Skip to main content

Full text of "Victorias d'Africa: a defeza de Lourenço Marques e as campanhas do Valle do Incomat e do pais de ..."

See other formats


Google 



This is a digital copy ofa bix>k lhai was preservcd for general ions on library sIil-Ivl-s before il was carcfully scanned by Ciootik' as pari of a projecl 

to makc thc world's books discovcrable online. 

Il has survived long enough for lhe copyright lo expire and thc book to enter thc public domain. A public domain book is onc lhai was never subjecl 

lo copyright or whosc legal copyright icnn has expired. Whcthcr a book is in thc public domain rnay vary country locountry. Public domain books 

are our galeways to thc pasl. rcprcscntirig a wcallh of hislory. eulture and knowlcdgc lhat's oflcn dillicult to discover. 

Marks. noialions and olher marginalia prcscnl in thc original volume will appcar in this lilc - a reminder of this book's long journey from lhe 

publisher to a library and linally lo you. 

Usage guidelines 

Google is proud lo partner wilh libraries lo digili/e public domain malerials and makc lhem widely accessible. Public domain books belong lo lhe 
public and wc are merely iheir cuslodians. Neveilheless. ih is work is expensive. so in order lo keep providing ihis resource. we have taken sleps to 
preveni abuse by eommeivial pailies. mcliidiiig placmg leclmical reslriclions on aulomaled uuerying. 
We alsoask that you: 

+ Muke non-commercial u.se of lhe files We designed Google Book Search for use by individuais, and we reuuesl lhai you use these files for 
personal, non-commercial purposes. 

+ Refiram from mttoinated querying Dono! send aulomaled uueries of any sorl to Google's system: If you are eondueting researeh on machine 
translation. optieal eharaeter reeognition or olher áreas where aeeess lo a large amount of texl is helpful. please eonlaet us. We cneourage thc 
use of public domain malerials for lhese purposes and may bc able to help. 

+ Maintain attribuúon The Google "walermark" you see on eaeh lile is essential for informing people about this projeel and hclping lhem lind 
additional malerials ihrough Google Book Search. Please do noi remove il. 

+ Keep it legal Whaiever your use, remember lhai you are responsible for ensuring lhat whal you are doing is legal. Do nol assume that just 
because we believe a rxx>k is in lhe public domain for users in lhe United Siatcs. lhai lhe work is also in lhe public domain for users in other 

counlries. Whclhcr a book is slill in copyrighl varies from counlry lo counlry. and wc can'l olíer guidance on whelher any specilic use of 
any specilic bix>k is allowed. Please do nol assume lhai a bix>k's appearance in Google Book Search mcans il can bc used in any manner 
anywhere in lhe world. Copyrighl infringcmcnl liabilily can bc quite severe. 

About Google Book Search 

Google 's mission is lo organize thc world's information and to makc it universal ly accessible and useful. Google Book Search helps readers 
discover lhe world's books while liclpuis; aulliors and publishcrs rcach new audienecs. You can searcli llirougli lhe J li 1 1 lexl of ihis book on lhe web 
at |http : //books . qooqle . com/| 



Google 



Esta é unia cópia digital de um livro que foi preservado por gerações em prateleiras de bibliotecas até ser cuidadosamente digitalizado 

pelo Google, como parte de um projeto que visa disponibilizar livros do mundo todo na Internet. 

livro sobreviveu tempo suficiente para que os direitos autorais expirassem e ele si; tornasse então parte do domínio público. Um livro 

de domínio público 6 aquele que nunca esteve sujeito a direitos autorais ou cujos direitos autorais expiraram. A condição de domínio 

público de um livro pode variar de país para país. Os livros de domínio público são as nossas portas de acesso ao [lassado e representam 

uma grande riqueza histórica, cultural e de conhecimentos, normalmente difíceis de serem descobertos. 

As marcas, observações e outras notas nas margens do volume original aparecerão neste arquivo um reflexo da longa jornada pela qual 

o livro passou: do editor à biblioteca, e finalmente até você. 



Dirct rizes de uso 

Google se orgulha de: realizar parcerias com bibliotecas para digitalizar materiais de domínio público e tornados amplamente acessíveis. 
Os livros de domínio público pertencem ao público, e nós meramente os preservamos. _\o entanto, esse trabalho é dispendioso; sendo 
assim, para continuar a oferecer este recurso, formulamos algumas etapas visando evitar o abuso por partes comerciais, incluindo o 
estabelecimento de restrições técnicas nas consultas automatizadas. 

Pedimos que você: 

• Faça somente uso não comercial dos arquivos. 

A Pesquisa de Livros do Google foi projetada para o uso individual, e nós solicitamos que você use estes arquivos para fins 
pessoais e não comerciais. 

• Evite consultas automatizadas. 

Não envie consultas automatizadas de qualquer espécie ao sistema do Google. Se você estiver realizando pesquisas sobre tradução 
automática, reconhecimento ótíco de caracteres ou outras áreas para as quais o acesso a uma grande quantidade de texto for útil. 
entre em contai. o conosco. Incentivamos o uso de materiais de domínio público para esses fins e talvez possamos ajudar. 

• Mantenha a atribuição. 

A "marca dágua" que você vê em cada um dos arquivos essencial para informai- as pessoas sobre este projeto e ajudá-las a 
encontrar outros materiais através da Pesquisa de Livros do Google. Não a remova. 

• Mantenha os padrões legais. 

independentemente do que você usar. tenha- em mente que é responsável por garantir que o que está fazendo esteja dentro da lei. 
Não presuma que, só porque acreditamos que um livro é de domínio público pata os usuários dos Estados Unidos, a obra será de 
domínio público para usuários de outros países. A condição dos direitos autorais de um livro varia de país para país, e nós não 
podemos oferecer orientação sobro a permissão ou nào do determinado uso de um livro em específico. Lembramos que o fato de 
o livro aparecer na Pesquisa de Livros do Google não significa que ele pode ser usado de qualquer maneira em qualquer lugar do 
mundo. As consequências pela violação de direitos autorais podem ser graves. 

Sobre a Pesquisa de Livros do Google 

A missão do Google é organizar as informações de todo o mundo e torná-las úteis e acessíveis. A Pesquisa de Livros do Google ajuda 
os leitores a descobrir livros do inundo todo ao m esmo :cii:;hí i-m que ajuda ■ím uiuíj^ e edi:ore- a ai ca: içar novos públicos. Vnce pode 
pesquisar o texto integral deste livro na web, em |http : //books . google . com/| 



tf 




*^A 




'< 



- s 




") 



VICTOR IAS D'AFRICA 





-í 



, f l 



António de Campos Júnior 



/ 



/ 





A DEFEZA DE LOURENÇO MARQUES 

E AS CAMPANHAS 
DO VALLE DO INCOMATI E DO PAIZ DE GAZA 




TQKAAJZJJlr <W~ 




e^l^cfi^ix 



1894-1895)0 




LISBOA 
Typ. - RUA DO NORTE, 46, i.° - Esq. 

189Õ 



L 



<■ -A -o => 



V 



C ' '*-. V 






m 



Honor Victoribusi 




Vereis amor da pátria, não movido 

De premio vil, mas alto, e quasi eterno. 

(Camões — Lusíadas) 



1894-1895 



PREFACIO 




Está na memoria e no coração de nós todos, 
homens de Portugal, esta singelíssima synthese da 
nossa maior gloria contemporânea : 

Para salvar a cidade de Lourenço Marques, as- 
sediada pelos cafres, e para assegurar a soberania 
portugueza nos sertões de Gaza e do Incomati, par- 
tiram de Portugal cerca de três mil homens do exer- 
cito. Desaffrontando a cidade em perigo, reoccu- 
pando Angoane, dispersando os cafres, perseguin- 
do-os em marchas penosíssimas, batendo-os em 
Marracuene, vencendo-os em Magul, a elles e aos 
vátuas, pondo-os em fuga em Clúncu>ane, destro- 
çando os vátuas e buingelas em Coolella, tomando 
o kraal de Manjaca\e, assaltando nas florestas o ul- 
timo asylo do regulo Gungunhana e aprisionando-o, 
em presença de três mil vátuas estupefactos ; esses 
expedicionários, que a marinha auxiliou destemida- 
mente nas suas operações dos rios Incomati e Lim- 
popo, trouxeram a Portugal, subitamente, com o 
nosso prestigio redivivo, o maior triumpho que, 



VIII 



n'este momento histórico, podia acariciar a alma da 
nação. 

Voltou á pátria a maior parte d esses bravos. E' 
consolador saber como elles venceram; é enterne- 
cedor lembrar como elles foram victoriados. 

E aqui está o thema inteiro d'este livro, esboço 
apenas de uma grande historia, que a alma do au- 
ctor comprehende commovidamente, mas que a sua 
penna obscura não sabe escrever completa. 

Estamos ainda sob a impressão deslumbradora 
dos júbilos nàtionaes e temos ainda no espirito a 
visão soberba dos últimos combates ; nos olhos e no 
coração a imagem dos expedicionários que volta- 
ram, abraçados pela alma portugueza, num êxtase 
de inexcedivel ternura e de abençoado orgulho ! 

Parece que ainda sentimos a bemdita surpreza 
das nossas almas por cada lampejo de victoria que 
nos chegava do sertão negro, e diante dos olhos, 
turvos de lagrimas, d'essas lagrimas santas e con- 
soladoras que as nações choram nos arroubamen- 
tos de uma súbita gloria, como que vemos passar 
ainda, ha sua marcha triumphal, por entre a reper- 
cussão dos hymnos e os esplendores de uma apo- 
théose, os lívidos heroes da ultima guerra d'Africa ! 

Pôde bem dizer-se que, de um ao outro extremo 
do paiz, vibram ainda pelos ares os gritos enthu- 
siasticos da alma nacional e que sob a arcaria dos 
templos antigos, como em Santa Maria de Belém, 
se não dissiparam de todo as nuvens brancas do in- 
censo, erguidas para Deus no radioso jubileu da pá- 
tria portugueza. 

Na comprehensão e na confraternidade do mes- 
mo ideal, a alma da nação despertou enternecida- 
mente nas vibrações de todas as nossas almas e 
sobre os valentes, coroados de flores, descem fer- 
vorosamente as bênçãos da Pátria, como benção 
carinhosa de mãe amantíssima, ao filho que volta, 
glorioso e ovante. 

Dir-se-ha que é cedo ainda para escrever a his- 
toria d'esses homens, cuja destemida abnegação, 



IX 



rasgando no relâmpago das descargas, a nossa 
amarga lenda pessimista, accendeu a aurora de uma 
nova era, de confiança e de força, no vivo fulgor 
das espadas. 

Para uma historia que fosse a apreciação poli- 
tica dos factos, na sua íntima relação com as ope- 
rações militares, ou para a historia exclusivamente 
technica e doutrinaria, sem nenhum objectivo de 
vulgarisação patriótica; para um livro de analyse 
politica ou para um livro de critica da guerra, seria 
eft*ectivamente cedo, porque não teria o tempo che- 
gado ainda para a calma e inflexível avaliação dos 
acontecimentos, nem para a reflectida lição a dedu- 
zir dos factos, na sua mais ampla e proveitosa signi- 
ficação. 

> 

Mas em nenhum dos dois casos está. precisa- 
mente comprehendido este livro. 

Não é essencialmente uma historia politica, nem 
c exclusivamente uma historia militar. Recordando 

f»recedentes de outras expedições, relacionando os 
actos militares com os factos políticos que os mo- 
tivaram; descrevendo a campanha, esboçando o 
grande quadro dos combates, comparando com ex- 
tranhos commettimentos os feitos das tropas portu- 
guezas, pondo em largos traços característicos as 
virtudes e as qualidades dos nossos soldados; vi- 
brando a nota impressionista ou a nota. anecdotica, 
sem a adulteração do facto na sua plena realidade, 
c procurando a lição e o corollario dos aconteci- 
mentos, perante a sciencia da guerra ou perante os 
altos interesses da nação; o nosso livro, quaesquer 
que sejam os seus erros, não tem outro objectivo 

aue não seja fixar bem na alma portugueza a bem- 
ita pagina de gloria e de sacrifícios que se additou 
ao livro de oiro do esforço portuguez, collabo- 
rada por todos os que voltaram triumphantes e por 
todos os que morreram vencedores, na ultima epo- 
pêa d 1 Africa. 

Não é cedo para um livro assim. Nem tem pre- 
terições a ser d critica definitiva de um período his- 



torico, nem pôde ser a analyse technica de uma cam- 
panha colonial. 

Para que se não apague a impressão consola- 
dora dessas façanhas, para que não esmoreça a , 
impressão suggestiva do commettimento e se não : 
perca esta lição, que, pôde ser bem o primeiro mo- : , 
vimento de uma grande renascença, e agora até a / 
occasião opportuna de registrar num livro quanto' * 
ha de grande e útil, de altivo e reanimador n'essa ; 
envaidecedora experiência contemporânea da nossa l 
alma, da nossa força, da nossa fortuna. 

Appareceu ha annos em uma cidade de França, " 
na exposição de certo bazar, um quadro que repre- - 
sentava um porta-bandeira francez salvando a ban- ■ 
deira do seu regimento, no dia lúgubre de Sedan. 
O pintor era um ignorado, a obra de arte era uma , 
mediocridade, mas nenhum francez passava que 
não parasse, que se não commovesse, que se não • 
apartasse do quadro, com os olhos rasos de lagri- 
mas. 

Era o assumpto, era o facto que, pela sua enter- 
necedora eloquência, fallava ali, na tela absoluta- ■ 
mente medíocre. 

Será assim este livro. 

A historia pôde ser também uma obra de sen- 
timento, sem deixar de ser uma obra de verdade.. 
Para que se torne um livro de vulgarisação, para 

3ue a entenda e sinta a grande alma das collectivi- 
ades, para que seja uma lição efficaz, não basta - 
que relacione os factos e os nomes, na pallida ex- 
hibição da sua precedência chronologica, nem basta : 
mesmo que seja raciocinada; é preciso que dê a í 
physionomia e o aspecto dos homens e das cousas na 
sua cor, no seu movimento, na sua paizagení redi- 
viva. 

Suppõe muita gente que o historiador deve ser 
um analysta impassível, espécie de juiz que expõe 
fria e severamente as peças do processo e por el- 
las redige seccamente a sentença. Puro engano. Di- 
zer a verdade de modo que nos accenda a alma em 



XI 



i 



chammas de vivido enthusiasmo ou nos levante a 
consciência em ondas de sincera indignação, con- 
forme o facto é uma virtude ou uma torpeza; di- 
zel-a de tal arte, nos limites da razão e da equi- 
dade, é uma forma suggestiva da arte, que nem 
■ deturpa a justiça nem abastarda a historia. Quer 
parecer-nos que pôde ser justa e sincera, sem dei- 
xar de ter as qualidades emotivas, que devem con- 
stituir a essência de toda a obra litteraria, conforme 
o critério de Taine. 

N*esta nossa, que não é a historia definitiva das 
recentes campanhas d'Africa, que não podia ser e 
não é senão um livro sincero e impressionista; 
n'esta, em quasi todas as suas paginas e na sombra 
dos seus defeitos, por enormes que sejam, ha de o 
leitor sentir pulsar o coração da pátria, como sob 
as suas mãos, tacteando o passado, Pelletan sentia 
palpitar o coração da França. 

Mas se outras razões de justificação não tivés- 
semos para explicar esta obra, que é sobretudo a 
homenagem de um obscuro aos mais gloriosos sol- 
dados que nos últimos oitenta annos teem reavivado 
a tradição épica do exercito portuguez ; procuraría- 
mos o precedente de estrangeiros e encontral-o- 
hiamos bem recente e de bem assignalada auctori- 
* dade. 

Tem já a sua historia a campanha de Madagás- 
car, ha poucos mezes ainda concluída, e já produziu 
mais de um livro a historia da guerra de Dahomé, 
que só em janeiro de 1894 se considerava compler 
tamente terminada com a prisão de Behanzin, o 
autocrata derrotado e foragido. 



* * 



No prefacio de um livro de Jules Poirier — Cam- 
pagne du Dahomey — 1892-1894 — escreveu o de- 
putado francez Henri Lavertujon: L' Afrique! Est-il 



XII 



XJN NOM QUI EVOQUE DES PLUS GLORIEUX SOUVENIRS, DES 
PLUS BRILLANTES ESPERANCES ! 

Com que razão immensamente maior, pela his- 
toria, pelo presente, pelo dia de amanha, não po- 
deremos fazer nossa esta evocação enthusiastica 
do escriptor francez! 

Sim, por que a Africa é afinal na historia da 
França apenas uma pagina de setenta annos, desde 
a fundação das suas primeiras feitorias do Senegal 
e desde a conquista da Algéria até á sua moderna 
expansão no Sudan, em Tunis, no Congo e em Ma- 
dagáscar, Pagina brilhantíssima, decerto, mas a 
pagina dum século incompleto. 

Em quanto que, para nós, a Africa é um capitulo 
épico da civilisação humana, escripto pelos nossos 
marinheiros e pelos nossos soldados em quatro 
centos e oitenta annos, desde a conquista de Ceuta, 
com vinte mil guerreiros, até ao quadrado de Coo- 
lella, com quinhentos soldados. 

A Africa! Se fomos nós que a arrancámos da 
lenda tenebrosa dos árabes e dos phenicios, se a 
completamos nos planispherios da Terra, se a cru- 
zámos primeiro que nenhum povo moderno, se foi 
ao longo do seu inhospito littoral que as caravelas 
portuguezas abriram o caminho da America e o ca- 
minho da índia! Se foi ali, no campo militar da 
velha civilisação mussulmana — em Marrocos — se 
foi ali que os antigos portuguezes crearam a escola 
de gentilezas de valor com que haviam de assom- 
brar o Oriente. Um punhado d'homens esparsos 
por metade do mundo 4 ! 

Que ossuario immenso que ella é, de soldados 
e marinheiros, de viajantes e missionários portu- 



1 Então os portuguezes, que não chegavam a ter 40:000 
homens em armas, faziam tremer o império de Marrocos, os 
barberescos cTAfrica, os Mamelukos, os Árabes, e todo o 
Oriente, desde Ormuz até á China. 

(César Cantu — Historia Universal). 



XIII 



guezes! Nem talvez o Oriente nos custou tanto 
sangue. 

Foi nos mares africanos que fizemos a aprendi- 
zagem de marinheiros e foi na Africa (Ceuta, Tan- 
ger, Arzilla, Alcacer-Ceguer, Mazagão) que fizemos 
a aprendizagem de conquistadores. Na Africa esbo- 
çámos o primeiro império que a nossa ambição 
planeara e foi lá que elle se enterrou, afogado em 
sangue, com a coroa de ouro, a coroa fechada do 
mallogrado * imperador D. Sebastião de Portugal, 
feita em pedaços nas mãos rapaces dos berberes! 
(Alcacer-Kibir- 1578). 

E é ainda na Africa, por um capricho do destino, 
que está a mais" legitima esperança, a maior força, 
o rutilo futuro da pátria portugueza. 

Perdido o império do Oriente, que tinha as suas 
colossaes fronteiras entre o Indico e o Mar Verme- 
lho e entre o Pacifico e o mar da China ; perdido o 
império do Brazil, uma immensidade entre os Andes 
e o Mar, os rios como oceanps, império quasi tão 
grande como a Europa inteira; está na Africa o 
nosso terceiro império colonial — o ultimo. 

E este, ainda assim, na sua vastidão de mais 
de dois milhões de kilometros quadrados *, é sufi- 
cientemente grande para conter duas vezes a Hes- 
panha com todos os seus domínios ultramarinos 2 . 



1 O sr. Raposo Botelho, na sua Geographia Geral, cal- 
cula a superfície da província de Angola, com os districtos 
da Lunda e Congo, em cerca de 2.000.000 de kilometros qua- 
drados e a província de Moçambique em proximamente 
1. 000.000 de k. q. 

Um dos nossos mais distinctos cartoaraphos e esclarecido 
africanista avalia, porém, a superfície d Angola em 1.372.500 
k. q. e a de Moçambique em 785.000 k. q., o que, com a Guiné 
e ilhas da Africa, dá para todo o nosso império africano uma 
superfície total de 2.172.000 k. q., approximadamente. 

2 Superfície da Hespanha 507.045 k. q. 

Superfície de todas as colónias hespa- 

nholas 429. 1 20 » 

Superfície total 936.1 65 » 



XIV 



* 



Referindose á expansão colonial da França e 
ao enthusiasmo da opinião publica pelas victorias 
de Dahomé, escreveu o sr. Henri Lavertujon: 

«Elle a compris que, si nous nous renfermions 
obstinément dans nos 52q:ooo kilométres carrés de 
terre française, aveç ses 38 millions d'habitants, nous 
serions fatalement, dans un délai prochain, empor- 
tés, submerges, engloutis dans le tourbillon des 
grands peuples, qui tous les jours s'accroissent, 
comme TAngleterre, les Etats-Unis, la Russie». 

O que deveremos nós dizer então com os nos- 
sos 89.(525 kilometros quadrados de terra portugue- 
za do continente europeu e com os seus escassos 
4.500.000 habitantes, ou, ainda assim, quasi o tri- 
plo da população com que fizemos as conquistas? 

Podemos e devemos dizer que é a Africa o 
grande futuro da nacionalidade portugueza, que é 
a maior razão histórica da nossa existência politica, 
por que nos equilibra ao lado da Hespanha e pe- 
rante a Europa, como ha quatro séculos nos equi- 
librava perante Castella e Leão, quando era a nossa 
base de operações para a viagem da índia e nos 
salvava da acção absorvente da unidade hespanhola 
por que era a affirmação da nossa iniciativa civili- 
sadora e a immortalidade da nossa preponderância 
histórica. 

Por isso a alma portugueza comprehendeu enter- 
necidamente o enorme eneito moral das abençoadas 
victorias dos nossos soldados, immensnmente maior 

3ue o seu effeito material, n'este cyclo de profan- 
os esmorecimentos. 
Por isso, numa effusão de enthusiasmos, como 
nunca nenhum homem dTioje ainda vira n'este paiz, 
num carinho que chegava aos arrebatamentos 



XV 



do amor, a alma da nação, na sua dupla sentimen- 
talidade pelo heroismo e pelo affecto, que resumem 
a psychologia do caracter antigo, eternamente mo- 
delado no oiro das Lusíada?, por isso essa alma, 
erguida como a águia symbolica dos antigos trium- 
phadores, apertou contra si, como as mães apertam 
os filhos, a bandeira que foi agora glorificada nos 
sertões. 

E ainda, n'este momento, das mais modestas 
povoações do paiz, das ínfimas aldeolas, nos está 
chegando a nota commovedora das glorificações par- 
ciaes. 

Cada expedicionário que volta á sua terra, um 
soldado raso, um tambor, que vae para a sua casa 
pobríssima, para junto dos pães, uns velhitos tal- 
vez andrajosos, que importa isso? é recebido pela 
população inteira, por todos, os mais illustres e os 
mais humildes, com as honras de um triumphador 
e as caricias enternecidas de um irmão. As vezes a 
casa é um pardieiro, um desvão, uma choça, e faz- 
se de súbito o recinto de uma apotheose ! É quantas 
mães, coitadas, no seu doce espanto, não terão per- 
guntado ao coração, se effectivamente será o seu 
pobre filho esse que tanta gente applaude e abraça, 
como se todos, até os grandes, os ricos, os podero- 
sos, tivessem orgulho de chamar-lhe irmão, a elle, 
o pobre soldado livido, a quem ainda ha um anno, 
só alguns raros humildes, seus iguaes, conheciam e 
apertavam a mão! 

E se lho perguntarem a elles, os victoriados, 
se as mães lhes perguntarem por que os levantam 
nos braços, como se levantam os andores dos san- 
tos, a elles, uns soldados rasos, responderão singe- 
lamente — e quantos não terão respondido assim ? — : 

— E por eu me ter batido em Marracuene. E 
porque eu estive em Magul. E por que eu fui ferido 
em Coolella. Está aqui a prova. E a medalha da 
Rainha. Pozeram-ma no peito as suas mãos, bran- 
cas de neve. 

Hora santa de gloria! Hora santa de justiça! 



XVI 



Não é talvez assim que se deve eserever a his- 
toria; mas é assim que todos nós a sentimos agora. 

Para esses valentes, os mais brilhantes e os mais 
humildes, os que vieram, os que hão de voltar ainda, 
os que não voltarão nunca; para todos elles, as po- 
bres paginas d'este livro 



I 



EXPEDIÇÕES MILITARES 



Foram os portuguezes, entre as primeiras alvo 
radas percursoras da Renascença, os primeiros da 
Europa que emprehenderam conquistas no conti- 
nente africano. 

Pela grandeza das esquadras e pelos effectivos 
de desembarque, as expedições portuguezas a Mar- 
rocos (antigo Maghreb)' egualaram e algumas vezes 
excederam as grandes expedições de Veneza á mar- 
gerti oriental do Mediterrâneo, e as dos aragonezes 
e catalães contra a Sicilia, Nápoles e Sardenha. 

De Marrocos, que fora o vasto campo entrin- 
cheirado do império árabe e a sua base de opera- 
ções contra a Península Hispânica e a França, fize- 
mos nós a nossa base de operações para a conquista 
da Africa mysteriosa e do Oriente e a escola de 
guerra dos nossos soldados, dura e sanguinolenta 
escola que durou trezentos annos de quasi ininter- 
rompidos combates, de cercos, de crudelissimas 
rabias. Começou em Ceuta, a Septum romana, e aca- 
bou em Mazagío, abandonada como ultima epopêa 



i8 



inútil do império, que D. João I planeara e que D. 
Sebastião intentou completar e sepultou lugubre- 
mente em Alcacer-Kibir. 

Nenhuma nação moderna tem feito, como a nossa, 
maiores sacrifícios pela Africa, nenhuma ali derra- 
mou ainda mais sangue. Basta Marrocos para nos 
dar essa trágica prioridade. 

Custou-nos também muito sangue o Oriente, 
que foi nosso, desde Socotorá a Malaca, desde o 
Mar Vermelho ao Mar da China; levou-nos cente- 
nas de vidas o Brazil, na encarniçada guerra de de- 
zeseis annos, que ali sustentámos contra os hollan- 
dezes invasores. A Africa, porém, custou-nos muito 
mais, sem tomarmos em conta os que morreram 
em volta do seu littoral immenso, sepultados pelas 
ondas do Atlântico e do Indico 4 . 

Também para nenhum outro continente manda- 
mos expedições maiores. Comprehende-se. Raça 
aguerrida e indomável, constituindo rapidamente exér- 
citos numerosos, era a gente de Marrocos mais dif- 
ficil de vencer do que a maior parte das raças da 
Ásia. Rivalisando com ella, só os malaios e os ára- 
bes 2 . 

Tão temíveis como os marroquinos, só os turcos; 
mais perigosos, pela reflectida coragem, pela disci- 
plinada bravura, pelos seus progressos na sciencia 
da guerra, só os nollandezes e os inglezes, que os 
nossos marinheiros e soldados tiveram de combater 



1 Perdeu-se nos mares da Africa uma parte das naus 
que andavam na carreira da índia. Em pouco mais de um sé- 
culo naufragaram 66 naus ; o maior numero nas aguas afri- 
canas ! 

2 Tão guerreira e destemida raça aquella de Marrocos, que 
na guerra com a Hespanha (1859-1860), dispondo de pouco 
mais de 5o.ooo homens de tropas regulares e de outra tanta 
força de gente indisciplinada e com grosseiras armas de fogo > 
oppoz uma resistência formidável ao brilhante exercito de 
0'Donnell e Prim, composto de 45.000 homens de tropas aguer- 
ridas, apoiadas por uma poderosa esquadra. 

E' espantosa a tenacidade com que os marroquinos, de 



19 



em Moçambique c na Ásia, e os francezes e hol- 
landezes, que tiveram de repellir na America, pre- 
cisamente quando Portugal estava já extenuado por 
uma lucta colossal, desproporcionada, de duzentos 
annos, em todos os continentes e êm todos os gran- 
des mares do commercio colonial. Enfraquecido até 
pelas riquezas corruptoras do Oriente e do Brazil, 
que eram afinal o incentivo, a força impulsora d es- 
tes gloriosos adversários. 

N'este esboço retrospectivo das expedições mili- 
tares ao ultramar, cabe á expedição de Ceuta (141 5) 
o primeiro logar, não somente pela precedência 
chronologica, como pela grandeza das forças e pela 
importância estratégica e politica do objectivo. 

Foi preciso levantar um exercito de vinte mil 
homens, arrancado ao rudimentar e imperfeito or- 
ganismo militar d'aquella epocha; exercito, em qué 
entravam muitos voluntários, mas que na maior 
parte se compunha de gente obrigada pelos com- 
promissos da sua condição social — homens d'armas 
avassallados aos nobres e cavalleiros, como estes 
o estavam ao rei ; besteiros e cavalleiros dos muni- 
cípios, que se não podiam escusar a uma guerra 
contra o moiro, como os seus antepassados se não 
tinham recusado a ir a Navas de Tolosa e ao Sala- 
do, em soccorro da Hespanha (1212-1340). 

E com a mobilisação deste exercito foi indispen- 
sável a organisação de uma frota, como nenhuma 
outra se havia ainda reunido no occidente da Europa. 
A viagem era de poucos dias, o transporte das for- 



combate em combate, desde Sierra Bullones, ao pé de Ceuta, 
até Tetuâo e Wad-Ras, ultimas batalhas, obrigaram os hes- 
panhoes a gastar quatro mezes para avançarem cerca de 1 1 
ou 1 2 léguas, na maior parte ao longo do littoral ! 

Venceram os hespanhoes, enramaram de novos louros a 
sua altiva bandeira, mas pelo duro preço de 6.146 mortos e 
feridos, além de 2.888 mortos por eífeito de doenças em cam- 
panha. 

(Extrahida do Atlas histórico da campanha, formulado 
pele estado maior hespanhol). 



20 



ças podia, portanto, tolerar-se nas peores condições 
de installação, mas, ainda assim, um exercito de tal 
ettcctivo e com 5. Soo cavallos exigia grandíssimo 
numero de embarcações, attenta a pequena tonela 
gcm dos navios d^iquelle tempo, em que eram ex- 
cepções as galés grandes de Veneza, empregadas 
no trafico commercial do Mediterrâneo. 

A esquadra compunha-se de 33 galeões de linha,, 
27 de três ordens de remos, 32 galeras e 120 na- 
vios de menor lotação. 

Para completar tão grande frota foi preciso afre- 
tar navios de transporte em vários portos da Eu- 
ropa. 

Comprehende-se bem que estes importantes ar- 
mamentos fossem difiiceis e morosos num paiz pe- 
queno, de escassos recursos, com uma população 
que pouco excedia um milhão d^lmas e tendo por 
base orgânica uma. marinha militar ainda nascente» 

E todas as demoras dos preparativos foram ainda 
aggravadas pelos embaraços resultantes do segredo 
e das precauções diplomáticas com que a expedição 
era organisada, para que ninguém lhe soubesse o 
verdadeiro objectivo. Entretanto, a noticia d'estes 
armamentos espalhou-se na Europa, como era de 
prever, e encheu de receio a corte de Castella e o 
rei mouro de Granada, que empregou desespera- 
dos esforços e fez tentadoras promessas para saber 
o fim d'aquelles extraordinários aprestos. 

O segredo, porém, foi firmemente guardado e 
só raros sabiam que se ia conquistar a grande ci- 
dade marroquina, que era então a chave do Estreito 
e um dos mais opulentos empórios commerciaes 
d^aquella época. 

Entre o vulgo corria que era intento de el-rei ir 
conquistar a Sicilia e entre a gente de corte espa- 
lhara-se propositadamente que a expedição era des- 
tinada á invasão da Hpllanda. 

Os escriptores portuguezes não estão concordes 

3uanto ao tempo que duraram os preparativos. Uns 
izem que começaram em 141 2, outros aflirmam 



21 



que só se iniciaram no anno immediato. Dois ou 
três annos *. 

Em 25 de julho de 141 3 recebia João Vaz d'Al- 
mada uma carta credencial de el-rei D. João 1 para 
ir tratar em Inglaterra de certos negócios relativos 
a Portugal. Em 26 de setembro de 1414 Henrique v 
de Inglaterra concedia licença a João Vasques d'Al- 
mada (provavelmente o mesmo João Vaz aAlmada 
que recebera a credencial de D. João 1) para levar 
de Inglaterra 400 lanças, destinadas ao rei de Por- 
tugal. Em* 26 de janeiro de 141 5 Henrique v dizia 
em carta ás auctoridades de Londres que havia 
permittido a Álvaro Vaz que equipasse vários ho- 
mens d"armas e comprasse 35o lanças em Ingla- 
terra, para o serviço do rei de Portugal, e ordená- 
va-lhes que deixassem sair estes armamentos livre- 
mente e sem pagamento de quaesquer direitos. 

D'aqui se deprehende que já em 1413 se tratava 
da compra de armamentos em Inglaterra e que em 
janeiro de 141 5 se effectuava uma nova compra 
d'armas. 

A expedição partiu do Tejo em 25 de julho. No 
dia 21 a agosto (e só então porque a esquadra ti- 
vera de arribar a Faro, batida por um temporal) 
as tropas portuguezas tomavam aos marroquinos 



1 Com immensos recursos militares, com uma poderosa 
esquadra e uma população trinta e tantas vezes superior á do 
Portugal de D. João i,* a França de Carlos x levou largo 
tempo a organisar a expedição do marechal Bourmont contra 
Alger. A honra do pavilhão francez exigia um desforço im- 
preterível. Em 1827 o dey argelino Hussein-Pachá * havia 
afírontado gravemente o cônsul francez, a ponto de ameaçar 
esbofeteal-o. Passado tempo um navio parlamentario francez 
foi crivado de balas pela artilheria argelina. 

A expedição saiu de Toulon em 5 de maio de i83o. Com- 
punha-se de 38.ooo homens, ayant à peine írois mil chevaux? 
como refere um historiador francez. 

Para vingar o desaire de Puebla (México), a França de 
Napoleão 111 organisou uma expedição de 35:ooo homens. 
Um historiador francez escreveu a respeito d'esta expedição : 
Les préparatifs furent longs et remplirent Vannée 1862. 



22 



de Salat-Ben-Salat a mais opulenta cidade da Mau- 
ritânia. Quando o sol morria no horisonte já a ban- 
deira de Lisboa tremulava altaneira sobre a velha 
kassba de Ceuta. 

O primeiro e mais arrojado luctador d'aquelle 
dia fora esse mesmo infante D.' Henrique, que an- 
nos depois havia de ser o iniciador das modernas 
descobertas da Terra. 

Não é intento nosso descrever remotos comba- 
tes, nem indicar expedições exclusivamentes navaes 
n'este capitulo preambular da historia de uma guerra 
africana dos nossos dias. 

Indicámos a nossa primeira expedição e a nossa 
primeira campanha ultramarina ; vamos agora apon- 
tar algumas das mais importantes expedições que 
de Portugal foram enviadas ao ultramar. Temos o 
direito de ligar bem o passado a essa pagina bri- 
lhantíssima que o esforço dos nossos soldados es- 
creveu no sertão negrp. Lembrar os antigos é tam- 
bém prestar homenagem aos modernos que os 
egualaram. 

* 
* * 

Depois da conquista de Ceuta, a mais nojtavel 
das nossas expedições, lugubremente notável, foi a 
de Tanger, commandada pelo Infante D. Henrique. 
Resolvera-se que fosse composta de 14:000 ho- 
mens, mas tão antipathica se tornara ao paiz e tão 
mal agourada foi, que saiu do Tejo aos 22 d agosto 
de 1437, levando menos de metade do efifectivo 
planeado ! 

Quando desembarcou em Ceuta, base das ope- 
rações sobre Tanger, contava somente 2:000 caval- 
leiros, mil besteiros e três mil homens de peona- 
gem. Seis mil homens apenas! 

Tanger tinha uma guarnição de 7:000 soldados. 
Era seu govornador aquelle mesmo Salat-Ben-Sa- 
lat, que fora vencido em Ceuta. 



23 



A cidade resistiu. Em breve os portuguezes pas 
asaram de sitiadores a sitiados. Eram poucos para 
aquelle commettimento e faltava-lhes o commando 
lúcido e experiente. De todas as tribus do interior 
-affluiram á lucta multidões enormes de guerreiros; 
a onda impetuosa dos berberes chegou também. 
Apertados entre as muralhas da praça e a multidão 
formidável que se reunira para soccorrel-a, os por- 
tuguezes tinham de combater na razão de i para 
5o. O desastre era inevitável. Não faltou a cora- 
gem; faltou o numero, faltou o commando. A sede 
e a fome completaram o trágico successo. Os sol- 
dados chegaram a escavar a terra com as lanças 
Eara. lhe sugarem, soffregamente, a humidade que 
ies mitigasse a seccura atormentadora! 

A retirada, que era a única salvação possível, 
impôz aos nossos um pacto doloroso; a entrega de 
reténs para a restituição de Ceuta aos marroquinos. 
Como principal penhor ficou o Infante D. Fernando, 
o Infante Santo, como o povo lhe chamou. Mas 
Ceuta não se entregou nunca e o Infante morreu 
entre grilhões, como escravo, numa enxovia de 
Fez. 

A primeira campanha d^frica, fácil campanha 
de um dia, custara-nos apenas algumas vidas e fora 
uni triumpho espantoso. A segunda, com 6:000 ho- 
mens, durara 43 dias, desde a marcha de Ceuta até 
$0 reembarque da expedição, mas custava-nos quasi 
$00 mortos (incluindo os feridos que morreram de- 

gois dos combates) e era um doloroso desastre, 
.aras campanhas modernas na Africa terão dado 
est«a horrível percentagem de mortalidade. Lem- 
bram-nos somente a dos hespanhoes em Marrocos, 
a dos inglezes na Zululandia, por causa do desastre 
de Isandhluana, onde toda a infanteria foi morta e 
de i:3oo homens só lograram escapar-se 40; a dos 
italianos na Abyssinia, em consequência das derro- 
tas de Saati, Dogali e Amba-Alaghi e, por effeito 
dás febres, a dos francezes em Madagáscar. 

Aftonso v, o africano, deu largo impulso á con- 

2 



24 



quista marroquina. No seu tempo, e sob o seu com- 
inando, foi a Ceuta uma expedição de 3.ooo lanças; 
fez-se a conquista de Alcacer-Ceguer (1468) com 
280 navios e 22.000 homens e a de Arzilla e Tan- 

fer (1471) com 338 navios e 23 .000 combatentes. 
Istas expedições custaram rios de dinheiro, cerca 
de 400:000 dobras, quantia importante em uma 
época em que a receita total do estado era simples- 
mente de 43:074^000 réis 4 . 

Para além de Marrocos, a primeira expedição 
de tropas portuguezas, foi a de Diogo ^Azambuja* 
que partiu de Lisboa em dezembro de 1481, para 
construir e guarnecer o castello, que se denominou- 
de S. Jorge da Mina. Compunha-se de Soo homens- 
d'armas e 100 operários. Foi transportada em 10 
caravelas e 2 urcas. 

Seria longo e inútil registrar aqui as pequenas 
expedições de reforço, enviadas para Marrocos e 
para vários pontos da Africa Occidental. 

No reinado de D. Manuel, e a despeito das pri- 
meiras expedições ao Oriente, a conquista marro- 
quina foi engrandecida com o domínio de Azamor^ 
Tite e Almedina. 

Para a tomada de Azamor (i5i3) partiram de 
Portugal 18.000 homens, com 2.5oo cavallos, numa 
esquadra de 400 navios. As forças eram comman- 
dados pelo Duque de Bragança D. Jayme e por D. 
João de Menezes, um dos heroes de Arzilla, que 
era, como diríamos hoje, o chefe do estado maior* 
da expedição. 

Mas o período das conquistas de Marrocos es- 
tava concluído. Tinha começado o das tentadoras 
conquistas do Oriente. 

A lucta no velho Maghreb continua ainda por 
mais de duzentos annos, porfiada, terrível, heróica, 



1 Vem designada em um documento do reinado de D. 
Affonso v, que foi encontrado no archivo da Torre do 
Tombo pelo brilhante historiador Rebello da Silva. 



25 



mas quasi reduzida a uma gloriosa defensiva. Ses- 
senta e cinco annos depois da expugnação de Aza- 
mor viria a catastrophe enorme de Alcacer-Kibir, 
que foi a ultima e desvairada tentativa de conquista 
no território marroquino. 

As expedições militares ao Oriente foram sem- 
pre muito inferiores em numero' ás que deixámos 
indicadas, e que realmente maravilham como esforço 
de uma nação pequena e numa época em que na 
Europa se consideravam grandes os exércitos de 
trinta a quarenta mil homens. 

Muito tempo depois, e com instituições militares 
mais perfeitas, Carlos vm de França invadia a 
Itália á frente de trinta mil homens (1444). Carlos v 
levou á expedição de Tunis trinta mil homens de 
desembarque, recrutados na Itália, na Allemanha e 
naHespanha, em todos os domínios do seu immenso 
império. Portugal também concorreu a esta em- 
presa com o auxilio de 2.5oo expedicionários e uma 
esquadra de 23 navios, entre os quaes ia o maior 
d'aquelles tempos, o galeão S. João, denominado 
depois o Bota-fogo (i535). 

Na expedição de Filippe 11 contra a Inglaterra 
(i588) iam a bordo da invencível Armada 40.000 
homens, que representavam as forças disponíveis 
da Hespanha, de Portugal, da Itália, de uma parte 
da Allemanha e da Flandres. 



As expedições portuguezas para a Ásia não ex- 
cediam dois a três mil homens e calcula-se que se- 
ria de 3.000 a média dos portuguezes embarcados 
annualmente para a índia, durante o período de 
maior actividade das conquistas. 

Explica-se. Para Marrocos a viagem e o trans- 
porte das tropas eram relativamente fáceis. Para -o 
Oriente, a quatro ou a cinco mil léguas da foz do 



26 



Tejo, em viagens tormentosas de longos mezes, 
nem os soldados poderiam ir nas condições deplo- 
ráveis em que eram transportados ao Estreito, nem 
os recursos do paiz chegariam para a despeza 
enorme a fazer com as grandes expedições. 

Iam todos os annos em pequenos troços, de 
aventureiros, de homens de soldos ou de contracto, 
como os bombardeiros, que em grande numero vi- 
nham da Allemanha e da Itália. 

Na armada do vice-rei D. Garcia de Noronha 
partiram de Lisboa 2.000 homens, entre os quaes 
muitos ainda imberbes. A armada de D. Constan- 
tino de Bragança também levou de Portugal ape- 
nas 2.000 homens, gente collecticia, contractada por 
baixo preço. 

No Oriente tivemos sempre uma força naval 
muito superior ás forças terrestres. A nossa mari- 
nha militar e mercante, e por largo tempo foi pro- 
miscuamente uma e outra cousa, chegou a ter mais 
de 400 navios de alto bordo e cerca de 2:000 navios 
pequenos ! 

Desde a primeira expedição do Gama (1497) at ^ 
161 2 partiram de Lisboa para a índia 806 naus; as 
primeiras de 1 20 a 200 toneladas, com 40 a 5o ma- 
rinheiros e soldados, as do primeiro quartel do se- 
cuio xvi, de 5oo a 600 toneladas, com 100 a 120 
marinheiros e 200 a 25o soldados e desde os mea* 
dos d^quelle século, algumas de 800 e mais de 
1.000 toneladas com numerosa guarnição. 

Quando Duarte Pacheco emprehendeu a sua 
prodigiosa campanha defensiva em Cochim, contra o 
exercito de 5o. 000 homens do rajah de Calicut, 
tinha apenas i5o portuguezes e alguns auxiliares, 
que de pouco serviam, porque aos primeiros rebates 
da lucta fugiam como creanças. E então (1304) era 
Cochim a única praça da índia onde os portuguezes 
tinham fundado fortaleza. 

Albuquerque nunca teve sob o seu commando 
directo mais de 2.000 portuguezes e umas pequenas 
forcas de auxiliares. Foi como tão diminuto effectivo 



2 7 

de tropas que elle conquistou Goa, defendida por 
9.000 turcos. Malaca, cidade florescente e pederosa, 
guarnecida por mais de 12.000 homens com nume- 
rosa artilheria, foi tomada pelo espantoso conquis- 
tador á frente de 800 portuguezes e 400 malaba- 
res! 

Diu, uma das nossas mais importantes praças 
da índia, o objectivo constante dos turcos e da gentç 
de Cambaya, tinha uma guarnição de pouco mais 
de seiscentos homens, por occasião do segundo 
cerco. O exercito sitiante, que a principio constava 
de 8.000 homens, entre os quaes mil janizaros, foi 
successivamente reforçado até chegar a um effectivo, 
que se calcula entre trinta e quarenta mil guerrei- 
ros ! 

Pois para acudir a uma praça onde já não havia 
épicas loucuras que valessem para a salvar, porque 
a guarnição estava reduzidíssima e as muralhas eram 

Juasi um montão de ruinas; para lhe acudir, D. 
oão de Castro, o viso-rei da índia, não poude reu- 
nir mais de três mil homens que, juntos á guarni- 
ção sitiada, davam o mesquinho effectivo de 3.400 
guerreiros, e desses apenas 2. 3oo eram portugue- 
zes ! E foi com este punhado d'homens que o vice- 
rei deu batalha campal ao exercito de Rume-Khan. 
Um contra dez, e venceu ! 

Já no primeiro cerco d'esta praça (i538) a guar- 
nição portugueza, phalange de heroes que escreveu 
uma das maiores epopeas do nosso esforço, não 
excedia 700 soldados ! Pois as forças sitiantes, sob 
o commando de Khodja-Safar e Soleyman-Pachá, 
compunha-se de 16.000 janizaros e guzarates, pro- 
vidos de poderosa artilheria, que viera -a bordo da 
esquadra turca de bloqueio, composta de 76 na- 
vios. 

E, todavia, esta lucta desegualissima, que prin- 
cipiara em 26 de junho, só terminou, depois de fe- 
rocíssimos combates, no i.° de novembro, dia em 
que as tropas sitiantes reembarcaram, receiosas dos 
reforços que deviam chegar de Goa e convencidas 



28 



de que seria impossível tomar a fortaleza á viva 
força! Mal sabiam elles que, por detraz das mura- 
lhas despedaçadas, estavam apenas 40 homens vá- 
lidos ! Eram os que tinham ficado illesos do ultimo 
assalto ! 

O soccorro veiu, mas, muito retardado pelos 
temporaes, só chegou em janeiro de i53c), quando 
já não havia inimigos a combater. 

E era, por signal, a mais numerosa das expedi- 
ções sahidas de Goa. Constava de i5o navios de 
diversas lotações, com i.5oo marinheiros e 5.ooo 
homens de desembarque, portuguezes e auxiliares. 

Ormuz, por exemplo, cidade riquíssima, a chave 
e o empório do Golfo Pérsico, cubicada pelo Pachá 
do Egypto e pelo Sultão de Constantinopla chegou 
a ter uma das maiores guarnições do nosso impé- 
rio oriental, quando as conquistas dos turcos se 
alongaram até Aden e Bassorá e chegava ao seu 
máximo esplendor a gloria de Solimão, o grande, 
o magnifico, o vencedor dos húngaros em Mohacz, 
o conquistador de Belgrado e de Rhodes, o invasor 
da Pérsia, o sitiador de Vienna d'Austria, o terror 
da Europa. 

Pois essa forte guarnição, em posto de tal pe- 
. rigo e importância, era apenas de 500 homens! 

E foram sufficientes para repelhr a esquadra de 
25 galés grandes, commandada por Epir-bey, que, 
pelo insuccesso do commettimento, foi mandado 
degollar em Constantinopla. 

Em i554 a guarnição foi reforçada com 5oo sol- 
dados e a esquadra do Mar Vermelho era com- 
posta de 42 navios, que traziam a bordo 1.200 sol- 
dados. 

Mas esta concentração de forças ao occidente 
da Ásia tornara impossível o reforço das guarnições 
do Extremo-Oriente. Malaca, a magnificente, tinha 
na sua cidadella apenas 400 soldados portuguezes, 
e com elles teve de se defender dos exércitos e das 
esquadras colligadas dos sultões de Java, de Su- 
matra e do nosso irreconciliável inimigo de Bintam. 



2 9 

Malaca soffreu um terrível assedio, mas os portu- 
-guezes estavam já acostumados a vencer os turcos 
na desegualdade de i para 10, em campo aberto, 
tinham para a defeza das praças a sua grande es- 
cola de Marrocos, nas heroicidades de i contra 6o 
ou 70, e souberam vencer no Extremo-Oriente, 
*como tinham vencido em Diu e Ormuz. 

Não tínhamos porque sentir ciúme d'aquelles 
5.600 heroes de Rhodes, que em i522 haviam de- 
fendido a ilha, durante 6 mezes, contra os 200:000 
turcos de Solimão, o Magnifico. Defeza brilhante e 
•desditosamente improfícua! 

Mas temos ainda outraspr ovas dos pequenos 
^efifectivos das expedições ao Oriente. 

Quando na índia se formou a formidável colli- 

facão contra o nosso império (i568), colligação de 
lidal-Khan 11 contra Goa, Onor e Bracelor; de 
Melek, rajah do Nizam, contra Chaul, Baçaim e Da- 
mão e do Samoudri-rajah de Calicut contra Chalé, 
Cananor, Cochim e Mangalor; o governador da ín- 
dia, D. Luiz d^Athaide, podia apenas mandar para 
Chaul um soccorro de 600 soldados e reunia em 
Goa 63o antigos soldados, 5o cavalleiros e i.5oo 
milicianos e escravos. Tão diminuta força, obri- 
gou-o a confiar ao cabido, ao clero e aos frades 
dominicos e franciscanos a defeza interior da cidade 
de Goa, a capital do império! 

Pois a colligação moveu os seguintes formidá- 
veis exércitos: Contra Chaul o exercito de Nizam, 
composto de 120.000 homens, sendo 34.000 de ca- 
vallaria, 12.000 bombardeiros e frecheiros e 18.000 
gastadores, com 36o elephantes e 40 canhões, diri- 
gidos por alguns officiaes turcos e venezianos. Con- 
tra Goa, o exercito de Hidal-Khan, com um effe- 
ctivo de 73.000 homens de infanteria, 3 5. 000 de 
cavallaria, 2.000 elephantes e numerosa artilheria. 
Contra Chalé, o exercito de Samoudri-rajah, com- 
posto de 100.000 homens com 40 canhões. Eram 
33o.ooo homens de todo o Malabar! 

E para oppôr a esta alliança de desespero con 



3o 



tra o domínio portuguez, não havia na guarnição 
total das três praças investidas mais de 1.400 por- 
tuguezes e cerca de 2.000 auxiliares! 

Mas afinal o rajah de Nizam foi repellido e pe- 
diu a paz, e o Hidal-Khan levantou o cerco de Gòa r 
que durara sete mezes, e seguiu o exemplo do seu 
alliado. Só Chalé capitulou. Governava-a então ur» 
pobre octogenário, dominado pelos sustos de uma 
esposa ainda moça, e havia na fortalezauma guar- 
nição, que no principio do cerco era apenas de ses- 
senta homens e que só quatro mezes depois rece- 
bia um insignificante reforço. 

Quando chegou o grande soccorro de Cochim 
— i.5oo homens — já a fortaleza havia capitulado- 

Veio depois a suprema decadência nas suas tris- 
tes e multíplices manifestações de cubica, de cor- 
rupção, de indisciplina, de desalento e até de infor- 
túnio. Não era uma súbita enfermidade; vinham de 
longe os seus mórbidos symptomas, mas era açora 
que chegava ao seu período agudo e fatal. Ainda 
se emprehenderam valiosas conquistas, ainda lam- 
pejam no Oriente os relâmpagos assombrosos do 
heroísmo portuguez; mas o império estava ferido 
de morte. 

Na Ásia, como na Africa e na Europa, raras ve- 
zes nos trahiu a victoria, sempre que a desegual- 
dade do numero não excedeu os limites do humano 
esforço e o commando e a disciplina foram os in- 
dispensáveis auxiliares da intrepidez do animo. E, 
a lição de toda a nossa historia militar. 

Mas no Oriente faltava já quasi tudo. O com- 
mando supremo, lúcido e enérgico, a disciplina, a 
unidade e a abnegação dos esforços, o numero e a 
fortuna. Quasi se pôde dizer que as vergonhas fi- 
cam ainda na sombra das glorificações; mas os he- 
roes tinham de ser os coveiros épicos do impé- 
rio. 

Os hollandezes e os inglezes appareceram na 
Ásia; conluiaram-se com os persas, os árabes, os 
malabares, os simghalas e os malaios, e Portugal,, 



3i 



mortalmente ferido na Africa^ havia ficado sob o 
domínio de Filippe n de Hespanha. 

As esguadras e as expedições, já muito rarea- 
das no reinado do Cardeal D. Henrique (i 578-1 58o) 
não acudiam opportunamente em soccorro dos lon- 
gínquos domínios. 

Em 16 19 Ruy Freire ' d' Andrade partia de Lis^ 
boa para o Oriente, com o fragilissimo soccorro de 
dois galeões, três urcas e seiscentos e tantos solda- 
dos. O commandante é que valia mais que toda a 
expedição. Era encargo seu construir e guarnecer 
uma fortaleza na ilha de Kischmisch (Queixome), 
possessão essencial á defeza de Ormuz contra os 
persas. 

Ruy Freire d'Andrade fundou a fortaleza e to- 
lheu a navegação dos inglezes no Mar Vermelho e 
no Golfo Pérsico. Era inevitável a guerra. 

Shah Abbas alliou-se com os inglezes e os ara 
bes. A nossa esquadra queimou e metteu a pique 
mais de quatrocentos navios inimigos, mas o Khan 
-de Schiraz cercou a fortaleza de Queixome com 
25.000 homens. Os nossos são menos ainda do que 
eram em Diu. Entre os sitiantes ha excellentes offi- 
ciaes e soldados inglezes. Um engenheiro inglez 
dirige as operações do cerco. As muralhas da for- 
taleza estão em' ruínas. De Goa nãd chegam soc- 
corros! De parte nenhuma! Os inglezes propõem 
a capitulação com todos as honras da guerra. O 
cerco durava ha nove mezes. Ruy Freire d' Andrade 
ainda tem a trágica idéa de se sepultar nas ruínas 
da fortaleza. Não lho consentem os seus. A guar- 
nição sae da fortaleza, ao som dos tambores, ban- 
deira ao vento; era um punhado de spartanos (1623). 
Só Ruy Freire d'Andrade ficou prisioneiro. È ás 
vezes no ceu escuro do inverno que as estrellas 
brilham com maior fulgor. A defeza de Queixome, 
na derrocada do império, valia ainda mais que as 
loucuras heróicas de Diu e de Chaul. 

Malaca é outra epopêa no abandono dos seus 
míseros recursos. Em 1606 o almirante hollandez 



32 



Cornelio Matatlief apparece de súbito nas aguas da 
cidade com uma esquadra de n navios e i.5oo ho- 
mens de desembarque. Na cidadella ha apenas uma 
guarnição de 145 portuguezes! Os hollandezes des- 
embarcam, assestam a sua poderosa artilheria de 
sitio e são reforçados pelo exercito dos sultões de 
Jahor e de Singapara. Pois a guarnição resistiu três 
mezes e os hollandezes retiraram, quando correu 
que a cidade ia ser soccorrida pelo vice-rei da índia. 

Em 1640 Malaca é novamente atacada pelos 
hollandezes, que teem 18 navios, 1.700 homens de 
desembarque e são auxiliados por uma esquadra 
■do sultão de Pahang e por 5. 000 malaios. A guar- 
nição da cidadella estava reduzida a 60 soldados 
ao cabo de seis mezes de bloqueio! No baluarte de 
S. Domingos havia apenas 8 soldados famintos ! 
Malaca reudeu-se em janeiro de 1641. A lucta co- 
meçara de 1 contra 20 e acabara de 1 contra 100! 

Vejam como a façanha de Rhodes se vae apou- 
cando no confronto d estes desesperos ? 

Columbo (Ceylão) foi a ultima d essas espanto- 
sas epopêas. Sitiaram-na os hollandezes de Gerardo 
d'Huld e João Wlaas, auxiliados pelo exercito do 
rajah de Kandy. O primeiro assalto, em 12 de no- 
vembro de i655, foi bem uma carnificina. Os hol- 
landezes foram repellidos com perdas enormes. Ao 
"fim de cinco mezes de assedio, a guarnição era di- 
minutíssima e tinha fome ! Já era allivio morrer na 
•lucta. E nem um homem sequer de soccorro! Po- 
zeram-se fora as boccas inúteis, mas os braços vá- 
lidos eram já tão poucos para a defeza, que nem 
chegavam para abrir a valia dos que morriam de 
fome, de peste, ou varados pelas bailas. As mura- 
lhas estavam em escombros e ninguém pensava em 
render-se ! O mais intrépido, o mais inabalável, era 
o governador António de Souza Coutinho, um se- 
ptuagenário ! 

Foi uma nevrose de heroicidade. Dez homens 
tomaram uma bateria hollandeza; três homens guar- 
neciam. o baluarte de S. João, e desses, dois eram 



33 



a bem dizer umas creanças ! No assalto de 7 de 
maio (i656) combateram os padres, os feridos, as 
mulheres, luetou-se nas ruas, nas barricadas, foi 
um desespero prodigioso ! Saragoça tem este al- 
tivo precedente. 

mo chegavam soccorros. Era inevitável ceder. 
A bandeira arreada ali podia cobrir, como santa 
mortalha, os mais arrogantes paladinos da historia 
portugueza. A rendição foi resolvida em conselho 
de guerra por 21 votos contra i3. 

A guarnição sahiu da praça com todas as hon- 
ras da guerra, em 12 de maio de i656. Eram 94 
ofticiaes e soldados e 100 moradores! 

Esta foi a ultima convulsão sublime da derro- 
cada. 

Ainda houve alguns esforços brilhantes, luetas 
honrosas, mas o grande período acabara. 

Depois d'aquella época sahiram de Lisboa al- 
gumas expedições para o Oriente, mas quasi todas 
-de pequena importância numérica. 

Uma das maiores foi a do marquez de Louri- 
«cal, nomeado vice-rei da índia (1732). Compunha-se 
<le seis naus de guerra e levava 4 batalhões de in- 
fanteria, com o effectivo total de 2.000 homens, e 16 
canhões, dos que recentemente tinham sido inven- 
tados por Jacob de Weniholtz, que se achava ao 
serviço de Portugal. Não ha senão noticias incom- 
pletas acerca doestas peças, que talvez fossem de- 
pois inutilisadas como reles sucata. Affirma-se que 
podiam dar 20 tiros por minuto. Ainda que dessem 
só 8 ou 10, seriam estas as predecessoras de toda 
a moderna artilheria de tiro rápido. 

Esta expedição ia soccorrer Goa, gravemente 
ameaçada pelo maharadjá dos mahrattas, famoso 
guerreiro que ousara invadir os estados do Grão- 
Juogol e se tornara o terror do Malabar. 



34 



Então já havia melhores elementos orgânicos 

{>ara uma expedição militar. O exercito permanente 
ora creado durante a guerra dos 28 annos contra 
a Hespanha (1640-1668). Anteriormente houvera 
como ensaio de tropas permanentes apenas uns nú- 
cleos no reinado de D. João 111 e o terço da ar- 
mada, creado no tempo dos Filippes. 

O exercito permanente no tempo da expedição 
do marquez de Louriçal teria um effectivo de 1 3 :00o 
homens. Havia mais dois regimentos de tropas de 
embarque com 1.800 homens e 35.ooo milicianos, 
E tempo de deixar essa Ásia, por onde durante 
160 annos passaram talvez trezentos mil marinhei- 
ros e soldados d'aquelle Portuga,l que não chegava 
a ter dois milhões d^lmas ! 



* 

O Brazil nunca foi uma possessão de domínio 
essencialmente militar. Era caracteristicamente uma 
colónia de exploração agrícola e mineira, arroteada 
pelo escravo negro, importado da Africa. Dava as- 
sucar, produzia especiarias como a índia e as Mo- 
lucas, teria ouro como o México, diamantes como 
Narsinga e por isso lá foram os nossos aventurei- 
ros, mais ciosos de riquezas que de victorias. 

Começou a ser explorado no reinado de D. João ih 
por i53o a i53i, em que se realisaram as primei- 
ras explorações de Martim Affonso de Sousa. 

Dividido em capitanias de regimen accentuada- 
mente feudal, confiado á exploração dos donatários 
d'essas capitanias, que tinham poderes soberanos^ 
como os modernos concessionários de algumas ter- 
ras africanas; o Brazil foi durante um largo período 
uma colónia de fazendeiros e exploradores e a sua 
defeza esteve confiada quasi exclusivamente aos 
próprios exploradores. 

Não carecia de grandes expedições militares. 



35 



Os indígenas desconheciam as armas de fogo e para 
os dominar bastavam os próprios aventureiros, na 
defensão dos seus interesses. 

Mas soube-se na Europa que era um paiz fe- 
cundo esse Brazii immenso e, comquanto não esti- 
vessem ainda descobertas as suas riquezas aurífe- 
ras e os seus diamantes entre o cascalno dos rios (o 
Jaraguá e o Jequitinhonha foram os rios do ouro e 
dos diamantes no século xvin), logo a febre das 
riquezas levou áquella vastíssima possessão portu- 
gueza os piratas e aventureiros da França e da In- 
glaterra. 

Começava então a necessidade de organisar a 
defeza do littoral, de constituir e concentrar alguns 
elementos essenciaes para a lucta armada. 

Quando, porém, a guerra de pirateria ou de oc- 
cupação tomou um caracter mais grave e perigoso, 
foi quando a Companhia das índias Occidentaes, 
estimulada pelos primeiros lucros e pelo êxito es- 
pantoso alcançado pelos hollandezes no Oriente, se 
decidiu a emprehender uma obstinada guerra de 
invasão no território brazileiro. 

Era em princípios do século xvii, e pelo que já 
sabemos que succedera na índia, a respeito dos 
soccorros da metrópole, dominada então pela Hes- 
panha, é fácil avaliar qual seria a grandeza e op- 
portunidade das expedições militares enviadas ao 
Brazii. 

Depois de se. ter perdido a Bahia, que em breve 
se reconquistou, estando Pernambuco a pique de 
perder-se, e coincidindo os nossos desastres com 
os da esquadra hespanhola de Benevides e com o 
saque de Havana, resolveu-se o governo de Madrid 
a enviar uma expedição ao Brazii, ameaçado por 
uma nova esquadra hollandeza com avultadas for- 
ças de desembarque. Causa lastima a miséria do 
soccorro, que só valia pela importância do novo 
governador nomeado para a capitania de Pernam- 
duco. Era esse governador Matnias d'Albuquerque, 
o futuro vencedor da batalha do Montijo contra os 



36 



hespanhoes. O reforço enviado cifrava-se apenas 
em três caravelas! 

Em fevereiro de i63o apparecia nas aguas do 
Brazil uma esquadra hollandeza de 65 navios, com 
3.780 marinheiros e 5.5oo soldados de desembar- 
que. 

Mathias d'Albuquerque, no seu campo entrin- 
cheirado das margens do Rio Doce (Olinda) tinha 
65o portuguezes e indios, para oppôr aos 2.200 
soldados e 700 marinheiros do coronel Waerden- 
burch. Já não foi pequena façanha combater em 
tão desiguaes condições e retroceder em boa ordem. 
Ainda tentou a defeza de Olinda, mas foi vencido 
e teve de retirar para o Recife com vinte soldados! 

O forte de S. João, guarnecido primeiro por 7 
homens, reforçado mais tarde por i5, só se rendeu 
depois de quinze dias de bombardeamento. Era 
commandado por António de Lima. 

Parece um trecho das grandes façanhas da Africa 
e do Oriente! 

A maior força que Mathias d'Albuquerque poude 
depois reunir para a campanha defensiva de Per- 
nambuco foi de 1.000 portuguezes e 3. 000 indios! 

Depois de porfiadas instancias e queixumes, re-^ 
solveu o ministro hespanhol Conde Duque de OU^ 
vares enviar uma expedição a Pernambuco. Era 
composta de 19 navios de guerra e de i3 de trans- 
porte, e saiu do Tejo sob o commando superior do 
almirante D. António de Oquendo. 

Foi-lhe, porém, ao encontro nas aguas do Bra- 
zil uma esquadra hollandeza de 16 naus, comman- 
dada pelo almirante Pater, o heróico marinheiro que 
depois se atirava ao mar, envolto no glorioso pavi- 
lhão do seu paiz. A batalha, que foi terrível, cíurou 
sete horas e ficou indecisa. Ambas as esquadras es- 
tavam incapazes de proseguir as operações. A de 
Oquendo teve de ir abrigar-se nos portos da Ame- 
rica hespanhola, depois 3e haver desembarcado no 
Brazil um corpo de mil homens, commandado pelo 
italiano Conde de Bagunolo, para ir auxiliar Mathias 



3? 

de Albuquerque, e um outro corpo de 800 homens 
para reforço da guarnição da Bahia. Esta não era, 
porém, uma expedição exclusivamente portugueza. 

Mas os hollandezes augmentavam também as 
suas forças em Pernambuco, a ponto de poderem 
dispor aíi de 4.1 36 soldados, auxiliados por uma 
esquadra de 42 navios, com i.5oo marinheiros. 

A guerra Droseguia encarniçadamente e com va- 
ria fortuna. Os hollandezes recebiam constantes e 
valiosos reforços. Batel-os e expulsal-os a elles não 
seria empreza que podesse comparar-se á que, coA 
tão bom êxito, havíamos intentado contra os france- 
zes do cavalleiro de Villegagnon, no Rio de Janeira 
e de Ravaudiére, no Maranhão. 

Os portuguezes tinham por si uma parte dos 
índios e os seus compatriotas nascidos no Brazil y 
auxiliares que eram valiosos, mas que não podiam 
equilibrar as forças de Portugal com as da Hol- 
landa. Entre os heroes d'aquellas renhidas campa- 
nhas avultam as épicas figuras do indio Potygua- 
rassú, do preto Henrique Dias e de André Vidal 
de Negreiros. 

Ohvares decidira, emfim, enviar uma grande ex* 
pedição á America portugueza e, para mais facil- 
mente completar o enectivo das tropas, vendia com- 
mendas das ordens militares portuguezas, a quem 
lhe apresentava um certo numero de homens arvo- 
rados em soldados! Em i638 estava organisada a 
expedição. Compunha-se de 8 galeões portuguezes 
e 1 1 hespanhoes, e de 6.000 marinheiros e solda- 
dos. Era a maior, mas foi também a mais inútil. 

Depois de reforçada na Bahia, a esquadra fez-se 
ao mar com 86 navios, 6.000 marinheiros e 6:00a 
soldados, portuguezes e hespanhoes. 

A esquadra do almirante hollandez Loos, substi- 
tuído depois pelo vice-almirante Huygens, destro- 
çou todo aquelle poder numa terrível batalha de 
seis dias. O temporal e a fome completaram o des- 
barato daquella miniatura da Invencível Armada. 

Entretanto, o governo hespanhol arrancava de 



38 



Portugal numerosas tropas para irem guarnecer a 
Catalunha e reforçar as guarnições hespanholas na 
Itália! 

Em 1640 é enviada para o Brazil uma expedi- 
ção de 8 naus, com 2.5oo homens. Commandava-a- 
D. Jorge de Mascarenhas, marquez de Montalvão, 
que fora nomeado governador do Brazil. 

Dois annos depois a guerra principia a tomar 
para nós um aspecto diverso. A gloria illumina de 
novo a nossa bandeira e mais dois heroes — Moniz 
Barreto e Fernandes Vieira — surgem resplanden- 
tes na epopêa brazileira. 

Começa a expulsão dos hollandezes. Em 1645 
vencem os portuçuezes a batalha das Tabocas, em 
1648 a primeira batalha dos Gararapes e nos prin- 
cípios de 1649 a segunda batalha d'este nome. Apa- 
gam-se para a Hollanda os dias gloriosos da invasão 
e a tradição altiva de Maurício de Nassau, o mais 
insigne dos chefes hollandezes, esmorece nas vibra- 
ções dos grandes nomes laureados de Fernandes 
Vieira e Moniz Barreto. 

Reconquistam-se as capitanias occupadas por 
aquelles intrépidos e tenacíssimos adversários e re- 
tomam-se as fortalezas onde tremulava arrogante a 
Ínclita bandeira neerlandeza, que fora nos mares o 
assombro e o terror da Hespanha e da Inglaterra. 

N'esta enorme guerra de dezeseis annos, em 
que a Hollanda empenhou metade das suas esqua- 
dras e um exercito sempre superior ao nosso, coube 
aos portuguezes do Brazil um alto quinhão de glo- 
rias, que é bem um prologo épico na historia da 
sua illustre nacionalidade. 

»■ Não trataremos dos conflictos com a Hespanha 
na America no século xvm, por causa da colónia do 
Sacramento, nem mesmo cia invasão da Guyanna 
franceza nos primeiros annos do nosso século. Fouco 
importam ao objectivo d^ste capitulo, pois não re- 
presentam a sahida de alguma importante expedi- 
ção da metrópole. 

Deixaremos a America, depois de termos dado 



3 9 



noticia da mais numerosa expedição 'militar que, 
depois de Alcacer-Kibir e sem o concurso de ou- 
tra potencia, temos enviado ás terras ultramarinas. 

As possessões hespanholas do Rio da Prata ti- 
nham seguido também o grande movimento de 
emancipação das outras colónias, que constituíam o 
immenso império da Hespanha na America. Os 
desvarios da revolução, excitados por ambições fac- 
ciosas, abriam campo vastíssimo aos triumphos da 
anarchia, nas suas trágicas e ignóbeis manifestações 
de ódio e de rapina, de facciosismo e de destruição. 
A onda assoladora alastrára-se pela banda oriental 
do Rio da Prata até á fronteira do Brazil. As fac- 
ções de Montevideu faziam propaganda revolucio- 
naria na colónia portugueza e os desalmados explo- 
radores da anarchia invadiam o território brazileiro, 
como em ra\\ia de beduínos ou incursão de piratas. 

O exercito do Brazil emprehendeu contra os re- 
volucionários uma campanha de desforço e occupou 
a cidade de Montevideu, que em breve, porém, teve 
de abandonar, em consequência de complicações 
com a Inglaterra. Fez-se um armistício, que foi, 
afinal, completamente inútil. As incursões continua- 
vam. Um guerrilheiro celebre, o gaúcho Artigas 
apossara-se de Montevideu e de toda a banda orien- 
tal do Rio da Prata, organisára forças militares con- 
sideráveis e constituíra com a famosa raça dos gaú- 
chos *, arrojados e indomáveis cavalleiros como os 
berberes, os antigos mamelukos e os cossacos, uma 
horda formidável de cavallaria para as grandes ra\- 
%ias. Artigas fizera-se um potentado. 

Para castigar a audácia do guerrilheiro, orde- 
nou D. João vi que em Portugal se organisasse 
uma divisão de voluntários, que iria reforçar a dimi- 



1 Nas suas memorias, José Garibaldi, o glorioso caudilho 
italiano, considera os gaúchos como os mais dextros, os mais 
arrojados e os mais intrépidos cavalleiros do mundo. 

Garibaldi conhecia-os bem pela experiência das suas cam- 
panhas de voluntário em Montevideu. 

3 



4o 

« 

nuta guarnição da colónia brazileira. Devia ser consti- 
tuída por voluntários do exercito de i. a linha, ex- 
cellente exercito que tinha ainda os quadros enor- 
mes que haviam contido effectivos entre 42 e 56.ooo 
homens, desde 1808 a 18 14. 

Raríssimas expedições portuguezas teriam tido 
elementos orgânicos tão excepcionalmente superio- 
res ! Os officiaes e os sargentos e o grande núcleo 
dos soldados haviam de sair d esse exercito, que > 
durante sete annos, em i5 batalhas campaes, em 
211 combates, em 14 sitios, em 24 assaltos e blo- 
queios, do Bussaco a Toulouse e do Tejo ao Ga- 
ronne, contra os brilhantes soldados de Bonaparte^ 
haviam realçado as tradições famosas dos seus he- 
roicos antepassados do Montijo e das Linhas d'El- 
vas, do Ameixial e de Montes Claros, contra a mais 
arrogante e prestigiosa infanteria do século xvii — a 
infanteria hespanhola. 

E talvez que entre os officiaes da divisão expe- 
dicionária fosse alguém das heróicas relíquias d'essa 
intrépida Legião Portugueza, cuja bravura arrancara 
louvores d^ssombro a Oudinot em Baumersdorff, 
tomada por dois batalhões portuguezes, sob a me- 
tralha que fizera recuar uma divisão franceza, e me- 
recera a classificação de inexcedivel a Bonaparte, no 
Wagram, e fora apontada como exemplo por Mi- 
chel Ney, na lúgubre campanha da Rússia. 

O decreto de organisação das tropas expedicio- 
nárias foi publicado em i5 de maio de 181 5. 

A pequena divisão formava-se de duas brigadas 
com 4 batalhões de caçadores, de 6 esquadrões de 
cavallaria e dois parques de artilheria, sob o commando 
superior do tenente-general Carlos Frederico Lecor, 
que mais tarde foi agraciado com o titulo de Barão 
de Laguna. Era de 4.83 1 praças o èffectivo desta 
expedição. 

Entre os seus officiaes mais illustres ia o coro- 
nel João Carlos de Saldanha, que havia de ser, de- 
zesete annos depois, o vencedor de Bourmont e o 
brilhante Marechal cTAlmoster. 



4i 

A cavallaria e a artilheria embarcaram em se- 
tembro de i8i5; a infanteria em 20 de janeiro de 
1816. 

A frota de transporte da infanteria, que só poude 
sahir do Tejo em 1 5 de fevereiro, era composta de 
uma charrua de guerra e de dez navios mercantes 
de pequena tonelagem, dos quaes um era sueco, 
outro irancez e outro inglez. Comboiava-os a nau 
Vasco da Gama. 

«Poucas expedições militares se organisaram em 
Portugal tão promptamente como esta — escrevia 
em 1884 o sr. visconde de Villa Maior no Memorial 
biographico do general Claudino Pimentel. Eram 
apenas decorridos cinco mezes desde que se de- 
cretara a sua organisação, começa logo o embarque 
de parte das forças». 

A seu tempo veremos com que superior rapidez, 
e dispondo apenas de um pequeno exercito aesha- 
bituado das aventuras da guerra, se organisou a ul- 
tima expedição d 1 Africa. 

