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Full text of "Typos de Coimbra"

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Monteiro,   Mário 

Typos  de  Coimbra 


MÁRIO  MONTEIRO 


ypos 
de  Coimbra 


riMARAES  &  C.^ 
EDITORES 


ij)    68,  R.  S.  ROQUE,  70 
LISBOA,  J908 


jnio  da  Sllva-Lisboa 


TYFOS  DE  COinORA 


n 


/Aario  /Monteiro 


DE  COIMBRA 


1908 

Livraria  Editora 

GUIMARÃES  &  C.^ 

68,  Rua  de  S.  Roque,  70 

Lisboa 


DF 


és 


X 


i 


A    MISÉRIA    DAS    RUAS  —  GaROTOS    E    ALCU- 
NHAS—  O  «Paixão»  alfaiate  e  o  Diamante 

—  O  Ribeirinho,  As  «Allegorias»  e  as  ma- 
nifestações DA  ACADEMIA — «A  LOJA  d'uMA 

PORTA  SÓ»  —  O  Barbeiro  e  os  sinos  de  S. 
Bartholomeu  —  O  «JiNó»  E  o  «D.  Sebas- 
tião» —  O  «Zé  macaco»  e  a  Politica  —  O 
«Cobra  Ladrão»^  As  pratas  da  Sé,  A  rou- 
pa   E    AS    CHAVES— «ROSALINO    CaNDIDO    DE 

Sampaio  e  Brito»  —  Os  Sermões  de  «Antó- 
nio DAS  Almas»  e  as  Cantigas  do  «Cego 
DA  Abrunheira»  —  O  «Francisquinho  Ta- 
nana»  e  o  «Mudo  Calceteiro»  —  A  impo- 
nente figura  do  «Mersandó» — O  «Chitó-ó- 
Chitó»  —  A  «Feleciana  Pereira»  e  o  Se- 
nhor Dom   Miguel  —  A    «Maria  do   gato 

NEGRO» — A  CAÇADA  AOS  GATOS  E  OS  ESTU- 
DANTES —  O  «Senhorinha»,  A  mulher  e  o 

CAVAQUINHO...  — As  PARTIDAS  DO  «HORTA» 

—  O  «França  Rolié»  —  Lente  das  Tretas 

—  «QUATORZE»,   cocos,  BANANAS  E  INTRUJICE 

—  O    HOMEM    DOS    CHRISTOS  —  LaMBER    PARA 


Typos  de  Coimbra 


VENDER  —  Os   VERSOS   DE   MAXIMIANO   VeIGA 

—  O   «Pedro   do   Pifano»,  A  mudança  de 

NOMES    E    OS   SEUS   IMPROVISOS   MUSICAES  —  O 

EPiTAPHio  DO  «Manuel  das  barbas»  —  «Mar- 
RAFA»,  Sebenta,  Amor  e  dinheiro  empres- 
tado—  «O   Hermínio»,   A   Academia  e  as 

CASAS  DE  PREGO—  O  «GaSPAR»  ENGRAXA- 

dor  e  os  seus  amores  frustrados — Como  o 
«Santos  cego»  conhece  os  caloiros  e  fala 
de  mathem atiça  —  As  habilidades  do  «Jo- 
sé Maria  Mudo»  — O  «Bentinho  sapateiro» 
vestindo  á  ingleza...  —  «O  Bamba»,  As 
suas  confissões  e  Dom  Thomaz  de  Noronha 

—  «Barnabé»  immenso,  em  toda  a  parte  — 
Uma  phrase  grandiosa  do  «Luisinho  das 
pontas»  —  «Beb'agua»  como  typo  de  tran- 
sição entre  o  macaco  e  o  homem — o  «ES- 
tópido»  e  o  «S.  Pedro»  (Boas  pessoas)  -  O 

RISO  E  o  PRANTO  DO  «NORRIM»  — O  «ALMI- 
RANTE Rato»  e  os  passeios  á  Lapa. 


Analisar  a  miséria  das  ruas,  observar  com 
olhos  de  vêr  todo  esse  constante  e  crapuloso 
bric-à-brac  onde  se  atrophiam  e  se  perdem 
■caracteres,  mas  onde,  as  mais  das  Vezes,  se 
vão  buscar  modelos,  bellas  cabeças  de  estudo 
Vincadas  profundamente,  dolorosamente,  pelos 
traços  indicadores  d'uma  vida  agitada  e  mise- 
rável —  é,  em  qualquer  parte,  um  estudo  arro- 
jado, quasi  impossível,  cheio  de  mil  obstáculos, 
e  sobretudo,  fastidioso,  mas,  em  Coimbra, 
chega  a  ser  deveras  original  e  interessante. 

É  que  esta  deliciosa  terra,  com  a  sua  Uni- 
versidade, lá  no  alto,  a  coroar-lhe  os  edifícios, 
a  dar-lhe  uns  certos  ares  de  sabia . . .  não  sei 
porque  estranho  dom^  podendo  ser  encarada 
sob  muitos  e  variados  aspectos,  tantos  quantos 
se  queiram,  —  manancial  eterno  de  prosadores 
e  poetas  —  apresenta-nos,  uma  vida  das  ruas 
característica,  typíca,  absolutamente  sua. 

Tudo  isto  porque  os  garotos  de  Coimbra  - 
e  não  ha  nada  peior  do  que  elles !  — são  exí- 
mios glorificadores  dos  grotescos  que  appare- 


Typc^  de  Coimbra 


cem  dia  a  dia  e,  sabendo  procurar-lhes  todos 
os  pontos  vulneráveis,  são  terriveis  no  ata- 
que em  que,  por  entre  o  desespero  dos  ven- 
cidos e  o  desenfrear  das  chufas  e  dichotes 
dos  vencedores,  não  é  raro  apparecer  uma  al- 
cunha que  se  pega,  que  se  agarra  por  tal  forma 
que  nunca  mais  sae,  creando,  ipso  facto,  um 
noVo  typo  apontado  e  escarnecido  em  toda  a 
parte. 

Alcunha  que  se  ponha  em  Coimbra  é  muito 
peior  que  colla-tudo,  é  como  alma  que  cae  no 
inferno.  E  pega  que  nem  santo  António  lhe 
vale  ! .  .  . 

Ainda  hoje  certos  commerciantes  da  cidade,^ 
ventrudos  e  lustrosos,  pintam  sempre  as  man- 
tas do  diabo  se  lhes  forem  perguntar  á  porta 
dos  seus  estabelecimentos: 

Tem  chá  feito? 

Tem  cordas  para  flauta? 

A  boneca  já  fala  ? 

Por  isso  convém  aqui  dizer  que,  ao  enume- 
rar alguns  dos  typos  mais  curiosos  de  Coim- 
bra, eu  não  pretendi  ir  procural-os  apenas  á 
miséria  das  ruas,  mas  fui  buscal-os  também  ás 
suas  casas  de  negocio,  arrancal-os  de  traz  do 
balcão  para  os  trazer  até  aos  humbraes  da 
porta  e  mostral-os,  á  luz  do  dia,  como  objectos 
raros  e  dignos  de  uma  observação  mais  ou  me- 
nos demorada  e  minuciosa. 

E  é  assim  que,  sem  mais  delongas,  dando  o 
braço  ao  amigo  Paixão,  peço  licença  para  o 
apresentar. 

O  Paixão  —  é  um  alfaiate  que  mora  na  rua 
de  S.  João,  quasí  no  centro  da  parte  alta  da 
cidade,  essa  espécie  de  quartier  latin,  que  é 
o  bairro  académico  por  excellencia. 

Pinta  muito  regularmente  a  pêra,  segundo  se 


I 


Typos  de  Coimbra 


conta,   e  dá  uma  sorte  levada  da  breca  em  se 
'lhe  dizendo : 

O  Paixão  dá  cá  o  diamante  ...  —  alludindo 
não  sei  a  que  episodio  dos  seus  tempos ...  de 
outro  tempo. 


r^^"-^ 


Paixão 

Imitado  pelo  dr.  Brito  Lima 
na  recita  do  5."  anno  — Bohemia  — (1898) 

Vicioso  fumador  de  charuto,  que  traz  sempre 
ao  canto  da  bocca,  n'essas  lioras  de  mau  hu- 
mor, ha  quem  Veja  mordel-o  raivosamente,  cus- 
pir repetidas  Vezes,  como  é  seu  costume,  n'um 
grande  ar  cómico  irresistivel,  e  desandar  depois 
n'uma  catilinaria  pavorosa  capaz  de  assustar 
todos  os  anjos  e  santos  da  corte  do  céu  ! .  . . 

