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Monteiro, Mário
Typos de Coimbra
MÁRIO MONTEIRO
ypos
de Coimbra
riMARAES & C.^
EDITORES
ij) 68, R. S. ROQUE, 70
LISBOA, J908
jnio da Sllva-Lisboa
TYFOS DE COinORA
n
/Aario /Monteiro
DE COIMBRA
1908
Livraria Editora
GUIMARÃES & C.^
68, Rua de S. Roque, 70
Lisboa
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A MISÉRIA DAS RUAS — GaROTOS E ALCU-
NHAS— O «Paixão» alfaiate e o Diamante
— O Ribeirinho, As «Allegorias» e as ma-
nifestações DA ACADEMIA — «A LOJA d'uMA
PORTA SÓ» — O Barbeiro e os sinos de S.
Bartholomeu — O «JiNó» E o «D. Sebas-
tião» — O «Zé macaco» e a Politica — O
«Cobra Ladrão»^ As pratas da Sé, A rou-
pa E AS CHAVES— «ROSALINO CaNDIDO DE
Sampaio e Brito» — Os Sermões de «Antó-
nio DAS Almas» e as Cantigas do «Cego
DA Abrunheira» — O «Francisquinho Ta-
nana» e o «Mudo Calceteiro» — A impo-
nente figura do «Mersandó» — O «Chitó-ó-
Chitó» — A «Feleciana Pereira» e o Se-
nhor Dom Miguel — A «Maria do gato
NEGRO» — A CAÇADA AOS GATOS E OS ESTU-
DANTES — O «Senhorinha», A mulher e o
CAVAQUINHO... — As PARTIDAS DO «HORTA»
— O «França Rolié» — Lente das Tretas
— «QUATORZE», cocos, BANANAS E INTRUJICE
— O HOMEM DOS CHRISTOS — LaMBER PARA
Typos de Coimbra
VENDER — Os VERSOS DE MAXIMIANO VeIGA
— O «Pedro do Pifano», A mudança de
NOMES E OS SEUS IMPROVISOS MUSICAES — O
EPiTAPHio DO «Manuel das barbas» — «Mar-
RAFA», Sebenta, Amor e dinheiro empres-
tado— «O Hermínio», A Academia e as
CASAS DE PREGO— O «GaSPAR» ENGRAXA-
dor e os seus amores frustrados — Como o
«Santos cego» conhece os caloiros e fala
de mathem atiça — As habilidades do «Jo-
sé Maria Mudo» — O «Bentinho sapateiro»
vestindo á ingleza... — «O Bamba», As
suas confissões e Dom Thomaz de Noronha
— «Barnabé» immenso, em toda a parte —
Uma phrase grandiosa do «Luisinho das
pontas» — «Beb'agua» como typo de tran-
sição entre o macaco e o homem — o «ES-
tópido» e o «S. Pedro» (Boas pessoas) - O
RISO E o PRANTO DO «NORRIM» — O «ALMI-
RANTE Rato» e os passeios á Lapa.
Analisar a miséria das ruas, observar com
olhos de vêr todo esse constante e crapuloso
bric-à-brac onde se atrophiam e se perdem
■caracteres, mas onde, as mais das Vezes, se
vão buscar modelos, bellas cabeças de estudo
Vincadas profundamente, dolorosamente, pelos
traços indicadores d'uma vida agitada e mise-
rável — é, em qualquer parte, um estudo arro-
jado, quasi impossível, cheio de mil obstáculos,
e sobretudo, fastidioso, mas, em Coimbra,
chega a ser deveras original e interessante.
É que esta deliciosa terra, com a sua Uni-
versidade, lá no alto, a coroar-lhe os edifícios,
a dar-lhe uns certos ares de sabia . . . não sei
porque estranho dom^ podendo ser encarada
sob muitos e variados aspectos, tantos quantos
se queiram, — manancial eterno de prosadores
e poetas — apresenta-nos, uma vida das ruas
característica, typíca, absolutamente sua.
Tudo isto porque os garotos de Coimbra -
e não ha nada peior do que elles ! — são exí-
mios glorificadores dos grotescos que appare-
Typc^ de Coimbra
cem dia a dia e, sabendo procurar-lhes todos
os pontos vulneráveis, são terriveis no ata-
que em que, por entre o desespero dos ven-
cidos e o desenfrear das chufas e dichotes
dos vencedores, não é raro apparecer uma al-
cunha que se pega, que se agarra por tal forma
que nunca mais sae, creando, ipso facto, um
noVo typo apontado e escarnecido em toda a
parte.
Alcunha que se ponha em Coimbra é muito
peior que colla-tudo, é como alma que cae no
inferno. E pega que nem santo António lhe
vale ! . . .
Ainda hoje certos commerciantes da cidade,^
ventrudos e lustrosos, pintam sempre as man-
tas do diabo se lhes forem perguntar á porta
dos seus estabelecimentos:
Tem chá feito?
Tem cordas para flauta?
A boneca já fala ?
Por isso convém aqui dizer que, ao enume-
rar alguns dos typos mais curiosos de Coim-
bra, eu não pretendi ir procural-os apenas á
miséria das ruas, mas fui buscal-os também ás
suas casas de negocio, arrancal-os de traz do
balcão para os trazer até aos humbraes da
porta e mostral-os, á luz do dia, como objectos
raros e dignos de uma observação mais ou me-
nos demorada e minuciosa.
E é assim que, sem mais delongas, dando o
braço ao amigo Paixão, peço licença para o
apresentar.
O Paixão — é um alfaiate que mora na rua
de S. João, quasí no centro da parte alta da
cidade, essa espécie de quartier latin, que é
o bairro académico por excellencia.
Pinta muito regularmente a pêra, segundo se
I
Typos de Coimbra
conta, e dá uma sorte levada da breca em se
'lhe dizendo :
O Paixão dá cá o diamante ... — alludindo
não sei a que episodio dos seus tempos ... de
outro tempo.
r^^"-^
Paixão
Imitado pelo dr. Brito Lima
na recita do 5." anno — Bohemia — (1898)
Vicioso fumador de charuto, que traz sempre
ao canto da bocca, n'essas lioras de mau hu-
mor, ha quem Veja mordel-o raivosamente, cus-
pir repetidas Vezes, como é seu costume, n'um
grande ar cómico irresistivel, e desandar depois
n'uma catilinaria pavorosa capaz de assustar
todos os anjos e santos da corte do céu ! . . .
