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A TRADIÇÃO
i.NOMBILA Y UM^Sá
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Tradição
Revista mensal (1'ethDographia poríugaeza, illusirada
/ .-.-«— .\
Directores: liADíSIiflD PIÇARRA e M. DIAS NUNES
\A TRADIÇÃO, de Serpa, pelo programma que «e impoz e pela dUrrcta dili-
gencia com quo procura dciemponhar ei«e programmu, repreií-nta, a meu
\êr, o mai» bello cxt-mplo patriótico de educação publica exercida pela im-
prensa. »
Ramalho OrtigXo.
1899
j.^OV^»^^^ \
(Segunda edição)
COLLABORADO POR
Adolpho Coelho (Dr.), Alberto Pimentel, Alíredo vle Pratt,
Álvaro de Castro, Álvaro Pinheiro, Alves Tavares, António
Alexandrino, Athaídc d'01iveira (Dr.), Conde de Ficalho, Cor-
rêa Cabral, Castor, D. Carolina Michaelis de Vasconcellos (Dr.*),
Dias Nunes, Fazenda Júnior, P^ilomatico, João Varella (Dr.),
Ladislau Piçarra (Dr.), Lopes Piçarra, Miguel de Lemos, Paulo
Osono, Pedro A. d" Azevedo, Pedro Covas, Ramalho Ortigão,
D. Sophia da Silva (Dr.^*)^, Sousa Viterbo (Dr.), Tiíeophilo
Braga (Dr.), Thomaz Pires.
ColhilKiiiiiloies ailislicos : f. VlIilíAS-BOAS e J. V. PESSOA
LISBOA
lYP. DE AT)OLn'HO 'DE MENDONÇA & i UA-^Tt
4Ó. Rua do (lorpo Santo, 48
1900
K .-.->-^.7
;,BELA Y CAu.PC-
^' cjtlrmoria
DO
SERPENSE ILLUSTRE
José Francisco Corrêa da Serra
(») Clérigo do habito de S. Pedro, do conselho de sua magestade,
fidalgo cavalheiro da sua real casa, conselheiro da legação, agente
diplomático em Londres, ministro plenipotenciário junto ao go-
verno dos Estados Unidos, cavalleiro da ordem de Christo
e commendador da Conceição, conselheiro da fazenda,
deputado ás Cortes de 1822, doutor em direito canó-
nico pela Universidade de Roma, sócio fundador e
secretario perpetuo da academia real das scien-
cias de Lisboa, correspondente do Instituto de
França, da sociedade philomatica de Paris,
sócio da sociedade real de Londres, das
academias de Turim, Florença, Bordéus,
Lião, Marselha, Liege, Sena, Mantua,
e Cortona, das sociedades reaes de
agricultura do Piemonte, da Tos-
cana e da Linneana de Ingla-
terra, dos antiquários de Lon-
dres e da sociedade real e
económica de Valença.
(#) Vide nGlorias Portug^uejas», por A. A. Teixeira de Vasconcellos, Tomo I.
índice
Pag.
Adolpho Coelho (Dr. F.):
A Morte e o Inverno 33
Alberto Pimentel :
Andar ás vozes, 85 e 101
Tradição de um ofRcio 148
Alfredo de Pratt :
O Imperador de Eiras 152
Álvaro de Castro :
Lendas 54
Em quarta -feira de cinzas 122-
Álvaro Pinheiro :
Novellas populares minhotas :
O rei Sardão 12
A formiga , 27
O macaco 28
Senhora do Rosandario 63
Alves Tavares :
As festas do Sacramento em Beja, 125,
141, 176 e 184
António Alexandrino :
Contos populares alemtejanos :
O compadre Bernardo 29
O lobo e a zorra 45
Dois gallegos encontrando-se 47
O Pedro Malas- Artes 60
Pag.
O lobo e as três fortunas 76
A morte de três gallegos 77
O Grão de Milho 95
A zorra e a cegonha 111
O Era e não Era 1 43
Três gallegos querendo falar á politica . 190
Athaide d'01iveira (Dr.):
Contos algarvios :
A macaca e a oliveira 127
O principe-diabo 159
Os três cães 188
Therapeutica mystica :
Benzeduras, 141, 142, 143, 174 e 175
Castor :
Adivinhas, 15 e 32
Provérbios e dictos, 32, 47, 64, 79, 112,
128, 160 e 191
Conde de Ficalho :
O elemento árabe na linguagem dos pas-
tores alemtejanos, 81, 97, 113 e . . . 129
Corrêa Cabral :
Antiguidades portuguezas, 44 e 74
Dias Nunes (M.):
Natal, Anno-bom e Reis 6
Danças populares do Baixo-Alemtejo, 20,
173 6 177
II
ÍNDICE
MoJjs-estribilhos jlemtej\iiuis :
Mnnuelsinho, você chora '24
Vae colher a silva 42
Os olhos da Marianita 54
Vt-rde Caracol 74
Dizes cju"eu sou lavadeira 104
Marianita toi á fonte 120
Hei de m'ir para o Algarve K-i*>
Tinhas-me tanta amizade 173
Na quaresma (Notas avulsas) 38
A festa da Guadalupe 50
A procissão do Corpo de Deus BS
O S. João em Serpa, 90, 123, 139 e 157
.■Vs Taboas de Moysés 107
Bibliographia, 16, 47 e 80
Fazenda Júnior :
Vidigueira e as suas tradições 11
A serração da velha ... .... 45
O touro de S. Marcos 110
Penitencias nocturnas 187
Filomatico :
Bichos uterinos 23
Bruxas e feiticeiras 59
Bruxas e bruxedos, 75 e 111
Jo&o Varella (Dr.) :
Rimas populares 186
Ladislau Piçarra (Dr.):
Jogos populares :
O arrioz 14
A bóia 30
A pélla 53
O malhão 54
A espada-nua - 94
Ao sol e á lua 122
Esconderêlos 175
O banho da alma 15
O carnaval 17
Therapeutica mystica :
Benzeduras, 43, 107 e 182
A peste 155
O quebranto 181
Pag.
Medicina empírica :
Escrofuloso 70
Cobro 136
Lopes Piçarra :
Habitação, 24 e 55
Michaélis de Vasconcellos (D. Carolina, Dr.-'') :
Estatinga-Estantiga 161
Miguel de Lemos :
A corrida da vacca das cordas em Ponte
de Lima, 119 e 151
Paulo Osório :
Cancioneiro de Musicas Populares 10
Povos da Ibéria 124
Pedro A. d'Azevedo :
Superstições dos criminosos 87
A festa de S. Marcos próximo de Serpa. 117
Pedro Covas :
Os Virtuosos, 88 e 104
Ramalho Ortigão :
A Tradição 134
Sophia da Silva (Dr.=):
Botânica popular, 65 e 102
Sousa Viterbo (Dr.);
O doutor da mula ruça 2
TheopMlo Braga (Dr):
Serração da velha 4y
Thomaz Pires (A.):
Lendas & Romances :
D. Marcos 71
D. Martinho 72
Gerinaldo, 93, 119 e 158
Bernal Francez 182
Bella Infanta 183
índice
III
ILUSTRAÇÕES
Gralema. de M^^poK l^<>i>iilai'es
Pag.
Apanhadeira de azeitona 3
Camponeza vindo da fonte 19
Velho camponez, de calção e polainas... . 35
Pastor .' 51
Campaniça 67
Camponez, de fato domingueiro 83
Pag.
Ij Lavadeira 99
1 1 Acarretador de farinha 115
j Camponeza á vc Ita da ceifa 131
i Grupo de marçanos ou aprendizes de tosq." 147
! I Um tocador de viola 1 63
li Camponez de çafóes e çamarro 179
CANCIONEIRO MUSICAL
Pag.
Aos Reis 9
Manuelsinho, você chora 25
Vae colher a silva 41
Os olhos da Marianita 57
Verde caracol 73
Ao Baptista 89
Pag.
Dizes qu'eu sou lavadeira 105
Marianita foi á fonte 121
Hei-de m'ir para o Algarve 137
As Janeiras 153
Tinhas-me tanta amizade 169
Ao Deus-Menino 185
ADDENDA E CORRIGENDA
Essítatiiigra ^= Esítantig-a
O erudito redactor da T^evue Hispamque lembra-me que esqueci citar uma
passagem muito caracteristica da Guerra de Granada^ em que Diego de Mendcza
descreve a apparição da hoste antiga.
Deixando aqui consignada a minha gratidão, apresso-me a communicá-Ia aos
leitores do meu artigo.
E diz.
. . / veen los moradores encontrarse por el aire esquadroues ; oyense vo^es como
de persojias que acometeu : estauttguas llama el vulgo Espaíiol a semejantes appa-
reucias ó fantasmas que el halio de la tierra, quando el sol sale ó se pojie^ forma en
el aire baxo., como se recn en el alto las nubes formadas en varias figuras i seme-
janças.
Guerra de Granada, lib. IIII (ed. 627, f. 1124)
Carolina Michaeiles de Vasconcellos.
A circumstancia d"^ Tradição ter sido impressa a longa distancia dos seus di-
rectores, deu origem a que escapassem diversos erros, aliás de pequena monta, e
que facilmente serão corrigidos pelo espirito culto do leitor. Cumpre, no emtanto,
assignalar os seguintes :
— A pag. 77, ao fim da columna direita, no verso em que se lê «Com vergonha
d'ir á missa», leia-se Tem vergonha d' ir á missa.
— A canção musical n.° q Hei-de mir para o Algarve., é idescante» e não €cho-
reographica» como por equivoco sahiu :
— Nas Lendas & -l^omauces., a \'II, a pag. i83, onde se lé Bernal France\ leia-
se 'Bernaldo France:^.
A TRADIÇÃO
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA*
V
oA. Tmclição»
«E' assim que se intitula uma revista mensal
cuja sede de redacção é em Serpa, e cujos direc-
tores são os srs. Ladislau Piçarra e M. Dias Nu-
nes.
O titulo não podia ser mais bem escolhido
nem mais bem adequado. A Tradição^ propóe-se
eflectivamente a ser um repositório de ethnopra-
phia portugueza, e, a ajuizar por este numero,
não só o seu plano é deveras attrahente, mas
promette ser executado a capricho, com o pri-
mor de quem se dedica a estes assumptos com
todo o atíecto e com todo o desinteresse mate-
rial.
Este numero traz artigos curiosissimos e
vem adornado com uma bella phototypia, repre-
sentando a Qyípanhadeira de azeitonas, mulher
de Serpa, além de uma pagina de musica po-
pular.
A nova revista merece, por todos os motivos,
o favor do publico e este não deixará de lh'o
conceder, dando-se de mais a mais a circumstan-
cia da Tradição estar ao alcance das bolsas mais
modestas. O preço da assignatura annual é ape-
nas de 600 réis, duvidando nós muito que o seu
producto chegue a custear as despezas mate-
riaes.
Saudando jubilosamente a nTradiçãoo, esti-
mamos, para honra das letras portuguezas, que
el!a alcance a longa existência a que tem di-
reito.»
(Do nDiario de U^oticias, n." 1 1 :90o)
«A. Tradição»
«Sob este titulo, começou agora a publicar-se,
em Serpa, uma revista mensal d'ethnographia por-
tugueza, illustrada, da qual são directores os srs.
Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes, e collaborador
artistico o sr. F. Villas Boas.
Qual é o fim d'esta nova revista ?
Dil-o a redacção nas seguintes palavras : aA
Tradição, cujo primeiro numero temos o pra-
zer de dar a lume, propóe-se reunir — recolhido
com todo o escrúpulo e fidelidade — o maior nu-
mero possivel lie materiaes ethnographicos, as-
sim de caracter physico como de caracter men-
tal, relativos ao nosso paiz.»
E' uma obra digna de applauso, que deve con-
tribuir, como esperam os seus directores, «para
o rejuvenescimento pátrio e ao mesmo tempo
para a historia da civilisação humana.»
Coincide a apparição d'esta magnifica revista
com o primeiro centenário do nascimento de
Garrett, que foi em Portugal o iniciador dos tra-
balhos "folkloristicos". Foi elle o primeiro que
reuniu materiaes do saber popular no seu es-
plendido «Romanceiro».
Mais tarde, os srs. Theophilo Braga, Adolpho
Coelho, Leite de Vasconcellos, Consiglieri Pe-
droso e muitos outros alargaram o campo da in-
vestigação ethnographica, colligirdo novos ma-
teriaes.
(♦) Deixámos de publicar, involuntariamente, algumas apre.
ciaçóes da imprensa, por extravio no correio de vários jor.
naes que se occuparam da Tradição.
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
A TrjJiçjo vem continuar esta ordem de tra-
balhos.
Pelo summario do primeiro numero, vè-se que
ha de vir a ser um valioso archivo da tradições».
(D*0 Século, n." 5:114).
X
"A. Ti-ttdiviio»
«E o titulo d'uma interessante publicação men-
sal de ethnographia portupueza, illustrada, que
acaba de se publicar em Serpa e de que recebe-
mos o e.vemplar inicial.
E' uma revista que deve encontrar protecção
e que, pela maneira como é redigida, deve ter o
máximo .icolhimento e longa vida».
(Da Vid.j Nova, n.° gSS).
X
«A. Tradição»
oChega-nos ali do Alemtejo uma publicação
muito interesante. E' uma revista mensal de eth-
nographia portugueza, impressa em Serpa. Dire-
ctores : Ladislau Piçarra e íM. Dias Nunes. Inti-
tula se : A Tradição.
Excellente lembrança, que merece a estima
dos que ainda em Portugal curam d'estas coisas.
Nos desejaríamos que esta revista vinda de
Serpa tivesse principalmente caracter regional.
O Alemtejo está tão pouco estudado ! O que
conhecemos de melhor sobre usos e costumes
transtaganos é a curiosíssima collecção de arti-
gos publicados em tempo no Elvense. E pouco
mais.
Srs. alemtejanos, dêem -nos Alemtejo na Tra-
dição, e terão prestado um óptimo serviço.
Não esmoreçam.»
(D' O Topular, N.« Ó40)
X
«A. Tradif^jíio»
* Temos presente o primeiro numero d"esta
rcNista, uma das mais interessantes que nos úl-
timos tempos teem chegado á nossa redacção.
São seus redactores os nossos velhos amigos
srs. Dias Nunes e dr. Ladislau Piçarra.
Estes dois nomes, para nós, constituíam, des-
de que se annunciou a saida da primorosa re-
vista, segura earantia de que ella revestiria o in-
teresse e o brilhantismo que ora lhe encontrá-
mos.
Dias Nunes e Ladislau Piçarra são dois escrip-
tores de talento, vivendo retirados do bulício da
capital — n'essa formosa e alegre vílla de Serpa,
lá no extremo do Alemtejo, onde o sol parece
ter mais brilho e a natureza maiores encantos.
E' ahi onde elles vivem entregues aos seus tra-
balhos de investigação do passado.
.4 Tradição é, pois, mais do que uma revista
litteraria, é uma revista scientifica, dirigida pro-
ficientemente, coUaborada com esmero por bons
escriptores. E' uma publicação que deleita e íns-
true.
A par de artigos interessantíssimos e variados,
publica uma bella photogravura, a «Apanhadeira
de azeitona», um d'esses typos de mulher de
olhar insinuante, carnadura sadia e trajo pitto-
resco, tão característicos do Baíxo-Alemtejo e
tão desconhecidos aqui, em Lisboa, onde, dos
provincianos, pouco mais se conhece do que o
das ovarinas e o das minhotas.
Também este numero publica a lettra e mu-
sica da «Cantiga dos reis», essa meiopêa singela
e mystíca que evoca em nós saudosas recorda-
ções de infância.
A «Cantiga aos reis«, ao «Deus Menino», ás
Janeiras», como são deliciosas na sua quasi
primitiva simplicidade, e que saudades nos des-
pertam !
Bem hajam os directores da Tradição em tor-
nar conhecido todo o nosso bello cancioneiro
popular, as nossas lendas, os nossos usos e cos-
tumes.
N'um paiz, onde a ethnographía tem sido tão
pouco estudada, apesar de tão rica, deve-se bem-
dizer aquelles que se dedicam á investigação do
passado, extrahindo d'elle quanto de utíl e de
bom possam entregar ao futuro.
E' urri trabalho civílisador e patriótico.»
(D' A Lanterna, N.° 181)
X
«A. Ti'adiçã,o»
«Tivemos o prazer de receber o primeiro nu-
mero d'e?ta revista scientifica, illustrada, que
mensalmente, começou a puhlicar-se na villa de
Serpa, Q/l Tradição, propondo se, segundo affir-
ma, reunir o maior numero possível de materiaes
ethnographicos, assim de caracter physico como
de caracter mental, relativos ao nosso paiz, vem
prestar um alto e relevante serviço patriótico.
Brilhante e competentemente dirijida pelo sr.
Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes, facilmente
se calcula a importância da nova [/ublicação, pe-
lo summario que do primeiro numero damos:»
(D' O Lidador, -N." 7)
X
"A Tribuna festeja com as suas melhores ga-
las o advento, em Serpa, do 1 " n. d' A Tradição,
revista mensal illustrada de ethnographia por-
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
tugueza, de que são directores os srs. l.adislau
Piçarra e M. Dias Nunes. .4 Tradição «propõe-
se reunir — recolhidos com todo o escrúpulo e
lidclidade — o maior numero possivel de mate-
riaes ethn(jf;raphicos, assim de caracter phvsico
como de c.iracter mental, relativos ao nosso
paiz.»
De jornaes d'estes, tem o nosso espirito tanta
necessidade, como o nosso corpo de pão nara
a bocca ; porque sobre propor-se, a Tradição,
inventariar toiias essas lindas e su^gestivas coi-
sas com que se decora o viver rústico pf)rluguez
— ella será, para os nossos artistas, manancial
permanente de inspiração, e museu encantador,
ainda por cima, de adereços para a sua obra.
Não devem guiar a Tradição, a meu vèr, os-
tensivos propósitos de erudição. Tudo quanto
convém, em jornaes assim, é o facto; — e se as
nossas coisas velhas tendem a desapparecer, por
esse espirito de cosmopolitismo que vae rasoi-
rando e nivelando tudo, e por conseguinte des-
caracterisando-o, a hora não é para se desapro-
veitar uma linha, um movimento, um segundo,
em discussões eruditas, que nos dão sempre, no
fundo, a sensação de artiticiaes; mas sim, e se-
não exclusivamente ao menos preferentemente,
— para colher, para recolher, para inventariar,
para pôr a salvo, emfim, d'essa onda de esque-
cimento que ahi vem, surda mas pavorosa, as
mais sagradas, carinhosas e graciosas alfaias do
lar dos nossos avós. . .
Inspire-se, pois, no Povo, e só n'elle, a Tradi-
ção. Se o seu titulo a volta para o passado, vol-
te-se para o passado com o peito todo : fareje,
sonde, investigue, recolha ; e quanto mais cheias
de terra vierem as coisas, mais as furte, por óra,
ás mãos dos sábios, — que tanto as limpam, em
regra, que as estragam. . . O presente lá tem os
seus jornaes : a começar pelo 'T)iario do Governo I
— e tudo quanto devem fazer os dois prestimo-
sos poetas de Serpa, é convencerem-se, na devo-
ção fervorosa da sua tarefa, que não ha mais
mundo que a terra que calcam, mais jornaes se-
não a Tradição^ — outro sábio que não seja o
Povo.
Vá isto á laia de aviso, que não de commen
tario ao numero que tenho presente. O numero
que tenho presente, haja vista o summario, è
deveras óptimo :»
Trindade Coelho.
iDa Tribuna, N." 4)
X
«A. Tr-adií^âo»
«Os livros e os periódicos, semelhantemente
ás pessoas, têm a sua physionomia especial que
desde o primeiro momento nos captiva, ou nos
deixa indifferente ou nos inspira antipathia. Foi
a primeira impressão a que nos despertou este
novo periódico em cujo artigo preambular se nos
depararam logo estas palavras promeitedoras :
(Seguem alguns periodos do artigo de apresenta-
ção).
«Que este bello programma não é uma simples
phantasia, uma aspiração promettedora, demons-
tra-o desde já este primeiro numero de A Tra-
dição que lemos com immenso prazer. Abre por
um interessante e curiosissimo estudo do illustre
investigador sr. dr. Sousa Viterbo, sobre a vul-
garissima expressão doutor da mulla russa, do-
cumentando a origem que tem por mais prová-
vel e mostrando que o sentido irónico e irriso
rio cm que é empregada não é, muito pravavel-
mente, justo.
«Seguem se, a esse artigo, as seguintes maté-
rias que obedecem á orientação da nova revista:
nQ4 Tradição é uma das mais brilhantes ini-
ciativas no nosso moderno jornalismo litterario,
e deve ter um bello êxito não só entre os espíri-
tos cultos de Portugal, mas no estrangeiro, onde
estes estudos são muitissimo apreciados.»
(Da Gaveta das Aldeias^ n." lóo).
«JECl Bafio IDol Alma»
«Una notable publicación acaba de fundarse
en Serpa 'Portugal) con el titulo La Tradición.
«En el primer número de esta revista, que lle-
gó recientemente á niiestras manos, se publican
trabajos curiosisimos dei escritor lisbonense,
nuestro querido amigo doctor Sousa Viterbo ;
dei director de la revista, doctor Ladislau Pizar-
ra, y de otros notahles escritores portugueses,
con lo cual La Tradición entra de lleno en el
rango de Ias más importantes revistas lusitanas.
«Por su brevedad y por lo curioso de la leyen-
da, vamos à dar á conocer aqui un trabajo dei
doctor Pizarra, quien en galana forma da á co-
nocer una superstición muy arraigada, entre el
elemento popular de Serpa, que cree en ella co-
mo artículo de fe.
«£7 bano dei alma se titula el hermoso artícu-
lo dei director de La Tradición, que traduzido
dice asi:«
(D'E/ Globo, n.» S.459).
X
«A. Tradição»
I
«Sei que a tradição é o alicerce do edifício so-
cial, como sei que a historia é a mestra da vida;
mas, confesso, entendo um pouco mais — bem
pouco, por signal — d'innovações, que de tradi-
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
ções. Por causa d'esta tendência, boa ou má, do
meu espirito, a tradição, que muitas vezes é di-
gna de reparo, escip^i-tue pela tangente do es-
quecimento, se possn dizel-o assim. E, se eu
perscrutasse o meu foro intimo, pedindo a mim
próprio a explicação do phenomeno, talvez o re-
f>aro se traduzisse do seguinte modo : Se uma
enda acreditável, (que as ha, e não brigam com
a rasão) fosse memorada como lenda ; a não
acreditável, como uma patranha; o chamado mi-
lagre, como uma exploração de mvstiticadores
hábeis; o bruxedo, como uma /'j/ermict' digna
de... muita instrucção obrigatória — vá! toda a
tradição seria útil, porque seria como que o es-
pelho do que nós fornos^ e em cada recordação
d'uma desvanecida crença envelhecida fariamos
nos, em caracteres diamantinos, a sublime pala-
vra salvadora — Progresso ! Mas não. O povo —
o eterno ludibriado — toma toda a tradição por
verdadeira, confundindo a verdade e a mentira,
que nos vem da tradição. Nas egrejas, onde eu
quizera, com simples naturalidade, analysar, tra-
duzida em arte, uma antiga crença robusta, hoje
em decadência — mandam-me ajoelhar e curvar
a cabeça, humilde; vendo passar na rua os cor-
tejos da ingenuidade e quantas vezes, da hvpo-
crisia — idem ; o problemático, dado por verda-
deiro ; emfim por toda a parte se impõe a men-
tira triumphante — que é tradição., mas que é
lambem imposição, e que deixa de ser, para mim,
tanto mais digna d'estudo quanto mais certo é
tornar se-me odiosa, pela seu caracter de soberba
intolerância, em liberdade de critica não ha ver-
dade, e arte sem verdade seria bem comparada
com um dia sem sol. Portanto, as boas tradições,
essas que nobilitam os povos, que os revigoram
nas suas aspirações de liberdade e de bom sen-
so — como por exemplo a tradição das immuni-
dades municipaes — confundem-se com as do
velho direito de primogenitura ; e as. da aspi-
ração para Deus — fonte perene de todo o bem
— deixam-se mesclar pela exhibição de toda a
casta d'imbecilidade, desde a penitencia mais
inútil e mais soez, até ás pragas damninhas e
aos castigos perversos, attribuidos ao Deus bom
que o mundo ampara e guia na sua marcha
triumphal.
Deve, pois, abandonar-se a tradição e construir
se um novo edifício social, a começar pelos ali-
cerces? Não. A Tradição é útil e bôa, comtanto
que a par da sua rememoração, se faça por não
olvidar a distincção entre a verdade e a mentira.
Que se não percam as riquezas do mineral ethno-
logico ou ethnográphico, minerai que deve ap-
parecer á luz para bem da civilisação ; mas que,
dando-se vida ao passado, se nao auxilie, de
modo algum, o trabalho de sapa dos obreiros da
treva, que ahi andam fiados também na tradição
(a tradição do absurdo) — e Quixotes de nova
espécie — envidando esforços para que a marcha
não seja para a frente, ti-ansfigurando assim a
tradição em reacção, e fazendo perigar a liber-
dade, d'onde deriva todo o Progresso 1
— Tudo isto me occorreu a propósito, ou a
despropósito, do bem escolhido titulo d'esta pu
blicação mensal, iniciada agora pelos dois sym-
pathicos democratas serpenses. Que o distincto
poeta dos «Rosmaninhos» e o seu diplomado
companheiro me perdoem a caturrice — e, en-
tremos na Tradição :
II
— PRELIMINAR — eis a epigraphe da apre-
sentação da nova revista : duas columnas e meia
de prosa castiça, em que todos os periodos são
reveladores de consciência nitida e de talento
pujante. Os dois tradicionaes (não confundir com
o negro tradicionalismo hespanhol !) sabem o
que querem, e para onde caminham. Querem
comparar o passado com o presente, e caminham
para o futuro. E como, de certo, se inspiram no
trabalho luminoso de Theophilo Braga e de tan-
tos outros beneméritos, não podem errar o pon-
to alvejado. Que Deus e a rasão — a rasão su-
prema e a rasão humana — os guiem, e façam
bôa jornada.
Principia o trabalho de collaboração por um
artigo magistral de Souza Viterbo, explicando
as origens d'um dito popular ^1)owíor da mula
ruça — que serve de titulo ao mencionado artigo.
E fiquei sabendo o que não sabia : que o cele-
brado T)oiitor realmente existiu ; que era um
excêntrico, pois se vangloriava da sua alcunha ;
que era o seu nome António Lopes, e residia
em Évora na 1.' metade do século XVI : o que
tudo provado fica pela sua carta de doutoração
ou de favor, que vem na integra.
Segue o — Natal, (i4nno bom., e l^eis — de Dias
Nunes.
U^atal : o de Christo ! Ha perto de 1:900 an-
nos que isso foi. Simples facto : Ainda assim, o
maior acontecimento de que resa a Historia.
Anno bom: como que a esperança de que o
novo anno não pôde ser ruim ! Grata consolação
para os que soffreram as agruras do passado 1
Reis,, a festa dos Reis ; que bello, festejar gente
tão simples, que morreu ha tantos annos 1
Animo ! que as lagrimas nào são para aqui.
Lemos, até com prazer esse trio encantador de
Dias Nunes. Como elle o conta ! O U^atal,, em
Serpa, é o natal na minha terra, e penso que em
todo o Alemtejo é assim. Mas que empolgante
assumpto, que verdade na descripção ! Até os
vicios de linguagem ou de pronunciação, não
deixou no olvido. Nós temos por aqui, á menos,
o do engraçado a depois do lelhe e do rére.
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
oEntrae, pastonnho, entrae
por esse portal sagrado,
vinde vél-o Deus menino
entre palhinhas dct.iJn »
Deus menino: o Deus dos «simples» como lhe
chamou o nosso 1." poeta.
Como tudo istn c saudoso I
Bons tempos ! bons tempos I «E que não vol-
tam mais. . u
— Anno bom . é que parece que não ha por
aqui.So uma ou duas vezes em minha vida ouvi
cantar i\sj\ir,e{rjs^ e prompto.
-—Depois os '7(ei5, com as cantigas da tradi-
ção christã, e outras uzadas em Serpa sohre o
pedido d'esmolas e respectivo agradecimento.
Tudo d'um sabor poético e — sem calembour —
cheirando a rosniniiinhos.
Aqui — terra de republicanos — é esta, a festa
dos 'Reis, a que tem talvez por antinomia, mais
nomeada e mais festeiros I Comtudo divergem
bastante as cantigas rtnaes e a musica, das mdi-
cadas e transcnptas por Dias Nunes. Nós temos,
por exemplo :
Estas casas são caiadas
por dentro, e por fora não :
o Senhor que n'ellas mora
Deus lhe dè a salvação.
Estas casas são de ouro,
nellas mora uma princeza :
Meta a mão ao seu thesouro,
reparta com a pobreza.
Senhora dona de casa,
deixe-se estar que está bem,
mande-me dar a esmola
pelo filhinho que tem.
E outras muitas, devidas á musa popular, e
que sotTrem modificação de casa para casa e de
nome para nome, isto é, com a mudança d'invo-
cacão.
— Mas passemos adiante, e vejamos um artigo
de critica, devido á penna de Paulo Osório. In-
titula-se «Cancioneiro de muzicas populares» e
n'elle se faz a apologia do professor portuense
compillador do «Cancioneiro», César das Neves,
e se nota, pela diflferença de cantares, a difTeren-
ça dos génios, hespanhol e portuguez, justifica-
tiva, talvez, d'uma dupla autonomia peninsular.
— Um bravo! ao ex-director da Q/ílvorada,
pelas bellezas do seu estylo, pela superioridade
do seu trabalho.
— Depois. . ^Supremo prazer o da leitura
d'um m-ti{r(uinho burilado a primor, que começa
pela suggestiva e, para mim, empolgante pala-
vra — Vidigueira ! esta santa palavra que faz lem-
brar «videiras», e muita uva saborosa e aromá-
tica, e muita vegetação soberba e bellezas sem
fim I palavra que é tão grata ao meu ouvi lo como
ao meu coração de vidigueirense . . c acaba
pela assign.itura d'um compatriota, amante ex-
tremo da mesma p;.tria, tanto como eu, ou mais
do que eu ; o nostálgico Fazenda Júnior, emfim I )
Vidigueira e as suas tradições — eis, com[)leta,
a epigraphe do artigo a que, por conter assump-
tos da minha terra, mais detidamente mo vou
referir. Trata se nelle, principalmenit.-. da noti-
cia tradicional sobre o apparecimento da .S'e-
nhora das Relíquias, em um zambujeiro, no si-
tio onde mais tarde se erigiu o chamado con-
vento do Carmo e por traz do corpo da egreja
em memoria do immortal Cama, se transformou
ha pouco, em monumento nacional. O supposto
episodio milagroso está descrinto com muito
cuidado e fartas minudencias, resaltando. nitida,
de toda aquella profusão de tlores. a verdade da
tradição . .
— Segue o — Rei Sardão, d" Álvaro l^inheiro :
conto popular recolhido da tradição oral, segun-
do o auctor. mas de certo muito mais bello de-
pois de lhe ter posto mão o ameno estyllista,
que traz á idéa (e é este o seu maior elogio) a
maneirai de dizer, de se exprimir, de D Anna de
Castro Osório, nos seus immoriaes livrinhos —
Tara as creanças.
— Agora o 1." espécimen dos — Jogos Popu-
lares : — O arrinj — e — Superstições : — O ba-
tiho da Alma '
— Pelo dr. l.adlslau Piçarra.
Conhecem Ladislau Piçarra ? Eu nunca o vi,
e nem ao menos lhe conheço o retrato, como
aliás conheço o de Dias Nunes ; mas se a phy-
sionomia do homem tem alguma relação com os
traços caracteristicos da physionomia intellec-
tuai, como esta tem, provado está, com os da
envergadura moral, o dr. Ladislau Piçarra deve
ter uma phvsionomia sympathica, como è sym-
pathico, o seu talento e a sua obra.
Sobre 70F0.Ç, o auctor começa por uma espécie
de preambulo com pensamentos muito judiciosos
attinentes a mostrar a utilidade de fazer conhe-
cidos, e uzados, os brinquedos da pequenada das
ruas — promettendo, para outros n."' da revista,
as dehiais «considerações que o assumpto lhe
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
suggere». Respeitante ao jogo popular — arrio:^
— \iue direi ? Muito bem apresentado, muito e^x-
plicito. mas para mim novidade completa, tanto
na descnpção como no titulo. Ou terá elle al-
guma coisa de commum com o jogo arriosca^
que lambem desconheço, e cuja palavra repre-
sentativa se emprega, vulgarmente, como cilada,
ou engano ?
A' cerca do tradicional h.inho — i.» das Su-
perstições — é que existe aqui a mesma crendi-
ce absurda ^obre a alma dos mortos, e se dão
as mesmas cautellas do desperdicio da agua
onde as iilnt.is se banham ; julgo porém que, de-
vido ao cumprimento integral do velho preceito,
ou preconceito, nenhuma mulher, casada e nova
como a tal serpense. enjoou ainda, perante um
cadáver d'avò, até produzir-se o caso interessante
constatado pelo auctor. Se o marido a que se
refere o Banho da Alma tivesse feito o voto de
S. José, leriamos a registar, talvez uma nova. . .
interi'enção de espirito santo.
O povo. o povo 1 E haver quem julgue de gran-
de utilidade a má ignorância !
— Estou quasi no fim da minha tarefa : A se-
guir, só as — adivinhas — de Castor, copiadas da
tradição popular, e epigraphada?. graciosamen-
te peia decifração do próprio enygma . . com o
fim evidente de nos roubar a gloria de sermos
adivinhões : pelo que deixo aqui lavrado o meu
protesto em nome de todos os leitores.
— E, finalmente, o traballio bibliographico
d'um dos diiectores da Tradição., que, segundo
as iniciaes do nome, se chama Dias Nunes e se
parece immenso com o Castor das oAdivinhas.
A critica é, como tinha de ser, muito rezumida,
mas correctíssima e conscenciosa, e diz respeito
a obras ultimamente publicadas.
— As illustrações — devidas á intelligente col-
laboração artística de F. Villas Boas, são : —
O referido cântico dos Reis, e a apanhadeira
d'azeitona (Serpa), figura escultural e typica de
mulher do campo alemtejano, onde é vulgar a
mulher bella e sã !
III
— E prompto. .
Ultimado porém este insciente trabalho de
critica, que fiz muito a meu gosto, sem conse-
guir, de certo, communicar o meu sentimento a
auem me lê — aproveito a occasião para agra-
ecer no meu captivante amigo M. Dias Nunes a
gentilleza do ofTerecimento do 1." n." da «Tra-
dição». Faço votos para que os números subse-
quentes sejam como este, abrilhantados por es-
criptores disiinctos — pois que o assumpto é
vasto, e, n'este paiz onde acaba o dinheiro, o
talento, mercê de Deus, ainda não acabou ..
E para a frente, caracteres altivos e bons !
Investigai ! dai luz I olhos fitos n'um ideal de
redempção !
Cá fico eu a abençoar a vossa obia, e dizendo :
A Verdade — eis a nossa irmã I
A Liberdade — eis a nossa mãe !
Porque não ha verdade, sem esta, visto que a
liberdade é a pedra angular, o fundamento de
pedra, aonde assenta este grandioso ediíicio da
civilisação moderna 1
CVidigueira)
Pedro Cóvas.
(Do C^Cove de Julho, n.» 778)
X
"A. Tracliçíío»
«Iniciou no passado mez a sua publicação em
Serpa uma revista mensal, illustrada, de etnogra-
phia portugueza, tendo por directores os srs.
Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes, e de inteira
justiça, sem favor, é dizer-se que com o pé di-
reito entra ella nas lides da imprensa, promet-
tedora de opimos fructos na especialidade a que
se consagra, que havendo sido tão descurada
entre nós até não ha muitos annos, actualmente
está tendo um culto fervoroso e de que ella é bem
merecedora, pugnando os que mais de perto se
lhe dedicam por vencer os descuidos do passado
a tal respeito, e pondo todo o esforço em res-
gatar com seus trabalhos o tanto tempo perdido
para a compilação das riquezas folkloricas do
nosso paiz, algumas das quaes talvez já irreme-
diavelmente perdidas.
Entre os que desde muito lidam n'esta afa-
nosa faina, tem se feito notar os dois directo-
res da Tradição, os srs. Ladislau Piçarra e M.
Dias Nunes, e especialmente do segundo tenho
eu lido estudos etnographicos muito interessan-
tes. Isto é garantia segura de que a nova publi-
cação, fiel ao seu titulo e norteando-se por elle,
fará brilhante carreira no nosso periodicismo
destinado a archivar de modo seguro as rique-
sas tradicionaes de Portugal, táo farto d'ellas, e
o seu 1." numero d'isso é penhor e testemunho
de todo o ponto valioso e appl.iudivel.
Saúdo, pois, jubilosamente a apparição da
Tradição que por collaborador artístico tem o
sr. F. Villas Boas.»
RonRiGO Vei 1.08O.
(D^Q/íurora do Cavado, N." 2 do 32." anno)
X
"A Tr"acli<;;fto>>
"Revista mensal de eihnographia portugueza,
illustrada, de que são competentíssimos directo-
res os snrs. dr. Ladislau Piçarra e M. Dias Nu-
nes.
A Tradição veio preencher uma importante
lacuna na imprensa, pois actualmente não co-
nhecemos nenguma publicação d'este género.
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
O primeiro numero é collaborado pelo snr.
dr. Souza Viterbo, Paulo Osório, Fazenda Júnior
e Álvaro Pinheiro, e traz em boa photo};ravura
o retrato de uma apanhadeira de azeitona.»
(Da (T.TffM Je ^'oticias, N." 421)
X
"A Ti-uíliv"""
nD'esta bella revista mensal d'ethnographia
portugueza, de Serpa, de que são directorcí os
srs. L-adisIau Piçarra e M. líias Nunes, acabamos
de receber o i." numero, que se apresenta rica-
mente escripto, sendo por isso digno dos elogios
que a imprensa portugueza tem sabido dispen-
sar-Ihe.u
■ (Da Soberania do Povo, N." 2:037)
X
«A Tracliçíiox
«Começou a publicar-se, em Serpa, esta re
vista de ethnographia portugueza, que tem como
directores os snrs. dr. Ladislau Piçarra e M.
Dias Nunes, e collaborador artistico o Snr. F.
Villas Boas. Propõe-se a Tradição, reunir, com
todo o escrúpulo e fidelidade, o maior numero
de materiaes ethnographicos, relativos ao nosso
paiz.
E' muito bem redigida e de muito valor esta
Revista, o que fará com que doutos e semi-dou-
tos a apreciem e reclamem.»
(D' A Illustração Moderna, N.° 4)
X
«A- rrradiQão»
«Com este titulo começou a publicar-se, em
Serpa, uma explendida revista mensal d'ethno-
graphia portugueza. illustrada, tendo por direc-
tores os srs dr. Ladislau Piçarra e M. Dias Nu-
nes.
A «Tradição» vem desempenhar um grande
papel no meio litterario do nosso paiz e prestar
valiosos serviços á Ethnographia Portugueza,
infelizmente bastante descurada.
Eis algumas linhas do seu artigo de apresen-
tação, que definem, melhor que nós o podería-
mos fazer, o que será a nova revista :»
(Seguem os dois primeiros períodos do artigo
d'apresentação).
(Da Semana Alcobacense, N." 544)
• yV ''I"'i-mll<,'ri<>u
«Uma revista mensal, illustrada, de ethnogra-
phia portugueza, publicada em Serpa, sob a di-
rectoria de Dias Nunes, o conhecido poeta dos
'lipsinaninlios, e de Ladislau Piçarra, outro poe-
ta, de mcreciniento também.
E' nobilíssimo o intuito dos dois poetas que
dirigem a «Tradição» : «reunir — recolhidos com
todo o escrúpulo e fidelidade — o maior numero
possível de materiaes ethnographicos, assim de
caracter phvsico como de caracter mental, rela-
tivos ao nosso paiz." Nobilíssimo e merecedor
do apoio de todos os que sentem ainda um bo-
cadinho de amor por esta boa e linda terra que
nos foi berço.
Insere o 1° numero da «Tradição-» opimos
trabalhos do dr. Sousa \'iterbo. Dias Nunes, Paulo
Osório, Álvaro Pinheiro, dr. Ladislau Piçarra,
etc , etc.
E para terminar : o meu reconhecimento a
Dias Nunes pelas carinhosas referencias que se
permitte fazer ao opúsculo Arte, meu e do Paulo
Osório. E tanto mais vivo é este meu reconhe-
cimento, quanto é certo que as palavras que
consagra ao meu nome são immerecidissimas.»
JuLio DE Lemos
(D'/l Aurora du Lima, N." 6:5oi)
X
«A Trttcliçttou
«Com este titulo acaba de vir a lume o i."
numero d'uma revista mensal d'ethnographia por-
tugueza, dirigida pelos nossos illustrados colle-
gas srs. Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes.
Esta revista é d'uma grande utilidade e va-
lor.
«O estudo do povo portuguez, no que encerra
de tradicional e typico, — diz a redacção do novo
jornal no seu preliminar — e sob o duplo aspe-
cto da sua vida physica e mental, está infeliz-
mente bem longe da realisação.
«A proseguirmos assim, com a mesma indiffe-
rença e desdém por assumpto que tanto deveria
interessar-nos, a breve trecho se verá de todo
obliterada a tradição nacional.
«Procuremos, pois, despertar de similhante
índifFerença. que, sobre ser anti-patriotica, nos
colloca a nós mesmos portuguezes na impossi-
bilidade de nos conhecermos, e priva a sciencia
ethnologica dos indispensáveis elementos para
julgar, com precisão e segurança, das nossas afi-
nidades ethnicas e da evolução dos nossos usos,
costumes, instituições e crenças em relação aos
outros povos.»
(Do Gil Bra^, N." 1)7
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
«A. Tmcli<^iio»
«O nosso iimisio e distincio poeta dos «Rosma-
ninhos* M. Dias Nunes vem prestando, juntamen-
te com o sr. dr. Ladisl.iu Piçarra, um óptimo
serviço á ethnopraphia portugueza com a publi-
cação da sua revista mensal nA Tradição».
E' uma publicação interessantíssima onde é
recolhido, com uma persistente paciência e acu-
rado escrúpulo, tudo quando a tradição popular
nos lepou. Assim, o numero dois da curiosíssima
revista insere uma descripção dos usos e costu-
mes do carnaval no Alemtejo, danças populares
do Baixo Alemtejo, crenças e superstições, mo-
das-estribilhos alemtejanas, habitações da mes-
ma província, novellas populares minhotas, jo-
gos e contos populares, etc.
E' um repositório de coisas tão interessantes
como curiosas, e pena seria que ellas ficassem
dispersas e perdidas.
Este numero publica uma esplendida gravura
representando uma «Camponesa vindo da tonte»
e a musica popular «Manuelzinho, você chora».
Aos distinctos escriptores dr. Ladislau Piçar-
ra e Dias Nunes as nossas felicitações pelo seu
escrupuloso e paciente trabalho, e agradecimen-
tos pela amabilidade da olíerta.»
Marcos Guedes
|D'0 Sorvete, N.» 92|
X
"A. ''Fradiv»"
«Eis um jornal de que o paiz havia de estar
cheio : A tradição dos povos, quando lucida-
mente archivada pelo livro, é de inestimável va-
lor hisiorico, e se á tradição verbal se devem tra-
balhos importantes, é certo que a verdade nem
sempre vae lidima, perfeita, como convém que
o seja.
Por isso a Tradição, que em Serpa iniciou a
a sua honrosa tarefa, é digna de muitos applau-
sos e da protecção incondicional de todos.»
(Da Estrella do Minho, N." 188)
«A. 'J"'ríitli<;;ã.o»
— Recebemos os n."' 1 e 2 d^eíta excellente
revista ethnographica que se publica em Serpa,
sob a direcção dos srs. dr. Ladislau Piçarra e M.
Dias Nunes. Esta publicação é no género da an-
tiga — Revista do Minho — mas mais apurada
tanto na parte material como na disposição dos
diversos artigos que a tornam attrahente e cu-
riosíssima. Em todos os números publica uma
excellente photogravura representando um typo
popular e a musica d'uma trova alemtejana.»
(D' O Campo 'd'Ourique, N." 34)
X
aA. Tracli<?ão»
Revista mensal de ethinographia
portugueza, illustrada
«Esta revista, publicada em Serpa, veiu pre-
encher uma lacuna bastante sensível, em publi-
cações d'este género, tanto na província como
na capital.
Lá fora, em paizes adeantados, existem ás de-
zenas; mas em Portugal onde tão descurado
anda tudo o que interessa saber do povo, sua
vida, seu meio, sua actividade, seu sentimento,
poucos se teem abalançado a obra semelhante,
tão útil e tão agradável ao mesmo tempo.
A Tradição é, pois, uma revista de todo o in-
teresse, bem redigida e methodisada, e faremos
votos para que os seus directores, os srs. dr. Pi-
çarra e Dias Nunes, não esmoreçam no incita-
mento, e continuem a fazer reviver a província,
o povo, em tudo quamo tem de bello e digno
de estudo.»
( De A Pátria, N." 2)
X
<<D'esta bellíssima publicação recebemos o n."
3, relativo ao mez de março. Continua desper-
tando-nos intimo interesse a leitura de suas pa-
ginas, pois vemos apparecei- ahí, cem meticu-
losa fidelidade, o nosso passado, láo cheio d'en-
cantos, todo embalsamado de poesia, e as sin-
gelas e encantadoras tradições populares.»
(Da Seviana Alcobacense, N.° 459)
X
«A. Tradição»
(Segue o extracto do summario do n." 2 da
Revista.)
«O numero vem decerto interessante, — mas
aqui e ali, cheira a sciencia e a litteratvra. Nos
contos populares não devemos attender só á
ideação: devemos reproduzir, quanto possível,
a syntaxe do povo, para que os contos se tor-
nem, ao mesmo tempo, um dommento da lingua.
Isto não quer dizer que se caía também no
exagero, tão vulgar, de estropear palavras, —
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
salvo se a phisionomia anormal de algumas as-
sumiu caracter geral.
O melhor processo de reproducção de contos
populares seria a tachigraphia ; mas se não po-
der empregar-se, ao menos não adulterar sensi-
velmente a syntaxe, — mesmo porque á ideação
do povo uma só forma vae bem : a do mesmo
povo. E não só a essa. Tamhem não iria mal...
á dos litteratos.u
Ch.-A. Hysson (Trindade Coelho).
(Da Tribuna, n." 11)
X
«-A. Tradição»
«Interessantissimo o numero 2 d'esta Revista,
em que se vão archivando carinhosamente, com
todo o escrúpulo da observação sincera, os fas-
tos da vida popular, sobretudo das populações
do Alemtejo. Danças, contos, cantigas, estribi-
lhos, jogos, crenças e superstições, tudo emfim
que faz o encanto do folk-lore^ tudo ali tem a
sua agenda, a sua commemoração, de modo a fi-
car perpetuado pela imprensa o modo de ser
mais intimo da vida popular portugueza.
Este numero vem enriquecido com uma pagi-
na de musica e com uma photogravura, repre-
sentando um gracioso typo de Serpa — A cam-
ponesa que volta da fonte.»
(Do Diário de Noticias, n.° 11:937)
«A. Tríifliçâou
«Continua a sua carreira triumphante a excel-
lente revista que muito honra, com o paiz, a
terra onde se publica, a villa de Serpa,
E' uma publicação onde muito se aprende e
que não devia deixar de ser lida por ninguém.»
{Da Estreita do Minho, n.° 197)
X
«A. Tradição»
«Eis uma publicação que não tem desmentido
a espectativa d'aquelles que pela primeira vez a
viram e sabiam o valor dos seus directores, o
nosso amigo Dias Nunes e sr. dr. Ladislau Pi-
çarra. O ultimo numero, o 4.°, referente a abril,
vem interessantissimo; para se apreciar, basta
ler o summario:»
(D'0 Século, n.° 6:224)
• — A Tradição, apreciabilissima revista men-
sal d'ethnographia portugueza, illustrad.i, supe-
riormente dirigida pelos srs. Ladislau Piçarra e
M. Dias Nunes, tendo por collaborador artistico
o sr. F. Villas Boas, e publicando-se em Serpa,
prosegue regularmente em sua publicação, al-
cançando merecida aura e applausos. Crjm todas
as veras lhe trago eu os meus.»
(D'i4 Aurora do Cavado, n." 8 do 32." anno)
X
•A. Tradiçuo»
Bevista mensal d'ethnographia portugueza,
Ulustrada, de Serpa
«Repositório d'uzanças populares em voga ou
recolhidas da tradição, esta revista é altamente
interessante, porque nos dá uma viva impressão
do que é o nosso povo, principalmente o alem-
tejano.
Typos populares, habitações, costumes, can-
ções com a respectiva musica, mesinhas, pre-
conceitos e superstições, lendas e romances con-
servados nas tradições do povo, danças e folga-
res, tudo o que constitue o modo de ser do ele-
mento popular vae surgindo em l/í Tradição de
modo a photographar o physico e o moral do
povo portuguez.
No nosso meio litterario, o povo apenas é co-
nhecido pela personificação burlesca do Zé Po-
vinho, de Bordallo Pinheiro, ou pelas descri-
pções mais ou menos phantasiosas d'alguns ro-
mancistas. E essa ignorância da modalidade po-
pular tem sido talvez uma das causas que tem
tornado tão ronceiro o nosso caminhar no pro-
gresso.
Ha na vida do povo muita coisa a extirpar,
muita coisa a corrigir, muita coisa a aproveitar,
mas para isso é preciso conhecel-as. Q/í Tradi-
ção vae na piugada d'esse scopo, tornando-se
uma espécie d'animatographo em que desfila o
elemento popular.
Quanto á parte material, impressão nitida,
magnifico papel, soberbas illustrações e. . . ba-
rato.
Agradecemos a visita e fazemos votos pelas
prosperidades de C/í Tradição, que bem o me-
rece.»
(D' O Jornal de Vagos, n.° 16j
X
«A. Tradição»
«Acabamos de receber o n.° 5 da 1." série
d'esta revista mensal d'ethnographia portugueza,
que se publica em Serpa. V"m realmente inte-
ressante, mostrando-se digna do interesse pu-
blico e agradando pelo cuidado que se nota em
10
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
satisfazer bem o seu fim. Insere vários artigos
de assumptos tradicionaes e é illustrada com
uma gravura : Cawf.Tniçj ^mulher do termo de
McrtoTa) e a musica de um descante : Verde ca-
racol*
[D' O Ideal da Bairrada, n." 28)
X
kA. Tradição»
«Recebemos mais um numero d'esta interes-
sante revista mensal que se publica em Serpa,
sob a direcção dos nossos talentosos coUegas
Ladislau Piçarra e M. Dias Nunes.
A sua colíaboração artistica e litteraria é, co-
mo sempre, primorosa.»
(D'0 Circulo das Caldas, n." 286)
oA. Tradição»
Eevifita mensal de ethnoÊraphia portugueza,
illustrada— Serpa
«Sob a intelligente direcção dos srs. Dias Nu-
nes e Ladislau Piçarra, conhecidos escriptores,
encetou a sua publicação em janeiro d'este anno
em Serpa esta interessante revista, destinada a
reunir o maior numero possível de materiaes
ethnographicos relativos ao nosso paiz, inserin-
do dinerentes estudos sobre costumes, crenças,
linguagem, superstições do nosso povo, e archi-
vando cantigas populares, historias, provérbios,
adi\-inhas, tudo emtim que constitue o vasto do-
mínio áo folk-lore do saber popular».
Nos cinco números já dados a lume cumprem
os seus intelligentes directores amplamente as
promessas feitas ao encetarem aquella publica-
ção, que de numero para numero se vae tornan-
do mais interessante.
Cada um dos números é illustrado com uma
bdla photogravura reproduzindo um typo popu-
lar, e insere também uma canção popular para
piano e canto.
A colíaboração é escolhida, contando-se entre
os auctores dos variados e interessantes artigos,
que a re^^sta tem publicado, alguns dos escri-
ptores mais distinctos que em Portugal se oc-
cupam da especialidade.
O summario do n.» 5, ultimo publicado, é o
seguinte, e pelo seu simples enunciado se vê a
importância d'esta publicação.»
(Du Gaveta da Figueira, n." 762)
X
«A Tradição»
■Acaba de se publicar o n." 6 da serie I d'esta
crcellente e onica publicação no seu género, de
que são directores os srs dr. Ladislau Piçarra e
nosso amigo M. Dias Nunes, de Serpa.
Esta revista mensal de ethnographia portu-
gueza, illustrada, que custa por assignatura ape-
nas a quantia de 600 réis annuaes — o que consti-
tue um verdadeiro milagre — melhora de numero
para numero a olhos vistos, tornando-se cada
vez mais interessante.
No presente numero nota-se a colíaboração
distincta de escriptores consagrados como os
srs. conde de Ficalho, Alberto Pimentel, e estu-
diosos como os srs. Pedro Covas, Pedro A. de
Azevedo, A. Thomaz Pires e António Alexan-
drino, além da publicação de artigos dos seus
talentosos e distinctos directores.
O summario é o seguinte:
Seria uma falta da nossa parte não citar o me-
recimento do seu collaborador artístico, sr. F.
Villas-Boas.
Q/í Tradição, que tem já uma tiragem digna
de espanto para o nosso minguado mercado lit-
terario, vende-se avulso, por 60 réis o numero,
em Lisboa, na Galeria Mónaco, Rocio; no Por-
to, na Livraria Moreira, praça de D. Pedro, 42
e 44; e em Coimbra, na Livraria França Amado.»
(D'0 Século, n.« 6:281)
X
«A- Tradição»
nD'entre o limitadissimo numero de jornaes
que se consagram ao estudo da pátria portugue-
za, sobresae com grande valor G^ Tradição. l3es-
tinada simplssmenie ao estudo ethnographico,
vem ella preencher uma grande lacuna, e fixar
uma grande parte da maneira de ser do nosso
povo. E ha-de, esperamol-o, estudar com muita
especialidade, com muito amor, com muito in-
teresse, a maneira como elle falia, como elle
canta, como elle vive, as suas tendências, etc.
Todavia devemos distinguir uma simples super-
stição de uma simples suggestão.
Da superstição dos criminosos poderia citar
factos que não determinam superstição, mas
que são o simples rezultado de uma observação
extranha de grande poder suggestivo.
Uma e outra coisa tem valores muito differen-
tes.»
(Do V^oticias de Alcobaça, n.° 4).
X
oA. Tradição»
«Aquelles estudos que para Viço constituiram
a «sciencia nova»>, a demopsycologia, mytogra-
phia, volk-lehre, litteratura oral, ou, segundo
William Thoms, o folk-lore, o «oui-dire» dos
frartcezès, «volker-psycologie» dos allemães, for-
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
U
mHS basilares nn anthropoIot;i.i, philolopia, so-
ciologia e o mesmo na historia, i^uc desde ha
uns cincoenta e tantos annos vêem mteressando
um núcleo de inteliectuaes e por toda a handn
riorescem fírandcmente — tanto que o scientista
hespanhol Machado y Alvarez ainda ha pouco os
dizia «já sem pátria», — esses estudos trazendo a
diversos oscriptores nossos uma rara delicia es-
piritual, torn;iram-os dedicados cultores da psy-
cologia do povo.
Occorrem-me aporá estes nomes : Theophilo
Braga, J. Leite de Vasconcellos, Adc)lpho Coe-
lho, Trindade Coelho, Armando da Silva, Sousa
Viterbo, Silva Vieira, P. Fernandes Thomaz,
A. Thomaz Pires, Paulo Osório, Rodrigo Vello-
so, Álvaro Pinheiro, Alberto Pimentel, Gualdino
de Campos, Conde de Ficalho, M. Dias Nunes,
Ladislau Piçarra, etc, etc.
Todos esses se hão permittido a gostosa e pro-
veitosa tarefa de inventariar elementos ethnogra-
phicos, classificar tantos principios de commo-
ção artistica, de desenvolver, entre nós, o mais
captivante ramo das sciencias moraes.
De Serpa tem-me chegado, aos mezes, a re-
vista que os dois últimos dos tradicionalistas
ahi acima nomeados, dirigem e cujo scopo único
é o estudo scientifico da ethnographia portu-
gueza.
«Do nosso follc-lore ha alli tudo; um pouco
de tudo. As poesias populares, tradições, contos,
lendas, crenças, superstições, usos, adivinhas, pro-
vérbios, enhn tout ce qui concerne les nations,
leurs opinions, isso que. no dizer do Conde de
Puymagre, é o folk lore, topamol-o em suas pa-
ginas tractado com notável proficiência.
Dos números 2, 3, 4, 5 e 6, que estão sob os
meus olhos e a que devo algumas referencias,
destaca para o meu carinho, estes escriptos :
Danças populares do Baixo-Alemtejo, de Dias
Nunes; Na quaresma, idem ; Therapeutica Mys-
tica, de Ladislau Piçarra: Serração da velha, de
Theophilo Braga ; as Lendas & romances, de A.
Thomaz Pires ; O elemento árabe na linguagem
dos pastores, do Conde de F'icalho ; e a prosa
de Alberto Pimentel, Andar ás vozes.
Outros escriptos, de grande curiosidade tam-
bém, esmaltam as restantes laudas da Tradição.
Prosiga a folha serpense na rota d'agora. N'es-
tes dias, em que, ai de nós ! vamos invadidos pela
influencia estrangeira, tão pronunciada ; em que,
por via da grande anciã toda de cosmopolitismo
que nos accommetteu, a feição nacional parece
extinguir-se, quando, a despeito da baixa cam-
bial, as pochades de além fronteiras cursam li-
vremente no nosso mercado, as paginas da Tra-
dição são um eloquente protesto que dois poe-
tas, dois homens honestos e de um valor incon-
testando, Dias Nunes e o doutor Piçarra, atiram
ahi á face dos mystificadores.
Cumprimento-os.»
JuLio DE Lemos.
(D'C/Í c^urora do Lima, n." 6562).
«Continua com toda a regularidade a publica-
ção d'esta interessante revista, que vê a luz pu-
blica ern Serpa, e que de numero para numero
mais afíirma a sua grande importância pela esco-
lha e variedade dos assumptos e esmerada col-
laboração tanto litteraria como artistica-»
(Da Gaveta da Figueira., n." 785).
X
«Publicou-se o n." õ d'esta excellente revista
ethnographica, primoroso repositório de valio-
sissimos subsidios para o estudo do nosso povo,
e que é superiormente dirigida pelos srs. Dr. La-
dislau Piçarra e M. Dias Nunes, de Serpa».
^Da Semana Aícobacense, n." 471)
X
«E indiscutivelmente esta uma das mais inte-
ressantes publicações portuguezas da actualida-
de, não só pelos assumptos de que trata, como
pela sua distincta collaboração. O summario do
n." 7 que em seguida publicamos, dá sobeja ideia
do seu valor :»
(Da Gaveta das Aldeias., r\." 189).
X
«Imaginem, se são capazes, onde se publica
uma revista de sciencia com este titulo, e por
signal que feita á altura da gravidade das cir-
cumstancias ? N'uma terra modesta que por um
triz esteve para não figurar no mappa — em Ser-
pa, villa do Alemtejo, que poucos conhecem pa-
ra cá do Douro. E' n'este canto da região do
gaspacho., da açorda e de paios, que alguns ra-
pazes curiosos e intelligentes se lembraram de
estudar as costumeiras, as cantigas, os trajes, as
superstições, a lingua, as modas, os provérbios
do povo. Ali encontra o leitor tudo, como na
botica. E' pedir por bocca. O ultimo numero,
por exemplo, ensina-nos como se guardam ca-
bras, as virtudes amatorias do mangerico e da
alcachofra (aviso aos amadores do pé rachado), e
benzedura contra a erysipela branca, contra a
vermelha, a empolar e a negral (t'arrenego), e a
receita para desembruxar creanças, com farinha
e agua (com vista ás mulheres de virtude). E
como se isto fosse pouco, ainda o leitor pode
admirar uma linda photogravura — a Lavadeira —
e sabendo solfa, trautear a canção «Dizes que
sou lavadeira», e que é linda como o lindo amor.
Tudo isto por três vinténs, hão de concordar
que é um ovo por um real. Bom e barato, claro
está que se vende como manteiga.
Vão ao Moreira, livreiro, e ia apostar que já
difficilmente encontrarão um exemplar.
12
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
E' que os nossos amigos Piçarra e Dias Nunes
(vá um parenlhesis a sério na galhofa do nosso
semanário) souberam fazer da TmJição um cu-
riosíssimo repositório digno de figurar na estan-
te dos amadores d'estas coisas, que, para honra
nossa, augmenta de dia para dia.»
Marcos Guedes.
(D'0 Sorvete, n.° 112).
X
«Continua a fazer uma carreira gloriosa o pe-
riódico A Tradição^ que surgiu do fundo do Alem-
tejo, da villa de Serpa, com grande surpreza de
todo o paiz.
O numero 9 que temos presente, confirma ple-
namente a impressão que o i.° numero produziu
em todos os centros litterarios.
Não fazemos reclamo, que o não orecisa oA
Tradição.
E' uma bella publicação, rara entre as rarissi-
mas que entre nós conseguem lançar raizes sem
o favor de ninguém.»
(D'0 Popular^ n." i :202).
X
■Segue confirmando os seus créditos e attes-
tando a intelligencia dos seus directores, os nos-
sos prezados confrades Ladislau Piçarra e Dias
Nunes. Excellente o numero relativo a outubro,
que vem a ser o 10." CoUaboração muito varia-
da e assumptos interessantes. E' ver o summa-
rio. que é este :»
(D '.4 Pátria, n.° 259).
•Continua com toda a regularidade a publica-
ção d'esta curiosa e interessante revista d'ethno-
graphia portugueza, illustrada, que vê a luz da
publicidade na villa de Serpa, e de que são dire-
ctores os srs. dr. Ladislau Piçarra e Dias Nunes,
com illustraçóes dos srs. F. Villas Boas e J. V.
Pessoa.
CoUaborada per distinctos escriptores, aug-
mentando de numero paf-a numero a variedade
e o interesse dos assumptos que trata, a Tradi-
ção é, no seu género, uma das publicações mais
importantes que no paiz se tem feito, ê veio na
realidade prestar um incontestável serviço aos
que se interessam pelos progressos dos estudos
ethnographicos, tão descurados até hoje, infeliz-
mente, entre nós.»
fDa Gaveta da Figueira, n." 8o5).
«Recebemos com superior agrado a curiosa
revista dirigida pelos srs. Ladislau Picai ia e Dias
Nunes, que emprehenderam n'esta publicação a
agradável e útil tarefa de recopilar e fazer revi-
ver sob uma forma litteraria, amena e compre-
hensiva, os documentos de diversa ordem que
interessam á ethnographia, á philologia, á an-
thropologia e ramos scientificos que com ellas
se entroncam.
CoUaborada por escriptores conscienciosos e
de talento, que imprimem auctoridade a esta
excellente revista, torna-se attrahente para todos
pela forma despretenciosa e singella da exposi-
ção e narrativa, acompanhada de formosos docu-
mentos photographicos, que illustram todos os
números. Agradecemos e estimamos deveras a
amabilidade da troca com a nossa revista.»
(Da Revista de Educação e Ensino, n." 10, 1899).
X
«Sempre curiosíssima, inserindo escriptos de
verdadeiro valor, esta publicação que está pres-
tando magníficos serviços á litteratura nacional.
N'este numero destaca-se a continuação de um
bello estudo do sr. conde de Ficalho, sobre o
elemento árabe na linguagem dos pastores alem-
tejanos.
Publica, como de costume, uma estampa na
galeria dos typos populares (Acarret^dor de fa-
rinha — Brinches) e a pagina musical, preenchida
pelo trecho coveo^ra^Çihxco Marianita Joi àfonte.v
(Da Ga:^eta das Aldeias, n.° iSq).
X
«A- Tr-adiçtio»
«Vae quazi no primeiro anno de existência
esta excellente revista alemtejana, que tem por
directores dois distinctos publicistas, dois dos
mais dedicados tradicionalistas, que tanto amam
a terra portugueza.
Amar a sua terra, amar o seu paiz, amara sua
pátria, é querer cada um a todas as tradições,
tanto da família como do povo. Ora, de todos
os paizes da Europa, é Portugal o mais rico de
tradições, como o disse um sábio estranjeiro.
Pois apezar d'isso, se o dr. Ladislau Piçarra e
o meu bom amigo M. Dias Nunes não houves-
sem mettido hombros á empreza para elles glo-
rioza e para as lettras proveitoza de fundar en-
tre nós uma revista de estudos scientificos de
ethnographia portugueza. Portugal não teria ain-
da hoje, como rico repozitorio e excellente in-
ventario de elementos tão vastos e importantes,
uma publicação como a de que estamos falando.
O ultimo numero, referente a outubro, além
das illustraçóes, que são, na «Galeria dos typos
populares», um Grupo de marçanos ou aprendi-
zes de tosquiador, com o mestre ao lado, e, no
APRECIAÇÓÇIS DA IMPRENSA
18
«Cancioneiro muzical», o Cântico das janeiras,
insere os artigos seguiniesru
«Estudos tão ricos, tão bellos e interessantes
como são os elhnographicos, por onde bem co-
nhecemos e bem queremos o modo de pensar,
de sentir e de proceder da nossa querida terra,
e que também, como disse outro sábio, repie-
sentam a sctencia /lovj, ao mesmo tempo que
constituem a psycologia do povo, encontram-se
na excellente revista alemtejana, tratados com o
máximo carinho e o mais proficiente cuidado.
Bem podemos portanto, dizer que o dr. La-
dislau Piçarra e M. Dias Nunes, com a sua obra,
com a sua TraJiç3'\ onde o estudo das nossas
tradições leva ao amor dos uzos, costumes e ca-
racter do paiz que nos foi berço, desenvolveram
de tal arte entre nós um dos mais interes^antis-
mos ramos que compõem as sciencias moraes.
Cumprmientamos e felicitamos do coração os
dois distinctos e sympathicos escriptores.»
ALFKtDO DE PkaTT.
(Da (lorrespondencia de (loimbr.i^ n." 70).
X
«Pnblicou-se o n." 10, correspondente ao mez
de outubro, d'esta interessantissima revista ethno-
graphica, cuja sede é em Serpa, e que se dedica
especialmente a assumptos alemtejanos, embora
também trate de outros com relação ao resto do
paiz.
Os artigos d'este numero são, como os ante-
riores, muito curiosos. Traz a costumada estam-
pa musical, que d'esta v^íz se refere á cantiga
das janeiras, e outra represeutando um grupo de
«marçanos ou aprendizes de tosquiador, com o
mestre á frente.»
Era-nos desconhecida esta significação locd
«marçano», que nos traz á lembrança aquelia
outra definição phaniasticamente humoristica de
uma das comedias de (jervasio Lobato, em que
uma das personagens diz que na sua terra «mar-
çanos» são os que nascem em março.»
(Do 'Diário de U^oticias, n." 12:217).
X
«Continua a ser interessantissima esta revista,
que é das melhores que no seu género conhece-
mos, e que faz honra á província do Alcmtejo.
O n." 12, agora publicado, comprehende o se-
guinte texto :»
(D" O Popular^ de fevereiro de 1900).
X
«Entre toJas as publicações destacamos uma
-qA Tradição.
Não ha no nosso paiz outra n'este género. A
ella está confiada a perpetuação de um certo
numero de factos, verdadeiros esiypmas de um
povo, dignos de respeito para o caracterisar c
definir. Tem e não podia deixar de ter um jo-
gar á parte, marca um assumpto novo, fere uma
nota que tem estado no silencio e como tal, se
impõe á nossa consideração.
Aos seus redactores o nosso tributo de ad-
miração, de mãos dadas com a nossa gratidão.»
(Do Relatório da Direcção da Associ.uãii Aca-
démica, de Coimbra.)
X
«A. Ti*a.<li<^*tto«
"As publicações periódicas de caracter pura-
mente iitlenirio, e sobretudo as que revistam
um caracter um tanto ou quanto scientifico —
como as de nhilosophia, de historia, (\c geogra-
phia, de arcneologia, ctc. ; quer dizer as publi-
cações periódicas de litteratura, que mais utili-
dade podem ter, são precisamente as que mais
dillicilmente logram insinuar-se no publico e ao
mesmo tempo as. que mais rápido decahem. . .
quasi sempre por falta de matéria prima
Entre as raras excepções que conhecemos
com muita satislacão podemos incluir a Tradi
ç\70, de Serpa, revista de cthnographia que des-
de o seu primeiro numero (e acaba de comple-
tar um annoj tem mantido uma brilhantíssima
collaboração e se tem publicado regularmente,
o que nos prova que consegue fazer o milagre
de viver n'um meio rebelde a estudos d'esta or-
dem.
No ultimo numero publicado, relativo a de-
zembro de i8(»q, insere artigos, versos e um tre-
cho de musica, relacionados com a espécie de
investigações a que a revista é consagrada : dan-
ças populares, superstições, lendas, contos po-
pulares e provérbio^.
E' um numero muito curioso.
Os directores d'esta revista, srs. dr. Eadislau
Piçarra e .M. Dias Nunes, podem ufanar-se de
dar á estampa uma das publicações modernas
portuguczas mais interessantes.»
(Da Ga:[eta das Aldeias, N." 216)
X
«A Tr-siclíç*rio»
«Unter dem Titel «A Tradição» erfcheint
feit etwa lachresfnst eine portugiesische Zeits-
chri^t 1'ur Volkskunde, die wohl des interesses
weiterer Kreise sicher sein darf Die Verleger
und Versender sind Ladislau Piçarra und Dias
Nunes in Serpa íPortugali. Die vorliegenden elf
Nummern bringen Beitrãge aus ailen Gebieien
der Volkskunde.
14
APRECIAÇÕES DA IMPRENSA
Da sind gediegene Aufsãtze iiber Tracht und
Spiele, erliiutert" durch meisterhafte Trachten-
bilder von Villas-Boas und Notenheilagen («por-
tugiesische Tãnze») in jeder Nummer. Manche
tièfsinnipe Legende wird mitgeteilt, poesievolle
Nomanzen, wie die vom Garinaldo, in mehreren
Fassunqen dargeboten, und aus verschiedenen
Gegenden, aus der Ghene des Minho, wie aus
Alèmtejo, Marchen und Fabeln, oft in der Mun-
dart mitgeteilt.
Schalkhafte Volksrãtsel fehlen nicht.
Dem deutschen Leser wird in der Bibliogra-
phie viel werlvolles Material zugefilhrt. Wir
wiinschen dem neuen Unternchmen einen gu-
ten Fortgang und eine weite Verbreitung, au-
ch in Deutschland.»
De. Robert Petsch.
{'Das litterarische Echo — 15. Februar 1900)
A.UUO I — W." 1
SEEPA, Janeiro de 1899
H^i-i«' I
Editor-adcninisirador, Jote Jeronymo da (.<>/.. iw.iv .u- N .,'.■' ,, l'ui I u^i i , — SERPA
TypoRraphia de Adolpho Je MetiJuiuj. Kua Jo Curpu .Saino, 4U c 4.- — l.l.MiUA
A TRADIÇÃO
>
REVISTA MENSAL DETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
DIRECTORES: — LADJSLAU PIÇARRA e M. DIAS NUNES
PRELiIJVIírJAR
o estudo do povo portLigucz, no que
ellc encerra de tradicional e tvpico, e
sob o duplo aspecto da sua vida physica
e mental, está infelizmente bem longe da
realisação.
Apesar de quanto se tem elTeituado
n'este ultimo quartel do século, as ma-
nifestações mentaes do nosso povo otTe-
recem ainda larguissimo campo a explo-
rar; principalmente na província do Alem-
tejo e, em particular, no que respeita a
festas religiosas, linguagem, contos, jo-
gos, lendas, estribilhos, superstiç(5es e
cantos coraes.
Sob o ponto de vista physico, então,
pôde aíToitamente asseverar-se que quasi
nada ou nada se encontra investigado
e descripto: — nem a organisação e pro-
cessos consuetudinários das diversas in
dustrias, taes como a agricultura, a
cerâmica, a fiação, a cutelaria, etc. ;
nem as habitações, mobiliário c utensi-
lios domésticos das classes populares;
e nem sequer os variadíssimos trajos,
tão originaes e característicos, tão pitto-
rescos e evocativos, do operariado dos
campos.
A proseguirmos assim, com a mesma
inditferença e desdém por assumpto que
tanto deveria interessar-nos, a breve
treclio se verá de todo obliterada a tra-
dição nacional.
E devemos ponderar que a tradição
— voz augusta e saudosa do passado,
elo invisível mas poderoso que liga es-
treitamente os indivíduos e as gerações
— a tradição é a força que avigóra a
alma e o caracter de cada povo, d'onde
em grande parte deriva a respectiva
existência independente e autónoma.
Procuremos, pois, despertar de simi-
Ihante indilVerença, que, sobre ser anti-
patriótica, nos colloca a nós mesmos
portuguezes na impossibilidade de nos
conhecermos, e priva a sciencia eihnolo-
gica dos indispensáveis elementos para
julgar, com precisão e segurança, das
nossas affinidades ethnicas e da evolução
dos nossos usos, costumes, instituições
e crenças, em relação aos outros povos.
A Tradição, cujo primeiro numero
temos o prazer de dar a lume, propõe-
se reunir — recolhidos com todo o escrú-
pulo e fidelidade — o maior numero pos-
sível de materiaes ethnographicos, assim
de caracter physico como de caracter
mental, relativos ao nosso paiz.
K d'est'arte julgámos prestar sincero
concurso, modesto embora, á execução
d'uma obra extraordinariamente gran-
diosa no seu conjuncto — a Kthnographia
Portugueza. A qual obra — despertadora
da tradição nacional e basicamente sub-
sidiaria da ethnologia — será d^altissimo
valor para o rejuvenescimento pátrio e
ao mesmo tem.po para a historia da
civilisacão humana.
A TRADIÇÃO
Antes de concluir este breve prelimi-
nar, seja-nos dado esclarecer que, muito
propositalmente substituimos a palavra
ethnographia á palavra folk-lorc. geral-
mente adoptada para designar o género
de trabalhos de que nos occupàmos.
Em nossa humilde opinião, folk-lore
(do inglez archaico folk, povo*, e lore
sciencia» apenas convém a uma simples
parte dos estudos em questão, — áquella
que descreve as manifestações da intelli-
gencia, a chamada sabedoria popular. Ao
passo que o termo ethnographia — con-
forme o definiu Topinard — comprehen-
de integralmente a descripcão de cada
povo nos seus usos, costumes, religiões,
línguas, caracteres phvsicos e origens na
historia.
A Redacção
O doutor da mula ruça
Ainda hoje é vulgar a expressão dou-
tor da mula ruça^ mas não lhe sei de-
terminar rigorosamente a significação,
que me parece se emprega sempre em
sentido irónico e de troça. Paliando do
ratinho^ isto é do aldeão da Beira, o snr.
dr. Theophilo Braga, sugestionado não
sei por que analogia, diz o seguinte do
dr. da mula ruça:
«Como este typo isolado, creou-se en-
tre o povo o typo do Doutor pedante,
de um personagem do tempo de D. João
III, o Doutor da muta ruça., e o typo da
criada ladina ou Sirigaita.» (»)
Como se vé, não exemplica nem do-
cumenta a sua asserção. Não seria antes
o doutor da mula ruça um tvpo simi-
Ihante ao .João Semana, tão admiravel-
mente desenhado por Júlio Diniz r
A única allusão, que por ora tenho
encontrado na nossa antiga litteratura é
(') Dr. Theophilo Braga, O Vovó Portu^
vol. 2."», pag.' 41 5.
a que traz o poeta Chiado no Auto das
rcL!;ãt eiras :
«O doutor da Mula ruça
vos dará são, como a palma,
ou o das sete carapuças,
que aqui anda vaganau.»
O doutor da mula ruça não é comtu-
do uma entidade de phantasia ; teve uma
realidade histórica, documentalmente
comprovada. Chamava-se António Lopes
e residia em Évora na primeira metade
do século X^I. Parece que elle se glori-
ficava do seu epitheto popular, porisso
que vem muito claramente expresso na
sua carta de doutor. Por certo que o
adquirira com tal ou qual honra, de mo-
do a apregoal-o jactanciosamente, d' ou-
tra sorte não se comprehende que elle
lhe desse assim foros de cidade.
António Lopes estudara durante dez
annos na Universidade de Alcalá de He-
nares, onde se fez bacharel em artes e
medicina, tendo toda a sufficiencia e re-
quisitos para obter o grau de doutor, o
que todavia não realisou por falta de
meios. Requereu portanto a el-rei que
lhe concedesse aquella qualificação para
gosar das honras e privilégios que usu-
iruiam os doutores pela Universidade de
Lisboa. El-rei-, attendendo aos seus me-
recimentos scientificos, e aos serviços
prestados não só na cura gratuita da gente
pobre mas na de outras pessoas gradas,
accedeu favoravelmente, mandando-o exa-
minar pelo physico mór, doutor Diogo
Lopes. Este, effectivamente, acolytado
pelos drs. António Mendes e Francisco
Mendes, e mestre Francisco Geraldes,
procedeu ao respectivo exam.e e achando
o candidato habilitado lhe passou carta.
A este auto, que se realisou a 19 de
maio de (534, assistiram como testemu-
nhas : Diogo dAfonseca, cavalleiro fi-
dalgo da casa real, o licenciado Gas-
par Ribeiro, physico da rainha, e Diogo
Gomes, boticário. A carta regia de con-
firmação foi passada a 23 de maio do
mesmo anno, e acha-se registada na
chancellaria de D João 3.'', a fls. 87 ver-
A TRADIÇÃO
^^^MV^rn M Ti^FOS POPIÍL^^ES
Apanhadeira de azeitoca (Serpa)
A TRADIÇÃO
so Jo Livro 20 das Doações, d'onde a
transcrevi.
Julgo curioso reproduzil-a aqui na in-
tegra, não so como importante documen-
to para a biographia do Doutor da mula
ruça, mas também como specimen dos
diplomas uni\ ersitarios da época. Eil-a:
«Dom .loham ík a quantos esta minha
carta virem faço saber que ho doutor
Amt" Llopez, tísico da mulla Ruça, mo-
rador em esta cidade dEvora, me apre-
semtou húa carta do doutor Dioguo Llo-
pez. meu tísyco moor, de que o theor
de verbo a verbo he o seguimte: «O dou-
tor Dioguo Llopez, comemdador da or-
dem de Xpos (Òhristos) e físico mor deli
Rey noso senhor em seus regnos e se-
nhorios, faço saber a quamtos esta mi-
nha carta de douctorado vyrem como por
Amtonio Lopez, físico da mulla ruça,
morador em esta cidade dEvora, me foy
apresemtado hum alluara dellRe}^ noso
senhor, per sua alteza asvnado e pasado
per sua chancelaria, do quall o trellado
he o seguinte: «Eu ellRey faço saber a
vos doutor Diogo Llopez, meu físico
moor, que Amtonio Llopez, físico da
mulla ruça, morador em esta cidade, me
dice per sua piticã que elle estudou nove
ou dez annos no estudo de Alcalaa de
Annares, que he híja das boas vniversy-
dades da cristimdade, e nela se fez ba-
charel em artes e medicia (sic) e, per os
ga^t(.- serem muito grandes, elle se nam
fc. .' uctor na dita ^'nive^sidade, posto
qi ; . ese soficiemcia e os curssos todos
pc -ados que se requiriam pêra ello e
vemdo que nam tinha posybylydade pêra
os ditos gastos, se fez doutor per rescri-
to, pedimdome per mercê que avemdo
respeito ha suas letras e sofíciemcia, de
que cuja tinha emformaçam e asi de meus
físicos como doutras pesoas notáveis que
em meu Regno tinha curado, ouvese
por bem lhe comceder de novo o grão
de douctor ou que goze dos privilégios
de que gozam os doutores que sam per
mim feitos ou dos que se fazem em ha
Vniversidade de Lisboa, e esto per aver
doze ou treze annos que cura depois de
ser graduado em esta cidade,omde curou
todo este tempo todos os pobres d'ella
de graça e asi outras muitas pessoas que
curou em minha corte per meu mãdado,
e visto as}'^ todo per mim ey por bem e
me apraz que vos com o douctor André
Medes e com ho douctor Francisco Mar-
tins e mestre Francisco Giralldez exami-
neis o sopricamte e, achamdo que he so-
fíciente, vos lhe dareis o grão de doutor
e sendolhe dado, ey por bem que goze
de todoUos previllegios e liberdades como
se fose feito doutor na Vnivers3'dade de
Lisboa, e vos lhe dareis carta do dito grão,
em a quall será treladado este meu al-
Ivara de verbo a verbo e o dito exame
se fará segundo se custumã fazer os exa-
mes na dita Vniversidade de Lisboa,
quamdo se os semelhantes grãos dam
sem elle fazer repitiçam. Notefícouollo
asy e aos ditos físicos e mãdouos que
as}»" o cumprais. Anrique da Mota o fez
em Évora aos xni dias de março de jb'
xxxii ; e esto semdo provado pellos
mais devoos e os ditos doutores ave-
ram juramento primeiro que façam o dito
exame:» pedimdome que ho comprise co-
mo nelle he contheudo e em comprimento
delle mãdey ajumtar os doutores em elle
comtheudos e nomeados, aos quais de}'
juramento aos samios avamgelhos segura-
do forma do dito allvara,que bem e ver-
dadeiramente comigo o exeminasem pêra
lhe aver de ser dado o dito grão, semdo
achado auto e sobficiemte pêra ysso, e el-
les e eu o examinamos per reguroso exa-
me, segundo se custuma fazer em ha Vni-
versidade de Lisboa, quamdo se os se-
melhantes grãos daão sem repitiçam, e
per ho achar que era aucto e pertem-
cemte pêra o dito grão com os ditos dou-
tores lhe dey o dito grão de douctor na
forma custumada com todas insignias e
soblenidades que se nos tais auctos cus-
tumam fazer, goardamdo inteiramente to-
dalas clausulas do dito alvará, por bem
do quall decraro ao dito Amt." Llopez
per doutor feyto per reguroso exame, asy
e da maneira que se fazem na dieta Vni-
A TRADIÇÃO
vcrsydadc de Lisboa, c mãdo a todas as
pesoas, que ho conhecimento dcsto per-
temcer, da parte delIRev noso senhor,
que ho ajam por doutor feito em exame
reguroso e por tall o tenham e acatem
e lhe goardem todas as omras e liberda-
des, previllegios, graças, prerogativas,
dignidades e favores e preminencias, que
se goardam e soem goardar na dita V ni-
versidade de Lisboa, segumdo forma do
alvará do dito senhor, e por certidam dclio
lhe mamdev pasar esta carta per mim
asinada. Jorge Nabo a fez em a cidade
dEvora aos xix dias do mes de mayo, e
eu escrivam fuv presemte a todo o so-
bredito aucto,o qual se pasou da manei-
ra que nesta carta se conthem, semdo
pêra ello e rogado chamado com as tes-
temunhas que ao dito auto foram pre-
semtes Diogo dAfonseca, cavaleiro tídal-
guo da casa delIRey noso senhor, e o
L.° Gaspar Ribeiro, tísico da Rainha nosa
senhora, e D." Gomes, boticairo, mora-
dor em esta cidade ano de jb' xxxini
anos.» «Pedimdome o dito físico da muUa
ruça por mercê, pois ja he feito doutor
pello dito físico moor per reguroso exa-
me, segumdo forma do meu alvará lhe
mãdase pasar carta patemte per mim
asinada e pasada pella minha chancelaria
per que haprovase e comf\rmase ho dyto
grão de doutor e que nelía se derojuem
os estatutos da huniversidade de Lisboa,
de minha certa ciemcia como se de verbo
a verbo fosem todos e cada hum per sy
aerogados e lhe sejam goardados todal-
las as omras, previlegios, liberdades e
exemções que tem os doutores feitos per
exame na dita Universidade de Lisboa, e
visto per mim seu requirimento ser justo
e por foUgar de lhe fazer graça e mercê,
ey por bom o dito grão e o aprouo como
se na dita carta do físico moor conthem
e quero e me apraz que ho dito doutor
Amtonio Llopez goze de todollos previ-
legios, omras, liberdades, framquezas e
excepções, que tem e ham os doutores
feitos por exame na dita Vniversidade de
Lisboa sem embarguo dos previlegios e
estatutos da dita Vniversidade em com-
trairo, os quais aqui ey por nomeados,
declarados e expressos, como se de to-
dos e cada hum delles de verbo a verbo
se aquy fizese expresa mençã sem embar-
guo de minha ordenaçam do segundo li-
vro que diz que nam se entemda derogada
nenhuma ley nem ordenaçã e da substan-
cia delia se nam fízer expresa mençã e por
tamto mãdo a todollos corregedores, ou-
vidores, juizes, justiças, ofíciaes e pesoas,
a que esta minha carta for mostrada e o
conhecimento delia pertemcer, que em
todo lha cumpra e goardem e façam mui
inteiramente comprir e goardar, como se
nella conthem, sem duvida nem embarguo
allgum que a ello ponham, por que asy
he minha mercê. Dada em ha cidade
dEvora a xxni dias do mez de mayo —
Anrique da xMota a fez — anno do nasci-
mento de noso senhor Ihú X" de jb'
xxxiiii anos.»
No Cancioneiro Gcral^ de (iarcia de
Rezende (vol. !^." da edição de Stuttgart,
pag. 176) vem o testamento do Macho
ruço de Luis Freire, o qual termina por
pedir que lhe ponham na sua sepultura
o seguinte ditado ou epiíaphio:
•
Aqui jaz o mais leal
macho ruço que nasceu ;
aqui jaz quem não comeu
a seu dono um só real.
Na Bibliotheca Nacional de Madrid
existe um manuscripto, que é uma com-
pilação do Cancioneiro de Resende. Tito
de Noronha, no opúsculo que acerca
d'esta obra publicou no Porto em 1871,
sendo o primeiro de uma serie de Curio-
sidades bibliographicas^ refere- se de pas-
sagem ao códice madrileno, affirmando
que elle não é copia do impresso, e que
contem trovas de mais iS poetas, que
não vem no livro de Resende. Entre as
falhas cita o seguinte :
Do macho ruço de Lui^ Freire.
Se em tudo o mais fôr tão verdadeiro
como neste ponto, vè-se que não pode
merecer inteira confíança.
No emtanto, quem fizesse uma nova
A TRADIÇÃO
edição do Cancioneiro de Garcia de Re-
zende mo que prestaria um grande ser-
viço á nossa litteratura) não poderia dei-
xar de consultar o exemplar manuscripto
de Madrid, do qual não posso formar
exacto juizo, por não ter presente minu-
ciosas informações bibliographicas e pa-
leographicas,
SoDSA VITERBO.
Natal, Anno-bom e Réis
Este titulo, que apenas serve a epigra-
phar um singello artigo descripíivo de cos
tumes locaes, podia bem constituir o the-
ma de largas considerações acerca d'al-
guns svstemas religiosos que precederam
o christianismo, na parte relativa ao nas-
cimento dos respectivos deuses.
E quiçá não seriam aqui descabidas,
nem de todo inúteis, essas considerações:
A analyse minuciosa e retlectida das
praticas cultuaes do natal ou natividade,
que rodeavam o deus Osíris dos eg3'pcios,
o deus Agni ou Ignis dos árias, e o deus
Miíhra ou Sol liwictus dos persas e ro-
manos, derram.a preciosa luz sobre a ori-
gem e significação de várias lendas, usos
e costumes populares, adstrictos ás três
festas principaes que o christianismo ce-
lebra após o solsticio do inverno, — a do
Natal, Anno-bom e Réis.
Não se compadece, porém, o diminuto
espaço que nos é reservado, com a na-
tural amplitude de tão magno assumpto;
alem de que — analysando, e porventura
comparando, — iriamos invadir o campo
da ethnologia, quando é de pura ethno-
graphia que nos incumbe tratar.
Limitar-nos-hemos, pois, á simples
descripção dos costumes tradicionaes do
f)ovo de Serpa, respeitantes ás festas al-
udidas.
I
KATALr
No lapso de tempo que decorre desde 24
de Dezembro até h de Janeiro de cada an-
no, isto é, desde a véspera de Natal até ao
dia de Reis, representava-se aqui o Auto
Sacramental do Presépio, animadamente
e ao vivo, com todos os numerosos perso-
nagens de que reza a tradição: S. José, N.
Senhora, o Anjo na nuvem e o Menino per-
dido; os três pastores, um dos quaes deno-
minado o pastor alarve ; o rei Herodes e
mais os Magos rei Gaspar, rei Baltha-
sar e rei Belchior, o preto, todos de man-
to e coroa ; a lendária Cigana de quem
se enamorou o Deus-Menino em Belém,
etc, etc.
Estas representações — segundo o tes-
temunho fidedigno d'um respeitável an-
cião coevo dos factos que venho narran-
do — eram muito do agrado do publico
serpense, que, pela módica quantia de
um vintém cada pessoa, enchia litteral-
mente a sala dos espectáculos, a qual
pertencia ao extincto Celleiro Commum.
Cahiram em desuso os velhos autos,
quer profanos quer religiosos, denvolta
com os vetustos momos e entremezes; e
o Auto do Presépio (ou Colloquios do
Presépio) teve afinal em Serpa a derra-
deira exhibição ahi pelo anno de i835.
O que ainda subsiste apesar da sua
origem secular — tão secular como a do
Presépio — é o costume dos descantes ao
Deus-Menino, ás Janeiras e aos Réis.
Em noite de Natal, ao redor dos gran-
des lumes alimentados a toros de azinho,
reúne cada familia — principalmente entre
a classe camponeza — no maior numero
possivel dos seus membros. E, emquan-
to aguardam o repicar festivo dos sinos
annunciando a proximidade da clássica
missa do gallo, a que assistem os mais
devotos, vão alternando a chávena do
café e o pezado repasto das bolotas, pre-
paradas em grossas assaduras, com apre-
ciáveis coros ao Deus-Menino. Damos
em seguida a lettra desses coros; a mu-
sica, já recolhida, sahirá n'um dos pró-
ximos números da Tradição. (*)
(*) Procurei figurar os principaes vicios da lin-
guagem local, que se me depararam nas rimas
populares do presente artigo, e aos quaes (a al-
guns) se referem as notas seguintes.
A TRADIÇÃO
AO DEUS-MENINO
— Que havemos dar ó (') Menino
Esta noite de Natála (*) ?
— Camisinhas de bertanha ^^),
Botanitos de crystála.
Namorou-se o Deus-Menino
Da Cigana, em Belém.
Olha a liita da Ciyana !
Que hndo amor que tem '.
( > Menino está na neve,
A neve o taz tremera (^).
Menino-Deus da minh'alma !
Quem lhe poderá valera !
Lá no palaiço (^) reála
Uma estrella baixou
\'isital-o Deus-Menino,
Que Deus ó (^) mundo mandou.
— C) meu Menino-Jàsus,
Quem vos deu? pruque (^) choraes ?
— Deram-me as moças na fonte,
Já não quero lá ir mais.
Esta noite, á mêa (*•) noite,
Ovi ('-•) cantar o ('") Divino:
Era Santa Madanela (")
Que embalava o Deus-Menino.
— O meu Menino-Jàsus,
Quem vos deu o fato verde ?
— Deu-m'o minha avó Sant'Anna
D'uma doença que teve.
Sameou-se o pão da vida
Nas entranhas da Senhora :
Nasceu uma tal Espiga
Que sustenta a gente toda!
Nasceu essa tal Espiga
N'uma noite de Natála ;
Nasceu junto á mea noite,
Antes do gallo cantara.
Caminhando vae Joséi ('*),
Caminhando vae Maria :
Tanto caminham de noite
Como cammham de dia.
São chegados a Belém :
Já toda a gente dormia :
Só um portal estava aberto.
Aonde o gado se acolhia.
Joséi embala o Menino
Que a Senhora logo vêm,
F;oi laval-os cuérinhos
A fontinha de Belém.
Entrae, pastorinho, entrae
Por esse portal sagrado,
Vinde vèl-o Deus-.Slenino
Entre palhinhas dètado.
Estribilhos, que se dizem, ora um ora
outro, depois de cada uma das quadras
antecedentes:
i.i-aili-ailí-;iili,
i.i-ailí-ailí-ailéi.
O Menino nascido éi. (Ou)
Li-aiií-ailí, ailí,
IJ-aifi-ailéi, Menino 1
Quem vae para o ceu vae bem
Se não erral-o caminho.
IT
AKNQBOm
«Das festas as vésperas» — diz o an-
tigo provérbio; e confirmando-o, temos
que a véspera do primeiro de Janeiro,
ou dia de Anno-bom, (como de resto a
véspera do Natal, e assim a de Reis) é
aqui mais celebrada do que o próprio
dia de festa, em que os júbilos do povo
se resumem, atinai, a profusas libações
ao venerado Deus Baccho.
De feito, em a noite de 3i de Dezem-
bro costuma organisar-se um ou mais
grupos populares, geralmente compostos
de trabalhadores ruraes, para cantarem
ás Janeiras. Effectuam-se estes descantes
ao ar livre e á porta das pessoas a quem
os cantadores desejam ser agradáveis ou
por mera amisade, ou mais vulgarmente
por interesse, com a mira na esmola,
que pedem no fim da cantoria. Rhyth-
mado lentamente ao som da viola, n'uma
toada chorosa de cantocháo, é assim o
cântico:
A TRADIÇÃO
AS JANEIRAS
Esta noite de Janêras
Ki de qrande mer'cimento.
Por sel-a noite primJra
Em que Deu<; passou trumento C^).
O trumento que passou
Vo\ pru nossa redempção :
O sangue que derramou
Foi pru nossa salvação.
Esta noite da Jancras
Se rezam n'as prophecias;
Mandou Deus dos céus á terra
Um Menino doito dias.
III
Muitas creanças em trajo, por assim
dizer, de carnavel continuam a pristina
usança de esperar os Réis (que hão-de.
checar das bandas do Oriente) visitando
as famílias das relações mais intimas;
pelo que recebe a petizada quantos mi-
mos e gulodices inventou entre nós a
conservaria dos conventos. Alem d'isto,
que se verifica em a noite de 6 de Ja-
neiro, ha ainda os descantes aos Reis,
realisados pelo me.smo modo e nas mes-
mas condições dos descantes ás Janeiras.
Publicámos hoje a musica dos coros —
a primeira do nosso Cancioneiro — e eis
as quadras que lhe correspondem :
AOS RÉIS
— Quaes sã' n'os três cavalhêros
Que fazem sombra no mára?
— Sã' n'os três de o Oriente,
Que a Jàsus vêem buscara.
Não préguntam poisada,
Nem Honde pernoitara ;
Só précuram n'o Deus-Menino :
Aonde o irão achara?
Foram-n'o achar em Roma
Revestido no altára,
Com três mil almas de roda.
Todas para commungára.
Missa nova quer dizéra,
Missa nova quer cantara :
São .loão ajuda á missa,
São Pedro muda o missála.
*
Resta-nos fallar das desgarradas — as
rimas populares, em quadras, oitavas ou
decimas, que só em recitar após os cân-
ticos aos Réis e ás Janeiras, e dos quaes
se apartam ou desgarram^ já pela natu-
reza do assumpto, já pela forma de di-
zer. Ahi vão uns spécimens de as
DESGARRADAS
(Pedindo esmola)
Senhora que estaes dêtada,
Tinde-la Virgem ó (•'') péi,
Tamem tem do outro lado
O espozo, São Joséi;
São Miguel bemaventurado,
E o apostolo São Thoméi.
Ora escutae me este recado.
Que elle tem ponto de féi :
Vinde-nos dar uma esmola
Em lóvor do .Deus, nascido éi.
(Na espectativa da esmola)
l)'aqui d'onde estou bem vejo
Um canivete balhára,
Para cortar o chóriço
Que a senhora me ha-de dára.
No adro de Santa CathVina
Ha que (••'•) eu quero ser entarrado,
Dentro d'um coiro de vinho,
Seis pães alvos de cada lado.
A cabeccra o tócinho,
Os C*) péis um bom lombo assado,
E pró conducto o quGjinho.
'Stá o alforge aviado.
(Se a esmola demora)
O (1") o chóriço é grosso,
O ("*) a faca não quer cortara.
D£-lhe um sarruço-marruço ('^)
Na horda do alguidéra.
A TRADIÇÃO
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epReioREiRO puâiep
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(CÂNTICO)
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10
A TRADIÇÃO
(Depois da esmola recebida)
Viva da casa o patrão,
Que éi da casa principála !
Deus lhe dè saúde e pão
Prá sua casa ámeniára !
Deus o faça bem casado
Como a Eva com Adão,
Gloria Deus lhe dè n'este mundo (2**)
E no outro salvação.
M. Dias NUNES.
(M Ó — ao. (^) As palavras acabadas em /
soam como se tivessem no fim um ti breve. Ex.:
Natal, \jIjLi : crystal, crystála; real, reála^etc.
É conveniente notar que, por uma esthetica in-
nata, o povo repelle, na poesia, a addição do a
<juando este produz alteração no metro. (■•) E'
trequente a transposição das lettras r<?, tal co-
mo succede em bertanlm = bretanha. {^) A's
palavras terminadas em r convém, exactamente,
tudo o que dissemos das que terminam em /.
['') L também frequente na linguagem da gente
rústica a transposição de, lettras que se observa
em /7í7/jífo=palacio. (^) 0=ao. (") Pruque— por-
que. (*) O diphtongo ei sôa quasi sempre ê. Ex.:
Meia, mea ; azeite, ajéte ; Janeiras, Janèras.
Também. n'alguns casos, sôa é, como em mante-
rá '- manteiga. (^) Os diphtongcs ou e ao soam
âuasi sempre ò no começo das palavras. Ex. :
luvi, ovi : Joaquim, , Jò^ujm. Quando isolados,
soam sempre o. ('<•) 0^=ao. (") Madanela=Ma-
pdalena. (•') O é agudo, isolado ou no fim das
palavras, sôa éi. Ex.: é, éi ; José, Joséi. i}^) Tru-
raenlo=tormento., ('<) 0=^ao. ('^) Ha que— é que.
(i6(Os--aos. (»■) 0=ou. (18) Ó=ou. (19) Sarru-
ço-mjrruço^ vocábulo onomatopaico, com que
se pretende exprimir a afiação de qualquer ins-
trumento cortante, (^o) O povo pronuncia ^^'■/o/ra,
victoira. histoira^ etc.
D. N.
••C\\i:ill\ElltO HE MISICAS POPILARES,.
Nos romances e lendas do inicio da
raonarchia e na sua musica dolente mas
intensamente expressiva, harmoniosa e
branda como sons ásperos de cantares
de guerra arrastados de ao longe no ca-
minhar do vento, estava o gérmen d'essa
poesia docemente amorosa, encantadora-
mente elegiaca que com a sua musica
perfeitamente caracteristica. mais tarde
havia de ser um dos vinculos da diffe-
renciação d'um povo, então em plena au-
rora da sua existência gloriosa.
Troveiros d"outr'ora, descuidosos can-
tores de hoje como sois bem os interpre-
tes d'um povo que um dia quiz ser inde-
pendente e quer conserver hoje essa li-
berdade autónoma ! . .
Seria fácil, por um cancioneiro, traçar
a historia de Portugal desde o começo
dos reinados com as trovas gerreiras e da
cavalleria até ás elegias ao mar quando
pela primeira vez despertou a audácia
portuguesa a devassá-lo, e depois, mo-
dernamente, as cantigas bellicosas que
dizem a eftervescencia d'esse povo se-
dento do sol brilhante da liberdade, que
deixou para após isso mj-steriosamente
sonhar, nas suas bellas canções d'amor.
Sonhar hoje, sonhar outr'ora, eterna-
mente sonhar ! Mas, — fructo da organi-
sação estranha d'este povo, — a melanco-
lia supersticiosa da sua dolorida alegria
vem após o rir e o folgar de instantes,
ensurdecedor e troante como o ruido
brusco para um esquecimento de dor, e
assim temos as suas trovas e as suas
musicas graciosas, cheias de malícia, ou
gargalhantes, d'uma alegria doida, que
vem a propósito de tudo, de uma scena
de eleições ou d'um desastre nacional, e
que nos conquistaram as attenções do es-
trangeiro, que nos portuguezes aprecia
les toiíjours gais. No emtanto a melan-
colia cheia d'um fatalismo e d'uma su-
perstição ingénua é o sentimento que
mais fundamente caracterisa as canções
populares da nossa terra.
Forma um interessante contraste essa
alma portuguesa, sonhadora e triste, com
a d'esse povo visinho alegre, despreocu-
pado, talvez excedendo-nos no apuro da
sua phantasia.
Quanto seria bello um grande livro
onde houvesse inscriptas todas as canti-
gas anonymas que correm de bocca em
bocca e pelos lábios vermelhos das ra-
parigas ao ar sadio do campo extenso e
verde, sob o céu enorme e azul, e a seu
lado a musica que lhes dá a melodia, a
A TRADIÇÃO
11
harmonia e o tom alegre c fresco que
emoldura os quadros cm que se falia de
amor. . .
Cabe ao professor portuense Senhor
César das Neves o emprehendimenlo de
uma obra dessa natureza e que de ha
tempo se vem publicando. I.ançada num
meio por educar, essencialmente igno-
rante, que se costumou a desprezar tu-
do o que seja de Arte, só uma energia
rara e uma vontade inquebrantável po-
deria ter levado a cabo uma obra does-
se valor.
E" exemplo precioso que convém se-
guir.
Nas indecisões de plano duma obra
de completa novidade, na transigência
parcial com a imbecilidade do meio, o
Cancioneiro de Musicas Populares^ não
é isento de defeitos : uma obra modelar
que destitua de valor qualquer futura
iniciativa.
Não tratando agora de verificar a au-
thenticidade da origem de algumas das
musicas que o compõem, notarei no em-
tanto a imperfeição do plano formal da
obra, plano que n essa transigência como
meio e no modo de publicação da obra se
explica por completo. Cerca de quinhen-
tas musicas que até hoje se tem inserido,
vêm miscidas, desordenadamente postas:
agora um romance, depois uma cantiga,
a seguir uma marcha, uma chula, um fa-
do, uma dança e assim. Na publicação
em fascículos, isso dá a cada um d'ellcs
uma apetecida e apreciada variedade,
não faz números seguidos na mesma toa-
da, uniforme e aborrecida, mas na obra
completa não é certamente a disposição
mais adequada e precisa.
Mas se attendermos ao enorme traba-
lho de factura d" essa obra monumental,-
minúsculos defeitos come este desappa-
recem quasi e só teremos a prestar i de-
vida homenagem a quem soube empre
hender um trabalho de tal alcance para
a historia da arte e para a historia d'um
povo. Demais, sem aquelle defeito, quan-
tos 'assignantcs não suspenderiam a re-
cepção a partir dos primeiros fascícu-
los repletos de toadas de outn»s tem-
pos ?
E' isso que levou o auctor a fazel-a
assim, como também a inscrever ao ci-
mo de cada musica o nome de uma da-
ma, n'uma cortez galanteria de ha vinte
annos.
Paii,o OSOHIf)
Vidigueira e as suas tradições
Corre, desde tempos immemóriaes, na
Vidigueira a attractiva e encantadora len-
da do apparecimento da Virgem Senhora
da Serra, ornando-a a fértil imaginação
popular com episódios dignos despecial
menção.
Um destes episódios é — segundo re-
za a tradição — que a Virgem appareceu
no cimo dum zambujeiro a uma po-
bre pastorinha da herdade dos Alfaiates,
quando ella supplicava um pedaço de pão
para saciar a fome que a torturava. Af-
firma também a crença popular que uma
velhinha — que se suppõe ser a \'irgem
— se dirigiu á referida pastora dizendo-
lhe que fosse para o monte, que lá acha-
ria a sua arca aberta e replecta de pão,
regressando logo a rapariga e verifican-
do que ctíectivamcntc assim era.
Uns religiosos de \'idigueira, logo gue
constou o milagre, organisaram um im-
ponente cortejo que levou procissional-
mente a \'irgem da Serra para a pitto-
resca e agradável capellinha de Santa
Clara, situada n'uma encantadora e apra-
zível eminência ao norte da villa ; e no
dia seguinte foram encontrar a mesma
Senhora no cimo do zambujeiro em que
apparecera á pobre pastora dos Alfaia-
tes, cdificando-se pouco tempo depois
uma ermida da sua invocação, que mais
tarde, no tempo em que Vasco da Ga-
ma residiu na Vidigueira, foi transforma-
da n'um imponente e magnifico convento
A TRADIÇÃO
de carmelitas calcados, que funccionou
até is;u.
O nome mais vulgarisado e que bem
caracterisa essa imagem milagrosa, é o
de Xússa Senhora J.is Relíquias^ origi-
nando-se semelhante designação no fac-
to eminentemente suggcstivo de todos
quererem guardar com muito fervor reli-
gioso pedaços do tronco do zambujeiro
em que a Senhora fez o seu appareci-
mento. Pelo menos a tradiçãd mais se-
guida assim o confirma.
Na linda e magnifica quinta perten-
cente aos srs. viscondes da Ribeira Brava,
existe — artisticamente envolvida n\ima
caprichosa e bem trabalhada moldura de
pedra dé cascata, meio occulta pela era
e a verdejante ramaria de perfumadas
roseiras em flor — existe a mais des-
lumbrante das telas, que representam
assumptos de caracter puramente reli-
gioso, na qual se reproduz clara e exhu-
berantemente o milagre que encerra a
piedosa apparição da Senhora das Relí-
quias.
^'idigueira é fértil em lendas, pela sua
antiguidade e manifesta importância his-
tórica. Os costumes d"esse perfumado e
attrahente cantinho do Alemtejo são ain-
da os mais puros e democráticos de to-
da a província transtagana de nobilíssi-
mas e altivas tradições, e o povo, com
quanto emancipado das crendices com
que lhe embalaram o berço, é comtudo
muito religioso, festejando sempre com
o mais communicativo e irresistível en-
thusiasmo as suas festas, que principal-
mente se realísam no estio.
Os dias do anno ali mais festejados
são os seguintes: Anno novo, Reis, Pas-
choa. Ascensão e Natal, sobretudo a As-
censão, em cujo dia se realisa a festa as-
sim denominada na Egreja do Carmo,
sahindo procissionalmente a Senhora das
Relíquias, acompanhada de muito povo
de todo o concelho, que a tem em mui-
ta veneração.
Nas festas que tiveram logar nos dias
14 e lõ de maio de I896, alem de mui-
tos outros cavalheiros de Lisboa, notá-
veis na politica e na litteratura, assistiu
também o dístíncto escríptor Ramalho
Ortigão, que se hospedou no bello palá-
cio do illustre titular — seu particular
amigo — sr. visconde da Ribeira Brava,
que se confessa um dedicado admirador
das lettras, muito embora os cuidados da
politica lhe absorvam a maior parte do
seu tempo.
N'esse dia organisam-se ao ar livre
encantadores bailes populares com ii se-
lecta assistência de muitos e illustrados
cavalheiros, convidados expressamente
para esse fim, que constitue a verdadei-
j ra e mais attrahente diversão da bellis-
sima e afamada festa da Ascensão.
I
Muitas outras lendas religiosas cir-
culam entre o povo vidigueirense, alem
de variadíssimas e até divertidas crendi-
! ces, que eu — no intuito de ser agradável
aos leitores de «A Tradição» — vou cui-
l'i dadosamente colligir, conjunctamente a
outros assumptos de caracter genuina-
mente popular, taes como: cantares, su-
perstições, terrores de coisas extraordiná-
rias, que todos teem logar n'uma publi-
cação de consciencioso estudo ethnogra-
phico do paiz, especialmente do nosso
querido Alemtejo.
FAZENDA Júnior.
NOVELLAS POPULARES MINHOTAS
O i*ei Sai*clão
Uma vez era um rei, que tinha uma
' camisa da cor da pelle de sardão. Um
' dia casou-se, e a rainha, que não queria
I vel-o com aquella camisa, despiu-lh'a
j quando se achava na cama, metteu-a no
I forno e queimou-a.
! Ao dar pela falta da sua camisa o rei
, Sardão sahiu da cama e fugiu, desespe-
; rado com o mau proceder da mulher.
A TRADIÇÃO
Encontrou um palácio muito rico e
pediu hospedagem nelle. A rainiia sahiu
em procura d elle a liar n'uma roca de
oiro, e encontrando o tal palácio e sa-
bendo qjue o rei Sardáo estava ali hos-
pedado pôz-se a fiar em frente de uma
das varandas. l'ma aia que estava pen-
teando uma das princezas e que viu aquel-
la mulher a tiar, disse-ihe :
— O' princeza, que linda roca para
aquelle dia!
— \'ae-lhe dizer se ta vende.
— Vende-me essa roca, mulhersinha ?
— Não a vendo, minha senhora ; dou-
a se me concederem a honra de dormir
esta noite debaixo da cama do rei Sar-
dão, que está n'esse palácio.
A aia foi dizel-o immediatamente á
princeza. que a mandou entrar.
A' noite deitaram dormideiras na co-
mida servida ao rei Sardão, que segui-
damente se recolheu aos seus aposentos
e adormeceu num somno pesado. Kntão
a mulher da roca doiro, que era a sua,
raetteuse debaixo da cama, dizendo mui
tas' vezes em alta voz:
— Rei Sardão, lembra-te da rainha
D. Leonor que de três peças d'oiro que
tinha só tem duas . . .
Mas o rei não ouviu.
No dia seguinte D. Leonor retirou-se
e veio de novo postar-se em frente do
palácio e pôz-se a fazer meadas no seu
sarilho d'oiro.
A aia que estava penteando a prin-
ceza a uma das varandas, disse-lhe :
— O" princeza, que lindo sarilho pa-
ra aquelle dia !
— Vae-lhe dizer se to vende.
— ^'ende-me esse sarilho, mulhersinha?
— Não o vendo minha senhora ; dou-
o se me concederem licença de dormir
mais esta noite debaixo da cama do rei
Sardão, que está nesse palácio.
A aia foi outra vez dizei o á princeza
que logo a mandou entrar.
Como na primeira noite, deitaram dor-
mideiras na comida do rei Sardão que
logo se recolheu aos seus aposentos e
adormeceu n"um somno muito pesado.
K a mulher do sarilho d oiro, que era D.
Leonor, metteu-se outra vez debaixo da
cama, bradando muitas vezes em alta
voz :
— Rei Sardão, lembra-te da rainha
D. Leonor que de três peças d'oiro que
tinha so tem uma . . .
Mas o rei, como na primeira noite,
não ouviu.
Tornou D. Leonor a retirar-se, vol-
tando pela terceira vez a postar-se em
frente do palácio, dobando meadas na
sua dobadoira doiro.
A aia qne estava, como nos outros
dias, penteando a princeza, disse-lhe :
— O' princeza, que linda dobadoira
para aquelle dia I'. . .
— \'ae-lhe dizer se ta vende.
— \'endc-me essa dobadoira, mulher-
sinha ?
— Não a vendo, minha senhora ; d(ju-
a se me derem licença de dormir só mais
esta noite debaixo da cama do rei Sar-
dão, que mora nesse palácio.
Então a aia foi mais uma vez dizel-o
á princeza, que promptamente a man-
dou entrar.
F^izeram o mesmo que nas outras
duas noites, servindo-se das dormideiras
para fazer adormecer o rei Sardão, mas
a desconfiança levou-o a não tomar ali-
mento algum e recolheu-se aos aposen-
tos.
D. Leonor metteu-se debaixo da ca-
ma, como nas outras noites, repetindo :
— Rei Sardão, lembra-te da rainha
D. Leonor que de três peças doiro que
tinha não tem nenhuma,
O rei Sardão ouviu aquella voz, mas
não quiz responder. E D. Leonor retirou
para nunca mais tornar a apparecer dian-
te do palácio, á hora em que uma aia
penteava os loiros cabeílos da princeza.
Passados alguns dias faziam-se no
palácio todos os preparativos para feste-
jar o casamento da formosa princeza com
o rei Sardão. Fez-se o casamento, e
quando no fim do lauto jantar todos os
convidados palestravam alegremente, dis-
se o rei Sardão :
14
A TRADIÇÃO
— Senhores I Ku tinha uma chave e !
perdi-a ; mandei fazer uma nova, mas i
agora achei a velha. De qual me hei-de
utiHsar, da nova ou da velha ?
— Da velha, — bradaram todos.
— Pois então a minha verdadeira mu-
lher é a primeira.
E retirou-se do palácio, com muito
espanto de todos, para a elle nunca mais
voltar.
(Recolhidii <ia tradição omli
Esposende. Álvaro PINHEIRO.
JOGOS POPULARES
A província do Alemtejo ofterece aos
olhos do observador um vasto quadro
de jogos populares, o maior numero
dos quaes, segundo creio, não foram
ainda publicados. Muitos delles recom-
raendam-se por uma tal originalidade e
engenho, que não devem de iorma algu-
ma deixar-se perder, como succede a
tantas praticas tradicionaes que a acção
inexorável do tempo aniquila.
Alem do seu valor incontestável para
o estudo da ethnografia, possuem os
jogos uma altissima importância sob o
ponto de vista pedagógico. Autores dos
mais notáveis, baseando-se na sã fisiolo-
gia e na própria psichologia, preconisam
os jo^os como um dos melhores elemen-
tos d educação, merecendo por isso ser
conservados atravez das gerações.
Reservando para mais tarde todas as
considerações que o assumpto nos suge-
re, limito-me, por agora, á descripção
pura e simples dos principaes jogos usa-
dos na margem esquerda do Guadiana.
O ai*rioií (*)
Este jogo tem a sua origem nas epo
cas mais remotas, e é um dos que des-
pertam maior prazer entre os rapazes.
(•) Arrioz: arriol ou belindre, como dizem em
Lisboa.
Usa-se principalmente no outono, ha-
vendo o cuidado de procurar para elle
bons terreiros, planos e enxutos.
O arrioz é uma pequenina esfera de
pedra mármore ou massa rija e de su
perticie lisa. Joga-se deste modo : fir-
mando o bordo interno da mão esquerda
no chão, e encostando o arrioz ao bordo
interno do dedo polegar correspondente,
dá-se-lhe um piparote com o dedo médio
da mão direita. Graças a este piparote o
arrioz parte animado de bastante veloci-
dade, podendo percorrer uma distancia
relativamente grande.
Ao arrioz jogam g-eralmente os rapa-
zes dois a dois; mas podem entrar no
mesmo jogo três ou mais parceiros.
Vejamos em que consiste o jogo do
arrioz: Reunem-se os rapazes no logar
convencionado, munido cada um do seu
arrioz. Fazem uma cova no chão, e, pos-
tando-se, um de cada vez, a uma certa
distancia, atiram com os arriozes á refe-
rida cova. O jogador que consegue enfiar
na cova, pega no seu arrioz e, collocan-
do-se na posição acima descripia, joga-o
aos arriozes dos companheiros até errar
algum. Neste caso, o parceiro cujo ar-
rioz foi errado, entra em exercicio jogan-
do contra os outros arriozes.
Qualquer parceiro, emquanto joga,
pôde, querendo, dirigir o seu arrioz á
cova, e depois d'enfiar n'esta jogá-lo aos
arriozes dos companheiros. Mas, então,
se não enfia na cova, perde e dá a vez
ao companheiro a cujo arrioz apon-
tava.
Por cada vez que um arrioz enfia na
cova, ganha o respectivo jogador — dois,
e por cada estalo (estrumélo) que dá ba-
tendo com o seu arrioz n'outro, ganha —
quatro.
O parceiro que primeiro faz 24 ganha
o jogo, e recebe porisso do companheiro
com o qual acabou o mencionado jogo,
um arrioz ou qualquer outro objecto
previamente combinado, como uma mar-
ca, botão, etc.
O jogo do arrioz, assim como outros
que hoje constituem unicamente diverti-
A TRADIÇÃO
Ifí
mentos de rapazes, eram também usados
outrora por adultos, os quacs encontra-
vam n'estes exercícios um alegre e inno-
cente passatempo.
ADIVINHAS
(Serpa)
Ladislau piçarra.
SUPERSTIÇÕES
O Banho da Alma
Ha entro os habitantes do concelho
de Serpa a seguinte crença : Quando
qualquer pessoa morre, a alma separa-se
immediatamente do corpo e banha-se
em toda a agua que encontra em casa
do finado e nas habitações que lhe ficam
mais próximas.
Daqui o preceito da familia do morto
mandar acto continuo despejar o pote
da a»ua. as quartas, etc, a fim de nin-
guém se servir d'essa agua, considerada
impura.
Em abono do que acabo de referir,
vem a pello narrar um caso que se me
deparou no exercicio da minha profissão
clinica :
Um dia, ha proximamente dois annos,
indo visitar um doente, sua mulher, ainda
nova, M. C, natural de Serpa, quei-
xou-se me de náuseas e vómitos, dizendo
que attribuia este mal-estar a um nojo
que contrairá desde pouco tempo. De-
ra-se o seguinte facto : fallecera o avô
da doente, e esta tendo em seguida um
ataque nervoso, em que perdera os sen-
tidos, trouxeram-lhe uma pucara dagua
tirada das quartas. Sabendo depois que
havia bebido da mesma agua, onde jul-
gava ter-se lavado a alma do avô, foi
tomada do nojo acima citado.
Estas náuseas e estes vómitos podiam,
todavia, explicar-se d'outra forma que
não a do simples nojo, pois que M. C.
se achava no seu estado interessante.
L. P.
OS DEDAES
Somos mais de cem irmãos
'Spnlhados em todo o mundo :
Nem todos temos coroa,
E nem todos temos fundo.
Alguns homens nos perguntam,
FI as mulheres nos procuram ;
L)e tanto que lhes servimos,
Deixam-nos quando nos furam.
li
O COMPASSO
Eu, ave não sou,
E corpo não tenho ;
As pernas me afamam.
Sem pés vou e venho.
Sei que tenho cabeça
E que tenho dois bicos ;
E com estes meus passos
Sirvo a pobres e a ricos.
Com meus passos curtos
Cidades abranjo ;
No ceu e na terra
Mil coisas arranjo.
ITT
A ALCACHOFRA
Está uma csphera armada
Com armas para temer.
Eu só, uma pobre mulher,
Tenho que dar que comer.
Dá tinha, que tinha,
(Que não adivinha ! )
Até mais não poder ser.
IV
A MELANCIA
Verde é meu nascimento.
Sempre tenho estado presa.
Tenho agua entre mim :
Sou fresca de natureza.
(Da tradkão oral)
(Serpa)
CASTOR.
A TRADIÇÃO
BIBLIOGRAPHIA
Faltos religioso» (testas e procissões), por
Sousa Viterbo. — O erudito escriptor lisbonense
Senhor Doutor Souza Viterbo, nosso distincto
collega do Diitrio de Soticu7s. e que hoje nos
concede a subida honra da sua prestigiosa col-
laboração, publicou ha pouco um interessante
trabalho de investigação ethnographica subor-
dinado ao titulo Fustas reliiziosos (festas e pro-
cissões). K' um elegante opúsculo de 32 paginas
(grande formato) no qual o Senhor Doutor Viter-
bo colligiu, annotando-os com toda a proficiên-
cia, numerosos e valiosos documentos sobre anti-
gas cavalgadas, romarias, confrarias e procissões,
em grande parte já extinctas.
Os referidos documentos, extrahidos labo-
riosamente d'entre os vetustos archivos da Tor-
re do Tombo, encerram um verdadeiro manan-
cial de inestimáveis íubsidios para a historia do
sentimento religioso do povo portuguez, nas suas
múltiplas e variadas manifestações tradicionaes.
Do opúsculo em questão apenas se fez uma
tiragem reduzida e que não entrou no mercado.
Agradecemos ao auctor, muito penhorados,
a captivante olíerta do exemplar com que nos
distinauiu.
Dezoito annos em Africa, por Trindade Coe-
Iho. — A' penhorante amabilidade do seu auctor,
o Senhor Doutor Trindade Coelho, devemos a
posse do importante livro De:ioiío ânuos cm Afri-
ca, que foi publicado em justa homenagem ao
insigne funccionario portuguez no ultramar, o
Conselheiro Senhor José d'Almeida.
O que é este livro ? Dil-o, na sua vigorosa
phrase castigada e brilhante, o Senhor Doutor
Trindade Coelho : — «é a exposição impressa,
chronologicamente ordenada, doa principaes do-
cumentos de caracter publico e official que as-
signalam actos, também de caracter publico, e
de caracter official também, da vida intensamen-
te laboriosa, e singularmente prestante, do func-
cionario a que diz respeito».
Ao mimitavel contista de Os meus amores,
ao laureado mestre do moderno conto portu-
guez — a expressão sincera do nosso agrade-
cimento cordial.
Huvens (versos), por J. Leite de Vascon-
cellos. — O nosso presado amigo Senhor Dou-
tor J. Leite de V&sconcellos — um eminente ho-
mem de sciencia doublé d'um poeta distinctis
simo — acaba de brindar-noi com o seu ultimo
livro de versos — Nuvens.
Lemos com summo interesse as novas com-
posições pocticasdo inspirado auctor das*6íí//aíZíJS
do Occidente, e de todas nos ficou grata impres-
são. Apraz-nos porem especialisar, por serem as
que mais nos vibraram, as poesias intituladas
Aspira<;ões, Bucólica, IWa minha sepultura, That
is the question, e In extremis.
Acceite o Senhor Doutor Vasconcellos um
affectuoso aperto de mão, significativo dos nos-
sos agradecimentos e parabéns.
Arte, por Paulo Osório e Júlio de Lemos. —
Por causa d'uma apreciação litteraria ao livro
Tragedia na provinda, de Alberto Pinheiro, em-
penharam-se em rija pugna na liça da imprensa,
dois novos de superior talento e vastos recursos
intellectuaes — Paulo Osório, o estylista delica-
do e subtil que dirigiu a Alvorada, e Júlio de Le-
mos, o prosador elegante e vernáculo que temos
lido e admirado no conto e na critica. Fói a ar-
te o motivo d'essa pugna, em que ambos os con-
tendores souberam terçar, como perfeitos geií-
tlemen que são, as espadas toiedanas dos mais
finos argumentos. Ambos ficaram vencedores,
porque ambos afinal tinham razão. E assim, é
natural e lógico o que succedeu : após o comba-
te, apertaram-se as mãos e uniram estreitamen-
te as armas inimigas ; olferecendo-nos agora em
commum opúsculo os deliciosos artigos que cons-
tituem a Arte.
Para ambos, pois, calorosos embora se o tes-
temunho leal do nosso muito apreço.
Influencia dos descobrimentos portugueres na
historia da civilisaçào, por Consiglieri Pedro-
so. — Para celebrar o quarto centenário da des-
coberta da índia, realisou o Senhor Consiglieri
Pedroso em 2<) de Novembro de q?, na Socieda-
de de Geographia de Lisboa, uma importante
conferencia, que depois foi publicada em folhe-
to sob o titulo que nos serve de epigraphe.
Aqui deixámos consignado o nosso reconhe-
cimento ao notável publicista e sábio lente do
Curso Superior de Lettras, pelo exemplar com
que nos honrou.
Para as creanças, por D. Anna de CaStrO
Osório. — Recebemos e agradecemos o n.° 19, i."
da 4." serie, da excellente publicação Para as
creanças, que a talentosa auctora dos Infelizes,
a Senhora D. Anna de Castro Osório, continua
a redigir com o maior esmero.
Bulletin des 1. — Temos presente o bole-
tim, relativo ao mez findo, da prestimosa e flo-
rescente associação parisiense des 1, de que é
presidente o Conde de Kératry e secretario geral
o reputado causidico Doutor Albert Rousseau
D. N.
A.I1UO I — N." Vi
SE&FÀ. Fevereiro de 1899
íi^ri*» I
Editor-administrador, Jote Jeronymo da Costa Bravo de Segreiroi, Rua Larga, 2*4 — SERPA
Typosraphía áe AJolpho de Afendotifa, Kua do Corpo S«i>lo, 46 e 48 — LISftOA
A TRADIÇÃO
>
REVISTA MENSAL DETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
Directores : — LADISLA U PIÇARRA e M. DIAS NUNES
O CARNAVAL
As testas do carnaval, mau grado a
sua remota origem nas bacaiiaes e satur-
naes romanas^ encontram-se ainda sobre-
modo radicadas na villa de Serpa, — como
aliaz nas demais terras do paiz. Olhando
para o velho e clássico entrudo, achamo-
nos, pois, em presença d'uma festa po-
pular que a tradição tem mantido atra-
vez das gerações, passando muito embo-
ra por vicissitudes próprias do caminhar
constante da sociedade.
Ao delinear este singelo artigo, de for-
ma alguma pretendemos tratar do car-
naval sob o ponto de vista da sua histo-
ria ; o nosso propósito, mais simples e
modesto, reduz-se a descrever o que seja
o carnaval em Serpa, indicando as par-
ticularidades que elle aqui reveste e lhe
imprimem uma feição etnográfica local.
O carnaval no município de Serpa cos-
tuma, por assim dizer, annunciar-se por
meio de letreiros e toscos desenhos, fei-
tos a fungão, nas paredes exteriores dos
prédios.
São geralmente os rapazes que se en-
treteem a riscar nas paredes toda a sé-
rie de garatujas, sobresaindo as figuras
obscenas.
Em certas localidades deste concelho,
em Brinches por exemplo, attingem as
referidas illustraçôes uma tal extensão e
grosseria, que enchem de repugnância e
indignação toda a gente circumspecta e
digna, a quem se depara o indecoroso
espectáculo. Os letreiros são, muitas ve-
zes, torpes allusões á vida intima das fa-
mílias. Convém notar que taes manifes-
tações, reveladoras d'uma evidente de-
pressão moral, devem-se, em grande par-
te, á mocidade adulta da terra, que d"es-
te modo, ou patenteia cupidos instinctos,
ou então sacia animosidades e vindictas.
Um outro divertimento, bastante pri-
mitivo e pouco engraçado, usado aqui
na época carnavalesca, é o das c'j.^//(.'/rí.7-
cias. Estas são atiradas, ordinariamente
de noite, para dentro das casas cujos
moradores se acham descuidados. Um
postigo aberto, uma porta mal fechada,
eis no que andam á espreita os empenha-
dos em tão extravagante brincadeira.
Concebe-se facilmente o que a fantasia
popular nos poderá offerecer, no que res-
peita a este género de distracções: ca-
queiros com terra ou cinza, cascas de
laranjas e mariscos, pedras, etc; n'isto
consistem as caqueiradas. E não deixa
de ser curiosa a lembrança de lançar cm
casa de qualquer cidadão um pedragu-
Iho bem quente ao lume, afim d'escal-
dar as mãos que inadvertidamente lhe
pegarem.
As quatro semanas que precedem os
três dias dentrudo, designa-as o povo, e
por sua ordem : semana d'amigos, sema-
na d'amigas, semana de compadres e
semana de comadres. Nas quintas feiras
da primeira e terceira semana, os rapa-
zes de maior lidação entre si teem por
costume reunir-se em casa dum d'el-
les para ahi, alegres e contentes, come-
rem, beberem e cantarem. A estas pe-
18
A TRADIÇÃO
quenas festas em família, chamam elles
— fazer amigos ou compadres, conforme
a reunião é na quinta feira damigos ou
de compadres.
A seu turno, as raparigas, as mais ap-
proximadas pelos laços da afteição, cos-
tumam egualmente — fazer amigas e co-
madres, nas respectivas quintas feiras.
E, á similhança dos rapazes, reúne um
grupo delias em c;isa d'uma, e nessa
casa comem, cantam e bailam, animadas
pela mais intima satisfação.
Quando duas amigas querem ser co-
madres, ha um pequeno cerimonial, que
não deixaremos de registar. Consiste em
darem-se os dedos minimos da mão di-
reita, e, entrelaçando-os, dizerem :
nComadre, comadre,
Comadre querida :
Fazemos comadres
Para toda a vida».
As duas semanas de compadres e co-
madres são habitualmente consagradas
á arte venatoria. Por esta occasião, os
caçadores, reunidos em grupos, dirigem-
se dordinario para a Serra e lá conso-
mem os dias em procura da apetecida
presa. No fim da semana de comadres
regressam a casa os caçadores, alguns
carregados de coelhos, tornando-se por
isso alvo da admiração popular.
A caça é uma arte assaz estimada
n'esta região e que muitos ainda exer-
cem com verdadeiro enthusiasmo.
Não é, porém, este o momento oppor-
tuno de nos occuparmos d'uma tal di-
versão, que bem merece ser descripta
em todas as suas minudencias.
Mas, proseguindo na descripção do
nosso carnaval, diremos que, no periodo
comprehendido entre 20 de Janeiro e o
Domingo Gordo, nota-se maior anima-
ção, sobretudo entre os novos, que não
cessam d'entreter o espirito dirigindo-se
f graças, ditos picantes, enganos e arre-
ias. Destas ultimas, por serem um tanto
curiosas, damos em seguida alguns exem-
plos : A' noite, quando cada um está
muito socegado á lareira ou devorando a
ceia, é frequente ouvir bater o badalo
da porta: são garotos a quem acode a
importuna lembrança d'atarem um cor-
del ao mencionado badalo e de pucha-
rem por elle, depois de collocados a uma
certa distancia. A pessoa que vem á
porta, não divisando ninguém, reconhece
que é partida d'entrudo. Outras ve-
zes, ouve-se bater á porta ; pergunta-se :
«quem é?», e a esta innocente interro-
gação respondem de fora qualquer das
phrases : «se está sentado, ponha-se de
pé», ou «a minha frieira no seu pé», ou
ainda «manda dizer o balha-balha, que
accommode a sua canalha».
Antigamente era perigoso, pelo carna-
val, passar qualquer varão próximo d'um
rancho de raparigas do trabalho, porque
ellas bem depressa o agarravam e lhe
infligiam toda a casta de judiarias.
O decorrer dos annos tem, felizmen-
te, suavisado esta pratica terrivel., e hoje
não ha, póde-se dizer, o menor risco
em transitar pelo campo durante o en-
trudo.
São também já volvidos os tempos em
que as laranjas e as seringas (de metal
ou de canna) desempenhavam papel im-
portante entre os divertimentos carnava-
lescos. Actualmente vemos — e ainda
bem — as laranjas substituídas pela fa-
gulha do trigo e por papelinhos, e a his-
tórica e temivel seringa, pela graciosa e
aromática bisnaga.
Chegados os três dias de carnaval, re-
dobra — escusado será dizel-o — o mo-
vimento d'alegria : As vendas de bebidas
constantemente atulhadas d'amadores do
chá de parreira; pelas ruas grupos de
populares cantando e berrando a plenas
guelas, e fazendo resuscitar todas as
modas, que apparecem n'esta occasião
como uma perfeita revista; bailes por
toda a parte, onde noite e dia se dança,
canta e pula. Note-se que as pessoas que
bailam se apresentam sempre de cara
descoberta; bailes de mascaras, não nos
consta que, até hoje, se tenha aqui reali-
sado algum. Em todo o caso, não faltam
nas ruas mascarados, assim como danças
A TRADIÇÃO
19
Ê^Ll^I^ DE
.; y[)i'íh'iM
II
Camponeza vindo da fonte (Serpa)
so
A TRADIÇÃO
e rapazes buzinando em caules de cardos
chamados — de segredo.
Também é da praxe tirarem os man-
cebos os lenços ás respectivas namora-
das, e trazerem-nos ao pescoço até res-
tituirem-lhos, o que só fazem em quarta
feira de cinza.
Nestes dias, o povo, saltando por cima
das conveniências prescriptas na boa ci-
vilidade, usa d uma linguagem demasia-
damente licenciosa, dando livre expansão
ás tendências coprolalicas, que aliaz se
revelam quotidianamente.
Não devemos esquecer que, nos dias
dentrudo, toda a gente procura saborear
as melhores iguarias, reinando á sobre-
mesa, as filhozes, os coscorões, os boli-
nhòlos e o apreciável arroz doce.
Após o carnaval vem a quarta feira de
cinza, e a tarde d'esse dia aproveita-a
ainda a mocidade para, em alegre roma-
ria, ir bailar e cantar junto da ermida de
Nossa Senhora da Guadalupe, situada
sobre o cume do mais elevado dos mon-
tes que circundam a villa.
Para terminar esta breve descripção,
publicamos, a seguir, algumas quadras
populares allusívas ao entrudo (i).
Já lá se vae o entrudo
Oom gallinhas e capões ;
Agora vem n'a quaresma,
Estudam-se as orações.
Já lá se vae o entrudo
Com gallinhas e carófos ;
Agora vem n'a quaresma,
Resam-se Oa padre -nossos.
Já lá se vae o entrudo
Pelo barranco da nora,
Gritando em altas vozes :
«A quaresma me põe fora !»
Oh moças ! não se admirem
De eu cantar e ser viuvo,
Que eu canto com alegria
De vêr fugir o entrudo.
Ladislau piçarra.
(*) M- Dias Nunes : Cancioneiro popular do
Baixo-Alemtejo, prestes a sair á luz.
Danças populares do liaixo-Aleiíilejo
As danças populares do Baixo-Alem-
tejo pertencem, em parte, á categoria
das religiosas, em parte, na maior parte,
na quasi totalidade mesmo, ás denomi-
nadas danças damor.
O primeiro género de danças, embora
em manifesta decadência, ainda pôde
observar-se em diversas festas religiosas
de arraial, onde valentes mocetões de
rosto crestado, largas espáduas e amplo
thorax, suam e tressúam, n'uma espan-
tosa desenvoltura de gestos e attitudes,
ao langoroso som de tamboril e gaita.
