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Full text of "Vida do Beato Henrique Suso, da ordem dos Pregadores, traduzida de latim em portuguez. Considerações das lagrimas de N. Senhora, e outras obras em prosa, e em verso, que andavão dispersas"

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V  I  D  A 

DO 

BEATO  HEKRIQUE  SUSO, 

DA  ORDEÍJ   DOST.PÉGADORES, 

Traduzida  de  Latim  em  Poituguez: 

CONSIDERAÇÕES 

DAS 

LAGRIJÍAS  DE  N.  SENHORA, 

E  ♦uua*  cbras    era  prosa,   e  em  verso  ,  (jue  andava» 
diiipersas. 

CO -M  POSTAS 

POR 

Rcrgioso  da  dlla  Oi;":.:in. 

<  que   $t  ojiint9tt  o.   Fida    do  mesmo   Aulor ,     «  o  juízo 
sobre  os  seus  Escritos,  m 


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COIMBRA: 

91  lilPhliiNSA   OAUNlVERSiDADlj 
—  ■*««■ 


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V 


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VIDA 


DO 


Padbe  Fr.  LUIZ  DE  SOUSA  , 

E  JUÍZO  SOB^^V'.  05  SEUS  ESCRITOS, 


i>0  Aviso,  qiic  pnzémos  ao^principío  ria 
Vida  do  Venerável  Arcebispo  D.  Fr.  I^arrho- 
lomeu  dos  Martyres  ,  que  saio  impressa  em 
Jíiiie^lro  deste  ftnno  (r  jí)/-),  dissemos  que  logo 
depois  deterniinavanios  p!d)Hair  a  Vida  do 
Beato  Henrique  Soso  ,  e  njuiitnr-lhc  ns  devo- 
rissinias  Considerações  das  Lagrimas  de  Nossa 
Seuliora  ,  c  algniras  ol)ras  Latinas  ,  que  aii» 
davão  soltas  j  Uido  producrão  bem  dii;na 
do  insigne  Autor  da  Vida  do  mesmo  Vene- 
rável Arcebispo  :  c  que  a!ii  lhe  ajur.iariamos 
tarnbum  uma  breve  noticia  da  \  ida  da 
inesnio  Aulor  ,  e  dos  st  ns  FsrritdS ,  e  o 
jnl/o  Si^bie  elles.  Aguia van:os  í>iilisra:er  esia 
piomcssa. 


4  Vida  do  Padrk 

Fr.  Luiz  de  Soiis.i,  que  no  século  se  cKa- 
mou3Ianoel  tle Sousa  Couiinhojji),  foi  quinto 
filho  de  Lopo  cie  Sousi  Coutinho  ,  FiJilgo 
ilhistrissimo  do  tempo  do  Senhor  Kei  D.  João 
Iir  ,  e  que  pelas  suas  virtudes  ,  talento  ,  e 
erudição  mereceo,  lugares  mui  distinctos  na 
vida  militar  ,  e  conciliou  universal  respeito 
da  Corte  :  e  dvi  D.  Maria  de  Noronha  ,  fdha 
de  D.  Fernando  de  Noronha  ,  Capitfio  de 
Azamor,  Lo.^o  nos  primeiros  annos  moslroa 
Manoel  de  Sousa  grande  viveza  ,  e  génio  sin- 
gular para  os  esíutíos,  e  muiio  cm  particular 
])ara  as  Bellas  Letras,  que  cultivou  maravi~ 
íhosamente  ,  e  com  láo  prodigioso  fVucto  , 
como  o  fazem  ver  os  seus  Escritos.  Passou  a 
estudar  Direito  á  Universidade  de  Coimbra  , 
como  o  tinlião  feito  lodoò  seus  irmãos,  não 
dispensando  seu  pai  nesta  parte  nem  ainda 
o  primogénito.  E  perguntando-se-lhc  a  ra- 
zão de  o  querer  assim  ?  respondeo  discreta- 
mente :  Qu3  mal  lhe  tinha  feito  aq  lu  lie  filha  y 
para  o  deíjcir  iqnorante  P 

Não  pro:egnio  os  estudos  na  Universida- 
de; antes  deixaudo-os  logo,  entrou  na  Reli- 
gião de  Malta.  E  fazeuílo  viagem  para  esta. 
íllia  ,  ao  sair  da  de  Sardenha  ,    aonde  ohri- 

(  1  )  rV.  António  lia  Kncariiar.So  iiiN  ida  í\r  Fr.  I.n-t 
fli-  Sonsa  ,  c^ut  TQM  ftopiiiicipiu  do  iíj^uuJo  i'gmo  J« 
CluQU^M. 


Fn.  Lui2  Dl!  Sousa.'  5 

^do  de  um  grave  temporal ,  e  qnnsi  derro- 
tado de  todo  tinha  ido  arribado,  foi  cativo 
de  um  Corsário  de  Mouros,  e  juntamente 
seu  irmaó  André  de  Sousa  Coutinho,  Cavai- 
leiro  também  da  mesma  KeligiSo.  Levado  a 
Argel  ,  alli  acliou  entre  os  cativos  o  ilhis- 
tre ,  e  engenhosissiuio  Miguel  de  Cervan- 
tes ,  com  quem  logo  coníiahio  estreita  ami- 
zade. Em  teálemuriiio  delia  ointroduzio  Cer- 
vantes em  hum  Episodio  da  suacelebie  No- 
vella  dos  Trabalhos  de  Persiles  ,  e  Se^ismiiU' 
do.  Ajustando-se  MatiOel  de  Sousa  CoiuitiUo 
com  O  Conjmandantc  do  Corsário  em  que, 
ficando  seu  irmão  André  de  Suusa  retido  no 
cativeiro  ,  viesse  elle  d  pátria  negocearo  res- 
gate de  um,  e  outro,  passou  para  Valença 
em  Hespanha  no  anno  de  15^5  ,  julgando 
que  este  lugar  era  commodopara  (hdli  eííel- 
toar  o  a  ({ue  viera.  Aqoi  teve  a  triste  noti- 
cia da  infebz  morte  de  seu  pai  ,  que  havia 
succedido  em  Janeiro  deste  anno.  É  succeNs^j 
admirável ,  mas  verdadeiro  Indo  a  desmon- 
tar-se  d'uiu  cavallo  (na  Vi  lia  de  Povos) 
desenibainhon-se-liic  a  espada  :  com  o  mo- 
vimento (jue  íez  ao  cair  ,  firtui  de  sorte  ,  qeie 
forcejando  ou  p:ira  a  desviar  ,  ou  para  a  ter 
mão  ;  ella  o  ferio  tão  graveuKMíte,  que  alli 
falleceo  logo  eui  28  do  diio  tncz.  Jaz  iia  Ca- 
pella  mói-    da  igreja  Paruc^iilai   do  Salvador 


6  Vida.  do  Padab 

da  Villa  de  Santarém,  de  que  er.i  P.idro^ir.^, 
e  juntamente  sua  mullier  D.  x^aria  de  Noro- 
nha. 

Estabelecido  Manoel  de  Sonsa  em  Valen- 
ça ,  procurou  logo  o  celclire  Jaime  Falcão, 
Cujos  estudos  erão  de  giandefama  er.i  toda 
a  Hespnnlia,  e  cujo  meiccimento  Manoel  de 
Sousa  aftirma  achara  ainda  maior  do  ([ue  a 
mesma  fama.  Dois  annos,  que  alii  se  deteve, 
tratou  sempre  com  grande  amizade  aquelie 
sábio  homem  ;  venerando-o  como  pai ,  e  hon- 
rando-o  como  mestre.  Ellc  llie  explicou  para 
sua  melhor  inslrucção  a  Arte  Poética  d  Ho- 
rácio; o  que  Manoel  de  Sousa  confessa  lhe 
servira  de  estimulo  para  tornar  ao  estudo  da 
Poesia,  que  havia  deixado.  Ksta  explicarão 
se  acha  no  fim  das  obras  dome^mo  Jai?neFal- 
cão,  e  neila  se  mostra  clare7.a  ,  e  bom  conhe- 
cimento do  verdadeiro  sentido  do  Poeía. 

Negoceado  em  fim  o  seu  resgate,  e  o  de 
5eu  irmão,  voltou  para  o  Reino  ,  e  para  a 
Corte,  sem  que  tivesse  professado  na  lleli- 
^iáo  ,  que  dissemos.  Diz-se  que  tivera  razies 
forçosas  para  assim  o  fazer.  Então  casou  com 
D.  r>lagdnlena  de  Vilhena  ,  fdha  de  Francisco 
de  Sousa  Tavares  ,  Senhora  ,  que  fora  mu- 
lher de  D.  Jofío  de  Portugal,  filhexleO.  Fran- 
cisco de  Portugid,  'primeiro  Conde  deVimioso, 
o  ^ual  havia  ^cagl^  oa  infeliz  batalha  de  AU 


Fr.  Lciz  de  Soisi,  j 

9fiCièr.  Assistia  na  Viila  Je  Almatla  ,  vivendo 
eoniohoni  Cidadão,  e  cultivando  oS  estudos 
das  Bellas  Leiras  com  seus  amigos,  que  tinhao 
o  mesmo  gosto,  instituindo,  para  o  tazer  me- 
lhor, uma  Socied:ide  Lite.-aria  :  e  era  Coro- 
nel fie  700  iníanles  ,  e  quasi  100  Cavallos  na- 
quelie  districto. 

Por  causa  do  mal  da  peste ,  com  que  Deos 
ferio  Lisboa  no  asiiio  de  1677  ,  passarão  o?; 
Governadores  ,  que  então  erão  do  Ileino  ,  ;i 
residir  em  Almada,  por  ser  terreno  mais  des- 
afogado, elinipn  de  toda  a  corrupção,  Eião 
elles  ( I  )  D.  Miguel  de  Castro,  Arcebispo  tio 
Lis])oa  :  D.  João  da  Silva,  quarto  Contle  do 
Portalegre,  Mordomo  Múr  :  D.  FrancisiM 
Mascaranhas  Conde  de  Santa  Cruz:  D.  Duar- 
te de  Castello-Branco  ,  primeiro  Conde  do 
SaiíUíjnl  ,  I\L'irinho  Mór  do  liciívo  :  jMi.^uel 
de  Moura,  Escrivão  da  Puridaíle.  Repartiiãt» 
entie  si  as  casas  da  Villa  ,  que  lhe  parecerão 
mais  commodas  para  caíla  um  :  e  não  ob- 
stante terem  outras  ,  que  lhes  podião  ser'  ir 
igualmente  bem  ,  ordenarão  a  Manoel  de 
Sousa  Couiiiiho  despejasse  as  suas.  Assetiiou 
elie  que  a  ordem  era  injusta  ;  aures  nascitiu. 
de  anlig»)  ódio  ,  que  agor»  quci  ião  satJi>lrí- 
xer  ,  abusando  da   autoiida<.l«j  pública,    para 


(  1  )    lli;jlur.  Gcueai,  \yjiii,  (j,  i'^^.  J  Jtf, 


8  ViDJL    DO    Pa.I>R1! 

vin^^ar.oa  particular.  Foi  extraordinarin  a  pai* 
xáo  ,  que  Manoel  (iu  Sousa  conccbeo  rew.lo 
um  tal  proítí  llmento  ;  e  deixanJo-stí  levar 
delli  ,  roiii|»eo  na  arrojada  tietermiii,i':ão  íle 
lançar  fogo  áscasas:  elle  íiiesmo  o  diz  assim 
(  I ):  Cu^n  vekenienter  animo  ca  mino  tus  afcn, 
itji'a  ,  et  ifiaitdita  mttamorphosi  indis^nantes 
parlei  is  injwiiic  subtluxi  ;  ia  f.irnuni  ,  e!  ciie» 
res  abiere.  raríio  logo  pftra  Madrid  a  infor- 
mar o  Piinclpe  do  procedimento,  de  qiic*  se 
usara  para  com  elle  ,  e  do  modo  porque  ellc 
mesmo  ,  perdendo  a  paciência,  se  havia  des- 
aggravado,  Conhecendo-se  a  semrazío  de 
quem  o  havia  provocado,  foi  attLMidido. 

No  tempo  ,  em  que  se  deteve  em  Madrid, 
tonjo  verdadeiro  amigo,  cuidou  em  ajuntar 
«soljras  de  Jair.íC  Falcão,  que  scisannos  an- 
tes havia  fallccido  nesta  Corte  ,  aonde  viera 
chamado  de  Valença;  e  as  que  pôde  alcançar, 
iis  fez  imprimir  no  anno  òc  looo  em  um 
voliiiJíeem  oitavo.  DanJo  ocrusião  o  seu  ines- 
perado desterro,  como  elle  Itiecliama,  a  iiâo 
íicarempeipetiio  esquecimento  a  menuírladc 
um  homem  tão  estimável ;  pois  não  se  pôde 
duvidar  que  Jaime  Falcão  tinha  grande  en- 
gcnlio ,  e  feliz  imaginação;  e  se  tivesse  a 
fortunn  de  estudos  mais  bem  dirigidos  ,  seria 
hum  escritor  eouqdeto. 

(  i  )     JVaeíat.  Opti".  Xacub.  I''aIc.  de  t£uib.  iufra. 


Fr.  Lriz  DE  SotrsA.  9 

Bestitnido  á Pátria,  continuou  INÍanocl  de 
Sousa  a  mesma  vida  retirada,  e  estudiosa, 
que  linha  ante?.  Persuadido  então  por  seu 
irmão  Jcfto  Rodrignes  Cuutinho  ,  qutívivia 
em  Panamá,  na  America  iSleridional,  a  que  se 
])assas5e  iquelle  pai?,  com  a  es|  csarra  ilecon- 
«eguir  copiosos  iurros  pelo  connncrcio,  fa- 
rciido-o  assim  te^e  a  noticia,  de  qnc  lhe  ti- 
nha failecido  hnma  fdha  única  ,  que  havia 
sido  ínulo  do  sen  maiilmonio.  Devia  esit? 
golpe  scr-lhe  niuilo  sensível  ,  muito  mais  , 
vendo  ellc  a  serie  ccntinuada  de  desgosto?^,  e 
iníehcidades  ,  que  a  vida  in(fulcn  ,  e  tumul- 
tuosa do  século  ,  a  f|ue  se  havia  entregue  , 
lhe  tinha  causado  sempre.  Meditava  nisto  lar- 
am(M!íe,  e  cada  vez  se  desenganava  mais  d* 
e  não  era  arruelle  o  estado,  cíu  que  Deos 
o  (fueria.  O  succisso  seguinte  creio  foi  qucjn 
acidíou  de  o  tlesenc^anar.  Tinha  Manoel  de 
Sousa  estreita  ,  e  íicl  amizade  com  o  Cíinde 
de  Vimioso  D.  Luiz  de  Portuj^al.  Alluniiado 
esto  por  uma  luz  ,  que  os  eífeilos  iheiíin  ver 
que  era  (h)  Ceo ,  ahraçou  juntanM-nte  com 
sua  mulher  a  vida  religiosa.  O  Conde  lio re- 
formado Convénio  th»  Beniíiía  ,  .1  ('ondessa 
1).  .loanra  de  Mendonça  no  do  Sacramento  da 
Còrie.  Fez  este  cxenjj)Io  »raude  impressão 
ni)  anim.i  de  Manoel  de  Sonsa.  Assentou  que 
Deos  ilití  mandava  que  seguisse  o  amigo.  Por 


nu 


to  Vida.  do  pADni 

niutuo  consentimento  seu,  e  de  sua  esposa 
se  recolhço  elle  tr.nibeni  ao  Convento  de 
Beniíica  ,  e  ella  ao  do  Sacramento,  tomando 
elle  o  nome  de  Luiz  ,  e  ellu  o  de  Soror  Mag- 
dalena  disCIíasías.  Em  quanto  viverão  não  se 
virao  mais,  rcm  amua  se  tratarão  por  escrito. 
Professou  Fr.  Luiz  em  8  de  Setembro  de 
i6i4  )  uas  mãos  do  Prior  ,  que  então  era 
Fr.  João  de  Portugal,  Bispo,  que  depois  foi 
de  Viseu.  Logo  mostrou  que  a  sua  vocat  ão 
era  verdadeira,  perdendo  iuteiramcnlc  todo 
o  c'h,pirilo  do  secido  ,  de  que  até  alli  vivera 
•ocupado.  Aquelle  brio  sem  limites,  aquelle 
animo  altivo,  e  ardente  ,  que  o  tinlia  ol)ri- 
^ado  a  tantos  excessos,  se  tornou  em  umapro- 
lunda,  solida  e  constante  abnegação  própria. 
Vivia  entre  os  Noviços  como  o  menor  de  todos 
ellcs  j  e  depois  de  professo  sempre  se  tratou 
«ntre  os  Reliooisos  conlórmc  o  mesmo  me» 
tliodo.  Tinha  no  século  iinia  gioss.i  tcnoa  , 
loc;0  a  renunciou  ,  nem  quiz  jamais  ter  di« 
nhelro  algum  ,  nem  ainda  no  deposito  ila 
Fieligião.  O  habito  que  ella  lhe  dava  ,  dellc 
se  servia  ,  em  quanto  o  podia  remendar.  Ai 
túnicas  eráo  de  laa  ;  nem  admiltio  nunca  ou- 
tro vestido.  De  lãa  era  também  a  cama  ;  duas 
inania*  sobre  duas  taboas;  uma  branca  pe- 
quena de  pinho  j  e  para  se  usscnlar  um  la- 
nho. 


Fr.  Luiz  de  SottsaÍ  ii 

Não  se  contentava  com  jejuar  ossett  me- 
tes, e  outros  jejuns  lia  Ordem  no  discurso  do 
anno:  íiinda  se  ariiantava  mais;  e  além  distai 
do  que  se  llie  dava  no  refeitório  sempre  dei- 
xava ineíade  para  os  poi)res.  Nas  peniten- 
cias, discipiiiii)^,  cilicio  seguia  sempre  a  mc^ma 
máxima  ,  accrescentar  de  mais  ao  (pje  devia 
de  olrigação. 

Eii  quanto  «ão  teve  a  seu  cargo  escrever 
por  orlem  da  Religião,  tomou  sobre  si  o  ot'* 
£cio  de  enfermeiro.  Neíle  mostrou  tal  des- 
prezo p'oprio  ,  tal  abatimento,  ião  rara  Iiii- 
nuldade  que  a  todos  confundia  ,  e  edifica- 
va. Não  íómente  cuidava  ,  com  a  maior  dili- 
gencia ,  d[)5  medicamentos  ,  fazer  as  cam.as, 
alimpar  aí  cedas  aos  doentes  ;  mas  eile  mes- 
mo por  suís  mãos  fa/ia  os  ministérios  mais 
despre2Íveii  ,  e  n;ais  servis,  E  de  que  conso- 
lação, e  aK.vio  não  era  com  a  sua  pratica 
aos  enfermos'-*  toda  e.a  ou  daquelle  Senhor, 
que  he  saudc ,  e  vida  ,  ou  para  lionra 
dclle:  ociosa,  nem  uma  só  palavra  se  ihe 
ouvia. 

Em  scc>uir  o  Coro  ,  e  acodir  á  Oração  era 
nidcíeelivtl.Nãosí  salisfaziasócom  a  d.i  Com- 
munidade;  semprt depois  ficava  continuando 
neila  largo  espaço  ;  antes  podenjos  dizer,  qu« 
nunca  deixava  a  Ur^ção.  Continuamenie  an- 
dava  o  siíu  espirito/  «   a  suabOca  chtjia  átt 


f*  Vida  do  Padb» 

Deos.  De  quanto  via,  ede quanto  ou\la,  fazíâ 
STihir  logo  o  entencUmento  ,  e  o  coração  ao 
S2U  Creador.  De  Deos  era  tudo  ,  arvores  (te 
Deos,  bosques  de  Deos,  aves  de  Deos,  hi- 
bito  de  Deos,  casa  de  Deos. 

Ao    Rozario    da  Senliora   tlnl^   singilar 
dcvoí  ão.  Todos  os  dias   o  rezava   visiundo 

0  sen  altar  :  e  que  alfeclos  se  não  tlesco- 
brirãonelle,  vendo-o  de  joelhos  ,  faliando 
com  a  Senhora  todo  huniildc  ,  todo  cheio  de 
respeito  ,  c  d«^  piedíide  !  Mas  sobre  íudo  o 
que  mais  nelle  ediíicava ,  era  a  corded  devo- 
ção do  Santissinio  Sacramento  do  Akar:  aqui 
lie  onde  todo  o  seu  coração  se  derri»inava  em 
\ivos  actos  de  agradecinienlo ,  df  té,  e  de 
amor  :  aqui  se  elevavn,  e  submcríj.a  lodo  na 
profunda  meditação  deste  mvslerio  sacrosan- 
to ,  e  inefiavel  :  e  daqui  lhe  vcioque  nunca 
deixou  de  celebrar  o  sacrifício  la  Missa  ena 
ioda  a  sua  vida  ,  por  mais  ocijpado  que  se 
tíssc  :  este  t:ra  toda  a  sua  dilicii ,  e  Ioda  a  &ua 
consolação. 

Vu'\  admirável  a  obediência  do  Padre  Fr, 

1  uiz  de  Sonsa.  Não  só  obedecia  em  tudo,  mas 
sem  allegaçóes,  nem  replic.ns,  ainda  em  casos, 
em  que  parece  que  o  poilií  fazer  com  justiça. 
Até  o  seu  mesmo  juizo  mostrou  que  queria 
ler  «ugeito  agora  cm  desiggravo  do  tempo  , 
eai  qu^  g  Uuúa  deitado  guiar  pelas  máximas. 


Fn.  Lrix  de  Sousa.  i5 

^enganosas  do  século.  Esta  foi  a  causa ,  por- 
queacceitou  o  cargo  de  escreTer. ainda  obras, 
'[ue  não  erão  da  Ordem.  E  bem  se  \ê  que  a 
cliediencia,  e  sóa  obediência  foi  quem  o  obri- 
g'>u  a  que  escrevesse.  Mandava-o  umRei;ea 
ese    sempie   se  deve  fazer  a  vontade.  Nem 
Tintios  se  j^cde   dizer  qtie   o  escrever  fpi  no 
Pacre  Fr.  Luiz  ambição  de  boura.  Tanto  era 
livrt  delia  ,  que  nem    os  estudos  quiz  seguir 
na  Crdcm  ,  por  se  rão  obrigar  a  ser  Préga- 
tlor.  Z  que  c\ "cliente  o  seria  elle,  tendo  do- 
tes tão  singulares  para  a  IJoquencia  sagrada  , 
como  se  vê  nos  seus  escritos  !   Deste  modo 
evitou  »ainbcm  occi:|^ar  cargos  ,  e  ter  alguma 
parte  to  governo:  econseguio  o  que  dese- 
java 5  p-)is  sempre  foi  súbdito,  ]\]as  conside- 
remos  aoccupacfio  ,  que  ton;ou  de  escrever 
pelo  lado,  por  onde  parece  que  be  justo  ;  e 
mellior  fa  enios  juizo   se  foi  ambição  ,  ou  se 
foi  virtude. 

Foi  obiigado  a  revolver  Cai  tórios,  e  pa- 
peis antigo.,  averiguar  leiras  tão  (ega.^,  e 
r.pagadas,  que  funão  perder  a  vista  aiiuL 
em  annos  m:.is  vigorosos,  separar  o  verda- 
deiro do  fals->,  ajustar  tempos,  combinar 
circumstancias,  pesar  attentan;t.nte  os  factos, 
escolbel-os  ,  e  Vinca  1-os  de  {)ois  no  papel  com 
aceito;  e  isto  n:n\  laltar  num  fó  ]  ortc  ás 
obrigações  de  Rebgioso,  ao  Core,  á  Orsí  âo. 


i4 


Vida  do  Padre 


ás  penitencias,  bem  se  pôde  dizer,  que  mais 
era  de  Santo,   cio  que  de  homem. 

Chegou  em  fim  o  prazo  dos  sens  trahay 
lhos  :  nem  forfio  necessárias  cautelas  panl 
llie  advertir  que  elle  era  chegado ,  e  que/i 
doença  ,  que  delle  eia  correio,  era  d^  niol'- 
te.  Conheceo-o  elle  muito  bem  ,  corno  (ji^tu 
sempre  se  havia  preparado  para  aquell  i  lyra; 
c  a  cada  instante  a  esperava.  Recebco /oní 
grande  piedade  os  Sacramentos,  peindo 
humildemente  á  Communid..de  perdjf)  do 
seu  máo  exemplo;  e  consolando-se  milto  de 
acabar  entre  irmãos  túo  santos,  fia^)  em 
que  pelas  suas  oraçSes  entraria  o  Sen/ior  eui 
juizo  com  elle  benignamente,  não, se  lem- 
brando do  que  elle  fura  alguui  dia  ,ye  agora 
muito  do  coração  sentia  ter  sido.  F.iaeceo  no 
inez  de  !\Iaio  de  i632.  Jaz  no  ariecoro  do 
Convento  de  Demfica ,  junto  ao/deíiráos 
cue  sobem  paiM  o  Coro. 

Ainda  no  século  escreveo  v/rias  obras , 
que  temos  impressas,  e  vão  m  fíui  deste 
volume  quasl  pela  mesma  ortl/ni ,  por  que 
sairão.  Uma  só  não  pudemos  ilcauçar,  in- 
titulada Navií^atío  Aritartic^ú  fid  Doctorem 
Franciscum  Giiidiim  y  civcnj Panamensem  , 
de  que  faz  menção  na  sua  r>i>llotheca  o  eru- 
dito Abbade  Diogo  barbos/ Machado  ,  que 
iufornjando-nos  cum  tíUc  do  lujar,  cm  que 


Fzi.  Luiz  de  Sorsi.  i5 

"ã  poderíamos  descobrir,  nos  protestou  in- 
jeniiamenle  se  riáo  ienibravn ,  pois  aquclla 
i\ieníOiia,  de  que  se  servira  na  biblioiheca, 
lae  não  podia  occorrer  donde  a  bavia  con- 
seguido. Além  destas  obras  adiámos  mais 
ma  Soneto  no  principio  do  Livro  irtitulado 
Caicimento  perfeito,  escrilo  por  Diogo  de 
Pal\a  de  Andrade,  sobiini;o  do  insigne 
Tiíeologo  desle  mesmo  nome, 

íva  Rebgião  escreveo  primeiro  a  Vida 
cio  Venerável  Arcebispo  D.  Fr.  Bartholomeu 
dos  Marlyres ,  que  oííereceo  á  Camera  de 
Viana,  que  generosamente  a  íez  imprimir 
na  mesna  Villa  ,  em  um  volume  em  tolio  no 
anuo  dt  1619,  e  nós  publicámos  agora  se- 
gunda Víz ,  como  já  dÍ5senK)S  acima.  Esta 
obra  saio  traduzida  em  franccz   iio  anno   de 

Escreveo  mais  a  Prijneira  parie  da  Histo- 
ria de  S.  Lumin^os  y  particular  do  lieino ,  e 
Conquistas  de  Portugal ,  que  se  imprin:io 
em  1623,  tendo  sido  composta  das  memo- 
rias, que  deixara  ainda  iiiFormcs  o  Padre 
Fr.  Líiiz  de  Gacegas,  yí  Segunda  Parie  da 
mesma  Historia,  que  se  in)primio  em  1662  , 
já  depois  da  morie  do  Autor,  peio  Padre 
i^r.  António  da  Ircarnacáo  ,  que  Ibeajunlou 
um  Prolof:o,  t  Koticia  da  Nida  do  Autor, 
«i>nde  liiiin,os  n.uito  do  que  Itii  os  dilo,  poi 


1(5  Vida  do  Pàdii 

ser  Autor  coéro ,  e  Gcledl^no.  Só  ros  nío 
pudemos  detej-minar  a  seguil-o  no  que  toca 
ao  motivo,  que  refere  tivera  IManoel  deSouíi 
para  deixar  o  século.  Não  achamos  na  infoi^- 
mação  do  peregrino,  que  se  diz  rir  de  Jerí- 
salem  ,  e  mais  circumstancias  ,  motivo  cjftis 
I»aste  para  nos  fazer  este  sucresso  crivei.  Hsia 
foi  a  razão,  porque  assentámos  cm  outi.i  raii- 
sa.  Terceira  Parte  da  mesma  historia  eh  S. 
Domingos y  impressa  em  Lisboa  era  i6y8. 

Tinlião-se   impresso   já  duas  obríí   áo 
Padre  Fr.  Luiz  de  Sousa  ,  uma  no  aiT^o   de 
1645,  e  é  a  das  Considerações  das  Lafrimas^ 
que  a  P irgem  nossa  Senhora    derrariou  na 
Srigrada  Paixão  repartidas  cm  de?  passos: 
para  a  devoção  dos  dez  sal^bados:  <rutra  em 
1642  ,   e   é   a  Fida    do  Deato  Henrique  Suso^ 
JDoniinicOj  traduzida  de  Alleniáo  cmjLatim  por 
Fr.  Lourenço  Surio ,   e  de  Latim  h^  Porfií' 
guez  por  Manodl  de  Sousa  Couíi/t^io»    Estas 
duas  obras  é  esta  a  terceira  vez  y  ^ue  se  im- 
primem. 

Deixou  t;un])em  escrita  a  fida  do  Sc" 
nhor  Rei  I).  João  llí  ^  a  qual  íendo  adian- 
tjdo  quasi  até  o  fim,  Ibe  foi  manda<la  pe- 
dir por  Filippe  IV,  Uei  de  fíespanlia  ,  em 
nma  carta  escrita  pelo  Secroí  irio  Francisco 
de  Lucena  em  9  de  Janeiro  do  16  Ja,  e  lhe 
lião  tornou  a  ser  resiituida.  O  Desembarga- 


Fk.  Lviz  DK  Socíi.  17 

(lor  ígnari'i  Barbosa  Machado  ,  cujas  letras 
sfio  bem  conhecidas  neste  Reino  ,  que  lhe 
deve  o  te!-o  lllusirado  com  os  seus  escritos, 
nos  segurou  que  seu  Iniuio  o  Parlie  D.  José 
B.iT!)osa,  .sujeito  de  conhecida  literatura  , 
c  talento  ,  lirdia  visto  esta  obra  uo  Padre 
Fr.  Luiz  de  Sousa  na  livraria  do  ultimo  Mar- 
quez de  Gouvea  com  este  titulo:  Chronica 
cio  Frade;  mas  iuíelizmente  não  pudera  ter 
meio  de  a  fazer  copiar. 

l\esta-uos  a^jora  satisfazer  ao  sei^undo 
ponto,  a  que  nos  obrigámos,  e  é,  tazer 
juizo  sobre  o  mereri mento  dos  escritos  do 
Padre  Fr.  Luiz  de  Sousa,  Como  não  é  tanta 
a  nossa  confi^ínça  ,  que  de-cancemos  somente 
sobre  o  nosso  conceito;  cncost:nemo3  o  que 
dissermos  á  g^rave  autoridade  de  muitas 
pessoas  de  perteitu  f^oslo  ,  juizo  solido  ,  e 
ajustada  critica,  com  quem  temos  muitas 
vezes    conferido  sobre  a  presente  matéria. 

E  sem  duvida,  que  teve  o  Padre  Fr, 
Luiz  de  Sousa  as  mais  evrelletites  quali- 
dades para  irsrrever  perleifa mente.  Até  j  ara 
isso  lhe  sérvio  o  seu  i  ascin»eiit«>,  pela  acer- 
tada educação  ,  í|ue  receln-o  de  seu  pai.  Os 
seus  talentos  uatmaes  erfu^  iíUi  tnt;eiTho  vi- 
vo, e  fértil  ,  nma  iníaginação  copiosa,  e 
feliz  ,  um  juizo  solido  ,  e  chuo  ,  ujii  animo 
brioso  ,  e  amauie  da  verdade,  hj^W^  laknioi 


i8  Vida  do  PadrI 

aperfeiçoados  com  o  trato  conliniiado  cios 
homens  mais  sábios ,  e  polidos  do  seu  teiu- 
po  ,  o  commercio  das  pessoas  mais  civis  ,  e 
conhecinjcnto  do  mundo  ,  não  podiáo  dei- 
xar de  profluzir  nelle  nm  snç^eilo  eminente. 
Assim  surccdeo  :  e  ovonios  nos  [seus  escri- 
tos. E  principiando  pela  Vida  do  Arcebispo 
Santo  D.  Fr.  Dartbolomcu  dos  Martyres  : 
que  evidente  prova  do  que  temos  dito  não  é 
esta  escritura  ? 

Creio  que  não  ncressilo  de  fazer  agora 
aqui  lan  tratado  mcthodico  <le  como  se  Jctc 
escrever  Historia  ,  para  ser  perfeita,  e  com- 
pleta :  isto  pareceria  obra  indiscreta,  e  in- 
t>cmpestÍYa.  Mas  não  pos?o  escusnr-nie  i!« 
apontar  uns  piincipios  geraes  ,  c  certos  ,  para 
desta  sorte  proce(ier  sem  cTrgano.  E  certo 
que  é  necessário  cm  quen»  escreve  Historia 
Juízo  ,  Eloquência  ,  Probidade :  Juizo  para 
averiguar,  escolher,  e  dispor  os  factus : 
FJocjuencia  para  os  explicar  ,  c  fazer  sentir 
com  toda  a  sua  forca ,  peso ,  formosura : 
Probidade  para  não  faltar  á  verdade  ,  e  ex- 
primir tudo  de  tí«l  modo,  que  instrua,  « 
aproveite  aos  costumes  ,  sem  declamar.  Tudo 
isto  parece  <jue  se  acha  nesta  Vida  do  Santo 
Aicel)ispo.  ISão  se  escreve  ncUa  facto,  que 
não  seja  digno  da  posteiid.íde  ,  ou  para  \\\% 
íazer  ver,  como  L^ííus  pfcvine,   c  dá  anii- 


Tá.   L:^::%   de   Zgvs\, 


^B 


cipaclamcnte  a  conhecer  os  fjuc  tem  desti- 
nado para  obivr  cousas  grandes:  desta  na- 
tvreza  é  o  casosuccediclo  ao  Art-ebispo,  sen- 
do aiiítid  nieniim  ,  com  o  pobre  ,  que  veio 
xDedir  esmola  a  sua  mãi,  que  se  achava  no 
síllo  da  Torriígem  :  e  aqueíla  inclinação  aos 
Religiosos  <la  Ordem  de  S.  Domingos,  a  que 
liepois  honrou  tanto.  Isto  a  u:na  critica  mais 
severa  ,  e  mais  forte  pareceria  alheio  da 
seriedade  da  liiuoria  ;  mas  quem  olha  pelo 
lado  mais  conforme  á  piedade ,  e  íilosofia 
Cliristãa,  até  aqui  reconhece  sábia  mão  de 
Mestre.  (íomo  tami^ein  quando  descrevendo 
a  pobreza  da  sua  mesa  Archiepiscopal ,  o 
pouco  commodo  nas  suas  visitas ,  o  parco 
tnítimeiito  da  sua  casa,  a  familiaridade, 
com  que  se  entretinha  ,  ainda  com  os  mais 
huoiildes  dos  seus  subíhtos ,  a  escaccz,  címti 
que  se  vestia  :  p()rf[ue  ludo  isto  ensina  sua- 
veiuente  que  é  próprio  de  um  Prelado  per- 
feito viver  pobremente,  familiarizar-se  com 
os  pequeninos,  seguindo  o  seu  exeniplar 
Jé:',SlJ  Chrislo  ;  e  eu)  íim  confirma  os  lio- 
mens  no  corueito  de  que  a  Providencia 
nunca  deixa  de  assistir  aos  seus,  entre  os 
maiores  perigos,  como  em  o  da  serra  d« 
líafToso  ,  e  lia  casa,  em  que  o  Arcebispo  se 
rão  quiz  recolher ,  e  io^o  depois  m  arrui- 
nuu. 


%x>  Vida  do  Padki 

E  qiierlirei  eu  dos  outros  furtos  ãe  maiot 
"▼uUo  ,  e  a  que  esses  severos  criíiros  só  que- 
Teni  admlttir?  (>)ino  os  escolhe  sa!)ian5enle 
•o  Paílre  Fr.  Luiz  de  Sou^a  ,  ecoino  os  dis- 
põe ?  Quando  re})rest'nia  o  Arcebispo  vo- 
tando no  SngraíJu  (Concilio  de  Trento:  nos 
Cousistorius  de  Pio  IV,  advogando  pela  di- 
gniilade  Fpiseopal  j  nas  Cortes  de  Fiiippe 
II,  consu)  vando  ioda  a  honra  da  stia  Priína- 
lia  ,  bem  se  vê  em  todas  estas  f»c(asl'jes  o 
Arcebispo,  grande,  generoso,  nobre;  mas 
Santo.  £  tanto  nestes,  como  nos  casos  prece- 
ílenies  parece  que  bem  mostra  o  Historiador 
o   seu  JUÍZO. 

Alguns  succcssos  ha  ,  nos  quaes  parece 
que  da  parte  do  Arce}»ispo  hou^e  ali^um  ex- 
cesso no  proceder:  tal  c,  acaso,  o  modo, 
porque  se  houve  na  alçada  de  D.  Pedro  da 
Cunha  ,  escrevendo  a  F.lllei ;  o  do  Ouvidor 
de  Chaves  ;  o  da  i evolução  do  povo  ile 
Braga  na  uiorte  «Io  Cardeal  Rei.  Estes  suc- 
cessos  era  bem  Jelicaíh)  rcíenl-os  sem  of- 
fender  ou  a  memoria  do  Santo  Arcel)i«;po  , 
ou  a  autoridade  tio  Principe.  Mas  o  Padre 
Fr.  Luiz  dtí  Sousa,  a  n»eU  ver,  procedeo 
com  rara  discrição  ,  e  acerto,  lleterc  o  que 
na  vci-dade  se  passou  ;  mas  ou  deixa  a  cada 
um  ,  (|ue  lê,  íazer  juizo  xsobii-  o  suctcsso  ,  ou 
«e  deixa  entender  sómeule  mosiraudo  que  o 


Fr.  Luiz  ce  Sodsa.  ai 

*èlo  forte  ,  ainda  que  nascido  de  boa  in- 
tenção ,  foi  quem  iiioveo  o  grande  Prelado  , 
e  ijae  t.ies  aoçóes  são  ílaqnelias,  qne  se  de- 
Tem  adniirai',  sem  qiiesirvão  de  exemplo 
para  a  imitação.  E  quein  assim  procede  na 
escolha  dos  íacLos  ,  no  modo  de  os  conceber, 
e  de  os  exprimir,  creio  que  dá  boa  prova  do 
seu  juizo.  Deixo  á  parte  íallar  no  bem  arri- 
mado, e  bem  assentado  de  cada  um,  qi!e  é 
com  lai  arle,  que,  obscrvatla  l)em  atlcnta- 
inente  toda  a  historia,  se  conheie  que  ne- 
nhuma das  partes  desmeate  do  seu  todo  em 
cousa  alguma.  E  certo  que  não  pode  achar- 
se  ordem  mais  bem  regalada.  Chega -se  ao 
íim ,  e  se  d'alii ,  como  de  um  hjg;ir  alio  ,  se 
lancão  os  olhos  por  lodos  os  aí^rad-iveis  5Í- 
tios  ,  por  oncie  se  tem  passado  ,  tornados 
agora  a^ver  enchem  de  nova  alegria,  e  dei- 
xáo  conhecer  toda  a  sua  proporção ,  c  for- 
mosura, 

Passemos  á  Eloquciicia,  Se  é  eloquente 
aquelle  ,  que  não  só  concebe  as  cousas  clara, 
e  solidamente,  mas  com  cerlo  modo  grave, 
e  polido;  e  depois  as  exprime  com  uma 
dignidade  sãa  ,  nobre,  viva  ,  e  natural ;  cer- 
tamente foi  eloquente  o  Padre  Fr.  Luiz  d« 
Sousa.  Mas  isto  ainda  se  prova  melhor  peh)s 
ef leitos,  que  o  coração  experimenta  no  ([ue 
ouve ^  ou  10.  Ninguém  (se  lè  altentamente  o 


í2  Vida  no  Padrk 

Padre  Fr.  Luiz  de  Sousa)  deixa  de  sentir  que 
aíjuella  c  a  linr^uagcm  ,  que  o  coração  íalh, 
e  que  o  seu  próprio  coração  desejara  ter  íjl- 
lado  assim ,  ou  que  lhe  níiu  íalLbieui  <le 
outro  modo.  Isto  exnoriuieuio  eu  cm  iiiin»  : 
isto  mesmo  coníessfio  as  pessoas  de  mais  puro 
gosto,'  que  experiuiejitão  taml)em  :e  daíjui 
iuíiro  que  me  nÃo  engano.  Devo  cjufcisar, 
que  isto  mesmo  me  succede  na  litão  do 
nosso  Barros,  e  do  Padre  João  de  Lucen,t. 
Oxalá  que  depois  de  bem  estudadas  as  ver- 
dadeiras regras  da  Rlietorica  ,  e  da  Critica  , 
se  averiguasse  ,  e  pezasse  bem  quanto  valeia 
estes  grandes  hoiiiens!  Nelle  se  veria  que  , 
ou  de.ncrcvão  lugares,  ou  reiiráo  batalhas  , 
ou  representem  caracteres  ,  ou  ponhão  al- 
guém íallando  ,  nunca  tlegenerão  dos  Anti- 
gos JMestres.  Agora  podia  produzir  lyrgamen- 
Ui  bons  testemunhos  para  prova  do  (jue  di- 
go ;  mas  receio  ser  extenso.  A  cada  passo  se 
encontrão  tanto  na  Vida  do  Arcebispo, 
como  na  Chroiiica  de  S.  Domingos.  E  não 
posso  concluir  melhor  o  que  respeita  a  esta 
parte,  do  que  trasladando  aqui,  par* 
prova  do  que  tenho  dilo,  o  juizo  de  lun 
homem   sa))lo  ,    e   bem  eloí|uenle  (i)  :    Que 

(i^i     O  Padre  António    Vieira  na  A^nuttva';1j    do 
Têretiro  To: no  4a  (ihrormã, 


Fr.  Luiz  de  Sousi.  a5 

9!qm  se  vêm  juntamente  praticadas  todas  as 

lei':    da  Jlistona que    o  estilo   é  claro 

com  bre^'ídade  ,  discreto  sem  ajfectacão  ,  co» 
pioso  nem  redanjlancia  ,  e  tão  corrente ,  fácil, 
e  notável,  que  enriquecendo  a  memoria  ,  9 
affeicoando  a  vontade ,  não  cansa  o  enicn' 
dimento.  .  .  . 

Qne ,  ainda  quefalião  aqnclles  casos  ,  e 
nomes  estrondoso^;  ,  que  por  si  mes/nos  Icvcin- 
tão  a  p<:nna ,  e  dão  t^randcza ,  e pompa  d 
narração  .  .  .  .  é  admirável  o  juizo  ,  discri' 
cão j  e  eloquência  do  Autor;  porfjuefallan* 
do    em     matérias  domesticas  y    e   familiares 

todas  refere  com  termos  tão  ií^uacs,  e 

decentes  ,  que  nem  nas  mais  avultadas  se  re- 
monta y  nem  nas  miúdas  se  abate:  aizcndo  o 
commum  com  sínç(ularidade ,  o  simillianté 
sem  repetição ,  o  sabido,  e  validar  com  novi- 
dade ,  e  mostrando  as  cousas ,  como  faz  a 
luz  ,  cada  uma  como  c ,  e  iodas  com  lustre, 
A  lin£;ua9;cm  tanto  nas  palavras  ,  como 
na  frase,  c  puramente  da  linqua,  cm  quê^ 
professou  escrever,  sem  mistura  ,  ou  corru- 
pção de  vocábulos  estrangeiros ,  os  quaes  só 
mcndi/fão  de  outras  linf^uas  os  que  são  pobres 
de  cabedaes  da  nossh  tão  rica  ,  e  bem  dotada^ 
como  fdha  primogénita  da  Latina.  Sendo 
tanto  mais  de  louvar  esta  pureza  no  \*adr€ 
Fr,  LuiZj   quanto   a  sua  lirão  cm   diversos 


%4  VlDk    DO    PaDRK 

idiomas  .  e  es  suas  largas  peregrinações  em 
ambos  os  mundos  o  não  poderão  apartar  das 
fontes  naturaes  da  lingua  materna  ;  como 
acontecs  aos  rios  ^  que  vem  de  louge  ^  que 
sempre  tomão  a  cor,  e  sabor  dai  terras ,  por 
cndj  pass'Jo, 

A  propneiade  y  com  que  fuV.a  em  todas 
ms  matérias  ,  c  como  de  quem  as  aprende  o  na 
eschola  dos  olhos.  Nas  do  mar  ,  e  navega* 
eão  falhi  como  quem  o  passou  muitas  vezes  : 
nas  da  g".erra  como  quem  exercitou  as  armas: 
nas  das  Cvries ,  e  Paço  cnnio  Coríezão ,  ê 
desenganado  :  e  nas  da  perfeição^  e  virtudes 
rdligiosas  ,  ci-?ic>  Religioso  perfeito.  Afé  aqui 
aquelle  sal)lo,  e  cloqucnle  lunnem.  E  com 
isto  iiíli^inios  ter  abonado  fjastantemcnle  a 
eloquência  do  Padre  Fr.  Luiz  dt.  Sousa, 

Quanto  á  Prohididc  paroiia  escusado 
nioslrarniol-a  ein  o  Padro  Fr.  Luiz  de  Sonsa  , 
dejíois  de  ter  dito  que  elle  foi  eloquente 
(i)  ,  e  (jue  pratico!i  a  vida  que  deixamos 
escrita.  ATíjs  o  certo  é  qiie  qr.ando  leuios  os 
seus  escíito"^,  Io^ío  alli  veuios  um  IIisioi:Ja- 
dor  prudente  ,  hom  ,  ver<ludeiro  ,  Cliri^ifio, 
o  que  é  mais  ((tje  luilo  ,  e  que  nuuca  })cid<í 
de  vista  a  Religião  Sacrosauta  ,  que  prolessa, 
Alli  estamos   vendo    um  Christfio    cheio    do 

^i)     Vid.    QuittCtU.  lib.  xa.  l»*lii.  Oral.  cap.  i. 


Fr.  Luiz  de  Sousa..  *5 

espirito  ,  que  oETangííllio  imprime  a  quem  o 
medita  ;  a -jnelle  espirito  manso,  humilde, 
caritativo  ,  mas  ao  mesmo  pass(j  nobre,  ge- 
neroso, granJe;  o  qual  e^lá  contatido  á 
posteridade,  para  seu  bem,  o  qiie  elie  pre- 
senceou.  fí  daqui  nasce  no  coração  um  gosto 
singular,  que  ao  mesmo  teri-po,  que  o 
rccred,  o  excita  para  se  aperfeiçoar.  E  esta 
unia  falta  ,  que  se  acíia  em  alguns  moder- 
nos,  aliás  sábios,  e  judiciosos,  e  lhe  nao 
posso  desculpar. Escrevem  nobremente,  mas 
respirão  uma  íiiosofia  h uai  ma  ,  uuí  ar  pro- 
fano ,  de  sorte  que  ,  lendo-os  ,  mais  me  pa- 
rece que  tenho  nas  uínos  um  Gentio  creado 
nas  trevas  da  Infidelidade  ,  do  que  um 
homem  ,  que  teve  a  felicidade  incomparável 
de  professar  a  Religião  Tcrdadeira. 

Temos  satisfeito  ao  que  pertence  á  His- 
toria ,  que  o  Padre  Fr.  Luiz  de  Si>usa  escre- 
veo  como  sua  própria.  A  f^ida  do  Beato 
Henrique  Suso  é  um  perfeito  exempKír  da 
traduf  cão  ,  quanto  a  su!)stancia  ,  e  verdade 
da  matéria;  nias  no  estilo  ,  e  fra/e  excede 
grandemente  o  orij^nnal. 

As  Meditações  das  Dores  da  Senhora  são 
obra  perfoitissima.  Não  se  pôde  escrever 
nada  mais  cheio  tle  ternura  ,  e  de  piedade 
para  cmn  a  ^Ifii  tle  Deos.  O  <  oração,  que 
ama  íielmeole,  descobre  alliosaffeclos  niaii 


a6  "Vida  do  Padrb 

puros  ,  e  mais  vivos  ;  até  a  lingmgem  é  sim- 
ples ,  e  cievotissima  ;  parece  do  Cep. 

Quanto  ás  composiç''es  La^:inas.  Bem  se 
vê  que  o  Fadre  Fr.  Luiz  de  Sousa  soube  a 
lingiia  Latina  com  pcríeição  !)astarile.  AcjueU 
les  Ciiticoi,  que  uulcaíuente  po  iem  julgar 
<le  uma  palavra  só  per  si  (como  já  a  respeito 
de  algum  disse  o  engenhos:>  Pope  ,  acliaráõ 
que  Iheuolar;  mas  os  que  tem  bom  gosto 
conhecerão  ,  que  o  ha  nas  composii  óes  La- 
tinas do  Padre  Fr.  Luiz,  aindu  quanto  ao 
que  é  rigorosan.ente  lalinidad<\  Lma,  ou 
outra  palavra  de  idade  monos  nubre  é  de- 
feito ,  com  que  o  bom  Critico  se  iiáo  of- 
iende  (i).  Em  tim  os  versos  Porlu.^uezes, 
e  Hespanhoes  parece-nos  (|iie  sem  escrúpulo 
podemos  dizer  nos  não  saiiSÍazem  quanio  de- 
ífcjaiJamos. 

E  aqui  nos  occorre  naturalmente  que 
^iiem  tiver  lido  ,  o  que  deixamos  escrito  , 
pôde  dizer  que  talvez  temos  parecido  um 
pouco  encarecitlbs  a  respeito  do  mereci- 
mento do  Pa(íre  Fr.  Luiz  de  Sousa,  e  qu« 
apenas  agora  lhe  queremos  confessar  algu- 
mas veuialidatles  nos  seus  escritos,  haven- 
do aliás  nelles  defeitos  notáveis.  Que  mostra 

(i)      Non  ego  j.ruicis  oliViul  ir  maculis  ,   4ua>  aiil  iu- 
ruiia  íuclit  ,   itut  UuiumUiI  [>ui'uiu  ca>it  u<tiuiA.  liui^it. 


Fb.  Luiz  de  ScrsA.  3^7 

paixão  pelo  Arcobispo  ;  qr,e  na  Cbronica  a 
n?io  mostra  menos  pel.l  sua  Ordem  :  que  ás 
%'ezes  se  cletém  cni  faz.cr  descri pç^es  com 
desejo  de  parecer  elegante,  e  mais  como 
Poela,  do  que  como  Historiador:  qnc  mista* 
rn  autoridaJes  Latinas  de  permeio  ,  qufi 
são  alheias  do  bom  estilo.  Que  no  corpo  da 
obra  ajunta  rloíMimentos ,  que  proTÚo  os  fa- 
ctos ;  o  que  só  era  próprio  de  uma  Disserta- 
ção, on  de  umas  I^I-jmorias;  pois  taiís  docu- 
menlos,  como  diz  um  Historiador  !)em  cele- 
bre (i)  são  como  os  anílames  nos  ediíicios  , 
e  os  esicios  ,  e  formas  nas  alio!)e  íjs  ,  que  se 
tirão  feita  a  obra  ,  ficando  bera  claro,  que 
«obre  ellas  é  qne  se  fundou.  Além  disto  que 
parece  mais  crédulo,  do  que  a  judiciosa  Cri- 
tica opermiite;  nem  se  regu!o?i  sempre  pelo 
preceito  do  Apostolo:  Orjmia  prohnte  :  r[\\e 
referio  visões ,  e  appariçóes  provadas  talvei 
com  o  dito  de  pessoas  ,  cuja  imaginação  viva 
lhe  faz  acieditar o  í[ue  apenas  se  lhe  repre- 
sentou ;  que  deu  por  uiilagres,  ou  obras  so- 
bre-naturaes  coi!sas  ,  que  bem  cabião  dentro 
nas  forcas  ordinárias  da  natureza:  que  se 
tlislrae  para  esc/ever  cousas,  em  que  so  pa- 
rece quiz  ostentar  que  sabia  fallar   nvllas: 


(r)     Fleur.   Diicurs.  j:iimKÍr«  íob;*  aUistori;»  tr- 


a8  Vida  do  Padrí 

qneo  seu  estilo  ás  vezes  é  tliffuso,  e  rctlur» 
dante,  e  tem  tlemaziaxia  simplicidade,  e  tal- 
vez falia  de  elegar.cia  :  e  com  çstes  defeitos 
como  se  pótie  aju^ítar  o  que  dissemos  do  seu 
juizo,  da  sua  eloquência ,  e  da  su2í  probidade^ 

Coiiíesso  que  estes  defeitos  são  graves, 
e  que  por  si  só  desiustraiiáo  grandemeule 
um  Escritor;  mas  eu  hei  de  mostrar  que 
muitos  delles  não  os  ha  no  Padre  Fr.  Luiz  de 
Sousa;  e  esses,  que  ha,  não  diminuem  a 
cicelleucia  dos  dotes  ,  que  cu  apontei ,  c  Hz 
ver  iieiltí,  e  que  sempre  íica  salva  a  sua  au- 
toridade, e  merecimento. 

Quanto  ao  dizer-se  que  parece  ter  paixão 
pelo  Santo  Arcebispo:  ttl-a-hin  o  Padre  Fr. 
Luiz  de  Sousa  ,  se  cu  lhe  occuUnsse  os  de- 
feilcs,  ou  llie  ampliucasse  as  virtudes.  Quom 
lhe  confessa  geuio  ardente,  e  forte  ,  e  seve- 
ro ,  quem  mostra  que  elle  se  enganou  algu- 
mas vezes  ,  não  merece  nome  de  apaixonado. 
Em  aLono  da  sua  Ordem  é  necessário  que 
refira  o  que  acha  provado;  e  tau)l)em  é  justo 
que  assim  o  faça  ;  e  se  alguma  vez  parece 
que  lhe  níio  devia  ter  sido  bastante  a  prova, 
esta  culpa  ab  honestíssima  sone  causa  pro* 
fecta  ,  com'»  disse  um  sábio  Critico  a  respeito 
de  Tito  Livio.  A  origem  da  Inquisição  ,  que 
atlribue  á  sua  ()rdem  ;  S.  (loncalo  d'Ama« 
rantc,  que  conu  cnire  o>  Santos  delia  ^   Fr. 


Fr,  Luiz  de  Sousi,  15 

Soeiro  Mendes ,  que  dá  por  Porluguf  z  ,  sáa 
toiísas,  que  prora  com  documentos. 

Assim  é  c[iie  se  detém  em  descrever  lu- 
gares como  Poeta  ,  por  exemplo  ,  o  Convento 
de  Bemfica  ;  mas  alem  de  que  nesta  parle  é 
boa  satisíaçãa  o  exemplar  que  imitou,  e  o 
aífecto,que  lhe  merecia  uma  Casa,  onde  ti- 
nha recebido  do  Ceo  graças  especiaes  ;  é 
certo  que  isto  não  é  impróprio  na  Historia  , 
a  qual  esi  .  ,  ,  ,  próxima  poetis  ,  et  quodani-^ 
modo  carmen  solutum  ,  como  diz  um  graúda 
Mestre  (i).  As  autoridades  Latinas  são  muito 
raras,  e  muito  brevts  ,  e  nesta  parte  con- 
descendeo  com  o  seu  século :  e  assim  ao  me- 
nos, nno  desmerece  perdão.  Os  documentos], 
que  metteo  na  Ghronica  ,  podia  escusaUos, 
assim  hc ;  mas  ou  julgou  que  a  natureza 
desta  escritura  lh'o  pcruiittia  ,  ou  que  alli  S8 
conservarião  mais  seguros  para  todo  o  tem- 
po. 

Quanto  a  dizer-se,  que  parece  ser  um 
tanto  crédulo  ,  e  menos  critico  em  algiins 
factos:  ol^adieFr. Luiz  de  Sonsa  era  homem 
de  piedade,  c  prudência  s#)gular*.  creio  quo 
\endo  os  seus  documentos,  ;io  tempo  de  es- 
ciever  dizia  comsi«fo  com  melhor  razão  ,  do 
que    Livio  (:>.) :  Mí/ii  vetustas    rcs  scribcníi^ 

(i)     Quiiit.  I.  10,  Cij).  i. 
(a>    Liv.  43   Citp.  li. 


2o  ViDi.  3o  Palrr 

f}escio  quo  pacto  ,  antiquiis  fit  nnimus ;  ef. 
quaedam  Reli^io  est  ^  cjiinc  prudcntissimi  tn- 
ri..,  snscipienda  censiierunt  ,  en  pro  inclii»riis 
hahcre.  quac  in  incos  annaies  r.^fcram.  Jti^to 
mesmo  podiíiinos  rer.pondcr  acerca  fl:)5  visões, 
c  dos  milaí^res;  a  siu\  pie(l:i(le  certamente  UA 
causa  de  se  inciirar  mais  a  referil-os. 

Se  parece  que  se  desvia  do  seu  caminlio 
para  descrever  ou  o  sitio  de  i\Iazn2[:u),  ou  as 
festas  da  Trasladação  do  corpo  do  Santo  Ar- 
cebispo: no  primeiro  caso  o  amor  da  palri^ 
o  jUSliOca  :  no  secundo  o  afjradeoiniento  ás 
nnezas  ,  que  a  Villa  de  Viana  tinlia  obrado 
em  obsequio  do  mesmo  Santo  Arcebispo,  e 
da  sua  Ordem.  Se  o  estilo  parece  ali^uma  vcx 
ílifiuso  ,  não  é  com  excesso  ;  e  a  dureza  sin- 
gular, e  a  graça  maravillicsa,  com  que  sem- 
pre propõe  o  que  tliz ,  fax  que  possamo» 
dizer  ,  (]\\q  a  brevidade  tao  estimável  no 
Historiador  d'n>crsis  viríiitlbus  conscciífus  esf, 
como  Quintiliano  diz  de  Tito  Livio  a  res- 
peito de  Salusllo.  A  simplicidade,  que  Fr. 
Luiz  tem,  sempre  é nobre,  ainda  em  oscaso"^, 
euí  que  parece  seria  difficultoso  que  assim 
fosse.  O  successo  aconfet  ido  á  comitiva  ôo 
Arcebispo  nas  alturas  de  13arr4>sn  ,  sendo 
cousa  emsibumilde,  couseiva  eui  a  r»arrac5o 
todo  o  ílecoro,  que  se  podia  desejar,  l  (K'Stc 
modo  coucluinios  a  respeito   do  Padre  Vr, 


Fk.  Llí2  dl  Sousa.  5i 

líuiz  de  Sousa  ,  como  um  tios  mais  sábios  , 
c  eruditos  proíessores  da  Eloquência  ,  que  a 
Europa  vio  neste  século,  conclue  a  respeito 
de  Tito  Li  vio  (i)  :  íla  praestitit ,  .  ,  iit  si  mi' 
nas  ,  ccteris  omnibiis  dicendus  est praeripuisst 
palmam  ,  ceríe  nidli  secundtis  haberi  possit  : 
tíc  si  Historiarurn  scriptori  atile  dulci  miscere 
safficerel jjruslra  cjaidquamperjectias  inveni» 
retur  .  .  .  paulluluni  claudicavit ,  et  huinaiii 
aíiquid passas  est ;  sed  iía  ,  vt  calpam  eausa 
culpae  elevare  plcramquô  videatur. 

Tenho  satiífeito  o  a  que  me  obriguei  no 
Prologo  que  fiz  á  Vida  do  Santo  Arcebispo: 
e  á  yista  do  que  ate  aqui  tenho  escrito  pare- 
ce, que  não  comecei  desacertadamente  a 
resusciíar  os  nossos  primeiros  Escritores  pelo 
Padre  Fr.  Luiz  de  Sous:»  ,  para  delle  passar 
a  outros,  que  nos  resiáo,  e  são  em  maior 
numero  do  ({ue  comniuniuienre  se  jul^a.  Es- 
pero conseguir  o  meu  projecto  pela  protec- 
ção do  nosso  Augusto  Soberano,  e  pessoas, 
que  amão  o  bem  publico  dos  seus  naluraes. 
Pois  devo  confessar  o  que  experimento  :  ain- 
da ha  aqucUes  briosos  aíilrnos  antigos,  bons 
compatriotas,  que  estiuíãoa  honra  ,  e  as  le- 
iloas ,  e  desejão  ou  imitar  ,  ou  igualar  os  jquo 
mais   patrocinarão    os  estudiosos.    Quanto  a 

ii • . — . ■■ 

(O    lu  PraíÍAtt  avl  iiv,  llui^r.    i)rop,  fio. 


3^  TiDÂ  DO  Padm 

ilizer-se,  quesó  enrre  nósé  próprio  o critlcif 
mulignamenLe  ,  é  giando  erro.  Não  succetle 
entre  nós  nesta  parle  n<;dd  niais  do  que  suc- 
cedc  erjJ:re  as  outras  nac^íes  :se  ha  invejosos, 
e  njaii^nos  ,  ha  iiiiiito  quem  estime  o  estudo  , 
ea  appiicaca\).  Am  bom  Cidaiifío  toca  ocori- 
solar-se  com  o  hcin  que  íáz,  anjar  a  qnein  o 
palrociíia  ,  e  a  quem  lhe  Inveja,  olhar  para 
elle  conforme  a  Lei  da  ile]i<rião  verdadeira. 

o 

A  beriijrna  arceilação ,  que  cxperiírento, 
fará  que  desattenda  qualquer  critica  menos 
judiciosa.  Esta  he  a  minha  resolucáo,  e  con- 
tniuar  em  servir  a  pátria  quanto  eu  puder. 
Resta  aj^ora  trasladar  aqui  as  autorida^ 
des  dos  homens  sábios,  que  fallirão  sobre  o 
merecimento  do  Padre  Fr.  Luiz  de  Sousa, 
ou  o  honrarão  pelos  seus  talentos.  Primeira- 
mente : 

O  eruditissimo  ,  e  sn])io  Critico  D.  Ni» 
cnláo  António   Tora.  2.  Dibliol.   Hisp.    pag^. 

52. 

In^rtriiam  ele^ans  ^  excultumque  efiarn 
Rhctohcis  ,  ntqne  liuiiianitatis  art,Ous  y  judi' 
cium  in  paneis  runínruin  ,  miraque ^  ac  eX" 
^  uisíta  Lu  uía  n  i  o  ermo  11  is  facúndia . 

João  Soares  de  Brito  Thealro  Lusit.  lit. 
L  num.  47. 

Pvacdarum  Lusitanae  eloquêiitíã*  spcm 


Fr.  Ltiz  DE  Sorsi.  33 

Mapoel  de  Faria  e  Sousa  Tom.  i.  dos 
Comnícntos  das  Rim.  de  Cani.  Juizo  das 
Kini. 

Fué  iin  Ccwalhro  de  miicho  inferno ,  y 
tan  insíTuiclo  cn  las  letras  humanas,  qu& 
hien  pudo jusgar  de  ingenios  siirefioi inc/itc 
ornados  delias .  .  .  Escritor  nó  menos  cuerdo, 
que  elegante^ 

Fr.  Agostinho  de  Sousa  na  sua  Censura 
duda  em  it^  de  Sete;nbro  de  1622. 

Estilo  grave  ^  e  elegante,  sentcncloso ^ 
com  brevidade  ,  e  clareza  juntamente  ,  que  cm 
poucos  se  acha.  Linguagem  natural ,  canente, 
e  coriezãa ,  com  termos  tâo  próprios ,  signiji' 
cativos,  e  e/Jicazes,  e  longo  de  ajfeites,'  e  ar^ 
iijlcios  viciosos,  que  sem  encarecimenío  podc' 
71ÍOS  affrmar ,  que  dos  livros  ,  que  até  o  pre^ 
sente  são  escritos  em  Poitugiiez,  nenhum  se 
achará  de  mais  policia  ,  e peijcicão. 

j\lanoel  Severim  de  Faria  :  Disc.  var, 
Disr.  2.  da  ling.  Porlug.  Lsta paite  .  .  .  (falia 
da  Histííria}  tâo  estimada  ,  da  eloquência^ 
SC  vè perfeitamente  exercitada  em  varias  histo- 
rins ,  compostas  cm  nosso  unlgar, . .  Biíste-nos 
pnr  ora  três,  que  sÚo  João  de  Barros,  cos 
J^adrcs  Jouo  de  Lucena,  e  Fr.  Luiz  de  Sousa; 
dos  quacs  João  de  Barros  c  tido  por  narâo 
cfonsummadn  naquelle  género  de  escritura . , . 
O  mesmo  podemos  dizer  do  Padrtí  João  d 
2. 


54    VinA.  DO  Padue  Fr.  Luiz  de  Sousa. 

Lucena  ,  ,  ,  E  das  obras  do  Padre  Fr.  Luiz 
de  Sonsa  se  não  podem  esperar  menores  lou' 
cores  ,  que  o  tempo  qualificador  dos  engenhes 
lhe  concederá  brevemente  nas  outras  provin-^ 
cias  j  como  já  lhos  tem  começado  a  dar  neste 
Hei  no." 

O  erudito  A})bacle  Diogo  Barbosa  Ma- 
cbarlo  na  Bibliotheca  Lusitana  pag.  i45. 
Tom.  3. 

