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i III III! Biiai milita ■iiiãiãiãi:; :::":!;!;;;
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ALBERTO PIMENTEL
Seara em flor
VOLUME J
o verde da mocidade
pouco e leve tempo dura;
e aquella alegre verdura,
vista depois de outra idade,
já parece sombra escura.
D. Francisco M.vkuel — Obras métricas.
LISBOA
LIVRARIA EDITORA
VIUVA TAVARES CAROOSO
3 — LABQO DE CAMÕKS — 6
IQO5
A
\]
1
Seara em flor
. ^ - ^i
N5 '
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O Auctor em 1869
ALBERTO PIMENTEL
Seara em flor
VOLUME I
o verde da mocidade
pouco e leve tempo dura ;
e aquella alegro verdura,
visía despi ii do outra idade,
já parece sombra escura.
I). Francisco -Aíani-kl -Ofiras nií-fjicas.
LISBOA
LIVRARIA EDITORA
VIU\/A TAVARES CARDOSO
5 — LARQO DE CAMÕES — 6
1905
Typ. a vapor da Emproza Littcraria e Typographi»:;!
178, Rua de D. Tcdro, 184 — Porto
pa
V.l
A
TORRE DOS CLÉRIGOS
Arrojoifa bitola dos pensamentos altos e inipjilsos revolitciona-
tíos que por vezes agitam o cérebro e o coração do Porto, ininlia
/erra natal ; balisa formidável que de longe orientas os navegan-
tes e indicas a cidade aos olhos saudosos que a procuram n^unui
<jvidez nostálgica de pátria ; dominador campanário que durante
vinte annos regeste a minha vida, florente de mocidade, com a t7ia
voz lesoante e solemne badalando lentamente as horas de cada dia ;
gigante de pedra que pela tua audaciosa altura me convidaste a
subir d região dos sonhos e das chimcras, pela tua solida muscula-
17/ ra me aconselhaste a ser perseverante e firme, pela tua elegância
esculptural puzeste no meu cihiriío a primeira noção do poder do
homem na expressão linear das concepções artísticas :
cu te ofereço por gratidão este li-
vro, que tu viste nascei' outr'' ora, e
cobriste Id de cima com a tua longa
sombra protectora, ó cinzento roble
arborisado em granito, a cuja raiz
labuta ttma cidade activa, que me
ensinou a trabalhar sem desfdlle-
cimcntos nem intermittencias.
Lisboa — iQoS
PREFACIO
K osía uma segunda edição doR meus i)ri-
meiros ensaios em prosa, agora reunidos sob
um titulo commum.
Reuni-os e corrigi apenas uma ou outra
l)hrase mais ingénua, cerceei na linguagem al-
guma aresta mais viva ; mas não toquei na
traça geral da composição, que era para mim
sagrada, embora fosse defeituosa e inexperiente.
No desenho de uma obi-a liiteraria reside,
prin-cipalmente, a individualidade psychica do
auclor. \\ toda a sua alma, n'um determinado
jnomento biographico, é toda a sua physionomia
inteilectual, trouxa ou pujante, saudável ou ra-
chitica, antiga ou moderna, que se retrata ali.
Esse desenho insjjira respeito ao seu próprio
auctor, que se vô reproduzido n'um espelho se-
vero e que, para esíimular-se e corrigir-se, a si
mesmo se vai observando, como em photogra-
[vliias que assignalassem as diiíbrentes oi)Ocas
da sua existência.
N'isso não ha pôr mão relbi-madora ; seria
um desacato, quasi um sacrilégio.
Limpar a tela, sacudi i^-hie o pó, desempas-
tiii as mancíias do tem|)0 não é alterar o dQ<o-
iiho, antes aclaral-o para que melhor se possa
reconhecer na sua primitiva identidade.
Os quatro livros, que se fundiram n'este
único, representam para mim a madrugada da
vida litteraria, a alegria de compor, a pressa
de publicar, a anciã de vencer. Elles nào tive-
ram maior publico que o dos estudantes do meu
tempo e da minha terra, dispostos ao favor áii
camaradagem e, portanto, ao applauso immere-
cido. Tão verdes e generosos como eu próprio,
faltava-lhes a competência para condemnar o,
sobretudo, faltava-lhes a vontade de fazel-o.
Um ou outro julgador idóneo, a cujas mãos
alguns d'esses livrinhos foram parar, preferi-
ra, deante das primicias de um novo, usar da
longanimidade que fecha os olhos, não por os
trazer vendados como a justiça implacável, mas
para absolver e dar estimulo.
Castilho e Camillo acolheram-me com |)a-
ternal bondade ; Júlio César Machado mandou-
me carinhosas palavras ; de Coimbra, os ra|)a-
zes da Folha foram tão amoraveis para mim
como os estudantes do Porto.
Adeus timidez d.e principiante ; adeus medo
do publico, pavor da critica ; metti-me denoda-
damente ao caminho, cantando, como os intré-
pidos camponezes minhotos que não sabem tra-
balhar senão com uma canção a esvoaçar-lhes
nos labi, s.
Foi bom ? foi mau ? Foi o destino. Sinto a
consciência lavada e o animo alegre. Amo o
trabalho como uma fonte de consolações, que
pagam bem os desgostos da protlssão das let-
tras. Um ódio pode sahir-me á estrada como
salteador ; deixo-o despejar o seu arcabuz e sigo
na plácida consciência de que o não mereci.
Outro caminheiro abraca-me cora bondade ;
agradeço-lhe a benevolência e prosigo com igual
placidez. Devo á natureza o favor de desconhe-
cer a ambição, a inveja e a vinganra ; serena
a alma, o ti*abalho não pesa, ó mais uma can-
ção do que uma cruz.
Frederico Laranjo, escrevendo a respeito
de alguns dos meus primeiros livros, dizia que
elles se faziam querer pelo «seu ar mocinho».
A apreciação,' comquanto indulgente, ex[)h'ca
tudo o que n'esses livros i)ode haver de estimá-
vel : a mocidade.
.
Peciuenos volumes em 16, elles levavam a
outros corações juvenis a flor da primeira
seara do meu espirito, a ingenuidade, o senti-
mento espontâneo, a impericia inevitável n'uma
estreia, o contentamento de ver florir a prima-
vera sobre a messe que se cultivou afanosa-
mente.
Estas palavras bastam a explicar o titulo
que serve de traço de união aos quatro volu-
mesinhos agora reimpressos.
Dál-os novamente ao prélo não é uma vai-
dade ser,òdia, mas apenas um como desejo de
renascença, de regresso ao passado, que os
.velhos comprehendem muito bem, e os moços
hão de comprehender algum dia. Lá adverte o
Apocahjpse: « Não te maravilhes de eu te dizer:
laiporta-vos nascer outra vez.» Sim, importa
renascer, ao menos imaginariamente, para ca-
minhar com firmeza e tranquillidade para o
extremo cabo da vida. A saudade é um goso
dulcilicante, apenas obscurecido pela sombra
'|ue, no conceito de D. Francisco Manuel, om-
pallidece as visões retrospectivas. Comtudo,
es.sa mesma sombra é suaye ; não amedronta.'
í
\
somente convida a evocar o passado, para re-
vi vel-o.
E o que eu faço nos dois volumes da «Seara
em flor».
E assim ficam plenamente justificados, creio
il eu, tanto a apparição d'esta obra como o titulo
que lhe puz.
Lisboa,
Janeiro de 19(]5.
Alberto Pimentel.
17
' Ricíirdiíia. Desejo que meu tio determine dia para o
casamento. . .
— Sempre se realisa então, senhor morpido?
— Duvidas só as podia ter o padre Dominf!;os, que
6 um espirito fraco e vacillante ; — um homem que níío
derruba um ninho !
— São modos .de ver — replicou o capellão.
— Pois vá-me lá — continuou o morgado. — Vá-
me lá. Diga a meu tio que não posso ir eu mesmo,
porque esta barafunda que revolve toda a casa está
pedindo o meu constante vigiar. Tome o seu café e vá.
— Irei, senhor morgado, irei — respondeu o padre,
erguendo-se da mesa do jantar.
IV
Foi padre Domingos ao solar dos Xoronhas desem-
penhar a missão de que o incumbira o morgado de
Santa Eulália. Foi e encontrou Ricardina sentada
n'um dos bancos de pedra, que guarneciam o lago do
jardim. Tinha a desditosa menina o rosto escondido
entre as mãos e via-se-lhe arquejar o seio violenta-
mente. Padre Domingos queria fallar-lhe e não ousa-
va. Ricardina, porém, como ouvisse agitarem-se as fo-
I lhas de uma roseira próxima, a que se tinha encostado o
capellão, ergueu subitamente a cabeça. Deu com os
olhos chorosos em padre Domingos e exclamou :
— Ainda bem que não 6 meu pae ! Posso chorar
á vontade . . .
18
— Chore, senhora D. Eicardina, chore, porque eu
comprehendo as suas lagrimas...
Ricardina entreabriu os lábios n'um instantâneo
sorriso d'agradecimento e convidou o padre a sentar-
se ao lado d'ella.
— A que vem, padre Domingos? Seja franco para
commigo.
— Yenho saber, por ordem do senhor morgado,
qual é o dia marcado para o casamento. Yenho, porém,
com a dor no coração, minha senhora. Diz-me uma
voz interior que grandes desgraças vão cahir sobre
o Paço de Santa Eulália. Depois que entra por uma
porta a ambição, sahe por outra a alegria : é o que
está succedendo agora. Y. exc.^ tinha direitos para
gosar a felicidade, que sonhava o seu coração ; e o po-
bre senhor Fernando Tavares não merecia também que
o despenhassem tão do alto das suas esperanças. . .
— Tem-n'o visto, padre Domingos ? — interrogou
precipitadamente Ricardina.
— Yi-o e fallei-lhe, poucos dias ha. Pareceu-rae
verdadeiramente desgraçado . . .
— E é. Pobre Fernando I — murmurou Ricardina.
— E ó. Meu pae postou criados de confiança a todas
as portas. Não encontrou um no portão de entrada?
— Lá o vi, minha senhora.
— Lá devia estar a olhar com os cem olhos d 'es-
pião. Pessoa que não seja de Santa Eulália, não en-
tra. Deu motivo a esta vigilância a apparição d 'um
menáigo que, ha dias, instou por fallar commigo to-
mando o pretexto de me pedir esmola.
19
— E esse mendigo era ... ?
— Uni lioniem que me trouxe uma carta de Fer-
nando — disse Ricardina abaixando a voz. — Quei-
mei-a, padre Domingos, depois de a ler, de a reler,
de a decorar. Se meu pae a visse, matal-o-ia. Oiça,
meu padre, oiça. Dizia assim :
^ « Ricardina. Creio no teu amor como creio em Deus.
Vejo-te de longe a luctar entre a prepotência de teu
pae e a ambição de teu primo e não te posso salvar,
pomba querida, d'esse dilemma infernal com que te
despedaçam o coração. Para onde quer que fugissemos,
havia de correr atraz de nós a tyrannia, a persegui-
ção, a crueldade; e haviamos d'ouvirpor toda a parte
os clamores da justiça, que nos seguiria de perto, pro-
vocada por teu pae . . . Depois o escarneo da sociedade
cahiria sobre mim, porque tu és muito rica, muito opu-
lenta, muito nobre, e todos veriam no meu amor —
excepto tu, bem sei — a tentação que leva o homem
a praticar um roubo. E depois as tuas lagrimas valem
mais do que isso. Como tu não havias de chorar,
quando ouvisses trovejarem-te nos ouvidos as primei-
ras palavras de maldição paterna ! Xão, Ricardina,
não terás que chorar de remorsos. Tu ficas no Paço
de Santa Eulália, mimosa no leito de teu primo e
bemquerida de todos. Eu vou-me por esse mundo além,
fugido dos homens, a pedir á arvore mais copada da
serra que estenda ao longo do caminho sete palmos de
sombra onde me deixe dormir o somno eterno. Mas
que somno atroz não será! Adormecerei no silencio da
20
morte, sentindo no coração as garras do ciúme. E tu sa-
bes o que é o ciúme, Ricardina? E a perdição, o deses-
pero, a loucura. Emprestei ao morgado de Santa Eu-
lália, pouco ha, os Ckunes do Bardo^ de Castilho. Quiz
mostrar-lhe intencionalmente o que é o ciúme, essa la-
bareda infernal do coração. Ai do biltre, se não com-
prehendeu esse livro e mandou preparar de cambraia
e rosas o leito que te aguarda na noite do noivado. . .
Adeus, Ricardina. Yêr-nos-hemos no eco, se Deus sabe
perdoar aos martyres do amor. Adeus.
Fernando.»
— Tremo por elle, senhora D. Ricardina — bal-
buciou o padre. — O final d'essa carta deixa entrever
um doloroso estado d'excitação. . .
— Olá ! padre Domingos, olá ! — gritou de longe
Sebastião Noronha, pae de Ricardina — Yenha cá,
homem. Não me gaste o tempo todo em cumprimentos
á noiva. Deixe isso para depois.
Padre Domingos obedeceu á voz do fidalgo, aper-
tando a mão de Ricardina e deixando fugir, muito a
medo, estas palavi-as :
— Que Deus oUie por nós.
O que se passou entre Sebastião Noronha e padre
Domingos, ninguém o ouviu. O que ó certo é que o
capellão do Paço de Santa Euhilia sahira triste e pro-
nunciando distrahidamente, de momento a momento,
estas palavras :
— D'aqui a trez dias, d'aqui a trez dias. . .
21
Kiitrou em oasu e teve conferencia com o morga-
do. Depois veio para a janella do seu quarto esperar
as andorinhas, com os olhos absortos nas charamas
que i)rincipiavam a purpurear o occidente.
Pouco tempo tinha decorrido, ouviu padre Domin-
gos um chih'ear álacre de passarinhos, a distancia,
que o fez estremecer e levantar subitamente a cabeça.
Eram ellas, as andorinhas, que chegavam em tro-
pel. Tornavam alegres como um batalhão que volta da
campanha. Iam ficando algumas pelos sitios seus co-
nhecidos, quando viam ondular era baixo as comas
das arvores suas amigas. Vinha aproximando-se a
tumultuosa caravana e ao passar com a rapidez do
vento pelo Paço de Santa Eulália, duas andorinhas
se apartaram, batendo as azas em direitura ao portão
da quinta.
— São ellas ! — murmurou o padre, gelado de
medo.
E eram. Era o casal que voltava a procurar a sua
habitação antiga. Quando as duas andorinhas deram
pela falta do ninho, começaram a esvoaçar de um lado
para outro, com o desespero de quem vê aproximar-se
a noite sem ter um tecto hospitaleiro que lhe de gua-
rida. Gastaram n'isto alguns momentos. Depois lá fo-
ram pelo céo fora, á procura de qualquer abrigo
provisório, soltando uns pios doloridos.
— Bem disse eu — pronunciou padre Domingos
de si para si. Desgraça certa. Bem disse eu.
22
Trez dias depois das scenas descriptas no anterior
capitulo, celebrou-se na capella do Paço de Santa
Eulália, ao fim da tarde, o casamento do morgado com
Kicardina.
Concorreram á festa os mais nobres fidalgos de
sete léguas em redor, e era muito para admirar o vêl-os
apearem-se garbosos á porta do Paço, coalhada de
camponezes. Celebrou-se o casamento, como disse, na
capella da casa, cuja entrada era ladeada, da direita
e da esquerda, por alas de criados e raparigas do
campo. Quando a noiva sabia da capella, com os olhos
embaciados de pranto, pelo braço do morgado, as po-
bres camponezas entornaram-lhe sobre o véo alvís-
simo uma chuva de flores. Kicardina, ao sentil-as, pa-
receu despertar d'um longo somno para uma horrorosa
realidade. Soltou um grito estridulo, e cahiu desmaiada
nos muitos braços que se estenderam para amparal-a.
Levaram-n'a á pressa para o leito e rodearam-n'a de
cuidados. Passados momentos, Kicardina voltava a si e
adormecia prostrada n'um marasmo profundíssimo. As
festas, interrompidas por este incidente, recomeçaram,
e o morgado de Santa Eulália veio debruçar-se n'uma
das janellas do Paço para lisonjear os camponezes,
que armavam danças no terreiro. Yinha subindo a
lua, a esse tempo, de traz das arvores verdenegras
da quinta.
23
llaviji ali;uns momentos que o morgado estava á
jaiiella, quando estalou subitamente no ar a detona(;iío
d*um tiro ; e lo^^o se ouviu também um grito agudis-
simo. Era que o morgado tinha cabido, no pavimento
da sala, ferido de morte. A turba dos camponezes in-
vadiu de roldão a entrada do Paço e espraiou-se cu-
riosa ao longo dos corredores, em vez de procurar
nas sombras da quinta o emboscado assassino. Na
onda dos camponezes vinha um homem que não tinha
assistido á festa : chamava-se Fernando Tavares.
O desventuroso moço, com o olhar chammejante
e o cabello desgrenhado, correu precipitadamente
todas as salas como á procura d' uma pessoa que ainda
não tinha visto. A pessoa que Fernando Tavares pro-
curava era o capellão da casa. Quando o viu, á en-
trada d'uma sala, soltou uma gargalhada sêcca, que
era indicio claro de loucura e articulou estas palavras
com desvairada rapidez :
— Matei-o, padre, matei-o.
— Deus meu ! — exclamara o padre com os olhos
rasos d 'agua — Era certa a desgraça ! Era certa a
desgraça ! Chegaram as andorinhas e o morgado ti-
nha-lhes roubado o ninho. . .
Porto - Julho de 1869.
UM ANJO
A Margarida era, ii'esse tempo, a flor dos namo-
rados d'aldeia.
Requestavam-n'a muitos, e só um tinha a preferen-
cia; o escolhido era o Luiz de Travanca. í]ra e é.
Hoje, oito annos depois do seu casamento, a Marga-
rida, que ainda está uma fresca mocetona, ama-o com
os extremos apaixonados de uma esposa carinhosa.
O Luiz vi-o hontem. Está bem conservado.
Cuido que um beijo da mulher lhe basta para dis-
sipar qualquer nuvem com que o horisonte se euturbe.
Mas se lhe fallarem da filha, da Izabelita, que lhes
morreu ha dois annos, o Luiz enternece-se a lagri-
mas e pede pelo amor Deus que lhe não fallem mais
d'ella. A morte da pequena, minha afilhadinha, foi
indubitavelmente o primeiro desgosto que entrara
fundo n'aquelles extremosos corações de pães. Se foil
Os outros dissabores passam por elles e não deixam
vestigio; este deixou-o de lagrimas.
26
Margarida era, pois, ha oito anu os, como eu ia
a dizer, o aijesii do logar. Os rapazes faziam-se en-
contrados com ella, á volta d' uma quelha, só para te-
lem a felicidade de fallar-lhe.
E o caso é que ella se quedava de boa sombra a
ouvil-os. Não havia moça mais palreira em toda a fre-
guezia ; mas também ainda se não viu rapariga mais
fiel ao seu namorado.
Os rapazes tomavam-lhe o passo e fallavam-lhe ;
ella parava e ouvia-os.
Conversavam da romaria que estava próxima, do
serão em casa de fulano, da esfolhada em casa de
sicrano. Mas se alludiam ao abrayo que lhe dera o
Luiz, de Travanca, quando achou o milho rei, Mar-
garida voltava-lhes as costas e despedia-se ligeira com
o pretexto d'ir segar milha ou lavar á presa.
Os pobres moços ficavam-se de cara ao lado, e
pasmavam d'aquillo.
Um dia espalhou-se n'aldeia que a Margarida ia
casar brevemente com o Luiz.
Os rapazes acreditaram e entristeceram -se.
Acertou, porém, de haver uma esfolhada por
aquelles dias: a Margarida teve convite e accei-
tou-o. Lá appareceu ella com toda a sua alegria do
costume.
Os serandeiros estavam receiosos de fallar-lhe; a
Margarida, porem, desafiava-os á garrulice. Era isto
n'um sabbado á noite. Depois da esfolhada, começou
a dança em plena eira. A Margarida bailava louca^
mente ; nunca a viram t^o alegre,
27
Ao outro (iiíi. . . leu-se na i^rejiio primeiro bunlio
o d'alii a um mcz certo celebrou-se o casamento.
Como os noivos eram felizes !
^íargarida fez-se mais trabalhadeira e não menos
alegre; o Luiz revia-se n'ella e julií^ava-se o mais di-
toso dos homens.
Xem eu sei que haja maior felicidade do que esta,
este abraçar-se de duas almas irmãs, que vivem con-
tentes uma da outra, que não se importam do mundo
e. . . que até não sabem se o ha.
Como estou agora na aldeia, deixo-me convencer
d'esta verdade: a felicidade acha-se em toda a parte.
Quantas existências não deslisam suavemente n'esta
vida socegadissima do campo !
Chega para viver aqui uma choupana ; não ó pre-
ciso mais.
Da jaqueta ao frah^ vai um abysmo.
O camponez gasta exactissimamente aquillo de
que precisa ; não lhe chega o dinheiro para superflui-
dades. De que lhe serviriam umas abas de panno co-
sidas á ourella da jaqueta ? Faziam-n'o gastar mais e
estorvavam -n 'o no trabalho.
A camisa não se engomma.
Para quê? Lava-se simplesmente. Na limpeza ó
que está o aceio do corpo e no aceio do corpo o res-
peito de nós mesmos. Isto satisfaz cabalmente.
A vida ociosa da cidade traz a necessidade d 'um
homem se divertir com alguma coisa, quando sahe a
passeiar.
Com que se ha de, pois, distrahir um homem ?
28
Leva a bengala na mào para florear com ella. Hoje
leva-se a hadinc^ que 6 uma espécie d'esquírola
extrahida da bengala ...
O lavrador, quando sahe, leva comsigo a enxada ;
nada mais.
Se tem de se apegar n'uma ladeira, abordoa-se
n'ella ; se tem d'encarreirar uma agua que andava
desviada da presa, rapidamente o pode fazer.
Duplicada commodidade a da enxada !
E acham que elles não vivem felizes ?
Muitos dos lavradores d 'aqui nunca foram ao
Porto, e não lhes peza isso.
Se lá fossem, e vissem uns homens de luva cor
de flor d'alecrim, direitos como um cypreste, e de
chapóo á Beiíoiton^ mandavam dizer á familia que já
lá tinha começado o carnaval e. . . que o não achavam
grande coisa.
Por fim de contas o systema d 'elles parece o único
racional.
Yamos, agora, em santa paz com lavradores e ci-
dadãos, á nossa historia.
Uma filhinha, galante como poucas creanças, foi
o complemento da felicidade conjugal de Luiz e Mar-
garida.
Estonteavam d'alegria os ditosos pães.
— Uma mulher que não tem ainda filhos — dizia
o Luiz — tem uma divida em aberto com o homem.
Quando uma pessoa se casa, vai buscar familia ; e
onde não ha filhos, não ha familia.
D'aqui se pode inferir o contentamento do Luiz.
29
Por essa occiísiíto cheguei ii quinta do Villa Verdo
e fui convidado pjira padrinho da pequerrucha.
É de notar que nMsto me quiz fazer um obsequio
o bom do Luiz; suppunha elle que ser padrinho da
sua filhinha, que tão bonita nascera, seria um conten-
tamento para qualquer.
Eis aqui ainda uma felicidade dos pães, que não
deixa de fazer inveja.
Baptisou-se a pequena e chamou-se Izabel, em
homenagem á avó materna, que foi madrinha e tinha
o mesmo nome.
Crescia a creança e cresciam as graças com ella.
Diga- se a verdade.
Poucas creanças levavam as lampas, n'aldeia, á
minha afilhadita. Até me julguei realmente obse-
quiado com o convite do Luiz, attenta a formosura
da pequena.
No outono, quando eu chegava a Yilla Yerde, a
rapariguinha surdia de qualquer parte a pedir- me a
benção e a chamar-me senhor jjadrinho. Ha trez
annos, porem, comecei a estranhar o amarellido doen-
tio da Izabel, e vi que os pães se inquietavam também
com isso.
Os olhos de Margarida e Luiz choraram as
primeiras lagrimas de dor, que d'alegria muitíssimas
tinham chorado já.
Regressei ao Porto e não soube mais da pequena.
No anuo seguinte voltei a Yilla Yerde, e, como
não visse a minha afilhada, perguntei por ella. Res-
ponderam-me com lagrimas.
30
A pequenita tinha morrido !
Faz uma pena saber que as creanças morrem |
Quem ha ahi que resista cl'olhos enxutos á impressão
pungente de vêr desfeita no chão uma casinha de
musgo ou folhas sêccas onde um pardalinho se tinha
ido aninhar e que, momentos antes, adheria ao ramo
de uma arvore da encosta ? . . .
Pois o berço 6 também um ninho onde se implu-
mam as aves do futuro ; quando ellas morrem, fica
vasio o berço e é como se se desfizesse a casinha
verde d' um passarinho qualquer.
Pobres creancinhas ! Quando morrem e passam
para a igreja no seu caixãosinho vermelho, ficam di-
zendo as estrellas :
« Irmãsinhas, adeus I Quando a sombra d'um des-
g'osto fazia noite no coração de vossas mães, éreis a
única estrella que lhes luzia na cerração interior.
Agora morreis vós e quem sabe se nós morreremos
breve. . . Um dia, se a mão poderosa do Senhor nos
despegar d'este tecto de saphira, cahiremos na terra
e converter-nos-hemos em lagrimas.. . »
E murmuram, ao mesmo tempo, as flores do ca-
minho :
« Pobresitas, adeus ! Morreis como nós ! A mão
destruidora da morte roubou- vos ás caricias de vossa
mãe, como o vento da tempestade nos rouba também
á haste em que nascemos ! Adeus, pobresitas ! . . . »
E chilriam os passarinhos :
« Pobre irmãsinha ! Ainda foste feliz ! Morreste a
cantar e não chegaste a conhecer as afílicções do
31
mundo. So crescessos, haviam ellas de perseguir-<c,
como nos persoí^^ucm os homens, a nós, que lhes nílo
fazemos mal nenhum ! Vai cm paz ao seio do Se-
nhor. . . »
Morreu, pois, a Izabelinha; cxplicaram-me assim
o caso da sua morte :
Certa manhã, chamou a pequenita pela mãe para
lhe contar um sonho, que tivera de noite, dizia ella.
Acercaram-se a mãe e o pae e Izabelinha contou-
Ihes :
— Querem saber? Sonhei esta noite com a Senhora
dos Remédios, que está no altar da igreja. E eu estava
ao pé d 'ella, cercada de lindos meninos, que me cha-
mavam— sua irmã. E ouvia-se uma musica tão do-
ce, que me fazia chorar d^alegria ! Ah, minha mãe,
como havia de gostar, se visse todos aquelles meninos
a dançar ao redor da Senhora! E querem saber uma
coisa? Eu também dancei com elles. Se o meu pae e
a minha mãe vissem, admirar-se-iam até ! Entrava o
dia pela igreja dentro, quando eu de lá sahi. E Nossa
Senhora viu-me sahir e chamou-me outra vez para
dizer-me : — Vem cá, Izabelinha. O minha mãe, como
6 que Nossa Senhora sabe o nome de toda a gente?
— Eu sei lá, filha ! — respondeu a pobre Marga-
rida com os olhos brilhantes de lagrimas e o coração
alanceado por um triste presentimento.
Luiz arquejava d'afflicção e inclinava-se todo so-
bre o leito da creança, como para ouvil-a melhor, e
entender o sentido de todas as suas palavras.
Izabelinha continuou :
32
— Olhem que a Senhora disse-me que me vinha
buscar esta noite, se eu quizesse ir com EUa para
um logar encantador. E disse-me lambem que fosse
colher açucenas, porque queria que eu levasse flores,
para ir muito bonita, e que vestisse a minha sainha
cor de rosa, que a mãe me deu pelo Natal. E olhem
que eu desejo vestir-me assim para fazer a vontade á
Senhora. . . »
Foi um dia de lagrimas n'aquella casa. Margarida
e Luiz sentaram-se á mesa do almoço com os olhos
vidrados de pranto.
Encararam um no outro . . . e não puderam comer
bocado.
A pequenita andava toda atarefada a colher as
açucenas ; os pães andavam a olhar para ella e nem
podiam fallar.
Chegou a noite.
Izabelita estava aceiadinha como uma boneca !
E quiz dormir assim, a segurar cuidadosa n'um
ramalhete d 'açucenas, que tinha entre as mãos.
Luiz e Margarida velavam. Estiveram accordados
ató alta noite ; depois, Luiz, querendo dominar com
um esforço de homem um presentimento de pae,
aconselhou Margarida :
— Yai deitar-te, mulher. Tu nunca ouviste dizer
que os sonhos não valem nada ? Olha a pequena como
está a dormir descançada ! E ouve-se-lhe a respiração
tão bem ! Yai deitar-te, anda.
Vendo que Margarida se deixava ainda ficar, tor-
nou-lhe o homem :
33
— Anda lá, que eu tambom vou. A gente ás vezes
tom scismas!. . . Anda lá. . .
E foram.
Sobre a madruíj^ada, Mari;'arida acordou afflicta ;
levantou-se do leito em sobrcsalto e foi ver a íilha.
Achou-a a dormir. Quiz beijal-a e, quando lhe to-
cou a face, recuou de golpe.
Estava fria !
Margarida abriu a janella, chamando em altas
vozes pelos visinhos.
Quando o sol inundou a casa, Margarida conhe-
ceu que sua filha dormia para sempre e viu um rancho
de borboletas brancas, que esvoaçavam sobre a pe-
quena. As açucenas tinham emmurchecido.
Não sei descrever-lhes a dor de Margarida- e Luiz ;
os corações de mãe hão de, porem, comprehendel-a.
Quizeram os desventurados pães que a pequenita
fosse a enterrar vestidinha como estava ; e foi.
Mandaram ao carpinteiro fazer um caixãosinho de
pau. O armador cobriu-o de panninho vermelho e
guarneceu-o d'espiguilha doirada. Estava tudo tão
bonito !
E a pobre Margarida a chorar, ao pé do caixão-
sinho da filha, e Luiz, do outro lado, a limpar as
lagrimas ao canhão da jaqueta e a soluçar constante-
mente, faziam muito dó.
Quando anoiteceu, vieram quatro rapazinhos d 'al-
deia buscar a pequena.
A pobre mãe, coberta de lagrimas, rompeu n'este
delirio :
34
— Oh ! ide embora, ide embora ! Quem vos ensi-
nou a serdes maus e a roubar uma filha a sua mãe ?
Com que direito m'a levaes, meus meninos ? Ide em
paz e dizei a vossas mães que não sejam severas
commigo, porque a mesma desgraça lhes pode succe-
der amanhã. Eu nunca fiz mal a ninguém ; nem te-
nho animo para isso. Deixai-me com a minha filhinha,
meus meninos. Ella está fria, bem sei ; mas os meus
beijos hão de aquecel-a, vereis. . .
.E depois, como cahisse prostrada nos braços de
Luiz, roubaram-lhe a filhinha n'um momento.
Quinta de Villa Verde, 18 d' outubro de 1868.
DOIDA PELAS ROSAS
— Não sabe ? A Nini vai casar.
— Quando ? — respondi eu.
— Casa para maio, que ó o itiez das rosas.
— E não sabe mais nada?
— Mais nada.
— Até á vista.
— Adeus.
— Olhe — tornei eu, chamando o alviçareiro. — Se
souber do dia marcado para o casamento, avise-me.
Queria mandar á Nini um ramo de flores.
— Fique certo. Adeus.
II
Nini era o diminutivo com que as pessoas mais
intimas a costumavam chamar. O nome, que lhe puze-
*
36
ram na pia do baptismo, era Leopoldina. Tinha ella
mais quatro annos do que eu. Quando comecei a af-
frontar as difficuldades grammaticaes do D. João
de Castro, frequentava a Mni o collegio francez. Yia-
mo-nos quasi todos os dias. Na primavera era quando
eu mais gostava de vêl-a. Entrava a Nini para o col-
legio com o seu grande chapóo desabado, de pallia de
Itália, e o seu vestido de cassa branca com guarnições
cor de rosa. O criado transportava na sacca de velludo
carmezim a grammatica franceza q o La Place, e a
Nini precedia o criado, quasi sempre acompanhada
d'alguma menina do collegio que encontrava no ca-
minho, mas também quasi sempre afadigada com um
ramo de flores que distribuía pelas condiscípulas e pe-
las mestras.
Era que a Nini tinha uma predilecção extrema
pelas flores, especialmente pelas rosas.
Muita vez lhe ouvi dizer :
— A rosa é a rainha das flores.
A ideia não era nova, como sabem, porque já a
poetisa de Lesbos tinha dito o mesmo, seiscentos an-
nos antes de Christo.
Nini, porém, sabia dizer isto com uma tão ma-
viosa inflexão de voz, tão natural e tão ingenuamente,
que deliciava ouvil-a fallar da mais bolorenta velha-
ria.
37
III
Nini tinha razHo.
A rosa 6 inquestionavelmente a primeira das flores.
Não se sabe ainda bem a sua historia, mas cre-se
que seria uma das flores dos jardins de Semiramis ; e
está fora de dúvida que os gregos a cultivaram, visto
dizer Homero que eram cor de rosa os dedos da
Aurora.
Os romanos coroavam de rosas as estatuas de Yenus
e Flora, e averiguou-se que os casquilhos de Roma
costumavam oííerecer ás suas namoradas as primeiras
rosas que a primavera desabotoava.
Os turcos acreditam que o nascimento da rosa é
devido a uma baga de suor de Mahomet, e conservara
a tradição de ser a flor predilecta do rouxinol.
Os romanos juncavam as ruas com rosas nas festas
publicas, costumavam tapetar com ellas os triclinios
nos banquetes faustosos, e engrinaldavam d'estas flo-
res os cyathos a trasbordar de Phalerno, porque
Baccho amava as flores, como disse Ovidio.
A rosa tem sido sempre a flor querida dos poetas
e das mulheres. Yirgilio diz-nos que a boca de Vénus
era de rosas e que as faces de Lavinia tinham a
mesma cor que os lábios da deusa de Cythera. Sei
que desde Yirgilio até hoje os poetas teem abusado
da rosa nas suas composições. Todavia o que for bel-
lo, embora seja commum, é sempre bello. O amor é
de todos os dias e nem por isso deixa de merecer
38
menos apreço. Se a esposa de Luiz xiii, por uma no-
tável aberração nervosa, tinha pronunciada antipathia
por esta flor, regosijerao-nos de ver a princeza Clotil-
de, irmã da rainha de Portugal, toda vestida de galas
e enfeites cor de rosa, n'um dos bailes das Tulherias ;
postoque Alphonse Karr lamente o ver adornada de
rosas contrafeitas quem tão mimosas as tem nos ale-
gretes da pátria.
Vivere in rosa, dor mire in rosa. É assim que se
deve viver e dormir. O' Nini, quem sabe quantas ve-
zes adormecerias tu confundindo os teus lábios com as
pétalas de uma rosa?. . .
lY
Aos dezoito annos, Nini tornou-se scismadora.
Ficava devaneiando á janella, todas as noites, cora os
olhos cravados no eéo, como se estivesse lendo poemas
ethereos n'aquelle infinito azul. Emquanto a noite
não chegava, Leopoldina passeava no jardim, a namo-
rar as suas rosas, se já tinham desabrochado, a trocar
com as flores palavras mysteriosas que ninguém mais
entendia, porque sabiam dos lábios d'ella em suspiros
maviosos e vinham dos cálices das flores em perfumes
suavíssimos. , .
Leopoldina amava.
O coração materno ó um ninho de pombas; 6 lá
que se aprende a voar. Ninguém como Leopoldina tão
estremecida pelas caricias de sua mãe, e n'essa escola
d'amor aprendeu ella a bater as azas para onde quer
39
(|uo íi (•hamasso um sentimento sem macula. Alóm
d 'isso, o coravAo, aos dezoito annos, 6 como o rouxi-
nol (lue prefere cantar nos valles onde lhe possa res-
ponder um ecco. O coração 6 como o rouxinol : quer
ouvir e responder.
E Leopoldina ouvia também protestos calorosos
que sabia pa^ar com doces juramentos.
CoraçHo, tu és como o rouxinol. Tens harmonias,
quando o amor te dá inspiração. És o rouxinol que
nos cantas no seio poemas dulcissimos.
Absorve-te nos teus poemas, coração. . .
Y
Era um bom coração e uma nobre intelligencia o
Frederico; eis aqui por que Leopoldina o amava.
Frederico era filho natural d'um velho capitalista
d 'America, que o mandara a Portugal doutorar-se em
leis.
Desembarcou o moço brazileiro em terras de Por-
tugal, saudoso das auroras esplendidas dos trópicos,
das sestas calmosas que dormira na rede, da natureza
opulenta do novo continente, que era a sua pátria,
o seu berço. Frederico trazia o coração a trasbordar
saudades da pátria, da terra onde ficaram chorando por
elle os olhos de sua mãe, olhos que lhe não deram
nunca um raio de sol e d'esperança, de felicidade e
d'amor, por isso que profundo mysterio envolvia o
nome da mulher que lhe dera a vida.
40
Estava o moço em Portugal desamparado de aífe-
ctos, que nunca tivera, longe das plagas da America
e mal encaminhado para o futuro esplendido a que
porventura chegaria, se alguém lhe desse esperanças
e conforto e quizesse compartilhar das suas aspirações
de gloria.
Foi então que Frederico viu e amou Leopoldina.
Como elle havia d'amar !
Já recolhestes no vosso lar por noite velha e tem-
pestuosa o caminheiro exhausto a quem permittistes
enxugar as vestes húmidas ao rescaldo da fogueira ?
Yistes a alegria com que elle se aproximou das
chammas azuladas e cor de rosa que se levantavam
da pedra do lar, em formas irregulares, crepitando
suavemente ? Ah ! Então adivinhaes de certo com que
Íntimos júbilos não buscaria Frederico o ineffavel
conchego do primeiro seio que se abria para elle, o
encanto irresistivel do primeiro sorriso que lhe davam,
das primeiras palavras d'alegria que entravam na sua
alma... Então comprehendeis de certo o amor de
Frederico.
VI
Estava concluído o curso universitário. Tinham de-
corrido cinco annos d'estudo e de vigilias, consumidos
na esperança de chegar a possuir uma carta de bacha-
rel.
Leopoldina fora o anjo da guarda em tão longo
tempo ; morria d 'amores por ella o moço estudante.
41
Km toda a parte a via. Nas horas silenciosas do estu-
do, (luando lhe entrava o reflexo saudoso da lua pela
janella do quarto, via elle desenharem-se-lhe diante
dos oliios os contornos vaporosos d'uma imagem phan-
tastica que lhe parecia a de Leopoldina.
— Fada da noite — dizia elle de si para comsigo
— desceste do azul ethereo e vens suspensa n'um
raio da lua, enfeitiçar-me d 'amores I Bem hajas tu,
fada da noite !
Pelos sinceiraes do Mondego apparecia-lhe ella ás
vezes n'uma nuvem de perfumes e harmonias, que
subia até se perder nas alturas confundi ndo-se, aos
olhos de Frederico, com o véo azulado que toldava o
mundo inteiro.
Foi d'estes sonhos d'amor que elle vivera. Che-
gara, emíim, o momento de despertar de tão iuef-
faveis sonhos para uma realidade não menos ven-
turosa.
A este tempo, porém, recebe Frederico uma carta
do velho capitalista d'America que, ao sentir cerrar-
se-lhe a noite do tumulo, chama á beira do leito o
filho que deseja legitimar com a benção paterna.
Era preciso partir sem demora. Mas Leopoldina?
Não havia tempo para pensar, e o paquete estava
a levantar ferro.
— Yai — disse Leopoldina a Frederico — vai assis-
tir aos últimos momentos do velhinho que é teu pae.
Pede-lhe a sua benção para ti e . . . para mim. Não
duvides de mim nem um instante, Frederico. A dú-
vida é o gelo e o teu coração tem chammas. Já vês
42
que o não pode saltear a dúvida. Ama-me, Frederico,
que eu fico-te esperando para o noivado. Ania-me.
VII
Pude ver, depois do re^-resso de Frederico, o seu T
diário escripto desde o dia da partida até ao dia da .
ciiegada.
Copio ao acaso uma das muitas paginas do diário.
A bordo do Extremadure,, ás 9 horas da noite.
« O mar ó tamanho como a esperança do homem,
Leopoldina. Nunca o mar descança nem o coração
deixa d'esperar. Quando uma esperança se apaga,
vem outra; quando uma vaga expira, outra rebenta.
O homem lucta com a esperança como lucta com o
mar. As vezes uma onda absorve o batel, mas outra
onda o restitue á praia. Ai do homem que não tem
forças para luctarl Tenho a esperança de que has de
ser minha, Leopoldina. Se me não acalentasse esta es-
perança, entregava o meu corpo a uma vaga para
que outra vaga restituísse o cadáver, amanhã. »
• A meia noite.
«O relógio da camará bateu doze badaladas. Toda-
via parece-me que estou vivendo uma vida eterna.
«Dizem que o tempo 6 medido pela successão dos
acontecimentos, o tempo finito, que principiou e ha
43
de acabar. No mar 6 tal a uniformidade dos aronteci-
mcntos, a regularidade dos movimentos, a monotonia .
! dos liorisontes, que nos clieg'a a parecer o tempo im-
I movei como a eternidade.
«Amanhecemos hontem no mar largo, cercados de
montanhas d'espuma, descobrindo vastíssimos horison-
' tes. Hoje, quando rompeu a aurora, parecia estar o
paquete no mesmo sitio e á vista dos mesmos horison-
tes, apesar da chaminé fumegar constantemente e de
termos galgado uma boa porção de milhas.
«O tempo aqui parece-me sem fim e lá, ao p6 de
ti, Leopoldina, como as horas se escoam rápidas em
sonhos d'amor e em devaneios de felicidade. . .
«Não te esqueças de mim, Leopoldina.»
YIII
Eegressára Frederico depois d'uma ausência d'um
anno. Yi-o chegar.
Trazia a alegria no rosto e a felicidade no cora-
ção. Quando apertava a mão de Leopoldina, dir-se-ia
que tinha enlouquecido de jubilo. O velho capitalista
d'America, ao despedir-se do mundo, abraçou Frede-
rico e abençoou de longe Leopoldina.
Foi no momento solemne do passamento que o
moço bacharel ouviu pronunciar pela primeira vez o
nome de sua mãe. Estava ainda viva. Era uma se-
nhora brazileira que o velho capitalista desposou á
hora da morte.
44
— Has de conhecel-a, Leopoldina — dizia Fred
rico — e verás que riqueza de sentimentos enthesoi
rada n'aquel]e coração. Casaremos em maio, que ó o\
mez das rosas, as flores tuas dilectas. Partiremos J
depois. Si
— Pois sim, partiremos — respondia Leopoldina.
— Yiverei feliz onde tu estiveres. Quero abraçar tua
mãe e mostrar-lhe que tu, longe d'ella, tiveste um seio
amigo onde reclinasses a fronte. Partiremos, Fre-
derico.
IX
Yai ha um anno. Na véspera da partida do pa-
quete e vinte dias depois do casamento, entregava eu
a Leopoldina um bouqiiet de rosas d'Alexandria.
— Ah ! — disse ella, ao vêl-as — Não se esqueceu
de mim. Obrigada, meu amigo, muito obrigada.
— Era justo, minha senhora — tornei eu. — Sei
que a mulher conserva ainda as predilecções da
creança.
— E conserval-as-hei sempre. Quando se é feliz,
como eu sou, não ha motivo para esquecer as flores.
Obrigada, meu amigo, obrigada. Praza ao céo que
seja muito feliz.
— Oiça-a Deus, minha senhora.
E depuz nas suas mãos delicadas d hoiiquet de
rosas d 'Alexandria.
Porto — junho de 1869.
MORRER A VALSAR
Estamos no solar dos fidalgos de Santo Adrião,
em dia d'annos da morgada, senhora quarentona, que,
á similhança de seu marido, passa n'este mundo sem
; deixar de si lembrança de meia dúzia de bagatellas
para uma historia qualquer. í^ão e, pois, d'estes fidal-
gos que nos vamos occupar.
Esplende o solar de Santo Adrião, todo por dentro
c fora illuminado, sobranceiro ás veigas extensíssi-
mas, que se lhe deitam aos pós e que a primavera de
1867 começa a infiorar alegremente. Pela porta envi-
draçada, que abre sobre o terraço, espreitemos para a
sala do baile e deliciemos olhos e ouvidos no vertigi-
noso revolutear das valsas e nas ondulações da har-
monia, que se espraiam ao longo da casa e vão mur-
murando festivamente por essas pradarias além.
Está alli, no solar de Santo Adrião, a flor da
fidalguia beirôa. São muito para admirar as gentis
valsistas, que se requebram nos braços dos garbosos
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morgados e passam no redemoinlio da dança, touca-
das de rosas e cobertas de pérolas, que são as rosas
do mar. Referve estrepitosa a valsa e, n'este momento,
sahem para o terraço, de braço dado, conversando
affavelmente, Affonso Briteiros e Jeronymo Yallada-
res.
Escondamo-nos n'uma das sombras do terraço e
prestemos ouvidos ao dialogo dos dois fidalgos beirões,
dialogo .que se me antolha interessante a julgar pelo
espirito faceto d'estes dois cavalheiros da província.
• — Queres um charuto, primo Briteiros ? — disse
Jeronymo Yalladares, puxando da charuteira de ma-
drepérola e abrindo-a diante do outro.
— Sabes que não fumo, primo Yalladares, e que
sou persistente nos meus hábitos. Agradeço mas não
quero.
— Anda lá, homem, fuma. Uma noite de baile ó
uma noite de festa em que a gente deve despir a sua
individualidade rotineira para remoçar por algumas
horas n'este jardim de suavissimas fragrâncias.
— Não quero, primo Yalladares; positivamente não
quero. Detesto o tabaco como detesto a valsa. Os pas-
tores de Yirgilio não fumavam e foi por isso que ne-
nhum d'elles chegou a morrer. . . envenenado. Já
houve um papa que lançou excommunhão a quem
cheirasse tabaco nas igrejas e teve razão que farte.
O uso do tabaco ó um suicídio lento e seria crime im-
perdoável o praticar-se em logar sagrado. Que de
consequências mórbidas provenientes do uso do tabaco I
— Do uso, não, primo; do abuso. Eu fumo sóbria-
i
47
mente c não me sinto prejudicado com isso. Pelo
contrario. Acho que o uso do talKico facilita conside-
ravelmente o desenvolvimento da faculdade pensante.
— Queres dizer com isso que te sentes intellectual-
mente melhorado... Admiro a modéstia, primo Yal-
ladares !
— Não farás espirito. Tenho contra mim o fumar
pouco, bem vês. Senta-te e conversemos placidamente.
Temos aqui á nossa disposição estes graciosos cana-
pés de cortiça, que aformosentam elegantemente o
terraço.
— Conversemos. Estou aqui bem melhor do que
na sala. A valsa tem para mim o único merecimento
de me fazer dormir. É uma semsaboria que detesto.
Nunca pude comprehender a delicia proveniente da
valsa, este doidejar pernicioso, que se não justifica
de maneira alguma e que tem o cunho selvagem das
bacchanaes romanas.
— Não c tanto assim. Eu gosto da valsa, d'esse
febricitante ondular de borboletas, que se espanejam
ao longo das salas no turbilhão veloz. Gosto de valsar,
primo Briteiros. A nossa alma é como o oceano, que
nas marés gigantes, se não tem extenssimos areaes
por onde a bel-prazer se espreguice, investe arro-
gante contra as ribas escarpadas que se levantam aos
ares diante d'elle. N'uma noite de festa parece que
nos não cabe a alma dentro de nós : é o plenilúnio do
enthusiasmo, do delirio. Então é que o mar dos nossos
sentimentos trasborda e precisa d'espraiar-se. O corpo
cede á influencia da vertigem do espirito. N*esses mo-
48
mentos de suprema felicidade é que a valsa é um doi-
dejar sublime, um alar-se a gente para outros mundos, 1
um borboletear alegre nas ondulações da harmonia. Ha
naturezas tão delicadamente sensíveis, que se deixam
arrastar pela vertigem da valsa até ao supremo can-
çaço, ao desfallecimento, á morte. Lembra-me contar-te
agora a historia lamentosa d 'uma valsista estrangeira.
— Conta lá, primo Yalladares. Quero ver até onde-
chega o excesso do romanticismo lá por fora. N'estes
abençoados reinos de Portugal sei eu que ha muitas
imaginações derrancadas pela leitura perniciosa d'uns
certos livros resaibados de sabor nocivo, que, actual-
mente, se dizem — românticos. — Do estrangeiro sei
pouco a este respeito e acolho de boa sombra os teus
informes. Conta lá . . .
— O que tu deves querer saber, primo Briteiros, é
até onde nos pode levar um temperamento perigoso.
Deves saber isto, para que possas agradecer á Provi-
dencia uma fleugma inalterável com que ella te quiz
obsequiar. Ora ouve. Tu, primo Briteiros, que detestas
as imaginações românticas com uma pertinácia igual,
n'este caso, á de D. Francisco Lobo, bispo de Yizeu,
poderás comprehender o que será uma festa esplendo-
rosa, onde as mulheres teem uma formosura etherea
como os anjos e desmaiam na valsa até á pallidez
marmórea das estatuas ?
— Comprehenderei.