Agora uma nota impressionista, extrahida das 
memorias do general Claudino Pimentel, que, sendo 
major do regimento de infanteria n.° 5, fora promo- 
vido a tenente-coronel para o 3.° batalhão de caça- 
dores da divisão expedicionária : 

«Pelas 8 horas da manhã d'aquelle dia (20 de 
janeiro de 1816) pozeram-se em marcha as duas 
brigadas de caçadores para embarcarem no arsenal 
de marinha. Durante a marcha, desde Belém a 
Lisboa, notava-se extraordinária concorrência de 
gente de todas as classes, em cujos rostos se ma- 
nifestava profunda mágoa, por- verem partir de 
Portugal uma tão brilhante porção de tropa, que se 
lhe afigurava não regressaria á pátria. Tal é o des- 
costume em que estão os portuguezes de ver partir 
dos nossos portos expedições maritimas de maior 
vulto». 



42 

Nas suas memorias, Claudino Pimentel diz que 
as brigadas embarcaram na melhor ordem, e nada 
mais ! 

Pois, volvidos 78 annos, havia também grande 
concorrência de povo nas ruas de Lisboa e passa- 
vam para o arsenal de marinha uns soldados, qua- 
si todos muito moços, ainda galuchos, que nunca ti- 
nham visto um campo de batalha e que iam para a 
guerra nos sertões d' Africa. Não eram oficialmente 
voluntários, como os aguerridos voluntários reaes 
do príncipe, que partiram para Montevideu: par- 
tiam por escala das unidades a que pertenciam, 
pelo terem solicitado alguns d'elles, mas eram todos 
voluntários pelo coração. 

Havia também profunda mágoa na alma de 
quem os via, esvoaçavam em torno d'elles os mais 
fúnebres vaticínios, mas o povo acclamava-os. Em- 
barcaram também na melhor ordem, mas quando os 
olhos dos que não partiam se afogaram nas lagri- 
mas d'aquella despedida, talvez para sempre, os 
E obres galuchos, que nunca tinham visto um com- 
ate e que iam para as rudes campanhas do sertão, 
subiam ás enxárcias do navio que os levava e des- 
afogavam a alma em gritos vibrantes de saudação 
á pátria. 

Valentes rapazes! E com tanto maior ternura 

Í>atriotica a saudavam elles, quanto mais o coração 
hes dizia que precisava do seu esforço esta nação 
atormentada por tantos infortúnios, ha setenta an- 
nos na melancholica nostalgia das grandes victo- 
rias. 

A gloria coroou os que em 18 16 partiram para 
a America. Vencedores do mais famoso caudilho 
do Rio da Prata, entraram triumphalmente em Mon- 
tevideu. 

Também a gloria coroou carinhosamente os que 
partiram em 1894 e i8g5 para os sertões de Lou^ 
renço Marques e de Gaza. Vencedores do mais po- 
deroso regulo da Africa do sul, entraram trium- 
phalmente em Manjacaze. 



43 

Ha, todavia, uma differença enorme. Alguns 
louros mais pouco valeriam para a nação que tinha 
virentes ainda os que enlaçara sobre os tropheus 
da epopêa napoleonica. Mas para o Portugal do 
nosso tempo, esmorecido e calumniado, com o seu 
prestigio de quatrocentos annos a sumir-se nos ser- 
tões, a victona era o desforço, a rehabilitação, a re- 
viviscencia da alma nacional. 

Voltemos á Africa. E antes de falarmos nova- 
mente de Marrocos e do nosso ultimo exercito ex- 
pedicionário mandado áquelle império, daremos no- 
ticia de duas notáveis expedições enviadas á Africa 
Oriental, onde em outros tempos, não tivemos nunca 
a fortuna de alcançar grandes victorias, especial- 
mente em Moçambique. 

Por não serem importantes ou por não entrarem» 
no objectivo d'este capitulo, não temos indicado al- 
gumas expedições òrganisadas nas colónias. A que 
vamos registrar não foi organisada na metrópole,, 
mas merece bem que d'ella se faça uma excepção, 
senão pela importância do seu effectivo, realmente 
diminuto, decerto por ser a primeira expedição eu- 
ropea á Abyssinia. 

Em 1541, D. Estevão da Gama, governador da 
índia, foi com uma esquadra ao mar Vermelho,, 
para destruir os navios que o Pachá do Egypto es- 
tava armando em Suez. Os navios egypcios estavam, 
porém, bem defendidos e D. Estevão não poude. 
realisar o seu objectivo. Percorreu com a esquadra 
alguns portos da Abyssinia e em Massauah recebeu 
embaixadores do Negus, com quem os portuguezes . 
já tinham relações antigas, solicitando-lhe auxilio; 
contra o scheik de Zeilah, que lhe movera guerra. 

D. Estevão da Gama accedeu ao pedido e man-. 
dou desembarcar em Massauah um corpo de 400 
soldados, com 8 peças de artilheria e oito pequenas 



44 

boccas de fogo, muito portáteis, que nós empregá- 
vamos frequentemente nas guerras do ultramar e 
que denominávamos berços e meios berços. Podiam 
os soldados ou os bombardeiros leval-as nos braços, * 
como tinha succedido na tomada de Mombaça. Eram 
estas peças as remotas precursoras da moderna arti- 
lheria de montanha. 

O governador confiou o commando d'este pu- 
nhado de audaciosos a seu irmão D. Christovão da 
Gama. Um Djeda^ grande do Negus, encarregou- 
se do serviço de transportes e forneceu o numero 
necessário de camellos, bois e muares. 

A expedição penetrou nas aspérrimas serranias 
da Abyssinia em 1541, pelo caminho que 327 an- 
nos depois havia de seguir a expedição ingleza de 
Roberto Napier, com os seus 40.000 officiaes, sol- 
dados, creados e serventes, com os seus engenhei- 
ros, as suas ambulâncias, os seus comboios de vi- 
veres, com 40.000 bois, camellos, muares e burros 
do Egypto, com tudo, emfim, o que a sciencia, a 
arte e a riqueza podem conseguir no nosso século. 

Avançando com os seus pesados armamentos e 
sem as precauções que hoje se podem tomar nos 
paizes insalubres, sem os recursos da engenheria e 
da medicina moderna, ora requeimados pelo sol e 
torturados pela sede, ora alagados por enormes 
chuvas e arrancando a braços dos barrancos a ar- 
tilharia e o gado, já extenuado, ora combatendo en- 
tre penhascos abruptos e na garganta de profun- 
dos desfiladeiros, aquelle punhado de soldados por- 
tuguezes realisava uma odyssêa de tormentos e de 
trabalhos extenuadores! 

Concentrado para a defensiva, o exercito do Ne- 
gus não os poude auxiliar efficazmente e tiveram de 
combater sósinhos contra as tropas do scheik de 
Zeilah. Repelliram-nas intrepidamente aquelles bra- 
vos, mas o scheik obteve o auxilio de 1.000 solda- 
dos turcos do pachá de Zebid, e a desigualdade 
tornou-se então esmagadora. 

Travou-se uma lucta sangrenta e d'aquella pe- 



45 

<juena phalange perdida, aue já não tinha 400 ho- 
mens, escaparam apenas i3o! Mas estes bastaram, 
unidos depois ao exercito do Negus, para lhe sal- 
varem a pátria e o throno! Dil-o a tradição abyssi- 
nia, revelada três séculos depois por Guilherme Le- 
jean, cônsul da França n'aquelle paiz. 

Os que escaparam d'aquella extraordinária ex- 
pedição, estabeleceram-se na Abyssinia e deixaram 
ali uma tradição tão resistente como as suas pro- 

1>rias edificações, que desafiavam os séculos, simi- 
hantes ás edificações romanas, conforme a própria 
-expressão de Lejean. 

Os italianos sabem já, pela sua dolorosa expe- 
riência, quanto custa uma campanha n'aquelle paiz, 
€ os soldados de Roberto Napier levaram dois mé- 
zes e meio para chegar a Magdala, porque a me- 
dia das suas etapes não ia alem de 8 kilometros 
por dia! 



Com o intuito de exigir do imperador do Mono- 
motapa, grande potentado, visinho dos sertões de 
Moçambique, uma satisfação pela morte do missio- 
nário Gonçalo da Silveira, barbaramente mortifica- 
do no sertão, e ainda para descobrir as valiosas 
minas que se dizia haver na alta Zambezia, man- 
dou el-rei D. Sebastião organisar em Lisboa um 
corpo expedicionário de 1.000 homens, que devia 
ser levado á Africa em três navios de guerra. Era 
commandante da expedição Francisco Barreto, que 
havia sido já governador da índia. 

A esquadra partiu do Tejo em 16 de abril de 
i56p. 

Nunca para Moçambique se mandara dà metró- 
pole expedição com tal numero de soldados de 
desembarque. Foi a maior e tinha de ser a mais 
desastrosa. Depois de haver subjugado na ilha de 
Moçambique uns mouros revoltados, Barreto pene- 
trou no Zambeze a bordo de pequenas lanchas. 
Em dezembro de 1571 chegava á villa de Sena 



4<5 

com um corpo de 700 arcabuzeiros. Foi de pavor a 
primeira impressão dos cafres, mas a expedição 
soube attrahil-os, para que lhe revelassem as mi- 
nas, e durante .algum tempo viveram uns e outros 
em apparente amizade. Barreto mandou embaixa- 
dores ao Monomotapa, mas não alcançava seguras: 
noticias dos almejados jazigos de prata e de ouro. 

Afinal romperam-se as hostilidades. Os negros 
eram accusados de envenenar as aguas e as subsis- 
tências de que os portuguezes se aoasteciam. 

Apparecem 6.000 cafres; os arcabuzeiros facil- 
mente os dispersam. Barreto avança e estabelece 
acampamento em Chicova. Deixa ali 200 soldados 
e vae a Tete buscar soccorros. Os cafres assaltam 
então o acampamento de Chicova. Os 200 soldados 
resistem durante dias, mas começam a cair fulmi- 
nados pelas febres. e extenuados pela sede e pela 
fome. Antes a azagaia dos inimigos. Fazem uma 
sortida desesperada, penetram como doidos atravez. 
da multidão dos cafres, matam, matam, mas ape- 
nas alguns conseguem chegar a Tete. A noticia 
d'este desastre amargura por tal forma Francisco- 
Barreto, que lhe faz perder a vida, provavelmente 
já ferida de morte pela acção fatal das febres. 

A expedição estava completamente perdida. 

Esta foi bem a primeira campanha de europeus 
nos sertões da Afnca do Sul. Apesar das febres^ 
a lucta ainda foi possível e ainda foi victoriosa para 
os nossos, na desegualdade de 1 para 10, mas quando 
chegou á desproporção brutal de 1 para 3o, a ca- 
tastrophe era inevitável, porque, embora os cafres 
não usassem então armas de fogo, o arcabuz, pe- 
sado, de tiro moroso e incerto e de pequeno al- 
cance, não bastava para afastar os negros, evitando 
a lucta corpo a corpo, necessariamente funesta para 
os nossos, sobrepujados pelo numero c enfraque- 
cidos pelas febres. 



A expedição d'Alcacer tivera dezeseis annos an- 



47 

tes um prologo brilhante na defeza de Mazagão 
(i5Ô2), a praça de mais gloriosa tradição que nós 
tivemos na Africa. 

Quando a Lisboa chegou a noticia de que Maza- 
gão estava cercada por um enorme exercito (80.000 
nomens) do sultão Muley Abdallah, a alma por- 
tugueza despertou nas cóleras épicas dos seus gran- 
des dias e todos á porfia quizeram partir em defeza 
d'a<juelle padrão do nosso esforço. Fizeram-se do- 
nativos valiosíssimos e a affluencia de voluntários 
foi tal que o governo da rainha D. Catharina, re- 
gente na menoridade de D. Sebastião, teve de pro- 
hibir energicamente o embarque de mais gente para 
Mazagão. 

Os marroquinos, depois de um cerco de quasi 
dois mezes, assaltaram a praça furiosamente. Com- 
bateu-se encarniçadamente um dia inteiro, mas os 
defensores de Mazagão, em requintes de heroici- 
dade, que pareciam um reflexo das façanhas de 
Diu, repelliram os assaltantes e uma victoria mais 
aureolou a ínclita bandeira de Portugal. 

Os marroquinos levantaram o cerco e a victoria. 
vibrou ruidosamente na Europa. No concilio de 
Trento çelebrava-se uma solemne missa em acção 
de graças por este triumpho contra os inimigos 
da fé. 

Era o prologo enganador da lúgubre tragedia 
d'Alcacer ! 

Dezeseis annos depois dir-se-hia que tudo havia 
mudado ! Na febre do seu desvairado sonho de con- 
quistador, D. Sebastião empenhava esforços inex- 
cediveis para reunir soldados e recursos com que 
passasse a Marrocos, e o seu appello não encon- 
trava um ecco de enthusiasmo e de fé na grande 
alma da nação! Só tinha em volta de si o applauso 
dos lisongeiros e da mocidade doidamente aventu- 
reira. 

O recrutamento da expedição foi uma lastima e 
uma vergonha. Vexaram-se os povos e deu-se mar^ 
gem á especulação torpíssima dos agentes de alis- 



4» 

tamentos. Compravam-se as isenções e apurava-se 
afinal a ralé! Resolvera-se, conforme o plano de 
organisação, que a infanteria portugueza constituísse 
4 terços 4 ou regimentos de 3.ooo homens cada 
um e tivesse, portanto, o effectivo total de 12.000 
homens, mas não foi possível apurar mais de 9.000, 
quasi todos impróprios para os trabalhos da guerra! 

O que havia de melhor entre as tropas portu- 
guezas era o corpo de 2.000 homens de cavallaria, 
constituído pela nobreza, e um outro corpo de vo- 
luntários, formado por mais de 400 fidalgos, que 
commandavam soldados mantidos á sua custa e 
cujo effectivo seria augmentado com alguns contin- 
gentes das guarnições de Tanger.e Arzilla. 

No estrangeiro contratou-se ufri terço de 3. 000 
allemães, experimentados na guerra, e um outro 
de 3.000 soldados de Hespanna. Depois foi tam- 
bém contratado um corpo de aventureiros italianos, 
3ue ia de viagem para a Irlanda, sob o commando 
o marquez de Linster. 

E tudo isto não dava mais de 18.000 homens 
de tropas collecticias, em grande parte bisonhas, 
sem instrucção, sem disciplina e, para cumulo de 
infelicidade, sem um commando lúcido e expe- 
riente, que pudesse dar-lhes unidade e corrigir-lhes 
os defeitos de origem! 

Que differença enorme entre esta insânia e as 
brilhantes expedições de Ceuta e d 7 Arzilla! 

Depois de ter lançado mão de todos os expe- 
dientes financeiros, D. Sebastião apurava 700:000 
cruzados, mas as despezas da expedição estavam 



1 Designação da principal unidade láctica da infanteria 
hespanhola no século xvi. Tercio a denominavam os hespa- 
nhoes, porque o seu effectivo normal representava a terça 
parte da força de um regimento allemão de 3.ooo homeris. 
Mas o effectivo dós terços algumas vezes chegou a ser igual 
ao d'estes regimentos. Os portuguezes adoptaram aquella de- 
nominação, que se conservou até ao fim da guerra dos 28 
annos. 



49 
orçadas em 800:000 e só os mercenários italianos e 

> 

alleipães custavam 3oo.ooo ! 

É singular que tão desastradamente se organi- 
sasse uma expedição de guerra, precisamente no rei- 
nado em que se estatuirá um systema militar, que, 
a ter-se executado, a não haver ficado lettra morta, 
daria a mobilisação das forças do paiz, tal como 
podia realisar-se ha três séculos, dentro dos linea- 
mentos de uma organisaçao, que bem poderia con- 
siderar-se a base rudimentar das modernas institui- 
ções militares. 

Se na idade média os ricos-homens e cavalleiros 
acontiados, com a sua gente d'armas, os freires das 
ordens de cavallaria, núcleos de milícia permanente, 
e os cavalleiros e besteiros de conto dos municípios 
representavam a nação válida, a nação armada, 
com que fora possível fazer a cruzada contra o 
mouro e as guerras contra Castella; no reinado de 
D. Sebastião a lei de 12 de dezembro de 1569 e o 
alvará de 10 de dezembro de 1670, que era como 
que o seu regulamento, deveriam ter produzido 
uma vigorosa organisaçao militar, se na decadência 
e na corrupção pudessem fructificar instituições, que 
eram a suprema expressão de um dever d'honra e 
•de um sacrifício de patriotismo. 

Estabelecia-se o serviço militar pessoal e obriga- 
tório para todos os homens válidos dos dezoito aos 
sessenta annos e organisavam-se as forças por com- 
panhias de grandes effectivos, variáveis conforme a 
população de cada cidade, villa ou concelho, sedes 
das companhias e centros do alistamento regional. 
Regulamentava-se a instrucção normal das tropas 
de cada companhia e fixavam-se para os grandes 
exercícios (alardes) as épocas da Paschoa e do S. 
Miguel. Preceituafva-se a instrucção de tiro ao alvo 
para os arcabuzeiros e espingardeiros — fa\er bar- 
reira era a designação doestes exercícios — e estipu- 
lavam-se prémios pecuniários — preços — para os ati- 
radores mais hábeis. 

Cada soldado era obrigado a ter armamento, o 



5o 



armamento da ordenança, e os de cavallaria tinham 
obrigação de manter cavallo seu. 

Não havia estipendio em tempo de paz. 

Em Lisboa, onde a organisação das forças era 
especial, deveria haver 4 terços de infanteria a 3. 000 
homens cada um e o terço dos privilegiados da 
corte. 

Excellentes preceitos a contrastarem com a de- 
plorável decadência militar a que se tinha chegado ! 
Sete annos depois do alvará de 10 de dezembro, 
cuja execução representaria a nação armada, não 
era possível organisar com forças portuguezas uma 
expedição de 18.000 homens! Pois a avaliar por 
Lisboa, cuja população era calculada em 100.000 al- 
mas e que pelo alvará de 1570 deveria ter 12.000 
homens de ordenança, o paiz, cuja população era 
computada em 1.800.000 almas, poderia ter 100.000 
alistados, depois de feito um desconto de 5o % de 
isentos, incapazes e em serviço no ultramar. 

D. Sebastião desenvolveu prodigiosa actividade 
nos últimos trabalhos orgânicos da expedição. Ia 
examinar constantemente os preparativos da esqua- 
dra e assistia aos exercicios das tropas no Campo 
Pequeno. Actividade inútil. Os fidalgos andavam, 
preoccupados com os seus vestuários de brocados : 
e telas de oiro, com os seus chapéus de presilhas 
de diamantes e com as suas espadas de punhos ri- 
quíssimos, e a soldadesca, estrangeira e nacional, 
profundamente indisciplinada, batia-se nas tabernas 
e nas ruas da cidade, em mortíferos combates. Os 
allemães com os nossos e os italianos e uma com- 
panhia da gente do Duque de Bragança com uma 
companhia do terço hespanhol ! 

Émfim, depois de quasi dois annos de prepara- 
tivos, a expedição partiu do Tejo no dia 25 de ju- 
nho de 1578, a bordo de 800 navios, de velas em- 
pavezadas e bandeiras soltas ao vento. Era Portu- 
gal que ia para o seu funeral de conquistador. 

A descripção da batalha faz chorar de deses- 
pero a nossa alma de portuguezes. O primeiro Ímpeto 



5i 



ainda foi dos nossos, na lucta desigual de um con- 
tra seis, mas faltou a previsão* e a unidade do com- 
inando — D. Sebastião combatia como um soldado 
— e nem se aproveitou a artilheria, que fora sem- 
pre, na cidadella, no navio ou no campo de bata- 
lha, a grande força cooperadora do nosso arrojo 
nas conquistas do Oriente! 4 

Em meia hora estava tudo perdido! A batalha 
fizera-se carnificina. Nunca Portugal soffrera, nunca 
mais soffreu, um desastre militar de tão lúgubre e 
tamanha magnitude ! 



Angela fora occupadada pelos hollandezes em 
164 1, como o fora também S. Thomé. O almirante 
Jol, alcunhado o Perna de pau, realisára a occupa- 
ção com uma esquadra de 20 navios e 2.200 solda- 
dos de desembarque. Sem forças para resistir, o 
Governador d'Angola retirou para o presidio de 
lassangano. 

Sete annos depois, Salvador Correia de Sá ba- 
tia e expulsava os hollandezes de toda a província, 
com uma expedição que organisára no Rio de Ja- 
neiro e se compunha de i5 navios e 900 homens 
de desembarque. 

Depois d'esta campanha, breve e felicíssima, 
temos tido numerosas guerras em Africa, mas guasi 
todas ellas sustentadas pelas próprias guarnições 
coloniaes, uma ou outra vez auxiliadas por destaca- 
mentos ou pequenas expedições de voluntários do 
exercito da metrópole. 



1 «E quando nos lembramos de que os soldados e ma- 
rinheiros d este grande povo de descobridores e conquista- 
dores eram os habitantes da nação mais pequena da Europa, 
o seu êxito parece-nos ainda mais extraordinário e mais ab- 
sorvente o interesse pela historia da nação que educou os 
heroes portuguezes.» 

(Historia de Portugal, pelo inglez Morse Stephens, publi- 
cada em 1891.) 



52 



Na Africa ou em Timor algumas cTessas guer- 
ras teem sido sangrentas, porfiadas, de incontestá- 
vel importância, e seria monstruosa injustiça não 
registrar que na Guiné e em Angola, em Moçam- 
bique e em Timor, officiaes portuguezes, com sol- 
dados indígenas, teem dado testemunho de singular 
intrepidez e de extremada abnegação patriótica, 
reavivando as mais altivas tradições do esforço na- 
cional. 

Não comportam as dimensões d'este capitulo, 
já immensamente longo, que apontemos todas as 
pequenas expedições, e por isso nos limitaremos a 
rememorar duas das mais importantes que temos 
enviado á Africa no presente século e anteriormente 
a 1894. 

A que fez a campanha do Bembe e Congo (1859- 
1860) e a que fez a terceira campanha de Massan- 
gano (1869- 1870). 

A primeira, que fora precedida no Bembe pela 
pequena expedição do tenente coronel Salles Fer- 
reira fi856), era constituída por um corpo de tro- 
pas, iormado de voluntários da metrópole e de 
forças da guarnição de Angola, coadjuvadas pela 
marinha, sempre no ultramar a cooperadora bri- 
lhante do exercito, quando as circumstancias lhe não 
conferem a iniciativa e o primeiro posto, como na 
ultima campanha de Bissau, que seria um titulo de 
legitima ufania, se d'elles precisasse quem tem a 
sua epopêa engastada nos brazões da civilisação 
humana. 

Foi gloriosa a campanha do Congo; de rudes 
soffrirhentos e de envaidecedoras victorias. A figura 
mais brilhante d'essa guerra, figura que parece ta- 
lhada pelos moldes da antiga heroicidade portugueza, 
é hoje o venerando almirante da nossa marinha — 
honra e orgulho delia — o sr. conselheiro José Ba- 
ptista dAndrade, o valente dos valentes, como 
ríey era o bravo dos bisavós. 

A segunda expedição — a da Zambezia — , essa, 
por effeito da sua deplorável organisação, não por 



53 



falta de valor individual, representa um dos maiores 
desastres das nossas campanhas coloniaes. Consti- 
tuída por voluntários dos corpos do exercito da me- 
trópole, sem nenhuma selecção, alguns d'elles a es- 
coria das casernas; minada pela indisciplina que 
chegava até ao desvario da revolta, privada dos 
necessários recursos de abastecimento, sem reser- 
vas de munições, sem um serviço regular de ambu- 
lâncias e sem uma direcção superior, previdente e 
solicita, era quasi fatal o seu desastre. Teve fome 
antes de entrar em fogo; faltaram-lhe as munições 
de artilheria ao terceiro dia de combate, e a sua 
retirada de Massangano foi uma angustiosa odyssêa 
de sacrifícios e de privações. Não faltou ás tradi- 
ções da sua bandeira, officiaes e soldados bateram- 
se como valentes, mas para vencer, mesmo na 
Africa, é preciso mais alguma coisa de que a cora- 
gem individual. 

Até aos raros que voltaram, e tanto haviam sof- 
frido, faltou o amparo e a solicitude da pátria! 

O desenlace d'esta desventurada expedição, mais 
adensou ainda a tradição lúgubre de Moçambique, 
nuvem de sangue, nuvem trágica em que se refle- 
ctia a recente chacina da columna do tenente coro- 
nel Portugal, na mesma guerra fatídica de Massan- 
gano. 

Em 1871 partiu para a índia o batalhão de ca- 
çadores n.° 1 e em 1891 embarcou para a Beira 
(Moçambique) o i.° batalhão de infanteria n.° 1 
com algumas forças de engenheria e artilheria. 
Nenhuma d'estas expedições entrou em campanha, 
mas ambas prestaram ao paiz serviços relevantes, 
especialmente a segunda, e teem o grande mereci- 
mento de representar o precedente das expedições 
ao ultramar com unidades do exercito da metró- 
pole, nomeadas por escala, segundo as armas e a 
respectiva ordem numérica. 

A terceira doestas expedições destacadas do exer- 
cito foi a que partiu para Lourenço Marques e fez 
as campanhas do Incomati e das terras de Gaza 



54 



contra os cafres e contra os buingelas e vatuas do 
Gungunhana. 

Tendo sido a expedição ao Congo de pouco 
mais de 700 europeus de desembarque e a da Zam- 
bezia de menos de 600, e conhecidos já os effecti- 
vos dos principaes expedições enviadas ao ultramar, 
comprehenderá bem o leitor que a expedição de 
Lourenço Marques, que teve um effectivo total de 
2.910 homens, foi decerto uma das mais numero- 
sas que em todos os tempos saíram de Lisboa para 
o ultramar, excepcionando os exércitos expedicio- 
nários a Marrocos e as expedições de hespanhoes 
e portuguezes reunidos (Tunis, Argel e Brazil). 

A mais importante, deslocada directamente do 
exercito da metrópole em unidades constituídas, e 
a maior enviada para a Africa depois de Alcacer- 
Kibir. 

A maior n'este século, depois da guerra de Mon- 
tevideu. 

Pelo objectivo e pelo êxito das campanhas que 
havemos de narrar, comprehender-se-ha também 

Sue nos deram as mais brilhantes glorias militares 
os últimos 80 annos (exceptuamos as guerras civis, 
que não podem representar a legitima gloria mili- 
tar de uma nacionalidade), as maiores que ainda 
obtivemos no sertão negro, attento o valor guer- 
reiro da raça a combater e a desigualdade enorme 
de numero entre os vencedores e os vencidos. 



II 



PRECEDENTES E CONFRONTOS 



Quando um paiz pequeno e pobre, como o nos- 
so, sente em si o pessimismo da sua própria fra- 
queza material e pôde chegar á suspeita de que 
todas as estranhas glorias são immensamente supe- 
riores ás suas, como tantas vezes tem succedido 
aqui, a melhor, a mais insuspeita, a mais consola- 
dora lição deverá procurar-se no precedente das na- 
ções illustres e firmar-se no confronto entre as suas 
e as alheias façanhas. 

Tental-o-hemos aqui resumidamante. Dir-se-ha 
que poderia citar-se o precedente e formular-se o 
confronto no próprio texto descriptivo deste livro. 

Podia. Mas para que a citação ficasse bem ex- 

[>licita e ao alcance dos menos lidos na historia mi- 
itar do estrangeiro e para que o confronto não 
ficasse obscuro no resumo do facto, seria necessa^ 
rio truncar frequentes vezes e por largo espaço a 
natural successão dos acontecimentos, que consti- 
tuem a essência deste livro. 

Assim, referindo aqui, desafogadamente, os exem- 

4 



56 



pios de fora, bastar-nos-ha depois apontar em três 
ou quatro palavras a lição já conhecida. 



As nossas recentes campanhas d'Africa podem 
bem comparar-se a outras campanhas coloniaes da 
estrangeiro, que foram mais ruidosas, que hão de 
talvez ficar mais celebres, mas que não represen- 
tam maior somma de energia, nem. mais alto esforço 
de valor individual. E que no effeito moral da vi- 
ctoria reflecte-se quasi sempre a valia dos effecti- 
vos em combate, a grandeza e a preponderância 
politica dos vencedores, o renome dos vencidos, a 
importância politica e estratégica do paiz onde se 
travou a campanha. 

E tanto assim é que, admittida a mesma ener- 
gia de acção, as mesmas gentilezas de valor, a 
mesma revelação de altas qualidades militares e o 
mesmo êxito triumphal da parte dos portuguezes e 
do lado dos vátuas a mesma lenda de terrível 
omnipotência, a mesma altiva intrepidez, a mesma 
tradição guerreira e a mesma supremacia politica, 
n'um sertão maior do que o território portuguez ; as 
nossas recentes campanhas seriam menos conheci- 
das na Europa, produziriam menos ruido, ficariam 
mais obscuras, se o chefe dos vátuas não houvesse 
sido enredado nos tramas de alguns aventureiros 
poderosos da Africa do sul e de alguns missioná- 
rios, mais dados á intriga politica do que á propa- 
fanda evangélica, e se o amplíssimo estuário de 
,ourenço Marques, cáes e empório do paiz riquís- 
simo dos boers, não estivesse ha trinta annos blo- 
queado por cobiças poderosíssimas e não fosse 
destinado a transformar a cidade n uma Bombaim 
do continente negro. 

Não se dessem todas essas circumstancias, não 
fosse uma surpreza para o estrangeiro a energia 
subitamente anirmada pelo paiz, com tamanho sa- 
crifício e em tão apertadas circumstancias financei- 



i>7 

ras, e talvez a Europa não soubesse o nome do 
Gungunhana, nem levantasse os olhos, sequer, de 
cima das suas atormentadas complicações politicas 
e das suas formidáveis crises sociaes, para attentar 
um momento nos nossos triumphos. 

N'este momento histórico, realmente excepcional, 
presos á situação politica da Europa, no seu pesa- 
delo de ambições e de receios, caserna e arsenal 
onde o grito de alerta das sentinellas se cruza com 
o ruido ameaçador das greves e o uivar das ma- 
chinas que fazem canhões quasi domina o bulício 
das offianas que fazem locomotivas ; n'este momento 
de angustiosa expectativa pelo dia de amanhã, que 
pôde ser de súbito a enorme catastrophe de uma 
lucta de duzentos couraçados e quatorze milhões de 
soldados; n'este momento, as nossas campanhas 
d'Africa, d'essa Africa assediada por insoffridas 
ambições, foi bem uma dupla fortuna, feita de todo 
o fulgor longínquo da nossa estrella e de toda a vi- 
bração épica da alma dos nossos soldados. 

Reavivou-se a tradição, quasi esquecida, do velho 
arrojo portuguez, quebrou-se a lenda de desdém, 
que iniquamente se formara em volta da nossa pe- 
quenez e da nossa pobreza, e foram solemnemente 
ratificados os direitos históricos do nosso domínio 
africano. Talvez nas chancellarias europêas repa- 
rassem agora que Portugal não é no mundo, nem 
pela sua situação estratégica, nem pela sua categoria 
colonial na Africa, um factor completamente inútil. 

Não nos deslumbra o sentimento patriótico. Pro- 
you-se que éramos capazes de um esforço, reflecti- 
damente planeado; que sabíamos luctar e vencer 
como as grandes nações, guardada a proporção fa- 
tal dos nossos recursos ; que tínhamos officiaes com 
o brio e a intrepidez antiga a realçar-se nas lúcidas 
noções da mooerna sciencia da guerra, e que os 
soldados, pela serena conformidade nas provações, 
pela inabalável constância na hora do perigo e pela 
audácia d'animo no momento decisivo dos comba- 
tes, não valiam menos que os seus altivos antepas- 



58 



sados, antes a alguns delles se avantajavam pela 
força moral da disciplina, que tantas vezes, nas 
guerras do Oriente, deploravelmente se quebrou, 
annullando os mais altos planos de Albuquerque e 
pondo uma sombra enorme sobre as façanhas, em 
que parecia reflectir-se uma doida heroicidade de 
spartanos ! 

É claro que seria ridículo e pueril suppôr que a 
Europa ficara maravilhada por que^Portugal mobi- 
lisava cerca de três mil soldados para o sertão afri- 
cano, a três mil léguas da metrópole. Mas não é 
ridículo nem pueril suppôr-se que, no exaggero a 
que chegara o computo da nossa fraqueza material 
e a tradição da nossa indolência de meridionaes, se 
admirasse de um esforço tão rápido, de tanto sacri- 
fício e de tão brilhante desenlace. 

A Europa bem sabe o tempo que levaram a 
organisar e as dificuldades que tiveram de vencer 
as expedições mais recentes no continente africano ; 
a dos inglezes contra os Achantis em 1873, e as 
dos francezes contra o Dahomé em 1892 e contra 
Madagáscar em 1895, sem recordar as infortunadas 
expedições da Itália á Abyssinia, onde a bravura 
dos fundadores da colónia Ervthrêa não tem podido 
apagar a sombra luctuosa de Saati e Dogali, de Am- 
ba-Alaghi e Aduah. 

A Inglaterra, concentrando na Costa do Ouro 
pouco mais de dois mil homens do exercito e da 
marinha, e a França reunindo no Dahomé cerca de 
três mil homens do exercito, da marinha e das tro- 
pas do Senegal e ultimamente em Madagáscar de- 
zesete mil e quinhentos homens, organisados com 
voluntários de doze corpos de exercito e contin- 
gentes da Argélia, do Senegal, da Reunião, e da tribu 
dos Sakalaves, da própria ilha de Madagáscar, não 
fizeram sacrifício proporcionalmente igual ao nosso, 
mandando a Moçambique cerca de três mil homens 
de unidades constituídas do exercito da metrópole, 
ou quasi 14 °/o do seu effectivo do tempo de paz. 

E tanto este facto produziu impressão, que um 



5q 



dos mais importantes jornaes militares da França 
— La Rêvue Militaire de VEtranger — commentava 
d'este modo as ultimas expedições militares portu- 
guezas : 

Çest là nn. effort considêrable, étant donné Vef- 
fectif des forces entretenues par ce pays en Ewope, 
sur le pied de paix, et qui fait grand honneur au 
patriotisme de la nation. 

Pela rapidez da organisação das forças portu- 
guezas também o confronto nos não desanima, ainda 
mesmo que se não dedusa do tempo decorrido en- 
tre a ordem de nomeação das unidades expedicio- 
nárias do segundo troço e o seu embarque, aquelle 
em que estiveram aguardando a estação própria 
para uma campanha na Africa, visto não haver ur- 
gência de proceder com a segunda columna de tro- 
pas, como se procedera com a primeira, destinada a 
acudir a Lourenço Marques, que ós cafres assedia- 
vam na softreguidão da rapina e da carnagem. 

A França só emprehendeu a segunda campanha 
do Dahomé depois de muitas hesitações, de reite- 
radas tentativas para manter a paz e até de transi- 
gências, que foram duramente Verberadas no pró- 
prio parlamento. 

O governo francez empenhou os máximos esfor- 
ços para evitar a guerra. 

Já em 1889 os bandos de Glé-glé, antecessor do 
rei Behanzin, haviam reduzido os francezes a uma 
situação afflictiva. Atacaram Porto Novo, cujo rei 
(Toffa) alliado da França, não poude ser soccorrido 
pelas tropas francezas. Os commerciantes tiveram 
de fugir para a colónia ingleza de Lagos e Mr. 
Baeckmann communicava ao commarldante da esta- 
ção naval no Atlântico : La colonie est ruinée, per- 
due, le pavillon compromis. 

Pois ainda nestas condições a França tentou 
manter a paz! O dr. Bayol foi encarregado de pe- 
dir explicações ao rei de Dahomé pelo seu proce- 



6o 



dimento desleal, e, segundo as instrucções que re- 
recebera do Quai dOrsay, devia ser conciliador. 

«Malgré la gravite des attentats commis par ce 
dernier (o rei de Dahomé) — dizia M. de Lanesson 
no parlamento francez, em 1891 — les instructipns 
donnés à Mr. Bayol, par le sous-secrétaire d'Etat 
aux colonies, étaient extrêmement pacifiques et mê- 
me accompagnées de cadeaux.» ■ 

Entre os presentes levados por Bayol ao rei de 
Dahomé avultava um brilhante capacete de coura- 
ceiro cujo pennacho foi tingido de verde, por ser 
esta a cor dos distinctivos reaes naquelle paiz. Diz 
um historiador da campanha : 011 avait poussé la dé- 
licatesse jusqiià faire teindre en vert la crinière 
de ce couvre-chef royal. 

Pois apesar d'isto, a arrogância dos dahomeanos 
era indomável, e o príncipe Kon-Dô chegava á in- 
solência de censurar a forma do governo da França, 
perante o próprio enviado francez ! 

Le prince declara finalement que la France etait 

frovernêe pour des jeunes gens et qxCelle devait abolir 
a Republique. 

A guerra era inevitável, mas de Paris recom- 
menda-se a simples defensiva. Hesita-se em empre- 
hender uma campanha no interior. 

Behanzin avança e espalha entre os seus que a 
França lhe pedira perdão ! 

Mr. Fournier telegrapha ao governo: Renforts 
demandes nêcessaires, 11011 pour atler en avant, mais 
pour repousser aggresseui\ 

Depois de vários recontros, Fournier é encarre- 
gado de negociar a paz com as seguintes modestas 
exigências : Entrega dos prisioneiros europeus e re- 
conhecimento do protectorado francez em Coto- 
num. 

Inúteis tentativas. O contra-almirante Couverville 



6i 



recebe esta indicação telegraphica do ministro da 
marinha: Aucun succés saurait vous faire plus dlion- 
near que la clóture por voie transacttonnelle de 
Vinciaent du Dahomej'. 

Fez-se em fim a paz. Behanzin recebeu 20:000 
francos de indemnisação pelo reconhecimento do 
protectorado francez em Cotonum. 

Mas os dahomeanos em breve rompem nova- 
mente as hostilidades. Enhardis par notre silence 
— diz Jules Poirier — et par notre retraite, nos en- 
nemis porsuivirent lenr route. 

O gabinete Ribot hesita em ordenar a offensiva. 
•Gomo os dahomeanos tinham mais de 12.000 guer- 
reiros e talvez 4.000 armados com espingardas mo- 
dernas, suppunha-se em França que seriam precisos 
6.000 expedicionários para uma guerra offensiva. 
Havia mesmo quem falasse em 26 ou 27.000 homens ! 
Mr. Hervieu chegou a lembrar no parlamento o al- 
vitre de trocar as possessões francezas da costa de 
Benim por outra colónia de Portugal, da Inglaterra 
ou da Allemanha ! 

E que a França sabia já quanto custavam as 
campanhas na Africa e sentia a verdade doestas pa- 
lavras de Wissmann, o famoso organisador das 
forcas militares da Allemanha nas suas colónias do 
continente negro: 

A guerra contra os africanos não deve empe- 
nhar-se como se fosse uma campanha na Europa. 

A França procurou ganhar tempo que lhe desse 
para organisar a sua segunda expedição e para es- 
perar a estação apropriada ás operações. 

O coronel Dodds, um filho do Senegal, um bra- 
vo de Sedan e do Tonkim, foi nomeado comman- 
dante da expedição a organisar e partiu para Da- 
homé, levando apenas um reforço de i5o homens. 
Em 29 de maio de 1892 desembarcava em Porto 
Novo e só em 16 de julho o governo francez se re- 
solvia a organisar uma expedição, que devia partir 



62 



em 2 cTasosto e que seria constituída por um bata- 
lhão da Legião Estrangeira, um destacamento de 
engenheria,uma secção dos serviços de administração 
e de saúde e pelos quadros para um esquadrão de 
spahis, que se organisava em Dakar (Senegal). No 
Dahomé estavam já sob o commando de Dodds um 
batalhão de atiradores haoussas, duas companhias 
de artilheria do Senegal e um destacamento de ar- 
tilheiros europeus. 

A estação das grandes chuvas no Dahomé vae 
de 1 5 de março a 1 5 de julho ; as pequenas chuvas 
começam em i5 de setembro. 

Só deste modo se pôde explicar que, na situa- 
ção difficil e humilhadora em que os francezes se 
encontravam naquelle paiz, uma nação de tão gran- 
des recursos militares como a Franca demorasse 
tanto a organisação e a partida das tropas com que 
o coronel Dodds havia de emprehender a segunda 
campanha. 

A expedição de Madagáscar levou também largo 
tempo a organisar e revelou tamanhos defeitos 
de constituição e taes deficiências de aprovisiona- 
mento, que em toda a imprensa franceza vibraram 
protestos indignados, talvez nem sempre justos e 
razoáveis. 

Não nos desfavorece o confronto na própria mo- 
déstia da nossa pequenez e da nossa pobreza, e, 
se devemos este resultado consolador á collabo- 
ração devotada de quantos, na esphera das suas at- 
tribuições, intervieram na organisação e nas opera- 
ções militares do Incomati e de Gaza, seria injus- 
tiça negar a cooperação da boa fortuna, que de ha 
tanto parecia hostil ao nome portuguez. 

As campanhas do Incomati e de Gaza, — repeti- 
mol-o — tiveram como prefacio a defeza de Lourenço 
Marques e a reoccupação do pequeno campo entrin- 



63 



cheirado de Angoane e» synthetisam-se na marcha 
aspérrima da magaia, nos combates de Marra- 
cuene e de Magul, no recontro de Chinavane, no 
combate decisivo de Coolella, na occupação e des- 
truição de Manjaca\e e na espantosa surpreza de 
Chaimite, em que foi aprisionado o chefe dos vá- 
tuas. Estes nomes, já agora inapagaveis na alma 
portugueza, como legendas de uma constellação ru- 
tilissima, não traduzem somente uma grande ener- 
gia de direcção, uma notável força moral de com- 
inando e uma admirável intrepidez de acção. En- 
cerram também uma proveitosa lição, exclusiva- 
mente patriótica. 

Não se confirmou simplesmente que o esforço 
d'animo dos nossos soldados, a sua soffredora cons- 
tância nos perigos e nos trabalhos, a sua singela 
bravura nos grandes lances, era hoje perfeitamente,, 
como era ha setecentos annos na cruzada contra o 
mouro e na lucta contra o castelhano, como era ha 
quatrocentos annos na conquista contra o marro- 
quino, como era ha três séculos na conquista con- 
tra o indio e o turco ou contra o persa e o malaio* 
Suppunham os pessimistas de cá e do estrangeiro 
que já não haveria aqui quem soubesse combater 
na desproporção de um contra cinco, como em Al- 
jubarrota; de um contra vinte, como em Malaca e 
Ormuz. Julgavam que o sangue se havia empobre- 
cido como a antiga metrópole gloriosa, que a alma 
ficara sepultada nas ruinas do império derruído, e 
que já não teríamos soldados para as marchas au- 
daciosas, como a do fossado de Orik e da remota 
campanha da Abyssinia; para as penosas etapes, 
como na retirada de Burgos ou na retirada da Rús- 
sia, e para hombrear em requintes de bravura com 
os defensores de Chaul e de Mazagão, de Arzilla 
e de Columbo, com os terços do Montijo e das Li- 
nhas d'Elvas, do Ameixial e de Montes-Claros, das 
Tabocas e dos Gararapes ou com os regimentos do 
Bussaco e de Albuera, dos Arapilles e de Victoria, 
dos Pyrineus e de Nivelle. 



64 



E tínhamos, por gloria -nossa, que não ha de a 
má fortuna atormentar-nos em tudo. De menos 
grandeza a sua estatura histórica, de menos ruidosa 
celebridade as suas victorias brilhantes? Decerto, 
mas por que não tiveram deante de si os mussul- 
manos de Abdu-1-mumen, nem os mamelukos de Su- 
leyman-pachá, nem os persas de Shah Abbas, nem 
os hollandezes de Maurício de Nassau e Cornelio 
Reijertz, nem os hespanhoes de D. João d^Austria e 
do Marquez de Caracena, nem os francezes de 
Massena e Soult, de Ney e Marmont. 

Mas se não conquistaram impérios, se não re- 
pulsaram a ambição de nações brilhantes, se não 
avassalaram empórios e cidades magnificentes de 
estranhas civilisações — e tantas vezes no fulgor da 
victoria irradia também a celebridade e o esplendor 
dos vencidos — se nada d'isto o seu destino permit- 
tiu que fizessem, nem por isso a sua obra no sertão 
negro — theatro de uma guerra sem tréguas — foi 
menos heróica, menos devotada do que a dos seus 
antepassados, que andaram quatro mil léguas a ta- 
lhar a pátria no mundo! 

De mais provações, de maiores sacrifícios tal- 
vez: torturados pela sede, atormentados pela febre, 
o corpo a dobrar-se pela anemia, a alma a agitar- 
lhes o sangue, que as lagunas envenenavam, e em 
vez da perspectiva reanimadora das cidades magni- 
ficentes, em vez do estimulo de opulentos despojos, 
as florestas, os pântanos, as palhotas e em cada 
combate, em cada quadrado, o dilemma fatal de 
vencer ou morrer. No sertão negro, quando se com- 
bate na razão de um para dez, de um para vinte, 
não se retira e não se capitula, senão para morrer. 

Não; estímulos havia dois e esses traziam-nos 
comsigo os valentes. 

Era a honra da sua farda, épica mortalha de 
alguns d'elles, e era o nome da pátria, que tinham 
saudado aqui alegremente, na partida, e que tra- 
ziam guardado no coração, como no encerro de 
um sacrário. 



65 



E cfelles, sempre vencedores, quantos não vol- 
taram feridos de morte! O miasma é ainda mais 
cruel do que a zagaia vibrada pelo cafre ou a Mar- 
tini disparada pelo vátaa. 

Não; os antigos trouxeram a Portugal os tro- 
pheus de Marrocos e do Oriente : cimitarras de pu- 
nho de ouro e diademas de pérolas raras entre os 
despojos ; eram da mais audaz e opulenta nação do 
occidente, as suas figuras históricas avultavam aos 
olhos do mundo numa perspectiva theatral e bri- 
lhante, mas nunca talvez trouxessem na vibração dos 
seus triumphos uma tão consoladora nota como estes 
d'agora, com os seus uniformes desbotados, com 
os rostos esmaecidos e a singela modéstia de quem 
suppunha haver cumprido apenas um dever. 

Ha três séculos que importava uma .victoria 
mais, se tantas havia que enchiam o mundo, mas 
agora, num período de tantos desalentos, de tantas 
desesperanças, de tão iníquo pessimismo, de tão 
immerecido descrédito, aqui e em Africa, agora que 
abençoadas .victorias as d elles ! 

Os outros, os antigos, crearam o prestigio do 
nome porjuguez, mas estes tiveram de o resurgir e 
se para o mundo a sua obra é immensamente me- 
nos ruidosa e grande, para o coração da pátria é 
uma bemdita obra de reviviscencia, de santo orgu- 
lho, de confiança no futuro ! 

E se hombrearam com os que os precedem na 
historia do seu paiz, também se não amesquinham 
no confronto com os que teem no mundo mais 
nome e mais poder. 

Quando, entre as ultimas sombras de uma noite 
tempestuosa, o quadrado de Marracuene foi roto de 
surpresa pelos cafres, era plausível suppôr que se 
não pudesse refazer sob a acção dos atacantes, cinco 
vezes superiores em numero, e que as tropas da 
mesma columna umas ás outras se fuzilassem pre- 
cipitadamente, como na columna de William Hichs 
Pachá, no Kordofan, ficando esmagado, como todos 



66 



os quadrados rotos, sob a acção offensiva de um 
inimigo numeroso. 

E não foi. Refez-se e venceu! 

Quando o quadrado de Magul, composto de 
267 portuguezes, porque os auxiliares espavoridos 
fizeram como tinham feito os auxiliares dos france- 
zes no combate de Atchoupa, em Dahomé ; quando 
aquelle quadrado provocou a lucta contra mais de 
seis mil cafres e alguns vátuas, era razoável con- 
tar com um desastre immenso, trágico, tal como 
fora o do quadrado de Isandhluana. 

E foi uma victoria! No quadrado inglez, morto 
em peso, com a pequena excepção dos quarenta 
fugitivos, que atravessaram o Blood-River (Rio do 
Sangue), havia 1 contra 18 *. No quadrado portu- 
guez, que pôz em fuga o inimigo, havia 1 contra 24. 

Quando no combate de Coolella, oito impis de 
vátuas e cafres, com mais de dez mil homens, in- 
vestiram o quadrado de 570 portuguezes, seria licito 
suppôr quasi impossível a victoria para as nossas 
armas. 

Uma parte dos vátuas tinha armas de fogo aper- 
feiçoadas, como no Dahomé uma parte dos guerrei- 
ros de Behanzin. No combate de Poguessa, talvez 
um dos mais sangrentos d^quella guerra, a co- 
lumna do commando do coronel Dodds, com cerca 
de dois mil homens, empenhara todo o esforço de 
que é capaz o soldado francez para repellir três in- 
vestidas de dez mil dahomeanos, commandados pelo 
próprio rei. Um contra cinco. Os dahomeanos foram 
vencidos, deixando mais de duzentos mortos. 

Mas em Coolella, um contra vinte, os vátuas 
foram derrotados, levando comsigo numero avul- 
tadíssimo de feridos e deixando no campo cerca de 
trezentos mortos. 



1 Os inglezes eram 1.320 homens contra cerca de 24.000 
zulus, segundo o calculo de alguns escriptores. 



6? 

Irmãos dos zulus, valentes como elles, os vátuas 
atacaram destemidamente. Dil-o tragicamente a mor- 
tandade enorme dos seus. 

Mas serão os dahomeanos uma raça superior á 
dos vátuas pelo valor guerreiro e pela altivez do 
caracter ? Jules Poirier responde por esta forma na 
sua historia da campanha de Dahomé: Le daho- 
méeri est d'nn servihsme abject. . . La valeur mili- 
íaire des dahoméens est disattable. 

O testemunho é perfeitamente insuspeito, mas 
não quer dizer que os dahomeanos se não bates- 
sem encarniçadamente, que bateram, durante uma 
longa campanha contra os brilhantes soldados da 
França. Só depois de numerosos combates a co- 
lumna do coronel Dodds poude entrar triumphal- 
mente em Abomé, a capital que Behanzin abando- 
nara, mandando elle próprio incendiar a sua resi- 
dência e as casas que a circumdavam (17 de no- 
vembro de 1892). 

Outro tanto não poude fazer o chefe dos vátuas, 
como teremos occasião de ver, tão precipitada foi 
a sua fuga. O kraal de Manjacaze, ninho do abu- 
tre negro, ninho prodigioso e inexpugnável nas 
rudes superstições do sertão, esse desfez-se em 
chammas, mas foi incendiado pelos vencedores de 
Coolella. 

Em outro facto ainda não quiz a boa fortuna 
abandonar o arrojo das nossas tropas. Behanzin, o 
rei desthronado e vencido como Catchuayo, andou 
mais de um anno foragido e, por fim, cançado da 
sua amargurada odyssêa, elle próprio se fez apri- 
sionar, mandando dizer por um parlamentario seu 
ao general Dodds, que estava em Oumbigauée e 
que podiam ir buscal-o. E foi preso em Ajigos a 
2 5 de janeiro de 1894. 

Antes de volvidos dois mezes após a tomada de 
Manjacaze, o regulo dos vátuas era atacado de sur- 
preza no seu novo kraal, entre-florestas, junto do 
tumulo do terrível Manicusse, e caía prisioneiro de 
cincoenta portugueses, ante o pávido assombro de 



68 



três mil vátuas e buingellas, a quem o desalento pelas 
anteriores derrotas e o deslumbramento por aquella 
espantosa audácia, deixara absolutamente irresolu- 
tos ! 

Pertencem á historia das heroicidades portugue- 
zas de todos os tempos, até ao mais obscuro, ao 
mais humilde, ao ultimo, esses cincoenta homens, 
paladinos de uma aventura que parece antiga, jogo 
terrível da morte em que todos estavam conscien- 
tes do perigo e voluntariamente o buscavam ! E so- 
branceiro a elles, a figura extraordinária de Mousi- 
nho, como sobranceiro aos setenta do passo de 
Cambalam, a figura épica de Duarte Pacheco ! 

Não sabemos se aquella aventura tem prece- 
dentes nas modernas campanhas d'Africa. Com to- 
das as suas circumstancias características, se alguns 
tem, devem ser raros. 

Na historia militar portugueza conhecemos um 
facto que se assimilha pelo arrojo, mas que lhe fica 
inferior pelas condições especiaes que o caracteri- 
sam. 

É a tomada do forte chinez do Passaleão, pró- 
ximo de Macau, na tarde do dia 25 d'agosto de 
1849. Projectando os chinezes atacar Macau, com 
o auxilio da enorme população chineza da cidade, 
reuniram 2.000 homens nas alturas visinhas da 
Porta do Cerco e guarneceram com 400 soldados 
o forte do Passaleão, que tinha 20 canhões de ca- 
libre 18 e ficava fronteiro aquella Porta. As bate- 
rias chinezas começaram a fazer fogo contra a cidade, 
reduzida a um punhado de soldados. Exasperado 
pela inércia a que se via forçada a pequena guar- 
nição portugueza da Porta do Cerco, o segundo te- 
nente de artilheria, Vicente Nicolau de Mesquita, de- 
cide-se a tomar a offensiva e, appellando para os bra- 
vos que tem sob o' seu commando, encontra 36 
soldados, que voluntariamente se resolvem a se- 
guil-o n'aquella aventura de morte. O tenente Mes- 
quita arroja-se contra o forte á frente dos seus 
trinta e seis bravos. O velho obuz que levava inu- 



/ 
1 



tilisou-sc ao segundo tiro. Deixal-o. Abandonaram 
o obuz e avançam a um de fundo, por entre cam- 
pos de arroz, sob o fogo do forte. Naturalmente 
pusill animes e talvez subitamente recordados da 
nossa velha tradição de leões do mar, os chinezes, 
sentem-se amedrontados ante o arrojo d^quelle pu- 
nhado d'homens, julgam talvez que outros os se- 
guirão, igualmente resolutos, e, num movimento ir- 
resistível de terror, abandonam os canhões, largam 
as armas e fogem do forte, como creanças doidas 
de medo! Os dois mil das alturas visinhas fogem 
também, e 3y po/^tuguezes tomaram um forte de 
vinte canhões e põem em fuga 2.400 soldados! 

Esta façanha, que os incrédulos da Europa sup- 
punham inventada, teve uma testemunha ocular es- 
trangeira, de alto renome, a dar-lhe publicidade. Foi 
o hespanhol D. Sinibaldo de Mas, que a relatou na 
sua obra La Chitte et les paissances chrétiennes, pu- 
blicada em Paris em 1861, um anno depois que 
três mil francezes, sob o commando de Montauban, 
haviam derrotado trinta mil chinezes na batalha de 
Palikáo, com grande assombro da Europa, que, 
provavelmente, não conhecia ou não acreditava no 
precedente do Passaleão. 

Mas na Africa o arrojo foi ainda maior. Os que 
atacaram o Passaleão tinham atraz de si Macau, 
a dois passos, e os que foram surprehcnder o Gun- 

fjunhana tinham atraz de si o sertão immenso das 
agunas e das febres, inhospito, onde se morre de 
fome e de sede. Mas os vátuas não são como os 
chinezes. Sãò da raça d'esses zulus contra os quaes 
algumas vezes se quebrou, pela desproporção do 
numero, a firmeza intrépida dos soldados inglezes, 
inabaláveis como rochedos nos quadrados de Wa- 
terloo e, ainda bem recentemente, admiráveis de 
constância na defeza de um forte, na campanha do 
Chitral, contra Umra-Khan (1895). 

Em relação ás difficuldadas de meios de trans 
porte e á morosidade das marchas nada encontra- 
remos que deva admirar-nos. 



7° 



Já vimos no capitulo antecedente que os ingle- 
ses de Robert Napier levaram á Abyssinia um nu- 
mero de animaes de carga approximadamente egual 
ao dos creados e serventes, que era maior ainda que 
' o dos soldados. Na marcha para Magdala, que du- 
rou dois mezes e meio, a média foi de 8 kilometros 
por dia. No caminho morreram n.ooo animaes de 
carga e de combate. A maior mortalidade deu-se 
entre as mulas adquiridas em Hespanha. As que 
foram compradas na Svria e no norte da índia e 
os burros trazidos do Égypto deram boas provas 
de resistência. 

Quando em Inglaterra se organisava a expedição 
contra os Achantis, o estado maior inglez calculava 
que a marcha de Akra para Coumassie (280 kilo- 
metros) devia levar seis semanas, ou seja a média 
de 6k,6 por dia. 

No desafogo da sua immensa riqueza, sem pre- 
cisão de restringir despezas, a Inglaterra fèz acqui- 
sição de 25.000 bois, 3. 000 mulas e 400 cavallos, 

Eara o serviço do seu corpo de operações (9 a 10.000 
omens) na guerra contra os zulus, cujas forças em 
campanha nao excediam 24 a 23.000 homens. 

Em quanto á desigualdade das forças bellige- 
rantes, não encontramos exemplos de outras supe- 
riores ás dos nossos contra os cafres e vátuas, nas 
modernas campanhas coloniaes, e quando em combate 
as ditferenças de força teem sido quasi eguaes ou 
mesmo eguaes ás de Magul e Coolella, a derrota 
tem chegado a proporções trágicas, como no anno 
passado a de Amba-Alaghi, em que os 1.260 
soldados da columna italiana do major Toselli fo- 
ram esmagados por 23.000 homçns do exercito 
choano. Era 1 para 20. 

Nas campanhas de Dahomé a maior despropor- 
ção em combate foi de 1 para 10, approximada- 
mente, na acção de Atchoupa e na retirada para 
Adjoana. Os francezes eram 760 com 3 canhões. 
Os dahomeanos 7.000. Os francezes formaram qua- 
drado; os dahomeanos por três vezes tentaram 



7 1 

romper-lho; não o conseguiram, mas o quadrado 
teve de retirar, perseguido sempre pelo inimigo, 
até Adjoana, onde a artilheria de marinha conse- 
guiu pôr em fuga a gente de Behanzin e salvar a 
pequena columna em perigo. 

Na ultima campanha de Madagáscar não ha 
•desproporções notáveis a registar. Os hovas conta- 
vam muito mais com o auxilio do clima do que 
com a sua bravura e com as suas excellentes ar- 
mas de fogo rápido. Foi uma campanha de enormes 
e lúgubres sacrifícios, que fazem honra á coragem 
soffredora do soldado francez, mas não foi uma 
campanha de combates brilhantes. Quasi se pôde 
<lizer que foi a campanha das febres e que se dis- 
pendeu mais em quinino que em pólvora. 

Quando o general Duchesne avançou para Ta- 
nanarive, a cidade semi-europêa, de 100.000 habi- 
tantes, erguida no seu ninho de rochas e argillas 
vermelhas, a 1.554 metros de altitude, e quando 
sobre o grande quadrilátero do palácio de Manja- 
kaimadana, com os seus terraços pejados de ca- 
nhões, fluctuava ainda a bandeira branca e verme- 
lha da rainha Ranavalo, já da brilhante divisão 
franceza de 17.500 homens, não havia válidos se- 
não, a bem dizer, os batalhões do Senegal, da Reu- 
nião e da tribu sakalave. 

Estava, porém, conquistada essa grande ilha, 
maior do que a França, e á qual os antigos navegado- 
res portuguezes tinham dado o nome de ilha de S. 
Lourenço, trezentos e oitenta e nove annos antes. 

Mas ha nas guerras d'Africa um precedente de 
maior desproporção de forças. E' um combate entre 
400 boers e i5.ooo zulus. Foi em 1810. Mas os zulus 
mal conheciam então as armas de fogo e os boers, 
no seu meio próprio, inaccessiveis á acção depau- 

1 geradora do clima, na posse plena das suas forças, 
imitaram-se a uma simples defensiva e o seu qua- 
drado tinha por parapeitos, não os corações dos 
soldados, como os nossos quadrados, mas os enor- 
mes carros dos seus comboios sertanejos. Forma- 

5 



72 

ram o que elles denominam laager. As zagaias dos 
zulus iam cravar-se na rija madeira dos vehiculos e 
os tiros certeiros das armas de silex dos boers tor- 
navam quasi impossível o assalto d'aquella impro- 
visada fortaleza. E tanto que os boers não perde- 
ram um homem sequer. 

Nas guerras entre os boers e os zulus houve 
combates muito mais mortíferos do que os das nos- 
sas ultimas campanhas. Assim, no combate de Blood 
River os zulus tiveram 3.ooo mortos, mas os boers 
apenas 3 feridos (i838). 

Não fazemos confrontos no intento pueril de 
apoucar estranhas glorificações ou de fazer suppôr 

3ue são inimitáveis as façanhas dos nossos solda- 
os. 
Seria ridículo e seria inútil. Pelo contrario. Já o 
dissemos. Para aquilatar bem os feitos das nossas 
ultimas campanhas é que nós buscamos a lição, o 
precedente, o exemplo das nações militares de mais 
altivo esforço e de mais remontada gloria. 






Sabemos quaes foram sempre as altas qualida- 
des militares, as grandes qualidades antigas do sol- 
dado portuguez. Lstavam provadas. 

As ultimas campanhas d^Airica, em que nunca 
as nossas tropas retiraram batidas e sempre fica- 
ram vencedoras, mesmo em condições excepcionaes, 
como em Marracuene, mesmo devorados pela sede, 
como em Magul, mesmo a tremer de febre, como 
em Coolella, vieram provar a um tempo a solida- 
riedade com o passado, pelas qualidades indivi- 
duaes, e a solidariedade com o presente pelos pro- 
gressos revelados. 

Não foram apenas valentes e soffredores em ex- 
traordinárias condições de perigo e de provações ; fo- 



73 

ram um alto exemplo de disciplina nos combates e 
de confraternidade nos sacrifícios. 

Houve o traço heróico, antigo, e o grande traço 
moderno dos exércitos cultos, na acção moral de 
quem commandava e na devotada cooperação de 
quem obedecia. 

Não fosse o commando das grandes e pequenas 
unidades culto e prestigioso, de modo a impor 
áquelles excellentes soldados a sua superioridade 
moral, realce e complemento da superioridade hie- 
rarchica ; não tivessem os officiaes a noção theorica 
das modernas guerras d'Africa, já que, na sua quasi 
totalidade, não tinham o tirocínio das campanhas 
sertanejas, não mantivessem as unidades sob a sua 
acção directa, mesmo nos lances mais críticos da 
lucta e não tivessem os soldados a pratica do tiro 
nas carreiras de instrucção; e, para vencer em tão 
difficil conjunctura, não bastaria decerto todo o 
estimulo do patriotismo e todo o esforço do animo. 

Realisou-se até, como havemos de ver na descri- 
pção dos combates, um facto de disciplina do fogo, 
com gue muita gente não contava e que mesmo nos 
exércitos de mais aprimorada instrucção nem sem- 
pre será provável que se dê. 

No quadrado de Magul o fogo foi interrompido 
serenamente, a toque de corneta, para esperar que 
se dissipasse a fumaceira e se poaesse visar bem o 
inimigo, que investia o quadrado, como um oceano 
enorme contra um rochedo isolado. 

No quadrado de Coolella conseguem os officiaes 
que os fogos sejam feitos á voz de commando, 
tranquilla e correctamente, como em um campo de 
exercício, e tinham deante de si um inimigo feroz, 
arrojado, vinte vezes superior! 

Quando nos exércitos da Europa se pensou na 
adopção das espingardas de repetição, um argu- 
mento se formulou immediatamente, em toda a parte, 
contra as novas armas — a precipitação dos fogos, 
tendo como consequência inevitável o desperdi- 
cio das balas e um grande e perigoso consummo 



74 

de munições. As tropas de mais acurada instrucção 
e de mais inabalável disciplina não resistiriam — 
dizia-se — em certos lances da lucta, á tentação de 
disparar muitos tiros, embora ineficazes e sem ne- 
nhum effeito moral e material nos adversários. Nada 
mais difficil de conseguir, principalmente com tro- 
pas novas e inexperientes, do que a disciplina do 
fogo — affirmavam os officiaes mais largamente ex- 
perimentados nas campanhas da Europa. Deante de 
um inimigo mais numeroso, em face de um perigo 
evidente, toda a acção restrictiva do commando 
seria inútil e todo o serviço de abastecimento de 
munições se tornaria insuficiente. 

A arma de repetição aggravaria consideravel- 
mente o perigo, que já se havia revelado com a 
Chassepot nas mãos dos francezes, na guerra de 
1870, e com a Peabody, nas mãos dos turcos, 
na guerra de 1875. Fa^ia-se a torrente de balas a 
grandes distancias, desbaratavam-se as munições a 
ponto de faltarem para o lance difficil e habituava-se 
o inimigo ao effeito moral dos fogos intensos, exa- 
ctamente quando elles não podiam abalal-o, porque 
as balas se perdiam doidamente. 

Na Africa então, ainda o perigo seria maior. Ali 
o transporte das munições de guerra representa 
quasi sempre importantes sacrifícios e difficuldades 
enormes ; ali o europeu não pode supportar o peso 
de um grande municiamento, ali a victoria do branco 
depende em grande parte, não das balas perdidas, 
que servem apenas para estimular a coragem do 
negro, dando-lhe uma falsa noção da eficácia dos 
armamentos europeus; mas dos effeitos dos fogos, 
na sua dupla acção pelo anniquilamento e pelo ter- 
ror. 

No combate de Atchoupa (Dahomé) os france- 
zes foram por tal modo immoderados nos fogos, 
que as munições escassearam por forma a recear-se 
um desastre. 

Nas suas lucidissimas opiniões acerca das guer- 
ras d' Africa, o major Wissmann aconselha os fogos 



75 

de commando, especialmente nas tropas auxiliares, 
por serem geralmente as menos instruídas e de 
menos segura disciplina. 

Pois os nossos soldados, armados com uma ar- 
ma de repetição — a Kropatschek — soldados noviços 
de um ou dois annos de serviço na quasi totalidade, 
sem nenhuma experiência da guerra e tendo, clara- 
mente, deante de si o perigo de uma chacina selva- 
gem, se cada um não valesse por vinte, executam 
os fogos com a regularidade admirável de uma ma- 
china, que a acção do commando move precisa- 
mente, como se dos campos de exercício da Alle- 
manha ou da França houvessem partido para os 
sertões ! 

Como por esta admirável serenidade e intré- 
pida obediência esses gloriosos quadrados recordam 
aauella altiva brigada portugueza que, na batalha de 
AÍbuera, (1811) avançava em linha, com um pe- 
queno quadrado em cada flanco, parando apenas de 
espaço a espaço para receber e repellir as cargas 
impetuosas dos lanceiros polacos do exercito de 
Soult ! Talvez não tivesse precedentes ! Com armas 
de silex não se avançava em linha sob a acção offen- 
siva de uma cavallaria numerosa e arrojada! 

E aqui está como na mediania da nossa pobreza 
e na modéstia da nossa categoria politica, a histo- 
ria militar portugueza, que tinha já as grandes pa- 
ginas da cruzada contra o mouro e da lucta contra 
Castella e a espantosa aventura da conquista de um 
império, que só tinha pela grandeza o precedente 
do império romano ! ; aqui está como essa historia 
tem no presente século estes feitos, talvez sem pre- 
cedentes : 



1 Tel est le début héroique de ce petit royaume : un com- 
pagnon idu Cid commence ses glorieuses destinées, elles ne 
s'acheveront que lorsque, de victoire en victoire, 1'empire des 
Portugais aura presque égalé en étendu celui des Romains. 

(Histoire du Portugal, par Mr. Ferdinand Denis). 



76 

qA marcha de Albuera. 

O quadrado de Marracuene, refeito sob a acção 
ojfensiva de um inimigo quatro ou cinco ve\es supe- 
rior. 

Os quadrados de Magul e Coolella, vencendo 
pela intrepidez do commando e pela serenidade dos 
fogos, um inimigo mais de vinte ve\es superior. 

O assalto de Chaimite, 5o homem em frente 
de três mil, encerrando a campanha n'um prodígio 
de audácia, que parece recortado de alguma velha 
lenda medieval. 



III 



MOÇAMBIQUE 



Pouco explorada e pouco propicia ás nossas ar- 
mas, a Africa Oriental, com excepção da ilha de 
Moçambique, e das praças moiras de Zanzibar, 
Mascate, Quiloa, Melinde e Mombaça, foi a região do 
nosso domínio colonial que mais ficou envolta em 
sombras, durante o largo período das conquistas. 

Ainda ignorados os jazigos aurificos que o Bra- 
sil recatava no leito dos seus rios e nas entranhas 
das suas serranias, um momento houve em que os 
portuguezes procuraram avidamente em Sofala a 
tradição remota do Ophir, e buscaram pelo valle do 
Zambeze as minas famosas do Monomotapa, com 
a mesma avidez com que os hespanhoes tinham 
procurado na America a visão estonteadôra do el- 
dorado. 

Mas em Sofala, avassallada por Pedro de Anhaya, 
<em i5o6, encontraram principalmente uma trágica 
decepção na azagaia do cafre e na febre do pân- 
tano. E das minas do Monomotapa quasi toda a 
primeira illusão se desfez na desastrosa expedição 



7« 

de Francisco Barreto, (ja indicada no primeiro ca- 
pitulo doeste livro), embora Vasco Homem Fernan- 
des lhe succedesse no commando e houvesse pene- 
trado na região mineira de Manica. 

Ainda assim, os aventureiros não desampara- 
ram o sertão de Moçambique. Foram subindo te- 
nazmente o Cuama, o Rio aos Bons Signaes da ex- 
pedição do Gama, o Zambeze, como hoje se deno- 
minam indiferentemente todos os ramos em que o 
grande rio se divide e braceja para o mar. Avan- 
çavam lentamente, mas iam fundado povoações pe- 
las suas margens e, estabelecendo as feiras do ser- 
tão, alargavam consideravelmente a sua preponde- 
rância commercial. 

Mas era tudo isto uma tarefa que ficava obscura 
entre os ruidosos commettimentos na Ásia. Nãa 
dava ainda epopêas o sangue derramado na lucta 
contra o negro selvagem do sertão de Moçambi- 
que. 

Sofala tem a prioridade na obra de occupação 
da costa. A fortaleza da ilha de Moçambique, a sua 
primeira egreja e o seu primeiro hospital são funda- 
ções posteriores (1507). 

Todavia Sofala, se não era o sonhado Ophir, foi 
por algum tempo uma estação para o resgate da 
ouro. Esboçando um quadro do ímmenso commer- 
cio de Lisboa, nos fins do século xvi, os embaixa- 
dores venezianos Tron e Lippomani dizem no rela- 
tório da sua missão diplomática que de Sofala vi- 
nham todos os annos para Lisboa cento e setenta 
barras de ouro, que valiam á rabeio de trezentos 
cruzados por barra. E com o ouro vinha também 
marfim. Aqui está por que essa povoação, hoje se- 
mi-morta, foi por muito tempo o mais importante, 
ou antes, o único centro importante do nosso com- 
mercio na costa de Moçambique. 

A pequena ilha onde se fundou a cidade de S- 
Sebastião, essa, excellente porto de escala e de 
abrigo, sentinella do grande canal por aonde passa- 
vam as frotas da índia, era uma posição estratégica 



79 

valiosíssima. Dir-se-hia uma grande nau de rocha e- 
coral que se immobilisára ali. 

Lourenço Marques, a famosa bahia dos nossos, 
dias, a promettedora cidade do futuro, era então- 
apenas a inaproveitada descoberta que D. João de 
Castro annunciava a D. João m em carta de ib^b e 
cujo completo descobrimento el-rei recommendava 
no anno ímmediato. 

Mas tão pouca importância se ligou depois á. 
grande bahia, que D. Sebastião a deixou fora dos- 
limites do nosso império oriental, dividido por elle- 
em três grandes governos, um dos quaes, o cia costa 
africana, começava no Cabo das Correntes, um 
pouco ao sul de Inhambane, e ia até ao Cabo Guar- 
dafui, defronte de Socotorá, a sentinella do estreito- 
de Bab-el-Mandeb. 

Inhambane, apenas uma pequena fortaleza e 
uma feitoria obscura, começara em 1579. 

E assim, o território de Moçambique existiu por 
largo tempo mais conhecido pela triste notoriedade 
que lhe davam os naufrágios das naus da índia e 
as sangrentas escaramuças com os negros do ser- 
tão, do que pela sua valia nos domínios do império,, 
apesar das barras de ouro de Sofala e da impor- 
tância estratégica de S. Sebastião. 

Angola * começou mais tarde, (1675), mas pro- 
grediu com muito: maior rapidez. O seu primeiro 
presidio, o de.Massangano, foi fundado quatro an- 
nos depois: de- Inhambane. 

O século -.xvii foi bem o primeiro período no- 
tável da historia de Moçambique. 

Persistentes, a despeito de todos os desastres^ 



1 Paulo Dias de Novaes, o iniciador da occupaçao de An- 

fola, foi nomeado capitão e governador do novo reino de Se- 
aste, na conquista da Ethiopia. 

Esta designação, longa e cortezã, ridícula homenagem a D. 
Sebastião, foi sensatamente substituída pela denominação in- 
dígena de Angola. 



8o 



os portuguezes continuram a penetrar no sertão. 
Auxiliaram o imperador do Monomotapa, em guerra 
contra outro potentado, e obtiveram aelle a doação 
das almejadas minas que tinha nos seus estados 
{1607). Um anno depois D. Estevão d'Athaide to- 
mava posse das celebres minas de Chicova. 

Mas se este facto chamou as attencoes da metro- 

Eole para aquella possessão, um outro devia lem- 
ral-a ainda mais vivamente. Para assegurarem o 
caminho d^ssa índia que nos iam arrancando aos 
pedaços, os hollandezes, que já estavam senhores 
do Cabo da Boa Esperança, decidiram conquistar 
Moçambique. Ia-lhes sendo fácil a empreza por que 
a praça de S. Sebastião estava desabastecida e quasi 
sem guarnição! A tempo lhe acudiu, porém, o go- 
vernador interino da índia, mandando-lhe manti- 
mentos e munições e um soccorro de i5o soldados. 
Era a salvação da praça. Em 1607 uma divisão na- 
val hollandeza atacava S. Sebastião e era repellida. 
Não desistiram, porém, os hollandezes e no anno im- 
mediato appareceu nas aguas de Moçambique uma 
poderosa esquadra de i3 naus, com 367 canhões, 
1.900 soldados de desembarque e abastecimentos 
para três annos. Commandava esta expedição o al- 
mirante Pedro Willemsz Verhoeven e com tão po- 
deroso armamento gastara a Companhia das índias 
Orientaes a importantíssima somma de dois milhões 
setecentas e noventa e seis mil libras ! 

A cidadella, governada por Estevão de Athaide, 
resistiu com heroicidade a um cerco de vinte e cinco 
dias. A sua diminuta guarnição não se limitou a uma 
simples defensiva ; atacou também os sitiadores em 
arrojadas sortidas. 

Verhoeven, convencido de que lhe seria difficil 
tomar a praça á viva força e, provavelmente, com 
as tropas já dizimadas pelas febres, reembarcou e 
fez-se de vela. 

