella  rua  fora  e  parece  que  lhe  poisou  na  ca- 
beça uma  borboleta.  Não  é  borboleta,  não.  E"  uma 
pétala  da  glycinia  do  toldo,  que  se  despegou  do  cacho 
e  veio,  tremendo,  cahir  sobi-e  uós. 
I  Ao  fim  da  avenida  ha  um  lago  circulai",  que  tem 
au  centro  uns  rochedos  tapetados  de  musgo,  sobre  os 
quaes  se  levanta  uma  casinha  coberta  de  coimo,  que 
faz  lembrar  uma  azenha.  Doesta  similhança  veio  o 
nome  á  propriedade. 

Quando  a  Armandinha  tinha  seis  mezes  d*idade, 
veio  ao  Porto  o  morgado  d'Azenha  comprar  sedas  e 
rendas  para  o  enxoval  da  menina.  Aconteceu  ter  d"ir 
procurar  á  rua  do  Brejner  uui  negociante  inglez,  seu 
conhecido   desde   que  entraram  em  transacções  com- 


222 


merciaes.   Era  ao  declinar  da  tarde  e  o  inglez  rece 
beu-o  no  jardim  onde  se  recreiava  a  ver  os  filhos  cor 
rerem  uns  arcos  de  madeira  que  iam  rodando  ao  long 
das  ruas. 

Gostou  o  morgado  d'Azenha  d'aquelle  divertiment 
infantil,  e  não  sahiu  do  Porto  sem  comprar  um  are 
com  que  a  sua  filhinha  se  devia  entretrer  quand 
crescesse. 

Foi-se   desenvolvendo  a  Armandinha  e  chegou 
idade  de  poder  brincar. 

o  pai  acompanhava-a  nos  jogos  infantis  e  a  mã.é. 
sentava-se  á  beira  do  lago  a  contemplar  o  marido  e^- 
a  filha. 

A  Armandinlia  ora  rodava  o  arco  ora  se  divertiar^, 
a  passar  por  elle  d'um  lado  para  o  outro. . . 

Quem  soubesse  a  historia  do  anjo  que  me  contoi^ 
a  tia  Leonarda,  havia  de  receiar  pela  vida  d'aquell 
creança.  Como  parecia  do  ceu,  era  licito  suppor  qu 
descera  das  alturas  para  desempenhar  uma  diviíi 
missão  e  que  se  tinha  esquecido  a  brincar  com  o  se 
arco  do  madeira.  .  . 

A  mãe  vestia-lhe  todos  os  dias  uma  sainha  de  sed 
cor  do    ceu  e  traçava-lhe   sobre  o  peito  um  capotilh 
de  rendas   brancas.   Parecia  uma  senhora. . .  peque 
nina.   Os   cabellos,  cahidos  em   anneis,  fluctuavam 
mercê  da  viração. 

Das  azas.  .  .   ninguém  sabia. 

jN'uma  suavissima  tarde  d'outomno  sentiram  febr 
na  menina.  A  mãe  teve  um  presentimento. .  .  Veio 
poróm,   á  janella,  olhou  em  roda  de  si  e  viu  tudo  tã 


223 


sereno  que  niío  pôde  acreditar  que  se  preparasse  iirriít 
tempestade. 

O  niarinlieiro,  quando  a  procellária  não  poisa  na 
verga,  não  receia  pela  boi'rasca. 

De  noite  a  Armandinha  pediu  agua  e  não  teve 
força  para  se  levantar  e  beber.  A  morgada  molhou  o 
lenço  no  copo  e  humedeceu  os  lábios  da  creança 
queimados  da  febre. 

A  recompensa  doesta  maternal  solicitude  foi  um 
sorriso  triste,  que  não  parecia  próprio  dos  cinco 
annos. 

Quando  a  morgada  olhava  para  o  vestidinho  azul 
pendurado  aos  pés  do  leito  da  creança,  sentia  subir 
do  coração  uma  anciã  que  lhe  estrangulava  a  voz  na 
garganta. 

Seriam  còr  do  ceii  as  azas  da  Armandinha  ?  Se 
eram,  tinham-se  transformado  n'uma  sainha  recortada 
e  esperavam  o  momento  de  engastar-se  no  corpo  pe- 
quenino. . . 

Durou  trez  dias  a  febre  da  Armandinha  e,  ao  cabo 
do  quarto,  serenou  a  excitação  febril...  porque  a 
menina  tinha  arrefecido.  O  frio  da  morte  ! 

Estava  cumprida  a  missão. 

Era  preciso,  porém,  amortalhal-a. 

Que  mais  havia  de  levar  do  que  as  suas  próprias 
azas  ?  Vestiram-lhe  a  sainha  azul  celeste,  puzeram-lhe 
o  capotilho  de  rendas  brancas. 

Fizeram  um  arco  de  vime,  cobriram-n'o  de  flo- 
res do  campo  liadas  com  fitilhos  e  penduraram-lh'o 
nas    mãos  geladas   e  immoveis.  Paiecia  que  se  pre- 


224 


partiva  para  ir  brincar  na  quinta,  e  comtiido  estava 
morta. . . 

Tinha   subido   ao  ceu  o  anjo  expatriado  na  terra. 

Desde  esse  dia,  a  njorgada  d'Azenha,  coração 
atravessado  por  um  espinho,  é  o  bálsamo  de  todas  as 
chagas  que  sangram,  o  remédio  de  todas  as  enfermi- 
dades que  não  teera  cura. . . 


AS  FLORES 


(ao    SXR.    AUCrUSTO   LUSO   DA    SILVa) 


Flores  dão  côr  á  terra  e  cheiro  ás  auras  ; 
Flores  são  mães  da  fructa 


A.  F.  Castilho 


Toda  a  família  do  velho  e  nobre  solar  d'Espada- 
nedo  se  limita  a  trez  pessoas :  —  Sebastião  Pinheiro, 
madame  Faastine  e  mademoiselle  Jeannette. 

Convém  dizer,  porém,  alguma  coisa  d'ans  amores 
que,  ha  vinte  e  cinco  annos,  prenderam  em  Lisboa 
um  provinciano  portuguez  á  mais  gentil  franceza  que 
passeiava  Cintra  e  andava  charlando,  entre  um  ran- 
cho de  patrícias  e  senhoras  lisbonenses,  n'um  gracioso 
dialecto  meio  lusitano  e  meio  francez,  ou,  se  antes 
querem,  n'um  idioma  meio  de  passarinho  e  meio  de 
mulher,  idioma  que  não  tinha  nada  de  nação  algu- 
ma. . . 

O  provinciano  portuguez  era  Sebastião  Pinheiro ; 

15 


226 


a  formosa  coquette  de  Cintra  era,  a  esse  tempo,  made- 
moiselle  Faustine. 

Sebastião  Pinheiro  tinha  fama  de  ser  em  1845 
um  guapo  provinciano,  que  disputava  elegância  e 
riqueza  com  os  mais  narcisados  e  dinheirosos  senho- 
res de  Portugal.  Andavam  as  morgadas  de  Eiba-Doira 
empenhadas  na  conquista  d'este  homem,  que,  em  sete 
léguas  ao  redor,  se  affigurava  o  melhor  casamento 
d'aquelles  tempos. 

O  certo  6  que  Sebastião  Pinheiro  pareceu  enjcar- 
se  com  a  porfia  amorosa  das  ambiciosas  dryades,  que 
o  andavam  namorando  d'entre  as  florestas  druídicas 
dos  solares  de  seus  pais,  e  annunciou  o  propósito  de 
sahir  para  o  estrangeiro  em  viagem  de  recreio. 

No  estio  d 'esse  mesmo  anno  de  1845  entrou  em 
Lisboa,  d'onde  devia  seguir  para  França. 

Cintra,  o  paraiso  de  Portugal,  convidou-o  a  retem- 
perar a  alma  em  tão  deliciosas  sombras  para  se  habili- 
tar a  viajar  em  terra  estranha. 

As  mulheres,  que  lhe  passavam  deante  dos  olhos 
em  alegres  ranchadas,  pareceram-lhe  menos  ambicio-  , 
sas  e  muito  mais  tentadoras  que  as  provincianas  de  \ 
Portugal,  as  quaes  andavam  ageitando  ensejo  de  se  mos-  : 
trar,  como  que  pavoneando-se  da  própria  belleza.  As 
coquettes    de  Cintra  iam  pipilando,  como  descuidosas  .' 
andorinhas,    sem  fazerem  reparo  em  nenhum  homem 
e  nomeadamente  em  Sebastião  Pinheiro.  Isto  que  pu- 
dera  dizer-se   calculo,  attigurou-se-lhe    desambiçào  e 
modéstia. 

Uma   das   rof/uettes^   que  trajava  d'azul,  foi  a  que 


227 

% 

mais  lhe  despertou  a  curiosidade  no  primeiro  relance 
d'ollK)S.  Se^íuiu-a  e,  só  uma  hora  depois  de  a  ter  visto, 
é   que  madcmoiselle  Faustine  reparou  n'elle. 

Sebastião  Pinheiro  deu-se  pressa  em  saber  quem 
era  a  formosa  senhora. 

Kesponderam-lhe  que  se  chamava  madcmoiselle 
Faustine  e  era  filha  de  Mr.  Arnold,  negociante  francez 
em  Lisboa.  Esta  circumstancia  não  foi  embaraço  a 
Sebastião  Pinheiro.  Que  importava  que  a  vaporosa  vi- 
são de  Cintra  não  fosse  portugueza  ?  O  amor  não  tem 
pátria. 

Paris  era  troyano  e  amou  Helena,  que  era  grega. 

Além  d 'isto,  tinha  encontrado  Pariz  em  Portugal, 
felicidade  que  não  sorri  a  todos  os  viajantes. 

Ignoro  quando  e  como  o  nosso  provinciano  foi 
apresentado  á  familia  Arnold,  nem  é  meu  propósito 
dizer  como  se  urdiram,  no  tear  do  amor,  as  relações 
com  madcmoiselle  Faustine.  A  verdade  é  que,  dentro 
de  seis  mezes,  casaram. 

Mr.  Arnold  consentiu  no  casamento  depois  de  ter 
colhido  informações  das  qualidades  e  haveres  de  Se- 
bastião Pinheiro. 

Faustina  poz  todavia  uma  condição  —  continuar 
a  viver  em  Lisboa. 

O  provinciano  acceitou  a  clausula. 

Yiveram  alguns  mezes  na  capital  e,  ao  cabo  d'esse 
tempo,  resolveram  visitar  o  solar  de  Espada nedo.  Fo- 
ram. O  coração  de  madame  Faustine  confrangeu-se 
deante  do  espectáculo  medonho  das  serras  alcantiladas. 

Succedeu,  porém,  ser  mãe  na  quinta  d'Espadanedo. 


228 


O  amor  da  filhinha  absorveu-lhe  o  espirito;  já  não 
fazia  reparo  nas  serras.  Foi  ficando  e  aclimando-se.  A 
pátria  de  nossos  filhos  é  também  a  nossa.  . . 

Cresceu  e  desenvolveu-se  mademoiselle  Jeannette. 

Era  assim  que  sua  mãe  queria  que  se  lhe  cha- 
masse. O  nome  portuguez  correspondente,  comquanto 
a  esse  tempo  fosse  maviosamente  poetisado  por  Gar- 
rett, não  soava  tão  bem  ao  ouvido  d'uma  mulher  que  • 
tinha  nascido  em  França  e  procedia  de  estirpe  ver- 
dadeiramente franceza. 


II 


Mademoiselle  Jeannette  era  doida  por  flores.  D'uma 
vez,  quando  eu  principiei  a  deletrear  a  Eneida  e  an-  1 
dava  cheio  de  lendas  mythologicas,  contei-lhe  a  histo- 
ria de  Narciso  transformado  em  flor.  Lembro-me  bem; 
era  na  manhã  d'um  dia  em  que-eu  tinha  d'embarcar 
para  o  Porto.  Mademoiselle  Jeannette  gostou  d'aquelle 
lance  do  paganismo  dos  jardins  e  pediu-me  que  lhe 
escrevesse  do  Porto,  quando  me  sobrasse  tempo  para 
contar-lhe  lendas  de  flores. 

Poucas  vezes  tive  a  felicidade  de  escrever-lhe ;  ahi 
vai,  porém,  o  que  lhe  dizia : 


A  Mademoiselle  Jeannette. 


17  d' outubro  de  18.. 


«Yeja  que  me  não  esqueci  do  seu  pedido. 
Começai-ei  hoje  por  fallar-lhe  da  violeta,  que  ó  aTÍ 


229 


flor  da  minha  prodilecçiío.  Quantas  vezes  não  terá  fi- 
xado os  seus  olhos,  minha  amiga,  n'uma  estrella  (pio 
lhe  parece  já  ter  contemphido  na  vóspera  e  que  ainda 
procura  no  dia  seguinte,  sem  se  demorar  a  olhar  para 
as  outras  que  não  são  menos  formosas  talvez?  Com 
as  flores  acontece  quasi  a  mesma  coisa.  Todos  nós 
temos  uma  flor  que  nos  enamora  em  qualquer  jardim. 
A  minha,  a  que  me  encanta,  é  a  violeta.  Fallar-lhe-hei 
d'ella  hoje.  Nunca  se  esqueça  de  colher  violetas  para 
o  seu  toucador.  Vulcano  pôde  vencer  a  indifferença  de 
Yenus  coroando-se,  e  adornando  com  ellas  o  boudoir 
da  deusa  de  Cythéra. 

Veja  que  milagres  opera  a  minha  querida  violeta ! 

Vous  vous  caehex  timide  violette^ 

Mais  c'est  en  vain^  le  doigt  sait  vous  trouver. 

II  cous  arrache  á  Vobscure  retraite 

Que  receia it  vos  appas  inconnus; 

Et  destinée  au  boudoir  de  Cyihére^ 
Vous  renaissex,  sur  un  trone  de  rerre^ 
Ou  vous  mourex  sur  le  sein  de  Vénus. 

No  paganismo  dos  jardins,  na  mythologia  das  flo- 
res, as  violetas  rebentara  da  terra  aos  pés  da  desditosa 
Io  para  consolal-a,  a  cada  passo,  nas  solidões  que  atra- 
vessa, postoque  digam  alguns  ter  sido  esta  nympha 
convertida  em  violeta  por  não  corresponder  aos  extre- 
mos apaixonados  d'Apollo. 

Seja  como  for.  No  primeiro  caso  li  violeta  é  o 
symbolo   da   dedicação   compassiva,   da   amizade  que 


230 


consola,  da  companhia  que  satisfaz ;  no  ultimo,  é  o 
emblema  da  virgindade  que  se  esconde,  da  innocen- 
cia  que  se  resguarda,  da  virtude  que  se  occulta. 

Oh  !  e  nós  sabemos  isto  e  havemos  de  consentir 
que  Alphonse  Karr  insulte  a  pobresinha,  taxando-a 
de  hypocrita  por  se  esconder,  e  que  a  verbere  com 
phrases  tão  indelicadas  como  esta : 

La  violette  n'est  pas  modeste  ! 

0 

«Por  que  dissestes  que  a  violeta  era  modesta?  es- 
creve Alphonse  Karr.  Porque  se  occulta  entre  a  relva. 
A  violeta  não  se  occulta  entre  a  relva ;  occultou-a  a 
natureza.  Não  se  é  modesto  por  se  ter  um  nascimento 
humilde  e  obscuro.  Por  que  não  dizeis  ser  o  oiro 
modesto,  o  oiro,  que  se  esconde  nos  veios  da  terra 
e  que,  ainda  quando  se  encontra,  procura  disfarçar-se 
em  outro  mineral  que  não  tenha  apparencia  de  oiro  ? 
Por  que  não  dizeis  que  os  diamantes  são  modestos, 
elles  que  se  occultam  na  terra  mais  ainda  do  que  o  oiro 
e  precisam  de  ser  quebrados  e  lapidados  para  se  lhes 
descobrir  o  brilho  ?  » 

Na  espirituosa  comedia  de  um  poeta  portuguez, 
João  de  Lemos,  intitulada  —  (Jm  susto  feliz  —  uma 
das  personagens,  fallando  casualmente  do  detractor 
das  violetas,  exprime-se  assim  : 

—  «E'  Alphonse  Karr,  que  fallando  d'ellas  n'um 
livro  que  intitulou  —  Voynge  au  tour  de  mon  jardin 
—  sacrificou  a  verdade  ao  desejo  de  ter  uma  opinião 
singular,  ou  de  fazer  o  que  hoje  se  chama  espirito  » . 


231 


E  pouco  depois  continua: 

—  «  Diz  que  a  violeta  n?ío  6  modesta,  porque  não  6 
ella  que  se  occulta  entre  a  herva,  mas  sim  a  natureza 
que  alli  a  occultou.  » 

E  responde  reílectidamente  a  interlocutora  da  per- 
sonai^em  : 

—  «E  como  se  dissesse  Jque  a  violeta  não  ó  ver- 
melha porque  a  natureza  a  fez  roxa.» 

Penso  eu  ser  este  o  melhor  commentario  ao  des- 
propósito d'Alphonse  Karr.  Yalha-lhe  Deus  ! 

E  quer  elle  que  a  violeta  não  seja  modesta,  porque 
tem  visto  na  Opera  duzentas  mulheres  com  ramos  de 
violetas  na  mão  ! 

Pois  se  a  procuram  na  sombra  em  que  nasceu,  se 
a  natureza  quiz  que  a  denunciasse  o  perfiyiie,  como 
o  talento  denuncia  ás  vezes  um  homem  obscuro,  o  que 
ha  de  fazer  ella,  a  pobresinha,  senão  resignar-se  com 
o  destino  a  que  a  sujeitam  !  ? 

E  não  contente  com  isto,  diz-nos  ainda  Alphonse 
Kari'  que  a  violeta  abriga  debaixo  da  sua  folhagem 
espessa  uma  quantidade  infinita  d'insectos,  como  se 
quizesse  deslustral-a  aos  nossos  olhos  com  esta  cir- 
cumstancia.  Embora! 

A  violeta  hade  ser  sempre  a  fior  predilecta  das 
mulheres  bonitas  e  dos  homens  namorados.  Parece  que 
nasceu  para  se  consagrar  á  formosura  e  ao  amor,  e 
por  si  própria  indicar  que  a  verdadeira  formosura  e  o 
verdadeiro   amor  devem  de  ser  modestos  e  humildes. 

Os  Athenienses  consagravam  a  violeta  a  si  mes- 
mos ;  consagremol-a  nós  ao  culto  do  coração. 


232 


E  o  próprio  Alphonse  Karr  parece  arrepender-se 
no  seu  livro  intitulado — Les  fleiírs  —  do  desamor 
com  que  fallou  da  violeta  n'uma  pagina  da —  Voijage 
autour  de  mon  jardin^  —  se  é  que  não  chega  a  des- 
mascarar-se  completamente  n'estas  palavras :  J^aiíne 
heaiicoup  la  violette ;  j'en  ai,  vous  savez^  une  peloiise 
oú  il  y  e7i  a  dix  kuit  variétés  / 

Mas  ha  mais ;  abramos  o  livro  Les  femmes : 

«  Gosto  ainda  muito  das  violetas^  apesar  de,  ha 
longo  tempo,  lhes  ter  .censurado  aquelle  seu  intro- 
metter-se  em  muitas  coisas  que  lhes  não  dizem  res- 
peito e  o  nunca  perder  occasião  de  sahirem  hy- 
poeritamente  da  pretendida  modéstia,  que  lhes  attri- 
buem.  » 

Como  é,  porém,  que  se  pode  gostar  d'aquillo  que 
parece  tão  impertinentemente  vaidoso  ou  tão  hypocri- 
tamente  modesto? 

Esqueçamos  o  delicto  d' Alphonse  Karr  e  julgue- 
mol-o  rehabilitado  pelas  confissões  ingénuas  que  nos 
fez. 

Desçamos  ao  jardim  a  respirar  livremente  o  aro- 
ma das  violetas.  Convido-a,  minha  amiga,  a  entrar 
commigo  no  camarim  perfumado  d'estas  viuvas  sau- 
dosas, eternamente  vestidas  de  roxo,  que  se  inclinam 
para  o  chão  tristes  e  scismadoras.  Separa-nos  apenas 
do  canteiro  uma  cancellinha  de  pau  verde. 

Chama-nos  de  dentro  esse  palácio  de  verdura 
ondulante  e  movediço.  Entremos.  Aberta  a  cancella, 
estaremos  no  jardim  e  no  jardim  encontraremos  nós 
uma    sombra    para    conversarmos.    Converse-se   para 


233 


matar  o  tempo.  SHo  palestras  debaixo  das  arvores  e 
á  beira  das  violetas.  Não  vejo  ahi  melhor  assum- 
pto nem  melhor  logar  para  uma  pratica  de  gente 
mova. 

Deletrcemos  o  idillio  da  natureza  sem  abrirmos 
as  —  Floras  —  ;  suppra  a  reverie  o  estudo. 