Constou-me  até,  nem  eu  sei  quando,  que  os 
estudantes  de  certa  geração  o  puzeram  fora  da 


10 


Typos  de  Coimbra 


porta  férrea,  depois  de  encerradas  as  aulas, 
porque  acto  a  que  elle  fosse  as>úsi\r  QXdL  chumbíf 
certo . . . 

No  emtanto  o  amigo  Paixão,  com  todos  aquel- 
les  seus  ares  de  caricato,  não  passa  d'uma 
bella  creatura,  d'um  pobre  diabo  incapaz  de 
fazer  mal  a  uma  mosca. 

Mas  caiu  na  asneira  de  dar  sorte  e  fez  muita 
mal,  lá  isso  fez  ! 


O  Ribeirinho 

De  outro  commerciante  que  já  morreu,  o 
Ribeirinho,  resa  a  tradicção  que,  tendo  fallido, 
se  fingiu  amalucado  em  harmonia  com  certos 
fins  que  tinha  em  vista  . . . 

Ora  o  Ribeirinho,  lá  pelos  modos,  tinha  as 


1 


Tvpos  de  Coimbra 


11 


suas  aspirações  a  poeta  e,  como  tal,  deu-se  ao 
luxo  de  publicar  um  livro  intitulado  Allegorias, 
as  celebres  Allegorias,  onde  conseguiu,  não  sei 
porque  artes  diabólicas,  armazenar  quantos  pon- 
tos de  admiração  havia  n'este  e  no  outro  mundo 
até  essa  data. 

E  a  academia,  sempre  disposta  a  fazer  das 
.suas,  sabendo  isto  e  sabendo  mais  e  melhor 
que  o  Ribeirinho  era  homem  de  muitos  haveres, 
mas  avarento  como  poucos,  ia  buscai  o  a  casa 
em    engraçadíssimas 

marchas   aux  fiam-       ■    '  .— 

beaux,  percorrendo 
as  ruas  da  cidade  com 
elle  ao  collo,  fazen- 
do-o  recitar,  de  mo- 
mento a  momento,  as 
melhores  producções 
do  seu  livro  que,  di- 
ga-se  a  verdade,  tanto 
Valiam  umas  como 
outras. 

Mas  elle,  saraco- 
1eando-se  todo,  em 
pose  de  passar  á  pos- 
teridade, num  gesto 

estudado  e  ridiculamente  impagável,  recitava, 
tornava  a  recitar,  enfiado  na  sua  capa  sem 
mangas  e  nas  suas  calças  de  xadrez,  entre  a 
galhofa  e  o  applauso  das  turbas  que  elle  genero- 
samente julgava  contentar  atirando-lhes  sempre 
á  queima-roupa,  com  um  obrigado  rapazes . . . 

Passado  algum  tempo  o  Ribeirinho,  que  nos 
últimos  mezes  se  dizia  um  desgraçado,  morria 
deixando  em  testamento  uma  fortuna  rasoavel 
.em  bellos  contos  de  réis!  . .  . 

Ai  quem  me  dera  ser  um  desgraçado  assim ! 


o  RIBEIHO 

(Caricatura  ilc  Miyuul  C:istai 


12  Typos  de  Coimbra 

Houve  ainda  outro,  certo  dia  em  Coimbra,, 
nunca  llie  soube  o  nome,  que  mandou  annun- 
ciar,  em  todos  os  jornaes  da  terra^  que  vendia 
bellos  chouriços  alemtejanos  e  quiz  vêr,  no 
alto  do  annuncio,  em  caracteres  de  palmo  e 
meio : 

A  loja  diurna  porta  só.  Eis  senão  quando,, 
logo  ao  outro  dia  de  manhã.  Viu  postar-se-lhe 
em  frente  da  porta  um  grande,  um  numeroso^ 
grupo  de   estudantes  exclamando  admirados : 

Olhem  A  loja  d'' uma  porta  só  ! 

O  homem,  não  sei  porque,  prevendo  qualquer 
cousa  de  extraordinário,  não  ficou  lá  muito  bem 
disposto  com  a  scena  e  com  aquelle  ar  irónico 
que  via  nos  rapazes,  mas  sahiu  de  traz  do  bal- 
cão, avançou  até  á  porta  e  perguntou,  forçando, 
um  sorriso : 

—  Que  hão  de  querer? 

—  É  aqui  a  Loja  d' uma  porta  só  ? . . . 

—  É  sim  senhor,  porque? 

—  Porque  não  tem  senão  uma  porta! 
E  logo  outro: 

—  Porque  tem  unicamente  uma  porta! 
E  outro: 

—  Porque  tem  uma  porta  apenas! 
E  ainda  outro: 

—  Porque  tem  simplesmente  uma  porta! 
E  todos,  em  coro,  ao  mesmo  tempo: 

—  Porque  tem  uma  porta  só! .  . . 

E  o  certo  é  que  o  homem  afinou  com  a  brin- 
cadeira, foi  aos  ares,  deu  ao  diabo  os  estudan- 
tes e  desatou  n'um  berreiro  infernal  despejando 
quantos  insultos  conhecia  :  —  Mariolas  !  Va- 
dios ! . . . 

Como  umas  cousas  fazem  lembrar  as  outras- 
e  as  palavras  são  como  as  cerejas,  segundo, 
exclamava  uma  creada  velha  que  eu  tive,  agora 


Tvpos  de  Coimbra 


IS 


me  recordo  que  já  ouvi  contar,  não  sei  a  quem,, 
que  ouve  outrora  um  barbeiro,  atraz  da  egreja 
de  S.  Bartholomeu,  que,  todos  os  dias  barafus- 
tava endiabrado  só  porque  os  estudantes,  muito 
ingenuamente,  iam  perguntar-lhe  como  é  que  os- 
sinos  da  egreja  próxima  tocavam  a  fogo,  a  baptisa- 
do,  ao  Senhor— fora  e  como  daVam  as  Trindades. 
Mas,  como  estes,  houve  e  ha  tantos  ainda 
por  ahi  fora ! 


O  Jinó 

Quem  não  conheceu  mendigando  pelas  ruas,, 
ainda  ha  bem  pouco  tempo,  O  Jinó,  essa  figura 
esquelética  de  velho,  de  cabello  desgrenhado,, 
de  olhar  mau,  vivo  e  penetrante,  que  todo  se 
exasperava  quando  o  rapazio  lhe  gritava,  pondo- 
se  a  dançar  deante  d'elle :  Ó  Jinó  larga  a  Ma- 
ria viuva,  talvez  allusão  a  quaesquer  amoricos. 


14 


Typos  de  Coimbra 


passados,  ou  Ó  Jinó  larga  o  velho,  não  porque 
elle  tivesse  roubado  qualquer  velho,  mas  pela 
tendência  que  o  povo  sempre  teve  e  tem  para 
rimar  tudo  o  que  significa  ridículo  e  tem  de  di- 
zer repetidas  vezes?  . .  . 

E  o  Z).  Sebastião,  um  bello  typo  de  velhote 
que  andava  pelas  ruas   vendendo  reportorios 


D.  Sebastião  —  Pitonó 

novos,  apregoando-os  de  tal  forma  que  parecia 
dizer  Pitonó,  razão  da  sua  segunda  alcunha, 
que  acreditava  na  Vinda  de  el-rei  D.  Sebastião 
n'uma  manhã  de  nevoeiro,  e  que  ia  a  casa  dos 
sapateiros  pedir-lhes  uma  faca  emprestada  para 
se  lhes  sentar  á  porta  a  limpar  e  a  aparar  as 
unhas  dos  pés  n'um  estendal  immenso  de  mi- 
séria e  porcaria?! 


d 


Typos  de  Coimbra 


15 


E  O  Zé  Macaco,  o  José  Macaque  da  Rattazzi 
no  Portugal  à  vol  d^oiseau,  o  creado  do  antigo 
Hotel  Mondego,  cuja  presença  daria  um  im- 
menso  prazer  a  Darwin,  esse  imperdoável  fal- 
lador  que  desandava  a  discutir  com  os  hospe- 
des, emquanto 
os  servia,  so- 
bre assumptos 
de  politica! 