Deixava em terra 3 o mortos e levava comsigo 
"8o feridos. Quiz, porém, disfarçar o desastre n'uma 
ruidosa selvageria. Mandou assassinar defronte da 



8i 



fortaleza os prisioneiros que fizera e allumiou a 
saida da sua esquadra com as labaredas da cidade 
incendiada ! 

Moçambique foi, todavia, mais feliz do que a 
índia e o Brazil, e tinha afinal a sua primeira pa- 
gina brilhante na historia militar de Portugal. 

O século xvn foi o cyclo das grandes missões 
na Ásia e»na Africa. 

Portugal teve então catechistas e peoneiros da 
civilisação, como tivera navegadores e soldados no 
seculô anterior. Moçambique teve também em Je- 
ronymo da Silva um catechista e viajante, que era da 
phalanse illustre dos que penetraram na Abyssinia, 
no Thibet, no Cabul, na Tartaria e na China. 

Outro padre, Luiz Marianno, descobria e assi- 
gnalava n'aquelle mesmo século esse famoso lago 
Nyassa (antigo Maravi), que Livingstone fingiu ter 
■descoberto. 

Dois factos de alta importância enchem a histo- 
ria da província, no século immediato. As tentativas 
da occupação de Lourenço Marques pelos hollan- 
dezes e depois pelos austríacos, e a primeira via- 
gem scientifica, em busca de caminho entre as duas 
costas oriental e occidental, pelo dr. Francisco José 
de Lacerda e Almeida, que a morte surprehendeu 
no Cazembe (1798). 

Os hollandezes foram expulsos, em 1732, belos 
austríacos, que lograram estabelecer-se mais firme- 
mente em Lourenço Marques e na Matolla. Só em 
1781 foi possível retomar-lhes a possessão. 

Reduzida a umas palhotas e ao simulacro de 
uma fortaleza, Lourenço Marques não valia n'aquelle 
tempo senão pela grandeza da sua excellente bahia. 
Ainda assim, os francezes saquearam em 1796 o 
pouquíssimo que lá havia e se não ficaram como 
dominadores, foi porque desde logo se viram feroz- 
mente hostilisados pelo clima e pelos cafres. 

Não vale a pena nem nos chega o espaço para 
registar algumas guerras obscuras com os pretos 
em toda a província, nem esses acontecimentos de 



82 



menor valia importam ao plano (festa noticia histó- 
rica. 

O século actual foi assignalado em Moçambique 
por estes acontecimentos de mais alta importância 
e renome: 

Invasões dos negros em Rios de Sena e Cabo 
Delgado, seguidas de horrorosos morticínios (1809)» 
Estas incursões foram vingadas pelas nossas forças 
em 1810 e i8i5. 

Annos depois a guerra reaccendia-se com lúgu- 
bre vigor e os habitantes de Sena tinham de fugir 
da povoação, desvairados pelo terror e pela fome» 

A decadência e o abandono da província eram 
cousas incontestáveis. Um governador enérgico e 
zeloso era bem a avis rara n'aquella maliadada 
província ! 

Em 1825 o apresamento de um navio inglez, 
que fazia contrabando, provocou um conflicto entre 
as auctoridades portuguezas e o capitão- Owen, com- 
mandante da fragata Leven. 

O conflicto era bem um pretexto para qualquer 
aventura, que as circumstancias não deixaram rea- 
lisar. Owen já tinha celebrado tratados com os ré- 
gulos de Temba e de Maputo (Lourenço Marques), 
fingindo suppôr que estes chefes não estavam sob 
o domínio de Portugal. 

Em 1828 fundava-se á nossa custa o sultanato 
de Zanzibar. O Iman de Mascate apoderára-se fa- 
cilmente de Mombaça e da ilha de Zanzibar. 

O anno de i83i foi honrosamente assignalado 
pela notável viagem do major Corrêa Monteiro e do 
capitão Pedroso Gamitto, ás terras do Cazembe, 
ainda no empenho antigo de procurar o caminha 
para a outra costa; assim como o anno de i833 foi 
tragicamente assignalado pela tomada e destruição 
de Lourenço Marques pelos patuás, e o de 1834 
pelo ataque e morticínios de Inhambane pelos ca- 
fres. 

Em i835 os vátuas surgem de novo nas suas 
formidáveis hostilidades e arrazam Sofala, a velha 



83 



capitania do resgate do ouro, a miniatura do so- 
nhado Ophir! 

Não dá tréguas a Lourenço Marques essa raça 
irrequieta e feroz, que se tornava o terror do ser- 
tão. Em 1848 o seu chefe, Manicusse, tentava im- 
por tributo ao governador do presidio e só em 1857 
se poude celebrar um tratado de paz entre o Attila 
negro e a auctoridade portugueza. 

A anarchia campeava infrene em toda a provin- 
cia. Em 1848 o sultão de Zanzibar apodera-se de 
Tungue, os cafres atacam Inhambane e assassinam 
o governador. No anno immediato rebentam suble- 
vações em Sofala, em Lourenço Marques e em 
Inhambane, que é outra vez assaltada pelos negros, 
€ rebenta uma nova guerra na Zambezia. 

Em 1857 o apresamento da barca franceza Char- 
les et George, suspeita de traficar em escravos, pro- 
voca um conflicto com a França e sujeita a nossa pe- 
quenez a uma iniquidade brutal de Napoleão 111. 

Em 1861 occupou-se Angoche e reoccupou-se o 
Zumbo. A morte do Manicusse levantara a questão 
da herança do poder e promovera uma guerra fe^- 
rocissima entre os dois irmãos Mahueva e Muzilla. 
Estas guerras pelo supremo poder são frequentes 
nos sertões, como foram frequentes e barbaras na 
Europa medieval e, principalmente, na Hespanha, 
ou nas monarchias enristas ou nos amirados mus- 
sulmanos. Mahueva dispunha de um poderoso exer- 
cito, como teremos occasião de ver no capitulo em 
que nos oceuparmos dos vátuas, e Muzilla, compre- 
hendendo gue não podia resistir-lhe desajudado, foi 
pedir auxilio ao governador de Lourenço Marques, 

3ue lh'o concedeu, pondo á disposição do preten- 
ente uma importante força de cipaes. 
O reforço era valioso e o Muzilla venceu, de- 
pois de sangrentas batalhas. Pôde affirmar-se que 
nos devia o poder. Pagou-nos bem. Estabeleceu-se 
no paiz ao norte do Save, próximo das nascentes 
do Buzi e nas ramificações da serra Gitalonga, em 



84 



Mussurize. Fez-se um potentado formidável e em 
breve as razzias da sua gente annullavam Sofala e 
levavam o pavor e a devastação aos sertões da 
Zambezia e ao sertão de Inhambane. 

Na sua gratidão hypocrita, retorcida em restric- 
ções machiavelicas, o déspota negro simulava não 
comprehender a unidade da soberania portugue2a 
em Moçambique e só poupava Lourenço Marques, 
onde directamente recebera o auxilio que implorara 
e lhe dera o poder. 

Em 1869 um novo infortúnio militar veiu ente- 
nebrecer ainda mais a sombria tradição de Mocam- 
bique. A guerra de Massangano, a guerra contra a 
rebelde Bonga (o indio António Vicente da Cruz), 
foi uma das mais desastrosas que temos tido na 
Africa. Também difficilmente os defeitos de organi- 
sação e os erros e imprevidencias do commando 
podiam exceder os d'aquellas desgraçadas campa- 
nhas. Três expedições pequenas e deploravelmente 
constituídas se organisaram contra o rebelde. Duas 
na própria província e uma na metrópole. A pri- 
meira foi absolutamente inútil por falta de disci- 
plina dos elementos indígenas que a compunham. 
A segunda, também de tropas indígenas, deu uma 
carnificina sem combate. O rebelde pedira tréguas, 
que lhe foram concedidas, e a expedição em des- 
canço, sem nenhumas precauções, era surprehen- 
dida com as armas ensarilhadas, a comer o rancho, 
tranquilamente ! Foi morta á machadada pelos ne- 
gros que saiam da aringa (povoação e campo forti- 
ficado) do Bonga e que simulavam conduzir os ga- 
dos ás pastagens. Eram cerca de quinhentos ho- 
mens e escaparam 48 ! E' verdade que pouco tem- 
po depois (1870), na Europa e em uma das mais 
íllustres potencias militares do mundo, dava-se uma 
imprevidência parecida com uma divisão em cam- 
panha, e sem a attenuante da trégua! 

Da terceira expedição já demos noticia no se- 
gundo capitulo d'este livro. 



85 



Estas guerras produziram na província e na 
metrópole uma profunda impressão de desprestigio 
e de desalento. 

O Bonga morreu impune, e os seus descenden- 
tes, também em rebeldia, ameaçavam gravemente 
a paz e a prosperidade da Zambezia, quando, du- 
rante o governo do sr. conselheiro Augusto de Cas- 
tilho, se emprehendeu contra elles uma campanha, 
em que foram completamente destroçados, depois 
de renhidos combates. E' uma campanha que faz 
honra ao exercito ultramarino, ao glorioso explora- 
dor Paiva d'Andrada, e a um dos mais valentes e 
illustres officiaes da guarnição de Moçambique, o 
capitão Jayme José Ferreira. 

1875 é uma das mais bellas datas da historia de 
Moçambique, assim como 1895-1896 é hoje a mais 
brilhante de toda a sua historia de 398 annos, de- 
pois que os marinheiros do Gama cravaram na ilha 
de Moçambique aquelle pedaço de pedra que tinha 
a legenda da descoberta, grosseiramente esculpida 
por baixo do brazão de Portugal, e que se denomi- 
nava o padrão S. Jorge. 

Em 1875 foi decidida a nosso favor, por sen- 
tença arbitral do marechal Mac-Mahon, presidente 
da republica franceza, o litigio com a Inglaterra por 
causa dos direitos de posse a uma parte do distri- 
cto de Lourenço Marques. Na sua sentença, datada 
de Versailles, Mac-Mahon concluía assim : 

Nous avonsjugé et decide que les prétentions du 
Gonvernement de Sa Magesté Trés-Fidèle sur les 
territoires de Tembe et de Maputo, sur lapresqiiile 
átlnyack, sur les iles dlnyack et des Kléphants y 
sont dúment prouvées et établies. 

Nove annos depois accentuava-se a crise gravís- 
sima de Moçambique. Os aventureiros inglezes ap- 
pareciam na Machona e no paiz dos Matabelles e 
approximavam-se das fronteiras de Manica e de 
Gaza. A morte do Muzilla e a ascenção ao poder 



86 



«de Mundagaz, o primogénito do regulo morto, o 
Gungúnhana emfim, produzindo natural abalo entre 
os vátuas e os povos subjugados, suscitaram na pro- 
víncia os legitimos receios de uma guerra, que, por 
não ser directamente contra nós, nem por isso dei- 
xaria de nos ser funesta. A revolta do Massingire. 
•contra a companhia do ópio, era também outro pe- 
rigo, que se antolhava formidável. 

Por nossa fortuna só dos três perigos apontados 
um subsistiu e se aggravou. Os outros dois conju- 
raram-se com relativa fortuna. A successao do Mu- 
zilla não produziu as guerras, que eram do estylo nos 
usos africanos. O Gungúnhana mandou assassinar os 
irmãos, que podiam pleitear-lhe o poder, e os vátuas 
reconheceram-no como seu legitimo chefe. Na sua 
•astuta previdência, que não lera Machiavel, mas 
«que instinctivamente o seguia, pensou o Gungúnhana 
que lhe seria útil fingir-se vassallo da coroa portu- 
gueza, pelo menos, emquanto se não firmava no 
poder e não cingia bem na sua garra de tigre os 
povos que seu pae lhe legara. Podia mesmo levan- 
tar-se algum conflicto com os régulos seus vassa- 
llos e a intervenção dos portuguezes não seria para 
desdenhar. O Mundagaz sabia bem a historia de- 
seu tio Mahueva, derrotado pelo Muzilla, graças ao 
auxilio do governador de Lourenço Marques. 

Refere Pinheiro Chagas no seu livro : As coló- 
nias portuguesas no século xix: «Ao mesmo tempo, 
o que era de uma importância extrema, aproveita- 
va-se a morte de Muzilla, para se travarem relações 
com o Gungúnhana, seu successor. Poderá realisar 
este acto importantíssimo um empregado da pro- 
víncia de Moçambique, o sr. José Casaleiro de Ale- 
gria Rodrigues, que já tinha relações pessoaes com 
o novo regulo e que habilmente as aproveitou. O 
Gungúnhana enviou embaixadores a Lisboa, que 
assignaram no dia 12 d'outubro de i8g5 um termo 
de vassallagem, pelo qual o governo portuguez po- 
dia estabelecer residentes nas terras de Gaza, go- 
vernadas pelo Gungúnhana, e onde ficávamos exer- 



«7 

cendo assim o nosso protectorado. O decreto de 19 
de novembro creou o logar de residente chefe e de 
residentes, sendo nomeado residente-chefe o pró- 
prio sr. José Casaleiro de Alegria Rodrigues». 

Não vale a pena dirimir este ponto. Proposta 
pelo próprio regulo ao sr. Alegria Rodrigues ou por 
este ao regulo, o facto capital é a vassallagem e 
essa, em boa paz, dependia exclusivamente' da von- 
tade do Gungunhana. 

A mesma idéa de velhaca diplomacia negra e o 
mesmo interesse próprio o moveram decerto como 
proponente ou como simples acceitante. 

Em qualquer dos casos, procurava captar as 
sympathias dos portuguezes, emquanto não firmava 
nos sertões o sanguinário prestigio da sua omnipo- 
tência. Iria consolidando o seu poder, consagrando 
a successão nas superstições sertanejas, explorando- 
nos descuidosos, e um dia, elle bem sabia o que 
havia de fazer cTaquella theorica vassallagem, que 
indirectamente o protegia, sem a cousa nenhuma o 
obrigar. O pae fizera o mesmo, impunemente. Tam- 
bém era vassallo nosso desde 1861, e, desde o 
Zambeze ao Incomati, foi o dominador implacável 
dos sertões, assolados pelos seus vátnas, e tornou 
necessária a transferencia do governo do districto 
de Sofala para a ilha de Chiluane. 

Como os territórios em que o Gungunhana exer- 
cia domínio chegavam á Machona, allega Pinheiro 
Chagas no seu livro que foi, graças ao tratado de 
vassallagem com o chefe vátua, que a Inglaterra li- 
mitou as suas pretenções na fronteira da Machona- 
land. E tanto em 1890 (data da publicação do livro 
a que nos estamos referindo) o successor de Mu- 
zilla era o pesadelo dos que se interessavam pela 
situação de Moçambique, que Pinheiro Chagas af- 
firmava que o rompimento aesse tratado por parte 
do Gungunhana seria a perda completa do nosso 
território até Sofala. Quer dizer, a perda dessa 
vasta região importaria fatalmente a perda de Lou- 
renço Marques, de que nos haviam de esbulhar em 

6 



1 



88 



nome da civilisação, desde que os vátuas lograssem 
expulsar-nos do territerio de Inhambane. A impor- 
tância de Moçambique ficaria então completamente 
annullada. 

Felizmente, o futuro desmentiu o lúgubre vati- 
cínio, que não era só de Pinheiro Chagas, um pouco 
suspeito de enthusiasmo pelo tratado que fora cele- 
brado, quando o brilhantíssimo escriptor era minis- 
tro da marinha e do ultramar. 

O outro perigo que indicámos era a revolta do 
Massingire, e essa foi rapidamente debellada (1884). 

Mas com os primeiros rebates da tempestade 
imminente coincidiu um período de extraordinária 
actividade e de gloriosas expedições geographicas e 
politicas, que directa ou indirectamente interessa- 
vam, á província. 

A travessia de Serpa Pinto, de Benguella a Dur- 
ban, uma espantosa odyssêa de audácias, seguiu-se 
a notabilissima travessia de Hermenegildo Capello e 
Roberto Ivens do sertão de Angola a Tete. Era 
uma resurreição do nosso passado de peoneiros da 
civilisação. Já tínhamos nomes brilhantes a oppôr 
aos nomes famosos de Cameron e Stanley, nos fas- 
tos da geographia africana. 

Serpa Pinto e Augusto Cardoso emprehendem 
a viagem de exploração ao Nyassa, que só o se 
gundo concluiu, porque Serpa Pinto adoecera gra- 
vemente. 

A marinha e o exercito davam alguns dos seus 
mais illustre officiaes para estas aspérrimas e in- 
cruentes campanhas da civilisação. 

Retoma-se Tungue, que nos fora usurpado pelo 
sultão de Zanzibar; António Maria Cardoso vae ao 
Nyassa completar a tarefa da expedição de Augusto 
Cardoso; Serpa Pinto parte para o Chire em pro- 
cura d'aquelle intrépido explorador em perigo; Paiva 
d'Andrada e Victor Cordon avançam pela alta Zam- 
cezia, recebendo os testemunhos de vassallagem. 
dos régulos á soberania portueueza. 

Um dia, porém, os Makololos, que pretendiam 



89 

oppôr-se á passagem de Serpa Pinto, são batidos 
no combate de Mupassa e João d 1 Azevedo Couti- 
nho, a bordo de uma lancha canhoneira, no Chire, 
sustenta, com a sua característica bravura, a honra 
e as tradições da bandeira do seu paiz. 

De súbito, como as tempestades nas regiões tro- 
picaes, todos esses clarões deslumbradores se apa- 
gam sob nuvens, negras como crepes. Surge o des- 
graçado conflicto com a Inglaterra (1890) e o ultimo 
argumento, a ultima ratio Foi do mais forte, immen- 
samente mais forte. 

Em evidencia, numa evidencia que nunca ti- 
vera, mais cubicada ainda do que o fora a índia, 
duzentos annos antes, Moçambique fazia-se a nossa 
angustiosa preoccupação, o nosso immenso pesa- 
delo. 

A situação excepcional da província e os receios 
de um novo conflicto com a gente armada da South 
Africa, a poderosa companhia que dominava na 
Machona e no paiz dos Matabelles, impunham a ne- 
cessidade e um pouco o desafogo patriótico de uma 
expedição europêa ás regiões da Beira e Manica, 
regiões mineiras opulentas, entregues á exploração 
da Companhia de Moçambique. O rio Pungue era 
a linha de penetração para os famosos paizes de 
Quiteve, Manica e Barue e para a Machona, anti- 
gos domínios do remoto império do Monomotapa, 
e o Pungue era um rio portuguez, que convinha 
guardar n'aquelle momento histórico de amargas e 
insoffridas exaltações. 

Já um anno antes houvera um grave conflicto 
entre a gente da opulenta companhia ingleza, que 
fora fundada em 1889 com direitos magestaticos, e 
os representantes da Companhia de Moçambique. 
O incidente produziu enorme sensação na provín- 
cia e na metrópole, e em Lourenço Marques foi or- 
ganisado um batalhão de voluntários, destinado a 
Manica. Era então governador d'aquelle districto o 
capitão de cavallaria Joaquim Mousinho de Albu- 
querque e o commandante do batalhão era o major 



1 



9 o 

Alfredo Augusto Caldas Xavier, dois bravos cujos 
nomes inolvidáveis estão já vinculados a uma das 
mais brilhantes paginas da historia portugueza. 

■ ^Depois de uma marcha penosíssima, o batalhão 
fez v um reconhecimento offensivo á posição em que 
a sente armada da South Africa se havia fortifi- 
cado e que ficava a três kilometros de Massequesse. 
Houve perdas de parte a parte e dos nossos foi 
ferido o capitão Augusto de Bettencourt, que, em 
quanto poude, fez fogo e se bateu intrepidamente 
como um simples soldado. Nada mais houve e to- 
das as conveniências politicas indicavam que nada 
mais devia haver. 

Um dos mais valentes e illustres officiaes da guar- 
nição de Moçambique dizia-nos um anno depois em 
Lisboa: Foi uma providencia não se ter levado a 
artilheria; se houvesse ido, teria sido possível ven- 
cer, mas a victoria não valeria na província os pe- 
rigos e as catastrophes que havia de custar na me- 
trópole. 

Da expedição do exercito, cujos serviços foram 
valiosíssimos para o progresso e para a civilisação 
da província, por que foi de paz toda a sua tarefa; 
d'essa já demos brevíssima noticia no primeiro ca- 
pitulo. 

Depois celebrou-se com a Inglaterra, em 4 de 
junho de 1891, um tratado de limites da província 
de Moçambique. Era a modificação de um outro 
tratado, que fora firmado em 20 d'agosto de i8qo. 
Recentemente tivemos um conflicto com a Aíle- 
manha por causa da posse de Kionga. Era a desil- 
lusão e o epilogo do tratado platónico de 1886, que 
nos foi completamente inútil. 

E aqui está como essa província de tão obscu- 
ros princípios, de tão mal auspiciada occupação, se 
tornou n'este fim de século o domínio mais notável 
e mais inquietador do nosso império colonial, talvez 
o mais opulento e indubitavelmente o mais peri- 
goso. 

Nas suas crises successivas, grandes, temíveis, 



9 1 

assoberbadoras, a maior foi a da rebellião dos ca- 
fres, que teve Lourenço Marques a dois passos da 
ruina e da intervenção estrangeira, e a da guerra 
contra o Gungunhana, que muita gente considerava 
uma temeridade e que, longe de ser um desastre 
funesto, como certas cobiças suppunham e espera- 
vam, se tornou a maior e a mais rutila gloria militar 
aue as tropas portuguezas teem alcançado na Africa, 
depois da conquista marroquina. 

Por este pequeno esboço histórico terá compre- 
hendido o leitor que divida enorme de desforço, di- 
vida de sessenta e dois annos, tínhamos a saldar com 
os vátuas e que necessidade suprema tínhamos ali 
de levantar o decahido prestigio do nosso nome. 

* * 

Contendo enormes riquezas naturaes, a foz de um 
dos maiores rios do continente negro e um dos mais 
vastos ancoradouros do mundo ; confinando ao norte 
com domínios da Allemanha, ao oeste com territó- 
rios inglezes e com o Transvaal; sendo sua a linha 
fácil de penetração para o Nyassa, a linha única de 
penetração para as regiões do ouro na Machonia e 
a linha primacial de penetração para o Transvaal, 
o paiz do ouro e dos diamantes ; Moçambique, alon- 
gada pelo seu immenso littoral de 2.000 kilometros, 
fronteiro á possessão franceza de Madagáscar, é 
bem uma colónia que deve ser de immensa impor- 
tância commercial e que é já de altíssima importân- 
cia politica. 

A sua superfície, incluindo os domínios exclusi- 
vamente históricos ou nominaes, era calculada ha 
2uinze annos por Oliveira Martins, no seu livro — 
> Brasil e as colónias portuguesas — em 1.284.000 
kilometros quadrados, em quanto a área de Angola 
era avaliada no mesmo livro em 908.000 kilometros 
quadrados. 

Na sua Geogt*aphia Geral o sr. Raposo Botelho 



9 2 

avalia-lhe a superfície em cerca de um milhão de 
kilometros quadados, depois do tratado de 1891, 
e calcula a área de Angola em cerca de dois milhões 
de kilometros quadrados. 

Em 1895 a superfície de Moçambique era ava- 
liada na Révue Militaire de VEtranger em 990.000 
kilometros quadrados. 

Segundo o calculo de um illustrado africanista, 
auctondade neste assumpto, a superfície de Mo- 
çambique é .de 785.000 kilometros quadrados, como 
a de Angola é quasi o dobro, com a addição da 
Lunda, ou seja uma área de 1.372.500 kilometros 
quadrados. 

Mesmo por esta avaliação, Moçambique é muito 
maior do que a França (528.600 k. q.), é quasi o 
dobro de todas as colónias da Hespanha (429.200 
k. q.), tem uma superfície dupla da do território in- 
glez na Europa (314.628 k. q.). 

A falta de seguras estatísticas não permitte que 
se possa fixar a população de Moçambique. Oliveira 
Martins calculava-a em 368.411 almas nq seu livro 
de 1881, certamente, porque avaliava apenas a po- 
pulação dos paizes directamente sujeitos á auctorí- 
dade portugueza ; e o articulista da Révue Militaire 
de VEtranger, a que já nos referimos, avaliou-a em 
i.5oo.ooo almas, tomando em conta, provavelmente, 
todas as populações comprehendidas nos amplos li- 
mites da província. 

Actualmente as suas regiões mais importantes, 
sob o ponto de vista do commercio e da politica 
colonial, são, por sua ordem, as de Lourenço Mar- 
ques, de Manica e de Inhambane. 

De duas unicamente intentamos occupar-nos em 
brevíssima noticia, por terem sido o tneatro das 
operações da nossa ultima guerra d'Africa — a de 
Lourenço Marques e a de Inhambane. 



93 

Com o seu mesquinho forte de Nossa Senhora 
da Conceição, uma casa de madeira e algumas de- 
zenas de palhotas, que habitavam cafres e Índios, 
Lourenço Marques era ha setenta annos uma po- 
voação miseranda, em volta de um pântano e uma 
feitoria onde, quasi exclusivamente se traficava em 
marfim, n'uma curva da sua immensa bahia, sem 
rival na Africa. 

Hoje, com os seus edifícios de pedra, de ma- 
deira ou de ferro, com a sua egreja de estylo go- 
thico e as suas praças regulares e as suas pequenas 
avenidas illuminadas, com o seu hospital moderno, 
com os seus estabelecimentos de nacionalidades di- 
versíssimas, com as suas fabricas, com os enormes 
hangares, os seus hotéis, a sua estação do caminho 
de ferro, que a liga ao Transvaal, a Pretória, a ca- 
pital do glorioso povo bóer, e a Johannesburg, a 
cidade prodigiosa do ouro; hoje Lourenço Marques, 
empório nosso e cáes dos boe?*s, é ainda uma cidade 
infantil, um esboço do progresso europeu, mas é já 
uma cidade, saudada tnumphalmente pelos uivos da 
locomotovia, como ha setenta annos era apavorada, 
no seu esmorecido isolamento, pelo rugido das fe- 
ras, impacientes de fome. 

A palhota infecta cedeu o passo á gare ruidosa 
e o bulício da civilisação afastou o cafre semi-nu, 
como um jacto de luz afasta estonteada a ave no- 
ctívaga. 

Está dado apenas o primeiro passo, cercado de 
perigos, mas já promettedor, mas já brilhante. 

Em i de julho de 1857 o presidio e a povoação 
tinham 83 europeus de ambos os sexos, 44 asiáti- 
cos, 2 americanos e 785 negros libertos e escravos, 
ou 914 pessoas. 

Ha dois annos havia na cidade e arredores 5i2 
portuguezes, 100 inglezes, 28 hollandezes, 26 alle- 
mães, 20 francezes, i3 suissos, 16 gregos, 6 hespa- 
nhoes, 7 italianos, 2 austríacos, 1 dinamarquez, 1 
sueco, 12 japonezes, 2 americanos, 2 brazileiros, 
99 indios portuguezes, 116 índios inglezes e 52 chi- 



94 

nezes, ou seja um total de 1.017 habitantes, dos 
quaes 611 portuguezes da Europa e da índia. 

Ultimamente a população da cidade tem tido um 
augmento considerável, em que mais avulta a colo- 
nia italiana. 

Ha 40 annos a alfandega de Lourenço Marques 
rendia apenas 2:675^726 réis e ha um anno já 
esse rendimento excedia 340 contos! O movimenta 
de importação, que ha trinta annos era insignificante, 
era ha um anno de 3.3o3:874#66o réis! 

E hade augmentar espantosamente, visto coma 
é aquelle o porto fácil de importação e exportação 
do Transvaal, paiz riquíssimo com uma população 
de 649:560 habitantes, dos quaes mais de 120.00a 
brancos e approximadamente 60.000 boers, e com 
um movimento commercial de mais de seis milhões 
de libras sterlinas. 

Mas a população e o movimento commercial d'a- 

âuelle paiz hão de ter em breves annos um alta 
esenvolvimento, porque é escacissimo aquelle nu- 
mero de habitantes para uma área de 292.000 kilo- 
metros quadrados, ou quasi a superfície da Itália 
(296.328 k. q.). 

Actualmente não chegam já para o trafego com- 
mercial de Lourenço Marques nem a ponte de de- 
sembarque, nem o material circulante do caminha 
de ferro, nem os hangares da alfandega, que ha 
poucos annos se consideravam desnecessariamente 
grandes. 

Não é propósito nosso traçar aqui um quadra 
dos progressos da colónia, mas dar apenas uma idéa 
rápida da sua situação, visto que foi a cidade o cen- 
tro de concentração de tropas e a base de opera- 
ções da campanha contra os cafres e que nos seus 
sertões se travaram os primeiros combates da ul- 
tima guerra. N'este ponto seguimos o exemplo dos 
escriptores estrangeiros na nistoria das modernas 
campanhas coloniaes. 



9 5 

O clima de Lourenço Marques tem uma terrí- 
vel fama de insalubridade, embora não seja peor 
que o de algumas cidades do Brazil, periodicamente 
assoladas pela febre amarella, nem tão eliminador 
como o de Cuba, nem tão mortífero como o de 
Quelimane e Sena. 

No seu excellente livro acerca de Lourenço Mar- 
ques, repositório de preciosas indicações, diz a este 
respeito um distincto africanista, o sr. Eduardo de 
Noronha : 

«Soffre-se em Lourenço Marques de differentes 
manifestações de impaludismo, como se soffre no 
sul da Hespanha e da França, como se sente em 
muitos pontos das margens do Danúbio, Crimêa e 
na Turquia e em mil outros íogares, que seria longo 
enumerar aqui. No emtanto, raros, os casos das 
febres typhoides em Lourenço Marques, são, por 
assim dizer, endémicos na cidade do Cabo da Boa 
Esperança, e frequentíssimos em Natal; as pneu- 
monias dizimam uma boa parte da população em 
Johannesburg; a varíola nos brancos e pretos é 
constante em toda a Africa do sul.» 

Segundo uma curiosa memoria do missionaria 
suisso Henri Junod, fundador da estação de Rikatla, 
a 22 kilometros ao norte de Lourenço Marques, a 
mais alta temperatura indicada foi de 45 o , ao sol,, 
em um dia de janeiro de 1890 e a mais baixa tinha 
sido de 7 , em um dia de maio de 1888. 

Conforme as observações meteorológicas do sr» 
Augusto de Castilho, quando governador de Lou- 
renço Marques, e num período comprehendido entre 
dezembro de 1876 e março de 1878, o dia de mais 
chuva foi o i.° de fevereiro d'aquelle ultimo anno, 
em que o pluviometro marcou 79 millimetros. 

Nos mezes de maior calor a temperatura raras 
vezes sobe além de 27. a 32.° á sombra. 

No Dahomé, segundo Poirier, a temperatura 
média é de 26. ° á sombra. As brisas do mar, nas 



proximidades do littoral, correm desde as 9 ho- 

res da manha até ao começo da tarde e voltam de- 

> 

pois durante a noite. 

Na opinião do missionário de Rikatla, o vento 
norte, secco, ardente, verdadeiro vento do deserto, 
é em Lourenço Marques o vento da febre. Exerce 
sobre o systema nervoso uma acção deprimente e 
não raras vezes mortífera. As grandes chuvas du- 
ram de outubro a marco e as trovoadas sobre os 

> 

montes Libombos e sobre as montanhas da Swazi- 
landia, são quasi sempre formidáveis e chegam a 
durar 35 a 40 minutos, sem interrupção! 

Os terrenos em volta da cidade e no sertão são 
em geral argillo-arenosos ; uma pequena parte é de 
grés silicioso com óxidos de ferro. Em quasi todo 
o valle do alto Incomati, extraordinariamente fér- 
til, prepondera o húmus e a argilla. 

* * 

O districto de Lourenço Marques, o mais pe- 
queno de Moçambique, uma estreita faxa entre as 
cumiadas dos Libombos e o Indico, com a super- 
fície de 16.000 kilometros quadrados, approximada- 
mente, tem o seu sertão (as denominadas Terras 
da Coroa) dividido em 4 grandes circumscripções, que 
em 1804 comprehendiam as terras de 26 reffulos 
avassaflados, com mais de 22.000 palhotas, 0.357 
combatentes e uma população total de 40.176 pes- 
soas. 

Mas todos estes números estão abaixo da rea- 
lidade. Só a Zixaxa e a Magaia podiam pôr em 
campo mais de dez ou doze mil combatentes. 

Òomo estes números resultam do arrolamento 
para a cobrança do imposto de palhota, é plausível 
suppôr que ficam longe da verdade, visto o natu- 
ral interesse dos régulos em subtrahirem á incidência 
d'aquelle imposto uma parte das suas palhotas e a 
difficuldade de verificar efficazmente a exactidão do 



97 

numero apurado. Além disto, o arrolamento não 
abrange todas as terras do sertão. Diz o sr. Eduardo 
de Noronha que o arrolamento não comprehende 
mais de um quinto d^quellas terras, e calcula, por 
isso, que será de 200.880 almas, a população de 
todo o districto. Desta forma, o numero total dos 
combatentes irá além de 40.000, approximadamente, 
em todo o sertão. 

Na i. a circumscripção o regulo mais poderoso 
era o da Zixaxa, que, segundo o arrolamento, tinha 
nas suas terras 928 combatentes. O da Magaia, na 
2. a circumscripção, tinha 2.36g combatentes. Basta- 
vam, portanto, os dois para reunirem uma força de 
3.297 combatentes, suppondo que o arrolamento é 
a expressão da verdade. Mas se contarmos também 
os que estavam mais ligados áquelles dois por in- 
teresses communs ou mais sujeitos á sua prepon- 
derância, o numero de combatentes irá além de 
5.ooo, que em algumas horas poderiam concentrar- 
se em volta de Lourenço Marques. Dado, porém, 
que estas forças subissem para o alto Incomati a 
juntar-se ás dos régulos do norte (3. a e 4.* circums- 
cripção), cujos combatentes arrolados eram 3. 080, 
teríamos um total de mais de 8.000 guerreiros, sup- 
pondo que se lhes não juntavam os das terras não 
incluídas no arrolamento. 

As forças militares de Lourenço Marques com- 
punham-se: De 1 batalhão indígena de caçadores 
(o n.° 4 da guarnição da província), que nunca teve 
effectivo superior a 36o praças e que, desfalcado 
pelos destacamentos, chegava a estar reduzido a 
algumas dezenas de soldados ; de um pequeno corpo 
de policia, composto de uma secção de cavallaria e 
de uma companhia de infanteria. Era esta a força 
militar de mais confiança por que se compunha 
de gente da metrópole. O seu effectivo orgânico 
(decretado em 1887), era de i63 homens e 37 ca- 
vallos. 

Acerca das fortificações e do material de arti- 



9§ 

lheria existente em Lourenço Marques, diz o sr. 
Eduardo de Noronha no seu livro já citado: 

«Em Lourenço Marques ha a fortaleza de Nossa 
Senhora da Conceição, que tem uma bateria a bar- 
bette deitando sobre o no e dois baluartes do lado 
da cidade, hoje completamente inúteis pelas moder- 
nas construcções ; a villa era cercada por um muro 
com cinco baluartes que foram demolidos quando 
se ampliou a cidade. 

«O novo projecto da cidade indica quatro lune- 
tas que se deveriam construir na parte mais elevada 
da cidade, a defendel-a do lado da Munhuana, mas 
nunca se chegaram a construir. Em 1891, o capi- 
tão de engenharia Soeiro, estudou e começou a cons- 
trucção de uma bateria marítima na Ponta Verme- 
lha e outra no alto do Maxaquene, infelizmente nunca 
se passou da remoção de terras. 

«Actualmente ha uma serie de blockhaus pro- 
visórios, circumdando a cidade, e que foram levan- 
tados á pressa para pôr os habitantes ao abrigo de 
um golpe de mão que os pretos sublevados tentas- 
sem. 

«Em Lourenço Marques todo o corpo policial é 
obrigado a conhecer o manejo de artilheria, havendo 
ali metralhadoras Montigny, Nordenfelt, Gatling^ 
Hotchkiss, peças de carregar pela bôcca de 8 e 12 
centímetros, algumas Krupp de montanha, Crouzon 
e canhões rewolvers que vieram da Zambezia.» 

Estas peças revolvers, a que se refere o sr. No- 
ronha, eram as Hotchkiss, que annos antes se ha- 
viam comprado para o districto de Manica. 

r 

Qualquer que seja o futuro das suas minas re- 



99 

gistadas e o aproveitamento dos fertilissimos terre- 
nos do valle do Incomati, Lourenço Marques hade 
ser principalmente uma colónia commercial, como 
Inhambane, qualquer que seja o seu desenvolvi- 
mento commercial, será principalmente uma coló- 
nia agrícola. 

Pela sua situação excepcional, politica, estraté- 
gica e mercantil; empório e estação naval sobre o 
antigo caminho da índia; com a sua prosperidade e 
a sua existência estreitamente ligadas á prosperi- 
dade e á existência dos Boers, que só por ali e sob 
a protecção desambiciosa da nossa bandeira podem 
chegar ao mar, sem correrem o perigo de morrer: 
Lourenço Marques tem uma importância com a 
qual Inhambane não poderá hombrear nunca. 

Mas se esta não pôde ter preponderância politica 
internacional que não seja um reflexo da outra coló- 
nia, que, por assim, dizer completa e amplia; pela 
grandeza e pela fertilidade do seu sertão, pôde bem 
ser a região agrícola de abastecimedto do paiz mi- 
neiro do Transvaal e da cidade de Lourenço Mar- 
ques, quando esta attingir o grau de prosperidade, 
que já se esboça em animadoras promessas. 

O sertão de que Inhambane é o núcleo de civi- 
lisação e de supremacia pôde considerar-se limitado 
ao norte pelo curso do Save, ao sul pelo curso do 
Limpopo e ao oeste pela fronteira linear e mal de- 
finida ainda do tratado de 1891. E' uma superfície 
de 170 a 175.000 kilometros, approximadamente. 
Quasi duas vezes a área de Portugal e muito supe- 
rior á de Dahomé, avaliada em 120.000 kilometros 
quadrados. 

Era na quasi totalidade do immenso sertão de 
Inhambane e excedendo-o ainda ao norte do Save, 
até ao Mussurize, e ao sul do Limpopo, até ao 
alto Incomati; era n'aquelle paiz vastiesimo que o 
chefe dos vátuas tinha os' dominios dos seus indanas 
(grandes do estado) e dos regdlos seus dependentes 
pela tradição ou pelo terror. 

Em todo o sertão estanceiam as raças aborige- 



Lr. 



IOO 



nes dos bitongas, burrongiieiros, mendongues ou 
chopes e landins. Os vátuas eram a raça usurpa- 
dora, a raça superior que se impozera pela con- 
quista. 

A população de todo o districto tem sido ava- 
liada, muito arbitrariamente, em i3o.ooo almas por 
alguns escriptores e em i5o e mesmo em 200.000 
almas por outros. Caldas Xavier, perfeito conhece- 
dor dos sertões do districto, avaliava-lhe a popula- 
ção em 400.000 almas, conforme se vê na sua me- 
moria acerca de Inhambane, (Inharrime e as guer- 
ras Zavallas), publicada nos Boletins da Sociedade 
de Geographia. D'este modo, a população do dis- 
tricto não e muito inferior á de Dahomé. 

A raça mendongue é a mais laboriosa e a mais 
dada á cultura da terra. Ao contrario, a raça lan- 
dim é a menos inclinada á agricultura e a mais des- 
temida e guerreira, sem contar agora a dos vátuas. 

São notáveis as grandes aldeias mendongues de 
extensas ruas e palhotas altas, circulares e de co- 
bertura cónica. 

Caldas Xavier achava excellente a Índole dos 
negros do sertão de Inhambane e considerava-os 
menos altivos e menos guerreiros que os do sertão 
de Lourenço Marques. 

Não são raras as florestas de grandes e precio- 
sas arvores e em todo o districto se encontram ex- 
cellentes madeiras. 

Os mendongues e bitongas aproveitam a terra 
solicitamente por meio dos seus processos rudimen- 
tares e são muito dados á industria e aos trabalhos 
manuaes. Refere Caldas Xavier que viu entre os 
chopes alguns capacetes guarnecidos de escamas 
feitas de moedas de vintém, batidas e ligadas umas 
ás outras. E usavam-nos debaixo de um sol abra- 
zador! Para moerem a canna do assucar inventa- 
ram umas machinas de madeira, que são grosseiras, 
mas revelam as suas aptidões artísticas. 

As armas predilectas dos chopes — informa ainda 
o illustre africanista — são o arco, a frecha e as za- 



IOI 



gaias de mão e de arremesso. E' raro encontral-os 
sem estas armas, que sabem manejar perfeitamente* 
Os landins e outros povos do districto preferem as 
zagaias de mão e o escudo de pelles. As armas de 
fogo são em geral apreciadas. 

E actualmente muito em uso, accrescentaremos 
nós, porque Caldas Xavier escrevia estas informa- 
ções em 1881. 

Já apparecem a Snider e a Martini-Henry en- 
tre as velhas armas de silex e de percussão, em 
uso nos sertões, como no Dahomé appareceram nas 
mãos dos negros a Dreyse, a Mauser, a Winches- 
ter e a Peabody. Raras ainda nas mãos dos cho- 
pes, mas numerosas nas mãos dos vátuas e dos ne- 
gros da Magaia e da Zixaxa. 

Calculou-se em tempo que os régulos avassalla- 
dos do sertão de Inhambane poderiam fornecer 
20.000 cipaes e caçadores das terras, como se de- 
signam os cipaes armados com espingardas do go- 
verno. Isto era um pouco theorico, principalmente 
depois que o Gungunhana se transferiu de Mussurize 
para Manjacaze e sujeitou ao seu despótico domí- 
nio grande numero de régulos, que eram vassallos 
da .coroa portugueza. Mas com este auxilio proble- 
mático se contava ingenuamente e não faltou quem 
lembrasse aquelles caçadores para baterem o Gun- 
gunhana ! 

Pensou-se nisso, e, ainda no tempo do Muzilla, 
alguém alvitrou que a expedição de cipaes, victo- 
riosa na guerra de Zavalla, poderia abrir hostilida- 
des contra os vátuas. Caldas Xavier, que era um 
bravo, respondia assim a quem indicara o commet- 
timento : 

«O effectivo das forças reunidas era realmente 
considerável, mas eu sei bem o valor que se pôde 
attribuir aos cypaes e gente de guerra dos régulos, 
e declaro aos desejosos de novas e gloriosas con- 
quistas, que aquella famosa expedição debandaria: 



102 



ao primeiro combate que tivesse com 
aguerridas dos vátuas.» 



as forcas 



O clima do sertão de Inhambane é dos melho- 
res da Africa Oriental, nas regiões arborisadas e 
menos próximas das numerosas lagunas do Inhar- 
rime, do alto Chicomo, de Manjacaze e do valle do 
Save, que o distincto explorador António Maria 
Cardoso denominou a região das lagoas, no relató- 
rio da sua viagem ás terras do Muzilla, em i883. 

De aguas baixas e lodosas, depósitos de nume- 
rosos organismos em decomposição, algumas das 
languas ao sertão de Inhambane são mortíferos fo- 
cos de infecção, próximo dos quaes é quasi impos- 
sível a permanência dos europeus. Outras, porém, 
de mais fundo, verdadeiras lagoas, como a de Niam- 
butzé, onde apparecem cavallos marinhos, não pre- 
judicam sensivelmente as condições climatéricas das 
regiões adjacentes. Entre as lagoas mais conhecidas, 
citaremos a Poelella, a pequena distancia de Inham- 
bane, no caminho para o Limpopo, e a Coolella, 
hoje celebre, a pequena distancia de Manjacaze. 

No sertão o thermometro tem marcado em dias 
de fevereiro e março 22 o e 33°,5 á sombra e em 
outubro chegou já a marcar 62 o ao sol! 



A capital do districto, villa creada por el-rei D. 
José, é uma das povoações mais pittorescas, mais 
risonhas, mais bucolicamente formosas do littoral 
africano. O sr. Cawthra Woodhead, redactor do 
Natal Mercnry, chama-lhe uma povoação dentro 
dum pittoresco bouquet de coqueiros e o mais bonito 
dos portos da costa oriental 4 . 



1 As impressões da viagem (Teste escriptor inglez, do 
Natal a Moçambique, foram traduzidas em portuguez pelo sr. 



io3 



No seu ninho semi-selvagem, entre palmeiras e 
tamarindeiros, encostada ao seu pequeno porto, á 
beira do rio tranquillo, com as suas ruas de arvo- 
res, como alamedas de um bosque remançoso, com 
a torre quadrada da sua egreja, que se avista do 
mar e a sua modesta mesquita entre arvoredos; 
■com as suas singelas casas europêas e as suas pa- 
lhotas sertanejas; Inhambane é um traço apagado 
da Europa e da Ásia, n uma ridente e soberba pai- 
zagem africana. 

Calcula-se-lhe a pppulação em 7.000 habitantes 
— moiros indios, que mercadejam e vivem no seu 
bairro especial de Balane, negros indígenas e al- 
guns raros brancos. Chivatune é o bairro commer- 
•cial. 

O seu commercio é por ora modesto e limita-se 
■á permutação de borracha, cera, amendoim e milho, 
por fazendas e géneros alimentícios, importados de 
Marselha, Londres, Rotterdam e Porto Natal. 

Em 1894 a guarnição militar da villa constava 
apenas do batalhão de caçadores n.° 3, composto 
-de alguns officiaes brancos e pouquíssimos soldados 
pretos. 

A respeito de obras de defeza, informa o sr. 
Eduardo de Noronha : 

«Em Inhambane apenas se via a cortina de uma 
demolida fortificação.» 



y 



•a* 



/ 



Eduardo Borges de Castro e publicadas no seu livro interes- 
santíssimo: Africa Oriental — Portugal em Lourenço Mar- 
ques. 



IV 



OS VÁTU/VS 



Não pôde esboçar-se a historia dos vátuas, sem 
que se lhe procure a origem nas florestas da antiga 
Zululandia, entre as tribus guerreiras d'essa raça 
arrogante e impávida, que luctou com o Transvaal 
e com a Inglaterra e, afinal vencida, pôde ainda 
ler na face dos seus escudos e no gume das suas 
zagaias a tradição das victorias sangrentas de Tu- 
gela, contra os boers, e de Isandhluana, contra os 
inglezes. 

Os zulus eram ha noventa annos um pequeno 
povo enfeudado á grande tribu Am-Tétua, do valle 
do Umfolosi. Senzangakona, o chefe zulu, mal po- 
dia avultar entre os seus poderosos visinhos, autocra- 
tas de um milhão de caíres, tranquillos representan- 
tantes da remota família Bantu, estanceando nas 
orlas de enormes florestas onde o urro do elephante 
se cruzava nos ares com o rugido formidável dos 
leões de fulva pupilla, nas grandes noites tenebro- 
sas, sob o ceu listrado de relâmpagos. O chefe 
zulu era então como arvore noviça entre os gigan- 
tes seculares da floresta. 



io6 



Um dia, porém, nos sertões negros, a ambição 
irrequieta de dois homens agitou aquella massa im- 
mensa de cafres, co.no o vento agita o mar, e o an- 
tagonismo dos interesses, debatendo-se em ondas de 
sangue, abriu a era das tremendas campanhas. La 
force prime le droit, como ainda se proclama hoje 
sob os esplendores da nossa altiva civilisação. A 
guerra é a historia dos homens, como na phrase do 
conde de Ségur, ou a escrevam a espada de Roma 
e o montante medieval, as bayonetas de Bonaparte 
e a Dreyse prussiana, ou a trace em caracteres 
grosseiros, da cor do sangue, como as grandes 
lettras dos livros antigos, a frecha ou a azagaia do 
cafre. 

Dois filhos do chefe da tribu Am-Tètua cons- 
piravam contra o velho pae, impacientes pela he- 
rança do poder. 

A conspiração foi, porém, surprehendida nos 
seus primeiros passos e punida conforme as tradi- 
ções da barbárie antiga. Houve uma carniceria es- 
pantosa e só d'ella escapou, nas sombras da noite, 
mas com uma zagaia cravada nas costas, Godon- 
guana, o mais audaz dos dois chefes rebeldes. 

Suppoz-se que o fugitivo fora asylar-se na colónia 
inglezã do Cabo. Fosse como fosse, dentro em pouco 
o nome de Godonguana passava de bocca em bocca, 
entre as tribus da Zululandia, como o nome prodi- 
gioso de um guerreiro lendário. Os cafres tinham 
o seu D. Sebastião. Era maravilhosa a lenda do fo- 
ragido. Cruzava as florestas e rodeava as povoa- 
ções — contava-se — montando um animal desconhe- 
cido, um cavallo prodigioso, que passava rápido 
como as folhas seccas levadas pelo vento. 

Um dia appareceu um guerreiro negro, que era 
a encarnação da lenda e se dizia o famoso Go- 
donguana. Seria elle realmente ou algum impostor 
que lhe usurpara o nome ? Fosse como fosse, os 
povos da tribu Am-Tétua acclamaram-no phreneti- 
camente como seu rei e chefe. Se elle até mostrava 
nas costas a cicatriz de um ferimento de azagaia. 



*„ 



107 

O novo chefe tomou o nome de Dinguisuayo e 
fez-se o arrojado reformador do povo que o "ele- 
gera. Reorganisou a gente de guerra, dividiu-a em 
grandes unidades de combate, similhantes aos regi- 
mentos inglezes que vira no Cabo e deu a cada 
uma o seu distinctivo na cor do escudo. E para 
completar a sua obra de reorganisação e progresso, 
estabeleceu relações commerciaes com Lourenço 
Marques e desenvolveu quanto poude as pequenas 
industrias e artes rudimentares do seu paiz. 

Foi então que Chaka, o filho do chefe dos zulus, 
receoso de que as dissenções de família lhe dessem 
algum trágico destino, procurou o prestigioso Din- 
guisuayo e lhe pediu um logar entre os mais humil- 
des guerreiros do seu exercito. 

Chaka era um luctador indomável e em breve 
consquistou a estima do chefe dos Am-Tétua, de 
quem foi companheiro e amigo nas luctas e nos 
triumphos. 

Em 1810 morria Senzagakona, o velho chefe 
zulu, e Chaka foi acclamado chefe, não por que lhe 
pertencesse a herança do poder, mas por que o 
poderoso Dinguisuayo, seu protector, o impozera aos 
zulus. 

Em 181 8 Dinguisuayo foi derrotado e morto por 
Zuide, chefe de uma tribu inimiga. Vencida e á 
mercê dos invasores, a forte raça dos Am-Tétua, 
que fora o terror do sertão nos dias gloriosos do 
seu grande chefe morto, foi procurar asylo entre a 
gente de Chaka. 

Fundiram-se então as duas intrépidas tribus e 
Chaka poude iniciar a primeira rude epopêa da Zu- 
lulandia. Na anciã das victorias, na impaciência do 
predomínio, Chaka deu uma forte e excepcional edu- 
ção guerreira á sua gente, no empenho de tornal-a 
invencível. 

A menor hesitação em combate e o minimo in- 
dicio de fraqueza eram immediatamente punidos 
com implacáveis supplicios, entre requintes de inex- 
cedivel ferocidade. 



io8 



As suas grandes unidades de combate, as impis, 
eram compostas de três ou quatro corpos e de i.5oo 
guerreiros cada uma. E interessante a descripção do 
vestuário de guerra d'aquellas tropas, feita pelo sr. 
Eduardo de Noronha: 

«O vestuário compunha-se — diz o illustre escri- 
ptor e benemérito africanista — de uma espécie de 
barrete de pelle de lontra, caindo sobre as costas, 
em volta d'esse barrete collocava-se uma coroa feita 
de pennas de differentes aves, sobre as orelhas ca- 
hiam bocados de pelle de chacal. Tiras de couro de 
boi, cobriam-lhe o corpo desde o pescoço até ao 
ventre e uma parte do braço direito. O braço es- 
querdo ficava a nú por debaixo do escudo. Em volta 
da cintura, uma custosa pelle de cimba que lhe ca- 
hia até aos joelhos. Desde ahi, e seguras por uma 
liga, a perna era resguardada por opulentas caudas 
de boi, brancas, que na corrida fluctuavam como 
grandes pennachos. O tornozelo era protegido por 
correias entrelaçadas.» 

O famoso zulu chegou a ter sob o seu commando 
cerca de 100.000 combatentes! 

Feroz, alcunhavam-no de hyena os negros ven- 
cidos. De gigantea estatura, chamavam-lhe os seus 
o grande elephante. 

Dominador de 5oo.ooo pessoas, destruidor de 
mais de 5oo tribus, arbitro de um paiz immenso, 
cuja superfície não seria inferior a 100.000 kilome- 
tros quadrados, Chaka foi o maior e o mais terrí- 
vel conquistador dos sertões negros. 

Mas um* dia succedeu-lhe a elle o que tem suc- 
cedido aos grandes conquistadores brancos, o que, 
em outra esphera, acontecera alguns annos antes a 
Napoleão. Abandonaram-no alguns dos seus chefes, 
por ciúme, por desespero, ou por ambição, Um 
Telles foi Musilikatze. Desertou-lne com forcas im- 
portantes, passou para as terras de alem do Vaal, 
conquistou a Betchuana, venceu os Basutos, atacou 



os boers, na sua odyssêa do sertão, e, repellido por 
elles para o alto Limpopo, foi subjugar a Machona e 
fundou esse estado dos Matabelles, que os inglezes da 
South Africa destruíram em i8c>3, depois da der- 
rota de Lobengula, o filho do antigo chefe de guerra 
do poderoso Chaka. 

Outro chefe de Chaka, a hyena zulu, desertava 
tempo depois, seguindo q exemplo do Musilikatze. 
Chamava-se Manicusse. A frente de uma hoste nu- 
merosa de zulus atravessou o Pongolo, cahiu como 
um abutre sobre o miserando presidio de Lourenço 
Marques, e passou, como tempestade assoladora, 

Eara o valle do Incomati e para as margens do 
rimpopo. 
Estava fundado o poder dos vátuas. Vem daquella 
altiva origem de luctadores, orgulhosos como leões 
€ cruéis como hyenas, vem daquella raça de cafres 
excepcionaes, o sangue e a historia d'esses que, da 
sua estirpe, foram os últimos a cair vencidos. 

E' d'elles que nos vamos occupar agora, dei- 
xando os zulos nas suas porfiadas guerras com os 
boers e nos seus combates sangrentos com os in- 
glezes. 

Acerca da origem do termo vátua escreve o sr. 
Eduardo de Noronha, no seu livro a respeito de 
Lourenço Marques : 

«E difficil affirmar qual a origem doesta palavra 
com que se designam os zulus, ou tribus uriundas 
<f essa raça, que caminharam para o norte e foram 
até á margem direita do rio Zambeze. Será vátua 
uma corrupção de Am-Tétua, principal tribu do 
povo que occupou o território que constitue hoje a 
Zululand ? . . . O plural, em quasi todos os diale- 
ctos da lingua Bantú, forma-se substituindo a pre- 
fixa am singular, por vá, que ficaria então para 



IIO 



designar o conjuncto Vá- Tétaa e, com o andar dos. 
tempos, vátua?» 

Não temos elementos para responder á interro- 
gação do distincto africanista. A sua hypothese pa- 
rece perfeitamente acceitavel e outras conhecemos- 
nós, n estas questões de philologia, bem menos ve- 
rosímeis. 

Tem, porém, opinião diversa acerca da origem 
da palavra o nosso glorioso africanista António Ma- 
ria Cardoso. 

Diz o illustre official de marinha no seu relató- 
rio da viagem ás terras dos vátuas, em i883: 

«Por antigos escriptos pertencentes ao governo 
de Sofalla vê-se que os vátuas já existiam em época 
anterior á ida de Manicusse para o Bilene, sendo 
conhecidos pela denominação de majotos, parecendo,, 
portanto, que o nome de vátuas lhes foi dado 
quando se aggregaram á gente de Manicusse, de 
cuja existência em Biline só se soube em 1834, pelo 
tenente coronel Menezes, que de Inhambane por 
terra, com 3o soldados, ia tomar conta do governo 
de Lourenço Marques, dan^lo-lhe o nome de majo- 
cites (no Ibo mafotes)». 

E' possível que antes da invasão do Manicusse 
houvessem apparecido no sertão de Inhambane e 
na Zambezia ou alguns aventureiros da raça zulu 
em busca de fortuna ou alguns fugitivos das tribus. 
desbaratadas pelo terrível zulu Chaka e que a esses 
taes dessem o nome de majotos, mas parece, pouco 
pl^ijsivel que os mafotes do Ibo fossem oriundos da 
raça zulu. 

Vátuas, dada a formação do termo, segundo a 
hypothese do sr. Eduardo de Noronha, seriam de 
nominados os guerreiros de Manicusse, que eram, 
como vimos já, o resultado da fusão dos zulus com 
a grande raça Am-Tétua, de que Dinguisuayo fora o 
°nefe poderoso. E a elles se aggregariam então 



Ill 



os majotos, perdendo a individualidade e o nome. 
Os patuás conservaram sempre as tradições de su- 
perioridade, de lingua, de crenças, de desdém pelo 
trabalho e de intrepidez guerreira, que eram os ca- 
racterísticos da antiga raça zulu ou Iiulu, que quer 
dizer do céo. No aspecto physico e no vestuário 
guerreiro a mesma conformidade de origem, com 
insignificantes modificações. As plumas, as pelles 
d'animaes cingindo-lhes o corpo, o escudo ou ro- 
della, tudo como entre os zulus e até o cântico de 
guerra, soberbo, vibrante, marcial, uivo e selvagem 
apotheose ao mesmo tempo, como o cântico dos 
seus antepassados e desses irmãos seus da Zulu- 
landia, contra os quaes a Inglaterra teve de mobili- 
sar um verdadeiro exercito *. 

O sr. António Maria Cardoso, que teve occa- 
sião de os conhecer bem na sua viagem ao kraal 
do Muzilla, descreve-os assim no relatório que a 
Sociedade de Geographia de Lisboa deu á publici- 
dade nos seus boletins: 



1 As tropas inglezas e auxiliares com que o tenente ge- 
neral lord Cnelmsford emprehendeu a guerra contra os zu- 
lus, em 1879, compunham-se de 5. 200 soldados de infanteria, 
de contingentes de marinha, de três regimentos indígenas, 
de corpos de voluntários montados e de 1.400 homens de ca- 
vaílaria regular. Este exercito foi dividido em 3 columnas de 
4.000 homens cada uma, approximadamente. Depois da der- 
rota do quadrado de Isandhluana e dos desastres da margem 
do Intqmbi e do monte Hlobane, as forcas inglezas recebe- 
ram consideráveis reforços, de Santa Heíena, da índia e das 
guarnições da esquadra/ No forte de Tenedos concentrou-se 
uma divisão de 0.000 inglezes, para soccorro das tropas em 
operações. 

Foi no combate das margens do Umfolosi branco, a pe- 
quena distancia do Kraal real de Ulundi, que os 3.3oo ingle- 
zes de Chelmsford, formados em quadrado, alcançaram vin- 
gar aquelles desastres. Parece que eram dez a doze mil os 
zulus que entraram n'esta acção. 

Esta derrota dos zulus nãb foi, ainda assim, tão sangrenta 
como a que tinham soífrido em i838, em ISlood River, contra 
os boers. 



112 



«Os povos que o habitam (o território de Mu- 
^illa) estão debaixo de um jugo de ferro, softrendo 
toda a casta de extorsões e vexames praticados pe- 
los vátuas, que nada fazem e vivem quasi exclusi- 
vamente á custa do trabalho d'elles. Um vátua viaja 
sem cousa alguma, entra na primeira povoação que 
encontra no caminho e ali são obrigados a dar-lhe 
o que elle exigir e assim por diante.» 

«A raça vátua diíferenca-se de todas as outras 
pelo correcto das suas feições, maneiras arrogantes 
e linguagem, que nada tem de commum com as 
outras raças. Os homens são de estatura mais que 
regular, bastante reforçados e de uma insolência e 
atrevimento desmedidos, que lhes provem decerto 
da fama de valentes que adquiriram e os torna te- 
midos das outras raças.» 

«Para mostrarem que não trabalham usam as 
unhas crescidas como os chins ricos, mas não tão 
desenvolvidas. 

«Os homens vestem de pelles como os landins.» 

A respeito do Kraal do Mu\illa 9 que era na 
margem esquerda do Moenguezu, diz ainda o bri- 
lhante explorador: 

«E' grande a povoação e toda cercada de uma 
espécie de palliçada de paus delgados e canniço, 
tendo no centro um espaçoso curral, onde Muzilla 
costuma dar audiência e que o separa de um ou- 
tro mais pequeno, que lhe fica ao N., pertencente 
ao seu secretario Maquejana.» 

Acerca dos vátuas encontramos ainda interes- 
santes informações, umas de pessoas que estive- 
ram no paiz de Gaza, outras extrahidas do livro 
do sr Eduardo de Noronha, repetidas vezes aqui 
citado. 

E' curioso o kalendario que elles teem, e que se 



u3 



relaciona com os períodos de certas producções da 
terra, com o estado do tempo ou com a apparição 
e inslinctos rapaces de vários animaes, como o ka- 
lendario da primeira republica franceza se relacio- 
nava com os phenomenos atmosphericos e com os 
períodos agrícolas. 

O anno dos vátuas começa em outubro Xemuga- 
nhana (fructa do> matto); novembro Maganomuciiio 
(fructa grande do sertão); dezembro Inipaia (cabra 
do matto); janeiro Gungoni (vaca do matto); feve- 
reiro Pusse (batuque do regulo); março Mexanga 
Spparece o gato bravo e floresce o canniço); abril 
evanlgeia (corta caminho); maio Santarcia (frio); 
junho Quêqnése (estrella do sul); julho Siimeia (frio) ; 
agosto Ucanhana (milhafre); setembro Muco-Mu- 
ciiio (gavião que apanha os pintos). 

Ha entre os vátuas cinco grandes classes de 
castas inconfundíveis : a de origem real, pelo ramo 
varonil, denomina-se Jaméne, vem dos descenden- 
tes de Sigóte, pae de Manicusse; a dos grandes, 
dos nobres, descendentes directos dos zulus, que 
se chama Mnngune-gune ; a dos Am-Biinlgna, os de 
sangue cruzado; e a dos Am-Tonga, que são os 
vatualisados pela educação guerreira entre as clas- 
ses mais nobres. 

As impis vátuas são conhecidas e designadas 
pelos nomes de alguns dos seus illustres chefes, co- 
mo d'antes succedia e ainda hoje sucede com al- 
guns regimentos europeus. Assim tinham a impi 
dos antigos guerreiros do Mu\Ula e a impi grande 
sombra ao Gungunhana, etc. 

É o pennacho branco o distinctivo primacial dos 
guerreiros vátuas; e por isso os denominam pássa- 
ros brancos. 

Como entre os antigos zulus de Chaka, o ser- 
viço da guerra é obrigação inilludivel de todos os 
vátuas, desde os 16 aos 6o annos, salvo o caso de 
absoluta incapacidade physica. 

Contava o anno passado uma folha do Trans- 
vaal que em novembro de cada anno costumam os 



ii4 



vátuas reunir-se numa grande planura de Gaza, 
para realisarem o que elles chamam a medicina da 
guerra. Juntam-se ali quarenta a quarenta e cinco 
mil guerreiros e experimentam o esforço e a des- 
treza na lucta feroz contra manadas de touros, en- 
doidecidos pela dor brutal dos golpes com que pro- 
positadamente os enraiveceram. Mutilados, sangren- 
tos, na vertigem do desespero, os touros arremet- 
tem contra os vátuas, que os derribam corajosa- 
mente a golpes de azagaia. Então cruzam-se nos 
ares, medonnameute, os rugidos dos touros semi- 
mortos e o cântico selvagem dos vátuas vencedo- 
res ! Depois a orgia do sangue e os feitiços tradi- 
cionaes. E' esta a medicina da guerra. 

E' assim o seu concurso annual de tiro de aza- 
gaia, de dextreza e de interpidez d'animo. Habituam- 
se por este modo aos espectáculos de sangue, cer- 
ram o coração a todos os instinctos de piedade, af- 
feiçôam-se á carniceria, como os gladiadores volun- 
tários dos circos da antiga Roma. 

N'aquelle enorme alarde de ferocidade recebem 
os jovens guerreiros o seu baptismo de sangue. 

Reatemos agora o esboço histórico do domínio 
vátua no sertão de Moçambique. Deixámol-o na 
invasão de Manicusse ao norte do Limpopo. 

Depois de constantes hostilidades . contra Lou- 
renço Marques, o conquistador vátua assaltou a 
fortaleza d'aquelle distncto em 22 de outubro de 
i833. A guarnição era insignificante, o presidio 
incapaz de uma defeza enérgica, e o desamparado 
governador viu-se forçado a abandonar a fortaleza 
e a refugiar-se na Xefina. Os vátuas então arraza- 
ram o miserável presidio, saquearam as habitações 
e azagaiaram a gente indefeza que lograram encon- 
trar. Sabendo que o governador Dionysio António 
Ribeiro estava na Xehna com um punhado de sol- 



n5 



dados, foram ali atacal-o, prenderam-no, trouxeram- 
no, para o presidio e infligiram-lhe horrorosos sup- 
plicios, ante as casas e palhotas da povoação em 
chammas. 

Pouco tempo depois chegavam reforços e os vá- 
tuas eram repellidos, graças ao auxilio da mari- 
nha. 

Moçambique fora sempre uma colónia quasi vo- 
tada ao abandono e n aquella época ainda em maior 
desamparo a deixava a metrópole, convulsionada e 
enfraquecida pelas guerras civis. 

As hostilidades de Manicusse proseguiram de 
vario modo e com breves intermittencias até 1857, 
em que com elle celebrámos um tratado de paz, 
que o poderoso negro violava depois caprichosa- 
mente e com singular audácia. Ainda assim, nunca 
mais atacou Lourenço Marques, á mão armada, 
como em 1841, em que a defeza dos nossos foi ef- 
ficaz e honrosa, nem teve mais a veleidade de que- 
rer impor tributo ao presidio, como succedera em 
1848. 

Em i85g o déspota expirou e dois filhos seus, 
Mahueva e Muzilla, disputaram ferozmente a he- 
rança do poder nos campos de batalha. Pela cruel- 
dade Mahueva era bem o imitador de Chaka, o zu- 
lu-hyena. Abandonado pela fortuna dos combates, 
Muzilla teve de acolher-se ao Mosstiate. 

Depois de dois annos de exilio entre os boers, 
Muzilla decidiu tentar novamente a sorte das ar- 
mas, convencido de que os portuguezes lhe presta- 
riam auxilio, mediante a promessa de sujeitar-se á 
soberania de Portugal. 

Escolheu o pretendente para seu intermediário 
o regulo Maxaquene e deu-lhe três commissarios 
seus para o acompanharem a Lourenço Marques. 
O regulo partiu, efectivamente, com os representan- 
tes de Muzilla e pelas 10 horas da noite de 2 de 
novembro de 1861 o governador do presidio, Ono- 
fre Lourenço de Andrade, recebia a proposta do 
grande vátua, que promettia fazer-se tributário do 



n6 



rei de Portugal, se quizessem os portuguezes aju- 
dal-o na guerra contra o irmão. 

O governador achou tentadora a proposta — era 
talvez a paz e a prosperidade d^quellas terras, tão 
pouco providas de defeza — e apresentou-a aos 
moradores da villa, encarecendo-lhe os largos bene- 
fícios que havia de trazer ao commercio sertanejo 
e á povoação, até ali sempre sobresaltada e na dolo- 
rosa previsão de um assalto do implacável Mahueva. 
Concordaram os moradores com a opinião do go- 
vernador, e logo se resolveu auxiliar o Muzilla com 
gente e armas do estado e dos particulares. 

Poz-se o Muzilla em campo assim que recebeu 
a boa nova d'aquella promessa e logo ao primeiro 
recontro bateu um dos indunas (grande) do irmão; 
mas esta fácil victoria mais acirrou os ódios de Ma- 
hueva, que o mandou perseguir" por algumas das 
suas impis, na força total de 12.000 homens. 

Reforçado com alguma gente da Matolla, o Mu- 
zilla encontrou-se com o exercito do irmão e, de re- 
contro em recontro, foi até Moamba, onde se em- 
penhou o combate definitivo, que foi um enorme 
desastre para o nosso promettido vassallo. A lucta 
deu em carniceria e a gente do Muzilla teve cerca 
de 7.000 homens mortos e feridos. 

Desbaratado, o pretendente foi para Catembe e 
d'ali para Lourenço Marques a solicitar a completa 
execução da promessa que lhe fizeram. Reduzido a 
4.000 vátuas, ser-lhe-ia impossível continuar a cam- 
panha, sem a intervenção dos portuguezes. 

Estamos em dezembro de 1861. O governador, 
para acudir ao Muzilla n'aquelle apertado lance, 
expediu aviso aos régulos avassalladõs, ordenando- 
lhes que se apresentassem com as suas forças dispo- 
níveis. A ordem foi admiravelmente cumprida. Ma- 
hueva era um tigre que todos os cafres odiavam. 
Cinco dias depois de se ter ordenado a concentração 
das forças, mais de 16.000 cafres se reuniram em 
parada na planura da Manhuana, nos arredores da 
villa; e com elles os 4.000 vátuas do Muzilla. D'este 



"7 

exercito, de mais de 20.000 homens, apenas, 2.000 
poderam ser armados com espingardas, fornecidas 
pelos negociantes da villa, e pelo presidio. 

E' provaVel que Mahueva não dispuzesse de tan- 
tas armas de fogo. 

Cada contingente dos régulos cafres arvorava a 
bandeira da nação soberana, a nossa bandeira, e o 
commando de todos elles foi confiado a Soteve, 
filho do regulo Maxaquene. 

Volvidos alguns dias aquelle exercito atravessava 
o Incomati em busca das forças do Mahueva, que 
eram computadas em mais de 20.000 homens. A 17 
de dezembro encontraram-se os dois exércitos e tra- 
vou-se uma batalha, que ficou indecisa. Três dias 
depois empenhou-se nova batalha. Batiam-se como 
leões os guerreiros do Mahueva e iam já levando 
de vencida os seus adversários, violentamente ata- 
cados de flanco e com o centro já consideravel- 
mente enfraquecido, quando uma grande companhia 
de 200 caçadores do Muzilla acudiu ao centro em 
perigo e já também investido, e conseguio pela ac- 
ção dos fogos fazer recuar os atacantes, que em 
breve tempo lhes cederam o passo. 

Estava vencida a batalha. O resto foi um duello 
monstruoso d'homem contra homem. Ali não havia 
capitulação possível nem paciência para manietar 
prisioneiros. Dizem que 20.000 negros ficaram aza- 
gaiados no campa de batalha! 

Mahueva fugiu para Muzilikazez e foi mais tarde 
asylar-se no Mossuate, que fora também asylo de 
seu irmão, agora vencedor. 

Estava sagrado o novo rei dos vátuas na carni- 
ceria dos campos de batalha. 

Era aquelle o nosso vassallo, mas, como disse- 
mos já, entendia a vassallagem e a gratidão sob 
singulares restricções. 

Respeitava a bandeira portugueza sobre as mu- 
ralhas do presidiu onde recebera auxilio, mas con- 
siderava como bandeira inimiga a que fluctuava nos 
districtos do Inhambane, de Sofala e de Sena! 



n8 



Muzilla foi occupando o sertão ao norte do Lim- 
popo até que fixou residência no Mussurize, para 
cima do Save, na região de Manica. 

As hostilidades entre elle e o irmão não termi- 
naram depois d^quella sangrenta batalha; prose- 
seguiram ainda, mas sem importância que modifi- 
casse as condições do vencido e do vencedor. 

Contra os nossos domínios ao norte do Limpopo 
é que o vátua cevava os seus instinctos de feroci- 
dade e de rapina. 

Ha quatorze annos dizia o intrépido Paiva d\An- 
drada, o mais infatigável e um dos nossos mais 
gloriosos peoneiros do continente negro, em uma 
das suas valiosíssimas communicações á Sociedade 
de Geographia: 

«Ao S. de Manica e do Quite ve e a W. dos 
prazos de Sofala, está situada nas margens do rio 
Save, a capital de Muzilla, o poderoso reguk) vá- 
tua, que occupa desde próximo de Lourenço Mar- 
ques, todo o sertão que do S. ao N., segue a W. 
das terras de Inhambane e de Sofala ao antigo rei- 
no de Quite ve. 

«Os prazos da margem direita do Zambeze e a 
própria villa de Sena teem soífrido toda a qualidade 
de vexame da parte da gente do Muzilla, que por 
vezes tem assassinado povoações inteiras; que fa- 
zem repetidas excursões com o fim de se apodera- 
rem das mulheres e bens dos colonos e que impo- 
zeram contribuições, dentro mesmo e junto ao forte 
da villa de Sena, cujos habitantes, geralmente ne- 
gociantes, exerciam pressão moral sobre o com- 
mandante militar, para que elle lhes deixasse pagar 
aos landins as fazendas pedidas, afim de evitar a 
guerra, que completamente os arruinaria. 

«O Muzilla, o poderoso chefe d'estes landins, é 
filho do Manicusse, de nefasta memoria na historia 
dos nossos districtos ao S. do Zambeze.» 

Referindo-se depois á occupação do districto de 



II() 



Sofala pela gente do Muzilla, accrcscentava o sr. 
Paiva dAndrada, «e quem teve de sahir foi o gover- 
nador do districto, que para evitar vexames, que o 
governo da metrópole nunca pensou rcpellir, aban- 
donou a capital do districto e a guarda da gloriosa 
torre de Pedro de Anhaya, para ir viver, desde ha 
muitos annos, na quasi fronteira ilha de Chiloane». 
No relatório da sua missão ao Muzilla, em i883, 
missão completamente sem êxito no seu objectivo 
politico, escrevia o sr. António Maria Cardoso, as 
seguintes conclusões : 

«Que de modo algum se pôde contar com as 
forças de Inhambane e de Sofala, para, em caso de 
necessidade, se baterem com os vátuas, em conse- 
quência do medo instinctivo que d'elles têem». 

O sr. António Maria Cardoso aconselhava im- 
mediatas precauções nos districtos de Sena, Sofala, 
Inhambane e Lourenço Marques (mais de metade 
da provincia e decerto a mais valiosa), por que em 
todos aquelles districtos se mantinha o domínio 5 ou a 
influencia dos vátuas e receava muito que a morte 
do Muzilla, já em adeantada velhice, provocasse 
guerras funestas por causa da herança do poder. 






Como sabemos já, o Muzilla pouco tempo du- 
rou depois d'aquella viagem, e seu filho Mundagaz, 
o famoso Gungunhana, que onze annos depois ha- 
via de ter a honra de figurar em telegrammas e 
artigos da imprensa europêa, logrou tomar conta 
da herança do pae, sem ter de entregar-se á sorte 
dos combates. Bastou lhe eliminar os irmãos, que 
um dia podiam ter velleidades de usurpar-lhe o 

poder. 