Escusamos  de  saber  que  os  botânicos  chamam  á 
nossa  querida  flor  viola  odo?'afa  e  não  precisamos 
também  de  rastear  a  lenda  mythologica  da  nympha  Io. 
A  botânica  intromette-se  com  famílias  que  não  são 
do  nosso  conhecimento  ;  a  mjthologia  anda  a  descor- 
tinar vidas  alheias.  Importar-se  cada  um  compôs  ou- 
tros, mais  do  que  comsigo  mesmo,  creio  que  passa 
por   mau  costume. 

Deixemos  isto.  Aspiremos  o  aroma  dulcíssimo  d'es- 
tas  flores  e  occultemos  no  seio  o  ramo  perfumado  com 
que  nos  presenteara  alguém ... 

Eu  quero  as  flores  para  as  aspirar,  para  me  faze- 
rem companhia,  para  as  amar  emfim. 

Nunca  me  dei  ao  trabalho  de  procurar  uma  flor 
rara  e,  confesso  a  minha  ignorância,  acho  esquisito 
que  um  homem  tenha  o  capricho  de  comprar  a  peso 
de  oiro  um  bolbo  de  tulipa,  a  não  ser  para  fazer  nego- 
cio com  elle,  como  os  floristas  hollandezes.  Gosto  das 
flores  no  jardim  ou  no  toucador ;  um  camarim  per- 
fumado  faz  lembrar  um  jardim  que  se  não  vê. 

Por  fim  de  contas  as  flores  querem-nos  tanto,  que 
chegam,  na  impossibilidade  de  viver  eternamente,  a 
conceder-nos  a  sua  essência  durante  todo  o  anno,  e 
cada  pessoa  pode  ter  no  seu  toucador,  na  estação  me- 


234 


nos  florida,  os  perfumes  de  mil  diversas  flores.  Graças, 
pois,  a  mr.  Piver  e  a  todos  os  perfumistas  em  voga, 
■que  nos  dão,  a  troco  d'alguns  «francos»,  um  frasco 
de  ijommade  au  jasniín^  á  la  violette  des  bois^  â 
rheliotrope^  â  la  reine  des  fleurs  e  mil  outras  essên- 
cias que  seria  fastiento  enumerar. 

Amemos  sempre  as  flores,  sem  nos  lembrarmos 
dos  insectos  que  nos  occultam. 

Também  nós  temos  igual  destino  e  comtudo  amamo- 
nos  uns  aos  outros.  Compare-se  a  alma  á  flor:  a  vir- 
tude seja  o  perfume ;  os  vicios  os  insectos.  Prepa- 
remo-nps  para  a  vida  como  para  cantar  uma  ana- 
chreontica :  coroemo-nos  de  flores.  A  poetisa  de  Lesbos 
cantava  na  sua  lyra  as  rosas  d'Amathunta,  porque  se 
sentia  morrer  de  amores  por  Pháon  ;  e  consagraram- 
se  as  flores  a  Yenus  por  ser  a  deusa  dos  amores. 

Para  que  nos  havemos  de  rir  da  corcova  d'ura 
sujeito  que  passa  ou  do  joanete  de  um  outro  que  vai 
atravessando  ?  Não  ha  tempo  para  isso :  ó  todo  pouco 
para  amar. 

Coroemo-nos,  pois,  de  rosas  para  viver  e,  quando 
morrerem  nossas  irmãs  ou  nossas  filhinhas,  enfeite- 
mos de  violetas  os  seus  esquifes,  como  se  costuma 
ainda  fazer  em  algumas  povoações  d'Allemanha  no 
funeral  das  donzellas. 


235 

ITI 

A  Mademoiselle  Jeannette. 
25  d'abril  de  18 

«  Era  uma  vez  uma  fada  que  fez  os  prados  e  as 
arvores  expressamente  para  os  namorados  »  —  escre- 
ve Yictor  Hugo.  E  assim  foi.  Psyché  pediu  as  estrel- 
las;  Chlóris  as  flores.  Eólo  solicitou  as  virações  so- 
noras da  manhã  e  da  tarde ;  Cybéle  e  Sylvano  as 
arvores  e  os  bosques.  Pomoua  obteve  fructos  para  as 
arvores;  Príapo  ajuntou  as  flores  e  fez  jardins.  E 
Hebe,  a  loira,  a  alegre,  a  descuidosa,  disse  aos  mo- 
ços  que  perpassavam  atirando-lhes  com  flores  :  «  Co- 
roai-vos  e  ide  alegres.  O  amor  é  o  néctar  que  eu  sir- 
vo nos  banquetes  dos  deuses ;  enchei  a  taça  e  bebei. 
Ide  alegres,  ó  moços  » . 

E  Cupido  dizia  a  quantos  encontrava:  «Amai  e 
sede  felizes.  Psyché  pediu  as  estrellas ;  já  haverá-  luz 
de  noite  para  as  vossas  serenatas  e  para  as  vossas 
confidencias.  Chlóris  obteve  as  flores  ;  offerecei-as  ás 
namoradas.  As  arvores  que  Cybéle  solicitou  darão  som- 
bra para  vós  e  para  as  vossas  amantes  !  » 

E  assim  era.  E  assim  foi.  Amanhecia.  A  paiza- 
gem  era  esplendida.  Um  raio  de  sol  abria  os  corações. 
Os  ventos  da  manhã  roçavam  nas  arvores,  que  são 
as  lyras  verdes  da  floresta,  e  tiravam  sons  dulcíssi- 
mos.   As  náyades   brincavam  nas  fontes,  os  faunos 


236 


lios  bosques  e  Echo  repetia,  nos  recôncavos  da  serra, 
as  palavras  das  náyades  e  dos  faunos.  Pan,  o  feio, 
apparecia  deante  d'este  sublime  espectáculo,  simi- 
Ihando  a  encarnação  d'uma  poética  ironia  e  fazendo 
ouvir  ao  longo  das  planicies  os  sons  da  sua  frauta 
campezina.  E  os  namorados  sorriram-se  e  amaram-se. 
As  estrellas  deram  luz  ;  das  floi-ès  vieram  perfumes  ; 
as  arvores  estenderam  sombras  sobre  os  caminhos  e 
os  caminhos  atapetaram-se  de  relvas. 

Entardecia.  A  manhã  é  mais  esplendida,  mas  a  tar- 
de é  mais  suave ;  gosa-se  mais. 

As  borboletas  adormeciam  nas  flores  e  os  amantes 
nas  florestas.  As  arvores  cobriam-os  de  sombras  e  de 
musicas.  E  depois  os  sonhos!  Os  sonhos  são  os  dul- 
císsimos momentos  em  que  se  gosa  tudo  o  que  se  não 
pode  gosar.  A  ultima  réstea  de  sol  doirava  as  cumia- 
das.  A  esta  hora  de  suavíssimos  mysterios,  os  dois  vi- 
sinhos  Pyramo  e  Thisbe  segredavam  amores  através 
da  fenda  aberta  na  parede  commum  das  casas.  Morria 
o  praso  dado  ao  languor  das  sestas,  quando  a  lua  che- 
gava. Endymion  namorava  Diana  e  ella  sorria-lhe  do 
céo.   Pygmalião   sonhava   com   a  estatua    de  Galatea. 
O    rouxinol  trinava   nos  sinceiraes,  os  astros  fluctua- 
vam  no  seu  leito  d'azul,  e  aqqellas  namoradas   pagãs 
escutavam   as   serenatas   dos  amantes,  debruçadas  na 
ventana. 

—  ApoUo  6  loiro!  Gosto  d'elle!  dizia  uma. 

—  Pan  6  feio,  mas  engraçado,  acrescentava  outra. 

—  Narciso  6  a  formosura  I  chilreavam  muitas. 
E  elles  diziam ; 


287 


—  Veiuis  ó  loira;  seduz-nie. 

—  Daphne  não  o  6  meuos;  agrada-me. 

—  Diana  é  pallida,  mas  tenta. 

Foi,  pois,  pelos  devaneios  dos  namorados  pagãos 
que  se  aferiu  o  rythmo  amoroso  de  nossos  dias. 
Acceitaram-se  os  costumes  e  conservaram-se  as  tradi- 
ções. Tliisbe  6  Virginia ;  Pyramo  6  Paulo  ;  —  dois  vi- 
sinhos. 

Eu  quiz  prolongar  a  phantasia  de  Victor  Hugo  e 
mostrar  que  os  prados  e  as  arvores  são  dominio  do 
amor  e  dos  namorados. 

Um  dia  de  sol  é  um  dia  para  os  amantes  ;  uma 
noite  de  luar  é  uma  noite  para  o  amor.  Os  campos 
chamam  por  nós:  a  primavera  ou  o  estio  tentam-nos. 
As  borboletas  andam  aos  beijos  ás  flores  e  roubam-lhes 
o  mel;  fazem-nos  inveja.  As  .flores  furtam  amoro- 
samente ás  borboletas  o  polvilho  d'oiro  das  suas  azas 
e  fazem-nos  ciúmes. 

Todo  o  paraiso  suavíssimo  d'aldeia,  ninho  d'amor 
engrinaldado  agora  com  as  flores  da  primavera,  está 
aberto  para  quem,  como  a  minha  amiga,  sabe  alliar 
aos  enc^antos  da  natureza  a  felicidade  do  coração.  .  . 

Sei  que  ama  e  que  toda  a  sua  vida  c  de  esperança. 
Mais  uma  razão  para  se  lhe  fallar  de  flores.  . . 

Hade  lêr  de  certo  esta  carta  á  sombra  do  velho  loi- 
reiro,  que  faz  guarda  ao  solar  d'Espadanedo. 

O  que  a  minha  amiga  não  sabe,  porém,  é  que  a 
origem  do  loireiro  prende  com  uma  historia  d 'amo- 
res. 

Os  extremos  amorosos  d'Apollo  não  conseguiram 


238 


abrandar  a  indifferença  de  Daphne,  que,  chegada 
a  perseguição  violenta,  se  arremessa  ás  aguas  do  rio 
Penêo,  seu  pai.  E'  n'este  momento  que  a  mulher  se 
metamorphosea  em  arvore  e  que  o  deus  namorado  en- 
grinalda a  fronte  e  a  lyra  com  as  franças  do  loireiro. 
O  cabello  de  Daphne  recorta- se  em  folhagem  e  o  corpo 
arredonda-se  em  tronco.  .  . 

Quantas  vezes,  sob  esse  velho  loireiro,  não  hade 
a  minha  amiga  ter  ouvido  correr  ao  longo  das  ramas 
um  frémito  suave,  que  tanto  pode  ser  a  linguagem 
mysteriosa  das  arvores  como  o  roçar  da  viração  pelas 
folhas  J 

Não  serão  murmúrios  de  Daphne,  que  se  lamente 
da  própria  crueldade  ao  vêr-se  ainda  tão  amada  como 
no  primeiro  dia  em  que  o  dedicado  Apollo  coroou  de 
loiros  a  lyra  e  a  fronte  dos  seus  sacerdotes  predesti- 
nados á  gloria  ? 

E  depois  quem  sabe!  . 

Eu  não,  mas  quando  em  noites  de  luar  vou  por 
uma  aldeia  adeante,  e  oiço  um  rumor  que  sae  das 
plantas  e  das  arvores,  cuido  que  são  ellas  a  conta- 
rem-se  as  aventuras  amorosas  do  dia  e  íico-me,  por 
muito  tempo,  embebecido  a  escutal-as.  Não  sei  tam- 
bém, mas  parece-me  que  devem  de  ter  sua  voz. . . 
Pois, Deus,  que  fez  brotar  duas  folhas  do  mesmo  pe- 
ciolo,  duas  flores  do  mesmo  pedúnculo,  não  lhes  havia 
de  dar  palavras  com  que  segredassem  umas  ás  outras 
os  seus  protestos  e  as  suas  confidencias?...  Havia 
de  deixal-as  mudas  como  a  rocha,  sem  que  pudessem 
conversar  baixinho  por  essas  noites  de  primavera,  em 


239 


que  a  lua  tanto  cobre  com  a  sua  luz  opalina  as  dhalias 
do  alegrete,  como  as  malvarosas  dos  vallados,  como 
os  sargaços  da  beira-mar  ?.  . .  Pois  Elle  que  deu 
voz  ás  aves,  que  vão  pendurar  os  ninhos  nas  escarpas 
das  montanhas ;  ao  rio,  que  murmura  no  valle,  por 
baixo  das  avelleiras;  aos  ventos  azues  do  espaço,  que 
desferem  as  suas  harpas  vaporosas  lá  em  cima  ;  ao 
mar  que  brame  ao  longe  coroado  de  nevoeiro  e  co- 
berto com  os  arminhos  da  espuma,  Elle,  que  deu  voz 
a  tudo  que  tem  vida,  havia  d'exceptual-as  aellas,  que 
são  tão  humildes  que  se  curvam  ao  vento  e  lançam  de 
si  um  vapor  de  fragrância?.  .  . 

As  arvores,  que  cobrem  com  os  ramos  os  amantes 
nas  horas  calmas  da  sesta  e  envolvem  na  sua  sombra 
os  segredos  d'uma  confidencia ;  as  plantas,  que  dão 
as  flores  com  que  elles  se  toucam  na  noite  festiva  das 
núpcias,  —  arvores  e  plantas,  que  soltam  da  aresta 
de  cada  folha  um  rolo  vaporoso  de  poesia,  não  haviam 
de  ter  voz?.  . .  Não  me  digam  que  não.  Esse  frémito^ 
que  eu  oiço  em  roda  de  niim  n'uma  noite  de  luar,  é 
o  rumor  das  suas  conversações  nocturnas,  das  lendas 
amorosas  que  sabem,  dos  cânticos  que  entoam  ao 
longe,  dos  monólogos  de  cada  uma  e  do  concerto 
suavíssimo  de  todas. . . 

E'  o  murmúrio  das  harpas  aéreas  da  poesia,  que 
pendem  de  cada  ramo  e  modulam  dulcissimos  idyllios 
d'amor  e  saudade.  .  . 

Ó  poesia !  Ó  amor !  Aves  do  mesmo  ninho,  pé- 
rolas da  mesma  concha,  flores  da  mesma  vergontea, 
hóstias  do  mesmo  sacrário,  deuses  do  mesmo  templo. 


240 


eu  sei  que  vós  sois  irmãos  e  filhos  da  mesma  ideia,  ó 
amor  e  ó  poesia. 

Notas  do  mesmo  cântico,  cânticos  da  mesma  harpa, 
harpas  do  mesmo  anjo,  anjos  do  mesmo  céo,  eu  sei 
que  vós  sois  isto,  ó  amor  e  ó  poesia  ! . . . 

lY 

A  Mademoiselle  Jeannette 
12  de  maio  de  18... 

Não  consagrei  a  primeira  carta  á  rosa,  que  passa 
por  ser  a  rainha  das  flores,  porque  me  fugiu  o  coração 
para  a  violeta, . .  São  caprichos  que  se  não  explicam 
e  que  a  minha  amiga  comprehende  de  certo.  Não 
quero,  porém,  deixar  de  fallar-lhe  agora  da  rosa,  que 
os  romanos  consagravam  a  Yenus  e  os  gregos  á 
Aurora,  ás  Graças  e,  finalmente,  a  Harpócrate,  o  deus 
do  silencio. 

Não  é  para  estranheza  o  dedicar-se  a  rosa  á  deusa 
da  formosura:  quer  dizer,  consagrar-se  a  suprema 
bellezadas  flores,  compendiada  n'um  poema  de  pétalas, 
á  suprema  perfeição  esthetica,  encarnada  na  divindade 
que  tinha  gerado  o  amor. .  . 

O  que,  porém,  admira  á  primeira  vista  ó  que  se 
votasse  na  Grécia  ao  deus  do  silencio  o  que  se  vo- 
tava en  Roma  á  deusa  da  formosura. 

Mas,  em  verdade,  não  se  devem  esconder,  no  veu 


241 


do  mysterio,  todas  as  ternissimas  doçuras  do  amor, 
todas  as  palavras  que  se  trocaram  ao  luar,  todos  os 
poemas  que  se  disseram  cora  os  olhos?  Náo  6  certo 
que  o  amor  nos  torna  meditativos  e  calados,  porque 
nos  absorve  em  nós  mesmos  e  nos  delicia  com  a  pró- 
pria musica  da  nossa  alma  ? 

Da  tradição  grega  de  se  dedicar  a  Harpócrate  a  flor 
consagrada  a  Yenus  pelos  romanos,  veio  o  costume, 
conservado  em  alguns  paizes  do  norte,  de  se  pendurar 
uma  rosa  á-  porta  da  sala  de  jantar  como  para  indi- 
rectamente avisar  os  convivas  de  que  não  devem  re- 
velar nada  do  que  se  disser  á  mesa. 

A  rosa  branca,  a  flor  querida  de  Soares  de  Passos, 

Eu  amo  a  rosa  branca  das  campinas, 

nasceu,  como  cantou  Anachreonte,  no  momento  em 
que  Yenus  surgiu  á  flor  das  vagas  engrinaldadas  de 
flocos  d'espuma.  ísr'esses  tempos  suavemente  deliciosos 
faltavam  á  rosa  os  espinhos,  que  foram  despontando, 
depois,  a  pouco  e  pouco. 

Os  orientaes  crêem  que  a  rosa  não  feria,  antes 
d'entrar  no  mundo  Ahriman,  o  génio  do  mal.  San 
Bazilio,  inspirado  talvez  d'esta  tradição  oriental,  es- 
creveu que  os  espinhos  da  rosa  foram  consequência 
da  corrupção  da  humanidade.  Tinha  a  rosa  nascido 
para  o  amor.  Era  branca  e  pura  como  a  espuma  das 
vagas  que  foram  berço  de  Yenus. 

Os   homens   corromperam   a   obra   dos    deuses   e 

16 


242 


derrancarum  a  iiuiocencia  do  amor;  cobriu-se  d'es- 
pinhos  a  rosa  desde  então. 

Quer-me  parecer  que  não  ha  muitas  allegorias  tão 
formosas  como  esta. 

Pondo  de  parte  a  interpretação  mystica  da  fa- 
bula, a  verdade  é  que  os  espinhos  são  apanágio  da 
rosa  e  que  a  intelligente  formiga,  para  os  evitar,  sobe 
pela  roseira  descrevendo  trabalhosas  spiraes. 

Yimos  que  primitivamente  era  branca  a  rosa ;  ve- 
jamos como  se  tornou  purpurina. 

O  Amor,  bailando  um  dia  no  Olympo,  entornou 
uma  taça  de  néctar,  o  qual,  cahindo  sobre  a  terra, 
coloriu  a  rosa. 

Qnem  se  der  ao  trabalho  de  esmiunçar  estas  e  que- 
jandas tradições  poéticas,  tem  assumpto  que  farte  para 
muitas  paginas.  A  minha  boa  amiga  sabe,  porém,  que 
lhe  vou  escrevendo  ao  capricho  do  acaso  e  que  não 
posso  dar  ao  assumpto  o  desenvolvimento  que  de- 
sejava. 

Deixe-me  todavia  fallar-lhe  d'um  costume  nor- 
mando, em  virtude  do  qual  cada  pai  dotava  a  filha, 
na  véspera  do  casamento,  com  uma  simples  capella  de 
rosas.  Não  acha  que  similhante  dote  seria  hoje  razão 
mais  que  bastante  para  afugentar  meia  dúzia  de  pre- 
tendentes? Em  pleno  século  xix  conservam-se  ainda, 
pelo  que  respeita  á  rosa,  algumas  tradições.  O  que  a 
índole  dos  tempos  modernos  não  permitte  ó  acceitar-se 
uma  noiva  que  tenha  ura  dote. . .  de  flores. 

Os  namorados  romanos  costumavam  brindar  a  dama 
dos  seus  pensamentos  com  esta  maviosa  expressão : 


243 


Mea  rosa.  Hoje  ainda  se  escreve  minha  /lor  nas  car- 
tas de  galanteio,  o  que  prova  que  a  epistolo^raphia 
amorosa  conserva  as  formulas  sediças  dos  romanos. 

Disse-lhe  que  se  conservavam  em  pleno  século 
XIX  tradições  devidas  á  rosa  e  quero  mostrar-lhe  que 
disse  a  verdade.  S.  Jeronymo  escreveu  algures  que  os 
antigos  cobriam  de  rosas  as  urnas  cinerarias  e  orde- 
navam em  seus  testamentos"  que  lli'as  renovassem 
d'anno  em  anno.  Um  homem  que  tinha  enviuvado, 
colmava  de  rosas,  de  violetas  e  de  lirios  a  urna  que 
guardava  as  cinzas  da  esposa  estremecida.  Não  será 
um  reflexo  d'esta  tradição  o  costume  de  enfeitarmos, 
pelo  menos  uma  vez  cada  anno,  as  campas  das  pessoas 
da  nossa  familia  ?  A  festa  annual  em  honra  de  Flora, 
que  se  celebrava  entre  os  últimos  dias  d'abril  e  os 
primeiros  de  maio,  á  parte  a  desenvoltura  dos  cos- 
tumes romanos,  não  seria  a  origem  de  consagrarmos 
á  pureza  da  Mãe  de  Deus  as  rosas  da  primavera  ? 