Toda  a  pureza  do  idioma  Portuguez, 
toda  a  elegância  do  estilo  Romano ,  e  ioda  a 
pompa  do  artificio  Bhetorico  se  tem  religiosa- 
mente  observado  nesta  historia ,  em  cujo  theti" 
tro  apparecem  diversas  figuras  mais  ornadas  y 
quando  mais  despidas  de  pomposos  cpithetos , 
explicando  altos  conceitos  com  termos  humil-* 
des* 


55 


PROLOGO  AO  LEITOP,. 

eirado  parte  da  Caria  dedicatória,  que  Lou- 
renço 5inrio  fez  no  principio  das  obras  deste 
Santo  Varão,  traduzidas  do  menino  Surio  de 
Allemão  em  Latim  ;  parte  do  Prolof;o,  que  o 
mesmo  Autor  fez  ante  o  principio  da  vida  , 
que  aqui  vui  iresladaia  cm  vulgar ,  e  de  ou" 
tros  Autores, 


A  Vida  {diz  Surio)  do  Beato  Henrique  Siiso, 
ainda  que  diffusa  ,  nao  contém  lodos  os  seus 
feitos  dignos  de  memoria  ,  n'as  só  uns 
poucos  dos  muitos, que  obrou:  aqnelles,  que 
lhe  parc^cco  n)nnií"estar  del)aixo  de  nome 
alheio.  Porém  no  livro,  que  nos  veio  á  mão 
escrito  na  lingua  vulgar  Tudesca  (de  que 
traduzimos  alguns  trabalhos  ,  e  eslutíosseus) 
se  contãoalguu:as  cousas  ainda  que  senj  nome 
dj  Autor  ,  as  quaes  não  se  acháo  nesta  sua 
vida  mais  larga;  mas  parcceo  bem  pr(q)oI-as 
aqui,  por  evitar  prolixidade ,  seasaítres- 
cenlassemos  á  mesma  vida.  No  baptismo  lhe 
foi  poiT  o  nome  de  Henrique,  porém  tanto 
\  .0  ao  admirável  gráo  de  5anlidade  ,   a 


ZS  pROLoe# 

que  chegou  ,  Deos  lhe  mudou  o  Tjome  fie 
Henriíjue  em  Amando ,  o  qual  v.]\e  em  qii.tuio 
TÍveo  nfio  quiz  nianit<'Star  por  huniihlade  ; 
mas  achou-se  í!ej3()is  de  sua  morte  entre  as 
revelações,  que  o  Senhor  ibe  tinha  feito  eia 
Tiddr  ,  como  o  mesmo  Deos  lhe  puzera  este 
nome  para  declarar  o  singular  amor  divino  , 
em  que  seu  coração  andava  ahrazado.  O  so- 
brenome não  qiiiz  tomar  do  pai,  posto  que 
fosse  de  nobre,  e  couliecida  geração,  mas 
tomou  oappellido  da  mãi,  matrona  santisòi- 
ma,  para  se  estimular  a  seguir  snns  pisadas,  c 
imitar  suas  virtudes  ,  e  assi  não  se  chamou 
Henrique  Montense,como  seu  pai,  mas  Hen- 
rique Suso  ,  comosua  mãi.  Tanto  qu&tomoti 
ohahito  de  S.  Dou)lngos  no  Mosteiro  de 
Constância,  logo  aproveitou  muito  na  tíjIu. 
de  :  e  sen  lo  mandado  aos  estudos  a  Colónia  , 
fei  t.ies  progressos  nas  letras  ,  que  estava  já 
para  receber  o  gráo  de  Doutor  em  Theologia, 
fjuantio  lh\)  prohlbio  o  Espirito  do  Senhor 
Jl^lSlJ,  dizendo  que  assds  estava  ensinado  para 
se  aproveitar  a  si ,  caos  outros  na  pregação  , 
c  por  tanto,  qtie  deixasse  de  tomar  o  titulo 
de  honra.  Logo  que  começou  a  pregar  o 
fazia  com  tanto  fervor  e  efficacia  de  espirito, 
ípie  veio  a  ter  gr.inde  nome  de  predador 
Evangélico.  No  prógir  tinha  este  modo  de 
dizer,  quando  queria  persuadir  alguma  cousa, 


Âo  Leitoh.  Zy 

e  fazer  attentos  os  ouvintes :  Ouvi ,  dizia  ,  vos 
rogo  que  dá    brado    Suso  ,  í]ue  conforme   o 
seu  nome  soa  ,   o  njesrr.o  que  levantar  com 
seu  dizer   o  auditório  para    o  alto    Ceo  (|jor- 
que  Suso  em  Tudesco  é  o  mesmo  que  sufsnni 
em    Latim  ,    que   quer  dizer  no  Portuguez 
para    acima).  Destas,    e   outras   similhantes 
formas  de  dizer  usava  na  pregação  njui  vivas, 
as  quaes  se  não  podem  bem   declarar  no  La- 
tim, e  por  conseguinte  ,  nem  no  Portuguez. 
Os   seus  escritos   leve    muitos  annos   escon- 
didos-^com    propósito    <.ie  que    ninguém  os 
visse  se  não  depois  de  sua  inortc  ,   e  isto  por 
sua  modéstia  ,  e   recoiliimenío   grande,    até 
que   o   começou   a  esperlar    um   escrúpulo, 
que  em  quanto  vivia  os  desse  a  ler   ao  seu 
Prelado,  para  fjue  podesse  iacilmente  dar  ra- 
zão das   dúvidas,  que    neiles  se    achassem  , 
porqiu;  podia  succederque  alguns  idiotas  (de 
cujos  juizos    se    não  deve   fazer  mui  lo  caso) 
com  animo  danado  não  pondo    os    olhos  na 
pia  altenção  do  Autor  ,    anles  por    sua    ru- 
deza ,  c  laila  de  letras  não  peuctrando  a  suh- 
staneÍA  dos  escritos  ,  os   quizcssem   mordor , 
e    o  que  mais  era  para  temer,  podião  vir  de- 
pois delle  morto  a  mãos  de   alguns   fri«is  na 
virtude  ,  e  faltos  de  espirito  ,  í[ue  não  porião 
cuidado  algum  ]ielos  tiiar  á  luz,   e  commu- 
iiicar  aos  [uu3  ,    e  desejosos  dg  os  ver  j  [ura 


38  Prologo 

louvor  do  Senhor,  antes  os  podcilão  mostrar 
primeiro  aos  faltos  de  diicurso  ,  e  razão  na- 
tural, e  mal  acustumados  ,  os  qutes  por  sua 
malevolencia  os  sipciltarião  como  muitas 
Tezes  acontece.  Tomando  pois  disto  con- 
fiança, tirou  de  seus  escritos  as  proposições 
nialsprincipaes  ,  e  maisdifficultosas,  edeu-a* 
a  rever  a  um  Doutor  em  Theolo^^ia  grande- 
mente alumiado  no  espirito  do  Senhor,  do- 
tado de  grandes  partes  ,  e  dotes  d'.ilma,  que 
então  era  Provincial  dos  Frades  Pregadores 
em  Allemanha,  por  nome  Bartholomeu,  o 
qnal  as  lou  com  muita  attencão ,  e  cuidado, 
e  deu  sol)re  ell.Ts  seu  parecer  ,  approvando-as 
por  t«das  as  vias  ,  e  moilos  que  se  requerem, 
declarando  serem  pontualnjente  conformes  ás 
Sagradas  Leiras.  K  como  apoz  isto  quizesse 
cntres^ar  ao  mesmo  Doutor  Bartholomeu  to- 
das  as  outras  snas  obras  de  menos  ditficul- 
dade  para  que  as  examinasse ,  fallecendo 
o  Doutor  neste  meio  tempo  ,  náo  pôde  irr 
efíeito  o  sen  bom  desejo ,  de  que  se  começou 
a  entristecer  ,  e  magoar  muito,  não  sabendo 
que  fizesse:  mas  orando  por  isso  mui  de  veras 
a  N^osso  Senhor,  para  que  fosse  servido  nia- 
nifeslar-lhe  o  que  mais  convinha,  appare- 
ceo-lhe  o  dito  Theoloí^o  cercado  de  grande 
luz,  e  ilisse-lhc,  que  a  Ocos  era  mui  agradável 
o  divui^arclleseus  eãcritos,  ecoinmuuical-o» 


AO  Leitor.  89 

t  todos  os  pios;  o  que  fez  muito  de  coração. 
Dos  quiies  escritos  (diz  o  mesmo  Surio  no 
Prologo  citado  pouco  depois  do  principio) 
a  estimação  ,  que  se  deve  fazer  ,  poderá  só 
conhecer  ,  quem  os  ler  não  de  passagem,  © 
cumprimento  ,  nem  só  por  curiosidade  de 
achar  cousas  no\as,  mas  com  observação 
religiosa  ,  e  pia  attenção  ,  porque  creio  niio 
haverá  corarão  tão  de  pedra  ,  que  pondo  Loa 
diligencia,  e  cuidado  nesta  lição,  não  haja 
de  sentir  em  si  nova  luz  da  divina  gi^aça, 
c  tal  mudança  ,  qual  nunca  experimentou, 
porque  de  propósito  em  todos  os  seus  escri- 
tos o  que  mais  procurou  he  dar  luz  aos  cet,(  s 
corações  ,  trazendo-os  ao  devido  conheci- 
mento de  seu  Crcador  ,  desprezo  do  mundo; 
«  amor  de  De  os. 


4o  Prologo 


O  mesmo  Surto  no  prologo  antes  da  vida  dê 
Santo  Henrique  Suso, 

yj  Sanfo  Henrique  Suso  foi  rara  o  d« 
grande  Santidade,  esclarecido  com  muitos 
milagres,  quasi  da  primeira  idade  fez  uma 
■vida  a  poucos  inutavui.  Tove  uma  íiiha  espi- 
ritual illustre  em  sangue,  porém  mais  illustre 
na  virtude  ;  a  qual  escondidamente  foi  tiran» 
do  delle  muitas  cousas  secretas  de  sua  vida  , 
que  poz  em  memoria  por  escrito  :  mas  sendo 
sentida  do  servo  de  Deos,  mandou-llie  por 
obediência  ,  que  lhe  entregasse  os  paptis,  e 
logo  queimou  quantos  recebera  daquelia  vez: 
porém  querendo  queimar  a  outra  parle,  que 
depois  lhe  deu  a  Religiosa  obediente  ,  foi 
prohibido  por  divina  revelarão:  tlonde  os 
que  escaparão  do  fogo,  tirou  a  luz  om  nome 
alheio,  sem  fazer  menrão  alguma  de  si  pró- 
prio, mas  noineando-se  em  todo  o  lugar  só 
por  Ministro  da  Sapiência,  por  fugir  da  van- 
gloria, i'^  pois  certo  que  nesta  suavidade  se 
ochão  muitas  cousas,  as  quaes  sem  dúvida 
são  as  mais  efucazes  que  pôde  iiaver  para  iu- 
ilammar  os  corações  ainda  mais  frios,  e  enrt- 


AO  LiiTonJ  4* 

gelados  no  amor  de  Dens.  Alguns  que  vi- 
vem nesta  vida  como  brutos  ,  dados  ás  cousas 
do  mundo  ,  soem  enfastiar-se  destas  cousas: 
porém  não  df-ve  de  ser  esse  mdo  exemplo 
parte  para  que  os  que  desejão  contentar  a 
Deos,  e  não  ao  mundo  ,  deixem  de  abraçar 
esta  lição  ,  porque  o  Senhor  Deos  ordenou 
que  se  nos  escrevessem  as  vidas  ,  e  feitos  dos 
Santos,  a  fim  de  queaquelles,  a  que  n5o  mo- 
vino  as  palavras  ,  abalassem  os  exemplos  das 
obias.  Por  tanto,  ú  pio  Leitor,  eu  te  peço 
afíecíuosaniente,  que  sejas  contínuo  ,  e  dili- 
gente em  resolveresta  vida,  porque  o  não  fa- 
iassem grande  proveito  leu  ;  até  aqui  Surio. 
iNasceo  o  Beato  Henrique  Suso  de  pais 
nobres  na  Suevia,  provincia  de  Allemanha 
alta  ,  ao  í{uc  se  cre,  na  Cidade  de  Constância 
a  2í)  de  Março  ,  dia  assinalado  doPatriarcha 
i>.  i3ef  "o,  mas  não  se  sabe  o  anno.  Seu  pai 
se  íbamava  tio  a[)pellido  de  M(;ntense  ,  nobre 
e  conhecido,  e  sua  niãi  do  de  Suso  ,  ou  Sizo  , 
como  í)uíros  escrevem.  Não  temos  os  nomes 
próprios  jielo  muito  que  o  Beato  Henricjue 
€ncoi)ri<3  sempre  suas  cousas.  O  pai  foi  dado 
ás  cousas  do  mundo  ,  sendo  pelo  contrario 
a  mai  tão  virtuosa  e  devota  ,  que  yjassando 
muitas  tribulações  por  causa  dos  encontrados 
costumes  do  marido,  Kulas  as  levava  l»cni 
com  a  Uieditacúo  da  raixT^o  do  Senhor  JIíSU, 


^2  Prologo 

na  (Jfial  era  tão  contínua  e  favorecida,  qn9 
em  todos  os  3o  annos  antes  de  sna  morte  , 
não  ouvio  Missa  em  que  não  tivesse  particu- 
lar ,  e  intensa  compaixão  das  dores  do 
Senhor  JESU  Crucificado. 

Em  Constância  tomou  o  Beato  Henrique 
o  habito  dos  Pregadores  ,  sendo  de  pouca 
idadej  porque  como  consta  da  sua  vida  ,  cap, 
XX.  ,  aos  i8  annos  foi  alumiado  com  par- 
ticular ^raca  do  Senhor  a  melhorar  a  vida  , 
havendo  já  passado  alguns  tempos  na  Ordem 
com  íloxid^o.  Depois  de  sua  conversão  esteve 
obrando  só  comsigo  primeiro  a  sua  vida  em 
silencio  8  annos  contínuos,  sem  se  conimu- 
nicar  aos  [)roximos,  no  íini  dos  qu.ies  lhe  íoi 
mandado  por  Deos  que  saísse  a  pregar.  Dis- 
correndo então  por  toda  Allemanha  alta,  e 
baixa  fez  grande  fructo  nas  almas  ,  mas  com 
esta  differcnça  em  seu  tratamento,  i>e  dos 
i8  annos  de  sua  idade,  que  foi  o  pritneiro 
de  sua  conversão  ,  até  os  4'»  "^o  aílouxou 
nunca  nas  suas  penitencias  asperi>simns,  em 
que  se  passarão  22  annos  :  porém  depois  por 
amoestação  do  Ceo  remitiido  o  rigor  das 
extraordinárias  penitencias,  mas  nuncii  o  da 
regular  observância,  continuou  muitos  annos 
no  aproveitamento  das  alnias,  com  raro 
exemplo  de  paciência  nos  trabalhos  ,  e  peri- 
gos da  vida ,  e  luíura  em  fjue  Nosso  Seubor 


AO  Leitor.  4^ 

o  exercitou,  não  menos  extraordinariamente 
(lo  que  ellese  tratava  na  penitencia  corporal. 
Destes  exercicios,  que  forfio  muitos,  ainda 
que  não  se  escrevem  todos  ,  como  se  vê  do  Ca- 
pitulo XX.  de  sua  vida,  secolllge,que  a  sua 
idade  foi  larga  :  posto  que  se  não  saiba  o  pe- 
riotio  certo  delia,  por  nos  faltara  memoria  do 
anuo  em  que  nasceo,  com  tudo  sabemos  que 
não  passou  de  2  5  de  Janeiro  da  era  do  Senhor 
de  mil  e  trezentos e sessenta  e  cinco,  em  que 
deixou  esta  vida  presente  pela  eterna  no 
Convento  de  v  lona,  onde  vi veo  muitos  annos. 
As  obras,  que  cumpoz,  forão  muitas  ,  e  to- 
das deediíicaçuo  ,  massó  temos  as  seguintes: 
O  Dialogo  da  Sapiência  ,  era  que  falia  a  Sa- 
piência com  o  Ministro.  Quatro  Sermões  , 
dos  quaes  vai  aqui  traduzido  o  primeiro  para 
remédio  ,  e  consolação  dos  escrupulosos. 
Doze  Epistolas ,  das  quaes  se  poz  aqui  tum- 
Lem  a  quinta  ,  tiaduzida  em  nosso  vulgar, 
como  em  protestarão  do  anin)o,  que  fez  sair 
á  luz  esta  viíla  do  Beato  Henrique  nesta  im- 
pressão. A's  Epistolas  se  segue  o  Traíado 
das  Lioclias  ,  quejúanda  trailuzidoem  \uli;ar 
Cdsteihano.  Logo  a  vida  que  aqui  se  p'>e;  tle- 
pois  Cem  iMeditaçòes  da  Paixão,  \i  no  fim 
uai  Exircicío  dos  Ministros  da  Sapiência  , 
que  aqui  ajuntamos  por  ser  de\oto  ,  e  lard. 
Compoi  mais  o  Ojjxio   quotidiano  da  S.i- 


44  Prologo 

piencía,  que  trazem  as  Horas  de  Nossa  Senho- 
ra, segundo  o  rito  dos  Frades  Prégndores,  ea 
Missa  própria  da  me^mn  Sapiência,  Outras 
obras  suas,  e  sermões  se  aclifio  entre  os  es- 
critos de  João  Taulero,  Varão  taml)e!ri  de 
granrJe  vida,  e  doutrina  da  mr^sina  Ordem 
dos  Pregadores,  insigne  pregador  em  Alle- 
manha,  donde  foi  natural,  e  falleceo  com 
opinião  de  santidade. 

O  Beato  Henrique  não  é  Canonisadopsla 
Sé  Apostólica  ,  mas  intitula-se  Peato  de  tem- 
po immemoriavel  nas  Horas  de  Nossa  Se- 
nhora, segundo  o  rito  dos  írades  Pregadores 
no  principio  do  Officio  da  Sapiência  ,  asquaes 
Horas  sempre  são,  e  forão  especiahnente 
approvadas  pela  Sé  Apostólica  ,  e  oulrosi  é 
contado  entre  os  Beatos  Con/Vssores  da  Or- 
dem dos  Pregadores,  que  traz  o  Calendário 
Dominicano  no  fim.  Além  disto  nas  Provin- 
cias  de  AUemanha  alta  ,  e  baixa  ,  que  é  Frau- 
des, se  re/a  do  Beato  Henrique  pelos  Frades 
Pregadores  com  o  Oificio  próprio;  venerando 
sua  ímacjem  com  altares  levantaclos  <?m  seu 
nome,  enáo  é  muito  ([ue  se  nos  commuuique 
aos  Frades  de  S.  Domingos  deste  Reino,  por- 
que lambem  elles  lá  não  rezão  de  S.  Gon- 
çalo, sendo  para  com  nosio  tão  conhecido, 
íaltando-lhe  ainda  a  (^auonisaçáo  ,  de  quem 
rezamos  só  por  huma  licença,  que  alcançou 


45 

ElFxcl  D.  Sebastião.  Ajunta-se  a  tu Jo  isto  ser 
«  nosso  Dcato  Henrique  celebrado  por  Santo 
também  de  tempo  ininiemoraTel  nos  escritos 
dos  Var5es  pios,  e  doclos ,  como  é  Surio, 
que  tanto  apregoa  sua  santidade,  e  mila^^^res 
«os  prólogos  acima  ,  e  em  outros  muitos  lu- 
gares,escieveudo  noauno  do  Senhor  de  i555, 
quefazembojc  perto  de  cem  annos,suppondo 
A  mesma  Hadiçáo  deduzida  até  seus  tempos, 
não  fazendo  aqui  menção  de  nossos  Escri- 
tores,  eCironicas,  que  de  sua  santidade,  e 
milagres  t'at5o  largamente  ,  como  é  Fr.  ]Mi- 
guel  Pio  ím  Toscano  ,  c  Fr.  Fernando  de 
Castilho,  80  Bispo  de  Monopoli,  aquellena 
segunda  patê,  e  este  na  sexta.  Bzovio  no 
Tom.  i4  do;Annaes  Fcclesiasticos  ,  Anno  do 
Senhor  1 36:,  onde  diz  que  em  vida  ,  e  depois 
da  morte  ílcreceo  em  irrandes  niilafTTes.  O 
mesmo  diz  Fi  António  de  Sena  no  seu  í.hro- 
nicon  ad  an.  3^o,  onde  lhe  dá  tit.  de  Beato. 
]\íolnno  nas  aUlições  ao  AJartyrol.  de  l:si!ar- 
do  die  25  Jai.  Fr.  Estevão  de  S.  Tnio  in 
Stcinmat.  Orànis.  pnc^.  o.^m,  Fr.  I.(nn(ho 
Alberto  de  vifs  iliusfr.  Ord.  Praei/.  Uv.  5. 
Bti\A tm.de  Scnj,  Eccl.  pag.  384. 


íí 


EPISTOLA 


Em  ordem  V.  das  Obras  do  Brato  Henrique  Suso, 
da  Ordem  dos  Prèí^ddores ,  Iradnzidide  Lnfhrt 
fm  vulgar  por  um  Religioso  da  iftirrK^  Ur- 
dem, 


jfxLegre-se  altamente  a  multidão  dos  Santos 
Anjos  liahitadores  das  moradas  celestiaes 
E  testemunho  do  Senhor  JESU  lo  Evange- 
lho, que  faz  o  Ceo  grande  festana  conver- 
são de  um  peccador  á  verdadeira  penitencia. 
"Veio  á  noticia  do  Ministro  da  I'>riia  Sapiên- 
cia,  que  havia  uma  mulher  deião  rara  for- 
mosura ,  e  graça  nos  olhos  dos  lomens ,  que 
muitos  eráo  íeiídos  do  seu  lUior  lascivo. 
Doía  isto  muito  ao  Ministro  d  Sapiência,  e 
desejava  cortar  as  raizes  de  tacanhos  escân- 
dalos, e  perdições  de  tantas  amas,  tr.izendo 
aqiieUa  perdida  a  Deos,  panyjue  nella  fosse 
o  Senhor  louvado  ,  e  o  Anjc  da  sua  guarda 
delia  tivesse  particular  ghyia  ,  e  todos  os 
mais  Anjos  com  sua  conveȋo  gozo  espiri- 
tual :  e  os  homens  tomascm  exemplo  de 
emenda.  Pelo  que  com  tods  as  forcas  de  seu 


Epistola  do  Beato  Henrique  Scso.    ^7 

«spiriíoseapplicou  a  rogar  a  Deos  pela  con- 
versão taquella  alma  ,  e  mui  em  particular 
iniportujava  muitas  \ezcs  a  Virgem  Sacra- 
tíssima Ãaiíle  Duos  Estrella  do  mar  resplan- 
decente.oedinclp-lhe  com  grande  aífecto,  e 
contínua  jrarão,  que  alcançasse  de  seu  Uni- 
génito Fiho  luz  áquelle  coração  tão  entre- 
gue ás  co.sas  do  mundo,  cego,  e escurecido 
com  as  esjcssas  trevas  dos  muitos  peccados, 
para  queipartando-o  delles  o  tr»juxcssc  a 
Deos,  Ouvo  a  Senhora  os  rogos  de  sexi  servo, 
e  íoi  dadatal  graça  áqneila  alma  mundana  , 
que  suhitíaiente  se  converteo  a  Deos  mui 
de  veras,  d»  que  recebeo  o  Ministro  '  tama- 
nha alegriaia  suaalnia,  que,  como  fura  de 
si  bêbado  dtjubilos  espirituaes,  Iheescreveo 
esta  caria.  F>rém  como  dahl  a  muitos  tem- 
pos íizesbo  ei-tdba  de  seus  papeis,  ode  mul- 
los  separassi estes  poucos,  deixando  tO(I;js 
os  mais  por  forrar  ten)po,  chegou  a  esta 
carta  ,  e  verulque  não  contiiiba  xnais  ou'i»a 
cousa  senão  ui  jubilo,  e  excesso  de  alegria 
espiritual,  teino  que  vindo  á  tino  dos  lio- 
mcjis  de  durosç  sêccos  corações,  lhes  p^arc- 
ceriasemsaburjidcneulium  Irulo,'  portanto 
a  j)()Z  de  parte,  -orem  logo  na  njadiugada  do 
dia  fegníntif,  qn  era  a  oitava  dos  Anjos,  em 
visão  cípirituaihe  apparerêião  niuifeos  cs« 
piiitos    Augeiico  cm    fóima   de  njar^.cchofi 


4^  KiisTOLA  f>o  Beato 

formosíssimos,  os  quaes  o  rcprchenclôrao  do 
haver  posta  de  parte  ,  e  risc^iila  aqudia  car- 
ta ,  exhortando-o  a  que  do  novo  a  escre- 
Tesse;  o  que  tez,  começando-a  comas  pala» 
Tias  do  principio.  Ale^^ra-se  grancfen)k''iti*  a 
multidão  dos  Anjos  liahitndores  d:»  nioradâS 
Celestlaes.  etc.  E  sendo-nic  cntãc  commu- 
iiioados  raios  de  luz  ,  e  clarldadeespiritr.al 
pela  respUndecenre  Estrella  do  r]ar  a  Vir- 
gem Santissima  Mãi  de  Deos  ,  coi  os  quaes 
desapparecendc)  todas  as  névoas  d  meu  oo- 
racão,  ledo  e  prestes  saudei  a  cesma  Se- 
nhora com  todas  minhas  forças  ,  hgo  na  pró- 
pria iiora  para  mim  saborosissin)a  lompi  com 
a  fortaleza  em  vozes  tle  grande  ctfitentamen- 
to,  que  chegavão  ao  Ceo,  dizndo:  Sejais 
Estrella  excellentissima  do  mar»audada  com 
affectos  de  amor  sem  limite  dos  ue  muilíi  vos 
querem.  Convidava  aos  Santosinj(\s  (jue  me 
havláo  apparecido  ,  áquelles  laneehos  for- 
iTKísissimos  vindos  do  Ceo  ,  p;*a  qne  conngo 
á  competência  com  melhores  t  mais  esforça- 
das vo^zes  saudassem  a  Dulcisima,  e  Escla- 
recidissima  Rainha  dos  Ceos  por  haver  com 
rTandes,  e  formosos  raios  rhsua  luz  illuslra- 
do  o  coração  daquella  mu^er,  depí)is  que 
por  ella  ouvio  meus  rogo,  e  petições.  O 
meu  espirito  exaltado  comíanto  gozo  dava 
altos   louvores  áquella  Co^'iúal  Jerusalém. 


rt.HEKUiQUE  Sdso.  49 

Bogíiva  sera    cessar  áquellns  dlninelas  sin- 
gulares ,     áquelles     niatlnetes     suavíssimos 
lios    campos    da    ç:U)ria ,    qne    me   ajudas- 
sem a   canlar  em   voze*?    altíssimos   louvores 
ao  Senhor  em  reconherimento  de  sna   rrande 
magiiifice!>ci:i.    Tornava    logo  a   levantar  o 
rosiro,c  olhos  so  Geo,  e  treshtirdando  oro- 
raçáo  de  contentamento  dizia  :  Alegre-se  íjran- 
demenie  a  multidão  dos  espíritos  angeti<os^ 
hahitadores  das  moradas   celestlaes:  ó  como 
á  vista  de  tar»to  ;^'ozo  desapparece  titdo  o  que 
ríesu  vida  padeci  de  ma^oa  ,  e  <  ontrariedade. 
Párecla-me  que  estava  então  na  i<]adedeNero,' 
represeniava-se-me  ,   que  andava  passcamlo 
pt^os  prados,  e  jardins  da  ç[loria,  e  tornava 
a  dizer :  Alegraí-vos  nobilíssimas  Jerarchias 
dos  espíritos  Angélicos,  qne  viveis  nos  pastos 
ceiestiaes  ,  haja  festas,  dai  vivas  ,  eiUoai  mu- 
sicas portão  alegre  nova.  Ponderai  .vos  ro£;o, 
com  a  devida  admiração  com.o  a  fdha  perdi- 
da  tornou  á  casa  de  seu  pai ,    a  filha  da  con- 
denação foi  recuperada  ,  a  que  já  era  morta 
veio  á  vida  ,  e  resuscitou  ,   aanelle    prado  e 
jardim  da   natureza,  ornado  de  flores  ,   não 
menos  formosas  que  aprazíveis  ,  o  qual  á  sur 
Tontade    paslaváo    as  he-^tas  ,  vt*de  romo  é 
renovado    em    sobrenatural    formosura  ,   já 
íorão  lançadas  delleas  bestas  feras,  já  brotão 
novas  flores  de  graça  á  competência.  As  eu- 


5o  F.p:stola  do  Beato 

trácias ,  eporlaes,  dantes  tão  devassos  ,  já sao 
fechados,  e seguros.  Oc.impo  alheado  donies 
a  sen  possuidor  lhe  é  restituído.  Pelo  ^^jue, 
vós  ó  órgãos  dos  Ceos,  ó  dextros  na  rilhara, 
<)  mestres  insignes  dashar[)as,  e  laudes  da 
gloria  ,  entoai  uovos  moteltes,  sue  a  nielocia 
por  todos  os  assentos,  e  retretes  da  Celestial 
Jerusalém.  Pero-\os  com  todo  o  encareci- 
mento da  minha  alma,  que  por  isto  mais  se 
tngrandeça  vosso  gozo,  por  quanto  a  desho- 
Lestissima  Vénus,  deusa  da  lascivia  gentihta^ 
foi  arrancado  oseu  coração.  A  grinalda  mais 
prima  lhe  foi  arrchatada  da  caheça.  Aqucila 
boca  tão  sua  amiga  mais  dextra  em  conciliar 
amores  profanos  emmudcceo  de  lodo  para 
elles.  O  mundo  enganoso  ,  o  amor  caduco  , 
immundo,  e  falso  abaixa  já  o  pescoço  en- 
tonado:  e  quem  haverá  ,  que  de  hoje  em 
diante  apregoe  iuais  teus  louvores?  qiiem  se 
deixará  prender  de  teus  enredos  ?  quem 
íinahnente  haverá  que  queira  neste  mundo 
ser-te  amigo  ,  guarJar-te  corlezia  ,  oudir-sti 
t  tuas  vás  occupaçóes,  e  serviço?  Já  aquello 
veiJe  ramo  para  ti  seccou  ,  e  reverdecendo 
ílorcce  só  p.na  Deos  :  do  que  loilos  os  que 
deveras  amáo  ao  Senlior  ,  gozosos  o  engran- 
decem, dandodhe  altos  louvores  por  esta 
admlra\el  mudança,  dizendo:  A  vós  Senlior 
seja  dada  toda  a  gloria  ,  por  quanto  só  vó« 


Fr.  Hb:íriqtie  Suso.  õi 

fazeis  estas  grandes  maravilhais  nos  nivilores, 
e  mais  desesperados  peccadores ;  fíuc  ainda 
que  em  todas  vossas  obras,  ó  dulcíssimo  ,  e 
todo  pí)deroso  Senhor,  sejaes  amável,  e  di- 
gno de  infinito  louvor  ,  com  tudo  por  muitos 
mais  modos  sois  amável ,  e  digno  de  louvor 
sem  comparação  maior  nas  misericórdias,  que 
usaes  com  os  miseráveis  peccadores;  áquel- 
]es ,  que  tão  longe  estão  do  que  merecem, 
só  por  vossa  bondade,  e  misericoidia  sois 
servido  de  attraír  a  vós.  Este,  Senhor  San- 
tissimo,  é  na  verdade  o  timbre  de  vossas 
obras  ,  este  c  a  formosura  de  vossa  benigni- 
dade ,  este  o  enfeite  de  todos  voss()S  feitos 
mais  lilustrcs.  Nesta  obra  ,  Senhor,  o  moíite 
de  ferro  de  vossa  exactíssima  justiça  se  dei- 
lou  romper  e  paiiir  para  dar  lugar  á  mise- 
ricorvUa  ,  e  bondade.  Vinde  pois  a  mim  todo.^ 
os  (jue  tendes  recebido  do  Senhor  outro  tal 
l)eneficio  ,  e  juntos  todos  em  um  tratemos 
iiiui  de  veras  o  como  poderemos  engran<Iecer 
a  sempre  bondade  do  Anantissinio  bcphor 
e  Pai  nosso  tão  perdodílor  de  nossas  culpas. 
Eia  pois,  ó  Amantis5Ímo  Serdior,  não  vô- 
des  a  cousa  mais  digua  de  a<lrniiaçáo  ?  Aquel- 
les,  que  andavão  em  braços  com  os  montu- 
ros, ja  hoje  com  ferventissimos  alTectos  de 
seu  coração  amorosamente  se  abração  com 
Yosco.  Aqutjllas  almas,  que  honicui  erão  a  si 


^2  Ei'ISrOL4    DO    Bí\TO 

wesma5,  e  a  outras  occasiáo  de  rulra  ,  • 
perdição,  já  hoje  são  pré;4adovas  da  suavi- 
dade de  vosso  amor,  não  sabendo  falíar  de 
outra  cousa.  Caso  he  de  grande  admiração 
Vã  verdade,  aquellas  que  hontem  qiicl>rando 
de  mimo  ,  <;  dejicias  se  não  podião  ter  em 
seus  pés  ,  lá  boje  se  tirem  a  si  mesmas  tantas 
cousas  ainda  das  necessárias  para  a  vida  ,  • 
iítventáo  novos  modos  de  rigores,  e  aspere- 
zas corporaes,  e  de  exercícios  para  hor.ra, 
e  gloria  vossa,  só  a  fim  do  vos  poderem. 
Senbor,  agradar  pura,  e  inteiramente;  f 
aquellas  que  estavão  cativas  de  demasiado 
amor  de  si  mesmas  ,  já  se  tem  a  si  em  lugar 
de  hospede  estranho  ,  c  peregrin»).  A(|ue'- 
las,  que  sohiáo  concertar-se  com  tanto  cui- 
dado ,  para  mostrar  o  como  daváo  de  mão  & 
vosso  amor,  agora  é  já  toda  sua  occuparão 
como  possfío  ,  Senhor ,  e  devão  agradar  só 
a  vós.  Aquellas,  que  d'ant(.'S  como  lobos  rai- 
vosos erão  estimulados  de  iras  ,  e  fúrias 
contínuas,  agora  como  ovclhinhas  niausas 
não  abrem  l>òca  ás  injurias,  e  mores  atVon- 
tas.  Aquellas,  que  dantes  erão  atormentadas 
com  as  rjgorosisílmas  accusacófs  i!e  suas  ,  e 
preversas  consoien(  ias  clieias  sempre  de  pro- 
fundas tristezas,  feridas  de  agudas  «citas  do 
magoas  infernaes,  presas  com  cadèas  não 
menos  rigorosas,  que  as  de  ferro  ,  indisso* 


Fr.  HknpvIque  Suso.  53 

lureis  Inros  dos  próprios  peccados  ,  já  ago- 
ra desembaraçadas,  e  prestes  passando  além 
de  tudo  o  que  o  mundo  pôde  dnr  com  uma 
firme  confiança  ,  e  solia  liberdade  se  levan* 
tão  tanto  sobre  si ,  já  mudadas  ,  q!io  oiisão , 
e  podem  dar  vozes,  que  chegão  á  pátria  ce- 
lestial :  em  fim  trocados  de  todo,  não  se  es- 
pantão  senão  de  como  foi  possível  que  algum 
dia  estivcrão  presas  do  amor  do  mundo,  e 
de  como  viverão  algum  tempo  nas  trevas  da 
obscura  noite  dos  peccados.  Ka  verdade, 
Senhor,  aqui  venho  a  ver  por  experiência 
ser  certo  o  que  se  diz,  que  o  corpo  se  acom- 
moda  ao  espirito,  e  um  bom  natural  se 
applica  ás  cousas  eternas,  logo  aliiseacccndc 
um  grande  inceridio  de  vosso  amor.  Esta  ena 
Terdade  ,  Seidior  ,  a  mudança  só  de  vossa  nião 
poderosa.  Estas  são,  Senhora  ,  e  Rainha  dos 
Ceos  ,  as  obras  de  vossa  piedade  sem  limito. 
Mas  comtigo  fallo  agora  filha  minha  em 
Christo  muito  amada ,  dá-me  altenção  , 
e  adverte  tu  ,  e  eu  ,  e  todos  os  que  a  nós  são 
similhantes,  como  nos  devemos  liaver  com  o 
Senhor  Omnipotente.  Assi  somos  c>l)rigados 
compor  daqui  em  diante  nossa  vida  ,  que 
não  haja  quem  nos  possa  nunca  jamais  fur» 
tar  a  Deos :  da  mesma  sorte  nos  havemos  de 
haver  como  uma  escrava  da  cosinha,  a  qual 
o  liei  illustrc  ,  e  poderoso  preferisse  i  pro- 


54  Ephtol\   do  B>:ato 

pria  Rainha.  Não  lia  diivida  senão  qre  essa 
escrava  niimosa  íaria  extremos  por  se  inosiiar 
agradeci Ja  ao  Rei,  seria  íidehssinia  em  o 
atuar,  louvaUo-hia  sempre  de  todo  seu  cora- 
ção ,  e  quanto  se  visse  mais  indigna  de  fa- 
vores tão  altos  ,  lanlo  se  esforçai  ia  tnais  no 
amor  de  sen  Senhor.  Não  de  outra  sorte 
pois  ,  nós  peccadores  devemos  procurar  ven- 
cer aos  innocenies,  e  puros,  que  nunca  er- 
rarão ;  e  se  elles  só  n'um  exercicio  se  em  pre- 
gão por  serviço  de  Dlos  ,  nós  devemos  do- 
Inar  o  trabalho,  e  serviço  do  Senhor;  se 
elles  anuu)  a  Dcos  singelamente,  nós  te- 
luos  obrigação  de  redobrar  o  amor  milhares 
de  milhares  de  vezes  ,  para  que  assim  como 
antigamente  nos  não  ficou  cousa  por  fazer 
no  emprego  do  mundo  ,  e  para  grangearmos 
as  vontades  profanas,  assim  agora  recompen- 
semos estes  damnos  ,  procurando  com  dobra- 
do cuidado  trazer  todos  a  Deos,  e  solue 
todas  as  cousas  tralen>os  de  agradar  ao  Se- 
nhor,  não  menos  diligentes  no  bem,  do 
que  o  fomos  antigamente  para  o  mal. 

Torna,  fdha  ,  d  memoria  te  rogo  quanto 
lios  era  agradável  nos  annos,  em  que  anda- 
van)os  dados  ao  ntundo;  'achar quem  antc- 
pozesse  nosso  amor  aos  demais,  quem  nos 
louvasse,  e  gabasse  mais  que  os  outros,  e 
com  particular  aífcctu  e  tenção  nos5egui>se^ 


Fr.  TÍENRiour-  Suso.  55 

como  nós  então  nos  persuadiam  os ;  quanto 
pois  sem  coniparação  alguma  será  agora  me- 
íiior  a  nossa  sorte,  e  boa  ventura,  se  o 
Summo  Bem  ,  o  Senhor  Deos  toclo  poderoso 
nos  amar,  não  de  qualquer  maneira,  rijas  em- 
pregando em  nós  seu  cuidado  ?  Consicitra, 
filha,  quanto  trabalho  custou  muitas  vezes 
chegar  a  poder  lograr  uma  hora  um  amigo 
da  terra,  da  qual  se 'pesares  as  cousas,  e 
ainda  as  palavras,  pouco,  ou  nada  se  tirou 
deallivio,  e  recreação.  Quantoserá  pois  mais 
acertado  sofrer  também  agora  alf^um  tra- 
balho  porgrangear  oser  amado  de  T)eos?  Por 
sem  duvida  tenho  ,  ó  Eterna  Sapiência  ,  que 
se  todos  chegarão  a  ver-vos  com  os  olhos  inte- 
riores, como  eu  vos  vejo,  que  logo  ao  mesmo 
ponto  se  apagaria  nelles  todo  o  amor  das 
cousas  terrenas.  Não  posso.  Senhor,  acabar 
de  declarar  o  espanto  de  minha  alma,  ainda 
que  já  o  meu  juizo  foi  bem  differente  nesta 
parle  ,  de  con)o  possa  haver  coração,  que  se 
empregue,  e  assocegueem  amar  outra  rcuisa 
fora  de  vós,  ó  abysmo  de  toda  a  bondade  ;  e 
outrosi,  não  menos  me  admira  o  porque 
vos  não  manifestacs ,  Senhor ,  aos  taes  misera- 
Tcis.  E  sobre  isso  ver  o  cuidado  ,  com  que 
os  amadores  do  mundo  auílão  cobrindo  ,  c 
dourando  tudo  o  que  nelhi  lhe  pôde  dt-sn- 
gradar,    tudo    o  que   e  disíorme,    e   á'jh» 


5(j  Epistola  do  BhVTO 

ctiioso?e  pelo  rontr:irio se  alguma  ro usa  tem 
que  po3Sti  parecer  bem  fJessa  pintada,  e  men- 
tirosa formosura  ,  ctmi  que  diligencia  ariíno 
á  praça,  e  quanto  scofem  se  nrio  ê  I>em  sabi- 
da, e  visia  (lo  seu  amaflo  qnalffuer  apj)aren« 
cia  Ji3  lustre  seu  próprio  ,  e  quaiido  vem  :í 
experiência  fpara  qut;  diga  tudo  numa  pala- 
vra) não  aciíMo  outra  cousa  n)ais  que  sacos 
de  esterco  :  dos  quaes  com  razão  se  pudeia 
dizer,  ó  queJii  vos  tirara  a  pelle  de  fór.j  ? 
então  se  viw  claramente,  i[u:\o  medonlio 
monstro  é  a  apparescia.  Porém  vós,  ó  Escla- 
recidissiina  Sapiência,  agora  encobris  o  que 
em  vós  é  amável,  e  só  manifestais  o  que  é 
de  pena  ,  e  moleflia.  Descobris  o  que  é 
áspero,  retendo  eni  segredo  o  que  é  suave. 
Mas  porque  o  fazeis  assi  óBenij^nissimo  JESU? 
Seja-iiie,  Senhor,  licito  com  licença  vossa 
dizer  uma  só  palavra,  porque  nao  me  posso 
conter.  O' sevos,  Sjnhor,  me  quizcsseis  !  ó  se 
vós  me  amasseis  JESU  dulcíssimo  I  ó  se  eu 
Senhor  vosso  mimoso  fosse  !  Haverá  alguém 
que  creia  que  eu  sou  amado  do  Senhor 
JESU  ?  A  isto  só  asjiira.  Senhor,  a  niinlia 
alma  ;  o  meu  corarão  ,  Senhor,  se  engran- 
dece de  gozo  ,  e  salta  de  prazer  só  em  cuidar 
que  sou  de  vós  amado.  Tanto  que  me  vem, 
Senhor,  isto  a  memoria,  tamanho  co  gozo 
que  recebo,  que  quem  quizer  atleuUr  bem 


Fr.  rÍKNT.rQrs  Snso.  Sj 

tn'o  poderá  cie  fora  conhecer  ,  porque  tudo  o 
que  ha  em  mini  se  «lerrete,  e  eatpap*  com 
alegria.  Se  me  dfiãoíi  oscv^lher,  nfio  podéra 
desejar  cousa  mais  sul>lÍ!iie,  nem  iniiisaí;ra- 
diivel  ,  nem  mais  5ah(írosa,  do  que  ser  de  Vvós 
querido  com  singularidade,  e  que  pozesseis  , 
Senhor,  com  particular  aífecto  os  olhos  de 
vossa  benignidade  em  mim  ,  porque  isto,  Se- 
nhor, quem  haverá  que  (Uividc  queé  o  Reino 
dos  CeosP  os  vossos  (dhos  resplandecentes. , 
Scnlior,  vencem  es  raios  do  Sol  sem  comp;»- 
ração  :  a  Tossa  boca  é  suavissima  a  quem  t:o 
manifesta  ;  o  encarnado  so])re  a  mesuia  al- 
vura de  vossa  face  ,  assim  da  tiivina,  como  da 
Iiumana  natureza-:  finalmente  a.  sem  par 
composlura  de  vessa  pessoa  sem  comparação 
cxcedi3  tudo  quanto  o  desejo  mais  levantado 
pôde  alcançar  nesta  vida  corporal.  Quanto 
mais,  e  mais  se  apura  vossa  grandeza  sobre 
toda  a  matéria  corporal  ,  tanto  sois,  Senhor, 
mais  amável  e  aprazível,  ecom  tanto  mais  im- 
menso  gozo  se  se  logra  vossa  prcs;;nça.  Tudo 
o  que  se  pode  imaginar  de  formoso  ,  amável 
e  de  lustre  em  vós,  ó  siiavissÍ!uo  Deos ,  e 
Seidmr,  sobre  todo  o  encarecimento  se  en- 
cerra com  inestimável  perfeição.  Náo  é 
possivel  achar-se  em  alguma  creatura  cousa 
agradável,  e  de  saber,  ou  estimação,  que 
por   modo    purissimo  com  iufmiio    exccí>so 


58       Epist.  do  B.  Fr.  Iíí-nriqtjs  Suso. 

«enao  veja  em  vós,  o  Senhor  de  tutlo.  Por 
lanto  vós  outros  nvjrtaes,  lião  vos  passe  |;or 
alto,  antes  com  muita  considera  cr»  o  adverti 
que  tal,  e.  lâo  exccliciite  é  o  incu  amado  ! 
Ê  sendo  esle  ,  vede  qne  me  quer  a  mim  bom, 
ó  {ilhas  de  Jerusalém  !  O' Senhor,  c  quão  de 
réras  será  ditoso  aquelle  ,  a  quem  vós  que- 
reis bem,  e  que  nesta  vossa  amizade  for 
eternamente  confirmado!  Deos  vos  guarde,  ó 
£lha  minha,  para  sempre.  Amen. 


Y  I  D  A 


DO 


Beato  Fn.  HENRIQUE  SUSO, 


DA   ORDE.V  Dos   Pr.EGADOEIS. 


CAPÍTULO     í. 

Em  que  se  dá  conta  donde  era  na  furai  o  Z?. 
Fr,  Henrique  Suso ,  e  do  tempo  e  idada  , 
em  que  entrou  na  Religião ,  e  começou  a 
seguir  o  caminho  da  vida  perfeita  ,  e  de 
como  se  escreveo  esta  historia. 


N, 


A  grande  ,  e  estenJida  província  de  Alie- 
man4ia  houve  uni  Kelifjioso  da  Ordem  do  hí.s- 
so  glorioso  P.  S.  Domingos,  natural  de  Sue- 
via  ,  cujo  nome  era  Fr.  Henrique  S':so.  Vivia 
nelle,  em  quanto  morou  na  teira,  um  ardente 
desejo  de  ser  servo  do  Senlior,  e  não  somente 
se  contentava  c<jm  a  obra  ,  mas  desejava  ser 
havido,  c  conhecido  piM- lai.  Aconteceop«r 
discurso  de  tempo,  que  veio  a  ter  conheci- 


6o  Vida  do  Beato' 

mento  ,  e  pvntica  de  uma  santa  niiillier,  qiie 
tciído  píirticuiares  favores  no  Ceo ,  tinha  ila 
terra  contínuos  trabalhos  e  aíílicr^es  :  ecomo 
t;il  desejava  c&nsolnr-se  com  este  religioso , 
cesíorcarseu  cançiido  espirito,  ouvindo  de!le 
algr.inas  lições  subré  a  niateiia  do  padecer, 
tiradas  da  ntuita  experiência,  que  longa- 
inenie  tinha  teila  em  casos  próprios:  c  isto 
jez  muito  tempo  todas  as  tcz-cs  que  o  \ia  ,  e 
assim  veio  justamente  a  tirar  delle  com  encii» 
]icrtas  ,  e  dissinjidadas  pergimtas ,  que  lhe 
fazia,  a  crdem  ,  e  priricipio  de  sua  vida, 
e  processo  delia,  e  alguns  exercícios,  e 
maneiras  de  padecer,  porque  passara  :  o  qu« 
tudo  lhe  descobria  o  religioso  em  segredo 
em  snntn,  e  espiritual  conversação.  Mas  elU 
Tendo  qne  manifestamente  lhe  rcMdtava 
daqui  coiíSoh.çfio  para  os  trabalhos,  e  ih>u- 
trina  para  a  alma,  foi  pondo  por  escrito  tu- 
do o  (jue  lhe  ouvia  para  se  aproveitar  a  si , 
e  a  outros:  mas  isto  tanto  a  furto,  e  ás 
escondidas  de  seu  mestre  ,  qne  não  entendia 
elleo  toubo  espiritual,  quosell.e  fazia.  ('.i>m 
tudo  lauto  que  pelo  tempo  adiante  o  veio 
a  sentir,  rcprehendeo-a,  e  obrigou-a  a  lhe 
entregar  o  que  tinha  escrito  ,  que  logo  quei- 
mou, t  tornando-lhi-  a  dar  outro  dia  alguns 
papeis,  que  lhe  Cearão  na  mão  ,  também  iís 
quizeia  por  no  fojo,  jMas  foi- lhe  tolhida- a 


Fr.   fTtzíRiQíUE  Suso.  6i 

«I)ra  rcm  uma  revelarão  divina:  e  assim  fica- 
rúo  livres  estes  uUinios  cí-critos,   que  (|ua>i 
todos  eráo  de  mão  da  santa  ,   aos  quacs  ella 
depois  de  seu  íalUciniento  ajuntou  ,  e  a  He- 
ii^ião  eni  nome  delia  n)uitos  outros   docu- 
wentos  espiriluaeã.  Começou  Fr.  Henrique 
sui\  conversão  ou  os  mais  determinados  prin- 
ci?)ios   doila ,     sendo    em   idade    de    dezoito 
r.  Tinos  :  j^oique  sem  embargo  que  neste  tempo 
Lavia  já  cinco  que  eslava  na  Peligião  ,  tinha 
;\inda     o  espirito  inquieto,'  e    desasocegado. 
E  se  bem   cou»   o  favor  divino  se  guardava 
de  peccados  mais  feios ,  e  dos  (^le  o  podião 
desacreditar,    tod^avia  nas   culpas   leves,  e 
(omsiiuas  era  descuidado.  IMas  neste  tempo 
tinlia  o  Senhor  tal  cuidadt)  de  sua  guarda, 
que  a  toda   a  parte  que  se  deixava  levar  das 
cousas,    a    (jue   seus   sentidos  com   natural 
í^osto  ,  e  deleitação  se  inclinavão,    cm  ue- 
nhuma  acliava   quietação  ,   nem   repouso.  E 
parecia-lhe   ((uo  alguu)a  cousa   outra   tinha 
por  descobrir,  que  só  podia  dar  paz,  e  verda- 
deiro descanço   a  seu  vigoroso    tspirito',    e 
assim    vivia    com     trabalho,    andando    nas 
ondas    destas     alterações  ,  e    dcsassocegos  : 
ati'omentava-o  intciiorniente   uma    contínua 
guerra    da    consciência,   e    com     tudo    não 
era  poderoso  para  se  ajudar   de  si  mesmo, 
até  que   O  piedosissimo  Deos  loi  servido  ir» 


(53  Vida  do  De  ato 

Tra^-o  (oin  Tma conversão  divina.  Enxergou» 
se  K;go  iielle  uma  súbita  mudariç;»,  que  a 
lo(J(js  causava  espanto  ,  imaginando  no  que 
|jOíleria  ser,  que  assim  o  trocara,  e  todos 
davâo  seu  parecer  no  caso;  mas  ningutm 
por  então  acertou  com  a  verdade ,  que  em 
fim  Ibi  obra  do  Senhor.  O  ((ual  por  meio 
de  um  arreliatameiíto  secrclo,  e  clicio  de  luz 
do  Ceo  obrou  sul>ilamenle  em  Fr.  íienriqua 
ftsla  divina  mudança  ,  cujo  effeito  íoi  dai  cie 
isião  a  todas  as  cousas  do  mundo,  e  «ntre- 
gar-se  todo  a  Deos. 

CAPITULO     II. 

De  algumas  tentações  ,  que  o  B.  Fr,  Henrique 
padeceo  no  principio  de  sua  con^'ersão. 


J-  Endo  Fr.  Henrique  recebido  do  Ceo 
esta  divina  graça ,  logo  começou  a  sentir  em 
si  uma  guerra  de  tentações,  e  repugnaucias 
interiores ,  com  que  o  diabo  tra!)alIiaTa  por 
lhe  estorvar  os  meios  de  sua  salvaçiio.  E 
foi  desta  maneira.  As  inspirações,  com  que 
Deos  lhe  batia  nas  portas  da  alma,  obriga- 
\ão-no  a  voltar  as  cosias  com  uma  expcíhda 
e  solta  retirada  a  tudo  a({uillo,  que  o  podia 
embaraçar    no  caminho  da  verdade.  Lontra 


Fr..  íIekp.iqus  Sus©.  CS 

íslc  poi  fiava  a  tentação,  que  procedesse  com 
bom  conselho  ,  e  que  se  náo  determinasse 
de  pressa, porque  era  fácil  coriíeçar  ,  e  muito 
difíicuhoso  levar  ns  cousas  ao  cabo,  A  inspi- 
rarfio  celestial  repiesentava-lhe  o  grande 
poder  e  ol^ras  do  E?=pirito  Santo.  Da  outra 
parte  a  tentação  não  fazia  duvidas  na  gran- 
deza, e  omnipotência  de  Deos  quando  qui- 
zesse  ajudnr  ,  mas  duvidava  de  seu  querer. 
TSo  c;d)o  de  tudo  mostrava-se-lhe  na  alma 
com  clareza  certissinia,  que  não  podia  Deos 
faltar  nnquella  branda  e  amorosa  promessa 
«ua,  que  era  soccorrer,  e  ajudar  a  todosaquel- 
les ,  que,  fiados  em  seu  santo  nome,  com» 
metlcsseni  este  caminho.  Ficndo  nesta  con- 
tenda a  victoria  da  parte  de  Deos  ,  logo  o 
commettia  outro  pensamento,  que  ,  disfarça- 
do com  brandura,  e  com  capa  de  amizade,  se 
Jhe  ia  assentando  na  alma,  eo  aconselhava 
desta  maneira  :  Bem  pôde  ser  que  seja  acer- 
tado isto  que  tcntaes,  e  razão  é  emendar  Sk. 
vida  ,  mas  não  vos  mateis  muito :  antes 
começai  tcão  altento  ,  que  possaes  cbcj^ar  ao 
fim  com  o  que  começardes.  Comei,  e  bebei 
á  vontade  ,  e  tratai-vos  bem  ,  e  eniretaulo 
não  haja  peccar.  Ga  dentro  de  vós  ,  e  para 
com  voscoscde  santo  quanto  quizerdes,  ma«í 
ftc^ja  com  tal  temperança  ,  que  no  exterior 
nio   se  assombre    nin'uiem   com   vosco  j   « 


64  VlDl    DO    Be4T0 

andai  com  o  dito  commiim  :  Haja  pureza  na 
alma  ,  que  ludo  o  mais  vai  bem.  Poder- 
Tos-heis  dar  bons  dias,  e  viver  entre  os  ho» 
metiS  alegremente,  e  com  tudo  não  deixar 
de  cumprir  codi  as  obrigações  da  virtude. 
Taad>eni  a  outra  gente  espera  de  se  saKar, 
o  mais  wão  se  metie  em  tantas  fadigas.  í^las  a 
sabedoiia  etfcí  na  desbaratava  tão  íalsívs  con- 
celhos com  esta  só  ra/^io.  Quem  cuida  de 
ter  uma  enguia  pelo  rabo,  e  começar  fida 
santa  tihia monte,  tanto  se  engana  em  uma 
cousa,  como  naoutr.i;  porque  tjuando  llte 
parece  que  está  bem  empolgado  em  ambas, 
frscoa-se  das  mãos  ,  e  acua-se  sem  nada.  As- 
sim também  quem  quer  sopear  ,  e  ter  sujeita 
a  carne  altiva  ,  e  mal  habituada  vivendo 
vida  mimosa  e  tlcsraneada  ,  |  ódo-se-IIie  di- 
«er,  que  não  é  de  juizo  l-em  assentado  ,  por» 
que  querer  gozar  mundo  ,'e  juntamente  ser- 
vir a  Deos  com  perfeição,  é  íabricar  impossi- 
bilidades, é  falsilicar  as  Escripturas  Sagra» 
das  ,  é  danar  a  Doutrina  de  Ghristo.  As  im 
que  se  queres  despcdir-le  de  tudo,  convcin 
fazei -o  com  animo  varonil,  e  dctermir.ado. 
Andamlo  muiloi  dias  ás  voltas  com  estas 
imaginações,  em  ínn  cobrítu  ousatlia,  e  ar- 
mado de  conGanca  apartou-se  esforçada- 
mente de  tudo,  Knire  as  cousas  a  que  fugio 
Ibi    uma   a  companhia  ociosa    dos  amigo*, 


iio  Tine  sfu  vigoroso  animo  passoTi  tanto  tra- 
balho nos  I  rincipios,  que  posso  affimiar,  que 
pacleceo  muiías  míntes.  Businva-os  primeiro 
alírunws  ve:*es  pan?   se  dcsníelancolizar  com 
eiles   venculo    da    fraqueza  natural:   mas  as 
mais  delias  Ibe  a(  oiiteria  tomar  triste  doiid© 
fora  alegrí  ;  porque  as   praticas,  e   recrea- 
ções dos  amigos,  í:ão  erão  nada    de  Feu  ^jos- 
to  5  c  fís  suas  erão  odiosas  aos  juesr.ios.  Ou- 
tras  Tezes   siiíC^.\o,    e  não   íorao  pouras, 
trataieni-no  coixi   palavras,  e  ditos  pesados, 
tanto  que  se  chega\a  a  cllrs.  Um   ll.e  per- 
guntava que  ordenj  de  vida  ciw  aque!.'a  qne 
enipreudera  ,  em   ene  queria  sor  só,  c  des- 
viar-se  do  coniniuin  :  Outro  lhe  dizia  ,  (\v.e  o 
mais  seguro  modo  de  viver  era  o  ordinário  , 
por  oude  todos  corrião  :  Outro  que   laes  in- 
venções   de  vida   sempre   paravfio  em  niiío 
£m.  Aíjsini   o  agasaUíavão  um  trazo:ilro,  e 
elle    sem  lhes   responder  palavra ,    talíando 
con^si^o  dizia  :  O'  pitdosissinio  Deos  não  ha. 
'onstílho  mais  acenado,  que  fugir  á  compa- 
.ia  dos  liomens;  que  na  verdade,  se  cu  i:ão 
;a  buscnr   tacs  juaticas,  níio  tivera  3^M)ra 
'   qt;e  me    queixar.  -  Esta    Cruz   o    trouxe 
nj.lle  tempo    gravisslniamente  aloinícr.- 
!o,  porque  i^fio  tinha  ninguém  com    qucín 
;    desse  dtaabafíir  descubriijtlodl.e  suasofflic- 
í^   LSj  que  íoísc  pessoa  ,  que  sei;uisse  a  me£ii:a 


0S  \ir\  Dô  Zl\t 

ordem  ,  e  estilo  de  vida.  E  assim  vivia  des- 
contente  ,  e  triste.  Em  fim  á  viva  forçi  se 
acabou  de  furtar  aos  liomeus,  e  sendo  p.ira 
eile  cousa  ião  penosa  esta  abser.cia,  o  costu- 
me lha  vci(»  a  fazer  depois  saborosíssima. 

CAPITULO     ííí. 

Dâ  um  rapto  sobrenatural ,   que  icí'e  o  Beato 
Fr,  Henrique, 

AConieceo  ao  B.  Fr.  Henrique  no  princi- 
pio de  sua  conversão,  que  entrando  um  dia 
depois  de  comer  no  Goro  na  Festa  da  Vki- 
♦rein  e  Martvr  Santa  Icjnezse  deiíou  ficar  só  , 
c  em  pe  nas  cadeiras  mais  baixas  do  Coro 
direito.  Andava  elle  neste  tenip  )  mui  carre- 
gado de  melancolia  causada  de  uma  grande 
tribulação  ,  que  padecia.  E  estando  assim 
desamparado  de  todo  o  allivio,  e  consolação 
luimana  ,  não  sendo  ninguém  presente  ,  foi 
arjebatada  sua  alma,  ou  tosse  no  corpo,  ou 
íóra  doUe,  e  vio ,  *  ouvio  cousas,  que  nem 
todas  quantas  línguas  ha  do  nunulo  serão 
bastantes  para  as  contar.  Era  o  que  vio  uma 
cousa  sem  figura ,  e  sem  distlncla  feição,  e 
todavia  tinha  em  si  lodosos  ^jstos,  e  delei- 
te^, q.ie  se  podem  imaginar  em  todas  as  ti» 
guras,  e  feições  de  cousas.  O  coração  junta- 


Fui  HíTíRiQUE  Srsft»  6y 

«lentc  lhe  ardia  em   desejos  ,  e    juntamen- 
te se  satisíazia ,  o    espirito  estava   de   todo 
desassombraílf) ,     e    aprazível,    o   appctitc, 
e  eleirão  não  obravão,   antes  jazião  corno 
scpiíltados  em  profundo  sono  ,  semente  ap- 
p-iicava  com  cuidado  os  olhos  da  alma  eni- 
piegando~os  naquelle   raio  resplandecente, 
e   (larisíinio   onde  de  si,   e  de  tudo  o  da 
vida  perdia  a  memoria.  De  maneira  que  não 
sabia  se  era  dia  ,  se  noite.  Foi  isto  sem    duvir 
da  um  gosto,   que  brotou  da  eterna  vida  se- 
gundo a  experiência  ,  que  Fr,  Henrique  de- 
pois leve  em  tempos  de  mais  paz  ,    e  quieía- 
câo ,  e  assim  dizia  elle  depois  :  Sc  aquiilo  não 
é  a  gloria  do  Reino  dos  Ceos  ,  cu  me  reselvo 
que  não  sei  que  cousa  he  Reino  dvs  Ccos, 
Porque  tudo  quanto  v,v,.  homem  pôde  pade- 
cer de  Irabalho  nesta  vida  nào  I)asta   de  ra- 
zão ,  nem  de  justiça  para  merecer  uma  fnl 
gloria  Jiavcndo-a  do  lograr  para  sempre.  Du- 
rou-lhe  este  extasls  uma  hora  ,  e  meia,  sem 
saber  atinar  se  tivera  neste  espaço  a  alma  no 
corpo  ,  ou    lóra  delle.  Mas  toriiatido  em  si 
andava  lai  ,  que  parecia  homem  ,  que  viniia 
d(i  outro  mundo,  e  saio   dalli    tão  quelwan- 
tndo  ,  e  cheio  de  dores,  que  llie  paiecia  que 
nno  podia  ninguém  passar  tanlas  em  termo 
tão  ])reve,  ainda  que  fosse  na  lir.ra  da  n^orle, 
I.  tanto  que  foi  est?n(h)  mais  v\\\  si,  e  ro- 


6^  TiDÀ    Dft    BZAT* 

brando  forças  dava  uns  stispiros,  qne  se  íliê 
arranca\:\o   do  inaiâ  príifuudo   da    aluia  ,  e 
SCÍ15  se  poder  ajudar  caía  por   terra  ,  como 
acontece  ácpielles, que  por  falta  de  forças  se 
desniaião.  Gciíiia  lastimosamente,    c  dando 
ais  que  arrancava  das  entranhas,  dizia  desta 
maneira  :  O'  meu    Deos ,  onde  eslava  cu  ,  e 
oníle  me  acho  agora.  O' summo  bem  meu, 
meu  bem  principal  não  ha^vcrá  jamais  cousa 
que   possa    levar  de  njínha  ahna  a  memoria 
desta  hora.  No  corpo  estava  ,  e  nelle  vivia  ,e 
ajudava,  e  todavia  não  houve   ninguém  que 
di  íóra  visse,  ou  entenJesjS  delle  c;)usa    ai* 
j;u!na  deitas,    com  andar  tal,    que   trazia  a 
aluía    cheia    de  visões  celestiaes,  c  no  maii 
secreto  delia  se  lhe  abriáo  rcsplandores  di- 
vinos, que  a  peneiraváo  pctr  toda  aparte,  d« 
maneira  que  lhe  parecia  ,  que  andava   pelos 
ares:  (inalmente  em  todas  as  par^s  princi- 
paes  d.í  alma  lhe  ficou  aquelle  bom  sabor,  e 
gosto  celestial  (como  vemos  em  um  vaso,  que 
sérvio  de  licores  cheirosos,  que  não  perde  a 
cheiro  ainda  depois  de  vazio)  e  duraudo-Ihe 
depois  muito  tempo  l.)i  melo  de  espertar  em 
5011  esoirito  uma  cclesLiul  sede,    e  saudade 
de  D^oê, 


Fa.  Henrique  Srso.  ^^ 

CAPITULO     IV. 