8 



120 



Já tivemos occasião de nos referir ao tratado de 
vassallagem que o ultimo rei dos vátuas celebrou 
com Portugal, tão leal e tão sincero como fora o do- 
Muzilla, firmado em Lourenço Marques. 

Rei, dissemos. Rei, que assim e designado em 
vários tratados que fez com os inglezes da Africa 
ou que estes lhe attribuiram, por conveniência dos 
seus planos. 

Em um tratado, que se diz celebrado em 1890 
entre o chefe vátua e o dr. Aurel Schultz, repre- 
sentante da South Africa, tratado de importantes 
concessões, que teve larga publicidade, intitulava-se 
o déspota — rei dopai\ de òa\a. Por signal que até 
o escrevente do auto o datou de Manhlagaz, talvez. 

?or Manjacaze, e chama ao rei Gungunhana M. 
hngaçir, provavelmente, em vez de Gungunhana,. 
Mundagaz. 

N'este contracto figura como testemunha um 
Jameson, que não sabemos se será o celebre cau- 
dilho, que ha pouco ainda invadiu o Transvaal, á 
frente de um punhado de aventureiros e foi derro- 
tado pelos boers. 

Em troca das concessões recebidas, a Companhia 
ingleza obrigava-se a pagar ao rei, annualmente, e 
conforme a sua escolha, a quantia de 5oo libras ou 
o seu equivalente em fazendas. 

Este tratado teve depois uma ampliação, que 
envolvia domínio de terras e exercício de sobera- 
nia. 

N'este novo convénio os agentes inglezes dão ao 
chefe vátua a denominação de Gungunhana Umdun- 
ga\ua, rei absoluto do pai\ dos patuás. 

Na imprensa ingleza amrmou-se que o rei dos 
vátuas mandara ao Cabo ofterecer a sua vassallagem 
á Inglaterra, pouco depois de ter prestado vassalla- 
gem a Portugal. 

Um jornal que defende os interesses da South 
Africa, affirmava que depois de 1 891, os emissários 
Huluhulu e Umfeti, do regulo de Ga\a, tiveram a 
honra de uma audiência da rainha Victoria em Win- 



121 



dsor e lhe pediram um residente britannico para o 
seu pai\ *. 

Pois n'aquelle mesmo anno de 1891 o intendente 
portuguez em Gaza acompanhava a Lourenço Mar- 

?[ues os seguintes embaixadores do Gungunhana: 
nhamane, neto do Manicusse e filho de Recua, ir- 
mão do Muzilla; Sophanene, neto de Manicusse e 
filho de Engenéa, tio do Muzilla e do Mahueva; In- 
cumana, primeiro induna da casa de Uduengo e 
N"Gobu\ana, induna de Sahomene. 

Não juramos sobre a regia stirpe dos dois pri- 
meiros embaixadores nem sobre a elevada catego- 
ria dos outros dois. 

O que é verdade é que em audiência solemne, 
em presença do corpo consular e das auctoridades 
e principaes moradores de Lourenço Marques, os 
embaixadores fizeram estas consoladoras declara- 
ções, segundo a versão do interprete : 

1 .° Que o Gungunhana era portuguez e não que- 
ria amisade com os inglezes. 

2. Que entregava as armas, presentes dos in- 
glezes, ao residente portuguez, mas qué queria ou- 
tras em substituição. 

3.° Que era falso ter sido mandada uma em- 
baixada a Inglaterra. 

O cônsul inglez La Cour contradictou logo te- 
nazmente os dois factos que diziam respeito ás re- 
lações entre o Gungunhana e os inglezes. 

Mas afinal, apezar d'estas solemnes declarações, 
da intendência geral de Gaza,creada em 1889, apezar 
das intendências subalternas e das relações affectuo- 
sas entre o regulo e o intendente geral, estabelecido 
em Zefunhe, visinhanças de Manjacaze, o rei dos 



1 Transcripto de um opúsculo do sr. conselheiro Augusto 
de Castilho, publicado sob este titulo — Q/í propósito de Lou- 
renço Marques. 



122 



vátuas não era um vassallo fiel. Menos feroz que 
seu avô Manicusse e sem o génio guerreiro de Mu- 
zilla, seu pae, tinha a duplicidade, os expedientes 
hypocritas e os ardis gananciosos dos antigos diplo- 
matas chinezes. 

Explorava habilmente as ambições que o cerca- 
vam, procurava segurar-se á preponderância das 
companhias inglezas, sem se malquistar comnosco, 
guardava soffregamente as libras dos inglezes e os 
presentes de Portugal, recebia affavelmente o con- 
selheiro Almeida- (residente portuguez), e o dr. 
Schultz (residente aa South Africa), acceitava das 
mãos dos portuguezes a Snider e das mãos dos in- 
glezes a Martini e guardava com igual agrado a 
farda de coronel de 2. a linha que os portuguezes 
lhe offereceram e o sabre de punho de ouro com 
que os inglezes o brindaram. É nas horas de em- 
briaguez e de lubricidade, poderoso, requestado, 
tranquillo, como não havia de rir de uns e d'outros 
o Sardanapalo negro ! 

Depois, alguns missionários estrangeiros fizeram 
causa commum com os agentes da poderosa Com- 
panhia da Africa, e Mundagaz começou a descobrir 
o seu jogo traiçoeiro contra nós, mas ainda dissi- 
mulado e ardiloso, a fingir que não era intento seu 
hostilisar-nos. 

Tem de interromper-se aqui a historia dos vá- 
tuas e do famoso Gungunhana. Os derradeiros ca- 
pítulos hão de escrevel-os os nossos soldados e ha- 
vemos de resumil-os nós aqui. A lenda do ultimo 
rei dos vátuas tem um epilogo — não nas margens 
do Limpopo, como a do Manicusse, nem nas mar- 
gens do Save, como a do Muzilla — mas nas mar- 
gens do Tejo, sob a bandeira de Portugal, victo- 
riosa e soberana. 



V I 



f . 



V 



A Í^EBELLIÁO DOS CAFRES 



As terras chamadas da Coroa, no districto de 
Lourenço Marques, estavam divididas em quatro cir- 
cumscripções, ás quaes já tivemos occasião de nos 
referir. 

O chefe, a quem estas circumscripções estavam 
subordinadas, era denominado commandante das 
terras da Coroa e este cargo era exercido por um 
official superior. A cada circumscripção correspon- 
dia um commando militar subalterno e as sedes de- 
viam ser Ressano Garcia (sobre a linha férrea de 
Lourenço Marques ao Transvaal), Stocolo, na curva 
descendente do Incomati, Magudo, acima d'aquelle 
segundo posto, e Maca?ida. A sede do commando 
geral era em Angoane ou Angoana, pequeno campo 
militar, situado a 20 kilometros ao norte da cidade, 
entre dois vastos pântanos e sob o commandamento 
de algumas collinas, que se alteiam a menos de 
meio kilometro de distancia, no paiz da Zixa^, • 
Abaixo das condições estratégicas d'este posto aSS^T? 
as suas condições hygienicas. Dentro do campo ha*,^ 



124 

via umas pequenas edificações de madeira e zinco, 
alojamento do commando e do pequeno destaca- 
mento de tropas indígenas e umas palhotas para os 
cipaes. Os vassallos aas terras da Coroa estão sujei- 
tos a um tributo, chamado imposto de palhota, que a 
principio era pago em género e, desde de 1881, co- 
meçou a ser pago em dinheiro. Era lançado di- 
rectamente pelos commandantes militares ou por 
delegados seus, que no mez de novembro percor- 
riam as terras dos régulos das suas circumscripções, 
cobravam o imposto, passavam o respectivo recibo 
e formulavam o arrolamento. O imposto fora pri- 
mitivamente de 340 réis. por cada palhota, subiu a 
900 réis e foi fixado em i#35o réis em meados de 
1894. 

Entre as attribuicões do commando das terras 
da coroa não era a única nem a mais importante 
esta do lançamento e recepção do imposto. Tinha 
outra de mais alta gravidade — a resolução, segundo 
o direito consuetudinário cafreal, das pendências en- 
tre os povos ou entre os régulos. Milandos chamam 
os negros a estas pendências. 

E n'estas contendas se parecem alguns negros 
com os teimosos pleiteadores da Europa. Da mes- 
ma origem e com vários aspectos tiram- pretexto 
para insistentes milandos. 

A mais recente d entre as pendências graves que 
houvera nas terras da Coroa era a do regulo Ma- 
veja com Mupanga, pae do Mahazuli e depois com 
este. Mupanga, mais poderoso, vencera Maveja e, 
segundo o direito tradicional dos cafres, o vencido 
devia ficar vassallo e tributário do vencedor. Não 
se conformou completamente com este direito o re- 
gulo derrotado e, depois da morte de Mupanga, 
moveu milandos sobre milandos, que os comman- 
dantes militares, quasi sempre interinos, iam resol- 
vendo como podiam e talvez nem sempre, confor- 
me o uso dos povos, que tambein na Europa fora 
direito consagrado e lei reconhecida durante a idade 
média. 



125 



Um dia decidiu-se no commando militar que o 
Mahuzuli tinha direito a duas terças partes das ter- 
ras do Maveja e este ao terço restante. A resolução 
■descontentou a gente da Magaia, que a considerou 
attentatoria do direito tradicional. 

Depois foi preciso um partido de carregadores e 
deu-se ao Maveja o encargo de fazer a divisão dos 
contingentes. Maveja excedeu, provavelmente, o en- 
cargo ou aproveitou-o para ferir as susceptibilidades 
do seu incommodo suzerano, e Mahazuli, irritado, 
promoveu um conflicto, que ia tendo trágicas con- 
sequências, e não obedeceu á intimação que lhe fi- 
zeram por intermédio do seu odioso vassallo. 

Para reprimir estas pequenas manifestações de 
rebeldia, que iam parecendo já um symptoma alar- 
mante, o commandante das terras chamou a Aiv 
.goane os dois régulos desavindos. 

Não faltaram, mas o Mahazuli, cercado de es- 
piões negros que tudo sabiam de quanto se fazia e 
pensava em Lourenço Marques, fora prevenido de 

3ue o commandante das terras lhe prenderia os in- 
unas suspeitos de o terem incitado á desobediên- 
cia, e fez-se acompanhar de uma formidável escolta 
de gente armada, que, segundo o testemunho do 
sr. Eduardo de Noronha, não seria muito inferior a 
2.000 homens. 

Houve ardente discussão em Angoane, mas não 
se passou de palavras. Não era com meia dúzia de 
.soldados pretos que o commandante das terras ha- 
via de effectuar a prisão dos maus conselheiros do 
Mahazuli, vistas as disposições bellicosas da sua 
gente. 

Não havia ainda, realmente, razões poderosas 
para uma rebellião, mas havia pretextos e disposi- 
ções, que os especuladores hostis ao domínio portu- 
guez, tramando na sombra favorecedora em que a 
nossa tolerância os esquecia, haviam de transformar 
em incitamentos de guerra. 

O imposto de palhota não fora ainda augmen- 
tado e já a insubmissão se manifestava desabrida- 



126 



mente, quando é certo que contra a taxa existente 
se não tinham revelado queixumes nem repugnan- 
cias. 

Dizia-se que havia excessos da parte dos cobra- 
dores. Talvez houvesse; mas os régulos podiam re- 
correr aos commandantes das terras para que cohi- 
bissem os abusos. Allegava-se que em Lourenço 
Marques tinham sido presos, por simplels pretextos, 
alguns negros das terras. 

E' possível que tivesse havido alguma violência, 
mas isso suecede nas mais cultas cidades da Europa 
e não é estimulo bastante para accender os ódios 
de uma guerra. 

E todos nós imaginamos do que os cafres seriam 
capazes nas ruas de Lourenço Marques, se ficas- 
sem impunes os mais audazes na pilhagem ou no 
desrespeito á lei. Na Europa também os gatunos e 
os brigões de taberna se consideram sempre victi- 
mas deploráveis da tyrannia policial. 

Não; o que havia era o desejo de um pretexto, 
incitado dentro e fora da colónia pelo desalmado 
egoísmo que não queria ver em volta do seu obje- 
ctivo as consequências funestas de uma rebellião. 

Para o cafre o incentivo tentador, immediato, 
que lhe afagava o instincto e o vicio, era o saque, a 
pilhagem da cidade onde havia ouro e aguardente, 
armas e pólvora. Mas atraz d'elle estariam as mãos 
que o empurravam e haviam de esganal-o depois 
da victoria. 

Se na avidez das libras sterlinas que lhe vinham 
de fora da província, como preço da sua desleal- 
dade, o Mundagaz não fosse o alliado secreto dos 
cafres, para servir estranhos desígnios, nem o re- 
gulo da Zixaxa nem o da Magaia, apezar de pode- 
rosos, ousariam rebellar-se e intentar uma guerra 
offensiva. 

Ha-de vir dos acontecimentos a confirmação 
d'esta suspeita. 



127 

Em Lourenço Marques percebia-se de que lado 
estava o perigo. 

O regulo da Magaia, muito moço ainda, era 
principalmente um ébrio, um alcoólico, dominado 
pelos seus indunas, e ligado por elles ás ambições 
de Mamatibjane, o audacioso regulo da Zixaxa. 

Este sim, este é que era perigoso, porque tinha 
sobre o outro a superioridade da intelligencia e a 
firmeza inabalável dos desígnios. Um pouco a mi- 
niatura de Chaka, na ambição e na ferocidade, 
Mamatibjane sentia a necessidade de ser um grande 
chefe e tinha a guial-o um homem que sabia ver 
ainda mais longe do que elle, porque illustrára a 
natural sagacidade no convívio de uma alta civilisa- 
ção. Era excellente e até insubstituível para as ne- 
gociações externas e para apreciar no seu exacto 
valor o gue a selvática ignorância do regulo não sa- 
bia avaliar nas suas justas proporções. Finish se 
chamava o cafre perspicaz, que por largo tempo 
residira na colónia do Cabo e era o cérebro diri- 
gente da rebellião. Finish, induna do Mahazuli e 
senhor das terras de Maçaneta e Macanda, enten- 
dia-se muito melhor com o impetuoso regulo da 
Zixaxa de que com o seu próprio chefe. 

O regulo da Magaia procuraria o pretexto, o da 
Zixaxa teria a iniciativa da guerra, em que seria 
preponderante. 

A gente de Mamatibjane estava sujeita ao mesmo 
imposto de palhota, mas parecia que só a do Ma- 
hazuli se insurgia contra o accrescimo do tributo! 

Entretanto ordenou-sfc o lançamento do imposto 
pela nova taxa. Os missionários da estação de Ri- 
katala aproveitaram o ensejo para mais incenderem 
os ânimos contra a legitima auctoridade, n'aquella 
terra, que elles, provavelmente, julgavam legitima- 
mente sua pela concessão da liberdade de propa- 
ganda, consignada nos últimos tratados de limites 
africanos. 

Segundo o testemunho do sr. Eduardo de Noro- 
nha, corroborado por outras informações locaes, 



128 



em Rikatala e na cidade, houve duas conferencias, 
ambas em ladim, e perante numeroso auditório, em 
mie se falou na igualdade do preto, nas extorsões dos 
arancos, no excesso dos impostos, na ausência de me- 
lhoramentos materiaes, taes como estradas, abertura 
de poços, etc, e no fim fe\se-lhe vêr a forma phi- 
lantropica e bondosa como os seus irmãos eram tra- 
tados nas colónias inglesas de Natal e Cabo. 

Era a propaganaa politica, a propaganda em 
proveito do estrangeiro e em detrimento da legitima 
soberania ! 

Catechistas que fossem apóstolos do Bem e da 
Verdade e tivessem o amor altruísta da humanidade 
acima das conveniências egoístas de seita ou das 
interesseiras predilecções de nacionalidade,; propa- 
gandistas que sinceramente pertencessem á civilisa- 
ção, que não fizessem politica e não "deixassem que 
a Bíblia se transmudasse em mercadoria funesta e 
envenenadora, como a espingarda de contrabando e 
a cachaça do chatim; missionários que tivessem ao 
menos escrúpulos de consciência e a singela bon- 
dade de coração de qualquer homem culto no meio 
da selvageria sanguinária; teriam ensinado aos ca- 
fres por quaes meios de brandura deveriam recla- 
mar, depois de lhes haverem dito lealmente que o 
imposto de palhota é maior em outras colónias, que 
a fortuna e a riqueza teem feito prosperar rapida- 
mente e onde o negro pôde ganhar mais ouro, mas 
é realmente o mais Ínfimo dos homens, porque ne- 
nhum branco desce a nivelar-se com elle. 

Mas isto, que era a verdade, o preceito, o dever, 
isto que podia evitar os morticínios, o latrocínio, a 
ruína, a guerra com todos os s^us horrores inevitá- 
veis, isto que era humano e justo, um dever de 
lealdade perante os homens e um dever de confra- 
ternidade perante Deus, que não é, não podia ser 
o manipanso do cafre, propicio á traficancia, ao 
dolo, á rapina; isto seria estéril, seria mesmo des- 
agradável ás influencias protectoras, e não se disse. 

Admittamos ainda que o imposto era uma ex- 



I2() 



orbitancia, uma extorsão, uma violência sem pre- 
cedentes. O homem de partido, o homem politico, 
o luctador agitaria os ânimos, sem que lhe impor- 
tasse prever até onde a tempestade podia chegar. 
Comprehendia-se. Movia-o o egoísmo de facção, a 
cubica do poder, o ódio de raça, se querem mesmo 
a paixão da justiça, na sua manifestação menos pie- 
dosa ; podia desencadear uma tormenta lamentável, 
erguer-se ou afogar-se em ondas de sangue, mas 
não teria prostituído hypocritamente a sua missão 
ante Deus e ante os homens. 

Mas um missionário, que invoca o testemunho 
do céo para a sua sinceridade e pede o salvo-con- 
ducto da civilisação para a sua catechése, um mis- 
sionário, que não iosse um especulador politico, 
pregaria a paz, acalmaria os ânimos, ainda que to- 
dos os queixumes fossem verdadeiros, e depois, 
desassombradamente, não por favor a uma nacio- 
nalidade, mas por um sentimento de concórdia e de 
leal abnegação, iria pedir justiça para os cafres, ex- 
por os perigos da situação e declarar que a sua ta- 
refa de paz ficaria absolutamente inútil, se não qui- 
sessem ouvil-o os que podiam e deviam auxilial-o. 

Mas se havia apenas um pretexto, que convinha 
transformar em ódios e mascarar de justo senti- 
mento de desespero, como haviam de cumprir os 
bons missionários as suas obrigações de homens cul- 
tos n'um paiz estrangeiro e de apóstolos do Bem 
entre gente selvagem? 

Pouco nos* importam os nomes e as nacionalida- 
des. Em vez de catechése promoveram meetings, 
fizeram politica, ajudaram a provocar a guerra. 

E quando, d'aqui a pouco, ouvirmos o grito lan- 
cinante das mulheres e das creanças azagaiadas, os 
brados de. pavor das populações inermes, o uivo 
lúgubre dos cafres na rapina e no morticínio, tragi- 
camente illuminados pelas labaredas do incêndio; 
q[uando ouvirmos as apostrophes brutaes da artilhe- 
na, o gemido dos que agonisam e virmos a fuma- 
ceira das descargas e as cinzas das palhotas boiando 



«■» 



em sangue; perguntaremos então a nós mesmos 
com que tranquilla devoção os conferentes de Rika- 
tala podem ler as santas lições da Biblia. 






Tentou-se novamente realisar o mallogrado pro- 
jecto de prisão dos indunas, apontados como insti- 
gadores da desobediência do Mahazuli. Era apenas 
ir ao encontro dos acontecimentos. A idêa da rebel- 
lião estava no espirito dos cafres; descera d'alto so- 
bre elles. Era uma questão d'algumas horas ou dal- 
guns dias. Pensou-se talvez que valeria a pena in- 
tentar o aborto do conluio cafre por um acto de au- 
dácia, que já não podia ser uma surpresa porque 
os cafres estavam precavidos. 

Avisaram os indunas da Magaia para se reuni- 
rem em Anguane. Obedeceram, mas levaram com- 
sigo cerca de 4:000 homens armados de nongas e 
azagaias. Na residência do commando havia apenas 
20 soldados pretos. 

Depois de increpar os indunas pelas suas respon- 
sabilidades nos conflictos anteriores e de receber 
d'elles umas frouxas desculpas, o commandante das 
terras mandou prender um dos mais insubmissos. 

Os soldados conseguiram prendel-o e encerral-o 
em um calabouço de mesquinna solidez. 

Houve um momento de hesitação. Depois, ao 
protesto succedeu a violência. A turba arrombou o 
calabouço e libertou o indana preso; os soldados 
fizeram fogo, as balas cruzaram-se no ar com as 
azagaias, o commandante, mettido destemidamente 
entre os amotinados para os acalmar, foi espancado. 
Afinal os cafres fugiram e no recinto de Angoane 
ficavam alguns feridos e dois cafres prisioneiros. 

Rebentara a rebellião. Ia começar a guerra. 

Na cidade, reduzida a um punhado de soldados 
europeus da policia e a algumas dezenas de solda- 



o 

101 



dos negros, em que não era licito confiar, rece- 
beu-se a noticia como um prenuncio inquietador de 
mais graves acontecimentos. 

Saiu logo para Angoanc uma pequena força 
de 1 2 praças da cavallaria de policia e marchou 
mais tarde para ali um destacamento de caçadores 3, 
composto de i capitão, 2 subalternos e 62 soldados. 

Era em 27 d'agosto de 1894. 



VI 



Jl DEFEZ/ DE LOURENÇO MARQUES 



Era preciso precaver para a guerra. Os rebel- 
des da Magaia tinham já interceptado as communi- 
cações pelo Incomati, haviam expulsado os Índios 
mouros do traficp sertanejo e encetavam a sua cam- 
panha de bandidos pelo assalto e saques á mão ar- 
mada dos barcos de mercadorias que desciam o 
rio, transportando mercadorias das regiões margi- 
naes do Cossine, da Xerinda e da Mannissa. 

Ordenou-se ao commandante das terras que 
mandasse convocar os régulos vassallos e os inti- 
masse a armarem-se para a guerra contra o Maha- 
zuli. Appareceram apenas alguns e esses declara- 
ram logo, n uma singular conformidade de opinião, 
3ue nao tinham duvida em ir guerrear o regulo 
a Magaia, mas quando todos os outros régulos 
avassaltados fossem com elles, que, por si só eram 
fracos para arcar com o Mahazuli. Percebia-se. Esta- 
vam excellentemente informados e bem sabiam que 
punham uma condição irrealisavel, pois que outros 
régulos, e o da Zixaxa com certeza, tomariam a 






♦ i34 

peito a rebellião, em vez de nol-a ajudarem a suffocar. 

Estava perdida a esperança que por um mo- 
mento alliviára os justificados receios da cidade. 

Ao menos, responder-se-hia ás hostilidades da 
Magaia, repeilindo-lhe a pirateria no rio. 

Aproveitou-se a flotilha ancorada na bahia. O 
vapor de guerra Neves Ferreira foi para a foz do 
rio lncomati, acompanhando a lancna-canhoneira 
Xejina, que subiu o rio, levando a bordo o tenente 
Furtado, commandante do vapor. O Neves Fer- 
reira não podia seguir a lancha, por causa do pouco 
fundo e estreiteza da corrente. 

Travaram-se então as primeiras hostilidades. 
Escondidos no matto espesso e alto e no mangal 
que orlava o acanhado curso do rio, os rebelões 
receberam a tiro a pequena canhoneira. Respondeu- 
lhes a Xefina com algumas descargas das metralha- 
doras, que lhes causaram perdas importantes; mas 
a lucta era inútil e seria insustentável por mais 
tempo n'aquellas condições. Uma lancha somente 
não podia comboiar todos os barcos de commercio 
e repellir os ataques de milhares de rebeldes, que 
estanciavam na margem do rio e, perfeitamente a 
coberto, faziam fogo certeiro e vivo com a Snider 
ou com a Martini. A Xejina, desprovida de blin- 
dagem, tinha sido crivada de balas. 

O2 cafres estavam bem precavidos. Tinham re- 
cebido ou comprado boas armas de fogo e abun- 
dantes munições, antes mesmo de lhe terem au- 
gmentado o imposto de palhota! 

A lancha retirou donde, isolada como estava, se 
perderia inutilmente. 

A situação complicava-se. Obteve-se a promessa 
de um auxilio de 4.000 homens da rainha Zâmbia, 
dos Am-tongas, mas até esta mesma esperança se 
perdeu, porque a gente 'do Maputo ou estava já no 
conluio ou entrou n'elle depois da promessa e fal- 
tou escandalosamente ao compromisso, merecendo 
bem o nome de cães com que os antigos zulus os 
haviam designado. 



i35 



O commandante das terras tentou mover o re- 
gulo da Moamba a reunir a sua gente para ir guer- 
rear o Mahazuli. Inútil tentativa. O regulo pediu 
três chapeladas de libras pelo auxilio, que talvez 
depois recusasse, e como lhe não acceitassem o 
preço, desfeiteou o commandante militar e rou- 
bou-o. 

Que predilecção tinham já os cafres pelas libras 
sterlinas e como elles entendiam que a guerra se 
podia fazer para qualquer lado, comtanto que o ouro 
marcasse a preferencia ! 

A onda subia. Mamatibjane, o indigitado caudi- 
lho da rebellião, estava já perfeitamente preparado 
para a guerra e nas terras da Magaia organisava-se 
a defeza com alguns trabalhos de fortificação pas- 
sageira, dirigidos por alguém que conhecia os pro- 
cessos defensivos dos europeus. Dizia-se que esse 
alguém era o Finish, embora parecesse pouco plau- 
sível que a simples permanência de alguns annos 
no Cabo e num meio, decerto afastado dos centros 
militares, podesse dar ao inculto cafre um claro co- 
nhecimento d'aquelle ramo da sciencia da guerra. 

Já resolutamente disposto á guerra, com um plano 
assente e as miragens do poder supremo e do saque 
opulento a desenrolarem-se-lhe na sanguínea pupilla, 
Mamatibjane convocou o conselho dos seus indunas, 
por um mero alarde de formalismo hypocrita. Ia 
ouvir as opiniões de todos, firmemente resolvido a 
seguir a sua. Bem sabia elle já quaes eram os en- 
thusiastas e os oppositores do seu plano. 

Ao conselho assistiu a mãe do regulo. Foi d'ella 
o primeiro voto contrario á empreza. Nas suas pre- 
visões de mãe, atormentava-a o perigo d'aquella 
aventura. Aconselhava prudência e que cada um se 
conformasse com a sua condição. Onde chegou o 
branco nunca mais o preto governa 4 . Era esta a 



1 Vid. A rebellião dos indígenas em Lourenço Marques, 
pelo sr. Eduardo Noronha, distincto official do exercito, que 
tomou parte na defeza d'aquella cidade. 

9 



i36 



synthese da sua resignada politica. Ouviu-a de má 
sombra o iracundo regulo e tão desorientado ficou 
por que alguém, mesmo sua própria mãe, ousava con- 
trariar-lhe os projectos, que, em repellões de selva- 
gem desespero, vociferou torrentes de ameaças e 
mandou pôr fora do conselho aquella que tivera pa- 
lavras de paz e de conformidade. 

Houve ainda um conselheiro intrépido apoz este 
lance violentíssimo. A guerra ainda teve outro voto 
contrario. Era o de um velho induna, tio do regulo* 
Faloti sem rodeios de cortezão, mas cortou-lhe a 

Salavra, bruscamente, uma bala da espingarda 
lartini, que o sobrinho trazia comsigo. Mamati- 
bjane assassinara o tio, q conselheiro de rude e des- 
temida franqueza. Era o único voto. Desfechara em 
quinto acto de tragedia aquelle singular conselho 
a estado! 

A guerra foi proclamada por entre gritos de ju- 
bilo selvagem, em quanto no chão, o velho induna > 
soltava n'um arranco o seu ultimo alento. 



Fortificára-se um pouco melhor o campo de An- 
guane, que, todavia, não ficara capaz de resistir aos 
ataques impetuosos de uma grande multidão de ne- 
gros. Levaram-se para o campo 2 canhões estria- 
dos de 8 C e uma velha metralhadora Montigny. Nos 
trabalhos de defeza prestara serviços valiosíssimos 
o chefe da secção de obras publicas de Lourenço 
Marques, o engenheiro Paes d' Almeida. 

Ali se tinham reunido também, além da força 
disponível de caçadores 3 (umas 5o praças), dois 
contigentes de 5o praças cada um, que pertenciam 
a caçadores 1 e 4 da província e que haviam che- 
gado a bordo da corveta Rainha de Portugal. 

Mas estes soldados indígenas eram em grande 
parte recrutas bisonhos, que mal sabiam pegar na 



i3 7 

espingarda e que pelo esforço individual valiam 
muito menos que os cafres. 

O sr. general Fernando de Magalhães, governa- 
dor geral da província de Moçambique, viera para 
Lourenço Marques, logo quo teve conhecimento da 
situação grave do distncto e mandara para a cidade 
os mesquinhos recursos militares de que podia dis- 
por. No empenho da defeza precedera-o, como era 
natural, e coadjuvava-o solicitamente o sr. Canto e 
Castro, disticto official de marinha, governador do 
districto. 

A situação alarmante de Lourenço Marques era 
conhecida em Portugal apenas por noticias suspei- 
tas de certa imprensa estrangeira. 

Entretanto as informações dos cônsules, tele- 
grammas e cartas dos negociantes estrangeiros, es- 
tabelecidos na cidade, instavam pelo soccorro de 
navios de guerra das suas nacionalidades, para que 
fossem esses navios o seu ultimo refugio, 

Como era de esperar, os jornaes afteiçoados á 
South Africa, ou por ella estipendiados, aproveita- 
vam soffregamente o ensejo para concitar contra 
Portugal a opinião dos interessados nas questões 
africanas, e carregavam brutalmente as cores d'a- 
quella situação, realmente perigosa. Apoucavam 
propositadamente as nossas pequenas forças, reedi- 
tavam antigás calumnias contra a nossa aptidão co- 
lonial, vibravam em volta do nosso nome o ódio e 
o desprezo e incitavam os governos interessados 
na Africa do sul a combinarem-se para uma occu- 

f>a # ção militar de Lourenço Marques, a titulo de de- 
èza e com o pretexto de que Portugal ou não po- 
dia ou era incapaz de sustentar a colónia contra a 
aggressão dos cafres. 

A occupação estrangeira seria o appetecido re- 
mate d'aquella providencial rebellião dos negros, 
pelo menos nos planos de certos agentes poderosos 
de uma grande companhia de exploração do conti- 
nente negro. 

Entretanto, o governador geral da província to- 



i38 



mava a peito a obra da defeza e julgava firmemente 
que poderia realisal-á com bom êxito, sem o con- 
curso de soccorros da metrópole. Não ficava mal 
este empenho ao seu animo, mas era positivamente 
uma temeridade e uma perigosíssima illusão. 

N'aquelle intuito não quiz, pela sua parte, so- 
bresaltar a metrópole e, longe de instar por soccor- 
ros immediatos, mantinha a opinão de que podia 
repellir e castigar os rebeldes com as próprias for- 
ças da província. 

Mas a situação aggravava-se de dia para dia e ia 
além das próprias previsões do governador geral, 
talvez um pouco deslumbrado pelo optimismo do 
seu animo. 

Em Anguane vivia-se verdadeiramente no rude 
e fatigante serviço de campanha. Os cafres quasi ti- 
nham o campo sitiado e de quando em quando ap- 
pareciam provocadores, entoando cânticos de guerra. 

Mais para o interior a situação era tal que se 
define n'este trecho do livro do sr. Eduardo de No- 
ronha, acerca da rebellião : 

«Por este tempo o sr. Almada, rapaz habituado 
á vida fácil de Lisboa, mas por então cançado d'ella, 
metteu-se a sertanejo e fora com uma pacotilha ao 
Gungunhana. Reduzida a fazenda a libras retirou-se 
d'ali e veiu acompanhado por um soldado d'Angola. 
A quatro horas da povoação de Anguane morreu- 
lhe o cavallo, continuou o caminho a pé, comendo 
milho e massa, prato que, com certeza, não faz 
parte dos menus ao Bragança ou do Internacional. 

«Quando quiz atravessar o vau do Marracuene 
veiu muita gente armada interceptar-lhe a passa- 
gem, o soldado quiz reagir, ao que elle se oppoz, 
para não serem os dois feitos em postas. 

«Vendo a vida em perigo, não obtendo licença 
para proseguir, declarou-se inglez. A esta magica 
confissão foi-lhe facultada a passagem e fornecido 
um induna, que os acompanhou até fora das ter- 
ras do Mahazuli, para que ninguém os hostilisasse». 



i3g 

Este trecho não nos dá somente um aspecto da 
revolta ; dá-nos uma revelação, que é bem o com- 
mentario mais significativo que podia fazer-se ao 
pretexto do imposto de palhota. 

* * 

Da guerra, apenas em principio, a primeira vi- 
ctima europêa, fora um cabo de cavallaria da poli- 
cia, destacado em Anguane. 

Na perseguição dos cafres, que se haviam ap- 
proximado do acampamento em assomos de provo- 
cação, o cabo carregou impetuosamente um grupo 
dos rebeldes e chegou a aprisionar um d'elles, se- 
gurando-o pelo capacete de pennas. Mas era neces- 
sário não desfitar os outros rebeldes, e o cabo não 
teve tempo de segurar melhor o prisioneiro, que, 
não era seu intento matar. O capacete soltou-se, 
porém, a um movimento do cafre, que velozmente 
se passou para o lado esquerdo do cavalleiro e lhe 
cravou a zagaia no ventre, fugindo como uma an- 
tílope. 

Era um valente aquelle cabo. Estava de licença 
da junta e apresentára-se voluntariamente aos pri- 
meiros rebates da rebellião. 

Vingaram-lhe a morte, acutilando cafres, alguns 
dos poucos soldados que o haviam seguido na per- 
seguição dos rebeldes. 

A cidade vivia no receio inquietador de um pró- 
ximo assalto, que talvez fosse o saque, a chacina, 
a completa destruição. Os cafres tinham boas ar- 
mas e se todos se reunissem, todos os que estavam 
no conluio e sob a influencia dos dirigentes da Zi- 
xaxa e da Magaia, viriam doze a quinze mil assal- 
tantes, cujos instinctos sanguinários se engrandece- 



140 

riam na anciã da rapina. E na cidade havia peças 
de artilheria, metralhadoras Nordenfelt e Maxim, 
armas Kropatschek, Martini e Snider, mas não ha- 
via soldados que chegassem para a defeza de uma 
povoação aberta. Comprehende-se a inabalável re- 
sistência de duzentos nomens, contra dez ou vinte 
mil, no recinto de uma poderosa fortaleza. Mas 
ali, onde todas as zonas de defeza eram a bem di- 
zer outros tantos pontos fracos da defeza geral, ali 
o que poderia fazer-se com uma população espavo- 
rida e um punhado apenas de soldados brancos, 
dignos de confiança? Setenta e dois eram elles, se- 
gundo o testemunho do sr. Eduardo de Noronha 
Cincoenta marinheiros que desembarcaram da Rai-* 
nha de Portugal e vinte e dois da policia, que não 
tinha o eífectivo completo e ficara assim reduzida 
por causa dos reforços que haviam ido para Anguane. 

As suspeitas de ataque avolumaram-se, torna- 
ram-se convicção e, para desafogo dos ânimos, não 
houve remédio senão distribuir armas e munições 
á gente válida. Confiaram-se cerca de duas mil ar- 
mas a portuguezes, estrangeiros europeus, mouros, 
parses, baneanes, mulatos e pretos, gente do cami- 
nho de ferro e da alfandega, gente das obras publi- 
cas e do commercio, gente de todas as condições e 
de todas as procedências, mas quasi toda ella sem sa- 
ber carregar as espingardas que trazia nas mãos e 
sem aquelle espirito de ordem e de obediência, sem 
aquella unidade de acção e de cohesão disciplinar, 
que constituem a força primacial dos exércitos. Na 
hora da lucta não havia de faltar o precipitado ti- 
roteio dos inexperientes, não seriam raros os exem- 
{>los de coragem pessoal, mas quando chegasse o 
ance temeroso, todos elles formariam a onda do 
terror e, para resistir até á ultima extremidade, 
restariam apenas pouco mais de 72 homens. 

Estabeleceram-se os postos, regulou-se o serviço 
de vigilância, combinou-se a acção cooperadora dos 
diversos postos e fixou-se o local de concentração, 
para o derradeiro esforço de resistência. 



141 

Fizeram-se todos estes preparativos extraordi- 
nários ao escurecer do dia 23 de setembro. Era já 
noite fechada quando se procedeu á distribuição dos 
armamentos. Devia ser uma hora tragicamente lú- 
gubre aquella em que cada homem válido, na pro- 
funda emoção do perigo eminente, ia receber uma 
arma e alguns punhados de cartuchos para a defeza 
do próprio lar, ultimo reducto de tantos interesses, 
que são o estimulo da lucta pela vida e de todas 
as santas affeições, que são a suprema ventura da 
alma. 

A noite adensou-se na sua escuridão tenebrosa, 
como se fosse um trágico vaticínio. Ágeis, cavilo- 
sos, arrastando-se como as serpentes, os cafres po- 
deriam surgir inopinadamente, como de um oceano 
de sombras, peito a peito com os defensores dos 
postos exteriores. Ninguém dormia. O governador 
geral e o governador do districto rondavam os pos- 
tos. Sobre a madrugada abriu-se no horisonte uma 
estreita fresta de luz, tibia e fria, como a lamina 
embaciada de um cutello. Era a lua, como um alli- 
vio n'aquelle pesadelo. 

Uma corneta tocou a unir. Reboaram tiros de 
artilheria. Estrondeiam descargas irregulares. Vi- 
bram novos toques de unir em direcções diversas. 
Concentram-se forças no pântano e na avenida cen- 
tral da cidade. 

Seria o assalto ? Não era ainda. Fora um reco- 
nhecimento dos cafres, que tinham vindo tactear a 
cidade pelo lado do cemitério. Julgavam-n'a talvez 
desprecavida n'aquella hora de lassidão, de exte- 
nuamento, de assoberbadora somnolencia, que suc- 
cede ás preoccupações da vigília. Contavam com a 
fácil victoria e fugiram como bandidos, assim que 
as balas os surprehenderam. 

O alarme evidenciou as deficiências da defeza. 
Não havia obstáculos materiaes a oppôr ao ataque 
e a abundância dos voluntários não podia compen- 
sar a escassez dos soldados. 

No dia immediato, reconhecida a necessidade 



142 

de concentrar na cidade as forças militares gue es- 
tavam no acampamento de Anguane, afinal inútil e 
quasi assediado pelos rebeldes, ordenou-se que fosse 
abandonado. Era mais um punhado de soldados. 

Por proposta do tenente Eduardo de Noronha 
levantaram-se barricadas nas ruas por onde seria 
possível que os assaltantes penetrassem mais facil- 
mente. A noite estavam terminadas e foram guar- 
necidas. Estava tudo alerta nos postos exteriores e 
nas barricadas. As patrulhas de cavallaria cruza- 
vam nas avenidas. 

A gente auxiliar promettida pela rainha Zâm- 
bia e pelo regulo Ingoazani chegou a sahir do Ma- 
puto, mas, provavelmente, já com o firme intuito 
de nos ludibriar. A sua marcha foi uma devastação 
brutal de bandidos. Chegados á Catemba exigiram 
que lhes dessem espingardas Martini (como a Mar- 
tini estava conhecida naquelles sertões!) Não lhfas 
poderam dar e distribuiram-lhes umas espingardas 
ordinárias, do systema Albini, propositadamente 
compradas para aquelle fim. Receberam-n'as de 
má sombra e fugiram com ellas, inopinadamente, 
para as suas terras. 

Refere o sr. Eduardo de Noronha acerca d'esta 
gente de Maputo : 

«Do que não resta duvida é da chegada á 
Catemba do emissário do Gungunhana, trazendo 
um categórico ultimatum, em que se declarava ao 
chefe da impi que se hostilisassem os revoltosos o 
Gungunhana mandaria gente em seu auxilio». 

O rei de Gaza era na sombra e pelo seu terrí- 
vel prestigio o mais poderoso auxiliar dos cafres 
rebellados. 

A 4 d'outubro os negros da Zixaxa fizeram uma 



143 

audaciosa incursão até próximo da cidade e rouba- 
ram os gados que pastavam na langua de Munhua- 
na, depois, de terem retalhado a golpes de azagaia 
um dos guardadores. 

Com tão arrojados inimigos, demais a mais, sa- 
bedores de quanto se passava na cidade, pois que 
dispunham de numerosos espiões, que não era fá- 
cil reconhecer e annullar; comprehendeu-se que a 
defeza era ainda insufficiente e que de um mo- 
mento para o outro não seria difficil que os cafres 
penetrassem na povoação. 

Por proposta do engenheiro Paes d'Almeida 
construir am-se blockhans de madeira e zinco. Che- 
gou a 12 o seu numero total. A direcção da defeza 
foi confiada ao coronel Araújo de engenheria, dire- 
ctor do caminho de ferro. 

Eram frequentes os alarmes na cidade, extenua- 
dor o serviço na guarnição das barricadas e dos 
blockhaus, durante longas noites, tempestuosas e 
lúgubres. 

Em 9 doutubro nova investida e nova escara- 
muça. Se não fosse a linha dos blockhaus, os cafres 
da Magaia teriam entrado na cidade, depois de te- 
rem assassinado vinte e duas pessoas na Pulana, 
azagaiando as próprias creanças! Furiosos pelo in- 
successo da investida, assassinaram um pobre ho- 
mem, que encontraram isolado e indefezo. 

Volveram então para a cidade os dias angustio- 
sos do terror. A dois passos das suas barricadas, o 
homicídio, o roubo, a destruição impune, e a onda 
dos cafres, formidável e immensa, a esbravejar, 
quasi ao alcance da sua artilheria ! 

Havia chegado participação telegraphica de que o 
governo da metrópole decretara a partida immediata 
de um batalhão de caçadores e de uma bateria de 
artilheria de montanha do exercito; que vários na- 



144 



vios de guerra estavam apromptando para reforçar 
a estação naval de Moçambique e que em Angola 
se organisava um contingente de 400 soldados ne- 
gros, para reforçar a guarnição de Lourenço Mar- 
ques. 

Consoladoras noticias, que valiam um abençoado 
allivio, uma forte e realentadora esperança n'aquella 
atormentada existência de uma cidade que não po- 
dia contar afoitamente com o dia immediato, a cada 
noite velada nas plataformas dos blockhaus ou 
junto dos canhões e das metralhadoras nas barri- 
cadas. 

Mas que longo período ainda de perigos e de 
provações, apezar da brevidade excepcional com 
que a expedição fora organisada na metrópole ? 

A boa nova espalhou-se rapidamente na cidade; 
revelava-se em todos os rostos, era o desafogo de 
todos os ânimos. Os cafres souberam-n'a, como sa- 
biam tudo. 

Entenderam os rebeldes, ou melhor talvez, en- 
tendeu o astuto conselheiro de Mamatibjane que 
era chegado o momento opportuno de intentar um 
ataque decisivo a Lourenço Marques. 

Quando os soldados brancos chegassem, a ci- 
dade estaria espoliada, morta entre os despojos fu- 
megantes da sua nascente prosperidade. Combi- 
nou-se o plano. O regulo da Zixaxa era a indivi- 
dualidade preponderante, a alma da lucta, como o 
Finish, era o cérebro, o pequeno Moltke negro 
d'aquella horda de selvagens. Mahazuli com a sua 
gente atacaria pela Munhuana, Maxequene e Ponta 
Vermelha (direita e centro da linha defensiva) e a 
gente da Zixaxa e da Moamba investiria a cidade 
pelo L'hanguene, pela estrada do Transvaal e baixa 
do Mahé. As forças dos três régulos não seriam 
inferioriores a 12 ou 14.000 cafres, dos quaes ha- 
via muitos armados com espingardas. 

A cidade não teria mais ae cento e vinte ho- 
mens disciplinados, marinheiros e soldados da po- 
licia. Dos voluntários brancos alguns se bateriam 



145 



intrepidamente, mas com os parses, mouros, ba- 
neanes e pretos não seria licito contar. 

Pelas 9 horas da manhã de 14 d'outubro um 
ex-soldado da cavallaria de policia encaminhava-se 
a cavallo para o Infulene, onde tinha uma cantina. 
Quando ia próximo da capella da missão de S. José 
do Uhanguene, viu surgir de todos os lados negros 
armados, como avançadas de uma grande multidão 
aue se agitava a coberto de um canniçal. Era a gente 
da Zixaxa e da Moamba. 

O ex-soldado comprehendeu a situação e o pe- 
rigo e voltando rapidamente o cavallo, enterrou-lhe 
as esporas nos ilhaes e deitou em doida carreira 
para a cidade, a essa hora tranquilla e no descanço 
reparador da noite perdida. Aquelle homem obs- 
curo, que as azagaias não poderam alcançar, sal- 
vava Lourenço Marques. 

Chegou a um dos blockhaus e communicou a 
aterradora noticia. Havia ali apenas uma peça e 
dois soldados da policia. Deixal-o. Os negros avan- 
çavam. Os primeiros tiros da defeza seriam tam- 
bém o signal de alarme. Guarnecem os dois a peça. 
Ao primeiro tiro uma roda do reparo invalida um 
d'elles, n'um forte movimento de recuo. Embora. 
Ficava o outro. Carrega e faz fogo elle sósinho; a 
segunda granada rebenta no ar, como rebentara a 
primeira, mas a do terceiro tiro cae sobre a onda 
negra e produz enormes estragos, que por um mo- 
mento apavoram os atacantes. 

A cidade está já em alarme. Os soldados da 
policia correm do quartel onde comiam o rancho e 
vão guarnecer a linha ameaçada, sob o commando 
do valente capitão Aguiar. São apenas algumas de- 
zenas de homens, mas o fogo toma uma intensidade 
extraordinária. Quasi todas as pontarias das peças 
são feitas pelo capitão. Não se perde uma granada. 
Seriam 70 homens e estavam fazendo frente a 
7.000. Era um contra cem ! 

Na cidade o pavor é indescriptivel. Uma loco- 
motiva que ia tomar agua e recuava para a estação, 



146 

depois do primeiro alarme, solta o signal de pe- 
rigo, o silvo inquietador, um como grito de pavor 
de alguma enorme ave selvagem. 

A população, surprehendida no seu breve re- 
pouso, acotovella-se lívida, desorientada, semi-nua, 
como no lance de um incêndio pavoroso. 

Os intrépidos marinheiros occupam o seu posto 
a passo de carga. As barricadas estão ainda des- 
guarnecidas de voluntários. As mulheres e os tími- 
dos embarcam de tropel para bordo dos navios 
surtos na bahi^. Em toda a parte pedem e recla- 
mam os marinheiros e a policia, que são apenas 
um punhado d^omens e que são afinal a defeza 
suprema. 

Os governadores e os officiaes estão no seu posto. 
Volvido o momento de estranha confusão d'aquella 
gente, a quem falta a disciplina militar, os voluntá- 
rios mais animosos guarnecem as barricadas, na re- 
solução de morrer combatendo 

Chocam-se nos ares. com o ruido secco das des- 
cargas e a interjeição formidável dos canhões os 
gritos lancinantes das mulheres que não poderam 
fugir. Os baneanes, a tremerem como creanças > 
são mais tímidos e mais inúteis que as mulhe- 
res. 

De bordo da Rainha de Portugal desembarcou 
tudo quanto podia disparar uma espingarda — os fo- 
gueiros, os creados, os doentes que podem arrasa 
tar-se. A bordo da canhoneira ingleza Trush pre- 
parava-se o destacamento de desembarque para 
defender o consulado e salvar os seus nacionaes> 
se os negros conseguissem entrar na cidade. 

A policia, com extraordinária serenidade d^nimo, 
dava descargas com a regularidade dos fogos de 
exercício. Os marinheiros, com a sua tradicional 
coragem, batiam com os seus fogos e punham em 
fuga a massa de cafres que chegara ate ao edifício 
da fabrica do álcool. 

Fugiam agora aquellas hyenas negras, que antes 
do assalto haviam assassinado barbaramente crean- 




CASTO E CASTRO 

(Governador ilc Lourerçi Marques) 



H7 

ças e mulheres desprecavidas, nos arredores da 
cidade. 

Intimidados pelo fogo vivíssimo da defeza con- 
tra os guerreiros da Zixaza e da Moamba, os guer- 
reiros do Mahazuli não se atreveram a pôr em 
pratica" o plano de ataque, e não completaram a in- 
vestida intentada pela gente que o Mamatibjane di- 
rigia. 

Se os não acobarda a energia da defeza, ter-se- 
hia combatido nas barricadas e talvez não houvesse 
milagres de bravura que podessem salvar a cidade. 

Calcula-se que os cafres não tiveram menos de 
ioo mortos e feridos. Na retirada foram persegui- 
dos pela secção de cavallaria, por officiaes e volun- 
tários a cavallo e por alguns pretos macuas, mas 
esquivaram-se a todo o contacto com as forças per- 
seguidoras, á frente das quaes ia o governador do 
districto Canto e Castro. 

Podia considerar-se honrosamente concluído o 
fadigoso assedio de mais de dois mezes. 

Não faltariam ainda os alarmes e os receios, 
mas o combate do dia 14 salvara a cidade. 

Provou-se aos cafres que os portuguezes não 
estavam degenerados a ponto de serem fracos como 
mulheres, que era o que elles e os seus instigado- 
res espalhavam no sertão. 

Quaesquer que hajam sido as hesitações do 
primeiro período da defeza, é consolador affirmar 

3ue nenhum antigo chronista dos grandes tempos 
as conquistas duvidaria consagrar uma pagina de 
louvor aos bravos de 14 doutubro de 1894. 

Tiveram ali intrépidos representantes essa glo- 
riosa marinha que não tem esquadras e esse bravo 
exercito, que é como a tradição viva da antiga pá- 
tria aventurosa. 

Todos quantos comprehendiam o que valia 
aquella bandeira erguida sobre Lourenço Marques, 
nos dias de tormentosa provação, souberam com- 
prir honradamente o seu dever. Alguns foram além 
do próprio dever e será um grande exemplo a citar 



148 



o do valente commandante daRainha de Portugal» 
o capitão de fragata Moraes e Sousa, que em todas 
as noites deixava as commodidades do seu navio, 
para ir compartilhar com os seus marinheiros des- 
embarcados, como simples voluntário, as fadigas 
e os perigos na linha dos blockaus l . 

A deieza de Lourenço Marques é bem o hon- 
roso prologo das campanhas que vamos descrever. 
Prologo escripto á antiga, pelos marinheiros e pe- 
los soldados, na intrepidez de um contra cincoenta. 



1 Citaremos aqui alguns officiaes de marinha e do exer- 
cito e alguns funccionarios que tomaram parte na defeza da 
cidade : Governador do districto Canto e íastro ; 2. tenente 
Sepúlveda e guardas marinhas Nogueira, Pinto Cardoso, Pe- 
reira da Silva, Santos e Silva Cardoso. Do exercito : general 
Fernando de Magalhães, governador geral da província, coro- 
nel Araújo, tenente coronel Nogueira, majores Assumpção e 
Martins de Carvalho, capitães Aguiar, Pina Rollo e Miranda, 
tenentes Noronha, Encarnação, Nogueira, Silva e Moreira de 
Sousa e alferes Custodio Silva, Praça, Baptista da Silva, José 
Francisco e Castello Branco. 

Funccionarios civis : engenheiro Paes de Almeida e sub- 
chefe da repartição de fazenda Ernesto Mestre. 




MORAES E SOUSA 
.fCommandante da 'Rainha de Portugal.! 



MI 



PARA A AFRICA 



Em fins de setembro corriam em Portugal noti- 
cias inquietadoras acerca de Lourenço Marques, mas 
todas ellas de proveniência estrangeira e de suspei- 
tosa' origem. 

Alguns dias depois de se haver reeditado lá fo- 
ra o velho boato da venda de Lourenço Marques 
aos inglezes, esse boato que de quando em quando 
renasce das próprias cinzas, como a Phenix my- 
thica, publicava a Agencia Havas o seguinte tele- 
gramma: 

«Lourenço Marques, 25, n. — Aguardam-se dis- 
túrbios sérios. O chefe dos kaffires, Mahazuli, re- 
uniu alguns milhares de kaffires, diz-se que para ata- 
car a cidade. O governo distribuiu armas á popu- 
lação branca para se defender». 

Como era de esperar, este telegramma causou 
viva emoção em Portugal. O governo expediu um 
telegramma ao governador geral de Moçambique, 



i^ * 






i5o 



pedindo-lhe informações, e antes que houvesse tem- 
po de ter resposta, recebia um telegramma do sr. 
general Fernando de Magalhães, dando conta d uns 
boatos de hostilidades, em que não acreditava, mas 
que o levavam a tomar precauções para proteger a 
cidade contra qualquer surpreza. 

Um illustre jornalista que havia exercido já uma 
alta commissão eventual na Africa, explicava no jor- 
nal de que é director, que os taes kaffires do tele- 
gramma da Havas não eram outra cousa senão os 
cafres ou landins das Terras da Coroa, e accrescen- 
tava não ser provável que os landins se atrevessem 
a atacar Lourenço Marques. 

Outro jornal de Lisboa, que se declarava infor- 
mado por pessoa que havia estado n^quelle distri- 
cto africano, não achava improvável o assalto da ci- 
dade pelos negros, mas não lhe parecia que fosse 
cousa muito para recear. A rebelhão parecer-se-hia 
com muitas outras, sem importância, que anterior- 
mente se haviam suffocado nas terras de Lourenço 
Marques. 

Em 27 de setembro appareceu nos jornaes um 
telegramma de Londres, informando que haviam 
desapparecido os receios em Lourenço Marques, e 
que a cidade retomara a sua tranquillidade normal. 

O governo resolveu reforçar a estação naval de 
Moçambique com a corveta Affonso d Albuquerque 
e a canhoneira Rio Lima. 

Por essa occasião noticiou o Temps que em Lou- 
renço Marques haviam desembarcado marinheiros 
inglezes. Referia-se ao facto de ter desembarcado 
da canhoneira Trush um destacamento que fora 
guardar durante a noite o edifício do consulado in- 
glez. O desembarque effectuára-se quasi clandesti- 
namente e o governador do districto protestou con- 
tra o facto, logo que d'elle teve conhecimento. O 
cônsul inglez limitou-se então a combinar com o 
commandante da canhoneira os signaes com que, em 
caso de perigo, poderia avisal-o para mandar defen- 
der o consulado com as forças de desembarque, 



IDI 



sempre promptas ao primeiro alarme, especialmente 
de noite. Estes signaes de telegraphia óptica eram 
feitos de dia com bandeiras e á noite com luzes. 

Em 4 de outubro ainda um importante jornal de 
Lisboa estava convencido de que a rebellião era so- 
mente do regulo Mahazuli, cujas forças suppunha 
pouco importantes. 

Mas a grandeza do perigo era já incontestável 
em Lourenço Marques e o governador geral pediu 
telegraphicamente urgentes reforços. 

Um telegramma de Johannesburg, simples pro- 
ducto d um falso boato, ou brutal insidia de inimi- 
gos nossos, dava Lourenço Marques tomada pelos 
cafres ! 



* * 



O governo resolveu acudir immediatamente á 
colónia, mandando lhe um forte contingente de sol- 
dados de Angola e um importante reforço da me- 
trópole. 

Em relação ao contingente colonial seguiam-se 
os precedentes nacionaes e os exemplos das gran- 
des nações europêas. Como vimos já no segundo 
capitulo doeste livro, a Inglaterra e a França teem 
organisado as expedições ao ultramar com impor- 
tantes elementos das suas tropas coloniaes. 

Com respeito á expedição da metrópole, que- 
brar-se-hia a tradição antiga e persistente de orga- 
nisar corpos de gente collecticia, aventureiros sem 
escolha, quasi sempre o exgoto das casernas. Iriam 
unidades constituídas do exercito, como para as 
possesões africanas só por excepção havia ido a ex- 
pedição de 1891. 

A urgência era enorme, a conjunctura gravíssi- 
ma, o perigo excepcional. A Europa escutava atten- 
tamente os echos de Lourenço Marques ; era pre- 
cisoso que fosse quem soubesse honrar a um tempo 
o nome do exercito e as altivas tradições da bandeira 

nacional. 

10 



l52 



!V:u chegado a crise formidável da politica ul- 
uv.^urina,, a grande politica histórica da nação por- 
:v.íiUv\ra. Kra indispensável fazer um esforço violento, 
mcs:r.o a troco de qualquer sacrifício dos nossos re- 
cu:>o>< e da nossa pobreza, ou ficaríamos irremedia- 
\ cimente perdidos como potencia colonial, o que 
equivaleria a descer de categoria na Europa e a fe- 
char, talvez para sempre, o maior livro da iniciativa 
portugueza no mundo. 

Deixar que se perdesse Lourenço Marques, a 
nossa colónia de maior futuro, seria um golpe mor- 
tal na honra d'este paiz, seria perder também Mo- 
çambique e deixar que vibrasse irrespondivel o grito 
de incitamento á pilhagem do resto que nos ficasse. 

Toda a hesitação e toda a demora valeria um 
desastre. 

Era então ministro da marinha e do ultramar 
um valente e illustre official de marinha, de valio- 
sos serviços na Africa — o sr. João António de Bris- 
sac das Neves Ferreira. 

Era ministro da guerra o sr. coronel Luiz Au- 
gusto Pimentel Pinto, um dos ministros a quem o 
exercito deve os mais assignalados e inolvidáveis 
serviços em prol da sua instrucção, da sua disci- 
plina, do seu nivel moral. 

Podíamos evitar aqui as palavras de louvor, que 
a outros de maior authoridade é licito dizer, sem que 
lh'as averbem de lisonja, como podem averbar as 
nossas, vista a distancia entre quem as merece e 
quem as escreve. N'este livro, porém, similhante 
receio seria alguma cousa mais de que uma injus- 
tiça, porque seria uma lacuna injustificável. 

Nas ultimas campanhas d'Africa tem o sr. Pi- 
mentel Pinto a partilha honrosissima, que não pôde 
negar-se aos organizadores da victoria, como a não 
recusa a historia á culta energia do conde de Cas- 
tello Melhor, que tornou possíveis os últimos gran- 
• des triumphos da guerra dos vinte e oito annos. 

O sr. Pimentel Pinto empenhou devotadamente 
todos os esforços de que era capaz na organisação 



i53 



rapidíssima do primeiro troço da expedição a Mo- 
çambique. Teve a nitida comprehensão d'aquella pe- 
rigosíssima conjunctura. 

D'esta gloria ninguém, absolutamente ninguém, 
poderá esbulhal-o. Nem os seus mais implacáveis 
adversários. 

Em cinco dias decretou-se a expedição, prepa- 
rou-se e partiu ! Pela firmeza da resolução havia 
somente dois precedentes, que em outro capitulo 
indicámos; pela rapidez da organisação, não havia 
nenhum. 

Depois de uma prevenção, que precedera três 
dias apenas a publicidade official da resolução do 
governo, a ordem do exercito n.° 22 de 1894 publi- 
cava o seguinte decreto: 

SECRETARIA DISTADO DOS NEGÓCIOS DA GUERRA 
REPARTIÇÃO DO GABINETE 



> 



Sendo conveniente reforçar a guarnição do dis- 
tricto de Lourenço Marques: hei por bem decretar 
o seguinte: 

Artigo i.° São postas á disposição do ministé- 
rio da marinha e ultramar, para embarcarem com 
destino a Lourenço Marques, o 2. batalhão do re- 
gimento n.° 2 de caçadores da Rainha, uma bateria 
de artilheria de montanha com quatro bocas de fogo, 
uma secção do serviço de saúde, uma secção da 
administração militar e uma secção de material de 
guerra, com os eífectivos indicados no mappa A. 
As bagagens e reservas de fardamento que hão de 
acompanhar o batalhão e bateria são as menciona- 
das no mappa B. 

Art. 2. As condições, vencimentos e vantagens 
com que as referidas forças vão prestar serviço no 
indicado districto são as que constam das instruc- 
cões annexas ao decreto de 16 de dezembro de 
1890. 

O ministro e secretario d'estado dos negócios da 
guerra e o ministro e secretario d'estado dos nego- 



cios da marinha e ultramar assim o tenham enten- 
dido e façam executar. Paço, em 9 de outubro de 
i894.^REI.=Z.»í{ Augusto Pimentel Pinto— João 
António de Bríssac das Neves Ferreira. 

Do mappa A, a que se refere este decreto, ex- 
trahimos o seguinte quadro das forças do primeiro 
troço expedicionário : 

FORÇAS QUE EMBARCARAM PARA LOURENÇO MARQUES 





Pessoal 


A*»ti 


| 


Designares 


O 


i- 

í 


1 


1 


i 


£ 


1 




1 


5i3 
7 6 

a 

S 


53o 
81 

4 


c 


4 


6 




Bateria de montanha 

Secção do serviço de saúde. 
Dita da administração mili- 
tar 

Dita do material *de guerra.. 




Total 


24 


x>:; 


'.".- 


8 


m 


H 


4 



Estas forças levaram o material completo de 
bivaque, reserva de fardamento e calçado e uma im- 
portante reserva de munições de artilheria e de car- 
tuchame para a carabina Kropatschek com que es- 
tavam armados os caçadores e os serventes da ba- 
teria de montanha, iam 25o tiros por peça e 600 
cartuchos com bala para cada carabina. 

O material de guerra fornecido pelo arsenal do 
exercito importava em iZ:33^gog réis. 

Pelos depósitos geraes de medicamentos, de 
roupas e objectos de cirurgia do exercito foram 
fornecidos artigos no valor de i:5o3^84G réis, in- 



i55 



cluindo a importância de 3o filtros Mallié. Mais tarde 
enviaram-se mais 240 filtros, no valor de 1 :692#o8o 
reis. 

Com a secção da administração militar foram os 
necessários elementos para o estabelecimento de 
uma padaria. 

Eram importantes as quantidades de géneros 
alimentícios adquiridos para a subsistência da ex- 
pedição em Lourenço Marques, durante os primei- 
ros tempos. 

Era commandante em chefe da expedição o sr. 
major José Ribeiro Júnior. 

No dia i5 d'outubro, cinco dias depois da pu- 
blicação do decreto, a expedição partia para Lou- 
renço Marques, a bordo do paquete Capengo, da 
Companhia Nacional de Navegação para a Africa 
Occidental. 

* 
* * 

A partida foi um lance commovedor, inolvidável. 
Enchia de ternura e de orgulho ! 

O dia rompera brilhante, claro, azul, inundado 
de sol, entre scintillações de oiro antigo. Um dia 
formosíssimo de outomno, cheio de encantos sob o lú- 
cido céo de Lisboa, a reflectir-se nas amplidões do 
Tejo e a levantar-lhe das aguas fulgores de aço po- 
lido, como de um arnez de cavalleiro medieval. 

Desde manhã que a multidão, contida por filei- 
ras de policias, se acotovellava anciosa na praça do 
Município, defronte do arsenal de marinha. Espe- 
rava a chegada dos expedicionários. 

Na longa ponte do arsenal viam-se filas successi- 
vas de omciaes do exercito e da marinha, entre os 
quaes algumas dezenas de pessoas da classe civil 
quebravam a viva tonalidade dos uniformes. 

No Tejo um movimento excepcional de peque- 
nos barcos, de formas varias, engalanados de ban- 
deiras multicores. 

Entre a multidão, mulheres que soluçavam e 



i5ò 



v ^;io> afogados de lagrimas. Eram mães, 
*.\ ^> % vivas e irmãs dos que iam partir. 
s \u-à .i Africa! Como era lúgubre a sua tradi- 
. ..■• .-.:uiga! E de bocca em bocca se iam rumore- 
.u^òo as noticias esmorecedoras que os nossos jor- 
\íc> tinham traduzido da imprensa estrangeira, 
..iiuas vezes informada pela insidia de quem tinha 
a peito exaggerar os nossos infortúnios. Calculava-se 
.i multidão terrível dos cafres e falava-se na protec- 
ção que lhes dava o poderoso chefe dos vátuas, 
que tantos milhares de guerreiros poderia mover 
contra os nossos. E a favor de tantos inimigos, o 
maioi\ o mais pavoroso, o mais terrível de todos — 
a febre! — Antigos marinheiros e soldados davam 
pormenores dos trabalhos aspérrimos da Africa. 

Como viriam elles, os pobres rapazes, subita- 
mente arrancados das relativas commodidades da 
vida europêa, para serem arremessados ao sertão 
negro, a três mil léguas do seu lar, do seu casalejo, 
da sua aldeia ? Os officiaes, esses, sim, deviam sof- 
frer também, mas o seu espirito culto via de mais 
alto e melhor o que era a terra africana e o sacri- 
ticio d aquella empreza. Os soldados, porém, rudes 
ingénuos, ha mezes sahidos dasf suas montanhas, dos 
seus grosseiros labores ruraes, esses tinham ou- 
vido apenas a vaga noticia do perigo, de bocca em 
bocca exaggerada, e da Africa só conheciam a ve- 
lha noção tenebrosa, que fizera d'ella o escoadoiro 
das prisões, na equivalência da forca abolida. Ir 
para a costa d'Africa era nas povoações montesinhas 
a formula do supremo castigo, da suprema desgra- 
ça, do ultimo desespero. Da outra formula, immen- 
samente mais antiga — metter uma lança em Africa 
— a formula dos dias brilhantes da conquista mar- 
roquina, d'essa não sabiam elles a remota signifi- 
cação. 
» 

Nos quartéis fazem-se as ultimas despedidas, no 
de Valle de Pereiro, onde está caçadores 2 e no de 
Campolide, onde se alojara a bateria de montanha, 
que viera de Penafiel. Saem os expedicionários; en- 



157 ■ 

chem-se as janellas de senhoras que agitam lenços, 
e agglomera-se. o povo nas ruas, acclamando as tro- 
pas que passam. Na vanguarda de caçadores a banda 
do regimento solta as notas do hymno nacional, 
como um cântico de batalha; á frente dos artilhei- 
ros a charanga do regimento n.° i da arma faz vi- 
brar nos ares a sua soberba marcha de guerra. 

Sente-se um frémito inexplicável de enthusiasmo 
e de admiração por aquelles homens e por aquelle 
sacrifício. Aquella musica é como uma vaga evoca- 
ção antiga, que nos desperta a alma em anciãs de 
novos dias e na profunda nostalgia da victoria, ha 
tanto apartada de nós. Se elles podessem vencer! 

Pois se alguém chorava, não eram elles, os que 
iam partir ! Deviam soffrer, soffriam muito, mas sa- 
biam apagar no rosto as sombras da saudade, até 
os mais rudes e bisonhos galuchos, como se de sú- 
bito sentissem dentro de si a forte alma aventurosa 
d outros tempos ! Tiveram a noção intuitiva da sua 
abençoada missão patriótica e dir-se-hia que todos 
comprehendiam unanimes a necessidade suprema 
de realentar pelo exemplo este povo pessimista, por 
tantos infortúnios esmorecido ! 

Foi o primeiro acto de coragem d'aquelles sol- 
dados e não foi o menos difficil. A disciplina ape- 
nas podia compellil-os a partir e a baterem-se, mas 
em cada um, nos mais humildes, nos menos cultos, 
nos mais inexperientes, lá estava o coração a dizer- 
lhes que era preciso saber-se como de cabeça er- 
guida, com o sorriso da confiança e o nome de Por- 
tugal nos lábios, se diz adeus a tudo o que ha de af- 
fectuoso e santo na pátria, para lhe ir defender a 
honra e a bandeira. 

Defronte do arsenal de marinha, o povo, n'um 
accesso de enternecido orgulho, refluia sobre as fi- 
leiras e cortava a marcha, abraçando os soldados. 
Mal sabia elle então que immenso dever estava 
cumprindo. 

Passaram, e o enthusiasmo, que fora uma sug- 
gestão da firmeza d'animo d'aquelles soldados, tol- 



i58 



dou-se em sombras de amargos vaticínios. Talve\ ca 

não volte nenhum! — era a phrase esmorecedora dos 

pessimistas e o gemido d'alma das mulheres, que 

soluçavam entre a multidão. 
> 

Atracado á ponte do arsenal de marinha, com 
os porões abarrotados de carga, o arcaboiço negro, 
negro o cano fumegante, o Ca\engo^ a resfolgar 
pelos seus pulmões cTaço, está recebendo os últimos 
soldados. 

Fazem-se as despedidas a bordo, trocam-se as 
ultimas saudações. A maré está descendo; o paquete 
desatraca da ponte. 

Move-se no rio a flotilha onde se agitam, como 
bandos de pássaros estonteados, as bandeiras e os 
lenços. Com as suas grosseiras botas de marcha os 
soldados treparam ás enxárcias e soltam a alma e 
mascaram a saudade em brados consecutivos de 
saudação á pátria. A multidão, agglomerada á bei- 
ra do rio, responde-lhes como um echo immenso, 
demorado, profundo, que se repete nas amplidões 
do Tejo. O sol inclina para o mar a sua juba de oiro 
e as bandeiras esvoaçam no ar, como aves multi- 
cores. 

O Capengo afastára-se lentamente e fora amar- 
rar á bóia, para completar o embarque que a va- 
sante não deixara concluir na ponte do arsenal. Pouco 
depois levantava no ar o seu immenso pennacho de 
fumo negro e fazia a derradeira saudação á terra 
no silvo estridente da machina. 

Todos os navios içaram o signal de boa viagem 
e, já, ao longe, divisam-se ainda por sobre as amura- 
das do paquete os lenços a arfarem na derradeira 
despedida e os cobre-nucas das barretinas a alve- 
jarem sobre o vulto negro do navio. 

E na curva distante do horisonte, sobre o mar, 
o espirito dos que sempre creram na alma nacional, 
como que via desenharem-se as cumiadas resplan- 
decentes da Historia, grandes como turbilhões de 
nuvens, e sobranceira a ellas a estrella remota dos 
nossos destinos. 



1DQ 



Bem certo é que a cada grito de alarme desper- 
ta rejuvenescida e paira acima dos nossos erros, da 
nossa pobreza, dos nossos infortúnios, a Ínclita 
alma antiga. 

Não foi o arcaboiço de pinho das naus do Ga- 
ma que nos deu as victorias do Oriente, nem fo- 
ram as pedras do Guzarate, aprumadas em baluar- 
tes, que nos fizeram a epopêa de Diu. Foi a alma 
dos nossos marinheiros, a alma dos nossos soldados* 
a alma portugueza, e essa não morreu ainda. 



VIII 



^S PRIMEIRAS OPERAÇÕES 



No dia immediato ao da partida do Capengo já 
o regimento de infanteria n.° 2 tinha prevenção para 
estar prompto a embarcar para a Africa, á primeira 
ordem. Devia partir com um efiectivo correspon- 
dente ao duplo do que levara o 2. batalhão de ca- 
çadores n.° 2. 

Em Lourenço Marques recebeu-se com immenso 
jubilo a noticia telegraphica do embarque do pri- 
meiro troço da expedição, mas não se dissiparam 
os plausíveis receios de um novo ataque. O insuc- 
cesso do combate de 14 d'outubro desalentara um 
pouco os cafres e acirrara divergências cuja origem 
vinha de longe. Era provável que o Mahasuli se 
sentisse humilhado ante Mamatibjana, a quem quasi 
desamparara n'aquelle combate e que o celebre re- 
gulo da Zixaxa recriminasse o seu alliado pelo mau 
êxito da guerra; mas a despeito d'estas desavenças 
e do inevitável effeito moral da derrota, a rebellião 
mantinha-se e alastrava-se por todo o valle do In- 
°omati. Mamatibjana não era homem para ceder ao 



IÕ2 



primeiro desastre, nem o Finish era conselheiro para 
esmorecer num lance de má fortuna. Se não havia 
animo para investir de novo a cidade, não faltaria 
constância para atear a guerra no vasto sertão do 
Incomati. 

Os falsos alarmes continuavam e a cidade, com 
o commercio paralysado e o animo acabrunhado por 
tantos sobresaltos e pavores, receava bem a vindi- 
cta dos cafres, antes que os reforços tivessem tempo 
de chegar de Loanda e de Lisboa. 

Demonstrára-se pela terrível evidencia dos fa- 
ctos que pára a defeza só era licito contar afoita- 
mente com um punhado de marinheiros e com al- 
gumas dezenas dos intrépidos soldados da policia, 
e não era com estas forças que seria possível guar- 
necer efficazmente a extensa linha dos postos exte- 
riores. Qualquer que fosse a coragem dos voluntá- 
rios na defeza das barricadas, a sua ignorância das 
cousas mais rudimentares do serviço da guerra e a 
sua insubmissão aos preceitos da disciplina militar, 
não podiam inspirar confiança na efficacia do seu 
esforço pessoal, por admirável que fosse. 

Restringiu-se por estas razões a área da defeza 
da cidade, subordinando-a á pequenez da guarnição 
europêa, e pensou-se em contractar um corpo de 
600 boers, resalvando as susceptibilidades do amor 
próprio nacional com o precedente da Inglaterra, 
que em tempo contractára gente dos sertões para 
lhe ajudar a bater os zulus e com o exemplo da 
Allemanha, que constitue as suas tropas das coló- 
nias africanas com negros contractados na Zululan- 
dia e no Sudão *. 

Deve dizer-se que este alvitre foi suscitado e ap- 
plaudido quasi exclusivamente pelos estrangeiros da 
Associação Commerctal. A quasi totalidade dos com- 



1 Os quadros de commando compÕem-se de europeus, quer 
nas tropas de oceupaçao — Schiltçtroup, quer nas forças de 
policia — Poliçeitroupe. 



i63 



merciantes portuguezes era adversa ao alistamento 
dos boers e rfeste sentido telegraphou para o mi- 
nistério da marinha, depois de uma reunião no Athe- 
neu Commercio e Industria. 

Entretanto proseguiam os trabalhos de defeza. 
Reforçaram-se as barricadas e combinou-se o plano 
de resistência, de forma que, a não poderem sus- 
tentar-se os postos exteriores, a defeza se concen- 
trasse na Praça 7 de Março. 

Haviam chegado á cidade vários repor ters de 
jornaes estrangeiros e á bahia os navios de guerra 
inglezes Sparrow, Philomel e Rancoon e o cruza- 
dor allemão Seeadler. 

Em fins de outubro constou que a gente da Zi- 
xaxa estava abatida d'animo e que o Mamatibjana se 
havia retirado para a Magaia com os seus guerrei- 
ro^ de mais firme lealdade e valor. Na cidade ti- 
nham-se apresentado vários indunas de alguns ré- 
gulos das Terras da Coroa, que iam affirmar a sua 
obediência ao governo. 