Em Aldeia Nova de S. Bento, do con-
celho de Serpa, celebra-se annualmente,
em 1 1 de Julho, uma ruidosa festa, a do
Cirio, cujo principal attractivo consiste
na exhibição de extraordinária dança,
em que ha complicados movimentos e
passos e volteios ; uma dança antiquis-
sima, secular, executada por sete anjos
(assim chamados) — sete robustos cam-
ponezes, vestidos de calção e meia, ca-
misola branca, faixa de seda a tiracollo,
e na cabeça, monstruosos chapéus de
pello, ornados de lãs e fitas e flores e re-
luzentes bugigangas de latão !
E fazem a inveja dos camaradas, e o
encanto das camponezas suas patricias,
estes maganões !
Ha poucos annos ainda, e por occasião
da festa de S. Pedro, também os nume-
rosos pastores que pertencem a Serpa,
realisavam uma dança, deveras interes-
sante, em deredor á ermida d'aquelle san-
to, e desde a ermida, atravessando as ruas
da villa, até casa dos festeiros.
Aqui, os dançadores, todos irmãos do
santo, vestiam o trajo caracteristico do
seu mister — calção e polainas, jaqueta,
e larga cinta, negra ou escarlate. Dan-
çavam sempre em cabello — ás vezes
debaixo d'um sói ardentissimo — e com
a opa branca da irmandade.
E mais e mais danças religiosas, nas
festas d'arraial, por este Baixo-Alemtejo
fora: — na festa do Espirito Santo, em
A TRADIÇÃO
21
Aldeia Nova de S. Bento ; na festa das
Pazes, em Ficalho; na festa da Tumina,
em Santo Aleixo; na festa de Santa Lu-
zia, em Pias; etc,, etc, etc
K' de notar que este género de dança,
cuja origem remonta a muitos séculos,
era outrora executada não só por ho-
mens, tal como hoje ac<jntece, — mas
tiimbem por mulheres, em algumas so-
lemnidades de caracter religioso e oífi-
cial.
No códice de 'Posturas da Notarei
lilla de Serpa^ feito em 1086, e confir-
mado em auto de correição, no anno de
i()S7, pelo Ouvidor da cidade de Beja,
Mathias Patto Gotta, vem um artigo, o
loo.", com bastas allusões ao assumpto
em questão. Por isso e por nos parecer
sobremodo curioso, o referido artigo, va-
mos transcrevel-o na integra, sublinhando
as phrases que mais interessam ao nosso
estudo.
E' assim concebido (textualmente) :
«Por antiguissimo costume são os hor-
tallois obrigados a mandarem á procis-
são do Corpo de Deos de cada anno um
carro muito bem goarnecido de verdura,
e os sapateiros com o drago e diabrete
e os alfaiates com a serpe e os merca-
dores com dois cavallos fuscos e os
marsseiros e tindeiros com hua toura, e
os vendeiros de fruta com duas pellas, e
os taverneiros com hua dansa de seis
pessoas bem vestidas com violla e tocador
delia e as padeiras com hua dansa de
seis mossas bem ristidas com violla e to-
cador delia ao que não faltarão com es-
tas obrigaçois sob penna de pagarem os
juizes dos ofícios de sapateiros alfaiates
e hortallois dois mil reis não vindo á
dita procissão como que nesta postura
lhe he encarregado, e com suas bandei-
ras e de pagarem os mercadores que
são obrigados a dar os cavalinhos fuscos
cada hú mil reis não vindo ambos os di-
tos cavalinhos fuscos á procissão, e os
marceiros, e tindeiros que são obrigados
a dar a toura pagarão cada hu quinhen-
tos reis faltando a esta obrigassão, e os
taverneiros que forem nomeados para da-
rem a sua dansa e faltarem com ella pa-
garão de penna dois mil reis cada hu e
as padeiras que forem nomeadas para
darem outro sim a sua dansa pap;aram
de penna mil reis cada hua faltando á
sua obrip;ação e as vendeiras de fruta
pagaram outro sim mil reis faltando á
sua obrigação o que todos assim paga-
ram de cadea pela primeira vez que ou-
ver falta porque na segunda pagaram as
pennas em dobro coin trinta dias de ca-
dea e os constrangerão pela camera a
tudo terem muito bem preparado para
acompanhamento da dita procissão e as-
sim mandaram se comprisse.»
Como é sabido, a dança religiosa, nas
suas várias formas, encontra-se intima-
mente ligada a certas festas populares e
tradicionaes da egreja. Quando, pois, tra-
tarmos de cada uma d'essas festas, que
todas entram no programma dos nossos
estudos, descreveremos, então, em seus
pormenores, a dança respectiva.
Agora vamos occupar-nos mais deti-
damente de as — danças d'amor.
Sem querermos fallar da antiga ga-
vota, das varsovianas, e do jacé de con-
tradança, que tinham por assim dizer
uma feição aristocrática, mencionaremos
desde já, como danças populares e amo-
rosas, usadas no Baixo-Alemtejo, nomea-
damente na margem esquerda do Gua-
diana, os bailes de roda, o maquinéu^ os
pinhões, o seu pésinho^ o fandaní^o, os es-
calhavardos^ o sarilho^ e o fogo dei fu-
:{il. Depois completaremos a lista.
Excepção feita para os bailes de roda,
ainda em pleno vigor, as demais danças
que citámos, quasi que deixaram de pra-
ticar-se e apenas subsistem na lembrança
das pessoas edosas. D'a!gumas, conse
guimos ainda, não sem grande difficul-
dade, recolher a musica própria, que to-
das possuiam, e reconstituir a forma do
bailado ; d'outras, porem, tão somente o
nome lográmos conhecer.
22
A TRADIÇÃO
Os bailes de roda, como vulgarmente
se designa este género de dança, ou são
nu weio ou aos y^rcs.
Quando ao meio, homens e mulheres,
indistinctamcnte, formam dando-se as
mãos uma grande cadeia circular. Acto
continuo á formação desta cadeia, vae
para o centro um par, o primeiro que
mais lesto andou ; e logo irrompe uma
cantiga entoada por uma voz, a que ou-
tras e outras e todas as vozes dos cir-
cumstantes, por hm., fazem coro.
Ao mesmo tempo — obedecendo todos
ao rhvthmo da cantiga — o par volteia
no centro como a polkar, e a cadeia vae
rodando, rodando sempre, em continuo
movimento. Finda a cantiga Separa-se
o par: o homem procura, d'entre as do
circulo, outra mulher, e a mulher imita
o seu primeiro par, substituindo-o por
outro homem. Foiçam assim dois pares no
meio. Simultaneamente, sem que os daii-
çadores hajam descançado, começaram
a m.oda-estribilho, a cuja musica a can-
tiga obedecera. Terminada a moda reti-
ra-se o primeiro par, que vae encorpo-
rar-se na cadeia, e vem para o centro,
em seu logar, um novo par, escolhido a
contento do par que ficou, do mesmo
modo por que este já fora escolhido pelo
que o antecedera.
Depois volta-se ao principio: — nova
cantiga rhythmada pela moda favorita,
pares ao centro em movimento de polka,
e a grande cadeia — mãos entre mãos —
a rodar, a rodar continuamente.
A substituição do par mais antigo
faz se sempre que a cantiga termina e a
moda-estribilho principia.
Do par que se encontra no meio ao
findar o baile, diz-se — que ficou Sara-
mago.
Succede ás vezes, n'estes bailes, com-
binarem-se quatro pessoas, duas de cada
sexo, para se preferirem mutuamente na
procura de pares e sempre, d"ess'arte,
estarem no meio.
A isto, que não raro é motivo de gran-
des discórdias, chama-se aqui — fazer
monte-pio ; e em tal caso, os homens e
as mulheres que andam na cadeia a ti-
rai' agoa^ segundo a expressão consa-
grada, soem cantar numerosas quadras
allusivas ao facto, ora azedas ora chis-
tosas, como as que seguem:
Minha mãe tem lá'ma renda,
Uma renda d'entremeio.
Eu não sirvo aqui d'amparo,
Também quero ir ao meio.
Minha mãe tem lá 'ma renda,
Uma renda d'entremeio.
'Stou-me rentando no balho
Se não me levam ao meio.
Minha mãe tem lá 'ma renda,
Uma renda de tresmalho.
Se me não levam ao meio,
'Stou-me rentando no balho.
Já não quero tirar agoa,
Que já tenho o tanque cheio.
Se meu bem aqui estivesse,
Já eu andava no meio !
Dêem as mãos uns aos outros,
Que me quero ir embora;
Quem quizer agoa tirada,
Compre uma besta p'rá nora.
Eu não sirvo de parede,
Também quero ir balhar ;
Se me não levam ao meio,
Salto p'rá rua a chorar.
Minha mãe tem lá 'ma renda
Toda feita á franceza.
Se me não levam ao meio.
Vou-me embora com certeza.
Quem tem cabras vende leite.
Quem tem porcos tem presuntos.
Oh moças ! levem-me ao meio,
Por alma dos seus defunctos !
O' moças, levem-me ao meio
Com toda a delicadeza ;
Se me não levam agora,
Então fallo com aspereza.
Ind'agora tinha calma,
Agora já tenho frio.
O' meninas lá do meio.
Cautela co'o montepio!
A TRADIÇÃO
as
Ind'agora tinha calma,
Agora já tenho frio.
Se me nào levam ao meio,
Vão pVás mães que as pariu.
Eu também quero balhar,
Já vou estando zangado !
Se me não levam ao meio.
Já me vou emhor' pVó gado.
Vou a dar a despedida,
Nas costas d'uma vidraça.
Se me não levam ao meio.
Vou a dar coices á praça 1
Minha mãe tem lá 'ma renda.
Uma renda que eu lhe fiz.
Se me não levam ao meio,
Vou fazer queixa ao juiz.
Eu também quero balhar !
Oh ! Que desgraça é a minha !
Se me não levam ao meio.
Vou fazer quei.xa á rainha.
O' moças, levem-me ao meio.
Em que seja uma vez só !
Oh ! Que desgraça é a minha !
Nenhuma de mim tem dó !
Semeei no meu quintal
A semente do repolho.
Oh moças, levem-me ao meio.
Que me está luzindo o olho !
O' moças, levem-me ao meio,
Quer' balhar um poucochinho;
Quando não, vou-me pVa casa
A comer pão com toucinho.
O' moças, levem-me ao meio,
Ja vou estando zangado!
Se acaso me não levam.
Parto a canastra ao diabo !
(Continua)
M. Dias NUNES.
CKENÇAS & SUPERSTIÇÕES
Bichos uterinos
Crêem as parturientes da classe popu-
lar, que, dentro da cavidade uterina, e
juntamente ao feto, se geram bichos de
varias formas e feitios, capazes de lhes
roerem as entranhas.
Affirmam, ainda, as mulheres do povo,
com toda a sua primitiva ingenuidade,
que estes bichos se assimelham, exa-
ctamente, a ratos toupeiros, sapos, eic,
e saem ás vezes do corpo ainda vivos,
começando a andar no meio da casa.
Até succede — é crença popular que
jà tenho ouvido referir a algumas pes-
soas — saírem os mencionados bichos, a
correr como coriscos, indo csconder-sc
por detraz de qualquer rriovel !
As parteiras daqui, que não possuem
curso algum ofTicial, são as próprias a
alimentar esta crença extravagante; e
recommendam por isso ás suas clientes
que bebam quanta aguardente puderem,
para, mercê da ingestão do espirituoso
liquido, matarem os bichos que já exis-
tam no útero ou por ventura ali venham
a desenvolver-se.
A aguardente, ná opinião d'estas po-
bres creaturas, tem a singular virtude de
anniquilar o bicho, preservando o feto !
Não podemos deixar de lastimar uma
crença tão absurda, e de condemnar, da
maneira mais peremptória, a pratica al-
tamente nociva de ministrar álcool ás
parturientes; porque dahi resulta uma
dupla intoxicação, para a mãe e para o
filho.
Como consequência fatal de similhante
pratica, não raro se produzem casos de
aborto, cuja gravidade representa um
severo correctivo para quem, desgraça-
damente, não possue outro guia, que não
seja a mais profunda ignorância.
Aquillo que ás pessoas do povo se afi-
gura ser um bicho, não passa, evidente-
mente, d'uma simples mola, quando não
é, apenas, um feto pouco desenvolvido.
Serpa.
FILOMATICO.
IVIodas-estPibilhos alemtejanas
A primeira e lonja série de modas-es-
tribilhos que vamos publicar, ao mesmo
tempo n'esta secção e no Cancioneiro
u
A TRADIÇÃO
Tuusic.il, toi inieirameiue recolhida na
villa de Serpa.
Aproveitaremos, por isso, todo o en-
sejo que se nos ortereça para continuar-
mos o estudo da linguagem local.
Cumpre explicar desde já, que, em
Serpa, — como de resto, creio, em todo
o Baixo-AIemtejo, — o povo denomina
«estvlo» a musica ao rhythmo da qual
entoa as suas cantigas; e chama «resque
bre» (corrupção de requebro) á lettra de
qualquer amoda)>.(') A lettra, ou res-
quebre. conjugada ao estylo constitue a
tmoda».
Ha, porém, varias modas que não pos-
suem resquebre.
A cantiga dilTere principalmente do res-
quebre em não ter, como este tem, mu-
sica especial.
A série de modas cuja publicação hoje
iniciamos, — umas, simples descantes,
choreographicas outras, — possuem to-
das o competente resquebre, que se diz,
invariavelmente, depois das cantigas e
logo após cada uma destas. Eis porque
adoptámos o titulo de — Modas-estribi-
Manuelsinho, vocô chora
Manuelsinho, você chora,
Você chora, quem lhe deu?
Qual seri' ó atrevido
Que o Manuelsinho oífendeu!
Hufam-se as caixas no Porto,
K o meu coração no teu !
Manuelsinho, você chora.
Você chora, quem lhe deu?
Notas. — A musica d'este resquebre,
inserta n'outro logar da nossa revista.
convém precisamente aos bailes de roda
e ao meio^ já descriptos.
Como o resquebre é composto de duas
quadras, ha que bisar, dois a dois, os
versos das cantigas que quizermos subor-
dinar á moda do Manuelsinho.
M. Dias NUNES.
(') Na linguagem popular de Serpa, a palavra
resquebre também se emprega no sentido de fa-
ma, reputação. Diz-se — deitar bom ou máo res-
quebre d'alguem.
D. N.
Habitação, mobiliário e ntensilios domésticos
I
Habitação
Com este nosso ligeiro artigo vimos
hoje inaugurar na Tradição os interes-
santes trabalhos de investigação ethno-
graphica relativos á habitação, mobiliário
e ntensilios domésticos das classes popu-
lares.
Começando por tratar da habitação,
referir-nos- hemos á margem esquerda do
Guadiana, e particularmente ao que se
observa em Brinches^ aldeia do concelho
de Serpa, cuja população orça por 2.700
almas.
E' d'esta aldeia, situada entre Serpa
e Moura, a três kilometros do Guadiana,
com um solo riquissimp. e que exporta
muitos cereaes, azeites e gados, que nos
vamos occupar.
— As casas d'habitação, sem se re-
commendarem pelo luxo e pela elegân-
cia, offerecem comtudo umas certas com-
modidades e uma tal ou qual originali-
dade, que merece bem as honras duma
pequena descripção.
Pondo de parte a architectura, que é
uma incógnita n'estes sitios, a não ser
n'um ou n'outro prédio d'individuos um
tanto abastados, onde se lobriga e adivi-
nha a pretenção do pedreiro em apre-
sentar capiteis toscanos, pouco mais se
vê do que construcções ruraes, feitas
quasi exclusivamente de taipa e alvena-
ria. Os materiaes empregados n'estas
A TRADIÇÃO
25
ff
5T
■'^'7-'-
efmeiGRsiRe líiuâiepL
1 1
MANUELSINHO, VOCÊ CHORA
(CHOREOGRAPUICA)
3
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-• — • — f-
^^
^\-cV_ \\.\.vx\^_ Ji\. _ vvVxjO,
26
A TRADIÇÃO
consirucçÕes são : tijolo, lambas, baldosa,
adobo, telha e pedras muito variadas,
taes como as calcareas, as argilosas, as
siliciosas, e d'estas, particularmente o
granito, muito abundante n'esta região.
A espessura das paredes exteriores va-
ria entre o™, do e um metro nas alvena-
rias, e a altura, entre ^"^So e 6 metros
— primeiros andares.
A disposição dos prédios é tão irregu-
lar, que ditíicilmente se encontra uma
rua bem alinhada. Se passasse por aqui
a fita métrica dum engenheiro, tinha de
ordenar uma verdadeira derrocada. E'
raro o prédio que não tem um, dois ou
mais poiaes á porta, ou dentro de casa,
porque os pavimentos ficam uns mais
altos e outros mais baixos do que a rua.
CompÕem-se os prédios, em geral, de
um a quatro corpos.
A disposição interior dos comparti-
mentos é sempre um motivo de grandes
discussões entre amigos e conhecidos,
notavelmente, se entre elles ha alguns
entendidos e que tenham grande risco —
phrase sacramental no sitio.
Na maioria dos casos, a divisão é as-
sim feita : porta d'entrada abrindo para
um corredor que atravessa o prédio a
todo o comprimento ; aos lados da porta,
o escriptorio, saleta e sala com janellas
para a rua, formando a frente ; a seguir
e lateralmente, ha os quartos interiores
communicando uns com os outros e re-
cebendo luz, ou por frestas abertas nas
paredes, ou por espécies de clara-boias
feitas nos tectos, quando são cobertos
com ripa ou canna. A sala de jantar, si-
tuada perto da cosinha. communica por
meio de portas e janellas com o pateo,
varanda ou terraço, quasi sempre com
larguíssimos horisontes.
A cosinha, umas das divisões mais
importantes do prédio, é, em regra, uma |
casa espaçosa, banhada de luz e ar. No
inverno desempenha a cosinha um papel
importantíssimo: das 6 ás lo ou // ho-
ras da noite, a vida passa-se exclusiva-
mente nesta casa, á roda da tradicional
lareira, onde chegam a abrigar-se 12 e
i5 serões, jogando a bisca lambida^ co-
mendo o bello magusto, falando, proje-
ctando, e discutindo os assumptos mais
extraordinários, a que não é alheia uma
pontinha de mcá lingua das sr.^^ coma-
dres. Os contos e as historias da prin-
ce'{a Mafçdalona e do João de Calais,
teem também grande rasgo n'estas noi-
tes.
As asnas não se empregam por aqui ;
sobre os últimos fios de taipa assentam
directamente os barrotes de pinho, ou
de castanho de 18 a 24 palmos de com-
primento, e a estes sobrepõe-se o canniço
de ripa ou de çanna, pregado aos bar-
rotes e recebendo directamente as te-
lhas. A juncção das ripas, ou das cannas,
para formar o canniço é feita de dois
modos: ripa ou canna muito unida — can-
niços fechados; canna ou ripa posta com
intervalos de três a quatro dedos — cati-
niço de salto de rato.
Este género de canniços destina-se ás
casas que necessitam de maior ventila-
ção, e veem-se frequentemente nas habi-
tações dos proletários, como medida eco-
nómica.
Nos tectos de canna mais confortáveis
emprega-se com frequência a cal espa-
lhada em camada, sobre o canniço, dis-
tribuindo-se de seguida a telha ; obtem-se
assim o que elles chamam uma casa ca-
lafetada.
Nos prédios de gente mais graúda en-
contram-se, a cada passo, abobadas e
abobadilhas, vendo-se então, n'algumas,
o gesso em grande abundância, porque
o mestre não poupa material. Quanto
mais gesso, melhor e mais bonito — é a
theoria; e a propósito cito, como exem-
plo, um tecto fasquiado — único! — enfei-
tado com centenares d'estrellas e quadra-
dinhos de gesso, assentes sobre um fundo
azul da Prússia !
Tudo isto se refere aos prédios mo-
dernamente construídos, porque nos de
construcção antiga, a divisão interior dos
diíferentes compartimentos não obedece
a principio algum.
Os compartimentos succedem-se uns
A TRADIÇÃO
27
aos outros, para a direita, para a es-
querda c para a frente, n'uma desordem
e confusão tal, que necessário se torna
um guia para que uma pessoa se não
perca n'aquelle labyrintho.
Teem de notável o suíãu da /'ancila^
3ue é o compartimento mais resguar-
ado, e só accessivel e franqueado, nos
dias de festa, a pessoas de certa ordem ;
é o que corresponde á sala de visitas.
Notam-se em quasi todas estas habita-
ções vestigios de communicação com os
prédios visinhos, e dizem os velhos ser
medida adoptada cm tempos maus para
mais facilmente fugirem á perseguição e
à vingança dos partidos contrários.
As portas e janellas, de dimensões ge-
ralmente acanhadas, nada teem de notá-
vel ; as antigas são todas inteiriças, gi-
rando sobre um só linha de gonzos e
com o postigo aberto a -f da altura ; são
quasi que exclusivamente de pinho, e
consta-me que se encontra ainda uma
ou outra d'azinho, madeira muito abun-
dante por aqui.
Nos pavimentos empregam-se as bal-
dósas, tijolos e a cal; vendo-se, todavia,
n'alguns prédios de recente construcção,
soalhos de pinho* e de tiandres, e alguns
pavimentos de cimento nos escriptorios,
salas e saletas.
Em muitos prédios antigos, a casa que
olha para o quintal é quasi sempre cal-
çada, e entre outras pedras apparece
em grande abundância o silex, as diuri-
tes e alguns pórphyros.
São rarissimos os prédios sem quin-
tal, e nos d'alguns indivíduos abastados
abrange uma grande área tendo como
dependências: os celleiros, adegas, pa-
lheiros e cavallariças.
O desideratum de todo o proprietário
é ter todas as dependências á mão, ou
debaixo d'uma só chai'e, como elles di-
zem.
(Continua).
Lopes PIÇARRA.
NOVELLAS P OPULARES MINHOTAS^
II
Era uma vez uma formiga muito dili-
gente, que ia para o moinho com um
sacco de milho ás costas. No caminho
prendeu-se-lhe um pé na neve. \'oltou-se
para o sol e disse-lhe :
— O' sol, tão forte és que não derre-
tes a neve que o meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que a parede me
encobre.
\'olta-se a formiga para a parede :
— O' parede, tão forte és que enco-
bres o sol que não derrete a neve que o
meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que o rato me
fura.
Volta-se a formiga para o rato :
— O' rato, tão forte és que furas a
parede que encobre o sol que não der-
rete a neve que o meu pê prende ?
— Tão forte sou eu que o gato me
mata.
\'olta-se a formiga para o gato:
— O' gato, tão forte és que matas o
rato que fura a parede que encobre o
sol que não derrete a neve que o pé
prende ?
— Tão forte sou eu que o cão me
morde.
Volta-se a formiga para o cão :
— O' cão, tão lorte és que mordes o
gato que mata o rato que fura a parede
que encobre o sol que não derrete a neve
que o meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que o pau me
bate.
Volta-se a formiga para o pau :
— O' pau, tão forte és que bates no
cão que morde o gato que mata o rato
que fura a parede que encobre o sol que
não derrete a neve que o meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que o lume me
queima.
2»
A TRADIÇÃO
Volia-se a formiga para o lume :
— O' lume, tão forte és que queimas
o pau que bate no cão que morde no
gato que mata o rato que fura a parede
que encobre o sol que não derrete a
neve que o meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que a agua me
apaga.
N*olta-se a formiga para a agua :
— O" agua, tão lorte és que apagas o
lume que queima o pau que bate no cão
que morde no gato que mata o rato que
fura a parede que encobre o sol que não
derrete a neve que o meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que o boi me bebe.
Volta-se a formiga para o boi :
— O' boi, tão forte és que bebes a
agua que apaga o lume que queima o
pau que bate no cão que morde no gato
que mata o rato que fura a parede que
encobre o sol que não derrete a neve
que o meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que o marchante
me mata.
Volta-se a formiga para o marchante:
— O' marchante, tão forte és que ma-
tas o boi que bebe a agua que apaga o
lume que queima o pau que bate no cão
que morde no gato que mata o rato que
fura a parede que encobre o sol que não
derrete a neve que o meu pé prende ?
— Tão forte sou eu que Deus me mata.
(Recolhida da tradição oral)
III
O macaco
Uma vez era um macaco, que tinha
um rabo muito comprido. Disse-lhe um
homem:
— O macaco, és tão feio com esse
rabol... Vae a um barbeiro que t'o
corte.
Foi o macaco ao barbeiro que lhe cor-
tasse o rabo, e na volta encontrou-se
com o mesmo homem, que lhe disse :
— O' macaco, agora ainda és mais
feio sem o rabo. Porque não vaes ao
barbeiro que t'o torne a pôr?
Foi o macaco ao barbeiro:
— O' barbeiro, torna-me a pôr o meu
rabo, senão furto-te a melhor navalha
que tiveres.
— O teu rabo deitei-o acima de um
telhado e os gatos comeram-n'o.
Então, o macaco, furtou lhe a melhor
navalha.
Foi por ali acima... acima... e en-
contrando uma mulher, junto a um rio,
a escamar sardinhas com as mãos, dis-
se-lhe :
— O' porca de mulher, pois tu estás
a escamar sardinhas com as mãos ?! Toma
lá esta navalha para escamares as sar-
dinhas.
Vem d'ahi a pouco o macaco em pro-
cura da mulher e encontrando a, disse-lhe:
— O' mulher, dá cá a minha navalha,
senão furto-te a melhor sardinha que ahi
tiveres.
— A tua navalha cahiu-me ao rio e a
corrente levou-a.
Vae o macaco furtou-lhe a melhor sar-
dinha.
Foi-se embora e encontrando uma mo-
leira a comer pão, disse-lhe:
— O' moleira, tu estás a comer só
pão?! Toma lá esta sardinha para come-
res com elle.
Volta d'ahi a pouco tempo o macaco,
e diz á molei^-a:
— O' moleira, dá-me a minha sardi-
nha, senão furto-te o maior sacco de fa
rinha que tiveres no teu moinho.
— A tua sardinha já a comi.
Então, o macaco, levou-lhe o maior
sacco de farinha-
Foi a uma escola de meninas e disse
á mestra :
— Aqui tem este sacco de farinha para
fazer um bolo pequeno para cada me-
nina e um maior para a mais bonita.
Veio o macaco ao depois á escola, e
diz á mestra :
— O' mestra, dê-me o meu sacco de
farinha, senão levo-lhe a menina mais
linda que ahi estiver.
A TRADIÇÃO
29
— Do seu sacco de farinha fiz os bo-
los ás meninas.
— Pois então levo-lhe a menina mais
linda.
E o macaco furtou-lhe uma menina.
Encontrou um homem a tocar viola, e
disse-lhe:
— O homem, dd-me essa viola que
eu dou-te esta menina.
— Essa menina é minha.
— Pois dá-me a viola que eu dou-t'a.
Deu-lhe o homem a viola em troca da
menina.
O macaco toi para cima das bordas
de um poço, e começou a tocar na viola,
e a cantar:
Do meu rabo fiz navalha, de navalha
fiz sardinha, de sardinha fiz farinha, de
farinha fiz menina, de menina fiz viola. . .
adeus que me vou embora I
E atirou-se ao poço.
(Kccoihida da tradição oral)
Espozende.
Álvaro PINHEIRO.
CONTOS POPDLARES ALEMTEJANOS
o compadre Bernardo
Havia numa aldeia um casal com
tantos filhos, que apenas uma pessoa,
naquella povoação, ainda não tinha sido
padrinho de qualquer delles.
O chefe d'este casal chamava-se Ber-
nardo, e de forma alguma queria ser
compadre d\im individuo, por mais d'uma
vez. Ora, tendo o referido Bernardo,
ainda, uma filha por baptisar, e querendo
arranjar-lhe madrinha, metteu-se por um
caminho fora, resolvido a convidar para
comadre a primeira mulher, embora des-
conhecida, que elle encontrasse. Ao ter-
ceiro dia de jornada encontrou, emfim,
no meio d'uma charneca d" onde unica-
mente se avistava matto e ceu, uma ve-
lha que lhe disse: «Então p'rá onde vae
perdido, irmão ?» «Eu não vou perdido,
respondeu elle; ando á procura duma
mulher que queira servir de madrinha a
uma filha que tenho ainda por baptisar.»
Diz-Ihe a velha: «pois olhe, se não quer
ir mais longe, ofiereço-me eu para ma-
drinha; mas primeiro que tudo vou di-
zer-lhe quem sou, afim de buscar outra
pessoa, caso não goste de mim.» Eu
sou a Morte, e, querendo você, lá vou
dhoje a oito dias para baptisarmos sua
filha. » Bernardo respondeu á Morte que
a elle qualquer pessoa lhe convinha, so-
mente o que não queria era ser compa-
dre duma pessoa por mais duma vez.
A Morte, então, despediu se de Ber-
nardo, entregando-lhe um taleigo de di-
nheiro para as primeiras despezas. As-
sim que o homem chegou a casa, per-
guntou-lhe sua mulher: «Então, Ber-
nardo, já encontraste madrinha para a
nossa filha?» «Já encontrei, e sabes
quem é ? a Morte ! ; ella é que m'entre-
gou este taleigo de dinheiro para as pri-
meiras despezas!» A mulher ouvindo fa-
lar na xMorte não ficou muito contente,
mas examinando o que o taleigo conti-
nha, disse para o marido: «Oh Bernardo,
com isto já a gente se governa uns tem-
pos sem trabalhar, não é verdade?»
Passados oito dias, realisou-se eííecti-
vamente o baptisado ('), e, na volta da
egreja, quando chegaram a casa, a Morte,
chamando o compadre, disse-lhe : «Com-
padre, faça-se medico, e não lhe dè isso
cuidado, porque em Você sendo cha-
mado para alguém e me veja aos pés do
doente, pode receitar-lhe qualquer coisa,
que não morre; só morrerá aquelle a
cuja cabeceira eu me puzer. o
Quando a fama de Bernardo já an-
dava muito espalhada, adoeceu a filha do
rei, e depois de serem consultados os
grandes médicos do reino e todos have-
rem declarado que era impossível salvar
a doente, disse um dos ministros ao rei :
«Saiba Vossa Real Magestade que o
(1) Em vez de baptisado^ o povo diz: baptiso.
L. P.
30
A TRADIÇÃO
único medico que pode salvar a prin-
ceza é um chamado Bernardo, o qual já
curou uma filha minha, d'uma doença
egual á da princeza.» O rei, que a todo
o^ custo queria salvar a filha, assignou
uma ordem, que mandou entregar por
um próprio ao compadre Bernardo, con-
forme lhe chamavam na aldeia. O com-
padre Bernardo apressou-se a cumprir a
ordem regia, e por isso apresentou-se
logo no palácio, convencido que curava
a princeza. Mas assim que elle entrou
no quarto da doente e viu a Morte á sua
cabeceira, caiu-lhe immediatamente a
balsa em baixo ('). Pensou um bocado
e, olhando para quem estava ali, disse :
«Emfim, voltem-lhe lá a cabeça para onde
ella tem os pés...» Passadas duas ho-
ras, levantou-se a princeza completa-
mente curada, ficando todos pasmados
duma operação tão simples produzir um
resultado por tal forma maravilhoso!
No outro dia, quando o compadre
Bernardo regressava a sua casa, saiu-lhe
a Morte ao encontro e disse-lhe que tanto
como aquillo não lh'ensinara ella, e por
conseguinte, que se preparasse para qual-
quer dia marchar, elle em logar da refe-
rida doente. O compadre Bernardo, pe-
rante uma ameaça d'esta ordem, pediu
á Morte, de mãos postas, que lhe per-
doasse, que elle nunca mais procederia
assim. E, como a Morte não desistisse
da ameaça, compadre Bernardo foi a
casa, contou á mulher o occorrido e em
seguida dirigiu-se á loja d'um barbeiro
afim d'este lhe rapar a cabeça á navalha.
Feita esta operação, voltou a casa a ves-
tir um fato velho, e ordenou á mulher
que dissesse á Morte, quando esta o
viesse procurar, que não sabia d'elle ha-
via oito dias. Em seguida retirou-se e
foi á busca dos rapazes para se mistu-
rar com elles a fim d'escapar, por
meio deste disfarce, á perseguição da
sua comadre Morte. Ao cabo de três
ÍM Caiu-lhe a balsa em baixo = fico\x esmo-
recido, desanimado. L. P
dias, andando o compadre Bernardo jo-
gando á pata, no adro, com os rapazes,
passou a Morte e perguntou: «O ra-
pazes, vocês viram para aqui o meu com-
padre Bernardo?» Salta elle do meio
dos seus companheiros e diz: «Sim se-
nhor, esse moço passou agora ahi fu-
gindo adiante d'uns poucos de rapazes,
por essa rua adiante.» A Morte, ouvindo
isto, lançou-lhe mão d'um braço e puxan-
do-o, proferiu o seguinte : «E' o mesmo;
uma vez que não está aqui o meu com-
padre Bernardo, quer dizer que levarei
este velho pellado.»
Da tradição ora!
\Brinches)
António ALEXANDRINO.
JOGOS POPULARES
II
^^ bola, (O
O jogo da bóia constituia, entre a ra-
paziada do concelho de Serpa, um di-
vertimento dos mais alegres e ruidosos.
Actualmente vemol-o abandonado, e
comtudo não se nos depara outro que
rasoavelmente o substitua.
O jogo da bóia era próprio da esta-
ção do inverno, e realisava-se em exten-
sos terreiros ou rocios, situados ordina-
riamente nos arrabaldes das povoações.
Ainda hoje os habitantes d'esta região
indicam os sitios que serviam de theatro
ao referido jogo.
Posto isto, passemos á sua descrição :
Reunem-se vários rapazes em um deter-
minado largo, previamente munidos de
uma bóia de madeira, e de maços ou mo-
cas de madeira também. Cada jogador
possue o seu maço ou moca. Em segui-
da, abrem uma cova no chão, e em tor-
no d'ella, formando um circulo, fazem
outras tantas covas quantos os jogado-
res menos um. A cova do centro é a
(*) Jogo da bola ou da pinada.
A TRADIÇÃO
31
maior, e serve para n'ella ser encerrada
a bóia, como adiante se verá.
A cada jogador pertence a sua cova,
á excepção d'aquelle que tem d'andar
com a bóia, ao qual se dá o nome de
caçador.
Para se saber quem ha de ser o ca-
çador, qualquer dos parceiros pega n'uma
pedrinha, e, levando as mãos atraz das
costas, fecha-as e apresenta-as immedia-
tamcnte a outro companheiro.
Ambas as mãos teem o dorso voltado
para cima, e o jogador a quem ellas são
apresentadas, bate com a sua mão di-
reita n'aquella que elle julga não con-
ter a pedrinha. Se a pedrinha effectiva-
mente lá não está, fica livre dandar com
a bóia ; no caso contrario toma a citada
pedrinha, e, usando da mesma manobra
que acabamos d'apontar, apresenta-a a
um outro companheiro.
E assim vae a pedrinha passando de
mão em mão, até chegar ao ultimo dos
parceiros, o qual fica sendo o caçador.
Logo que se saiba quem é o caça-
dor, os jogadores enfiam os maços nas
respectivas covas e preparam-se para
defender o circulo, do caçador que a
todo o custo procura encerrar a bóia na
cova central. A bóia gira á mercê das
pancadas que o caçador lhe dá com o
maço, e de cada vez que ella se appro-
xima do circulo, é repellida violenta-
mente pelas pinadas (i) vibradas pelos
jogadores. E' precisamente no acto em
que o caçaaor pretende romper o circulo,
para encerrar a bola, e os jogadores se
oppõem a esta pretensão, que o jogo
adquire toda a sua importância. Desen-
volve-se, n'esse momento, uma lucta mui-
to acesa entre os jogadores e o caçador :
os paus cruzam-se no ar, as pinadas suc-
cedem-se vertiginosamente, e cada joga-
dor tem "o cuidado de não abandonar a
sua cova para não a ver immediatamen-
te occupada pelo caçador, que a seu tur-
(^) Pinada : pancada dada na bola com o
maço.
no também diligencia encerrar a bola ou
apanhar qualquer cova, que veja vasia.
Achãmo-nos, pois, n'esta altura em pre-
sença d'uma scena agitadíssima, animada,
como é fácil dimaginar, por enorme al-
gazarra.
Acontece muitas vezes, no meio d'este
vivo e engraçado turbilhão, enfiarem na
mesma cova dois maços; claro que, n'este
caso, um dos maços tem de sair. K para
saber-se qual d'elles ha de ser, adopta-
se o seguinte processo : um dos jogado-
res approxima-se da cova onde se deu o
empate, fecha os olhos e, collocando a
mão aberta entre os dois contendores,
vae dizendo a bater ora num ora n'outro:
— «Trocas baldrócas no cu-cu-ru-cu —
cjuem s'enganou ? - enganaste-te tu». O
jogador em quem bateu a mão ao pro-
nunciar-se a ultima palavra, c que perde,
e é. por conseguinte, esse que tem d'an-
dar com a bola. Ha ainda outro processo
de resolver o empate : um dos jogadores
mette o seu maço entre os dos contendo-
res, e agarrando-lhe n'uma das extremi-
dades com ambas as mãos, vae andan-
do á roda até um dos outros dois maços
sair. N'este caso, o dono do maço, que
saiu, perdeu a cova.
O jogador precisa estar sempre alerta
durante o exercício, porque, ao menor
descuido, o caçador, se é dextro e vigi-
lante, apanha-lhe a cova.
Supponhãmos agora que o caçador,
atravessando o circulo formado pelos jo-
gadores, consegue encerrar a bola na
cova central — o que tem as suas diffi-
culdades : N'esta hypotnese, segura a
bola, o melhor que pôde, com o seu
maço, e convida um dos jogadores a vir
desencerral-a. O jogador convidado bate
então, servindo-se do maço e com toda
a força, três pancadas na bola encerra-
da, afim de a fazer saltar da cova. Se
ao fim das três pancadas a bola perma-
nece encerrada, o mesmo jogador per-
de e tem de ceder a sua cova ao caça-
dor, cujo logar elle vae occupar.
Os jogadores teem todos o direito de
pedir marróias. Quando qualquer joga-
S8
A TRADIÇÃO
dor as pede, o caçador, dirigindo-se para
junto delle, atira com a bola ao ar para
que lhe dê, aquelle, com o maço. Mas
se a bola é errada, o jogador que pedira
a marróia perde e rica portanto sendo o
caçador.
Os parceiros trocam ás vezes entre si
as covas, e quando muitos o fazem ao
nnesmo tempo, estabelece-se uma tal con-
fusão e alarido, que fácil se torna ao ca-
çador, se é ágil, apanhar cova onde se
installe. Aquelle que no meio desta di-
vertida peripécia perde a cova, fica sendo
o caçador, e é alvo de grande troça por
parte dos companheiros.
O logar de caçador não tem nada de
invejável, porque o mesmo precisa an-
dar constantemente com a bola junto
dos jogadores, vendo-se frequentes ve-
zes obrigado a ir buscal-a a longas dis-
tancias.
Não é raro ver os jogadores estorcen-
do-se com. dores, agarrados ás canellas,
por apanharem com a bola arremessada
pelos maços: e também se observa, ás ve-
zes, na refrega das pinadas, levarem os
parceiros com os maços, embora invo-
luntariamente.
Tal é, em suas minúcias, o activo e
apparatoso jogo da bola, que, como
dissemos, já deixou de ser usado en-
tre nós.
Serpa
Ladislau piçarra.
PPtOAUEBIOS E DICTOS
Mulher doente, mulher p'ra sempre.
II
Mais dá o rico crú, que o pobre nú.
III
Mulher feia, á luz da candeia.
IV
De conselhos e mulher feia tenho eu
a barriga cheia.
V
Arco-iris á tarde, não vem cá em balde.
VI
Aberta em Castella, — agoa na terra.
VII
Mal vae ao cavalheiro quando não
chove em Fevereiro.
(Da tradição oral)
Serpa.
(Continua)
CASTOR.
ADIVINHAS
V
A AMORA
Sou verde, nasço do verde ;
Corre-me o sangue sem dôr;
Tenho três mudanças no anno,
Sem nenhuma ser d'amor.
VI
O OVO
o pellicós não tem cós^
Nem pés, cabeça, nem bico ;
Já seu filho perliqiiitico
Tem pés e cabeça e bico
(Da tradição oral)
(Continua).
Serpa.
CASTOR.
BIBLIOGRAPHIA
Por absoluta falta de espaço, somos
obrigados a retirar hoje esta secção, que
daremos impreterivelmente no próximo
numero.
D. N.
A.nno I — IV.» 3
Edilor-adcnmisirador, Jo\
Typocraptiia de .1 .
SERFâ, Karço de 1899
K<'»rIo I
A TRADIÇÃO
>
REVISTA MENSAL DETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
DuiECVORES. — LADISLAU PIÇARRA e M. DIAS NUNLS
A MORTE E O INVERNO
I
Com o titulo d'cste artigo escrevi em
20 de novembro de I877 o seguinte, que
saiu a lume na revista A Renascença, di-
rigida por Joaquim d'Araujo, e da qual
sem duvida pouquissimos dos meus lei-
tores dlioje terão conhecimento, graças
á facilidade com que em Portugal desap-
parecem as publicações da natureza das
d'aquella.
«Em 1867 o sr. Furtado, hoje pharma-
ceu.tico em Bragança descreveu-me em
Coimbra o seguinte uso, que havia e ha
ainda, segundo creio, na primeira dessas
cidades: «A Misericórdia de Bragança
aluga em quarta feira de Cinza um fato
que tem pintado um esqueleto com uma
mascara lígurando a caveira; ha sempre
muitos alugadores, cada um dos quaes
não pode trazei o mais que uma hora;
durante ella entra era todas as casas que
lhe agrada e- percorre as ruas perseguin-
do os rapazes com a fouce e um tirapé;
estes vão atraz delle, correndo-o á pe-
drada e gritando:
O morte!
O piela!
Sete costellas e meia,
Nariz de canella.
O sr. J. A. d' Almeida no seu Diccio-
jiario abreviado de Chorop^afia refere
este costume, com uma variante nos ver-
sos:
O morte
O piella,
Tira a chicha
Da panella.
O sr. Theophilo Braga no seu livro
Kpopèas da raça mosarabe reproduz a
noticia dochorographo e interpreta da se-
guinte maneira aquelle costume: «O re-
sultado desta lucta do catholicismo e do
despotismo contra a poesia e liberdade
dos mosarabes, vê-se na mudez e falta
de festas nacionaes do povo portuguez.
Quando a burguezia da Europa trabalha
e ri, sentindo-se forte, productora, com
a consciência dos seus direitos, em Por-
tugal ainda se obedece ao pesadello da
Dança da morte que aterrou na idade
media (p. 325).» «Com isto divertem a
alma popular (p. 'ò-iC)).»
A dança macabra ou dança da morte
pertence ao dominib da literatura e da
iconographia ; com quanto se fizessem re-
presentações mimicas delia fuma, por
exemplo, em Paris, em 1424, no cemi-
tério dos Innocentes) nunca entrou no do-
mínio dos costumes populares: demais a
piella percorrendo as ruas e sendo per-
seguida e perseguidora dos rapazes não
dá ideia da morte, dançando com os re-
presentantes dos três estados ou das di-
versas classes sociaes. Esse assumpto
parece ter^ tido muito pouca voga em
Portugal. E a mythologia que nos dá a
explicação daquelíe costume de Bragança,
34
A TRADIÇÃO
ultima transformação duma cerimonia al-
guns milhares d'annos mais antiga que a
dança da morte.
Nos antigos cultos naturalisticos occu-
pavam um grande lugar as cerimonias
que svmbolisavam o giro das estações,
em que a imaginação mythoepica das na-
ções indoeuropcas via um drama, que
reproduzia em ponto grande o drama
quotidiano da lucta do dia e da noite, da
luz e das trevas; a divindade solar um
momento vencida saía por fim trium-
phante da lucta. O inverno era um pa-
rallelo da noite, como o verão (as esta-
ções primitivas eram essas duas) do dia.
Como a noite era identificada á morte,
assim o inverno foi considerado como a
morte. Não é o inverno a morte da na-
tureza, da qual esta ha de resuscitar sem-
pre com novo vigor e belleza ? Que im-
mensa alegria quando vinha a primeira
ave da primavera, quando no prado
desabrochava a primeira fiôr! O inverno,
a morte, estava vencida e na sua alegria
os nossos antepassados não se contenta-
vam com metter ao campo o arado e
pensar e curar das cousas positivas da
vida: haviam de vingar-se do inverno pe-
las suas próprias mãos, vingança bem
innocente, mas que por certo lhes dava
immenso jubilo. Um homem, uma figura
mesma, symbolisando o inverno, era per-
seguida pelas povoações, com cantos ade-
quados, ou então um combate entre o
inverno e o verão era representado por
dous contendores escolhidos.
Quasi todos os costumes populares
têem as suas raizes nos velhos cultos na-
turalisticos. O singular costume de Bra-
•gança explica-se com toda a clareza pela
cerimonia de expulsar o inverno.
Jacdb Grimm, que mostra com eviden-
cia a identificação do inverno e da morte
(Deutsche Mytholog\e, 3 Ausg. p. 726 ss.),
depois de referir o costume da lucta do
Inverno e do Verão, ainda hoje muito
em voga na AUemanha, diz-nos que nos
cantos franconios desappareceu inteira-
mente a menção do verão, subsistindo
apenas com mais forca a ideia da morte
expulsa. Raparigas do campo de 7 a 18
annos percorrem as ruas das cidades, le-
vando debaixo do braço esquerdo um
pequeno féretro aberto, de que pende
um panno de linho que cobre uma boneca.
O seu canto unisono começa:
Heut ist mitlasten.
Wir tragen den Tod ins wasser, wol ist das.
*Hoje é o meio da quaresma; nós va-
mos deitar a morte ao rio; bom é isto.»
Não desejando dar mais que uma suc-
cinta explicação do costume de Bragança,
omitto a menção das variantes da ceri-
monia, como a acho descrita nos mytho-
logos allemães ; contentar-me-hei com
mais uma noticia. Os Sorbos no Ober-
lausitz (refere Grimm, o. c. p. 731) fazem
uma figura de palha e farrapos; a pessoa
em cuja casa se deu o ultimo falleci-
mento deve dar a camisa; a ultima noiva
deve dar o veu e os farrapos necessá-
rios; o espantalho é espetado em cima
dum barrote alto e levado a correr pelas
mais fortes raparigas do campo, que can-
tam todas :
lecz hore, lecz hore!
jatabate woko,
pan dele, pan dele 1
«vôa alto, vôa alto, anda de roda, cáe
para baixo, cáe para baixo.» A figura é
corrida á pedrada; quem lhe acerta não
morre nesse anno.
O dia da lucta do Vergão e do Inverno
ou da expulsão da morte varia segundo
as localidades; mas a quarta dominga de
quaresma (dominica Isetare) ou meio da
quaresma são os dias mais escolhidos;
nos arredores de Boitzenburg no Uker-
mark a festa acha-se inteiramente deslo-
cada, porque a lucta do verão e do in-
verno se representa pelo Natal (A. Kuhn
und W. Schwartz, Norddeutsche Sagen,
MurcJien und Gebràuche. 1848, p. 4o3);
não é pois de extranhar que em Bra-
gança a Morte percorra as ruas em
quarta feira de Cinza, e tanto menos
A TRADIÇÃO
85
fij^LE^I^ DE TYPOS POPIÍL^RES
I I I
Velho camponez, de calção e polainas
36
A TRADIÇÃO
quanto provavelmente se quis dar um
sentido christão a um costume dorigem
puramente pagã. A serração da relha^
o enterro do bacalhau^ os Judas de sab-
bado da Alleluia tèem a mesma fonte
3ue a expulsão da moite; mas o exame
esses costumes ficará para outra occa-
sião. «
II
Depois da publicação das observações
que reproduzi, foi repetida a explicação
dada da morte piella^ da serração da
rellia^ do enterro do bacalhau, da queima
dos Judas [n das ultimas três festas sim-
plesmente indicada) em mais dum escri-
pto de pessoas que entenderam não de
ver citar-me, o que prova que o meu
artiguinho foi considerado bem commum,
o que só podia ser motivo de satisfação
para mim.
Lendo ha pouco na traducção franceza
um dos últimos livros do celebre orien-
talista Max Muller, Nouvelles éiudes de
mylhologie (Paris, i8g8), renovou-se no
meu espirito a memoria de ambiciosos
planos d'estudos nelle formados ha cerca
de 35 annos quando uma outra obra do
mesmo auctor, as Lectures on íhe Science
of Language, me revelou o mundo des-
conhecido da glottologia e da mytholo-
gia. Muito foi, entretanto, por mim co-
lhido para realisar o plano então traçado
e apenas fragmentos dispersos tenho
dado a lume de minhas investigações,
cuja parte relativa ás tradições popula-
res portuguezas, commentadas com o
auxilio dos trabalhos de que teem sido
objecto as dos outros povos, me tenho
visto obrigado a pôr de lado nestes últi-
mos annos. Surgem agora mais duas pu-
blicações sobre aquelle assumpto, a pre-
sente e Portugália^ de que em breve
sairá o primeiro numero, sob a direcção
de Rocha Peixoto e Ricardo Severo.
Como os noves, de quem muito se deve
esperar, me exprimiram o amável desejo
de que eu fosse seu collaborador, minis-
trar-lhes-hei algumas das velhas notas,
completadas, quando possivel, com ele-
mentos de mais recente acquisição. E
para começar nesta revista, cedi ainda
uma vez á inspiração de Max Muller,
que no livro recente alludido se occupa
a pp. 509-517 do inverno e da morte, a
propósito de Mamurio.
Mamurius A'eturius era na tradição ro-
mana o artifice que fabricara os ancilia^
os escudos sagrados dos salios, feitos
pelo modelo dum caído do ceu no tempo
de Numa, no qual viveu, segundo a lenda,
aquelle ferreiro. Na véspera dos idos de
março, era costume que um homem ves-
tido de pclles percorresse Roma e fosse
repellido e expulso delia com varas bran-
cas: chamavam-lhe Mamurius Veturius.
Já L. Preller (Roemische Mythologie^ 2.*
ed. p. 317) approximara esse costume
do da expulsão do inverno na Allemanha.
M. Mueller renova essa connexão, sem
referencia todavia a Preller, mas sim a
Hanusch na sua obra sobre a Sciencia
dos mjthos slavos^ a J. Grimm, que eu
citara, e a Usener, cujo livro sobre os
Mfthos itálicos ainda não vi.
O auctor de Nouvelles études de my-
thologie diz :
«Nós dizemos sem duvida: «Morreu o
anno»; mas esta expressão, em nossa
boca, significa apenas que o anno aca-
bou. O nosso anno morre com o anno
civil no ultimo dia de dezembro, iio dia
de S. Silvestre; e a prova que essa data
era já festejada pelos pagãos está no cos-
tume, entre outros que não são pura-
mente christãos, d'enterrar S. Silvestre
nesse dia. Em muitos legares não é nem
a noite de Natal, nem a de S. Silvestre,
mas a Epiphania que se considera como
o verdadeiro começo do anno christão.
Na antiguidade, a guerra entre o sol e o
anno velho ou o génio do inverno durava
até aos primeiros dias da primavera, até
á volta da luz e do calor. Os romanos
punham o começo do anno no mês de
março, os slavos no primeiro dia da pri-
mavera. Nessa epocha, nas proximida-
des do equinoxio, é ainda costume em
A TRADIÇÃO
37
diversos países da Europa tievar para
fora, expulsar o anno,» isto c enterrá-lo.
aLcvar para fora» era primitivamente a
expressão usada para o transporte do
cadáver para fora da aldeia, para o inliu-
mar ou queimar, em latim cffcrc ou am
dere. »
Kxtrahindo vários exemplos da cerimo-
nia da expulsão do inverno^ da tuortc, do
velho ou da relha^ o que é na essência a
mesma coisa, expiime M. Mueller o receio
de que «se ache fastidioso repetir sem-
pre as mesmas historias». Mas em Por-
tugal essas historias são muito pouco co-
nhecidas, porque os nossos folkloristas
são em regra fraquissimos na parte com-
parativa e explicativa, sendo até recom-
mendavel aos que não possam conhecer
bem e aproveitar os trabalhos capitães
que interessam ao assumpto, limitarem-
se a colligir os factos de casa.
Depois do que eu lera em J. Grimm
(Deutsche Mythologie Iv'' ed. p. 741 seg.)
em 1871 não tivera irais nenhuma du-
vida do que era a serração da velha: a
velha aqui era o anno velho (a morte, o in-
verno). Sobre essa cerimonia, degene-
rada em meio de lograr os papalvos, es-
crevi alguma coisa na Revista dethnolo-
gia e de glottologia p. 58 bg O grande
philologo allemão cita o costume em
Barcelona (de A. Laborde, Iliuéraire de
rEspagjid I, 57-58), na Itália (segare la
vecchiaj^ entre os slavos, etc,
• Todos os slavos que vivem nos cam-
pos, diz iM. Mueller, fallar-vos-hao duma
velha que se leva para fora da aldeia e
se queima, enterra, afoga, ou serra em
bocados nas proximidades do equinoxio
de primavera, ora no domingo de Lae-
tare^ ora no domingo dos Ramos. Essa
velha chama-se Marena na Moravia, Mar-
rana na Polónia e na Silesia, Smrt na
Bohemia, Smerc entre os wendes, nou-
tras partes Muriena ou Mamurienda (cp.
Mamurius). O sentido primitivo de todas
essas palavras parece ter sido morte ou
inverno. I Fundando-se sobre textos reu-
nidos por Usener diz ainda o mesmo au-
ctor: «Na nnesma epocha do anno leva-se
pelas ruas, na Itália, um boneco horrendo
e serram-no ao meio, soltando grandes
gritos. Esse costume chama-se siegar la
vecchia no \'eneto, segar la receia perto
de Kovcredo e de Trieste, segare la nut-
tiaca em Toscana.»
Nalgumas partes o inverno (a m<jrte,
o anno velho, etc.) é queimado, como já
se vê das palavras acima citadas de M.
Mueller a propósito dos slavos.
J. Grimm diz (p. ySo):
Na Bohemia as creanças levam um ho-
mem de palha, que deve representai a
morte, ao cabo do lugar e queimam-no e
cantam:
giz resem Smrt ze wsy,
nowe Leio do wsy ;
witey Leio libezne,
obiljcko zelene I
«já expulsamos a morte do logai e tra-
zemos para elle o novo estio; bem vindo
sejas querido estio, verde trigozinho!»
Em Portugal obscureceu-se muito cedo
o sentido mythico dessas festas da natu-
reza, já por influencia do catholicismo e
d interpretações erróneas, já pela pobreza
de espirito poético do povo. Comparem-
se os versos cantados pelos slavos na ex-
pulsão da morte com as rimas ridiculas
e chatas da piella de Bragança. Interpre-
tou-se a velha que se serra como repre-
sentando a quaresma, e talvez por isso
se collocou a cerimonia exactamente no
meio da quaresma numa quarta feira,
fazendo a sair da quarta dominga, do-
mingo Laetare. O ódio christão por Ju-
das fez ver este na imagem da morte que
se queima; e depois figurou-se no Judas
um individuo determinado da povoação
em que se celebra a cremação. No Porto,
no Largo dos Lóios, ha annos vi queimar
um Judas que se dizia representar certo
caixeiro, pouco sympathico aos collegas,
que acompanharam a cremação com gar-
galhadas alvarissimas.
A festa da morte do inverno attingiu
o ponto Ínfimo da mais indigna prosa ou
38
A TRADIÇÃO
enterro do bacalhau^ que nos mostra co-
mo se acabam por interpretar do modo
mais arbitrário os costumes que já não
se comprehendem, sem deixar de os pra-
ticar, em resultado do poder enorme do
habito e da imitação (*).
Lisboa. 29 de janeiro de ií<u9.
F. Adolpho coelho.
KA qUARESMA
(Notas avulsas)
Em Serpa, onde o povo trabalhador
cultiva dia a dia os clássicos descantes,
como a favorita distracção agradável e
deleitosa, o que primeiro nos denuncia o
advento do período quaresmal é a prom-
pta substituição das canções religiosas ás
canções d*amor.
Perderam-se na manhã de quarta-feira
de Cinza os últimos accentos das modas-
estribilhos mais em voga durante o car-
naval : e logo depois ouvem-se os cânti-
cos religiosos, na falia de creanças inno-
centes, que passam pela rua, e na voz
fresca e sonora de rubicundas campo-
nezas, dispersas pelo campo na labo-
riosa faina da agricultura. E' assim a
lettra d'esses cânticos, cuja toada meren-
corea e branda se vem perpetuando, im-
mutavel, de geração em geração:
— Além vem Jesus
— Que lhe queres vós ?
— Quero ir com elle
Porque leva a cruz.
Seus braços abertos,
Seus pés encravados,
Derramando o seu sangue
Por nossos peccados.
(*) A queima do Judas e o enterro do baca-
lhau fazem-se em sabbado d'Alleluia.
Os periódicos deram noticia de se ter repe-
tido este anno a saida da morte piella em Bra-
gança.
A terra tremia
Go'o pezo da cruz ;
Dizendo nós três vezes:
— Salvae-nos, Jesus !
Salvador do mundo,
Que a todos salvaes^
Salvae as nossas almas !
Bemdito sejaes!
Olhae para o ceu,
Uerás uma cruz.
Capella de rosas,
Menino Jesus.
Olhae para o ceu.
Verás um craveiro.
Capella de rosas.
Menino cordeiro.
Olhae para o ceu,
Verás 'ma Maria:
Capella de rosas
Cheia d'alegria.
Perguntae aos anjos
Que vem de Belém;
Os anjos que digam
Para sempre, amen.
Virgem-Mãe do Carmo
Mandou-me um recado :
Que cantasse e rezasse
O bemdito-louvado.
O bemdito-louvado
Não me ha-de a mim esquecer,
Que a Virgem-Mãe do Carmo
. Nos ha-de valer.
Nos ha-de valer
Com todo o seu valor,
Rainha-Mãe dos Anjos,
Do ceu resplandor 1
Do ceu resplandor,
Dos anjos maravilha.
Oh ! como é divina
A Virgem Maria 1
Pois d'ella nasceu.
Nasceu o bom Jesus,
Que morreu pVa nos salvar
Nos braços da cruz.
Nos braços da cruz
Morreu p'ra nos salvar,
E nós peccadores
Sempre a peccar.
A TRADIÇÃO
89
Sempre a peccar,
Sem emenda ter.
Devemos considerar
Que havemos morrer.
Havemos tnorrer,
E que conta havemos d;ir
A'quelle Senhor.
Que nos ha-de salvar ?
Virgem-Mãe santíssima,
Estrella do norie !
Pedi ao Senhor
Nos de bóa sorte.
Que eu sou peccador,
Não lhe sei pedir ;
Não sou merecedor
Do Senhor me ouvir.
Do Senhor me ouvir
Não sou merecedor,
Virgem-Mãe Santíssima,
Mãe do Redemptor !
Mãe do Redemptor,
Mãe nossa também,
Levae-nos á gloria
Para sempre. Amen.
Além d'estas quadras, cantam ainda
as camponezas, no tempo da quares-
ma, alguns romances e lendas, taes co-
mo o Lavrador da Arada^ a ^ona Ma-
ria^ a Sylvauia, a ílrgeni da Lapa^
etc, etc. («) E em toda a semana san-
ta, entre os numerosos ranchos de gua-
pas moçoilas, que arrancam da seara
as ervas maninhas, são cantares esco-
lhidos os
Martyrios do Senhor
Meu bom Jesus do Calvário,
Tendes a cruz d'oliveira,
Vós sendo o mais doce cravo
Que nasceu entre a roseira !
(*) N'um dos próximos números d'esta revista
iniciaremos a publicação de romances e lendas
populares do Alemtejo.
D. N
Vosso nome santo é,
Que é Jesus de Nazareth.
Aqui tendes a minh'alma
Que vem morrer pela fé.
Vosso divino cabello
Mais fino é que o fino oiro.
Aqui tendes a minh'alma,
Mettci pró vosso thezoiro.
A vossa santa Cabeça
Croada com duro'espinhos 1
Paramotide (*) os meus peccados
Passastes, Senhor, martyrios.
A vossa divina testa
Correndo sangue aos rigores !
Paramonde os meus peccados
Passastes, Senhor, as dores.
Os vossos divinos olhos
Inclinados para o chão.
Paramonde os meus peccados
Passastes, Senhor, paixão.
Vosso divino nariz
Já lhe tiraram o cheiro :
Foi no reino dos judeus.
Que o venderam por dinheiro.
As vossas divinas faces
Cheias d'escarros nojentos !
Paramonde os meus peccados
Passastes, Senhor, tormentos.
Os vossos divinos beiços,
Mais roxos que os roxos lirios I
Paramonde os meus peccados
Passastes, Senhor, martyrios.
A vossa divina bocca
Cheia de fel amargoso,
Paramonde os meus peccados.
Oh meu Deus todo-poderoso !
Vossa divina garganta
Lhe enlearam uma corda !
Meu bom Jesus do Calvário,
De nós tende misericórdia !
O vosso divino peito
Foi aberto com uma lança :
Entrae minh'alma pVa dentro,
Vós lhe daes a confiança.
(*) Paramonde = por amor de ; por causa de
D. N.
40
A TRADIÇÃO
Os vossos divinos braços
Vos pregaram n'uma cruz,
PjratnouJc os meus peccados,
Oh meu amado Jesus !
Vossa divina cintura.
Com 'mi toalha cingida !
Parjvionde os meus peccados
Pe. destes, Senhor, a vida.
Vossos divinos assentos.
Sentados na pedra fria !
Pjrjvvnide os meus peccados
Passastes, Senhor, agonia.
Vossos divinos joelhos
Arrastados pelo chão !
Paramonde os meus peccados
Passastes, Senhor, paixão.
Os vossos divinos pés.
Mais brancos que a neve pura,
Correndo rios de sangue
Pela rua da amargura !
O vosso divino corpo,
Todo chagado e ferido !
Paramonde os meus peccados
Fostes vós. Senhor, ventlido.
Aquella santa mulher
Que vos foi ver no Calvário,
Foi quem a vós, Senhor, deu
O vosso santo sudário.
Oh mães que tiverem filhos,
Ajudae-me a chorar !
Aquellas que os não teem
Não podem sentir meu mal.
Mulheres que tenham filhos,
Ajudae-me com valor,
Ajudae-me a chorar
A morte do Redemptor !
Estas doze (?) petições
Vos offereço a vós Senhor.
As portas do ceu se abram
Quando eu d'este mundo fôr;
E as do inferno, fechadas
Para todo o peccador.
Parece-nos conveniente, debaixo do
ponto de vista que nos guia, enumerar
as procissões reltitivas á quaresma, ao
lado d'outros factos, de indiscutível valor
ethnographico, que também se observam
aqui e na mesma quadra.
Chronologicamente, a primeira procis-
são é a de Penitencia ou dos 'rerceir()s,
realisada no primeiro domingo da qua-
resma; sae do antigo convento de S.
Francisco e promove-a a irmandade da
Ordem Terceira do mesmo santo.
A segunda, a de Passos, verifica-se no
quinto domingo da quaresma, saindo da
egreja de S. Salvador.
A terceira procissão, du Triumpho, ou
vulgarmente dos Ramos, tem logar no
domingo da Paixão e sáe da egreja de-
nominada o Santuário (sede da irmanda-
de do Carmo), que foi pertença, ao que
nos consta, da rica ordem de S. Paulo.
E' jmmensamente grande e pesado, de
rebentar, o pendão da procissão de Ra-
mos. Pois outr'ora — contam os velhos
— era preciso mover altos empenhos para
conseguir-se empunhar o afamado pen-
dão ! E a creatura feliz que tal honra lo-
grava, tinha de pagar por isso, á irman-
dade do Carmo, entre cinco e quinze al-
queires de trigo. Hoje succede exacta-
iTiente ao invez: é a irmandade que paga
ao pendaueiro, não fácil de encontrar,
mesmo com ser gratificado.
Reatando. Em quarta-fen^a de trevas,
pela manhã, costuma sair procissional-
menteo sagrado viatico, que é ministrado
aos enfermos e encarcerados. Porém, a
quarta procissão propriamente dita, que
aliás já se extinguiu, era a da Visitação
ou das Bandeiras, assim chamada porque,
ostentando no préstito sete bandeiras, vi-
sitava as egrejas de S. Salvador e Santa
Maria. Efl'ectuava-se esta procissão na
quinta-feira d'Endoenças, á noite, — os
templos rescendendo o dúlcido perfume
do rosmaninho, symbolo da tristeza e
da paixão, (<;) — e saía da Santa Casa da
Misericórdia, de ha longos annos instal-
(*) Diz-se aqui : «quem passou pelo rosma-
ninho e não cheirou, da morte de Jesus Christo
se não lembrou» ; e a gente do povo, sempre que
encontra a aromática labiada, aspira-lhe o per-
fume com intima devoção. D. N.
A TRADIÇÃO
41
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VAE COLHER A SILVA
(CHOREOGFÍAPIIICA)
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42
A TRADIÇÃO
lada no vasto convento que pertenceu aos
religiosos paulistas.
À quinta e ultima procissão da quares-
ma, também nocturna, é, na sexta-feira
santa, a do enterro do Senhor, que sáe
como a antecedente da egreja da Mise-
ricórdia.
Durante a semana santa dao-se as con-
soadas — presentes de bolos e doces, ou,
mais vulgarmente, de amêndoas confei-
tas.
Consagrando este costume secular, a
Misericórdia, de Serpa, — um estabele-
cimento que disfruciou avultados rendi-
mentos e hoje vive em precárias circums-
tancias, mercê da conversão forçada dos
seus bens nas quasi improductivas ins-
cripções nacionaes — a Misericórdia dis-
tribuia profusamente as consoadas por
grande numero dos seus irmãos e servi-
dores. Tinha o provedor seis arráteis de
amêndoas confeitas; o thezoureiro, dois
arráteis; dois arráteis, o capellão e
os pregadores de quinta e sexta feira
maiores; e eram egualmente contem-
plados, cada um com seu arrátel, os
doze irmãos mesarios, os padres que as-
sistiam ás festas de Endoenças, os enfer-
meiros, o andador e mais o servo que
acarretava o trigo dos foros. Isto sem fal-
lar d uma infinidade de bolos — queijadas,
raivinhas (>i, biscoitos, etc, que na pró-
pria casa da Misericórdia se franqueava
a diversos irmãos.
No sabbado santo, ao amanhecer, ha
aqui uma espécie de mercado, largamente
concorrido, de borregos e cabritos.
Os pastores das cercanias trazem para
a villa o gado em a noite anterior e o re-
colhem dentro de improvisados redis,
num determinado largo ou rocio junto
da povoação, onde depois o mercado se
realisa.
Munidos de grozas de chocalhos per-
tencentes a esse gado, magotes de rapa-
zes aguardam, impacientes, á porta das
freguezias o primeiro toque dos sinos.
E tanto que estes vibram, n'um repicar
festivo, eis que o rapazio se precipita a
correr por essas ruas fora, em chocalhada
estridula, a que se junta o estampido de
não poucos tiros de espingarda, e o ruí-
do atroador de guizadas, de búzios, e de
toda a vária sorte de pancadaria. São as
alleluias.
M. Dias NUNES.
(*) Bolos feitos de farinha, ovos e mel.
D. N.
IVIodas-estFibilhos alemtejanas
Vae colher a silva
Vae colhcl-a silva,
Vae colhél-a, vae!
Se a fores colhera^
Não dig,as — ai! ai !
Não digas — ai! ai!
Não digas — ai! ui!
Vae colhél-a si hm.,
Vae^ que eu também fui.
Notas. — Esta moda foi a predilecta
do povo serpense durante o carnaval.
Em andamento de alegreto, dança-se
ao meio, nos bailes de roda, conforme a
descripção feita em o numero antecedente
da nossa revista.
— Na linguagem popular, quando á
forma verbal terminada em ?' segue im-
mediatamente o, a, os, as, seja embora
artigo, aquella lettra é geralmente subs-
tituída pela euphonica /, tal como acon-
tece em Vae colhél-a silva.
M. Dias NUNES.
A TRADIÇÃO
48
THERAPEUTICA MYSTICA
Os múltiplos c variados meios que o
povo costuma empregar para debellar as
doenças que o atVectam, dividem-sc em
dois grupos perfeitamente distinctos e in-
dependentes. Temos, dum lado, o trata-
mento dos doentes, baseado na simples
observação e experiência popular, e trans-
mittindo-se de geração em geração; dou-
tro lado, as diversas praticas inspiradas
no poder divino, vindas egualmente até
nós por via da tradição.
A estes dois sistemas de tratamento,
correspondem, no primeiro caso a me-
dicina empírica, no segundo, a medicina
mysiica.
A medicina mystica, segundo o tes-
temunho dhistoriadores conscienciosos,
tem as suas raizes nos povos da mais
remota antiguidade. Com efTeito, no seio
desses povos, os padres converteram em
um verdadeiro monopólio a arte de cu-
rar, envolvendo-a nas nuvens da supers-
tição e do mysterio. E para que ella
saisse do santuário dos templos, onde
estreitamente se achava encerrada, foi
necessário que os filósofos corressem a
illuminar os espiritos com o fulgor da
sua critica viviíkante. (*)
Mais tarde, á medida que as scien-
cias iam constituindo-se, a medicina
abandonava o seu grosseiro empirismo
e rasgava desassombradamente os veos
mysteriosos que a encobriam, para se
transformar numa arte cada vez mais
racional. Em nossos dias, graças aos
progressos dos estudos biológicos, ve-
mos a arte medica adquirir um caracter
verdadeiramente scientifico e triunfar
vigorosamente de todos os erros e pre-
juízos que a cercavam.
Todavia, apesar do extraordinário des-
envolvimento das sciencias medicas, e da
sua manifesta propagação, ainda hoje
(*) Lepelletier de la Sarthe : Nouvelle Doctri-
ne Medicale, p. 34-35.
goza de grande voga, entre o publico, a
pretenção de curar os doentes por meio
de processos mvsiicos, taes como: benze-
duras, encommendaçóes, promessas, etc.
De todos estes processos, — em secção
especial e subordinada ao titulo de Ihe-
rapeiiíica tJiysiica, — iremos fazendo mi-
nuciosa descrição; pois que, deste modo,
julgamos fornecer elementos dalgum va-
lor para a historia da medicina e, parti-
cularmente, da psicologia popular.
I
Benzedura contra a iDflamniação d'olbos
(Farpão^ cravo e rècha) *
O doente senta-se numa cadeira, e na
sua frente, sentada noutra, colloca-se a
pessoa que benze. A benzedeira tem na
mão direita uma navalha aberta e na es-
querda um pedaço de loendro. Km segui-
da, agitando a navalha, com o gume
voltado para os olhos, e traçando cruzes
no ar, diz:
— «Jesus! que é santo nome de Jesus!
— onde se nomeia o nome de Jesus, não
ha perigo nenhum. — Onde o santo nome
de Jesus se nomeou, este farpão secou e
mirrou. — Onde o santo nome de Jesus
se ha de nomear, este farpão ha de se-
car e mirrar».
— «Corto» — acrescenta a benzedeira.
— «Farpão, cravo e récha» — responde
o doente.
— «Farpão e cravo corto» — continua a
benzedeira — i récha atalho, em louvor de
S. Pedro e S. Paulo. Vermelha o que
fazes ahi ? Como, bebo e estou aqui;
de vermelho visto, de vermelho calço e
de vermelho ando a cavallo. Eu te corto
farpão, eu te corto pelo pescoço, eu te
corto pelos braços, eu te corto pela cin-
tura, eu te corto pela barriga, eu te corto
pelas pernas e eu te corto pelos pés
Aqui te hei de cortar, aqui te has de se-
car e aqui te has de mirrar, que d"aqui
não has de passar. Em louvor de Deus
(*) O povo pronuncia récha em vez de: racha.
44
A TRADIÇÃO
e da Virgem Maria. — Padre Nosso, Ave-
Maria.»
Depois de proferidas estas palavras, e
emquanto reza, em voz baixa, o Padre
Nosso e a Ave-Maria, a benzedeira corta
na extremidade do pedaço de loendro.
Toda a reza que acabamos d expor,
deve dizer-se cinco vezes e sempre pela
mesma forma; e no fim faz-se o otíere-
cimento á Senhora Santa Luzia. Eis a
offerta :
— «Otfereço estas cinco orações á Se-
nhora Santa Luzia, que livrou este olho
de farpão, cravo e récha. Em nome de
Deus Padre e da ^'irgem Maria. — Pa-
dre Nosso, Ave-Maria.»
O tratamento mvstico, muito poucas
vezes c empregado exclusivamente. D'or-
dinario, os doentes e suas famílias, ao
mesmo tempo que se apegam com os
santos, vão recorrendo á intervenção po-
sitiva dos médicos, E, para prova, citá-
mos o dictado seguinte, que circula entre
o povo e é attribuido a clínicos antigos :
— Quando os doentes morrem, é o
medico que os mata; quando escapam,
salvam-nos os santos.
No caso acima referido, por exemplo,
a benzedeira, d'onde colhemos a reza,
que era uma mulher do povo e analfa-
beta, recommendava também aos seus
clientes o uso d*um coUyrio de sulfato
de zinco.
Serpa.
Ladisijvu piçarra.
ANTIGUIDADES PORTUGUEZAS
A Ordem de Cbnsto
A Ordem de Christo foi instituída a
i5 de Março de 1^19, por uma bulia de
João XXÍI, concedida a el-rei D. Diniz,
que deu á nova ordem todos os rendi-
mentos dos Templários.
A promulgação do monarcha diz «que
a Ordem de Christo se fazia em refor-
mação da do Templo, que se desfez».
Publicou-se a bulia a 5 de Maio, e logo
mandou el-rei que se desembaraçasse o
castello de Castro Marim, onde ficou a
sede de tão íllustre ordem, da qual foi
primeiro mestre, que já vinha nomeado
na bulia, o valoroso cavalleíro d'Avíz,
D. Fr. Gil Martins.
O património da Ordem de Christo
chegou a ser um dos mais rendosos, pois
accumulou o rendimento formidável de
quatrocentas e cincoenta e quatro com-
mendas, e de vinte e uma víllas.
Convento de Santa Cruz de Coimbra
Foi fundado em 28 de Julho de ii3i.
Seguido dos fidalgos seus companhei-
ros darmas, que consticuiam n'esse tem-
po a corte, presidiu D. AlTonso Henri-
ques á cerimonia da fundação do con-
vento.
Cavou, D. AtTonso, com uma enxada
no logar onde havia de erigir-se a capella-
mór, e enchendo um cesto com a terra
excavada, o foi despejar fóra do recinto
da obra. Todos os que acompanhavam
D. Affonso fizeram o mesmo; era este o
costume da epocha.
Existe no convento em questão o claus-
tro da Manga, mandado construir por
D. João III. Este monarcha foi quem deu
o risco do claustro, que desenhou na
manga do seu roupão; e d ahi o nome.
Dos privilégios qu'am as Igrelas e seus clmiterios
e das franquezas qu'am
Privilégios e grandes franquezas am
as eygreias dos emperadores e dos rreis,
e dos outros senhores das terras.
E esto fov muv com rrazom, que as
coisas que son de Deos ouvessem moor
onrra que as dos homes.
E per ende, poys que en o titolo ante
d'este falamos en que maneira devem
seer feytas, e outro ssy de como as con-
A TRADIÇÃO
45
sagran, convcm de di/.cr en este das fran-
quezas e dos privilégios quem am lãbcm
cilas como seus cimclerios c inosirar pri-
meiramente que é privilegio e que quer
dizer. K cmquantas couzas o am as ey-
greias. \\ quaes ornes pode a cygreia
quãdo fogirem a elas e quaes nom ; e
quê devem a aver os que quebrantam
tal privilegio como este.
K sobre todo diremos quaes ornes ho
dereyto das leys antigas sacar da eygreia.
(Das leis que I). Sancho I manâou to-
mar por apontamento.)
No Convento de Mafra
O maior sino do convento de Mafra
péza doze mil kilos.
No mesmo convento, ha quatro órgãos
cujos pedestaes são columnas de már-
more, sustentadas por columnas jónicas
de cinco metros e dois decimetros d'al-
tura.
Os tubos dos órgãos teem seis metros
de comprido por vinte e oito centimetros
de diâmetro.
Antas
Estes monolithos, muito vulgares entre
nós, são padrões do tempo dos proto-
celtas, e serviam para commemorar fa-
eiros.
Corrêa CABRAL.
A SERRAÇÃO DA VELHA
O antigo e vulgar uso de serrar a j>dha
também existia nesta villa. A festa da
«Mi-Carêmc» revestia aqui uma forma
bastante curiosa, que passamos a des-
crever.
Apresentava-se um homem munido
dum cortiço, dentro do qual se mettia
um cão e um gato. O cortiço era herme-
ticamente fechado, e o homem que o tra-
zia, andava acompanhado doutros, arma-
dos de cacetes, varas, etc.
Atraz, a nota alegre do rapazio atre-
vido, fazendo enorme algazarra.
V.vn garoto, todo radiante, conduzia a
serra, que havia de servir para serrar o
cortiço no local do suplicio, ordinaria-
mente, um largo, praça ou rocio. A's ve-
zes, o referido garoto vestia d'anjo, e en-
tão, era interessante ve-lo, adornado com
dois molins^ fingindo azas, e uma ca-
belleira de caracoes! Na mão, levava tam-
bém o competente lenço de cambraia,
onde recolhia íigos, amêndoas e outras
guloseimas, com que o brindavam.
Como é fácil de suppôr, o cão e o gato,
engalfinhando-se no interior do cortiço,
faziam um barulho infernal U qual baru-
lho, ao mesmo tempo que provocava as
gargalhadas dos circumstantes, afigura-
va-se,á rapaziada ingénua, como provindo
da pobre velha que, ali encerrada, ia las-
timando a sua horrorosa sorte.
O cortejo, assim constituido, passeava
pelas diversas ruas da povoação, até che-
gar ao sitio convencionado para a ceri-
monia final, que simplesmente consistia
na serração do cortiço, por entre as ma-
nifestações ruidosas do publico enthu-
siasmado.
O innocente aujo^ portador da serra,
é que não escapava nada bem ao termi-
nar a cerimonia que acabamos de refe-
rir. Depois de o despojarem de todos os
^eus adornos, era perseguido de rua em
rua e levava pancadas que nem um tam-
bor numa festa!
Cuba.
FAZENDA Júnior.
CONTOS POPULARES ALEMTEJANOS
II
o lobo e a zorra
Era uma vez uma zorra, que, pas-
sando por um monturo, achou umas bo-
tas e enfiou-lhe as mãos dentro, para
não se enlamear. Estando a zorra já farta
de buscar o que não encontrava, met-
teu-se num matto onde se lhe deparou
46
A TRADIÇÃO
um lobo, que lhe perguntou: «O' co-
madre zorra, onde comprou você es-
sas botas?» «Onde comprei eu estas bo-
tas ?!p, diz-lhe a zorra, «em parte ne-
nhuma, eu mesma as fiz.» O lobo, muito
admirado, perguntou á zorra se umas
bolas para elle ficariam muito caras. A
zorra respondeu que, as que ella tra-
zia, haviam-lhe custado três carneiros,
duas ovelhas e quatro borregos; mas
para o compadre lobo talvez se podes-
sem fazer com um boi, quatro carneiros,
três ovelhas e uns cinco ou seis borre-
gos. O lobo, ao ouvir falar em tão grande
numero de cabeças, exclamou: a Oh! com
os diabos!, isso é muito caro!» A esta
observação, retorquiu a ovelha dizendo
que as mãos do lobo eram muito maio-
res, e portanto era preciso mais cabe-
dal. O lobo, convencido com as palavras
da zorra, mostrou-se conforme, e decla-
rou que faria das tripas coração para ar-
ranjar o gado exigido pela zorra, porque
andando descalço receava tanchar-se-lhe
alguma pua nas mãos que o impedisse,
um par de dias, d'apanhar preza para
manducar. De facto, o lobo poz-se cm
procura das referidas cabeças, e assim
que as arranjou foi entregal-as á zorra,
a qual ficou muito contente por possuir
já mantimento para alguns dias, sem ter
darriscar a pelle.
O lobo, depois de entregar á zorra o
gado, perguntou-lhe quando estariam as
botas promptas; ao que ella respondeu
que d'ali a uns quinze dias. Passados os
quinze dias, o lobo foi procurar pelas
botas, mas a zorra não lh'appareceu. No
dia seguinte voltou a casa da zorra, e
ainda mais duas ou três vezes, sempre
com o mesmo resultado. O lobo, então,
desconfiou que tinha sido enganado, e
porisso jurou vingar-se matando a zorra.
Andando a pensar no engano em que
tinha caido, encontrou-se^ um dia, por
acaso, de cara a cara com a zorra,
a qual logo ficou sobresaltada. Pergun-
tou-lhe o lobo: «Então, zorra maldita,
onde estão as minhas botas?» A esta
pergunta respondeu a zorra, com muita
doçura : «Não se zangue, compadre Lobo,
porque o coiro do boi é muito duro, e
por conseguinte precisa estar mais uns
dias na cortimenta.» Ora, o lobo, reco-
nhecendo que já estava enganado, disse-
Ihe que bem sabia qual era a cortimenta,
e que se preparasse para lhe pagar tudo
n'aquella occasião.
A zorra deitou immediatamente a cor-
rer, e vendo um buraco, introduziu-se
n'elle tão rapidamente, que não teve
tempo de recolher o raban':{óilo (cauda
comprida). O lobo apanhando esta parte
fora do buraco arrancou-a, dizendo :
«Agora já não m'escapas, grande velhaca!
ficas assignalada.»
No outro dia, como a zorra se visse
ameaçada de perder a vida, subiu a um
oiteiro e deu dois regougos, ao som dos
quaes se juntaram todas as zorras d'a-
quelles sitios. A zorra, que tinha regou-
gado, participou depois ás companheiras
que as chamara para lhes ensinar uma
dança muito bonita, que ella aprendera
num paiz d'onde acabava de regressar.
Mas para ellas aprenderem esta dança
era necessário atarem-se os rabos uns
aos outros. As zorras consentiram nesta
operação prévia, e a matreira^ assim que
apanhou as companheiras de rabos ata-
dos, grita lhes:
«O' minhas amigas, nada lhes posso
ensinar agora porque vem alem uma
jolda (quadrilha) de caçadores acompa-
nhados d'uma matilha de podengos ; sal-
ve-se quem poder!» Claro está, que as
zorras, apenas ouviram falar em poden-
gos, partiram numa carreira desordena-
da, arrancando-se-lhes os rabos, que era
exactamente o que a outra queria, por
causa da ameaça do lobo.
Decorridos tempos, o compadre lobo
tornando a encontrar-se com a comadre
zorra, disse-lhe: «Olá!, agora é que não
m'escapas ! . . . «Eu, . . . compadre lobo ! ;
que lhe fiz para estar tão zangado com-
migo? Pois não sabe que estou neste
paiz ha seis mezes, apenas?!» «E's tu,
sim, já não te recordas d'eu t'arrancar o
rabo ? »
A TRADIÇÃO
47
A zorra, negando ter sido ella, disse
ao compadre lobo que era moda o não
usarem as zorras rabo, e para prova
convidou-o a ir com ella ao tal oiteiro.
O lobo, já mais moderado, subiu ef-
fectivamente ao oiteiro, e a zorra, dando
novamente dois regougos, fez juntar as
companheiras que, como ella, se acha-
vam sem cauda. Em visto disto, ficou o
lobo convencido que não era aquella a
zorra que o tinha enganado.
III
Doi3 gallegos encontrando-se (*)
Era uma vez dois gallegos que mar-
chavam no mesmo caminho, em direcção
opposta. Esbarrando um no outro, diz
um delles:
— o O' xeu diabo! bóxê é txégo ou não
entxêrga ?»
— «Entxêrga é prima irmã da albar-
da!» — respondeu o outro zangado.
— «Albarda xerá boxe!» — diz o pri-
meiro ainda mais zangado — «xe não fôxe
porquê já lh'eu cascaba ! . . . »
— «Xe não fôxe porquê, já eu cascaba
em bóxê!... O" xeu diabo! quem é
bóxê?»
— «Eu xou filho da Biubinha e neto do
Carcabian, que nan conhexe o bem que
lhe fájem nem o pan que lhe dan.»
— «Oh ! diabo ! xeremos nós irmãos ?! »
— «Pois xeremos.»
— «Então que notixias me dás do nóxo
pae ? »
— «O nóxo pae morreu;» — diz secca-
mente o gallego — «caiu dum coibal abai-
xo e fez trinta réis de despeja.»
— «E então a nóxa burra?»
— «A nóxa burra também morreu» —
respondeu o gallego chorando.
(*) Os laboriosos habitantes das nossas pro-
víncias da Beira, são conhecidos, injustamente,
no Alemtejo pelo nome de gallegos.
L. P.
— tOh! diabo! então choras por n<jxa
burra, e nan choras por n(')Xo pae?!»
— «A nóxa burr» lebaba a gente a ca-
bailo, e nóxo pae não; e a burra custou
dinheiro, e o pae não.»
— «Hem, n'êxe cájo: adeus, adeus! e
até á oitra bista.»
Da tradição oral
\Brnichfs)
António ALEXANDRINO.
P](0VE1{BI0S E DICTOS
(Continuação)
VIII
Em não chovendo em Fevereiro — nem
bom prado, nem bom palheiro.
IX
Fevereiro quente, não o vejas tu nem
o teu parente.
X
Março, mal quanto molhe o rabo ao
gato, — se de Fevereiro ficou farto.
(Da tradição orai)
Serpa.
(Continua)
CASTOR.
BIBLIOGRAPHIA
o SECUI.O do Natal. — Simplesmente encan-
tiidora, esta notabilissima publicação, devida á
iniciativa arrojada do illustre director do Século^
Senhor Silva Graça, — o espirito mais incançavel-
mente emprehendedor que conhecemos em Por-
tugal.
Executado com inexcedivel esmero nas ofi-
cinas da Companhia Nacional Editora e Pires
Marinho, o Século t/o A'í7/47fapresenta-nos traba-
lhos artisticos de primeira ordem, como são, no-
meadamente, as inspiradas producções de Roque
Gameiro, Leopoldo Battistini, António Rama-
j lho, J. Vaz e Jorge ColJaço.
A parte litteraria c soberba. N'ella coUaboram
com primorosos cscriptos: Delfim Guimarães,
IS
A nftADlÇXO
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Al iValkx^ èv e«t stimmdk um« v«rvÍ2*^
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SERPA. Abr.: 1* 1899
S^rlo I
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lypoKrapàia de AJolfkó J* MtmJomfa, Hu» 4o Corpo Saaio, 46 c 48 — LlikbOA
A trãdIcão
>
REVISTA MENSAL D ETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
Directores : — LADISLA U PIÇARRA e Aí. DIAS NUNES
SERRAÇÃO DA VELHA
O povo pratica por toda a parte em
Portugal, e ainda em njuitos paizes da
Europa, a cerimonia da Scn-jçdo iia ÍV-
M-i, sem saber que essa salsada ou cha-
rivari de chocalhos, buzinas e campainhas
com que percorre as ruas. era um acto
do culto primitivo do Polytheismo indo-
europeu.
Quando as concepções religiosas já
não acham adhcsão nas consciências, per-
sistem tenazmente no automatismo dos
costumes, passando do extremo respeito
da adoração para o desprezo do sarcas-
mo. Em um polviheismo sideral, como o
das raças aryanas, os phenomenos da en-
trada do ]\'rdo e da sahida do Inrcnio
eram allegorisados em formas dramáti-
cas, cujos restos subsistem no culto do
Natal e Paschoa, e entre o povo nas
usanças do Carro das ervas. Corrida do
porco preto. Mato carambola e Serração
da ]'elha.
A ]'elha é a figuração mythica e alle-
gorica do Inverno; ainda entre os árabes,
os sele dias do solsticio do inverno são
chamados 05 dias da Velha. Entre os po-
vos germânicos a \\'lha teve a adoração
cultual sob o nome da deusa HoUa;
hoje é uma entidade vaga, sem sentido,
que o povo vae serrar^ isto é, que vae
fazer passar a sen'a., como quem repelle
para longe as brumas e as neves do in-
verno. No tempo de Gil Vicente ainda se
conservava este sentido do acto dramá-
tico de passar a serra ; na iragicomedia
do Triumpho do bwerno., representada
em iS3o, entra uma velha, que ouer ca
sar com um moço, o qual lhe faz esta
condição :
Que si esia sierra pjsjr
Asi lloviendo y nevando,
Luego la quiere tomar. . .
E quando a Velha se submeiíe á pro-
va, diz aos que a interrogam:
Eu não vou senão a tiro
Por esia semi nevada.
Eu desejo ser casada
Com um mancebo solteiro,
Dixe elle : — Brasia Caiada,
Praz me, pois que vós querer.
Com condição que pjssès
Aquellj semi nevada
Sem levar nada nos pés.
E fosse isto logo at;ora,
Que triumpha a invernada.
Desde que passou a concepção my-
thica primitiva, a imaginação popular tra-
balhou sobre a palavra serra, e do ves-
tígio da ideia de partir ao meio o anno
solar, inventou a pratica allegorica de
partir ao meio com a serra a Velha, met-
tida dentro de um cortiço. Assim das
próprias palavras surgem novas formas
de mvthificação, que nos ajudam a com-
prehender como as faculdades poéticas
do espirito humano nos deram as primei-
ras representações do mundo. Os estu-
50
A TRADIÇÃO
dos ethnologicos conduzindo-nos d re-
construcção de estados sociaes extinctos,
conduzem nos ás manifestações mais re-
motas e inconscientes das concepções
mentaes primitivas.
THtoPHiLO BRAGA.
A FESTA DA GUADALUPE
Alleluia! Alleluial
O Sol, descrevendo a gigantesca ecli-
ptica, vem de transpor gloriosamente o
eqiiinoxio da primavera (').
Espiritos malignos, o frio, o gelo. a
chuva, as trevas hibernaes, — espancou-os,
a rajadas de luz, o Astro creador.
ApoUo venceu P3 thon.
Ormuzd triumphou de Ahriman.
Alleluia! Alleluia!
E, tal como Osiris, e Adónis, e Mi-
thra, e tantos outros deuses das religiões
solares, Christo resurgiu, Christo resus-
citou, — alleluia! alleluia! — depois de
redimir pela paixão os escuros peccados
da humanidade inteira.
E por esse resurgimento luminoso as
festas á Virgem-Mãe, invocada sob di-
versas denominações, na florescente qua-
dra ol3'mpica da Paschoa. Da Paschoa,
quer dizer — da passaL(em da morte á
vida, de Jesus Christo. Da Paschoa, isto
é — da passagem do Sói na linha equi-
noxial.
*
* *
A festa paschoal de Nossa Senhora
da Guadalupe (d'Aguadelupes, como o
povo diz) é uma das mais importantes
festas religiosas que n'esta villa se veri-
ficam.
E nem podia deixar de o ser, desde
que a alma popular, sempre ingénua e
(•) Segundo remotas lendas sacerdotaes.
bôa, pôz todo o enthusiasmo da sua
crença, todo o ardor da sua fé sincera e
pura na venerada imagem, que habita,
lá no cimo da pequena montanha, uma
dessas «alvas ermidinhas» que ao nosso
grande Poeta se antolham
(Como ninhos virgens d'orações piedosas,
Miradoiros brancos de luar e rosas,
D'onde as alm-as simples entrevèem Deus ! . . .»
Principiam no sabbado de alleluia os
preparativos da festa. De tarde vão as
irmãs eleitas cuidar do arranjo da Se-
nhora, bem como de S. Luiz, e S. Gens,
primitivo orago da vetusta ermida.
No domingo — domingo de Paschoa,
quasi sempre alegre e ruidoso — vêem
para a villa as três imagens alludidas,
que ficam expostas á adoração do pu-
blico, na parochial egreja de S. Sal-
vador.
O percurso do préstito religioso, desde
a ermida até á povoação, merece ser
olhado attentamente. Porque é d'uma
perspectiva maravilhosa, d'um effeito en-
cantador, direi mesmo duma poesia infi-
nita, o lento caminhar da procissão — os
devotos vestindo as opas brancas da ir-
mandade — por entre o verde escuro dos
trigaes ondeantes e sob as doces fulgu-
rações do claro sói d' Abril.
Depostas as imagens na egreja do Sal-
vador, conduz-se o jantar aos presos da
cadeia.
Ainda não contei que a irmandade da
Guadalupe é quasi exclusivamente com-
posta de trabalhadores ruraes — pobres
assalariados, que vivem em permanente
au jour le jouv desde o berço até á cova.
Pois não obstante os seus minguados re-
cursos sabem os irmãos da Ciuadalupe
comprehender e praticar a mais nobre e
sublime das virtudes 7- a caridade— dis-
tribuindo um abundante jantar aos míse-
ros encarcerados. Esta dadiva gentil de
pobres a pobres constitue um meritório
feito de abnegação e altruísmo.
Após o jantar aos presos ha o sermão
de vésperas, largamente concorrido; e já
A TRADIÇÃO
51
Q^
G^LEJ^I^ DE TYPOS POPIILííIí
T \'
i
1
Q
N
t . ..
f
a
fè)7^-
Fastor (do concelho de Serpa) <
1 A estampa que dêmos no próximo passado numero é também representativa d'um typo de Serpa.
52
A TRADIÇÃO
noite cerrada, queimam-se no largo do
Salvador apreciáveis fogos dartiricio, in-
tervailados de peças musicaes.
Segunda-feira de manhã — e emquanto
no airio da egreja se promove a venda
dos ramos (') — é a celebração da missa
solemne, por musica vocal e instrumental.
Durante a festa, o interior do templo
olTerece um aspecto pittoresco, mercê da
immensa variedade de typos e trajos do
elemento camponez.
A tarde a procissão magna, que de
todas se distingue pelo avultado numero
de fieis que n'ella se incorporam. O ma-
gestoso cortejo, depois de percorrer o
costumado itenerario pelas ruas da po-
voação, previamente atapetadas de espa-
dana e junca, recolhe á egreja do Salva-
dor; e em seguida, já lusco-fusco, são as
imagens reconduzidas á sua campestre
morada.
*
* *
Os festejos em honra da Senhora da
Guadalupe teem, entre nós, uma origem
secular. Porem, outr'ora eííectuavam-se
as festas na própria ermida da Senhora,
e alli mesmo as procissões, em torno da
capella.
Disse festas porque duas eram as que
se realisavam: uma, a «dos homens»,
por occasião da Paschoa, e outra pas-
sado o equinoxio do outomno e pela
epocha das vindimas, chamada «das mu-
lheres».
A similhança do que succedia com as
ordens monásticas, parece que somente
individuos do mesmo sexo podiam agru-
par-se em confraria.
Foi em 1870, julgo, que as duas ir-
mandades se fundiram; e desde então
que se vem celebrando uma só festivi-
dade em cada anno, a da Paschoa. A
qual festividade, de esplendor sempre
(*) Presentes de bolos, fructas, etc, cuja ven-
da é feita em almoeda.
D. N.
crescente, passou desde logo a ter logar
aqui na villa, em signal de reconheci-
mento á Senhora, que o povo de Serpa
invocara num transe angustioso. Desse
transe se occupa o livro manuscripto da
• Irmandade dos homes de Nossa Senhora
de Guadelupe». numa « occorrencia »
exarada na primeira pagina, de que tran-
screvemos os seguintes períodos:
«No anno de 1808 concorrendo huma
primavera, em que houve muita falta
d'agua para as cearas e prados, não se
esperando senão huma escassez de gé-
neros alimentícios e morrinha no gado
por falta de pastos, pelo que todo este
povo estava descoroçoado por vêr imi-
nente o ílagello da fome, que a todos
ameassava, Deos Senhor Nosso, como
Pai de infinita Mizericordia lhe aprouve
tocar nos corações de alguns devotos de
Nossa Senhora de Guadelupe e com es-
pecialidade nos dos Irmãos da mesma
Senhora Manuel das Candeas Cataluna,
Francisco Manoel Abraços, Jozé Fran-
cisco Chorão, Gregório Queixinhas, e
João Martins Picareta, inspirando-lhes
que recorrendo a sua Mai Santíssima a
Senhora de Guadelupe, na mesma Se-
nhora encontraria© remédio para seus
males. Não exitarão. e unanimemente e
de todos os seus corações assentarão que
devião, depois de suas preces, mandar
cantar huma missa na capella da referida
Senhora em acção de graças, pois que
já nos dias dois e três de Maio havia
chovido suficientemente; e no dia doze
d'este mez procederão, com a concor-
rência de muitos devotos, á cantoria de
huma festa, dando graças a Deos, e a
Nossa Senhora de Guadelupe, por se
terem dignado ouvir as suplicas de seus
devotos.
Houverão cearas de evidente milagre,
porque derão muito trigo, muitos legu-
mes, muitas fructas, e os prados toma-
rão pastos, com os quaes os gados se
nutrirão e criarão. Á vista pois de hum
tão evidente milagre, com que Deos nos
favoresseo por intervenção de sua San-
A TRADIÇÃO
58
tissima Mãi a Senhora de Guadelupe,
não esfriemos na nossa devoção para
com esta Senhora, continuando em nos-
sas afflicções, a rogar-lhe e pedir lhe nos
soccorra em todas as nossas aíflicções,
devendo todos nós estar bem certos, que
seu Bendito Filho nada lhe nega; e ro-
gando-lhe nós de todos os nossos cora-
ções nos obterá de Deos, não so os bens
temporaes, mas tãobem a salvação eter-
na de nossas almas.»
O:
En:.. -.. ...... ....,
N' esses olivaes mettida I
Virgem-.Mãe da Guadalupe,
Qucr'-lhe pedir uma cousa :
— O meu Dem vac ao exame :
Que não traga a rjpôs.-: '
•M. Dias MNES.
Refere-me um bom velhote octogená-
rio, a quem eu devo valiosos informes
sobre o assumpto em questão, que, por
motivo da assustadora estiagem, cente-
nas de creancas vindas de todos os pon-
tos do concelho, caminhavam em roma-
ria para a ermida da Guadalupe a im-
plorar da Senhora, compaixão e miseri-
córdia. O povo ficou conhecendo a pie-
dosa romagem, dúzias de vezes repeti-
da, pelo nome de «Procissão dos inno-
centes».
Aproveitamos o enseio para registrar
as quadras que as raparigas cantam
Á Senhora da Guadalupe
Virgem-Mãe da Guadalupe,
Minha mãe, minha madrinha :
Se meu bem vae ser soldado.
Oh ! que desgraça é a minha I
Virgem-Mãe da Guadalupe,
Minha mãe, minha comadre I
'Stj sempre pedindo a Deus
P'ra que o mundo não se acabe!
Virgem-Mãe da Guadalupe
Que está na vossa ladeira !
Quem me dera ver meu bem
De resalva na algibeira !
Virgem-Mãe da Guadalupe
Tem uma fita amarella
Que lhe deram os soldados
Quando vieram da guerra.
JOGOS POPULARES
111
^-V péllíi
O jogo da pclla usa se principalmente
dinverno: e, para o realisar. reunem-se
os rapazes em largo, rua ou travessa.
Arranjada a pella, que é ordinaria-
mente feita de trapos, cada jogador abre
no chão a sua cova. As covas — é claro,
tantas quantos os jogadores, — são dis-
postas em serie e segundo uma linha re-
cta. A certa distancia das referidas co-
vas, traça-se uma risca no chão, e em se-
guida verihca-se á sorte qual o rapaz,
que hade começar o jogo. A sorte é ti-
rada pelo processo da pedrinha, já des-
cripto a propósito do jogo da bola.
O jogador a quem coube iniciar o exer-
cicio, collocando-se no sitio marcado pela
risca, pega na pélla e atira com ella ás
rebolctjs ao longo da série de covas, de
modo a enfiar nalguma. O dono da cova,
onde por acaso a pélla enfiou, corre im-
mediatamente para ella, e, agarrando-a,
joga-a ás costas dos parceiros, que neste
momento já se puzeram em debandada.
O rapaz, em cujas costas bateu a pélla,
apanha esta e repete o exercicio que aca-
('i Denomina-se o Pechôto uma das vastas
herdades que n'esta villa possue o nobre fidalgo
e illustre homem de lettras, benhor Conde de
Ficalho.
D. N.
54
A TRADIÇÃO
bamos de descrever. E assim successi-
vamente.
Por cada vez que o parceiro leva com
a pélla, põe-se uma pedrinha na respe-
ctiva cova. E, desde que em qualquer
cova se juntam sete pedrinhas, o joga-
dor, a quem ella pertence, tem de ser
L'?iccrt\iíio. Esta operação — a d^eiicenw
o jogador — consiste em cada parceiro
lhe bater nas costas com a pélla, sete ve-
zes.
E para que as pancadas sejam mais
fortes, teem alguns rapazes a malévola
idéa de metterem, occultamente, dentro
da pélla uma pedra.
IV
O malliâo
O jogo do malhão tem logar, pode-se
dizer, em todas as épocas do anno. Para
o pôr em pratica, escolhem-se bons ter-
reiros, planos e enxutos.
Reunem-se, no sitio convencionado,
dois ou mais rapazes, os quaes collocam
no chão duas pedras empinadas, chama-
das malhões, — uma em frente da ou-
tra, — guardando entre si a distancia
dalguns metros. Cada jogador toma a sua
falha (pedra achatada); e em seguida, um
delles, começando o jogo, aproxima-se
dum dos malhões e atira com a falha, que
tem na mão direita, ao outro malhão,
afim de o derrubar. A este jogador se-
guem-se os outros, que vão repetindo o
exercicio.
O parceiro que derrube o malhão com
a sua falha, ganha seis; mas se nenhum
consegue derruba-lo, aquelle dos jogado-
res que deixou a falha mais perto do re-
ferido malhão, ganha três. E assim vai
continuando o jogo até que um dos par-
ceiros attinja o numero doze.
Quando os rapazes são em numero par,
emparceiram-se dois a dois, três a três,
etc. O contrario succede quando são im-
pares, pois que então cada um joga só
para si.
Os parceiros, que, jogando as suas fa-
lhas, primeiro fazem doze, ganham o jogo,
e em compensação andam ás caj>allari-
tas (ás costas) dos outros jogadores.
Brinches
Ladislau piçarra.
IVIodas-estPibilhos alemtejanas
• bis
Os olhos da Marianita
Os olhos da Marianita \
São verdes cor de limão. \
Ai! sim Marianita, ai! sim . . .
Ai! não Marianita, ai! não . . . j
NOTA. — O resquebre que hoje. inse-
rimos é de género egual ao dos últimos
dois publicados — l^ae colher a silva e
Mamtelsinho, você chora — e dança-se do
mesmo modo.
M. Dias NUNES.
LENDAS
Duas lendas curiosas pela sua seme-
lhança flagrante, correm na tradição oral
do Fundão.
Pelo sentido que conteem e pelas cren-
ças que as derivaram, podemos concluir
que uma d'ellas é variante da outra.
Com a prova a mais, de que, aquella
que eu chamarei original é extensiva a
muitas terras da Beira, como tive occa-
sião de observar.
A primeira das lendas é a explicação
supersticiosa das manchas lunares.
Andava um homem roçando silvas pe-
las, serras em domingo, dia dado ao des-
canço dos trabalhos semanaes. Por
castigo foi arrebatado da terra para a lua,
onde se vê eternamente condemnado a
 TRADIÇÃO
bò
andar com um grande molho de silvas ás
costas.
Esta parece ser a original, pela qual
moldaram uma variante no Fundão.
Nos arredores d'esta villa existe uma
ponte antiga, já sem guardas, sobre o Al-
verca, sitio poético, a que o povo sem-
pre contemplativo ligou a variante.
Conta aquella bòa gente, que, em
quinta leira dAscensão, uma lavadeira
dobrada ao pezo da roupa, se dirigia
para a ribeira afim de ali a lavar.
Muitas amigas suas e gente sensata a
prevenio, que não fosse cm dia como este
ao trabalho ; descançando este dia, nos
outros lhe viria a fartura.
Não ouvio ella estes arrazoados e se
foi á sua vida^ teimando na idéa de mais
ganho. Ninguém mais a vio, nem á roupa
que levara.
Passado esse dia, todos os annos em
quinta-feira d'Ascensão, pelo calor ar-
dente do meio dia, se ouve a lavadeira
esbatcndo-se desesperadamente debaixo
do arco simples da ponte. Castigo do ceo,
segundo o povo diz.
Ai.vARo DE CASTRO.
Habitação, mobiliário e utensilios domésticos
I
Habitação
(Conclusão)
Foi por um simples lapso que, ao tra-
tarmos da cosinha, não descrevemos a
chaminé. Seja-nos portanto permittido
voltar um pouco atraz para prehencher
esta lacuna.
A chaminé, situada ordinariamente ao
fundo da cosinha, consta de duas partes:
caldeira e tubo ou cano de tiragem. A
caldeira é abobadada em cima e de for-
ma rectangular em baixo. E' em geral
bastante ampla, podendo abrigar-se n'ella
e á roda do lume, como já dissemos, dez
e doze pessoas. Do bordo inferior do
panno pende em regra uma larga faixa
de grossaria ou de chita, com o fim d'ob-
star a que o fumo se espalhe pelas casas.
Na face externa do mesmo panno e em
cima, observa-se frequentemente uma pi-
Iheira corrida, onde se costuma collocar
os utensilios d'arame
Tanto o panno da chaminé como o res
pectivo tubo de tiragem são feitos de cal
e tijolo. O cano da chamii/é é largo e a
sua altura varia entre um e seis metros.
Dentro da caldeira, entre o panno e a
parede do fundo, ha dois barrotes, paral-
lelos entre si, os quaes servem para sup-
portar os paus de chouriços e linguiças
que se põem ao fumeiro.
A parte superior do cano da chaminé
communica lateralmente com o exterior
por meio d aberturrs verticaes e equidis-
tantes, sepatadas uma das outras por um
simples tijolo. Ao conjuncto d'estas aber-
turas dá-se o nome de vede da chaminé.
Não vai longe ainda o tempo em que
as chaminés, denominadas :;abu}utas., se
erguiam, toscas e rudes, por cima dos te-
lhados, attestando a solidez da sua cons-
trucção de pedra e cal.
A configuração dos canos de tiragem
varia muito, mas a que predomina é a
de forma cylindrica ou a d'um prisma
quadrangular recto. A' rede circular aci-
ma descripta, sobrepõe-se a cúpula da
chaminé, no vértice da qual se vê, ora
um vaso de barro com feitio de fantasia,
ora uma haste de ferro, em torno da qual
gira, á mercê dos ventos, uma figura do
mesmo metal, como uma bandeira, um
gallo, etc. Esta ultima peça mqtalica de-
sempenha um papel importante na pre-
visão do tempo. E' um barómetro simples
e commodo, que o dono da casa costu-
ma consultar para fazer os seus prognós-
ticos meteorológicos. Conforme a figura
está voltada para o norte ou para o sul,
assim o observador prevê chuvas ou tem-
po enxuto.
Em casas de gente pobre e humilde, a
chaminé é muitas vezes substituída por
um fogão, construído também de alve-
56
A TRADIÇÃO
naria e aberto na própria parede da co-
sinha. A porção do cano que sai fora do
telhado é mais estreita e mais curta que
a da chaminé, e communica com o ar
atmospherico por sua extremidade supe-
rior, que é aberta.
Antigamente poucas chaminés se usa-
vam aqui, e a tiragem do fumo era feita
por um simples buraco praticado no tecto
da cosinha. O buraco era tapado por um
pedaço de cortiça atravessado no centro
pela extremidade duma canna comprida,
estando a outra extremidade no pavimen-
to da casa. O primitivo processo de tira-
gem, que acabamos de citar, ainda hoje
se observa em algumas habitações, mas
d'um modo bastante raro.
*
# *
Dando por terminada a descripçao da
casa propriamente dieta, — embora feita
duma maneira rápida, — segue-se natu-
ralmente tratar dos seus annexos.
Os ann-exos ou dependências da habi-
tação comprehendem, de ordinário, os
quintaes. adegas, celleiros, cavallariças e
palheiros. Occupemo-nos, pois, d'estas
differentes partes, e pela mesma ordem
que acabamos de enumera-las.
Os quintaes são ordinariamente mura-
dos; e os muros, d'alvenaria e taipa uns,
outros de taipa simplesmente, teem uma
altura que varia entre i,"'3o e 4.™ Muitos
são cobertos com a clássica sebe de car-
rasco, aro ou tojo; e n'esses realisa o ra-
pazio divertidas caçadas aos pardaes. A
sebe destjnada a proteger os muros, das
intempéries, tem ido desapparecendo a
pouco e pouco; modernamente é substi-
tuida pelo espigão d'alvenaria, terminan-
do umas vezes em gume, outras n'uma
superfície convexa.
Ha ainda um ou outro quintal em que
os muros são substituidos pela piteira do
vallado, que serve dexcellente trincheira
contra as escaladas dos ratoneiros de
frangãos e gallinhas.
Quasi sempre, o quintal tem um poço
que fornece agua para as lavagens, regas
e consumo do gado.
E' frequente vêr-se, nas trazeiras da
casa, uma ou mais parreiras forman-
do latada em todo o comprimento do
pateo ou varanda. A vegetação dos quin-
taes consta apenas de uma ou outra ar-
vore de fructo, algum eucalypto, vários
temperos, espalhados por alguns alegre-
tes, e flores mais ou menos vulgares, dis
tribuidas por diversos canteiros e vasos
collocados nas varandas.
Passando agora a occupar-nos das ade-
gas e celleiros, diremos que são casas,
geralmente espaçosas, de construcção
análoga á dos prédios a que me referi
no artigo anterior.
Os telhados teem uma ou duas corren-
tes, e o interior da casa é muitas vezes
dividido ao meio por arcos e columnas.
Os pavimentos são de tijolo e cal, ven-
do-se também alguns aspháltados e alca-
troados, subindo este resguardo nas pa-
redes, até á altura, proximamente, dum
metro. Nas adegas, tanto dazeite como
de vinho, ha em volta de toda a casa um
poial, de o,'"6o d'altura nas primeiras, e
de o,™25 nas segundas, destinado a sup-
portar os potes ou talhas.
Os potes d'azeite são na maior parte
de lata, variando a sua capacidade entre
20 e 700 decalitros. As talhas de vinho
são exclusivamente de barro, revestidas
interiormente d'uma grossa camada de
pez louro, e a sua capacidade oscila entre
j5 e 60 almudes. Tonéis de madeira, não
se usam aqui. O pavimento das adegas
de vinho tem, em geral, uma ligeira in-
clinação e ao fundo um deposito subter-
râneo, a que o povo chama adorna, afim
de receber não só o liquido produzido
pela piza das uvas, mas também os mos-
tos e o vinho, no caso de fracassar algu-
ma talha. As outras dependências — pa-
lheiros e cavallariças — são casas ordiná-
rias e toscas, pouco ou nada cuidadas,
e em que o asseio deixa muito a desejar.
Ha um ou outro proprietário que olha
com mais attenção para estas dependên-
cias; mas a maioria prima pelo desleixo
A TRADIÇÃO
67
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os OLHOS DA MARIANITA
(CHOREOGRAPHICA)
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58
A TRADIÇÃO
e fãy ouvidos de mercador quando se lhes
fala em hvgiene. O desprezo pela arte
de conservar a saúde é tal que, na maior
parte dos prédios pertencentes d classe
popular, a cavallariça é uma casa dentro
da própria habitação, onde vivem pro-
miscuamente pessoas e animaes !
Nos prédios sem quintal, e mesmo
nalguns que possuem quintal mas sem
sahida, ate se vè cavalgaduras entrarem
e sairem pela porta da rua, atravessando
ás vezes todos os compartimentos do in-
terior da habitação.
O palheiro costuma ser contiguo á ca-
vallariça. A maneira de o encher de pa-
lha, não deixa de ser curiosa. A palha
não é enfardada nem prensada; introduz-se
solta, em golpelhas ou lençoes, por uma
abertura feita á beira do telhado. Logo
que a referida forragem tem attingido
um ou dois metros despessura, descem
ao interior do palheiro homens e rapazes,
e ali dançam, saltam e pulam para que
a palha fique bem calcada.
*
* *
Falta-nos, para completar o nosso mo-
desto artigo, falar da h3'giene da habita-
ção. E' o que vamos fazer d'uma maneira
summaria.
Devemos accentuar, em primeiro lo-
gar, que o povo manifesta ante as pra-
ticas hygienicas uma verdadeira aver-
são. Inútil c pretender dcmonstrar-lhe as
consequências desastrosas e os males
terríveis, que podem resultar do seu des-
leixo em matéria d'asseio. Aconselha-lo
a seguir as boas regras da h3'giene, o
mesmo é que pregar no deserto. E se a
auctoridade tenta intervir, ha ameaças,
desordens, e por vezes contlictos muito
sérios. O mulherio costuma até distin-
guir-se n'estas campanhas: é o primeiro
a sair para a rua n um berreiro d'ensur-
decer; provoca e insulta as pessoas que
não adherem ao movimento de protesto
contra as medidas hygienicas; e, empu-
nhando, não a pá, como a celebre padeira
d' Aljubarrota, de saudosa memoria, mas
as perigosas arf?uis de S. Pedro (pedras),
— que manejam com uma habilidade e
uma dextreza admiráveis, — ameaça céus
e terra, pondo em evidencia a sua fúria
implacável. E depois, com a nossa pro-
verbial brandura de costumes, também
não é de admirar que haja focos de in-
fecção por toda a parte. Ás estrumeíras
encontram-se espalhadas pelos quintaes,
travessas e canadas que circumdam a
povoação. As piaras de gado pertencen-
tes ás classes menos abastadas estabe-
lecem arraiaes nas referidas travessas e
canadas, e invadem a cada instante a pro-
priedade alheia, sem medo nem respeito
á lei. São, em geral, possuidores d'este
gado, indivíduos que não teem de seu um
palmo de terra, mas julgando-se no di-
reito de transformar em baldio, os ferre-
giaes, courellas, olivaes, etc, etc.
E' tão extraordinário o que se passa,
que, sem contar outra espécie de gado,
ouso affirmar que dormem todas as noi-
tes, dentro da aldeia, para cima de mil
porcos !
E se alguns indivíduos teem o seu chi-
queiro, onde dorme e come o cevão, a
maior parte nem d'isso dispõe, e os ani-
malejos passam, como inquilinos, a dor-
mir portas a dentro, como a coisa mais
natural d'este mundo!
Cada travessa é uma sentina publica,
onde se lança toda a espécie de porcaria,
a qual ali se deposita e conserva, até que
as aguas pluviaes se encarreguem, de a
arrastar.
A remoção das immundicies não está
a cargo d'entidade alguma official; o que
não é para extranhar, porque a camará
municipal e a junta de parochia ainda
não se dignaram prestar a devida atten-
ção ao pelouro da hygiene.
N'estas condições, é natural que sejam
os próprios habitantes da povoação, que
tomem sobre si o encargo da limpeza
publica. As immundicies são removidas
para fora da localidade em golpelhas ou
carros munidos de taipaes. Refiro me ás
immundicies solidas, pois que as urinas
A TRADIÇÃO
59
e aguas sujas são vasadas nos quintaes
e ti avessas c ate nas próprias ruas.
— Acabamos d'inuicar, ainda que
muito resumidamente, as deploráveis
condições hvgienicas em que se encontra
a aideia de hrinches. Sciia todavia uma
grande injustiça, não mencionar, n'este
logar, uns certos pieccitos usados no lar
domestico, tendentes á conservação da
saúde.
Devemos di/er, em abono da verdade,
que as casas, mesmo entre as classes po-
bres, são em geral caiadas periodicamen-
te, principalmente no estio ou por oc-
casião d'alguma festa memorável. Os
pavimentos, bem como as portas e ja-
nellas, de madeira, são lavadas com agua
e sabão. Ha também quem esfregue com
areia as referidas portas e janellas, para
ficarem mais bem descasqueadas. Isto,
no caso de simples limpeza da casa, e
sem o precedente dalguma morte. Por-
que, dando-se o facto de morrer alguém,
redobram os cuidados dasscio. A' aguae
sabão, é necessário accrescentar, então,
o vinagre e as aguas de ervas cheirosas,
taes como : o incenso, a mui ta, a alfa-
zema, o alecrim, a mangcrona, etc. Não
é licito esquecer o rosmaninho, tão pro-
fusamente espalhado, sobretudo durante
a semana santa.
As plantas aromáticas, que vimos de
citar, empregam-se ainda em fumigações,
para purificar o ar contido no interior da
nabitação.
Convém frisar, que o povo considera
o vinagre como o primeiro dos seus de-
sinfectantes. A elle recorre sempre que
se trata duma limpeza a valer, como
succede, por exemplo, quando se pre-
tende desinfectar o quarto onde falle-
ceu um tisico, um dilterico, etc. E, já
que falamos da tuberculose, diremos que
o vulgo tem per esta doença uma pro-
funda repulsão. Julga até que basta pisar
o escarro d'um tisico, para que a terrí-
vel moléstia se pegue !
Digamos, para rematar, duas palavras
acerca da illuminação. Quanto a illumi-
nação publica, contam os brinchenses
apenas com a dos astros, porque a res-
peito de candieiros nas ruas, não passa,
por cmquanto, d'uma va^a aspiração.
Penetrando, porém, no interior das mo-
radas, ahi vemos a clássica luz dazeite,
de petróleo c d'estearina. Msta ultima —
mercê do seu elevado preço — é muito
menos adoptada.
Não deixaremos de mencionar, a titulo
de curiosidade, que existe aqui uma ha-
bitação, onde também se observa a mo-
derna luz de gazolina, a oíluscar com o
seu brilho os olhares dos transeuntes, es-
tupefactos! A qual habitação pertence ao
nosso presado amigo e distincto collabo-
rador artístico desta revista, o Sr. F.
Villas Boas.
Lopes PIÇARRA.
CKENÇAS & SUPEIWTICÕES
Bruxas e feiticeiras
Grande parte da massa popular ainda
hoje acredita piamente em bruxas e fei-
ticeiras. Por maisextraordinaria que nos
pareça esta. crença, o facto é que ella
existe, e disso temos a prova a cada
passo.
Segundo a concepção ingénua do povo,
as bruxas e feiticeiras são mulheres que,
por meio de certas rezas e artes diabóli-
cas, podem causar verdadeiros malefícios
ás outras pessoas. As bruxas distinguem-
se das feiticeiras em possuirem a facul-
dade de se transformar em animaes,
como : formigas, cães, gatos, etc.
Suppõe o p'^vo, que as bruxas costu-
mam reunir-se a altas horas da noite nos
valles e encruzilhadas, e alli, ao som de
pandeiros, cantam e bailam, e soltam
estridentes gargalhadas. De tempos a tem-
pos, estas reuniões revestem um aspecto
mais solemne: Juntam-se as bruxas das
diversas localidades, em determinado si-
tio, tendo cada uma de passar «por baixo
da silva e por cima da oliva». As bruxas
que primeiro se reúnem, e emquanto es-
tk)
A TRADIÇÃO
peram pelas mais retardatárias, entretêm-
se em cantar e bailar ao som dos pandei-
ros. O povo attribue-lhes, precisamente
nesse momento, a seguinte quadra :
"Maria do vallo,
Que faz, que não vem?
Já estão as de Borba
E as de Santarém.»
Depois de se acharem todas reunidas,
apresenta-se o diabo sob a forma dum
cão preto, muitc arrogante, de rabo al-
çado e encaracolado. Cada bruxa é então
obrigada a depor um osculo por debaixo
da cauda do satânico animal.
Finda esta extravagante cerimonia, as
bruxas dispersam-se, ficando habilitadas
a proseguir no exercício da sua arte.
E' assombroso o poder que o povo at-
tribue ás bruxas: ellas podem fazer pas-
sar pelas maiores torturas, as pessoas
que incorram na sua ira !
Muitas das graves doenças que afligem
o género humano, representam frequen-
tes vezes a manifestação desse poder ma-
léfico. Das pessoas doentes que se jul-
gam sob a influencia das bruxas, diz-se
que estão embruxadas.
As miseras creaturas que q publico ba-
ptisa com o nome de bruxas, são ao mes-
mo tempo temidas e odiadas.
Não é raro até, haver quem as persiga
e maltrate afim de se evitarem novos bru-
xedos.
Quando as bruxas frequentam algu-
ma casa, e se pretende expulsa-las d'ahi,
põe se em pratica o seguinte processo:
A pessoa encarregada de tão benemérita
missão, vai á egreja buscar uma porção
d"agua benta, e embebendo nessa agua
um pincel, sacode-o em cruz a cada canto
da casa, dizendo :
«Desórga, desórga !
Três vezes desórga !
Bruxas e feiticeiras,
D'esta casa para fora ! »
Realisada esta singela operação, as
bruxas têm dabandodar a casa. E que-
rendo levar a expulsão mais longe, diz-se:
— desta comarca para fora, ou ainda,
deste reino para fora.
Resa a tradição que ha pessoas não
susceptíveis de bruxarias. Essas pessoas
revelam uns certos signaes, pelos quaes
as próprias bruxas reconhecem «que não
podem enti'ar com ellas».
E' ordinariamente ás creanças que as
bruxas perseguem de preferencia ; parece
até que, pela noite fora, ellas se divertem
em separar as creanças das mães, indo
collocal-as na pilheira da casa, ou levan-
do-as para qualquer sitio distante do leito
onde estavam deitadas Ainda hoje é vul-
gar esta expressão : — E' um menino nas
mãos das bruxas !
Quando uma creança se apresenta ma-
gra, com as pernas cruzadas, e tendo dis-
seminadas pelo corpo, especialmente nos
membros inferiores, varias echimoses,
crê o vulgo que se trata duma creança
embruxada. As echimoses constituem —
na opinião fantástica do povo — o vestí-
gio de mordeduras feitas pelas bruxas,
para sugarem o sangue da creança.
No próximo numero da Tradição, co-
meçaremos a descrever as diversas pra-
ticas usadas com o fim de desembruxar
as creanças.
(Brinchesj.
FILOMATICO.
CONTOS POPULARES ALEMTEJANOS
IV
o Pedro Malas-Arteí
Era uma vez um lavrador e uma la-
vradora, que viviam num monte e preci-
savam dum rapaz para o seu serviço.
Um dia, a lavradora, olhando para o ma-
rido, diz-lhe :
— «Tu devias ir á aldeia concertar um
rapaz para nos aviar os mandados, ir ao
matto e ao poço e guardar os porcos.»
— «Pois bem» — respondeu o lavrador
— «irei amanhã á aldeia tratar disso.»
A TRADIÇÃO
• U
— «Vai, mas não me tragas algum que
se chame Pedro. De modo nenhum que-
ro Pedros cá em casa. . . i
No dia sci^uinte, o lavrador foi á al-
deia, e assim que lá chegou enconlrou-se
com um rapaz a quem perguntou:
— «()" rapaz, queres conccrtar-te r»
— «Quero, sim senhor.»
— «Como te chamas ?»
— «Pedro.»
— «Oh! diabo! não me serves.»
Dizendo isto, o lavrador dirigiu-se para
outra rua. K o Pedro Malas-Artes foi im-
mediatamente collocar-sc a uma esquina,
por onde elle sabia que o lavrador havia
de passar. O lavrador, ao passar por esse
sitio, vendo com etíeito ali um rapaz, e
não conhecendo que era o mesmo dha
bocado, diz-lhe:
— «O' rapaz, queres concertar te?»
— «Queru, sim senhor.»
— «Kntão, como te chamas?»
— «Pedro.»
— «Oh! diabo! não me serves.»
O lavrad')r, passando para outra rua,
encontrou-se novamente com o Pedro,
que já o esperava disfarçadamente. E,
cuidando que era outro rapaz, diz lhe:
— «O' rapaz! queres concertar-te ?»
— «Quero, sim senhor.»
— «Como te chamas?!
— «Pedro.»
— Oh diabo! então nesta terra ha só
Pedros ? »
— «Ha só Pedros, sim senhor» — res-
pondeu o rapaz.
— «Oh! mau! disso já eu desconfia-
va... porque encontrei uns poucos de
rapazes, todos chamados Pedros!»
— «E quantos rapazes o senhor procu-
rar, tantos Pedros ha-de achar» — disse
Pedro Malas-Artes.
— cBem, nesse casso, já não busco
mais. Queres vir comigo?»
— «Quero, sim senhor» — respondeu
Pedro; — «mas com uma condição:
aquelle que se zangar, perde a soldada.»
— «Pois sim, anda d'ahi» — disse-lhe
o lavrador.
Marcharam ambos caminho do monte,
e quando lá chegaram, diz o lavrador
para a mulher :
— «Aqui tens um rapaz que nos pode
ajudar jpo serviço da casa.»
— «Como se chama elle?» — pergun-
tou a lavradora.
— «Chama-se Pedro.»
— «Pois então eu não te disse que não
queria l^edros ?. . . »
— «Pois sim, mas o qne havia deu fa
zer, mulher! se naquella aldeia não ha se-
não Pedros?! Mas elle sempre ha-de fa-
zer o que_ lhe mandarem. Não é assim,
Pedro?» — perguntou o lavrador olhan-
do para o rapaz.
— «E' sim, senhor meu ;inv>» — res-
pondeu Pedro.
A lavradora, ouvindo isto, mostrou-se
conforme. No outro dia, pela manhã cedo,
o lavrador levantou-se e mandou o rapaz
buscar lenha ao matto. Pedro, ouvindo
as ordens do amo, tratou d'arranjar quan-
tas cordas poude e marchou para o matto.
Chegando ao matto, começou a estender
á roda dclle as cordas que levava. O amo
* farto d esperar pela lenha, diz para a mu-
lher:
— «Pois senhor! o rapaz parece que
não vem de lá hoje!. . . »
— «Não te disse eu» — observa a mu-
lher — «que não concertasses Pedros?»
— iNão tenho mais remédio» — diz o
lavrador, já zangado — «senão ir á bus-
ca delle.»
E partiu immediatamente para o matto,
encontrando alio rapaz entretido n'aquelle
serviço. Não podendo conter-se, grita-
Ihe logo :
— «O que andas tu a fazer, Pedro!
que não te despachas com a lenha?»
— «Eu, senhor meu amo, ando enro-
lando o matto com estas cordas, para de-
pois puxar por elle, a ver se o levo logo
todo duma vez, para não ter de vir á le-
nha todos os dias.»
O lavrador, vendo este grande dispa-
rate, ia começar a zangar-se, quando Pe-
dro atalha:
— «O' senhor meu amo! está zan-
gado ? »
tí2
A TRADIÇÃO
O amo, lembrando-se de repente da
combinação feita no acro de concertar
Pedro, responde :
— «Eu não. E tu estás ?» í
— tEu também não» — respondeu Pe-
dro.
— «Bem,» — diz o lavrador para o ra-
paz — «vamos lá arranjar alguma lenha
para nos irmos embora.»
Assim fizeram ; e chegados ao monte,
o lavrador mandou Pedro ao poço. O ra-
paz, o que havia de fazer ? . . . tornou a
pegar nas cordas, e elle ahi vai caminho
do poço. Assim que lá chegou, toca a en-
rolar o boc-al com as cordas.
E o amo á espera. . . até que por fim,
aborrecendo-se^ diz á mulher :
— «O diabo do rapaz não vem hoje
do poço!»
— «Eu não te disse que não concertas-
ses Pedros ?. . . » — respondeu a mulher.
O lavrador, então, pegando numa
quarta, resolveu-se a ir ver o que fazia
Pedro. E, encontrando-o em volta do bo-
cal do poço, pergunta-lhe, cm voz alta:
— «O que estás ahi fazendo, Pedro,
que não despachas?!»
— «Eu, meu amo, ando ligando aqui
o bocal com estas cordas, a ver se, pu-
xando por ellas, levo logo o poço duma
vez, para não ter de vir buscar agua to-
dos os dias.»
O amo, contrariado com a lembrança
de Pedro, ia para zangar-se quando elle
acode: ,
— «O senhor meu amo! está zanga-
do?»
— «Eu ríão. E tu estás?»
— «Eu também não» — respondeu Pe-
dro.
— «Bem,» diz o amo — enche lá esta
quarta dagua e vamos embora.»
Regressando ambos ao monte, o la-
vrador mandou Pedro guardar os porcos,
recommendando-lhe que os não mettesse
nalgum atasqueiro. Pedro soltou os por-
cos e, marchando com elles, encontrou
um grande lamaçal. Do que havia elle
lembrar-se? Foi esconder o gado por de-
traz duma altura, cortou o rabo e as
orelhas a cada porco e veiu enterra-las
no lamaçal, da seguinte forma: duas ore-
lhas adiante e um rabo atraz. Isto para
fingir que os porcos se tinham atascado
até ás orelhas. 'Acabado este serviço,
Pedro foi participar ao amo que os por-
cos estavam enterrados em um lamaçal.
O lavrador, afBicto com esta noticia,
partiu immediatamente para o sitio indi-
cado por Pedro. Chegando áquelle enor-
me atasqueiro, e.não divisando senão as
orelhas e os rabos, convenceu-se de que
os porcos estavam etíectivamente enter-
rados, como dizia Pedro. Ia para zan-
gar-se, mas, como Pedro lhe fizesse a
advertência do costume, tranquilisou-se.
Foi depois puxar por uma orelha das que
estavam enterradas, ficou-lhe na mão;
foi puxar por outra, aconteceu-lhe o mes-
mo. Em vista d'isto, pensou o lavrador
que os porcos só poderiam ser desenter-
rados com enxadas, e por isso mandou
Pedro ao monte buscar as três enxadas
maiores que lá estivessem. O Pedro Ma-
las-ArtPs foi ter com a ama e diz-lhe:
— «O senhora minha ama ! o amo, que
me dê as três maiores taleigas de dinhei-
ro que cá tiver.»
— «Isso não pôde ser!. . . » — respondeu
a ama, «então para que hade o teu amo
querer já as taleigas de dinheiro?!»
— «E verdade, sim, minha ama. Faça
favor de chegar aqui á rua do monte, e
verá que é verdade.»
A ama acompanhou o rapaz á rua do
monte, d'onde se avistava o lamaçal, e
á sua vista, perguntou Pedro, em voz
alta, ao amo:
— «O senhor meu amo! as três maio-
res?»
— «Sim» respondeu o amo — «as três,
com tresentos diabos!»
A lavradora, julgando que se tratava
das taleigas de dinheiro, entregou-as a
Pedro. Este, assim que as apanhou, ras-
gou a fugir em direcção opposta áquella
em que se achava o amo.
No caminho, Pedro encontrou uma
ovelha, tirou-lhe as tripas e metteu-as
no seio. Mais adiante, vendo umas mu-
A TRADIÇÃO
63
Iheres a lavar num barranco, perguntou-
Ihes:
— aõ mulheres I lèem ahi uma nava-
lha que m emprestem?»
— «Tenho eu aqui uma» — diz uma
delias — «toma a lá.»
— «Kntão para que queres tu a nava-
lha?» — perguntou uma outra.
— «Para tirar as tripas que me pesam
muito; e eu quero tícar leve para fugir
mais, que levo muita pressa» — respondeu
Pedro.
Pegando da navalha, Pedro rasgou a
camisa dalto a baixo, e as tripas da ove-
Ihe cairam immediatamcnte no chão.
Restituiu a navalha á mulher e partiu
ainda com mais velocidade que até ali.
O lavrador, cançado desperar por elle
no lamaçal, foi ao monte saber que de-
mora era aquella. A mulher do lavrador
muito admirada, pergunta ao marido:
— «Kntão ainda elle lá não chegou?
E para que querias tu tanto dinheiro?!»
— «Qual dinheiro? Eu mandei buscar
algum dinheiro ? !»
— «Então não mandaste buscar as três
maiores taleigas de dinheiro que cá tí-
nhamos ?»
— «Eu não!, o que eu mandei buscar
foram três enxadas para desenterrar os
porcos que elle metteu no lamaçal!»
— «Pois já sabes que elle enganou me.
Lá nos carregou com as nossas três maio-
res taleigas de dinheiro ! Eu não te disse
que não concertasses Pedros ? . . . »
O lavrador, muito atrapalhado, e com-
prehendendo que estava roubado, per-
guntou á mulher o caminho que levara
Pedro. A mulher indicou-lh'o, e elle par-
tiu a toda a pressa.
Chegando ao barranco, onde estavam
lavando as taes mulheres, perguniou-lhes
se tinham visto passar ali algum rapaz.
Elias responderam que sim, e que até
esse rapaz lhes pedira uma navalha para
arrancar as próprias tripas, a Hm de fu-
gir mais.
— «Assim que lhe cairam as tripas»
— disseram as mulheres — «o rapaz pa-
recia um raio !»
— € Então» — diz o lavrador — «façam
favor de m'emprestar também uma na-
valha para eu fazer o mesmo.»
As mulheres emprestaram lhe a nava-
lha, e o pobre diaoo, caindo na asneira
de rasgar a barriga, escusado será dizer
que ficou logo ali estendido, emquanto
oue Pedro Slalas Artes, vendo-se livre
do amo, tratou de gosar o dinheiro o
melhor que poude.
l[)a tiadii,-áooral|
(Brinches).
António ALK.XANUKINO.
NOVELLAS POPULARES MINHOTAS
Senhora do Rosandario. . .
IV
Houve uma vez um homem, e tinha
uma mulher que lhe desejava cegueira.
Para isso ia todos os dias á egreja pedir
á Senhora do Rosandario (') que desse
cegueira ao marido, de maneira que elle
não visse.
O homem tantas vezes viu ir a mulher
para a egreja que, um dia, resolveu ir
espreitai a. Eoi para a egreja mais cedo,
e escondeu-se dentro de um confessioná-
rio. Voo a mulher, benzeu-se, ajoelhou
e começou a fazer os costumados pedi-
dos á \'irgem do Rosandario, dizendo:
— Minha Senhora do Rosandario, dae
cegueira ao meu homem, de modo que
elle não veja ! . . .