Hospede  que 
lá  caisse  e  que 
já  tivesse  sido 
ministro,  o  fos- 
se n'essaocca- 
sião,  ou  esti- 
vesse em  Vés- 
pera de  o  ser, 
já  podia  contar 
com  um  Vigo- 
roso ataque  de 
argumentos  ir- 
risórios e  dis- 
paratados cujo 
fecho  era  sem- 
pre este :  «os 
senhores  afinal 

promettem  .  .  .  promettem  . .  .  mas,  em  che- 
gando lá,  fazem  todos  o  mesmo.  Tão  bons  são 
uns  como  outros  ! . . .» 

E  o  Cobra,  que  tinha  uma  cara  de  mau,  Ver- 
sejador de  má  moríe  que  diziam  ter  roubado  as 
pratas  da  Sé?  Esse  ia  esconder-se  atraz  dos  silva- 
dos, á  beira  do  rio,  pescando  á  linha  a  roupa, 
dentro  em  breve  reduzida  a  metal  sonante,  que 
as  lavadeiras,  bellas  moçoilas  frescas  e  appeti- 
tosas,  de  saia  arregaçada  até  ao  joelho,  ahi 
estendiam  a  enxugar. . . 


O  Zé  Macaco 


16 


Tvpos  de  Coimbra 


Este  costume  de  pescar  roupa  alheia  e  de 
andar  de  noite,  roubando  as  chaves  que  encon- 
trava pelas  portas  para  as  ir  vender  a  qualquer 
ferro-velho,  mereceu-lhe  o  epitheto  pouco  glo- 
rioso de  ladrão,  que  o  tornava  apopletico  e  o 
fazia  correr  á  pedra  a  garotada  que  o  perse- 
guia. 


O  Cobra  Ladrão 

E  o  Rosalino  Cândido?  E  o  António  das 
Almas? 

Do  Rosalino  Cândido  de  Sampaio  e  Brito, 
nome  mil  vezes  maior  do  que  o  dono,  um  ve- 
Ihito  pequerrucho,  de  barba  branca,  não  ha  nin- 
guém, quer-me  parecer,  que  não  conheça  aquella 
scena  com  o  Manso  Preto,  em  geometria,  no 
Lyceu. 

Como  não  soubesse  a  lição,  em  certo  dia, 
lembrou-se  de  pedir  dispensa  em  verso . . . 


Typos  de  Ccimbra  17 

E  se  bem  o  pensou  melhor  o  fez  : 

Como  incommodado  estado  tenho 
Dispensa  a  V^.  ^.'^  pedir  venho 
E  por  não  a  pedir  por  varias  vezes 
Peço-a  por  dois  ou  três  mezes. 

Responde-lhe  o  professor : 

Por  um  anno  se  quizer ! 

E  o  Rozalino  não  perdeu  a  occasiào  de  re- 
torquir: 

Isso  mesmo  c  o  que  se  requer  ! 

O  Rozalino  era  pobre,  mesmo  muito  pobre^ 
mas  cheio  de  altivez,  para  não  pedir  cousa  al- 
guma, fez-se  poeta  e  prosador  de  sete  costados. 
A  publicar-  folhetos  não  havia  quem  o  vences- 
se.. .  no  numero!  Eram  ás  dezenas,  às  cente- 
nas, aos  milhares!  .  . . 

Foi  assim  que  o  O  Diabo  fechado  na  minha 
gaveta  e  A  luz  da  razão  vieram  á  luz  do  dia, 
a  par  de  tantos  outros  folhetos  que  elle  próprio 
distribuía  em  troca  de  alguns  vinténs. 

Pedir  não  pedia,  mas  usando  d'este  processo^ 
tudo  vinha  a  dar  no  mesmo . . . 

Paliando  do  Rozalino  Vem  muito  a  propósito 
contar  um  facto  pouco  divulgado  mas  cuja  ve- 
racidade eu  posso  garantir. 

Uma  Vez  um  estudante  da  Universidade  teve 
a  estranha  lembrança  de  enviar  as  obras  de  Roza- 
lino não  sei  a  que  escriptor  sueco  ou  norueguez. 

Os  folhetos  partiram  e,  passado  pouco  tem- 
po, esse  mesmo  estudante  lia,  n'um  jornal  es- 
trangeiro, uma  pomposa  critica  á  obra  monu- 
mental de  Rosalino  firmada  pelo  tal  escriptor 
que  dizia  e  asseverava,  entre  muitas  outras 
cousas,  que  o  Rosalino  era  o  primeiro  pro- 
sador de  Portugal!!! 


18 


Typos  de  Coimbra 


Escusado  será  dizer  que  o  jornal,  passando 
de  mão  em  mão,  foi  lido  pela  academia  em 
peso,  entre  enormes  explosões  de  gargalhadas, 
emquanto  o  nosso  poeta,  impando  de  orgulho, 
inchado,  ia  pensando  de  si  para 
si :  —  que  grande  Rosalino  não 
havia  de   ser   Alexandre  Her- 
culano se  mandassem  o  Eurico 
a  este  escriptor!  .  .  . 

E,  arranjando  uma  casaca, 
não  sei  onde  nem  como,  foi 
assim,  todo  bem  posto,  que  se 
apresentou  nas  ruidosas  e  me- 
moráveis festas  que  a  Acade- 
mia de  Coimbra  fez  pelo  tri- 
centenário de  Camões. 

Depois  usou-a,  usou-a,  como 
competia  a  um  tão  digno  e 
illustre  ornamento  das  lettras 
pátrias,  até  que  a  pôz  no  fio  e 
teve  de  encobril-a  lançando-lhe 
por  cima  a  sua  inseparável  e 
conhecida  capa ! 

Foi  um  portento  esse  Rosa- 
lino! 
O  António  das  Almas  era  um  pandego  in- 
corrigível, um  emérito  patusco  que  sabia  arran- 
jar-se  menos  mal,  fundado  no  grandioso  prin- 
cipio de  que  não  ha  nada  melhor  para  não 
morrer  á  fome  e  ter  dinheiro  do  que  ser  amigo 
de  estudantes  e  captar-lhes  as  sympathias. 

Além  d'isso  o  António  não  desperdiçou 
nunca  o  seu  tempo,  pois  que  a  par  d'essa  ami- 
sade  collocava  a  sua  qualidade  de  pregador, 
sendo  raro  o  dia  em  que  deixava  de  pregar  um 
sermão  por  dá  cá  aquella  palha. 
O  António  jamais  perdia  as  occasiões  propi- 


O  Rozalino 


I 


Tvpos  de  Coimbra 


Í9 


cias,  inclusive  a  festa  das  latas,  esse  banzé, 
sabbat  infernal,  que  os  estudantes  fazem,  ar- 
rastando latas  velhas  pelas  ruas  da  cidade  mal 
escurece  o  dia  do  encerramento  das  aulas,  do 
começo  das  férias  do  ponto,  para  não  deixa- 
rem dormir  nem  estudar  os  collegas  das  ou;ras 
faculdades  que  por  desgraça  vejam  as  suas  au- 
las encerradas  mais  tarde. 


O  António  das  Almas 


Pregando  em  toda  a  parte  e  a  toda  a  hora, 
gostava  no  emtanto  muito  mais  de  pregar  no 
largo  de  Sansão,  n'um  pilar  de  pedra  que  ali 
havia  e  ainda  se  Vê  actualmente  encaixado  na 
parede  d'uma  casa  que  faz  esquina  com  a  rua 
do  Corvo  e  rua  da  Louça. 


20  Tvpos  de  Coimbra 

Chegado  ahi,  no  meio  do  povoléu  que  lhe 
servia  de  séquito,  subia  ao  seu  púlpito,  per- 
signava-se  e  rompia  sempre  n'estes  termos: 
Eu  sou  o  António  das  Almas.  As  mulheres 
são  como  as  cabras  que  andam  pelos  outei- 
ros. De  Cellas  nem  elles  nem  ellas.  E  vol- 
tava ao  principio  ...  Eu  sou  o  António  das 
Almas  .  .  .  sendo  capaz  de  estar  meia  hora 
assim,  na  mesma  arenga,  contanto  que  lhe 
dessem  um  cigarro,  umas  calças,  um  collete 
servido,  que  era,  em  geral,  a  espécie  de  moeda 
que  preferia  para  pagamento  dos  seus  sermões. 