€oino   o  Baato  Fr.  Henrique  cehlrou  Fípo* 
sorio  €Sf:>irííual  com  a  Sabedoria  eterna^ 


A  ordem  de  vida  que   Fr.  Henrique  costu» 
niou   por   grenile    discurso    de    tempo,  nos 
exercícios   cspirituaes ,  que    usava,    tra    uni 
aturado  desejo  de  gozar  perp«?tuamente  da 
vista,    e    presença  de  Deos,   e  juntamente 
trataI-o,e  conversal-ocom  familiar  coninuini- 
caçào.   O   princi{»io  que  teve    est(j   desejo  se 
achará  nos  livros,  que  clle  mesmo  rouipoz  da 
Sabedoria  eterna  eia  Aliemão.  Era  o   Santo 
de  sua  natureza   mui  alíeiooado  ,   e  desde 
sna   mocidade  teve  esta  inciiiiarfio :   e  í;eos 
na  Sagrada  Scriptura  ,  onde  laila  de  si  i  oní 
nome  de  Sabedoria  eterna  ,  lUbo   se  oITciec» 
inenoá  que  por   uma  amii^a   muito  vencida 
de  amores,  que  se  eníeita,  e  atavia    rica- 
mente para  agratlar  a  lodos  ,  usa   de  palavras 
e  geslosamorosos,  para  levar  traz  si  as  almas, 
lo^jo  aponta  os  enganos  ,  e  pouca  lirmeza  de 
OLiiras  ami.\^*;ís,   re[)resenlando  de  sua  parte 
grande    constância,    e^lcaldaiie     em    amar, 
titãs   cousas   tiravao  pt  lo     animo   juvenil  , 
Con'.o  dizem   da  onça  ,  que  com  a  suavidade 


•^Ct  Vida  do  Bií^to 

do  cheiro,  que  naliirnljnciite  de  si  Innoa, 
obriga  os  outros  aniinaes.i  buscarcm-na.  Os 
livros  cm  que  mais  se  usa  deste  terujo,  cujo 
intento  é  com  brandura  ,  c  suavidade  levan- 
tar nossa  alma  ao  amor  divino,  sào  os  (!e 
Salomão,  e  da  Sapiência  ,  e  do  Ecclesiastico: 
os  qiiaes  lendo-se  no  Refeitório,  e  t)uvindo 
o  Santo  um  dia  as  palavras  brandas,  e  namo- 
taJas  da  Sapiência  ,  encheo-se  todo  de  ale- 
gria em  sua  alma,  e  começou-a  a  namorar, 
e  perder-se  por  ella;  e  ardendo  neste  cuida- 
do fallava  desta  man<íira  comsi^jo  :  Eu  sem 
duvl(ia  provarei  minha  ventura  ,  e  verei  se  a 
tenho  com  esta  formosa  Senhora  ,  de  que  se 
,  contiTo  cousas  tão  soberanas  ,  para  merecer 
seu  amor,  e  gozar  de  tão  nobre  companhia, 
pois  Deos  foi  servido  dar-me  um  coração 
tívo  ,  esperto,  e  riíjoroso.  E  nesta  idade  nâo 
c  possível  (jue  viva  eu  sem  o  emprejjir  em 
algum  an^or.  Com  estes  pensamentos  anda- 
■va-se  traz  ella  espreitando-a  por  toda  a  parte, 
e  buscandf)-a  muitas  vezes,  e  outras  tantas 
se  comníunicava  o  Senhor  a  sua  alma  ,  e 
]he  fizia  assaz  fav<nes.  Estando  nma  vez  na 
mesa  ouvio  que  se  liào  eslas  palavras  dã  Sa- 
piência :  A  sabedoria  é  mais  fom^osa  que  o 
Sol ,  e  comparada  sohrs  tcda  a  ordem  das 
est relia  i  com  a  luz,  i.nda  se  acha  que  lhe  tem 
vantaí^em  f  esta  amei  y  e  busquei  com  cuidado 


Fr.  Henrique  Suso.  yl 

tíesde  minha  mocidade j  e  husqiiei-a  para  n 
tomar  por  esposa  ,    ê  Jiz-me  amante  de  seu 
gosto.   l-'or  esta   terei  nome  no  povo  ^  e  honra 
entre  os  mais  velhos;  por  esta  serei  immortal, 
e  deixarei  memoria  perpetua   aos  que  hão  dê 
vir  depois  de  mim.  Entrafido  cm  minlia  casa 
descansarei  com  ella;  porque  sua  coJiversação 
não  é  pesada^  nem  sua  còmpanJiia   enjada, 
antes   dá  gosto,    e  alegria.    Cora  sabedoria 
fundou   o  Senhor    a  terra ,   co}?i  prudência 
fortaleceo    os  Ccos  ,   de  seu  saber    sairão  os 
abjsí7ws  ,  c  as  nurcns  se  congelão   com  ona- 
Iho.  Quem  a  alcançou  passou  coíijíadamente 
seu    caminho,    e   o  seu  pê  não  tr(>pccará  ;  se 
dormir  não  finverã  medo  ^  e  o  seu  sono  será 
descansado.  Ouvindo  estas  palavras,  e  outra:; 
a   este  modo  todas  clieias  de  doçura,  ficou 
com  o  coraof.o  abrasado,  e  rtvolvendo-asuo 
pensamento  failava  dusta  maneira    comsigo: 
O'  verdaduiramente  riO])re  ,  e  escol hid:?  ami- 
ga. O*  se   por  dita  pudera  aronleccr  querer 
ella   sel-o  minha:    que  bem   andante,    que 
ditoso  seria  !  Mas  logo   o  espantavào    iniagi- 
nações  contrarias,  que  lasliniando-o  inltrior- 
mente  lhe  chzlào  :  Como  vos  ha  de   caber  no 
pensamento  amar  o  que  nunca  vistes  ?  Como 
podereis  querer  bem   a  quem  nunca  conhe- 
cestes ?  Kfio  saldeis  vós  que  nalhor  c  ur.i  pe- 
queno   punluido  cerio  j   t    dcseciba  r?(  ado, 


5*  Vida  do  C«\ro 

que  a  rasa  cheia  com  diivl  I.js  *  qr.rrn  fabril 
ca  edifício  alto,  e  íjrangca  amizu.le  de  gran- 
de Senhor  ,  estando  hniíre  de  se  r  seu  i^unl  , 
este  tal  as  mais  das  vezes  se  acha  enganado 
em  sua  espera  nçn  ,  e  clieio  de  miséria,© 
fome,  larga  o  negoeio.  i)em  confesso  que 
i5ão  íôra  para  engeitar  o  amor  desta  (iama,  se 
eila  consentira  a  seus  servidores  tratarem-sc 
])eni  ,  e  levarem  boa  -vida;  mas  elU  esta-vos 
dizendo:  Quem  folga  com  vinho,  e  com 
grossura  não  será  sábio.  E  diz  mais  :  Até 
quando  dormirás  preguiçoso,  quando  has  de 
acabar  de  te  levantar  desse  sono?  Pouco 
áormirás,  pouco  estarás  sonorento,  menos 
tempo  juntarás  as  mãos  para  desça nçar  ,  ^ 
dará  comtigo  a  miséria  como  um  correio,  e 
a  pobreza,  como  homcRi  armado.  Vede  [lois 
se  houve  alguma  hora  quem  pozcsse  tào  ri- 
gorosas leis  a  seusnmanlesP  Aqui  lhe  acudio 
MUI  pensamento  dí;  Ceo  to<lo  em  seu  favor 
lembrandrr-Uie,  que  era  lei  antiga,  c  condi- 
cào  do  amor  penar,  e  padecer  qucui  ama. 
ííenhum  amante,  lhe  dizia,  vive  sem  cruz, 
£  tormentos  ,  o  ê  bem  de  veras  marlyr  todo 
aquelle,  que  fiequenta  a  eschola  do  amor. 
Quanto  mais  raziÀo  é  lo^o  que  sofra,  e  que 
trabalhe  quem  pretentle  uma  tão  alta  ,  e 
lao  insigne  Senhora  por  esposa  e  por  ami- 
ga? VciLia  que  desuálres,  a  qc*tí  enfadamen^ 


Fii.  Henrique  Suso.  ^3 

tos,  t  contrastes  se  sujeita©  ,  e  a  seu  pezar 
ess«5  amadores  do  iiuindo.  Com  estas,  e 
outras  inspirações  siniiihantes,  cobrava  es« 
forço  para  perseverar,  e  virihão-lhe  a  min* 
de.  E  assim  ora  estava  de  Lon»  aniriio, 
ora  tornava  a  abater  a  afíeição  ás  cousas 
transitórias.  Andando  nestas  voltas  sempre 
topaTa  com  alguma  cousa,  que  contradizia 
sua  períeila  conrcrsao,  e  por  esta  razão 
variava  pendendo  ora  a  uma  parte  ,  ora 
a  o;itra.  Um  dia  estando  á  mesa  ouvio  ler 
um  passo  da Escriptura  Sagrada,  que  falia  da 
Sabedoria  ,  com  que  se  abrazou  vehementis- 
iinianíente  ,  era  o  passo  este:  Eu  estendi 
meus  ramos  como  tberibiiilbo,  e  os  meus 
ramos  suo  de  honra  ,  e  de  graça;  como  iibano 
nao  cortado  perfumei  n^inlia  morada,  e 
como  bálsamo  sem  mistura  é  o  meu  cueiro  ; 
quem  me  athar,  adiará  j;az ,  e  aUanrar.í 
4âuJe  do  Senhor.  íslo  failava  da  Sabedoria: 
e  do  amor  sensual  e  dcshonesio  dizia  o  se- 
guinte: ALuei  uma  mulher  niais  amargosa 
que  a  morte,  que  é  laço  de  caçadores,  seu 
coração  rede  ,  «  suas  mã^s  grilliócs ,  quem 
agiada  a  Deos  escapará  ;  mas  quem  c  pecca- 
d(U',  si:^"d  por  ella  lalivado.  A  islo  levanla^a 
entre  si  um  grande  l)rado  ,  e  dizia  :  Clara- 
ínentc  siTo  islo  verdades.  Ora  de  tc(ío  cm 
todo  mu  resolvo  de  tomar  por  Eí^posa  a  Su- 


^4  Vida  no  Padus 

Ledorla.   Já  tenho  assentado  de  me  c:Uivar 
(le  seu    amor,  e  Gnlrcg<ir-:i:e  todo  a  seu  ser- 
TÍro.  Ah  queiíi  tivera  lugar  de  a  ver  ,    e  fal- 
lar-lhe  ,  Inda  que  nfío  fora  mais  que  lima  só 
vez,  Ah  quorn  soubera,  que  cousa  é  ,  ou  que 
feição  tem  ,   quem  pregoa   de  si  cousas  tào 
maravilhosas  !    quem  tautas  cousas  ,  e  tama- 
nhas permitte  ?  E  por  ventura  Deos  ,  ou  é 
homem  ?  E  homem,  ou  é  mulher?   R  scicn- 
cia  ,  ou  é  sagacidade  ?  Ali  queiu   soubera  o 
que  é.  Ardendo  nestes  desejos  mostrou-lhc  o 
Senhor  uma  visão,  que  quanto  aossinaes,  e 
ao   que  da   eterna  Sabedoria  se  escreve  noj 
passos,  que  temos  referido,  e  n'outros  da  Sa- 
grada Scriptura,  ficou-lhe  fácil  de  conhc-er 
ser  ella.  A  visão  era  esta  :  Passava   por  cima 
delle  ao  longe  ení  uma  columna  de  uma  nu» 
vem,    ia  sentada  em  um  ihrono  de  marfim, 
resplandecia  como  a  estrclla  da  alva  ,  ecomo 
o  Sol  quando  cstÁ  em  sua  forra  ;   por   coroa 
tiidia  a  eternidaile  ;   por  manto,    bemaven- 
turança  ;  pnv  pratica  ,  suavidade  j  por  braços 
para  abraçar,  enchentes  d«  todo  ó  l)em.  Esta- 
va   perto,  e    andava  longe,  era   soberana, 
e   humilde,    estava  presente,    o  esconíiida  , 
mosiv^iva-se    conversarei,   e  todavia  nfiO  s(í 
podia  travar  delia.    Era   mais  alta  ,  que   os 
mais  altos  cumes  do  Oo,   e  mais  prolunda 
quG  o  abysmo,  Chegava  de  cabo  a  cabo  com 


Fa.  IiENRIQtE  Su^o.  ^5 

fortaleza,  e  ordcnaTa  tudo  com  suavidade. 
Quando  Ilie  parecia  ,  que  estava  todo  enle- 
vado na  belleza  de  uma  formosa  donzelia  , 
iníístrava-se-liie  em  figura  de  um  Ijellisslmo 
mancebo  ,  algun-as  vezes  se  lhe  cfíerecia 
como  mestra  dextrissima  em  todas  as  artes; 
amiora,  e  graciosa  para  todos;  en)  fim  vol- 
tando-se  a  elle  aprazivelmente  ,  e  agazalhan- 
do-o  com  a  bôra  theia  de  riso,  mas  r.Po  des- 
acompanhada de  uma  m:)gestade  cídtstiai, 
í"al!ou-lhe  amorosamente  estas  palavras: 
Dá-me,  filho,  teu  coraçã<í.  Então  elle  derri- 
bado a  seus  pcs  com  toda  a  humildade  ,  e 
entranhavel  aifecto  lhe  rendeo  as  caraças. 
Este  favor  Ibe  foi  concedido  por  csla  vez  , 
e  nunca  mais  o  pode  alrancai- oii',ra.  Depois 
disto  anilando  pensativo  ,  e  com  todo  ò  en- 
tendimeuto  embebido ,  como  linha  de  costu- 
mo, nesta  divina  Sapiência  ,  como  era  de  sua 
natureza  affeiçoado  j  ventilava  entre  si  esia 
questão  amoi(>sa  :  Donde  ,  ou  de  quo  fonte 
saio  o  amor  ,  e  a  graça  de  ser  amado  ?  Oíuidc 
nasce  a  formosura,  abelkza,  a  boa  som- 
líra?  Donde  vem  toda  a  outra  perfeição  ?  É 
possivel  cjuc  tudo  isto  mana  daqiielle  prin- 
ciíJÍo  fertilissimo  da  divindade:'  A  vós  nu' 
vou  lo^M)  n  abysujo  imnícnso,e  inexliauslo  do 
tr.do  o  f]ue  uierecc  ser  anuído.  A  vós  amo 
com   Q  coracf.o  ,  cos  sentidos  ,   e  com  ulu.a. 


^(5  Tida  do  Beato 

A  T«?  aLr.ioo,  que  ninguém  nro  tolhe  ,  roTtí 
cntranhayelaíTt>cto  deste  meu  nhrazado  espi- 
rito. No  meio  destes  pensamentos  lhe  ncon- 
tecia  alojjimas  vezes  cominunicar-se-lhe  o 
mesmo  Senhor  ,  que  é  fonte,  e  corrente  de 
todo  o  heui  ;  no  qual  juntamente  nrhava 
toda  a  formosura,  e  tudo  aquillo  que  só 
merecesse  ser  amado,  e  tlescjado  ,  e  tudo 
alli  eslava  junto  jior  modo  ,  que  tião  ha  pa- 
lavras coui  que  se  possa  contar.  Da^pii  lhe 
ficou  em  costume  que  Todas  ns  vezes,  que 
ouvia  referir,  o?i  cantar  versos  amorosos, 
logo  corria  c'o  alm:i ,  e  c'o  coração  á  sua 
nmada,  de  quem  procede  tudo  o  que  é  dlj;r.3 
de  ser  amado:  e  furtando  de  certo  modo  a 
vista  do  que  tinha  presente,  se  recolhia  den- 
tro em  si  ,  ou  se  arrehatava.  E  não  se  pode 
dizer  quantas  vezes  com  os  olhos  cheios  de 
lagrimas  largando  sem  t«rmo  a  capacidadá 
de  seu  coraçTo  a  ahravu  ,  e  apertou  com- 
8Ígo.  ^luitas  vezes  se  havia  com  elle  neste 
Tempo  a  Kterna  Sahedoria  ,  como  se  ha  uma 
imli  com  uiu  fdho  menino  pedindo-lhc  o 
jicito  todo  sumido  eiitre  seui  hracos  :  ella 
ahracando-o  amorosamente.  E  como  o  ii:e- 
nino  coiu  a  cahcra  ,  e  os  meneios  do  corpo 
trahalha  por  chegar  aos  peitos  da  inãi ,  o 
com  risinhos,  e  geilos  graciosos  lhe  está  si- 
gnlGcando  o  ^osío,  quo  tom  najuéllc  lugar: 


Fr.  Henuique  5c$o.  ^y 

Y*íri  nals  nem  menos  Toavíi  a  alma  c!o  B.  Fr. 
)!eniiqiie  para  aquclla  prtsenço  ,  gloiiosis- 
sima  com  uma  enchente  de  alegria,  que  lhe 
tríshordava  por  todos  os  sentidos,  I-og*^  <^'m 
se*  peTisamenío  dizia:  Bom  Senhor,  hom 
JEUJ,  alegre  fora  eii ,  se  chegara  a  tal  -vertu- 
r», que  se  me  dera  por  Esposa  nuia  Poderosa 
Jíanha.  Pois  logo ,  que  n)e  falia?  Eu  tos 
teríio  agora  eterna  Sapiência  por  Senhora 
BiíiJrilia  ,  e  Imperatriz  de  minha  alrra.  Vcc 
soií  niíi  de  todas  as  graças;  com^ofco  sou 
tíTorico,  que  me  soheja  lazerida,  honra  ,  c 
poder.  Não  cohiro ,  nem  quero  n  ais  de 
tudo  quanto  o  niundo  pôde  dar.  Traz  cstírs 
imaginações  íirando  com  o  semllarte  riso- 
nho  ,  e  alegre,  os  oll  os  acesos  ,  o  coraçêo 
e  todos  os  sentidos  interiores  saltando  de 
prazer  ,  rebentava  nestas  palavras :  Mais  qi.c 
a  mesma  saúde,  e  mais  que  toda  a  loi mesura 
in>ei  a  Sabedoria,  e  piopuz  ttl-a  por  minha 
luz  ,  e  daq  li  nasteo  vhcm-me  lodos  es  Ltns 
juntos  com  cila. 


Tida  do  Beat» 


CAPITULO    T. 


Va  maneira  ,  com  que  o  Santo  cscrevco  srl'e 
seu  coração  o  SaiuisAmo  nome  ddJiíSi\ 


N 


O  mesmo  tempo  se  lovniiton  em  snantfim 
um  grande  fogo,  que  ateado  nella  ,  e  c as- 
cendo sem  termo  lha  abrazou  toda  em  tffi- 
cacissimo  amor  divino,  e  sentindo  um  dia 
este  ardor  causado  da  caridade,  com  que 
sobremaneira  amava  a  Christo  ,  recclheo-se 
á  sua  cella  ,  em  um  luí^ar  apartado  ,  e  eniran» 
do  em  uma  contemplação  saborosissima  tal' 
lava  como  o  Senhor  ,  e  dizia-lhc  :  Prouveri 
a  vós  formosissimo  Deos,  que  tivera  cu  pode* 
para  inventar  algum  sinal  de  amor ,  que  fòri 
iim  perpetuo  penhor,  e  lembrança  de  ami* 
7ade  entre  mim  e  vós  ,  e  dera  testemuuii» 
do  muito,  que  me  vós  quereis,  e  do  qu3 
vos  cu  quero  a  vós  ,  e  fura  tal ,  que  nenliun 
^esquecimento  pudera  ser  parle  para  se  pertler. 
Comeste  fervor  ilt*  e<ipiritotao  grande  levan- 
tou o  escapulário,  e  descuberto  o  peito  tc- 
inando  na  mão  um  ai^udo  ponteiro  tle  ferro 
olhava  para  o  coração  ,  e  di/.ia:  Deos  Omni- 
poietite,  dai-me  vós  hoju  forças ,  e  liceuç* 
para  sAíi  jí.izcr  a  meu3  desejos,  pois  já  njor* 


Fr.  Henrique  Srso.  79 

líç  coiiTCm  não  me  conlentar  com  rrenos 
<]ie  corn  vos  metter  Cieniro  nas  enlranlias 
ik^.te  coração.  Dizendo  isto  coincrou  a  fe- 
vii-secom  o  ponteiro  sobre  o  coração,  e  cor- 
tai a  carne  de  cima  para  baixo  até  que  dei- 
xoi  escrito  nella  o  Nome  de  JESU.  Entre- 
taito  corria  o  sangne  de  nir.neira,  que  Uie 
bínhava  o  (oipo  todo  ,  e  olhando  para  elle 
coii  uma  alegria  da  alma  não  esiijnava  as 
ílcres  ])ela  força  do  amor  ,  que  era  causa 
delas.  Acabada  a  obra  assim  como  eslava 
€)Volto  em  seu  sangue  foi-se  á  Igreja,  oposto 
i(3  gioibos  diante  de  lium  Crucificio  disse: 
Ija  Senhor  meu  ,  único  amor  desta  alma 
ninha  ,  ponde  os  olhos  na  forvorosa  vontade 
(cm  que  vos  busco.  Bem  vedes  que  não  te- 
lho poder  para  vos  imprimir  em  mim  tão  de- 
veras como  eu  quizera  ,  sede  vós  logo  servi- 
<o,  Senlior  meu  ,  de  condescender  agora  com 
iieusiogos,  acabai  o  que  falta  ,  iniprimi-^os 
TO  profundo  tieste  coração  ,  e  esculpi  vosso 
santo  jNome  em  mim  ,  de  maneira  que  já 
tiais  possaes  esquecer-vos,  ou  aparlar-vos  de 
uinha  alma.  Durárão-lhe  muito  tempo  alicr* 
las  estas  feridas  de  amor.  Em  fim  sendo  são  , 
àcuu-lhc  oNome  de  JESU  escrito,  ecxprpssf^ 
no  coração  como  pedira.  Erão  as  letras  de 
grossuia  de  uma  cana  de  trigo  verde,  e  li- 
iihão  ^e  comprimento  quanio  lia  de  mu  nó  a 


OMtro  no  fleclo  mínimo  íIa  mão.  Esle  nomf 
trouxe  em  seu  peito  até  «í  Ijora  da  morlG 
Tetlas  as  vezes,  que  lhe  palpitaTa  o  cornrrr> 
fazia  o  nome  o  mesmo  movimento,  e  rts 
princípios  lançava  tle  si  um  estremado  rô- 
plandor.  Mas  o  Santo  teve  sempre  tainan>o 
cuidado  de  o  esconder,  que  já  n»inca  mais  c 
descobrío  a  r;in£:uern  ,  sciiio  foi  a  um  .»< 
seus  companheiros,  a  quem  o  deixou  ver  eu 
segredo,  por  ler  com  e!le amizade  particuU' 
e  espiritual.  Dalliem  diante  quando  ihesir- 
cediáo  lral)alhos,  punha  os  olhos  neste  sini 
de  amor,  c  passava-os  melhor.  Algumas  veze 
faliando  rom  o  Senhor  familiarmente  Sf)í. 
a  dizer-lhe.  Os  amantes  do  mundo  coslumát 
trazer  os  retratos  das  suas  damas  nas  roupas 
que  vestem,  eeu,  Serilior,  com  muito  avan- 
tcjada  aííclção  es(  re\i-vos  cm  meu  corarão,  « 
em  meu  sangue.  Um  dia  rocolhendo-se  par; 
a  celia  ,  acabada  a  oração ,  que  tinha  depoi. 
áii  Matinas  ,  encostou-se  sobre  um  banco  to- 
mando por  cabeceira  o  livro,  que  chainão 
J''iías paiiutn.  Aíjui  leve  um  rapto,  e  pare^ 
^cia-lhe  que  se  !he  levantava  do  coração  al- 
guma claridade  ,  e  pondo  os  olhos  nelle  vi» 
sobre  o  mesmo  lui^ar  uma  Crur  de  our* 
guarnecida  de  muita  pedraria,  entre  a  (|uai 
resplandecia  com  nuiravilhosa  obra  o  Nome 
di  JESU.  Acudio  logo  com  o  capello  a  cobfir 


Fr.  Mekriqce  Suso.  8í 

a  conção,  trabalhando  por  esconder  tão 
espantosa  luz  ,  para  que  de  ninguém  fossa 
"vista,  mas  quando  hkjís  se  cansava ,  cntto  se 
esforcaTãoestreraadaiiiente  os  ardentes  raios, 
qnc  deila  saião,  lançando  de  si  tamanho 
resplandor,  que  por  nenluima  via  pôde  enco- 
brir,  nem  reprimir  sua  força» 

CAPITULO    VI, 

Pe   nl^uns   ensaios    de  consolações  díx^ínas, 
com  que  Deos  favorecia  o  B,  Fr.   lUnriauc 

eui  seus  princípios» 

OAíndo  o  Santo  um  dia  de  Matinas,  e  re» 
foiiiendo'se  como  costumava  cm  seu  Orató- 
rio, deitou-se  sobre  o  oca  banco  para  repou- 
lar  um  poiico.  Foi  o  sono  breve,  e  não  du- 
rou mais,  que  até  os  espertadores  darem 
sinal  do  dia  ,  a  cujas  vozes  acordou  ,  c  derri- 
])ando-se  logo  por  terra  satulara  a  eslrella 
d  alva,  digo,  a  Soberana  llainha  dos  Ceos, 
parecendo-lhc  ,  que  assim  como  as  avosinhas 
pelo  Estio  saem  alegremente  a  receber  o  dia 
quando  amanhece,  assim  era  razão  ievantar-s« 
elle  lambem  a  adorar  a  mãi  do  Eterno  Sol 
com  alegre,  e  devoto  afíeolo.  As  palavras 
cpe  diziu  dtí  saudação  uuo  erão  rezadas  sw- 


32  Vi  Dl.  LO  pAcnr 

mente  ,  rr.as  entoadas  con;  unia  rnirsica  íla  al- 
ma caiada  ,  e  suave.  Aiiles  do  Santo  acordar 
do   sono,    que    digo,    ruivia    um    espantoso 
estrondo,  que  lhe  retumbava  dentro  nalma, 
com    que    todo   cslreniecin.    O  s<jm  era  por 
estremo  agudo,  e  foi  sentido  dtdie  iiorneímo 
tempo,     que    costuma    a    iiaster  a   estrclla 
d'alva  ,  e  daqueile  som  saía  uma  voz  inlcili- 
givel,  que  dizia:  .Vnria  estrella  do  mar  suhio 
hoje  no  Oriente»  Soou-llie  este  verso  nas  ore- 
lhas com  tal  melodia  ,  e  tanto  sobre  o  natu- 
lal  5  que  todo  se  alegrou  em  sua  alma  ,  e  <  c»- 
mecou  juntamente  a  cantar.  Paí.s;u!o  o  som, 
e  juntamente  a  sua  musica,   sentia-se  abra- 
çado sem  saber  com  quem,  por  um  modo, 
qual  nenhuma  linguagem  alcança  a  declarar, 
e  logo  ouvio  esta  voz:  Quanh»  nuiis  amorosa- 
mente me  abraças,  ccjuanto  mais  puramente 
sem   mistura  corporal  juntas  tua  lace  com  a 
minha,  tanto  com  mais  gosto,  c  maior  amor 
serás  abraçado  no  reino  de  minha  eterna  luz. 
No  fim  destas  palavras  acordíui ,  e  lem])ran- 
do-lhe  o  ({ue  pasjnra  ,  desíazia-se  todo  em  l»i- 
grimas    Ari.    dtivoção.    E  logo  seguindo    seu 
costume  saudava  a  estrella  iralva  pelo  modo, 
que  temos  dito.    Depoii   desta  saudação  cu- 
lueçava  outra  na  mesma  hora  em  reverenc  ij 
da  Sabedoria  eterna  beijando  o  chão  ,  e  di- 
zendo  uma    oração   dcToli&sinia ,    que    cUe 


Fr.  Il£xi\iQU2Scoo.  S5 

eftmpoZjC  anila  nos  livrinhos,  que  fez  de  de- 
vocfio  j  que  começa :  Desejou  minha  alma ,  etc, 
A    estas  duas    ajuntava  a  terceira   beijando 
tanjbeni    o  chão   em    honra    do  mais   alto  , 
e    mais    ahrazado    Seraphlm    do    Ceo ,    que 
com    maior    fervor    arde   em    amor  divino. 
O    que    lhe    pedia    era,     que    inflasiimasse 
sua  alma  no  mesmo  amor,  de  maneira,  que 
não  só   SC  ahrazasse  todo  até   ás  entranhas 
neste  santo  fogo,  mas  fizesse  arder  i.elle  ao 
miiudo  tíjdocom  suas  fervorosas  amoestacóes, 
e  doutrina.  E  lae-?  eráo  as  devoções,  que  usa- 
va todas    as  maulians  quando   se  levantava. 
No  tempo  do  erjtrndo,  em  que  o  mundo  »n- 
da  lodo  devasso,  e  desccmiposto  ,  esiendeo  o 
Santo  Varão  inn.i  noite  tauto  a  oração,  que 
os  espertadores  já  fazião  sitiai ,   que  amanhe- 
cia :  elle  então  falbva  coujsigo  ,  e  dizia:  Re- 
pousa agora  um  pouco  (orpo   cansado   autes 
que  vamos  a  receber  a  formosa  estrella  d'aU 
va  ,   e  deixando  vencer   os  sentidos    de    um 
breve  sono,   começarão  os  Anjos  a   cantar 
Mquelle   brando,   e  suavissimo  Uesj>onsoi  io : 
Sartre  illiuninave  Jerusalemy  etc,  E  a  musica 
soava   dentro  cm   síia    alma  com  estieniada 
suavidade.    A  cabo  de  um    pequeno   espaço 
enlevava-se-lhe  o  esj)irito    naquelia  celestial 
harmonia  ,   de  maneira  ,  aue  já    não    pod?i 
sop  portar  o  peso  do  corpo  mor  lai .  c  terreno  , 


1^  Tida  do  Blatô 

c  nssim  açor  Java  trcsbordardo-llie  pcloft 
ollnisii  ízloria  ilo  coracãu  em  ardentes  arrojos 
de  lagrimas,  que  delies  verlia.  Pelo  niesfno 
tempo  encostando-se  algumas  vezes  para  re- 
pousar, pnT('ci-.í-llie  ,  que  era  levado  a  uma 
região  estranha,  e  logo  \ia  o  seu  Anjo  da 
guarda,  que  post*  á  sua  nuio  direita  rom 
semblante  alegre  t  risonho  o  acompanhava  : 
cm  vendo  o  Anjo  abracava-se  com  elle, 
linni1o-o  com  seus  braços,  e  meltcndo-o 
todo  em  sua  akna,  o  mais  apertada  e  amo- 
rosamente ,  que  podia  ,  de  maneín  ,  que  lhe 
pareria  ,  qwe  entre  elle,  e  aquelle  celestial 
csj^irito  não  havia  nada  de  permeio.  Enláo 
soltarido  uma  voz  !uagoada  ,  e  os  olhos  arra- 
sados de  agua  ,  e  com  un)a  per)eita  tlevaráo 
da  alma  ,  di/.ia-lhe  estas  palavias:  O'  aiuoro- 
sissimo  espirito  ,  que  por  Ueos  me  fostef 
assinado  para  guarda,  e  remédio  de  minha 
tida  ,  peço-vos  pelo  ardeutissimo  amor  ,  que 
tendes  a  ease  mesmo  Si^nhor, que  me  não  des- 
ampareis. A  isto  rospondeo  o  Anjo:  Como? 
V.  não  ousastes  a  fiai -vos  do  Deos?  Pois  oro- 
de-nie,  que  tamanlia  é  a  caridade  rom  qut 
ab  eterno  vos  ann)u  ,  que  >osnáo  ticsampar* 
jamais  porsua  voutaoVv  Outra "vez  (  on»eçando 
ae^ilarecera  manhãa  dcpoi^ídeter  dcv>?<'ansado 
iiu)  pouco  de  suas  contínuas  penitencias  con- 
veisandu    lamiliarnicnle  com  os  An  los  cm 


Tn.  Henrique  Suso.  ^ 

^tasi .  pcdio  a  um  delles  que  llie  declarasse, 
porque  modo  morava  Ueos  escondidanieníe 
em  sua  alma.  Tornou-lbe  o  Anjo:  Ora  siií:, 
quero-vus  mostrarq  que  (lesfjais.  Poinleale- 
gromente  os  olhos  em  vós  mesmo,  e  vereh  co- 
mo se  ha  Deos  com  utna  ahna  ,  qne  o  ama ,  co- 
mo av. issa.  Aitontand)  lo^opara  si^vio,  que 
soi")re  o  siiio  d(í  coração  se  lhe  tornava  a  carne 
transparííiiíe  como  um  cristal  ,  e  via  seiUado 
qiiietissimamentti  no  centro  dellc  ao  eterno 
Déos  em  uma  fij^ura  cheia  de  amor,  e  beni- 
gnidade; e  junt<i  delle  conhecia  ,  que  estava 
sua  alma  confiada  nas  !)cnções,  e  amor  do 
Ceo ,  e  brandamente  encostada  a  um  lado 
do  Senhor,  mas  da  parte  delle  apertada  com 
estreitos  abraços,  e  metilda  toda  em  sen  di- 
Tino  coração,  e  assim  a  via  estar  como  eia 
um  exlasi,  e  roubados  os  sentidos ,  sumida 
toda  ,  e  adormecida  entre  os  braços  do  Sal- 
tador. 

CAPITULO   Vir. 

De  algumas  consolações^  que  o  Santo  Vurãê 
teçc  do  Ceo, 

X  Razia  o  B.  Fr.  Henrique  neste  tompo  iim 
modo  de  cilicio  íeilo  por  suas  nsãos  l'io  duro, 
taspuro  ,  qut;  a  toda  a  hora  ILc  davA  giiÀndí 


56  ViDV  :do  Padub 

afíiiccru).  Estando  assim  atormentado  TimR 
noite  precedente  á  festa  ,  que  a  igreja  celebra 
dos  Anjcs,  foi  arrebatado  em  extasi ,  e  pa- 
recia-lhe  que  ouvia  uma  musica  do  Ceo  ,  e 
vozesangeiicaSjCom  que  ílcou  tao  alliviado  , 
que  de  lodo  perdeo  a  ir.emoria  dus  dores, 
quepa.ssava  ,  e  dizia-lhe  uni  dos  Anjos:  Assim 
como  ati  te  recreia  ouvir  de  nós  os  cânticos 
úa  Eternidade,  que  entoamos,  assim  nos 
alef»ra  a  nós  ouvir-te  as  cantigas  da  eterna, 
e  aitiisinia  Sapiência,  que  compões,  e  loj^o 
ajiinKm:  Este  que  ouvistes  heaquelle  cântico, 
com  que  hào  de  sair  todos  os  escolhidos  do 
Senhor  no  dia  ultimo  do  mundo,  tanto  que 
se  virem  confirmados  na  posse  da  eteina 
})emaventuranca.  Muitas  outras  horas  teve 
o  ser\o  de  Deos  no  mesmo  dia  esta  celestial 
conversação  vendo  ,  e  contemplando  as 
íesias,  e  passatempos  dos  Anjos.  1'rimcira- 
ineute  começando  já  de  amanhecer  veio-se  a 
clle  um  mancebo  ,  que  no  geito  ,  e  na  pre- 
sença parecia  ser  um  musico  do  Ceo,  (jue  - 
Deos  llie  enviava.  Acompanhavão-no  muitos 
outrtís  mancebos  dj  gentil  disposição  na 
niesíua  postura,  e  traje  ,  salvo  qae  aquelle 
era  de  meu  respeito  como  Archanjo.  (ihe- 
gou-seao  Santo  com  brio  «grande,  e  disse  llic, 
qucelle  e  seus  companheiros  erão  alli  nnin- 
datlos  por  ordem  divina  para  o  alegrarem  ,  • 


'     Ffi.  TIrxRiQrE  Scso.  87 

entrctercm,  e  lhe  alUviarein  as  penas,  que 
padecia.  Pelo  que  ,  dizia  o  Arclianjo ,  é  ueces- 
sario,  que  posta  de  parLe  toda  a  melancolin  , 
entreis  nesta  companhia,  e  danceis  c^oni 
nosco  as  danças  do  Ceo.  Isto  dito  clio^járão- 
se  todos  a  elles,tiran(lo-o pelas  mãos,  nietle- 
rão-no  entre  si.  Eo  AicLanjo  cotneçou  logo 
a  entoar  um  hymno  do  Menino  JESU  ,  que 
diz:  In  diílci  jubilo y  etc.  Tanto  que  o  Santo 
vio,  e  ouvio  soleninizar  com  tão  acordada  ,0 
desenvolta  harmonia  oNome  de  JP^Sti  ,  ficou 
tão  aiiiviado  do  coração,  e  de  todos  os  sen- 
tidos, que  despedindo  num  momento  toda 
a  trlâteza  ,  parecia-lhe  que  nunca  tivera  tra- 
balho, e  estava  com  grande  ^osti)  (]'alina 
todo  end)ehi(lo  na  destreza  ,  e  admirável  con- 
<^erlo ,  com  que  aquelles  espiritos  hemaren- 
turados  dança  vão.  O  mestre  desta  angélica 
capella  sabia  mui  bem  ordenar  tudo.  LIlc 
começara  os  versos  com  graça  celestial  ,  os 
outros  proseguião  cantando,  e  juntamente 
dançando  com  alegria  entranhavel.  E  elle 
no  fim  repetia  três  veies  a  clausula:  Ergo  me- 
riiOy  ctc.  ísVio  erão  estas  danças  como  us  que 
se  usão  cá  na  terra.  Erão  umas  mures  tc- 
lestiaes,  que  se  estendião  até  o  liumcnso 
a])ysmo  da  divindi.de.  Muitas  outras  ct)nsi>- 
lações  do  Ceo  teve  o  B.  Fr.  Henrique  a  este 
modo,  que  por  alguns anxios  forão  quasisem 


S8  Vidím)oBkat» 

niiaiero,  principalmente  rjuanJo  se  acliavi 
m.íis  af.Ii^ltio  (le  suas  penitencias ,  c  assim 
as  passara  ineTUor.  Um  seivo  de  Deos  leve 
iiina  rcvelaeãn  ,  em  que  o  vio  ao  lenipo  ,  qu» 
sobia  ao  altar  para  dizer  Missa  cercailo  d© 
iini  resplendor,  e  via  ilescer  sobre  sua  alma 
a  graça  de  Deos  a  niodo  de  orvalbo ,  e  logo 
unir-se  o  Santo  com  elle  de  mancim  ,  qtiâ 
ficavão  Deos,  e  elle  imia  só  cousa.  Vio  mais 
estarem  por  detraz  d  elle  muitos  meninos  de 
lindo  e  gracioso  pirecer,  com  cirios  acesos 
nas  mãos  ,  que  rodeavão  o  altar,  e  postos  em 
ordem  huns  traz  outros,  e  t(jdos  um  ,  e  um 
se  ião  (betando  ao  Santo,  e  estendendo  os 
bracinbos,  o  abraçavão  aniorosissimamente, 
eo  apertavão  comsijjo.^Em  Hn:  .espantado  Fr. 
Henrijue  da  visão,  pergunia\a-lhes  quem 
çrfio,  ou  que  qutrião  significar  naquella 
C'bra.  Erospontliuo-lbe  os  uieninos,que  erão 
comp;inheiro3  do  Santo,  e  participantes  de 
seus  gostos  na  gloria  eterna  ,  e  por  isso  • 
acompanharão  perpetuamt^nle  ,  e  o  guaida- 
y:\o.  ileplicuu  o  Santo  Varão:  E  que  quer 
dizer  abraçardes  todos  com  tanto  amor  a  este 
íiaile  ?,  Quereinos-lbe  uiuito  ,  responderão 
elles  ,  e  temos  com  elle  grande  conversação , 
e  amizade  ,  e  liáveis  de  bAtcv  que  obra  o  Se- 
nhor Deos  em  sua  alma  grandes  maravillias, 
f  taes  ,  que  senão  podem  dtclarar,  E  ludo  • 


^v.e  elle  quizer  pedir  de  propósito  a  Deos 
nunca  lhe  será  negado.' 

CAPITULO    VIÍI. 

Di^  algumas  revelações  y<jue  o  Scr,'o  de  De0S 
teve. 

i^O  mesmo  tempo  tevr  o  Yar&o  muliae 
ravffiações  de  cousas  spcrclas  ,  c  de  outras 
ç^ue  estavito  por  vir.  E  íoi  o  Senhor  servido 
dar-llie  uma  cerla  noticia  ,  e  experiência  do 
que  passava  no  Ceo ,  inferno,  c  Purgatório. 
Ãpparecião-lhea  niiude  nniiias  alir.í^s  qoanlo 
passavão  desia  vida  ,  e  cojitavão-lheseus  svr» 
ccssos.  Ora  por  que  peccados  esta  vàopenandoí 
c  como  podião  ter  remédio  ,  ora  que  gráos 
de  gloria  tinhào  alcançado.  Entre  outros  lhe 
apparecerão  o  Santo  Eckardo  de  gloriosa  me- 
moria ,  c  o  Santo  r>.  João  Fitcreriu  de  Ar- 
gentina. O  Santo  Eckardo  lhe  contou,  qii« 
estará  cercado  de  enchentes  de  uma  gloria 
tal,  que  se  não  podia  dará  entVnder  com  pa- 
lavras ,«q'je  de  todo  estava  trasformado  tiii 
Deos.  E  Fi\  Henrique  propoz-lhe  duas 
questões.  A  prir.icira  era  ,  em  (pw;  estado  esta- 
Tao  com  Deos  ac|uelles  ,  (pie  com  verdadeira 
resignaçfio  desejavão  de  o  conteiitar  seni 
luistura  de  erro  ,  nem  falsidade.  Ao  que  lli« 


i)o  Vida  do  Pàdmi 

foi  respondido,  que  nào  Imvia  palnvrns^nem 
termos  humanos,  que  pudessem  sigrificar  o 
como  se  sumia  uma  alnia  naquelle  ahysmo 
immenso  ,  e  sem  limite  da  divindade.  Ase» 
gunda  qucsiâo  era  qual  seria  o  mais  provei- 
toso exercicio  para  uma  alma  poder  ejíegar  a 
este  estado  ?  Respondeo-lheo  Sauio  Filaido^ 
que  o  mais  seguro  meio  era  íiif^ir-se  um 
homem  a  si  niesmo  ,  e  desapropriar  se  de 
si  com  uma  humilde  resignação  ,  enã'> querer 
nada  das  creaturas  ,  e  tomar  tudo  o  que  vier 
da  mão  de  Deos  ,  e  com  isto  saher-se  gover- 
nar com  mansidão,  e  paciência  com  ioda  a 
sorte  de  mãos  honjenâ.  O  Santo  Fr.  João  lhe 
mostrou  laixi])em  uma  esoccial  íormosura  , 
de  que  sua  alma  estava  ataviada  na  Gloria, 
EFr.  Henrique  lhe  perguntou  qual  era  entre 
todos  o  mais  proveitoso  exercicio  para  a  sal- 
Tação  ,  e  mais  custoso  de  pòr  por  obra.  11  es- 
pondeo  ,  que  nenhunja  cousa  podia  dar  maior 
trabalho  a  uuía  alma,  nem  aprovciiar-lhc 
mais,  que  soírer  com  paciência  ser  desam- 
parada de  D^os  ,  e  assim  íolgarde  carecer  de 
Deos  por  amor  do  mesmo  Deos.  Tand^eni 
appareceo  ao  B.  Fr.  Henrique  seu  pai  depois 
de  morto  ,  que  como  na  vida  se  deixou  levar 
lodo  das  vaidades  do  mundo,  manilesiou-lho 
com  representaçã.0  lastimosa  o  cruel  tor- 
mento ,  que  tinha   no  Purgatório,    e  decla- 


Fe.  lÍEN-RIQUE  SUSO,  9I 

rôu-lhe  »n  culpa  principal  porque  o  padecia, 
c  o  modo  ,  que  podia  haver  para  o  Santo 
filho  lhe  dar  remédio  nelie  ,  o  que  o  Santo 
Varão  cumprio.  E  elle  l!ie  tornou  apparccer, 
e  lhe  deu  c  ;nta  corno  estava  já  livre  da  pena, 
A  mãi  de  Yv.  Henrique  ficando  viuva  por 
niorle  de  seu  marido,  íbi  niulher  de  abalisa- 
da  virtude  ;  e  mostrou  Deos  em  seu  corpo 
c  coração  depoi*  de  morta  sinaes  maravilho- 
sos. Sendo  tallecida  appareceo  ao  filho  em 
revelação,  eco'»tou-lhe  grarmissimas  mercês, 
que  tinlia  recel)iilo  do  Seuhor.  I*or  e.;te  modo 
vio,  e  fallou  a  muitas  ahiias,  que  foi  cousa, 
que  por  eníao  lhe  deu  algum  allivio,  e  niuilo 
tempo  o  ajudou  a  perseverar  naquella  abpe^ 
leza  de  vida,  que  seguia. 

CAPITULO    IX. 

Dõ  cnmo  ^c  havia  o  B.  Fr.  Henrique  cnan(^ò 
havia  de  ir  ao  refeitório  ,  e  quando  cotnisL 
ficlle, 

J.  Odas  as  vezes  que  este  Santo  Vnrao  havia 
de  ir  ao  refeiloiio  tinha  por  costume  st/i- 
tar-stí  primeiro  dejoeliios  tfiante  de  Deus,  c 
entregue  a  uma  profunda  nie(htaçào  da  alma, 
pedia-lhe  eíficazmente  quizesse  acompa- 
nhaUo  ,  e  comei'  cora  elle,  Suavissinio  JESU, 


§:»  Vni  DO  BxATflr 

dizia ,  com  grande  gosto  e  vontade  d'alni« 
TOS  coiividoagí)ra.Pe;i)-vo5 Senhor,  cjueasiiir» 
como   iiiiserJ;;orcliosaii:c]iie  nic  dais  de  co- 
mer,    assim   queirais   hoje   acoinpAuhar-mw 
com   vossa  [>rcsc!ira.  1  anto  que   se  assenta- 
Ta  a  uieza  figurava  dcíronte  de  bi-,  como  cm 
ol)jeclo    aqúeile  amorosíssimo    ho.s[MíJe  da» 
ahiias  puras,    e  fazentlo  conta  ,  que   o  tinha 
alli  comsigo ,  punha  nelle  ws  duos  hrand* 
€  aU^greiucnlc ,    outras  Tezes  reclinava»se  a 
seu  lado.  Cada  prato,  que  lhe  irazião  oftere» 
cia  a  esle  pai  de  familias  ceieslial,  e  podia- 
lhe,  que  lho  dvitasse  sua  bençào,  usanJo  de 
palavias  familiares,  que    as  mais  das  vezes 
ei ão estas lAmariíissiiuo  Senhor  peçu-vosqu» 
comais  comigo.  Meu  Senhor  JÈSXJ   benzei, 
rogo-vos  ,  esle  comer,  o  tomai    delle  juuia- 
inente  com  es!epuhreser\ovosso.  Taes  erão 
os  amores,    que    tinha    neste   lugar   com  a 
Eterna  Sabedoiia.   Quando   havia  de  hehcr 
primeiro  llie  olferecia  o  copo,  rogando- lh« 
que   bebesse.    'Jinha    por   costume  bebei   á 
meza    cinco    tragos  sóu>ente  ,  e  estes  lazia. 
conta,  que  os  liobia  das  cinco  chagas  de  sea 
amado  JESIJ.  K  pMrijue  do  sagra<io  lado  saio 
juntauíciíle   sa-iguc,  e  a^ua,    repartia    este 
trago  em  dous,  O  ptiiuei  o  boeado  ,  eo  der- 
raríelro  iciv.ra  no-o    ?••    r  dn  n'ais  .d»razado 
corav^io,  que  p  ;dia  h^vcr  na  terra  para  ccu^^ 


Fr.  Hzr.-siQCE  Su5«,  ^5 

íleos,    e  pol-a  mais  inílammada  caridatle  do 
mais  alto  Serafim    do  Ceo,    coui   desejo  de 
alcançar  para  sua  alma  perfeita  coniniiiiáca- 
«iío  destes  dons  amores.  Se  lhe  davão  algum 
comer  ,.qiie  não  e>a  de  seu  gosto  ,  servia-lhe 
desal  paiu  olevaroeoracao  de  Christo  haiiha» 
tio  cm  sangue,  eassiíii  o  pasmava  sem  dutidar^ 
e  sem  receio  de  lhe  fazer  dai!0.  Era  o  Saiilo 
muito  amigo  de  maçãs  ,  e  o  Senhor  maudava- 
llie  que  as  não  Coii»eí>se.  Eiii  uma  TÍsão,  que  te- 
\e,  parecia-lhe  aiie  lhe  davão  uma  maçu,^  e 
que  quem  llia  dava  lhe  dizia:  Toma  ,  e  farta 
a  vontade,  quecslassuo  as  misérias,  em  qua 
tu  andas  hujcando  gostos.   Respondendo    o 
Sanlo  que  em  nenhuma  cousa  tinha  gosto  st 
v.Zo  n;i  Eterna  Sabedoria  :  disse-lhe  o  ouiro 
qu<i  mcnlia,  porque  o  certo  era  que  folgava 
liiais  do  recciiialio  com  maçãs.   Ficou  daqui 
o  Santo  tão  corrido  ,  que  eu»  dous  annos  de- 
j)oi.'!   níTo  somente    não    comco  maçãs ,    mas 
nem  ainda  as  tomoti  na  mão.  Tendo  passailo 
o3  dous   annos  não  sem  asaz  saiidades  desta 
fruta  ,  suecedeo  haver  no  terceiro  tão  fraca 
noviíhide  delia  ,  que  se  não  dava  aos  religio- 
jos  em  cotumiinidade,  e  elle  ainda  (jue  t;uha 
acahadocomsigo,  apezar  de  trabalhosa-. coil- 
tcndas,  e  vaf"li»s  co!itradie'u's  du  c-pirilo  não 
pr  acurar  na  inezi  .   npm   des   '.niara   si   em 
pariicttlar  nenhuma  cou.ia[^r'nclpaLiientu  d« 


^4  TiD\  DO  Padre 

fruta  ;  pedlo  í>  nosso  Senhor,  que  so  fo^se 
sei:  serviço  tornar  clle  a  comer  marus^  ortle- 
rííisse  ci<3  maneira ,  f[U8  as  houvesse  para  toda 
a  conitnuniJadu.  J3espiichoa-llií;  o  Senhor 
esi.i  peiiçíTo  d  medida  dí*seu  desejo  ,  e  acon- 
teren  ,  que  anianliecc^iido  o  dia  segni?ite , 
cb.egoTi  um  honiein  não  cordiecldo  ao  Con- 
Tento  com  uma  boa  quantidade  de  moe<la 
íeiía  de  novo,  que  lhe  deixou  com  condição, 
que  se  empreitasse  toda  em  niacãsj  fizerão-no 
as5lm  os  Frades,  e  por  muito  tempo  tiveríTo 
macas  contíguas  no  refeitório,  e  desde  então 
ctmieçou  Fr.  Henrique  a  coniel-as  com  gosto. 
As  maçãs  maiores  fazia  em  quatro  quartos , 
destes  comia  três  em  nome  da  Santissima 
Trindade,  e  noutro  em  reverencia  do  amor 
com  que  a  \'irgem  Sacratisíima  dava  as  ma- 
cas a  seu  precioso  filho  sendo  menino,  e  este 
quarto  comia  sem  o  aparar,  porque  assim  as 
comem  os  meninos.  Do  Natal  por  diante  até 
al«;uns  dias  depois  não  tocava  neste  quarto  , 
offerecendo-<>  em  seu  pensamento  d  Virí;em 
purissima,  para  que  ella  de  sua  mão  o  desse 
ao  menino  JFSÍJ,  por  cujo  amor  fol^^ava  de 
o  deixar.  Se  alí^uma  hora  lhe  acontecia  sen- 
tir-se  muito  appetitoso  de  comer  ou  beber, 
pejava -se  e  havia  vergonha  da  sua  venerá- 
vel esposa  a  eterna  íjabedoria,  que  faria 
conta  ,  que  tinha  prescnic,  e  se  por  csqutii- 


Fh.  lÍENniQTTzSuSO.  ^3 

inei.to  passava  por  qualquer  cousa  doslas  , 
elle  rnesoio  su  clara  o  castigo.  Che;;oa-se  ir.nii 
■vez  um  peregrino  a  elle  ,  e  disse-iiie,  que  cm 
uma  visáo  lhe  fora  mandado  do  Cef) ,  que  se 
('ueria  íju.irdar  a  ordem  devida  no  co:.  er  se 
fosse  a  elle,  ellie  tieoisse  quizesse  ensinar-lhe 
as  regras  e  exercícios,   que  neste  particular 


usava, 


CAPITULO    X. 

De  como   se  aparelhou  Fi\   Henrique  parti 
entrar  no  anno  novo, 

JLíiM  Sucvia,  donde  Fr.  Henrique  era  natu- 
ral ,  c  costume  em  algumas  terras  entre  man- 
cebos leves,  e  ociosos,  quando  chega  o  pri- 
meiro dia  de  Janeiro  arruarem  tod.\  a  noite  , 
e  procurar  cada  um  haver  uma  Capella  da 
infio  de  suas  damas,  e  a  este  fim  compõem 
trovas,  Qá\xsò  musicas,  eGnalmente  iisào  de 
todo  artificio,  e  industria  para  obrigarem  ás 
damas.  Vindo  o  wSanto  Varão  a  sal)er  isto  1'oi 
a  cousa  ,  que  mais  llie  caio  em  graça,  e  me- 
lhor lhe  pareceo  a  sua  arte.  E  logo  na  mesma 
noite  se  determinou  elle  também  visitar  sua 
Senhora,  e  pedir-lhe  uma  capella.  E  assim 
antes  de  nascer  o  Sol  foi-se  aonde  estava 
lima  imagem  de  Nossa  Senhora ,  que  tinha 


f)6  Vida.  do  Be\to 

entre  scj*;  ornços  o  Menino  JESU  branda» 
incnte  apertado  nos  peitos,  e  posto  de  joelhos 
diante  delia  com  uma  musica  dalma  calada, 
c  suave  começoti  a  cantar  uma  Sequencia  da 
Virí( »  n  ,pediíido-ihe  por  nicrcc  alírisse  ca- 
minlio  para  eile  alt  atiçar  de  seu  hento  F.Iho 
tir.ia  capellj,  e  o  cpje  laltasse  em  seu  mereci- 
mento, íupprisse  eila  coní  sua  misericórdia. 
Fez  isto  por  jnuitas  vezes  Ião  de  veras ,  e 
acu(lÍQ-lhe  tamanha  forç*  de  choro,  que 
todo  se  banhava  em  fervorosas  lagrimas. 
Acabnda  esta  musica  voltava-sc  para  aquella, 
que  unicamente  amava  ,  digo  a  Iilerna  Sa- 
piência :  c  prostrado  a  seus  pés,  adora?a-a 
do  mais  iniimo  de  sua  alma,  e  engrandecia 
com  muitos  louvores  sua  formosura,  seu 
v;.lor,  suas  virtudes  ,  sua  braii/Iura  ,  e  liier- 
dade  junta  com  eterna  autoridade,  e  respei- 
to, c  aí  firmava  ,  que  em  nenhuma  dama  do 
inundo  ,  por  formosaque  fosse,  estavão  tam- 
bém estas  partes  conm  nella.  Isto  fazia  com  o 
canto,  comas  palavras,  c'os  pensamentos,  e 
c'os  desej(jscomo  inelhorjjodia  ,  cjuntament» 
estava  desejando  de  poder  scr]H)i'  mcdo|e>p:ri- 
tual  como  uni  messaffciro  de  Ktdos  os  corações 
namorados  ,  e  conjo  um  golfo,  e  amoiUoa- 
mento  de  todos  os  pensanienlos,  palavras,  e 
sentidos,  (íue  nascem  do  amor,  para  que  assim 
^udi.ss«  dar  iou\orej  á  Sapicucia  igtiaes  coiu 


Vru  merecimento  ,  pois  poi  outra  parte  se 
sentia  indigno  cie  a  poíier  louvar.  Em  fim 
fallando  com  ella  lhe  tlizia:  Vós  sois,  ó  amada 
minha,  minha  alegre  paschoa ,  vós  estio  florido 
de  meu  coração  ,  vós  minha  hora  de  ^osto , 
Tcs  sois  aquella  a  quem  só  ama  ,  e  de  quem  ?6 
faz  conta  esta  alma  minha,  e  [-or  cuja  cansa 
tem  dado  de  míío  a  todo  o  amor  mundano. 
Pcço-vo8,  Senhora,  que  me  valhais  nisto,  e 
•[ue  mereça  eu  hoje  alcançar  de  vós  uma. 
grinalda.  Fazei-me  ,  rogo-vos  Senhora  heni- 
gnissima  ,  esta  mercê  pol-a  vossa  liberalidade 
divina  ,  pol-a  vossa  natural  bondade,  e  iiL'y 
permittaes,  que  neste  principio  de  anno  nie 
aparte  eu  de  vós  com  as  mãos  vazias  ,  que  não 
estará  isso  bem  a  quem  vós  sois,  ó  doçura  da 
vida.  Lembre-vos  Senhora,  que  testemunha 
de  vós  um  leal  servo  vosso;  que  não  se  acha 
em  vossa  casa  ,  sim  ,  e  n.lo  ,  senão  ,  sim  ,  e 
mais  sim.  Eia  pois  alegria  de  meu  coração 
dai-me  por  favor  celestial  uma  aprazível,  e 
graciosa  capella,  para  que  assim  como  a  rece- 
Lem  esses  desatinados  aniadorcs  do  miindo 
feita  por  mãos  humanas  ,  a^sim  a  minha  ahna 
receba  neste  dia  por  meio  das  vossas  de- 
nientissimas ,  ó  Saljedoria  suavissima,  algu- 
ma graça  pajlicular,  ou  nova  luz  «m  lugar 
de  Janeiras.  A  esie  modo  costumava  o  S».n- 
to  fazer  suas   oraíúcs,   e   nuiica  juniais  ilnè 

4 


^8  Vida  do  Beato 

acontecia  enganal-o  a  espertnç.i,    com  rjue 
entrava  nellas. 

CAPITULO  xr. 

Das  considerações  com  que  o  Bento  Fr.  Hen»^ 
rique  cantava  as  pcLla^ras  do  Prefacio  : 
Surstim  Corda. 

U  -\Ia  hora  perguntavTo  aFr.  Henrique  seus 
amigos  ,  que  tenção  tinha  (jiianJo  cantando 
a  Missa  comc^^ava  a  entoar  aqiieilas  palavras 
do  Vt^Íslcio  Surs li fTz  corda  (cuja  sigoificaçào 
é,  que  se  levantem,  e  suspirem  a  Deos  os 
corações  de  todos) ,  ])()rque  ns  dizia  com  tanta 
eíficacia  ,  e  scntimenío,  ({ue  espertava  nos  ou- 
vintes um  particular  movimouro  de  pied.ide  , 
e  devaçào.  Aos  quiies  o  Santo  P.uh'e  com 
facilidade  respondco  desta  maneira  :  Quando 
na  Plissa  pronunclavi  estas  palavras  as  mais 
das  vezes  me  acontecia  derreter-se-me  a  alma 
e  o  coraçfío  com  ardentes  saudades,  que  na- 
quelle  ponto  sentia  de  Deos,  que  eriio  tacs  > 
que  me  roubjvào  o  coração^  e  m'o  faziào  sair 
de  si.  Era  a  causa  três  soberano»  e  podero- 
sos pensamentos  ,  ou  discursos,  qno  em  meu 
entendimento  se  moviáo  ,  dos  quao^  naquella 
hora  se  me  oFfereciao  ora  um  ,  ora  dous  ,  e  ás 
vezes  todos  três,  e  tinhuo  força  para  mo  en«. 


Fr.  Henrique  Suso.  5^ 

ferar  ,  c  nrrebatar  todo  em  Deos ,  e  por  meu 
nuio  íi  Iodas  as  crealuras.  O  piiíneiro,  (jne 
interiormente  me  occ.irria  era  esie.  Prí)pu- 
iilia-me  a  mim  mesmo  diante  dos  oliios  dal- 
lua  lodo  tamanho  sou  com  alma  ,  e  corpo  ,tí 
todos  rnc*us  sentidos,  e  ao  redor  de  mim 
assentava  Iodas  quantas  creaturas  ha  por  toda 
.1  parte  íeitas  por  Dcos ,  lá  nos  (leos  ,  cá  na 
terra,  e  nos  elenienios,  e  cada  inna  por  si 
nofuéiidainenle  como  as  aves  do  Ceo,  as  fthas 
dv>s  liosques,  os  peixes  das  a^uas  ,  e  todas  as 

onsas  ,  qne  a  terra  prodnz  té  a  n)ils  peqne»- 
ra  hervinlia  do  caníoo ,  as  áreas  do  mar  sem 
<:õijto,  e  todos  os  argneiros  que  sedesçohrem 
nos  raios  do  S;)l ,  jnníamente  todas  as  gotas  de 
agua  ,  qne  procedem  ,  e  hão  de  pioreder  do 
orvalho  ,  da  neve  ,  das  cluivas  ,'e  eslava  no- 
tando como  cachi  cousa  destas  ,  (h)  iriais  inti- 

10  centro  de  meu  coração  ia  levantando  em 
.iltocom  un^i  suave  harmonia  como  de  umu 
Ijem  tocada  viola  ,  todo  tle  cahò  a  cabo  can- 
tavào  novos  ,  e  ahisslmos  louvores  ao  aman- 
lissinjo  ,  c  suavissimo  Doos,  Entào  com  um 
rvfscido  alvoroço  se  esteiHliiTo  os  hracos  ile 
líilnha  ahna  contra  aquelle  concurso  iníini- 
To  de  crealuras  com  tal  tencào ,  que  todos 
por  meu  meio  brotassem  íòuvímcs  Divinos: 
cor.io  fa/.  neíií  mais,  nem  njcnos  nm  dex- 
tro c  cniendido  uicsire  de  t;i2)tlla,   qu:ini!o 


lOO  VlDl    DO    B«\T(» 

convida  seus  companheiros,  qu«  c^intcm  al^ 
giernsnte  ,  e  levante-ii  os  cirações  a  Deos,  di* 
2en<l(» :  Siirsuni  corda.  O  outro  discurso  era 
este:  Representava  em  minha  memoria  meu 
CoracTÍo  ,  e  os  coi  ncóes  do  toJjs  os  viventes, 
e  imaginava,  que  de  gosto  e  alegria,  que 
de  paz  e  amor  possuem  aquelles,  que  só  a 
Deo3  rendein  seus  coraçíes!  E  pelo  contra- 
rio quinto  mil  ,  e  quanto  trabalho,  quantos 
tormentos,  e  aiterac'>es  causa  o  am)r  das 
cousas  trauiitorias  a  qiiem  se  vai  traz  ellasl 
iL  assi  com  grande  fervor  ,  e  affecio  da  vonta- 
de fallara  com  meu  coração,  e  com  todos 
os  mais  do  mundo  por  onde  r;ner  que  vivera  , 
dizL^ndo:  Eia  sus  cativos  corações,  entregues 
a  um  triste  cativeiro,  acabai  já  de  resusciíar 
da  morte  dos  vicios.  Eia  sus  corações  vãos  ^ 
e  dissolutos,  sahi  já  da  froux.idão  e  tibieza 
desta  vidi  torpe  ,  e  descuidida.  Alto  ,  alto 
levantar  a  Deos  com  uma  conversão  perfelfa  y 
c  ilesemhararada  de  iodas  os  cousas  da  vida  : 
Sursuii  corda.  A  terceira  consideração  era 
inna  caritativa  cOiUpaixão,  e  lastima  de  to- 
dos aqtjelles  que,  tcntlo  bons  desejos,  todavia 
não  scabào  de  estar  resignados,  c  entregues 
nas  m.Tos  de  Deos,  e  estando  em  si  levão  o 
camiidio  perdido,  e  andão  enredados  em 
erioi,  o  a  causa  é  porque  trazem  o  coraçã"© 
lepariido  em  varUs  parles  e  audao  d^rriaiA* 


Fr.  HirfRiQiE  Suso.  loi 

dos  nas  cousas  temporaes.  A  estes  todos,  e  a 
mim  com  el!es  piovncavti  eu  a  tentarmos  um.'t 
confiada,  e  desassombrada  experiência  de  nos- 
sas forcas,  c  do  que  nos  cumpre  para  a  sal- 
vação com  uma  perfeita  rennnciaçào  de  nó.^ 
me.'.m(js,  e  de  todas  as  creaturas,  dizendo: 
Sursmn  corda, 

C  A  IM  T  U  L  O     Xir. 

Do  modo  com  que  o  Santo  solemuizava  ajista 
da  Piir/Jicacuo  d$  Nossa  Sen/iora, 

X  Res  dias  antes  do  em  que  a  Igreja  cclehia 
a  festa    da    Puiiíicacão  da    ^  ii;'tm    f{l(/rio- 

'  DO 

sissima  llie  fabricava  o  Santo  com  su.is  or;v- 
çóes  uma  candeia  ,  a  qual  fazia  de  tres  jia- 
vios.  O  primeiro  á  honra  de  sua  inteirissima 
pureza.  O  se^'undo  em  reverencia  de  sua  im- 
niensa  humildade.  O  terceiro  ení  veiieraciTo 
da  dignidade  d-e  mài  de  Deoi,  que  são  as 
tres  exiellencias,  em  que  esta  Seidiora  á 
avantajada  a  todos  os  nujrtaes.  iLsta  cautlt^iu 
espiritual ,  que  di^^o  começava  tres  dias  antes 
<la  festa,  Tc/ando  cada  iha  tres  vezes  a  Magni- 
ficai j  e  quaiuh»  cluv^ava  o  dia  áx  fesía  ia-sc 
pela  mauhàa  á  i^rt'ja  antes  que  nirjjxiciu 
viesse  ,  e  pegado  com  o  ahar  iwôv  es|)crava 
alli  eni  mtdilacàu  até  a  Santa  parida  cnira>' 


loi  Vida  do  Beito 

com  sou  divino  penhor,  (jonsideran^ío  <|Me 
chegava  á  primeira  porta  da  cidade,  fazia  ctin- 
ta  quesaía  a  recel>el-a  em  c()iiip:íuhii  de  iodos 
os  corações,  que  amão  a  Oeos,  m.\9>  levando 
a  todos  a  dianteira  em  afíecio,  e  devaçãotr.d- 
ma.  Na  praça  chega\a-se  a  ella,  e  pedia-!ha 
quizesse  alli  parar  um  pouco  com  s«u  acoai- 
])anbamer.io,ein  quanto  a  serviu  com  um  Cân- 
tico ,  e  logo  começava  á  pressa  I/nHo!(ita ,  eic, 
<:om  uma  biirínonia  espiritual,  e  calada  de  ma- 
neira, que  .-íc  lhe  viào  mover  os  beiços,  mas 
não  se  lhe  ouvia  a  voz.  Jsto  cantava  com  a 
maior  devaçáo  e  amor,  í[vq.  j)Oíba,  e  qiiando 
dizia,  ó  benigna,  ó  bínigna,  abaixava-lhe  a  ca- 
l)eca  em  final  de  reverencia,  pediíido-liic 
iDosLrasse  sua  clementissima  benignidade  para 
com  O  peccador  miserável.  Dalli  passando  se- 
guia a  Senhora  com  seu  cirio  espiritual  aceso  , 
desejando  ({ue  nào  consentisse  ella  jamais  que 
FC  apagassem  em  sua  alma  ascliammas  do  di- 
vino íogo.  Depois  cbegando-se  á  cocnpanbia 
dos  servoíi  de  Ocos,  que  a  arompaiihavfio  en- 
toava aquelle  cântico  Adoiua  thalamum  ,  etc, 
e  lembra va-lhes,  í{ue  recebessem  dignamente 
o  Salvador,  e  tcslejassem  com  alvoroço  a  Vir- 
jTcm  sua  mài.  L  assim  os  levava  todi>s  ao 
templo  com  bymnos  ,  e  louvores.  Antes  da 
Virgem  entrar  dentro  ,  e  entregar  o  lie  Icm- 
ptor  ao  Saiuo  Simeuo,   cbe^ava-se  de  uuvo 


Fr.  Hexuique  Suso.  ioS 

a  ella  com  um  afervorado  desejo,  e  com  os 
joelhos  em  terra  ,  e  as  niaos  e  olhos  levan- 
tados pedia-lh»^,  qiie  lhe  mostrasse  o  menino, 
e  lhe  desse  licença  para  lhe  beijar  os  pés  ,  o 
qne  consentindo  a  Senhora  estendia  o  Santo 
seus  hracos  ,  e  com  elles  juniamente  toda  a 
machina  do  mundo  ,  e  tomava  no  cojlo  o 
amado  Esposo  tie  sua  alma  ,  e  n'um  I^rcve 
espaço  o  abraçava  cem  mil  Tezes,  contem- 
plava aquelles  olhos  formosissimos,  e  aqucl- 
las  muos  de  neve ,  beijava  com  humildade 
lodos  aquellcs  divinos  membros,  tenros  ,  e 
pueris.  Em  fim  contcniplando  tudo,  e  le- 
vantando os  olhos  para  o  Ceo  com  espanto  , 
chorava  em  seu  coração  ,  todo  pasmado  de 
ver  o  autor  do  Ceo  táo  immenso,  e  aqui 
tão  pequeno  ,  tão  formoso  nos  Ceos,  e  me- 
nino na  terra.  Alli  se  occupava  todo  com  o 
bom  JESU  ,  ora  cantando ,  ora  desfazcn- 
do-se  em  la^rin^as ,  entreízne  a  toda  a  sorte? 
ue  exercicios  espirituaes.  Idtimamenie  enti  e- 
gava-o  a  sua  mai ,  e  entrava  com  ella  no  tem? 
pio  até  se  acabar  toda  a  solemnidadc. 


io4  Tida  do  Bbw» 

CAPITULO    Xíir. 

Dê  como  se  haí^ia  o  D,  Fr.  Henrique  nos  diat 
do  entrudo. 