O marido que gostava muito de ovos
fritos com toucinho e que era amante da
pinga, bradava-lhe de dentro do conces-
sionário:
— Dá-lhe ovos fritos com toucinho e
uma canada de vinho!
Ia a mulher para casa e cumpria o
(M Senhora do Rosário.
G4
A TRADIÇÃO
mandado, que julgava ser da Virgem do
Rosandario.
O marido ia comendo bem e bebendo
melhor, e muito de propósito dizia para
a mulher:
— Mulher, estou vendo tão pouco!. . .
(tão poucos ovos, toucinho e vinho).
Klla então voltava para a egreja, e no-
vamente pedia:
— Senhora do Rosandario, dae ce-
gueira ao meu homem, de modo que
elle não veja ! . . .
Bradava-lhe o marido, outra vez, de
dentro do confessionário:
— Dá-lhe ovos fritos com toucinho e
uma canada de vinho !
Voltava a mulher para casa, dando
sempre ovos com toucinho e vinho em
abundância ao marido.
E o marido dizendo sempre:
— Mulher, de cada vez estou vendo
menos. . .
Por hm, tantas vezes foi a mulher á
e^^eja e tantos ovos com toucinho e vi-
nho deu ao marido, que este, enraivecido
por ver proceder tão mal sua mulher,
que lhe desejava cegueira, resolveu ir
para o esconderijo m.unido de um grosso
varapau, e na occasião em que a mulher
fazia os costumados rogos á Virgem do
Rosandario, sahiu-lhe ao encontro e deu-
Ihe tamanha coça que a pôz ás portas da
morte.
(Kecolh^da da tradição oral)
(Espozende).
Ai.vAKO PINHEIRO.
niOVERBIOS E DICTOS
lar.
(Continuação)
XI
Natal ao soalhar^ Paschoa á roda do
XII
Mulher que dá no marido, é porque
Deus é servido.
XIII
Para ir bem á sacca, vae mal á vacca.
XIV
Filho és, pae serás ; conforme vires,
assim farás.
XV
Mulher que canta, não se espanta.
XVI
Não diz a pilheira co'a cantareira.
XVII
O frio e a fome fazem o gado gallego.
XVIII
Por onde Maio passou nado, tudo
deixou espigado.
XIX
O sói de Março pega que nem pega-
masso.
XX
Baba de cão come-se com pão.
XXI
Baba de gato, nem chegue ao fato.
XXII
Quem se ri sem vêr de quê, seus máos
feitos alembra, ou os d'alguem.
(Da tradição oral)
(Continua.)
Serpa.
CASTOR.
BIBLIOGRAPHIA
A agglomeração de original obriga-nos
a retirar a secção bibliographica, que será
inserta no próximo numero.
D. N.
A.iiii«> I — N-" rs
SEEPÂ, Maio de 1899
Editor-adrnínistrador, Jote Jeronymo da Costa Bnwo de Negreirot, Rua l.argi, 3 e 4 — SERPA
TypoRraphia de Adolpho de Mendonça, Kua do Corpo Sanio, 4Ú c 48 — LISHOA
A TRADIÇÃO
•>
REVISTA MENSAL DETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
T>\KECTOKE.s. — L ADIS L AU PIÇARRA e M. DIAS NUNES
BOTÂNICA POPULAR
Notas acerca de algumas plantas da flora
portugueza
Quando eu estudava na Escola Poly-
technica, intentámos — o illustrado bo-
tânico, já fallecido, António Ricardo da
Cunha, e cu — fazer uma resenha das
plantas da Hora portugueza, empregadas
pelo povo em vários usos, principalmente
com fins therapeuticos.
Apro\ eitavamos para isso os trabalhos
já existentes, e o que se podesse colher
da tradição oral.
Esse trabalho não se concluiu.
As ditíículdades eram grandes, sendo
das maiores a variabilidade das designa-
ções e dos usos, e a necessidade de ex-
cursões longiquas e dispendiosas. De
resto, António Ricardo já sentia a saúde
quebrantada, e eu desviei a minha atten-
ção para outros estudos.
Agora que o meu illustre collega La-
dislau Piçarra desejou que eu colligisse
alguns subsídios para o estudo das usan-
ças populares, extractei de apontamentos
colhidos então, e de outros que obtive
posteriormente, estas modestas notas.
*
* *
Em Lisboa, crê o povo ser de uso sa-
lutar nas affecções das vias respiratórias,
em que predomine a tosse: a hera ter-
restre, mais vulgarmente chamada herva
terrestre ((ilechoma heredacea), a herva
agrimonia (Agrimonia eupaloria), os ou-
regãos lOriganum vulgare), a raiz de al-
caçus(Glvcyrrhiza glabra),o aipo(Apium
graveoleris), a pimpinella (Poterium san-
guisorba), as perpetuas roxas ((jomph re-
na globosa ou Xcranthemum annum ?j, o
cardo santo (Centáurea benedicta), os
agriões (Sisymbrium nasturtium), o hys-
sopo (Hyssopus olHcinalis), a cevada
(Hordeum hexastichon, H. vulgare), a
cevada santa (Hordeum distichon).
Das perpetuas, das violetas e dos
agriões, fazem xaropes, que denominam
lambedores. Para loções, o rosmaninho
(Lavandula Stoechas).
O rosmaninho é conhecido desde re-
moto tempo, e parece que já tinha appli-
cação medicinal. Gil Vicente, que des-
creve muitos dos costumes populares do
seu tempo, menciona o rosmaninho na
Farça dos Tísicos. Diz assim:
Buas. — E dar-lhe eu puro vinho?
M. F. — Guarde-vos Deus de mal !
Não, senão agua tal. . .
Entendeis — cosida com rosmaninho.
Ainda para loções, usam o alecrim
manso (Rosmarinus officinalis), a alfaze-
ma (Lavandula spica), a losna (Artemísia
absyntium, Lavandula absyntium offici-
nale, B.), a táveda ou as táguedas (Co-
nyza squarrosaj, a esteva (Cystus lada-
niferus), a alfavaca de cobra (Parietaria
officinalis), a casca de carvalho (Quercus
66
A TRADIÇÃO
robur), as folhas de nogueira (Juglans
regia\ a congossa (^'iuca major», a hcrva
molarinha ou moleirinha (Fumaria offici-
nalis"». Esta é destinada ás doenças cutâ-
neas.
Para fumigações, vulgarmente chama-
das defumaaouros : a arruda (Ruta gra-
veolens), a mostarda (Sinapis, alba ou
nigra:), o arrudão (Ruta tennifolia), os
olhos de canna (Arundo donax), a ar-
oeira (Pistacea lentiscus). Neste defuma-
douro juntam cinco raminhos de alecrim
manso, cinco raminhos de renovo de
oliveira (Olea sativa) e cinco pedras de
sal. O qual defumadouro é applicado ás
creanças que teem lua. Ter lua é uma
phrase de significação muito vaga, e re-
presenta ás vezes svmptomas e até doen-
ças muito differentes. Diz-se que a crean-
ça tem lua, quando nella se manifestam
movimentos intestinaes, movimentos con-
vulsivos, etc.
Ha ainda para defumadouros, o ale-
crim bravo (sp ?), o alecrim de S. Sil-
vestre — o povo diz Selivestre — (spr).
Em vaporisações, usa-se o cosimento
da maçã de cypreste iCupressus semper-
virensi. A maçã de cypreste dá o titulo
a uma moda choreographica de Tremez
e Cortiçada, próximo de Santarém. E, a
propósito, transcrevo uma das quadras:
«A maçã do acypreste
E redonda, rebola bem.
Graças a Deus para sempre.
Já hoje vi o meu bem.»
Para combater o nervoso, emprega o
povo a herva cidreira (Melissa ofticinalis),
a flor de laranjeira fCitrus aurantium), a
tilia (Tilia europea), as malvas (Malva syl-
vestris, M. rotundefolia), a casca de laran-
ja azeda (Citrus vulgaris, v. hispânica).
Na infiammação dos olhos, usa-se ofun-
cho (Anethum foeniculum), os botões de
rosa (Rosa plena e R. proenestina), e a
flor da malva.
Como refrigerante: a grama (Panicum
dactylon;, a avenca (Adiantum Capillus
Veneris), a althéa (Althaea officinalis;, a
legação (Smilax áspera), a raiz de salsa
(Apium petroselinum).
Contra a ictericia: a ruiva dos tintu-
reiros (Rubia tinctorum).
Para as doenças das vias urinarias: o
bruço de Salvaterra, que supponho ser
o bruço do Alemtejo (Laserpitium pen-
cedanoidesL [)'esta planta fala J. de Fi-
gueiredo, na Flora pharmaceutica, citando
Brotero, de quem a mesma planta, pa-
rece, já era conhecida, como remédio
popular. Além do bruço, empregam-se
ainda contra as referidas doenças: a
herva serra (Lepidium latifolium), as bar-
bas de milho (Zea ma3's), a bolsa de pas-
tor (Thlaspi bursa pastoris), o fel da
terra (Genciana centaureum), a cavallinha
dos campos (F^quisctum arvensis), sem-
pre noiva (Polygonum aviculare), a herva
prata ou herva dos unheiros (Illecebrum
Paronychiaj, a unha gata (Ononis spi-
nosa) as saudades bravas (Scabiosa,
sp. arvensis?) o morangueiro (Fragaria
vesca).
Nas doenças do estômago: a salva
brava (Salvia verbenacoides ou S. scla-
reoides ?), o fel da terra, a macella ou
marcella (Anacyclus aureus), a raiz de
almeirão íCichorium intybus), as bagas de
zimbro (Juniperus communis).
Como sudorificas e expectorantes: a
herva das sete sangrias (Lithospernum
fructicosum), o mastruço (Lepidium sati-
vum), a folha do sabugueiro (Sambucus
nigra), a flor do alecrim (Rosmarinus
officinalis) e a flor de borragem (Borrago
officinalis).
Contra a inflammação de garganta: a
guiabelha ou diabelha (Plantago corono-
pifolia).
Gil Vicente menciona-a duma outra
fcrma:
«Tomada da Guiabelha
Pisada co'o fel d'ovelha.»
(Farca dos Tísicos).
Algumas plantas ainda hoje conservam
a designação porque eram conhecidas
n'essa epocha.
A TKADICAO
G7
e^LE^I^ DE TYPOS POPDLjaiRES
\
Campaniça (mulher do termo de Mertola)
68
A TRADIÇÃO
António Ribeiro, o chiado^ no Auto das
Regateiras, faz referencia, entre outras,
á língua ceivina, norsa branca, alfavaca,
piorno e aveia ^^Asplenium scolopcndrium,
Brvonia alba, Parietaria ojVicinalis, La-
vandula spica, Spartium monospernum
e avena agraria).
O povo emprega ainda, contra a tosse
convulsa : as ortigas mansas, as ortigas
mortas ou mercurial (Mercurialis annua)
e o espinheiro alvar (Lvcium europoeum).
Contra as hemoptyses: as ortigas bra-
vas (Urtica urens). «
Contra a inchação : a lingua de vacca
(Anclusa otiicinalis), a flor de sabugueiro.
Contra as empigens : a abrotea (As-
phodelus ramosus).
Contra a inflammação da bocca : a co-
chlearia (Cochlearia officinalis), o mei-
mendro (Hyoscyamus niger ou albus?)
Contra as verrugas ou tecidos callo-
sos
culosus).
(Concilie)
uma alga
a bodelha (Fucus vesi-
SOPHIA DA SILVA.
À Procissão do Corpo de Deus
São volvidos vinte e um annos depois
que se verificou em Serpa, pela ultima
vez, a procissão do Corpo de Deus. Era
esta, como ao diante se verá, uma das
cinco antiquíssimas procissões que a Ca-
mará Municipal acompanhava e promovia.
Procuremos descrevei a.
Saía do templo do Salvador a imagem
de S. Jorge em direcção á egreja matriz
de Santa 'Maria, cerca da qual se orga-
nisava em definitiva o religioso cortejo.
De bota e espora, vistoso chapéu de
bicos, calção e manto de velludo carme-
zim: no braço esquerdo um pequeno es-
cudo, e a lança reluzente na mão direita,
— eilo, o lendário Santo batalhador,
montando arrogante cavallo branco ajae-
zado a capricho.
As rédeas e aos estribos, quatro offi-
ciaes mechanicos, para me servir agora
da velha designação: dois barbeiros e dois
ferreiros, ou então dois barbeiros e dois
ferradores.
Após o Santo o alferes e o pagem
porta-bandeira, ambos a cavallo. Em se-
guida as éguas e cavallos destado^ que
as casas ricas forneciam, levados á mão
e lindameiite ataviados com fitas de seda
multicores, na cauda, na crina e na tes-
teira. Atraz a confraria do Santíssimo de
S. Salvador.
A este cortejo se juntava, no átrio da
egreja matriz, a confraria do Santíssimo
de Santa Maria, que formava cora a do
Salvador as duas alas da procissão.
Em meio das irmandades eram condu-
zidas as imagens de Jesus, Maria e José ('),
cada uma em seu andor, e ao fim o Sa-
cramento sob o pallío.
Depois a Camará Municipal ostentan-
do o vermelho estandarte onde a emble-
mática Serpe auribrilha. Depois a phi-
larmoníca e um numeroso acompanha-
mento popular.
A procissão, assim constituída, percor-
ria o seguinte itinerário, ao cabo do qual
se dissolvia: rua da Porta de Beja, rua
da Misericórdia, rua dos Cavallos, Praça,
rua da Cadeia Velha, e rua de Pedro
Annes.
Tão simples e modesta nos últimos
tempos, a procissão de Corpus devia real-
mente apresentar-se imponente e luzida,
outr'ora, quando os oíficios ou classes se
incorporavam no préstito com as respe-
ctivas bandeiras e insígnias.
O teor dos artigos 97.^, 98.° e gg.'' (-) do
código de Posturas da Notável Villa de
(1) Estas imagens pertenciam, e ainda perten-
cem, á egreja de S. Paulo, mas saíam com o Sa-
cramento da egreja matriz.
(2) Também o art." 100.", que já publicámos,
respeita á procissão de Corpus.
Vid. o meu artigo «Danças populares do Bai-
xo-Alemtejo» inserto em o n.° 2 da Tradição^
pag. 21.
A TRADIÇÃO
G9
Serpa^ a que já me referi ('), pemiitte bem
avaliar o que seria noutras eras a procis-
são de que nos occupàmos. \'amos trasla-
dar para aqui os interessantes artigos.
07." — <tI)os JUí são ohfi^íiJos a aconi-
paniuir as procissõts cia cantara com suas
batuieiras (*), castellos e ensiiiias.»
«Todo o ortelláo das ortas que são do
couto da legoa para dentro e viver em
as ortas das fregue/.ias cujos curas são
obrigados a vir á procissão do Corpo de
Dcos, serão obrigados como digo a acom-
panhar sua bandeira e as procissõis da
camará com suas ensinias de castellos
de ram.os de frutas no tempo em que as
ouver, e no outro com suas ortalissas em
pao ou astia de nove palmos, direito e
liso e outro sim todos os ofticiais de of-
ficio mechanico desta villa serão obriga-
dos conforme o antiguissimo costume, a
acompanharem as tais procissõis e suas
bandeiras, por si com suas próprias pes-
soas não estando precizamente empedi-
das e virão com seus castellos e ensinias
em astia ou pao liso e direito de nove
palmos ; e os mercadores, marseiros,
sumbreireiros, tozadores, e tintureiros,
serigueiros e sirieiros virão conforme o
seu costume ás ditas procissõis por suas
próprias pessoas ou de seus filhos maio-
res de quinze annos, ou parentes em grão
conhecido, cada um com sua tocha aseza
de dois arates ao menos cada hua e de
sorte que não seja ardida em mais da
tersa parte, porque serão obrigados a re-
formarem-na, sob pena de qualquer das
sobreditas faltas nas ditas procissõis, o
não cumprir com as ensinias e tochas na
forma que dito he, pagar quinhentos reis
pela primeira vez e pela segunda em do-
bro de cadea; e os mercadores, marsei-
ros, serieiros pagarão as penas em dobro,
assim da primeira, como da segunda,
como da terceira vez ; as quais procis-
sõis se lhes declara serem as seguintes :
a de S. Sebastião, a de S. Braz, a so-
(1) Ibid.
(2) As bandeiras, de variadas cores, tinham a
forma de estandarte — segundo a tradição oral.
iene do Corpo de Dci>.s, a de Santa
Isabel, e a do Anjo ('}; e assim manda-
ram se comprissem.i)
i)H." — iiAcotnpaiilianiciito do bem avcn-
tui ado São Jofirc.» Os ferradores, ser-
ralheiros, ferreiros, cutillciros, barbei-
ros e sangradores são obrigados por an-
tiguissimo costume a acompanharem o
bem aventurado S. Jcjrge na piíjcissão
solene do (Lorpo de Deos a que o dito
Santo asiste, os quais acompanharão
por suas próprias pessoas em corpo, sem
capas, com suas rodelhis e espadas nuas
limpas conforme o antiguissimo costume,
levando o dito Santo montado em bom
cavallo de sella com dois pages ao me-
nos bem vistidos e montados em bons
cavallos de sella, e o que no dito acom-
panhamento faltar não indo na forma so-
bredita pagará de pena quinhentos réis
e os juizes de seus oílicios que não leva-
rem o dito Santo na forma que dito he
pagará de pena dois mil réis de cadea
que serão repartidos pelos que tocar del-
les a pagar cada hu e assim mandaram
se comprisse.»
99.° — »Das maúmas («j dos lavrado-
res. r> o Os lavradores das freguezias cujos
curas são obrigados a vir á procissão do
Corpo de Deos, virão por si ou por ou-
trem com suas maúnças, na forma do
antiguissimo costume, sob pena de pa-
gar o que faltar quinhentos réis, e assim
mandaram se comprisse.»
M. Dias NU.^ES
MEDICINA empírica
Os nossos trabalhos d'investigação so-
bre a medicina popular, ficariam incom-
pletos se, ao lado dos processos místicos,
que principiámos a descrever em o n.° 3
(•) A procissão do Santo Martvr é, das cinco
a única que se effectua ainda, aliás pobremente
e sem caracter oííicial. As de S. Braz, Santa Isa-
bel, e do Anjo, extinguiram-se ha longa data.
{^) (£Maimça, ou mainça. Pequenino feixe d'es-
pigas.
70
A TRADIÇÃO
da nossa revista, não nos occiípassemos
também da therapeutica empírica.
O empirismo, o mais antigo de todos
os methodos, appareceu naturalmente en-
tre os primeiros homens que, ao senti-
rem-se doentes, proc^uravam por instin-
cto o meio daliviar seus soffrimentos.
Durante muitos séculos reinou exclu-
sivamente este methodo, — o que não é
para admirar, dada o ignorância em que
se estava acerca das causas e natureza
das doenças.
Só tarde, muito tarde, mercê do estudo
anatómico e íísiologico do corpo humano,
a medicina começou a ser uma arte exerci-
da por forma consciente e reflectida.
E' unicamente a partir dessa data, que
a arte de curar merece o nome de me-
dicina, porque até ahi consistia ella, ape-
nas, num montão de formulas empiricas,
empregadas perfeitamente ao acaso, e
sem outro guia que não fosse o desejo
d'açertar.
E mister, todavia, confessar que tem
grande importância o estudo do methodo
empirico. No meio da serie infinita de
remédios que o decorrer dos séculos
tem vindo accumulando, «acham-se ás
vezes» — como dizem Nothnagel e Ross-
bach — «alguns dados preciosos que nos
obrigam a ser reconhecidos para com
este methodo.» (')
Porisso, e porque os próprios erros e
absurdos de que se acha eivada a the-
rapeutica empirica devem ser registados,
como documentos para a historia da me-
dicina, aqui vimos inaugurar hoje a pre-
sente secção, intimamente convencidos
de que ella despertará verdadeiro inte-
resse entre os leitores da Tradição.
*
Escrofuloso
A escrofulose, conhecida vulgarmente
pelo nome de escrofuloso ou alpórcas, é
(•) Nothnagel e Rossbach: Nouveaux Elements
de Matière Medicale et de Thérapeutique.
— e com razão — uma das doenças mais
temidas pelo povo. Quanto á sua natu-
reza, está o publico muito longe de sup-
pôr que ella é idêntica á tuberculose,
como muito bem se demonstra em face
das modernas doutrinas medicas.
O escrofuloso, segundo a estreita con-
cepção popular, representa apenas uma
fraqueza do sangue, hereditária e tran-
smissível pela amamentação. Para que
uma creança adquira a terrível moléstia,
diz a tradição, basta que uma só vez
chupe o leite de mulher escrofulosa. — -
Existe na villa de Serpa, e em muitas
outras terras alemtejanas, o habito inve-
terado de curar as escrófulas pela se-
guinte forma:
Nos mezes de Maio, Junho e Julho
de cada anno, e durante os três primei-
ros dias da lua cheia, vão os indivíduos,
que se julgam affectados do escrofuloso,
a casa da pessoa — geralmente mulher
— dedicada ao caritativo mister de tra-
tar as alpórcas. Ali, a curandeira, depois
d'examinar o doente e de certificar-se
que elle padece d'escrofulas, lança lhe
no conducto auditivo externo d'ambos
os lados, uma pequena porção d^um pó
branco, sobre o qual expreme em se-
guida erva moira, fresca e pisada, até o
sueco encher os conductos. Os ouvidos
são depois tapados com um pouco dal-
godão em rama.
Passados quatro ou cinco dias, tira-se o
algodão e lavam-se os ouvidos com agua
morna; e se o doente accusa dôr nalgum
delles, introduz-se-lhe uma bola d'algodão
embebida em óleo d'amendoas doces.
Esta cura deve ser praticada, como
dissemos, no cheio das luas de Maio,
Junho e Julho, e em três annos succes-
sivos. A cada doente é imposto o pre-
ceito de tomar um purgante, três dias
antes de começarem os curativos; e em-
quanto dura o tratamento, precisa de
guardar á risca o reL>;imen. Consiste o
regimen em o doente não comer batatas,
carne de porco, bacalhau, queijo d'ove-
lha, alméce, peixe de pelle azul, figos,
m.elão e pepino.
A TRADIÇÃO
71
Tem ainda o povo por costume, untar
as adenites escrofulosas com manteiga
de vacca rançosa, crendo que esta sub-
stancia go/a da propriedade de as fazer
mirrar, evitando assim que ellas suppu-
rem e abram para o exterior.
Fm lòrno do p<) branco alraz referido,
faz-se d'ordinario grande mvsterio.
Ninguém sabe a sua composição!
Alcançando eu, porém, em certa oc-
casião e por especial favor, uma pe-
quena quantidade d'esse pó, pude veri-
ficar, pel«) aspecto e sabor, que se tra-
tava do trivial sal de cosinha bem pul-
verisado.
— As classes populares, e mesmo al-
guns individuos de posição mais elevada,
depositam ainda lio)e extraordinária fé
no tratamento que, em breves termos,
acabámos dexpôr. E a prova, temo-la
bem patente na larga clientela, que em
geral rodeia qualquer especialista na arte
de curar o escrofuloso.
Ha poucos annos, em i885, falleceu
em Moura uma mulher, chamada Maria
Angélica Torres de Mattos, cuja fama
na cura das aipórcas era tal, que ali con-
corria gente de toda a parte, tanto de
Portugal como de Hespanha. Forma-
vam-se, nas diversas povoações, verda-
deiras caravanas de doentes, que se di-
rigiam a Moura afim de receberem a
miraculosa cura.
Consta-me até, que alguns médicos de
Lisboa chegaram a vir expressamente a
esta importante villa do Alemtejo, com
o propósito dassistir ao maravilhoso tra-
tamento!
A decepção destes curiosos clinicos —
se é que o facto se deu — devia real-
mente ser enorme, ao deparar-se-lhes
uma therapeutica tão fútil e fantástica.
A maneira de tratar o escrofulismo
conforme a descrição acima, apesar de
largamente consagrada pelo uso, nada
ha que scientificamente a justifique.
Depois que a anatomia pathologica nos
veiu dar a verdadeira noção da escrófu-
la, querer combater esta pertinaz enfer-
midade depositando nos ouvidos chloreto
de sódio em pó c sueco d'erva moira, é
simplesmente irrisório!
Ainda mesmo encarada a questão pelo
lado da fraqueza do sangue, a que o povo
attribue a doença, por que mystico me-
canismo poderiam as duas citadas sub-
stancias eliminar do organismo as des-
agrada\eis manifestações do escrofuloso?
A insistência em tal processo de cura
significa tão somente um dos innumeros
prejuizos radicados no espirito publico,
que ditlicilmentc veremos desapparecer.
Ladislau piçarra.
LENDAS & ROMANCES
(HecolhtJos Ja traJicdo oral na provinda Jo rt/llemtejoi
I
I >- .Al5í,l*COS
— Lá se apregoam as guerrns
Entre França e Aragão;
Ai de mim! que já sou velho,
E as guerras me matarão;
De sete filhas que tenho
Nenhuma sahiu varão!
— Pae. dae-me armas e cavallos,
Que quero ir ser capitão.
— Tendes um lindo cabello,
F"ilha, conhecer-vos-hão.
— Mandai o-hei a cortar,
E aiarei-me um listrão.
— Filha, tendes lindos olhos,
Logo conhecer-vos-hão.
— Ao sahir d'esta corte
Eu os pregarei no chão.
— Filha, tendes lindos peitos.
Logo conhecer-vos-hão.
— Inda ha-de haver um alfayate
Que me faça um gibão,
P'ra desapertar meus peitos,
Mettel os no coração.
— Filha, tendes lindo andar,
Logo conhecer-vos hão.
— Ha de haver um sapateiro
Que faça botas de joelhão,
P.ira quando fór a andar
Me faça andar de moitão;
E quando d'aqui me fôr
D. Marcos me chamarão.
— Madre mya, madre mya,
Que me morro ja de amores,
Que os olhos de D. Marcos
São de mulher, que não de hombre.
A TRADIÇÃO
— Pois se tu o quer's saber,
Trai o comli^o a ja?itar,
Bota-Ihe cadeiras baixas,
Para n'ellas se assentar — .
D. Marcos, como discreto,
Não deixou de suspeitar.
Foi passando pelas baixas
Nas altas se foi sentar.
— Madre niya, madre mya,
Que me morro já de amores,
Que os olhos de D. Marcos
São de mulher, que não de hombre.
— Convidae-o vos, meu filho,
P'r'a ir á feira passear.
Que se ellc fòr mulher,
As fitas se ha de pegar,
Ç se elle homem fòr.
As espadas se ha de lançar.
— Oh I que tão lindas titãs
P"r' ás senhoras se adornarem.
— Ohl que bellas espadas
Para na guerra lidarem.
— Madre mya, madre mya,
Que me morro já de amores,
Que os olhos de D. Marcos
São de mulher, que não de hombre.
— Pois se tu o queres saber.
Leva o comtigo a banhar.
Pois se eile homem fór,
As aguas se ha de lançar,
E se elle mulher fòr.
Muito bem se ha de escusar — .
Tinha uma bota descalça,
E outra por descalçar.
Quando lhe veio por noticia
Que sua mãe era morta,
E seu pae a acabar;
Que tinha seis irmãs orphãs,
E as q'ria ir a amparar.
— Montae vós, ó D. Marcos,
Que vos quero acompanhar.
— Sete annos andei na guerra
Sem ninguém me conhecer;
Dêem cá uma almofada
A ver se inda sei coser.
(Elvas I.
II
r>. >i:artinlio
f Variante do romance anterior)
— Ohl que guerras são armadas
Nas costas do Maranhão!
— Oh, filhai estou muito velho,
Não as posso vencer, não.
— Dae-me armas e cavallos,
Que eu irei por capitão.
— Tendes as mãos muito finas,
Filha, conhecer-vos-hão.
— As minhas mãos, ó meu pae.
Todo o remédio terão.
Mandarei fazer 'mas luvas,
D'ellas nunca sahirão;
Dae-me armas e cavallos,
Que eu irei por capitão.
— Tendes os peitos mui grandes,
Filha, conhecer-vos-hão.
— Os meus peitos, ó meu pae.
Todo o remédio terão,
Mandarei fazer 'ma farda
D'ella nunca sahirão;
Dae-me armas e cavallos,
Eu irei por capitão.
— Tendes cabellos mui grandes,
Filha, conhecer-vos-hã'^.
— Os mens cabellos, meu pae.
Todo o remédio terão,
Dae-me cá uma tesoira,
Vel os hão cahir no chão ;
Dae-me armas e cavallos
Que eu irei por capitão.
— Dou-te armas e cavallos,
E dpu-le a minha benção.
— O minha mãe, minha mãe.
Os olhos de D. Martinho
A mim me matarão,
Todos os feitos são de homem,
Os olhos de mulher são.
— Pois se o qaer's exp'rimentar,
Convida-o para jantar,
Que se elle mulher fòr,
Nas baixas se ha de assentar.
— Que bellos assentos baixos
Para ás damas oftertar!
— Que bellos assentos altos
P'ra D. MartinliO se assentar!
— O minha mãe, minha mãe,
Os olhos de D. Martinho
A mim me matarão,
Todos os feitos são de homem.
Os olhos de mulher são.
— Pois se o quer's exp'rimentar,
Leva-o a enfeirar.
Que se elle mulher fôr,
A's, fitas se ha de agarrar.
— O que bellas fitas verdes
Par;i as damas adornar !
— O que bellas espadinhas
P'r;) D. Martinho brigar !
— O minha mãe, minha mãe.
Os olhos de D. Martinho
A mim me matarão,
Todos os feitos são de homem.
Os olhos de mulher são.
— Pois se o quer's exp'rimentar,
Convida-o para nadar.
Que se elle mulher tôr,
Elle se ha de acobardar.
— Nade o capitão primeiro,
Pr'a me poder ensinar ;
Quem quizer casar comigo
A TRADIÇÃO
78
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VERDE CARACOL
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A TRADIÇÃO
Vá ao palácio real.
Sou filha de D. Martinho,
Neta de D. Guiomar.
(ElvasK
((íonliHÚii).
A. Thomaz pires.
J/Iodas-estribilhos alemtejanas
Verde caracol
Verde caracola.
Minha rica pomba !
Kii ando comtigo
Do sói para sombra.
Do sói para sombra,
Da sombra pró sola.
Minha rica pomba,
Verde caracola !
Sotas. — I 'erde caracol é propriamente
um descante, mas também se adapta aos
bailes de roda e aos pares., cuja descri -
peão faremos dentro em breve, na se-
quencia do nosso artigo inserto em o
n." 2 da Tradição sob a epigrapiíe Dan-
ças papiílares do Baixo Alcmtejo.
— Quanto a linguagem, devemos notar
a addição do a breve ás palavras caracol
e sói, no final dos versos i.°, da pri-
meira quadra, e 2." e 4.° da quadra se-
gunda.
M. Dias NUNES.
ANTIGOIDADES PORTOGUEZAS
O quft é privilegio e o que é eygreia privilegiada
Privilegio: tanto quer dizer como ley
apartada, que he feita assi naadamente
por prol e por honra d'alguns homês, ou
íogares, e nom per todos cumunalmente.
E porque a eygreia he cousa de Deus
segundo diz en a ley ante desta, por
onde ha privilégios mais que as outras
cousas des homês.
E assi naadamente en estas cousas ;
que non de seer apremada de nenhum
preito, nem d'outro embargo, nem devem
en ela nem em seus cimeterios Julgar os
preitos segraes, maiormente os que fo-
rem de justiça criminal.
Ca será contra rrazom e que cousa de
juzgar os omês de morte ou de lesion en
o lugar que he estabeleçudo pêra servir
hya Deos, e pêra faserlhy hy obras de
piedade,
E outro ssy nom devem hy a faseer
merchandia. nem devem assoterrar mor-
tos dentro en ella, segundo já dectermi-
namos en o titolo dos sacramétos.
E nom devem h}^ a estar com os cle-
rygos omcs leigos en o coro quado dizem
as oras mormente e a missa. E esto he
porque as possam dizer mais sem em-
bargos e com maior devoçom : nem de-
vem os leigos, nem as molheres, a estar
derrodor do altar quãdo diserem a missa;
mais podem estar pelos outros Íogares
da eygreya, os barões a hua parte, e as
molheres a outra.
Outro ssy nem hua molhe r nom se
deve achegar a o altar, nem servir o clé-
rigo mentre disser a missa; nem devem
a estar a as oras delas gridizelas do al-
tar adeente : pêro quãdo quizerê comu-
gar e fazer oraçom, ou oferecer algua
cousa, bem se pode chegar atá acerca do
altar,
Otro sy nom debe pasar en las casas
de la eygreia que se teem com ella e com
suas quites, em que teem esas cosas en
guarda. E ainda som estas outras fran-
quezas; que as casas e os erdamentos
que lhes forem dados ou mandados ou
vendudos en testamentos dereytamente,
pêro nom fosse apoderados delles, gaa-
nharon o senhorio e o dereyto que en
elas avia aquel que as mandou ou ven-
deu, ou deu, de maneira que as pode a
eygreia demandar por suas a quem quer
que as tanha. E esto privilegio nom am
eygreias tam solamente mays ainda os
moesteyros e os speritaes, e os outros
A TRADIÇÃO
75
logares religiosos que sem feyios a ser-
viço de Deos.
(Das I.eys que D. Sancho I mandou tomar
por apontamento)
Galés, galeões e naus
As primeiras gales que houve em Por-
tugal tinham vinte metros de comprido.
No século XVl construiram-se os pri-
meiros galeões, que mediam sessenta
metros de comprido.
Os tripulantes das galés eram então
escolhidos entre os pescadores e barquei-
ros ; mas depois quando principiou a co-
dificação das leis, foram obrigados os cri-
minosos a prestar tal serviço Esta pena
era por toda a vida, ou temporária, con-
forme o crime praticado.
A primeira nau que houve em Portu-
f[al, foi mandada construir por D. Af-
onso III quando pretendeu conquistar o
Algarve.
CoKKÊA CABRAI,
CRENÇAS & srPEKSTIÇÕES
Broxas e bruxedos
Não é raro ouvir dizer, entre o povo,
que tal creança está embruxada. É não
admira que o facto se repita com fre-
quência, pois que é crença vulgar e muito
espalhada, gostarem as bruxas, como já
referimos, dexercer a sua arte maléfica
sobre a innocente infância.
Quando apparece uma creança rachi-
tica e enfezada, e que aos circumstantes
se afigura como sendo mais um triste
caso de bruxaria, para libertar a infeliz
victima do terrivel maleficio, adoptam-se
algumas praticas extravagantes, que pas-
sámos a descrever.
I — Chamam-se á casa onde se encon-
tra a creança embruxada, um Manuel e
uma Maria. Colloca-se no meio da dita
casa uma tripéça, e, em torno desta,
sentam-se no chão o Manuel e a Maria,
ficando Manuel dum lado da tripéça e
Maria do lado opposto.
Em seguida, Manuel, pegando na crean-
ça, benze-a e diz:
— «Fulano! (o nome da creança) quem
t'encalhou ?»
Maria responde :
— a Uma alma perdida que por aqui
passou.»
Torna Manuel:
— «Quem tcncalhou, t'ha-de desenca-
lhar. Em nome de Deus e da \'irgem
Maria. Toma lá, Maria. i.
Manuel, ao proferir as ultimas pala-
vras, passa a creança por Rebaixo da tri-
péça para as mãos de Maria, que diz :
— «Deita cá, Manuel. i
A seu turno, Maria, com a creança nos
braços, excalama:
— «Fulano I (o nome da creança) quem
tencalhou ?»
Responde Manuel :
— «Uma alma perdida que por aqui
passou.»
Accrescenta Maria :
— «Quem tencalhou, t'ha-de desenca-
lhar.
Toma lá, Manuel. •
— «Deita cá, Maria» — diz Manuel, re-
cebendo a creança das mãos de Maria,
egualmente por debaixo da tripéça.
A creança tem de passar assim nove
vezes por debaixo da tripéça ; e a cada
passagem é necessário que sejam pro-
nunciadas as mesmas palavras acima
mencionadas.
No fim das nove passagens, rezam-se
cinco Padre-nossos, cinco Ave-Marias e
cinco Glorias-patri; e estas orações offe-
recem-se a S. Cypriano, para que livre
aquclla creança do mal que a afHige.
Tudo isto tem d'e\ecutar-se durante
nove dias successivos. E só assim a crean-
ça conseguirá restaurar a saúde.
2 — Uma outra pratica, que o povo usa
para desembruxar as creanças, consiste
no seguinte :
Duas pessoas, cujos nomes sejam tam-
bém Manuel e Maria, fazem uma pepia
76
A FRADIÇAO
(corôa'! de trovisco Ç). Essa pepia é le-
vada a uma encruzilhada, pela uma hora
da noite ; e ali os pães da creança em-
bruxada pegam na pepia e manteem-na
em posição vertical.
Em seguida, Manuel e Maria, postan-
do-se frente a frente e deixando de per-
meio a referida pepia, passam a creança
airavez d este misterioso circulo, nove
vezes.
A creança passa, é claro, dos braços
de Manuel para os de Maria, e vice-ver-
sa ; proferindo as duas caridosas creatu-
ras, no momento de cada passagem, as
mesmas palavras que mencionámos na
pratica antecedente.
Findas as nove passagens, o Manuel e
a Maria desmancham a pepia e espalham
os destroços pela encruzilhada.
E, a seguir, rasgam com a mão es-
querda uma camisa da creança e lançam
os farrapos no mesmo sitio.
Depois d'esta operação, regressam to-
dos para suas casas, convencidos que sal-
varam aquella pobre victima, do horrível
bruxedo. E' necessário, porém, que ao
regressarem, nenhuma das pessoas olhe
para traz, porque se alguém tem a ousa-
dia de voltar a vista para o caminho per-
corrido, já sabe que mão occulta lhe vi-
bra estrondosa bofetada.
E' a própria bruxa, auctora do malefí-
cio em questão, que parece estar á es-
preita, para exercer a sua vingança.
(Brinches).
FILOMATICO.
CONTOS POPULARES ALEMTEJANOS
o lobo e as três fortunas
Era duma vez um lobo que, ao levan-
tar-se um dia, pela manhã, espreguiçou-se
e deu três espirros, dizendo: «Oh! que
(') A virtude do trovisco proveiu, segundo a
tradição, de ser a este arbusto que Nossa Senhora
se abrigou por occasião d'uma grande trovoada.
tres fortunas que eu hoje vou ter ! ... »
Poz-se a caminho, e passado um oiteiro,
viu dois carneiros guerreando. Quando
elle diz lá comsigo: «Cá está a primeira
fortuna. E esta não é má.» Chegou ao
pé dos carneiros, sem elles sentirem, e
disse-lhes:
— «Que diabo de desordem é essa?
então aqui já náo ha rei nem roque?!
pois esperem que eu já os castigo...»
Os carneiros, vendo que já não po-
diam fugir-lhe, responderam:
— «O' senhor lobo, nós bem sabemos
que você nos mata e nos come; mas
primeiro, tire-nos lá aqui duma duvida,
para ver qual de nós tem razão.»
— «Então que duvida é essa?» — per-
guntou o lobo.
— «Ora,» — diz um dos carneiros —
«é que eu digo que a pastagem aqui para
este lado, é do meu dono, e para aquelle
lado, é que pertence ao dono do meu
camarada; e elle diz que não, E, para
ficarmos sabendo quem tem razão, pe-
dimos-lhe que veja se este marco está
certo com aquelle que está além adiante.»
O lobo, não desconfiando da malicia
do carneiro, aproximou se do marco para
decidir a questão. Poz-se a olhar muito
attento para os marcos, a ver se estavam
no endireito (direcção) um do outro,
quando uma forte pancada o fez cair
por terra, sem sentidos. Tinham sido os
carneiros, que, apanhando o lobo dis-
traído, correram ao mesmo tempo para
elle e deram-lhe uma valente marrocada
(marrada).
O desgraçado do lobo, quando tornou
a si, lá se levantou com muito custo e
marchou, dizendo: «Se as outras fortu-
nas forem como esta, acabam de matar-
me. E de mais a mais, havendo já dois
dias sem comer nada senão matto!
Ia assim o lobo a lamentar a sua sor-
te, quando, erguendo a cabeça, avistou,
no meio dum valle, uma égua, já muito
velha e magra, e uma filha que andavam
pastando. Mal as avistou, disse logo:
«Estas é que não m'escapam: porque a
mãe é velha e está magra, e a filha é
A TRADIÇÃO
77
ainda muito nova para me poder fazer
mal. Mas, cm todo o caso, não perco
nada, matando a mãe, ainda assim, ape-
sar de velha, ella não me dè alguma
j'eutosa (parelha de coices).» O lobo loi-
se chegando com toda a cautella para ao
pé da égua, e disse lhe:
— "O amiga ! eu lenho íome. . . e en-
tão, tem paciência, mas vaes morrer.»
Respondeu-lhe a égua:
— «Olha lá! eu sou velha, tenho a
carne dura, e alem disso estou magra.
Mas se tu quizesses, fazias-me um la-
vor, e eu, em paga delle, dava-te minha
tilha.»
— «Kntão que favor c esse?» — per-
guntou o lobo.
— «Ora, c tirares-me um cravinho pas-
sado, que tenho numa pata e que não
me deixa andar.»
— a Vá lá. . . isso pouco custa.»
A égua assim que o apanhou a geito,
deu-lhe uma parelha de coices tão grande
que lhe escangalhou os queixos, e mar-
chou com a h^ha para casa do dono.
O lobo, ainda com as dores, metteu-
se pelo valle abaixo, e encontrando uma
porca com bacorinhos, disselhe:
— «O porca! tem paciência, mas eu
ando com muita fome, e vou comer os
teus filhos.»
— «O senhor lobo!» — respondeu a
porca — «eu não me importo que me
coma os filhos, mas primeiro vamos ba-
ptisa-los.»
— «Então como c que isso se faz?»
— perguntou o lobo.
— «Olhe!» — diz-lhe a porca — «você
sobe para cima do bocal daquelle poço
e eu fico em baixo para lhos ir dando
dum em um; e você depois vai mergu-
Ihando-os e comendo-os.»
— «Bem, pois então vá lá.»
O lobo subiu para cima do bocal, e a
porca assim que lá o agarrou, deu-lhe
uma trombada que o fez cair para den-
tro do poço, e fugiu com os filhos.
Elle, como poude, lá conseguiu sair do
poço e continuou a sua jornada.
Mais adiante, encontrando uma vacca
com uma corda atada a uma perna, disse
comsigo: «Ksta agora é que não mes-
capa de maneira nenhuma, porque eu
agarrome á corda, enleioa, a vacca cai
e eu como-a.» KíTectivamente o lobo
agarrou-se á corda, mas a vacca assim
que o sentiu, desatou a correr, arrastan-
do-o pelo chão. Quando a corda se par-
tiu, o lobo levantou-se em misero estado,
e disse lastimosamente: «Ora, quem te
manda, lobo, ser marcador d'exlrêmas,
alveitar de bestas e baptisador de por-
cos ? E por fim, se a corda se não parte
ou o nó se não desata — ir morrer a casa
do dono da vacca !»
VI
A morto de três gallegos
Numa occasião vieram ao Alemtejo
fazer azeite, três gallegos, que combina-
ram voltar )untos, á sua terra (').
Assim que cá chegaram, foi cada um
para o seu lagar ; mas como os lagares
não acabassem a moenda ao mesmo tem-
po, succedeu que o mestre do lagar que
fechou primeiro, foi a um dos outros dois
lagares, e disse para o lagareiro:
— «O camarada! cinton queres algu-
ma cousja lá para a terra ! Sce quisjcres,
eu martxo para lá ámanhan.»
Respondeu o outro:
— «Oh diabo! einton nós non combi-
námos boliar juntos r!»
(') Os mestres de lagar d'azeite ou lagareiros,
eram antigamente, nesta região, indivíduos vin-
dos das nossas províncias do Norte. Ainda hoje
se vêem desses homens em vários lagares da
margem esquerda do (Juadiana.
O mister de lagareiro, entre os habitantes da
Beira, era — segundo a tradição — tão estimado,
que os pães, ao lançarem a benção aos filhos, di-
ziam: «Deus te faça arcebispo ou lagareiro no
Alemtejo.»
Na boca do povo — e ainda a propósito de gal-
legos — corre a seguinte quadra :
«O gallego lá da Beira,
Baptisado na caldeira,
(>om vergonha d'ir á missa,
Com sapatos de cortiça.»
78
A TRADIÇÃO
— «Pois é herdade, mas como sçabes,
ficando eu cá, fásço mais despèsja, e eu
bim para ganhar — e non para gastar.»
— «Pois scim, mas olha: sce queres,
ficas i\^u\ comigo, e eu dou-te de comer
e dormir.»
— «Pois bem, nêsce cásjo fico.»
Passados dois dias, fechou também
aquelle lagar, e em seguida marcharam
ambos os"^ gallegos caminho do lagar,
onde se achava o terceiro gallego. Diri-
gindo-se a este, participaram-lhe que es-
tavam de marcha para a terra. Mas elle,
que não queria ficar só, disse aos dois
camaradas:
— «Fiquem mais três ou quatro dias,
até eu acabar; eu lhes dou de comer, e
dormimos aqui todos.»
Os outros dois camaradas acceitaram
a proposta, e ali se conservaram até fe-
char o lagar.
Depois, puzeram-se os três gallegos a
caminho, quando o mais velho diz para
os outros:
— «O' rapazes! nós bâmos fàsjer uma
cousja :»
Perguntam os outros :
— «Einton o que é, camarada?»
— «py non entrarmos em poboasções,
ainda ascim, nalguma estalagem, os la-
drões non sçaiban que nós lebâmos di-
nheiro. E einton, o melhor é dormirmos
scempre no campo.»
— «E' herdade, tem rasjão» — respon-
deram os dois camaradas.
Como a jornada era grande e o pão se
acabou ao fim de oito dias, os gallegos
passando por umas amoreiras carregadas
de fructo já maduro, subiu cada um para
a sua arvore, afim de saciarem a fome,
comendo amoras. Nesse mesmo dia, es-
cureceu-se-lhes num escampado (descam-
pado i, onde havia três azinheiras muito
grandes. Diz o mais velho:
— «O' rapásjes! o melhor é sçubir-
mos cada um para scima da sçua asji-
nheira por causja dos bitxos.
Etfectivamente, cada um subiu para
cima da sua azinheira; mas dahi a pe-
daço chegou uma quadrilha de ladrões,
que se foi pôr debaixo da azinheira do
meio. E estenderam uma manta no chão
para contarem o dinheiro que tinham rou-
bado esse dia.
Quando se ia principiar a contar o di-
nheiro, diz o capitão para um dos ladrões :
— «O' fulano! acende lá uma fogueira
para se ver melhor.»
Acendeu-se a fogueira, e como era de
palha de centeio, desenrolou-se uma gran-
de chama e uma enorme fumaceira, a
ponto que o pobre gallego, que estava
em cima da azinheira, teve de começar
a mecher-se. Os ladrões, ouvindo baru-
lho em cima da arvore, olharam e viram
o gallego todo afflicto. Mas não lhe per-
doaram ! Obrigaram-no a descer, apa-
nharam-lhe o dinheiro e depois mata-
ram-no.
Nesta occasião, diz um dos ladrões:
— «Caramba ! Já havia muito tempo
que não via um diabo com o sangue tão
negro ! »
Ouvindo isto, respondeu um dos outros
gallegos:
— «Pudera! não ha de ter o sçangue
negro, sce elle comeu amoras ! . . . »
Os ladrões olhando para a azinheira
donde vinham estas palavras, viram ou-
tro gallego, que obrigaram da mesma
forma a descer, para o roubarem e ma-
tarem.
Quando o estavam matando, diz um
outro ladrão :
— «Este diabo morreu por falar.»
— «Por isco eu» — diz o terceiro gal-
lego — «estou aqui muito caladinho.»
— «Olá!» — disseram os ladrões —
«você também ahi está?... Pois então
venha cá para baixo, que lhe queremos
também fazer as contas.»
O pobre do gallego não teve mais re-
médio senão descer da azinheira, e os
ladrões fizeram-lhe o mesmo que tinham
feito aos outros dois.
(Da tradição oral)
(Brinches).
António ALEXANDRINO.
A TRADIÇÃO
79
PROATICTJOS E PTCTOS
(Continuação)
XXIII
Sogra, nem de pao á porta.
O pae imprudente faz o filho desobe-
diente.
XXV
Quem bem faz, pra si faz.
XXVI
Ruim c a gallinha que não esgatanha
pVa si.
XX\"II
Quem se veste de ruim panno, ves-
te-se duas vezes ao anno.
XX\"III
Boccado comido não grangeia amigo.
XXIX
Quem não é pra cavandellas, não se
mette n'ellas.
XXX
Nem todo o matto é ore^^os.
XXXI
Pela linha vem a tinha e a sarna ás
cabras.
XXXII
Se queres ver o teu corpo, mata um
porco.
XXXIII
Agoa fervida alimenta a vida.
XXXIV
Vacca chiquita^ sempre parece novita.
XXXV
Quando não ha lombo, linguiça como.
XXXVI
Arvore ruim não a queima a geada.
XXXMI
Coa vontade de ter stiimaficos, metto
os meus pés em boccas de cântaros.
XXXMII
Trovões em Janeiro, searas de quar-
teiro.
XXXIX
Paschoa em Março, ou fome ou mor-
taço.
XL
Anno de gamão, anno de pão.
XLI
Quem bate co'a mão fica com quinhão.
XLII
Anno bissexto, palha e trigo dentro
d'um cesto.
LXIII
Natal ao domingo, vende os bois e
compra trigo.
XLIV
Natal á segunda feira, alarga a eira;
e depois, vende o trigo e compra bois.
XLV
Quando te vires morto, acolhe-te ao
porco (ou ao hortoi.
(Da tradição oralj
Serpa.
(Continua)
CASTOR.
80
A TRADIÇÃO
BIBLIOGRAPHIA
Degeneração e degenerados na sociedade,
pelo Doutor F. Ferraz de Macedo. — O nosso
mui respeitável amigo e sábio anthropoloí^o, Se-
nhor Doutor F. Ferraz de Macedo, uma das mais
fulgentes glorias da sciencia portugueza, deu ul-
timamente á estampa — creio que a propósito
do já celebre crime do Bigode — um precioso
opúsculo intitulado Degeneração e degenerados
na sociedade (ensaios de investigações anthro-
pologicas, segundo os modernos processos scien-
tirtcos).
A superior competência do auctor em assum-
ptos d'esta Índole, aos quaes o illustre homem de
sciencia vem consagrando desde longos annos
toda a prodigiosa actividade do seu cérebro, dis-
f>ensa-nos bem de encarecer o mérito io traba-
ho recentemente publicado. Basta tão só recor-
dar, que Degeneração e degenerados na socie-
dade é uma producção do mesmo espirito lumi-
noso e profundo que dotou a sciencia anthropo-
logica com essa obra magistral que se chama
Crime et Criminei.
D'aqui endereçámos ao nosso presadissimo
amigo Senhor Doutor F"erraz de Macedo, intimo
e cordial agradecimento pela olTerta do exemplar
com que nos honrou.
As mouras encantadas e os encantamentos no
Algarve, por Francisco Xavier d'Alhavde Oli-
veira. — O erudito auctor dos Contos infantis^
Senhor Doutor Athayde d'01iveira, teve a ama-
bilidade de offertar-nos o seu excellente livro
As mouras encantadas e os encantamentos no Al-
gane. — E' um bello trabalho de investigação,
reflectido e consciencioso, largamente subsi-
diário dos estudos mythographicos, infelizmente
tão descurados entre nós.
Muitos agradecimentos.
ies livres d'or de Ia science. — A importante
livraria-editora Schleicher Frères, de Paris, ini-
ciou ha próximo de um anno a publicação de
uma bibliotheca litteraria de vulgarisação scien-
tifica, cujos volumes obedecem ao titulo geral
de Les livres d'or de la science.
Em França, como em muitos outros paizes,
tem a nova bibliotheca alcançado um brilhante
successo, graças aos escolhidos assumptos dos
livros d ouro., todos interessantíssimos, e graças
ao primor da edição alliado á modicidade do
preço.
Eis os nomes dos livros vindos a lume : Le
Panorama des Siécles, por J. Weber; Les Races
Jaunes: Les Celestes, \)or Kámoná Plauchut; La
Photographie de Vlnvisible, les Tiayons X, por
L. Aubert; Histoire et role du 'Boeuf dans la
Civilisalion, por E. Chester; La Prehistoire de
la France, por Stéphane Servant; La Vie Mys-
terieuse des Mers., por Emile Deschamps; La Vie
d'un Tliéàtre, por Paul Ginisty ; Tableau de
V Histoire littéraire du Monde., por Frédéric Lo-
lié ; 'Tour devenir Médecin, pelo Dr Michaut ;
Les Microbes et la Mort, pelo Dr. J. de Fon-
tenelle; Les Feux et les Eaux, por M. Gri-
veau.
Cada volume in-i8.", de cerca de 200 paginas,
impresso em óptimo papel e adornado de ex-
plendidas gravuras, vende-se por um franco na
referida livraria-editora, rue des Saints Peres, i5,
Paris.
Portvgalia. — Assim se denomina uma luxuo-
sa publicação trimestral, que acaba de ver a
luz no Porto sob a directoria dos Senhores
Ricardo Severo, Rocha Peixoto e Fonseca Car-
doso.
A Portvgalia, «será um Archivo Nacional de
materiaes para o estudo do povo portugue:^, mo-
nographias, de inquérito a toda uma collectivi-
dade desde as suas origens, considerando o in-
dividuo, as raças, os povos, na sua natureza in-
tima e modos de ser, usanças, civilisaçóes, his-
toria . . »
O primeiro numero, que temos presente, in-
serindo numerosas gravuras intercaladas no texto,
é collaborado pelos distinctos publicistas Senho-
res Doutor Adolpho Coelho, Alberto Sampaio,
Duarte Silva, Fonseca Cardoso, Ferreira Lou-
reiro, Goltz de Carvalho, Martins Sarmento, Pe-
dro Fernandes Thomaz, Ricardo Severo, Rocha
Peixoto e Santos Rocha.
A Portvgalia encontra-'se á venda na «Livra-
ria Chardron», do Porto.
Revista Branca. — Continua a sair com a
maior regularidade a Revista Branca, primoroso
quinzenário redigido por Caiei, a insigne escri-
ptora a quem a litteratura portugueza deve, en-
tre outros livros de subido valor. Madame Ré-
nan e oA Filha do João do Outeiro
A T^evista Branca, que muito particularmente
recommendàmos aos nossos leitores, assigna-se
na rua dos Prazeres, n." 87. Lisboa. O preço da
assignatura por anno é i^póSo réis.
Boletim da Beal Associação dos Architectos
Civis e Archeologos portuguezes. — RecebemoS
os n."' 3 e 4 {'i." série) d'esta notabilissima pu-
blicação, que deveras agradecemos.
D. N.
^uuo I — IV. ti
SEBFá, Junho de 1899
H^ii<' I
Editor-adininistrador, Josf Jeronymo da Coita Bravo Je
TypoRrapliia de AJolpho d< Mendonça, Kua do (,
A TRADIÇÃO
REVISTA WENSAL DETHNOGRflPHIfl PORTUGUEZA
\^\KECJORES: — L ADIS L AU PIÇARRA e M. DIAS NUNES
O elemento árabe na linguagem dos pastores
alenitejanos
K' bem sabido, como da conquista dos
árabes e da sua longa permanência na
Península, particularmente na parte me-
ridional, ficaram muitos vestigios no as-
pecto, nos hábitos, nas industrias locaes
e na lingua do nosso povo. Quanto á lín-
gua, porém, aquella ínHuencia limitou-se
em geral a enriquecer o vocabulário. A
grammatica ficou latina ou antes latino-
rustica, sem modificação sensível. A ín-
dole das duas línguas, aquella de que já
usavam os conquistados e a que traziam
comsigo os conquistadores, era demasia-
do diversa para que se podessem pene-
trar profundamente.
A linguagem dos povos da Península
ficou, pois, intacta ou quasi intacta na
sua estructura intima, e apenas superfi-
cialmente se enriqueceu de novas pala-
vras. E mesmo na adopção destas novas
palavras se deu uma circumstancia notá-
vel. São raras, como já indicaram En-
gelmann e Diez, as palavras abstractas,
hespanholas ou portuguezas, de origem
árabe. Os termos, que designam paixões,
sentimentos, modos de ser internos do
espirito ou da alma, são, com raríssimas
excepções, de origem latina, quer dizer,
que já se usavam antes da conquista.
Parece que dominados e dominadores fi-
caram durante séculos moralmente sepa-
rados e aífastados. Conservando uma re-
ligião distincta, affeições e aspirações di-
versas, os povos dominados pensavam no
seu velho e rude idioma, e apenas apren-
deram as palavras necessárias para se en-
tenderem com os seus novos senhores e
amos.
Peio contrario são frequentes as pala-
vras concretas de origem árabe. Nomes
de impostos, de cargos civis ou militares,
introduzidos pelos que exerciam a aucto
ridade; designações de peças de vestuá-
rio e de objectos de uso commum ; ter-
mos de sciencia, ou das artes e officios
em que os árabes eram peritos, abundam
nas línguas da Península. Com os novos
objectos e as novas profissões vieram na-
turalmente os seus nomes. E estes ter-
mos são particularmente frequentes n'a-
quellas profissões ou industrias a que os
árabes mais se dedicavam. Assim, os
árabes eram peritos constructores ; e nos
officios de pedreiros e carpinteiros ha
muitos termos da sua lingua, a começar
pelo de alvcnel ou alveiicu, com que na
nossa provincia ainda se designa o pró-
prio pedreiro. Os árabes eram cuidado-
sos horticultores; e na linguagem dos
hortelões ha muitas palavras que d'elles
nos ficaram, como é, para dar apenas
um exemplo, o nome da conhecida e ty-
pica Jiora da horta alemtejana. Poderia
multiplicar estas indicações, se nos não
affastassem do assumpto especial.
Mais que nenhuma outra, talvez, a
profissão de pastor foi seguida e respei-
tada entre os árabes. Como os outros
povos semitas, os árabes eram tradicio-
nalmente pastores ; pastores de tempos
82
A TRADIÇÃO
immemoriaes na sua remota península
natal ; pastores no norte cie Africa, don-
de, misturados com os berbeies, passa-
ram ás nossas terras. Nada mais natural,
pois, do que encontrarmos um grande
numero de termos de origem árabe na
linguagem profissional do pastor alcmte-
jano ; por isso que os próprios árabes se
dedicavam nos velhos tempos da domi-
çáo á guarda dos seus gados; e os ricos
senhores árabes ensinavam e impunham
aos seus servos mosarabes os nomes e
termos da sua lingua. Esta abundância
resalta das seguintes notas acerca das
palavras empregadas pelos pastores, no-
tas tomadas principalmente no termo de
Serpa, e, receio bem, muito incompletas.
Pode haver, porém, um certo interesse
em as publicar, porque, de um lado parte
doestas palavras ou faltam ou vêem mal
definidas nos nossos Diccionarios: e de
outro, tendo resistido intactas muitos
séculos, se vão obliterando neste nosso
tempo, em que tudo se transforma e gasta.
Comecemos pela designação dos pró-
prios pastores.
^{abadão é o pastor chefe, a cargo de
quem está a fiscalisação e inspecção de
todos os rebanhos de gado lanigero do
mesmo dono. l m grande lavradoí , po-
dendo possuir alguns niMhares de cabe-
beças, divididas em numerosos rebanhos,
tem ao seu serviço um único rabadão.
A palavra rabadan é de origem árabe, e
derivada, segundo admitte Dozy, de rabb
addlian (o dono ou chefe das ovelhas ou
carneiros). Bluteau, que a não inclue no
seu Vocabulário, cita-a no emtanto como
sendo hespanhola: «a que o«i castelhanos
chamam rabadan.» E' porém, perfeita-
mente portugueza, corrente em todo o
Alemtejo, pelo menos no districto de Bcyã.
E' de notar que a palavra vem mal defi-
nida nos nossos Diccionarios modernos,
pcH- exemplo, no de Moraes. Pelo con-
trario, o velho Diccionario hespanhol de
Covarrubias dá-lhe exactamente o senti-
do que ainda hoje tem no Alemtejo.
Maioral é o primeiro pastor de cada
rebanho — tantos maioraes quantos re-
banhos. A palavra nada tem de árabe,
como é fácil de ver; e a sua origem é
peifeitnmentc clara.
Ajuda é o segundo pastor do rebanho.
Também a sua origem é claríssima; e
unicamente notaiei, que se toma franca-
mente como designação própria, e se diz
por exemplo — O Ajuda de tal ou tal re-
banho.
Zaii;al significa hoje propriamente no
Alemtejo um rapasito de treze ou qua-
torze annos, que ás vezes nem ganha
soldada, serve só pelo comer, e auxilia
na guarda do gado o maioral e o ajuda.
E" palavra árabe, e, na mesma forma
:^agal^ significava naquella lingua um ra-
paz forte e animoso. Por uma simples e
natural derivação de sentido veio a de-
signar os pastores moços, habitualmente
robustos e desembaraçados. N'esta acce-
pção, no masculino e no feminino, ^agal
e :{agala^ a empregaram os escriptores
hcspanhoes, C-crvantes e outros; e tam-
bém os nossos portuguezes de mais au-
ctoridade, como Rodrigues Lobo e Sá
de Miranda. E', pois, uma palavra clás-
sica da nossa lingua. No emtanto, incli-
no-me a crer, que cm tempos foi mais
hespanhola que portugueza. Gil Vicente,
quando escreve em hespanhol, serve-se
com frequência das expressões \agal e
:;aí>ala. No «Auto pastoril castelhano»
chama mesmo ■^agala á Esposa dos can-
tares, que identifica com Nossa Senhora:
Pues sabes quien es aquelhi?
Es la za^ala hermosa,
Que Salomon dice esposa
Quando canticava d'ella.
Quando, porém, escreve na sua lingua,
no «Auto pastoril portuguez», no «Auto
de Mofina Mendes» e em outros, escreve
sempre — que me lembre — pastor e pas-
tora, por onde parece não admittir a pri-
meira como genuinamente portugueza.
Voltando aos nossos pastores de Serpa,
temos que entre elles '{agal não é syno-
nymo de pastor ou de pastor moço, mas
é o nome próprio e especial do rapasito
que anda no rebanho.
A TRADIÇÃO
88
(V'W(í>!]KIjp[ DE TY
ff
\I
Camponez. de fato domingueiro iSerpa)
ti-4
84
A TRADIÇÃO
Passemos aos nomes, que os pastores
dão ao gado, nas diversas idades e cir-
cumstanrias.
'fíorrc^o e horrefia lhe começam a cha-
mar desde o nascimento. A palavra cor-
deiro não é empregada por elles, e nem sei
mesmo se a conhecem.
Borro e borra lhe passam a chamar
ao anno,ou mais propriamente lhe come-
çam a chamar ahi pelos fins das feiras
do verão, quando tem quasi um anno.
Esta e a precedente palavra procedan
da mesma origem, evidentemente latina.
Se se derivaram da lan ainda curta, e
formando uma espécie de borra, como
dizem alguns Diccionarios; se de biirriis,
de côr ruiva ou castanha escura, como
dizem outros, é o que não procuraremos
averiguar. De resto, não me occuparei
em examinar asetymologias das palavras
correntes e que se encontram nos Diccio-
narios.
iMalaío e malaia é hoje synonymo de
borro e borra. Ha muito poucos annos
os pastores de Serpa nem a conheciam;
mas ultimamente começaram a empre-
gal-a com frequência, tendo-a aprendido
nas feiras. Deve, pois, ser antiga em ou-
tras regiões do Àlemtejo ou do paiz.
Confesso, que a palavra é para mim per-
feitamente mysteriosa. De origem árabe
não parece ser ; e nem Sousa, nem En-
gelmann e Dozy, nem Yanguas a men-
cionam. A palavra malato significou em
hespanhol eem portuguez, doente, adoen-
tado, mal disposto; mas tal não pode
ser a origem, porque o gado não tem
doenças ou crises especiaes no período
em que se lhe dá este nome. Lembraria
a palavra mulato^ se se provasse— o que
eu náo sei — que a expressão só se em-
prega nas regiões onde ha gado de lan
preta; mas ainda assim, a derivação seria
muito forçada. O mais prudente, é dei-
xar apenas registada a palavra e a sua
significação actual, para que outros lhe
procurem as origens.
Carneiro é o borro ou malato, chegado
ao seu completo desenvolvimento, ahi
pelos dois annos. A palavra pertence á
linguagem dos pastores, como pertence
á de todos, pois é correntíssima. Tem-se-
Ihe dado varias origens mais ou menos
de phantasia ; e se vem de carne, como
quer o «Díccíonario de la Real Academia
Espanola», ou de corno, como mais ge-
ralmente se admitte, é questão de que
me não occuparei. Unicamente notarei
que existe na Ínfima latínídade a palavra
carncriíis ou carnerus; mas é simples-
mente uma latínisação barbara do hes-
panhol carnero., como acontece em vá-
rios outros casos nos documentos da
idade-média. Voltando ao Àlemtejo, os
pastores distinguem pelo nome de car-
neiros pães os que são destinados á pa-
dreação ; mas habitualmente dizem os
carneiros^ pela simples rasão de que nas
mãos do lavrador ficam em geral só os
que teem este destino. O resto do gado
macho (expressão dos mesmos pastores)
é vendido nas feiras, ou como borregos,
ou, um anno depois, como malatos.
Ovelha é palavra correntíssima de ori-
gem latina bem conhecida. A's que foram
lançadas aos carneiros chamam ovelhas
de ventre ; e ás que, pela sua idade, ou
qualquer outra círcumstancia, ficaram
forras chamam altas. Creio que esta pa-
lavra alta deve vir de ligeira, solta, alta-
nada, podendo sem inconveniente ser
mandada para pastagens e terrenos mais
ásperos. Tendo fallado em ovelhas for-
ras., é de notar, que o adjectivo vem da
palavra árabe ho7~r, feminino horra^ que
significa livre, liberto. Deu, com a mes-
ma significação, o hespanhol horro e
horra., c o portuguez forro e forra., pela
troca habitual do h em /'. Applicada ao
gado e no sentido indicado não a encon-
tro nos nossos Diccionarios, comquanto
seja de uso corrente ; mas vem mencio-
nada no hespanhol da Academia: Ovejas
horras. Llanian los pastores a las que no
quedan _prenadas.
Marouço chamam os pastores ao car-
neiro pae, depois de uma certa idade,
quando já está bem formado e encorpado.
Falta este termo nos nossos Diccionarios;
mas vem nos hespanhoes, com a forma
A TRADIÇÃO
85
monieco, Covarrubias define a palavra
moruccu: canicro ri c/O, /víi/rf Jf la ma-
nada., exactamente o marouço dos nos-
sos alemtejanos. Dá lhe como origem a
palavra muro, porque aquciles carneiros
tém a cabeça tão forte, que são capazes
de derrubar um muro, como os famosos
arietes da velha arte da guerra. K' neces-
sário notar, que o exccilente licenceado
D Sebastião Covarrubias tem ás vezes
uma viva imaginação para etvmologias.
l-arota c a ovelha velha, que se ven-
de nas feiras, ou se dá em pagamento
de pastagens e outras serventias, ou como
renda por certas terras, ou se mata para
alimentação das quadrilhas de trabalha-
dores, principalmente dos algarvios que
vém ás aceifas. O caso é um tanto in-
trincado, e começo por dizer que nunca
vi a palavra escripta, e a transcrevo de
ouvido como a pronunciam os pastores.
A palavra falta nos nossos Diccionarios,
e nos hespanhoes tem o sentido de : «mu-
lher descarada e sem juizo». K' necessá-
rio pôr de parte esta origem, porque não
ha derivação de sentido admissível, que
nos leve a applicar o nome de uma mu-
lher de má nota a uma ovelha, depois de
velha. A palavra favela deve ter outra
origem, provavelmente árabe; como pa-
rece resultar do seu cunho e da dispo-
sição das lettras que a compõem. Voeja-
mos se é possível chegar a uma conje-
ctura plausível. Fr. Joaquim de S." Rosa,
no seu excellente Elucidário (Suppl.), dá
a palavra farrapo como tendo designado
um carneiro grande. Applica-se ho)e este
nome mais aos porcos, mas parece que
antigamente designou um carneiro. Km
um testamento do anno de 1463, citado
por S." Rosa, se diz: «Levem por otfe-
renda á missa cantada dous alqueires de
pam amassado, e hum farropo, e huma
quarta de vinho Sinco crelegos
cantem por mim sinco missas, e levem
por offerenda outros dous alqueires de
pão amassado, e hum farropo, e huma
quarta de vinho á missa cantada.» No
anno de i4(38 cumpriu João Alves este
testamento fielmente, e no Instrumento,
donde consta que o cumpriu, não se men-
cionam os áo\s farropos., e sim dois car-
neiros. Conclue S." Rosa, ao que parece
com rasão, que as duas palavras signi-
ficavam a mesma coisa ; e tanto mais,
quanto não era uso levar porcos ás igre-
jas, e pelo contrario se levavam com fre-
quência os carneiros aos adros das igre-
jas, como ofTertas. Yanguas, no seu Glo-
sario, cita esta palavra farropo., na fé
de S." Rosa, e deriva-a de jarof, pala-
vra árabe, que, segundo o Vocabulista de
Pedro de Alcalá, significou um borrego.
Deixando esta derivação sob a respon-
sabilidade e auctoridade de D. Leopoldo
Yanguas, temos que farropo signifi-
cou um carneiro no antigo portuguez.
Podemos imaginar uma forma feminina,
que seria farrópa e significaria ovelha.
De farrópa teríamos faróta por uma
leve alteração de pronuncia. K' claro que
isto não passa de uma ccjnjectura quasi
sem base. Mas esta conjectura tornar-se-
hia plausível e mesmo segura, se em al-
gum documento antigo, contracto de
renda, aforamento, ou de qualquer ou-
tra natureza, se encontrasse a palavra es
cripta na forma farrópa ou faropa; e é
bem possível que se venha a encontrar.
Por emquanto deixaremos apenas indi-
cado, que a palavra se prende talvez ao
árabe jarof (kharof)., o que não repugna,
porque o Klia inicial se troca ás vezes
em /■ (Veja se Dozy, Glossairej.
Passemos agora a examinar qual é a
constituição dos rebanhos, e quaes os
nomes que lhes dão.
(Coniinúi)
Conde de FICAI.HO.
ANDAR ÁS VOZES
Assumpto novo, em matéria de su-
perstições, não é fácil encontral-o.
Aquella de que vou fallar-lhes é co-
nhecida e está generalisada tanto no con-
tinente como nos Açores. A ella se refe-
rem D. Francisco Manuel, Theophilo
86
A TRADIÇÃO
Braga, Júlio César Machado e vários
outros.
Mas o que pretendo contar é o modo
como eu próprio recebi na infância essa
superstição popular, de que conservo
ainda uma viva impressão pessoal.
A locução — c-Jiidar ás ro^^cs — expri-
me o facto de qualquer pessoa vaguear
pela rua á escuta do que os outros dizem,
para tirar agoiro do que elles disserem.
E, segundo o que ouvir, esperará boa
ou má fortuna no negocio que traz no
pensamento.
Castilho, no Amor e melancolia^ allu-
diu a esta tradição relacionando-a apenas
com a noite festiva do Santo Precursor:
Qual com bochecho na bôcca
applicando attento ouvido, .
espera que á meia noite
seja um nome proferido.
Não é outra coisa senão o costume de
andar ás 3'o:^es^ mas unicamente sob uma
intenção amorosa, por isso que a noite
de S. João reveste para òs namorados,
um caracter fatidico.
Comtudo a superstição não se res-
tringe áquella noite ; é extensiva, na
crença do povo, a qualquer dia do anno.
Com o seu bochecho na bôcca é cos-
tume andar ás i'o:{es, e tomar como se
fosse para nós o que os outros vão con-
versando em voz audivel.
O bochecho, difficultando a respiração,
torna-se incompatível com as grandes dis-
tancias.
Mas já não acontece o mesmo na vés-
pera de S. João, em que os namorados,
tendo ido beber a agua da meia noite^
ficam por algum tempo junto ás fontes
á espera que venham pessoas conver-
sando, para ouvirem o que ellas di-
zem.
No Porto, porém, accresce á tradição
o costume de, quando alguém anda ás
vo:^es, se dirigir, como em silenciosa ro-
magem, á capellinha da Senhora das
Verdades. Tal é o pittoresco especial da
versão portuense.
Cré-se que a Virgem d'aquella invo-
cação fará com que as pessoas que en-
contrámos pela rua nos revelem involun-
tária e inconscientemente o porvir dizen-
do verdades que o tempo confirmará.
Eu fui muitas vezes, quando era pe-
queno, á referida capellinha, para acom-
panhar uma pessoa da minha familia,
que acreditava na tradição de que pelas
i'o:{es se ficava sabendo a verdade futura.
Sahiamos de casa depois das nove
horas da noite e iamos atravessando a
cidade, sem dizer palavra, em direcção
á Sé.
A capella da Senhora das Verdades
fica por traz do Paço F^piscopal, junto
ás escadas d'aquella mesma denomina-
ção, as quaes dão sahida para outras es-
cadas que descem ao Codeçal e Barrédo.
Houve na antiga cerca da cidade, uma
pequena porta ou postigo encimado, como
era costume, por um oratório, dentro do
qual estava a imagem da Nossa Senhora
das Verdades ou 'Tostigo.
Demolida esta porta, o cónego Nicolau
de Parada fez á sua custa, ahi perto,
uma capella para onde transferiu a ima-
gem, que tinha sido apeada com a porta.
A imagem é de pedra, e de boa es-
culptura, se se attender a que será por-
ventura tão antiga como a primeira e
acanhada circumvallação do burgo por-
tuense.
Tanto a capella como o prédio con-
tiguo pertenceram a uma senhora da fa-
milia Calheiros, de Ponte de Lima, por
compra que fez aos herdeiros do cónego
Parada.
Na parede do coro lê-se ainda hoje
uma inscripção que diz: «Foi mandada
reedificar esta capella por D. Angela Ja-
come do Lago e Moscoso, no anno de
mil oitocentos e quarenta e três.
O actual proprietário do prédio e da
capella é o sr. general Calheiros, par
do reino.
Ambos os edificios foram muito damni-
ficados pela metralha no tempo do cerco.
Ha algumas balas cravadas na parede
da casa, e estragos causados pela arti-
A TRADIÇÃO
87
Iheria nas varandas de feno. K' uma me-
moria histórica, que tem sido respeitada.
Ainda bem.
Toda a propriedade ficava exposta á
pontaria das baterias mii^uclistas de Villa
Nova de Gaya, por estar situada no mon-
te da Sé.
O actual jardim da casa entesta com
a ponte de 'T). I.iiiy I. ein fiente da Ser-
ra do Pilar.
A Senhora das Xe^dades conserva-se,
no ahar-mór, dentro da uma maquineta,
tendo de cada lado outras imagens, como
a fazerem-lhe cortejo.
No tempo da reediticadora havia missa
todos os dias, e festa annual, não só em
honra do orago, como de Nossa Senhora
da Conceição, á qual é dedicado um altar
que fica do lado esquerdo.
Ha muitos annos, porém, que não se
diz ali missa, nem se celebra a festa so-
lemne.
(Concluc.)
(Lisboa)
Ai.BEKTo PIMENTEL.
SUPERSTIÇÕSS DOS CRIMINOSOS
Em 28 d'abril de 1890 foi attrahido
João Lopes Nogueira da Silva, o '^l}Ai-
uhas, lavrador rico de Salvaterra de Ma-
gos, a um pinhal, pouco distante d'aquel-
la villa, e alli caiu assassinado por Joa-
quim dos Santos, o Pegas, de 2, annos,
natural de Ferreira do Zêzere, residente
na \'^arzea Fresca e casado com Marga-
rida Amaio, natural de Muge, de costu-
mes fáceis e cúmplice no crime. Morto
o lavrador por motivos obscuros, mas
que parecem fluctuar entre roubo e vin-
gança da dignidade marital oífendida,
recommendou o criminoso a sua mulher
que voltasse o cadáver, no modo que
respectivamente descrevem os jornaes de
Lisboa «A Pátria» e a «Vanguarda», de
3o de abril. Aquelle dizia: «O marido
aconselhou-a a collocal-o de barriga pai"a
o ar. Klla teve repugnância. O marido
disse-lhe ou ia ella ou elle. N'esta con-
junctura, cila resolveusc a ir, dando um
pequeno empurrão no cadáver.» A «Van-
guardai descrevia o acto da forma seguin-
te : tDesviaram-se para um sitio distante
uns 100 metros, mais ou menos, do logar
onde estava o cadáver, e sentaram se,
visto o marido não ter forças para atidar.
Fila disse que, como o cadáver estava
de bruços, o marido não podia fugir ;
este então pediu-lhe para pólo de bar-
riga para o ar, afim de verem se podiam
fugir. Fila ao começo recusou se, como
elle teimasse para que fosse, que eniáo
ia elle de gatas.» Apesar da precaução
tomada foram os dois criminosos presos,
pouco tempo depois, no mesmo local do
crime.
Encontramos, portanto, aqui uma acção
supersticiosa, que tem por fim livrar o
criminoso da acção da justiça, e que se
pode collocar a par de outros costumes
já notados no estrangeiro.
O sr. ÍMivcustimmC) cila alguns exem-
plos como ^Iberglaube und Síra/rechí^
traducção do russo, com o caso d'uma
mulher que abandonou de inverno na
estrada um filho seu de dez mezes, dei-
xando ao lado os seus próprios sapatos,
na persuasão, que fazendo isto, ficaria
desconhecida ; o resultado, porém, foi
completamente contrario, pois o sapateiro
d'aldeia logo reconheceu a proprietária
delles. Noutro caso um criminoso cortou
de propósito a mão para deixar no local
um vestigio sanguinolento da sua pessoa.
F^inalmente conta que os ciganos da Hun-
gria costumão deixar escondidas nas ca-
sas que roubam bagas de belladona.
As superstições usadas pelos crimino-
sos não são fáceis de conhecer porque a
maior parte das vezes são consideradas
como indícios ár máximo cynismo e re-
quintada malvadez.
(Lisboa).
Pedro A. d'AZEVEDO.
(') Um prefacio pelo Dr. Kohler da Universi-
dade de Berlim, 1897, pag. 129.
88
A TRADIÇÃO
OS VIRTUOSOS
Ku começo por annunciar a todo o or-
be que na minha terra não conheci ain-
da, nem me consta que em tempo al-
gum houvesse, um espécimen, um só
typo desta raça maldita de explorado-
res. Tanto não podeiei dizer acerca dos
crendeiros da sua falsa virtude — que por
aqui abundam, infelizmente.
Km todo o caso algum elogio nos ca-
be, porque, se o crer em nigromancias
de virtuoso é somente uma prova de
ignorância, querer passar por homem ou
por mulher de virtude é muito mais ab-
jecto, porque é a prova provada da ve-
Ihacaria.
E esta provem quasi sempre do mau
caracter, ao passo que aquella é tanto
mais digna de dó quanto é certo que bem
poucas vezes somos nós os culpados da
própria ignorância.
Que culpa terá agora o povo de não
saber ler? — E quem não souber ler dif-
ficilmente saberá raciocinar. E' — lendo —
que se abrem horisontes novos e vastos
ao nosso espirito.
Começamos a conhecer o mundo no
dia em que começamos a lêr. — Ha quem
duvide? Ha. Pois que o não duvide nin-
guém : O que sabe a nossa familia e o
nosso visinho será muito útil e bello,
mas fica muito áquem do que nos é pre-
ciso para vér bem, e ao longe. Com a
vista desarmada não se analysam os as-
tros; no largo mar, ou sobre a superfi-
cie da terra immensa, o marinheiro ou
o viandante precisam de augmentar a
vista para vér; 'e até para as coisas pe-
quenas precisamos dum microscópio. E
este ultimo exemplo é o mais applicavel
porque o instrumento é saber ler^ e as
pequenas coisas serão talvez aquellas
que nos rodeiam — a sabedoria dos nos-
sos parentes e dos nossos visinhos, o
acanhado horisonte da nossa vista e do
nosso meio.
tA educação e amoral» — dirão — «be-
be-se na egreja, e entre a gente simples
e boa, que a ha.» — Discordo: O padre
ensina a moral do cathecismo, mas não
appella para a razão; a gente bôa e ru-
de acceita muitas vezes o elixir do vir-
tuoso, contra o quinino da medicina, con-
tra o bisturi da cirurgia. Só com os ar-
gumentos da razão é que se prova que,
se é muitas vezes insufficiente o saber
dos clinicos, mais insufficiente tem de
ser a receita dos virtuosos- • •
Ah, o sobrenatural I Esquecia-me d'isto.
Se o maravilhoso, pregado nas egrejas,
é coisa tão vulgar como nos dizem do
alto dos púlpitos, que admira que, por
uma graça divina, o virtuoso adivinhe e
cure, e não seja nada, comparado com
elle, o homem de sciencia! Se a simpli-
cidade é a mãe da virtude, e o saber nos
perverte: que admira então que a igno-
rância seja laureada como um predicado
valioso; e saber ler e saber pensar seja
tido por muita gente bôa como a coisa
mais nefasta e mais perigosa ; e que o
reino dos céus seja para os pobres d'es-
pirito ?!
Ah, o maravilhoso! A eterna sphinge!
— Oh, Deus, que immensa noite ! e como
abusam do vosso nome ! Perguntam-vos
na treva, e sai a luz da sciencia e da ra-
zão! Querem achar-vos longe da cons-
ciência, sendo vós a crystallisação, a di-
vinisação da consciência universal!
Mas voltemos aos virtuosos,
isto é, aos homens sem virtude. E, já
agora, fallêmos de coisas vergonhosas da
minha terra — scenas de superstição e
d'obscurantismo, mais crassas e mais re-
pugnantes que a própria essência da as-
neira e da mentira.
E não haver quem bata isto, quem im-
peça isto; e não haver propaganda sal-
vadora, que arranque tantos infelizes das
garras da ignorância a mais feroz!
Leiam e pasmem:
— Um pobre homem d'aqui appare-
ceu em casa, um dia, vindo não sei de
que feira, aonde parece que fez um mau
negocio. Não vem alegre; julga-se doen-
te; perde o amor ao tiabalho; tem so-
nhos maus, tem visões ruins: está imbe-
A FRADIÇÁO
ff"-
epRgi0RgiRe pugiepL
9
I
(HYMNO)
^
^dt
J ^ 1
Ui
1 1 V v?
^
90
A,. TRAPIÇAO
cil, ou doido, afinal. A mulher e a famí-
lia da mulher — todos supersticiosos:
crêem que ha pessoas de virtude^ e bru-
xas e feiticeiras; crêem que os loucos o
não são por qualquer desequilíbrio de
faculdades, — que ha Debídas malditas,
miolos de jumento fornecidos em grandes
ou pequenas dozes, pragas detfeito ma-
ligno, maus olhaduSy invejas que conta-
minam e matam . . .
(Conclue)
(Vidigueira)
Pedro COVAS.
O S. JOÃO EM SERPA
Depois de Santo António, o famoso
casamenteiro, pertence a S. João Bap-
tista o maior culto popular. A juventude,
mormente, é toda cantares e júbilos e
folguedos na tradicional commemoração
do santo pegureiro ('). Pois se elle é in-
vocado, não menos que o nosso thauma-
turgo, em eternas questões do eterno
amor !
*
14 de Junho: véspera das novenas
ao Precursor, que ordinariamente se re-
zam nas egrejas de Santa Maria, S. Sal-
vador e S. Paulo C). Durante a tarde,
grupos de raparigas — esbeltas campone-
zas de seio túmido, respirando saúde e
alacridade — se entregam á divertida ta-
refa de «compor o Santo» com seu dia-
dema de prata bem polido, largas fitas
de seda mui garridas, e copiosos ramos
d'ouripel f).
(') A propósito de pegureiro.
Recusando mostrar qualquer objecto, costuma
dizer se aqui (em linguagem familiar): «não tem
vista nem crista, nem a pellica (samarra) de S.
João Baptista.
(*) Também se venera o Baptista, alguns an-
nos, na capella do Mosteirinho, no velho con-
vento de S. Francisco, e nas ermidas de S. Ro-
que e N S.» dos Remédios.
(') Ao S. João da egreja de Santa Maria enfiam
um annel d'oiro nos dedos médio :; indicador da
mão direita. O lendário nnnel de S. João Baptis-
ta é decantado na quadra n." 4.
Das mencionadas egrejas, é claro, cada
uma possue o seu Baptista, e a cada
imagem corresponde um grupo ou irman-
dade de raparigas solteiras (^).
A' noite, numerosa mocidade de am-
bos os sexos costuma reunir junto á
porta dos templos a que alludi, afim de
«dar a alvorada ao Santo».
Nunca assistiu, leitor, a uma alvorada?
Pois vale a pena, só para ouvir cantar
estas formosíssimas quadras Q em lou-
vor de
S. João Baptista
I
Se o Baptista bem soubesse
Quando era o seu dia,
Descia dos céus á terra
Com prazer e alegria.
II
O Baptista não vem hoje,
Ha-de vir segunda-feira ;
Ha-de achar a cama feita,
Coberta de erva cidreira.
III
— D'onde vindes meu Baptista,
Pela calma, sem chapéu ?
— Venho de ver as fogueiras
Que se acenderam no céu.
IV
Oh ! que lindo annel d'oiro
Que o Baptista traz no dedo !
Que lhe deu sua madrinha
Santa Clara do I^oredo.
Do altar de San João
Até ao de San Francisco,
Tudo são cravos e rosas
Postas pela mão de Christo.
(^) Quatro raparigas. d'entre as de cada grupo,
são escolhidas para os cargos Hnnuaes de juija,
escrivóa, thesoureira e tnordoma da cera. A's
quatro eleitas^ assim chamadas, incumbe, em
e.Npecial, o trabalho de angariar dinheiro, esmo-
lando, para as despezas da festividade.
(=) Inserimos, na secção competente, a musica
respectiva.
A TRADIÇÃO
91
V!
Do altar de Santo António
Até ao de San João,
Tudo são cravos e rosas
Postas pela sua mão.
Vil
O' Baptista, o Baptista,
O' Baptista meu compadre !
Casastes as moças todas.
Deixastes vossa comad^^e I . .
VIII
Do altar de Santo António
Até ao de San João,
Tudo é verdura e tiores
'Spalhadas no meio do chão.
IX
Lá vem San João abaixo,
Vestido d'azul-ferrete :
N'uma mão traz a bandeira,
E na outra um ramalhete.
X
Lá vem o Baptista abaixo,
Dando volta ao rocio.
Dizendo aos inquilinos :
— Váo pagar ao senhorio (^).
XI
Lá vem o Baptista abaixo
Perguntando uma cadeira.
Se vem p'ra salvar as almas,
A minha seja a primeira.
XII
San João se adormeceu
No collo de sua tia :
Eram três dias passados, —
San João inda dormia!
XIII
— Onde estará o Baptista,
Que não 'stá no seu altar ?
— Foi ao ceu ver as fogueiras,
Para tornar a voltar.
(^) E' de antiquissimo costume pagar a renda
de casas pelo S. João e pelo Natal.
XIV
San João e mais San Pedro
Ambos vestem um vestido:
San João, prata lavrada,
San Pedro, oiro batido.
XV
Baptista dae-me capella,
hl em meu peito fortaleza,
Para poder festejar
Vosso dia com grandeza.
XVI
San João á minha porta ?
Eu não sei que lhe hei- de dari
Darei lhe uma canna verde
Para pôr no seu altar.
XVII
San João á minha porta?
Hei-de lhe dar a capella;
Hei-de pedir af) Baptista
Me faça bòa donzella.
XVIII
Santo António apanha flores,
San Francisco leva a cesta,
San João faz a capella,
E (]hristo a póe na cabeça.
XIX
San João apanha flores
E vae deitando prá cesta;
A \'irgem faz a capella
E diz : — ponham na cabeça.
XX
Quinta-feira d'Ascensão
Do ceu caiu uma tlór.
Dizem que a mãe do Baptista
E' prima- irmã do Senhor.
XXI
Lá no rio do Jordão
Passeia Santa Isabel ;
Dizem que é mãe do Baptista:
Oh 1 que dita de mulher!
XXII
O Baptista chora, chora.
Chora sem consolação.
Que perdeu o cordeirinho
Lá no rio do Jordão.
n
A TRADIÇÃO
XXIII
/^juntem-se as moçiis todas I
Vamos ao ria do Jordão
A buscar o cordeirinho
Para o dar a San João.
XXIV
Vamos moças, vamos todas 1
Vamos ao rio do Jordão,
Para vér baptisar Christo
E Christo baptisar João.
XXV
San Zacharias é mudo ;
Por graça de Deus, então :
— Como se chama o menino ?
— Ha de chamar-se João.
XXVI
San João comprou um burro
Para pular as fogueiras ;
E depois de as pular todas,
Deu-o de presente ás freiras.
XXVII
A treze do mez de Junho
Santo António se demove,
San João a vinte e quatro,
E San Pedro a vinte nove.
XXVIII
San João e mais San Pedro
São dois santos mudadores :
San João muda os casaes,
San Pedro muda os pastores. 0)
XXIX
San João e mais San Pedro
Foram jogar uma lucta :
San João ficou por baixo ;
San Pedro não teve a culpa.
XXX
Foram deitar uma lucta
San Pedro mais San João ;
San Pedro, por ser mais velho,
Caiu-lhe o c. do calção !
C) A mudança de casaes, a que se allude, quer
dizer mudança de domicilio, o que tem iogar pe-
lo S. João ou pelo Natal. — Os pastores ajustam
com seus amos o preço do serviço annual em
dia de S. Pedro.
XXXI
Meu engraçado Baptista,
Minha jóia, meu amor !
Tendes por gloria ser prinio
Padrinho do redemptor 1
XXXII
O mérito do Baptista,
A que gráo Deus o levou.
Que, depois de degollado.
Ainda o Baptista fallou !
XXXIII
Baptista, não permittaes
Q'ae eu vosso deixe de ser !
Baptista cada vez mais.
Baptista até morrer !
XXXIV
o livro do Sacramento
Só o Baptista o abriu ;
Aos braços da Virgem pura
Só o Baptista subiu.
XXXV
No altar de San João
'Stá um ramo d'açucenas
Onde os namorados vão
Dar allivio ás suas penas. (8)
XXXVI
No altar de San João
'Stá um lindo damasqueiro :
Dá damascos de milagre.
Não se vendem por dinheiro.
XXXVII
No altar de San João
'Stá'ma linda cerejeira:
P<.de-se dar por ditoso
Quem lhe colher a primeira.
XXXVIII
Alem vem o San João
Alegre como um pombinho:
N'uma máo troz uma cruz,
E na outra o cordeirinho.
(8) Na collecção de cantigas que hoje publicá-
mos, ha muitas, que são communs a Santo An-
tónio, com a substituição, apenas, d'este nome
pelo de baptista ou Sun João. Está n'este caso
a quadra xxxv, que também se canta : — No altar
de Santo António — 'stá um ramo de açuce-
nas, etc.
A TRADIÇÃO
M
XXXIX
Senhoras evangelistas,
Não lenham lalt;i de fé,
Que entre todos os santinhos
O Baptista maior é.
X I.
San João me prometteu
De me dar uma capelia.
Também eu lhe prometti
Toda a vida ser donzella.
XI, l
Lá n aquellas ervas verdes,
Foi a minha perdição ;
Perdi o meu annel d'oiro
Na noite de San João.
XLII
No adro do Salvador
'Stá um mastro levantado.
Em companha do Baptista
'Stá Jesus sacramentado.
Xl.III
Entre carroças lie oiro
E vidraças de crystal,
Vem a sagrada Custodia
A San João adorar.
XI. IV
(jrandes festas ha no ceu
Em dia de San João :
San João baptisa Christo,
Christo baptisa João.
XI. V
O Baptista é divino.
Por divino se aclamou ;
No ventre de sua mãe,
A Jesus se ajoelhou.
X L V I
San Zacharias é mudo ;
Esta noite ha de fallar,
Para dizer que o Baptista,
João se ha-de chamar.
X L V 1 1
O' apostolo San Pedro
Que do céu tindel-as chaves,
Dae-me novas do Baptista,
Que lhe tenho saudades.
XI. VI 11
Festa que fazem os moiros
Em noite de San João !
Quando os moiros o festejam,
Que fará quem é chrislão !
X I . I X
O' Baptista, ó Baptista,
O' Baptista no Jordão !
Parente de Jesus Christo,
Sois um cravo em botão !
L
Quando a Virgem-Maria
Santa Isabel visitou,
O Baptista, de contente,
No seu ventre ajoelhou.
LI
Santa Isabel se prepara
P'ra uma grande visita,
Que ahi vem o Santo Verbo
Santificar o Baptista.
1. il
O Baptista, no deserto,
Cobriu o rosto de veu.
Quinta feira d'Ascensão
Subiu Jesus Christo ao ceu.
LIII
Não sei que tem o Baptista
No dia em que quer nascer,
Que, sejam velhos ou moços.
Tudo faz endoidecer.
LI V
Que é das moças d'esta terra
Que não as posso encontrar?
Certo é que ellas não querem
O Baptista festejar!
Dias NUNES.
(Conclue)
.M.
LENDAS & ROMANCES
íl{ecolhiJos da íriídiçâo oral im província do <i/llemteJo)
ni
Gerinalílo (Egmhard)
— Gerinaldo, Gerinaldo,
Pagem d'el-rei tão querido 1
Quem me dera, Gerinaldo,
Vir's aqui dormir comigo.
94
A TRADIÇÃO
— Quando quereis vós, Senhora,
Que eu va em vosso serviço ?
— Entre a uma e as duas,
Que já meu pae está dormido — .
A uma náo era dada
Gerinaldo era sahido;
Foi ao quarto da princeza.
Deu um ai mui dolorido.
— Qual será o confiado,
Qual será o atrevido,
Que entre as portas do meu quarto
Dá um ai tão dolorido ?
— E' Gerinaldo, Senhora,
Que vem em vosso serviço.
— Anda cá, ó Germaldo,
Deita-te aqui comitío — .
Era pela manhãsinha,
El-rei q'ria o seu vestido :
— Ou Gerinaldo é morto,
Ou Gerinaldo é sahido — .
Responderam os vassallos
Todos muito atrevidos :
— Vá se ao quarto da princeza,
Q/lchjrá-os bem dormidos.
Voltados um para o outro,
Que nem mulher com marido — .
Foi-se el-rei até ao quarto,
Aohou-os mui hem dormidos.
— Eu se mato Gerinaldo,
Criei-o de pequenino,
E se mato a minha filha
Tenho o meu reino perdido — .
E lançou as mãos atraz
A um punhal que trazia,
Voltou os copos p'r'á filha
E o bico p'ra Gerinaldo.
Acordando Gerinaldo
Achou se mui bem ferido :
— Acorda, acorda, princeza,
Acorda que estou perdido.
— CaK-te, caT-te, Gerinaldo,
Não te faças presentido.
Que meu pae é dos bons homens,
Hade me casar comtigo,
— Deus vos salve, ó bom Rei,
'Qui tendes vosso vestido,
E aqui estou a vossos pés,
Mandae-me dar o castigo;
Eu è que fui o confiado
No seu quarto penetrar.
Aqui estou a vossos pés
Mandae me a gorja cortar.
— O castigo que te hei dar
Já o tenho promettido,
Trata-a a ella por mulher
E ella a ti por marido — .
— Oh I quem tivera a dita
Que Gerinaldo ha tido,
'Té 'gora fiel vassallo,
Agora filho querido !
(Elvas;.
(Continua)
A. Thomaz pires.
JOGOS POPULARES
A. espacla-niia.
Pertence este jogo ao numero daquel-
les que passaram á historia, pois que
desde alguns annos deixou elle de vigo-
rar entre os nossos conterrâneos. Era um
exercício muito animado, e que deman-
dava considerável esforço físico.
O jogo da espada-nua usava se de noite,
principalmente na estação calmosa.
Para o realisar, juntavam-se muitos
rapazes num largo chamado coito. Em
Brinches, era no próprio adro da egreja
matriz. Os jogadores, em numero par,
dividiam-se em dois grupos eguaes, e
cada grupo escolhia, d"entre os seus
membros, um chefe a quem chamavam
mãe.
Um dos grupos era obrigado a defen-
der o coito, e o outro propunha-se a con-
quista-lo. Tirava-se á sorte, o grupo que
havia de guardar o coito, em opposição
áquelle que tinha de o atacar.
Note-se que o zelo do primeiro grupo
era não só defender o coito, mas ainda
perseguir e prender os adversários. O
maior empenho d'estes consistia, pelo
contrario, em penetrarem no coito sem
se deixarem agarrar.
Vejamos como a turbulenta rapaziada
punha em pratica o apparatoso espectá-
culo.
Occupado o coito pelo grupo da defe-
za, iam os parceiros do outro grupo es-
conder-se sob a direcção da respectiva
mãe; e quando esta via que os seus su-
bordinados estavam embuscados, vinha
participar á outra mãe, que já podia man-
dar em caça delles. Succedia então, que,
dos jogadores de guarda ao coito, parte
continuava ali no seu posto de defeza, e
a outra parte, acompanhada de seu chefe,
seguia immediatamente á busca dos
adversários. Estes mal se apercebiam
descobertos, rasgavam a fugir, quanto
podiam, para não serem aprisionados.
A TRADIÇÃO
96
Toda a povoação era neste momento
cortada pelos <(uerreiros^ correndo atraz
uns dos outros, e transpondo ás vezes
grandes distancias. Nem sempre os per-
seguidos (ugiam para os pontos afasta-
tados; também se dirigiam a miudc para
o coito, afim de se introduzirem nelle.
A" entrada do mencionado recinto ira-
Nava se ordinariamente rija lucta entre os
contendores. Claro está, que, quando os
aspirantes ao coito dispunham de maior
robustez, fácil se lhes tornava a vicioria,
porque entravam á viva força, deixando
muita vez de pernas ao ar aquelles que
pretendiam oppoi -se á sua passagem. O
contrario succedia — está bem de ver —
quando os defensores eram mais valen-
tes, pois n este caso nenhum adversário
podia entrar no coito sem ser preso.
Também acontecia verse o coito soli-
tário, completamente abandonado: era
quando os que deviam guarda-lo, inHui-
dos com as correrias dos seus compa-
nheiros, saltavam a correr da mesma
forma em cata dos perseguidos. Logo
que o facto se dava, a mãe que comman-
dava o grupo da opposição, gritava: «o'
meus! corram ao coito, que está o coito
sem gente.» A seu turno, a mãe do gru-
po defensor bradava egualmente aos seus,
que corressem a defender o coito.
Quando algum jogador era apanhado
na carreira, se a mão que o pilhava não
tinha a firmeza sufficiente para o segurar,
elle safava-se-lhe, e a prisão ficava de
nenhum effeito.
Na partida seguinte, os que defendiam
o coito passavam a ataca-lo e vice-versa.
O jogo, cuja descrição acabámos de
fazer, constituía um bello exercício, de
molde a desenvolver amplamente as for-
ças físicas. Tinha, porem, o grave incon-
veniente dexpôr os parceiros a trambu-
Ihões bastante desagradáveis e de pro-
duzir immensa fadiga pelas carreiras.
Quanto a origem deste jogo, não pódc
deixar de ser muito remota, como clara-
mente se deprehende da sua própria des-
crição. A palavra coiío recordando-nos
os antigos coutos pertencentes aos senho-
res; as batalhas entre os rapazes, simu-
lacros das históricas escaramuças entre
coutos visinhos; as correrias atravez da
povoação e suas immediações, — tudo nos
! leva a crer que o jogo da cspaJa-fiua da-
ta, pelo menos, dos primeiros séculos da
monarchia.
Convém advertir, que ainda ha pou-
cos annos se jogava á cspada-inij, — o
que prova a enorme persistência da tra-
dição, até mesmo nas diversões infantis,
nas quaes bastas vezes se reflectem os
usos e costumes de longiquas eras.
(Brinches).
Ladisijii' piçarra.
CONTOS POPULARES ALEMTEJANOS
VII
o Grão de Milho
Havia uma mulher, que era casada e
vivia com muito desgosto; não porque
se desse mal com o marido, mas por não
ter filhos. Um dia disse ella: iSo queria,
neste mundo, que Deus me desse um fi-
lho, ainda que elle fosse do tamanho
dum grão de milho!»
Deus ouviu a e satisfez-lhe o pedido.
A mulher, não podendo, um dia. ir le-
var o jantar ao marido, que andava la-
vrando, disse :
— lOra, quem ha de ir hoje levar o
jantar ao meu homem r. . . o meu filho
com certeza não é capaz.»
Responde o filho:
— «Ora essa ! Então não sou ?I . . . po-
nha lá a albarda em cima da burra e ve-
rá emquanto eu vou.»
.\ mulher, em vista disto, albardou a
burra, montou o filho e poz-lhe a panella
do jantar adiante, e disse-lhe :
96
A TRADIÇÃO
— iVai depressa, e, em o pae jantan-
do, dize-lhe que venha n'um instante cá
a casa. que faz falta.»
No caminho, as mondadeiras que viam
a panella em cima da burra, sem nin-
guém a segural-a, diziam, muito admi-
radas : "
— «Olhem uma panella em cima da-
quella burra, sem ninguém lhe segu-
rar! ...»
O Grão de Milho, muito zangado, res-
pondia :
— o O' mulheres do diabo! então vo-
cês não me vêem?! Pois eu não sou tão
pequeno como tudo isso, sou um homem
regular.!
Quando chegou aonde o pae andava
lavrando, brádou-lhe ; mas como o pae
so via a burra e a panella, perguntou :
— «Quem diabo está a bradar-me ?»
— «Sou eu,» — respondeu o filho —
«não me vê ?!»
O homem, então, lembrando-se que
era o filho, chegou-se ao pé da burra
tirou a panella e desceu-o.»
Ao meio dia foram comer o jantar, e
quando acabaram, diz o filho ao pae:
— «O pae! a mãe que chegasse vo-
cemessê lá a casa num instante, que faz
lá falta.»
O homem marchou, dizendo ao filho :
— «Olha, emquanto eu venho e não
venho, vai ahi guardando os bois ; mas
acautela-te, não os deixes ir além para
aquelle coival.»
Ainda bem o homem não tinha parti-
do, principiou a chover, e o meu Grão
de Milho foi metter-se dentro duma cou-
ve, para não se molhar.
Os bois, é claro, vendo-se sem guar-
da, trataram dir para o coival ; e um
delles papou a couve onde estava o Grão
de Milho e enguliu-o.
D'ahi a pedaço voltou o pae, e, vendo
os bois comendo as couves, começou a
bradar ao filho, que lhe respondeu da
barriga do boi: «O' pai, mate o nosso
boi lobato, que eu lhe darei dinheiro para
três ou quatro.»
Tantas vezes o filho disse isto ao pae,
que este resolveu matar o boi. Morto o
boi, deitaram as tripas fora, e dentro del-
ias estava o Grão de Milho.
Um lobo que passou por ali, vendo as
tripas, comeu-as e enguliu também o
Grão de Milho. Quando o lobo ia para
assaltar algum rebanho, o Grão de Mi-
lho dava noticia e começava logo a gri-
tar: «O' pastor! lá vai lobo. . .» E assim
fazia com que o pobre lobo não provas-
se nada.
Como a fome )á fosse muita, viu-se o
lobo obrigado a comer areia; dando-lhe
em resultado uma forte diarrhéa. Com a
diarrhéa saiu para fora o Grão de Milho,
que foi lavar-se a um barranco. Mais
tarde, o Grão de Milho encontrou um
sub-terraneo, que era onde os ladrões
costumavam dormir, e onde também
guardavam os roubos que faziam. O
Grão de Milho, não querendo dormir ao
relento, entrou para o subterrâneo. D'ahi
a pedaço, chegou uma grande quadrilha
de ladrões, que se puzeram a contar o
dinheiro. Depois do dinheiro estar con-
tado, o capitão dos ladrões começou a
dividi-lo, dizendo :
— «Tanto para mim, tanto para ti,
tanto para fulano, tanto para beltrano...»
— «E então para mim, nada ?!» — dizia
o Grão de Milho.
Os ladrões, ouvindo aquella voz, agar-
raram um grande susto; pegaram no di-
nheiro que puderam e fugiram, deixan-
do muito mais dinheiro que aquelle que
levaram. O Grão de Milho no outro dia
marchou para casa e disse ao pae: «O'
pae ! arranje lá três bestas boas e venha
commigo.»
O pae arranjou as bestas e marcharam
ambos caminho do subterrâneo. Assim
que lá chegaram, encheram três saccos
de libras. E o Grão de Milho a dizer de
vez em quando: «Então, pae! não lhe
dizia eu que matasse o nosso boi lobato,
que eu lhe daria dinheiro para três ou
quatro?!»
(Da tradição oral)
(Brinches).
António ALEXANDRINO.'
A.UUO I — N." T
SEUFâ. Julho de 1899
ISérle I
Editor-adminidrador, Jo»e Jeronymo da Cotia Bravo de Negretron, Rua Larga, 9 c 4 — SERPA
TypoRraphia de AJolpho de Mendonça, Kua do Corpo Santo, 46 e 48 — LISBOA
A tradTcãõ
REVISTA lyiENSAL DETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
DIRECTORES: — LADISLAU PIÇARRA e M. DIAS NUNES
O elemento árabe na linguagem dos pastores
alemtejanos
(continuado de pac. 85)
A distribuição do gado de lan do mes-
mo amo em rebanhos varia naturalmente
nas diversas épocas do anno. No fim do
verão, suppondo já vendido todo o fj^atio
maclio^ com excepção dos carneiros pães,
ficam unicamente as ovelhas de ventre^
divididas em dois. trcs ou mais rebanhos,
segundo a importância da lavoira de que
se trata ; e ficam as borregas do anno
anterior, que já então se chamam borras^
e vão constituir, durante o inverno e pri-
mavera seguintes, o chamado alfeire.
Alfeire é, pois, o rebanho das ovelhas
novas, ás quaes occasionalmente se jun-
tam algumas das mais velhas que ficas-
sem forras. Em todo o caso, é um reba-
nho de ovelhas, que nem tiveram, nem
estão para ter borregos. Quando se trata
do gado de lan, é esta a única accepção
da palavra ; e diz-se o alfeire, sem mais
explicações. iVlas dá-se também este no-
me aos rebanhos de porcos, que pas-
sam, segundo as idades, de serem baco-
radas a chamarem-se alfeires^ até depois
constituirem varas\ e ahi, nos alfeires de
porcos, fazem-se algumas distincções que
não vem ao nosso caso. Também se em-
prega a palavra como adiectivo, e se diz,
por exemplo, uma égua ai feira ^ em op-
posição a uma ép^ua parida ou apoldrada.
Devo, no entanto, advertir, que esta ul-
tima expressão é talvez mais ribatejana
que alemtejana, e se applica mais ao gado
grosso que ao miúdo. Não me lembro
de ouvir dizer a um pastor uma orelha
alfeira. dirá antes uma orelha do alfeire
ou das altas.
A palavra é árabe de origem, e vem
de al-heir quasi sem alteração, pela sim-
ples e habitual mudança do //. duro em
f. Al-heir significa em árabe o curral ou
recinto fechado onde se guarda o gado.
No antigo portuguez conservou este sen-
tido. Fr. .Joaquim de Santa Rosa, no seu
Klucidario, cita umas posturas de Kvora
do anno de i'2<')4, nas quaes a palavra
alfeire significa um curral, e a palavra
alfeireiro o homem que ali estaVa de
guarda. Depois, por uma fácil derivação
de sentido, passou a designar o gado que
se encerra\a, particularmente as fêmeas
novas e que se queriam mais bem guar
dadas. Tratando-se do gado de lan, tem
hoje na linguagem dos pastores alemte-
janos a accepção já mencionada, e ne-
nhuma outra.
Pelo correr do outono começam a
nascer os borregos, e formam-se as chi-
cadas.
Chicadas são pequenos atalhos de ove-
lhas, tendo borregos muito novos, ape-
nas de dias ; e chama-se chicadeiro o ho-
mem que guarda cada uma d'ellas. É
palavra originalmente hespanhola, e jul-
go-a derivada de chico, pequeno. A exis-
tência da chicada é provisória e muito
curta ; e, á medida que os borregos to-
mam força, vão-se juntando e fundindo
98
A TRADIÇÃO
aquelles atalhos até ao numero sufficiente
para formarem uma paridade.
Pari.útJc é o rebanho das ovelhas pa-
ridas. Não encontro a pahr.ra neste sen ^
tido nos Diccionarios portuguezes de que
me sirvo ; e, no entanto, bem merecia ser
ali admittida pois é de uso corrente e ac-
cepçâo bem definida. A paridade orça
por quatrocentas ovelhas proximamente,
o que, com os borregos, dá um rebanho
de oitocentas cabeças, pouco mais ou
menos. Formam se tantas, quantas o nu-
mero total exige. Um lavrador, que te-
nha, por exemplo, mil e seiscentas ou
mil e setecentas ovelhas de ventre, for-
mará successivamente quatro, que os pas-
tores distinguem pelos nomes de pari-
dade temporaii, segunda paridade^ ter-
ceira paridade e paridade sej'odia (pro-
nunciam saroida). Cada um d'estes re-
banhos tem naturalmente o seu maioral,
ajuda e zagal, e é perfeitamente inde-
pendente de todos os outros.
Andam assim todo o inverno, até que,
ahi pelo mez de fevereiro, mais tarde ou
mais cedo, segundo a força dos borregos
e o estado das pastagens, se faz a apar-
tação^ isto é, se separam os borregos das
mães. Os borregos vão formar dois reba-
nhos, do gado macho, e do gado femeo\
e as ovelhas passam a ser regularmente
ordenhadas para o fabrico dos queijos,
e constituem o alavão, ou os alavões se
o seu numero é muito grande.
Alavão é, pois, o nome do rebanho
que dá leite. Alguns escrevem alabão ;
mas adoptei a forma indicada pela pro-
nuncia constante dos pastores. A palavra
está diversamente definida nos nossos dic-
cionarios. Sousa diz: «significa as ove-
lhas que dão muito leite.» Moraes diz:
«gado de creação e de leite.» O Diccio-
nario contemporâneo: "gado de creação
que ainda mamma». Tudo isto é mais ou
menos inexacto — alavão no Alemtejo si-
gnifica unicamente o rebanho que dá leite
pela ordenha, nunca aquelle em que os
borregos ainda mammão. Também é in-
differente para o caso que dê muito ou
pouco leite. O nome do rebanho anda li-
gado sempre ao facto de dar leite para
os queijos : começa a chamar-se alavão
no dia em que os borregos se apartam :
deixa de se chamar alavão no dia em que
a ordenha cessa. Esta é a significação da
palavra no Alemtejo ; seria interessante
saber o sentido que lhe dão na Serra da
Estrella, onde as coisas se passam de
modo um pouco diverso.
Sousa, nos seus Vestígios, deriva esta
palavra dé al-labban^ que em árabe si-
gnifica leite. Engelmann hesita em acceitar
a sua etymologia: primeiro, porque nunca
encontrou aquella palavra, al-labbau^ nos
escriplores arábicos, com o sentido de dar
muito leite — já vimos, que esta definição
de Sousa é pouco exacta: segundo porque
julga que a palavra em portuguez signi-
fica em geral rebanho. Dozy reforça as
duvidas de Engelmann, fundando-se so-
bretudo em que a palavra em portuguez
tem o sentido lato de rebanho, rancho,
agrupamento de animaes. Com todo o
respeito devido a estas grandes auctori-
dades, afasto-me completamente da sua
opinião, e tenho a etymologia proposta
por fr. João de Sousa como sendo extre-
mamente plausível. Os sábios auctores
do Glossaire foram illudídos pelos nossos
Diccionarios. E verdade que Bluteau, de-
pois de definir correctamente alavão «a
manada das ovelhas que dão leite», acres-
centa, que se pode também dizer «ala-
vão de gallinhas, etc. por grande numero
d'ellas». E Vieyra fala do mesmo modo
n'um «alavão de gallinhas», no que me
parece que não fez mais do que copiar o
seu predecessor. Isto, no entanto, deve
ser uma phantasia do erudito padre D.
Raphael Bluteau, o qual deu como cor-
rente um significado occasional. No Alem-
tejo. onde a palavra alavão é typica, per-
feitamente popular e evidentemente an-
tiquíssima, nunca a ouvi applicar a um
rancho de gallinhas ou de patos, nunca
a um rebanho de outro gado qualquer,
nunca mesmo a um rebanho de ovelhas,
a não ser no periodo em que são orde-
nhadas. A palavra alavão anda indisso-
luvelmente ligada á ideia de leite. Dado
A TRADIÇÃO
99
&^LERI^ DE TVPOS POPIIMRES
\'II
Lavadeira i Serpa)
100
A TRADIÇÃO
isto, nada mais natural do que derival-a
de jllahban., que em árabe significa leite.
Ainda devemos citar o nome de fa:^en
tVj, dado exclusivamente aos rebanhos de
gado macho. Habitualmente os borregos
são vendidos, mas quando o lavrador os
conserva um ou mais annos, formam-se
o que os pastores chamam fa^eudas^ uma
fii-cnJa tU' malaios^ ou uma fif^enda de
carneiros, segundo as idades. 'Fambem
os cabreiros empregam esta palavra para
o rebanho de gado macho — dizendo uma
fazenda de chibatos.
\'oltando ás ovelhas ; pelo correr do
mez de junho, a ordenha cessa, a quei-
jada (rouparia) feixa-se, e o gado, na lin-
guagem dos pastores, e deitado a vasio.
Deixa desde esse momento de haver ala-
vão ou rebanho que tenha esse nome.
Depois, durante o verão, vende-se o gado
macho, vendem-se as farotas e as ove-
lhas que o lavrador não quer ou não
pode conservar, o alfeire funde-se nas ove-
lhas de ventre, as borregas passam a for
mar novo alteire, e as coisas recomeçam
como nos annos anteriores. Tal é a dis-
tribuição dos rebanhos nas diversas es-
tações, tomando o nosso exemplo, é
claro, em uma lavoira já de certa im-
portância, porque, sendo o gado em me-
nor numero, as coisas simplificam-se um
pouco.
Examinemos agora alguns traços da
vida do pastor. — E em primeiro logar
será necessário advertir, para os leitores
estranhos á província, que não ha pasto-
ras no Alemtejo. As pastoras dos Autos
de Gil \'icente, a linda pastorinha do
Romance popular, as rapariguitas mais
ou menos pittorescas, que no Minho, na
Beira ou na Estremadura, em geral nas
regiões de pequena cultura, nós encon-
tramos guardando o seu punhado de ove-
lhas, com algumas cabras á mistura, tudo
isto é desconhecido na nossa província,
pelo menos na parte de que nos occu-
pamos. O Alemtejo é a terra das gran-
des culturas e das grandes extensões; as
cabeças de gado de lan contam-se por
centenas e milhares ; á noite não reco-
lhem aos curraes do povoado, mas dor-
mem, verão e inverno, pelos descampa-
dos e alqueives ; os rebanhos transitam
de herdade para herdade, a dezenas de
kilomctros de distancia. Não podem, por-
tanto, ser guardados por mulheres, e
unicamente por homens e homens robus-
tos.
Estes homens charaam-se propriamente
pastores. Sob o nome de ganadeiros, in-
cluem-se em geral todos os guardadores
de gado, pastores, porqueiros, vaqueiros,
eguariços e outros \ mas quando se diz
simplesmente um pastor., entende-se um
guardador de gado de lan.
Ser pastor constitue uma profissão á
parte, que em geral se segue toda a vida.
E há mais ; como o rabadão e os maio-
raes tomam muitas vezes um filho para
zagal, a profissão tende a fixar-se na fa-
mília. Eu conheço em Serpa famílias, de
que todos os homens, com raras exce-
pções, são pastores ; e isto ha gerações
successivas. D'aqui resulta, que elles for-
mam uma classe por assim dizer distin-
cta, com alguns hábitos e privilégios es-
peciaes.
Em Serpa serve-lhes também de liga-
ção o pertencerem quasi todos á irman-
dade de S. Pedro, S. Pedro é o santo
dos pastores, sem duvida por ter sido
elle próprio um grande pastor de almas.
Logo ao sair da villa, á direita e nas bai-
xas da Sr.* de Guadalupe, fica a ermi-
da do santo, onde, no dia próprio e qua-
si sempre por um terrível calor, se jun-
tam os festeiros, no seu trajo de pas-
tores, com a opa branca por cima. Que
esta devoção especial é antiquíssima,
prova-o um habito immemoríal. Em Ser-
pa, os creados de anno das lavoíras
são concertados (ajustados e tomados)
em um dia especial, e despedem-se ou
são despedidos no mesmo dia; ora, em-
quanto os outros ganadeiros, os ganhões
e mais creados são todos concertados
em dia de Santa Maria, os pastores,
única excepção, entram para casa do
amo no dia de S. Pedro, como para
o solemnisar. A este habito allude a
A TRADIÇÃO
101
quadra publicada no ultimo numcrtj dcs-
te jornal :
San João e mais San Pedro
São dois santos mudadores :
San João muda os casaes,
San Pedro muda os pastores.
\'ejamos agora alguns nomes das pe-
ças do vestuário e dos objectos de que
se serve o pastor.
(Continua)
Conde de FICALHO.
ANDAK ÁS VOZES (*)
(Cunclusáo)
A porta principal (porque a capella
tem mais duas portas) c de madeira, com
dois ralos, por onde os devotos podem
vêr a imagem da Senhora das Verdades.
Muitas vezes a vi, á noite, á luz da
lâmpada que pendia deante do altar-mór.
Eu e a pessoa que eu acompanhava ali,
ajoelhávamos no degrau da porta, quan-
do chegávamos ao termo da nossa silen-
cioí>a romagem. Sabe Deus com que
amargura essa querida pessoa, que a
morte levou ha sete annos, pediria a
Nossa Senhora das Verdades que não
viessem a realisar-se as funestas pro-
phecias, que teria ouvido. Com que amar-
gura e com que fé !
Eu era então uma creança e não dava,
por isso, valor aos negócios de familia,
aos assumptos domésticos, por mais mo-
mentosos que fossem. Chegava a abor-
recer-me aquella maçada de atravessar
em silencio a cidade, do bairro Occiden-
tal para o bairro oriental, desde a rua
(*) No começo d'est í artigo, pag. 86, linha 29,
sahiu por lapso de revisão — com o seu bochecho
em vez de — com ou sem bochecho.
16 de maio até á Sé. Se eu estava na
edade em que se falia sempre! (2ustava-
me fazer tão longa jornada silenciosa-
mente, como se levasse na bocca uma
forte mordaça.
Apenas me distraía com os olhos e
pelos olhos, sem me importar com as
1'o^es. (lOsiava de passar pelas lojas de
commercio, porque offereciam alguma
variedade devida ás pessoas, de dilleren-
te cathegoria social, que as (requen-
tavam.
Nas l(jjas dos Clérigos, por cuja cal-
çada desciamos, havia sempre mais ou
menos senhoias, que faziam as suas
compras, porque naquelle tempo as da-
mas portuenses sahiam pouco durante o
dia.
Nas lojas da rua do Loureiro, por onde,
em caminho da Sé, subiamos a rua Chã,
era certo haver algum padre de capote,
que conversava, bocejando, com o dono
do estabelecimento.
E" de notar que nestas lojas ainda
hoje se fabricam e vendem vestimentas
sacerdotaes, especialmente casulas e es-
tolas : fica assim explicada a presença de
algum padre naquellas lojas.
Logo que entravamos na rua Chã, todo
o ruido da cidade cessava. O antigo bur-
go episcopal era morto, solitário. Ali co-
meçava eu a entristecer, e a compene-
trar-me algum tanto do sentimento reli-
gioso, que tinha inspirado a nossa ro-
magem.
Quando já perto de mim negrejavam
as paredes da Sé, na solidão e no si-
lencio, a minha tristeza, mixto de enfado
e terror, augmentava, a ponto de me fa-
zer tremer ás vezes.
Era convulse, agitado, que eu ajoelha-
va, ao chegar á capella da Senhora das
Verdades, no degrau da porta, com as
mãos postas e o boné debaixo do braço.
Não sei se rezava nem o que rezava,
emquanto essa querida pessoa orava fer
vorosamente com os lábios collados a
um dos ralos, como se estivesse fallando
com Nossa Senhora para dentro da er-
mida.
102
A TRADIÇÃO
ToJo o meu desejo era vèi-me d'ali
para fora o mais depressa possível, po-
der quebrar o silencio, desforrar-me, com
usura, de tão longa e forçada mudez.
Mas a pessoa que eu acompanhava,
ao voltarmos para casa, vinha quasi
sempre preoccupada, a revolver na mente
as royes^ agradáveis ou desagradáveis,
que tinha ouvido.
Pobre e crédula creatura, ante-gostava
a felicidade que lhe tinha sido annun-
ciada, ou vergava ao peso de alguma
prophecia de desgraça, de algum aviso
aziago, acreditando, por egual, uma ou
outra cousa.
Aqui está, pois, como segundo a wr-
sjo do Porto, a capella de Nossa Senho-
ra das \'erdades é o termo tradicional
do andar ás }'0'{es^ o limite obrigado
dessa silenciosa romagem que os su-
persticiosos fazem cheios de fé, com ou
sem bochecho na bôcca.
Como é do estylo não fallar quando
se anda ás ro^t^s, algumas pessoas, por
evitar o descuido de não guardar silen-
cio (o que estragaria a romagem) sujei-
tam-se ao incommodo do bochecho. Mas
por isso mesmo que é incommodo, a
maior parte da gente dispensa o, cer-
rando os dentes uns contra os outros e
pondo toda a sua attenção em não dizer
palavra.
Só os namorados, na noite de S. João,
se resignam a esse sacrifício, mas duran-
te pouco tempo.
Vinha aqui a propósito um latinório :
Omnia rincit amor. O amor, para ven-
cer, soffre tudo : até o ter agua na bôcca
quando ha fogo no coração.
¥. no amor, como em tudo o mais,
melhor é ter agua na bôcca do que ficar
a fazer cruzes na bôcca.
(Lisboa)
Alberto PIMENTEL.
BOTIllC:! POPUIIB
Notas acerca de algumas plantas da flora
portugaeza (*)
(Conclusão)
Tratámos em o nosso anterior artigo
das plantas usadas na medicina popular.
Vamos falar hoje de outras plantas com
diversas applicações.
Para banhar os animaes, usa o povo
a folha e a casca do salgueiro (Salix alba)
e a tasneira (Senecio )acobaea) ; para la-
var fato, a hera (Hedera helix); para per-
fumar a roupa, o trevo de cheiro (Trifo-
lium melilotus officinalis); para apanhar
moscas, as salgadeiras (Atriplex halimus);
para coalhar o leite, o cardo do coalho
(Cinara cardunculus svlvestris); para la-
var o cabello, o avencão (Asplenium, sp?);
para aromatisar a conserva de azeito-
nas, a neveda maior (Nepeta cataria,
Thymus calamintha, Melissa calamintha)
e os ouregãos; para accender o lume, a
carqueja (Cjenista tridentata); para a cu-
linária, as folhas do loureiro (Laurus no-
bilis).
Por occasião da festa da Paschoa, tam-
bém costumam utilisar os ramos de lou-
reiro e de alecrim para enfeitar <is cosi-
nhas.
Em certas tintas, que se empregam nas
madeiras, o fungão (Lycoperdon tincto-
rium); e para obter mucilagem, as se-
mentes de marmeleiro (Pyrus Cydonia).
Uma das romarias mais interessantes
e mais concorridas nos arredores de Lis-
boa, é a de Nossa Senhora da Atalaya.
Muito se tem escripto acerca d'essa ro-
maria; por isso, apenas mencionarei ago-
ra o seguinte pormenor:
(*) Na I.» parte d'este artigo e quasi no fim
da pag. 66, 2.' columna, onde se le Farça dos
Tísicos, leia-se Farça dos Físicos.
A 1 KADiÇAO
103
Na madrugada da festa ^aude, que
costuma ser a madrugada do uliimo do-
mingo de agosto, quando a alvura das
casas começa a saliir da sombra, o sol
nascente cora de laivos róseos as nebu-
losidades húmidas da manhã e doura ao
de leve o cimo dos pinhaes, vão os ro-
meiros, guiados pelo retumtum das phy-
larmonicas, lavar o rosto a uma fontinha
próxima.
Depois, alguns intrépidos pesquizado-
res vão pelos campos á volta, ás vezes
bem longe, porque a planta não é muito
vulgar, colher as camarinhas (Kmpetrum
álbum». Parece que so tcem virtude^ co-
lhidas assim.
No regresso da romaria é pittoresco o
desrile d aquella gente. \'ozes quebram a
serenidade do ar entoando uma decima
de lado ou alguma cantiga da moda
nova.
As cintas, deslaçadas, escorregam em
voltas frouxas; lenços brancos adejam ao
pescoço sobre as bandas da jaqueta, e,
entalado na títa do chapéu, lá vem o ra-
minho verde, junto ao registo de Nossa
Senhora.
Pelas festas de Santo António, S. João
e S. Pedro, mas principalmente das duas
primeiras, apparece no mercado de Lis-
boa grande numero de vasos de barro
vermelho contendo uma planta odorifera,
o mangericão ordinário (Ocimum mini-
mum). O povo elimina á palavra a ter-
minação áspera e pronuncia carinhosa-
mente — mangerico.
E' de boa praxe amatoria otíerecer va-
sinhos de mangericão; e isto mesmo nas
classes medianamente abastadas.
Para maior gala leva então um cravo
de papel vermelho com um pedacinho de
papel branco preso na haste á maneira
de bandeirinha, onde se lêem, impressos,
versos de pé quebrado.
Lá vai, pois, a planta aromática, trium-
phante e desfraldando o guião, exhalar
perfumes e cantar loas, em homenagem
a um coração amigo.
A'emol-a em muitas casas e, até, ás ve-
zes, a embalsamar o ar impuro e a flo-
rescer á escassa luz das janellas das pri-
sões.
Copio algumas quadras, para amostra
do lyrismo a que se guindam os vates
da especialidade.
«Com qu.ilKj liorcs honiiiis,
Ao meu bem faço um raminho:
Açucena, amor perteitf»,
Cravo dobrado, junquilho.u
•Este cravo bem bonito
E' p'ra dar ao meu amor;
Cravo roxo é rei dos cravos,
Do jardim mimosa flor.»
«Oavo rf)xo á cintura,
E' signa! de sentiinento.
Vae, cravinho, vae depressa
Adonde esta meu pensamento.»
«O cravo é cór de logo,
A relva é mangericão.
Não me despeço, menina,
Da tua conversação.»
"Este mimoso cravo.
Entre as liores reverdece.
Também o meu lindf) amor
Entre os amor's se conhece.»
"Esta vae por despedida,
Despedida verdadeira:
Vae na folhinha de um cravo,
Na folhinha verdadeira.»
«Satniei um cravo branco
N'um canteiro do jardim,
1'ara ficar de memoria
O dia em que te conheci.»
Também é duso corrente adquirir, na
véspera das ditas festas, a pedido ou por
compra, alfazema, cardo de S. João (Ci-
vara humilis, L.) e herva pinheira (Sedum
fructiculosumi. A alfazema serve para
perfumar a roupa e para defumadouros,
principalmente ás creancinhas.
Aos cardos de S. João, mais conhecidos
por alcachofas ou alcachofras, attribuem
o mérito de revelar o bom ou mau êxito
que de futuro terão os amores. Se a al-
cachofa reflorir, depois de queimada á
meia noite, na fogueira — bom prenuncio
101
A TRADIÇÃO
amoroso; de contrario — grandes triste-
zas no animo das meninas consultantes.
A sciencia explica, é verdade, e satisfa-
toriamente, o extranho phenomeno ; mas
em prosa chan, com detrimento e menos-
prezo da poesia e do enlevo dos ternos
corações. . .
A herva pinheira, chamuscada á meia
noite da véspera de S. João, e depois re-
verdecida, é signal de muita felicidade
para o consultante. A felicidade, n'este
caso, é ter muito dinheiro.
Muitas das plantas que citei, não mere-
cem confiança no que respeita ás suas
virtudes therapeuticas ; mas algumas ha,
que são deveras aproveitáveis, e vêem
incluidas na Pharmacopéa Portugueza. A
sua classificação, porém, é extremamente
diílicil, por não obtermos, aqui em Lis-
boa, os respectivos exemplares. É justa-
mente o que nos acontece com a salva e
o alecrim, por exemplo.
— As minhas notas pouco valor teem ;
outras pessoas mais competentes teriam
pesquizado com melhor êxito. Os médi-
cos, dispersos pelas colónias portugue-
zas, por exemplo, quanto não poderiam
investigar n*este sentido, e que proveito
não resultaria" para a therapeutica, das
suas investigações ?
Terminando, cumpre-me agradecer ás
Ex.™*' Sr.^^ D. Alzira e D. Miquelina Cos-
ta, e ao Sr. João José da Costa, que tão
valioso auxilio me dispensaram n'este tra-
balho.
SOPHIA DA SILVA.
IVIodas-estribilhos alemtejanas
Dizes qu'eu sou lavadeira
Di{es qu'eu sou lavadeira, ]
Que ando no mar a lapára.\
Eu passo uma vida alegre \
Na ribeira a namorara. \ '^'
Na ribeira a namorara
ly qu'eu passo o meu born tempo..
Desejava amor saberá t
Qual era o leu pensamento! \
)bis
M. Dias NUNES.
OS iriRTmíosos
(Cl nclusão)
E dão começo ao maior dos martyro-
lógios:
— «E' preciso que digas quem te deu
alguma coisa a beber. Vamos, falia. Po-
des ainda salvar- te, se fallares. Ha mu-
lheres ruins, que nos querem muito mal
e nos invejam. Foste victima de maus
olhados e de maus tratos. Falia, homem,
falia!.)
E o pobre diabo, desequilibrado por
desgosto, ou por qualquer resfriamento,
responde, a muito custo, e quasi sem
comprehender:
— «Eu bebi, bebi, mas não me lembro
aonde; foi numa taverna... ao fim da
villa. . . café, café, numa chávena. . . Ha-
via gente commigo: dois homens, amigos
meus. Mulheres é que me deram o
café. . . ».
Grande alarido! As mulheres ges-
ticulam, praguejam, uivam. . .
— «Ao virtuoso, ao virtuoso! elle dirá
tudo, saberá tudo, dará remédio para
tudo. . . Ao virtuoso, ao virtuoso!»
— E o bando. . . pessoas de familia e
visinhos — a pobre gente ignorante e fa-
nática, e, por isso, tanto ou mais parvos
do que o próprio idiota em questão —
continua gritando, feroz, endiabrado: «A
caminho, a caminho de Beja! E' lá que
está o virtuoso. . . Ah, que elle ha de di-
zer-nos como tudo se passou!. . .»
— «O' Beja das tradições liberaes: e
consentes tu isto ?»
Mas vamos, não ha tempo a perder,
a cavalgada chega, chega tudo emfim:
— o doente, a mulher, a familia da mu-
A TKADIÇÁO
106
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I
VII
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106
A TRADIÇÃO
Iher, muita gente desvairada, em summa,
que pergunta a astúcia e a velhacaria. . .
h aonde, santo Deus ? (ainda bem, ao
menos issol) é na cadeia que vão encon-
trar a pessoa que anciosamente pergun-
tam — a cadeia de Beja, em que um vir-
tuoso, não sei d'onde, exercia a sua hon-
rada proíissão á\idirÍ7iho e curandeiro
milai;;roso! E faliam provavelmente com
o carcereiro, ou pessoa de família do ho-
mem de virtude^ porque, apresentados a
este (o' maravilha !i este sabe tudo: Ex-
plica ao doente que uma chávena de café
o poz naquelle estado miserando; que
foi bebida em uma taverna na companhia
de mais dois amigos, que ficaram indem-
nes; que três mulheres é que prepararam
o mistiforio, a bebida infernal; que as
três vestem de preto, são altas e delga-
das, não têm relações de qualidade al-
guma com a sua familia, e que tudo fi-
zeram por inveja. E, antes de receitar,
falia do passado do doente : explica mi-
nudencias de namoros, as rasões que o
levaram ao casamento, as suas felicida-
des e os seus desastres, etc. Em tudo
acertando á justa com o passado do in-
feliz.
A receita dictou-a assim :
— «Vão para casa. Comprem um gallo
preto, matem-o e tirem-lhe as enxúndias.
Depois escolham uma quarta de trigo, a
dedo. Em uma sexta feira, á meia noite,
ponham as enxúndias e mais três ovos
no lar do lume. Passem a despir o doen-
te, mt em péllo; o fato defumem-o com
alfazema, também no lar do lume. Es-
perem até á uma hora da noite : ahi se
apresentarão três mulheres de preto, que
nunca ainda lhe perguntaram a casa ; es-
tacarão á porta. .
N este momento a mulher do doente
as mandará entrar e immediatamente
lhes entregará a quarta de trigo, dizendo:
— Aqui teem. — As três perguntarão : —
Para que é isto? — Ao que, replicará a
mulher: — Levem lá. . . E, rápido, todos
os homens e mulheres presentes, muni-
dos de paus, vaçouras, etc, se atirarão ás
três a desancal-as furiosamente.
E a cura é immediata, a ponto de, até
o próprio doente, ainda ml em pêllo^ po-
der molhar as agulhas!»
E o virtuoso concluiu prudentemente :
«Adverte-se que, não se dando a compa-
rência das três malvadas na primeira
sexta feira da experiência, esta se deverá
repetir sete sextas feiras a fio, compran-
do de cada vez novo gallo preto, e fa-
zendo as demais coisas atraz menciona-
das.»
Agora o melhor da festa:
Estas experiências não se poderam rea-
lisar porque o doido teve o bom senso de
pôr em duvida a sua efficacia e, implici-
tamente, a seriedade de quem lh'as re-
ceitou; por maiores esforços que se em-
pregassem, não houve quem o fizesse
despir. . .