Constou-me até, nem eu sei quando, que os
estudantes de certa geração o puzeram fora da
10
Typos de Coimbra
porta férrea, depois de encerradas as aulas,
porque acto a que elle fosse as>úsi\r QXdL chumbíf
certo . . .
No emtanto o amigo Paixão, com todos aquel-
les seus ares de caricato, não passa d'uma
bella creatura, d'um pobre diabo incapaz de
fazer mal a uma mosca.
Mas caiu na asneira de dar sorte e fez muita
mal, lá isso fez !
O Ribeirinho
De outro commerciante que já morreu, o
Ribeirinho, resa a tradicção que, tendo fallido,
se fingiu amalucado em harmonia com certos
fins que tinha em vista . . .
Ora o Ribeirinho, lá pelos modos, tinha as
1
Tvpos de Coimbra
11
suas aspirações a poeta e, como tal, deu-se ao
luxo de publicar um livro intitulado Allegorias,
as celebres Allegorias, onde conseguiu, não sei
porque artes diabólicas, armazenar quantos pon-
tos de admiração havia n'este e no outro mundo
até essa data.
E a academia, sempre disposta a fazer das
.suas, sabendo isto e sabendo mais e melhor
que o Ribeirinho era homem de muitos haveres,
mas avarento como poucos, ia buscai o a casa
em engraçadíssimas
marchas aux fiam- ■ ' .—
beaux, percorrendo
as ruas da cidade com
elle ao collo, fazen-
do-o recitar, de mo-
mento a momento, as
melhores producções
do seu livro que, di-
ga-se a verdade, tanto
Valiam umas como
outras.
Mas elle, saraco-
1eando-se todo, em
pose de passar á pos-
teridade, num gesto
estudado e ridiculamente impagável, recitava,
tornava a recitar, enfiado na sua capa sem
mangas e nas suas calças de xadrez, entre a
galhofa e o applauso das turbas que elle genero-
samente julgava contentar atirando-lhes sempre
á queima-roupa, com um obrigado rapazes . . .
Passado algum tempo o Ribeirinho, que nos
últimos mezes se dizia um desgraçado, morria
deixando em testamento uma fortuna rasoavel
.em bellos contos de réis! . . .
Ai quem me dera ser um desgraçado assim !
o RIBEIHO
(Caricatura ilc Miyuul C:istai
12 Typos de Coimbra
Houve ainda outro, certo dia em Coimbra,,
nunca llie soube o nome, que mandou annun-
ciar, em todos os jornaes da terra^ que vendia
bellos chouriços alemtejanos e quiz vêr, no
alto do annuncio, em caracteres de palmo e
meio :
A loja diurna porta só. Eis senão quando,,
logo ao outro dia de manhã. Viu postar-se-lhe
em frente da porta um grande, um numeroso^
grupo de estudantes exclamando admirados :
Olhem A loja d'' uma porta só !
O homem, não sei porque, prevendo qualquer
cousa de extraordinário, não ficou lá muito bem
disposto com a scena e com aquelle ar irónico
que via nos rapazes, mas sahiu de traz do bal-
cão, avançou até á porta e perguntou, forçando,
um sorriso :
— Que hão de querer?
— É aqui a Loja d' uma porta só ? . . .
— É sim senhor, porque?
— Porque não tem senão uma porta!
E logo outro:
— Porque tem unicamente uma porta!
E outro:
— Porque tem uma porta apenas!
E ainda outro:
— Porque tem simplesmente uma porta!
E todos, em coro, ao mesmo tempo:
— Porque tem uma porta só! . . .
E o certo é que o homem afinou com a brin-
cadeira, foi aos ares, deu ao diabo os estudan-
tes e desatou n'um berreiro infernal despejando
quantos insultos conhecia : — Mariolas ! Va-
dios ! . . .
Como umas cousas fazem lembrar as outras-
e as palavras são como as cerejas, segundo,
exclamava uma creada velha que eu tive, agora
Tvpos de Coimbra
IS
me recordo que já ouvi contar, não sei a quem,,
que ouve outrora um barbeiro, atraz da egreja
de S. Bartholomeu, que, todos os dias barafus-
tava endiabrado só porque os estudantes, muito
ingenuamente, iam perguntar-lhe como é que os-
sinos da egreja próxima tocavam a fogo, a baptisa-
do, ao Senhor— fora e como daVam as Trindades.
Mas, como estes, houve e ha tantos ainda
por ahi fora !
O Jinó
Quem não conheceu mendigando pelas ruas,,
ainda ha bem pouco tempo, O Jinó, essa figura
esquelética de velho, de cabello desgrenhado,,
de olhar mau, vivo e penetrante, que todo se
exasperava quando o rapazio lhe gritava, pondo-
se a dançar deante d'elle : Ó Jinó larga a Ma-
ria viuva, talvez allusão a quaesquer amoricos.
14
Typos de Coimbra
passados, ou Ó Jinó larga o velho, não porque
elle tivesse roubado qualquer velho, mas pela
tendência que o povo sempre teve e tem para
rimar tudo o que significa ridículo e tem de di-
zer repetidas vezes? . . .
E o Z). Sebastião, um bello typo de velhote
que andava pelas ruas vendendo reportorios
D. Sebastião — Pitonó
novos, apregoando-os de tal forma que parecia
dizer Pitonó, razão da sua segunda alcunha,
que acreditava na Vinda de el-rei D. Sebastião
n'uma manhã de nevoeiro, e que ia a casa dos
sapateiros pedir-lhes uma faca emprestada para
se lhes sentar á porta a limpar e a aparar as
unhas dos pés n'um estendal immenso de mi-
séria e porcaria?!
d
Typos de Coimbra
15
E O Zé Macaco, o José Macaque da Rattazzi
no Portugal à vol d^oiseau, o creado do antigo
Hotel Mondego, cuja presença daria um im-
menso prazer a Darwin, esse imperdoável fal-
lador que desandava a discutir com os hospe-
des, emquanto
os servia, so-
bre assumptos
de politica!