Muitas  foram  as  tradições  que  do  paganismo  re- 
cebeu o  christianismo  e,  pelo  tocante  á  rosa,  seria  in- 
teressante estudal-a  era  ambas  as  religiões  sempre  ale- 
vantada  no  throno  da  realeza,  sempre  rainha  das 
flores. 

Se  me  fosse  permittido  fallar-lhe  da  França,  minha 
amiga,  que  é  a  pátria  de  seus  avós,  havia  de  contar- 
Ihe  a  festa  da  Rosière  de  Salency,  instituída  pelo 
bispo  Médard,  graciosa  prática  de  premiar  solemne- 
mente  as  virtudes  d'uma  rapariga  do  sitio  com  uma 
grinalda  de  rosas.  . . 

Não  lhe  devo,  porém,  fallar  da  França.  Sua  mãe 


244 


que  lhe  conte,  em  linguagem  resaibada  de  recorda- 
ções da  pátria,  as  poéticas  tradições  que  sabe  de  cor 
desde  os  primeiros  annos  da  vida.  Eu  seria  de  certo 
menos  vigoroso  e  menos  delicado  ao  fallar-lhe  do  que 
apenas  aprendi  dos  livros.  Ella  que  lhe  conte,  pois, 
a  festa  da  Rosière,  que  ainda  hoje  se  conserva  em 
Nanterre,  Montreuil  e  Suresnes.  Cedo  a  palavra  a  sua 
mãe ;  corre-me  obrigação  de  concluir. 

Os  cavalleiros  andantes  tinham  no  escudo  uma 
rosa,  que  parecia  symbolisar  que  se  batiam  pela  bel- 
leza.  Qual  preferiria  eu  se  fosse  armado  cavalleiro  : 
a  branca  ou  a  encarnada  ?  Nenhuma. 

A  Inglaterra  brigou  longos  annos  por  causa 
d'uma. . .  rosa. 

Os  Lancastre  e  os  York  são  impossíveis  n'este  sé- 
culo, mas,  que  os  houvesse,  e  eu  a  mandar  gravar  no 
escudo. . .  uma  violeta,  para  não  ser  de  nenhum  dos 
dois  partidos  e  seguir  unicamente.  .  .  o  meu. 


y 

A  Mademoiselle  Jeannette 

•» 

20  de  maio  de  18. . . 

Lembra-se  de  me  ter  perguntado  o  anno  passado, 
á  ourela  do  regato  que  banha  o  pomar  da  quinta 
d'Espadanedo,  como  se  chamavam  as  pequeninas  flores 
que  polvilhavam  de  azul  o  chão  ?  Lembra-se  também 


245 


de  que  eu  lhe  respondi  que  eram  as  flores  do  mijóso- 
tis,  a  que  os  botânicos  acrescentam  o  epitbeto  de  jj«- 
histris  por  nascer  á  beira  d'agua? 

Recordo-me  ainda  perfeitamente.  Que  formosissi- 
ma  tarde  de  maio  não  era  essa !  Viemos  passeando 
pelo  pomar,  como  duas  abelhas  que  saltam  de  flor  em 
flor.  Chegamos  ao  regato  e,  ainda  como  as  abelhas, 
quizemos  ficar  alli.  Creio  que  lhe  disse,  minha  ami- 
ga, que  os  allemães  conheciam  o  myósotis  pela  mavio- 
sa linguagem  de  Wergiss-mein-nicht — que  diz  o  mes- 
mo que  —  não  me  esqueças. 

O  que  lhe  não  contei,  porém,  foi  a  poética  lenda 
do  mjósotis  — ,  lenda  que  se  dulcifica  na  singela  poe- 
sia d'uns  amores  ethereos  e  não  tem  nada  que  vêr 
com  as  allegorias  da  mythologia  botânica,  deixe-me 
dizer  assim.  Imagine  dois  namorados,  almas  incendi- 
das na  chamma  suavíssima  do  amor,  que  passeavam 
á  beira  do  Rheno  na  véspera  do  dia  aprasado  para  o 
casamento.  Iam  ambos  compondo,  de  certo,  estrophes 
do  mesmo  poema,  sonhando  esperanças  que  tanto  eram 
d'um  como  d'outro.  . . 

O  sol  declinava  e  as  aguas  do  rio  scintillavam  em 
palhetas  de  oiro  e  prata  n 'alguns  sitios.  Que  esplen- 
dido espectáculo,  miiíha  amiga !  Quantas  vezes  não 
ha  de  ter  sonhado  sonhos  d'esperança  a  essa  mesma 
hora  !  O  sonhar  é  de  quem  ama.  Eu  sonho  e  a  minha 
amiga  sonha  também  ;  a  verdade,  diga-se  com  fran- 
queza,  é  que  não  sonhamos  um  pelo  outro. 

Iam,  pois,  passeando  os  dois  namorados  pela  mar- 
gem do  Rheno.  De  repente,   descobriu  a  noiva  um 


246 


como  natural  houquet  de  myósotis,  que  se  balouçava 
á  beira  cragua.  Colhel-o  era  ficar  com  uma  grata 
recordação  da  ultima  pagina  d'um  poema,  que  seria 
o  prologo  d'outro  poema,  não  menos  formoso,  talvez. 
Quem  havia  de  colher  o  myósotis  ?  Elle,  o  noivo. 
Que  importava  não  haver  já  muita  luz  e  ser  preciso 
marinhar   por  um  plano  inclinado  ? 

O  amor  dista  um  passo  da  indiscreção.  A  luz  ia 
fugindo,  fugindo...  Ouviu-se  o  baque  d'um  corpo 
que  tinha  cahido  ao  rio  e  fizera  levantar  a  agua.  Era 
elle,  o  noivo,  que  resvalara.  Quiz  luctar.  Luctou  ainda 
por  algum  tempo,  sem  largar  o  houquet  que  tinha 
colhido.  Faltaram-lhe  as  forças.  Teve  apenas  vida 
para  o  arremessar  á  margem  e  depois . . .  desappareceu 
para  sempre. 

Desde  essa  tarde,  a  flor  do  myósotis  significa  não 
me  esqueças^  ultimo  pensamento  d'um  amor  desven- 
turoso. 

Os  poetas,  estas  boas  creaturas  que  vivem  de  cho- 
rar as  próprias  e  as  alheias  dores,  aproveitaram  a 
lenda  e  cantaram-n'a.  A  Magdalena  do  Sous  les  til- 
leuls  d'Alponse  Karr  pronuncia,  n'uma  das  paginas  do 
romance,  com  referencia  ao  myósotis,  estas  palavras : 
«Os  wergiss-mein-nicht  são  as  minhas  flores  favori- 
tas; sinto  apenas  que  os  nossos  poetas  allemães  não 
fallem  d'elles  senão  para  insulsamente  jogar  com 
palavras.  Goethe  foi  o  único  que  muito  de  leve  os 
descreveu : 


247 


^Vcrgiss-mein  nicht^  pequenina  planta,  amante  das  aguas 
solitárias,  quanto  cu  gosto  do  vôr  como  as  tuas  folhas  mcudinhas 
o  as  tuas  pótalas  do  puro  azul  seguem  o  curso  da  levada  quo 
faz  dobrar  os  juncos,  cujo  aro  verdejante  cinge  a  onda  dos 
valles  I  > 

Quem  sabe  também,  minha  boa  amiga,  se  depois  de 
ter  lido  esta  carta  será  tão  pouco  piedosa  para  cora- 
migo  como  a  Magdalena  do  romance  d'Alphonse  Karr 
para  com  os  poetas  allemães  ?  Perdôe-me  se  lhe  mo- 
lestei a  paciência  e,  quando  passar  á  ourela  do  regato, 
colha  o  myósotis,  a  pequenina  flor  da  primavera,  para 
o  offerecer  á  pessoa  que  se  não  deve  esquecer  um 
momento  de  quem  alli  o  foi  colher. 


YI 

A  Mademoiselle  Jeannette 
4  de  julho  de  18. . . 

Escrevo-lhe  ao  declinar  da  tarde.  As  boas-iioiteSy 
presentindo  a  hora  saudosa  do  occaso,  abrem  as  co- 
rollas  ás  tépidas  virações.  Encantador  destino  o  de  to- 
das as  njctagineas,  que  segredam  amores  emquanto 
dura  o  luar!  As  flores  diurnas,  menos  scismadoras 
e  mais  coquettes^  expandem-se  ao  sol  e  remiram-se 
no  ramal  de  prata,  que  lhes  emperla  as  hastes. 

Da  balsamina  e  da  sensitiva  sei  eu  que  parecem 
cahir  em  somno,  espécie  de  morte  apparente,  quando 


248 


a  noite  chega.  Vaidosas !  Queriam  luz  para  se  mos- 
trar !  ^  Não  me  inculpe  de  ser  severo  para  com  as  flô~ 
res  diurnas. 

Deseja  enganar  a  sensitiva?  Quando  o  sol  esmore- 
cer, feche-a  n'um  recinto  pequeno  e  rodeie-a  de  lâm- 
padas, que  espalhem  em^  torno  uma  claridade  alegre 
e  viva.  Yerá  que  não  tem  somno,  que  não  dorme,  que 
toda   se  pavonea. 

Ao  romper  da  manhã,  roube-lhe  a  luz.  Adormece- 
rá, pensando  que  chegou  a  noite. 

Para  quem  desabrocham  as  flores  nocturnas  ? 

Não  para  nós ;  para  si  mesmas.  São  como  a  vio- 
leta, apesar  d'abrir  de  dia :  escondem-se.  Amam-se  e 
noivam  mysteriosamente. 

Fallemos  das  òoas-noites.  Esperam  por  esta  hora 
solemne  para  abrir  e,  tendo  por  sacerdote  a  lua  e 
por  testemunhas  as  estrellas,  celebram  seus  consórcios 
até  que  reponte  no  ceu  a  luz  do  dia. . . 

Não  quiz  a  Providencia  privar  a  noite  do  frémito 
dos  insectos,  das  volatas  das  aves  e  dos  aromas  das 
flores.  Quando  na  escuridão  scintillam  as  pequenas 
lanternas  dos  vagalumes,  quem  se  não  lembra  de  os 
comparar  a  mensageiros  amorosos,  que  vão,  allumia- 
dos  pela  sua  própria  luz,  transmittir  confidencias  de 
flor  para  flor? 


1  Estas  c  outras  pobres  plantas  obedecem  a  phenomenos 
chimicos  cellulares  dependentes  da  irradiação  solar;  taes  s5o  os 
chamados  movimentos  nyctitropicos,  isto  é,  de  vigilia  e  de 
fiomno.  Muito  as  calumiiiei  eu  !  —  Nota  da  presente  edição,. 


249 


O  rouxinol  6  o  menestrel  encarregado  de  cantar  o 
epitlialamio  dos  amores  nocturnos.  Quando  elle  começa 
a  vibrar  o  timido  preludio,  introducçáo  d'um  canto 
mavioso  e  docemente  cadenciado,  estremecem  na  haste 
as  ílôres  da  noite,  porque  chegou  o  momento  dos  seus 
extasis  e  dos  seus  amores. 

Linneu,  sabendo  que  cada  planta  tem  determinadas 
horas  de  repouso  e  de  animação,  compoz  o  poético 
relógio  das  flores,  encantadora  ideia,  que  se  en- 
carrega de  mostrar  ao  homem  que  da  natureza  partiu 
a  inspiração  de  todas  as  grandes  concepções  artís- 
ticas. 

Crê-se  que  foram  os  mathematicos  que  inventaram 
o  kaiendario.  Engano  !  Nas  differentes  épocas  de 
florescência  destinadas  ás  plantas,  estava  o  gérmen 
da  ideia  a  que  mais  tarde  se  attribuiu  a  vantagem  da 
divisão  scientifica  do  tempo. 

Esperemos  que  desça  a  noite  e  que  a&  vaporo- 
sas fadas  do  ar  accendam  as  estreilas  na  cúpula  azul 
dos  céus.  Então,  quando  a  natureza  preparar  o  fes- 
tim da  noite  para  receber  a  lua,  veja,  minha  amiga, 
que  se  Deus  cravejou  no  firmamento  milhares  d'es- 
trellas,  que  são  as  flores  do  ceu,  semeou  por  toda 
a  parte  cardumes  de  flores,  que  são  as  estreilas  da 
terra ... 

E  quem  não  ha  de  acreditar  que  na  mesma  hora 
se  creáram  flores  e  estreilas,  umas  para  o  ceu  e  outras 
para  a  terra? 


250 


Venhaes  em  tal  hora,  illustres  senhores 
Formosas  senhoras,  ó  damas  mui  bellas, 
Como  aquella  em  que  as  estrellas 
Foram  creadas  e  também  as  flores.  ^ 

Deus  viu  que  o  ceu  era  lindo  de  dia,  todo  azul  e 
sereno,  retratando-se  na  vastidão  dos  mares,  illumi- 
nado  com  a  luz  da  grande  alampada  de  oiro.  Mas 
apagou-se  o  facho  do  dia  na  extrema  do  occidente  e 
do  levante  subiu  a  lua,  triste  e  pallida,  como  quem 
teme  ser  rainha  em  throno  que  não  guardam  cortezãos. 
Appareceram  as  estrellas,  para  fazer  companhia  á 
lua  e  dar  mais  claridade  ao  cen  de  noite. 

íí'essa  mesma  hora  se  crearam  as  flores,  porque 
Deus  havia  conhecido  a  tristeza  da  terra  por  não  ter 
vestido  nem  enfeites. 

Eu  vi  já  d' este  campo  as  varias  flores 
As  estrellas  do  ceu  fazendo  inveja.  2 

E  fazem.  São  brilhantes  as  estrellas,  mas  nunca 
variam  a  cor  doirada,  que  mostraram  na  primeira 
noite   do  mundo. 

As  flores  umas  são  azues  como  o  agapantho,  bran- 
cas como  a  açucena,  rubras  como  a  papoila,  doiradas 
como  o  malmequer,  roxas  como  a  violeta,  verdes 
como  a  flor  da  hera.  Uma  imita  a  saphyra,  outra  o 
jaspe,  esla  o  rubim,  aquella  o  topázio,  algumas  a 
amethysta,    outras  a  esmeralda,  e  ha-as  também  que 

^  —  Nau  d'amorcs —  tragicomedia  do  Gil  Vicente. 
2     Camões.  Écloga  l.-'' 


I 


251 


reúnem  em  si  uma  variedade  admirável  de  cores.  As 
estrellas,  aos  nossos  olhos,  apresentam  invariavelmente 
a  forma  circular.  Não  assim  as  flores.  A  fraxinella 
nasce  em  cachos,  a  açucena  em  calis,  a  calandrina 
em  umbella,  a  persicaria  em  espigas  encarnadas,  a 
hortênsia  em  novellos  azues,  o  lilaz  imitando  thyrsos. 

E  depois,  que  delicadeza  verdadeiramente  artistica 
no  trabalhoso  recorte  e  no  mimoso  tecido  das  pétalas, 
que,  na  máxima  parte  das  flores,  parecem  de  seda 
como  as  azas  das  borboletas  !  Quem  não  dirá  que  6 
de  velludo  a  flor  do  liz  ? 

E  alem  de  todas  estas  bellezas  que  nos  deliciam 
os  olhos,  de  todos  estes  primores  artísticos  que  se  não 
podem  imitar  ^, —  todos  os  órgãos  indispensáveis  ao 
desenvolvimento  e  á  conservação,  antheras  cheias  de 
vida  futura,  folhas  que  respirara  e  são  os  verdadeiros 
pulmões  dos  vegetaes,  raizes  que  bebem  nas  entra- 
nhas da  terra  os  suecos  nutritivos,  e  hastes  cheias  de 
vasos  indispensáveis  á  circulação  da  seiva  absorvida 
pelas  raizes ! 

-  E'  como  se  cada  planta  se  dividisse  em  dois  cor- 
pos que  mutuamente  collaboram  para  a  vida  com- 
mum.  Um,  que  vive  enterrado  na  terra,  outro  que 
se  espaneja  no  ar, —  as  raizes  e  as  folhas. 

«Parece,  em  verdade,  diz  um  escriptor  francez, 
que  as  raizes  são  dotadas  de  sentimento  e,  para  assim 


^  Que  a  memoria  do  nosso  grande  Constantino  perdoe 
esta  asserção  demasiadamente  categórica,  —  Nota  da  presente 
adição. 


252 


dizer,  de  intelligencia  :  por  si  mesmas  sabem  discer- 
*nir  o  terreno  que  lhes  convém  e  por  si  mesmas  pro- 
curam o  rincão  onde  o  alimento  é  mais  fácil  e  abun- 
dante.» 

Ha  n'isto  solicitude  de  mãe  doida  d 'amor  pela 
filha. 

As  folhas,  que  são  as  raizes  do  ar,  correspondem 
assiduamente  ao  labor  da  vegetação  subterrânea  e  não 
se  esquecem  um  único  momento  de  que  também  são 
mães . . . 

Absorvem  os  gazes  e  vapores  derramados  na 
atmosphera,  alteram-n'os  e  estudam-n'os  para  rejei- 
tar todos  os  que  não  aproveitem   a  nutrição   vegetal. 

Depois,  um  dia,  desabotoa  a  ílor,  primeira  es- 
perança d'este  commum  trabalhar,  e  mais  tarde  ap- 
parece  o  fruto,  que  é  o  premio  de  tão  suadas  fadigas. 

Ha  em  verdade  tantos  pontos  de  similhança  entre 
as  mães  e  as  plantas,  entre  os  cuidados  e  os  destinos 
d'umas  e  outras,  que  não  duvidei  comparal-as,  minha 
amiga,  n'esses  pobres  versos  que  lhe  mando  e  escre- 
"vi  recentemente : 


MATER 

(  A  UMA  SENHORA,  MÃE   DE  DUAS   ESTIMÁVEIS   MENINAS  ) 

Náo  sei  so  já  algum  dia  contemplaste, 
No  teu  canteiro  alegre  e  recendente, 
Dois  nevados  botões  na  mesma  haste, 
Que  verga  de  mimosa  o  de  indolente  ?  . . . 


253 


Mais  tarde  dos  botões  rebentam  flores 
E  vel-a-has  então  rever-se  n'ellas, 
De  dia,  por  mirar  os  seus  amores, 
Do  noite,  por  mostrar  suas  estrellas. 

Não  tem  braços  a  haste  e  ergue  ao  collo 
Os  seus  dois  filhos  lindos  e  felizes, 
Porque  lá  vai  de  rastos  pelo  solo 
Bebendo  seiva,  onde  metteu  raizes. 

E'  um  sonho  d' amor  o  vel-as  todas 
N'um  abraço  gentil,  lindas  nas  cores, 
Sempre  noivas,  toucadas  para  as  bodas, 
Todas  três  rindo  e  todas  ellas. . .  flores  ! 

Yem  o  sol  a  nascer.  As  borboletas 
Sobrenadam  nas  vagas  luminosas, 
Doidas,  subtis,  alegres,  inquietas, 
Buscando  amores  onde  encontrarem  rosas, 

Então  a  mão  d'alguem  que  sonha  amores 
E  devaneia  á  luz  da  madrugada, 
A"eio  colher  as  nossas  lindas  flores 
Para  coroar  a  moça  namorada. 

E  tu  agora,  ó  mãe,  que  as  procreaste, 
Oonfia-as  á  visão  encantadora. 
Eis  cumprida  a  missão,  curva-te,  ó  haste. 
Morre  feliz,  deixa  ceifar- te  agora. 

O'  mãe,  és  como  a  haste.  A  mesma  sorte, 
A  mesma  lida,  eguaes  as  vossas  dores. 

Que  Deus  vos  faça,  pois,  irmãs  na  morte, 

Se  a  paz  do  céu  cobrir  vossos  amores. 


254 


Quem  havia  de  dizer,  minha  boa  amiga,  que  de 
maravilhas  estão  enthezouradas  na  mais  singela  flor 
das  montanhas  !  E  que  de  mjsterios  também  !  Anda  o 
homem  a  devassar  estes  segredos  da  natureza  e  ven- 
turoso d'elle  se  adquirisse  a  certeza  de  ter  chegado  á 
verdade.  Na  impossibilidade  de  os  decifrar,  cria  uma 
sciencia  para  estudar  cada  grupo  de  phenomenos  e 
perde-se  n'um  labyrintho  de  duvidas  como  a  formiga 
por  entre  as  pétalas  enconchadas  d'uma  dhalia.  O  estu- 
do d'uma  flor  pode  absorver  uma  vida  inteira. 

0  histologista  que  metter  o  escalpello  no  tecido 
vegetal  para  o  decompor  e  estudar,  tem  de  trabalhar 
e  suar  longo  tempo  desde  que  partir  da  cellula,  o  ele- 
mento simples,  o  laboratório  microscópico  como  diz 
Lecoq,  até  chegar  á  flor,  pequeno  mundo  de  bellezas 
infinitas. 

E  depois  quem  sabe  explicar  todos  os  caprichos 
da  sensibilidade  vegetal? 

Por  mais  que  se  tenha  dito  e  escripto  sobre  este 
thema,  por  que  razão  se  contrae  a  sensitiva,  quando 
se  lhe  toca  ao  de  leve  n'uma  folha  ? 