Grande alarido! o mulherio bramava!
A visinhança intervinha, contrariada ou
interessada, conforme o grau de critério
de cada um. Balbúrdia infernal, indescri-
ptivel ! Gente sensata: — que deixassem
o homem, que tivessem dó do homem!
E os crendeiros, que eram em maior nu-
mero, ás unhas com o pobre diabo, ten-
tando arrancar-lhe o fato a pedaços, já
que o singular pudor do idiota o não dei-
xava vir d'ouira maneira! Não o mata-
ram, mas deixaram-o bem moido! Ber-
ravam: — Bruto que não se quer curar . . .
Ha-de morrer para ahi como um cão!.E
a fazerem-se despezas; e a perderem-se
noites; e tanta gente a incommodar-se. . .
Para quê? para quê? E havia lagrimas
na vóz, e havia lagrimas nos olhos. . .
No conceito d'aquella gente (e ainda
era preciso que tal gente tivesse conceito)
até o poeta dizia, se resuscitasse: «.E a
nada o bruto se moveu li*
Ha dias, disse eu a alguém que pas-
sava: «Teu tio está melhor?» A que o
interrogado respondeu: «Isso sim!...
'tá qáes na mesma : Antão., elle não qri\
fazer a mesinha ...»
(Vidigueira)
Pedro COVAS.
A TRAOIÇAO
107
THERAPKUTICA MYSTICA
II
Benzedura contra a erysipéla {*)
A benzedeira, tendo na mão direita
um rosário, collocase em frente do doen-
te, e, benzendo com a própria cruz do
rosário a região erysipelada, \ai profe-
rindo a seguinte oração :
— «Em louvor de Deus e da Virgem
Maria. A mão de Deus vá adiante, que
a minha não tem valia. S. Sezinando
pelo mundo andou — com a Virgem
Nossa Senhora se encontrou — e a Se-
nhora lhe perguntou:»
— «Donde vens Sezinando?»
— a Eu, Senhora, venho de Roma.»
— «Que viste lá ?»
— «Erysipéla.»
— «Volta para traz e corta-a : erysi-
péla branca, erysipéla branquinha — ery-
sipéla vermelha, erysipéla vermelhinha
— erysipéla empolar — ei\"sipéla negral.
Todo o mal de erysipéla, eu te corto e
te deito para o mar — para onde não oi-
ças gallo nem gallinha cantar — nem mãe
por seu lílho bradar.»
F^sta oração deve proferií-se durante
cinco sessões, e em cada sessão cinco ve-
zes. No fim da quinta vez, e em cada
sessão, diz-se : « Alleluia, alleluia, alleluia.
Gloria Patri, et Filio, et Spiritui Sancto.
Sicut erat in principio, et nunc, et sem-
per, et in saecula saeculorum. Amen. E
em seguida reza-se o Padre Nosso e a
Ave Maria.
Toda a reza precedente é offerecida ás
cinco chagas de Nosso Senhor Jesus
Christo. Eis o offerecimento :
«Em louvor das cinco chagas de Nosso
Senhor Jesus Christo e sua Mãe Maria
jSantissima. Todos os inales que nestes
logares estão — seja servido de lhe dar
saúde e o pôr são.»
(*) O povo pronuncia : êresipela.
Variante da benzedura anterior
«Em louvor de Deus e da \'irgem Ma
ria. A mão de Deus vá adiante, que a
minha não tem valia.»
«Nossa Senhora pelo mundo andííu —
com a vcrmfUia se encontrou — e a Se-
nhora lhe perguntou:»
— «Que vevínclha é esta?p
— « Eu não sou vermelha, sou rosa cor-
ça. Como a carne e mino o osso.»
— «E's rosa corcenosa. (>omes a carne,
minas o osso. Eu te corto: cabeça, rabo
e pescoço, corpo todo. Para as bandas
do mar te deitarei.»
«Em louvor da Virgem Maria. Padre
Nosso, Ave Maria.
Esta oração, depois de proferida as
cinco vezes do estilo, faz-se seguir das
mesmas palavras que citámos no caso
antecedente, e é ofVerecida da mesma
forma ás cinco chagas de Nosso Senh<^r
Jesus Christo. E, para que as benzedu-
ras surtam eíVeito, devem egualmente ser
executadas durante cinco dias.
(Brinches).
Ladislau piçarra.
AS TABOAS DE MOYSÉS
A interessante reza tradicional subor-
dinada a este titulo, é a de maior e mais
profunda devoção para a gente do povo,
que a diz, com a fé cega dos crentes, em
todos os transes dolorosos da sua vida,
em todos os momentos de anciedade, af-
tiicção e angustia. Rezam se as Taboas
de Moysés quando a tempestade se de-
sencadeia e o trovão ribomba nos espa-
ços ameaçador; quando as chuvas torren-
ciaes arrasam os campos, nas invernias,
ou quando as largas estiagens, resequin-
do o arvoredo e as searas ainda tenras,
abysmam toda a população agricola na
lúgubre perspectiva da fome e da mise-
108
A TRADIÇÃO
ria próximas. Se algum ente querido em-
prehende larga viagem arriscada, reza-se
devotamente as Taboas de Mo^^sés : e
reza-se ainda a mesma oração quando o
mancebo recenseado para o serviço mili-
tar vac tirar a sorte, a qual, sendo-lhe
adversa, obrigal-o ha a pagar o tão odia-
do tributo de sangue.
Na sua grande fé ingénua e rude, o
povo cré que, se as Taboas são ditas
correntemente, sem nenhum erro ou ti-
tubeação, o mal que se teme é de certo
conjurado; o contrario, porém, é de fu-
nestíssimo presagio.
O manuscripto das Taboas, introdu-
zido a occultas no forro do casaco de
qualquer pessoa, torna essa pessoa — se-
gundo a crença — inattingivel a toda a es-
pécie de infelicidade ou revez.
Eis a oração, que rielmente recolhemos
da tradição oral :
— Christovão, queres ser salvo ?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me a primeira.
— A primeira é a Casa Santa de Jeru-
salém, onde Jesus Christo morreu por
nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo ?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as duas.
— As duas são as Taboas de Moysés,
onde Jesus Christo pôz os seus divinos
pés. E a primeira, a Casa Santa de
Jerusalém, onde Jesus Christo morreu por
nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo ?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
nae as três.
— As três são as Três Marias. As duas
são as Taboas de Moysés, onde Jesus
Christo pôz os seus divinos pés. E a pri-
meira, a Casa Santa de Jerusalém, onde
Jesus Christo morreu por nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo ?
— Pela g^-aça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as quatro.
— As quatro são os Quatro Evangelis-
tas. As três são as três Marias. As duas
são as Taboas de Moysés, onde Jesus
Christo pôz os seus divinos pés. E a pri-
meira, a Casa Santa de Jerusalém, onde
Jesus Christo morreu por nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as cinco.
— As cinco são as Cinco Chagas de
Nosso Senhor Jesus Christo. As quatro
são os Quatro Evangelistas. As três são
as Três Marias. As duas são as Taboas
de Moysés, onde Jesus Christo pôz os
seus divinos pés. E a primeira, a Casa
Santa de Jerusalém, onde Jesus Christo
morreu por nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo ?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as seis.
— As seis são os Seis Cirios Bentos
com que se alumia o Santíssimo Sacra-
mento. As cinco são as Cinco Chagas de
Nosso Senhor Jesus Christo. As quatro
são os Quatro Evangelistas. As três são
as Três Marias. As duas são as Taboas
de Moysés, onde Jesus Christo pôz os
seus divinos pés. E a primeira, a Casa
Santa de Jerusalém, onde Jesus Christo
morreu por nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as sete.
— As sete são os Sete Passos. As seis
são os Seis Cirios Bentos com que se
alumia o Santíssimo Sacramento. As
cinco são as Cinco Chagas de Nosso Se-
nhor Jesus Christo. As quatro são os
Quatro Evangelistas. As três são as Três
Marias. As duas são as Taboas de Moy-
A TRADIÇÃO
109
sés, onde Jesus Christo pôz os seus divi-
nos pés. K a primeira, a Casa Santa de
Jerusalém, onde Jesus (Christo morreu
por nós. Amen.
— (^hristovão, queres ser salvo:
— l^ela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze pala\ras que sabes, di/e-
me as oito.
— As oito são os Oito Coros de Anjos.
As sete são os Sete Passos, As seis são
os Seis Cirios lientos com que se alumia
o Santissimo Saciamento. As cinco são
as (jnco C>hagas de Nosso Senhor Jesus
Christo. As quatro são os Quatro Kvan-
gelistas. As três são as Três Marias. As
duas são as Taboas de Moysés, onde Je-
sus Christo pôz os seus divinos pés. K a
primeira, a Casa Santa de Jerusalém,
onde Jesus Christo morreu por nos. Amen.
— Christovão, queres ser salvo?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as nove.
— As nove são os Nove Mezes em que
Nossa Senhora trouxe o seu bemdito fi-
lho no seu divino ventre. As oito são os
Oito Coros de Anjos. As sete são os Sete
Passos. As seis são os Seis Cirios Ben-
tos com que se alumia o Santissimo Sa-
cramento. As cinco são as Cinco Chagas
de Nosso Senhor Jesus Christo. As qua-
tro são os Quatro P^vangelistas. As três
são as Três Marias. As duas são as Ta-
boas de Moysés, onde Jesus Christo pôz
os seus divinos pés. E a primeira, a Casa
Santa de Jerusalém, onde Jesus Christo
morreu por nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as dez.
— As dez são os Dez Mandamentos.
As nove são os Nove Mezes em que
Nossa Senhora trouxe o seu bemdito fi-
lho no seu divino ventre. As cito são os
Oito Coros de Anjos. As sete são os
Sete Passos. As seis são os Seis Cirios
Bentos com que se alumia o Santissimo
Sacramento. As cinco são as (jnco (cha-
gas de Nosso Senhor Jesus (Christo. As
quatro são os Quatro Evangelistas. As
três são as Frcs Marias. As duas são as
Taboas de Moysés, onde Jesus Christo
pôz os seus divinos pés. K a primeira, a
Casa Santa de Jerusalém, onde Jesus
(Jiristo morreu por nos. Amen.
— Christovão, queres ser salvo?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as onze.
— As onze são as Onze .Mil \ irgens.
As dez são os Dez .Mandamentos. As no-
ve são os Nove Mezes em que Nossa Se-
nhora trouxe o seu bemdito li lho no seu
divino ventre. As oito são os Oito Coros
de Anjos. As sete são os Sete Passos.
As seis são os Seis Cirios Bentos com que
se alumia o Santissimo Sacramento. As
cinco são as Cinco Chagas de Nosso Se-
nhor Jesus Christo. As quatro são os
Quatro Evangelistas. As três são as Três
Marias. As duas são as Taboas de Moy-
sés, onde Jesus Christo pôz os seus divi-
nos pés. K a primeira, a Casa Santa de
Jerusalém, onde Jesus Christo morreu
por nós, Amen.
— Christovão, queres ser salvo?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as doze.
— As doze são os Doze Apóstolos. As
onze são as Onze Mil Virgens. As dez
são os Dez Mandamentos. As nove são
os Nove Mezes em que Nossa Senhora
trouxe o seu bemdito filho no seu divino
ventre. As oito são os Oito Coros de An-
jos. As sete são os Sete Passos. As seis
são os Seis Cirios Bentos com que se
alumia o Santissimo Sacramento. As
cinco são as Cinco Chagas de Nosso Se-
nhor Jesus Christo. As quatro são os
Quatro Evangelistas. As três são as Três
Marias. As duas são as Taboas de Moy
sés, onde Jesus Christo pôz os seus divi-
nos pés. E a primeira, a Casa Santa de
110
A TRADIÇÃO
Jerusalém, onde Jesus Christo morreu
por nos. Amen.
— Christovão, queres ser salvo?
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as treze.
— As treze são os Treze Raios do Sói
com que arrebenta o Diabo maior. As
doze são os Doze Apóstolos. As onze são
as Onze Mil Virgens. As dez são os Dez
Mandamentos. As nove são os Nove
Mezes em que Nossa Senhora trouxe o
seu bemdito filho no seu divino ventre.
As oito são os Oito Coros de Anjos. As
sete são os Sete Passos. As seis são os
Seis Cirios Bentos com que se alumia o
Santissimo Sacramento. As cinco são
as Cinco Chagas de Nosso Senhor Je-
sus Christo. As quatro são os Quatro
Evangelistas. As três são as Três Marias
As duas são as Taboas de Moysés, onde
Jesus Christo pôz os seus divinos pés. E a
primeira, a Casa Santa de Jerusalém, on-
de Jesus Christo morreu por nós. Amen.
— Christovão, queres ser salvo."
— Pela graça de Deus, Senhor, sim,
quero.
— Das treze palavras que sabes, dize-
me as treze.
— As treze são os Treze Raios da
Lua. Arrebenta, Diabo! que a minh'alma
não é tua. As doze são os Doze Após-
tolos. As onze são as Onze mil Virgens.
As dez são os Dez Mandamentos. As
nove são os Nove Mezes em que Nossa
Senhora trouxe o seu bemdito filho no
seu divino ventre. As oito são os Oito
Coros de Anjos. As sete são os Sete Pas-
sos. As seis são os Seis Cirios Bentos
com que se alumia o Santissimo Sacra-
mento. As cinco são as Cinco Chagas de
Nosso Senhor Jesus Christo. As quatro
são os Quatro Evangelistas. As três são
as Três Marias. As duas são as Taboas
de Moysés, onde Jesus Christo pôz os seus
divinos pés. E a primeira, a Casa Santa
de Jerusalém, onde Jesus Christo morreu
por nós. Amen.
M. Dias NUNES.
O TOURO DE S. MARCOS
Na egreja do Carmo ou da Senhora
das Reliquias, situada nos subúrbios da
encantadora villa da Vidigueira, existe
uma imagem de S. Marcos, representan-
do este santo no acto de receber a mis-
são d'evangplisar os povos.
A egreja acaba agora mesmo de ser
reconstruída ; mas no seu antigo altar-
mór, incrustada num dos pilares doura-
dos, lá estava a referida imagem tendo
aos pés um touro. A figura que repre-
senta este animal, é uma obra d'arte, ma-
gnificamente cinzelada, sobresaindo, em
bello relevo, das inscrustações do dito
pilar.
A crença popular em volta de S. Mar-
cos, desenvolveu-se extraordinariamente,
a ponto de considerarem o mencionado
touro como sendo capaz d'amansar as
creanças!
Vejamos como procediam as mães in-
génuas destes sitios, para que os seus
filhos fossem mansinhos.
Dirigiam-se as mulherzinhas, geral-
mente camponias, á egreja das Reliquias,
de preferencia aos domingos e dias san-
tificados. Chegadas á egreja, offereciam
algumas orações á imagem da Senhora
das Reliquias, e em seguida iam apresen-
tar a creança a S. Marcos, repetindo
n'essa occasião as mesmas rezas.
Feita a apresentação e proferida a reza,
batiam com a testa da creança na fronte
do touro. Tal é a curiosa pratica, de que
muitas vezes fui testemunha ocular.
O piedoso exercício, acima descripto,
parece que nem sempre era feito com a
devida moderação, pois corre até a ver-
são de que uma pobre camponeza de
Sant'Anna — pittoresca aldeia de Portel
— vibrou uma pancada com tanta violên-
cia, que a infeliz creança lhe falleceu
nos braços.
Os lavradores mantinham outr'ora
uma grande devoção pelo Senhor S.
A TRADIÇÃO
111
Marcos; e a prova temo-la nas esplen-
didas festas que ellesrealisavamem honra
do mesmo Santo, as quaes ficaram assi-
gnaladas na tradição popular. A cxtinc-
ção destas festas data, segundo uns, dos
princípios do século WIIl, ou dos lins
deste século, segundo outros.
Teixeira dAragão corrobora este facto
num bello estudo sobre a Vidigueira,
saido a lume em 1880, por occasião do
tri-centenario de (Camões.
Não devemos esquecer, que é da egre-
ja da Senhora das Keliquias que foram
trasladados os ossos de \'asco da (jama
— o immortal descobridor da índia —
para o sumptuoso convento de Santa Ma-
ria de Belém.
Na antiga capellamór da egreja do
Carmo, do lado da epistola, via-se uma
lapide commemorativa da trasladação.
FAZENDA Júnior.
CRENÇAS & SUPERSTIÇÕES
Bmxas e bruxedos
3 — A pratica que vamos descrever,
destinada também a desembruxar as
creanças, constitue, como o leitor verá,
uma curiosa variante das duas anteriores,
publicadas em o n.° 5 desta revista. Pas-
semos, pois, á sua descrição.
Um Manuel e três Marias peneiram
uma porção de farinha de centeio, tendo
as quatro pessoas o cuidado de pegarem
na peneira com a mão esquerda. Penei-
rada a farinha, as três Marias amassam-
na com agua, tirada também com a mão
esquerda de três fontes ou poços.
A agua é ministrada por Manuel, que
a vai deitando na massa á medida que é
precisa. Depois damassada a farinha,
tende-se e faz-se com ella uma pepia.
Tanto o amassar como o tender, deve
egualmente ser feito com a mão esquerda.
Preparada assim a pepia, esperam o
cantar do gallo á meia noite, c a essa
hora dirigem-se a uma encruzilhada para
alli passarem a creança atravez da cita-
da coroa de massa, e usando o mesmo
processo que expuzcmos a propósito da
pratica 2.*. Logo que esta cerimonia fm-
da, esmigalham a pepia e espalham-na
pelo chão, no próprio sitio da encruzi-
lhada. K em seguida voltam todos os cir-
cumstantes para casa, na intima convic-
ção de que libertaram a creança da ac-
ção maléfica das bruxas.
O preceito aqui estabelecido de ser a
mão esquerda que deve realisar todo o
trabalho, liga-se naturalmente ao pensa-
mento popular de que a mão direita é
de Deus, ao passo que a esquerda per-
tence ao Diabo.
(Brinches)
FILOMATICO.
CONTOS POPULARES ALEMTEJANOS
VIII
\^ zorra e a cegonha
D'uma occasião, uma zorra, ouvindo
dizer que as cegonhas eram muito esper-
tas, resolveu enganar a primeira que en-
contrasse. A zorra marchou, e, ao passar
por um valle, viu que estava ali uma ce-
gonha ; dirigiu-se para ella e disse-lhe :
— «Salve-a Deus, comadre cegonha!
mesmo á sua busca é que eu andava. . . b
— «Então para quê?i — perguntou a
cegonha.
— «Porque tal dia faço annos, e quero
que vocemecè assista ao jantar.»
— «Sim senhora, comadre zorra, pôde
ficar descançada que não falto.»
— «Pois bem, I — disse a zorra — «nesse
caso, desde já lhe agradeço, e não se es-
queça.»
No dia combinado, a cegonha foi a casa
da zorra, e quando lá chegou, tinha a
zorra acabado de tirar umas papas do
lume, e estava á espera que arrefecessem,
112
A TRADIÇÃO
para se não escaldar. Logo que as pa-
f)as arrefeceram, deitou-as a zorra numa
age, e disse á cegonha: «Comadre, ve-
nha jã para a mesa, que isto está que nem
Puzeramse ambas a comer as papas,
mas como a cegonha só depennicava,
pouco comia ; ao passo que a zorra, com
a Hngua, raspava tudo.
A cegonha, vendo que tinha sido en-
ganada pela zorra, jurou vingar-se, e para
isso, disse lhe :
— «O comadre! dhoje a tantos dias,
também eu faço annos, e não a dispenso
de modo algum, porque já comprei um
borrego para o jantar desse dia».
A zorra, que não sabia já o tempo em
que tinha comido borreguinho, hcou doi-
da de contente, e respondeu logo que não
faltaria.
Effectivamente, a zorra não faltou no
dia marcado, mas a cegonha é que, em
vez de deitar a carne num prato, fe-la
em salada e metteu-a dentio duma amen-
tolia (almotolia). Succedeu então, que a
cegonha com o bico comeu a carne toda,
e a zorra, não podendo metter a lingua
dentro da ameníolia^ ficou em jejum.
Quando acabou o jantar, armou-se
uma trovoada, e a zorra perguntou á ce-
gonha :
— «C comadre cegonha! então que
musica é esta ? »
Respondeu-lhe a cegonha :
— "Isto são as vôdas dei cielo. Agora
vou eu para lá, e se você quer vir com-
migo, eu a levo ás minhas costas. Se
você visse, comadre, aquillo ali ha de
tudo, e com fartura I»
A zorra, como tinha ficado mal de
jantar, ouvindo dizer que havia de tudo
com fartura, acceitou o convite da cego-
nha. Esta levantou vôo, e quando a zorra
se viu lá por essas alturas, começou a
temer uma grande queda, e dizia de vez
em quando: «Se desta escapo como es-
pero, não torno ás vôdas dd eido.-»
(*) Ginja-marmello — coisa excellente.
A cegonha, assim que viu que ia em
par dum rochedo, disse á zorra :
— «O' comadre! chegue-se lá mais
aqui para este lado, que já vou estando
cançada desse.» A pobre da zorra, não
desconfiando, foi mudar de posição \ ao
mesmo tempo, a cegonha escapou-se-lhe
debaixo e deixou-a cair. A zorra, já na
queda, reparando no rochedo, diz-lhe:
— «Foge rocha, que te parto!»
(Da tradição oral)
(Brinches).
António ALEXANDRINO.
PEOVEEBIOS E DICTOS
(Continuação)
XLVI
Se queres ver mal a Portugal, dá-lhe
três cheias antes do Natal.
XLVII
Janeiro, geadeiro, afogou a mãe no ri-
beiro.
XLVIII
Em Fevereiro, febras de frio e não de
linho.
XLIX
Março, marçagão, pela manhã focinho
de cão e á tarde um bom borregao.
Em Março começando a dar ao rabo,
— não fica ovelha em oiteiro, nem bor-
rego em descampado, nem pastor em-
pellicado.
LI
Não ha lenha como o azinho, nem car-
ne como o toucinho.
(Da tradição oral) (Continua)
(Serpa)
CASTOR.
Anuo I — N.«S
SEBFA. ÁgOBto de 1899
S<^fio I
Editor-adminisiruJor, Jate Jtronymn Ja Cotia ttr.ivo Je Segreirot, Ruji Larga, j e 4 — SKRPA
Typourapliia dr AJolpho d« Slenãoncã, Kua «lo Corpo Sanio, 4Ó e 48 — LISBOA
A TRADIÇÃO
■>
REVISTA MENSAL DETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
"Úx^^c-XOK^^. — LADISL AU PIÇARRA e M. DIAS NUNES
O elemento árabe na linguagem dos pastores
alemtejanos
(conliiuiado de pa^. loij
O vestuário dos pastores (*) é egual
ao dos outros aleintcjanos do campo;
mas tendo algumas peças especiaes, que
indicaremos brevemente com os seus no-
mes.
Pellico é uma grande jaqueta de pelles,
que os pastores trazem vestida nos dias
mais frios; ao hombro logo que o tempo
aquece. Do mesmo modo que muitos ou-
tros objectos do seu uso, o pellico é
todo feito por elles. O pastor dá o pre-
paro ás pelles de modo que fiquem com
a lan intacta, soraiido-as com repetidas
fricções da mão e das unhas, e estican-
do-as em todos os sentidos, até ficarem
macias e com o casco bem branco. Cor-
ta-as depois com a habilidade dum ver-
dadeiro alfayate ; e cose as diversas pe-
ças com corriol, um fio resistente, for-
mado de finissimas tiras do mesmo coiro
de ovelha ou borrego, cortadas e torci-
das em fresco. E certo, que algumas
d'estas jaquetas, feitas de pelles pretas
por íóra e forradas de pelles brancas,
chegam a ser elegantes. O pellico é sem
duvida alguma a peça mais tj^pica do ves-
tuário, por isso que só os pastores o
(*) Veja-se a estampa publicada na Tradição^
pag. 5i.
usam. A palavra é também hcspanhola
e de origem evidentíssima.
Çamarro é divei so do pellico, formado
de duas pelles, uma maior nas costas,
outra no peito, e sem mangas. Não é de
modo algum especial aos pastores, e ou-
tros ganadeiros e homens de trabalho
se vêem frequentemente no inverno com
çamarros. Objecto e nome são antigos;
e já o nosso Gil Vicente menciona:
Os çamarros dos vaqueiros.
Em hespanhol ha a mesma palavra,
tendo hoje a forma :iamtirro; e Covarru-
bias dá-lhe diversas etymologias, algu-
mas do hebraico, c todas mais ou menos
duvidosas. É notável, que as samarras
ecciesiasticas, asque se vestiam aos con-
demnados da Inquisição, tenham alem da
similhança de nome, uma certa similhan-
ça de forma com os çamarros dos gana-
deiros. Deixando estas questões, que nos
levavam longe, o que parece seguro c que
a palavra nos não veiu por intermédio dos
árabes.
ÇV//ot'S, ou melhor çafões <*) são cons-
tantemente usados pelos pastores, como,
de resto, por quasi todos os trabalhado-
res do campo. Os dos pastores são em
geral de pelles de ovelha com a lan, e
também feitos por elles; mas ás vezes
de verão são de pelle de cabra ou chi-
bato. A palavra çafão (usa-se sempre no
plural) em hespanhol çahon e :[ahun^ é de
(*)A orthographia çafões é mais chegada á ori-
gem provável, e também á pronuncia alemtejana.
lU
A TRADIÇÃO
origem árabe, como parece também ser
da mesma origem o objecto que designa.
Govarrubias diz, que é nome arábico, si-
gnificando calça ancha csparcida. Yan-
guas explica melhor, que eram calções
abertos de ambos os lados, não passan-
do da barriga da perna, e feitos de pelle
de carneiro ou de outras pelles. E ac-
crescenia. que a palavia çalioii^ com o
seu correspondente arábico, vem já no Vo-
cabulistade Pedrod'Alcalá(i ■o5);eaquel-
le nome arábico se encontra também em
um documento árabe de Almeria do XV
século, onde se \è: picles para los ^aliones
y \apatos (tr. de Yanguas).
Colmos são polainas grosseiras de coi-
ro, que poucos pastores, dos mais velhos,
ainda usam; o maior numero traz hoje
botas. A palavra é de origem bem evi-
dente e não carece de explicação.
Referindo-nos ainda á estampa, an-
tes citada, notamos ali mais dois obje-
ctos t3^picos: a funda a tiracollo, com a
qual o pastor lança pedras a grande dis-
tancia para voltar o gado: o cajado de
forma muito especial, que lhe serve para
em feiras, apartações, tosquias, segurar
pelo pescoço ovelhas e carneiros.
O pastor alemtejano é um nómada.
E' claro que em distancias relativamente
muito curtas, quando o comparamos com
os verdadeiros nómadas da Africa ou da
Ásia; mas emfim é um nómada. Como
tal necessita levar comsigo as provisões
de alguns dias, e os poucos mas indis-
pensáveis objectos de que diariamente se
serve. Tudo isto é transportado pelos
burros, mais habitualmente burras, do re-
banho. São pittorescas as duas ou três
burras década rebanho, com a sua carga
complicada, sem cabeçada, chocalho ao
pescoço, pastando tranquillamente atraz
das ovelhas. Tão pouco téem mudado no
correr d'estes últimos trez ou quatro sé-
culos, que nunca as vejo sem me lembrar
d aquclle extraordinário poeta que foi o
Gil Vicente. A burra que elle descreveu
pertencia a outra provincia e a uma ma-
nada de gado mesclado como se encontram
mais para o norte; mas a sua descripção
e tão puramente portugueza, tão inten-
samente rústica, que não resisto á tenta-
ção de a transcrever.
Entra o pastor André cm scena, e diz:
Eu perdi, se s';inoutece,
A a^na ruça de meu pae,
O ra^to por aqui vae.
Mas a burra nao parece,
Nem sei em que valle cai,
Leva os tarros e apeiros,
O çurrão co'os chocalhos,
Os çamarros dos vaqueiros,
Dois sacos de pães inteiroí,
Porros, cebolas e alhos.
Leva as peas da boiada,
As carrancas dos rafeiros,
E foi-se a pascer folhada,
Porque besta despeada
Não pasce nos sovereiros.
Ahi fica a burra do rebanho evocada
pela viva imaginação do poeta que mais
e melhor sentiu o povo do campo portu-
guez. Mas necessitamos descrevel-a pro-
saicamente sob o nosso ponto de vista
muito especial. O aparelho da burra é
simples, e consiste apenas n'uma alma-
írixa^ feita pelo próprio pastor com as
pelles das ovelhas mortas. Estas pelles
seguram- se por uma silha grosseiía de
corda, (*) a qual de um e outro lado se
vem prender a uma espécie de arrocho
muito curvo, que mantém as pelles no
seu logar.
oAlmairixa é palavra árabe, como a sua
forma o está dizendo bem claramente;
mas ha duvidas sobre o vocábulo d'onde
procede. Sousa áQn\o\i-Aáe.almatraxa o.
do verbo taraxa\ mas o sentido levanta
algumas difficuldades. Dozy julga-a uma
contiacção áz almadraqucxa^ que no an-
tigo portuguez teve a accepção de traves-
seiro largo (cf. St.* Rosa). Em todo o
caso, almatrixa passou a significar a
(*) Ou antes de baraço. No Alemtejo chamam
cordas, as cordas grandes de linho de carregar
carros e carretas; todas as outras cordas, princi-
palmente sendo de esparto, são baraços (do ára-
be maras). Dentro da designação geral baraço ha
depois aljirme e outras variedades.
A TRADIÇÃO
115
116
A TRADIÇÃO
cobertura ou coxim, que se lançava so-
bre o lombo das bestas; c é exactamente
o sentido que lhe dão os nossos pastores.
Sobre as almatrixas das burras se car-
rega o avio da semana, que geralmente
ao sabbado um dos pastores vem buscar
a casa do amo: o pão de trigo para os
homens em saccos — «doissaccos de pães
inteirosx, como dizia o nosso Ciil ^'icen-
te: o pão de cevada para os cães: o azei-
te nas clhircs, cornos de boi de grandes
dimensões, como geralmente são os da
raça alemtejana: o sal no sau'Í7'o^ feito
da parte inferior de um corno de boi: vi-
nagre e outros condimentos «cebolas e
alhos», como tamb^^m dizia Gil Vicente.
Ali andam egualmente os poucos mas
indispensáveis utensílios do pastor. Os
mais miúdos, colheres de pau e de chi-
fre de carneiro, canivetes e mais ferra-
menta, andam dentro do çurrão ou sm -
rão^ em hespanhol çurron^ a clássica bol-
sa de pelles, que todos os diccionarios e
todos os escriptores bucólicos mencionam.
Na sua bainha de pelle andp o cutello^
com que nos chapa rraes o pastor corta a
lenha para cozinhar e para os grandes
lumes da noite. Nem pôde esquecer a
caldeira de arame, onde fazem as migas
de azeite, e ás vezes na primavera as
migas canhas (brancas) com leite para o
almoço; e á noite a sopa de azeite e ce-
bola, chamada calatroia^ ou de verão a
sopa fria, a que dão o nome de vinagra-
da — o caspacho dos hespanhoes.
Sobre a burra anda também de dia o
harqitino^ um dos objectos mais caracte-
rísticos da bagagem. O barquino é uma
espécie de grande borracha, ou antes de
odre para agua, teito também pelo pas-
tor. A cabra ou chibato, cuja pelle é des-
tinada a fazer um barquino, é esfolada
de um modo especial, sem incisão ao
longo do ventre e peito, a coiro cerra-
do^ (*) como dizem os pastores e cabrei-
(*) Deve escrever-se cerrado e não serrado^
porque evidentemente significa não aberto. O fim
d'esta operação é diminuir a extensão das cos-
turas, que depois tem de se fazer.
ros. O coiro é depois salgado pela parte
interna; e quando tem tomado bem o sal,
atam fortemente as aberturas das pernas
e do pescoço, e dcitam-lhe dentro agua
com entrecasca de sobro ou azinho. Anda
d'este modo muitos dias curtindo. E en-
tão vasado, enxuto, e cosido com corriol a
costuras dobradas. Ao logar do pescoço
adaptam um bocal largo de madciía, que
pode servir de copo, tendo no centro um
orifício, tapado comum espicho. Fica as-
sim prompio, e, depois de servir alguns
dias ou semanas, faz boa agua e bastan-
te fresca, porque o coiro é um tanto per-
meável e está sempre molhado pela pai'-
te de fora. Para beber, exercese uma
leve pressão sobre o coiro, e a agua af-
íiue ao bocal; mas é precisa uma certa
aprendisagem para o saber fazer, e já
me tem succedido molhar-me todo ao
querer beber por um barquino de pastor.
Porque lhe chamam barquino ? A pa-
lavra falta em todos os nossos dicciona-
rios, com excepção do «Novo Dicciona-
rio da Lingua Portugueza», onde em
duvida se deriva de barco. E' possível
que assim seja, comquanto a similhança
com um barco seja muito remota. Em to-
do o caso, e apesar de me não parecer esta
origem provável, eu não saberei propor
melhor derivação. O nome, quanto pos-
so julgar, é local e puramente portuguez.
Em Hespanha parece que incluem uma
coisa similhante sob a designação mais
geral de pellejo. Pelo menos na Califór-
nia, onde se conservam muitos hábitos e
nomes hespanhoes, pellejo tem este senti-
do. Em um dos seus contos, o bem conhe-
cido escriptor americano, Bret Harte, tem
a seguinte phrase: . . .a lialf drained
pellejo, or goatskin rvater-bag. E' exacta-
mente o nosso barquino.
Uma coisa a notar, é que todos estes
objectos, com excepção do cutello, da
caldeira e de poucos mais, são fabricados
pelo próprio pastor, e fabricados com as
matérias primas mais simples e mais di-
rectamente á sua disposição. Com as pel-
les do seu gado o pastor faz almatrixas,
çafóes, pellicos., çamarros, e corriol ou o
A TRADIÇÃO
117
fio com que cose. E com algumas pelles
de cabras ou chibos, que facilmente ob-
tém por troca dos cabreiros da serra, faz
surrõcs e hanjuinos. Os cornos de algu-
ma rez, que se mala nas boiadas do amo,
fornecem-ihe clhircs e saleiros^ emquan-
to nos cornos dos carneiros, previamente
amollecidos a fogo brando, elle talha par-
te das suas colheres, Elle próprio colhe
nos sovereiraes a cortiça, em que recor-
ta as tampas das cliares e saleiros. E el-
le próprio vae buscar aos barrancos ou á
serra a madeira de freixo, de zimbro, ou
de raiz de urze, em que talha os bocaes
dos barquinos, as colheres, os espichos
dos barquinos e das chaves, os seus ca-
chimbos, e os cabos da ferramenta com
que trabalha. Esta ferramenta é também
muito primitiva, e consiste em canivetes
de folha direita, e outros de folha curva,
chamados leí^ras. São feitos das navalhas
de barba, velhas e gastas, dos barbeiros
da aldeia ou villa mais próxima, obtidas
a troco de algum borreguito, dado pela
Allekiia. Os ferreiros da localidade dão
volta ás legras^ e o próprio pastor as fi-
xa em cabos de pau com ponteiras de
corno de cabra.
O pastor exerce assim uma serie de
pequenas industrias extremamente inte-
ressantes, nas quaes ha mesmo uma certa
manifestação de Arte, porque as pegas das
colheres, os espichos dos barquinos, os
cabos da ferramenta, são ornados, lavra-
dos, arrendados em complicadas escul-
pturas com desenhos muito originaes. In-
dustria e arte um tanto selvagens, nasci-
das do isolamento, transmittidas por tra-
dição de pastor a pastor, não é fácil sa-
ber ha quantos annos, ou ha quantos sé-
culos.
(Continua)
Conde de FICALHO.
A FESTA DE S MARCOS PRÓXIMO DE SERPA
(2& IDE3 A.EJR,ILl
Em 1758 disseram os priores das fre-
guezias de Serpa, respondendo aos inter-
rogatórios do P. Luiz Cardoso (*), o se-
guinte :
a No termo d'esta villa socede, e se pra-
tica um acto pio de devoção, que tem
algumas circunstancias de notável: Fes-
teja-se S. Marcos na hermida, que dice-
mos, sinco léguas da villa na Serra gran-
de, os irmãos do santo, todos os que tem
malhadas na dita sei'ra, e outras pessoas
na festa: sae o prior de S. Bento (fregue-
zia da Aldeã Nova) da Igreja de S. Alar-
cos ao campo paramentado com capa de
Asperges, e chama em nome de S. Mar-
cos hum tourf) bravo, que a gente da fes-
ta traz entre si a pouca distancia do dito
Prior, lançando-lhe agua benta, e o touro
caminha para o sacerdote, ou obbedecen-
do ao preceito, como crê a bondade do
povo, ou por opprimido da gente que só
lhe deixa aquella coxia livre: vay seguin-
do-o, entra na Igreja, assiste a toda a
missa socegado e canta-se-lhe o Evange-
lho entre as pontas: no fim da missa sa-
he o touro entre a gente para o campo:
e sim he reppaiavel o socego de animal
tão bravo n'aquella acção.»
Esta festividade popular não é ou não
era privativa do termo de Serpa; existe
espalhada n'outros pontos do paiz, como
se pôde ver pelas menções que delia fa-
zem os srs. Th. Braga, O T^ovo Portu-
gue:{^ II, 278 e Leite de Vasconcellos,
Tradições Topulares., 178, e que resu-
mo aqui.
Assim em Alter-do-Chão, para livrar os
gados dos lobos e de moléstias, introduz-
se um novilho na egreja e terminada a
(*) As respostas dos parochos conservam-se
actualmente no Archivo Nacional. Pelo officio de
16 de setembro de 1898 foi prohibida a copia de
documentos no mesmo Archivo ; essa medida
manifestamente illegal, que apreciarei um dia
noutro logar, ainda não foi revogada.
118
A TRADIÇÃO
festividade entram numerosos bezerros,
aue são olVerecidos a S. Marcos. Em San-
domil (concelho de Cèa) é bento um boi
bravo. Finalmente em Arcozéllo-da-Ser-
ra (concelho de Gouveia) segundo Pinho
Leal, Vorttiij^al Aut!íj:;o c Moderno^ I, 238
A, havia o seguinte uso: «Na capella de
S. Marcos faziam antigamente uma festa
no seu dia, indo na procissão um touro
braroy que entrava na capella e ia até ao
altar mor assistir a festa, muito quieto.
Havia então feira.»
Se o santo tinha forca ou virtude para
domar os louros; muito maior teria, para
amansar os rapazes travessos. , Doesta ló-
gica especial resultou a crença de que
obrigando-os a dar umas mancadas (ter-
mo consagrado) na imagem do santo
evangelista, ou melhor no touro que o
acompanha sempre, elles melhorariam de
temperamento.
A S. Lucas, collega de S. Marcos na
confecção dos evangelhos, é que de di
reito pertence o uso do touro que o povo
lhe roubou. Como é sabido, o leão de S.
Marcos symbolisava o poderio de Vene
za, e é sempre n'esta companhia que o
representam as imagens orthodoxas. Em
Penha-d' Aguiar, (concelho de Figueira-de
Castello-Kodrigo) deitam as creanças por
espaço de uma hora na supposta sepul-
tura do santo para as amansar, limitan-
do-se em S. Marcos da Serra (Algarve)
e numa freguezia do concelho de Ton-
della ao simples contacto do touro e da
creança.
Parte d'estes costumes existem também
na provincia hespanhola de Cáceres, e
entre nós não os tenho encontrado ao
norte do Doiro.
O evangelista S. Marcos é festejado
em 25 de abril, e o Papa S. Marcos em
7 de outubro; este ultimo, porem, ao que
parece, passa indiftérente ao povo.
Entre os milagres de S. Marcos evan-
gelista conta-se o seguinte, que vem nas
Acta Sanctorum (Tom. Ill do mez de
abril, pag. 357j o qual aqui resumo.
Causava admiração aos habitantes da A-
pulia, na Itália meridional, não chover
havia cinco annos no paiz, até que lhes
foi revellado por certos religiosos, que is-
so era motivado por não observarem a
festa de S. Marcos. Reuniram se então
todos na igreja por occasião da mais pró-
xima festa do santo onde «impetraram»
com orações os benehcios de b. Marcos:
e logo choveu com mais abundância do
que havia esperança, cessando a esteri-
lidade da terra.
E' portanto crivei que d'aqui os lavra-
dores passassem também a implorar a
protecção do santo para os seus gados,
especialmente touros, juntando á petição
a scena espectaculosa da domação dum
animal pouco brando; no que foram auxi-
liados pelo clero indulgente com as su-
perstições por motivos especiaes.
Jorge Cardoso no Agiologio Lusitano^
Tom. II, pgg. 706 e 714, publicado em
1657, conta S. Marcos ter apparecido
montado n'um ginete, «trocando a penna
em lança, e o libro em adarga» n'um
combate que se travou em i385 perto de
Trancoso, entre portuguezes e castelha-
nos.
Km memoria d'este facto deixuu este
amigo dos portuguezes «esculpidas numa
viva lage, as ferraduras do brioso ginete
em que vinha».
Pelo que se vê, o facto histórico está
tão bem authenticado, como a aventura
succedida a D. Fuás Roupinho no sitio
da Pederneira, junto da Praia-da-Naza-
reth... (*) . .
Cardoso diz ainda : «D'Õde parece na-
ceo a devoção grande, que ha neste reino
com o sagrado evangelista, cujas imagens
(pela maior parte) são milagrosas.
E o Touro (chamado de S. Marcos)
tam celebrado dos nossos rústicos, &
camponezes, cujo abuso (como supersti-
cioso) está cõdenado por breve do Papa
Clemente VIII, a 10 de março de lôgS.
conforme o Doctor Valle de Ensalmis
opusc. I sect. 2. c. 2 n- i3. & 14.»
(*) Cfr. Leite de Vasconcellos, ^T(eligiões da
Lusitânia I. 38 1, nota 4.
A TRADIÇÃO
119
Evidentemente ha no culto popular de
S. Marcos eleinentos anteriores ao reco-
nhecimento otlicial do chrisiianismo, pro-
vindos duuiros sysienias religiosos, tal-
vez do de Mithra.
(Lisboa)
PtDKO A. d' AZEVEDO.
LRNDAS & ROMANCES
{Recolhidos da tradição oral na província do Alemte/o/
IV
Goi*iii3il<1o
/Variante do romance cavalleiresco anterior/
— Gerinaldo, Gerinaldo.
Papem d'el rei mais querido,
Bem podias, Gerinaldo,
Passar a noite comigo.
— Se eu por ser vosso vassallo,
Senhora"zombaes comigo. . .
— Eu não estou zombando, não,
Deveras é que t'o digo.
Vem entre as dez e as onze,
Acharás meu pae dormido — .
As dez horas eram dadas
Gerinaldo era venido.
— Quem bate á minha porta,
Quem bate, o que é isso ?
— E' Gerinaldo, senhora.
Que vem no vos.so serviço — .
Tanto conversaram ambos
Que pela manhã eram dormidos.
O rei, que já lhe tardava,
Foi ao quarto da infanta,
E achn-os ambos dormidos:
— Eu se niHto Gerinaldo,
Criei-o de pequenino,
E se mato a infanta
Fica o meu reino perdido ;
Aqui iica este punhal
PVa signal que sou sabido — .
Acordando Gerinaldo
Deu um ai mui dolorido :
— Acordae, bella infanta,
Acordae que estou perdido :
Entre nós anibns de dois
Um punhal está mettido.
— Levanta-te, Gerinaldo,
Vae-te entregar ao castigo.
Que meu pae é muito bom
Ha-de-te casar comigo — .
— Deus te salve, rei senhor.
— Deus te salve, Gerinaldo,
Que ainda agora és venido.
— Fui fazer uma caçada
E pVa lá amanhecido.
—A caça que tu caçaste
Come a meza comigo.
— Aqui me tem vossa mageslade,
Mande-me dar o castigo.
— t) castigo que te dou
E' Gue a recebas por mulher
E eíla a ti por marido — .
I)iziam os mais vaxsallos :
— Oli quem tivera a dita
Que (Jerinaldo tem tido ! —
Muitas vezes a ventura
Patrocina os atrevidos.
Quando os não vae derrubando.
Que a muitos tem succedido.
(Elvas)
A. Thomaz pires.
A corrida da Vdcca das cordas em Ponte de Lima
Por uso antiquissimo e nunca inter-
rompido ate i>S.S4 inclusive, fcz-se sem-
pre, annualmente, em Ponte de Lima, a
corrida da vacca das cordas^ na véspera
de Corpus (Jiristi.
Sendo, em verdade, um espectáculo
burlesco e brutal, era todavia muito apre-
ciado pelos limarcnses, que o respeita-
vam e mantinham como usança veneran-
da e divertimento publico de que não
queriam privar-se.
De tal funcção foram constantemente
ministros os moleiros do concelho, que
tinham obrigação de pegarem ás cordas
e executarem a corrida^ sob a condem-
nação de duzentos réis pagos da cadeia
por aquelle que não comparecesse ou se
furtasse a tal mister, segundo o Código
das Posturas Municipaes de 1646, cap.
56; — e de quatrocentos e oitenta réis,
segundo o de i7-2o, cap. bb. Ha poucos
annos a esta parte, aquellas funcções obri-
gadas passaram a ser desempenhadas
por homens pagos a dinheiro pelo sena-
do da camará.
O programma era invariável ; não ad-
mittia suppressões nem additamentos. Ti-
nha o seguinte desempenho, como o pre-
senceámos durante perto de trinta e oito
annos.
Pelas três para as quatro horas da tar-
de, prendia-se ao gradeamento de ferro
120
A TRADIÇÃO
da janella da torre dos sinos da Egreja
Matriz, uma vacca mansa, destinada ao
talho: e o paciíico animal ficava alli, até
ás seis horas aproximadamente, exposto
ao arbitrio dos transeuntes e do rapazio
inquieto e malfazejo, que, por prazer,
procuravam mortihcal-o e embravecel-o
com aguilhoadas e bastonadas, no meio
de vozearias e assobios, no meio de apu-
pos e dicterios, não raro immoraes.
Deleite para os espectadores e estimu-
lo para as alegrias e risadas unisonas.
Ordinariamente ás seis horas, praso
determinado pelo senado ou só pelo pre-
sidente, appareciam dois moleiros dos
obrigados e ultimamente os remunerados
executores das sortes do estylo, — que mu-
nidos de cordas, de uns nove a dez me-
tros pelo menos, as enlaçavam nas pon-
tas do animal acior e delias se serviam co-
mo de guias ou tirantes ou leme da cor-
da corrida.
A vacca desprendida, seguidamente,
do gradeamento de ferro, era guiada em
roda da Egreja, que volteava três vezes
a trote e pesado galope, sempre agui-
Ihoada e sempre apupada.
E o povo. a correr, a correr — uns,
atraz d'ella para a estourarem e simulta-
neamente não perderem um momento de
goso do espectáculo; — outros na frente,
procurando furtar-se ao atropellamento :
as portas das casas a fecharem-se, umas,
e a abrirem-se, outras, para se isolarem
momentaneamente da investida da vacca
e evitar o impulso das ondas populares
que se formavam e desfaziam pelas ruas
e pelo adro : e as familias apinhadas
pelos peitoris e sacadas, a casarem as
suas alegrias ruidosas com as gargalha-
das estrepitosas dos espectadores da pra-
ça endoudecidos.
Findas as três voltas, os ministros da
corrida arrastavam ou aliavam corda e
cabo ao pobre animal, encaminhando-o
para a alameda do passeio de D! Fernan-
do, para o vasto areal e para a ponte,
em demanda dos grupos de povo expec-
tante contra quem podessem promover
as investidas, ou pelo menos enredal-o
com as cordas. E faziam-n'o com mes-
tria atrevida.
Se o animal embravecido, arremettia
com alguém ou fazia algum atropella-
mento, ou se as cordas ensarilhavam as
pernas de qualquer temerário ou descui-
dado transeunte, proclamava se geral-
mente o espectáculo de af^radavel e di-
j'ertido; mas não se dando nenhum d'es-
tes factos, todos unanimemente o apoda-
vam de semsaborico, concluindo pelas
phrases sacramentaes: «a vacca d'este
anno não fez figura, não prestou para
nada».
Ao toque da Trindade, estando tudo
terminado, a vacca seguia o caminho do
seu destino ; a gente. . . cada mocho pa-
ra o seu buraco.
(Cap. XXV, posthumo, do livro «Pon-
te de Lima».)
(Conclue)
Miguel dk LEMOS.
fttodas-estpibilhos alemtejanas
Marianita foi á fonte
Marianita foi á fonte
E a camarinha quebrou.
Ah ! ah ! ah ! oh meu lindo bem !
Ah! ah! ah! oh meu lindo amor!
Marianita não tem culpa,
Culpa tem quem n^a mandou.
Ah ! ah ! ah ! oh meu lindo bem !
Ah! ah! ah! oh meu lindo amor!
M. Dias NUNES.
A TRADIÇÃO
121
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3
VIII
MARIANITA FOI Á FONTE
(CHOREOGRAPHICA)
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122
A TRADIÇÃO
JOGOS POPULARES
VI
_A-o sol e sx lixsL
Representa este jogo um divertimento
cheio de simplicidade e alegria, que or-
dinariamente os rapazes põem em scena
ao formoso luar das tépidas noites de
estio.
A expressão «ao sol e á lua» é im-
própria para designar o folguedo que va-
mos descrever, pois que de noite não
brilham os raios do astro-rei. Em rigor,
deveriamos dizer «á lua e á sombra».
Mas como a primeira designação é a
que está consagrada peio uso, adoptâ-
mo-la por isso de preferencia.
Para jogar ao sol e á lua^ escolheni os
rapazes um local onde exista boa som
bra. Km Brinches costumam reunir-se
no adro da egreja. Os parceiros que en-
tram neste jogo devem ser em numero
par, ficando metade á sombra e metade
á lua. Os jogadores que se acham á lua
teem por tarefa agarrar os da sombra,
mas fora d'esta. E, para determinarem
tanto os rapazes a quem cabe a sombra
como aquelles que hão de andar á lua,
tiram a sorte pelo processo da pedrinha,
já exposto a propósito do jogo da bóia
(T7\idição^ n.° 2, p. 3i).
Occupados os respectivos postos, co-
meçam os jogadores que estão á som-
bra a fazer fosquinhas diante dos adver-
sários: saltam da sombra para a lua e
da lua para a sombra, e andam ás car-
reirinhas d'instante a instante, de modo
a desafiar os parceiros seus rivaes. Estes,
impellidos naturalmente pelo desejo de
apanhar os da sombra, correm atraz
delles com toda a ligeireza de que são
capazes. O largo onde se realisa o jogo
e suas immediações transformam-se, en-
tão, em verdadeiro campo de corridas
pedestres, animadas pela vozearia da ra-
paziada inquieta.
Quando algum parceiro se deixa agar-
rar na carreira, tem d'ir juntar se aos
que giram á lua, passando o seu perse-
guidor para a sombra. E assim vai con-
tinuando o buliçoso brinquedo até que
os jogadores estejam fatigados.
De certo, ninguém contestará que «ao
sol e á lua» é um exercício antiquíssimo,
e que, sob o ponto de vista hygienico,
merece a nossa calorosa approvação.
(Brinches)
Ladislau piçarra.
Em quarta-feipa de einzas
Ha talvez perto de três annos realisa-
vase ainda no Fundão, em quarta-feira
de Cinzas, uma procissão na qual o povo
em creações e symbolos, os mais extra-
vagantes, expandia a sua imaginação fer-
tilissima.
Abria este original cortejo, pelo pen-
dão escarlate com as iniciaes romanas S.
P. Q. R. Seguia-se o paraíso, symboli-
sado por um andor onde m.urchava um
loureiro, roubado pelos membros da ir-
mandade n'uma propriedade da villa,
tendo espetadas laranjas — á laia de ma-
çãs. Uma serpente enroscada á supposta
arvore do Bem e do Mal, trepava por el-
la, contra a vontade de um anjo de pau,
muito rechonchudo, de espada em pu-
nho e posição melodramática. Comple-
tando este paraíso raro, seguia-se atraz
um homem de calças brancas cobertas
com folhas de laranjeira, e uma mulher
vestida de verde, laranja na mão, fazen-
do gatimanhos, oficrecendo-a e retiran-
do-a ao farçola do Adão compromettido,
que não atinava em agarral-a
Os mart3Tes de Marrocos seguiam-se
cabisbaixos, de hábitos de frade, levando
um d'elles um jugo sobre o qual um ra-
tão enfarruscado de negro, intitulado rei
mouro, com um alfange descarregava
golpes furiosos. Um homem vestido de
branco e pautado nas costas e peito com
fitas pretas a imitarem costellas, fingia a
A TRADIÇÃO
123
morte, que de foice na mão, ameaçava o
rei moLiio.
\'inha depois o menino Isaac, de túnica
branca, carregando um molho de vides
ou fitas de carpinteiro, perseguido por
seu pae Abrahão, que vestia decentemen-
te opa branca, capa dasperges e cobria
a cabeça com uma mitra de bispo. Nun-
ca se chegava a realisar o nefando atten-
tado, devido á intervenção d'um anjo que
com uma hta segurava a espada do feroz
papá. Depois, em confusão e ao acaso,
vinham lodos os santos, coxos, manetas,
desazados, de que se podia dispor para
a festa.
Seguia-se tinahncnte o paliio e a mu-
sica e o rapazio.
Ai.vAKo DK CASTRO.
O S- JOÃO EM SERPA(*)
(Cominiiado de pag g3)
LV
Nascei, nascei meu Baptista,
Nascei luz do Ev^ntielho !
Inda que sois pequenino,
Por grande vos considero.
LVI
O Baptista está no ceu,
Na gloria do mesmo Deus ;
Me^mo de lá 'stá rogando
Pelos que são servos seus.
LVII
Té os moiros na Moirama
Festejam o San João :
Correm toiros e cavallos,
Com cannas verdes na mão!
No final de cada quadra, e sempre na
mesma toada, é da praxe dizer um d'es-
tes dois estribilhos :
(*) A falta . de espaço com que luctàmos não
nos permitte concluir a puMica ão d'este artigo
no presente numero de (Í4 Tradição.
Ora viva,
E ora viva !
Viva o Baptista, e viva!
Viva o Baptista, e viva!
Ora viva,
E ora viva !
Viva a gloria mais subida !
Viva a gloria mais subida !
Além da preciosa collecção de cantigas
que reproduzimos, existe ainda, referen-
te ao S. João, uma expressiva moda es-
tribilho, choreographica e de bonita mu-
sica, com a seguinte lettra :
San João ! San Joã(j ! San João !
Outro anno nao deixeis pass.ir I
i)ae-me noivo, San João, d.ie-me noivo,
Dae me noivo, que me quero casar! . . .
#
No decurso das novenas, eífectuadas
de modo singcllo e conforme o ritual,
nada se nos olícrece digno de menção.
E' em 23 de Junho, véspera do Baptista,
que principalmente se observa o grande
numero de costumes populares — alguns
bem singulares e curiosos — estreitamen-
te ligados á vetusta festividade do sols-
ticio estivo. N'cste dia á tarde se verilica
a centenária usança do passeio ás hortas
para «fazer as capellas». Fazer as capei-
las significa propriamente c^mer fructa ;
tão só para as creanças entretecem viri-
dentes coroas de mentrasto e buxo, ma-
tisadas de flores várias, e com engraçados
pingentes de cerejas, e ginjas, ameixas,
soromenhos, etc.
O costume secular de que falíamos —
ao que reza a tradição oral e também a
tradição escripta — foi outr^ora praticado
até pela própria municipalidade serpen-
se, a qual, em meio de ruidosos folgue-
dos, ia fazer suas capellas á horta deno-
minada dos Banhos. Desta velha solem-
nisação por parte da camará, era ainda,
talvez, um resto persistente, a cerimonia,
não ha muito cahida em desuso, de nos
paços municipaes ser arvorado o respe-
ctivo estandarte em dia de S. João.
Em logar das três badaladas monótonas
do estylo, os sinos repicam alegremente
124
A TRADIÇÃO
Ave-Marias. Prestes é noite e noite de
festa. Dentro em poucas horas, quando
os sinos de novo repicarem, ao toque
d' Almas, bastas fogueiras d'alecrim cre-
pitarão luminosas por essas ruas, e as
portas dos templos serão abertas de par
em par. Então começa o movimento, o
bulicio, a jubilosa animação d'um povo
inteiro, que se diverte rendendo culto ao
bemaventurado S. João. Grupos de cam-
ponezes cantando em coro ao som da
viola ou do harmonium, percorrem a vil-
la em todas as direcções. Centenas de
pessoas — o elemento feminino predomi-
nando — se cruzam nas ruas e largos em
visita ás egrejas que expõem o Santo,
egrejas lindamente adornadas com vasos
de flores e arcos de verdura donde pen-
de um sem numero de balões venezianos.
Aqui e alli bailes de roda, em que as ra-
parigas se apresentam com os seus me-
lhores trajos domingueiros. Estes bailes
populares, que hoje em dia se realisam
dentro de casa, eram feitos ao ar livre e
em redor dos mastros; mas isto — rela-
tam os velhos — ha bons 40 annos, ainda
no tempo em que o adufe se impunha co-
mo instrumento da moda.
Por volta da meia-noite encerram-se as
egrejas; as fogueiras despedem o ultimo
clarão ; raream os descantes ; o bulicio
das ruas é quasi extincto.
Meia-noite é a hora solemne das ex-
periências feitas so^b a religiosa invoca-
ção do Santo Precursor.
(Conclue)
M. Dias NUNES.
POVOS DA IBÉRIA
A arte de um povo é só de um im-
menso valor, é mesmo um esteio da in-
dependência d'esse povo se trouxer
bem impresso o cunho de nacionalidade.
Sem isso não.
A arte universal de que Goethe foi o
precursor não é mais do que o limite do
decadência. E' para lá que caminham ho-
je quasi todas as litteraturas, como con-
sequência lógica da decadência das so-
ciedades que tendem egualmente para um
limite extremo d'onde ha-de surgir lumi-
nosamente remoçada com um nimbo bri-
lhante que se irá, no futuro, tornando ni-
tido no desenvolver d'um progresso pa-
cifico e utilisavel. As litteraturas caminha-
rão também, porque a sua trajectória é
uma d'essas que só os grandes abalos
sociaes podem modificar. No entanto, os
alicerces em que deve assentar uma arte
proficua e sã estão entre nós firmes bem
como em toda a parte. Porque esse ca-
racter distinctivo das nacionalidades é
sempre o ultimo a desapparecer; guarda-
o nas horas do perigo o povo e é bem
mais difficil subjugar a alma d'elle — o
relicário precioso das suas crenças, dos
seus contos, das suas lendas — que anu-
lar-lhe a força dos seus braços com tiros
de canhão. São os sentimentos do povo,
os que as litteraturas tém explorado nos
seus períodos de oiro ; e porque a
alma portugueza é uma das mais doce-
mente poéticas de toda a parte, é que da
nossa pátria têem sido em tempos idos,
os maiores poetas do mundo inteiro. E
se digo das mais docemente poéticas é
porque ella conserva o meio termo entre
a idealisação gélida dos do norte e a ve-
hemencia sensual dos povos do sul. E' as-
sim que a põe a sua situação geographi-
ca, que é a causa principal d'essas varia-
ções dos caracteres dos povos. E' a prin-
cipal mas não a única, essa causa, porque
ella não bastaria a justificar a differencia-
ção innegavel que existe entre o povo
portuguez e o de Hespanha. E' vêl-os
nas suas canções, nas musicas originaes
que as completam, para bem nos certi-
ficarmos desse facto cuja explicação vera
por certo da origem das respectivas po-
pulações indirectamente e, d'um modo
directo, do seu papel histórico. Limito-me
ao segundo ponto porque o primeiro exi-
giria um desenvolvimento incompatível
com o tempo que tenho e com o pouco
espaço de que disponho. As trovas e as
musicas populares portuguezas são im-
A TRADIÇÃO
125
I
pregnadas d'uma tristeza fatalista que
leva a vèr tudo sempre pelo lado mau e
põe uma nota escura em todas as sãs
alegrias do nosso povo. l\m Hespanha não;
e a elles fora mais propriamente applica-
do aquelle verso da cançoneta d alem dos
Alpes:
les portufíais
som toujours gais.
Lá ha um fundamento de jovialidade
que permanece inalterável airavez de to-
das as desventuras, uma maneiía de não
reparar no futuro, um ar folião e sem
cuidados. Poique ?
A ditierenciação da nossa nacionalida-
de começa propriamente a mostrar-se
com nitidez nos rins do século quinze. E'
então que o espirito da aventura se ma-
nifesta em vér e nos leva pelo mar des-
conhecido a caminho de gloriosos desco-
brimentos. K ao povo portuguez então
atraia a .immensidade das aguas, mas
amedrontava-o ao mesmo tempo, com o
terror das coisas desconhecidas, pela sor-
te dos que tinham ido, quem sabe se no
cumprimento d um fado que não era bom.
Essa predilecção pelas descobertas, essa
anciã de conhecer os segredos do mar,
isso e o tempei amento intensamente
amoroso que nos concedia o clima fize-
ram de nós um povo romântico e fata-
lista, com coração e pessimismo. Os hes
panhoes tém mais a anciã da conquista,
partem para ella, valentões, cantando, e
é ainda assim que de lá voltam mesmo
que adversa lhes tenha sido a sorte. Nós,
sendo um povo de descobridores nunca
o fomos de conquistadores, e a prova es-
tá em que, conquistadas as terras logo
decahiam e após as descobertas, com tão
largo caminho para applicação da nossa
actividade, não conquistávamos mais. A'
conquista faltou muito aquella espectati-
va anciame do que virá^ que leva á apre-
hensão os mais fortes espíritos. Basta a
descoberta ser apparentementemuitomais
serena que uma conquista, onde é mais
fácil reinar um enthusiasmo vivo. Mas por-
que é isso assim? A resposta implicaria o
facto citado da influencia das raças consti-
tuintes dos povos das duas nações. Mais
livremente;, um dia, d'ella poderei ampla-
mente tratar.
Pai;(.o OSÓRIO.
'\s fcslas (lo SacnimiMilo riii Bi
A festa do T^ac do Céo, como lhe
chama o povo, celebra-se annualmente,
nos três dias immediatos á quinta-feira
de Corpus Christi.
A sua origem vem já de tempos im-
memoriaes, e foi determinada, segundo a
tradição oral que corre entre o povo de
Beja, pela extincção d uma epidemia de
cholera morbus, que ceifara milhares de
vidas, enchendo de terror a população
da cidade, que, doida de pavor, corria
aos templos a implorar, em prece fervo-
rosa, a intervenção divina, para pôr ter-
mo a tão medonha hecatombe.
Os mais abastados deliberaram entre
si celebrar uma festa ao Santissimo Sa-
cramento, se a epidemia desapparecesse
em breve. Como a epidemia levantasse,
ahi pelos fins de maio, decidiram cele-
brar a festa promettida, logo a seguir á
festa oíficial do Corpo de Deus.
Logo que o povo soube da promessa
teita, com uma unanimidade de crenças
admirável, suggerida' pelo terror, pois
que o terror faz mais crentes, numa ho-
ra, do que todo um apostolado em dez
annos de catechese, correu, á porfia, a
casa dos iniciadores da festa, a ofíerecer o
seu obulo para as despezas da mesma,
que deveria ser a mais grandiosa possi-
vel, para que a epidemia não voltasse;
pois poucos havia que não pranteassem
ainda a morte dum filho, d um irmão,
da esposa ou de qualquer ente quc^ido,
emfim, e receassem pelos sobreviventes,
que o gladio inexorável da peste podia
arrebatar também.
Celebrou-se a primeira vez, ainda se-
gundo a tradição oral, na freguezia de
12G
A TRADIÇÃO
S. João, combinando-se logo que, d'ahi
em diante, cadafreguezia celebraria a fes-
ta um anno, de modo que ella servisse
para perpetuar a memoria do milagre
obtido e também para afastar nova vizi-
ta do horrivel Hagello.
A festa, que no primeiro anno já foi
grandiosa, foi augmentando de propor-
ções, devido á rivalidade das freguezias,
cada uma das quaes se esforçava por
supplantar a festa do anno anterior,
acrescentando mais um numero ao pro-
gramma.
Dahi veio que a festa, de character
puramente religioso, como devia ser uma
simples acção de graças pela extincção
dum Hagello ainda vivamente impresso
na imaginação de todos, foi, nos annos
posteriores, mesclando o profano ao sa-
cro, com a organisação de touradas na
Praça de D. Manoel, cavallinhos fuscos^
cavalhadas, arraial de fogos d'artificio,
etc, manifestações estas que teem desap-
parecido quasi de todo.
E é pena que estas festas profanas,
que são complemento natural de qual-
quer festa com pretenções a grandiosa,
como urbi et orbi se tem annunciado a
festa do Sacramento em Beja, para a qual
os comboios dão bilhetes reduzidos, etc,
etc, em logar de desapparecerem, não
tenham augmentado, embora se suppri-
missem alguns números da festa d'egre-
Ja; pois que o forasteiro, que vier atra-
hido pela fama das festas de Beja, se
quizer saber em que ellas consistem,
deve vestir o habito de penitente, pôr o
escapulário ao pescoço e, de rozario na
mão, metter-se na egreja, d'onde não
sahirá senão no fim de três dias, pro-
fundamente edificado em philosophia
theologica e com os tympanos saturados
de hymnos sacros, vocalisados pelos
cantores da Sé de Lisboa. Na rua,
durante os dois primeiros dias de fes-
ta, não ha manifestação festiva de quali-
dade alguma, a não ser o fmi-gá-gá. . .
das philarmonicas que acompanham as
delegações das irmandades á egreja da
festa.
Entremos, porém, na descripção da fes-
ta como ella é actualmente.
Na sexta feira, primeiro dia de festa,
ha missa cantada a grande instrumental,
executada por uma orchestra, composta,
na sua quasi totalidade, de instrumentis-
tas de Lisboa, no numero dos quaes vêm
sempre alguns de primeira ordem, como
Cagiani e outros, e pelos cantores da Sé
de Lisboa, cujo conjuncto custa pelos três
dias de festa 4oo.'3?'00o a dooíTíooo réis.
Dos cantores, diz também a tradição oral
que, nos primeiros annos da celebração
da festa eram tratados com taes atten-
çÕes e esmero, que até tomavam banhos
de leite (sic).
Alem da missa ha sermão, pregado
(tanto este, como mais dois de que se
compõe a festa) por algum dos oradores
mais notáveis do paiz, como Alves Men-
des, Patricio e outros. De tarde, ha vés-
peras a grande instrumental e sermão.
A egreja é ricamente ornamentada de
brocados de seda e oiro, distribuídos,
com profusão e fino gosto, em todo o
templo, pelos armadores de Lisboa, que
costumam chegar a Beja oito dias antes
da festa, sendo a chegada annunciada por
alguns foguetes. Quando terminam a or-
namentação, celebra-se o acontecimento
com novo foguetorio, que é o acompa-
nhamento obrigado de todos os actos
da festa, desde a primeira reunião de ir-
mãos para deliberar sobre as despezas
que se costuma effectuar, um mez antes,
até ao ultimo acto, que é a procissão
que leva a esmola aos prezos.
Neste primeiro dia, a igreja é pouco
concorrida, e tam pouco, que a festa res-
pectiva podia perfeitamente ser suprimida
sem protesto do povo, quede bom grado
a trocaria por qualquer festival profa-
no. No sabbado repete-se exactamente o
mesmo programma, augmentado com
arraial de fogo d'artificio, á noite, mas
de baixo preço e por consequência in-
significante em quantidade e inferior em
qualidade.
(Continua)
(Beja). Alves TAVARES.
A TRADIÇÃO
127
CONTOS ALGARVIOS
I
A macaca e a oliveira
Rra uma vez certa macaca que rece-
beu de uma sua visinha uma bolsa de
grãos em pagamento de um recado. Su-
biu a uma oliveira e pòz-se a comer os
grãos. Caiu-lhe um e a oliveira apanhou-o
— Da-me o meu grão — disse a macaca.
— Não quero — respondeu a oliveira.
— Ahl sim? pois vou dizer ao teu do-
no que te corte.
Dirii^iu-se ao dono da oliveira e disse-
Ihe:
— Corta a tua oliveira, que me não
quer dar o meu grão.
O dono da oliveira respondeu:
— Não corto, porque não quero.
— Ah! sim? pois vou dizer á justiça
que te prenda por não quereres cortar a
oliveira, que me não quer dar o meu
Dirigiu-se á justiça e apresentou a sua
partipação. A justiça respondeu:
— Não prendo o dono da oliveira.
— Ah! sim? pois vou queixar-me ao
rei para que te tire a vara, visto não que-
reres prender o dono da oliveira, que a
não quer cortar, por ella me não destituir
o meu grão.
Dirigiu se ao rei a queixar-se da justiça.
— Não tiro a vara á justiça — respon-
deu o rei.
— Ah! sim? pois vou dizer á rainha
que se ponha mal com o rei, por tu não
quereres tirar a vara á justiça, que não
quer prender o dono da oliveira, que a
não manda cortar, por ella me não resti-
tuir o meu grão.
A rainha ouviu os queixumes da ma-
cacaca e respondeu :
— Por cousa tão pequena nã ; me po-
nho mal com o rei.
— Ah! sim? pois vou queixar-me á ra-
ta para que esta rate a roupa da rai-
nha, que se não quer pôr mal com o
rei, por este não querer tirar a vara á
justiça, que não quer prender o dono da
oliveira, o qnfi\ a não quer cortar, por
ella me não dar o meu grão.
A rata respondeu :
— Não quero ratar a roupa da rainha.
— Ah ! sim? pois vou queixar me á ga-
ta para que te mate, visto não quereres
ratar a roupa da rainha, por esta não
querer pôr-se mal com o rei, que não
quer tirar a vara á justiça, que não pren-
de o dono da oliveira, por este a não
mandar coitar, por esta me não entregar
o meu grão.
A gata respondeu :
— Não mato a rata por tão pouco.
— Ah! sim ? pois vou dizer a ribeira que
afogue a gata, por esta não querer
matar a rata, que não quer ratar a
roupa da rainha, por esta se não pôr mal
com o rei, por este não querer tirar a
vara á justiça, e esta não querer prender
o dono da oliveira, por este a não cortar,
visto que ella me não restitue o meu
grão.
A ribeira respondeu:
— Não quero afogar a gata.
— Ah ! sim ? pois vou dizer ao pássaro
que beba a agua da ribeira, que não quer
afogar a gata, por esta não matar a
rata, que não quer ratar a roupa da
rainha, que se não quer pôr mal com o
rei, por este não tirar a vara á justiça,
que não quer prender o dono da oliveira,
que a não quer cortar, por esta não me
restituir o meu grão.
O pássaro respondeu:
— Não quei o beber a agua da ribeira.
— Ah ! sim ? pois vou dizer á espingar-
da que mate o pássaro, que não quer be-
ber a agua da ribeira, por esta não afo-
gar a gata, que não quer matar a rata,
que não quer ratar a roupa da rainha,
que se não quer pôr mal com o rei, por
este não tirar a vara á justiça, que não
quer prender o dono da oliveira, por este
a não cortar, por ella me não restituir o
meu grão.
A espingarda respondeu:
— Vou matar o pássaro.
O pássaro ouviu a resposta e disse á
espingarda:
128
A TRADIÇÃO
— Não me mates, que vou beber a
agua da ribeira.
A ribeira disse ao pássaro:
— Não me bebas, porque vou afogar a
gata.
A gata respondeu :
— Não me afogues, porque eu mato a
rata
A rata respondeu :
— Não me mates, porque eu vou ra-
tar a roupa á rainha.
A rainha respondeu :
— Não me rates a roupa, porque eu
ponho-me mal com o rei.
O rei respondeu:
— Não te ponhas mal comigo, porque
eu vou tirar a vara á justiça.
A justiça respondeu:
— Não me tires a vara, porque eu man-
do prender o dono da oliveira.
O dono da oliveira disse:
— Não me prendas, porque vou cortar
a oliveira.
A oliveira respondeu:
— Não me cortes, porque eu vou en-
tregar o grão á macaca.
E finalmente a macaca recebeu o seu
grão, estabelecendo-se por esta forma a
paz geral.
(Da tradição oral, em Loulé).
Athayde d'OLIVEIRA
PKOVEKBIOS E DICTOS
(Continuação)
LII
Em não chovendo por S. Matheus, fa-
ze conta côas ovelhas, que os borregos
não são teus.
LIII
Guarda que comer, não guardes que
fazer.
LIV
Quinta-feira d' Ascensão, coalha a amên-
doa e o pinhão, mosca o burro e o boi
não.
LV
Anno d'amendoas, anno de prendas.
LVI
Pão molle, depressa se engole.
LVII
Se queres bons cães de caça, busca-
Ihe a raça.
LVIII
Fezes com pão, passageiras são.
LIX
Ha sói que rega e agua que sécca.
LX
Em cima do leite, nada lhe deite.
LXI
O mez d'Agosto arremeda os outros.
LXII
Osga que pica, mortalha aviada.
LXIII
Das festas, as vésperas.
LXIV
Dia de S. Thomé — se não tiveres por-
co, apanha a mulher pelo pé.
LXV
Dia de S. Thiago — vae á vinha, acha-
rás bago.
(Da tradição oral)
(Serpa)
(Continua)
CASTOR.
Anuo I — N.^O
SERPA. Setembro de 1899
>^«"l'Í«' I
Edilor-adininistrador, José Jfronymo da Cotta Briwo de S'ff(reirot, Rua Larsa, 3 e 4 — SERfA
Typot;rapliia de Adolpho de Mendonçj, Kua do Corpo Saiilo, 46 e 4K — l.ISHOA
A TRADIÇÃO
>
REVISTA MENSAL CETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
Directores: — LADISLAU PIÇARRA e M. DIAS SUNES
O elemento árabe na linguagem dos pastores
alemíejanos
(continuado de pae. 117)
I
Quando os rebanhos mudam de her-
dade para herdade, ás vezes a muitos ki-
lometros de distancia, as burras levam
também a rede^ onde o gado dorme a
céu aberto Os pasto'-es dizem sempre a
rede. Nunca empregam a palavra mais
clássica redil. Quanto á palavra também
clássica aprisco, essa tem entre elles um
sentido diverso e muito especial, como
logo veremos.
A rede é armada em forma quadrada,
marcada pelos tanchôes (tanchar do lat.
plautare pela der. bem conhecida), que
são estacas de azinho, aguçadas na parte
inferior; quando o solo está muito duro,
abrem-se os buracos com um tanchão de
ponta de ferro. Aos tanchôes se prende
a rede propriamente dita, feita de uma
corda tina de esparto, chamada alfirme.
O nome desta corda ou baraço é clara-
mente de origem árabe; mas, faltando
nos Vocabulários, não saberei dizer em que
expressão árabe se filia. As redes de al-
firme vem feitas do Algarve ás feiras do
Alemtejo, e ali se compram por uma cer-
ta medida, chamada perna. Quatro per-
nas de rede são sufficientes para um re-
banho ordinário. O pastor adapta-as ás
dimensões precisas, reforçando-as em ge-
ral pela passagem de novos alfirmes. E
necessário que sejam resistentes. Km re-
gra, o gado apenas se encosta á rede;
mas ás vezes em noites escuras, num
espanto súbito, n'um attaque de lobos,
exerce pressões íortissimas. K, se a rede
cede, extramalha-se tudo, com grande
trabalho para os pastores, e perdas sen-
síveis para o amo. Todos os dias, para
estrumar a terra, se muda a rede. Ao
espaço que occupou se chama uma re-
dada., ou lí/na noite — no pagamento de
pastagens ou serventias, esiipulase al-
gumas vezes que se darão tantas ou tan-
tas noites.
Os pastores dormem ao lado da rede,
a céu aberto como o seu gado. Apenas
têm um abrigo perpendicular, que collo-
cam do lado donde vem o vento; e ali
ficam nas noites mais chuvosas de de-
zembro, nas noites mais frias de janeiro,
protegidos pelos pellicos e çafÕes, e so-
bretudo pela manta., que os cobre dos
pés á cabeça. A matita de lan alemteja-
na, bem conhecida e conhecida há sécu-
los, merece um estudo especial ; mas des-
locado n'este lugar e que melhor cabe
no exame das industrias caseiras.
Mais do que as pelles, mais ninda do
que a manta, o lume torna toleráveis as
grandes noites fiias, passadas ao relen-
to. O pastor usa largamente d este re-
curso; os montados abundam, e elle cor-
ta á^ vontade a lenha para a sua foguei-
ra. É curioso, em noites de inverno, ver
de um sitio elevado os campos de Ser-
pa, salpicados de pontos brilhantes pelos
130
A TRADIÇÃO
lumes dos pastores. A fora o frio e a
chuva, as noites são tranquillns; o pas-
tor dorme socegado, confiado na vigilân-
cia dos cães.
Os mfciros alemtejanos são — segun-
do julgo — uma sub-raça dos cães da Ser-
ra da hstrella ; mas tendo caracteres par-
ticulares. São hoje muito menos bellos
do que eram aqui ha vinte ou trinta an-
nos, e a rasão é simples. N'estes annos
tem-se arrancado muito matto, arroteado
muito terreno, e os lobos têem-se torna-
do bastante raros. Os cães grandes e for-
tes são, portanto, muito menos necessá-
rios do que eram ; e o pastor apura me-
nos a raça nesse sentido, pois é estra-
nho ao desejo esthetico de ter cães bel-
los, simplesmente por serem bellos. No
emtanto, os rafeiros conservam os cara-
cteres de uma raça bem definida; e to-
dos os instinctos de guarda, accumulados
durante muitas gerações Succedeu-me
um dia, passando a cavallo no ribeiro de
Enxoé, ver ao lado de uma moita um
grupo de quatro ou cinco borreguitos per-
didos do rebanho, que ia já longe e nem
se avistava. A alguns passos dos borre-
gos estava deitado um rafeiro^ que —
permitta-se a expressão — tinha eviden-
temente a noção clara de que o seu de-
ver era ficar ali, até o pastor dar pela
falta dos borregos c voltar a traz bus-
cal-os.
Resta-me apenas, para terminar estas
notas, falar de dois períodos importantes
na exploração dn gado de lan — o pcrio-
do da ordenha e o da tosquia.
Já vimos, que a ordenha começa em
geral pelos meados de fevereiro, ou pou-
co antes. Os pastores procedem previa-
mente á rabe/a^ que consiste na tosquia
local de alguma lan suja, que possa es-
torvar no acto da ordenha. I^abejadas
as ovelhas, e apartados os borregos pa-
ra uma pastagem distante, onde as mães
os não vejam e os não ouçam, está con-
stituído o alavão.
Ordenha-se então regularmente duas
vezes ao dia, uma de madrugada, a ou-
tra ao começar da tarde. A ordenha faz-
se no aprisco, uma rede de forma espe-
cial, comprida e estreita, e exclusiva-
mente destinada a este fim. O aprisco
tem apenas a largura sufliciente para tra-
balharem quatro homens a par, e o com-
primento necessário para n'elle caber to-
do o alavão. Apertado o alavão para o
alto do aprisco — este arma-se geralmen-
te em um terreno inclinado — os quatro
homens começam a ordenhar, tendo ca-
da um delles deante de si um ferrado.,
que é um vaso de barro, feito pelos olei-
ros da terra, e de foima muito especial
e muito engenhosa. Os quatro homens
são o maioral do alavão, o ajuda do ala-
vão, o roupeiro e o ajuda do roupeiro.
Cada um d'elles ordenha uma ovelha no
seu ferrado^ e, passando-a depois para
traz das costas, segue com outra e assim
successivamente. A posição dos homens
é forçada, e algumas das ovelhas, prin-
cipalmente das novas, deffendem-se es-
perneando, de modo que o trabalho é
violento. Quando quatro homens chegam
ao cabo de um alavão de oitocentas ca-
beças ou mais, chegam deneados. Note-
se, que este trabalho se repete duas ve-
zes ao dia \ e se faz sem interrupção du-
rante três a quatro mezes.
O leite passa dos ferrados para os
cântaros., e n'estes é trazido para a rou-
paria., uma das casas do monte, {^) es-
pecialmente destinada ao fabrico dos
queijos. Ahi é deitado em um pote pe-
queno, chamado a::{ado., sendo coado por
pannos sobrepostos, especialmente teci-
dos para este fim, e aos quaes se dá o
nome de coádeiros. Estes coádeiros são
fabricados na província ; mas não nas ter-
ras de Serpa. Alguns campanissos am-
bulantes os trazem a vender por casa
dos lavradores. Na linguagem da mar-
gem esquerda do Guadiana, campanisso
significa um habitante de Campo de Ou-
rique, mais em geral da região que na
(') Todos sabem, que esta palavra monte sig-
nirica no Alemtejo o conjuncto das edificações
ruracs de uma herdade.
A TRADIÇÃO
181
(L^
/^
^^-
e^ERI^ DE TYPOS POPllL^RES
I X
í '"'U-
Camponeza á volta da ceifa i Serpa i
132
A TRADIÇÃO
margem direita se extende para o sul de
Beja até quasi aos confins do Algarve.
As rouparias empregam um numero con-
siderável de codiífiros, que todos os dias
se lavam e se penduram a seccar. D'aqui
resulta um grande estendal de roufa, o que
seguramente deverá ser a origem das pa-
lavras voupariã e roupeiro. E' de notar,
que o ^'oupciro não é um dos pastores,
como dizem alguns dos nossos Dicciona-
rios; é um homem, cuja profissão espe-
cial consiste na fabricação dos queijos.
Naturalmente ha-os mais e menos peri-
tos; e é difficillimo obter um boyii rou-
peiro.
Quando o leite está no a:{ado., deitam-
Ihe o cardo, sob cuja influencia coalha.
O coalho é tirado para cima da meza de
pinho, chamada queijeira., onde o rou-
peiro e o seu ajuda o trabalham, migan-
do-o, remigando-o, e apertando-o nos cin-
chos até estar feito o queijo de dimen-
sões ordinárias, chamado simplesmente
queijo., ou ás vezes de menores dimen-
sões, tendo então o nome áQ.\unca. De-
pois de um pouco enxutos, os queijos são
passados para um caniçadc, onde du-
rante quinze ou mais dias soffrem uma
fermentação especial, scientificamente
bem conhecida, e conhecida também pra-
cticamente pelos roupeiros, que lhe cha-
mam o a^edo. Passei rapidamente e mui-
to ao de leve sobre estas operações, por-
que são mais ou menos familiares a to-
dos, e porque os nomes usados são tam-
bém communs e empregados em outras
regiões. Quanto á installação primitiva e
barbara das rouparias, quanto á incerte-
za dos resultados, haveria muito a dizer;
mas isso são questões económicas, com-
pletamente estranhas á Índole d'estes ar-
tigos, e á Índole d'esta Revista.
Emquanto o roupeiro e o ajuda traba-
lham os coalhos, e os apertam nos cin-
chos, o soro do leite escoa pela queijeira
inclinada, e cae por uma calha em um
grande tacho de arame. E depois levado
ao lume n'este mesmo tacho, e dá-se-lhe
uma fervura para o engrossar, deitando-
se-lhe também uma pequena porção de
leite puro para o tornar mais rico. Fica
assim feito o almece. O almece repre-
zenta, durante a primavera, um papel
importante na alimentação das classes
pobres de Serpa e outras villas do Alem-
tejo. E muito barato e é bastante nutri-
tivo. Todas as madrugadas, os moços do
monte das diversas lavoiras vêm nos car-
rinhos ou nas bestas do monte trazer o
almece ás vendas da villa. E de uso, que
venham pelo caminho tocando ou asso-
prando em grandes búzios. Ao accordar
em Serpa, nos miezes de abril e maio,
ouve-se ainda.de noite ou ao alvorecer o
som rouco dos búzios, annunciando ás
mulheres da villa que o seu almoço vem
chegando.
Não se pode bem dizer, que esta pa-
lavra almece seja derivada do árabe — é
mais do que isso, é uma pura palavra
árabe, que chegou até nós sem a mais
leve alteração de sentido, e quasi sem a
mais leve aheração de pronuncia. Os ára-
bes do Oriente e do deserto chamavam
ao soro do leite al-meçl., mas os do oc-
cidente da Africa na sua pronuncia espe-
cial e menos correcta diziam al-meiç.
Por estes nos veiu a palavra ; e compre-
hende-se que forçadamente devia tomar
a forma almece.
Nada mais interessante do que estes
vocábulos, que são como documentos vi-
vos de historia; e nos deixam entrever
as transformações porque passou a ex-
ploração do nosso solo, e os longos pe-
ríodos estacionários, succedendo a essas
transformações. Uma simples palavra e
bem vulgar, almece., pode contar-nos fa-
ctos capitães da nossa historia, e justa-
mente daquelles que as chronicas não
mencionam.
Os árabes — melhor diremos os mus-
sulmanos ou moiros, porque estes eram
de variadíssimas raças — os moiros, ao
invadirem a Península, encontraram o
solo occupado por uma população de-
certo escassa, mas, ainda que desigual-
mente, espalhada por toda a região. A
base d'estes habitantes era formada pe-
los antigos hispano-romanos, sobre os
A TRADIÇÃO
183
quaes por uma precedente invasão se
viera derramar uma raça germânica ou
goda, que já ao tempo de que falamos
estava mais ou menos fundida com elles.
A maior parte desta população submel-
teu-se. Os nobres guerreiros de pura ra-
ça goda foram varridos pela conquista
mussulmana e refugiaram se nos desvios
das Astúrias, onde formaram o núcleo
do que devia depois ser o poderoso rei-
no de Leão, do qual brotaram todos os
reinos christaos das Hespanhas. Mas os
homens de inferior condição, os villões,
os colonos, os servos ligados á terra, a
massa do povo emfim, essa ficou sob o
d minio dos moiros — e a final não era
muito mais duro que o dos antigos se-
nhores godos. Formou-se assim a popu-
lação christan mosarahe^ de que os livros
pouco falam; mas que em ultima analy-
se reprezentavd a classe trabalhadora,
na qual residia a rudimentar vida econó-
mica. Os mosarabcs — como o seu nome
indica — arabisaram-se um pouco, e apren-
deram em parte a lingua dos invasoies.
Comtudo, no intimo da familia conser-
varam o uso do seu velho idioma, e no
intimo dos corações o culto da relisíião
christan.
Afora Toledo e outros rarissimos cen-
tros, a população t)iosai\2he foi essencial-
mente rural, ligada á terra e vivendo da
terra. Os terrenos sem dono, maninhos
e desaproveitados, deviam ser extensís-
simos; mas havia já tractos cultivados.
E n'esta agricultura muito primitiva a
forma pastoril dominava como sempre
succede. Documentos muito posteriores
nos mostram ainda como os bustos, os
prata, os páscoa^ todas as formas da pas-
tagem natural nos montes e nas planí-
cies, predominavam sobre a terra real-
mente cultivada. Estas creações de ga-
dos e as industrias com ellas ligadas
deviam, porém, ser absolutamente bar-
baras, como barbara e rudimentar era a
cultura propriamente dita.
Os moiros traziam comsigo uma civi-
iisação de certo inferior pelo caracter
moral, mas pelo lado material incompa-
ravelmente superior. (') Sob a sua inlluen-
cia tudo se transformou. Nem de outro
modo se poderia explicar o grande nu-
mero de palavras árabes que então se
introduziram. Koram necessários nomes
iioros para coisas iioiuis, porque os pro-
cessos melhoraram, porque a agiicultura
e as industrias derivadas se alteraram,
aperfeiçoando-se. E' o que sempre suc-
cede.
Embora esta transformação fosse gra-
dual e lenta, deve-se ter iniciado logo nos
primeiros tempos da conquista; deve-se
ter firmado logo nos primeiros séculos,
quando os reinos christaos do norte es-
tavam ainda fracos, quando o dominio
dos moiros nas nossas terras meridio-
naes era seguro e quasi pacifico. Pode-
se, pois, acceitar como um facto prova-
do, que as modificações, introduzidas
pelos moiíos nos hábitos e na lingua do
povo rural, devem pela maior parte da-
tar do IX ou do X século, ou talvez de
antes. Para tornarmos o facto mais frizan-
te por um exemplo, -é certo que o uso do
almece e da palavra a/mfct-n" estes nossos
campos de Serpa c muito anterior á fun-
dação da Monarchia Portugueza. Quan-
do Affonso Henriques se encontrou com
os moiros em Ourique, já no mesmo
Campo de Ourique se fazia almece e se
dizia aln:ece, exactamente como hoje.
Vem agora o longo, laborioso e glo-
rioso periodo da reconquista da Penín-
sula pelos christaos. Os reis de Leão e
de Castella, os primeiros reis de Portu-
gal correram as terras do centn» e do sul
em expedições triumphantes, em invasões
que pareciam definitivas, para logo em
seguida retrocederem perante o poder
mais forte dos moiros. Pouco a pouco,
porém, as conquistas a principio ephe-
meras foram-se firmando, até á liberta-
ção completa do território portuguez, e
(•) Sobre este e outros pontos ao deante men-
cionados existem opiniões variadas. K claro, que
as não podemos debater n'este logar : e unica-
mente damos em poucas palavras as que nos pa-
recem mais seguras.
134
A TRADIÇÃO
muito mais tarde de todo o território da
Hespanha. Mas esta volta do dominio
christão não annulou a transformação
operada antes pelos moiros na língua e
hábitos do homem do povo; e a razão é
clara.
Com os cliristãos voltavam importan-
tíssimos elementos de futura civilisação,
desconhecidos dos árabes; mas esses
elementos eram sobretudo moraes. Vol-
tavam ideias mais definidas, posto que
ainda indecisas, de justiça, de liberdade
c mesmo de igualdade. Voltava um certo
respeito pela vida humana, ao menos
pela vida do homem livre. Eram deriva-
dos estes e outros elementos principal
mente das inspirações da religião e do
evangelho, até certo ponto também de
tradições romanas e de tradições germâ-
nicas, já anteriormente fundidas nos có-
digos e nas leis da Monarchia ^^^lsigo-
thica. O estado moral das populações ru-
raes modificou-se, pois, sensivelmente;
mas as condições materiaes da sua vida
fica'"am as mesmas. Os rudes leoneses,
os bravos e incultos companheiros de
armas de D. AlTonso Henriques ou de
D. Sancho I, mesmo os membros do
clero mais illustrados, pouco se occupa-
ram d'essas condições materiaes, e ainda
quando as quizessem alterar e melhorar
não o saberiam fazer. Os humildes mo-
sarabes do campo passaram, pois, com
grande jubilo dos seus corações, a serem
governados pelos seus irmãos em sangue,
em lingua e em religião; mas na econo-
mia interna da casa pobre, na cultura
imperfeita do bocado de terra, no trata-
mento do gado, continuaram a seguir to-
dos os processos, e a empregar todos os
termos, que lhes tinham ensinado os
moiros. Continuaram a moer o seu grão
em moinhos, movidos pela agua ou pelos
animaes, e a dizer a:{enha e atafona.
Continuaram a regar as suas hortas por
meio de engenhos, e a dizer a nora, e a
almanjarra da nora. Continuaram a or-
denhar as suas ovelhas e a dizer alavão.,
e almece. E' claro, que podia multiplicar
estes exemplos.
Estas vulgarissimas palavras plebcas
attestam-nos, pois, dois factos capitães :
primeiro, que uma revolução radical
transformou a vida caseira e agricola do
nosso povo, e teve lugar sob a intluencia
de uma gente que fallava a lingua ará-
bica : segundo, que nenhuma alteração,
egualmente radical, veiu depois destruir
o que ficava feito.
Se hoje, todos os documentos escriptos
da nossa historia desapparecesscm subi-
tamente, aquelles dois factos ainda fica-
vam provados pela simples existência de
taes palavras.
(Continua)
Conde de FICALHO.
R THADIÇAO
Com muito praser vi o novo periódico
alemtejano, que tiveram a bondade de
me fazer conhecer.
A « Tradição » , de Serpa, pelo program-
ma que se impoz e pela discreta diligen-
cia com que procura desempenhar esse
programma, representa, a meu ver, o mais
bello exemplo patriótico de educação pu-
blica exercida pela imprensa.
A pátria não é um organismo exclusi-
vamente politico, como cuido que ima-
ginam as nossas secretarias de estado.
A pátria e também a terra e a tradição.
A terra ama-se por simples instincto,
em virtude de leis naturaes que prendem
o affecto do homem aos logares em que
nasceu, assim como a raiz prende a ar-
vore ao solo de que bebe a seiva.
O amor da tradição, esse, é um resul-
tado educativo. Para amar a tradição é
preciso conhecel-a, e é no fundo d'esse
conhecimento que verdadeiramente re-
side a consciência da nacionalidade.
A nação portugueza — todos o sabem
— carece de delimitação geographica e
de fundamentos de raça. Povo de forma-
ção politica, feito a fio de espada pelo
valor indomável dos nossos antepassa-
dos, é no precedente histórico que elle
A TRADIÇÃO
185
tem a sua razão de ser, c c portanto no
espirito glorioso dos nossos mortos que
nós temos de retemperar dia a dia, o es-
pirito que nos une em coilectividade so-
cial, independente e autónoma. Tendo
tido por célula ancestral a enunciação
bellicosa de uma ideia, entraremos em
decomposição desde que cm nós c^m-O-
reça ou se abastarde o ideal que nos ge-
rou.
.V religião, que é ainda uma inexhau-
rivel fonte de consolações individuaes,
deixou de ser o laço dogmático, que ou-
trora prendia e ideniilicava todos os es-
píritos n'um sentimento commum.
Ao regimen theologico succederam-se
systemas philosophicos e consequentes
systemas políticos, que uns depois d'ou-
tros se teem aluído na vacuidade, produ-
zindo a geral índitTercnça entristecida,
que é o mal do nosso tempo.
Se portanto pretendermos reconstituir
a homog^íneidade moral, a conciliação de
ideias e de sentimentos, a convicção col-
lectiva cmtim, de que se deduz o que
poderemos chamar o estado dalma de
um povo, é, evidentemente, na historia
do nosso passado que teremos de recon-
solidar o combalido portuguezismo do
nosso ser.
Ora o que é a tradição senão a histo-
ria viva, permanente, por hereditariedade,
no lar domestico, nos usos e costumes
dos logares, nos processos do trabalho,
no engenho atávico, na arte e na poesia
do povo e na sua mesma lingoa ?
Inspirar-se na tradição, qualquer que
seja a forma de actividade em que cada
um opere, — na industria, na pedagogia,
na política, na arte, na litteratura, — é
fortalecer a nacionalidade. Renegar a tra-
dição é abjurar a familía e a pátria.
Facilmente se comprehende que no jor-
nalismo da capital, onde a intriga politi-
ca, a controvérsia dos partidos, o movi-
mento cosmopolita da sociedade, a hos-
tilidade dos egoísmos em concorrência
e o contiicto das \ aidades em lucta. absor-
vem quasi completamente a laboriosida-
de dos escriptores, occupe um logar su-
balterno, ou não tenha logar nenlnmi. .1
bthnologia do paiz.
De uma vez. em Beja, por occ;isiao
de uma festa publica em que se tinham
reunido alguns dos principaes elementos
de uma exposição ethnographica, um il-
lustre estadista, então chefe do governo
executivo, dizia, num desabafo de sym-
pathica ingenuidade, a um grupo de la-
vradores meus amigos:
— «Pois senhores, francamente lhes
confesso que nunca imaginei que o Alem-
tejo fosse isto!n.
Kstc insigne governante não tinha com
etleíto a mínima suspeita de que o Alf*m-
tejo, que elle então via pela primeira vez
em sua vida, fosse aquillo que o Alem-
tejo etfectívamente é. Tão profunda, tão
encyclopedíca, tão maravilhosa ignorân-
cia das coisas nacionaes n'uma das zonas
mais ccntraes de um paiz, todo elle tão
comprehensivel e tão diminuto, não é at-
tributo pessoal do personagem a que al-
ludo, e a que poderíamos chamar syn-
theticamcnte o Cioverno. Os homens pre-
dominantes do partido politico d'esse
Cavalheiro, os seus leaders, os seus pre-
sidentes de commissões, os seus orado-
res, os seus apagadores, os seus jorna-
listas, não estarão muito mais adeantados
do que elle no ponto de que se tratava
em Beja, ou de que se pudesse tratar em
Braga, em Vizeu, em Bragança, em Lei-
ria ou em Villa Real de Santo António.
F^.sta grande massa de desconhecimentos
acumulada na cabeça das pessoas é muito
commum na capital do reino.
O que me admira, o que me penalisa,
o que verdadeiramente me dóe, é que
nas províncias, onde na roda do anno se
dizem e se fazem menos tolices do que
as que se declaram em Lisboa no espa-
ço de cada dia appareçam periódicos
novos e robustos destinados a não faze-
rem mais do que repetir com mais em-
phatica tumidcz (porque a grandeosidade
do estylo está sempre na razão inversa da
estreiteza do meio) o que se diz na prosa
senil das folhas lisboetas. São, em peor
papel, e em typo.mais safado, as mes-
136
A TRADIÇÃO
mas allusões de calão, incomprehensi-
veis para quem não tiver a chave dos ci-
frantes; são os mesmos dichotes, as
mesmas piadas, as mesmas biscas, a
mesma preocupação vesanica de dandys-
mo avariado, a mesma iufantena a ca-
rallo^ como tão expressivamente dizia o
pobre Daudet.
Todo o meu agradecimento — e pena
tenho de que elle seja tão obscuro! —
aos que me proporcionam o refrigério
espiritual de receber do extremo Alem-
tejo, da pequena villa de Serpa, um pe-
riódico humilde e precioso, que sabe ser
genuina e largamente portuguez pelo sim-
ples processo de se conservar restricta-
mente provincial.
Dedicando-se a registrar a vida nacio-
nal da sua região, coordenando paciente-
mente todos os seus phenomenos pecu-
liares — os costumes domésticos e ruraes,
o ivpo phvsionomico, o amanho das cul-
turas, os utensílios da lavoura e da casa,
a indumentária, a alimentação, os ane-
xins e os apologos locaes, as historias
da borralheira, os contos de fadas e de
bruxas, o romanceiro regional, as loas e
os vilhancicos dos santos predilectos, as
cantigas das romagens entoadas em coro
ao compasso dos adufes, o vocabulário
popular, e o senso esthetico deduzido do
modo de construir o lar, de enastrar o
cesto, de moldar a bilha, de esculpir o
tarro de cortiça e a colher de buxo, de
tecer o alforge, de vestir e enfeitar a mu-
lher, de engatar a carreta e de arrear o
cavallo, — a pequena revista de Serpa,
que eu acabo de ler neste valle do Ja-
mor, entre as aldeias amoiriscadas da
freguezia de Carnaxide, enche-me de en
ternecido reconhecimento, e faz-me pen-
sar na bella obra que se faria se cada
uma das diferentes regiões do paiz con-
tribuísse com subsídios d'este valor para
a formação do grande livro inédito da
Pátria Portugueza.
Quinta de S. José a Linda-a-Pastora,
i3 d'agosto 99.
Ramalho ORTIGÃO.
]VIodas-estribilhos alemtejanas
Hei-de m'ir para o Algarve
Hei- de m'ir para Algarve,
— Sim, sim ! —
Hei-de lá 'síaV oito dias,
— ISlão, não ! —
Qiiero cantar e talhara
— Sim, sim ! —
Com as moças algarvias.
— Não, não ! —
M. Dias NUNES.
MEDICINA empírica
A erupção vesiculosa designada em me-
dicina por "^ona ou herpes ■^oster^ conhe-
ce-a o povo pelo nome de cobro. Esta
doença apparece, segundo a crença po-
pular, em qualquer pessoa, que vista uma
camisa por onde tenha passado um bicho.
E no estcndedoiro do lavado que a gente
do povo aífirma dar-se a perigosa inqui-
nação produzida pelos bichos.
Depois de lavada a roupa, costumam as
lavadeiras estendê-la no chão, expondo-a
assim ao sol para enxugar mais depres-
sa. Não admira, pois, que, nesta occasião,
qualquer bicho atrevido (um lagarto, uma
lagartixa, etc), transitando por ali, passe
por cima da referida roupa. Ora, como
succede ser a camisa uma das peças do
vestuário que mais anda em contacto di-
recto com o corpo, julga o publico que é
por intermédio delia que se transmitte o
gérmen da incommmoda erupção. E tão
arreigada se acha a crença de que vimos
falando, que as lavadeiras usam o inva-
riável preceito d'enxugar a roupa, vol-
tando-lhe o avesso para o chão. Ado-
ptando este pequeno artificio, julgam as
ingénuas lavadeiras evitar que ás pessoas
A TRADIÇÃO
187
Qfimmmim pugiep
IX
HEI-DE M'IR PARA O ALGARVE
(CHOREOGRAPHICA)
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138
A TRADIÇÃO
se communique, por aquella via, qualquer
secreção peçonhenta; mas o que, pela
certa, ellas ignoram c que estendendo a
roupa pelo chão, a expõem mui facilmente
á invasão dinnumeros micróbios existen-
tentes á superfície do solo.
A etiologia da -oua, enunciada, como
acima hca dito, por forma tão simples e
pittoresca, não passa evidentemente duma
perfeita fantasia; pois sabe-se hoje mui-
to bem, graças ãs modernas investigações
anatomo-pathologicas, que o herpes :;oster
está ligado a uma alteração nervosa, pro-
duzida por diversas causas, taes como:
um traumatismo, o frio, uma compres-
são de nervos, uma intoxicação, etc.
A'cerca da :^oua existe ainda uma su-
perstição, que merece ser registada. Con-
siste ella em suppor-se que, quando o
cobro une a cabeça ao rabo^ é um signal
fatidico, porque annuncia a morte do do-
ente.
A -ojia seguindo, como é sabido, o
trajecto dos filetes nervosos cutâneos,
apresenta varias formas, entre as quaes
o vulgo crê ver a figura dum bicho com
rabo e cabeça. São estas duas ultimas
partes que, juntando se, constituem, como
dissemos, um terrível presagio para a
pessoa atacada.
Passemos agora a occupar-nos do tra-
tamento popular do cobro.
Para combater esta banal enfermidade,
tem o povo por habito friccionar a re-
gião affectada com uma mistura de pól-
vora e vinagre, ou com o óleo do trigo
torrado. Este ultimo é usado de prefe-
rencia, porque parece actuar d'uma ma-
neira mais efficaz. Eu próprio testemu-
nho o bom êxito que vários doentes têm
colhido da applicação do óleo de trigo.
Eis como se costuma preparai- o cita-
do oleo:Leva-se á loja dum ferreiro uma
pequena porção de trigo em grão; depo-
sita se esse trigo em cima da bigorna,
e sobre elle colloca-se um ferro em brasa.
O trigo em contacto com o metal incan-
descente arde rápido, desenvolvendo uma
chama muito viva, e deixa á superficie
da bigorna uma camada d"oleo escuro.
semelhante á tintura d'iodo. Precisamen-
te neste momento, o ferreiro, fazendo de
medico, corre a untar os seus próprios
dedos no óleo assim preparado e fricciona
em seguida a região onde assenta o cobro.
O doente volta á loja do ferreiro duas,
três ou mais vezes, até que o cobro dê
indícios doestar morto., e não sejam por-
isso necessárias mais fricções.
O processo de cura, que acabamos
d'expôr, pôde afigurar-se um tanto extra-
nho; mas a verdade é que elle dá em
geral bom resultado, sobretudo quando
se trata do cobro puro, isto é, do cobro
livre de complicações, rcvelando-se-nos
como simples manifestação idiopathica.
Não terminaremos este despretencioso
artigo, sem um ligeiro commentario re-
lativo á etimologia da palavra cobro.
Parece que, por analogia, cobro deri-
va de cobra. E, a justificar esta deriva-
ção, temos a crença vulgar de ser a do-
ença do cobro produzida pela passagem
dum bicho sobre a roupa de vestir. Mo-
raes no seu aDiccionario da Lingua Por-
tugueza», definindo cobreio.^ — que os
nossos diccionaristas tomam como sinó-
nimo de cobro — diz : «doença que o vul-
go crê proceder de passar cobra por cima
das camisas ou roupa de vestir».
Devemos, porém, notar, baseando-nos
em o testemunho das lavadeiras e da gente
do campo, que a cobra, sendo um reptil
essencialmente arisco e fugitivo, nunca
se vê passar por cima da roupa. Os ani
mães, que se apontam como podendo
causar a ^ona., na passagem atravez do
nosso vestuário, são: lagartos, lagartixas,
ósgas, aranhões, etc.
O cobro, parece no entanto, ser uma
palavra genuinamente portugueza. O que
por emquanto não pude averiguar, é, se
também são de origem portugueza a cren-
ça e a superstição ligadas ao herpes :^os-
ter, ou se por ventura derivam de povos
mais remotos.
(Serpa)
Ladislau piçarra.
A TRADIÇÃO
139
O S. JOÃO EM SERPA
(Continuado áe paf;. 124)
Conhecer o desconhecido, devassar os
segredos do fuiuro, descerrar a bruma
enigmática e mysteriosa do porvir, — tal
é o objecto capital das experiências (ou
experimentações), cujo resultado se an-
tolha infallivel á crença popular.
Múltiplas e variadas na forma, podem
classitkar-se as experiências, quanto á
sua essência, em amorosas, económicas,
de vida ou morte próxima, e de meteo-
rologia. As do primeiro género são pe-
culiares das raparigas solteiras; vejamos
como estas soem levantar os horóscopos.
Como e, minuciosamente, para qué.
Km regra, as experimentações teem
logar á meia-noite, pouco mais ou me-
nos ; agora o resultado do maior numero
delias, senão da quasi totalidade, so-
mente é }'isirel na manhã de S. João.
Por sua vetustade immemorial, cum-
pre referir em primeiro logar a clássica
experiência da alcachofra (*).
Despontada á thezoura a flor do cardo,
a cabeça ou alcachofra é passada pela
chama da fogueira e depois posta ao re-
lento em toda a noite.
Refloresceu a alcachofra ?Se reflores-
ceu é certo o casamento*, no caso nega-
tivo, o celibato é fatal. H dada a hypo-
these da refloresccncia, conforme esta
foi grande ou pequena, assim o marido
ha-de ser homem solteiro ou viuvo.
Outra experiência, muito similhante á
da alcachofra, se pratica com uma planta
denominada em vulgar rabo-dc-^ato. Sa-
code-se a inflorescencia dum pedúnculo,
o qual, depois da sacramental passagem
pelo fogo santo, vac depositar-se, a noite
(*) A alcachofra usada nas experiências é a
do cardo de coalho (cinara carditnculus sylves-
tris), a^que chamam aqui «cardo de pencas» ou
simplesmente «penqueira», em razão das abun-
dantes folhas, compridas e carnudas, que acom-
panham o caule. E' comestível o talo d'esta va-
riedade do cardo.
inteira, junto a uma infusa cheia d'agoa.
A reflorescencia produziu-se r não se
produziu ? No piimeiro caso, vulgarissi-
mo sempre que ficou algum botão pres-
tes a desabrochar, a rapariga pode crer
que é amada pelo rapaz que namora;
que ella é a preferida, se porventura
tem alguma rival; que ha-de casar, in-
dubitavelmente, com o escolhido do seu
coração, etc, etc. No segundo caso. . .
adeus ricas esperanças ! adeus sonhos
damor!
A experiência cm questão usa-se tam-
bém, e largamente, fora da noite do Ba-
ptista. Ahi pelos mezes de Março e Abril,
em especial, tem ella grande voga entre
os ranchos de camponezas que mondam
as searas, onde o rabo vegeta abarrisco,
como que para tentar, dir-se-hia. a cu-
riosidade feminina. Ha porém a notar
uma variante na execução da engraçada
experiência. O pedúnculo, previamente
despojado de suas flores, é humedecido
no lábio e em seguida introduzido no
seio das raparigas, cujo calor substitue
(e vantajosamente. ..ia chamma das fo-
gueiras. E' mais rápido e mais. . . pitto-
resco, vamos! este modo de lazer a ex-
periência.
Eis umas rimas populares allusivas,
que ha tempo ouvi dizer a uma mulher
do campo:
Duas flores fde; perfeição.
A's tenças d'um bem-querer,
Foram ambas a fazer
No seio experimentação.
D'estas duas que aqui estão,
Uma era a que experimentava.
Em se ver tão recolhido,
Saiu das moças florido. . .
Entre as duas rabeava!
Não menos usada e não menos antiga
que as duas anteriores, é a experiência
dos credos. Effeitua-se d'est'arte: Com
um bochecho dagoa, reza-se o credo in
mente três vezes successivas, percorren-
do o espaço comprehendido entre três
portados que estejam na mesma direcção
140
A TRADIÇÃO
e dos quaes o ultimo deite para a rua.
A' rua se deita o bochecho d'agoa logo
que a experiente chegou ao portado íe?'-
miiius^ perto do qual se queda «a escu-
tar as vozes do mundo». O primeiro
nome masculino que a rapariga ouvir, é
o nome do homem que virá a esposal-a.
Succede ás vezes — coisa engiaçada ! —
ser d algum animalejo, que o dono cha-
ma, o nome pronunciado...
Experiência divertida, a da peneira,
cujo escopo consiste, principalmente, em
aquilatar das intenções amorosas d'al-
gucm.
Dos biccos duma thezoura, que duas
raparigas seguram ao de leve com dois
únicos dedos, está suspen-^a pelo aro, ver-
ticalmente, a m3'steriosa peneira conten-
do um rosário, uma fatia de pão e uma
mãochinha de sal. Acabada de soar a
ultima badalada da meia-noite, falia assim
uma das raparigas, a mais interessada
na operação:
— Em louvor de S. Pedro e S. Paulo,
e Jesus Sacramentado, e as Ondas do Mar
Salgado, dize-me Peneira, sim ou não:
(e aqui se formula expressamente a per-
gunta do que se deseja). Uma volta ar-
rebatada da peneira, que por si só se
move (sicj, é resposta affirmativa; a im
mobilidade importa negação.
Ha quem interrogue o prestimoso
utensilio caseirinho, elevado á categoria
de oráculo, para informar-se da bôa ou
má sorte, que espera determinada crea-
tura; para averiguar se sim ou não ap
parecerá certa cousa perdida, etc, etc.
A ditVerença está meramente na pergunta;
quanto ao mais, nenhuma alteração.
Três experiências — seculares, vulga-
res, e similares entre si : a do ovo, a da
cera e a da cin-a.
Um ovo, partido e deitado em meio
copo dagoa, fica durante a noite ao re-
lento. Ao outro dia ae manhã, ha rapa-
riga que vé nitidamente (sic; desenhar-se
na albumina, um ou mais objectos — sym-
bolos da profissão do seu noivo ideal. A
cinza, peneirada numa taboa e posta ao
sereno da noite, bem como a cera der-
retida, que é da praxe lançar n'uma ba-
cia d'agoa, possuem uma virtude reve-
ladora idêntica á do ovo. Cera e cinza
manifestam, aos olhos das meninas sol-
teiras, quantos symbolos appetece á phan-
tasia juvenil ! »
Mais três experiências populares, que
não devemos esquecer, são as da bacia
d'aíioa^ 5 réis e maçaus.
A bacia dagoa — como de resto todos
os objectos empregados nas experimenta-
ções — é exposta ao relento e, antes, pas-
sada pela fogueira quando bate meia-noi-
te. No dia seguinte, entre meio-dia e uma
hora, agoa para a rua! O nome da pes-
soa do sexo forte que primeiro atravessar
o local molhado, será, por sem duvida,
o nome do esposo. . . futuro.
A moeda de 5 réis é arremessada á
P3'ra, de cujas cinzas vae desenterrar-se
assim que rompe o dia, para com ella
esmolar o primeiro pobre que surge. O
noivo chamar-se-ha como o pedinte.
Entre meio-dia e uma hora, jogam-se
á rua as maçans, em numero de três.
Se ninguém cubicar o legendário fructo,
a menina irá á cova de palmito e capella,
na bem conhecida expressão popular. Pelo
contrario, se qualquer individuo passando
pela rua colher espontaneamente alguma
das maçans, o casamento ê seguro. E a
graça do maridinho? Egual á do tran-
seunte que o acaso deparou.
Que o leitor nos desculpe se começa-
mos a aborrecel-o; mas já agora mais
duas experiências, para completar a sé-
rie das amorosas.
U'ma ê a dos papelinhos — metade em
branco, metade inscrevendo diversos no-
mes — que as raparigas tiram á sorte.
Ficará solteira toda aquella a quem cou-
ber um papelinho em branco. Papelinho
escripto, traduz consorcio e até designa
o par da feliz donzella!
A outra experiência, que falta descre-
ver, ê feita com o auxilio de: um livro,
um pão, uma canna verde e um molho
de chaves. Estes quatro objectos, ou se
collocam em cima d'uma mesa, ou se
põem junto aos quatro cantos duma
A TRADIÇÃO
141
casa. Uma, duas, três ou quatro rapari-
gas entram na casa ás escuras, e cada
uma procura encontrar seu objecto cuja
posição particular ellas desconhecem. Ao
livro corresponde o prognostico de mor-
rer donzella; ao pão, o casamento com
um viuvo; á canna verde, o casamento
com um rapaz solteiro. O molho de cha-
ves significa que a rapariga c bòa dona
de casa, mas que morrerá solteira.
(Conclu«|
íM. Dias NUNES.
;\s IVs>;is (In Siicraiiieiihi pui Hcia
(Continuado de pag 126)
Neste dia e no domingo de manhã,
em que também ha missa e sermão, é a
festa extremamente concorrida por todas
as classes, desde o hiii;-life da terra, que
lá vai ostentar as loiletles ricas, estrea-
das no baile que a Sociedade Be/eme dá
aos sócios, na quinta-teira do Corpo de
Deus, até á costureira mais humilde, que
não se poupa ao sacriricio do vestido
novo.
Comparecem as auctoridades civis e
militares, e mais pessoas .gradas, que são
convidadas para todos os actos da festa,
aos quaes assistem em logares reserva-
dos.
Assiste também o Bispo, uma força
de sargento que faz a guarda d'honra
ao Senhor exposto, e uma delegação de
cada irmandade das difíerentes fregue-
zias.
As varias delegações, com o respectivo
reitor á frente e acompanhadas pela phi-
larmonica, sahem processionalmente da
egreja a que pertencem, até ao templo
onde a festa é celebrada.
No domingo, pelas doze horas da ma-
nhã, pouco mais ou menos, chegam ao
adro da egreja da festa as originalissi-
mas carradas de espadana, conduzidas,
á custa do reitor e thesoureiro, em car-
ros alemiejanos puxados por juntas de
bois, com as cabeças e cangas enfeitadas
de flores e fitas.
A originalidade das carradas, de for-
ma prismática, consiste principalmente
na sua ornamentação, feita com tiores
vermelhas (cm geral malvasardinhã) nas
faces anterior e posterior do macisso de
espadana. Ao centro dos caprichosos
arabescos, que as llores desenham, vcem-
se as iniciaes SS (Santíssimo Sacramen-
to) ou alguns emblemas eucharisticos.
Conservam-se as carradas em exposi-
ção em frente da egreja, pelo espaço de
duas horas, findas as quaes, seguem pe-
las ruas por onde deve passar a procis-
são, espalhando pelo solo a espadana,
correspondente á junca usada n'outras
terras.
Logo que termina a festa da manhã,
é distribuido um bodo a 200 ou Soo po-
bres, bodo previamente disposto no adro
da egreja em mesas cobertas dalvissi-
mas toalhas.
Cada pobre é esmolado com um pão,
meio kilo de vacca, quatrocentos gram-
mas d'arroz, cento e vinte cinco gram-
mas de toucinho, duas laranjas e cin-
coenta réis em dinheiro — tudo isto ador-
nado com flores artificiaes.
Finda a distribuição, que é acompa-
nhada de musica e foguetes, segue-se a
procissão do jantar aos presos.
(Continua)
(Beja). Alves TAVARES.
THERAPEUTICA MYSTICA
BENZEDURAS
Loulé fornece um bom capitulo de cu-
riosidades neste género. Não admira, por-
que, não ha muito tempo, um medico, da
escola antiga, resolveu se a tomar o ex-
pediente de curar uma dor por intermé-
dio do processo das benzeduras. Parece
que as orações eram antigamente recita-
das em verso; hoje, porém, restam-nos
exactamente como vão escriptas:
14:
A TRADIÇÃO
I
Benzedura do Tarpão
«Jesus, diz a benzedeira, santo nome
de Jesus, onde está o santo nome de Je-
sus não está mal nenhum.»
Continua a benzedeira: — «Eu te corto.»
Responde o doente: — «Farpão.»
Continua a benzedeira:
aisso mesmo é que eu te corto. Eu t'o
corto da cabeça, eu t'o corto dos braços,
eu t"o corto das pernas, para que tu não
possas reinar. Aqui te has-de de seccar,
aqui te has-de mirrar, d'aqui não has-de
passar. Hei-de-te mandar deitar para
alem das aguas do mar, onde não ouças
galinhas nem galos cantar, nem filhos
bradar.»
«Em louvor de Deus e de Maria,
Padre Nosso e Ave Maria.»
N. B. — Emquanto se dizem aquellas
palavras, passa-se por cima do ifarpão
uma argola de ouro ou um dente de alho.
Estp benzedura faz-se nove vezes, e no
fim de cada uma, reza a benzedeira um
Padre Nosso e uma Ave Maria, que se
offerece á Santa Luzia e á Sagrada
Morte e Paixão de Christo.
O paciente reza também o P. N. e
Ave Maria.
II
Benzedura do mau olhado
«Jesus, santo nome de Jesus, etc., etc.»
Diz depois a benzedeira:
a Eu te benzo, criatura, do mau olhado.
Se fôr na cabeça, em nome da Senhora
da Cabeça, se fôr nos olhos, em nome
de Santa Luzia, se fòr na cara, em nome
de Santa Clara, se fôr nos braços, em
louvor de S. Marcos, se fôr nas costas,
em louvor da Senhora das Verónicas, e
se fôr no corpo, em louvor do meu Se-
nhor Jesus Christo, que tem o poder todo.
Santa Anna pariu a Virgem e a Virgem
pariu o meu Senhor Jesus Christo, assim
como isto é verdade, assim seja este
olhado d'aqui tirado e para as ondas do
mar deitado, onde não ouça galo nem
galinha cantar».
«Em louvor de Deus etc, etc, etc»
N. B. — Esta benzedura faz-se com
um rosário na mão. Reza-se uma Salve
Rainha, ofFerecendo-se a Nossa Senhora.
Faz-se esta benzedura nove vezes.
O paciente reza também a Salve Rai-
nha.
III
Benzedura da constipação
«Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
Diz depois a benzedeira:
« Benzo esta constipação do sol em honra
de Deus Omnipotente, benzo esta cons-
tipação do calor e da febre, em honra e
louvor de N. Senhora das Neves, benzo
esta constipação repentina, em louvor de
Deus e de Santa Catharina, benzo esta
constipação da frieza em louvor de Deus
e de Santa Thereza. Tira-te para fora
das costellas, assim como Jesus Christo
foi crucificado; tira-te para fora da bar-
riga em louvor de Deus e de Santa Mar-
garida; tira te para fora do corpo, assim
como Jesus Christo foi morto; tira-te
para fora dos pés, em louvor da Virgem
Santissima, mãi dos peccadores.»
«Em louvor de Deus etc, etc, etc.»
N. B. — Benze-se o paciente três dias
e em cada dia três vezes. Volta-se a crea-
tura com as costas para quem a benze
e diz-se o credo nove vezes, sempre com
a mão a fazer cruzes sobre as costas do
paciente. No fim de uma serie de três
credos reza-se uma Salve Rainha á Se-
nhora das Dores e um Padre Nosso e
uma Ave Maria ás cinco Chagas de
Christo. O paciente reza também.
IV
Benzedura da dôr de barriga
«Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
Diz a benzedeira :
«Quando N. Senhor pelo mundo anda-
I
A TRADIÇÃO
148
va, chegou a casa de um homem bom e
d'uma mulher brava. Pediu pousada e o
homem dava e a mulher não dava. \ Se-
nhora foi deiíar-se e logo começou a cho-
ver agua por cima e por bai.\o, e com es-
tas mesmas palavras a dôr da barriga
será curada.»
«Em louvor de Deus etc, etc, etc.»
N. l^. — Ksta oração reza-se nove vezes.
BeDzedura de um nervo torcido
«Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
Diz a benzedeira. — «Ku coso.»
Responde o doente. — «Osso quebrado,
nervo torto.»
Continua a benzedeira :
"Cose a Virgem melhor do que eu coso.
A ^'irgem cose pelo são e eu coso pelo
vão.«
oEm louvor de Deus etc, etc, etc.»
N. B. — Depois de se fazer aquella
benzedura, molha a benzedeira os dedos
em azeite e esfrega com elles a parte
dorida. Reza um P. N. e uma Ave Ma-
ria a Santo Amaro, advogado das per-
nas e dos braços. No fim, olíerece-se
tudo á Sagrada xNlorte e Paixão de Chris-
ío. Esta benzedura taz-se nove vezes.
N. B. — A própria benzedeira em-
quanto reza a oração e diz «eu coso» fin-
ge coser um novello de linhas com uma
agulha.
M
Benzedura da erysipéla
«Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
Diz a benzedeira :
«Indo Nossa Senhora por seu caminho,
com a i'e7^mclhiiiha se encontrou. Nossa
Senhora lhe perguntou: «para onde vais,
i'ej'>?ielluJiha? » Ki>ermelhinha respondeu:
«vou comer a tua carne, roer os teus os-
sos, e beber o teu sangue.»
Nossa Senhora lhe disse: «não has-de
comer a minha carne, nem roer os meus
ossos, nem beber o meu sangue, porque
eu aqui te hei de cortar e hei de te re-
talhar. — Jesus! o que corto? lirysipéla
corto, a erysipéla sanguinea, erysipéla
negral, o erysipelar e o ar, e todas as
qualidades de erysipéla, que haja, aqui
te secco e te corto; morrerás e daqui
não passarás.»
o Rim louvor de Deus etc, etc, etc."
N. B Em quanto se dizem aquel-
las palavras, faz a benzedeira a imitação
de cortar com uma faca a enfermidade,
cortando um pedaço de pau de figueira,
nove vezes, e rezando um P. N. e uma
A. M.
(Loulé)
(Concluc)
Athayde d'OIJVEIRA.
CONTOS POPULARES ALEMTEJANOS
IX
o Era e não Era
Havia numa aldeia dois compadres;
um era muito rico e outro muito pobre.
O rico não tinha familia, e o pobre tinha
dois filhos.
Um dos filhos, achava o pae que era
parvo e o outro muito esperto.
Aquelle que o pae julgava parvo, pô-lo
a guardar gado, e o outro, queria que
fosse padre. Mas, como, para fazer o fi-
lho padre, o pae não tinha dinheiro, foi
ter com o compadre rico e pediu-lh'o
emprestado, dizendo que o filho lhe pa-
garia em dizendo missa.
O compadre rico emprestou o dinheiro
ao compadre pobre, e o filho deste foi
para a escola. Mas, desgraçadamente, o
rapaz nunca foi capaz de passar do «livro
de seis vinténs» ! Ora, o compadre rico,
sabendo disto, foi a casa do compadre
pobre e disse-lhe :
— «Então, compadre! como has-de (*j
tu agora pagar o que me deves, se o teu
filho nem ao menos foi capaz de passar
(M O povo pronuncia : ha-des.
U4
A TRADIÇÃO
do I livro de seis vinténs» ?I Mas olha, ha
um meio de me pagares. Sabes que
meio é ? B
— «Eu não, senhor compadre» — res-
pondeu o compadre pobre.
— «Pois bem. Esse meio é arranja-
rem-me uma mentira que seja maior que
o Padre Nosso. Dou-lhes para isso sete
dias; e no hm desse tempo, se a tiverem
arranjado, perdôo-tc a divida.»
Em vista disto, o pae e o rilho puze-
ram-se a combinar que mentira haviam
d'arranjar. Estavam já no sexto dia, e
não arranjavam nada, se o rilho, que elle
achava parvo, não viesse a casa essa noite.
Esse rilho, vendo-os muito tristes da
sua vida, perguntou-lhes: «Então, o que
teem, que estão tão tristes?» O pae con-
tou lhe o que havia, e elle respondeu:
«Bem. Não lhe dé isso cuidado, que eu
vou a casa do meu padrinho.» No outro
dia, foi logo a casa do padrinho, e, assim
que lá chegou, disse-lhe: a Sabe, padri-
nho, o que eu venho cá fazer hoje? Ve
nho coniar-lhe um caso.»
— «Era uma vez um era e não era^ que
andava lavrando na serra, com um boi
caihandro e outro carrapato, quando lhe
foi a noticia que o pae era morto e a
mãe por nascer. Vae, o homem o que
havia de fazer? Poz os bois ás costas e
o arado a comer.
«D'ali foi por um valle abaixo e encon-
trou um ninho de cartaxo com cinco ovos
de batárda (abetardaj. Deitou-os á burra
preta e tirou-os a burra parda, saindo-
ihe dois leões, que nem galgóes. Um dia
foi á caça com os seus galgÕes, e subin-
do um valle abaixo, viu uma laranjeira
carregada de romãs. Foi acima delia e
colheu marmellos. Veiu para baixo e
apanhou maçãs. Nisto, vem de lá o dono
do meloal e diz lhe : «O' seu amigo!
quem lhe deu a Você licença de colher
favas do olival que não é seu?» E ati-
rando-lhe com um tarrão (torrão), deu-
lhe com um melão, que, aceitando-Ihe na
testa, lhe fez sangue num artelho.
«Dali foi contar umas colmeias, não as
deu contadas. Foi contar as abelhas, fal-
tava-lhe uma. Foi á busca da abelha, en-
controu sete lobos comendo nella. Assim
que viu isto, atirou-lhes com uma macha-
dinha que levava. Os lobos fugiram, dei-
xando ainda uma perna da abelha.
«Aquella perna, espremeu-a, e ainda
lhe deu sete canadas de mel.
«Mas, como não tinha onde o mette. ,
tirou um piolho e fez da pelle um sur-
rão e deitou-lhe o mel dentro.
«Foi á busca da machadinha, não a en-
controu, e, puxando fogo ao matto, ar-
deu o ferro e ricou-lhe o cabo; mas o bar-
beiro, trabalhando sete dias e sete noites,
saiu-lhe um anzol.
«Um dia foi á pesca e apanhou uma
burra com cangalhas e tudo.
«A burra, com o trabalho, fez-se-lhe
uma matadura, e elle foi logo a casa do
ferreiro para lhe ensinar alguma coisa. O
ferreiro ensinou-lhe um alqueire de fa-
vas torradas.
«Ora, com o calor das favas, a burra
morreu, tendo por isso de a levar para o
almargem. Dahi a tempos, passou por
aquelle sitio e viu um faval nascido no
lombo da burra.
«Ficou muito admirado; e, quando foi
tempo de ceifar o faval, foi lá e encon-
trou-lhe dentro uma porca javarda com
sete javardinhos. Assim que a viu atirou-
Ihe logo com a fouce que levava, e o
cabo tanchou-se-lhe no rabo.
«A javarda, como se sentia ferida, co-
meçou a fugir para todos os lados, de
maneira que, com a foice ceifava, com
as ventas limpava, e com as patas debu-
lhava.
«E o faval, padrinho, deu tantas favas,
que vendeu sete quarteiros e ainda man-
dou ao padrinho um presente, que era
muito mais que as que vendeu!»
— «O' afilhado!» — respondeu o pa-
drinho — «isso é mentira ! . . . »
— «Pois, padrinho, foi isso mesmo que
eu cá vim fazer, para lhe pagar o que
meu pae lhe devia.»
(Da tradição oralj
(Brinches).
António ALEXANDRINO-
A.iino I — :N.« IO
SEBPâ. Outabro de 1899
Série I
Editor-administrador, Jote Jeronymo da Coita Bravo de Segreirot, Rua Larga, a e ^ — SERPA
Typographia de Adolpho de Mendonça, Kua do Corpo Santo, 46 e 4a — LISBOA
A TRADIÇÃO
>
REVISTA lYlENSAL OETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
Y^\RECTORE.S: — LADISLAU PIÇARRA e M. DIAS NUNES
O elemento árabe na lingaagem dos pastores
alemtejanos
(continuado de pa^^. 134)
Da tosquia pouco ha a dizer. A no-
menclatura c simples, e as palavras em-
pregadas bem conhecidas.
Nas grandes lavoiras alemtejanas, a
tosquia ainda é, e sobretudo foi, uma
festa annual. Quando deve ter logar, alii
pelos fins de abril ou princípios de maio,
todos os rebanhos recolhem á principal
herdade do amo. Ali se reúne todo o
gado de lan, todos os pastores, e a qua-
drilha dos fosquiadores ( »). Durante os dias
de tosquia, em numero variável natural-
mente segundo o numero do gado e o
numero dos tosquiadores, estes recebem
ou um salário bastante elevado a secco,
ou um salário menor e de comer. N'este
ultimo caso é que a tosquia constitue
uma festa. O Jantar dos tosquiadores é
lauto, constando de legumes, hortaliças,
toucinho, carne de ovelha, queijo e vi-
nho. E este jantar estende-se a todos os
pastores, a todos os outros creados da
lavoira, e aos pobres e mendigos, que
vêm de legoas de distancia receber os
abundantes restos.
A tosquia faz-se habitualmente ao ar
(M A organisação d'estes grupos, algumas ce-
rimonias e ornatos de que usam, são extrema-
mente interessantes; mas não pertencem pro-
f)riamente á linguagem e vida do pastor, e me-
hor serão estudadas separadamente.
livre, em um terreno junto do monte,
bem battido e bem varrido, chamado o
tendal. Os pastores agarram as ovelhas
e carneiros, atam-lhes os quatro pés com
um alfirme^ e estendem- nos cm linha
sobre o tendal. Cada um dos tosquiado-
res passa então a tosquiar uma cabeça
de gado. Acabada esta, a lan do carnei-
ro, ovelha ou malato, é enrolada em
véllo. A lan dos borregos, chamada an-
ninho., que ainda não pode formar véllo^
vae sendo recolhida em golpelhas. Algu-
ma thezourada que escape é tratada pelo
próprio tosquiador com pó de canhão,
ou de caravão., como elles dizem. Mas
se a ovelha tem ronha., o tratamento é
mais demorado e feito pelos pastores,
que a untam com mera.
A mera é uma substancia semi-liqui-
da e de côr escura, obtida por distillaçao
de diversas madeiras, do zimbro, do
zambujo ou do azinho. Nas nossas re-
giões é quasi toda feita na Amarelleja,
uma aldeia do concelho de Moura, donde
a trazem a vender em odres; e, segundo
me informam, é exclusivamente feita com
a lenha de azinho estilada.
Mesmo que a cabeça de gado esteja
san, passa geralmente ao sair das mãos
do tosquiador, por uma lavagem do lom-
bo, dada pelos pastores. Para isso, estes
têm feito nos dias anteriores cozimentos
de hervas aromáticas em grandes tachos
de arame. Mysteriosamente, como se se
tratasse de algum encantamento, o pas-
tor vigia a fervura, mechendo com um
pausinho as plantas, nas quaes parece
146
A TRADIÇÃO
predominarem as labiadas. O ingre-
diente mais constante d'estes cozimen-
tos — porque as receitas variam — é no
emtanto a cebola ãlvarrani}). Se accres-
centarmos, que o momento da tosquia é
também o da inais i-igorosa contagem do
gado, teremos dito tudo quanto possa ter
algum interesse.
Passámos assim em revista as princi-
paes phases da vida do pastor, vida que
pode parecer ociosa, porque elle tíca ho-
ras e horas, encostado ao cajado ou sen-
tado numa pedra, vendo pastar o gado;
mas que na realidade é uma vida dura.
As noites tempestuosas de inverno dor-
midas ao relento, os terriveis soes aiem-
tejanos, apanhados a pé firme muitas
vezes sem uma so;nbra, as longas cami-
nhadas de herdade para herdade ou em
épocas de feiras, exigem do pastor does-
tas nossas regiões uma robustez espe-
cial, que elle só alcança, começando a
ser \agal desde quasi creança.
E' necessário accrescentar, que o alem-
tejano é geralmente um bom pastor, in-
telligente e perito, conhecendo as neces-
sidades do gado, sabendo dar as voltas
para aproveitar as pastagens, sabendo
procurar os sitios para armar a rede em
tempos ásperos; e sobre issa cuidadoso.
Para esta ultima qualidade contribue o
facto de elle ser uma espécie de sócio do
amo. Alem de ganhar a pequena soldada
em dinheiro e as comedias^ o pastor traz
no rebanho um certo numero de ovelhas
suas, a que se chama o seu pegulhal.
Esta antiquissima palavra de origem la-
tina, que em outras regiões significa um
rebanho ou um pequeno rebanho, appli-
ca-se restrictamente no Alemtejo ás ove-
lhas do pastor (^). O pegulhal é uma ver-
(') A cebola alvarran ou albarran (bolbo da
Scilla marítima L.) deriva o seu nome vulgar do
adjectivo arabe barraní^ que significa campestre:
cebola alvarran é, pois, a cebola brava ou dos
campos, em opposição á cebola cultivada ou das
hortas.
{') Os porqueiros também trazem no rebanho
alguns porcos seus, que do mesmo modo se
chamam pegulhal.
dadcira parceria ; as ovelhas são do
pastor, e ao pastor pertencem os borre-
gos e a lan, emquanto ao amo perten-
cem os estrumes e o leite, o que paga
sufficientemente a pastagem. Embora a
existência do pegulhal possa dar logar a
algumas fraudes, dá por outro lado ao
pastor um interesse especial no seu re-
banho ; mas iamos caindo de novo nas
questões económicas de que nos temos
systematicamente afastado.