Hospede que
lá caisse e que
já tivesse sido
ministro, o fos-
se n'essaocca-
sião, ou esti-
vesse em Vés-
pera de o ser,
já podia contar
com um Vigo-
roso ataque de
argumentos ir-
risórios e dis-
paratados cujo
fecho era sem-
pre este : «os
senhores afinal
promettem . . . promettem . . . mas, em che-
gando lá, fazem todos o mesmo. Tão bons são
uns como outros ! . . .»
E o Cobra, que tinha uma cara de mau, Ver-
sejador de má moríe que diziam ter roubado as
pratas da Sé? Esse ia esconder-se atraz dos silva-
dos, á beira do rio, pescando á linha a roupa,
dentro em breve reduzida a metal sonante, que
as lavadeiras, bellas moçoilas frescas e appeti-
tosas, de saia arregaçada até ao joelho, ahi
estendiam a enxugar. . .
O Zé Macaco
16
Tvpos de Coimbra
Este costume de pescar roupa alheia e de
andar de noite, roubando as chaves que encon-
trava pelas portas para as ir vender a qualquer
ferro-velho, mereceu-lhe o epitheto pouco glo-
rioso de ladrão, que o tornava apopletico e o
fazia correr á pedra a garotada que o perse-
guia.
O Cobra Ladrão
E o Rosalino Cândido? E o António das
Almas?
Do Rosalino Cândido de Sampaio e Brito,
nome mil vezes maior do que o dono, um ve-
Ihito pequerrucho, de barba branca, não ha nin-
guém, quer-me parecer, que não conheça aquella
scena com o Manso Preto, em geometria, no
Lyceu.
Como não soubesse a lição, em certo dia,
lembrou-se de pedir dispensa em verso . . .
Typos de Ccimbra 17
E se bem o pensou melhor o fez :
Como incommodado estado tenho
Dispensa a V^. ^.'^ pedir venho
E por não a pedir por varias vezes
Peço-a por dois ou três mezes.
Responde-lhe o professor :
Por um anno se quizer !
E o Rozalino não perdeu a occasiào de re-
torquir:
Isso mesmo c o que se requer !
O Rozalino era pobre, mesmo muito pobre^
mas cheio de altivez, para não pedir cousa al-
guma, fez-se poeta e prosador de sete costados.
A publicar- folhetos não havia quem o vences-
se.. . no numero! Eram ás dezenas, às cente-
nas, aos milhares! . . .
Foi assim que o O Diabo fechado na minha
gaveta e A luz da razão vieram á luz do dia,
a par de tantos outros folhetos que elle próprio
distribuía em troca de alguns vinténs.
Pedir não pedia, mas usando d'este processo^
tudo vinha a dar no mesmo . . .
Paliando do Rozalino Vem muito a propósito
contar um facto pouco divulgado mas cuja ve-
racidade eu posso garantir.
Uma Vez um estudante da Universidade teve
a estranha lembrança de enviar as obras de Roza-
lino não sei a que escriptor sueco ou norueguez.
Os folhetos partiram e, passado pouco tem-
po, esse mesmo estudante lia, n'um jornal es-
trangeiro, uma pomposa critica á obra monu-
mental de Rosalino firmada pelo tal escriptor
que dizia e asseverava, entre muitas outras
cousas, que o Rosalino era o primeiro pro-
sador de Portugal!!!
18
Typos de Coimbra
Escusado será dizer que o jornal, passando
de mão em mão, foi lido pela academia em
peso, entre enormes explosões de gargalhadas,
emquanto o nosso poeta, impando de orgulho,
inchado, ia pensando de si para
si : — que grande Rosalino não
havia de ser Alexandre Her-
culano se mandassem o Eurico
a este escriptor! . . .
E, arranjando uma casaca,
não sei onde nem como, foi
assim, todo bem posto, que se
apresentou nas ruidosas e me-
moráveis festas que a Acade-
mia de Coimbra fez pelo tri-
centenário de Camões.
Depois usou-a, usou-a, como
competia a um tão digno e
illustre ornamento das lettras
pátrias, até que a pôz no fio e
teve de encobril-a lançando-lhe
por cima a sua inseparável e
conhecida capa !
Foi um portento esse Rosa-
lino!
O António das Almas era um pandego in-
corrigível, um emérito patusco que sabia arran-
jar-se menos mal, fundado no grandioso prin-
cipio de que não ha nada melhor para não
morrer á fome e ter dinheiro do que ser amigo
de estudantes e captar-lhes as sympathias.
Além d'isso o António não desperdiçou
nunca o seu tempo, pois que a par d'essa ami-
sade collocava a sua qualidade de pregador,
sendo raro o dia em que deixava de pregar um
sermão por dá cá aquella palha.
O António jamais perdia as occasiões propi-
O Rozalino
I
Tvpos de Coimbra
Í9
cias, inclusive a festa das latas, esse banzé,
sabbat infernal, que os estudantes fazem, ar-
rastando latas velhas pelas ruas da cidade mal
escurece o dia do encerramento das aulas, do
começo das férias do ponto, para não deixa-
rem dormir nem estudar os collegas das ou;ras
faculdades que por desgraça vejam as suas au-
las encerradas mais tarde.
O António das Almas
Pregando em toda a parte e a toda a hora,
gostava no emtanto muito mais de pregar no
largo de Sansão, n'um pilar de pedra que ali
havia e ainda se Vê actualmente encaixado na
parede d'uma casa que faz esquina com a rua
do Corvo e rua da Louça.
20 Tvpos de Coimbra
Chegado ahi, no meio do povoléu que lhe
servia de séquito, subia ao seu púlpito, per-
signava-se e rompia sempre n'estes termos:
Eu sou o António das Almas. As mulheres
são como as cabras que andam pelos outei-
ros. De Cellas nem elles nem ellas. E vol-
tava ao principio ... Eu sou o António das
Almas . . . sendo capaz de estar meia hora
assim, na mesma arenga, contanto que lhe
dessem um cigarro, umas calças, um collete
servido, que era, em geral, a espécie de moeda
que preferia para pagamento dos seus sermões.