Succedeu,  porém,  uma  vez  que,  em  certa 
festa  das  latas,  o  António  não  quiz  pregar^ 
porque  dizia  faltar-lhe  uma  papeleta  com  o 
thema  do  sermão.  Mas  isso  era  o  menos.  Elle 
apenas  pretendia  fazer-se  rogado  para  lhe  pa- 
garem melhor. 

E  foi  o  que  succedeu  .  .  .  Um  estudante  seu 
amigo,  desejando  ouvir  mais  um  sermão  dos 
seus,  metteu-lhe  na  mão  uns  dinheiros  em  prata 
ao  mesmo  tempo  que  lhe  dizia,  entregando-lhe 
um  papel  em  branco:  «Ahi  tens  a  papeleta». .  . 

O  António  das  almas  olhou  para  o  dinheiro 
n'um  grande  sorriso  de  satisfação  e  exclamou 
agitando  o  papel  —  meus  senhores  cá  está  a 
papeleta  .  .  .  e  mirando  o  papel  d'um  lado  e 
d'outro,  poz-se  a  scismar  .  .  .  v. D' este  lado 
nada  .  .  .  do  outro  também  nada  .  .  .  ora  do 
nada  creou  Deus  o  ceu  e  a  terra.  .  . 

E,  pregou  sobre  este  assumpto  o  melhor  ser- 
mão entre  os  muitos  que  fez  em  toda  a  sua  vi- 
da 

Por  outra  vez,  devido  a  um  caso  inexplicável,  o 
António  das  Almas  que  morava  para  os  lados 
de  Monfarroyo,  não  poude  pagar  ao  senhorio 
o   aluguer  da  casa  que  habitava  com  uma  mu- 


Typos  de  Coimbra 


21 


Iher  chamada  a  Caqueireira  e  sendo  posto  na 
rua  por  tal  motivo,  na  rua  foi  levantar  um  si- 
mulacro de  tenda  de  campanha. 

Iam,  assim,  as  cousas  muito  bem  .  .  .  mas, 
certo  dia,  lembrou-se  de  viajar  nas  azas  do 
Cupido  perante  a  revolta  dos  transeuntes  que 
barafustavam.  Um  agente  da  policia  então  a 
cargo  de  zeladores  municipaes,  deitou-lhe  a 
mão  e  espetou  com  elle  na  cadeia. 


O  Cego  da  Abrunheira  e  o  moço 

Pois  O  António  das  Almas  nada  se  ralou  com 
isso,  pelo  contrario,  pinchava  de  contente  ex- 
clamando em  altos  gritos:  Ora  graças  a  Deus! 
Aqui  está-se  debaixo  de  telha  e  tem  a  gente 
casa  de  graça  !  .  .  . 

A  galeria  popular  coimbrã  é  vasta,  e  se  n'ella 
ha  vultos  de  somenos  originalidade  como,  lem- 


22 


Typos  de  Coimbra 


brando  ao  acaso,  O  Cego  da  Abrunheira,  lo- 
gar  próximo  de  Coimbra,  que  vinha,  ás  vezes, 
á  cidade  em  companhia  de  um  moço  ganhava  a 
vida  tocando  e  cantando  alguns  improvisos. 
Verdadeiros  disparates,  a  quem  lhe  desse  al- 
guma cousa,  outros  ha  que  merecem  um  pouco 
de  attenção,  como,  por  exemplo,  o  «Francisqui- 
nhoTanana»,  a  «Feliciana  Pereira,»  a  «Maria do 
gato  negro»  e  tantos  outros  que  passarei  a  citar. 


O  Clii(|iiinlio  Taiiana 

O  celebre  Francisqiiinho  Tanana,  um  ve- 
Ihito  magro  como  um  Junco,  de  pelle  encar- 
quilhada, morava  junto  ao  cemitério,  lá  no  alto 
do  Pio,  e  passava  á  tarde  para  o  rio  a  buscar 
agua  n'um  pote  de  barro  que,  á  volta,  trazia  á 
cabeça  com  muito  cuidado. 


Tvpos  de  Coimbra 


23 


A  , pobreza  do  seu  vestuário  era  tão  grande 
que  chegava  a  ser  immoral,  pois  tanto  impor- 
tava esse  conjuncto  de  andrajos  como  nada.  O 
corpo  andava  quasi  todo  á  mostra,  e  uma  vez 
Vi-o  eu,  n'esse  estado,  a  gritar  como  um  pos- 
sesso, n'uns  gritos  selvagens  e  a  arrepelar-se 
todo  porque  os  garotos  além  de  lhe  chamarem 


O  Mudo  Calceteiro 


Tanana  tinham-lhe  feito  partir  o  pote  que  le- 
vava á  cabeça  e  que  desiquillibrou  ao  atirar 
uma  pedra,  arma  com  que  se  defendia  da  ra- 
paziada brégeira. 

Quando  se  ouvissem  uns  gritos  agudos,  por 
vezes  em  falsete,  acompanhados  d'um  choro 
ridiculamente  convulso,  era  certo  e  sabido  que 
andava  perto  o  Francisquinho  Tanana  e  toda 


24 


Txpos  de  Coimbra 


a  gente  assomava  ás  portas  e  ás  janellas  para 
vêr  esse  espectáculo  miserável  da  vida  das 
ruas. 

Facto  quasi  idêntico  se  dava  com  o  Miido^ 
um  calceteiro  que  a  camará  municipal  tinha  ad- 
mittido  ao  seu  serviço. 


O  Rabino 

Esse  não  tinha  nada  com  os  garotos  e  só  se 
importava  com  o  pessoal  que  dirigia,  mas,  para 
lhe  transmittir  as  suas  ordens,  para  se  fazer 
comprehender,  desfazia-se  em  gestos  desespe- 
rados e  gritos  tão  agudos  que  se  ouviam  com 
certeza  a  sete  léguas  em  redor. 

Olhar  a  fronte  cheia  de  rugas  do  Francisqui- 
nho  é  trazer  á  idéa  toda  uma  série  de  magni- 


d 


Typos  de  Coimbra 


23 


ficas  cabeças  de  estudo  que  se  encontram  n'es- 
ses  mendigos  Vadios  perdidos  pelas  ruas  de 
Coimbra. 

E'  vêr  o  D.  Sebastião  de  que  já  falei,  o 
Rabino  um  bello  typo  de  judeu,  de  rosto  bem 
vincado,  de  linhas  bem  definidas,  que  Vivia  de 
e?<:pedientes  e  tinha  o  seu  dito  espirituoso  lá 
de  vez  em  quando,  o  Mersandó,  de  cabelleira» 


U  Mersandó 


um  bom  ratão,  o  Velho  por:eiro  do  palácio  dos 
Grillos,  que  faz  lembrar  um  pouco  o  Chitó-ó- 
chitó,  que  divertia  o  publico  executando  palha- 
çadas nas  ruas  e  que  tinha  também  umas  bar- 
bas esplendidas  e  um  rosto  expressivo. 

A  Feliciana  Pereira,  uma  Velhota  reVelha,  com 
umas  certas  pretenções  de  asseio,  tinha  sido 
creada    do   grande    liberal   de   Ceira,  Victorio 

2 


26 


Typcs  de  Coimbra 


Telles,  cuja  cabeça  se  viu,  durante  algum  tem- 
po, espetada  n'um  pinheiro,  a  uma  esquina  do 
largo  de  Samsào,  devido  ás  luctas  apaixonadas 
e  renhidas  do  seu  tempo. 

Talvez  por  esse  motivo  liberal  ferrenha,  não 
tinha  o  menor  pejo  em  correr  a  pau  a  garotada 
das   ruas   que  lhe  sabia  da  pecha,  e,  ainda  ha 


O  Chitó-ó-Chitó 

bem  pouco  tempo,  lhe  atormentava  os  ouvidos 
a  toda  a  hora  dando  vivas  ao  senhor  D.  Mi- 
guel, o  que  para  ella  equivalia  á  mordedura 
venenosa  e  súbita  d'uma  vibora. 

Obteriam  d'ella  tudo  quanto  quisessem...  mas 
nada  de  offender  os  seus  ideaes  políticos ! 
Credo !  Virç^em  Santíssima !  Lá  isso  nào !  .  .  . 


4 


Tvpos  de  Coimbra  27 

A  Maria  do  gato  negro  era  uma  outra  ve- 
lha que  Viveu  em  Coimbra  e  foi  um  dos  typos 
mais  interessantes  da  sua  época. 