A cidade ia retomando o seu aspecto normal. 
Até se apagara já a impressão dolorosíssima cau- 
sada pela trágica barbárie da ilha Xefina, onde os 
cafres haviam assassinado a azagaia e a machado 
um italiano e o intrépido compatriota nosso, Carlos 
Lopes, um neto do glorioso patrão Joaquim Lopes, 
No dia 7 de novembro começou a demolição das 
barricadas exteriores, já consideradas inúteis, e á 
noite a banda de musica de caçadores 4 (indígena) 
tocava no jardim publico, pela poimeira ve\ desde 
24. de setembro, observa o sr. Eduardo de Noronha 
no seu livro, tantas vezes aqui citado. 

A 10 chegava o paquete Angola com 400 solda- 
dos angolas; em 12 o Capengo com a expedição da 
metrópole, anciosamente esperada. 

Emfim. Acabara o pesadelo de mez e meio. 



164 

Na metrópole receava-se dia a dia que subita- 
mente chegasse a noticia telegraphica de um novo 
ataque á cidade, antes que ali houvesse aportado 
a expedição. Seria um desastre enorme, principal- 
mente pelo inevitável desembarque das guarnições 
dos navios estrangeiros. Calculem-se as formidáveis 
complicações internacionaes que esse facto não ha- 
via de produzir! 

O telegramma de Lourenço Marques, noticiando 
a chegada do Capengo, valia para o governo e para 
o paiz a noticia jubilosa de uma victoria. A lucta 
nos sertões seria aspérrima e incerta, mas o perigo 
maior, n'aquelle momento, estava no pretexto para 
a intervenção estrangeira, que de um lance e no 
embate de poderosas ambições, nos poderia perder 
a colónia. 

Na resolução de levar a guerra até onde á honra 
e aos interesses do paiz fosse preciso leval-a, prepa- 
rava o governo outros troços expedicionários mais 
importantes, que deviam seguir para a Africa, em 
estação apropriada ás operações dos europeus no 
sertão negro. 

E como era preciso confiar a direcção superior 
da província a um funccionario cuja categoria e po- 
deres extraordinários fossem muito além da cate- 
goria e poderes de um governador geral, pois que 
com os negócios administrativos e com as opera- 
ções militares poderiam enlear-se negociações ou 
pendências diplomáticas de urgente solução entre o 
governo superior da província e as colónias estran- 
geiras e estados independentes que com ella confi- 
nam; decidiu o governo entregar á suprema dire- 
cção de um commissario régio todos os negócios 
d^quella colónia, em tão difficil conjunctura. 

Effectivamente em fins de novembro publicou o 
Diário do Governo o seguinte decreto: 

SECRETARIA D ESTADO DOS NEGÓCIOS DA MARINHA 

E ULTRAMAR DIRECÇÃO GERAL I . a SECÇÃO 

> * 

Considerando as circumstancias que actualmente 



i65 



se dão na provinda de Moçambique e os méritos, 
serviços e conhecimentos especiaes que concorrem 
na pessoa de António José Ennes, do meu conse- 
lho, ministro e secretario destado honorário : hei 
por bem nomear o referido António José Ennes 
commissario régio na província de Moçambique, de- 
vendo n'esta qualidade exercer, relativamente á ad- 
ministração e ao governo da província, todas as fa- 
culdades e attribuições do Poder Executivo e bem 
assim representar o governo em quaesquer nego- 
ciações diplomáticas que ali se tratem com agentes 
ou representantes estrangeiros e que se refiram ao 
domínio portuguez na Africa Oriental. 

Os ministros e secretários d'estado dos negócios 
da marinha e ultramaf e dos negócios estrangeiros 
assim o tenham entendido e façam executar. JPaco, 
3o de novembro de i894.=REI.=/o<fo António de 
Brissac das Neves Ferreira — Carlos Lobo d? Ávila.» 

Homem de talento pujante e de rara energia, 
conhecedor da historia e das condições da provín- 
cia de Moçambique, onde já estivera como encarre- 
gado da delimitação da fronteira de Manica, o sr. 
António Ennes, o ex-ministro da marinha que man- 
dara a Moçambique a expedição nomeada em fins 
de 1890, era realmente um funccionario digno 
d^quella alta categoria e d'aquella enorme respon- 
sabilidade. 

Jornalista brilhante, homem de lettras laureado, 
homem politico na alta esphera onde se rematam 
as aspirações dos homens d'estado, o sr. António 
Ennes prestou ao seu paiz um serviço relevantís- 
simo e deu um raro exemplo de cívica abnegação, 
n'aquelle momento gravíssimo da historia portu- 
.gueza. 

Abandonando as commodidades da sua plácida 
vida de Lisboa, apartando-se do seu lar, o sr. En- 
nes ia sacrificar a saúde, a vida talvez, e tomava 
.sobre si responsabilidades de tal modo enormes, 
que podiam subitamente esmagar-lhe todas as ven- 



ió6 



turas da sua alma e até a gloria do seu poderoso 
talento, numa dessas horas funestas, que depen- 
dem dos caprichos da fortuna e cjue tantas vezes 
são a suprema iniquidade da opinião publica. 

Iria também organisar a lucta e, não podendo di- 
rigir nem vencer combates, havia de ficar acabru- 
nhado na sombra dos que se perdessem. No lance 
angustioso de um desastre, em que todas as opi- 
niões se desvairassem em arrebatamentos de de- 
sespero e de dor, a injustiça havia de feril-o, a elle, 
o paisano que não commandava batalhas, a elle pri- 
meiro do que a nenhum outro. 

Quando o seu talento o não previsse, dizia-lho 
a grande lição da historia, que elle lucidamente co- 
nhece. Sabia-o e acceitou o aspérrimo encargo. Na 
evidencia d'este sacrifício, refulgem immensamente 
mais que a fama do seu talento as glorificações da 
sua alma de patriota. 

Pouco depois de haverem chegado a Lourenço 
Marques as duas expedições militares, entraram na 
bahia a corveta Affonso d' Albuquerque e a canho- 
neira Rio Lima. 

As tropas europêas começaram logo a ser ataca- 
das pelas febres e o hospital ficou atulhado de doen- 
$ tes. A época era a mais funesta para os europeus 
e a menos própria para emprehender uma campa- 
nha nos sertões cortados de languas e todos efles 
transformados em immensos pântanos. Mas o campo 
de Auguane abandonado era como que uma affronta 
para as tropas recem-chegadas, e, no seu rude 
egoismo, alguns estrangeiros diziam em ar de mofa 
que os nossos soldados eram para estar dentro de 
redomas. Ignorantes do que havia succedido aos 
francezes no Dahomé, ou esquecendo-o proposita- 
damente, o que elles queriam era que os pobres 
soldados fossem quanto antes bater os negros, para 



167 

que nem sequer de leve os opprimisse o receio de 
um novo ataque á cidade. 

Decidiu-se a reoccupação de Anguane e um re- 
conhecimento ofíensivo pela flotilha, na ilha Xefina 
e no Incomati. 

Pela madrugada de 5 do corrente concentrava-se 
uma columna de' operações nas terras adjacentes ao 
cemitério da cidade. Era constituída por duas sec- 
ções da bateria de montanha, por 23 praças da ca- 
vallaria da policia, pela 3. :l e 4.* companhia de ca- 
çadores 2, por uma companhia do batalhão indígena 
e por um troço de auxiliares. A columna ia sob o 
commando em chefe do governador do districto, a 
infanteria era commandada pelo sr. major Ribeiro, 
de caçadores 2, e a artilheria pelo sr. capitão Ma- 
chado. Os auxiliares eram dirigidos pelo sr. Mello 
Breyner. Era de 600 homens a força total. 

A expedição europêa não só estava reduzida pelas 
baixas ao hospital, mas, principalmente, porque des- 
tacara para Inhambane uma secção de artilheria de 
montanha e duas companhias de caçadores 2. Cons- 
tara que os landins intentavam atacar aquella villa, ou 
talvez se receasse alguma aventura dos vátuas, e 
por isso fora enviado para ali este importante re- 
forço. 

O comboio de abastecimento e de munições das 
tropas destinadas a Anguane compunha-se de 17 
carros. 

As tropas iniciaram a marcha depois de orde- 
nado o respectivo serviço de segurança. O corpo da 
guarda avançada era formado por uma patrulha de 
cavallaria (flexa), por um troço de voluntários a ca- 
vallo, por um troço de auxiliares, pela secção da 
sapadores de caçadores 2 e pelas secções de arti- 
lheria, apoiadas pela 3. a companhia d'aquelle regi- 
mento. O grosso da columna compunha-se da 4.* 
companhia ae caçadores 2 e das forças do batalhão 
indígena. Com o commandante em chefe iam como 
voluntários o capitão de engenheria Barahona e Costa 

e o medico Arnaldo de Menezes. O comboio ia 

11 



i68 



escoltado pòr soldados indígenas e por alguns sol- 
dados de cavallaria. A guarda da rectaguarda era 
composta de soldados indígenas. Os flanqueadores 
eram da companhia de policia. 

Os carros do comboio dificilmente rodavam na 
areia alagada e tornavam a marcha demorada e em- 
baraçosa. 

A um kilometro de Anguane a extrema van- 
guarda encontrava um grupo suspeito de cafres que 
fugiram rapidamente. Dois exploradores a cavallo 
* vieram dar noticia de que uma força de rebeldes 
estava acampada em Anguane. 

Os auxiliares com três soldados de cavallaria c 
três voluntários foram sufficientes para pôr os ca- 
fres em fuga. 

A columna oceupou Anguane, onde só horas de- 
pois poderam chegar os carros e a guarda da re- 
ctaguarda ! 

Em commettimento de maior importância e na 
proximidade de um inimigo numeroso teria sido in- 
dispensável, para evitar uma divisão funesta das for- 
ças, marchar em quadrado com os carros no cen- 
tro, quaesquer que fossem as difficuldades a vencer 
e a morosidade inevitável da marcha. 

Estabeleceu-se o serviço de segurança e por duas 
vezes houve signal de alarme. Os cafres não tinham 
fugido para longe. A chuva era torrencial. As tro- 
pas estavam encharcadas. O inimigo approximava-se 
atrevidamente, mas desapparecia logo, intimidado 
pelos tiros d^rtilheria. 

Pela madrugada do dia immediato tentaram os 
cafres uma surpreza, que as vedetas e os postos 
descobriram a tempo. Vendo percebido o seu plano 
e precavidos os defensores de Anguane, os cafres 
afastaram-se para longe do campo, não sem que os 
nossos os perseguissem, causando-lhes 12 mortos» 

Pela sua parte, as duas lanchas-canhoneiras ti- 
nham subido o Incomati, o rio de zig-zags mais ca- 
prichosos que ha em toda a Africa, e haviam batida 
as margens até acima de Maçaquesse. Emboscados 




PILIPPE NUNES 
/Commandanlt da lancha •Bacamarte) 



iGq 



nos densos mangacs que se emmaranham nas mar- 
gens do rio, como um labyrintho perigosíssimo, os 
cafres sustentaram vivíssimo fogo contra os navio- 
sitos. O bombardeamento das margens durou qua- 
tro horas. As lanchas ficaram crivadas de balas. 
Calcula-se que foram importantes as perdas dos ne- 
gros. Da guarnição dos navios ficaram três mari- 
nheiros feridos. 

* 

Em 27 de dezembro a tíotilha voltou a bater as 
margens do Incomati, enxameadas' de rebeldes. 
Compunha-sc do vapor Neves Ferreira e da lancha. 
Bacamarte, que devia subir até Marracuene. 

A lancha subiu sob o fogo intensíssimo dos ca- 
fres, que occupavam as duas margens do rio. Ca- 
hia sobre ella uma torrente de chumbo. Na volta 
de Marracuene novamente a Bacamarte bombar- 
deou o mangal da Maçaneta. No convez da lancha 
o i.° tenente Filippe Nunes, seu commandante, di- 
rigia o fogo intrepidamente, e quando elle próprio 
fazia a pontaria da metralhadora, uma bala dos 
cafres do Finish passa fatidicamente pela fenda do 
escudo de abrigo e vara pelas costas o coração he- 
róico d^quelle brilhante oííicial. Estava cortada tra- 
gicamente a carreira auspiciosa de um valente. A 
vida apagou-se-lhe como um relâmpago. Filippe Nu- 
nes morrera, honrando a bandeira do seu paiz e as 
altivas tradições da sua classe. 

O bombardeamento continuou ainda sob aquella 
dolorosíssima impressão. 

Regressada a flotilha a Lourenço Marques, fez-se 
o funeral do mallogrado official. Foi uma commove- 
dora hoipenagem. A bandeira portugueza cobriu 
orgulhosamente aquelle morto que a defendera des- 
temidamente. 

O dia 7 de janeiro de i8q5 foi assignalado por 
uma audaciosa ra\\ia de caíres, uns 3 :00o se cal- 
cula que fossem, vindos do seu campo de concen- 



170 

tração em Marracuene. Passaram entre Anguane e 
a cidade, destruíram a linha telephonica, incendia- 
ram pequenas casas e palhotas que encontraram no 
caminho e foram cahir sobre a linha férrea, onde 
assassinaram dois capatazes portuguezes e corta- 
ram a mangueira do reservatório d'agua. Eram 8 
horas da manhã. Dividem-se. Uns correm como 
chacaes sobre algumas povoações da Matolla e as- 
sassinam 60 mulheres e creanças; outros, o maior 
numero, vão atacar o campo de Anguane, donde 
são repellidos e postos em fuga. 

Assim que na cidade houve noticia do atrevido 
commettimento, immediatamente se organisou uma 
columna que saiu a perseguil-os, sob o cominan- 
do do bravo major Caldas Xavier. Baldado empe- 
nho. Os bandidos tinham fugido. 

Dias depois planeou-se um reconhecimento ás 
terras da Magaia. Efectivamente no dia 21 de ja- 
neiro de madrugada (3 horas) sahia de Lourenço Mar- 
ques uma columna, composta de uma secção de ar- 
tilheria de montanha com duas peças, 1 1 soldados 
de cavallaria do corpo policial, 120 praças de caça- 
dores 2 da metrópole e 80 praças do batalhão de 
caçadores 3 (indígena). Era commandada por Cal- 
das Xavier. 

Percorreu 22 kilometros até Guavá, sem encon- 
trar vestígios dos cafres. Fez alto ali e sahiu então 
para a frente em exploração, á frente dos 1 1 solda- 
dos de cavallaria, um dos mais arrojados e brilhan- 
tes officiaes das nossas ultimas campanhas d'Africa, 
o tenente de artilheria Paiva Couceiro, já assigna- 
lado pela sua intrepidez d'animo no sertão do Bihé. 
A pequena distancia da columna, surgiram-lhe 
atrevidamente 800 cafres, que intentavam cercal-o, 
a elle e aos seus homens, cortando-lhes assim a re- 
tirada sobre a columna. Paiva Couceiro, como seu 
inexcedivel arrojo d'animo, manda fazer fogo sobre 
os inimigos e combate desesperadamente para abrir 
caminho para o lado de Anguane. A conjunctura é 
verdadeiramente desesperada. A lucta éde 1 para 65. 



I 7 I 

Felizmente appareceu uma força de caçadores 
africanos, que tinna saido também em reconheci- 
mento. O inesperado reforço quebra um pouco a 
audácia dos negros. O effeito moral é immensamente 
maior que o effeito material, porque os soldados 
indígenas mal sabem disparar as espingardas. Os 
cafres desorientados, começaram a retirar por um 
movimento de flanco na direcção do grosso da nossa 
columna, que avisada já pelo tiroteio, avança em 
soccorro das tropas de exploração. 

O susto apodera-se então dos cafres, que deban- 
dam vertiginosamente. 

O dia vae declinando. Os tiros da kropatschek 
alcançam os fugitivos a grande distancia. As grana- 
das dos canhões de montanha levam a distruicão e 
o terror aos grupos em fuga. 

As nossas tropas manifestam desejo de perse- 
guir o inimigo, mas não lh'o consente o experimen- 
tado Caldas Xavier, que berft sabia como seria inútil 
e temerária a perseguição dos negros áquella hora 
e por tropas europêas, que uma longa marcha ha- 
via enfraquecido. Caldas Xavier aprendera a conhe- 
cer as guerras africanas primeiro que o major Wis- 
smann, e o illustre allemão diz nos seus preciosos 
conselhos acerca das campanhas na Africa: 

Quanto nas guerras da Europa a perseguição 
tena\ é o indispensável complemento do bom êxito 
de um combate, tanto na Africa é essencial ser cir- 
cumspecto depois de uma acção victoriosa. 

No período de um mez fora aquelle o terceiro 
recontro em Anguane e suas proximidades. 



IX 



O QUADRADO DE MAIftACUENE 



Era preciso tomar a offensiva. Quasi todo o valle 
do Incomati estava em poder dos rebeldes e seria 
um desdouro ficar com as tropas europêas reduzi- 
das á modesta defensiva de Anguane e dos blo- 
ckaus de Lourenço Marques. A campanha seria 
dura e perigosa, mas era indispensável ao prestigio 
do nome portuguez. 

O commissario régio, que havia chegado a Mo- 
çambique em 5 de janeiro, viera pouco aepois para 
Lourenço Marques, base das operações a empre- 
hender e cujo plano em poucos dias foi elaborado 
por dois officiaes do estado maior, os srs. capitão 
Eduardo Augusto da Costa e tenente Ayres Ornei- 
las e pelo major Caldas Xavier, que, como sabemos 
]á, conhecia bem os sertões de Moçambique e tinha 
larga experiência das guerras africanas. 

A campanha limitava-se ainda a uma demonstra- 
ção offensiva. Só mais tarde, com novos reforços da 
metrópole, se levaria a eífeito o plano geral da 



174 

■'» »!■■■■ ■■!■■■ — — ^^ 

guerra, porventura já estudado nos seus lineamen- 
tos capitães. 

Era indispensável avançar para bater os cafres 
no seu campo de concentração e também para des- 
mentir solemnemente as calumnias de alguns jor- 
naes estrangeiros, que suppunham os nossos ^solda- 
dos incapazes de uma campanha offensiva. 

Um cTesses jornacs, órgão do poderoso ministro 
da colónia do Cabo, d'esse homem audaz, que foi 
denominado o rei dos diamantes e que se chama 
Cecil Rhodes, publicara, entre outras de egual ran- 
cor, estas odientas palavras de hostilidade: 

«Para ter a ostentação de conservar esse bonito 
(a colónia de Lourenço Marques), Portugal conti- 
nuará a fingir que colonisa a costa d Africa, até que 
a \agaia do cafre venha confirmar as razoáveis dou- 
trinas prescriptas pelo direito internacionah . 

E depois de fallar da alienação da colónia a troco 
de punhados de ouro, accrescenta na infernal espe- 
rança de que a zagaia do cafre collabore na obra 
ambiciosa da South Africa : 

«No estado em que estão as coisas, é bem pos- 
sível, e até provável, que Portugal venha a ser des- 
apossado daquelle território, sem nenhuma das ci- 
tadas indemnisações. De que poderão servir os seus 
regimentos — dando mesmo de barato que elles sejam 
capares de entrar desde logo em campanha activa 
— se, á sua chegada a Lourenço Marques, abando- 
nada a villa pela sua antiga guarnição cheia de fe- 
bres, tiver sido atacada ou já estiver de facto nas 
mãos dos pretos ?» { 

O jornal de Cecil Rhodes respondia á sua pro- 



1 Vide opúsculo do sr. conselheiro Augusto Castilho A 
propósito de Lourenço Marques. 



l 7* 

pria pergunta. Acariciando a necessidade de uma 
intervenção ingleza, marca logo o preço d'ella, que 
seria Lourenço Marques ! 

Enganou-se nos seus vaticínios a alma damnada 
da. South Africa. 

As febres não poderam os nossos repulsal-as de 
Lourenço Marques, mas a cidade não se entregou 
aos negros e a intervenção não poude effectuar-se, 
porque lá dentro havia, embora envenenados pelos 
pântanos, algumas dúzias de marinheiros e de sol- 
dados de Portugal, que sabiam bem como se de- 
fende a honra da sua pequena pátria empobrecida. 

Só faltava provar-se que as tropas portuguezas 
eram capares de entrar desde logo em campanha 
activa. 

Marracuene vae responder na affirmação lacóni- 
ca dos canhões, na phrase estridula das kropats- 
cheks. 

Pelas 5 horas da manhã de 28 de janeiro mar- 
chava do alto do cemitério de Lourenço Marques 
uma columna de operações assim constituída : 

Duas secções de artilheria de montanha com 4 
peças de bronze de 7° e uma secção de metralha- 
doras com 2 Nordenfelt, sob o commando superior 
do capitão Machado, tendo por commandantes das 
secções os tenentes Saccadura, Taveira e Castello 
Branco. 

Um pelotão de cavallaria da policia com 23 ca- 
vallos, commandado pelo alferes António Manuel. 

Três companhias de caçadores 2 (i. a , 2. a e 3. a ) 
commandadas pelos capitães Macedo, Cabral e Bar- 
ros, com a força total de i3 officiaes, 12 sargentos 
e 228 cabos, soldados e corneteiros, ou 253 homens 
ao todo. 

Uma força de infanteria de policia com 70 pra- 
ças, commandada pelo capitão Aguiar. 

Duas companhias de caçadores 3 da província, 



176 

com 8 officiaes e 307 praças indígenas, sob o com- 
inando dos tenentes Encarnação e Pombo. 

Era commandante em chefe d'estas forças o ma- 
jor José Ribeiro de caçadores 2, segundo comman- 
dante o major Caldas Xavier, chefe do estado maior 
o capitão Eduardo da Costa. Adjuntos e ajudantes 
<Tordens os tenentes do estado maior Ayres cVOr- 
nellas e de artilheria Paiva Couceiro e os alferes de 
caçadores 2 Virgílio dos Santos e de lanceiros Raul 
Costa. Quartel mestre o alferes José Francisco, em 
commissão na província. 

O serviço de saúde e a ambulância iam a cargo 
do dr. Ignacio França, cirurgião ajudante do bata- 
lhão expedicionário. 

EFFECT1VO DAS TROPAS 

Homens 

Artilheria 87 

Cavallaria da policia 2o 

Caçadores 2 253 

Infanteria da policia j3 

Caçadores d' Africa 3 1 5 

Maqueiros de caçadores d' Africa 20 

Total 771 

Cada peça de montanha ia municiada com 35 
tiros e cada metralhadora com 6.000 cartuchos. 

Os serventes de artilheria levavam 3o cartu- 
chos, cada praça de cavallaria 60 e 80 cada praça 
europeia de infanteria, levando 20 na bolsa e 00 em 
uma das duas mochilas de viveres com que cada 
praça ia equipada. 

A columna de munições e viveres, com a qual 
ia o carro da ambulância, compunha-se dos cofres 
de munições de artilheria, do carro de munições 
dos caçadores europeus, de 6 burros com cunhetes 
de cartuchos para a Snider com que iam armados 
os soldados pretos, de 8 carros de bois com vive- 
res e agua e de 10 burros de sobresalente. 



■77 

As forcas sairam ao som do hvmno nacional e 
por entre as saudações vibrantes da população. 

O céo estava carregado de nuvens negras e ao 
longe, sobre as cumiadas dos Libombos, os trovões 
<e os relâmpagos davam a visão de uma batalha gi- 
gantesca. 

A columna marchava em formatura que se 
approximava do quadrado. O serviço de explora- 
ção era feito pelos indigenas, conforme a pratica 
seguida em outros campanhas de europeus no ser- 
tão africano, pratica preconisada por Wissmann, 
que é boa auctoridade em questões de guerra no 
sertão negro. O pelotão de cavallaria marchava em 
flanqueadores. A guarda avançada ia sob o com- 
inando do tenente Couceiro. 

Dentro do quadrado as 4 peças de montanha ; 
ao centro as metralhadoras, a ambulância e um 
carro de munições. 

A rectaguarda do quadrado branco uma com- 
panhia indígena explorava o matto, e outra, em 
quadrado, guardava o comboio. 

Em caso de ataque, as forças em exploração 
reuniriam ao quadrado ou abrigar se-hiam sob os seus 
fogos, deixando-lhe o campo de tiro completamente 
■desembaraçado. 

O quadrado avançava muito vagarosamente ; os 
carros dos comboios enterravam-se na areia ou ato- 
lavam-se nas poças d'agua. Aquella formatura, es- 
sencial á defeza, nas guerras do sertão contra um 
inimigo muito numeroso e audaz, era a mais incom- 
moda e embaraçosa para marchar. 

Ninguém se queixa ; o sacrifício é de todos. 

Não raro os .nais expansivos resumem toda a 
philosophia da sua resignação em alguma phrase 
pittoresca da linguagem popular, disparam algum 
dito alegre ao camarada mais próximo, ou relcm- 
bram-lhe casos da vida tranquilamente passada em 
Portugal. 

Chegaram a Anguane. Tinham percorrido 20 
kilometros. Estava íeita a primeira marcha, real- 



i 7 8 

mente violenta para tropas europêas, já enfraque- 
cidas pelo clima africano e n'aquellas excepcionaes 
condições { . 

Bastava a formatura para a tornar penosa e fa- 
tigante, atravez de terrenos irregulares, cortados de 
obstáculos, transmudados em charcos enormes. Nas 
excellentes estradas europêas para que uma mar- 
cha seja lenta e embaraçosa, é bastante que as 
chuvas tenham descarnado o mac-adam do caminho 
e que as forças sejam obrigadas a manter uma for- 
matura regular, embora para marchar, immensa- 
mente mais vantajosa do que o quadrado. 

Com a kropatschek, que é uma arma muito 
pesada, com o correame, as munições e o grande 
capote a tiracollo, envolto em uma tela impermeá- 
vel, o soldado europeu de caçadores levava um peso> 
que não seria inferior a 18 kilogrammas 2 . 

Na guerra de Dahomé cada soldado europeu 
d'infantería levava o peso máximo de i5 k ,640 e 
cada soldado indígena 29k,835, segundo as ordens 
expressas do coronel Dodds. 

Algumas étapes foram por tal forma fatigantes 
e angustiosas, ora sob chuvas torrenciaes ora sob 
um sol abrazador que tudo parecia queimar, que a 
muitos dos expedicionários temos ouvido que pre- 
feriam entrar em combate a fazer uma d'aquellas 
extenuadoras marchas. 

No dia 29, pelas 7 horas da manhã,' a columna 
continuou a marcha para Marracuene, que fica a 3o 
kilometros de Lourenço Marques. Partiu sob enor- 



1 Uma phrase de bom humor de um soldado : 

— Oh! rapazes, mal imagina agora a minha velhita que o 
filho anda aqui pela terra dos pretos com os ossos de molho. 
A velhita era a mãe. 

2 A kropatschek pesa com o deposito carregado 41c 817; 
o sabre-bayoneta com a bainha de ferro tem o peso de ok,8i2. 
O cartucho com bala pesa o k ,o352. 

Com a carga do deposito e da camará esta arma leva 8 
cartuchos. 



r 79 

mes torrentes cTagua. O tempo tornára-se peor. As 
tropas tinham dormido encharcadas e assim prose- 
guiam. 

No quadrado já não eram poucos os que iam 
depauperados pela febre, arrastando-se penosa- 
mente. 

O capim dobra-se fustigado pelas grossas báte- 
gas d'agua; as tropas, sem um fio enxuto, fazem 
um esforço violento para firmar o passo sobre o 
solo alagadiço. O gado do comboio, a cada mo- 
mento espicaçado, arrasta-se tristemente. O qua- 
drado caminha e só de vez em quando um obstá- 
culo do terreno faz perder a regularidade geomé- 
trica da formatura, 

Os soldados indígenas devastavam os campos 
de milho dos rebeldes. De quando em quando ful- 
gia no matto o olhar felino dos espiões cafres, que 
vinham espreitar, quasi de rastos como serpentes, 
e fugiam logo numa vertiginosa carreira, como de 
antílopes perseguidos. 

Uns grupos de rebeldes que tiveram a audácia 
de apparecer, foram facilmente postos em fuga pela 
cavallaria e por alguns tiros de peça, que lhes cau- 
saram numerosas baixas. 

A curta distancia de Marracuene, a extrema 
vanguarda descobriu uma grande multidão de cafres, 
que se afastava em tumultuosa retirada, provavel- 
mente porque tinham já recebido aviso dos seus 
espiões e não queriam travar combate decisivo, sem 
conhecerem bem que forças traziam os portugue- 
zes. 

O commandante em chefe recebe participação 
da proximidade do inimigo pelo tenente Ornellas, 
que havia ido até á guarda avançada. Mandou logo 
avançar para tomar a oflfensiva. O corneta d'ordens 
fez o toque de accelerado. 

Aquella vibração da corneta, aguda e secca, 
produziu no quadrado um frémito inexplicável. O 
sangue agitou-se, a alma arrastou os que iam que- 
brantados pela fadiga e pelas primeiras ameaças 



i8o 



da febre ; aquellas notas estridentes eram como a 
linguagem symbolica e instantânea de multíplices 
ideas conjugadas, e como na vida commum tantas 
vezes um drama se resume num grito, assim na 
vida de campanha toda a abnegação do dever se 
condensa e traduz ás vezes n'uma palavra de com- 
inando ou em um toque de corneta. 

O quadrado deslocava-se para a frente, num 
resoluto arranque, recortando-se nas massas da chu- 
va, como num panno de theatro. 

A esse tempo, jà um pelotão de angolas, pos- 
tado numa eminência, batia com os seus fogos as 
margens do Incomati, d'onde os cafres, em retirada > 
respondem num tiroteio desordenado. 

O quadrado chega. Occultos no mangal e nos 
canniçaes grupos numerosos de rebeldes fazem fogo, 
cobrindo a retirada dos seus. Almadias e grosseiras 
lanchas abarrotadas de cafres, os últimos que fogem, 
procuram alcançar a margem opposta do rio, á 
força de remos. 

Três tiros de artilheria afundam algumas alma- 
dias e despedaçam dezenas de cafres. Uma secção 
de caçadores 2, sob o commando do alferes França,, 
bate resolutamente o mangal e põe em fuga. 

Era preciso bivacar. As tropas estavam exte- 
nuadas e a escorrer agua. A menos de meio ki- 
lometro do Incomati, sobre uma pequena collina 
havia uns destroços de palhotas e de uma casa 
grande, de madeira e zinco, habitação de um mouro, 
que a guerra afugentara d'ali! Aproveitar-se-hia 
aquelle local para o bivaque e com os restos das 
palhotas, alguns ramos de arvores, alguns pannos 
impermeáveis, pedaços de esteira e laminas de zinca 
da casa destruída, improvisar-se-hiam alguns frágeis 
abrigos. 

Estabeleceu-se o bivaque precipitadamente, por- 
que se estava avisinhando a noite e todos careciam 
de repouso. Tomou-se a disposição em quadrado,.' 
ou quasi se pôde dizer que o quadrado se fixou ali, 
mais amplo e mais solido. A face da frente dava 



v 



181 



r 

i para o matto na direcção de Auguane e era formada 
; pela i. a e 3. a companhia de caçadores 2; a face di- 
[ reita, perpendicular ao rio, era constituída pela in- 
fanteria de policia; a face da esquerda, era formada 
! pela 2. a companhia de caçadores 2, reforçada por 
' uma força de soldados indígenas de caçadores 3; a 
face da rectaguarda, sobre um declive que ia dar 
ao rio, compunha-se de tropas negras do indicado 
batalhão indígena. Esta face tinha um posto avan- 
çado na planura, a pequena distancia do rio. 

Das quatro peças de montanha, duas foram col- 
locadas no angulo formado pelas faces da frente e 
da direita e as outras duas a meio da face segunda. 
As duas Nordenfeldt, assestadas sobre carros, fo- 
ram collocadas atraz da fileira da vanguarda, na 
face da frente. 

Os carros, as viaturas de artilheria, as ambu- 
lâncias, o gado de transporte e a cavallaria ficaram 
dentro do quadrado e um pouco para o lado da face 
da rectaguarda, que era por onde se suppunha menos 
; provável uma investida dos negros. Todos os dis- 
velos da defeza tinham convergido para a face da 
frente. Depois veremos como os cafres estavam ao 
facto de toda esta disposição. 

Não houve tempo de levantar na frente das fa- 
ces dos quadrados obstáculos que dificultassem um 
[ assalto ou uma surpresa dos cafres. E não se pense 
f que isto seria uma precaução de tímidos. Wissmann^ 
que por varias vezes temos citado, formula assim a 
* sua opinião acerca do estacionamento das tropas 
\ europêas nos sertões africanos e nas proximidades 

■ do inimigo: 

; «Quaesquer que sejam os meios de bivacar, é ri- 

: gorosamente indispensável cercar o campo de fio de 
i ferro, abatizes e fossos, para evitar as surprezas»» 

■ Mas a noite chegara e não foi talvez possivel 
tratar d'estas defezas accessorias. 

» A chuva cahia em torrentes e os relâmpagos 

i rasgavam esguias clareiras de luz nas cordilheiras 



182 



negras das nuvens. Os trovões reboavam nos ares 
como o rodar de parques enormes de artilheria so- 
bre calçadas de granito. A pequena distancia, rola- 
vam por entre os mangaes as aguas turvas do In- 
comati, entalando contra as raizes nuas das suas 
margens, como contra os tentaculos hirtos de um 
mollusco enorme, os despojos dos cafres despeda- 
çados pela artilheria. 

A noite cerrava-se em trevas profundas. E era 
assim que deviam repousar! 

* 

A flotilha não havia ficado inactiva. O Neves 
Ferreira e a Bacamarte auxiliavam as operações 
no Incomati, mas não poderam chegar a Marra- 
cuene, precisamente como se havia planeado. E' 
difficilima a navegação do Incomati e o Neves Fer- 
reira encalhara por duas vezes. Ainda assim, ao 
anoitecer de 29, estavam os pequenos navios fun- 
deados defronte de Marracuene, depois de terem 
dispersado a tiro os negros da Xefina pequena, cujo 
fogo vivíssimo, a coberto do mangal, punha em 
grande perigo as tripulações dos navios. 

Em 3o o Neves Ferreira, apesar da sua lota- 
ção 4 , subiu o rio e bombardeou algumas povoações 
importantes da Magaia. No dia immediato voltou a 
bombardear as duas margens do rio e levou a bordo 



1 O vapor Neves Ferreira tinha uma guarnição de 3o 
homens e era armado com um canhão revolver á proa, dois 
pequenos canhões Krupp a meia nau, uma metralhadora 
Nordenfelt na ponte, a estibordo, e uma Maxim, a bombordo. 
Era commandado pelo i.° tenente Furtado. 

Tão pequena, que tinha apenas uma guarnição de 6 ma- 
rinheiros e montava somente um canhão revolver á proa e 
uma Nordenfelt á ré, a lancha-canhoneira Bacamarte nave- 
gava com muita maior facilidade no Incomati. Era seu com- 
mandante o 2. tenente Rocha. 



i&3 



o major Caldas Xavier e o capitão Eduardo Costa, 
que iam fazer um ligeiro reconhecimento dos terre- 
nos acima de Marracuene. 

Estava-se no quinto dia d'aquelle incommodo 
bivaque sobre um terreno encharcado. O tempo me- 
lhorara. A chuva cessara na véspera. A espiona- 
gem dos negros é que não cessava. De noite ou de 
dia, de rastos no matto ou por entre os mangaes 
distantes, frequentemente espiavam o bivaque. Para 
algum commettimento se preparavam elles. A hora 
da lucta não podia demorar-se. 

Na tarde de i de fevereiro um grupo de solda- 
dos angolas, movidos talvez pela nostalgia do matto 
ou pelo instinctò da pilhagem, aventurára-se a 
uma excursão para longe do bivaque. Ouvimos di- 
zer que era um grupo de 20 ; o sr. Eduardo de No- 
ronha escreveu que eram 10 a 12. Pouco importa 
um ou outro numero ; o que é verdade é que falta- 
ram naquella noite á formatura do recolher e nunca 
mais appareceram. 

Seriam aprisionados pelos rebeldes e compelli- 
dos a darem-lhes informações de tudo o que sabiam 
acerca das tropas e da disposição e serviço de se- 
gurança no bivaque, para contraprova e para com- 
plemento das observações feitas pela espionagem 
dos cafres ? Talvez. E possível mesmo que os che- 
fes cafres achassem fácil uma surpreza de noite, 
desde que tinham aprisionado os angolas. Sendo 
natural que no bivaque soubessem da sua falta e 
d'ella tivessem conhecimento, especialmente os ne- 
gros que formavam a face da rectaguarda, não 
seria extraordinário que, na escuridão, alguns rebel- 
des fossem tomados pelos angolas extraviados, prin- 
cipalmente, se como taes se annunciassem por meio 
de algumas palavras portuguezas. Acredital-os-hia 
no primeiro momento a ingénua inexperiência dos 
angolas dos postos avançados e o resto seria apenas 
um lance de audaciosa intrepidez. 

E tanto seria este o plano acariciado pelos ca- 
fres, que tendo podido aproveitar para uma sur- 

12 



184 

preza as noites ou as madrugadas tempestuosas dos 
dias anteriores, em que naturalmente a vigilância 
seria menos attenta e menos perceptível qualquer 
suspeito rumor, preferiram exactamente para o 
commettimento a noite em que os angolas haviam 
faltado no bivaque. 

Anoitecera. Adensavam-se no céo nuvens negras 
como crepes. No matto abafára-se de súbito o sus- 
surro vago e longínquo da vida selvagem. 

O Incomati agitava-se mais brandamente entre 
o seu leito de areias e pântanos, que o mangal or- 
lava n uma exuberância enorme da vida. 

Tinham-se tomado maiores precauções no biva- 
que. Todos nos seus logares. As Nordenfelts lá es- 
tavam empoleiradas nos carros, como impassíveis 
molossos na vigilância da noite. Os pequenos ca- 
nhões de montanha esperavam na sua fria immobi- 
lidade, com a guela de bronze aberta contra o ser- 
tão. As Kropatscheks estavam promptas á primeira 
voz. O gado remoia a ração lentamente. 

Os oito pequenos postos de angolas, a duzentos 
e tantos metros do quadrado, vigiavam com mais 
desvelada attenção. A cada angulo do quadrado e 
ao centro de cada uma das faces estava uma senti- 
nella, apoiada á espingarda, olhos pregados na 
treva, ouvido cauto, escutando os rumores do ser- 
tão. 

Nos seus abrigos, os officiaes conversavam ; ou- 
tros estavam já aDatidos pelas febres, como o ma- 
jor Ribeiro. Entre os soldados alguns ardiam em 
febre ; outros fallavam baixo com os seus camara- 
das mais íntimos. O maior numero dormia. Quan- 
tos dos adormecidos não sonhariam talvez com a 
sua longínqua aldeia, inundada de sol ? O quadrado 
repousava, adormecia no seu duro leito de terra. 
Velavam por elle as sentinellas e os postos avança- 



i85 



dos. Em volta erguera-se, entre o céo e o sertão, títóã 
desmesurada muralha de trevas, atravez da qíial 
só a pupilla das feras e dos cafres lograria descoí 1 
tinar o vulto das cousas. • 

Eram frequentes as rondas de officiaes aós pos- 
tos dos angolas. 

Alta madrugada os rancheiros accendiam o lume 
para fazer o café, que devia distribuir-se âò romf 
per da manhã. Cançados da longa noite incommoda} 
alguns soldados se foram agrupar em volta dtfs co- 
zinhas do bi vaque. ^ 

A escuridão era ainda profunda; nem o bruxo^ 
lear sequer da luz d'alva, esbatendo a noite rio ho- 
risonte. 

Por um acaso felicíssimo, a distribuição do café 
ia fazer-se um pouco mais cedo do que o costume j 
estava já prompto. ^ 

Eram 4 horas. Fez-se o toque de alvorada, o 
mais suave, o mais musical, o mais longo, um dos 
mais bellos toques da ordenança militar. Á vibra- 
ção dolente da corneta repercutia-se nos echôs im~ 
mensos do sertão, como um cântico de ave selvaticaJ 

Alguns minutos depois ouvia-se um ruido estra- 1 
nho para a frente da face formada pelos angolas^ 
Estrondeiam tiros de espingarda; chocam-se nos 
ares gritos de raiva e de dor e sobre a face da re-i 
ctaguarda correm uns vultos negros, que bradairi 
precipitadamente : Não mata, escamarada angola: 

Na desorientação d'aquelle lance, suppõe-se qu6 
são os angolas do posto avançado que retiram sobre 
o quadrado ; suppõem-no os seus próprios camara- 
das. O engano dura apenas um momento. A pupilla; 
dos cafres flammeja, como o olhar de lobo faminto y 
sente-se-lhes o ruido dos enfeites metálicos agitados 1 
nos braços, vem deante d'elles a ascuma branca das 
azagaias, correm vertiginosamente, grandes, formi^ 
dáveis, impávidos. ; 

O inopinado assalto quebra de todo a força mo* 
ral dos angolas, que recuam atropellando os que já 
estrebucham no chão, rasgados pelas zagaias. Estava 1 



i86 



roto o quadrado ! E dentro d^lle, quatorze cafres 
athleticos, ululando na anciã da carnificina, as plu- 
mas agitadas na sombra pela aragem da madru- 
gada, a zagaia sangrenta vibrada febrilmente pelos 
seus hercúleos braços infatigáveis ! 

Estão ja a meio do quadrado os angolas, enno- 
velados e esmorecidos. A onda dos cafres cresce e 
procura golfar para dentro do bivaque, como para 
dentro de uma repreza desmoronada. 

Na sua audácia espantosa, os assaltantes luctam 
furiosamente dentro do quadrado, como homens 
votados á morte. 

Os gemidos dos feridos contrastam com as vo- 
zes vibrantes do commando e com os gritos de pa- 
vor dos angolas, refluindo confusamente contra a 
rectaguarda das faces formadas pelas tropas bran- 
cas. 

Cruzam-se as bayonetas com as zagaias ; mor- 
re-se e mata-se desapiedadamente. Um cafre crava 
a zagaia na sentinella de guarda aos cavallos e cae 
atravessado por uma bayonetada. Outro cafre em- 
bebe a azagaia no corpo de um soldado de caçado- 
res 2 (o impedido do dr. França) e é derribado á 
coronhada, com o craneo espedaçado ; outro ainda 
rasga com a zagaia o abrigo que pertencia ao ma- 
jor Ribeiro e deita fogo aos restos de uma palhota. 
O alferes de cavallana António Manuel fica grave- 
mente ferido por uma zagaia ; o cafre que o ferira 
cae atravessado pela espaaa de um sargento de ca- 
vallaria. Trava-se corpo a corpo a lucta entre um 
assaltante e um soldado, já ferido, a escorrer san- 
gue ; um conductor de artilheria termina aquelle 
combate singular, mettendo uma baila na cabeça do 
aggressor. 

De fora, a grande massa dos cafres faz um vi- 
víssimo fogo sobre o quadrado e intenta envolvel-o, 
emquanto alguns procuram entrar pela enorme bre- 
cha, aberta pela sua intrépida avançada. 

E as tropas brancas ? Essas estão dando um dos 
maiores exemplos de firmeza e de serenidade de 



i8 7 

que ha memoria nos fastos militares. A 2. a compa- 
nhia de caçadores 2 era inabalável e respondia tran- 
quillamente ao fogo do inimigo, sentindo atraz de si o 
alarido dos angolas, a lucta, a carniceria dentro do 
quadrado. Do seu flanco desprotegido rebate a inves- 
tida de novos assaltantes ! A face da frente espera se- 
renamente os cafres, que intentam um ataque envol- 
vente. A infanteria da policia, faz meia volta, e re- 
pelle intrepidamente o inimigo, para evitar que as 
três faces se desconjuntem, salteadas pela recta- 
guarda. 

Era o supremo lance d^quelle extraordinário 
combate! A fuzilaria dos cafres era já intensa. Ou 
se fechava solidamente o quadrado ou a expedição 
estaria irremediavelmente perdida. 

Combatia-se ainda na escuridão e apenas as gran- 
des massas negras se lobrigavam confusamente, des- 
locando-se do horisonte, onde mal se esbatia um te- 
nuissimo alvor. 

E eram bisonhos e inexperientes aquelles admi- 
ráveis soldados, que não vêem, que não podem ver 
o perigo d'aquelle ataque inesperado e formidável, 
e só o comprehendem pelo ruido e pelos gritos da 
pugna que se trava atraz delles e pela chamma da 
fuzilaria que lhes clareia sinistramente o horisonte ! 
Os seus officiaes velariam por elles; para os que 
viessem de frente lá tinham elles a kropatschek, as 
metralhadoras e os canhões. 

O fogo tornára-se intensíssimo na face esquerda. 
Um soldado, impedido do tenente Saccadura, de ar- 
tilheria, avança de rastos pelo capim para espionar 
o inimigo ; surprehende um grupo enorme de negros 
que avançam como reptis, para assaltarem de sur- 
preza. Elles ahi vêem! — avisa o soldado num gri- 
to rouco e enorme. Fogo! — respondeu o capitão 
Machado, e a chamma vermelha, golfada por uma 
peça de artilheria, rasga nas sombras uma clareira 
rubra como sangue. Uivos de dor e de desespero 
respondem á detonação formidável. 

Mas os cafres não cedem nem se intimidam ain- 



i88 



da. Não querem ver perdida aquella victoria, que 
tão fácil e segura tinham julgado. Que demónio! 
Ha apenas ali um punhado de brancos. 

E com tal arrojo d'animo — é justiça confessal-o 
— se empenham no combate, que nem a artilheria 
nem as armas de repetição conseguem intimidal-os ! 
Elles sabem lá se as theorias da guerra moderna 
condemnam toda a marcha de frente, a descoberto, 
contra a artilheria fortemente apoiada ou contra uma 
infanteria que não haja sido abalada na sua força 
moral e esteja armada com espingardas de tiro rá- 
pido! Theorias. A sua alma selvagem queria lá sa- 
ber d'isto. Soltam o seu grito de guerra, investem 
ferozmente, e alguns vão penetrar no quadrado pela 
face rota, sobre o flanco esquerdo da 2. a companhia 
de caçadores 2. Um soldado de policia cahe aza- 
gaiado junto da peça que ia disparar e um outro de 
caçadores europeus é ferido também por uma aza- 
gaia. Mas a investida é rechaçada. 

Consistia o plano dos cafres em sustentar fogo 
vivíssimo contra as faces illesas do quadrado, de 
modo a tornar-lhes impossível qualquer soccorro á 
face rota e arrojar por este lado os seus guerreiros 
mais destemidos e mais dextros no manejo da aza- 
gaia. 

O combate reveste proporções formidáveis em 
todas as faces do quadrado, varejadas por uma ver- 
dadeira chuva de balas, que se cravam nos abrigos, 
nos carros, nos reparos da artilheria e vão destruir 
algumas espingardas e carabinas dos nossos sol- 
dados. O reparo da peça commandada pelo tenente 
Taveira está cravejado de balas e zagalotes. 

Caem varados dois soldados indígenas. No re- 
cinto do bivaque já cahíram mortos sete cavallos e 
cinco muares. 

No interior d'aquelle reducto d'homens, alguns 
officiaes empenhavam esforços inauditos para reani- 
mar os angolas e leval-os a reformar a face rota. 

O major Caldas Xavier, com a sua inexcedivel 
bravura, o capitão Eduardo Costa, o tenente Ayres 




CALDAS XAVIER 

flbpia de wn antigo reluto) 



i8q 



de Ornellas, do estado-maior, o intrépido tenente 
Couceiro, o alferes Raul da Costa, de lanceiros e 
os officiaes do exercito ultramarino, Encarnação, Pom- 
bo, Pinto e Pinho incitavam os angolas a reoccupar 
o seu logar, procuravam despertar-lhes o brio amor- 
tecido, impunham-se-lhes pela palavra, impunham- 
se-lhes pela violência, impelliam-nos diante de si a 
braço, á espadeirada, de revolver em punho. Para 
lhes falarem melhor á alma semi-selvagem, os alfe- 
res Pinto e Pinho reproduziam nos gestos e nos gri- 
tos de combate os estímulos em uso nas guerras pre- 
tas de Angola, e bradavam-lhes : 

— Não teem medo, angolas ; landins é que teem 
medo ! A elles ; angolas valentes ; pra frente ! Pra 
frente ! 

Entretanto, nas suas fileiras inabaláveis, quan- 
tos queimados pela febre ? os soldados brancos fa- 
ziam descargas correctíssimas, por secções, á voz 
de cominando ! 

Uma nova manga 4 de cafres avançava do mat- 
to, impetuosamente, contra a face rota. Caldas Xa- 
vier e o capitão Costa collocam-se rapidamente á 



1 Unidade de combate dos negros, correspondente a um pe- 
queno batalhão. A manga tem ordinariamente 5oo guerreiros. 
O termo provem decerto da antiga táctica portugueza. Manga 
se chamava outr'ora um troço de homens de guerra com 
o effectivo de uma grande companhia. Frequentemente se en- 
contram nas descripções das batalhas e combates dos séculos 
xv e xvi as seguintes espressões : Uma manga de espingar- 
deiros ; uma manga de arcabuzeiros. 

Em combate estas forças destacavam-se do principal corpo 
do exercito, como as mangas se destacam do fato que cinge 
o tronco do corpo humano. Foram estas companhias as re- 
motas predecessoras dos atiradores modernos. 

Não deve causar estranheza a razão de similhança porque 
aquelle vocábulo foi applicado á táctica militar. Na antiga tá- 
ctica havia também a evolução chamada bicha, o caracol, e a 
formatura que precedeu o quadrado e se denominava curral ou 
cerrado. Ainda hoje temos na táctica os termos testa e cauda 
de uma columna, colchete defensivo, e em fortificações as ex- 
pressões cabeça de ponte e gola de uma obra. 



190 

frente de uma esquaidra da infanteria de policia e 
carregam com singular denodo aos atacantes, fazen- 
do-os recuar. 

Os angolas sentem afinal a suggestão de tantos 
exemplos de bravura. Cobram animo e entram em 
fogo, vociferando ameaças contra o inimigo. 

Emfim. Estava refeito o quadrado, sem nenhum 
auxilio exterior e sob a offensiva impetuosa, cons- 
tante, de um inimigo muitíssimo superior em nu- 
mero, pois que até áquelle momento apenas cerca 
de quatrocentos brancos oppunham os peitos, coma 
blindagens d^ço, á felina intrepidez de três mil 
cafres! 

Mentia o velho aphorismo militar. Quadrado roto 
não era quadrado vencido. Em taes condições, iso- 
lado, absolutamente isolado, sem retirar e sem se 
render, havia agora um precedente só. Era aquelle. 

Não desistiam facilmente os cafres davictona que 
julgavam segura. A lucta continuou ainda encarni- 
çada, mas os tiros da artilheria como que pareciam 
já apostrophes colossaes de um cântico de trium- 
pho. 

Vieram os primeiros clarões da manhã, e veiu 
com elles o vivo fulgor da victoria. Que suprema 
irradiação de júbilos no olhar e no rosto d aquelles 
heróicos soldados brancos, que tinham estado a dois 
passos do mais funesto desastre militar que poderia 
cahir sobre a bandeira do seu paiz ! 

Retiravam já, fugiam d'aquelle punhado de ho- 
mens, quasi extenuados, em que mais valia a alma 
do que a força, fugiam d'elles os companheiros e 
irmãos de raça d'esses quatorze athletas que tinham 
invadido o bivaque e que, em qualquer paiz e em 
qualquer civilisação, seriam considerados a suprema 
expressão da intrepidez e da temeridade. E esses 
athletas, que outros haviam seguido até ao numero de 
dezoito, lá estavam dentro do bivaque, como dentro 
de um enorme cenotaphio, com os escudos espedaça- 
dos, as zagaias inúteis, as plumas enrodilhadas na 
lama, feita com o seu próprio sangue. Nos rostos, que 



I9 1 



a morte immobilisára, havia ficado a ultima impres- 
são horrível da sua torva agonia! 

Quadrado roto, quadrado refeito, quadrado victo- 
rioso, podia abençoal-o orgulhosamente a alma da 
pátria portugueza. Resumira n'aquella trágica ma- 
drugada, pela firmeza, pela constância, pela bra- 
vura, quanto havia de grande nas rutilas epopêas 
do nosso passado *. 

* 

O combate durara quasi hora e meia. 

Pelos vestígios que os rebeldes deixaram no ca- 

1)im, numa larga zona em volta do bivaque, calcu- 
ou-se que a sua força total não seria inferior a 3:ooo 
homens. 

Em volta do quadrado e a grande distancia en- 
contraram-se muitos cadáveres de cafres e restos 
dos que haviam sido despedaçados pela artilheria. 
Em um barranco foram achados uns poucos, horri- 
velmente mutilados. Os feridos e alguns cadáveres 
foram levados pelos cafres em retirada, como é uso 
entre elles. 

Calcula-se que as perdas dos rebeldes seriam, 
approximadamente, de 3oo mortos e feridos. Eis 
o quadro geral das perdas : 

Kffectivos Mortos e feridos Percentagens 

Portuguezes... 444) ( ., 0/ 

Angolas 32 7 j 77 1 49 <V /o 

Caíres.. 3:ooo Soo 10% 

Avaliadas as nossas forças brancas em 700 ho- 
mens, numero redondo, temos que as perdas em 



1 Tanto se considerava inevitável a derrota de um qua- 
drado roto, sob a acção de um inimigo numeroso e audaz, 
que o marechal Bugeaud, nas suas brilhantes campanhas da 
Algéria (1841-1848), contra Abd-el-Kader e contra o sultão 
de Marrocos Abd-El-Rhaman, adoptou os pequenos quadra- 
dos, apoiando-se e protegendo-se como reductos de um sys- 



192 

mortos foram de 2 %, em feridos de 2,5 % e as 
perdas totaes representam 5,5 % do effectivo. 

Da parte dos cafres as perdas totaes represen- 
tam de 9 a 10 % da sua gente em combate, o que 
é já comparável aos sangrentos combates das guer- 
ras europêas. 

Os europeus mortos eram: o soldado n.° 10 de 
cavallaria de policia, o soldado de caçadores 2 José 
Gregório dos Santos e o 2. cabo cTaquelle regi- 
mento João Esteves, que falleceu depois do com- 
bate. Entre os feridos europeus está incluído o alfe- 
res de cavallaria António Manuel. Caçadores 2 teve 
dois cabos e dois soldados feridos, ambos da 2* 
companhia, que foi a mais alvejada pelo fogo dos 
cafres. 

Os feridos, pensados pelo dr. França com inex- 
cedivel solicitude, foram conduzidos para Lourenço 
Marques no próprio dia do combate. 

Em Marracuene as nossas forças dispararam 
4:5oo tiros com as kropatscheks e 200 com as me- 
tralhadoras. A artilheria disparou 32 tiros de gra- 
nada e 4 de lanterneta. 

Sendo inútil a permanência das forças em Mar- 
racuene e perigosíssima para a saúde das tropas, 
já profundamente abalada, a continuação do biva- 
que em tão duras condições, ordenou-se que a co- 
lumna recolhesse á cidade, para ali ter o repouso 
de que tanto carecia. 

Em Lourenço Marques as tropas victoriosas 
foram recebidas com testemunhos de jubilo, embora 
a má vontade de alguns estrangeiros procurasse 
apoucar-lhes o feito, porque não tinham iao pelo ser- 
tão dentro, em perseguição dos vencidos, como se 
faz nas campanhas da Europa. 



tema de defeza. Roto um e irremediavelmente perdido, na 
quasi totalidade dos casos, se não fosse possivel soccorrel-o 
a tempo de refazer-se, o desastre não importaria o desbarato 
dos outros. Foram estes pequenos quadrados que lhe deram a 
famosa victoria de Isly, contra os marroquinos. 



icj3 

Má vontade e absoluta ignorância do que sejam 
as guerras no sertão africano, quando os europeus, 
depauperados pelo clima, teem diante de si um ini- 
migo ágil, audaz, conhecedor do terreno e umas 
poucas de vezes mais numeroso. As columnas de 
europeus no sertão não podem dar um passo sem 
arrastar comsigo um enorme comboio de viveres, 
que lhes embaraça a marcha e torna impossível 
tentar uma perseguição efficaz, dado mesmo que o 
branco, por muito ligeiro que fosse o seu equipa- 
mento e por muito commodo que fosse o seu cal- 
çado, podesse correr sobre os negros atravez dos 
mattos, que elles conhecem como os dedos das suas 
mãos. 

Mas até na Europa ha frequentíssimos exemplos 
de exércitos victoriosos que não poderam perseguir 
os vencidos. Na batalha de Custozza (1860) os aus- 
tríacos bateram os italianos e não os perseguiram. 

Na metrópole — dóe confessal-o — também se 
não comprehendeu bem a alta importância do com- 
bate de Marracuene, tal era o profundo pessimismo 
de quasi todos e a amarga descrença no nosso pró- 
prio esforço ! 

E, todavia, em Manjacaze a victoria de Marra- 
cuene produzira uma enorme impressão de assom- 
bro. 

Confessou-o o próprio missionário suisso Lien- 
gmen, um dos conselheiros europeus do Gungunhana. 

Confirmou-o com o seu honrado testemunho o 
tenente da armada sr. Bicker, que por aquelle tempo 
era residente junto do rei de óaza. 



A primeira noticia do combate chegou á Europa 
em telegramma do commissario régio, expedido em 
4 de fevereiro. Depois de indicar a acção, dizia o 
sr. Ennes : 



i94 



«As nossas tropas portaram-se com muita fir- 
meza e bravura». 

«Sei que foram para Londres telegrammas men- 
tirosos sopre este incidente». 

No dia 6 dizia o commissario régio em tele- 
gramma a El-Rei: 

«Officiaes, soldados europeus da columna ope- 
rações foram inexcediveis em brio, valor, constân- 
cia. Recommendo-os a Vossa Magestade». 

El-Rei, n'uma enternecida vibração de jubilo pa- 
triótico, mandou expedir o seguinte telegramma ao 
commissario régio : 

«Do coração agradeço telegramma. Peço-lhe em 
meu nome elogie officiaes e soldados e lhes diga da 
minha parte quanto me orgulho de ser chefe d'um 
exercito cujos officiaes e soldados tão bem sabem 
merecer da pátria. Podem contar cominigo por tudo 
e para tudo». 

Em 8 de fevereiro, sendo ministro da marinha 
e ultramar o sr. conselheiro Ferreira de Almeida, 
foi enviada ao sr. Ennes uma portaria, na qual, em 
nome de El-Rei, se lhe ordenava que louvasse 
«todos os officiaes e mais praças que tomaram parte 
nos últimos combates, pela coragem e bravura que 
demonstraram no árduo serviço que lhes está con- 
fiado». 

Depois, por occasião de uma solemne missa cam- 
pal, a que assistiu quasi toda a população de Lou- 
renço Marques, o commissario régio condecorou, 
em nome de El-Rei, com a medalha de valor mili- 
tar os soldados que mais se haviam assignalado 
em Marracuene. 

Em officio ao major Ribeiro, commandante da 
columna de operações, escrevera a penna brilhante 
do illustre commissario régio : 



IQD 



«A columna do seu commando, affrontando com 
egual firmeza e constância as imtemperies do clima 
e a fúria dos revoltosos, deu testemunho de que 
ainda não esmoreceram, no animo dos portuguezes, 
as antigas virtudes militares e cívicas que lhes glo- 
rificaram o nome. Podemos e sabemos combater em 
Africa, agora, como nos séculos xv e xvi, e ha- 
vemos de conservar intacto o domínio ganho com 
tanto esforço pelos nossos antepassados.» 

«As operações interrompidas unicamente para 
não expor por mais tempo as tropas aos rigores da in- 
vernia, mais mortífera do que a azagaia dos cafres, 
hão-de recomeçar com maiores recursos materiaes, 
logo que esses rigores se acalmem, e El-Rei e a 
Pátria confiam em que os officiaes e soldados que 
de V. Ex. a recebem tanto exemplo de brio militar, 
hão-de novamente revelar os dotes de bravura, dis- 
ciplina e resistência que já os assignalou aos louvo- 
res dos patrícios e ao respeito dos estranhos». 



X 



O PL/NO DE"C/MP/INHJL 



Em quanto o commissario régio desenvolvia ex- 
traordinária actividade em Lourenço Marques, me- 
lhorando a administração, consolidando o prestigio 
da auctoridade, reprimindo os abusos dos reporters 
estrangeiros e esboçando o plano de uma nova cam- 
panha, de collaboração com os officiaes adjuntos ao 
commissariado 4 ; em Lisboa preparavam-se afano- 
samente importantes remessas de material de guerra 
Sara satisfazer requisições urgentes, destinadas a 
loçambique^ e para completar o municiamento e 



V Em 8 de fevereiro fora nomeado ajudante de campo 
do commissario régio o tenente do corpo de estado-maior 
Ayres Ornellas de vasconcellos. 

Em 20 do mesmo mez era nomeado chefe do estado-maior 
do commissariado régio o capitão do corpo do estado-maior 
Eduardo Augusto Ferreira da Costa. (Vid. Boletim Ojficial 
da Provinda de Moçambique. — Serie do mez de fevereiro de 
1895). 



iy8_ 

reservas do numerosos troço expedicionário a em- 
barcar. 

Já sabemos que infanteria 2 tinha recebido pre- 
venção de marcha, logo depois do embarque de 
caçadores 2. Resolveu-se depois que, em vez de 
todo o regimento, iria apenas o 2. batalhão, empe 
de guerra, e mais o 2. batalhão de caçadores 3, 
também com o effectivo de guerra, e, além doutras 
forças, partiria também uma companhia mixta de 
de engenheria, que ja havia sido requisitada pelo 
commissario régio, em telegramma de 7 de feve- 
reiro. 

Por ultimo, e a instancias do capitão Joaquim 
Augusto Mousinho d'Albuquerque, foi deliberado 
mandar também um esquadrão de lanceiros. Mou- 
sinho empenhou toda a sua boa vontade em conse- 
guir que o mandassem para Lourenço Marques com 
o esquadrão. Demonstrou em longos artigos de 
jornaes todas as conveniências rasultantes do em- 
prego da cavallaria na campanha a emprehender, 
citou os exemplos das campanhas dos estrangeiros 
na Africa, solicitou como um pretendente tenacíssi- 
mo, e viu afinal acceita a sua proposta, porque teve 
a boa fortuna de encontrar o apoio do sr. ministro 
da guerra, que lhe comprehendera bem a ideia e 
tivera a felicíssima previsão do que Mousinho seria 
capaz de fazer. Veremos depois que hora de im- 
mensa fortuna não foi essa em que se decidiu que 
Mousinho d'Albuquerque partisse - também para a 
campanha d'Africa. 

Por decreto de 9 de março, publicado em 11 na 
ordem do exercito n.° 6, determinava-se que fossem 
postos á disposição do ministério da marinha e ul- 
tramar, para embarcarem para Lourenço Marques, 
dois batalhões de infanteria, um esquadrão de ca- 
vallaria, uma companhia de artilheria de guarni 
cão, uma secção de artilheria de montanha, uma 
companhia mixta de engenheria e as secções do ser- 
viço de saúde, da administração militar e do mate- 
nal de guerra correspondentes áquellas forças. 



FORCAS EXPEDICIONÁRIAS 







PfSSO 




UM 


B 


Designais 


o 
4 

5 
4 

3 

~7i 


8q6 
S96 

78 

108 
35 

7 


6 
917 
917 

iGG 

83 

30 

IO 


3 

7 


1 
S 

IO 


H 

2 
3 

'7 




Commando geral 

i." batalhão de caçadores 3. 
a.° batalhão duifanteria i. 
i.° esquadrão de lancei- 


È 


Companhia mixta d'enge- 


i~ 


Companhia d'nnilheria de 
guarnição do regimen- 


cg 


3.* secção da is bateria de 
montanha 

Secção da administração 
militar 

Secção do material de* 

Total 


4 



Do commando geral estão designados n'este qua- 
drado dois officiaes, que já se achavam em Lourenço 
Marques. Eram o capitão Costa do corpo do estado 
maior e o tenente Ornellas, do mesmo corpo, aos 
quaes nos referimos já na primeira nota d'este ca- 
pitulo. 

Os cavaflos para o esquadrão de cavallaria n.° 1, 
lanceiros-de Victor Manuel, deviam ser adquiridos 
em Africa, na colónia ingleza do Natal. 

A artilheria de campanha do exercito da metró- 
pole não tem metralhadoras entre o seu material 
regulamentar. As 2 Nordenfelt, indicadas no qua- 



200 



dro, foram fornecidas pelo ministério da marinha. 

Foi importantíssimo o material que acompanhou 
estas forças e ainda o que foi enviado para Lourenço 
Marques, antes e depois d'ellas embarcarem. 

Além do material de que o respectivo regimento 
podia dispor, a companhia mixta de engenheria le- 
vou mais. algum, expressamente adquirido para o 
seu serviço especial na Africa. 

Barracas do campanha foram fornecidas 409 no 
valor de i8:32o$ooo réis. 

Mais tarde enviaram-se para Lourenço Marques 
2.000 metros de fio de ferro zincado. 

Em resultado de requisição dos princípios de 
junho, contratou-se com a casa Siemens Brothers & 
C.°, de Londres, uma avultada porção de material 
telegraphico, pelo preço total de 1.437 libras, i5. sch 
e 6.p c . 

Quanto a armamento e municiamento foram tam- 
bém avultados os fornecimentos remettidos para a 
Africa, além do que acompanhou as forças expedi- 
cionárias. Para armamento da gente auxiliar foram 
5oo espingardas Snider e 5o. 000 cartuchos e, para 
municiamento da artilheria existente n'aquella coló- 
nia, enviaram-se 800 granadas com bala e 900 lan- 
ternetas para peças de 7°. Poucos mezes antes ha- 
viam sido fornecidos 1 .65o kilogrammas de pólvora, 
3.ooo camisas de filó de seda e 1.200 escorvas de 
fricção para peças de 8 C . 

Em marco o arsenal do exercito tinha fornecido 

> 

já para Lourenço Marques, desde a saida da pri- 
meira expedição, uma porçãj de artigos de mate- 
rial de guerra cuja importância total ia alem de 87 
contos de réis. 

Os depósitos geraes de roupas, de medicamen- 
tos e objectos de cirurgia do exercito fizeram for- 
necimentos cuja totalidade importou em mais de 7 
contos de réis, incluindo 240 filtros Malliè, no valor 
de 1:692^080 réis. 

Em meados de março importavam em mais de 
263 contos de réis os fornecimentos e despezas fei- 



201 



tas pelo ministério da guerra por conta do ministé- 
rio da marinha e ultramar. Deve notar-se que n esta 
verba se não incluía o importantíssimo material que 
estava distribuído ás tropas expedicionárias, para o 
seu serviço na metrópole, nem o seu respectivo muni- 
ciamento. 

Fora nomeado commandante em chefe da expe- 
dição o sr. coronel de infanteria Eduardo Augusto 
Rodrigues Galhardo, official prestigioso que ja havia 
sido chefe da repartição do gabinete do ministério da 
guerra. O sr. ualhardo não ia por escala; era um 
voluntário. No propósito de ir para a Africa, pedira 
transferencia do regimento dmfanteria n.° 18, de 
que era commandante, para o n.° 2 da arma, já pre- 
venido para partir. 

Era commandante do 2. batalhão deste regi- 
mento o ^r. major José Maria Gomes Pereira, offi- 
cial distincto que havia exercido já importantes com- 
missões officiaes. 

O commando do 2. batalhão de caçadores n.° 3 
fora confiado ao sr. major António Júlio de Sousa 
Machado, um transmontano apaixonado pelas alti- 
vas tradições militares da sua província e d'aquelle 
bravo regimento de caçadores 3, que fora um dos 
mais brilhantes do Bussaco e um dos mais assigna- 
lados da Guerra Peninsular. Devotadíssimo ao es- 
tudo da sciencia da guerra, com largos conheci- 
mentos colhidos nos livros, nos campos de instruc- 
ção e na apreciação directa dos exércitos estran- 
geiros, o sr. Sousa Machado havia manifestado os 
seus altos dotes de militar em algumas importantes 
commissões de serviço. 

A companhia mixta de engenheria era comman- 
dada pelo sr. capitão Castro e a de artilheria n.° 4 
pelo sr. capitão Júlio Oom, dois distinctos officiaes. 

Do esquadrão de lanceiros já dissemos quem 
era o commandante. 



202 



A instrucção dos dois batalhões mereceu espe- 
ciaes desvelos ao sr. ministro da guerra e aos res- 
pectivos officiaes. Tiveram frequentes exercícios de 
tiro ao alvo na carreira de tiro da guarnição de 
Lisboa, especialmente o 2 de infanteria, cuja pre- 
venção de marcha fora feita com larga antecedên- 
cia, como já sabemos. A secção de artilheria de 
montanha instruiu-se no manejo da Nordenfelt, ab- 
solutamente desconhecida para os soldados. O es- 
quadrão de lanceiros 1 foi instruído na escola pra- 
tica de infanteria, em Mafra, no manejo e tiro da 
carabina Kropatschek, que lhe foi distribuída como 
reforço do seu armamento. Disse-se que o esqua- 
drão levava armamento de mais. Assim seria, mas 
a lança era a arma de effeito, principalmente thea- 
tral, para a carga contra os negros e a carabina, 
essa era indispensável para qualquer lance em que 
o esquadrão tivesse de limitar-se á defensiva. A 
lança augmentaria o effeito moral das cargas. Está 
ainda bem viva a tradição de terror e de assombro 
que os lanceiros do exercito liberal produziram na 
intrépida infanteria de D. Miguel (i832-i833), ape- 
zar de não dever estar então completamente apa- 
gada no paiz a memoria dos lanceiros dos exércitos 
napoleónicos e especialmente dos lanceiros polacos 
do marechal Soult, repellidos pela infanteria portu- 
gueza em Albuera. 

Veremos depois como afinal faltou aos lanceiros 
a arma essencial para o combate da cavallaria — 
o cavallo, que assim o considerava um dos mais 
brilhantes generaes de cavallaria que tem tido a 
Prússia. 

De resto, eram numerosos os precedentes do em- 
prego da cavallaria nas guerras dos sertões africa- 
nos. Os inglezes tinham levado cavallaria á Abys- 
sinia e tiveram dragões e lanceiros na guerra contra 
os zulus. Já sabemos que os francezes empregaram 
na campanha do Dahomé um esquadrão de spahis, 
organisado no Senegal. Para a campanha de Ma- 
dagáscar levaram elles um esquadrão do i.° regi- 



2o3 



mento de caçadores a cavallo d'Africa (Algéria). 

Para as tropas expedicionárias fora adoptado 
um chapéo de feltro cinzento, molle, tendo como 
distinctivo o laco nacional. Ficavam assim racional- 
mente substituidos os pesados capacetes da enge- 
nharia, artilheria e cavallaria e as barretinas de ín- 
fanteria. Com o intuito de evitar o incommodo cons- 
tante e, nos climas quentes, quasi insupportavel, das 
botas de marcha, pesadas e duras, mandou o sr. mi- 
nistro da guerra distribuir ás praças alpercatas á hes- 
panhola, que, se não podiam aproveitar-se nas mar- 
chas pelo matto, seriam, todavia, um allivio consola- 
dor no serviço dos aquartelamentos e dos bivaques. 

As forças que estavam para partir foram forne- 
cidas camisolas de flanella, eguaes ás que tinham 
sido fornecidas ao primeiro troço expedicionário. 

* 

O 2. batalhão de infanteria 2 embarcou em 8 
d'abril, a bordo do paquete Zaire ; os lanceiros em- 
barcaram em i5, a bordo do Peninsular. Caçadores 
3 em 22, a bordo do Ambaca. 

Todos estes transportes são mercantes e nem isso 
deve admirar, attenta a pobreza material da nossa 
esquadra e a grandeza relativa dos eífectivos a trans- 
portar. Potencia naval de i. a ordem é a França, tão 
poderosa que no mundo só outra esquadra é superior 
á sua — a da Inglaterra — e todavia a sua expedi- 
ção a Madagáscar foi transportada em vapores mer- 
cantes. E até em condições que provocaram violen- 
tas queixas e protestos, especialmente em relação 
ao troço embarcado no Chateau Iquem. 

Surprehendido por um temeroso temporal, o 
Peninsular esteve quasi perdido e não poude seguir 
ao seu destino. Rebocou-o para Lisboa o vapor 
francez 'Ville de Dunkerke, e os lanceiros partiram 
mais tarde a bordo do Vega. 



204 



Não faltaram as affirmações de abnegação e de 
enthusiasmo patriótico, antes parece que as estimu- 
lara o exemplo enternecedor do primeiro troço ex- 
pedicionário. 

O paiz eomprehendia mais nitidamente o que o 
sacrifício dos seus intrépidos soldados importava á 
sua honra, ao seu prestigio, aos seus mais altos in- 
teresses, e cercava-os de affectuosas homenagens, 
como de ha muito se não viam aqui entre o espa- 
paçado e melancholico indifterentismo dos últimos 
quarenta annos. Começavam a acreditar no valor 
d'aquelles soldados esses mesmos que um anno an- 
tes seriam os primeiros a desdenhat-os, por moda e 
por pessimismo. Era já uma abençoada' conquista. 

Tornou-se ponto d'honra não deixar transpare- 
cer, num olhar que fosse, a mágoa naturalissima 
da separação. A partida dos contingentes destinados 
a completar os eftectivos de guerra dos batalhões 
era uma glorificação enthusiastica em que todas as 
lagrimas íntimas da saudade se consumiam, como 
as gottas de orvalho se consomem ao grande sol, 
quente e rutilo, nas manhãs ardentes de julho. 

Não havia aldeola que não saudasse phrenetica- 
mente as tropas que passavam para a Africa. A 
marcha de caçadores 3 para Lisboa foi uma verda- 
deira marcha triumphal. 

O embarque no Tejo reproduziu todos os lan- 
ces enternecedores e todas as notas vibrantes de 
sentimento e de patriotismo, que haviam assignalado 
a partida dos primeiros expedicionários. 

E, todavia, eram já conhecidos os trabalhos as- 
pérrimos de caçadores 2 e da artilheria de monta- 
nha nas marchas e nos bivaques, o perigo enorme 
em que estiveram em Marracuene, a desigualdade e 
o numero de inimigos a combater, o seu excepcio- 
nal arrojo e, mais ainda, as lúgubres façanhas desse 
outro inimigo, mil vezes mais temível do que os ca- 
fres — a febre palustre. 

Sabia-se ainda mais e peior. A grandeza numé- 
rica da expedição suscitara no paiz e no estrangeiro 



2or> 



a desconfiança de que se intentava emprehender 
uma campanha offensiva contra o poderoso rei de 
Ga%a, como os estrangeiros denominavam o Gun- 
gunhana. 

Alguns jornaes portuguezes tinham clamado ve- 
hementemente contra similhante temeridade, que 
seria a inevitável hecatombe dos nossos pobres sol- 
dados, e não poucos haviam reproduzido trechos 
de folhas estrangeiras, em que o commettimento era 
averbado de trágica loucura. 