Succedeu, porém, uma vez que, em certa
festa das latas, o António não quiz pregar^
porque dizia faltar-lhe uma papeleta com o
thema do sermão. Mas isso era o menos. Elle
apenas pretendia fazer-se rogado para lhe pa-
garem melhor.
E foi o que succedeu . . . Um estudante seu
amigo, desejando ouvir mais um sermão dos
seus, metteu-lhe na mão uns dinheiros em prata
ao mesmo tempo que lhe dizia, entregando-lhe
um papel em branco: «Ahi tens a papeleta». . .
O António das almas olhou para o dinheiro
n'um grande sorriso de satisfação e exclamou
agitando o papel — meus senhores cá está a
papeleta . . . e mirando o papel d'um lado e
d'outro, poz-se a scismar . . . v. D' este lado
nada . . . do outro também nada . . . ora do
nada creou Deus o ceu e a terra. . .
E, pregou sobre este assumpto o melhor ser-
mão entre os muitos que fez em toda a sua vi-
da
Por outra vez, devido a um caso inexplicável, o
António das Almas que morava para os lados
de Monfarroyo, não poude pagar ao senhorio
o aluguer da casa que habitava com uma mu-
Typos de Coimbra
21
Iher chamada a Caqueireira e sendo posto na
rua por tal motivo, na rua foi levantar um si-
mulacro de tenda de campanha.
Iam, assim, as cousas muito bem . . . mas,
certo dia, lembrou-se de viajar nas azas do
Cupido perante a revolta dos transeuntes que
barafustavam. Um agente da policia então a
cargo de zeladores municipaes, deitou-lhe a
mão e espetou com elle na cadeia.
O Cego da Abrunheira e o moço
Pois O António das Almas nada se ralou com
isso, pelo contrario, pinchava de contente ex-
clamando em altos gritos: Ora graças a Deus!
Aqui está-se debaixo de telha e tem a gente
casa de graça ! . . .
A galeria popular coimbrã é vasta, e se n'ella
ha vultos de somenos originalidade como, lem-
22
Typos de Coimbra
brando ao acaso, O Cego da Abrunheira, lo-
gar próximo de Coimbra, que vinha, ás vezes,
á cidade em companhia de um moço ganhava a
vida tocando e cantando alguns improvisos.
Verdadeiros disparates, a quem lhe desse al-
guma cousa, outros ha que merecem um pouco
de attenção, como, por exemplo, o «Francisqui-
nhoTanana», a «Feliciana Pereira,» a «Maria do
gato negro» e tantos outros que passarei a citar.
O Clii(|iiinlio Taiiana
O celebre Francisqiiinho Tanana, um ve-
Ihito magro como um Junco, de pelle encar-
quilhada, morava junto ao cemitério, lá no alto
do Pio, e passava á tarde para o rio a buscar
agua n'um pote de barro que, á volta, trazia á
cabeça com muito cuidado.
Tvpos de Coimbra
23
A , pobreza do seu vestuário era tão grande
que chegava a ser immoral, pois tanto impor-
tava esse conjuncto de andrajos como nada. O
corpo andava quasi todo á mostra, e uma vez
Vi-o eu, n'esse estado, a gritar como um pos-
sesso, n'uns gritos selvagens e a arrepelar-se
todo porque os garotos além de lhe chamarem
O Mudo Calceteiro
Tanana tinham-lhe feito partir o pote que le-
vava á cabeça e que desiquillibrou ao atirar
uma pedra, arma com que se defendia da ra-
paziada brégeira.
Quando se ouvissem uns gritos agudos, por
vezes em falsete, acompanhados d'um choro
ridiculamente convulso, era certo e sabido que
andava perto o Francisquinho Tanana e toda
24
Txpos de Coimbra
a gente assomava ás portas e ás janellas para
vêr esse espectáculo miserável da vida das
ruas.
Facto quasi idêntico se dava com o Miido^
um calceteiro que a camará municipal tinha ad-
mittido ao seu serviço.
O Rabino
Esse não tinha nada com os garotos e só se
importava com o pessoal que dirigia, mas, para
lhe transmittir as suas ordens, para se fazer
comprehender, desfazia-se em gestos desespe-
rados e gritos tão agudos que se ouviam com
certeza a sete léguas em redor.
Olhar a fronte cheia de rugas do Francisqui-
nho é trazer á idéa toda uma série de magni-
d
Typos de Coimbra
23
ficas cabeças de estudo que se encontram n'es-
ses mendigos Vadios perdidos pelas ruas de
Coimbra.
E' vêr o D. Sebastião de que já falei, o
Rabino um bello typo de judeu, de rosto bem
vincado, de linhas bem definidas, que Vivia de
e?<:pedientes e tinha o seu dito espirituoso lá
de vez em quando, o Mersandó, de cabelleira»
U Mersandó
um bom ratão, o Velho por:eiro do palácio dos
Grillos, que faz lembrar um pouco o Chitó-ó-
chitó, que divertia o publico executando palha-
çadas nas ruas e que tinha também umas bar-
bas esplendidas e um rosto expressivo.
A Feliciana Pereira, uma Velhota reVelha, com
umas certas pretenções de asseio, tinha sido
creada do grande liberal de Ceira, Victorio
2
26
Typcs de Coimbra
Telles, cuja cabeça se viu, durante algum tem-
po, espetada n'um pinheiro, a uma esquina do
largo de Samsào, devido ás luctas apaixonadas
e renhidas do seu tempo.
Talvez por esse motivo liberal ferrenha, não
tinha o menor pejo em correr a pau a garotada
das ruas que lhe sabia da pecha, e, ainda ha
O Chitó-ó-Chitó
bem pouco tempo, lhe atormentava os ouvidos
a toda a hora dando vivas ao senhor D. Mi-
guel, o que para ella equivalia á mordedura
venenosa e súbita d'uma vibora.
Obteriam d'ella tudo quanto quisessem... mas
nada de offender os seus ideaes políticos !
Credo ! Virç^em Santíssima ! Lá isso nào ! . . .
4
Tvpos de Coimbra 27
A Maria do gato negro era uma outra ve-
lha que Viveu em Coimbra e foi um dos typos
mais interessantes da sua época.