Pelo que fica dito se vê, que o pastor
do Alemtejo emprega um numero consi-
derável de palavras, tendo uma origem
arabe bem patente. Não é, porém, sim-
plesmente n'estas palavras que se revela
a antiga influencia dos moiros. A meu
ver, em todo o regimen do gado se pode
ainda descobrir o influxo de um povo
pertencente á raça semitica, de instinctos
nómadas e para quem durante muito
tempo o gado foi a principal riqueza.
Isto é sem duvida mais sensivel na Hes-
panha, onde existem os rebanhos trans-
humantes. Mas mesmo no nosso Alem-
tejo, apezar de não haver verdadeira
transhumancia, os grandes rebanhos vi-
vendo constantemente nos descampados,
mudados repetidas vezes para legoas de
distancia, guardados por homens feitos
que d'isso fazem a sua profissão, lem-
bram-nos o que se passa ou se passou
em tempos remotos entre semitas. Lem-
bram-nos os árabes do Sahará Occiden-
tal, percorrendo com os seus rebanhos
centenas de legoas em busca da escassa
herva, que fez brotar a escassa chuva.
Podem mesmo lembrar-nos os velhos pa-
triarchas da Biblia, caminhando com as
suas famílias e os rebanhos, que consti-
tuíam toda a sua riqueza. E' claro que
tudo isto se attenuou no nosso paiz du-
rante séculos pela appropriação dos ter-
renos, pela diminuição dos baldios, pela
divisão da propriedade, por muitas ou-
tras" causas que restringiram as migra-
ções; mas não julgo diflicil descobrir ain-
da nos hábitos d'esta nossa gente do sul
a remota acção de um povo de pastores
nómadas.
A TRADIÇÃO
147
148
A TRADIÇÃO
E isto torna-se talvez mais evidente,
comparando-o com o que se passa no
norte do paiz. Ali o regimen do gado,
particularmente do gado de lan, é intei-
ramente diverso. As ovelhas fraccio-
nam-se em pequenas parcellas. Tor-
nam-se mais caseiras, recolhendo todas
as noites aos curraes, aos alpendres, aos
estábulos dos casaes ou dos logares. A
sua guarda entrega-se geralmente aos
cuidados de creanças, que ainda não
téem força para trabalhar de outro mo-
do. Pequenitos ou pequenitas de doze,
de treze ou de quatorze annos levam o
gado para as veigas do valle, ou para as
boiças do monte. De que este ultimo fa-
cto é antiquíssimo, temos uma prova
muito curiosa. Nos mais antigos monu-
mentos da nossa lingua, a palavra pas-
tor (como outras palavras terminadas em
or não tinha então feminino e applica-
va-se a ambos os sexos) a palavra pas-
tor era synonymo de moço e de moça.
Nos Cancioneiros do XIÍI e XIV séculos
ha dezenas de exemplos deste sentido
dado á palavra. Em uma canção de Es-
tevam da Guarda, este aconselha a um
moço e mau poeta, que seja modesto: em
quanto /ores tam pastor d idade — o sen
tido é perfeitamente claro. Em outra can-
ção de Pêro de Veer, por signal encanta-
dora, uma rapariga abandonada pelo na-
morado, queixa-se dizendo:... eu fiquei
mui coitada pastor^ como quem dissesse,
uma moça muito infeliz. O Livro Velho
das Linhagens diz de um D. Fernam de
Castro, que foi o melhor pastor d'Espa-
nha^ como hoje diríamos o melhor rapaz
de Hespanha. Basta de exemplos i'), e pe-
dimos desculpa d'esta digressão pelos do-
mínios do velho portuguez; mas vinha de
molde ao nosso argumento. Para que este
sentido se desse figuradamente á palavra
pastor era necessário que os verdadei-
(•) Veja-se D. Carolina Michaelis de Vascon-
cellos, Randglossen ^um alt-portugiesischen Lie-
derbuch I, õ8; ao favor d'esta erudita escriptora
devemos a indicação de tão curioso íacto philo-
logico.
ros pastores fossem habitualmente quasi
creanças, como hoje são. E para que es-
tivesse estabelecido no principio do XIII
século era necessário que o habito fosse
antigo, e viesse do principio da monarchia
e de antes. Isto deixa-nos entrever, que em
terras do Minho e Douro, e em terras de
Galliza, o regimen do gado e o systema
de cultura fosse desde bem remotos tem-
pos muito similhante ao actual; rapazitos
e rapariguitas guardavam os pequeninos
rebanhos de uma pequenina cultura. Eu
bem sei, que a natureza geológica do solo
e o seu relevo, a distribuição das aguas
e outras causas puramente physicas ex-
plicam em grande parte a extrema divi-
são da propriedade e da cultura, e, por-
tanto, o regimen do gado, que de tal di-
visão depende; mas será licito attribuir
uma pequena parte á influencia menor
dos semitas, muito menos intensa ali por
muito mencs duradoura.
Pelo contrario, n'estes nossos campos
de Serpa, que foram terra de moiros
durante quatro séculos e meio sem inter-
rupção, aquella infiuencia ficou perfeita-
mente marcada.
Conde de FICAI. HO.
TRADIÇÃO DE UM OFFICIO
Convém fixar a tradição da antiga in-
dustria do barbeiro nacional, porque é
um dos officios que teem passado por
maiores transformações entre nós.
Ainda nas províncias se encontra, é
certo, o typo primitivo d'essa profissão.
Mas o progresso alterou-o profundamente
nos principaes centros do paiz, e é de
suppor que a evolução vá irradiando,
ainda que lentamente, das cidades civili-
sadas para as mais remotas povoações
montezinhas.
A loja do barbeiro, pequena e infecta,
denunciava-se no exterior pela porta de
vidros, pintada de verde, e pela bacia de
latão em meia lua, emblema do officio.
Muitas vezes o barbeiro não tinha loja,
trabalhava ao ar livre, o que ainda hoje
A TRADIÇÃO
149
não deixou de acontecer em certos arre-
dores saloios de Lisboa, incluindo o
Campo Grande, quando ali se realisa o
mercado dos moços de lavoira. N'outras
povoaç(5es, que ficam afastadas da egreja
parochial, o barbeiro, se não reside na
freguezia, chega ao domingo antes da
tmissa das almas», assenta arraial junto
ao adro, e tange uma buzina para dar
signal aos habitantes que desejem bar-
bear-se para ir á missa, o que aliás é do
esivlo.
Na Povoa de Varzim, onde tem pene-
trado a civilisação do Porto, a symbo-
lica bacia de latão, pendurada sobre a
porta da loja, foi substituida por enor-
mes tesoiras doiradas, abertas em X.
O barbeiro antigo não tinha as mais
das vezes official, porque os seus escas-
sos lucros lh'o não consentiam, mas ti-
nha sempre um aprendiz, que fazia tiro-
cinio ensaboando as faces dos freguezes,
e cuidava da hypothetica limpesa da loja.
A operação de aensaboar» requeria
grande destresa de movimentos, que se
não podia adquirir de um dia para o
outro. A mão manobrava ágil sobre a
cara do padecente, sendo o dorso dos
dedos que ia distribuindo a espuma
n'uma fricção rápida, quasi sempre con-
tundente.
O freguez, ajoujado dentro de uma
toalha folhuda, muito recalcada no pes-
coço, soffria ainda o supplicio de uma
semi-colleira de barro : era a bacia de
louça branca, em forma de crescente
musulmano, com ornatos azues.
No folho da toalha consistia o luxo
único admittido n'esta industria pela tra-
dição; mas a mesma toalha servia para
uma longa serie de dias e queixos, salvo
o caso de apparecer na loja algum fo-
rasteiro graúdo, o que raras vezes acon-
tecia.
O «panninho da barba», hoje substi-
tuído nas cidades pelo livrete de papel,
que perde uma folha depois de servido
cada freguez, ficava atravessado no hom-
bro direito da victima á laia de dragona
pendente sobre o omoplata.
Kmquanto o aprendiz manobrava com
o tradicional sabão amarello, gordo e
pegajento, o mestre dando trella aos fre-
guezes, porque não havia melhor soa-
lheiro, passava a navalha sobre o assen-
tador, que era ordinariamente um pau
de piteira.
A mão calosa do rapaz, roliça de friei-
ras no inverno, punha de tal modo arre-
piada a face do freguez, se não contun-
dida, que bem pode ser que viesse d'ahi
o chamar-se aensaboadella» a qualquer
reprimenda áspera, que deixa uma pes-
soa de cara á banda.
O que não padece duvida, porém, é
que a palavra « barbeiro", na accepção
de vento rijo e cortante, proveio da bru-
talidade com que o mestre-escama fazia
a barba aos freguezes, não obstante o
prévio simulacro de assentar o fio á na-
valha e experimental-o golpeando a unha
do dedo pollegar mais de uma vez.
Também ficou em uso a locução «fa-
zer a barba» para significar que se dei-
xou qualquer pessoa oem castigada.
Terminada a «ensaboadella» pelo
aprendiz, preparava-se o mestre para
entrar em luncções; e se não estava bem
certo nos hábitos do freguez, pergunta-
va-lhe :
— Quer dedo ou noz ?
Metter o dedo dentro da bocca do pa-
decente era requisito indispensável para
dar-lhe relevo á face, de modo que a na-
valha podesse correr melhor, levando
coiro e cabello.
Se, porém, ao padecente repugnava a
unha negra do barbeiro, tinha de fugir
de Scylla para ir naufragar em Charyb-
dis, acceitando a noz, natural ou artifi-
cial, que devia conservar na bocca em-
quanto fosse barbeado.
Este simples facto revela ao mesmo
tempo o atrazo de uma industria e da
hygiene publica em Portugal ; milhões
de micróbios, pneumococcus e quejan-
dos, passariam de bôcca em bôcca trans-
portados pelo dedo do barbeiro ou pela
noz que o substituia.
Para se evitar o contagio que pode
150
A TRADIÇÃO
transmiltir-se pela navalha, não havia
precaução nenhuma ; e comtudo seria tão
tacil como barato desinfectal-a ao fogo.
O barbeiro, quando tinha a loja cheia
de gente, o que ordinariamente acon-
tecia aos sabbados á noite e aos domin-
gos pela manhã, ainda mais abreviava o
trabalho, deixando ás vezes vários gilva-
zes na cara do freguez.
Também acontecia perder a tramon-
tana, com prejuizo dos queixos alheios,
quando algum garotote lhe gritava á
porta :
— O' mestre I tem obra feita ?
Estas chalaças do rapazio a determi-
nadas industrias foram desapparecendo
lentamente, e estão quasi perdidas na
tradição.
Não ha gavrochc em Lisboa que se
lembre agora de arreliar um carvoeiro
perguntando-lhe:
— Já deu meio dia em S. Paulo?
O Figaro portuguez sempre teve veia
politica, por isso os assumptos da go-
vernação publica são de preferencia dis-
cutidos nas suas lojas. Na província, o
barbeiro contenta-se de tornear os negó-
cios do estado, commentando-os ; mas
em Lisboa os barbeiros dos ministros
teem a pretenção de fazer parte da en-
grenagem burocrática, e não são já pou-
cos os que estão empregados em secre-
tarias e repartições como contínuos e
serventes.
Também d'antes appareciam alguns
baibeiros com veia poética: o mais illus-
tre desta espécie foi o nosso Quita, de
arcadica memoria.
Proseguindo afanosamente na tarefa,
levando coiro e cabello, ou deixando o
cabcllo e levando o coiro, como do seu
barbeiro dizia Nicolau Tolentino, che-
gava o momento do mestre-escama pro-
ceder á ultima operação da barba: a la-
vagem da cara ao freguez, com o dorso
dos dedos molhados em agua fria, na ba-
cia de meia lua.
Vinha certamente do ceu essa ligeira
ablução refrigerante, para acalmar o in-
cêndio das faces irritadas.
Nem borla de amido, nem irrigador
de agua de Colónia, nem pedra de alú-
men; tudo isso veio com o tempo, a
pouco e pouco.
Havia um vocabulário de classe, por
exemplo: escama?^ um besugo era fazer
uma barba difficil.
Mas cada barbeiro tinha expressões
propriamente suas, para se distinguir
como bem fallante.
No Porto havia um, afreguesado com
estudantes, que costumava perguntar:
— Deseja á contra?
Era um circumloquio para não dizer
se queria escanhoado ao arrepio.
Durante séculos, e ainda hoje succede
algumas vezes, o barbeiro accumulou
com as funcções do seu officio as de ci-
rurgião sangrador e de tira-dentes.
N'esta triplice qualidade era uma pes-
soa altamente cotada na parochia.
Trabalhada a cara, passava o nosso
Figaro a operar na cabeça do freguez.
Raspava-a com o «pente dos bichos»,
pente miúdo, feito de chifre; raras vezes
o padecente deixava de estremecer sac-
cudido pelo violento raspão d'essa espé-
cie de almofaça.
Depois seguia-se o penteado. Os cos-
méticos em uzo eram o óleo de macas-
sar e a banha de cheiro, feita de sebo
de carneiro e tutano de vacca, levemente
aromatisada de espirito de lima e car-
minada pela cochonilha.
As caixinhas de cartão para conter a
banha constituíam uma industria muito
generalisada no paiz; os presos da Rela-
ção do Porto fabricavam todos os mezes
grozas d'ellas.
Quando o freguez sahia, finalmente,
das mãos do barbeiro, sentia-se alfor-
riado de uma escravidão terrível. Res-
pirava a plenos pulmões, satisfeito. E es-
portulava um vintém ou trinta reis, se
não estava contratado a seis vinténs ao
mez, na rasão de quatro barbas por se-
mana.
Hoje o arsenal do barbeiro está com-
pletamente transformado nos grandes
centros de população e já em algumas
A TRADIÇÃO
151
villas mais importantes. Os dedos foram
substituídos na ensaboadella pelo macio
pincel, que depois de humedecido se
embebe em pó de sabão. A' bacia de meia
lua succedeu o lavatório de mármore. A
navalha é polida com esmeril e desinfe-
ctada Qom acido phenico. Os assentado-
res de correa, que substituíram o pau de
piteira, teem sido quanto possível aperfei-
çoados no extrnngeiro. Ha jornaes que os
freguezes vão lendo emquanto esperam:
o Século é de rigor. As lojas estão mon--
tadas com decência; algumas com luxo.
Abundam os gr;indes espelhos e cande-
labros e sobre a prateleira de mogno,
corrida ao longo da parede, agglome-
ram-se os pentes de massa, marfim e
tartaruga, as escovas, os sabonetes, os
cosméticos e elixires. Não faltam pentea-
dores e toalhas, algumas de renda. Ha
ferro para frisar o bigode e brilhantina
para o lustrar; machina para cortar o
cabello; lâmpada de álcool e bico de gaz
para aquecer a agua e o ferro. Também
ha navalhas mecânicas, de origem ame-
ricana, que substituem o barbeiro.
O próprio barbeiro deixou de cha-
mar- se assim. E' cabelleireiro ou coiffeur.
Mas ainda subsiste o costume de tratal-o
por «mestre» : único vestígio do passado
que a evolução não apagou.
As barbas subiram de cotação — a 6o
réis cada uma; foram subindo á medida
que os fundos públicos desceram.
(Lisboa)
Alberto PIMENTEL.
corrida da vacca das cordas em Ponte de Lima
(Conclusão)
A vereação de 1884 suspendeu e poz
termo a essa velhíssima usança; mas
n'esse mesmo anno houve um particular
que, embirrando com usos, costumes,
leis e moças novas, obtida a previa li-
cença camarária poz em scena publica,
á sua custa, a mesmíssima corrida.
E foi-se de uma vez tal espectá-
culo.
— Mas, pergunta toda a gente, qual
foi a origem, quando iniciado e que si-
gnificação tinha ?
— Hoc opus^ hic labor est. Não ha ne-
nhuma memoria, não corre nenhuma tra-
dição. Arriscamos, porém, uma opinião,
que é só nossa.
Segundo a mvthologia, Io, íilhn do rei
Iraclio e de hmene — po?- formosa c mei-
ga, — veio a ser requestada por Júpiter.
Juno., irmã e mulher deste apaixonado
pae dos deuses, que lia no coração e
pensamentos do sublime adultero e ve-
lava sempre sobre tudo quanto elle me-
ditava e fazia, resolvera perseguir e des-
fazer-se da comborça que lhe trazia a
cabeça n'uma dobadoura. F^lle, para sal-
var da vigilância de Juno a sua apaixo-
nada, metamorfoseou-se em vacca : —
mas aquella mandou do ceu á terra um
moscardo ou tavão, incumbido de affer-
roar incessantemente a infeliz /o, feita
vacca e de forçal-a a não ter quietação
e vaguear por toda a parte, — o que tudo
lhe arrancara rios de lagrymas, rios que,
reunidos, formavam o Nilo, segundo as
lendas devotas dos eg3'pcios, Nilo que
por estes era chamado mar fianmá^ ióm)^
segundo G. Maspcro, Cap. I, «Hist. anc.
des peuples de FOrient».
/o, assim perseguida e em tão deses-
perada situação, atravessou o Mediter-
râneo e penetrou no Egypto : ahí, resti-
tuída por Júpiter á forma natural e
primitiva, houve doeste um filho, Epaje-
lio e, seguidamente, o privilegio da im-
mortalidade e Osiris por marido, que
veio a ter adoração sob o nome de Spis.
Os egypcios levantaram altares a Io
debaixo do nome de Isis (*) e sacrifica-
(*) Isis e Osiris foram duas divindades per-
tencentes ao grupo dos deuses votados á prote-
cção dos mortos, junctamente com os deuses
Sckari^ Anubis e Nephtys, todos três venerados
como deuses dos elementos (segundo grupo), os
deuses dos lares (3.° grupo). G. Maspero. cap. I.
f. 26.
ir>2
A TRADIÇÃO
vam-lhe um pato por intermédio de seus
sacerdotes e sacerdotisas: e parece na-
tural que, não desprezando o facto da
metamorfose, exhibissem nas solemnida-
des da sua predilecta divindade, como
seu symbolo, mna j'acca aguilhoada e
errante, con'iiiJ.
Afigura-se-nos que sim e, portanto, que
a corrida da vacca^ especialmente quanto
á primeira parte, as três voltas em roda
da Egreja Matriz de Ponte de Lima, se-
ria uma reliquia dos uzos da religião
eg}'pcia, — como o hoi bento^ na procis-
são de Corpus Christi^ é considerado
symbolo do Deus Osiris ou Apis (o boi
Hapi de Memphis, a Osiris idem qui
Apis», Luc. 1. q. V. I6O1. Essa religião,
foi, por sem duvida, com todos os seus
symbolos introduzida na península his-
pânica pelos phenicios, acceita pelos ro-
manos que a dominaram, seguida pelos
suevos («Pars Guevorum et Isidi sacri-
ficat», Tacit, de Germ. c. q), e pelos
christãos tolerada em alguns usos, para
não encontrarem em absoluto as enrai-
zadas crenças e costumes populares.
E que essa Io ou Isis^ a vacca de Jú-
piter^ a deusa da fecundidade, teve culto
especial precisamente na região Callai-
co-Braccaria, na área de Entre Douro e
Minho, no Convento 'T^racarangiistano^
ou Relação Jurídica dos Bracarangusta-
nos (por os particulares de Braga), de
que era uma pequeníssima dependência
administrativo-judicial o districto dos liu-
ricos e que a mesma deusa teve dentro
dos muros de Braga um sitio próximo da
Sé, prova-o o cippo encravado na face
externa dos fundos d'aquelle vetusto e
venerando edifício, — cippo que abaixo
transcrevemos inteirado conforme a in-
terpretação que em parte nos ensinou e
em parte nos approvou o eruditíssimo
professor Dr. Pereira Caldas:
LVc RtTI A nm SACIERB/.5/ TEW/ct^/T/oj.^U}
llOM;<.ni/ET*AVG/«.«/
Interpretação
Sendo l.ucrecia Fida
sacerdotiza perpetua do
Povo Romano e de Au-
gusto, o Convento dos
bracarangustanos dedi-
ca a Isis Augusta, ou
á deusa Isis este monu-
mento sagrado.
Lucrécia Fida, sacer-
dotiza perpetua do Po-
vo Romano e de Augus-
to, e o convento dos bra-
carangustanos dedicam
a Isis ugusta, ou á deu-
sa Isis este monumento
sagrado.
A pontuação é representada por cora-
ções^ — uzo nas inscripções sagradas. O
G grande final de Bracarang representa
plural.
(Gap. XXV, posthumo, do livro <i Pon-
te de Limai).)
Miguel dk LEMOS.
O IMPERADOR DE EIRAS
Eiras é uma pequena povoação situa-
da a uma légua de distancia, ao norte
da cidade de Coimbra.
Quando a peste, ha não sei quantos
séculos, invadiu esta ultima, onde fez
centenas de victimas, Eiras, na pessoa
dos seus habitantes, tudo boa gente,
muito cheia de crença, vendo as barbas
do vizinho a arder, começou desde logo,
com o seu parocho á frente, a implorar
o auxilio celeste.
Foi remédio santo.
Como, porém, aquellas preces fervo-
rosas e instantes dos bons dos eirenses
fossem por elles dirigidas principalmen-
te, se não exclusivamente, ao Espirito
Santo, coube á divina pomba por isso
mesmo attendel-as, e o caso é que a
peste não entrou no logar, que então era
villa e tinha honras de concelho.
De semelhante successo, de tantissi-
mo bem, que colheram de seus rogos ao
Espirito Santo, resolveram os eirenses,
por voto sagrado, que logo fizeram, ele-
ger todos os annos de entre os seus nu-
merosos patrícios um homem dos me-
lhores em todo o sentido, com o qual,
tributando-lhe as offertas dos seus fru-
A TRADIÇÃO
158
>f^(
^
^
&
(79
CD
^
(^
154
A TRADIÇÃO
ctos e dando-lhe ainda o cognome de
«imperador de Eiras», isto é, arvoran-
do-(i em juiz, festejassem a divina pom-
ba nos dias de Paschoa, Resurreiçao e
Pentecostes.
Três dias de pandega !
A eleição do imperador, cousa tão im-
portante em Eiras, como n'uma repu-
blica a eleição do respectivo presidente,
era feita pela camará do concelho, a qual
lhe entregava n'essa mesma occasião
vinte e seis mil réis em dinheiro, cin-
coenta alqueires de trigo e oito almudes
de vinho.
Feito isto, que dá bem a barateza de
tal imperador, apezar de n'esse tempo
vinte e seis mil réis serem quasi uma
fortuna, ia sua magestadc, acompanhado
da camará, da nobreza da villa, de dois
pagens e dois creados, tudo precedido
de uma bandeira de damasco encarnado
e de muito povinho, tomar posse do seu
cargo importante na primeira oitava do
Espirito Santo.
A posse era-lhe dada pelo parocho e
tinha logar na egreja matriz.
Muito interessante !
O padre, aparamentado e assistido do
juiz da egreja, o qual comparecia de cruz
alçada e entre duas tochas, esperava o
imperador respeitosamente no arco da
capella-mór.
Era o preludio da grande cerimonia.
Sua magestade entrava por alli dentro
com toda a imponência de que podia
arrogar-se, e logo ajoelhava onde o es-
perava o representante da egreja, aos
pés deste mesmo.
Toda a comitiva ajoelhava também.
Acto continuo, o sacerdote, o parocho,
punha na cabeça do imperador, sobre
um casquete vermelho, a coroa de pra-
ta, que ao imperador pertencia e a qual
um dos pagens ministrava ao padre,
que, ao pôl-a no toutiço do homem, ex-
clamava com solemnidade :
— Eu vos constituo imperador de Ei-
ras.
Dava-se então uma scena alguma cou-
sa parecida com aquella da Grã-Tni
que:{a de Gerolstein, em que esta diz isto
a Fritz:
Acceita o sabre de meu pae!
Heroes aos mil prostrou. . • venceu!
D'um bravo ao lado eu sei que vae
Se a guerra for ao lado teu !
Cobre-o poeira que não sae,
Antigo brilho já perdeu;
Mas quem te dá o que ahi vae
Já foi assim que o recebeu !
O imperador recebia, pois, em tal mo-
mento, e ainda das mãos do seu paro-
cho, um sabre antiquissimo, velhissimo,
um estafermo de um terçado ferrugento,
que logo beijava e passava em seguida a
um dos dois pagens, como ainda na ope-
ra bui"lesca da carta adorada^ passa o
general o chanfalho a Wanda.
Com o mesmo acompanhamento, que
ao templo o levava, agora augmentado
pelo parocho e juiz da egreja, que, com
a cruz alçada e mais as duas tochas, se
encorporavam n'aquelle cortejo, dirigia-
se então o imperador á capella do Santo
Christo da localidade, onde ajoelhava
para o parocho lhe tirar a coroa e cas-
quete, e assim começava magestosa-
mente a percorrer as ruas do seu es-
tado.
Cumprida esta formalidade tão reina-
dia como todas as outras, saltava a ma-
gestade mais toda a sua gente, todo
aquelle cortejo, cada qual para cima de
um solipede, ajaezado com mais ou me-
nos luxo, e elles lá iam em luzida caval-
gata, com a sua bandeira á frente e mu-
sica na rectaguarda, a caminho do con-
vento de Cellas.
Cellas é um outro logar mais pequeno
que Eiras e que tomou o seu nome de
esse mesmo convento, mosteiro de em-
paredadas, encelladas ou reduzas, que
a infanta D. Sancha, filha do rei povoa-
dor, alli edificou.
O imperador da villa de Eiras mais a
sua comitiva, que não era pequena, mor-
mente se contarmos com os solipedes,
entravam na egreja do referido mosteiro
ao som do repique dos sinos.
A TRADIÇÃO
155
Era dia grande.
E feita por todos a respectiva oração
em frente do altar-mor, tinha logar um
Tc-^Dcum celebrado com pompa, ao qual
se seguia uma nova coroação de sua
magesiade imperial pelo obezo capellão
do convento e parece que em homena-
gem ás sorores.
Terminada mais esta cerimonia ia o
homem de coroa na cabeça e todo so-
lemne na importância da sua jerarchia,
sentar-se junto ás grades do coro, onde
tinha de cumprir ainda mais uma praxe,
qual era a de conversar com a abba-
dessa e as outras freiras.
Que conversariam ?
Farto de dar á lingua ou não, mas no
grave cumprimento de mais outra usan-
ça, recolhia-se em seguida o bom do im-
perador á casa da hospedaria monástica
a fim de descansar e tomar alguns re-
frescos ou vinhos, offerta da madre ab-
badessa, que também o mimoseava com
Doces, gratuitas tijellas
do famozo manjar branco,
como diz Nicolau Tolcntino, elogiando
o celebrado manjar, que era a especiali-
dade de doçaria do mosteiro.
A abbadessa e as freiras, pedindo en-
tão a coroa a sua magestade, a qual
coroa consideravam milagroza, entreti-
nham-se a beijocal-a, uma agora outra
logo, cada qual por sua vez e todas com
uncção, emquanto, por seu lado, o pos-
suidor de tal jóia se entretinha a comer
e a beber, acto final da sua visita ao
convento.
De Cellas seguia tudo, também de ca-
valgata, a caminho de Santo António dos
Olivaes.
N'este outro logar, que é um dos ar-
rabaldes mais bellos de Coimbra e em
cuja capella do Espirito Santo era parte
obrigada penetrar o imperador com to-
dos que o seguiam, continuavam as festas
com grande arraial, corridas de éguas,
luctas de homens e um lauto banquete
por fim.
Um pagode imperial !
Como, porém, com o rodar dos tem-
pos, principalmente com a entrada de
este século, surgisse má quadra para as
frontes coroadas, o bom do imperador,
que /;/ illo tempore só homenagens rece-
bia de toda aquella gente, começou a ser
alvo das maiores zombarias por parte
dos garotos e dos espiritos fortes, duros
como massa de patacos, voltaireanos,
trocistas, incrédulos.
Uns lhe atavam ao rabicho da cabel-
leira um cordel, uma guita, um fio, que
puxado lhe atirava por terra com aquella
belleza da cabelleira postiça, casquete
vermelho e coroa milagrosa, ficando de
tal arte á mostra a mais imperial ca-
reca, outros o apertavam de maneira dif-
ferente, atirando-lhe dichotes e fazendo-o
ii" á serra.
Tão grandes desacatos a uma mages-
tade e um raio de boa luz, que este sé-
culo das ditas dardejou no bestunto dos
simples eirenses, acabaram com tal tra-
dição. . . e era uma vez um imperador,
que fez as delicias da villa de Pairas.
iCoimbra)
Alfredo de PRATT.
THERAPEUTICA MYSTICA
A PESTE
O recente apparecimento da peste na
cidade do Porto, que tão profundamente
tem emocionado os espiritos, trazendo ao
mesmo tempo graves perturbações eco-
nómicas, principalmente ás provincias do
norte, veiu provar-nos a toda a luz dos
factos o enorme pavor que ainda hoje
domina as populações em presença do
terriiK'l contagio.
A peste constitue com a fome e a
guerra a trilogia sinistra d'horriveis fla-
gellos que, segundo a crença popular,
caem sobre os homens como castigos de
Deus. Ora, sendo a peste considerada
156
A TRADIÇÃO
d'origem divina, nada é para surprehen-
der que o povo, em horas afflictivas, in-
voque cheio de fé os santos advogados
da mencionada enfermidade.
Nesta região, são tutelares dos infeli-
zes pestiferos: S. Roque e S. Sebastião.
Para as imagens destes santos conver-
gem, pois, as instantes supplicas dos de-
votos. .
A palavra peste não c adoptada na lin-
guagem popular unicamente para desi-
gnar a moléstia perigosa conhecida pelo
nome de jiesíc bubouica. Peste é um ter-
mo que o vulgo applica a qualquer epi-
demia exótica, como o cholera morbus,
a febre amarella, etc.
Numa povoação, quando em qualquer
bairro, rua ou mesmo casa, se manifesta
uma doença grave, costuma o povo di-
zer: «Parece que foi ramo de peste que
aqui entrou, ou que por aqui passou».
Sempre que uma pessoa passa junto dum
local donde emanam gazes mefiticos, aos
lábios dessa pessoa acode immcdiatamen-
te a frase: «Isto é uma peste, ou c capaz
de gerar peste». Quando atravez duma
porta aberta se sente passar um ar frio
e incommodo, também se diz que «é uma
peste I.
Emfim, peste serve ainda para desi-
gnar uma pessoa fraca e enferma, ou de
ruins qualidades; bem como qualquer
fructo mal saboroso ou amargo.
* *
Vejamos agora quaes as orações a que
o publico ingénuo e crente costuma re-
correr, para se livrar da horrorosa peste.
I-
Oração a Santa Martha
«Em louvor do Santíssimo Sacramen-
to, estas palavras vou lomear — p'ró con-
tagio aplacar. Eu sou Martha que a Deus
hoje pedi. Quem confiar em mim, não
morrerá de córrela-mór (cholera-mor-
bus) (i) nem d'epidemia.))
Esta oração deve ser proferida todos
os dias ao levantar, e, escrita num papel,
coUoca-se interiormente, por cima do
arco da porta da rua, porque diz o po-
vo : «E' pela porta que entra a peste.»
II
tS. Roque de Deus amado, — Virgem-
Mãe da Guadalupe, lá fora, — e S. Pe-
dro mais desviado; — Mart}^ S. Sebas-
tião, que fica entre vinhas e olivaes, — e
Mãe da Saúde, que ao pé dos francisca-
nos ficaes.» (-)
Esta oração, ou melhor, invocação, de-
ve também dizer-se todos os dias ao le-
vantar, accrescentando-se-lhe cinco Pa-
dre-Nossos offerecidos a S. Roque e ao
Mart}^ S. Sebastião.
Digamos ainda, para terminar, que
outr'ora, quando a população se via sob
a ameaça ou a braços com um sério con-
tagio, havia o costume d'accender nas
ruas, grandes fogueiras d'alecrim e outras
hervas cheirosas, fazendo-se também tran-
sitar pelo interior da povoação o gado
vaccum.
Este systema de desinfecção publica,
em verdade bem pittoresco e alegre, é
conservado apenas na memoria do povo,
porque na pratica deixou ha muito de
existir.
(Serpa)
Ladisf^u piçarra.
(i) O povo toma a palavra córrela-mór como
synonymo de peste.
(2) As ermidas de S. Roque, Senhora da Gua-
dalupe, de S. Pedro, de S. Sebastião e da Se-
nhora da Saúde, acham-se todas situadas fora da
villa de Serpa, embora - pequena distancia, á
excepção da ermida de S. Roque que actual-
mente já está ligada á povoação. A ermida da
Senhora da Saúde encontra-se dentro do cemi-
tério da villa, muito próximo das ruinas dum
convento pertencente em tempos idos aos frades
franciscanos.
A TRADIÇÃO
157
LFNDAS 8c ROMANCES
fRecolhiJos Ja traJiç.io oral na provincialdo c4iemtejo)
V
O<'i*iii»ilclo
(3* variante do romance n." III)
— Gerinaldo, Gerinaldo,
Pagem de el-rei mais querido,
Bem podias, Gerinaldo,
Dormir 'ma noite comigo.
— Se eu sou vosso vil criado,
Senhora, não zombeis comigo.
— Não é zombar, Cíerinaldo,
E' deveras que t'o digo.
— Dizei me vós, ó Senhora,
A que horas qVeis que vá.
— Entre as dez, e entre as onze,
Quando meu pae está dormindo.
Foi-se d'ali Gerinaldo,
Dando mil ais e suspiros.
— Cala, cala, (jerinaldo,
Entra por este postigo — .
Toda a noite têm brincado,
P'la manhã se ham dormido;
Brada el-rei por Gerinaldo,
E elle não lhe ha acudido;
Vae ao quarto da infanta
Com ella o achou dormindo.
Voltados um para o outro.
Como mulher com o marido;
Puxou pelo seu punhal.
Que á cinta o ha trazido :
Os copos para a infanta
E o bico para Gerinaldo.
Gerinaldo deu uma volta,
Logo se sentiu ferido.
— Acordae, o bella infanta.
Que já fomos presentidos!
O punhal do vosso pae
Entre nós está mettido.
— Cala, cala Gerinaldo,
Cala, não sejas sentido,
Que meu pae é generoso,
E me ha de casar comtigo — .
Foi á presença de el-rei
Dando mil ais e suspiros.
— D'onde vindes, Gerinaldo,
Que assim vindes esclarecido ^
Que é das tuas cores de rosa,
Com quem as tens perdido?
Em dormires com a infanta.
Como mulher com o marido ?
— E' verdade, ó bello rei.
Grande castigo mereço.
— Como queres que te castigue,
Se eu te criei de menino?
Toma a ella por mulher,
E ella a ti por marido.
— Mil annos viva, meu rei.
Sempre no vosso reinado ;
Quem serve a ião bom amo,
Sempre recebe bom pago.
(Elvas).
A. Thomaz pires.
O S. JOÃO EM SERPA
(Conclusfio)
De caracter económico, temos a regis-
trar duas experiências : uma que se elVei-
túa por meio da /aj>a e outra cuja base
é pão e agoa.
Depositam-se, ao deitar, debaixo do
travesseiro três sementes da referida le-
guminosa, sendo uma vestida de toda a
epiderme, outra meio vestida, e comple-
tamente núa a restante. Após o primeiro
somno, retira-se a esmo uma das semen-
tes: A' pessoa, homem ou mulher, que
fez a experiência tica desde então pro-
gnosticado — vestir bem, vestir mal, ou
chegar á extrema pobreza da nudez, con-
soante houver sido, na ordem por que
as mencionámos, a primeira, segunda ou
terceira semente, aquella que veio á mão.
Um copo d'agoa e mais um pão e
uma metade foram postos d'antemão so-
bre uma mesa. Três raparigas, de olhos
vendados, são conduzidas até junto do
movei; e rapidamente, cada uma delias
procura apossar-se de seu objecto. Vi-
verá sempre na abundância aquella que
pegou no pão inteiro; a que tomou a
metade, ora sim ora não, terá com que
alimcntar-se ; e á desventurada moça que
o copo d'agoa alcançou, tão só miséria e
lagrimas o destino lhe impõe.
Com uma bacia d'agoa muito limpi-
da, alumiada pelo ciarão da fogueira
dalecrim, se executa a mais trivial e po-
pular de todas as experimentações, qual
é a de vida ou morte próxima.
Pessoas animosas^ a quem o conheci-
mento dos successos futuros não preoc-
cupa nem intimida, se assomam crédulas
(cada uma por seu turno i á virtuosa ba-
cia: Aquellas cuja imagem o espelho da
agoa reriecte ficam seguras de não falle-
158
A TRADIÇÃO
cer durante o anno que decorre; as ou-
tras teem morte certa, dentro de curto
lapso de tempo.
No intuito de saber quaes os mezes
de chuvas, usa o povo deixar ao relento
doze montanitos de sal, em forma de
pvramide, correspondentes aos doze me-
zes do anno. Os montanitos que, de ma
nhã, se apresentam achatados, rasos, o
sal quasi desfeito, indicam os mezes em
que deve cahir a agoa pluvial.
E temos dito, a respeito de experiên-
cias.
Na tradição popular, o santo de que
nos occupàmos é advogado contra nu-
merosas enfermidades; e dahi o empre-
go d' alguns remédios, e a manipulação
a outros, já na véspera já no dia em que
se commemora o Precursor.
A sangria, geralmente aberta no dorso
da mão esquerda, é adoptad i aqui, entre
a classe camponeza, por velhos e novos
de ambos os sexos. Os barbeiros-sangra-
dores da localidade vêem-se abarbados
para attender, n'uma mesma noite, os
seus duzentos a trezentos freguezes an-
nuaes, que lhes pedem extracção de san-
gue, na razão de duas onças por individuo.
Estas sangrias, que na imaginação popu-
lar «fazem crear sangue novo» (sicj, são
usadas, umas vezes, como simples medida
prophylatica, e outras vezes como meio
therapeutico nas doenças de olhos, fíga-
do O, pelle e cabeça; nas cargas de san-
gue ífluxões), anginas, impaludismo chro-
nico, etc, etc.
E preparado um bálsamo para a cura
de feridas, no qual entram como elemen-
tos a flor da herj^a de S. João (^), azeite
(') O povo chama Jigado ás blepharites cilia-
res, e acertas doenças de pelle, taes como: ecze-
mas, erythêmas, etc, etc.
I*) Xhervade S João, a que também se dáo no-
me de mj7/urjia, é o Hypericumperfuratum deL.
Esta planta, bem como algumas outras do modes-
to herbario regional que vimos organisando, foi-
nos obsequiosamente classificada pelo eminente
escriptor e sábio lente cathedratico da Escola Po-
lytechnica de Lisboa, o Senhor Conde de Ficalho.
crú, mel e balsaminas. E mais se pre-
para um milagroso xarope, composto de
cardasoi em pó, mel e canella, que a
gente do povo costuma empregar nas
affecções do peito.
Uma porção d'agoa proveniente de
sete poços, e por egual o cosimento de
restolho de trigo, servem para combater
inflammaçÕes d'olhos.
Para tratamento de fígado, crê-se re-
médio efficaz beber agua fresquinha, tra-
zida para casa antes do sol nado. Ainda
para o mesmo mal, ha quem aconselhe
lançar para dentro d'um poço, á meia-
noite, cinco sementes de fava. . .
A junca, colhida e recolhida pela fes-
tividade do Santo, faz subitamente des-
appareCer as dores de cabeça, desde que
uma haste da planta seja passada em re-
dor d'aquella parte do corpo.
Eis quanto nos consta acerca de me-
dicamentos e medicamentações.
Agora, como remate d'estc ligeiro arti-
go, escripto muito ao correr da penna,
ahi vão dois prt)Vcrbios e um punhado
mais de praticas e crenças populares re-
lativas ao assumpto:
— «Agoa no mez de S. João tira vinho,
azeite, e não dá pão.»
— «Guarda pão para Março, lenha para
Abril, algum cavaquinho p'ró mez que
hade vir, e um tição p'ró mez de S. João.»
Em noite de S. João :
— Afím de afugentar as pulgas de
qualquer casa, um grupo de raparigas
empunhando foices, e ás escuras, fazem
menção de segar, dentro da casa onde
os insectos abundam, cantando em altas
vozes as cantigas do Baptista.
— A agoa salobre torna-se doce mistu-
rando-se-lhe três mãochinhas de sál.
— Quando uma roseira está longo tem-
po sem florescer, dá-se-lhe uma sova com
uma vara muito flexível. A florescência,
depois, vem como por encanto.
— Rapariga que ambicione avigorar e
alongar o cabello, corta-lhe as extremi-
dades e lança-as na fogueira, proferindo
as seguintes palavras: «Em louvor do
Senhor S. João, que o meu cabello
A TRADIÇÃO
ir)9
cresça e engrosse e chegue até ao
chãov.
— Nos Cl avos de cor lisa, obtcm-se o
matiz verde enxertando em couves os
respectivos craveiros.
«No dia de S. João nasce o sol bu-
lhando. « —
M. Dias NUNES.
CONTOS AL(iA]!VÍ()S
II
o principe-diabo
Havia um rei que maltratava a rainha
por ella não lhe dar um filho. Em certo
dia, viu-se a rainha tão ofTendida das in-
jurias do rei, que exclamou do lundo da
sua alma :
— Quem me dera um filho, ainda que
fosse o próprio diabo !
Appareceu-lhc momentos depois um
cavalleiro e disse :
— Se queres um filho, tira do teu bra-
ço três pingas de sangue, e com o san-
gue, em vez de tinta, assigna o teu no-
me n'este papel.
A rainha sob a impressão das injurias
do marido, feriu o braço com um alfine-
te, e nas três pingas de sangue molhou
a ponta do alfinete, com o qual escreveu
o seu nome num papel que o cavalleiro
lhe apresentou. Em seguida o cavalleiro
guardou o papel e desappareceu.
Mezes depois sentiu-se a rainha peja-
da e deu, em tempo competente, á luz
um príncipe. Houve por esse facto gran-
des festas.
Manifestou-se a creança desde a hora
do seu nascimento muito má. Chorava
constantemente, e a sua maior satisfação
consistia em cortar com as pequeninas
gingivas os bicos dos peitos das amas.
Quando já crescido, todos o temiam. Ven-
do o rei que toda a corte fugia do prin-
cipe e que todo o reino murmurava delle,
desejou consagrai o por um acto publico
á Mãe de Deus. Desde que o príncipe foi
informado da resolução do rei, accentua-
ram-se mais e mais os seus actos ranco-
rosos e maus.
A rainha consumia- se de desgosto, mas
não se atrevia a contar ao rei, o encontro
3ue tivera com o cavalleiro desconheci-
o. Em um dia que o príncipe fez ver-
dadeiras diabruras, chamou-o a rainha e
disse-lhe :
— Es um desgraçado, meu filho; vendi
tua alma ao diabo por um documento
que elle conserva em seu poder.
Ora o príncipe, depois das castumfdas
diabruras, parecia entrar nuns momen-
tos de arrependimento; era talvez o seu
principio bom contra o mau principio.
Ouviu as palavras de sua mãe e disse:
— Vou ao inferno buscar esse docu-
mento. Montou num cavallo c desappa-
receu. Andou, andou e foi descançar no
meio de uma camp'na. Ali appareceu-lhe
uma velhinha, que lhe perguntou amavel-
mente aonde ia.
O príncipe contou-lhe a historia que
sua mãi lhe contara e concluiu por dizer
que se dirigia ao inferno.
— Má caminhada! se seguir, porém, o
meu conselho pode ir e voltar — obser-
vou a velhinha.
— O que devo fazer?
— O menino segue esta estrada que o
leva a uma ribeira, onde, em vez de
agua, corre sangue. Apêa-se do cavallo,
ajoelha e pede a Deus o perdão dos seus
peccados, por forma que as suas lagri-
mas se vão confundir com o sangue da
ribeira. Km seguida atravessa a ribeira.
Mais adiante encontrará outra ribeira por
onde corre leite : faça o mesmo que fez
junto da ribeira de sangue. Logo mais
adiante encontrará outra de agua pura,
e faça o que fez junto da primeira e da
segunda. Caminhe sempre montado no
seu cavallo e chegará a uma grande porta
aberta; entre e peça a Satanaz o seu do-
cumento. Elle não lh'o pode entregar
porque o perdeu, mas mande reunir to-
dos os diabos e apparecer-lhe-á um dia-
bo coxo, que tem o tal documento nos
bolsos. Aproxime-se d elle e faça-lhe uma
cruz nas costas. Elle cairá ímmedíata-
160
A TRADIÇÃO
mente, e tire-lhe o documento. Então
saia iinmediatamente.
O príncipe agradeceu o conselho e
partiu montado no seu cavallo. Tudo lhe
succedeu como a velhinha lhe tinha dito.
Logo que entrou no inferno appareceu-
Ihe Satanaz.
— ^'enho buscar o documento que mi-
nha mãi assignou com as três pingas de
sangue e tu guardaste — disse o pnncipe.
— Perdi-o.
— Alguém o achou. Chama os teus
súbditos.
Satanaz embocou uma trombeta que
produziu o som de trovão, e todos os dia-
bos appareceram num momento.
— Quem tem o documento assignado
pela rainha? — perguntou Satanaz.
— Eu, — respondeu o diabo coxo.
— Entrega-o a este mancebo.
— Não o entrego — replicou o diabo
coxo.
O príncipe fez-lhe uma cruz nas cos-
tas, o coxo caiu, e o príncipe tirou-lhe
o documento.
Estabeleceu-se logo um grande baru-
lho no inferno, mas nenhum diabo se
atrevia a lançar as unhas ao príncipe,
cujo tato ainda conservava algumas pin-
gas de sangue, leite e agua das ribeiras,
que tinha atravessado. No meio deste
barulho ouviu-se a voz de Satanaz, que
gritava:
— Fechem a porta, porque as almas
vão-se escapando.
Já a este tempo o príncipe estava fora
do inferno, e viu elle adiante de si uns
trapinhos muito velhos que ligeiramente
se moviam.
Mais adiante encontrou o príncipe a
mesma velhinha que lavava na ribeira de
agua pura os trapinhos sujos. A' propor-
ção que eram lavados, subiam ao ceu e
desappareciam.
— Que trapinhos são aquelles, que de-
pois de lavados, sobem ao ceu, minha
boa velhinha?
— São as alminhas que se poderam
escapar do inferno, quando os diabos
queriam arrancar-te o documento.
— E o que significam as três ribeiras,
que atravessei ã vinda e agora terei de
passar?
— O sangue da ribeira representa o
sangue que o Salvador derramou pelos
nossos peccados; o leite significa o que
a Virgem deu de mamar ao seu Bemdito
Filho; e a agua pura as lagrimas da Vir-
gem junto da cruz.
A velhinha desappareceu e o príncipe
foi dar ao seu palácio, onde o rei e a
rainha já o não esperavam. Então o prín-
cipe entregou o documento á rainha.
Esta queimou-o ímmediatamente. Logo
que o vento espalhou as cinzas do docu-
mento, olhou a rainha para o braço, e
já não viu a cicatriz das três pingas de
sangue. Tinham desapparecido com as
cinzas do documento maldito.
D'ahi em diante foi o príncipe um mo-
delo de todas as virtudes e tornou-se um
homem amado de tod^^s os seus súbdi-
tos. Casou e foi muito feliz.
Bemdito e inuvado
Meu conto celebrado.
(Da tradição oral)
(Loulé.)
Athaide d'OLIVEIRA.
PEOVEEBIOS E DICTOS
(Continuação)
LXVI
Dia de S. Lourenço — vae á vinha e
enche o lenço.
LXVII
Agoa quente adivinha outra.
LXVIII
Agosto amadura, Setembro derruba.
LXIX
Até ás Neves, que é a 5 d' Agosto.
(Da tradição oral)
(ConíinúaJ
Serpa.
CASTOR.
A.UI10 I — N.» 11
SERPA, Novembro de 1899
8«rie I
Editor-administrador, Jote Jeronymo da Coita Bravo de Segreirvi, Rua Larga, 3*4 — SERPA
Typocraphia de Adolpko de Mendonça, Kua do Corpo Sanio, 46 e 4a — LISBOA
A TRADIÇÃO
>
REVISTA MENSAL D'ETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
Directores. — LADISLAU PIÇARRA e M. DIAS NUNLS
ESTATINCA ESTANTÍCA?
Já viram U'uotans Heer? das willcnde
Hecr ? o exercito bravio, na forma atte-
nuada em que a velha concepção da my-
thologia germânica, meiodissolvida, e com
infiltração de pormenores estranhos, per
siste na peninsula ?
O cortejo lugubremente phantastico
desfila sempre a horas mortas, nas tre-
vas e no silencio da noite, emquanto os
sinos vão repetindo monótonos as doze
badaladas.
Ou então nas horas crepusculares, ao
toque d' almas (ás Trindades ou Ave- Ma-
r/'7sy, quando os mochos começam a piar
e o morcego atravessa os ares, adejando
em torno de ermidas solitárias e torres
deegreja.Não só no adro, nos cemitérios,
mas também em olivedos e pinheiraes, nos
montes e nas eiras dos lavradores é on-
de surge com mais frequência.
Sitios ha por onde passa cada noite,
mas estes são raros e depressa se tor-
nam deshabitados. Em outras partes so-
brevem regularmente na solemne vigilia
de todos os finados (^i quando — mundo
patente —os manes voltam á terra. Mas
em geral a apparição é completamente
imprevista.
Compóe-se de vultos muito altos e
muito magros, vestidos de branco, — ver-
dadeiras avejãs i^) ou abantesmas^ — entre
os quaes de longe em longe se destacam
uns vultos pequeninos e vacillantes.
Ora são sete, ora nove, mas por via
de regra infinitos: uma turbamulta de
phantasmas vaporosos que deslizam, mal
tocando no chão.
Todos seguram, nas mãos que nin-
guém lhes avista, luzes acesas: tochas,
brandões ou candeias. Algumas vezes a
illuminação é de ossos aidentes.
Quem os podesse mirar de perto re-
conheceria que nada teem de corpóreos,
sendo meras sombras.
A Morte, em forma de esqueleto, ca-
pitaneia (nem sempre), essas hostes silen-
ciosas: os muitos — oir.UioviS^ (^)como di-
ziam os Gregos, discretamente.
Entre os defuntos vae sempre um vi-
vo. Isto é a imagem, a visão, a estatua^
iiò'J.ov^ de uma pessoa ainda não falle-
cida, mas já sentenciada a morrer, com-
quanto o sinistro agouro em certos casos
se realize tarde. O termo mais prolon-
gado é de sete annos.
Os que marcham á frente, levam a figu-
ra do condemnado n'um esquife.
Pouquíssimos são os que chegam a
distinguir-lhe as feições. Segundo uns, so
as lubriga quem os mortos querem que
as veja. Segundo outros, esse privilegio
pertence a pessoas predestinadas, «que
teem uma palavra de menos no baptis-
mo» (sic.)
Ai de quem encontrar o fúnebre prés-
tito no seu caminho, ou o vir passar dean-
te da sua janella ! Ha quem affirme que
o aspecto por si só é prenuncio de fim,
ou mesmo acarreta morte instantânea.
«São os mortos que o chamam.» No en-
tender de outros, para que o prognostico
162
A TRADIÇÃO
se realize é preciso que se extinga uma
das luzes, ou que os da procisssão ba-
tam á pona da pessoa que querem avi-
sar.
Cada um sabe como cumpre proceder
ao encontrarmos uma pobre alma, perdi-
da e penada, que anda só e scnhewa. C*)
Embora ella se introduza na nossa casa
pelos sótãos e se apresente nas formas
mais assustadoras, arrastando grilhões e
arremessando pela chaminé pernas, braços
e caveiras de corpos humanos, basta en-
cararmos afoitamente esse Medo^ e per-
guntar-lhe, vencendo o nosso tremor : a Da
parte de Deus te requeiro, digas o que
queres, porque far-se-ha, se poder ser.»
Ou então: «Da parte de Deus e da Vir-
ge-.Maria, se és alma do outro mundo,
dize o que queres.»
Mas em frente dos miiiíus, este meio
não é valido. Os mortos são sagrados.
E' preciso acatá-los com muito respeito.
Senão elles vingam-se. Não é prudente
dirigir-lhes alguma palavra <'m, nem mes-
mo respondendo a qualquer das suas
perguntas. Antes, virar costas e deixar
passar, sem olhar para trás, cedendo á
nossa natural curiosidaae. De resto, é
muito raro fallarem ou cantarem. Só se
alguém, sem querer, de distrahido ou il-
ludido, se juntar á procissão, entrando
na egreja ou no campo-santo onde cele-
bram os seus ofhcios. Porque então le-
vantar-se-ha do meio d'elles uma voz, gri
tando (como oogre do conto :) «aqui chei-
ra a fôlego vivo.»
Ignoro qual a penitencia que nessa
conjunctura se impõe ao incauto visto
que a innocente a que tal aventura acon-
teceu, se salvou por ter ajoelhado, re-
zando, ao pé da campa de sua madri-
nha. Um único espectador ouviu — não
sei se bem ou mal — os phantasmas psal-
modiarem uns versos sem poesia, im-
próprios da triste e sobrenatural compa-
nha. iVi
Mais natural seri? se lhes perten-
cessem algumas rimas que é praxe re-
citar quando se quer metíer medo a al-
guém :
Quando éramos vivos
andávamos pelos caminhos.
Agora que somos mortos
andamos pelos barrocos. . .('').
Ou outras semelhantes.
Na bella Galliza, famosa pela paixão
e pela arte com que as suas filhas culti-
vam a musica e a dança, os mortos for-
mam rondas e enfileiram-se nas choreias
nocturnas ias bruxas, meigas, lurpias e
chiichouas. Pela companhia, suspeito não
serem mortos, mas antes mortas^ essas
aéreas bailadeiras.
Em terrenos pantanosos (os barrocos
e baiócos de que falia a cantiga,) assim
como em carreiros muito estreitos e som-
brios que nunca seccam, vincados pelos
profundos e encharcados cortes das rodas
pesadonhas do patriarcal carro de bois,
em vez de vultos divisam-se muitas luzi-
nhas que correm e saltam n'um rodopiar
doido de fogueirinhas, fogachos ou can-
deinhas.
E' quanto sei. — Mas não! ainda ha
mais. Quem passar o verão no campo po-
de mesmo de dia presenciar espectácu-
los parecidos, está claro que muito me-
nos phantasticos e aterradores.
Empinando o sol, nas horas abertas,
quando o grande Pan está a dormir, le-
vanta-se ás vezes inopinadamente — de
preferencia nas enciuzilhadas — um for-
te redemoinho de vento: balborinho^bor-
boriuho^ berbrinho, besbrinho. N'esse ca-
so, benzendo-nos, e depois de uma devo-
ta e benéfica conjuração: Santo Nome de
Jesus ! Credo ! Abrenuncio ! Vae-te para
quem te comeu as leiras ! devemos se-
guil-o com a vista, observando onde as
palhinhas e folhas acarretadas pelo ven-
to forem cahir, na certeza que é lá que
se cometteu qualquer maleficio agrário,
que incumbe sanar, — está bem visto em
caso que resolvamos remir a alma ator-
mentada do malfeitor que assim nos falia
e impiora. <")
Ainda não ouvi contar que a Morte e
o seu exercito apparecessem na penínsu-
la montados em corseis, quer brancos,
quer negros; nem que os acompanhas-
A TRADIÇÃO
168
6/lLERM BE TVPOS POPIIL^RES
^P
X 1
16i
A TRADIÇÃO
sem matilhas de cães uivantes. (') Taes
accrescimos de terror serão próprios ape-
nas das nebulosidades nórdicas ? Nas es-
pessas florestas da Germânia e da Rús-
sia, os etTeitos de luz são quasi sempre
reforçados por efteitos acústicos, haven-
do tumulto de ruidos: cstropeada de ca-
vallos, ladrar de cães, buzinas de caça-
dores, e vozes sobrehumanas. Uma ca-
çada infernal — die ivilde Jagd — em vez
de uma pi ocissão com tochas, cantochão
e bailados. ('")
F'oi em \'alença, Ponte de Lima, Gui-
marães, Briteiros e Vizella (" ); em Lavado-
res e S. Christovam de Mafamude, em
^'illa Nova de Anços, em Mondim da
Beira, ^^idaes e Cadaval; em Urros e
Freixo dcNumãoonde se colheram notas
portuguesas sobre apparições de defun-
tos, fogos fátuos e balborinhos; e é pro-
vável que ainda em outras localidades não
exploradas haja rica messe. As hispâni-
cas de que disponho, são todas provenien-
tes da Galliza e das Astúrias. Nos pla-
naltos desertos de Gastella apenas se
lembram vagamente das multidões de al-
mas que também por lá andaram em dias
do Cid e do Conde Fernam Gonçalez;
mas a memoria está tão obliterada que
o nome antigo do exercito nocturno só
se emprega em sentido figurado, para in-
juriar qualquer estafermo alto e sotur-
no, geralmente do sexo feminino.
E" pois nas zonas septentrionaes e oc-
cidentaesda península, em geral as mais
ricas em restos de vetustas crenças e su-
perstições bellas ou características, quese
conservam e contam casos reaes, tradi-
ções e lendas relativas ás crenças a que
álludo. ('2;
As avejãs^ os fogachos e os balborinlios
são, como disse, almas do outro mundo^
almas perdidas^ almas penadas^ almas
errantes: as larvas e lemures da Roma
gentílica. Espíritos «desinfelizes» de pe-
cadores (imschge Geistcr) que não podem
entrar no ceo, nem são admittidos ao
purgatório. C^) Uns porque não foram
levados á egreja com acompanhamento
de um padre; outros porque não se lhes
rezaram missas. Os mais devem restitui-
ção aos Vivos. Alguns deixaram de cum-
prir promessas. Outros não confessaram
os seus delictos, ou deixaram de alcan-
çar perdão dos que offenderam, appare-
cendo por este motivo nos próprios lo-
gares onde causaram faltas, e perto das
pessoas ás quaes são devedoras, ou que
lhes devem indulto. O seu fadário é va-
guear entre a terra e o ceu, annuncian-
do a morte aos vivos, para castigo dos
maus e admoestação dos bons, mas
principalmente para que esses, por obras
redemptoras, lhes proporcionem requiem
aeteriiam.
As almas que apparecem nos balbo-
rinhos são de campesinos, que commet-
teram delictos agrários. ('*)
Os fogachos e os vultos pequeninos
representam criancinhas que morrem sem
baptismo.
Onde apparecem dão-se quasi sempre
scenas deveras enternecedoras. ('■') A
serdes pães, e se um d'elles vier um dia
ao vosso encontro, lentamente, com pas-
sos incertos, a mostrar- vos a sua morta-
Ihazinha húmida e a sua luzinha apaga-
da pelas muitas lagrimas que chorastes, —
enxugando os vossos olhos, aconchegai-o
contra o vosso coração, sem nada dizer,
para que o calor do vosso seio o aquen-
te e não mais lhe amargureis a sua me-
laneholica sina. ("^j
O leitor pergunta, de certo, porque e
para quê lhe fallo de crenças tão conhe-
cidas entre nós, e de que correm con-
tos e tradições sem numero, embora ex-
tremamente monótonas e «desmusicas»
(para empregar o termo predilecto do
Miguel Angelo português,)— crenças das
quaes os melhores folkloristas nacionaes
já se occuparam ('") em livros que todo
A TRADIÇÃO
165
O estudante de eihno^raphia deve ma-
nusear, aíim de ficar inteirado dos ma-
teriaes colhidos, das explicações tenta-
das e dos problemas que importa resol-
ver.
Primeiramente, não tallo das alnus pc-
tidiicis em geral, mas apenas das feições
menos vulgares cmais significativas. De-
pois, ninguém, que eu saiba, se referiu
ás superstições parallelas da (lalliza e
das Astúrias. E em terceiro logar, o meu
intento não é registar novidades. De en-
contro ao uso, pretendo, patenteando a
minha ignorância, provocar os que tive-
rem investigado mais aprofundadamente
a litteratura e a tradição oral, a que me
elucidem a respeito de um pormenor im-
portante que desconheço.
O caso é que em nenhum dos estudos
que consultei, se acha consignado o vo-
cábulo com que os antigos denominavam
a procissão dos /i)iados. Nem o descobri
na bocca do povo. Apenas o conheço —
mal e indirectamente — de uma obra tar-
dia, belletristica : um romance de poeta
incógnito.
Variante da expressão indigena que em-
pregam nas provincias do Norte de Hes-
panha, e também empregaram no centro,
a palavra estatinga que serve de epigra-
phe a estas paginas, é de importância par-
ticular, porque mostra as relações intimas
de parentesco em que as apparições no-
cturnas de almas de finados na peninsula
estão com o exercito de Wuotan: das wii-
tendc Heer da mythologia germânica.
Translúcida a meu ver, embora a palavra
fosse reduzida e talvez deturpada, a sua
etymologia deu margem a discussões en-
tre alguns sábios estrangeiros, a que dese-
jaria pôr ponto final.
Os vocabulários vernáculos, sem exce-
pção do Novo Diccionario da Lingua Por-
tuguesa^ não encerram estatinga nem es-
tantiga. Apenas no lexicon do Padre
D. Raphael Bluteau (171 6) achei no vol.
V, a p. i96.*,s. V. lubisnomem a seguinte
passagem, dirigida não sei a que entida-
de, real ou imaginaria :
De noite qual lubishomem
correi o fndario embora
ou andai como Estatinf^a
que n'essas parles s'encontra.
Ninguém vos veja de dia,
pois senão sois cousa boa,
apparecerem de dia
as cousas más, é má coisa.
(]i'rln pf>i'l,i fin :nn rum mrr l")
A graphia Estatinga^ com l\ maiús-
culo, o facto de o próprio Bluteau a dei-
xar ir sem explicação alguma, e mais
ainda o não incluí-la na sua obra, mos-
tra bem que estatinga lhe soava como no-
me próprio peregrino, sem significação
clara.
Na falta de mais documentos, é im-
possível determinar se estatinga c mero
erro de imprensa, ou deturpação usual
portuguesa de estantiga^ inventada incon-
scientemente por quem pensava nas
estátuas ou imagens, sob cuja forma as
almas podem tornar a este mundo; <")
ou na estatua que no cortejo vimos figu-
rando o individuo, predestinado a mor-
rer em breve; ou ainda na estadea dos
Gallegos, de que mais abaixo di?-ei duas
palavras.
Em todo o caso estatinga^ de est anti-
ga é variante do castelhano estantigua^
que provém de hueste antigua e significa
exercitus antiquus. Para estabelecer esta
equação tanto monta o auctor do romance
ter sido algum hispanizante do tempo dos
Felippes, que adoptou o estrangeirismo,
nacionalizando-o: ou então que o termo
fosse colhido por um versejador semi-po-
pular directamente na tradição oral.
Estantigua^ explicado no Diccionario
da Academia Hespanhola por «visão ou
phantasma que se offerece á vista pela
noite, causando pavor e espanto,» e no
sentido figurado «pessoa muito alta,sec-
ca e mal vestida.» não conservou em
Castella o seu sentido primitivo, sendo
166
A TRADIÇÃO
como é, applicado unicamente a um só
individuo, exactamente como no romance
português.
Os exemplos de que disponho mos-
tram que tal evolução do significado já
se dera antes de i5oo, não somente com
relação á palavra composta, (^°) mas pro-
priamente com a expressão hueste autí-
gua. «'')
F." preciso retrocedermos até ao sec.
XIII para encontrarmos documentado o
sentido original. O monge do mosteiro
de S. Pedro de Arlanza (tO) Burgos) que
escreveu, perto de 1240, o poema épico
de Fernan Gonçález, ainda o conhecia.
Os companheiros do heroe, abysma-
dos de fadiga, protestam contra as mar-
chas violentas e as lides ininterruptas a
que o Conde os obrigava :
Los vassallos dei conde teniense por errados,
eran contra el conde fuertemente yrados,
eran de su sennor todos muy despagados,
porque avyan por fuerza syempre de andar armados.
Folgar non les dexa nin estar asegurados,
diçien: non es esta vyda sy non para los pecados
quê andan de noche e de dia e nunca son cansados.
Asemeia a Satanás e nos a los sus pecados. (^Z)
Porque lidiar queremos e tanto lo amamos,
nunca folpira tenemos sy non quando almaé saquamos, (23)
A los de la veste antygua, aquellos semeiamos,
ca todas cosas cansan e nos nunca cansamos.
(Estr. 33 1 -333)
Como se este trecho não fosse suffi-
ciente para provar que a primeira parte
de estantigiia é realmente iiesta^ hueste^
/losf IS, a moderna litteraturadas Astúrias,
onde a crença na apparição collectiva de
almas é vivíssima, emprega para a deno-
minar o simples substantivo, com omis-
são do epitheto. Hueste^ giieste^ giiestia e
guestiga são as formas dialectaes mais
usada.s ^"i, prevalecendo giiestia. ^")
Não para a documentar, mas unicamen-
te para dar ideia do modo como, allu-
dindo á entidade mythica de que nos oc-
cupamos, também em Astúrias se tem em
vista sobretudo a apparição da tnorte^
extractarei alguns exemplos das gracio-
sas poesias do maestro Teodoro Ciicsta.
Uma vez é um marinheiro que apos-
tropha a borrasca, dizendo-lhe entre ou-
tras cousas :
pos sabe que tu y la giiestia
seis (=sois) de la mesma baraxa,
y mas grande ye Tantroxu (entrudo) ('^)
si mas siega la gadana.— (p. 3g)
com referencia á alfaia de que a coma-
dre morte costuma ir armada.
Cheio de admiração pelas Doloi^as e
os Contos de Campoamor, o Asturiano
gostaria que essa voz nunca se calasse, e
reza por isso í^que nunca toque la giiestia
esgargolada (?) a tal xigante» (p. 69).
Ora é n'uma carta de amores que Pe-
rico confessa a Pepa,sua namorada:
Flacu, perflacu quede;
non te digo más, mió reina,
q^iie los nirímos ai vème
juxen comv de la giiestia (p. 70),
simile que se repete ainda em outra
composição:
fuxamos dei pecáo conio'1 nehu de la giiestia l
(p. 14.)
Para dizer «evita os presagios da mor-
te» já outro Asturiano empregara, de res-
to, o mesmo termo n'um vilhancico do Na-
tal de 1676, onde diz:
buelvet'acá, rapaza,
buelvet'acá, donceya,
y fugi de lia gueste
que anda n'aquesa tierra (2'')
Na obra, a cujo benemérito auctor se
deve a ultima citação, ha descripções de
costumes e crenças locaes, bastante va-
gas, em que também se menciona a
hueste:
«Para las eternas veladas de inverno
en torno dei liar relumbrante hay cola-
A TRADIÇÃO
167
ciones y juegos y cuentos maravillosos
de la hermosLira y poder de las Xanas,
(diminutas siltides que brotando dei ma-
nancial cristalino de las luenies secan a
los rayos de la luna sus delicados cenda-
les), )■ de los sinicsíros prL'SJii;i<ts de aquel-
las misteriosas luces llamadas hucstcs
que callada y letitamente ai traves de
las sombras van desfilando como precur-
soras de muerte )' de iiifortiniio.i)
Na Galliza o tliema aprcsenta-se com
alguma divergência. O único termo usa-
do para designar a procissão é o de
companha. Se estautiga existiu, ou se
ainda existe, deve ser em recantos mui-
to escondidos. Posso completar as defi-
nições dos diccionaristas apenas com um
punhado de notas soltas, espalhadas pelos
versos da inspirada auctora dos Cantares
Gallegos^ perfeita encarnação moderna
do génio lyrico gallaíco-portugués.
Cuveiro-Pinol (28) nos ensina que as
companhas em que o vulgo acredita, não
são outra cousa senão fogos fátuos; e
que a hiieste é uma procissão de bruxas
que andam de noite, allumiando-se com
ossos de mortos, batendo nas portas pa-
ra que as acompanhem as pessoas, que
querem ver morrer em breve «con una
porcion de disparates a cual mas absur-
dos y misteriosos.» Infelizmente não os
archiva.
Rosália Castro de Murguia, dando a
mesma definição nominal, narra que es-
sas luzes-bruxas que apparecem em fi-
leira, em eiras, caminhos, bosques e mon-
tes, correndo de um lado a outro, costu-
mam ser sete; econta ainda que o apagar-
se uma d'ellas é considerado como signa!
de morte e referido ao dono da respe-
ctiva herdade. C''^)
Descrevendo uma noite de tempestade,
ella canta :
Tod'era sombra no ceo,
tod'era loito na terra
e parece qu'a compana
bailah' antr'as arboredas
c'as chuchonas enemigas
e c'as estricadas meii;:is
(Gant. (íall. p. io3|
documentando assim que na sua phanta-
sia e na dos seus conterrâneos, as appa-
•riçõesda/i//c's/e e as reuniões das bruxas
se confundiram, ('") resultando nova es-
pécie de dança macabra. cm substituição
daquella onívd chore a Machabaeorum —
des Iodes Relhentan^ — que tantas vezes
serviu de assumpto ao pincel, ao esco-
pro e aos rhythmos dos artistas medie-
vaes, emquanto a arte vivia á sombra dos
mosteiros.
E' ainda a gentil poetisa que, á frente
ou ao lado da companha ^qvocíx a estadea
ou estadafnha a que já me referi '"k
a Morte na figura de um esqueleto en-
volto em mortalha. 1") Leia-se por exem-
plo a composição das Folhas Novas em
que, tenta affastar do caminho da dcs-
honra uma dona aventureira que sahe de
casa a deshoras, introduzindo a voz da
consciência que lhe segreda :
E si atopas a compana ?
e si vos say a estadea ?
para no fim rematar o romance com a
quadra seguinte:
Adios adios, dama hermosa !
darvos a tan maios modos !
Non vos levou a compana,
mais o enemigo levouvos. (")
Outra prova antiga de que em tempos
remotos a apparição de multidões de al-
mas tinha caracter bellico, annuncian-
do não a morte de um só individuo mas
aguerra e omorticinio de muitos, confor-
me o faz presumir tanto o substantivo
hueste i^*) como a passagem do poema épi-
co, é nos fornecida por um auctor estran-
geiro medieval.
O chanceller Guilherme de Alvernia —
Guillaume d' Auvergne, chamado também
de Paris, (fali. em 1 248) — trata em um dos
168
A TRADIÇÃO
seus escriptos theologicos (^^) da conce-
pção mythologica que nos occupa. Como
Francês allega o curioso e obscuro nome
vulgai" hellequiu [In ffwsticc tic Hellequhi)
que na sua pátria designava a hucstc an-
tiíiiui. traduzindo a denominação original
hispânica por excrcitus nutiquus.
Éis os trechos prjncipaes : De equiti-
bus vero nocturnis, qui vulgari gallicano
Hellequni^ et vulgari hispânico exercitus
aniiquus vocantur, nondum tibi satisfe-
ci quia nondum declarare intendo qui
sint; nec tamen certum est eos malignos
spiritus esse ip. 1037.) P) Nec te remo-
veat aut conturbet ullatenus vulgaris ília
Hispauorum nomiiiatio^ qua malignos spi-
ritus qui in armis ludere ac pugnare ri-
Jeri consucrermit. exercitum antiquum
nominant. magis enim anilis et deliran-
tium vetularum nominatio est quam ve-
ritatis ! (p. 1073.)
De outros paragraphos resulta igual-
mente que o tal exercito se compunha
então, na opinião do vulgo, de innume-
raveis cavalleiros armados. E resulta ain-
da que o viandante, que encontrando-o,
se refugiava num campo, sahindoda via
publica, ficava salvo e immune P'), por-
que as terras lavradas gozam da pro-
tecção especial do creador, sendo inaces-
síveis aos espíritos malignos, que não
têem a faculdade de fazer mal a quem
nellas estiver '^^•.
Estas passagens levaram naturalmente
o grande Jakob Grimm, a cuja Mytholo-
gia Germânica (^^) as pedi emprestadas,
a assentar que em Hespanha chamavam
exercito antigo á apparição aérea dos
bandos militantes de Wuotan. Conhe-
cendo nós hoje a expressão vernácula
hueste antigua^'ç^t\oXt\xo archaico fquasi
coevo de Guilherme de Paris) que tran-
screvi, teremos de suppôr que ao latinista
francês repugnava servir-se do vulgaris-
mo peninsular hostis por exercitus, mas
que era aquelle o termo que realmente
havia em mente. Exercito é vocábulo
erudito, desconhecido nos sec. XIII e
XIV (*"). Na litteratura archaíca castelha-
na o único termo usado era neste (escrito
veste ou uueste (*'); oste nos textos gal-
laíco-portugueses (^^).
A favor da identidade originaria das
lendas asturiano-gallaicas e das germâ-
nicas só darei alguns rápidos aponta-
mentos. Quem desejar instruir-se, deve
consultar em primeiro lugar a obra fun-
damental de Grimm, nos capítulos dedi-
cados á Morte (XXVII) e ás ApparicÕes
(XXXI) («).
A expressão neste antigua corresponde
de um modo surprehendente a outras
germânicas, como der alte haufen^ (em-
pregado na phrase den altem haufen
\uschicken = remetter áoste antiga); das
oldcheer er isi -{iim grossen fíeer gegan-
gen i. é. elle passou para a grande arma-
da i^'^). Em ambas se pensa nas mesna-
das do velho Deus das batalhas e da vi-
ctoria (der alte Heervater) que montado
num cavallo branco conduz as almas dos
guerreiros finados ('''■').
Em algumas partes da Allemanha ca-
tholica (Baviera), a estantígua chama-se
como em Portugal procissão noctur)ia=
Na chtgela it - Na chtgeja id.
Se Wuotan capitaneia o cortejo ou a
caçada dos homens, sua esposa Holda,
Berhta ou Perchtha, vestida de branco,
guia o préstito dos pequeninos que mor-
reram antes do baptismo. Estes, não lus-
trados pela agua sacramental, estão con-
demnados a vaguearem sobre a terra
como fogachos (Jrr-licher= fogos erran-
tes; Irr-jvische= fachos vagantes)^ ou a
atravessarem o ar, em bandos (in gan:^en
Haufen), num tumulto e estrépito que
causa pavor (*^).
Em todo aquelle paiz vigora entre o
povo a crença que as almas não admittidas
no ceo apparecem como aves noctívagas,
ou em figura de luz, affastando o viandan-
te do seu caminho. E vigora, como em Por-
tugal, a fé que é preciso não só respeitar
essas visõesmas temê-las. A vingança das
almas não se fará esperar, se algum des-
temido lhes mostrar menos considera-
ção {'').
Os agrimensores deshonestos e os
A TRADIÇÃO
169
W
X I
Tinhas-me tanta amizade
(CHORFOr.RAPHICAi
•^
170
A TRADIÇÃO
aldeãos que se apropriaram nesgas de
campos alheios limitrophes, no acto de
lavrarem o seu terreno, ou os que frau-
dulentamente mudaram o lugar dos mar-
cos que separam as propriedades, estão
igualmente sentenciados a pairarem sem
sossego, brandindo varas de fogo, sobre
as leiras que danificaram.
Consiglieri Pedroso, o qual ha mui-
to deixara assente, numa nota, que a
procissão dos defunctos é variante da
lenda do watetiJes Heer (") (remettendo
á obra fundamental de Grimm (*^) e ao
livro do russo Afanasíev) compara com
ambas as concepções mjthologicas a ex-
pressão latina feralis exercttus^ empre-
gada por Tácito, cingindo-se neste par-
ticular ás duas auctoridades citadas. Para
evitar um emprego erróneo d'essa indica-
ção, concluirei estabelecendo que no capi-
tulo 43 da Germânia^ onde o historiador
se serve daquella expressão, não ha allu-
são ás multidões celestes e sobrenaturaes,
mas simplesmente aos exércitos muito po-
sitivos ecarnaes de uma tribu germânica,
de excepcional bravura.
Os Harios, nas margens do Vistula,
realçavam a impressão, produzida pela
sua natural fereza, por efeitos exterio-
res, tingindo de preto os escudos e pin-
tando os seus corpos. «Para os combates
escolhem as trevas mais densas da noi-
te \atras ad proelia iioctes legunt); pela
terribilidade e negridão do lúgubre e mor-
tífero exercito incutem terror tal (ipsa-
que formidine atque límbra feralis exer-
citiis t errarem iufei^mitjquQ ninguém atu-
ra o inusitado e infernal aspecto do ini-
migo ínullo hostium sustinente novum ac
velut infermim adspectum).
Três et}'mologias de estantigua teem
sido tentadas.
i."; Est ^atiiaj antigua, por Paul Foers-
ter na sua Grammatica hespanhola,( 1 880 j
§ 347. O auctor lembrava-se. de certo,
de outros substantivos compostos, nos
quaes de duas syllabas idênticas, ou qua-
si homophonas, a protonica se perdeu
ce(ji)junto^ li(ga)garnba, mo{gi)gato^ mo
(gDgãJiga)^ mira (ma) molin^ mal {va)
visco, o {lio) libano. Mas o caso é bem
diverso.
2.") Stantifica^ por Gottfried Baist, na
Zeitschrifty ^ 243 (1881). Como se a pre-
existência de um verbo staiitificare^ (de
formação modelada sobre santijicare^ ies-
tificare,mortiJicare^pacificare^verificare
que deram santiguar, atestiguar, amorti-
giiar, apa:{igiiar, averiguar) fosse prová-
vel {'').
3.° Hostis antiqua, por °Ake W:son
Munthe na Zeitsch^ft XV 228 ( 1 889). Es-
te auctor, sem demonstração phonetica,
allegava os exemplos quinhentistas de es-
tantigua e hueste antigua^ communica-
dos na minha nota 20 e 21, assim como
as formas dialectaes asturianas.
Esta ultima etymologia foi apoiada
por A. Morei. Fatio na Romania, XXII,
482; (1893) e pela auctora na l^ev. Lus.
III 159,(1894.) Em ambas as partes se
citava a passagem do poema de Fernan
Gonçalez.
Ultimamente, o eminente cathredatico
de Freiburg desistiu da etymologia stan-
tifíca^ (só phoneticamente sufhciente, mas
pouco satisfactoria quanto á morphologia
e ideologia. Applaudiu a que advoguei e
advogo; mas não incondicionalmente, sup-
' pondo que na primeira parte da palavra
haja algum malentendido. (^')
Não o creio. A evolução pode muito
bem ter sido meramente phonetica. Nas
Astúrias onde a crença subsiste mais vi-
vaz, hueste conservou-se inalterado. (''^)
Em Castella onde a clara noção dos ele-
mentos constitutivos se perdeu juntamen-
te com a superstição, no sec. XIVou XV,
é que ueste foi reduzido a est.Qut mara-
vilha se n'uma palavra composta, a vogal
que de tónica passara a seratona foi altera-
da e reduzida o maispossivel? Se não co-
meçasse com s impuro (•'^^), z/í, reconduzi-
do a o, segundo a regra, perdia-se prova-
A TRADIÇÃO
171
velmente de lodo, engrossando assim a
já longa serie de vocábulos privados, por
apheresc,de o (resp. hu) inicial, nos terri-
tórios de que trato (").
Mas também é possivel que, uma vez
formada a expressão estantipia fgal. port.
esíaiitií^a\^ a lembrança da estátua da
Morte se infiltrasse nella, creando por
ventura a deturpação cstatiti^a que nes-
se caso mereceria ser contada entre as
etymologias populares.
Já vimos que estátua, no sentido vul-
gar de imagem corpórea, ou pelo menos
visivel, de um ente humano, mais vezes
morto do que vivo, anda positivamente
ligada ás lendas da hueste antiqua. Re-
cordem-se do esquife e também dos ver-
sos gallegos. E' verdade que D. Rosália
apresenta a forma estadca^ (,em rima com
cea lostregueaj accentuando o íí; e só
esta se acha registada nos diccionarios.
Outros relatores escrevem porém esta-
dia ("). Será estádia? ou estadia?
F^aham-me porora os elementos neces-
sários para esclarecer as relações muito
prováveis entre estadéa^ figura da morte;
e estátua imagem de um morto i'-'^).
Lm estudo critico e comparativo de
todos os usos e costumes, todas as
crenças e superstições, todas as praticas
e ritos relacionados com a morte, os
mortos, e suas almas, seria, parece-me,
extremamente curioso e conduziria a
pontos de vista bastante elevados, alar-
gando o horizonte intellectual de quem o
realizasse despreoccupadamente. E' de
crer que também resolveria os problemas
philologicos que deixo indicados.
Carolina MICHAELIS de VASCONCELLOS.
(') I a 2 de Novembro.
(2) Visiones et abusiones. — Sobre a historia
da palavra veja-se '7^^'. Lus. III 129.
(^) Tlures mortui^ quia ii majore numero
sunt quam vivi.
(•*) Senheira = singularia.
(^) P. ex. pedindo-ihes lume !
(*) Oh'alma dientera
Toca-me n'essa caldera. . . (sic l)
Consiglieri Pedroso XIV p. 35.
(•) Leite de Vasconcellos, Tradi<,'ies p 2q5. —
Colhidas no lugar de Gonditellos (Famalicão.)
(•) Se esta crença fosse simples variante de ou-
tra germânica, a que mais abaixo me retiro, se-
ria mais natural o conjuro Vae te pjra onde co-
meste leiras, com allusão a roubos de terra, pra-
ticados pelo defunto.
(') Occorre todavia que uma alma penada ap-
parece na figura de cão preto (f^alf^o neffroj.
('") Os nuberos das Astúrias, {nuveiros na
Galliza,! são redores e agentes das trovoadas
e correspondem aos tempestarii das Gallias.
Em Portugal acredila-se que a alma do cxcom-
mun^ado não vae para o ceu nem para o mfer-
no, hcando a pairar n'uma nuvem. Onde ella pas-
sar, o ar ruim do excommungado causa dores de
cabeça (Cf. Leite § I20 e 36o).
(>') Os materiaes minhotos foram quasi to-
dos colhidos pelo Celebre descubridor da Cita-
nia de Briteiros, cuja morte nos consternou ulti-
mamente.
("1 Não será extemporâneo recordar que já
Slrabon affirmou ser wna a maneira de viver dos
Lusitanos, Gallaicos, Asiures e Canlabros. — E'
todavia nas .Astúrias onde a persistência de
costumes antigos é mais sensivtJ.
('^) Dos que morreram em peccado mortal,
de morte violenta (por mão alheia ou como sui-
cidas), não sendo enterrados em sagrado, o povo
narra contos bem diversos. — Cf. Nota 10.
('*) Em Tras-os-Montes ouvi óizer pu/v'rinho.
São almas penadas^ bruxas, feiticeiras, que iTel-
les faliam, ás vezes o diabo, ou o Medo. — Ve-
ja-se p. ex. o Tifimance do Soldadinho tm T^ev.
Lus. II 22j-23o — Leite S 104: Pedroso X.
('^) Tanto em Portugal como na Allemanha
ha lendas e contos muito poéticos sobre o mes-
mo assumpto e sobre os anjinhos. — V. Consi-
glieri Pedroso XIV, 18. — Com as nossas lagri-
mas molhamo:» as azas dos anjinhos que por is-
so não podem voar para o ceu. — As nossas lagri-
mas salgadas são recolhidas pelos anjinhos n'uma
cantarinha, com cujo peso não podem, e que trans-
bordando lhes molham as suas vestiduras. — V.
Grimm Kinder und Haus-Maehrchen e Deutsche
Mythologie II 777-778.
C^l Ib. Ach wie warm'isi Mutter-arm I — .Ach
wie warm sind Mutterhánde !
('") 1881 — F. A. Coelho^ na Revista d'Ethnolo-
gia e de Gtotíologia, fase. IV 5$ 213,237,252.
1882 — J. Leite V asconcellos, 'Tradições popula-
res de Portugal. No § 104, 120, 143. 3õ6, ^7^, 374.
i883 — Consiglieri Pedroso, Tradições popu-
lares portuguesas na Revista Positivismo, vol. IV;
— especialmente na monographia sobre Almas do
outro mundo, as p. ih 19, com duas contribuições
finaes de Leite de Vasconcellos.
i883 — Th. Braga, Contos Tradicionaes do
Povo Portugue^ — vol 1 148.
188Ó — Id. O Povo Portugue^ vol. I p. 221-
226, ou todo o cap. IV: D05 Ritos Funerários em
Portugal, de p. 177 a 228.
172
A TRADIÇÃO
(") No 1$ 34Ó das suas Tmdições que trata
dos Lobishimiens, Leite de Vasconcellos trans-
creveu a primeira quadra, sem a interpretar.
('*( Pedroso N." 58S : Quando uma pessoa
morre, o seu carncil não volta mais, mas pode
apparecer uma sombra ou uma estatua {v.?ím!^ov)
— Eidolon corresponde exactamente ao germâ-
nico gespenst (revenant) : anima rediens aut re-
diviva.
t^") Em três casos estantigua designa (em
novelas dramáticas do Cyclo da Celestina) a
uma velha picara e niiocherniegay» que cuida de
negócios pouco limpos.
i5c>o — Celestina, Acto VII: Valala el diablo a
esta vieja! con que viene como estantigua a tal
hora! (Bihl. Aut. Esp p. 34.)
i52i — Seraphina p. 3So: la vista como ídolo
dei tiemvo antiguo. el andar y vision de estanti-
gua y fantasma de la noche (Col. Lihr. Esp. Ra-
ros o Curiosos, V).
1554 — Selvagia, p. i36: Quien es esta fantas-
ma ó estantigua? (Ib )
(") i544 Francisco de Villalobos, Tractado de
calor natural, Çaragoça. f. XXIX" : No sabemos
si es alguna fantasma que aparece a unos y no
a otros como t rasgo o como la hueste antigua f
{^\ Repare-se na curiosa personificação dos
fyecados, que acompanham a Satanás como aco-
ytos seus. São outras companhas, mas essas
infernaes: die hbllischen Heerschaaren.
(}^) A respeito dos que sacam almas lam-
bem haveria que dizer.
('^) A. Gumersindo Laverde Ruiz, Aponta-
mentos lexicográphicos sobre ima rama dei dia-
lecto asturiana em Ttev. de Astúrias 1879-80.
D. Fermin Canella, Estudos Asturianos —
Oviedo i88h (p. i33.)
Ç^') No Vocabulário de las Palabras y Frases
Bables de D. Apolinar Rato de Arguellès (Madr.
1892) somente esta ultima se regista, com a expli-
cação seguinte: \." procesion nocturna de finados
que forma parte de la mitologia popular asturia-
na; 2." la aparicion de los muertos. — Marcelino
Menéndez y Pelayo emprega na sua Historia de
Heterodoxos (T, p. 238) outra designação curio-
sa como synonyma de hueste: o euphemismo
buena-gente que supponho privativo da região
das Montaíías.
(**) Poesias Asturianas — Oviedo iSgS.
(^) D. José M. Quadrado, Astúrias y Leon
(p. 354.), Barcel. i885. — Forma parte da publica-
ção Espana. Sus Monumentos y Artes^ su Na-
turaleja y Historia.
(*) Diccionario Gallego p. 74.
(*') Cantares Gallegos, Madrid. 1872. — v. p.
219 (Glosario.)
('") Também em Portugal os contos de bru-
xas confundem-se com as das almas do outro
mundo. — Nos fogos-fatuos p. ex. o povo reco-
nhece óra umas, óra outras. — V. Nota 14.
(^') A' dança macabra também presidia um
esqueleto, coroado.
(^■■') Estadéa, esqueleto ó figura de Ia Muer-
te (Cuveiro Piiiol e Valladares Nunez.)
(33) Folias Novas^ Madr. e Habana 1880; p.
108.
(34) Hueste = exercito em campana.
p) De Universo, Part. II c. 12.
(36) Não tenho ao meu dispor as obras d'esse
erudito, sobre as quaes ha algumas indicações
na PZncyclopedia de Groeber 11." 207, 2i2, 235.
(3'') P. io6> e 1067. Cf. Du Cange, Glossarium
Mediae et Infimae Latinitatis s. v. Hellequinus.
(3**) Propter quod opinio inolevit apud mui-
tos agros gaudere protectione creatoris propta
utilitatem hominum ethac de causa non esse ac-
cessum malignis spiritibus ad eos neque potes-
tatem nocendi propter hanc causam hominibus
existentibus in eis.
(39) Ed. 4.", Berlin 1877, p. 785.
('"') O povo nunca o adoptou e serve-se de
preferencia do vocábulo tropa, mais caracteris-
tico e pittoresco.
('') Poema dei Cid, 234b ; Poema de Alex.
3q6, 436, 440, 1859, 2102; Fern. Gonç. 473; Gonq.
IJltr. p. 429.
C^) Caiic. Vat. 1 59, 420, 1 168 (na oste por el
rei servir I; Cant. Mar. i5, 3: sacar oste; 28, 2 05-
te de pagãos; i65, 4; 21 1, 3, 233,7: grand'oste. Na
Cantiga 182,8 Como S. Maria livrou un ladron
da mão dos diabos que o levavan encontramo-nos
até com uma oste de espíritos malignos (de de-
mões oste.)
^3) Grimm, Deutsche Myth., Vol. II 700-713,
761-793,111 245 e 277-284.
(") Ib. 706 e 785.
(''•') A via láctea {galáxia lembrava Galileia),
na mythologia germânica a estrada dos deuses ou
de Wuotan (Grimm í 106-280, III 296), e é tam-
bém entre nós, como entre os gregos, o caminho
pelo qual as almas sobem ao ceo. Recordarei a
principal lenda sobre a estrada de Santiago — que
a alma do peninsular que em vida não foi a San-
tiago de Compostela tem de ir lá, depois da
morte, antes do corpo ser levado á egreja — para
lembrar que em Galliza ha outro sanctuario que
é obrigação de cada natural visitar pelo menos
uma vez : Sant' André de Teixído. No dia da
grande romaria ninguém mata lagartixa, cobra,
ou outro qualquer reptil, que encontre no ca-
minho, porque é crença viva que os defuntos
vão em aquella forma a cumprir a romagem que
não fiz3ram.
C*^) Grimm I 765.
(*■) Ib. 77^J-
(«) Ib. 792.
('•9) Ib. I 725 e III 244, Poetiicheskia vozzrie-
niia slavian na prirodu (ideias poéticas dos Sla-
vos acerca da natureza.)
f'") V. Koerting, Lateinisch-Romanisches Wtir-
terbuch N." 7447 (texto e supplemento.)
(5') Kritischer Jahresbericht IV 314: Im er-
ten Theil der zusammensetzung diirfte bei alle-
dem ein Missverstándniss stecken.
A TRADIÇÃO
178
i
I ■'-) Com isso não quero dizer c^ue o povoastu-
riano saiba da significação primitiva de hueste.
Muito pelo contrario. C) desconhecimento d'ella,
e as formas dialectaes com g até levaram philo-
lopos indif;enas a derivar ^ueste do inf;lez ^hos-
lall, em allemão. G"t'í.s7 f.v/iir/7(/.l'ara os conven-
cer da verdadeira origem da palavra hastará as-
sentar que o bable nãu admitte que uma palavra
rincipie com o dithongo iie. Quer provenha de
'zo primário ou secundário; quer ande precedi-
do de u consoante, ou da labial b (que nas re-
giões septentrionaes e occidentaes da penínsu-
la confundem com vy, o asturiano pronuncia ffiie.
Ao pí\r á<j ^úierto,- lniert(>Jiurto:guespedL\- hties-
pcd hospede; ^iievo. - hiievo, ovo; f;uesu^ hiieso^
ossu; ffueyii oio. olho oclo temos ^^ucsa liuessii^
fossa; guelta vuelta, volta; guela vuela votat;
gueno Inteno, bono; gue viie, bue bove;
giiesca iniesca, osca. — A substituição de e final
por ia é também um dos característicos do as-
turiano, como do gallepo e português, p. ex. em
gólpia por golpe^ resultante da preferencia dada
aos vernos em lar e adj. em \u ia alterar^ guardar,
pulsíar, encuríiar; curtiu, blandin etc. Para ex-
plicar a variante guésíiga — outro testemunho
da predilecção dYsses povos por esdrúxulos por
elles creados — lembrarei apenas mústigo gail.
muscho^ port. murcho: lóstrego lustruvi; crobe-
ga cobra colubra; pérdega perda de perdita.
(■'■') Cí. hespitalero, (^onq. 420, e em portu-
guês espital estau, espicio, escuro.
(^') fcis alguns casos gallaícos-portugueses de
alijamento doo; chavo; chumba de buncha, opun-
tia: leado; juenagevi; penião, punião; reptar, ar-
repiar; ruginal /original): variíuj; Tranto; Vaya
(ôvaya Baya Eulália)
(''•'•) Heterodoxos I 235.
(■"''') O povo português pronuncia estátua, mz^á
também )à ouvi dizer estádua. Conf. estatelado.
M. V.
IWodas-estFibilhos alemtejanas
Tinhas-me tanta amisade
Tiuhas-me tanta amisade
Qiie me querias sustentara . . .
Abalaste para Lisboa
E eu cá fiquei a chorara!
Eu cá Jiquei a chorara,
Chorava d' uma paixão . . .
Abalaste para Lisboa
Lindo amor do coração 1
>
M. Dias NUNES.
Danças |io|)IiIíhts iIu ItiiiMi-Alciiilcin
(Continuado de pa^. .13)
Os bailes aos pares começam pela for-
mação de dois circulos concêntricos, de
rapazes um e outro de raparigas, cm nu-
mero egual, e collocados frente a frente;
sendo peculiar d(; sexo forte o circulo ex-
terior.
Ao elevar-se a voz, que entoa a pri-
meira s^llaba da primeira quadra, cada
um dos rapazes se acerca, lado a lado,
da sua rapariga e enlaçam as mãos, des-
tra com destra, sinistra eom sinistra. De
seguida, todos os pares, uns após ou-
tros, se põem cm movimento, caminhan-
do para a direita.
Quando a cantiga, em coro, linalisa e
a moda-estribilho principiai*), dcsenla-
çam-se as mãos, e a roda estacou. Kntão
tornam os bailadores á primitiva nosição
de frente a frente, e cada um faz balance
com o seu par, arrastando os pés, ar-
queando os braços, e dando castanholas
com os dedos pollegar e máximo de am-
bas as mãos.
Mal que a moda acabou, ouve-se logo
uma nova cantiga, ao som da qual volta
a formar-se, e a movimentar-se, a dupla
roda. Vem depois, uma vez mais, a mo-
da-estribilho, obrigada á paragem pis-à-
vis^ balance, castanholas, etc. H sempre
assim, continuadamente.
A mudança de pares é coisa obrigató-
ria ao começar de cada nova quadra: O
circulo feminino avança um passo, em-
quanto o circulo dos homens se conserva
no mesmo logar ; e deste modo, o novo
par de cada rapariga é o mancebo im-
mediato ao seu par anterior.
Devo notar que, hoje em dia, as rapa-
rigas vão usando dar o braço aos rapa-
zes, em vez das mãos, como era de an-
tiquíssimo costume.
(*) Se a moda não tem resquebre (lettrai. em
logar d'este repete-se a cantiga.
174
A TRADIÇÃO
Particularidade curiosa, de que várias
pessoas me informam: a mocidade de ha
sessenta annos dava-se as mãos, não de
frente, mas pelas costas, torcendo os bra-
ços e martvrisando o corpo.
Nos bailes aos pares^ o andamento,
em regra, é paulatino e moroso, em har-
monia com as musicas adoptadas neste
género de dança — puros e simples «des-
cantes».
* *
Reservando para mais tarde a descrip-
ção de certas variantes dos bailes de
roda, tae-: como as que se observam no
cPaspalhão», «Triste viuvinha», «Senho-
ra quintaneira», etc, etc, passamos a
registrar diversas praxes e rimas popu-
lares, interessantissimas, que são com-
muns aos bailes em geral.
Fallemos primeiramente do velho e
svmpathico tocador da viola nacional,
que — mal de nós! — está sendo eclipsa-
do pelo moderno tangedor do estrangei-
rissimo harmonium.
Creatura indispensável em todos os
bailes, quer públicos, quer de feição par-
ticular e familiar, o tocador de viola go-
sou em todos os tempos, e ainda hoje
gosa, das finezas mais caras e gentis por
parte do bello sexo. Ora veja o leitor
estas lindas cantigas, repassadas de gra-
ça e bom humor, que as raparigas se
permittem dirigir, entre sorrisos brejei-
ros, ao maganão do violista:
O tocador da viola
Merece uma bóa ceia :
Uma data de pasadas,
Trinta dias de cadeia !
O tocador da viola
Merece uma gravata;
Hei-de mandar fazer-lhe uma
Do rabo da minha gata !
O tocador da viola
Merece uma gallinha. . .
Mastigada co'os meus dentes,
Cá p'rá minha barriguinha !
O tocador da viola
E' feio . . mas toca bem 1
Se não casar pela prenda. . .
Formosura não a tem 1
O tocador da viola,
Oh moças! tratem-n'o bem,
Que elle é de fora da terra,
Não conhece aqui ninguém.
O tocador da viola
Merece levar pasadas :
A viola não é sua.
As cordas são emprestadas !
O tocador da viola
Tem dedos de marafim ;
Tem olhos d'enganador. . .
Não me ha-de enganar a mim 1
A viola tem um S
Por baixo do cavalete ;
O tocador que a toca
E' um lindo ramalhete !
O tocador da viola
Tem dedos de papel pardo. . . ;
Tem olhos d'enganador. . .
Ha-de enganar o diabo !
E que não esqueça est'outra quadra,
muito favorita d'um afamado tocador, já
fallecido :
Aqui me vejo apertado.
Sem me poder resolver,
Com esta viola a peitos. . .
Ai! Jesus! Que hei-de eu fazer?!
(Continua.)
M. Dias NUNES
THERAPEUTICA MÍSTICA
(Continuado de pag. 143)
VII
Benzedura da dôr de cabeça
«Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
Continua a benzedeira :
«Onde eu ponho minha mão, ponha o
Senhor a sua divina vontade. Quando
S. Pedro pelo mundo andou, encontrou
o seu divino mestre. O Senhor lhe per-
A TRADIÇÃO
175
guntou : — Onde vaes, Pedro ? — Eu, Se-
nhor? vou para o monte forte. — Anda,
Pedro. — Não posso, Senhor — Pois o
que tens? — Dôr de cabeça.»
«Jesus, Jesus, Jesus — Credo em cruz.»
N. B. — F!mquanto a benzedeira diz
aquella oração, conserva a mão sobre a
cabeça do paciente, mas sem lhe tocar
nem fazer cruzes.
VIII
Benzedura do fogo
a Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
«Santa Cecilia tinha três filhas: uma
lavava, outra estendia, e outra no fogo
caía. Com que se curou ? com que se cu-
raria ? — Com o unto do porco e com o
pó do dia.»
«Em louvor de Deus etc, etc, etc. t
N. B. — Prepara-se um bocado de unto
de porco e uma porção de pó da estrada.
Emquanto a benzedeira diz a oração,
ella se encarrega de ensopar o unto no
pó e com este esfrega os pontos quei-
mados pelo fogo.
'IX
Benzedura do cobro
«Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
Diz a benzedeira :
«Se fores alvorinho, eu te corto o fo-
cinho, se fores negral eu te corto o cris-
tal.»
«Em louvor de Deus etc, etc, etc.»
N. B. — A benzedeira finge cortar com
uma faca e reza um P. N. e uma A. M.
X
Benzedura da calma
«Jesus, santo nome de Jesus, etc, etc.»
«Sexta feira da luz subiu o Senhor á
cruz. Perguntou Pilatos a Jesus: — quem
treme ? tremo eu ou a cruz ?» Respondeu
o Senhor: — Não tremo eu nem a cruz.
«Não treme, nem tremerá, que eu sou o
Senhor sacramentado, pelo mundo te-
nho andado, calmas e calmarias apanha-
do.» — Pois como se tiraria? — Com a
rama da oliva talhada e dobrada duas
vezes e com pingas d'agua fria.»
«Em louvor de Deus etc, etc, etc."
Nota íinal
Todas as pessoas que benzerem de-
vem pôr um pedacinho de pão no seio,
e depois de concluída a benzedura de-
vem deital-o a um animal, porque, se não
fazem isto, podem adquirir a doença,
de que benzeram. 'Iodas as pessoas que
padeçam dos dentes ou dos nervos teem
de rezar nove vezes o credo, offerecen-
do-o á Senhora das Dores.
(Loulé)
AiHAiDfc bt)LIVKIRA
JOGOS POPULARES
vil
Eisíconclílfêloei (*)
Este jogo, dorigem antiquíssima, ain-
da hoje se vê adoptado entre a rapazia-
da, que o pratica em todas as estações
do anno, tanto de dia como de noite.
Vejamos como elle se realisa.
Juntam-se diversos rapazes em qual-
quer sitio, perto do qual haja esconderi-
jos. Dentre os mesmos rapazes, escolhe-
se um para mãe^ cuja missão é dirigir o
jogo, conforme veremos d'aqui a pouco.
Quanto aos demais jogadores, um delles
tem de ser vendado pela mãe. emquanto
os outros se vão esconder. Aquelle que
ha de ser vendado, é tirado á sorte pelo
(*) O povo pronuncia: escondarélos.
176
A TRADIÇÃO
processo da pedrinha, já anteriormente
descrito.
Isto feito, senta-se a mãe no chão, ou
em cima dum poial, e, entre os seus
membros inferiores, senta-se também o
rapaz indicado pela sorte para receber a
venda.
A mãe, então, tapa-lhe os olhos com
as mãos, e manda os outros rapazes a
esconderem-se, ao mesmo tempo que vai
proferindo em voz alta: «lá vai um, lá vão
dois, lá vão três, etc». Entretanto vão
os rapazes escondendo-se, o melhor que
podem, até que a mãe grita: «Esconder
bem, que lá vai Maria a ver!w Ditas
estas palavras, a mãe^ levantando as
mãos, destapa os olhos do rapaz que
está sentado junto de si, e deixa o ir á
busca dos companheiros, os quaes, ape-
nas presentem que vão ser descobertos,
correm immediatamente para a mãe.
Cada um dos jogadores procura ganhar
a dianteira aos outros, porque o rapaz,
que mais se atraza na carreira, é preci-
samente aquelle que tem d'ir sentar-se
ao pé da mãe, para, a seu turno, ser
vendado da mesma forma que o anterior.
E assim successivamente.
O jogo, que ahi deixamos descrito, é,
como se vê, muito simples, mas nem
porisso elle deixa de ser bastante alegre,
e tem a sua utilidade sob o ponto de vista
hygienico.
(Brinches)
Ladisi^u piçarra.
As feslas dn Sarramonlo em Beja
(continuado de pag. i34l
Os presos nunca excedem o numero
de dez ou doze; pois, apesar d'isso, o
jantar que lhes é destinado toma propor-
ções taes, que dá bem para duzentas ou
trezentas pessoas. Com isto lucram os
pobres, porque por elles são distribuídos
os sobejos. Este jantar é conduzido pro-
cessionalmente pelas irmandades de to-
das as freguezias, auxiliadas por soldados
do regimento 17, ou quaesquer homens
do povo, que se apresentam mesmo sem
opa nem distinctivo algum.
O jantar, ao mesmo tempo abundante
e variado, consta de sopa fervida, cosido
de vacca, couve e carne de porco; arroz
tostado, carneiro assado, carneiro guisa-
do {ensopado).! azeitonas, queijinho, fru-
cta, arroz doce, trouxas d'ovos e vinho.
A cada ração corresponde ainda uma
onça de tabaco e um livro de papel de
fumar. Todas as iguarias, que acabamos
de mencionar, introduzem-se em alcofas
d'esparto, sendo cada alcofa transporta-
da por dois homens. N'este acto figura
também o respectivo talher de prata, cu-
jas peças são conduzidas pelos reitores
das differentes freguezias. Ao thesoureiro
pertence levar uma salva de prata con-
tendo o tabaco e o papel de fumar.
Na ultima festividade, adoptou-se um
novo processo de conduzir o jantar, mui-
to preferível ao antigo, porque dá mais
rfcalce ao cortejo e evita que n'elle to-
mem parte indivíduos desprovidos d'opa.
Parte do jantar caminhou sobre dois car-
ros alemtejanos artisticamente ornamen-
tados, simulando centros de mesa ou
fructeiros. Produziam um effeito surpre-
hendente e davam ao préstito o tom
d'um cortejo civico. O jantar dos presos
percorre um trajecto curto. Em geral,
sae da freguezia da festa e dirige-se
logo á cadeia. Após a distribuição do
jantar, ha um intervallo de uma ou duas
horas, no fim do qual sahe a chamada
procissão da festa. E' n'esta procissão
que figuram os três famosos andores de
prata, primorosamente burilados e mar-
chetados de pedras pseudo preciosas,
collocadas ali, segundo consta, em vez
das primitivas, que eram as verdadeiras.
Os ricos andores, que vimos de no-
mear, eram propriedade do extincto Con-
vento da Conceição d'esta cidade, mas
hoje pertencem á mitra.
(Continua)
Alves TAVARES.
Autlo T — ^.' lâ
SESPA, Dezem\3ro de 1899
8«We I
Editor-administrador, José Jfronymu da Cotia Uravo Je Nffirfirut, Rua l.arga, a e 4 — SlíRPA
Typ. de ÁJolpIto de Mendonça tí ituarte, Kua do Corpo Santo, ^li e 4.S — LISBOA
A TRADIÇÃO
REVISTA MENSAL DETHNOGRAPHIA PORTUGUEZA
DIRECTORES: — Z.^DZSLylZ7P/Ç^i?R^ e M. DIAS NUNES
Daiiras |)n|iiilan's do Ilaixo-.llciiiíejo
(Continuado de paç;. 173)
Realisam-se, de ordinário, os bailes
populares na casa de fora, ou da entrada,
que é por via de regra o melhor e mais
espaçoso compartimento das pobies ha-
bitações térreas dos camponezes.
As raparigas, unicamente, são convi-
dadas para estes bailes; os rapazes, es-
ses apresentam-se alli sem nenhuma es-
pécie de convite.
A' porta da rua, o dono ou a dona
da casa — mais vulgarmente a mulher —
recebe prasenteira o bello sexo e vae
parlamcniando com os mancebos que
chegam.
— Dá licença que veja o seu balho ? —
é a pergunta sacramental de todos os
rapazes, ao pisarem garbosos o limiar.
A dona de casa :
— Se é p'ra balhar, entre ; agora se é
só p'ra ver e fazer pouco, — não senhor,
— rua !
— E' p'ra balhar. . .
— Então, entre.
Quando o baile é ao meio^ o recem-
chegado pede licença a qualquer dos in-
dividuos que formam a cadeia e n'ella
se incorpora sem mais cerimonias. Ago-
ra se o baile é aos pares a coisa não vae
tão facilmente, pois se faz mister que
algum dos cavalheiros dançantes esteja
disposto, ou se disponha, a ceder a sua
da)}ia.
— O' amigo, dá licença que eu balhe
um poucochinho? — interroga o rccem-
vindo, opportunamentc (*), dirigindose
ao mais próximo par c collocando, ao
de leve, a mão direita sobre a espádua
do varão. Desde que este seja realmente
amif(o, ou mesmo simples conhecido, de
quem solicita a permissão de balhar, a
cedência da rapariga é quasi certa ; mas
do contrario, é bem vulgar a resposta :
«n'este instante mesmo eu entrei», equi-
valente á recusa. K tal recusa, embora
entre desconhecidos, constitue sempre
uma grave otíensa, da qual não raro de-
rivam grandes questões e sérios confli-
ctos.
Dos bailes populares, o máximo at-
tractivo, por sem duvida, consiste nas
variadíssimas quadras, de variadíssimo
objecto, que a mocidade canta com pro-
fundo enthusiasmo, alegre e luidosa.
Que nos permitta, pois, a benevolên-
cia do leitor estamparmos aqui uns pe-
quenos trechos, inherentes ás diversões
choreographicas, do nosso vasto e opu-
lento cancioneiro regional.
E' do estylo bailarem em cabello, tan-
to os homens como as mulheres ; e se
porventura alguém se esquece de obser-
var similhante preceito, ha logo quem
advirta, n'alguma d'estas cantigas :
i (*) A opportunidade, dá-se no momento em
I que a moda-estribilho findou e nova cantiga vae
I principiar.
178
A TRADIÇÃO
Disse-me a dona da casa
(Assim eu tivera o «.eu I) :
«Quem quizer aqui balhar
Ha-de tirar o chapéu».
Disse-me a dona da casa
(Em louvor de S^-n Lourenço):
tiQuem quizer aqui ha'hnr
Ha-de lirar o seu lenço».
Cantam as raparigas quando os res-
pectivos namorados estão ausentes:
O meu bem não e.stá aqui,
Mas 'stá quem lh'o vá contar :
Eu, na sua ausência d"eHe,
O meu allivio é chorar.
O meu bem não está aqui,
Mas 'stá quem lh'o vá dizer :
Eu, na sua ausência d'elle,
O meu allivio é morrer !
Onde estará o meu bem,
Que ha dias que o não vejo ?
Qual será o dia alegre
Que eu matarei meu desejo!...
Onde estará o meu bem,
Que me vem tanto ao sentido ?
Se estará na obrigação.
Ou se terá já morrido ?. . .
Onde estará o meu bem,
Qu'inda o não vi esta tarde ?
E' muito certo que esteja
N'alguma sociedade. . .
Onde estará o meu bem ?
Com quem andará brincando ?
Se eu serei lembrada d'elle
Como elle me está lembrando ! . . .
Meu amor ficou de vir,
Mas, porém. . . inda não tarda !
O caminho é muito longe.
Tem que dar muita passada.
Este halho está bom b.ilho,
Agradeço lhe o favor !
Mas não 'stá aqui balhando
Quem estimo por amor.
Todos vêem ver
O nosso baJhinho . .
Só o meu amor
Não sabe o caminho!
Se o meu lindo amor
Viesse aqui dar,
Um rosário ás almas
Havia eu rezar !
Cantam ainda as raparigas á chegada
dos seus derriços :
Graças a Deus que chegou
Seja muito bem parecido !
O rigor da sua ausência
Só eu o tenho sentido.
Graças a Deus que chegou
Quem eu desejava ver ;
A' palavra não taitou :
Assim é que ha de fazer !
Graças a Deus que chegou
A alegria da minh'alma :
Olhos de branca açucena.
Raminho de verde palma!
Graças a Deus que chegou,
E' chegado não sei quem . .
Chegaram dois olhos pretos
A quem os meus querem bem!
Graças a Deus que já chovem
Pingas d'agua no jardim !
Graças a Deus que já tenho
Meu amor ao pé de mim !
Nos bailes aos pares^ ao enlaçarem as
mãos dois namorados, é muito usual
qualquer das seguintes quadras:
Aqui me tens ao teu lado,
A's tuas disposições !
Vamos a unir se queres.
Os nossos dois corações.
Aqui me tens ao teu lado,
Meu amor, haja prazer !
Sem comer posso passar ;
Sem li não posso viver 1
Aqui me tens ao teu lado,
Meu amor, haja alegria !
Sem comer posso passar ;
Sem te ver. . .nem só um dia !
Aperta-me a minha mão
Té que m'estalem os dedos !
Como queres que t'eu ame,
Se eu não sei os teus segredos ?!
A TRADIÇÃO
179
e^LERI^ ])E TVp08 POPdL^RES
XII
Camponez, de çafces e çamarro i Serpa)
180
A TRADIÇÃO
Aperta-me a minha mão
Té que eu diga .- — deixa, amor !
Quem mais aperta, mais quer,
Quem mais quer, mais sente a dor.
Aperta me a minha mão,
A)unta palma com palma ;
Aqui tens meu coração,
Toma posse da minh'alma !
Aperta-me a minha mão
Té que eu diga : — deixa ! deixa !
Quem mais aperta, mais quer,
Quem mais quer, menos se queixa.
Quando as tuas mãos estreito
E aperto com saudade,
Sinto dizer em meu peito :
— 'Stá firme a nossa amizade !
— Dá-me as tuas mãos de firme,
Dou-te as minhas de leal ;
São cartas que ficam feitas
Se algum de nós se ausentar.
— Ausente mas sempre firme,
Resolvido a não deixar-te ;
Quanto mais ausente cu vivo,
Mais firme sou em amar-te !
Aos donos de casa :
Esta casa está bem feita,
Picadinha ao picão;
A' dona, que n'ella mora.
Deus lhe dê a salvação.
Esta casa está bem feita,
Muito bem emmadeirada.
Muito gói>to eu de balhar
Em casa de gente honrada 1
Viva o dono d'esta casa
Mais a sua companheira !
Deus lhe dê muita saúde,
Muita libra na algibeira.
Esta casa está juncada
Com junquilhos da ribeira.
Viva o dono d'esta casa
Mais a sua companheira !
Lá no alto da Marreira
'Stá um calvário e três cruzes.
Viva o dono d'esta casa,
Que o balho tem nove luzes !
Para acalmar a vozeria que ás vezes
se estabelece :
Senhores ! Haja silencio !
Não mando caiar ninguém. . .
Disse-me a dona da casa :
«Silencio parece bem».
Despedidas :
Adeus, que me vou embora !
Adeus, que me quero ir 1
Dá-me, amor esses teus braços,
Que me quero despedir.
Dize-me, amor : Até quando
Ha-de ser a nossa ausência ?
Se ha-de ser por muito tempo
Peço a Deus paciência.
Vou-me embora. . e tu cá ficas !
Quem te podesse levar ! . . .
Se podesses vir commigo,
Não havias cá ficar !
Vou-me embora, que nem tanto
M'eu havia demorar.
Que tenho o caminho longe
E amanhã que trabalhar.
Vou-me embora, vou-me embora,
Já tenho a roupa no barco.
'Stá chegada a triste hora.
Que eu de ti, amor, me aparto.
Vou me a dar a despedida,
Já não canto senão esta :
O pouco parece bem.
Tudo o que é de mais não presta.
Despedida, despedida !
Sabe Deus quem se despede !
Eu, para não ir chorando,
Faço despedida alegre.
f
Várias
'Stás de fora e não balhas.
Qual é o teu superior ?
Quero-lhe ir pedir licença
PVa balhar comtigo, amor 1
Os senhores que aqui estão,
Uns sentaflo', outros de pé,
Não vêem cá por balhar,
Vêem só por darem fé.
A TRADIÇÃO
181
Se me amares a mim só,
Mais do que a rocha sou firme !
Em sabendo que amas oulrem. . .
Sou um raio a despedirme!
O nosso balhinho
'Stá papa, 'slíi peixe ;
Quem não postar d'elle
\^á-se embora, deixe.
No nosso balhinho
'Stão pares epuaes.
Fechem là a porta,
Não quVemos cá mais.
Gosto muito de quem gosta
O mesmo pôí.to que eu tenho.
Se tu em mim fazes gosto.
Eu em ti dobrado empenho !
Venho d'aqui tantas léguas
Por te vèr, oh meu amor !
Nem de rastos que tu andes
Me pagas este favor.
Vamos lá cantando bem,
Para o baiho ter valor.
Quem chegou agora aqui
F"oi um grande cantador.
M. Dias NUNES.
THERAPEUTICA MYSTÍCA
o quebranto
Toda a gente sabe, que o povo attri-
bue a certas pessoas o triste privilegio
de molestar outras, com a simples pro-
jecção dum olhar. A' doença assim pro-
duzida, por modo tão fácil quão mys-
terioso, dá-se o nome vulgar de que-
branto, e aos raios visuaes pathogenicos
da supposta enfermidade, chama-se mau
olhado
Quando qualquer sujeito, do sexo
masculino ou feminino, gozando na ap-
parencia de boa saúde, é atacado repen-
tinamente de náuseas, vómitos, dores de
cabeça e do ventre, trata-se provavel-
mente, no entender do publico, d'um ca-
so de quebranto. E, para haver a certe-
za, se sim ou não a referida pessoa foi
aquebrantada, costuma fazer-sc a se-
guinte experiência: deita-sc aííua numa
tijéla, e benze-sc essa agua, o dizendo
ires vezes o credo em cruz» (•), e em
seguida lançam se algumas gottas d'azei-
te dentro da mesma tijcla. Sc o azeite
desapparece, diluindo-se completamen-
te, não resta a menor duvida de que a
creatura suspeita está aquebrantada ; o
contrario succede, quando o citado óleo
se conserva, bem distincto, á ílôr da
agua.
Um dos effeitos que o quebranto or-
dinariamente produz nos indivíduos em
que elle se manifesta, é a queda extem-
porânea do cabello. Neste caso, é de
boa praxe ir recolhendo todo o cabello
que cae, guardando-o cuidadosamente,
para ser queimado na noite de S. João.
Piocedendo assim, o dono ou a dona do
cabello caido, livra-se de todo e qual-
quer malefício.
O mau olhado não affecta unicamente
o género humano; a sua malévola acção
faz-se sentir numa área mais larga. Sob
a influencia perniciosa do mau olhado —
crê o vulgo — adoecem também os ani-
maes, seccam-se as plantas e damnifi-
cam-se diversos objectos, taes como o
pão, os bolos, etc. Conhece-se que o
pão, ou um bôlo qualquer, foi alvo de
olhar mau, quando transportados esses
alimentos ao forno, para ali serem co-
sidos, se nota que elles, em vez de le-
vantarem sob a acção intensa do calor,
ficam, ao inverso, chatos e mal passa-
dos, desagregando-se em fios a sua mas-
sa interior.
São innumeros os episódios que a fan-
tasia popular tem bordado em torno do
quebranto. Quem tiver paciência para
investigar, na grande e ingénua massa
do povo, tudo quanto se conta acerca do
mau olhado, ficará de certo estupefacto
perante a immensidade de casos, muitos
(*) Dizer uma oração em cruz, consiste em pro-
ferir essa oração ao mesmo tempo que se pra-
tica o signal da cruz.
182
A TRADIÇÃO
dos quaes são em verdade bem extra-
vagantes. Assim, narremos um pequeno
facto, que não deixa de ser pittoresco e
até picaresco.
Numa noite d" inverno, em volta duma
confortável e poética lareira alemtejana,
achavam-se sentadas varias pessoas, cn-
tretendo-se a conversar. Por cima do
lume, dentro da chaminé, existia urn
pau de hellos chouriços, que estavam ali
a defumar-se, conforme o costume do
Alemtejo. Um dos circumst antes, ao que
parece, pouco distrahido com a palestra,
entendeu que devia fitar os alludidos
chouriços, mirando-os e remirando-os
minuciosamente. Mais tarde, depois dessa
pessoa se haver retirado, assistiuse ao
curioso espectáculo de ver cahir, um a
um, todos os chouriços que se achavam
dependurados. Tão extranho fenómeno,
não podia explicar-se, segundo a inter-
pretação da lenda, senão por effcito de
um mau olhado, que necessariamente
emanara da pessoa supramencionada.
E casos como este, encontram os leito-
res quantos queiram, deide que se dis-
ponham a procurá-los no vastíssimo cam-
po da tradição.
A crença ou, para melhor dizer, su-
perstição, que ao de leve ahi deixamos
esboçada, apesar de ter a sua origem em
remotas eras, ainda hoje s'encontra mui-
to espalhada entre as camadas popula-
res. Resulta naturalmente d'aqui, ser a
benzedeira assaz procurada, pois qu^ a
ella costumam recorrer todos aquelles
que se julgam victimas do mau olhado.
Benzedura contra o quebranto
A benzedeira sustenta na mão direita
um rosário, e acenando para o rosto do
enfermo com a cruz do mesmo rosário,
vai fazendo cruzes, ao mesmo tempo
que profere a seguinte oração :
— «Em nome de Deus e da Virgem
Maria, a mão de Deus vá adiante, que a
minha não tem valia. José! íse é este o
nome no doente) Deus te fez e Deus te
creou. Perdoe Deus áquelle que mal te
olhou. Se é da cabeça, S. João Baptista;
se é dos olhos, santa Luzia ; se é do
pescoço, Senhor do Horto ; se é dos
dentes, Santa Apolónia; se é dos bra-
ços. Senhor S. Marcos ; se é da barri-
ga, Santa Margarida ; se é do estôma-
go, Santo Ignacio ; se é das pernas. San-
to Amaro ; se é dos pés, Santo André ;
se é das costas, Senhora das Brotas; se
é das guelas. Senhor S. Braz ; se é da
cara. Senhora Santa Clara ; se é do pei-
to. Senhor do Leito. Em louvor de Deus
e da Virgem Maria: Padre Nosso e Ave
Maria». (Reza-se um Padre Nosso e uma
Ave Maria).
Toda a reza precedente deve ser pro-
ferida durante nove dias, e cm cada dia
nove vezes. No fim de cada sessão, of-
ferece-se a mesma reza á Sagrada Mor-
te e Paixão de Nosso Senhor Jesus
Christo e aos Santos e Santas que en-
tram na benzedura, «para que sejam ser-
vidos de tirar aquelle mau olhado».
Serpa.
Ladislau piçarra.
LENDAS & ROMANCES
(Recolhidos da tradição oral na provinda do (Vllemtejo)
VI
BeiTial Franeez
Era meia noite em ponto,
A uma porta batiam.
— Se é Bernardo Francez,
A porta lhe vou abrir ;
Se é algum dos seus criados,
Todos já se podem ir.
— Sou eu, sim, minha senhora,
A porta me queira :ibrir — .
O' descer da sua cama
Lhe cahíra o ananguil,
O' abrir da sua porta
Se apagara o candeil.
Pegara-lhe pela mão
E o levara ao seu jardim,
E mui bem o lavara
Em agua de alecrim.
Para a sua cama o levara
E o deitara a par de si.
— Que tendes, Bernardo Francez,
Que tanto pensas em ti.
A TRADIÇÃO
183
Que meia hora é passada
E sem te virares para mim ?
Se tens medo aos mouros,
Elles não te combatem aqui ;
Se tens medo aos meus irmãos,
Elles não estão por aqui ;
Se tens medo ao meu marido,
Elle longe está de ti ;
Mil facadas o matem,
Miís novas me tragam d'elle,
E boas m'as tragam de ti.
— Eu não tenho medo aos mouros,
Que elles longe estão de mim,
Nem tenho medo a teus irmãos,
Que cunhados são de mim,
Nem tão pouco a teu marido
Que o tens a par de ti.
— Ai I desgraçada de mim,
Foi um sonho que sonhei.
Que tinha meu amor nos braços,
Sem saber que o tinha aqui.
— Socega. que indn é de noite,
Deixa vir a manhã sim,
Vestir.-ís saia de niiilha.
Roupinha de carmelim.
— Peco-te que me enterres
No adro de S. Chrispim.
— Onde vaes, Bernardo Francez,
Tão pensativo em ti ?
— Vou vêr a minha dama,
Que ha dias que a não vi.
— A tua dama já é morta,
E morta foi por mim ;
As facadas que dei n'ella
Quem m'as dera dar em ti !
— Eu hei de ir áquelle outeiro,
Aonde costumava a ir,
Tanto lhe hei de bradar,
Que ella me ha de accudir.
— Adeus, Bernardo Francez,
Vive tu, que eu já vivi :
Olhos com que te olhava.
Já de teria os cobri ;
Bocca com que te beijava,
Jà não tem sabor em si ;
Braços com que te abraçava,
Já não tem vigor em si.
Se chegares a ter filhas,
Ensina-as melhor que a mim,
P'ra que se não percam mulheres.
Como eu me perdi por ti.
VII
Bernal Fi^ancez
(Varante do romance anterior)
— Quem bate á minha porta.
Quem bate quem está ahi ?
— E' Bernaldo Francez,
Sua porta venha abrir — .
Ao abrir da minha porta
Se apagou o meu candil ;
Ella me pegou na mão,
Me levou ao seu jardim,
E l:i me lavou os pés
Em agua de alecrim ;
l,evou-me para o seu quarto,
Me deitou ao pé de si.
— Que tens Bernaldo Francez,
Que te disseram de mim !*
Que é meia-noite dada
Sem te virares para mim;
Se tu tens medo dos mouros
Elles não vêem aqui ;
Se tens medo da justiça,
Ella não virá aqui ;
Se receias meus irmãos,
Tam pouco virão aqui ;
Se receias meu mando.
Más novas me tragam d'elle.
Más novas venham a mi.
— Não receio á justiça.
Porque nunca a temi ;
Não temo a teus irmãos,
Que cunhados são de mi ;
Nem receio a teu marido.
Porque o tens agora aqui.
— Ora bem que isso assim fora.
Que te q'ria mais que a mim!
— Não me enganas já, tyranna,
Não me enganas tu a mi.
Deixa vir a manhãsinha
Que eu te darei que vestir,
Darei-te saia de lan.
Roupinha de carmezi,
Gargantilha encarnada,
Porque a quizeste assi.
Brada por tuas damas,
P'ra que te venham vestir ;
Brada por Bernal Francez,
PVa que te venha acudir.
VIII
Bella Inílanta
Estando D. Adriana
No seu jardim assentada,
Deitou os olhos ao largo
E viu vir 'ma grande armada.
Cavalleiro que vem n'ella
Traz 'ma estrella bem guiada.
Palavras não eram dadas,
O cavalleiro que chegava :
— Bons dias, minha Senhora,
Dè-me, dè-me um copo d'agua.
— Dá-me noticia, Senhor,
Do patrão d'esta casa?
— Diga-me, minha Senhora.
Os signaes que elle levava.
— Levava cavallo branco,
A sélla sobredoirada,
Na ponta da sua lança
184
A TRADIÇÃO
Um Christo de oiro levava.
— Debaixo da Ivrio roxo
Sete facadas levava.
— Ai de mim, triste viuva,
Ai de mim, tão desgraçada !
Já me vou por esse mundo
Triste viuva malfadada !
— O que dareis vos. Senhora,
A quem vo-lo traga aqui ?
— De três moinhos que tenho
Te darei o mais gentil ;
Um móe cravo, outro canela,
Para o rei e mais para mim.
— Vossos moinhos, Senhora,
Não me são dados a mim,
Eu sou capitão da armada,
Amanhã marcho d'aqui.
— Das três Hlhas que tenho
Uma te darei a ti.
— As vossas filhas. Senhora,
Não me são dadas a mim.
Eu sou capitão da armada,
Amanhã marcho d'aqui.
— Não tenho mais que vos dar.
Nem vos mais que me pedir.
— Tendes sim, minha Senhora,
O vosso corpo gentil.
— Cavalleiro que tal pede.
Que tal ousa pedir,
Precisava posto fora
Do meu formoso jardim.
Andem, andem, meus criados,
Venham buscal-o aqui 1
— Alto, alto, ó criados.
Que criados sois de mim,
Palácios e carruagens
Todos me pertencem, sim.
Que é do nosso annel de núpcias,
Que á meia noite te dei,
Ao entrarmos na egreja
Acompanhados de el-rei ?
— Se tu eras meu marido
P'ra que me fazias sotfrer ?
— Porque ao longe tinha ouvido
Que te deixaste vencer
Por um moço fidalguinho
Que a corte te vinha fnzer,
E te vestiras de encarnado
Por eu 'star quasi a morrer.
— Oh que vozes tão infames !
Oh que fama sem proveito !
Não devias duvidar
Do sentir d'este meu peito.
— Perdoa-me, esposa mmha,
Se te estava expVimentando,
Pois é coisa bem cruel
Viver no mundo enganado.
— Perdóo-te, esposo meu.
De todo o meu coração.
Deus livre as minhas filhas
Dos enganos da traição.
(Elvas).
A. Thomaz PIRES.
As feslas do SacranKiiiln em Beja
(Conclusão)
Tomam parte na procissão, além de
todas as irmandades, anjos ricamente
vestidos, uma força de capitão, todas as
auctoridades, diversas pessoas das mais
gradas da terra e todas as philarmonicas
expressamente convidadas para abrilhan-
tar os festejos.
Esta procissão é o verdadeiro c/oz/ das
festas, e a ella ninguém deixa d'assistir,
tanto da cidade como dos arredores.
E' digno d'observar-se, nas ruas por
onde passa o solemne cortejo, o bello
effeito que produzem milhares de pes-
soas, na sua quasi totalidade pertencen-
tes ao madamismo, debruçadas das janel-
las, de muitas das quaes pendem riquís-
simas colchas de seda.
N'esse mesmo dia, ás nove horas da
noite, tem logar a procissão da posse^
que é a parte mais original de toda a
festa. N'esta procissão tomam parte os
reitores de todas as freguezias acompa-
nhados da respectiva cruz de prata, a
qual é conduzida por um homem esco-
lhido ãd hoc^ vigoroso e de pulso rijo, ca-
paz d'entrar tnumphante e com perfeita
galhardia na egreja da freguezia, onde
se vae dar a posse da festa do anno se-
guinte.
A' entrada da egreja trava se uma lu-
cta ardente, conforme d'aqui a pouco re-
fci"iremos.
A procissão da posse, constituída,
além dos mencionados reitores, pela ir-
mandade da festa, sai da própria egreja
da festa e, acompanhada da competente
philarmonica, caminha com as suas cru-
zes de prata e o andor de S. Sizinando
á frente. Nas ruas do trajecto, aos la
dos, acham-se collocadas bastas giran-
dolas de foguetes, que vão ardendo á
medida que passa o cortejo. No adro da
egreja da posse, são as girandolas ainda
em maior numero, e representam verda-
deiros baluartes de fogo.
A TUAUIÇAO
185
186
A TRADIÇÃO
E' interessante ver esse préstito mar-
char impávido, por entre o esfusiar dos
foguetes e o estalar das bombas. Os vi-
vas e morras atroadores, levantados ás
irmandades das ditTerentes freguezias,
repetem-se constantemente, no meio de
uma gritaria infernal.
As mesmas freguezias são n'esta oc-
casião designadas pelos nomes tradicio-
naes e jocosos de cjt\ia^ tripa, escama e
pelados, correspondendo estas designa-
ções, por sua ordem, ás freguezias de
S. João, S. Thiago, Santa Maria e Sal-
vador.
A applicação dos três primeiros ter-
mos ás freguezias citadas, deriva, segun-
do a tradição popular, dos antigos m.o-
radores dessas freguezias exercerem res-
pectivamente a profissão de cardadores
de lã, vendedores de carnes verdes e
vendedores de peixe. A designação de
pelados resulta, como é obvio, de predo-
minar a calvicie, entre os habitantes da
freguezia do Salvador.
Mas, continuando a descripção de tão
singular cortejo, convém notar que a vo-
zearia vai crescendo á proporção que a
procissão se aproxima do seu termo. O
andamento e a gravidade, próprios das
procissões religiosas, faltam aqui por
completo. Em certos momentos, rompe
o préstito até n'uma carreira de tal mo-
do desabrida, que já tem acontecido
chegar a imagem de S. Sizinando, que é
de pequenas dimensões, á egreja, com o
rosto voltado para traz. O que não é
muito para admirar, se nos lembrarmos
que a cabeça da referida imagem, por mal
segura, gira facilmente em torno do seu
eixo.
Ao terminar da procissão, cada cruci-
ferario procura introduzir no templo a
sua cruz, primeiro que os outros, esta-
belecendo-se por isso n'esse momento
uma tal confusão e violência, que não é
raro ficarem as cruzes partidas. Em se-
guida canta-se um Te-'T)eitm^ a grande
instrumental, findo o qual sobem ao ar
as ultimas girandolas de foguetes.
A maior parte da população da cida-
de, contenta-se em ver simplesmente
a chuva de fogo multicor, proveniente
de milhares de foguetes de lagrimas.
Durante meia hora, pelo menos, man-
teem-se os espectadores a contemplar,
embevecidos, aquella luminosa e iriada
chuva, destacando-se no fundo negro da
noite.
Depois d'esta manifestação, nada mais
existe digno de menção, a não ser as
luminárias, que os irmãos da festa e os
da posse collocam ás suas janellas, e a
illuminação resplandecendo na fachada
da egreja da posse.
Na 2.* feira immediata ainda se reali-
sa uma outra procissão, formada unica-
mente pela irmandade da posse, e que
tem por fim levar a cada preso a esmo-
la de Soo reis. N'este dia, a philarmoni-
ca contratada pela irmandade da posse,
vai visitar todos os membros que com-
põem a mesma irmandade, tocando-lhes
á porta, por algum tempo. Cada musico
recebe n'essa occasião a gratificação ha-
bitual de 5oo reis. Esta prática tem
igualmente logar nos dias de sabbado e
domingo anteriores, mas a irmandade que
figura então, é a da festa e não a da
posse.
E assim termina a bem conhecida e
tradicional festa do Sacramento, em Be-
ja, festa essencialmente religiosa e cari-
tativa, da qual procurámos dar aos lei-
tores da «Tradição» uma ideia aproxi-
mada, embora muito summaria.
Alves TAVARES.
RIMAS POPULARES
Eram três horas da tarde :
Quando andava passeando
Ouvi uma voz a dizer
Que me fosse approximando.
Eu por mim fui-me chegando
Aond'essa voz me bradava ;
Cheguei a uma porta da entrada,
Dei-lhe só uma pancadinha:
Appareceu-me uma florzinha,
Que de mim se namorava.
A TRADIÇÃO
187
— A primeira vez que o vi
Quando andava passeando,
Do senhor fiquei ^os^alldo ;
Por isso é que lhe bradei.
— Essa sim I é bem lembrada !
Senhora, de mim pretende?
I*"ique certa para sempre
Que ha de S';r a minha amada — .
Como liça vonsolada
Cuidando que isto é assim !
Pelo menos sempre usei
Com todas boas palavras ;
A todas trago enganadas,
A tudas digo que sim.
— O senhor já est;i dizendo
Que eu mesmo me otVereci . . .
Eu sempre suppuz assmi,
Que o não tazia por menos !
Alraz do senhor vem outro.
Dinheiro tenho dez contos.
Fora este estabelecimento.
Vè que tenho valimento.
Você, se não é parvo é louco.
— Inda que tenha dinheiro,
Tenha tudo o que tiver,
Nunca passa de mulher,
Namorada d'um estrangeiro.
Da rtór só se goza o cheiro :
Foi o mesmo que eu gozei.
A senhora disse a mim
P'ra que fosse seu amor:
Isso lá, será o que lôr. . .