Ao  sabbado  anles  da  Domin«:i^t  dn  Septus- 
gesima,  er.i  que  a  Igreja  deixa  de  cantar  a 
âUeluia,-  que  é  o  tempo  em  que  os  honieii» 
mundanos  andáo  mais  soltos,  e  dados  a  des- 
atinos e  vícios  com  a  visinbduça  do  entrudo, 
ordenou  Fr.  Henrique  de  fazer  para  si  cm  sua 
alma  um  entrudo  celestial,  por  esta  maueira: 
Considerava  primeiro  quão  momentâneo  ,  t 
prejudicial  era  o  gosto  do  entrudo  c.irnal  , 
e  como  os  mais  dos  homens  por  um  breve 
passatempo  comprão  dcsaventuras ,  e  misé- 
rias prolongadas,  e  rezíiva  o  iVilmo  ào  Mise^ 
rsrs  mei  Deus  em  honra  do  Scnlior,  e  por 
todos  os  pcccados,  injurias  ,  e  affrontas,  que 
«e  lhe  faziáo  naquelle  devasso  tempo,  c  a  este 
chamava  clle  entrudo  de  vihúos  ,  como  do 
j^cntes,  que  por  ignorantes  não  alcanção 
cousas  mais  altas.  Depois  meilitava  nos  ensaios 
da  vida  celestial ,  considerando  (onío  Deos 
honra  a  seus  servos  ainda  vivendo  na  carno 
inf)rtal,  e  corruptível,  quasi  como  passando 
tempo  cora  ellcs  por  meio  de  divinas  conso- 
larócs.  Logij  passava  pela  memoria  tudo  O 
que  neste  ^^enero  liuba  cip<irimeDUdQ  em  si  | 


Fr.  HaKAíQri  nt  ivsol  io6 

icompanliando-o  com  multas  graças,  e  louvo- 
res ao  Senhor.   Ainda  no  tempo  de  sua  con- 
versão teve  o  Santo  um  espiritual  entrudo  do 
Ceo  ,  que  passou  desta  maneira  :  No  mesmo 
dia  de  entrudo  antes  de  Completas  tinha-s« 
recolhido  o  Santo   a    uma   estufa,  para  S6 
aquentar,  porque  se  perdia  d«  frio  , e  de  fo- 
me ,   mas  mui  lo  mór  trabalho  lhe  dava  a  se- 
de ,  que  juntamcnip    padecia.  E  vendo   alli 
muitos   que  se  fariavão   de  carne  ,   e  vinho 
quando  elle  morria  de  fome  e  sede  ,  sentio-se 
mover  interiormente,  e  foi-se  h)"o  fuíiindo 
pol-a  porta  fora  arrancando  grandes  suspiros 
dahna  com  dó,    e  compaixfio  de  si  mesmo, 
mas  na  n^.esma  noite  teve  uma  visão,  em  que 
llie  parecia  que  se  achava  em  uma  enferma- 
ria ,   e  da  banda  de  fora  ouvia  cantar  um  hy- 
nino  celeslial  com  tanta  melodia  ,   e  concer- 
to ,  que  não  se  llie  podia  con)parar  nenhuma 
bem  acordada  viola  ,  c  era  a  voz  cc>n!o  de  i  m 
moco  de  cscliola  de  idade  de  doze  annos.  i'i- 
cou   lo*,'o    Fr.   Heni  Iqiie  esqneci(]o   da   pena 
que  lhe  daváo   a   fome,    e  a  sede  ,    e  estava 
mui    atlento ,    e    cou»    as   orellias    j^ronqUas 
ouvindo   a  musica.  E  dizia  com   o  Icrvor  da 
alma  quem   é  o  que  canta  ahi  tnra  ?   Ku  não 
ouvi  jamais  na  terra  tão  acordada  harmonia. 
Eespontlia-lhe  un:  mancebo  tle  gentil  dií^-po- 
♦icão,  que  naquella  hora  checava  :  Sabtrci* 


lo6  Tida  do  Deit© 

que  aquelle  moço  não  vemcnTilarn  oiiirem, 
seiíão  a  \ós,  e  p<.»r  vosso  respeito  da  (;sla  mii- 
sica.  llcplicava  o  Santo:  O'  se  Deos  se  lem- 
brasse (le  mim  ?  Peco-vos  celestial  mancebo  , 
que  lhe  inantleis  que  torne  a  cantar.  Tornou 
então  o  moro  a  começar  de  novo  a  musica 
comum  liple  allissimo,  e  não  parou  até  dar 
ílm  a  trcs  cânticos  celestiaes.  Oscjuaes  acaba- 
dos, parecia-lhe  a  Fr.  IV.^nrique  que  o  moco 
se  sobia  pelos  ares  ás  jancllas  da  enfermai  ia, 
e  lhe  offerecia  um  ramo  apinhoado  de  uns 
fructos  vermelhos  como  morangãns  ,  qi:e  o 
xnanco])o  lhe  touíava  das  mãos  ,  e  alegre- 
mente lh'o  appresenlava  com  estas  pahivras: 
Tomai  irmão  e  companheiro  meu  esta  fni- 
cta  de  que  vos  faz  mercê  aquelle  Senhor ,  qi^e 
vos  mais  ama,  filho  delRci  Eterno,  que  é  o 
lintlo  moço,  que  ouvistes  cantar.  O'  se  soubés- 
seis bem  quanto  vos  quer!  Ouvindo  isto  Fr, 
Henrique  era  lai  o  prazer  (jue  sentia,  que  se 
lhe  acendia  todo  o  roito  cm  c«)r  de  sanrjue, 
e  recebendo  alegremente  o  ramo  dizia:  O' 
venturoso  homem,  que  pôde  alcançar  deste 
divino  Senhor  uuja  tão  alta  mercê  com  que 
líão  é  possível  deixar  de  ser  alegre  esta  alma 
perpetuamente.  E  voltando  para  o  mancebo, 
que  liro  dera,  e  paia  outros  espirites  l)em- 
aventurados  ,  que  tand)eni  eráo  presentes ; 
Chari^jsimos  amigos,  dizia,  uão  vos  parece 


Fk.    Hl??RIQtTE    Susd.  10^ 

mzrlo  ,  que  un\e  eu  de  todas  minhas  forças 
este  gracioso,  e  soberano  menino?  Merece- 
dor é  de  verdade  que  o  ame.  E  se  a  mim  me 
copstííra  qual  Ke  sua  vontade,  íizer?.-]ha  eu 
er.i  todas  as  maneiros.  Logo  tornava  para  o 
mancebo,  que  lhe  dera  o  ramo,  e  dizia-ihe  : 
Dizei-me  por  vida  vossa,  amado  mancebo,  pa- 
rece-vos  que  íaço  nisto  o  que  devo?  Ao  que 
clle  sorrindo-se  respondia,  njui  Ijem  o  en- 
teralei.s.  Justo  e  deviJo  é,  que  quei^ais  mnila 
a  quem  com  mais  afieiçfLO  vos  olha,  e  quer, 
que  a  muitos  outros.  Pelo  que  vos  Icndjro 
que  façais  pelo  amar  de  todo  coração,  e  que 
estejais  apercebido  ,  porque  sabeis  que  cum- 
pre padecerdes  inuiio  ,  e  mais  do  que  muitos 
outros  padecerão.  Tudo  farei  quanto  dizeis, 
disse  o  Santo,  de  mui  boa  vontade  ,  uías  pe- 
ço-vos  que  façais  ,  que  possa  eu  vel-o  para  Ih* 
agradecer  este  rico  presente.  Chegai  ú  janeU 
la  ,  tornou  o  mancebo,  e  olhai.  Abrio  Fi\ 
Henri(|uc  a  janella  ,  e  vio  um  moco  como 
estudante  de  tão  aoa!)a<la  formosura  ,  qual 
nunca  viia  outro;  e  querendo-se  lançar  a  elle 
pela  jancdla  ,  fcz-lhe  o  moco  uma  amorosa 
inclinação,  e  deitou-lhe  uma  bençfio,  e  subi- 
lamenit*  desappareceo.  E  por  aqui  a(  abou  a 
visão.  Torna  tido  o  Santo  em  si  r^Mideo  as 
graças  ao  Senhor  por  este  divino  enliudo  , 
que  de  6ua  mão  recebera. 


io8  ViDÁ  DO  Beito 

C  APITULO    XIV. 

De  como  festejava  o  Beato  Fr,  Henrique 
a  entrada  d c  Maio, 

li  A  noite  do  primeiro  dia  clc  Ivlaio  rostii- 
niava  o  Santo  coíherespiriíur.liiieute,  Ci^uinr- 
darpara  si  um  rair.o  verde,  ao  qual  vencr.na 
«iguns  dias  eoni  oraçoens  quotidiaras.  E 
como  para  haver  este  ramo  não  pude  nuuta 
achar  arvore  mais  fresca  entre  todas  as  que 
ílorccem  na  terra  por  mais  bellas,  e  l)eni  as- 
sonibia<las,  que  fossem  ,  que  o  lenho  exccl- 
liuie  íSm,  Sagrada  Cruz  ,  que  em  ^'raça  ,  e  vir- 
tudes, e  em  todo  o  género  de  perfeição  ('  mais 
nobre,  e  mais  fresca  arvore  de  todas  as  arvo- 
res ;  debaixo  dos  ramos  desta  divina  arvore, 
e  á  sombra  delia  se  ilebrucava  no  chão  seis 
\ez('S  desejando  a  cada  uma  delias  em  sua 
conlemplarão  de  lhe  enramar,  e  entertecer 
as  folhas  mistioas  das  mais  bellas,  e  mais 
cheirosas  boninas,  tpie  f)roduz  o  fkjrido  Ve- 
ifio,  e  ([izia  cantando  entre  si  ohvmno:  Sul- 
ve  Crux  sancta  ctc,  ajuntando  mais  estas  pa- 
lavras: Deos  te  salve  arvoíe celestial  desande 
perpetua  onde  cre^ceo  o  fru(  to  da  eterna  Si- 
bedoria.  Piimeiraineule  em  lugar  de  todas 
:ís  rosas  encarnadas  para  teu  ornamento ,  e 
alaviu  contínuo,   lu  oííeieeo  uai  amor  en- 


Fr.  HEi^RiQrE  Scso.'  105 

traijhavel.  Em  segundo  lugar  te  offereço  por 
iodas  as  violas,  que  nascem  á  íace  ('o  chão 
«ma  humilde  sujeição.  Tw  teneiíí)  por  todos 
os  cheirosos  lirií)s  um  ahraco  de  |'ureza.  Em 
quarto  um  espiritual  osculo  d'aln  a  por  toda 
a  sorte  de  lindas,  e  agraciadas  flores  tanto 
em  frescura  ,  como  em  cores,  que  neste  Verão 
criarem  ou  tenháo  criado  dantes  ou  hajão  de 
criar  depois  os  matos  ,  os  piados ,  os  bosques  , 
as  arvores,  os  jardins,  e  os  campos.  Em 
quinto  lugar  te  oiiereco  louvores  iiifinilos 
de  minha  alma  p»l-a  musica,  que  todas  as  aves, 
que  olegremtntc  voão  por  estes  ares  ,  derem 
daqui  té  o  fim  do  mundo  sohje  quaesquer 
raminhos  de  arvores.  Em  sexto  por  toda  a 
sorte  de  graça  ,  e  frescura,  que  o  \  eifo  f  óde 
comníunjcar  a  uma  planta,  te  engrandece 
hoje  meu  coração  com  espiritual  armonia  ro- 
gando-te  ,  que  me  sorcorras  ,  ai  vor<'  l/cndita  , 
para  que  de  tal  maneira  mereça  eu  louvar- te 
no  transe  desta  breve  vida  ,  que  fia  cutra  seja 
digno  de  gozar  eteinamenle  de  ti,  que  és 
fructo  de  tida.  Desta  maneira  festejava  b 
Sant*  a  entrada  de  Maio. 


lio  VlDÀ    DO  Be1T« 

CAPÍTULO     XV. 

La  maneira,  que  o  B.  Fr.  Henrique  ncfímpa' 
nhn\*^a  a  Christo  em  todos  os  passos  dê  sua 
sagrada  Paixão, 

J  Eve  o  Beato  Fr..  Henrique  no  priucipio 
de  sua  convciião  muitas  consoUoóes  ,  e  ini- 
n>o5  do  Geo  ,  cem  que  Deos  o  recreou  por 
muito  tempo ,  dos  quaes  vivia  tão  satisfeito  , 
que  tudo  o  que  era  tratar  da  gloria  ,  e  divin- 
dade do  Senhor  era  para  elle  suave  ,  e  tlelc:- 
toso.  Mas  se  queria  lembrar-se  de  sua  paixão, 
ou  pòr-se  em  ordem  de  a  imitar  cm  alguma 
parte  ,  nenhuma  cousa  sentia  mais  desabri- 
cki ,  nem  mais  áspera  delevaraocal^o.  Donde 
nasceo  ,  quo  o  Senhor  o  reprehendeo ;  um  cha 
asperamente  lhe  disse:  Tão  mal  sahcs  tu  que 
sou  eu  a  porta,  pela  qual  é  torcailo  entrarem 
e  passarem  tc»d.">s  os  venladciros  amigtjs  de 
Dvíos,  que  pretenderem  alcannar  gloria  P  On- 
vjm  ,  sem  duvida  ,  que  passes  pelas  atílicçóes 
de  minha  atribulada  humanidade  coníor- 
niando-te  com  ella  se  queres  de  verdade  che- 
gar á  divindade  nua  e  perfeita.  Ficou  Fr. 
Henriíjutí  temeroso  desta  pratica  ,  e  traba- 
liiava  por  se  applicar  ao  que  o  Senhor  lhe 
dissera,  aluda  que  coiu  grande  repugnância 


Fr.  Hknriqtje  Srso.  iti 

le  s^u  gosto.  E  assim  começou  a  apprender 
uma  sciencia,  em  que  dantes  estava  rude, 
eritregaiido-se  todo  com  o  animo  rendido 
nas  li, aos  de  Deos.  Dahi  em  diante  todas 
,is  noites  depois  de  Matinas  leeolhendo-se  no 
Capitulo,  cí>£tuma\a  exerci lar-se  em  uma  re- 
presentação ao  tívo  da  Paixão  de  Chiislo  fa- 
zendo conta,  que  o  acompanhava,  e padecia 
juntamente,  assim  nos  passos,  que  andou, 
"omo  cm  tudo  o  mais  que  por  nós  padecco, 
Passeava  de  canto  a  canto  para  deitar  de  si 
('  sono  ,  e  a  |  reguiça  ,  e  estar  n~iais  prompto, 
€  mais  esperto  na  ir.ediíação  ,  e  sentimento 
(ia  sagrada  l^aixão.  O  lugar  donde  cemeçava 
eia  o  da  ultima  céa.  Daqui  saía  com  Cliristo  , 
e  con  ia  com  ellc  todos  aquelít^s  lugares  sa- 
grados sem  dei::ar  nenhum  te  o  trazer  dian- 
te de  Pilatos.  Em  fim  reeehia-o  sentenciado 
ú  nicrte  d  ante  o  trihunal,  e  passava  com  elie 
aquelle  lastimoso  caminho  ,  que  o  l)om  JE.SL^ 
íez  tom  a  Cruz  ás  costas  desdo  mesmo  lugar 
té  o  monte  Calvaiio.  A  cruem  que  legava 
neste  can;inho  da  Cruz  era  a  seguinte:  Clie- 
gaudo  á  poila  do  Capitulo  paia  sair,  pr'- 
ineiro  que  tudo  com  os  joelhos  eui  terra 
beijava  as  pisadas  do  Senhor,  une  fazia  conta 
que  saía  j)or  alli  já  coiidemnado  a  morte  ,  e 
camiidiavn  para  o  lugar  delia,  e  aqui  rt7a\n  o 
i*jiaimo  :  Ltm  JUius  uicus i íípice  iii  mt .  cie.  ^ 


tí%  Vida  D5  B]e4T'í 

assim  saía  pftla   porta  fora,   e  fa  dando  rol  li 

pt!ii  oTiiSU  ,  jndtí  tinha  f-. 
giiiaçã'»  ciuatro  píaias,  p-  ií 

passar  em  co;iipa[íh;a  co  oeníii>r,  í  ÍJ 

á  priineira  passava-aroni  ílc5ejo,e  ..  .  :iá« 

cão  de  largar  todus  os  bens  te:nporaes,  ami- 
gos,  e  hizeud.i  ,  e  padecer  em  h,>:ra,  e  lou- 
vor de  Christo  um  desterro  <]eiaiup.<raíio 
de  todo  allivlo,  e  uma  pobreza  voluntária. 
Na  se^jundii  pjopunha  dar  d«  mão  a  toda; 
ashcmras,  e  diguidades  da  terra,  e  fazer  di- 
ligencia por  coe^'ar  a  um  voluntário  despreza 
do  niundo:  considerando  ronio  o  íiicsmi 
ScMihor  chegou  a  tístado  de  bicho,  e  não  cc 
homem,  ef<»i  haviílo  por  afronta  dos  liomecs, 
e  despreio  do  povo.  Na  entratla  da  terceira 
praça  tornava  a  pôr  os  joelhos  em  terra,  • 
beijar  o  chão,  eaíli  cojn  animo  livre,  e  reso- 
luto engeitava  todo  o  descanso,  e  repouso 
desnecessário,  e  lodo  o  refrigério,  e  recrea- 
ção corporal  á  honra  daquelie  tlehcadissimo 
corpo  de  seu  !)  )m  JESU,  espeilaçado  coiu  tor- 
mentos :  pondo  naíjuelle  passo  diante  dos 
allios  ,  o  que  está  escrito,  que  se  scccou  sua 
força  como  telha  ,  e  íjue  foi  tornado  em  pó 
de  morte.  E  tend  1  presente  na  imaginação  a 
crueza,  com  que  aquelles  algozes  o  empuxa- 
vão,  considerava  que  com  muita  razão  não 
haveriaolhos,  nemcoraç«3cs  tão  durosdonde 


Tm,  Henriqui  Scío.  ti3 

%  lastima  disto  não  arrancasse  lagrimas  ,  e 
gemidos  de  compaixno.  Che;2[andt>  á  qujrta 
e  ultima  praça  lançava-se  de  joelhos  no  meio 
delia,  f izen  lo  cont;»  que  o  fazia  diante  da 
porta  da  LÍda<le,  por  onde  o  Senhor  liavia  dd 
*aír,  e  posto  diante,  beijando  primeiro  o 
chão,  pedia-lhe  efíicazmente  ,  qu«  não  qui- 
zesse  ir  am<»rTerse  elle  antes  consentisse,  qu« 
acabasse  jwntuu»ente  em  sua  companhia,  pois 
de  força  havia  dtí  passar  o  Senhor  por  junto 
(k^lle.  Estas  cousas  todas  retra-íava  o  Santo  o 
meilior  qae  podia  em  sua  alma  ,  e  tanto  ao 
"vivo  como  se  na  verdatle  passarão  assim  em 
sua  presença ,  e  dizia  aquella  oração :  //fr'd  Rejt 
noster  fili  Da\>id^  etc.  E  assim  deixava  passar 
o  Senhor.  Depois  toniando-se  a  por  em  joe- 
lhos contra  a  poria,  recebia  tatnbem  a  Crux 
com  este  verso  :  O  Crux  ave  spes  única ,  etc,  e 
deixava-a  também  passar  diante.  Então  fa- 
zia outra  grande  referencia  com  os  joelhos 
em  terra  á  Virgem  gloriosis^iina  Rainha  dos 
Ceos,  que  passava  por  junto  dclle,  e  ia  traz 
seu  lilho  trespassada  de  dores  mortaes.  Alli 
estava  considerando  os  gestos ,  e  mcneos 
lastimosos  da  Senhora ,  os  rios  de  suas  ar- 
dentes higrimas  ,  seus  profundos  e  magoados 
suspiros,  e  a  tristeza  inuuensa  de  seu  Divino 
roslo  ,  e  rezava-lhe  uma  Salva  tiegine^  ctc^ 
£  beijava  com  grande  devacão  suas  pizadas» 


.11 4  Tida  no  Beato 

Logo  «e  levantava  ,  c  loniavn  a  caminhar  traí! 
o  Senhor  até  o  alcanrar ,  e  se  pur  á  sua  ilhar- 
ga. E  isto  ainda  que  ima^inatlo,  tiriha-o  al- 
gumas vezes  tão  presente  ,  como  se  corpo- 
ralmente o  acompanhara.  E  vendo-o  rão  só 
considerava  cmijo  iiuindo  Ell\cl  David  de 
íeii  filho  Absalão,  nunca  lhe  taltaião  sol- 
cla(h)s  valorosos  ,  que  o  aconipaiiha\  ã") ,  c  fa- 
miliarmente lhe  assistão  a  um  ,  e  a  oulro 
lado.  Aqui  rendia  ,  e  renunciava  todo  seu 
queier,  é  vontade  nas  mãos  aivinns  ,  reso- 
luto em  não  cngeiíar  nada  de  ludo  quanlo 
Deos  quizcsse  ordíiuir  delle.  Depois  trazia  á 
memoria  aqucila  iicão  do  Propheia  Isaias, 
que  se  iêna  Sexta  feira  da  Semana  Sania  ,  e 
começa :  Domine  quis  ctedidit  auditui  nosfroy 
efe;  na  qual  se  pinin  ao  vivo  esta  saída  do  Se- 
nhor })ara  o  Uíonte  Calvário.  Com  esta  con- 
«ideiação  entrava  pela  porta  do  choro,  t 
luhia-se  ao  preshyíerio  do  alur,  e  alii  lancan- 
do-se  por  terra  diante  de  uma  Cruz  f>cdia  ao 
boni  JESU,  que  lúo  c[uizcs5e  consentir  vel-o 
tpartado  ilo  si  em  tempo  al-itim,  nem  na 
morte,  nem  na  vida,  nem  r.«s  boas  vcntur.is, 
nem  nas  adversielade>.  (Costumava  tamhem  o 
8anlo  fazer  outro  caminho  espiritual  da  -Crui 
p<ír  esta  ordem:  Quando  $e  cantava  a  iSrtA* 
iieí^ina  as  Completas,  conteufplava  em  sua 
alma  a  Yirgeiu  sag^rada  encostada  soLic  o  í4í« 


Tsi,  Hr-^R:QUE  Sn5o,  Ii5 

puUhro  He  sen  Filho,  cercada  de  um  mar  de 
dores,  e  iiiKí^iriava  que  erfio  horas  de  a  re- 
colher para  casn,  e  (jue  este  o-ficio  estax-a  a 
ma  conta.  K  assim  fazia  tros  vénias  em  espiri- 
to ,  e  a  cada  uraa  deílas  beijava  o  chão  ,  & 
desta  maneira  a  acompanhaTa  até  casa.  A 
priíneiía  vénia  fazia  junto  do  Sepulchro  ; 
porque  tanto  que  se  começava  a  Sa/í^e  incli- 
nava sua  alína^aos  pés  da  Senhora,  e  toma- 
va-a  euí  seus  braços  espiritualmente  ,  e  alli 
chorava  a  desconsolação  daquelle  peito  riia- 
ternal  cheio  de  amargura  ,  de  desprezos,  de 
afrontas  ,  e  de  mui  aiuargosa  tristeza  ,  e  con- 
solava-a  com  lhe  lembrar,  qiuí  em  recom- 
pensa destes  trabalhos  era  agora  Ikiirdia  po- 
derosa ,  Rainha  de  misericortha ,  vida,  do- 
çura, e  es[)erança  nossa.  Chegando  ás  por- 
tas de  Jerusalém  adiantava-se  um  pouco,  © 
virando  para  traz  punha  os  olhus  nella , 
vendo  q<ião  lastimosa  vinha,  tinta,  e  ba- 
idiada  do  sangue,  que  .soI)re  elhi  estilla- 
rão  os  rasgados  mecubros  <lc  seu  pre«it)s« 
Filho,  e  tjue  desamparada  ile  tocJa  c«mi- 
w^íhição.  Aipii  tornava  a  beijar  o  chfio  coin 
grande  devaçfio,  e  reccben(h)-a  com  as  pala- 
VI as:  A/Vi  ergo  ai/i>(>cnía  nostra^  ctc.  encoui- 
men(hi*a- lhe  que  estivesse  de  hom  animo, 
pois  já  era  de  tod.»  o  género  humano  ativoga  - 
da  dijjuissima,  c  rogava-ihe  que  puzesác  neilíÇ 


os  sens  pirclosos  olhos  pelo  amor  daqiielle  la» 
tiniosí),  e  niagonda  aspeito,  que  trazia,  elhe 
mostrasse  brando,  e  benigno,  depois  do  de- 
slerro  desta  vida,  a  JP>jli  fruito  l>emdilo  de 
seu  ventre.  A  terceira  vénia  fazia  ás  portas  da 
casa  de  Santa  Anna  ,  mãi  da  Senhora  ,  aonrlt 
entrava  desfazendo-se  em  lagrimas,  e  encom- 
mendava-se  em  sua  brandíssima  misericór- 
dia, e  em  sua  brandura  misericordiosissiiiia 
com  as  devotas  palavras  :  O  cUmens  ^  o  pia, 
o  diílcis  M  riria  ,  ^  pedia -lhe  que  na  hora  da 
iMorte  recebesse  sua  ulma  pobre,  e  desterra- 
da ,  e  a  levasse,  e  a  defetulesse  dos  inimigos 
iufernaes,  e  enraminhasíe  pelas  portai  do 
Ceo  á  porta  da  eterna  beiuaventurança. 

CAPITULO    XVÍ. 

Do  cuidado  com  que  o  B.  Fr,  Henrique  f^uar* 
dou  a  virtude  utilUsiuia  do  iilencio. 


X  ínba  o  B.  Fr.  Henri(}ue  grandes  impulsos 
interiores  que  o  obiií;aAã<i  a  procurar,  e 
buscar  a  pa/-  verdadeira  d  alma  :  para  o  que 
entendi;» ,  que  eia  conio  íujidamciito  princi- 
p.íl  o  siUM.cio.  Pelo  que  tete  tal  «uarda  na 
l»òui,   que  em  inuta  aiiuo6  uunca  na  mesa. 


Fn.  He^aíQUí  Suso.  iiy 

^lebrou  o  sileiuio  senãt)  foi  uma  vez  co» 
mcndo  em  urna  iiáo  com  niuiios  Fr-des, 
com  qne  vinha  de  íJopilulo.  E  para  se  fazer 
mais  senhor  da.  língua  ,  e  !iáo  ser  arremes- 
sado no  tallar  tonjou  em  sna  iiiíagina- 
cão  três  mestres  sem  cnja  licença  partiru- 
lar  não  fallava.  flsicí  erão  os  Padres  S.  Do- 
mingos, Santo  Arsénio,  S.  Ocrnartlo.  Haven- 
do de  dizer  al^nina  cousa  h)^o  em  seu  pen- 
samento os  corria  todos  ,  pedindo  licença  a 
cada  um ,  e  dizendo :  Jube  Domine  Oenedicert, 
E  se  o  que  queria  dizer  se  podia  fazer  em  tem- 
po ,  e  Ingar  acínnmodado ,  fazia  conta  que 
tinha  licença  rio  prinieiro.  E  se  estava  certo 
que  da  pratica  lhe  rifio  nasreria  renhuni  in- 
conveniente, ou  embaraço  de  fór,^  ,  linha 
também  licença  do  segundo  ,  e  se  sentia  que 
o  que  queria  íallarlhe  não  causaria  desasso- 
cego  alguíu,  ou  alteração  interior,  já  então 
havia  que  toJos  ires  lhe  dava  o  licença  ,  e  as- 
sim acabava  de  soltar  o  que  queria  dizer.  Mas 
se  lhe  acontecia  entender  outra  cousa  neste 
exame ,  parava  ,  e  não  saía  dos  limites  do  si- 
lencio. Quando  acodia  á  portaria  chamado  por 
alguém,  procurava  guardar  (jualro  cousas. 
A  primeira  atalhar  a  lodos  com  benignida- 
de. A  segunda  concluir  em  poucas  palavras. 
A  terceira  não  deixar  ir  ninguém  desconso- 
lado. A  quarta  tornar  para  a  bua  celiu  senj 


1 1?  Vida.  do  Beito 

Icviír  nenliiim  danino  da  conversação  ou  lhe 
íicar  preso  nelia  albina  atíecto   (U  TontaJe. 

CAPITULO     XVÍÍ. 

D;iS  asparas  penitencias  com  que   o   D,    Fr» 
Hcnriqiis  inorfiJicai\i.  sua  carne, 

XLPia  Fr.  Henri|ne  em  sim  mocidade  dt 
unici  uatine/a  depravada  ,  e  lasciva  ,  e  torno 
ia  entra fidi)  na  idade  roniecaváo  os  vieios  a 
fazer  nella  grande  ahalo :  do  que  o  Saiilo  re- 
cebia assaz  desgosto  conherendo  quão  pe- 
sada era  a  targa  da  huinanulaíle  in:d  morti- 
ficada ,  quanto  mais  de  seu  próprio  corpo. 
Por  esta  rasao  inventava  nuiiias  cousas  sa- 
gazmente traçadas  ,  e  afliij^ia  seu  corpo  com 
cruéis  penitencias  ,  trabalhando  pelo  trazer 
sujeiío  ao  espirito.  Priuieiramente  trouxe 
muilo  tempo  um  cilicio  ,  e  unia  cadèa  de 
feiro  cingid.i  no  corpo  ,  alé  quví  pelo  muito 
sangne  ,  que  Ibe  Sciía  das  cliaga> ,  cpie  lhe  cau- 
sava ,  fui  forcado  a  tiral-a.  Maiulou  secreta- 
mente fazer  umas  ciroulas  ile  áspero  cilicio, 
e  nella^  umas  filas  para  se  alar,  em  que  havia 
cenio  c  cincoenta  agulhas  de  metal  adelga- 
çadas á  lima,  cujas  pontas  lia/.la  sempre  \  i- 
radas  para  a  rarne.  Estas  íirt)nlas  erào  muito 
justas,   e  pela    dianteira    apertadas  para  §• 


Fr.  Hsxktqub  Sus(í.  119 

clicgarem  mais  ao  corpo,  e  afsitn  enlrarera 
as  naulhas  mais  luía  cai  no,  e  cheíiavão-rue 
ale  o  eiubigo,  e  aornua  com  cii.is  ue  noiíe. 
Neste  tornienlo  parsava  as  calmas  do  Estio  , 
(juando  viisha  de  fura  afrontado  do  camijjlio, 
e  desíalecido  dfe  forças,  e  alento;  ou  cjiiando 
acabava  de  ler  scado  mestre ;  e  de  nia- 
Ticira  jizla  apertado  ,  que  tanibom  os  bichos 
lhe  fazião  guerra,  o  assim  forçado  da  neces- 
sidade, ora  se  encolhia,  ora  se  torcia, 
ora  se  revolvia  de  uma  banda  para  outra  , 
como  faz  um  bicho,  se  o.  picão  com  uma 
aí>ulha.  finitas  vezes  ficava  taí  da  guerra,  c[ue 
lhe  fazlào  os  }  iollios ,  como  se  estivera  ro- 
deado de  muitas  formigas;  porque  ou  qui- 
zesse  cerrar  os  olhos ,  ou  estivesse  já  dor- 
mindo saitavão  nelle,  e  moru*ião-no,  e  bc- 
bendo-lhe  o  sangue  o  atormenta VuO  cruel- 
mente. Nestas  occasiões  costumava  algumaí; 
vezes  dizer  a  Deos  de  todo  coiaçrio  :  O*  meu 
Deos  ,  e  quáo  penosa  morte  é  esta  ,  qn<.MU  é 
morto  por  salteadores  ,  espe  laçado  de  b-ras 
ahmarias  acal>a  de  uma  morto  abbreviada  : 
mas  eu  jazendo  entre  bichos,  e  cercado  del- 
]es,  vejo-ine  uorrer  de  coníínuo  ,  e  vejo  que 
n.Vo  posso  acabar,  e  todavia  consentir  tan- 
tas penas:  nunca  pc»k' acabar  <oinsigo  afrou- 
xar nada  deste  rigor.;  nem  nas  con^pridas 
Boites  do  Inverno  ,  nem  no  fervor  do  Eiiio, 


fao  TiDÁ  Da  Beitô 

Antes  i^kTi  ter  menos  allivio  accrescentom 
outra  cousa  de  novo.  Lanrou  ao  nescoço  um 
pedaço  de  cinto,  que  Ilie  6cava  como  colar  , 
e  iieile  pegou  artificiosamente  duas  manilhas 
feitas  de  couro,    nas  quaes  nieilia  as  mãos^ 
e  as  fecli.iva,  como  em  aljeinns  ,  com  dous 
cadeados,  easchaves  delies  punha  sobre  um 
banco  ,  dianfe  do  leiro  ,  eni  que  jazia  ,  e  não 
se  soltava  senuo  quando  eriío  horas  de  se  le- 
Tantar  para  as  Matinas.  FicaviTo-ihe  os  bra- 
ços pegados  na  garf^anta,  e  estendidos  para 
cima  ,   e  era  a  prisíTo  tào  íirmc  ,  que  bem  se 
lhe  podia  qileimar  a  cclla  ,  e  o  Mosteiro  todo 
sem   ellc  ser  poderoso  para  st  rcmedear  em 
nada  como  nuo  usasse  das  chaves.  Conúnuou 
neste   martjrio  tanto  tempo,  que  lhe  come- 
çarão   a  tremer  as  mãos  e  braços  em  j^randc 
maneira  por  se  aperíar  tanto.  ílntão  buscou 
outra  invenção.  Fez  fazer  un; as  luvas  do  couro 
como  as  de  que  usfío  os  trabalhadores  vm  of- 
íicios  perigosos  para   as  mãos  ,  c  os  lavrado- 
res para  arrancar  cardos,  e  espinhos,  «  nian- 
flou-as  semear  todas  de  preguinhos  tle  bronz* 
de  pontas  agudiís,  e  calçava-as  de  noite  pari 
que  assim  se  ferisse,  e  magoasse  se  acaso  dor- 
mindo quizesse  afastar  de  si  ,  ou  afiouxarai 
ceroulas    de   cilicio,   ou  \aler-se   de  alguma 
maneira  das  mãos  contra  os  bichos,  quando 
o  comessem  ,   e   assim  lhe  acoutçceo ,  qu« 


Fr.  HEríniQTii  Soso,  laj 

^ucrerulo-se  ajudar  díS  muos  (luando  dor-* 
mia ,  e  coçando-se  nos  peitos  com  os  pregos, 
abria  as  carros  tão  crua  ,  e  feamcnte,  que  pa- 
recido rasg^adasdts  unhas  de  al^um  usso  ,  e 
chegava  a  estado  que  lh«  inchavào  os  bra- 
ços ,  e  os  peitos.  E  sendo  as  feridas  ta«s,  que 
nao  sarava  delias  senão  a  cabo  de  muitos  dias, 
com  tudo,  em  sendo  são  logo  tornava  d« 
novo  ao  mesmo  tratamento.  Neste  penoso 
exercício,  ou  por  melhor  dizer  martyrio , 
coutiniíou  o  Santo  dezeseis  annos:  no  cabo 
cios  quaes  reíriando-se-lhe  já  a  naUireza  ,  • 
sentindo  muitas  contrariedades  e  misérias 
delia ,  teve  uma  visão  de  Anjos ,  em  um  dia 
de  Pentecoste  ,  que  lhe  certiGcárão  ser  Deos 
servido,  que  não  padecesse  mais  tal  traba- 
lho, e  elle  obedecendo  logo,  e  d.*«.lstindo 
de  tudo  lançou  n'um  rio  todos  aquellcs  ias- 
trumentus. 

CAPITULO     XVIII. 

De  uma  áspera  CrnZy  que  ó  Beato  Fr,  Henri» 
que  trouxe  entre  as  tspadoas, 

OOhre  todos  os  outros  exercícios  de  pe« 
niiencia,  que  o  B.  Fr.  Henrique  conti- 
nuou, levava-se  com  grande  gosto  daquel- 
as  que    lhe     faziãg   tiaztí;    cia    seu  cor*. 


I5i2  Yicr  no  Br  ATO 

po  algum  sinal  cie  compaixão  experiment^T, 
e  sensível  dos  cruéis  toniienlos  qiu?  o  Senhor 
padeceo  na  Cruz.  E  a  esic  fim  fabricou  par 
suas  mãos  unia  Cruz  de  pão  do  comprimento 
de  um  palmo  ,  e  de  lurgura  proporciona- 
da, e  pregou  nolla  trinta  cravos  em  honra  ,  c 
memoria  de  todas  as  chagas  cora  queChrisio 
testemunhou  o  grande  amor  que  teve  ao  gé- 
nero humano.  Esta  Cruz  assentou  nas  costis 
soljre  a  carne  r.úa  estendida  entre  as  espadoas , 
e  trouxe-a  oito  annos  couiínuos  de  dia  e  de 
noite,  em  louvor  de  Cl»»iisLo  seu  Senhor cru- 
cilicad.o.  No  derradeiro  ar.no  accrescenlou 
mais  sele  agulhas  ,  cujas  pontas  íuguravão  a 
Cruz  pelo  meio,  e  saião  a  outra  parte,  fi- 
cando nella  bem  reíirmadas ,  e  cortadas  pela 
parle  de  cima.  O  sangue  e  dores,  que  tsias 
llic  causavão  rccel)ia  á  honra  daquella  dòr 
penetrante,  c  agudissima,  com  que  foi  tres- 
passado o  corai:ão  e  alma  da  Virgem  sagrada 
j)a  morte  de  seu  filho.  A  primeira  vez  que 
poz  esta  Cruz,  e  a  apertou  comsigo ,  assoiu- 
brou-se-lhe  a  natureza  como  delicada  que 
era,  e  ficou  cheia  de  pavor.  Pelo  que  com 
uma  pedra  embotou  um  pouco  as  pontas  dos 
cravos.  Mas  logo  sentindo  ver-sc  vencido  de 
tal  pusillanimidade,  fornou-os  a  apontar  to- 
dos com  uma  lima,  e  pol-os  sobre  a 
carne*  JBai  todas  as  parUíS  das  costas  ,   oni]# 


Tr\,  Luiz  db  Socsa.  Ii3 

na  o«.sos,  que  sáeni  para  fora,  a  Cruz  Ih» 
ínzia  sangue,  e  chaga.  Quando  qtier  qud 
andava  ouse  deitava  parecia-ihe  que  andava 
vestido  oní  unia  pelle  de  ouiico.  Se  alguém 
desatlentad;nnente  lhe  tocava  naquelia  parte 
ou  o  empuxava,  nutgoava-o.  Com  wui  s6 
lenicílio  lhe  pareceo  que  faria  loieravel  tão 
trahalhosíi  Cvuz,  e  foi  entalhar  como  en- 
tahiou  nas  costas  delia  o  salutifero  nome 
de  JÈISU.  Alem  das  afriicçóes  ordinari;:s  , 
qtie  o  Sa?ito  padecia  com  csia  Ciuz, ,  duas 
vezrs  cada  dia  se  disciphnava  com  ella 
por  este  modo:  Dav2«lhe  punliadas  em  cima, 
e  os  cravos  en liados  pela  carne  ,  prega vfio-so 
de  maneira  ,  que  era  necessário  para  os  tirar 
de^pir-be  primeiro.  Isto  sabia  fazer  tão  enco- 
bertameiite,  e  <om  tal  aviso,  que  nin;^ueui 
lho  podia  eritender.  Este  modo  de  disciphiia 
tomava  quando  nas  meditações,  que  tinha  da 
Paixão  jchegava  a  contemplar  a  colimina,  em 
que  seu  Dcos  ,  e  Serdior  ,  aquclle  mais  íbr- 
IU050  ,  e  mais  jierfeito  que  l(vlos  os  fdlios 
(h)s  homens  ,  foi  tfio  deshumanameiUe  açou- 
tado com  Taras  ,  e  azorragues,  e  pedia-llie 
í[ue  com  aqucllas  divinas  chagas  sarasse  as 
sua-.  Outra  vez  se  disciplinava  quando  chç* 
gava  com  o  Seniior  ao  lugar  da  Cruz,  e  ocoa- 
siderava  pregado  nella  com  cra\os  ,  entào  se 
apertava  elle  laml)cmcom  cravos  desuaCru* 


1*4  Vida  do  Biato 

com  «tenção  e  nnimo  de  se  não  apartar  nnn(?€ 
deChristocruciíicatlo.  Em  oulrasoccasióesse 
mal  tratava  tambetn  da  in«sjiu  maneira,  mas 
isto  nfio  ern  Sfínào  f|u.ni{lo  ihe  aconteria  ter 
gosto  demaslatlo  no  coriici-  ,  ou  no  hcbcr  , 
oii  em  COUS3S  similliantes.  Aconieoeo  um 
dia,  que  estando  sentadas  com  elleduasdon- 
lelias  cm  lugar  púbico,  e  (iuiile  de  multa 
gfntc  ,  por  liiscuido  ibes  tomou  as  niaos  sem 
pretençao  ,  nem  pensamento  mvío  ;  mas  l>om 
(iepressa  llie  pe.sou  assaz,  entendendo  qne 
riào  era  raz;To  passar  tal  <^)us.i  sem  castiiço.  E 
assim  em  se  apartando  í^alli  íoi-se  ao  sen  ora- 
tório, e  deitiíndo-se  sobre  a  Cruz  ferio- se  de 
manciía  nella  por  acjnclle  descuido  ,  que  co- 
xnettera  ,  que  Ibe  tí(  arào  poi  todas  as  costas 
entravadas  ,  e  nao  conlc-nlc  com  esta  pena, 
tomou  outra  de  niTo  enlrar,  como  se  fò:a 
esoommungado  ,  no  capitulo  d  sua  oração 
costumada  ,  ifndo  pejo  de  ir  a  elie , 
como  sobia  dep(»is  de  Matinas  ,  e  jnnlar-se 
com  os  e<pirit  >>í  ;ingc!icos,  qnesc-mpre  >iidK'Ío 
aconipanlial  o  eui  suas  meditaç.Vs.  Do[)ois 
querendo  já  re<"i>nciliar-se  com  o  Senbor,  e 
absolver-se  <ie  lodo  dtsta  culpa  ,  caslij;ou-se 
primeiro  borrcni/icmnie  com  muitos  tor- 
in  nlos.  rri:ií<!ran»cnte  l.iucaílo  porteira  aos 
pt*-í  do  Juiz,  (ptc  iuia:;inava  presente,  ferio-se 
diante  «icilc  coiu  a  Cruz,  e  b>jj'0  posto  no  Dieio 


Fa.  Lui2  ox  Sot?si.  la^ 

Ha  casa,  e  Correndo  partioularinente  os  San» 
tos  ,  que  fazia  conta  eiiavão  á  roda,  ferio-s* 
da  mesma  maneira  trinta  vezes  de  modo,  (jue 
llie  corria  o  sangue  pelos  hund)ros  abaixo  em 
abundância.  As«im  purgou  c:  uelmi  nte  aquel* 
la  deleitação,  que  lhe  parcceo  recebera  desor- 
denada. Acab.id^s  as  Matinas,  recolhido  no 
oratório  do  Capitulo  em  um  lugar  apartado, 
que  costumava  ,  prostata-se  cem  vezes  com 
o  rosto  C!n  terra  ,  e  beijava  o  chão,  e  outras 
tantas  lazia  o  ?nesmo  posto  de  joeliios  ,  e  para 
cada  vez  que  beijava  o  cliàfo  de  uma  maneira, 
e  de  outra  ,  tinha  suas  particulares  medita^- 
ç5es.  Daqui  saía  sempre  mui  trabalhado; 
porque  Como  trazia  a  Cruz  fortemente  aper- 
tada lio  corpo  ,  e  muito  mais  checada,  e  co- 
sida com  a  carne  ,  do  que  audão  as  cordas 
que  se  at\o  em  rasos  para  servir,  e  como  an» 
dando  desia  maneira  se  debruçava  cem  vezes 
para  l)eljai  a  terra  ;  a<i  dobrar-se  mettlào-se- 
Ihe  todos  os  cravos  pela  carne  ,  e  os  mesmos 
ao  levantar tornavão  a  saír^  o  logo  á  outra 
inclinação  fa/.ião  novas  feridas  ,  dando  em 
outros  lui,'\Te",  ,  ([uc  era  cousa  que  na  ver- 
dade lhe  causava  intolerável  dòr  e  marty- 
rio  ,  que  fò?a  mais  sofrivel  qcantlo  não  fe- 
rirão nimca  iiais  que  n*iim  só  lugar.  Antes 
desta  peultenc.a  fazia  outra  primeiro.  Tinha 
íeito  por  suas  jiiãos   um  uzoriajjuc  ,  e  mau- 


laO  Yjda  130  Deato 

r^níi-o  rn]>ilr  ãc  uma  parle  e  cVoulra  ri» 
Miiia-i  nofiias  fie  bronze  agudas  cônio  de  fu- 
rador ,  e  d'»  meio  do  azorrague  para  diante 
saííTo  nois  duas  p*)nías ,  que  fica\áo  pej^^adas 
com  cala  uma  das  prlineiras,  dejnaneira  que 
vinha  a  Si^r  cada  uir.a  de  três  I)icos  ,  quando 
dava  a  pancada,  e  feria.  Com  esta  disciplina  , 
levaiitando-se  antes  de  corneçarein  Matinas  , 
se  ia  at>  Coro  diante  do  Sanlissi;iio  Sacra- 
mento, e  diciplinava-se  asperamente  por  uni 
])oni  espaço ,  e  isto  fez  até  que  soube  qne  to- 
dos os  Frades  o  linhão  já  sentido^  pr.rque 
desde  então  cessou.  Em  dia  de  S.  Cíemcnle  , 
quando  comera  já  a  entrar  olnxrriio,  lhe 
íconteceo  unii  vez  fazer  uma  coiifiísão  ge- 
ral, e  como  foi  noite,  que  tudo  estava  calado, 
íechou-se  na  cella,  e  despirdo-se  de  todos  oi 
vestidos,  íicando  com  as  cerotdasde  ciliiio  , 
que  trazia  ,  nçoutou-se  de  maneira  até  nas 
pernas  ,  e  bryços  ,  que  o  sani^Tic  que  dedo 
corria  não  era  menos  que  sclòri  de  cutiladas 
de  uma  esjj.uia.  Tinha  o  azorrií^^ue  uma  das 
pontas  revolla,  como  gancho,  ou  anzol.  (\v.e 
tudo  o  em  que  pegava  da  carue  arrancara 
fora.  Foi  tal,  e  tão  aturada  a  força  desta 
diseijjHna  ,  í{ue  lhe  qnelnou  o  azorrague,  o 
feito  em  três  pedaços  foi  dar  nas  paredes  da 
cel!;í,  íir.iiulodhe  outro  pedat:*)  nas  máos.  Es- 
tando p.ds  ussiai  tcdo  (.nvulro  cm  sangue  ,  • 


Fr.  Luiz  de  S  uíaJ  1^7 

olhando  para  si  considerava  a  miserarel  figu* 
ra  de  seu  corpo  ,  e  muitas  vezes  cuidava  que 
arreuiedava  bcni  ao  vivo  ao  mesmo  (^hristo 
quando  foi  açoutado  na  columna.  Logo  co- 
meçou a  cluiriír  agramente  de  uma  compai- 
xão de  si  mesmo.  Eassi.n  como  estava  nú,  e 
banhando  em  s;íngue  ,  e  j)or  aquelie  frio  da 
Inverno,  pondo  os  joelhos  em  terra  ,  pedia  a 
Deos,  que  lhe  perdoasse  todos  seus  peccados. 
Depois  disto  outra  vez  em  um  Domingo  da 
Quinquiigesima  (que  eráo  dias  em  que  co- 
stumava tomar  disciplina)  «stando  os  Fradeô 
na  me/a,  mettldo  na  cella^e  as  roupas  íóia, 
5e  açoutou  com  a  niesma  deshumanidade,  fi- 
cando todo  lavado  em  sangue;  c  querendo 
apertar  de  novo  comsigo  com  mais  aspereza , 
acudio  um  Frade  aos  som  dus  golpes  ,  que 
dava  com  a  disciplina  ,  e  assim  parou  por  en» 
tao  ,  n)as  para  sentir  mais  tormento'  lavou 
as  chajTj.is  com  sal  e  vinagre.  Em  dia  de  S,' 
Bento,  que  íui  o  cm  que  Fr  Henrique  nasceo 
a  horas  de  janiir  ,  recolheo-se  erii  seu  ora- 
tório, e  fechando-sc  por  <lentro,  dcspio-se  , 
e  tomando  nas  mãf)s  o  aznrruguc,  que  ^rnos 
dito,  começou  a  discip!inar-se.  No  principio 
tlesia  (]i-ií:iplina  dou  cyni  o  acoute  no  braço 
esquerdo  ,  e  tocantio  a  vea  delle  ,  que  cha» 
mão  mediana  ,  ou  outra  visinha,  n)mpeo-a  y 
€  arrebentou-Uie  o  sangue  com  taulu  íuri«  , 


f  a8  Tida  9o  JízLtd 

c  abundância,  que  lhe  corria  até  os  pét,  fe 
alagAva  o  sobrado.  Logo  lhe  inchou  o  braço, 
e  se  lhe  fez  nesrro  :  do  que  íit  ando  o  Santo 
atemorizado  nao  se  alreTeo  a  ir  por  diante. 
No  mesmo  tempo  ^  e  liora  que  aisim  se  açou- 
tava ,  uma  snnta  donzella  por  nome  Anna  , 
que  estava  em  orai  áo  tni  outra  cidade  ,  foi 
levada  em  visão  ao  mesnío  lugar,  e  vistos 
os  temerosos  golpes  ,  que  se  dava  ,  cheia  de 
compaiião,  chegou-se  perto,  e  indo  o  Santo 
uma  vez  com  o  braço  esiendido  para  se  ferir, 
•lia  se  atravessou  ao  azorragne  ,  de  maneira 
que  lhe  pareceo  que  ton.ara  lodo  o  golpe  em 
um  braço  ,  e  cm  fim  tomando  em  si  achou 
a  pancada  sinalada  no  braço  ,  e  a  carne  alli 
picada  5  e  negra  ,  e  este  sinal  evidente  por 
argumento  certo  •  verdadeiro  das  ásperas 
penitencias  de  Fr.  Henrique  lhe  ficou  bem 
de  verdade  impresso  nas  carnes  por  muito 
l^mpo. 


Fr.  Henrique  Srso.  129 

CAPITULO    XIX. 

Da  camcij  que.  o  Beato  Fr,  llenrique  usava* 

J. 


^^ 


Káte  n^esmo  tempo  houve  Fr.  Henrique  ás 
jnãos  iiu;a  po;  ta  vellia  ,  que  j:i  nào  servia, 
e  níeltoo-a  ua  sua  cella  junto  da  cama,  e 
cosluniCTa  a  dormir  nellasern  nenhum  modo 
decoboitor:  somente  teceo  por  suas  mãos 
un»a  esU:ira  de- junco  bem  j:ieli,Mda,  que  tinha 
posta  sobre  a  porta  ,  e  nuo  lhe  clic^ava  mais 
que  até  os  joullios  ;  para  a  caberá  em  luijar 
decaljeceira  poz  um  saquinho  do  palha  de 
avea  ,  e  sobre  elle  outra  almofadinha  bem 
pequena.  Nenhuma  cousa  totalmente  tinha 
das  que  servem  ,  e  se  usào  na  cama  ,  e  deita- 
Ta-se,  e  dormia  de  noite  assim  como  andava 
de  dia  dcfcaliando  somente  os  sapatos,  e  co- 
Lrindo-os  com  uma  capa  grossa,  e  assi  era 
cousa  mui  piedosa  ver  o  couío  ja/ia  ,  porijue 
a  palha  dura  depois  de  amassatia  fazia-se-lhe 
em  novellos  debaixo  án  cubeca.  A  Ouz  com 
os  agu(h)S  cravos  passava-lhe  as  costas  ,  os 
brarcs  estavâo  an.arrados ,  e  fccbatids  ((.ni 
chave  cm  duasal^^cmas,  os  lombos  lastimados 
dos  pannos  de  cilicio.  A  capa  cancava-o  com 
o  peso  ,  a  porta  nu)ía-o  cchu  sua  dureza,  e 
íricldatle  ,  cm  lim  jazia  triste,  e  miseia^cU 


mente  atribulado  ,  e  como   um  capo  nao  se 
podia  mover  sem  nniito  tormento  ,  t  se  lhe 
acontecia  virar-se  com  força  sobre  a  Cruz  ven- 
cido  do   sono    encravava-se  nos   pregos ,  e 
agullias  até   os  ossos.   Entre  tanto  tudo  era 
gemer,  e  dar  ais  ao  Ceo.  No  Inverno  passava 
multo  raal  por  ra/ITo   do  íiio.  Porque  esten- 
dendo os  pés  ,  como  eraccsturaado,  punba-os 
nús  na  poria  nna,  e  quando   os   queria   en- 
colber  por  estarem  enregelados  com  frio,  ti 
cbegabos  ao   corpo  ,  levantando  pira  cima 
os   joelhos   d<]vão-ibe   caindíras    luis   pernas 
con»  alteração  do  sangue,  que  o  atorn;enta%  íto 
bravamente,  e  oí  inesnjos  p(\s  se  cnchião  d*J 
san^ne  pisado  ,  que  a  elles  descia,  e  as  pernas 
lhe  inriiavão  como  a  um  hydropico  ,  os  joe- 
lhos trazia  sempre  pisados,  e  en«;anguentados, 
os  lombos  dospannt)S  de  cilicio  feridos,  c  apos- 
temados. A  Cruz  feria-o  nas  costas  ,  o  frio  de- 
masiado gastava-lhea  natureza,  a  sede  secca- 
va-lhe  a  gar{.{anta  ,  e  as  entranhas,  as  mâostrc 
miào-lhe  de  falta  já  de  forças,  e  nestas  afllic- 
çóes  passava   as  noit«fS  ,   e  os  dias.   Mas  tudo 
i^to  s.)fria  obrl^:id<)  dvi  immenso,  eeniranha- 
■vrl  arnor  que  tiidia  á  Kteina  Sapiência,   qne 
he  JE:^IJ  Christo  Deos  ,  e  Senlior  nosso,  cotu 
cuja  Paixão  penosíssima  queria  conformar-se 
em  alguma  cousa.  Depois  deixando  este  modo 
de  cama  ,  passou-se   a  uma  ínuito   pequen* 


Fk.  Henrique  Snso,  i3i 

«ellíi ,  onde  tomou  por  cama  o  banco,  que 
iiclla  servia  de  assento,  que  era  tão  estreito 
ecurlo,  que  se  não  podia  estender  nelle,  e 
neste  modo  de  prisão  tão  a  penada,  e  na 
porta,  que  temos  dito,  se  deitou  oito  nimos 
contínuos  as  vezes  que  havia  de  dormir,  sem 
alliriar  neuhunia  cousa  de  todos  os  outros 
irslrumentos  de  penitencia  ,  que  usava  e  ti- 
idia  então  por  costume,  quando  se  achava  no 
Mosteiro  ,  não  entrar  em  estufa  depois  de 
Compleí-as,  nem  se  chtgar  á  fogueira  do  Fra- 
des para  se  aquentar  por  mais  iíiconiporlavel 
que  o  frio  fosso.  Eistoc^uardou  vinte  e  cinco 
annos  ,  se  não  era  quando  acaso  lhe  conipria 
ir  aos  ditos  lugares  por  outra  occasião.  Nunca 
nos  ditos  vinte  cinco  annos  entrou  em  banho, 
nunca  lavou  os  pés  por  recrearão  ,  ou  por 
evitar  desabrimentos  de  corpo  delicado,  qual 
era  o  seu.  Além  disto  foi  tão  abstinente,  que 
nem  em  Verão,  nem  Inverno  comco  mais 
de  uma  só  vez  ao  dia,  e  não  somente  não  co- 
mia carne  ,  nias  nem  jcixe  ,  nem  (jvos.  Mui- 
tos annos  teve  t.il  cuidado  desci:;iilr  a  po- 
breza, que  nem  com  licença  ,  nem  ícm  ella 
quiz  tomar  dinheiro,  nem  tocal-o.  Wm  muito 
tempo  teve  tal  guarda  na  pureza  espiritual  , 
e  corporal,  que  se  não  co(a\a,  r  ítu  tf)rava 
em  nenhuma  paile  docoipo,  mais  que  nos 
fes,   c  u.ãos. 


tZ%  VíD\  DO  BlAT» 


CAPITULO     XX. 

Dã  temperança,  que  o  B,  Fr,  Henrique  rtsai>M 
no  beLer, 

\J  31  tempo  se  aprestava  o  Santo  a  f  izcr  iiin 
inoílo  <lc  utMÚtenda  a  majj  pesatla,  c  rigoro- 
sa ,  que  podia  ser:  e  foi  liiiiilar-se  a  quaiili- 
tia<le  ceria  ile  bebida  por  cada  dia  ,  e  Cjta 
po;*  eitremo  pequena  ,  e  para  a  não  accre- 
Sv.entar  nem  dinúnuir  ,  estando  no  Conven- 
to ,  ou  fora  dtille,  fei  um  copinho  daquclla 
niedida,  que  levava  conisigo  qr.ando  ia  fora. 
E  era  tão  pequena  a  qiianíithaifí,  que  pari 
sede  grande  não  ficava  mais  qr.e  como 
uni  trago,  para  remediar  a  muita  seccura  da 
boca  ,  como  se  pudera  dar  de  agua  ,  para 
refrescar  uni  pouco  a  um  enlerino  de  fe- 
bres ardentes,  a  (juem  se  tolhe  o  beber. 
Além  disto  deixou  muito  Icmpo  de  beber 
vinho,  tirando  dia  de  Taschoa  ,  que  por 
honra  tle  tamanha  solemnidadc  o  sofria 
ent'o.  Havendo  já  muitos  dia>,  quo  vivia 
neste  tra])alho ,  e  não  querendo,  como 
eia  ri^^oroso  para  t^i  ,  allivi.ir-se  di-Ue  ' 
Tieiu  com  agua,  nem  com  vinho,  levan- 
tava os  olhf)S  ao  Ceo  u'um  modo  triste  > 
Q  lasliinolio.  I£  aconteeeo  que  ,    faicndo  isioi 


Fr.  Henrique  S-js».  i3u» 

um  dia  sentio  dentro  de  si  uma  inspiração 
ou  voz  de  Ueos  ,  que  lhe  fallava  desta  manei- 
ra :  Leinbra-te  ,  e  considera  como  no  ul- 
timo íim  de  minha  vida  ,  estando  eu  afíligi- 
do  com  as  anciãs  da  morte,  passei  uma  sec- 
cura,  e  sede  ardenti.^sima  ,  com  um  pouco 
de  vinagre  ,  e  ftl  ,  stndo  niiijlias  todas  as 
fontes  das  a^uas,  como  feitas  por  mim  ,  com 
tudo  o  mais  que  serve  para  uso,  e  sustenta- 
ção. Assim  pois  convém,  se  queres  seguir 
liiinbas  pisadas,  que  sotras  ,'leve  e  dcsas- 
somLrad.imenie  as  necessidades,  e  faltas,  em 
que  vives.  Lm  tempo  ante^do  Natal  ,  dan- 
do o  Santo  de  mío  a  tT;do  o  qenero  de  al- 
livio,  e  descanio  corporal  ,  alem  de  soas  or- 
dinal.»;,  e  costumadas  penitencias,  de  n<uilo 
tempo  ,  enipiendeo  outras  três.  Primeira- 
mente todas  as  noites  depois  de  Matinas  se 
punha  em  pé  diante  do  altar  mór  con:  os 
pés  descalços  sohre  as  lageas,  e  assim  eí»íava 
até  amanhecer,  e  isto  fazia  quando  as  noites 
sào  mais  compridas  ,  e  es  Frades  se  esperiào 
mais  cedo  para  os  olíicios  nocturi-os  do 
Coro.  A  segunda  picnitencia  era  não  entiar, 
i:cm  chegar  a  esLuIas,  nem  a  outros  lugares 
qucntoj  ,  nem  de  dia,  nem  de  noite,  nem 
ainda  a  aquentar  as  mãos  ao  íu/^o  indo 
para  o  altar,  com  quanto  eniào  as  tra/ia 
erucimculc  inchadas  do  frio,  que  íazia  ri  'o* 


134  VlDl  DO   Bf.ít© 

Tosissimo  :  assim  todo  enregelado  com  frio 
se  i\  depois  de  Completas  deitar  a  dormir 
sobre  o  seu  banco,  e  logo  d».^pois  de  Mati- 
nas ficava  em  pé  diante  do  Altar  Mór  so- 
bre as  iageas  frias,  e  descalço  até  pela 
nianháa,  como  temos  di':o.  A  terceira  ycni' 
tencia  foi  determinar-se  de  não  beber, 
totaim-nte  em  todo  o  dia,  ninda  que  se  TÍs'>e 
demasiadamente  apertado  da  sede ,  tirando 
ao  jantar,  que  para  e:itTo  tinha  sua  me- 
dida taixida,  que  bíbia  ,  e  assim  quando 
^inha  a  tarde  apertava-o  a  sede  tão  cruel- 
mente, que  todos  seus  sentidos  esiaTáo  ar- 
dendo em  desejos  de  beber.  O  que  toda- 
1'ia  o  Santo  reprimia  p.irfi.indo  contra  si, 
nfÍD  sem  muitas,  e  mui  rigorosas  dOrrcs.  A 
l)òca  se  lhe  seccava  por  tora  ,  e  por  dentro 
da  mesma  maneira  ,  que  acontece  a  um  en- 
fermo de  febre  arderue.  A  Inigua  se  lhe  gre- 
tava tanto,  que  depois  andou  mais  de  um 
anuo  sem  p^der  acabar  de  sarar  delia. 
Quando  desta  maneira  se  achava  ás  Com- 
pletas, e  se  lançava  a  agua  benta,  como  c 
costume  ,  virava-se  com  grande  desejo  com 
a  boca  aberta  para  o  hysopc  a  ver  se  lhe 
ca'a  ACAio  uni\  gotinha  do  agua  naquclla 
seca  lingua,  C(vm  que  tivesse  algum  pouco 
de  icfrigtirio.  Quan  io  ia  ao  refeitório  fazer 
coliaçàoj  em  st-  assentando  na  mesa  ,    ainda 


Fr.  Henrique  Suso.  %35 

que  eslava  morto  de  sede,  afastava  de  si  o 
vinho,  e  algunsas  vezes  levantantlo  os  olhos 
io  Geo :  Kecebei  ,  dizia  ,  Pai  celestial  este 
licor  como  ein  sacrifício  de  sangue  de  meu 
coração,  e  dai-o  a  vosso  Filho  Unigénito, 
que  está  para  espirar  na  Cruz,  aííli^iilo  de 
mui  rigoiosa  sede.  Outras  vezes ,  assim  se- 
quioso cjino  andava ,  ía-se  á  fonte,  e  pon- 
do-se  a  contemplar  aquella  agua  ,  que  corria 
com  um  suave  roído  ,  e  caía  em  um  vaso 
estanhado  por  dentro,  que  a  fazia  mais  cla- 
ra c  formosa  ,  levantava  os  oliios  aDeos  com 
lastimosos  suspiros  arrariCados  das  entranhas. 
Outras  vezes  tliegondo  a  estado  que  já  não 
podia  mais  sofrer  dizia  a  Decs  do  intimo  de 
seu  coração  :  O'  bondade  eterna  ,  quão  se- 
cretos são  vossos  juízos  ,  que  c  possível  que 
vivo  láo  p^rlo  desse  espaçoso  lago  de  Con- 
stância, e  passão  diante  de  meus  olhos  as 
cristalinas  aguas  do  Danúbio  ,  e  com  tudo 
não  ha  de  haver  para  mimom  só  trago  dtj 
agua  P  Grandíssima  miséria  é  esta!  llsia  or- 
dem de  vida  C(,ulinnou  até  í)on:ií)ga  ,  em 
que  se  canta  o  E\angelho,  que  tiata  eomo  o 
benhor  couverteo  a  agua  euk  vinlio.  Kslando 
este  dia  á  tarde  na  mesa  con^untido  de 
seus  trabalhos  não  podia  comer  de  pura 
sede.  Tanto  que  se  dei fu»  as  praças  recolheo- 
et;  de  presia  para  o  seu  orai'j;io  ,  porque  cia 


l36  VíD.V   DO  Beàtí» 

tão  fintoleravel  a  vehemaiicia  do  mal,  que 
passava,  que  já  não  tinha  forças  para  se  po- 
der ter  ,  e  começou  a  chorar  ileiraniando 
muitas  lagrimas,  fallando  com  Deos  ,  e  di- 
«endo:  O'  Deos  immortal  ,  que  só  conlieceii 
©s  trabalhos  ,  e  as  dores,  que  clles  causão  , 
quão  desaventnrado  nisci  neste  inundo, 
pois  sobej»ndo-ine  tudo  quanto  c  necessário 
para  a  suslentaçio  da  tida ,  com  tudo  c 
lorçado,  que  padcja  uma  tamanha,  e  tão 
terrível  falta.  No  meio  dcistas  queixas  pare- 
ceo-lhe  que  dentro  em  sua  alma  ouvia  uma 
▼oz  que  lhe  dizia:  Animo,  animo,  que 
«edo  serás  alegre  o  consolado  por  Deos. 
Ac\hein-£e  as  lagrimas,  valoroso  lutador,  e 
soldado  de  Deos.  Não  desmacs,  nem  te  tra- 
tes mal.  Com  estas  palavias  cobrou  tanto  es- 
forço, que  deixou  de  chorar  por  um  pouco 
espaço:  e  com  tudo  não  se  podia  alegrar 
períeitaracnte,  mas  estava  de  maneira,  que 
no  mesmo  tempo  ,  qiie  lhe  corrlão  dos  olhos 
as  lagrimas,  sentia  iulcriormer.te  uma  cousa, 
qae  o  forçava  a  rir-se  com  c.pf  ranças  de  um 
grande  bem,  e  j^osto  ,  que  do  Seidu^r  muito 
depreisalbe  havia  de  vir,  dosla  maneira  >e 
foi  a  Completas:  a  boca  cantava  ,  mas  o  co- 
ração tremia,  e  entre  tanto  lhe  parecia  ,  que 
cada  vez  estava  mais  perto  a  h.>ra  de  se  ver 
livre  desU  Cruz,  como  acoutcctío  pouco  de- 


»     Fn.  KisimiQTji  Siso.  jSy 

poij,  e  aintia  na  mesma  noite  teve  em  parl« 
principio,  e  foi  desta  maneira  :  \  io  o  Santo 
em  revelação  vir- se  para  elle  a  Virgem  Nossa 
Senhora  coiu  o  inenino  JESU  naquelU  figu- 
ra ,  que  representava  quando  era  de  sete 
annos  ,  e  vio  ^que  o  menino  JESU  i razia  ma 
copo  cheio  de  agna  maior  alguma  cousa, 
que  os  copos  ordinários  ,  qne  sei-sâão  no 
Mosteiro,  e  que  a  Virgem  gloriosissima  o 
tomava  em  suas  mãos,  e  lh'o  vinha  ofíere- 
cer,  para  que  bebesse  ,  c  elle  acceitando-o 
Lebia  com  grande  gosto,  a  matava  a  sede  á 
vontade.  Aconteceo  iiaqueile  tempo  ir  o  San- 
to um  dia  «amir.bandopelo  campo,  e  entran- 
do por  uma  vereda  estreita  vio  ,  que  pela 
mesma  se  vinha  encontrar  com  elle  uma 
mulher  pobre  ,  mas  b.onesta  em  seu  parecer. 
Tanto  que  chegou  perlo  delia,  deixou-lhe  o 
raminho  enchuto,  e  mctteo^se  pela  lama  at« 
que  passou.  A  honrada  Uiulher  voltando-se 
para  elle  ,  que  quef  dizer  isto  ,  dizia  ,  Reve- 
rendo Senhor,  que  sendo  vós  Sacerdote ,  d 
illustre  por  \i\\  dignidafle  ,  me  largastes  com 
tanta  humildade  o  caminho  sendo  cu  uma 
pobre  mulher,  que  com  mais  razão  eftava 
obrigada  a  lazer  o  que  vós  fizeiles  ?  Ku  , 
rospondco  o  Santo,  tenho  por  coslnme  fa- 
ler  corte/ia  a  iodas  as  uiulbcres  em  reveren- 
cia da  SoberanisòiiDa  M;'i  de  Deus  ,  ç  Bainha 


i38  YiDi  Dcf  Br.VTo 

do  Ceo.  PxcplicoTi  a  mulher  levantando  ct% 
olhos,  e  as  mãos  ao  Cf^o  :  Per.o  eu,  e  rogo  a 
esta  mesma  Senhora,  a  quem  vós  ião  de  ver- 
dade reverenciaes  em  todas  nós  ontras  as 
mulheres,  que  não  passeis  desta  vida  sem 
alcançardes  delia  alguma  particular  mercê. 
Assim  o  queira  ,  e  faça  ,  tornou  eUc  ,  aquella 
Sereníssima  Senhora  ,  e  Imperatriz  do  Ceo. 
Depois  da  visão  dita ,  ainda  que  se  lhe 
punh.ão  diante  licores  de  toda  a  sorte  para 
poder  beher,  com  tudo  seguindo  seu  costu- 
me, levantava-se  da  mesa  morto  de  sede* 
Acontcceo  pois  ,  que  na  noite  seguinte  teve 
lima  visão,  em  que  Iheappareceo  uma  pessoa 
celestial  de  maravilhosa  formosura,  que  lhe 
disse:  Eu  sou  a  Virgem  Mài  de  Dcos  ,  que  a 
noite  passada  te  dei  de  heber  por  um  pú- 
caro de  barro,  c  todas  as  vezes  que  padece- 
res similhante  sede,  eu  mesma  te  acudirei  , 
e  haverei  piedade  de  li.  Aqui  o  Sanlo  cheio 
de  grande  coníiança  disse:  Todavia  Virgem 
pura  não  vos  vejo  nada  nessas  mãos,  com  que 
possaes  lempei  ar-nie  esta  sede.  A  bebida  ,  re« 
])licava  a  Senliora  ,  (jrje  vos  eu  hei  de  dar  lia 
de  ser  aquella  muisahitifera,  que  procede  ,  e 
mana  de  meu  próprio  coração.  De  ouvir 
estas  palavras  ficava  o  Santo  tão  espantado, 
que  nào  podia  responder  como  quem  se 
tinlia  por  indigno  ae  tamanho  favor.  ^las  a 


Fr.    Henrique  Suso,  139 

Virefera  sacratíssima  consolava-o  amorosa- 
mente ,  e  clizia-lhe :  Pois  meu  Senlior  e 
meu  filho  JESU  se  tem  entranhado  tão 
araorosatnenie  tm  teu  cornção  ,  e  ta  o  tens 
nierecido  ,  sofrendo  com  tanto  torn:ento  a 
seccura  de  tua  boca,  terás  de  mim  uma  par- 
ticular corjsohiçáo  ,  que  será  recrear-te  não 
com  bebida  corporal,  mas  coro  um  licor  sa- 
lutiíero  ,  excellente  ,  e  espiritual  de  perfeita 
pureza.  Consentia  o  Santo  então  como  quem 
tinlía  por  verdadeiras  as  palavras  ,  que  ou- 
via, e  entre  tanto  revolvia  no  pensamento, 
que  já  sem  duvida  poderia  beber  á  sua  von- 
tade ,  c  acabar  de  vencer,  e  matar  a  sede, 
que  o  consummia.  ?Jas  tanto  que  se  fartou  , 
e  refrescou  a  vontade  com  aquelle  celestial 
licor,  que  a  Senhora  lhe  deu,  ficou-lhe  na 
boca  uuia  cousa  como  um  grão  moile  ,  alvo 
com.o  neve,  como  se  escreve  que  era  o 
maná ,  eeste  grão  trouxe  depois  muito  tempo 
na  boca  em  testemunho  do  que  verdadeira- 
mente passou  nesta  visão.  Passada  ella  der- 
retido o  Santo  todo  em  fervorosas  lagrimas, 
deu  graças  de  todo  o  coraçáo  a  Deos  ,  e  a 
sua  Mãi  tarratlssima  por  tão  alta  mercê, 
como  de  ambos  rece])éra.  Na  Inclina  noite  , 
que  isto  acontcceo  ,  se  mostrou  JXcssa  Se- 
Jihora  visivcluicntc  a  um  J^nnto  T;,ião,  que 
"vivia   tm  cuUo   h.^ar  ,   e   ile  declarou  j  cr 


t4o  Vida.  do  I5za.to 

que  maneira  tléra  de  beber  no  Santo  Tr, 
Henrique,  e  disse-llie  mais  estas  palavras  : 
Vai-te  ter  com  o  servo  de  meu  Filho  Fr. 
Henrique,  e  dize-lhe  de  ruinha  parte  o 
aviso,  que  assim  como  se  escreve,  que 
acontectK)  ao  insigne  Doutor  da  Igreja  S. 
João  Clirysostomo ,  que  sendo  moço,  e  estu- 
dante, estando  de  joelhos  diante  de  uni 
altar,  onde  estava  a  minha  Imaj^cm  fabricada 
de  madeira  ,  e  a  de  meu  Filho  uiamnndo  a 
meus  peitos,  pela  mesma  imagem  disse  a 
meu  Filho  ,  que  me  largasse  um  pouco  o 
peito,  e  consentisse ,  que  mamasse  aquelle 
moço  ,  digo,  que  a  mesma  graça,  e  favor 
lhe  ílz  eu  também  a  tile.  È  cm  fé  desta 
verdade,  se  attentares,  verás  daqui  em  diante 
que  a  doutrina  e  [)régaçao  ,  que  sáe  de  siia 
boca  santa  ,  tem  muito  mais  graça  ,  e  é  maÍ3 
afervorada,  e  mais  deleitosa  de  ouvir  do 
que  atégora  foi.  Quando  ao  Santo  Fr.  Hen- 
rique derão  este  recado,  levantou  as  m'tos 
em  alto  ,  e  coin  ellas  os  olhos  ,  e  o  coraç'io , 
e  disse :  Bemdita  ,  e  louvada  seja  aquella 
fonte  de  divindadde,  que  perennalmcnteestá 
m.mnndo.  E  bemdita  seja  a  INIãi  suavissima 
de  todas  as  graças  pola  mercê,  que  recebi 
sem  nenhum  merecimento  meu.  Uma  cousa 
similhantea  esta 'achará  o  leitor  na  primeira 
parle  do  livro,  que  se  inlitula  :  Espelho  d« 


Tr,  Henrique  Suso.  l4f 

Vicente.  Accrescentou  mais  o  Santo  Yaiáo  o 
seguinte:  Ainda   tenho  mais  que  vos  rlizer: 
Sabereis,    que  esta   noite   me   appareteo   a 
\irgeni  com   seu  Filho,  e  ella  linha  na  mão 
um  formoso  copo  cheio   de  agua  ,  e    prati- 
cando ambos  sobre  vossas  cousas  tratai ão- 
vos  com  honra  ,   e  com   amor.  Logo  a  Mái 
offercceo  o  copo  ao  Filho  ,  pedindo  que  lhe 
lançasse   a  benção.  Fez  o  Senhor  o   qi  e  sua 
Mãi  lhe  pedia  ,  c  no  mesmo  instante  se  ccn-  ' 
verteo  a  ajua  em  vinho,   e  disse  o  Sei  hcr: 
Pasta  já  o  que   e  passado  ,  nao  quero  rue  o 
meu  servo  continue  mais  este  modo  de  peni- 
tencia de  não  beber  vinho  ,   antes  hei  por 
bem   que  use  delle   daqui  em    diante  ,   que 
assim  o  pede  já  sua  d'^sbaratada  ,  c  coiiSum- 
mida    natureza.  Com    esta   licença   ,    que   o 
Senhor  lhe  deu,  começou  outra  vez  a  í  cl  t  r 
vinho  como  primeiro  fazia.  Neste  teuipf)  an- 
dava já  o  Santo  mui  qiuhiado  da  conlirua- 
çfio   demasiada  dos  excriicios  ,  e  ]  cnilcncias, 
que    ten-.os    leferiílo  ,   con»  que  li-ntos  annos 
S'j  aííligíra.   Mas  Chrislo  Kosso  Stnh<ir ,' que 
i)ão  se  descuida    dos  seus  ,  apparccro  a  uni 
virtuoso  servo   seu  com  uma  })ore5a  de  nu- 
guenlo  nas  mãos,    e  stJido  peri^rníado  pelo 
Sanlo  homem  ,  que  (juerla  hiztr  com  aqutl- 
1  f  vr.so.  Com   (  Me  unguento  ,    disse,   qutro 
«urai    c  n.eu   ministro  Iknri(^ue  ,  e  Ic^o  sk 


j4^  Vi  Dl  do  Beato 

chegavA  a  Fr.  Henrique,  e  cIesco])ertn  o  vas*, 
que  Yinha  cheio  de  san^-iie  fresco,  unia- 
Ta-lhe  com  elle  o  coração  de  maneira  t|ie 
licava  todo  tinto  em  san<^ue.  Lntâo  o  Santo 
homem,  que  isto  estava  vendo  em  revelarão: 
A  que  fim  ,  Senhor,  disse,  o  sinalais  assim 
com  sangue?  quereis  por  ventura  retratar 
nelle  a  simiihança  das  vossas  cinco  (iliagao  ? 
Respondeo  o  Senhor,  isso  é  o  que  quero 
fazer  ,  e  para  tal  efíeito  lhe  hei  de  imprimir 
no  coração,  e  em  todas  as  partes  da  ahna  ,  c 
cio  corpo  sinaes  de  Cruz  e  tribulações,  e 
lotjo  applicando  mezinhas  o  sararei ,  c  far^i 
deile  um  homem  segundo  minha  condição. 
Tendo  pois  o  Santo  Fr.  Henrique  pasmado 
uma  tão  cansada  vida  ,  e  dieia  de  tantas  pe- 
nitencias, como  cm  parte  temos  contado, 
desde  idade  de  dezoito  annos.até  os  quaren- 
ta :  como  aquella  natureza  estivesse  já  abso- 
lutamente gastada  ,  e  reduzida  a  um  extremo 
de  fraqueza,  e  parecendo  que  llie  não  falta- 
va já  mais  que  morrer,  senão  mudava  o  esti- 
lo^devida  tão  rigorosa,  que  levava,  em  íini 
deixou  aquclle  género  de  penitencias.  Mas 
si;jniíicou-llie  logo  o  Senlior,  que  a(|uelle  ri- 
gor, e  aspereza  com  que  se  tratara  ,  e  as 
regras  e  exercicios,  que  continuara,  não 
eia  tudo  mais  que  um  bom  principio  ,  e  uni 
amansar,  e  moríilioar  a  carne  desenfreada, 


Fr.  Henrique  Suso.  i43 

«"^furlosa  ,  e  ffue  era  ainda  necessário  exerci* 
tar-stí  ,  e  Iral.alhar  por  outros  modos,  se 
tjueria  que  se  fizesse  bera  com  elle. 