Já lá Vae isto ha um bom par de annos ! Vi-
via n'um casinhoto dentro da torre de Santa
Cruz e, como n'uma noite lhe tivessem morto
um lindo gato negro que muito estimava, foi
tal a raiva que se apoderou d'ella que, jurando
A Feliciana Pereira
Vingar-se, pellaVa-se toda por andar, altas horas
da noite, percorrendo as viellas mais immundas
á caça dos gatos.
Bichinho que ella apanhasse a geito tanta
paulada lhe assentava no lombo que nem a alma
se lhe aproveitava ! . . .
Os estudantes de então, conhecedores da ma-
nia d'essa pobre mulher, para se divertirem á sua
28
Typos de Coimbra
custa, encommendavam-lhe gatos mortos, que
ella, de muito bom grado, lá ia distribuir pelas
republicas, a troco de uns miseros Vinténs que
mal lhe chegavam para não morrer de fome...
O Senhorinha, assim chamado pelos seus
modos effeminados, era um zelador municipal
que ia levar a sua cara metade com quem ca-
A Maria do áato negro
sara . . . por amor ... a casa dos estudantes,
sobraçando sempre o cavaquinho.
O amor para elle não Valia nada sem um
bom acompanhamento.
O Horta, esse então, ás vezes pouco amigo
da limpeza nos seus feitos e um pouco, para
não dizer bastante, desbragado nos seus ditos.
Typos de Coimbra
29
não deixava de ser um velho endiabrado cujas
partidas tinham alguma cousa de original e de
espirituoso
De lunetas encavaladas quasi na ponta do
nariz, levado pela necessidade que, segundo
ouço dizer é a mãe de todos os vicios, bebia
azeite por pregar a sua peça.
O Senhorinha
Só se não poudesse ! Mas para isso, para
chegar a essa conclusão de não poder, era pre-
ciso que tivesse já esgotado todos os recursos
da estratégia, e tal facto seria quasi inacredi-
tável !
Uma Vez, ao entrar n'uma padaria que havia
n'esse tempo e parece-me que ainda existe no
30 Typos de Coimbra
Arco d'Almedina, o Horta, olhando de relance
para o forno, deparou com uma caçoila Vidrada
coberta com um papel, d'cnde se exhalaVa um
cheiro delicioso a certos temperos que lhe ha-
viam de ser muito gratos ao paladar . . .
Desatou a correr para casa á procura d'uma
caçoila parecida. Encheu-a de pedras, poz-lhe
um papel por cima, tal qual como na outra que
vira, e eil-o que volta á padaria a pedir com
muito empenho para lh'a collocarem também
no forno.
Promettendo voltar a uma certa hora, al-
gum tempo antes da hora em que sabia que o
saboroso pitéu seria retirado, foi dar o seu pas-
seio para passar tempo, até que. Voltando no-
vamente ao forno, embarrilou o moço da pada-
ria dizendo-lhe ser a outra caçoila a sua . . .
E pernas para que te quero ! ... Lá foi elle
até casa, n'uma correria louca, saborear um
bello pastelão de carne que o acaso lhe offe-
recera. E o verdadeiro dono do acepipe ao vir
buscar a caçoila apenas se encontrou cheia de
pedras . . .
Como esta, contam-se d'elle innumeras proe-
zas que o fizeram tomar por doido, sendo, den-
tro em pouco, internado no hospital Conde
Ferreira, pois que ninguém o podia supportar.
Regressando, mais tarde, a Coimbra, pouco
tempo demorou a reeditar as scenas d'out'ora,
e é assim que elle apparece, n'uma tarde de
inverno, em Santa Clara, ao fim da ponte, a
metter n'um bolso das calças certa encommenda
que encontrou á beira do caminho.
Elle que o fez é porque alguma coisa rumi-
nava, é porque lá tinha as suas razões para o
fazer. . .
Terminada essa operação, limpando as mãos
Typos de Coimbra
31
a uns arbustos que alli estavam perto, induziu
um rapazito que passava a que fosse dizer ao
guarda-barreira que elle Horta, levava contra-
bando no bolso das calças.
E o rapazito lá foi cumprir a sua missão em-
quanto sua excellencia, a passo largo, mui:o
O Horta
sereno, marchava olympicamente a caminho da
cidade.
Mal tinha tempo de pôr o pé fora da ponte
<|uando o guarda se lhe poz na frente intiman-
do-o com uma Voz de trovão: deixe ver o que
leva ahi.
— Não deixo, diz o Horta, fingindo-se muito
compromettido.
32
Typos de Coimbra
'■4
— Deixe vêr já lhe disse.
— Não deixo.
— Ah, não deixa?!
E assim estiveram n'este dize tu direi eu, até
que o guarda resolveu leVal-o á presença da
auctoridade superior.
Foi dito e feito.
Como a auctoridade
não era para festas,
com uns modos faça-
nhudos, arrumou-lhe
logo esta á queima
f» ^m^Ê^ roupa:
Tl r Lmí^mKL — Mostre já o que
— Não mostro, re-
plicou Horta com tei-
mosia.
— Ai, não mostra?
Eu já lhe Vou dizer se
mostra ou não !
E dizendo isto, en-
fia-lhe a mão pelo
bolso das calças para
tirar de lá o contra-
bando . . . Faça-se agora
uma pequenina idea da cara com que ficou a auc-
toridade e principalmente como ficaram os dedos!
O Horta era um Vivo diabo !
O França Rolier- Caleche -maquilitanas,
como elle se dizia, era um cocheiro que estava
encarregado de conduzir as malas do correio á
estação do caminho de ferro e por tal forma se
desempenhou da sua missão que tenho aqui á
Vista todos os attestados que, por Varias vezes,
lhe foram passados pelo director dos correios
enchendo-o de louvores.
O França Rolié
Typos de Coimbra 33
Mesmo no pino do verão, o França andava
sempre vestido com quanto fato possuia, ac-
crescentando a isso tudo, no inverno, um capote
que com certeza era maior do que a arca de Noé.
Tendo a seu cargo, todos os annos, o segu-
rar o S. Jorge na procissão do «Corpus chris-
ti» fazia n'isso immensa gala e apresentava-se
impávido aos ollios de toda a gente que Via iá
do alto da sua magnanimidade. Chegava a levar
a sua auctoridade ao ponto de dizer ao comman-
dante da força quando se deviam dar as descargas!