Apontavam-se as forças que o Gungunhana po- 
deria pôr em campo, e um dos mais celebres jor- 
naes do paiz, dirigido por um notável homem dis- 
tado, que já estivera em Moçambique, indicava que 
o famoso regulo poderia congregar para a lucta 6o 
a 70.000 homens, entre os quaes sete ou oito mil 
d'esses vátuas indomáveis, que eram o terror dos 
sertões, desde o Incomati ao Zambeze. 

Na melhor das hypotheses para nós, o Gungu- 
nhana teria 20 ou 00.000 combatentes para nos 
oppôr. Em 1886 fizera elle a guerra no sertão de 
Inhambane com um exercito de 3o.ooo homens. 

E, francamente, — dizia-se — não será com dois 
mil e tantos homens, pois os que estão em Lou- 
renço Marques precisam de ser repatriados; não 
será com esses dois mil e tantos soldados, ou muito 
menos, pois que as febres hão de reter muitos nos 
hospitaes, logo nos primeiros dias; não ha de ser 
com essa gente que se hade ir levar a guerra ao 
sertão inhospito ae Gaza, contra vinte, trinta ou 
sessenta mil guerreiros audaciosos. 

Se a Inglaterra, com todo o seu senso pratico, 
se a própria França, a despeito da sua brilhante 
bravura, cahiriam em tão desmesurada aventura ! A 
Inglaterra chegou a ter na Zululandia um exercito 
que correspondia a mais de metade das forças de 
Katçhwayo; a França no Dahomé teve uma expe- 
dição igual a 1 /í das forças mobilisadas de Behanzin ; 
mas ali, em Gaza, e na melhor hypothese para Por- 
tugal, a expedição representaria 4 /io das forças do 



206 



Gungunhana, suppondo exaggeradas as informações 
que lhe davam 3o ou 60.000 homens. 

Um jornal inglez, afteiçoado á South Africa, di- 
zia com desalmado jubilo : 

A inf antevia e a artilheria de Portugal poderão 
varrer os pretos de Lourenço Maluques, no primeiro 
impeto, mas em breve terão de ver-se a braços com 
a febre terrível, com o ódio inveterado do regido de 
úa\a e com o seu numeroso, disciplinado e bem ar- 
mado exercito. 

Tudo isto se dizia e sabia em Portugal, todas 
estas informações haviam chegado ás casernas, n'uma 
confusa condensação e, todavia, não houve uma he- 
sitação sequer na partida, antes no rosto dos que 
partiam se reflectia o nobre enthusiasmo da pró- 
pria abnegação, como na sua voz se traduzia a 
paixão da pátria em másculas vibrações. 

Fraquezas intimas, d'essas santas fraquezas que 
se chamam o amor de pae, a piedade filial, a 

Eaixão da família, a saudade do lar, se algumas 
ouve, soube disfarçal-as corajosamente o senti- 
mento do dever, e nenhuma poude fallar tão alto, 
que lograsse cortar a unanimidade da abnegação, 
que foi o timbre e o primeiro titulo de gloria das 
tropas expedicionárias. 

Nunca do Tejo teriam sahido soldados com mais 
singela devoção patriótica nem a pátria fora nunca 
saudada com mais fervoroso enthusiasmo, embora 
em outros tempos a houvessem victoriado as vozes 
de heroes de tão colossal estatura, que só cabem 
na historia épica da civilisação humana. 

E quando aquelles modestos soldados, vibrantes 
de affecto, se apartavam pelo Tejo fora, a saudar o 
seu pequeno Portugal que iam defender no sertão 
negro; em terra, entre a multidão, os pessimistas 
murmuravam cruamente: 

— Bom açougue vão ter agora os vátuas. Já cá 
não volta nenhum ! 



207 






E era, effectivamente, para a guerra contra os 
vátuas que elles partiam ? 

Desconfiava-se que fosse. Oficialmente nega- 
va-se o intento e é fácil comprehender a idêa d'esta 
negativa. O poderoso regulo podia submetter-se 
completamente, em boa paz, e a guerra seria então 
uma fanfarronada inútil. Mas dado que se não sub- 
mettesse, fazer alarde do provável commettimento, 
seria pôr de sobreaviso os muitos interessados que 
jogavam com o Gungunhana a sua ruim politica e 
talvez preparar ensejo para alguma complicação di- 
plomática, que nos prendesse ou restringisse a ini- 
ciativa militar. 

O plano de uma guerra provável contra o Gun- 
gunhana estava já formulado em Lourenço Mar- 
ques, desde os fins de março. 

Em 3 d'abril o commissario régio datava da 
Ponta Vermelha (Lourenço Marques) o seguinte 
plano de campanha, que enviou ao sr. ministro da 
marinha Ferreira d^Aimeida, e que é útil e interes- 
sante conhecer: 

«As operações militares que podem e devem 
effectuar-se no principio do inverno próximo nos dis- 
trictos de Lourenço Marques e Jnhambane terão 
por fim : 

u.° Fazer uma grande demonstração de força* 
que convença os indígenas de toda a província — 
hoje intoleravelmente atrevidos e desrespeitosos, — 
e os estrangeiros, que nos consideram impotentes 
para dominar na Africa Oriental, — de que temos 
meios e temos vontade firme de manter a nossa so- 
berania n'essa região e castigar quem contra ella se 
revolte. 

«2. Occupar posições estratégicas e estabelecer 
postos fortificados nas fronteiras e dentro do terri- 



208 



tório do Gungunhana, para o manter em respeito 
e para dar confiança aos povos e régulos que quei- 
ram sacudir o jugo que elle lhes impõe. 

«2.° Sendo possível, atacar e anniquilar o Gun- 
gunhana, ou, pelo menos, sujeitar á auctoridade da 
coroa o paiz situado entre o Incomati e o Limpopo. 

«Para conseguir estes fins, ou alguns delles, 
tem-se estudado um plano de operações, cujas li- 
nhas geraes são as seguintes: 

«Tendo o Gungunhana as suas forças espalhadas 
pelo enorme paiz que se estende desde o Incomati 
até ao Inharnme e ainda pela margem esquerda do 
Save, e sendo certo que uma parte das populações 
que lhe obedecem estão cançadas da sua tyrannia, 
cada vez mais inexorável, e desejosas da libertação, 
affiançando-se especialmente que tal é o estado dos 
ânimos na Cossine e em parte do Bilene, deve-se 
procurar : a) cortar ou dificultar as communicações 
entre as diversas regiões d'esse paiz, principalmente 
dominando o Limpopo ; b) ameaçar aquellas d'essas 
regiões que pareçam mais dispostas a acceitar a 
nossa auctoridade, para que os seus chefes tenham 
pretexto ou tenham necessidade de não reunir as 
forças próprias ás do Gungunhana, se elle os cha- 
mar; c) animar os descontentes a revoltarem-se con- 
tra o seu suzereno e unirem-se ás nossas forcas. 

«N'este complexo intento prejecta-se dividir as 
tropas europêas em três columnas de operações, 
compostas de diversas armas. Uma d'estas colum- 
nas irá, pelo Incomati ou por terra, ou por uma e 
outra via, occupar o Intimane, a pretexto de evitar 
novas invasões dos cossas, tomando posições que 
lhe permittam passar para o Cossine, onde já temos 
um posto fraco e desguarnecido. Outra, mais fraca, 
irá embarcada para o Limpopo, devendo este rio 
estar já guardado por canhoneiras, e, sendo possível, 
estabelecer-se-ha, devidamente fortificada, na foz do 
Ghangane ou em frente d'essa foz, na margem di- 
reita do Limpopo; não podendo chegar lá, occu- 
pará algum ponto mais próximo da foz, e, sempre 



2CJQ 



f>rotegida pelos navios, que em caso de necessidade 
he protejam e facilitem a retirada, ameaçará am- 
bas as margens do rio. Convém saber que da foz 
do Changane vae-se á actual residência do Gungu- 
nhana em duas ou três marchas, e que ha lá terre- 
nos onde uma força europêa pôde intrincheirar-se 
de modo a poder resistir a grandes massas de indí- 
genas. Finalmente, a terceira columna, a mais forte 
de todas, marchará de Inhambane para Chicomo, 
d'onde, em poucas horas, um cavalleiro alcança o 
kraal do filho do Muzilla. 

«Os movimentos da columna do Limpopo não 
estão bem estudados, porque não houve até agora 
navio que podesse ir reconhecer o rio e as suas 
margens; esse estudo ha de fazer-se, porém, ainda 
n'este mez, e, seja qual for o seu resultado, é indu- 
bitável que ao Inhampura poderão ir tropas, cuja 
presença faça receiar, tanto ao Bilene (margem di- 
reita) como ao Gungunhana, um ataque combinado 
com a columna do Intimane e Cossine, ou com a de 
Chicomo. 

«Tomadas estas posições, é provável que a gente 
de Cossine e a do Bilene (margem direita) não vá 
juntar-se ao Gungunhana, deixando as suas terras e 
mulheres, com risco de serem assaltadas pelas tro- 
pas que estiverem no Incomati e no Limpopo, e, 
fuando queira fazel-o, a esquadrilha do Limpopo 
eve cortar-lhes a passagem, e a columna do Inco- 
mati pôde invadir-lhes o território, nas costas d'ella. 
Tampem é possível que, em tal situação, essa gente, 
ou parte d'ella, acceite a nossa auctoridade, como 
já tem offerecido, e assim nos assenhoriêmos do 
paiz entre o Incomati e o Limpopo. Por outra parte, 
não é de crer que o Gungunhana, vendo perto de 
casa as tropas do Chicomo, que deverão ter atra% 
de si a gente dos régulos de inhambane, desvie for- 
ças para acudir á Cossine ou ao Limpopo, e, por- 
tanto, a columna d'este rio poderá approximar-se 
mais do seu kraal; mas se o fizer, a columna do 
Chicomo, com os auxiliares indígenas, terá todas as 



210 



probabilidades de não encontrar resistência inven- 
cível numa marcha que emprehenda sobre esse 
kraal. 

«Supponhamos, porém, que tanto no Cossine, 
como no Limpopo, como em Chicomo, os vátuas e 
os seus vassallos se preparam para repellir as nos- 
sas tropas. Não é de presumir que, assim divididos, 
sejam temerosos; mas se tiverem forças numerosas 
e não for prudente atacal-os, as columnas limitar-se- 
hão a estabelecer postos fortificados no Cossine, no 
Chicomo ou nalgum ponto da margem do Limpopo ; 
e desde que se colloquem na defensiva, apoiados 
nos rios e servidos por elles, ou não serão atacados 
ou facilmente repellirão os ataques. Nesse caso, 
não se terá conseguido anniquillar o Gungunhana, 
mas o seu território ficará guarnecido de postos mi- 
litares importantes, o que será já uma vantagem 
enorme, tanto no ponto de vista estratégico como 
no ponto de vista politico. 

«O que deve dicidir dos movimentos das colum- 
nas e do seguimento das operações é a attitude dos 
povos e a do próprio Gungunhana. Se os povos da 
Cossine, de Bilene, etc, se levantarem animados 
pela presença das tropas, as columnas avançarão; 
e poderão avançar também, embora com mais pre- 
cauções, se os povos — não sendo maltratados pelos 
nossos soldados — cruzarem os braços á espera dos 
acontecimentos, o que poderá muito bem succeder* 
Se, pelo contrario, os povos se mostrarem dispos- 
tos a reagir e reagir com denodo, as tropas ficarão 
na nossa fronteira ou nas margens dos rios, onde 
deixarão postos estabelecidos. Será temerário fa- 
\el-os atravessar extensos paires inimigos entregues 
aos seus próprios recursos. 

«Não se deve annunciar, nem deixar suppôr, que 
as operações são emprehendidas para atacar o Gun- 
gunhana; pelo contrario, convém propalar que só 
teem por fim impedir que o Gungunhana ataque as 
terras da Coroa. Ir-se-ha, porém, mais longe, se as 
circumstancias opermittirem. A coíumna de ChicomA 



211 



# 



será especialmente incumbida de aproveitar o favor 
das circumstancias. Colloeada a poucos dias de mar- 
cha do kraal, poderá arrojar-se sobre clle desde que 
O saiba mal guardado, contando para isso, com o 
apoio de muitos milhares de indígenas de Inham- 
bane, alguns delles valorosos e inimigos encarniça- 
dos dos vátuas. Esta possibilidade será maior ou 
menor conforme a táctica que o regulo de Gaza 
adoptar. O que fará elle quando vir apparecerem 
ao mesmo tempo tropas na Cossine, no- Limpopo e 
no Chicomo ? E' quasi certo que, a principio, pro- 
curará a todo o custo evitar a guerra, porque é 
covardíssimo, commodista, e tem entranhada con- 
sciência da superioridade militar dos brancos, e dos 
portuguezes. 

«Ha de mandar embaixadas, e saguates^ offere- 
* cêr mil coisas — com a intenção reservada de faltar a 
tudo e tirar desforra na occasião opportuna,. — e é 
possível que esta sua attitude permitta impôr-lhe 
condições que lhe tirem força moral e que deixem 
as tropas firmarem-se no terreno, e talvez avança- 
rem n elle. A par dos soldados devem operar diplo- 
matas. 

«Quando chegue a convencer-se de que será ata- 
cado, de certo procurará defender-se; mas é duvi- 
doso que. atine com a melhor maneira de o fazer é 
reúna para isso elementos formidáveis. E' certo que 
elle junta milhares de homens armados, dizem que 
40.000 a 60.000; junta-os para festas e revistas, e 
junta-os quando os seus indunas podem percorrer 
todo o paiz do Incomati ao Save e quando a sua 
auetoridade está incontestada. 

«Reunil-as-ha também para a guerra, estando o 
Limpopo vigiado pelas nossas canhoneiras, estando 
toda a margem direita doesse rio e parte da esquerda 
em risco de serem invadidas, c correndo voz pelo 
sertão de que gente do rei vae atacar o terrível po- 
tentado, muito temido, mas também muito odiado ? 
Certamente correrão ás armas os vátuas legítimos; 
xlias os povos submettidos e escravisados hão de 



212 



provavelmente aproveitar todos os pretextos para 
se deixarem ficar em casa, quando não para se jun- 
tarem ás tropas, salvo o seu direito de se lançarem 
sobre ellas, se as virem vencidas. Especialmente se 
o Gungunhana hesitar em correr ás armas — e ha 
de hesitar, — póde-se esperar que não reúna forças 
consideráveis. 

«Bem poderoso era o Lobengula e nunca poz em 
campo contra os inglezes mais de 6.000 homens, 
segundo dizem os próprios vencedores, que decerto 
não diminuíram o numero dos vencidos, diminuindo 
a própria gloria. 

«Não se deve, pois, julgar improvável a consecu- 
ção do 3.° dos fins indicados das operações, e essa 
consecução pôde ser auxiliada po>: lances de fortuna. 
Se qualquer das columnas tiver a sorte de ser ata- 
cada e repellir bem o ataque, ficará segura a victo- 
ria para todas ellas. Se o Gungunhana vendo tro- 
pas na visinhança, fugir, o que não é nada impos- 
sível, perderá logo toda a auctoridade para organi- 
sar a defeza. 

«Com alguma fortuna, ajudada por uma boa poli- 
tica, poder-se-ha, pois, acabar de vez com o formi- 
dável potentado, que não só nos traz usurpadas as 
melhores terras da província, senão que nos tira a 
segurança das próprias terras que senhoreamos. 

«O estudo da execução d^ste plano está-se fa- 
zendo. N'este momento (3 de abril) o capitão do 
estado-maior Eduardo Costa, anda nas terras de 
Inhambane reconhecendo o terreno das operações 
e preparando ou fazendo preparar quanto é neces- 
sário para ellas: meios de desembarque, estradas, 
transportes, depósitos de mantimentos, logares de 
bivaque e acampamento. Para auxilio de transpor- 
tes terrestres, que em parte podem ser feitos por 
carregadores, estão já comprados em Durban dez 
carros de duas rodas e dez de quatro com 140 
bois ; para transportes no portti^ e no rio de Ma- 
tamba, também já foram adquiridos um pequeno re- 
bocador e lanchas. 



2l3 



«O campo das operações da columna do Limpopo 
é que ainda não foi reconhecido, por falta absoluta 
de navio capaz de ir ao rio e subir por elle ; mas 
no meiado d'este mez deverão ser dispensados os 
serviços do Neves Ferreira no Incomati, e esse 
navio, ao mesmo tempo que for fazer os preparati- 
vos necessários para a montagem das novas canho- 
neiras, irá estabelecer um posto militar na margem 
direita e observar onde e em que condições poderá 
desembarcar a columna destinada áquella região. 
Emquanto ás tropas que hão de operar no Intimane 
e no Cossine, subirão o Incomati até lá ou até al- 
gum ponto próximo, — conforme a altura das aguas, 
— com o auxilio do material fluvial que se vae reu- 
nindo; dado, porém, que por alguma circumstancia 
imprevista não podessem subir o rio, seguiriam para 
Intimane por terra, atravessando sempre terras da 
Coroa, e passariam o rio numa ponte, podendo apro- 
veitar-se para isso a que se está construindo para 
ser lançada em Incanine. E ocioso observar que to- 
dos estes planos presuppõem que, ao tempo em 
que elles devem ser executados, estará já comple- 
tamente debellada a revolta da Magaia.» 

Como se vê d'este plano, emprehender-se-hia a 
guerra contra o Gungunhana, se as circumst anciãs 
o permittissem. 

Era prudente. Veremos depois como o valor 
das tropas logrou triumphar das próprias circum- 
stancias, em que, afinal, foi intentada a campanha 
ofFensiva contra os vátuas. 



*' 



XI 



PEQUENAS OPERAÇÕES 



A' concentração de tropas em Lourenço Mar- 

3ues correspondia o empenho de reforçar a flotilha, 
estinada a proseguir as operações no Incomati e 
no Limpopo. Na casa Yarrow (Inglaterra) estavam 
em construcção quatro lanchas canhoneiras, que de- 
viam ir para Lourenço Marques, e do Zambeze ti- 
nham ido para as aguas d^quella cidade as peque- 
ninas lancnas-canhoneiras Sabre e Carabina, con- 
struidas especialmente para a navegação fluvial. A 
viagem temerária destas cascas de no{ pelo canal 
de Moçambique até Lourenço Marques e um feito 
digno de registrar-se, entre tantissimos actos de ar- 
rojo de que a nossa marinha legitimamente se ufana. 
Eram então commandadas pelos tenentes Ivens 
Ferraz e Caçador. 

Depois de chegarem as lanchas de Inglaterra, a 
flotilha ficou composta do vapor Neves Ferreira 
(antigo Lady Wood) de 7 pés de callado d'agua na 
linha d'agua, e das lanchas-canhoneiras : Bacamarte, 



2l6 



Xejina, Sabre, Carabina, Lacerda, Capello, Serpa 
Pinto, Incomati e Magaia. 

Foram valiosíssimas e quasi constantes as ope- 
rações (festa flotilha no Incomati e no Limpopo e 
representaram uma cooperação honrosissima nas 
campanhas das forças expedicionárias. 

O reconhecimento do Limpopo pelo Neves Fer- 
reira e a navegação da Capello (de fundo de prato) 
para o tortuoso rio, a reboque cTaquelle vapor, tal 
audácia e perícia exigiram, que os seus comman- 
dantes, os i. 08 tenentes Diogo de Sá e Valente da 
Cruz, foram enthusiasticamente louvados por aquelle 
testemunho de admirável intrepidez e inexcedivel 
competência profissional. 

Marinheiros e officiaes lidavam devotadamente, 
sem recatar a vida e sem medir o esforço, e não 
raras vezes os officiaes tiveram de trabalhar como 
simples grumetes, mettendo-se na. agua para des- 
enrascar as lanchas dos baixios e meandros aaquelles 
dois rios, que se enroscam pelo sertão, como esguias 
serpentes. 

A victoria de Marracuene intimidara os régulos 
convisinhos de Lourenço Marques e empurrara 
para o alto Incomati os guerreiros de Mamatibjana 
e do Mahazuli. 

A posição de Marracuene, ponto forçado do tra- 
fico para a Manhiça, Intimane e Gaza, fora solida- 
mente occupada em 22 de março. Ali se lançaram 
os fundamentos de uma povoação, que foi denomi- 
nada Villa Lui\a de Marracuene, em homenagem 
a uma gentil filha do commissario reeio. 

Dois dias antes fora reorganisado o corpo de 
policia de Lourenço Marques, elevando-se-lhe o ef- 
fectivo a 66 praças de cavallaria e 263 de infante- 
ria. 

Por decreto do commissario régio, de 16 d'abril, 
foi ordenado que todas as forças expedicionárias 




IVEX8 FERRAZ 

(Commandanle da lancha "Sabre> 



217 

que se esperavam da metrópole e as existentes na 
província, constituíssem uma brigada de operações 
sob o commando do coronel Eduardo Galhardo, fi- 
cando sob a sua immediata dependência os depósi- 
tos de material de guerra, estabelecidos em Lou- 
renço Marques e Inhambane. 

Outro aecreto de 22 do mesmo mez prohibia a 
importação de armas e munições e a venda de 
quaesquer petrechos de guerra, sem licença do go- 
verno. 

Pouco depois de se terem concentrado em Lon- 
renço Marques as forças expedicionárias, organi- 
sou-se a columna do norte (Inhambane). Era con- 
stituída pelo esquadrão de lanceiros, por uma parte 
da bateria de montanha, por uma parte da compa- 
nhia mixta de engenheria, pelo 2. batalhão de ca- 
çadores n.° 3 e por uma companhia do 2. batalhão 
de infanteria 2. 

A columna do sul ficaria composta de 3 compa- 
nhias de infanteria 2, de pequenas forças de enge- 
nheria e artilheria e cTalguns lanceiros. 

A caçadores 2^ já muito reduzido por effeito dos 
contingentes aue repatriara, tocaria principalmente 
a guarnição cie Lourenço Marques e de Anguane. 

Desde logo a columna do sul começou a pôr 
em pratica a parte do plano que lhe estava com- 
ine ttida. 

A sua pequena guerra de marchas penosíssimas 
e de investidas contra as povoações rebeldes, e a 
construcção de postos fortificados sobre a immensa 
curva do Incomati, consumiriam longos mezes de ru- 
des trabalhos, de enormes sacrifícios, de benemérito 
esforço. 

> 

N'essa lida de todos os dias, fecunda, extenua- 
dora e afinal obscura, porque lhe faltava a fulgura- 
ção das victorias ruidosas, avultaram em todo o seu 
esplendor as grandes virtudes antigas do soldado 
portuguez' e exalçaram-se em affirmações enterne- 
cedoras todos os sentimentos de confraternidade 
militar, que são a suprema força de cohesão moral 



V 



2l8 



dos exércitos em campanha e transmudam as uni- 
dades de combate em grandes famílias, estreita- 
mente ligadas pelos vínculos da honra e do dever. 
Cousas que em plena paz e na vida remançosa 
das guarnições da metrópole passariam indifferen- 
tes ou como um ceremonial banalmente regulamen- 
tar — o içar de uma bandeira, o toque da Avè-Ma- 
ria — tomavam ali, no sertão, o caracter de uma 
grande e commovedora solemnidade, repassada de 
melancholica poesia e de profunda fé, como se na 
mesma liturgia sublime se enlaçassem os grandes 
symt>olos da religião e da pátria. 

Levantar sobre um mastro grosseiro, aos pri- 
meiros fulgores da manhã, na plenitude da luz sem 
crespuculo, um pedaço de lã com. as cores e o bra- 
zão de Portugal e arreal-o ao esmorecer do dia, 
com o sol de fogo a morrer no horisonte, seriam 
cousas simples, vulgares, inexpressivas nà metró- 
pole em paz e eram cousas peregrinas e enternece- 
doras nas campanhas d'Africa. A formalidade fa- 
zia-se culto, quasi superstição, e os soldados menos 
cultos, por uma poética intuição do symbolismo da 
pátria, punham na bandeira, carinhosamente, os 
olhos .turvos de lagrimas, saudavam-na solemne- 
mente e iam recebel-a nos braços, arriada,, com a 
piedosa devoção com que um sacerdote antigo re- 
ceberia a ambula sagrada de um sacrário. 

E' que para.acjuelles homens, isolados da civt- 
lisação e da família, a três mil léguas do seu lar, 
aquelle pedaço de lã, aquella bandeira, era, ao mes- 
mo tempo, o svmbolo de quanto havia de mais glo- 
rigoso na pátria e de mais peregrino e santo nos la- 
res distantes. 

A bandeira resumia toda a' ambição nobilíssima 
das suas almas e todos os dilectos amores dos seus 
corações; era a gloria e a saudade na expressão 
d'aquellas cores, era a alma' de* todas as mães a 
palpitar na alma ideal d^quella insígnia; era Por- 
tugal naquelle pedaço de lã. 

O toque de Avè-Maria foi algumas vezes uma 



219 

singela e poética ceremonia, cheia de fé. Era para 
muitos como que uma saudosa evocação da infân- 
cia. Lembrava-lhes o sino da egrejita branca da al- 
deã, com o adro orlado de roseiras, nos dias dou- 
tro tempo; o sol a morrer detraz das montanhas, 
os casaes a levantarem pelas encostas a sua fuma- 
rada, como baixa neblina, os carros a chiarem do- 
lentemente pelos caminhos e, regressando ao po- 
voado, os ranchos de trabalhadores, de enxadas ás 
costas, chapéus e barretes na mão, rezando baixo 
as Avè-Marias. Tão longe! Ha tanto tempo! E 
quantos d'aquelles soldados, simples e crentes, 
áquella hora, por suggestões da alma, não estariam 
vendo uma figura de velhita, cabellos de neve, a 
sahir da egreja e a repetir ainda a prece pelo filho 
que lhe levaranPÍ 

Custa duríssimos sacrifícios a honra das nações. 

lam-se estabelecendo os postos fortificados na 
linha do Incomati. 

No seu interessantíssimo relatório de 19 de maio, 
dirigido ao chefe do estado-maior da brigada de ope- 
rações, o sr. major dmfanteria 2 Gomes Pereira, dá 
Jargos pormenores acerca dos postos de Marracuene 
|e de Incanine. 

Foram importantes os trabalhos que encontrou 
em Marracuene e por elles louvou calorosamente o 
sr. capitão d'infanteria 2 Coelho da Silva, comman- 
dante do posto. O terreno estava desbravado; le- 
vantára-se uma solida construcção de madeira e 
zinco, defendida exteriormente por vedações de 
arame farpado. O caminho., aberto entre o posto e o 
rio prestava-se perfeitamente ao movimento das tro- 
pas e era sufficieijtemente protegido para se eife- 
ctuar por elle o transporte dos abastecimentos para 
o posto , cuja guarnição era então de 76 homens. 

O posto do Incanine compunha-se de uma obra 






220 



de defeza de forma quadrangular, com 16 me- 
tros por face, tendo por parapeitos grossos tabuões 
sobrepostos, que chegavam á altura de i m ,3o. A 
defeza exterior era reforçada por uma vedação de 
fio de ferro farpado com a altura de 2 m ,5 e por uma 
rede de arame de 4 metros de largura, collocada 
um pouco acima do solo e á distancia de 80 a 100 
metros dos parapeitos. 

Na margem fronteira do rio, cuja máxima lar- 
gura era de 200 metros, fora construído um blo- 
ckaus de dois andares, com um mirante de obser- 
vação para as communicações de telegraphia óptica 
entre aquelle posto e o de Marracuene. Uma ponte 
de 2Õ lanços, com 201 metros de encontro a encon- 
tro, um taboleiro de i m ,5o de largura e.uma por- 
tada para a passagem de lanchas, estabelecia com- 
municação entre o grande posto e o blockaus des- 
tacado. 

Este. posto esteve guarnecido por 114 homens, 
sob o commando do tenente Krusse Gomes, de in- 
fanteria 2. Ali se estabeleceu um pequeno posto da 
Cruz Vermelha, organisado pelo illustre medico de 
marinha, delegado d ? aquella associação benemérita, 
o dr. Rodrigues Braga. 

Outros postos importantes se estabeleceram ao 
longo do Incomati, mas a sua descripção mais im- 
porta a um livro technico, especialmente consagrado 
aos trabalhos de fortificação passageira realisados 
durante a guerra, e nos quaes a engenheria pres- 
tou valiosíssimos serviços, do que a uma historia 
geral d'aquellas campanhas, consagrada, não exclu- 
sivamente á classe militar, mas a quantos se inte- 
ressam pelos gloriosos feitos das nossas tropas na 
Africa. 

Em 17 de maio de manhã sahia para a Ma- 
punga' do Mahazuli, uma columna de operações, com- 
posta de 265 homens, sob o commando do capitão 
de engenheria Freire d' Andrade, tendo como chefe 
de estado maior o destemido Paiva Couceiro. Era uma 
columna formada de destacamentos diversos, de 



221 



engenheria, da companhia de artilheria de guarni- 
ção, da bateria de montanha, de infantena 2, da 
policia de Lourenço Maraues, de soldados negros 
do batalhão de caçadores ó da província e de alguns 
auxiliares. Levava um canhão de montanha e uma 
metralhadora Nordenfelt, sob o commando do te- 
nente Sanches de Miranda. 

Na ordem de marcha, elaborada no commando 
superior, nenhuma indicação útil ficou esquecida. 
Tudo foi previsto: o municiamento, o serviço de 
segurança, a alimentação e nem mesmo esqueceu 
recommendar que aos soldados mais bisonhos fos- 
sem indicados, antes da partida e de modo a serem 
facilmente fixados, os principaes preceitos de com- 
bate e do serviço de vigilância. 

Mas os cafres fugiam á approximação das for- 
ças, abondonando as povoações, que os nossos auxi- 
liares incendiavam com inexcedivel jubilo. Assim 
succedeu a Moamoquine e outras. 

Esta marcha para a Mapunga foi notável pela 
regularidade inexcedivel da formatura, atravez de 
terreno.'» difficeis. A expedição avançava em qua- 
drado, como num campo de exercício. Por muitas 
vezes a face direita do quadrado se ia firmando pe- 
nosamente na areia, emquanto a face esquerda se 
atolava em terrenos encharcados. 

Concluída esta expedição, rude, fatigante e quasi 
ignorada, emprehendeu-se logo outra á Maçaneta, 
com o intuito da bater a gente do Finish e surpre- 
hendel-o a elle, a alma e o cérebro dos cafres em 
guerra. 

Outra dura marcha improfícua. Esta então feita 
debaixo de chuva copiosa, que encharcava aquella 

Sobre gente, já depauperada pelas febres. O Finish 
avia-se retirado cautelosamente. Era para o alto 
Incomati, para a região do Cossine, que os Cafres 
rebellados iam convergindo, rapidamente, evitando 
combater com as forças portuguezas. Ali estavam 
mais perto das terras do Gungunhana, receberiam 
soccorro directo e fácil dos vátuas ; as suas mulhe- 



222 



res e os seus gados seriam acolhidos e guardados 
por ordem ,do poderoso regulo, o vassallo hypocrita 
que? trahia a bandeira, á qual promettera fidelidade. 
Escarmentados com a sangrenta lição de Mar- 
racuene, entendiam os cafres que mais no interior 
do sertão a lucta seria funesta para os portuguezes 
e relativamente fácil para elles, com a cooperação 
da gente da Cossine e o apoio de alguma gente de 
guerra do soberbo regulo de Manjacaze. 

Foi nas terras de Finish que as nossas tropas 
encontraram obras de fortificação passageira perfei- 
mente regulares ; trincheiras-abrigos correctamente 
construídas ; fossos e abatizes que estavam revelan- 
do a direcção de alguém muito entendido n'esta es- 
pécie de trabalhos. 

Attribuem-se ao Finish essas obras defensivas e 
conta-se que um dos nossos officiaes dissera : Esse 
Jigurão parece que estudou Brialmont do principio 
ao fim. 

• Custa a crer — e já indicámos esta suspeita — 
que só pela permanência de alguns annos nas co- 
lónias inglezas, o cafre, embora astuto, aprendesse 
a dirigir trabalhos de fortificações, que não seriam 
precisamente a sua occupação em quanto esteve, 
fora da Magaia. 

Teria procurado aprender com quem fosse in- 
teressado em ensinal-o, na mira de futuras contin- 
gências, ou havia estado na Maçaneta alguém, com 
especiaes conhecimentos militares, que o houvesse 
auxiliado na direcção e execução d'aquelles traba- 
lhos ? 

Aqui está uma pergunta a que não sabemos res- 
ponder. Fosse, porém, como fosse, é incontestável 
que, depois -das perdas enormes que os rebeldes 
soifreram em Marracuene, o Finish não confiou nas 
suas trincheiras-abrigos e deixou-as ao abandono, 
para se ir collocar sob a protecção próxima dos vá- 
tuas. 

No seu relatório acerca dos postos e das expe- 
dições que indicamos, o sr. major Gomes Pereira 



223 



louva enthusiasticamente os dois officiaes que foram 
as figuras proeminentes da campanha do sul — o capi- 
tão Freire de Andrade e o tenente Paiva Couceiro. 
Diz o sr. Gomes Pereira que, na sua carreira mili- 
tar de mais de 3o annos de serviço effectivo, não en- 
contrara dois officiaes que, como elles, com tanto 
valor, abnegação e intelligencia soubessem servir o 
seu paiz, o que era ainda para maior admiração 
naquelle inhospito clima e em circumstancias por 
tal modo difficeis e extraordinárias. 



Muito rareadas pelas febres, as tropas da co- 
lumna do sul foram batendo o valle do Incomati e 
subindo para a região da Cossine. Aos postos de 
Marracuene e de Incanine ou Incanhine, acresceram 
os de Manhiça, de Chinavane e de Magude. Havia 
ainda os de Stocolo e Sabie na curva ascendente do 
Incomati. 

Entretanto, continuavam as negociações com- o 
Gungunhana, protector evidente dos régulos da Zi- 
xaxa e da Magaia. Nas fórmulas invariáveis da sua 
velhaca diplomacia, o rei de Gaza esquivava-se com 
palavras hypocritas a hostilisar os rebeldes, affian- 
çando solemnemente que não os protegia e que era 
um vassallo respeitoso de Portugal, um Jilho, dizia 
o Mundagaz na sua insidiosa ternura. O que elle 
queria era ir ganhando tempo, á espera, ou da in- 
tervenção de algumas ambições estrangeiras, ou de 
alguma derrota que os cafres infligissem ás nossas 
tropas e o collocassem a elle em condições de jogar 
abertamente contra nós. 

Depois de mandar uma embaixada com presentes 
para Lourenço Marques, enviava uma outra com 
solicitações de auxilio para a colónia do Cabo. 

A que foi a Lourenço Marques era composta de 
Intonga e Nyouji e levava como saguate (presente) 



224 

algumas pontas de marfim e 200 libras sterlinas. 
Segundo estes embaixadores, o aggravado e quei- 
xoso era o Gungunhana. 

O saguate não foi acceite e de novo se intimou 
ao rei de Gaza, sob pena de rompimento de hostili- 
dades, a entrega do Mahazuli e do Mamatibjane. A 
satisfação d'esta exigência devia realisar-se no praso 
de i5 dias. Era um ultimatum. 

A'cerca da embaixada ao Cabo sabemos que nos 
princípios de setembro sir Hugh Mac Donell, minis- 
tro da Inglaterra em Lisboa, communicava ao mi- 
nistro dos negócios estrangeiros de Portugal, por 
ordem do marquez de Salisbury, presidente do ga- 
binete britannico, que o Gungunhana mandara dois 
emissários seus d cidade do Cabo, mas que o go- 
verno inglez ordenara que nada se tratasse com 
aquelles emissários e fossem immediatamente inti- 
mados a regressar ao seu paiz. O sr. Mac Donell 
accrescentava ainda, em virtude de instrucções do 
marquez de Salisbury, que esperava que o governo 
portuguez visse n'este procedimento o sincero em- 
penho da Inglaterra em afastar qualquer esperança 
de apoio que podesse estimular o regulo de Gaza a 
abrir hostilidades contra os portuguezes. 

Afinal o Gungunhana, a despeito do seu poder, 
dos armamentos e munições que adquirira á força 
de libras sterlinas, arrancadas do seu thesouro, com 
tanta avareza recatado, e apezar mesmo de alguns 
bons conselhos b?*ancos, receava uma guerra contra 
as tropas portuguezas, embora, pela sua excellente 
espionagem, soubesse a que escasso numero esta- 
vam reduzidas as expedições de Portugal. 

Pela nossa parte também as negociações propo- 
sitadamente se haviam demorado para dar tempo a 
que se fortificasse a linha do Incomati, antes de 
alguma investida dos vátuas, e a que a columna do 
norte podesse reunir os meios de transporte neces- 
sários para chegar até Chicomo. 

Era isto mesmo o que o sr. commissario régio 
confessava depois em telegramma expedido de Lou- 



225 



renço Marques para Lisboa, em 12 de novembro. 
Dizia assim o telegramma: 

Desejo que o governo saiba que a negociação 
com o Gungunhana em nada atracou as operações, 
pois as tropas só poder am chegar a Chicomo desde 
fins de julho até i5 d' agosto. Rompi a negociação 
em i5 a agosto, tendo-a utilisado para tomar posi- 
ções no Chicomo e no Cossine sem ser atacado. 



O ultimatum ao Gungunhana havia-lhe sido 
apresentado em Manjacaze com uma certa solem- 
nidade. Os emissários portuguezes iam acompanha- 
dos por um piquete de lanceiros. Pela sua parte o 
rei de Gaza também se não esquecera de alardear 
o seu poder. 

O sr. Jayme de Ornellas, official que já encon- 
trámos em Marracuene entre os mais intrépidos, 
vae dar-nos um quadro interessantíssimo da pri- 
meira audiência solemne em Manjacaze. E' perfeita- 
mente um quadro espontâneo, rapidamente esbo- 
çado n'uma carta, mas opulento de observação e de 
colorido. Um bravo e um gentleman, cavalheiroso 
e imperturbável como o mais nobre daquelles três 
mosqueteiros que o génio de Dumas creou e fez 
immortaes, o sr. Jayme d'Ornellas, que aos primei- 
ros rebates da surpreza de Marracuene puxava o 
relógio, serenamente, para ver a que horas come- 
çava a tourada, sabe também manejar a penna 
com a firmeza com que maneja a espada. 

Ouçamos o illustre official: 



«Pelas 9 horas da manhã, do matto que fecha 
a elevação onde está o kraal do Gungunhana, vi- 
nha sahindo uma multidão de gente descendo a 
grande langua de Manguanhana. Ao chegar á pla- 
nície tudo isso fez alto, formando uma densa linha 
negra que nos fechava o horisonte. Lentamente se 



226 



foi ella approximando de nós e pouco a pouco se 
iam percebendo e distinguindo os vultos, quando 
se partiu em 6 columnas, duas d^ellas muito pro- 
fundas, ladeadas cada uma por duas mais peque- 
nas. Eram as duas mangas de guerra dos Impafa- 
mane (homens altos) e Iynhony M'Chope (pássaros 
brancos), dividida cada uma em três troços (ma- 
lange), na força de perto de três mil homens cada 
uma, ostentando elles toda a galla e riqueza selva- 
gem do magnifico trage de guerra dos guerreiros 
vátuas. Vinham porém armados só de cacetes em 
prova das suas intenções pacificas. Toda essa massa 
ímmensa avançava para nós e cercava a residên- 
cia sem um ruido sequer, manobrando com uma 
' precisão e regularidade que fariam inveja a alguns 
exércitos. A cerca de Soo metros de nós destacou-se 
á frente o bobo ou jogral do exercito, litteralmente 
coberto de pelles de tigre, com um immenso capa- 
cete de pennas negras na cabeça e dando cabrio- 
las, ladrando com um cão e cantando como um 
gallo. Já estavam as mangas junto á residência, e 
as 6 columnas formaram linha em semi-circulo em 
volta de nós, vindo para a frente até 1 5 ou 20 me- 
tros um grupo de cerca de 100 homens. Entre es- 
tes vinha o Ciungunhana, que conheci logo, apezar 
de nunca lhe ter visto retrato algum : era evidente- 
mente o grande chefe duma grande raça. D'esse 
grupo adiantou-se um dos principaes, orando por 
bastante tempo, dando-nos as boas vindas em nome 
do regulo e da sua nação e terminando pela sauda- 
ção vátua: bahete! que repetida por milhares de 
boccas que nos cercavam produzia o effeito duma 
descarga de fuzilaria. Então o regulo adiantou-se, 
sentamo-nos e trocaram-se os mais cordeaes cum- 
primentos. E' um homem alto, e sem ter as magni- 
ficas feições árabes que tenho notado em tantos dos 
seus, tem-as sem duvida bellas, testa ampla, olhos 
castanhos intelligentes e um inquestionável ar de 
grandeza e superioridade. Ao levantar-se fez-se de 
novo ouvir o estrondoso bahete! e formando outra 



227 

vez as mangas em columna, mandou-as entoar o 
canto de guerra. Aqui devia eu parar. Nada no 
mundo pôde dar uma pallida idêa da magnificên- 
cia do hymno, da harmonia do canto., cujas notas 
graves e profundas, vibradas com enthnsiasmo por 
6:000 boccas, faziam estremecer-nos até ao intimo. 
«Que magestade, que energia, naquella musica, 
ora arrastada e lenta, quasi moribunda, para resur- 
gir triumphante num frémito dê ardor, numa ex- 
plosão queimante de enthusiasmo ! E á medida que 
as mangas se iam afastando, as notas graves iam 
dominando e ainda por largo espaço reboavam pe- 
las encostas e entre as mattas de Manjacaze. Quem 
seria o compositor anonymo d'aquella maravilha ? 
Que alma não teria quem soube metter em três ou 

3uatro compassos a guerra com toda a acre rudeza 
a sua poesia? Ainda hoje nos «cortados ouvidos» 
me ribomba o echo do terrível canto de guerra vá- 
tua, que tantas vezes o esculca chope ouviu transido 
de terror, perdido por entre as brenhas d'estes mat- 
tos nos quaes vivo ha perto de um mez. No dia se- 
guinte fomos á banja, espécie de conselho de es- 
tado onde teem assento só os membros da família 
do regulo e os grandes senhores de terras, umas 
trinta e tantas pessoas ao todo, e entabolamos ne- 
gociações. 

«Desde o principio se nos apresentou uma grande 
difficuldade, a de convencer o Gungunhana de que 
a submissão ás nossas vontades o livraria da guer- 
ra. «Se as tropas são tantas e estão nas minhas 
fronteiras, não foi só para que vocês me viessem cá 
dizer isso. Se eu tivesse dito que não, percebia en- 
tão essa approximação». Emfim seria longo enume- 
rar os argumentos apresentados de um e outro lado 
em três banjas de cerca de 4 horas cada uma. Só 
direi que admirei o homem que os jornaes d'ahi pin- 
tam como um bêbado despresivel, e que discutiu 
durante tanto tempo com uma argumentação lúcida 
e intelligente, racionada e lógica». 



228 



A i6 de agosto o sr. commissario régio dava 
ordem ás columnas do norte e do sul para avança- 
rem contra o inimigo, como elle próprio affirma no 
seu telegramma de 12 de novembro, que em parte 
foi por nós já transcripto. 



XII 



O QUADRADO DE MAGUL 



Estamos, portanto, diante de dois objectivos 
que se relacionam, mas que se não unificam. Bater 
os cafres rebeldes, que se encontravam na Cossine, 
procurando o apoio dos vátuas, e invadir o paiz de 
Gaza, levando a guerra ao próprio kraal de Manja- 
caze. Qualquer d'elles se poderia alcançar, sem de- 
pendência do outro, embora a realisação de um não 
tosse indifferente, antes devesse influir na realisa- 
ção do outro. 

Sem communicações possíveis entre si, atravez 
do sertão, separadas por muitos dias de marcha, 
que a eftectuar-se teria de ser uma longa e aspér- 
rima conquista, sem poderem, portanto, apoiar-se 
d'outro modo que não fosse pela acção moral das 
victorias que alguma d'ellas obtivesse; as duas co- 
lumnas do norte e do sul operavam isoladamente, 
com objectivos distinctos e até em paizes que, sob 
o ponto de vista das soberanias sertanejas, não con- 
stituíam um único dqginio. 

Não fora possiv|Í|palisar completamente o pla- 






23 I 



pela rapina e pelo incêndio, segundo o estylo 
cafreal. 

A pequena distancia, a vanguarda encontrou al- 
guma gente inimiga. Cahiram sobre ella os lancei- 
ros e, apoz brevíssima escaramuça, os rebeldes fu- 
giram, deixando 3o mortos e algum gado, que os 
auxiliares apresaram com a sua natural intrepidez 
nesta espécie de commettimentos. • 

A columna continuou a marcha. Nas proximida- 
des de uma cadêa de montes, que são como o limite 
natural da região da Cossine, novamente a van- 
guarda encontrou gente rebelde, mas agora bem 
armada e em numero que não desceria de 2:000. 

Couceiro ia muito distanciado da columna, mas 
avançou resolutamente com os 6 lanceiros e a gente 
auxiliar. 

A columna já tinha passado para além da povoa- 
ção de Magul, que deixara á sua. direita. 

Paiva Couceiro, que travara conhecimento com 
um irmão do regulo da Cossine, lembrou-se de o 
chamar pelo nome, ao acaso, a ver se elle estaria 
entre os rebeldes. Estava eftectivamente. 

Pasman, o irmão do regulo da Cossine, era o 
commandante dos rebeldes. A apparição dos lan- 
ceiros e o receio de que élles fossem a vanguarda 
de importantes forças brancas, por tal mjodo influí- 
ram no animo de Pasman, que logo se distanciou 
da sua gente para ir falar com o tenente Couceiro. 

Fingiu-se o preto muito magoado e cheio de as- 
sombro por os portuguezes lhe invadirem os seus 
domínios, fazendo-lhe guerra, a elle, que sempre 
vivera em paz com a gente de Portugal. Era grande 
a lista dos seus aggravos. Povoações queimadas, 
gente morta, mulheres roubadas, gado apprehen- 
dido, e sem que elle provocasse semelhantes hos- 
tilidades. 

Paiva Couceiro percebeu que tinha ali um discí- 
pulo emérito do Gungurçhana, e ás insidiosas quei- 
xas replicou que era aelles a culpa da guerra, pois 

acoutavam e protegiam nas suas terras os rebeldes 

15 



■*.". , _-V|._ ■■■?'*. :■ • ....•-• ...J.* ., ■ 1 ..> p- »|V4 " '*■ fc "■ X *í ■*♦«■* 



"t 



232 



da Zixaxa e da Magaia. Com os amigos leaes o 
procedimento era outro, e tanto que ainda no dia 
antecedente tinham ido avisar a gente pacifica da 
Incoluane para se retirarem de modo a não softrerem 
as consequências da guerra. Mas que elle Pasman 
e os outros régulos, como seu irmão Xonquella e 
como o Majioli, obedeciam ao Gungunhana, da- 
vam guarida aos rebeldes e por isso a guerra branca 
ia começar implacavelmente contra elles, e já vinha 
a pequena distancia. Intimidou-se Pasman com esta 
ameaça e supplicou a Paiva Couceiro que lhe con- 
cedesse três dias para aconselhar o irmão e ver se 
o movia a entregar os régulos da Zixaxa e da Ma- 
gaia. Era um expediente dilatório; comprehendeu-o 
bem Paiva Couceiro, mas seria funda imprudência 
transformar em campanha oífensiva com 120 euro- 
peus apenas aquella marcha de simples reconheci- 
mento. 

Ficou combinado que no praso de três dias, ou 
elle Pasman e o irmão iriam entregar os dois re- 
beldes, ou seriam atacados pelas tropas portuguezas. 

Ninguém acreditou na lealdade e no bom êxito 
d'esta combinação. Os nossos trataram de se pre- 
caver para cumprir a promessa de hostilidades, e 
os cafres concentraram todas as suas forças dispo- 
níveis para os esperarem. 

Volveram os três dias aprazados e não foram 
entregues os régulos da Zixaxa e da Magaia, como 
aliás estava previsto. 

Organisou-se a columna de operações com a 
gente valida do posto de Chinavane e mais 120 pra- 
ças, com 3 metralhadoras, que vieram do forte de 
Magude. Ao todo 275 portuguezes, em grande parte 
já anemicos, já envenenados pelo impaludismo, mas 
que ainda tinham alma para marchar e combater, 
e mais uns 33 angolas. Compunha-se de 4 metra- 



233 



■1 



lhadoras a artilheria e era commandada pelo bçavo 
tenente Sanches de Miranda. Com a columna iam 
ioo carregadores. Commandava em chefe o capitão 
Freire dAndrade e era seu immediato Paiva Cou- 
ceiro, t 

A columna constituira-se com os seguintes desta- x 
camentos : * * 



Artilheria de montanha 20 

Artilheria de guarnição 10 

Engenheria 1 

Lanceiros 8 

Cavallaria da policia 3 

De infanteria 2 221 

Da administração militar 1 

> 

264 

Officiaes 11 

Angolas 4.... 33 

Total 3o8 



No dia 7 de setembro, pelas 9 horas da manhã, 
começou a passagem do Incoluane em dois escale- 
res da lancha-canhoneira Lacerda e com o auxilio , 
de um cabo de vae-vem. Com taes meios, e a des- 
peito da mediania do eftectivo da columna, *o trans- 
porte devia ser necessariamente morosíssimo e fa- 
tigante. E foi. Eram 3 horas quando estava con- 
cluído. Tinha levado 6 horas! Fazia um calor suf- 
focante, extenuador. As tropas não podiam mais; 
alguns soldados mal conseguiam arrastar-se e sus- 
tentar a Kropatschek ao hombro. 

O quadrado bivacou, sem que o houvesse per- 
turbado o minimo indicio da approximação do ini- 
migo. 

Não levava comboio de viveres, nem serviço de 
saúde, que não fosse um enfermeiro e este mesmo 
sem ter, ao menos, uma simples mochila de ambu- 
lância bem provida ! 

Quanto ao serviço de saúde é incontestável que 
a expedição portugueza estava mais mal dotada que 



234 

a própria expedição franceza a Madagáscar, cujos 
serviços médicos eram, aliás, deíicientissimos. Com 
a expedição a Dahomé nem sequer é licito estabele- 
cer confronto. 

A columna do coronel Dodds, com um effectivo, 
que era, approximadamente, o da nossa expedição, 
tinha 19 médicos e numerosas ambulâncias, larga- 
mente providas! As nossas duas columnas de ope- 
rações — a do sul e a do norte — não tiveram mais 
de 4 /3 d'aquelle numero de médicos, incluindo mesmo 
os da Cruz Vermelha. 

Todo o trem de marcha da pequena columna se 
reduzia a 1 carro, 8 burros e 4 bois. 

No dia immediato (8) pelas 7 horas e 3o minu- 
tos da manhã, o quadrado avançou na direcção de 
Magul. Levava os carregadores no centro, os ango- 
las em flanqueadores e 7 lanceiros em serviço de 
exploração. 

Custava já a supportar o calor. O sol eston- 
teava; tinha as fulvas scintillações de um brazido 
colossal; parece que havia na atmosphera reverbe- 
rações metallicas que feriam a vista subitamente. 
Como que iam caminhando para a bocca de uma 
enorme fornalha, que se fechava na linha ampla do 
horisonte. 

Cada quarto d'hora de marcha representava um 
esforço penosíssimo. As espingardas queimavam, os 
uniformes de brim iam alagados de suor e os sol- 
dados, com os chapéus de feltro derrubados sobre 
os olhos, resfolegando alto, a bocca semi-aberta, 
como n'uma insaciável solfreguidão d'agua, dobra- 
vam-se muito para a frente, arrastando aos solavan- 
cos da sua inabalável constância o pobre corpo de- 
pauperado pelo clima. 

De quando em quando cruzavam-se os ditos ale- 
gres de alguns d'esses incorrigíveis humoristas, pi- 
torescamente expontâneos, que são a encantadora 
bohemia das marchas e dos bivaques. 

— Esta sujeita também já vae com as febres — 
dizia um soldado de artilheria, indicando a outro os 



235 



canos da Nordenfelt, a queimarem como se estives- 
sem em braza. 

Assim marcharam durante duas horas e meia! 

Uma pequena linha d'agua, cujo aspecto accen- 
deu fulgurações de jubilo nos olhos amortecidos dos 
soldados, serpeava por uma larga planura alagadiça, 
ao cabo da qual e junto das collinas onde dias antes 
houvera o encontro com o Pasman, uma multidão 
enorme de cafres fazia exercícios de guerra, en- * 
toando os seus cânticos de combate e dando saltos 
formidáveis, como demónios de um sabbat terrivel- 
mente phantastico. 

Estavam já prevenidos da approximação.dos nos- 
sos. O exercício, os cânticos, os saltos eram uma" 
provocação, um estratagema para attrahir o qua- 
drado ao terreno encharcado, onde ficaria enterrado 
para sempre. 

Enganadora miragem aquella agua! Ninguém 
poderia ali mitigar a sede. 

Conta-se que na campanha de 1808 o general 
Bernardim Freire d'Andrade replicara ao general 
inglez que lhe allegava não haver rações de pão 
para distribuir ás tropas portuguezas: 

— Pois bem; combateremos mesmo sem pão. 

Mas combater devorado pela sede deve ser im- 
mensamente peior, mais angustioso, mais desespe- 
rador. 

A vanguarda, commandada por Paiva Couceiro, 
depois de ter avisado da posição do inimigo, foi co- 
brindo a marcha do quadrado até um terreno cul- 
tivado, que ficava a i:5oo metros da orla do bos- 
que. 

Freire d'Andrade mandou concentrar mais o 
quadrado, que ficou com três fileiras por face e 
uma Nordenfelt em cada angulo. Era um pequeno 
reducto de brancos na moldura immensa d aquelles 
sertões. E como os cafres se não decidiam a tomar 
a offensiva, pois contavam que os nossos, cahissem 
em atravessar o pântano onde a derrota seria inevi- 
tável, o capitão Freire d'Andrade, que não queria 



236 



retirar sem combater e que não podia esperar pela 
noite em tão desvantajosa posição, com as tropas 
sem alimento, mortificadas pela sede, quasi exte- 
nuadas pelo cansaço e ante um inimigo immensa- 
mente superior, resolveu mandar provocar os rebel- 
des e ordenou aos 33 angolas e ioo corregadores, 
que avançassem para elles, que os desafiassem con- 
forme o uso cafreal e lhes fizessem fogo, fugindo 
* em seguida para junto do quadrado. 

Eram 1 1 i /i. O sol a prumo faiscava nos me- 
taes do armamento. 

Os cafres não responderam á provocação dos 
angolas e dos auxiliares. Custava-lhes desistir do 
"estratagema do pântano, que lhes asseguraria a vi- 
ctoria fácil e a chacina completa. Apenas começa- 
ram a desenvolver-se num enorme crescente, que 
lembrava a ordem de batalha dos marroquinos em 
Alcacer-Kibir. Preparava-se para envolver o qua- 
drado aquelle crescente negro de Magul. 

Desenvolveram-se, mas não avançaram. O ca- 
pitão Freire d' Andrade calculou que os cafres aguar- 
davam a noite para o ataque e entendeu que seria 
de boa prudência consolidar a resistência do qua- 
drado por meio de defezas accessorias. Neste in- 
tuito mandou derribar duas grandes arvores que 
estavam próximas da nossa gente e com ellas se 
estabeleceram abatizes. Pela i hora e 20 minutos 
começou a correr vento na direcção da face esquerda 
do quadrado e os cafres tomaram a offensiva. 

Durante a sua operação de desenvolvimento fora 
fácil aos officiaes portuguezes mais conhecedores da 
organisação militar dos negros perceber que elles 
dispunham de i3 mangas, que na força normal de 
5oo guerreiros cada uma, representavam 6.5oo ho- 
mens. 

O movimento offensivo accentuára-se mais sobre 
a face do quadrado contra a qual corria o vento. 
Entendiam os cafres que assim, a fumarada dos 
seus próprios tiros iria cair sobre o quadrado, co- 
brindo-lhes os movimentos. 



; 



237 

Os cafres caminhavam cautelosamente e como 
gente que já conhecia o effeito mortífero das Kro- 
patscheks. Avançavam quasi de rastos, cobriam-se 
com as ondulações do terreno,* escondiam-se no ca- 
pim, abrigavam-se por detraz dos montículos de 
muchèm. Assim faziam fogo, sobre o quadrado, 
avançando por lanços, em carreira, como os atira- 
radores europeus. 

A grande distancia dos que investiam o qua- 
drado com as suas armas de fogo, avançavam len- 
tamente, como para os alentar e proteger ou para 
assegurar qualquer lance de boa fortuna alcan- 
çado pelos atiradores, as enormes massas dos guer- 
reiros armados de azagaias. 

Emfim. Começava o combate contra aquelle qua- 
drado de 275 portuguezes, que tinham nas suas 
mãos a honra de uma nação e 33 angolas que com- 
batiam á sobre posse. A distancia, doidos de medo, 
inúteis, cozidos com o terreno, onde elles suppõem 
que as balas não podem chegar, os cem carregado- 
res esperam a tremer o desenlace d'aquella ex- 
traordinária lucta contra mais de seis mil homens. 
Assim, em campo aberto, isoladamente, sem uma 
esperança plausível de soccorro, sem o apoio de 
uma fortaleza ou de algum navio, com os corações 
por parapeitos, nunca se combatera, sem que a te- 
meridade não tivesse o desenlace inevitável de um 
desastre. Nem os nossos antigos em Marrocos e na 
índia; nem os estrangeiros em qualquer região da 
Africa. 

A façanha de Mazagran (1840), 123 francezes 
que resistiram a 12.000 árabes na Argélia, é brilhante, 
soberba, mas se os árabes eram mais que os cafres e 
os francezes menos do que eram os nossos em Magul; 
em Mazagran, aquelle heróico punhado de france- 
zes combatia a coberto dos parapeitos de um re- 
cinto fortificado e em taes condições também já nós 
sabemos como um homem pôde oppôr-se a cem. 

Logo que se accentuou o movimento offensivo 
dos cafres, officiaes e sargentos recommendavam 



238 



no quadrado a máxima attenção ás vozes de com- 
mando e a maior firmeza nas pontarias. Que nin- 
guém se precipitasse. Deixar avançar os caíres. Os 
que chegassem mahí perto ficariam espetados nas 
pontas dos sabres-bayonetas, que refulgiam ao sol 
como facetas de diamantes. 

A primeira fileira do quadrado está de joelhos; 
pelo lado exterior os angolas, estendidos no chão 7 
esperavam a voz de fogo. 

Referia depois um moço oííicial, em uma carta 
encantadoramente sjpçera, que no primeiro mo- 
mento, dentro d^quclfe reductosito de peitos por- 
tuguezes, quadrado minúsculo de quatorze a quinze 
metros por face, lhe lenj.braram subitamente, numa 
grande expansão de saudade, todas as grandes ho- 
ras felizes da sua vida e lhe passaram velozmente 
nalma, como na tela branca dos quadros dissolven- 
tes, quantas imagens queridas o seu coração guar- 
dava ; mas foi um instante que isto durara. Aos pri- 
meiros tiros, tudo se dissipou e tudo se esqueceu ; 
veiu a embriaguez da pólvora e percebeu-se que 
era preciso matar para vencer. 

Sim, e em cada alma daquelles homens — com- 
prehendêmol-o bem — uma grande imagem substituiu 
todas aquellas pequenas imagens e um grande nome 
lhes encheu no coração todo o espaço d'aquellas 
saudosas reminiscências. A imagem da pátria; o 
nome de Portugal. 

Vibrou a voz de fogo. Os cafres estavam a 200 
metros do quadrado. Foi disparada a primeira me- 
tralhadora. As descargas das Kropatscheks pare- 
ciam berros formidáveis, seccos, metálicos, de algum 
monstruoso animal selvático. As metralhadoras és- 
trondeiam sob a acção dirigente do bravo tenente 
Miranda. 

Os primeiros tiros dos cafres fazem cair dois 
dos nossos. Deppis outros e outros. As faces do 
pequeno quadrado vomitam totrente^ de b^las. 

O capim r^sequido arde cpmo isca^e o vento, 
soprando o iocenaio, atira oiídas <J6 fum$ sobre o 



23g 

quadrado e vae mortificar ainda mais aquelles po- 
bres soldados devorados pela sede. 

Três metralhadoras estão já inutilisadas, uma 
porque uma bala dos cafres lhe destruirá a cartu- 
cheira e duas porque se tinham encravado com os 
invólucros dos cartuchos. Restava uma que o te- 
nente Miranda manejava febrilmente. Apesar das 
suas perdas enormes, os cafres, reforçando-se nas 
suas grandes massas de reserva, como no mar a 
onda que se alastra se realenta na onda que a pre- 
cede, avançavam arrojadamente, e iam cahir a 6o 
metros de distancia das primeiras filas dos nossos. 

Dentro do quadrado ha já alguns mortos e bas- 
tantes feridos. Um soldado de infanteria tinha três 
ferimentos. Outro do mesmo regimento cairá fe- 
rido numa coxa. Ai que me mataraml — murmu- 
rou. Qual mataram — retorquiu-lhe um official. Vin- 
ga-te ríelles, se ainda podes fa^er fogo. Di\ bem 
v. s. a , meu alferes — volveu o ferido e arrastando-se 
para a frente continuou a fazer fogo, escorrendo 
sangue 4 . De 7 lanceiros que havia, três estavam 
já feridos! 



1 Era o soldado n.° 43 da 2. a companhia do 2. batalhão 
do regimento d'infanteria n.° 2. Chamava-se João d'Assum- 
pção. Não morreu no combate, mas quando regressava a Por- 
tugal, a bordo do paquete Kaiser, entregosando talvez os jú- 
bilos vda chegada por entre as caricias e as bênçãos da famí- 
lia. . '.'■ 

Foi-lhe sepultura o fundo immenso do mar. 

Não se estranhe que registemos aqui a morte de um sol- 
dado. 

No tomo 11 da sua Historia politica e militar de Portugal, 
Latino Coelho, o escriptor inexcedivel, não duvidou entalhar 
no piro antigo, purissimo, brilhante das suas paginas o nome 
de um simples cabo de esquadra do regimento d'artilheria 
da corte, que no ataque de Argel pela esquadra hispano-por- 
tugueza, em 1794, não quiz que o rendessem na guarnição de 
um morteiro, apesar de banhado em sangue, que em borbo- 
tões lhe sahia dos ouvidos. 

• Não valia menos o animo do pobre rapaz que combatia 
em Magul, já depois de gravemente ferido. 



* - . 
/ 



240 



Chegara o lance temeroso. Todos cumpriam 
brilhantemente o seu dever. Freire d 1 Andrade exer- 
cia o commando com rara intrepidez. Paiva Cou- 
ceiro estava imperturbável sob a chuva de balas, 
que a espaços quebrava os sabres-bayonetas das 
Kropatscheks. Sanches de Miranda fazia prodígios 
com a única metralhadora válida. 

Começou-se o fogo vivo. Era infernal o bramido 
do combate n'aquelle estreito espaço; em que os 
combatentes se acotovellavam e os corações se sen- 
tiam uns aos outros. 

Os cafres recuaram. Era espantoso o numero 
dos que tinham de arrastar comsigo, mortos e feri- 
dos. 

Do quadrado, envolto em fumo, como um den- 
síssimo nevoeiro, já não podia vêr-se o inimigo. 
Freire d' Andrade manda tocar, pela segunda vez, 
a cessar fogo, para ser ouvido nas suas recommen- 
dações e para esperar que a fumaceira se dissipe. 
O fogo cessou immediatamente, como se aquelles 
soldados, que não davam para mais de uma com- 
panhia mobilisada e estavam sendo investidos por 
mais de seis mil homens, estivessem simplesmente 
no antigo campo de exercícios das Salesias! 

Recobraram animo os cafres de maior arrojo e 
voltaram ao ataque. Aos mais retardatários estimu- 
lava-os o respectivo induna, seu chefe, espancan- 
do-os em ímpetos de cólera. 

Vibrou a corneta d'ordens o toque de fogo. Re- 
começava o combate. 

Arrogante, destemido, indomável, Pope, o chefe 
de guerra do regulo da Zixaxa, cumpria heroicamente 
os deveres do supremo commando. Procurava ar- 
rastar comsigo os guerreiros mais acobardados pelo 
effeito mortífero dos fogos do quadrado, e elle pró- 
prio fazia fogo serenamente, como se não sentisse 
em volta de si uma torrente d'aquellas balas, que 
iam varar os seus atravez dos troncos das arvores 
distantes ou lhes dilaceravam as carnes horrivel- 
mente ! 




FREIRE DE ANDRADE 

iCoptíãú de engenherioj 



241 

Na terceira investida uma bala de tantas derri- 
bou, emfim, o valente cafre, que era já, elle só, a 
alma de toda «a sua gente na lucta. 

Então o terror quebrou inopinadamente todos os 
ânimos entre os negros e a massa enorme retirou 
em debandada. 

E como quasi não ha tragedia nem epopêa que 
não tenha um traço cómico, foi naquelle momento 
que os 100 carregadores, os cobardes que tinham 
estado escondidos como creanças, se levantaram 
num ímpeto guerreiro, a fingir que perseguiam os 
vencidos na sua apavorada fuga. 

Encontraram apenas alguns rebeldes feridos e 
entre elles o filho do regulo Majioli. 

Em volta do quadrado de Magul refulgia a maior 
gloria militar de Portugal nas suas campanhas ul- 
tramarinas dos últimos duzentos annos. Aquillo, 
aquella façanha, que se pôde citar alto deante do 
livro aberto das nossas antigas proezas, podia ser, 
sem cobardia, uma dolorosa miniatura de Isan- 
dhluana (tão poucos eram!) e fez-se uma victoriosa 
audácia, sem precedentes, nas modernas guerras 
d'Africa. 

Se podesse vêl-os ali, a elles, os pobres vence- 
dores, devorados pela sede, exhausto de cansaço; 
se podesse vêl-os, Bonaparte repetiria a sua phrase 
de Wagram: 

— Não ha melhores soldados na Europa. 



* 

O combate terminara ás 2 horas e vinte minutos 
da tarde, segundo o relatório do capitão Freire d'An- 
drade, enviado em 9 de setembro ao sr. major Go- 
mes Pereira. 

As i3 mangas compunham-se de gente do re- 
gulo Majioli, vassallo do Gungunhana, do regulo 
da Cossine e dos régulos da Zixaxa e da Magaia. 



"K . 



242 



Estavam com as forças cTestes régulos alguns auxi- 
liares vátuas 4 . 

As balas dos cafres arruinaram 12 espingardas 
dos nossos e quebraram grande numero de sabres- 
bayonetas. 

" O inimigo dispunha de muitas armas de fogo, 
principalmente antigas. Tinha também espingardas 
Martini Henry e Snider. Calcula-se que dumas e 
outras não teria menos de 1.800. 

PERDAS 
Effectivos Mortos e feridos Percentagens 

Portuguezes e ango- 
las*" 3o8 33 10,7 % 

Cafres e vátuas 6:5oo 450 6,9% 

As nossas perdas foram relativamente grandes. 
Como havemos de ver, foi este para nós o com- 
bate mais sangrento de toda a campanha. 

Morreram dos nossos: o 2. sargento Olympio Cu- 
nha, n.° 3i da i. a companhia; soldados da 2. a com- 
panhia n.° u3 Francisco Barreira, n.° 53 António 
Nunes; n.° 12 Fernandes; n.° 77 José António Bo- 
telho; n.° i58 Nobre, todos do 2. batalhão do re- 
gimento dmfanteria n.° 2. 

Tiveram as nossas tropas 26 feridos, dos quaes 
i5 ficaram em estado grave. Foi também ligeira- 
mente ferido um dos carregadores. 

As perdas dos cafres foram horrorosas, não pelo 
numero total em relação â forca em combate, mas 
porque dos 460, em que approximadamente se lhe 
avaliam os mortos e feridos, quasi 400 foram mor- 



1 Já prisioneiro e retido no forte de Monsanto (Lisboa) 
o regulo da Zixaxa, affirmava perante o Gungunhana que no 
combate de Magul fora auxiliado por alguns homens de 
guerra do ex-rei de Gaza. A uma negativa do Gungunhana > 
oppoz elle a designação nominal dos mais importantes d'aquel- 
les auxiliares. 



243 

tos no local da acção ou falleceram em resultado 
dos ferimentos recebidos. 

Mais tarde os próprios cafres confessavam que 
da sua gente tinham sido muitos os mortos e que 
quasi todos os feridos haviam fallecido. 

O effeito do combate de Magul foi de tal modo 
grande e extraordinário, de tal maneira os echos da 
victoria estrondearam rapidamente no sertão, que 
até no extremo sul do districto, no Maputo, foi tão 
grande o susto dos negros que tinham faltado aos 
seus compromissos com as auctoridades portugue- 
zas, que abandonaram as suas palhotas, receando 
uma immediata invasão ! 

No telegramma em que o sr. commissario régio 
participava a El-Rei a victoria de Magul, dizia-lhe 
acerca do primeiro e segundo commandante da co- 
lumna : 

São dois beneméritos Couceiro e Andrade, que 
ouso recommendar benevolência Vossa Magestade. 

El-Rei, que estava na Beira Alta assistindo ás 
manobras da 2. a divisão militar, respondeu nestes 
termos ao telegramma do sr. António Ennes : 

Agradeço telegramma que me dá viva satisfa- 
ção. Louve em meu nome ojficiaes e soldados que 
souberam assim honrar a sua pátria. E diga-lhes 
que o seu chefe, ao receber nas manobras a noticia 
ao brilhante feito d armas, brindou pelos seus cama- 
radas que ahi estão defendendo o glorioso nome por- 
tuguês A si o felicito pela dedicação que tem de- 
senvolvido. — EL-REI. 



* 
* * 

A columna de operações não tomara alimento 
desde que de manhã cedo havia emprehendido a 



W: 






x>w -V>. 'vt+jzMm:.'*' •• v . . ..j 



244 



sua fatigante marcha. * Assim, os intrépidos vence- 
dores estavam devorados de sede, quebrantados de 
forças e não tardaria que tivessem fomeí A agua 
do pântano era um veneno mortal, em que nenhum 
devia tocar. 

A columna sahiu precipitadamente, como para 
uma sortida, sem abastecimentos e sem material de 
bivaque. Ou nunca mais voltava ou voltaria vence- 
dora n 7 esse mesmo dia. 

Bivacar sem recursos, á beira de um paul, com 
as tropas mortificadas pela sede e pela fome, seria 
uma barbaridade do commando e uma imprudência 
funestíssima. 

O inimigo fugira ; era absolutamente inútil ficar* 
Não se estava na idade média para que a consagra- 
ção da victoria carecesse da permanência dos ven- 
cedores no campo da acção, durante os três dias do 
estylo. 

A columna regressou ao posto de Chinavane e 
todos podem comprehender em que condições es- 
morecedoras teve de effectuar esta nova marcha, 
que só terminou á i e meia da madrugada do dia 9! 

A agua! A agua! Como elles a sonhavam! E 
os pobres feridos mais do que ninguém. 

Ainda nesta etape de regresso se confirmaram 
as grandes qualidades antigas de constância e de 
resignação dos nossos soldados, nas provações de 
uma campanha. 

De trej carros que tinham vindo do posto de 
Magude só um podia aproveitar-se para transporte. 
Os outros ficaram inúteis porque tinham adoecido 
os bois que os puxavam, 

O cirurgião-mór d'infanteria 2, dr. Leal, que 
reunira á columna no mesmo dia do combate, fez 
os primeiros curativos aos que estavam mais gra- 



1 Tinham comido um pequeno rancho de feijão pelas 
7 e meia da manha. Uns poucos de feijões — diz o sr. Paiva 
Couceiro n'um artigo acerca do comfcate de Magul. 



245 



vemente feridos, e tratou-se logo de preparar o 
seu transporte e o dos mortos, que era preciso não 
abandonar ás brutalidades selváticas dos espiões e 
das aves de rapina. O quadrado levaria comsigo os 
seus queridos mortps, para lhes dar jazida em terra 
onde podesse velar por elles a bandeira gloriosa do 
seu paiz. 

Três mortos e três feridos foram collocados no 
carro, convenientemente separados. Para a conduc- 
ção dos outros mortos e dos feridos que não po- 
diam marchar improvisaram-se macas feitas de man- 
tas amarradas a varas de madeira { . 

Alguns feridos lá se iam arrastando a pé e um 
d'elles, atravessado por uma bala, tão bem disposto 
d'animo, que em vez de queixumes, ia contando 
singelamente o que fizera no combate ! 

E o glorioso quadrado assim foi seguindo na sua 
marcha de longas horas. 

Igualmente intrépidos para luctar e para soífrer ! 

Causariam dó a quem quizesse avalial-os pelo 
aspecto physico e eram afinal o legitimo orgulho do 
seu paiz. 

Dezoito dias depois doesse combate, que não era 
o ultimo, mas foi indubiravelmente a acção decisiva 
da campanha do sul, o sr. commissario régio en- 
viava ao governo o seguinte telegramma : 



O regulo da Cossine e mais nove regidos seus 
vassallos, foram prestar obediência perante Coucei- 
ro, commandante das terras. Vêem mais três do 



1 Nas ultimas campanhas d' Africa foram sempre diminu- 
tíssimos os cirurgiões, raríssimos os enfermeiros experientes 
e deficientissimo o material ambulante de saúde. 
* *D*<Í Chinavane os feridos ainda teriam de ir embarcados 
em' láichas para Lourenço Marques n'uma viagem de 2 a 3 
dfcrsv£) ique elles não haviam de soffrer! 



246 



norte da Cossine ; o posto de Magul, ampliado, fi- 
cou inexpugnável. Vae para o Limpopo outra lan- 
cha . 

Começava a esfarrapar-se $ prodigiosa lenda do 
rei de Gaza. 



■«« _ •» 






> • * 



XIII 



EM CHIN/V/LNE E NO LIMPOPO 



Em princípios de novembro a Agencia Havas 
transmittia de Londres o seguinte telegramma : 

O correspondente Ho « Times» na cidade do 
-Cabo annuncia uma nova invasão dos vátuas do 
Gningwihana, que atravessaram o rio Incomati ha 
quinze dias e massacraram os indígenas. 

Um pequeno destacamento portugue\ 9 comman- 
dado por Couceiro, atacou e bateu as forças do 
Gungunhana, perseguindo-as até ás terras de Ga\a. 

Espera-se outra batalha. 

Pela sua parte, o sr. commissario régio dava as 
seguintes informações telegraphicas ao sr. ministro 
da marinha : 

«Sete mangas Gungunhana tentaram romper 

nossa linha Incomati, passando rio desde Chinavane. 