— Muito bem. Imagina agora, se podes, uma
d'essas mulheres formosíssimas, que nós prescntimos
aproximar-se pelo frémito das saias o por uns olhares
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curiosos que de todos os lados a esperam, como as
andorinhas e os rouxinoes esperam a clie^ada festiva
da piimavera. Ima^ina-a ainda vestida de côr de rosa,
para que mais possa enganar os rouxinoes e as ando-
rinhas da sala : — os namorados e as coqnettes,
«Arredonda-llie o seio e vela-lh'o com rendas finís-
simas de Bruxellas ate onde não permitte o pudor
que os olhos alcancem. Sobre o relevo das rendas, que
estremecem com o arquejar do seio, engasta delicada-
mente uma camélia de Constantino, tão perfeita e
rescendente, que pudera enganar as borboletas. . . Do
relevo para cima, deixa o collo a descoberto para que
os olhos, namorados de tamanha alvura, possam adivi-
nhar o que anda recatado na espuma das rendas, o
qnod intrinsecus latet, dos Cânticos de Salomão.
«Polvilha finalmente as tranças doiradas com uma
chuva de pérolas, á similhança das nereidas, essas
creações esplendidas da poesia pagã. Agora envolve
esta imagem etherea n'uma nuvem de sons e perfu-
mes e fal-a apparecer no salão, recamado de flores e
coberto d'espelhos, como o sol do estio que entra por
uma floresta dentro, inundaudo-a de luz, d'alegria, de
vida. . .
— Bellissimo ! primo Yalladares. Estou a pique de
me enthusiasmar pelos românticos e pelo romanticis-
mo. . .
— Ouve, primo AfFonso. A nossa concepção é
verdadeiramente um mytho e reúne á formosura etherea
um temperamento delicadíssimo. Dil-a-ias a sensitiva,
que precisa de sol para viver. Abre, porém, o salão
4
50
de baile, u^uma noite de festa, desencadeia o vendaval
da harmonia, descerra as urnas dos mil perfumes ori-
entaes, enche a casa de lumes e flores, e deixa-a de- J
pois espanejar-se, a ella, á nossa visão, como borbo-
leta que brinca, doidejando, entre os alecrins do
canteiro. à
«A valsa para ella é a felicidade suprema, o ante-
gosto d'outra vida. Se tivesse duas azas brancas cora
que pudesse subir a conversar com as estrellas, não
voaria mais, de certo, nem mais ligeira, nem mais
tentadora. É uma valsista infatigável como poucas e
formosa como nenhuma.
«Aqui tens, primo Affonso Briteiros, a nossa ima-
gem, como eu a sonhei e tal qual devia de ser. Nota
que estamos na Áustria. . .
— Na Áustria, primo Yalladares ! Não estava pre-
venido para a viagem e confesso que me sobresaltou
a surpreza ! Todavia, se as mulheres austríacas corres-
pondem a esse ideal de belleza que tu sonhaste, vamo-
nos lá nas muito boas horas, primo Jeronymo. . .
— É pois certo que estamos na Áustria e n'um
dos mais esplendidos bailes do mundo. Tem-se valsado
perdidamente e interrompe-se agora a vertigem da
dança, porque vai abrir-se a sala da ceia, uma sala
deslumbrante onde parece dever servir-se o néctar dos
banquetes olympicos. Keferve nas taças doiradas o
vinho generoso de Tokai. Reflecte-se nos mil crystaes
da sala o brilho esplendoroso dos candelabros, que
pendem dos florões do tecto em numero infinito.
«As mulheres chilreara alegreraente uraas cora as
51
outras e os moços namorados segredam mysteriosa-
mento ao ouvido da sua dama palavras amorosas.
«Começam a levantar-se da mesa os primeiros con-
vidados e ou voltam á sala do baile, ou descem pela
escada tapetada ató ao átrio onde os está esperando a
carruagem.
«A nossa fada ia a retirar-se depois da ceia, pelo
braço do esposo, quando eccoou de repente por toda
a casa a musica voluptuosa d'uma valsa.
— Por que me não tinhas dito que era casada a
heroina do teu conto, primo Yalladares ?
— Para quê V Dar-se-ia o caso de te haveres na-
morado d'esta visão seductora ? Eis-te romântico, primo
Briteiros, e o romanticismo aos trinta annos 6 uma
moléstia sem cura !
— Dize lá o resto.
— Continuarei. A nossa gentil valsista não pôde
resistir á tentação da musica e, soltando-se da capa
d'arminhos em que se envolvia, deixou-se cahir nos
braços do cavalheiro, que a tinha convidado.
«Reaccendeu-se o enthusiasmo, o delirio, a loucura !
As formosas austríacas, poisando os seus bouquets no
mármore das mesas, atiravam-se, ébrias d'alegria, ao
r marulhar da valsa, como a um oceano revolto. No
I momento porém em que a musica attingia a máxima
i celeridade, sentira o cavalheiro pender-lhe mais lan-
; guidaraente nos braços a gentil valsista e, quando quiz
continuar a acompanhar a vertigem da orchestra, tinha
um cadáver abraçado. Vibrou em toda a sala um
. grito doloroso, que soltara o cavalheiro austriaco.
52
«Emraudeceu instantaneamente a tempestade so-
nora e affluiu á volta d'elle a gente que enchia o sa-
lão. Resta-me dizer-te agora qae o esposo d'esta des-
venturosa dama, Teschenberg, director da Gazeta de
Vienna, enlouquecera n'esse momento.
— Desçamos aos jardins, primo Yalladares. A tua
historia entristeceu-me e não me sinto com grande
disposição de entrar na sala.
— Desçamos pois e fica de sobre-aviso para não
zombares do romanticismo, quando te contarem histo-
rias como a da des venturosa esposa do director da
Gazeta de Vienna.
— Pobre anjo, que morreu a valsar ! — concluiu
Aífonso Briteiros.
Porto — julho de 1869.
í
NA VÉSPERA UE «. JOÃO
Ha uma noite no anno em que o relento põe vir-
tude ao corpo : c na véspera de S. João. Ninguém,
n'esta noite, se teme da viração, ninguém se arreceia
do orvalho. Os velhos e as creanças não teem somno
e dão-se as mãos amigavelmente. As raparigas sahem
para a rua, porque as está namorando de fora o cla-
rão das fogueiras e porque é de tradição apanhar as
orvalhadas da meia noite. Ninguém deixa de ser des-
envolto, para que não pareça triste. É preciso ir
saltar as fogueiras e colher as alcachofras. E depois
ó indispensável que, ao bater da meia noite, vão as
raparigas beber um gole d'agua á fonte encantada
onde as está esperando o Santo ; — fonte cujas aguas
teem o brilho esplendoroso da prata como diz a tra-
dição :
S. João por ver as moças
Fez uma fonte de prata.
54
Estremece o coração de jubilo e de incerteza,
n'esta noite. Qual será o namorado preferido pela
sorte ? Lá ficou, no peitoril da janella, o copo d'agua
coalhado de bilhetinhos mysteriosos. Cada bilhetinho
tem uma palavra; cada palavra é... um nome. Ao i-
nascer do sol, ha de estar aberto um dos bilheti-
nhos : o nome que elle contiver, será o nome do es- |
poso. M
Ninguém se deita n'esta noite para que o sorano ^
o não prostre antes de repontar a aurora. Quem tem
cuidados não dorme, e é preciso ir á janella recolher
o copo d'agua, mal que o sol ande fora. . .
Era também n'esta mesma noite. Para além da ■
igreja d'aldeia, ha uma alameda copada. ^!
A lua doirava as cimas do arvoredo e illuminava
poeticamente o quadro. Os rapazes da aldeia tinham-se |
deitado na relva a tanger as suas violas e a cantar
as trovas da noite. As raparigas, despeitadas talvez
da indolência dos namorados, bailavam de mãos da-
das, cantando, á volta da laranjeira secular que deter-
mina o centro d'alameda.
— Yêde que vos cançaes — disse um camponez,
dirigindo-se ás raparigas e fazendo parar a roda. —
Tendes bailado toda a noite ; d'aqui a pouco c sol
nado.
— Bem hajamos — tornou-lhe uma. — Os rapazes
da freguezia teem quebranto nos joelhos. Deu-lhes
mofina damninha e não se levantam do chão. E' bai-
lar, raparigas, é bailar.
E recomeçaram a dança interrompida por este
55
incidente, f^^inindo voltas vertio^inosas cm redor da la-
ranjeira.
Kram dezoito as raparigas o todavia faltava no
rancho Rosália, a ramilheteira do sitio. Kosalia era
uma creatura angélica. Tinha uns bonitos olhos cas-
tanhos e uns fartos cabellos negros. E depois sempre
tão aceiadinha, sempre um lenço de cassa tão bem
posto a recatar o seio túrgido e virginal ! Dava gosto
vêl-a d'açafatinho no braço a vender flores nos dias
de festa, á porta da igreja, quando os rapazes do sitio
queriam offerecer ramilhetes ás moças namoradas.
O pae de Rosália tinha sido um trabalhador hu-
milde, que vivera e morrera pobre, legando á filha
um casebre ensombrado pelas trepadeiras e alguns
palmos de terra, poucos eram, em redor do casebre.
Fora uma doença prolongada a do pobre trabalhador,
<e succedeu não haver um vintém em casa no dia em
que rendeu a alma a Deus.
Rosaiia enxugou as lagrimas que lhe cahiam a
rodos, cobriu a cabeça com o seu lencinho preto e
foi contrahir uma divida a fim de comprar a morta-
lha e o caixão para o enterro do pae.
No dia seguinte ao dos funeraes, Rosália ficou a
scismar no futuro e lembrou-se de que tinha uma di-
vida sagrada. Em ultimo caso^ poderia vender o ca-
sebre e pagal-a. Mas o casebre tinha-lhe sido berço
e queria-lhe ella tanto que morreria na hora em que
tivesse de vendel-o.
N'este momento entrara um raio de sol pela ja-
nella dentro ; parecia uma inspiração ! Yira Rosália
56
espanejarera-se fora, á laz do dia, algumas pobres
flores que tinha cultivado em derredor da choupana.
Yiu-as e lembrou-se de que uma occasião a se-
nhora morgada de Pedrouços lhe dera algumas prati-
nhas por um ramo de violetas. Fez-se luz na alma
de Rosália. Apegou-se com as flores para que lhe
protegessem a sua innocencia. m
Ha mulheres que por ambiciosas precisam de ■
muito ouro para ser felizes. Rosália tinha sido edu-
cada na pobreza e não acalentava ambições. Emquanto
outras desejavam sedas, Rosália aspirava a pagar a
sua divida e a ganhar o sufficiente para a alimentação
quotidiana. Desde esse dia a pobre rapariga tornou-se
ramilheteira. %
Yendia flores pelas casas nobres das freguezias
mais próximas. As senhoras morgadas, quando viam
assomar á porta a innocencia coberta de flores, rece-
biam-n'a alegremente.
Parece-me que seriam felizes as raparigas des-
protegidas que pudessem seguir o exemplo de Rosá-
lia. Em Portugal não se estimam as flores e não
ha ramilheteiras. No estrangeiro — e já não quero
fallar na Hollanda — criam-se sociedades tendentes a
proteger a floricultura e ha mercados especiaes para
flores.
Em Londres enxameiam por toda a parte as floiver-
girls^ mulheres que vendem ramilhetes, e 6 fácil en-
contrar pelas ruas um carro de pau, cheio de vasos
com plantas e puxado por um jumentinho. Além d'isto
o Palácio de crystal, a Royal society of horticidture
Õ7
e a Hot/al Uotnnical societij ostcndem a sua protecçlío,
a todos os floricultores.
Em Pariz, uo tempo em que Paulo de Kock escre-
via aquelle bonito romance da Jenny^ havia nada
menos de trez mercados de flores. Estava um perto
do Palais de Justice, que se abria ás quartas feiras
e aos sabbados e era frequentado pelas costureiritas
pobres, pelos operários e ainda pelos estudantes do
bairro Latino. Havia outro ás segundas e quintas, no
Boulevard Saint-Martin, defronte do Chatean d^Eaii ;
e finalmente outro, ás terças feiras e aos sabbados, ao
pó da igreja da Magdalena, que era o mercado da
gente fashionahle.
p]is aqui as flores ao alcance d'uma algibeira bur-
gueza, visto que «ellas, como diz Paulo de Kock,
são o único supérfluo que os pobres se permittera
comprar. Um supérfluo que dá um momento de feli-
cidade, poderia ter quasi o direito de passar por um
necessário. »
Izabel, a ramilheteira do Jockey-Chih^ essa provê
de flores a aristocracia, apesar de não faltarem ellas
por lá em qualquer parte que seja. Em Itália, sobre-
tudo em Milão, o difficil que um viajante atravesse
uma praça ou entre n'um café, sem que se veja cer-
cado d'um enxame de raparigas que lhe offerecem
ramilhetes. « Os ramos, escreve Júlio C. Machado, não
são notáveis nem pela abundância nem pela varieda-
!de, mas são leves e bonitinhos.» É justamente como
os eu quero.
Deixemos que os reis se troquem houqitets valio-
58
sissimos, como o que, ha pouco tempo ainda, oífere-
ceu o imperador da Rússia á imperatriz Eugenia.
A ostentação é própria dos reis ; deixemos a elles :
o avaliarem tudo pelo seu valor.. . real. (
Aqui no Porto, onde tanto abundam as flores, não
ha ramilheteiras como eu disse e como todos sabem, ^
a não ser pelo carnaval á porta do Palácio de crystal, \
que ó só então que nos apparecem algumas rapari-
guitas a vender violetas n'uns açafatinhos de verga.
Faz pena ver engeitar com tanto desamor o que a
natureza nos dá com tamanha abundância, que chega
a parecer prodigalidade!
Yoltemo-nos, porém, á nossa pobre Rosália, que
já tem pago a sua divida e continua a vender rami- :
Ihetinhos. f
Adoram-n'a os pintalegretes da aldeia; Rosália nem
dá por isso. O Joaquim da Portella foi um rapazito da
sua educação, que embarcou para o Brazil aos quinze
annos. Rosália acostumou-se a vêl-o, e chorou muito
quando o pobre rapaz sahiu d'aldeia com a sua troi-
xinha á cabeça. Tinham passado oito annos depois da
partida de Joaquim e o certo e que elle nunca se es-
quecera de escrever ao pae de Rosália.
Depois que a rapariga ficou orphã, Joaquim es-
creveu apenas uma vez. Rosália entrisieceu-se com
isto. Pensou porém maduramente sobre o caso e disse
de si para comsigo :
— Ainda me estima. Mas como eu fiquei sósinha
no mundo, não quer dar rebate á freguezia com a sua
correspondência. Não tem dúvida.
59
E entretanto a pobre raparÍG:a lá ia moirejaiido
'na sua vida sempre a cuidar das flores, sempre bonita
e alei]:re. Ultimamente, pelo S. João do anno passado,
dizia-se na aldeia que Joaquim voltava, mas ninguém
sabia ao certo quando chegaria.
Eis-nos outra vez na alameda. A^em rompendo o
dia e Rosália ainda não appareceu.
Anda colhendo flores, porque o dia de S. João ó
um dia de festa e ella terá de vender innumeros rami-
Ihetes. Levantou-se ainda de noite para trabalhar. As
outras raparigas, que tinham posto os copos cora os bi-
lhetinhos no parapeito da fonte, ao fundo d^alameda,
correm a abril-os e vêem saltando e dizendo :
— Manoel, és o meu noivo!
— António, venceste !
— Luiz, ganhaste tu !
E n'este comenos aproximava-se Rosália cora o
seu açafatinho de flores.
— Eu esqueci-me ! — apostrophou ella.
— Mas não me esqueci eu — tornou-lhe uma rapa-
riga. — Deitei bilhetes por ti e esperava que chegasses
para os ires tirar do copo por tua própria mão.
— Obrigada — respondeu Rosália.
— Yaraos vêr — accrescentaram as outras rapari-
gas. E foram.
— Joaquim ! — gritaram vozes era coro — O bi-
llhete diz Joaquira !
As raparigas derara-se as raãos e começaram a bai-
lar á volta de Rosália, pronunciando tumultuosaraente:
— Joaquim!
60
— Joaquim !
Kosalici não pôde dominar a alegria qne sentia e
sorria-se para as outras com ineífavel doçura.
— Eosalia ! — disse alguém de súbito — Kosaliu !
Era uma pequenita que a chamava.
— Que me queres ?
— Está alli, á beira do caminho, um homem que
vem de mando da senhora morgada não sei d'onde e
qne te quer comprar flores.
— Esperai — disse Rosália ás raparigas — esperai,
que eu venho já.
D'ahi a nada ouviu-se um grito. A raparigada
aííluiu ao fundo d'alameda precipitadamente e, como
se todas as vozes se conglobassem n'uma só, ouviu-se
exclamar :
— Joaquim ! E o Joaquim !
Era elle. Mal desembarcara, pôz-se a caminho
para chegar á aldeia.
— Inda 6s o mesmo ! — diz Rosália.
— Mas parece um fidalgo 1 — accrescenta outra..
— O que tu não terás soffrido ! — profere de novo
Rosália.
— Muito I — responde Joaquim — Muito ! Esteve
o navio quasi perdido. O vento era desabrido e o
mar levantava-se em montanhas. Era ao fim da tarde.
Apesar de ser tão bonito ver pôr o sol, no mar, d'aquella
vez não se lobrigava pedaço de cóo. Uma rajada mais
forte soou. O navio rangeu, nós estremecemos todos e
o capitão, que era um homem animoso, descorou. Ti-
uha-se quebrado um dos mastros. . , A tempestade cou-
Gl
tiiiuava o nós contavíimos morrer uíi:ari\ados ás taboas
do navio. Chamaram todos por Nossa Senhora e eu —
que nossa Senliora me perdoe — cliamei por ti, Rosá-
lia! O certo ó que pouco depois o mar foi serenando
e as sombras fugindo. D'ahi a uma hora via-se a lua
no céo e batia o reflexo nas aguas. Depois continua-
mos a viagem com felicidade e agora aqui estou, ao
p6 de ti, minha Rosália. . .
— Para seres muito feliz, não ó verdade ? — inter-
rogou ella — E já me ia esquecendo que me tinhas
encommendado flores ! Olha Joaquim, como soubeste
tu que a tua Rosália era ramilheteira, se apenas me
escreveste uma vez, depois da morte de meu pae e
me não perguntavas nada? "Porque me uão escrevias?
— Não queria — respondeu elle, que a gente da
freguezia te accusasse de receberes cartas amorosas. —
Escrevi ao Luiz Rego a perguntar por ti e soube que
vendias flores. Respondi-lhe logo e disse-lhe que com-
prasse todas as semanas, em seu nome e por minha
conta, uma boa porção de ramos. . .
— Ah! Eras tu que mandavas!... Eu scismava
com a devoção do Luiz Rego, que enchia de ramos a
igreja, todos os sabbados ! Abençoado dinheiro ! foi
com elle que paguei a mortalha de meu pae. Agora é
justo que não compres mais flores ; aqui tens este
ramo.
— Quero-o com a tua mão — respondeu elle.
Porto — junho de 1869.
I
A FOLHA VERDE
Havia no pequeno quintal uma laranjeira copada
por onde ia trepando a hera sempre verde.
Ao pé do tronco estava o banquinho de pedra em
que se recostava ao fim da tarde aquella gentil mulher
de cabellos negros. Quando o sol começava a incli-
nar-se para o mar e os barcos de pesca desciam placi-
damente a corrente do rio, quando os pescadores
velhos, impossibilitados do trabalho, fumavam pensa-
tivos no seu cachimbo denegrido, alguém atravessava
o areial, a passos largos, em direcção á porta verde
que vedava a olhos profanos aquelle jardimsinho en-
cantado.
A porta estremecia levemente ao entrar um vulto
escondido pelo veo mysterioso da noite.
D'ahi a instantes chilreavam de manso os dois
inamorados ao pé da laranjeira. , .
Calava-se então o mar como para lhes não inter-
romper o dialogo mavioso. Da pai*te do levante subia
64
a lua raeio-velada por uma faclia de pinheiros irregu-
lares. Descahia a natureza inteira na suavissima mor-
bidez d'uma noite estiva.
Era então que se trocavam protestos, que se reno-
vavam sonhos de felicidade. Nada ha, ii'este mundo
d'invejas e ambições mesquinhas, que chegue a fazer-
nos esquecer, no decurso da vida, esses dulcissimos
devaneios d'um coração em flor.
Permitta-se-me o recatar mysteriosamente os ver-
dadeiros nomes dos dois personagens d'este drama dos
vinte annos.
O nome é uma palavra e as palavras fogem na
aza do vento ...
Fallemos pois d'essas duas almas embriagadas na
vertigem sublime do amor e vejamol-as a bater des-
cuidosas as azas brancas pelo céo da felicidade, para
as contemplarmos depois n'aquella separação a que
obrigam as convenções da sociedade e que me quer
parecer a suprema desventura d'este mundo.
Ha uma coisa peor que a indifferença : 6 a ne-
cessidade de se mostrar a gente indifferente.
Quer a sociedade levantar uma barreira de gelo
entre duas almas que nasceram uma para a outra. E
levanta-se a barreira. . . Ai ! mas debaixo d'essa neve
immensa referve suffocado o vulcão escandecente.
E se um dia se despega a massa enormissima do
gelo, ai d'aquelle que tentar apagar as lavas que se
arrojam para cima como em diluvio de fogo !
Não me digam que se deixa morrer assim o amor
que nasceu hontem.
I
65
Não dipim. Ativela-se a mascara da indiíferença
sobro o rosto, mas se a mascara nos calio uma vez
no tripudiar vertiginoso do carnaval perpetuo — a que
se chama vida — vcem-se ainda nas faces os signaes
das lagrimas que se choraram lia pouco. . ,
. K os dois namorados segredando amores debaixo
da laranjeira. . .
Algumas vezes, porem, interrompia-se o myste-
rioso dialogo. N'essa occasião uma nuvem sombria
velava a face da lua, e um presenti mento de desgraça
escurecia por momentos a melancólica alma do moço
scismador.
— Que tens ? — perguntava a carinhosa amante.
— Nada. Passou . . . Era uma nuvem negra que
toldava o disco da lua. . .
Depois recomeçava o dialogo apaixonado como
d'antes. Aquelle segredar dos dois era como que uma
tempestade d'ideias a referver n'um mar de palavras.
— Se te amo ! — dizia elle. Amo-te, sim. É por ti
que eu desejo ser grande, é para ti que eu vivo, que
eu trabalho, que eu estudo. Quizera ter os loiros da
gloria para tapetar com elles o caminho que tu pizas.
Oh ! se te amo, luz eterna dos meus olhos, flor per-
petua da minha alma. . .
— Que Deus nos abençoe — murmurava ella. —
Sim. Seremos felizes com as graças do céo. — E de-
pois arrancando uma folha de hera, tornou vehemente:
— Aqui tens esta folhík Quando ella seccar algum
dia, o teu amor lhe dará nova seiva para que rever-
deça logo. D'este modo será eternamente verde e
5
66
conservar-se-ha para sempre como o symbolo eterno
do nosso tão puro amor.
— Ah! sim, dizia elle — recebendo a folha. —
Deixa-me beijal-a, ó anjo, porque já teve a suprema
felicidade de receber o calor dos teus dedos de fada.
Deixa-me beijal-a, porque ha de ser para mim uma
recordação preciosa, e Deus sabe se uma saudade. . .
talvez.
E ao pronunciar a palavra s— saudade — descahia-
Ihe a cabeça e cerrava os olhos como para não ler o
futuro no livro negro do Destino.
Depois . . . quando as estrellas desmaiavam no céo,
fechava-se cautelosamente a porta verde do jardim.
Decorreram os dias uns após outros em sonhos
de felicidade; era um viver de rosas que não podia
durar muito.
Uma noite, ao fechar-se a porta do jardim, sonha-
ra o moço namorado que se fechava atraz d'elle a
porta do paraizo.
E realisou-se. . . o sonho.
Quando ia atravessando a praia, rompia a manhã
e voltavam do mar algumas lanchas. Em uma d'ellas
vinham os pescadores cantando.
De repente interrompeu-se o coro saudoso dos ho-
mens do mar, mas fora breve a interrupção, porque
romperam as- vozes pouco depois n'esta lenda tristís-
sima da praia;
I
I
67
Era uma noito de lua,
Das noites d;i beira mar.
Nâo ha noites mais saudosas,
Nem mais saudoso luar.
Diziam amor os astros
Doirando as ondas do niar.
— Amor — diziam as ondas.
Namoradas do luar.
Descobria-se na praia,
Como estatua erguida ao ar,
Um vulto em pé sobre as fragas
Embebecido a scismar. . .
Ciiamou a terra uma lancha,
Que do noite ia a pescar,
« Levai-me também, que eu pago,
Mas quero hoje ir ao mar. »
Decorreram-se momentos,
Fizera-sc a lancha ao mar.
Os remos cortando a agua
E o vulto sempre a cantar.
Foi cantando toda a noite
A.té morrer o luar.
Depois ergueu-se na proa,
Deixou-se cahir ao mar. . .
Quedara o moço a escutar o canto dos pescado-
res e sentiu, n'esse momento, um braço de ferro a di-
lacerar-lhe o coração fibra a fibra.
E as lanchas vinham aproximando-se, e as vozes
68
accordes dos pescadores repetiam já perto de terra os
dois últimos versos da lenda :
Depois ergueu-se na proa,
Deixou-SG cahir ao .mar.
Ao entardecer d'esse dia o mesmo vulto atraves-
sava a praia. As filhas dos pescadores conheciam aquelle
homem de passar por alli todas as tardes e, quando
elle se aproximava, diziam baixinho umas ás outras:
— Olha! ahi vem o namorado...
A porta do jardim, porem, não se abriu n'essa
noite... Era profundo o mysterio ! Decorreram as
horas, e o vulto permaneceu encostado á ombreira da
porta^, como se a mão de Satanaz o houvera chumbado
alli.
A lua tinha rompido de traz do pinheiral linda
como na véspera. Da parte de fora do muro via-se so-
bresahir á laranjeira illuminada pelo reflexo saudoso
do luar. E a porta não se abria... nem se abriu
mais.
Eu não sei como o homem tira da fraqueza do
barro a coragem precisa pai"a resistir a magoas tacs
como esta !
Ver desfazer-sc o paraizo sonhado cm tantas noi-
tes de felicidade, ver desfolhai'-se para sempre a gri-
nalda florida dos vinte annos, e não ir pedir á morte
o descanço eterno da matéria que ella aniquila !
Abençoado o raio d'amor que nos suspende á beira
do abysmo.
09
Esse homem. . . tinha mãe.
Bemdito mil vezes o coração materno, urna de bál-
samos para toda a ferida, cofre de thesoiros para toda
a pobreza, sacrário de consolações para toda a desven-
tura.
Bemdito o amor que não morre, bemdito o amor
que não encana, bemdito o amor que não mente.
Ó coração de mãe, abre o teu seio ás lagrimas
d'um filho e enxug*a-lh'as no sudário do teu amor, que
são muitas e muitas. . .
Havia n'uma aldeia um coração de mãe a chamar
por esse homem desgraçado. Partiu emfim o moço
desventuroso, dizendo adeus ao bulicio da cidade onde
lhe ficavamx para sempre a mocidade e a esperança,
na tarde em que a mulher dos seus sonhos, diante do
altar, estendia a outro homem a mão ainda quente do
contacto da sua.
Que será partir para não voltar mais ? — pergun-
to eu áquelles que andam chorando por longe e para
sempre saudades de tudo o que lhes era mais caro.
Os que nunca sahiram da beira do seu lar, de ao pó
da sua esperança, esses, são tão felizes que nem che-
gam a comprehender tamanhas desventuras. E nos lá-
bios d'elle nem uma palavra d'azedume, nem uma
queixa amarga, nem um rugido de vingança.
Todavia a folha de hera estava . . . ainda verde I
k hora saudosa em que costumava abrir-se a porta
do jardim, partia elle, caminho d'aldeia, cheio o co-
ração d^immensas amarguras.
Ficaram a choral-o os amigos Íntimos, como que
70
lamentando em commum a perda que era de todos
elles.
Quando começaram a apparecer as primeiras arvo-
res d 'aldeia, então é que foi o despeitorar suspiros
abafados e lagrimas represadas. Esperavam-n'o aber-
tos, na casa onde nasceu, os braços de sua mãe. Ahi
quiz Deus que se identificassem na mesma amargura
aquelles dois corações, que se misturassem na mesma
torrente as lagrimas da mãe e do filho.
Era um coração a chorar pranto de dois.
Entretanto a folha de hera estava . . . ainda
verde.
N'uma noite de lua debruçava-se o moço pensa-
tivo na janella do seu quarto sobranceira ao pomar.
Tinha a carteira aberta e contemplava ao clarão
saudoso do luar a folha verde que guardava como
recordação eterna. Deu tento a mãe do longo scismar
do filho. Entrou ao quarto despercebida e chegou á
janella no momento em que uma sombra ligeira enco-
bria a lua.
— Lagrimas, meu filho! — murmurou ellan'ura
tom doloroso.
— Já não ó nada — respondeu elle. — Passou . . .
Era uma nuvem que velava a lua. . .
Porto — março de 18G9.
A LENDA DA BARCA
Xão terão cabimento, n'este livrinho de prosas
correntias, algumas paginas em verso ? Por que não ?
A lenda da barca é uma tradição que eu desejei
co7itar ao correr da ijen7ia e que, encarada por este
lado, não offende a Índole dos esboços despretenciosos
a que vem associada.
Quasi me não lembrava do publico, quando a com-
puz. Escrevi-a para o snr. Thomaz Ribeiro, a quem
é offerecida, convencido de que havia d'encontrar ecco
saudoso no coração do cantor do — D. Jayme — e da
— Delfina — a historia do pobre barqueiro que se
deixou morrer d'amores. Quiz o snr. Thomaz Ribeiro
que me não enganasse. Adiante verá o leitor o canto
mavioso com que o distincto poeta se dignou respon-
der aos meus pobres versos.
Ahi vai pois a le7ida da barca com as poucas pa-
lavras que a precederam, quando em abril d'este anno
appareceu no Jornal do Porto :
72
« Fallaram-me dos amores desventurosos do bar-
queiro Ramiro n'umas paragens tristes do Douro. A
velha tradição d'estes amores atravessou a barreira do
tempo e com o decorrer dos annos revestiram-n'a de
certo caracter lendário os camponezes do sitio, que
ensinaram aos filhos a lição herdada dos pães. Existi-
ria o barqueiro Ramiro ou não passará a tradição
d'estes amores d'uma phantasia devida á penna ob-
scura d'algum antigo bardo d'aquellas serras? Não
sei. A ribeira e os rouxinoes, a que se allude na len-
da, lá estão ainda e devem de estar como no tempo
do barqueiro Ramiro : — a ribeira florida ; os rouxi-
noes palreiros como d'antes. Que importa que não se-
jam os mesmos d'entãoV
No tempo de Ramiro cantavam uns que morreram
já, é verdade. Esses, porém, ensinaram aos filhos o
thema mavioso dos seus descantes nocturnos, e a tra-
dição transmittiu-se de rouxinol para rouxinol. São
outros os rouxinoes ; os descantes os mesmos. Deve de
acontecer com as aves o que succede com os homens:
cada familia tem a sua tradição, assim como cada povo
tem a sua historia.
Diz a lenda que os rouxinoes cantavam de sau-
dade no tempo de Ramiro; ainda assim 6 hoje. O the-
ma e o estylo são os mesmos. Todavia o correr do
tempo modifica a tradição popular de uma lenda qual-
quer n'um ou n'outro verso e ó de suppor que tenha
corrompido n'uma ou n'outra nota a partitura legen-
daria dos rouxinoes.
Ainda lá está na ribeira a pedra lisa em que as
73
lavadeiras do sitio batem as suas roupinhas. Alli de-
veu Rosa lavar os seus bordados. E nHo fallar a pe-
dra ! O (jue ella nílo diria d'aquellas rendas alvíssimas
costumadas ao suave conchego d'um seio virginal !
Ramiro ó o typo dos namorados desventurosos.
Deixou-se o pobre moço entrar de fundas melancolias,
quando olhou em si e lobrigou a sua barca a boiar
nas aguas com a pobreza dentro... Que importava
sentir-se bom e honrado e nobre ? Tinha apenas de
seu quatro taboas e dois remos. Isto era muito para
elle e pouco... para o mundo. Cançou-se de sonhar
venturas, que não pudera ver realisadas e atirou com
o fardo da vida ás aguas da corrente. Dar-lhe-ia lagri-
mas de saudade a sua Rosa ? Xão sei. Quero ató que
Ih 'as não desse, para se me affigurar maior o sacri-
fício.
Tentei aproveitar a lenda da barca, como lhe cha-
mam n'aldeia. Vejo, porém, que não corresponde a
obra aos meus desejos. V. exc.*, que se digna acolher-
me com extrema benevoleiícia, animará ainda d'esta
vez os meus justos receios.
Entro no palácio hospitaleiro de Parada de Gonta
com a alegria do camponez que vai offerecer ao cas-
tellão um cabaz de flores silvestres, embora os mais
opulentos se riam da mesquinhez do presente. Vou
alegre porque sei que hei de achar abertos os braços
d'um mestre que me inspira a máxima dedicação.»
74
A LENDA DA BARCA
f
Lá baixo onde ha os salgueiros,
Quasi ao pé d' agua, depois
Que o sol transmonta os oitoiros.
Vem cantar uns rouxinoes.
Entretanto a lua rompe
E mostra o disco saudoso.. .
Ninguém lá os interrompe
No seu cantar mavioso.
D' entre as gentis lavadeiras
Não ha uma só que se affoitc .
A vir lavar nas ribeiras
Áquellas horas da noite.
Mal sobe a lua, n' aldeia,
Ninguém se fica por fora.
Já em casa espera a ceia,
Apenas chegar esta hora.
Só o barqueiro Ramiro
Ficou inda á beira d' agua.
Prende-o n'aquelle retiro
A sua perpetua magua. ..
Guardou cuidadoso os remos,
Prendeu a barca e depois
Sontou-se e disse : « Escutemos
As maguas dos rouxinoes. »
75
n
Vinfannos contava Rosa,
A mais gentil lavadeira,
— Talvez a mais cuidadosa —
Quo lavava na ribeira.
Sempre na beira do rio
Cortava na vida alheia
O fallador mulherio
Reunido cm assembleia.
Só Rosa não dava ouvidos
Por ser mais trabalhadeira.
Mal que apanhava os vestidos,
Era lavar com canceira.
Batendo a saia de folhos,
Ensaboando os bordados.
Muito a medo erguia os olhos. .
Pareciam na agua cravados.
Se ás vezes os levantava
Com seu olhar feiticeiro,
Sempre a miral-a encontrava
O namorado barqueiro.
Ella baixava-os corando
E então lavava e lavava. . .
Mas depois de quando em quando
Outra vez os levantava. . .
Vinha a noite, a lavadeira
Voltava a casa. Depois. . .
Enchiam toda a ribeira
As vozes dos rouxinoes.
■\
76
III
Dize, Ramiro, o segredo
Do teu suspirar maguado.
Pois não vês erguer-se a medo
Aquelle olhar namorado ?
— Olhar tão puro e tão santo !'
Tão expressivo e tão dooe ! —
Onde viste igual encanto
N'um olhar d' anjo que fosse ?. . .
Em que scismas longas horas
Na solidão da ribeira?
Sonhas talvez a deshoras
Ver lavar a lavadeira?
Ou ficas d' olhos pregados
N'aquella pedra — um thcsoiro !
Onde firma os pés nevados,
Se lava no lavadoiro ?
Os rouxinoes das ribeiras
Cantam bom ao desafio.
Mas ficar noites inteiras.
Só para os ouvir, ao frio !
IV
Sei no que pensas, Ramiro ;
Não estranho a tua magua.
Cantai-lho n'esse retiro,
Rouxinoes da beira d' agua. .
Ai ! 80 to ama a pobre Rosa !
Ama-to muito, bom vojo
Como, ao vòr-to, do medrosa
\A\(i assoma o rubor do pejo.
Es pobre, Ramiro, és pobre,
Arrostas o sol o o frio
Feia moeda do cobre.
Que to dá quem i)assa o rio.
E a lavadeira é formosa !
Qualquer lhe dará bem oiro
Para beijar — pobre Rosa I . . .
Os seus cabellos côr d'oiro. . .
Sei no que pensas, Ramiro ;
Não estranho a tua magua.
Cantai-lhe n'esse retiro,
Rouxinoes da beira d' agua.
Queres fugir á desgraça,
Que te espera qualquer dia. . .
Por isso a noite se passa
Na mesma melancolia.
V
Até que emiim resolveste
Não voltar ao teu retiro.
Veio a noite e não prendeste
A tua barca, Ramiro !
Rio abaixo vaes remando,
Sem que te cancem os braços !
Só paras de quando em quando
E fitas mudo os espaços . . ,
78
Suspiram tristes as aguas,
Que leva o rio palreiro,
Como a juntar suas maguas
Ás tristezas do barqueiro...
Passou-se a noite ; ao ser dia
Um pescador da ribeira
Achou a barca vasia
Encalhada na pesqueira.
Que tu, Ramiro, deixasses
A barca, — o teu companheiro !
O' barca, se tu fallasses,
Que dirias do barqueiro ?. . .
Porto — março de 1869.
Dias depois da publicação d'esta lenda^ escrevia-
me o siir. Tlioraaz Kibeiro o que se segue:
«... Sabe? intristeceram-me aquelles versos por-
que eu posso também dizer :
— Amante fui triste e absorto
como Ramiro o barqueiro,
e achei-me afogado e morto
nas maguas do amor primeiro.
Á beira d' agua assentado
csp'rci como ello ! . . . o depois V ! . .
passei noites enlevado
no canto dos rouxinoos I , . .
79
Dopois disse á pòdrc calma :
ahi tens meu corpo ! — lia quem remo ?.
— barca em quo andava a mi nh' alma
emquauto o amor lhe foi Icmo ;
emquanto a esp'ran(,'a foi vela
e nas trevas do aguaceiro
a fé lhe mostrava a estrella ! . . .
e hoje. . . barca sem romeiro !
Sem presente e sem passado,
sobre o mar longe d' um porto
sou barco desarvorado :
pareço vivo e estou morto.
Meu presado amigo. Sahiii-me isso ao correr da
penua, quando acabei de ler os seus versos. Isso não
presta e só o escrevi n'esta carta para lhe provar que
a sua lenda me inspirou.»
D'aqui renovo os meus agradecimentos ao snr.
Thomaz Ribeiro, contente por lhe ter suggerido a ideia
de escrever tão suaves endeixas e por mostral-as aos
leitores d'este livrinho, que verão n'ellas a única coisa
valiosa que se encontra em tudo isto.
Porto— julho de 1869,
AS DUAS FITAS
COR DE ROSA
Marmier, na introducçtão á — Solitude — de Zim-
mermann, escreve o seguinte: «Buftbn, n'um dos
seus melhores tratados, fez notar a acção diversa
dos climas sobre a organisação physica e moral do
homem. Um sábio e respeitável escriptor, M. de Bons-
tetten, consagrou um livro inteiro ao mesmo assumpto. »
O certo é que Marmier inclina-se muito á opinião
de Buffon e Bonstetten ; e eu vou também d'accôrdo,
n'este parecer, com o biographo de Zimmermann.
Estou n'aldeia, ha dois dias, n'uma aldeia solitá-
ria das margens do Douro, defronte do convento de
S. João de Alpendurada onde morreu aquelle desgra-
çado bispo do Gran-Pará, Frei João de S. Joseph de
Queiroz. O snr. Camillo Castello Branco escreve, nas
Memorias do bispo, com referencia ao convento de
S. João de Alpendurada, o que se segue: «É aquelle
82
mosteiro triste, empinado n'uns rochedos que se de-
bruçam sobre o Douro. É lá em cima no monte Ara-
dos, onde as neves hybernaes requeimam as raizes do
bravio para que alli não íloreçam os gestaes em abril,
nem as tojeiras no dezembro se dourem com os seus
festões amarellos.»
Não sei se o snr. Camillo já veio a S. João de j
Alpendurada ou se escreveu por informações; o que
sei é que foi exacto na descripção.
Ora a aldeia em que estou, freguezia de Santo
André de Sozello, resente-se da visinhança do monte
Arados ; quero dizer, é triste e solitária como elle. O
certo ó que me fiz aldeão, cuido que por influencia
do clima, que actuara subjectiva e objectivamente so-
bre a minha organisação moral e physiologica.
Para me não deixar, pois, entrar de tristezas pró-
prias do sitio, fui-me hontem por brenhas e atallios
fora a espairecer o espirito cançado da viagem. Che-
guei insensivelmente a meio d'um cerro e rodeei a
Casa dos olivedos, propriedade d' um rapaz que fora
meu condiscipulo em 186G. Sahiu-me da revolta do
quinchoso o caseiro da quinta, de enxada ao hombro
e chapco na mão.
— Santas tardes, meu homem. Você é caseiro
da quinta ?
— Saiba V. S.^ que sim.
— Seu amo está em casa ?
— Meu amo, senhor! Ha dois annos que não veio
á (piiiita. Vive em Leça da Palmeira, ^cho que 6'
perto do Porto. .. O senhor deve saber onde tica. O
83
certo ó ({uc casou por lá c por lá vive, hii dois
aniios.
— Pois seu unio vive em Le^a, lia dois annos, sem
que eu o tenha visto, durante esse tempo, uma vez
sequer ! Com quem casou elle ? Conte-me lá tudo o que
sabe.
Ahi vai, pois, tudo o que me contou o caseiro de
Rodrigo Sotto-Maior e o mais que eu sei a este res-
peito.
O estylo fragoeiro d 'estas paginas deve claramente
resentir-se do meu rusticar com a gente do campo, do
perfume agreste dos mattos, e da visinhança do mos-
teiro de Alpendurada, solidão tristissima, onde agoni-
sou o bispo do Gran-Pará.
I
— O senhor conheceu, por acaso, em Leça, a viuva
do capitão Mathias ? — interrogou o caseiro.
— Do capitão Mathias. . . — repizei eu — Conheci.
Tinha uma filha rasoavelmente bonita, a quem nós, os
banhistas de 1866, chamávamos a menina do tope ver-
vicUw.
— A menina de quê, senhor ? — atalhou o caseiro
com a palavra tope entalada nos gorgomilos.
— Do tope vermelho, homem. Chamávamos assim
ao laço de fita, que ella usava no cabello com uma
galanteria indisivel. Mas a que vem isso?
— Pois foi ella. . .
— A que casou com o Rodrigo ? Ora essa ! Pois
o Rodrigo casou com a menina do tope vermelho ?
84
— Ha de ser a mesma. Foi com a snr.^ D. Júlia
Mathias que o snr. Rodriguiiilio casou, ha dois aniios.
Esteve a banhos em 1866 e acho que só tomou os
trez da igreja. Casou e não veio mais. E como diz a
cantiga :
Quem'stá bem, deixa-se estar.
— E que sabe mais ?
— Quasi nada. O que lhe posso dizer 6 que já
teem um filho e que dizem que hão de vir á quinta
na primavera. . . Então o senhor era amigo d'clle?
— Amigo ! Amicissimo. Conheço-o desde 1866. Foi
meu condiscípulo nas aulas e depois acompanhei-o,
frequentes vezes, em Leça.
— Pois aqui está o que eu sei.
— Bem. You-me por aqui abaixo, surprehendido
com a noticia. Já se vai fazendo tarde. Adeus.
— Adeus, meu senhor.
Desci por uns atalhos tortuosos ató á estrada. Vi-
nha a scismar na menina do tope vermelho e no ca-
samento de Rodrigo Sotto-Maior, o meu condiscípulo
de 1866. I
No setembro d'esse anno a formosura da filha do
capitão Mathias deu rebate aos mais galliardos banhis-
tas de Leça. Distinguia-se a requestada senhora, en-
tre o rancho das mais feiticeiras nereidas da praia,
por um tope de fita vermelha, artisticamente pregado
110 cabello, como borboleta d 'escarlata, que continua-
damente estivesse osculando a trança d*ebano.
E depois tinha uma graça no andar, uma certa
85
elepuu'i;i no apíiiilmr dos vestidos e, dipimos tudo^
uma desenvoltura, que lhe era natural e nao ehe^ava
a ser liceneiosa !
Kstanceavam debaixo das janellas de Júlia os pin-
taleí^i-etes da praia ; era um eonstante arremetter de mi-
lhafres namoradií^os á timida andorinha, que se esqui-
vava ainda.
Uma tarde sahi eu a passeiar com Rodrigo Sotto-
Maior. Assomamos á volta d'uma rua e vimos, n\ima
janella, uma mulher negligentemente pensativa. O
ruido dos nossos passos despertou a contemplativa
senhora, que levantara a cabeça para ver, indubita-
velmente, quem commettia a indiscreção de lhe pertur-
bar os poucos momentos livres de Narcisos importu-
nos. Ao tempo que a visão da janella ergueu a
cabeça, fizemos reparo na fita vermelha que lhe cingia
a fronte. Não havia que duvidar. Era ella! Era ella,
cujo nome circulava de boca em boca, porque nenhu-
ma das banhistas de Leça tinha ousado ainda derru-
bar a realeza do tope vermelho, imitando Júlia. Não
havia que duvidar. Era alli a habitação encantada
d'aquella mulher scismadora, que se deixava embalar
nas harmonias tristes do mar.
Cobrira-nos Júlia d'um olhar descuidado, mas de
tal modo reprehensivo, que parecia acoimar-nos d'in-
discretos. O certo, porém, é que Rodrigo Sotto-Maior
estremeceu, como um cadáver impellido por uma
pilha galvânica.
Dei tento da impressão de Rodrigo e nno pude
deixar de o apodar de namoradiço ridículo, capaz de
86
correr parelhas com uns sujeitos que se andam nar-
cisando pelas praias diante das ondinas que- sahem
do banho, entrajadas de baeta negra.
Pobres anjos! Nem eu sei para que as mulheres
tomam banhos do mar. Pobres anjos ! repetirei ainda.
Anti,2;amente os mais rispidos — e tambefn os mais
estúpidos — pães de familia negavam ás íilhas a ins-
trucção elementar do bastardo e do cursivo, com re-
ceio de que as meninas, doutoradas em primeiras
lettras, viessem, n'um dia, a sustentar correspondên-
cias amorosas !
Isto era o mesmo que dizer ás pobres meninas :
« Minhas filhas : O cora(,íão está dependente de
uma coisa que se chama o alphabeto ; quem não sou-
ber o a-b-c não pode amar. É por meio da combinação
das lettras que se escreve, formando palavras ; mas
com as palavras se fazem cartas e com as cartas se
faz muita coisa má, — por exemplo : escrever ! As
cartas são uma espécie d'abanador assoprando con-
stantemente ao fogareiro do coração. Casai; mas casai
por interesse e por calculo. Sede estúpidas e contai o
numero de vossos filhos pelos dedos.»
Isto era o que os pães de ha sessenta aunos pre-
leccionavam ás filhas analphabetas em vez de lhes
dizerem categoricamente :
«Meninas: Prohibo expressamente que minhas
filhas tomem banhos do mar. Arriscava-me a que
vocês ficassem eternamente solteiras como Minerva.
Sim, como Minerva. Lá diz o meu Virgilio: Innupta
Minerva. Quer dizer: Minerva, que costiunava tomar
I
87
/x/hIíos </() itnir iodos os onnos. V] a tradnci,'ão á lettra
para um pae oxiiorionto. Mulher que toma banhos do
mai- não casa, K uma (iòr do coração vêr-vos enfar-
dclaíhis n'um sacco de baetaj com os cabellos empas-
tados na cabeva, verpidas ao peso da saia húmida,
a tropeçar, a escabujar com as ondas, a arrastar-vos,
emlim, como salamandras. Nada! Quem se sentir mo-
lestado do nervoso, faça uso de anti-hystericos e dei-
xemo-nos de mar. »
Isto veio aqui por incidente. É que eu vi uma
vez, em Leça, sahir do banho a menina do tope ver-
)))clho, e tive pena de que as prescripções da medicina
fossem severas ao extremo de a despoetisarem, a ella,
a elegante, a graciosa, a coqitette!
Como eu ia a dizer, Rodrigo Sotto-Maior sentiu-se
fulminado com o olhar de Júlia.
Ha mulheres cujo olhar, por mais indolentemente
vibrado que seja, tem o condão fatal de produzir uma
impressão rápida mas profunda. O olhar de Júlia era
assim.
Peço licença para abrir um parenthesis : Não sei
se já virão serôdias algumas explicações sobre a pes-
soa de Rodrigo Sotto-Maior; todavia julgo que serão
indispensáveis e vou dal-as.
Rodrigo Sotto-Maior era filho d'um dos mais di-
nheirosos proprietários de Sinfães, que morrera em
1865 apopleticamente, deixando o filho com vinte e
quatro annos d'idade e com uma casa no valor de
quasi outros tantos contos de reis. Fallecido o pae,
veio o rapaz matricular-se nas aulas do Porto com o
88
propósito firme de não estudar nada. As aulas eram
para elle um pretexto com que procurava desculpar a
si mesmo os ócios d'uma vida livre e abastada. Ainda
assim frequentava regularmente as aulas, com as al-
gibeiras providas de charutos e esquecido dos com-
pêndios que não chegara a comprar. Este desamor
ao estudo pode redundar, na opinião de muitos, em
desabono da intelligencia de Rodrigo. Diga-se a ver-
dade. Rodrigo Sotto-Maior tinha larga capacidade in-
tellectual apurada na leitura dos melhores livros, que
lhe fornecia a casa More todos os mezes. Quando os
livros lhe chegavam a Sinfães, o moço, sedento de
novas leituras, lia-os, decorava-os; e quando já não
tinha mais que ler, esperava nova remessa, batendo
as moitas, á pista de coelho, de clavina aperrada.