Eu nunca me retratei.
— Já vou para meu palácio.
Minha vida a governar;
Não pretendo de cazar
Com \im senhor que me é falso.
Pode seguir os seus passos
Onde tenha acceitaçáo,
Porque d'esta hora em diante
Sempre lhe direi que não.
— Venha cá, fnça tavor
De me dar uma palavra.
Juro lhe na liora sagiada
Que não sabe o meu interior:
Serei sempre o seu amor
Da mais mimosa feição.
F>u já d'ouira não pretendo.
Aqui tem a minha mão.
— Já nos temos carteado,
Fm tudo estamos eguaes.
Vá-me pedir a meus pães
Para ticar descançado.
Quando á porta Íòp chegado.
Eu lhe farei algum signal;
Peça-me um copo d'agua
E eu o convido para entrar.
— Dirigi-me a sua casa.
Sua filha venho pedir
Para ser a minha espoza.
bis
Juro-lhe n'uma hora boa,
Que em tudo será ditosa
Egual á sua pessoa.
— O senhor que vem aqui
A' minha filha rogar se,
'Inda mesmo não gostasse,
Sempre lhe dizia que sim.
O senhor ma pediu a mim
N'uma tão boa amizade. . .
Eu não acho desegualdade,
Se ella de si pretender.
Eu não desmancho vontades.
— Oh ! meu pae, lhe vou dizer
Que este sennor é meu espozo !
Por ser bonito e formoso,
De mim está a pretender.
Por tantas fazendas ter,
l^ossuir tanto dinheiro.
Ser tão firme e verdadeiro
Que ainda me não ofFendeu,
Lh'otfereço tudo que é meu.
Por ser meu amor primeiro !
— Mmha senhora, eu agradeço,
Esse seu ofíerecimento.
De seu pae casa a contento :
E' porque bem a mereço !
Para seu esposo me ofíVeço
Já, d'esta hora por diante ;
Darei parte á minha gente,
Que me venha acompanhar,
Que a minha mão lhe vou dar,
Fica ligada p'ra sempre.
(Da tradição oral).
(Serpa.)
Joio VARELLA.
CKENÇAS & SUPERSTIÇÕES
Penitencias nocturnas
No concelho da Vidigueira, principal-
mente nas aldeias de Selmes e Alçaria,
existe uma curiosa superstição, originada
naturalmente no arrependimento de se
haver praticado algum acto menos con-
veniente, ou criminoso. Eis em que con-
siste a referida superstição :
Juntnm-se três ou quatro mulheres em
casa d'um adiriíihão ou inrtiioso, a quem
as ditas-mulhercs confiam o segredo das
suas faltas.
O astuto confessor, depois de as ouvir
attentamente, prescreve-lhes a seguinte
penalidade, que ellas cumprem religiosa-
188
A TRADIÇÃO
mente: Em as noites tempestuosas d'in-
verno, é preciso que cada uma das pe-
nitentes vá ás extremidades da povoação,
correspondentes aos quatros pontos car-
deaes, escolhendo de preferencia algu-
ma esquina mais afastada e escusa, e ali
reze um Padre-Nosso e uma Ave-Maria
pelo eterno descanço das almas. No rim
desta pratica devem as mulheres reunir-
se de novo, mas á porta do cemitério,
para ahi fazerem as suas rezas. O que
ellas effectivamente executam no meio
de lamentações em voz alta.
Nesta occasião, se do interior do ce-
mitério lhes respondem: «ide-vos, que a
vossa penitencia está cumprida», as pe-
nitentes retiram-se logo para suas ca-
sas, tendo o cuidado de não olharem
para traz, porque se olharem, caem no
chão fulminadas por um profundo terror.
Mas, se após as rezas e lamentações a
tal voz mysteriosa não responde, teem
as penitencias nocturnas de repetir-.se,
até ouvirem-se as sacramentaes palavras
acima citadas. Estas palavras, segundo
affirmam varias pessoas que julgo bem
informadas, são proferidas pelo próprio
adivinho, que occultamente se introduz
no cemitério para também tomar parte
na interessante scena, que acabamos de
expor.
FAZENDA Júnior.
CONTOS ALGARVIOS
III
Os três cãe3
Havia um rei e uma rainha, que não
tinham filhos e por cuja razão não viviam
felizes. Em uma noite que a rainha no
seu oratório pedia a Deus um filho, ou-
viu uma voz :
— Has de ter um filho, que será de-
vorado por uma serpente, quando elle
tiver vinte annos.
Foi a rainha contar ao rei o que ouvira,
e o rei respondeu: — paciência!
Passados nove mezes a rainha deu á
luz um principe e desde a primeira hora
do seu nascimento o consagrou á Vir-
gem.
Quando o principe chegou aos deze-
nove annos começou a notar que o rei e
a rainha andavam constantemente tristes
e por vezes os encontrava a chorar. Tanto
inquiriu que chegou a saber de sua mãe
o motivo das suas lagrimas.
Para não presenciar os desgostos de
seus pães e evitar-lhes o grande desgosto
da sua morte, conseguiu, a muito custo,
licença de ir correr mundo. Quando, pró-
ximo dos vinte annos, atravessava uma
campina encontrou uma velhinha:
-Para onde vai, meu menino?
O principe simpathisou tanto com a
velhinha que lhe contou a sua historia.
— Bem sabia a tua historia. Uma fada
má quer vingar-se de teu pai. Essa fada
no dia em que fizeres vinte annos e du-
rante mais nove dias ha de empregar to-
dos os meios de acabar com tua vida.
— E eu não poderei matar essa má
mulher?
— Não. Mais adiante e em diversos lo-
gares encontrarás três cães, que te acom-
panharão sempre. Pára onde elles para-
rem, e não faças senão o que elles qui-
zerem. Por maiores que te pareçam as
tropelias que elles façam não te oppo-
nhas. Elles são os teus guias.
O principe pediu a benção á velhinha
e continuou o seu caminho. Lá adiante
encontrou um cão muito gordo, ao qual
poz o nome de Pe\ão^ mais adiante en-
controu outro, grande corredor, que foi
batisado com o nome de Ligeiro^ e logo
mais adiante outro, a que poz o nome de
(yldivinhão.
Seguido dos três cães entrou o principe
numa estrada muito arborisada em dia de
grande calor e de nftuita tristeza para elle :
fazia n'esse dia vinte annos.
No meio da estrada encontrou o prin-
cipe uma formosa menina, que o convi-
dou a descansar á sombra de uma arvore.
Os três cães pararam e o principe accei-
tou o convite. Dois cães pozeram-se a
A TRADIÇÃO
189
brincar, o T*e:;ão foi deitar-se sob uma
arvore próxima d'aquella a cuja sombra
o príncipe e a joven se acolheram. O
principe reclinou a cabeça sobre o collo
da joven, que se sentara, e deixou se
adormecer. Quando o príncipe acordou
não viu a menina, mas viu o ildiviuhão
e o Ligeiro deitados ao seu lado; o l^e-
\ão conservou- se deitado sob a arvore
próxima.
Montou-se o príncipe no seu cavallo e
logo os três cães o seguiram. Foram dar
a uma estalagem. A estalajadeira era bo-
nita, e tinha uma filha ainda mais bonita.
Logo que o príncipe viu esta, conheceu
ser a mesma que encontrara na estrada,
mas fingiu não a conhecer.
A estalajadeira quiz oppor-se á entra-
da dos cães na estalagem, mas o prínci-
pe declarou lhe que os seus cães o acom-
panhavam de dia e de noite e comiam
com ellc á meza.
A estalajadeira calousc. *
Nessa noite dormiu o principe no seu
quarto, acompanhado dos seus cães : o
Pe^ão foi deitarse sobre um bahú; o
didivinhão e o Ligeiro ao lado do seu
dono.
No dia seguinte dizia a estalajadeira
para a filha :
— Passei a noite muito incommodada.
Estive mettida no bahú, no quarto do
principe, e não me foi possível sair d'ali,
porque o Pe-ão tem o pezo do mundo.
Já na estrada, não sei porque, elle se
deitara sob a arvore, mesmo em cima da
tampa que eu tinha de erguer para ac-
cometter o principe, deitado no teu collo.
— E que tempo tem para matar o
príncipe ?
— Apenas nove dias.
' — E qual o motivo do seu ódio contra
um príncipe tão bello e novo?
— Porque o pae doeste principe pro-
metteu-me casamento e foi depois casar
com a minha rival. Hei-de matar o filho
não obstante os três cães.
D'ahi a pouco ergueu-se o príncipe da
cama e a estalajadeira dísse-lhe que o
cavallo estava sem beber por que os cria-
dos não se atreviam a aproximar-se-!he
por ser muito respingão.
O principe desceu á cavallariça acom-
panhado dos três cães; o Q/Liiritihão
aproxímou-se do Pe^ão e poz-se a chei-
ral-o; logo este foi deitar-se a um canto
da cavallariça.
O principe deu agua e feno ao cavallo
e subiu á estalagem acompanhado dos
cães.
A estalajadeira estava fula : pretendia
atacar o príncipe na cavallariça, mas o
Te:{ão deitára-se sobre a tampa do alça-
pão, que ella não poderá erguer. Dirigiu-
se á filha e disse:
— E necessário envenenar o príncipe;
de outro modo não lhe dou fim. Envene-
na-lhe a comida.
As horas da comida sentou-se o prín-
cipe á meza, e logo os três cães saltaram
sobre a meza e partiram, os pratos, que
continham o jantar. A criada fugiu com
medo dos cães, e a estalajadeira poz-se
a ralhar com o principe.
— Os meus cães são muito dóceis, e
elles que inuiílísaram a comida, alguma
razão tiveram.
Nesta occasião entrou um cão de certo
forasteiro, pozse a lamber os restos da
comida espalhados pelo chão, e logo
morreu envenenado. Então foi que o prín-
cipe conheceu que a comida estava en-
venenada. Calou-se e fingiu não perceber.
Nessa tarde saiu a estalajadeira e o
príncipe disse á filha:
— Tua mãe, por qualquer motivo, quer
matar-me. V^ejo-me obrigado a matal-a.
— Minha mãe não morre : é como fada
quasí ímmortal.
— Todos morrem. Não sabes de onde
depende a morte de tua mãe ?
— Não sei, e se soubesse não o diria.
— Tenho a minha vida em perigo, e
eu queria viver e casar comtigo.
— Teu pae prometteu o mesmo a mi-
nha mãe e faltou.
— Eu não te faltarei porque te fico
devendo a minha vida.
A filha da estalajadeira pensou por al-
gum tempo e respondeu:
190
A TRADIÇÃO
— Eu tentarei saber de onde depende
a morte de minha mãe.
Logo que a estalajadeira chegou, foi a
filha dizer-lhe que o príncipe a queria
matar.
A estalajadeira riu-se e respondeu:
— Não tenhas medo: elle não conhece
a causa de que a minha morte depende.
— E eu não o poderei saber?
— Podes. A minha morte depende da
morte de uma bicha, que existe num ovo
de uma pomba, que está escondido no ar-
mário do nosso quarto escuro. Para ma-
tar a bicha tem de ser corta ao meio num
so golpe.
— Aonde foi minha mãe esta tarde?
— Fui invocar o auxilio de duas grandes
fadas para conseguir a morte do príncipe
e dos três cães.
Logo que a estalajadeira se ausentou
foi a filha informar o príncipe. Este, acom-
panhado da rapariga e dos três cães, en-
trou no quarto escuro e matou a pomba.
Dentro da pomba havia um ovo, que ca-
hiu no chão. Do ovo sahiu uma bicha
enorme, mas o Pe^ão carregou sobre a
bicha e o príncipe a cortou ao meio com
a sua espada. Ouviu-se então um grito
longínquo: era a estalajadeira que mor-
ria.
Os três cães desappareceram e não
mais foram vistos; eram três anjos.
O príncipe então dirigiu-se para o pa-
lácio de seu pae, levando na sua com-
panhia a filha da estalajadeira. O palácio
estava vestido de lucto; suppunha-se que
o príncipe tivesse morrido. A' entrada do
palácio encontrou o príncipe a velhinha
que tinha encontrado na campina.
A velhinha beijou o príncipe e desappa-
receu.
O rei e a rainha abraçaram e beijaram
o filho e deram o seu consentimento no
casamento, logo que o príncipe lhes con-
tou a sua historia. Houve grandes festas
em todo o reino.
Fui lá e não me deram nada.
CONTOS POPULARES ALEMTEJANOS
X
Três gallegos querendo falar à politica (*)
(Loulé.)
Athaidb d'OLIVEIRA.
Era duma vez três gallegos, que re-
solveram vir ao Alemtejo, para aprender
a falar á politica. No dia combinado,
marcharam os homens. Encontrando uma
cidade e passando perto d'um jardim,
viram nesse jardim três indivíduos de
chapéu pinante (chapéu alto) a passear.
Diz logo um dos gallegos: «C rapazjes,
nós bâmos comesçar já por aqui: porque
no Alemtejo sção poucos osquesçabem,
mas os que sçabem... sçabem como
aquelles que sçabem! E estes débem
sçaber. Pois bóscês não bêem como el-
les andam bestidos?!»
Os outros dois gallegos concordaram,
e o que teve a lembrança entrou logo
para o jardim e foi esconder-se detraz
do taróco (tronco) duma arvore, á espera
que os taes três indivíduos passassem, a
ver se lhes ouvia dizer alguma coisa. Ef-
fectivamente, quando os indivíduos pas-
saram ao pé daquella arvore, disse um
delles: «Nós todos três». O gallego, as-
sim que ouviu estas palavras, não espe-
rou por mais nada, marchou a correr
para o logar onde estavam os compa-
nheiros e disse-lhes,endíreítando-se todo:
— «O' rapazjes, eu já scêi díszer uma
coisja.»
— «Einton o que é, camarada?» — per-
guntaram-lhe os dois companheiros.
— «Nós todos três» — respondeu elle.
Como este gallego já sabia dizer uma
coisa, foi um dos outros coUocar-se por
traz da mesma arvore, e ouviu dizer a
um dos mesmos indivíduos que anda-
vam passeando no jardim: «Por três al-
queires de sal». O gallego, ouvindo isto,
partiu immediatamente para junto dos
companheiros e disse-lhes:
(*) Falar á politica, é uma expressão vulgar ,
que significa: falar correctamente.
A TRADIÇÃO
191
— lEu também já scêi dizjcr uma
coisja, é: Por trcs alqueires de sçal.t
O terceiro gallego, então, querendo
também aprender alguma coisa, foi pòr-
se atraz da arvore; e, quando os taes in-
divíduos por ali passaram, disse um del-
les: «Tem razão, senhores!». O gallego,
mal ouviu estas palavras, foi logo ter
com os seus companheiros e disse-Ihes:
«Eu já scéi muito mais que bóscês!» Os
outros, muito admirados, perguntaram-
Ihc porque? K elle respondeu-lhes: «Scéi
muito mais que bóscés, porque já scci
dizjer: Nós todos três, por três alqueires
de sçal, tem rasjão, scenhores!»
O primeiro gailego, que tinha ido es-
cutar dentro do jardim, ouvindo isto, es-
tava já resolvido a ir pôr-se no mesmo
sitio, mas como nesta occasião saissem
do jardim os três indivíduos, disse um
dos outros gallegos:
— «Bem. Nos aqui já nun fazjêmos
nada, e por consceguinte. o melhor é ir-
mos para oitra terra.» Os homens elTe-
ctivamente marcharam, mas com tão
pouca sorte que, na estrada por onde
iam, estava um homem morto, e, ain-
da para mais pouca sorte, chegaram ao
pé delle quasi ao mesmo tempo que a
justiça. Um dos da justiça mandou logo
aos gallegos fazer alto e perguntou lhes:
— «Vocês sabem quem era este ho-
mem? e sabem quem o matou?»
Ora, como na justiça vinham dois in-
divíduos de chapéu pinanie, c os meus
gallegos queriam mostrar que também
sabiam falar á politica, disse logo um
delles:
— «Nós todos três». Continua o outro:
aE por três alqueires de sçal». Accrescen-
ta o terceiro: «Tem rasjão, scenhores!».
E' claro que a justiça, em vista des-
tas declarações, metteu-os a todos numa
cadeia, e, ainda a esta hora, elles lá es-
tarão amaldiçoando a hora em que se
lhes metteu na cabeça o aprender a «fa-
lar á politica».
(Da tradição oral)
Brinches
António ALEXANDRINO.
PKOWJiBIOS E DICTOS
(Continuação)
LXX
— A como vendes os capachos?
— Conforme parvos acho.
LXXI
Caroço d'Agosto, dá gosto.
LXX II
Pela manhã é oiro, ao meio-dia prata,
e á noite mata (a laranja).
LXXIII
Pé de gallinha não mata pinto.
1.XX1V
Gallinha gorda a pastores... choca
vae ellal
LXXV
Se é p'ra bem, que augmente; se é
pVa mal, que arrebente!
LXXVI
Se d'esta vos espantaes, aguardae, que
lá vae mais!
LXXVII
Maio, é o mez em que canta o cuco.
LXXVIII
Primeiro d'Agosto, primeiro d'inverno.
LXXIX
Rindojse vae Fevereiro, porque lhe juam
(jejuam) no seu dia primeiro (véspera da
Sr.* da Encarnação).
192
A TRADIÇÃO
LXXX
Quem compra e mente, na bolsa o
sente.
LXXXl
Em o cuco não vindo entre Março e
Abril, ou o cuco é morto ou a má fim
quer vir.
LXXXII
Em Fevereiro, vae acima ao outeiro :
se vires verdejar, põe-te a chorar; se vi-
res terrear, põe-te a cantar.
LXXXIII
EUe a dar-lhe e a burra a pender.
LXXXIV
— Ai, que penas!
— Quem faz pelas coisas, tem-n'as.
LXXXV
Trindades na aldeia é hora de ceia.
LXXX VI
Quem vae com Deus vae na tumba.
LXXXVII
O que se não faz em dia de Santa
Maria, faz-se no outro dia.
LXXX VIII
O que se vê não precisa candeia.
LXXXIX
Pelo S. Pedro vae ao arvoredo : se
vires uma, conta um cento.
XC
o que faz bem ao bofe faz mal ao fí-
gado.
XCI
o mal e o bem á face vêm.
XCII
o boi solto, lambe-se todo.
XCIII
Meio-dia, barriga vasia ; panella ao
lume, é o nosso costume.
XCIV
Manhã de névoa (em) recolhe-te á bal- ■
sa, — se não te recolheres a casa.
xcv
Não ha fome que não venha dar em
fartura.
XCVI
Uns morrem com gafeira, outros com
inveja d'ella.
XCVII
Hoje por mim, amanhã por ti.
-' m r. xcviii
Aguas passadas (com) não moem moi-
nhos.
XCIX
Fevereiro afogou a mãe no ribeiro.
C
Quem dá o que tem, a pedir vem.
Cl
Quem dá o que tem, mostra o que de-
seja.
(Da tru.ição oral).
(Serpa).
G\3T0 R .
A TRADIÇÃO
/Â TT? 7\:
Revista nner>sal <d'eth»riographiia portugLJOza,
illustraciâ
Directores: IiADISliAU PIÇARRA e IVI. DIAS NUNES
"A XRADIQÃO, de Sorpa, paio
ppogpamma qua sa Impoz a pala dlserata dillganola oom
qua ppooupa dasampanhar assa ppogramma, pappaaanta
o mau vap, o mais bailo axamplo patplotiao da aduaafko
publioo axapclda pala imppansa.»
Raroalhio Ortigão.
*
Segurjdo anrjo
7900
COLLABORADO POR:
Alberto Rinneotel, filho (Dr.), Alfredo de F=>ratt, Alvares
F=»ir»-co, Ar»tor»io Alexandrino,
A. de IVIelio Sreyr»er, Arronches Junciueiro,
Athtaide d'Oliveira (Dr.),
Conde de F"icalho, Dias ISJunes, F^azenda Júnior,
Gonçalves F>ereira, -íoão Varella (Dr.),
L-adislau F>icparra (Dr.), D. IVTargarida de Sequeira, F»edro
A. d'Azevedo, í^edro Covas, R.,
Sovjza Viterbo (ZI>r.),
Thomas, Thomaz Feires, "Trindade Coelho, (Dr.)
Collaboração arti.stica de M. Baptista Salta
CoUaboração musical de F. Villas-Boas e G. Valladaa
Clichés de A. de rvlelio Breyner, F. MontRiro, F. Vilias-Boas,
J. Monteiro c J. V. Pessoa
f
LISBOA
Typ. Adolp!->o d© [S/l©odor^<?a
J.6. R. do Corpo Sanín, 4.S
ICOO
^11114» II
SERPA. Janeiro de lC-00
>'oliii
II
Editor-adminiilrador, Joie Jeronymo Ja Cotia Orjpo Je Stfireirot, Rua l^irsa, 3 « ^ — SKRPA
lyp. de AJotpho de Mcnãonça & bujrle. Kua do Corpo Santo, 46 c 4S — LISBOA
tumm
Itevista iiinisal il hlliii()i{ra{iliiii Pi)rlii(|iii7.a, illiislraila
Directores :-LA:)ISLãU PIt^AE:RA e M. DIAS IV::VA^
NOTAS HISTÓRICAS ACERCA DE SERPA '
Sp II. AlTonsfl lleiíríqiips \m a Serpa 110 aiiiin ilo 1 1 ili
Y»ii^KRPA, Moura e os seus campos,
•^^-^ em geral esta pequena parte
do território portuguez, situada na
margem esquerda do (juadiana, pa-
rece tei" ficado sob o dominio perma-
nente dos moiros durante quatro sé-
culos e meio. Tomada sem duvida
logo depois do anno de 711, quando
o amir d'Africa, iMuça-ibn-Noceir,
conquistada Sevilha, se dirigiu para
estes nossos lados occidentaes e se
apoderou de Mertola e de Beja',
esta parte do território só voltou á
• N'estas simples notas, escriptas expres-
samente para a Tradição, não pode haver
a mais leve ideia de esclarecer pontos obs-
curos ou citar documentos e factos novos.
Sendo tiradas de livros conhecidos, unica-
mente tendem a grupar de uma maneira
mais comprehensivel alguns acontecimentos
sabidos, que se relacionam com a nossa ter-
ra : e mais ou menos directamente com as
origens do povo d'estas provincias do sul,
com os seus hábitos e as suas tradições.
- A occupação d'estas nossas terras teve
logar entre os annos de 71 1 e 71.% e por Muça
ou por seu tiiho Abd-al-Aziz. Digo occupa-
ção e não conquista, porque as povoações
godas se entregaram na maior parte por ca-
pitulação e sem combate.
posse dos christãos no de IHKJ, e
ainda então provisoriamente.
No decurso d'este longo periodo,
alguns príncipes christãos, AlVonso o
Casto, Aftbnso o Magno e outros,
desceram varias vezes das regiões do
norte em dilatadas correrias pelas
terras de moiros ; mas sem nunca
chegarem tanto ao sul. Noticias va-
gas de conquistas christans n'estas
partes meridionaes, que encontramos
em escriptores relativamete recentes,
não devem passar de simples phan-
tasia. Ordonho de Leão, por exem-
plo, em uma das mais profundas en-
tradas que se fizeram, transpoz o
Tejo superior e chegou ao Guadia-
na; mas não veio alem de Merida,
donde voltou aos seus estados, K é
bem sabido, como muito depois o
grande rei de Castella e Leão, Affbnso
VI, conquistou Santarém, Lisboa e
Cintra, e fixou por algum tempo as
sujis fronteiras por este nosso lado
Occidental no curso inferior do Tejo.
Para o sul d'este rio, porem, tudo
quanto hoje pertence a Portugal, as
vastas planicies do Alemtejo, as ser-
ras e littoral do Algarve, tudo ficou
sendo terra de moiros, incontestada
e quasi não inquietada.
Assim o sentiam e diziam os es-
criptores do tempo. A Chrmnca Go-
thoriim^ dando conta da expedição
de AlTonso Henriques no anno de
ll3íJaté/l////c(Ouriquej,accrescenta:
A TRADIÇÃO
tunc cor terre Sat racenorum, que
então era o coração, o centro, o âmago
das terras dos sarracenos. Esta mesma
expedição de Ourique não leve, nem
podia ter de momento resultados ma-
teriaes sensiveis. Sem discutirmos
agora a importância da celebre ba-
talha, tão acremente debatida em
tempos modernos, é licito julgar que
foi moralmente muito grande. A ex-
pedição havia sido levada com uma
rapidez fulminante e uma audácia
inaudita até ao coração da terra dos
moiros. Por um lado, dava aos ca-
valleiros e homens darmas portu-
guezes uma grande confiança em si
e no seu chefe. Por outro, firmava
entre os mussulmanos a reputação
do terrivel filho do conde D. Hen-
rique, aquelle Ibn-Errink, cujo nome
os encheu depois de profundo terror.
O effeito moral foi grande ; mas os
resultados materiaes não podiam dei-
xar de ser quasi nullos.
A expedição não passava de uma
correria por terras dos inimigos, como
então christãos e moiros faziam pe-
riodicamente, quasi annualmente. Os
moiros chamavam-lhes algaras^ os
portuguezes fossados ; e fossado cha-
mou a esta o próprio D. Affonso Hen-
riques em um documento official. *
Dada a batalha, e mesmo brilhante-
mente ganha como foi, o príncipe
portuguez era obrigado a voltar aos
seus estados e á sua corte de Coim-
bra. Não tinha nos campos abertos
do Alemteio um único apoio, que lhe
permittisse fixar-se, ou mesmo de-
morar-se. As povoações fortificadas
dos moiros, Mertola, Beja, Évora, a
celebre Alcácer, ficavam intactas e
ameaçavam-no de todos os lados. Vol-
tou, pois, deixando as coisas no es-
tado em que antes estavam. As ter-
ras de alem Guadiana nem foram in-
quietadas : apenas das populações
mussulmanas de Serpa e Moura, os
alcaides com a gente armada dos seus
* Citado por Viterbo, Elucidário, I, 478
e II, 74.
districtos viriam encorporar-se nas fi-
leiras do Islam, derrotadas na bata-
lha. Por algum tempo ainda os cam-
pos do Alemtejo ficaram sendo o co-
ração das terras dos sarracenos, so-
mente um coração já ferido.
Poucos annos depois, no de 1145,
D. Atfonso Henriques, segundo st diz,
voltou ás proximidades de Serpa ; e
d'esta vez em circumstancias singu-
lares — a pedido e como alliado de
um chefe mussulmano.
Ahmed-ibn-Cassi \ nascido em uma
aldeia dos campos de Silves, perten-
cia, dizem, a uma família de antiga
origem chistan ; mas tornada inteira-
mente moira pela religião e pela adop-
tada nacionalidade.' Meio sectário re-
ligioso, meio agitador politico, como
é frequente encontrar entre islamitas,
conseguio obter uma importância con-
siderável n'este canto sud-occidental
da Hespanha mussulmana. Revoltou-
se contra o poder central dos Almo-
ravides, e apoderou-se por surpreza
do Castello de Mertola, considerado
então um dos pontos mais importan-
tes e bem fortificados d'esta nossa
região. Senhor de Mertola, e augmen-
1 Adopto a forma, dada por Slane na sua
versão de Ibn-Khaldum. D. José Conde es-
creve este nome Aben Cosai ; e Alexandre
Herculano, seguindo 13. Pascoal de Gayan-
gos, Ibn Kasi. Conheço as regras de trans-
cripção portugueza, propostas pelo sr. David
Lopes ( Textos de Aljanúa portuguesa, p.
XVIII) : mas essas regras, de íacil applicação
para quem lida com os textos em caracte-
res arábicos, são impraticáveis para quem,
como eu, tem de se contentar com tradu-
cçÕes. Não sendo infelizmente arabista tenho
de me servir das formas que encontro, pre-
ferindo naturalmente as que me inspiram
mais confiança.
2 A origem christan da familia de Ibn-Cassi
é atlirmada pelos escriptores árabes, apon-
tados por Gayangos, The hist. of the Mah.
Dyn. of Spain^ II, 5 18; e pelo Snr. F. Co-
dera, Decad. y desap. de los Almoravides^
livro que não consultei, e de que devo a in-
dicação ao Snr. David Lopes. — Sendo exa-
cta a noticia confirmaria a phrase de Con-
de, que serve de fundamento a toda esta
nota, pois explicaria melhor o facto de aquel-
le moiro ter procurado o auxilio de um rei
chistão.
A 1 RADIÇAO
■(5;j
■m
GjlLERP DE TYPOS POPIÍL^IRES
Camponezã em trajo de gala (Serpa)
^mx^
-t^n^
«fiv;
A TRADIÇÃO
tando o numero dos seus partidários,
estendeu o seu domínio a todo o Al-
garve ' ; e, no anno de 1144, pas-
sou o Guadiana, foi tomar Huclba e
Niebla, e chegou ás portas de Sevilha.
Embora no anno seguinte elle ja
tivesse sotírido alguns revezes, os seus
dominios, se domínios se lhe podem
chamar, ainda deviam ser grandes.
Tendo como centro Mertola, deve-
riam estender-se ás duas margens do
Guadiana, tanto para baixo, como
para cima d"aquelle castello. Na mar-
gem direita obedecia-lhe o Algarve
oriental, porque a parte occidental
seguio o governador de Silves, que
antes fora sua creatura e agora se
rebellara contra elle ; e obedecia-lhe
uma parte do Alemtejo, na qual, no
emtanto, se não incluia Beja. Na mar-
gem esquerda governava em uma fa-
xa mais ou menos larga da actual
província hespanhola de Huelba,
desde o mar ao longo do Guadiana
até ao Chança — e que então seria
pouco menos de um deserto^ e, pa-
ra cima do Chança, nas terras de
Serpa e Moura até talvez ao Ar-
dilla.
Claríssimo está, que não pretende-
mos marcar os limites dos dominios
de Ibn-Cassi ; nem para isso temos
elementos, nem realmente existiam
taes limites. Afora uma ou outra po-
voação fortificada, e deviam ser raras,
tudo o mais era vago, Huctuante, va-
riando mez a mez, ou dia a dia, á
mercê de repetidas correrias e alga-
ras. Quanto a Serpa, é necessário
dizer, que não possuímos uma única
prova de que lhe pertencesse ; c sim-
plesmente este facto nos parece na-
tural. Ahmed-ibn-Cassi era um chefe
de bastante importância para que da
Africa o novo imperador dos Almo-
hades, Abd-al-Mumen, lhe mandasse
a nomeação de walí do (jharb, e por
esta palavra não se entendia o Al-
1 Tomamos sempre a palavra Algarve,
escripta por este modo, no sentido actual ;
o Al-Gharb dos árabes era coisa muito di-
garve, mas todo o Occidente ; e de
bastante importância para que D.
AtTonso Henriques acceitasse a sua
allíança, como já vamos ver. D'elle
diziam os escriptores árabes (versão
de Conde) ; que estaba apoderado de
oran parle de aquella tierra \ obe-
deciendo-le todos sus pueblos. Sendo
isto assim, e reparando na proximi-
dade em que Serpa e mesmo Mou-
ra estão de Mertola, que foi sem-
pre o seu centro de operações, jia-
rece-nos uma conjectura bastante
plausível c fundamentada, a de que
estas povoações mussulmanas reco-
nhecessem a sua auctoridade no an-
no de 1145.
As discórdias constantes dos che-
fes mussulmanos entre si aggrava-
vam-se no período de que vamos
fallando pela lucta do poder agoni-
sante dos Almoravídes com o poder
crescente dos Almohades, dos quaes
Ahmed-ibn-Cassi foi um partidário
decidido. E em virtude de manejos,
rivalidades e ciúmes, que seria longo
contar, este achava-se em hostilidade
aberta com o governador de Silves,
e — caso mais serio — com o pode-
roso governador de Badajoz e de Be-
ja, Seddrai-ibn-Uézir. Ambos o ha-
viam auxiliado na revolta do anno an-
terior, e ambos marcharam agora con-
tra elle.
Vendo-se em circumstancias apu-
radas, Ibn-Cassi lembrou-se de ap-
pellar para o auxilio do grande ini-
migo dos mussulmanos, o temido Se-
nhor de Coimbra, como elles ainda
chamavam ao novo rei de Portugal.
E D. Affonso Henriques, impelíido
provavelmente pelo unico desejo de
levar mais uma vez a devastação ás
terras dos moiros, embora fosse como
alliado de um d'elles, passou ao Alem-
tejo e marchou para Mertola em seu
soccorro. ^ Não nos pode surprehen-
1 Em volta de Calat Mertiila\ o castello
de Mertola.
2 D. José António Conde, Hist. de. la dom.
de los árabes en Espana., II, 'io~ ; Alexandre
Herculano, Hist. de Porluyal.,\, 3fj6. E' neces-
A TRADIÇÃO
der esta liga do rei christão com
o chefe mussulmano, porque na his-
toria da Hcspanha d'aqLiclles séculos
temos Irequentissiinos exL-inplos de
semelhantes allianças.
Juntos em Mertola, os dois novos
alliados entraram nas terras dos ini-
migos: »• c)ih'iifoti juntos Li (icr}-aJc
fícja y de '^Icrida^ hacionio los ciwis-
tiaiios hartos estragos eu aqucllas í ter-
ras. Esta phrase, extrahida por Cc^nde
dos livros árabes, dii a entender que
fizeram não uma mas varias entra-
das, tanto mais, que depois falia no
plural de sangrieiítas escaramuças ha-
vidas com as tropas dos governado-
res de Bada)Oz c de Silves. Accresce
a isto, que devendo a expedição, ou
serie de expedições, começar no ve-
rão de 114;") como era habito quasi
constante, só terminou na lua de Cha-
ban do anno 540 da Hégira, que vi-
nha a cair já em pleno inverno no
principio do anno de 114<>, prolon-
gando-se, pois, bastantes mezes.
Uma ou mais d'estas entradas fo-
ram em tierra de Merida \ não de-
certo até aquella cidade, que lhes tí-
cava muito distante e era demasiado
poderosa, mas na parte da actual Ex-
tremadura hespanhola, para as ban-
das onde hoje vemos as povoações
do Frejenal, de Jerez de los caballe-
ros, ou de Zafra. Sendo isto assim,
o caminho natural, quasi obrigado,
era pelos campos de Serpa. Os ca-
valleiros portuguezes e moiros reu-
nidos, partindo de Mertola, passa-
sario advertir que A. Herculano segue a au-
ctoridade de Conde; e que a fidelidade das
versões arábicas d'este é muito duvidosa,
como tem notado todos os arabistas. No em-
tanto somos obrigados a seguil-o quando
não encontramos melhor; mas sempre com
muitas reservas. — Ibn-Khaldun, que Hercu-
lano cita pelas versões parciaes de Gayanyos,
mas hoje está integralmente traduzido (Hist.
des Berberes, tr. de Tarabe par le Baron de
Slane) falia da lucta de Ibn-Cassi com Ibn-
Uézir (II, 184) sem mencionar a intervenção
dos portuguezes ; mas i^to não infirma o dito
de Conde, porque Ibn Khaldun, escrevendo
ao longe e posteriormente, pode bem não
ter conhecido aquella circumstancia.
riam nos vaus do Guadiana, que são
numerosos para cima d'aquella po-
voação; e atravessariam de sudoeste
a nordeste esta nossa região.
E', pois, perfeitamente admissível,
que D. Afíonso Henriques passasse
junto de Serpa, ou mesiiKj entrasse
ein Serpa n'aquelle anno de 114õ.
Entraria pacificamente, se — como te-
mos por muito provável — Serpa obe-
decia já antes ao seu momentâneo al-
jiado, Ibn-Cassi.
Procuraremos talvez em outra nota
dizer o pouquíssimo que se pode apu-
rar ou simplesmente conjecturar em
relação ao estado de Serpa n'aquelle
tempo, deixando apenas indicado des-
de já que deveria ter algumas fortifi-
cações, posto que provavelmente fra-
cas. Mas, fortificada ou não, o olhar
experimentado de D. AlTonso Henri-
ques via bem quanto seria fácil C(j11o-
car Serpa em estado de boa deleza.
A povoação assentava em uma col-
lina bastante elevada, apenas domi-
nada a distancia por outras collinas
mais altas, o que para a arte da guer-
ra daquclles tempos nenhum perigo
otíerecia. De sobre os muros de Ser-
pa, se acaso então alli entrou, AíTonso
Henriques poude ver em volta uma
vastissima extensão de terreno. Pelo
norte, para alem do Guadiana, cor-
riam as terras altas da serra de Por-
tel até á actual Villa de Frades. De-
pois, a occidente, recortada mesmo
na linha do horisonte, via-se a famosa
Paca, como lhe chamavam os que
ainda se lembravam do velho nome
de Pax Júlia, a famosa Beja como
lhe chamavam os moiros. Depois,
pelo sul, appareciam as serras de Al-
çaria e os outeiros mais e mais dis-
tantes a ligar com as montanhas do
Al Faghar, o nosso Algarve. Depois
ainda, a oriente, por detraz da serra
de Ficalho, os montes azulados, es-
fumados, apenas distinctos, na direc-
ção da remota e grande Sevilha. Tudo
em volta terra de moiros.
E' fácil conceber o que então pen-
saria aquelle rei moço, que andava
talhando o seu reino com o fio da sua
A TRADIÇÃO
espada. Por certo os seus planos já
estavam formulados de longa data ;
mas alli, de pé sobre as fracas mu-
ralhas de Serpa, ao lado do seu amipo
Ahmed-ibn-Cassi, olhando em volta
e vendo tantas e tão boas terras de
inticis, aquelles planos tornavam-se
palpáveis, tomavam corpo e vida. E
se o wali moiro poude penetrar o que
se passava sob a fronte carregada do
seu gigantesco companheiro, segura-
mente se arrependeu de ter pedido
o auxilio do perigoso Ibn-Errink.
A alliança do rei portuguez com
o chefe mussulmano durou pouco,
tendo tido como único resultado prá-
ctico o deixar mais devastadas as ter-
ras já devastadas dos moiros. Em
virtude, segundo parece, de alguns
revezes, voltaram a Mertola já no in-
verno, e alli se separaram. Ibn-Cassi
estava ancioso por se libertar do seu
imcommodo alliado. Os seus sequa-
zes, islamitas fanáticos, viam com
muito desagrado aquella união com
os christãos malditos. E Aífonso Hen-
riques era por tal modo duro e im-
perioso, que o wali, apezar de todas
as suas prosapias, nem pestanejava
diante d'elle: havia-se na sua presen-
ça, dizem os escriptores árabes, co-
mo un siervo que movia sus pestanas
por las insimiaciones dei otro. Se-
pararam-se, pois, dando Ibn-Cassi
presentes de armas e cavallos aos
fidalgos portuguezes.
D. Affonso Henriques retirou para
o norte, d'onde só voltou a Serpa pas-
sados vinte annos. *
CONDE DE FICAXHO
* Depois de escripto e impresso o artigo
veio-me ás mãos o livro recente do Snr. F.
Codera. Fundado em noticias árabes, con-
firma a alliança do rei de Portugal com Ibn-
Cassi; ip, 5i) mas colloca-a em periodo um
pouco diverso, e não falia da vinda dos por-
tuguezes ao Alemtejo. Se esta noticia é di-
finitiva, estaria Conde em erro, o que não
pode surprehender ; e já antes me levara a
collocar n'esta nota vários pontos de inter-
rogação.
flrtes & Industrias tradieionaes
A OLLARIA EM SERPA
/^ NTRE as diversas artes indus-
Vl^ triaes exercidas na vasta e ubér-
rima provincia do Alemtejo, occupa
a ollaria o mais distincto logar, mer-
cê da captivante belleza aprimorada
e suggestiva de seus variadissimos
productos, todos marcados com o ve-
nerando sello da tradição nacional.
A descripção completa e minuciosa,
pela palavra e pela imagem, da olla-
ria alemtejana — alem de preciosa
fonte de inspiração artística, consti-
tuiria um largo cabedal de inestimá-
veis subsídios para a historia geral
da cerâmica, e não menos para o es-
tudo dos usos e costumes do povo
portuguez, visto como a cerâmica se
liga estreitamente á vida da humani-
dade.
Contribuiria, ainda, a completa des-
cripção da ollaria no Alemtejo, para
enriquecer de numerosos vocábulos
o pátrio lexicon e quiçá para revi-
gorar a própria ollaria i — uma das
tradicionaes industrias populares cu-
jo definhamento nós vimos lamen-
tando com o Mestre glorioso que bu-
rilou as paginas doiro do Culto da
Arte em Portugal.
O singello esboço da ollaria em
Serpa, que nos propomos tracejar, as-
pira a ser um pequenino trecho d'esse
largo e benemérito trabalho descrip-
tivo, que bem desejaríamos ver rea-
lisado na integra, em muito prol e
para gloria e lustre da nossa bella e
desditosa Pátria.
* *
Depois de Estremoz, a terra clás-
sica das formosas camarinhas de fi-
1 E' nossa convicção intima que, a venda
de certos objectos da ollaria alemtejana, au-
gmentaria consideravelmente desde que taes
objectos se tornassem conhecidos a fora da
região onde são fabricados.
A TRADIÇÃO
EIG^
^roductos (Ia {pifaria Bfcmtcjana
QunrTo
(SERPA)
¥
-§^^(gÇ^-
r^
A TRADIÇÃO
nissima argilla, é Serpa — ao que nos
consta — apovoação transtagana onde
mais e melhor se tem cultivado o
ramo inicial da arte cerâmica.
Ha mesmo um afamado producto
da oUaria local, que nunca se fabri-
cou, segundo creio, na tiorescente
villa de Estremoz, e Serpa tem ex-
portado cm grande escala para um
sem numero de terras não só d'esta
provincia como também da provincia
do Algarve. Quero fallar das excel-
lentes "talhas para vinho e azeite, cuja
fabricação, de importante que era,
chegou a formar uma secção especial
da ollaria serpense.
De resto, elaboram-se aqui ao tor-
no do olleiro, com perfeição e mes-
tria, todas as vasilhas de uso com-
mum e domestico, desde a infusa e
o tinor grosso e bojudo até ao mais
delicado e gracioso cucharrinho.
E o mais importante material de
construcções, a telha e o tijolo, quan-
to se emprega nas obras concelhias,
aqui se manufactura, também, muito
habilmente.
A"s talhas, louçaria commum e ma-
terial de construcções (telha e tijollo)
correspondem, na ollaria local, três
classes distinctas de productos.
Vamos occupar-nos de cada uma
dessas classes.
Antes, porém, trasladaremos, a ti-
tulo de nota histórica, um interessan-
te e curioso artigo das antigas «Pos-
turas municipaes da notável 3 villa
de Serpa w (1686), artigo que reza
assim ("textualmente) :
■ > tOleiros & officiais de telha & tijol-
lo*. «Todos os oleiros e oficiais de
telha e tijollo serão examinados com
juramento de fazerem verdade em
seus oficios e não desenfornarão sua
loussa sem ser vista pellos juizes de
1 Como é sabido, o Infante D. Pedro?
quando regente e governador de Portugal,
concedeu a Serpa os «privilégios de Villa
notável» , por carta patente de 20 d'Agosto
de 1674.
fWáe a Memoria Historico-economica do
Concelho de Serpa^ pelo Doutor Graça AíTrei-
xo.)
seus oficios que achando esta bem
cosida e capas de se vender ao povo
lhe darão suas licensas por escrito
para venderem, e os ditos oleiros não
mesturarão sinza com o barro de sua
loussa e os cântaros e talhas que fi-
zerem não serão de menos medida
que de almudc cada pcssa de cânta-
ro e talha ^ e os quartos de meio al-
mude, a obra que venderem assim de
loussa como de tijollo ou telha não
será por mais da tacha que pella ca-
mará lhe for posta e o tijollo que se
fizer para obras terá de meio covado
de comprido e hua quarta de largo e
meia sesma de vara de grosso tudo de
medida da craveira^ e a telha será
do comprimento de duas sextas de
craveira, para o que terão suas mar-
cas providas e feridas pelo aferidor
do conselho que nellas porá a marca
das medidas de pao, do que tirarão
seus registos ao principio da safra
de cada anno e os officiais de telha
e tijollo sob penna de uns e ou-
tros pagarem por qualquer d'estas
cousas não compridas quinhentos réis,
e só poderão os oficiaes de telha e
tijollo fazer da marca mais pequena
somente para as pessoas que assim
lho encomendarem, não usando d'elle
para venderem senão a quem o qui-
zer comprar, e assim mandarão se
comprisse.»
A talha — na definição de Moraes,
e conforme a gravura que n'outro
logar publicamos, — é um «vaso de
barro de grande bojo, bocca estreita
e fundo cónico».
Ha, porem, entre nós outros va-
sos, com a mesma configuração, a
que se dá o nome de potes. A diíFe-
rença de nome está simplesmente
1 As talhas, de medida não inferior a um
almude, a que a postura se refere, seriam
as mesmas vasilhas que hoje conhecemos
pelo nome de potes? Ou, acaso, a palavra
otalha» estará alli empregada como synoni-
mo de «infusa» ?
A TRADIÇÃO
nas dimensões do vaso : se este com-
porta vinte almudes, ou mais, desi-
gna-se por «talha»; se a capacidade
é inferior áquella medida, denomi-
na-se «potei.
As talhas são usadas para guar-
dar vinho, azeite, aguardente e vi-
nagre.
Havia outrora, c ha hoje ainda,
grandes adegas, tanto de vinho como
d'azeite, guarnecidas de numerosas
talhas, maiores e menores, dispostas
em lílas ao longo das paredes.
Foram estas vasilhas, sempre, mui-
tissimo apreciadas para depositar o
vinho, especialmente, em razão do
magnifico sabor e agradável frescura
que ao liquido communicam.
Em Serpa, e penso que em toda
a margem esquerda do Guadiana, o
público manifesta decidida predilec-
ção pelo vinho «creado no barro».
Modernamente, a talha vae sendo
substituída pelo tonel de madeira,
para o vinho, e pelo pote de lata para
o azeite.
Infeliz substituição I
Podem, as novas vasilhas, ser de
maior duração e porventura mais eco-
nómicas do que as antigas; mas a
verdade é que, com isso, a arte per-
de e perde immenso. Sob o ponto de
vista csthetico, a talha de barro, de
formas curvilíneas, elegante e ma-
gestosa, vale incomparavelmente mais
do que o pote de lata, prosaico e
charro, ou o tonel de madeira dis-
forme e brutal.
Tcem os potes de barro mui va-
riado préstimo e serventia.
Aquelles de maior lotação são usa-
dos, assim como as talhas, para guar-
dar vinho, azeite, vinagre, aguarden-
te, e também farinha; outros, mais pe-
quenos, servem para mel, agua, cal,
azeitonas de conserva, etc, etc.
Aos potes e talhas andam annexas
mais três espécies de vasilhas: quar
'os, tinos e salgadeiras. Tudo isto é
classificado de «obra grossa» na ter-
minologia do oUeiro.
Os quartos são destinados a rece-
ber vinho, exclusivamente, e ha-os de
medidas diversas, entre um c quinze
almudes.
(^ada um dos cjuartos costuma ser
montado sobie um banco aJ //oc", de
quatro pés, a que se chama a burra».
O tino movei de barro «, já quasi
desapparecido, era muito adoptado
nas pequenas distillações d'alcool.
Hoje em dia, os tinos, íixos, são con-
struídos de tijolo, cal e cimento.
Quanto ás salgadeiras, ainda cm
plena usança, são elias tidas em alto
apreçfj para depositar carnes salga-
das, nomeadamente presuntos e brêas^
de toucinho.
Pertencemegualmente á aobra gros-
sa» os alguidares de quatro e seis al-
queires, empregadas nas chacinas,
na trasfega dos vinhos e nas grandes
amassarias das herdades.
(Continua.)
M. DIAS NUNES.
APPARIÇÔES
BOI a leitura do magistral artigo
rtF>statinga — EsTantiga», recen-
temente inserto nesta revista, e devido
á penna auctorisada da erudita escri-
tora D. Carolina Michaelis de Vas-
concellos, que nos despertou o desejo
de publicar desde já alguns casos
d'apparições, que ha muito colhemos
directamente. Essas historias, como
o leitor verá, referem-se todas a fa-
ctos passados nesta região, onde a
crença no apparecimento de medos
' A continuação d'este artigo será acom-
panhada de vários desenhos elucidativos,
entre os quaes, os desenhos do tino, da sal-
gadeira e do alguidar. E como appendice
indispensável ao nosso modesto estudo, pu-
blicaremos um mappa de todos os objectos
que mencionarmos, com as respectivas di-
mensões.
2 Brêa = grande talhada. Somente se usa
o vocábulo, e com esta significação única,
no caso sujeito.
10
A TRADIÇÃO
e almas do outro mundo se acha ainda
muito espalhada.
Apesar das appariçÕes se repetirem
entre nós com extraordinária frequên-
cia, e poderem por conseguinte con-
siderar-se como coisas banaes, a ver-
dade é que em volta de cada caso se
faz sempre enorme ruido, acompa-
nhado dum grande pânico. E' de no-
tar também, que raramente se dá um
facto isolado; em geral, uma appari-
ção provoca outras apparições, e mui-
tas vezes até no mesmo local da pri-
meira. Deste modo s^explica, eviden-
temente, o haver em cada povoação
certos sitios onde «apparecern me-
dos».
As apparições representam ainda
hoje, para a grande massa do publi-
co, um fundo e negro mysterio ; são,
por assim dizer, a lúgubre manifes-
tação dum poder occulto, que todos
temem e respeitam. O fenómeno,
deveras interessante e curioso, dá-se
realmente, mas o vulgo é que não
sabe interpretá-lo.
Toda a apparição constitue indubi-
tavelmente uma allucinação, e, como
tal. o seu estudo pertence propria-
mente á pathologia mental. Parece-
nos, todavia, que o assumpto em
questão não é descabido numa revis-
ta d"ethnografia, pois que se trata
duma crença popular profundamente
arreigada, transmittindo-se atravez
das gerações, desde tempos imme-
moriaes. E alem d'isso, surge-nos, a
propósito de cada apparição, um tal
numero de circumstancias e praticas,
que bem merecem ser registadas,
como documentos vivos para a his-
toria do povo. Ainda mais : trazendo
a lume estas scenas intimas da vida
vulgar, em que o espirito da multidão
se encontra perfeitamente fotografado,
pomos' em relevo muitos erros e pre-
juisos, que é preciso destruírem nome
duma boa hygiene psychica.
Eis porque entendemos ser útil
consignar aqui os alludidos casos,
que passámos a descrever.
I
A pequena historia que vamos nar-
rar, primeira da nossa série, refere-
se a uma mulher de Brinches, que
designaremos por X. Esta mulher,
de 2;') annos d'edade, casada, nada
accusa dimportante sob o ponto de
vista hereditário. Mas o mesmo se
se não pôde já dizer com respeito á
sua própria pessoa, pois é de consti-
tuição pouco robusta e soffre de tris-
tezas c ate d'ataqucs nervosos. Estes
ataques declaram-se principalmente
por occasião d'algum desgosto grande.
Conta X. que, ha proximamente
seis annos, havendo-lhe fallecido um
tio, Y., com quem vivia, experimen-
tou em consequência desse triste acon-
tecimento um grande desgosto. De-
corridos uns seis mezes, começou a
apparecer-ihe o dito tio, de noite e
quando ella se achava deitada.
Uma noite, pouco mais ou menos
pela uma hora da madrugada, encon-
trando-se no leito com seu marido,
pediu a este que acendesse um fós-
foro ; e, sentando-se em seguida na
cama, viu repentinamente diante de
si Y., revelando-se com o seu natu-
ral aspecto. Neste momento, X., to-
mada d'enormissimo susto, soltou um
grito c perdeu os sentidos. O marido,
então, afflicto, correu a chamar uma
tia da enferma, viuva do finado, que
estava também deitada noutro quarto
da mesma casa. Essa tia veiu imme-
diatamente em soccorro da sobrinha
e requereu o morto nos seguintes ter-
mos : «Se és alma do outro mundo,
da parte de Deus te requeiro : Dize
o que queres!». Ao mesmo tempo
apertaram o dedo minimo da mão
direita a X., a qual ouviu distincta-
mente o tio proferir estas palavras :
«Mandem dizer dezaseis mil réis em
missas, pelas santas almas». Este pe-
dido, assim tão categoricamente for-
mulado pela própria boca do morto,
foi religiosamente cumprido, á custa
de não pequeno sacrifício pecuniário.
Com eífeito, o parocho da fregue-
zia foi solicitado a rezar, pelas san-
A TRADIÇÃO
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12
A TRADIÇÃO
tas almas, dois trintarios de missas,
mediante a retribuição de lGc?00(.)
rs., conforme ordenara Y. na occa-
sião de ser requerido.
O prior, reconhecendo as precárias
circumsiancias daquella familia, ainda
ponderou, «que era escusado dispen-
derem tanto dinheiro em missas, que
bastava mandarem rezar um trinta-
rio: que não pensassem mais no ap-
parecimento da alma do fallecido,
porque se ella lhes apparecera, foi
devido á fraqueza do sentido». Estas
justas reflexões foram, porém, bal-
dadas, porque a viuva insistiu nos
dois trintarios, visto ter sido essa a
vontade claramente expressa pelo
mono.
Passaram, portanto, a dizer-se na
parochial egreja de Brinches as re-
feridas missas, até que, chegando-se
á ultima, X. foi avisada — segundo
é de preceito — para assistir a ella.
Quando estava a celebrar-se a missa,
diz X. que, olhando para a capella
da Senhora do Rosário, que fica á
esquerda da capella mór, ahi se lhe
deparou novamente o tio, o qual,
apenas findou o acto religioso, se diri-
giu para ella a agradecer-lhe. O agra-
decimento fez-se pela forma seguin-
te : Y., apertando com força a mão
direita da sobrinha, disse-lhe ao ou-
vido, por três vezes : «Deus te pague;
seja pelo amor de Deus».
Ouvidas estas fúnebres palavras,
X. desmaiou logo. deixando profun-
damente emocionadas todas as pes-
soas, que acabavam de presenciar
aquella trágica scena. Depois, X. re-
cuperou os sentidos e regressou a
casa com o espirito perfeitamente
tranquillo, na intima convicção de
que o tio não lhe reappareceria.
Effectivamente, ella própria me de-
clarou que nunca mais viu Y., mas
que anda sempre com muito medo
dalguma nova apparição.
*
* *
O caso que singelamente ahi fica
descrito, representa, creio, nitida-
mente o typo duma nevrotica com
allucinaçÕes da vista e do ouvido. A
forma religiosa das suas allucinaçÕes
explica-se admiravelmente, se nos lem-
bra!"mos que a doente foi creada
numa atmosfera de completa beatice,
visto que tanto o tio como a tia, com
quem ella sempre viveu, eram extre-
mamente devotos. Y., então, sentia
pela confraria das almas, em Brin-
ches, uma extraordinária svmpathia :
além de ser o seu thesoureiro perpe-
tuo, curava dos interesses delia com
o mais fervoroso zelo. Circumstancia
esta, que vem elucidar-nos sobrema-
neira acerca da allucinação verbal de
X., no momento em que Y. foi re-
querido pela sua viuva.
Convém ainda tomar nota de cer-
tas particularidades que, em nosso
humilde parecer, tornam este caso
verdadeiramente interessante. Em
primeiro logar, a manifestação simul-
tânea na mesma pessoa de duas es-
pécies d'allucinaçÕes — verbaes e vi-
suaes. Em segundo logar, terem-se
dado egualmente essas allucinaçÕes
na egreja — em plena luz do dia e
perante varias pessoas. E finalmente,
o poder sugestivo que a celebração
das missas exerceu na doente, cu-
rando-a da sua insão.
E' necessário advertir, comtudo,
que a acção curativa dos dois trinta-
rios foi bastante restricta, pois que
o nevrosismo de X. ficou subsistindo,
e continua a traduzir-se nos mesmos
symptomas anteriormente apontados,
isto é, tristezas, ataques nervosos e
receio de novas apparições. Fixemos
bem este facto, para que se não con-
fie demasiadamente na therapeutica
mystica das nevroses.
XAI>ISI.AU FIÇARBA.
A TRADIÇÃO
13
lIODAS-tSTKlItlLIlOS \LEJITU\\\S
DE NOITE BATEM Á PORTA
De noite batem á porta :
U' lilha, vae \cr cjiiem c!
Se íòr teu amor primeiro,
\'ae aquecer o cate.
Vae aquecer o café,
Vae aquecer o ch'colate.
De noite batem á porta :
O' filha, vae vèr quem bate !
M. DIAS NUNES.
A caça no concellio de Serpa
Os terrenos do concelho de Ser-
pa foram sempie muito abun-
dantes em caça de ditíerentes espé-
cies.
Tanto na grande serra do conce-
lho, onde se encontravam os veados,
os javalis, os corços, os lobos, os
«galos cravos» ou lynces, os coelhos
e as perdizes, como nos terrenos maib
ou menos limpos de matto e moitas,
que constituíam as dilVerentes herda-
des, annualmente lavradas e semea-
das, e onde se vêem as lebres, as
perdizes e os coelhos, a caça — ex-
cepto as rezes ou gado cervum (vea-
dos, cervas e corços), que desap-
pareceu de todo — a caça abunda-
va e ainda hoje abunda apesar do
uso e abuso das varias armadilhas c
outras causas de destruição. Kntre
estas causas, que são diversas, ha
duas principaes. A primeira é o enor-
me vandalismo com que se queimam
a eito, immensas extensões de mat-
tagaes, na serra, morrendo assim, ou
queimados ou asphyxiados, milhares
de coelhos e perdizes, e extinguindo
os acoihciíes da caça grossa nas gran-
des umbrias c manchas, devastadas
peio fogo. A segunda causa — não
menos prejudicial, embora so alVecie
a caça miúda — está no emprego de
armadilhas e mais» formas de caçar
com chamariz, e bem assim no cul-
tivo aperfeiçoado dos cereaes, com
especialidade nas mondas, que se la-
zem com esmero em todos os terre-
nos semeados. Mulher nenhuma, mon-
dadeira ou ceifeira, resiste á tentação
de tirar dos ninhos ou os ovos ou os
caçapos.
Paliarei das dilVerentes armadilhas
quando tratar da caça em cada uma
das suas espécies.
Como já disse, os terrenos mais
férteis em caça eram, e ainda são,
os da serra grande d'e_ste concelho.
Fica esta serra ao sul da villa de Ser-
pa, n'uma facha que, doeste para este
se prolonga desde o (Guadiana até á
raia de Hespanha, próximo ao Ro-
zal de Chnstina e Ficalho, pegando
alli com as serras do concelho de
Moura, numa extensão de mais de
35 kilometros, e com uma largura
não inferior a 2õ. Pelo lado sul con-
fina a serra de Serpa com a de Mer-
tola e com a ribeira de Chança, raia
de Portugal com Hespanha, e onde
tem principio a serra Morena, do
reino visinho.
A serra de Serpa, extensíssimo
baldio muito accidentado e matta-
goso, é de longe em longe habitada
por algum casal que vive na malha-
da '. Os oiterios são muito altos e
contínuos e por isso. os córregos ou
corgos (como aqui dizem; muito fun-
dos.
Os valles, alguns, são deveras ex-
tensos. Aos corgos mais extensos cha-
mam córu;as^ e quando formam cor-
rente continua e mais funda, barran-
cos, ou barrancadas^ se as ladeiras
' — Malhada — casa edificada na serra
de Serpa, em meio de certa área de terreno
onde existem cercas de colmeias. As malha-
das denominavam-se antigamente «fabricas
de cera e mel».
14
A TRADIÇÃO
são fragosas, como acontece nas bar-
rancadàs de Beiçudos e Alfamar, onde
ha sitios de admirável braveza.
Quando a caça grossa começou a
escassear entre nós, os caçadores,
tanto os d'este concelho como os de
Moura, costumavam ir caçar a Hes-
panha, onde a caça é abundante de-
vido á existência dos coitos. Para rea-
lisar a caçada no paiz visinho obti-
nha-se previamente uma licença ou
tolerância das auctoridades respecti-
vas, bem como a permissão dos pro-
prietários dos terrenos. D'estes, os
mais frequentados eram a Casa do
Duque, serra do Granado, serra de
Santa Barbara, Serrador, Penhas
Mouras e Sirios. A Casa do Duque,
principalmente, era d'uma fertilidade
extraordinária em coelhos e perdizes,
como tivemos o prazer de algumas
vezes verificar. No Granado vimos
nós rebanhos de javalis, e veados.
Na serra de Santa Barbara houve,
em tempos, muitas rezes, e consta-
nos que é o único sitio onde se en-
contram ainda corços. As Penhas e
os Sirios, as serras mais fragosas e
accidentadas que se conhecem n'es-
tes arredores, são muito abundantes
em caça grossa.
Os caçadores teem nomes apro-
priados com que designam as diver-
sas formas e accidentes do terreno.
Ao prolongamento dos outeiros, cha-
mam pontal, e quando o pontal tem
as ladeiras de um ou ambos os lados
muito a pique, esguilhão.
A" depressão do pontal formando
como sella, isto é, ao sitio onde o
pontal abaixa para depois levantar,
chama-se portella, por ser logar ade-
quado para collocar porta ou espera
nas batidas de caça grossa ; pois que
naturalmente esta caça, quando foge
espantada ou acossada pelos cães,
procura os referidos sitios, por mais
fáceis de transpor.
(Continua.,
A. de MELLO BR£TN£R.
MMW^%mm.M.m>
o livro
Sou de longe, longe venho,
Não sou feio nem bonito,
Tudo quanto tenho dou,
Com tudo que tenho, fico.
O morcego
Diga, senhor secretario,
Que está na secretaria :
Qual o pássaro que vôa
E dá leite quando cria ?
A luzerna
Nem vara vareta,
Nem verde, nem secca,
Nem do ar colhida,
Nem do chão nascida.
À quaresma
Sete irmãs são,
Uma é santa
E seis não.
Um jogo cl'agulhas de meia
Somos cinco irmanzinhas,
E todas somos eguaes; *
Anda uma sempre nua
P'ra vestir as outras mais.
O figo {colhido da figueira)
Se não passasse quem passou,
Passava quem não passou.
O moleiro
Quando não tenho agua, bebo agua;
Quando tenho agua, bebo vinho.
A laranja
Egrejinha vermelha
Sem porta nem telha.
O ôvo
Egrejinha branca
Sem porta nem tranca.
A luz da candeia
O que é aquillo, que do tamanho d'uma
bolota, — enche a casa até á porta .''
(Da tradição oral, Brínches.)
(Contínua.)
ANTÓNIO ALEXANDRINO.
A TRADIÇÃO
lõ
BlBIsI0GRftPI4Ift
Esta pequena secção, que por motivos
alheios á nossa vontade, tivemos de sus-
pender logo nos primeiros números do anno
iindo, será d'or "avante mantida, ininterrup-
tamente, nas paginas da Tradii;ão.
Aqui faremos referencia ás diversas obras
já recebidas e a todas as novas publicações
que forem chegando a esta redacção.
Obras do Doutor Stanislau Prato. — Ao
laureado publicista e professor italiano Se-
nhor Doutor Stanislau Prato, dev(?mos a
otlerta gentil, que infinitamente nos penho-
ra, dos seus notáveis trabalhos :
Le dodici piírnle delia veritã; Sonne,
Q^íond iind Stcrne; Zwei Episodcn aiis pvrei
tibctanisclwti JWovellen : 11 caratlere denionia-
co dei porco e dei cin^hiale ncll 'inferno
dantesco, neWegipo e nella tradipone popo-
lare ; II Sole, la L una, le Slelle — imtnaiji-
ni sinboliche di belle^^a nelle lin^ite orienta-
li ; Sag^io sopra gli érrori popolari degli
antichi, di Giacomo Leopardi ; Inceputul
Cintecelor pnpulart roíninesti ; La scène de
1'avocat et dii berger; La beauté des femmes;
Le menuisier, le tailleur e le soplita ; Biblio-
graphie des variantes de trois contes (les
nnisiciens de Brenie, les fleiís bossiis tO /e'5
nains, psychéj; Vergleicliende Mitheilungen
pi Hans Sachs Fastnach htspiel.
D'entre as obras mencionadas, todas ellas
do mais subido valor scientitico. despertou
em nós, a primeira, um interesse muito par-
ticular, não só pela natureza do assumpto,
sobremaneira interessante, mas também por-
que nos falia de coisas portuguezas.
BULLETIN POUR LtTRANGER
%_M^ WKADITIOIf
DIRECTEUBS
Ladislau Tiçarra et T)ias VSjifies
REDACTION ET ADMINISTRATION
À SERPA iPORTUOAL)
Le Bulletin^ que nous avons le plaisir de
publier aujourd'hui pour la première fois,
est destine tout simplement à creér et res-
serrer les relations inteliectuelies des folklo-
ristes et ethnographes portugais avec nos
collègues dí: rétranger.
Tous ceux qui se consacrent au genre
d'ouvrage, auquel la Tradition s'adonne, re-
reconnaissent certainement, sans plus d'ex-
plications, Timportance de ces relations.
"I.e dodici parole delia veritá», «As doze
palavras da verdade», é uma lenda popular
Italiana (por signal bem engraçada) que o
I)outor Prato nos apresenta de par com nu-
merosas variantes, de procedências e nacio-
nalidades diversas, entre as quaes a reza lu-
sitana "Oração do Anjo Custodio» (dialogo
d'um Anjo e do Dial)o). Km todo um lar-
go volume de cerca de 200 paginas, são es-
sas curiosas versões examinada;, compara-
das, annotadas e interpretadas com supe-
rior critério e profunda erudição, concluin-
do o sábio etnnologista e phillologo ita-
liano por lhes determinar a sua remota e
comnium origem.
Litterature orale de VAuverp^ue por Paul
Sébillot. — O incançavel investigador das
tradições populares da França, Mr. Paul Sé-
billot, prosador e poeta festejado, publicou
ha tempo um elegante volume, com cuja
ollerta nos distinguiu, subordinado á epigra-
^■\\Q^- Litterature orale de 1'Auverf^ne.
Divide-se em duas partes o precioso livro.
Comprchende a primeira cincoenta e quatro
lendas e quinze deliciosos contos infantis,
vibrantes de cõr local ; e a segunda contem
doze canções e algumas adivinhas.
Todo este copioso material ethnographi-
co foi recolhido e coordenado com inteira
proficiência, e constitue uma verdadeira jóia
da litteratura popular tranceza.
A Mr. Sébillot, o ^scriptor illustre que nos
deu os Contes des oAíarins e os Contes Es-
pagnols, os mais Íntimos agradecimentos
por tão mimosa e delicada oflerta.
(Continua.)
M. DIAS NUNES.
*»»»*«*»»
lOiifmsm
BULLETIN FOR ABROAD
MoDílily lliiísiraied revlew ol poriuguese eihnograptiy
DIRECTORS
Ladislau Tiçarra and ^Dias V^u?ies
OFFICES
SERPA (PORTUCAL)
The Bulletin, which we have the pleasure
of publishing to day for the first time is ex-
pressly meant to promote the intellectual
relations between the portuguese ethnogra-
phers and folklorers and our colleagues of
other nations.
Ali who dedicate tehmselves to this kind
of work to which the Tradition is consecra-
ted recognise the importance of these rela-
tions, without further explanations.
IG
A TRADIÇÃO
Pour atleindre le but que nous avons en
vue, nous puhlierons réj;uliòrement dans
cetle section :
1." Le sonimaiie de notre revue et notes
explicatives ;
2." Conipie rendu du mouvement ethno-
graphique portut;ais ; renseignements plus
au moins développés selon Tespace dont
nous pourrons disposer.
soinmaire de le preseni numero de la Tradiílon
Texte : — Notes historiques sur Serpa. (')
D. AtVonso Henriques (•) est-il venu à
Serpa en ii4'>? par le Comte de Ficallio\
Arts ec industries tradictionnelles: La Po-
terie à Serpa, par M. Dias Nunes ;
Revenants, par Ladislau Piçarra (Dr.) ;
La chasse dans le district de Serpa, par A.
de Mello Breyner ;
Chansons et rêtrains populaires de TAlem-
tejo (^) : La nuit on frappe à la porte, par
.\/ Dias Nunes;
Devinetes, par António Alexandrino ;
Bibliographie, par M. Dias Nunes.
niustrations : — Galerie de costumes popu-
laires : Paysanne en habits de tete. Pro-
duits de la poterie de TAlenitejo. Recueil
de chansons : La nuit on frappe à la por-
te (musique).
MOIVEMEM ETinOGRAPlllQlE PORTIGAIS
Nous devons parler de la publication de
quatre ouvrages importants otTerts Tannée
dernière à cette rédaction. Le dernier pu-
blié. Bobéme de Coimbra, nous fait lire
une description parfaite de la vie académique
à Coimbra, viile célebre, siege de TUniver-
sité portugaise. Cet ouvrage est dú à la plu-
me brillante d'un de nos modernes écrivains
de granJ talent, M. Alfred Piatt.
Les autres sont :
Chansons populaires de Beira : ma-
gnifique recueil de chansons et refrains po-
pulaires. recueillis et reunis par Tillustre
folkloriste M. Pedro. Fernandes Thomaz.
Les manres enchantées etlesencban-
tements en Algarve: ouvrage appréciable,
d'une importance toute particulière pour les
études ethnographiques, par notre distingue
collaborateur M. le Dr. Athaide d'01iveira.
Portugália: luxueuse revue trimestrelle
de caractere archéologique et ethnographi-
que, publiée soas la direction de MM. Ri-
cardo Severo, Rocha Peixoto, Fonseca Car-
doso. Seul le premier numero est publié.
'!> Serpa, ou est publieé notre revue, est une des plus
ancien >es et oes plus importantes v.lles du Portugal.
<i> D. Artonso Henriques, surnomme le Conquérant, a
été le premirr roí du Portnpal
fí* AUmtcjo — vaste et riche province du sud du Por-
tugal.
Obeying therefore the aim we have in view
we wiíi publish regularly in this section :
i.!-' The surnmary of our review accom-
panied with expiicative notes ;
•2."J An account of the portuguese ethno-
graphical movement, more or less ample,
according to the space which we can dispo-
se of.
SiiiiiiiKiry ol ilie preseiii niimlier oí ttie Trafliiioii
Text : — Histórica! notes on Serpa, (i) If
D. Alfonso Henriques (■^) visited Serpa in
the year 1 145 ? by Conde de Ficalho ;
Traditionnel arts and industries: The potte-
ry in Serpa, by M. Dias Nunes ;
Apparitions, by Ladislau Piçarra (Dr.) ;
The shooting in the Serpa district, by A. de
Mello Breyner ;
Popular songs from Alemtejo: (3) At night
they knock at the door, by M. Dias Nu-
nes ;
Riddies, bv António Alexandrino ;
Bibliography, by M. Dias Nunes.
niustrations : — Cialery of popular costu-
mes : Peasant woman in sunday costume.
Products from the pottery of Alemtejo.
Musical collection : At night they knock
at the door (Refrain).
TIIE PORTljGLlESE ETIl^OCRAPIllCAL MOVEMENT
We have to register the publishing of
four importam volumes, that last year were
offered to this office. The last published en-
titled Bobemia of Coimbra contains a per-
fect description of the academic life of
Coimbra, celebrated town where is the por-
tuguese University. The book in question
was written by a nevv author of great ta-
lent M. Alfredo' de Pratt
The other volumes nre:
Popular songs of Beira, a splendid col-
lection of popular songs and refrains, com-
piled by the celebrated folklorer M. Pedro
Fernandes Thomaz.
The enchanted moors and the enchan-
tements of Algarve, litterary work to be
greatly appreciated by those interested in the
study of ethnography by one of ours distin-
guisíied collaborators Dr. Athaide d'01iveira.
Portugália, magnificent quarterly review
of an archeological and ethnographical cha-
racter published under the direction of M.t^srs
Ricardo Severo, Rocha Peixoto and Fonseca
Cordoso. Up to the present date only the
first number has been issued.
<') Serpa, the birth-place of this review, is one of the
oldest and most importam of poriupuese towns.
(■■i) iJ. Afionso Henriques, surn.imed the Conqueror,
was the first King ofPortug.il-
(3) Alemtejo, a vast and rich province in the soutli of
Portugal.
^V II lio II — íN. \£
SERPA. Fevereiro de ISOO
^'ol lllll«' II
Kditor-adintniktrador, Jotf Jeronrmo da Coita tíravo de Sefsreirot, Kua Larsa, 3 e 4 — SERI*A
lyp. <Jf Adolpho de Mendonça & I uarle, Kua do Corpo Saiiio, 46 e 48 — I.ISHOA
TumcÃo
llmisla iiiciisiil ilhliiiiii|rii{ilii;i Porliii|ii(>/;i. !lliislr;iil;i
Directores :-LÃl)lSLÃU Plt^ÃHHA e li. DIAS NUIIKS
O SANDEU DA RETORTA
(Capitulo para a historia da dançai
EM I 190 a cidade de Kvora, uma
das mais prezadas e frequenta-
das pelos reis da segunda dvnastia, as-
sistia a um espectáculo deslumbrante
como outro tão apparatoso jamais tor-
naria a ver. Realisavam-se as bodas
do principe D. AíTonso com a prince-
sa D. Isabel de Castella, e D. João II
quiz dar á solemnidade do casamen-
to de seu filho a maior pompa e lu-
zimento possível. Foram estraordina-
rios os gastos que então se fizeram
por conta da fazenda real, sendo tal-
vez escassos os cem mil cruzados que
os três estados do reino, pouco antes
convocados, haviam generosamente
concedido para este etVeito. El-rei fez
grandes apercebimentos, tanto no rei-
no como no extrangeiro, das mais va-
riadas mercadorias, mandando vir da
Itália, das Flandres, de Inglaterra, de
França, das feiras de Castella, tape-
çarias, sedas, pannos, armas, cavai-
los, prata em barra e outia infinidade
de objectos, que haviam de servir de
adereço. E apesar d'el-rei repartir da-
divosamente d'estas cousas pela no-
bresa da sua corte, ainda assim não
foram poucos os fidalgos que se ar-
ruinaram para competir em gentile-
sa e galhardia com os mais opulen-
tos.
l ma infinidade de cxtrangeiros
allluiu á histoiica cidade do Alemtc-
jo, onde as tradições da grandesa ro-
mana ostentavam, a esse tempo, uma
formosa veiustez monumental- Muitos
d"esses forasteiros vinham simples-
mente por especulação mercantil,
outros para mero recreio da vista, a
fim de assistir ás festas; outros para
tomarem parte n'ellas, attrahidos pelo
espirito de curiosidade e de aventu-
ra, desejosos de mostrar a sua perí-
cia e a riqueza das suas armas e tra-
jos nos torneios que promettiam ser
tão solemncb. Os artistas e artífices,
empregados na azáfama de tantas
obras concorreram em abundância e
até a culinária exótica forneceu os
officiaes mais hábeis na arte de Va-
tel. Os banquetes pantagruelicos ef-
fectuaram-se ao som da musica, en-
tre cantos e danças, entremeados de
momos e de representações appara-
tosas e grotescas, e por isso não
admira que viessem também de fora
muitos charamellas e menestréis para
envolve'- numa fascinação artística,
os alvoroçados convivas.
Foi no domingo 27 de novembro
que a princeza entrou em Évora e
desde então, durante uns poucos de
dias, as festas succederam-se e enca-
dearam-se como pérolas e joias nas
tranças d'uma sultana. Os banquetes,
os serões, os momos, as danças, as
justas, não deixavam um momento de
18
A TRADIÇÃO
descanço. Garcia de Rezende danos
na sua Chrouica de '/). João :;." a
lente atravez da qual podemos obser-
var, gostosa e deslumbradamente, to-
do este ciclorama real.
Logo na terça feira á noite se rea-
lisou uma ceia opipara, em que ha-
via regalos para todos os sentidos. Se
na mesa appareciam os pratos mais
phantasticos e graciosos, em volta
delia não eram menos engenhosas as
invenções, que enchiam de pasmo os
alegres convivas. A grande salla de
madeira, expressamente edificada pa-
ra este fim, ricamente adornada de
lambeis e tapeçarias, fazia lembrar o
scenario de um palácio encantado. A
imaginação dos poetas não seria mais
fértil e por certo se confessaria ven-
cida deante da frequência e abundân-
cia das galas e artificios.
Ha todavia um episodio do banque-
te que é o que mais particularmen-
te nos interessa agora. A par duma
representação figurando um rei gen-
tio, acompanhado de três gigantes de
quarenta palmos de altura, «entrou
uma muv grande e rica mourisca re-
torta^ em que vinham duzentos ho-
mens tintos de negro, muito grandes
bailadores, todos cheios de grossas
manilhas pellos braços e pernas, dou-
radas, que cuidavão que erão douro,
e cheios de cascavéis dourados, e
muito bem concertados, cousa muito
bem feita e de muito custo por seren
tantos e em que se gastou muita seda
e ouro e fazião tamanho roido com
os muitos cascavéis que trazião, que
se não ouvião com elles, e assi houve
outras representações e depois da cea
muitas danças e outras muitas festas,
que quasi toda a noute durarão, cou-
sa certa para vêr.»
Transcrevemos este quadrosinho,
tão cheio de movimento, como se
nelle revolteassem ao vivo as dan-
ças, da respectiva Chronica^ onde es-
tá pendente do final do capitulo 124.
Que maravilhoso corpo de bailei
Quem havia de dizer que D. João II,
o homem, o taciturno, o assassino do
duque de Vizeu, o perseguido, nas
suas insomnias e allucinaçÕes, pelos
espectros das suas victimas, dava um
tão surprchendente emprezario de
festas ! Que bello director para uma
Grande-Opera ou para o theatro w^a-
gneriano de Beyruth I
Garcia de Resende, na descripção
d'estas festas é bastante minucioso
e se elle julgou que se tornaria en
tadonho, descendo a mais meudos
pormenores, enganouse, pois podia
miniaturar á vontade, que muito agra-
decidos lhe ficariamos por isso. Que
matéria vasta não tinha a reporta-
gem moderna e como ella nos des-
creveria, com supérfluos accessorios,
todos os recantos do scenario, todos
os movimentos dos actores, por mais
insignificantes que fossem! No en-
tanto é de justiça dizer que o painel
de Garcia de Resende é traçado por
mão de mestre e se ha n'elle muita
cousa ligeiramente esboçada, a nossa
phantasia, fortemente suggestionada,
não lhe custa a completar o resto.
A maior lacuna que sentimos em
Garcia de Resende é de não ter apon-
tado o nome dos artistas e artifices
— dos principaes ao menos— que col-
laboram em todas as obras executa-
das, algumas d'ellas com pouco vul-
gar magnificência, e que tanto coope-
raram para o brilhantismo das festas.
Que falta para a historia da arte e
dos artistas em Portugal ! Como nós
lhe ficaríamos hoje agradecidos se
elle tivesse tido a lembrança de nos
fornecer esses preciosos elementos,
que tão anciosamente procuramos e
que muito parcellarmente vamos en-
contrando, fragmentos d'um collar,
que seria a mais rica jóia d'um Mu-
seu archeologico e artístico !
Do sandeu, isto é, do bobo ou do
gracioso da retorta, tivemos nós a fe-
licidade de encontrar os vestígios his-
tóricos em mais de um documento
oíficial. Chamava-se elle Guilhelme
Thomaz e era creado de Briobris de
Basto. D. João II, em 7 de novembro
de i4()0, o nomeou requeredor dos
paços da madeira de Lisboa, em at-
tenção aos serviços que elle prestava
A TRADIÇÃO
19
— ^^oX^-^^—
rri
6/lLE^m DE TVPOS POPlÍLfl^ES
hrr^'
li^Çí
Campaniço 'tralsalbador mral do termo de Uertola)
<^1'?J^^
20
A TRADIÇÃO
como sandeu da mourisca que ora se
fa^ )iesías feslas do casamejito do
priticipe^ meu sobre todos muito pre-
gado e amado filho.
VÃS o interessante documento na
sua integra:
«Dom J." etc. A quantos esta nosa
carta virem fazemos saber que cofia-
do nos da bondade e discrição de
Gilelme Tomas, criado de Briobris,
sandeu da mourisca que se ora faz
nestas festas do casamento do prin-
cipe meu sobre todos muito prezado
e amado filho, e que nos servira bem
e como a noso serviço cõpre, e que-
rédolhe fazer graça mercê, temos por
bem e ho damos por requeredor do
paço da madeira da nosa cidade de
Lisboa, asy e pela gisa que ho ate quy
foy J.° Velho, que o dito oficio de nos
por nosa carta tynha e se ora finou,
com ho quall oficio (falta terá) mill
bij' rs de mãtimento por anno a reza
de cem rs por mercees (sic).
E porem mandamos &c em forma.
Dada em Évora a bij dias do mes de
novébro ElRey ho mandou por dom
Martinho de Castell branco do sseu
conselho e veador de sua fazenda —
Pêro da Mota e fez anno do nasci-
méto de noso Sor Jhuu x.** de mil e
iiii'^ e noventa.» >
Quem era este Gilhelme ou Gui-
Ihelme Thomaz ': Pelo documento que
acabamos de transcrever ficamos sa-
bendo apenas duas particularidades
da sua vida — que era criado de Brio-
bris de Basto e sandeu da retorta.
Seria acaso mouro forro ou indigena
africano, forro também ? O nome de
Guilhelme, n'aquella época designa
vulgarmente procedência estrangeira
e o nome do patrão, Briobis, parece
também não ter cunho nacional.
Chegando ao reinado de D. Ma-
nuel achamos outra vez novas do nos-
• T. do Tombo, chro. de D. João 2.°, L. 16,
fl. iio. Parece que o copista que registou o
documento se enganou, pois o ordenado a
cem rs por mez, devia dar por anno mil xij
(mil e duzentos) e não mil e bjj' (mil e sete-
centos).
so sandeu. Havia-se elle embarcado pa-
ra a Guiné, e segundo constava, lança-
ra-se com os negros da terra. Era en-
tão um costume frequente. Os portu-
guezes, ou talvez antes os escravos
forros e descendentes d'elles, tinham
uma grande tendência para se fami-
liarisar com o gentio africano, toman-
do os seus costumes, n'um atavismo
selvagem, n'uma regressão á vida
primitiva. Os factos eram nume osos
e tanto que se legislara sobre o caso.
D. Manuel, como o Guilhelme havia
dous annos que não voltara, lhe tirou
o logar de requeredor dos paços da
madeira e o deu a Gonçalo Ferreira,
morador na cidade de Lisboa. A res-
pectiva carta, de 3o de agosto de
i5oo, é do theor seguinte:
«Dom Manuell &c A quamtos esta
nosa carta virem ffazemos saber que
a nos disseram ora que huu Gu3'lhell-
me, criado de Brecbrys do Basto e
requeredor que era do nosso paço da
madeira desta cidade, passava de
dous annos que fora pêra Guyne e
se lançara com os negros sem num-
qua mais tornar a servir o dito oficio
e que por ello o perdia e o podíamos
dar a quem nossa mercê fosse, polia
quall razam, se asy he como a nos dis-
seram, querendo fazer graça e merçe
a Gonçallo Ferreira, morador na dita
cidade, temos por bem e lhe fazemos
mercê do dito oficio de requeredor
da cassa do dito paço da madeira
quanto a nos de direito pertence e lho
dar podemos. E porem mandamos ao
nosso comtador. . . . Dada em a nos-
sa cidade de Lixboa aos xxx dias da-
gosto — EllRey o mandou per dom
Martinho de Gastei Branco senhor
de Villa Nova de Portimaão, do seu
conselho e veador da sua fazenda —
Francisco de Matos a fez — anno do
nascimento de nosso Sõr Ihuu xpo de
mill e quinhentos annos.»*
Resta-nos agora dizer duas pala-
vras acerca de Briobis de Basto. Era
1 T. do Tombo, chanc. de D. Manuel, L.°
12, folh. 45.
A 'IKAhlCAo
21
cavalleiro da casa real e bom caval-
leiro, ao que parece. Acompanhou l).
Atíonso \' em todas as suas campa-
nhas e trabalhos bellicos e íoi por
certo um dos combatentes da batalha
de (Lastro Queimado, mais conhecida
pelo nome de Touxo. Foi n'esta cida-
de, a 1? de março de i47() que I).
AlVonso V assignou a carta, pela
qual, em satisfação de seus serviços
e casamento, lhe tazia mercê da ten-
ça de 2 2 mil reaes brancos. Em i4<,<'),
em carta de 12 de março, passada em
Montemór-o-Novo, D. Manuel lhe
confirmara o cargo de escrivão da
portagem de Lisboa, que D. João II,
lhe tinha dado.
I.ibboa 27 de Fevereiro de njuo.
SOUSA VITERBO.
Crenças, superstições e usos tradicionaes
I
LOBIS-HOMENS E BRUXAS
*-f^ A vastíssima cohorte de seres
À- C mysteriosos que povoam a ima-
ginação do vulgo, estão em primeiro
logar os lobis-homens e bruxas.
Sendo geral, por assim dizer, esta
crença, varia comtudo na forma,
d'uma para outra localidade.
Descrevo-a portanto tal como aqui
se crê e conta, na ideia de que, em-
bora repise qualquer outra tradição,
sempre haja alguma particularidade
interessante e inédita.
Isto dito, entremos nas regiões ma-
ravilhosas e nevoentas da crença po-
pular.
* *
Quando um casal tem sete filhos
do mesnio sexo, o ultimo que nasceu
é lobis-homem ou bruxa, conforme a
serie é de rapazes ou de raparigas;
e só poderá livrar-se do triste con-
dão, se o primogénito fôr padrinho
do baptismo do seu inleliz irmão, ao
qual tratará sempre por afilhado.
Se a criança fôr baptisada sem esta
cerimonia, nada já pode obstar a que
siga o seu destino, ale que alguma
alma corajosa, lhe quebre o fado fa-
:{eudo-llic saiifriie.
Digamos em que consiste esse fado
na imaginação dos crentes.
O lobis-homem vive de dia como
qualquer alma christã^ e so se dilVe-
rença dos homens em ter uma callosi-
dade na palma das mãos, vestígio in-
delével das suas excursões nocturnas.
Quando são horas de repouso, co-
meça elle o seu fadário.
Sae de casa debaixo de chuvas e
ventos (porque quanto mais tempes-
tuosa é a noite mais (j fado o impelle
a sairi.
Tma vez na rua, vae em busca de
um espojadouvo onde se espoja até
adquirir a forma de jumento de côr
preta; e n'essa nova phase investe
contra tudo o que encontra, pisa as
searas, e, corrido pelo canto dos gal-
los, percorre, em vertiginosa carrei-
ra, sete jnlas acasteladas^ até ao rom-
per da aurora, que é quando torna ao
espojadouvo para readquirir a forma
humana, e na outra noite tornar a
percorrer o cyclo do seu fadário.
Se durante as desordenadas car-
reiras (porque corre como o pensa-
mento) (sic) algum mortal o ferir,
ainda que ligeiramente, retoma logo
a forma humana e acaba o fado.
E' crença, porém, que vive pouco
tempo depois de liberto.
No dia seguinte á correria o indivi-
duo que é lobis-homem, sente um
grande cançasso, do qual não conhe-
ce a causa.
O maior inimigo do lobis homem é
o gallo.
Presente-o e denuncia-o immedia-
tamente.
1 Assim chamam no campo aos seres hu-
manos.
A TRADIÇÃO
Quando se ouve um gallo cantar
fora das horas habituaes, isto é, antes
da meia noite, é certo que nas proxi-
midades anda retouçando algum lo-
bis-homem ou bruxa, que so fugirá
dali ao seu terceiro canto.
A côr do gallo iníiue poderosa-
mente no poder esconjurativo do ani-
mal.
E' preferido em primeiro lugar o
de còr preta; todos os outros lhe são
inferiores cm virtude, sendo o branco
o que menos poder possue, chegando
muitas vezes a não ter força para
afastar do sitio o lobis-homem.
As bruxas tendo a mesma origem,
como tica dito, a sua missão é outra,
não tão violenta e agitada, mas mais
perniciosa e fatal.
Logo depois do pôr-de-sol, quando
a Noite começa a descer sobre a
Terra que adormece, as bruxas tran-
sformam-se nuns seres invisíveis e
começam as suas depredações.
Entram nas casas pelo buraco da
fechadura^ sujam as creanças e adul-
tos, reduzindo-os a quasi esqueletos,
e tão tristes, que nunca mais a luz
d um riso vem purpurear-lhe os lá-
bios.
E' bruxedo^ diz o povo ingénuo e
crente.
Pelas noites sombrias reunem-se as
bruxas nas encruzilhadas das ruas ou
das estradas, para ahi fazerem as suas
sessões.
Ouvem-se então gritos sinistros,
gargalhadas fatídicas, e outras coisas
tétricas e lúgubres.
Outras vezes entretêm-se a des-
nortear o aldeão que anda toda a
santa noite perdido pelas serras que
elle conhece pedra a pedra, moita a
moita, e ao vel-o assim as bruxas sol-
tam gargalhadas dcscarneo!
Eis a bruxa da crença popular, que
reina por estes sitios.
Uma espécie de tigre que óra lambe
a preza, óra a despedaça nas garras.
Para muitos a bruxa é synonymo
de feiticeira.
Aqui, porém, parece fazer-se dis-
tinção.
A feiticeira é uma mulher que dis-
põe de mau olhado e está iniciada nas
praticas misteriosas dos quebrantos.
A bruxa, como acabámos de ver,
é um ser impalpável e invisível, nem
sempre de funestas consequências
como o attesta a narração popular.
Ha varias receitas e operações
para afastar as bruxas, assim como
para curar os seus malefícios.
A persignação é tida como um dos
melhores remédios.
Quando uma criança boceja, ouve-
se logo a mãe ou qualquer outra pes-
soa aconselhar:
— «Faze uma cruz na boquinha por
causa das bruxas» — .
Também quando nos succede qual-
quer coisa desagradável, é costume
dizer: — «Parece que não me benzi
hoj e ! »
Como preservativos usa-se a figa^
o comicho., e outros objectos de que
faremos descripção, quando tratar-
mos dos amuletos populares.
ARRONCHES JUNQUEIRO.
A caça no coiiGellio de Serpa
(Continuado de pag. 14)
QUANDO alguém passa d'um corgo
para outro, atravez das portei-
las, díz-se que aportilhou. A' depres-
são que se oberva no extremo do pon-
tal, ou focinho., dá-se o nome de «por-
ta baixa», e dá-se egualmente este no-
me á depressão existente entre dois
outeiros de pequenas dimensões.
Umbria é a ladeira mais sombria,
por ficar virada ao norte ou a este,
e onde o matto cresce com enorme
A IK. A DICA o
23
vigor: chamnndo-se á ladeira oppos-
ta soalheira. Ha umbrias de matto
tão velho e tão espesso e alto, que é
quasi impossivel atravessar. As bar-
rancadas, essas então não é possível
atravessal-as, nem mesmo os mais
experimentados. Até os cães dillicil-
mente alli podem caçar.
Os valles, largos e limpos de mat-
to na sua maior parte, são, como to-
dos sabem., o leito ou berço d'estes
terrenos. Miilhadal é o sitio quasi
plano ao lado dos pontaes ou outei-
ros, em ponto elevado, onde os guar-
dadores de gado fazem malhada ou
dormida, ao abrigo dos ventos tem-
pestuosos. Nestes logares deixa de
crescer o matto; e em consequência
dos estrumes que o gado alli depo-
sita, cresce a erva, que os coelhos
depois vêem comer.
Os outeiros, que sobresáem d ou-
tros que os cercam, denominam-se
atalaias ; e quando havia rezes, ser-
viam elles para atalaiar^ como ao
diante se dirá quando tratarmos da
caça grossa. Algumas d'estas atalaias
foram escolhidas para a collocação
de pyramides no levantamento da
carta geodésica.
Chama-se mancha a uma porção
de terreno formado de umbrias e
córgas, ordinariamente cobertas de
matto, basto e crescido, onde a caça
costuma acolher-se. E' á mancha que
os caçadores circumscrevem a batida.
Quando a caça se abriga em mat-
to, que melhor a defende do caçador
e dos cães, diz-se que se emmanchou.
'Verdi/f^al é o nome dado ao mat-
to delgado, crescido, basto e muito
verde.
Machiciros são moitas de urze
branca — tirso^ como aqui lhe cha-
mam todos os homens do campo e
os caçadores.
(lilgarejos : pequenos algares ou
furnas onde o matto cresce muito.
São geralmente formados pelas fra-
gas e depressões bruscas do terreno.
Manantio é o mesmo que manancial
Os javalis procuram, para se rebo-
carem, os manantios sempre cheios
de juncos, matto crescido, machici-
ros e carrasqueiros.
Os mattos, que mais se encontram
na serra de Serpa, são os seguintes :
estevas, sargaços, medronheiros, len-
tiscos, carrasqueiros de azinho e so-
bro, adérnos. sanu;n{nhos (arbusto,
cuja madeira, d'um amarello vivo.
dá tinta da côr do sanguej, tojos, ale-
crim, rosmaninhos, o chamado malto
do ar% e a erva arcai, muito usada
pela gente do campo para medica-
meniações.
Nos terrenos de caça miúda, como
charnecas, o matto é curto. Nos bar-
ros ou herdades vêem-se moitas, pou-
cas, de piorno, rosella e outras er-
vas; e nos montados, alguns carras-
queiros, rosellas e sargaços.
Noutros tempos, caçava se mais e
melhor. A caça era o exercicio e dis-
tracção dos remediados da fortuna,
dos ricos, (como o povo aqui designa
os que vivem dos seus rendimentos) e
constituia a diversão dos que trabalha-
vam ou viviam do seu trabalho. Para
outros era um dever do cargo que exer-
ciam e neste caso estavam os coiteiros,
os malhadeiros e os guardas ruraes.
Hoje também se caça, mas d'outro
feitio.
Toda a gente tem espingarda e vae
caçar, umas vezes por outras; mas
quem mais caça são os pobres, que
fazem d'isso, alguns, modo de vida.
O que é rarissimo, hoje, é fazerem-
se as boas e luzidas caçadas doutros
tempos, e ajuntarem-se regularmente
todos os sabbadoí, para irem caçar,
as grandes joldas ou ranchos de ca-
çadores. Antigamente realisavam-se,
em diversas epochas do anno, caça-
rias á caça grossa e á caça miúda,
as quaes eram organisadas com espe-
cial feição, conforme ao depois direi.
As herdades d'este concelho, na
sua maior parte, conheci-as ainda
cheias de carrascaes e piornaes onde
a caca ia acoitar-se. E a serra estava
•24
A TRADIÇÃO
coberta de cerrados matagaes, for-
mando compridas manchas, muito
férteis em caça grossa. Hoje, as her-
dades estão inteiramente linipas de
matios e moitas, e a serra devastada
pelas queimas. Esta circumstancia,
mas talvez mais a facilidade das via-
gens e várias outras distracções ac-
cessiveis aos que podem dispor de
meios de fortuna, é certamente a
causa de não se organisarem já,.como
outr ora, as esplendidas caçadas, em
que durante dias e semanas os caça-
dores se divertiam.
Aquellas boas e grandes caçadas
que eu conheci, e de que tantas sau-
dades tenho, enrijavam os músculos
no exercício de longas marchas e da-
vam a promptidão e a destreza no
manejo da espingarda, que se dispa-
rava com a certeza de attingir o alvo.
O caçador tem geralmente bons
pulmões e perna rija; é sóbrio; go-
sa saúde ; e habitua-se a soffrer a
fome e a sede, por longas horas, e a
dormir em qualquer parte. Respiran-
do, á farta, o magnifico ar puro dos
campos, tão cheio do aroma das Ho-
res e dos arbustos, o caçador come
bem, e digere optimamente devido ás
finíssimas aguas da serra, muitas das
quaes são férreas.
Com a espingarda, em que plena-
mente confia, posta ao hombro, —
polvarinhos bem aprovisionados, —
um pouco de pão com qualquer con-
ducto dentro da mochila, — e acom-
panhado do seu cão, fiel companhei-
ro, — o caçador não teme nada! Per-
corre sem medo as grandes serranias,
parecendo-lhe ser o rei doestas para-
gens, e dorme sem a mais leve preoc-
cupação em qualquer ponto dos ex-
tensos mattagaes.
N'estes sitios, onde não havia nem
ainda ha escolas de gymnastica, nem
de tiro, a caça substituía esses exer-
cícios e creio que com vantagem,
principalmente na mocidade, sendo
aliás muito proveitosa para a saúde
em todas as edades.
GS lYEJOSS
(Contínua.)
A. de Mi:i.I.O BREfNSR.
ESTAMOS chegados á época do an-
no em que elles apparecem, os
avejões. . . Em que elles apparecem é
um modo de dizer, porque os ave-
jÕes, conforme o povo os imagina,
nunca apparecem, nem apparecerão
jamais. No entanto ha sempre quem
os ve]a^ quem lhes fuja, quem suc-
cumba ouvindo os seus rugidos mys-
teriosos, quem fique Q\lé.cúco perante
os lampejos da sua chamma, outras
vezes perante o seu aspecto horrendo
e trágico ; — mas tudo isso, resultado
d'uma illusão ruim, d'uma espécie
d'insania devida ao meio imbecilisa-
dor em que essa pobre gente vive . . .
— Aqui é um bando de cretinos,
estarrecidos de medo porque todas
as noites, á mesma hora, vêem pas-
sar uma enorme figura alvejante, que
arremessa pedregulhos como uma
funda ; além é um bairro inteiro alar-
mado porque todas as noites passam
gemendo, sobre os telhados das ca-
sas, duas brancas figuras esguias...
talvez dois homens gigantescos e ma-
gros, vestidos de branco, ou em rou-
pas menores; acolá é uma família in-
teira, afflictissima, por fim definhada
e cadavérica, porque todas as noites
o prédio lhe abana como em occa-
síão de terramoto, ameaçando cahir,
submergindo a todos debaixo das suas
temerosas ruinas... E muitos casos
mais, que não vale a pena enumerar
— sombra espessa da tradição ins-
ciente, resquícios d'uma educação cri-
minosa, producto venenoso d um pas-
sado sombrio!
E vejam isto, que é o que mais
espanta : Pessoas engravatadas e de-
centes frequentam estas diversões,
quero dizer, accorrem a estes espec-
táculos tristíssimos e symptomaticos,
não aconselhando juízo aos ludibria-
dos, mas incorporando-se como au-
xiliares sinceros — aqui para evitarem
as pedradas da funda... que nunca
existiu ; além para darem á prisão os
homens — phantasmas que passeiam.
A TRADIÇÃO
2õ
o)
'^^^£:
c^j^eioj^Ei^o yitu^^h
II
Carmesita, Carmesita
Ok/wô*"^
(DESCANTE)
^(d1í>J[(5^'
f
26
A TRADIÇÃO
gemendo, sobre os tectos das casas . . .
sem quebra duma única telha ; acolá
para ampararem os prédios sacudi-
dos por mão desconhecida. . . e tão
desconhecida que ninguém jamais a
sentiu ou a enxergou ; finalmente
«para rercm com os seus próprios
olhos» dizem elles. . . que tanto pode
a acção deletéria do meio I
O' tradição, tradição ! com que pre-
ciso cuidado tem de ser feita a tua
escripia (ja não digo — escolha) —
mescla de trigo e joio que dá vida, e
mata, conforme o exemplo é levan-
tado ou baixo, verdadeiro ou falso,
decoroso ou vil I Mineiros deste mi-
nério que se não cava; beneméritos
desta campanha intellectual que tem
por fim resuscitar o passado para o
comparar com o presente : muito cui-
dado, pois I Não occulteis nada...
Saber, saber — eis o grande anceio
das almas! Portanto — critério, opi-
nião individualista, isto é, a consciên-
cia do escriptor — que não fique no
fundo do tinteiro... E na maneira
de dizer é que está, muitas vezes,
tudo : a luz ou a treva, o bem ou o
mal, a verdade ou o erro.
Quando eu era rapaz e que fre-
quentava de noite a rua em pergunta
d'amôres. . . tantas vezes apenas ima-
ginados! um modesto chale-manta
que eu tinha, claro como a tradicio-
nal vestidura dos avcjões, fez-me pro-
tagonista de scenas hilariantes, e al-
guns sustos me acarretou também, a
pobre cobertura inoífensiva, quasi
tão branca como a consciência cl'um
justo: Umas vezes eram os habitan-
tes do sitio, amedrontados, fechando
estrepitosamente as portas, ou os pos-
tigos, das respectivas casas dhabita-
ção; outras, gente fugindo e gritan-
do : lAIém vem ellel além vem elle !»;
muitas outras, sentindo que corriam
para mim alguns homens armados,
com espingardas ou espadas em po-
sições ameaçadoras, bradando roucos
de cólera e medo : — que fizesse alto,
que fizesse alio I Recordo o seguinte
caso cómico, succedido comigo ha
annos, que dá bem a idéa do que
por aqui vai ainda, ácêrca da tal pa-
tacoáda dos avejões :
Era meia noite. . . {e o sói vaiava^
não ! ) e a lua, deslisando no azul do
ceu, espalhava uma doce claridade
toda cheia de mysterio, que até,
parece, fazia sonhar a gente. . . Noite
d'amores ! Por isto talvez, por ódio
talvez, cães ladravam e mordiam-se,
de pêllo hirsuto e dentadura hostil,
produzindo um d'esses sussurros de
tom sinistro, que, a horas mortas,
faz sobresaltar as almas dos maus e
dos ingénuos. Eu passava ; e como
nunca, até hoje, a minha consciência
me mandou precaver contra o des-
conhecido, passava, como sempre,
sem arma de fogo para aggredir, sem
um pedaço de ferro para me defen-
der ; por outra — como ia munido,
apenas, da minha bengalita e me vi
diante d'aquella canzoada de quei-
xo á solta, recorri a um pedregulho
qualquer em que topei, e arremessei-
o ao primeiro digitigrado que, furio-
samente, se me atirou ás pernas...
Que fui eu fazer ?
Era em uma praça da povoação,
extensa e arborisada. Uma das suas
faces lateraes era constituída pela
frontaria d'enorme prédio, e respec-
tivo quintal ; e, adiante das paredes
d'este, como que pondo uma nódoa
de demarcação no bello recinto da
praça, um velho alpendre de ferra-
dor. Em o primeiro andar do prédio
fora installada uma sociedade philar-
monica. Pois foi rente da porta d'en-
trada d'este edificio, que passou, zum-
bindo e aos galões pela calçada, o
pedregulho atraz referido. Estávamos
então no apogeu d'uma ridicula ne-
vróse do medo dos avejões. . . E pa-
rece que vinha a sair um dos mú-
sicos que, possuido de susto precon-
cebido, e também da realidade pal-
pável da pedra faiscante, recuou e
fugiu pela escada acima, alarmando
15 ou 20 sócios com os seus gritos
sinceros e mais ainda com a pallidez
do seu rosto apavorado. Não havia
dúvida : doesta vez era elle !
A TRADIÇÃO
27
Correram todos as jancllas para
se desenganarem. «Lá 'stá, Ia 'stá !»
diziam. Depois fechavam estrepito-
samente I tornavam a abrir I torna-
vam a fechar. . . Doidos varridos ! --
Notc-se : eu ainda não tinha compre-
hendido. Kspcrei mais uns segundos,
e marchei ao meu destino, sem sa-
ber explicar a mim mesmo, é certo,
o alvoroço que notara e os gritos
abafados que ouvira. . .
— Ao outro dia. . . era um faliató-
rio de mil diabos ! Numa repartição
publica, em que entrei, fui lecebido
por estas exclamações triíimplhvitcs:
u Então, não lhe diziamos nós ? Ainda
negará ? ainda duvidará ? Viu-se hon-
tem ! Muita gente o viu I Ninguém
se atreva a negal-o, agora ! Kra meia
noite em ponto. . . As pedras ferviam
naquellas janellas da sociedade. Ha
la buracos que lhe cabem punhos !
E sumiu-se como por encanto ! Pa-
rece que se abriu o chão com ellc».
f^u nem pestanejava.
Mais calmos, contaram-me então
que o velho continuo, á frente da
mocidade frequentadora da qssocia-
ção — aquelle de clavina, e estes mu-
nidos de toda a sorte darmas, desde
a pistola mais ferrugenta até á es-
pada mais inglória — se dirigiram ao
sitio onde eu estivera, gastando quar-
tos dhora nessa arriscada pesquisa,
e acabando por assaltar o alpendre,
onde suppunham o avejão deitado ao
comprido atraz do banco de ferra-
dor. . . Ainda se lhes arrepiavam os
cabellos ao contarem isto I
\'idigueira.
(Conclue.)
FEDRO COVAS.
P.IMAS J^OPULAI^ES
— Licença peço, menina,
Licença vos peço inteira
Para colher uma rosa
l)'essa tão fresca roseira.
— A licença, eu vol-a dou
Mais a Scnh<fra da Guia.
l)izci-mc, senhor mancebo,
Veio por alguma via ?
— A via por que aqui venho
Eu lh'a digo na verdade :
Venho para p.issar tempo,
Que é coisa da mocidade.
— Se c coisa da mocidade,
l)i/ei-me, amor do bem quVer
Sabe cantar ou tocar?
Sabe ler ou escrever?
— Não sei ler nem escrever,
K nem sei tocar viola,
Mas espero de apprender,
Menina, na vossa escola.
— Escola, se é qu'eu a tenho,
N'ella não ha-de apprender*
Não tem senso nem memoria
Para n'ella saber ler.
— Eu cuidei, minha menina,
Que vós me quizesseis mais. ,
— Muito vos quero, m;incebo,
Mas é bom que já marchais.
— Tenho-vos querido immenso,
Com alma e do coração,
Mas a rosa que aqui está
Não lhe haveis de pol-a mão.
— Se lhe não pozer a mão
Não hei-de viver comvosco;
Mas em 'star á vossa vista,
Menina, tenho bom gosto !
— Se tendes esse bom gosto,
Desgostai, por vida nossa;
Esta rosa que aqui esta
E' d'outro, que não e vossa.
— Se é d'outro, que não é minha,
Talvez não tenha de o ser. . .
. . Menina, diga a seus pães
Que a mandem arreceber.
— Isso é que eu lhe não direi,
Eram razões escusadas ;
Meninas de quinze annos
Não sabem governar casa.
— Meninas de quinze annos
Governam casa e marido.
Assim fareis vós, menina.
Quando casares commigo-
— 'Stá bem dita essa razão.
Vós, mancebo, a dissesteis;
Mas alem 'slá o caminho,
Voltae pelo que viesteis.
— O caminho que atem 'stá,
Bem o estou vendo d"aqui,
Mas por elle nunca irei
Sem a rosa a par de mim.
— A rosa não levará
Porque ella não quererá;
Mas vinde cá outra vez,
Que a resposta levará.
— Outra vez é que eu não venho
A gastar solas de balde;
Não quero amores á força
Nem contra a sua vontade.
— Vinde, amorinhos humanos:
Namorei os vossos olhos
Da edade de quinze annos.
— Vinde, amor da caridade :
Namorei os vossos olhos
Sendo elles da mesma edade.
(Da tradição oral, em Serpa).
JOÃO VAREIíXiA.
MODAS-ESTRlIilLlIOS ALEIITEJANAS
Carmesita, Carmesita,
Carmesita da lembrança!
Anda, vem dançar ao meio
Uma linda contradança !
Uma linda contradança,
Anda, vem dançar ao meio !
Carmesita, Carmesita,
Dança, não tenhas receio.
M. DIAS NUN£S.
LENDAS & ROMANCES
(Recolhidos da tradiçSo oral na província do AlemtejoJ
D. LEONARDA
(I.* v.Triante do romance Bella Infanta) *
Estando D. Leonarda,
No seu jardim assentada.
Penteando o seu cabello
Com pentes d'ouro e prata,
Deitou os olhos ao mar
E viu vir uma grande armada.
O capitão que vem n'ella
Tral-a muito bem guiada.
— Dizei-me lá, capitanos,
Dizei-me pela vossa alma,
Se esses amores que eu tinha
Vêem lá na vossa armada.
— Esses amores, senhora,
La os vi morrer na guerra,
A mais pequena facada
Era a cabeça cortada.
— Ai de mim ! triste viuva !
Triste viuva, coitada !
— O que deras, vós, senhora,
A quem vTo trouxera aqui ?
— As telhas do meu telhado
Que são de ouro e marfim.
— Não quero as vossas telhas,
Não as pretendo p'ra mim,
Sou soldado, vou á guerra.
Não pretendo o estar aqui.
— De três moinhos que tenho
Dar-vos-hei o mais gentil:
Um móe cravo, outro cannela.
Outro moe trigo anafil.
— Não quero os vossos moinhos,
Não os pretendo pVa mim,
Sou soldado, vou á guerra.
Não pretendo estar aqui.
O que deras vós, senhora,
A quem vTo trouxera aqui ?
— De três filhas que tenho
Dar-vos-hei a mais gentil,
Uma metterei-a freira,
Outra fica para mim.
— Não quero aí vossas filhas,
Não as pretendo p'ra mim,
Sou soldado, vou á guerra.
Não pretendo o estar aqui.
O que deras, vós, senhora,
A quem vTo trouxera aqui .''
— Não tenho mais que vos dar,
Nem vós mais que me pedir.
— Senhora, podieis dar
Esse corpo tão gentil.
— Cavalleiro que isso pede
Precisa ser arrastado
Ao rabo do meu cavallo,
Em redor do meu jardim ;
1 O romance Hella Infanta foi publicado no ultimo
numero da Tradição de yy.
A TRADIÇÃO
2y
Desçiim criailos abaixo,
Venham fa/el-o assim.
— Dcixcm-se estar lá, criados,
Não sejam tão bem mandados,
Que esse pão que estão comendo
Eu bem lh'o tenho ganhado,
l.embrae-vos ó vos, senhora,
Quem comvosco repartiu
Um annel de sete pedras ?
Mostrae-me a vossa ametade,
Que a minha, eil-a aqui.
Villa tíoim.
AI, TRISTE DE MIM, VIUVA
(2 • variante do romance 'Uella Infanta)
— Onde vaes, ó Isabel,
Onde vaes assim, viuvada ?
— Vou contar á Viriíem Santa
Minha vida malfadada ;
Ai, triste de mim, viuva.
Ai, triste de mim, coitada !
Com ires tilhas que eu tenho,
Sem nenhuma ser casada !
Virgem Santa, Virgem Santa,
Gavião que appareceu,
As três hlhas me roubou,
As ires rilhas me perdeu...
Ai, triste de mim, viuva,
Ai, triste de mim, coitada!
De ires filhas que eu lenho,
E nenhuma bem casada !
O marido me abalou,
E na guerra me morreu. . .
Estas noticias me trouxe
Um compadre d'elle e meu.
Ai, triste de mim, viuva.
Ai, triste de mim, coitada !
Marido e rilhas que linha,
Agora estou desamparada !
— Ouça lá, comadre minha,
Ouça lá, minha comadre,
Desamparada não está,
Acceite a mão do seu compadre ;
Ai, triste de ti, viuva,
Ai, triste de li, coitada !
Inda tão nova e tão linda,
E por todos desprezada.
— Vae-te d'aqui tentador,
Vae-te ávem de mau agoiro.
Zunes em redor de mim,
Como se fosses um besoiro.
Ai, triste de mim, viuva,
Ai, triste de mim, coitada!
Nem ao pé da Virgem Santa
Por este homem sou respeitada !
— Esse homem hade-le respeitar!
O' minha mulher querida,
Trago-ie aqui tuas filhas
A quem deste alma e vida ;
Eu nas guerras não morri.
Esse homem é que mentiu,
P'ra te render a ser d'elle
Com tuas filhas fugiu.
— Bemdita e louvada seja
A Virgem Sania Maria,
Que me dá os meus amores
E me enche d*alegria ;
Bemdita e louvada seja
A Virgem Santa Maria.
lilvas,
A. THOMAZ PIRES.
CONTOS ALENTEJANOS
o Ze-Valent9
ERA uma vez uma viuva, que tinha
um filho tão corajo.so que con-
tando já dczasctc annos d'edade, ain-
da não tinha encontrado coisa nenhu-
ma que lhe mettesse medo. Por isso,
na aldeia só era conhecido peio nome
de Zé-Valente.
Este rapaz era afilhado dum pa-
dre, a quem elle ajudava ú. missa.
Além disso tocava os sinos e fazia
outros serviços.
O padre e padrinho, d'uma occa-
sião, querendo experimentar até onde
chegava a valentia do afilhado, ar-
ranjou dois bonecos de palha de cen-
teio, vestiu-os de branco e poz um
na torre da egreja, agarrado ao ba-
dalo do sino, fingindo que eslava to-
cando ás almas •, o outro, no meio
da escada da torre. \í elle, embrulha-
do num lençol, poz-se á porta da
egreja, mas do lado de dentro.
O rapaz quando viu que eram ho-
ras d'ir tocar ás almas, foi para a
egreja ; e assim que abriu a porta
viu logo um vulto branco. Olhou
para o vulto branco e disse-lhe : «O'
amigo! desvia-te para o lado, que eu
quero passar, para ir tocar ás almas.»
' Toque d'almas: consiste em nove bada-
ladas, dadas no sino da freguezia, ás 8 ho-
ras da noite, d'inverno, e ás 9 horas da noite,
de verão.
30
A TRADIÇÃO
O vulto não respondeu nem se me-
cheu. O rapaz tornou a dizer-lhe que
se disviasse, para elle passar; mas o
vulto continuou na mesma. O rapaz
então, pregoulhe uma valente cachei-
rada, com uma cacheira de ferro,
que elle nunca deixava, deitando o
vulto a terra. Depois de derrubar o
vulto, subiu pela torre. Quando che-
gou ao meio das escadas, viu outro
vulto branco, e, cuidando que era o
mesmo que elle tinha derrubado á
porta da egreja, disse-lhe: «O' ladrão !
já tu aqui estás ri» E immediatamente
deu-lhe outra cacheirada. Depois con-
tinuou a subir até chegar ao cimo da
escada. Ahi, vendo um outro vulto,
e suppondo que era ainda o mesmo,
já não lhe disse nada : pegou-lhe nas
pernas e deitou-o da torre para baixo.
Em seguida, tocou ás almas e vol-
tou para casa. No outro dia foi a casa
do padrinho para ira algum mandado,
mas o padre assim que o viu, disse-
lhe : «põe-te na rua, tratante, e não
tornes mais a esta casa». O rapaz
ficou muito admirado, e, desconfian-
do que tinha sido o padrinho que lhe
tinha querido metter medo, foi para
casa e contou á mãe tudo o que lhe
tinha acontecido. Depois disse: «Mãe,
eu vou correr mundo e só volto quan-
do tiver encontrado uma coisa, que
me metta medo». E antes que a mãe
dissesse qualquer coisa, pegou na ca-
cheira e saiu.
Havia já uns poucos de dias que
elle tinha saido de casa, quando
uma tarde, quasi ao pôr do sol, che-
gou a um monte onde pediu agasa-
lho. Mas o lavrador, como não lh'o
podia dar, disse-lhe :
— «O' rapaz! tu vés aquelle monte,
que está naquella altura, no meio
das brenhas r»
— «Vejo, sim senhor» — respondeu
o rapaz.
— «Pois bem, eu não posso darte
o que me pedes, e se não queres
dormir ao frio, vai para além». Mas
acautela-te, porque dizem, que quem
lá vai, não torna.»
— «Pois fez bem em me dizer isso.
porque agora, ainda que me deixasse
aqui ficar, já eu não queria.» O la-
vrador disse depois á mulher, que
desse ao rapaz um pão, um pedaço
de toucinho, uma linguiça e uma ti-
gela de fogo, para elle fazer a ceia.
A mulher do lavrador assim fez, e o
Zé Valente, logo que chegou ao mon-
te, arranjou um braçado de lenha,
acendeu o lume, e tratou de fazer
uma friginada (fritada) com a carne
que levava. Assim que poz a ceia ao
lume, quando elle ouve uma voz vin-
da de cima da chaminé, dizendo :
«ái que caio... ái que caio. .. » Zé
Valente, ouvindo isto, pegou logo na
cacheira \ olhou para cima e disse :
«cái á vontade, mas não me caias
em cima da friginada.» Assim que
estas palavras foram ditas, caiu um
par de pernas, a que Zé Valente não
deu cavaco, continuando a dar voltas
á carne, que estava dentro da tigela.
D'ahi a bocadinho, ouviu a mesma
voz dizendo outra vez : « ái que caio . . .
ái que caio...» Deu a mesma res-
posta, e viu cair um corpo sem ca-
beça (tronco), que se uniu ás pernas.
Zé Valente, então, disse : «Ora se
tu has de cair todo, porque não cães
logo duma vez?» Dito isto, caiu a
cabeça, que foi unir-se ao corpo, trans-
formando-se este num gigante !
O gigante, encostando os cotovêl-
los aos joelhos e a cabeça ás mãos,
disse para o Zé Valente: «Olha, eu
sou uma alma penada^ que só tinha
entrada no ceu, quando encontrasse
uma pessoa que não tivesse medo de
mim ; e como tu és essa pessoa, que-
ro recompensar-te o serviço que me
fizeste. Além, naquelle canto, está
enterrado um azado cheio de peças
de dez mil reis ; cava com esse en-
xadão e leva-o.»
(Contínua.)
iDa tradição oral — Hrinches)
ANTÓNIO AIíEXANDRINO.
A TRADIÇÃO
31
BIBhlOGKAPHIA
Bohemia de Coimbra^ por Alfredo d'
Prait. — De ha muito que a vida academic.i
coimbrã deveria ter sido estudada e descri-
pta, sobietudo no seu aspecto bohemio, tão
original e tão portuguez.
Parece incrivel, até, que similhante traba-
lho estivesse por lazer, depois do extraor-
dinário incremento que em toda a parte to-
mou, no ultimo quartel do século XIX, a
pormenorisada investigação dos velhos usos
e costumes tradicionaes subsistentes, e quan-
do é certo haverem cruzado a 'Porta Jerrea
centenas e centenas de bacharéis torma-
dos!
Foi o nosso bom amigo Alfredo de Pratt —
que não é bacharel, mas que é um distincto
escriptor da plêiade dos novos — quem, ati-
nai, veio preencher tão extranhavel lacuna,
avolumando os materiaes da ethnographia
nacional com a publicação da Bohemia de
Coimbra.
Em quasi tresentas laudas d'uma prosa
fluente e castiça, adorável de simplicidade,
descrevenos Altrcdo de Pratt o meio coim-
brão e a vida académica com todas as suas
engraçadas peripécias, os seus casos burles
cos, os seus episódios divertidos e as suas
remotas praxes escolásticas.
A Bohemia de (loii)ibra é, a todos os res-
peitos, um livro apreciabilissimo, que se lè
do principio ao Hm com o maior agrado.
Um atlectuoío aperto de mão ao seu auc-
Tor, o poeta gentil das Orvalhadas.
Schwei^erisches Archiv Jiir Uoleskskunde.
— Temos recebido com toda a regularidade
esta importante revista trimestral, superior-
mente dirigida pelo notável professor da
Universidade de Zurich, o Senhor Doutor
Ed. Hollmann-Krayer, a quem endereçá-
mos a expressão cordial do nosso agradeci-
mento.
Revue des traditions populaires. — Assim
se intitula o órgão da Société des traditions
populaires, de Paris, estabelecida no gran-
dioso Museu d'ethnographia do Trocadéro.
A esplendida revista, por cuja recepção
nos confessámos muito gratos, publica-se
mensalmente e tem como director o insigne
homem de lettras iMr. Paul Sébillot.
The Journal of American Folk-lore. —
Graças á amabilidade de Mr. William Wells
Newell, reputado ethnologo norte-ameri-
cano, secretario perpetuo da American- Folk-
lore Society^ somos lambem visitados pela
excellente publicação cujo titulo encima es-
tas linhas.
Mil agradecimentos.
Bulletin de Folk-lore. — Becebémos, no
anno findo, um fascículo do interessante bo-
letim publicado pela Société belge de Folk-
lore e sob a conspícua direcção do erudito
professor da Universidade de Bruxellas, o
Senhor Doutor Eugène Monseur.
Agradecendo, ficámos esperando, com ver-
dadeiro interesse, nova visita de tão brilhan-
te archivo de tradições populares.
Le '^Pays 'Poitevin. — W a mais bella e a
mais completa de todas as revistas ethno-
graphicas que chegam á nossa mão.
Nitidamente impresso em óptimo papel
assetinado, Le Pays^Poitevin insere substan
ciosos artigos sobre usos, costumes, archeo
logia, historia, litteratura e arte popular; in-
tercalando no texto, que occupa 24 paginas
de grande formato, Hnibsimas estampas e tre-
chos musicaes.
Acceite Mr. Gustave Bouchcr, preclaro
director da encantadora revista, enthusias-
ticos emboras, d'envolta com o testemunho
da nossa admiração.
Wallonia. — Desde 05 principios do anno
pretérito que vimos trrjcando a nossa hu-
milde revista com a revista belga Wallonia.
Das publicações ethnographicas de maior
apreço, foi Wallonia., a que primeiro nos
honrou com a sua visita.
Todo o nosso reconhecimento para o seu
illustrado director, Mr. O Colson.
Jadis. — A Mr. Ame Demeuldre, eminente
publicista e homem de sciencia belga, agra-
decemos muito penhorados a fineza que nos
dispensa permutando com a Tradição o seu
instructivo Jadis., valioso mensario d'archeo-
logia e historia.
Mélusine. — Julgamos ser esta uma das
mais antigas revistas d'ethnographia, pois
já hoje conta 23 annos de existência.
A SVIélusine., fundada por Mrs. H. Gaidoz
e E. Rolland, dois ethnologos de grande re-
putação, occupa-se em especial de assum-
ptos mythologicos, litteratura popular, tra-
dições e usos. E vè a luz em Paris, tendo por
director Mr. Henri Gaidoz, professor na
«Ecole Libre des Sciences Politiques» e di-
rector da «Ecole des Hautes Etudes».
M. DIAS NUNES.
Ami^W^Lmm^JkB
Uma cabeça d'alho
O que é aquillo, que tem dentes e não
come, e tem barbas e não é homem?
Uma estrada
Qual é a coisa que sobe e desce oiteiros,
e está sempre no mesmo sitio r
Um buraco
O que é aquillo, que quanto maior é, me-
nos pesa ?
(Da tradição oral, Brinches. )
ANTÓNIO AI.EXANDRINO.
32
A TRADIÇÃO
BULLETIN POUR LtTRANGER I BULLETIN FOR ABROAD
X,A TRADITIOÍÍ
Reme mensudle íUustiíe deitinograptiie poriuQaise
DIRECTECRS
Ljdtslau Piçarra et 'Duis 'iSjnies
REDACTION ET ADMINISTRATION
À SERPA (PORTUGAL)
Sonimaire du prfsrni numero df la Tradilíon
Texte : — Le fou de la cornue, par Sousa
Viterbo Dr.J: Setúbal — Croyances, su-
perstitions et usaees : loups-garons et
sourcières, par Arronches Junqueiro; La
chasse dans le district de Serpa (suite),
par -4. de Mello Breyner; Les fantômes,
pnr Pedro Covas; FÍimes populaires, par
João Vjrella fDr.j; Chansons, refrains
de rAlemtejo : Carmesita, Carmesita, par
M. Dias Nunes: Legendes et romnns, par
.4. Thoma- Pires: Histoires de rAlemte-
jo : o Zé-Valente, par António Alexandri-
no : Bibliographie. par M. Dias Nunes.
ninstrations : — Galerie de coutumes popu-
laires : Campanico (ouvrier rural des alen-
lours de Mertoia). — Recueil de chansons:
Carmesita, Carmesita (musique).
yOlVEMENT ETH^O(iiíU'HIÍJLE PORTLGAIS
Histoire du culte de Notre-Dame en
Portugal, par Alberto Pimentel. — La Tra-
dition est très-heureuse de pouvoir faire
part de la publication du Culte de Notre-
Dame en Portugal., ouvrage grandiose —
tout ethnographique — du célebre écrivain
Mr. Mberto Pimentel, homme de lettres três
renommé. L'ouvrage, dont nous parlons,
profondement investigateur, — ouvrage éten-
du et complexe, ouvrage de longue halei-
ne, ouvrage de Maitre — est, selon ce que
son auteur lui même a dit, «rhistoire du
pavs dans ses rapports avec les croyances
naíionales. Cest Tétude de Tàme portugai-
se, à partir de la formation de la nationalilé
jusqu'à nos jours, dans son aspiration vers
cet iJéal de chasteté et suavité suprêmes,
personifiées dans la Sainte Vierge, comme
c'etait tout naturel chez un peuple si aven-
turier et entrepreneur, si habitue aux ma-
Iheurs, si éprouvé par de terribles et péni-
bles coups.»
IJ Histoire du Culte de Notre-Dame en
Portugal est en train d'être édité par les
importants éditeurs Mrs. Guimarães, Liba-
nio & C.'% de Lisbonne.
MODiliiy illustraied review ol ponuguese etliiiography
DIRECTORS
Ladislau Piçarra and 'Dias V^unes
ÒFFICES
SERPA (PORTUGAL)
SummarT nf lhe prcsenl mimber of lhe Tradilíon
Text : — The fool of the retori, by Sousa
Viterbo (Dr.); Setúbal — Legends, su-
perstitions and traditional usages : Were-
wolves and witches, by Arronches Jun-
queiro; The shooting in the Serpa district
(continuation), by A. de Mello Breyner;
The ghosts, by Pedro Covas; Popular
rhvmes, by João Varella (Dr.); Songs
refrains from the Alemtejo : Carmesita,,
Carmesita, by M. Dias Nvnes ; Legends
and romances, by A. Thoma:^ Pires; Ta-
les from the Alemtejo : O Zé-Valente, by
António Alexandrino; Bibiiography, by
M. Dias Nunes.
niustrations : — Campanico (rural worker of
the district of Mertoia). — Musical collec-
tion : Carmesita, Carmesita (music).
THE PORTKilESE ETII\OGIiAPIIiCAL H0VEÍ1E^T
History of the worship of the Blessed
Virgen Mary in Portugal, by Alberto Pi-
mentel. — The Tradition regards with the
greatest pleasure the publishing of the His-
tory of the worship of the Blessed Virgen
Mary in Portugal^ a new and grand work
— essentially ethnographical — by the cele-
brated writer Alberto Pimentel, remarkable
ornement of the portuguese litterature. The
work, of which \ve speak, is a profound in-
vestigation, — long and complex, of great
importance, work of a Master, — being as
its author has written ; «the hystory of the
country relative to its national faith. It is
the study of the ponuguese soul, since the
formation of the nation up to the present
day, in aspiring to this ideal of supreme
chastity and siweetness, which are perso-
nificai in the Blessed Virgen Mary, as would
naturally happen to such an adventurous
and enterprising people, so visited by mis-
fortune and terrible hardships.»
The History of the worship of the Bles-
sed Virgen Mary is being edited by the im-
portant Firm of M.''" Guimarães, Libanio
and C", at Lisbon.
^iiii«> II — TV.' 3
SERPA. Março do 1000
VolllIlM' II
Ed
idilor-adminiolriídor, Joie Jeronrmo Ja Couta tiravo Je Seareirot, Ku« LtrgM, 7 e a — SKKI'A
Typ. de AJolpho Je Slenãonca u- l)uarte, Kii« do Corpo Santo, 46 e 48 — LISBOA
Kcvisln iiinisiil (rE(liiiii(|r:i|iliiii hirliiijiie/ii. Illiisliaila
Directores :-LÃI)ISLÃU PICÃHHA e li. DIAS IIUITXH
NOTAS HISTÓRICAS ACERCA DE SERPA
A primeira conquista de Serpa
I I UANDO D. Alíonso Henriques
^■^ voltou a esta nossa parte do
Alemtejo, as circumstancias eram
bem diversas do que haviam sido
nos já velhos tempos do fossado de
Ourique, ou da passageira alliança
com o moiro Ahmed-ibn-Gassi. Os
vinte annos decorridos tinham sido
bem aproveitados.
Pouco a pouco, passo a passo,
mas firmando cuidadosamente cada
um dos seus passos, elle alargara
constantemente as suas fronteiras
para o sul. Havia tomado Santarém,
no anno de 1 147, por um assalto no-
cturno de tal maneira atrevido, que
poderia parecer uma creação da len-
da se algumas fontes hisioricas não
viessem abonar as suas circumstan-
cias; e havia no mesmo anno cerca-
do e tomado Lisboa, com o auxilio
dos Cruzados do norte. Tomada Lis-
boa, e rendida Cintra sem combate,
ficava senhor de toda a margem di-
reita do Tejo; restabelecia as fron-
teiras, que já muitos annos antes,
mas provisoriamente, estabelecera o
seu avô, Affonso VL
Do outro lado do Tejo, Almada e
Palmella entregaram-se com facili
dade. Alcácer resistiu mais. Era uma
povoação celebre entre os moiros
desde tempos antigos pela sua rique-
za, pela fertilidade dos seus campos,
pelo seu commercio, pela força do
seu castello, e tanto que lhe cha-
mavam o castello por excellencia,
Al-Caçr. Como tal estava bem guar-
dada. Resistiu a um golpe de mão
similhante ao de Santarém ; mas mal
succedido, e no qual D. Afíonso Hen-
riques foi ferido e correu um grande
risco pessoal. Resistiu a dois cercos,
nos quaes, como no de Lisboa, to-
maram parte os cavalleiros cruzados.
Mas a final rendeu-se aos portugue-
zes no anno de 1 158.
Rendida Alcácer, Aflbnso Henri-
ques não parou, nem isso estava nos
seus hábitos. Parece, que logo no
anno seguinte avançou para o sul e
foi tomar Kvora e Beja. Havia con-
tado demasiado com as suas forças;
e não só as guarnições que ali dei-
xou foram obrigadas a retirar passa-
do pouco tempo, como elle próprio
soflVeu nos campos do Alemtejo, e
ás mãos dos cavalleiros almohades,
um dos maiores revezes de toda a
sua longa existência militar.
Apezar da batalha perdida no anno
de I i()i, o impulso estava dado, e as
conquistas continuaram. Circumstan-
cia notável, não eram unicamente o
rei com os seus costumados e aguer-
ridos companheiros de armas que
proseguiam n'estas conquistas; todas
34
A TRADIÇÃO
as classes tomavam agora parte na
expansão do novo reino christão. No
anno de 1162 e na noite de Santo
André apostolo, um tal Fernando
Gonçalves, seguido por um corpo de
burgueses e homens do povo, Fcr-
tunio í^ims^iluis et quibusdam ah is
picheis militibus^ assaltou e valente-
mente tomou Beja aos moiros. No
anno de i lóô, um capitão de ladroes
com a sua quadrilha, et liiíj-onibus
sociis t'///s, tomou Évora também por
surpreza. Não é talvez justo chamar
a Geraldo Sempavor um simples ca-
pitão de ladrões. Seria o chefe de
uma companhia franca, formada de
gente sem muitos escrúpulos, viven-
do fora da lei, oiitlaivs como tantos
havia por toda essa Europa da Ida-
de-media; mas conservando não só a
valentia, como o brio de verdadeiros
homens de armas. As circumstancias
da tomada de Évora devem perten-
cer á lenda; mas o facto de haver
sido realisada por Geraldo Sempavor
é histórico, e assim o considerou Ale-
xandre Herculano, tão escrupuloso
em taes assumptos.*
Estas conquistas mudavam com-
pletamente a situação, como antes
dissemos, e tornavam possível o que
nos tempos de Ourique teria sido
irrealisavel. O Alemtejo já não era o
coração da terra dos Sarracenos.
As armas christans podiam expan-
* Alexandre Herculano acceitou a façanha
de Geraldo Sempavor com certa reluctancia
(Hist. de Port.^ I, 424), e na fé unicamente
da Chronica Gothorum. Não conhecia a men-
ção de Geraldo pelos escriptores arábicos,
porque a versão de Gayangos, única de que
se podia servir, estava deploravelmente er-
rada n'esta parte. Ibn-Khaldun diz, que no
cerco posterior de Badajoz, quando Ibn-er-
Renk. (Affonso Henriques) foi preso. Ibn-
Djeranda o gallego fie galicien) fugiu para
o seu castello (Hist. des Berberes^ II, 198).
O f-aductor, De Slane (1. c), identifica com
muita perspicácia este Ibn-Djeranda com
Geraldo : a palavra galicien significava sim-
plesmente portuguez, porque os árabes cha-
maram sempre Galicia ao Portugal do nor-
te. Esta identificação de Slane e o dito de
Ibn-Khaldun são plenamente confirmados
por duas menções dos nossos velhos Chro-
dir-se com mais desafogo; e eftecti-
vamente no mesmo anno em que
Évora foi tomada, Serpa e Moura
caíram nas mãos do próprio D. Af-
fonso Henriques. Esta conquista te-
ve se decerto na conta de importan-
te, pois todos os nossos mais antigos
monumentos históricos, o Livro de
Noa, a Chronica dos Godos, o pe-
quenino Chronicon de Lamego, todos
a mencionam; e não esqueceu tam-
bém no Livro chamado do Conde
D. Ped'o, onde se diz: «Na era de
mill.e duzentos e quatro annos (anno
de II 6(3) filhou (tomou) a cidade
d'Evora e Moura e Serpa.»
Mas, se aquelles antigos registos
dos mais impoitantes successos são
concordes no facto e na data, são
também deploravelmente lacónicos.