Certa  planta  (oh !  prodígio  !)  a  seus  encantos 

Liga  os  melindres  do  virgíneo  pejo. 

Se  com  dedo  indiscreto  ousas  tocal-a, 

Quer  esconder-se  a  pudibunda  folha, 

E  ás  mesmas  leis  fiel,  o  móbil  ramo 

Se  inclina  para  o  tronco  e  cinge  a  elle  ^. 

Por  que  se  furta  ao  contacto  da  mão  a  delicada 

1  «As  plantas »  —  poema  de  Gastei,  trad.  de  Bocage. 


! 


255 


planta,  que  tem  tanto  de  iiiimosa^  como  de  inidicaf^ 
O  povo    olha  para  a  sensitiva  e  cliama-lhe  erva  viva. 

Não  quero  pensar  na  ignorância  do  povo ;  sei  que 
diz  bem,  sem  se  empenhar  na  lucta  dos  sábios. 

Vivem  as  rosas  o  espaço  d'uma  manhã,  como  es- 
creveu Malherbe  e  dura  a  perpetua  tanto  como  a  ver- 
dadeira saudade.  Que  de  inexplicáveis  segredos ! 
Cahiu  a  noite,  minha  boa  amiga.  Leia  esta  carta  e 
contemple  por  um  momento  uma  flor,  que  o  mesmo 
será  levantar  o  seu  pensamento  a  Deus. 


YII 

A  niademoiselle  Jeannette 
21  de  julho  de  18... 

São  quatro  horas  da  tarde.  Sebastião  Pinheiro  está 
de  certo,  n'este  momento,  como  é  costume,  a  tomar 
caffó  no  terraço  da  casa  d'Espadanedo. 

Yejo  d 'aqui  pelo  prisma  da  saudade  as  graciosas 
cauequinhas  doiradas,  o  taboleiro  de  xarão,  a  pequena 
jardineira  de  mogno,  tudo  o  que  em  sua  casa,  minha 
amiga,  constitue  o  delicado  e  opulento  serviço  do  caífé. 

1  O  illustre  botânico  Van  Tieghem,  reduzindo  a  «sensibi- 
lidade »  vegetal  ás  suas  justas  proporções,  faz  depender  este 
phenomeno  de  uma  simples  contractilidade  do  protoplasma 
cellular.  Em  20  annos  a  sciencia  deu  cabo  da  «  alma  vegetal.» 
—  Nota  da  presente  edição. 


256 


Sebastião  Pinheiro  (é  um  habito  velho  e  agradável 
este  de  tratar  assim  se  a  pai)  reclinado  no  canapé  de 
cortiça,  reparte  caricias  e  palavras  pelas  duas  únicas 
flores  do  jardim  da  sua  vida,  —  madame  Faustine  e 
mademoiselle  Jeannette. 

Dá  alegria  ver  esse  amantissimo  quadro  de  familia 
emmoldurado  nos  festões  da  trepadeira  que  guarnece 
o  terraço. 

Seu  pai  é  o  mais  denodado  apologista  de  caffé  que 
tenho  conhecido.  Falle~lhe  de  Simão  Paulo,  medico  do 
rei  da  Dinamarca,  e  verá  como  troveja  impropérios 
contra  o  rebelião  detractor  do  tabaco,  do  cafPé  e  do  chá  I 

Se  o  uso  do  tabaco  é  nocivo,  seu  pai  ultrapassou 
CS  limites  do  perigo  substituindo  o  uso  pelo  abuso; 
quer  dizer,  accendeado  o  cachimbo  pela  manhã  para 
só  o  apagar  á  noite. 

Já  me  não  admira  isto,  depois  que  li  algures  que 
Mithridates,  rei  do  Ponto,  se  habituara  a  beber  vene- 
no diariamente .  Com  o  caffé  creio  que  se  dá  o  mesmo 
phenomeno  que  com  o  tabaco  :  o  uso  faz  mal ;  o  abuso 
não  prejudica  ninguém !  Massieu,  poeta  que  não  conhe- 
<;o,  escreveu  um  poema  denominado  —  O  caffé  —  ;  não 
lhe  quero  dizer  que  tanto  desconheço  o  poema  como 
-o  poeta. . .  ^  Eu,  se  me  quizesse  inspirar  do  caffé,  ia 

1  O  medico  portuguez  José  Pinto  Kebello  de  Carvalho 
traduziu  este  poema  de  Massieu  (Jornal  de  Coimbra,  vol.  viii, 
Tl."  37,  part.  2.^^)  Quanto  ao  tabaco,  outro  portuguez,  Miguel 
Augusto  de  Ohvoira,  verteu  cm  1844  o  poema  do  Barthelemy 
— O  cachimbo  e  o  tabaco.  Os  cabellos  brancos  vão  interessando 
a  gente  por  estas  velharias  bi bliographicas.— iVoía  rfaj^resewíe 
edição. 


257 


tomal-o  u  Espadanedo  por  uma  das  canequinlias  de 
loiça  fina  que  a  minha  amiga  tempera  d'assucar  ordi- 
nariamente. Depois  sim,  que  poderia  escrever  com  ver- 
dadeiro enthusiasmo.  Quer  saber  a  que  época  re- 
monta o  uso  da  bebida  saborosissima  que  delicia  o  pala- 
dar de  seu  pai?  Um  dia,  no  século  nono  da  era  dos  ára- 
bes, amanheceu  destinado  á  gloria  do  caífó.  O  céo  era 
azul  e  formoso  ;  a  natureza  mostrava-se  languida  como 
a  mulher  que  desperta  cansada  das  danças  vertigi- 
nosas da  noite  e  precisa  de  libar  um  philtro  que  a  reani- 
me; as  harpas  eólias  jorravam  pelas  escarpas  umas  mu- 
sicas voluptuosas  e  alegres, —  o  hymno  da  glorificação 
do  cafPó.  N'esse  dia  os  derviches  d'Yemen  beberam 
pela  primeira  vez  caffé,  antes  das  suas  rezas,  e  pro- 
clamaram aos  quatro  ventos  do  universo  a  excellencia 
de  similhante  bebida.  Pouco  tempo  volvido,  corria 
mundo  a   «fava  arábica»,  denominação  primitiva  do 


Como  não  estou  em  Espadanedo,  deante  da  pe- 
quena jardineira  de  mogno,  permitta-me  dar  de  mão 
a  este  desvio  que  me  vai  avivando  lentamente  re- 
cordações das  minhas  visitas  ao  solar  dos  Pinheiros. 

Deixe-me,  porém,  fazer-lhe  uma  pergunta. 

Com  quantos  frasquinhos  d^essencias  aromáticas  a 
tem  presenteado  seu  avô  desde  a  ultima  vez  que  nos 
vimos  ?  Sinto  pena  do  bom  velho,  que  não  conhece 
a  gentil  neta  e  a  mimosea  de  longe  com  bijoux  para 
o  houdoir. 

Sempre  as  flores !  Em  toda  a  parte  as  encontra- 
mos, minha  amiga.    Que  lamentáveis  homens  são  os 

17 


258 


botânicos,  que  estudam  as  flores  e  nSo  as  sabem 
comprehender !  Para  elles  a  mais  singela  florita  da 
monte  tem  um  nome  e  uma  família ;  é  como  se  fosse 
ura  homem.  A  botânica,  tirante  o  que  diz  respeito  á 
physiologia  vegetal,  é  um  vocabulário  árido  e  pesado^ 
que  só  pode  competir  com  a  nomenclatura  da  chimica 
e  com  a  technologia  da  mathematica.  ^ 

Para  os  geómetras  tudo  são  linhas  que  ou  se 
prolongam  indefinidamente  ou  se  bifurcam  em  ângulos 
ou  se  enclavinham  em  polygonos ;  tudo  são  lettras  e  al- 
garismos que  se  encastellam  em  columnas,  pelas  quaes 
os  profanos  não  podem  marinhar  sem  que  previamente 
comprem  óculos  azues  e  se  tornem  insociáveis. 

Para  os  botânicos  tudo  são  palavras  arrevesadas 
que  incommodam  tanto  os  ouvidos  quanto  os  mosai- 
cos de  mau  gosto  incommodam  os  olhos.  Para  estes 
enfadonhos  apóstolos  da  sciencia  a  haste  d'uma  flor 
é  a  maromba  traiçoeira  com  que  equilibram  a  sua 
reputação  de  sábios.  Nem  olham  para  a  flor  com 
os  olhos  do  philosopho,  que  vê  o  dedo  de  Deus  em 
tudo  o  que  a  natureza  produziu  de  admiravelmente 
formoso ;  nem  com  os  olhos  do  medico  que  descobre 
nas  flores  as  qualidades  de  agentes  therapeuticos  ;  nem 
com  os  olhos  do  pintor,  que  se  embellesa  na  contem- 
plação  do  modelo  que  debalde  tenta  reproduzir  fiel- 

1  Isto  era  o  ódio  tradicional  do  estudante  iitterato  con- 
tra os  compêndios  escolares  o  os  professores  especialistas  Yai 
á  conta  de  rapaziada,  já  perdoada  indulgentemente  pelos  pro- 
fessores que  depois  foram  meus  amigos,  excepto  um,  e  por 
mim  próprio.  —  Nota  da  presente  edição. 


259 


mente ;  nem  cora  os  olhos  do  parfumeur^  que  põe  de 
parte  as  meditações  do  philosopho,  as  investigações 
do  medico  e  os  arroubos  do  pintor  para  destillar  a  es- 
sência da  rosa,  que  morreu  exlialando-a. 

Como  não  sou  botânico,  minha  amiga,  posso  dizer- 
Ihe  sinceramente  que  me  delicia  entrar  n-um  boudoir 
perfumado,  cheio  d'estatuetas,  de  quadros,  de  jarras, 
de  crjstaes.  Ha  certas  salas  em  que  a  gente  entra  e 
respira  com  encanto  o  perfume  suave  que  se  exhala 
dos  moveis,  das  cortinas,  do  piano  —  que  sentiu  na 
véspera  o  contacto  d'uns  dedos  delicados  —  de  tudo 
emfim  o  que  está  de  portas  a  dentro.  O  seu  quarto, 
minha  amiga,  acha-se  nas  condições  d'estas  salas.  Da 
ultima  vez  que  seu  pae  me  mostrou,  a  occultas,  uma 
corbelha  de  flores  silvestres,  a  que  a  minha  amiga 
dava  os  últimos  retoques,  teimando  em  recatal-a  de 
olhos  profanos  como  eram  os  meus,  confesso  á  puri- 
dade que  não  quiz  olhar  para  os  innumeros  frascos 
do  toucador  com  o  propósito  de  me  persuadir  de  que 
o  perfume  suavíssimo,  que  se  respirava  ali,  partia 
das  flores  pendentes  do  cavalete. . . 

Data  de  longe  o  uso  dos  perfumes. 

Em  Athenas  e  em  Corintho  a  tanto  chegou  a  an- 
ciã de  essências  aromáticas,  que  o  logar  marcado  para 
as  conversações  de  todos  os  dias,  em  vez  de  ser,  como 
hoje,  o  botequim  ou  o  caffè,  era  a  loja  d'um  perfu- 
mista  notável.  Em  Roma,  de  tal  -modo  se  banhavam 
em  perfumes  as  opulentas  patrícias^  que  se  promul- 
garam leis  reprimindo  o  abuso,  com  receio'  de  que  se 
extinguissem  para  sempre  os  depósitos  da  Arábia. 


260 


Os  nobres  senhores  da  eclade-raédia  lavavam  em 
agua  de  rosa  os  lábios  tocados  das  viandas  de  seus 
esplendidos  banquetes,  e  os  mais  poderosos  tinham 
em  seus  paços  fontes  d'agua  perfumada  para  embal- 
samar as  salas  em  noites  de  festim. 

Sua  mãe  que  lhe  conte  da  corte  de  Luiz  xv,  que 
se  denominava  corte  perfumada^  em  razão  de  cada 
dama  de  honor  adoptar  cada  dia  uma  essência  diffe- 
rente.  Ella  lhe  contará  também  como,  a  contar  d'essa 
época,  lavrou  vertiginosamente  em  França  a  febre 
dos  perfumes. 

Uma  coisa  curiosa  d'estudar  é  a  acção  das  essên- 
cias aromáticas  na  economia  animal.  Ha  pessoas  que 
se  incommodam  extremamente  com  determinados  per- 
fumes. 

De  mim  lhe  declaro  que  só  me  incommodam  os 
demasiadamente  activos  e  violentos. 

Ás  vezes,  porém,  tem  grande  parte  a  imaginação 
n'estas  antipathias  que  ordinariamente  se  attribuem  a 
uma  irritável  delicadeza  de  nervos.  Conta-se  o  caso 
d'uma  dama  romana,  que  não  podia  supportar  o 
aroma  das  rosas. 

Certo  dia  visitou-a  uma  das  sua  amigas  que  trazia 
na  cabeça  uma  grande  e  formosíssima  rosa. 

A  susceptibilidade  nervosa  da  dama  visitada  levou-a 
a  desmaiar  subitamente  mal  entrou  a  imprevidente 
amiga. 

Foi  motivo  de  se  chamar  o  medico  um  tão  ines- 
perado spasmo. 

A  que  attribuil-o,  porem  ? 


261 


—  Â  rosa,  simplesmente  áquella  rosa,  disse  uma 
das  criadas  da  casa  que,  por  experiência,  podia  deter- 
minar as  diversas  causas  de  tão  frequentes  exacerba- 
ções nervosas. 

—  E'  verdade !  considerou  o  medico.  Não  me 
lembrei  da  antipathia  que  leva  a  minha  gentil  cliente 
a  repellir  o  cheiro  da  rosa ! 

—  É  verdade !  Se  me  tivesse  lembrado  também, 
desfolhava  a  maldita  ílor  antes  d'entrar,  ponderou  a 
dama  em  visita  arrancando-a  das  tranças,  com  sorriso 
irónico. 

—  Surpresa  !  gritou  o  medico,  acceitando  a  rosa 
que  lhe  oíferecia  a  dama  e  fitando  um  olhar  expres- 
sivo na  mimosa  cliente  que  a  pouco  e  pouco  ia  recu- 
perando os  sentidos. 

—  Que  é  ?  Que  foi  ?  Que  surpresa  ?  Perguntavam 
todas  as  pessoas  agglomeradas  na  camará. 

—  A  rosa  não  6  natural !  perorou  o  medico,  sol- 
tando uma  gargalhada  estrepitosa. 

You  concluir. 

Fallei-lhe  de  perfumes,  que  é  o  mesmo  que  fallar 
de  flores.  Victor  Hugo  escreveu  algures  esta  profunda 
phrase  :  « Fui  a  rosa,  diz  o  perfume.  »  É  que  na  ver- 
dade o  aroma,  deixe-me  dizel-o,  é  a  alma  da  flor.  A 
rosa,  ceifada  da  haste,  deu  ainda  ao  mundo  o  que  de 
immaterial  havia  n'ella. 

Seu  avô,  minha  amiga,  velho  aff'ectuoso  e  deli- 
cado, manda-lhe  de  longe  as  essências  das  flores  qua 
mais  o  namoram  decerto.  Aposto  que  se  elle  alguma 
vez  invejou  o  throno  de  Napoleão  ni  foi  por  não  poder 


262 


comprar  todos  os  perfumes  da  França  para  os  man- 
dar á  neta. 

S.  Luiz,  que  tinha  predilecção  pelos  perfumes, 
dizia  nos  campos  da  Palestina :  «O'  delicioso  paiz 
<l'Arabia!  ambiciono  conquistar-te  para  offerecer  ao 
Senhor  a  tua  myrrha  e  o  teu  incenso  ^ . 

Mr.  Arnold  dirá  também,  paraphraseando  a  ex- 
clamação do  rei-santo  :  «  O'  delicioso  paiz  da  França  1 
ambiciono  possuir  todos  os  teus  perfumes  para  of- 
ferecel-os  á  minha  Jeannette». 


YIII 
A  mademoiselle  Jeannette. 
8  d'agosto  de  18  . . . 

Quizera  eu,  minha  amiga,  que  todas  as  mulheres 
seguissem  o  seu  exemplo  e  substituíssem  os  diamantes 
pelas  flores  naturaes.  A  belleza  deve  de  ser  modesta. 
Os  reflexos  cambiantes  dos  collares  quantiosos  des- 
lumbram e  cegam. 

D'aqui  procede  que  muitas  vezes  o  esplendor  da 
moldura,  incommodando_a  vista,  prohibe  o  contemplar- 
se  o  quadro  com  a  minuciosidade  devida  e  com  o  es- 
crúpulo indispensável.  Para  que  hade  a  belleza  ir 
procurar  ás  cryptas  sombrias  o  que  pode  encontrar  á 
superfície  da  terra  ? 

É  preciso    cavar  para  extrair   o  minério ;   basta 


263 


alongar  o  braço  para  colher  a  tlor.  E  depois  a  belleza 
do  diamante  é  fria,  muda,  inanimada  ;  apenas  des- 
lumbra quando  llie  bate  a  luz  em  cheio.  A  belleza  das 
ílores  tem  vida,  tem  animação  e,  podemos  dizel-o,  tem 
linguagem  e  sentimento.  Tanto  isto  ó  verdade,  minha 
amiga,  que  podemos  substituir  as  palavras  pelas  flores 
e  transmittir  a  expressão  da  nossa  alma  no  mais  ap- 
parentemente  despretencioso  bouquet  d'este  mundo. 
€ada  flor  resume  uma  ideia  ou  um  sentimento  e  cada 
ramilhete  é  uma  espécie  de  livro  deslumbrantemente 
encadernado,  que  pode  affectar  mil  formas  diversas  e 
tomar  mil  cores  differentes. 

Os  floristas  francezes,  pergunte-o  á  sua  boa  mamã, 
variam  prodigiosamente  os  nomes  dos  bouquets  con- 
soante a  forma  caprichosa  que  lhes  dão.  Teem  o 
boiíquet-real^  o  botiquet-daqiiesa^  o  bouquet-pavêa,  o 
òouqaef -abanico  e  não  sei  quantos  outros  que  encheriam 
volumes  sem  conto.  Xão  é  tão  fácil,  como  parece,  o  sa- 
ber compor  um  ramilhete,  abstraindo  da  forma  arbi- 
traria que  se  lhe  pode  dar. 

Eu  acredito  piamente  na  predestinação  das  crea- 
turas.  As  raparigas  francezas,  aliem ãs,  inglezas  e 
italianas  que  andam  pelos  passeios  com  os  seus  aça- 
fatinhos  de  ílores  no  braço,  nasceram  exclusivamente 
para  raniitheteiras.  Tiral-as  d'aquillo,  era  emendar  a 
obra  da  natureza.  Quem  ensinou  a  ave  a  fabricar  o 
ninho?  Quem  ensinou  a  ramilheteira  a  compor  bou- 
quets f  Ginguem;  uenhum   mestre;   nenhuma   escola. 

E  todavia  um  bouquet  é  tão  difficil  de  compor 
como  um  livro  de  escrever. 


264 


N'iim  é  preciso  combinar  as  cores;  no  outro  ordenar 
as  modalidades  do  pensamento.  Para  fazer  um  ramilhete 
não  basta  reunir  flores ;  —  assim  como  para  escrever 
um  verso  não  basta  juntar  palavras.  Para  tudo  a 
inspiração. 

Toda  a  gente  sabe  fazer  um  ramo ;  nem  todas  as 
pessoas  sabem  compor  um  bonito  ramo.  O  segreda 
pertence  aos  predestinados.  Como  é  que  as  ramilheteiras 
dispõem  as  flores  ?  Como  nós,  como  toda  a  gente. 
Principiam  o  houquct^  ordinariamente,  por  uma  flor 
grande,  camélia  ou  rosa,  ou  por  um  feixe  quer  de 
violetas  quer  de  botões  que  formem  o  centro ;  em 
redor  uma  zona  de  verdura  esmaltada  de  pequeninas 
flores  e  ainda  depois  uma  galeria  de  flores  variadas. 
Está  o  bouquet  meio  prompto ;  é  preciso  concluil-o. 

Uma  nova  zona  de  verdura  deve  contornar  esta 
primeira  galeria  de  flores.  Ainda  não  basta. 

E'  preciso  formar  uma  segunda  galeria  de  flores 
matizada  de  folhas  pequeninas  e  para  terminar  o 
boitqiiet  convém  adaptar-lhe  uma  ultima  zona  de- 
folhagem  que  não  amarelleça  dentro  de  poucas  horas. 
Está  completa  a  obra.  Ponhamos  o  nosso  ramilhete  aa 
lado  do  bouquet  da  mais  obscura  ramilheteira.  Que' 
difterença  I  N'um  os  preceitos  aristotélicos  da  poética 
das  flores  e  mais  nada ;  no  outro  a  inspiração  vasada 
nos  moldes  da  correcção  artística.  N'um  o  quid  divi- 
num  que  soube  liarmonisar  graciosamente  as  mais 
delicadas  nuances;  no  outro  a  monotonia  com  pretenções 
a  bom-gosto,  que  6  a  monotonia  mais  cáustica  e  des- 
saborida  da  terra  inteira. 