Homem robusto, que n'uma voz grossa, mas-
cando o seu charuto, mettia palão de meia noite,
depois de ter desempenhado o glorioso papel
de lente da faculdade das tretas pelo Cente-
nário da Sebenta, jamais largou a chapa que
então mandara fazer para ornamentar o bonet.
Dias depois da sua morte, lembro-me de ter
visto o seu perfil n'0 Cautério, que dizia pouco
mais ou menos isto:
De Lusa- Athenas o mais popular,
E também de certo, o mais intrujão.
Na bocca sempre um charuto a chupar,
Olhando todos com ar re filão.
Varias empregos tem, duvidosos,
O nosso heroe, este velho traquinas;
E se non hay — negócios rendosos
O- • . coça d' encontro as esquinas;
E' alto bastante, obeso e pançudo
E só tem esse defeito massudo
De pregar, mentiras, blagues e petas;
Que mais direi? é um pobre coitado
E elle próprio se chama e é chamado,
O Rolié ou o Erança das Tretas.
34
Typos de Coimbra
Acima de tudo, o França era um homem fiel^
muito honrado e não foram poucas as carteiras
e os Valores importantes que elle encontrou
perdidos e fez chegar ás mãos dos seus donos.
Ouvi dizer que esta palavra de Rolic que
adoptava como nome, teve a sua origem á porta
do Hotel dos caminhos de ferro quando um
francez, ao subir para a sua
# carruagem, poz nas mãos
do corretor umas moedas
de prata para o França, que
_ lhe tinha tratado da baga-
gem, com o roulier (carro-
ceiro).
Apanhada esta palavra no
ar, ei!a na bocca dos ga-
rotos para designar o França
e d'ahi a resolução que to-
mou em a adoptar como so-
brenome . . .
Disse eu ha pouco que o
França era um homem hon-
rado, mas já não direi o
mesmo do celebre intrujão
que dava pelo nome de Qua-
torzc.
Muito alto, magro, ora
apparecia de chapéu de abas
largas e de grosso benga-
lão, ora de carapuça, de faxa preta á cinta, de
calças justas e esguias, a fazer-se amigo inti-
mo e conhecido velho de quantos bacharéis
formados presentia de visita a Coimbra, sem-
pre importuno, á mira d'uns Vinténs, capaz de,
por dez reis de mel coado, prestar-se a qual-
quer patifaria. Outras vezes apresentava-se car-
regando um cesto repleto de ananazes, cô-
O Quatorze
Typos de Coimbra
33
COS e bananas, que vendia, lançando o pregão
em Voz forte e retumbante: ananaz ! ananaz!
coco ! coco ! Ah, rica banana da ilha da Ma-
dêra / . . .
O Homem dos Christos passeava todas as
ruas e beccos da cidade sobraçando uma enor-
me quantidade de Christos, trabalhados em
barro, muito toscos, mas que conseguia vender
O Vendedor dos Christos
depois de os ter lambido todos, de alto a bai-
xo, para provar que não largavam a tinta, que
eram fixes, como elle dizia,
E quantas e quantas Vezes nos atirava com
o Christo quasi á cara e bradava n'um mixto
de raiva e de troça: quem me compra este
diabo?!
36
\Typos de Coimbra
Maximiano Veiga, irmão do grande poeta
operário Adelino Veiga, era um impagável ra-
tão que se dedicava a compor guarda-soes e a
«trabalhar em me-
'tal amarello.
Nunca lhe deu
na bolha para fa-
zer Versos, troça-
va até do irmão
nas suas horas de
bom humor. Mas
uma Vez, como o
Adelino Veiga não
dispuzesse de oc-
casiào para es-
crever uma poesia
que lhe tinha sido
pedida pelo actor
António Portugal,
mais tarde o tenor
Portugal, que fez
parte da compa-
nhia do theatroda
Trindade e foi
morrer no Pará,
o Maximiano quiz supprir a falta e sahiu-se
todo ancho com esta versalhada que ainda hoje
corre de bocca em bocca:
O poeta Maximiano Veiga
Do rio Zêzere o Barão
É cunhado da liberdade;
Os soldados são phenomenos,
São filhos da santidade.
Vou cantar de Mahomerio,
Qu'as trombas do rhinoceronte
Typos cie dimhra
37
Cantigas do Oríonte
Nas barbas do despauterio,
Nas campas do cemitério,
Norbargue de Norbão
Terronicos do trovão
Familicos da humanidade
É um machucho da maldade
Do rio Zêzere o Barão.
?i
Agora mesmo acabo eu de ler que morreu o
Pedro do pifano, suppondo-se que envene-
nado pela mulher
com quem vivia. Era
gallego e mudava de
nome á medida que
as gerações acadé-
micas lh'o trocavam.
Para uns foi o Ma-
noel da Sanfona,
quando apanhou um
par de bofefadas do
lente dr. Pedro Pe-
nedo, por se lhe pôr
á porta cantando Ver-
sos allusivos á sua
pessoa, feitos ex-
pressamente pelos
discípulos. Para ou-
tros foi o homem do
realejo, por trazer
um instrumento, que
ha annos deixou
n'uma tasca de La-
meiras empenhado por meio litro de vinho. . .
Agora era o Pedro do Pifano, por se fazer
O Pedro do Pifano
3S
Typcs de Coimbra
acompanhar d'esse instrumento que tocava por
qualquer preço.
Como tivesse um grande reportório, o Pedro
perfilaVa-se e perguntava com uma certa pose:
— O que quer Vossa Sentioria que eu to-
que? !
O Manuel das Barbas
O Hvmno dos Caloiros. . . diziam-lhe, por
ser uma coisa que nào existe. . .
O hymno dos caloiros. . . dos caloiros. . .
dos caloiros. . . começava elle entoando n'uma
voz cantarolada que Vinha a terminar com meia
dúzia de sons arrancados desalmadamente do
pifano e prompto. . . €is como executava to-
das as musicas que lhe pediam. . .
I
Typos de Coimbra 39
Era um pobre diabo este Manuel Fortunato
Lopes, usando do seu verdadeiro nome.
E julgo terminada assim a vasta galeria dos
mortos.