Lembra-me agora contar-lhes que indo eu um dia
procurar Rodrigo, em Leça, pude surprehender sobre a
mesa de trabalho um álbum intimo onde elle archi-
vava os devaneios mais queridos do seu coração.
Rodrigo estava ainda recolhido, quando o procu-
rei. Esperei, pois, na ante-camara e logo se me de-
parou o álbum aberto na pagina em que se liam os
versos que eu, abusando da nossa velha amizade, pu-
blico. Li-os e para logo fiquei namorado da singeleza
suave da composição, que era indubitavelmente dirigida
á menina do tope vermelho.
Como Rodrigo se demorasse o tempo preciso para
eu não poder resistir á tentação de copiar os seus
versos, copiei-os. Perdôa-me tu, nobre amigo, o ter
devassado os mysterios do teu coração. Em nome dos
89
laçOvS sagrados que nos prenderam e que ainda nos
prendoni , perdòa-nie.
Diziam assim os versos:
CÔR DE ROSA
Ai! se me dósscs a fita
Com que prendes o toucado . . .
Côr de rosal tão bonita!
Dá-me esse laço encarnado
Com que seguras a trança.
Foi bem escolhida a côr !
Verde significa esp' rança ;
Roixo exprime auzencia e dôr.
Mas a fita côr de rosa
Diz tão bem no teu cabello !
Pois que a rosa cm si resume
Quanto uma flor tem de bello,
Côr, liiignagevi, perfume,
Sois irmãs ! A mão bemdita
Do Senhor fez- te tão rica
D'aquella graça infinita,
Que se vê e não se explica I
Vós ambas tendes perfumes,
Ambas a mesma innocencia !
Escusaes de ter ciúmes . . .
Não ha entre vós preferencia. ^
Foi a côr bem escolhida ! .
Mas se me desses a fita. . .
Deixando a trança cabida,
Talvez fosses mais bonita I
90
E eu faria d'ella algeDia,
Que mais a ti me prendesse. .
Côr de rosa ! tão bonita I
Quem não daria um poema,
Se tu lhe desses a fita V. . .
Dá-me esse laço — o diadema
Com que tu cinges a fronte,
— Coroa própria de rainha.
Pois se não teus uma ideia,
Que não seja tua e minha,
Não digas que te não peça
Essa fita côr de rosa,
Que te circumda a cabeça. . .
Dá-m'a. Sê boa e formosa.
Ai ! se me desses a fita
Côr de rosa ! tão bonita!
Os versos de KodrÍ2:o nasceriam e morreriam na
obscuridade, se os não tivesse offerecido á minha cu-
riosidade um feliz acaso.
Conheci então que Rodrigo estava verdadeiramen-
te namorado.
Feche-se agora o parenthesis.
No dia seguinte áquelle em que viramos Júlia,
encontramol-a de tarde casualmente, se não foi já
prophecia do coração namorado de Rodrigo, na Ponte
de Leça. N'um dos bancos, que se encostam ao para-
peito da ponte, estanceavam meia dúzia de leões em-
pertigados, despedindo sobre Júlia tão flammantes
olhares, que ella teria morrido n'uma fogueira d'in-
quisiçào amorosa se os raios visuaes dos moços na-
91
nioradi(,'os nào diniiniiissem a iiitensidtide caloriíica ao
atravessar as lunetas sem ^rau.
Fizemos reparo nos leões e os leões tizeiam reparo
em nós, porque Júlia dignára-se volver um olhar ex-
pressivo para Kodri<i:o Sotto-Maior.
— Queres íicar ? — perg-untei eu, dando tento do
olhar de Júlia.
— Não — respondeu seccamente Rodrigo. — Ficar
era ridículo.
Atravessamos a ponte, ladeamos o monumento de
Manoel Passos, e fomos sentar-nos n'um dos bancos
que lhe íicam próximos.
O certo é que Júlia havia-nos seguido com a
vista e não desfitava Rodrigo, accendendo a indigna-
ção dos leões despeitados com tão evidente preferencia.
Quando Júlia sahiii da ponte, Rodrigo Sotto-Maior
nào quiz seguil-a. Vimol-a desapparecer na extremi-
dade opposta e vimos também desfilar pacificamente,
em seguida a ella, a cohorte dos galanteadores offi-
ciosos.
Atravessamos a ponte, passado tempo.
Na esquina d'uma das cangostas tortuosas de Leça
topamos os leões reunidos em assembleia geral. Yiram-
nos e fizeram-nos cerco, isto é, montearam -nos como
a lobos damninhos. Choveu sobre Rodrigo Sotto-Maior
uma alluvião de epigrammas, que se resentiam da
ridiculez dos sujeitos que os dirigiam.
Rodrigo arrostou a pé firme as iras dos monteiros
indignados e, quando pôde escapar-se dignamente da
malha, segredou-me ao ouvido ;
92
— Vamos d'aqiii, que me sinto nauseado.
Na manhã seguinte, encontrei-me na praia, á hora
do banho, com Rodrigo Sotto-Maior.
N'essa occasião sahia Júlia do banho, e em.quanto
eu lamentava que a medicina obrigasse uma mulher
bonita e elegante a parecer feia e cambaia, Kodrigo
Sotto-Maior confiava á banheira n'uma folha de papel,
fechada em enveloppe, as primeiras palavras do seu
amor. Aguardamos a occasião em que Júlia sahisse
da barraca; vimol-a sahir e corar.
Ao ensejo de corar a menina do tope vermelho
ajustam uns dizeres bonitos do snr. Mendes Leal:
«Dirieis que o paniculo róseo da flor da bromelia, des-
pegada dos seus braços vegetaes, cahira sobre as pé-
talas tegumentosas d'um cacto branco das selvas. »
N'essa noite — uma lindissima noite de luar —
passamos, Rodrigo e eu, debaixo das janellas de Júlia;
ouvimol-a tocar piano. Escondemo-nos na sombra d'um
muro e quedamos a ouvil-a. Os seus dedos deviam
de correr vertiginosamente sobre as teclas do piano,
porque as notas afloravam em turbilhão com a rapi-
dez do relâmpago.
Ouvimol-a passar do Hernâni^ com uma veloci-
dade eléctrica, para o Roberto^ e do Roberto para o
Trovado?'.
Pouco depois o piano emmudeceu. Yimos Júlia
aproximar-se da janella e descer a vidraça; cuido que
Rodrigo lhe mandara um beijo n'um raio da lua.
A sala ficou por momentos ás escuras ; pouco de-
f
93
pois, poróm, uma claridade ahpivQ se coou atravós dos
vidros, reflecti ndo-se na rua.
Quem poderia duvidar de que Júlia estivesse, n'esse
instante, respondendo a Rodrigo ?
EUe adivinhou-o e eu presenti-o.
Demoramos ainda meia hora a coberto do muro ;
depois fugiu a luz e a janella fechou-se de vez.
Ao outro dia faltei na praia, mas veio Rodrigo pro-
curar-me e mostrar-me confidencialmente a resposta
de Júlia. Era apenas um bilhete, com quatro linhas,
de calligraphia elegante e grammatica escorreita.
O jubilo interior de Rodrigo irradiava-lhe no sem-
blante e resaltava-lhe dos olhos em chispas luminosas.
— És feliz, Rodrigo ? — perguntei eu.
— Cala-te — atalhou-me elle violentamente. — Ca-
la-te, que chego a ser egoista da minha felicidade.
Desde esse dia rarearam as visitas que Rodrigo
Sotto-Maior me fazia ; percebi o motivo que o impedia
de procurar-me, e desculpei-o.
Decorrida uma semana, entrou Rodrigo uma ma-
nhã, em rainha casa, de semblante demudado e com
ares d'inquietação.
— Que tens tu, homem ?
— Eu sei lá o que tenho ! Tenho o inferno no co-
ração. A viuva ]ííathias lobrigou as minhas relações
com a filha e ameaçou-a d 'entrar n'um recolhimento
do Porto. Parece-me que não tornarei a fallar-lhe!
E tu ainda me perguntas o que eu tenho ! Tenho o
inferno no coração, bem te disse eu. Fallava-me todas
as noites da janella abaixo. Que bonita, meu amigo,
94
quaudo a lua lhe batia de frente ! Que bonita ! Adeus,
adeus.
E desceu as escadas precipitadamente.
Fiquei d'espectativa alguns dias, findos os qnaes
Kodrigo me procurou de novo. Vinha completamente
socegado e jovial.
— Serenou a tormenta, meu amigo — disse-me elle.
— Post tejiehras sol liicet. Logramos engodar a pers-
picácia da viuva Mathias. Falíamos todas as noites no
quintal. Mal sabes tu o que eu passo para fallar-lhe.
Tenho de me engalfinhar n'uma cancella, de saltar um
muro e de me esconder depois n'uns pardieiros, que te
fariam estremecer de horror, se os visses. Queres tu
ver?— E foi abrindo a carteira. — Queres tu ver?
Sabes o que isto é ?
— Isso é o tope vermelho! — acudi eu simulando
surpreza — Isso é o tope vermelho !
— Tal qual. É o tope vermelho de Júlia. Quiz pos-
suil-o ; e obtive-o. É elle. . . o tope vermelho.
E Rodrigo dizia isto beijando-o sofregamente.
— Fizeste mal em pedir-lh'o, Rodrigo. Usurpaste-
Ihe, privando-a d'esse laço, a coroa da realeza. Foi
egoismo da tua parte.
— Não ha tal ! Júlia não precisa de pedir á toiletie
o esplendor com que deslumbra. O seu prestigio está
na sua belleza; ó d'ella, como eu sou. P]ste laço ó
uma recordação, uma lembrança, uma saudade talvez.
E meu 1 Felizmente posso chamar-lho meu ! Adeus.
São horas d 'ir fallar com ella.
Rodrigo abandonou completamente a sociedade
95
banliista ; vivia para Júlia. Os leões despeitados con-
tinuavam a verberal-o com epigrammas pouco menos
de tolos, e elle nem dava por isso.
Abençoado o amor que nos sobe a ecos tão plá-
cidos e tão acima do charco immundo onde coaxam
as rãs da maledicência.
Começava a despovoar-se a praia de Leça. Entrou-
xei e dispuz-mè a recomeçar os meus trabalhos esco-
lares. Procurei Rodrigo em casa e não o encontrei ;
vi-o depois casualmente.
— Já de marcha ! — disse-me elle.
— Que remédio! Está o inverno comnosco — res-
pondi eu. — Ainda ficas ?
— Ainda fico. Adeus. Estimo que sejas feliz —
respondeu elle querendo obstar a alguma pergunta
importuna.
Os receios, porém, de Rodrigo, eram infundados ;
não devia esperar indiscreções da minha parte.
Voltei para o Porto e, quando me lembrava do
caso, suspeitava que o namoramento não podia vingar
muito tempo nas condições em que estava. Agora
vejo que me enganei redondamente.
Rodrigo Sotto-Maior não voltou de Leça. Lá vive,
pois, ha dois annos, n'aquellas solidões da beira mar,
a estreitar a esposa d'enconti-o ao peito e provavel-
mente a rever-se nas graças infantis do filhinho.
Os poucos momentos, que puder roubar á crean-
cinha e á mulher, quem sabe se elle os consumirá a
tratar do plantio do quintal ou dos casaes de perus,
que gluglurejam na capoeira? Não admira nada. O ge-
96
iieral AValrave eiitretinha-se, na solidão d'aldeia, cora
a creação das gallinhas. Muitos deixam o socego dos
campos por o bulicio da cidade ; outros, como Publio
Scipião, dizem que nunca estão menos sós do que
quando estão verdadeiramente sós.
E demais Eodrigo Sotto-Maior tem ao lado a es-
posa e o filhinho a sorrirem-lhe e a affagarem-u'o.
Perdoa tu, meu amigo, se eu corri o vôo mj^ste-
rioso da tua vida intima, occultando todavia o teu
verdadeiro nome.
Na primavera que vem, mostra a tua esposa o tor-
rão abençoado em que nasceste. Que a madre-silva
dos vallados perfume a atmosphera, que as aves da
ramaria te enlevem com as suas toadas alegres, que
teu filho te sorria e que tua mulher te abrace.
Quinta de Yilla Yorde — 16 do setembro de 1868.
lí
CÒR DO CÉO
Procurei Rodrigo Sotto-Maior em Leça. Achei-o
n'um paraizo d'amor, sorrindo de verdadeira felicidade
á esposa estremecida e embellczado na contemplação
do filhinho, que passa metade do dia no collo da mãe
e outra metade nos braços de Rodrigo. Fez-me inveja
o socego suavíssimo d'aquella casa onde encontrei
ainda um resto do viver patriarchal dos tempos que
97
já iiHo voltam. Rodn.e;o vive quasi exclusi vãmente
para a família o para aliz^um raro amigo, (|U0, de lon^^e
a loiíí^e, vai lavar nas ai^Mias d'aqiielle milagroso Jor-
dão a lepra das miiudanidades estultas.
Poucos livros entram no gabinete de Rodrigo, e
esses que entram são escolhidos e puros; aos periódi-
cos ó de todo em todo defesa a entrada. Ha dois annos
que Rodrigo não sabe quantos ministérios tem havido,
quantas pessoas do seu conhecimento casaram ou mor-
reram, e quantos lavradores da sua aldeia estão barões
ou conselheiros. Não se interessa, como vêem, por
estas coisas attinentes ao movimento politico da nossa
terra, nem lhe sobra tempo para lamentar as incon-
veniências do sijstema que nos rege, por isso que se
deixa absorver nas profundezas d'um oceano d 'amor,
onde não ha systemas possíveis além do que manda
o corarão.
Rodrigo acolheu-me affectuosamente. Subimos ao
gabinete de leitura que tem duas largas janellas : uma
que deita para o jardim e outra que olha para o mar.
Sentamo-nos e começamos a fumar com excellentes
disposições d'espirito para larga conversação.
— Auctoriso-te a accusares-me da minha ingrati-
dão— disse Rodrigo. — Estou disposto a ouvir a lei-
tura do libello, apesar de não ter provas que me favo-
reçam.
— Tens a teu favor — respondi eu — este reman-
çoso viver que te absorve o coração e que faz inveja
a quem anda por esse mundo a luctar constantemente
com os vagalhões da fortuna. Ha dois annos que te
7
98
perdi de vista, e encontro -te lioje tão feliz como sup-
ponho que terás sido desde o dia em que te deixei
de ver. E' uma felicidade que sorri a pouca gente,
meu Rodrigo. O mundo não falia de ti, porque o
mundo não se occupa das alegrias serenas. Es rico e
ainda assim vives obscuramente. Xão te intromettes
com a politica nem incommódas os periodistas com a
noticia de teres offerecido um jantar aos presos ou
aos pobres. A tua mão, se exerce a caridade, exerce-a
segundo o preceito do Evangelho. Yives feliz, Rodri-
go. Yejo que tens as tuas portas fechadas, mas re-
commendo-te que as mandes trancar cautelosamente
para que te não possam assaltar, n'esta solidão, os
malsins da sociedade. Olha que também já andam as
ambições pela aldeia. Venho de ao pé das montanhas
que te viram nascer, e achei por lá vestigios de cor-
rupção. Os lavradores dos teus sitios estenderam a
vista para além dos seus campos, e diffamam-se mutua-
mente por causa das eleições. Ha por lá quem tenha
esbanjado a casa para comprar votos e commendas.
Um teu visinho está commendador ; outro sahiu, ha
dias, deputado.
— E é muito de suppor que o meu caseiro esteja
a chegar ás alturas d'um baronato, segundo o que tu
dizes — atalhou Rodrigo.
— Ainda não aconteceu assim por felicidade tua.
O teu caseiro continua a trabalhar no amanho das
terras e a viver para a lavoura. Lá o vi, arremim-
gado, de enxada ao hombro, na direcção do pomar.
Foi elle que me deu noticias tuas. Por elle osube eu
99
que tu tinliiis casado o que Deus te coroara a felici-
dade conjui;al com as i^raças infantis d' um íilhinho
estremecido. Surprehendeu-me a noticia do teu casa-
mento, Rodrigo ! Despedi-me do teu caseiro e vim por
uns atalhos a scismar nos bons tempos de lia dois
annos, que foram o prologo da tua felicidade; —pro-
logo em que eu também indirectamente collaborei.
Dois dias depois, sentava-me á mesa do trabalho e
escrevia a historia feliz dos teus amores, recatando
ii'um pseudonymo o teu verdadeiro nome e recamando,
aqui e além, de ficções românticas a tela onde dese-
nhava o quadro . . .
— Pois fallaste ?
— Fallei. Has de perdoar este abuso de confiança ;
todavia confesso a verdade. Contei a tua historia e,
como o mundo já se não lembra de ti, nenhum alvi-
çareiro se deu ao trabalho de farejar o teu rasto. A
sociedade interessa-se simplesmente pelos grandes es-
cândalos dos altos personagens. E preciso que um
sujeito, que enriqueceu no tráfico da escravatura,
saiba a chronica, quasi similhante, d'um outro que
chegou á opulência pelo fabrico das notas falsas. Isto
ó preciso para que a sociedade se «respeite» e para que
se fechem umas bocas com medo das iras d'outras
muitas. D 'aqui a necessidade do romance escandaloso,
o único que tem leitores e compradores em Portugal.
A tua historia era uma historia simples e honesta,
uma liistoria que podia correr desde o collegio até ao
convento, duas casas onde a corrupção não é permit-
tida por lei . . . Fallei em ti e na menina do tope ver-
*
100
melho, que ó hoje tua esposa. Contei a historia do
laço com pequeno desvio da verdade, e a(;abei por di-
zer que era muito de suppor que, á hora em que eu
escrevia, andasses tu a cuidar do quintal ou dos pe-
rus. Yejo que me encanei. O teu quintal sahiu-me
nm jardim, a julgar pelo que descubro d'esta janella.
Supponho-me em Montmartre á beira dos alegretes de
Alphonse Karr. Nem as flores te faltam n'este paraizo !
— São os melhores livros, as flores — disse Rodri-
go. — Livros que a natureza escreveu em paginas de
mil cores e com mil diversas tintas. Amo as flores
pelo que ellas são e não pelo que os homens querem
que ellas sejam. Tenho alli na estante livros de botâ-
nica, comprados em outro tempo ; escuso de te dizer
que nunca os abri. Estão ao pó d'outros de mathema-
tica, que só folheei uma vez, como sabes, e que fechei
para sempre, quando o professor, que era um sujeito
de muitas philosophias, declarou do alto da sua repu-
tação que a minha negação para os algarismos impor-
tava absoluta inaptidão para tudo. Anda visitar as
minhas flores, todas as que eu tenho, porque minha
mulher, com o nosso filhinho ao pó de si, deve estar
a esta hora no jardim. Has de jantar comnosco e,
depois do café, iremos sentar-nos ao pó da capellinha
de SanfAnna. V) lá, diante d'aquolle panorama deli-
cioso, que eu te quero contar o pouco (pie tu ignoras
da minha vida.
Descemos ao jardim.
Encontrei a esposa de Rodrigo, sentada á sombra
d'um caramanchel, trabalhando em crochet. Tinha a
101
seu líido o filhinho, todo vestido de branco, sentado
n'unia cadeira de brados. Kra um quadro de família
que inspirava respeito.
Júlia estava modestamente vestida. Tinha um ves-
tido de chita alegre e clara, guarnecido nos punhos e
no pescoço por uma renda fina mas estreita. O cabello
dividia-se em duas tranças, que livremente cabiam
pelas costas abaixo. Não ha vestir mais modesto com
tamanha elegância, e, permitta-se-me o substantivo,
com tamanha frescura, palavra que usam as mulheres
com grandissima propriedade, quando querem fallar
de certos vestidos graciosos e humildes.
A esposa de Rodrigo era ainda a creatura formosa
que eu vira debruçada na janella, dois annos antes.
Tinha o mesmo colorido nas faces, a mesma alegria nos
olhos, e a mesma serenidade no semblante.
Passei algumas horas felizes n'aquelle santuário ;
conversamos de tudo o que nos lembrava, borbole-
teando d'assumpto para assumpto.
Depois de jantar, acorapanhou-me Rodrigo á ca-
pellinha de SanfAuna. Sentamo-nos no banco de
pedra que se encosta ao oratório, e ficamos por algum
tempo embellezados na paizagem que a natureza nos
desdobrava diante dos olhos.
Foi Rodrigo o primeiro a quebrar o silencio.
— Olha — disse-me elle. — Quando te chegar ás
mãos um livro impregnado de má philosophia, não o
leias. Nota, porém, que designo por má philosophia
esta corrupção desbragada que já começava a envene-
nar a sociedade nos meus tempos de solteiro, e que
102
actualmente, segundo dizes, ameaça absorver a huma-
nidade inteij"a. Não creias no progresso que principia
por insultar a mulher, por aniquilar a familia, por
offender a igreja e por zombar de tudo o que ha de
mais casto e santo n'este mundo. Vê se podes fugir
da lepra que vai lavrando, e onde a Providencia te
mostrar uma alma cândida e boa fica ahi, meu amigo,
embebecido n'esse templo sacratissimo, sem saudades
do mundo exterior, das suas tempestades e dos seus
tumultos. Eu sahi da minha aldeia com a alma fechada
para os maus sentimentos. Queria conhecer o mundo e
tinha, ao mesmo tempo, um certo medo de o conhecer
de perto. Quando do alto d' um monte vi de longe os
pinheiros da minha aldeia, tive saudades d'elles e estive
para retroceder, mas animou-me uma esperança vaga
que me enchia o coração e que era indubitavelmente
o prenuncio da felicidade. Atravessei o mundo sempre
a pensar nos pinheiraes da minha terra, e fui cami-
nhando até encontrar um sitio que me fizesse lembrar
da serenidade austera do meu Douro e onde encon-
trasse alguém que me faltava lá. Aqui achei esse sitio
e aqui fiquei ; aqui encontrei o paraizo e o anjo que
me aguardavam lia muito. O anjo, bem sabes tu, era
a menina do tope vermelho. Foi verdadeiramente uma
vaga da fortuna que nos ajuntou. Vi-a e amei-a. Has
de lembrar-te d'ella, meu amigo, d'e]la, aquella visão
(la fita encarnada, fita que eu ainda conservo no meu
relicário intimo. Nunca eu soube vasar na palavra o
sentimento. D'essa vez, poróm, senti-rae poeta. Escrevi
uns versos a Júlia e mandei-lh'os ; os versos eram
103
simj)losmento um podido. A resposta foi o topo ciicar-
iiiido ([lio lho prendia a trança. Júlia tinha attendido a
um oaprioho de namorado.
— Aproveito a oceasião — atalhei eu — para to
pedir perdão d'uma deslealdade que me pesa. Possuo
os teus versos.
— Nflo te acredito — replicou de golpe Rodrigo.
— Acredita e perdoa. Copiei-os ha dois aunos, do
teu álbum, emquanto esperava na sala. Doeu-me que
ficassem para sempre na obscuridade e quiz possuil-
os, confiando na tua amizade, Rodrigo.
— Pois bem — continuou elle. — Deves então sa-
bei' o resto. Júlia substituiu o laço encarnado por ou-
tro azul. Tive a velleidade de o querer possuir
também. Escrevi-lhe ainda estes versos — disse-me
elle tirando do bolço o seu album-carteira.
Li e copiei, com assentimento de Rodrigo, os ver-
sos que se intitulavam :
COR DO CÉO
Olha, a fita cor de rosa,
Que te pedi, era linda.
Mas talvez que seja ainda
Mais bonita a que puzeste.
Cor do céo, azul celeste!
Tinha aquella a corda rosa,
— Era d' uma cor tão fina,
Que enganara a mariposa,
Se a encontrasse na campina
N
104
Suspensa sobre uma haste.
— Tinha a cor que tu mostraste,
Quando eu te pedi a fita
E tu, dando-m'a, coraste...
Vê, pois, como era bonita!
Todas as urnas cheirosas
Que o mez de abril nos descerra
Teem aquolla cor. Na terra
São assim todas as rosas.
O azul ó raro nas flores ;
Que o Pae que tudo nos deu
Variou no mundo as cores
Mas quiz o azul para. . . o céo.
Pintor, quanto mais tu pintas
Dando ao quadro um quê d'ethereo.
Na combinação das tintas
Não attinges o mysterio
Com que o Divino Pintor
Preparou tão linda cor !
Não sei, ó anjo, se tenho
Diante dos olhos um véo ;
Ou se a cor que tem a fita
Tanto a cor do céo imita
Que as não discrimino ou ;
Ou se n'uma noite o vento.
Descendo do firmamento.
Trouxe um retalho. . . do céo 1
105
Dá-iii'a. Sabes quo mo faltam
As azas d' um chorubim.
Tu pódos subir ao cóo,
Trazer do lá mais setim,
Mas eu não posso, mas eu...
Querem uns o céo inteiro
Para si ; tenho-o ouvido.
Sou menos interesseiro,
Limito mais o pedido.
Eu. . . dava o prazer mais doce
Por um retalho . . . que fosse.
— A belleza do pedido assegurava d'ante-mao um
óptimo resultado, meu Rodrigo.
— A belleza não ; deves dizer a sinceridade. Júlia
deferiu ainda e euviou-me a fita cor do cóo, perfu-
mada com os aromas dulcíssimos das suas tranças
negras. Depois tive pena de ver despida d'enfeites
aquella cabeça gentil, e enviei-lhe uma grinalda de
flores de laranjeira, na véspera do dia marcado para o
casamento. . . Foi ao declinar da tarde que se celebrou
a cerimonia religiosa. Affluiu á porta da igreja a po-
voação inteira. O pae de Júlia foi um homem do mar,
um capitão de navios, que era bemquisto de todos, e
esta boa gente da beira-mar continua a consagrar á
filha a dedicação que tributou ao pae. Eram rapazes e
raparigas, homens e mulheres por toda a parte. Foi
um dia de festa em Leça. A tarde estava serena e a
noite vinha plácida. Quando sahimos da igreja, o tio
Paulo, um pescador velho e agradável, chegou-se a
106
nós e (iisse-nos : — Boa viagem os espera. O céo está
limpo e o mar 6 de rosas. Com tão bons prenúncios
nunca eu receei tempestades. Hão de ser muito felizes,
que m'o diz o coração. Yão em paz.
— O tio Paulo foi um vidente — exclamei eu.
— Se foi ! — acrescentou Rodrigo — Se foi ! Por
aqui ficamos n'estas solidões da beira-mar, que para
logo se povoaram de fadas encantadas. Era o cortejo
que precedia a chegada do nosso filhinho. Hei de ii*
agora com minha mulher e meu filho visitar as mon-
tanhas da minha terra. Quero dizer a Júlia, quando
lá chegar : — Detraz d*aquelles pinheiros ha uma casa
de campo onde também não entrou ainda a corrupção
da cidade. Alli foi o meu berço.
Em março d'este anno partiu a familia de Rodrigo
para Sinfães. Lá devem de estar a esta liora, na Casa
dos olivedos, sem que Rodrigo tenha dado ainda pela
falta do visinho commendador e do visinho deputado.
Porto — junho de 1869.
NO HluSSAOO
Em 18G6 fiz eu parte d'uma tumultosa caravana
de romeiros que partia da qare das Devezas, por uma
formosa tarde de junho, em direcção ao santuário ve-
nerando do Bussaco. Esta nossa divertida romagem
tinha quasi o caracter d'uma emio-ração d'andorinhas
que se fossem deliciar u'aquella primavera eterna do
Libano portuo*uez, tão copada de sombras e c^orgeada
de cantares festivos. Chegamos de noite á Mealhada e,
como quizessemos adiantar caminho, partimos para
Luso. Alii pernoitamos nós na
HOSPEDARIA LUZITANNA
NAS GAZAS
DE \ASILI0 FERNANDES lORZE
como constava textualmente da taboleta estampada na
fachada do hotel.
A orthoo-rapliia irregular do nosso hospedeiro
108
corria parelhas, segundo experimentamos e segundo
eu pregoei para desengano dos incautos n'um folhe-
tim do Camjjeão das Provincms, com a irregulari-
dade culinária do serviço da casa. Deram-nos, pois,
os da hospedaria uma desastrosa ceia que faria o de-
sespero do doutor Yéron.
Nós todos, os romeiros da caravana e um académi-
co de Coimbra, cujo nome sou obrigado a occultar, fo-
mos as victimas expiatórias da inexperiência culinária
do cosinheiro de Luso.
Não ha meio para estreitar relações d'amizade como
a similhança de destinos em pessoas até alii desconheci-
das. Foi exactamente o que nos aconteceu a nós e ao
académico de Coimbra. No fim da dissaborida refeição
não só estávamos conhecidos, senão também amigos.Logo
traçamos em commum o roteiro da nossa peregrinação.
Ficaram peitados os criados para que levantassem ce-
leuma ao desabrochar da manhã. Aquelle de nós que
se quedasse refocillado no leito, depois do aviso es-
tridulo, incorria na pena de madraço exarada no có-
digo que para logo formulamos, reunidos em areópago.
Ao entreluzir da primeira aurora, espertaram-nos
os criados. Nenhum de nós incorreu na pena estatuída;
houve completo respeito ao código.
Os Índios não acatam de certo mais religiosamente
os seus Vedas.
Quando sahimos do hotel, começava a animar-se
a natureza e a pompear as suas galas esplendidas. Do
Luso ao Bussaco foi verdadeiramente um passeio bu-
cólico.
109
O aradomico de Coimbra tiiilia vindo alli innumo-
ras vozes o para loí^-o se oneroccii como riccrotic. (riiia-
(los por elle subimos a montanha sem esbarrarmos por
raminhos travessios. Ale^c;res marinhamos a coberto
(l^aqueUas immensas abobadas de verdura, que se nos
alVii:;uram suspensas no ar como os jardins de Baby-
lonia, até que defrontamos com o humilde cenóbio dos
carmelitas descali,'OS.
A respeito do mosteiro do Bussaco escrevia eu a
um amigo intimo, em 186G, no Canipeão das Provín-
cias, as palavras que se seguem :
«Subindo a um terrapleno assombreado de fron-
dosas arvores, entramos ao mosteiro por um zagão
calçado de seixos e forrado a cortiças, aberto em trez
arcos de cantaria sobre os quaes assenta a fabrica hu-
milissima da casa. Em frente do arco central do zagão
dá de rosto a porta do claustro : eis que nos ap pare-
cem logo, como para iniciar-nos nos segredos da clau-
sura, os painéis mal allumiados de dois religiosos da
ordem. « O da mão direita, ua expressão de frei João
do Sacramento, está abraçado d'uma cruz, mj^sterioso
indicio de que ó, o que dentro unicamente se abraça.
O da esquerda está, como fechando a boca com dois
dedos, aceno claro de silencio, que alli inviolavelmente
se observa. » O que te não posso explicar, meu amigo,
é a impressão suavemente dolorosa, que nos assalta a
alma no meio d'aquella simplicidade extrema e serena
melancolia do mosteiro. Mal acredita a gente que vai
entrar em domicilio de frades, ao ver a pobreza do
110
Zcigão que, se não foram os seus trez arcos de canta-
ria almofadados a picão com frisos de escopro, faria
apenas lembrar a entrada para a gruta d'algum des-
conhecido eremita, que fizesse vida de penitencia no
retiro d'aquelle monte.
Mas ao entrarmos no claustro, meu amigo, onde
se respira em tudo um perfume de tristeza, ao vermos
pendentes das paredes os retratos li vidos dos monges
mal allumiados da escassa claridade que alli entra, no
meio d'aquelle frio silencio de casa deshabitada, que-
brado apenas pelo som monótono dos nossos passos,
então, como dizia, sentimos os olhos humedecidos
de lagrimas e os pés como que chumbados ao lagedo
do pavimento. Ficamos alli como que petrificados, in-
decisos, absortos, sem saber se devemos continuar
a visita áquella casa, que tem os ares d 'um tumulo
de vivos, se devemos sahir para respirar desafogada-
mente no meio da montanha. Custou-nos, de certo,
muito mais o entrarmos alli, porque vínhamos de
fora com os oUios affeitos ao alegre espectáculo d'a-
quella festa bucólica, que a natureza nos apresenta
em todo o monte, e com os ouvidos já costumados
aos cantares dulcíssimos das aves. E' por isso que nos
foi muito mais sensivel e oppressivo o contraste. »
Depois de termos visitado demoradamente o mos-
teiro o a igreja, caminhamos para o norte, descendo
ao valle, e chegamos á Fonte fria, cuja agua, !io dizer
de frei João do Sacramento, clironista da ordem, sendo
tein2Je?'ada de inverno, escusa neve de verão.
111
Alii, n'ess{i sohibni deliciosissimii dii Iuj)tl(t fria,
acampou a nossa caravana. Travoíi-sc conversa(,'ão
animada, c nem ou sei como viemos a fallar dos ho-
mens políticos que as tempestades civis da nossa terra
deportaram para o Bussaco. Citaram-se os nomes do
cardeal D. Carlos, que alli esteve por ordem do govei-no
(^m 1821, do arcebispo de Braga D. Frei Miguel da
Madre de Deus, do bispo de Pinhel D. Bernardo Bel-
trão e de Galvão Palma, prior da freguezia de Mon-
saraz, ([ue alli estiveram retidos por motivos politicos
'>m diíierentes épocas.
— E quantos — disse-me o académico de Coimbra
— não teem vindo esconder n'estas sombras do Bus-
saco o segredo das muitas lagrimas em que deixaram
afogar o coração ! D'um sei eu, que deveu morrer
n'este sitio em que estamos. A vida d'esse pobre i"apaz
dava matéria que farte para um livro. Hei de contar-
llra, antes de nos separarmos.
— Pode ser hoje de tarde — i-epliquei eu.
— Seja — respondeu-me elle. — Vamos descançar
para o mosteií-o doestas calmas do meio dia. De tarde
voltaremos aqui e contar-lhe-hei a historia. Está pa-
ctuado.
11
Estávamos, o académico e eu, na Fonte fria^ á
hora saudosa do sol-pôr ; elle deixava entrever no
semblante uma sombra de tristeza, e eu mal podia
comprimir a anciedade que me excitava.
112
— O heroe da historia que lhe von contar — dis-
se-me elle — era um rapaz da minha aldeia, que fre-
quentava o quarto anno juridico, e a quem eu fui re-
commendado, quando entrei para a Universidade. Como
sabe, tiro este anno carta de bacharel; vai, pois, isto
ha cinco annos. Era um rapaz de mão cheia, como
se costuma dizer. Chamava-se. . . Quero eu que se
chame Eugénio da Silveira. Tinha elle uma grande
intelligencia e um grande coração. Veja que era uma
d 'estas creaturas que nascem para a desgraça como
certas flores que desabotoam de noite, sempre cober-
tas d 'orvalhos, que são lagrimas, e sempre saudosas do
sol, que ó a felicidade. E uma verdadeira desgraça
nascer um homem com um coração cuja delicadissima
sensibilidade se não pode afferir pelo padrão commum
da humanidade. Eugénio da Silveira tinha alguns raros
momentos d'alegria em que lograva conversar com ver-
dadeira jovialidade, borboleteando da facécia á satyra
e da satyra ao epigramma. De repente, porem, descahia
n'uma tristeza profiindissima e, n'esses momentos de
concentração, não havia arrancar-lhe palavra. Poucos
dias depois d'elle ter concluido brilhantemente os seus
actos, dava eu de mão aos trabalhos do primeiro anno
juridico. Sahimos, pois, ambos de Coimbra em direcção
á nossa aldeia.
Eugénio da Silveira tencionava, porem, ir a ba-
nhos do mar para a Foz, em agosto. Sahiu de Coim-
bra n'esse propósito e chegou a realisal-o.
Quando eu" voltei a Coimbra para matricular-me
nas aulas do segundo anno, vi-o lá.
113
— Tom estudo na Foz? — porfiou ntei-llic eu.
— Vim de lá liontem e para lá volto, lo^í^o que
mo matricule. Ainda não sei bem quando se abrirão
as aulas. Se fica por aqui, avise-me do dia da abertura.
— Avisal-o-hei. Fique certo.
b]screvi a Eugénio da Silveira, quando começaram
as aulas. Ficamos a habitar na mesma casa e ate no
mesmo quarto. Notei, porém, alguma differença no
Eugénio. Pareceu-me mais triste ou mais alheado.
Rai-as vezes entrava n'um cavaco de rapazes e raríssi-
mas n'uma questão scientifica, que se ventilasse á
hora do jantar. Nas ferias do Natal sahiu de Coimbra
o disse-me que seguia para o Porto.
— Quer alguma coisa para lá ? — perguntou-me
elle, no dia da partida.
— Se o não incommódo, queria.
— O que era ?
— Uma carta para a viuva do negociante Teixeira
Pinto.
— Conhece-a ? — atalhou de golpe Eugénio, re-
cuando e fitando em mim os seus grandes olhos cas-
tanhos.
— Conheço. Foi uma das companheiras da meni-
nice de minha mãe. Esta carta leva o meu retrato e o
por isso que eu desejava entregal-a a portador de con-
fiança.
— O seu retrato ? — insistiu Eugénio.
— O meu retrato. Quando vim para Coimbra, vi-
sitei-a por ordem de minha mãe. Quasi me não lem-
brava d'ella. O certo 6 que se reataram as relações
8
114
antigas. Instou a viuva pelo meu retrato para o seu
álbum e eu prometti-o, com a condição de o mandar
de Coimbra porque me tinham esquecido todos os re-
tratos que tenho. E já tempo de cumprir a minha
promessa.
— Que sentimento lhe inspiraram as filhas da ve-
lha amiga de sua mãe, se ó licito perguntar ?
— ^ O do respeito simplesmente. Achei-as dignas de
estima e de felicidade. Oxalá que ellas a encontrem.
A mãe deu-me a entender que estava próximo o ca-
samento da Maria do Carmo com um sujeito endi-
nheirado.
— Não pode ser — exclamou Eugénio, mostrando
nas faces uma pallidez cadavérica. — O senhor está
abusando da minha curiosidade sincera. Maria do
Carmo ama-me — concluiu elle, accentuando as pala.
vras gravemente.
— Perdão — tornei eu entre humilde e pesaroso. —
Mil perdões. O senlior Eugénio da Silveira sabe que
me inspira a máxima estima e que sou incapaz de
abusar da sua sinceridade.
— Tem razão — amaciou elle com os olhos mare-
jados de lagrimas. — Eu sou que devo pedir perdão.
Excitei-me n'um momento d'angustia, mas de verda-
deira angustia, acredite. Agora absolva-me. Eu amo
Maria do Carmo desde os últimos dias d'agosto d'este
anno. Tinha-a visto uma vez na minha vida, no Porto,
o desde então conservei uma lembrança vaga, mas
suave, d'a(iuclla mulher. Em agosto quiz Deus que
nos encontrássemos e cuido que nos ficamos amando
115
para toda a vida. 8e Maria do Carmo vai casar não
o sabe ; estou certo d'isso. K incapaz de me en^^anar
aquelle anjo. Tenho aqui uma carta d'ella em (juo
me pede que vá vôl-a nas ferias. Hei de ir. (^uero
saber a verdade e... morrer depois. Dè-me a sua
i'arta ; ii'ei entre^"al-a pessoalmente.
Apertamo-nos as mãos e separamo-nos.
m
Quando Euí;"enio da Silveira voltou a Coimbra —
continuou o académico — pareceu-me vellio. Disso-me
que tinha entregado a minlia carta e que encontrara
em casa da viuva Teixeira Pinto o sujeito indigitado
para noivo de Maria do Carmo.
— Lá o vi — disse Eugénio. — O senhor tinha ra-
zão. Cuido que a viuva está inclinada para este casa-
mento e que levará a sua crueldade* ate o extremo
de sacrificar o coração e a vida da fillia. Pudemos,
eu e Maria do Carmo, disfarçar as nossas relações
diante da viuva. Apresentei-me como um homem ver-
dadeiramente desconhecido e trocamos apenas pala-
vras cerimoniosas. Estou todavia no propósito d'ir
pedil-a em casamento nas ferias da Paschoa ; será
minha no fim do anno lectivo.
Decorreram-se mezes sem que Eugénio da Silvei-
ra recebesse carta de Mai-ia do Carmo. Escrevia-lhe
regularmente e não recebia resposta. Offereci-me para
saber por minha mãe a verdade do que se passava.
116
x^ào quiz. O pobre moço tinha medo de se desenganar.
— Estão próximas as ferias — disse-rae um dia.
— Irei eii mesmo. Maria do Carmo ainda não casou;
cstá-m'o dizendo o coração. Comtudo receio por ella,
que é crédula e pode dar ouvidos ás infâmias que
levantarem a meu respeito, se 6 que suspeitaram das
nossas relações.
Eugénio da Silveira veio ao Porto e não viu Maria
do Carmo. Dizia-se que casava com o sujeito indigi-
tado. Eis tudo o que pôde colher. Quando voltou a
Coimbra, lançou-se nos meus braços e desatou a cho-
rar. Fazia pena vel-o. Era preciso que eu o acompa-
nhasse para que fosse ás aulas ; de contrario não ia.
Entretanto definhava consideravelmente e tinha
cabido n'uma melancolia perigosa. Fazia annos por
esse tempo, o Eugénio. No dia natalício brindára-o a
velha esposa do seu correspondente, que era amiga
de sua mãe, com um ramo de flores.
Em agradecimento ás flores escreveu Eugénio es-
tes versos, que eu decorei e que não chegaram a ser
lidos pela pessoa para quem tinham sido escriptos.
AGKADECENDO AS FLORES
(no dia dos meus annos)
Mandaes-mo, senhora, ílôros
— Bom sabeis quanto as eu amo.
Tão variadas nas coros !
Lindas rosas I hndo ramo !
117
Foi bom acertada a escolha,
Quo os tem|)oraos do janeiro
Desfizeram folha a folha
As galas do meu jardim. . ,
Está viuvo o jardineiro. . .
Olhai o pobre de mim !
Y\ chegar o abril florido,
Que vem sempre prazenteiro,
Sempre lindo e bem vestido.
Ai ! mas não chegaram ainda
As flores do meu canteiro !
Vejo que chega e que finda
Este mez de tantas flores
Sem que me traga comsigo
Os meus tão queridos amores ! . .
Nem abril é meu amigo !
A vossa offerta, comtudo,
Engana a minha pobreza. . .
Tenho flores sobre a mesa,
E ó bem mais suave o estudo
Quando as tenho ao pé de mim !
Pobres flores ! sou assim !
Mas ai ! quando eu vir pendido
O vosso ramo, senhora !
Yêr que está tudo perdido !
Não ter o que tive outr'ora !
Baldada toda a canceira !
Toda a seara desfeita !
De risos. . . a sementeira !
De maguas. . . toda a colheita !
Senhora, vivo captivo
De mil lembranças passadas.
É de saudades que eu vivo. . .
Esp'ranças, essas., , mirradas!
118
Estou pobre e pasmo agora
De ver tamanha pobreza !
Olho toda a redondeza . . .
Não vejo nada de meu !
Tantas ílôres na montanha !
Tantas estrollas no céo !
— Ai ! que pobreza tamanha !
O mundo tão opulento
E só eu me vejo assim !
Ha astros no firmamento.
Tem flores qualquer jardim.
Nada é meu, pobre de mim !
Ai ! quanto me não penhora
A vossa oííerta, senhora !
Mas eraquanto estas viçarem
Não serei pobre. . . de flores.
Depois, mal que descorarem,
Adeus rosas ! — meus amores ! —
Comtudo inda espero tel-as **
Das mais tristes e singelas,
Boninas d'inculto chão,
Ao pó d'aquelle cruzeiro
Onde tanto caminheiro
Pára a fazer oração . .
Que triste seria o somno ]
De que níío se acorda mais,
Sc as pobres ílôres da serra
Deixassem ao abandono
Os sete palmos de terra
Onde todos são iguaes ! . . .
119
l)'ossas esporo indíi tol-as . .
líom hajaos, ílòros singelas,
Pobres ílôros, bem hajaos I
Vi quo se aggravavam os padecimentos de Eugé-
nio e não só avisei o correspondente mas noticiei para
a minha aldeia.
Yeio a Coimbra o irmão mais velho de Eugénio,
que era o senhor da casa e quiz trazel-o para o Bus-
saco, ainda com o risco de perder o anno.
Teimou o doente que não sahiria sem concluir o
curso e o certo 6 que, com grave sacriíicio da sua
pouca saúde, terminou a formatura. A esse tempo
cliegou a Coimbra uma carta de Maria do Carmo para
elle. O pobre moço mostrou-m'a. Dizia-lhe que tinha
conseguido apiedar a mãe, que tinha soffrido muito e
que entrevia de novo a felicidade, que julgara perdi-
da. Percebi que o Eugénio não podia escrever sem
grande esforço e disse-lhe que escreveria em seu nome
— Xão respondo — volveu-me elle. — Eu morri
para o mundo. A mulher que eu amava, morreu tam-
bém para mim. Não me falle no nome d'ella para não
evocar recordações dolorosas. Esperei muito tempo
que me escrevesse ; vi finalmente que não tinha que-
rido roubar á sua felicidade um momento em que tra-
çasse duas palavras. A sua felicidade disse eu; e disse
bem. Ella deve ter sido feliz com os sorrisos do es-
poso promettido. Como o senhor vai para ferias —
concluiu elle — dê ordem cá em casa para queimarem
todas as cartas que me sejam dirigidas.
120
Os irmãos Silveiras sahiram de Coimbra commigo.
Eu viuhà para o Porto e elles ficaram na Mealhada ;
d'alli vieram para o Bussaco.
Na véspera da nossa partida, pediu Eugénio ao
irmão que o deixasse fazer a mala. O irmão annuiu,
suppondo que elle quereria guardar cautelosamente
as cartas de Maria do Carmo. Como o visse, porém,
lançal-as ao fogo, suspeitou do caso e foi remexer na
mala.
Encontrou um reivolver escondido entre uns casa-
cos e uns livros.
— Eugénio ! — disse-lhe o irmão com gesto repre-
hensivo — Procuravas enganar-me ! Não te queiras dar
em holocausto aos teus algozes. O mundo diz que o
suicídio é filho da loucura, e tu deves querer que o
mundo saiba que morreste em teu juizo para conde-
mnares até o ultimo momento a deslealdade trai(;oeira
da mulher que amaste.
— Eu não condemno ninguém — respondeu Eu-
génio.
IV
— 8eparei-me de Eugénio da Silveira na Mealhada
' com a convicção profunda de não tornar a vôl-o —
disse-me o académico com os olhos húmidos de lagri-
mas. — Quando cheguei ao Porto puz todo o meu
empenho em não perder um momento, antes de pro-
curar a viuva Teixeira Pinto. Fui visital-a ; ao subir
as escadas senti uma vertigem, que me fez demorar
121
no patamar ali^uns monientus. Anniinciuu-me o criado
e Maria do Carmo, ouvindo o meu nome, correu í\
sala. Achei-a demudada, cm verdade. Tinha os olhos
roixos de chorar e as faces cobertas d'uma pallidez
marmórea.
— Onde está o Eugénio ? — interrogou ella anciosa-
raente, ao entrar na sala.
— No Bussaco, minha senhora, e cuido que não
voltará.
— Está doente? Morre ?
— Penso que não resistirá ao desgosto incom men-
surável que o vai matando lentamente. Para vossa
excellencia, porém, já morreu ha muito tempo.
— Julga-me então criminosa ? — disse ella, dando
á phrase a vehemencia do desespero.
— Julga.
— Sabe Deus que o não sou.
— E vossa excellencia que provas tem em seu
favor ?
—^0 testemunho da consciência.
— Todavia a consciência é um tribunal cuja de-
cisão não chega ao mundo exterior. . .
— É infelizmente verdade isso. Deus sabe, porém,
que amei sempre o Eugénio.
— Por que lhe não escrevia então ?
— Porque m'o prohibia minha mãe. Porque me
tinha vigiada a toda a hora. Porque me tinha encer-
rada iresta casa como em clausura onde mal entrava
o sol.
— Por que não reagiu ?
122
— E podemos nós reagir contra a vontade de nossa
mãe ? — perguntou ella com uma timidez adorável.
— Que dúvida ? Quando a superioridade chega ao
extremo d'impôr deveres ao coração, quando nos que-
rem levar para um futuro que nos repugna, quando
usam da força em vez da brandura, a reacção 6 legi-
tima, porque a obediência era o servilismo mais in-
digno d'este mundo.
— Cale-se, que nos podem ouvir — murmurou ella
timidamente.
— Que oiçam, muito embora. Eu sei que sua mãe
ó boa, minha senhora, e é por isso que lamento que
tenha o espirito ainda eivado d'estes preconceitos so-
ciaes. Cada alma procura o seu rumo, como a agulha
procura o norte. As almas não se subjugam ; é um
crime tentar subjugal-as. Todos nós caminhamos para
o nosso fim, desenvolvendo as nossas faculdades. Ha
em nós uma faculdade d'amar; amemos, pois. Querer
abafar em nós a sensibilidade, 6 querer dominar a nossa
natureza. O que é o amor? O amor, como diz Ale-
xandre Herculano, aquelle grande pensador do Eurico,
ó «o mais profundo e enérgico dos affectos humanos,
o amor, que une dois espíritos como dois fragmentos
de um todo, os quaes a Providencia separou ao lan-
çal-os na terra, e que devem buscar-se, unir-se, com-
pletar-se, até irem depois da morte formar talvez uma
só existência de anjo no seio de Deus. » Não queira-
mos nós neutralisar esta força de cohesão que tende
a identificar duas almas na suprema harmonia dos
espíritos. Sei bom que a mãe de vossa excellencía ó
123
um coraçHo nobilíssimo. Leva talvez a pobre scnliora
as suas horas a pensar no futuro das duas pombas do
sou lar, que desde meninas ató moças lhe toem sido
delicias e cuidados. Sonhou de certo, n'uma d'essas
horas de profundo cogitar, que entreviu a felicidade
d'uma das suas filhas dilectas, e acenou de longe á
imagem que sonhara e que não passava d'um phan-
tasma.