265 


Os  botânicos  e  as  ramilheteiras  I  Eis  aqui  duas 
classes  verdadeiramente  differentes,  comquanto  vivam 
ambas  das  flores  e  para  as  flores. 

Era  injustiça  coroar  de  loiros  os  botânicos  e  deixar 
na  obscuridade  as  ramilheteiras.  Do  lado  d'elles  está 
Linneu  e  não  sei  quantos  mais,  porque,  em  verdade 
nunca  travamos  conhecimento  intimo.  Do  lado  d'ellas 
está  Glycéra,  a  ramilheteira  d'Athenas,  notabilidade 
que  bastou  para  cobrir  de  gloria  todas  as  ramilheteiras 
do  mundo.  Quem  era  pois  Glycéra? 

Uma  mulher  formosa  que  sabia  compor  boiíquets. 
N'isto  estaria  de  certo  o  máximo  titulo  do  seu  reno- 
me, ainda  que  o  pintor  Pausias  a  não  houvesse  re- 
tratado, sentada  entre  montões  de  flores,  a  compor 
ramilhetes,  e  ainda  que  Lucullo  não  tivesse  comprado 
este  quadro  duas  vezes  notável. 

Ninguém  como  Glycéra  para  entretecer  grinaldas 
e  hoiiquets ;  ninguém  como  o  pintor  Pausias  para  os 
quadros  de  flores.  Entre  estes  dois  talentos,  que  be- 
biam o  fogo  da  mesma  inspiração,  devia  vir  sentar- 
se  a  rivalidade.  Assim  aconteceu. 

Pausias  começou  a  deixar-se  vencer  e  quiz  retra- 
tar a  ramilheteira.  Fazel-o,  era  ficar  completamente 
vencido. 

O  pintor  atheniense  retratou-a  e  teve  de  acceitar  as 
consequências  d'esta  indiscreção :  amou-a. 

Adeus,  minha  boa  amiga.  Vejo-me  obrigado  a 
sair  do  Porto  por  alguns  dias  e  a  privar-me  do  prazer 
de  lhe  escrever.  Quando  voltar,  dir-lhe-hei,  como  até 
hoje,   o  que  me  for  lembrando  a  respeito  das  flores. 


266 


EPILOGO 

Quando  voltar,  escrevi  eu.  A  verdade  é  que, 
quando  voltei,  vi  em  cima  da  minha  banca  de  trabalho 
uma  carta  cujo  enveloppe  denunciava  a  calligraphia 
de  mademoiselle  Jeannette. 

Abri-a  precipitadamente ;  dizia  assim  : 
«  Depois  d'amanhã  vou  receber  a  benção  nupcial 
na  igreja  d'Espadanedo.   O  noivo...  já  sabe  quem. 
Desceu  sobre  as  flores  do  meu  coração  o  orvalho  da 
felicidade. 

Jeannette. » 


O  noivo  da  filha  de  Sebastião  Pinheiro  era  o  ho- 
mem que  ella  amava  havia  trez  annos ;  —  um  dos 
mais  nobres  rapazes  de  Santa  Cruz  do  Doiro. 

Mr.  Arnold  morreu.  Madame  Faustine  conserva 
ainda  as  graças  e  o  espirito  d'outros  tempos.  Sebas- 
tião Pinheiro,  apesar  de  fumar  por  dia  mais  uma  onça 
de  tabaco  e  beber  mais  uma  chávena  de  caffe,  des- 
fruta a  melhor  saúde  do  mundo.  Jeannette  é  feliz  e 
tem  um  filhinho.  Quem  ousaria  agora  desviar  por  um 
momento  o  amor  materno  do  alvo  constante  dos  seus 
cuidados,  .escrevendo-lhe  de  flores? 


^ 


UMA  PAGINA  TKISTE 


Ai  !  flor  das  mallogradas  primaveras. 
Thomaz  Kibeibo. 


Devem  ser  breves  as  historias  que  se  escrevem 
com  lagrimas. 

Simão  Pereira  era  um  rapazinho  baixo,  d'aspecto 
doentio,  que  só  tinha  vida  nos  olhos,  porque  os  olhos 
denunciavam  n'elle  o  scintillar  das  labaredas  do  cé- 
rebro. 

Era  natural  de  Sozello,  filho  de  lavradores  e  foi 
meu  condiscípulo,  ha  quatro  annos,  nas  aulas  publicas. 

Os  rapazes  do  nosso  curso  tinhara-n'o  á  conta  de 
scismador  imbuído  em  leituras  romanescas.  Os  mestres, 
ao  avesso  dos  discípulos,  viam  n'elle  uma  intelligencia 
robusta  apenas  prejudicada  por  um  temperamento  ex- 
tremamente mórbido. 

Simão  Pereira  passeava  só,  e  quando  a  gente  se 
abeirava  d'elle  encontrava- o  umas  vezes  febrilmente 


268 


eloquente,  outras  esquecido  e  como  que  absorto  n'um 
pensamento  que  o  dominava  a  ponto  de  não  ouvir  o 
que  se  lhe  estava  dizendo. 

Estas  intermittencias  seriam  razão  de  sobra  para 
corroborar  as  injustas  accusações  dos  nossos  condis- 
cipulos,  se  elle  não  tivesse  dito  d'uma  vez,  a  pro- 
pósito de   romances : 

—  O  que  por  via  de  regra  os  torna  inverosímeis 
é  o  imaginarem  os  auctores  creações  monstruosas  que 
se  apartam  do  commum  da  humanidade,  tola  ou 
feliz,  como  quizerem.  ISTão  é  preciso  procurar  mons- 
tros fora  da  natureza.  Falíamos  todos  os  dias  com  cer- 
tos homens  que  nos  parecem  vulgares  e  que  toda- 
via poderiam  figurar  n'uma  historia  tenebrosa  como 
os  romances  de  Ponson  du  Terrail. 

Os  condiscípulos  riram-se  da  apologia  do  romance 
rocamboliano  feita  por  Simão  Pereira  e  eu  eiitristeci- 
me  subitamente,  porque  me  atravessou  o  espirito  a 
suspeita  de  que  elle  alludia  a  si  mesmo. 

Antes  de  terminado  o  anno  lectivo  correu  voz  de 
ter  enlouquecido  Simão  Pereira.  A  causa  que  lhe  apa- 
gara subitamente  a  luz  da  razão  era  desconhecida  para 
nós,  mas  os  médicos  asseveravam  que  estava  no  seu  pró- 
prio temperamento.  Os  condiscípulos  ouviram  e  dis- 
seram : 

—  De  romântico   a   doido   vai   um  passo.   Deu-o. 
Os  cora(;ões  de  vinte  annos,  que  geram  sentimentos 

nobilissimos,  são  ás  vezes  brutalmente  injustos. 

Procurei  Simão  Pereira  n'uma  casa  da  rua  Chã, 
onde  liabitava. 


i 


269 


Encontrei-o  sentado  á  banca  com  a  fronte  apoiada 
nas  mãos.  Sentiu  rumor  de  passos  e  voltou-se;  viu-me 
e  arrazaram-se-lhe  os  olhos  de  lagrimas. 

—  Faça-rae  um  favor,  disse-me  elle  com  certa 
excitação  nervosa.  Escreva  a  meu  pai  e  peça-lhe 
em  meu  nome  que  me  venha  buscar.  Não  sei  es- 
crever. 

N'essa  mesma  noite  escrevi  ao  lavrador  de  Sozello 
e,  em  vez  de  pedir,  intimei-o  a  vir  ao  Porto  buscar  o 
desgraçado  rapaz  que  estava  a  braços  com  a  loucura 
longe  do  tecto  que  o  tinha  visto  nascer.  O  lavrador 
deu-se  pressa  em  chegar. 

Yi-os  partir,  pai  e  íilho,  n'um  dos  barcos  da  car- 
reira. O  lavrador  tinha  envelhecido  dentro  de  trez 
dias;  Simão  Pereira  olhava  para  o  pai  com  o  olhar 
indeciso  de  quem  perdeu  a  razão. 

Chegaram  as  ferias.  Fui  a  Sozello  e,  como  sabia 
que  o  meu  condiscípulo  ainda  vivia,  perguntei  por  elle. 

—  Na  mesma,  foi  o  que  me  responderam. 

Na  mesma!  Isto  era  extremamente  doloroso  para 
quem  sabia  que  ficava  occulta  a  palavra  loucura.  Na 
mesma  loucura,  queriam  dizer. 

A  casa  de  Simão  Pereira  vê-se  da  quinta  de  Yilla 
Yerde.  Â  noite  cheguei  a  uma  janella  e  puz-me  a 
olhar  para  lá.  Momentos  passados,  ouvi  notas  dulcís- 
simas de  flauta.  Estremeci.  Devia  ser  Simão  Pereira 
quem  tocava. 

—  «Nasci  n'aldea,  disse-me  elle  da  primeira  vez 
que  o  ouvi  executar  umas  variações  da  Norma,  nasci 
n'aldea  e  a  flauta  é  a  lyra  dos  pastores» . 


270 


Um  dos  criados  da  nossa  casa  ouviu  os  sons  lon- 
gínquos da  flauta  e  veio  dizer-me : 

—  Agora  está  elle  socegado.  A  musica  chama-a 
á  razão ;  n'estes  momentos  conhece  o  pai  e  a  mãe. 

Um  anno  depois  havia  completo  silencio  na  casa 
do  lavrador.  Simão  Pereira  tinha  morrido  n'um 
accesso  de  loucura,  mezes  antes.  Quiz  ainda  enganar- 
me  e  fiquei  á  janella  a  esperar  a  canção  saudosa  da 
flauta.  Nenhum  som,  nenhuma  voz.  Á  loucura  sue- 
cedera  a  morte. 


AZAS  BRANCAS 


(a  AUíiUSTO  MARQUES  PlNTO) 


tinha  umas  azas  brancas  . 
Gabrbtt. 


Chama-se  Val-de-Rouxinoes  o  logar.  É  uma  cam- 
pina extensa,  coberta  de  verdura  por  todos  os  lados, 
banhada  ao  norte  por  um  ribeiro,  —  tudo  aquillo  for- 
moso, suave  e  alegre,  n'uma  palavra.  Diz-se  que  a 
pastora  Bérthola,  (provavelmente  corrupção  de  Ber- 
tha),  que  tinha  uma  voz  doce  e  melodiosa,  e  que  sof- 
fria  mal  de  saudades,  vinha  sentar-se  a  olhar  pelo  re- 
banho á  sombra  das  arvores  do  valle  e  começava  a 
cantar  por  tempos  esquecidos. 

Os  rouxinoes,  que  os  ha  muitos  no  sitio,  ouviam- 
n'a,  tomavam  por  desafio  o  que  era  desfadigar  de  tris- 
tezas e  começavam  a  cantar  á  porfia  que  era  um  céo 
aberto  escutal-os. 

A  pastorinha  Bérthola  comprehendia-os  e  não  tan- 
to para  matar  o  tempo,  que  lhe  era  pesado,  como  pa- 


272 


ra  03  ouvir,  o  que  era  um  consolo,  sustentava  a  lucta 
dignamente.  Constou  isto.  Ao  fim  da  tarde  vinha  mui- 
ta gente  escutar  a  occultas  a  pastorinha  e  os  rouxi- 
noes.  Suspendiam-se  as  respirações  e  embriagavam-se 
os  ouvidos  n'aquella  musica  dulcissima. 

Diz  a  lenda  —  porque  a  imaginação  do  povo  tem 
ás  vezes  extravios  romanescos  —  que  era  difficil  sa- 
ber-se  em  alguns  momentos  quem  cantava  :  se  Bér- 
thola  se  os  rouxinoes.  Prolongava-se  por  noite  a  den- 
tro a  porfia.  A  pastorinha  esquecia-se  das  suas  ove- 
lhas, que  procuravam  o  caminho  do  curral,  como  se 
comprehendessem  que  não  deviam  esperar  por  quem 
se  não  lembrava  d'ellas. . . 

Com  a  noite  vinha  o  socego  e  a  solidão ;  era  me- 
lhor para  se  ouvir.  Então  os  rouxinoes  e  a  pegureira 
desdobravam  todo  o  volume  da  sua  voz  e  deliciavam- 
se  com  ouvir  a  repetição  das  notas  que  tinham  trina- 
do momentos  antes.  Eram  os  éccos  do  valle  que  re- 
petiam o  canto. 

E  os  namorados  do  sitio  a  escutarem  estes  con- 
certos nocturnos,  contentes  por  haverem  encontrado 
vozes  estranhas  que  soubessem  gorgear  o  que  elles 
-queriam  dizer  e  não  podiam...  Morreu  nova  a  pas- 
tora. Venceram  os  cantores  do  valle.  Cansou-se  de 
cantar  e  morreu.  Ficou  vingado  o  rouxinol  de  Bernar- 
dim Ribeiro. 

* 

O  morgado  de  Yal-de-Rouxinoes,  Gaspar  da  Sil- 
veira, representa  a   velhice  ditosa.   Quando  a  gente 


273 


o  vê  entro  um  p^rupo  de  formosas  visões,  —  tlores  que 
enchem  de  perfume  e  de  vida  aquellas  ruinas  de  ses- 
senta annos,  —  sente  pena  de  não  ser  tão  alegre,  ou 
o  que  parece  menos  verosimil  e  comtudo  não  deixa 
de  ser  menos  verdadeiro,  sente  pena  de  não  ser  tão. . . 
velho  e  tão  feliz  como  elle. 

O  morgado  passou  a  mocidade  em  toda  a  parte 
aonde  o  arrastou  a  sua  romanesca  imaginação  e  onde 
os  seus  muitos  recursos  lhe  permittiram  demorar-se. 
A  casa  onde  nasceu,  escondida  n'uma  bacia  de  ver- 
dura, era  pequena  para  os  seus  instinctos  de  touriste. 

Ás  vezes  vinham  poisar  algumas  borboletas  nas 
flores  dos  canteiros  sotopostos  ás  janellas  da  casa, 
como  se  viessem  trazer  um  recado,  e  fugiam  logo  a 
esvoaçar,  a  esvoaçar...  Para  onde?  Quem  sabe  lá! 
para  onde  houvesse  flores.  Gaspar  da  Silveira  reparou 
nas  mariposas  e  conheceu  que  a  natureza  o  fizera  irmão 
d'ellas  collocando  o  seu  ninho  entre  moitas  de  ver- 
dura. Elias  voavam ;  elle  quiz  seguil-as. 

Preparou-se  para  partir.  As  borboletas  iam  voando 
sempre ;  imitou-as.  Quando  olhou  em  si  estava  muito 
longe  de  Val-de-Rouxinoes,  e  todavia  pareceu-lhe  que 
o  mundo  era  ainda  muito  grande. 

Teve  desejos  de  vêl-o,  todo  se  fosse  possível. 

«Fui  por  Hespanha,  diz  hoje  Gaspar  da  Silveira, 
porque  senti  nos  ouvidos  o  repenicar  provocador  das 

18 


274 


castanholas  alternado  com  o  frémito  vertiginoso  dos 
petulantes  abanicos.  A  Hespanha  é  um  paiz  que 
só  se  comprehende  depois  que  se  vê.  A  França  adi- 
vinha-se.  Em  Yal-de-Rouxinoes  presentem-se  os  valles 
da  Suissa.  A  Inglaterra  imagina-se  n'um  dia  de 
nevoeiro  e  a  Rússia  n'um  dia  de  frio.  Da  Hespanha 
falla-se  e  ninguém  sabe  o  que  ella  é  antes  de  a  ver. 
A  mulher  representa  o  paiz  a  que  pertence.  A  voz 
d 'uma  italiana  resume  toda  a  musica  d'Italia  ;  todos 
os  mystérios  da  Hespanha  estão  no  coração  d'uma 
andaluza.  E'  a  Hespanha  um  paiz  especialmente  mi- 
litar, commercial,  cavalheiresco?  Nada  d'isto  e  tudo 
isto.  A  hespanhola  tanto  se  deixa  arrastar  pelo  ry- 
thmo  cadenciado  da  hahanera,  como  pela  vertigem  fe- 
bril do  ciúme. 

Na  tertúlia  agita  a  ventarola;  no  desespero  o 
punhal. 

Quando  lhe  não  trespassam  o  coração  com  um  es- 
pinho, e  pomba.  Quando  lhe  apontam  uma  frecha  en- 
venenada de  mal-querença,  é  indomável.  Os  olhos  é 
que  podiam  denunciar  estes  sentimentos  differentes, 
mas  os  olhos  esconde-os  ella  com  a  mantilha,  quando 
quer. 

A  Hespanha  é  como  a  hespanhola.  Tanto  descanta 
hoje  na  serenata^  como  briga  amanhã  na  venta;  tanto 
se  recrea  hoje  no  bolero   como  amanhã  na  corrida. 

Ninguém  sabe  comprehender  os  seus  mystérios, 
senão  estudando-a  passo  a  passo  e  dia  a  dia.  Depois, 
o  que  6  menos  sério  e  não  deixa  de  ser  mais  tentador, 
imaginei-me  a   saborear  uma   taça   de  chocolate  e  a 


I 


275 


fumar  um  charuto  havano.  Fui.  Escrevi,  já  com  um 
pé  em  Hespanha  e  outro  em  Portugal,  a  minha  irmã 
Jeronyma,  que  íicou  a  olhar  pela  casa  de  Yal-de-Rou- 
xinoes,  a  chorar  as  lagrimas  da  viuvez  e  a  apertar 
contra  o  seio  duas  formosas  creanças. 

Escrevi-lhe,  como  ia  a  dizer,  n'este  sentido : 
«You  a  Hespanha.  Já  agora  hei-de  fumar  um  puro 
e  ouvir  um  sereno.  Adeus. » 


«De  Pariz,  diz  Gaspar  da  Silveira  que  merece 
comparar-se  ao  cavallo  de  Troya,  —  tudo  lá  é  traição. 
Yê  a  ^QYiiQ  aquelle  grande  mundo,  aquella  Babylonia 
immensa,  desvaira-se,  estontea  e...  perde-se.  Por 
quem  ?  Por  uma  mulher  loira  dos  boidevards^  que 
vai  á  ópera  todas  as  noites  e  não  falta  ás  corridas  de 
Longcharaps,  deslumbrante  de  riqueza   e  formosura. 

Quem  vem  a  ser  esta  creatura  ?  Uma  rapariga  de 
maus  instinctos,  que  deshonrou  para  sempre  a  velhice 
de  seus  pais,  que  desperdiça  todos  os  dias  os  rendi- 
mentos de  muitas  famílias  e  que  se  touca  de  pérolas 
á  hora  em  que  se  cobrem  de  lagrimas  as  esposas  dos 
seus  amantes. 

O  fundo  é  este.  O  povo  francez  embriaga-se  com 
todos  estes  ouropéis,  com  todas  estas  opulências  vans, 
com  todas  estes  esplendores  mentidos.  E'  vário  como 
todos  os  nevropathas.  Se  vem  a  republica  e  lhe  falia 
em  liberdade,  torna-se  republicano.  Mas  se  no  mesmo 


276 


dia  vier  o  império,  e  o  deslumbrar  com  uma  parada  e 
ura  fogo  de  artificio,  ajoelha  deaute  do  throno  e  suf- 
foca  na  garganta  as  ultimas  notas  da  Marselhexa.  Fugi 
de  Pariz  porque  me  assustou  a  grandeza  ficticia  da- 
quelle  mundo ;  a  traição  está  escondida  lá  dentro 
como  os  gregos  no  bojo  do  cavallo  de  Trova. » 


«Foi  á  Suissa,  áquelle  pittoresco  templo  da  ver- 
dadeira liberdade.  Quem  sae  de  França  cuida  que  a 
Suissa  é  um  punhado  de  terra  escondido  entre  mon- 
tanhas. Mas  quando  se  lembra  da  Suissa  de  hontem, 
acha-a  grande ;  quando  attenta  na  Suissa  de  hoje,  acha-a 
maior.  A  Suissa  de  hontem  são  todos  os  patriotas  de 
1308,  é  essencialmente  Guilherme  Tell.  A  Suissa 
de  hoje  é  a  suprema  liberdade,  a  suprema  independên- 
cia e,  podemos  dizel-o  também,  a  suprema  harmonia. 
O  povo  da  Suissa  vive  do  amor  pelo  passado  e  do 
amor  pelo  futuro. 

«Respeita  as  tradições  dos  seus  antepassados  e. 
não  obstante,  empenha-se  com  enthusiasmo  pela  causa 
das  novas  ideias. 