Já  lá  Vae  isto  ha  um  bom  par  de  annos !  Vi- 
via n'um  casinhoto  dentro  da  torre  de  Santa 
Cruz  e,  como  n'uma  noite  lhe  tivessem  morto 
um  lindo  gato  negro  que  muito  estimava,  foi 
tal  a  raiva  que  se  apoderou  d'ella  que,  jurando 


A  Feliciana  Pereira 

Vingar-se,  pellaVa-se  toda  por  andar,  altas  horas 
da  noite,  percorrendo  as  viellas  mais  immundas 
á  caça  dos  gatos. 

Bichinho  que  ella  apanhasse  a  geito  tanta 
paulada  lhe  assentava  no  lombo  que  nem  a  alma 
se  lhe  aproveitava !  .  .  . 

Os  estudantes  de  então,  conhecedores  da  ma- 
nia d'essa  pobre  mulher,  para  se  divertirem  á  sua 


28 


Typos  de  Coimbra 


custa,  encommendavam-lhe  gatos  mortos,  que 
ella,  de  muito  bom  grado,  lá  ia  distribuir  pelas 
republicas,  a  troco  de  uns  miseros  Vinténs  que 
mal  lhe  chegavam  para  não  morrer  de  fome... 
O  Senhorinha,  assim  chamado  pelos  seus 
modos  effeminados,  era  um  zelador  municipal 
que  ia  levar  a  sua  cara  metade  com  quem  ca- 


A  Maria  do  áato  negro 


sara  .  .  .  por  amor  ...  a  casa  dos  estudantes, 
sobraçando  sempre  o  cavaquinho. 

O  amor  para  elle  não  Valia  nada  sem  um 
bom  acompanhamento. 

O  Horta,  esse  então,  ás  vezes  pouco  amigo 
da  limpeza  nos  seus  feitos  e  um  pouco,  para 
não  dizer  bastante,  desbragado  nos  seus  ditos. 


Typos  de  Coimbra 


29 


não  deixava  de  ser  um  velho  endiabrado  cujas 
partidas  tinham  alguma  cousa  de  original  e  de 
espirituoso 

De  lunetas  encavaladas  quasi  na  ponta  do 
nariz,  levado  pela  necessidade  que,  segundo 
ouço  dizer  é  a  mãe  de  todos  os  vicios,  bebia 
azeite  por  pregar  a  sua  peça. 


O  Senhorinha 


Só  se  não  poudesse !  Mas  para  isso,  para 
chegar  a  essa  conclusão  de  não  poder,  era  pre- 
ciso que  tivesse  já  esgotado  todos  os  recursos 
da  estratégia,  e  tal  facto  seria  quasi  inacredi- 
tável ! 

Uma  Vez,  ao  entrar  n'uma  padaria  que  havia 
n'esse  tempo  e  parece-me  que  ainda  existe  no 


30  Typos  de  Coimbra 

Arco  d'Almedina,  o  Horta,  olhando  de  relance 
para  o  forno,  deparou  com  uma  caçoila  Vidrada 
coberta  com  um  papel,  d'cnde  se  exhalaVa  um 
cheiro  delicioso  a  certos  temperos  que  lhe  ha- 
viam de  ser  muito  gratos  ao  paladar  .  .  . 

Desatou  a  correr  para  casa  á  procura  d'uma 
caçoila  parecida.  Encheu-a  de  pedras,  poz-lhe 
um  papel  por  cima,  tal  qual  como  na  outra  que 
vira,  e  eil-o  que  volta  á  padaria  a  pedir  com 
muito  empenho  para  lh'a  collocarem  também 
no  forno. 

Promettendo  voltar  a  uma  certa  hora,  al- 
gum tempo  antes  da  hora  em  que  sabia  que  o 
saboroso  pitéu  seria  retirado,  foi  dar  o  seu  pas- 
seio para  passar  tempo,  até  que.  Voltando  no- 
vamente ao  forno,  embarrilou  o  moço  da  pada- 
ria dizendo-lhe  ser  a  outra  caçoila  a  sua  .  .  . 
E  pernas  para  que  te  quero !  ...  Lá  foi  elle 
até  casa,  n'uma  correria  louca,  saborear  um 
bello  pastelão  de  carne  que  o  acaso  lhe  offe- 
recera.  E  o  verdadeiro  dono  do  acepipe  ao  vir 
buscar  a  caçoila  apenas  se  encontrou  cheia  de 
pedras  .  .  . 

Como  esta,  contam-se  d'elle  innumeras  proe- 
zas que  o  fizeram  tomar  por  doido,  sendo,  den- 
tro em  pouco,  internado  no  hospital  Conde 
Ferreira,  pois  que  ninguém  o  podia  supportar. 

Regressando,  mais  tarde,  a  Coimbra,  pouco 
tempo  demorou  a  reeditar  as  scenas  d'out'ora, 
e  é  assim  que  elle  apparece,  n'uma  tarde  de 
inverno,  em  Santa  Clara,  ao  fim  da  ponte,  a 
metter  n'um  bolso  das  calças  certa  encommenda 
que  encontrou  á  beira  do  caminho. 

Elle  que  o  fez  é  porque  alguma  coisa  rumi- 
nava, é  porque  lá  tinha  as  suas  razões  para  o 
fazer. . . 

Terminada  essa  operação,  limpando  as  mãos 


Typos  de  Coimbra 


31 


a  uns  arbustos  que  alli  estavam  perto,  induziu 
um  rapazito  que  passava  a  que  fosse  dizer  ao 
guarda-barreira  que  elle  Horta,  levava  contra- 
bando no  bolso  das  calças. 

E  o  rapazito  lá  foi  cumprir  a  sua  missão  em- 
quanto  sua  excellencia,   a  passo  largo,  mui:o 


O  Horta 


sereno,  marchava  olympicamente  a  caminho  da 
cidade. 

Mal  tinha  tempo  de  pôr  o  pé  fora  da  ponte 
<|uando  o  guarda  se  lhe  poz  na  frente  intiman- 
do-o  com  uma  Voz  de  trovão:  deixe  ver  o  que 
leva  ahi. 

—  Não  deixo,  diz  o  Horta,  fingindo-se  muito 
compromettido. 


32 


Typos  de  Coimbra 


'■4 


—  Deixe  vêr  já  lhe  disse. 

—  Não  deixo. 

—  Ah,  não  deixa?! 

E  assim  estiveram  n'este  dize  tu  direi  eu,  até 
que  o  guarda  resolveu  leVal-o  á  presença  da 

auctoridade  superior. 
Foi  dito  e  feito. 

Como  a  auctoridade 
não  era  para  festas, 
com  uns  modos  faça- 
nhudos,  arrumou-lhe 
logo  esta  á  queima 
f»  ^m^Ê^  roupa: 

Tl  r  Lmí^mKL  — Mostre  já  o  que 

—  Não  mostro,  re- 
plicou Horta  com  tei- 
mosia. 

—  Ai,  não  mostra? 
Eu  já  lhe  Vou  dizer  se 
mostra  ou  não ! 

E  dizendo  isto,  en- 
fia-lhe  a  mão  pelo 
bolso  das  calças  para 
tirar  de  lá  o  contra- 
bando . . .  Faça-se  agora 
uma  pequenina  idea  da  cara  com  que  ficou  a  auc- 
toridade e  principalmente  como  ficaram  os  dedos! 
O  Horta  era  um  Vivo  diabo  ! 
O  França  Rolier- Caleche -maquilitanas, 
como  elle  se  dizia,  era  um  cocheiro  que  estava 
encarregado  de  conduzir  as  malas  do  correio  á 
estação  do  caminho  de  ferro  e  por  tal  forma  se 
desempenhou  da  sua  missão  que  tenho  aqui  á 
Vista  todos  os  attestados  que,  por  Varias  vezes, 
lhe  foram  passados  pelo  director  dos  correios 
enchendo-o  de  louvores. 


O  França  Rolié 


Typos  de  Coimbra  33 

Mesmo  no  pino  do  verão,  o  França  andava 
sempre  vestido  com  quanto  fato  possuia,  ac- 
crescentando  a  isso  tudo,  no  inverno,  um  capote 
que  com  certeza  era  maior  do  que  a  arca  de  Noé. 

Tendo  a  seu  cargo,  todos  os  annos,  o  segu- 
rar o  S.  Jorge  na  procissão  do  «Corpus  chris- 
ti»  fazia  n'isso  immensa  gala  e  apresentava-se 
impávido  aos  ollios  de  toda  a  gente  que  Via  iá 
do  alto  da  sua  magnanimidade.  Chegava  a  levar 
a  sua  auctoridade  ao  ponto  de  dizer  ao  comman- 
dante  da  força  quando  se  deviam  dar  as  descargas! 