CAPÍTULO    XXL 

De  como  o  Santo  foi  levado  ^m  revelação  e. 

uma  eschola  da  verdadeira  resis^nacão. 

<j      tf 


J-  Assadas  estas  cousas,  estando  o  Santo 
depois  de  Matinas  assentado  na  sua  radtira, 
e  })osto  em  meditação  no  meio  delia  ,  foi 
arrebatado  era  extasi,  e  parecia-Il.e  que  via 
■vir  do  alto  naqiiella  visão  interior  um  gentil 
mancebo,  que  clic.gando-se  a  elle  lhe  bdlava 
desta  maneira:  Assaz  tempo  tendes  continua- 
do as  escliulas  baixas  ,  e  ordiraiias  ,  e  bem 
exercitado  estaes  ncllas,  já  é  tempo  de  so- 
Lirdes  a  cousas  mais  alias.  Eia  pois  vinde 
comigo,  e  levar-vos-hci  á  priíueira,  e  prin- 
cipal eschola  de  toda  a  vi(hi  lempf»ral,  cndo 
estudareis  unia  sciencia  e\(  elUntissiuía,a  qual 
"VOS  comnuinicará  verdadeiía  j;n7. ,  e  dará 
prospero  ílai  aos  bons  princípios  que  tendes. 
Ficando  o  Santo  cheio  de  alegria  .  parecla- 
Ihe  ({ue  se  levantava,  e  que  o  mancebo,  liran- 
Ihe  da  mão,  o  levava  a  uma  ccrla  rej^^ião 
especial ,  onde  liavia  uma  casa  insinue ,  que  iio 


x4{  Vida  do  Biíto 

tr.^to,  e  feição  narecla  um  Mosteiro^  em  qi:<? 
\ivia  gente  espiriíiial.  Ncita  casa  mora\át> 
os  que  andavão  no  estiido  da  scieiíciív,  4116 
temos  dito,  e  entrando  Fr.  Henrique,  r«jcc- 
berão-no  todos  com  gazalhado,  e  coriezla  , 
e  logo  forão  correndo  ao  Superior,  o»  Reitor 
do  Colles^io,  dando-lhe  novas  da  cheíjada  da 
uni  estudante,  que  vinha  determinado  a  eri- 
treg^r-se  ásua  doutrina,  e  apprendcr  a  arte 
que  alli  se  ensinava.  Disse  o  Reitor,  que  que- 
ria ver-llie  o  rosto,  e  julgar  que  esperança 
se  podia  terdclle.  Depois  que  o  viorio-se-lhe 
brandamente,  e  disse:  Discipulo  é  este  que 
poderá  dar  por  certo  um  insigne  incòire 
desta  esclarecida  scicncia,  se  com  animo,so- 
cegaJo  quizer  oíferecer-se  a  uma  estreita 
prií.fio  ,  onde  convém  ser  lançado.  \ão  cain- 
do ÍV.  Henrique  uo  entendimento  destas  pvi- 
lavras,  que  as5Í(U  escuramente  lhe  íorâo  di- 
tas, voltava  para  o  mancebo,  que  alli  o 
gr.iára  ,  c  dizla-ihe:  Gaiissimo  companheiro, 
declarai-ujc  que  uobre  Universidade  é  esta, 
e  qual  éa  doutrina  que  nella  se  lê,  de  que  já 
me  começastes  a  dar  conla.  A  doutrina  desta 
casa  ,  respondeo  o  nianccbo  Angchro,  rão 
é  outra  se  nuo  uma  perlVlta  rcnum  iação  ,  c 
resignação  própria,  com  a  qual  sedeíeriuinc 
um  homem  levantar-se  contra  si  mesmo,  e 
dar-se[or  ifio  moiio  a  tudo  ,que  de  qualquer 


Fa.  Iís?T;;rQrE  Srzo»  l45 

fhi-eira  que  Deos  o  tratar  ou  por  sua  r.ião, 
ou  por  mão  das  creaturas  assim  nos  traba- 
lhos ,  como  nas  i^rosperidaties  ,  faça  força 
por  mostrar senjprt?  um  mesmo  rosto,  e  uni 
*mfc*srHo  aniino  iíí'.ial,  e$en)  muílanra  em  todo 
o  estado  com  renunciaçrto  de  si ,  e  cie  tudo 
o  qne  cabe  ern  sua  alçada  tanto,  quanto  [.óde 
sofrer,  e  dar  de  si  a  fraqueza  humana  ,  e  só 
tenha  postos  os  olhos,  e  tenção  no  que  cum- 
pre á  iioura  ,  e  louvor  de  Deos  ,  imitando-o 
como  se  houve  ('^hristo  JESIJ  com  -eu  i  jÍ 
Celcslial  tm  quanto  andou  na  t«^tra.  A2^ra- 
dava  isto  a  Fr.  Heruique  ,  e  afíirmava  que 
em  todo  o  caso  qu«ria  estudar  esta  sciencia  , 
e  que  se  lhe  nfào  poderia  offerecer  cousa 
tanto  contra  seu  gosto,  que  o  tirasse  de-ta 
determinação  ,  c  já  começava  a  entender  em 
edificar  um  aposento  ,  eoccupou-se  em  mui- 
tos negócios  de  pouca  quietação,  mas  o  man- 
cebo indo-lhe  á  mão  dizia-lhe,  que  aquella 
arte  requeria  uma  ociosidade  assocegada  ,  e 
religiosa,  e  quanto  cada  um  se  occupava,  • 
obrav^  menos,  tanto  ua  verdade  fazia  mais, 
entendendo  daquella  occupação,  com  que 
uma  ahna  se  enibaraca  ,  e  não  tem  pura- 
mente os  olhos  na  honra  de  Deos.  IN  o  fim 
desta  pratica  tornou  Fr.  Henrique  cm  seu 
acordo,  e  dei\ando-so  estar  assentado,  e 
calado  começiju  a  pasmar   pela  meiuoria  o 


^46  Vida  do  Beato 

que  ouvira  com  uma  profunda  consí(]risç?o, 
e  assentou,  que   em  tr.clo   era    conlcríne  á 
razão  e  verJade  ,  e  á  dtmti  ina  ,  oue  o  mesmo 
Clnisto   eiisinou.    Em  {;m  fallando    comslgo 
interiormente  diiia  assinj:    Olha    Heniiqutí 
para  dentro  de  ti,  «  vê  como  hoje  foi  o  pri- 
meiro dia,  em  que  na  verdade  te  entendeste 
com  lodos  os  exercicios    e  penitencias  exte- 
riores,   que  por  tua  vontade    íi/este^   ainda 
não  estas  rendido  a  sofrer  um  trabalho  ,  que 
te  vetdiade  fora  ,  ou  te  seja  dado  por  outrem. 
Ainda  te  assombras  cada  dia  com  qualquer 
díi^gosto,  quetesuccede,  como  se  foras  uma 
lebre  despavorida,    que    se   vai    escoij<ltndo 
entre   as  ramas  de  cada  n)3ula,  e  treme  do 
movimento  tle  qualquer   foll  a;  perdi-s  a  cor 
á  visla  dos  que  não  são  teus  amigos  :  quando 
tinhas  obrigação  de  te  fazer  morto  ,  e  dares- 
te  por  vencido  ,  foges  quando  singelamente 
te  havias  deoíferccer,  e  mostrar  aparelluido 
para  sofrer  l..di)s  os  trabalhos,  andas  escon- 
dido, se   tel()u\ã(),   folgas,  se   te  prague- 
jão,  peza-te.  Tor  onde  creio  que   has  mister 
aprender,    e  exercilar-te  cm  tscbolas    m.ais 
aiia^í.  Logo  levantando   os  olhos  a  Deos  com 
um  setitido  suspiro:    O'  Deos  eterno,  disse, 
qiião  ei.iramente   te  me  deu  hoje  a  entender 
a  niesnia  verdade.  Ai  de  mÍ!U   (piando  c\ni' 
garuialj^uma  hojaa  sericsiijMiado  devcrdadí. 


Fr.  Il2.->íraQUB  Sdso»  j^J 

CAPÍTULO  xxir. 

De  algumas  pcnr>sas  mortificações y  em  qUê 
Q  Sai  lio  se  extíícitãi^a. 


D 


Epois  q;ie  Dcos  nosso  Senhor  mandou  si 
Fr.  Honiiqiití  que  deixasse  as  penitencias  ex- 
teriores ,  que  em  parte  temos  contado,  que 
lhe  houverfio  de  custar  a  vida  se  as  não  dei- 
xara ,  tanto  se  alegrou  aquella  natureza  de- 
bilitada e  consumida,  que  chorada  de  pra- 
zer ,  tornando  á  memoria  a  fjrande  aspereza 
dos  cilícios  e  prisões,  e  d'oiitras  cousas,  que 
comtrabalho,  e  marlyrio  experimentara.  En- 
trava eniáo  em  pensauientos  ,  que  o  faziáo 
dizer  entre  si  desta  maneira  :  Já  agora,  Deos 
e  Senhor  uicu,  vivirei  daqui  eni  diante  uma 
vida  folgada  ,'  e  tratar-me-hei  bem  ,  niatarei 
a  sede  com  agua  e  vinho,  deitar-me-hei 
livre  de  prisões,  ecm  enxergão  de  palha,  que 
foi  aVecreação,  que  muitas  vezes  co])icei  ,  se 
quer  antes  de  acabar  a  vida.  Assaz  e  dema- 
ziado  quebrantei  níinhas  forcas  ,  tempo  é  já 
de  descancar.  Estes  atrevidos  pensamenics  sa 
lhe  ião  assentando  brandamente  na  alma, 
romo  a  quem  sabia  mal  o  que  Doos  linha 
determinado  delle  ;  e  havendo  já  algumas 
aemanas )  que  seus  sentidos  aadavãu   com- 


t^i  VlDl  DO  1)1170 

balidos  de  similhantes   inid<^ÍT}aç5es,  e  quasí 
delcitando-se  riellas,  acontcceo  um  dl.i  que, 
estíindo  sentado  na  sua  cadeira  segundo  seu 
costume  ,  meditava  aquella  tão  acertada  sen- 
tença   do  Santo  Joh  ,  que    diz:     Milicia  é  a 
'vida  do  Jiornem  sobre  a  terra,  E  neste  meio 
ficou  enlevado  em  extasi ,  e  parecia-ihe  que 
se   vinha   a    elle    um    mancebo  de  fornioFO 
rosto  ,  e  disposição  varonil  ,  e  que  lhe  trazia 
dous  borseguins  a  uso  de  guerra,  e  outras 
roupas   e  p?ças,  que  a  gente  de  cavaUo  usa 
na  guerra  ,  e  h>go  se  lhe  chegava  perto  vesti- 
do nelias,  e  fallava-lhe  desta  maiíeira: Sabe- 
reis ,  soldado,  que  atégora  fostes  pião,  e  como 
tal  continuastes  a  guerra,  mas  agora  quer-vos 
Deos  fazer  homem  de  cavallo   Olhava  (^  Santo 
para  os  borse<,^uins,  e  cheio  de  grande achui- 
racão:  Epossivel,   dizia,  que  me  hei  de  pôr 
a  cavallo  eu  ,  que  atégora  me  dei  cofn  muito 
gosto  a  vi\er  ocioso,    e  descauçado  ?  E  dizia 
para  o  n^ancebo:   Pois  Deos  assim  é  servido, 
e  (juer  que  seja  eu  cavalieiro,  estimara  mais 
esla  honra  se  com  valor  a  tivera  ganhado  em 
alguma  batalha,  ecoin  esse  titulo  m'a  deráo. 
A  |ui  o  mance!  o  torcendo  um  pouco  o  roslo, 
e  sorriudo-se  disse:  ]\ilo  vosagaslris  por  esse 
p.iriicular,    que   assaz  occasióes  e  demasia- 
tlas  tereis  de  pelej:ír;  porque  ([iiem  pertendc 
gei' soldado  espiritual,  e  valoroso  de  Christo 


Fr.  lÍEi^aíQri  5us»^  JÍ^ 

muitas  mais,  e  mais  cri!eis  batalhas  e  afron- 
tas ha  iie  vencer,  e  passar  do  que  venrêrão, 
e  pasíárào  esses iUusires,  e  famosos  capitães, 
cujos  íoilDS  em  armas,    e  triunfos    insignes 
trazem  os  homens  tio  ruuuclo  sempre  na  boca, 
para  os  celebrarem    fallando ,  e  escrcveriflo. 
Vós  cuidais  que  voS  tem  já  Deos  tirado  o  ji:;^'o, 
e  que   cslals  livre   da    prisão,    e  que  haveis 
de  tratar  só  de  recreações,  e  "vida    descanr a- 
da?  Pois  afíirmo-vos  que  vai  o  negocio  mriito 
aorevez.  Não  quer  Deos soltar-vos  Ja  prisão: 
trocal-a  sim  ,   e  fazel-a    mais  tralnllmsa    do 
que  nunca  atégora  foi.  Atemorizado  grande- 
mente o  Santo  Fr.  Henrique  do  que  ouvira, 
dizia  a  De<)s:  Que  é  isto  Senhor,  que  deter- 
minais fazer  de  mim  ?  Cuidava  cu  que  ilrdia 
já  passado  por  todas  as  batalhas,  e  se^^jindo 
vejo  agora  querem  começar  de  novo  ?   E  já 
me  parece  que  me  acho  em  maiores  apertos, 
e  angustias,  que  d'antes.  Que  quer  dizer  isto 
meu  Deos?  sou  eu  só  por  ventura  peccador, 
e  todos  os  outros  são  Santos  ,  para  que  só  no 
triste  de  mim  carreíjueis  a  mão  tão  r꣒  )rosa- 
monte,  e  perdoeis  aos  mais?  Assim  me   tra- 
tais destie  que  me  comecei   a   eniender,    e 
sempre  me  attribulastes  colii  fortes  ,  c  com- 
pridas doenças  quando  era  moro,  e  parcia- 
nie  que  tiniia  já  padecido  bem,  c  assaz.  iN^JO 
passa  assiui ,  lhe  respondeu  u  Senhor,  anics 


lio  VíD\  D(j  Beato 

ain<Li  nSo  estás  exerciíado  quinto  baste,  ^© 
queres  que  se  faça  bem  cointigo  convt^ni 
seres  provado  Je  raiz  em  toflo  o  i^enero  tle 
trabalho'5.  Eiiicío  Fr.  ÍÍHniiíjue,  peço-%o->  Se- 
nhor, replicou  ,  que  não  vos  seja  penoso  de- 
clarar-me  quantas  cruzes  tenlio  ainda  por 
piíssar,  e  o  Senhor,  levanta  ,  disse ,  os  olhos 
ao  Ceo  ,  e  se  podes  contar  estas  estrelias  sem 
tonto  pud**rás  também  alcançar  o  numero 
«las  tribulações ,  que  te  estão  guardadas. 
E  assim  como  as  estrellas  ainda  que  são  mui 
grandes  todavia  parecem  pequenas  ,  assim  as 
tuas  cruzes  pareceráó  leves  aoshomensf  que 
nunca  padecerão  ,  mas  tu  as  acharás  bera 
ásperas,  e  pesadas.  Toinou  Fr.  Henrique, 
peco-vos  Senhor,  que  me  signifiqueis  a  quali- 
dade delias  ,  para  que  leuha  já  noticia  algu- 
ma quando  chegarem.  Ao  que  o  Senhor,  não 
convém  isso,  (Hsse  ,  antes  é  melhor  que  não 
saibas  parte  delias,  porque  não  esmoreças. 
Todavia  do  numero  infinito  das  que  tens  por 
padecer,  só  de  três  te  quero  advirtir.  A  pri- 
meira é,  que  atégora  tu  mesmo  te  casiijjavas 
por  tuas  mãos,  e  havendo  piedade  de  ti 
cessavas  quando  (pierias.  Mas  a^ora  lirar-te- 
hei  de  tuas  mãos ,  e  entregar-te-hei  nas 
alheias,  que  te  maltiatem  sem  te  poderes 
valer,  onde  será  foiçado  padeceres  grande 
detrimento  na   fama  c  reputarão  paia  com 


Fr.  Henrique  Suso.  t^t 

«l^iima  fifente  de  entení!imentos  erraclos;  o 
que  terás  por  mais  agro  e  duro  (le  soíier  ,  do 
que  era  para  tuas  espaldas  a  Cruz  abrolhada 
de  cravos  ,  que  na  verdade  os  trabalhos  pas- 
sados renílião-  te  glcria  e  louvor  diante  dos 
liojuens,  mas  nestes  has  de  ser  abatido,  e 
chegar  a  estado  que  te  não  tenlião  em  conta. 
A  outra  é  que  ainda  que  te  aííligiste  com 
muitas  e  terríveis  penas ,  que  por  taes  podiáo 
ternomede  mortes,  com  tudo  íicon-teainda 
por  ordem  divina  uma  condição  branda  ,  e 
que  folga  de  ser  amada;  mas  agora  nconte- 
cer-te-hn,  que  nas  mesmas  partes,  em  (jue  an- 
dares grangeando  uma  fé  verdadeira  ,  e  uma 
amisade  especial,  ahi  acharás  grandes  enga- 
nos e  mentiras,  e  serás  cruelmente  avexado, 
e  isto  por  tantas  vias  que  até  aquelles,  que 
com  fé  e  amor  puro  te  am;irem  por  have- 
rem dó  de  ti,  viráõ  a  ser  participante^  em 
tuas  mesmas  tribulações.  A.  terceira  será  que 
atégora  le  criaste  com  leite  de  peitos  como 
menino,  que  ainda  não  é desmamado  ,(jU('ro 
dizer  ,  que  nadaste  conuf  em  um  hkw  largo 
de  conlentamentoj  divinos,  c  daqui  etn  diante 
não  te  farei  mais  taes  favores  ,nntes  le  dt-ixa- 
reiseccar,  e  mirrliarde  pura  po])rP/.a  de  espi- 
rito ,  e  serás  desaniparido  ãv  Deos,  e  dos  ho- 
mens ;  e  amigoi>  eininngos  juntamente  t**  per- 
seguirão coradcshunianidade,  e para  concluir 


i5i  Vida  do  Biato 

em  pouri:^  nalavras  ,  quanto  tiveres  traçaJ» 
para  consolação  ,  e  quietação  tua  ,  tudo  te 
sairá  totaliiiçrtte  ao  rcvez.  Ficou  Fr,  Henri- 
que tão  cortado  de  medo  com  estas  palavras, 
que  t()do4remla.  E  arrenicçando-se  impeiuo- 
sainerite  ao  ciião  ,  estendeo-se  neile  eni  for- 
ma de  crucificado,  e  bradando  a  Of*<^s  com  co- 
ração triste  ,  e  voz  chorosa  pedia-lhe  por  sua 
paternal  brandura  ,  que  se  fosse  possível  não 
consentisse  que  viessem  sobre  elle  tantos 
males  ,  mas  quantio  não  pudesse  tal  ser,  era 
contente  que  se  cumprisse  nelle  sua  divina 
vontade.  E  estando  assim  uru  espaço  aperta- 
do de  angustias,  fazendo  a  mesma  petição, 
ouvio  dentro  de  si  uma  voz  que  lhe  fallava 
desta  maneira:  Tem  bom  animo,  que  eu 
serei  ct)mtigo  ,  e  farei  que  venças,  e  passes 
por  tudo  ,  honrada  e  prosperamente.  Cora 
isto  se  levantou  entregue  lodo  nas  mãos  dt 
Deos.  JMas  o  dia  seguinte  amanhecendo  tendo 
dito  Missa,  e  estando  recoliiido  na  cella  , 
e  melancolisado  com  a  imaginação  destas 
cousas,  que  liidia  presentes,  e  morto  de  frio 
pela  aspereza  do  •inverno,  qtie  fazia,  ouvio 
uma  voz  ,  que  lhe  fallava  dentro  na  alma, 
e  lhe  mandava  (jue  abrisse  a  janella,  eoilias- 
se  ,  e  notasse.  Abrio-a  elle  ,  e  poz-se  a  olhar, 
e  vio  que  vinha  um  cão  correndo  pelo  meio 
daciasía,,c  trazia  na  boca  uma  servilliA   d« 


Fb.  ÍIe^írique  Sl'50.  i5S 

panno  velha  e  rota,  com  que  fazia  granfle 
festa,  ora  cleilaiido-a  para  o  ar,  ora  pondo- 
Ihe  as  mãos  em  cinia  ,  e  rasg;inclo-a  comas 
unhas,  e  rnordendo-a  com  os  dentes.  Le- 
Tantou  o  Santo  os  olhos  ao  Ceo,  e  dando 
uni  grande  ai  !  sentio  que  dentro  na  sina 
liie  soavão  estas  palavras  :  Desla  mesma  ma- 
neira serás  tratado  án  boca  dos  tens  Frades. 
Ao  que  o  Santo  cuidando  um  pouco  comsigo, 
dizia  desta  maneira:  Pois  ai  não  pôde  ser, 
cnlrcí^a-te  nas  mãos  de  Dfíos.  E  assim  como 
aqueliepanno  sofre,  sem  fallar  palavras,  todas 
as  voltas ,  que  o  cão  lhe  d:í  ,  faze  tu  também  o 
mesmo.  Lop^o  desceo  a  baixo  ,  e  tomou  o 
panno,  guarcÍou-o  muitos  ânuos  estimando  «o 
como  cousa  de  preço  ,  e  se  alguma  hora  ten- 
tado de  impaciência  ia  para  arrebentar  em 
palavras,  ou  indignação  ,  lirava-o  fora  ,  e  pu- 
nha os  odios  neíle  para  tornar  em  si  ,  e  s« 
conhecer,  e  não  largar  palavras  contra  nin- 
guém ;  se  algumas  vezes  lhe  acontecia  Tngir 
com  o  rosto  com  desdém  aos  que  o  perse- 
guião  repreliendia-se  interiormente  com  estas 
palavras  :  Lembra-le  peccador,  que  *>  mesmo 
Seidior  teu  não  virou  aquelie  íornuísiésimo 
rosto,  nem  quando  o  injuriavão  coui  mui 
ásperas  palavras  ,  nem  quando  o  ctispiâo. 
E  logo  por  extremo  sentido  voltava  para  os 
mesmos  com  braudura  ,  e  semblante  alegre. 


l54  TiDV  rn  Beato 

Antes  disto  qunntio  ilie  acontecia  algum  tra» 
])aUK)  imaginando  conisigo,  dizia:  Ah  bom 
Deos  ,  quem  se  vira  livre  desia  Cruz.  Eappa- 
receo-lhe  em  revela'  ão  o  Menino  JESU  em 
iim  dia  da  Purificação  ,  e  depois  de  o  repre- 
hender  dÍ5se-lhe:  Inda  não  sabes  padecer 
como  convém.  Mas  eu  t'o  ensinarei ;  quando 
tens  algum  trabalho  não  áti\es  tratar  do  fira 
dclle ,  nem  procural-o  ,  como  que  então 
hajas  de  viver  descancado,  n)as  em  «juanto 
te  dura  hiiinilha-te  ,  c  apercebeste  para  rece- 
beres outro  de  novo  sem  nenhuma  alteração. 
E  isto  é  o  que  em  todo  ocaso  convém'  que 
£íças.  lias  tie  arremedar  uma  donzella,  qsie 
apanha  rosas,  que  nfio  íica  satisfeita  em  vc-.- 
liiendo  uma  d'entre  as  espirdias,  mas  colhe 
mui  ias  mais.  Digo  que  assim  o  faças  tu  tam- 
bém. Anda  cojn  o  peito  aparelhado  para  to- 
mares logo  outra  Cruz  ás  costas  tanto  que  te 
faltar  a  presente.  Entre  outros  servos  áv  Deos, 
que  profetizavao  ao  Santo  as  tiibulaçóes,  que 
lhe  haviào  de  succeder,  foi  uma  doiizclia  de 
abalisada  virtude,  a  qual  visitando-o  lhe 
disse,  que  na  festa  dos  Anjos  depois  de  Mati- 
nas fizera  oração  por  elle  muito  de  propósito, 
e  que  cm  revelarfiolhe  parecera  que  a  levarão 
a  uni  lugar,  onde  oSaiili)  estava,  t' vira  crescer 
sobre  elle  um  rosal  íirandede  larijura  e  com» 
primeuiu,  e  uiuiio  deleitoso,  cheio  de frciÇAi 


Fr.  Hesuique  Srso.  i  55 

rosas,  e  to  tias  encarnadas.  Logo  levantando 
os  olhos  vira  nascei'  o  Sol  com  admirável 
claridade,  e  sem  nenhiini  impedimento  de 
nuvens,  e  viri  estarem  pé  no  meio  de  seus 
raios  um  menino  de  singular  formosura  cm 
figura  decraciíicado,  edo mesmo  Sol  sair  un* 
raio,  que  ia  dar  no  coração  do  Santo  coni 
tanta  força  e  efíiracia  ,  que  todos  seus  mem- 
bros ,  e  todas  as  veias  se  lhe  abrasavuo.  Aqui 
o  rosal  com  sua  espessura  e  ahundancia  do 
rosas  porfiaTa  por  tomar  em  si  a  força  áo 
Sol,  e  desvial-o  do  seu  peito  ,  mas  não  fazia 
nada  ,  porque  os  raios  ardentes  penetrando 
pela  raíTia,  irlo  ferir  no  coração  do  Santo. 
Traz  isto  via  o  I^Ienino  saír-se  do  Sol  ,  e  tila 
ilizia-lhe :  Para  onde  ides  bom  Tilenino? 
Vou-me,  disse- lhe  ,  para  o  meu  amado  servo. 
E  que  quor  dizer,  amorosissimo  iMenino, 
replicava  ella  ,  aquelle  raio  do  Sol,  que  arde 
em  seu  peito  ?  Saberás,  respondeo  o  Menino, 
que  lhe  enchi  o  coração  de  tanta  luz  e  cla- 
ridade, porquj  uma  reverberação,  que  dcíla 
ha  de  sair  de  seu  peito  me  ha  de  ^'anhar,  e 
reduzir  a  meu  serviço  muitas  almas.  Nem 
ha  de  ser  parte  este  espesso  rosal ,  que  signi- 
fica um  grande  numero  de  tribulações,  que 
lhe  eslão  guardailas,  para  estorvar  (jue  sa 
effeitue  por  clle  o  que  digo  com  <:jraiide  per- 
feição ,   e  excellencia.  Como  sobre  iodas  a# 


i56  Tida  do  Eeat» 

cousas  que  servem  para  os  piincipIaTit«s  na 
virtude  seja  mais  proveitosa  de  totíjs  a  vida 
solitária  ,  pareceo  ao  S.mío  que  seria  conse- 
lho mui  acertado  nâo  sair  do  Mosteiro  por 
tempo  ds  dez  anncs,  ou  mais  ,  e  vivfr  assim 
apartado  do  mundo ,  e  de  todo  o  comnicrcio 
e  trato  das  gentes.  E  assim  em  saindo  do  re- 
feitório feohava-se  em  seu  oratório  ,  e  alii 
se  deixava  estar  sem  chegar  nunca  áporlavia, 
nem  querer  íallar  com  mulheres  ,  uem  cou- 
versar  cem  honicris,  nem  ainda  ver-ihes  o 
rosto.  Tinha  limitado  aoá  olhos  um  termo 
certo,  e  esse  bem  esireito  donde  não  haviâo 
de  passir  c<)in  a  vista,  e  era  espaço  de  cinco 
pés."  Sempre  estava  em  casa ,  nuo  saindo , 
nem  á  villa  ,  nem  aos  lugares  visinhos  ,  tra- 
tando só  de  si  naqui.lla  (pnelaçrio  solitária  , 
mas  uào  llie  valerão  tamanhas  cautelas  para 
deixar  de  ser  commetildo  no  mesmo  anno  de 
táo  fortes  presei^uiçócs,  que  todos  IhehaviíTo 
Listlma  ,  e  elie  mesmo  a  tinha  de  si.  e  |'ara 
passar  melhor  a  soidade  daquelle  oraíorio, 
em  fjue  se  linha  voluniaiiamenlc  encarcera<[o 
sem  grilhões,  como  em  uma  prisão,  ro^ou 
a  um  pintor,  que  Uie  debuxasse  pelas  paredes 
os  Padres  antigos  com  letreiros  de  algumas 
sentenças  suas  ,  e  outras  hislorias  pias  ,  <(iie 
pudessem  esperlar,  e  obrigar  a  soíriu)cnto 
luxi    espirito    atribulado,   li   nisto  ptii.iiiuo 


Fa.  Henrique  Suso»  107 

Dcos  também  qne  se  lhe  não  cumprissem 
logo  seus  dcsej':ts.  Porque  começando  o  pin- 
tor a  obra  ,  e  líào  tendo  lançado  ninis  que  o 
primeiro  rescurlio  de  carvíio  cni  algiim.as 
hiruras  dos  Padres,  adoeceo  dos  olhos  de 
nianeiraque  iiao  pôde  ir  por  diante:  e  assim 
se  despedio ,  afíirmando  que  era  forçado 
largar  a  o])ra  no  estado  ern  ([ue  estava,  até 
ronvalecer.  E  sendo  perguntado  quanto 
tempo  liavia  anisterpara  col)rar  saúdo,  e  po- 
der tornar  ao  trabalho  ?  Respondeo  ,  que  ires 
mezes.  Então  o  Santo  mandou-lhe  que  tor- 
nasse a  levantar  a  escada,  e  sobiíjdo  nella 
poz  as  [mãos  peias  imagens  ilos  Santos  ,  e 
tocando  com  ellas  os  olhos  enfermos  do  pin- 
tor disse-lhe  :Eu  te  mando  ]Hntor  em  virtude 
de  Deos  ,  e  da  santidade  destes  Padres,  que 
tornes  aqTii  d  nwnhfia  com  os  olhos  de  todo 
sãos,  e  salvos.  Quando  amanhcceo  tornou  o 
pintor  ao  Mosteiro  são,  e  alegre  dando  gra- 
ças a  Deoâ  e  ao  Santo  pela  mercê  ,  e  rc  .sti- 
tnlção  da  vista,  que  tiniia  perdi<lu  :  njas  o 
Santo  aliribuío  esle  milagre  aos  Santos  Pa- 
dres em  que  primeiro  po/  as  mãos,  e  não 
a  si.  Parecia  naquelle  tempo  que  tinha  Deos 
dado  licença  a  todos  os  demónios  ,  e  a  lodos 
os  hom.ens  para  o  peiscguirom.  As  vexnções 
que  padetco  dos  demónios  foião  innuuuTa- 
"Vwis,   porqiu   o  atormenta\à'o  de  dia  ,    e  Jo 


:58 


ID.l    DO    Íi£ATO 


noile  ,  acor(íaílo ,  e  dormindo  ,  com  Insolên- 
cia, eimporlunaçfio  írrandissiijía  ,  e  aperfavão 
com  elle  terrivcliiienie  por  modos  ásperos  , 
c  extraordinários.  Aconteceo  inna  vez  qiio 
desejou  de  comer  carne,  que  muitos  annos 
havia  nãí>  lini:ia  c<jmido,  ikiiXu  que  satisfez 
a  vontade  teve  uma  visuo,  na  qual  vio  um 
feissiino  demónio,  que  poslo  diante  delle 
referioum  verso  dos  Psalnios,que  diz:  Ainda 
estavão  com  o  comer  na  l>òca  ,  e  a  ira  de 
Deos  veio  sobre  elles.  E  ladrando  f<amente 
disse  para  os  circunstantes.  Este  Frade  é  di- 
gno da  morte,  que  eu  a^ora  Uic  darei  ,'e  acu- 
dindo-lhe  todos  e  não  consentindo  tal ,  ar- 
rancou de  uma  grande  verruma ,  e  disse  ao 
Santo:  Já  que  me  não  deixão  fazer-te  outro 
dano  ,  cu  te  atormentarei  o  corpo  com  esta 
verruma  ,  e  furandote  con)  ella  essa  l)òca , 
far-te-bei  tanto  mal,  e  causar-te-bei  tamaidiai 
«lòres,  que  igualem  o  gosto  que  te  deu  a 
carne  que  comeste.  E  logo  lhe  nielieo  a  \<;r* 
inma  pela  boca,  com  que  n'um  momei  lo  Ibc 
incliáráo  as  queixadas  ,  c  gení^ivas  ,  e  toda  a 
Lura  de  m.uieira  que  em  trcs  dias  iieiu 
carne,  nem  outra  comida  nenhuma  pôde 
levar .  r 
liquida, 


C  A  P  I  T  U  L  O  XXIII. 

De  algumas  tribiilacoc: ,  que  o  Santo  padcceé 
interioi-fiiente. 


E 


Ntre  outros  trabalhos,  que  o  Santo  teve  , 
três  ii»tcrit>i\íS  o  aííligiião  penosissimanieiUe. 
Um  destes  er;i  peiísaiiientoscleirífideiiuatle.  A 
toda  a  hora  iiic  conibatiaa  alma  uma  contínua 
imaginação,  que  secretamente  llie  dizia  ,  que 
como  podiaser,  on  se  podia  crer  íazer-se  Deos 
liouifin  ?  ajuntando  entras  blasfémias  muitas 
similhantcrí  a  esta  ,  ns  qiiaes  cjuanto  niyiso 
Sr.nto  qutria  rebater  comargunientos ,  tanto 
mvÀs  se  embaraçava.  Esta  tentarão  o  marty- 
li/ou  nove  annos  chorando  scinpie  dos  olhos, 
e  suspirando  d'ahna  a  Deos ,  e  a  todos  os 
Santos  por  soccorro  do  Ceo.  Em  ÍÍm  tanto 
que  ao  Senhor  lhe  parcceo  tempo  livrou -o 
lotiíhijenle  delia  ,e  deu-lhe  uma  L;rande  íir- 
n;e.La  de  íc  clara,  e  ahindada.  O  outro  tra- 
balho foi  UMiyJextraordinaria  tristeza  ;  qi;asi 
continuamente  o  apertava  com  tanuidio 
peso  de  melancolia  ,  que  parecia  que  trazia 
sobre  o  corarão  um  monte  inteiro.  Este  mal 
lhe  íicou  em  parte  da  ^'rancie  velieuiencia  , 
com  que  seconverteo  a  í)eos  ,  ((»ie  como  sua 
conversão ioi  repentina  eefíitacis-inia  ,  ílt  ou- 
Ihtí  daUi  uma  anciã  ,  que  por  txlreuio  o  ufa* 


l5«  Vida  do  13íato 

<;ligav3.  Oito  annos  viveo  o  Sar.to  ncstíí  tor- 
inenio.  A  terceira  atiliccâo ,  qiic  teve  ,  ft-i  mv.ti 
tentarão,  q  re  preteiiíiia  peisuailil-o  ,  queníiO 
era  possivel  salvar-se  ,  mas  que  o  cerlo  era 
que  havia  elo  ser  conuen^do  ás  pen^ts  cio  In- 
lerno  ,  que  por  mais  hoysobras,  que  fizesse, 
c  por  mais  penitencias  que  cm  si  ■txecntasse, 
uenhuLia  cousa  lhe  havia  tle  aprovrilar  para 
cheg-ir  a  ser  do  numero  doseseolhidos,  antei 
perdia  o  trabalho   e  o  tempo,  que  nelle  em- 
pregava. Estes   pensamentos,   como  afiados 
pinihíes  lhe  atravessarão  o  coração  de    dia 
e  de  noite.  Se  entrava  ia  Igreja  cu  entendia 
em  al^um  outro  acto  de  virtude,  lojro  o  com- 
batia  esta  itntaçâo,  e  apcrtava-o  n;ise^a^el• 
mente,   dizendo:    Que   te  aproveita,  dize, 
•ertir  a  Dtos  se  já  és  ir.aldito  ,  se  ja  eterra- 
luenle  não  podes  ter  rrn.cillo  ?  Acab a  já,  dti- 
xa-te  com  tempo  de  trabalhos,  qut  de  (lual- 
quer  n.aneira  que  viveres  a  sentença  de  tua 
j:erdição   está  dada.  Conhecendo  o  Santo  a 
forca  (jue  lhe  fa/ião  ,  chegava  algun:as  vezes 
a  estar  tunie^iando  assim  comsií^o:  Ai  de  n  ira 
dt?savt  nturado  ,  aonde  me  irei?   se  delioa 
lUligião  tenho  a  condenação  certa;  S(  j  er- 
severo   nesta   vida,   tamben)  mt   não  hei-il« 
salvar.  O'  Ueos  eterno,   quem  houve  nunca 
no  mundo   mais  desditoso   que  cu  ?  Outras 
irezes  íicava  como  pasmado ,  sem  fazer  mais 


Fjr,  HiLNRiQrE  Srso.  iCi 

que  ciar  rruitos  ais  arrancados  das  entranhas, 
correndo-lhe  as   lagrimas   cm  fio  pelo  rosto 
abaixo.  Algumas  vezes  liatia   nos  peitos  di- 
zendo: Que  cm  fiiu  Senh  )r  Deos  é  forçado, 
e  sem  remédio  perder>me  eu  ?  Que  miséria 
pófle  l.aTer  maior  que  esta  ?   Tarlo  vaiem 
nno   possuir  eu    ncnlunn   l)em   nesta  vida  , 
mw   na  outra  :    pobre    do  mim  ,  para  que 
uasci   no    mundo  ?  Esta  tentacilo  lhe  proce- 
deo  de  um  raedo  desordenado,    que  tomou 
por  lhe  dizei  em  ,  que  fora  recebido  no  Mos- 
teiro por  razão  de  certos  bcus  temporacs  ,  e 
que   era  peccado  de  simonia ,  quando  5C  nc- 
gocia^ào  bens  espirituaes  com  em  pregoo  de 
fazenda   temporal;  isto  lhe  ficou  assentado 
na  memoria  até  vir  a  dar  nesta  tentaçíTo.  jMas 
no  cabo  de   dez  annos  de  marlyrio,  em   to- 
dos os  quaes   não  fazia  conta    de  si,  senão 
como  de  homem  condemndo,  foi  ter  com  • 
sanlissimo  Varão  lu  bardo,  Doutorem  a  Sa- 
jjrada  Theologia,  com  cujo  conselho,  dando- 
íhe  conta  de  sua  afílicção  ficou  livre  e  quieto, 
saindo  de  um  cárcere  infernal,  cm  que  tan- 
tos annos  estivera  preso, 


x(ía  Vida  do  Beato 

CAPITULO     XXIV. 

De  coino  o  Snnto  começou  a  entender  np 
remédio ,  e  salvação  dos  próximos. 


OEndo  piissaflos  muitos  nnnos,  qite  o  Santo 
não  tratava  em  mais,  que  rm  purificar  sua 
alma,   e   \iver  em    silencio  e  soidade ,   foi 
depois  movido  por   Dcos  ,  e  obrigado  por 
meio  de  muitas  revelações  a  tomar  cuidado 
de  salvar  outras  almas.   JMas  não   tem   fim, 
nem  conto  os  grandes  trabalhos  ,   que  nesle 
serviço    de  caridade   se   lhe  offerecèrão,  e 
menos  o  tem  de  outra  parte  a  iutínidade  de 
almas,  que   ganhou    para  o  Senhor;   o  que 
tudo    foi  mostrado   uma  vez  em  revelação  a 
«ma    donzella  de  grande  virtude  ,  que  tam- 
bém   eia   sua    filha  espiritual :  estando   eni 
oração  esta  Sania   Virc^em  ,   foi   arrebatada 
em  espirito  ,  e  vu>  ao  ^anto,  que  sobre  um 
alio  monte  estava  celebrando  o  sagrado  sa- 
criíicin   da  Plissa;  e  vio  ,   que  cilavâo  pega- 
dos com   cl!e  uma  infinidade  de  homens,  e 
todos  dlfferontes  enlre  si;    dos  quaes  os  que 
€stavão  nielhor ,    e  mais  unidos  com  Dcos , 
estarão    «anibem   mais  perto    do    Santo,    e 
c^uanto  e>ta\ão  mais  ch^ígados  a  clle,  tum- 


Fr.  KEríRiQUE  Suso.  i^3 

hem  o  Senhor  os  chegava  para  si  com 
iDais  amor,  e  \ia  ao  Santo  rof;ar  por  todos 
íle  propósito  ao  Senhor,  que  tinha  nas  mãos. 
Pedio  a  Santa  Virgem  a  Deos,  que  fosse 
scrrido  clcclarar-lhc  esta  visão  ;  o  que  o  Sc- 
nhí)r  lhe  concedco ,  dizendo-lhc  assim:  Ves 
aqnelle  concurso  de  homens  sem  conto  ,  que 
estno  pegados  nelle  Pestes  saherás,  que  si- 
gnificáo  os  seus  confessados  ,  que  vivem 
entregues  a  seus  conselhos  ,  e  santa  doutri- 
na ;  e  aq>.el!e  qiie  fora  disto  com  particular 
fé,  e  boa  vontade  o  amão,  aos  quaes  todos 
me  tem  encqmmendado  com  tal  clíicacla, 
que  não  hei  de  rouseutir,  que  nenhum  dellcs 
se  aparte  de  mÍBi  jamais,  antes  farei  que 
acabem  a  vida  santa  e  bemaventuradameu- 
te  ,  e  a  elle  pagarei  largamente  com  conso- 
lações miidiíKS  o  trabalho,  que  por  esta  causa 
passar,  ou  seja  tomado  por  suas  uíãos,  ou 
negociado  por  poder  alheio.  Antes  qre  a 
santa  donzella  ,  que  na  virtude  era  sinalada 
como  temos  dito,  conhecesse'»  Fr.  Henrique 
foi  interiormenfe  movida  por  Deos,  a  ';un 
procurasse  veUo.  Kaconteceo  que  ,  estando 
um  dia  arrebatada  em  extasi,  ouvio  cm 
revelação,  que  lhe  dizião,  que  chegasse  alli, 
onde  eslava  Fr.  líenrique  ,  e  que  o  visse  E 
como  ella  respondessí»,  que  o  .in<»  p^dia  dif- 
íerenciar  ,  nem  conhecer  pelo 


l(54  Vida. 

níero  de  Frades,  que  via  junto-; ,  nuv.o  logo 
í£ue  lhe   tornavão  .\  dizer  o  seg^r lute  :  Sem 
muito  trabalho   se  pôde  conhecer  entre  lo- 
dos, po]qne  traz  ua  cabe  a   uurã  bem  fresca 
capella  de  boninas    tecida    de  rosas  brancas, 
e  encarnadas.  E   as  rosas  brancas  significào 
sua  castidade,  as  vermcliias   sua  j):iciencia, 
no  meio   de  niuilas  e  contínuas  tribularócs. 
Tu  assiiu  como  aquelle  circulo  douro,  qu^  se 
costuma   pintar  sobre  as  cabeçiis  dos  Santos, 
é   si^nal    da  bcmaventur.;nça   eíerna  ,   qva 
gozão   no  Senhor,  assim    esta   grinalda    de 
rosas  significa  muitas  e  diversas  tribufaç^ies, 
(j^ne  os  amigos  de  Deos  padecem   cm  quanto 
nesta  viila  exercitão  vaiorosameute  a  milícia 
de  seu  Oeos  ,  e  Senhor.  Passado  isto  levou 
11  m  Anjo  em  revelação  a  mesma  donzella  ao 
lugar,  onde  Fr.  Henrique  vivia,  e  logo  o  co- 
nheceu pela  capellade  rosas,  que  tirdia  posta, 
"Nestes  tempos  ,  em  que  oSaulo  cia  por  mui- 
tas maneiras  e  rigoroiamcutc   aliibulado,  a 
cousa ,    que   mais    o    contortava   e  inlerior- 
nienie  lhe  da\a  animo  para  tudo,  era    unia 
contínua  conversação    e    trato  ,  que   tinha 
com  os  Anjos.  E  uma  vei  lhe  aconteceo  que  , 
ficando  alheio  de  todos  os  sentidos  exterio- 
res,  vio,    que  o   levavao  em   espirito  a  um 
luf»ar  ,   que    estava   C(»berto    de   um  numero 
iídinito  de  Anjoi,  dos  quucs   um,   qua  lhe 


Fr.  ÍÍEKraQtiE  Suso.  i65 

iscava  mais  perto  ,  disse  para  elle  :  Estendei 
essas  rnfíos  ,  e  olhai  para  ellas.  Eslendeo  ello 
umaiiifío,  e  olliando-a  \if),  que  do  meio  delia 
lhe  saía  uiiia  formosíssima  rosa  cncarr.ada, 
ce-'eaíUi  de  íollias  muito  frescas,  a  qual  cres- 
cia tanto,  que  lhe  \inha  a  íolwiar  toda  a 
mão  até  05  dedos,  e  fazia-se  tuo  hella  e 
graciosa ,  que  em  extremo  alegrava  e  delei- 
tava os  olhos.  Virara  o  Santo  as  mSos  de 
lima  parte  u  da  outra  ,  e  de  todas  era  a 
vista  lias  rosas  dilkíitosissinia ,  e  asbini  muito 
espantado  dizia  :  Santo  mancebo  declarai- 
me,  que  quer  liizer  esta  '^isfioi^  Ao  que  o 
Anjo  respondia:  A  si«jtiificaeuo  é  Cri:7es  e 
mais  Cruzes  ,  c  outras  Cruzes  e  mais  outras 
Cruzes,  porque  Dcos  qiiCr  que  passeis,  e 
isto  se  dá  a  entender  nas  duas  ro:5as  ,  que 
Icnties  nas  mãos  ,  e  nas  outras  duas  , 
qne  também  vos  cobrem  es  pés.  Suspirou  o 
Santo  ,  e  tlisse:  Camorosissinn?  Deus  ,  épos* 
vel  ,  que  é  tão  penosa  a  tribnlarào  para  os 
iif)niens<  e  toda vi;i  lhe  pnem  tanta  íormosu- 
la  na  almai^  i^âo  ha  duvida  senão  que  é 
is^o  uma  notável  dispensarão,  e  mertè  Vijssa 
dií^na  lie  ser  reconhecida  com  espanto. 


l66  ViDi  DO  Deito 

CAPITULO    XXV. 

De  muitos  trabalhos ,  que  n  Santo  Fr»  Henri^ 
que  padccjo. 

V^Hegou  iim   dia  Fr.  Henrique  a  nmn  Vil- 
Ifita  ,  não  longe  da  qual  estava  um  Crucifixo 
de  ma:!eira  posto  em  uma  pequena  Ermid.i, 
cjue   05   moradores    lhe     tinhão     edificado  , 
como  é   costume  em  muitas  lerras  ,   c  liavia 
lama  ,  que  se  fazião   alli    muilos  mil.ij^res; 
pelo  que  a  gente  devota  trazia  a   otíerecer 
grand»^  copia  de  cera  lavrada  em  figuras  ,   e 
èm   pão,    que  pondiiravâo,  e  deixa  vão   em 
louvor  de  Ocos.  Chegando   o  Santo  ao  Cru- 
cifixo poz-se  de  joellios,  e  esleve  um  espaço 
fazendo   oração  ,  e  foi -se   com   seu   con^pa- 
nheiro   á   pousada;  e    esteve  presente    uma 
menina  de  sele  annos,  que   o  vio  ,   e  notou. 
A  noite  seguiiite  derão    ladrões   na  Einiida, 
€  q«iebrand<i   as  fechaduras  roubarão  a  cera 
toda.    Quantlo  amaubeceo  eiicbeo-sc  todo  o 
lugar  de  alvoroço,    e  chegou  a  nova  do  suc- 
cesso    a  vm    homem    honrado ,   que    linha 
cuidado  do   Crucifixo ,    o   qual    começando 
loj^o  a  fazer  intjairição  soiíie   o  autor  do   sa- 
crilégio, acfidi{>a  moca,  que  temos  dito,    e 
afiiiaiou  j  que  cila  o  conhecia  ,  e  sendo  aper- 


Fr.  Henrique  Suso.^  167 

ta  (la  qut  dissesse  o  nome  ,  deu  os  indícios  de 
como  ro  dia  atiaz  vira  alli  a  Fr.  Henrique 
estar  fazendo  oração  já  muito  tarde,  e  dahi 
se  recoiiicra  para  o  lugar.  A  esta  infoimaçáo 
da  menina  deu  o  bom  visir.ho  credito  tão 
ligeiramente  como  se  íòra  verdadeira  ,  e  de 
maneira  esleiídco  e  publicou  a  mentira, 
que  andava  divulgada  por  \nda  a  Yilla  ,  e  os 
mais  linlião  aO  Santo  por  culpado  em  ta- 
manha maldade.  Entre  tanto  tndo  era  lançar 
jnizos  sobre  que  movle  llie  díuião,  e  com 
que  género  de  tornienlos  o  tirariíTo  do  mun- 
do, como  a  homem  aboíninavcl.  JMas  tanto 
que  o  Santo  teve  noticia  do  que  passava  , 
temeo  grandemente,  sem  en)bargo,  que 
conliecia  sua  iunorencia  ,  e  com  inn  pioftm- 
do  suspiro  do  coração  disse  a  Deos:  Pois,  Se- 
nhor, é  jorçado  que  eu  padeça  ,  tutlo  so- 
frera levemeiíte  ,  e  de  b(ui  voiiiade,  se  fô- 
reis servido  dar-ujc  tal  sorte  de  trabalhos, 
que  me  não  tocárno  na  honra  j  masvejc^j 
Senhor,  que  os  que  pennlltjs,  que  me  suc- 
cedáo  são  lacs  ,  que  de  todo  me  desacrcdi- 
tão  ;  e  estes  ^ão  os  que  eu  síMo  r";i!n.a. 
Com  este  meilo  dclxou-se  ficar  no  higar  alé 
se  apaziguar  o  povo  ,  e  o  nunim.  Kuk  outra 
Cidade  aconteceo  ao  Santo  outra  cousa 
quasi  símilhante  a  esla  ,  com  que  sua  fama 
íoi  mal   tratada  áii  bòea  dtí  muitos  ,  uíio  bò 


l6o  VlD\  DO   Be.vto 

na  mesma  terra,  mas  por  todo  seu  distrlcto, 
E  toi  o  negocio  asshvi  :  ííavla    naquella    Ci- 
dade  um  Mosteiro,  em  que  estava  um  Cru- 
cifixo de   mármore  da  mesma  estatura ,  se- 
gundo se  dizia  ,   de  que   foi  Christo  nosso 
Senhor.  Aconteceo  que   uma  Quaresma   se 
vio  ,  que  tinha  a  imagem  sangue  íVesco    em 
lucrar   da   chas^a  •.'•o  lado.    K  correndo   muita 
gente    a   ver    o  milagre  ,    a(  udio  também  o 
Santo    Fr.   Henrique,    e    vendo    o    sangue, 
chegou-se  de  mais  perto  ,  e  tomou-o  n'um 
dedo  á  vista  de  todos  os  que  cstaváo  preíien- 
tes.  Ajuntoíi-se  logo  sobre  elle   um  numero 
infinito  de  povo  ,    e  constrangeráo-no  a   de- 
clarar publicamente  o  que  "víra  e   tocara  ,    o 
que  o  Santo  fez  contando   simplesmente   e 
na  verdade   o  que  passara,  não   se  resolven- 
do em  nada  ,  nem  determinando  se  era  aquii- 
lo  niysterio  do  Ceo  ,  ou  obra   da  terra,   mas 
deixando  a   determinara  )   disso  para  outro 
juizo,    n'um   momento   se  publicou  o   caso 
por  toda  a  terra  ,  e  cada  um  acc.escentava  o 
que  lhe  vinha  á  vontade,    e  chegou   a  cousa 
a  termos  ,  (juc  affuinavão    que   o    Santo  se 
picara  no  dedo  ,  e  puzera  o  sangue,  que  lhe 
saíra,  na  imagem,  para  que  se  cuidasse  que 
manara  delia   milagrosamente  ,    e    que  não 
procurara  aqtielle   ajuntamento    do  povo  a 
outro  íim,  seuão  paru  fazer  muito  dinheiro, 


Fiu  Kri^RraTTE  Srso.  iCg 

e  fartar  sua  coJ3Íca.  Esle  gcnero  de  praga 
corria  do  Santo  em  outros  lugares,  e  andava 
nas  linguas  de  todos.  Mas  lanto  que  chegou 
ás  oreluas  dos  moradores  da  Cidade^  foi-ihe 
necessário  saír-se  delia  íogindo.  E  conitudo 
ainda  o  forfio  seguindo  com  deíermi»jacào  d« 
o  matarem ,  se  senão  acolhera  ;  mas  como 
e»ca pou  ,  fizerào  promessas  de  muito  dinhei- 
ro a  que'm  quer  í|ue  liro  desse  ás  n»àos  vi- 
vo ,  ou  mortOj  Muitas  ontias  faL.idades  a 
esto  modo  se  assacavâo  a  Fr.  Henrique; 
aonde  f(uer  que  ehegavão  erào  tidas  por 
verdadeiías  ,  do  ({ue  nasceo  ter-se  poi'  mal- 
dito, e  abominável  seu  nome  entre  muita 
gente  ,  e  hun  aien;-se  a  cada  passo  muitos 
jui/os  temerários,  e  cheios  de  n-aldade  sn- 
l)re  sua  vida,  e  obras.  Algumas  vezes  aclian- 
<Io-se  presentes  homens  ujais  atlenlados  ,  o 
que  bem  coidiecião  o  Santo  ,  acuíháo  por 
sua  innocencia.  Mas  crão  rebatidos  c(  ni 
tanta  forra  de  razões  ,  e  porfias,  que  lhes 
era  forçaílo  calar-se,  esofier  as  iníauii.KS  , 
que  do  Santo  se  dizião.  Vendo  esta  tão  des- 
arrazoada vexarão  uma  honrada  matrona 
daqueila  Cidade,  foi-se  ao  aílhgido  Santo, 
o  aconselhou-o ,  que  tomasse  certidões  dos 
governadores  da  Cidade  sclhulas  com  o  sello 
público  ,  que  servissem  de  testemunho  do 
sua  iuiioctiicia  quando  se  aehabse  em  ouir.:íJ 


I^o  Vida.  do  Beato 

terras  ,  principalmente  portfue  os  mais  dos 
homens  honrados  delia  o  tinlião  por  inno- 
cente  da  culpa  ,  que  se  lhes  dava  ,  mas  elie 
respondeo-lhe  nesti  íórma  :  Se  Deos  fora 
servido  que  só  esta  Cruz  me  opprimira  , 
íacil  cousa  fora  valcr-me  desse  remédio , 
mas  vejo  cm\x  dia  tantos  males  similhanles 
a  este  sobre  mim,  que  entendo  que  me 
convém  deixar  tudo  a  Deos,  c  níío  fazer 
força,  nem  porfiar  em  contrario.  Aconteceo 
que  foi  uma  vez  a  Allemanha  a  Raixa  a  um 
Capitulo  ,  qne  se  fazia  ,  e  já  lá  lhe  estava  ar- 
mada d'antemão  a  perseguição;  porque dous 
Keligioios  dos  principaes  da  sua  Ordem  crão 
idos  ao  mesmo  Capitulo  mui  apostados  a  lhe 
fazerem  todo  o  mal,  que  pudessem:  foi  o 
Santo  mandado  apparecer  em  juizo  ,  e  veio  a 
ellc  cheio  de  tremor,  emedo,  e  entre  ou- 
tras muilas  culpas ,  que  lhe  ílerão,  foi  ac- 
cusado  por  falsa  inforniaçáo  de  seus  emulos, 
que  nos  livros,  que  Compunha,  misturava  he- 
regias,  com  qne  se  viria  a  perdera  pureza  da 
Fe  por  toda  aquella  terra  ,  por  isso  o  re- 
preenderão os  Padres  Capitulares  aspera- 
mente com  aineai;as  de  maiores  castigos, 
sem  emhiirgo  que  diante  de  Deos,e  dos 
luuncns  estava  livro  de  tal  culpa.  E  comtudo 
uào  se  deu  o  Senhor  por  satisfeito  era  per- 
miliir  ,  que  fosse  esta  Gruzsingela  ,  antes  lhe 


Fr.  Henrique  Stso.  171 

aggravou  o  mal  atormenlando-o  com  unias 
crucls  fehrcs,  e  sobre  ellas  com  unia  peri- 
gosa posteiua,  que  se  llie  íez  nau  entranhas 
íifío  loiíj^e  lio  coração;  e  iltsíes  traLalhos  , 
que  assim  de  dentro,  como  de  ícia  o  an» 
gustiavão,  chegou  a  estado,  que  tcdcs  des- 
confiavão  do  sua  vida.  E  seu  ccmpauheiío  o 
■vigiava  esperando  a  cada  passo  o  termo  em 
que  havia  de  espirar.  Assim  estava  o  Santo 
Vr.  líenrique  em  terra  estranha  ,  e  em  Wos- 
teiío  alheio  lançado  isa  cama  ,  e  desampa- 
rado de  toda  a  consolação ,  quando  uma 
noite  não  podendo  loinar  sono  com  a  forca 
da  dor,  conif^çou  a  enlrar  em  contas  com 
Deos,  e  f.illar-Ilhe  assim  :  Ah  Justissimo  Dcçs, 
pois  vós,  Senhor,  houvestes  por  liem  de  alor- 
r.ieniar  com  ifio  intohíravel  dor  este  coipo 
consiimniido  de  tral)alhos  ,  e  l"erir-me  no  iii- 
limo  tPííhna  com  uma  vergonlía  ,  e  aírorJoi 
grandíssima  de  maneira  ,  que  não  ha  parte 
cm  mim,  que  esteja  livre  de  magoas,  nem 
interior,  nem  exteriormente:  quando  che- 
garei a  ver  nina  liora ,  Piedosíssimo  Pai, 
cm  que  me  deis  por  bem  castigado i^  quando 
chci^inei  a  ver  tempo,  cm  qne  levanteis  a 
jjiito  de  me  aííli^Mr  ?  Acabadas  esias  palavras, 
conieçou  ;i  meditar  as  angustias  iiortaes, 
que  (^iirJslo  nosso  Sahacor  j  ;iyhou  i;o  n.enttí 
Uiivete,   c   entre    a  nitditaçí  o  passcu-se  do 


1-2  YíDl    DO    Br.VTO 

leito  para  Tima  cadeira,  que  tinlia  perto,  e 
?cnton-se  nclla ,  porque  da  grsiidc  dur  ,  que 
a  postema  lhe  causava  ,  nào  podia  jazer,  lis- 
tando assim  assentado  ecarreirado  de  dòrís, 
e  miséria  ,  pareceo-lhe  que  via  em  espirito 
um  grande  numero  da  Anjos  ,  q!io  Ilic  en- 
íravão  po!a  ceila  a  consolal-o,  c  cantaviío 
com  agradáveis  vozes  uns  versos  celesíiaes  , 
cuja  melodia  lhe  cncliia  as  oieUias  de  ta- 
manha deleitarão  ,  que  de  todo  íicava  ou- 
tro. Finalmente  continuando  os  Anjos  com 
sua  musica,  e  o  Santo  em  sou  assento  entre 
o  martyrio  da  íebrc  ,  e  das  dores,  um  dos 
Anjos  se  clicgou  a  elle,  e  tirando-lhe  bran- 
damente' do  hraj^o,  porque  razão,  di*=se , 
estais  meu  irmão  tão  calado?  Porque  não 
cantais  juntamente  comnosco  ?  Pois  h«m 
sei  eu  que  sois  vós  bom  rncstre  de  musicas 
do  Ceo.  A  isto  respondeo  o  Santo  acompa- 
nhando o  que  diziíi  com  magoa  dos  suspiros 
snídos  da  alma.  Não  vedes  vós,  disse,  ou 
não  notais,  o  estado  de  minha  viíla?  Qual 
foi  o  homem  que  se  pôde  alguma  hora  ale- 
f^rar  estando  cm  braro^  com  a  morte  ?  E 
possivel  que  em  tal  ccmjuncção  me  convi- 
dais vós  para  cantar?  O  que  eu  cantarei  se- 
rão tristezas,  e  magoas.  Porque  se  alguma 
hora  em  tempos  pasmados  cantei  com  ale- 
gria, tudo  isso  é  hoje  acabado,  que  já  agora 


Fn.  IIs'^RrQUE  Soso.  1*3 

•ono  cspei^o  mais  que  a  hora  da  morte.  Dis- 
Hi-lhe  então  o  Anjo  com  grande  alegria: 
'iVnde  animo,  e  coração  varonil,  que  ne- 
nlinna  cousa  dessas  vos  ha  de  acontecer. 
Antes  vos  certifico,  e  crêde-nie,  que  tal 
çmcao  haveis  de  entoar  ainda  em  vossos 
dias,  que  a  Deos  lodo  podei-oso  ha  de  dar 
bonn  ,  e  a  muitos  altrihulados  consolação. 
Logo  se  lhe  abrirão  os  olhos  acordando,  e 
comei o'i  a  chorar  com  2;randc  abundância 
í'e  lagrimas,  c  na  mesma  hora  lhe  arreben- 
tou  a  postcma ,  e  cobrou  perfeita  saúde. 
Tanto  que  o  Santo  tornou  para  o  seu  Mos- 
t(.'iro,  foi  visitado  de  um  varão  abalis;ido  no 
serviço  de  Deos,  o  qual  lhe  disse-o  seguinte  : 
Ainda,  Senhor,  que  nesta  votsa  jornada  tí- 
nhamos no  meio  de  andjos  mais  de  cem  nú- 
Ihas  de  distancia  ,  com  tudo  cá  vi  ,  e  tive 
presente  a  Cruz,  que  lá  padecestes ;  porque 
haveis  de  saber  ,  que  eu  vi  um  dia  com  os 
olhos  d'alma  o  grão  Juiz  Soberano  as.ve::- 
tado  em  seu  throno,  e  com  sua  licença  se 
soltarão  (h)us  demónios  ,  que  vos  atormen- 
tarão; e  o  meio,  que  tomarão  ,  foi  o  daquel- 
les  dous  Prelados,  que  forão  auclores  da 
persegfiiçâo  que  padecestes.  Mas  eu  dav.; 
vozes  ao  SeiTlior  ,  e  dizia -lhe:  Como  pode 
ser,  Deos  núsericordioíissimo  ,  que  foírdis 
ser  túo  mal    iralado  uuí  ami:ro   vcsso?  lles- 


1^4  YlDA    DO    BeàT© 

pondia-me  o  Senhor  :  Eii  o  ter.ho  escnlliiJc 
para  mim  ,  paru  que  peio  ir, tio  cias  tfibulí»- 
ções  se  pareça  e  coníórnie  com  moii  Uni- 
génito Fiiho;  mas  todavia  a  inteireza  cie  mi- 
nha justiça  está  pedinchj ,  que  se  vingue  li- 
manha  injuria  ,  como  recejjeo  ,  com*  a  m<J!ie 
<l()s  dous,  cpic  lha  negociarão.  E  assim  suc- 
cedeo  cm  effeiU)  pouco  tempo  depois  j  c  íoi 
cousa  notória  ,  e  sabida  de  muitos. 