— É verdade — disse ao entrar na sala a mãe de
Maria do Carmo, que ouvira as minhas ultimas pala-
vras. — E verdade. Imaginei que a affeição de minha
filha fosse apenas um capricho dos vinte annos, que
se vencesse facilmente com uma opposição temporária.
Enganei-me, porém, e Deus sabe que profundas amar-
guras me estão dilacerando o coração n'esta hora
d 'expiação suprema.
Pobre Eugénio ! murmurou Maria do Carmo,
abafada em la2:rimas.
— Pobre Eugénio — repeti eu. — Está irremedia-
velmente perdido. A vida do desventuroso moço é
apenas o bruxolear extremo da lâmpada que se ex-
tingue. E que importava que uma força sobrenatural
o salvasse? O Eugénio tem o caracter dos grandes
pensadores: é propenso á dúvida. As lagrimas d'estas
duas pobres senhoras que me escutam, não poderiam
desfazer a nuvem tenebrosa que lhe escurece a alma.
A duvida é fria como o gelo, sombria como a noite:
e o Eugénio duvidou uma vez, o que equivale a dizer
que duvidaria toda a vida.
— Meus Deus ! — exclamou Maria do Carmo —
124
Quero vêl-o. Quero vêl-o e dizer-lhe que sempre o
amei, embora elle não acredite nas minhas palavras.
Se morremos meus braços, pedirei á sua alma que me
perdoe e jurar-lhe-hei que não serei de mais ninguém
n'este mundo. Oh ! minha mãe, deixe-me vêl-o uma
vez . . .
— Vêl-o-has, minha filha. Yel-o-has — disse a po-
bre senhora abraçando-se em Maria do Carmo.
— Comprehendi — concluiu o académico — que
a minha presença era importuna n'aquelle momento
solemne, e sahi de casa da viuva Teixeira Pinto com
o coração alanceado de tristeza.
Y
— Contou-me o irmão de Eugénio da Silveira tudo
o que se passou desde a minha visita á viuva Teixeira
Pinto até ao desfecho lutuoso d'este drama — dis-
se-me o académico.
O pobre Eugénio tinha cahido n'uma melancolia
profunda e vivia, se 6 própria esta palavra, completa-
mento absorto no seu único pensamento. Pouco dor-
mia e quasi não fallava, o desgraçado moço ; ao aba-
timento moral succedôra uma lethargia que tinlia
aniquilado a immensa robustez da sua compleição
Ao Hm da dardo costumava vir, pelo braço do ir-
mão, sentar-so aqui ao pó da fonte, quem sabe se n'este
mesmo banco em que nós estamos, se n'aquelle que
125
nos fica fronteiro. Aqui se quedava esquecido a scis-
mar |3or loni;'o tempo, com os olhos fitos n'um ponto
(jue seria ditficil determinar, e onde Deus sabe se elle
veria sorrir-se-lhe o anjo da morte ou delinear-se-llie
a imai;em saudosa de Maria do Carmo ainda contor-
nada d'uma luz suave como a dos últimos clarões d'um
crepúsculo do estio.
Vèl-a-ia elle n'aquelle meditar de todas as tardes ?
Quem sabe? Eu inclino-me para ahi. O nosso coração
6 assim. Morremos a beijar a mão que nos vibrara no
seio a punhalada e que, momentos antes, diri^í^ia, no
mar da vida, o leme da arca santa da nossa alma.
Xunca ninguém viu que o Eugénio chorasse. Ti-
nlia os olhos sêccos e o coração cheio de lagrimas. O
irmão senta va-se por aqui, perto d'elle, a contem plal-o
com a vista embaciada de pranto. Para esse 6 que era
o chorar.
Quando se apagava no occidente o ultimo raio de
sol, levantava-se o Eugénio, como se não tivesse já
luz para ver a imagem querida, ou como se o amedron-
tassem a escuridade e a solidão, que o faziam lembrar
talvez da noite do tumulo, que estava próxima.
Então os dois irmãos davam-se o braço e voltavam
ao mosteiro, calcando as folhas soltas no chão e ca-
minhando por entre as sombras que se abraçavam aos
troncos seculares.
Devia de ser magestoso aquelle grupo !
Aqui interrompeu o moço académico a narração
como para desenhar na imaginação os vultos dos dois
126
irmãos e, n'esse momento, vi-lhe os olhos brilhantes
de lagrimas.
Pouco depois continuou :
— Devo tel-o fatigado com a minha historia, mas
prometto abrevial-a.
Uma tarde estavam aqui os dois irmãos Silveiras;
o Eugénio a scismar, o outro a contemplal-o.
O Eugénio accordou n'esse dia muitíssimo peior e -
custára-lhe até chegar ao seu pouso de todos os dias.
Estava, pois, o irmão a contemplal-o, quando ouviu
perto o rumor de passos. Ergueu a cabeça subitamente
e viu, a pequena distancia, duas senhoras que se
aproximavam.
Uma d'ellas, n'esse momento, correu precipitada-
mente para Eugénio e, ajoelhando-se-lhe aos pés e
apertando-lhe os braços para que levantasse a ca-
beça, exclamou com anciã :
— Eugénio! Eugénio! Sou eu que te venho dizer
que sempre te amei e que estou innocente. Eugénio!
Ycs-me? Conheces-me? Olha para mim sequer...
Então elle, como que despertando d'um somno
profundo, empregou um esforço supremo para se sol-
tar dos braços d'ella, e levou as mãos aos olhos para
sacudir uma nuvem que lhe turbava a vista.
Encarou em Maria do Carmo e, fazendo menção
de se levantar, exclamara apenas :
— Ah ! E' pois certo !
Quiz levantar-se e não pôde. Cahiu extenuado nos
braços do irmão e da viuva Teixeira Tinto. Houve
uma pausa de silencio entre os trez espectadores.
127
Passados momentos, ergueu a fronte lentamente
e fitou de novo Maria do Carmo.
— Perdôa-me — murmurou ella. — Perdôa-me que
estou innocente.
O Eugénio qui/ falUir e já não teve vida para
tanto. Meneou a cabeya atfirmati vãmente e cahiu
morto no regaço de Maria do Carmo.
O académico e eu ficamos largo tempo calados.
— Maria do Carmo — disse-me elle momentos
depois — está n'um convento de Braga, d'onde jurou
não saij-. O cadáver de Eugénio da Silveira repoisa no
cemitério da minha aldeia, que também era d'elle, em
caixão de chumbo. Se o senhor for algum dia visitar
as montanhas da minha terra, e eu lá estiver, verá como
ha-de achar coberta de flores a sepultura do Eugénio.
Sou eu que liras vou lá pôr. Tenho ainda muito viva
no coração a saudade d'aquelle homem e a memoria
d'este drama.
Porto— 18G9
o MORGADO DO URGAL
Fui visitar, ha dias, os pardieiros do Urgal. Vi-
sitar não 6 a expressão própria. Da lomba do outeiro
próximo é que eu avistei a casa em ruinas, sotoposta
a um souto de castanheiros seculares.
A Ludovina, uma lépida pequerrucha que tem
sido o meu fidus Achates n'estas peregrinações pela
aldeia, acompanhou- me ao sitio onde cheguei e mos-
trou-me a casa, de longe, com a sua pequenina mão
queimada do sol, dizendo-me : — E acolá.
Senti apertar-se-me o coração diante d'aquellas
ruinas. O telhado está desmantelado, os caixilhos des-
conj unctados, e as janellas cuido que trancadas para
sempre. Algumas trepadeiras foram marinhando pelas
paredes e calafetando providencialmente as juncturas
abaladas da frontaria.
Pedi á Ludovina que me levasse d'alli ; estava-me
fazendo mal aquillo.
130
Descemos o outeiro, embetesgarao-nos por uns
atalhos pedregosos e fomos dar ao casebre da Laiza.
da Grranja. O pae de Ludovina, avisado pelo estré-
pido dos passos, sahiu ao quinteiro a receber-me.
— Guarde-o Deus, sor fedalgo — disse elle. — E
ha de perdoar o modo como appareço. Isto são nódoas
de vinho novo — continuou, indicando as manchas
arroxeadas da camisa. — Temos andado na vindima^
— Essa é boa, Manoel 1 Yocê está em sua casa.
— Mas lá como diz o outro, a gente deve andar
limpa. Ora ó verdade. O caso é que se não fosse a.
curgidade de saber a historia do morgado do Urgal,
como me disse cá a pequena, ficávamos d'esta vez
sem ver o fedalgo!
É de notar que a palavra fidalgo, em boca de ho-
mem do campo, é synonyma de cidadão. E não deve
estranhar-se que elles nos concedam voluntariamente
^ôro de nobreza, n'uma época em que os governos o
estão barateando abel-prazer. O que me admira ó que
se não anteponham a quaesquer outros no gozo d'estas
e quejandas honrarias ; sobejavam-lhes razões de pre-
ferencia. . .
— É verdade, Manoel, vamos á historia, se tem
occasião para isso.
— Sim, senhor, vamos lá. Está-me fervendo o
vinho no lagar; agora não ha que fazer.
Sirva isto d'introducção á biographia do morgada
do Urgal.
t
131
O pae de Miguel Soares, de quem se trata, era
Cosme Soares, lavrador activo, intelligente e laborioso,
que frequentara em tempo as aulas de Lamego e que,
lembrado ainda d'umas regras de latim que lá apren-
dera, incitava os caseiros e os criados ao trabalho dos
campos apontando-lhes esta máxima : Dulce post la-
Ijorein.
Tinha Cosme Soares, quando rapaz, ura tio abbade
na freguezia, já velho e rheumatico, irmão do pae,
que dera de conselho ao irmão mandar o sobrinho
ordenar-se a Lamego no intento de que, por sua morte,
ficaria o rapaz provido na abbadia. Foi Cosme Soa-
res para Lamego, a despeito da mãe que o não
queria fora de si, pelo muito que o amava. Vencidas
as difficuldades da lingua pátria, viu-se Cosme Soa-
res a braços com a sphinge medonha da litteratura
d'aquelles tempos — o latim.
Pôde vencel-a, porém, e preparar-se quasi ma-
chinaímente para as aulas de theologia, quando um
accidente inesperado veio pôr em sobresalto o coração
do pae afflicto e dar rebates de alegria no seio aman-
tíssimo da mãe.
Cosme Soares estava namorado.
Era uma senhora de Lamego, formosa e rica, a
mulher seductora que logrou prender nas algemas sua-
víssimas do amor o coração do moço estudante.
Soube-o o pae de Cosme e dispunha-se a resistir
violentamente á vontade do filho, dias antes de lhe
chegar ás mãos uma carta d'elle em que o moço de-
clarava renunciar reflectidamente, segundo dizia, a
*
I
132
uma vida para que não tinha vocação natural. O pae
regoiigou de cólera ; acudiu-lhe, porém, ao escabujar
violento a carinhosa esposa. Parecia que o velho per-
sistia no propósito de ordenar o filho. Mas era diffe-
rente o parecer da mãe, que soube vencer a repu-
gnância do marido e do cunhado, o abbade, aformo-
sentando na phantasia d'arabos o quadro exuberante
de poesia domestica em que Cosme Soares apparecia
ao lado da esposa formosissima e dos filhos peque-
ninos, que sorriam de felicidade aos avós e ao tio
abbade.
Pôde a mãe de Cosme Soares vencer o pleito a
favor do filho. Fecharam-se os livros e casou-se o rapaz.
Houve completa alegria na casa do Urgal, quando
Cosme Soares e a esposa apontaram á porta ladeada
de caseiros e criados.
Não veio sombra de temporal — graças a Deus !
— escurecer o firmamento alegre d'este hymeneu.
O caso é que d'ahi a dois annos realisavam-se as|
prophecias da mãe de Cosme : era já avó de dois
netos.
Chamavam-se os pequenos Miguel e Manoel ; Miguel
era o mais velho.
O tio abbade quasi não sentia o rheumatismo
de contente que andava. O pae de Cosme Soares re-
via-se nas graças seductoras das creanças, e a esposa,
mais solícita do que elle, levantava-se, noite velha,
para ir espreitar os netos e achegar-lhes das cabeças
loiritas a coberta d'algodão.
O tio abbade e o irmão não lograram chegar, po-
133
róm, á maioridade dos rapazes; morreram com pe-
queno intervallo de um a outro.
N'esse tempo tinha Miguel dezesete annos e Ma-
noel dezeseis.
Cosme Soares, a mãe, e a esposa vieram ao accordo
de que Miguel se formasse em cirurgia, favorecendo
d'este modo a posição de Manoel, que ficaria olhando
e vigiando as propriedades. Eram causa doesta resolu-
ção o génio, a intelligencia e o desamor de Miguel á
agricultura.
Foi o rapaz estudar para o Porto e Manoel come-
çou a orientar-se na direcção da casa e nos trabalhos
do campo.
Ao tempo que Miguel Soares sabia victorioso
das suas primeiras lides litterarias, dava a alma ao
Creador a velhinha septuagenária, que era sua avó.
Por esta occasião escrevia Manoel Soares ao irmão,
dizendo-lhe:
« Se estás arrependido, apesar dos teus progressos
e da tua intelligencia^ da posição que escolheste,
vem.
« A casa tua é ; eu sou apenas administrador e com
isso me contento. Sabes que não ^enho aspirações. »
Miguel Soares leu a carta do irmão e não veio ;
respondeu simplesmente:
« Eu estou bem. Vive tu a teu modo e vela por
nossos pães. »
Yamos nós agora esmiunçar qual era o — bem-es-
tar ■ — do estudante, no Porto.
O leitor, vesado a quejandos enigmas, deslinda-se-
134
magistralmente d'este. Succedêra a Miguel Soares o
que, annos antes, acontecera era Lamego a seu pae.
Amava também.
Ai ! o amor ! E quem haveria ahi que pudesse resis-
tir ao labutar constante da intelligencia, ás noites des-
veladas sobre os livros, se n 'estas agruras do estudo
lhe não entreluzisse, a espaços, o vulto luminoso da
mulher querida ?!
Miguel Soares amava; e n'esta phrase se resume
um céo de felicidades e esperanças, raro aguadas por
uma chuva de lagrimas, a qual, na peior hipothese,
servia para fazer brotar e reverdecer novas felicidades
e novas esperanças.
As lagrimas que seccam, que esterilisam, que re-
queimam o coração, essas deviam chegar mais tarde; e
chegaram.
Acompanhemos Miguel Soares n'um dos dias mais
angustiados da sua mocidade, até á porta da aula. E de
notar que Miguel Soares vai de luto ; morreu-lhe o pae,
o velho Cosme Soares, o honrado e laborioso proprie-
tário.
Morreu elle, abraçado á esposa, abençoando o des-
tino dos filhos, á hora em que Manoel cahia no leito
enfermo d'uma ascite, que o levou á sepultura d'ahi
a oito mezes e quinze dias antes de Miguel, alanceado
■de saudades e de mágoas suas, longe do torrão em que
nascera, chorar as primeiras lagrimas torrenciaes da
sua vida.
Miguel Soares tinha um amigo intimo ; era um seu
•condiscípulo. Acompanhemol-o, pois, n'esse dia até á
f
130
porta da aula, durante o curto espaço da parlanda nos
corredores.
— Que soubeste tu ? — perguntou a Miguel Soares
o condiscípulo precipitadamente.
— Está peior; muito peior — respondeu tristemente
Miguel.
— Quem t'o disse ?
— A criada, esta manhã.
N'este momento entrava o professor ; o dialogo
íicou interrompido.
Elucidemos o leitor.
Desaninhára-se a serpente da desgraça do seu antro
d 'escuridão e viera empeçonhar com a baba immunda
os roseiraes floridos do paraizo de duas almas.
Grassavam a esse tempo, no Porto, as febres vario-
losas. A mulher que Miguel Soares amava do intimo
d'alma, a única que elle entrevia, na solidão do seu
quarto, nas horas do estudo, essa, digo eu, cahira no
leito, moça e formosa, para se levantar d'elle desfigu-
rada com as marcas profundas que lhe crivavam a face.
Diziam os moços conhecidos de Miguel Soares, com
grave injustiça ao seu caracter e á sua alma d 'elle, que
abandonaria, n'aquelle estado, a mulher que tinha
amado bella e formosa entre as outras que mais o
eram.
Não aconteceu assim.
Foi longa a doença e longa a convalescença tam-
bém. Miguel Soares escrevia todos os dias á doente
para saber do seu ^estado ; a resposta, porém, vinha
quasi sempre escripta.
136
Instou por fallar-lhe, quando viu que poderia obter
o que pedia.
Conseguira elle que a senhora assentisse, emfira.
Escreveu-lhe ella indicando a hora da entrevista;
o papel, porém, vinha húmido de lagrimas.
O homem da Luiza da Granja, que me referiu a
historia de Miguel Soares, substituiu, n'este lance, as
palavras por lagrimas. Eu não sei pintar tamanha dor;
imagine o leitor o que seria aquella entrevista.
Foi, supponho eu, um chorar anciado e afflictivo,.
um soluçar magoado da mulher que perdeu para sem-
pre a mocidade e a belleza, e do homem que procura
certifical-a de que para elle a belleza e a mocidade
eram exiguos attractivos.
Não vingaram, porém, razões.
Entrou-se a consternada senhora de desgosto pro-
fundíssimo. Nunca mais se avistou com Miguel Soares ;
entretanto escrevia-lhe e fallava-lhe do céo e do hyme-
neu de duas almas, que veriam lá alvorecer a sua au-
rora de felicidade.
Uma d'essas cartas foi a ultima;» a mulher, que
Miguel Soares amava, voou para o mundo dos espíritos.
Elle, o desgraçado moço, fugiu com a sua dor e
com os seus livros para o regaço de sua mãe, que cho-
rava, a esse tempo, saudades eternas d'outro filho.
De dia, Miguel Soares assistia compadecido e ca-
rinhoso ao declinar da infeliz velhinha; de noite, liaj
ou velava, entrevendo a imagem saudosissima nas vi-
gílias da leitura e nas insomnias^da febre.
Miguel Soares viveu assim seis mezes.
137
A coiisumpçíío foi lenta. Ao cabo d'esse tempo,
poróm, a alma de Miguel Soares foi realisar no paraizo
o hymeneu aprasado.
Sahiu da quinta do Urgal a viuva de Cosme Soa-
res amparada ao braço d'um criado. Dizia ella que ia
morrer a Lamego no seio de dois irmãos que tinha,
tragando saudades dolorosissimas do marido e dos
filhos.
E lá morreu.
Os irmãos da defunta senhora, herdeiros d'ella,
respeitaram e respeitam ainda a casa fatal, que foi
tumulo d'uma familia inteira. Não lhe puzeram mão
reformadora ; seria doloroso para elles o remexer
n'aquelle acervo de cinzas e ruinas.
Quinta de Villa Verde — 11 de setembro de 1868.
II
PEREGRINAÇÕES N'ALDEA
Este livro é verdadeiramente aldeão. Nasceu
d' uma saudade — a saudade dos occasos e das alvo-
radas d' uma aldeã — e anima-se d'uma esperança — a
de ser lido nos alegres serões d'aquellas serras, que o
Í7ispirarani. Costumei-7ne a viver no campo desde peque-
no. Soxello^ uma aldeiola que se não encontra, talvez,
na calota de Portugal^ era tudo o que podia haver de
suavemente delicioso para a minha infância, «mea
regna», como diria qualquer estudantinho de latini-
dade.
Sol fora, quando as aves davam rebate nas rama-
gens do pomar, levantava-me para ir ter com os
camponexes tneus amigos e mais madrugadores do
que eu. Já os encontrava na safra alegres e ififati-
gaveis. Conversávamos todos os dias. Eu escutava-os,
sentado a vêl-os trabalhar, e elles, sempre cuidadosos
na tarefa, contavam casos de bruxas, historias
d'amores e tradições do sitio.
Admirava-me eu de que ne7ihum dos ceifeiros
aproveitasse uma aberta para se queixar da sorte
que os obrigava ao rude trabalho de todos os dias, e
y
de que tão pequena povoação nos pudesse dar assumpto
de sobra para tão estiradas palestras. A verdade era
que trabalhavam contentes e que sempre tinham que
dixer e contar. Invejei-lhes a sorte muitas vexes Cj
quando entrei na safra das lettras, lembrei-me dos
ceifeiros de Soxello e senti alegria. Era um exemplo
que dava confoi^to.
Ao anoitecer ia esperal-os a estrada e aconipa-
nhava-os até que cada um tomasse pelo caminho de
casa. D' este peregrinar pela aldeã, ao repontar do dia
e ao cahir da noite, é que nasceu o livro que hoje se
publica. A rusticidade do nascimento não lhe dá azo
para largas ambições, e sou eu o primeiro a dizer
que não as te^n. Que me leiam em Soxello e dar-me- '
hei por bem pago. Que me leia o nosso regedor., um
mocetão intelligente, que faria rir os meus amigos
do Porto, se ouvissem discretear reflectidamente de
litteraturas antigas e modernas a um homem de botas
de montar, jaqueta de caçador e am,plo chapéu
desabado. Afflz-me a medir os regedores por aquclla^
bitola e confesso á puridade que não pude ainda topar
outro regedor que servisse, . . para cabo de policia,
O que é certo é que o «nosso regedor » , como lá se dix,
é um lavrador de boas lettras, que passa as noites
d'inverno sentado á sua baiica d'estudo.
Que me leia o professor. . .
Desconfio do êxito d\im livro que principie por
daguerreotfjpar notabilidades niontanhexas. Seja como
for, PEREGRINAÇÕES N' ALDEÃ é o titulo; sirva isso
de desculpa.
O j^rofessor é um homem chão, que ensina pelo
ntethodo do snr. Castilho e que se delicia com ouvir
cantar os rapazinhos na sua escola. Não discursa
philosophias ás creanças, porque nunca lhe paliaram
u'essas coisas, e empenha-se por ensinar a ler e
escrever correctamente — o que, segundo penso, deve
ser a suprema condição d' um professor dHnstrucção
primaria.
Esse quer-me parecer que hade abrir este livro e
lembrar-se d' um rapazinho de sete annos que peregri-
nava por aquellas serras com os camponezes do sitio
— o qual rapazinho era eu.
Vão passados quatorxe aimos depois dHsto e
durante tão longo período tenho continuado a visitar
a aldeã de longe a longe.
Não encontro nunca diff crença : a mesma sereni-
dade e o mesmo remanço. Muitos dos camponezes do
logar, que eram velhos ha quatorze anrios^ morreram
já. Escuso de ijerguntar por iim que falte; é olhar
para o cemitério e ver uma cruz, a mais. . .
De resto está tudo como era : Os m.esmos tectos
colmados, o mesmo presbyterio voltado ao occidente
e, 6771 opposição ao preshyte7'io^ a 77iesma casa de
escola^ pequena como qualquer cohiiea^ a olhar para
o levante, que é d'o7ide apparecem os ast7^os , . . Sem-
27re se 7ne affigurou que devera ser esta a verdadeira
posição das escolas. E, de manhã ou de tarde, os
mes7nos murmúrios nas ra7naxje7is, a mesma festa 7io
ar e a mesma t7^anquillidade 7io coração!
i
Ju7iho de 1870.
os SINOS D'ALPENDUIIADA
(ao snr. j. j. rodriguí:s de freitas)
Os sinos, collocados em campaná-
rio de parochia aldeian ou de mosteiro
solitário, são uma coxisa poética e
santa ; os sinos, pendurados nas torres
garridas de garridissimas igrejas das
cidades de hoje, são uma cousa estú-
pida e mesquinha.
ALEXANDRE HERCULANO.
Solidão, tu és para o nosso espirito o espelho do
passado, o eterno livro das saudades eternas. Dos
teus cerros desertos vê o homem perpetuamente aberto
diante de si o livro angustioso da sua vida passada
e sente sobre o peito o enorme peso do tempo que
tem vivido. A tristeza e a saudade são tuas filhas, ó
•solidão. Não ha sentimentos que mais pareçam irmãos,
porque não ha tristeza sem a consolação da saudade,
nem saudade sem o travor da tristeza.
É pelas horas mortas da noite, no maior silencio
10
146
do maior dezerto, que o nosso espirito anda a pairar,
como abutre esfaimado, sobre os mil cadáveres das
gerações que foram.
Com ruinas recompõe o homem cidades, com ca-
dáveres reorganisa sociedades e, fazendo estancar a
curso da existência para o reatar depois, volta sobre
o caminho do passado e segue com os olhos do espi-
rito as mil evoluções das sociedades na área de mil
cidades, que se levantam do tumulo, como corpos
reanimados por milagre da sciencia.
E que sciencia é esta? O' saudade, ó filha da
solidão, és tu e só tu, que és um como sentido interna
do homem e vales mais do que todos os cinco sentidos
do corpo És tu e só tu, ó saudade. O corpo humano
é uma machina d'abstracções, disse um philosopho, por-
que cada sentido tem aptidão especial para determina-
das percepções, e ó o nosso espirito que chega á syn-
these reunindo em grupo os conhecimentos abstractos.
Apaguem o sol e digam aos olhos que vejam ; não dê-
em ao homem a possibilidade de transpor as distancias
e mandem-n'o tactear os objectos remotos. Tu, porém,
vês na escuridão, ó saudade, ouves tudo, tudo sentes
e de tudo te aproximas. Embora sejam imperfeitos e
pouco desenvolvidos os sentidos, sempre tu sabes
desenhar intimamente o quadro das nossas recordações
com a mesma clareza. Não, tu não estás dependente da
matéria. Como o homem n'um. sonho ou n'um delirio,
tens sempre a mesma sensibilidade, sem a intervençãai
dos órgãos externos e sem a acção de objectos i-eaes
Saudade, tu és a consciência... do passado. Por ti s6
147
adquires conliecimentos, por ti só chegas á synthese
das cousas, por ti só operas milagres. És um senti-
mento ou uma ideia, vives no coração ou no cérebro,
dize-me quem tu és, ó saudade?
Sinto que te aproximas de mim e adivinho a tua
mão invisivel a apontar-me para as solidões do monte
grados, que se debruçam sobre o Douro, namoradas
da corrente. Vejo d'aqui alvejar a velha casa dos pa-
dres de S. Bento, uma legoa acima de Eiitrnnbolos
Rios^ como dizem as chronicas, entre as arvores fron-
dosas da cerca e ao lado do campanário magestoso do
templo. Os últimos clarões do sol coroam de fogo as
montanhas do occidente. Tudo 6 silencio e saudade. . .
Embaixo, no valle, deslisa sereno o rio. Em fren-
te, na margem esquerda, ergue-se o rústico presbyte-
rio de Sozello, olhando para o poente. D'um lado e
d'outro do Douro fumegam as cabanas e as casas de
campo. Aproxima-se a noite e morre o dia.
Ouvem-se os sinos d'Alpendurada. . . Trez vezes
soaram vagarosos e sonoros. Ave-Maria^ dizem os tra-
balhadores que voltam da safra, descobri ndo-se e pa-
rando . . .
II
Tinha desabado sobre as margens do Guadalete o
colosso da monarchia visigótica arreigado ao chão das
Hespanhas pelo lento decurso de muitos annos. Estre-
meceu a Península ao desabar do gigante, que expel-
lia o derradeiro alento pela garganta do moribundo
148
Ruderico e que sentia, sobre o corpo exhausto, refer-
ver a onda tumultuosa da soldadesca musulmana. Es-
praiou-se a turba ambiciosa ao longo do terreno con-
quistado, não sem frequentes luctas travadas entre
vencidos e vencedores, não sem derrubar as barreiras
que empeciam a marcha triumphante. Havia, porém?
um ponto de defeza, que não tinha sido vencido ; uma
selva de franskisks o resguardava. O baluarte inven-
cível eram as montanhas das Astúrias. Era lá que um
punhado de godos mettia hombros á molle gigantesca
da multidão agarena.
Onde não appareceu o braço de Pelagio, fácil foi
a conquista. Grande era a matança e grande era a mi-
na. Serenada, porém, a febre da victoria, a tolerância
árabe deixou respirar menos anciosamente a popula-
ção christã. Todavia a raça germânica preparava na
obscuridade a guerra da reconquista para expulsar da
Península o leão do dezerto, a raça semítica, que tinha
arrastado comsigo o luto e a desesperação. Então os
árabes, conhecendo a reluctancia da sociedade roma-
no-goda, faziam pesar sobre as cidades, que domina-
vam, o seu jugo de ferro, immenso e oppressor.
III
I
Era uma formosa dama aquella por quem se mor-
ria d'amores o namorado Munio Viegas. N'ella só pen-. •
sava, a ella só queria. Senhor de vastas propriedades
nos terrenos próximos d' Alpendurada, estava prestes
149
a desposar a sua noiva, e cada dia mandava arreiar
de novos brocados a alcova nupcial, que preparava
para o noivado.
Quantas noites de luar não passou elle a olhar
para a corrente saudosa do Douro, que se espreguiçava
no valle, como que a perguntar ás aguas do rio se
não se realisaria emfim o hymeneu desejado !
O verdadeiro amor tem d'estas maguas e d'estes
doloridos receios. Parece que lhe foge o mundo e o
tempo, porque para o verdadeiro amor todo o mundo
é pequeno, toda a eternidade ó breve. . .
A esse tempo o sacerdote Yelino tinha recebido,
em sonhos, inspirações celestes. Uma voz sobrenatu-
ral o avisara para que levantasse, entre a Agoa de
irez Sequeyros e das Lagoas, como refere o tomo se-
gundo da — Benedictina Lusitana — um templo votado
a S. João Baptista.
Sentiu-se Yelino fraco de mais para tamanho com-
mettimento e chamou em seu auxilio a Arguirio, homem
honesto e reverente a Deus. Foram-se os dois a des-
cobrir o sitio marcado pelo dedo da Providencia. Yelino
não conhecia o logar designado como por si mesmo o
confessa n'um pergaminho do cartório do mosteiro de
Alpendurada :
« Ignorava eu qual fosse o logar marcado. Sol fora,
ergui-me e fui-rae a Campanellas em demanda d'Ar-
guirio. »
Conchavaram-se os dois no segredo revelado pelo
ceu a ambos elles, por isso que o bom Arguirio tinha
.recebido inspiração igual á do sacerdote Yelino. Des~
150
coberto o terreno, começaram os trabalhos da edifica-
ção do oratório, que no mesmo anno se concluiu, de-
baixo da protecção do bispo do Porto, D. Sesnando,
primeiro do nome. Imaginai agora o que seria aquelle
templosinlio rústico quasi escondido entre sarças e
continuadamente guardado pela vigilância piedosa do
sacerdote Veliuo.
A' hora do sol-pôr, alguém ia ajoelhar-se nos de-
graus do oratório e fazer oração por longo tempo. Alli
se ficava esquecido o cavalleiro Munio Yiegas a pra-
ticar com Deus. Era aquella uma oração de todos os
dias em que o moço namorado repetia sempre a
mesma supplica : desposar a sua dama. E uma chuva
de lagrimas, que pareciam sempre as mesmas, por iss
que eram sempre abundantes e ardentes, vinha rocia
a quotidiana prece. Quando o sacerdote Yelino se
aproximava para accender a lâmpada que allumiava
o altar da sua ermida, erguia-se o cavalleiro e lá
se ia pelo caminho fora entregue aos mesmos pensa-|
mentos da véspera e do dia seguinte. . .
D'ahi a pouco a campa sonora da ermida de S.
João Baptista trez vezes soava compassada as badala-
das da oração da tarde.
lY
Um dia um cavalleiro árabe contemplara coi
olhos apaixonados uma dama formosíssima, Elle,
guerreiro indomável, que se não temia das hostes
151
('hristàs, sentiii-se fulminado pela belleza esplendida
d^aqiiella angélica mulher. E foram-se-lhe os olhos no
feminil enranto das formas vaporosas. P] anciava-lhe
o peito por arrancar ao dominio paternal a creatura
formosa que seria leve de mais para a garupa d'um
cavallo acostumado ao retinir das batalhas.
Resolvera o cavalleiro árabe possuir a dama en-
cantadora como a fada das lendas orientaes. Tel-a e
não a possuir, era o supplicio de Tântalo. Chegara a
occasião em que o guerreiro das hostes musulmanas
defrontíu-a cora o velho christão, pae da formosa se-
nhora. Fora solemne a conferencia. Ura abysmo pro-
fundo, iraraenso, insondável, separava, na raesraa sala,
os dois interlocutores.
Essa barreira que os distanciava a arabos era a
desigualdade das raças, a differença enorrae do san-
gue, a sobranceria do vencedor e o orgulho do ven-
cido, a crença religiosa e a crença politica, tudo quanto
podia emfim separar o cavalleiro christão, de san-
gue godo, do guerreiro agareno, usurpador das Hes-
panhas. E depois os castos amores da timida donzel-
linha cora o castellão Munio Viegas ? E o dia aprasado
para as núpcias? E as flores que a noiva já tinha re-
cebido? E os protestos que tinha feito em paga? E
o coração que estalava d'araores ? E os olhos que chora-
vam de esperança ? E as supplicas na erraidinha de
S. João Baptista? E. .. o amor, o amor, com estes
encantos que tem, cora estas alegrias que traz, com
todo este mundo que é seu ?
— Gil ! não, mil vezes não ! dissera o cavalleiro
152
christão em resposta á petição calorosa do guerreira
árabe.
V
Fora memoranda esta liicta travada entre dois ho-
mens de crenças e raças differentes. Não teria sido de-
certo mais perigosa e menos encarniçada, se se hou-
vessem arremessado nm contra o outro com a fúria
sanguinária de dois leões do dezerto. Para ambos de-
cidia da vida. O guerreiro agareno daria a existência
por possuir a dama. O cavalleiro christão, se ficasse
vencido, cahiria fulminado de morte com o peso da
deshonra.
— Oh, não, mil vezes não ! repetiu ainda embra-
vecido o velho, aprumando-se solemne e magestoso. \
— Oh, não, mil vezes não ! dissera de novo, se a í
morte lhe não viesse interceptar a voz na garganta.
E cahira no chão, morto ás mãos do cavalleiro da
Islam, sem poder puxar da espada curta e larga, que
tinha herdado de seus avós nobilissimos.
Ao baque do cadáver acudira a turba dos criados
e a filha lacrimosa, espirito archangelico, que, se nãa
visse seu pai morto, fugiria do sangue que espadanava
das feridas como a pomba deve fugir d'um banquete
de tigres. |
O guerreiro árabe, ao vel-a, recuou como por um
movimento instinctivo e, passados alguns momentos,
xjuando queria estreitar nos braços a visão formosa,
1Õ3
seiítiii-se petriticado diante de um espectáculo me-
donho. A dama cliristã, tirando da sua fraqueza fe-
minil o supremo esfor(,'.o do desespero, havia arrancado
do seio paterno o ferro ensanguentado para o cravar
heroicamente no próprio seio.
Quando a noticia da catastrophe chegou aos apo-
sentos de Munio Yiegas, recebeu-a elle de olhos en-
xutos, sem descorar nem tremer.
Lançou mão das suas armas, embraçou o escudo
dos Viegas, que tem quatro bandas de prata sobre
campo axid e por timbre um leão pardo picado de
prata, e relanceou saudosamente os olhos ao redor do
aposento.
Volvidos momentos, alguém o viu sahir em di-
recção á capelliuha de S. João Baptista.
Que supplicas dirigisse a Deus, ninguém o soube.
Ao afastar-se, sahiu-lhe ao encontro o sacerdote Ve-
lino.
As palavras que Munio Viegas lhe dirigiu, foram
estas :
— A vingança chama por mim, padre. Quizera
empoçar no chão das Hespanhas todo o sangue das
tribus agarenas para afogar n'elle o assassino infame.
Ora por mim e vai accender a lâmpada da tua er-
mida. Adeus, Velino.
Pouco depois soavam Ave-Marias na campa da
ermidinha. Munio Viegas ouviu, a curta distancia, as
trez badaladas e por muito tempo julgou ouvil-as ainda.
154
YI
O peregrinar de Munio Yiegas seria o voo compas-
sado e doloroso da andorinha, que vai ferida, ou a
carreira impetuosa do leão sedento e faminto ? Uma e
outra cousa era.
Ora parava para descançar e então se ficava a
chorar e a scismar por longo tempo, ora caminhava
velozmente, como se a terra tentasse fugir-lhe e elle
a quizesse reter debaixo dos pés. Que saudade e que
tristeza, quando sentia ainda nos ouvidos o som já ex-
tincto dos sinos da ermidinha ! Que ferocidade selva-
gem, quando um pensamento de vingança lhe incen-
diava o cérebro e o coração !
Onde Munio Yiegas se encontrou com os mouros,
não dizem as chonicas. Sabe-se apenas que muitas
vezes tingira a sua espada no sangue dos soldados
agarenos e que ficara prisioneiro em uma das refregas. '
Estava, pois, no captiveiro, como refere o per-|
gaminho do cartório de Alpendurada. Oh! longas,
noites de luar em que se ficava a espreitar o ceu
íizul pelas grades estreitas da prisão, quantas vezes a
vossa serenidade lhe não vinha embalar a alma nas
harmonias dos coros angélicos em que distinguia a
voz dolorida da sua noiva?... Dias de viuvez, horas de
captiveiro, que ha de infernal e horroroso que se vos
possa comparar? E, no meio d'estas tribulações de
martyr, ainda um pensamento de doçura — Deus — ,
155
aindii uma aurora — o ccu — , ainda uma esperança —
o noivado d 'além da campa !
Ouvira Munio Viegas contar, no captiveiro, os
milagres do santo da ermidinha e para logo, dia e
noite, prometteu servil-o reverentemente, se voltasse
livre e lograsse morrer em sitio onde se derramassem
as harmonias do pequeno sino, que tantas vezes escu-
tara, á hora do sol pôr.
Consummou-se o milagre, e voltou Munio Viegas.
Demudado vinha, porém. Quando o sacerdote Velino
olhou n'elle, desconheceu-o. Munio Viegas vinha velho,
triste, alquebrado.
Largo espaço praticou com Velino e com o monge
Exameno, que a esse tempo auxiliava o sacerdote,
sobre os prodígios do santo e as tribulações do cap-
tiveiro. Revelou-lhes o intento em que estava e, poucos
dias depois, fazia doação de todos os seus bens, que
muitos eram, a S. João Baptista, orago da capellinha.
VII
O oratório levantado pelo sacerdote Velino é hoje
o mosteiro de S. João de Alpendurada ou Pendurada,
derivando-se o nome, como escreve o padre Carvalho
na sua — Corographia, — de um alpendre da porta^
ou do despenho que fax para o Douro. Não sei por
qual das duas origens me decida.
Parece-me boa a primeira, que confirma a anti-
guidade do mosteiro, por isso que o padre João Chrj-
156
sostomo da Yeiga, no tomo primeiro da — Historia
universal^ — escreve o seguinte : « Os templos tinham
um alpendre á porta principal para os penitenciados;
e aquelles, aonde ainda hoje ha vestigios d'estes
tectos, são os mais antigos.» Antolha-se-me também
acceitavel a segunda origem, pois que o mosteiro fica
pendurado das rochas do monte Arados sobre o rio
Douro.
Seja como for. O que é certo é -que eu, ao escu-
tar os sinos de Alpendurada, sinto reviver-me na
memoria a historia dolorosa do cavalleiro desventuroso.
Pode dizer-se dos sinos d'este mosteiro o que um
chrouista escreveu dos sinos do Bussaco : São igual-
mente sonoros e saudosos.
HISTORIA AZUL
A quelque tcuips de lá, une
âme saiote vit deux formes lunii-
ueuses raonter vers le ciei. . .
Lamennais.
Joãosinho, meu querido irmão, vou escrever esta
historia para a tua pequenina pessoa. Gosto muito dos
meninos da tua idade que são puros como um raio de
sol. Muito mais gosto de ti, porém, que és a alegria
da nossa casa, a felicidade do nosso lar. Quando a
gente te colhe nos braços, sente-se ufana como se
tivesse cingido o globo d'um novo mundo, que mais
tarde hade mover-se nos espaços com as suas tre-
vas e com os seus crepúsculos. Consola a alma ou-
vir-te pipitar esse dialecto misterioso dos dois se-
res mais irmãos da creação — os passarinhos e as
creanças. . .
Jesus Christo morria-se d'amores pelos meninos,
porque sabia que innefPavel doçura ressumbra d'aquel-
las almas. Fico-me muitas vezes a contemplar o
quadro de Benjamim West, que representa o Senhor
acolhendo as creanças, conforme a passagem do evan-
158
gelho de S. Matheus. E' um delicioso poema d'amor
aquelle quadro I Encanta ver como o Homem-Deus se
desentranhava em affectos ao receber, á porta da vida,
as pequeninas creaturas ainda não maculadas pelo
contacto dos homens.
Joãosinho, meu pequenino irmão, faze por não
desplumar nos silveiraes da vida as azas brancas que
te deu a innocencia. Quando um passarinho desce á
terra, deve evitar a traição dos maus rapazinhos d'aldea,
que andam armando no prado. Se pôde fugir incólume,
recebeu um aviso. Se, ao esqui var-se, deixou uma
penna nas sebes insilveiradas, sentiu a primeira dor.
Se os rapazinhos o aprisionaram, perdeu a felicidade
e melhor seria ter perdido a vida. Perder a felicidade
6 viver a vida da tristeza, do silencio e da solidão.
Depois que está presa a pobresinha da ave, que impor-
ta que seja doirada a sua gaiola ou que lh'a cinjam de
folhagens verdes para provocar o canto? São tudo
primaveras fingidas, opulências de vegetação tecidas
pela mão do carcereiro. A gaiola 6 uma prisão, por
isso 6 triste e odiosa. . .
Esta historia, que te vou contar, é um aviso. O
que acontece com os passarinhos acontece com os
homens. De sentir a primeira dor a perder a felici-
dade vai o tempo preciso para a nossa alma percor-
rer toda a escala dos soffrimentos humanos: — um
momento. Se forem doiradas as algemas que nos ro-
xeam os braços, somos duplicadamente desveuturosos.
Perder a felicidade 6 mau ; ter a consciência de que
se perdeu, c peior. O sol, ao espelhar-se no metal doirado
159
das nossas cadeias, niostra-as claramente aos olhos
marejados de lagrimas.
Este quer-me parecer o máximo supplicio da vida.
Absorve-te no trabalho, que ó o paraíso ; põe de
parte a ambição, que ó o inferno. E' ainda a ambição
de ter duas pátrias, a do ceu e a da terra, o que perde
os passarinhos. Se não descessem das alturas, evita-
riam as redes que lhes armam.
Ouve-me agora ; mais tarde pensarás n'isto. Quero
ensinar-te a respeitar as dores alheias, para que
respeitem as tuas, se acontecer rasgares as azas nos
espinhaes da tua carreira,
Chama-se Historia azul o que te vou contar.
Por que?
Porque é uma historia mais do ceu que da terra,
mais das estrellas que dos homens ...
Tinha o Julinho sete annos, quando a mãe o
levava ao adro d'aldea, á hora do sol pôr, para o
ensinar a resar diante da cruz de pedra, que defronta
com o templo. Era triste e doente aquella senhora
fidalga da quinta de Covas, casada com um homem
que passava os dias a conversar com os feitores sobre
projectos de novas plantações, porque nunca se viu
proprietário mais ambicioso ou mais trabalhador.
A casa de Covas fica entre dois montes cobertos
de pinheiraes, que projectam sombras na corrente do-
160
Paiva, — um rio triste e negro, que banha o pomar da
quinta e vem desaguar no Douro.
Por alli tenho peregrinado vezes sem conto e
sempre me sinto opprimido, quando do cimo do
monte olho para as aguas escuras e tumultuosas do
rio e vejo ao lado a casa de Covas afogada em pinhei-
raes, n'aquelle dezerto medonho . . .
A senhora D. Maria das Dores vivia triste, como
já dissemos. Momentos d'alegria, mas deixem-me
dizer assim, d'a]egria melancólica, só os tinha, quando
apertava contra o seio o filhinho de sete annos, que
estranhava ver lagrimas nos olhos de sua mãe, cujas
faces cobria de beijos. Por que chorava aquella pobre
senhora ? Estes mysterios do coração são impenetráveis
para a razão fria do homem, que procura explicar
todos os segredos da creação por uma sciencia frivola,
que para si creou. O' philosophos, que gastaes a vida
a tentai' resolver os phenomenos da terra sobre que
andaes e de que vos julgaes senhores, dizei-me por que
razão nasce o lirio pendido para o chão com geito
de tristeza em vez de se erguer, orgulhoso de si, como
as outras flores suas irmãs ? Não quero já pedir-vos
que me expliqueis as maravilhas celestes, nem que
me falíeis da pluralidade dos mundos, por que me
apavora até saber que ha tantos planetas na immensi-
dade dos espaços, quando attento na humanidade e a
vejo commodamente n'uma nesga de um único planeta. .^
Não vos peço que me digaes d'essas coisas, que hão-de
ser para vós uma duvida eterna, uma anciã de saber
só comparável á sede afílictiva do viajante no dezerto.
161
Fallae-me do que ó terreno, do que todos os dias
tacteaes, por assim dizer; de tudo o que estudaes desde
que a terra se move e os homens a povoam. Níío
sabeis ; que bem vos vejo disfarçar a commum ignorân-
cia com palavras arrevesadas do vosso vocabulário.
A sciencia que vós apregoaes, ó sábios do mundo, não
nasceu de vós mesmos, não partiu d'um raio lumi-
noso do vosso espirito.
Sois navegadores, é verdade, mas dizei-me se não
aprendestes a navegar com essas grandes ilhas fluctuan-
tes, pequenos mundos de verdura, que pairam á flor
dos oceanos, e com e5sas enormes montanhas de gelo,
que sulcam os mares dos pólos e fazem lembrar aber-
tas em arcarias, abobadas de cristal doiradas pelo sol.
Sois aeronautas ? Confessae com franqueza que
as avesinhas, menos vaidosas que vós, vos ensinaram
a devassar os ares, remando com as suas pequeninas
azas; — exemplo que vos deu também grandíssimo
auxilio para a navegação dos rios e dos oceanos.
Sois exploradores ? Devassaes o seio da terra para
desentranhar metaes preciosos ? Dizei-me, porém, se
não aprendestes nada da toupeira e do coelho, que mi-
nam a montanha para se esconderem dos discípulos
ingratos. *
Sois architectos ? Levantaes ao ar as vossas con-
strucções trabalhosas ?
• Déclarae-me então, sem fumaças de vaidade fátua,
se não aproveitastes com o exemplo do castor, que edi-
fica a sua casa consoante os conhecimentos d'uma
geometria instinctiva e natural.
11
162
Não invejo a vossa sciencia, ó sábios do mundo.
Pergiuitei por que chorava aquella pobre senhora da
quinta de Covas ; e sei que ninguém cabalmente me
poderia responder.
Não a festejava o marido com sincera ternura, aa
almoço, á hora do jantar e quando á noite recolhia
de andar nos campos a espionar os quinteiros ? Não o
amava ella como se ama uma alma que é um comple-
mento da nossa, uma vida que nos pertence e dâ qual
dependemos também ?
Não era aquelle filho o filho do seu amor, o alli-
vio dos seus desalentos, o luar saudoso das noites do
seu coração ? Por que chorava, pois, D. Maria das
Dores lagrimas que não tinham justificação possivel?
Não sei, não sabe ninguém. Melancolias dos espíritos
fracos, que só uma alma confidente pode dissipar.
Manoel de Noronha era ambicioso, e esta tendên-
cia da sua alma aggravava as tristesas da esposa me-
lancólica, que se via só com o filhinho. Detesto, abor-
reço a ambição dos homens, que me parece a causa
primaria de se infamarem uns aos outros, como se
não fossem irmãos.
Seria a melancolia de D. Maria das Dores um pre-
sentimento aliitientado pela solidão e pela visinhança
lúgubre do rio Paiva ? Quem^sabe ! Mas os presenti-
mentos são extravios da imaginação, dizem os sábios, *j
e os sábios passam pelo que mostram sei*. . .
i
163
II
O adro da aldeã ó d'ama simplicidade solemiie.
Fechado por uma sebe de flores silvestres para impe-
dir a invasão das manadas que pastam nos lameiros
próximos, não tem mais do que uma cruz de pedra,
que domina os cômoros arrelvados — leitos mortuários
de muitos camponezes do sitio. O quadro, como vêem,
não pode ser mais singelo nem mais tocante.
Sou grande respeitador do culto devido aos mortos
e inclino-me a pensar com Michelet no seu livro =
Nos fils = que esta adoração pelos mortos depende
directamente do amor pela familia.
Não sei como o homem possa viver feliz longe do
remanço dos lares e da (,'ompanhia das pessoas que o
viram nascer.
Um dia a vida d'uma d'essas pessoas extingue-se
nos nossos braços, e quando ha um logar vasio á nossa
mesa enche-se mais uma campa no cemitério, que
também nos espera a nós.
Por que razão não havemos de ir visitar á sua
ultima morada a pessoa que nos falta e que nos iria
visitar também ao mesmo logar, se nos sobrevivesse ?