A Chronica dos (iodos, a mais ex-
plicita, depois de mencionar a toma-
da de Évora por Geraldo Sempavor,
continua: et post paululum ipse Rex
cepit Maiiram^ Serpam^ et Alcon-
cliel, et Coluchi castrum mandauit
reedificari. . . — e o próprio Rei to-
mou Moura, Serpa e Alconchel, e
mandou restaurar o castello de Co-
ruche: de feito Coruche já fora to-
mado alguns annos antes. Entregues
unicamente a este texto, deveríamos
suppor, que AtTonso Henriques mar-
chou a travez do Alemtejo, passou o
Guadiana e tomou aquellas povoa-
nicons, que até hoje escaparam — creio — á
attenção de todos os investigadores. O Chro-
nicon conimbricense diz : Jn era MCCVI.
quinto nonas maii intrauit alcaide giraldus
badaloup. O Chronicon lamecense diz : Ge-
raldus alcaide intrauit badalloucium VI no-
nas t7iaii. Era MCCVIJ. Ha apenas uma
leve discrepância de data ; e o cerco parece
ter sido no anno de 1169, como diz o Lame-
cense — Temos pois, pelas fontes christans e
mussulmanas concordes : que Geraldo é um
personagem real e hi.storico : que era alcai-
de, seguramente de Évora, o que já diziam
os velhos historiadores portuguezes : que
foi a Badajoz com D. Afíbnso Henriques,
facto até agora não indicado. Seria interes-
sante discutir este ponto, e a luz que pode
lançar sobre o cerco de Badajoz; mas fica
apenas apontado, pois não diz respeito a
Serpa.
A TRADIÇÃO
86
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36
A TRADIÇÃO
ções. Os livros árabes, já habilmente
interpretados por Alexandre Hercu-
lano, lançam, porém, outra luz sobre
o successo.
Ibn-Çahibi ç-Çalat, escriptor árabe
contemporâneo ou quasi, diz que o
rei de Portugal surprchendeu Tru-
xillo em abril ou maio do anno de
ii6b\ Évora em setembro ou outu-
bro do mesmo anno^ Cáceres em
janeiro de 1166; e depois o castello
de Muntajech, e as povoações de
Shebenna e Jelmanyah durante a
primavera, sendo Sheberina tomada
na entrada do mez de abril.'
Ibn-Khaldum confirma em globo es-
tas noticias. Segundo elle conta, o
khalifa Abu-Yacub'' recebeu em Afri-
ca novas assustadoras da Hespanha;
avisaram-n'o de que o ininiif^o mal-
dito tinha surprehendido successiva-
mente as povoações de Truxillo, Évo-
ra, a fortaleza de Chebrina, a de
Djelmania em face de Badajoz, e a
própria Badajoz. Depois explica, que
a noticia era falsa em relação a Ba-
dajoz, pois apenas fora cercada, mas
não tomada. ^ Como se vê, os dois
escriptores árabes concordam nos fa-
ctos principaes; e devem ser exactos,
advirtindo, que elles conheciam a to-
mada de Évora, mas não as suas cir-
cumstancias, e portanto a attribuiam
ao próprio rei, como era natural. Ve-
jamos agora o que seriam as outras
povoações.
Truxillo e Cáceres são bem conhe-
cidas, e nenhuma explicação é neces-
sária a seu respeito. Jelmanyah ou
Djelmania * identifica-se seguramente
i (
* Versão de Gayangos em The hist. of the
Mohaniedam dynasties of Spain, II, 522;
veja-se também Herculano, Hist. de Portu-
gal. I, 425.
* Abd-al-Mumen, o primeiro khalifa al-
mohade, tinha morrido poucos annos antes,
e succedera-lhe seu Hlho Yucef-Abu-Yacub.
í Hist. des Berberes., II, 198.
* Estas diversas formas não significam,
que os nomes estivessem diversamente es-
criplos nos dois livros árabes; mas podem
unicamente provir de o systema de trans-
litteração dos dois traductores ser diverso, e
preferimos o de Slane ao de Gayangos.
com Juromenha; pois o nome Juris-
menia tomaria esta forma na bocca
dos moiros; e a phrase de Ibn-Khal-
dum «em face de Badajoz» se expli-
ca bem, no sentido de ficar no lado
opposto do Guadiana, embora um
pouco para baixo. Muntajech identi-
fica-se também com toda a certeza
com o castello de Montanches, entre
Cáceres e o Guadiana. ' E Sheberina
ou Chebrina identifica-se satisfacto-
riamente com Serpa. A tomada de
Serpa, segundo os documentos chris-
tãos, concorda plenamente com a de
Chebrina segundo os árabes; e os
dois nomes não são tão diversos como
á primeira vista poderia parecer.'^ Da-
remos, pois, como assente, que a for-
taleza de Chebrina era Serpa.
Posto isto, podemos, apoiados em
documentos christãos e mussulmanos,
reconstruir com um certo grau de
clareza a campanha de D. AlVonso
Henriques, que foi muitissimo mais
importante do que deixariam suspei-
tar as lacónicas referencias das nos-
sas velhas historias.
Passando pelo alto Alemtejo, ao
norte de Badajoz, a hoste poriugueza
fez uma profundíssima entrada até
Truxillo, pelas terras de entre Tejo
e Guadiana. Truxillo era uma povoa-
^ Alexandre Herculano parece identificar
Muntajech com Alconchel (I, 426) o que é
um simples lapso, porque a identificação
com Montanches é segura, e de resto já ti-
nha sido feita por Gayangos.
- A palavra Serpa., adoptada pelos árabes,
dava naturalmente Cherba : primeiro por-
que o s inicial é frequentes vezes repre-
sentado pelo chin., como em Chantarin de
Santarém, em Chant-iacub de Sant-Iago ;
segundo, porque o p falta no alphabeto árabe
e é substituido pelo b. De Cherba teriamos
Chebra por uma simples transposição de
consoantes, habitual entre moiros pouco let-
trados. Nos tempos antigos, a palavra to-
mava muitas vezes entre os christãos a for-
ma Serpia, que encontramos por exemplo
na inscripção do Marmelal do principio do
XIV século, e em vários documentos ante-
riores; e esta forma daria em árabe Che-
bria., bem próximo já de Chebrina. Indica-
mos apenas as semelhanças, deixando aos
arabistas o cuidado de resolver mais scienti-
ficamente este ponto.
A TRADIÇÃO
37
ção forte, cercada de boas muralhas,
e habitada por gente pérfida mas va-
lente, vivendo principalmente de rou-
bos c algaras em terras dos chris-
tãos '. Koi tomada, e occiípada du-
rante alguns mezes ^ I)'ali, seguiram
a Cáceres, cujos moradores não go-
savam He muito melhor reputação, e
que teve a mesma sorte. Km Cáceres
a demora foi pequena; e D. Alíonso
Henriques, descendo para o sul e to-
mando no caminho o castello de
Montanches, veiu, segundo parece,
passar atrevidamente o Cuadiana en-
tre Badajoz e Merida. (>aminhando
agora mais na direcção sudoeste, to-
mou Alconchel, Moura e depois Ser-
pa, ponto extremo meridional da sua
expedição. K' possível, que os emis-
sários de Geraldo Sempavor lhe vies-
sem sair ao caminho, dizendo lhe
como Kvora ficava tomada e posta á
sua obediência, e pedindo-lhe ao mes-
mo tempo perdão das passadas cul-
pas. Isto completava o triumpho do
rei, e dava-lhe mais segurança por
aquelle lado. Passando, pois, de no-
vo o Guadiana, veiu um pouco ao
norte tomar Juromenha ou Djelma-
nía, que segundo uma das narrativas
árabes parece ter sido a ultima con-
quista.
Truxillo, Cáceres e Montanches fo-
ram sem duvida abandonadas depois
de tomadas, nem era possivel pensar
em as conservar a tanta distancia;
mas Alconchel, Moura, Serpa e Ju-
romenha ficaram por então na posse
dos portugueses.
Tomando a expedição em globo,
vê-se que traçou um enorme semi-
círculo em volta de Badajoz. K' licito
imaginar, que o plano de se apode-
rar d'aquella praça já estava delinea-
* Informações de Edrisi na sua Geogra-
phia. D'esta Geographia, e das versões que
existem ao diante falaremos detidamente.
2 Isto deduz-se das datas: tomada de
Truxillo em abril-maio, de Cáceres em ja-
neiro do anno seguinte. E, como as duas lo-
calidades são bastante próximas, segue-se
que houve na primeira uma demora de me-
zes.
do no animo do rei ; e que esta cam-
panha foi como um reconhecimento
em força, uma tentativa para de
algum modo isolar a poderosa ca-
pital do Gharb mussulmano.
Procurámos dar ideia das opera-
ções de guerra, em que foi envolvida
a conquista de Serpa. O que se pode
ter como certo, é que no anno de
IH»»!, logo em abril segundo os ára-
bes, o pendão do fundador da Mo-
narchia foi hasteado sobre os mu-
ros da fortaleza de Serpa ou Che-
brína '.
Quanto tempo esteve Serpa na pos-
se dos portugueses, c ponto sobre o
qual não temos — ou pelo menos eu
não conheço — noticia alguma segu-
ra. Persuadem-nos, porém, os aconte-
cimentos posteriores, que esse perío-
do foi curto — provavelmente alguns
annos, mas poucos *,
Três annos depois da tomada de
Serpa leve logar o desgraçado cerco
de Badajoz, no qual, como todos sa-
bem, Atíonso Henriques quebrou a
perna e ficou prisioneiro de seu gen-
ro, Fernando II de Leão. Kste desas-
tre physico e moral abateu profunda-
mente o grande homem. Dillicilmente
depois podia montar a cavallo; e o
' As datas árabes e chrisians podem sus-
citar algumas duvidas. Assim o escriptor
árabe coiloca a tomada de Évora no anno
de iMO, e os nossos unanimemente no de
1 i66. Alexandre Herculano propoz um sys-
tema de conciliação que me não parece pro-
vável, e preHro suppor n'esta parte um erro
do árabe. Quanto á tomada de Serpa em
abril e depois da de Évora, parece-me o fa-
cto acceitavel. Desconhecemos a data exac-
cta da tomada de Évora, e apenas por um
documento particular (citado no Fllucidario)
se sabe, que já estava na posse dos chris-
tãos em maio de i i6ô. Admittindo que teve
logar em janeiro ou fevereiro, seria a de
Serpa pouco depois, post paululum como
diz a Chronica dos Godos.
- Em alguns livros modernos se diz, que
Serpa foi tomada, e logo abandonada; mas
não sei em que auctoridade esta noticia se
funda. Pelo contrario, sabendo nós que Al-
conchel estava ainda na posse dos christãos
no anno de 1171; é natural q-e estes con-
servassem também Moura e Serpa, pelo me-
nos durante aquelles cinco annos.
38
A TRADIÇÃO
seu animoso espirito não recuperou
o vigor e elasticidade dos tempos an-
teriores. Faltou, pois, aos portugue-
ses a tirme vontade que os guiava,
e o braço forte que lhes deu sempre
o exemplo nas occasiões de maior
risco. De outro lado, o poder dos
mussulmanos augmentou. A auctori-
dade dos khalifas da seita almohade
havia sopeado um pouco a anarchia
e indisciplina dos moiros da Hes-
panha, dando-lhes mais unidade de
acção. De ambos os factos resultou,
que nos últimos annos do reinado de
D. Alíonso Henriques as fronteiras
de Portugal no Alemtejo não só se
não alargaram, como se restringiram
sensivelmente.
Houve, na verdade, um glorioso
clarão — a expedição, mais brilhante
talvez que útil, mas incontestavel-
mente muito brilhante, do herdeiro
do throno até Sevilha. No anno de
1178, o moço D. Sancho atravessou
a Hespanha, cortou pelos desfiladei-
ros da Serra Morena, e foi ás portas
de Sevilha tomar o arrabalde então,
e ainda hoje, chamado Triana. Dali,
não sendo possivel nem tentar a en-
trada de Sevilha, parece ter voltado
por Niebla, vindo passar aos vaus
do Guadiana em direcção a Beja\
Passou, pois, não longe de Serpa,
que então ainda seria de christãos ',
ou talvez já tivesse voltado á posse
dos moiros.
De facto, antes da expedição do
infante D. Sancho, houve uma gran-
de entrada de moiros nas terras de
' Terceira parte da Monarchia Lusitana^
L." XI, cap. 27."
- Díl;o expressamente de christãos, e não
de portugueses, porque sobre isto po-Je ha-
ver algumas duvidas. No concerto celebra-
do, depois do desastre de Badajoz, entre
AtTonso I de Portugal e Fernando II de
Lefio, foram restituidos a este alguns castel-
los do norte ; e alguns dos tomados ultima-
mente na margem esquerda do Guadiana.
Isto é claro relativamente a Alconchel, pois
Fernando II e sua mulher D. Urraca (a filha
de Affonso Henriques) doaram aquelle cas-
tello á ordem de Santiago e ao seu mestre
D. Pedro Fernandes no anno de 1171. (A.
Portugal. No anno de 1 171,0 kha-
lifa Abu-Yacub veiu pôr cerco a San-
tarém, onde estava o velho D. Af-
fonso Henriques, e para onde mar-
chou em seu soccorro o rei de Leão,
obrigando os moiros a retirar \ E'
perfeitamente possivel que logo n'es-
te anno, na marcha do exercito mus-
sulmano a travez do Alemteio, alguns
dos castellos e povoações ultimamen-
te tomados pelos portugueses, entre
elles talvez Serpa, voltassem ao po-
der dos moiros.
No de 1180', estando o khalifa
em Africa, um dos seus generaes,
chamado Mohammed-ibn-Yucef-ibn-
Uanudin, veiu de Sevilha cercar
Évora. Esta praça resistiu pela for-
ça das suas muralhas e da sua alcá-
çova; e ainda mais talvez pela va-
lentia dos freires de Évora — depois
chamados de Aviz — -que a guarne-
ciam. Os moiros retiraram, tendo
devastado os campos em volta, «e to-
mado de assalto alguns castellos da
visinhança» '\ E' n"este anno, que, a
meu ver, se pode collocar com mais
segurança a perda de Serpa Aquel-
les castellos seriam alguns dos ulti-
mamente conquistados, Juromenha,
Moura, Serpa, talvez Beja, que esta-
vam em condições muito diversas de
Évora, mal fort^ificarlos, mal guarne-
cidos, e incapazes de grande resis-
tência. Relativamente a Moura e Ser-
pa o facto torna-se fanto mais prová-
vel, quanto estas povoações estavam
exactamente no caminho de Sevilha
para Eivora; e quanto os moiros se
Herculano, Hist. de Porttuf;al^ I, 436 ; Sala"
zar y Castro, Hist. de la casa de Lara, ly
XVI, cap, 2). Teria Serpa a mesma sorte e
passaria também para Leáo ? Persuado-me
que não, por motivos que talvez ao deante
tenham cabimento n'estas notas. Em todo o
caso a duvida ahi tica exposta.
' Este facto consta sobretudo das histo-
rias christans ; veja-se A. Herculano, Hist.
de Portugal^ 1, 4J39.
^ Ou de 1179; o escriptor árabe só diz,
que isto se passou pouco antes de 1181.
•' Palavras de Ibn-Khaldun, Hist. des Ber-
beres., II, 204.
A TRADIÇÃO
89
haviam então solidamente estabeleci-
do nas proximidades '.
Finalmente, no anno de 11X4, o
kiialifa voltou á Hcspanha com um
colossal exercito africano; juntou lhe
em Sevilha as tropas andaluzas; e
foi segunda vez passar o Tejo e cer-
car Santarém, onde morreu, como é
sabido. Se alguma pequena povoação
ficava ainda na posse dos portugue-
ses por e^^te nosso lado, seguiameute
se perd^^ria então.
Km resumo, devemos collocar a
perda de Serpa n'aquelle periodo
(1 171-1 184), e com mais probabilida-
de no anno de iiíSo. Tomada por
AlVonso Henriques no de i 1 <)('), e re-
conquistada passados quatorze an-
nos por Ibn-l^anudin, ou talvez mes-
mo antes, a nossa villa apenas passou
pelas mãos dos portugueses, que mal
teriam tempo para a modificar.
Torna se assim pouco acceitavel a
opinião corrente, de que o primeiro
rei de Portugal mandasse construir
alguma parte das muralhas actuaes.
Como ao deante veremos, essas mu-
ralhas, mesmo a parte mais antiga
d'ellas, devem ser bastante posterio-
res.
CONDE DE FICAI.HO.
O SENHOR SETE
COMEÇO a dar hoje n'estas do-
ces paginas da Tradição tudo
quanto a minha paciência para coisas
do povo tem colligido, — aqui, alem,
acolá — em que entre o algarismo 7, que
é, como se sabe, muito do agrado po-
pular. Começarei pelas quadras que
estão n'esse caso, incluindo, está bem
' O castello de Mertola, que já antes era
muito forte, foi augmentado com uma gran-
de torre por este tempo, acabando-se a obra
no anno de 1171, sob a direcção do alcaide
Abu-Bekr, e por ordem de Abu-Hafs; Con-
de, Parte III, cap, 48.»
de ver, as que se referem ao setestrel-
lo; — passarei depois aos díctados, ri-
fões, parlendas e phrases feitas, em
que esse algarismo ligure também; —
aos responsos, esconjuros, orações e
adivinhas, em que o mesmo se dê;
e por ultimo (e quem sabe lá se o
mundo se não acanará primeiro!) ao
que também respiguei de setes na lit-
teratura popular já colligida : — xaca-
ras, romances, soláos, contos, etc,
etc.
Vamos lá, pois, com Deus, que te-
mos muito que andar, — e o que vale
é que não pode o caminho ser mais
bonito I
Comecemos pelas quadras:
i.á te mandei um raniinlio
De sete rosas iguaes,
No meio ia um suspiro
Do muito que me Icmbraes.
Escrevi-te sete cartas
(^om letra miúda e grave,'
Para que os nossos intentos
Se aviem com brevidade.
Passei rente ao alecrim,
Sete folhas lhe colhi.
Eram os sete sentidos^
Que eu tinha postos em ti.
Abana, casaca, abana.
Abana, não tenhas dó ;
Sele casacas eu tenho
Em casa da minha avó.
I Letra firove, quer dizer letr.n fina, delicada, bem fei-
ta. Na minha terra, que é Mogadouro na província de
Traz-os-.Montes, diz-se de um homem bem trajado —
«um senhor prave»:
— Esta ali um senhor crave !
F, também ha o «fallar g^avc»,— que é como quem
d z, o f ilUr a muda das cidades:
— Falia prave I
Opposto a "fallar cliarron — que é o fallar cerrado e
grosseiro de certas aldeias La a palavra cAarro também
significa simples, fácil, comesinho :
— Isso é charro ! Isso mette-se peloii olhos !
2 A's vezes, como aqui, o Senhor Sete costa de metter
a sua foice em ceara alheia . . Os sentidos toda a cente
sabe que são cinco : ver, ouvir, cheirar, gostar e apalpar.
Ha quem tenha um se.vio — o Jo belto — mas isso é raro.
Também as obras ác Misericórdia diz a Cartilha que são
quatorze (duas vezes sete: sete corporaes e sete espiri-
tuaesr. mas f i .lulio Diniz, se me i ão engano, que disse
que havia mais uma: — Casar os que se amam.
... E essa então, é a rainha das Obras de Misericór-
dia !
40
A TRADIÇÃO
Eu tenho sete casacas,
Todas ellas de filó,
Fechadas a sete chaves
Em casa da minha avó.
Eu tenho sete casacas
Em casa da minha avó ;
Abana, casaca, abana.
Abana não tenhas dó.
Quatro com mais tres são sete,
Meu amor, já sei contar,
Já me enganaste uma vez,
Não me tornas a enganar.
Sete silvas em meu peito
Fizeram 'ma sociedade.
Todas sete me prenderam,
Só uma foi de vontade.
Eu tenho sete lencinhos.
Todos sete são de linho ;
Eu possuo sete amores.
Mas só um é o meu bemsinho.
Algum dia por te vêr
Saltava sete quintaes.
Agora por te não vêr
Salto vinte, que são mais.
Eu tenho sete coletes
Todos elles bem talhados.
Eu possuo sete amores
E trago seis enganados.
Sete e sete são quatorze,
São duas contas iguaes,
As mocinhas de servir
São tão boas como as mais.
Marianna diz que tem
Sete saias de balão,
Que lhe deu um caixeirinho
Da gaveta do patrão.
Marianna diz que tem
Sete saias de cambraia,
Marianna mentirosa
Que não tem nenhuma saia!
Marianna diz que tem
Sete saias de velludo,
Rompe, rompe, Marianna,
Que o dinheiro paga tudo.
Marianna diz que tem
Sete saias de hló,
Marianna mentirosa
Que não tens nenhuma só !
Marianna diz que tem
Sete saias de setim.
Que lh'ns deu um caixeirinho
A' saida do jardim.
Sete palavras me deste,
Outras sete me quer's dar ;
Com ellas tu me enganaste.
Com ellas me quer's enganar.
Tres vezes nove vinte-sete,
Mais amores tenho eu,
Se mais quizesse mais tmha.
Foi fado que Deus me deu.
Algum dia por te ver
Saltava sete quintaes,
Agora nem um nem dois.
Nem uma passada a mais.
E's sete vezes ingrato,
Ingrato e enganador.
Sete vezes me enganaste
Com palavrinhas d'amor.
Sete raios tem o sol,
Heide-me lá ir sentar,
Para de lá perceber
A quem tu queres amar.
Eu tenho no meu jardim
Sete rosas em botão.
Para dar ao meu amor
Quando fôr ao dar da mão.
Em sete pontas do céo
Hei-de mandar escrever :
Só ás estrellas confio
Amisade e bem-querer.
A morte tem sete anneis.
Que a todo o mundo brindou,
E foi sempre tão cruel,
Que até a Christo matou.
Fui a sete juramentos,
Sempre jurei a verdade,
Se eu te quero bem ou não,
Deus do céo é quem no sabe.
A TRADIÇÃO
41
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Kariãnnita vem commigo
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'wvvi ll : íí, wa^.
A^ . Ki^/^ \uM) Ivoi C«/t !
(CHOr<EOGRAPHICA)
42
A TRADIÇÃO
Não te quero para mim,
D'ahi podes descançar.
Nem que tu dos sete voltas
Comido has-de casar.
Sou a mãe de sete rosas
Que tenho no meu caixão ;
Escolhe entre ellas todas,
Tens aqora occasião.
Kv. tenho sete laranjas
F.scondidas n'um bahu.
Para dar ao meu amor,
Queira Deus não sejas tu.
Sete rtor's de qualidade
Eu tenho no meu jardim,
A mais linda d'ellas todas
Tenho-a guardada p'ra ti.
Sete penas, doce encanto.
Por ti softre o meu degredo,
Ainda que a morte venha
Hei-de-te amar sem ter medo.
Dizeis que não pode ser
Ter o amor repartido.
Eu bebo em sete fontes,
Só n'uma tenho o sentido.
As grades do limoeiro
São sete, que eu as contei,
Três de ferro, três de bronze
E uma d'oiro, que é do rei.
Sete vezes fui casado.
Sete mulher's conheci ;
Pois, amor da minha alma,
Inda estou como nasci.
Quem me dera vêr meu bem,
Trinta dias cada mez,
Sete dias na semana,
A cada instante uma vez.
lá me davam dez moedas
E sete almudes d'azeite,
P'ra casar com uma donzella
Que ha dez annos que dá leite.
AS BOAS-F ESTAS
(Contini!.-)
TRINDADE COELHO.
Hs festividades do Natal e Pas-
choa foram as únicas entre
nós que receberam o qualificativo de
boas^ de que se conserva ainda hoje
um resto na phrase boas-fcsías^ não
só no sentido de as desejar ou dar
mas também na denominação dos
presentes que se ofterecem naquelles
dois periodos do anno Não pode,
ser precisado donde veiu aquella de-
nominação, que é innegavelmente an-
tiga, no emtanto a sexta feira de pai-
xão e o sabbado de alleluia são ex-
pressos nalguns documentos não-por-
tuguezes respectivamente por: /ena
botia sexta e feria bona scpíima '.
2. Dar boas-festas é uma expres-
são similar á de dar as janeiras, os
reis ou as feiras; assim como se dão
ou desejam simplesmente as boas-
festas por occasião das celebrações
annuaes do nascimento e morte de
Christo {festa paschalia)^ também no
i.° de janeiro se dão a?, janeiras^ em
6 do mesmo mez os reis^ e por oc-
casião de certos mercados annuaes
dão os padrinhos aos seus afilhados
as feiras. E quando ha esquecimento,
os pretendentes fazem se muitas ve-
zes lembrar. E' o que se diz pedir
as janeiras, os reis, as feiras e, prin-
cipalmente nas cidades, as boas-fes-
tas.
Modernamente e nos grandes cen-
tros é o uso de dar boas-festas uma
convenção graciosa. A pessoa que
pretende obsequiar outra com uma
otíerta por qualquer razão, espera
até estes tempos para, acobertada
pelo costume corrente, agradecer as-
sim um favor ou insinuar-se no ani-
mo de alguém mais ou menos insen-
sivelmente. Quando não ha razão de
maior peso para olíerecimcnto re-
1 Também se denomina o novo anno Anno
b'>m e se desejam bons-annos e dão, mas
n'este ultimo caso c- de uso não lhes juntar
presente. Está popularmente contundido com
as janeiras.
A TRADIÇÃO
4â
corre-sc ao .symbolismo de um bi-
lhete, muitas vezes chromoliihogra-
phado, mormente entre senhoras e
creanças.
."». Tanto pelo natal como paschoa
peicorrem as ruas de Lisboa bandos
famélicos de perus guardados por
indivíduos vindos de dezenas de lé-
guas unicamente para olíereccr á ven-
da publica nos largos algum casal
d'aquellas aves, K' este habitualmente
o presente de boas-festas que ma-
nos estorço do pensamento exige.
OlVerecer perus pelas festas mencio-
nadas não é uso contemporâneo, já
no século XVIII e talvez no X\'II exis-
tia como adeante veremos.
4. E' nestas epochas que ha no
nosso povo, especialmente das cida-
des, uma explosão terrível do seu vi-
cio fundamental, o da mendicidade
mais ou menos elegante. Não ha
meio que não empregue qualquer
classe trabalhadora para obter um
qiíãnitnn de espórtulas. Os barbeiros
adquirem caixas de musica com que
destemperam os tympanos dos pa-
cientes a quem vão desbravando as
faces, os distribuidores dos jornaes
envião versos lamuriosos impressos
em papel de côr, e os carteiros, tele-
graphisias e guardas-nocturnosegual-
mente se não esquecem tanto de en-
tregar o seu próprio cartão desejando
muito respeitosamente boas-festas, co-
mo também de pedir insistentemente
a conveniente resposta.
b. No pouco que vou referindo en-
contram se elementos de origem mui-
to diversa e de differcnles períodos
chronologícos. Destrinçar estes ele-
mentos e determinar a proveniência
respectiva delles a íim de encontrar
o mais primitivo é tarefa interessante
e árdua. O melhor methodo seria
classificar em diversas rubricas os
usos e os costumes observados ainda
hoje nestas festas e por meio de do-
cumentos antigos chegar-lhes quanto
possivel á origem. O resultado desse
trabalho deveria ser um tomo volu-
moso, motivo pelo que o leitor po-
derá prever não encontrar neste ar-
tigo mais do que alguns apontamen-
tos lançados no ar.
6. Km dia dos Reis (6 de janeiro:
era de uso o monarcha conceder
mercês.
Assim succedeu em HÍ73 (A/o;/s-
trTosi^iiiJcs do tempo e da forlvua.
diário. — ... divulgado por Graça
Barreio^ pag, 206)^
No dies iitduli^cnhac (»'(.» fciía de
paixão ou de enduenças conforme a
elymologia da sr.* D. Carolina M.
de \'asconcelIos na Rev. Lusitana
III, ibo) o mo archa perdoava aos
criminosos e perdoa « em memoria
das sacratíssimas paixão e morte de
Nosso Senhor Jesus Christo, solem-
nisadas pela igreja n'este dia de Sexta
Feira Maior», conformando-se o rei
com a «antiga pratica seguida n'es-
tes reinos, de usar da minha clemên-
cia por occasião da Semana Santa».
O que fica transcripto vem no de-
creto de i3 de abril de 1900, que
está publicado no Diário do Governo
do dia seguinte, sabbado de alleluia.
7. Pelas quatro paschoas do anno '
é costume inalterável o fabrico, com-
pra ou troca de bolos que variam de
nome e talvez de composição de ter-
ra para terra. Seria interessante for-
mar um Índice geographico da distri-
buição destes nomes. O Natal tem as
broas, as filhoses e os coscorões, a
Paschoa os cabritos, as amêndoas
con- feitas (confeitos é o termo empre-
gado) e os bolos com um ovo no in-
terior, emparelhando com o bolo de
dia dos Reis de origem extranha pro-
vavelmente.
8. E' costume nas aldeias o paro-
cho pela paschoa correr as habita
ções das suas ovelhas recebendo por
as abençoar um ovo, ou o que a ri-
queza do proprietário permittir dar
de folar. E' costume, pois, este an-
tigo. O dr. João Pedro Ribeiro, al-
I Havia 4 paschoas : a propriamente di-
ta, a do Pentecoste, a da Epiphania (Reis),
e a do nntal. Ofr. '£Mappa de Tortugal de
Castro III, lÕQ, (anno 1/63), n." i5 da Des-
cripção da Capella Real.
44
A TRADIÇÃO
cunhado pelo padre José Agosti-
nho de Macedo, o Doutor Caruncho
ou o Pcrf^amiriJio rclho^ inclue nas
suas Dissertações I, 3o5 (i."'' edição)
um documento do anno de i3?7 em
que se demonstra a prepotência dos
raçoeiros (beneficiados'^ de S. Tiago
de Coimbra, que andavam na ju-
daria ou judiaria daquella cidade com
cruz e agua benta a pedir ovos aos
judeus. Na Allemanha (assim como
em lodo o norte) é muito popuhir o
Ostcrei (ovo da paschoa).
(Continua.)
PEDRO A. I>'AZEV£DO,
A caça no concellio de Serpa
(Continuado de pag. 24)
O trajo do caçador é, alem da rou-
pa que habitualmente veste, — a
jaqueta (se de ordinário a não usa),
sapatos grossos com polainas de coi-
ro, ou então botas altas e cardadas,
çafões de pelle de cabra cortida em
casca de sobro ou d'azinho, polvari-
nhos e mochila.
Os polvarinhos vão suspensos de
correias, postas a tiracoUo. O da pól-
vora é feito de um chifre de boi ou
vacca, vasado e cortado, tendo na
parte mais larga uma tampa de ma-
deira ou cortiça, e na mais estreita,
da grossura de um lápis, approxima-
damente, um pequeno espicho, que
serve para dar saída á pólvora.
Da mesma correia do polvarinho,
e presos por outras correias muito
delgadas, pendem um sacatrapo de
arame, uma agulheta, e mais a carga
com que se mede a pólvora, de chi-
fre ou de madeira e trabalhada a tor-
no ou a canivete.
O chumbeiro, comprehendido na
designação de polvarinhos, é uma
bolsa de coiro, ou pelle cortida de
qualquer animal, ás vezes de texugo,
na qual vae o chumbo miúdo, dentro
de um saquinho, e á solta algumas
balas e cortadillios^ as buchas e a
caixa das escorvas ou fulminantes.
As buchas são feitas de fazenda
de lan já usada, como de calças ou
jaquetas velhas, que se cortam ou
rasgam em bocaditos adequados. Es-
tas buchas de lan teem, sobre as de
cartão, a vantagem da elasticidade;
pelo que nunca produzem o attrito no
cano da espingarda, evitando assim
as explosões e os incêndios.
O caçador também tem os seus
agoiros, e um delles é, que, se a bu-
cha fôr de fazenda, que serviu em
vestido de mulher, o enguiço fará
com que não acerte na caça.
As mochilas — uns saccos quadri-
longos, á medida ou um pouco maio-
res do que as costas do caçador —
são feitas em geral de panno de es-
topa ou de linho; as dos cabreiros,
porém, são todas de pelle de cabra.
Aos quatro cantos de cada mochila
estão cosidas umas correias que pas-
sam, duas, por cima dos hombros e
duas por baixo dos braços, indo cru-
zar-se no peito do caçador, que d'este
modo conserva toda a liberdade de
movimentos para manejar a espingar-
da. Na mochila, que é melhor do que
as bolsas de rede usadas em quasi
todo o paiz, se conduz o farnel, um
copo de lata ou caldeirinha para be-
ber, e a caça que se mata.
No tempo em que havia na serra
mais caça grossa, e também algumas
guerrilhas, usava-se muito a cartu-
cheira com cartuchos de pólvora em-
balados em papel. Rasgavam-se estes
cartuchos numa das extremidades,
derramando-se a pólvora no cano da
espingarda e empregando-se o papel
como bucha junto da bala. Era um
processo rápido de atacar.
As balas trazidas á solta na bolsa
do chumbo, servem, em caso de ne-
cessidade, para correr (uma ou duas)
á espingarda, mesmo por cima do
chumbo miúdo. E quando a coisa é
urgente e não ha tempo de metter
bucha que segure as balas, molham-
A TRADIÇÃO
45
se estas na bocca a fim de que, pela
humidade, vão pegar-se á bucha do
chumbo. Ksla operação, executada á
pressa e sem cuidado, é sempre mui-
to arriscada; porque, se as balas não
ficam bem assentes uma sobre a ou-
tra, e ambas sobre a bucha do clium-
bo, é mais do que certo rebentar a
espingarda.
(Contínua.)
A. de MEI.I.O BREYNEH.
,^.^r
111)11 IS-ESTItlllILliOS UEIITEJ.W.IS
MARIAN'MTA \U mimO
iMariannita vem commigo
A' egrcja a dar a mão!
A' egreja a dar a mão,
A' egreja a dar o sim. . .
iMariannita vem commigo
Passear ao meu jardim!
Passear ao meu jardim,
Passear ao meu quintal. . .
Mariannita vem commigo!
É mentira^ não ha tal !
91. BIAS NUNES.
COHTOS ALEMTEJANOS
O Zé-Valenta
(Continuado de pag. 3o— Conclusão)
é-Valente depois d'ouvir isto,
levantou a cacheira e disse: «O'
amigo ! cava lá tu, que tens muito
melhor corpo do que eu.» O gigante,
em vista desta ameaça, pegou no
enxadão e desatou a cavar até des-
cobrir o azado. O Zé Valente, assim
que viu o azado, disse para o gigan-
te : «Bom, agora já te podes ir em-
bora, que já não me fazes falta». O
gigante desappareceu, e o Zé \'alente
deitou-se a dormir muito descança-
damente.
No outro dia, de madrugada, como
era costume, o padre, o sacristão e
mais quatro homens que levavam a
tumba, foram buscar o defuncio da
«alma penada». Mas o padre, assim
que entrou, levou uma valente ca-
cheirada, e o sacristão e os homens
que levavam a tumba fugiram, ima-
ginando que tinha sido a «alma do
outro mundo» que tinha batido no
padre.
Nesse mesmo dia, quando o Zé
Valente viu que eram horas, mar-
chou, e á tarde encontrou no meio
duma serra muito fragosa, um palá-
cio com a porta aberta. Bradou, e,
como ninguém lhe respondesse, en-
trou, indo dar a uma sala, onde es-
tava uma mesa posta com três talhe-
res, três copos, três garrafas com
vinho e três guardanapos. Como elle
estava farto dandar, chegou se á me-
sa e bebeu um copo de vinho de
cada garrafa. E disse depois com-
sigo : «Deixa-me ver se encontro para
aqui alguma cama para descançar
um pedaço». E, desaldrabando uma
porta, viu um quarto com três camas
e três lavatórios, e cada lavatório
com a sua toalha. As bacias eram
muito finas e as toalhas muito bran-
cas.
Zé Valente lavou as mãos nas três
bacias e limpou-se a todas as toalhas,
e deitou-se também nas três camas.
Ao fim de pouco tempo do Zé
Valente se ter deitado, entraram três
individuos no palácio, e chegando a
casa do jantar, diz um delles: «Na
minha garrafa falta um copo de vi-
nho!» Diz outro: «Na minha, falta
outro copo I» Diz o terceiro : «E na
minha, também falta !» Foram depois
para o quarto, e diz um : «Na minha
bacia lavou-se gente!» Diz logo ou-
46
A TRADIÇÃO
tro: «Na minha também se lavou
gente !»< Diz o terceiro : «E na minha,
também I« Quando foram deitarse,
diz um delles : »Na minha cama es-
teve gente deitada!» Diz outro: «Na
minha, também ! » Respondeu então
o Zé ^'alente : «E nesta cá estou eu.
Se alguém quizer dormir commigo,
durma, porque eu é que já daqui me
não levanto. "
Os homens, admirados de tanta
ousadia, perguntaram-lhe quem era
eile. Zé Valente respondeu simples-
mente, que andava a ver se encon-
trava alguma coisa, neste mundo,
que lhe mettesse medo. Os indivi-
duos depois disseram-lhe que elles
eram três principes, que andavam
em guerra e que matavam muita gen-
te, mas quando voltavam, já encon-
travam tudo vivo, outra vez ! Zé Va-
lente, ouvindo isto, respondeu : «Pois
bem. Amanhã também eu vou para
ver o que isso é !»
No outro dia quizeram dar-lhe uma
espada, mas èlle não a acceitou, di-
zendo, que tinha bastante com a sua
cacheirinha. E marcharam todos para
o sitio da guerra. Assim que lá che-
garam, começaram a peleja. Nesse
dia mataram muita gente, e voltaram
os quatro muito mais cedo para o
palácio.
No outro dia, levantaram-se e fo-
ram outra vez para a guerra, e quan-
do lá chegaram não viram ninguém
morto! Diz, então, o Zé Valente:
tOlhem, eu hoje não vou para o pa-
lácio, quero ver o que isto e ! . . . »
Depois da peleja e do inimigo fugir,
fizeram uma meda de cadáveres, e
Zé Valente ficou de guarda, em ob-
servação. Ahi por volta das dez ou on-
ze horas da noite, viu elle aproximar-se
uma velha com uma panella na mão.
Avelha chegou-se á meda, puxou por
um cadáver, untou-lhe o pescoço com
o que levava dentro da panella e uniu
a cabeça ao corpo, e o corpo poz-se
de pé. Zé Valente deixou a velha fa-
zer esta operação a mais dois ou três
cadáveres, depois deu-lhe uma valen-
te pancada, matou-a e pegou na pa-
nella. E voltou para o palácio, che-
gando lá ainda antes de romper a
manhã.
No outro dia os principes ainda
queriam ir para a guerra, mas o Zé
Valente disse-lhes: «Não é preciso,
porque está tudo morto. Quem dava
vida aos cadáveres era a velhaca
duma velha, que lhes untava os pes-
coços com o unto que está aqui nes-
ta panella. E para verem se é ou
não verdade, cortem-me lá as gué-
las». Os principes não queriam, mas
elle teimou tanto, que por fim fize-
ram-lhe a vontade. Mas, depois, quan-
do lhe foram untar o pescoço, com a
atrapalhação em que estavam, em
logar de lhe porem a cara para a
frente, puzeram-lh'a para traz. Quan-
do elle se viu assim, disse: «Bem.
Agora já encontrei uma coisa de que
tenho medo ; por conseguinte, po-
nham-me lá a cara ás direitas, para
ir para casa da minha mãe, porque
fiquei de voltar logo que encontras-
se uma coisa de que eu tivesse medo».
Os principes puzeram-lhe a cara
ás direitas, e Zé Valente voltou para
casa da mãe, passando pelo monte
onde lhe apparecera a alma penada^
para levar o dinheiro que estava den-
tro do azado.
(Da tradição oral— Brinches)
ANTÓNIO AI.EXANDRINO.
^®1^1M«^S
Uma rede
O que é aquillo que quanto mais roto está,
menos buracos tem ?
Uma trempe
O que c aquillo que tem coroa e não diz
missa, e tem pernas e não anda ?
(Da tradição oral — Brinches)
ANTÓNIO AI.EXANDRINO.
A TRADIÇÃO
47
BIBI1I0&RAPHIA
La Trjdition. — Com este titulo vc a luz
cm Paris uma importante revista mensal Je
iblklore e sciencias correlativas. Kundador-
director — Mr. Henry Carnoy, erudito homem
de lettras e notável ethnoíogt) francez, que
e tambcm o director dos «cirandes diccio-
narios encyclopedicos internacionaes, illus-
trados» e da «Collecção internacional da
Tradição^.
Outro ethnologo francez, não menos dis-
tincto, Mr. de Beaurepaire-Froment, é quem
está á frente da redacção da famosa revista,
que ha já 14 annos se publica com o valio-
so concurso dos principaes folkloristas dos
Dois iMundos.
Os quatro números da Tradition que nos
foram enviados, relativos aos mezes de Ja-
neiro a Abril do corrente anno, inserem
curiosos artigos sobre diversos ramos da
cthnographia. E n'uma interessante secção
intitulíida «Galeria tradicionista», dá-nos o
esplendido mensario os retratos, com as res-
pectivas notas biographicas, dos eminen-
tes cthnologos senhores Frederico Ortoli,
Thomaz Davidson, Doutor Estanislau Prato
e Augusto Hoch.
A Tradição portugueza saúda affectuosa-
mente a Tradition de Paris.
Revista de Educação e Ensino. — Vae já
no XV anno da sua existência esta excel-
lente e bem conhecida publicação scientifi-
ca, de caracter pedagógico, que tem presta-
do os mais relevantes serviços a causa da
instrucção em Portugal.
Oxalá a benemérita revista continue por
dilatados annos na gloriosa missão civilisa-
dora que vem desempenhando sob a profi-
ciente direcção do abalizado professor e pu-
blicista senhor Doutor Ferreira Deusdado.
Ao nosso illustre amigo Senhor Doutor
Bethencourt Ferreira agradecemos a honro-
sa permuta da Revista, de cuja redacção é
secretario este distincto medico e naturalis-
ta habilissimo.
Eolklore de Constantinople, por Henry
Carnov e Jean Nicolaídes. — Faz parte da
«Collecção internacional da Tradição» a
elegante brochura Eolklore de Constantino-
ple, que ha tempo recebemos de Paris com
amável dedicatória. N'esta obra, especial-
mente consagrada ás lendas de Constanti-
nopla, continuam os seus auctores a publi-
cação de ricos materiaes ethnographicos,
recolhidos n'um aturado inquérito aos ve-
lhos usos, costumes, crenças e superstições
do império ottomano. Ao longo de 20G pa-
ginas in-16.''. impressas em óptimo papel,
se desdobra a narração de 55 lendas bysan-
tinas, características, qual d'ellas mais sin-
gular e divertida.
Profundos agradecimentos e parabéns ao
insigne litterato e folklorista eximio que é
Mr. Henry Carnoy.
Violettes éparses (versos), por Madame
Louise Vassal. — Violetas dtspursas \ Que
lindo nome ! e que deliciosos versos são
essas douces Jleurettes bien aintécs que con-
stituem o formoso livro I
Madame Louise Vassal nossue um talen-
to poelicf) de rara malleanilidade, brilhan-
te e superior. Quer ella celebre as galas da
natureza, ou cante da vida os ásperos abro-
lhos ; divinisando o amor maternal ou exal-
tando a memoria dos grandes génios, — a sua
lyra harmoniosa e doce vibra sempre, nos
mais variados accordes, com a mesma es-
pontaneidade, a mesma graça, o mesmo
encanto, o mesmo sentimento delicado e
communicativo.
Foi esta, em synthese, a impressão que
nos deixou uma rápida leitura das Violettes
éparses^ em cujas mimosas composições se
allia radiosamente á elevação dos conceitos
a belleza impeccavel da forma.
Madame Louise Vassal — uma poetisa de
raça, a quem os escriptores do Norte con-
feriram unanimemente os dois primeiros
prémios de poesia no concurso litterario
dos Rosati, em França — Madame Vassal é
a festejada auctora de Ma Goute d' Eau. ou-
tro volume de perfumados cantos, que obte-
ve em Paris um verdadeiro successo.
As Violettes éparses são acompanhadas
de uma carta-prefacio do nosso illustre col-
lega da Tradition, Mr. Henry Carnoy, a
quem devemos a captivante oílerta do exem-
plar recebido.
Mittheilungen iind Umfragen ^ur baye-
rischen Volkskunde. — Tal é a denominação
de uma revista, magistralmente redigida,
que se publica em Wurzburg sob a consni-
cua direcção do sábio professor Doutor Os-
car Brenner. Occupa-se exclusivamente de
communicaçóes e perguntas sobre a ethno-
logia da Baviera. Os números que recebe-
mos, correspondentes aos annos de 95 a 99,
encerram substanciosos artigos firmados pe-
los Doutores Oscar Brenner, Robert Pets-
ch, J. Schmidkontz, Anton Englorl, R. Sprie-
gel, etc.
Eõrdert die baverische Volkskunde ! (Ab-
druk und Verbreitung erwunscht.) — São as
instrucçóes, fornecidas pela «Sociedade ba-
vara das tradições populares», para os estu-
dos tradicionistas na Baviera.
Da sociedade a que alludi, e que hoje
conta 33o sócios, é presidente o Doutor Os-
car Brenner, lente da Universidade de Wurz-
burg, e secretario geral o Doutor Robert
Petsch. A este laureado ethnologo allemão,
que teve a gentileza de endereçar ao nosso
companheiro Doutor Piçarra uma larga carta
de felicitação, escripta em portuguez, pro-
testamos o mais vivo reconhecimento pelos
altos favores dispensados á Tradição.
M. DIAS NUNES.
48
A TRADIÇÃO
BULLETIN POUR LtTRANGER
I. A TRADITIOK
,. ilí ílliísiree d'eiliDograpr
DIRECTEURS
[..kíísIjiu Tiçarva et T>i<is V^unes
KKDACTION ET ADMINISTRATION
 SERPA (PORTUOAL)
Snnmairf du present numero (ic ia Tradilion
Texte : — Notes historiques sur Serpa: La
première conquète de Serpa, par le Com-
te de Ficalho; iMonsieur Sept, par Trin-
dade Coelho (Dr.)\ Les Bonnes-tetes, par
Pedro A. d' Azevedo; La chasse dansledis
trici de Serpa (suite), par A. de Alello
Breyn-^r; Chansons, retrains de TAlem-
lejo : Marianette viens avec moi, par M.
Dijs Sunes; Histoire de rAlemtejo : o Zé-
Valente (conclusion), par António Alexan-
drino; Bibliographie, par M. Dias Nunes.
Illustrations : — Galerie de costumes popu-
laires : Porteur d'eau, de TAlerritejo. — Re-
cueil de chansons : Marianette viens avec
moi, (Danse).
UOl\EMEM ETII\OGRAI'lll(ilE PORTIGAIS
La Tradition (1899) — Nous venons de
publier en dcuxicme édition la première an-
née de notre revue. Cest un beau volume
de plus de 2f)Ó pages, in-i.", imprime sur de
magnirique papier satiné, illustré de três
bonnes gravures de costumes populaires et
enrichi de chansons avec musique.
La partie littéraire se compose de:
La morte et rhiver, par Adolpho Coelho
(Dr.).
Andar ás vozes *, par Alberto Pimentel.
L'empereur d 'Eiras, par Alfredo de Pratt.
Legendes — La procession de cendres, par
Álvaro de Castro.
Nouvelles de Minho, par Álvaro Pinheiro.
La fête du Sacrement, par Alves Tavares.
Histoires de TAlemtejo. par António Ale-
xandrino.
Histoire*» de l'Algarve — Prières supersti-
tieuses, par Athaide d'Oliveira (Dr.).
Divinettes — Proverbes et locutions, par
Castor.
L'élement árabe dans le langage des ber-
gers de TAlemiejo, par le Comte de Ficalho.
Antiquités portugaises, par C. Cabral.
f.Y conclurei.
' La locution «Andar ás vozes» se rapporte á une
ficrsonne qui se promène dans les rues écoutant ce que
es autres disent, pour tirer augure de ce que Ton dira.
Kt, selon ce qu'elle entendra, elle échouera ou réussira
dans Talfaire qui lui occupe la pensée.
BULLETIN FOR ABROAD
iMODilily illusirated revíew ol portiiguese ettiiiograptiy
DIRECTORS
Ladislau l^içarra and Ttias VSjutes
OFFICES
SERPA (PORTUOAL)
Sunimary «f lho prcsciil iiiimlipr of lhe Tradilinn
Text: — Histórica! notes about Serpa: The
first conquest of Serpa, by Conde de Fi-
calho; Mister Seven, by Trindade Coelho
(Dr.); Happy Christmas, by Pedro A.
d' Azevedo; The shooting in the Serpa dis-
trict (continuation), by A. de Mello Brey-
ner ; Songs and refrains from the Alemte-
jo : Mariannita, come with me, by M. Dias
Nunes; Tales from the Aiemtejo : o Zé-
Valente (conclusion), by António Alexan-
drino ; Bibliography, by M. Dias Nunes.
Illustrations : — Gallery of popular costu-
mes : Water carrier from the Aiemtejo. —
Musical collection : Mariannita, come whit
me (dance).
THE PORTUGIESE ETinOGRAPIIICAL MOVEJIEJiT
The Tradition (1899).— We have pu-
blished in second edition, the first year of
our review. It is a splendid volume of more
than 200 pages, in-4.0, printed in magnific
satin paper and profusely illustrated with
very good cngravings from popular costu-
mes and musical songs.
The text is what follows :
The death and the winter, by Adolpho
Coelho (Dr.).
Andar ás vozes ^ by Alberto Pimentel.
The emperor of Eiras, by Alfredo de Pratt.
Legends — On ash-wednesday, by Álvaro
de Castro.
Novéis from the Minho, by Alva7-o Pi-
nheiro.
The Sacrnment feast, by Alves Tavares.
Tales from the Aiemtejo, by António Ale-
xandrino.
Tales from the Algarve — Superstitions
prayers, by Athaide d'Oliveira (Dr.). ,
Proverbs and words — Riddles, by Castor.
The arabian element in the language of
the shepherds from the Aiemtejo, by the
Conde de Ficalho.
Portuguese antiquitcs, by C. Cabral.
(To be ftnished).
1 The plirase «Andar ás vozes» is said from a person
■who walks in the streets to hear what the othcrs said.
And, accordinp by to what he hear, he will siicccd or not
in the thing he has the intciition to do
A.U110 II — IV ."-4:
SERPA, Abril de 1900
\'«»liiiii
II
Editor-admini&trador, Jote Jeronvmo da Coila Bravo de Secreirui, Kua Larsii, 3 e ^ — SKRI'A
Typ. de Adolpko de Mendonça & Uuarte, Kua do Corpo Santo, 46 e 4S — LISBOA
nmm
Revista mensal il Llliiio(|ra|il)ia Porhii|iii7a, llliislraila
- (^ «O—Wwt-O— >-
NOTAS HISTÓRICAS ACERCA DE SERPA
III
Silaação de Serpa
nas circumscripçóes da llespanh.i niussulmana
GENDO visio, na nota precedente,
a occasião e circumstancias em
que teve logara primeira conquista de
Serpa pelos portuguezes, seria interes-
sante procurar qual era o estado e im-
portância d'esta nossa villa n'aquelle
momento. Há, porém, uma falta abso-
luta de noticias directas a tal respeito;
e unicamente é licito fazer algumas
conjecturas, fundadas em informa-
ções muito geraes, e relativas a toda
a região em que Serpa se acha col-
locada.
A occupação da Hespanha pelos
mussulmanos foi extraordinariamente
rápida. Em poucos annos todo este
grande paiz estava nas suas mãos ;
tinham desapparecido quasi por com-
pleto os vestígios da monarchia Go-
da que durara séculos ^ e os ante-
riores habitantes achavam-se, ou re-
duzidos á condição de mosarabes,
vivendo sob o governo dos conquis-
tadores, ou reprezentados por um
punhado de valentes, acolhido a um
canto das Astúrias.
A' sua rica e fácil conquista cha-
maram os árabes o Paiz Andalús, ou
a Península do Andalús, porque alar-
garam a toda a Hespanha o nome
da parte onde desembarcaram ao
chegarem da Africa, e primeiro co-
nheceram. '
No Andalús começaram desde logo
a distinguir a região para o lado do
oriente, Ach-Charc, d aquella que fi-
cava para o occidente, Al-(jharb. Se-
ria, porém, um erro imaginarmos,
que estas divisões abrangiam toda a
Península, e entre ellas existia fron-
teira ou coisa parecida. Pelo contra-
rio, havia vastos territórios intermé-
dios, que não pertenciam propria-
mente, nem a uma, nem á outra.
Ach-Charc e AlGharb eram expres-
sões um tanto vagas, como quando
hoje dizemos o lado oriental e o lado
Occidental da Península.
O Gharb, ou Al-Gharb, que uni
camente nos interessa agora, corria
ao longo do Atlântico, desde o Al-
garve a que o nome ficou, por tudo
quanto hoje é Portugal e Galliza, até
ás costas do norte. Não queremos
com isto dizer, que os limites orien-
taes do Gharb coincidissem com os
de Portugal ; a expressão era, como
já dissemos, lata e muito mais vasta;
e Badajoz, MeriJa, outras terras do in-
1 Sobre este nome Andalús, ou Andalos,
que parece prender-se ao dos antigos Vân-
dalos, veja-se R. Dozv, Recherches sur
l'Hist. et la Litt. de l'Éspagne, I., 340, 2.'''
édition.
A TRADIÇÃO
terior, consideraram-sc sempre como
pertencendo ao Gharb.
Diz-se, que alguns annos depois
da conquista, um amir da Hespanha,
um certo Yucef-ibn-Abd-ar-Rhaman,
dividiu toda a Peninsula para fins
administrativos e militares em cinco
grandes provindas, realmente qua-
tro, porque a quinta caia já em terras
de França. • Estas províncias coinci-
diam até certo ponto nos limites, e
até certo ponto também ainda nos no-
mes, com as antigas divisões roma-
nas. Vagamente conservadas pelos
godos, * aquellas divisões foram ain-
da conservadas em globo pelos árabes
dos primeiros tempos. Das quatro
províncias árabes, duas apenas te-
mos a mencionar. Uma delias pare-
ce ter ainda conservado ás vezes en-
tre os árabes o nome de Lusitânia ;
mas chamava-se mais frequentemen-
te a província de Merida, sua capi-
tal. Partindo do actual Algarve, e li-
mitada ali pelo Guadiana, abrangia
toda a Lusitânia antiga, mas não ter-
minava no Douro, incluia lambem
toda a Galliza até á costa do norte.
Do mesmo modo que a Lusitânia,
alargava-se acima de Badajoz muito
para o interior. Se por ali os limites
da província de xMerida dos árabes
coincidiam com os da Lusitânia dos
romanos é o que não saberemos di-
zer, porque nem uns nem outros são
bem conhecidos.
' Conde, Parte I, cap. Sy." — Já sabemos
quanto as affirmações de Conde merecem
pouca fé. No emtanto parece-me demasiado
radical a opinião do sr. Cedera, de que, os
que não são arabistas 720 deben hacer uso de
tal obra. Continuaremos, pois, a cital-a ;
mas com todas as devides reservas.
2 Acerca da conservação das divisões
romanas em tempo dos godos, e do conhe-
cimento que d'ellas havia no primeiro pe-
riodo da restauração christan, principal-
mente na sua relação com as circumscri-
pções ecclesiasticas. pode ver-se o Chroni-
côn do monge de Silos : ou melhor o curioso
Chrotiicon Émilianense, também chamado
oAbeldense. — Cito por Berganza, Antigueda-
de de Espana; mas foram também depois
publicados na Espana sagrada.
A outra província árabe, que nos
interessa, chamava-se propriamente
Andalusia; teve por capital umas ve-
zes Córdova e outras Sevilha ; e cor-
respondia pouco mais ou menos á
Betica dos romanos. Limitada ao
norte pelo fio da Serra Morena, abran-
gia todo o valle do Guadalquivir, e
vinha até ao Guadiana, que lhe for-
mava a linha de fronteira por occi-
dente, desde um pouco abaixo de Ba-
dajoz até ao mar.
Deve notar-se uma circumstancia
interessante, porque iníiuiu depois em
vários factos históricos, e é, que es-
tas províncias dividiam muito des-
igualmente o território que actual-
mente constitue o nosso paiz. A sua
quasi totalidade pertencia á provín-
cia de Merida; e apenas a pequena
região onde hoje vemos Mourão, Bar-
rancos, Moura, Serpa e Ficalho fazia
parte da Andalusia.
Com o andar dos tempos vieram
a subdividir-se as grandes províncias
em mais pequenas regiões, tendo no-
mes especiaes ; ou que tal divisão
fosse superiormente determinada, ou,
o que parece mais provável, que pou-
co a pouco se introduzisse no uso
corrente dos povos. Devemos o co-
nhecimento d'estas regiões principal-
mente ao geographo árabe Edrisi,
cujo livro é interessantíssimo, porque
nos dá o estado da Hespanha mus-
sulmana nos tempos de D. Aftbnso
Henriques, de quem elle foi contem-
porâneo. '
Começando pelo sul, havia a re-
gião de Al-Faghar, correspondendo
ao nosso Algarve; mas um pouco
maior, porque chegava a Mertola. No
AlFaghar ou Chenchir, "^ Edrisi enu-
1 Géographie d' Edrisi., trad. de Tarabe
par Amedée Jaubert. Sirvo-me d'esta edição
que possuo, comquanto conheça a versão
posterior de R. Dozy e J. de Goeje, muito
mais correcta e á qual recorrerei por vezes.
Em geral a de Jaubert é sufficiente para o
nosso assumpto.
2 Em algumas phrases de Edrisi, Al-Fa-
ghar e Chenchir podem parecer dois nomes
da mesma região ; mas de outras passagens
A TRADIÇÃO
51
Ç)..-.
Õ2
A TRADIÇÃO
mera, entre outras, as povoações de
Chanl-Maria ibn-Harun i^Santa Maria
de Faro), ' de Chelb (Silves) e de
Mcriola, notável pelo seu forte cas-
tello. Toda a zona do Chcnchir pa-
rece ter sido já então densamente
povoada e bem cultivada, sendo co-
nhecida pelo muito e bom tigo, c pela
muita e boa uva que produzia. Esten-
dia-se da foz do Tad-Iana ou rio lana
( Guadiana) até á igreja chamada al-
Ghorab (dos Corvos), situada no pro-
montório estremo (o cabo S. ^'icen-
te). Era uma igreja de christãos, res-
peitada pelos roussulmanos, e sobre
a qual se dizia estarem sempre dez
corvos poisados. *
Ao norte do Ai-Faghar começava
a grande região de Al-Caçr, ou Al-
Caçr Abu-Danes (Alcácer), na qual
Edrisi enumera labora (Évora), ' Ba-
dajoz, Chericha (Jerez de los ca-
baíleros:), Merida, Alcântara e Co-
ria. Como se vê, era vasta, alarga-
va se muito para o oriente, e pelo
norte chegava ao Tejo.
Além do Tejo, na região de Bela-
tha, ticavam as cidades ' de Lisboa
e Santarém, e o castello de Chintra
(Cintra). Mais para o norte era já
terra de christãos no tempo de Edri-
parece deduzir-se, que Al-Faghar era o no-
me de toda a região, incluindo a serra, e
Chenchir maia propriamente o do littoral.
' Os árabes conservaram-lhe o nome
christão de Santa Maria, que tinha no tem-
po dos Godos : e para a distinguir da outra
Santa Maria no centro da Hespanha, accres-
ceniaram-lhe o de um dos seus reis ou che-
fes, Ibn-Harun. Depois, os portuguezes, mu-
dando o h aspirado em /, disseram, como
encontramos em um documento de D. Af-
fonso III, S. Mariam de Faraon, d'ahi Fa-
rão e Faro.
' E' muito interessante esta confirmação,
dada por um hvro mussulmano ao que di-
zem os nossos velhos documentos; veja-se
fr. António Brandão, Mon. Lusitana; e me-
lhor Translatio et Miracula S. Vicenti, nos
Port. mon. hist.^ Scriptores, p.g5.
3 E' notável, que Edrisi se esqueça de
Beja, mencionando povoações menos im-
portantes.
* E' claro, que estas expressões cidade
ou villa são empregadas por simples facili-
dade de redacção, sem nenhuma referencia
si, e nem elle continua por ali a sua
enumeração, nem que o fizesse nos
interessava.
Voltemos ao sul, e á parte mais
do nosso assumpto. Ao occidcntc de
Sevilha e do Guadalquivir, Edrisi col-
loca uma região, chamada Ach-Charf,
cujo nome parece derivar-se de ser
formada de terras altas e montanho-
sas. Começava perto e para cá de
Sevilha, vinha ao sul pelo mar, e in-
cluía Hicn-al-Caçr (Hasnalcasar), '
Lebla (Niebla) no rio Tinto, o porto
de Uelba (Huelba) na coníiuencia do
Tinto com o Odiei, a ilha de Saltis,
e Djcbel-Oiun ou o monte das nas-
centes (Gibraleon). Edrisi é pouco
explicito e um tanto confuso quanto
aos limites occidentaes do Charf; mas
este devia chegar à foz do Guadiana,
onde entestava com o Al-Faghar, e,
subindo sempre pelo rio, incluir a
parte da Serra Morena por Aracena
e Arôche, e as terras hoje portugue-
zas de Serpa e Moura. Leva-nos a
crer isto, o facto de se não mencio-
nar nenhuma outra região por estes
lados, e de o Ach Charf ser uma sub-
divisão da Andalusia, que eviden-
temente incluia as nossas terras.
Quanto ao limite entre a parte do
Al-Caçr á esquerda do Guadiana e
o Ach-Charf, é muito difficil de fixar,
e tanto mais, quanto a Serra More-
na, que o formava, diminue e se
perde ao chegar ao valle do Guadia-
na. E' possivel, que Serpa e ainda
Moura, com Arôche e Aracena, per-
tencessem ao Ach-Charf; e Mourão
com Jerez )á ao Al-Caçr. "
á sua importância n'aquelle tempo. Lisboa,
por exemplo, era menos importante que
Santarém, e muito menos talvez que Silves.
1 Na tradução de Jaubert, Hçn-el-Caçr
identifica-se com Castro Marim o que é
um erro manifesto. Castro Marim fica no
Al-Faghar e muito longe de Sevilha; alem
d'isso parece ser de fundação mais moder-
na. Hasnalcasar é nos campos de Sevilha, a
baixo de S. Lucar la mayor, como já ad-
vertiram Dozy e Goeje, na sua versão do
Edrisi.
2 Alex. Herculano (Hist. de Port., I, 322),
em uma rápida enumeração, colloca Juro-
A TRADIÇÃO
58
Sendo da Andaluzia, o aue é in-
contestável, c do Ach-Chari, o que é
provável, Serpa foi mais ou menos
em tempo dos moiros uma dependên-
cia de Sevilha, e isto decerto inlluiu
na sua historia.
Basta reparar na sua situação geo-
graphica, para ver que deveria man-
ter as suas relações principalmentL-
com as terras do lado oriental. O (iua-
diana formava não só uma fronteira
natural, como uma linha de deleza,
boa em todos o^- tempos, excellente
em tempo de inverno e de aguas
altas, linha que a sepaiava do Al-
Caçr. Poderia excepcionalmente estar
sujeita aos senhores de Beja, ou,
como já vimos, aos senhores de Mer-
tola; mas em regra estaria ligada a
Sevilha ao nascente, ou a Badajoz ao
norte ; a uma ou a outra conforme
uma ou outra preponderava.
Deixando de parte as questões de
ter sido fundada pelos turdulos, como
diz mestre André de Resende, ou de
ali ter sido enterrada a romana Fabia
Prisca, questões mais ou menos co-
nhecidas, e mais ou menos nebulo-
sas, fica o facto seguro, de que Ser-
pa existia e tinha o nome que ainda
hoje tem, quando sobreveiu a invasão
mussulmana. Os árabes não lhe de-
ram um nome novo, tirado da sua
lingua, como fizeram com tantas po-
voações por elles fundadas no Alem-
tejo, com as Alcáçovas por exemplo,
com Almodovar, ou com a aldeia de
Safara na nossa margem esquerda;
conservaram-lhe o mesmo nome, ape-
menha e Serpa no Al-Caçr; a collocação é
segura quanto a Juromenha, mas muito du-
vidosa quanto a Serpa. — O nome do Ach-
Charf foi conhecido dos nossos portuguezes
em tempos antigos. Um documento de Ta-
rouca (Mon. Lus., L. XI, cap. 27), dando
conta da ida de um fr. Bernardo com o in-
fante D. Sancho á expedição de Sevilha,
diz, que o infante teve uma victoria no
Anaxjr.iphe. No tempo de Felipe II ainda
se empregava a palavra na forma Axar/e
(D. Pablo Espinosa, Hisí. y grand. de Se-
villa, II, 100 v.o) ; mas limitava-se então ás
serras perto de Sevilha, e distinguia-se das
serras de Aracena e de Arôche.
nas modificado em ("Jiebrina pelas
exigências da sua pronuncia e da sua
escripta. K os mais velhos dhtonicotis
portuguezes dáolhe sem hesitar o
nome de Serpa, como tendo ficado
bem conhecido.
Na invasão geral da Hespanha em
princípios do \'1II século, os moiros
toinai am esta antiga povoação ; e,
com o andar dos tempos, foriifica-
ramna, ou concertando algumas mu-
ralhas antigas, porventura de origem
lomana, ou construindo-as de novo.
Que era fortificada, resulta claramente
de Ibn Khaldun lhe chamar fortaleza. '
Que não era de grande valor militar,
pode inferir-se de Kdrisi a não men-
cionar, fallando repetidas vezes do
forte castello de Mertola nas visinhan-
ças, e mesmo de outros muito menos
importantes, como o de Cacella na
costa do Algarve. Que não era tam-
bém muito insignificante, deduzse de
que logo os moiros mandaram noti-
cia para Africa da sua perda, como
diz Ibn-Khaldun; e deduzse egual-
mente da unanimidade e apparente
satisfação com que os velhos Clironi-
cons portugueses registam a sua con-
quista. Seria, pois, uma povoação
mediana, cercada de muralhas capa-
zes de resistirem a um golpe de mão;
e rodeada ao longe das pequenas
torres de vigia, a que os moiros e
depois os christãos chamaram ata-
layas. ^
Estaria sujeita a um Cáid ou Al-
caide, que governava em volta toda
' Hiçn Chebnna ; la forteresse de Che-
brma, traduziu de Slane, Hist. des Tierbères,
II, 108.
'■' Os moiros chamavam propriamente at-
talia aos homens de guarda ; depois o no-
me passou ás torres isoladas onde esta-
vam de vigia — Ha nos campos de Serpa um
grande numero de atalayas, que, pelo me-
nos nas fundações, devem ser dos moiros.
E' especialmente interessante a linha de ata-
lavas, de S. Gens ou Sr.' de Guadalupe, do
Pexoto e de S. Braz. Estavam á vista umas
das outras, e claramente di; postas para vi-
giar as passagens do Guadiana na curva que
faz das Melrinas até aos Bogalhos ; e toda a
depressão de terreno desde os Barretos, pela
54
A tradk;ao
a taifa ou districto ; ' e tinha sob o seu
mando a pequena guarnição moira do
Castello e das atalayas; e os habitan-
tes da vilhi, das aldeias, e de algumas
casas dispersas pelos campos, que, at-
tentando na pouca segurança d'aquel-
les tempos, não seriam muito nume-
rosas.
Esta população devia ser bastante
complexa, e o seu exame pode con-
stituir o assumpto de uma Nota á
parte.
CONDE DE FICAI.HO
SETÚBAL^
Crenças, superstições e usos tradicionaes
II
SONHOS E AGOUROS
"Y^ A imaginação ainda embryona-
J— C ria do homem doutros tem-
pos, devia produzir-se uma impressão
forte, ao recordar as diversas peripé-
cias de um sonho.
Depois das rudes fadigas a que o
homem primitivo se entregava, ia re-
pousar; e dormindo, sabia que tinha
cortadas todas as relações com a vi-
da usual, e com o mundo exterior.
Era então que vinha o sonho.
Coisas phantasticas, mas na apa-
rência tão reaes, lhe povoavam o cé-
rebro, que era com verdadeiro as-
sombro que via, depois de acordado,
a falsidade d'essas scenas.
Então sentiu em si duas vidas; a
do Dia e a da Noite.
Junqueira, Val-queimado, e Carreira, que
era um dos caminhos naturaes para Serpa.
— A atalaya da Torre c mais moderna; e
deve ter sido construída ou reconstruída ao
mesmo tempo que as actuaes muralhas.
' Cáid era o governador de uma taha ou
pequeno districto ; adoptada a palavra pelos
christãos, Alcaide passou a designar mais
especialmente o governador de um Castello.
A primeira julgava elle subordinar
á sua vontade; a segunda não.
Este facto levou-o a crer que a vi-
da nocturna lhe era imposta e dirigi-
da por um ser extranho a si; e como
sentia não poder inHuir nos sonhos
d'outrem, calculou que nenhum lio-
7uem inlluiría nos seus; portanto esse
ser era invisível e tão poderoso que
elle, destro e forte na lucta pela vi-
da, sentia se impotente e completa-
mente desarmado para reagir.
Creado o ser sobrenatural e pode-
roso a dirigir-lhe a vida nocturna, é
lógico que tomasse os sonhos por
preságios, e tentasse estudar a sua
linguagem mysteriosa, nas phantasti-
cas e caprichosas evoluções do so-
nho.
E séculos não bastaram para des-
fazer essa crença que ainda vive en-
tre nós, e tem crentes em todas as
classes sociaes.
Sc o sonho não tem hoje a impor-
tância que tinha n'essas épocas longi-
quas, comcudo ha quem fique incom-
modado, e á espera de dissabores,
porque sonhou com uma ave qual-
quer.
Sonhar com pcnuas tra^ desgosto.
Ha tantos e tão acérrimos crentes,
que ainda hoje, ao desabar o século
dezenove, se publicam diccionávios
de sonhos.
A linguagem dos sonhos é figura-
da, é como um enygma que o indivi-
duo p'"etende decifrar.
Podem dividir-se em três espécies;
a inversa, a dedutiva e a convencio-
nai.
Sonhai^ com riquezas é miséria. So-
nhar com imundicies, rique\a. Sonhar
com a tnorte^ signal de vida., etc,
pertencem á forma inversa.
No sentido dedutivo temos : So-
nhar com agua — lagrimas. Sonhar
com pennas — pezares (penas). Com
agulhas — intrigas.
E é pensamento convencional quan-
do se diz:
Sonhar que se tira um dente é mor-
te de parente.
Quando se sonha com uma pessoa
A TRADIÇÃO
56
,^^^S^@^
^"
^MÀii]i iJh i' i^POS F()PllL|lRKS
O ganhão (Serpa)
<^
^§^-^<iíKg5^-
56
A TRADIÇÃO
já fallecida, é signal de que a sua
alma não está na gloria, e anda a pe-
dir orações aos seus parentes e co-
nhecidos d"outrora.
E' mister resar, logo que se acor-
de, um Padre Nosso e uma Ave Ma-
ria por ífitenção do morto.
A lista das decifrações é extensís-
sima, como todos sabem pelos livros
que tratam da especialidade, e para
o presente caso, nenhum interesse
otTerccem, pois todos teem por base
a classificação já apontada.
Filia-se nos sonhos a crença nos
agouros. Tiveram a mesma origem e
juntas atravessaram séculos até nos-
sos dias.
Ao ver algumas vezes transporta-
dos para a luz do sol vários episódios
observados durante o sonho, nada
mais natural do que attribuir-lhes a
mesma origem, e crèl-os também ver-
dadeiros vaticínios.
São vulgares e numerosos os agou-
ros, e também atingem todas as clas-
ses.
A ierça e sexta são dias aziagos
para muita gente: e ha quem n'esses
dias não encete trabalho nem negocio
algum.
O azeite entornado, um vidro que
se parta, um bezoiro que entra zum-
bindo pela janela, são maus presá-
gios.
A entrada em qualquer parte deve
efectuar-se com o pé direito, sob pe-
na de mau êxito.
A vista, em jejum, de um estrabi-
co, é também um mau agouro.
Lavar-se na mesma agua, prenun-
cia desavenças.
Ha um verdadeiro horror pelo nu-
mero treze.
Um jantar de treze talheres é fatí-
dico, pois crêse que essas pessoas
nunca mais se juntarão, em memoria
da ceia de Christo.
Um cão a uivar, uma coruja pian-
do, são funestos preságios.
Galinha que canta como o galo pe-
de a morte para o dono, e só se des-
faz o agouro matando-a e . . . comcn-
do-al
Quando se sente uma orelha mais
quente é indicio de que estão a falar
da pessoa.
Se é a orelha direita estão a í,Tf/;^fr
wa/, se c a esquerda estão a di:{er
bem.
Quando acontece cahir qualquer
coisa que se vá comer, é signal de que
alguém nos quer falar e não pôde.
Varrer as casas á noite é tido como
um mau habito; e deitar o lixo fora,
crê-se que é o mais pernicioso possí-
vel porque se deita a fortuna pela
porta fora. .
A andorinha ninguém aqui perse-
gue de qualquer forma. Respeiíam-
Ihes os ninhos, e chegam até a abrir
buracos nas portas, ou deíxal-as aber-
tas até noite fechada para as andori-
nhas terem ocasião de recolher-se.
E' a ave consagrada á Virgem. Não
pôde ser feliz quem matar uma an-
dorinha.
Ha também a crença de que quem
mata um gato anda sete ânuos para
íra^. Esta crença, muito conhecida
aqui, não é tão respeitada como a das
andorinhas.
A entrada da mosca varejei) a (sar-
cophaga carnaria h) é signal de pró-
xima visita ou presente.
O algarismo sete tem na imagina-
ção supersticiosa do povo o seu tanto
ou quanto de mysterioso.
O raio enterra-se 7 braças e re-
aparece á superfície da terra ao fim
de 7 annos.
Havendo 7 filhos, o ultimo é lobis-
homem.
Emquanto houver arco-iris (arco
da velha ou da aliança)., ha ainda 7
annos de mundo.
O que mata um gato anda 7 annos
para tra^.
Eis em resumo os principaes agou-
ros que povoam os cérebros, ator-
mentando os espíritos mais ou menos
esclarecidos que lhes dão credito.
ARRONCHES JUNQUEIRO.
A TRADIÇÃO
57
O GANHÃO
GO í^allucho, o soldado raso da
campanha agrícola. De «moço
do monte» passou a ganhão — ahi
pelos I b annos,
Klle leva a semana inteira no monte
ou na herdade dt) amo ; e emquanto
trabalha, atraz do arado, vae-se exer-
citando na moda-nova e nas cantigas
que, ao sabbado n noite, quando vier
á villa, ha-de cantar pela rua onde
mora a namorada Rlia também —
nas aceifas, nas mondas, ou no apa-
nho da azeitona — suspira de vez em
quando
Tomara já cá
Sabbado á noite
Para vêr meu bem
Que ha-de vir do monte.
Quando, ao sabbado, o feitor dá o
louvado^ o ganhão solta depressa a
junta, arruma em logar certo a apei-
ragem, e de manta ás costas, e bor-
dão, elle ahi vêm a caminho da villa.
E nessa noite é certo o mancebo
rondar a casa da sua namorada, can-
tando-lhe em altas vozes, ao som da
moda-nova^ as lindas quadras que
aprendeu durante a semana.
EUa, por seu lado, no rancho onde
trabalha, não deixa de entoar
Mais vale um ganhão
Sem manta nem nada,
Que trinta sovinas
De bota engraxada.
Mais vale um ganhão
Roto e sem camisa,
Que trinta sovinas
De marrafa lisa.
No domingo á tarde, vestida a rou-
pa lavada, e convenientemente arre-
mendado, lá volta o nosso heroe para
«a sua obrigação».
(Serpa.)
A. de MEIíXO BREITNER.
OS AYI^MMI^lS
i(^oiilinu.icl<i de paf-. S7)
CAUE aqui uma observação.
K* verdadeiro o que tenho
relatado; mas não vá ninguém sup-
pòr que a \'idigueira c uma terra de
supersticiosos, que nisso engana-se
redondamente. A \'idigueira — apar-
te alguns ingénuos crentes no sobre-
natural—é uma das terras que eu
conheço mais livres de prejuizos. Hn-
tre o povo mais simples é que ainda
se crê em : almas do outro mundo^
virtuosos, avejõcs, encommendas ao
homem morto a ferro ^ he)i:;eduras^
bruxedos^ feitiços^ lobis-íiomeus, etc.
Mas os incrédulos, que constituem o
grande numero, não raro matam pelo
ridiculo a imaginação creadora dos
allucinados, descobrindo a causa da
illusão que faz temer e vêr phantas-
mas; pois que nem sempre é pura
invenção a scena dos avejóes.
Duvidam? Ouçam este caso:
Fma noite. . . noite silenciosa e de
luar (sempre o luar!j seria uma para
duas horas, comecei de ouvir, cor-
tando estridulamente o silencio no-
cturno, uns gritos de mulher, imper-
tinentes e quasi ininterruptos, que, á
primeira audição, nada tinham d'ex-
traordinario, mas que me desperta-
ram curiosidade pela insistência e
por um c^rto tremor de voz que,
mesmo a distancia, julguei notar.
A mulher bradava: «O' mano An-
tónio! O' mano António I» E este
brado, bem simples, arinal, ouvi eu,
centos de vezes repetido, a ponto de
me fazer marchar para o sitio d'onde
o brado partia, aguilhoado pela cu-
riosidade. No caminho juntou-se a
mim um outro curioso e fomos os
dois ver o que aquillo era. . . Os gri-
tos partiam d'uma casa situada quasi
no extremo norte da povoação — o
largo de S. Francisco. O mano An-
tónio^ a que a voz se referia, pernoi-
tara em umas eiras pouco distantes,
e não dava parte de si, o dorminho-
co. Nós chegámos ao largo, e, pouco
ÒS
A TRADIÇÃO
depois, abriu-se um postigo e outro
e outro, e pudemos emfim saber o
que se passava.
Passava-se isto: Todas as noites
aquella gente, estando a gosar o fres-
co ás portas, como é d'uso para aqui,
tinha de se recolher precipitadamente
e morta de susto porque lhe surgia
inopinadamente, e vindo do adro mu-
rado da próxima egrcja, uma figura
que se arrastava, uma a espécie de
enorme gafanhoto» diziam, que per-
corria o largo silenciosamente, vaga-
rosamente, e que, passados alguns
minutos, tornava ao mesmo adro,
desapparecendo como por encanto...
l'm homem são c forte, um traba-
lhador dos campos, estava a contar-
nos isto, tremulo de medo, e ao pos-
tigo da porta que ainda se não atre-
vera a abrir, quando a dos brados
ao mc77/o António — a mais foita de
toda aquella gente, porque ao menos
CO servava energias na voz, veio ao
nosso encontro a dizer-nos: «que lá es-
lava, ainda, elle ! que lá estava elle!»
Olhámos, e pareceu-nos distinguir
um vulto, junto á porta da egreja,
estendido no chão. Avançámos para
o adro, que tem duas entradas, eu
pela mais próxima e o meu compa-
nheiro pela outra. O desventurado
pfijintasma^ não vendo outro remé-
dio, pois que era um phantasma inof-
fensivo, atirou-se para o lado do meu
companheiro antes deste lhe tomar
a sahida, e precipitou-se numa car-
reira vertiginosa, dando ás de Villa
Diogo em direcção a uma azinhaga
próxima, como um ligeiro phantas-
ma que era. Corremos os dois, tam-
bém, e coube a gloria ao meu com-
panheiro de ser o primeiro que pou-
de dcitar-lhe a mão.
Pobre phantasma . . . mettia dó !
Em ceroulas e com ellas regaçadas,
descalço, e com um gabanito ás cos-
tas, tremulo, indignado, e gaguejan-
te, tartamudeava, entre medroso e
fulo: «que era porque elle q'ria! que
era porque elle qVia!»
Do largo da egreja — isso simi nin-
guém se atrevera a seguir-nos.
Nós voltámos lá, depois do pa-
cifico ajuste de contas com o desas-
trado, a descançar aquella pobre
gente.
A coisa era esta: O homem che-
gava ao adro pela entrada por onde
nos fugira : do largo esta abertura é
pouco visivel. Prepai'ava-se^ como
atraz fica dito, e avançava com os
dois cotovellos e os dois joelhos em
terra, fazendo salientar os braços e
as pernas de modo que dava, segun-
do os medrosos, a idea do tal enor-
me gafanhoto caminhando mysterio-
samente. Passeava assim, triumphante
e sinistro, o tempo que elle entendia,
e recolhia-se depois a bastidores para,
na seguinte noite, continuar a singu-
lar penitencia. . . Que era uma peni-
tencia, aquillol E porquê, santo Deus?
Porque um inimigo (e era um parente
próximo!) cujos pães queriam passar
por pimpões, não conseguira, ape-
sar dos empenhos^ livrar-se do servi-
ço activo do exercito !
A penitencia foi, até certo ponto,
cumprida religiosamente (pobre reli-
gião, em que tão mal se comprehen-
de Ueusl); mas o resto, isto é — o
rabo é que foi peor d'esfolar... Sou-
be-se do caso, e o avejão apanhou,
do primo soldado e dos irmãos d'es-
te, uma bôa data de marmelleiro
que, dizem, lhe soube a tâmaras!
Por estes factos já podem avaliar
que a tradição dos avejões tem por
aqui os seus adeptos, e que, sem to-
dos acreditarmos na parte sobrena-
tural do assumpto, se crê geralmente
que este é digno da attenção dos Vi-
digueirenses. . . apesar de fazer dor
mir — e bem hajam! — os ajuizados
leitores da sympathica revista «A
Tradição».
Vidigueira.
FEDRO COVAS.
A TRADIÇÃO
59
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A TRADIÇÃO
H0II\S4;STIIIIIILII0S.\LEJITEJA\AS
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Li-olé, toma lá pintiões!
Li-olé. toma lá pinhões!
Poucochinhos. que elles dão sezões. . .
PoBcochinhos, qne elles dão sezões . . .
M. BIAS NUNES.
A caça no concelíio cie Serpa
(Continuado de pag, 45)
a CAMA do caçador varia com as
condições d'este. A dos ricos
consiste numa sacca de linhagem,
grande, que se enche de palha ou
rama de matto, no próprio logar onde
se dorme, mettendo-se do lado da
cabeceira e por baixo do improvisado
colchão, uma pedra ou um madeiro,
o que primeiro se encontra. Duas
mantas alemtejanas, que se põem
uma por baixo e outra por cima do
corpo, servem de cobertura e abrigo
ao caçador rico.
Esta é a cama tradicional, porque
hoje em dia \áo-se adoptando as mo-
dernas camas portáteis.
Os homens do campo fazem a ca-
ma exclusivamente de matto, colhido
em grande abundância, e tapam-se
com a manta de lan que sempre le-
vam sobre a mochila.
Quando, no verão ou na primave-
ra, algum rancho é surprehendido
por trovoadas em descampado, usa
fazer-se o seguinte : Procuram-se
umas seis ou oito varas, compridas,
de medronheiro, esteva, ou outro
qualquer arbusto, (o que não é diffi-
cil de encontrar) e tancham-se no
chão, ao longo da cama, d'um e
doutro lado. As extremidades livres
das varas que ficam d'um lado, são
unidas ás do lado opposto, formando
arcos, que depois são cobertos por
uma ou duas mantas, bem esticadas,
á maneira d'um toldo de carro. Para
que a cama não seja encharcada pela
agua, colloca-se a sacca sobre uma
bôa camada de matto.
Ha quem, em vez do toldo descri-
pto, adopte barracas especiaes.
Os caçadores, principalmente ho-
mens do campo, usam ainda as es-
pingardas d'um só cano, por serem
mais baratas. Todavia ha quem po-
dendo usar espingardas de dois ca-
nos, prefere as primeiras. Por exem-
plo, o meu particular amigo e mestre
Francisco Louzeiro, que tendo meios
e possuindo boas espingardas de dois
canos, caçava sempre com as d'um
só cano quando se tratava de caça'
grossa.
Havia várips espécies de canos:
uns compridos a que chamavam fran-
cezes; outros (mas poucos) curtos
d'origem ingleza, chamados rifles;
os canos de três setes — 777 — , cuja
procedência ignoro, e ainda outros
sem marca nem distinctivo.
A' medida que as espingardas de
dois canos foram apparecendo no
mercado, e o seu preço barateando,
começou a diminuir o uso de espin-
gardas d'um cano, sem que, como já
disse, desapparecessem de todo.
Vieram ultimamente as espingar-
das de fogo central, mas estas não
se teem generalisado tanto, porque,
além de serem muito mais caras, não
são tão certeiras, sobretudo nos tiros
de chumbo e quando se desfecha a
grandes distancias.
As espingardas do novo systema
teem ainda, para os caçadores, o in-
conveniente de que os seus canos es-
trangulados não servem para bala; e
os de bala não servem para chumbo.
E o caçador não pôde trazer atraz
de si um creado com differentes mo-
A TRADIÇÃO
tíl
delos de espingardas para se servir
d'aquelle que precise a cada momen-
to. Occorre-me ainda outro inconve-
niente das espingaidas em questão,
e vem a ser que, disparandose mui-
tos tiros na caça miúda, e especial-
mente no verão, é preciso diminuir
a pouco e pouco a carga de pólvora
e o aperto das buxas, o que somente
pode lazerse com as espingardas de
atacar pela bocca.
E' pena que assim succeda, pois
que, a par dos inconvenientes apon-
tados, teem as espingardas de fogo
central vantagens muito apreciáveis,
como são o aceio e a promptidão no
desfechar e na mudança de cartu-
xos.
Ao caçador a valer, o que lhe con-
vém é uma arma bôa, que elle co-
nheça e saiba bem o que vale ; é ella
a sua companheira de todas as horas,
na qual contia para se defender e
matar a caca.
Ha duab epochas em que, princi-
palmente, todos os caçadores sahem
a campo: são as semanas que prece-
dem o Natal e o Carnaval (semana
de comadres). N'esta ultima, costu-
mam os caçadores, organisados em
ranchos ou joldas^ ir caçar para a
serra ou nos arredores da villa e das
aldeias. N outros tempos mais do que
hoje.
Havia também, antigamente, o cos-
tume — que hoje se conserva, apenas,
nas aldeias — de, todos os sabbados,
se reunirem em jolda os caçadores
para caçarem nesse dia.
(Continua.)
A DX raEI.1.0 BREYNER.
CONTOS ALGARVIOS
o REI SÁBIO E CEGO
"p^AviA um rei e tinha uma filha.
X-- C Ksta andava de amores com
um rico negociante, rapaz solteiro. O
rei foi avisado destes amores e esprei-
tou a lilha. Succedeu que o negocian-
te, tendo de ausentar-se, subiu por
uma escada de seda e foi falar á prin-
ceza. O rei esteve de espreita e ou-
viu toda a conversação de ambos, de-
duzindo que a filha estava pejada.
Ora o negociante dirigiase ao seu
destino por mar.
Nessa noite o rei deu ordem que
fosse preparado um navio com alguns
marinheiros, dando se a estes as de-
vidas instrucções. Assim foi resolvi-
do. No dia seguinte disse o rei á fi-
lha:
— Falou comigo o teu namorado
e confessou-me que eslavas pejada.
Resolvi que o acompanhasses no seu
barco e lá fora se casassem. Prepa-
ra, pois, os bahus e leva toda a tua
roupa e valores que te pertençam.
A princeza ficou surprehendida e
fez o que o pai lhe mandou fazer.
Dirigiu-se para a praia, e logo encon-
trou uns homens, que pegaram n'ella
e a metteram no navio. Então se con-
venceu de que o pai lhe destinava
algum castigo. Chegando o navio a
uma ilha que os marinheiros julgaram
deserta, desembarcaram a princeza
na praia e os seus bahus, e levanta-
ram ferro, não obstante as lagrimas
da exilada. Conservou-se por algum
tempo na praia até perder de vista o
navio. Era noite, e foi-se acolher a
uma lapa próxima, onde não havia
feras. No dia seguinte, comeu fructos
silvestres e bebeu agua das fontes. E
assim se conservou por alguns mezes
até que deu á luz uma creança do
sexo masculino. O menino cresceu a
olhos vistos : quando tinha um rnez
parecia ter um anno. Era de uma
pasmosa agilidade e quasi apanhava
a caça na carreira. Em uma occasiao
foi o menino surprehendido com a
62
A TRADIÇÃO
presença de um homem; poz-se a cor-
rer e veiu esconder-se junto da mãi
na lapa. O homem approximou-se e
chamou pelo menino ; ninguém lhe
respondeu.
— Não me respondem, vou dar fo-
go á lapa — disse em voz alta.
Então sairam mãi e filho da lapa,
disendo aquella que seu filho estava
por batisar, occultando porém a sua
qualidade de tilha de um rei. O ho-
mem instou que deixasse ella ir o
menino com elle para ser batisado, e
afinal a mãi cedeu
A criança tinha então oito annos e
parecia ter vinte. Era reforçado e
muito ágil. Acompanhou pois o ho-
mem e foi batisado, sendo seu padri-
nho o desconhecido. Depois pediu li-
cença ao padrinho para ir onde es-
tava sua mãi, mas o padrinho pediu-
Ihe que ficasse até ao dia seguinte,
pois havia na terra uma feira. O me-
nino ficou. As informações que o pa-
drinho deu acerca do modo por que
tinha encontrado a criança, fizeram
que todos o conhecessem pelo meni-
no da lapa.
Na feira viu o menino um cavallo
muito bravo e que ninguém ousava
montar.
— Compre-me aquelle cavallo —
disse para o padrinho.
— E' um cavallo muito bravo, ain-
da não foi montado. Tu não o pode-
rás montar, mas se a tanto ousas,
compro-t"o.
O menino da lapa deu um salto
sobre o cavallo, e n'uma correria che-
gou ao logar onde sua mãi anciosa-
mente o esperava. D'ahi em deante
saia todos os dias á caça montado
no cavallo bravo. Em um dia foi dar
a uns palácios arruinados, onde en-
controu um gigante que se atirou a
elle no intuito de o matar. O meni-
no, porém, deu-lhe tamanha panca-
da, que o gigante caiu com uma fe-
rida enorme.
— Deus prometteu-me que se al-
guém me ferisse, não me matasse,
mas me prendesse no alçapão do pa-
lácio — disse o gigante.
Então foi o gigante levado para o
alçapão, sendo ali fechado á chave,
que o menino guardou. Foi elle ver
as diversas salas do palácio e pas-
mou de ver reunidas tão grandes ri-
quezas. Montou logo no cavallo e foi
buscar sua mãi. Ora a mãi pensou
que a sua fraqueza, cedendo ao seu
amante, era causa da sua desgraça,
e por isso já não tratava o filho com
o carinho de mãi. Logo que se viu
possuidora de tantas riquezas ficou
satisfeita.
— Minha mãe pode servir-se de to-
das as chaves do palácio e abrir to-
das as portas, menos da chave que
está no meu quarto e que abre um
alçapão, onde minha mãi nunca deve
entrar— disse-lhe o filho.
A mãi assim prometteu.
No dia seguinte, quando o filho foi
para a caça, dirigiu-se ao quarto do
filho, tirou a chave e foi abrir o alça-
pão. Então chegaram aos seus ouvi-
dos uns gemidos. Aproximou-se e viu
o gigante. Taes lamurias fez, e tão
boas palavras lhe deu, que a mulher,
por conselhos do gigante, foi a um
armário buscar um frasco de óleo,
esfregou-o com elle, e o gigante ficou
completamente curado. Não ficou po-
rém só aqui: apaixonaram-se um do
outro. O gigante subiu aos aposentos
superiores e ali com ella combinaram
descartar-se do menino.
— Só ha um meio — disse o gigante.
— Qual? interrogou ella.
— Fingir-se doente de uma dor e
dizer ao seu filho que passou por
aqui um medico que a aconselhou a
lavar-se com a agua de uma fonte
no bico do serro, a duas léguas de
aqui. Elle vai buscar a agua á fonte,
sempre cercada de enormes bichos,
que promptamente o devoram.
E assim succedeu. Logo que o fi-
lho viu a mãi doente e soube que só
podia ser curada com a agua da tal
fonte, montou no seu cavallo e para
lá se dirigiu.
A certa distancia do serro rinchou
o cavallo e logo viu próximo um pa-
lácio e á janella um velho.
A TRADIÇÃO
63
— Vem ali o menino da lapa —
disse o velho para as suas três filhas
— a mais nova trata-lhe do cavallo,
a do meio prepara-lhe a comida e a
mais velha arranja-lhe a cama.
(Continua.
(I.oule.)
ATHAIDE DOLIVEIRA
Questionário sobre as crenças relativas
aos animaes'
EMINENTE sclentísta Mr. N. W. Tho-
maz tem em preparação uma obra
de extraordinária importância, qual
é o estudo comparado de todas as crenças
relativas aos animaes nos diversos paizes da
Europa.
Para levar a cabo o seu trabalho colos-
sal, dirigiu-se o sábio ethnologo allemão a
vários tradicionistas europeus pedindo ins-
tantemente que o secundassem n'uma em-
preza tão arrojada e árdua.
Pela nossa parte accedèmos da melhor bôa
vontade ao honroso convite que. em lison-
geira carta, foi endereçado á Tradição. E as-
sim, temos o prazer de inserir abaixo — livre-
mente traduzido — o questionário ou base
de inquérito que Mr. Thomaz nos mandou.
Aos nossos distinctos collaboradores rogá-
mos, com o mais vivo empenho, a incompa-
rável fineza de enviarem para esta redacção
todas as informações que possam ministrar-
nos sobre o assumpto de que se trata.
As respostas a um ou mais números do
questionário irão sendo publicadas na Tra-
dição pela ordem por que as formos rece-
bendo. E' indispensável que os nossos pre-
sados collaboradores se não esqueçam de
mencionar a proveniência de cada uma das
crenças ou superstições que se dignarem re-
ferir-nos. As respostas aos n."' 14 e 22 do
questionário devem vir acompanhadas (sen-
do possivel) de photographias ou desenhos
elucidativos dos objectos a que nos mesmos
números se allude.
1. — Quaes são, na crença popular, os
animaes (^aves, insectos, etc.) que trazem ou
felicidade ou desgraça a quem os vê ?
2. — Quaes são, na crença popular, os
animaes que trazem ou felicidade ou des-
graça á casa onde vivem ?
3. — Quaes são, na crença popular, os ani-
maes que presagiam a morte ?
4. — Quaes são, na crença popular, os
animaes que presagiam as colheitas ?
1 Para dar publicidade ao presente artigo somos obri-
gados a retirar a 'Bibliographia.
5. — Conhecem-sc as ultimas espigas pelo
nome d'algum animal.-' Diz-se que algum ani-
mal atravessa os campos quando o trigo se
inclina á mercc d'alguma rajada de vento?
"f». — Crê alguém poder assegurar-se da fe-
licidade jt^uardando em casa animaes, aves,
etc. ? Cre alguém dever agarrar ou saudar o
primeiro anmial, ave, etc, de cada espécie,
quando se vêem pela primeira vez napii
mavera ?
7. — Que importância tem a cór dos ani-
maes (na super>tição) r
S. — Ha animaes que gosam d'uma santi-
dade local, isto é, que ninguém quer matar,
nem comer, nem mesmo vêr, e cujo nome
ordinário não se emprega ás vezes ?
y. — Ha animaes que apenas se comem
uma vez por anno, ou que se comem uma
vez por anno ritualmente i
10. — Ha animaes que são caçados uma
vez por anno ou que são mortos por occa-
sião de festas populares ?
11. — Exhibem-se animaes, arcaboiços de
forma animal, ou homens vestidos de pelles
d'animaes para fazerem peditórios ;*
12. — Crê alguém poder ganhar o poder
magico de curar as doenças comendo a car-
ne de certos animaes, deixando-os morrer
na mão, ou tocandolhes ?
i3. — Que animaes são usados na medici-
na popular, 011 na magia, e com que intenção -
Crc-se que os poderes mágicos variam con
soante a estação em que o animal é morto?
14. —Pelo Natal, etc, fazem-se bolos aos
quaes se dá o nome ou a forma d'algum ani-
mal ?
i5. — Acredita-se que os mortos appare-
cem em forma d'animal ?
16. — Acredita-se que as feiticeiras teem
o poder de se transformar em animal ?
17. — Quaes sãs os animaes que se julga
comprehenderem a linguagem humana ?
18. — Que animaes se julga que sejam
homens n'outros paizes ?
19. — Segundo a crença popular, quaes
são os animaes que levam as creancinhas í
20. — Contam -se lendas de raparigas (ou
rapazes) que apparecem ordinariamente sob
a forma d'um animal, e que para casarem é
necessário que se lhes arranque a pelle ?
21. — Ha cerimonias por occasião do nas-
cimento, do casamento e da morte nas quaes
se faz uso d'um animal, da sua pelle, etc. .-*
22. — São as casas, as medas, etc, encima-
das por um craneo, uma cabeça d'animal (de
madeira ou d'outra natureza), ou encontram-
se aquelles objectos ao redor dos campos ?
23. — Que animaes são usados como si-
gnal de estalagem ?
24. — Ha jogos de creanças ou cerimo-
nias nas quaes se imita os animaes ou se
põe uma mascara, ou aos quaes jogos se dá
um nome d'animal ?
25. — Ha animaes que são enterrados por
causas supersticiosas ?
A RXDACÇÃO.
64
A TRADIÇÃO
BULLETIN POUR LITRANGER
Revue raensueiie íllusii-ee (l'eilinograpliie poriugaíse
DIRECTEURS
LjJíslau T^içarra et 'Dias õ^wies
REDACTION ET ADMINISTRATION
à SERPA iPORTUOAL)
Sflmmairp du presoni imiiiuto df la Tradilioii
Te\ie : — Notes historiqucs sur Serpa ; La siiuation de
Serpa dans les circonscriptions de l'Espa{íne musiil-
mane. par le Comte de Ficalho; Setúbal— croyances,
siipi-rstitions et usares (siiitr), par cArronches Jun-
queiro; Le •ganhão» (garcon de charruei, p;ir c4. de
íMeilo "hreyiter: Les faniômes (conclusion), par Pedro
('.ovas: Chansons. rcfrains de rAkmteio: Lcs pommes
de pin, par z\í. bias C\i"ies; La chasse dans le dis-
trict de Serpa (suite), par A. de Mello Breyiier; His-
mire de 1 'Algarve: Le roi savant et aveugie, par Atliai-
de d Oliveira iDr.i; Questionnaire sur le> croyances
rrlatives aux animaux, par la Redaction.
llliisiralloiis: — La rrtnarquable ville de Serpa, vue
dl' nordoucst.— Galerie de costumes popuiaires : Le
• ganhão* (garçon de charrue).— R-icueil de chansons:
Les pcmmcs de pin (musique).
\|1IIVEÍ1F,NT FJIINO(.lt\l'lliniE PORTLGAIS
La Tradition, de 1899 (conclusion). —
Noèl, Nouvelle-Année, Jour de Róis — Danses
popuiaires — Chansons, refrains — En Carê-
me — La fète de la Guadeloupe — La proces-
sion tie Corpus Christi — Le jour de Saint-
Jean ã Serpa — Les tables de Moise — Biblio-
graphie, par M. Dias Nunes.
Vidigueira et ses traditions — La Mi-Ca-
rême — Le taureau de Sainl Marc — Péniten-
ces nocturnes, par Fazenda Júnior.
Vers utérins — Féeset sorcières — Sorcières
et ensorcellement, par Filomatico.
Rimes popuiaires, par João Varella (Dr.)
Jeux popuiaires — Le bain de ràme--Le
Carnaval — Prières superstitieuses — Médeci
ne empirique, par Ladislau 'Piçarra {Dr.).
Habitations, par Lopes Piçarra.
Estr.tinga-Estantiga, par (£Madame <£\íi-
chaélis de "Vasconcellos.
La course de la vache aux cordes à Ponte
de Lima, par Miguel de Lemos.
Recuei! de chansons popuiaires — Les ha
bitants de la peninsule iberique, par Paulo
Osório.
Les superstitions des crimineis — Les fêtes
de Saint-Marc prés de Serpa, par Pedro A.
d'Q4^evedo.
Les charlatans, par Pedro Covas.
La Tradition, par T^amalho Ortigão.
Botanique populaire, par M.^He Sophia da
Silva {T)r.}.
Le médecin de la moule russe, par Sou^a
Viterbo (Dr.).
La Mi-Caréme. par Theophilo Braga {Dr.)
Legendes et romans, par Thomaj Pires.
Prix du volume broche, 5 fr.
BULLETIN FOR ABROAD
wmm WMrMm^Mim
ii;
DIRECTORS
Ladislau T^içarra and ^ias U^unes
OFFICES
SERPA (PORTUOAL)
Suiumary of lhe presenl nuiuber of Iht^ Tradilion
Wxt : — Hisiorca! notes aboiít Serpa: Serp's situation
in the circumscriptions ot Musulman Snain, by Conde
de Fica lho; Setúbal l,eL'ends, superstitions and tra-
ditional usages (continuation), by Arronches Junquei-
ro; The «ganháoii (farm servant), by A de Mello
"Breyney; The gliast (conclusion) by fedro Covas;
Songs, refrains from Alemtejo: The kt-riids, by M.
tnas Nunes; 1 he shootiní.- n the Serpa district iconti-
nuation), bv c4 de Mello Breyner; Tales from lhe
Algarve: The wise and blind King, by Athaide d'Oli-
veira {Dr i; Questionary about the bcliefs relative to
animais, by lhe Ediíors.
■Ilustralions:— Tne remarkable Serpa secn from north-
west.— Galery of popular costumes: O «ganhão» ifarm
servant) — Musical collection: The kcrnels (dince).
THE PORTltílESE ETII^OGRAPHICAL MOVEIIIEKT
The Tradition, of 1899 (conclusion)—
Christmas, New-Year and the day of Kings
— Popular dances — Songs, refrains — On
Lent — The feast of the Guadalupe — The
procession of Corpus-Christi — The St. Jo-
hn day in Serpa — The tables from Moses
— Bibíiography, by Dias Nunes.
Vidigueira and its traditions — Mi Carê-
me — The buli of St. Marcus — Nocturn pe-
nitences, by Fazenda Júnior.
Uterin vermins — Witches and hags —
Witches and soresies, by Filomatico.
Popular rhymes, by João Varella (Dr.)
Popular games — The bath of the soul —
The Carnival — Superstitions prayers — Em-
pirical medicine, by Ladislau Piçarra (Dr.).
Habitations, by Lopes Piçarra.
Estatinga-Estantiga, by À/.'' Michaelis de
Vasconcellos.
The course of the cow with the ropes at
Ponte de Lima, by oMtguel de Lemos.
Colletionjof popular songs — Habitants of
Ibéria, by Paulo Osório.
Superstitions from the criminouses — The
feast of St. Marcus near Serpa, by Pedro A.
d'A^evedo.
The charlatans, by Pedro Covas.
The Tradition, by Ramalho Ortigão.
Popular Botany, by Miss Sophia da Silva.
The doctor with the reddish mule, by
Sowfa "Viterbo (DrA.
Mi-Carême, by Theophilo TBraga (Dr.).
Legends and romances, by Thoma^ Pi-
res.
Price of the volume stitched — 5 fr.
.A.iiiit> II — IN." r>
SERPA. Maio de 1900
VollIilK' II
Editor-adminislrador, Jote Jeronymo da Cotia Bravo Je Sífireirus, Kua l.area, 3 e 4 — Si£KI'A
Typ. áe Adolpho dt Mettdonfa, Kua do Corpo Nanio, 46 e 4M — LISHOA
nmm
Revisla iiiciisal il hlliiifi({rii{iliia Piniiiijiic/a. Illiislraila
Directores :-r.AI):s:.ÃU PICAHHA e Li. DIAS ITUITES
Os proverDios e a medicina
I
{Pancadinhas d'amor não fa^em doer . . Ma-
te-me Deus com os meus . As senões
vêem a cavallo e rão-se embora a pé . . .
Uma pílula a tempo poupa nove. . . Ao
menino e ao borracho pôe-lhes Deus a
mão por baixo ■ . .)
O POVO tem uma intuição medica
de primeira ordem, o que não
importa estranheza. Uma das phases
da medicina, a primeira, foi popular
e só depois de tíxada pelo insiincto,
a arte de curar passou dos caminhos
para os templos^ então monopolisada
por classes mais illustradas.
Ha verdades scientificas crystalli-
sadas toscamente em provérbios e lo-
cuções populares, as quaes, se hou-
véssemos de trocal-as em meudos,
encherião grossos volumes. VJ a ex-
plicação medica de alguns provérbios
e locuções populares que me propo-
nho dar, neste e em subsequentes arti-
gos, caso V. ex.^' estejam de pachor-
ra para aturar as caturreiras de um
pobre clinico d'aldéia.
Não ponho ordem no meu traba-
lho, que não me parece merecel-a.
Escolherei ao acaso e irei desfiando
a philosophia medica de alguns pro-
vérbios, consoante me venham á me-
moria.
Seja o primeiro este: pancadinhas
d' amor não fa^em doer. . .
Toda uma psychopathia sexual a
resaltar deste provérbio. Não fazem
doer as pancadinhas d'amor, não:
que o digam os masochistas. . ■
Estam hoje em moda as psvcho-
pathias sexuaes. Estudou as iCrafft-
Ebing, o famoso psychiatra de Vien-
na. Fl, todavia, o povo já de ha muito
condensara uma delias no provérbio
citado. As perversões sexuaes melhor
estudadas são três: o sadismo, o fe-
tichismo, e o masochismo^ sendo esta
ultima que importa para o nosso caso.
No masochismo^ as sensações volu-
ptuosas são despertadas pela ideia
de rebaixamento perante o ente ama-
do, ou pelos solírimentos physicos
que esse mesmo ente possa inHigir a
quem o ama. P7 uma impulsão a que
taes doentes não podem resistir, por
preverem com voluptuosidade essa
situação.
Sem já fallarmos do rebaixamento
sexual a que alguns se sujeitam, im-
pei lidos pelo niasochismo^ mesmo por-
que esse facto não entra na verdade
esboçada no provérbio que ora des-
trinço, certo é havei os que precisam
ser Jlagellados por aquelles a quem
amam.
Umas vezes, essa Hagellação con-
6R
A TRADIÇÃO
stitue um meio preparatório para o
acto capital do amor; outras, um
adjuvante para o accentuar, podendo
ainda chegar, o que é mais curioso,
a equivaler o próprio acto sexual.
Para os masochistas não ha amor
sem maus tratos, sem humilhações.
Gostam de ser açoutados, numa pa-
lavra . . .
Quer-me parecer esta a verdade
scieniitica que o provérbio encerra.
Começou o povo por observal-a: pas-
sou depois a dizel-a maliciosamente.
E já outro me ocorre: ynate-me
Deus com os meus . . .
Ora ahi está uma locução a que
podemos precisar a época de sua ori-
gem: data de 1D69.
Não contém, propriamente, a essên-
cia de algum facto medico, mas re-
fere-se a uma das paginas de epide-
miologia portugueza. Por isso encerra
a sua philosophia medica.
iDÔg! Anno tenebroso, devastador,
o anno da peste grande! Só em Lis-
boa, orçou o numero das victimas
por sessenta mil.
Ficou-nos noticia do quadro tene-
broso que a capital então oíferecia,
desolada pela peste e pela fome —
irmã gémea da primeira. Bastam as
palavras que seguem, escriptas pelo
padre Balihasar Telles, para nol-o fa-
zerem vér : «... as ruas estavam
cheyas de erva crescida, mais pare-
ciam campos desertos, que estradas
seguidas. . . »
Do receio então infundido, dão-nos
ideia as medidas adoptadas. El-rei
D. Sebastião, o desejado — com mais
razão devera dizer-se o degenerado^
— lembrou-se de mandar vir para Lis-
boa alguns médicos de Sevilha, por
' A prova scieniifica da degenerescência
de D. Sebastião, deu-a brilhantemente o
professor Manuel Bento de Souza. Foi um
irresponsável, aquelle pobre monarcha. Quos
Deus vult perdere. prius dementai.
mais educados na proph3daxia do
morbo.
Offereceu-!hes larga retribuição.
Vieram, com effeito; e ainda hoje nos
são conhecidos os seus nomes : Tho-
maz Alvares e Garcia de Salzedo
Coronel. Fez-se então a primeira
edição da junta consultiva de saú-
de.'..
Trabalharam os médicos de Sevi-
lha d'accordo com os de Lisboa, mas
como a discussão das medidas a ado-
ptar fosse demorada, a epidemia gal-
gou. O povo aterrorisou-se, pegou a
desconfiar da sciencia dos sábios de
Sevilha e desandou a gritar: male-me
Deus com os meus. . . médicos.
E a coisa pegou. E tanto pegou,
que a repetimos mais tarde, em 1640,
se bem que por motivos diversos. . .
Salta-me outro provérbio já dos bi-
cos da penna: as se:^ões vêem a cavallo
e vão- se embora a pé.
Lma grande verdade, afinal. Vêem
a cavallo, as sezões, porque pouco
basta para as termos. Atravessan-
do uma região pantanosa, podemos
agarra-las.) se bem que a inhalação
do hemato^^oario de Laveran, seja a
maneira menos commum de ter )na-
leitas. Perigo verdadeiro, o da inges-
tão do hematozoario. Em egualdade
de circumstancia se, de dois indivi-
duos, um tiver respirado apenas os
effluvios de um pântano e o outro ti-
ver bebido, sem prévia fervura, a
agua do mesmo pântano, o segundo
terá quasi com certeza as sezões, ao
passo que o primeiro pôde deixar de
tel-as.
E a propósito de sezões, e por não
ir fora da Índole do jornal para que
tenho a honra de escrever, vou abrir
um parenthesis. Revoltava-se o gran-
de Souza Martins contra o uso que
se faz da palavra malária, como sy-
nonima de febres intermittentes palus-
tres ou de sezões. Ha aqui uma con-
fusão flagrante. Em italiano, chama-
A TRADIÇÃO
67
â
-?1
e^LERI^ DE TVPOS P0P11L|1RES
Tamborileiro alemtejano (do concelho de Serpa)
Solicite'
Uà
«í<
A TRADIÇÃO
se malart^i aos effliivios provenientes
das maretthis. Vem o vocábulo do la-
tim mala, que significa lama ou o
que se refere á lama. Não se pode
rubricar com o termo malária a doen-
ça que os eflluvios dos pântanos pro-
duzem: o que é causa da doença,
não pôde servir para designar a pró-
pria doença. Dever-se-hia, portanto,
dizer: febre Je malária.
Já que estou com. as mãos na mas-
sa, vá lá outra observação, curta tam-
bém e também frisada por Souza
Martins. Na nossa linguagem medica
corre a expressão área cattiva., na
acepção do que se evolve de um pân-
tano. De modo algum. Área caltiva
é para os italianos, doutorados em
sezões pela campina de Roma, todo
o território que está sujeito ás ema-
nações de um pântano, toda a área
onde che^a a malária.
E, fechado o parêntesis, volvamos
ao provérbio. Podemos, pois, alcan-
çar sezões quer ingerindo o seu agen-
te especifico d'ellas,quer inhalando-o,
seja pelos effluvios de um pântano
ou pelo revolver de terrenos abando-
nados c incultos, aonde se haja acan-
tonado o miasma tellurico de Colliu.
O tudo está em nos vermos livres
das sezões. São teimosas, de facto.
Depois, os typos das febres intermit-
tentes palustres ou telluricas, tian-
sformam-se com uma velhacaria inau-
dita. Uma quotidiana passa com faci-
lidade a dupla terçã, e por fim, a
terçã perfeita. A terçã demuda, ás
vezes, para quarta ou para quotidia-
na e a própria quarta pôde transfor-
mar-se em terçã. Um circulo vicio-
so.
A quarta! Teimosa até ali. . . Por
isso, os latinos lançavam em rosto
aos seus inimigos, a celebre impreca-
ção: Quartana te teneat. Quarta te
dê...
Entre nós, a imprecação refere-se
á terçã: terçã te dé. . .
A propósito de sezões vem a pello
outro dictado : uma pilula a tempo.,
poupa nove. Quem tiver algum dia
exercido clinica rural, sabel-o-ha bem.
O camponio, assaltado pelas malei-
tas, começa por ensaiar remédios ca-
seiros, aconselhados pelas comadres
ou pelo mostre ferrador: aguaidente
com canella, o cosimento d'eucaly-
pto, as pilulas de teia d'aranha, o
buxo, etc, e quejandas coisas. Mas
as sezões vam ficando. Recorre então
ao boticairo que, é de vêr, lhe co-
meça a metter a quinina no corpo,
estouvadamente, sem nexo. E, toda-
via, uma pilula a tempo poupa nove:
tudo está na maneira de a ministrar.
E' que o camponio desconhece a
vida do hematozoario. . .
Ministrava Torti a quinina em do-
se suíficiente, immediatamente antes
do acccsso. £" o meíhodo romano.
Dava-a Sydenham o mais ionge
possível do acceso a vir, isto c, logo
depois do acceso que passou. P7 o
meíJiodo ingle^.
Aconselham na os francezes 4 a 5
horas antes do accesso. £" o methodo
francCy.
Alguns, dam a dose fraccionada em
duas. A primeira, logo depois do
accesso que passou ; a segunda, 4 a
6 horas antes do accesso que ha de
vir. E' o methodo mixto. O melhor,
para mim. Que por esta forma, a
primeira dose vae ainda dar caça aos
hematozoarios que fiquem no sangue,
após o accesso ; a segunda, vae im-
pregnar o sangue, para que, quando
os parasitas hajam de invadil-o, en-
contrem meio hostil. E' uma guerra
ao mesmo tempo offensiva e defen-
siva. Medicus sujjiciens ad mor bum
cognoscendum., sujficiens ad curan-
dum.
Ao menino e ao borracho põe-lhes
Deus a mão por baixo. . .
Estamol-o vendo, a cada momen-
to. Bebeu um homem a «sua conta».
Sae da taberna, o olhar incendiado,
a face congestionada. Alegre ou triste,
se tem bom vinho; provocador ou
colérico, se tem mau vinho. Pouco a
pouco, por muito que queira apru-
A TRADIÇÃO
69
mar-se, as pernas negam-se-Ihe, ver-
gam e ahi começa o borracho a an-
dar aos honios^ ás synalcphas^ como
vulgarmente se diz, talvez porque,
por comparação com a figura ortho-
graphica, haja supressão de passos: o
borracho quer andar e logo recua...
Insensivelmente, a alegria ou a có-
lera esbatem-se. Ao afogueado da
face succede a pallidez; o suor es-
corre em gottas frias, empasiando-se
nas têmporas; o andar torna-se cada
vez mais embrulhado. K assim, cheio
de anciãs, lá vae aos tropeções, ca-
hindo aqui, tornando a cahir acolá.
Mas, coisa curiosa, as quedas dos
ébrios não teem, em geral, sérias con-
sequências. E por uma lazão muito
simples. Passado o periodo da exci-
tação alcoólica, vem a depressão. A
anesthesia é então completa e com-
pleta a resolução muscular. Relaxa-
dos em extremo os músculos, os
ossos á vontade fogem da causa vul-
nerante, acommodam-se a qualquer
attitiide do corpo, por mais extrava-
gante que seja a queda do bêbado.
Poz-lhe Deus a mão por baixo.
Cahem as crianças em seus folgue-
dos vezes e vezes, durante o dia,
mas também não é muito frequente
que sejam de maior gravidade essas
quedas. As carnes Hacidas das crian-
ças, a sua pouca energia muscular, a
sua acanhada estatura, attenuam de
algum modo o traumatismo.
E' que Deus lhes põe a mão...
no mesmo local dos borrachos.
Bucellas, ;-6-90o.
AUBERTO FIMENT£Xi.
iFilhoy
O SENHOR SETE
(Continuado de pag. 42)
COMECEMOS agora com as quadras
ao «setestrello», palavra que eu
prefiro ortographar assim, a decom-
pôl-a como faz o 'Dicciouario Con-
temporâneo: — «Sete-estrello».
If De resto, rasão dá o ficcionaria^
com a sua ortographia etymologica,
a entendermos que c ainda o Senhor
Sete que improvisa em casa do Povo
essas taes quadras. . .
E útil recordar a algum leitt^r mais
novo, que u setestrello» c o nome vul-
gar da constellação, ou melhor, do
grupo das Plêiades, visinhas, na geo-
graphia celeste, de ^Indromeda e de
"Persen.
As Plêiades eram as sele filhas
d" Atlas, a saber: Maia, Electra, Tay-
geta, Asterope, Merope, Alcione e
Celeno. A' excepção de Merope, que
casou com Sisypho, as demais ou ca-
saram com deuses, ou viveram com
elles... en faux ménaf^e, como di-
zem os francezes! Depois de mortas,
as sete irmãs foram metamorphosea-
das em estrellas, e teem no céo, como
já disse, o nome de Plêiades, deri-
vado de Pleione, uma das Oceani-
des, mamã das sete manas.
Outros dizem que a palavra vem
do grego pléó, (se não havia de vir
do grego!) que quer dizer «aw^^-ar,
— porque semelhante grupo c visí-
vel numa epocha favorável á nave-
gação — no mez de maio.
Mas isso é lá com os sábios, e d'isso
não quer saber o Senhoi Sete.
Elle que começa. . .
O setestrello vae alto,
Mais alto vae o luar,
Mais alta vae a ventura
Que Deus tem para me dar.
Os setestrellos cahiram
No espelho da viola,
Lembre-se, minha menina,
D'este coração que a adora.
Os setestrellos vão altos,
A lua já embarcou,
Abra-me a porta, menina,
Que ha sete horas que aqui estou. '
1 ... Bem diz o dictado que o Setestrello é maga-
não I. . .
70
A TRADIÇÃO
Os setestrellos vão altos,
\'ão direitos á trindade,
Oh quem dormira um somninho,
No teu colo á liberdade I
Os setestrellos nasceram
Virados para o poente,
Oh quem dormira um somninho,
Comti^o. rosa innocente 1
Os setestrellos cahiram
No meio do meu regaço,
Não faças caso de mim.
Que eu de ti já o não faço.
Setestrello que rondaes
Pelo céo a toda a hora,
Recolhei-vos, setestrellos,
Que eu quero rondar agora.
Os setestrellos vão altos
Na cobertura do céo,
Em tudo és do meu gosto.
Até no pôr do chapéu.
O' setestrello que andaes
De noite n'essas alturas.
Dae-me novas do meu bem.
Que eu d'elle não sei nenhumas.
Os setestrellos vão altos.
Vão altos, eu bem os vi,
Quando me fór d'esta terra
Não me despeço de ti.
Eu hei-de me ir assentar
Nos setestrellos da lua,
Ella mesma vae dizendo :
Descança, amor, já sou tua.
Os setestrellos vão altos,
Menina, vá-se deitar,
Que eu já vou fazer o mesmo.
Pois temos que madrugar.
Setestrello vae em pino,
A lua já vae tombada;
As ovelhas do meu amo
Não querem tomar malhada.
O setestrello cahiu
Mesmo á beirinha do tanque,
Quem veio aqui p'ra te ver
Já te tem amor bastante.
Setestrello vae em pino,
E a lua já empinou :
Diga-me lá. ó menina,
A que horas se deitou.
Setestrello vae em pino,
A lua de banda em banda,
Quem me dera adivmhar
Quem no teu sentido anda.
O setestrello gabou-se
Que me havia de enganar
Nas noites de mais escuro
Ou nas noites de luar.
O setestrello cahiu
No espelho do taboado,
Desengane o seu amor,
Não o traga enganado.
Setestrello, -setestrello,
Que passeias lá no céo,
Se te escondes, setestrello.
De paixão me mato eu.
Já o céo não tem estrellas.
Só tem sete a um cantinho :
E' a estrada do amor
Que não tem outro caminho.
Setestrello que rondaes
Lá por esse Douro fora,
Recolhe-te, ó setestrello,
Que eu quero rondar agora.
O setestrello gabou-se
Que me enganou uma vez,
De noite pelo escuro:
Olha o milagre que fez !
O setestrello cahiu
No espelho da viola :
Compadeça se, menina,
D'este rapaz que a adora.
A TRADIÇÃO
71
Perguntae ao setestrello
Que c magano e sabe lêr.
Km que pontos vae a lua
Quando quer amanhecer.
O setestrello tem sete.
Vós, menina, tendes duas,
Alumiam mais as vossas
Que o setestrello as suas. '
O setestrello cahiu
Na açucena do jardim,
Compadeça-se, menina,
De quem está ao pé de si.
O setestrello gabou-se
Que me havia-de enganar.
Logo que elle me avisou,'^
Bem me posso acautelar.
Alto vae o setestrello
Mais alto vae o luar,
Mais alta vae a ventura
Que Deus tem para me dar.
Setestrello, vai em pino,
E o cajado vae virando,
As ovelhinhas de Deus,
A volta que vão levando.
Perguntae ao setestrello.
Que é magano e sabe tudo,
Em que pontos vae a lua
Quando quer fazer escuro.
O setestrello cahiu
N"uma folha de giesta.
Cada vez te quero mais,
Olha que cegueira esta.
O setestrello cahiu
N'uma pedra, ticou coxo,
O lírio com saudade
Logo se vestiu de roxo.
' Nunca se viu maneira mais ingénua de chamar aos
olhos da rapariga duas estrellas...
í Logo que, expressão muito vulgar no sentido de —
visto que: poi: que; uma ve^ que; ia que.
3 E' uma bellesal O caiado está bem de vêr que é a lua;
as ovelhinhas de Deus são as estrellas. D'esta quadra
disse João de Deus que era "linda como a cabeça de uma
creança, simples como a vida dos campos, melancholica
como as planícies do céo».
O' setestrello que andaes
Lá no céo n'essas alturas,
Dai-me novas do meu bem,
Que eu d'ellas não sei nenhumas,
Setestrello setestrello.
Quem olha para ti cega ;
Quando estou ao pé de ti
Não me lembra céo nem terra.
Hei de amar o setestrello,
Deixar o teu coração,
Setestrello não me deixa,
Deixas-me tu sem razão.
(í>intiniia
TRINDADE COELHO.
O HOMEM que toca tamboril e gaita,
em todas as festas religiosas
de arraial (cirios), chama-se tambo-
rileiro.
Assim como n'outras partes do nos-
so paiz apparecem sempre, n'aquellas
festividades, os tocadores de gaita de
folies, e de sanfona, no Alemtejo é
indispensável o tamborileiro.
Creio que, n'alguns sitios, a musica
do tamboril e gaita tem sido substi-
tuida pela dos clarinetes e trombo-
nes das philarmonicas, que hoje ha
em toda a parte. Aqui, porém, ainda
mesmo com a presença da philarmo-
nica, o tamborileiro faz-se ouvir em
todos os cirios, ou festas d'arraial, e
romarias aos santos. (lanha «um quar-
tinho e collete cheio», isto é: mil e
duzentos réis e de comer — o mesmo
que sempre ganhou. E' honesto o
tamborileiro, porque não se tem vali-
do das differenças de cambio, nem
da carestia dos géneros, para exigir
augmento de salário ; ou então tem
receado a concorrência das philarmo-
nicas. . .
Os instrumentos que toca, como
72
A TRADIÇÃO
se vê da gravura, são : o tamboril,
fabricado por elle próprio, e a frauta
doce, ou tibia, que elle também fa-
brica e que é, não do sonoro buxo,
mas do sabugueiro, cujas hastes com-
pridas e sem miolo se facilitam a esse
rim. Sopra se a frauta por uma bocca,
como a dos assobios e pifanos, aberta
n'uma das extremidades. Na outra
extremidade tem três buracos para
os dedos annuUar, médio e index, e
um outro buraco ainda, por baixo,
para o pollegar ; o dedo minimo se-
gura o instrumento.
E' o mais rudimentar e primitivo
de todos os instrumentos que conheço,
a flauta — cantada por Virgilio e Ca-
mões, nas suas éclogas, e quiçá por
muitos outros poetas. Por alguns é
ella classiricada de invento pastoril ;
e a sua musica, aprazer agreste do
camponez», «som grato aos ouvidos
dos Faunos e que desafia os amores
pastoris».
Ser tamborileiro foi sempre de ex-
clusiva competência dos cabreiros.
Hoje são raros os tocadores de tão
primitivos instrumentos, que decerto
vão desapparecer dentro de breve tem-
po. O tamborileiro é um typo original
que daqui a pouco acaba, mas que,
mercê da Tradição, não será con-
siderado como o mytho do deus
Pan, ou como uma lenda phantasiada
por poetas bucólicos.
Noutro tempo não se encontrava
rebanho algum de cabras, nas exten-
sas serranias d'este concelho, cujo
pastor não tangesse uma dessas
frautas
«do pastoril rebanho doce allivio»;
hoje, nem um só pastor continua a
tradição.
O repertório, aliás pequeno, do
tamborileiro vae ser publicado nas
paginas desta revista, devido á obse-
quiosa deferência do meu amigo e
distincto musico compositor, o Snr.
Manuel de Jesus Gentil-Homem Val-
ladas. O qual — apesar da vaidosa
opinião dum tamborileiro, de que
nenhum musico tinha capacidade para
imitar as suas variações (sic) — reco-
lheu, n'uma rhapsodia de musicas
populares d'aqui, os diversos toques
da frauta, acompanhados a tamboril,
que breve serão estampados na Tra-
dição.
iSerpa).
A. DE raEI.1.0 BREITNER.
A LENDA DAS ARMAS DE ELVAS
O POVO é useiro e vezeiro em de-
turpar muita cousa. Está-lhe
na massa do sangue. Todavia, e tal-
vez por isso mesmo, por que rejeita
as origens vulgares, elle é depositário,
o melhor depositário até, das cousas
mais bellas e lindas. Amigo entranha-
do do maravilhoso, claro está que em
tudo que cria na sua tão poética ima-
ginação, põe sempre o romanesco,
se não o fabuloso, accommodado com
a simplicidade.
A lenda das armas de Elvas é de
estas criações engenhosas. Algo ro-
manesca, com seu quê de tocante,
ella conta, pelo menos, uns cinco sé-
culos de existência, e ainda não pôde
derrubal-a a historia. E' que ás ve-
zes, nas tradições populares, também
ahi ha mais força de rasão que em
velhos pergaminhos de certos histo-
riadores. São cousas.
Ora, rezam as chronicas que quem
deu a Elvas, ao tempo ainda villa, o
brazão que possue, e que consta,
como sabem ou podem saber, de um
fidalgo a cavallo, empunhando um
estandarte tremulante, foi D. Sancho
II, o Capello, conquistador de essa
terra aos mouros. Os próprios elven-
ses o pediram ao rei, á imitaçL<o de
vários outros habitantes de muitas
mais villas e cidades até. Nada mais
natural. Também elles queriam illus-
trar sua terra com o luzimento de
umas armas só suas. Por isso, D.
Sancho, não só como em prova, que
podemos chamar uma prova rç.al^ da
A TRADIÇÃO
73
_.Jí->»<<~íLé.
C^píGIOpíEI^O jMIÍSIG^L
O toureiro novo
•"VH-y
(CHOREOGRAPHICA)
Mv
A TRADIÇÃO
muita attenção que ligara a tal pedi-
do, mas ainda em evidente signal de
entranhada svmpathia para com a
villa de Elvas, que lhe custara a ga-
nhar, respondeu de este modo áquel-
les supplicantes. apresentando-se-lhes
bellamenle a cavallo e com a ban-
deira dos seus estados na mão :
— Por armas aqui me tendes a
mim.
Veiam que requinte de galanteria!
Se o marido de D. Anna Lopes de Ila-
lo e amante de Maria Paes merecia es-
sa ameaça de feroz excommunhão que
o IX Gregório, representante de S.
Pedro, ousou dirigir-lhe, sem dez réis
de cortezial Temos conversado. O
que sua magestade quiz dar a enten-
der bem alto e em bom som, foi que,
além de se dignar dizer que sim ao
pedido, até se ofTerecia, equipado e
armado, para o modelo do referido
brazão. Muito cortez ! Pois se elle
bem o disse e o deu a entender, os
de Elvas melhor o fizeram.
Isto é um facto, é histórico, real,
mas a boa da tradição popular narra
o caso de maneira differente. Quem
conta um conto, accrescenta-lhe um
ponto. Diz ella que em certa occasiao
um esforçado cavalleiro, cujo nome
se perdeu, apostara com outros que
no dia da procissão do Corpo de
Deus. iria de Elvas á cidade de Ba-
dajoz arrebatar das mãos de quem
quer que o levasse na procissão, o
estandarte hespanhol, e que o traria
para Elvas. Uma aposta dos diabos.
Fosse, no emtanto, porque o hou-
vesse jurado pela honra da sua linda
dama, ou porque quizesse de tal
arte proceder por amor da gloria, ou
do premio, se o havia na aposta ; o
que é ceito é que no dia marcado o
esforçado cavalleiro, incapaz de fal-
tar, montou o seu possante ginete, e
partiu como um raio a caminho de
Badajoz. Antes, porém de largar
nesse louco gallope acenou amoroso
para um alto balcão, como quem se
despede d alguém. E alguém estava
lá, com effeito, que de lá lhe respon-
deu, não menos amorosa, uma mão
alva e bem torneada, agitando um
lenço branco por entre as gelosias.
Devia ser de manhã. Na antiga mu-
ralha de Elvas, espalharam-se bas-
tantes curiosos attrahidos por aquelle
successo. O audaz cavalleiro lá ia.
Elles viram-no desapparecer total-
mente, e ficaram-se a esperal-o n'uma
grande impaciência. O caso não era
para menos. Mas uma hora decorreu
arrastada, depois outra hora, três ho-
ras SC foram, e não havia novas, nem
mandados do heroe. Claro está que
começavam a desesperar, duvidando-
se até do bom êxito da empreza.
Quem espera, desespera. N'isto, fe-
lizmente, como não pequeno calmante
para aquelles corações impacientes,
distinguiu-se no azul do horisonte
uma nuvem de poeira, nem grande
nem pequena. Era um prenuncio de
que alguma cousa vinha lá. Vinha.
Todos os olhares se fixaram n'esse
ponto, anciosos como peitos namora-
dos, muito febris como almas nostál-
gicas; e não tardou muito que alguém
affirmasse que era um guerreiro, um
cavalleiro que lá vinha, por que á luz
coruscante do sol se via dardejar-lhe
a armadura polida. Tudo se agitou
ainda mais. Foi um reboliço, um per-
feito pandemonium. Mas d'ahi a pe-
daço, quando aquella multidão houve
do facto a completa certeza, e viu
toda ella, ainda que muito a distan-
cia, não só o guerreiro, o cavalleiro
portuguez, mas também o estandarte
de Castella, que este trazia, conforme
a aposta, então é que o tumulto to-
cou o seu auge. De todos os lados
retumbaram vibrantes as acclamações
de alegria e triumpho, e logo soaram
atabales e trompas. Até as gelosias
de aquelle balcão para onde o caval-
leiro, cu)o nome se perdeu, dissera o
adeus amoroso, se entreabriram de
novo nevroticamente, e a mesma mão
alva e bem torneada agitou outra vez
o seu lenço côr de neve.
(Continua)
AI.FREDO DE PRATT.
A TRADIÇÃO
AS BOAS-FESTAS
iContinuudo de pag. 44)
OLNTRUDO (introituo) com os seus
três dias gordos (domingo, se-
gunda e terça) c o período livre que
tica antes da quaresma, (quadragé-
sima) após os quarentas dias da qual
começa a semana dos perdões {hebdo-
mada indul^entiae)^ um dos nomes
porque é conhecida a semana santa.
O periodo quadragesimal com o seu
tabu polynesio applicado pela igreia
á carne e seus derivados era na ver-
dade para os crentes íroiirmets tem-
po amargo de expiação. Não facil-
mente se illudiam os preceitos eccle-
siasticos, porque, alem do que a in-
triga e o escrúpulo religioso bolsavam
nos confessionários, que vinham a
ser os melhores fornecedores do tri-
bunal do santo otiicio, os contractos
dos açougues públicos principiavam
em dia de paschoa e terminavam em
terça feira gorda do anno seguinte.
Pelo que os nossos antepassados fa-
ziam provisão dos prazeres da carne
que lhes havia de faltar durante 40
largos dias. Verdade é que os enter-
ros do gallo e do bacalhau e a serra-
ção da velha não passavao e em parte
não passam de uma continuação das
loucuras do entrudo ou carnaval i car-
ne vale :).
Hoje o entrudo tem aspecto um
pouco diverso do que antes era em
virtude do augmento de diversões. As
laranjadas, prohibidas severamente
por decretos reaes, ainda hoje teem
raizes, as farelladas ou sujar o fato
com pós (farinha), representando um
rito primitivo, ainda não terminaram.
A estas diabruras usadas no entru-
do tem successivamente acrescido
o emprego de mascaras, danças, car-
ros enfeitados e outras cousas usa-
das em festas populares religiosas, e
que tem vindo abrigar-se gradual-
mente debaixo do estandarte do car-
naval. Demorei-me a considerar o en-
trudo unicamente para demonstrar
superficialmente que elie c uma testa
popular produzida como reacção con-
tra as severidadcs quaresmaes; e, co-
mo tal reacção, o uso do alimento tor-
nava se immoderado perfilhando cer-
tos typos de comida aue ainda hoje
são conservados nas ooas festas. O
sr. Adolfo Coelho na Rev. dKthnol.
e de (jlott., pag. 5;, transcreve um
soneto attribuido a Serrão de Castro
(ainda vivo em ió83) donde pode-
mos aproveitar o seguinte :
Filhos, fatias, sonhos, mal assadas
Gallinhas, porco, vacca e mais carneiro,
Os perus em poder do pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;
Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despejar pratos, e alimpar tijellas.
Estas as testas são do gordo entrudo.