CAPITULO     XXVÍ. 

De  um  gravide  desgosto ,  que  o  Santo  tet'{  por 
cansa  de  unia  Jnnãa  sua. 


X  hiha  o  Santo  uma  Irmãa  Freira,  que  sendo 
clle  aijsente  se  começou  a  dar  a  c-orj\ersa- 
íH'»es  ,  e  companhias  prejudiciaes  de  homens  , 
c  saindo  um  dia  fcJra  do  Mosteiro  (o  que  não 
era  deicso  naquelle  tempo)  em  cSmpanhia 
de  certos  lu^mtíns  veio  a  perder-se.  E  como 
os  peceados  não  pavão  tão  de  pressa  ,  chegou 
a  sua  desaventura  a  estado  que  fugio  do  Mos- 
teiro ,  e  íoi-se  pelo  mundo  sem  que  o  irmão 
soubiisse  parte  áAV\.  Quando  o  Santo  tor- 
nou ao  Convento  andava  já  o  negocio  publi- 
co ,  e  corria  a  nova  por  toda  a  terra  ,  nao 
sem  muiiuuracão.   Vcio-5j  lo 40  a  eUc  ceilo 


Fr.  IIexrioue  Suso.  17J 

lomem,    e  contou-llie    o   que    passava;    o 
'ípe  o  Santo  ouvindo  ,  ricoii  pasmado.  E  en- 
íiiquecendo-llie  o  coração  com  a  forca    da 
dcr  andavci  como  homem  tolo,  e  qvie  nercicra 
toíos  os  sentidos.  Perguntando  onde  acharia 
a  p»rdida  irmãa?  ninguém   lhe   sahia  dizer 
cousi  certa.  Eniáo  fazendo  discursos  fa liava 
só  comsiga,  e  dizia  :  Eisaqiiihe  entrada  nova 
triholacâo  ,  mas  não  haja  desmaiar.  Ksforca- 
te     faze  diligencia  ,  e  ve  se  por   ajgnma  via 
pó('es  remediar  esta  alma  perdida,  e  desavcn- 
iiir.ida.     Ofíerece    a    Deos   piedosissimo    a 
queira,  que   esle  caso   traz  á  tua  honra  ,    o 
ciédio.   Ponha-se  de  parte  todo   o  pejo  da 
humaaidade  ,  ariisca-te   a  entrar  n'um  pro- 
fundo 'ago  a  ver  se  podes  tirar  deile  essa  mi- 
serável. Quando  passava  polo  Coro  por  nieio 
dos  Fraces  perdia  as  cores,  esfriava,  arrepia- 
va-se  toi'o  ,  e  tremia.  Não  se  atrevia  ajuntar 
com  ninguém,  porque  todos  se  pejavão  deilc; 
os  que  d'antes  erão   senis    companheiros  e  íd- 
lu/iiares,  tm  o  vendo  fogião.  Se  (|uciia  acon- 
selhar-se  com  os  amigos,  viravão-ilic?  ò  rosto, 
e  nfio  o  linlifio  em  conta.  No  meio  deste  tra- 
balho lemhravase  doSanio  Job,  e  (hzia:  Pois 
todo  o  mundo  me  desampara  ,  buja  por  bein 
de  me  acudir  o  bcni^^iissimo  Deos  com   seu 
diviíjo  lemedio.  F.  não  deixava  <le  pcrj^untar, 
onde  quer  que  se  achava,  |  o:  onde  iria.  jara 


I  '-5  Tida  do  Beat« 


Talcr  mais  de  pressa  á  desa  ventura  tia  irniãa- 
Em  fim  dando-llie  novas  de  certo  lugar  ont^ 
a  poderia  achar,  logo  se  poz  ao  caniiidio.  F/a 
isto  em  dia  da  Virgem  Santa  lí^nez,  e  f./»a 
grande  íVio;  e  na  mesma  noite  tinha  pas3»í'«^ 
ll.^  rijo  chuveiro,  com  qucifjo  cheios  iod>s  os 
ribeiros.  Querendo  o  Santo  passar  de  salf)  nm 
pequeno  regato,  era  tal  sua  fraqueza,  qnr  caio 
no  meio  dclle  ,  e  ficou  mergulhado.  Siío-se 
todavia  o  melhor  que  pôde.  E  coíuo  o  sevti- 
iiiento,  que  lhe  cantivaa  alma,  era  excessvo, 
não  lhe  deu  muito  peio  que  só  fazia  no  rolo 
corpo.  Caminhando  adiante  mostrará >- lhe 
lima  casa,  onde  a  irmãa  eslava.  Entrou  t)Santo 
pela  porta  todo  trespassado  de  dor,  e  :chou-a 
dentro  assentada  ,  e  quando  a  vic  ,  ca/o 
so]);e  iim  banco  onde  ella  eslava,  e  por 
duas  vezes  ficou  desmaiado.  Mas  fornarido 
em  si  arrebentou  em  piedosas  lagritias  e  co- 
meçou a  encher  o  ar  de  gritos  equiíixas  lasti- 
mosas ,  c  batendo  as  mãos  sobre  a  cabeça, 
e  dizia:  Deos  Deos  meu,  como  me  desampa- 
rastes assim  ?  logo  vira^ão-se-lhc  os  olhos,  a 
lingoa  pcgava-sc-lhe  no  ceo  da  boca,  aper- 
tavag-sc-ihe  as  mãos,  e  ficava  assim  um  es- 
paço desamparado  de  lodo  uso  dos  scntiílos. 
tonando  tornou  outra  vez  em  acor<lo  abia- 
cou-se  rom  a  irmãa,  e  dizia:  Ai  ai  fiH^a  í^^i- 
iilía  ,  ai  ai  irmãa  miiiba  j   a  que  estado    Uto 


Fk.  FIenriotie  Slmo;  17 j 

miserável  tendes  chesfado  !  Ah  Snn'n  í^nez 
Yiro*;iTi  Santíssima  quíTo  triste  ,  e  (\v:io  pe- 
noso íiia  foi  este  vosso  pi  a  uÁm  !  ISo  cabo 
de  todas  e^íns  palavras  tornava  a  cair  (les- 
inaiado  ,  e  fora  de  si  :  o  ^lv.e  veiulo  a  poljre 
irmãa  lancou-se-lhe  aos  pé.í  derramando  de 
seus  oihos  rios  de  lagrimas,  e  dizendo  mui- 
tas lastimas  ,  faliava  com  elle  desta  manei- 
•ra:  O'  senhor  ,  c  pai  meu  ,  mal  aventurado 
íoi  o  dia,  em  que  eii  nafci  no  míirido  ,  pois 
por  uma  parte  tenho  perdido  a  Deos  ,  e  por 
outra  %os  causei  tanto  mal  ,  e  tantos  tor- 
mentos. Com  razão  mereço  viver  sempre  eni 
trabalhos.  Coin  razão  me  devem  perpetua- 
mente cair  as  laces  com  vergonha  ,  e  deifa- 
zer-se«me  o  coração  em  gemidos.  O'  íidelis- 
sinio  remíílor  de  luinha  triste  alma.  Ainda 
que  não  sou  digna  de  me  tallardes,  nem  res- 
ponderdes, peço  vos  todavia  que  haja  memo- 
ria nesse  piedoso  coração  ,  que  em  nenhuma 
cousa  podeis  melhor  cumprir  com  a  palavra 
que  a  Der<s  tenrlcs  d  ida  ,  nem  imital-o  ukjís 
ao  vivo,  que  reíhizindo  a  seu  servirei  unui 
peccadora  miserável  ,  e  al>atida  ,  e  dando 
a  mão  a  uma  alma  oppriuiida  de  gravissimo 
peso  ;  que  este  é  o  íim  para  que  Deos  vos 
(leu  condição  piedosa  aconipitnliada  íle  proni- 
ptidão  ,  e  brandura  para  com  lodos  os  atlii- 
gidos.  Pois  como  ha  de  haver  no  mundo  qj\e 


l^r^  Vida  do  Deito 

só  pnia  a  triste  de  mim  peccadora  ,  de  todos 
desprezada   e  aoorrecida  haveis  de  serrar  a$ 
entranhas   de   niisciicordia  ?  A  mim  qT)v'  já 
diante  de  Deos  e  dos  homens    estou  perdida 
depois  que  minha  maldade  me  fez  cair  em  des- 
graça do  todos?  Mas  lai  sois  vós  que  aquella, 
que  todos  dcsprezão,  e  a  que    todos  dão  de 
mão  ,  essa  buscais  :  e  aquella  de  quem  todos 
com  muita  razfio  se  envorgonhfio  ,  e  pejão  , 
essa    chamais  ,  nHo  sem  grande  ahaiimei.to 
de  vossa   autoridade,  e   magoa  deste  cora- 
ção.  Abraçada  a  esses  pés  vos   peco  sénior 
cui:i  um  sentimento   eteino  de  minha  alma, 
que  por  honra  ^le  Deos  perdoeis  a  esta  desdi- 
tosa e^te  homicídio  que  comir.elli  (ah  mofina 
mulher  )  contra  vós  ,  e  contra   n)iu!)a  ahna. 
E  lembre-vos  que  ainda  que  lui  occasiâo  de 
receberdes  psrJa    na  honra  ,  e  no  gosto   da 
\ida  temporal,  haveis  de  ter  no  Geo  por  este 
respeito  uma  particular  gloria  ,  e  contenta- 
mento eterno.  Havei  lastima  da  mais   abatida 
e   miserável  j  i  ccadjra    d«)  mundo  ;  (jue  tu 
mesma  me  lancei  na  rede  para  padecer  eter- 
namente no  corpo  e  na  alma   o  mal,  que  te- 
nho piesenle  ,  e  ser  abominável  ,  e  odiosa 
tanto  a  mim  ,   como  a  «piantns  me  conhere- 
lem  :   tomai-me  tie  hoje    em  tliante   a'  vossa 
conta  para  remédio  desta  vida  ,  c  da  or.tra  , 
e  não  vos   uè  pena  cuidar  que  quero  lorcar 


ao  eslaclo  nonrailo  de  irniíía  vossa  ,  que  an- 
tei  iiLMíbnrria  cousa  desejo  mais  ,   que   perder 
para  toda  a  vida  este  nome,  que  não  mereço, 
O  que  só  queria  ^le  que  de  mercê  me  soííVes- 
seis  ter  Ingar  diante  de  vós  de  irmáa  perdida, 
e  de  ilireilo  neuhiJUi  outro  se  não  de  esciava 
achada  de  novo  ,  e  c()brada  á  custa  de  muito 
toriiiento  vo^so.   E  esta  determinação  tenho 
tão  asàeiilada  comigo  ,   que  se  houver  quem 
inc  chan;e  vossa  irmàa  ,   ou  por  essa    queira 
íazer-me  alguma  boa  ebra  ,  será  a  cousa  que 
na    ahna    mais   sentirei.   Anlcs    terei  dó    de 
vós  ,  se  estiverdes  em  parte  onde  vos  eu  pos- 
sa apparecer  diante  dos  olhos,  e  hajais  de  so- 
frer tamanha  afronta  como  é   !iatuialu»ernc  , 
e    com    razão    para  todo  o  homem  ,  uma  tal 
irmàa,  e  como  eu  creio  ,    que  o  é  para  vós, 
seí(undo   conheço   de  vossa  ctjndicHo.   Nem 
quero,    que    em    nenhum     tempo     tenhais 
comigo   trr.to,    nem  conversação  j   que  bem 
enlcndo  que  não  podem  deixar  de  se  assíun- 
brar  comigo  vossas  orelhas,  e  quel>rarLn:  se- 
vos 03  olhos  com  vergonha.  Cousas  são  estas 
para  mim    muito    de  sentir,   idas  ainda  que 
scjão  duras  e  intoleráveis  ,  com  ludt)  piíssarei 
por  todas  de  boa  vontadvi,  e  oííerccel-as-bei 
ao  poderoso  Dcos  em  desconto   do  a;iontoso 
peccado  com  que  o  ofíeudi:    para  que  assim 
movendcj-vos  vós  a  pi^vladc  Ucniim  por  quem 


i8o  YiDk  do!3j-:\to 

sois,  liajais  por  liem  de  satisfazer   fielniento 
por  minha   culpa  ,   e  torn;ir-me   a    pc.r  em 
graça    com    Dco-s.  A    estas    lamentações,   e 
pranto    acudio  o  Santo  Fr.  Henrique  ,   livre 
já  (Io  acciclente,  e  resnonrleo  desla  niancira  : 
Eia  sli-s  ardentes   lai^riniHS  arrebentai  já  deste 
coração    íertilissimo  delias  ,   que  de  dòr,  e 
magoas  não  lhe  cabe  lá  em  si.    Ai   de   mim 
íiliia  minha,  único  ailivio  desta  alnia   dcsd'o 
principio  de    minha    vida.    Deixai    os    pós, 
chcgai-vos  a  mim,  e  a  este  peito  já  dcfuiicto 
<le  vosso    desaventurado   irn^.ào.    Dcixai-me 
banhar  com  as  desconsoladas  e   sancionas  la- 
j^rinias  de    meus  olhos  o  rosto  de  minha  ir- 
luàa.  Ueixai-me  chorar,   e  prr.ntear   núnha 
fjllia  morta.  O'  que  pequena   dor  é  padecer 
r.iil  mortes  no    corpo.    3Ias  que  grande  ,   e 
deshumana  dòr  é  estragar  a  alma  ,  e  perder 
a  honra  !  O'  magoa  !  O'   desavcntura  de  n!cu 
atirihidado  coração!  Ai  de  mim  bom  Deos, 
que  é  isto  que  me  aconlec(»o?  Cbo;^^ai-vos  a 
luiui  fdha  minha,  que  pois  achei  ,  e  cobrei 
4idnha  liiha  ,  quero  já  enxugar    as  lagrin^as, 
e  onero  hoje  admitiir-vos  com  a  mesma  bran- 
dura ,  e  piedade  com  que  eu  pobre  pcccador 
desejo  ser  recebido  no  den adeiro  passo  de 
minha  vida,    c  coiu  protnpii*íSÍma  vontcde 
"vns  largarei  o   merc(  Imento  do  nojo,  e  an- 
ciãs mortaes  desta  alma  ,  e  de   todo  o    ou- 


Fr.Heniviqce  Suso.  iSr 

Iro  mal  ,  que  me  cnn^n^tcs  ,  e  de  forra  liá- 
veis de  causar  já  até  o  fim  de  meus  d  as.  E 
não  duvideis  que  vos  hei  de  ajudar  sempre  , 
satisnizendo  por  vossa  culpa  quanto  puder  , 
assim  diante  de  Deos  ,  como  dos  Lomens. 
Alguns  homens,  que  acaso  se  achárào  pie- 
sentes  a  este  acto,  vendo  os  prantos  d'anihas 
as  parles  ,  e  aquelles  eíítiios  de  tristeza  , 
forfío  ião  movidos  de  com.paixão  ,  que  ne- 
nliiim  podia  ler  as  lagiimas.  Desta  maneira 
tkhrandou  o  Sinito  aquelle  coraí^ào  ,  pri- 
meiro com  os  eíTeitus  íie  sentimento,  e  lo^o 
coiu  a  consolação  amorosa,  e  ficou  tal,  (jue 
TIO  mesmo  ponto  se  ofíercceo  prompíamente 
a  tornar  ao  ha])ilo  penitente  dalleíigião, 
que  linha  deixado.  E  foi  o  Senhor  servido, 
que  tanto  que  esta  ovcllia  perdiíla  tornou 
para  o  rehanho  de  Chrislo  á  custa  de  tanta 
vergonha  e  ahatimento,  e  Irahalho  do  San- 
to ,  foi  recchida  n'oulro  I>Iosteiro  melhor 
accomniodado  c  mais  a  seu  propósito.  Onde 
cresceo  depois  rlj  maneira  cui  fervor,  c  ohras 
do  serviço  de  IJeos  ,  c  procedeo  na  guarda 
de  sua  ahna  tão  santa  c  acautclr.(^ín:ente , 
armando-se  de  muitas  virtudes  ale  a  ujorle, 
que  seu  irmão  se  houve  por  largamente  satis- 
feito ,e  contente  dos  enfadamentos,  e  tra- 
ballios,  que  diante  de  Deos  ,  e  dos  liomers 
passou    por  sua   causa.  Antes  vendo  que    o 


182  Vida  do  Blato 

qne  por  ella  padecera  lhe  tinha  rendido 
tanto  ,  sentia  j^iandc  gosto  ,  e  aU;grava-se 
ruuito  ,  e  considerava  os  occultos  juizos  de 
Deos,  e  como  aos  que  o  aiiião  tudo  lhes 
torna  em  hem.  Da.jni  levantava  os  ollios  ao 
Ceo  ,  e  dava- lhe  iníinit;is  gratas  ,  c  toda  sua 
aliijâ  se  derretia  em  louvores  Divinos. 

CAPÍTULO     XXVíl. 

De  um  grande  perigo  j  cjiie  Fr,  Henrique  jws^ 
soíi  por  causa  de  um  hradê  seu  conipankti' 
ro, 

J  Arlindo  o  Santo  uni  dia  para  fora,  foi-lhe 
dado  por  companheiro  um^i*'rade  lei^i),  que 
lo5^'o  acceilou  de  má  voulade,  porque  era 
liomem  de  juizo  pouco  assentado:  leudjra- 
vao-lhe  quantos  desgostos  lhe  tiidiào  succe- 
dido  com  outros  companheiros,  que  sem 
respeito  se  lhe  tinhfio  dcsconjposlo;  e  toda- 
via sogeitando-se  por  obediência  á  vontade 
alheia  ,  levou-o  comsigo.  Aconteceo  ciiega- 
rcm  antes  de  comer  a  uma  aldèa ,  aonde 
corria  grande  numero  de  gente  por  razào  de 
de  certa  feira  ,  que  alli  se  fazia.  Vinha  o  lei- 
go nu)iliado  da  chuva  ,  que  troiixcrào  pcKi 
inanhàa;  pelo  que  mettendu-se  em  uiua  ca- 
sa ciicgou-i.c   ao   foi^o,  e    dicse  ao   Í.Miito, 


Fr.  ííENIlIQUE  Suso.  x83 

que  se  não  sentia  em  disposição  para  passar 
adiante ,  que  se  tiniia  alguma  cousa  que 
ncgocear,  fosse  embora  só,  que  elle  o  que- 
ria alli  esperar.  E  tanto  que  o  Santo  poz  os 
pés  fora  da  porta  ,  largou  o  fogo  ,  e  foi-se  á 
mesa,  onde  comia  muita  fjente  dissolula,  e 
devassa,  que  vinha  ne^ocear  na  feira,  e  por- 
curar  giinlio  de  suas  mercadorias.  Vendo 
alguns  destes,  que  o  Frade  leigo  se  levantara 
da  uiesa  ,  e  estava  á  porta  bocejando,  e 
ocioso  ,  voUantlo  os  olnos  com  livi.iudadc  a 
uma  parte  ,  e  a  outra  ,  e  dando  fé  de  tudo, 
lançarão  mão  delle ,  levaiitando-lhc  qi)c 
lhes  totnára  um  queijo.  Em  quanlo  csu-s 
luáos  homens  maltratavilo  o  pobre  Frade  por 
esta  via ,  sobrevierão  outros  ,  que  erao  cin- 
co, e  vinhao  armados  ,  e  cheios  de  fúria, 
que  também  pef^árão  dello  dizendo  a  gran- 
des vozes,,  que  era  honuMu  ,  que  trazia  pe- 
çonha comsigo  ,  e  a  punha,  e  lançava  por 
toda  a  parte.  Corria  fama  naquelle  temj>c, 
que  havia  homens,  que  cum  atrevida  niaU 
dadtí  iníicionaviio  as  aíruas.  Em  Hm  tomá- 
lão-no  entiesi,  e  tal  era  a  tra^í.-dia  ,  que 
rcprescntavào  ,  que  corria  a  elles  todo  o 
])ovo.  Vendo-se  o  Frade  preso,  e  desejando 
livrar-'^  \  voltou-se  para  os  circunstantes  ,  e 
disse-lhes  estas  palavras:  Pcco-vos,  Senhores  , 
que  me  deis  uma  breve  audiciK^ia  ,  e  descu- 


x84  Vida  ro  Cíato 

l)rir-vo5-]i?i  cháoniente  tudo  o  que  é  pas- 
sado nesta  jnateíia.  Ficaiuio  ic»t.o3  altL-iuos, 
ecala:it)S,  começou  a  fa liar  (icsti  maneira  .* 
Bem  veíltís  ,  e  conheceis  lodos  cm  nieu  as- 
peito ,  que  sou  homem  íle  fraco  juízo,  e  por 
isso  nino^uem  íuz  de  mim  conta.  Rias  lenho 
uni  companheiro  homem  sisudo  ,  e  «Ití 
grande  ser,  a  quem  nossa  Oídem  tem  dado 
o  cargo  de  empeçonhentar  todas  as  íonies, 
que  ha  daqui  até  os  Trihunos,  ou  Alsatia,  e 
a  esse  fim  caminha  para  lá.  Pelo  que  não 
haja  detença  em  o  colhíTdos;  que,  se  tar- 
dais, porá  cm  execução  e^lG  danado  in- 
tento. E  já  lançou  na  fonte  deste  luí^ar  um 
saquinho  (ie  veneuo  para  que  morrão  quan- 
tos aqui  vierem,  e  hehereni  dcUa.  E  esia  é  a 
razHo  porque  me  deixei  aqui  (içar,  o  nào 
fui  com  elle ,  visto  como  já  o  acompanhal-o 
me  faz  mal.  E  para  que  vos  asse£;ureis ,  que 
íallo  verdade,  será  testemunlia  do  que  dií^o 
um  alíorjj^e  granile,  que  serve  de  trazer  li- 
vros, no  (jual  -traz  muitas  hocelas  atestadas 
de  peçonha,  e  de  muitas  moedas  d'ouro , 
que  os  Judeos  lhe  derào  a  elle,  e  á  noss* 
Ordem  para  que  ponha  em  ohra  tamanha 
maldade.  Tanto  que  tal  ouvirão  os  cinco,  e 
outros  tão  desatinados,  e  preversos  conio 
elles  ,  que  se  lhe  tinhão  ajuntado  ,  dovào 
brami^ivs    como  ])estas   leras,    e    a  grandes 


Fr.  ITkxriqus  Su^o.  io5 

Vozes  dizião,  Tanivos  depressa  traz  elle,  siga- 
mol-o.  ¥.  ít>í^í^  arrebatando  cada  um  o  que 
primeiro  achava,  quem  lança,  quem  machia- 
do, quem  outra  CDUsa,  ião  correndo  como 
doudos,  e  quebrando  portas,  e  abrindo  ca- 
sas ,  onde  cuidavão  de  achar  o  Santo :  com  as 
espadas  nuas  fazifio  gueira  a's  camns,  e  á  |}a- 
Iha  dos  eijxergóes,  dando-ihes  de  estocadas, 
e  era  o  alvoroço ,  e  o  ruido  tal ,  que  quantos 
nndaví^o  na  feira  ião  traz  elle.  A-Ciiaiáo-sc 
aUi  alguns  forasteiros,  homens  de  bem,  qi;e 
conhecião  ao  Sjnto  Fr.  Henrique.  Estes  ou- 
TÍiido-o  nomear  niettcrão-se  no  meio,  eaffir- 
runvão  que  fazião  o  que  não  deviáo  em  o 
buscarem,  porque  era  tal  Pessoa,  c  de  tanta 
virtude,  que  uáo  era  possivej  entrar-llie  ra 
vontade,  nem  no  pensamento  um  tamanlio 
pcccado.  Com  tudo  não  se  quietarão  senão 
depois  que  não  poderão  dar  com  elle,  mas 
leva'rão  preso  o  leif(o  ao  Governador  da  ter- 
ra 5  que  o  mandou  encarcerar  em  uma  casa, 
O  Santo  Fr.  Henrique  não  sabia  nada  do  que 
passava  ;  e  parecendj-lhe  hora  de  comer,  e 
que  seu  companheiro  teria  já  o  habito  en- 
xuto, veio-se  para  a  pousada  dontle  o  dei- 
xara para  jantar.  Tanto  que  entrou,  conta- 
i'ão-]he  tudo  o  que  era  passado.  O  que  en- 
tendiílo,  íicou  mui  atcMuori/ado,  e  r.o  mes- 
nio   poiilo  sem  parar   voltou  para  íóra ,   e 


i86  YiDA  po  Beato 

ft)i-«e  rom  pressa  a  rasa  do  Govfrnuclor,  er 
pedia-lhe  que  llie  soitjsse  seu  companheiro.. 
Piespondeo-llie  o  C(;vernador,  qne  por  ne- 
nhum caso  podia  "tiil  ÍLi/er,  antes  o  havia  de  . 
r.ielter  em  uma  torre  pelos  males,  que  linha- 
feito.  Sentio  Fr.  Henrique  por  estiemo  esta 
resohiçâo,  e  não  cansava  de  sohir,  e  descer 
escadas  ,  e  andar  de  luiuia  parte  para  a  outra 
por  ver  se  podia  remediar  o  sen  preso.  E  em 
fim  depois  deter  gastado  nisto  muitas  horas, 
não  sem  grandes  enfadamentos  e  afrontas, 
acahou  que  lh'o  sohassem.  Parecia-lhe  já  en- 
tão a  Fr.  Henrique  que  era  acal)ada  ioda  a 
tempestade.  Mas  na  verdade  daqui  começou 
a  relVescar  mais  asperamente,  pí)ique  quan- 
do acahou  de  se  dcsemharacar  dos  que  man- 
d;:vão  no  lugar,  então  entrou  em  perigo  de 
perder  a  vida.  E  o  negocio  passou  desta  ma- 
neira :  'l'i:dia-se  divv.lgado  at|uella  tarde  no 
povo  mindo,  e  entre  a  gente  haixa,  que  o 
íSanto  tiazla  c<jmsi"o  peçonha  nara  corrom- 
per  as  aguas,  e  arsim  em  o  vendo  sair  de  casa 
do  Governador  davão  todos  traz  elle,  como 
se  fora  um  ladião,  c  de  maneira  que  não 
ousava  apparccer  no  higar.  Todos  o  moslra- 
vão  com  o  dedo,  e  dlzião  :  Eis  alli  o  mesUe 
da  peçonha;  mas  elle  n;iO  nos  escapaia  das 
mãos,  que  sem  falta  morrerá,  ennt^lhe  va- 
lera coumosco  o  seu  dinheiro  como  fez  coui 


Fr.  He-Vrique  Suso.  187 

c  Governndor.  Venrío-se  o  Santo  aperlado, 
quiz  acolher-se  a  uma  quitUa  :  pp.táo  levan- 
tarão a  voz  corn  niais  íuiia,  e  uns  dizião  : 
Afognemol-o  no  Danúbio  (estava  assentatJo 
o  lugar  ao  longo  (leile),  outros  gritavão:  Isso 
iiívo,  que  nos  danará  a  agua  es^e  ladiáo,  ave 
é  sujo,  e  torpe;  melhor  será  queimal-o.  lím 
villfio  deshumano  e  furioso  envolto  em  um 
tabardo,  trazia  uma  lança  nas  ii/ãos,  e  atra- 
Tessandri  por  meio  da  gente  onde  estava  niais 
apinhada,  poz-se  diante  de  todos,  e  soltou 
estas  palavias;  Oilvi-mc  senhores,  e  todos  os 
que  aqui  sois  presentes.  Nenhuma  morte  po- 
deremos dar  a  este  herege  mais  afrontosa,  do 
que  será  se  o  cu  espetar  nesta  lança  como  se 
faz  aos  sapos.  Desta  maneira  ficando  nú  ,  e 
aspado  nesta  lança,  e  levantado  no  ar  com  a 
boca  par.1  baixo  atnarral-o-hei  a  esta  sebe  de 
maneira  ,  que  uno  possa  cair.  i\lirrhe-se  no  ar 
o  corpo  malvado,  e  fique  este  ladrão  á  vista 
do  quar)los  passarem,  para  que  o  maldigâo, 
e  abominem  vendo  tão  feio  grenero  de  mor- 
te,  eassnn  seja  maior  sua  desventura  no  tem- 
po presente,  e  no  por  vir, que  tudo  tem  bem 
merecido  tão  jvj^tilencial  homem.  Ouviu  isto 
o  Santo  com  assaz  pavor,  e  apertados  suspi- 
ros, e  era  tal  a  anciã  ,  que  lhe  fazia  saltar  as 
lagrimas  dos  olhos.  Vendo-o  neste  estado  al- 
guns homens  honrados,  que  eslaváo  á  roda^ 


i88  VíDA  DO  Bi:\TO 

choravao  ngranientc,  oiitiosconi  niigoa  ba- 
tião  nos  peilos,  c  lorcláo  as  mãos  sobre  a 
cabeça.  lias  nã©  oustiva  neubuni  falia r  pala- 
vra ciíia  medo  ilo  povo  furioso,  |)or((ue  não 
lançiíssein  mão  delle.  Asoini  passou  Fr.  Hen- 
rique o  dia,  e  sencio  j:i  tarde  andava  de  casa 
em  casa  pedindo  ga/aiiiado  cí)i!i  lagrimas,  e 
eiii  toda  a  parte  íoi  esqtiivaineiitc  despedi- 
do. Umas  devotas  mulheres  desejánio  aj^Mza- 
Ihal-o;  mas  de  medo  o  deixarão  cie  íazer: 
finalnientc  seiítindo-se  apirlauo  dcmoiliiis 
anjuslluS,  e  dcsanipara^lo  de  lodo  o  socorro 
humano,  como  a({uella  genie  não  espeiava 
anais  c|ue  vel-o  preso  para  o  acai;arem, 
caio  de  pura  tristeza,  e  medo  da  morle  ao 
longo  de  um  vabulo;  e  dídii  levantando  os 
olhos,  inchados  do  muito  que  tinha  chora- 
Jo,  ao  pji  ceh^sllal  dizia  :  O'  pai  amoro.-issi- 
mo,  qnaiido  valereis  já  a  e.^le  miserável  mel- 
lido  em  tanianho aperto?  O'  pai  piedosissinu», 
porque  vos  esqueceis  tanto  de  mim  ?  O'  pai, 
ó  íidelissiiiio,  ó  clenientissimo  pai  ajuilai-uje 
nesta  minha  uliima  necessidade,  que  jii  eslo 
coração  deíiinU)  não  tem  esperança  de  vida. 
3Va  moíle  não  ha  duvida.  IN  cm  posso  esc^ipar 
de  aíogado  no  rio,  ou  queimado,  ou  pas- 
Siido  de  uma  lança.  Kncommendo-vos  hoje 
meu  desconsolado  espirito,  e  peço  que  liajais 
piedade  desta  desavcuUirada  n.orlc,  que  i^io 


Fr.  iíi:ríi;iQi:E  Suso,  189 

eslão  longe  os  qwe  me  querem  matar.  Sendo 
informado  um  Sacerdote  do  lugar  destas  pie- 
dosas la5ti)iias,  foi  de  pressa  aonde  o  Santo 
jazia,  o  usaiitlo  de  íoíVíi  tirou-o  das  mãos 
da([ueries  inimigos,  e  meltendo-o  em  casa 
teve-o  dcjuella  noiíe  em  paz,  e  ao  oiiiro  dia 
em  amanhecendo  niandou-o  embora  ,  e  as- 
siiií  o  livrou  do  pcrijj^o  da  mo* te,  que  tão  cei- 
ta,  e  tão  presente  leve. 

C  A  P  1  T  i:  L  O     XXVIII. 

Do  rue  acontccco  ao  Santo  com  uni  ladrão. 

i_  Ornava  o  Santo  mna  vez  para  Allemanba, 
onde  tinlia  sua  morada,  das  partes  delran- 
des,  (Hide  o  mantlaia  a  obeuiencla,  e  vinha 
caminhando  peia  ribeiras  do  Danúbio  con\ 
um  companheiro  mancebo,  e  despachado  no 
arnlar.  Aconteceo  que  achando-se  um  dia  o 
Santo  mal  disposto  ,  e  cansado  ,  não  lhe  pô- 
de aturar  o  passo,  que  levava,  e  ficoii-se  [)or 
dclraz  espaço  ({uasi  de  meia  milha.  la-st;  pon- 
<Io  o  Sol,  e  tinha  por  passar  um  grande  bos- 
que nial  assombratlo,  eperigoso  por  muitos 
ladrões,  que  nelle  contmuavão.  Olhou  eniáo 
para  liaz  a  ver  se  acaso  vinlia  al;:;nm  vian- 
dante, em  cuja  coiitpaniiia  p.assa^>e  o  bosque, 
eparou-seum  pouco  antes  de  enlrar  neílc  es- 


Ií)0  VlDY    DO    BljLTO 

p?ranflo  nl^tir^n.  Fiilretantovio  assomar  fluas 
pessoas,  que  vinhõo  raminh.indo  Á  pressa, 
das  quaes  uma  era  nuiliíer  moça ,  e  forninsa; 
a  o!ilra  um  lioniem  temoroso  com  uma  l.inca 
ao  liombro,  e  uma  espada  compriíla  á  ilhar- 
ga, cuherto  com  um  taljardo  negro.  Assoui- 
brado  o  Santo  da  feia  catiidura  deste,  tornou 
a  estender  os  olhos  por  tudo  por  ver  se  acaso 
"Vcria  outra  companhia;  rnas  não  vendo  jiin- 
guem,  fallava  comsig(?,  e  dizia:  Senhor Deos, 
que  sorte  de  homens  são  estes  I  qne  feição 
tão  espantosa  ?  Como  hei  de  passar  assim  tão 
grande  bosque?  E  que  será  de  mim  ?  Dizen- 
do isto  fez  o  sinal  da  Cruz  sobre  os  peitos, 
e  metteo-se  a  caminho  pela  floresta  adiante. 
Tendo  caminhado  um  l)om  pedaço  todos 
tre?,  travou  a  mullier  pratica  com  elle,  per- 
g(;nlap.df>-ll!e  quem  era,  e  como  se  chama- 
va? Satisfez  o  Santo  á  pergunta.  K  ella:  Bem 
vos  conheço  senhor  meu,  disse,  pelo  nouie. 
Pccovos  que  me  queirais  ouvir  de  confissíío. 
Começou  loi^o  a  ir-se  confessando,  e  disse: 
Ai  de  mim,  Reverendo  Padre,  quero-nie 
queixar  com  vosco  de  minha  triste  ventura, 
líaví.is  de  saber  que  este  homem,  que  n(»s 
aco'upaTdia  é  ladrão,  e  matador,  e  usa  este 
oMirii»  neste  ])osfjuc  c  n'outras  partes,  e  toma 
a  lodos  as  bolsas,  e  vesti(h)s,  sem  pírdtvir  a 
iiinjj;ueni,  lílle  lueengauuu,  eme  tirou  d\u- 


Fr.  Kr^NRTQUE  Suso.  ic;t 

tre    minhas   amigns,    e  por   força   sou   sua 
iiiullicr.  Ouvindo   isto   Fr.  Henrique   faltou 
pouco  para  lhe  dar  um  acidente  de  medo,  e 
Tirando  para  traz  olliava  paia  todas  ns  parle* 
por  ver  se  podia  ver,  ou  ouvir  al^ueni.  Mas 
como  a  ílorcsta  t-ra  espessa,  e  sombria,  nun- 
ca vio,  nem  omio  niijjniem  ,  mais  que  o  la- 
drão, que  os  vinha  seguindo.  Neste  ríeio  fazia 
discursos  Cl  insigo  ,  e  dizia  :  se  fujo  assim  cau- 
rado  comí^  vou  ,  logo  me  alcança  ,  e  me  ma- 
la ;  SC  brado ,  não  ha  de  lun  er  quem  me  ouça 
neste  tão  espaçoso  ermo,   e  da  mesma  ma- 
neira sou  perdido.  Então  Icvaiitando  os  olhos 
ao  Ceo  tristes,  c  arrasados  de  agua  :  Ah  Se- 
nh.or   D<'(;s,   dizia,   que  ha  de  ser   hoje   de 
n:iiu  !  O'  morte,  quào  perto  me  estas.  Tanto 
que  a  muJlier  couciuio  sua  ccníissão,  foi-sc 
para  o  ladrfio,  e  pedia-lhe  em  segredo,  que 
se  confessasse  com  o  Santo  ,  e  dizia-lhe,  sa- 
Lci  b(un  seulior,  que  na  uíinlia  terra  temos 
taníci  fé  neste  homem  ,  que  é  opinião  que  nin- 
guém se  confessa  com  el!e,  aitida  que  n)uilo 
máo  epeecador,  que   seja   desamparado  i\q 
Dcos.  Ora  fazei   o  que  vos  rogo ,  (|ue   l)em 
pode  ser  que  por  amor  dellc  se  leiubre  Deos 
de  vós,   evos  queira   acudir   neslas  ullinuis 
angustias,   que  vos  cercão.    Indo  assim  j.m- 
l)os  lidl.indo  em  voz  baixa,   foi  o  Santo   tão 
apertado  de  Uíedo,  que  se  du>a  poj  traído.  O 


ií)2  Vida  do  Beato 

ladrão  começava  a  vlr-se  para  e!le.  OuancTo 
o  Santo  o  \io  junlo  íle  si,  e  lhe  \io  a  LuíÇd 
Uiis  niãoa,  treiuco  toei  ),  e  .irrepiárâo-se-llie 
os  cabellos ,  e  ficu-se  por  acauaJo,  porque 
nfio  sabi;i  o  que  an»hos  ti:íhão  passado  ciitre 
si.  O  sitio  dohio^ar,  por  onde  raminliavâo , 
era  de  si  niea.inlio,  porque  o  Danúbio  cor- 
ria ao  longo  do  bosqne ,  í?  a  esti  ada  ia  sobre 
a  l)orJa  tio  rio.  O  lad/áo  deixou  ir  o  Santo 
parle  da  agua,  e  poz-se  da  banda  da  terra. 
Indo  nvim  o  hanto  cIícIo  de  niedo ,  couic- 
çou  o  ladrão  sua  confis.i'10  dec^^arando  todos 
íjuanlos  males,  e  rí>ubos  linha  feito,  e  em 
particular  contou  nin  horrendissinio  homiri- 
dio  que  fez  íicar  o  Santo  altoiiito.  Kntrei  um 
dia  ,  contava  o  ladrão,  neste  bosque  a  saltear 
como  tand)eni  agora  venho,  encontrei  com 
um  Sacerdote  honrado  e  veneravei,  confes- 
:sei-me  com  clle,  indo  caminhando  and)os 
como  agora  vamos  vós,  eeu.  Acabada  a  con- 
fissão, levei  desta  mesina  espada,  que  aqui 
vedes,  c  del-lhe  de  estocadas,  o  lancei-o  no 
rio.  Desta  historia  junta  com  os  gestos,  que 
o  ladrão  fazia  conlando-a,  e  de  seu  aspecto 
ficou  Fr.  Heiiriíjuc  tão  atlonito  e  perdido  de 
animo,  que  lhe  corrião  suores  frios,  e  mor- 
tais lodos  os  men)!)ros,  e  o  sangue  se  llie 
congelou  no  corpo,  e  perdeo  a  f.iila,  e  ficou 
tJe  maneira,  que  ";uroi  eslava  faliu  de  tudos 


Tb.  ÍÍE^íRiQtJE  SusOé  193 

'os  scr.tldos,   só  tinha  os  ollios  postos  na  es- 
pada (lo  Indião,  esperando  a  hora,   eni  que 
o  havia  de  atravessar  com  elh^ ,  como  ílzera  ;ío 
outro  Sacerdote ,  q  lançal-o  de  cabeça  no  rio: 
e  começando  com  esta  asronia  a  desmaiar,  e 
não  tendo  jd  tbrcss  para  se  ter  em  pé,  íicoii* 
lhe  o  rosto   desfigurado  e  mortal,  como   de 
homem  ,  que  c^^tava  para  perder  a  vida  logo, 
e  desejava   £aival-a.  Notava    estes   eííeitos  a 
companheira  do  ladrão,  e  tanto  que  caio  no 
que  era,   acudio  de  pressa  a  ahracar-se  com 
clle,  que  ia  caindo  já  desfalecido,  e  trabalha- 
va pelo  alentar,  e  tornar  em  acordo,  dizen- 
do-ihe  :  Não  temais ,  bom  Paíire  ,  que  não  se 
vos  fará'   nenlium   mah  Também  o  ladrão  o 
animava  ,  o  dizia-lhe  :  Eu  Senhor  tenho  ouvi- 
do muitos  bens  de  vós ,  e  por  ivso  quero  dei- 
X ir- vos  a  vida.  Rogai  a  Deos  por  mim  ,  e  pe- 
di-Ihe  que  por  aunrr  (k;  vos  me  acuda  ,  e  haja 
njisericordia  comigo,  que  sou  um  la  d  ião,   e 
ando   para    morrȒr  catia  dia.   Quando  dizia 
eUas  ultimas  palavras   acaha\rio  de  sair  do 
bosque,   e  eis  ([ue  appareceo  o  compnniiti- 
ro  de  Fr,  Henri(p>e,    que  estava   assentado 
ao  pé   de   uma    arvore   espera !ulo   por  ello. 
O  bubão  adiantnu-se  com  sua  ci,m[)anhei- 
ra  ;  mas  o  Santo  chegando  como  pôde  aon- 
de  estava  o  seu  Frade,   dei\ou-se  cair  em 
terra   com   um   íjranile   tremor   d«)  coracâc, 

7 


194  VíDA.  DO  Beato 

c  do  corpo  todo.  Depois  de  estar  assim  u«i 
espaço  deitado  cobrando  alento,  levantou-se, 
e  acabou  seu  caniinbo.  E  sempre  pedia  a 
Doos  n)ui  de  propósito,   e  com  granc^e^  sus- 

Í)iros,  fosse  servido  que  aproveitasse  aqnelle 
adião  a  fé,  que  tiveia  nelle,  e  a  esperança  , 
cjue  puzera  em  sua  intercessão ,  e  orações,  e 
não  permittisse  que  depois  da  morte  se  con- 
demnasse.  E  mostrou-l!ie  o  So!)bor  uma  vi- 
são ,  pela  qual  ficou  cei  lificado  de  sua  salva- 
ção poi^  maneira  (jue  nenhuma  duvida  tiniu , 
que  se  havia  de  salvar, 

CAPITULO      XXIX. 

De  alguns  perigos  y  que  o  Santo  passou  por 


X  ínha  o  Santo  por  costume  ir  algumas  ve- 
^xes  á  Cidade  de  Argentina,  que  vulgarmente 
se  chama  Str.iburgf.  Tornando  uma  vez  delia 
para  o  Convento,  caio  uuui  temeroso  pego 
doDantdjlo,  e  juntamente  com  elle  foi  um  li- 
vro, que  tinha  composto  havia  pouco,  a  quem 
o  diabo  linha  grande  ódio.  E  sendo  levado 
da  forca  da  corrente  sem  haverquem  Ibe  aco- 
disse,  e  andando  já  em  braços  com  a  morte, 
ora  indo-se  ao  fundo,  ora  Lí)rnando-se  em 
cima  da  agua,   acontccco  por  divina  provi» 


Fr.  IIE^•RIQrE  Suso?  19^ 

tlencin  ,  que  r.o  mesmo  íeaipo  cliegou  alli  um 
soldad.)  da  Prússia,  quo  vinlia  de  Argentina, 
o  qual  se  lançou  á  agua  ,  e  o  tirou  dcUa  com 
seu  companheiro  são  e  salvo  ,  livrando-os  de 
tão  triste  género  de  morte.  Outra  vez  foi 
íora  da  casa  por  ordem  dos  superiores,  e  ei^ 
no  Inverno,  e  tendo  caminhado  em  coclie  o 
dia  todo  alé  vésperas  :>em  comer,  pelo  vento 
que  corria  frio  e  desabrido  ,  chegou  a  um  pas- 
so de  agua  turva  e  nlía ,  que  com  a  força  das 
chuv.is  levava  grande  corrente.  O  criado,  qiis 
governava  ococlie,  deixou-se  chegar  t;i«to  á 
})orda  d'agua  por  descuido ,  que  caindo  as 
rodas  em  vazio  daquell;\.  banda  ,  revirou  em 
claro  sobre  a  corrente.  Caindo  o  coche  caio 
tand)em  o  Santo  de  cabeça,  e  fjcou  de  costas 
pohrir  a  aíT^a  ,  e  losfo  foi  o  ccclie  sobre  elle, 
de  maneira  que  se  não  pod'a  tirar  debaixo, 
nem  revolver-se  com  o  peso  paia  nenliuma 
parte,  nem  ajudar-se;  c  assim  foi  um  gr;yidj 
pediíço  pela  agua  abaixo  junto  com  o  coche 
até  darem  n'um  moinho.  Aqui  o  cocheiro 
acudio  com  outros,  e  ferrou  nulle;  uj.ís  era 
tal  o  ptíso  do  coche,  que  por  muito  que  tr;:* 
balhaváo,  e  fazião  pelo  tirar,  não  n'o  j)odira> 
levantar,  antes  tornava  a  baixo.  Em  íim  le- 
vantando primeiro  o  coche,  não  sem  gmnde 
trabalho,  tirarão-no  a  terra  bem  niolhado.  E 
como  o  frio  era  grandíssimo ,  logo  so  lhe  con- 


19^  VíDi  DO  Beato 

gelarão  os  fatos  no  corpo  de  maneira,  que 
batia  os  dentes  de  íiio.  Nesta  afllircão  esteve 
o  Santo  por  grande  esj);i(  o  sem  se  poder  va- 
ler, e  levantando  os  ollios  a  Deos  dizia  :  Que 
farei,  Senhor,  ou  que  intentarei  primeiro? 
veni^se  a  noite,  e  não  vejo  luj^ar,  nem  alJèa 
por  aqui  onde  me  possa  aquentar,  ou  reme- 
diar. Se  quereis  que  acabe  aqui  assim  triste- 
mente, he  bem  miserável  género  de  morte. 
Todavia  estendendo  a  vista  por  tudo  enxer- 
gou ao  longe  uma  aldeã  ao  pé  de  um  monte, 
Foi-se  lá  como  pôde  todo  molha<lo,  e  inti- 
rissado  com  fiio  e  era  já  noite ,  rodeava  as 
casas,  pedia  gazalhado  por  amor  de  Deos , 
snas  de  toda  a  parle  o  despedião,  nfio  se 
doendo  ninguém  de  seu  tral)al;io.  Em  fmi 
arreceando  de  acabar  alli,  bja<lou  ao  Senhor 
em  voz  alta  dizendo :  Melhor  fora  Senhor 
deixardes-mc  afogar  naquella  agua.  Acaba- 
ra Limais  de  pressa,  e  com  mais  gosto,  do  que 
me  vejo  aqui  perecer  com  frio.  Estas  pala- 
vras ouvio  acaso  um  viliáo,  que  primei lu  lhe 
negara  pousada,  e  havendo  lastima  delle  to- 
rhou-o  nos  braços,  e  metteo-o  em  sua  casa  ^ 
«  a\li  passou  uma  bem  cansada  noite» 


Fk.  Henrique  Suso.  197 

C  A  P  I  T  U  L  O      XXX. 

De  como  se  houve  o  Santo  n^uni  breve  tempo, 
que  teve  vago  de  tribulações, 

JLjiília  já  Deos  nosso  Senlior  poslo  cni  tal 
costume  o  seu  servo  Fr.  Henrique,  que  em 
lhe  aíroxando  uma  tribubífio,  cleterniinada- 
inente  espeiíiva  logo  í)ntra.  E  a^aim  sem  ter 
um  momento  de  lefrioeiio,  andava  semj  re 
afíligldo  :  só  de  unja  vez  lhe  deu  o  Senlior  al- 
gum repouso,  e  este  foi  ainda  de  bem  pouca 
dura;  no  qual  tempo  entrando  um  dia  n'i:m 
Mosteiro  de  Freiras,  umas  filhas  espirituais, 
que  nelle  linha  ,  lhe  perguntarão  conjo  ainía- 
Ta.  Aoque  o  Santo  rcspondeo,  que  receava  qn  j 
lhe  não  ia  l)em  ,  e  que  Deos  se  esquecia  deile  , 
porque  era  passa-lo  um  mez  inteiro  sem  rece- 
ber otiensa  de  ni»)guem,  nem  no  corpo,  netn 
na  fama,  cousa  íóra  do  costume  em  que  estava 
de  muito  teujpo  atraz.  l'onco  espaço  liavia 
queo  Santo  eslava  assentado asgrades,  quan- 
do um  Fratle  de  sua  Ordem,  ([uese  alliathou, 
o  chamou  á  parre,  e  Ihedisse  osej^uinte  :  \ão 
ha  muitos  dias  que  ntc  achei  u'um  ca^tello, 
onde  ouvi  o  Senhor  deile  per^^amtar  elíioaz- 
incnle  por  vós,  c  por  (huide  aritlaveis,  e  ju- 
rar com  as  mãos  levantadas  diante  de  mi;ila 
gente,  que  se  vus  aciuvu,   cm  qualquer  lu- 


igH  Vida  no  Beato 

gar  que  fosse,  vos  havia  (]e  dar  de  nonliali- 
das.  O  mesmo  juramento  Gzerão  tnníLcm  al- 
guns fidalgos  seus  parentes,  os  ([tiaes  a  estr\ 
conta  TOS  huscarão  já  em  tdgans  Moslciros, 
]:ara  executarem  esla  danada  vontade,  que  vos 
lein.  Por  onde  vede  o  que  vos  cumpre.  An- 
dai acautelado,  e  olhai  por  vós,  se  estimais 
a  vida.  Ouvindo  isto  Fr.  Henrique  ficou  cheio 
de  medo ,  e  disse  ao  Frade ,  que  tomara  saber, 
que  razfio  hírvia  para  o  tei  eui  por  merecedor 
de  tal  morte.  O  Frade  llie  respondeo  desta 
maneira:  Haveis  de  saber  que  cuntarfio  a  este 
senhor,  que  vós  ensináveis  a  urna  fiilia  sua 
um  modo  devida  particul.jr,  e  novo,  que  se 
chama  espiritual,  e  os  professores  delle  espi- 
ra uais,  e  (jue  a  niettesles  nella  c  .mo  fizestes 
noutra  muita  gente.  E  está  persuadido  que  en- 
tre todos  os  nascidos  não  ha  peiores  ho:i»ens, 
que  os  que  seguem  esta  doutrina.  Também 
estava  piesente  nesta  junla  um  homem  atre- 
vido, e  feroz,  que  aftírmava  (jue  vós  o  ti- 
i::heis  descasado  de  sua  mulher,  que  muito 
amava  de  tal  maneira,  que  tapava  o  rosto, 
e  não  queria  olhar  para  elle ,  e  dizia  que  que- 
ria bó  olhar  para  dentro  de  si,  e  por  sua  al- 
ma. Tanto  que  o  Santo  soube  estas  novas, 
deu  graças  a  Deos ,  e  tornou  logo  para  as  Ke- 
ligiosas,  e  disse-lhes  :  Amadas  tilhas,  servi  a 
Deos  varoniiiuente,  que  ja  se  lembrou  do 


Fr.  He:íriqui  Suso,  ipf) 

mim.  E  logo  lhes  contou  as  temerosas  novas 
que  v^  Frade  llie  dera  ,  e  como  o  luaiulo  an- 
dava traçando  pagar^lhe  com  males  os  servi- 
ços, que  lhe  fazia. 

CAPITULO   xxxr. 

De  conin  o  Santo  entrou   um  dia  ein  contas 
com  Deos  ,  e  do  que  lhe  rssultou  delias» 


N, 


O  mesmo  tempo,  que  Fr.  Henrique  pade- 
cia os  trabalhos,  que  vamos  contando,  en- 
trou unia  vez  na  enfermaria  da  casa,  em  í\\\q 
morava,  para  d.ir  alguina  recreação  a  seus 
cansados  Uíembros.  Estando  seulado  á  mesa, 
e  calado,  segun<]o  seu  costume,  molesta- 
vão-no  com  algumas  zombarias  e  palavras, 
que  elle  sentia  muito  ,  e  iíie  causavão  tanta 
compaixão  de  s»  "^nesmo  vendo-se  assim  m  U 
tratar,  que  muiíi«s  vezes  lhe  corrião  as  laj^ri- 
nias  pelo  ri'Slo  aliaixo,  c  lhe  -eutravão  pela 
boca  envoltas  com  o  que  comia,  e  bebia. 
Então  punha  os  olhos  no  Geo,  e  chaujando 
por  Dcos  com  entranháveis  suspiros  fallava- 
íhe  ^^slm:  Piedosissimo  Deos,  não  bastão  as 
misérias  e  desveíiiur.ís ,  (pic'couiinuauiente 
padeço  de  dia  e  »ie  noite,  souão  que  ainda 
esta  pe:]uei:a  refri-ão,  que  s^ómo,  sf  meha  de 
tornar  fel  e  amargura  í*  /ísio  lhe  acoutcceo 


aoo  Vida  do  Bj24to 

muitas  vezes,  e  de  uma  levantando-se  da 
mesa,  não  se  pude  mais  reprimir,  e  fcil-se 
Correndo  ao  seu  Oratório,  e  posto  diante  de 
Deos  conieç.ju  a  queixar-se  desta  maneira  : 
Suavibsimo  Deos,  Senhor  do  inundo  tolo, 
peço-vos  que  useis  comiijo  de  brandura,  e 
piedade ,  que  hoje  é  o  dia ,  em  que  determino 
entrar  em  contas  com  vosco ,  e  não  posso  ai 
fazer.  E  ainda  que  a  ninguém  deveis  nada, 
nem  eslejaij  obrigado  a  na  fia,  por  serdes, 
como  soisj  Deos  soberano,,  c  imnicnso  em  ma- 
gestade:  sem  embargo  de  tudo  á  vossa  bon- 
dade iníiuiia  compete  sofrerdes,  que  possa 
desabafar  com  vosco,  e  tomar  algum  aílivio 
CiC  vossos  divinos  favores,  um  espirito  afo- 
gado em  tribula'-ões,  maionnente  quando 
não  tem  outrem  ninguém  ,  a  quem  se  possa 
queixar,  ou  quem  o  console.  E  começando, 
a  vós  mesmo  Senhor,  a  quem  nada  se  es- 
conde, tóiuo  eu  por  testemunha,  que  desde 
que  nasci  tive  sempre  um  coração  brando,  e 
compassivo;  porque  nu!íca  me  lembra  que 
visse  ninguém  altribulado,  ou  triste,  que 
me  não  compadecesse  delleentranhavelmen- 
te.  Nunca  pude  ouvir  cousa  que  pudesse  fa- 
ler  nojo  ao  p-oximo,  nem  em  presença, 
nem  em  a])^eniia  sua.  De  unia  cousa  me  se- 
rão testemunhas  meus  companheiros  lodos, 
que  mui  raras  veze"^  «ue  ouviriáo  torcer  coiu 


Fr.    TÍENRIQtlE    ScSO.  40» 

minlia  llnofiiacrem ,  ou  Jar  entendlmenlo  á 
pfior  parte  aos  feitos  alheios,  nem  de  Frade, 
riem  de  outrem  ninguém,  assim  diante  cios 
superiores  como  de  toda  a  outra  pessoa.  An- 
tes em  qiianto  pude  julguei  sempre  o  me- 
lhor das  obras  de  todos,  e  quand<;  mais  não 
pude,  ou  me  calei,  ou  me  desviei  por  nfío 
ouvir  o  contrario;  e  daquelles  me  dava  por 
mais  pr.rticular  ami^^o,  que  eu  sentia  terem 
recebido  <letrimenlo  algum  na  fama ,  ou  na 
reputação;  o  que  fazia  de  piedade  ,  porque 
llies  custasse  menos  tornar  a  cobrar  seu  cre- 
dito, O  meu  nome  era  verdadeiro  pai  de 
tristes.  De  toílos  os  amigos  de  Deos  eia  par- 
ticular amigo.  Todos  os  que  se  clirgavao  a 
mim  tristes,  ou  trabalhados,  ao  menos  dava 
algum  conselho  ,  com  que  se  tornavào  ale- 
gres, e  animados:  chorava  com  os  que  cho- 
ravão,  dcoconsolava-me  com  os  tristes  até 
qi\e  quietava  uns  e  outros  com  autor  de 
niái.  Nunca  ninguém  me  anojou  tanto,  que 
logo  lhe  não  perdoasse  tudo  como  se  nunca 
me  offendera ,  se  só  uma  vez  me  mostrasse 
bom  rosto.  De  que  .•-(írve  fallar  dos  homens, 
se  as  íaltas,  e  trabalhos  de  quaesquer  nni- 
inaes  ,  ou  avezi.íhas  me  apertaváo  o  coração 
de  maneira,  que  quando  as  via ,  í»u  ouvia, 
chegava  a  pedir-vos  ren^cdio  para  elles  P 
Tudo   quanto   vive    sobio  a  leira   acha   tta 


*02  Vida  do  Beatí> 

mim  entranliss  úc  amor  e  branrlura:  e  vós^ 
Deos  piedosíssimo,  perniittis  que  haja  ho- 
mens (eslcs  são  os  que  o  Apostolo  chama  ir- 
iiiftos  falsos)  que  me  tratem  com  muita  esqui- 
"vança ,  e  de«abrimento,  como  \ós,  Senhor, 
Lem  saljeis,  e  a  todos  lie  ben)  notório.  Pe- 
ço-vos,  Senhor,  que  vejais  isto,  eros  mesmo 
me  deis  algum  aUivio  de  vossa  nião.  Depois 
que  o  Santo  desabafou  largamente  com  Deos 
riestas  contas,  ficou  n'um  repouso  mui  asso- 
ceo^ado,  esentio  i:or  meio  de  uma  luz  divina 
csra  resposta  em  sua  ahna:  Eftas  tuas  conlus 
são  contas  de  minino,  e  nasccm-te  de  não  ad- 
virtires  sempre,  c^mo  deves,  nas  palavras, 
e  nas  obias  de  Christo  paciento.  Has  de  en- 
tender, que  não  é  só  bastante  para  Deos  esta 
tua  condição  caritativa  e  branda ,  de  que  tu 
te  contentas,  mas  sabe  q«)e  quer  de  ti  outra 
cousa  mais  subida,  e  mais  perfeita,  quoro 
dizer,  que  quando  alguém  te  aggravar  com 
obras,  ou  com  palavras,  não  somente  passes 
por  isso  levemente,  mas  inda  estejas  tão 
morto  á  tua  paixão,  e  a  ti  mesmo,  que  não 
ouses  deilar-te  a  dormir  sem  primeiro  busca- 
res esse  que  te  a^j^sfravou  ,  e  com  gesto  tlesas- 
sonjbrndo  e  palavias  decortezia,  e  com  a  bo- 
ca cheia  de  rizo  abrandares  quanto  em  ti  for, 
ç  assocegaressiia  cólera  ,  e  fúria:  porque  com 
esta  uioderacào   e  humildade   lhe  arrancas 


Fr..  Henrique  Sttso.  ao3 

Ia  mito  a  espada,  e  fazes  que  aquella  raiva 
ema  vontade  lhe  finue  fraca,  e  sem  forças, 
e  totalmente  desnrmrida.  E  este  he  a(|nelle 
aníi;'o  casuinlio  ^de  perfeição  que  Clirlsto 
JESL  ensinou  a  seus  discípulos  quando  lhes 
dizia:  íiis  afie  eu  vos  mando  como  cordeiros 
entre  'obos.  Depois  que  o  Santo  tornou  em 
si  pancco-lhtí  este  caminho  de  perfeiçno 
muito  liais  agro,  e  trabalhoso,  e  não  podia 
cuidar  nelle  sem  .grande  desabrimento  ,  e 
muití)  naior  o  sentia  se  queria  acommeltel-o. 
Mas  cí'm  tudo  como  estava  resignado  nas 
mãf)S  d)  Senlror,  começo\i  a  provar  suas  for- 
ças ,  ea:)r3nder  os  passos  desta  estrada.  Acon- 
ttíceo  dalli  a  alj^uns  dias,  que  um  í'rade  leigo 
o  tratou  mal  (!e  palavra,  e  o  injuriou  nota- 
velmente Sofreo  tudo  o  Santo  sem  fallar  na- 
lavrií ;  e  luvendo  que  isto  bastava  ,  náo  queria 
passar  adiante.  Mas  interiormente  sentia  um 
reníordimento ,  que  o  obrigava  a  fazer  mais. 
E  assim  no  mesmo  dia  á  tarde  estando  o  Frade 
ceando  na  eifermaria  ,  esperou  a  porta  ,  cem 
saindo  deiton-se-lhe  aos  pés,  e  pcdio-lhe 
hurnihlemente  perdfio  dizendo:  Cliarissimo 
e  Rclij^ioso  Pa  Ire  ,  peço- vos  por  reverencia 
de  Deos  ,  que  «e  em  algucna  cousa  vos  mo- 
lestei, ou  offendi,  me  perdoeis  por  amor 
de  Deos.  Vejidu  o  leigo  um  tal  acto,  primei- 
ramente íicou  par;rdo,    t  mudo,  c  lo^o  er- 


ao4  Vida.  do  BrAxo 

giiendo  os  olhos  disse  em  voz  alta  :  Valha-me 
Dcos,    que   maravilha  é   esta?    que   fazeis? 
Nunca   me  offcndestes  mais  que  aos  oulfos, 
antes  eu  fui  o  que  notavehiiente  vos  e*c;in- 
dalizci  ,  e  que  com  a  soltura  demasiadri  ííosta 
liugua  V03  fiz  cruéis  aL'oiitas;  c  disto  eu  sou  , 
meu  Padre,  o  que  houvera  e  devia  peclr-vos 
perdão,   e  iniportunar-vos   uma,   e  muitas 
vezes  por  elle.  E  assim  ficou  o  Santo  (|uielo. 
I^m  dia  estando  Fr.  Henrique  á  mesa  na  en- 
fermaria, disse-lhe  un»  Fraiie  muitas  pala- 
vras pesadas ,  e  malditas,    e  elle  lhas  pagou 
com  se   virar  para  elle  com  um  senjl)lante 
tão  risonho  e alegre,  como  se  nelias  reccl)era 
alguma  amizade  mui  signalada.  Mas  i-*to  teve 
poder  para  tornar  o  Fra<!e  tanto  so])r«  si  coni- 
pungindo-o  inteiiormeute,  que  náosón\ente 
se  calou  ,    u-.as  tauihem  se  liie  mostrou  ale- 
gre  e  bem  assoml)rado.  Depois  de  jantarem 
contou  o  me>mo  Frade  este  successo  na  ci- 
dade com  estas  palavras :  Hoje  foi  o  dia  ,  em 
que  uie  vi  tão  cheio  de  vergonha  e  afronta- 
do estando  comendo,  que  cuid>  que  nunca 
outra  tal  me  aronteceo.  Porque  fa liando  eu 
mui  solta,  e  desarazoadamen:e  contra   Fr. 
Henrique,  elle  me  ouvio  tom  um  gesto  tão 
aprazivel ,  e  desapaixonado,  que  me  ffz  ficar 
corrido.  È  espero  aw  nosso  Senhor  que  me 
ha  de  aproveitar  sempre  este  seu  exemplo. 