Quem não faz isto não paga o que deve, creio eu, e
revela uma alma dura como a rocha e fria como o
.gelo. Estas cousas, quando se sentem, dizem-se sem
rebuço, embora os meticulosos as tomem á conta de
próprio encarecimento.
164
« O cemitério, escreve Michelet, é um órgão essen-
cial da cidade, uma potencia de moralidade. Uma terra
sem cemitério é uma terra barbara, árida e selvagem. »
Quer-me isto parecer sublime verdade.
Uma cidade que se vá levantando sobre cadáveres
que não venera, affigura-se-me que cedo deve ruir
em terra, porque é uma cidade edificada apenas sobre
cinzas ...
Este anno, no dia em que se celebrou a festa da
Lapa, entrei no cemitério com Souza Yiterbo, o meu
amigo de infância. Passamos por entre as campas co-
bertas de flores e de luzes e fomos visitar o tumulo
de Soares de Passos, que transbordava de bouquets
e folhas soltas.
Estávamos em muda contemplação diante d'aquelle
tumulo venerando, quando se aproximou uma senho-
ra que, escondendo o rosto na marquezinha azul-ce-
leste, pousou o seu ramilhete na pedra tumular do
poeta do = Firmamento. ■■= Ficamos extáticos diante
d'essa veneração espontânea, rendida a um homem
que já não vive.
Souza Yiterbo, despertando de um como sonho,
arrojou para dentro da grade, com um movimento ^
febril, uma rosa franceza que trazia. i
Esta visita ao cemitério da Lapa deixou-nos recor-*
dações para sempre, supponho eu.
Ponhamos poróm de parte estas cousas, que se não
devem dizer com similhante franqueza; e voltemos a
fallar da senhora fidalga da quinta de Covas.
Costumava ella visitar o cemitério todas as tardes.
165
Alli se demorava com o Hlhinlio, sentada nos degraus
do cruzeiro, a olhar para os cômoros que escondiam
os cadáveres das pessoas da sua familia — ■ pai e mãe.
Ás vezes voltava-se para o Juliuho e dizia-lhe com
ineffavel doçura :
— Julinho, meu íilho, quando eu morrer, has de vir
rezar por mim a esta mesma hora, pois não has de ?
O menino chorava, passava a mão pequenina pela
face pallida da mãe e respondia convulso :
— Não diga isso, mamã, que me faz ter vontade de
chorar.
Um dia D. Maria das Dores senti u-se mais triste
do que nunca, chamou a si o filhinho, cobriu-lhe as
faces de beijos e apertou-o contra o éeio com doloro-
síssima anciã.
Momentos depois iam mãe e filho em caminho do
cemitério. Declinava a tarde. E' preciso ter vivido
n'aldea para comprehender a suave melancolia d'aquella
hora. Parece que toda a vida orgânica se suspende
n'um extasi, e quando momentos depois despertamos
para a realidade da vida, sentimos tédio do contacto
dos homens. D. Maria das Dores sentou-se n'um de-
grau do cruzeiro. O Julinho teve a lembrança de co-
lher flores silvestres e pediu a mãe que lhe entrete-
cesse uma coroa.
— Para que? perguntou D. Maria das Dores.
— • Para pendurar no cruzeiro, como fazem as ra-
parigas, quando é dia de romagem.
Vibraram as badaladas da Ave-Maria. Tinha expi-
rado o dia ; era aquelle o signal.
166
D. Maria das Dores parou muitas vezes no cami-
nho a olhar para o adro, como se tivesse saudades
da coroa que entretecera e orvalhara de lagrimas...
Lá estava, a distancia, essa grinalda singela pendente
d' um braço da cruz, n^aquella immobilidade que nós
estranhamos em certos objectos, quando os havemos
tacteado, convulsos e deslembrados de que a matéria
inanimada não pode partilhar e receber as nossas
próprias sensações.
III
N''essa mesma noite disse Manoel de Noronha, á
mesa da ceia, estas palavras, que dilaceraram o coração
de D. Maria das Dores :
— Sabes uma cousa ? E' preciso mandar o Júlio
para a cidade.
— Para a cidade ? atalhou ella sobresaltada.
— Sim. Está era idade de entrar n'um collegio.
Sou lavrador e não gosto de vida que não seja a dos
campos. Conheço, porém, que me corre obrigação de
mandar educar o pequeno, de modo que possa entrar
á companhia dos fidalgos seus parentes. Não sou egoista.
Trabalhei e trabalho ainda para evitar que meu filho
rabalhe. Este entendo eu que ó o verdadeiro amor sem
tintura de cousa estranha a um coração de pai.
— Dizes bem, respondeu D. Maria das Dores repri-
mindo na garganta um grito de afflicção.
Depois, dolorosamente salteada por uma ideia horri-
vel, perguntou de súbito :
167
— E quando tencionas que vá ?
— Por estes dias. O primo Gaspar de Paiva vai
ao Porto ; eu vou com elle e levo o pequeno. Sei que
has dg ter saudades, mas não imponlio ao teu coração
um sacrifício que não tenha sido experimentado pelo
commum das mães. Estes ^'olpes são para todas. Pouco
tempo me demoro ; trez ou quatro dias, apenas.
D. Maria das Dores não respondeu. Momentos
depois sahiu da sala, correu ao quarto do filho, debru-
çou-se sobre o leito onde elle dormia o plácido somno
da infância, e pôde chorar livremente.
Trez dias passados, havia na casa de Covas o silen-
cio lúgubre dos túmulos. Tinha partido o Julinho. Não
posso descrever o que fosse aquelle quebrar de amoro-
síssimas cadeias na hora da partida. O que sél é que
as criadas de Covas trouxeram a fidalga desmaiada
para o leito, e que os criados partiram para Sinfães e
Castello de Paiva a procurar os médicos d'estas loca-
lidades.
Xão era preciso, porém, tamanho alvoroço. D. Maria
das Dores voltou a si, e com a turbada memoria de
quem desperta d'um somno profundíssimo, perguntou
placidamente o que tinha acontecido. Receiaram as
criadas aggravar a conjunctura com palavras Indiscre-
tas, e calaram-se. A fidalga passou a mão pela testa,
afastou as tranças negras que lhe cobriam os hombros
e disse com tranquillidade :
— Já sei. Roubaram-me o meu filho.
Quiz encostar-se á travesseira e não pôde.
Ajudaram-n'a a deitar-se ; e sentiram-n'a cahir em
168
somno. Quando D. Maria das Dores acordou, volvidas
horas, viu ao lado do leito o medico de Castello de-
Paiva, amigo da casa.
Um criado velho, que tinha quasi as honras de
mordomo pela antiguidade do serviço, esperou o doutor
no pateo e inÇiiiriu da saúde da fidalga.
— Está gravemente doente, disse o facultativo.
Já perguntei lá em cima quando o fidalgo viria e
disseram-me que tencionava voltar dentro de trez dias..
Foi gravissima indiscreção tirar o filhinho a esta pobre
senhora, cujo temperamento é extremamente delicado.
O que .julgo melhor é mandarem ao Porto chamar o
fidalgo. Os criados que soltem rédeas aos cavallos e
que se não demorem nas estalagens. O snr. D.
Manoel de Noronha que se não demore também e
que traga o filho comsigo.
O doutor cavalgou, estimulou a égua com os aci-
cates e, ao transpor o portão, tornou a dizer :
— Que traga o filho comsigo. Pode ser um remé-
dio efficaz.
Ao outro dia de manhã chegaram ao Porto dois
criados da- quinta de Covas. Criados e cavallos vinham
extenuados d'aquelle jornadear por serras da beira
Douro.
Costumava Manoel de Noronha hospedar-se na
rua do Sol em casa d'uns parentes nobres, quando
vinha ao Porto.
Foram os criados á rua do Sol e perguntaram
pelo amo. A resposta que lhes deram orçou por isto :
— O primo Noronha e o menino chegaram hontem
169
á meia noite. O menino vinha doente; foi preciso
chamar facultativo. O primo passou toda a noite em
claro ; de madrugada, quando viu o filho ^nenos
delirado, recolheu-se.
— Pois o menino esteve delirado ? perguntou
subitamente um dos criados.
— Esteve. Entrou aqui nos braços do snr. Gaspar
de Paiva, que a pobresinha creança não tinha forças
para guiar o seu cavallo. O primo ííoronha vinha
triste, que fazia dó I
N'isto abriu-se uma porta que dava para a escada.
D. Manoel de Noronha ouviu do seu quarto a voz do
criado, conheceu-a e levantou-se n'um ímpeto.
— Que ha ? perguntou elle anciosamente.
— A snr.^ fidalga está em perigo de vida. Cha-
mou-se o doutor de Castello de Paiva e por sua or-
dem viemos trazer aviso a v. ex.^ e ao menino, res-
pondeu um dos criados.
— O doutor disse mais, acrescentou o outro cria-
do, que v. ex.* devia partir immediatamente e levar
comsigo o menino — o menino que podia ser o único
remédio para a snr.» fidalga.
— Que desgraça eu fiz ! exclamou D. Manoel de
Noronha. A pobresinha creança não pode ir, que está
cheia de febre e passou toda a noite a pronunciar o
nome da mãe. O facultativo recommendou a maior
discreção.
Disse e pareceu meditar alguns momentos ; depois,
como assentando n'uma resolução, exclamou :
— Eu vou com vocês. O menino fica entregue aos
170
cuidados d 'esta família, que é sua parente e ha de ve-
lar por elle como eu. Não ha outro meio de sahir
d'esta rede de desgraças, que involuntariamente teci.
lY
Deixemos em silencio os acontecimentos de qua-
renta e oito horas.
Dois dias depois de D. Manoel de Noronha encon-
trar a esposa gravemente enferma, recebeu noticias do
Porto e soube que o menino peiorava de hora a hora.
Na noite d'esse dia D. Maria das Dores encostou-se
nos braços do marido e disse em anciãs, que pare-
ciam de morte, que estava a ver o filho, envolto em
roupagens luminosas, a charaal-a do cóo.
Dizia isto, e sorria com ineffavel doçura.
A' meia noite tornou a fallar do filho, que conti-
nuava a chamal-a das alturas ; e fez menção de se
levantar, como a ave que tenta desferir voo. N'este
movimento impotente foi-se-lhe a vida. D. Maria das
Dores cahiu adormecida para sempre nos braços do
esposo angustiado.
É-nos dado vêr o que se passava, uma hora depois,
na casa da rua do Sol,, no Porto.
Contorcia-se o menino em dolorosos soffrimentos.
Queixava-se de que lhe faltava o ar.
Fallou com extrema difficuldade em sua mãe e
disse que ella estava no cóo. Depois acrescentou que
171
desejava vel-a, e pediu que o abeirassem da janella.
As senhoras da casa accederam.
— Oh ! lá está a mamã ! exclamou elle indicando
uma estrella brilhante que luzia na direcção da ja-
nella.
E morreu a contemplar essa estrella.
As primas de D. Manoel de Noronha, que tinham
os olhos postos no céo, viram que uma estrella ca-
dente correra ao longo da tela azulada do firmamento
como que em demanda d'aquella que o menino tinha
indicado.
Era o filho que procurava a mãe. . .
O Julinho estava no céo ; e ainda não tinha ama-
rellecido a coroa de flores silvestres pendente do cru-
zeiro do adro.
Joãosinho, meu irmão, respeita estas dores immen-
sas da vida e crê n'estes mysterios de Deus, que os
homens motejam, se queres attingir a verdadeira feli-
cidade. De mim te declaro que me julgo venturoso, por-
que respeito tudo o que ha de sublime e que a razão
humana não pôde comprehender. A duvida é a febre
da vida ; mata lentamente.
Que a Historia azul te sirva de conselho. Aos
que te disserem que é imprópria a denominação da
narrativa, porque este quadro revela angustias verda-
deiramente terrenas, dize-lhes que ha em tudo isto,
para os que não duvidam, um raio de luz divina eja-
culado do azul puríssimo do céo.
A' BEIRA D'UM BRRCO
(ao snr. A.vroxio Feliciano de c\stilho)
Deixae os meninos e não embaraceis
que venham a mim, porque d'estes taes
é o reino dos céus.
Evang. de S. Matheus.
Quando OS meninos riem, alegra-se o céo ; quando
elles choram, entristece-se Deus. Faz pena vel-os chorar,
a elles, que nos dão alegria quando chilriam á volta
da mesa do jantar, a elles, que nos pagam com beijos
um gesto d'aborrecimento. Na casa onde ha creanças,
ha bençans e alegria. Preservam a familia das iras do
céo; são como uns anjos da guarda, ioiritos e rosados,
que nos cercam d'um ambiente de felicidade. Os me-
ninos parecem-se com as flores e com as aves.
Afíligí-os e dar-vos-hão sorrisos. Roubae uma flor á
hastea em que brotou, á terra em que nasceu ; a pobre-
sinha, em vez de chorar saudades e mostrar resenti-
mentos, perfuma-vos o ar e alegra-vos a casa. Mos-
trae que sois' maus, dando caça aos passarinhos que
174
são livres, prendei-os, encarcerae-os ; os captivos, em
paga da vossa crueldade, hão de encher-vos a casa de
musicas e alegrias.
Hontem ia eu a meio d'um caminho e topei com
um rancho de creanças, que sahiam da escola e vi-
nham pipilando pela estrada fora. Senti-me contente de
vel-as. Pobres rapazitos, que mal entraram ainda no
mundo pela porta da innocencia e já andam trabalhando
todos afadigados para a obra do futuro !
Ao ouvil-os chilrear como um bando de pardalitos
joviaes, lembrei-me de Yictor Hugo e de Castilho
conj respeito e admiração. Almas sublimes de poetas,
que sabeis entender as palavras de Christo e vos des-
entranhaes em effectos para as creanças, abençoadas
sejaes.
Castilho, o poeta infeliz, que tem os olhos eterna-
mente annuveados pela escuridão eterna, olhaô como é
solicito em fazer alvorecer auroras brilhantes nas ca-
becinhas loiras das creanças, levando-lhes a instrucção
embalada na suavidade da musica ! Bem sabe elle
que o cantar 6 dos passarinhos e que os rouxinoes
dos sinceiraes ensaiam novas volátas estudando em
communidade nas noites de primavera. Que as ben-
çans do céo, meu prosado mestre, chovam a esmo so-
bre a vossa cabeça de poeta, porque sois amigo das
creanças e bafejaes as pobresinhas que se andam a
implumar para futuras empresas.
Yictor Hugo, o proscripto saudoso, vede como
espairece as tristezas do desterro acoUiendo as crean-
cinhas que o rodeiam d'alegrias e suavidades ! E de-
I
175
pois notae como lhes prepara as festas infantis, a
consoada e o folar, para lhes dar contentamentos.
Lembrei-me ainda de Victor Hugo porque, ao ver
os pequenitos que vinham de sacca ao hombro pelo
caminho fora, occorreram-me de prompto e a ponto
os versos do poeta exilado :
Je ris quand chaquo soir de l'ecole voisine
Sort et s'echappe en foule une troupe enfantine.
Iam, pois, enchendo a estrada d'uma toada alegre,
depois de terem polido uma pedra para o edifício
d'amanhã. Eram como uns trabalhadorsitos, que hou-
vessem despegado do labor quotidiano e fossem des-
cançar pai-a recomeçar a tarefa no outro dia, até que
emfim chegue o sabbado do futuro em que hão de
receber a feria.
Bem sei eu que lhes ha de custar aquelle traba-
lhar de todos os dias, a elles, que são fraquitos como
a haste d'um lirio e pequenos como um pintasilgo.
Bem sei isto. Mas lá os está esperando em casa o
seio flácido da mãe, que já lhes tem prompta a me-
renda e que lhes vae fazer — ella mesma — a cama
tão clara e bonita como se fora de um principe...
Nos versos de Victor Hugo, o professor reprehende
os pequenos que se demoram ao sahir da eschola,
dizeudo-lhes :
Hátez-vous, il est tard, vos mères vous attetideat, .
Bem sabe, pois, o poeta com que extremo cuidado
176
está a pobre mãe a olhar para a porta, a contar os
minutos, a estremecer, a duvidar. , . e a delirar de
jubilo, quando o filho assoma ao limiar a pedir-lhe a
bençam e a sorrir-se para ella !
O ver as crianças fez-me lembrar da Quinta da
Primavera onde, ura anno antes, eu tinha assistido,
n'uma das vastas quadras da casa, ao mais suave
espectáculo d'este mundo.
Acompanhae-me áquella sala onde se respirava
amor.
Sentia-se a gente bem n'essa atmosphera ! Eu
estava alli tão identificado com as personagens do
quadro, que me sentia entristecer quando me lem-
brava de que não fazia parte da familia.
O berço de uma creança loira, absorta em sonhos
do céo, estava sendo, n'essa occasião, o foco calorífico
em torno do qual as nossas almas se* aqueciam todas
a um raio d'amor. Havia alli um certo conchego, um
certo bem-estar, que é o verdadeiro contraste da atmos-
phera corrupta das grandes salas onde as mãos trocam
officialmente cumprimentos cerimoniosos e os olhos
cruzam, ao mesmo tempo, olhares envenenados de
malquerença.
Estávamos como que revendo na nossa imagina-
ção uma aurora que ha de surgir, um sol que lia de
brilhar, um rouxinol que ha de ter voz, uma flor que
se ha de abrir aos primeiros clarões do dia de áma^ihã.
Era um ninho afofado de cambraias, o berço d'a-
quella creança. Poucas vezes, como n'essa noite, chega
a gente a lembrar-se tanto a fundo de que o berço é
177
mais do que ura leito e uma creança mais do que um
ser que chega ao limiar da vida.
« Pelo filho, diz Paulo Janet, se prende a familia
á humanidade. »
Eis aqui o papel importante da creanya de hojej
que ha de ser homem amanhã.
E o bergo? O que será elle, pois?
Pode dizer-se do berço o que diz Michelet a res-
peito do ninho das aves :
«O berço é uma creação d'amor. »
E* pelo sentimento da maternidade que as aves são
artistas, quando fabricam o ninho onde se ha de ir
abrigar a prole. E' também por este mesmo sentimento
que as mães attingem o artificio das aves, quando pre-
param o berço ao filho que ha de nascer.
Sente-se a ave mãe trabalhada das dores da ma-
ternidade. Lá vai o esposo, solicito e cuidadoso, pro-
curar os raateriaes para a construcção da casinha
aérea. Que trouxe elle ? Linho ou crina.
Nada d'isto serve. A pobresinha da ave parece
dizer, n'um extremo de amor, ao esposo querido, que
o linho é frio e a crina é dura.
Parte de novo o esposo. Yolta, passado tempo,
trazendo o cotão de certos vegetaes, que pode servir
para um colchão macio. Isso sim que é flácido e
agradável. Jubila a futura mãe ; e o esposo fica con-
tente de si. '■
Trata-se agora de ser artista na construcção do
ninho. Mas é precisa uma precaução : a defeza e se-
gurança dos ovos. Como ha de ser? No modo por que
178
a ave garante aos filhos a segurança do berço é que se
revela o seu instincto artístico. E não devem estra-
nhar se lhes eu disser que não é raro dividir-se o
ninho de modo que fiquem mãe e filhos n'uma como
alcova independente do vestíbulo, onde o macho vigia
pela defeza da casa e da família.
jS^otemos agora o que fazem as mães.
Oh ! Ninguém como ellas para saber de que maté-
ria se ha de fazer o colchão para o bercinho. E' pre-
ciso que seja molle e brando para não molestar a
creança. Que altura ha de ter o colchão ? E' necessário
que não seja tão alto que exponha ao ar o recemnascido,
nem tão baixo que o deixe soterrado no berço. Só o
coração materno é que discrimina o meio termo n'esta
conjunctura, E atravesseirinha? Torna-se indispensá-
vel que não offenda o craneosinho delicado. E' ainda
a mãe que ha de escolher a matéria para se fazer a
travesseirínha ! E a coberta do berço ? Importa que a
mãe, por um instincto inimitável, escolha o único
estofo conveniente.
Eis aqui o berço sendo mais alguma cousa do que
um simples leito e apparecendo-nos agora como uma
verdadeira creação d'anior. E pelo que toca ao bem
estar da creança ! E' ainda a mãe igual á ave que
procura garantir a segurança dos filhinhos. Ninguém
como a mãe para saber em que sítio do quarto se
ha de coUocar o berço. Mais para aqui, na direc-
ção da porta, ficaria exposto a uma corrente de ar.
Mais para acolá, quasi ao meio da sala, estaria mal
collocado pela excessiva claridade das janellas. Nem
179
aqui nem acolá. E' preciso que o berço fique n'este
sitio, exactamente n'este, diz a mãe, para que o me-
nino esteja bem.
Faz rir e chorar a um tempo esta anciedade ex-
trema de uma mãe dedicada: e eis aqui resolvida a
questão dos philosophos Proethes e Cyestris, philoso-
phos que, seg'undo diz algures Victor Hugo, discuti-
ram a possibilidade d 'uma pessoa rir e chorar simul-
taneamente.
Até aqui creio que a ave está á altura da mulher
e que o berço das creanças ó tanto uma creação
d'amor como o ninho dos passarinhos. A mãe exige
para o filhinho uma cama flácida, e só ella — e nin-
guém como ella ! — sabe preparar o leito que deve re-
ceber o seu mimo d'amor.
Se a mãe desconfiasse de que uma caminha de
' flores era mais macia de que ura colchão de sumahu-
ma, colmaria de rosas, todas as noites, o berço do
filhinho e viveria contente arrulando o anjo que dor-
misse n'esse jardim em miniatura.
E as aves não fazem o mesmo ?
Poderia referir milhares d 'exemplos, mas conten-
to-me com fallar aqui do pendidino^ que tem o cui-
dado de acolchoar o ninho com o cotão das flores do
salgueiro, e de o pendurar a um ramo por uma fibra
de cânhamo para que o vento embale aquelle berço
aéreo e adormente a ninhada.
Comparemos a mulher com a ave na restante edu-
cação dos filhos d'ambas.
Apparece-nos a ave no trabalhoso periodo da incu-
180
bação e a mulher na demorada tarefa de amamentar
o filhinho.
Rejeitemos a hypothese de não querer acumular
as funcções de ama e de mãe. Pois se Deus fez brotar
d'um seio o néctar que deve alimentar uma vida, como
é que a mulher, excepto o caso d'impossibilidade or-
gânica, quer inutilisar o jorro que lhe rebenta do peito,
roubando o que era de seu filho ?
Deixemos isto, que é feio e desconsola ; e continue-
mos no cotejo da ave com a mulher.
Ahi temos nós a ave aquecendo o ovo no periodo
da incubação. Ella ahi está immovel, presa, solicita,
para o não deixar resfriar e atravessando-o com a vista,
por assim dizer, como quem deseja devassar um se-
gredo, que lhe absorve a vida. . .
Estudemos agora a mulher que se inclina cuida-
dosa sobre o berço, entregando aos lábios do filho o
botão róseo do seio, sem pensar em mais nada, esque-
cendo tudo e concentrando todas as suas faculdades
n'esta tarefa tão espinhosa como suave. . .
Mas o passarinho quebrou agora o inii7'o da sua
jjrisão, como diz Michelet, e a creança chegou á occa-
sião d'abandonar o berço.
A ave começa a querer ensinar o filho a voar.
Abre as azas e desfere voo como para lhe mostrar
que o infinito das regiões ethereas não 6 o abysmo,
mas a pátria. Provo ca-o, dasafia-o a voar. O passari-
nho treme, vacilla, duvida.
A mãe insta, o filho recusa. Mas quando a mãe
insta, o filho não pode recusar por muito tempo...
181
O passarinho voou.
Vejamos ag"ora a niae a esforvar-se para que o
tilho comece a andar.
Promette beijai- o, se ello arriscar um passo.
O pequenito quer andar e receia ; esforça-se e
cae... Mas a mãe não desanima e procura dar-lhe
alento com o exemplo: anda também.
O pequenito deseja, mas teme. E a mãe insta, e
espera-o com os braços abertos...
E o pequenito anceia cahir nos braços da mae ([ue
são feitos de ternura, como nota Victor Hugo nos
Miseráveis. E a mãe anhela estreitar o corpo d' oiro
de seu filho, o corpo d'oiro^ como diz a canção d'Eo^as
Moniz. E a creança treme e a mãe anima-a.
E o pequenito começou a andar.
Ha todavia um ponto na educação dos filhos com
que as aves se afadigam muito mais do que a mulher: —
a educação da voz. E' preciso attendermos a que o can-
to, como Buffon nol-o diz, «é uma qualidade em parte
da natureza e em parte adquirida. » A ave nasceu para
cantar, é verdade; mas a sua voz pode ser modificada
por mil influencias estranhas.
As aves teem também as suas escolas de canto,
os seus conservatórios de musica. Os pães e as mães
costumam ser os preceptores n'estas escolas, mas ha
todavia casos dos passarinhos serem ensinados uns
pelos outros e ainda pelos homens.
Conta Michelet que nos palácios da Rússia ha
escolas de canto oiide os rouxinoes novinhos vão
182
ensaiar as suas volatas na presença d'outro que passa
por ser musico di cartello.
E escreve Bufibn que a maior parte das cotovias
modificam admiravelmente o seu canto natural sendo
auxiliadas por qualquer instrumento musico; ha
casos de chegarem algumas a cantar árias inteiras!
Eu não sei por que as mães não acostumam as
creanças, desde a primeira infância, a certa educação
musical.
A musica dulcifica os génios ásperos, amenisa
lentamente as Índoles que não são boas, apura a
sensibilidade e prepara a alma para as concepções
grandiosas.
E' tempo de voltarmos á sala onde estávamos.
Despertara a creança que dormia, saudando a todos
com um sorriso em que brotavam graças infantis.
Como já não havia receio de perturbar o somno da
innocencia, abriu-se o piano e uma senhora percorreu
com as mãos o teclado, fazendo ouvir as primeiras
notas da Valsa das flores.
Era uma musica alegre a que enchia a sala, e a
creança sorria-se ainda como enlevada n'uma suspen-
são celeste. Depois cerrou as pálpebras como para se
concentrar na impressão dulcíssima da musica e, ó in-
fluencia magnética d'essa linguagem dos anjos I —
adormeceu sorrindo-se e cuido que sonhou. É ainda
um milagre da musica o fazer cerrar as pálpebras
para se poder sonhar.
Ao outro dia, enviava eu á mãe d'aquella fornio-
8issima creança os seguintes versos :
183
Não acordeis o anjo alvo e rosado,
Qiio dorme entre cambraias cor de neve. . .
Vinde vèl-o a dormir tao socegado !
Mas não o desperteis ; entrae de leve. . .
Descerram-se-lhe os lábios n'um sorriso.
Não ha sonhos mais lindos, mais serenos I
Entrevê os irmãos do paraíso,
Anjos, também, rosados c pequenos.
A sonhar ! Vede agora que se move. . .
Affastai mansamente o cortinado...
Quem é que ao vel-o assim se não commove ?
Perturbar este somno era peccado.
As madeixas do sou cabello loiro
Esparzidas, n' alvura, uma por uma.
Fazem lembrar á gente fitas d' oiro
Enastradas n'algum rolo de espuma, c .
Que formoso a dormir I E ao pé do leito
Um coração de mãe, cheio de vida.
Aquecendo no fogo do seu peito
O porvir da creança adormecida. . .
Inclino-me ante o berço das creanças.
Como se fosse o ninho alegre e obscuro,
D'onde, um dia, n'aurora das esp'ranças
Hão de voar as águias do futuro . .
D'ali hão de sahir novos Atlantes
Que sustentem a nova architectura. .
Águias, hão de subir como gigantes.
Seguindo o voo da águia á mesma altura.
184
Yel-as-hemos suspensas no infinito,
Medindo, no seu voo, a profundeza
Do poema de Deus que está escripto
Nos abysmos sem fim da natureza. . .
E quando uma roçar a poeira d' oiro
Dos astros que são fachos do universo,
Quem dirá que era ella o anjo loiro.
Que vimos a dormir hontem no berço?
Pois se as aves aquecem cuidadosas,
Nas sombras do seu ninho, a cada ovo,
E sem descanço escondem anciosas
Debaixo d'uma aza um mundo nov^o;
(Um mundo que se esmaga com dois dedos,
Mas que nos furta á vista o ser implume
Que ha de amanhã soltar nos arvoredos
Um cântico d' amor ou de ciúme. . .)
Pois se as aves nos dão sempre este exemplo
De desmedido amor, cheias d^esperanças,
O' mães, sabei que o berço é como um templo,.
Em cujo altar se adoram as creanças.
Velai por ellas sempre, noite e dia.
Não deixeis apagar no vosso seio
A lâmpada do amor que as allumia. ..
Sede mães, sede luz e sede esteio.
Deixemos as aves e as mulheres a aprenderem ex-
tremos de mãe umas com outras. Kespeitem-se as
mulheres que se inclinam sobre o berço do homem
18Õ
(Vammihã e iiào enipevamos o voo da ave, que vae
cruzando o espado em caminho do ninho de seus
fillios.
Matar uma ave é talvez roubar a vida de qualquer
mãe ; e roubar a vida da mãe 6 levar a morte aos filhi-
nhos. Para que havemos d'atirar aos pombos, como
se fazia em Pariz, ha poucos annos, apostando um
luh pela vida de cada um, se os pobresinhos vivem
no seu paraizo d'amor, sem se intrometterem comnos-
co !
O que admira é que as senhoras da melhor socie-
dade parisiense fossem as mais denodadas apologistas
do tiro aos pombos, uotando-se entre ellas a duqueza
de A^alezay, que difficilmente errava a pontaria da sua
pequena clavina.
Fecho por aqui estas recordações da Quiiita da
Primavera. Pouco disse em relação ao muito que de-
sejava dizer. Receba o snr. António Feliciano de Cas-
tilho, o poeta amantíssimo das creanças e das aves,
estas linhas que dizem respeito ás aves e ás creanças
e saiem da peuna obscura do mais obscuro rabiscador
portuguez.
I
I
:
O CATRE DO BISPO
( AO SXR. CAMILLO CASTELLO BRANCO )
Toinette
Mais. monsieur, mettez la maiu à la consciea-
ce : est-ce que vous étes malade ?
Argan
Corament, coquine, si je suis malade ! si je suis
malade, impudente !
MOLiERE. — Le malade imaginaire.
Podem servir de introducção a esta narrativa os
fragmentos d'algumas cartas que vamos publicar.
Do auctor ao snr. Cainillo Castello Branco :
« Postas estas palavras, vou consultar v. ex.* sobre
um caso que prende, talvez, com a biographia do bispo
•do Grão-Pará, fr. João de S. Joseph Queiroz. Falia v.
ex.* do Mosteiro d^Alpendurada, na introducção ás
Memorias, com muita verdade descriptiva, e quer-me
parecer que já peregrinou em terras visinhas do hos-
188
picio benedictino. Se sim ou não, ignoro. Na margem
esquerda do Douro, parallela ao mosteiro d'AlpendQ-
rada, estende-se a freguezia de Sozello. É ahi que,
entre meia dúzia d'arvores de boa sombra, ha uma
choupana, que abrigou os meus antepassados e que
ainda hoje hospeda frequentes vezes a minha família.
Quero áquella aldeia e áquella choupana como se me
fossem pátria e berço. Tenho pena de ter nascido na
cidade. Queria poder dormir o somno da morte n'um
cemitério aldeão, visinho do alpendre onde tivesse nas-
cido. Na casa da quinta de Yilla Verde, — denomi"
nação verdadeiramente bem cabida a propriedade, —
havia, ha poucos annos, um leito de pau preto, com
insígnias episcopaes gravadas na cabeceira. Era de
tradição na familia o chamar-se áquelle leito o leito
do bis-po d' Alpendurada. Na resfcricção d' Alpendurada
havia manifesta mentira. Nem que o mosteiro fosse
diocese ! Contava a lenda que costumava dormir
n'aquelle leito um bispo velho e triste, que d'Alpen-
durada ia de visita ao nosso alpendre. D'aqui veio
o dizerem os quinteiros, por ignorância, bispo d' Al-
pendurada. Permitta v. exc* que não attribua este
erro aos meus antepassados que, posto fossem boas
pessoas de poucas lettras^ não eram completamente
analphabetos.
Seria este bispo o pobre Queiroz que, por minorar
as maguas do seu desterro d' Alpendurada, passasse na
barca para o outro lado em demanda do tugúrio hos-
pitaleiro de pessoas piedosas? Mas se elle tinha sido
desterrado por ordem d'aquelle severíssimo conde d'Oei-
189
ras, será licito sappôr que consentissem os frades
n 'estas diíj^ressões, postoqiie breves, frequentes ?
Eis aqui o que não sei. O leito desconjuntou-se
de velho. Guarda-se, hoje, apenas a cabeceira na casa
de Yilla Verde. Tenho vivido tranquillos dias n'aquel-
las paragens e quero-lhes como o Júlio Machado,
creio que posso dizer nosso commum amigo, quer á
sua Durruivos.
Queira v. exc* dizer-me do caso o que pensar,
com a franqueza indefeza ao seu mais reconhecido
admirador e discípulo
Alberto Pimentel
Do snr. Camillo Castello Branco ao auctor :
« O bispo do G-rão-Pará, sem embargo de ter sido
desterrado pelo Pombal, é bem de crer que sahisse
do mosteiro quando bem quizesse, já porque era
prelado insigne, já porque era benedictino e estava
entre os seus. Quanto ao leito, se tem o espaldar de
columnas em rosca, sem duvida era coevo do bispo,
porque esse feitio de catres é o da renascença, que
principiou no começo do século xviii. Mas quem man-
dara abrir as insígnias episcopaes? Os antepassados
de V. em honra do seu hospede ? Ou elle mesmo?
190
Não é natural a segunda hypothese. Se bem me
recordo, o desterrado viveu alguns mezes escassos
em Alpendurada. De certo não cuidaria em com-
modos de cubículo, e menos em pompas nobliar-
chicas. Seria mais acceitavel que os hospedeiros
amigos Âe Yilla Verde o honrassem com essa prova
de reverencia. Mas a brevidade do bispo em Alpen-
durada daria tempo a isso? Ha sêllos de segredos que
nunca se abrem. Eu tenho tido horas de aftlicção a
scismar em bagatellas d 'esta natureza. Quando era
novo passava dias a interrogar umas pedras amon-
toadas no viso d'uma serra, que sobranceava a aldeia
onde passei a infância em Traz-os-Montes. Eu queria
que fossem antas célticas o que não passava d'uns
calháos sobre os quaes uns pastorinhos jogavam o
Rapa.
Estive á porta do Mosteiro d'Alpendurada com
José Augusto Pinto de Magalhães, da casa de Lodei-
ro, em Sancta Cruz do Douro. E' o personagem d 'um
fragamento de um livro que intitulei: No Bom Jesiis
do Monte, Era em dezembro de 1850. Ha 20 annosi
A minha alma de hoje comprehende melhor o frio
aspérrimo e o local onde estivemos uma hora a" apos-
trophar o barão que substituiu o frade.
Seide— Abril 70.
(\ Castello Jii^anco.
191
Do aiictor ao snr. Camillo Castello Branco:
i
O leito do bispo 6 perfeitamente da renascença.
Aventemos agora hypotheses sobre o caso das insigni-
as do espaldar. E' de sappôr que já houvesse o catre
na casa de Yilla Verde, e que talvez, depois da pri-
meira visita do bispo, mandassem ao Porto abrir os
emblemas nobiliarchicos a qualquer samblador. O bis-
po viveu em Alpendurada, segundo v. exc* diz nas
Memorias, cerca d'oito mezes. Do cães de Foutellas
saiem barcos de carreira para o Porto todos os domin-
gos. A facilidade do transporte e o pouco trabalho
artístico das insígnias do catre auctorizam o suppôr-se
que os meus avoengos quizeram honrar o seu illustre
hospede com esta distincção.
Este leito, onde o prelado do Gão-Pará dormiu
as longas noites de Yilla Yerde, tem ainda uma histo-
toria que eu desejo contar em folhetim. Peço vénia a
V. exc* para publicar a sua carta no prologo da mi-
nha narrativa, por isso que v. exc* corroborou a sup-
posição da fidalguia do leito.
Li até em Yilla Yerde, o anno passado, o livro
No Bom Jesits do Monte e já conhecia o caracter
sympathico de José Augusto. Pareceu-me um grande
espirito o d'aquelle homem e um grande anjo aquella
Fanny Owen. O livro impressionou-me e se as nossas
visitas de Yilla Yerde entendessem boa litteratura
192
(salvas algumas poucas excepções) ter-lhes-ia lido as
maviosas paginas nos serões d 'aldeia.
De V. exc.a
Discipulo, admirador e criado
Alberto Pimentel
Ahi vai, pois, a historia que anda ligada ao catre
do bispo, seja ou não seja o do Grrão-Pará, Frei João
de S. Joseph Queiroz.
I
Não aventuremos hypotheses sobre as causas que,
no principio d'este século, obrigaram Martinho de
Teive a abandonar temporariamente a casa solarenga
de Castro-Daire para vir tractar de perto com Silves-
tre da Cunha, proprietário no concelho de Bouças.
Negócios attinentes ao tracto commercial deveram
ser, que ambos estes nomes representam duas das não
muitas casas que, a esse tempo, mais semeavam e co-
lhiam na província.
Os Teives de Castro-Daire eram nobres e dinhei-
rosos. Penso que essa familia deveu proceder d 'algum
varão romano das hostes conquistadoras da penín-
sula;— talvez um dos que edificaram sobre um ou-
193
teiro, lavado dos ventos, o castro que deu nome
áquellas paragens. Mas se ao fidalgo appellido de Teive
se pode assignalar com certeza origem romana, não
n'o sei eu, nem isso faz ao meu propósito.
Martinho de Teive era, pois, no principio d'este
século, um dos mais acatados senhores de Castro
Daire, e o mais querido das donas da sua terra.
Era uma alma sem refolhos aquelle homem, posto
que muito propenso a melancolias e ao remanso la-
reiro da sua casa solarensra.
No inverno, quando os ventos açoitavam as arvo-
res da serra. Martinho de Teive mettia-se na cama,
pregoando aos criados soffn mentos gravissimos, que,
em verdade, não tinha.
A ideia da morte, que era o galardão da vida
para Santa Catharina de Sensi e ganho e (?tferesse para.
Sam Paulo, apavorava o fidalgo de Castro Daire.
Muito devia contribuir par.i estes terrores imaginários
a solidão a que o obrigava o celibato.
Aconselharam-n'o a casar-se. Martinho de Teive
tinha anciãs d'uma esposa solicita, que fosse boa amiga
e boa enfermeira, mas salteava-o o receio de se lhe
mostrar excessivamente ridículo n'aquelles lances entre
cómicos e melodramáticos em que dizia estar prestes
a ser victima de um . . . aneurysma.
^ Os cuidados da administração da casa valiam-lhe
m ainda para espairecer o espirito cançado de visualidades
■ tétricas. Havia trez annos que Martinho de Teive viera
|B ao Porto consultar os médicos ; por essa occasião
^Ltrouxe comsigo um grande receio e uma grande es-
I
194
peraoça. Vinha com o propósito de saber ao certo se
os médicos dissipariam ou confirmariam as suspeitas
do aneurysma.
Sujeitou-se á auscultação. Os médicos portuenses
olharam-se d'uma maneira significativa. Martinho de
Teive esteve a ponto de cahir fulminado. Perguntou-
Ihes anciosamente se em. verdade era aneurysmatico.
Os médicos soltaram um frouxo de riso e disseram-
Ihe que estava mais perto da monomania que da
aneur3^sma. O fidalgo de Castro-Daire remunerou-os
generosamente e recolheu serenado ao remanso dos
lares.
Passados dias, porém, succedeu abrir ao acaso
um livro, que era a vida de D. Frei Bartholomeu
dos Martyres, por Frei Luiz de Sousa. Acertou de
ler o relanço em que o arcebispo está enfermo d'um
tabardilho. Ora o prelado bracharense costumava
dizer, quando os médicos entravam: — «Já vem os
trampOes e bem trampões.»
Declarava-se depois, escreve Frei Luiz de Sousa,
e dizia que trampões eram uns advogados que com
manhas e astúcias dilatavam as demandas e entre-
tinham a justiça.
Martinho de Teive fechou subitamente o livro;
para logo se sentiu despenhado do ceu da sua felici-
dade.
— Os médicos ou não sabem ou enganaram-me !...
Disse elle de si para comsigo.
E os receios voltaram.
195
II
Era Silvestre da Cunha o verdadeiro tyi^o do la-
vrador portuguez, iraquelles tempos.
A sua casa de Bouças tinha nomeada de riqueza
em todo o Porto. Parte d 'esta riqueza fora herdada
d*avoeng'os enriquecidos; outra parte amontoára-a
elle na faina constante da agricultura. Segundo, pois,
conjecturamos, foram negócios de gravidade os que
obrigaram Martinho de Teive a vir ao Porto tratar
com o lavrador de Bouças.
Silvestre da Cunha, dias antes de sahir de casa
com o intuito d'esperar no cães da Ribeira o de
Castro-Daire, disse á mulher :
— Xão quero que o fidalgo fique sósinho na esta-
lagem do Porto. Consta-me que é doente e triste.
Havemos d'hospedal-o, emqiianto se quizer demorar.
Além d'isso, temos uma filha que está casadoira e o
fidalgo não ó noivo que se desprese.
Silvestre da Cunha era homem de largos espíri-
tos. Sabia-o perfeitamente a mulher. O elogio do de
Castro-Daire, na sua bocca, queria dizer : — É pre-
ciso prendel-o nas redes esponsalicias, dê la por
onde der.
Poucos dias depois, entrava Martinho de Teive
na casa de Bouças. Teve uma recepção digna do hos-
pede.
Silvestre da Cunha apresentou chanmente a sua
família, quer dizer, a mulher e a filha.
196
— Aqai tem o osso do meu osso, disse elle indi-
cando a mulher. E depois, chamando a filha : — Anda
cá, Yirginia. Yem cumprimentar um fidalgo de sete
costados e o mais guapo moço lá das serras do Douro.
A rapariguinha tremeu d'acanhamento, e cumpri-
mentou timidamente. Martinho de Teive — diga-se
em abono da formosura da filha do lavrador — esque-
ceu-se, ao contemplal-a, do aneurysma.
Não sei se aquella terra de Bouças é logar azado
para ninho de amores.
Averiguando a etymologia da palavra — ■ Bouças
— topo com duas opiniões differentes, que não auxi-
liam o meu propósito.
Uns a derivam do grego — Bossis — que signi-
fica — pasto ; — outros do phenicio — Boses — ^ que é
a denominação d'uns penedos da Palestina. Dos ro-
chedos e do ervaçal não vem cousa que dê ao ter-
reno o que quer que seja de paradisíaco.
Appello para a visinhança poética do rio Leça,
sem cuidar de tirar a limpo se este, e não o Cávado,
éo — Gelando — ou, como outros querem, o ^ Le-
thes.
Por alli fica, não longe, a quinta de Santa Cruz,
propriedade dos bispos do Porto, que tantos desvelos
mereceu a D. Rodrigo Pinheiro. Ahi deveu o prelado
portuense ler a interessante correspondência do poeta
Cadabal Gravio, que lhe mereceu amizade e a quem,
em 1568, mandou imprimir, em Lisboa, uma grave e
elegante descripção d'esse suave retiro episcopal de
Santa Cruz.
11)7
Nao ó preciso, poróm, procurarmos poesia em redor
de Martinho de Teive e de Virgínia. Tinham-n'a, qiio
farte, aqiielles dons corações. Quando o amor accende,
no peito, auroras interiores, não cuidamos de cousa
que seja material e estranha, porque ó chegada a hora
de nos divinisarmos, alheando o quebradiço do barro
primitivo. D'aqui infira o leitor que dulcíssimos júbilos
alvorejaram para aquelles dous corações.
Martinho de Teive e Yirgina. . . amavam-se.
III
Silvestre da Cunha via coroados os seus desejos.
Concluídas as transacções com o hospede, convidou-o
a um passeio pelos campos e ageitou o dialogo de
maneira e dizer :
— Que lhe parece minha filha, snr. Martinho de
Teive ?
— Parece-me uma boa e interessante menina.
— E mais nada? perguntou o de Bouças com
rústica simplicidade.
— Olhe, snr. Silvestre da Cunha, devo-lhe a verdade.
Eu amo sua filha . . .
— Isso suspeitava eu.
— Era natural.
— E que tenciona fazer ?
— Quereria desposal-a, mas sou um homem ex-
cessivamente doente e receio infelicitar a mulher
com quem casar.
198
— Deixe-se d'isso, fidalgo, disse Silvestre da Cunha.
Verdade é que a sua appareiícia não ó de robus-
tez, mas também não vejo motivo para tamanhos
receios.
— Sofíro muito, snr. Silvestre da Cunha. Tenho
um aneurysma, meu amigo, e presinto que o mal vai
adiantado.
O de Bouças esbugalhou os olhos. Ouvia simi-
Ihante palavra pela primeira vez e perguntou :
— O que vem a ser isso ?
— Aneurysma, propriamente, é um temor devido
á dilatação d'uma artéria, mas exprime-se também
por esta palavra a dilatação de uma ou de todas as
cavidades do coração.
Silvestre da COnha sentiu-se pouco melhorado
com esta explicação pathologica e reperguntou :
— E' de perigo essa moléstia ?
— O aneurysma ! Morte certa.
— Então também a tenho, disse com jovialidade
zombeteira o lavrador.
— Por que?
— Porque hei de morrer sem remissão nem aggra-
vo. . .
— Não graceje, snr. Cunha. Esta ó a minha mo-
léstia embora os médicos digam que não.
Silvestre da Cunha comprehendeu que a enfermi-
dade do seu hospede não passava d'uma apprehensão
e disse:
' — Qual lorisma nem meia lorísma ! Coma, beba
€ divirta-se, fidalgo. Não ande a chorar o landum.
199
— Diz-nio isso, siir. Cunha! ex''lcun()ii u Teive com
iissomos d'aleíi'ria.
— - Sim senhor, digo-lhe" isto.
— Pe(,*o-llie a mão de sua filha,
— Da meliior vontade, snr. Martinlio de Teive. O
peior ó que minha íilha não tem nobreza. Lá para a
ceia ha de ella levar.
— Não procuro íidalg-uia nem nobreza. Quero uma
mulher que, simplesmente, me estime.
— E a Virgínia ha de estimal-o de veras, por que
o ama.
— Assim o creio, snr. Silvestre da Cunha. Eu
também a amo e. . . muito.
lY
Cuidou-se desde logo nos apercebimentos do noi-
vado. Martinho de Teive andava ' alegre e absoluta-
mente esquecido da sua imaginaria lesão. Yirginia
deixava adivinhar no semblante o muito amor que ti-
nha no coração enamorado. Silvestre da Cunha e súa
mulher deliravam de contentamento.
Chegou o dia das núpcias. Foi a melhor festa de
Bouças, n'aquelles tempos. As raparigas do sitio
prepararam festas e descantes. Os pintalegretes do
concelho sahiram a terreiro com as suas violas.
Silvestre da Cunha mandou fazer ao Porto balões
de cores para illuminar as arvores do pomar.
200
Concorreram ás bodas muitos convidei dos, das
visinhanças de Bouças ; outros vieram de Castro-Daire
por honrar Martinho de Teive.
Permitta o leitor que reatemos o fio da narrativa
um mez depois do dia das bodas para lhe uão darmos
tratos á paciência.
Martinho de Teive parece triste. Yirginia vê na
tristeza do marido aborrecimento temporào, chora e
occulta de todos as suas lagrimas.
O fidalgo de Castro-Daire manda buscar ao Porta
o medico mais em voga, porque a ociosidade fel-o
lembrar dos antigos padecimentos e diz que não pode
viver muito tempo.
Foi o medico. Auscultou-o e ouviu-o com a máxi-
ma attenção.
— Não tem nada, concluiu o doutor. O senhor
deve tudo o que soffre á imaginação. Yá viajar,
divirta-se, e não pense mais n'isso.
Silvestre da Cunha esperava á porta do quarto.
— Que tem meu genro V perguntou com anciedade
ao medico que sahia.
— Padecimento real não o tem. Soífre apenas . . ,
da cabeça, que é um mau soífri mento. Está a meio
caminho da loucura, se se não dominar. Receitei leves
tónicos. E' apenas uma grande desafinação nervosa e
mais nada.
Quando o medico descia as escadas, dizia Martinho
de Teive á esposa, pondo os olhos amortecidos n'um
painel da Virgem :
— Sinto-me morrer, Yirginia. Que infelicidade !
201
Que Nossa Senhora me dô só mais alguns dias de
vida para ir morrer á casa onde nasci...
— Ha de dar, meu amigo. Tu não tens nada —
dizia em anciãs a carinhosa e dedicada menina. — Olha
o que disse ainda agora o doutor. Mas vamos para
Castro-Daire, vamos para onde tu quizeres. O que
eu desejo é vêr-te tranquillo.
E n'isto entrava no quarto a mãe de Virgínia.
Abeirou-se do leito e apalpou os pés do imaginário
doente.
— Jesus, como os tem frios ! disse a indiscreta e
anafada creatura. Que será isto ! Os médicos ás vezes-
sabem tanto... como nada! Yai buscar uma botija^
Yirginia.
— Estou a morrer, gritava Martinho de Teive. Já
tenho os pés frios ! Agora é certo. Não saias, Yir-
ginia, não saias.