Se entre elles nos apparecem typos interes-
santes, entre os vivos, que apontarei a largos
traços, não os ha, decerto, menos curiosos e
menos dignos de estudo. . .
É ver o Velho lithographo de sebentas, o co-
nhecido Manuel das Barbas, que figurou no
Centenário da Sebenta, e a quem com uma
louvável antecedência fizeram já o epithaphio:
Aqui jáz Manoel das Barbas,
Trabalhou muito e bebeu . . .
Lithographava «sebentas^> ,
Mas foi feliz. . . nunca as leu . . .
E a Marrafa, a Maria, essa bella quarento-
na, bem fornidinha de carnes, que também foi
lembrada no alludido Centenário?
Isso é que é uma mulher!
Servente de estudantes, portadora de 5^-
bentas, lá no intimo amiga dos que usam
capa e batina, interessa-se por elles todos e
já me constou, não sei se com fundamento, que
não raras vezes lhes Vale com dinheiro nos mo-
mentos críticos, nas suas affiicções.
De grossos cordões de ouro ao pescoço,
sempre sorridente, ha quem diga que para um
estudante se formar é preciso ter algumas rela-
ções com ella. Eu é que não sei se isto é ver-
dade, mas, pelo sim pelo não, como fui estu-
dante. . . não desmenti a regra. . .
Mas se por acaso alguns académicos se en-
vergonham de ir pedir-lhe qualquer quantia em-
prestada, pelo que ella nada leva de juros,.
40
Typos de Coimbra
apparece-lhes logo o Hermínio dos óculos, um
rapaz franzino, magistral troca-tintas, que passa
a vida inteira a transportar para as casas de pe-
nhor ou de prego, usando do calão, tudo
quanto os estudantes lhe entregavam para em-
penhar. . . ou a trazer d'essas casas para a rua
grandes pechinchas, como elle diz, para in-
trujar os papalvos, e que afinal não passam de
fazenda avariada, d'uns monos sem extracção
que os penhoristas lá teem para um canto e
dos quaes se querem ver livres seja por que
preço fôr.
O Heriiiiiiio
O Gaspar engraxador
Quer na Baixa quer na Alta, de dia ou de
noite, a cada passo se encontra uma creatura
d'estas.
Typos de Coimbra
41
O agarotado Gaspar, engraxador, hoje em
busca d'uma casa para servir, fallador dos quin-
tos, que aperaltava ao domingo para embarri-
lar certa incauta donzella que o foi surprenhen-
der um dia, em plena calçada, a engraxar as
botas d'um fre^uez. . .
O Santos Cego
O José Maria Mudo
O Santos cego, vendedor de cautellas, en-
geitado, que concluiu o curso dos Lyceus em
1868, segundo elle diz, á custa d'uma familia
amiga e cegou n'esse mesmo anno.
Conhece todas as moedas apalpando-as, bem
como os caloiros, pelo panno da capa, e fala de
mathemaíica como se estivesse sentado n'uma
cathedra. . .
O José Maria, mudo, moço de lithographia
42
Typos de Coimbra
e typographia, intelligente, serviçal em extre-
mo, que, ao sentir falta de dinheiro, ou para dar
as boas festas, é capaz de fazer o seu verso de
pé quebrado, illustrando-o por seu punho.
-|Mf|]^
^.-
Um trabalho original do José Maria Mudo
O Bentinho sapateiro, figura caricata e so-
bremaneira interessante, que se dá ao luxo de
vestir á ingleza^ indo todos os domingos a certa
mercearia buscar um charuto de vintém, dadiva
d'um seu amigo velho que andou a estudar em
Coimbra e já se formou.
O Bamba, bebedor emérito, devasso inexce-
divel, que uma vez arvorou em Rousseau e fez
as suas confissões.
Conta-se d'e]le um caso que não deixa de
ter espirito.
O Bamba queria baptisar um filho e queria
que o Dom Thoma/ de Noronha fosse seu com-
padre.
Typos de Coimbra
43
Para isso foi esperal-o n'uma tarde aos Arcos
do Jardim, expoz-lhe a sua pretençso e con-
seguiu, deníro em breve, Vêr realisado o seu
maior, o seu constante desiderátiim.
Restava, porém, escolher o nome que se devia
dar ao petiz e Dom Thomaz perguníou-lhe qual
•awr ••* '-■#'.«*-,..> V/-tCi3W' .•'í8)8'9»''íSí..í
O Bentinho Sapateiro
era o nome de que elle mais gostaria para seu
filho. Resposta do Bamba : — o compadre não
é padrinho do rapaz ?
— Sou. . .
— Não se chama Dom Ihomaz?
— Chamo. . .
— Pois meu filho deve cliamar-se Dom
Thomaz ! . . .
44
Typos de Coimbra
E, apóz uma sonora gargalhada do padrinho^
o petiz ficou sendo^ na verdade, o Dom Tho-
maz , . .
O Barnabé, que parece ter o dom da ubi-
quidade, esse pobre diabo que apparece em
toda a parte quasi ao mesmo tempo.
O Bamba
O Barnabé
Ha um fogo ? Lá Vae o Barnabé avisar os
bombeiros antes que os sinos dêem signal.
Ha uma desordem ? Lá Vae o Barnabé avisar
a policia, porque eila só apparece quando é avi-
sada . . .
Ha necessidade de qualquer recado ? Eis que
surge o Barnabé.
Ha um baptisado, um enterro, um casamento
quasi em segredo ?
Não importa. Mesmo assim lá apparece o
I
Typos de Coimbra
45
Barnabé ! Com certeza o Barnabé deve lá
estar !
E quando elle se perfila a uma esquina fa-
zendo continência, de chapéu na mão, ao pas-
sar alguém conhecido que interpella sempre
d'esta forma : faz favor de me deitar a sua
benção? Então a minha mesada ? — é certo
que apanha dez réis.
E o Luizinho das pontas ?
Outro typo curioso que acaba de morrer e
que por signal não morreu a tempo de ser in-
cluido na galeria
dos mortos ... / "^
Não precisava de
pedir porque a fa-
mília tem alguma
coisa e não queria
que elle pedisse,
mas de tal forma
se acustumou a an-
dar pelas ruas, apa-
nhando pontas de
cigarro, que d'ahi
lhe Veio o habito
de pedir uns dez
réis a este e áquelle
com quem fallaVa.