10. Os aforamentos em prazos de
três vidas impunham aos emphvteutas
a obrigação de etfectuarem os paga-
mentos em certos dias. A escolha
desses dias não era arbitraria, pois
os mais notáveis na igreja recebiam
ao mesmo tempo consagração nos
actos civis. Como os senhorios dire-
ctos dos prédios erão na maior par-
te das vezes as communidades ou di-
gnidades ecclesiasticas que para com-
modo seu tinham perfilhado aquelle
systema económico, que as dispen-
sava dos mil cuidados de que a agri-
cultura carece, não é de extrannar
que os dias festivos do calendário
catholico fossem os preferidos e ado-
ptados nos usos seculares. Quem sa-
be, porém, quantas festas não forão
impostas á igreja? O natal de Christo
foi escolhido em 24 de dezembro (á
meia-noite) para occultar festas pa-
gans, festas substituídas não só pela
serie do dia de natal ao dia dos Reis
(dodecameyon., 12 dias^ mas também
pelas especiaes de S. Nicolau (6 de
dezembro), S. Gregório (^24 de dezem-
bro^ S. Estevão, festejado com a elei-
ção dum bispo a 26 de dezembro, (se-
gundo documentos que ainda não pu-
A TRADIÇÃO
bliquei"^ e dos Innocentes ' (28 de de-
zembro). Tudo isto são festas infantis
que svmbolisão tanto o augmento dos
dias como o definhamento das noites.
A noite do natal era chamada, pelo
seu tamanho e pelo facto que recor-
dava, mater jwctium. \'oltando, po-
rem, ao nosso ponto de vista temos
entre outros dias principaes para o
pagamento das pensões os seguintes:
S. João (24 de junho), S. Maria de
agosto (i5), S. Miguel de setembro
(20), S. Martinho (i 1 de novembro),
natal e finalmente a paschoa'.
Com o intuito de mostrar a ana-
logia dos actuaes presentes das boas
festas com o que se dava de pensão
antigamente, transcrevo aqui na or-
thographia corrente (conservando as
formas da lingua), parte dum docu-
mento de 6 de setembro de 1371,
pertencente ao cartório de S. Vicente
de Fora de Lisboa e que hoje se con-
serva no Archivo Nacional, Caixa 100
da Collecção Especial. «Dedes a nós
de renda e pensam em cada um anno
por o dito Casal, dous moios de pam
meiado de dez e seis alqueires o quar-
teiro, bÕo pam, recebondo, limpo da
paa e da vasoira, em na eira do dito
casal, por dia de santa Maria dagosto.
E outrosi dardes em cada um anno
de foro um carneiro e um par de
cabritos e uma dúzia dovos e uma
dúzia de bollos alvos e uma dúzia de
queixadas (queijadas) por dia de pas-
choa de Resurreiçom, e fazerdes as
pagas de todo por esta guisa convém
a saber : o pam por dia de santa Ma-
ria dagosto, esta primeira que vem,
e os cabritos e carneiros e bollos e
queixadas e ovos por dia de páscoa
de Resurreiçom logo seguinte, e assi
d"ahi em deante em cada um dos ou-
tros annos por os ditos dias, como
dito é.»
(G>ncluej
PXDRO A. D'AZ£V£DO.
1 E' o que se chamava episcf>p3tus puero-
rum.
A caça no concellio de Serpa
(Continuado de pag. (ii)
O CAÇADOR precisa do cão. O cão
foi sempre o amigo fiel do ho-
mem ; e para o caçaaor, alem de
amigo e fiel companheiro, é de abso-
luta necessidade.
Procura-lhe a caça, levantando-a
dos seus acolheitcs; cobra-a quan-
do vae ferida, e traz-lh'a á mão
muito satisfeito, se conseguiu apa-
nhal-a ; ou. quando se trata de caça
grossa, chama o caçador com repeti-
dos ladros para que venha acabar
de matar o animal perseguido e afi-
nal acuado.
E' o cão o animal mais amigo de
seu dono: segue o e defende-o em
todas as occasiões, e quando o perde
de vista, procura-o pelo rasto até en-
contrai o; e se por qualquer circums-
tancia o não encontra, lamenta-se ui-
vando. Anima o caçador dando-lhe
signaes certos da proximidade da
caca: arrisca-se a tudo, quando seu
dono o manda e o incita a acommet-
ter, c volta humilde e alegre quando
é chamado.
Ha cães com o olfacto apuradissi-
mo. O grande caçador alemtejano
Senhor José Paulo de Mira, no seu
folheto sobre a caça ao javali, im-
presso na typographia do Governo
Civil d' Évora em 1874, diz, a pag.
20: '«Ha cães mestres com tanta
precisão e olfato que chegam a ir
cobrar de ferido de um até três
dias. O cão mestre, quando se dei-
ta um guizo ou chocalho, já conhece
o fim da caçada a que vae; já tenho
visto caçador tendo um só cão, e
com elle caçar a toda a qualidade
de caça ; andando pois na caça miú-
da e encontrando qualquer rasto de
porco que o dono queira seguir, logo
que pega no chocalho para lh'o pôr
ao pescoço, empina-se o cão ao do-
no, dando lhe todos os signaes de
contentamento e segue logo no ras-
to do porco sem mais se lhe im-
A TRADIÇÃO
7?
portar a caça miúda, se esta por acaso
lhe salta adiante.»
Isto mesmo, todos os caçadores
que tenham frequentado a caça terão
observado. Os meus cães, bastava
ouvirem mexer nos chocalhos, Á sa-
bida para a caça grossa, para desde
logo darem signaes de contentamento
e não se lhes importar a caça miúda.
Como as ditíerentes espécies de
caça se encontram simultaneamente
em quasi todos os terrenos do con-
celho, resulta, que os caçadores, que
na maioria não podem sustentar mui-
tos cães, preterem os que servem
para todos os terrenos e espécies de
caça. Por esta rasão, não se apuram
as castas e preferem-se os mestiços
de raças diversas.
Na caça miúda, a gente do campo
emprega muito os cães pequenos —
gósos de vários feitios, mestiços de
qualquer espécie ; procurando toda-
via que sejam filhos de cães bons,
em obediência á máxima de que —
quem quer bons cães de caça, busca-
llic a raça.
Neste género, os malhadeiros e os
coiteiros teem cães de muito mereci-
mento. Quando eu comecei a caçar
— ha uns cincoenta annos — conheci
aqui uma raça de cães que se tornou
celebre por sahirem todos bons. Eram
baixos, de pernas curtas e um tanto
arqueadas, e tinham o corpo despro-
porcionalmente comprido. Esta raça
tornou-se notável, e aindahojesefalla _
nella. N'uma das malhadas do con
celho habitou um casal de velhos que?
por sua avançada edade, não podiam
já trabalhar activamente para anga-
riarem os meios de subsistência. A
providencia, porém, deparou-lhes uma
cadella, que elles tinham creado sem
o intuito da caça, mas que sahiu tão
bôa, que os ajudou a viver por mui-
tos annos. Quando precisavam de
comprar qualquer coisa, a velha, com
a sua roca á cintura e um boccado
de pão no regaço, chamava a cadella
e dirigia-se aqualquer eminência mais
próxima da malhada. Chegada lá, ati-
rava com uma pedra para o matto e
afcridava^ a cadella, que logo ia pro-
curar os coelhos, apanhando todos os
que se lhe levantavam e levando os
em seguida á dona, a qual retribuía
o animal com um pouco de pão, le-
vado para esse fim.
Isto repelia se tantas vezes quantas
a malhadeira considerava necessárias
para, com o producto da venda dos
coelhos, occorrer ás suas precisões.
Divulgadas as qualidades da ca-
della, todos os caçadores quizeram
possuir cães d'aquella raça; disputa-
vase a posse de quantos filhos a ca-
della tinha, pagandoos logo á nas-
cença por um pinto ou cruzado novo
— 480 réis — e ainda com a circumstan-
cia de ser preciso ama para os crear.
Muitos outros cães conheci depois,
com qualidades apreciáveis, tanto
para a caça grossa como para a caça
miúda. Uma cadella tive eu, tão boa
e tão amiga de caçar, que, d'uma
vez, e apesar de recentemente parida,
não foi possivel obstar a que ella me
seguisse numa caçada, reajisada du-
rante a semana de comadres, aqui na
serra. Eu mandara-a fechar n'uma
casa, antes da partida; mas logo que
a soltaram, muito tempí? depois, a
cadella procurou o rasto dos outros
cães e ainda foi juntar-se-nos antes
de havermos chegado ao nosso des-
tino, que ficava a três ou quatro lé-
guas de distancia. E todos os dias,
invariavelmente, á hora em que co-
meçávamos a caçar lá se achava a
cadella ao lado dos outros cães.
Por isto julgava eu que os ca-
chorros tivessem morrido de fome,
abandonados pela mãe. Mas não. Ao
regressar, soubemos com grande es-
panto que a cadella, percorrendo
uma distancia immensa, vinha todas
as noites ao monte e alli se conser-
vava até de madrugada amamentando
os filhos; retirando-se a tempo de
se achar sempre no seu posto á hora
precisa!
^ Aferi d ar — dar com certa intimativa a
voz de — fe-ri-do !
78
A TRADIÇÃO
A vários malhadeiros conheci go-
sos, que apanliavam todos os coelhos
que se lhes levantavam, perseguin-
do-os até se renderem.
Alguns caçadores teem tido perdi-
gueiros bons e podengos de apuradas
castas, como ao diante direi. Também
sempre aqui tem havido quem pos-
sua galgos, mas não para fazer as
caçadas próprias d'estes cães — caça-
das a cavallo com bons cavallos, sal-
tando valias e barrancos, como n'ou-
tras partes se faz. Ha quem se sirva
delles para levantarem as lebres, que
depois são mortas á espingarda. O
Ex.'"" Conde de Ficalho sempre tem
tido na sua casa de Serpa alguns gal-
gos bons, especialisando um galgo
preto com que nós muito caçámos
quando ainda não tinhamos licença
de usar espingarda.
Para a caça grossa, e principal-
mente para a dos javalis, nem todos
os cães pegam; os melhores são os
rafeiros alemtejanos ou os mestiços
de rafeiro e podengo, e ainda os sa-
bujos (cruzamento de diversas raças).
Os cães pequenos, poucos sahem bons
para esta caça ; entretanto, alguns
conheci de' primeira ordem.
'Continua.)
A. de M£I.I.O BRElfNXn.
HOIIAS-ESTRIBILHOS ALEJITEJANAS
o TOUREIRO NOVO
O' toureiro novo
Lá de Montemor !
Dizem n'os de Beja
Que o nosso é melhor.
Que o nosso é melhor,
Sempre tem ganhado;
Vá o touro á praça
Para ser picado !
Para ser picado
Sem pena nem dor.
Dizem n'os de Beja
— Viv'ó picador!
M. OIAS NUNES.
CONTOS ALGARVIOS
o REI SÁBIO E CEGO
(Continuado de pag. 63)
BOGo que o menino se approximou
do palácio, sairam-lhe ao encon-
tro as três meninas e pozeram-se ás
suas ordens. Neste momento chegou
um velho cego, que lhe falou amavel-
mente. Contou-lhe o menino o moti-
vo da sua jornada, e então o velho
aconselhou-o que ficasse alli todo o
dia, e só no dia seguinte entre as
onze e doze horas fosse buscar a
agua em duas garrafas, que elle lhe
offereceu.
No dia seguinte, á hora designada
pelo velho, foi o mancebo buscar a
agoa nas duas garrafas, com tanta
felicidade que os bichos tinham des-
apparecido, correndo depois atraz
d'elle, mas não o alcançando. O ve-
lho, logo que sentiu o trotar do ca-
vallo, disse para as filhas:
— Troquem, sem elle perceber, as
duas garrafas de agua, por outras
com agua commum.
E assim succedeu.
Quando o menino saiu, disse-lhe o
velho — «se em algum dia fôr ferido
de morte, peça em nome de Deus,
que depois de morto o dividam em
quatro quartos e que os ponham so-
bre o seu cavallo, mandando-o par-
tir.» Estavam, o gigante e a princeza,
á janella do palácio, quando aquelle
avistou o mancebo no seu cavallo.
— Lá vem elle, vou esconder-me
no alçapão.
A TRADIÇÃO
79
— H' o diabo que o traz, respon-
deu ella, deitando-se na cama e fin-
gindo-se com a dòr.
(Concluc.)
ATHAIDE D OLIVEIRA.
BIBIiieôRAPMIft
'liejlexos (poesias), por J. R;imos Coelho.
— aó hoje — devido á exiguidade do espaço
a que lemos de limitar o registro bihliogra-
phico — podemos fazer menção do precioso
volume cujo titulo nos serve de epigraphe,
e com o qual distinguiu a Tradição^ ha já
longo tempo, o seu iliustre auctor.
O novo livro de versos do Senhor Ramos
Coelho — versos lyricos, muito doces, muito
sentidos, e d'um agradabilissimo sabor clás-
sico — compõe-í.e de 55 peças, finamente cin-
zeladas, afora uma rica collecção de bonitas
quadras imitando as populares.
Com a publicação dos 'liejlexos comple-
tou o laureado académico — que foi dis-
cipulo querido do grande Castilho — a lumi-
nosa trilogia iniciada com os Lampejos e
depois continuada nos Cíimbiantes.
Profundos agradecimentos.
.n/i.svr/\7.v da carne^ por Júlio de Lemos.
— O primoroso estylista da (£Myosoti$, e das
Campesinas, Júlio de Lemos, deu ultima-
mente á estampa, em gracioso opúsculo, um
conto realista — (yV/Lfcr/t?,"» da carne anato-
mia social). E' um esplendido trabalho de
observação e analyse, bem pensado, bem ur-
dido, e admiravelmente escripto n'aquella
linguagem aprimorada e vernácula que ca-
racterisa todas as composições do elegante
prosador.
Parabéns ao Júlio de Lemos.
Subsidias pára um diccionário geográphico,
pelo Doutor Cândido de P"'igueiredo. — Lemos
attentamente o valioso opúsculo em que o
Senhor Doutor Cândido de Figueiredo col-
ligiu — extrahidos do seu monumental Novo
Diccionário da Linfjua Portuguesa — nume-
merosos vocábulos «que andam adulterados
ou incorrectamente reproduzidos na lingua-
gem oral e escripta e ainda outros, cuja for-
ma otíerece variantes mais ou menos admis-
siveis».
Dada a superior competência do auctor,
e o seu nome justamente aureolado, desne-
cessário se torna encarecer o mérito de tão
útil livrinho, que muito penhoradamente
agradecemos.
Aproveito o ensejo para testemunhar ao
erudito philologo, e infatigável cultor das
lettras pátrias, o meu reconhecimento pela
antiga ofFerta do seu mimoso e captivante
(í-irminho.
Tratado pratico de therapeutica moderna^
pelos Doutores Oliveira Castro e Cárdia Pi-
res. — Dos abalisados clinicos c talentosos
escriptores Senhores Doutores Oliveira Cas-
tro e Cárdia Pires, recebemos um exemplar
do seu livro Tratado pratico de therapeutica
moderna, que tantos e tão rasgados elogKis
tem merecido da imprensa e das mais consi-
deradas auctoridades medicas do nosso paiz.
O substanci<jso volume, que contém perto
de Híxj paginas in-H.", foi distinctamente edi-
tado pela acreditada «Empreza litteraria e
typographica» do Porto, e custa i^5ooréis.
Em nome do nosso collega de redacção,
o Doutor Ladislau i-*içarra, agradecemos re-
conhecidos a gentileza do otlerecimento.
LThiniamle Nouvelle. — Honrou-nos com
a sua visita esta conhecida revista interna-
cional, illustrada, de sciencias, artes e let-
tras, que se publica em Paris sob a direcção
scientifica do Doutor Hamon, o celebre pro-
Éessor da Universidade Livre de Bruxellas, e
sob a direcção litteraria de Mr. V. Emile-
Michelet — dois insignes publicistas, univer-
salmente conhecidos e apreciados, cujos no-
mes constituem segura garantia do altissimo
valor de i Humanité Nouvelle.
Como é Sabido, a esplendorosa revista
apparece mensalmente em volumes de cerca
de i5o paginas cada um, in-8.", inserindo
conceituosos artigos — firmados por notabi-
lissimos escriptores de todos os paizes — so-
bre assumptos diversos: sciencias mathe-
maticas, physicas, geo^raphicas e biologi
cas; lettras; artes; sociologia; philosophia,
religião etc, etc.
Em troca do afamado mensario enviamos,
com muitos agradecimentos, a nossa mo-
desta Tradição.
Para as creanças. — Prosegue brilhante-
mente em sua gloriosa carreira a magnifica
publicação Para as creanças que, com toda
a proficiência, a Senhora D. Anna de Castro
Osório redige. O próximo numero 7, rela-
tivo ao mez de maio do presente anno, ini-
cia já a 7." série d'esses mimosos iivrinhos
de contos e historias, que são o maior e mais
vivo encanto dos ingénuos espíritos infantis.
Nós que professámos pelas tradições po-
pulares da nossa terra, a mais funda venera-
ção e o mais fervoroso afiecto, e que, por
isso, fomos dos primeiros a applaudir com
enthusiasmo, na imprensa, ha ja três ou qua-
tro annos, a arrojada iniciativa da scintil-
lante escriptora, — congratulamo-nos muito
intimamente pelo êxito extraordinário da
benemérita publicação, que não tem rival na
peninsula.
Infinitos emboras á inspirada contista da
Alma Infantil.
Société scientijique de Chevtchenko. — A
esta iliustre sociedade austriaca, de Lem-
berg, devemos a remessa, em permuta com
a Tradição., de vários tomos do seu impor-
tante boletim, contendo apreciáveis estudos,
realisados pela secção ethnographica d'aquel-
la academia.
M. DIAS NUNES.
hO
A TRADIÇÃO
BULLETIN POUR L'ÈTRANGER
LA TRADITIOH
ReYoe meDsiieile lllQsiree d'6iliDograptile poriugalse
DIRECTEfRS
Lh.íisLtií T^içurra et T>ias V\imes
KKDACTION ET ADMINISTRATION
À SERPA ^PORTUGAL)
Som[n.iirf du présml numero de la Tradition
T6XtG ; — L^'s proverbes et la
medecine, par oAlberto Pimentel^
íVilio (Dr.);
Monsieur Sept (suite), par Trin-
dade Cotlho (Dr.);
Lc tambourineur, par (yí. de
Mello Breyner;
La legende des armes d^Elvas,
par QÂlfredo de Pratt;
Les Bonnes-fôtes (suite), par Pe-
dro ZA. d'QÂiepedo;
La chasse dans le district de
Serpa (suite), par A. de oMello
Breyner;
Chansons, refrains de l'Alem-
tejo : Le «toureiro» (combattant
des taureaux) nouveau, par oM.
Dias \unes;
Histoires de TAlgarve: Le roi
savant et aveugle (suite), par
Athaide d' Oliveira (Dr.) ;
Bibliographie, par oM. T)ias
C\^unes.
IllUSlraliCrS : — Galerie de cos-
tumes populaires : Tambourineur
de TAlemtejo.
Recueil de chansons: «Le tou-
reiro» * combattant de taureaux)
nouveau í^musique).
Ti.
BULLETIN FOR ABROAD
Honttily lllustraied revjew of ponuguese eiliiiograpliy
DIRECTORS
Ladisliiu '^Piçarra and 'Dias V^iines
OFFICES
SERPA (PORTUGAL)
Summary of lhe prtsptit nunibfr of the Tradilion
TeXt ; — The proverbs and the
medicine, by (lAlberto ^Pimentel,
filho (Dr.);
Mister Seven (continuation),
by Trindade Coelho (Dr.);
Tre tabourer, by QÂ. de oMello
^rtjner;
The Elvas' legend of arms, by
Alfredo de Pratt;
Happy Christmas (continua-
tion), by 'Pedro A. d' Azevedo.
The sohoting in the Serpa dis-
trict (continuation), by A. de Mello
breyner;
Songs and refrains from the
Alemtejo : The new bull-íighter,
by M. Dias U^unes ;
Tales from the Alemtejo : The
wise and the blind king (conti-
nuation), by Athaide d' Oliveira
(Dr.);
Bibliography, by M. Dias Nu-
nes ;
lllUSlraUonS :- Galleryof po-
pular costumes : Tabourer from
the Alemtejo.
Musical collection : The new
bull-fighter (dancej.
A.nuo II — N." <5
SERPA, Junho de 1900
^'t»! IIIII4' II
Editor-adminlstrudor, Joif Jeronymo da Coita Bravo de Sei:reirns, Kiia l.arga, 304 — SKRI'A
Typ. de Adolpho de Mendonça, Hum do Corpo Santo, 4b e 48 — LISBOA
nmm
Itevishi nioiisal il hlliii(i({rii|iliiii Poiiiiijiicza, llliislraila
ir»rt iiT^-a ft-Q
Directores :-LÃl)ISIiÃU PIÇARRA e IL DIAS irviII^lS
NOTAS HISTÓRICAS ACERCA DE SERPA
IV
População de Serpa em lenipo dos moiros
•^íjl o momento da invasão mussul-
-i— C mana, Serpa — como toda a Pe-
nínsula — era habitada pelos hispano-
godos. Haveria talvez entre estes al-
gumas familias mais nobres, nas
quaes predominava o sangue godo
ou germânico; e havia a gente do
povo de sangue hispano-romano, se
por esta expressão designarmos o
producto da fusão de todas as ve-
lhas raças, unidas e caldeadas sob o
dominio dos romanos.
Nobres e povo seguiam egualmcnte
a religião christan e catholica. K' bem
sabido,comooChristianismoteveuma
larga expansão na Hespanha, logo nos
primeiros séculos da Igreja e durante
te o dominio romano ' ; e por ou-
tro lado, os visigodos haviam aban-
* Vem a propósito recordar uma tradi-
ção, relativa á christandade de Serpa em
tempos romanos. Diz-se. que S. Proculo, e
S.'o Hilanão seu sobrinho, habitavam umas
casas térreas e pobres no bairro do Castello
Velho, quer dizer, na parte alta da villa, en-
tre o que é hoje o adro de S.^a Maria, e o
que é hoje a Porta Nova, porque o castello
agora chamado Castello Velho evidente-
mente não existia. Eram ambos catholicos
zelosos, e em tempo do imperador Trajano,
governando n'esta parte da Península Marco
donado a heresia ariana e adoptado
o catholicismo pouco antes da entrada
dos moiros. Serpa era, pois, uma
povoação christan e catholica, tanto
nas altas como nas baixas classes.
No principio do VIII século, os
mussulmanos, vindos da Africa, oc-
cuparam toda a Andalusia e portanto
Serpa. E' provável, que algumas das
familias principaes c mais ricas da
povoação fugissem deante da invasão ;
mas é certo, que uma grande parte
do povo ficou, acceitando o dominio
dos moiros, contra o qual, em conse-
quência da sua humildade e pobreza,
não podia protestar, nem pelas ar-
mas, nem mesmo pela fuga. Ficou
assim uma base da antiga população
christan, subordinada aos moiros, pri-
vada das suas propriedades, que fo-
ram distribuídas aos soldados dos
exércitos invasores, e constituída por
simples operários ou trabalhadores
ruraes — estes eram os chamados mo-
Aurelio Máximo, solTreram martyrio pela
fé em um sitio fora da villa, junto á horta,
hoje chamada Horta dos Banhos. Toda a
historia vem longamente contada por D.
António Caetano de Sousa, no seu Agiologio
Lusitano^ IV, p. 128 a i33. — E' necessário
advirtir. que outros auctorescollocam muito
longe d'aqui o sitio da naturalidade e do
martyrio d'estes santos, o que contradiz o
mencionado Caetano de Sousa com a sua
habitual erudição. Seja como fôr, a tradi-
ção fica mencionada.
82
A TRADIÇÃO
sarahes. ' Sujeitos aos moiros, mistu-
rados com elles, obrigados a apprcn-
der o bastante da lingua árabe para
se entenderem com os seus senho-
res, adoptaram uma grande parte
dos hábitos mussulmanos. Podemos
calcular quanto aquelle trabalho de
assimilação seria completo, se pen-
sarmos que durou nesta nossa região
perto de cinco séculos, e se fez pelo
contacto, pela educação, e pelos casa-
mentos.- O que nos pode surprehen-
der, é que a assimilação não fosse
mais completa do que realmente foi.
EtTectivamente, não se fez em dois
campos, ambos essencialissimos. Lm
d'elles foi a lingua. Adoptaram-se
dezenasecentenasdepalavras árabes;
mas a grammatica e a generalidade do
vocabulário ficaram sendo latino-rus-
ticas. Esta lingua de origem latina, em
que estamos escrevendo, resistiu aos
ires séculos de dominação germânica
e aos quatro ou cinco de dominação
árabe. Vê-se, pois, que os pobres e
humildes mosarabes continuaram sem-
pre a usar entre si, e no interior das
suas familias, o velho, rude, e imper-
feito dialecto romance, derivado do
latim.
O outro campo, foi o da religião.
E' certo, que alguns hispano-godos,
mesmo de familias nobres, adopta-
ram o islamismo, e este exemplo se-
ria seguido no povo. ^ Em regra, po-
i ;
* Corrupção de mostarib^ nome dado pe-
los árabes aos estrangeiros que viviam en-
tre elles.
* Quando os maiores principes, como Af-
fonso VI, casavam com moiras, ou — o que
é mais — não hesitavam em darem as suas
filhas em casamento ao hajib Al-Mansur, é
certo que as uniões legitimas ou illegiti-
mas entre as duas raças, deviam ser muito
frequentes no povo.
' Ahmed-ibn-Gassi, de quem falíamos na
primeira nota, pertencia a uma familia
christan, tornada moira. No Aragão havia
uns Beni-Casi, muito poderosos, que per-
tenciam também a uma nobre familia goda,
a qual abjurara o christianismo (Dozy, 9^6-
cherches). Se entre os Beni-Casi do Aragão
e os Beni-Cassi do Algarve existia algum
parentesco, é o que não saberei dizer. Pode-
riamos dar mais exemplos.
rém, os mosarabes ficaram fieis ás
suas crenças christans ; e praticaram
a religião catholica, mais ou menos
occultamente, mais ou menos aberta-
mente, conforme a intolerância dos
seus chefes e senhores augmentava
ou diminuia. Deve-se dizer cm abono
dos moiros, que, á parte alguns pe-
ríodos especiaes, elles foram menos
intolerantes do que deixariam suppor
as lamentações das Chronicas chris-
tans. Sabemos de varias igrejas que
ficaram abertas e tacitamente con-
sentidas. * E' possível, que mesmo
na pequena Serpa, alguma igreja hu-
milde, alguma capella modesta servis-
se de ponto de reunião aos chrisiáos;
e o alcaide moiro fechasse os olhos.
Pobres, reduzidos ás condições de
simples trabalhadores, sem nenhuma
iníiuencia politica, mas tendo a sua
lingua e a sua religião, os mosara-
bes conservavam os dois mais pode-
rosos laços que podem unir um povo.
Assim, elles foram dominados, nun-
ca completamente absorvidos pelos
moiros.
Pelo seu lado, os moiros estavam
bem longe de constituir um todo ho-
mogéneo. Nos exércitos e nas immi-
grações, que passaram o Estreito e
se fixaram na Península, vieram ra-
ças muito diversas. Vieram árabes da
própria Arábia; veiu gente da Pérsia,
da Syria, da Palestina e do Egypto;
veiu uma multidão das tribus africa-
nas, conhecidas em globo pelo nome
de berberes. Os christãos da Penín-
sula chamaram-lhes sem distincção
sarracenos, que parece ser a corrup-
ção de uma palavra árabe, significan-
do orientaes ; ou moiros, que era o
antigo nome latino, mauri^ mauros,
dos habitantes da Africa septemtrio-
nal. Os mais cultos, por exemplo os
• Uma das mais conhecidas ficava junto
a Granada, fora da porta de Elvira ; cons-
truida antes da conquista, ao que parece
por um nobre godo chamado Gudila, só foi
destruida séculos depois, no anno de 1099.
Da egreja christan do Cabo de S. Vicente
jã antes falámos ; e é claro que havia mui-
tas mais.
A TRADIÇÃO
Ki
víTn
<
- 'ii^^VÍ/ JK C^jL>o^ ^*'^^^^'^i^'^i^^^^^i^i»v'fc^i^^^»»^M^»»^^^MMMM^»i»w.
.,^^'ífe,
a^LERI^ DE TYPOS POPIÍL^RES
"HíHírt/j^» j<i
Pescador (de Cezimbra)
■(d1?X^EÍ'
&
N^
S4
A TRADIÇÃO
frades que nos conventos do norte
escreviam anno a anno os seus Chro-
?/íto;;s, usaram com frequência a ex-
pressão sarracenos ; mas o nome mais
geral foi o de mouros ou moiros, o
único que se fixou e ainda vive na
memoria do nosso povo. '
Knire estes moiros, os árabes exer-
ceram um certo predomínio intellec-
tual e, nos primeiros séculos, politico,
porque eram os mais civilisados, so-
bretudo porque a sua lingua, mais
culta, acabou por absorver todas as
outras e ser a única usada pelos mus-
sulmanos da Hespanha. Mas, por ou-
tro lado, os berberes tiveram sempre
um grande predominio numérico. For-
mavam a maioria do exercito de Ta-
rik, e depois dos successivos exérci-
tos e levas de immigrantcs, que foram
entrando na Península. E com o an-
dar dos tempos, passaram também a
ter um grande predominio politico.
Ent!"e estas raças variadas houve
sempre rivalidades, e muitas vezes
guerra aberta, sendo esta uma das
causas da anarchia, que constante-
mente perturbou e enfraqueceu a
Hespanha mussulmana. Para as aquie-
tar, tentaram-se por vezes distribui-
ções de terras, nas quaes se estabe
leceram colónias dos difterentes povos.
D. José Conde — que citamos sem-
pre CDm muitas reservas, mas não
podemos deixar de citar algumas ve-
zes — dá-nos noticia de uma d'estas
tentativas, noticia que aproveitaremos
na parte relativa ao nosso assumpto.
Diz-nos, que o amir Huçam-ibn-Dhi-
raral-Kelebi deu terras no Al-Faghar
e no districto de Beja aos arabes-
proprios (árabes da Arabiaj^ e a al-
guns egypcios. Isto é confirmado
* Ninguém no povo sabe hoje que houve
árabes ou sarracenos ; mas todos sabem va-
gamente que houve moiros ; e ha ruinas e
muros do tempo dos moiros ; e ha covas de
moiras encantadas. A tendência mesmo é
para lhes attribuir todos os restos do passado
— os dolmen são geralmente chamados ca-
sas de moiros :
^ A expressão de Conde é «Árabes Vele-
dies u, e esta ultima palavra corresponde a
quanto ao Algarve por Edrisi, o qual
séculos depois assegura, que cm Silves
e seus campos havia uma colónia de
árabes do Yémen, e ali se fallava a
lingua com muita pureza e boa pro-
nuncia. ' Pela mesma occasião, o
amir Huçam deu terras na comar-
ca de Se\ilha e na de Niebla á gente
de Eméssa, a famosa cidade da Sy-
ria, situada entre Aleppo e Damasco.
Estes syrios eram considerados tão
importantes como os puros árabes, e
tidos na conta de muito nobres. Ser-
pa deve ter sido incluida nas conces-
sões feitas em Beja, ou, o que nos
parece muito mais provável por tudo
quanto temos dito, nas feitas em Se-
vilha e Niebla. ^
Poderemos talvez agora, sem pro-
vas nem documentos, mas por con-
jecturas bastante plausíveis, recons-
truir a população de Serpa: constava
de alguns nobres senhores da Syria,
proprietários e influentes, os quaes
recebiam o pesado imposto pago pe-
los christãos, e, com as suas famílias,
constituíam a aristocracia da terra ;
constava de bastantes berberes, por-
que eram tão numerosos que os ha-
via por toda a parte, e pelo andar
dos tempos foram sempre augmen-
tando ; e constava dos christãos mo-
sarabes de que já falámos. Tal deve
ter sido a mistura de raças e de san-
gues, de que descende este nosso povo
do Alemtejo ; e se revela ainda em
vários traços moraes e physicos — na
altivez despreoccupada e fatalista, e
na physionomia, mais berbere, a meu
ver, do que puramente semítica.^
baladi, que significa do próprio paiz., em op-
posição a estrangeiro : oArabes Veledies»
quer dizer árabes da Arábia.
1 Géographie^ II, 21.
2 Conde, Part. I, cap. 33." — O escriptor
árabe, Ibn-al-Khatib, confirma plenamente
esta noticia de Conde, quanto á localisação
dos syrios de Eméssa em terras de Sevilha,
e dos egypcios em terras de Beja (Dozy,
Rechérches^ I, p. 83 e 86). — Estes senhores
syrios recebiam o terço do que produziam as
terras, cultivadas pelos christãos mosarabes.
^ O que se explica perfeitamente. Não só
os berberes eram muitissimo mais numero-
A TRADIÇÃO
85
Occupando Serpa, os miissulma-
nos, e os mosarabes que lhes esta-
vam subordinados, occupavom tam-
bém e cultivavam os campos em
volta, nos ciuaes deixaram a sua longa
permanência marcada em varias de-
signações de localidades. '
Quando hoje pensamos nas guerras
de devastação entre christãose mussul-
manos; nas luctas civis entre os pró-
prios moiros ; nas continuas algaras e
fossados de lado alado, somos levados
a imaginar uma Península assolada,
talada, queimada, roubada e quasi
deserta. Esta primeira impressão, pro-
va se, porém, ser falsa. Quanto ás
guerras com os christãos, devemos
reparar em que os seus effeitos foram
sobretudo sensiveis nas terras por mui-
to tempo fronteiriças, na Beira meri
dional, ou na Estremadura, por exem-
plo. Mas para estes lados do sul, o Al-
garve, Serpa e Moura, toda a região de
Sevilha, ficaram por muito tem4'>o lon-
ge de taes invasões. Do VIII ao XII sé-
culo estiveram na posse incontestada
dos moiros, p] as algaras d'estes em ter-
ras uns dos outros eram menos de-
vastadoras, e intercaladas de periodos
mais ou menos longos de repouso.
Em taes periodos, moiros e chris-
tãos trabalhavam e cultivavam assi-
ses, como occupavam em regra posições mo-
destas, pertenciam propriamente ao povo,
e se misturaram livremente com os mosa-
rabes. Os nobres semitas, da Arábia ou da
Syria, conservavam-se mais afastados, e al-
liávam-se geralmente entre si. — As palavras
adoptadas na nossa lingua são árabes, pela
simples rasão, de que os próprios berberes
falavam árabe, e acabaram por esquecer a
sua lingua. No emtanto algumas há berbe-
res, por exemplo zambugeiro, zambujo, que
não é árabe e sim o berbere jambudj.
' O próprio nome do Guadiana é árabe,
pelo menos na primeira parte. O nome da
ribeira de Enxoé deve ser árabe ; e o da ri-
beira de Alfamar tem claramente esta ori-
gem. Depois ha o sitio de Alçaria, nome ára-
be vulgarissimo por todas as nossas provín-
cias ; há os olivaes do Algodor ; há as terras
das Arôchas ; ha as Azenhas no rio, a Aze-
nha da Barca e a Azenha d'Ordem ; ha a
herdade de Benracão. que deve vir da for-
ma Benràcan ou Beni-rácan ; e vários ou-
tros.
duamente e com pericia. As noticias
de Ediisi, escrevendo em tempo de
D. Aftonso Henriques, dcixam-nos
entrever uma certa prosperidade agri-
cola em terras hoje portuguezas.
Diz-nos ellc, que os campos de
Bclat entre Lisboa e Santarém, as
actuaes lezirias pelos lados de Val-
lada, creavam o trigo em quarenta
dias, e a sua produção era ás vezes
de cento por um. ' Dando o des-
conto a alguma exageração oriental,
vê se que aquellas terras, alem de
férteis, deviam estar bem cultivadas.
Em volta de Alcácer creava-sc muito
gado, e havia abundância de leite, de
manteiga e de carne. ^ Nos campos
de Évora faziam-se muitas culturas
de trigo e outras plantas, e também
muitas creações de gado. ' O Al-
garve, como já dissemos, estava co-
berto de figueiraes e vinhas. Para os
lados de Sevilha, a zona oriental do
Charf até Niebla era um olival pe-
gado ; e o azeite constituia uma das
principaes riquezas d'aquella parte da
Andalusia. *
Melhor do que por estas succintas
noticias de Edrisi, podemos calcular
qual era a riqueza da Andalusia em
volta de Sevilha, pela distribuição das
terras dos moiros, que ali fez D.
AlTonso o Sábio, depois de tomada
aquella cidade por seu pae D. Fer-
nando o Santo. Deram-se terras a
todos os principes, '" ás ordens re-
ligiosas militares, a vários bispos, a
um sobrinho do papa, a innumeros
fidalgos, aos antigos creados de D.
Fernando, a todos os soldados que
serviram no cerco, besteiros, almo-
gavares e outros. E estas doações fo-
ram largas e riquíssimas. Compre-
hendiam hortas e pomares ás portas
de Sevilha e ao longo do Guadalqui-
* Edrisi, Géogr.. II, 29.
^Edrisi, Géogr.^ II, 16.
^ Edrisi, Géogr ; II, 1. c.
* Edrisi, Géogr. TI, 19.
'Um d'estes principes era D. Pedro, filho
de D. Sancho I de Portugal. Teve á sua par-
te uma herdade com dez mil pés de olival
e figueiral ; e muitas terras de semeadura.
86
A TRADIÇÃO
vir; grandes vinhas; extensas terras
de pão, divididas agora em muitas
)'//i,MÍJS cft' JÍio y rc'í; enormes tí-
giieiraes, produzindo innumeras cei-
ras de tigos ; e sobretudo olivaes com
os seus moinhos e lagares, e nos quaes
os pés se contavam por muitas cen-
tenas de milhares. Todo o extenso
e interessantissimo documento • nos
mostra um alto grau de prosperidade
agriccia.
Claro está, que a nossa Serpa,
muitíssimo mais modesta, arredada
para um canto remoto do Charf, as-
sente em solo menos rico, não teria
um grau de prosperidade egual, nem
mesmo parecido. E' certo, porém,
que os seus campos seriam bem cul-
tivados em tempo dos moiros, muito
melhor provavelmente do que depois
foram durante séculos em tempo dos
portuguezes. Os proprietários, oriun-
dos da Svria, vinham de regiões pros-
peras e férteis ; sabiam aproveitar as
aguas ; encontravam um clima e uma
vegetação similhantes aos da sua terra
natal ; podiam plantar as arvores fru-
ctiferas, que conheciam dos pomares
e jardins em volta de Eméssa ou de
Damasco. Alguns berberes das mon-
tanhas da Africa uo norte eram bons
trabalhor^s, tinham a energia e o
amor á terra, que ainda hoje distingue
os KabjMas da Algéria, seus irmãos
em raça. 2
A agricultura rudimentar dos his-
pano-godos transformou-se. Grearam-
se hortas, onde a agua dos poços,
tirada pelos alcatrui^es das noras^ re-
gava as almastigas ^ de plantas no-
• ^epartimiento que hi^o el-Rey Don Alon-
so el sábio etc, tirado de los Archivos dei Ca-
bildo desta muy noble y leal Ciudad\ publi-
cado por D. Fablo Espinosa, De la hist. y
grandezas de la gran Ciudad de Sevilla,
Parte II, foi. 1 a foi. 2G.
' Elisée Reclus, Nouv. Géogr. Cniverselle,
XI, p. 45o e seguintes.
^ Todas as palavras sublinhadas, ainda hoje
de uso corrente, são de origem árabe — al-
mastiga é a forma alemtejana de almacega
e parece \'\v át al-mascaba^ nome que se dava
a um pequeno canteiro de terra, frequente-
mente regado ; os outros nomes são bem co-
hecidos.
vas. Construiram-se no Guadiana e
nas ribeiras açudes^ que levavam a
agua aos moinhos ou atenhas. Trata-
ram-se melhor os gados, approvei-
tando-se o le'te e almece dos alavões.
Lavraram-se e alqucivaramse as ter-
ras, fazendo-se regularmente as ceifas
ou aceifas. Enxertaram-se os :{ambu-
geiros^ e construiram-se lagares com
os seus ãlguergucs para o fabrico do
a\eite.
Podemos mesmo admittir que ainda
existam restos dos olivaes d'aquel-
les tempos. O que sabemos de physio-
logia vegetal, não se oppõe a acredi-
tarmos, que algumas das actuaes e
velhíssimas oliveiras da Carreira ou
das encostas da Guadalupe fossem
enxertadas por mãos dos moiros, e
já dessem fructo quando D. Affonso
Henriques tomou Serpa.
Tal, em resumo, nos parece ter
sido o estado d'esta nossa villa du-
rante o período do domínio moirísco
— uma povoação de mediana impor-
tância, situada na parte mais occiden-
tal da Andalusia e do Charf, fortifi-
cada mas sem grande valor militar,
relativamente prospera e rodeada de
campos bem cultivados.
condi: de FICAI.HO.
O SENHOR SETE
(Continuado de pag. 71)
O setestrello cahiu
Em cima da Hor da giesta,
Cada vez te quero mais,
Olha que cegueira esta.
O setestrello cahiu
Em cima da ílor do tO)0,
Se algum dia te quiz bem
Agora mettes-me nojo.
Setestrello vae em pino,
Eu bem no vi empinar,
De cima da minha cama
Quando me estava a deitar.
A TRADIÇÃO
87
Perguntae ao setestrello
Que é magano c* sabe tuilo
Em que pomos vae a lua
Quando quer fazer escuro.
O setestrello cahiu
N'uma folha de giesta,
Cada vez te quero mais,
Olha que cegueira esta.
Perguntae ao setestrello,
Bem no deve de saber.
Em que alturas vae a lua
Quando quer amanhecer.
O' setestrello airosinho.
Cortejado de Cupido,
Perguntae áquelle ingrato,
Porque não falia comigo.
O setestrello cahiu
N'uma pedra, Hcou couxo,
O lirio com sentimento.
Logo se vestiu de roxo.
Agora, mais estas, que não são ao
Setestrello, mas que são muito do
Senhor Sete :
Set'annos antes que eu morra,
Hei de me ir passsear no adro,
Para ver a sepultura
Onde hei-de ser enterrado.
Sete com cinco são doze,
Para quinze faltam três.
Se te faltei algum dia
Aqui me tens outra vez.
Annel de sete pedrinhas
Ninguém no tem senão eu.
Trouxe amor, foi se o amor,
Torna annel a quem te deu.
Sete dias levou Deus
A fazer o mundo inteiro,
Tem de escolher sete annos
Quem quizer amor certeiro.
Já não ha estrellns no céo
Senão sete arj pé da lua,
Já não ha nem pode haver
Cara mais linda que a tua.
Sete estrellas no eco correm,
Todas n'uma carreirinha,
Também os amores correm
Da tua mão para a minha.
Sete e sete são quatroze,
Com mais quatro são desoito.
Todos teem os seus amores,
Só eu fíquei ás vint'oito. '
Sele e sete são quatorze,
Cada junta tem dois bois,
Quem me dera uns olhos negros
Como são aquelles dois
Lá te mandei um raminho
De sete amoras, que é luto,
A do meio ia dizendo :
— Meu amor, quero-te muito.
Levantei -me de manhã
A varrer o meu balcão.
Encontrei Nossa Senhora
Com sete ramos na mão.
Sete mil vezes te eu quero,
Setecentas eu te adoro,
Setenta mil te venero,
Setecentas por ti morro.
Ha três dias que não janto,
Ha cinco que não almoço.
Ha sete que te não fallo.
Meu amor, porque não posso.
Meu annel de sete pedras,
Salta fora do meu dedo,
Que tu foste o causador.
De eu ter amores tão cedo.
(1) l-icar ás vinfoito, auer dizer. • . a zero I
E' expressão muito uzual.
.s^
A TRADIÇÃO
Nnnel de sete pedrinhas
Ao meu dedo não ha-de ir,
Que eu já ando difamada
Das creadas de servir.
Eu tenho sete coletes,
Todos sete bem forrados,
Tenho também sete amores,
Todos sete bem formados.
Eu tenho sete navios.
Todos sete com varandas,
Mei-de subir á mais alta
Para ver onde tu andas.
.Meu annel de sete pedras,
Meu annel de pedraria,
Onde o amor póe o ramo,
Não pode haver cobardia.
Sete voltas dei ao mundo
Para ir casar comtigo,
Lá ao fim das sete voltas
Dei um ai, dei um suspiro. '
Vão pelo céo sete nuvens.
Eu bem as vejo d'aqui,
Não te vejo ha sete annos
E ainda hontem te vi.
(Continua.)
TRINDADE COXI.HO.
A LENDA I)AS ARMS DE ELYAS
íContinuado de pag. 74)
"^Ç\ O entretanto, o audaz cavalleiro
M- C nunca affrouxando o desenfrea-
do gallope, vinha já nas alturas de Caia.
Mais longe, porém, ahi pelo mesn:io
sitio, pouco mais, pouco menos, onde
1 Este, vê-se que é reminiscência da xacara do Gene-
rardo, que a teu tempo darei com outras ;
.Sete voltas deu á torre,
Outras tantas ao postigo,
Lá ao fim das sete voltas,
Deu um ai, deu um suspiro.
Nós veremos isso.
primeiro se enxergara o heróico por-
tador do estandarte, via-se ago a ou-
tra nuvem de poeira, mais espessa e
maior que a que este produzia com
o seu bravo corcel, e que dava a per-
ceber sem equivoco nenhum, que
também de lá vinha na piugada do
heroe um troço de cavallaria com as
suas armas a scintillarem ao sol.
Eram os castelhanos que queriam a
sua bandeira. Mal se viu e percebeu
tudo isto, tocou-se a rebate na praça
de Elvas, os besteiros correram ás
ameias, e a municipalidade, tal qual
como em pé de guerra, mandou le-
vantar as pontes e fechar logo todas
as portas. De sorte que o esforçado
cavalleiro conseguindo finalmente che-
gar ás muralhas da sua terra, adoptiva
ou natal, não pôde infelizmente trans
pôl-as, e veiu a ser victima do seu
heroísmo. Chegara a Roma e não
vira o papa! O pêor era achar-se per-
dido. Ainda assim, volteou por três
vezes em redondo das muralhas da
villa, na esperança de que lhe abris-
sem uma porta pelo menos. Debalde.
EUe, então, quasi ao alcance dos hes-
panhoes, mercê de tanto tempo per-
dido, parou o ginete arquejante, e
alevantando a viseira de guerra, tudo
isto n'um ápice, arremessou o estan-
darte por sobre as muralhas, ao mes-
mo tempo que exclamou para os de
Elvas :
— Ahi o tendes, cobardes!
E tornou a calar a viseira. Acto
continuo, e novamente a gallope, mas
agora ao encontro dos que o perse-
guiam, desprendeu a sua acha de ar-
mas, que era talvez das mais alenta-
das. Audaz como sempre, heroe até
alli, empunhou-a iracundo, fremente,
e gritou de este modo aos do troço:
— Para vós esta, perros de Cas-
tella.
Palavras não eram ditas já elle com
tal sanha a tinha regeitado á cara do
cavalleiro castelhano que primeiro se
lhe deparou, que o pobre diabo ficou
logo por terra.
Feito isto, deu de esporas ao ca-
vallo e partiu em direitura de Extre-
A TRADIÇÃO
89
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(CHOREOGRAPHICA)
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fè
A TRADIÇÃO
moz. Os outros, em idêntico gallope,
largaram sobre elle, ainda mais furi-
bundos. Não gallopavam, voavam.
Em menos de meia hora, portanto,
chegaram a um lugar onde está actual-
mente o antigo convento de S. Fran-
cisco. Ahi, vendo-se ainda outra vez
muito prestes a ser alcançado pelo
troço inimigo, o cavalleiro portuguez,
que não queria render-se, porque era
valente, porque era portuguez, des-
embainhou a sua espada com o mais
alto denodo, e tornou a fazer frente
aos seus perseguidores. Deu-se então
uma lucta renhida, um combate des-
egual de um só contra um bando de
doze, que este era o numero dos ca-
valleiros de Badajoz, e essa lucta re-
nhida, esse combate desegual, pre-
senccaram-no os elvenses das mura-
lhas da praça.
O audaz cavalleiro combatia trium-
phante. Súbito, porém, o seu pulso
de ferro, que tão de alma brandia
uma espada de heroe, descahiu-lhe
sem forças, quebrado de todo e logo
a cabeça como se o elmo redobrasse
de pezo e a fizesse por isso vergar,
se lhe pendeu alquebrada sobre o
pescoço do ginete I Era o reverso da
medalha. Neste comenos, um dos ca-
valleiros castelhanos, descarregando
o montante com toda a sua gana so-
bre os costados do heróico portuguez,
deitou-o por terra e mais ao cavallo.
Aquillo é que foi uma pranchada hes-
panhola I Em Elvas, viu-se isto, como
se em Elvas succedera, e um grito
agudissimo de prompto se ouviu, um
ai doloroso se escoou tremulante, por
detraz das gelosias do mysterioso
balcão. A este ai pungentíssimo, tão
do intimo vibrado, o audaz cavalleiro,
cujo nome se perdeu, ergueu-se de
um Ímpeto, como se o houvesse sen-
tido, e, alem de sentido, fosse por
elle impellido, tal como o Lazaro
prostrado ao ouvir o «surge et am-
bula» não menos magnético. Em se-
guida, agarrando a meio corpo o perro
de; Castella, que acabara de derru-
bal-o, deu com elle tão irado de ven-
tas em terra, e em lucta tão feroz se
envolveram alli, arca por arca, peito
a peito, que nem um nem outro nun-
ca mais se levantaram.
Foi assim que succumbiu o valente.
Já era tempo. A lenda, porém, é que
não fica por aqui, por que é muito
prolixa, tão minuciosa, que até para
remate, ou, seja, para fecho, tem ella
nada menos que duas chaves de ouro.
São duas versões diametralmente op-
postas. Diz uma, de ictrica memoria,
que os furibundos e damnados hes-
panhoes levaram para terras de Hes-
panha o moço cavalleiro ainda com
alguma vida, e que lá o fritaram
n'uma caldeira de azeite. A outra,
muito menos lacónica, aflirma com
auctoridade, que elles o deixaram
onde deram cabo d'elle, ahi por esse
sitio do convento de S. Francisco, e
que horas depois, ao parde)ar de essa
tarde de sangue, quando de Elvas se
foi recolher o cadáver do heroe, o
acharam agarrado ao do perro de
Castella com quem succumbira, se-
gurando também ainda o cabo de um
punhal, que com sanha lhe cravara
na gorja. Mas não estava ahi alta-
mente comprovado o bellico valor do
exforçado cavalleiro. Mais sete cadá-
veres o attestavam ainda, para eterna
memoria do seu pulso de ferro.
Elvas, de facto, nunca isto esque-
ceu. Tanto assim que para bem per-
petuar tão soberba façanha, pura-
mente portugueza, para nunca olvi-
dar este feito glorioso, tomou por
brazão essa effigie de fidalgo caval-
leiro armado dos pés á cabeça e com
a sobrecarga de um estandarte na
mão.
Tal é a lenda, a tradição popular,
que não anda, afinal, muito longe da
historia, no tocante á façanha do ex-
forçado cavalleiro.
Vamos a desfiar a meada.
(Conclue.)
ALFREDO DE FR ATT.
A TRADIÇÃO
ín
AS BOAS-FESTAS
(Continuado de pag. 76)
^Y^ ARKi agoi íi aqui uma noticia algu
'Ky ma cousa extensa dos presentes
que os fiades de S. Agostinho de
Lisboa, residentes no seu convento
da Graça, costumavam olVerecer em
certos dias; noticia que é formada
das verbas despendidas com a acqui-
sição das cousas empregadas para o
elVeito acima dito. E' na verdade lei-
tura curiosa o que se contem nos li-
vros da receita e despeza. São ape-
nas trcs os existentes no Archivo Na-
cional relativíjs aos annos que vão de
1743 a i83o, pouco mais ou menos,
e tem a seguinte collocação B — 44
— 4 e 3 e B — 4!) — 3.
a.) Km 1806 gastou a provincia
2.860 reis na compra de 600 bilhetes
de boas festas. Quando a provincia
fazia esta orgia não é para admirar
que o ex-graciano, o turbulento e ir-
rcspeitoso José Agostinho de Macedo
cm 24 de dezembro de 1828 na car-
ta dirigida a F>ei Joaquim da Cruz
do mosteiro de Alcobaça diga o se-
guinte : «Ora ahi vão umas boas fes-
tas que se devem ler cm casa do
jjl mo p e Geral, a quem as desejo, e
a todos esses senhores» ' Pelo natal
do anno seguinte escreve José Agos-
tinho no meio de solfrimentos intole-
ráveis ao mesmo frade o seguinte :
"Beijo a mão a V. Sr.* e lhe ante-
cipo as boas festas, ao 111.'"" Ksmo-
ler-mor, e ao P.^ Fr. Álvaro eu as
não tenho para mim, e por isso es-
tas que lhe annuncio não são dadas,
são desejadas» 2. José Agostinho doen-
te e cheio de cuidados pecuniários
não podia celebrar as festas do na-
tal, o que não obstava, porem, que
as desejasse aos seus amigos.
* A paschoa, festa de origem hebraica ado-
ptada pelo christianismo veiu a substituir
outra qualquer indígena da primavera. Cfr.
a etymologia da traducção allemã de pas-
choa Ostern.
2 Obras inéditas de J. oA. de Macedo^
1900, pag. 14.
b.) No natal de 1743 dcrão-se 480
reis (um pinto) aos criados do nún-
cio para apagar a mancha», e a mes-
ma quantia se entrecou de conçoadas
aos três moços da provincia. Lm
porco que se entregou n'esta occa-
sião ao (jucifiia /Respostas impoiiou
em 6000 reis. Km 1747 em mancha
dn U^afiil c J\iscoa do criado líraue
do (íliidilor se despenderam 21Ô0
reis. Dêmos agoia um salto e \ amos
cair em 1807. Na propina (já se não
diz mancha) dos criados do núncio :
iCh)() reis; a quem dá as cartas no
(torreio: 480; a mesma quantia aos
creados da província e ao guarda-
portão do núncio ; aos correios da
Secretaria de Kstado : 1200 reis; e
finalmente para vários convites que
o R."^'^ (Provincial) fez pelo Natal
2400 reis de presente. Fim 1808 im-
portaram três porcos para as pro-
pinas do natal do Letrado, Thesou-
reiro e Escrivão dos juros reacs em
54.700 réis. Km 181 3 custou um casal
de piruns (sic) para o Lara ()ooo reis!
Km 1817 o creado de certo Barbosa
Araújo recebeu pelas festas do Natal
480 reis. Dois casaes de piruns que
receberão por este natal o Lara (do
PIrario) e o Letrado Barbosa Araújo
importaram só em ()2oo. Km 1822 re-
ceberam os creados da provincia de
consoada do Natal 600 reis, e no da
1829 os correios do Secretario 32oo
reis.
c.) O guarda-portão do núncio re-
cebeu na paschoa de 1807 480 reis,
e os correios do Secretario de Kstado
guardaram 1200 reis. O letrado nesta
mesma occasião foi presenteado com
seis galinhas que ao preço de 700
reis custaram 4200. Km 181 2 recebeu
o Lara um casal de perus que tinham
importado em 6400'. K no anno se-
guinte as 6 galinhas que recebeu o
o Letrado importaram em 4320.
d.) Por occasião da festa de S.
Agostinho em 1743 dispendeu-se a
quantia de 24.200 em Presentes ao
Ud.
53.
92
A TRADIÇÃO
letrado, ao almoxarife e outras íÍl'-
pefdcticias. Uma bancja pela mesma
festa para o Procurador da Coroa
importou em (1400 reis. Em 1744 foi
adoçado o letrado pela festa do dito
Padre com um prato de manjar branco
que custou á provincia 2000 reis.
Nesta mesma festa receberam o Guar-
da Respostas, o escrivão do Guarda-
Respostas, um desembargador qual-
quer e José Pinheiro de Azevedo,
otficial do Conselho da Fazenda por
fazer um benehcio á Provincia, cada
um, seu prato de ovos a 2400 reis.
Fm 1745 foram entregues ao Guar-
da-Respostas uma vitella que tinha
custado 43oo e quatro perus que ao
preço de 62b montam a 2D00 reis.
Pela mesma festa receberam pratos
de ovos que tinham custado cada um
1920 reis o desembargador Dionisio
Esteves Negrão e o Corregedor do
Civil António Ferreira de Mendonça
de quem temos dependências. Em 1 8 1 1
um prato de manjar real para o nún-
cio importou em 38õo reis. Logo
no anno immcdiato um prato de do-
ces para o núncio e dois de arroz
com fios de ovos para o Thesoureiro
dos Ordenados e o Lara custaram
OQ70 reis. Meia dúzia de caixas de
escorcioneira • recebeu o secretario
de Estado na festa de S. Agostinho
no anno de 1817, no valor de i5:ooo
reis.
e.i Os creados do paço e do nún-
cio receberam de propinas em 1806
por occasião da elleição do Provin-
cial a somma total de 37.600 reis.
f.j O mosteiro da Graça teve uma
demanda demorada com o mosteiro
das Monicas, e para cair nas graças
das pessoas que intervinhão no pro
cesso presenteava-as quer pelas fes-
tas, quer independente delles. Em
181 7 foram dadas ao escrivão da
causa das monicas seis galinhas ao
preço de Goo réis cada uma, e as
pessoas que intervierão ou concorre-
' Escorcioneira é uma planta de que se
faz doce. Alemtejo.
ram para se receberem os embargos
da causa das Monicas, forão presen-
teadas com 12 arrobas de presuntos
cada uma ao preço de 6^400 réis,
na totalidade de 76^5)800. No anno
anterior de 1816 recebeu o fiel da
causa das Monicas para não pedir os
autos ao letrado por ser preciso de-
morar por elles 2;j?56oo réis.
g). O correio da secretaria que
trouxe a noticia do parto de sua Al-
teza Real (D. Carlota Joaquina) de
23 de dezembro de 1806 recebeu
5íí)400 réis (meia-moeda).
h). Em 1823 gastaram se b^bio
réis em sejes para o Provincial ir ao
Beija-mão e dar as boas-fcstas.
12. O anno romano começava nas
Kalendas Januarii ou como hoje di-
zemos no i.° de janeiro. Neste dia
davão-se strenas, palavra que corres-
ponde phoneticamente á portugueza
estreias. Ignoramos se algum dia es-
treias teve a significação que ainda
hoje tem em França étrennes. Nalguns
documentos medievaes ao primeiro
domingo depois do i." de janeiro
chamava-se Dominica post Strenas.
Como acabei de dizer era costume
entre os romanos distribuir presentes
no dia das calendas de janeiro. De
aqui muito facilmente passaram os
povos a pedir as Kalendas januarii.
Os castelhanos transformaram calen-
da em aguinaldo conforme a etymo-
logia de Schuchardt. Na Provença o
dia de natal, segundo alguns, também
se chamava festum Calendarum., les
Calènes, lou Calendau.
i3. Quando o hespanhol diz agui-
naldo! pede e canta o portuguez as
janeiras. Estes dois termos fazem
parte d'uma phrase. De aguinaldo já
se fallou no § anterior, resta-me ex-
plicar a palavra janeiras. No latim
da edade-media empregavam-se mui-
tas vezes em logar de kalendas ja-
nuarii., fabruarii., maii., etc. as for-
mas kalendas jaiiuarias., februarias.,
maias., etc. O portuguez adoptou o
segundo termo da phrase e ficou com
janeiras e maias. As calendas de ja-
neiro começavam a ser contadas 19
A TRADIÇÃO
í»3
diajj antes do primeiro de janeiro,
isto é desde 14 de dezembro. A igreja
ainda com as suas novenas oitavas,
etc, continua a usar este sysiema,
que tem por base o desejo de conhe-
cer quantos dias faltam para chegar
a determinada festa '.
P£DRO A. I>'AZ£V£DO.
lIOII.lS-tSTIlllllLIIOS.lLFlITEJ.WAS
Eu hei-de ir colher raacella,)^^-^
Da macella a inacellínha, \
Lá nos campos, verdes campos, /^^-^
D"âquella mais miudinha. )
D'aquella mais miudinha, 1^^.
D'aquella mais amarella, \
Lá nos campos, verdes campos, \^-
Eu hei-de ir colher macella. \
M. DIAS NUNES.
A caça no concelíio de Serpa
(Continuado de pag, 78)
y-x A caçadores e caçarreías^ atira
A- C dores e marlelieiros. Chama-se
caçador, bom caçador, o que sabe ca-
çar, o que conhece os usos da caça,
bem como os terrenos e as fugidas
da caça e as suas crenças ou sitios
preferidos. Caçarreta é o que não
sabe, ou pouco sabe caçar. Atirador
é o certeiro, o que erra pouco, e se
denomina aqui «uma bôa espingar-
1 Sobre a maior parte dos nomes latinos
aqui empregados consulte-se D'art de véri-
fier les dates, I p. 52 a 60.
' O povo pronuncia marcella.
da». Martelleiro é aqueile que raras
vezes acerta.
O bom caçador é o mais compe-
tente para dirigir uma caçada, em-
bora nem sempre essa qualidade se
ache reunida com a de bom atira-
dor.
Km geral, o homem que vive sem-
pre no campo, e principalmente na
serra, possue uma vista e um ouvido
apuradissimos. Ku tenho obsL-rvado,
immensas vezes, alguns d'estes ca-
çadores a seguirem o rasto d'um
porco ou d' um veado por grandes
distancias e em terrenos, como são
os da nossa serra, duros e schisto-
sos, parecendo impossível conhecer-
se qualquer vestígio ou pegada. Só o
conhecemos quando elles nos indi-
cam os pequenos schistos voltados,
uma hervasinha mal pisada, uma fo-
lha de arbusto recentemente cabida,
e outros differentes mas quasi im-
perccptiveis indícios da passagem do
animal que se procura.
Conheci muitos e bons atiradores e
caçadores, e d*outros sei por tradi-
ção que o foram.
Se bem que eu tenha dito e me
proponha dizer o que ainda sei so-
bre a caça no concelho de Serpa, se-
ja-me permittido mencionar aqui al-
guns caçadores de fora d'este conce-
lho, os quaes merecem occupar um
logar de honra na breve noticia que
venho redigindo. Deixaram elles tal
fama de si, que a tradição os ha-de
memorar por muito tempo.
Entre todos os caçadores destes
concelhos mais próximos, teve o pri-
meiro logar — sem contestação algu-
ma — o mestre Guerreiro, do Sobral
da Adiça (concelho de Mouraj; foi o
mestre dos mestres, o caçador, que
matava a caça egualmente bem, fosse
com chumbo ou fosse com bala. Con-
ta se delle, que foi uma vez procu-
rado por um bom atirador hespanhol
e por este convidado para caçarem
ao desafio. Mestre Guerreiro accei-
tou. No fim do dia, o hespanhol ti-
nha atirado 20 tiros, matando 23 per-
dizes ; e o mestre Guerreiro apenas
94
A TRADIÇÃO
tinha matado 22 perdizes, com 24 ti-
ros que disparara. Quando, porem,
em vista d'isto, o hespanhol se van-
gloriava da sua superioridade, mes-
tre Guerreiro fez examinar a caça
d'um e a caça d'outro, notando-se
então que as perdizes do hespanhol
haviam sido mortas a chumbo, e as
do nosso patrício, todas, á bala !
Por esse rncsmo tempo viveu, tam-
bém no Sobral, o João F^araústo,
atirador de primeira ordem. Na Ve-
ra-Cruz houve o José António, um
dos bons atiradores da sua epocha.
Foram muito conhecidos, e ainda hoje
são muito lembrados, o Joaquim Ba-
talha e mais o José Ordem, óptimos
caçadores, de Portel. José Paulo de
Mira, de Évora, foi um excellente
atirador, bom caçador, e um dos ho-
mens mais afeiçoados, que mais ca-
çadas fez e dirigiu. Este snr., que
muitos dos actuaes caçadores haviam
de conhecer, escreveu uns folhetos
interessantes sobre a caça. Um, a
que já me referi, descreve a caçada
aos javalis, outro descreve a caçada
aos pombos; e outro ainda, que é um
brado contra o cerco dos lobos —
contra o cerco, pelo modo como cos-
tuma ser feito. O folheto da caçada
aos pom.bos, acompanhado duma
carta do meu amigo Snr. José Groot
Pombo, tem muito boas noções para
se exercer este divertimento, e é
muito útil para os que quizerem ca-
çar d esta forma.
N'este concelho houve sempre ex-
cellentes espingardas e muito bons
caçadores. Já não conheci, mas sei
por tradição que houve, em Ficalho,
um João Valente e o tio Matheus ;
em Aldeia Nova de S. Bento, o João
dos Reis ; em Brinches um José Ber-
nardo e Bento Janeiro; e em Serpa,
o tio Luiz da Neta, Matheus de Val-
da-Casca, o tio Simão de Mideiros,
o Vaz, e o velho Casaca — todos
muito boas espingardas. Pessoalmen-
te, conheci, de Brinches: Joaquim
Poupinha, José Clemente, Manuel
d'Ascenção, António Ferreira, José
Poupinha, e João Lopes Barbosa.
í\
De Ficalho : Sebastião Dias de Car-
valho, que já não caçava, mas que
todos diziam ter sido a melhor es-
pingarda do seu tempo. Com o filho
deste, Francisco Dias de Carvalho,
cacei eu muita vez. Conheci também
o velho Estevens, excellente espin-
garda e intelligente caçador, e mais
os filhos, um dos quaes ficou em
Évora quando ai li foi levar um cão
que o Snr. Mira comprara em Fica-
lho. Aquelle Snr. gostou tanto do ra-
paz, e reconheceu-lhe tanta intelli-
gencia para a caça, que lá o deixou
ficar ao seu serviço.
Conheci ainda o Francisco Grillo,
o José António Sargento (de quem
fui muito amigo) e o Lourenço José
d'01iveira, caçador tão hábil quanto
martelleiro.
D'Aldeia Nova de S. Bento, co-
nheci : Francisco Laneiro, o Moraes,
e o Valente Caçador — um colosso,
que se acontecia matar um estaqueiro
(veado d'anno), esfolava-o, limpava-o
das tripas, empiolava-o^ mettía-o den-
tro da pelle, e em seguida punha o
animal ás costas e continuava a ca-
çar !
Conheci egualmente e com elle ca-
cei, o Manuel Dyonisio, da Córte-do-
Pinto, e mais o velho Segurado, o
Manuel do Cerro, os dois Calhegas,
Diogo e Manuel, e o filho d'este, Se-
bastião, que chegou a matar 3o coe-
lhos sem errar um só !
Foram muito das minhas relações :
o meu mestre e particular amigo
Francisco Manuel Louzeiro, atirador
de primeira ordem (principalmente
com bala e nas grandes distancias)
e de vista tão apurada, que depois
de disparar dizia com precisão o si-
tio do animal onde a bala tinha en-
trado. Francisco Rijo, um dos caça-
dores mais certeiros, também com
bala ; o mestre Domingos Rijo, com
quem immensas vezes cacei, bom ca-
çador e, ao mesmo tempo, contador
de uma infinidade de historias de ca-
ça, de lobos, e de acontecimentos ex-
traordinários, passados na Serra de
Serpa, a qual elle conhecia tão bem,
A THADIÇAO
95
que poderia descrevel-a sem a maior
exactidão, sem esquecer nenhum cor-
go, nem vereda, nem oiteiro.
Outros muitos e bons caçadores
conheci ainda, entre os quaes: Antó-
nio de Pádua, João e Manuel d'Arau-
jo, Jeronymo \'ieira Oago de Ne-
greiros, José Gomes Hydaigo, ele,
etc.
iContinúa.)
A. de MEI.I.O BBEYNXR.
J^IMAS foPULAF^^ES
Decimas
Lá nos vnlles da Amoreira,
Ou monte do Alvarrão,
Abalou um rapaí^ão
A tallar a uma roseira.
Disse de certa maneira,
E ella respondeu assim,
Mesmo lá no seu jardim :
«Eu não posso. . . porque estou,
Porque loi, porque tornou,
Porque tal e porque sim. o
O senhora Leonor,
Quer-me p'ra seu jardineiro?
Não venha algum passageiro
Que lhe offenda alguma tlór I
— Você sabe armar lavor ?
E uma horta sabe regar ?
— Eu de tudo sei usar,
Eu sou um rapaz robusto ;
Nem nós tratámos de ajusto :
O que a senhora quizer dar.
Vivo suspenso no mundo !
Não sei quem será culpado
De eu viver agonisado,
. . .Paciência, será tença. . .
Oh, meu i^eus I oh, luz immensa
Tende compaixão de mim I . . .
Já foi tempo em que eu gosi
Instantes afortunados;
Agora, por meus peccados,
Separado estou de ti I
Abalei de Santo Antão,
Fui dar ao Convento-novo ;
Não vi convento nem povo
Onde haja tal devoção I
No altar de San João
Estão oitenta e uma luz,
Virgem-Mãe d'Ao-pé-da-Cruz,
E a Senhora do conforto,
Que em seus braços tinha morto
Seu altíssimo Jesus.
Virgem-Mãe da Conceição,
Padroeira da Salvada,
Virgem pur;i, immaculada,
Livre da culpa de Adão;
Virgem-Mãe da Kedempção,
Fim que temos toda a cspVança l
Quem espera, sempre alcança
Aquillo que Deus quizer. .
Viva a casa de liragança !
E viva El-rei Don Miguel !
(Continua )
(Da tradição oral, cm Serpa.)
JOÃO VAREXXA.
Os mandamentos do amor
Vou-me a cantar uma cantiga
Toda pelos mandamentos.
Depois que os teus olhos vi
Tive vários pensamentos.
O primeiro é amar.
Não te amo como devo ;
Depois que os teus olhos vi
Nunca mais tive socego.
O segundo é não jurar
O seu santo nome em vão.
Jurei de te não deixar :
Essa é a minha tenção.
O terceiro é guardar
Em teu peito minhas leis.
Deixa memorias passadas,
Que eu também )á as deixei.
O quarto pertence á honra.
A honra é de quem n'a tem.
Faze tu da tua banda,
Não se te dê de ninguém.
O quinto é não matar. . .
Eu por ti é que ando morto !
Olha as delicias d'amor
Em que estado me tem posto !
(Continua.)
(Da tradição oral em Serpa.)
M. DIAS NUBTES.
y6
A TRADIÇÃO
BULLETIN POUR L'ETRANGER
TA TRADITIOJÍ
ReTue measuelie luusiree (l'6iliDograplile portugase
DIRECTEURS
Lj.Í!sLiii "Viçjrra et 1)ías V^ioies
líEDACTION ET ADMINISTRATION
Á SERPA ^PORTUGAL)
SiiDiDijire du préscnl numero àe la Tradilioii
T9Xu3 '. —Notes historiques sur
Serpa : La population de Serpa
au temps des maures, par le
Comte de Ficalho ; Monsieur Sept
(suite), par Trindade Coelho (Dr.);
La legende des armes d'Elvas
(suite), par oAlfredo de Trali;
Les Bonnes-fètes (conclusion),
par Pedro QÂ. d'Aievedo;
Chansons, refrains de TAlem-
tejo : La camomille, par oM. Dias
Xunes.
La chasse dans le district de
Serpa ísuite)^ par QÂ. de ({Mello
Breyner ;
Himes populaires : Dizains, par
João \arella (Dr.) ; les comman-
dements de Tamour, par M. Dias
Nunes.
IlIUSlPaliOriE! — Galerie de cos-
tumes populaires : POcheur.
Recueil de chansons : La ca-
monile (musique).
BULLETIN FOR ABROAD
m^m%m%
DIKECTORS
Ladislaii Tiçarra and 'Dias 'iNjíues
OFFICKS
SERPA (PORTUGAL)
Suiuniaiy (if tlie prisenl niiiiilier of tlie Tradilion
T6Xt '. — Historical notes about
Serpa : Serpa's population in time
of moors, by Conde de Ficalho ;
Mister Seven (continuation), by
Trindade Coelho (Dr.) ;
The Elvas^legend of arms (con-
tinuation), by oAlfredo de Praít;
Happy Christmas (conclusion),
by Pedro A. de Azeredo;
Songs and refrains from the
Alemtejo : The camomile, by M.
Dias Nunes;
T\\Q shooting in the Serpa dis-
trict (continuation), by A. de
cMello Breyner;
Popular rhymes «Decimas» :
(strophes of ten verses), by João
Uarella (Dr.) ; the command-
ments of love, by M. ^Dias Nu-
nes.
IllUStraUORS:- Galleryof po-
pular costumes : Fisherman.
Musical collection : Hie camo-
mile (dance).
^ 11 lio II I\."
SERPA. Julho de ISOO
>' ol llltl«' I I
Edílor-adminifttrador, Jo$f Jeroiiymo Ja Cogla fír,ivu Je Scareirui, Kua l-arsa, 3 « 4 — SliKI'A
Typ. df AJolpho de Mendonça, Kua <Ju Corpo Sanio, 46 e 48 — LISBOA
nmm
Revislii iiinisal il tlliiiiii{rii{iliKi Poriíiiiiiczii, illiislraila
-tf"«fl-íí«*Q-0"-»-
Directores :-I.AI)I8LÃU PIÇARRA e M. DIAS NUNS8
O SENHOR SETE
(Continuudo de pag. 88|
Setestrello que vaes alti
Por essas serras d'além,
Leva -me ao céo onde lenho
A alma do minha mát:.
Sou um triste marinheiro,
Nas ondas ando a lutar.
Vou pedir ao setestrello
Se elle me pode guiar.
Setestrello, vae andando,
Vae andando, que eu já vou,
Vae deitando a tua luz,
Que o luar já se acabou.
Você a mim não me leva '
A contar-me maravilhas;
Foi você quem engnou
Sete mães, quatorze filhas.
As nuvens no céo se tingem
N'um arco de sete cores.
São sete as dores de Maria 2,
São setenta as minhas dores.
1 Não me convence; náo me seduz; não me illude: não
me engrola; náo me engrampa. . .
2 Sáo sete, com effeito. Nós as contaremos a seu
tempo.
A hortelã já nasceu,
A salsa está p'ra nascer,
N'estes setes que te eu faço
Bem me podes entender '.
O nome do meu amor
Com sele letras se escreve,
A primeira é um A,
As outras Hcam cm breve '^.
Meu annel de sete pedras
Ninguém no tem senão eu.
Antes que meu pae me mate '
Hei-de amar a quem m'o deu.
Na cantiga das ruas, Mariawia Cos-
tureira^ a estrofe do Senhor Sete é
esta :
Marianna diz que tem
Sete saias de balão
Que lhe deu um caixeirinho
A occultas do patrão.
Oh ai, oh ai.
Oh ai, amor,
Das ligas da Marianna
Nunca ninguém viu a côr.
Na cantarola Oh fresca da ramalha-
da^ lá temos também o Senhor Sete :
Puz-me a contar pela lei
As pedras d'uma columna ;
' Veremos quando fòr lempo o que vem a ser isso
de faxer o sete.
2 Qnando Deus quer, era .\ntonio!
■* Antes que = ainda que.
98
A TRADIÇÃO
Oh fresca da ramalhiida,
As pedras d'uma columna ;
Nove, oito, sete e seis
Cinco, quatro, três, dois, uma.
Oh fresca da ramaihadas
Cinco, quatro três, dois, uma.
E na passeata do Ziiic pi'}ic jnne^
o temos também :
Já dou de caras a Hespanha,
Já volto pVa Portugal,
As mulheres teém mais manha
Que sete zorras n'um vai'.
E na cantiga das ruas, O lagarto^
elle cá está :
O lagarto, coitadinho,
Pó-pó-pó, ti-ro li-ro-li-ro-ló,
Já lá vae a enterrar,
Pó-pó-po, pó-pó ;
Quatro cães e sete gatos
Pó-pó-pó, ti-ro-li-ro-li-ro-ló
O foram acompanhar.
E na chula da Gallinha^ que se
canta muito nos Açores :
Tenho uma gallinha pinta
Que põe sete ovos ao dia,
Que põe sete ovos ao dia.
Ainda assim não me contento,
Cho pVa fora, cho p'ra dentro,
Cho gallinha pVo convento,
etc.
Faz-me lembrar isto a quadra de cá:
Tenho uma gallinha pinta
Que põe três ovos ao dia.
Se ella me posera quatro
Melhor conta me faria.
Como quem diz: outro gallo me
cantaria. . .
Mas já agora, vá lá mais isto, que
ainda pertence á Gallinha pinla —
mas á nossa :
A minha gallinha pinta
Põe três ovos ao dia ;
Se ella puzera quatro,
Que dinheiro não fazia 1
Já me davam pela cabeça
Uma vaquinha moresca :
Já me davam pela crista
Uma vaquinha moirisca;
Já me davam pelo bico
A renda do senhor bispo ;
Já me davam pela lingua
A cidade de Coimbra ;
Já me davam pelo pescoço
Uma dama com seu moço ;
Já me davam pelo papo
Raza e meia de tabaco;
Já me davam pela moela
Uma vaquinha moirela;
Já me davam pelo coração
A renda de S. João;
Já me davam pelas tripas
Duas faixadas de fitas;
Já me davam pelo rabo
Um cavallo enfreiado ;
Já me davam pelas azas
Na ribeira umas casas ;
Já me davam pelas pennas
Duas vaquinhas morenas ;
Já me davam pelas pernas
Umas meias amarellas ;
Já me davam pelas unhas
Cento e meio de agulhas;
Já me davam pelo corpo
Toda a cidade do Porto ;
Já me davam pelo ril (rim)
Um porrão de sahil.
Gallinha que vale tanto
Vae-se levar ao convento.
Para que as freiras digam ;
«Chô pr'a fora. . . chô para dentro.»
Mas aqui estou eu agora sem sa-
ber para onde me hei-de virar! Des-
fiado o rosário das quadras, mais o
das cantigas ao Setestrello, que darei
eu agora? Adivinhas ? Jogos de pren-
das? Esconjuros ? Philtros ? Parlen-
das ? Sentenças e provérbios ? Ro-
mances? Xacaras? Contos em pro-
sa? Anecdotas? Armadilhas? Res-
ponsos ? Orações ? Crendices e su
perstições ? Phrases-feitas ? Onoma-
topéas ?
Que hei-de eu dar agora, pois que
de tudo está fornecido o meu celeiri-
nho?I
De tal modo tem esse querido Se-
nhor Sete usado da hospitalidade do
Povo, entretendo-lhe, sentado á larei-
ra, os longos serões do inverno, que
A TRADIÇÃO
99
s^
\f-
^^
,^
ejíLEKI^ DE TVPOS POPlÍLfIRES
Peixeira (de Estarreja)
-s^JTg"^
100
A TRADIÇÃO
não sei agora o que lhes deva refe-
rir dessas conversas!
Vamos lã com Deus ! Não darei
por emquanto nada d"aquillo. Por
agora, vamos a esse respigo avulso,
quasi inclassificável, de pequeninas
coisas muito curiosas, — dispersas, ve-
rão, pela nossa memoria, mas que
vão emfim encontrar-se junctas, for-
mar serie — creio que pela primeira
vez.
A ellas, a ellas I Vamos a isto !
— Sete cardadores para um saraviago.
Saramago, é uma planta da famí-
lia das cruciferas. O rábano é da fa-
mília. Quererá dizer que eram 7 car-
dadores para comer um rábano ? Ou
haverá n'isto alguma analogia^ e que-
rerá antes dizer que os cardadores,
como os alfaiates, são fracos homens
para o trabalho, e pouco desemba-
raçados ? Esta interpretação pode pa-
recer abonada pela seguinte quadra :
Setecentos alfaiates,
Outros tantos cardadores
Para matarem a aranha
Foram chamar os pastores.
Gostaria que algum leitor me dis-
sesse o que pensa a este respeito.
— Sete alfaiates para matar uma aranha.
Em verso são setecentos :
Setecentos alfaiates
Todos postos em campanha
Com agulhas e alfinetes
P'ra matarem uma aranha.
Esta embirração do povo pelo al-
faiate, virá de não gostar de vêr um
homem trabalhar de agulha ? Creio
que sim, mais de serem dados os al-
faiates, pelo officio, um pouco á bes-
bilhotice, — pois nas aldeias, lá cima,
trabalham á geira em casa dos fre-
guezes, e levam o tempo, elles e o
mulherio da familia, a murmurar das
vidas alheias . .
Isso deve iníluir, — que não é nada
viril, por certo, vêr um homem no
meio de mulheres, puxando a agu-
lha como ellas. . .
Mas será assim ? '
De resto, as próprias mulheres pa-
rece que não engraçam também com
os alfaiates ! E' ouvir a cantiga do
Ldrão morreu '^ :
O iadrão morreu
A comer tomates,
Meninas bonitas
Não são p'r' alfaiates.
Ai ai que me pica,
Ai ai que me arranha,
Ai ai que me ferra ^
Aquella aranha ■*
O ladrão morreu
A comer castanhas,
Meninas bonitas
Não são pV aranhas.
^ Eu escrevi alfaiate com-;-e não com y-e
d'isso peço desculpa aos alfaites! Tenho no-
tado que com os progressos da chamada
Democracia (com D grande) a nomenclatura
das artes e oííàcios, e das industrias, tende . . .
a aristocratisar-se ! Assim, o typographo já
não é typographo : é ^raphico\ o padeiro
mudou de nome : é manipulador de pão ; o
sapateiro, idem : é manipulador de calçado ;
o caixeiro, esse não ha já maneira de ser
caixeiro : é empregado do commercio ; o ta-
berneiro, vendedor de vinho a retalho ; o
informador de jornaes, é repórter e até^or-
nalista ; o mercieiío, é vendedor de viveres ;
o barbeiro, esse é tudo menos barbeiro : coif-
feur., peluquero., raseur.^ cabelleireiro ; — e o
alfaiate, nao tendo modo de se aristocrati-
sar d'outra forma, pregou com um-j^- no
officio : Q/llfayte !
Já se não apanha distico ou taboleta sem
o t.il-j^-que sempre é letra grega, patricia
de Homero. .
Entretanto, a origem da palavra é árabe :
ai Khaiath ; do verbo Khaiata, coser.
. . . Ora tomem os alfaiates, que aliás já
deram o nome a um soco e a uma manha :
ao soco d'alfaite, que é a pancada que se dá
para o lado ; e á manha de alfaiate., que é
prometter e faltar-, — e figuram em alguns
anexins : Alfaiate de encruplhada põe as li-
nhas de sua casa ; — Q/llfaiate mal vertido.,
sapateiro mal calçado, equivalente áquell'
outro: (lasa de ferreiro., espeto de pau; etc.
2 A musica d'esta cantiga foi applicada
por Castilho. . ao seu methodo repentino
de aprender a lêr!
' Perra = morde.
* Aranha, isto é . . alfaiate !
A TRADIÇÃO
101
O ladrão morreu
Em comes e bebes,
Meninas bonitas
Não são p'r' algibebes '
E ainda cá tcnlio mais estas
Setecentos alfaiates
Para matar uma aranha :
Fortes são os alfaiates
Que nem isso apanham 1
Vinte cinco mil alfaiates
Todos postos em campanha,
Com as tesoiras abertas
Para matar uma aranha.
Setecentos alfaiates
E' tudo: — fítrei, farei:
Para matar uma aranha
Gritam : — aqui d'el-rei!
Aqui d'el rei quem acode
Ao fogo de Santarém,
Acudam os alfaiates
Emquanto os homens não vem !
Bem digo eu que as mulheres nem
reputam homens os alfaiates I
— Fechar a sete chaves.
E" O mesmo que fechar bem, fe-
char com cuidado e segurança, com
propósito de esconder ou não deixar
fugir: — «O pae tem-na fechada a sete
chaves!» diz-se de alguns pães que
aperreiam as filhas. O mesmo de ai
guns maridos com as mulheres.
Mas a mulher, nem fechada a sete
chaves está segura ! E' ocaso do ou-
tro, (conta o Senhor Sete) que por
ter de ir viajar fechou a mulher em
sete caixas, umas dentro das outras,
pregou a chave na tampa de cada
uma, e atirou depois a caixa ao mar.
Pois nem assim ! A caixa foi dar a
uma praia, foi aberta por D. Joáo,
foram abertas as interiores, — e . . . « ar-
deu Trova!», como dizia Camillo
n' estes lances. . .
I
* Nos meus sitios, o alfaiate remendão chama-se
chastre.— «Vae ao chaste que te arremende .'»
— As sete badaladas do parto.
Lá cima, quando uma mulher está
prestes a dar á luz, c ha receio de
parto didicij, ou já se está debatendo
n'elle, ha o costume de ir á torre ou
ao campanário, e tocar sete badala-
das, espaçadas... Sabe-se logo que
é mulher de parto, — e cada qual en-
commenda-a como sabe aos santos e
santas da sua devoção : á Senhora
do Bom Successo, á Senhora da Boa
Hora, a Nossa Senhora do Livra-
mento.
Ha terras onde isto refina de piíto-
resco, porque quem vae tocar o sino são
sete xMarias, c puxam a corda. . . com
os dentes ! N'este particular, porém,
não sei dizer se se exige nas sete
Marias, como n'outros casos, o es-
tado physiologico, real ou presumido,
da virgindade. . .
— Sete cães a um osso.
Diz-sc quando são muitos os pre-
tendentes a uma coisa, disputando-a
como sete cães se disputariam um osso.
No Porto, quando lá estudei, lem-
bro-me que quando se via um ho-
mem atraz d'uma mulher, ou aferra-
do a ella a «dar-lhe paleio», havia
sempre um que ladrava de longe :
— «Larga o osso!»
O que não queria dizer que as mu-
lheres não fossem ás vezes umas ma-
tronaças, parece que só feitas de
carne !
— Fallar com sete pedras na mão.
Diz-se do que falia arrenegado,
com maus modos, — com palavras
que parecem pedradas. — «Paliou me
com sete pedras na mão I Pouco fal-
tou para correr comigo, e p'ra me
impontar p'la porta fora!» Desposti-
çar, lá cima, significa também a mes-
ma ideia : despedir com violência, ar-
renegado, e ocom cara de poucos
amigos», ou «com más ventas». E'
o que se chama «correr com alguém».
1(>2
A TRADIÇÃO
— Os sete buracos que tentos >m cjra.
K etíeciivamente : dois olhos, dois
ouvidoi»; duas ventas, e então a bôc-
ca. Sete. — a Não é mais que eu. Na
cara temos ambos sete buracos ; e
d'ahi p'ra baixo, por dentro e por
fora, põe lá que somos iguaes !» Uma
razão phvsiologica. . . de igualdade !
— Os sete fôlegos de gato.
Acho que ainda ninguém lh'os con-
tou. Mas porque resistem a toda a
avaria, e parecem feitos da pelle do
diabo, entendeu o Senhor Sete, e
muito bem, que deviam ser dotados
d'aquelle numero de fôlegos ! Um já
eu vi cahir d'uma torre, ficar de pé
como se nada fosse com elle, e orien-
tado em menos de um segundo, lar-
gar a fugir que nem uma lebre !
Em Coimbra, na caça que os es-
tudantes fazem aos gatos, de noite,
alguns só por impostura se fazem
atordoados ; e lembro-me que para
matar uma vez o da D. Amélia Jan-
ny, que repontara com os atacantes,
foi preciso o Eloy, tenente de enge-
nheria, rapar da espada, e furál-o de
lado a ladc !
Furado, ainda bufava !
— Estar com sete olhos ■ . ■
E' como quem diz cubicar'. E ou-
tras vezes, estar attenío \ mas então
é estar com sete ouvidos.
— olhl estava com sete olhos, que
até parecia que lhe queriam estou-
rar ! O invejoso ! Nunca o invejoso
medrou, nem quem ao pé d'elle mo-
rouln — «Estava ali que parecia en-
cantado, com sele olhos pregados
nelle, e sete ouvidos, a escutál-o.»
. . . Algum petiz a ouvir uma his-
toria., que na minha terra se chama
uma couta. No feminino, que é mais
docinho. Também riso não é riso : é
rtsa :
— «Ai que risa !»
Quando os sete olhos se vão n'al-
gum bocado de comida, dá-se um
cibo (um bocadito) ao rapaz, não vá
elle ougar (aguar) :
— Toma, não ougucs !
E alguns ha, coitaditos, que andam
mesmo com cara de ougados ! Mas
a esses dá-se lhes atraz da porta
um pouco de pão amassado em azei-
te, e entram logo a medrar e a ter
boas cores.
Podéra, se tinham fome . . .
— Sete e sete são quator^^e, sete p'ra
deante e sete p'ra tra:^., feirem um alforge.
Qiiator'{e. . . alforge. . . Isto parece
que quer ser em verso :
Sete e sele são quatorze :
Sete p'ra deante,
Sete p'ra traz.
Fazem um alforge.
Talvez assim. Mas o que eu não
sei é o que isso quer dizer ! Dá-me
apenas uma ideia vaga de symetria.,
e outras vezes, não sei porquê, de
indifferença., mas não ausculto a phra-
se como desejava, e não sei, verda-
deiramente, em que casos se mette
na conversa. . . O leitor sabe ?
Lá cima, a palavra alforge (e não
alforja) nunca se uza no singular,
e não é masculina. E' feminina e
vae no plural. Já n'um livro que eu
escrevi, o José Grillo diz p'r'a mulher :
— «Mette-me qualquer coisa uas
alforges, que vou jáaperelhara égua.»
— ly uma formiguinha .1 um formigão; dhim
formigão, um carapetão; d'um carapetão, sete
poucas-vergonhas.
E' uma variante «aperfeiçoada» do
«Quem conta um conto acrescenta
um ponto.» — «D'um argueiro, um
cavalleiro !» diz também o povo, dos
que são dados ao exaggero : — «Faz
d'um argueiro um cavalleiro!»
O Senhor Sete vae, porém, um
pouco mais longe. . .
(Ojntinúa).
TRINDADi: COXIiHO.
A IRAiJlÇAO
103
A I.ENDA DAS ARMAS DF. ELVAS
((^«inclusão)
ESSE caso, ainda hoje apicfíoado,
c um facto real, muito cheio de
verdade. Succedeu. O que não acon-
teceu, em boa hora o digamos, foi per-
der-se o bcllu nome do heroe. Chama-
va-sc João Paes (lago. Ao que consta,
era gago só de nome e nobre dos qua-
tro costados, pois, além de cavalleiro
de Christo, tinha ainda o titulo sobre-
modo pomposo ác Jiiialfjço tf a par do
rei. A sua gloriosa façanha devia ter
tido lugar ahi por meiados do século
XV, o século das innovações. Por
esse tempo, como em nenhuma outra
epocha, a crença christã na peninsula
ibérica, era tão extensa, tão cheia de
fervor, que as festividades de carac-
ter religioso se exhibiam com a má-
xima pompa. Tanto luxo queria dizer
devoção. Mas de entre taes festas, a
que mais deslumbrava pelo seu luzi-
mento e conjuncto espectaculoso, era,
sem dúvida, a de Corpo de Deus.
Corpus Clinsti se chamava em latim.
Esperava-se por ella, com viva ancie-
dade, e a ella se alliavam duas festas
distinctas, quaes eram a propriamente
da egreja e a profana que muitissimo
variava em cada província e até em
cada terra.
Na visinha Hespanha. em Badajoz,
por exemplo, consistia esta ultima
festa n'uma espécie de concurso en-
tre vários cavalleiros, tanto de lá
como do nosso paiz, a vêr qual d'el-
les, todos moços de uma canna, daria
maior numero de voltas em certo
circuito de não pequena extensão,
com o pesado estandarte do municí-
pio em punho.
Pelos modos, esta celebre bandeira
era um traste que pezava quintaes.
João Paes Gago tomou-lhe bem o
pezo. Logo, o estandarte por elle ar-
rebatado aos hespauhoes, não foi o
de Castella, como a lenda nol-o diz,
mas tão somente, veridicamente, o do
municipio de Badajoz. Isto faz sua
differença.
Também o que moveu o esforçado
cavalleiro a semelhante façanha, não
foi nem o amor da gloria, nem, se-
quer, o de premio nenhum. Foi
aquella accesa rivalidade que então
existia entre Portugal e Castella, ri-
validade instigada sobremodo no ani-
mo bellicoso de Joãí) Paes por um
repto que lhe fizeram, sem mais quê,
nem para quê, outros moços de pro-
vado valor. Não se pode dizer que
isso fosse uma aposta. Desafio é
que lhe devemos chamar, lua ir de
Klvas até liadajoz no dia d i festa do
Corpo de Deus, empunhar o estan-
darte como para dar as tacs voltas
no circuito marcado; e, em vez de
avançar uma pííllegada, sequer, na
arena do torneio, chegar os acicates
ao corcel e trazer o estandarte para
Elvas. Assim foi. Ora, os perros de
Castella, ante audácia tamanha, não
se ficaram, nem podiam licai-se, de
braços cruzados, como quaesquer co-
bardões. Seria demasiada fraqueza.
Juraram, portanto, desde logo vin-
gança, desafVronta, perseguição, e,
juntando o seu dito ao seu feito, par-
tiram á desfilada em possantes gine-
tes, na piugada de João Paes (iago.
Heróico João Paes! Se elles mais
gallopavam, mais este voava. Era
um furacão. Por isso, muito longe
ainda se viam os hespanhoes, quando
o perseguido chegou aos muros de
Elvas. Elle vinha triumphante. Diri-
ge-sc, porém, a uma das portas da
praça, e encontra essa porta fecha-
da I V^ae á segunda. Fechada tam-
bém! Estavam todas fechadas e as
pontes erguidas! Tal contratempo
inesperado e traiçoeiro, deveu-o o ca-
valleiro de Christo e fidalgo dapar
do rei a um cobarde receio do gover-
nador de Elvas, D. Álvaro da Silva,
chamado, mestre de campo e gentil-
homem da camará de sua real senho-
ria, o qual «ordenara o encerramento
das portas para evitar qualquer ag-
gressão». Para evitar qualquer ag-
gressão 1 Semelhante contraste de tão
supina cobardia de tal governador,
com o heroísmo do esforçado caval-
leiro, também deve ficar immorial.
Iw4
A TRADIÇÃO
R giste-se, pois. Quanto a João Paes
Giigo, não era elle homem capaz de
desanimo. Isso sim! Vendo-se ao al-
cance dos que o perseguiam e não
podendo dar entrada em Elvas, arro-
jou o estandarte para dentro da pra-
ça, por de cima das altas muralhas,
e soltou estas celebres palavras:
— Morra o homem e tique a fama.
A origem de este dito, provêm de
tal facto. Em seguida o audaz caval-
leiro esperou de peito feito as lanças
hespanholas; mas, sendo lhe impos-
sível vencer nessa lucta desegual,
pelejou quanto pôde e morreu como
quem era, como um heroe.
Se os de Castella o frigiram ou
não, isso agora é que está por apu-
rar. Todavia, o que é certo e bem
certo, é que ainda ha poucos annos,
em dia de Corpo de Deus, tremulava
nas muralhas elvenses, com vista aos
habitantes de Badajoz, o pezado es-
tandarte de aquelle município; e de
lá, como em replica, mostravam aos
de Elvas a decantada caldeira que
fritara João Paes em azeite hespa-
nhol.
Ai.rni:DO de fratt.
lliJl).l^-tMIIII{|LIION.\LEllTEJA\AS
mus. MAKIANMTA. ADEUS!
Âdeas, MariaDDita, adeus!
Já me despeço de ti,
Que ea vou p'ra Lourenço Marques,
Mo sei que será de mim ! . . .
Não sei que será de mim,
De mim não sei que ha-de ser!
Adeus, Mariaunita, adens!
Saudinha, ate mais vér !
n. DIAS NUNES.
A caça no concellio de Serpa
(Continuado de pag, g5)
CHAMA-SE caça grossa, a que é
morta á bala, como os java-
lis e os veados, e caça-se de difle-
rentes maneiras.
A caçada de batida, ou ás man-
chas, era a mais usada e fazia- se pela
forma que passo a descrever. Quan-
do, na serra de Serpa, havia mattos
crescidos onde a caça tinha os seus
acolheites mais seguros, abundava a
caça grossa, principalmente veados e
cervas ; e então realisavam-se fre-
quentemente boas e luzidas caçadas,
organisadas não só pelos abastados,
mas também pelos homens do campo
e malhadeiros, caçadores. Nas does-
tes últimos, cada um levava de casa
o que podia e lhe era necessário para
comer durante os dias que por lá an-
dava. Os abastados tomavam as pro-
videncias necessárias para que nada
faltasse aos caçadores.
Quando havia noticia de que appa-
reciam rezes ou porcos em qualquer
sitio da serra, organisava se logo a
caçada. Chamava-se um ou mais ca-
çadores, dos bons, e com elles se
combinava o sitio onde se devia assen-
tar o rancho, e os homens que eram
precisos para se «fazer bem a terra»,
isto é — para occupar as portas ou
esperas, cercando as manchas, e para
bater estas devidamente. Assim era
necessário para o bom êxito das
caçadas d'outros tempos. Porém,
quando se tinha bons cães bastava
que um homem, conhecedor do ter-
reno, fosse bater, pondo-se ires ou
quatro portas na frente e fazendo-se
as manchas mais curtas, ou então
collocando-se as portas em sitios
d'onde podessem defender mais de
uma sabida da caça \ Mas, para isto
• Cacei muita vez assim, porque tinha um
excellente caçador por meu creado, o meu
velho e amigo Casaca, e bons cães, que, bas-
tava leval-os pelas raias da comedias (siiios
A TKAUIÇAO
105
c%^,
For
o.)
E£i
.■S.^'^»^^^«^^^^^^A^^^^>^^^
C^J^CIOJÍEI^O jVlllSICjElL
Adeus, MariaiiDita, adeus !
(CHOREOGRAPHICA)
-í;.
.«
m^
106
A TRADIÇÃO
se etíeciuar com bom resultado era
preciso que todos soubessem bem o
que tinham a fazer, conhecessem bem
o terreno, e fossem desembaraçados,
para opportunamente correrem aonde
se fizesse mister.
Assentado o dia e o ponto de reu-
nião, avisavam-se as pessoas que ti-
nham de ir, incluindo n'esse nume-
ro os caçadores de mais confiança
e os que tivessem cães bons, se os
organisadores da caçada os não pos-
suíam.
Quando a caçada era promovida
por um só individuo, dava este as
providencias para que não taltasse o
que fosse necessário para comer e
beber; pagava aos caçadores que re-
cebiam salário ; e convidava os seus
amigos e mais pessoas, que deviam
tomar parte na caçada. Quando a
caçada era promovida por um grupo
de caçadores, com meios de fortuna,
um ou dois d'entre elles se encarre-
gavam de tomar as providencias já
mencionadas, sendo a despeza ge-
ral rateada por todos os promoto-
res. Em qualquer dos casos, marcha-
va-se em grupo, no dia e hora com-
binados, para o sitio escolhido, ou
lá se reuniam todos, conforme o ajus-
tado.
Se a reunião era a hora, que per-
mittia ainda caçar n'esse mesmo dia,
formava-se logo conselho, decidin-
do-se, em vista das informações dos
malhadeiros — por onde devia come-
çar a caçada, que manchas' se ha-
viam de fazer e de que lado convinha
bater (conforme o vento estivesse), e
por ultimo, o local das portas.
(Continua.)
A. de BIEI.I.O BBEYNER.
onde os javalis comem de noite) para, lo-
go que atravessavam o rasto, darem um la-
dro, de aviso de uns para outros, e salta-
rem a correr, obrigando a caça a sahir ás
portas.
» Todas as manchas teem nome por que
se designam e são geralmente conhecidas.
LENDA8 & ROMANCES
{Recolhidas da tradição oral na província do AlemtBjo)
D. T-EONARDA
(3.* variante do romance Bella Infanta)
Estando a bella princeza
No seu jardim assentada,
Com pentes de marajitn
Seus cabellos penteava ;
Deitando os olhos ao largo,
Vendo o que bem descobria,
Descobriu 'ma t^rande armada.
Capitão que n'ella vinha
Tral-a muilo bem guiada.
— Diz-me lá, ó capitão,
Diz-me lá, pela tua alma,
Se o marido que Deus me deu
be o viste na grande armada.
— Senhora, eu não o vi,
Nem sei que signaes levava.
— Levava espada d'oiro,
Seu escudo de prata.
Na ponta da sua lança
JesusChristo levava.
— Senhora, eu lá o vi.
Com cento e uma estocada,
A mais pequena de todas
Era a cabeça cortada.
— Ai de mim, triste viuvai
Ai de mim, triste coitada!
Que de três filhas que tenho
Sem nenhuma ser casada 1
— O que daes, vós, senhora
A quem vol-o traga aqui ?
— Dou-vos os meus três moinhos,
Que são d'oiro e marajitn.
— Não quero os vossos moinhos,
Que me não são dados a mim,
Sou capitão da guerra armada,
Não resido nem paro aqui ;
O que daes, vós, senhora,
A quem vol-o traga aqui?
— Dou-vos a minha amètade.
Toda t'a dou a ti.
— Não quero a vossa amêtade^
Que me não é dada a mim ;
Sou capitão de guerra armada,
Não rebido por aqui.
— Dou vos as minhas três filhas.
Todas te dou a ti.
— Eu não quero as vossas filhas,
Que me não são dadas a mim;
Sou capitão de guerra armada,
Não resido por aqui.
— Não tenho mais que vos dar,
Nem vós mais que me pedir.
— Tendes sim, minha senhora,
O vosso corpo gentil.
— Capitão que tal pede,
Que tal ouza pedir,
Precisa ser arrastado
A' roda do meu jardim 1
Andem, andem, meus criados,
Venham prendel-o aqui 1
A TRADIÇÃO
107
— Alto, alto, meus criados,
Que vós criados s.lo de mim ;
Que é do annel de sete pedras,
Que eu comti^o reparti
I.á na noite de Natal
Quando eu te recebi ?
'Presenta a tua metade.
Pois a minha eila aqui.
Elvas
A. THOMAZ FIR£S.
5.^/^
fi.1 MAS pOPULAP^ES
Os mandamentos do amor
(Conclusão)
O sexto eu não declaro,
Bem me podes entender. . .
Acaba já de ser minha
Para mais allivio ter !
O sétimo é não furtar.
O furtar não é peccado.
Eu, em furtar uma rosa.
Fico mais alliviado.
Oitavo, é não levantar
Nenhum testemunho falso.
Eu a ti não t'os levanto,
Só te desejo em meus braços.
O nono é não desejar. . .
Uma só coisa eu desejo^:
Desejo lograr os olhos
Que diante de mim vejo.
Decimo, é não cubicar
Os olhos d'uma menina.
Quem é mestre também erra,
Quem erra também se ensina.
Amor, os dez mandamentos
Em dois os vou encerrar :
Na praia d'esse teu peito
Inda espero navegar.
(Da tradição oral, em Serpa.)
M. DIAS NUNES.
CONTOS ALEMTEJANOS
Anlinaes fugindo à morte
EWA uma vez um gallo; e como
cllc .sabia que estava em qum-
la-feira de comadres, receava não
chegar á quarta íeira de cinza. Por-
isso deixou os companheiros, sem
lhes dizer nada, e metteu-se por um
caminho, para ver se assim se livra-
va da faca. Perto do caminho que o
gallo levava, havia um monte (casa
de campo), e ao pé desse monte an-
dava um rebanho de patos. Um dos
patos perguntou ao gallo:
— «O compadre gallo, então para
onde vai vocc, sósinno?»
Respondeulhe o gallo;
— «Oh! oh! então você não sabe
em que altuta do anno a gente está?«
— «Espere,» — disse o pato — «dei-
xe-me cá fazer bem as contas. . . »
Depois de ter pensado um pedaço,
olhou para o gallo e disse-lhe:
— «Kstâmos em quinta-feira de co-
madres!»
— «Exacto,» — respondeu o gallo —
«e como eu tenho muita vontade de
cantar na quaresma, vou-me safan-
do, ainda assim algum diabo não se
lembre de me cortar as guélas.»
— «E eu vou com você, compadre,
porque agora, no entrudo, também
costuma morrer muita gente da mi-
nha familia.»
O gallo, contente com a resolução
do pato, disse-lhe :
— «Pois venha, compadre, que a
união faz a força.»
E marcharam ambos.
No outro dia, pela rr:anhã, passa-
ram por outro monte, onde andava
um rebanho de perus, e um destes
perguntou-lhes:
— «O' compadre gallo e compadre
pato, então para onde vão logo de
amanhecida?»
Respondeu o gallo:
— «Não ha que ver, isto para aqui
está tudo parvo. Então você também
não sabe em que altura do anno a
gente está ?»
108
A TRADIÇÃO
O peru lá fez as suas contas, c
respondeu :
— «Kstàmos em sexta-feira de co-
madres ! •
— • Exactamente,» —disse o gallo
— «e eu mais aqui o compadre pato,
como queremos chegar á quaresma,
vamos fugindo com as gíjélas áfaca.»
— «E eu também vou, ainda as-
sim. . . B — respondeu o peru.
E lá continuaram os três a sua jor-
nada. Mais adiante, encontraram ou-
tro monte, e, no monturo, estava um
cão, que lhes perguntou :
— «O' compadre gallo, compadre
pato e compadre peru, então para
onde vão perdidos?»
— a Nós não vamos perdidos, com-
padre, nós o que vamos é fugindo
com as gíiélas á faca, porque depois
d'amanhã é domingo gordo.»
— oE eu também vou com vocês»
— disse o cão — oporque ainda agora
roubei um pão, e o pateiro ' disse
que me havia de partir o lombo com
um cacete.»
Os outros, é claro, ficaram muito
contentes, porque já levavam na com-
panhia um defensor muito mais va-
lente.
Mais adiante, encontraram um re-
banho de carneiros, e um dos que
andava de ponta perguntou :
— tO' compadre gallo, compadre
pato, compadre peru e compadre cão,
o que andam vocês fazendo aqui por
estes campos ?»•
Responde o gallo:
— «Olhe, eu, o compadre pato e o
compadre peru, vamos fugindo com
as gtlélas á faca, e o compadre cão
com o lombo a um cacete.»
— «Pois olhem,» — diz o carneiro —
«como na segunda-feira ha um ca-
samento e eu não quero lá ir, quer
dizer que vou com vocês, ainda assim
não me obriguem a ir á funcção.»
E, juntando se o carneiro aos ou-
tros animaes, puzei am-se de novo a
caminho.
* Pateiro = caseiro de monte.
No dia seguinte, viram num outro
monte um gato deitado á soalheira.
O gato, apenas viu o cão, ouriçou-
se todo, mas o gallo acudiu logo di-
zendo:.
— «O' compadre gato, não tenha
medo que o compadre cão não lhe
faz mal. Bem basta o trabalho em
que elle e nós estamos mettidos !
Olhe, eu, o compadre pato, o com-
padre peru e o compadre carneiro,
vamos fugindo com as gtiélas á fa-
ca ; e elle com o lombo a um ca-
cete.»
— «Se eu soubesse» — diz o gato —
«q.ue o compadre cão não me fazia
nada, também ia, porque hontem rou-
bei a carne do jantar, e o pateiro
disse que havia de dar-me um tiro.»
O cão, ouvindo isto, disse para o
gato:
— O' compadre, visto isso, pôde
vir foito, que não lhe faço mal.»
O gato, ouvindo falar o cão com
tanta franqueza, metteu-se também
na companhia, e lá continuaram to-
dos a sua jornada.
Mais adiante, encontraram no ca-
minho um alforge, e o gallo disse:
— «Oh diabo! como havemos nós
agora de levar este alforge?»
Responde o carneiro :
— «Como eu sou o que tem mais
força, ponham-no lá ás minhas cos-
tas, que eu o levo.»
Mais adiante encontraram uma ca-
beça de lobo, e diz o cão :
— oO' compadre carneiro! deixe lá
metter esta cabeça ahi numa enxá-
ca, porque isto pôde servir-nos de
muito.»
Effectivamente, ao chegarem a uma
altura, viram uma matilha de lobos
no meio dum valle. O carneiro, assim
que avistou os lobos, ficou com muito
medo, mas o cão, que era valente e
esperto, disse-lhe :
— «O' compadre! não tenha medo.
Você quer ver como elles fogem por
essas chapadas (ladeiras) acima?»
Tirou a cabeça do alforge, deu
dois latidos e mostrou-a aos lobos.
Estes logo que viram a cabeça dum
A TRAUIÇAO
108
seu similhanie, desataram a correr,
e desappareceram immediaiamcnte.
Nesse dia, poz-se o sol, estando
elles perto dum monte (casai de la-
drões; e, como não viram ninguém
por ali, diz o gato:
— «O' compadres, isto é d'inver-
no, e como eu não estou acostumado
a dormii" ao relento, o melhor c en-
traimos neste monte».
A proposta do gato foi approva-
da, e os animaes resolveram-se todos
a entrar. Diz logo o gato:
— «Eu deito-me além na borralhei-
ra." Diz o carneiro: «K eu fico aqui
atraz da porta, n Diz o gallo: «E eu
vou além para aquelle puleiro.»
— «Nesse caso," —disse o cão— «eu
mais o compadre pato e o compadre
peru vamos para aquella casa.»
Mal elles tinham acabado d'occu-
par os seus logares, sentiram chegar
uma data dhomcns a porta. E ouvi-
ram dizer a um delles: «Eu vou ver
se ainda ha para ali alguma brasa.»
E, dizendo isto, dirigiu-se logo
para a lareira. O gato, assim que o
ladrão lhe chegou ao pé, deitou-se a
elle e arranhou-lhe a cara toda.
O ladrão, sentindo se ferido, prin-
cipiou a andar ás apalpadelas, a ver
se encontrava alguma coisa com que
podesse defender-se; mas como sen-
tia nos olhos uns algueiros (arguei-
ros), começou a esfregá-los. E o car-
neiro, vendo que elle não saía dali,
deitou se a elle ás marrocadas (mar-
radas). O ladrão ainda conseguiu sa-
far-se, mas depois de bem moido. Os
outros ladrões, quando viram o com-
panheiro todo ensanguentado, fica-
ram admirados, e o capitão pergun-
tou lhe:
— «Então o que foi isso?!»
— «Ih! Jesus! foi um ladrão dum
cardador que me deu com as cardas
na cara, deixando-me a escorrer san-
gue; e quando eu andava á busca
dalguma coisa com que podesse de-
fender-me, um diabo, dum ahanéo
(pedreiro) deitou me uma colherada^
de cal para os olhos, que me ia ce-
gando, e ainda não contentes com
isto, salta de lá um malhador. . . e
já o diabo malhava bem! Se não en-
contro a porta tão depressa, mata-
vam-me com certeza, porque estão
lá uns poucos, e a um diabo dum
hespanhol, só o que eu lhe entendia,
era: grú grú grú. . . grú grú grú. . .
Mas ainda assim, do que eu tinha
mais medo, era d'outro diabo, que só
o que dizia, era: tragam-m'o cá, tra-
gam-m'o cá. . . j»
(I»a tradição oral — tírinclicíl
ANTÓNIO ALEXANDRINO.
CONTOS ALGARVIOS
o REI SÁBIO E CEGO
(Continuado de pag. 79 — Conclusão)
CHEGOU o filho, lavou a parte doen-
te com a agua, e logo a mãe dis-
se que estava boa. Ella nunca tinha
estado com tal dor!. . .
No dia seguinte, foi o mancebo
para a caça. Logo sua mãi desceu o
alçapão. O gigante combinou com
ella fingir-se novamente enferma e
dizer ao filho que o medico a acon-
selhou a untar-se com a banha de um
porco espinho, muito bravo, que pas-
ta n'um serro.
Logo que o mancebo chegou, viu a
mãi doente, e ouviu o que o medico
aconselhara, montou no seu cavallo
e partiu a galope. Ao rinchar do ca-
vallo, appareceu o velho, e mandou
as três filhas receber o mancebo, a
mais nova para tratar do cavallo, a
do meio preparar-lhe a comida, e a
mais velha fazer-lhe a cama.
O menino foi estar com o velho e
disse-lhe que ia em procura do porco
espinho.
O velho aconselhou-o a que no dia
seguinte pozesse um par de alforges
ás costas e seguisse um certo cami-
110
A TRADIÇÃO
nho até dar com uma casa, onde ao
seu dono se otTerecesse para guardar
bois.
O rapaz isso fez. Olíereceu-se ao
dono da casa por criado dos bois, e
foi recebido.
— .^."manhã de manhã vai guardar
os bois, mas não passes além de um
sêsmo, pois que um porco espinho
o guarda e é capaz de te matar e de
comer os bois — ordenou-lhe o pa-
trão.
No dia seguinte, saiu o mancebo
com os bois e logo viu o sêsmo, bem
como as pastagens abundantes, que
estavam alem do mesmo sêsmo. To-
cou nos bois e entrou dentro. Appa-
receu-lhe o porco espinho que luctou
com o mancebo por muito tempo, fi-
cando ambos muito cançados e feri-
dos. Disse o porco :
— Ah pessoa humana, pessoa hu-
mana, se agarrasse aqui um refresco,
eu te mataria pessoa humana!. . .
Respondeu o mancebo — por con-
selhos do velho :
— Ah porco espinho, porco espi-
nho, se agora apanhasse um abraço,
um beijo de uma donzella e um copo
de vinho, eu te matava, porco espi-
nho!...
E depois o rapaz saiu com os bois
para casa do patrão. Nessa noite pe-
diu elle á filhinha do patrão, menina
de dez annos, uma tigela de vinagre.
A pequena foi buscar o vinagre e foi
espreitar o mancebo. Pelo buraco da
fechadura viu que elle levava o corpo
ensanguentado e notou que os bois
estavam muito fartos. Foi contar o
que vira ao pai, e este poz-se de ata-
laia.
No dia seguinte succedeu o mesmo
que succedeu no dia antecedente, ten-
do o patrão avistado a lucta, escon-
dido por detraz de uma arvore.
Ali chegaram as palavras do porco
espinho e do criado. Nessa noite pe-
diu o rapaz vinagre á filha do patrão.
No dia seguinte, foi o mancebo com
os bois para a pastagem. De longe ca-
minhou o patrão e sua filhinha per-
feitamente industriada. Logo que o
porco e o rapaz entraram na lucta,
terminando com as palavras do pri-
meiro dia, a menina correu para elle,
deu-lhe um abraço, um beijo e offe-
receu-lhe um copo de vinho. Então o
rapaz matou o porco e arrancou-lhe
as banhas.
— Adeus, patrão e minha menina,
vou curar minha mãe; tomem posse
dessas ricas pastagens e de todos es-
tes terrenos.
E partiu para casa do velho. O ca-
vallo sentiu os passos do dono e rin-
chou.
— Troquem as banhas por outras,
e guardem as que elle traz — ordenou
o velho ás filhas.
E assim fizeram.
No dia seguinte disse o velho:
— Quando te ferirem de morte,
pede que dividam o teu cadáver em
quatro partes e que as coUoquem
sobre o leu cavallo e o ponham a
partir.
O gigante avistou o mancebo e dis-
se para a princeza :
— Ahi vem, vou-me metter no al-
çapão, z tu finge-te doente.
— E' o diabo que o traz — respon-
deu ella.
Chegou o filho, untou os pontos em
que a mãi disse sentir as dores, e fi-
cou logo curada.
No dia seguinte, logo que o rapaz
saiu para a caça, disse o gigante:
— Teu filho não morre ás unhas
das feras, mas podes causar-lhe a
morte. A sua força depende de um
fio de cabello que lhe nasceu do um-
bigo e se enrosca muitas vezes á sua
cintura. Não o deixes ir amanhã á
caça, amima-o, adormece-o no teu
collo, e corta-lhe de um golpe o ca-
bello. Eu estarei de espreita e o ma-
tarei.
A mãi seguiu á risca os conse-
lhos do amante e o mancebo caiu no
laço.
Quando o rapaz acordou ao golpe
da thesoura, deu um grito e disse :
— ai, minha mãe, que me matou!
A mãi deu uma gargalhada, o gi-
gante appareceu e deu sobre o man-
A TRADIÇÃO
111
cebo uma grande pancada que quasi
o matou.
— Por Deus te peço que depois
de me matares me dividas cm qua-
tro parles, colloques lodos os meus
membros sobre o meu cavallo e o
deites a partir.
Por commiscração, o gigante fez o
que o mancebo lhe pediía.
Logo que o cavallo se sentiu á sol-
ta toinou a direcção do palácio do
velho cego, pois que era ali sempre
bem tratado. Quando se approximou
da casa, deu um rincho. O velho ou-
viu e disse:
— \'amos acudir ao tULmino da lapa.
O velho e suas filhas tiraram de ci-
ma do cavallo a golpelha onde vinha
o cadáver do mancebo dividido em
quatro partes.
— Vão buscar as duas garrafas de
agua e as banhas do porco espinho
— ordenou o velho ás filhas.
Appareceram as garrafas e as ba
nhãs, emquanto o velho tinha collo-
cado todos os membros nos seus de-
vidos logares. Em seguida lavou tudo
com a agua das garrafas, untou as
cicatrizes com as banhas e cobriu o
cadáver com um lençol. Minutos de-
pois estava o mancebo são e escor-
reito como d'antes era.
— Vou matar aquelle infame, gri-
tou o rapaz erguendo-se da cama.
— Não, não vás. O gigante é mui-
to forte. Eu sei qual é a sua força,
pois me roubou as três peras de ouro
das minhas filhas e levou me os olhos
que elle tem comsigo. Espera que te
cresça novamente o cabello e vai
exercitando as tuas forças em aquella
mó, que está defronte da minha ca-
sa, e de que elle se servira em tem-
pos nos seus brinquedos de forças.
O mancebo respeitou os conselhos
do velho, e todos os dias ia brincar
com a mó. Em um dia reconheceu
que tinha recuperado todas as suas
forças e pediu licença ao velho para
ir luctar com o gigante.
— Vai, e, quando ferido de morte,
te peço que o não mates, mas o tor-
nes a metter no alçapão. Dize-lhe
que o não matas sem te entregar
as três peras de ouro de minhas fi-
lhas. Elle te dirá que sim, c dar-te-
ha três peras parecidas, não as accei-
tes, não são as mesmas. I^ o mesmo
com respeito aos meus olhos. Depois
de o matares, dá fogo ao palácio, de
modo que não fique pedra sobre pe-
dra, aproveitando-te somente das ri-
quezas, que elle roubou a toda a
gente.
E assim succedeu, sem augmento
de uma palavra.
O palácio foi queimado, e ali mor-
reu a mãi, que para elle fora uma
fera.
Eicou o velho com os seus olhos e
as filhas com as suas peras, legados
de sua mãe. O menino casou com a
filha mais nova do velho, porisso que
o bom tratamento do seu cavallo, fi-
zera que este voltasse a casa do ve-
lho, quando levou a golpelha com o
seu cadáver.
Casaram e tiveram muitos filhos.
ATHAIX>£ X>'OI.IVEIRA.
^Bivis^a^s
 esouridão
O que é aquiilo que quanto maior é me-
nos se vê?
A dobadoira
O que é aquiilo que anda á roda e não dis-
põe ?
O 7arejão
O que é aquiilo que se aperta numa mão
e não cabe num caixão?
ANTÓNIO ALEXANDRINO.
112
A TRADIÇÃO
BULLETIN POUR L'ETRANGER
HA TRADITIOH
ReYue ineasu:;lle íllusii^ee deiDaograpliie poriugaise
DIRECTEUR8
L^iislau Tiçarra et T>ias CNj/;/es
REDACTION ET ADMINMSTRATION
À SERPA PORTUGAL)
Somoaire du preseni numero df la Tradition
TeXte: — Monsieur Sept (sui-
te), par Trindade Coelho (Dr.);
La legende des armes d^Elvas
(conclusion), par QÂlfredo de
"Praíí;
Chansons, refrains de TAlem-
tejo : Adieu, Mariannette, adieu !
par <£\í. Dias Xuues;
La chasse dans le district de
Serpa (suite), par CÂ. de oMello
Breyner ;
Legendes et Romans : D.
Leonarda, par oA. Thomai loi-
res;
Himes populaires: les comman-
dements de Tamour (conclusion),
par M. Dias Nunes.
Histoires de TAlemtejo : Ani-
maux fuyant la mort, par cAnto-
nio QÂlexandrino ;
Histoires de TAlgarve : Le rol
savant et aveugle (conclusion),
par cAthaíde dOliveira (Dr.).
lU^JSlratlOnS :— Galerie de cos-
tumes populaires: Poissonnière.
Recueil de chansons : Adieu,
Mariannete, adieu! (musique).
BULLETIN FOR ABROAD
Monihly lllusirated review oí poriiigoese eitinograptiy
DIRECTOKS
Ladislau Tiçarra and T)ias U^imes
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SERPA (PORTUGAL)
Suiumarj of lhe [iresenl nuniber of lhe Tradition
TeXt : — Mister Seven (conti-
nuation ), by Trindade Coelho (Dr.);
The Elvas' legend of arms (con-
clusion), by cAlfredo de Pratt;
Songs and refrains from the
Alemtejo: Good-bye!, Mariannita,
Good-bye!, by M. 'Dias Nunes;
The shooting in the Serpa dis-
trict (continuation), by A. de
cMello Breyner ;
Legends and romances, by oA.
Thomai Pires;
Popular rhymes : The com-
mandements of love (conclusion),
by M. Dias Nunes;
Tales from the Alemtejo :
Animais flying of death, by
António Alexandrino ;
Tales from the Algarve : The
wise and blind King (conclusion),
by Athaíde dOliveira (Dr.).
IllUStratiOnS :— Oallery of po-
pular costumes : Fish-woman.
Musical collection : Good-bye,
Mariannita, Good-bye ! (music).
Pt.
^IIIIO II — ?<. M
SERPA. AscEto de 1200
V<>lll■ll«^ II
Editor-adminiklrador, Jote Jeronrmo Ja Conta Bravo de Nefsreimi. Rua l.arsa, 3 e 4 — SHRI'A
Typ. de Adolpho de Mendonça, Kua do Corpo Saiiio, 46 c 4K — LISBOA
nmm
lte\isl:i iiiciisiil li Llliii(ii{r;i{iliiii P(iiiiii{iie/.;i. illiisliiiilii
-*"»<wí>''a.<»'-*-
DirecLores:-LAl):SLÃU PIÇARRA e M. DIAS irjIííJS
NOTAS HISTÓRICAS ACERCA DE SERPA
V
Serpa no Lhalifado de Córdova e no reino
de Setilha
Claríssimo está, que não pode-
mos ter a ideia de recordar a
historia da Hespanha mussulmana a
propósito da pequeníssima Serpa. No
emtanto, a primeira conquista de
Serpa pelos portuguezes, a que já
nos referimos, a segunda a que nos
referiremos ao deante, e em geral a
marcha das armas portuguezas no
Alemtejo, de um e outro lado do
Guadiana, mal se podem compre-
hender não tendo em vista os acon-
tecimentos capitães d'aquella histo-
ria. Indicaremos, pois, alguns muito
brevemente ; e só na parte que inte-
ressa esta nossa região de um modo
mais ou menos directo.
A partir da conquista pelos árabes
até ao meiado do VIII século, a Hes-
panha ficou sendo uma dependência
do enorme Khalifado do Oriente, go-
vernada por amires, nomeados e
mandados pelo khalifa. N'este curto
periodo de pouco mais de quarenta
annos, os laços de disciplina afroixa-
ram, porém, de tal modo, que nem
já os amires obedeciam ao khalifa,
nem os alcaides e governadores das
provindas obedeciam ao amir. O es-
tado de anarchia tornou-se intolerá-
vel, e alguns senhores moiros, dos
mais poderosos e influentes, reuni-
ram-se secretamente em Córdova
para se concertarem sobre o modo
de lhe pôr termo. Diz-se, que entra-
vam n'esta conjuração os principacs
chefes da gente vinda da Svria, al-
guns de Damasco, outros de fiméssa,
quer dizer, os que occupavam terras
de Granada, e também - como já vi-
mos — terras de Sevilha, Niebla e
parte do Charf em que ficava Serpa.
Combinaram declarar a Hespanha
independente do khalifado do Orien-
te, e procurar para chefe um homem,
que reunisse aos dotes pessoaes a
auctoridade do nome e da raça.'
Andava então refugiado entre as
tribus berberes da Africa, um rapaz
chamado Abd-ar-Rhaman, da familia
de Omeya, a que pertenciam os an-
teriores khalifas, ultimamente des-
thronados. Mandaram-lhe emissários,
Abd-ar-Rhaman acceitou as propos-
' Mesmo n'estes acontecimentos mais im-
portantes não é possivel ter a certeza de ser
exacto; mas pode talvez dar-se uma im-
pressão geral, que se aproxime da verdade.
Sobre a impossibilidade de escrever hoje
qualquer coisa definitiva a propósito dos
mussulmanos da Hespanha, veja-se a Intro-
ducção do illustre cathedratico. o sr. Fran-
cisco Codera, ao seu livro recente; Dec. y
desap. de los Ahnoravides en Espana, Zara-
goza, 1899.
lU
A TRADIÇÃO
tas. passou o Estreito com algLins
corpos de cavalleiros berberes, uni-
ram-se-lhe na Hespanha os seus par-
tidários, e ao cabo de poucos annos
de lucta estava senhor de todo o paiz,
assentando a sua capital em Córdova.
Fundou se assim o reino ou ami-
rado — depois khalifado — de Córdo-
va. Ksie período da Hespanha mus-
siHmana, independente e unida, du-
rou perto de trez séculos, desde pro-
ximamente o anno de 760 até proxi-
mamente o de io3o. O ponto culmi-
nante do governo dos Omeyades no
throno de Córdova foi, como é sabi-
do, o longo e glorioso reinado de
Abd ar-Rhaman III. Foi este príncipe,
quem primeiro na Peninsula tomou
os titulos de khalifa e de Amir-al-
Mumenim ou chefe dos crentes^ nome
que os nossos velhos escriptores por-
tuguezes mencionam varias vezes na
forma xMiramamolim ou Miramolim.
O brilho da corte de Córdova nos
reinados de Abd ar-Rhaman e de seu
filho Al-Hakem, o modo porque ali
e em todo o paiz foram cultivadas
artes, lettras e sciencias, são coisas
tão geralmente conhecidas, que chega
a ser impertinente mesmo só o re-
cordal-as.
Sem que as guerras civis cessas-
sem, porque nunca cessaram, sem
que deixassem de se dar revoltas
em varias cidades e frequentíssimas
sublevações em varias províncias, o
período do governo de Córdova foi
de relativo socego. Nas incertas e
variáveis fronteiras dos estados chris-
tãos com o mussulmano a guerra
continuava: mas no interior das ter-
ras dos moiros havia o que -com-
parado com outras épocas — se podia
quasi chamar paz e ordem. A Anda-
lusia e o Al Gharb obedeceram mais
ou menos fielmente ao governo cen-
tral de Córdova, e Serpa seguiu a
sorte da região a que pertencia.
Pela morte do khalifa Al-Hakem,
sucoedeu-lhe o filho, que era uma
creança, e alem d'isso de fraca in-
telligencia e vontade, ficando todo o
poder real nas mãos do hajib ou pri-
meiro ministro, celebre na historia
pela sua alcunha de Al-Mansur. Pa-
rece ter sido um homem falso, per-
verso e cruel; mas dotado de gran-
des qualidades de governo e de um
brilhantíssimo valor militar. Nunca os
reinos, christãos da Peninsula tive-
ram, nem mais hábil, nem mais activo
inimigo. Em expedições repetidas e
sempre victoríosas reduziu-os ao ul-
timo apuro. Muitas terras do norte,
que depois da primeira conquista ha-
viam sido pouco a pouco recupera-
das pelos christãos, caíram de novo
nas mãos dos moiros, e foram cruel-
mente arrazadas. Para citarmos ape-
nas um exemplo, Coimbra foi to-
mada pelo hajib, e ficou de tal modo
destruída, que permaneceu deserta
durante sete annos. O escriptor, que
mencionou o facto na Chionica dos
Godos, ainda o ouvira contar aos ve-
lhos que d'isso se lembravam: siciit
á multis senihi/s audivinuis.
A final Al-Mansur morreu, de
doença dizem os escriptores árabes,
das feridas recebidas na batalha de
Calataííazor dizem os christãos. O
ódio, que elle inspirava a estes, re-
vela-se de uma maneira engraçada
na phrase de um velho Chronicon da
cathedral de Burgos, onde se dá
conta da sua morte : Era MXL^
mortuus est Almaii^yOr, et sepultus
esí in inferno. Fosse ou não fosse
sepultado no inferno, como diz o
frade, o certo é que a sua morte foi
o signal da decadência do khalifado
de Córdova. Agonisou ainda vinte ou
trinta annos em sangrentas peripé-
cias ; e a final terminou, deixando a
Hespanha dos moiros em um cahos
politico difficil de conceber. Todos os
governadores das províncias, das
grandes e mesmo das pequenas ci-
dades, se declararam independentes
e soberanos. Muitos tomaram o titulo
de reis. Ninguém obedecia a nin-
guém. Pouco a pouco este cahos or-
ganisou-se ligeiramente -- se é per-
mtttida a expressão — e formaram se
com os fragmentos do khalifado de
Córdova vários reinos, dos quaes
A TRADIÇÃO
116
B/ilíE^II Bi TYPOS POPÍÍL/IRES
.•n-r^^...^
Caçador mstico (de Serpa)
s^Gmc^T^^^
lló
A TRADIÇÃO
dois nos interessam mais particular-
mente, como logo veremos.
A este período da Hespanha divi-
dida chamam alguns escriptores o
período do governo das Taifas ' ; e
a esta divisão, que enfraqueceu os
moiros, correspondeu naturalmente
um glorioso impulso das armas chris-
tãs. O grande rei Fernando I, que
governava por estes tempos Leão
(io36 a io6S), alargou então muito
os seus estados, tomando aos moiros,
entre outras, as povoações de Vizeu,
Lamego e Coimbra. E' quasi inútil
observar, que estas nossas terras de
Serpa ficavam muito longe e muito
a coberto d'aquellas invasões dos
christãos, e se conservaram quieta-
mente na posse dos moiros.
Quietamente, é claro, quanto a
ameaças dos leonezes; mas nada
quietamente quanto a luctas dos moi-
ros uns com outros. Ao terminar o
khalifado, governava Sevilha em no-
me do khalifa de Córdova um certo
Mohammed-ibn -Ismail-ibn - Abbad,
homem hábil, rico, e muito nobre,
pois descendia — diziam — das pri-
meiras familias, vindas de Eméssa
na Svria. Declarou-se independente;
e succedeu-lhe o filho e depois o ne-
to, usando ambos o mesmo nome de
Ibn-Abbad, e o titulo de reis de Se-
vilha.
Estes Beni-Abbad souberam con-
stituir um dos mais fortes e mais
vastos reinos da Hespanha dividida.
Governavam naturalmente em Sevi-
lha, que era a sua capital, e gover-
navam para o lado de lá em Car-
mona e em Córdova. Para este nosso
lado tinham Niebla, Huelba com to-
dos os seus campos até ao Guadia-
na; e diz-se, que também lhes per-
tencia Beja, e parte do Algarve até
Silves *. Acceitando estas noticias.
' Da palavra árabe íaha^ que significa dis-
tricto, região.
* O escriptòr árabe Al-Maccari diz, que
Beja pertenceu ao reino de Sevilha em tem-
po dos Beni Abbad; veja-se a versão de
Gayangos (1. c, I, 6o) — Conde diz, que ti-
torna-se bem evidente, que Serpa,
situada entre Niebla e Beja, devia
igualmente fazer parte do reino de
Sevilha durante a dynastia dos Beni-
Abbad. Não é, porém, absolutamente
seguro, que lhe pertencesse sem al-
guma interrupção.
Ao norte de Serpa havia-se for-
mado outro reino, também poderoso.
No momento da desmembração do
khalifado de Córdova, o governador
de Badajoz, um africano de Mequi-
nez, chamado Abd-Allah-ibn-al-Aftas,
havia-se declarado independente e
rei. E este reino de Badajoz, sujeito
aos Beni-1-Aftas, abrangia quasi todo
Al-Caçr, quer dizer, uma grande
parte do que é hoje a Extrema-
dura hespanhola, e uma parte do
nosso Alemtejo, por Évora, Elvas
e Alcácer até ao Tejo. Como estes
pequenos reis das Taifas andavam
quasi constantemente em guerra uns
com os outros, e as suas fronteiras
variavam segundo a sorte das armas,
é perfeitamente possível, que' Serpa
pertencesse por algum tempo ao rei-
no de Badajoz, comquanto seja mais
provave. que durante todo aquelle
período, ou pelo menos a maior parte
d'elle, obedecesse a Sevilha.
No entretanto, o progresso das ar-
mas chrístans continuava. Fernando
1 tinha morrido; e seu filho Alfonso,
depois das contendas com os irmãos,
bem conhecidas e que não vem ao
nosso caso, havia succedido nos es-
tados de seu pae, de Gallíza, Leão e
Castella, tomando mesmo o titulo de
imperador. O poderoso Affonso VI,
avô do nosso D. Affonso Henriques,
alargou muito as conquistas chris-
tans, e entre estas avultou a da ci-
dade de Toledo, tomada ao príncipe
mussulmano, Yahia-ibn-Dín-Nun. To-
ledo tinha, alem da sua importância
nham Oxanoba (sic) e Xilbe no Algarve
(Parte III, cap. 5."). E estas noticias de
Conde, sempre duvidosas, parecem confir-
mar-se pelas relações de Niebla com o nosso
Algarve, que se conservaram até muito de-
pois.
A TRADIÇÃO
117
real, a aureola de que a rodeava o
facto de tor sido a capiíal da antiga
monarchia visigothica. Quando os
christãos a viram de novo capital dos
seus estados, julgaram lavada a af-
fronta, recebida séculos antes no
tempo do rei Rodrigo. Alguns chro-
nistas, ao fallarem de AlTonso, aceres
centam simplesmente «o que tomou
Toledo», como se este só facto resu-
misse em si toda a sua historia.
Pelo seu lado, os reis moiros sen-
tiram dolorosamente aquella perda';
assustaram se com os lapidos pro-
gressos de Alíonso M; comprehen-
dcram, que desunidos e sem auxilio
estranho lhe não podiam resistir, e
assim a causa do Islam na Península
se perdia sem lemissão.
Tomou a inicia