E passou uma hora... dois dias, muitos dias e
ainda estava vivo e a dizer que sentia roçar pela
garganta a foice implacável da morte.
Quinze dias depois da visita do medico, desem-
barcaram no cães de Fontellas, que defronta com o
mosteiro de Alpendurada, Martinho de Teive e Yir-
ginia. Tinha sido triste e longa a viagem pelo Douro
acima, n'um d'aquelles ronceiros barcos d'espadella,
L
202
que vemos a toda a hora amarrados no ancoradouro
da Ribeira.
Estavam prevenidos os criados para trazer •as ca-
valgaduras ao cães. Era, porém, quasi noite, quando -^
o barco abicou á gandra. Martinho de Teive não quiz ,,
metter-se ao caminho. Virginia tinha o coração dila- |j
cerado de soífrimento e sentia medo do silencio e da
solidão d'aquellas agrestes paragens. Lembrou-se Mar-
tinho de Teive de pedir gazalhado na casa de Yilla-
Yerde. Yirginia approvou.
Foram. Os caseiros dos meus antepassados re-
ceberam-os bem, logo que reconheceram Martinho de
Teive, que era visita da casa. Prepararam-lhes camas.
O íidalgo disse que se sentia mal, pediu agua e la-
mentou ter de morrer em casa estranha. De repente
reparou Yirginia no catre de emblemas prelaticios.
— De quem é este leito? perguntou-lhe ella.
Era ahi que costumava dormir, ha cerca de cin-
coenta annos, o bispo cV Alpendurada, quando vinha
visitar os nossos amos, disse a mulher do caseiro.
— Seria virtuoso ? interrogou com curiosidade
Yirginia.
— Mal me lembro d'elle. Era pequena, quando o
vi. Mas pareceu-rae triste e doente.
— Eaça-me um favor. Deixe deitar meu marido
n'aquella cama.
— Pois sim, minha senhora. Apezar de que nin-
guém ainda se deitou n'ella; nem as pessoas da
casa.
Martinho de Teive deitou-se no catre do bispo.
203
dormiu tranquillameiíte. Entretanto Vir^^inia ajoelhou,
cheia (i'esperani,*a, e invocou a alma do prelado. Le-
vantou-se confortada. Sento u-sc n^uma cadeira ao
lado do leito e adormeceu.
Ao romper da manhã, Martinho de Teive acordou
jovial e despertou Virgina. Dizia que se sentia melhor.
Sahiram de Afilia Yerde em direcção a Castro-Daire,
que fica distante trez léguas, se tanto.
Nunca mais fallou no seu aneurysma. Viveu so-
cegadamente mais quinze annos e morreu do que
nunca pensou morrer — .... de um ty pho. Yirginia
morreu ha cinco annos. Era uma velhinha que eu
ainda conheci e que me obsequiava, frequentes vezes,
com um cestinho d'alperches do seu pomar, em atten-
ção a ser eu da familia de Yilla Yerde.
— Aquillo foi um milagre ! dizia a pobre senhora.
Foi um milagre manifesto ! Não que dizem que os
não ha !
I
k
..j
HERBARIO--. FUMA SÓ FLOR
f
— SCENAS INTIMAS
(a. J. FREDERICO LÂRANJO)
Pour exprimer ramour ses fleurs semblent eclore,
Leur langage est ua raot, mais il est plein d'appas.
Dans la main des amaats elles disent encore:
«Aimez moi, ne iu'oubliez pas.»
AnrÉ Martin.
r«
Rosinha bordando á janella. Ouve-se o chilrar festivo
das andorinhas nas arvores do pomar. Toda a aldeia
parece saudara chegada da primavera. O dr. Cornelio,
um rapaz gentil, impeiliudo a porta meio-cerrada :
— Xão serei indiscreto, Rosinha ?
— Pode entrar, sr. doutor.
— Venceu a cotovia com tamanha madrugada !
— Despertaram-me as andorinhas...
— Veja, porém, que as andorinhas ainda não
trabalham. Por emquanto cantam o hymno da manhã.
— Também o snr. doutor me parece mais jtraba-
206
Ihador qae as descuidosas avesiiihas. Levantoií-se-
cedo I
— Os meus doentes, l^siuha. . .
— Tem algum em perigo ?
— A Mariannita, de Fontellas, com mal de amores
e quasi tysica.
— Pobresinha Marianna !
— Talvez a salve, ( Aproximando-se do bastidor )
Deixa-me ver o que está bordando ?
— Se não deixo! É uma flor do campo, um —
não-me-esqueças — azul como o firmamento.
— Bonito deveras ! Chamam-lhe na cidade myó-
sotis. Namorou-se do azul, não é verdade, Rosinha?
As estrellas. . .
— Inverta o galanteio. Diga antes — as ando-
rinhas. Também ellas se namoram do azul.
— E verdade ! Formoso azul o d'este ceu da
primavera que as chamou de louges terras ! Um
pedido. Rosinha. . .
— Diga, sr. doutor.
— Dá-me este myosótis, que lhe serve de modelo ?
— Aqui o tem
— Obrigado. Não quero recebel-o sem que conclua
o bordado.
— Como quizer. O snr. doutor gosta muito de
flores ?
— Se gosto !
— Ah I também eu. Nem que a gente se esmere
no bordado chega a imitar as flores do campo, e com-
tudo são as mais singelas !
207
— E' que ii singelesa do campo 6 inimitável.
Exemplo. . .
— As flores.
— Não, ii Rosinha. .
( Ouve-se chamar da alcova: Rosiniia ! Rosinha!)
— Já lá vou, minha mãe.
— E' venlade ! Tinha-me esquecido a minha
doente.
II
Trez dias depois.
Rosinha e o dr. Oornelio debruçados á janella.
Esmorece a tarde. A suavidade d'aquelle formosíssimo
occaso convida á meditação.
— Chora, Rosinha ?
— Xão choro, sr. doutor. Era uma nuvem negra
que passava e rociava as flores d "alma com ligeiro or-
valho . . .
— Pensava, talvez, no futuro ?
— Eu^ .
— Com francjueza, minha amiga. Ha meia hora
que lhe lia no rosto as tempestades do espirito. Res-
peitei o seu doloroso recolhimento, esperando que
chorasse. Yi-lhe os olhos marejados de pranto e per-
cebi que queria esconder as lagrimas. Estava salva!
Chorar ó converter bagas de fel em estrellas de cr^^s-
tal... Chore, Rosinha. É sol-posto no seu coração de
filha. Sua mãe, a boa e santa velhinha, não pode es-
208
perar a luz de muitas alvoradas. Kesvala para o tumulo
<?ada dia com a rapidez d'uma existência que se ex-
tingue de cansaço, hora a hora. Vamos vel-a, Rosinha.
Enxugue o seu pranto e venha comigo.
— E' que realmente não posso abeirar-me do leito
^ reprimir as lagrimas. Minha mãe, quando me vê
chorar, tem momentos d'uma anciã agitadíssima. Chega
a delirar. Corre as suas mãos tremulas ao longo das
minhas tranças e diz que lhe custa morrer por ter
de me deixar sósinha no mundo. Depois, muito
-excitada, solta palavras desvairadas, que não com-
prehendo. Pobre mãesinha ! Fico sósinha no mundo,
é verdade, mas fica também comigo o meu anjo da
guarda. Meu pae morreu pobre ; ainda o sr. doutor
não tinha vindo para a nossa aldeia. Era um homem
verdadeiramente lionrado. A sr."" morgada da Quinta
d'Azenlui era minha amiga ; ensinou-me a ler e
dava-me livros tão lindos ! cuja leitura me conso-
lava. Um dia... meu pae succumbiu ao trabalho.
Quiz minha mãe substituil-o na faina dos campos.
Moirejou e trabalhou como poucas. Os nossos campi-
nhos não valem nada, mas nas mãos de minha mãe
rendiam muito. Agora a pobresinha sente que vai mor-
rer. Vê que eu não sei nada do amanho das terras e
conhece que fico desamparada. . .
— Nunca pensou em Deus? atalhou o dr. Cornelio
passando a mão pelo rosto para apagar o vestigio de
algumas lagrimas.
— Se tenho pensado, sr. doutor ! Deus ha de pro-
teger-me. Nunca fiz mal a ninguém e o meu anjo da
201)
liuardii ha de cobri r-ino com us suas azas. Irei pedir
abrigo a a lignina pobro faniilia do lo^^ar, que se encar-
regará do olhar pohis nossas terrinhas. Esta casinha,
que me foi ber(,*o, ha de o sr. doutor recebel-a, não como
i-ecom pensa dos seus desvelos, mas como penhor da
orphã aí^radecida.
— Cale-se, Rosinha, cale-se que me dilacera o
coração.
— Perdoe, sr. doutor. Ha muito que lhe queria
dizer isto e não tinha animo para tanto. ,.
— Por Deus, Rosinha. Cale-se por Deus. Yenha
comigo. En^^ugue as suas lagrimas e seja forte. Olhe,
n'estes momentos de atribulação, lembre-se que ha
uma palavra que resume um mundo. Eleve o seu
pensamento a Deus,
— Que Deus me proteja.
— Ha de protegel-a, minha amiga, ha de prote-
gel-a.
in
Na alcova da doente.
O -doutor Cornelio sentado á cabeceira. Rosinha
debruçada aos pés da cama e occultando o rosto en-
tre as mãos.
— Snr. doutor, pronuncia dolorosamente a pobre
velhinha, não tenho palavras com que possa agrade-
Icer-lhe. Tem sido um verdadeiro amigo. Se não fosse
ler compaixão de nós, não sei quem nos havia de
210
valer. E' triste morrer, snr. doutor, quando a alma
tem de se partir em duas metades : — uma que fica e
outra que vai. Não me põe medo a morte por ter de
ser julgada no tribunal de Deus. Rosinha era o meu
único mundo. . .
— Não falle, que se cança.
— Perdão, snr, doutor. Creei Rosinha como se
cria uma flor que a gente tem á janella para ver a
i
toda a hora. Lia e gostava que lesse, porque a snr.* ^
morgada d'Azenha não havia de lhe dar livros maus.
E olhe que eu nem pensava em morrer, absorvida
como andava no trabalho de todos os dias. As vezes
lá vinha uma nuvem ao coração. Era um momento ;
dissipava-se. A Rosinha sabia coisas bonitas. Não sei
se as lia ou se as botava da sua cabeça. Uma vez ^
disse o Manuel do Açude, na nossa cozinha, que não
havia outro mundo. Rosinha corou e respondeu :
«Olhe era volta de si, snr. Manuel.» Não foi assim,
Rosinha? Lembro-me agora muito bem, e poucas
vezes me acontecia isto ! Mas disse-lhe ella : « Olhe
em roda de si. Não é preciso tanto. Ponha os olhos j
n'este castanheiro. D^onde nasceu elle ? D'outro. E
esse? D'outro. E o primeiro de todos? E a terra
d'onde 6 que sahiu ?» O Manuel deitou a vista ao cas-
tanheiro e disse muito passado : — « E' verdade. Ro-
sinha!» De Deus é que veio tudo, continuou ella.,
J^ois Deus, snr. Manuel, ha de premiar os bons e cas-
tigar os maus. Ha muita gente que não faz mal
ninguém e que não ó feliz, e ha outra que faz ma
ao próximo e ó venturosa. Em alguma parte hade ha
211
ver verdadeira jastiça, porque existindo Deus n'Elle
devem estar todas as virtudes e todos os merecimen-
tos. Se Deus não ó bom e justo, clai-o parece que não
pode ser Deus.» Não pensa assim, snr.. doutor? A
Rosinha disse a verdade, pois não disse?
— Rosinha disse o que era.
— Assim me queria parecer.
— E, como prova do que Rosinha disse ao Manuel
do Açude, vou eu dizer uma cousa. A felicidade do parai-
zo faz-se muitas vezes sentir aos que foram bons ainda
áquem dos umbraes da eternidade. A snr.^ Margarida
fez bem a toda a gente. O seu mundo era Rosinha,
como nos disse lia pouco. Mas sempre viveu pobre
e pobre morrerá. Pouco é o que tem e menos terá
para o futuro. Deus, porém, inspira-me para lhe an-
nunciar a felicidade, que a espera ainda. Se vê que
eu saberei estimar a que tanto adorou na terra, se vê-
que eu saberei ser marido bom e dedicado, conceda-
me a mão de Rosinha e não atormente com essa an-
ciã estas lioi"as dolorosas de sofírimento.
-- Senhor doutor ! exclamou a velhinha, tentando
sentar-se no leito e sorrindo um sorriso mais do
céu que da terra.
— Senhor. . . balbuciou Rosinha, sem poder repri-
mir uma expansão de intimo jubilo ; mas detendo-se
logo n'um anceio de commoção.
— Rosinha é boa e dedicada, continuou placida-
mente o doutor: amei-a.
— Também eu. . . o amo, atalhou Rosinha, escon-
dendo, de medrosa e timida, o rosto entre as mãos.
212
A velhinha enferma sorria enlevada em extasis.
— Amei-a. Sondei as profundezas d'aqiiella alma
e achei lá escondido muito oiro de subido quilate.
Sou pobre como Rosinha. Vivo do meu trabalho
honrado e constante. Devo á benevolência d'um tio
rico a posição que hoje tenho. Foi elle quem me
formou, dois annos antes de esposar uma formosa me-
nina da província. Tem já dois filhos, que são her-
deiros de muitas quintas. Quer-me parecer, porém,
que sou mais feliz do que para o futuro hão de ser
meus primos. Tenho necessidade de trabalhar. . .
Nasci no Porto. Meu pae era ne^^ociante. Foi um
homem cujo natural pundonor não lhe permittiu mor-
rer rico. í^o coramercio, quem quizer levantar-se em
pedestal doirado, precisa pôr de parte certos prin-
cípios de honra. Os que não transigem, morrem des-
graçados. Foi o que succedeu a meu pae. Minha
mãe ficou a^viver era companhia de uma filha, casada
com um empregado publico. É a única irmã que
tenho. Yivo só e, devo dizel-o, vivo triste. Parecem-
me longas as horas da noite, depois que recolho de
ver os meus doentes. Kosinha será o anjo do meu
paraizo, a minha companheira, a miaha felicidade su-
prema . . ,
lY
Disse a doente que se sentia anciada. P]ra por
noite a dentro.
— Fez-me mal esta alegria ! — murmurou ella com
213
difHculdade. Deus teve piedade de mini. Quero a^iTa-
dccer-LIíe. Se não fosse tão tarde, mandava pedir o
Vi a ti CO.
— Nunca ó tarde para cumprir um dever, obtem-
perou o doutor. You eu mesmo avisar o abbade.
D'aqui a pouco tempo lia de receber a desejada visita.
— Como o bom! como Deus liro ha de agradecer,
sr. doutor! disse a velhinha, estendendo os braços
para Cornelio.
— Também eu cumpro um dever, replicou elle.
Reconheço a superioridade do medico que vou cha-
mar e, sem abandonar o meu posto, delego a missão
em quem melhor a pode desempenhar.
Mal que o doutor Cornelio sahiu. Rosinha encostou
ao peito a cabeça da doente e cobriu-a de beijos. Era
aquelle um despedir-se extremoso de dois corações
costumados a sentir como um só.
— Minha mãe ! minha mãe !
— Morro feliz, Rosinha. Xão chores ; não tens
razão para chorar. Mereceste a Deus o noivo que en-
contraste. O doutor Cornelio é um coração como
poucos .
— Se é, minha mãe ! Quero que viva para ser
testemunha da nossi,; felicidade. Sente-se anciada, não
sente ? E' que lhe fez mal esta alegria tamanha, que
não esperava. Eucoste-se bem para mim e descance
DO meu seio.
214
y
Hora e meia depois checava o Yiatico A velhinha
parecia sorrir-se para alguém... que se iicão via.
Rosinha e Cornelio ajoelharam aos lados do catre.
Fora solemne aquelle momento. Quando o abbade
entrou no quarto, expiravam á porta da casa as der-
radeiras notas do cântico sagrado. Toda a aldeia se
tinha alvoroçado para vir prestar a ultima prova de
dedicação á honrada velhinha. Apoz o padre entraram
homens e mulheres. Rosinha levantou-se para amparar
a cabeça da moribunda quando o abbade se abeirou
do leito com o vaso das partículas. Tremera m-lhe,
porém, os braços e Rosinha vacillou. N'este momento
assomou á porta do quarto um vulto de mulher. A
multidão abriu caminho respeitosamente. Era a sr.*
morgada d'Azenha, que chegava. A boa senhora,
afastando docemente Rosinha, colheu a doente nos
braços. O dr. Cornelio ergueu-se de golpe e pronun-
ciou com voz firme :
— Aproveito este momento solemne para declarar
que sou o noivo de Rosinha. A sr.* morgada d'Aze-
nha ser-lhe-ha mãe até que o sr. abbade nos de a
benção nupcial. Não ó verdade que tudo isto 6 da
sua vontade ? perguntou o doutor á doente.
A mãe de Rosinha respondeu, sorrindo, com um
movimento affirmativo. O sacerdote ministrou o sacra-
mento. Pouco depois ouvia-se ao longe o — Bondiio
despertando os ,eccos do valle.
— Sinto-me descançada, murmurou a doente.
21Õ
Yenluim cá, meus filhos, deixem-me beijal-os. A sr.*
moipida ha de permittir que também lhe beije a
mno. K' tão doce morrer entre pessoas que nos
estimam ! Agora descansarei um bocadinho. Parece-
me que vou dormir.
YI
Meia hora depois dizia Rosinha á morgada d'Aze-
uha :
— Está a dormir, não está ?
— É provável que não acorde, Rosinha. . .
— Minha senhora !
— Ajoelhe-se comigo e rezemos todos trez. A boa
alma já não é da terra. . .
YII
Oito dias depois do passamento de sua mãe, sahia
Rosinha da quinta d'Azenha para desposar o doutor
Cornelio. Yamos encontrar os noivos, volvido um mez,
na casinha do valle, escondida na sombra das arvores
do pequeno pomar. Rosinha escolhe algumas flores,
■das muitas que estão espalhadas sobre a mesa, para
'._ -compor um ramo. Cornelio entretem-se a collar n'uma
folha da sua carteira o myósotis que serviu de modelo
ao bordado de Rosinha, já concluído.
— Olha, como está bonito. Rosinha ! disse Cornelio
mostrando a flor deseccada e artisticamente disposta
no cartão.
216
— Bonito deveras !
— Muito inferior, poróm, ao teu bordado.
— Estás lisonjeiro, Coi-iielio !
— Estou penliorado por não teres esquecido O'
meu pedido.
— E eu estou reconhecida por te haveres lembrado
da minha felicidade. . .
— Estimo sinceramente esta flor. Orvalhaste-a
com as tuas lagrimas, na manhã em que t'a pedi, e,
como as tuas lagrimas eram ardentes, desbotaram o
azul das pétalas. Dias depois sahiste d'esta casa coberta
de luto. Tiveste, poi-ém, o cuidado de guardar o —
7ião me esqueças, — como tu dizias, dentro de um dos
teus mais queridos livros. A chave do enigma 6 um
livro de amores; foi acertada a escolha. i\qui está a
pagina sobre que deixaste o myósotis. (Pondo o livro^
ainda aberto, diante de si e correndo a lauda com a
vista.) Notável coincidência, Rosinha ! Ouve lá : « Quem-
sabe até o que ii-á de mysterios nas flores e nas ar-
vores ! que idillios, que elegias, que divinos poemas
não correrão nas florestas com o murmurinho doS"
ventos em ostrophes de aromas, intelligiveis ás ar~
vores congéneres, e ás flores da mesma espécie!. . .»
Ha aqui verdade sublime. Esta flor possuia o segredO'
da nossa felicidade. As flores devem ser como as
estrellas : nascem umas pai*a chorar, outras para sor-
rir. As hj/ades são as estrellas que choram ; por isso
um poeta romano, Horácio, disse que eram tristes.
As flores que partilham o destino das hyades são a
perpetua e o goivo, as flores do cemitério. Lncifer
217
como quem diz ii estrella que mais brillui, precede a
manliã e entremostra-se no ceu ás tlôres que se bem-
querem. Inclino-me a acreditar que as estrellas da terra
desempenham missões difterentes como as suas irmãs
do ceu ; — ha flores que nascem unicamente para o
coração. Ora o amor nasce d'um sorriso e d'uma
lagrima, d'uma tlôr e d'um espinho. Succede, pois,
orvalharmos de pranto a flor que encerra o segredo-
da nossa felicidade. Por isso tu choraste sobre este
myósotis, Rosinha.
— Meu amigo...
— Era eu ainda estudante no Porto, quando li
um livro de versos francezes, publicado trez mezes
antes da morte do auctor, que se chamava Hégésippe
Moreau. Um verdadeiro poeta que morreu tysico,
de vinte e oito annos, no hospital da Caridade, em
Pariz ! Adivinhas como se chamava esse livro, Rosinha ?
— Xão adivinho . . .
— Mijósotís. O nome d 'esta flor.
— Ah !
— Durante a leitura senti abrir-se a minha alma
a sentimentos dulcissimos. Admirei-me até ! Estava
lendo poemas de um talento des venturoso e sentia-me
alegre. Era um presentiraento de felicidade. . .
P — Se era !
— Encontrei-te ao bastidor n'aquella manliã. Bor-
L davas um myósotis. Era a flor do poeta francez. Reno-
varam-se-me as sensações da leitura. Pedi-te a flor e
jubilei no intimo da alma, quando tu pronunciaste —
não me esqueças. — que tanto o myósotis significa.
21^
— Eucantas-me, Cornelio !
— Hei de trazer esta flor na minha carteira sobre
o coração. Âs vezes, ao lado d' um moribundo, é pre-
ciso que o medico tenha um braço mysterioso e invi-
sivel que o ampare para não cahir. São espectáculos
que dilaceram o coração. Valer-me-ha então esta
carteira, — herbario. . . d'uma só ílôr — que guarda
o segredo da nossa felicidade. . .
YIII
— Tens o teu ramo prompto, Eosinha. Eu estava
esquecido a fallar dos nossos amores. Yamos depor
esta recordação de cada domingo na campa de tua
mãe.
— Custar-me-ia deixar de fazei- o.
— Tens rasão. Consola ir TDresentear os mortos.
Quando Yirginia morreu — ó isto uma das mais bo-
nitas passagens do livro de Saint-Pierre — as indias
de Bengala deram liberdade sobre a campa, ainda mal
fechada, ás avesinhas que tinham reclusas em gaiolas.
Nós, imitando as indias de Bengala, vamos render
liomenagem á memoria de tua mãe o levamos-lhe
flores.
— Homenagem de dois filhos. . .
— Que se amam para sempre.
— Olha, Rosinha — disse Cornelio, pondo a mão
direita sobre o coração — tenho aqui o meu herbario...
d' uma só flor.
ARMANIJINHA
(a JÚLIO CESAU MACHADO)
Nilo sabe o que é padecer,
Quem o filhinho que adora
Nao viu ainda morrer !
Bulhão Pato.
A tia Leonarda sabia historias de fadas como niii-
gLiem. Foi uma pena morrer, que já não ha n'aldea
•quem divirta os camponezes nos serões d'inverno.
Parece-me ainda ouvil-a contar este caso sobrenatu-
ral, que me prendeu a curiosidade por algum tempo.
IJI Era d'uma vez um anjo. .. Mandou-lhe o Senhor
•que descesse á terra a buscar a alma d'um justo, que
estava em artigos de morte. Ha sempre um cherubim
para acompanhar um espirito bom, que se parte d'este
mundo. Quando o anjo poisou na terra, achou-se
n'um valle ameno, copado d'arvores, onde corria uma
veia d'agua tão brilhante, que parecia coberta d'aljo-
fares. . .
b
220
E ouvia-se um concerto longínquo de passannhos|
que fazia lembrar o assobiar do oriolo e o chilrear da *■
andoiinha. . .
Sentiu o anjo tentação de se banhar e, despindo
as azas brancas, pendurou-as nos ramos d'um salgueiro
da margem. Metteu-se á agua e deixo u-se ir a sara'
cotear pela corrente abaixo. Parecia-lhe que estava
ainda no mesmo sitio, porque sempre havia arvores
que se lhe affiguravam as mesmas e sempre via as
sombras a tremerem na superfície do rio . . . Depoi
ouvia também o mesmo pipilar de passarinhos, a dis
tancia . . .
Se se tivesse lembrado de olhar para o salgueir
onde pendurara as azas, havia de conhecer que s
deixara ir sem reparar que estava longe. Mas s
tudo era tão bonito e tão doce ! Yinha descendo
noite e o anjo teve medo da própria agua, que lhe
parecia negra. Procurou as suas azas. Não as viu.
Foi correndo pela margem acima, triste que mettia dó,.
a vôr se encontrava o salgueiro. . .
Tudo era escuro ; não podia ver. Levantou os olho
para o ar e descobriu as estrellas. Lembrou-se da pa
tria. Conheceu então que se havia esquecido de des-;
penar o justo e que tinha desobedecido ao Senhor dái
alturas. Sentiu um pezo no coração e teve vontade d
chorai'. O Senhor condoeu-se e restituiu-lhe as azas.j
Pouco depois entrava no ccu a alma de um justo qu
deixara a terra, e um anjo que tinha recebido orde
para acompanhal-a.
Eis aqui a historia que me contou a tia Leonarda,
221
Lembrei-me d'esto caso outro dia, (juando pensei
lia morte da Armandinlia. A vida da snv^ morgada
d'Azenha não dá thema para longo escrever. Tem
amado e soffrido aquella boa senhora. Casou aos de-
zoito annos e ama ainda o marido como no dia em
que noivou. Teve só uma tilha; era a Armandinha.
Olhava a gente para tão formosa creança e lembra-
va-se dos anjos. Era bonita? Talvez não fosse. Tinha
as faces desmaiadas e os cabellos loiros. A verdade
é que parecia do ceu. Por que ? Diz a gente isto c não
sabe por que. ..
Entra-se para a casa d'Azenha por uma longa
avenida toldada de trepadeiras, as qiiaes se atira iam
do muro da quinta para as arvores que formam uma
alêa parallela ao muro. VJ um tecto levantado pela
mão da natureza. A's vezes vai a gente a passeiar
poi" aquella rua fora e parece que lhe poisou na ca-
beça uma borboleta. Não é borboleta, não. E" uma
pétala da glycinia do toldo, que se despegou do cacho
e veio, tremendo, cahir sobi-e uós.
I Ao fim da avenida ha um lago circulai", que tem
au centro uns rochedos tapetados de musgo, sobre os
quaes se levanta uma casinha coberta de coimo, que
faz lembrar uma azenha. Doesta similhança veio o
nome á propriedade.
Quando a Armandinha tinha seis mezes d*idade,
veio ao Porto o morgado d'Azenha comprar sedas e
rendas para o enxoval da menina. Aconteceu ter d"ir
procurar á rua do Brejner uui negociante inglez, seu
conhecido desde que entraram em transacções com-
222
merciaes. Era ao declinar da tarde e o inglez rece
beu-o no jardim onde se recreiava a ver os filhos cor
rerem uns arcos de madeira que iam rodando ao long
das ruas.
Gostou o morgado d'Azenha d'aquelle divertiment
infantil, e não sahiu do Porto sem comprar um are
com que a sua filhinha se devia entretrer quand
crescesse.
Foi-se desenvolvendo a Armandinha e chegou
idade de poder brincar.
o pai acompanhava-a nos jogos infantis e a mã.é.
sentava-se á beira do lago a contemplar o marido e^-
a filha.
A Armandinlia ora rodava o arco ora se divertiar^,
a passar por elle d'um lado para o outro. . .
Quem soubesse a historia do anjo que me contoi^
a tia Leonarda, havia de receiar pela vida d'aquell
creança. Como parecia do ceu, era licito suppor qu
descera das alturas para desempenhar uma diviíi
missão e que se tinha esquecido a brincar com o se
arco do madeira. . .
A mãe vestia-lhe todos os dias uma sainha de sed
cor do ceu e traçava-lhe sobre o peito um capotilh
de rendas brancas. Parecia uma senhora. . . peque
nina. Os cabellos, cahidos em anneis, fluctuavam
mercê da viração.
Das azas. . . ninguém sabia.
jN'uma suavissima tarde d'outomno sentiram febr
na menina. A mãe teve um presentimento. . . Veio
poróm, á janella, olhou em roda de si e viu tudo tã
223
sereno que niío pôde acreditar que se preparasse iirriít
tempestade.
O niarinlieiro, quando a procellária não poisa na
verga, não receia pela boi'rasca.
De noite a Armandinha pediu agua e não teve
força para se levantar e beber. A morgada molhou o
lenço no copo e humedeceu os lábios da creança
queimados da febre.
A recompensa doesta maternal solicitude foi um
sorriso triste, que não parecia próprio dos cinco
annos.
Quando a morgada olhava para o vestidinho azul
pendurado aos pés do leito da creança, sentia subir
do coração uma anciã que lhe estrangulava a voz na
garganta.
Seriam còr do ceii as azas da Armandinha ? Se
eram, tinham-se transformado n'uma sainha recortada
e esperavam o momento de engastar-se no corpo pe-
quenino. . .
Durou trez dias a febre da Armandinha e, ao cabo
do quarto, serenou a excitação febril... porque a
menina tinha arrefecido. O frio da morte !
Estava cumprida a missão.
Era preciso, porém, amortalhal-a.
Que mais havia de levar do que as suas próprias
azas ? Vestiram-lhe a sainha azul celeste, puzeram-lhe
o capotilho de rendas brancas.
Fizeram um arco de vime, cobriram-n'o de flo-
res do campo liadas com fitilhos e penduraram-lh'o
nas mãos geladas e immoveis. Paiecia que se pre-
224
partiva para ir brincar na quinta, e comtiido estava
morta. . .
Tinha subido ao ceu o anjo expatriado na terra.
Desde esse dia, a njorgada d'Azenha, coração
atravessado por um espinho, é o bálsamo de todas as
chagas que sangram, o remédio de todas as enfermi-
dades que não teera cura. . .
AS FLORES
(ao SXR. AUCrUSTO LUSO DA SILVa)
Flores dão côr á terra e cheiro ás auras ;
Flores são mães da fructa
A. F. Castilho
Toda a família do velho e nobre solar d'Espada-
nedo se limita a trez pessoas : — Sebastião Pinheiro,
madame Faastine e mademoiselle Jeannette.
Convém dizer, porém, alguma coisa d'ans amores
que, ha vinte e cinco annos, prenderam em Lisboa
um provinciano portuguez á mais gentil franceza que
passeiava Cintra e andava charlando, entre um ran-
cho de patrícias e senhoras lisbonenses, n'um gracioso
dialecto meio lusitano e meio francez, ou, se antes
querem, n'um idioma meio de passarinho e meio de
mulher, idioma que não tinha nada de nação algu-
ma. . .
O provinciano portuguez era Sebastião Pinheiro ;
15
226
a formosa coquette de Cintra era, a esse tempo, made-
moiselle Faustine.
Sebastião Pinheiro tinha fama de ser em 1845
um guapo provinciano, que disputava elegância e
riqueza com os mais narcisados e dinheirosos senho-
res de Portugal. Andavam as morgadas de Eiba-Doira
empenhadas na conquista d'este homem, que, em sete
léguas ao redor, se affigurava o melhor casamento
d'aquelles tempos.
O certo 6 que Sebastião Pinheiro pareceu enjcar-
se com a porfia amorosa das ambiciosas dryades, que
o andavam namorando d'entre as florestas druídicas
dos solares de seus pais, e annunciou o propósito de
sahir para o estrangeiro em viagem de recreio.
No estio d 'esse mesmo anno de 1845 entrou em
Lisboa, d'onde devia seguir para França.
Cintra, o paraiso de Portugal, convidou-o a retem-
perar a alma em tão deliciosas sombras para se habili-
tar a viajar em terra estranha.
As mulheres, que lhe passavam deante dos olhos
em alegres ranchadas, pareceram-lhe menos ambicio- ,
sas e muito mais tentadoras que as provincianas de \
Portugal, as quaes andavam ageitando ensejo de se mos- :
trar, como que pavoneando-se da própria belleza. As
coquettes de Cintra iam pipilando, como descuidosas .'
andorinhas, sem fazerem reparo em nenhum homem
e nomeadamente em Sebastião Pinheiro. Isto que pu-
dera dizer-se calculo, attigurou-se-lhe desambiçào e
modéstia.
Uma das rof/uettes^ que trajava d'azul, foi a que
227
%
mais lhe despertou a curiosidade no primeiro relance
d'ollK)S. Se^íuiu-a e, só uma hora depois de a ter visto,
é que madcmoiselle Faustine reparou n'elle.
Sebastião Pinheiro deu-se pressa em saber quem
era a formosa senhora.
Kesponderam-lhe que se chamava madcmoiselle
Faustine e era filha de Mr. Arnold, negociante francez
em Lisboa. Esta circumstancia não foi embaraço a
Sebastião Pinheiro. Que importava que a vaporosa vi-
são de Cintra não fosse portugueza ? O amor não tem
pátria.
Paris era troyano e amou Helena, que era grega.
Além d 'isto, tinha encontrado Pariz em Portugal,
felicidade que não sorri a todos os viajantes.
Ignoro quando e como o nosso provinciano foi
apresentado á familia Arnold, nem é meu propósito
dizer como se urdiram, no tear do amor, as relações
com madcmoiselle Faustine. A verdade é que, dentro
de seis mezes, casaram.
Mr. Arnold consentiu no casamento depois de ter
colhido informações das qualidades e haveres de Se-
bastião Pinheiro.
Faustina poz todavia uma condição — continuar
a viver em Lisboa.
O provinciano acceitou a clausula.
Yiveram alguns mezes na capital e, ao cabo d'esse
tempo, resolveram visitar o solar de Espada nedo. Fo-
ram. O coração de madame Faustine confrangeu-se
deante do espectáculo medonho das serras alcantiladas.
Succedeu, porém, ser mãe na quinta d'Espadanedo.
228
O amor da filhinha absorveu-lhe o espirito; já não
fazia reparo nas serras. Foi ficando e aclimando-se. A
pátria de nossos filhos é também a nossa. . .
Cresceu e desenvolveu-se mademoiselle Jeannette.
Era assim que sua mãe queria que se lhe cha-
masse. O nome portuguez correspondente, comquanto
a esse tempo fosse maviosamente poetisado por Gar-
rett, não soava tão bem ao ouvido d'uma mulher que •
tinha nascido em França e procedia de estirpe ver-
dadeiramente franceza.
II
Mademoiselle Jeannette era doida por flores. D'uma
vez, quando eu principiei a deletrear a Eneida e an- 1
dava cheio de lendas mythologicas, contei-lhe a histo-
ria de Narciso transformado em flor. Lembro-me bem;
era na manhã d'um dia em que-eu tinha d'embarcar
para o Porto. Mademoiselle Jeannette gostou d'aquelle
lance do paganismo dos jardins e pediu-me que lhe
escrevesse do Porto, quando me sobrasse tempo para
contar-lhe lendas de flores.
Poucas vezes tive a felicidade de escrever-lhe ; ahi
vai, porém, o que lhe dizia :
A Mademoiselle Jeannette.
17 d' outubro de 18..
«Yeja que me não esqueci do seu pedido.
Começai-ei hoje por fallar-lhe da violeta, que ó aTÍ
229
flor da minha prodilecçiío. Quantas vezes não terá fi-
xado os seus olhos, minha amiga, n'uma estrella (pio
lhe parece já ter contemphido na vóspera e que ainda
procura no dia seguinte, sem se demorar a olhar para
as outras que não são menos formosas talvez? Com
as flores acontece quasi a mesma coisa. Todos nós
temos uma flor que nos enamora em qualquer jardim.
A minha, a que me encanta, é a violeta. Fallar-lhe-hei
d'ella hoje. Nunca se esqueça de colher violetas para
o seu toucador. Vulcano pôde vencer a indifferença de
Yenus coroando-se, e adornando com ellas o boudoir
da deusa de Cythéra.
Veja que milagres opera a minha querida violeta !
Vous vous caehex timide violette^
Mais c'est en vain^ le doigt sait vous trouver.
II cous arrache á Vobscure retraite
Que receia it vos appas inconnus;
Et destinée au boudoir de Cyihére^
Vous renaissex, sur un trone de rerre^
Ou vous mourex sur le sein de Vénus.
No paganismo dos jardins, na mythologia das flo-
res, as violetas rebentara da terra aos pés da desditosa
Io para consolal-a, a cada passo, nas solidões que atra-
vessa, postoque digam alguns ter sido esta nympha
convertida em violeta por não corresponder aos extre-
mos apaixonados d'Apollo.
Seja como for. No primeiro caso li violeta é o
symbolo da dedicação compassiva, da amizade que
230
consola, da companhia que satisfaz ; no ultimo, é o
emblema da virgindade que se esconde, da innocen-
cia que se resguarda, da virtude que se occulta.
Oh ! e nós sabemos isto e havemos de consentir
que Alphonse Karr insulte a pobresinha, taxando-a
de hypocrita por se esconder, e que a verbere com
phrases tão indelicadas como esta :
La violette n'est pas modeste !
0
«Por que dissestes que a violeta era modesta? es-
creve Alphonse Karr. Porque se occulta entre a relva.
A violeta não se occulta entre a relva ; occultou-a a
natureza. Não se é modesto por se ter um nascimento
humilde e obscuro. Por que não dizeis ser o oiro
modesto, o oiro, que se esconde nos veios da terra
e que, ainda quando se encontra, procura disfarçar-se
em outro mineral que não tenha apparencia de oiro ?
Por que não dizeis que os diamantes são modestos,
elles que se occultam na terra mais ainda do que o oiro
e precisam de ser quebrados e lapidados para se lhes
descobrir o brilho ? »
Na espirituosa comedia de um poeta portuguez,
João de Lemos, intitulada — (Jm susto feliz — uma
das personagens, fallando casualmente do detractor
das violetas, exprime-se assim :
— «E' Alphonse Karr, que fallando d'ellas n'um
livro que intitulou — Voynge au tour de mon jardin
— sacrificou a verdade ao desejo de ter uma opinião
singular, ou de fazer o que hoje se chama espirito » .
231
E pouco depois continua:
— « Diz que a violeta n?ío 6 modesta, porque não 6
ella que se occulta entre a herva, mas sim a natureza
que alli a occultou. »
E responde reílectidamente a interlocutora da per-
sonai^em :
— «E como se dissesse Jque a violeta não ó ver-
melha porque a natureza a fez roxa.»
Penso eu ser este o melhor commentario ao des-
propósito d'Alphonse Karr. Yalha-lhe Deus !
E quer elle que a violeta não seja modesta, porque
tem visto na Opera duzentas mulheres com ramos de
violetas na mão !
Pois se a procuram na sombra em que nasceu, se
a natureza quiz que a denunciasse o perfiyiie, como
o talento denuncia ás vezes um homem obscuro, o que
ha de fazer ella, a pobresinha, senão resignar-se com
o destino a que a sujeitam ! ?
E não contente com isto, diz-nos ainda Alphonse
Kari' que a violeta abriga debaixo da sua folhagem
espessa uma quantidade infinita d'insectos, como se
quizesse deslustral-a aos nossos olhos com esta cir-
cumstancia. Embora!
A violeta hade ser sempre a fior predilecta das
mulheres bonitas e dos homens namorados. Parece que
nasceu para se consagrar á formosura e ao amor, e
por si própria indicar que a verdadeira formosura e o
verdadeiro amor devem de ser modestos e humildes.
Os Athenienses consagravam a violeta a si mes-
mos ; consagremol-a nós ao culto do coração.
232
E o próprio Alphonse Karr parece arrepender-se
no seu livro intitulado — Les fleiírs — do desamor
com que fallou da violeta n'uma pagina da — Voijage
autour de mon jardin^ — se é que não chega a des-
mascarar-se completamente n'estas palavras : J^aiíne
heaiicoup la violette ; j'en ai, vous savez^ une peloiise
oú il y e7i a dix kuit variétés /
Mas ha mais ; abramos o livro Les femmes :
« Gosto ainda muito das violetas^ apesar de, ha
longo tempo, lhes ter .censurado aquelle seu intro-
metter-se em muitas coisas que lhes não dizem res-
peito e o nunca perder occasião de sahirem hy-
poeritamente da pretendida modéstia, que lhes attri-
buem. »
Como é, porém, que se pode gostar d'aquillo que
parece tão impertinentemente vaidoso ou tão hypocri-
tamente modesto?
Esqueçamos o delicto d' Alphonse Karr e julgue-
mol-o rehabilitado pelas confissões ingénuas que nos
fez.
Desçamos ao jardim a respirar livremente o aro-
ma das violetas. Convido-a, minha amiga, a entrar
commigo no camarim perfumado d'estas viuvas sau-
dosas, eternamente vestidas de roxo, que se inclinam
para o chão tristes e scismadoras. Separa-nos apenas
do canteiro uma cancellinha de pau verde.
Chama-nos de dentro esse palácio de verdura
ondulante e movediço. Entremos. Aberta a cancella,
estaremos no jardim e no jardim encontraremos nós
uma sombra para conversarmos. Converse-se para
233
matar o tempo. SHo palestras debaixo das arvores e
á beira das violetas. Não vejo ahi melhor assum-
pto nem melhor logar para uma pratica de gente
mova.
Deletrcemos o idillio da natureza sem abrirmos
as — Floras — ; suppra a reverie o estudo.
Escusamos de saber que os botânicos chamam á
nossa querida flor viola odo?'afa e não precisamos
também de rastear a lenda mythologica da nympha Io.
A botânica intromette-se com famílias que não são
do nosso conhecimento ; a mjthologia anda a descor-
tinar vidas alheias. Importar-se cada um compôs ou-
tros, mais do que comsigo mesmo, creio que passa
por mau costume.
Deixemos isto. Aspiremos o aroma dulcíssimo d'es-
tas flores e occultemos no seio o ramo perfumado com
que nos presenteara alguém ...
Eu quero as flores para as aspirar, para me faze-
rem companhia, para as amar emfim.
Nunca me dei ao trabalho de procurar uma flor
rara e, confesso a minha ignorância, acho esquisito
que um homem tenha o capricho de comprar a peso
de oiro um bolbo de tulipa, a não ser para fazer nego-
cio com elle, como os floristas hollandezes. Gosto das
flores no jardim ou no toucador ; um camarim per-
fumado faz lembrar um jardim que se não vê.
Por fim de contas as flores querem-nos tanto, que
chegam, na impossibilidade de viver eternamente, a
conceder-nos a sua essência durante todo o anno, e
cada pessoa pode ter no seu toucador, na estação me-
234
nos florida, os perfumes de mil diversas flores. Graças,
pois, a mr. Piver e a todos os perfumistas em voga,
■que nos dão, a troco d'alguns «francos», um frasco
de ijommade au jasniín^ á la violette des bois^ â
rheliotrope^ â la reine des fleurs e mil outras essên-
cias que seria fastiento enumerar.
Amemos sempre as flores, sem nos lembrarmos
dos insectos que nos occultam.
Também nós temos igual destino e comtudo amamo-
nos uns aos outros. Compare-se a alma á flor: a vir-
tude seja o perfume ; os vicios os insectos. Prepa-
remo-nps para a vida como para cantar uma ana-
chreontica : coroemo-nos de flores. A poetisa de Lesbos
cantava na sua lyra as rosas d'Amathunta, porque se
sentia morrer de amores por Pháon ; e consagraram-
se as flores a Yenus por ser a deusa dos amores.
Para que nos havemos de rir da corcova d'ura
sujeito que passa ou do joanete de um outro que vai
atravessando ? Não ha tempo para isso : ó todo pouco
para amar.
Coroemo-nos, pois, de rosas para viver e, quando
morrerem nossas irmãs ou nossas filhinhas, enfeite-
mos de violetas os seus esquifes, como se costuma
ainda fazer em algumas povoações d'Allemanha no
funeral das donzellas.
235
ITI
A Mademoiselle Jeannette.
25 d'abril de 18
« Era uma vez uma fada que fez os prados e as
arvores expressamente para os namorados » — escre-
ve Yictor Hugo. E assim foi. Psyché pediu as estrel-
las; Chlóris as flores. Eólo solicitou as virações so-
noras da manhã e da tarde ; Cybéle e Sylvano as
arvores e os bosques. Pomoua obteve fructos para as
arvores; Príapo ajuntou as flores e fez jardins. E
Hebe, a loira, a alegre, a descuidosa, disse aos mo-
ços que perpassavam atirando-lhes com flores : « Co-
roai-vos e ide alegres. O amor é o néctar que eu sir-
vo nos banquetes dos deuses ; enchei a taça e bebei.
Ide alegres, ó moços » .
E Cupido dizia a quantos encontrava: «Amai e
sede felizes. Psyché pediu as estrellas ; já haverá- luz
de noite para as vossas serenatas e para as vossas
confidencias. Chlóris obteve as flores ; offerecei-as ás
namoradas. As arvores que Cybéle solicitou darão som-
bra para vós e para as vossas amantes ! »
E assim era. E assim foi. Amanhecia. A paiza-
gem era esplendida. Um raio de sol abria os corações.
Os ventos da manhã roçavam nas arvores, que são
as lyras verdes da floresta, e tiravam sons dulcíssi-
mos. As náyades brincavam nas fontes, os faunos
236
lios bosques e Echo repetia, nos recôncavos da serra,
as palavras das náyades e dos faunos. Pan, o feio,
apparecia deante d'este sublime espectáculo, simi-
Ihando a encarnação d'uma poética ironia e fazendo
ouvir ao longo das planicies os sons da sua frauta
campezina. E os namorados sorriram-se e amaram-se.
As estrellas deram luz ; das floi-ès vieram perfumes ;
as arvores estenderam sombras sobre os caminhos e
os caminhos atapetaram-se de relvas.
Entardecia. A manhã é mais esplendida, mas a tar-
de é mais suave ; gosa-se mais.
As borboletas adormeciam nas flores e os amantes
nas florestas. As arvores cobriam-os de sombras e de
musicas. E depois os sonhos! Os sonhos são os dul-
císsimos momentos em que se gosa tudo o que se não
pode gosar. A ultima réstea de sol doirava as cumia-
das. A esta hora de suavíssimos mysterios, os dois vi-
sinhos Pyramo e Thisbe segredavam amores através
da fenda aberta na parede commum das casas. Morria
o praso dado ao languor das sestas, quando a lua che-
gava. Endymion namorava Diana e ella sorria-lhe do
céo. Pygmalião sonhava com a estatua de Galatea.
O rouxinol trinava nos sinceiraes, os astros fluctua-
vam no seu leito d'azul, e aqqellas namoradas pagãs
escutavam as serenatas dos amantes, debruçadas na
ventana.
— ApoUo 6 loiro! Gosto d'elle! dizia uma.
— Pan 6 feio, mas engraçado, acrescentava outra.
— Narciso 6 a formosura I chilreavam muitas.
E elles diziam ;
287
— Veiuis ó loira; seduz-nie.
— Daphne não o 6 meuos; agrada-me.
— Diana é pallida, mas tenta.
Foi, pois, pelos devaneios dos namorados pagãos
que se aferiu o rythmo amoroso de nossos dias.
Acceitaram-se os costumes e conservaram-se as tradi-
ções. Tliisbe 6 Virginia ; Pyramo 6 Paulo ; — dois vi-
sinhos.
Eu quiz prolongar a phantasia de Victor Hugo e
mostrar que os prados e as arvores são dominio do
amor e dos namorados.
Um dia de sol é um dia para os amantes ; uma
noite de luar é uma noite para o amor. Os campos
chamam por nós: a primavera ou o estio tentam-nos.
As borboletas andam aos beijos ás flores e roubam-lhes
o mel; fazem-nos inveja. As .flores furtam amoro-
samente ás borboletas o polvilho d'oiro das suas azas
e fazem-nos ciúmes.
Todo o paraiso suavíssimo d'aldeia, ninho d'amor
engrinaldado agora com as flores da primavera, está
aberto para quem, como a minha amiga, sabe alliar
aos enc^antos da natureza a felicidade do coração. . .
Sei que ama e que toda a sua vida c de esperança.
Mais uma razão para se lhe fallar de flores. . .
Hade lêr de certo esta carta á sombra do velho loi-
reiro, que faz guarda ao solar d'Espadanedo.
O que a minha amiga não sabe, porém, é que a
origem do loireiro prende com uma historia d 'amo-
res.
Os extremos amorosos d'Apollo não conseguiram
238
abrandar a indifferença de Daphne, que, chegada
a perseguição violenta, se arremessa ás aguas do rio
Penêo, seu pai. E' n'este momento que a mulher se
metamorphosea em arvore e que o deus namorado en-
grinalda a fronte e a lyra com as franças do loireiro.
O cabello de Daphne recorta- se em folhagem e o corpo
arredonda-se em tronco. . .
Quantas vezes, sob esse velho loireiro, não hade
a minha amiga ter ouvido correr ao longo das ramas
um frémito suave, que tanto pode ser a linguagem
mysteriosa das arvores como o roçar da viração pelas
folhas J
Não serão murmúrios de Daphne, que se lamente
da própria crueldade ao vêr-se ainda tão amada como
no primeiro dia em que o dedicado Apollo coroou de
loiros a lyra e a fronte dos seus sacerdotes predesti-
nados á gloria ?
E depois quem sabe! .
Eu não, mas quando em noites de luar vou por
uma aldeia adeante, e oiço um rumor que sae das
plantas e das arvores, cuido que são ellas a conta-
rem-se as aventuras amorosas do dia e íico-me, por
muito tempo, embebecido a escutal-as. Não sei tam-
bém, mas parece-me que devem de ter sua voz. . .