Fe.  Kenriqte  Srso.  2o5 

CAPÍTULO     XXXII. 

Deconio  o  Santo  chegou  alí^umas  vezes  a  risco 
íe  perder  a  vida  de  demasiada  ajjlicçào, 

ACjonterco  a  Fr.  Henrique  em  certo  tem- 
po, -jue  as  mais  das  noites  no  meio  do  sono 
acoríava  cheio  tle  pavor  E  começando  a  re- 
2ar  sem  saber  o  qne,  logo  começava  o  PsaU 
mo  d;Pnlxáo,  que  começa  :  Deus  Deus  meus 
respiciin  me,  que  éonjcsn-o,  qnecoritf.o,  que 
Chiisú')  nosso  Senhor  disse  na  Cruz  vendo-se 
naquele  nliimo  irai  alho  desan;parado  do  Pa- 
dre Fjerro  ,  e  de  todas  as  creaiuias.  A  contí- 
nua r(peli<  áo  deste  P.«^almo,  qiicscm  qnei  er  se 
lhe  vidia  á  hòca ,  e  a  lembinnca  do  prii:<?i- 
pio  deUí  irazifio-no  inui  assun. brado  quí^ndo 
estava  icordado,  como  quem  se  receava  sem- 
pre detfibulaçóes.  E  assim  ini  dia  poíto 
diante  ie  um  Crucifixo  lallnva  coin-eilc  em 
voz  alta  (•  com  desconí-oladíis  la'.',r'n  ns,  di- 
zendo :  t\  de  miui ,  Senhor  Ikos,  é  isto  por 
ventura  qiercrdes  vós  que  de  r.ovo  leve  eu 
oulra  Cru.  com  vosco ,  ou  seja  cruciríado 
neila?  se  asim  é,  ac  aliai  já,  rooo-\os,  de  sa- 
tiiíazer  rese  triste  corpo  os  tornemos  de 
vossa  innoctnie,  e  santíssima  IMuilc,  nas 
sedo  (oníigo  e  lazei  que  <(  n)  íe,  €  confan- 
ça   em  vossa  ijuda  pcisa  ventcr  l(  lio  (•  i^c- 


20(5  Vida  f>n  P.bvto 

nero  de  trabalho.  NiTo  tardou  muito  ?.  cm 
que  cLuínuentc  lhe  represei tár.i  aíjuelle  r>- 
soíTibra mento  nocturno  ,  com  a  qual  lhe  a<ii- 
(Tirão  extraordinários  trabalhos,  de  que  ião 
conveíii  fazer-se  menção  nesta   hislori.i;  os 
quaes  indo-sc  aiignicntando  cada  tua  vérno 
a  crescer  tanto,  eser  tão  intoleráveis,  c^ie  o 
chegavão,  como   tle  seu  natural  era  f/nco, 
ao  derradeiro  e-trenio  da  vida ,   e  unt  vez 
lhe   succedeo   estando   fora  do  .Mosiefo ,   e 
querendo-se  recolher  a  dormir  já  tarde,  dar- 
liie  um  desmaio,  e  cortamento  de  forç;s  tal , 
qiiG  entendia  de  si  que  a  demasiada  frqucza 
o  havia  de  fazer  desfalecer,  e  acabar  lojo.  E 
asfeim  jazia  sem  bulir,  c  tão  mortal  ,  qie  em 
nenhuma  veia  do  corpo  tinha  pulso.  VMidi>-o 
t;d  um  homem  virtuoso  seu  devoto,  cue  era 
presente  (qne  o  Santo  tirara   de  gravís  peo- 
cados,  nío  i;em  grande  custo,  e  trahabo  seu) 
acudio  de  pressa  lançando  muitas  lagimas,  e 
saltando-liie  o  coração  de  dor,  por  ^er  se  ti- 
nha ainda  ah^^um  alento  devida.  iMjS  achou- 
lhe  o  coração  tão  adi)rmecido,   q\c  não  pj- 
recia   fazer  iiíais  movimento  quese  íura  de 
um  homem   morto.   Então  vencdo    de  dor 
caindo  sobre  ellecom  lagrimas  en  fio  e  pran- 
to em  grita  :  O'  Deos,   dizia,  >ede  como  é 
acabado  hoje  aquelle  cxcellen  te  .^oração ,  que 
vus  hospedou,  e  trouxe  em   »i  tão   longos 


Fr.  Henltqfe  íSuso.  ^07 

anos  com  uma  virtude,  e religião  fora  do 
ciomum,  e  que  com  palavras,  e  escritos,  que 
corem  pelo  mundo,  vos  deu  a  conhecer,  e 
cou  suavidade  fez  seguir  de  infinito  numero 
díí  liomens  estragados,  e  perdidos.  Enire 
esta  lamentações,  e  magoas,  que  dizia,  pii- 
nliallíe  as  mãos  sobre  o  coração,  e  na  boca, 
e  pcos  braços,  desejando  entender  se  esta- 
va anda  vivo,  ou  se  era  fallecido.  Mas  em 
iienhnia  parte  lhe  achou  movimento,  nem 
pulse  E  na  verdade  elle  eslava  tal,  que  ne- 
nhum cousa  tinha  do  homem  vivo,  mas 
tudo  omo  quem  caminhava  já  para  a  sepul- 
tura. )  rosto  inflado,  e  amarcllo,  e  a  buca 
negr;.  Neste  estado  esteve  tanto  esjiaço,  em 
quani  se  pudera  bem  andar  uma  milha  de 
Allcnniha.  Mps  em  quanto  a^sín»  jazia  como 
em  ex;isi  ,  eslava  sua  alma  gozando  não  me- 
nos oljecto  que  o  mesmo  Dios,  e  a  divin- 
dade ,  »  aquelle  que  só  é  verdadeiro  ,  e  a 
mesma  erdade,  e  a  unidade  sempiterna.  E 
já  antes  |ue  começasse  a  cair  reste  desfalleci- 
m'*ento  ,  ?  Iransporlar-se  ,  tiirha  entrado  eni 
brandos?  devotos  colloquios  com  Deos,  di- 
zendo d6ta  maneira:  O'  Acrilade  eterna, 
cujo  ine:<iauslo  abvsmo  está  encuberto  a 
toda  a  cretura  :  Eu  pnlire  servo  vosso  q!:an- 
to  ao  que  entendo  de  mim,  e  da  fraq^u/a 
em  que  nu  vejo,  sinlo-n:e  chegado  ao  dcna- 


to  3  VíDi  DO  Beatíj 

cieiro  termo   da  vida.  Por  isso,   Deos  Omn- 
potunle,  íallo  com  vosco  nesta  uitinia  lioii, 
coiu  vosco  a  quem  ninguém  póile  /iientir  a 
qiíein  ninguém  pó»le  en^^janar,  pois  tudo  os 
é  patente  e  manifesto.  Vós  só  sabeis  »>  |Ue 
passa  CMtre  nun»   e  vós.    Vussa    henigni^de 
e  misericórdia    invoco   Clementissimo    íli- 
delissinio  Pai:    e  su  alíjuma  liora  me  dtA^iei 
para  outro  algum  oI)jecto  fora   da  snhfaoa 
verdade,    peza-me,   Senhor   Deos,    denodo 
coração,  pedindo-vos  que  com  vosso  pccio- 
so  sangue  laveis  este  erro,  segundo  vos*  cle- 
mência, e  minha  nece-^sidade.  Lemhíevos, 
Senlior,  como  quanto  foi  em  mim  lourvi,  e 
exalcei    por   todo  o  discurso  de  minhaVida 
aquelle  puríssimo,  e sagrado  Sangue,  (j/e  na 
Cruz  derramastes.  Este  fazei  vós  que  W  pu- 
rifique   e  alimpe    de  todo  o  peccado   íjora  , 
que  vou  passando  desta  vida.  Peço-vo.v  .3an- 
los  do  Ceo,   e  a  vós  em    particular    moro- 
síssimo   Pai  e  Bispo    S.  iNicoláo,    qu   lodos 
juntos  de  joelhos,  e  com  as  niáos  letntadas 
façais  oração  por  mim  ao  Senhor,  que  me 
dè    boa    morte.    O'  puríssima    e  eslarecida 
Virgem  i\Iaria,  dai-;ne  ajora  a  mão   aijuella 
mão,  digo,  piedoslíslma  ,  e  vo^sa,  frt esta  ul- 
tima hora  recebei  minha   alma  di^aixo  de 
vossa  Fé,   e  amparo,    ]>ois  depoií  de  Deos 
não  tem  meu  coração  outro  gosic^  nem  au- 


Fa.  TlE"'íP.iQrE  Sus^.  209 

tra  copsolíção  senão  a  vós  ó  Senhora  e  Mãi 
niinha  :  e»;  vossas  niáos  encommenclo  meu 
es|úritô.  Ah  suavíssimos  espirlios  .-Jiigelicos, 
lenibre-vos,  rogo,  como  em  toda  a  v*<Ia 
bastou  só  para  me  alegrar  e  enclur  de  gosto 
oiivir-vos  non)ear.  ÍA-tid^re-vos  quantas  ve- 
zes no  meio  de  grandes  tribulaçoens  me 
acudistes  com  festas  e  passatempos  do  Ceo  , 
e  quantas  me  defendestes  de  nieus  inimigos. 
Eia  espirites  gloriosíssimos,  agora  ^stoii  em 
extrema  neces-idnde  evi.njonia,  ai/ora  !i<i  ml- 
ster  que  me  ajudeis.  Por  laiito  acudi-me  ago- 
ra ,  eguardai-me  da  vista  temerosa  e  feia  de 
nfeus  inimigos.  Louvo-vos  Deos  Omnipoten- 
te, edoii-vos  graças  porque  fostes  servi(lo  dar- 
n-e  nesta  hora,  em  que  aíalu) ,  um  juizo  per- 
feito, e  uma  i\izfio  e  coniiecimeuto  ( laro  ,  e 
vou  deste  mundo  inteiro  e  íii  uie  na  Fé  (Ja- 
tlíõlica  sem  duvida,  nem  arreceio:  e  de  boa 
vontatíe  perdò  a  lodos  aquelles,  que  algu- 
ma hora  me  derão  desgosto,  assim  couio  vós 
peiíloastes  estariílo  na  Liruz  aos  mesmos  ,  (jue 
vos  mataváo.  Senlior  meu  JFSU  Clnisto, 
\allia-nie  o  vosso  sacratíssimo  corpo  ,  que 
boje,  aituhi  que  fraco,  recebi  na  Missa;  e 
leve- me  diante  de  vosso  divino  rosto  :  e  esta 
uhima  oração,  que  neste  estado  vos  offere- 
ço  ,  qneií)  «jue  soja  por  todos  os  meus  devo- 
us  filhos  e  liiiias  espiritúaes  ,  que  por  razuo 


210  Vida  do  Beato 

cie  amizade,  ou  de  confissão  tiverão  trato, 
ou  conliecimento  coiiiiso.  E  assim  como  vó-> , 
misericorcliosissimo  JI-  SU  estando  para  ren- 
der o  espirito  com  sumiiia  confiança  encom- 
mendastes  ao  Padre  Eterno  vossos  amados 
discípulos  ,  peço-ros  que  com  o  n:esmo  amor 
os  li.ijals  por  encomnienilados  a  tcs  para  llies 
dardes  santo  e  bemaventurado  fim.  Agora 
de  verdade  dou  as  costas  a  todas  a*s  crealu- 
ras  vis  e  mortaes;  e  íaço  de  mim  entrega  á 
mesma  divindade,  fonte  e  origem  primeira 
da  salvação  eterna.  'i'endo  dito  esUis  pala- 
vras, e  outras  mnitas  a  este  modo  ,  que  en- 
tre si  com  devação  e  amorosamente  íallava, 
começou  a  cair  no  de  mai  >  que  temos  con- 
tado, e  ficou  arrebatado.  ]\ias  cuidando  to- 
dos ,  e  elle  também  que  morria  ,  tornou  em 
si;  e  o  coração,  que  estava  sem  movimento, 
e  mortal,  resuscitou.com  novo  alento  de  vi- 
da ,  os  membros  cansados  e  enfermos  cobra- 
rão saúde,  e  elle  suas  forças  primeiras. 


Fr.  Hn'-r.TorE  Suso.  ail 

CAPÍTULO     XXXill. 

De  como  foi  revelado  ao  Santo ,  em  que  ma^ 
ncíra  devem  os  ajjii^idos .  ojferecer  a  Dcos 
suas  irihidacoes  com  louvor  e  íiracas. 


l 


-jStando  o  Sinto  Fr.  Henrique  um  dia  com 
profunda  imaginação  considerando  seus  tra- 
biilios,  e  batalhas  contínuas,  e  passando  to» 
das  pela  íuemona  ,  e  notando  nt;llas  os  escon- 
didos, e  uíaravilhosos  juiios  de  Deos  ,  virou 
para  o  Seniior  com  uni  suspiro  saído  d'alma, 
etiisse:  Estas  cruzes,  SenlioPj  eafíiicçõts  com 
que  vós  permittis  que  exteriormente  eu  seja 
perseguido,  ao  parecer  de  fora  não  tem  ne- 
niiuma  diiferença  de  uns  agudos  ahrollios,  e 
espinhos  duros,  qjic  me  passão  a  carne  ,  e  en- 
cravão  os  ossos.  Pelo  que,  piedosíssimo  Se- 
nlior,  fazei  vós  que  s  íia  algum  fru<  lo  saboro- 
2j,  fruct»»  de  doutrina  pia  ,  e  saudável  da  as- 
pereza destes  espinhos,  para  que  os  miserá- 
veis atribulados  levemos  com  mais  paciência 
o  pcs4)  de  nossas  crnzes,  e  saibanif»s  tirar 
delias  hiuvor  e  gloria  vossa.  Depois  (juc  o 
Santo  continuou  um  grande  espaço,  e  muito 
de  proposiso  esta  petição ,  transportf»u-se  al- 
gumas vezes  dentro  de  si ,  e  sobre  si,  n'ura 
quieto  roubo  da  alma,  e  brando  alheio  de 
todo  sentido  corporal,  ouvio  o  Senlioi-,  que 


a  12  Vida  do  Beato 

suavemente  llie  dizia  estas  palavras  :  Hoje  por 
certo  te  quero  descobrir  urna  exrellencia  ,  e 
diijnidade  altíssima  d«3  minha  vida  ,  e  ensi- 
nar-te  coino  todo  o  afíligido  deve  offererer  a 
Deos  com  louvor  o  agradeeimeníí)  os  traba- 
lhos, que  lhe  dá.  Tanto  que  isto  oii^io  oSar.» 
to,  começou  a  derreter-se-lhe  o  coração  em 
grande  suavidade  nascida  de  nma  abundân- 
cia sem  medida  de  cousas,  que  naquelle  ex- 
tasi  sentia  communicareai-se-lhe.  E  esten- 
demh)  os  braços  de  sua  alma  pela  imuiensi- 
dade  do  Ceo ,  e  por  a  redondeza  da  terra  , 
dava  graças  a  Deos  com  entra  nliavel  aí  feito 
do  coração,  c  com  uma  inefável  devacãf)  di« 
zendo  desta  matieira:  Até>^ora  Senhor  meu 
vos  louvava  em  meus  escritos ,  atégora  vos 
celebrava,  e  engrandecia  cont.mdo,  e  tra- 
zendo em  gloria  vossa  tudo  (juanto  pode 
haverem  todas  as  crealuras,  que  sejaaglada- 
vel,  e  deleitoso,  que  seja  saboroso,  e  apra- 
zivel.  Mas  agora  sou  forcado  a  romper  os 
ares  com  uma  nova  musica  ,  e  entoar  um  lou- 
vor dt;'^act)^lijma(lo,  et.d,  qtie  eu  lyesmo 
não  tive  ja  ukÚ'^  nolicia  delle,  senão  foi  hoje 
que  vim  a  aprender  suas  adversidades.  Co- 
mecemos Ioíi<»  assim  du  lodo  coração,  e  t:om 
a^  entranhas  de  ndnha  abna  desejo,  Senhor, 
que  iodos  os  desgostos,  e  trahalh(»s,  que 
uesla  \ida  itnho  paasado,   e  assim  todos  os 


Fr.  HE^RIQtJE  Suso.  âi3 

Tr?.balhos,  e  angustias  de  todos  os  outros  ho- 
mens, as  dores  de  todos  os  feridos,  os  tor- 
mentos de  todos  os  eníernios,  os  suspiros 
dos  anojados,  as  lagrimas  dos  tristes,  os  des* 
pi'ezos  e  aíroiitas  dos  qiu;  andão  nlro[)elia- 
dos  do  rnmido  ,  a  miséria  dns  viuvas  desam- 
paradas, e  dos  oríãos  sem  remédio,  a  sec- 
cura  da  fome,  e  sede  dos  pofjres,  e  necessi- 
tados, todo  o  sancriie  que  lodos  os  Alarlyres 
derramarão,  a  renunciarão  da  própria  von- 
tade de  todos  aíjuelles,  que  nílo  pnssárão 
ainda  da  ílor  e  vigor  dn  idade,  as  aspeins 
e  rigorosas  penitencias  de  quaeiquer  servos 
'í]||,Deos,  todas  as  afílicções  e  dores,  assim  pu- 
l)licas  como  secretas,  qne  ou  cu,  ou  qual- 
quer outro  hí/uiem  so^^eito  a  desaventnrns 
padeceo  no  cor[)o  ,  na  fazenda,  na  lic^uM  , 
tanto  nas  prosperiílades ,  como  nos  tcujpos 
contrários,  o  tudo  em  fim  quanto  cada  ho- 
mem alj^uma  hora  ha  fie  padecer  até  o  fim 
do  mundo,  dií^o  que  todas  estas  cousas  sejào 
para  eterno  lotivor  vosso ,  Padre  Allissimo, 
Deos  e  Senhor  meu,  e  para  i^loria  e  honra, 
em  annos  sem  fim,  de  vosso  unigénito  Filho, 
í{ue  por  mim  padereo.  E  juntamente  eu  pr)- 
líre  servo  vosso  desejo  acudir,  e  supprir  fiel- 
mente |)or  todos  aquelles,  que,  sencííí  atlrihu- 
lados,  fuTo  souherno  por  ventura  usar  hem  de 
suas  cruzes  louviudu-vos  tom  paciência   e 


ai4  ViDÀ  DO  Bi:vT« 

agradecimento;  e  em  noiiie  Jc  todos  vos  of- 
fereço  todos  stíus  trabalhos  parj  vos^o  lou- 
vor,  fosse  qualquer  que  íosse  a  lencão  com 
quo  os  passarão.  E  os  niesiDos  vos  offerero 
por  elies,  e  louvor  perpetuo  de  vosso  Filho 
t:niweiúlo  rruíliuente  alHi^ido,  e  para  con- 
soiacão  dos  mesmos  altrihuiados,  ou  sejào 
vivos,  ou  mortos.  Com  vós  outros  íallo  to- 
dos quantos  viveis  tristes  e  desconsolados, 
todos  quantos  juntamente  comigo  traceis 
vossas  cruzes  ás  costas :  olhai,  rogo-vos  ,  para 
mim  ,  e  ouvi  o  que  vos  quero  dÍ7er  com  nt- 
tenção  :  He  na  verdade  justo,  é  acertatlo  que 
nos  alegremos,  e  consolemos,  aluda  que  nyj 
tratados,  olhando  para  Chriòlo  JESU  cal»e- 
ca  nossa  ,  e  Senhor  de  todos,  que  primeiío 
que  nós  provou  tantos,  e  tão  vários  trtiba- 
Ihos,  que  eo)  quanto  viveo  na  terra  nunca 
jamais  teve  um  dia  de  gosto.  Certo  e  que  se 
em  uma  famiiia  de  <;enie  baixa  e  pobre  não 
houvesse  mais  que  um  homem  rico,  toda  a 
geraçíio  se  alegraria  por  similhante  senhor. 
Pois,  ó  Piíssimo  JESU,  cabeça  escl.irecida 
de  todos  os  que  íuid.unos  sossobrados  com  o 
peio  de  nossas  cruzes,  acudi-nos  Senhor.  E 
quando  por  fraqueza  humana  faltarmos  na 
verdadeira  paciência  em  qualquer  a*lversi- 
dade,  remedeai  vós,  suppri ,  e  aperfeiçoai 
Jiaute  do  Padre  celestial  o  que  nos  fallar; 


Fr.  Henrique  Srso.  21 5 

li  mbre-vos,  Senijor,  que  já  alguma  liora  soc- 
correstes  a  um  servo  vo5so  vo  meio  de  seus 
inales  quasi  desesperado  dizcíndo-Ilie:  Es- 
íoiça-te  filho,  ollia  para  mim.  Kis-me  aqui 
que  também  nasci  de  gerarfio  ilhistrl.vsiuKí ,  e 
sempre  vivi  po'ue  neste  mundo,  juntamente 
era  o  mais  delicado  deile  ,  e  juntamente  o 
mais  miserável.  Com  grandes  alegrias  nasci 
nelle,  e  todavia  sen)pre  me  cercaváo  dores  , 
e  cruz.  Eia  pois  todos  os  que  somos  soldados 
valoroáos  deste  soberaníi  Imperador,  nfío 
desmaiemos;  todos  os  que  seguimos  tal  Ca- 
pitão ,  armemo-nos  de  varonii  esíorco ;  e  pois 
vamos  traz  elle,  não  levcm(-s  de  má  vontade 
nossa  cruz,  que  na  verdade  se  das  adversi- 
dades se  não  tirara  outro  intcresie  maior,  que 
parccermo-nos  tauto  mais  com  aqucllc  ela- 
rissimo  espelho  JESU  Christo  Senhor  nosso  , 
quanto  mais  de  verdade  o  imitamos,  era  as- 
saz grande,  e  muito  para  estimar.  Antes  te- 
nho para  mim  que,  se  Ueos  depois  desta 
vida  houvera  de  dar  igual  premio  aos  que  pa- 
decem ,  e  aos  ípie  viveu»  contentes,  ainda 
então  haviamos  de  escolher  os  trabalhos  por 
nenhuma  outra  razão  senão  só  por  nos  con- 
formarmos com  Christo,  pJ5r(]ue  a  regra  do 
amor  é  conformar-se,  e  unir-se  o  amante 
com  o  que  ama  como  e  por  qualquer  manei- 
ra que  pôde.  Mas  que  razão  póile  haver,  JESU 


Iií5  ViDi  DO  Beato 

Rei  invictissinio ,  pnia  nos  atrevermos  a  in- 
teijtar  ou  desejar  parecer-nos  com  vosco  nos 
trabalhos  ?  O'  quanta  difíerenca  ha  dos  que 
vós  padecestes  aos  nossos!  Vós,  inen  Senhor, 
só  sois  aqueile  que  passastes  gravíssimos  ma- 
Ifcs,  sem  nunca  merecerdes  nerdium.  E  qual 
será  o  homem  (jue  se  possa  gabar  que  não 
fez  nunca  por  onde  mereça  uni  infortnnio, 
e  que  se  bera  pôde  acontecer  por  uma  parte 
padecer  contra  razãí) ,  por  outra  não  !he  pôde 
íahar  por  onde  seja  bem  dif^no  delies.  Por 
onde  todos  os  que  alguma  hora  íouios  afíli- 
gidos  juntos  em  uma  grande  roda  vos  assen- 
tamos Senhor  no  meio  delia  ,  e  diante  de  vós 
alargamos  as  sêccas  veas  tle  nossas  almas  abia- 
sadas  de  sede,  e  desejos  de  beber  dessa  fonte 
perv^Mine  de  vida  ,  e  de  graça  que  sois  vós.  Co- 
stuma aterra  quando  abre  ícndas  de  sec* 
cura  embeber  eai  si  muito  mais  aguas  com 
que  largunente  a  rega  o  Ceo,  assim  nós  pec- 
cadores  fracos  sem  humor  de  virtudes  greta- 
dos de  mil  íontes  de  vicios,  quanto  mais  vos 
devenios,  tanlo  com  mais  ardentes  desejos, 
e  mais  sequiosos  corações  Jios  abraçamos  com 
vosco,  e  segundo  ^ós  mesuí.»  por  vossa  sa- 
grada boca  nos  e^commendastes  queremos, 
apezar  do  njundo  totlo  ,  lavar-nos  nas  corren- 
tes copiosissin)as  de  vossas  chagas,  e  em  to- 
das as  maneiras  ficar  limpos ,  c  purilicados 


por  esta  via  de  todo  o  peccrJo.  Díinde  nasce- 
rá serdes  perpetuanunitti  ioinado,  e  glori- 
ficado de  nós,  e  nós  alcançaremos  de  vós  a 
graça  ;  que  tal  é  a  virtude  de  vosso  precioso 
sangue  ,  'jue  basta  com  sua  efíicacia  para  ti- 
rar toda  a  fealdade,  que  o  peccado  causa  em 
nossas  almas.  Depois  que  o  San  lo  gozou  por 
grande  espaço  desta  quietaçião  em  quatito  as 
cousas,  qne  temos  dito,  se  lhe  revelavão,  e 
assentavão  com  firmeza  no  centro  d'alma , 
levantou-se  alegre,  e  contente,  e  deu  gra- 
ças ao  Sc.Mhor  por  esta  mercê, 

CAPITULO     XXXIV. 

De  como  foi  r anelado  a  Fr.  Henrique  por  que 
meios  consola  Deos  neste  mundo  aos  aírí' 
balados  em  seus  trabalhos, 

VJ  M  dia  de  Paschoa  andando  o  Santo  bem 
assombrado  ,  e  presenteiro  ,  sentatlo  no  seu 
banco,  em  que  costumava  a  repousar  as  bre- 
ves horas,  que  tomava  para  o  sííuo,  desejava 
entetuler  de  Deos,  que  consolação  havia  do 
dar  nesta  vida  áquelles  ,  que  por  seu  amor 
padecessen»  muito,  (loui  esta  consideração 
se  arrebatou  em  extasi  ,  e  por  meio  de  uma 
divina  ill  iminaçào  leve  esta  resposta  :  Ale- 
grem-se  de  todo  coração  ,  c  com  auimo  in- 


»lS  VlDADoBrVTO 

Tenclvel  todos  os  que  vivem  em  trabalhos  ,  e 
leváo  suas  cruzes  com  verciacieira  resignação: 
porque  podem  estar  certos,  que  llies  ha  de 
render  esta  paciência  4,'ra n d iss imos  galardoes, 
fjue  ahsim  como  na  opinião  de  muitos  íoráo 
miseráveis  ,  e  mal  afortunados,  assim  muitos 
mais  hão  de  receber  perpetuo  e  celestial  gos- 
to de  sua  particular  bemr.vcnturai]ça  ,  e  do 
louvor  que  para  sempre  hão  de  ter.  Comigo 
morrerão  aqui,  con5Í.^'o  tambcm  aiegremeute 
resurgirdõ.  Mas  altíni  disto  ainda  lhes  hei  de 
comniunicar  mais  três  gastos  particulares  de 
tanta  honra  e  exccUencia  ,  que  ninguém  po- 
derá conheceriina  valia.  O  piiiiiciro  é  que  ha- 
verão de  mim  licença  pnra  escolherem  no  Ceo 
e  na  terra  o  que  quizcrem,  e  sempre íílcança- 
ráó  o  que  desejarem.  O  outro  é  que  lhes  darei 
mlniia  divina  paz,  que  nem  os  Anjos,  nem  os 
demónios,  nem  os  homers,  nem  (re^Uura  al- 
guma llit  s  poderá  tirar.  O  terceiro  é  que  de 
contínuo  estarei  em  braços  com  suas  almas  , 
e  com  a  minha  boca  na  sua  com  tanto  amor, 
e  com  Ião  particular  e  entianhavel  assistên- 
cia ,  q»:e  sejão  uma  só  cousa  comigo,  e  neste 
estado  permaneefKj  eternanjente  ,  ellesvivão 
em  mim  ,  e  eu  nelles.  K  assim  como  ne- 
iihuuia  cous.)  «anca  lanlo  a  um  entermo, 
como  ,  quando  peile  alj;uma  cousa  com  in- 
stancia ,   nào  lhe  fazerem  a  Vontade,   a&sim.. 


Fr,  H£^-^^T':)^::  S-jí^o.  219 

pelo  brove  cspsro  ,  que  agora  p2de<em,  não 
h;ivcrá  jamais  iiíierpí»iaçio  eiu  nos^o  amor, 
nem  de  um  só  momento,  mas  começantlo 
urxja  vez  aqui  gozar-nos-heiuos  tlelle  eterna- 
mente quanto  puder  sofrei'  a  fraqueza  huma- 
na, e  mais  ou  rrseiiQs,  sejuudo  o  estado,  e 
a  natureza  de  cada  um.  Com  estas  novas 
de  não  pc(]'r:?no  gosto  ficou  o  Santo  por 
estremo  ale:(re,  e  orno  tornou  em  acordo 
saío-se  da  cella  ,  e  entrando  no  or.itorio  co- 
meçou a  rir  muito  de  vontade  e  de  maneira  , 
que  soava  toila  a  ca?a  ,  e  clieiv)  de  co'ilenta- 
nicnto  íÃizii!  enlre.si:Se  no  mundo  lia  homeui 
algum,  que  passasse  tantos  inftirlnnios,  ap- 
pareça  aqui,  c  ouçamos  suas  queixas  ;  que 
eu  de  num  cháamente  confesso  e  affuiiio  , 
que  nunca  passei  nenhum.  Eu  de  verdade 
não  sei  que  cou:".a  é  cruz  ,  ne:n  irahalho,  tí 
tenho  provaílo  heni  que  cousa  é  gosto  ,  e 
alegria.  Deruo-me  Heenca  larga  para  escollier 
o  Éjuequizer,  cousa  que  de  forca  ha  de  faltar 
a  muitos,  que  levào  errado  o  (.auíinho  da  ver- 
dade, que  quero  eu'níais,  ou  que  mais  posso 
desejar. í'  Acabando  estas  palavras  virou-se 
para  Deos  com  todo  o  entendimenlo,  c  disse 
assim  :  Peço-vos,  Verdade  eterna  ,  JESU  pie- 
dosíssimo ,  que  me  deis  a  entender  estas 
cousas,  quanto  se  poderem  declarar  por  ter- 
mos humanos,  porque  totalmente  as  igno- 


'22a  VíD.i    DO    BzVTO 

rãò  muitos  destes  cegos,  que  andáo  pelo 
mundo.  Logo  liie  foi  dadi»  interiormt-nie 
esta  dodtriíia.  TocIíís  aqiieiies  que  bem  e 
direitamente  se  governâo  na  mortiíicaçào  ,  e 
renuijciação  própria,  que  é  r.ecessaria  liaver 
no  seivo  de  Deos  primeico  que  tudo,  de  ni:i- 
neira  que  para  comsigo ,  e  {5ara  com  todas  as 
cousas  do  uíundo  seja  como  morto  (que  lia 
Lem  poucos,  que  tal  facão)  estes  taes  per- 
dein-se  tanto  de  vista  a  si  rae5raos,  e  tanto  se 
alongão  de  si  para  Deos  com  os  sentidos,  e 
com  a  alma,  que  quaii  se  d-jsccuhccem  ,  e 
cliegão  a  nao  saber  parte  ile  si,  se  não  é  para 
seaciiaiem,  e  alcançarem  em  sua  primeira 
origem,  que  é  o  mesmo  Deos,  lauto  a  si  como 
a  tudo  o  mais;  e  daqui  lhes  nasce  levarem  tan- 
to gosto  de  todas  as  obras,  que  Deos  faz,  como 
se  Deos  nãoíòra  oauior  delias,  mas  como  se 
lhas  mandara  fazer  a  elles  a  seu  modo,  e  por 
sua  trat  a.  E  esia  é  a  razào  porque  se  lhes  dá 
licença  para  escolher,  e  desejar,  pois  o  Oco 
lhes  obedece,  e  a  terra  os  serve,  e  todas  as 
creaturas  estfio  a  seu  mandado  em  tudo 
aquiib»,  que  fazem,  e  no  mesmo  tjuedeixão 
de  fazer.  Homens  desta  mauiira  com  ne- 
nhuma tiibulacão  senlem  des^^^osto  na  alma, 
porque  eu  chamo  (h'sgosto  d'.! Ima  quauílo  a 
■vontade  com  entendimento  deliberado  de- 
seja de  se  \er  livre  da  iribularáo.  Que  quanto 


Fr.  Hexiuqce  Scso.  a2i 

tos  sentidos,  e  ao  homeni  exterior  ,  tamhem 
estes  de  quem  tratamos  sentem  o  hem  e  o 
mal,  como  os  outros  homens  ;  antes  alguns 
sentem  os  males  mais  que  as  outros  ,  por  te* 
rem  a  nature/.a  eníraquecida  e  «astada ; 
mas  quanto  ao  interior  não  tem  nelles  ne- 
nhum higar,  c  i.inda  quanto  aí)  depois  pas- 
sao  seus  trabalhos  sem  fazer  desconcertos, 
nem  raoslrar  irnpaciencia<í :  farta-os  Deos  ahi 
nesses  corpos  mortaes  de  i)ens3ltissinios  por 
meio  de  uma  extasi,  quanto  nesta  vida  podo 
ser.  Ue  til  maneira  que  em  todas  suas  causas, 
e  em  todo  succcsso  ^Mízào  de  uma  paz,  e  ale- 
gria perfeita,  e  inieira  e  permanente;  por- 
que na  divina,  essência  aonde  elles,  se  lhes 
vai  beai,  já  checarão  com  a  alma  ,  não  tem 
lugar  dòr,  nem  tristeza,  mas  paz  e  alegria, 
senão  é  em  caso,  que  por  sua  culpa  ou  des- 
cuido caem  em  cousenliniento  de  peccado , 
porque  delle  nasce  logo  a  tristeza  a  quem  o 
faz,  e  quant»)  s'e  enlodâo  mais  nos  vicios, 
tanto  lhes  vai  faltando  esta  felicidade,  e  boa 
ventura.  Mas  em  quanto  se  guardão  de  pec- 
car  neganilo  e  encontrando  sua  própria  von- 
t  de,  e  (hegru)  a  tal  esta  .o,  que  bc  não  pode 
senlir  nelle  liòr  ,  nem  des^oMo  da  alma  (ou 
tem  passado  a  turmos,  que  não  tem  a  dor  em 
conta  de  dòr,  netu  a  aftlicção)  de  maneira  qtio 
em  tudo  achão  verdadeira  piz  ^  ja  então  aà" 


522  Vida  DO  Br.ÀTO 

sento  (^ue lhes  vai  Leni  <lc  verdade.  V  toclo  este 
bem  nasce  de  cortarem  por  si ,  e  inoi  ti  ficarem 
os  appetitos  ;  porqjie  assim  tugintlo,  e  saindo 
de  si ,  cori  crr»  para  Deos  com  unia  sede  ,  e  de- 
sejo artèenti^simo  da?  cumprir  seus  inar.damen- 
tos  j  e  guardar  sua  lei ;  e  fica-llies  tão  saborosa 
esta  obediência  ,  e  leviTo  tanto  gosio  do  cuni- 
priniento  delia,  que  aciiso  por  suave  e  de» 
leitoso  tudo  o  que  por  p«rniJssão  divina  llios 
succcde,  e  nao  querem,  nem  desej fio  outra 
cousa.  Mas  nfio  se  ha  de  toiíiar  isto  de  ma- 
neira  ,  qi:c  cuidemos  íicão  por  esta  razão  sem 
licença  ,  e  exclnic'Ds  de  fazerem  oração,  e  pe- 
direm a  Deos  reme  lio  em  seus  maJes  ;  por- 
que a  mesma  vontade  de  Deos  é  também  que 
o     roguemos    e   importunemos:    ba-se    de 

entender   sesruudo  unia   ordenada  renuncia* 

1     •    •  • 

cão  ck>  sentimento,  e  do  juizo  próprio  entre- 
gue nas  i;):'ios  de  Deos,  como  fica  dito.  Iúm 
aqui  fica  ainda  un;a  duvida  secreta,  cm  que 
muitos  se  embaraçfio  ,  perguntando-nos  :  E 
quem  me  disstí  a  mim  f.  nu  qr.em  sabe  que  é 
essa  a  'vontade  de  Deos?  A  verdade  é  que  Deos 
é  um  bem  sobre  toda  a  essência  .  ^qual  está 
em  tiulo,e  em  cad*a  cousa  n-ais  presencial,  e 
eniranbavelmcnte  do  (jue  a  mesma  cousa, que 
o  está  em  si,  assim  netibuma  se  yóác  iazer, 
nem  manter  um  só  momento  contra  sua  von- 
tade. JMdS  impossinel  e  lu^o  deixarem  depa- 


Fr.  Henrique  Scso.  2^3 

decer  mni  gravíssimos  tormentos  afjuelles  , 
que  repugnao  sempre  á  ciisposlcào  Jivina,  e 
que,  se  tora  em  sua  niao ,  tomarão  andar 
sempre  ao  sabor  de  seu  gosto.  Estes  tais  não 
tem  mais  paz,  que  os  drenados  do  inferno  ; 
porque  reina  cm  sJias  almas  uma  perpetua 
melancolia.  Mas  bem  ao  contrario  aconte- 
ce a  uma  alma  nua  de  vontade  própria.  Esta 
tem  de  seu  a  Deos  perpetuamente,  e  possue 
verdadeira  paz,  tanto  nos  trabalhos,  como 
nas  bonanças,  porque  cm  efíeito  está  sempre 
com  elia  presente  o  Senhor,  que  criou  e  go- 
verna todas  as  cousas ,  e  que  é  o  tudo  em 
todas.  Como  será  logo  a  estc^s  homens  mo- 
lesta a  Cruz  eafílicçào,  na  qual  vem  a  Deos, 
na  qual  o  achão ,  na  qual  gozão  de  sua  divina 
vontade,  deixando,  e  negando  a  sua  pró- 
pria, como  a  cousa,  que  não  conhecem  ?  E 
isto  é  assim  antes  de  tartarmos  daquellas  il- 
lustradas  consolações  ,  e  celestiacs  represen- 
tações ,  e  dehcias,  com  que  Deos  repetida» 
mente  recrea  ,  e  sustenta  os  seus  amigos, 
quando  mais  aííiictos,  e  desconsolados.  Na 
verdade  estes  já  vivem  dentro  no  mesmo 
Ceo;  por  quanto  tudo  o  que  lhes  succcde  , 
ou  não  succede  ,  todas  as  cousas  ,  que  Deoi 
ordena  ,  ou  não  ordena  em  todas  as  criatu- 
ras ,  são  para  seu  bem  ,  e  todas  os  ajuduo  á 
salvação   eterna.  Fiaalmciitc   por  esta  via  , 


ia4  ViDÂ  Eo  Blato 

ao  que  sofre  com  igualdatle  (ic  animo  f.\ 
adversicUídes  desta  vida  ,  ninda  eslaiido  iieU 
Li  ,  so  lhe  restitue  jiaríe  cio  premio  da  outra  , 
nisto  que  é  gozar  em  todas  as  cousas  paz  e 
gozo  sem  perluibaçíTo,  e  depois  da  morte 
alcançar  a  bemavcniuranca, 

a  a 

G  A  P  I  T  U  L  O     aXXV. 

De   um^  Jilhct  espintual  cio  Eeato  Fr,  Ilen*^ 
rique. 


Quasi 


i  no  mesmo  fempo  linha  o  Peato  Fr. 
Henrique  uma  íillia  espiritual  na  proGssíio 
Dominica,  que  vivia  n  iim  Pthosteiro  cRcena- 
do,  de  uma  villa  ,  por  nome  Isabel  Eslaglin; 
cuja  vida  interior  ,  e  modo  de  proteder  era 
assa's  santa,  sendo  na  verdade  o  animo  inte- 
rior Angélico.  Aquella  excellente  conversão, 
com  que  se  tornou  a  Deos  de  todo  o  corarão, 
era  tão  íorte,  tão  eííicaz,  e  tão  vehemente, 
que  em  um  momento  se  despio  de  iodas 
aqnellas  superlluidades  ,  e  vaidades ,  com 
que  muitos  se  prendem  e  embaratão  para 
Dão  tratarem  da  vida  eterna  como  convém. 
Todo  o  cuidado  desta  serva  de  Deos  era  pro- 
curar com  grande  diligencia ,  conio  seria  en- 
slna<la  nas  doutrinas  espirituaes,a  fmi  de  c\\\^ 
fosse  beui  çncaiuinhada  á  vida  eterna ,    que 


Fe.  HiNRiQrí  Suso.  aaS 

í?ra  o  S€u  uniro  e  insaciável  desejo.  Porém 
asstMitava  com  diligencia   tudo  o  qr.e  por  al- 
guma via  aprendo,  que  podesse  ser  útil  a  si, 
e  aos    oiitios,   paia  alrancar  as  virtudes   do 
espirito;  iinllíiva  as  trahaUiadoras  abelhas,  que 
de  todo  o  género  de  flores,   que  íia  coiliem 
para   o  suave  favo  mel.  Naquelle  IMosteiro, 
aonde  cnire  as  outras  Virgens  consagradas  a 
Deos  vivia  tomo  um  vivo  retrato  de  todas  as 
virtudes,  e  sendo  mui  enferma,  e  falta  de  for- 
ças corporaes  ,  conipoz  uni  livro  assas  gran- 
de, ni)  qual  entre  outras  cousas,  tinha  escrito 
a  santa  Fielioriosa  a  conversação,  o  modo  de 
viver  exemplar,  os  grandes,  e  extraordinários 
favores,  que  receberão  do  Senhor  todas  as  Re- 
ligiosas defuntas  da  mesma  casa.  Cousas  certo 
de  muita  edificação  ,  e  que  despertão  gran- 
íU-niente   os   ânimos  devotos  no  serviço  de 
Deos.  Pois  esía   santa  Virgem  tendo  noticia 
do  Be-ato  Fr.  Heniique,  Ministro  da  Sapiên- 
cia ,   foi  movida  pelo  Ceo  a  procurar  sa!;cr 
com  muita  devacão  ,  e  dillíjencia  a  sua  vida  , 
e  regras  de  espirito  ;   o  que  conseguio   per- 
scrutando com  muita  cautela  ,  e  dissimulação 
a  ordem  ,  por  onde  elle  ,  deixando  atraz  io- 
das as  cousas  da  vida,  penetrava  ao  mesmo 
Deos,  e  coiuo  se  negava  as.im  mesmo  d<»scu 
prin(.'ij):o;   e  tudo,    quanto  colheo ,    po/  cm 
eácrito,  como  já  acima  se  diss.',  c  niais  adian- 


a!i(5  Vida  do  Be\t« 

le  se  tornará  a  contar.  E  nos  primeiros  prin- 
cípios da  conversfio  desta  serva  do  Deoá  ,  lhe 
forão  reveladas  muitas  cousas,  e  muito  altas, 
e  que  só  pertencião  ao  conhecimento,  diíH- 
cultosas  assas  de  perceber.  Con\eiii  a  saber, 
da  singela  e  nua  Divindade;   orno  t<>das  as 
cousas  criadas  súo  nad:i ;   da  resignação  de  si 
mesma;  de  como  se  deve  despejar  a  alma  de 
todas  as  imagens  ,  e  figuras,   para  clu^gar  á 
verdadeira  pureza  de  espirito,  e  outras  m.ii- 
tas  cousas  deste  teor  ,  que  sendo  escritas  coin 
fi^rande  concerto,  e  limpeza  de  palavra*;,  da- 
"vfio  grande  consolação  a  quem  as  lia.  Porém 
liavia  aqui   escondido  um    perigo,  edamno 
oculto  para  os  simples,    e  priucipiautes  na 
virtude,  que  por  falta  da  discripoão  necessá- 
ria fa  qual  ella  ainda  padecia)  podião  torcer 
aquelias  palavras  a  uma  e  ou  ti  a  parte,  acom- 
inodnn(in-as  igualmer.lo  ao  espirito,  e  á  con» 
solaçfio  da  carne,   segundo  que  o  leitor  esti- 
vesse bem  ou  mal  aftecto.  As  cousas  em  tim 
erão  de  grande  doutrina  ,   mas  nem  a  Reli- 
giosa se  podia  bem  desapegar  delias.   Pelo 
q  le  pedio  por  cartas  ao  Beato  Fr.  Henrique, 
Mifiislro  da  Sapiência,    com  grandes  itislan* 
cias  ,  que  a  quizcsse  soccorrer,  e  ajuilar  ,  ti- 
ra.ulo-a  ao  caminho  real ,  plano  ,  e  desemba- 
raçado.  ?>Ias  porque  ella   eslava  ainda  presa 
da  suavidade,  que  achava  naqutil<?s5cus  ^\tíí* 


Frí  IIe^írtque  Suso.  527 

cicios  espiritwaes,  esorcveo-lhe  pedindo,  que 
tltfi:4ados  por  eníf.o  os  priricipios  rudes  tios 
que  começ-rio  ,  a  (loutii::íísse  escrcvc\iíIo-liiG 
das  cousas  líívantada-j   e  altas  ,   que  lhe  tiídia 
apontado.    Ao  que  respoiídeo    o  MinisVro  da 
Sapiência:  Se  desejais,  fdha,  coiliíicar-vos  de 
mim    nestas  cousas  altas   peia  grande  admi- 
ração, que  vos  rausão.  para  (|ue  conl<eccn- 
do-as  bem ,  possais  com  maior  clai-c7.a  íallar  do 
espirito,  em  poucas;  palavras  responderei,  mas 
taos  que  não  sejão  de  gosto.  Por  quanto, mais 
depressa  se  podem  daqui  originai'  erros  per- 
niciosos, que  ediCcação,  e  dcuitrina  provei- 
loia.   A     Verdadeira  santidade,    e  períeiçáo 
não  está  em  palivras  bem  compostas  ,  e  for- 
mosas ,  mas  uas  boas  ojjras ,    e  íeltos  da  ver- 
dadeira virtude  :    e  se  vos  niuve  a  íuzer  per- 
guntas deitas  cousas  altas  desejo  de  as  poder 
a-leanear  com   a  vida,  íazei  o  tuie  vos  aceu- 
seiho ;   e  íleixadas    por  ora    estas  levantatias 
questões,  t''atai  das  eousas,  que  mais  vos  scr- 
venj  para  o  aproveilauunto  daluia.  Conio  le- 
nho entendido,   sois  Religiosa    enrerrada  ,  c 
ainda  nioça,   pouco  exercitada:    pelo  que  a 
vós  ,   e  ás  siuiilhantes  a  vós  ,  o  que  uuiis  ( on- 
véin  é  saber  como  hão  de  comeear  a  vida  esni* 
ritual,    iuqniiindo,   e  apremleudo   bc;us  ,    o 
saudareis  exemplos  <la  vida  aeti\a  ,  coméui  a 
saber-  o  ccnno  aproveitou  ar^u.dle,  nu  aq'.!el'i' 


âaS  Vjd\  do  Beito 

servo,  e  amigo  de  Deos,  e  como  toilos  forão 
)Dor  este  caminho,  dando  principio  á  sua  vida 
espiritual,  e  exercitanclo-se  em  primeiro  lu- 
garnavida,  e  paixão  de  Gliristo,  ecjueoonsa» 
padecerão  mais  aturadamente,  como  segovcr- 
r.árão  no  exterior,  e  interior,  se  fováo  trata- 
dos de  Deos  com  mimos ,  ou  com  seccura  ,  e 
em  fim  como  e  (fuando  chegarão  a  perderas 
íisrnras,  e  similhancas  das  cousas.  Esies  sfio 
t)S  meios  por  oníle  um  principiante  se  con« 
vida,  e  encaminha  pf.ra  chegar  á  períeirão, 
e  ao  que  mais  cumpre  para  a  salvação  ;  que, 
ainda  que  Deos  pôde  dar  ludo  isto  em  um  mo- 
mento, todavia  não  o  castunja,  e  de  forca 
lia  de  haver  trabalhar  e  traballiar  para  se  al- 
c;incar.  A  isto  replicou  a  sania  d«ínzel!a  por 
outra  carta  com  e<ras  ]):ílavias:  Não  é,  meu 
Padie,  minha  tenção  atulartraz  flores,  e  ele- 
gâncias de  palavras,  ou  subtilezas  de  concei- 
tos: o  que  summamontc  desejo  é  aprender 
como  hei  de  %iver  uma  vida  santa  e  pura  , 
e  para  este  fi:u  tenho  assentado  comigo  ca- 
minhar um  caminho  direita  e  ordenada- 
mente, e  ainda  que  seja  á  custa  de  muito 
des.;j  )Sto  e  quebiantamenlo  meu.  Se  é  ne- 
cessário fugir ,  se  padecer  ,  se  m«)rrer ,  se 
ou  ira  cousa  maior  que  estas ,  aqui  estou  de- 
terminada, c  offererida  a  fa7afr  chammente 
tudo  o  que  pudor  slt  parto  para  uie  levan- 


F».  Hf-NRiQTTE  Srso.  229 

tar  a  inais  sobida  perfticãc  do  Ceo:  etião  tos 
de  pena  a  fraqueza  dfí  minha  natureza  ,  que 
em  confiança  do  poclei- divino  ,  não  arrecea- 
rei tousa  nenhuma  de  quantas  me  qe.izerdes 
mandar  fazer,  ainda  que  enct)í]trem  a  mesma 
natureza.  Começai  embora  das  cousas  mais 
baixas,  e  levai-me  pouco  a  pouco  ás  maiores, 
e  tratai-me  como  a  menino  de  csthela,  a 
quem  o  ?>Testre  começa  ensinar  prinjciro  o 
que  é  mais  accommodado  áquella  idade,  e 
logo  por  degráoso  vai  sobindo  de  dia  em  dia 
a  cousas  de  mais  substancia,  até  o  dar  mestre. 
l^ma  cousa  vos  queira  pedir,  que  por  me  fa- 
zer mercê  me  vSo  negueis  ,  a  qual  é  qt.^e  nfío 
somente  sejais  vós  o  que  me  encaminheis,  o 
instrunis  na  vida  espiritual,  mas  que  me  ar- 
meis tam})em  de  forças  ,  e  constância  para 
quaesquer  adversidades,  que  me  possão  suc- 
ceder.  PeiguiUando-lhe  o  Santo  que  requeii- 
mento  era  esíeP  Respondeo  assim:  Tenho,  se- 
nhor, ouvido  contar,  que  o  Pjlicano  tem  nor 
natureza  abrir  cíun  o  bico  seu  próprio  pcil»;, 
e  manter  os  lilhinhos  de  seu  sangue,  obri- 
gado da  afreiçào  natural,  que  lhes  tem.  O  q'ie 
nisto  qiiero  ilizcr  é  ,  que  tia  mesnia  m.mcira 
agasalhei'^,  e  crieis  esta  po})re ,  e  indigna 
íi!ha  vossit  com  o  [i:\\v.  de  vossa  santa  doulrifía 
nã')  colhida  d'outrem  ,  tutus  tirada  de  vcs  mes- 
mo ,  e  dv  vossa  vida  e  expor-^Míci.:».  pui*tjue 


a3o  Vida.  do  Beato 

aquillo  porque  vós  passastes,  qtiantode  mais 
poi-lo  o  provastes,  e  experimentastes  em  vossa 
Vítln  própria,  tanto  maior  eííeilo  faiá  em  mi- 
nha alma,  e  mais  liie  aproveitai á.  A  este  rc- 
querimentií  lhe  tornou  o  Santo  a  escrever  com 
a  lesposra  seguinte:  Nao  lia  ínuito  t».'mpo, 
qu3  mo  vós  mostrastes  um  caderno  de  ditos 
excellenles,  que  tinlieis  colhido  das  claras 
sunvissnnas  do  Santo  Dí)ntor  iichardo,  que 
ijuardais  para  vós  com  o  amor  e  gosto  ,  qae 
e  razAo.  l^elo  que  não  posso  deixar  de  me 
espantar  granden;ente  de  ver  que  mostrais 
tanta  seíle  ila  minha  pobre  agua  nascida  de 
baixa  e  rústica  ftmte,  dcp-ois  de  lerdes  pro- 
t.\do  da  voa  riquíssima  de  tal  varão,  d  »nde 
mana  licor  celestial.  Ainda  que,  quando  cuido 
bem  niiso,  reci^nhero  em  tais  desejos  não 
sem  £;;ande  gosto  meu  ,  \ ossa  prudência  ,  e 
industria,  pois  buscais  com  cuidado  ,  c  pro- 
curais saber  os  principios,  e  entradas  da  vida 
segura  e  santa,  ou  os  meic^s  e  exercicios , 
por  onde  ha  de  passar  primeiro  quem  quizer 
ch<':rar  a  e!Ias.  TodciS  os  Sanios  liveráo  dif- 
ierenie  princípios,  uns  começarão  de  uma 
maneira  ,  outros  croutra;  mas  náo  deixarei 
de  vos  avisar  qual  é  <»  mais  acertado  ,  e  enca- 
ininbiflo  para  a  vida  mais  perfeita  ,  que  c  o 
que  pertencíeis  saber.  \íu  conheci  um  ho- 
raem  ,  (^ue  uidenando  de  entrar  no  caminho 


Fr.  Henrique  Suso.  23 1 

dn  virtude,  a  primeira  cousa,  que  fez,  foi  pu- 
rificar ii  consciência  com  uma  confisião  ge- 
ral ,  e  antes  de  a  fazer  todos  seus  pensamen- 
tos occupava  em  a  ordenar  de  maneira,  que 
fosse  muito  bem  feita,  eein  buscar  confessor 
prud<;ntc  e  discreto,  para  ihe  descobrir  iodas 
suas  faltas,  e  para  se  levantar  de  Stins  pés  lim- 
po, e  são  ,  e  com  todos  seus  peccados  perdoa- 
dos, como  da  preseiça  de  Deos ,  cujo  lugar 
tem  os  confessores  na  terra.  Imitando  nisto 
á  bemaventurada  Magdaieua  ,  que  couj  o  co- 
raçfio  cbeio  de  dòr  e  os  ollios  de  lagrimas 
lavava  os  sagrados  pés  de  C^hristo,  e  (  hristo 
llie  perdoava  seus  peccados  todos.  'V'a\  foi  o 
primeiro  fundamento,  que  este  homem  fez  , 
para  começara  servir  a  Deos. 

CAPITULO     XXXVí. 

Da  ordem  ,  que  levou  em  seit^  principiou  a 
santa  donztUa  hahel  por  consellio  de  l-^r. 
Henrique  ^  c  da  que  teve  do  Ceo  outra  dou* 
zcliaj  para  o  tomar  por  confessor, 

j  vSta  resposta  de  Fr.  Henrique  ,  qne  temos 
co!ftado,  lecoUieo  a  santa  d')n/.tdla  em  sua 
alma  com  determinação  de  se  gf)\cniar  pelo 
conselho,  que  nclhi  lhe  dava,  c  (pieroiid» 
pòl-o  em  eífeito,   dcâejou  muito,  que  fusj* 


a32  ViD\  DO  Blato 

elle  seu  confessor,  como  quem  era  tr»o  iíTo- 
nco,  tendo  juntamenie  tenção  a  duas  cousas: 
liina  a  ficar  dalli  em  diante  sua  filha  espiri- 
tual pelo  meio  da  confissão  ,  outra  para  Hm 
ficar  sua  salvação  mais  encarregada  para  com 
Deos.  Mas  porque  não  podia  íazer  ccnfi.ssã<í 
verl)al  por  certos  inconvenientes,  que  havia, 
contoa-llit'  toda  sua  vida,  em  que  na  verda- 
de não  haíia  culpa,  nem  mal  algum.  E  as 
cousas  ,em  que  lhe  parecia  que  houvera  pec- 
cado  ,  escrseveo  todas  em  uma  grande  tahoa 
de  cera,  e  assignisiido-se  ao  pé,  mandíiu  a 
Fr.  Henrique,  pedindo-ihe  absolvição.  Leu 
elle  a  ct)nfissão,  e  lida  r.ih)U  no  cabo  umas 
regras,  que  dizião:  Reverendo  Senhor,  cu  po- 
bre peccadora,  poslrada  a  vossos  pés  ,  vos  pe- 
co  c  rogo,  qr»e  por  meio  de  vosso  fidelíssimo 
coracfio  me  torneis  ao  coração  Divino,  e 
consintais  que  seja  eu  ,  e  me  chame  vosoa  fi- 
lha tanto  na  vida  temporal ,  como  na  espiri- 
tual. Moveo  ao  Santo  até  as  entranhas  uma 
úo  confiada  devação  ,  e,  obrigado  delia, 
tornou-se  a  Deos,  dizendo  :  Que  direi-a  isto, 
piedosíssimo  Senhor  ?  por  ventura  será  razão 
in-^eital-a  ?  Em  verdade  que  nem  a  hum  cão 
posso  íazer  tal :  e  se  o  eu  fizera ,  pôde  ser  que 
lura  ,  meu  Deos,  com  afronta  vossa,  pois  esta 
niulííer  busca  nu  criado  as  riqueziís  de  seu 
Amo  :  por  onde  vos  peço,  clementíssimo  Se- 


Fr.  Henrique  Suso.  ^33 

nhor,   lançado   com   ella  a  vossos  pés,  qiio 
hajais  por  bem  de  a  ouvir.  Valha-lhe  sua  fé , 
e  siinta  confiança  ,  porque  brada  traz  nós;   e 
lemhre-vos  o  que  antl;2:amente    fizestes   com 
a  Cananea.  E  na  verdade  ,  misericordiosissi- 
mo  Senhrr  ,  tão  solemnisada  é  enlre  nós  ,  e 
tão  nomeada  vossa  inimensa  njansidão  ,  que 
com  razão  deveis   dar  perdão  a  muitos  mais 
peccados.    Clenientissimo  Jesu  ,  ponde  nel!a 
Yo.sf.os  amorosissimos  ollirt#.  Dizei-Ihe  aquel- 
la  só  palavra  de  consolarí^o  :  fdlia  ,  tem  con- 
fiança ,  tua  i.'  te  salvou.  E  tique  isto  ,  que  pe- 
ço ,  certo  e  firme,  e  su[>pri  vós  por  mim  no  que 
llíe  fizer  falta  ,    pois   tenho  feito  de  n^inha 
parle  o  que  me  locava  ,  oulorgando-lhe  em 
desejos  picnissima  e  geral  absolvição  de  todas 
suas  culpas.  Depois  turn<ui-llic   a  esc^e^  er  o 
Santo  pelo  mesmo  mensageiro  estas  palavras: 
Sabereis  que  Deos  vos  tem  concedido  o  que 
lhe  pedistes  por  n)eio  deste  seu  Ministro,  e 
cel'tifi(•ai-^os,  ciue  yá  antes  dagora  nTo  tiuli.i 
o  Senhor  revelarlo  ,  ])orque  no  me:smo  dja  pela 
manhãa  cedo,    depois   de  acabar  de   rezar, 
encostando-me    para   dormir   um    p(»ucí)  ,    e 
adormecidos   os  sentidos  exteriores  tive   em 
revelação  grandes  \istas  da  bondade  Divina. 
Entre  outras  cousas  entendi  por  celestial  il- 
luminação  os  excessivrs  gostos,  e  siimma  fe- 
licidade, rtue  Deos  deu  aos  Anjos,  e  como  a 


í34  Vida  do  Beato 

tecla  um  com  particular  ortleiu  ,  e  differcnçt 
roínmnnicou  particulares  e  diítcremes  pro- 
priecJades,  que  nãu  ha  palavras,  com  que  se 
poi-íão  declarar.  Depois  que  assim  estive  um 
espaço  recrearido-iite  entre  aquelles  htm- 
aventurados  esjHíitos  com  celestial  altgiia  ,  e 
estando  cheio  de  contentamento  das  grandes 
maravillias,  que  alli  .<!e  me  dcscohrírSo  na  al- 
lua  ,  vi-vos  na  mesma  visão,  que  entraveis 
onde  eu  estava  asser.lado  entre  grande  nu- 
mero de  Anjos,  e  vos  púnheis  diante  de  mim, 
e  logo  sentada  de  joelhos  arrimáveis  com 
muita  devacão  o  rosto  a  meu  coração,  e  fi- 
cáveis assim  um  espaço  largo  á  vista  de  ioda 
aquella  corte  celesti;d.  Eu  cspanlava-me  de 
vosso  atrevimeilo ,  ainda  que  estáveis  arma- 
da de  tanta  modéstia,'  e  c<^rle7Ía  ,  que  sem 
pejo  vos  consentiu.  O  que  alli  reclinada  neste 
pohre  coração  alcançastes  de  graça,  e  favores 
doC^eo,  \ós  o  saheis  mui  hem  ,  e  hem  se 
deixava  conhecer  em  vós.  Quando  vos  levan- 
tastes, passado  um  pequeno  intervallo ,  appa- 
recestes  com  um  losto  táo  alegre,  tão  sere- 
no e  agraciado  ,  que  se  podia  entender  cla- 
ramente, que  vos  linha  Deos  feito  alguma 
grande  meicê,  e  vos  havia  de  fazer  outras 
por  meio  daquelle  Cíjracão  para  honra  sua, 
e  consolação  vf>í?sa.  Quasi  peh)s  mesuu)S  ler- 
UiOi  foi  o  t^ue  succudco  a  outra  duíJiclia ,  quf 


Fr.  Henrique  Suso.  235 

7lvla  em  um  Casteilo  por  nome  Anna  ,  mu- 
lher heni  nol)re,  e  mui  reli:7Í()sa,  cuja  vida^ 
Yião  foi  oiiira  cousa  ,  senáo  um  contínuo 
mariyrio.  Obrando  Deos  nella  desde s  pri- 
meiros annos  de  sua  idade  até  morle  j^ran- 
dcs,  e  notáveis  maravilhas.  Antes  que  esta 
donzella  conhecesse  a  Fr.  Henrique  ,  nem 
soubesse  novas  deile ,  estando  um  dia  eni 
ciacáo  Hrou  rapta  eru  extasi,  e  alli  vioconio 
C()nteniph'io  e  hiuvfio  a  Deos  os  Santos  u-i 
Pátria  celestial  ;  e  vendo  a  S.  João  Evange- 
lista ,  qiw  era  o  seu  Apostolo  ,  e  com  quem 
tinha  especial  devaçno,  pedio-lhe  que  a  qui- 
zesse  confessar.  OEvaugeiisla  lhe  respondco 
com  muita  brard  na,  que  lhe  daria  em  teu 
lugar  um  bom  confessor,  a  f|i:eir.  Deos  ti- 
idia  dado  inteiro  uoder  e  autoridade  sobro 
ella  ,  e  que  lhe  poderia  dar  copi.  sãmente 
allivio  em  todas  suas  aifliccóes.  Pe''^untando 
quem  era?  satisfez  bastaniemente  a  tudo.  O 
outro  dia  pela  ujaidiáa  levantoií-se  íomprndo 
a  alva,  dando  cracas  ao  Senhor,  e  foi-se  ao. 
Mosteiro  ondií  a  Deos  niandára  ,  e  perguntou 
por  Fr.  Henrique;  o  qual  sen^  >  (hamaíío 
\eio  á  portaria,  e  pcrguntou-lhe  que  n\an- 
dava  delleP  Contou  a  donzella  o  que  passava, 
comti  temos  referido,  e  começou  a  confes- 
sar-se:  o  que  vendo  Fr.  Henrique,  e  c<.n!ie- 
cendo,  que  viiilia   a  elle  por  ordem  Divina  , 


23(»  Vida  do   Ceàto 

satisfei-a  com  a  confissão.  Ksta  vlrtiioí^a  don- 
7.elia  foi  a  que  lhe  contou  ,  que  vírr.  em  reve- 
iíjçao  hnnia  formosissirna  roseira  cuherta  de 
frescas  rosas,  todas  vermelhas,  e  a  clie  sen- 
tado debaixo  delias,  e  lopjo  lhe  apparecèra  o 
Menino  JESU  sobre  a  mesma  roseira  com  uma 
capella  tecida  das  mesmas  rosas  vermelhas, 
o  (|ual  a{>ariliando  muitas  rosas  as  lançava 
sobro  Fr.  Henrique  em  lanta  quantidade,  que 
o  deixava  cuberto  delias.  E  perguntando  a 
donzelia  ,  que  qaeriáo  tlizcr  aquellas  rosas  ? 
respondera  o  Menino  ,  estas  rosas  em  tanta 
quantidade  significão  muitas  e  contínuas  tri- 
bi! loções,  que  Deos  permittirá,  que  succe- 
dáo  a  Vr.  Henrique,  que  elle  tomará  de  sua 
mão  com  ale^^^re  vontade,  e  sofrerá  com  pa- 
ciência, 

C  A  P  I  T  L  L  O     XXXVlir. 

£r7i  que  j  prosei^uiiido  na  doutrina  con^enien' 
te  fios  principiantes  na  virtude y  se  contuo 
ali^.Lnias  dci'acòes  e  exercidos ^  que  o  Santo 
ii<ai>a  em  sua  mocidade:  e  avisa  como  se 
liÁo  de  rr^ular  as  penitencias  com  pruden^ 
cia. 


Oi:= 


ando  o  Santo  Fr.  ílenrii|ue  se  determi* 
T!ou  a  entrar  no  caminho  da  vida  mais  per- 
íeita,  depois  de  faz,er  (como  temos  contado) 


Fr.  Henrique  Sc5o.  iZ-j 

uma  confissão  geral   mui  upurada  ,  ordf  iiou 
logo  nos  princípios  coinsii;o  algumas  cousas  , 
í.\n{i  o  ajudarão  limito  nelle.  Primeira  mente 
limiíou-se  no  pensauicnto  ties  sítios  paia  mo- 
rar, dentro  dos  quaes  se  encerrou  determina- 
danienle,  para  melhor  guarda  desuaalma.  O 
primeiro  sitio  linha  três  paríes ,  a  sua  cella  ,  o 
keu  oratório,    e  o  coro.    F.m  quanto   estava 
neste,  havia  que  vivia  bem  seguro.   O  outro 
sitio  era  todo  í)  Mosteiro  sem  t  liegará  portaria. 
O  terceiro   e  ulliuio  era    a   n;esma  prriaii.i, 
aonde  era  forrado  acudir  algumas  ve/cs,  e  alli 
entendia  ,  que   lhe  era  necessário  ter  muita 
guarda  e  vigilância  sobre  si.  E  se  alguma  liora 
lhe  acontecia  por  obediência  sair  lióra  destes 
limites,    tinha-se   por    tão    arriscado,   como 
qualquer  animal  silvestre,  que  andando  íóra 
da  cova  ,  dá  entre  caçadores,  e  lia  n;isler  sa- 
ber muito,  e  suar  muito  para   se  salvar.  No 
mesmo    tempo    tinha    escolhido     um    lugar 
apartado,  que  era  o  seu  oratório,  onde  alem 
de  outros  meios  satisfazia    também  a  sua  de- 
va<  ãtí  cr-tn  imagens,  que  nelle  mantlava  pin- 
tar.   Em  particular  sendo  ainda  ujuilo  n.oço 
fe/  pintar  n'um  pergaminho  a  tleina  Saj)ien 
cia  ,    senlioreando  o  Ceu   e  a  terra  com  tíío 
vivas  cores,   e  com  tanta  formosura,  e  ii.n 
amoroso    gosto,     que   claran.cnle   abatia    a 
maior  peiítií^ão  de  ledas  as  cii;aur;.s,  e  qc.í 


a3S  Vida  ©o  Bratci 

foi  musa  tle  a  toin.ir  por  Setiliom  ,  e  Espo5;i 

sua  nessa  prifDt^ira  iílade.    Esta  in»ai(em    por 

estremo  bem  acahad.i  rosluniava  clle  a  trazer 

comsigo,  qiiat)(Io  o  manílavfio  estudar  a  ou- 

tros  Conventos,  eprej;ava-a  na  relia  junto  da 

janella ,  aí^nde  ll»e    ficava    mais  defroiíte   da 

■vista,  eol])ava  para  ella  muitas  vezes  com  um 

mui  entranli.ivel  eílv-ilo  da  alma.  No  cabo  de 

suas  peregrinações  tornou-a  a  trazer  eoiusigo 

para  oMíJsteiro;   e  pòlra  em  o  seu  oratório 

com  uma  santa  simplicidade  de  espirito.  As 

mais  pinturas  ,  que  alli  tinha  ,  crão  segundo 

achava  ,    que  mais  lhe  armavão  para  elle  ,  e 

para  í»s  priuripiantes  na  virtude  ,  e  quaes  fas- 

scní   facihnente  se  pôde  colIi;4Ír  das  leiras  ,6 

sentenças  dos  l^athes  anti-os,  que  a(jui   irão 

em   parte  escritas ,   assim  como  as  tinha  no 

orarorio  ,   tresladando  mais   o  sentidv)  ,    que 

as  palavras  de  cada  uma. 