Homem  robusto,  que  n'uma  voz  grossa,  mas- 
cando o  seu  charuto,  mettia  palão  de  meia  noite, 
depois  de  ter  desempenhado  o  glorioso  papel 
de  lente  da  faculdade  das  tretas  pelo  Cente- 
nário da  Sebenta,  jamais  largou  a  chapa  que 
então  mandara  fazer  para  ornamentar  o  bonet. 

Dias  depois  da  sua  morte,  lembro-me  de  ter 
visto  o  seu  perfil  n'0  Cautério,  que  dizia  pouco 
mais  ou  menos  isto: 

De  Lusa- Athenas  o  mais  popular, 
E  também  de  certo,  o  mais  intrujão. 
Na  bocca  sempre  um  charuto  a  chupar, 
Olhando  todos  com  ar  re filão. 

Varias  empregos  tem,  duvidosos, 
O  nosso  heroe,  este  velho  traquinas; 
E  se  non  hay  —  negócios  rendosos 
O-  • .  coça  d' encontro  as  esquinas; 

E'  alto  bastante,  obeso  e  pançudo 

E  só  tem  esse  defeito  massudo 

De  pregar,  mentiras,  blagues  e  petas; 

Que  mais  direi?  é  um  pobre  coitado 
E  elle  próprio  se  chama  e  é  chamado, 
O  Rolié  ou  o  Erança  das  Tretas. 


34 


Typos  de  Coimbra 


Acima  de  tudo,  o  França  era  um  homem  fiel^ 
muito  honrado  e  não  foram  poucas  as  carteiras 
e  os  Valores  importantes  que  elle  encontrou 
perdidos  e  fez  chegar  ás  mãos  dos  seus  donos. 
Ouvi  dizer  que  esta  palavra  de  Rolic  que 
adoptava  como  nome,  teve  a  sua  origem  á  porta 
do  Hotel  dos  caminhos  de  ferro  quando  um 
francez,  ao  subir  para  a  sua 

#  carruagem,  poz  nas  mãos 
do  corretor  umas  moedas 
de  prata  para  o  França,  que 
_  lhe  tinha  tratado  da  baga- 
gem, com  o  roulier  (carro- 
ceiro). 

Apanhada  esta  palavra  no 
ar,  ei!a  na  bocca  dos  ga- 
rotos para  designar  o  França 
e  d'ahi  a  resolução  que  to- 
mou em  a  adoptar  como  so- 
brenome . . . 

Disse  eu  ha  pouco  que  o 
França  era  um  homem  hon- 
rado, mas  já  não  direi  o 
mesmo  do  celebre  intrujão 
que  dava  pelo  nome  de  Qua- 
torzc. 

Muito  alto,  magro,  ora 
apparecia  de  chapéu  de  abas 
largas  e  de  grosso  benga- 
lão, ora  de  carapuça,  de  faxa  preta  á  cinta,  de 
calças  justas  e  esguias,  a  fazer-se  amigo  inti- 
mo e  conhecido  velho  de  quantos  bacharéis 
formados  presentia  de  visita  a  Coimbra,  sem- 
pre importuno,  á  mira  d'uns  Vinténs,  capaz  de, 
por  dez  reis  de  mel  coado,  prestar-se  a  qual- 
quer patifaria.  Outras  vezes  apresentava-se  car- 
regando   um  cesto   repleto  de   ananazes,   cô- 


O  Quatorze 


Typos  de  Coimbra 


33 


COS  e  bananas,  que  vendia,  lançando  o  pregão 
em  Voz  forte  e  retumbante:  ananaz  !  ananaz! 
coco  !  coco  !  Ah,  rica  banana  da  ilha  da  Ma- 
dêra  / . .  . 

O  Homem  dos  Christos  passeava  todas  as 
ruas  e  beccos  da  cidade  sobraçando  uma  enor- 
me quantidade  de  Christos,  trabalhados  em 
barro,  muito  toscos,  mas  que  conseguia  vender 


O  Vendedor  dos  Christos 


depois  de  os  ter  lambido  todos,  de  alto  a  bai- 
xo, para  provar  que  não  largavam  a  tinta,  que 
eram  fixes,  como  elle  dizia, 

E  quantas  e  quantas  Vezes  nos  atirava  com 
o  Christo  quasi  á  cara  e  bradava  n'um  mixto 
de  raiva  e  de  troça:  quem  me  compra  este 
diabo?! 


36 


\Typos  de  Coimbra 


Maximiano  Veiga,  irmão  do  grande  poeta 
operário  Adelino  Veiga,  era  um  impagável  ra- 
tão que  se  dedicava  a  compor  guarda-soes  e  a 

«trabalhar  em  me- 
'tal  amarello. 

Nunca  lhe  deu 
na  bolha  para  fa- 
zer Versos,  troça- 
va até  do  irmão 
nas  suas  horas  de 
bom  humor.  Mas 
uma  Vez,  como  o 
Adelino  Veiga  não 
dispuzesse  de  oc- 
casiào  para  es- 
crever uma  poesia 
que  lhe  tinha  sido 
pedida  pelo  actor 
António  Portugal, 
mais  tarde  o  tenor 
Portugal,  que  fez 
parte  da  compa- 
nhia do  theatroda 
Trindade  e  foi 
morrer  no  Pará, 
o  Maximiano  quiz  supprir  a  falta  e  sahiu-se 
todo  ancho  com  esta  versalhada  que  ainda  hoje 
corre  de  bocca  em  bocca: 


O  poeta  Maximiano  Veiga 


Do  rio  Zêzere  o  Barão 
É  cunhado  da  liberdade; 
Os  soldados  são  phenomenos, 
São  filhos  da  santidade. 


Vou  cantar  de  Mahomerio, 
Qu'as  trombas  do  rhinoceronte 


Typos  cie  dimhra 


37 


Cantigas  do  Oríonte 
Nas  barbas  do  despauterio, 
Nas  campas  do  cemitério, 
Norbargue  de  Norbão 
Terronicos  do  trovão 
Familicos  da  humanidade 
É  um  machucho  da  maldade 
Do  rio  Zêzere  o  Barão. 


?i 


Agora  mesmo  acabo  eu  de  ler  que  morreu  o 
Pedro  do  pifano,  suppondo-se  que  envene- 
nado pela  mulher 
com  quem  vivia.  Era 
gallego  e  mudava  de 
nome  á  medida  que 
as  gerações  acadé- 
micas lh'o  trocavam. 
Para  uns  foi  o  Ma- 
noel da  Sanfona, 
quando  apanhou  um 
par  de  bofefadas  do 
lente  dr.  Pedro  Pe- 
nedo, por  se  lhe  pôr 
á  porta  cantando  Ver- 
sos allusivos  á  sua 
pessoa,  feitos  ex- 
pressamente pelos 
discípulos.  Para  ou- 
tros foi  o  homem  do 
realejo,  por  trazer 
um  instrumento,  que 
ha  annos  deixou 
n'uma  tasca  de  La- 
meiras empenhado  por  meio  litro  de  vinho.  .  . 

Agora  era  o  Pedro  do  Pifano,  por  se  fazer 


O  Pedro  do  Pifano 


3S 


Typcs  de  Coimbra 


acompanhar  d'esse  instrumento  que  tocava  por 
qualquer  preço. 

Como  tivesse  um  grande  reportório,  o  Pedro 
perfilaVa-se  e  perguntava  com  uma  certa  pose: 

—  O  que  quer  Vossa  Sentioria  que  eu  to- 
que? ! 


O  Manuel  das  Barbas 

O  Hvmno  dos  Caloiros. . .  diziam-lhe,  por 
ser  uma  coisa  que  nào  existe.  .  . 

O  hymno  dos  caloiros. . .  dos  caloiros. . . 
dos  caloiros.  . .  começava  elle  entoando  n'uma 
voz  cantarolada  que  Vinha  a  terminar  com  meia 
dúzia  de  sons  arrancados  desalmadamente  do 
pifano  e  prompto.  . .  €is  como  executava  to- 
das as  musicas  que  lhe  pediam. .  . 


I 


Typos  de  Coimbra  39 

Era  um  pobre  diabo  este  Manuel  Fortunato 
Lopes,  usando  do  seu  verdadeiro  nome. 