Pois, Deus, que fez brotar duas folhas do mesmo pe-
ciolo, duas flores do mesmo pedúnculo, não lhes havia
de dar palavras com que segredassem umas ás outras
os seus protestos e as suas confidencias?... Havia
de deixal-as mudas como a rocha, sem que pudessem
conversar baixinho por essas noites de primavera, em
239
que a lua tanto cobre com a sua luz opalina as dhalias
do alegrete, como as malvarosas dos vallados, como
os sargaços da beira-mar ?. . . Pois Elle que deu
voz ás aves, que vão pendurar os ninhos nas escarpas
das montanhas ; ao rio, que murmura no valle, por
baixo das avelleiras; aos ventos azues do espaço, que
desferem as suas harpas vaporosas lá em cima ; ao
mar que brame ao longe coroado de nevoeiro e co-
berto com os arminhos da espuma, Elle, que deu voz
a tudo que tem vida, havia d'exceptual-as aellas, que
são tão humildes que se curvam ao vento e lançam de
si um vapor de fragrância?. . .
As arvores, que cobrem com os ramos os amantes
nas horas calmas da sesta e envolvem na sua sombra
os segredos d'uma confidencia ; as plantas, que dão
as flores com que elles se toucam na noite festiva das
núpcias, — arvores e plantas, que soltam da aresta
de cada folha um rolo vaporoso de poesia, não haviam
de ter voz?. . . Não me digam que não. Esse frémito^
que eu oiço em roda de niim n'uma noite de luar, é
o rumor das suas conversações nocturnas, das lendas
amorosas que sabem, dos cânticos que entoam ao
longe, dos monólogos de cada uma e do concerto
suavíssimo de todas. . .
E' o murmúrio das harpas aéreas da poesia, que
pendem de cada ramo e modulam dulcissimos idyllios
d'amor e saudade. . .
Ó poesia ! Ó amor ! Aves do mesmo ninho, pé-
rolas da mesma concha, flores da mesma vergontea,
hóstias do mesmo sacrário, deuses do mesmo templo.
240
eu sei que vós sois irmãos e filhos da mesma ideia, ó
amor e ó poesia.
Notas do mesmo cântico, cânticos da mesma harpa,
harpas do mesmo anjo, anjos do mesmo céo, eu sei
que vós sois isto, ó amor e ó poesia ! . . .
lY
A Mademoiselle Jeannette
12 de maio de 18...
Não consagrei a primeira carta á rosa, que passa
por ser a rainha das flores, porque me fugiu o coração
para a violeta, . . São caprichos que se não explicam
e que a minha amiga comprehende de certo. Não
quero, porém, deixar de fallar-lhe agora da rosa, que
os romanos consagravam a Yenus e os gregos á
Aurora, ás Graças e, finalmente, a Harpócrate, o deus
do silencio.
Não é para estranheza o dedicar-se a rosa á deusa
da formosura: quer dizer, consagrar-se a suprema
bellezadas flores, compendiada n'um poema de pétalas,
á suprema perfeição esthetica, encarnada na divindade
que tinha gerado o amor. . .
O que, porém, admira á primeira vista ó que se
votasse na Grécia ao deus do silencio o que se vo-
tava en Roma á deusa da formosura.
Mas, em verdade, não se devem esconder, no veu
241
do mysterio, todas as ternissimas doçuras do amor,
todas as palavras que se trocaram ao luar, todos os
poemas que se disseram cora os olhos? Náo 6 certo
que o amor nos torna meditativos e calados, porque
nos absorve em nós mesmos e nos delicia com a pró-
pria musica da nossa alma ?
Da tradição grega de se dedicar a Harpócrate a flor
consagrada a Yenus pelos romanos, veio o costume,
conservado em alguns paizes do norte, de se pendurar
uma rosa á- porta da sala de jantar como para indi-
rectamente avisar os convivas de que não devem re-
velar nada do que se disser á mesa.
A rosa branca, a flor querida de Soares de Passos,
Eu amo a rosa branca das campinas,
nasceu, como cantou Anachreonte, no momento em
que Yenus surgiu á flor das vagas engrinaldadas de
flocos d'espuma. ísr'esses tempos suavemente deliciosos
faltavam á rosa os espinhos, que foram despontando,
depois, a pouco e pouco.
Os orientaes crêem que a rosa não feria, antes
d'entrar no mundo Ahriman, o génio do mal. San
Bazilio, inspirado talvez d'esta tradição oriental, es-
creveu que os espinhos da rosa foram consequência
da corrupção da humanidade. Tinha a rosa nascido
para o amor. Era branca e pura como a espuma das
vagas que foram berço de Yenus.
Os homens corromperam a obra dos deuses e
16
242
derrancarum a iiuiocencia do amor; cobriu-se d'es-
pinhos a rosa desde então.
Quer-me parecer que não ha muitas allegorias tão
formosas como esta.
Pondo de parte a interpretação mystica da fa-
bula, a verdade é que os espinhos são apanágio da
rosa e que a intelligente formiga, para os evitar, sobe
pela roseira descrevendo trabalhosas spiraes.
Yimos que primitivamente era branca a rosa ; ve-
jamos como se tornou purpurina.
O Amor, bailando um dia no Olympo, entornou
uma taça de néctar, o qual, cahindo sobre a terra,
coloriu a rosa.
Qnem se der ao trabalho de esmiunçar estas e que-
jandas tradições poéticas, tem assumpto que farte para
muitas paginas. A minha boa amiga sabe, porém, que
lhe vou escrevendo ao capricho do acaso e que não
posso dar ao assumpto o desenvolvimento que de-
sejava.
Deixe-me todavia fallar-lhe d'um costume nor-
mando, em virtude do qual cada pai dotava a filha,
na véspera do casamento, com uma simples capella de
rosas. Não acha que similhante dote seria hoje razão
mais que bastante para afugentar meia dúzia de pre-
tendentes? Em pleno século xix conservam-se ainda,
pelo que respeita á rosa, algumas tradições. O que a
índole dos tempos modernos não permitte ó acceitar-se
uma noiva que tenha ura dote. . . de flores.
Os namorados romanos costumavam brindar a dama
dos seus pensamentos com esta maviosa expressão :
243
Mea rosa. Hoje ainda se escreve minha /lor nas car-
tas de galanteio, o que prova que a epistolo^raphia
amorosa conserva as formulas sediças dos romanos.
Disse-lhe que se conservavam em pleno século
XIX tradições devidas á rosa e quero mostrar-lhe que
disse a verdade. S. Jeronymo escreveu algures que os
antigos cobriam de rosas as urnas cinerarias e orde-
navam em seus testamentos" que lli'as renovassem
d'anno em anno. Um homem que tinha enviuvado,
colmava de rosas, de violetas e de lirios a urna que
guardava as cinzas da esposa estremecida. Não será
um reflexo d'esta tradição o costume de enfeitarmos,
pelo menos uma vez cada anno, as campas das pessoas
da nossa familia ? A festa annual em honra de Flora,
que se celebrava entre os últimos dias d'abril e os
primeiros de maio, á parte a desenvoltura dos cos-
tumes romanos, não seria a origem de consagrarmos
á pureza da Mãe de Deus as rosas da primavera ?
Muitas foram as tradições que do paganismo re-
cebeu o christianismo e, pelo tocante á rosa, seria in-
teressante estudal-a era ambas as religiões sempre ale-
vantada no throno da realeza, sempre rainha das
flores.
Se me fosse permittido fallar-lhe da França, minha
amiga, que é a pátria de seus avós, havia de contar-
Ihe a festa da Rosière de Salency, instituída pelo
bispo Médard, graciosa prática de premiar solemne-
mente as virtudes d'uma rapariga do sitio com uma
grinalda de rosas. . .
Não lhe devo, porém, fallar da França. Sua mãe
244
que lhe conte, em linguagem resaibada de recorda-
ções da pátria, as poéticas tradições que sabe de cor
desde os primeiros annos da vida. Eu seria de certo
menos vigoroso e menos delicado ao fallar-lhe do que
apenas aprendi dos livros. Ella que lhe conte, pois,
a festa da Rosière, que ainda hoje se conserva em
Nanterre, Montreuil e Suresnes. Cedo a palavra a sua
mãe ; corre-me obrigação de concluir.
Os cavalleiros andantes tinham no escudo uma
rosa, que parecia symbolisar que se batiam pela bel-
leza. Qual preferiria eu se fosse armado cavalleiro :
a branca ou a encarnada ? Nenhuma.
A Inglaterra brigou longos annos por causa
d'uma. . . rosa.
Os Lancastre e os York são impossíveis n'este sé-
culo, mas, que os houvesse, e eu a mandar gravar no
escudo. . . uma violeta, para não ser de nenhum dos
dois partidos e seguir unicamente. . . o meu.
y
A Mademoiselle Jeannette
•»
20 de maio de 18. . .
Lembra-se de me ter perguntado o anno passado,
á ourela do regato que banha o pomar da quinta
d'Espadanedo, como se chamavam as pequeninas flores
que polvilhavam de azul o chão ? Lembra-se também
245
de que eu lhe respondi que eram as flores do mijóso-
tis, a que os botânicos acrescentam o epitbeto de jj«-
histris por nascer á beira d'agua?
Recordo-me ainda perfeitamente. Que formosissi-
ma tarde de maio não era essa ! Viemos passeando
pelo pomar, como duas abelhas que saltam de flor em
flor. Chegamos ao regato e, ainda como as abelhas,
quizemos ficar alli. Creio que lhe disse, minha ami-
ga, que os allemães conheciam o myósotis pela mavio-
sa linguagem de Wergiss-mein-nicht — que diz o mes-
mo que — não me esqueças.
O que lhe não contei, porém, foi a poética lenda
do mjósotis — , lenda que se dulcifica na singela poe-
sia d'uns amores ethereos e não tem nada que vêr
com as allegorias da mythologia botânica, deixe-me
dizer assim. Imagine dois namorados, almas incendi-
das na chamma suavíssima do amor, que passeavam
á beira do Rheno na véspera do dia aprasado para o
casamento. Iam ambos compondo, de certo, estrophes
do mesmo poema, sonhando esperanças que tanto eram
d'um como d'outro. . .
O sol declinava e as aguas do rio scintillavam em
palhetas de oiro e prata n 'alguns sitios. Que esplen-
dido espectáculo, miiíha amiga ! Quantas vezes não
ha de ter sonhado sonhos d'esperança a essa mesma
hora ! O sonhar é de quem ama. Eu sonho e a minha
amiga sonha também ; a verdade, diga-se com fran-
queza, é que não sonhamos um pelo outro.
Iam, pois, passeando os dois namorados pela mar-
gem do Rheno. De repente, descobriu a noiva um
246
como natural houquet de myósotis, que se balouçava
á beira cragua. Colhel-o era ficar com uma grata
recordação da ultima pagina d'um poema, que seria
o prologo d'outro poema, não menos formoso, talvez.
Quem havia de colher o myósotis ? Elle, o noivo.
Que importava não haver já muita luz e ser preciso
marinhar por um plano inclinado ?
O amor dista um passo da indiscreção. A luz ia
fugindo, fugindo... Ouviu-se o baque d'um corpo
que tinha cahido ao rio e fizera levantar a agua. Era
elle, o noivo, que resvalara. Quiz luctar. Luctou ainda
por algum tempo, sem largar o houquet que tinha
colhido. Faltaram-lhe as forças. Teve apenas vida
para o arremessar á margem e depois . . . desappareceu
para sempre.
Desde essa tarde, a flor do myósotis significa não
me esqueças^ ultimo pensamento d'um amor desven-
turoso.
Os poetas, estas boas creaturas que vivem de cho-
rar as próprias e as alheias dores, aproveitaram a
lenda e cantaram-n'a. A Magdalena do Sous les til-
leuls d'Alponse Karr pronuncia, n'uma das paginas do
romance, com referencia ao myósotis, estas palavras :
«Os wergiss-mein-nicht são as minhas flores favori-
tas; sinto apenas que os nossos poetas allemães não
fallem d'elles senão para insulsamente jogar com
palavras. Goethe foi o único que muito de leve os
descreveu :
247
^Vcrgiss-mein nicht^ pequenina planta, amante das aguas
solitárias, quanto cu gosto do vôr como as tuas folhas mcudinhas
o as tuas pótalas do puro azul seguem o curso da levada quo
faz dobrar os juncos, cujo aro verdejante cinge a onda dos
valles I >
Quem sabe também, minha boa amiga, se depois de
ter lido esta carta será tão pouco piedosa para cora-
migo como a Magdalena do romance d'Alphonse Karr
para com os poetas allemães ? Perdôe-me se lhe mo-
lestei a paciência e, quando passar á ourela do regato,
colha o myósotis, a pequenina flor da primavera, para
o offerecer á pessoa que se não deve esquecer um
momento de quem alli o foi colher.
YI
A Mademoiselle Jeannette
4 de julho de 18. . .
Escrevo-lhe ao declinar da tarde. As boas-iioiteSy
presentindo a hora saudosa do occaso, abrem as co-
rollas ás tépidas virações. Encantador destino o de to-
das as njctagineas, que segredam amores emquanto
dura o luar! As flores diurnas, menos scismadoras
e mais coquettes^ expandem-se ao sol e remiram-se
no ramal de prata, que lhes emperla as hastes.
Da balsamina e da sensitiva sei eu que parecem
cahir em somno, espécie de morte apparente, quando
248
a noite chega. Vaidosas ! Queriam luz para se mos-
trar ! ^ Não me inculpe de ser severo para com as flô~
res diurnas.
Deseja enganar a sensitiva? Quando o sol esmore-
cer, feche-a n'um recinto pequeno e rodeie-a de lâm-
padas, que espalhem em^ torno uma claridade alegre
e viva. Yerá que não tem somno, que não dorme, que
toda se pavonea.
Ao romper da manhã, roube-lhe a luz. Adormece-
rá, pensando que chegou a noite.
Para quem desabrocham as flores nocturnas ?
Não para nós ; para si mesmas. São como a vio-
leta, apesar d'abrir de dia : escondem-se. Amam-se e
noivam mysteriosamente.
Fallemos das òoas-noites. Esperam por esta hora
solemne para abrir e, tendo por sacerdote a lua e
por testemunhas as estrellas, celebram seus consórcios
até que reponte no ceu a luz do dia. . .
Não quiz a Providencia privar a noite do frémito
dos insectos, das volatas das aves e dos aromas das
flores. Quando na escuridão scintillam as pequenas
lanternas dos vagalumes, quem se não lembra de os
comparar a mensageiros amorosos, que vão, allumia-
dos pela sua própria luz, transmittir confidencias de
flor para flor?
1 Estas c outras pobres plantas obedecem a phenomenos
chimicos cellulares dependentes da irradiação solar; taes s5o os
chamados movimentos nyctitropicos, isto é, de vigilia e de
fiomno. Muito as calumiiiei eu ! — Nota da presente edição,.
249
O rouxinol 6 o menestrel encarregado de cantar o
epitlialamio dos amores nocturnos. Quando elle começa
a vibrar o timido preludio, introducçáo d'um canto
mavioso e docemente cadenciado, estremecem na haste
as ílôres da noite, porque chegou o momento dos seus
extasis e dos seus amores.
Linneu, sabendo que cada planta tem determinadas
horas de repouso e de animação, compoz o poético
relógio das flores, encantadora ideia, que se en-
carrega de mostrar ao homem que da natureza partiu
a inspiração de todas as grandes concepções artís-
ticas.
Crê-se que foram os mathematicos que inventaram
o kaiendario. Engano ! Nas differentes épocas de
florescência destinadas ás plantas, estava o gérmen
da ideia a que mais tarde se attribuiu a vantagem da
divisão scientifica do tempo.
Esperemos que desça a noite e que a& vaporo-
sas fadas do ar accendam as estreilas na cúpula azul
dos céus. Então, quando a natureza preparar o fes-
tim da noite para receber a lua, veja, minha amiga,
que se Deus cravejou no firmamento milhares d'es-
trellas, que são as flores do ceu, semeou por toda
a parte cardumes de flores, que são as estreilas da
terra ...
E quem não ha de acreditar que na mesma hora
se creáram flores e estreilas, umas para o ceu e outras
para a terra?
250
Venhaes em tal hora, illustres senhores
Formosas senhoras, ó damas mui bellas,
Como aquella em que as estrellas
Foram creadas e também as flores. ^
Deus viu que o ceu era lindo de dia, todo azul e
sereno, retratando-se na vastidão dos mares, illumi-
nado com a luz da grande alampada de oiro. Mas
apagou-se o facho do dia na extrema do occidente e
do levante subiu a lua, triste e pallida, como quem
teme ser rainha em throno que não guardam cortezãos.
Appareceram as estrellas, para fazer companhia á
lua e dar mais claridade ao cen de noite.
íí'essa mesma hora se crearam as flores, porque
Deus havia conhecido a tristeza da terra por não ter
vestido nem enfeites.
Eu vi já d' este campo as varias flores
As estrellas do ceu fazendo inveja. 2
E fazem. São brilhantes as estrellas, mas nunca
variam a cor doirada, que mostraram na primeira
noite do mundo.
As flores umas são azues como o agapantho, bran-
cas como a açucena, rubras como a papoila, doiradas
como o malmequer, roxas como a violeta, verdes
como a flor da hera. Uma imita a saphyra, outra o
jaspe, esla o rubim, aquella o topázio, algumas a
amethysta, outras a esmeralda, e ha-as também que
^ — Nau d'amorcs — tragicomedia do Gil Vicente.
2 Camões. Écloga l.-''
I
251
reúnem em si uma variedade admirável de cores. As
estrellas, aos nossos olhos, apresentam invariavelmente
a forma circular. Não assim as flores. A fraxinella
nasce em cachos, a açucena em calis, a calandrina
em umbella, a persicaria em espigas encarnadas, a
hortênsia em novellos azues, o lilaz imitando thyrsos.
E depois, que delicadeza verdadeiramente artistica
no trabalhoso recorte e no mimoso tecido das pétalas,
que, na máxima parte das flores, parecem de seda
como as azas das borboletas ! Quem não dirá que 6
de velludo a flor do liz ?
E alem de todas estas bellezas que nos deliciam
os olhos, de todos estes primores artísticos que se não
podem imitar ^, — todos os órgãos indispensáveis ao
desenvolvimento e á conservação, antheras cheias de
vida futura, folhas que respirara e são os verdadeiros
pulmões dos vegetaes, raizes que bebem nas entra-
nhas da terra os suecos nutritivos, e hastes cheias de
vasos indispensáveis á circulação da seiva absorvida
pelas raizes !
- E' como se cada planta se dividisse em dois cor-
pos que mutuamente collaboram para a vida com-
mum. Um, que vive enterrado na terra, outro que
se espaneja no ar, — as raizes e as folhas.
«Parece, em verdade, diz um escriptor francez,
que as raizes são dotadas de sentimento e, para assim
^ Que a memoria do nosso grande Constantino perdoe
esta asserção demasiadamente categórica, — Nota da presente
adição.
252
dizer, de intelligencia : por si mesmas sabem discer-
*nir o terreno que lhes convém e por si mesmas pro-
curam o rincão onde o alimento é mais fácil e abun-
dante.»
Ha n'isto solicitude de mãe doida d 'amor pela
filha.
As folhas, que são as raizes do ar, correspondem
assiduamente ao labor da vegetação subterrânea e não
se esquecem um único momento de que também são
mães . . .
Absorvem os gazes e vapores derramados na
atmosphera, alteram-n'os e estudam-n'os para rejei-
tar todos os que não aproveitem a nutrição vegetal.
Depois, um dia, desabotoa a ílor, primeira es-
perança d'este commum trabalhar, e mais tarde ap-
parece o fruto, que é o premio de tão suadas fadigas.
Ha em verdade tantos pontos de similhança entre
as mães e as plantas, entre os cuidados e os destinos
d'umas e outras, que não duvidei comparal-as, minha
amiga, n'esses pobres versos que lhe mando e escre-
"vi recentemente :
MATER
( A UMA SENHORA, MÃE DE DUAS ESTIMÁVEIS MENINAS )
Náo sei so já algum dia contemplaste,
No teu canteiro alegre e recendente,
Dois nevados botões na mesma haste,
Que verga de mimosa o de indolente ? . . .
253
Mais tarde dos botões rebentam flores
E vel-a-has então rever-se n'ellas,
De dia, por mirar os seus amores,
Do noite, por mostrar suas estrellas.
Não tem braços a haste e ergue ao collo
Os seus dois filhos lindos e felizes,
Porque lá vai de rastos pelo solo
Bebendo seiva, onde metteu raizes.
E' um sonho d' amor o vel-as todas
N'um abraço gentil, lindas nas cores,
Sempre noivas, toucadas para as bodas,
Todas três rindo e todas ellas. . . flores !
Yem o sol a nascer. As borboletas
Sobrenadam nas vagas luminosas,
Doidas, subtis, alegres, inquietas,
Buscando amores onde encontrarem rosas,
Então a mão d'alguem que sonha amores
E devaneia á luz da madrugada,
A"eio colher as nossas lindas flores
Para coroar a moça namorada.
E tu agora, ó mãe, que as procreaste,
Oonfia-as á visão encantadora.
Eis cumprida a missão, curva-te, ó haste.
Morre feliz, deixa ceifar- te agora.
O' mãe, és como a haste. A mesma sorte,
A mesma lida, eguaes as vossas dores.
Que Deus vos faça, pois, irmãs na morte,
Se a paz do céu cobrir vossos amores.
254
Quem havia de dizer, minha boa amiga, que de
maravilhas estão enthezouradas na mais singela flor
das montanhas ! E que de mjsterios também ! Anda o
homem a devassar estes segredos da natureza e ven-
turoso d'elle se adquirisse a certeza de ter chegado á
verdade. Na impossibilidade de os decifrar, cria uma
sciencia para estudar cada grupo de phenomenos e
perde-se n'um labyrintho de duvidas como a formiga
por entre as pétalas enconchadas d'uma dhalia. O estu-
do d'uma flor pode absorver uma vida inteira.
0 histologista que metter o escalpello no tecido
vegetal para o decompor e estudar, tem de trabalhar
e suar longo tempo desde que partir da cellula, o ele-
mento simples, o laboratório microscópico como diz
Lecoq, até chegar á flor, pequeno mundo de bellezas
infinitas.
E depois quem sabe explicar todos os caprichos
da sensibilidade vegetal?
Por mais que se tenha dito e escripto sobre este
thema, por que razão se contrae a sensitiva, quando
se lhe toca ao de leve n'uma folha ?
Certa planta (oh ! prodígio !) a seus encantos
Liga os melindres do virgíneo pejo.
Se com dedo indiscreto ousas tocal-a,
Quer esconder-se a pudibunda folha,
E ás mesmas leis fiel, o móbil ramo
Se inclina para o tronco e cinge a elle ^.
Por que se furta ao contacto da mão a delicada
1 «As plantas » — poema de Gastei, trad. de Bocage.
!
255
planta, que tem tanto de iiiimosa^ como de inidicaf^
O povo olha para a sensitiva e cliama-lhe erva viva.
Não quero pensar na ignorância do povo ; sei que
diz bem, sem se empenhar na lucta dos sábios.
Vivem as rosas o espaço d'uma manhã, como es-
creveu Malherbe e dura a perpetua tanto como a ver-
dadeira saudade. Que de inexplicáveis segredos !
Cahiu a noite, minha boa amiga. Leia esta carta e
contemple por um momento uma flor, que o mesmo
será levantar o seu pensamento a Deus.
YII
A niademoiselle Jeannette
21 de julho de 18...
São quatro horas da tarde. Sebastião Pinheiro está
de certo, n'este momento, como é costume, a tomar
caffó no terraço da casa d'Espadanedo.
Yejo d 'aqui pelo prisma da saudade as graciosas
cauequinhas doiradas, o taboleiro de xarão, a pequena
jardineira de mogno, tudo o que em sua casa, minha
amiga, constitue o delicado e opulento serviço do caífé.
1 O illustre botânico Van Tieghem, reduzindo a «sensibi-
lidade » vegetal ás suas justas proporções, faz depender este
phenomeno de uma simples contractilidade do protoplasma
cellular. Em 20 annos a sciencia deu cabo da « alma vegetal.»
— Nota da presente edição.
256
Sebastião Pinheiro (é um habito velho e agradável
este de tratar assim se a pai) reclinado no canapé de
cortiça, reparte caricias e palavras pelas duas únicas
flores do jardim da sua vida, — madame Faustine e
mademoiselle Jeannette.
Dá alegria ver esse amantissimo quadro de familia
emmoldurado nos festões da trepadeira que guarnece
o terraço.
Seu pai é o mais denodado apologista de caffé que
tenho conhecido. Falle~lhe de Simão Paulo, medico do
rei da Dinamarca, e verá como troveja impropérios
contra o rebelião detractor do tabaco, do cafPé e do chá I
Se o uso do tabaco é nocivo, seu pai ultrapassou
CS limites do perigo substituindo o uso pelo abuso;
quer dizer, accendeado o cachimbo pela manhã para
só o apagar á noite.
Já me não admira isto, depois que li algures que
Mithridates, rei do Ponto, se habituara a beber vene-
no diariamente . Com o caffé creio que se dá o mesmo
phenomeno que com o tabaco : o uso faz mal ; o abuso
não prejudica ninguém ! Massieu, poeta que não conhe-
<;o, escreveu um poema denominado — O caffé — ; não
lhe quero dizer que tanto desconheço o poema como
-o poeta. . . ^ Eu, se me quizesse inspirar do caffé, ia
1 O medico portuguez José Pinto Kebello de Carvalho
traduziu este poema de Massieu (Jornal de Coimbra, vol. viii,
Tl." 37, part. 2.^^) Quanto ao tabaco, outro portuguez, Miguel
Augusto de Ohvoira, verteu cm 1844 o poema do Barthelemy
— O cachimbo e o tabaco. Os cabellos brancos vão interessando
a gente por estas velharias bi bliographicas.— iVoía rfaj^resewíe
edição.
257
tomal-o u Espadanedo por uma das canequinlias de
loiça fina que a minha amiga tempera d'assucar ordi-
nariamente. Depois sim, que poderia escrever com ver-
dadeiro enthusiasmo. Quer saber a que época re-
monta o uso da bebida saborosissima que delicia o pala-
dar de seu pai? Um dia, no século nono da era dos ára-
bes, amanheceu destinado á gloria do caífó. O céo era
azul e formoso ; a natureza mostrava-se languida como
a mulher que desperta cansada das danças vertigi-
nosas da noite e precisa de libar um philtro que a reani-
me; as harpas eólias jorravam pelas escarpas umas mu-
sicas voluptuosas e alegres, — o hymno da glorificação
do cafPó. N'esse dia os derviches d'Yemen beberam
pela primeira vez caffé, antes das suas rezas, e pro-
clamaram aos quatro ventos do universo a excellencia
de similhante bebida. Pouco tempo volvido, corria
mundo a «fava arábica», denominação primitiva do
Como não estou em Espadanedo, deante da pe-
quena jardineira de mogno, permitta-me dar de mão
a este desvio que me vai avivando lentamente re-
cordações das minhas visitas ao solar dos Pinheiros.
Deixe-me, porém, fazer-lhe uma pergunta.
Com quantos frasquinhos d^essencias aromáticas a
tem presenteado seu avô desde a ultima vez que nos
vimos ? Sinto pena do bom velho, que não conhece
a gentil neta e a mimosea de longe com bijoux para
o houdoir.
Sempre as flores ! Em toda a parte as encontra-
mos, minha amiga. Que lamentáveis homens são os
17
258
botânicos, que estudam as flores e nSo as sabem
comprehender ! Para elles a mais singela florita da
monte tem um nome e uma família ; é como se fosse
ura homem. A botânica, tirante o que diz respeito á
physiologia vegetal, é um vocabulário árido e pesado^
que só pode competir com a nomenclatura da chimica
e com a technologia da mathematica. ^
Para os geómetras tudo são linhas que ou se
prolongam indefinidamente ou se bifurcam em ângulos
ou se enclavinham em polygonos ; tudo são lettras e al-
garismos que se encastellam em columnas, pelas quaes
os profanos não podem marinhar sem que previamente
comprem óculos azues e se tornem insociáveis.
Para os botânicos tudo são palavras arrevesadas
que incommodam tanto os ouvidos quanto os mosai-
cos de mau gosto incommodam os olhos. Para estes
enfadonhos apóstolos da sciencia a haste d'uma flor
é a maromba traiçoeira com que equilibram a sua
reputação de sábios. Nem olham para a flor com
os olhos do philosopho, que vê o dedo de Deus em
tudo o que a natureza produziu de admiravelmente
formoso ; nem com os olhos do medico que descobre
nas flores as qualidades de agentes therapeuticos ; nem
com os olhos do pintor, que se embellesa na contem-
plação do modelo que debalde tenta reproduzir fiel-
1 Isto era o ódio tradicional do estudante iitterato con-
tra os compêndios escolares o os professores especialistas Yai
á conta de rapaziada, já perdoada indulgentemente pelos pro-
fessores que depois foram meus amigos, excepto um, e por
mim próprio. — Nota da presente edição.
259
mente ; nem cora os olhos do parfumeur^ que põe de
parte as meditações do philosopho, as investigações
do medico e os arroubos do pintor para destillar a es-
sência da rosa, que morreu exlialando-a.
Como não sou botânico, minha amiga, posso dizer-
Ihe sinceramente que me delicia entrar n-um boudoir
perfumado, cheio d'estatuetas, de quadros, de jarras,
de crjstaes. Ha certas salas em que a gente entra e
respira com encanto o perfume suave que se exhala
dos moveis, das cortinas, do piano — que sentiu na
véspera o contacto d'uns dedos delicados — de tudo
emfim o que está de portas a dentro. O seu quarto,
minha amiga, acha-se nas condições d'estas salas. Da
ultima vez que seu pae me mostrou, a occultas, uma
corbelha de flores silvestres, a que a minha amiga
dava os últimos retoques, teimando em recatal-a de
olhos profanos como eram os meus, confesso á puri-
dade que não quiz olhar para os innumeros frascos
do toucador com o propósito de me persuadir de que
o perfume suavíssimo, que se respirava ali, partia
das flores pendentes do cavalete. . .
Data de longe o uso dos perfumes.
Em Athenas e em Corintho a tanto chegou a an-
ciã de essências aromáticas, que o logar marcado para
as conversações de todos os dias, em vez de ser, como
hoje, o botequim ou o caffè, era a loja d'um perfu-
mista notável. Em Roma, de tal -modo se banhavam
em perfumes as opulentas patrícias^ que se promul-
garam leis reprimindo o abuso, com receio' de que se
extinguissem para sempre os depósitos da Arábia.
260
Os nobres senhores da eclade-raédia lavavam em
agua de rosa os lábios tocados das viandas de seus
esplendidos banquetes, e os mais poderosos tinham
em seus paços fontes d'agua perfumada para embal-
samar as salas em noites de festim.
Sua mãe que lhe conte da corte de Luiz xv, que
se denominava corte perfumada^ em razão de cada
dama de honor adoptar cada dia uma essência diffe-
rente. Ella lhe contará também como, a contar d'essa
época, lavrou vertiginosamente em França a febre
dos perfumes.
Uma coisa curiosa d'estudar é a acção das essên-
cias aromáticas na economia animal. Ha pessoas que
se incommodam extremamente com determinados per-
fumes.
De mim lhe declaro que só me incommodam os
demasiadamente activos e violentos.
Ás vezes, porém, tem grande parte a imaginação
n'estas antipathias que ordinariamente se attribuem a
uma irritável delicadeza de nervos. Conta-se o caso
d'uma dama romana, que não podia supportar o
aroma das rosas.
Certo dia visitou-a uma das sua amigas que trazia
na cabeça uma grande e formosíssima rosa.
A susceptibilidade nervosa da dama visitada levou-a
a desmaiar subitamente mal entrou a imprevidente
amiga.
Foi motivo de se chamar o medico um tão ines-
perado spasmo.
A que attribuil-o, porem ?
261
— Â rosa, simplesmente áquella rosa, disse uma
das criadas da casa que, por experiência, podia deter-
minar as diversas causas de tão frequentes exacerba-
ções nervosas.
— E' verdade ! considerou o medico. Não me
lembrei da antipathia que leva a minha gentil cliente
a repellir o cheiro da rosa !
— É verdade ! Se me tivesse lembrado também,
desfolhava a maldita ílor antes d'entrar, ponderou a
dama em visita arrancando-a das tranças, com sorriso
irónico.
— Surpresa ! gritou o medico, acceitando a rosa
que lhe oíferecia a dama e fitando um olhar expres-
sivo na mimosa cliente que a pouco e pouco ia recu-
perando os sentidos.
— Que é ? Que foi ? Que surpresa ? Perguntavam
todas as pessoas agglomeradas na camará.
— A rosa não 6 natural ! perorou o medico, sol-
tando uma gargalhada estrepitosa.
You concluir.
Fallei-lhe de perfumes, que é o mesmo que fallar
de flores. Victor Hugo escreveu algures esta profunda
phrase : « Fui a rosa, diz o perfume. » É que na ver-
dade o aroma, deixe-me dizel-o, é a alma da flor. A
rosa, ceifada da haste, deu ainda ao mundo o que de
immaterial havia n'ella.
Seu avô, minha amiga, velho aff'ectuoso e deli-
cado, manda-lhe de longe as essências das flores qua
mais o namoram decerto. Aposto que se elle alguma
vez invejou o throno de Napoleão ni foi por não poder
262
comprar todos os perfumes da França para os man-
dar á neta.
S. Luiz, que tinha predilecção pelos perfumes,
dizia nos campos da Palestina : «O' delicioso paiz
<l'Arabia! ambiciono conquistar-te para offerecer ao
Senhor a tua myrrha e o teu incenso ^ .
Mr. Arnold dirá também, paraphraseando a ex-
clamação do rei-santo : « O' delicioso paiz da França 1
ambiciono possuir todos os teus perfumes para of-
ferecel-os á minha Jeannette».
YIII
A mademoiselle Jeannette.
8 d'agosto de 18 . . .
Quizera eu, minha amiga, que todas as mulheres
seguissem o seu exemplo e substituíssem os diamantes
pelas flores naturaes. A belleza deve de ser modesta.
Os reflexos cambiantes dos collares quantiosos des-
lumbram e cegam.
D'aqui procede que muitas vezes o esplendor da
moldura, incommodando_a vista, prohibe o contemplar-
se o quadro com a minuciosidade devida e com o es-
crúpulo indispensável. Para que hade a belleza ir
procurar ás cryptas sombrias o que pode encontrar á
superfície da terra ?
É preciso cavar para extrair o minério ; basta
263
alongar o braço para colher a tlor. E depois a belleza
do diamante é fria, muda, inanimada ; apenas des-
lumbra quando llie bate a luz em cheio. A belleza das
ílores tem vida, tem animação e, podemos dizel-o, tem
linguagem e sentimento. Tanto isto ó verdade, minha
amiga, que podemos substituir as palavras pelas flores
e transmittir a expressão da nossa alma no mais ap-
parentemente despretencioso bouquet d'este mundo.
€ada flor resume uma ideia ou um sentimento e cada
ramilhete é uma espécie de livro deslumbrantemente
encadernado, que pode affectar mil formas diversas e
tomar mil cores differentes.
Os floristas francezes, pergunte-o á sua boa mamã,
variam prodigiosamente os nomes dos bouquets con-
soante a forma caprichosa que lhes dão. Teem o
boiíquet-real^ o botiquet-daqiiesa^ o bouquet-pavêa, o
òouqaef -abanico e não sei quantos outros que encheriam
volumes sem conto. Xão é tão fácil, como parece, o sa-
ber compor um ramilhete, abstraindo da forma arbi-
traria que se lhe pode dar.
Eu acredito piamente na predestinação das crea-
turas. As raparigas francezas, aliem ãs, inglezas e
italianas que andam pelos passeios com os seus aça-
fatinhos de ílores no braço, nasceram exclusivamente
para raniitheteiras. Tiral-as d'aquillo, era emendar a
obra da natureza. Quem ensinou a ave a fabricar o
ninho? Quem ensinou a ramilheteira a compor bou-
quets f Ginguem; uenhum mestre; nenhuma escola.
E todavia um bouquet é tão difficil de compor
como um livro de escrever.
264
N'iim é preciso combinar as cores; no outro ordenar
as modalidades do pensamento. Para fazer um ramilhete
não basta reunir flores ; — assim como para escrever
um verso não basta juntar palavras. Para tudo a
inspiração.
Toda a gente sabe fazer um ramo ; nem todas as
pessoas sabem compor um bonito ramo. O segreda
pertence aos predestinados. Como é que as ramilheteiras
dispõem as flores ? Como nós, como toda a gente.
Principiam o houquct^ ordinariamente, por uma flor
grande, camélia ou rosa, ou por um feixe quer de
violetas quer de botões que formem o centro ; em
redor uma zona de verdura esmaltada de pequeninas
flores e ainda depois uma galeria de flores variadas.
Está o bouquet meio prompto ; é preciso concluil-o.
Uma nova zona de verdura deve contornar esta
primeira galeria de flores. Ainda não basta.
E' preciso formar uma segunda galeria de flores
matizada de folhas pequeninas e para terminar o
boitqiiet convém adaptar-lhe uma ultima zona de-
folhagem que não amarelleça dentro de poucas horas.
Está completa a obra. Ponhamos o nosso ramilhete aa
lado do bouquet da mais obscura ramilheteira. Que'
difterença I N'um os preceitos aristotélicos da poética
das flores e mais nada ; no outro a inspiração vasada
nos moldes da correcção artística. N'um o quid divi-
num que soube liarmonisar graciosamente as mais
delicadas nuances; no outro a monotonia com pretenções
a bom-gosto, que 6 a monotonia mais cáustica e des-
saborida da terra inteira.
265
Os botânicos e as ramilheteiras I Eis aqui duas
classes verdadeiramente differentes, comquanto vivam
ambas das flores e para as flores.
Era injustiça coroar de loiros os botânicos e deixar
na obscuridade as ramilheteiras. Do lado d'elles está
Linneu e não sei quantos mais, porque, em verdade
nunca travamos conhecimento intimo. Do lado d'ellas
está Glycéra, a ramilheteira d'Athenas, notabilidade
que bastou para cobrir de gloria todas as ramilheteiras
do mundo. Quem era pois Glycéra?
Uma mulher formosa que sabia compor boiíquets.
N'isto estaria de certo o máximo titulo do seu reno-
me, ainda que o pintor Pausias a não houvesse re-
tratado, sentada entre montões de flores, a compor
ramilhetes, e ainda que Lucullo não tivesse comprado
este quadro duas vezes notável.
Ninguém como Glycéra para entretecer grinaldas
e hoiiquets ; ninguém como o pintor Pausias para os
quadros de flores. Entre estes dois talentos, que be-
biam o fogo da mesma inspiração, devia vir sentar-
se a rivalidade. Assim aconteceu.
Pausias começou a deixar-se vencer e quiz retra-
tar a ramilheteira. Fazel-o, era ficar completamente
vencido.
O pintor atheniense retratou-a e teve de acceitar as
consequências d'esta indiscreção : amou-a.
Adeus, minha boa amiga. Vejo-me obrigado a
sair do Porto por alguns dias e a privar-me do prazer
de lhe escrever. Quando voltar, dir-lhe-hei, como até
hoje, o que me for lembrando a respeito das flores.
266
EPILOGO
Quando voltar, escrevi eu. A verdade é que,
quando voltei, vi em cima da minha banca de trabalho
uma carta cujo enveloppe denunciava a calligraphia
de mademoiselle Jeannette.
Abri-a precipitadamente ; dizia assim :
« Depois d'amanhã vou receber a benção nupcial
na igreja d'Espadanedo. O noivo... já sabe quem.
Desceu sobre as flores do meu coração o orvalho da
felicidade.
Jeannette. »
O noivo da filha de Sebastião Pinheiro era o ho-
mem que ella amava havia trez annos ; — um dos
mais nobres rapazes de Santa Cruz do Doiro.
Mr. Arnold morreu. Madame Faustine conserva
ainda as graças e o espirito d'outros tempos. Sebas-
tião Pinheiro, apesar de fumar por dia mais uma onça
de tabaco e beber mais uma chávena de caffe, des-
fruta a melhor saúde do mundo. Jeannette é feliz e
tem um filhinho. Quem ousaria agora desviar por um
momento o amor materno do alvo constante dos seus
cuidados, .escrevendo-lhe de flores?
^
UMA PAGINA TKISTE
Ai ! flor das mallogradas primaveras.
Thomaz Kibeibo.
Devem ser breves as historias que se escrevem
com lagrimas.
Simão Pereira era um rapazinho baixo, d'aspecto
doentio, que só tinha vida nos olhos, porque os olhos
denunciavam n'elle o scintillar das labaredas do cé-
rebro.
Era natural de Sozello, filho de lavradores e foi
meu condiscípulo, ha quatro annos, nas aulas publicas.
Os rapazes do nosso curso tinhara-n'o á conta de
scismador imbuído em leituras romanescas. Os mestres,
ao avesso dos discípulos, viam n'elle uma intelligencia
robusta apenas prejudicada por um temperamento ex-
tremamente mórbido.
Simão Pereira passeava só, e quando a gente se
abeirava d'elle encontrava- o umas vezes febrilmente
268
eloquente, outras esquecido e como que absorto n'um
pensamento que o dominava a ponto de não ouvir o
que se lhe estava dizendo.
Estas intermittencias seriam razão de sobra para
corroborar as injustas accusações dos nossos condis-
cipulos, se elle não tivesse dito d'uma vez, a pro-
pósito de romances :
— O que por via de regra os torna inverosímeis
é o imaginarem os auctores creações monstruosas que
se apartam do commum da humanidade, tola ou
feliz, como quizerem. ISTão é preciso procurar mons-
tros fora da natureza. Falíamos todos os dias com cer-
tos homens que nos parecem vulgares e que toda-
via poderiam figurar n'uma historia tenebrosa como
os romances de Ponson du Terrail.
Os condiscípulos riram-se da apologia do romance
rocamboliano feita por Simão Pereira e eu eiitristeci-
me subitamente, porque me atravessou o espirito a
suspeita de que elle alludia a si mesmo.
Antes de terminado o anno lectivo correu voz de
ter enlouquecido Simão Pereira. A causa que lhe apa-
gara subitamente a luz da razão era desconhecida para
nós, mas os médicos asseveravam que estava no seu pró-
prio temperamento. Os condiscípulos ouviram e dis-
seram :
— De romântico a doido vai um passo. Deu-o.
Os cora(;ões de vinte annos, que geram sentimentos
nobilissimos, são ás vezes brutalmente injustos.
Procurei Simão Pereira n'uma casa da rua Chã,
onde liabitava.
i
269
Encontrei-o sentado á banca com a fronte apoiada
nas mãos. Sentiu rumor de passos e voltou-se; viu-me
e arrazaram-se-lhe os olhos de lagrimas.
— Faça-rae um favor, disse-me elle com certa
excitação nervosa. Escreva a meu pai e peça-lhe
em meu nome que me venha buscar. Não sei es-
crever.
N'essa mesma noite escrevi ao lavrador de Sozello
e, em vez de pedir, intimei-o a vir ao Porto buscar o
desgraçado rapaz que estava a braços com a loucura
longe do tecto que o tinha visto nascer. O lavrador
deu-se pressa em chegar.
Yi-os partir, pai e íilho, n'um dos barcos da car-
reira. O lavrador tinha envelhecido dentro de trez
dias; Simão Pereira olhava para o pai com o olhar
indeciso de quem perdeu a razão.
Chegaram as ferias. Fui a Sozello e, como sabia
que o meu condiscípulo ainda vivia, perguntei por elle.
— Na mesma, foi o que me responderam.
Na mesma! Isto era extremamente doloroso para
quem sabia que ficava occulta a palavra loucura. Na
mesma loucura, queriam dizer.
A casa de Simão Pereira vê-se da quinta de Yilla
Yerde. Â noite cheguei a uma janella e puz-me a
olhar para lá. Momentos passados, ouvi notas dulcís-
simas de flauta. Estremeci. Devia ser Simão Pereira
quem tocava.
— «Nasci n'aldea, disse-me elle da primeira vez
que o ouvi executar umas variações da Norma, nasci
n'aldea e a flauta é a lyra dos pastores» .
270
Um dos criados da nossa casa ouviu os sons lon-
gínquos da flauta e veio dizer-me :
— Agora está elle socegado. A musica chama-a
á razão ; n'estes momentos conhece o pai e a mãe.
Um anno depois havia completo silencio na casa
do lavrador. Simão Pereira tinha morrido n'um
accesso de loucura, mezes antes. Quiz ainda enganar-
me e fiquei á janella a esperar a canção saudosa da
flauta. Nenhum som, nenhuma voz. Á loucura sue-
cedera a morte.
AZAS BRANCAS
(a AUíiUSTO MARQUES PlNTO)
tinha umas azas brancas .
Gabrbtt.
Chama-se Val-de-Rouxinoes o logar. É uma cam-
pina extensa, coberta de verdura por todos os lados,
banhada ao norte por um ribeiro, — tudo aquillo for-
moso, suave e alegre, n'uma palavra. Diz-se que a
pastora Bérthola, (provavelmente corrupção de Ber-
tha), que tinha uma voz doce e melodiosa, e que sof-
fria mal de saudades, vinha sentar-se a olhar pelo re-
banho á sombra das arvores do valle e começava a
cantar por tempos esquecidos.
Os rouxinoes, que os ha muitos no sitio, ouviam-
n'a, tomavam por desafio o que era desfadigar de tris-
tezas e começavam a cantar á porfia que era um céo
aberto escutal-os.
A pastorinha Bérthola comprehendia-os e não tan-
to para matar o tempo, que lhe era pesado, como pa-
272
ra 03 ouvir, o que era um consolo, sustentava a lucta
dignamente. Constou isto. Ao fim da tarde vinha mui-
ta gente escutar a occultas a pastorinha e os rouxi-
noes. Suspendiam-se as respirações e embriagavam-se
os ouvidos n'aquella musica dulcissima.
Diz a lenda — porque a imaginação do povo tem
ás vezes extravios romanescos — que era difficil sa-
ber-se em alguns momentos quem cantava : se Bér-
thola se os rouxinoes. Prolongava-se por noite a den-
tro a porfia. A pastorinha esquecia-se das suas ove-
lhas, que procuravam o caminho do curral, como se
comprehendessem que não deviam esperar por quem
se não lembrava d'ellas. . .
Com a noite vinha o socego e a solidão ; era me-
lhor para se ouvir. Então os rouxinoes e a pegureira
desdobravam todo o volume da sua voz e deliciavam-
se com ouvir a repetição das notas que tinham trina-
do momentos antes. Eram os éccos do valle que re-
petiam o canto.
E os namorados do sitio a escutarem estes con-
certos nocturnos, contentes por haverem encontrado
vozes estranhas que soubessem gorgear o que elles
-queriam dizer e não podiam... Morreu nova a pas-
tora. Venceram os cantores do valle. Cansou-se de
cantar e morreu. Ficou vingado o rouxinol de Bernar-
dim Ribeiro.
*
O morgado de Yal-de-Rouxinoes, Gaspar da Sil-
veira, representa a velhice ditosa. Quando a gente
273
o vê entro um p^rupo de formosas visões, — tlores que
enchem de perfume e de vida aquellas ruinas de ses-
senta annos, — sente pena de não ser tão alegre, ou
o que parece menos verosimil e comtudo não deixa
de ser menos verdadeiro, sente pena de não ser tão. . .
velho e tão feliz como elle.
O morgado passou a mocidade em toda a parte
aonde o arrastou a sua romanesca imaginação e onde
os seus muitos recursos lhe permittiram demorar-se.
A casa onde nasceu, escondida n'uma bacia de ver-
dura, era pequena para os seus instinctos de touriste.
Ás vezes vinham poisar algumas borboletas nas
flores dos canteiros sotopostos ás janellas da casa,
como se viessem trazer um recado, e fugiam logo a
esvoaçar, a esvoaçar... Para onde? Quem sabe lá!
para onde houvesse flores. Gaspar da Silveira reparou
nas mariposas e conheceu que a natureza o fizera irmão
d'ellas collocando o seu ninho entre moitas de ver-
dura. Elias voavam ; elle quiz seguil-as.
Preparou-se para partir. As borboletas iam voando
sempre ; imitou-as. Quando olhou em si estava muito
longe de Val-de-Rouxinoes, e todavia pareceu-lhe que
o mundo era ainda muito grande.
Teve desejos de vêl-o, todo se fosse possível.
«Fui por Hespanha, diz hoje Gaspar da Silveira,
porque senti nos ouvidos o repenicar provocador das
18
274
castanholas alternado com o frémito vertiginoso dos
petulantes abanicos. A Hespanha é um paiz que
só se comprehende depois que se vê. A França adi-
vinha-se. Em Yal-de-Rouxinoes presentem-se os valles
da Suissa. A Inglaterra imagina-se n'um dia de
nevoeiro e a Rússia n'um dia de frio. Da Hespanha
falla-se e ninguém sabe o que ella é antes de a ver.
A mulher representa o paiz a que pertence. A voz
d 'uma italiana resume toda a musica d'Italia ; todos
os mystérios da Hespanha estão no coração d'uma
andaluza. E' a Hespanha um paiz especialmente mi-
litar, commercial, cavalheiresco? Nada d'isto e tudo
isto. A hespanhola tanto se deixa arrastar pelo ry-
thmo cadenciado da hahanera, como pela vertigem fe-
bril do ciúme.
Na tertúlia agita a ventarola; no desespero o
punhal.