«As  cartas  geographicas  continuam  a  marcar  í 
Suissa  com  uma  pequenina  gotta  de  tinta,  mas  a  verj 
dade  é  que  entre  o  Jura,  os  Alpes  e  o  Tyrol  ha  um 
nação  grande  pela  sua  constituição  politica,  pela  snjl 
educação  civil  e  militar,  pelas  artes,  pela  industria 
por   tudo    emfim   o  que  constituo  a   individualidadl 


277 


de  um  povo.  E  depois  á  beira  dos  seus  lagos  sente-se 
a  amenidade  que  se  respira  em  Val-de-Rouxinoes.  Eii- 
cautou-me  a  Suissa,  devo  confessal-o. » 


«Segai  para  lialia ;  fui  á  Itália  por  causa  de  Ve- 
neza. Quiz  adormecer  u'uma  gôndola  ao  som  d'uma 
barcarola.  A  verdade  é  que  os  gondoleiros  do  Lido 
não  conservam  já  a  individualidade  legendaria  d'outros 
tempos.  Todavia  foi-me  delicioso  ir  deitado  na  gôndola 

Ia  olhar  para  aquelle  formoso  côo  d 'Itália  capaz  de 
fazer  accordar  n'um  momento  todas  as  harmonias  do 
coração  humano. 

«A  Itália  nasceu  para  as  artes.  Quando  a  gente  che- 
ga a  Veneza  reconhece  immediatamente  que  está  em 
Itália  e  que  a  Itália  é  a  pátria  de  Verdi,  de  Petrar- 
cha  e  de  Paulo  Veroneso.  E'  licito  até  deixarmo-uos 
^  enlevar,  comtanto  que  tenhamos  previamente  o  cui- 
dado de  acautelar  as  algibeiras,  porque  os  rufiões 
aproveitam-se  frequentes  vezes  dos  extasis  dos  viajan- 
tes incautos.» 


«Voltei  a  Portugal  depois  de  ter  estudado  o  mundo 
em  quatro  ou  cinco  paizes  diversos.  As  mulheres  da 
minha  terra  entremostraram-se-me  a  distancia  com 
merecimentos  dignos  do  respeito  de  um  viajante.  Nãa 


278 


as  quiz  comparar  com  as  outras  que  vi.  As  de  Hespa- 
nha  tinham  salerOy  as  parisenses  eram  coquettes,  mas 
as  portuguezas,  avaliei-o  por  minha  mãe  e  por  minha 
irmã  Jeronyma,  eram  mais  dedicadas  á  beira  do  berço 
de  seus  filhos.  Minha  irmã  ficou  viuva  aos  vinte  e 
trez  annos,  com  duas  meninas  no  collo. 

«  Quando  eu  parti,  tinha  a  Júlia  um  anno  e  a  Lu- 
dovina  dois.  Quando  regressei,  chamei  um  dia  a  mana 
Jeronyma  e  disse-lhe : 

« —  Minha  irmã.  Fatiguei-me  de  andar  só  por  esse 
mundo  de  Christo  e  todavia  não  passei  de  um  retalho 
da  Europa.  Estou  resolvido  a  casar ;  mas  has  de  pro- 
metter-me  que  não  saes  d'esta  casa,  que  administraste 
durante  a  minha  ausência,  no  dia  do  meu  casamento. 
Se  eu  tiver  filhas,  quero  que  ellas  brinquem  com  as 
tuas.  Não  receies,  porém,  que  esta  nova  phase  da 
minha  vida  venha  perturbar  a  tranquillidade  da  nossa 
casa ;  socega,  porque  eu  só  casarei  com  a  mulher 
que  tu  me  designares.  Olha  que  isto  é  positivo,  Jero- 
nyma.» 

«Minha  irmã  mostrou-se  surprehendida. 

«  —  Dize  cá,  continuei  eu,  para  atalhar  a  admiração 
de  Jeronyma.  Tu  tens  uma  amiga  intima,  que  conta 
hoje  a  tua  idade  e  que  foi  a  confidente  dos  teus 
amores... 

«  —  Christina  I 

<!. —Christina,  exactamente,  ozí/ra  tua  irmã^  como 
dizia  a  gente  do  logar  quando  vos  encontrava  ambas, 
de  mãos  enlaçadas,  a  passear  pela  aldeia.  E  comtudo 
bem    sabiam  os  camponezes  que  tu  eras  a  menina  de 


279 


Yal-de-Rouxinoes  e  Christina  a  morgadinha  do  Paço- 
Yerde. 

«  —  Que  saudade  ! 

« —  Affasta  as  tuas  tristezas,  Jeronyma,  que  não  6 
occasiào  de  despeitorar  maguas  intimas.  Ora  dize-me 
cá.  Sabes  se  ainda  se  conservam  no  coração  de  Chris- 
tina aquelles  assomos  de  affeição  que  ella  dizia  sentir 
por  mim? 

«—  Christina  não  te  ama  vertiginosamemte,  respon- 
deu minha  irmã,  mas  sente  por  ti  um  poucochinho 
de  respeito  e  um  poucochinho  d'estima,  o  que  é  mil 
vezes  preferivel  a  uma  paixão  que  dure  a  vida  de  uma 
flor. 

«  —  E  sabes  se  Christina  amou  alguma  vez  outro 
homem  ? 

«  —  Não  amou  ninguém.  Ás  vezes  dizia-me  de  ti  : 
Gosto  de  teu  irmão,  Jeronyma,  mas  scismo  que  elle 
antipathisa  comigo.  Não  quero  desenganar-me ;  tenho 
medo  que  me  aborreça  deveras. 

«  —  Muito  bem.  Ficas  encarregada  de  concluir  o 
negocio.  Quero  ver  como  te  saes  d 'esta  missão 
diplomática. 

«  —  Gracejas,  Gaspar  ! 

«  —  Não  gracejo.  A  minha  idade  de  gracejar  pas- 
sou. 


Cinco    annos   volvidos   depois    do    casamento    de 
Gaspar  da  Silveira,  descobriam-se  reverentemente  os 


280 


camponezes,  ao  declinar  da  tarde,  deante  d'um  grupa 
pittoresco  que  ora  parecia  recortar  o  céo  levantado- 
n'uraa  eminência  ftorida,  ora  surgia  como  por  encan- 
tamento n'uma  gruta  de  verdura  em  qualquer  sitio  do 
valle. 

Gaspar  da  Silveira,  de  largo  chapéo  desabado  e 
semblante  a  ressumbrar  alegria,  era  quem  ficava  exa- 
ctamente ao  centro  do  quadro.  D'um  lado  a  estatua 
da  saudade,  entre  doce  e  melancólica,  entre  triste  e 
resignada,  —  Jeronjma.  Do  outro  a  mulher  que  se 
arrouba  na  suprema  felicidade  da  terra  e  sabe  ser 
compadecida  perante  os  infortúnios  que  comprehende, 

—  Christina. 

Tsíão  longe,  ao  sopé  do  rochedo  ou  á  beira  do  al- 
pendre de  folhas  verdes,  quatro  creanças  ora  baila- 
vam de  mãos  enlaçadas,  ora  desfolhavam  flores  sil- 
vestres e  assopravam  as  pétalas  para  vel-as  cahir^ 
ondulando,  como  outras  tantas  mariposas. 

A    mais   velha    d'estas    crianças  tinha  sete  annos 

—  Ludovina.  Pomba,  que  mal  abre  as  azas  e  já  se 
arroga  a  missão  de  velar  pelo  bando  infantil!  Júlia, 
a  outra  filha  de  Jeronyma,  pode  chamar-se  lhe  a  in- 
fância mais  inquieta  d'este  mundo  e  já  com  pretensões 
a  rebellar-se  contra  a  protecção  fraternal  de  Ludo- 
vina. 

As  outras  duas  creanças  são  ambas  filhas  de  Gas- 
par da  Silveira  e  de  Christina;  são  tão  irmãs,  tão  uma 
da  outra,  que  se  poderiam  dizer  gémeas,  comquanto 
Leonor  tenha  quatro  annos  e  Sophia  trez. 

Formoso   quadro   era   este  em  que  suavemente  se 


281 


confundiam    as    alegrias   da   infância,  as  lagrimas  da 
saudade  e  os  sorrisos  da  felicidade  suprema. 

E  os  camponezes  passavam  e  tiravam  respeito- 
samente o  seu  chapéu,  menos  por  ser  aquella  a  família 
de  Val-de-Kouxinoes  do  que  por  se  sentirem  tomados 
de  respeito  deimte  d'aquelie  grupo  sublime  de  ma- 
gestade. 

*  * 

—  Encanta-me  ver  este  bando  de  creanças  que 
Deus  nos  concedeu  como  para  nos  dizer  que  somos 
felizes !  exclamava  Gaspar  da  Silveira.  Que  seria  do  teu 
coração,  Jeronyma,  se  lhe  faltassem,  não  digo  as  con- 
solações da  nossa  amizade,  mas  aquellas  duas  azas 
pequeninas  que  a  Providencia  lhe  engastou  e  se  estão 
agitando  acolá  V  A  Ludoviua  substitue-te  dignamente 
nos  carinhos  maternaes  que  dispensa  á  irmã.  A 
minha  Leonor  tem  alguma  cousa  de  coqiiette  e  alguma 
cousa  de  campoueza.  Olha  como  ella  se  vai  meneando 
senhorilmente  após  as  outras,  com  a  sua  arregaçada 
de  flores  do  monte.  A  Sophia  é  o  beija-flor,  os  trez 
annos  que  tropeçam  a  cada  momento,  mas  que  não 
desanimam  e  vão  proseguindo  sempre  no  vertiginoso 
adejar !  Que  felicidade  a  nossa,  Christina !  Que  felici- 
dade a  minha,  Jeronyma ! 

E  evocando  recordações  das  suas  viagens : 

—  Ha  na  Suissa  um  costume  em  verdade  encanta- 
dor e  útil,  porque  exerce  uma  notável  influencia  na 
harmonia  das  gerações  futuras.  As  sociedades  do  do- 


282 


mingo,  como  lá  se  diz,  consistem  em  reunir  n'esse  dia 
as  creanças  da  mesma  idade  e  do  mesmo  sexo  para 
deixal-as  brincar  em  plena  liberdade.  E'  assim  que  os 
pequenos  se  suppoem  todos  irmãos  porque  não  sabem 
brincar  uns  sem  os  outros ;  —  raparigas  com  rapari- 
gas, rapazes  com  rapazes.  E  n'esta  communidade  de 
brinquedos  vão-se  insensivelmente  estreitando  os  laços 
que  devem  prendel-os  para  toda  a  vida.  Oh!  que  se 
vocês  vissem  a  Suissa  haviam  de  gostar  e  mui- 
to I .. . 

D'outras  vezes  dizia  Gaspar  da  Silveira,  á  cerra- 
dinha  da  noite: 

—  A  esta  hora  ouve-se  nas  povoações  dos  Alpes 
a  busina  dos  pastores.  Parece  impossível  que  d'uma 
pequenina  flauta  de  pau,  tangida  por  um  pegureiro 
rude,  saiam  as  suaves  modulações  que  se  vão  repe- 
tindo de  quebrada  em  quebrada.  E  as  cantigas  do 
Ba7iz  das  Vaccas  que  os  pastores  cantam  melodiosa- 
mente a  esta  hora ! 

—  Parece  que  tens  amores  na  Suissa  I  replicava 
Christina  entre  amorosa  e  amuada. 

—  E'  verdade  !  obtemperava  Jeronyma.  Olha  que 
é  para  ter  ciúmes  ! 

—  E'  que  não  me  comprehendem  !  Quando  se  está 
bem,  tão  bera  como  eu  aqui  estou,  parece  que  a  me- 
moria se  delicia  em  reproduzir  tudo  quanto  conhece 
de  suave  e  formoso  !  E  depois  ? . .  . 

—  E  depois?  perguntavam  simultaneamente  Chris- 
tina e  Jeronyma. 

—  E  depois  ha  na  Suissa  um  lago  do  qual  se  diz 


283 


que    se    agita    quando    se    lhe    deita   alguma  cousa 
dentro. . . 

—  E  que  tem  ?  dizia  Christína. 

—  E  que  tem  ?  repetia  Jeronyma. 

—  Bem  sabem  que  deitei  ás  aguas  do  lago  o  celi- 
bato ;  que  voltei  as  costas  para  não  ouvir  a  tempestade  ; 
e  que  vim  casar  á  minha  terra  natal. 

—  Ah!  conclamavam  Christina  e  Jeronyma  sor- 
rindo  amavelmente. 

* 

Corridos  quinze  annos  depois  do  casamento  de 
Gaspar  da  Silveira,  ainda  podia  vêr-se,  ao  declinar  da 
tarde,  o  mesmo  grupo,  ou  antes  os  mesmos  grupos, 
nos  mesmos  legares  e  á  mesma  hora.  O  morgado  de 
Yal-de-Rouxinoes  não  inculcava  maior  velhice :  ha 
uma  consolação,  a  de  ser  pai,  que  parece  furtar-nos 
á  acção  sensivel  do  tempo.  Christina  partilhava  das  ale- 
grias do  marido,  que  tanto  eram  suas  como  d'elle,  e 
respirava  na  mesma  atmosphera  de  felicidade.  Jero- 
nyma sem  estar  menos  ágil  estava  comtudo  mais 
venturosa,  porque  em  vez  de  duas,  como  outr'ora, 
tinha  quatro  azas  a  levantarem-n'a  dos  espinhaes 
da  terra.  Morria-se  d'amores  pelas  sobrinhas  tanto  como 
pelas  filhas ;  queria-lhes  realmente  muito. 

E  ellas,  as  quatro  pombas  de  Yal-de-Rouxinoes, 
onde  estão  que  já  não  bailam  de  mãos  enlaçadas  nem 
assopram  as  pétalas  das  flores  do  monte  ? 

Eil-as   ali,   ao  lado,  constituindo  um  outro  grupo, 


284 


ora  segredando-se  os  nadas  mysteriosos  e  bonitos  da 
mocidade,  ora  lendo  Feuillet,  que  6  o  romancista  que- 
rido de  Gaspar  da  Silveira,  ora,  se  as  acompanhava 
a  mestra  que  viera  do  Porto,  discorrendo  e  ás  vezes 
galhofando  sobre  pontos  de  geographia  e  historia. 
Eil-as,  as  quatro  formosas  donzelinhas,  que  parecem 
todas  irmãs  e  deixam  perceber  ideias  e  sentimentos 
também  irmãos. 

—  Olhae  para  ellas,  dizia  Jeronyma  a  Gaspar  e  a 
Christina.  Olhae  para  ellas,  como  estão  alegres  e  ami- 
gas!  A  Ludovina  é  o  anjo  da  guarda;  é  sempre  irmã 
de  todas,  sem  deixar  de  ser  mãe,  quando  é  preciso. 
A  Júlia  e  o  aijesú  que  de  mimoso  reclina  a  cabeça 
no  seio  fraternal.  A  vossa  Leonor,  reparae :  apresenta- 
se  compostinha  como  uma  senhora  de. . .  quatorze 
annos  !  E  a  Sophia,  o  beija-ílor,  como  tu.dizes,  Gaspar, 
sempre  a  bater  as  azas  e  a  sorrir ! 

—  Olha,  exclamava  Gaspar  da  Silveira,  que  tem 
graça  esta  graduação  de  idades:  A  Ludovina  tem  de- 
zesete  annos,  a  Júlia  dezeseis ;  a  Leonor  quatorze  e  a 
Sophia  treze.  De  maneira  que  a  Ludovina  ó  mais 
velha  um  anno  que  a  Júlia,  e  a  Leonor  mais  velha 
um  anno  que  a  Sophia. 

—  Assim  como  também,  acrescentava  Christina,  » 
Ludovina  é  mais  velha  que  a  Leonor  trez  annos  e  a 
Júlia  mais  velha  que  a  Sophia  outros  tantos. 

—  O'  Christina,  perorava  Jeronyma,  Deus  quiz  ir- 
manar tanto  os  nossos  destinos,  que  nos  deu  a  cada 
uma  duas  filhas  I  Irmanar,  disse  eu !  Tu  és  bem  mais... 

—  Toca  a   levantar  o  acampamento,  dizia  Gaspar 


285 


da  Silveira  com  seus  assomos  de  militar  reformado. 
Se  tu,  Jerouyma,  começas  a  desafo^^ar  maguas,  sen- 
sibiliso-me  também  e  ou  choro  ou  rendo  a  praça.  Va- 
mos vér  o  que  estão  a  dizer  as  pequenas.  O  que  ellas 
não  terão  gracejado  com  a  mestra  ! 


—  Que  fazem  vocês,  pequenas  ? 

—  Perguntamos  á  snr.*  D.  Francisca  uma  cousa, 
respondia  Sophia. 

—  E  ella  ainda  não  respondeu  I  replicava  Júlia. 

—  E'    porque   não   e  fácil    responder  !  acrescen- 
tava Leonor. 

—  Não   faça   caso,    meu   tio,   concluía  Ludoviua. 
Ellas  enlouqueceram  todas. 

—  Diga  lá,  D.  Francisca,   diga  lá,  atiçava  Gaspar 
da  Silveira. 

—  Digo  eu . . . 

—  Cala-te,  Sophia,  reprehendia  Christina. 

—  Deixa   dizer  a  tua   mestra,  ralhava  Jeronyma. 

—  Perguntei  á  menina  Sophia  onde  ficava  a  Rús- 
sia, dizia,  finalmente,  D.  Francisca. 

—  E  ella  respondeu  ? 

—  Respondeu.  Depois  perguntei  que  forma  de  go- 
verno havia  na  Rússia. 

—  E,  . .  respondeu  ?  inquiria  Gaspar  da   Silveira. 

—  Respondeu. 

—  Depois?. . . 


286 


—  Depois  perguDtou-me  a  menina  Sophia,  que  ê 
sempre  a  revolucionaria,  o  que  queria  dizer  a  palavra 
—  Russo.  E  eu  respondi. . .  que  natural  da  Rússia. 

—  Bem  respondido !  exclamava  Gaspar  da  Silveira 
suffocando  um  frouxo  de  riso.  E  ella  que  liie  objectou? 

—  Por  que  se  chamaria  então  ruço  a  um  burro 
esbranquiçado  que  nào  era  russo? 

—  Diabrete !  exclamava  Gaspar  da  Silveira,  des- 
fechando uma  gargalhada  sonora. 


Os  serões  corriam  alegres  e  divertidos  na  casa  de 
Yal-de-Rouxinoes.  Gaspar  da  Silveira  ora  lia  para  to- 
dos ouvirem,  ora  contava  episódios  das  suas  viagens 
na  Europa.  Havia  duas  mesas  de  trabalho  todas  as 
noites;  n'uma  costuravam  Christina  e  Jeronyma  e  lia 
Gaspar  da  Silveira ;  —  na  outra  seroava  o  rancho  das 
donzellinhas  commandado  pela  grave  pessoa  da  pro- 
fessora D.  Francisca,  que  só  conservava  dos  tempos 
da  mocidade  —  saudades  doloridas. 

Gaspar  da  Silveira  havia  lido  n'um  periódico  do 
Porto  o  annuncio  d'uma  senhora,  que  se  offerecia  para 
ensinar  musica  e  instrucção  secundaria  na  provincia. 
Escreveu  immediatamente  á  redacção  do  periódico 
pedindo  esclarecimentos.  Recebeu-os,  e  como  lhe  pa- 
receram lisonjeiros,  mandou  ir  a  mestra  em  questão. 
Nos  primeiros  tempos,  sondou  Gaspar  da  Silveira  com 
certa  habilidade  a  profundeza  dos  conhecimentos  lit- 
terarios  de  D.  Francisca.  Conheceu  que  eram  pouco 


287 


sólidos,  mas  como  ella  soubesse  tocar  piano  correcta- 
mente e  esboçar  a  lápis  uns  desenhos  leves,  transigiu 
e  estipulou-lhe  um  ordenado  farto. 

A  ^rave  professora,  quando  conheceu  que  tinha 
de  arrostar  com  as  negaças  prováveis  de  quatro  moci- 
nhas sobremodo  estimadas,  teve  um  momento  de  he- 
sitação, mas  lembrou-se  de  que  leccionava  quatro 
discipulas  e  recebia  por  oito:  ficou. 

Eram  pois  alegres  e  divertidos  os  serões,  como  já 
se  disse.  Aos  domingos  e  quintas  feiras  as  meninas 
tocavam,  cantavam  e  bailavam  umas  com  as  outras. 
Nas  restantes  noites  costurava-se  simplesmente. 

Mas  que  vontade  de  rir  por  qualquer  cousa!  que 
alegrias  por  um  todo-nada !  que  suavissima  tranquil- 
lidade  em  tudo  aquillo ! 

Na  tarde,  por  exemplo,  em  que  se  suscitou  a 
questão  da  palavra  —  russo  —  encontraram  as  alegres 
meninas  assumpto  de  sobra  para  gracejar  todo  o  serão 
d'essa^noite. 

D.  Francisca  abancou  á  mesa  de  costura  agasa- 
lhada n'um  chaile,  que  não  se  poderia  dizer  se  era 
preto  por  estar  consideravelmente  desbotado. 

Sophia,  a  mais  espirituosa  traquina  da  casa,  lem- 
brou-se de  dizer  a  D.  Jeronyma  : 

—  O'  ti-ti,  sabe  de  que  cor  é  o  chaile  da  snr.*  D. 
Prancisca  ? 

—  Cala-te,  menina. 

—  O'  ti-ti,  mas  repare. . . 