De Vez em quan-
do apparecia com
papeletas para o
publico subscrever
com qualquer quan-
tia para a ajuda
d^um varino, d'um collete ou d'um.as calças.
D'elle conheço eu varias partidas, mas a que
vou contar^ francamente, é muito superior a
todas ellas.
O Luizinho dandy
46
Typos de Coimbra
Assistia-se ao sarau que uma commissão de
académicos realisou no theatro-circo n'essa
época em que appareceu a ideia da recepção
dos novatos com festas.
Representava-se, n'esse momento, uma peça
qualquer, feita por um dos vogaes da commis-
são, na qual se simulava um tribunal.
\
O Luizinho das pontas surprehendido
na alameda Camões a escolher as pontas de cigarro
Ora o publico e as testemunhas que se nos
apresentavam no palco eram a malta, a crápula
das ruas, esses typos sebentos e grotescos, ao
vivo, e o Luizinho que também lá estava, far-
to, como a plateia, de ouvir o pseudo advogado
a fallar, a fallar, a fallar, levanta-se como um
Typos de Coimbra
47
raio, perfila se e exclama com uma cara das
mais curiosas doeste mundo, n'aquella sua voz
meio fanhosa e entrecortada : Arre ! que cha-
tice mi-dônha !
Eu nào sei como o theatro não cahiu com a
gargalhada, forte, retumbante que se ouviu
então !
E' que o Luizinho n'aquella sua phrase,
vinda a propósito, tinha conseguido concretisar
a opinião de toda a pla-
teia ! . . .
E o mais engraçado
foi que o Be b' agua
quiz atirar-se á pancada
ao Luizinho!
Que quadro ! Que
scena !
O Befagua, que por
signal bebe vinho e ás
vezes o despeja pelas
ruas, é um distribuidor
de prospectos, um ma-
gnifico exemplar de tran-
sição entre o homem e
o macaco, sebento, mal
alinhavado, todo elle a
transpirar sabujice e
que, por um defeito qual-
quer, falia somente por
monosylabos.
Ahi Vae uma phrase
para amostra e que elle
diz sempre que vê um petiz fumar : ai tu já
fú ? Ló di tê pae / . . .
Ainda assim, de todos os typos que conheço
era o Luizinho das pontas, que dava menos
sorte. . .
O Luizinho á verão
48
Typos de Coimbra
O Beb'agua
meio repleto de prosápia
milhões de léguas
acima da terra e ape-
nas um palmo abaixo
do céu ! . . .
Outro archeiro
conheço eu, boa pes-
soa também (os ar-
cheiros são sempre
boas pessoas...) que
todo se abespinha
quando lhe chamam
5". Pedro alludindo
ás barbas brancas
que possue. Na ver- ^
dade elle parece-se
muito mais com um ^^j
Cerbéro doque com e
E se entrarmos na
Universidade, sagra-
do templo da sabe-
doria, onde em vez
de nos formarmos
apenas nos conse-
guimos deformar . . .
lá Vos farei o retrato
de certo archeiro, boa
pessoa, que daVa sor-
te por lhe chama-
rem Estópido desde
aquelle dia em [que
se dignou dizer que
o archeiro estava dois
furos acima de estu-
dante e um abaixo
de lente ! o que equi-
vale a dizer, nesse
scientifica, que estava
Um arclieini que está
s furos acima de estudante
um abaixo de lente . . .
li
Typos de Coimbra
49
O meu grande amigo S. Pedro, chaveiro lá de
cima, pois que este veliio santo vive ás portas
do céu, que dizem ser o Paraizo, e o outro, o
archeiro, pespega-se á porta das aulas, que sào
um verdadeiro inferno !
E para encerrar a galeria que apresentei sob
um aspecto de notas a lápis na carteira de um
curioso, resta fallar do Nór-
rim e do Almirante Rato.
O Nórrim é um curioso
typo de velho, por demais
conhecido em Coimbra, uma
primorosa cabeça de estudo
perdida no enxurro das ruas,
quando toda a gente sabe,
que, sendo um sapateiro
aliás bastante habilidoso, ja-
mais precisaria de pedir.
No emtanto acha um pra-
zer infinito em dividir o seu
tempo entre as tabernas,
onde bebe demasiadamente,
e as ruas ou cafés onde la-
menta a sua sorte, apertando
o chapéu de feltro contra o
peito e rindo ou chorando
ao gosto de quem lhe paga.
Para elle o riso e o pranto
não traduzem a alegria e a tristeza, são ape-
nas, simples e unicamente, a manifestação do
interesse ao serviço de sua magestade o di-
nheiro . . .
O Rato é o celeberrimo almirante do Cen-
tenário da Sebenta e dos festejos do Enterro
do Grau, o barqueiro que, em tardes amenas,
anda por perto da ponte de Santa Clara á es-
preita dos estudantes para lhes dizer n'uma voz
3
O Nórrim
õO
Typos de Coimbra
melif lua de velhote amigo : — Vá, senhores
Doutores um passeiosinho até â Lapa !
E tantas coisas lhes diz que lá os leva quasi
sempre, de barco, até á Lapa dos Esteios,
que é um dos pon-
tos mais pittores
^ cos de Coimbra,
não fallando no
Choupal ou na ve-
lha Fonte do Cas-
tanheiro, onde se
ouve ainda um cer-
to rumor dos bei-
jos que os namo-
rados de outros
tempos ahi troca-
vam nas luminosas
e tradicionaes ma-
nhãs de S. João. . .
Eis assim deli-
neada, em poucos
traços, a serie fu-
nambulesca de ty-
pos grotescamente
raros que consti-
tuem só por si um
dos aspectos mais originaes da lendária Coim-
bra cheia de amores e de mysterios, eterna
evocadora das notas maviosas daquelle fado
triste, cantado pelo Hylario, em noites de bo-
hemia, sob as janellas das tricaninhas de risos
de oiro em flor ! . . .
O Almirante Rato
J
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68, Rua oe S. Roque, 70 — LISBOA
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A LOUCUKA PE JESUS
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