E  julgo  terminada  assim  a  vasta  galeria  dos 
mortos. 

Se  entre  elles  nos  apparecem  typos  interes- 
santes, entre  os  vivos,  que  apontarei  a  largos 
traços,  não  os  ha,  decerto,  menos  curiosos  e 
menos  dignos  de  estudo. . . 

É  ver  o  Velho  lithographo  de  sebentas,  o  co- 
nhecido Manuel  das  Barbas,  que  figurou  no 
Centenário  da  Sebenta,  e  a  quem  com  uma 
louvável  antecedência  fizeram  já  o  epithaphio: 

Aqui  jáz  Manoel  das  Barbas, 
Trabalhou  muito  e  bebeu  . . . 
Lithographava  «sebentas^> , 
Mas  foi  feliz.  .  .  nunca  as  leu  . . . 

E  a  Marrafa,  a  Maria,  essa  bella  quarento- 
na, bem  fornidinha  de  carnes,  que  também  foi 
lembrada  no  alludido  Centenário? 

Isso  é  que  é  uma  mulher! 

Servente  de  estudantes,  portadora  de  5^- 
bentas,  lá  no  intimo  amiga  dos  que  usam 
capa  e  batina,  interessa-se  por  elles  todos  e 
já  me  constou,  não  sei  se  com  fundamento,  que 
não  raras  vezes  lhes  Vale  com  dinheiro  nos  mo- 
mentos críticos,  nas  suas  affiicções. 

De  grossos  cordões  de  ouro  ao  pescoço, 
sempre  sorridente,  ha  quem  diga  que  para  um 
estudante  se  formar  é  preciso  ter  algumas  rela- 
ções com  ella.  Eu  é  que  não  sei  se  isto  é  ver- 
dade, mas,  pelo  sim  pelo  não,  como  fui  estu- 
dante. .  .  não  desmenti  a  regra. . . 

Mas  se  por  acaso  alguns  académicos  se  en- 
vergonham de  ir  pedir-lhe  qualquer  quantia  em- 
prestada,   pelo   que   ella   nada  leva   de  juros,. 


40 


Typos  de  Coimbra 


apparece-lhes  logo  o  Hermínio  dos  óculos,  um 
rapaz  franzino,  magistral  troca-tintas,  que  passa 
a  vida  inteira  a  transportar  para  as  casas  de  pe- 
nhor ou  de  prego,  usando  do  calão,  tudo 
quanto  os  estudantes  lhe  entregavam  para  em- 
penhar. .  .  ou  a  trazer  d'essas  casas  para  a  rua 
grandes  pechinchas,  como  elle  diz,  para  in- 
trujar os  papalvos,  e  que  afinal  não  passam  de 
fazenda  avariada,  d'uns  monos  sem  extracção 
que  os  penhoristas  lá  teem  para  um  canto  e 
dos  quaes  se  querem  ver  livres  seja  por  que 
preço  fôr. 


O  Heriiiiiiio 


O  Gaspar  engraxador 


Quer  na  Baixa  quer  na  Alta,  de  dia  ou  de 
noite,  a  cada  passo  se  encontra  uma  creatura 
d'estas. 


Typos  de  Coimbra 


41 


O  agarotado  Gaspar,  engraxador,  hoje  em 
busca  d'uma  casa  para  servir,  fallador  dos  quin- 
tos, que  aperaltava  ao  domingo  para  embarri- 
lar  certa  incauta  donzella  que  o  foi  surprenhen- 
der  um  dia,  em  plena  calçada,  a  engraxar  as 
botas  d'um  fre^uez.  .  . 


O  Santos  Cego 


O  José  Maria  Mudo 


O  Santos  cego,  vendedor  de  cautellas,  en- 
geitado,  que  concluiu  o  curso  dos  Lyceus  em 
1868,  segundo  elle  diz,  á  custa  d'uma  familia 
amiga  e  cegou  n'esse  mesmo  anno. 

Conhece  todas  as  moedas  apalpando-as,  bem 
como  os  caloiros,  pelo  panno  da  capa,  e  fala  de 
mathemaíica  como  se  estivesse  sentado  n'uma 
cathedra.  .  . 

O  José  Maria,  mudo,  moço  de  lithographia 


42 


Typos  de  Coimbra 


e  typographia,  intelligente,  serviçal  em  extre- 
mo, que,  ao  sentir  falta  de  dinheiro,  ou  para  dar 
as  boas  festas,  é  capaz  de  fazer  o  seu  verso  de 
pé  quebrado,  illustrando-o  por  seu  punho. 


-|Mf|]^ 


^.- 


Um  trabalho  original  do  José  Maria  Mudo 

O  Bentinho  sapateiro,  figura  caricata  e  so- 
bremaneira interessante,  que  se  dá  ao  luxo  de 
vestir  á  ingleza^  indo  todos  os  domingos  a  certa 
mercearia  buscar  um  charuto  de  vintém,  dadiva 
d'um  seu  amigo  velho  que  andou  a  estudar  em 
Coimbra  e  já  se  formou. 

O  Bamba,  bebedor  emérito,  devasso  inexce- 
divel,  que  uma  vez  arvorou  em  Rousseau  e  fez 
as  suas  confissões. 

Conta-se  d'e]le  um  caso  que  não  deixa  de 
ter  espirito. 

O  Bamba  queria  baptisar  um  filho  e  queria 
que  o  Dom  Thoma/  de  Noronha  fosse  seu  com- 
padre. 


Typos  de  Coimbra 


43 


Para  isso  foi  esperal-o  n'uma  tarde  aos  Arcos 
do  Jardim,  expoz-lhe  a  sua  pretençso  e  con- 
seguiu, deníro  em  breve,  Vêr  realisado  o  seu 
maior,  o  seu  constante  desiderátiim. 

Restava,  porém,  escolher  o  nome  que  se  devia 
dar  ao  petiz  e  Dom  Thomaz  perguníou-lhe  qual 


•awr  ••*  '-■#'.«*-,..> V/-tCi3W'  .•'í8)8'9»''íSí..í 


O  Bentinho  Sapateiro 


era  o  nome  de  que  elle  mais  gostaria  para  seu 
filho.  Resposta  do  Bamba :  —  o  compadre  não 
é  padrinho  do  rapaz  ? 

—  Sou.  .  . 

—  Não  se  chama  Dom  Ihomaz? 

—  Chamo.  .  . 

—  Pois    meu   filho    deve  cliamar-se   Dom 
Thomaz  !  .  .  . 


44 


Typos  de  Coimbra 


E,  apóz  uma  sonora  gargalhada  do  padrinho^ 
o  petiz  ficou  sendo^  na  verdade,  o  Dom  Tho- 
maz , . . 

O  Barnabé,  que  parece  ter  o  dom  da  ubi- 
quidade, esse  pobre  diabo  que  apparece  em 
toda  a  parte  quasi  ao  mesmo  tempo. 


O  Bamba 


O  Barnabé 


Ha  um  fogo  ?  Lá  Vae  o  Barnabé  avisar  os 
bombeiros  antes  que  os  sinos  dêem  signal. 

Ha  uma  desordem  ?  Lá  Vae  o  Barnabé  avisar 
a  policia,  porque  eila  só  apparece  quando  é  avi- 
sada .  .  . 

Ha  necessidade  de  qualquer  recado  ?  Eis  que 
surge  o  Barnabé. 

Ha  um  baptisado,  um  enterro,  um  casamento 
quasi  em  segredo  ? 

Não  importa.    Mesmo  assim  lá  apparece  o 


I 


Typos  de  Coimbra 


45 


Barnabé !  Com   certeza   o  Barnabé  deve  lá 
estar ! 

E  quando  elle  se  perfila  a  uma  esquina  fa- 
zendo continência,  de  chapéu  na  mão,  ao  pas- 
sar alguém  conhecido  que  interpella  sempre 
d'esta  forma :  faz  favor  de  me  deitar  a  sua 
benção?  Então  a  minha  mesada  ?  —  é  certo 
que  apanha  dez  réis. 

E  o  Luizinho  das  pontas  ? 