Quando lhe não trespassam o coração com um es-
pinho, e pomba. Quando lhe apontam uma frecha en-
venenada de mal-querença, é indomável. Os olhos é
que podiam denunciar estes sentimentos differentes,
mas os olhos esconde-os ella com a mantilha, quando
quer.
A Hespanha é como a hespanhola. Tanto descanta
hoje na serenata^ como briga amanhã na venta; tanto
se recrea hoje no bolero como amanhã na corrida.
Ninguém sabe comprehender os seus mystérios,
senão estudando-a passo a passo e dia a dia. Depois,
o que 6 menos sério e não deixa de ser mais tentador,
imaginei-me a saborear uma taça de chocolate e a
I
275
fumar um charuto havano. Fui. Escrevi, já com um
pé em Hespanha e outro em Portugal, a minha irmã
Jeronyma, que íicou a olhar pela casa de Yal-de-Rou-
xinoes, a chorar as lagrimas da viuvez e a apertar
contra o seio duas formosas creanças.
Escrevi-lhe, como ia a dizer, n'este sentido :
«You a Hespanha. Já agora hei-de fumar um puro
e ouvir um sereno. Adeus. »
«De Pariz, diz Gaspar da Silveira que merece
comparar-se ao cavallo de Troya, — tudo lá é traição.
Yê a ^QYiiQ aquelle grande mundo, aquella Babylonia
immensa, desvaira-se, estontea e... perde-se. Por
quem ? Por uma mulher loira dos boidevards^ que
vai á ópera todas as noites e não falta ás corridas de
Longcharaps, deslumbrante de riqueza e formosura.
Quem vem a ser esta creatura ? Uma rapariga de
maus instinctos, que deshonrou para sempre a velhice
de seus pais, que desperdiça todos os dias os rendi-
mentos de muitas famílias e que se touca de pérolas
á hora em que se cobrem de lagrimas as esposas dos
seus amantes.
O fundo é este. O povo francez embriaga-se com
todos estes ouropéis, com todas estas opulências vans,
com todas estes esplendores mentidos. E' vário como
todos os nevropathas. Se vem a republica e lhe falia
em liberdade, torna-se republicano. Mas se no mesmo
276
dia vier o império, e o deslumbrar com uma parada e
ura fogo de artificio, ajoelha deaute do throno e suf-
foca na garganta as ultimas notas da Marselhexa. Fugi
de Pariz porque me assustou a grandeza ficticia da-
quelle mundo ; a traição está escondida lá dentro
como os gregos no bojo do cavallo de Trova. »
«Foi á Suissa, áquelle pittoresco templo da ver-
dadeira liberdade. Quem sae de França cuida que a
Suissa é um punhado de terra escondido entre mon-
tanhas. Mas quando se lembra da Suissa de hontem,
acha-a grande ; quando attenta na Suissa de hoje, acha-a
maior. A Suissa de hontem são todos os patriotas de
1308, é essencialmente Guilherme Tell. A Suissa
de hoje é a suprema liberdade, a suprema independên-
cia e, podemos dizel-o também, a suprema harmonia.
O povo da Suissa vive do amor pelo passado e do
amor pelo futuro.
«Respeita as tradições dos seus antepassados e.
não obstante, empenha-se com enthusiasmo pela causa
das novas ideias.
«As cartas geographicas continuam a marcar í
Suissa com uma pequenina gotta de tinta, mas a verj
dade é que entre o Jura, os Alpes e o Tyrol ha um
nação grande pela sua constituição politica, pela snjl
educação civil e militar, pelas artes, pela industria
por tudo emfim o que constituo a individualidadl
277
de um povo. E depois á beira dos seus lagos sente-se
a amenidade que se respira em Val-de-Rouxinoes. Eii-
cautou-me a Suissa, devo confessal-o. »
«Segai para lialia ; fui á Itália por causa de Ve-
neza. Quiz adormecer u'uma gôndola ao som d'uma
barcarola. A verdade é que os gondoleiros do Lido
não conservam já a individualidade legendaria d'outros
tempos. Todavia foi-me delicioso ir deitado na gôndola
Ia olhar para aquelle formoso côo d 'Itália capaz de
fazer accordar n'um momento todas as harmonias do
coração humano.
«A Itália nasceu para as artes. Quando a gente che-
ga a Veneza reconhece immediatamente que está em
Itália e que a Itália é a pátria de Verdi, de Petrar-
cha e de Paulo Veroneso. E' licito até deixarmo-uos
^ enlevar, comtanto que tenhamos previamente o cui-
dado de acautelar as algibeiras, porque os rufiões
aproveitam-se frequentes vezes dos extasis dos viajan-
tes incautos.»
«Voltei a Portugal depois de ter estudado o mundo
em quatro ou cinco paizes diversos. As mulheres da
minha terra entremostraram-se-me a distancia com
merecimentos dignos do respeito de um viajante. Nãa
278
as quiz comparar com as outras que vi. As de Hespa-
nha tinham salerOy as parisenses eram coquettes, mas
as portuguezas, avaliei-o por minha mãe e por minha
irmã Jeronyma, eram mais dedicadas á beira do berço
de seus filhos. Minha irmã ficou viuva aos vinte e
trez annos, com duas meninas no collo.
« Quando eu parti, tinha a Júlia um anno e a Lu-
dovina dois. Quando regressei, chamei um dia a mana
Jeronyma e disse-lhe :
« — Minha irmã. Fatiguei-me de andar só por esse
mundo de Christo e todavia não passei de um retalho
da Europa. Estou resolvido a casar ; mas has de pro-
metter-me que não saes d'esta casa, que administraste
durante a minha ausência, no dia do meu casamento.
Se eu tiver filhas, quero que ellas brinquem com as
tuas. Não receies, porém, que esta nova phase da
minha vida venha perturbar a tranquillidade da nossa
casa ; socega, porque eu só casarei com a mulher
que tu me designares. Olha que isto é positivo, Jero-
nyma.»
«Minha irmã mostrou-se surprehendida.
« — Dize cá, continuei eu, para atalhar a admiração
de Jeronyma. Tu tens uma amiga intima, que conta
hoje a tua idade e que foi a confidente dos teus
amores...
« — Christina I
<!. —Christina, exactamente, ozí/ra tua irmã^ como
dizia a gente do logar quando vos encontrava ambas,
de mãos enlaçadas, a passear pela aldeia. E comtudo
bem sabiam os camponezes que tu eras a menina de
279
Yal-de-Rouxinoes e Christina a morgadinha do Paço-
Yerde.
« — Que saudade !
« — Affasta as tuas tristezas, Jeronyma, que não 6
occasiào de despeitorar maguas intimas. Ora dize-me
cá. Sabes se ainda se conservam no coração de Chris-
tina aquelles assomos de affeição que ella dizia sentir
por mim?
«— Christina não te ama vertiginosamemte, respon-
deu minha irmã, mas sente por ti um poucochinho
de respeito e um poucochinho d'estima, o que é mil
vezes preferivel a uma paixão que dure a vida de uma
flor.
« — E sabes se Christina amou alguma vez outro
homem ?
« — Não amou ninguém. Ás vezes dizia-me de ti :
Gosto de teu irmão, Jeronyma, mas scismo que elle
antipathisa comigo. Não quero desenganar-me ; tenho
medo que me aborreça deveras.
« — Muito bem. Ficas encarregada de concluir o
negocio. Quero ver como te saes d 'esta missão
diplomática.
« — Gracejas, Gaspar !
« — Não gracejo. A minha idade de gracejar pas-
sou.
Cinco annos volvidos depois do casamento de
Gaspar da Silveira, descobriam-se reverentemente os
280
camponezes, ao declinar da tarde, deante d'um grupa
pittoresco que ora parecia recortar o céo levantado-
n'uraa eminência ftorida, ora surgia como por encan-
tamento n'uma gruta de verdura em qualquer sitio do
valle.
Gaspar da Silveira, de largo chapéo desabado e
semblante a ressumbrar alegria, era quem ficava exa-
ctamente ao centro do quadro. D'um lado a estatua
da saudade, entre doce e melancólica, entre triste e
resignada, — Jeronjma. Do outro a mulher que se
arrouba na suprema felicidade da terra e sabe ser
compadecida perante os infortúnios que comprehende,
— Christina.
Tsíão longe, ao sopé do rochedo ou á beira do al-
pendre de folhas verdes, quatro creanças ora baila-
vam de mãos enlaçadas, ora desfolhavam flores sil-
vestres e assopravam as pétalas para vel-as cahir^
ondulando, como outras tantas mariposas.
A mais velha d'estas crianças tinha sete annos
— Ludovina. Pomba, que mal abre as azas e já se
arroga a missão de velar pelo bando infantil! Júlia,
a outra filha de Jeronyma, pode chamar-se lhe a in-
fância mais inquieta d'este mundo e já com pretensões
a rebellar-se contra a protecção fraternal de Ludo-
vina.
As outras duas creanças são ambas filhas de Gas-
par da Silveira e de Christina; são tão irmãs, tão uma
da outra, que se poderiam dizer gémeas, comquanto
Leonor tenha quatro annos e Sophia trez.
Formoso quadro era este em que suavemente se
281
confundiam as alegrias da infância, as lagrimas da
saudade e os sorrisos da felicidade suprema.
E os camponezes passavam e tiravam respeito-
samente o seu chapéu, menos por ser aquella a família
de Val-de-Kouxinoes do que por se sentirem tomados
de respeito deimte d'aquelie grupo sublime de ma-
gestade.
* *
— Encanta-me ver este bando de creanças que
Deus nos concedeu como para nos dizer que somos
felizes ! exclamava Gaspar da Silveira. Que seria do teu
coração, Jeronyma, se lhe faltassem, não digo as con-
solações da nossa amizade, mas aquellas duas azas
pequeninas que a Providencia lhe engastou e se estão
agitando acolá V A Ludoviua substitue-te dignamente
nos carinhos maternaes que dispensa á irmã. A
minha Leonor tem alguma cousa de coqiiette e alguma
cousa de campoueza. Olha como ella se vai meneando
senhorilmente após as outras, com a sua arregaçada
de flores do monte. A Sophia é o beija-flor, os trez
annos que tropeçam a cada momento, mas que não
desanimam e vão proseguindo sempre no vertiginoso
adejar ! Que felicidade a nossa, Christina ! Que felici-
dade a minha, Jeronyma !
E evocando recordações das suas viagens :
— Ha na Suissa um costume em verdade encanta-
dor e útil, porque exerce uma notável influencia na
harmonia das gerações futuras. As sociedades do do-
282
mingo, como lá se diz, consistem em reunir n'esse dia
as creanças da mesma idade e do mesmo sexo para
deixal-as brincar em plena liberdade. E' assim que os
pequenos se suppoem todos irmãos porque não sabem
brincar uns sem os outros ; — raparigas com rapari-
gas, rapazes com rapazes. E n'esta communidade de
brinquedos vão-se insensivelmente estreitando os laços
que devem prendel-os para toda a vida. Oh! que se
vocês vissem a Suissa haviam de gostar e mui-
to I .. .
D'outras vezes dizia Gaspar da Silveira, á cerra-
dinha da noite:
— A esta hora ouve-se nas povoações dos Alpes
a busina dos pastores. Parece impossível que d'uma
pequenina flauta de pau, tangida por um pegureiro
rude, saiam as suaves modulações que se vão repe-
tindo de quebrada em quebrada. E as cantigas do
Ba7iz das Vaccas que os pastores cantam melodiosa-
mente a esta hora !
— Parece que tens amores na Suissa I replicava
Christina entre amorosa e amuada.
— E' verdade ! obtemperava Jeronyma. Olha que
é para ter ciúmes !
— E' que não me comprehendem ! Quando se está
bem, tão bera como eu aqui estou, parece que a me-
moria se delicia em reproduzir tudo quanto conhece
de suave e formoso ! E depois ? . . .
— E depois? perguntavam simultaneamente Chris-
tina e Jeronyma.
— E depois ha na Suissa um lago do qual se diz
283
que se agita quando se lhe deita alguma cousa
dentro. . .
— E que tem ? dizia Christína.
— E que tem ? repetia Jeronyma.
— Bem sabem que deitei ás aguas do lago o celi-
bato ; que voltei as costas para não ouvir a tempestade ;
e que vim casar á minha terra natal.
— Ah! conclamavam Christina e Jeronyma sor-
rindo amavelmente.
*
Corridos quinze annos depois do casamento de
Gaspar da Silveira, ainda podia vêr-se, ao declinar da
tarde, o mesmo grupo, ou antes os mesmos grupos,
nos mesmos legares e á mesma hora. O morgado de
Yal-de-Rouxinoes não inculcava maior velhice : ha
uma consolação, a de ser pai, que parece furtar-nos
á acção sensivel do tempo. Christina partilhava das ale-
grias do marido, que tanto eram suas como d'elle, e
respirava na mesma atmosphera de felicidade. Jero-
nyma sem estar menos ágil estava comtudo mais
venturosa, porque em vez de duas, como outr'ora,
tinha quatro azas a levantarem-n'a dos espinhaes
da terra. Morria-se d'amores pelas sobrinhas tanto como
pelas filhas ; queria-lhes realmente muito.
E ellas, as quatro pombas de Yal-de-Rouxinoes,
onde estão que já não bailam de mãos enlaçadas nem
assopram as pétalas das flores do monte ?
Eil-as ali, ao lado, constituindo um outro grupo,
284
ora segredando-se os nadas mysteriosos e bonitos da
mocidade, ora lendo Feuillet, que 6 o romancista que-
rido de Gaspar da Silveira, ora, se as acompanhava
a mestra que viera do Porto, discorrendo e ás vezes
galhofando sobre pontos de geographia e historia.
Eil-as, as quatro formosas donzelinhas, que parecem
todas irmãs e deixam perceber ideias e sentimentos
também irmãos.
— Olhae para ellas, dizia Jeronyma a Gaspar e a
Christina. Olhae para ellas, como estão alegres e ami-
gas! A Ludovina é o anjo da guarda; é sempre irmã
de todas, sem deixar de ser mãe, quando é preciso.
A Júlia e o aijesú que de mimoso reclina a cabeça
no seio fraternal. A vossa Leonor, reparae : apresenta-
se compostinha como uma senhora de. . . quatorze
annos ! E a Sophia, o beija-ílor, como tu.dizes, Gaspar,
sempre a bater as azas e a sorrir !
— Olha, exclamava Gaspar da Silveira, que tem
graça esta graduação de idades: A Ludovina tem de-
zesete annos, a Júlia dezeseis ; a Leonor quatorze e a
Sophia treze. De maneira que a Ludovina ó mais
velha um anno que a Júlia, e a Leonor mais velha
um anno que a Sophia.
— Assim como também, acrescentava Christina, »
Ludovina é mais velha que a Leonor trez annos e a
Júlia mais velha que a Sophia outros tantos.
— O' Christina, perorava Jeronyma, Deus quiz ir-
manar tanto os nossos destinos, que nos deu a cada
uma duas filhas I Irmanar, disse eu ! Tu és bem mais...
— Toca a levantar o acampamento, dizia Gaspar
285
da Silveira com seus assomos de militar reformado.
Se tu, Jerouyma, começas a desafo^^ar maguas, sen-
sibiliso-me também e ou choro ou rendo a praça. Va-
mos vér o que estão a dizer as pequenas. O que ellas
não terão gracejado com a mestra !
— Que fazem vocês, pequenas ?
— Perguntamos á snr.* D. Francisca uma cousa,
respondia Sophia.
— E ella ainda não respondeu I replicava Júlia.
— E' porque não e fácil responder ! acrescen-
tava Leonor.
— Não faça caso, meu tio, concluía Ludoviua.
Ellas enlouqueceram todas.
— Diga lá, D. Francisca, diga lá, atiçava Gaspar
da Silveira.
— Digo eu . . .
— Cala-te, Sophia, reprehendia Christina.
— Deixa dizer a tua mestra, ralhava Jeronyma.
— Perguntei á menina Sophia onde ficava a Rús-
sia, dizia, finalmente, D. Francisca.
— E ella respondeu ?
— Respondeu. Depois perguntei que forma de go-
verno havia na Rússia.
— E, . . respondeu ? inquiria Gaspar da Silveira.
— Respondeu.
— Depois?. . .
286
— Depois perguDtou-me a menina Sophia, que ê
sempre a revolucionaria, o que queria dizer a palavra
— Russo. E eu respondi. . . que natural da Rússia.
— Bem respondido ! exclamava Gaspar da Silveira
suffocando um frouxo de riso. E ella que liie objectou?
— Por que se chamaria então ruço a um burro
esbranquiçado que nào era russo?
— Diabrete ! exclamava Gaspar da Silveira, des-
fechando uma gargalhada sonora.
Os serões corriam alegres e divertidos na casa de
Yal-de-Rouxinoes. Gaspar da Silveira ora lia para to-
dos ouvirem, ora contava episódios das suas viagens
na Europa. Havia duas mesas de trabalho todas as
noites; n'uma costuravam Christina e Jeronyma e lia
Gaspar da Silveira ; — na outra seroava o rancho das
donzellinhas commandado pela grave pessoa da pro-
fessora D. Francisca, que só conservava dos tempos
da mocidade — saudades doloridas.
Gaspar da Silveira havia lido n'um periódico do
Porto o annuncio d'uma senhora, que se offerecia para
ensinar musica e instrucção secundaria na provincia.
Escreveu immediatamente á redacção do periódico
pedindo esclarecimentos. Recebeu-os, e como lhe pa-
receram lisonjeiros, mandou ir a mestra em questão.
Nos primeiros tempos, sondou Gaspar da Silveira com
certa habilidade a profundeza dos conhecimentos lit-
terarios de D. Francisca. Conheceu que eram pouco
287
sólidos, mas como ella soubesse tocar piano correcta-
mente e esboçar a lápis uns desenhos leves, transigiu
e estipulou-lhe um ordenado farto.
A ^rave professora, quando conheceu que tinha
de arrostar com as negaças prováveis de quatro moci-
nhas sobremodo estimadas, teve um momento de he-
sitação, mas lembrou-se de que leccionava quatro
discipulas e recebia por oito: ficou.
Eram pois alegres e divertidos os serões, como já
se disse. Aos domingos e quintas feiras as meninas
tocavam, cantavam e bailavam umas com as outras.
Nas restantes noites costurava-se simplesmente.
Mas que vontade de rir por qualquer cousa! que
alegrias por um todo-nada ! que suavissima tranquil-
lidade em tudo aquillo !
Na tarde, por exemplo, em que se suscitou a
questão da palavra — russo — encontraram as alegres
meninas assumpto de sobra para gracejar todo o serão
d'essa^noite.
D. Francisca abancou á mesa de costura agasa-
lhada n'um chaile, que não se poderia dizer se era
preto por estar consideravelmente desbotado.
Sophia, a mais espirituosa traquina da casa, lem-
brou-se de dizer a D. Jeronyma :
— O' ti-ti, sabe de que cor é o chaile da snr.* D.
Prancisca ?
— Cala-te, menina.
— O' ti-ti, mas repare. . .
— Pois não é preto, mamã ? perguntava ironica-
mente Júlia.
288
— Nao é tal, replicava Sophia. E' cor... de habi-
tante da Rússia.
Entre o bando das meninas de Yal-de-Rouxinoes
havia uma que desde o principio mereceu especial
consideração a D. Francisca : era Ludovina. As outras
tinham alguma cousa de anjos maus para com ella nos
seus Ímpetos d 'alegria. Quando a topavam em descaso
riam-se e gracejavam a propósito ; Ludovina conhecia
o lapso e calava-se. O silencio da mais idosa das
discípulas, silencio mais para recear do que as
impensadas expansões das outras, lisonjeava extre-
mamente a vaidade de D. Francisca, que, se não se
julgava infaHivel em seus conhecimentos litterarios,
pensava de si para si que tinha attingido a máxima
sabedoria entre as pessoas do seu sexo.
Ludovina não era menos alegre do que as outras ;
tinha mais um poucochinho de descrição correspon-
dente, por assim dizer, á pequena differença da sua
idade. As outras tanto eram severas para com os erros
da mestra como para com as rusticidades dos campo-
nezes; desfechavam, quando o ensejo se ageitava,
uma gargalhada estrepitosa e unisona.
D'aqui provinha que era também Loduvina o anjo
querido da gente do sitio. Quem esmolava os pobres,
era ella ; quem intercedia a favor dos quinteiros em
todos os negócios pendentes da vontade de Gaspar da
Silveira, era ella. Sophia, especialmente Sophia, che-
289
gava a ser um pouco rude cora a gente do campo.
Se tinha de saltar um muro pequeno, que obstruía a
passagem, chamava um camponez, que ia passando
e dizia-lhe :
— Olá ! abre a tua mão ; quero firmar o pó e
saltar.
Uma tarde sahiram a passear as quatro meninas
de Yal-de-Rouxinoes. Gaspar da Silveira, Christina e
Jeronyma ficaram esperando na sala de jantar que
passasse o sol, para sahirem também.
Foi o alegre rancho andando, andando por aquellas
pradarias fora. Subiram o monte que domina a igreja.
Encontraram uma pedra coberta de musgo, que podia
servir de canapé, e sentaram-se. Decorrida meia hora
começou a repicar o sino ; ia sahir o Yiatico. Yieram
saltando pelo monte abaixo, umas após outras, em
direcção á igreja. Quando chegaram, já a porta estava
aberta e reunia-se gente. D'um angulo do caminho
sahiram dois homens que as cumprimentaram respei-
tosamente.
Quem eram ? Os dois morgados do Souto, o mor-
gado velho e o morgado novo, como lá diziam. Luiz
de Serpa, o morgado novo, frequentava em Coimbra o
terceiro anno jurídico e tinha vindo passar as ferias
ao solar de seu pae. O morgado e o filho cumprimen-
taram e passaram ; as meninas entraram no templo
para fazer oração.
19
290
*
*
Ludovina, ao ajoelhar-se, segredou á irmã :
— Eeparaste no Serpa ?
— Keparei.
— Fez-se corado ?
— Tanto como' tu. . .
E Sophia, o diabrete cheio de graça e de vida,
aproveitou o ensejo para cochichar ao ouvido de Júlia :
— Dize a tua irmã que vá ver ao espelho da sa~
christia como a romã é vermelha. . .
«
D'onde era que Ludovina e Luiz de Serpa se co-
nheciam ?
Perguntem aos pássaros que fizeram o ninho na
mesma arvore d'onde é que se conhecem.;. Luiz de
Serpa e Ludovina nasceram na mesma aldeia. Viam-
se, pelo menos, todos os domingos á hora da missa e
tinham vergonha um do outro, que é sempre como
as creanças principiam a amar-se. . .
Elle encostava-se ao pai; ^Ua queria esconder-se
no chaile da mãe. E eram tão pequenitos ainda, que
dava graça vêl-os como dois pombos que se querem
beijar e têem medo um do outro. . .
Um dia o morgado novo do Souto faltou á missa
291
do domingo. Correu que tinlia ido começar a sua
educação litberaria no seminário de Coimbra. Ludovina
soube isto á porta da igreja, corou, tremeu e atreveu-
se a dizer á mfie :
— O Luizinlio foi e não nos disse adeus!
Pouco depois abeirava-se João de Serpa, o mor-
gado velho, e motivava com estas razões a partida
precipitada do filho:
— As creanças são como as aves, morrem-se d'amo-
res pelo ninho em que nasceram. O meu Luiz foi fi-
cando, ficando, até que não podia demorar-se mais.
Levei-o a Coimbra e não fui homem que não cho-
rasse. . . Quando lhe dei o ultimo beijo, o pequeno
conheceu que o tempo lhe fugia e não teve mão em si
que não dissesse :
— Ó papá, dê visitas á Lú-lu.
*
Foram correndo os annos. Ludovina lembrava-se
ás vezes do morgadinho do Souto e sentia saudades.
O estudantinho de Coimbra lembrava-se dos seus amo-
res e tinha pena de não ser rouxinol para vir cantar
á janella do quarto de Ludovina não sei que trovas
bonitas . . .
Quando elle vinha a ferias, viam-se na igreja. As
faces de Ludovina purpurejavam-se intensamente.
O rapaz, com certo denodo bebido nos ares de Coim-
bra, não se fartava de olhar e nem dava pela missa. O
292
morgado velho achava graça a isto e dizia a D. Jero-
nyma, ao sahir da igreja :
— O meu rapaz nem sabe de que cor era a vesti-
menta !
A irmã de Gaspar da Silveira comprehendia-o e
sorria-se também.
*
Quando sahiu o Yiatico, estavam as meninas de
Yal-de-Kouxinoes ajoelhadas na igreja. Os morgados
do Souto, convidados pelo repique do sino, iam en-
corporados no préstito.
No momento em que Luiz de Serpa passava, Lu-
dovina levantou os olhos e encontrou o seu olhar cora
o d'elle. . .
Sophia inclinou-se sobre o hombro da prima e
disse com graciosa zombaria :
— Olha lá que não vás perder a conta aos Padre-
Nossos. . .
Seguiram as meninas após o préstito. N'aldeia,
acompanhar o Yiatico é um dever do nobre e do cam-
ponez. Foram pois cantando o Bemdicto até á porta
da choupana, que esperava a visita do Senhor.
João de Serpa entrou com o padre para deixat
uma esmola á cabeceira do moribundo, como eraj
seu costume. O morgado novo entregou a lanterna,
que levava, a um camponez e veio cumprimentar aE
meninas de Yal-de-Rouxinoes. Foi breve e cerimoniosa
a entrevista. Todavia Luiz de Serpa, ao separar-se d(
293
Ludovina, podo dizer-lhe baixinho, de modo que as
outras íi Ilidiram .. . nSo ouvir:
— A'manhã de tarde, suba á Pedra-Aguda para
me vêr no Crasto.
* *
Na tarde seguinte sahiram sós as meninas em ca-
minho da Pedra-Aguda. Sophia, Leonor e Júlia sen-
tarara-se a meio do monte, pretextando fadiga. Ludo-
vina foi subindo, subindo até que venceu o cume.
No momento, porém, em que ia sentar-se viu um
papel mettido n'uma das fendas do marco, que se le-
vanta no alto da serra e dá nome ao logar. Compre-
hendeu tudo n'um momento, porque o coração adivi-
nha quando quer. Leu. O bilhete dizia assim :
« Por que não nos havemos de vêr todas as tardes ?
Acaso não será isso uma necessidade para o seu
coração ?
«Suba á Pedra-Aguda, que eu subirei ao Crasto.
Yêr-nos-hemos a distancia, mas ao menos vêr-nos-
hemos. Eu escreverei o que quizer e deixarei o papel
110 marco. Faça o mesmo, se o seu coração não se
oppuzer. »
Durante todas as ferias d'esse anno, ao declinar da
tarde, quem erguia os olhos para o marco da Pedra-
Aguda via Ludovina, a fidalguinha de Yal-de-Eouxi-
294
noes, como diziam os pobres, sentada a ler n'ans livros
que viviam de Sonho e Esperança, comquanto fre-
quentes vezes desviasse a attenção do que estava
lendo para alongar o olhar pelas alturas do Crasto . . .
As outras meninas, que ticavam sentadas a meio
da serra, asseveravam que ella não lia ; os campo-
nezes, ou por ignorância ou por intenção, diziam que
a fidalguinha de Yal-de-Rouxinoes gostava de lêr
sentada no alto da Pedra-Aguda. G-aspar da Silveira,
que perfeitamente conhecia o motivo dos passeios
vespertinos da sobrinha, disse d'uma vez ao serão :
— O Ludovina ! olha lá se vais estragar a vista a
ler no alto da Pedra-Aguda. . .
— Eu?..
— Anda lá. Olha que não vá algum caçador do
Crasto tomar-te por uma rola e ferir- te.
— Os caçadores teem geralmente boa vista, pro-
feriu Christina para valer á confusão de Ludovina,
cujas faces se tinham carminado.
D. Jeronyma ouviu tudo e descerrou os lábios n'um
sorriso ligeiro.
*
*
No alto da Pedra-Aguda estava todos os dias uma
carta de Luiz de Serpa. Ludovina, escusado será
dizel-o, escrevia também todos os dias. O morgado
subia de noite ao Crasto e recolhia a mysteriosa cor-
respondência, não sem perguntar ás flores do monte
295
que doces monólogos tinlia suspirado iraquella tarde
a menina de Val-de-Rouxinoes.
Nos bilhetes que Ludovina recebia vinham ás vezes
uns versos suaves e simples, que sobremodo lhe
deliciavam o coração amoroso. Na véspera do dia em
que Luiz de Serpa devia partir para Coimbra, achou
ella, ao lado d'uma carta de attribulada despedida, um
álbum, encadernado em folhas de hera habilmente en-
nastradas, em cujas paginas estavam escriptas umas
canções que ressumbravam amor e saudade... Uma
d'ellas dizia assim :
Revoltos os elementos
Contra o império do Amor,
Granizes, mares e ventos
Silvam medonho fragor.
Foge o Amor espavorido
Do coro mephistophehco.
Lucta, resiste. . . é vencido
No meio do estrondo bellico.
Quebra-lhe o vento uma aza,
Solta as pennas uma a uma.
Foi cahir em cada casa
Do mundo inteiro uma pluma.
D'então Amor tem apenas
Só uma aza, e é veloz!
Mas cahiram tantas pennas,
Que ha penas p'ra todos nós. . .»
Ainda por noite, á hora em que Ludovina conche-
gava ao coração o álbum de folhas de hera, ia ^alo-
296
pando pela estrada um cavalleiro que parecia querer
fugir depressa ao encanto que o prendia áquella
aldeia. \
Era Luiz de Serpa que partia.
Não permitte a Índole d'este livro que me demore
por longo tempo a colorir os episódios de tão singela
narrativa. Comprehendem-se de sobra as saudades que
dimanavam em lagrimas furtivas dos olhos de Ludo-
vina durante os dous últimos annos da formatura de
Luiz de Serpa, e as tristezas que o namorado acadé-
mico recatava no intimo do coração, fugindo de
bandear-se com os condiscípulos menos amorosos e
menos tristes do que elle.
Quando o morgado do Souto entrou n'aldeia para
não voltar mais a Coimbra, correu com insistência o
boato do seu próximo casamento com a fidalguinha
de Yal-de-Rouxinoes. O certo é que o boato tinha
razão de ser; em casa de Gaspar da Silveira anda-
vam as meninas todas afadigadas a preparar o enxo-
val de Ludovina.
* *
Mais animados ainda eram os serões depois que
se trabalhava em apercebimentos de noivado. Na mesa
297
onde as meninas costuravam n'umas cambraias e
sedas de subido preço, que segredar de palavras
mysteriosasl que gargalhadas estridulas! que ale-
gria a envenenar um chiste apontado á infallibilidada
litteraria da velha mestra !
Não acabava o serão sem o piano responder com
notas dulcissimas aos júbilos que alvoroçavam toda a
casa. Tinha-se alterado o antigo regime. Até então
havia musica só duas vezes por semana; mas desde
que se fallava em casamento, a felicidade de Ludo-
vina precisava de espraiar-se em maviosos concertos.
Era ella quem, terminado o serão, ia sentar- se ao
piano e fazia vibrar as teclas n'um hjmno alegre
como alvoradas de rouxinoes. Sophia, em ouvindo os
prelúdios d'uma valsa, não tinha mão na sua alegria que
não enleiasse o braço na cintura de Leonor ou de
Júlia e não levasse uma ou outra pela sala adeaute
em rodopio vertiginoso. Gaspar da Silveira que deveras
se sentia contente, como se lhe casasse uma filha, di-
zia todas as noites em que Sophia valsava :
— Este beija-flor é infatigável!
*
Chegava finalmente o dia -tão anciosamente espe-
rado em toda a aldeia. O casamento devia celebrar-se
ao romper da manhã. Ninguém se deitou na casa de
Val-de-Kouxinoes. Estavam todas as meninas á volta
da mesa de costura completando o véo da noiva, que^
298
era branco como as neves que, ao chegar o inverno,
cobrem os cimos da Pedra- Aguda e do Crasto.
— Acabem com isso e vão passar pelo sorano, di-
zia de instante a instante Gaspar da Silveira.
E de todas as vezes lhe respondia a mesma can-
ceira e o mesmo esvoaçar da agulha sobre as telas
delicadas.
Ás duas horas da madrugada principiou a noiva
a toucar-se. Que marulhar de braços, á volta d'ella, a
offerecerem-lhe um alfinete, uma jóia, uma flor! Gas-
par da Silveira andava a passear na sala das visitas
e dizia de si para si :
— Ainda ha quem pragueje contra o casamento ou
quem queira andar a viajar por esse mundo em com-
panhia da sua. . . mala !
Estava longe a primeira aurora, quando se ouvi-
ram uns sons longínquos de flautas e rabecas. Era
o sol-e-dó dos camponezes que vinha acompanhando o
noivo por aquellas serras fora. Então ó que se alvoro-
tou n'um Ímpeto de alegria o quarto de Ludovina. So-
phia, o beija-flôr, apanhou graciosamente o sendal e
começou a mesurar pelo quarto adeante um minuete que
foi saudado com palmas e gargalhadas estrepitosas e
longas . . .
Ao romper da manhã sabiam os noivos de Yal-de-
Rouxinoes. Não se conheciam ainda bem as pessoas
í
299
áquella meia-claridade que procede o dia, NjIo obs-
tante, o véo de Ludovina, fluctuando livremente, de-
nunciava a noiva entre a turba-multa de toda a gente
do. sitio que tinha vindo, com a sua philarmonica, a
acompanhar o noivo, segundo o estilo.
Gaspar da Silveira, que ia na rectaguarda do prés-
tito cora o pae do noivo e com não sei quantos outros
morgados, n'um momento em que o vóo de Ludovina
se alongara fluctuando, parou, deitou a mão ao braço
do morgado velho do Souto e apostrophou :
— O seu íilho leva um anjo ! Veja bera as azas
brancas ...
Yão passados trez annos depois do casaraento de
Ludovina.
Leonor, Júlia e Sophia são ainda outros tantos an-
jos que enchera de musica e alegria a casa de Yal-
de-Rouxinoes.
Júlia, o lirio rairaoso que estreraece ao raenor beijo
d'uma viração suave, é a actual ledôra de Yal-de-Rou-
xinoes, a que lê, depois de jantar, os periódicos rece-
bidos do Porto, desde que a vista de G-aspar da Sil-
veira o obrigou a ter óculos, como elle diz, referindo-
se aos bonitos olhos negros da sobrinha. . .
Leonor, que tera alguraa cousa de uraa palraeira a
remirar-se n'um lago plácido, passa as raanhãs deante
do cavallete a retocar os seus quadros cora uraa pa-
ciência e um enthusiasrao de verdadeiro pintor.
300
Sophia borboleteia do bastidor para o piano e do
piano para a pequenina mesa onde recorta as pétalas
de umas flores de seda e papel, que lhe saiera das
mãos coloridas e bonitas como se nascessem no prado.
As vezes, quando D. Francisca se aproxima, lá
vem uma ironia, um epigramma, um chiste...
Gaspar da Silveira, se está perto, costuma dizer:
— Diabrete! São os espinhos... das tuas flores!'
E elle, Gaspar da Silveira ?
Yai-se deixando ficar na sua cadeira de braços to-
das as tardes e diz com alegre ironia:
— O Christina, ó Jeronyma, vocês não acham
que temos passeado muito? Fiquemos no quartel-ge-
neral e deixemos ir as guardas avançadas a ver se
descobrem caçadores no Crasto. Ide, raparigas, ide vós.
Quando Ludovina, a morgadinha do Souto, visita
a casa de Yal-de-Eouxinoes, Gaspar da Silveira senta-a
nos joelhos e diz-lhe:
— E as tuas azas brancas ?
— Ainda as tem, responde Luiz de Serpa.
— Ainda ?
— Ainda, porque continua a ser. . . um anjo-
o EPISODIO DO BURRlxNHO
O burrinho morreu.
J. César Machado,
O festejado auctor dos « Quadros do campo e da
cidade» não poz duvida em pegar da penna e historiar
o passamento doloroso do burrinho branco no sitio
das Marés.
Hoífmann não usou de rebuços para levantar o
gato Murr ao apogeu da gloria e o nome do contista
allemão associou-se, por assim dizer, ao nome do pobre
animal que lhe foi amigo e companheiro nos últimos
aunos da vida.
Confesso que não sympathiso cora a estupidez do
gato, do gato que tem tanto de bronco como de volu-
ptuoso, — mas declaro que me captiva o burrinho tí-
mido, humilde e quasi tão dedicado como o cão. Cer-
cam-me, porém, certos receios de ir fallar de um pobre
burrinho, que não valia trez moedas e não tinha nada
de bonito. . .
302
Se eu houvesse de fallar de um cavallo árabe, ura ca-
vallo de raça, que se deixa dominar generoso pelos
caprichos d'uma amasona de vestido roçagante, como
a Margarida Laroque do =i Romance d'tim rapaz po-
hre==^^ de certo me não veria agora salteado d'estes
escrúpulos.
O progresso, como hoje se diz, baniu o jumenti-
nho e deu importância ao cavallo. O jumentinho é
mais solícito, rçais trabalhador e talvez não menos
amigo do que o cavallo ; mas o cavallo é mais fidalgo
e pode chegar a ser cônsul quando dá em mãos como
as de Calígula.
Moins vif, moins valeureux, moins beau que le chevat
L'âne est son suppléant et noii pas son rival,
escreveu Delille, ao mesmo tempo philosopho e
poeta.
Não quero roubar a primasia ao cavallo, mas não
queria também que se fixassem n'elle as attenções to-
das. E costume dizer-se que o jumento ó estúpido,
mas não é tanto como parece. O pobre animal não é
rombo, nem esquecido, nem indifferente. Percebe que
o seu dono está em miséria e vem trazer cuidadoso
á feira a carga que lhe puzeram, embora tenha de
marinhar costa arriba pelo mais trabalhoso das serras
6 dos atalhos.
Se o dono se perdeu no tumulto das praças, vai
seguindo caminho e não precisa de tio d'Ariadna :
303
Reconnait son chemin, son maitre et son hospice,
como também observou Delille.
Quando alguém o toma de rédea, sujeita-se e hu-
milha-se, não sem festejar muitas vezes quem o apri-
sionou. O cavallo é mais impaciente e, se 6 generoso,
quer mostrar que podia deixar de o ser. . .
A missão do cavallo é pois mais nobre. O cavallo
tem mais perspicácia, mais valentia, mais elegância de
formas. O jumentinho é serviçal, cuidadoso e paciente.
O cavallo nasceu para as batalíias, para os torneios e
para as caçadas. O jumentinho nasceu para o trabalho
inglório e obscuro das aldeias.
O dominio do cavallo vai, porém, a diminuir. De-
pois da descoberta do vapor, o cavallo reconhece-se
inferior á locomotiva. A necessidade do jumentinho
data de longe e permanecerá em quanto no mundo
houver serras cortadas a pique, por onde elle se pen-
dura paciente, com grave risco de vida.
Refere a Biblia que Jesus Christo entrara em Jeru-
salém montado n'um jumentinho. Diz o texto: Ite in
castelhim, qnod contra vos est, et statini invenietis
asinam alUgatam et pidlum cum ea : solvite et addu-
cite mihi; palavras que Jesus Cristo dirigiu aos após-
tolos, quando se preparava para entrar na cidade. So-
bre a interpretação d'esta passagem divergem as opi-
niões, por isso que falia de jumenta e jumentinho.
S. Jeronymo, porém, é de parecer que Jesus Christo
entrou em Jerusalém montando o jumentinho.
Diz a tradição que fallara o cavallo d'Achilles, se-
304
gnndo refere Grocio, mas também nos diz a Biblia, a
respeito da barrinha de Balaam, que — aperuit Domi-
nus os asinae et lúcida est, — apesar de sua humilde
condição, em relação ao cavallo.
Teve Alexandre Magno o seu Bucéphalo, cavallo
de valentia tal, que foi digno de gemer debaixo dos
acicates doirados do grande conquistador, mas vamos
encontrar Horácio, de jornada para Tarento, bifurcado
n'um burrinho cuja anca vergava com o peso da
mala e do cavalleiro. Escreve o poeta venusino:
, . ,Nune mihi curto
Ire licet inido, vel, si libet usque Tarentum,
Mantiea eui lumbos onere ulcerei, atque eques armos.
Sem desconsiderarmos a fidalguia do cavallo,
attentemos com bons olhos em qualquer burrinho
chouteiro, que pode conduzir Horácio para Tarento e
Garrett para Santarém.
O jumentinho que figura n'este episodio interessa-
se affectuosamente pelas pessoas da casa e chega a
morrer de saudades... De saudades! Ha tantos ho-
mens que nem sequer as sentiram nunca !
Se se tomasse o jumentinho á conta de estúpido e
indifferente, pareceria haver falta de verdade na his-
toria que vamos contai*.
O cavallo conhece a mão amiga que lhe poisou na
anca, 6 certo, mas não consegue imitar a dedicação
do jumentinho, e na vingança attinge a ferocidade
indomável do leão.
305
Basta uni exemplo. E' um caso referido pela Li-
berte^ periódico francez, de 25 de março de 1870 :
'^Yjngança d'dm cavallo — É sabido que os cavallos
sào susceptiveis d'affeição ou de ódio, que guardam a
lembrança dos mimos que recebem e que poucas ve-
zes se esquecem dos maus tratos que lhes dão, apro-
veitando-se sempre da occasião opportuna da vin-
gança.
«Ahi vae um novo exemplo.
«Um carreteiro chamado R. . ., de trinta annos de
idade, ao serviço da companhia geral dos omnibus,
tinha maltratado seriamente um cavallo que puxava
a sua carroça.
« De volta á estrebaria do deposito, na avenida de
Orleans, em Montrouge, o cavallo, notando que havia
muita gente, conservou-se tranquillo. A' noite, porém,
ás nove horas, vendo que o carreteiro vinha só, cahiu
sobre elle, agarrou-o pelo ventre com os dentes, dei-
tou-o por terra, e furiosamente o escouceou.
«Aos gritos d'este desgraçado, correram em soc-
corro alguns cocheiros, e foi a muito custo que o
puderam livrar. Estava coberto de contusões e tinha
trez dedos da mão esmigalhados.
Depois de lhe serem prestados os primeiros soccor-
ros, conduziram-n'o ao hospital Cochin.»
Que animal haverá mais dedicado e mais leal do
que o burrico em que monta o Martinho da Horta,
quando volta das feiras e das romarias ?
20
306
O Martinho é o Sileno do sirio, vem sempre a
cahir de bêbedo, e o burrinho, com receio de que o
dono se despenhe e magoe, caminha aos zig-zagues
pela estrada fofa a procurar equilibral-o com estes
movimentos desencontrados. A.s vezes o Martinho
zanga-se com elle e castiga-o desapiedadamente sem
que para isso precise de estar embriagado. O burrico
contenta-se com mostrar-se resentido e metter-se a ura
canto na corte. . .
Posto isto, venha finalmente o episodio.
A noite é d'inverno, cachopas d' aldeia
Sentai-vos ao lar.
Do pobre engeitado que errante vagaea
A historia singela desejo contar.
Topei-o na serra tremendo de frio,
Sósinho, perdido, tão triste, a chorar!
Chamei-o. escutou-me; tremia, cobri-o..
Palavras que disse vos quero lembrar I
« Ser engeitado e mendigol
Não ter a gente um abrigo,
Ir de caminho em caminho
Quer de noite ou quer de dia
Sem p3o. . . e sem companhia !
Chegar ao cimo do monte
E vêr que o mundo é tamanhol
Sempre sósinho e pedindo
Vou caminhando, vou indo
Como se eu fosse um estranho
Que não conhece ninguém!
307
Do noite sento-nie o scismo ;
Lenibra-mo então... minha mâo,
Nào a conheci no mundo,
Nunca tive um beijo d'ella.
Quem sabe se a sua alma
Me sorri n'alguma cstrella,
Que mais saudosa scintilla?
Seria triste ou alegre ?
Teria negros cabellos ?
Bocca pequena e de rosas ?
Faces lisas e mimosas ?
Grandes os olhos e bellos ?
Seria pobre ou senhora ?
Seria rica ou mendiga ?
Eu não tenho quem m'o diga !
Hontem no paço dos Paivas
Eram annos da morgada.
E eu das sombras da floresta
Via a casa illuminada,
Bonita, linda, asseada,
Toda luz e toda festa...
Abriram quantas janellas
A casa dos Paivas tem.
Lá dentro havia senhoras,
Todas cobertas de rosas,
Tão lindas e tão formosas !
Quem sabe se uma d'aquellas
Era, talvez, minha mãe ?
308
Quem sabe. . . E bailar na dança
A estontear d' alegria
Sem se lembrar da creança
Que mandou expor um dia
Sobre as pedras d'um caminho
Para que alguém que passasse
Lhe desse conforto e ninho !
Passou um pobre, um mendigo,
Que me quiz levar comsigo.
Oh ! e salvou-me da morte
O tio Ignacio, o coitado,
Que era também desgraçado..
Yiu-me frio e quasi morto,
Aconchegou-me no seio
E foi-me poisar nos braços
Da sua neta formosa,
Que era o seu único esteio,
O seu bordão, seu conforto !
Pobre irmã ! ai pobre Rosa !
Tenho saudades agora
Da nossa pobre cabana. »
Calou-se e n'isto dimana
Dos seus olhos ennublados
O pranto triste que chora
Quem tem os dias contados
Pelos ais de cada hora.
309
Concentrou-se alguns momentos,
Como a pedir á memoria
Os traídos da sua historia :
«Sempre comnosco foi mesquinha a sorte
Era uma casa pobre, — apenas tinha
Uma sala, uma alcova, uma cosinha;
E por cortejo ao nosso pardieiro
Coroado de colmos,
Uma pequena corte
Ao centro do quinteiro
N"o meio de dois olmos.
Dormia o tio Ignacio na saleta,
Quasi á porta d'alcôva,
Como para melhor guardar a neta.
Que repoisava o corpo delicado
Sobre uma enxerga nova,
N'um leito envernizado.
Era a cama melhor da casa inteira !
Dormia a nossa Rosa
Em leito de princeza !
Pois era tão formosa I
Um mimo de belleza, ..
Eu tinha... o preguiceiro
Onde dormia, e como um rei... talvez I
Que um resto da fogueira
Ficava na lareira
Como a aquecer-me os pés.
310
Tinha comprado o velho um jumentinho,
Na hora em que melhor sorriu a sorte.
Quando me presentia abrir-lhe a corte,
Era tal o prazer do animalzinho,
Tal era emfim o seu contentamento,
Que eu nEo sei se elle tinha entendimento
E que valia ao velho sem provento
Um burrinho a comer a toda a hora ?
Perguntareis agora.
Valeu muito; que o pobre do j amento,
Mal chegava setembro.
Vinha á cidade todas as manhãs
Carregado com cestos de maçãs.
Atrás da nossa Rosa, bem me lembro 1
Quando de noite ella voltava á aldeia,
Levava da cidade
Algum vintém com que fazer a ceia.
E que felicidade 1
Este negocio dava algum infresse.
Pois se era nosso o lucro que viesse !
Um dia. . . voltou só o jumentinho,
D'orelha baixa o cheio d'azcdumo,
Porque Rosa, bem fora do costumo.
Não o veio a guardar pelo caminho !
Larga o velho a chorar muito o tão alto.
Que poz a freguezia cm sobresalto.
311
Desditosa velhice !
De facto nâo voltou a nossa Rosa ;
E muita gente disso
Que todo o mal vinha de sor formosa,
E que faria o pobre do jumento '?
Estirou-se na corte,
Como que se tivesse entendimento
E desejasse a morte !
Pobre burrinho, nunca mais comeu !
— « E depois o que fez ? »
— Depois... morreu!
« O tio Ignacio inda durou seis mczes,
Ralado de saudade
E cheio de revezes !
A final succumbiu o pobre amigo !
Fitando em mim os olhos já sem brilho,
Chamou-me e disse : — « Amei-te como a filho
E pésa-me deixar-te sem abrigo.
Devem-se os alugueis ao senhorio.
Vende tudo, mas paga ; não lh'os negues.
Depois irás soffrendo a fome e o frio
Té onde a sorte queira que tu chegues. . .
Se vires algum dia a nossa Rosa,
Quero que tu lhe dês o meu perdão.
Era tão innocente e tão formosa,
Que se deixou cahir na perdição !
E dize-lhe que, á volta da cidade,
Morrera o jumentinho .. de saudade! — »
312
Disse e passou. Eu fiquei só no mundo,
Como á beira do mar, sem vêr-lhe o fundo. »
Não mais mo contara. . .
Termina o serão.
Passou a tormenta ; metter a caminho.
Que sempre na mente tenhaes este conto
Do triste engeitado, do pobre burrinho.. .
FIM DO 1.0 VOLUME
índice
Pag.
I — o ninho das andorinhas 5
II — Um anjo 25
III — Doida pelas rosas ,.:.... 3Õ
IV — Morrer a valsar 45
V — Na véspera de S. João 53
VI — A folha verde 63
VII — A lenda da barca 71
VIII — As duas fitas 81
IX — No Bussaco 107
X — O morgado do Urgal 129
XI — Os sinos d' Alpendurada l-tõ
XII — Historia azul 157
XIII — A beira d'um berço 173
XIV — O catre do bispo 187
XV — Herbario. . . d' uma só flor 205
XVI — Armandinha 219
XVII — As flores 225
XVIII — Uma pagina triste 267
XIX — Azas brancas 271
XX — O episodio do burrinho 301
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Pimentel, Alberto
Seara em flor
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