—  Pois  não  é  preto,  mamã  ?  perguntava  ironica- 
mente Júlia. 


288 


—  Nao  é  tal,  replicava  Sophia.  E'  cor...  de  habi- 
tante da  Rússia. 

Entre  o  bando  das  meninas  de  Yal-de-Rouxinoes 
havia  uma  que  desde  o  principio  mereceu  especial 
consideração  a  D.  Francisca :  era  Ludovina.  As  outras 
tinham  alguma  cousa  de  anjos  maus  para  com  ella  nos 
seus  Ímpetos  d 'alegria.  Quando  a  topavam  em  descaso 
riam-se  e  gracejavam  a  propósito ;  Ludovina  conhecia 
o  lapso  e  calava-se.  O  silencio  da  mais  idosa  das 
discípulas,  silencio  mais  para  recear  do  que  as 
impensadas  expansões  das  outras,  lisonjeava  extre- 
mamente a  vaidade  de  D.  Francisca,  que,  se  não  se 
julgava  infaHivel  em  seus  conhecimentos  litterarios, 
pensava  de  si  para  si  que  tinha  attingido  a  máxima 
sabedoria  entre  as  pessoas  do  seu  sexo. 

Ludovina  não  era  menos  alegre  do  que  as  outras ; 
tinha  mais  um  poucochinho  de  descrição  correspon- 
dente, por  assim  dizer,  á  pequena  differença  da  sua 
idade.  As  outras  tanto  eram  severas  para  com  os  erros 
da  mestra  como  para  com  as  rusticidades  dos  campo- 
nezes;  desfechavam,  quando  o  ensejo  se  ageitava, 
uma  gargalhada  estrepitosa  e  unisona. 

D'aqui  provinha  que  era  também  Loduvina  o  anjo 
querido  da  gente  do  sitio.  Quem  esmolava  os  pobres, 
era  ella  ;  quem  intercedia  a  favor  dos  quinteiros  em 
todos  os  negócios  pendentes  da  vontade  de  Gaspar  da 
Silveira,   era  ella.  Sophia,  especialmente  Sophia,  che- 


289 


gava  a  ser  um  pouco  rude  cora  a  gente  do  campo. 
Se  tinha  de  saltar  um  muro  pequeno,  que  obstruía  a 
passagem,  chamava  um  camponez,  que  ia  passando 
e  dizia-lhe  : 

—  Olá !    abre  a  tua  mão ;   quero   firmar    o    pó   e 
saltar. 


Uma  tarde  sahiram  a  passear  as  quatro  meninas 
de  Yal-de-Rouxinoes.  Gaspar  da  Silveira,  Christina  e 
Jeronyma  ficaram  esperando  na  sala  de  jantar  que 
passasse  o  sol,  para  sahirem  também. 

Foi  o  alegre  rancho  andando,  andando  por  aquellas 
pradarias  fora.  Subiram  o  monte  que  domina  a  igreja. 
Encontraram  uma  pedra  coberta  de  musgo,  que  podia 
servir  de  canapé,  e  sentaram-se.  Decorrida  meia  hora 
começou  a  repicar  o  sino ;  ia  sahir  o  Yiatico.  Yieram 
saltando  pelo  monte  abaixo,  umas  após  outras,  em 
direcção  á  igreja.  Quando  chegaram,  já  a  porta  estava 
aberta  e  reunia-se  gente.  D'um  angulo  do  caminho 
sahiram  dois  homens  que  as  cumprimentaram  respei- 
tosamente. 

Quem  eram  ?  Os  dois  morgados  do  Souto,  o  mor- 
gado velho  e  o  morgado  novo,  como  lá  diziam.  Luiz 
de  Serpa,  o  morgado  novo,  frequentava  em  Coimbra  o 
terceiro  anno  jurídico  e  tinha  vindo  passar  as  ferias 
ao  solar  de  seu  pae.  O  morgado  e  o  filho  cumprimen- 
taram e  passaram ;  as  meninas  entraram  no  templo 
para  fazer  oração. 

19 


290 


* 

* 


Ludovina,  ao  ajoelhar-se,  segredou  á  irmã : 

—  Eeparaste  no  Serpa  ? 

—  Keparei. 

—  Fez-se  corado  ? 

—  Tanto  como'  tu.  . . 

E  Sophia,  o   diabrete  cheio   de  graça  e   de   vida, 
aproveitou  o  ensejo  para  cochichar  ao  ouvido  de  Júlia  : 

—  Dize  a  tua  irmã  que  vá  ver  ao  espelho  da  sa~ 
christia  como  a  romã  é  vermelha. . . 


« 


D'onde  era  que  Ludovina  e  Luiz  de  Serpa  se  co- 
nheciam ? 

Perguntem  aos  pássaros  que  fizeram  o  ninho  na 
mesma  arvore  d'onde  é  que  se  conhecem.;.  Luiz  de 
Serpa  e  Ludovina  nasceram  na  mesma  aldeia.  Viam- 
se,  pelo  menos,  todos  os  domingos  á  hora  da  missa  e 
tinham  vergonha  um  do  outro,  que  é  sempre  como 
as  creanças  principiam  a  amar-se.  .  . 

Elle  encostava-se  ao  pai;  ^Ua  queria  esconder-se 
no  chaile  da  mãe.  E  eram  tão  pequenitos  ainda,  que 
dava  graça  vêl-os  como  dois  pombos  que  se  querem 
beijar  e  têem  medo  um  do  outro.  . . 

Um  dia  o  morgado  novo  do  Souto  faltou  á  missa 


291 


do  domingo.  Correu  que  tinlia  ido  começar  a  sua 
educação  litberaria  no  seminário  de  Coimbra.  Ludovina 
soube  isto  á  porta  da  igreja,  corou,  tremeu  e  atreveu- 
se  a  dizer  á  mfie : 

—  O  Luizinlio  foi  e  não  nos  disse  adeus! 

Pouco  depois  abeirava-se  João  de  Serpa,  o  mor- 
gado velho,  e  motivava  com  estas  razões  a  partida 
precipitada  do  filho: 

—  As  creanças  são  como  as  aves,  morrem-se  d'amo- 
res  pelo  ninho  em  que  nasceram.  O  meu  Luiz  foi  fi- 
cando, ficando,  até  que  não  podia  demorar-se  mais. 
Levei-o  a  Coimbra  e  não  fui  homem  que  não  cho- 
rasse. . .  Quando  lhe  dei  o  ultimo  beijo,  o  pequeno 
conheceu  que  o  tempo  lhe  fugia  e  não  teve  mão  em  si 
que  não  dissesse : 

— Ó   papá,  dê  visitas  á  Lú-lu. 


* 


Foram  correndo  os  annos.  Ludovina  lembrava-se 
ás  vezes  do  morgadinho  do  Souto  e  sentia  saudades. 
O  estudantinho  de  Coimbra  lembrava-se  dos  seus  amo- 
res e  tinha  pena  de  não  ser  rouxinol  para  vir  cantar 
á  janella  do  quarto  de  Ludovina  não  sei  que  trovas 
bonitas . . . 

Quando  elle  vinha  a  ferias,  viam-se  na  igreja.  As 
faces  de  Ludovina  purpurejavam-se  intensamente. 
O  rapaz,  com  certo  denodo  bebido  nos  ares  de  Coim- 
bra, não  se  fartava  de  olhar  e  nem  dava  pela  missa.  O 


292 


morgado  velho  achava  graça  a  isto  e  dizia  a  D.  Jero- 
nyma,  ao  sahir  da  igreja : 

—  O  meu  rapaz  nem  sabe  de  que  cor  era  a  vesti- 
menta ! 

A  irmã  de  Gaspar  da  Silveira  comprehendia-o  e 
sorria-se   também. 

* 

Quando  sahiu  o  Yiatico,  estavam  as  meninas  de 
Yal-de-Kouxinoes  ajoelhadas  na  igreja.  Os  morgados 
do  Souto,  convidados  pelo  repique  do  sino,  iam  en- 
corporados  no  préstito. 

No  momento  em  que  Luiz  de  Serpa  passava,  Lu- 
dovina  levantou  os  olhos  e  encontrou  o  seu  olhar  cora 
o  d'elle. . . 

Sophia  inclinou-se  sobre  o  hombro  da  prima  e 
disse  com  graciosa  zombaria  : 

—  Olha  lá  que  não  vás  perder  a  conta  aos  Padre- 
Nossos. . . 

Seguiram  as  meninas  após  o  préstito.  N'aldeia, 
acompanhar  o  Yiatico  é  um  dever  do  nobre  e  do  cam- 
ponez.  Foram  pois  cantando  o  Bemdicto  até  á  porta 
da  choupana,  que  esperava  a  visita  do  Senhor. 

João  de  Serpa  entrou  com  o  padre  para  deixat 
uma  esmola  á  cabeceira  do  moribundo,  como  eraj 
seu  costume.  O  morgado  novo  entregou  a  lanterna, 
que  levava,  a  um  camponez  e  veio  cumprimentar  aE 
meninas  de  Yal-de-Rouxinoes.  Foi  breve  e  cerimoniosa 
a  entrevista.  Todavia  Luiz  de  Serpa,  ao  separar-se  d( 


293 


Ludovina,   podo   dizer-lhe  baixinho,   de  modo  que  as 
outras  íi Ilidiram ..  .  nSo  ouvir: 

—  A'manhã  de  tarde,  suba  á  Pedra-Aguda  para 
me  vêr  no  Crasto. 

*       * 

Na  tarde  seguinte  sahiram  sós  as  meninas  em  ca- 
minho da  Pedra-Aguda.  Sophia,  Leonor  e  Júlia  sen- 
tarara-se  a  meio  do  monte,  pretextando  fadiga.  Ludo- 
vina foi  subindo,  subindo  até  que  venceu  o  cume. 
No  momento,  porém,  em  que  ia  sentar-se  viu  um 
papel  mettido  n'uma  das  fendas  do  marco,  que  se  le- 
vanta no  alto  da  serra  e  dá  nome  ao  logar.  Compre- 
hendeu  tudo  n'um  momento,  porque  o  coração  adivi- 
nha quando  quer.  Leu.  O  bilhete  dizia  assim : 

«  Por  que  não  nos  havemos  de  vêr  todas  as  tardes  ? 
Acaso  não  será  isso  uma  necessidade  para  o  seu 
coração  ? 

«Suba  á  Pedra-Aguda,  que  eu  subirei  ao  Crasto. 
Yêr-nos-hemos  a  distancia,  mas  ao  menos  vêr-nos- 
hemos.  Eu  escreverei  o  que  quizer  e  deixarei  o  papel 
110  marco.  Faça  o  mesmo,  se  o  seu  coração  não  se 
oppuzer.  » 

Durante  todas  as  ferias  d'esse  anno,  ao  declinar  da 
tarde,  quem  erguia  os  olhos  para  o  marco  da  Pedra- 
Aguda  via  Ludovina,  a  fidalguinha  de  Yal-de-Eouxi- 


294 


noes,  como  diziam  os  pobres,  sentada  a  ler  n'ans  livros 
que  viviam  de  Sonho  e  Esperança,  comquanto  fre- 
quentes vezes  desviasse  a  attenção  do  que  estava 
lendo  para  alongar  o  olhar  pelas  alturas  do  Crasto . . . 
As  outras  meninas,  que  ticavam  sentadas  a  meio 
da  serra,  asseveravam  que  ella  não  lia  ;  os  campo- 
nezes,  ou  por  ignorância  ou  por  intenção,  diziam  que 
a  fidalguinha  de  Yal-de-Rouxinoes  gostava  de  lêr 
sentada  no  alto  da  Pedra-Aguda.  G-aspar  da  Silveira, 
que  perfeitamente  conhecia  o  motivo  dos  passeios 
vespertinos   da   sobrinha,    disse  d'uma  vez  ao  serão : 

—  O  Ludovina  !  olha  lá  se  vais  estragar  a  vista  a 
ler  no  alto  da  Pedra-Aguda. . . 

—  Eu?.. 

—  Anda  lá.  Olha  que  não  vá  algum  caçador  do 
Crasto  tomar-te  por  uma  rola  e  ferir- te. 

—  Os  caçadores  teem  geralmente  boa  vista,  pro- 
feriu Christina  para  valer  á  confusão  de  Ludovina, 
cujas  faces  se  tinham  carminado. 

D.  Jeronyma  ouviu  tudo  e  descerrou  os  lábios  n'um 
sorriso  ligeiro. 


* 
* 


No  alto  da  Pedra-Aguda  estava  todos  os  dias  uma 
carta  de  Luiz  de  Serpa.  Ludovina,  escusado  será 
dizel-o,  escrevia  também  todos  os  dias.  O  morgado 
subia  de  noite  ao  Crasto  e  recolhia  a  mysteriosa  cor- 
respondência,   não   sem  perguntar  ás  flores  do  monte 


295 


que   doces  monólogos  tinlia  suspirado  iraquella  tarde 
a  menina  de  Val-de-Rouxinoes. 

Nos  bilhetes  que  Ludovina  recebia  vinham  ás  vezes 
uns  versos  suaves  e  simples,  que  sobremodo  lhe 
deliciavam  o  coração  amoroso.  Na  véspera  do  dia  em 
que  Luiz  de  Serpa  devia  partir  para  Coimbra,  achou 
ella,  ao  lado  d'uma  carta  de  attribulada  despedida,  um 
álbum,  encadernado  em  folhas  de  hera  habilmente  en- 
nastradas,  em  cujas  paginas  estavam  escriptas  umas 
canções  que  ressumbravam  amor  e  saudade...  Uma 
d'ellas  dizia  assim : 

Revoltos  os  elementos 
Contra  o  império  do  Amor, 
Granizes,  mares  e  ventos 
Silvam  medonho  fragor. 

Foge  o  Amor  espavorido 
Do  coro  mephistophehco. 
Lucta,  resiste.  .  .  é  vencido 
No  meio  do  estrondo  bellico. 

Quebra-lhe  o  vento  uma  aza, 
Solta  as  pennas  uma  a  uma. 
Foi  cahir  em  cada  casa 
Do  mundo  inteiro  uma  pluma. 

D'então  Amor  tem  apenas 
Só  uma  aza,  e  é  veloz! 
Mas  cahiram  tantas  pennas, 
Que  ha  penas  p'ra  todos  nós. . .» 

Ainda  por  noite,  á  hora  em  que  Ludovina  conche- 
gava  ao  coração  o   álbum  de  folhas  de  hera,  ia  ^alo- 


296 


pando  pela  estrada  um  cavalleiro  que  parecia  querer 
fugir  depressa  ao  encanto  que  o  prendia  áquella 
aldeia.  \ 

Era  Luiz  de  Serpa  que  partia. 


Não  permitte  a  Índole  d'este  livro  que  me  demore 
por  longo  tempo  a  colorir  os  episódios  de  tão  singela 
narrativa.  Comprehendem-se  de  sobra  as  saudades  que 
dimanavam  em  lagrimas  furtivas  dos  olhos  de  Ludo- 
vina  durante  os  dous  últimos  annos  da  formatura  de 
Luiz  de  Serpa,  e  as  tristezas  que  o  namorado  acadé- 
mico recatava  no  intimo  do  coração,  fugindo  de 
bandear-se  com  os  condiscípulos  menos  amorosos  e 
menos  tristes  do  que  elle. 

Quando  o  morgado  do  Souto  entrou  n'aldeia  para 
não  voltar  mais  a  Coimbra,  correu  com  insistência  o 
boato  do  seu  próximo  casamento  com  a  fidalguinha 
de  Yal-de-Rouxinoes.  O  certo  é  que  o  boato  tinha 
razão  de  ser;  em  casa  de  Gaspar  da  Silveira  anda- 
vam as  meninas  todas  afadigadas  a  preparar  o  enxo- 
val de  Ludovina. 


*        * 


Mais   animados   ainda   eram  os  serões  depois  que 
se  trabalhava  em  apercebimentos  de  noivado.  Na  mesa 


297 


onde  as  meninas  costuravam  n'umas  cambraias  e 
sedas  de  subido  preço,  que  segredar  de  palavras 
mysteriosasl  que  gargalhadas  estridulas!  que  ale- 
gria a  envenenar  um  chiste  apontado  á  infallibilidada 
litteraria  da  velha  mestra ! 

Não  acabava  o  serão  sem  o  piano  responder  com 
notas  dulcissimas  aos  júbilos  que  alvoroçavam  toda  a 
casa.  Tinha-se  alterado  o  antigo  regime.  Até  então 
havia  musica  só  duas  vezes  por  semana;  mas  desde 
que  se  fallava  em  casamento,  a  felicidade  de  Ludo- 
vina  precisava  de  espraiar-se  em  maviosos  concertos. 
Era  ella  quem,  terminado  o  serão,  ia  sentar- se  ao 
piano  e  fazia  vibrar  as  teclas  n'um  hjmno  alegre 
como  alvoradas  de  rouxinoes.  Sophia,  em  ouvindo  os 
prelúdios  d'uma  valsa,  não  tinha  mão  na  sua  alegria  que 
não  enleiasse  o  braço  na  cintura  de  Leonor  ou  de 
Júlia  e  não  levasse  uma  ou  outra  pela  sala  adeaute 
em  rodopio  vertiginoso.  Gaspar  da  Silveira  que  deveras 
se  sentia  contente,  como  se  lhe  casasse  uma  filha,  di- 
zia todas  as  noites  em  que  Sophia  valsava  : 

—  Este  beija-flor  é  infatigável! 

* 

Chegava  finalmente  o  dia  -tão  anciosamente  espe- 
rado em  toda  a  aldeia.  O  casamento  devia  celebrar-se 
ao  romper  da  manhã.  Ninguém  se  deitou  na  casa  de 
Val-de-Kouxinoes.  Estavam  todas  as  meninas  á  volta 
da  mesa  de  costura  completando  o  véo  da  noiva,  que^ 


298 


era  branco  como  as  neves  que,  ao  chegar  o  inverno, 
cobrem  os  cimos  da  Pedra- Aguda  e  do  Crasto. 

— Acabem  com  isso  e  vão  passar  pelo  sorano,  di- 
zia de  instante  a  instante  Gaspar  da  Silveira. 

E  de  todas  as  vezes  lhe  respondia  a  mesma  can- 
ceira  e  o  mesmo  esvoaçar  da  agulha  sobre  as  telas 
delicadas. 

Ás  duas  horas  da  madrugada  principiou  a  noiva 
a  toucar-se.  Que  marulhar  de  braços,  á  volta  d'ella,  a 
offerecerem-lhe  um  alfinete,  uma  jóia,  uma  flor!  Gas- 
par da  Silveira  andava  a  passear  na  sala  das  visitas 
e  dizia  de  si  para  si : 

—  Ainda  ha  quem  pragueje  contra  o  casamento  ou 
quem  queira  andar  a  viajar  por  esse  mundo  em  com- 
panhia da  sua. . .  mala  ! 

Estava  longe  a  primeira  aurora,  quando  se  ouvi- 
ram uns  sons  longínquos  de  flautas  e  rabecas.  Era 
o  sol-e-dó  dos  camponezes  que  vinha  acompanhando  o 
noivo  por  aquellas  serras  fora.  Então  ó  que  se  alvoro- 
tou n'um  Ímpeto  de  alegria  o  quarto  de  Ludovina.  So- 
phia,  o  beija-flôr,  apanhou  graciosamente  o  sendal  e 
começou  a  mesurar  pelo  quarto  adeante  um  minuete  que 
foi  saudado  com  palmas  e  gargalhadas  estrepitosas  e 
longas . . . 


Ao  romper  da  manhã  sabiam  os  noivos  de  Yal-de- 
Rouxinoes.  Não  se  conheciam  ainda  bem  as  pessoas 


í 


299 


áquella  meia-claridade  que  procede  o  dia,  NjIo  obs- 
tante, o  véo  de  Ludovina,  fluctuando  livremente,  de- 
nunciava a  noiva  entre  a  turba-multa  de  toda  a  gente 
do.  sitio  que  tinha  vindo,  com  a  sua  philarmonica,  a 
acompanhar  o  noivo,  segundo  o  estilo. 

Gaspar  da  Silveira,  que  ia  na  rectaguarda  do  prés- 
tito cora  o  pae  do  noivo  e  com  não  sei  quantos  outros 
morgados,  n'um  momento  em  que  o  vóo  de  Ludovina 
se  alongara  fluctuando,  parou,  deitou  a  mão  ao  braço 
do  morgado  velho  do  Souto  e  apostrophou : 

—  O  seu  íilho  leva  um  anjo !  Veja  bera  as  azas 
brancas ... 

Yão  passados  trez  annos  depois  do  casaraento  de 
Ludovina. 

Leonor,  Júlia  e  Sophia  são  ainda  outros  tantos  an- 
jos que  enchera  de  musica  e  alegria  a  casa  de  Yal- 
de-Rouxinoes. 

Júlia,  o  lirio  rairaoso  que  estreraece  ao  raenor  beijo 
d'uma  viração  suave,  é  a  actual  ledôra  de  Yal-de-Rou- 
xinoes,  a  que  lê,  depois  de  jantar,  os  periódicos  rece- 
bidos do  Porto,  desde  que  a  vista  de  G-aspar  da  Sil- 
veira o  obrigou  a  ter  óculos,  como  elle  diz,  referindo- 
se  aos  bonitos  olhos  negros  da  sobrinha.  . . 