Outro  typo  curioso  que  acaba  de  morrer  e 
que  por  signal  não  morreu  a  tempo  de  ser  in- 
cluido    na    galeria 
dos  mortos ...  /  "^ 

Não  precisava  de 
pedir  porque  a  fa- 
mília tem  alguma 
coisa  e  não  queria 
que  elle  pedisse, 
mas  de  tal  forma 
se  acustumou  a  an- 
dar pelas  ruas,  apa- 
nhando pontas  de 
cigarro,  que  d'ahi 
lhe  Veio  o  habito 
de  pedir  uns  dez 
réis  a  este  e  áquelle 
com  quem  fallaVa. 

De  Vez  em  quan- 
do apparecia  com 
papeletas  para  o 
publico  subscrever 
com  qualquer  quan- 
tia para  a  ajuda 
d^um  varino,  d'um  collete  ou  d'um.as  calças. 

D'elle  conheço  eu  varias  partidas,  mas  a  que 
vou  contar^  francamente,  é  muito  superior  a 
todas  ellas. 


O  Luizinho  dandy 


46 


Typos  de  Coimbra 


Assistia-se  ao  sarau  que  uma  commissão  de 
académicos  realisou  no  theatro-circo  n'essa 
época  em  que  appareceu  a  ideia  da  recepção 
dos  novatos  com  festas. 

Representava-se,  n'esse  momento,  uma  peça 
qualquer,  feita  por  um  dos  vogaes  da  commis- 
são, na  qual  se  simulava  um  tribunal. 


\ 


O  Luizinho  das  pontas  surprehendido 
na  alameda  Camões  a  escolher  as  pontas  de  cigarro 

Ora  o  publico  e  as  testemunhas  que  se  nos 
apresentavam  no  palco  eram  a  malta,  a  crápula 
das  ruas,  esses  typos  sebentos  e  grotescos,  ao 
vivo,  e  o  Luizinho  que  também  lá  estava,  far- 
to, como  a  plateia,  de  ouvir  o  pseudo  advogado 
a  fallar,   a  fallar,  a  fallar,  levanta-se  como  um 


Typos  de  Coimbra 


47 


raio,  perfila  se  e  exclama  com  uma  cara  das 
mais  curiosas  doeste  mundo,  n'aquella  sua  voz 
meio  fanhosa  e  entrecortada  :  Arre  !  que  cha- 
tice mi-dônha  ! 

Eu  nào  sei  como  o  theatro  não  cahiu  com  a 
gargalhada,  forte,  retumbante  que  se  ouviu 
então  ! 

E'  que  o  Luizinho  n'aquella  sua  phrase, 
vinda  a  propósito,  tinha  conseguido  concretisar 

a  opinião  de  toda  a  pla- 
teia ! .  .  . 

E  o  mais  engraçado 
foi  que  o  Be b' agua 
quiz  atirar-se  á  pancada 
ao  Luizinho! 

Que  quadro !  Que 
scena  ! 

O  Befagua,  que  por 
signal  bebe  vinho  e  ás 
vezes  o  despeja  pelas 
ruas,  é  um  distribuidor 
de  prospectos,  um  ma- 
gnifico exemplar  de  tran- 
sição entre  o  homem  e 
o  macaco,  sebento,  mal 
alinhavado,  todo  elle  a 
transpirar  sabujice  e 
que,  por  um  defeito  qual- 
quer, falia  somente  por 
monosylabos. 

Ahi  Vae  uma  phrase 
para  amostra  e  que  elle 
diz  sempre  que  vê  um  petiz  fumar :  ai  tu  já 
fú  ?  Ló  di  tê  pae  / .  .  . 

Ainda  assim,  de  todos  os  typos  que  conheço 
era  o  Luizinho  das  pontas,  que  dava  menos 
sorte.  .  . 


O  Luizinho  á  verão 


48 


Typos  de  Coimbra 


O  Beb'agua 

meio  repleto  de  prosápia 
milhões  de  léguas 
acima  da  terra  e  ape- 
nas um  palmo  abaixo 
do  céu  !  .  .  . 

Outro  archeiro 
conheço  eu,  boa  pes- 
soa também  (os  ar- 
cheiros são  sempre 
boas  pessoas...)  que 
todo  se  abespinha 
quando  lhe  chamam 
5".  Pedro  alludindo 
ás  barbas  brancas 
que  possue.  Na  ver-  ^ 
dade  elle  parece-se 
muito  mais  com  um  ^^j 
Cerbéro  doque  com        e 


E  se  entrarmos  na 
Universidade,  sagra- 
do templo  da  sabe- 
doria, onde  em  vez 
de  nos  formarmos 
apenas  nos  conse- 
guimos deformar  .  .  . 
lá  Vos  farei  o  retrato 
de  certo  archeiro,  boa 
pessoa,  que  daVa  sor- 
te por  lhe  chama- 
rem Estópido  desde 
aquelle  dia  em  [que 
se  dignou  dizer  que 
o  archeiro  estava  dois 
furos  acima  de  estu- 
dante e  um  abaixo 
de  lente  !  o  que  equi- 
vale a  dizer,  nesse 
scientifica,  que  estava 


Um  arclieini  que  está 
s  furos  acima  de  estudante 
um  abaixo  de  lente .  .  . 


li 


Typos  de  Coimbra 


49 


O  meu  grande  amigo  S.  Pedro,  chaveiro  lá  de 
cima,  pois  que  este  veliio  santo  vive  ás  portas 
do  céu,  que  dizem  ser  o  Paraizo,  e  o  outro,  o 
archeiro,  pespega-se  á  porta  das  aulas,  que  sào 
um  verdadeiro  inferno ! 

E  para  encerrar  a  galeria  que  apresentei  sob 
um  aspecto  de  notas  a  lápis  na  carteira  de  um 
curioso,  resta  fallar  do  Nór- 
rim  e  do  Almirante  Rato. 

O  Nórrim  é  um  curioso 
typo  de  velho,  por  demais 
conhecido  em  Coimbra,  uma 
primorosa  cabeça  de  estudo 
perdida  no  enxurro  das  ruas, 
quando  toda  a  gente  sabe, 
que,  sendo  um  sapateiro 
aliás  bastante  habilidoso,  ja- 
mais precisaria  de  pedir. 

No  emtanto  acha  um  pra- 
zer infinito  em  dividir  o  seu 
tempo  entre  as  tabernas, 
onde  bebe  demasiadamente, 
e  as  ruas  ou  cafés  onde  la- 
menta a  sua  sorte,  apertando 
o  chapéu  de  feltro  contra  o 
peito  e  rindo  ou  chorando 
ao  gosto  de  quem  lhe  paga. 

Para  elle  o  riso  e  o  pranto 
não  traduzem  a  alegria  e  a  tristeza,  são  ape- 
nas, simples  e  unicamente,  a  manifestação  do 
interesse  ao  serviço  de  sua  magestade  o  di- 
nheiro .  .  . 

O  Rato  é  o  celeberrimo  almirante  do  Cen- 
tenário da  Sebenta  e  dos  festejos  do  Enterro 
do  Grau,  o  barqueiro  que,  em  tardes  amenas, 
anda  por  perto  da  ponte  de  Santa  Clara  á  es- 
preita dos  estudantes  para  lhes  dizer  n'uma  voz 

3 


O  Nórrim 


õO 


Typos  de  Coimbra 


melif lua    de    velhote    amigo :  —  Vá,    senhores 
Doutores  um  passeiosinho  até  â  Lapa  ! 

E  tantas  coisas  lhes  diz  que  lá  os  leva  quasi 
sempre,    de  barco,  até  á  Lapa  dos  Esteios, 

que  é  um  dos  pon- 
tos mais  pittores 
^  cos    de   Coimbra, 

não  fallando  no 
Choupal  ou  na  ve- 
lha Fonte  do  Cas- 
tanheiro, onde  se 
ouve  ainda  um  cer- 
to rumor  dos  bei- 
jos que  os  namo- 
rados de  outros 
tempos  ahi  troca- 
vam nas  luminosas 
e  tradicionaes  ma- 
nhãs de  S. João. . . 
Eis  assim  deli- 
neada, em  poucos 
traços,  a  serie  fu- 
nambulesca de  ty- 
pos  grotescamente 
raros  que  consti- 
tuem só  por  si  um 
dos  aspectos  mais  originaes  da  lendária  Coim- 
bra cheia  de  amores  e  de  mysterios,  eterna 
evocadora  das  notas  maviosas  daquelle  fado 
triste,  cantado  pelo  Hylario,  em  noites  de  bo- 
hemia,  sob  as  janellas  das  tricaninhas  de  risos 
de  oiro  em  flor ! .  .  . 


O  Almirante  Rato 


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