Acudiram logo forças do posto Chinavane-Ma- 

gude ; os vátuas fugiram largando presa feita, per- 
lo 



248 



dendo muita gente ; depois foram perseguidos por 
3 :00o cossos, intimanes, moambas, e pela cavalla- 
ria policia, que avançou até seis horas distancia 
Limpopo ; bateram e mataram regulo Massia, pondo 
inimigo completa debandada ; no Limpopo, Chai- 
Chai submetteu-se». 

Expliquemos este telegramma. 

Já no dia do combate de Magul se havia rece- 
bido aviso de que algumas forças do Gungunhana 
intentavam atacar a gente de Intimane. Quando no 
dia 20 Chonguella Manavi, regulo da Cossine, e os 
nove régulos seus dependentes e mais os régulos 
Chiburre, Macanhana e Chicanana, prestavam so- 
lemne vassallagem á bandeira portugueza, celebran- 
do assim na sua quebrada altivez a maior consa- 
gração triumphal do combate de Magul, recebia-se 
no posto dè Magude, onde se realisava o preito de 
vassallagem, a noticia inquietadora de que a gente 
do Gungunhana se approximava da foz do Sabi, para 
passar o Incomati no vau denominado do Gungu- 
nhana e cahir sobre as terras de Intimane. Era por 
aquelle vau que as impis vátuas costumavam inva- 
dir aquellas terras. Agora dizia-se que a incursão 
se effectuaria com a cooperação de Magunduana, 
regulo da Moamba. 

Era grave. Os vátuas tentavam uma operação 
audaciosa, que, a ser bem succedida, nos cortaria 
as linhas de communicacão terrestre com a base de 
operações (Lourenço Marques) e, dando alento aos 
vencidos, tornaria fácil o bloqueio de alguns postos 
e talvez um assalto a Lourenço Marques, cuja 
guarnição era diminutíssima. 

Em 2 1 de manhã partiu logo para a foz do Sabi 
uma pequena columna de 75 homens, sendo 46 de 
infanteria 2 e mais 25 angolas e 4 praças de caval- 
laria, acompanhada de 3 carros com mantimentos e 
munições. 

A marcha d'esta forca foi verdadeiramente no- 
tavel pela grandeza e pela rapidez e deve ter ra- 



249 

ros precedentes, se alguns tem, nas marchas de tro- 
pas europêas atravez do sertão negro, exceptuando 
o caso de uma retirada em fuga. No primeiro dia 
40 kilometros e no segundo 3o, em terreno geral- 
mente arenoso ! A primeira seria uma verdadeira 
marcha forçada, até nas commodas estradas da Eu- 
ropa e sob a acção de um clima temperado. 

A columna estabeleceu um posto fortificado, que 
dominava uma parte do curso do Incomati e a con- 
fluência do Sabi. Ficou commandando este posto o 
alferes de infanteria 2 Quirino Pacheco. 

No posto de Chinavane tomaram-se precauções 
especiaes. Estabeleceu-se uma ponte de cavalletes, 
de 3o metros de extensão e reforçou-se um posto 
na margem direita do Incoluane. De Magude, da 
Manhiça e de Lourenço Marques partiram logo re- 
forços para Chinavane. 

As informações chegadas davam a gente do re- 
gulo da Zixaxa, do Majioli e algumas forças do Gun- 
gunhana em concentração nas margens do Manzi- 
mechope, afluente do lago Chuale. Dizia-se que a 
guerra preta ali reunida excedia em numero a que 
fora vencida em Magul. Organisou-se por isso uma 
forte columna de 400 brancos (tudo quanto havia dis- 
ponível nos postos e mais o reforço que viera de 
Lourenço Marques) de uns 2:000 auxiliares negros e 
emprehendeu-se uma marcha oífensiva sobre as pla- 
nuras de Magul. 

Não foi possível travar combate e a tarefa maior 
pertenceu aos auxiliares, que destruiram a povoação 
onde estivera o regulo da Zixaxa e outras circumvi- 
sinhas, havendo apenas entre os atacantes e os fu- 
gitivos umas ligeiras escaramuças, em que ficaram 
mortos 7 dos nossos auxiliares. 

Para evitar que os povos da Cossine fossem co- 
lhidos sem abrigo e defeza por qualquer ra^jía dos 
vátuas, que de um para outro momento se receava, 
mandaram-se construir três grandes aringas (em ge- 
ral recinto defendido por paliçadas) que seriam os 
locaes de concentração da gente de guerra das po- 



25o 



voações que fossem assaltadas e o asylo da gente 
indefeza. A aringa de Taninga, para os régulos Ma- 
panjanhana e Capulana, foi construída sob a direcção 
do capitão Freire de Andrade e reforçada com 5 
homens da policia de Lourenço Marques: A de Ma- 
chacuane, junto do Incomati, foi construída pelo te- 
nente Monteiro de engenheria e recebeu um reforço 
de i5 praças europêas e 25 angolas, sob o com- 
inando do alferes Paes. Era destinada esta aringa á 
gente do régulos Chibanza e Banguini. Para a dos 
régulos Chissuco, Mafabar e Mancumene foi cons- 
truída outra aringa, junto ao posto X., um dos pos- 
tos do Incomati assim denominado por deliberação 
de Paiva Couceiro, que por um requinte de mo- 
déstia não consentiu que o seu nome fosse dado 
áquelle posto, como era desejo dos officiaes seus 
admiradores. 

A pouca distancia d^sta aringa e a juzante do 
rio, ficava o vau denominado do Gungunhana, por 
que por ali passavam os vátuas nas suas temerosas 
7*a^ias contra as povoações de Intimane. 

A columna de reconhecimento havia recolhido 
ao posto de Chinavane. 

Em 21 de outubro de manhã a gente' da aringa 
de M^chacuane andava cortando madeiras, quando 
subitamente recebeu o aviso de alarme de que os 
guerreiros do Gungunhana estavam a pequena dis- 
tancia. 

O corneta do destacamento que estava na aringa 
tocou logo a unir e os inimigos ficaram surprehen- 
didos com aquelle toque indicativo da existência de 
forças regulares onde suppunham encontrar apenas 
os negros desprecavidos. 

Os espavoridos levaram logo a inquietadora nova 
ao posto de Magude, e Paiva Couceiro, com a sua 
extraordinária decisão d'animo, com o seu espantoso 
arrojo, mandou immediatamente apromptar os 1 1 ca- 
vallarias de que podia dispor e com cento e tantos au- 
xiliares cossos, que de momento poude reunir, mar- 
chou rapidamente sobre a Machacuane, atravez de 



■\i 



2ÔI 



terrenos por onde a passagem da gente do Gungu- 
nhana ficara rastreada pelas palhotas destruídas e 
pelos cadáveres dos negros azagaiados — até mulhe- 
res e creanças! 

Paiva Couceiro já encontrou na retirada a ne- 
graria invasora. Mandou-lhes fazer fogo e ainda lhes 
matou uns 9 guerreiros. A aringa de Machacuane 
nem chegara a ser atacada. 

Ao posto de Chinavane, e mais cedo ainda que 
ao de Magude, chegara o alarme da audaciosa ra\- 
\ia. O capitão Freire de Andrade sahiu logo com a 
guarnição branca disponível e cerca de 5oo auxilia- 
res da Moamba. A marcha doesta columna foi, po- 
rém, surprehendida pelos vigias do inimigo, que, a 
grande distancia e empoleirados nas arvores, espia- 
vam os movimentos da nossa gente. Avisados de 
que os brancos iam tomar-lhes o passo, as mangas 
invasoras acceleraram a rapina e a carnagem, para 
retrocederem a tempo de escapar a um combate. 
Lembrava-lhes Magul. Não o conseguiram, e as for- 
cas de Freire de Andrade cahiram sobre ellas na 
> 

passagem do rio, tomaram-lhes o gado e as mulhe- 
res que haviam roubado e puzeram-nos em fuga, 
com a perda de algumas dezenas de mortos 

No dia 26, concentrados em Chinavane, os ne- 
gros nossos auxiliares, na força de 3 :00o homens, 
passaram a ponte do posto sobre o Incomati e fi- 
zeram uma ratfia até próximo do Limpopo. 

Estava concluída a campanha do sul, longa, la- 
boriosa, aspérrima, de enormes sacrifícios, que fica- 
ram na sombra das glorificações épicas de Marra- 
cuene e de Magul. 

* * 

Já sabemos que a columna do sul, cujo effectivo 
de tropas europêas nunca chegara a 800 homens, 
incluindo os' que atulhavam os hospitaes, não tinha 
forças disponíveis para avançar sobre a linha do 
Limpopo ou para destacar uma forte expedição que 



252 



fosse operar na margem esquerda cTaquelle rioi 
auxiliada pela flotilha. Para reunir 3oo portuguezes, 
seria preciso deixar quasi desguarnecidos os postos 
do Incomati. 

Era impossível organisar a columna de opera- 
ções no Limpopo e a cooperação prestada pelas 
tropas do sul á columna do norte, valiosíssima de- 
certo, fôrá apenas moral. E tanto assim, que depois 
das operações fluviaes, que vamos indicar em breve 
noticia, apenas foi possível destacar da columna do 
sul para o Limpopo uma pequena força de 65 ho- 
mens de infanteria 2 e artilheria, commandada pelo 
capitão Freire d' Andrade, a grande iniciativa inque- 
brantável da campanha do Incomati, como Paiva 
Couceiro fora o brilhante paladino dessa cam- 
panha. 

A força de Freire d'Andrade estabeleceu o posto 
de Languene, na margem direita do Limpopo, a 70 
milhas da sua foz. Este posto ficou sob o cominando 
do bravo tenente d artilheria Sanches de Miranda. 

A guerra no Limpopo seria emprehendida por 
uma parte da flotilha. O Neves Ferreira, o vapor já 
honrosamente assignalado nas operações do Inco- 
mati, e a lancha Capello, que quasi rivalisaria com 
aquella pequena Bacamarte, que se cobrira de glo- 
ria, durante o primeiro período da campanha, re- 
duziriam á obediência os povos marginaes, sujei- 
tos ao poder do Gungunhana. 

Era commandante do Neves Ferreira o i.° te- 
nente Diogo de Sá e da Capello o 2. tenente An- 
dréa. 

A 4 d outubro os dois navios subiram o rio e 
intimaram aos régulos o ultimatum de submissão. 
Em i5, concluído o praso imposto, o Neves Ferreira 
rompeu as hostilidades sobre as margens até ao 
Languene, a 70 milhas da embocadura do Limpopo, 
e a Capello subiu até 20 milhas acima d'aquelle pon- 
to. Bombardeadas as povoações, dispersas a tiro de 
granada as mangas hostis, os marinheiros desem- 
barcavam e reduziam as palhotas a cinzas. 




DIOGO DE SA 
fCemmandante do vapor *Xtva Ftrreira-) 




SOARES ANDREA 

fCommandanle da lancha «C-ipellO') 



253 



Em 18 fazem-se alguns prisioneiros. Em 22 a 
gente de Chai-Chai, onde o Gungunhana tivera 
absoluta preponderância, declarava completamente 

rotas as suas relações com o rei de Gaza. Estavam 

> 

dominados pelo terror os povos das duas margens 
do Limpopo, entre a foz e o Languene. 

Em 28 apparecem em Chai-Chai emissários do 
Gungunhana, que vêem reclamar o contingente de 
guerra. Comprehendem elles o que os nossos navios 
conseguiram e dirigem ás guarnições palavras de 
insolente desafio. Respondem-lhes os canhões e as 
metralhadoras, e os vátuas, acobardados e enfure- 
cidos, retiram sem o auxilio de gente que iam 
buscar. 

A marinha de guerra tinha mais uma pagina 
honrosissima na sua altiva historia. 

Na sua prodigiosa actividade a Bacamarte, o Ne- 
ves Ferreira, a Capello, como que tinham dentro 
de si a movel-as, a agital-as, a impellil-as para to- 
dos os arrojos, alguma cousa immensamente mais 
poderosa do que as suas machinas. 

Era a alma intrépida dos seus marinheiros. 



XIV 



DE INH^MB/NE ?k\k CHICOMO 



Ao tempo em que terminavam com tão boa for- 
tuna as operações do Incomati, a columna do norte, 
incumbida especialmente de aproveitar o favor das 
circumstancias, estava ainda immobilisada, por falta 
de meios de transporte, no seu acampamento de 
Chicomo, sobre a fronteira de Gaza. 

E ali se iam definhando os effectivos, ali, n'aquelle 
grande hotel das estreitas, como o acampamento era 
já designado na linguagem pittoresca da tropa, visto 
como quasi todos dormiam á luz do céo, sob o 
immenso docel constellado. 

Esperavam-se os recursos de transporte e só 
as diarrheas e as febres palustres não esperavam 
que a columna podesse avançar. 

O reconhecimento do terreno das operações pro- 
váveis estava feito desde os primeiros dias de maio 
pelo chefe do estado-maior da columna, o capitão 
Eduardo Costa. Sabia-se o caminho a seguir desde 
Chicomo, o antigo posto avançado do nosso do- 



256 



minio, miserandamente aninhado entre humilhações 
e palhotas, e Manjacaze, a prodigiosa residência, 
o curral (kraal) inexpugnável do poderoso rei de 
Gaza. 

A organisaçao da columna começara nos pri- 
meiros dias de junho, mas já em abril e maio ha- 
viam chegado a Inhambane alguns materiaes para 
a campanha, bois para transportes e mais 45 ca- 
vallos comprados no Natal para o esquadrão de 
lanceiros. 

De 3 a i5 de junho estavam concentradas as 
forças europêas que tinham de operar sob o com- 
inando do coronel Galhardo. Eram estes os seus 
effectivos approximados : 



Da companhia mixta de engenheria 25 

Da bateria de montanha 35 

Da 2. a companhia de artilheria 4 3o 

Esquadrão de lanceiros 1 10 

2. batalhão de caçadores 3 900 

4.» companhia do 2. batalhão de infanteria 2 220 

Total i:32o 



Este effectivo, com o da columna do sul, já não 
dava 2:000 homens. O effectivo total das forças ex- 

{>edicionarias fora de 2:910. Os hospitaes e ambu- 
ancias, a repatriação e a morte pelo clima ou em 
combate, haviam roubado ás fileiras mais de 900 
homens. 

Com as forças concentradas em Inhambane fora 
também para aquella villa importante material de 
artilheria e abundante municiamento para boccas 
de fogo e para reserva das Kropatscheks. Eram 14 
as boccas de fogo, sendo 8 peças de montanha de 
7c, 2 canhões de tiro rápido do systema Gruson, 
4 canhões revolveres Hotchkiss (uns e outros de 
37 mm ) e 2 metralhadoras Nordenfelt de n mm . Para 
cada peça de montanha havia 5oo a 600 tiros e 5oo 
para cada canhão de tiro rápido. A reserva de mu- 



207 

niciamento para a infanteria era de 2 milhões de 
cartuchos. 

Parte deste material dartilheria foi empregado 
no armamento dos postos fortificados. 

Havia deficiências resultantes ou da falta abso- 
luta de certos recursos no districto, ou de uma certa 
hesitação no dispêndio de avultadas quantias — pois 
era já quantiosa a despeza feita — ou ainda pela 
inexperiência das modernas campanhas do sertão 
com tropas europêas. 

Com forças da Europa havia em Moçambique 
apenas a trágica lição da terceira campanha da 
Zambezia. A expedição de 1891 ficara amarrada ao 
littoral por falta de meios de transporte, pelo me- 
nos ostensivamente, que talvez pertença aos domí- 
nios da politica internacional a razão preponderante 
da sua forcada inactividade. De resto, com soldados 
negros e degredados, em guerras modestas e bara- 
tas, não houvera necessidade de elaborar regula- 
mentos especiaes de campanha nem de organisar 
os serviços das etapes, os trens de combate, os trens 
e postos sanitários, os comboios e postos de abas- 
tecimento e todos esses trabalhos valiosissimos, que 
constituem os serviços auxiliares e que são ainda 
mais importantes e indispensáveis nos sertões afri- 
canos que nos paizes da Europa onde será possível 
supprir algumas vezes com os recursos locaes o que 
n'esses serviços houver de deficiente. 

E a despeito de todas as faltas, nenhuma expe- 
dição de Portugal fora tão bem dotada como aquella. 

A 21 de junho chegavam mais 90 cavallos para 
os lanceiros, mas vinham apenas 1 1 muares para a 
artilheria de montanha. Tinha morrido a maior parte 
das que haviam ido de Portugal. Não deve surpre- 
hender-nos. Na guerra da Abyssinia, em 1868, já nós 
sabemos que os muares que menos resistiram fo- 
ram as que tinham sido adquiridos na Península. 
E não dispúnhamos nós de riquezas taes que po- 
dessemos adquiril-as rapidamente e por alto preço 
na Syria e no Egypto, como fizeram os inglezes. 



256 



minio, miserandamente aninhado ^ muares tínha 

e palhotas, e Manjacaze, a r- . /s resistentes 

o curral (kraal) inexpusrr 
Gaza. b : estação de con- 

A organisação .Jesse em Cumbana, 

meiros dias de y .^o, a quarenta e tan- 

viam chegado c ..; 7 e. Mas tão escassos 

a campanha, * -j/isporte, que a columna 

vallos compr. .^anhias isoladas, a quatro 

lanceiros. , 'j' lS outras. A 4 de julho par- 

De 3 ? • : ^e de atravessar o vau lodoso 

forças eur . \ jfrficil que, felizmente, foi trans- 

mando c* . V^-J; depois seguiram outras frac- 

eífectivr ./ ^i/o commandante em chefe e o es- 

Da cr -".'j^LriíU sem effectivo sufficiente para as 
Da \ " ' '" " ' 



• "'j^.' ri:u sem effectivo sufficiente para a: 
~\''j<*f^o\ Voi reforçada por uma secção da 4. 
1)3 v >^' Jo 2. batalhão a infanteria 2 e por 14 

? ^''fjí lanceiros, que desempenhariam o ser- 
£lJ>^* O nductores. A secção de infanteria foi ins- 
»v£ /k> manejo das peças de tiro rápido. Era 
ífí^fljada pelo tenente Baptista, cuja actividade 
ilicitude inexcediveis se realçaram com o facto 
Vjritfissimo de solicitar a sua permanência na cam- 
inha d'Africa, quando recebeu ordem de regressar 

fmetropole. 

Fracos em geral e de má procedência, os cavai- 
los comprados para o esquadrão não promettiam 
aturado serviço. Quarenta e cinco foram logo con- 
siderados impróprios do serviço de cavallaria ; des- 
tes, 32 eram aproveitados para a tracção da arti- 
lheria e outros para montadas de alguns officiaes de 
infanteria. 

Procedeu-se á organisação de alguns serviços, em 
harmonia com os recursos existentes e, em grande 
parte, conforme sensatas indicações do chefe do 
estado-maior da columna, capitão Eduardo Costa, 
official de larga illustração, que devotadamente se 
havia consagrado ao estudo da campanha, aprovei- 
tando, não só as suas observações directas, senão 




EDUARDO DA COSTA 

/Co pilão do estado maior) 



25g 

também a lição colhida na historia das recentes cam- 
panhas dos europeus na Africa. 

Estabeleceu-se o serviço telegraphico, primeiro 
entre Inhambane e o Inharrime e depois até Guis- 
sano, na linha Inharrime-Chicomo. E como o mate- 
rial telegraphico não chegava para toda a extensão 
da linha, que era grande, organisaram-se postos de 
correspondência, ligando a ultima estação telegra- 
phica com o extremo da linha de penetração — Chi- 
como. Os postos estavam estabelecidos em Mos- 
sana, Coguno e forte de Amba. N'estas condições, 
qualquer noticia levava 18 horas a chegar de um ao 
outro extremo da linha de operações. 

O serviço postal foi creado n um esboço de or- 
ganisação incompleta e o serviço de etapes era con- 
fiado á inexcedivel actividade, larga experiência e 
superior aptidão do major Caldas Xavier, que accei- 
tou este espinhosissimo encargo como um sacri- 
fício de obediência, pois era para os combates 
que o chamava a sua índole e a sua própria tradi- 
ção no serviço d'Africa. 

Foi a sua ultima commissão e não seria decerto 
a menos benemerente, de tantas que exerceu no 
continente negro. Mezes depois, em janeiro, morria 
assassinado pelo clima o bravo de Mopêa e de Mas- 
sequece, o valente que fora a mais poderosa e des- 
temida iniciativa na torva madrugada de Marracuene. 

* 

Estacionada a columna de operações em Cum- . 

bana, era preciso esperar mais bois e carros para 

avançar. 
> 

Em fins de junho chegavam do Natal algumas 
carretas boers e carros pequenos e uns 8o bois. Com 
os que já havia, ficava tendo a columna 10 carretas e 
18 carros, mas, infelizmente, nem as pesadas carre- 
tas, mesmo depois de modificadas, podiam rodar 
sobre o solo geralmente arenoso e solto, nem os 



2Ô0 



bois chegavam para as puxar. Se nem mesmo car- 
reiros havia que soubessem guiar aquelles enormes 
carros' para 6 ou 8 juntas de bois, e foi preciso em- 
pregar n'esse serviço violentíssimo alguns expedicio- 
nários, que duramente pagaram, alguns ate com a 
vida, o accrescimo de remuneração que lhes davam. 

Depois faltaram os bois para consumo e foi pre- 
ciso abater alguns dos que eram destinadas aos car- 
ros. 

Não eram grandes os recursos de mantimentos, 
escacissimos os recursos locaes e por isso os offi- 
ciaes da administração militar se viam em sérios 
embaraços para acudir ao abastecimento das forças, 
num paiz que lhes era desconhecido e onde falta- 
vam os meios de transporte. 

Os da columna do sul também algumas vezes 
softreram privações, mas esses, ao menos, tinham a 
linha de abastecimento do Incomati e a cooperação 
valiosíssima da marinha. As lanchas canhoneiras re- 
bocavam os batelões dos comboios de viveres. Mas 
no Inharrime já se não podia fazer o mesmo. 

Abundam no districto os carregadores negros, 
mas não era licito contar com elles para acompa- 
nharem as tropas brancas, em campanha contra o 
famoso rei de Gaza. Fugiriam doidos de medo assim 
que vissem a sombra de um guerreiro vátua. 

Era preciso esperar eir caminhando vagarosa- 
mente. O peior era que as febres não esperavam. 
No hospital organisado em Inhambane e dirigido 
pelo cirurgião ajudante Ignacio França, o intrépido 
e infatigável medico do combate de Marracuene, já 
não havia recanto disponível e para aquella clinica 
extenuadora tinha de chegar a actividade e a solici- 
tude de um único facultativo — o director. Valeram- 
lhe a sua saúde de ferro e a sua inquebrantável 
energia. E a enfermaria de Cumbana estava também 
atulhada. 

Era indispensável avançar para a fronteira de 
Gaza. Não era de Cumbana que se podia ameaçar de 
uma invasão o poderoso regulo vátua. 



2ÕI 



Avançou-se para Chicomo, muito lentamente, 
como era de esperar. 

A 18 de -julho foi ordenada a marcha do i.° troço 
da brigada, a columna de Chicomo, como então se 
denominou. Era commandada pelo coronel Galhardo, 

2ue levava no seu estado maior o capitão Eduardo 
losta, o ajudante de campo tenente Madeira, o chefe 
do serviço de engenheria capitão Castro, o chefe do 
serviço de saúde, cirurgião-mór Barbosa, o com- 
mandante do comboio de abastecimento alferes Raul 
Costa, o official ás ordens do commando alferes 
Condeça e o chefe do serviço administrativo o as- 
pirante F. Correia. 

TROPAS DA COLUMNA 

Homens 

i secção de engenheria 10 

2 secções de artilheria de montanha 70 

1 secção de canhões revolveres 3o 

2 pelotões de lanceiros 65 

i. a companhia do batalhão de caçadores 3 220 

4. a companhia do batalhão de infanteria 2 120 

5i5 



Addicionando-lhe os officiaes do estado maior, 
dava 23 officiaes e 5oo praças de pret. 

A columna levava 98 cavallos e 8 boccas de fogo. 

Commandava os caçadores o capitão Branqui- 
nho, a infanteria o capitão Mattos Cordeiro, os lan- 
ceiros o capitão Mousinho, a artilheria de montanha 
o capitão Machado e a secção de canhões-revolveres 
o tenente Lopes. 

O trem de municiamento era composto de 2 
carretas boers com 44:000 cartuchos de infanteria e 
148 tiros de peças de 7° 

O trem de engenheria era formado de 2 carros 
com ferramentas; grandes rolos de fio de arame 
eram levados por 60 carregadores negros. 

A ambulância compunha-se de 1 carro e de i5 
machillas. 



2Õ2 



O comboio de bagagens e viveres era formado 
de 9 carros e uma carreta bóer. Iam viveres para 
um dia. 

A marcha começou em 19 e até Coguno era con- 
siderada uma marcha itinerária, por ser completa- 
mente improvável qualquer ataque dos vátuas. 

As tropas iam com os uniformes de brim. A ca- 
vallaria levava 60 cartuchos de carabina e 3o de re- 
volver; os serventes de artilheria levavam na cartu- 
cheira 20 cartuchos 6 60 numa das mochilas de vi- 
veres ; os conductores 3o cartuchos de revolver e os 
soldados de infanteria 100 cartuchos cada um, sendo 
40 em duas cartucheiras e 60 numa das mochilas 
de viveres. 

Iam 36 tiros para cada peça de montanha e 200 
para cada canhão revolver. 

As praças apeadas levavam duas mochilas de 
viveres, uma com cartuchame e com um rancho frio 
e a outra com artigos de vestuário, e um par de al- 
percatas ou sapatos. 

Como para Marracuene, os capotes iam enrola- 
dos e envolvidos num lençol impermeável e num 
encerado. 

A columna, para além de Coguno, avançaria 
n uma ordem de marcha, que era como o delinea- 
mento da formatura definitiva de combate — o qua- 
drado. 

O 2. troço da brigada, que ficara em Cumbana 
sob o commando do major de caçadores 3 Macha- 
do, só partiria para Chicomo em 27. O estado maior 
compunha-se apenas do alferes ajudante Picão e do 
cirurgião ajudante Monterroso. 

TROPAS DA COLUMNA 

Homens 

1 secção de peças Gruzon i3 

1 pelotão de lanceiros 20 

2. a companhia de caçadores 3 220 

Total ~""253" 

Esta columna tinha 2 boccas de fogo e 3o ca- 



263 



vallos. Cada Gruzon levava 120 tiros. O municia- 
mento das praças era egual ao da primeira columna. 

O trem de municiamento compunha-se de 2 
carretas boers com 40.000 cartuchos para a Kropa- 
tschek, 3oo tiros para as Gruzon, 70 para as peças 
de montanha e 400 para os canhões-revolvers da 
columna. 

A ambulância era formada por 1 carro e 10 ma- 
chillas e o comboio de bagagens e viveres compu- 
nha-se de 6 carros e 1 carreta. Iam viveres para 
um dia. 

A secção das Gruzon era commandada pelo te- 
nente Baptista, os lanceiros pelo tenente Pessoa e 
os caçadores pelo capitão Moniz. 

Concentrar-se-hiam, pois, em Chicomo cerca de 
800 homens. Em Cumbana ficavam ainda de guar- 
nição 2 companhias de caçadores 3, um destaca- 
mento de caçadores 2, do glorioso batalhão de Mar- 
racuene, e algumas praças de artilheria 4, com 4 ca- 
nhões de montanha. 

O abastecimento do forte de Amba e do acam- 
pamento de Chicomo far-se-hia, em regra, por meio 
de pequenos comboios semanaes de carregadores 
negros e de carros, sempre que fosse possível. O pão 
iria torrado, o que era um triste recurso, ao qual os 
médicos attribuiam grande numero de diarrheas. 

Em Chicomo foi organisada uma enfermaria da 
Cruz Vermelha com dois médicos europêos. Pres- 
tou abençoados serviços. 

Daria para um longo capitulo a narração dos in- 
commodos e provações que as tropas soífreram 
n'aquelle triste acampamento de Chicomo, e numa 
zona quasi despovoada e inculta, onde outr ora esti- 
vera estabelecido um miserável commando militar. 

Que de firmeza e abnegação paracommandar ali 
e que de resignação e constância para soffrer, du- 
rante aqúelles longos mezes de forçada inacção, com 
o sacrifício esmorecedor da saúde e para quantos ? 
com o supremo sacrifício da vida, sem estimulo, 

sem lucta, sem gloria ! 

17 



XV 



O QUADRADO DE COOLELLA 



Só em novembro era possível sahir de Chicomo, 
onde officiaes e soldados davam a perceber, embora 
resignadamente e sem a minima. quebra de obediên- 
cia, que seria preferível ir morrer para a frente, 
fosse como fosse, mas, ao menos, combatendo, a 
perder ali a saúde e a vida, naquèlla inglória in- 
actividade. 

O próprio Gungunhana presumia já e espalhava 
entre a sua gente que os portuguezes, com a esta- 
ção das chuvas já começada, se não atreveriam a 
sahir de Chicomo, senão em época mais favorável do 
armo próximo, e que até lá as febres iriam comple- 
tando a sua obra anniquilladora. 

E o caso é que os malditos bois e os negregados 
carros iam annullando todos os esforços e todas as 
brilhantes qualidades d^quella columna, que fora 
relativamente numerosa. 

Agora, infelizmente, já não eram precisos tantos 
meios de transporte. Pelas baixas ao hospital e pela 



.-i 



266 



indispensável repatriação, o eífectivo das tropas di- 
minuirá consideravelmente. 

Reunida a 4.* companhia de caçadores 3, que 
ficara em Cumbana, e deixada em Chicomo uma 
guarnição composta, principalmente, da 4.* compa- 
nhia do 2.° batalhão de infanteria 2, o coronel Cra- 
lhardo não podia contar com 6oo expedicionários 
capazes de marchar! 

E com esta força diminutíssima se ia invadir o 
paiz da Gaza e combater as impis vátaas! 

Contamos apenas com os expedicionários para 
a campanha a emprehender, embora com a colum- 
na sahissem também algumas centenas de negros 
auxiliares, a quem a noticia das victorias do sul 
dera um certo animo relativo, porque esses auxi- 
liares, aproveitáveis para o serviço de exploração 
a grande distancia, ou para completar a derrota 
d'aquelles que os nossos tivessem vencido, seriam 
incapazes de travar combate juntamente com as 
forças portuguezas contra os vátuas. 

Entre os auxiliares avultavam os guerreiros de , 
Spandanhana e eram esses os que mais valiam e 
aquelles com quem mais se podia contar, porque os 
dominava e impellia o chefe, vivamente interessado 
em que os nossos vencessem. A nossa victoria seria 
para elle um tentador accrescimo de poder e um 
desforço indirecto, soífregamente antegosado. 

Spandanhana era filho d'aquelle desventurado 
Binguana, que nove annos antes fora destroçado 
pelos vátuas do Gungunhana e morrera azagaiado 
na aringa de Inhassune, tendo por mortalha a ban- 
deira portugueza, da qual fora sempre lealissimo 
vassallo. 

Espoliado, foragido, dominador de terras que 
não eram as de seu pae, elle próprio uma sombra 
apenas do poder quo os vátuas lhe usurparam, 
Spandanhana aproveitava avidamente aquelle lance 
da fortuna para a sua ambição e para o seu ódio. 

O commissario régio havia-lhe promettido as 
terras de seu pae, se elle, com a sua gente, coope- 



267 

rasse na campanha contra os vátuas. Spandanhana 
conseguiu reunir um importante troço de guerreiros, 
a uma parte dos quaes foram distribuídas espingar- 
das Snider. 

No dia 4 sahimos de Chicomo — escrevia Mou- 
sinho d'Albuquerque em uma carta interessantís- 
sima, acerca a esta campanha — e fomos bivacar á 
langua de Inhalifatuane — uns i5 kilometros de dis- 
tancia. Marcha mnito vagarosa por causa dos car- 
ros de bois. Ahi bivacámos em quadrado, é claro, e 
não houve novidade. A agua era horrorosa, perfei- 
tamente amarella, cor de chá { . 

O major Machado escrevia também acerca da 
sahida de Chicomo : 

No dia 4 de novembro, parti com três compa- 
nhias do meu batalhão, seis boccas de fogo, vinte ca- 
vallos e oito homens de engenheria, tudo sob o com- 
mando do coronel Galhardo, de Chicomo sobre 
Manjaca\e 2 . 

O calor era asphixiante v Para evitar surprezas 
como a de Marracuene, foram adoptadas no bivaque 
umas lanternas de grande poder illuminante, que 
esclareciam o campo até 60 metros além do qua- 
drado. Tinham sido compradas no Natal e iam mon- 
tadas sobre uns pequenos carros, que o Caldas Xa- 
vier delineara. 

* 

No dia 5 a columna effectuava uma excellente 
marcha de 20 kilometros até Ballola, onde encon- 
trava e apprehendia grandes manadas de gado do 



1 A carta do capitão Mousinho foi publicada nas Novi- 
dades de 7 de janeiro de 1896. 

2 Carta do major Machado publicada no Diário de No- 
ticias de 10 de janeiro de 1896. 



268 



Gungunhana. Não era n'aquella direcção que os vá- 
tuas esperavam a guerra branca. 

O serviço de exploração na extrema vanguarda 
era feito por 5oo negros de Spandanhana. Estava 
indicado que este serviço fosse desempenhado por 
indígenas. 

Seguia-se a cavallaria, já reduzida a dois pe- 
quenos pelotões. Commandava-a e dirigia todo o 
serviço de exploração o capitão Mousinho d'Albu- 
querque. Um pelotão de caçadores formava a face 
aa frente do quadrado, outro a face da rectaguarda; 
a face direita e esquerda, marchando de costado, 
eram constituídas por 2 companhias de caçadores. 
Iam dentro do quadrado: o destacamento de enge- 
nheria sob o commando do alferes. Viegas; duas 
secções de artilheria de montanha sob o commando 
do capitão Machado e tenente Saccadura, a secção 
das peças Cruson, sob o commando do tenente 
Baptista, o pessoal de saúde, sob a direcção dó ci- 
rurgião Monterroso. 

As patrulhas de flanqueadores eram comman- 
dadas pelos alferes de lanceiros Montez e Lobo. 

O comboio de viveres e de munições, composto 
de 40 carros e dividido em 6 secções, era comman- 
dado pelo alferes Raul Costa. 

Com o pessoal de saúde ia o benemérito medico 
naval Rodrigues Braga, delegado da Cruz Verme- 
lha. Elle e o cirurgião Monterroso dispunham de 6 
enfermeiros, 2 carros para o transporte de feridos, 
8 macas, 2 mochilas de ambulância, 2 caixas de 
medicamentos e pensos e 6 caixotes com dietas. 

E os carros, penosamente arrastados pelos bois, 
já velhos e cançados, lá iam rodando atravez d'a- 
quellas férteis planuras, que tão singularmente con- 
trastavam com os melancholicos arredores de Chi- 
como. 

Ao chegar a Ballola 14 bois dos transportes cahi- 
ram mortos de calor e de extenuamento. 

O quadrado bivacou tranquillamente. De tarde, 
porém, appareceram ao longe grupos de vátuas, 



269 

que vinham reconhecer as nossas forças. Fez-se o 
signal de alarme, o quadrado aprestou-se para com- 
bate, mas os vátuas desappareceram. 

Uma cousa resolvera o coronel Galhardo, que 
talvez aos scepticos pareça pueril, mas gue todos 
os sinceros patriotas applaudem enternecidamente. 
Os 2. 08 batalhões d'infanteria não teem bandeira; 
cada regimento tem uma e essa pertence ao i.° ba- 
talhão. Faltou, pois, essa extremecida insígnia por 
cima dos quadrados heróicos de Marracuene e de 
Magul. Não faltaria agora. O coronel Galhardo 
mandou prender na haste de uma lança a bandeira 
de Portugal e confiou-a ao tenente Pinheiro, seu 
ajudante dordens. Não era uma bandeira de seda 
com preciosas bordaduras ; era uma modesta ban- 
deira de lã. Embora. Era bem o symbolo da glo- 
riosa nacionalidade. 

Fora dada ordem para que a marcha do dia 6 
fosse sobre Manjacaze, mas as dificuldades de 
transporte forçaram a columna a bivacar junto da 
vasta lagoa de Coolella, a cerca de 7 kilometros do 
kraal do Gungunhana. 

Tomaram-se precauções especiaes; o quadrado 
redobrou de vigilância. O inimigo estava próximo; 
o mais prestigioso, o mais arrojado, o mais pode- 
roso inimigo que ainda tínhamos tido nos sertões 
da Africa selvagem. 

De noite os vátuas espionavam constantemente 
o quadrado. Na lagoa, os patos inquietos denuncia- 
vam a sua approximação. 

A marcha do dia 7 estava fixada para as 6 ho- 
ras da manhã. O sol inundava de luz a planura im- 
mensa onde o capim resequido se dobrava á mí- 
nima aragem. Ao longe fechava-se o horisonte na 
moldura enorme dos bosques. 

Ao cabo de sessenta annos de hesitações ia-se 



270 

emfim vibrar um golpe audacioso ao poder dos vá- 
tuas, irmãos pela origem e pela intrepidez d'esses 
zulus, que a Inglaterra só conseguiu dominar, de- 
pois de ter softrido duas crudelissimas derrotas e 
de mover contra elles uma força, immensamente 
superior á nossa. 

Que destino seria o d'aquelles 577 portuguezes 
n uma campanha oífensiva contra inimigos, pelo me- 
nos, vinte vezes mais numerosos ? 

O desbarato, ou a morte pela fome e pelas fe- 
bres no sertão — respondiam as previsões dos boers, 
nossos amigos, e dos aventureiros inglezes, nossos 
adversários. 

Se aquelle sol, ardente e rutilo, nos seria pro- 
picio, como o de Aljubarrota e de Ceuta, ou se 
transmudaria em tocheiro enorme de um trágico fu- 
neral, como fora o sol d'Alcacer-Kibir ? 

Para a frente. O quadrado prepara-se para mar- 
char e tem por objectivo Manjacaze. 

Os negros de Spandanhana caminham para o 
bosque, á descoberta, mal disfarçando o pavor que 
os domina. 

Levam n uma haste grosseira uma bandeira por- 
tugueza. 

Quando elles desfilavam, um soldado de enge- 
nharia dissera-lhes commovidamente, na sua gros- 
seira linguagem: 

— Agora vejam lá como guardam essa bandeira, 
que se a deixam perder, leva-lhes o diabo a alma! 
O estado maior e os lanceiros estão já a cavallo; 
a artilheria está atrelada. Vae fazer-se o toque de 
marcha. De súbito os negros de Spandanhana retro- 
cedem espavoridos, n uma doida carreira, soltando 
gritos de alarme. Tinham descoberto as impis do 
Gungunhana. 

Era a guerra do vátua omnipotente que chegava. 

Soara a grande hora. Effectivamente na orla do 

bosque, a O. da vastíssima languna, apparecem as 

primeiras linhas negras dos atiradores vátuas, cujas 

plumas adejam confusamente na mancha escura do 



271 

horisonte. Silvam por cima da columna as primei- 
ras balas do inimigo. 

Vibra o toque de formar quadrado. A infanteria 
toma a formatura definitiva e forma os parapeitos 
d'aquelle reducto feito d'homens. A artilneria toma 

f)osição, desatrela e carrega as boccas de fogo; os 
anceiros teem ordem de apear. Dentro do quadra- 
do ficam as ambulâncias, as viaturas, o gado e o 
(>essoal dos serviços accessorios. Os pretos auxi- 
iares deitam-se no chão, na frente das primeiras fi- 
leiras ajoelhadas do quadrado. 

Naquelle baptismo de fogo de soldados quasi 
todos noviços, n'aquella conjunctura gravíssima de 
um combate desegualissimo pelo numero, os officiaes 
montados entenderam que deviam duplicar a força 
moral dos soldados, dando- lhes a suggestão do des- 
prezo pela morte. O coronel Galhardo, o major Ma- 
chado, o capitão Mousinho, o capitão Sarsfield e 
o alferes porta-bandeira ficam a cavallo, serena- 
mente, destacando-se na perspectiva do quadrado, 
alvejados pelos vátuas. 

Por cima do reducto d homens desenrola-se a 
bandeira da pátria distante. E' uma força. Veem- 
n'a todos os olhos, enternecidamente, e como que a 
sentem palpitar ali todos os corações portuguezes. 
Vae envolvel-a a fumaceira das descargas, como 
nos altares as santas imagens se envolvem no fumo 
dos thuribulos, e, se tiver de cahir, será como Ín- 
clita mortalha do quadrado morto. 

As enormes forças do inimigo começam a dese- 
nhar uma linha envolvente na orla do bosque. Ap- 
parecem a S. O. depois a N. O. S. e S. E. O seu 
fogo mais intenso é de S. O, sobre a face do qua- 
drado formada pela 4.* companhia de caçadores 3, 
do commando do capitão Sarsfield. São precipita- 
dos os primeiros tiros d'esta face, mas logo o capi- 
tão brada á sua gente: 

— Então n'esta companhia ha algum soldado 
que faça fogo, sem ordem do seu capitão ? ! 

E íogo se restabeleceu a serenidade d'animo e 



2 7 2 

a companhia começou a dar descargas por secções, 
á voz de commando, tranquilla, correctamente, como 
em um campo de exercício ! 

Já tem feridos e mortos o quadrado. O major 
Machado fora» gravemente ferido no braço esquerdo, 
logo aos primeiros tiros e tivera de apear-se, ncando, 
todavia, intrepidamente no exercício do commando. 

Mousinho d' Albuquerque conta este episodio com 
encantadora singeleza, neste trecho da sua carta, 
por nós já citada: 

«O major Souza Machado — uma belleza. Es- 
tava a cavallo quando foi ferido no braço esquerdo. 
Tinha passado ao pé de mim e disse-me: «Oh 
Mousinho, veja os meus rapazes como estão bem». 
D'ahi a pouco torna a passar a pé, pergunto-lhe 
eu: «Então morreu a sua gata?» (como elle cha- 
mava ao cavallo que montava). Respondeu-me : 
«Não, uma coisa n'um braço», e continuou até ao 
fim a animar os soldados, indo só depois tratar-se.» 

A artilheria começara a trovejar. Os canhões 
Gruson fazem fogo vivíssimo. 

A i. a companhia de caçadores 3 responde com 
descargas ao fogo do inimigo, que começa a afrou- 
xar. O coronel mandou cessar fogo. Òs vátuas 
retiravam com os feridos e mortos e reforçavam-se 
a coberto do bosque. Os mahbuco e mabonga, 
gente destinada á rapina e a completar a carnice- 
ria, era pouca para levar os que tinham sido vara- 
dos pelas nossas balas. 

Durara 10 minutos a primeira investida. O co- 
ronel Galhardo dirige palavras de incitamento ás 
tropas. Nas ambulâncias os médicos Braga e Mon- 
terrozo fazem os primeiros curativos. 

Por algumas linhas despretenciosas da carta de 
Mousinho, a que nos temos referido, pôde o nosso 
espirito comprehender claramente como era cora- 
joso^e brilhante o procedimento do coronel. 




SOUSA MACHADO 

(Ho/cr de coçadorts n" 3) 



273 

Vejamos o que refere Mousinho d' Albuquerque : 

«O coronel uma perfeição de socego e sereni- 
dade. Ficou sempre a cavailo. Uma bala roçou-lhe 
na garupa do cavailo e elle nem pestanejou; sempre 
de charuto na bocca, percorrendo as faces, recom- 
mendando firmeza e socego e dizendo a sua graça 
a um e a outro. Muito, muito bem.» 

Mousinho é boa auctoridade, é juiz de primeira 
instancia n este assumpto de intrepidez d'animo. 

Os vátuas renovam o ataque e fazem fogo vi- 
víssimo, principalmente sobre a face formada pela 
4« a companhia, que lhes responde com certeiras 
descargas. Surgem massas enormes na orla do bos- 
que. Começa a completar-se o movimento envol- 
vente. O fogo generalisa-se em três faces do qua- 
drado. Os projecteis da artilheria vão colher o ini- 
migo na linha exterior do bosque e causam-lhes 
perdas enormes. 

Avançam as impis de vátuas mais famosas, a 
dos guerreiros do tempo de Muzilla, a que se de- 
nomina a sombra do Gungunhana, a das plumas 
brancas, dos ynhyope m 'chope, os pássaros brancos, 
espécie de guarda real; os chefes de guerra, e dès- 
tacando-se ae todos Comango e Machope, incitam os 
negros ao assalto, mas o fogo do quadrado é mor- 
tífero e as grandes massas teem de ir reformar-se 
a coberto das arvores, onde as balas das Kropats- 
cheks as vão ainda alcançar, atravessando os gran- 
des troncos. Avançam os atiradores vátuas, cobrin- 
do-se com os montículos de terra levantados pela 
salalé ou deitando-se no terreno a cada signal de 
assobio dos chefes, attentos ao movimento das es- 
pingardas da infanteria do quadrado. 

Era o lance critico do combate. O effeito da 
artilheria era tal que um soldado o indicava depois 
em Lisboa, n'esta phrase conceituosamente pitto- 
resca : 

— Cada tiro de peça abria uma rua de pretos! 



274 

Emfim, ioo destemidos vátuas teem a desvai- 
rada ideia de assaltar o quadrado. Correm para 
elle, em saltos felinos, como tigres, mas as balas 
dizimam-nos cruelmente e a meio caminho hesitam 
e recuam. Todavia, vinte dentre Telles, numa lou- 
cura febril de intrepidez, arrojam-se para a frente, 
atravessam a lagoa, e vão cahir dilacerados pelas 
balas, arrogantes, heróicos, formidáveis, a vinte ou 
trinta metros do quadrado! 

Durante esta investida, que levara i5 minutos, 
havia augmentado muito o numero de feridos den- 
tro do quadrado. Os vátuas não eram grandes ati- 
radores, mas a Martini é uma espingarda certeira. 
Atraz de um montículo da salalé foi morto um vá- 
tua, que tinha ao pé de si quatorze invólucros de 
cartuchos da Martini, que representavam outros 
tantos tiros feitos a coberto, contra o quadrado. 

Já estava ferido o chefe do estado maior, capi- 
tão Eduardo Costa, fora gravemente ferido o alfe- 
res Costa e Silva de caçadores 3 e o cavallo de Mou- 
sinho cahira atravessado por uma bala. 

Vamos pedir á linguagem viva e despretenciosa 
de Mousinho dAJbuquerque alguns traços impres- 
sionistas, que completem o esbocêto d'esta segunda 
phase do combate : 

«O Costa, chefe do estado maior, passa ao pé 
de mim, fala-me, e d'ahi a pouco vejo-o agarrar-se 
á crina do cavallo; corri para elle e disse-me logo: 
«Ferida canónica na barriga da perna, não vale 
nada.» Foi para o hospital de sangue, onde se 
apeou. 

«O Costa e Silva, da i. a companhia, com a 
omoplata atravessada por uma bala, cahiu de cos- 
tas. Os soldados gritam: «Ai! o nosso alferes!» e 
três da 2. a fila correm para o levantar. Elle levan- 
ta-se só, corre-os á pranchada para a fileira e con- 
tinua a mandar o fogo até que desmaiou e os ma- 
queiros o levaram para o hospital de sangue.» 

«O Ornellas andava a pé, muito socegado, com 



275 

todo o dandysmo de official gentleman, dizendo 
graças, tomando apontamentos e de vez em quando 
sentando-se, para descançar, em cima de um carro 
— isto é, o mais exposto possivel». 

a Em summa, todos os officiaes que vi muitís- 
simo bem. O Montez e o Lobo o melhor possivel.» 



«Fiquei a cavallo entre os carros e a 4.* compa- 
nhia. O meu impedido veiu para traz de mim com 
o cavallo á mão. Quando pela segunda vez avivou 
o fogo dos vátuas elle diz-me com uma cara muito 
affiicta: «O 1 meu capitão, v. está ahi a cavallo pa : 
rado e elles estão ali uns poucos a fazer-lhe ponta- 
rias. Se calhar (expressão muito d^lle) apanha al- 
guma que o mata». Mandei-o prender o seu cavallo 
para entrar na forma. Elle afastou-se. 

N'isto ha uma descarga enorme* dos vátuas ; 
sinto o meu cavallo levantar-se e atira-me um salto 
para a frente e depois vae-se abaixo das pernas. 
Era uma bala que eu tinha sentido por detraz da 
minha perna direita e que o atravessara. Quando 
vi o cavallo morto chamei o impedido para lhe ti- 
rar o arreio, mas não o vi e o clarim disse-me que 
elle não apparecia. Estava morto ao pé do cavallo. 
Uma bala que lhe entrara no pescoço cortando-lhe 
a carótida, matou-o instantaneamente. Tive immensa 
pena d'elle, tão novo, tão desembaraçado e ainda 
não tivera uma febre!» 

Apesar das perdas horríveis que teem soífrido, 
os vátuas não desistem ainda d'aquelle combate, 
que pôde ser bem o supremo engrandecimento ou 
a completa ruina do seu poder. 

Accentuam o movimento envolvente e recome- 
çam o fogo, embora menos intenso que no lance 
precedente. Mais quinze minutos de fogo; mas a 
artilheria e as Kropatscheks varejam-os cruelmente 
e perdem-se os últimos alentos d^quella raça belli- 
cosa. Estão já mortos Comango e Machope, os che- 



276 

fes prestigiosos, e a própria impi real dos ynhyope 
m' etíope retira em debandada para os lados do rio 
Manguanhana. 

Godide, o filho dilecto do Gungunhana, o che- 
fe supremo dos vátuas em Coollela, o prudente Go- 
dide que se não arriscara aos lances perigosos do 
combate, ia já na onda dos fugitivos, levar a Man- 
jacaze, ao regulo impaciente, a lúgubre noticia da 
sua derrota. E mal sabia elle que n'essa má nova 
levava o primeiro pregão da ruina dos vátuas. 

Outra nobilíssima victoria fulgia, como rutila es- 
trella, nas espadas e nas bayonetas dos nossos ex- 
pedicionários ! 

E em volta do quadrado, a uma ou duas cente- 
nas de metros, como sangrento despojo, estavam 
estendidos cento e dois cadáveres de vátuas, que 
os mabhuco e mabonga, transmudados em recovei- 
ros de mortos, não tiveram tempo de levar comsigo 
para os esconder na floresta, o amplo cemitério de 
tantos outros que o orgulho vátua havia roubado 
aos olhos dos vencedores. 

Desapparecera batido o formidável exercito do 
rei de Gaza. Oito das suas mais famosas impis, 
três d'ellas de puros vátuas, uma força total de mais 
de doze mil guerreiros 4 , fora repellida e posta em 
fuga por um quadrado de 577 portuguezes e algu- 
mas centenas de auxiliares, que fugiram ante a sim- 
ples apparição do inimigo e depois, deitados no chão, 
apenas, timidamente, disparavam alguns tiros in- 
certos. 



1 Lobengula, o rei dos Matebeles, não conseguira reunir em 
combate contra os inglezes mais de 6.000 homens. Confes- 
sam-o os próprios inglezes, que o bateram com setecentos 
homens da policia militar da South Africa. 

Ainda assim, nos não desfavoreceu o confronto. O Gun- 
gunhana era bem mais poderoso e não chegavam a seiscentos 
os portuguezes que o derrotaram. 

Deve notar-se ainda que em Coolella combateram os guer- 
reiros escolhidos do exercito de Gaza. 




EDUARDO GALHARDO 
(Coronel de h-jankria) 



277 

Em Isandhluana i:32o inglezes não poderam re- 
sistir a 20:000 zulus. Em Ulundi foi precisa a co- 
ragem de 3:3oo inglezes para baterem 12:000 zulus. 

Se não ha-de a gente sentir orgulho por aquelles 
valentes, que, num relâmpago de heroísmo, nos de- 
ram a visão épica do passado ! 

Conta-se que o marechal Beresford dissera na 
batalha do Bussaco, ao ver como o batalhão de ca- 
çadores 3 levava diante de si, á bayoneta e á co- 
ronhada, os brilhantes soldados de Massena: 

— Não pôde haver nada melhor que este bata- 
lhão! 

Com que egual justiça o duro inelez não repe- 
tiria este remontado louvor, se lhe fosse dado ver 
o batalhão heróico de Coolella e os seus valentes 
companheiros de combate! 

E por cima do quadrado, palpitantede jubilo, 
como se contivesse em si o grande coração de uma na- 
cionalidade, por cima d'aquelle quadrado que a lu- 
cta ensanguentara e que encerrava os seus bemdi- 
tos mortos, a bandeira de Portugal desenrolava-se 
altiva sob os fulgores da victoria, como nos seus gran- 
des dias antigos. 

Com que sincero amor e com que immçnso 
orgulho aquelles valentes não cravaram n'ella os 
seus olhos humedecidos ao verem-n'a surgir den- 
tre a fumaceira das ultimas descargas, como dos 
nimbos de uma apothéose ? 

* 

A'cerca das forças do inimigo que entraram no 
cojnbate de Coolella variam um pouco os cálculos, 
feitos pela simples avaliação á vista e por informa- 
ções colhidas depois da acção. 

Segundo a participação telegraphica do commís- 
sario régio, seriam de 8 a 10.000 homens. O major 
Machado na sua carta, por nós ja citada, diz que a 
força provável dos vátuas e seus auxiliares seria de 



2 7 8 

12 a 14.000 homens. Mousinho de Albuquerque, 
na carta a que já nos referimos, informa que os 
nossos auxiliares aprisionaram um induna ferido e 
que por elle se' soube que eram oito as impis em- 
penhadas em combate, impis que designou pelos seus 
nomes especiaes, e que a sua força total seria de 
12 a 14.000 homens. 

Effectivamente, se eram 8 impis, e não nos pa- 
rece que se deva confundir a impi com a manga, 
unidade de combate muito mais pequena, calcu- 
lando a cada impi a força média de i.5oo homens, 
que era o seu effectivo normal entre os antigos zu- 
lus, teremos um total de 12.400 guerreiros. 

Mas não houvesse produzido um enorme efleito 
de terror no sertão a victoria de Magul e o desba- 
rato de Chinavane, acções em que entrou gente do 
Gungunhana e não estivessem acobardadas as po- 
pulações da margem esquerda do Limpopo, que o 
bombardeamento enchera de pavor, e decerto o 
rei de Gaza teria podido augmentar o seu exercito 
com importantes contingentes de guerra dos ré- 
gulos seus vassallos ou seus satellites da Cos- 
sine e das margens do Limpopo até á confluência 
do Changane. Então as suas forças ascenderiam a 
24 ou 28.000 homens de gente escolhida, sem con- 
tar, portanto, com os guerreiros noviços, mofanas 
(rapazes). 

Deve ainda notar-se que o Gungunhana já não 
esperava que a columna sahisse de Chicomo senão 
depois de passada a estação das chuvas e por isso 
não tinha concentrado em Manjacaze os contingen 
tes dos régulos afastados, da região septentrional de 
Gaza, no valle do Save. 

A respeito das perdas dos vátuas também os 
cálculos divergem um pouco, embora todos sejam 
concordes em affiançar, e até os próprios vencidos, 
que foi avultadíssimo o numero dos mortos e que 
quasi todos os feridos — 5oo a Coo — morreram em 
resultado dos estragos horríveis causados pelos pro- 
jecteis da artilheria e pelas balas da Kropatschek. 



2 79 

Effectivamente a bala d'esta espingarda dilacera as 
carnes e esmigalha os ossos que attinge, deixando-os 
como se fossem triturados. 

Já havia succedido o mesmo com os cafres feri- 
dos em Marracuene, em Magul e em Chinavane. 
Os mézinheiros, os feiticeiros negros, que frequen- 
tes' vezes conseguem curar os ferimentos de aza- 
gaia, eram completamente inúteis para curar os fe- 
rimentos produzidos pela bala da Kropatschek. 

Em Manjacaze o missionário suisso, dr. Lien- 
gme, medico distincto, fez o primeiro tratamento a 
alguns vátuas feridos em Coolella, mas eram mui- 
tos para que os podesse pensar a todos. Exigiam 
cuidados constantes os que tinham ferimentos mais 
graves e o medico suisso fugiria também de Man- 
jacaze, logo que o kraal estivesse em perigo de ser 
tomado. Nestas circumstancias, escaparam somente 
os que estavam apenas levemente feridos. Os ou- 
tros lá morreram ao desamparo, como feras, espar- 
sos pelo sertão. 

Na sua carta, a que nos temos referido, o major 
Machado avalia em mais de 200 mortos e cerca de 900 
feridos as perdas dos vátuas. Ha, porém, quem as 
calcule em perto de 3 00 mortos e mais de 600 feridos. 

Das tropas europêas houve 5 mortos e 27 feri- 
dos, incluindo 3 omciaes. Dos nossos auxiliares fi- 
caram feridos 9. 

Eis os nomes dos que morreram : 

De lanceiros: o soldado n.° 65 da i. a compa- 
nhia, João d' Andrade. 

De caçadores 3: os soldados da i. a companhia 
n.° 49, António Manuel e n.° 63, José Mana; da 
3. a companhia n.° i32, José Rodrigues Latas e da 
4. a companhia n.° 194, José Feliciano. 

Recapitulemos : 

PERDAS 
Effectivos Mortos e feridos Percentagens 

AuSíwref armados ! 5oo ) l '° 77 4I 3 ' 8 ° /o 

Vátuas e auxiliares . . 12.000 900 7>5 % 

18 



28o 



A percentagem de perdas das tropas expedicio- 
nárias foi de 5,5 °/o. 

Sem organisação militar, mal sabendo fazer fogo 
e tranzidos de medo, os auxiliares faziam numero, 
mas não eram um elemento de combate com que 
fosse licito contar. Valiam mais como carregadores 
do que como guerreiros. Agachados ou cosidos cóm 
o solo como reptis é que elles se atreviam a dispa- 
rar alguns tiros. E tão pouco se expozeram que, 
sob a rede de balas que passava pelo quadrado 
(conforme a expressão de Mousinho d'Albuquer- 
que), sob o fogo intenso que deixou os carros como 
crivos, apenas tiveram 9 feridos ou 1,8 °/o da sua 
força, em cujo effectivo não contámo3 200 carrega- 
dores. 

A lucta foi indubitavelmente entre 577 brancos 
e 12.000 negros, ou de um contra mais de vinte. 

Registemos a opinião escripta dos mais illustres 
officiaes que entraram no combate, acerca da intre- 
pidez dos seus camaradas e da admirável disciplina 
de fogo, mantida nos lances mais graves da lucta. 

Dizia o coronel Galhardo em officio ao commis- 
sario régio, logo depois do combate: 

«Feito o toque de fogo, todo o quadrado res- 

Eondeu fazendo fogo contra o inimigo; ao principio 
ouve pouca regularidade, devida á natural precipi- 
tação da maioria dos soldados, que pela primeira 
vez entravam em fogo, mas logo depois faziam fogo 
com a máxima regularidade, graças á admirável se- 
renidade e valor dos officiaes, que todos nos seus 
postos commandavam os fogos como em exercício 
ou desempenhavam os serviços que lhes compe- 
tiam. 

«Das praças de pret também nem uma só aban- 
donou o seu posto e até feridos voltavam ao seu 



28 1 



logar depois de pensados ou lamentavam não po- 
der continuar no fogo. Este durou quarenta minu- 
tos, sendo o inimigo repellido com grandes perdas, 
tendo chegado a 3o metros do quadrado, distancia 
a que foram encontrados alguns mortos. 

«Foram todos incansáveis e exemplares nas suas 
funcções. Taes officiaes e soldados são o orgulho 
dos chefes que teem a honra de os dirigir, exaltam 
o seu paiz e o seu rei e bem merecem da pátria.» 

Escrevia o valente commandante do 2. batalhão 

de caçadores 3 : 

> 

«E' de enthusiasmar o coração de portuguezes 
o ver como os nossos pobres soldados, alquebrados 
da febre e fadigas, se portaram. Os officiaes todos 
cumpriram o seu dever ; mas o coronel Galhardo, 
esse, foi admirável de sangue frio e serenidade de 
animo, sempre a cavallo, dando indicações e ordens, 
como se as balas, que lhe sibilavam em volta, fossem 
uma simples figura de rhetorica; mas não eram e 
elle bem o via, pois o cavallo, que montava, foi to- 
cado duas vezes e os nossos pobres homens iam 
caindo feridos ou mortos.» 

De Mousinho d 1 Albuquerque já sabemos a opi- 
nião acerca dos officiaes que mais se distinguiram 
em Coolella. Mas falta saber ainda o que elle pen- 
sava dos seus mais humildes companheiros n'aquella 
acção. Ouçamol-o, que é um bravo sem inveja das 
glorias de ninguém: 

«Dos soldados tudo que se diga é pouco. Os 

3ue tinham ferimentos leves, logo depois de pensa- 
os, voltavam a correr para a fileira. Uma belleza ! 
Ao menos em combate os portuguezes ainda são, 

Eelos menos, tão bons como os mais valentes que 
aja.» 

A disciplina de fogo foi tão correctamente man- 



282 



tida que em 40 minutos de combate, dispondo de 
armas de repetição, os nossos soldados apenas con- 
sumiram 6:700 cartuchos. E não perderam as balas. 
Por cada 40 ou 42 tiros disparados (suppondo que 
5o % das perdas foram causadas pela artilheria) po- 
zeram um inimigo fora de combate. Não é isto o 
que costuma succeder. Em algumas batalhas moder- 
nas as balas disparadas ficaram na razão de 200 e 
mais para cada homem inutilisado. Com as antigas 
arm^s de fogo o desperdício de balas chegava a 
proporções espantosas. Em 1846 calculava-se em 
França que era preciso atirar 10:000 balas para pôr 
um homem fora de combate. Em i83o, na tomada 
de Alger, os francezes gastaram três milhões de ti- 
ros para pôr fora do combate 3oo argelinos. Com 
as espingardas modernas, de alcance immensamente 
maior e incomparável justeza de tiro, o aproveita- 
mento das balas é muitíssimo maior. Na batalha de 
Saint-Privat (1870), a infan teria franceza, em 10 mi- 
nutos de fogo, poz fora de combate 6:000 homens 
da guarda real prussiana, mas a torrente de fogo era 
espantosa e cada um dos prussianos inutilisados re- 
presentava o consumo de mais de 200 tiros* das es- 
pingardas francezas. 

Segundo o calculo de Mousinho d'Albuquerque, 
os vátuas não tinham menos de 2:000 armas de fogo 
no combate de Coolella, entre as quaes o maior nu- 
mero era dos sys temas Martini- Henry e Snider. 

Na sua linguagem adoravelmente singela, tão 
eloquente e commovedoramente simples que faz cho- 
rar, Mousinho d'Albuquerque descreve assim o mo- 
desto funeral dos expedicionários que perderam a 
vida em Coolella: 

«A* tarde, ás 6 horas, fez-se o enterro dos 5 
soldados mortos. Arranjámos-lhes um cemitério no 



283 



bosque, debaixo das arvores, cercado de fio d'a- 
rame .e abatizes por causa das hyenas. Foram todos 
os officiaes, excepto 8 (dois por face de quadrado) 
e 6 praças 'por companhia. 

Quando se enterraram, o coronel fez uma breve 
allocução, lembrando que tinham morrido como sol- 
dados portuguezes ao serviço d'el-rei. Ajoelhou tudo 
de chapéu na mão, deram-se as três descargas do 
estylo, tocaram as cornetas a marcha de estandartes 
e levantamo-nos. Ha exéquias ou enterros pomposos 
que valham isto ? C hega-se a ter inveja dos mortos ! 
A primeira mão cheia ae terra foi deitada sobre cada 
um pelo seu capitão respectivo.» 

Como isto e suggestivo e enternecedor ! Vê-se e 
sente-se aquella homenagem e aquella magua. Cur- 
vam-se de joelhos os vencedores, deante das covas 
abertas no pequeno cemitério improvisado; vibram 
as cornetas, estrondeiam as descargas d'honra, como 
se fossem ainda um echo do combate vencido, e na 
sua honrada mortalha, a pobre farda ensanguentada 
na lucta, são lançados aos covaes esses que para 
sempre ali ficam longe da pátria. Depois, como um 
chejte de família, cada capitão esparge piedosamente 
o primeiro punhado de terra sobre aquelles que a 
sua companhia, a sua família, perdeu alli. 

E esses duros luctadores, duros nas provações 
e nos combates, duros como lhes chamava depois o 
Gungunhana e como lhes tinha chamado um jornal 
francez, tinham os olhos cheios de lagrimas pelos 

{)obres camaradas que a terra do sertão, a três mil 
éguas de Portugal, ia encerrar no seu estranho seio 
de madrasta! 

Vê-se ! Sente-se ! Tem um colorido melancholico 
de tradição christã, de suavíssima piedade, de épica 
singeleza, que parece antigo! 

O sr. António Ennes expedira para Sua Mages- 



284 

tade a Rainha Regente D. Amélia (El-Rei viajava 
no estrangeiro) um largo telegramma, dando-lhe no- 
ticia da grande victoria de Coolella. 

A Rainha respondeu ao commissario régio nes- 
tas palavras, cheias de enthusiasmo e de carinho : 

O seu telegranima causou-me profunda emoção.e 
encheu-me de jubilo, vendo que os seus esforços, a 
sua dedicação, as luctas e o valor dos nossos herói- 
cos soldados tinham sido recompensados. Uaqui 
mando uma derradeira homenagem áquelles que pela 
Pátria deram a vida, e saúdo todos áquelles — com- 
missario régio, officiaes e soldados — que tão brilhan- 
temente continuam as nossos gloriosas e nunca inter- 
rompidas tradições. Faço mais ardentes votos prom- 
pto restabelecimento feridos. 

Nacionalisado pelo seu amor de mãe, gémeo do 
amor da pátria, o coração da Rainha sentia bem 
toda a immensa impressão d'aquelle feito na alma, 
tantas vezes amargurada, da sua adoptiva naciona- 
lidade. 



XVI 



DESTRUIÇÃO DE MANJACAZE 



, Ainda que o enfraquecimento physico das tro 
pas, em grande parte envenenadas pelo impaludismo 
ou já no primeiro período da anemia palustre, não 
fosse rasão suficiente para abandonar a idêa de 
seguir sobre Manjacaze no próprio dia do combate, 
a escassez de viveres impunha o estacionamento da 
columna. 

Faltavam apenas 7 kilometros para chegar ao 
kraal do Gungunhana, mas as tropas estavam em 
tal estado de abatimento, tão frequentemente os 
soldados cahiam extenuados, que essa marcha insi- 
gnificante importaria um sacrincio penosíssimo. 

O coronel ordenou ao capitão Mousinho cjue 
fosse a Chicomo com a força válida dos laceiros 
(26 cavallos) e de lá escoltasse um comboio de car- 
regadores com viveres. 

A cavallaria partiu em 8 e fez a marcha em 
sete horas, sem nenhum accidente importante. Foi- 
lhe disparado um tiro de emboscada, mas a bala 
não tocou em nenhum dos cavalleiros. 




28b 



Organisou-se o comboio com a máxima rapidez 
possível e no dia 10 a cavallaria voltava a Coolella 
com 200 carregadores. N'esse mesmo dia se deu 
ordem para a columna avançar sobre Manjacaze na 
madrugada de 1 1 . 

O major Machado, de braço ao peito, grave- 
mente fendo, incumbir-se-hia de commandar o pe- 
queno quadrado (108 homens), que havia de guar- 
dar os feridos e o comboio, a pequena distancia do 
kraal, emquanto as tropas, relativamente válidas,, 
investissem a famosa capital dos vátuas. 

Mas confiemos a narração do feito á palavra 
auctorisada do glorioso vencedor de Coolella. 

Em officio ao commissario régio, datado do bi- 
vaque da langua de Manguanhana, em u de no- 
vembro, escrevia o intrépido coronel Galhardo: 

«Cumprindo as ordens de v. ex. a , a columna do 
meu commando eftectuou hoje a marcha sobre Man- 
jacaze. Chegado á langua provoquei o inimigo a 
combate, bombardeando a povoação; a gente ,do 
Gungunhana appareceu no bosque que circumda e 
occufta o kraal, em pequenos grupos, respondendo 
apenas com alguns tiros de espingarda ao fogo da 
artilheria da columna que os dispersou rapidamente. 
Em seguida, deixando o comboio devidamente es- 
coltado, marchei sobre Manjacaze, que encontrei 
abandonada, mas com muitas munições e objectDs 
de uso dos habitantes, tudo na desordem própria 
de uma precipitada fuga; os auxiliares saquearam 
a povoação e Xigocho do regulo, que logo depois 
mandei incendiar, ficando tudo completamente des- 
truído e voltando com a columna ao bivaque na 
langua. 

«Segundo informações de uma mulher encon- 
trada na povoação, o Gungunhana retirou para Ma- 
çasse, entre Changane e Limpopo (rios), na occa- 
sião do bombardeamento, tendo antes mandado 
contra nós a única manga de que dispunha, Ynhyope 
M chope, que foi repelTida, como disse. 



287 

«A jornada de hoje, sempre debaixo de chuva, 
foi excepcionalmente trabalhosa, devido á incapaci- 
dade dos meios de transporte ; 7 bois ficaram mor- 
tos no caminho, tendo eu de abandonar um carro 
de viveres e muitas cargas, por terem fugido os 
carregadores; apesar d'estas contrariedades e de 
termos de avançar para o inimigo com um comboio 
de feridos, exemplo talvez único nos annaes milita- 
res, a coragem e a disciplina das tropas do meu 
commando nunca se desmentiu e antes se affirmou 
por actos singulares, ennobrecendo os indivíduos 
que os praticam e que muito honram o exercito a 
que pertencem. O major de caçadores 3, grave- 
mente ferido, acceitou com enthusiasmo a organisa- 
ção e commando da defeza do comboio na langua 
de Mangunhana. O capitão Costa, apesar de ferido, 
conservou-se a cavallo a meu lado em toda a jor- 
nada, desempenhando as funcções de chefe do es- 
tado maior; o alferes Costa e Silva, ferido n'um 
hombro, acceitou o commando da uma das faces 
do quadrado que defendia o comboio; um cabo e 
dois soldados, tendo o primeiro o pescoço atraves- 
sado por uma bala, fugiram da ambulância para 
tomar parte na columna de ataque.» 

* * 

Tal supersticiosa lenda se formara rapidamente 
em volta das nossas victorias, de tal modo se con- 
venceram os vátuas de que o coronel Galhardo ti- 
nha o feitiço de guerra que fazia reviver os solda- 
dos ou os tornava invulneráveis e tão funda impres- 
são causara a mortandade enorme de Coolella e 
os terríveis effeitos destruidores da artilheria, que 
bastaram algumas granadas para pôr em fuga o 

Eoderoso regulo e a sua famosa impi de plumas 
ranças! Nem já confiavam na Martini-Henry com 
3ue tinham contado espingardear o nosso punhado 
e valentes! 



288 



Mas a fuga do filho do Muzilla fora precedida, 
logo depois ao combate de Coolella, pela deserção 
(assim se lhe pôde chamar) dos mais importantes dos 
régulos seus vassallos e parentes, taes como Cuio, 
Mapissana e Tchambi, que desampararam o sobri- 
nho n'essa lendária Manjacaze que o sertão negro 
suppunha a prodigiosa e inexpugnável cidadella dos 
vátuas. 

Abandonavam-no vencido os seus régulos, os 
seus parentes, os seus indunas, a elle, que pouco 
antes era ainda o autocrata potente, cujo nome re- 
boava terrível desde o Zambeze ao Incomati ! Como 
n'estes grosseiros dramas selvagens se reflectem ás 
vezes os egoísmos, as traições, as villanias dos gran- 
des dramas políticos das altas civilisações ! Desam- 
parado por esses que o haviam lisongeado de ras- 
tos e que se encolhiam como tímidos cachorros a 
um gesto seu, ante uma iniquidade, ante um capri- 
cho da sua embriaguez quotidiana, o vencido rei 
de Gaza encontrava destino egual ao dos famosos 
déspotas que, em outra esphera, o precederam na 
omnipotência do mando e no abandono da sua pró- 
pria expiação. O seus marechaes e os seus cortesãos 
negros eram afinal o que tinham sido vários mare- 
chaes e cortezãos brancos. 

O quadrado de Coolella passava o Mangua- 
nhana e annunciava-se pela voz da artilheria, de- 
fronte de Manjacaze. deixava atraz de si outro pe- 
queno quadrado em deíeza dos feridos. Se os vá- 
tuas soubessem como aquelles soldados, cheios de 
resignação, com alma para luctar e morrer, mal po- 
diam ter-se de pé e manejar a espingarda e os can- 
hões, se elles soubessem o estado aaquelles glo- 
riosos anemicos, teriam decerto preparado uma 
emboscada, protegida e disfarçada pela evacuação 
de Manjacaze e então, chegados á lucta corpo a 
copo, quem sabe o que succederia aos heróicos ven- 
cedores de Coolella? 

Mas quando chega a hora do terror pânico, ag- 
gravado demais a mais pela superstição, fogem os 



28 9 

povos de mais provada intrepidez e retiram desor- 
denadamente os soldados de mais arrojada bravura. 

Os vátuas abandonaram Manjacaze. O rei de 
Gaza fugia espavorido como um cobarde landim, 
como se fora o mais timido dos seus mofanas. Es- 
tava esfarrapa a lenda. 

Perdido já o temor d'outros tempos, os negros 
de Spandanhana incendiavam com selvático jubilo 
as setecentas palhotas da maior povoação d'aquelles 
sertões. Excitava-os o saque. As labaredas punham 
reflexos vermelhos na figura sinistra d^quelles sel- 
vagens, que quatro dias antes fugiam doidamente 
porque tinham avistado as primeiras impis do Gun- 
gunhana ! 

Ouvem-se detonações. E' o cartuchame com- 

> 

prado aos inglezes que está explodindo, similhante 
a descargas irregulares de muitas metralhadoras. 

Tolda-se o ceu na fumaceira enorme do incêndio. 

No jubilo e no orgulho d'aquelle desenlace, o 
quadrado, com a sua bandeira coroada pela victo- 
ria e os seus heroes arrazados pelas febres, põe a 
alma inteira na contemplação d'aquelle espectáculo, 
em que toda a historia sangrenta dos vátuas, a sua 
lenda, o seu prestigio, a sua força, se apagam no 
ar, entre os turbilhões de fumo do kraal, desfeito 
em cinzas. 

* * 

Emquanto a columna triumphadora retomava o 
caminho de Chicomo com o seu triste comboio de 
14 carros de feridos e na sua passagem recebia a 
homenagem das populações maravilhadas ; foragido 
nas florestas, reduzido á sua fiel impi dos ynhyope 
trí chope, o filho do Muzilla procurava asylo junto 
da sepultura de seu famoso avô, o terrível Mani- 
cusse. 