Leonor,  que  tera  alguraa  cousa  de  uraa  palraeira  a 
remirar-se  n'um  lago  plácido,  passa  as  raanhãs  deante 
do  cavallete  a  retocar  os  seus  quadros  cora  uraa  pa- 
ciência e  um  enthusiasrao  de  verdadeiro  pintor. 


300 


Sophia  borboleteia  do  bastidor  para  o  piano  e  do 
piano  para  a  pequenina  mesa  onde  recorta  as  pétalas 
de  umas  flores  de  seda  e  papel,  que  lhe  saiera  das 
mãos  coloridas  e  bonitas  como  se  nascessem  no  prado. 

As  vezes,  quando  D.  Francisca  se  aproxima,  lá 
vem  uma  ironia,  um  epigramma,  um  chiste... 

Gaspar  da  Silveira,  se  está  perto,  costuma  dizer: 

—  Diabrete!  São  os  espinhos...  das  tuas  flores!' 
E  elle,  Gaspar  da  Silveira  ? 

Yai-se  deixando  ficar  na  sua  cadeira  de  braços  to- 
das as  tardes  e  diz  com  alegre  ironia: 

—  O  Christina,  ó  Jeronyma,  vocês  não  acham 
que  temos  passeado  muito?  Fiquemos  no  quartel-ge- 
neral  e  deixemos  ir  as  guardas  avançadas  a  ver  se 
descobrem  caçadores  no  Crasto.  Ide,  raparigas,  ide  vós. 

Quando  Ludovina,  a  morgadinha  do  Souto,  visita 
a  casa  de  Yal-de-Eouxinoes,  Gaspar  da  Silveira  senta-a 
nos  joelhos  e  diz-lhe: 

—  E  as  tuas  azas  brancas  ? 

—  Ainda  as  tem,  responde  Luiz  de  Serpa. 

—  Ainda  ? 

—  Ainda,  porque  continua  a  ser. . .  um  anjo- 


o  EPISODIO  DO  BURRlxNHO 


O  burrinho  morreu. 

J.  César  Machado, 

O  festejado  auctor  dos  «  Quadros  do  campo  e  da 
cidade»  não  poz  duvida  em  pegar  da  penna  e  historiar 
o  passamento  doloroso  do  burrinho  branco  no  sitio 
das  Marés. 

Hoífmann  não  usou  de  rebuços  para  levantar  o 
gato  Murr  ao  apogeu  da  gloria  e  o  nome  do  contista 
allemão  associou-se,  por  assim  dizer,  ao  nome  do  pobre 
animal  que  lhe  foi  amigo  e  companheiro  nos  últimos 
aunos  da  vida. 

Confesso  que  não  sympathiso  cora  a  estupidez  do 
gato,  do  gato  que  tem  tanto  de  bronco  como  de  volu- 
ptuoso, —  mas  declaro  que  me  captiva  o  burrinho  tí- 
mido, humilde  e  quasi  tão  dedicado  como  o  cão.  Cer- 
cam-me,  porém,  certos  receios  de  ir  fallar  de  um  pobre 
burrinho,  que  não  valia  trez  moedas  e  não  tinha  nada 
de  bonito. . . 


302 


Se  eu  houvesse  de  fallar  de  um  cavallo  árabe,  ura  ca- 
vallo  de  raça,  que  se  deixa  dominar  generoso  pelos 
caprichos  d'uma  amasona  de  vestido  roçagante,  como 
a  Margarida  Laroque  do  =i  Romance  d'tim  rapaz  po- 
hre==^^  de  certo  me  não  veria  agora  salteado  d'estes 
escrúpulos. 

O  progresso,  como  hoje  se  diz,  baniu  o  jumenti- 
nho  e  deu  importância  ao  cavallo.  O  jumentinho  é 
mais  solícito,  rçais  trabalhador  e  talvez  não  menos 
amigo  do  que  o  cavallo ;  mas  o  cavallo  é  mais  fidalgo 
e  pode  chegar  a  ser  cônsul  quando  dá  em  mãos  como 
as  de  Calígula. 


Moins  vif,  moins  valeureux,  moins  beau  que  le  chevat 
L'âne  est  son  suppléant  et  noii  pas  son  rival, 


escreveu  Delille,  ao  mesmo  tempo  philosopho  e 
poeta. 

Não  quero  roubar  a  primasia  ao  cavallo,  mas  não 
queria  também  que  se  fixassem  n'elle  as  attenções  to- 
das. E  costume  dizer-se  que  o  jumento  ó  estúpido, 
mas  não  é  tanto  como  parece.  O  pobre  animal  não  é 
rombo,  nem  esquecido,  nem  indifferente.  Percebe  que 
o  seu  dono  está  em  miséria  e  vem  trazer  cuidadoso 
á  feira  a  carga  que  lhe  puzeram,  embora  tenha  de 
marinhar  costa  arriba  pelo  mais  trabalhoso  das  serras 
6  dos  atalhos. 

Se  o  dono  se  perdeu  no  tumulto  das  praças,  vai 
seguindo  caminho  e  não  precisa  de  tio  d'Ariadna : 


303 


Reconnait  son  chemin,  son  maitre  et  son  hospice, 

como  também  observou  Delille. 

Quando  alguém  o  toma  de  rédea,  sujeita-se  e  hu- 
milha-se,  não  sem  festejar  muitas  vezes  quem  o  apri- 
sionou. O  cavallo  é  mais  impaciente  e,  se  6  generoso, 
quer  mostrar  que  podia  deixar  de  o  ser. . . 

A  missão  do  cavallo  é  pois  mais  nobre.  O  cavallo 
tem  mais  perspicácia,  mais  valentia,  mais  elegância  de 
formas.  O  jumentinho  é  serviçal,  cuidadoso  e  paciente. 
O  cavallo  nasceu  para  as  batalíias,  para  os  torneios  e 
para  as  caçadas.  O  jumentinho  nasceu  para  o  trabalho 
inglório  e  obscuro  das  aldeias. 

O  dominio  do  cavallo  vai,  porém,  a  diminuir.  De- 
pois da  descoberta  do  vapor,  o  cavallo  reconhece-se 
inferior  á  locomotiva.  A  necessidade  do  jumentinho 
data  de  longe  e  permanecerá  em  quanto  no  mundo 
houver  serras  cortadas  a  pique,  por  onde  elle  se  pen- 
dura paciente,  com  grave  risco  de  vida. 

Refere  a  Biblia  que  Jesus  Christo  entrara  em  Jeru- 
salém montado  n'um  jumentinho.  Diz  o  texto:  Ite  in 
castelhim,  qnod  contra  vos  est,  et  statini  invenietis 
asinam  alUgatam  et  pidlum  cum  ea :  solvite  et  addu- 
cite  mihi;  palavras  que  Jesus  Cristo  dirigiu  aos  após- 
tolos, quando  se  preparava  para  entrar  na  cidade.  So- 
bre a  interpretação  d'esta  passagem  divergem  as  opi- 
niões, por  isso  que  falia  de  jumenta  e  jumentinho. 
S.  Jeronymo,  porém,  é  de  parecer  que  Jesus  Christo 
entrou  em  Jerusalém  montando  o  jumentinho. 

Diz  a  tradição  que  fallara  o  cavallo  d'Achilles,  se- 


304 


gnndo  refere  Grocio,  mas  também  nos  diz  a  Biblia,  a 
respeito  da  barrinha  de  Balaam,  que  —  aperuit  Domi- 
nus  os  asinae  et  lúcida  est, — apesar  de  sua  humilde 
condição,  em  relação  ao  cavallo. 

Teve  Alexandre  Magno  o  seu  Bucéphalo,  cavallo 
de  valentia  tal,  que  foi  digno  de  gemer  debaixo  dos 
acicates  doirados  do  grande  conquistador,  mas  vamos 
encontrar  Horácio,  de  jornada  para  Tarento,  bifurcado 
n'um  burrinho  cuja  anca  vergava  com  o  peso  da 
mala  e  do  cavalleiro.  Escreve  o  poeta  venusino: 

, .  ,Nune  mihi  curto 
Ire  licet  inido,  vel,  si  libet  usque  Tarentum, 
Mantiea  eui  lumbos  onere  ulcerei,  atque  eques  armos. 

Sem  desconsiderarmos  a  fidalguia  do  cavallo, 
attentemos  com  bons  olhos  em  qualquer  burrinho 
chouteiro,  que  pode  conduzir  Horácio  para  Tarento  e 
Garrett  para  Santarém. 

O  jumentinho  que  figura  n'este  episodio  interessa- 
se  affectuosamente  pelas  pessoas  da  casa  e  chega  a 
morrer  de  saudades...  De  saudades!  Ha  tantos  ho- 
mens que  nem  sequer  as  sentiram  nunca ! 

Se  se  tomasse  o  jumentinho  á  conta  de  estúpido  e 
indifferente,  pareceria  haver  falta  de  verdade  na  his- 
toria que  vamos  contai*. 

O  cavallo  conhece  a  mão  amiga  que  lhe  poisou  na 
anca,  6  certo,  mas  não  consegue  imitar  a  dedicação 
do  jumentinho,  e  na  vingança  attinge  a  ferocidade 
indomável  do  leão. 


305 


Basta  uni  exemplo.  E'  um  caso  referido  pela  Li- 
berte^ periódico  francez,  de  25  de  março  de  1870 : 

'^Yjngança  d'dm  cavallo  —  É  sabido  que  os  cavallos 
sào  susceptiveis  d'affeição  ou  de  ódio,  que  guardam  a 
lembrança  dos  mimos  que  recebem  e  que  poucas  ve- 
zes se  esquecem  dos  maus  tratos  que  lhes  dão,  apro- 
veitando-se  sempre  da  occasião  opportuna  da  vin- 
gança. 

«Ahi  vae  um  novo  exemplo. 

«Um  carreteiro  chamado  R. . .,  de  trinta  annos  de 
idade,  ao  serviço  da  companhia  geral  dos  omnibus, 
tinha  maltratado  seriamente  um  cavallo  que  puxava 
a  sua  carroça. 

«  De  volta  á  estrebaria  do  deposito,  na  avenida  de 
Orleans,  em  Montrouge,  o  cavallo,  notando  que  havia 
muita  gente,  conservou-se  tranquillo.  A'  noite,  porém, 
ás  nove  horas,  vendo  que  o  carreteiro  vinha  só,  cahiu 
sobre  elle,  agarrou-o  pelo  ventre  com  os  dentes,  dei- 
tou-o  por  terra,  e  furiosamente  o  escouceou. 

«Aos  gritos  d'este  desgraçado,  correram  em  soc- 
corro  alguns  cocheiros,  e  foi  a  muito  custo  que  o 
puderam  livrar.  Estava  coberto  de  contusões  e  tinha 
trez  dedos  da  mão  esmigalhados. 

Depois  de  lhe  serem  prestados  os  primeiros  soccor- 
ros,  conduziram-n'o  ao  hospital  Cochin.» 

Que  animal  haverá  mais  dedicado  e  mais  leal  do 
que  o  burrico  em  que  monta  o  Martinho  da  Horta, 
quando  volta  das  feiras  e  das  romarias  ? 

20 


306 


O  Martinho  é  o  Sileno  do  sirio,  vem  sempre  a 
cahir  de  bêbedo,  e  o  burrinho,  com  receio  de  que  o 
dono  se  despenhe  e  magoe,  caminha  aos  zig-zagues 
pela  estrada  fofa  a  procurar  equilibral-o  com  estes 
movimentos  desencontrados.  A.s  vezes  o  Martinho 
zanga-se  com  elle  e  castiga-o  desapiedadamente  sem 
que  para  isso  precise  de  estar  embriagado.  O  burrico 
contenta-se  com  mostrar-se  resentido  e  metter-se  a  ura 
canto  na  corte. . . 

Posto  isto,  venha  finalmente  o  episodio. 


A  noite  é  d'inverno,  cachopas  d' aldeia 

Sentai-vos  ao  lar. 
Do  pobre  engeitado  que  errante  vagaea 
A  historia  singela  desejo  contar. 
Topei-o  na  serra  tremendo  de  frio, 
Sósinho,  perdido,  tão  triste,  a  chorar! 
Chamei-o.  escutou-me;  tremia,  cobri-o.. 
Palavras  que  disse  vos  quero  lembrar  I 


«  Ser  engeitado  e  mendigol 
Não  ter  a  gente  um  abrigo, 
Ir  de  caminho  em  caminho 
Quer  de  noite  ou  quer  de  dia 
Sem  p3o. . .  e  sem  companhia  ! 
Chegar  ao  cimo  do  monte 
E  vêr  que  o  mundo  é  tamanhol 
Sempre  sósinho  e  pedindo 
Vou  caminhando,  vou  indo 
Como  se  eu  fosse  um  estranho 
Que  não  conhece  ninguém! 


307 


Do  noite  sento-nie  o  scismo  ; 
Lenibra-mo  então...  minha  mâo, 
Nào  a  conheci  no  mundo, 
Nunca  tive  um  beijo  d'ella. 
Quem  sabe  se  a  sua  alma 
Me  sorri  n'alguma  cstrella, 
Que  mais  saudosa  scintilla? 


Seria  triste  ou  alegre  ? 
Teria  negros  cabellos  ? 
Bocca  pequena  e  de  rosas  ? 
Faces  lisas  e  mimosas  ? 
Grandes  os  olhos  e  bellos  ? 
Seria  pobre  ou  senhora  ? 
Seria  rica  ou  mendiga  ? 
Eu  não  tenho  quem  m'o  diga  ! 


Hontem  no  paço  dos  Paivas 
Eram  annos  da  morgada. 
E  eu  das  sombras  da  floresta 
Via  a  casa  illuminada, 
Bonita,  linda,  asseada, 
Toda  luz  e  toda  festa... 


Abriram  quantas  janellas 
A  casa  dos  Paivas  tem. 
Lá  dentro  havia  senhoras, 
Todas  cobertas  de  rosas, 
Tão  lindas  e  tão  formosas  ! 
Quem  sabe  se  uma  d'aquellas 
Era,  talvez,  minha  mãe  ? 


308 


Quem  sabe. . .  E  bailar  na  dança 
A  estontear  d' alegria 
Sem  se  lembrar  da  creança 
Que  mandou  expor  um  dia 
Sobre  as  pedras  d'um  caminho 
Para  que  alguém  que  passasse 
Lhe  desse  conforto  e  ninho  ! 


Passou  um  pobre,  um  mendigo, 
Que  me  quiz  levar  comsigo. 
Oh  !  e  salvou-me  da  morte 
O  tio  Ignacio,  o  coitado, 
Que  era  também  desgraçado.. 


Yiu-me  frio  e  quasi  morto, 
Aconchegou-me  no  seio 
E  foi-me  poisar  nos  braços 
Da  sua  neta  formosa, 
Que  era  o  seu  único  esteio, 
O  seu  bordão,  seu  conforto  ! 
Pobre  irmã  !  ai  pobre  Rosa ! 


Tenho  saudades  agora 
Da  nossa  pobre  cabana. » 
Calou-se  e  n'isto  dimana 
Dos  seus  olhos  ennublados 
O  pranto  triste  que  chora 
Quem  tem  os  dias  contados 
Pelos  ais  de  cada  hora. 


309 


Concentrou-se  alguns  momentos, 
Como  a  pedir  á  memoria 
Os  traídos  da  sua  historia  : 


«Sempre  comnosco  foi  mesquinha  a  sorte 
Era  uma  casa  pobre,  —  apenas  tinha 
Uma  sala,  uma  alcova,  uma  cosinha; 
E  por  cortejo  ao  nosso  pardieiro 

Coroado  de  colmos, 

Uma  pequena  corte 

Ao  centro  do  quinteiro 

N"o  meio  de  dois  olmos. 


Dormia  o  tio  Ignacio  na  saleta, 

Quasi  á  porta  d'alcôva, 
Como  para  melhor  guardar  a  neta. 
Que  repoisava  o  corpo  delicado 
Sobre  uma  enxerga  nova, 
N'um  leito  envernizado. 


Era  a  cama  melhor  da  casa  inteira ! 
Dormia  a  nossa  Rosa 
Em  leito  de  princeza  ! 
Pois  era  tão  formosa  I 
Um  mimo  de  belleza, .. 


Eu  tinha...  o  preguiceiro 
Onde  dormia,  e  como  um  rei...  talvez  I 
Que  um  resto  da  fogueira 
Ficava  na  lareira 
Como  a  aquecer-me  os  pés. 


310 


Tinha  comprado  o  velho  um  jumentinho, 
Na  hora  em  que  melhor  sorriu  a  sorte. 
Quando  me  presentia  abrir-lhe  a  corte, 
Era  tal  o  prazer  do  animalzinho, 
Tal  era  emfim  o  seu  contentamento, 
Que  eu  nEo  sei  se  elle  tinha  entendimento 


E  que  valia  ao  velho  sem  provento 
Um  burrinho  a  comer  a  toda  a  hora  ? 

Perguntareis  agora. 
Valeu  muito;  que  o  pobre  do  j amento, 

Mal  chegava  setembro. 
Vinha  á  cidade  todas  as  manhãs 
Carregado  com  cestos  de  maçãs. 
Atrás  da  nossa  Rosa,  bem  me  lembro  1 


Quando  de  noite  ella  voltava  á  aldeia, 

Levava  da  cidade 
Algum  vintém  com  que  fazer  a  ceia. 

E  que  felicidade  1 
Este  negocio  dava  algum  infresse. 
Pois  se  era  nosso  o  lucro  que  viesse  ! 


Um  dia. . .  voltou  só  o  jumentinho, 
D'orelha  baixa  o  cheio  d'azcdumo, 
Porque  Rosa,  bem  fora  do  costumo. 
Não  o  veio  a  guardar  pelo  caminho  ! 


Larga  o  velho  a  chorar  muito  o  tão  alto. 
Que  poz  a  freguezia  cm  sobresalto. 


311 


Desditosa  velhice  ! 
De  facto  nâo  voltou  a  nossa  Rosa  ; 

E  muita  gente  disso 
Que  todo  o  mal  vinha  de  sor  formosa, 


E  que  faria  o  pobre  do  jumento '? 

Estirou-se  na  corte, 
Como  que  se  tivesse  entendimento 

E  desejasse  a  morte  ! 
Pobre  burrinho,  nunca  mais  comeu  ! 
— « E  depois  o  que  fez  ?  » 

—  Depois...  morreu! 


«  O  tio  Ignacio  inda  durou  seis  mczes, 

Ralado  de  saudade 

E  cheio  de  revezes  ! 
A  final  succumbiu  o  pobre  amigo  ! 
Fitando  em  mim  os  olhos  já  sem  brilho, 
Chamou-me  e  disse  :  —  «  Amei-te  como  a  filho 
E  pésa-me  deixar-te  sem  abrigo. 
Devem-se  os  alugueis  ao  senhorio. 
Vende  tudo,  mas  paga  ;  não  lh'os  negues. 
Depois  irás  soffrendo  a  fome  e  o  frio 
Té  onde  a  sorte  queira  que  tu  chegues. . . 
Se  vires  algum  dia  a  nossa  Rosa, 
Quero  que  tu  lhe  dês  o  meu  perdão. 
Era  tão  innocente  e  tão  formosa, 
Que  se  deixou  cahir  na  perdição  ! 
E  dize-lhe  que,  á  volta  da  cidade, 
Morrera  o  jumentinho  ..  de  saudade!  —  » 


312 


Disse  e  passou.  Eu  fiquei  só  no  mundo, 
Como  á  beira  do  mar,  sem  vêr-lhe  o  fundo.  » 


Não  mais  mo  contara. . . 

Termina  o  serão. 
Passou  a  tormenta  ;  metter  a  caminho. 
Que  sempre  na  mente  tenhaes  este  conto 
Do  triste  engeitado,  do  pobre  burrinho.. . 


FIM  DO   1.0  VOLUME 


índice 


Pag. 

I  —  o  ninho  das  andorinhas 5 

II  —  Um  anjo 25 

III  —  Doida  pelas  rosas       ,.:....  3Õ 

IV  —  Morrer  a  valsar 45 

V  —  Na  véspera  de  S.  João 53 

VI  —  A  folha  verde 63 

VII  —  A  lenda  da  barca 71 

VIII  —  As  duas  fitas 81 

IX  — No  Bussaco 107 

X  — O  morgado  do  Urgal 129 

XI  —  Os  sinos  d' Alpendurada l-tõ 

XII  —  Historia  azul 157 

XIII  —  A  beira  d'um  berço 173 

XIV  —  O  catre  do  bispo 187 

XV  —  Herbario. .  .  d' uma  só  flor 205 

XVI  —  Armandinha 219 

XVII  —  As  flores 225 

XVIII  —  Uma  pagina  triste 267 

XIX  —  Azas  brancas 271 

XX  —  O  episodio  do  burrinho 301 


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9261 

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Pimentel,   Alberto 
Seara  em  flor 


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