Seguiam-n'o ainda, na esperança de que a for- 
tuna voltasse para o decahido rei de Gaza, o mis- 



290 

sionario suisso, alguns conselheiros e amigos ingle- 
zes, Queto, o único dos irmãos do Muzilla que ap- 
plaudira a guerra e seguia o sobrinho, e Manhuene, 
o valido, a alma da lucta, a vontade inabalável que 
fora na campanha do norte o que o Finish havia 
sido na campanha do sul. 

Tinham os feiticeiros affiançado ao Gungunhana 
que estaria seguro e recobraria alento na terra que 
encerrava o primeiro rei dos vátuas, e o regulo 
vencido acreditou n'aquella affirmação e foi pedir 
conselho e amparo aos manes do grande morto. 

Disseram-lhe os seus conselheiros brancos que 
mandasse emissários seus ao Cabo, ao Natal e ao 
Transvaal, a pedir auxilio ou sequer guarida para 
os vátuas, e o regulo, desorientaao no seu infortú- 
nio, a todas as esperanças se abraçava e acreditou 
no bom êxito do conselho ! Os emissários partiram 
e foram dizer aos inglezes e aos boers que o Gun- 
gunhana tinha ainda forças poderosas e que só uma 
parte minima dos seus guerreiros fora vencida pe- 
los portuguezes. Seriam os vátuas vassallos fieis 
de quem lhes soccorresse o regulo — era a pro- 
messa dos emissários, que nas suas instancias che- 
gavam até á extrema solicitação de alguns pedaços 
de terra deshabitada em que podessem estabele- 
cer-se ! 

Nem as auctoridades inglezas nem os boers qui- 
zeram acredital-os e acceitar-lhes as propostas. 
Ainda que não fosse um dever de lealdade repul- 
sar-lhes os pedidos e as promessas, seria de boa 
politica não tentar aventuras por um potentado, se- 
não ainda de todo perdido, já profundamente aba- 
tido e desprestigiado. Não era a ingénua diploma- 
cia dos emissários vátuas que podia illudir os in- 
glezes e os boers. 

Os negros cruzam o sertão rapidamente, as no- 
ticias voam de bocca em bocca e no Transvaal e no 
Cabo sabia-se já a que miseranda situação fora re- 
duzido o déspota de Gaza. 



291 



* 
* * 



Em 14 de novembro a columna chegara a Chi- 
como e logo 108 cfaquelles pobres valentes, que só 
a alma arrastara a Coolella e a Manjacaze, iam 
cahir sobre os leitos da enfermaria. 

O coronel Galhardo recebia em Chicomo a 
vassallagem do regulo Matinhe e de Tonguanhane, 
chefe das terras de Binguane, como em Bololla ha- 
via recebido dois emissários da rainha de Chai- 
Chai (do Limpopo), o maior potentado das regiões 
do Chope. Estes emissários iam com um salvo-con- 
ducto do i.° tenente Andrêa, um dos valentes da 
flotilha do Limpopo. 

Em 25 de novembro os feridos de Coolella des- 
embarcavam em Inhambane de bordo das lanchas 
que os tinham transportado pelo Inharrime. Foram 
recebidos triumphalmente e entraram no hospital, 
ornado de flores e de bandeiras, por entre as ac- 
clamações enternecidas da população. Acompanha- 
va-os o benemérito medico da Cruz Vermelha, o 
dr. Rodrigues Braga. O commissario régio aco- 
lhiá-ós cóiri palavras de commovida saudação. 

Ia ser repatriada a maior parte das tropas ex- 
pedicionárias. As operações contra o Gungunhana 
foragido seriam funestas em plena estação aas chu- 
vas, nem o estado das tropas permittiria qualquer 
demorada empreza no sertão. 

Ficariam na Africa as forças indispensáveis para 
guarnecer os postos da Ribeira d'Amba e do Inhar- 
rime, ao norte, de Lourenço Marques e do Inco- 
mati, ao sul. Além de pequenos destacamentos de 
artilheria e engenheria e dos restos do esquadrão 
de lanceiros, continuavam no serviço d'Africa quasi 
todo 02. batalhão de inf antena 2, sob o com- 
inando do capitão Mattos Cordeiro, a 4.* compa- 
nhia de caçadores 3, do commando do capitão Sars- 



2g2 

ficld e ainda algumas forças de caçadores 2, com- 
mandadas pelo capitão Macedo. 

Mousinho d'Albuquerque, nomeado governador 
militar das terras de. Gaza, ficava encarregado de 
organisar elementos que, em occasião opportuna, 
tornassem possível a perseguição do regulo vencido, 
o que talvez importasse uma nova campanha e a 
exigência de outros reforços da metrópole, como 
então se julgava, visto serem escassíssimas as forças 
de que Mousinho poderia dispor. Novamente se 
impunha uma attitude expectante á sua indómita 
coragem! Teria de ficar entre os perigos, em face 
da morte, mas de espada na bainha, como no qua- 
drado de Coolella ? 

O grande troço de expedicionários repatriados 
embarcara em dezembro a bordo do paquete Zaire. 
Vinham com elles o commandante em chefe das tro- 
pas e, com a sua gloriosa tarefa já concluída, o be- 
nemérito commissario régio em Moçambique. 

Surprehendido nos seus esmorecimentos pela 
vibração envaidecedora das victorias d^Airica, a 
patna portugueza apercebia-se para acolher numa 
recepção triumphal os abençoados valentes que lhe 
tinham resurgido o nome e o prestigio nas tradições 
do sertão negro. 



XVII 



Ji FAÇANHA DE CHjUMITE 



A ninguém era licito envolver na sombra sequer 
de uma duvida os feitos brilhantes das nossas tro- 
pas. Mas por entre os echos da victoria alguém 
perguntava quando seria o remate da guerra con- 
tra os vátuas, que tinham por si o asylo immenso 
das florestas e o longo período da estação das chu- 
vas, talvez sufficiente para de novo se organisa- 
rem. 

Tornar-se-hia necessária uma nova expedição e 
uma nova campanha para acabar de destruir o po- 
der do Gungunhana ? Na Zululandia succedera cousa 
carecida aos inglezes com Katchwayo e no Da- 
!iomé aos francezes com o rei Behanzin; mas os> 
maldizentes de cá e os que, por antagonismo de 
interesses, nos eram desafteiçoados lá fora, punham 
em duvida, não já a gloria militar alcançada nos 
combates, mas a efficacia politica das campanhas 
concluídas. 

Aprazia-lhes suppôr e divulgar que o Gungu- 



294 

nhana apenas mandara as suas avançadas contra os 
nossos soldados e lhes abandonara as palhotas do 
kraal para mais facilmente nos enganar e poder cahir 
de improviso sobre os postos e povoações despre- 
cavidas com o grosso cio seu exercito intacto, com 
o qual, tranquillamente e a rir-se dos nossos trium- 
phos, se andaria pavoneando pelos amplíssimos 
sertões de Gaza. 

Entretanto, os menos desdenhosos da guerra 
em que o nosso prestigio militar se resurgira e 
exalçara, contavam com a dura necessidade de uma 
nova campanha e, portanto, com novos sacrifícios 
de dinheiro e de vidas. 

De vidas, e até então, em combate e, principal- 
mente por effeito do clima africano, já tinham mor- 
rido em Moçambique, na viagem de repatriação e 
na metrópole, não menos de 6 a 7 °/o de eflfectivo 
total dos expedicionários, sendo provável que esta 
percentagem se elevasse ainda a 8 ou 9 %. Não 
era extraordinária. Nas suas campanhas de Cuba, 
desde 1869 a 1878, a percentagem das perdas das 
tropas hespanholas tivera o limite minimo de i3 °/o 
(1873) e o limite máximo de 18,22 °/o (1874). 

ria campanha de Madagáscar (1895) as perdas 
dos francezes, insignificantes em combate, chega- 
ram á enorme percentagem de 21 %. 

Não eram relativamente grandes as nossas, mas 
representavam, todavia, um doloroso sacrifício. 

Quanto a despezas, eram avultadas as qué tí- 
nhamos feito e esmorecia pensar na dura necessi- 
dade de as continuar. Haviam de approximar-se de 
dois mil contos. (Em 29 de fevereiro de 1895 ti- 
nham-se apurado as despezas na importância total 
de 1.884:432^)640 réis). 

A guerra de Dahomé ainda custara mais aos 
francezes (cerca de onze milhões de francos ou mais 
de dois mil contos da nossa moeda), mas a França 
é uma nação opulenta e o que para ella representa 
apenas uma diminuta despeza extraordinária vale 
para nós um enorme dispêndio. 



2Q5 



* 
* # 



Esperava-se a chegada das tropas que voltavam 
d'Africa a bordo do Zaire. Em todo o paiz se pre- 
paravam ruidosos festejos. Parecia rejuvenescida a 
velha alma expansiva da pátria portugueza. 

De súbito, inesperadamente, na noite de sab- 
bado, 4 de janeiro de 1896, o sr. conde d'Arnoso 
apresentava a El-Rei, no thcatro de S. Carlos, este 
surprehendente telegramma do governador interino 
de Moçambique: 

LOURENÇO MARQUES, 4.— Conde d Ar- 
noso, secretario particular de Sua Magestade El- 
Rei, Lisboa. — Peço a honra de apresentar, com as 
minhas homenagens, as enthusiasticas felicitações a 
Sua Magestade pela prisão do Gungunhana e seu 
filho Godide, levada a effeito pelo valente capitão 
Mousinho. — (a) Lança. 

O governo recebeu também o seguinte tele- 
gramma : 

LOURENÇO MARQUES, 4— Ultramar, Lis- 
boa. — Acabam de chegar aqui o Gungunhana e seu 
filho Godide e tio Molungo e suas sete mulheres, 
acompanhados todos pelo capitão Mousinho d Al- 
buquerque, que os foi agarrar a Chaimite, acompa- 
nhado pelo tenente de artilheria Miranda, tenente 
graduado Couto, medico Amaral e 46 praças de 
artilheria e infanteria. 

As minhas calorosas felicitações pela victoria que 
para o pai\ acaba de conseguir o valente capitão 
Mousinho. 

Também veiu o Zixaxa com três mulheres suas. 

Espera-se que o Maha\ul seja preso por estes dias. 

No kraal, e em presença do Gungunhana amar- 
rado e de 3:ooo vátuas e buingelas, foram fuzilados 

19 



296 

Qiiêto, irmão do Mu\illa, e o induna Manlíenhe, 
alma damnada do regulo. 

Amanhã vou fa\el-os embarcar no «Africa», 
para seguirem para Lisboa. — (a) Lança. 

Quasi se não pôde descrever o febril enthusias- 
mo que estas noticias produziram. Os telegrammas 
foram lidos no salão do theatro de S. Carlos á mul- 
tidão anciosa de pormenores. Parecia que tinham 
voltado os grandes dias antigos! 

Estava no theatro um parente de Mousinho; 
abraçaram-n'o enternecidamente. Cantava-se a Afri- 
cana; no final do 2. acto o enthusiasmo explodiu 
numa extraordinária manifestação de jubilo patrió- 
tico, por entre as vibrações do hymno nacional, que 
a todos os corações fallava de gloria naquelle mo- 
mento excepcional. 

Houvera n'outros tempos ruidosas manifestações 
politicas em S. Carlos. Nenhuma, talvez, mais ex- 
pontânea, mais sentida, mais nobre, mais pura do 
que a d'aquella noite inolvidável. 

A boa nova correu vertiginosamente. Reproduzi- 
ram-se as manifestações nos outros theatros de Lis- 
boa e do Porto. O telegrapho levou a noticia a to- 
dos os recantos do paiz. Fez-se em toda a parte, en- 
tusiasticamente, o santo jubileu da pátria. 

Ah ! com que immensa gloria, para si e para to- 
dos nós, o Mousinho se vingara da má fortuna que 
o tivera inactivo no quadrado de Coolella e na to- 
mada de Manjacaze ! 

* * 

Como se realisára tão espantosa façanha, que 
parecia um trecho de algum antigo romance aven- 
turoso e como se rematava, inopinadamente, por 
similhante prodigio aquella guerra por tantos títu- 
los notável ? 

Formulavam-se hypotheses diversas e a impren- 




MOUSINHO D' ALBUQUERQUE 

(Copiião dt tancnrot n ' l) 



} . (,', 



2 97 

sa estrangeira, attentando melhor nas campanhas 
que até ali apenas brevemente noticiara, deu larga 
publicidade á descripção dos combates vencidos e 
exalçou a expedição de Chaimite, entre incrédula e 
maravilhada. 

A Fremdenblatt, de Vienna d'Austria, dizia: 

«E' indubitavelmente justo saudar com applauso 
o valente capitão Mousinho e os seus 49 camaradas 
pelo acto de bravura sem par (Bravourstuck sonder- 
gleichen) de prenderem o semi-deus africano Gungu- 
nhana, considerado invencível, e de fuzilarem dois 
de seus chefes na presença de 3. 000 de seus guer- 
reiros. Que os portuguezes sabem melhor que as 
outras nações haver-se com os pretos affirma-o uma 
experiência de séculos, e se conseguem ser mais 
promptos e enérgicos nas campanhas africanas do 
que o seria a Allemanha, por exemplo, é que pos- 
suem uma mais justa apreciação das circumstancias 
locaes, que a elles mais do que a ninguém são fami- 
liares. D'isto deram agora mesmo uma prova evi- 
dente, com a qual devem estar tanto mais satisfei- 
tos, quanto a imprensa ingleza, interessada no assum- 
pto, se exprimiu sempre com menosprezo e escar- 
neo, acerca da expedição portugueza contra o in- 
vencível Gungunhana.» 

O illustre explorador Emilio Holub publicou na 
New Freie Presse, de Vienna, um artigo em que 
avultavam algumas inexactidões, mas que era real- 
mente honroso para Portugal : 

Pôde avaliar-se por este trecho : ' 

«A attitude dos portuguezes é a todos os res- 
peitos digna de louvor, até no proceder dos solda- 
dos em face do inimigo batido, de modo que mui- 
tos bandos — facto raro na historia da táctica dos 
zulus — depozeram as armas diante dos portugue- 
zes. Os mais importantes episódios d'esta guerra 
foram: o ataque da principal columna portugueza 



2 9 8 

sobre um destacamento zulu, que regressava com 
uma rica preza e em que os regimentos cfeste des- 
tacamento soffreram uma completa derrota, e a pri- 
são do Gungunhana e do seu filho Godide, pela 
força do capitão Mousinho. 

«Com a derrota do Gungunhana livrou Portugal 
a sua colónia do sul d'Africa dum temido contrario 
e as tribus negras, que lhe tinham ficado fieis, do 
seu peior inimigo, mas além d^sso Portugal merece 
os agradecimentos do mundo civilisado pela sua vi- 
ctoria, que poz termo m definitivo as crueldades do 
Gungunhana.» 

Da Allemanha a Gaveta do Norte e a Gaveta 
de Colónia publicavam também largos artigos acerca 
das nossas ultimas campanhas d' Africa, postas em 
evidencia pela audácia excepcional de Chaimite. 

Explicando o êxito da expedição de Mousinho 
d'Albuquerque pelo effeito moral das victorias obti- 
das pelas nossas tropas e pelo desalento supersti- 
cioso dos vátuas, que suppunham os nossos solda- 
dos protegidos pelo feitiço da invulnerabilidade, a 
Gaveta de Colónia dizia: 

«Depois d'esta descripção, publicada muito antes 
dos últimos successos, apparece o feito de 5o portu- 
guezes prendendo o Gungunhana e espingardeando 
dois dos seus principaes conselheiros na presença de 
3.000 vátuas, cousa de todo o ponto espantosa. Nós 
não acreditamos facilmente em milagres e procurá- 
mos por isso a explicação natural do caso.» 

Emfim, fosse como fosse, a verdade incontro- 
versa era que o Gungunhana estava preso e fora 
aprisionado por Mousinho com 46 soldados e 3 offi- 
ciaes. 

A incrível noticia fora confirmada a alguns go- 
vernos europeus pelas informações telegraphicas dos 
seus cônsules em Lourenço Marques. 

Reconhecida a authenticidade do facto, muitos 



2 99 

governos estrangeiros felicitaram o nosso pela bri- 
lhante conclusão da guerra. E' dever de justiça re- 
gistrar que foram do governo inglez as felicitações 
de mais alta significação politica. 

Nunca nenhuma das nossas modernas campa- 
nhas ultramarinas interessara tanto a Europa e ti- 
vera a sombra sequer de uma celebridade assim ! 

.A. 

# * 

Mas como se realisára afinal a façanha de Chai- 
mite ? 

Conta-o na sua modesta singeleza o relatório de 
Mousinho d'Albuqurque, datado de 16 de janeiro de 
1896, e publicado em Lisboa em 17 de março, no 
mesmo Diário do Governo, em que se dava publi- 
cidade a este telegramma do governador interino de 
Moçambique : 

«Chegou Mousinho. Território Maputo perfeita- 
mente submettido em resultado razzias constantes 
feitas por Mousinho, que percorreu todo o territó- 
rio desde Inhaca até á fronteira ingleza e Mussuati, 
em marchas forçadas com a cavallaria. Apprehen- 
didas cerca de mil cabeças de gado. Já cobrada a 
contribuição de guerra de 1:800 libras. A cobrança 
continua. O regulo refugiado em território inglez. 
Em Maputo, alem da guarnição indígena, ficaram 
40 praças europêas.» 

Faltava-lhe provar que a cavallaria servia para 
alguma cousa. Provou-o. 

Vejamos agora como se effectuou a prisão do 
Gungunhana. 

No seu relatório, Mousinho d' Albuquerque indica 
os esforços do tenente Sanches de Miranda para 
aprisionar o regulo da Zixaxa, que se julgava refu- 
giado em Xissano. O tenente Miranda era então o 
commandante do posto de Languêne, a 70 milhas 



3 oo 



da foz do Limpopo. Preso o rebelde, Sanches de 
Miranda, um dos officiaes que melhor estudou e co- 
nhece o paiz de Gaza, empenhava-se em descobrir 
o paradeiro do Mahazuli e conseguiu saber que era 
no território do Mogudugudo, neto do regulo Ma- 
jioli. 

Era com o tenente Miranda e com a gente do 
posto de Languêne que Mousinho d'Albuquerque 
mais contava para o seu arrojadíssimo commetti- 
mento. 

A força moral adquirida era enorme. Cincoenta 
e dois régulos haviam prestado vassallagem e foram 
pagar pé (tributo do vassallo ao suzerano), mas o 
Gungunhana ainda era temido e Mousinho não po- 
deria dispor senão dum punhado de homens. De 
Inhambane tinham-lhe mandado dizer que não po- 
diam dar-lhe reforços. De Lourenço Marques re- 
commendavam-lhe uma prudente espectativa. 

Mas elle próprio nos pôde dizer melhor qual era 
a sua situação e como levou a cabo a heróica aven- 
tura. 

«Sou obrigado a dizer a v. ex. a , que ao receber 
esta resposta fiquei desanimadissimo. Nada estava 
disposto por forma a favorecer o aprisionamento do 
regulo vátua. Basta olhar para a carta e saber que 
estavam occupados apenas um posto no Inharrime, 
outro no Chicomo, outro no Languêne (além da li- 
nha de postos no Incomati, quanto a mim inúteis 
pela maior parte), e que a Capello não tinha pas- 
sado do Changane, para ver a facilidade com que 
o regulo podia fugir ou para oeste ou para o norte. 
Com gente a cavallo parecia-me possível, embora 
arriscado e de êxito muito duvidoso o persegui-lo; 
com gente a pé afigurava-se-me impossível captu- 
ral-o. 

Confesso a v. ex. a , que ainda outra rasão, me- 
nos ponderosa por certo, concorria para me des- 
animar. Official de cavallaria ha vinte annos, e quasi 
o único que durante algum tempo insistia pelo em- 




SANCHES DE MIRANDA 

fl ■ Unenle de arti heria/ 



3oi 



prego d'esta arma em Africa, tinha visto o esqua- 
drão do meu commando tão inal tratado pela sorte 
e reduzido a um papel tão insignificante na columna 
do norte, por motivos que não sei, nem me caberia 
apreciar, que desejava muito ao menos que a uma 
força d'esse esquadrão coubesse a honra de levar a 
effeito um commettimento, que rematasse condigna- 
mente a campanha, tão brilhantemente encetada com 
o combate de Marracuene. A resposta do capitão 
commandante do destacamento mixto de Inhambane 
destruía de todo esta esperança. 

Ainda os exemplos de outras guerras de Africa 
augmentavam o meu desalento. O Katchwayo, num 
paiz muito menor que o de Gaza, escapara durante 
um mez á perseguição do 3.° regimento de dragões 
e da cavallaria irregular. Lo-Bengula escapara ao 
major Forbes, depois de haver anniquilado os trinta 
cavallos de Wilson ; como poderia eu agarrar o 
Gungunhana com umas cincoenta praças a pé, úni- 
cas validas de que podia dispor ? 

Entretanto todos os chefes que vinham pagar pé 
me pediam que prendesse o regulo vátua porque 
emquanto elle estivesse livre elles não teriam um 
momento de socego; todos os dias vinham queixas 
dos roubos e a$sasinatos que o regulo mandava 
perpetrar em volta de Manguanhana. Por outro 
lado eu tinha e tenho a convicção de que com pre- 
tos um acto de audácia, embora temerário, é quasi 
sempre bem succedido, porque lhes produz uma 
grande impressão e fal-os perder de todo a força 
moral. 

A Capello, que tinha ido á barra buscar carvão, 
chegou a Languéne no dia 24. Resolvi partir logo 
que pudesse e mandei reunir os auxiliares mais 
próximos e de quem suppunha dever desconfiar 
menos, por se acharem já muito compromettidos 
comnosco, no dia 26 de madrugada. Podia ter reu- 
nido muitos centos, talvez dois ou três milhares de 
pretos, mas a curta experiência que tinha adquirido 
na columna do norte ensinava-me que os auxiliares 



3o2 



só em pequeno numero são úteis, porque, somente 
sendo poucos, se podem até certo ponto dirigir. 

O tenente Miranda commandava a força euro- 
pêa, o tenente graduado Couto os auxiliares. O dr. 
Amaral acompanhou a força, levando alguns recur- 
sos médicos e quatro macas improvisadas com umas 
peças de algodão branco que existiam no posto. 



Como v. ex. a vê, tinha-se enraizado no meu es- 
pirito a idêa de que eu havia de prender ou matar o 
Gungunhana dentro de poucos dias, ou a pouco e 
pouco todo o prestigio que resultou para as nossas 
armas dos combates de Marracuene, Magul (7 de 
setembro), do bombardeamento das povoações mar- 
ginaes do Limpopo, e principalmente do combate 
ae Coolella (7 de novembro) e incêndio de Manja- 
case (1 1 de novembro), se iria obliterando no animo 
d'estes povos, e, o regulo iria reunindo gente de 
guerra, recuperando forças e fazendo voltar á obe- 
diência muitos dos que, movidos pelo terror, o ti- 
nham abandonado. Bastaria para isso elle fazer pe- 
2uenas correrias por todo o vastíssimo território de 
raza. D'ahi proveiu eu tomar a resolução inabalá- 
vel de acabar por uma vez com o regulo vátua, fos- 
sem quaes fossem os recursos com que podia con- 
tar, os perigos a correr, e as probalidades de êxito 
da empreza. E seja-me licito n'este ponto affirmar 
que esta resolução, calando fundo no animo dos 
officiacs e praças que me acompanhavam, e eviden- 
ciando-se aos indígenas, que muito se espantaram 
da exiguidade das forças de que eu dispunha para 
uma empreza que se lhes afigurava tanto mais pe- 
rigosa quanto era grande o medo que o regulo ainda 
inspirava, foi o principal factor do aprisionamento 
doeste potentado, porque incutiu nas praças um en- 
thusiasmo que os fez vencer fadigas e arrostar pe- 
rigos com uma alegria e boa vontade deveras sur- 




COSTA E COUTO 
■(Tenente graduado do exercito do Africa/ 



II. 



3o3 



prehendentes, attendendo para mais ao mau estado 
de saúde de maior parte. 

No dia 25 á uma hora (p. m.) embarcou na 
lancha-canhoneira Capello, o primeiro tenente San- 
ches Miranda, levanao sob o seu commando o fa- 
cultativo de i. a classe Amaral, 5 praças" da brigada 
de montanha, 3 de artilheria 3, 4 de artilhena 4, 
37 de infanteria 2 e 1 soldado indígena, o n.° 3g da 
2. a companhia de caçadores n.° 3 de Africa. 

No dia 26 ás cinco horas (a. m.) marchei por 
terra com o tenente graduado Couto, o soldado de 
cavallaria n.° 1, n.° 84 da i. a companhia, o inter- 
prete João Massablana, o soldado indígena da po- 
licia de Moçambique n.° 14, 207 auxiliares de Lan- 
guene, Chai-Chai, e Lofogasi, a quem mandei dei- 
xar no posto as armas de fogo que traziam (Martini 
Henry, Albini e de carregar pela bocca), e 76 carre- 
gadores que levavam arroz, temperos e vinho, que 
chegariam para dez dias, reduzindo as rações de 
5o por cento. N'esse mesmo dia pelas quatro horas 
(p. m.) chegámos a Zimacaze, cerca de 3 milhas a 
montante da foz do Changane onde a Capello nos 
esperava. 

Durante a marcha vários chefes Ma-Buingella e 
Manguni, dos que tinham já ido pagar pé a Lan- 
guene, se apresentaram com as suas guerras, pe- 
dindo para nos acompanhar (certamente com a mira 
na pilhagem de mulheres e gado, em caso de êxito), 
o que primeiro recusei, mas ao que, em vista do 
muito que instavam, tive que acceder, embora com 
repugnância, e só depois de verificar que não tra- 
ziam armas de fogo. Cheguei assim a Zimacaze 
com perto de i.5oo a 1.800 auxiliares. 

Também durante a marcha, ás onze horas (a. 
m.), vieram dois enviados do Gungunhana (os mes- 
mos que tinham ido a Languene no dia 19), tra- 
zendo duas pontas de marfim para mim e 6 libras 
para as mulheres do Muambaxéca. Vinham pedir a 
este que intercedesse para que eu esperasse no va- 
por pelo regulo, que queria ir lá pagar pé e fazer 



3 04 

paz. Não recebi as libras por não estar presente o 
destinatário e respondi que esperaria, mandando 
com os enviados cio regulo um irmão do secretario 
de Languene para trazer ao vapor a resposta, ob- 
servando ao mesmo tempo o que podesse quanto 
ás forças que o cercavam, defeza da povoação, etc. 
O regulo dizia-se ainda próximo ao Manguanhana, 
a umas seis horas de Chaimite. 

Confesso que quando cheguei a bordo estive um 
tanto perplexo. Se marchasse n'aquella noite podia 
o regulo, avisado a tempo, fugir, e eu perder assim 
a occasião de o haver ás mãos, e expunha a tropa 
ás fadigas e privações que demandava uma perse- 
guição demorada. Por outro lado não acreditava 
na sinceridade do Gungunhana, e receiava que elle 
apenas quizesse ganhar tempo para fugir, tanto 
mais que durante a noite, apezar da chuva, viam-se 
nos montes mais altos fogueiras, evidentemente para 
dar signal da presença da lancha. 

Felizmente um facto inesperado veiu acabar com 
esta indecisão. 

Durante a tarde tinham chegado mais guerras, 
e á noite chegou a de Culo ou Cuio (irmão do Mu- 
zilla). 

A's doze horas da noite um preto gritou de terra 
que queria vir a bordo; mandei-o buscar. Era um 
homem de Cuio que vinha dizer que o Gungunhana 
aproveitara a saída da gente de guerra da povoação 
d'aquelle para o mandar prender pelo chefe Vuiâna, 
cuja povoação ficava a duas ou três horas de Zuia- 
caze, no caminho de Chaimite. 

Dei logo ordem para que ás três horas (a. m.) 
se eífectuasse o desembarque, a despeito da chuva 
€ escuridão, mandando ás duas horas e trinta mi- 
nutos dar café ás praças. 

Eram quatro horas (a. m.) quando começámos 
a marcha, passando um pequeno pântano, com 
agua pelo joelho, e subindo uma encosta cheia de 
lodo, caniço (mangal) e arbustos, onde a marcha 
era difficil e muito incommoda. 



3o5 



Levando só 47 praças brancas (2 tinham adoe- 
cido a bordo), dispuz a força da forma seguinte : 6 
praças da i. a fileira e 6 da 2.% quando se formasse 
quadrado, formavam a face da frente, 12 praças da 
i. a fileira a face da esquerda, e 12 da 2. a fileira a 
da direita; o resto da i a e da 2. a fileiras formavam 
a face da rectaguarda. 

Assim, a marcha com 2 homens de frente equi- 
valia ás columnas duplas que vira usar na columna 
do norte, apenas com a suppressão do intervallo que 
a exiguidade da força tornava dispensável. 

Em caso de alarme o quadrado formava em 
menos de um minuto. 

Logo no couce da columna iam dois carregado- 
res com cunhetes (1.100 cartuchos), e as duas pra- 
ças indígenas, com ordem para entrar para dentro 
do quadrado, logo que elle se formasse. 

Seguiam os outros carregadores e os homens 
com machados. 

Cada carregador levava a tiracollo o capote de 
uma praça, emmalado no encerado respectivo. Os 
carregadores tinham ordem para se deitar no chão 
logo que ouvissem tocar a corneta. 

Na véspera fizera passar o rio somente aos 207 
auxiliares do Chai-Chai, Languene e Lofogasi. A 
guerra de Cuio estava também na margem es- 
querda. 

Quando marchei mandei dizer ás guerras que 
tinham ficado na margem direita que, se quizessem, 
voltassem para casa, senão que passassem o rio e me 
viessem alcançar na marcha, posto que nada preci- 
sava d'elles, porque os brancos que levava bastavam 
para bater todo o Bilene. 

Esta verdadeira hespanholada, junta, de certo, 
ás recordações que muitos tinham de Coollela, pa- 
receu dar-lhes confiança, e, repito, supponho que 
na mira da pilhagem, todos passaram de madru- 
gada o rio, e pelas oito horas juntavam-se a nós. 

A guerra preta marchou da forma seguinte : a 
200 metros á frente a guerra de Cuio, a 200 me- 



3o6 



tros para a direita a do Chai-Chai, e a 200 para a 
esquerda as de Languene e Lofogasi. Estas distan- 
cias diminuíam constantemente, porque os pretos, 
ou por medo, ou fosse pelo que fosse, tendiam para 
se encostar á forca branca. 

Pelas sete horas (a. m.) avistou-se a N. do ca- 
minho, a povoação do Vuyâna. Mandei então se- 
guir a força europeia pelo caminho, e, com o te- 
nente graduado Couto e o interprete, fui juntar-me 
á guerra de Cuio, para a fazer avançar contra a 
povoação. A principio deixaram-me ir na frente a 
uns 20 ou 3o metros de distancia, mas logo que, 
com o grande alcance de vista de que dispõem, 
perceberam que na povoação não estava gente de 
guerra, correram sobre ella como galgos. 

Quando lá cheguei dois homens estavam aza- 
gaiados no fígado, e a gente de Cuio andava jun- 
tando as mulheres e creanças e saqueando as pa- 
lhotas. N'isto appareceu um homem, que escapara 
não sei como, dentro do curral do gado, dizendo 
que o Vuyâna não era tão culpado como preten- 
diam, mas como eu não tinha vagar para resolver 
milandos n'aquella occasião, limitei-me a mandar 
soltar todas as mulheres e creanças, pousar no 
chão todos os objectos roubados, excepto comida, 
e apartar da manada do Vuyâna dez bois para o 
Cuio, como indemnisação, e dez vaccas para o go- 
verno, como multa. Em seguida mandei a guerra 
de Cuio passar outra vez para a frente dos bran- 
cos, que haviam feito alto. 

Esquecia-me dizer que, transposta a encosta de 
que atraz fallei, achamo-nos n'uma planície exten- 
síssima e muito descoberta. O solo era duro, e com 
a chuva tornára-se muito escorregadio. A erva, não 
muito alta, estava encharcada. Durante a marcha 
fortes pancadas de agua alternaram com um sol 
abrazaaor, de forma que, officiaes e praças, mar- 
chando todos a pé, acompanhando os pretos com 
uma velocidade não inferior a 10 ou 12 minutos por 
kilometro, ora íamos encharcados em agua, ora es- 



3c>7 

correndo em suor. Como não queria perder tempo? 
continuei marchando sem descanço até ás onze ho- 
ras (a. m.) Appareceram-me então dois enviados 
do Gungunhana, os indunas Zaba e Sucanáca, tra- 
zendo de presente 56o libras (das quaes 3o para o 
Muambaxeca e 3o para o secretario) e algumas pon- 
tas de marfim. Diziam que o regulo me pedia muito 
que não avançasse mais, que elle viria á tarde pa- 
gar pé e falar de paz com o rei, seu pae. Respondi- 
lhes que o regulo era muito gordo e eu muito ma- 
gro, por isso avançaria mais para lhe poupar fadi- 
gas, e que viesse elle trazendo um saguate (pre- 
sente) que eu não me envergonhasse de mandar 
ao rei. Mandei a resposta pelo Sucanáca, conser- 
vando o Zaba preso. N^ssaoccasião appareceu o 
homem de Languene, que na véspera acompanhara 
os dois enviados do Gungunhana, e que eu já sup- 
punha ter sido morto por este. 

Depois de 3o minutos de descanço, prosegui na 
marcha até á uma hora (p. m.). Tínhamos assim 
feito oito horas úteis de marcha a passo mais que 
ordinário; estávamos exhaustos. Os carregadores, 
só á força de pranchada se conservavam junto á 
columna, e até a gente de guerra se sentava com 
frequência para descançar alguns momentos. Re- 
solvi, portanto, bivacar um pouco a O., por saber 
que ficava ali a lagoa de Moatacane. 

Fui adiante escolher o sitio para o bivaque, que 
era de todo descoberto, com um campo de tiro es- 
plendido, ficando a força a uns 20 metros da lagoa, 
que é enorme (seis a oito vezes a de Coollela) em 
largura e cumprimento, e bastante profunda. A 
agua não seria, talvez, das peiores, mas a gente de 
guerra (já então mais de 2.000, porque Zugoiusa, 
irmão do Muzilla, e outros chefes se nos tinha jun- 
tado), entrou por ella dentro, lavando-se, bebendo 
a agua e revolvendo o lodo, o que fez com que 
fosse preciso depois deixal-a assentar mais de meia 
hora antes de se poder beber. 

Dispuz o bivaque em quadrado com duas senti- 



3o8 



nellas em dois ângulos oppostos. Quanto aos pre- 
tos, ficaram os carregadores junto ao quadraao e 
as guerras a 200 metros em volta d'elle, separadas 
umas das outras e com postos avançados até 400 
metros do quadrado. Foi o tenente graduado Couto 
que, com não pequeno trabalho, dispoz assim as 
forças indígenas. 

Eram cinco horas (p. m.) quando voltou o Su- 
canáca acompanhado de Godide, filho do regulo, 
que trazia sessenta e três cabeças de gado bovino, 
5 10 libras, duas grandes pontas de marfim e as dez 
mulheres do Matibejana. Trazia um pedido do re- 
gulo para que eu não avançasse mais, novos pro- 
testos de que elle mesmo viria n'essa noite ou na ma- 
nhã seguinte. Respondi que eu ficava ali toda a 
noite e todo o dia seguinte á espera do regulo, que 
se elle não viesse, o Godide e o Zaba seriam fuzi- 
lados, e que eu não avançaria mais porque os bran- 
cos já não podiam marchar de cançados que esta- 
vam. 

Esta resposta dei-a, calculando que o regulo 
queria apenas ganhar tempo, e que o Sucanáca lhe 
iria affirmar que o cansaço nao nos permittiria 
avançar. 

> 

Effectivamente, o aspecto do bivaque parecia 
confirmar o que eu dissera; o tenente Miranda ex- 
tenuado, abrazado em febre, vomitava constante- 
mente a agua com que tentava mitigar a sede; os 
soldados dormiam estirados sobre os capotes, tão 
cançados, que muitos nem quizeram comer o ran- 
cho, embora só tivessem comido bolachas desde as 
três horas da madrugada; eu mesmo estava deitado 
e de todo estafado. O Sucanáca dizia que o regula 
estava ainda muito longe, mas tudo me levava a 
crer o contrario. 

Chovera quasi toda a noite. Eu pouco tinha dor- 
mido, e cada vez se enraizava mais no meu espirita 
a idêa de não voltar atraz, senão com o regulo apri- 
sionado ou com a sua cabeça, e por isso ás três 
horas (a. m.) mandei levantar as praças e os carre- 



3(X) 

gadores, enrolar os capotes, e marchámos ás qua- 
tro horas (a. m.). 

O tempo melhorara, e a gente de guerra logo 
que ouviu movimento no nosso bivaque, levantou-se 
para nos acompanhar. O terreno continuava a ser 
descoberto e plano, o chão duro. Apressei a mar- 
cha por forma que varias vezes fomos em accele- 
rado. 

Appareceram pela nossa frente umas três man- 
gas de guerra, gente que evidentemente estava com 
o Gungunhana, mas cujos chefes vieram a correr 
declarar que pagavam pe e pediam para nos seguir. 
Essa gente disse que o Gungunhana estava no 
Chaimite, para onde fora, afim de fazer sobre a 
sepultura de seu avô Manicusse, diversas ceremo- 
nias, para arranjar feitiço que impedisse de desco- 
brir onde elle estava. 

Pelas seis horas e trinta minutos (a. m.) avistá- 
mos Chaimite no meio de um terreno arenoso, cheio 
de marçala e morros de muchem, portanto muito # 
facilmente defensável. Então apressei a marcha ainda 
mais, apesar das guerras indigenas começarem a 
deixar-se ficar para a rectaguarda ou por terem 
medo que o regulo se defendesse ou influenciados 
pelo prestigio que elle ainda tinha, conseguindo, só 
á força de distribuir espadeiradas, fazer avançar al- 
guma gente comnosco. N'essa occasião duas praças 
brancas cahiram exhaustas, mas eu não poaia de- 
morar-me um momento que fosse, e por isso a mar- 
cha continuou sem haver a minima interrupção. Es- 
sas praças foram levadas pela gente da guerra preta 
para a rectaguarda, e passaram o resto do dia e a 
noite na povoação do Guio, reunindo á força no dia 
seguinte. A uns dez minutos da povoação dei ordem 
para que as guerras formassem um cordão em volta 
delia, e que só entraria dentro a força branca. Os 
pretos assim fizerem, ficando a uns ioo metros da 
paliçada que cercava as palhotas. 

A povoação de Chaimite, onde foi enterrado 
Manicusse, tinha umas vinte cinco a trinta palhotas 



3io 



cercadas por um paliçada de i m ,5 de altura, tendo 
entrelaçados nas estacas muitos arbustos espinho- 
sos. 

Era uma espécie de cidade santa dos vátuas, 
e deviam ter-se ali passado scenas de grande car- 
nificina, tanto antigas como muito recentes, porque ao 
approximarmo-n'os da povoação encontrámos algu- 
mas caveiras humanas já brancas, ao mesmo tempo 
que se sentia um cheiro muito intenso a carne po- 
dre, e os pretos disseram depois que no matto es- 
tavam vários cadáveres. Dava ingresso na povoa- 
ção uma única entrada de não mais de 40 centíme- 
tros de largura. 

Corri para ahi á frente dos brancos, ao passo 
que o circulo dos pretos se ia apertando a pouco e 
pouco. Entrei na frente, seguido pelo tenente gra- 
duado Couto, dr. Amaral, tenente Miranda e inter- 
prete. Julguei logo que entrei que o regulo se de- 
fenderia, porque vi encostados á paliçada do lado 
interior, alguns pretos com espingardas, parecendo 
preparar-se para fazer fogo. Como trazia a espada 
na mão, corri logo sobre elles, e ou fosse porque 
já tivessem de todo perdida a força moral, ou por 
verem logo atraz de nós a testa da columna que 
derrubara as estacas lateraes da entrada, é certo 
que nenhum fez fogo, deitando todos a fugir e su- 
mindo-se nas palhotas. Este acto de cobardia dos 
pretos foi providencial, pois fuzilando-me a 10 me- 
tros de distancia (que maior não era a que me se- 
parava d'elles), teriam provavelmente morto todos 
os officiaes, os auxiliares teriam fugido logo, a as 
praças brancas, sem ter quem os dirigisse, teriam 
provavelmente sido trucidadas pelos 2.5oo ou 3. 000 
pretos que depois vi que estavam dentro da povoa- 
ção. 
» 

Vendo, logo que os pretos fugiram, sahir de 
uma palhota próxima um homem de coroa, pergun- 
tei-lhe pelo Gungunhana, e elle apontou-me para a 
mesma palhota de onde sahira. Cnamei-o muito de 
alto no meio de um silencio absoluto, preparandò-me 



3u 



para lançar fogo á palhota, caso elle se .norasse, 
quando vi sahir de lá o regulo vátua, qu os tenen- 
tes Miranda e Couto reconheceram logo, por o te- 
rem visto mais de uma vez em Manjacaze. 

Não se pôde fazer idêa da arrogância com que 
elle se apresentou e do tom desdenhoso com que 
respondeu ás primeiras perguntas que lhe fiz. 

Mandei-lhe prender as mãos atraz das costas por 
um dos dois soldados pretos e disse-lhe que se sen- 
tasse. Perguntou-me onde, e como eu lhe apontasse 
para o chão, respondeu-me muito altivo que estava 
sujo. Obriguei-o então á força a sentar-se no chão 
(cousa que elle nunca fazia), dizendo-lhe que elle já 
não era regulo dos manguni, mas um matonga como 
qualquer outro. Quando o viram sentar, a guerra 
preta que a esse tempo já se tinha vindo encostar 
ao lado exterior da paliçada, além dos que tinham 
trepado ás arvores e ao tecto de algumas v palhotas 
isoladas que havia no exterior, mesmo próximo á 
paliçada, levantaram grande alarido, batendo com 
as zagaias nas rodelas em signal de applauso e es- 
panto. Perguntei ao regulo por Quêto, Manhune, Mo- 
lungo e Maguiguâna. Mostrou-me o Quêto e o Ma- 
nhune, que estavam ao pé d'elle, e disse que os 
outros dois não estavam. 

Exprobrei a Manhune (que era a alma damnada 
do Gungunhana) o ter sido sempre inimigo dos por- 
tuguezes, ao que elle só respondeu que sabia que 
devia morrer. 

Mdndei-o então amarrar a uma estaca da pali- 
çada e foi fuzilado por três brancos. Não é possí- 
vel morrer com mais sangue frio, altivez e verda- 
deira heroicidade ; apenas disse sorrindo que era 
melhor desamarral-o para poder cahir quando lhe 
dessem os tiros. 

Depois foi Quêto. Elle fora o único irmão do 

Muzilla que quizera a guerra contra nós, e o único 

que fora ao combate de Coollela. Não tinha vindo 

pagar pé, como tinham feito Inguinsa e Cuio, seus 

irmãos. 

20 



3l2 



Dizendo-lhe eu isto, respondeu que não podia 
abandonar o Gungunhana, a quem tinha creado 
como se fora pae, retorquindo-lhe eu, que a quem 
desobedecia e fazia guerra ao Rei de Portugal de- 
viam pae, mãe e irmãos abandonal-o. 

Mandei-o amarrar também e fuzilar. 

Estas duas execuções produziram na guerra preta 
um enthusiasmo indescriptivel, que manifestaram 
com ruidosos e repetidos bahctes, o que mostra bem 
que elles confundem perfeitamente a força e cora- 
gem com a crueldade, e que é absolutamente ne- 
cessário d'estes exemplos para os dominar e fazer- 
mo-nos respeitar. 

Veiu então a mãe do regulo Impincazamo, ar- 
rastando-se de joelhos, pedir-me que não matasse o 
filho, nem o Godide, que ambos ella creára. Esta 
mulher mostrara -se sempre amiga dos portuguezes 
e muito opposta á guerra. 

Disse-lhe que acerca do regulo só o rei podia 
resolver, mas que o Godide seria poupado e acom- 
panharia o pae por ella o ter pedido; e quanto a ella, 
por ter sido sempre amiga dos portuguezes, podia 
voltar para a sua povoação, que eu a ninguém con- 
sentiria lhe fizesse mal. 

O regulo perdera toda a arrogância depois da 
morte do Quêto. Disse que dava tudo que tinha, e 
entregou 1.000 libras e 8 diamantes. 

Mandou recado ao filho Ipsota para trazer todo 
o gado que levara mais para longe, e mandou igual- 
mente procurar mais marfim a Manjacaze, onde fi- 
cara enterrado, dizendo que assim esperava que o 
rei lhe perdoasse a morte. O portador doestas or- 
dens foi o Zaba, que eu mandara soltar. 

Mandei então passar busca ás palhotas, onde se 
encontraram as armas constantes da relação junta. 
Supponho que muitas deviam ter ainda por lá ficado, 
mas a muita chuva que voltara a cahir e a grande 
distancia a que me achava do Limpopo impediram- 
me maior demora.» 



3i3 



Depois de uma fatigante marcha de regresso, 
a pequena expedição europêa embarcou em Zima- 
coze. Mousinho descreve assim o embarque: 

«Embarcada a força europêa e os presos, toda a 
gente de guerra formou ao longo da margem direita 
do rio. 

Levantei a bordo quatro vivas, a El-Rei, á famí- 
lia real, á armada real e ao exercito, enthusitica- 
mente correspondidos pelas praças da marinha e do 
exercito que estavam armadas e debaixo de forma 
no spareaeck, e em seguida a gente de guerra sol- 
tou três bahetes, saudação que eu lhes tinhas feito 
explicar se dirigia n'aquella occasião a El-Rei. De- 
pois cantaram o Incuáia, acabando por uma tor- 
rente de insultos da mais requintada torpeza áquelle 
de quem havia poucos dias tremiam com medo. 

Deixei expandir assim a natural villeza de senti- 
mentos dos pretos, não para atormentar um prisio- 
neiro, já moralmente aniquilado, mas para que os 
indígenas tivessem bem a consciência de que o 
prestigio e auctoridaie do regulo acabara de todo 
e por uma vez. 

Seguiu-se uma salva de 21 tiros e a Capello le- 
vantou ferro, chegando a Languêne ás três horas e 
trinta minutos (p. m.), depois de uma viagem ma- 
gnifica sem um único encalhe.» 



O glorioso heroe de Chaimite justifica admira- 
velmente e com rara franqueza o seu procedimento 
no ultimo kraal do Gungunhana. 

Oucamo-Fo : 

«Assim se levou a eífeito a prisão do celebre 
Gungunhana e acabou o predomínio do ultimo dos 
três povos guerreiros e poderosos, independentes 
de facto, que existiam na Africa Austral : Zulus, 
Matabelles e Vátuas. 



3i4 

Muita gente por certo fará não poucas censuras 
á maneira como dirigi e commandei este golpe de 
mão: un^ classifical-o-hão, attenta a exiguidade da 
força branca, de loucura que só quasi por milagre 
teve bom êxito; outros chamar-me-hão cruel e san- 
guinário por ter fuzilado os dois prisioneiros. Pare- 
ce-me, porém, de justiça attender ao seguinte : te- 
merária ou não, similhante surpreza era indispensá- 
vel e urgente, sob pena de ficarem as forças expe- 
dicionárias, e, portanto, o exercito e a nação, de todo 
desprestigiadas perante os indígenas de Gaza e a 
gente do Transvaal, Orange, Natal e Gabo. Sei 
perfeitamente que esta operação foi levada a cabo, 
sem pôr em pratica muitos dos preceitos que os re- 
gulamentos militares determinam, mas nem a pouca 
força de que dispunha podia dar um serviço de se- 
gurança regular, nem a empreza era d'estas que 
demandam prudência; era um verdadeiro jogo; ou 
lá ficávamos todos, ou conseguíamos agarrar o re- 
gulo; o que era preciso era andar depressa e não 
haver hesitações. Sacrifiquei a isso todas as consi- 
derações de prudência. 

Com respeito ao fuzilamento dos dois prisionei- 
ros, limito-me a dizer que é muito nobre, muito 
justo, muito alevantado, sustentar os princípios da 
mais acrisolada philantropia e humanitarismo num 
parlamento, numa assembléa qualquer, numa re- 
dacção de jornal entre concidadãos nossos que pen- 
sam e sentem como nós, e ainda por cima mantidos 
em respeito por numerosas forças do exercito, da 
armada e da policia militar e civil ; é porém muito 
differente o caso em que se achavam 5o brancos 
no meio de cerca de 3:ooo pretos, ainda hontem 
nossos inimigos. Se não mandasse matar ninguém, 
todos os cafres supporiam que ainda tinha medo 
do Gungunhana e voltariam a dizer: «portuguez é 
mulher, não mata ninguém». Esta é a maneira bar- 
bara e absurda porque elles encaram as cousas. 

De resto ainda outra rasão influiu em mim 
quando mandei fuzilar o Quêto. 



3i5 



A constituição rudimentar da sociedade vátua 
era aristocrática, com visos de feudalismo 4 . 

Quando me contavam o que se passava entre 
os vátuas, parecia-me estar ouvindo narrativas dos 
tempos merovingios em França, representando os 
matonga o papel dos Gallo-Romanos. Ora Quêto 
era dos irmãos do Muzilla o mais attendido pelo 
Gungunhana, e era depois do Jambui o mais pode- 
roso dos que poderíamos chamar os grandes vassal- 
los da coroa vátua, e tanto assim que Inguinsa, seu 
irmão e os filhos do Cujo, seus sobrinhos, quando 
o viram cahir disseram: «branco sabe tudo, até adi- 
vinhar quem devia matar». 

No dia 29, pelo cahir da tarde, chegaram um filho 
e um secretario do Jambui, dizendo que vinham 
com o fim de adquirir a certeza de que o recado 
recebido pelo regulo do Lipallula era deveras meu. 

Talvez ao regulo houvesse já constado a marcha 
para Chaimite, e mandava ver qual tinha sido o 
resultado. Disseram-me que o regulo não vinha 
ainda, porque sendo gordíssimo, o que eu sabia ser 
verdade 2 , precisava que o trouxessem, mas que 
viria logo que eu quizesse. Mandei-lhe dizer que ia 
agora a Fumo (Lourenço Marques) levar o Gun- 
gunhana, e que em voltando e em tendo a minha 
povoação no Chibutze lhe mandaria recado para 
elle mesmo vir pagar pé, para ir um official depois 
escolher local para um posto fortificado para a 
força branca, e fazer o recenseamento para elle pa- 
gar o imposto de palhota que eu fixasse. 

Tudo acceitaram de bom grado e asseguraram 



1 Por exemplo, direito de representação nas banjas dado 
só pela posse de terras, razão porque o Maguiguana que era 
o chefe de guerra não ia as banjas, porque sendo buingella 
não era senhor de terras. 

2 Caldas Xavier (Territórios ao sul do Sove e os vátuas), 
um dos boletins da sociedade de geographia de Lisboa, 1894. 
— (Notas do relatório.) 



3i6 



que o regulo havia muito desejava que fosse para 
lá forca branca 4 .» 



A'cerca dos officiaes e praças de pret do seu 
heróico destacamento, diz o bravo official com 
aquelle sentimento da justiça e grandeza d'animo, 
que são o realce da sua excepcional valentia : 

«Por ultimo, não posso terminar este relatório 
sem dizer que se eu me metti na empreza de pren- 
der o Gungunhana com recursos tão escassos, foi 
somente por me ver na absoluta necessidade de o 
fazer: mas os três officiaes, que me acompanharam, 
deram uma prova evidente de muita subordinação 
e brio militar, partindo para ella sem a minima 
observação, nem signal de descontentamento, quando 
todos estávamos bem convencidos de que o êxito 
era muito duvidoso, e que o menor contFatempo 
teria como resultado o sacrifício das vidas de quan- 
tos europeus marchavam. Não menos provaram o 
seu zelo e boa vontade na maneira como trabalha- 
ram para que tudo corresse bem, e na inalterável 
alegria e constância com que supportaram a fadiga 
e incommodos, a que, mau grado meu, não os 
poude eximir. Por esse motivo não hesito em pedir 
para estes officiaes uma recompensa condigna das 
qualidades, que revellaram. 

Quanto ás praças, comportaram-se de uma 
forma que merece todos os elogios, mostrando ser 
dignos camaradas dos soldados, que tive occasião 
de apreciar na marcha sobre Manjacaze e combate 
de Coollela. 



1 Isto concorda com as informações que me deu o alfe- 
res Villar, ex-commandante militar de Lipallula. — (Nota do 
relatório). 



3i 7 



* 



E aqui está como se realisou essa prodigiosa 
campanha de três dias, que não teve combates e 
que é, todavia, uma das mais celebres da nossa 
historia militar! 

Povo de valentes, os boers sabem perfeitamente 
o que seja intrepidez e o arrojo. Pois são de um 
jornal d'esse povo, a Semaine, supplemento em 
francez do jornal de Pretória, o Wolksstein, estas 
palavras enthusiasticas acerca do feito de Chaimite: 

«Gungunhana, o terrível, está preso e á sombra 
em Lourenço Marques. A historia da prisão é a 
mais heróica e o mais maravilhosa de todas as his- 
torias da guerra africana. 

« O heroe é o capitão Albuquerque e teem o seu 
quinhão de honra na acção os tenentes Sanches, d'ar- 
tilheria, e Couto. Estes bravos officiaes com 46 ho- 
mens de tropas europêas, sem guias e sem a ajuda 
de tropas nativas, marcharam três dias e três noi- 
tes auasi sem comerem, sob a chuva, á procura do 
regulo ! 

«O capitão Albuquerque entrou sósinho nokraal 
e perguntou pelo Gungunhana. Os negros aponta- 
ram as armas sobre o temerário e £>or momentos o 
capitão julgou-se perdido. De sabre desembainhado 
atira-se sobre os pretos, que baixavam as armas, 
crendo que todo o exercito portuguez estava perto. 
Gungunhana foi chamado, appareceu e foi feito pri- 
sioneiro diante de todo o seu povo. São trazidos 
todos os membros da sua família e feitos egual- 
mente prisioneiros. Um d'elles, recalcitrando, e im- 
mediatamente morto! Vendo preso o chefe, os ne- 
gros fazem a sua submissão a Portugal e o Gungu- 
nhana foi levado para bordo do Neves (Neuves diz a 
Semaine!) Ferreira t conduzido a Lourenço Marques. 
Aos próprios portuguezes custava-lhes a acreditar 



3i8 



na prisão do regulo! e no domingo muitos commer- 
ciantes banianes visitavam o Neves Ferreira para 
verem os prisioneiros. 

«Os jornalistas foram convidados a intervistar e 
o da Presse photographou os prisioneiros. 

«No domingo o capitão Albuquerque assistiu a 
um juntar em sua honra, offerecido pelos officiaes 
allemães do Syadler. 

«Na segunda- feira os prisioneiros foram entre- 
gues ao governador de Moçambique, diante dos côn- 
sules e dos officiaes dos navios de guerra surtos no 
porto. 

«Os cônsules assignaram documentos attestando 
a identidade do Gungunhana, depois de o terem 
interrogado. Elle dizia: «Sou Gungunhana e o ca- 
pitão Albuquerque fez-me prisioneiro». 

São ainda do mesmo jornal estes períodos hon- 
rosissimos para as tropas portuguezas: 

«E preciso felicitar calorosamente os nossos vi- 
sinhos e amigos pela victoria que ganharam! Não 
era coisa fácil; além de valentes e bem armados, 
os pretos do Gungunhana eram defendidos por 
alliados poderosos: a febre e a floresta. 

«Effectivamente, para chegar ao kraal do rei, 
era preciso atravessar primeiro um paiz pantanoso, 
coberto de lagoas, emanando micróbios pestilenciaes 
que causaram grandes estragos nas tropas portu- 
guezas. 

«Para o comprehender bastava ver aquelles des- 
graçados que, por não poderem ir mais para diante, 
eram reexpedidos para Lourenço Marques, magros, 
com os rostos amarellos, semi-mortos». 

Nos exaggeros da sua violenta discussão com os 
jornaes d'Itaha, a respeito da desastrosa batalha de 
Aduah, o Gil Blas dizia aos italianos que pedissem 
a Portugal o punhado de heroes do capitão Mou- 
sinho, se queriam ver como elles levavam deante 



3ig 

de si os guerreiros de Menelik, o poderoso negus 
da Abyssinia, cujo exercito derrotara completamente 
as tropas italianas do general Baratière. Apezar do 
intento aggressivo da hyperbole, percebe-se bem 
n'estas palavras a impressão de assombro que a fa- 
çanha de Chaimite produziu em França. 

Se o nosso orgulho podia sonhar sequer tão 
épico desenlace para as brilhantes campanhas do 
valle do Incomati e do paiz de Gaza ? 

Positivamente os cincoenta de Chai- 
mite valem tanto como os denodados guerreiros 
da nossa velha epopêa, e Mousinho d'Albuquerque 4 
— repetimol-o — é bem o emulo de Duarte Pacneco 
nas paginas de ouro do esforço portuguez. 



1 Mousinho foi promovido por. distincção ao posto de 
major e nomeado governador geral da província de Moçam- 
bique. 



XIX 



GLORIFICAÇÕES 



A 19 de janeiro de 1896 entrava no Tejo o pa- 

3uete Éaire, trazendo o principal troço dos expe- 
icionarios repatriados. 

Desde a Torre de S. Julião da Barra até á ponte 
do Arsenal de Marinha, o Zaire passou triumphal- 
mente, por entre o estrondear das salvas e a vi- 
bração febril das acclamacões. 

Quem tinha alma para sentir e viu os santos 
enthusiasmos d'aquelle dia, não os pôde esquecer, 
não os esquecerá nunca. E' provável que fossem 
recebidos com magnificências maiores os triumpha- 
dores de outros tempos; os vencedores dos exér- 
citos napoleónicos, os nossos gloriosos soldados de 
1814, entraram em Lisboa por entre fervorosas 
acclamacões e passaram sob arcos triumphaes, co- 
roados de louros ; mas em nenhum tempo talvez se 
receberam os valentes soldados d'este paiz com 
jubilo maior, nem com mais carinhoso enthusiasmo. 

Aos feitos de excepciohal valor correspondia, 
n'um grande impulso de justiça e de enterneci- 



322 



mento, a excepcional expansibilidade de um povo, 
que andava entristecido pelos infortúnios e de ha 
muito descrente do seu próprio valor. Vivia-se aqui 
ha longuíssimos annos n aquella apagada e vil tris- 
teza, que já o Camões notava amargamente no cyclo 
que a ultima grande jornada d'Amca devia fechar 
tragicamente. 

Nunca mais esquece quanto houve de grande e 
commevedor n'aquella recepção triumphal ! Parece 

?ue está a gente a vel-os em parada na Praça do 
lommercio, a magestosa praça Pombalina. A mul- 
tidão impaciente rompe o cordão de policias, como 
os vagalhões rompem um dique fragilissimo, corre 
para elles e vae confundir-se quasi nas suas fileiras, 
para estar ao pé d'aquelles bravos, para os ver me- 
lhor, para certificar-se de que são afinal esses pobres 
anemicos o seu mais legitimo orgulho, a sua maior 
gloria contemporânea ! Passa El-Rei com o seu es- 
tado maior brilhantíssimo, passa em revista os glo- 
riosos repatriados, e a multidão não se aparta dos 
seus queridos valentes. 

Se navia lá coragem para impor preceitos, para 
espadeirar esses desobedientes que se julgavam 
mais fortes, mais soberbos, mais poderosos ao pé 
d'aquelles soldados, que, de quando em quando, era 
preciso amparar nos oraços, para que não cahissem 
nas tremuras da febre ! 

Depois, arrastam-se na sua marcha triumphal e 
a multidão enorme, doida, a victorial-os, a cobril-os 
de flores, a dizer-lhes palavras de carinho, a se- 
guil-os até aos quartéis ! 

Mas que duro contraste nas coisas humanas ! 

Emquanto os que podiam marchar passavam 
nas grandes ruas de Lisboa, levando á frente o seu 
glorioso coronel e esse bravo major Machado, que 
ainda trazia ao peito o braço ferido em Coolelia; 
de bordo do Zaire sahia lugubremente, por entre 
os echos das acclamações distantes, um largo cortejo 
de macas trazendo os feridos do clima africano, po- 
bres vencedores que 'não podiam voltar ao seu 



■.■v 



323 



quartel e nem talvez (quantos?) á sua remota aldeia! 
Nos quartéis a conrraternidade d'armas, de cor- 
poração, de classe manifestou-se em requintes de 
enternecida affeição. Abraçavam-se eftusivamente, 
sem distincção de categorias. N'aquelle momento 
excepcional, a suprema hierarchia não estava nas 
divisas ou nos galões dos uniformes ; estava nas 
fardas desbotadas dos que voltavam de Africa. El- 
Rei dera o exemplo, saudando-os a todos, indo sau- 
dal-os aos quartéis. 

No dia 20 celebrava-se um Te-Deum em Santa 
Maria de Belém. Fora bem escolhido o formoso 
templo manuelino. Ficavam bem sob a arcaria ma- 
gnificente, em volta dos columnellos, esguios como' 
grandes mastros de uma nau antiga, ficavam bem 
ali, monumento peregrino da idade de oiro do nosso 
esforço, os marinheiros e os soldados que acaba- 
vam de affirmar na historia a solidariedade entre 
o presente e o passado, enlaçados no heroismo da 
sua alma de luctadores. 

Se as almas podessem voejar nos ares como on- 
dulações de luz, estariam alli com elles, a aben- 
çoal-os orgulhosamente, D. João i, o de Ceuta, e 
Affonso V, o africano. 

Mas tanto sofifriam ainda os pobres repatriados, 
que muitos cairam exânimes no caminho para o 
templo e outros ficaram na enfermaria da Casa 
Pia *. 

Nos palcos e nas platêas dos theatros cada ex- 
pedicionário que apparecia, soldado raso que fosse, 
era erguido nos braços como um triumphador. 

No theatro de S. Carlos havia uma recita de gala. 
Na tribuna real Sua Magestade El-Rei tem comsigo 
o commissario régio e o coronel Galhardo. Os espe- 



1 Aos que não conhecem Lisboa 'indicaremos que a Casa 
Pia occupa uma parte do edifiqo do antigo mosteiro dos Je- 
ronymos, ao qual pertencia a egreja monumental de Santa 
Maria de Belém. 



324 

ctadores fazem uma ovação calorosa aos valentes,, 
e na platêa, Paiva Couceiro, o bravo indomável de 
Marracuene, de Magul, de Chinavane, é levantado 
nos braços da multidão. A um sargento, a um ma- 
rinheiro, a dois soldados que apparecem na sala 
prestam os espectadores homenagem egualmente ca- 
lorosa e egualmente sincera. 

Fora creada uma medalha especial para corame- 
morar as campanhas d'Africa. Denomina-se meda- 
lha D. Amélia. No dia 21, na amplíssima sala do 
risco do arsenal de marinha, realisava-se a primeira 
distribuição, a solemne distribuição d'essa medalha. 
E para que o premio fosse maior e a distincção 
mais peregrina, foi a formosa esposa d'El-Rei, ella 
própria, quem poz com as suas mãos ao peito dos 
valentes aquella insígnia d'honra. 

E depois dessa festa inolvidável consagrada aos 
mais ditosos, porque ainda podiam marchar, não se 
esqueceu dos outros, dos que estavam nos catres 
do hospital e tinham também vencido e tinham 
também luctado e soífrido pela pátria; não se es- 
queceu d^lles a alma angélica cia Rainha e foi le- 
var-lhes ao hospital as suas medalhas e o premio 
bemdito do seu sorriso e das suas palavras de im- 
menso carinho. Pobres rústicos, que alguns eram, 
com que immensa ternura elles não choraram então ! 
Para quantos, já turvados pela febre, não seria a 
apparição da Rainha, uma como visão celestial que 
chegava ao pé delles primeiro que as pobres mães 
distantes ? 

NTesse mesmo dia dava El Rei um jantar de 
honra aos officiaes expedicionários e, pela primeira 
vez, num banquete ae gala, apparecia o Príncipe 
Real, ainda uma creança. No brinde aos seus cama- 
radas, brinde caloroso, enthusiastico, de sentida elo- 
quência, explicava El-Rei n'estas palavras a pre- 
sença de seu filho : 

Muito de propósito qni% que meu filho assistisse 
a esta festa para que, aprendendo com o vosso exem- 



325 



pio e com o daquelles que desgraçadamente a nossa 
saudade envolve, possa um dia ser pela pátria o que 
vós tendes sido. 

* 

Os festejos de Lisboa tinham em todo o paiz 
uma repercussão intensa, excepcional, commove- 
dorâ e em toda a parte, como na capital, era da 
mocidade das escolas, almas em plena florescência 
e na sincera vibração de todos os enthusiasmos, era 
delia a nota mais impressionavel, mais ruidosa, 
mais característica, de mais suggestiva e apaixonada 
glorificação. 

E onde não havia expedicionários a festejar, 
numa consagração individual, ia o povo aos quar- 
téis felicitar os que não haviam ido á Africa, mas 
eram bem a grande família dos que tinham voltado 
e Lisboa retinha ainda no arroubamento das suas 
homenagens. 

O Porto aguardava impaciente os expedicioná- 
rios de caçadores 3 e da artilheria de montanha. 
Queria também victorial-os, envolvel-os nos caricias 
da sua alma viril e antiga. Não podia faltar áquella 
apothéose eminentemente patriótica a consagração 
da ínclita cidade, onde, como no burgo indómito de 
ha sete séculos ou no baluarte épico de ha sessenta 
e quatro annos, palpitam e vivem ainda todas as 
másculas energias e todas as altas susceptibilidades 
do grande caracter antigo. 

Foram brilhantes os festejos do Porto, como de- 
pois foram calorosos e fraternaes os festejos de Bra- 
gança, onde está aquartellado caçadores 3, e os de 
Penafiel, onde a artilheria de montanha tem o seu 
aquartelamento. 

O corpo commercial do Porto oífereceu uma 
bandeira cThonra ao 2.° batalhão de caçadores 3 e 
a camará municipal de Bragança mandou collocar 
no quartel d'acjufclle regimento uma lapide comme- 
morativa da victoria de Coolella. 



326 



A' brigada de artilheria de montanha concedeu 
o ministério da guerra, em nome d'El-Rei, um es- 
tandarte, que representa uma justíssima distincção 
e um premio aos brilhantes serviços das baterias 
expedicionárias. 

Pena foi que a iniciativa particular, como no 
Porto, ou a iniciativa do estado, como no distinctivo 
outorgado á artilheria de montanha, se não houyes- 
sem lembrado também do batalhão de Marracuene 
e do 2. batalhão de iijfanteria 2, que deu o qua- 
drado de Magul e a quasi totalidade d'esse pelotão 
de bravos que acompanhou Mousinho d'AlDuquer- 
que á façanha de Chaimite. 

Nem seria exaggero, antes representaria um va- 
lioso estimulo, vincular ao numero d'esses regimentos 
o nome dos feitos praticados pelos seus segundos ba- 
talhões. 

Assim succedia na antiga nobreza. Era de toda 
a família o brazão tantas vezes conquistado pelo 

esforço de um só. 

> 

Dá-nos a Hespanha o precedente. 

Recordam-lhe as soberbas victorias os nomes 
dos seus batalhões e regimentos. Castillejos e Wad- 
Ras, batalhas notáveis da sua guerra de Marrocos 
não se esquecem nunca, porque dois batalhões ti- 
veram o baptismo épico daquelles grandes no- 
mes. 

Ficariam bem e seriam justos os títulos de re- 
gimento n.° 2 de caçadores da Rainha e de Marra- 
cuene, de regimento n.° 2 dinfanteria de Magul e 
Chaimite e de regimento n.° 3 de caçadores de Coo- 
lella e Manjaca\e. 

Mais longos são os títulos do n.° 4 de cavallaria 
do imperador da Allemanha, Guilherme II e do 
n.° 5 ainfanteria do imperador d'Austria, Francisco 
José. 

E para que o triumpho não ficasse incompleto e 
tivesse um altivo remate, chegava a Lisboa com o 
ultimo grande troço de expedicionafios repatriados, 
como o resto do heróico batalhão de Magul, prisio- 




O GUXGUNHANA 






327 

neiro, acobardado, humilde, o ultimo rei dos vá- 
tuas *. 

Recebeu a cidade generosamente e sem ódios, 
num grande movimento de curiosidade, esse que 
fora o terror dos sertões de Moçambique e o der- 
radeiro grande autocrata da raça zulu. Acabrunhado, 
tranzido de medo, receoso de que lhe fizessem o 
que elle teria feito aos nossos, se fosse o vencedor, 
nem já podia inspirar ódio o grande vátua abatido. 

No seu aposento do redueto de Monsanto, nem 
é já bem um prisioneiro de guerra; é o curioso 
exemplar de uma famosa raça africana! 



Mas não bastava glorificar os desditosos vence- 
dores, a quem as febres e a anemia palustre tinham 
levado aos hospitaes. Era preciso protegel-os desde 
que saíssem do hospital, para que tivessem uma con- 
valescença reparadora e não ficassem ao desamparo 
nos seus miserandos lares, nas suas mesquinhas al- 
deias. Outra rainha se lembrou d'elles — estrangeira 
pela origem, nacionalisada pelo coração --a piedosa 
mãe d'El-Rei, a senhora D. Maria Pia de Saboya. 

Fundou a sua abençoada iniciativa o sanatório 
que denominou D. Lui\ I, em homenagem ao de- 
functo rei seu esposo, e ali vela pelos pobres conva- 
lescentes a sua carinhosa e inexcedivel solicitude. 

E aqui está como no quadro épico doestas campa- 
nhas se esboça docemente o perfil inconfundível 
das duas Rainhas e como na apothéose das victo- 



1 Com o Gungunhana vieram também prisioneiros o fero 
regulo da Zixaxa e Molungo, tio do ex-rei de Gaza. 

Alguns dos principaes vátuas prisioneiros foram desterra- 
dos para Gabo Verde. 

O Mahazuli e o Finish estão presos em Lourenço Marques. 

21 



3a8 



rias esvoaça lucidamente a alma affectuosa d'essas 

» 

duas senhoras de preclara stirpe. 

* 

Um voto na ultima pagina d'este pobre livro 
obscuro. 

Novamente affirmadas, e com tão remontado ful- 
gor, as qualidades notabilissimas dos marinheiros 
e dos soldados d'este paiz, que nunca as deixe an- 
nullar ou esmorecer a imprevidência, a tibieza, ou 
o abandono das iniciativas dirigentes, para que não 
faltem á pátria, na sua pobreza e na sua pequenez, 
esses soberbos elementos de força. 

Que não seja preciso, na hora do perigo, ir pe- 
dir ou contractar no estrangeiro, para os nossos in- 
trépidos soldados, a tutela de uma espada merce- 
nária, como nas guerras dos Vinte e oito annos e do 
Pacto de família, ou a aptidão disciplinadora de um 
déspota que nos humilhe, como na Guerra da Pe- 
ninsula. 

Se os não ha melhores, quando a disciplina lhes 
realça os dotes herdados e a competência do com- 
inando sabe guial-os á victoria, que amaldiçoada 
economia a que lhes negasse os meios materiaes do 
combate e que inércia criminosa a que os deixasse 
indifferentes aos progressos da sciencia da guerra! 

Que doloroso seria deixar que elles se irmanas- 
sem, pela ignorância, pela indisciplina, pela desor- 
ganisação, pela incompetência do commando, com 
os seus tristes antepassados que nos legaram a ver- 
gonha enorme de 1801, se têem alma e valor — que 
o provaram agora — para hombrear com esses luc- 
tadores excepcionaes, que nos conquistaram na his- 
toria humana o império das glorias portuguezas, ina- 
pagavel e immenso, como as grandes constellações 
do céu! 



FIM 



NOTAS SUPPLEMENTARES 



Segundo uma estatística recente, de i8g5, a população de 
Lourenço Marques augmentou consideravelmente e chegou 
já a 2:729 habitantes, dos quaes 1:989 são portuguezes da Eu- 
ropa e da índia. Entre as colónias estrangeiras da cidade, as 
mais numerosas são a ingleza (397), a chineza (89), a italiana 
(5j)) a franceza (53) e a allemã (49). (Vide pagina 94). 



A importação do Transvaal, que em 1894 fora de 6.440:215 
libras, ascendeu em 1895 a 9.816:394 libras. (Vide pagina 94). 



Devemos a uma extremada e generosa amabilidade do sr. 
conselheiro Emygdio Navarro, o mappa do theatro das opera- 
ções no Incomati e em Gaza, que vem incluído n'este livro. 

Traçado pelo distincto africanista o sr. Eduardo de Noro- 



33o 



nha, ainda antes de ser conhecida a extraordinária façanha 
de Mousinho de Albuquerque, o mappa não designa o kraal 
de Chaimite. 

A Ribeira d'Amba está designada pelo nome de Ribeira 
Danta, como na carta da commissão de cartographia. A lagoa 
Coolella não tem designação no mappa, mas está n'elle indi- 
cada/ 

Quanto á orthographia de alguns nomes africanos não ha 
modelos seguros a imitar. Divergem n'este ponto uns dos ou- 
tros os mais illustres africanistas. Assim, uns escrevem Xixaxa, 
outros Zixaxa, uns Augoana, outros Augoane, uns Manhissa e 
Xinavane, outros Manhiça e Chinavane, etc. 



ÍNDICE 



Capítulos Pag. 

Prefacio vii 

I — Expedições militares 17 

II — Precedentes e confrontos 55 

III — Moçambique 77 

IV — Os vátuas io5 

V — A rebelliao dos cafres 123 

VI — A defeza de Lourenço Marques i33 

VII — Para a Africa '. 149 

VIII — As primeiras operações 161 

IX — O quadrado de Marracuene 173 

X — O plano da campanha 197 

XI — Pequenas operações 21 5 

XII — O quadrado de Magul 229 

XIII — Em Ghinavane e no Limpopo 247 

XIV — De Inhambane para Chicomo 255 

XV — O quadrado de Coolella 265 

XVI — Destruição de Manjacaze 285 

XVII — A façanha de Chaimite 293 

XVIII— Glorificações 32i 



COLLOCAÇÃO das gravuras 



l\àG. 

Canto e Castro 147 

Moraes e Sousa 148 

Filippe Nunes 169 

Caldas Xavier 189 

Ivens Ferraz 216 

Paiva Couceiro 23o 

Freire cTAndrade 241 

Diogo de Sá 252 

Soares Andrea 253 

Eduardo da Costa 258 

Sousa Machado 272 

Eduardo Galhardo 276 

Mousinho d'Albuquerque 296 

Sanches de Miranda 3oo 

Costa e Couto 3o3 

Gungunhana 327 



M 




JS. JVúranA**, hvocU/lgo* 



fe d 



f 



\ 



HOOVER INST1TUTION 

To avoid fine, this book should be retumed o: 
or before the date last stamped below 



S& P - j . ' T 



3 

r. 



I 



sssssssss^ 



■»•