1  O  Abhadc  Arserdo  perp^untou  a  um 
Anjo,  que  faria  para  se  salvar;^  Respondeo: 
Foge,  cala,  assocega. 

2  Em  u»na  visão  ,  que  Fr.  flonriqje  teve, 
recitou-lhe  um  Anjo  esta  seitteuca  do  livro 
que  chaujfio  f^^itas  Patrum  .*  A  íonie  e  origem 
ce  todos  os  bens  é  morar  um  homem  com- 
sigo per[)etuamente  '^em  nunca  sair  de  si. 

3  O  Abbade  Tlieodoro  dizia:  A  pureza 
da  alma  ensiua  maii»,  que  o  mesmo  estado. 


Fr.  He3írique  Suso:  aS^ 

4  O  A])bac]e  RIoyses:  Está-te  em  tua  cel- 
la  ,  que  ella  te  ensinará  tudo. 

5  O  Abbadc  João:  Guarda-te  no  exterior 
tom  silencio,  no  interior  com  pureza. 

6  O  niesmr»:  O  peixe  tora  da  agna  ,  e  o 
Frat-Ie  íóra  da  cella  igualmente  desíallecem. 

y  António  dizia  :  Trcs  cousas  crião  e 
conserTao  a  castidade,  penitencia  corpoial, 
devaçáo  do  espiíito,  apartamento  dos  ho- 
mens. 

8  O  mesmo:  Não  tragas  vestido  ,  que 
cheire  a  levianda(]c.  A  primeira  balallia  do 
bisonlio  na  virtude  é  peleijar  valentemente 
contra  os  vicios. 

9  O  Abbade  Pastor:  Jamais  te  indignes 
cofitra  ninguém  ,  inda  que  te  vejas  tirar  o 
olho  direito. 

10  Isidoro  Abbade:  Todo  bondem  súbito 
na  ira  desagrada  a  Deos,  ainda  que  faca  mi- 
lagres, 

í  I  Ipericio :  Menos  perca  quem  come 
carne  nos  tempos,  que  a  toilie  a  Igreja  ,  que 
quem  diz  mal  de  seu  proxiruo. 

12  Pior  Abbade:  A  nuiior  maldade  de 
todas  é  laliar  nos  vicios  alheios  ,  e  di^siiriular 
os  próprios. 

i3  Zachaiias:  Quem  qnizer  chegar  ao 
cume  da  perfeição,  é  necessário  que  ía'ja  pri- 
meiro mui  abatido  e  desprezado  <ie  lo(icá. 


^io  VlDÀ    DO    BeAT» 

i4  Nestor;  He  necessário  que  te  facas 
animal  bruto  e  o  mais  ignorante  de  todos 
primeiro,  que  chegues  a  alcançar  o  saber  do 
Ceo. 

i5  Um  velho:  Nos  trabalhos  ena  bonan- 
ça não  faças  mais  movimento  do  qi:e  í.»2  um 
corpo  morto. 

iG  Helias:  Três  cousas  estão  mui  bem  no 
Religioso  ,  rosto  amarello  ,  corpo  seco  ,  íui- 
niildade  no  andar  e  no  tratar. 

ly  Hilário  :  A  cavallo  rinchador,  e  corpo 
orgulhoso  encurta-lhe  a  mantença. 

18  Um  velho:  Tirai-me  o  vinho,  que  jaz 
escondida  nelle  a  morte  dalma. 

19  Pastor:  JNão  se  ha  de  ter  por  Frade 
quem  se  queixa  ,  quem  nao  sabe  enfrear  a 
coKíra  :  escusar  muita  pratica  ,  sofrer  ser  tido 
em  pouco. 

20  Cassiano:  De  tal  maneira  devemos 
ordenar  nossa  vida  e  costumes,  que  imitemos 
a  (^hrislo  poslo  na  Cruz,  e  morrendo. 

2  i  O  Àbhade  António  escrevia  a  um  Fra- 
^e  :  Eia  ,  irmão  ,  tem  cuidado  de  tua  salva- 
ção ,  e  se  não  ,  nem  Deos  ,  nem  eu  te  pode- 
remos jamais  remediar. 

22  Arsénio  Abljade  ,  pedindo-Uie  certa 
mulher,  que  se  lembrasse  delia  diante  de 
Deos:  Peço-lhe  eu,  disse,  que  nunca  ein 
toda  a  vida  me  dê  lembrança  de  ti. 


Fr.  'Henrique  Su:».  a4f 

lí  rjr.cario :  Mortifico  minha  carne ,  ave- 
xarMlo-me  com  variedarle  de  penitencias  , 
c  af^i*^iiido-nie  com  muiias  tentações. 

sí4^  João  Abhade:  Ninica  obedeci  á  von- 
tade; niincH  ensinei  de  palavra  cousa  ,  que 
não  tivesse  primeiro  niostiacio  por  obra. 

25  líii  velho  :  Palavras  boas,  formosas, 
e  muitas  sem  companhia  de  obras  ,  é  cousa 
sem  sui)stari(  ia  ,  como  arvore  coberta  de  fo- 
lha despeja<la  de  fructo. 

2Í)  j\'ih):  (^iiem  trasfega  muito  mundo, 
de  força  ha  de  ser  ferido  muitas  ve«.es. 

2y  Um  velho  :  Se  não  é  em  tua  mão  ap- 
plicares-te  a  nenhum  exeicicio  estando  na 
ceUa  ,  ao  menos  acompanha  e  guarda  essas 
paredes  por  amor  de  Deos. 

28  Ipericio:  Quem  vive  castamente  tem 
honra  na  terra  e  coroa  no  Oo. 

r>A)  Apolionio:  Resiste  e  faze  força  nos 
principios  ,  e  quebra  a  cabeça  á  serpente. 

3o  O  Abbade  Aj^aiho  :  Três  annos  trouxe 
uma  pedra  na  boca,  para  aprender  a  não 
falia  r. 

3i  Arsénio:  Muitas  vezos  me  pesou  de 
ter  fallado,  nunca  de  ler  caiado. 

?)'2      Um  velho,    perg^untado  por  um  mo- 
ço, qnatilo  tempo  Iiavia  de  guardar  silencio? 
respondco  :  Em  quanto  não  fallarem  comti- 
go. 


a4*  Vida  doBeat© 

33  Santa  Siiiíletira  :  Qnan 
alegra-te,  porque  se  kinbia  Dtos  cie  ti ,  não 
digas  que  o  jejiíni  causa  doenças,  porque 
também  adorcem  os  caie  não  jejuão  :  se  pa- 
deces tentaçr-es  corp<»rae5,  tandjem  fol^a  , 
porque  pôde  Deos  fazer  de  ti  outro  S.  Paulo. 

34  Nestorio:  Nunca  o  Sf)l  me  vlt>  comer, 

35  João  :  Nunca  o  Sol  me  vio  irado. 

3G  António:  Entre  todas  as  virtudes  ,  a 
que  tem  o  piimeiro  lugar  é  a  Prudência  ,  a 
qual  é  necessária  j^ara  poderes  acertar  com  o 
melo  e  guardar  re;:ra ,  e  modcricão  em 
tudo. 

3y  Pafnucio :  Nada  aproveita  começar 
bem  ,  se  não  per5;ev<nares  aié  o  cabo. 

38  O  Abbado  Moyscs :  rudo  o  que  em- 
pece á  limpeza  da  alma  se  ha  de  evitar,  ain- 
da que  nas  aparências  seja  santo  e  bom. 

3g  Cassiano:  O  alvo  e  fim  de  toda  per- 
feição é  quando  a  alma  com  todas  suas  for- 
ças eslá  recolhida  na(|ueiUi  altissima  c  única 
unidade,  que  é  Deos. 

Estas  letras  e  sentenças  mandou  o  Santo 
á  sua  devota  espiritual  íillia  Isabel  com  ten- 
ção,  que,  vendo  ella  os  exemplos  dos  Padres, 
fizesse  tand)em  sua  penitencia.  O  que  ella 
tomou  tanto  a  peito  ,  (jue  começou  logo  a 
niallratar-se  veslindo-se  de  cilicio,  cingindo 
curdas,   aíerrolhaudo-se  em  tcmorosas  jiri- 


Fíi.  TÍExrvinnE  Scso,  a45 

sõps,  mar^oan(!<*-'?e  ooru  agudas  pontas  de 
íVrro,  e  íazeiuK)  outras  causas  a  este  modo. 
Mas  tíiTJto  que  o  Sdfilo  o  soube,  niandou-lkfc 
os  avisos  seguintes:  Já  que,  (íllia  minha, 
dí^tennlnastes  seguir  a  vida  espiritual,  e  go- 
verna I-a  por  uieu  conselho,  e  assiui  mo  pe- 
disles,  o  que  a;^ora  haví^is  de  ía/er  ha  de  ser 
deixar  esse  rigor  easpere/a  ,  porque  nem  diz 
bem  com  a  fraqueza  temiuil ,  nem  é  neces- 
sária para  uma  natureza  hem  inclinada,  qual 
é  a  vussa  ;  que  não  disse  Cliristo  ,  icunai  a 
miiiha  Cruz  sobre  vossos  liombros,  mas  dir 
leve  cada  um  sua  Cruz.  Não  é  ra/ã<»  que 
queirais  iudtar  o  desmedido  rigor  dos  Padres 
antig«.'S,  nem  as  ásperas  penitencias  de  vosso 
Padre  espiritual,  mas  basta  que  delias  tomeis 
só  algumas  ,  com  que  possa  vossa  comprf  i(  ão 
fraca,  para  que  assim  tra^^ais  sopeados  os  vi- 
cios  e  a  carne  ,  e  não  en(  uríeis  a  vida  ,  que 
este  é  um  excellenie,  e  que  muito  vosarnia. 
Mas  querendo  a  devota  don/ella  saber  do 
Santo,  que  razão  houvera  para  se  elle  dar  a 
tão  cruas  penitencias,  quando  nen»  a  ella  , 
nem  a  outrem  as  act)nse!!iava  ,  nem  consen- 
tia ;  el!e  a  rernetteo  aos  livros  das  viiias  dos 
Padres,  dizendo:  Conta-se,  que  liOll^c  antiga- 
mente alguns  Padres,  que  fizerão  vida  táo  tora 
da  commum,  que  quasi  não  tiidia  nada  df 
huníana  ,  e  tanto  mais  austera  do  que  se  pódf 


a54  Vida  do  Beato 

crer,  qiiC  ncrn  só  (Uivil-a  contar  porlí^m  os 
iioiner-s  desle  lenips»,  <-'í'JÍ<^  os  (jiie  são  para 
pouco,  sem  se  lhe  anijjiurein  os  raheilos  e 
p.iSínarein.  E  isto  nasce  de  não  ponderarem 
quanto  pode  lazer  e  passar  por  Deos  um  de- 
sejo afervorado  ,  e  um  \alt)r  grande  ajudado 
<lo  mesmo  Deos.  A  umlioniejn,  que  assim 
ama,  té  o  iínpossivel  se  lUe  tortia  íacll  e  chão 
em  viríuíJe  de  Deos  ;  por  onde  diz  David  nos 
Psalniíís:  Ennneu  Deos  passarei  o  niiiro.  Mas 
tandjem  se  aclia  nas  mesmas  vidas  dos  l^adres, 
que  houve  outros  que  não  seguirão  este  rigor 
de  vida  ,  e  todavia  uns  e  outros  tiraváo  ao 
mesino  fim.  S.  Pedro  e  S.  João  ambos  forão 
Apostoh)S  ,  e  não  íorão  levados  pelo  mesmo 
modo.  Quem  poderá  resolver,  c  declarar 
«stas  dittereiíças,  que  na  verdade  são  mui- 
to .para  espantar,  senão  for  dizendo,  que 
é  Nosso  Senhor  espantoso  em  seus  Santos ,  e 
que  quer  ser  loji\ado  por  diiferenles  manei- 
ras ,  conforme  as  muitas,  porque  é  grande 
e  poderoso.  Depois  disto  não  temos  todos  a 
mesma  comiilexão  ,  nem  as  mesmas  forcas. 
Donde  vem  ,  que  o  que  api  oveita  a  um  ,  fiiz 
nojo  a  outro.  E  assim  não  se  ha  de  cuidar,  que 
quando  um  homem  [)or  veniura  se  não  atre- 
ve com  lauta  aspei  c/a  ,  íica  por  isso  atalhado 
para  n;To  potler  sul, ir  ao  mais  alto  grão  de 
pcríeição.   j\las  lambem  hão  de  advertir  o$ 


Fr.   ÍÍExrxiQUE  Srso.  24^ 

que  são  fracos  ,  e  para  pouí  o  que  n?o  lia  cie 
desprezar,  nem  tachar  ,  nem  lançar  a  peior 
parte  as  penitencias  ,  e  aiisterirlades  grandes, 
(pie  virem  nos  oulroj.  Cada  um  íenba  conta 
coinsigo  só ,  e  trabalhe  por  entender  ,  o  ene 
Deos  cíelle  quer ,  e  com  isto  cumpra ,  sem  se 
empachra'  com  o  que  íazeni  os  ou  ti  os.  Pela 
maior  parte  o  nielhtir  e  niais  se^^uro  é  dar-se 
homem  á  penitencia  regrada  meu  te  ,  e  com 
prudência,  arjles  que  íazcr  dvmaaias  indis- 
cretas. E  porque  é  diíficultoso  acertar  com 
este  niei(i  ,  é  melhor  conselho  ficar  antes 
áqueni  iim  pouco,  que  passar  além  mais  ào 
que  é  razão.  Porque  acontece  muitas  vezes 
quando  queremos  apertar  demasiado  com  a 
natureza  ,  ser  depois  forçado  ,  para  se  restau- 
rar, íavorecel-a  e  animail-a  com  a  môsn;a  de- 
masia. Ainda  que  é  beui  verdade,  que  mui- 
tos Padres  insi;^ncs  em  virtude  e  santidade 
passárfto  nesta  paite  os  termos  ,  obrigados  de 
ardentisáimo  fervor.  Esta  rigorosa  orílcm  de 
vida,  e  os  exemplos  de  rara  severidade  dos 
Santos  sirvão  j)ara  aquelles  que  desordena- 
damente são  amigos  de  si ,  e  se  tratão  com 
muito  mimo  e  brandura  ,  e  que  deltrmina- 
damente  largão  as  rédeas  ao  cor|;o  furioso, 
e  desenfreado  para  sua  perdição.  Mas  não 
convém  para  vós,  nem  para  gente  composta 
das  vossas  qualidadcs.Tem  Deos  Nosso  Senhor 


a4^  Vida  no  Dkíto 

dlíferenças  deCruzes,  co:n  quo  provn  o  casti- 
ga seus  servos;  e  eu  cuido  certo,  que  vos 
quer  elle  lançar  ás  costas  tima  ,  que  não  será 
menos  traballiosa,  que  a  dessa  penitencia 
corporal  (luevós  tomais.  Qu.?iido  chegar  não 
llii;  façais  !»iáo  rostro.  Não  passou  muito  tem- 
po ,  qve  couiocon  Deos  a  tentar  com  doenças 
compridas  esta  douzella  ,  que  fvjrão  conti- 
nuando de  maneira  ,  que,  e:n  quanlo  viveo  , 
não  teve  um  tlia  desande;  o  que  logo  escre* 
Teo  ao  Santo,  avisando-o  como  se  compria 
nella  o  que  lhe  tinha  proletizado.  E  o  Santo 
lhe  respondeo  assim  :  Charissinia  filha ,  n§o  me 
tomo!i  só  Deos  por  instrumento  de  vos  noti- 
ficar d  anttf  mão  vossas  tribulações  ,  mas  tam- 
bém me  castigou  a  mim  ,  e  me  fez  assas  mal, 
dando-vol-as  j  visto  coujo  não  tenlio  outrem 
nin«;nem  ,  que  daqui  em  diante  me  possa 
ajudar  acabar  aí>  obras  ,  que  tenho  composto  , 
e  fazer  outras  de  novo  com  o  cuidado  e 
Terdade  ,  que  vós  fizestes  em  quanto  tinheis 
sauile.  Por  esta  causa  fez  oração  a  Deos  por 
vós  um  servo  seu  pedindo-lhe  decoração, 
que  se  fosse  servido  ,  vos  quizesse  dar  saúde. 
Mas  não  sendo  lo^^o  ouvido  conso  desejava  , 
agastou-se  com  Deos  com  uma  afuorasa  indi- 
gnação, edisse-lhe,  que  í»áo  lia%ia  mais  des- 
crever tlelle,  nem  lhe  havia  mais  de  fazer 
uma  devota  saudação,   que  costumava  [elas 


Fr.  lÍENRTQrE  Srso.  247 

manliãas,  se  vos  não  sarasse.  E  recolhcndo-se 
assim  apaixonado,  e  queixoso  a  seu  Orató- 
rio, assentou-se  ifni  pouco  como  tinha  cie 
costume.  Aqui,  ficando  roubado  aos  sentidos, 
parecia-lhe  que  vinha  uni  giande  numero  de 
Anjos,  que  entravão  pelo  Oratório;  e  pelo 
recrearem,  porque  andava  neste  tempo  ave- 
xado  de  uma  extraorditiaria  aídicçào  ,  lhe 
davão  uma  musica  celestial.  E  |)ergunlando- 
Ihe  os  Anjos  porrjue  eslava  assinj  triste,  e  não 
chegava  a  ajudal-os  a  cantar,  cordessou-lhes 
a  paixão  de  sua  alma  ,  que  o  obrií^ira  a  aga- 
star-se  contia  Deos  ,  poique  não  queria  ou- 
vir as  orações,  aue  por  vossa  saúde  lhe  fazia. 
Mas  os  Anjos  persuadião-no  que  socegassc  , 
ti  não  podesse  assin! ,  porque  se  Deos  permit- 
tira  padecerdes indisposiçóes,  era  paia  grande 
j)i'Oveito  vosso  ,  c  que  esta  havia  de  ser  a  vo>^ 
sa  Cruz  neste  u!?  rido  ,  a  qual  vos  renderia 
muita  graça  na  vida  presente,  gal:  rdão  mui 
avantajado  na  futura  :  Por  onde  ,  (ilha.  tende 
paciência  ,  e  recehei  esletrahalho  da  rniTo  da 
providencia  divina  ,  com  não  u)cnos  boa 
sombra  ,  que  se  fora  uma  mercê  de  muito 
Sosio  vosso. 


^4^  Vida  do  Bcato 

CAPITULO   XXXVIU. 

Em  que  o  Santo  conta  oiftras  dcí^acões^  qus 
fazia  em  seus  princípios  ,  e  umas  visões  , 
que  teve  no  mesmo  tempo, 

L^  M  tlia  foi   o  S.\Tito  visitar  a  donzclla  Isa- 
bel,  que   estava  enlerma,   e   tUa  pedio-lhe 
quizesse  praticar  alguma   matéria  espiritual, 
que   não   fosse   da-:    mais  subidas,    e  todavia 
alegrasse  uma  aliDa  devota.  Coniecou  então 
o   servo   de^Deos   c<u)rar   suas  devaçóes    de 
quando  era  moço.    E  failaiulo   tie  si  por  ter- 
ceira pessoa  com    nome   de  Ministro  da  Sa- 
piência ,  nome  que  elle  muito  estimava,  dizia 
assim  :  Sendo  o  jMipTstroda  Sapiência  aind.! 
muito  moço  ,  e  de  seu  natural  n:ui  esperto, 
costumou  muito  tempo,    todas  as  vezes  que 
succedia  sangrar-se  ,  vecolher-se  comslgo  ,   e 
imaginar-se    no  monte  Calvário  defronte  de 
Christo  posto  na  Cruz  :  então  estendendo  o 
braço  ferido  da  lanceta,  dizia  com  profundos 
suspiros:  Senhor  JESU  Christo,  a  quem  amo 
sobre  todos  quantos  amigos  tenho,  peço-vos 
que    tenhais    lemhrança    do    costume,    que 
corre  entre   os  homens,   que  é,    quando    se 
tirão  sangue  irem-se   por  casa  de  seus  ami- 
gos,  e  cobrarem   em  sua  companhia   outro 
iadío  e  melhorado.  E  bem  sabeis  \ós  ,  Se- 


Fr.  HcNniQrE  Suno.  a4f 

nlior  meu  ,  que  a  ninguém  qucio  eu  mais 
que  a  vós.  Por  isso  me  venlio  aqui  pi.ra  que 
])<;nzsis  <,'sra  ferida  ,  e  me  crieis  novo  e  boui 
sangue.  Nos  niessuos  annos  cia  mocidade  ,  de- 
pois que  fa/ia  a  barba  a  uavalLa  como  era 
muito  gentilhomcm  ,  íicava-llie  o  roslro  cu- 
berto  de  uma  (òr  rosada  graciosíssima;  ven- 
do-se  assim  ,  fallava  couio  Chi  isto  dizendo: 
I>uIcis^i^■:o  JESlf ,  inda  que  esla  íjce  se  avan- 
tajara em  cor  a  todas  as  mais  bem  coradas 
rosas  da  lona,  nunca  offerecora  a  ninguém 
senão  a  ^ós  só  isto,  que  o  mundo  cbama 
foiíuosura.  E  seni  embargo  que  vos  pagais 
mais  de  cf)rações  ,  o  menos  do  que  parece 
de  íórâ  ;  com  tudo  folga  min  lia  alma  de  dar 
esta  mostra  do  qiuí  vos  ama  ,  offerecendo- 
▼os  a  vós  ,  e  nãíi  a  outrem  ninguém  este  ex- 
terior. Quando  Ibes  ac(»ntecia  vestir  túnica 
liova ,  oa  por  capello  novo  ,  recolbia-se  no 
oratório  ,  e  fazia  tiracfio  ao  Seidior  ,  de  cuja 
mão  reconhecia  aípiellas  peças,  e  pedia-lhe, 
que  bouvesse  por  fjcm  ,  que  elle  as  lograsse 
com  saúde  .  e  acabasse  de  lompel-as.  Na  ida- 
de niais  tenra  ,  quan<lo  entrava  o  Veifio,  e 
comecavão  a  desaijotoar  as  flores,  tinha  por 
costume  não  tocar,  nem  colher  nenhuma, 
sem  primeiro  íazer  uma  canclla  alegre,  e 
muito  fresca  para  sua  serdu)ra  espiritual  a 
Eterna  Sabedoria,    na  qual  a  [.limeira  ,  que 


230  Vida  do  Beato 

punha  ,  era  sempre  cm  honra  tia  Virgem  Mãi 
cie  Deos.  Depois  qu.indo  lhe  parecia  tempo 
apanhava  outras  ílores  ,  não  desacotnpanha- 
das  de  con^iueracóes  arnorobissiinas,  e  ira- 
zen4o-ys  á  relia  tecia  giinaldas,  e  entrava 
no  Curo,  OM  siibia  ao  altar  de  Nossa  Senho- 
ra, e  posto  de  joelhos  con)  grande  humildade 
diante  de  sua  imagem,  coioava-a  com  ellas 
respeitando  comsigo,  qe.e  esta  Senhora  eia  a 
niaij  aprasivel  flor  de  todas  as  ílores,  e  a 
n^csmo  verão  e  frescura  de  sua  alma  ,  e  ro- 
gava-lhe  que  não  engeitasse  da  máo  de  seu 
servo  as  primícias  das  Ho» es,  que  lhe  oftere- 
cia.  Um  dia  ,  tendo  posto  un-.a  eapeíla  a  sua 
ariiada  Scrdiora  e  Klerna  Sd)edorla,  te\e 
lima  visno,  na  qual  lhe  parecia,  que  via  o 
Ceo  aherto,  e  o  Anjos  Aoar  de  cima  para 
haixo  vestidos  de  roupas  ric  .s  e  loucãas:  Jun- 
tamente lhe  feria  as  orelhas  unia  inusica  a 
inais  suave  e  deleitosa  de  (piantas  jamais  se 
ouvirão  na  terra  ,  que  la  r»a  (^urle  celestial 
estavão  dai)do  aquelleá  hePiaventuiados  espi- 
rit;)s,  Partic-  lai  inen^e  entendeo  ,  que  canta- 
Tâo  um  verso  da  M.li  de  Deos  ,  que  d  zifio  a 
"vozes  com  tno  at<)r<!iida  harmonia  ,  que  toda 
a  ;dina  se  lhe  dt  rreiia  de  ;rostn  Era  o  "i  erso 
simllhante  a  un:,  (jue  se  <anta  na  festa  de  to- 
dos os  Sa:tos  na  SeiUiencia  ,  que  diz:  Ulic 
regina  Firgiiium  traiicenucns   cubnen  viut-' 


Fr.  ÍIexrique  Srso,  a5x 

niimf  etc,  E  o  ^Ilnistro  começou  a  cantar 
juntíituerite  com  elles,  Alli  alcançou  sua  alma 
gruniltis  ef  clientes  de  gloria  <lo  Geo  ,  e  ar- 
dentes desej'^»s  di;  servir  a  Deos.  Outra  vez 
na  entrada  de  !\laio  tinha  coroado  de  rosas  , 
segundo  seu  costume  ,  a  Imagem  de  Nos- 
Sii  Senhora  com  grande  devaç;;o.  í^  no  dia 
se;:;ujnte  de  m;idrngada  desejava  de  dt)rmir, 
que  viera  de  fóta  (ançado,  deferniinando 
deixar  por  aquella  vez  a  salva  que  costumava 
dar  á  Virgem  áfjucUas  horas.  Mas  quando 
chegou  á  e:ii  que  se  costumava  levantar  para 
esta  elevação  ,  parecia-lhe  que  se  achava  co- 
mo encerrado  em  um  Coro  celestial  ,  omle 
se  estava  cantando  uma  Magnifica  em  louvor 
da  Virgem.  A  qualacahada,  cliegava-se  a 
Virgem  a  cile ,  e  mandava-!he  que  comcça- 
se  a  cantar  o  verso  que  diz :  O  vcrnalis  rosii' 
la,  etc.  Elle  ficava  pensativo  imaginando,  que 
seria  o  que  lhe  (fuerla  significar  nisto,  e  to- 
davia cjuerendo  obedecer  con)eç(>u-o  a  cantar 
despejadamente.  E  logo  de  um  grande  ajun- 
ta ruento  de  Anjos,  que  assistifio  no  Coro  , 
sairão  Ires  ,  ou  quatro,  e  juntos  com  elie 
forãíj  tand)i'm  cantando,  e  traz  estes  se  vierão 
chegando  todos  os  (jue  eslavár»  na  caf>a  como 
á  porfia  ,  e  caníavão  com  tamanho  estrondo, 
e  melodia  juntamente,  comosc  soarão  juntos 
todos  quantos  in^irumcmos  ha  na  inusica. 


a52  YiDJL  DO  Be\to 

Mas  não  potencio  a  hiimanidnde  fraca  siip- 
porlar  aqiiella  extraordinária  floria,  tornou 
o  Ministro  em  seu  aeordo.  Outra  vez  tainbeni 
alcançou  ciiegar  á  vista  dos  ;^'ostos  S')))eran  )S 
da  Pátria  Celestial,  e  foi  um  dia  depois  du 
festa  da  Assumpção  da  Virgem.  Mais  nesta 
TÍsão  não  se  lhe  consentia  a  elle,  nem  a  nin- 
guém,  mais  que  ver  de  fora,  porque  não 
deixa  vão  entrar  quem  vinha  descomposta- 
mente ,  e  fazendo  o  Ministro  força  por  entrar, 
TÍo  que  um  mancebo  lhe  travava  do  brato  , 
dizendo:  irmão  meu,  não  ha  para  que  cuidar, 
que  haveis  de  ter  licença  para  entrarei  desta 
Tez.  Deixiiyvos  estar  aqui  fora  ,  poÍ5  estnis 
cbri<yado  a  uma  dividrí,  e  convém  remirdes 
vossa  culpa  com  bastaiite  satisfação  pi  imeiro, 
que  chegueis  a  ouvir  as  musicas  tio  Ceo. 
Âcab;Hu!o  estas  palavras  levou-p  por  ism  c.i- 
iriinho  torcido,  e  dependurado  a  uma  cova 
sobterranea,  escura,  esó,e  píw  extremo  mal 
assombrada.  Aqui  estava  sem  poder  sair  para 
nenhuma  parte,  como  um  preso  a  quem  se 
«no  deixa  ver  Sol  ,  nem  Lua.  E  vendo-sc 
assim  captivo  conieçava  a  suspirar  profunda- 
mente, e  queixar-sc  om  pra!)lo,  o  lamen- 
tações tia  prisão ,  em  que  se  via.  Pouco  tlepois 
tornou  o  mancebo,  e  perguntava-llie  C(»mo 
eslava,  respondendo  que  mi-ito  nual,entã(í 
O  mancebo:  Haveis  de  ba!)er  ,  tliàse  ,   oee  a 


Fr.  Henrique  Su.^o.  253 

Soberana  Im  peru  triz  cio  Cjo  está  menenco- 
rea  com  vosco  pela  mesn^n  razão,  que  vos 
tem  aqui  preso.  Ficava  o  r^Iinistro  altonito  de 
temor  do  que  ouvia  ,  ç  dizia  :  Ai  de  mim,  e 
em  que  cousa  adesservi  eu?  toma  mal,  tornou 
o  mancebo,  serties  Xí^^ò  indo  de  chegar  a  pre- 
gar delia  em  5Íias  festas  ,  que  ainda  hontem 
em  uma  soleniui  Jade  sua  tão  grande ,  respon- 
destes a  vossos  Superiores,  que  não  quereis 
sui)ir  ao  púlpito.  É  verdade,  disse  o  Minis- 
tro ,  e  a  razão  é,  porqiie  terlio  por  tão  altas 
e  tamanhas  as  excellericias  da  Virgem  ,  que 
me  hei  por  indigno  de  fallar  delia  em  públi- 
co nem  uma  só  palavra.  E  por  isso  largo  este 
car^o  aos  pi  ('.-^adores  mais  velhos  e  mais  sa- 
bios,  de  quem  julgo,  que  cumprem  com 
tamanha  obrigação  muito  melhor,  do  que  o 
pôde  fazer  um  ignorante  como  eu.  ^^las  afíir- 
niando-lhe  o  njancebo,  que  suas  pregações 
erão  multo  acccitas  á  Virgem  ,  e  que  não  era 
razão  furíar-llies  mais  o  corpo  ,  desfazia-se 
em  lagrimas  de  devacâo,  e  dizia  :  Peço-vos  , 
charissimo  espirito,  que  me  ponhais  em  gra- 
ça c(»m  a  ^  irgem  gh)riosiítSÍma  ,  que  eu  vos 
empenho  niiidiu  fé,  que  não  caia  mais  em 
similhante  falta.  Su?rio-se  o  Anjo,  e  tiran- 
do-o  da  prisão  tornou  ao  lugar,  onded'anles 
eslava  ,  diz<Mido-lhe:  AÍL'gra;-vos,  irmão,  que 
€U  conheci  no  gesto  da  Njrgem  ,   e   cm  sua 


s54  VinA  DO  Bkato 

mansidão,  e  no  como  falia  <\e  vós,  que  lhe 
passou  já  toda  a  paixão,  qi»e  contra  vós  ti- 
ni ta  ,  e  que  sempre  vos  ha  de  aniar  com 
amor  de  Hãi.  Neste  tempo  tinha  o  Ministro 
tomado  um  costume  ;  rpic  todas  as  vezes, (jue 
saindo  da  cella,  descia  ahaixo,  ou  lorjiava  a 
subir,  fazia  ocamirdio  pelo  Coro,  o  adorava 
o  Santíssimo  Sacrarneriío,  lembrando-lhc  e 
considerajido  ,  que  todo  homem  ,  que  faz  aU 
g)ima  jornada  ,  se  sabe  quejnuto  da  estrada  , 
por  onde  vai ,  tem  algum  amigo  de  conta, 
torce  de  boa  vontade  ,  e  alarga  um  pedaço  o 
raminho  pelo  ver.  Aconteceo-lhe  uma  vez  pe- 
dir a  Deos,  que  de  sna  mão  liie  quizesse  dar 
uiD  entrudo  celestial,  porque  o  nào  queria 
de  nenhuma  creatura  ,  nem  tai  como  ci'a  o 
dos  homen^i,  foi  logo  rebatado  em  extasi ,  e 
parecia-lhe  que  via  a  ChristoíESU  na  dispo- 
sição ,  que  representava  na  terra,  sendo  de 
♦rinta  annos  ,  que  se  vinha  onde  elie  eslava 
para  lhe  satisfazer  seu  desejo ,  e  dar-lhe  í)  en- 
trudo Divino,  que  pedira  ,  e  tomava  em  suas 
mãos  Ufu  copo  cheio  de  vinho  ,  e  dava -o  a 
ties  ,  um  traz  outro,  que  eslavão  presentes 
sentados  a  unia  mesa.  E  xioqueo  prinjeiío 
ei!i  })ehendo  caio  logo  cortado  de  pcs  e 
mãos  ,  o  segundo  ficou  algum  tanto  abala- 
do ,  {)  terceiro  í)áo  sen  lio  nada.  O  segredo 
dislo  Ibíí  declarou  Deos  logo,  mcsirando-lha 


Fr.  Henrique  Suso.  i55 

que  era  a  flifferença  que  lia  via  entre  os  três 
estados  cio  homem  pj  incipiante  na  virtude  , 
do  que  vai  aproveitando,  e  do  que  é  já  per- 
feito, E  como  uns  e  outras  sentem  a  mesma 
variedade  de  eí feitos  iia  connnunicai^ão  ,  e 
ahnndancia  dos  ^rostos  divinos.  Tendo  o  Bea- 
to  Fr.  Henrique  contado  editas  e  outras  mui- 
tas cousas  desta  (jualidade  á  stia  enferma, 
concluio  a  pratica  ,  e  desj»edio-se.  Ido  o  San* 
to,  «t  devota  Isabel  tomou  tinta  e  penna , 
escreveo  tudo,  e  fechou  o  papel  em  uma 
caixa ,  porque  se  não  perdesse.  Succedeo 
que  alguns  dias  depois  veio  visital-a  outra 
Religiosa  ,  e  lhe  perguntou  se  tinha  na(]ueUa 
arca  alguma  cousa  ,  que  tocasse  a  Mysterios 
do  Ceo.  Porque  ,  dizia  elia,  vi  esta  noite  em 
sonhos  um  menino  celestial,  que  estava  as» 
sentado  sobre  ella  ,  e  tinha  na  mão  um  in- 
strumento musico  por  estremo  suave ,  ao  qual 
cantava  composK^óes  espiriíuaes  tão  gracio- 
sas,  e  l»em  apontadas,  que  não  havia  quem 
não  ficasse  cheio  de  devoção  e  alegria  espi- 
ritual de  as  ouvir.  Pcco-vos,  irmãa  minha  j 
que  me  mostreis  o  cjue  alii  tendes  gtiardado  , 
para  que  o  ItMinos,  e  tenha  eu  t;iud)cm  mi- 
nha parle.  Klla  cerrou-se  sem  querer  mos- 
trar ,  nem  contar  nad.« ,  por(|ue  assim  lho  ti- 
nha mantlado  Fr,  ilenri.^uc. 


^^S  Vida  bo  Beíto 

G  A  P  I  T  U  L  O     XXXIX. 

Ern  que  o  Santo  conta  j  como  5c  empregou  em 
ganhar  almas  engolfadas   no  mtirido  fiara. 


Deos  y  e  como  conso/ava  os  alriôulados. 


H 


A  vendo  muitos  dias  ,  que  a  devota  Isa- 
bel não  linha  nciilir.ni  recado  de  seu  Mestre 
Fr.  Henrique,  mândou-lhe  uma  cai  la  ,  eiu 
que  ihe  pedia  ,  quizesse  escrever-lhe  alguma 
cousa  ,  com  que  desal^afasse  de  suas  continua» 
afflicções.  A  substancia  da  carta  era  esta:  Pai  a 
qualquer  triste  é  gcnero  de  consolação  ver 
que  lia  outras  mais  tristes  que  elle  ,  assim 
mesmo  um  homem  atribulado  cobra  esforço 
e  entra  em  si ,  quando  ouve  ,  que  seus  viãi- 
rhos  se  viríio  tm  maiores  aírouins,  c  todavia 
forão  soccorridos  do  Ceo.  A  isto  respondeo 
o  Santo  o  que  se  segue  ,  fallando  de  si  em 
terv''elja  pessoa  com  o  nome,  que  usava,  <lo 
Ministio  da  Sabedoria  :  Para  que  os  traba- 
lhos, que  tendes  de  presente,  vos  fiquelii 
maisjeves,  conlar-vos-lui  alguns  aliíeios,  á 
híJiira  e  louvor  de  Deos.  £u  conheci  um  ho- 
mem a  quem  por  permissão  divina  sobrevie. 
rão  gravissimas  tnrnienlas  de  adversidades, 
que  chegarão  a  lhe  tocar  n;*  fan)a  e  honra. 
Este  h.omem  t(>das  suas  íorças  e  desejos  em- 
pregava em    uma  cousa  ,   que   era  amar   ud 


todo  coraçHo  a  Deos ,  e  ol)íigar  os  outros  a 
eritranliareni-no  em  suas  aln^as  de  maneira, 
que  a  nenhuma  cousa  quizessem  mais  que  a 
elle,  e  por  este  meio  se  afastassem  do  amor 
vão  e  prejudicial  das  creatuias.  O  fjue  to» 
davia  vio  cumprido  em  muítcs ,  asjrim  ho- 
m.ens ,  como  mulheres.  i^Ias  o  diabo,  vendo 
que  se  llie  arrebatava  das  mãos,  e  tornava 
para  Deos  o  que  era  presa  sua  ,  seutiao  por 
extremo,  eappare(crdo  a  alguns  homens 
devotos,  soltava  palavras  clieias  de  ameaças 
contra  o  Ministro  da  Sapiência  ,  af^rmantlo 
que  tii^ba  assentado  vingar-sc  valentemente 
delle.  iXcste  ínterim  passou  o  Ministro  por 
um  Mosteiro,  onde  viviAo  em  litligião  ho- 
mens emulhercfijuntan  ente  ,elles  com  regra 
particular  sua  ,  eeiias  tambtm  (  ou»  leis  sepa* 
radas.  Achou  aqui  ,  que  entre  uui  Religioso 
destes,  e  uma  Religiosa  corria  uma  au;izade 
e  conversação  cslieitissima.  E  Irazia-lhes  o 
demónio  as  almas  tão  cegas,  disfarçando-lhíS 
o  mal  com  as  sombras  de  virtude,  fjue  ('e 
nenluHua  maneira  imaginavão  ,  que  li;:via  al'i 
culpa  ,  antes  que  tinbáo  para  isso  licci  «a  de 
Deos;  e  sendo  perguíitado  se  podia  manter* 
se  tal  ami/adeem  serviço  de  Deos,  <  bâanicnte 
o  contradisse  affirmando,  que  era  (quni.io  fal- 
sa e  errada,  e  contra  a  verdade' da  doutrina 
Christãa.  E  assim  acabou  com  ellcs,  qnc  s« 

9 


l58  YlDA    DO    LeATO 

atalhasse  a  conversação,  e  ficassem  vivenda 
í.l:».ni  em  diante  pnia  e  Iioiicstaiiienle,  No 
mcstno  tempo  que  nesta  santa  obra  se  oc- 
cnpava  ,  uma  santa  donzella,  por  nome  Anna  , 
TÍo  em  espirito  uma  grande  multidão  de  de- 
mónios, que  juntos  sobre  o  iSIinistro  brada- 
rão a  grandes  vozes:  O'  que  malvado  Frade! 
vinde,  saltemos  íielle  ,  malemol-o.  Traz  isto 
lancavão-lhc  maldições  ,  e  roJ[av;.o-llie  iira- 
gas ,  porque  com  seus  conselhos  e  santas 
amoestacõeá  os  lançara  daquclle  lugar  tam- 
isem assombrado  para  elles.  E  todos  junta- 
mente Fazerido  gestos  feios,  e  meneos  cheios 
de  braveza  juravão,  que  havlãii  de  andar  d'a- 
\iso  sobre  elle,  e  armar»ihe  com  tanta  cí>n- 
tin nação  ale  o  colheram  o  se  vinjjarem.  E 
quand»>  ihe  não  podesseni  empecer  no  cor- 
po,  ou  na  fazenda  ,  ao  menos  entre  a  genlc 
secular  llie  menoscabarião  a  honra  e  repu- 
taÇvio  grandemente.,  tingindo  contra  elle 
cousas  torpes  c  vergonhosas.  E  com  quanto 
se  guardava  com  grande  cautela  tie  todas  as 
occasivões,  não  doixarião  c!e  sair  com  seu  in- 
tjnt )  por  meio  ile  minas  secreias  de  enga- 
nos e  mentiras.  Assomiuwda  a  Santa  do  (pie 
ouvira  ro.;.iva  a  Isosaa  Senliora  ,  qne  valesse 
ao  Ministro  em  perigos  tão  apertados.  Mas  a 
i\iãi  lie  viisericortlia  respondia  amorosamen. 
tt  j  Nenhum  mal  lhe  podem  fazer  sen»  Itrem 


Fk.  Ili?;n:orE  Srso.  2^9 

iicenra  cie  nuii  rillio.  V  entende,  que  todo 
o  que  elle  permittlr,  que  cliihi  lhe  veiilia  ,  II  e 
será  ruui  inij^^^ortiinte  e  proveitoso  para  a  al- 
ma. Pelo  que  l)em  ihe  podes  dizer,  que  este- 
ja de  bom  auiuio  ,  e  não  tema.  Sendo  o  Mi- 
nistro avisado  destas  cousas,  coniocou  a  ro- 
tear a  coRjurarílo  iniciual  ,  e  segundo  cos!u- 
riir.va  fazer  a  miude  ,  (juando  se  adiava  cm 
ajjcrtos  ,  subio-se  aoiuonte,  ondotiului  uma 
Heriuida  da  Invocação  dos  Anjos  ,  e  passava 
nove  luezes  ao  redor  tlella  á  honra  dos  nove 
coros  dos  Anjos,  rezando,  e  pediudo-lhes 
muito  de  propósito  que  fossem  com  elle,  e 
o  ajudassem  contra  seus  inimigos  :  logo  em 
au)auheceudo  teve  um  rapto  da  alma,  epare- 
cia-lhe  que  era  levado  a  um  formoso  prado, 
onde  via  ao  redor  de  si  um  cojuosissiu.o 
ajuntamento  de  Anjos,  que  lhe  vinbão  acu- 
dir, e  o  auitravão  com  estas  jxilavias:  O  Se- 
nhor é  com  vo.ico  ,  o  sabei  que  cm  nenhum 
perigo  ,  nem  aíronta  vos  ha  de  desamparar 
jamais.  Pelo  que  o  que  \os  cumpre  é  ,  que 
não  largueis  o  cuidado  em  que  andais  de 
arrancar  almas  das  vaidades  do  mundo,  e 
Irazel-as  para  Deos.  Esh)rcado  o  Minislio 
com  taes  visões,  fazia  grande^  diligencia  por 
converter  lodo  género  de  gente.  E  assim  co- 
Iheo  com  boas  palavras,  e  com  um  santo  en- 
gano ganhou  para  Deos  um  homem  cspan» 


tido  Vida  do  Beat» 

tosainente  assomado  e  temeroso,    que  havia 
dezoito  annos  que  se  não  confessava  ,  o  qual 
tocado  dl  graça  divina  se  Jbe  confessou  com 
tanta  dòr  e  arrependimento  d'alnia  ,  que  am- 
bos juntamente  clioravão.   E   ponco  tempo 
depois  acabou   a  vida  bemaveniuradamente. 
De  uma  vez  tirou  de  máo  viver  doze  mídbe- 
res  públicas.  E  não  se  pôde  encarecer  o  tra- 
balho que  levou  com  elias  até  as  chegar  a 
bom  estado  j   o  cii  fim  só  duas  perseverarão 
nelle.  No  diitricto  daqiiella  terra  ,  onde  en- 
tão morava  ,  Ira  via  por  muitos  lugares  gran- 
de numero  de  mulheres,  assim  seculares  co- 
mo religiosas,  que  por  fraqueza  e  leviandade 
se  tinliáo  perdido  desalinadamente  ,  euão  ti- 
nhào  ningiieui  a  quem   se  atrevessem  a  con- 
fessar suas  desavenluras,  pela  grande  vergo- 
nha que  em  suas  almas  sentião  ;  donde  lhes 
nascia  uma  anciã  tão  excessiva,  que  muitas 
■vezes  entra/ão  em  tentação   de  se  matarem. 
I\Ias  como  cairão    na    brandura    e  piedade , 
com  que  o  Ministro  tratava  todos   os  affligi- 
dos ,  cobrando  co  líi mra ,  vierão-se  a  elle  uma 
e  uma  no  tempo  ,  que  era  maior  o  perigo  tle 
seu  estado,  c  c o  n  dòr  e  lagrimas  lUe  derão 
conta   das  angiístiás,   eui   que  vivião  ,    e  do 
p«.rigo  q  le  receavãtx  Quando  o  Ministro  vio 
o  ín>  p  ibr.^s   mulheres  afadigadas  com  lania 
naiiJrla  ,    o.isjlava«ai  com  muito  amor,  cho- 


Fr.  Hjznbique  Suso.  2Ô1 

rando  com  todas,  e  em  Sm  remetleou-us,  e 
fez,  ainda  que  não  foi  sem  arriscar  r.niito  de 
sua  reputação,  que  ganhassem  as  almas,  e 
remecliassem  a  lionra  ,  não  fazendo  caso  no 
processo  desrl.  negocio  do  que  as  lingnas  dos 
maldizentes  lhe  podião  levantar.  Havia  nma 
que  era  mull^er  bem  nascida  e  nolire,  que 
estranhamenle  sentia  ver-se  em  tal  estado. 
Appareceo-Uie  a  Virgem  gloriosissima  ,  Nossa 
Seniicra,  e  mandou-lhe  que  se  fosse  ao  seu 
(^aneliíío,  avisando-a  que  era  o  Ministro, 
])ara  ser  remediada  por  elle.  E  respondendo 
que  o  não  conhecia,  tornou  a  Mãi  de  Mise- 
ricórdia :  Olha  para  de!)aÍAO  de  meu  manto, 
.que  O  guardo  e  defendo  com  meu  amparo, 
tí  nola-lhe  as  feições  do  rcstro,  para  que  o 
possas  conhecer  depois  ;  elle  é  consolação  , 
e  alliviodc  todos  os  tristes,  elle  ,te  consolará. 
Foi  a  mulher  ao  Ministro ,  e  pondo-llie  os 
olhos  no  rostro  ,  conhcceo-o  pelo  que  tinha 
visto  na  rcvelaçfio  ;  e  contando-lhe  sua  ])er- 
dição  ,  pedio-lhe  quo  a  remediasse  com 
entranhas  do  miiericorília.  Ouvio-a  o  Ministro 
conj  muita  benignidade,  e  ajudou-a  (pianto 
pôde,  porque  tornasse  arcstauiar  o  nome 
perdido  segundo  a  Sagrada  Virgem  Íh'o  en- 
carregai a. 


i62  Vida  do  Dízato 

CAPITULO    XL. 

Em  que  Fr,  Henrique ,  proscí^nindo  sua  nar-^ 
ração  j  conta  uma  estranha  afronta y  em  que 
se  vio  ,  procurando  com  mi:,ir  ejjlcacia  ,  e 
cuidado  a  salvação  das  almas, 

1  Ela  maneira  que  leínos  dito  salvou  o  Mi- 
nistro um  numero  infinito  de  homens  afadi- 
gciílos  com  o  peso  de  seus  peccados.  3Mas  em 
pago  destas  obras  de  caricíaJe  íoi  necessário 
padecer  maltas  e  mui  rig(<rosai  cruzes ,  as 
quaes  o  Senhor  lhe  significou  prirjieiro  em 
uma  visão,  que  passou  desta  maneira  :  Indo 
um  dia  de  caminho  chejj(Mi  já  tarde  a  uma 
pousada.  O  outro  dia  pela  manhua  ao  romper 
da  alva  foi  levado  em  revelação  a  um  lugor, 
onde  se  hnvia  de  cantar  uma  Misia  ,  a  qual 
por  sorte  lhe  cabia  a  ello.  E  os  cantores,  que  a 
offieiavão,  comecavào  o  Intróito  áà  IMissa  doi 
Martyres,  que  diz  :  Mulíae  tribulationes  JU" 
storum.  etc.  A.^astava-se  o  Miiiistro  com  este 
Intróito,  e  deeejaudo  que  a  IMissa  fosse  outra 
dizia-lhes:  A  qtie  propósito  me  vindes  agora 
com  Bíartyres!  que  desconserto  «  cantar  de 
Matyres,  não  serido  hoje  dia  de  nenhum  Mar- 
tyr  assignalado.  I\]as  os  cantores  apontando 
nclle  com  os  olhos  filos  ,  e  com  dedos  esten- 
didos ;  Hoje  também  y  rtspondião ,  icm  Dcoí 


Fs.  Henrique  Suso.  265 

seus  Marlyrc."^ ,  não  menos  que  em  todo  outro 
tempo.  Vós  apeiccbei-TOs,  c  não  façaisoiitra 
cousa,  e  ide  começando  a  Missa.  Corria  o 
Ministro  ,  e  revolvia  o  Missal  que  tinha  dian- 
te ,  e  procurava  dizer  outra  Missa  ,  qualquer 
que  ícsse,  ou  de  Confessores,  ou  doutra 
cousa  ,  antes  que  de  Marlyres  insignes.  Mas 
por  muito  que  se  cansava  em  correr  o  Missal , 
não  topava  com  outra  cousa,  senão  com  Of- 
íicios  de  Mar í Vi  es,  de  que  adiava  todas  as 
íbilias  cheias.  Ilntão  vendo  que  não  podia 
ai  fazer,  con.:iniio  ,   e   i"ui-se  cantando  com 


a  um  pouco  tornava  a  falíar  com  elles  di- 
zendo :  Km  veidadeque  c  cousa  espanto- 
sa, e  n(r\a  a  oTie  fazeis.  Porque  não  di- 
reis ai)íe:i  uíu  Gaudcanius  y  que  é  intróito 
alegí-e,  e  não  esse  que  é  triste  e  me- 
laiK  olizado  .í^  Nào  sal3eis,  meu  amigo,  o 
x\\\iô  passa?  respoudiáo  os  Cantores:  Aí]^o- 
la  tem  primeiro  lu^^ar  este  ofncio  dos  Mar- 
tyres,  depois  viiá  i'ssv  Gaiulca/nus  de  festa 
algumas  vezes,  e  a  seu  teuqu).  Quando 
o  Ministro  entrou  em  si  estremeceo  todo  com 
Ipavor  do  que  vira,  e  dizia:  Ai  de  mim,  meu 
bom  JESL  !  é  isto  por  ventura  ali;um  novo 
género  de  Cruzes,  que  me  espeião?  Indo  ca- 
miidiando  com  roslro  caído,  e  dcst onteníe, 
perguniuu-ihe  o  conipanlieiio  ,   qucliavia, 


a64  Vida  do  Bíato 

porque  ia  assim  nielarjcolizaclo.  Respor.tli^o  : 
Oue  vos  posso  dizer  irmão:  cantou-se-nie  nesie 
lu^^nr  uma  Missa  de  ?,Lirtyres.  Querendo  si- 
gnificar que  lhe  fora  revelado  por  Deos  ,  qu-j 
havia  de  ser  asperamente  perseguido.  Mas  o 
Frade  não  entendeo,  nem  eile  lhe  quiz  desi-o- 
hrlr  mais.  Tanto  que  tornou  ao  Convento  , 
que  foi  antes  de  Natal  no  tempo,  que  as  iioitr : 
são  mais  comnridas  ,  locro  ocomecáráo  a  sai- 
tear,  segundo  seu  antigo  costume,  varias  u 
mui  pesadas  trlhidações  por  maneira  que  , 
humanau.enle  julgarfílo,  cria  que  lhe  hsAÍa  Ój- 
estalar  o  coração  com  a  íV.rca  do  sentimento, 
ainda  (]ue  não  fora  de  mais,  que  ver  o  mes- 
liio  mal  era  qualquer  outro  liomem  ,  porque 
o  punhào  em  cerco  tão  apertado  e  crutl  , 
que  por  meios  iaslimosos  lhe  vinha  a  falln. 
totalmente  tudo  quanto  lhe  ficava,  eoi  que 
poder  estribar  de  descanso,  de  consolação  , 
de  honra  temporal,  e  finalmente  de  qualquer 
outra  cousa  ,  que  pôde  dar  gosto  na  vida. 
Esta  trabalhosíssima  Cruz  passou  desta  ma- 
neira :  Entre  a  muita  gente,  que  o  IVIinistrij 
desejava  reduzir  ao  serviço  ile  Deos  ,  veio 
ter  com  elle  uma  falsa  fêmea  ,  engana- 
dora ,  e  dobrada  ,  que  com  capa  de  virtude 
ao  que  parecia  ,  colaria  um  corinjão  de  loh;i  , 
'  c  sabia  também  dissimular,  que  por  grande 
tjmpo   não  pôde  o  Ministro  cair  em  quem 


Fr.  Henrique  Scso,  ^65 

clia  ei»n.  Esta  se  tinlia  perdido  primeiro  com 
certo  homem;  e  para  lazer  a  culpa  mais  feia, 
não  se  contentando  com  a  primeira  maldade , 
de  uma  criança  ,  que  delle  tinha  ,  quiz  dar 
por  pai  oLiiro  homem  ,  que  totalmente  a  não 
conhecia.  Mas  não  foi  isto  parte  para  o  Mi- 
nistro a  lançar  í^e  si,  antes  a  ouvia  de  confis- 
são ,  e  lhe  arodin  com  n^uitas  ohras  de  cari- 
dade ,  com  que  remediava  suas  necessidades  , 
e  honrava  e  fazia  por  ella  mais  que  os  Frades 
daquellal^iovincia,que  (hamioXerminaríos, 
Sendo  passado  muito  tempo  que  o  Ministro 
continuava  coui  ella  ,  veio-se  a  entender  cla- 
ramente })or  elle  ,  e  por  outras  pessoas  di- 
^  gnas  de  fé  ,  que  ás  escondidas  era  tão  má 
e  tão  devassa,  conjo  o  fora  no  principio  de 
sua  \ida.'E  todavia  elle  encuhrio  o  que  sabia  , 
não  a  qTieriíudo  publicar  por  quem  era  ,  mas 
foi-se  desviando  delia  ,  e  levantando  a  mão 
dos  bens,  que  lhe  fa/ia.  Tanto  («ue  isto  enlen- 
deo  a  boa  mulher,  mandou-lhe  dizer  qu«  mTo 
procedesse  assim  com  ella,  porque  lhe  fazia 
a  saber  ,  que  se  lhe  faltava  com  os  lions  of- 
íioios ,  e  favores  que  atélli  recebera  delle,  lh'o 
havia  de  pagar  a  bem  grande  preço.  Porque  o 
menos  que  havia  de  lazer  seria  mandar-lhe 
cngeilar,  e  nomear  por  íilho  seu  um  menino 
que  linha  de  um  secular,  com  o  que  lhe  da- 
ria tal  descrédito ,  que  em  toda  a  terra  ficasse 


u66  Vida  do  Beato 

infamado.  Mui  assomlírado  ficou  o  Ministr* 
deste  recado:  e  recolhido  só  comsjcro,  e  ca- 
Jado ,  suspirava  proíimaainente  ,e  discorria 
assim  entre  si.  l^()r  toda  parte  me  vejo  posto 
em  cerco  ,  e  não  sei  que  conselho  siga  ;  que 
se  corro  niais  com  esta  mulher,  perco-me ;  e 
se  o  não  faço  ,  tainherii  me  pejco:  e  assim 
fico  rodeado  de  inales  para  nào  poder  esca- 
par de  ser  a  tropel  lado  d'alguni.  Entretanto 
padecia  inorlaes  afrontas  in)aginando  como  , 
e  eni  que  ,  e  até  onde  ptrniiitiria  Deos  que  se 
alargasse  este  minlstio  infernal  em  o  perse- 
guir. Em  fim  assentou  que  era  melhor  para  si , 
e  para  Ueos,  e  mais  acertado  para  a  saúde  ãa. 
alma  ,  e  do  corpo,  quehrar  couí  a  perversa 
mulher  escolhendo  de  dous  males  o  menor, 
sem  fazer  caso  do  risco,  a  que  punha  sua 
honra  ,  e  assim  o  fez.  lAa^i  cila  ficou  tão  to- 
mada ,  que  com  uma  maldade  hestial ,  qual 
era  a  sua  ,  qu iz  dcshonrar-se  a  si ,  só  por 
prejudicar  ao  Ministro;  e  correndo  por  entre 
Religiosos  e  Senhores ,  e  andando  de  uns  a 
outios  publicou  e  affirmou,  que  tinha  uni 
filho  delle.  Grandenienie  se  escandalizarão 
com  tal  nova  todos  os  que  lhe  daTao  credi- 
to, e  tanto  mais,  quanto  em  melhor  conta 
o  tinhão,  e  quanto  mais  cornmum mente  era 
havido  por  Santo  em  toda  parte.  Mas  a  clle 
chegava-lhe  á  alma,  e  atressava-lhe  o  cora- 


Fr.  Heniiique  Scso.  ^6y 

cão  com  dòr,  e  assim  se  ia  seccando  ,  c  niyi- 
rliando  de  pura  desconsolação  e  agonia.  As 
noites  [^assava  inteiras  sem  dnrniii-,  os  dias 
cansados,  e  tristes;  algum  brexe  repouso, 
que  tomava,  eia  envoito  em  representações 
medonhas.  Um  dia  levantou  os  olhos  a  Deos 
com  rosíro  choioso,  e  magoados  suspiros  ,  e 
dizia  :  Eis  ,  Senlior,  tenho  já  presente  aquelle 
desventurado  tempo  que  lenua  ,  checada  é 
aquella  triste  hora,  chora  minha  O'  como  po- 
derei supportar  os  apertos  sem  termo  deste 
coração  !  O'  quem  lura  morto  para  que  nao 
vira,  nem  ouvira  tal  desventura!  O' bom 
JESU,  bem  sal>eis  vós  como  reverenciei  sem- 
pre vosso  Nomo  Santíssimo,  e  quanto  traba- 
lhei sempre  peh)  íazcr  amado  e  servido  de 
todos,  e  por  toda  parte:  e  vós  quereis,  Se- 
nhor ,  que  padeça  o  meu  agora  uma  tamanha 
quebra  i'  Dem ,  e  com  assas  razão  me  posso 
eu  queixar  disso.  Eis  que  a  Ordem  de  São 
Domingos  tão  iilustre  no  mundo  terá  por 
mim  uma  tamanha  iní\imia  ,  qual  nunca  já 
m:iis  deÍ7carei  de  cliorar  ?  O'  anciãs  e  tor- 
mentos de  minlia  alma  ,  já  todos  os  devo- 
tos, que  atégora  mehuniárão  como  se  fora 
honjcm  Sanlo  (cousa  ({ue  me  podia  dar  animo 
para  o  ser)  não  meolliaráõ  senão  como  a  um 
lal.so  enganador  dos  homens  ,  cousa  que  me 
trcsj;assa  a  alma  de  inoríacs  leridas.  Ttndo 


26B  Vida  ko  Beat© 

passado  algum  tempo  nestas  queixas  e  pran* 
tos  de  mai;eira,  que  ia  perdendo  as  forcas, 
e  a  vida  ,  veio  ter  com  elle  uma  mulher ,  que 
lhe  faílou  desta  maneira  :  Que  razão  ha  Se- 
j.dior  para  vos  matardes  assim  ?  tendo  animo  ; 
que  eu  vos  darei  remédio  a  l)cm  pouco  custo, 
se  quizerdes  governar  a  meu  modo  ,  para  que 
não  percais  nem  um  fio  de  vossa  reputação. 
Ora  íazei ,  rogo-vos,  um  coração  grande  ,  va- 
loroso e  constante.  Levantando  o»Ministro 
o  rostro  pergunlon-lhe  que  ordem  havia  de 
ter  no  que  dizia.  Tomaiei,  rcspondeo  ,  esse 
menino,  e  leval-o-liei  dehaixo  deste  manto 
escondido,  e como  for  noite  enterral-o-hei  vi- 
vo, ou  o  matarei  metiendolhe  uma  agulha  pela 
calieca.  iHe  morto,  acnlmará  U)go  ioda  esta 
tormenta  ,  e  ficará  vossa  lionra  sem  f[ue]>ra. 
Ouvindo  isto  o  Ministro  encheo-se  de  paixão, 
e  disse-lhe:0'  fêmea  mais-deshutnaua  de  to- 
das quantas  são  nascidas  ,  e  assim  te  atreve- 
rias a  matar  um  innocente?  Como  ?  e  lia-se 
de  ^ôr  á  conta  do  menino  a  maldade  da  mái 
para  pa^^ar  por  ella  ?  Vivo  o  querias  sepultar  ? 
?íão  ha  de  haver  tal,  nunca  Deos  queira  que 
do  meu  consentimento  tal  insulto  secoramet- 
la.  O  maior  mal,  que. deste  me  pôde  vir,  é  um 
total  abatimento  de  meu  credito,  pois  affir- 
nio-'vC  que  se  de  minha  iionra  dependera  a  de 
um  Pvcino  inteiro  ,  de  boa  vontade  u  largara 


Fr.  KETíniQrc  Scs^j,  2^)9 

n.is  mãos  de  Deos,  c  iha  offorecéra,  antes 
que  consintir  derramar- se  pela  conservaçuo 
deila  este  innocenle  sangue.  Elle  não  c  vosso 
filho  :  qae  vos  dá  logo  que  acabe  assim  ?  re- 
plicou a  mullier.  E  Iraz  estas  palavras  arran- 
cou de  imia  iara  aíiada  j  c  Icjnion  a  dizer: 
Acabai  já,  deixai-mo  levar  daqui,  tirar-vol-o- 
liei  da  ^ista ,  e  logo  ou  o  degolarei  ,  ou  llie 
darei  com  osla  faca  pelo  Cíjração,  e  assim 
acalnndo  clle  ,  terciros  paz.  Cala-le  perversa 
niillicr,  disse  o  Ministro.  Seja  deqi.ieni  quer 
ior,  Lr.sla  (jue  è  feito  á  imagem  de  Deos,  e 
remido  com  o  sangue  piecioso  de  Christo; 
não  é  razão,  nem  quero  eu  ,  que  se  derrame 
seu  sangue  com  tamanln  crueza.  Ficou  a  mu- 
lliar  com  estas  palavras  abra/ada  de  raiva,  e 
respon{]e{)-llie  :  Pois  não  quereis  que  morra, 
convém  que  de  duas  cousas  façais  uma.  Ou 
que  pela  manbãa  o  deixeis  levar  a  porta  da 
Igreja  ,  como  se  faz  aos  mais  engeiíados  ,  011 
vos  apercvhais  para  uma  despesa,  excessiva 
para  vús,  í»té  (\ue  seja  criado.  Eu  rondo  em 
Deos  todo  poderoso,  tornou  o  i\Iinistro,  que 
atégora  teve  de  mim  cuidado  ,  também  o  terá 
daqui  em  diante,  e  nos  tlará  o  necessário  a 
este  menino  ,  e  a  mim :  p  >r  isso  ide  ,  c  trazei- 
mo  aqui,  que  o  quero  ve  ás  escorulidas.  '!'()- 
mou-o  então  nos  braços,  e  tendo-o  no  collo, 
comecou-llie  o  coitadinho  a  rir.  Ao  oue  clle  , 


ajo  Vi  D A  DO  Beat» 

respondendo  com   v.m  gemulo   rançado  do 
innis  intin^.or  dop<jil() ,  disse;  Havia  ou  matar 
uni  inenhio  tão  beiio  ,  que  com  o  riso  me  está 
fazendo  festas?  Isíio  íarei  tal  por  certo, antes 
tomarei  muito  bem  todo  mal  que   por  esta 
cai'r5a  me  saccedcr.  E  viraudo  o  rosto  amoro- 
samente pêra  elle:  O'  pobrezinho,  dizia,  eque 
dcsaveníurada  orfandade  foi  a  tua,  pois  quem 
te  gerou  te  não  quer  por  seu  ;  e  a  Iraitlora  de 
tua  mãite  quize;jgLÍtar  como  se  foras  um  ca- 
clioro  lançado  no  monturo !  Mas  Deos  permit* 
tio  que  me  fosses  dado,  para  que  eu  seja  teu 
pai,  e  eu  o  quero  assim  de  boa  vontade:  toda- 
via não  te  r.íjceilamlo  d'outra  ujão,  senão  ila 
tio  meíuioDeos.  Tu  eslás  em  meus  I>racos  me- 
nino clarisslmo,  e  aintiaque  não  sabes  fallar, 
ollns-mc  com  uns  oIIids  risonhos,  e  eu  estou- 
le  contemplando  cosn  o  coração  magoado   e 
ferido ,  os  olhos  bmliados  em  lagriuías,  e  com 
afaí^os  de  piedade.  Eis  te  estou  lavando  esta 
tc.-.ia  lace   com    a  agua  anlente ,    que  meus 
oiiios  c^Tilão.  Tanto  que  a  bella  criatura  sin- 
lio  cairem-lhc  no  rostro  as  laíirimas  do  Mlui- 
.-jlro  ,  começou  a  chorar  fortemente  ,  e  assim 
pranteavào  ambos  juntos.  O  Ministro  vendo 
chorar  o  menino,  apertouo  com.^igocom  mui- 
to amor,  diztiulo,  não  cliorts  fjlho  da  minha 
iiima,  que  te  não  hei  de  malar,   ainda  que 
to  aio  íj^croi,  o  ainda  qiie  por  lua  causa  haja 


Fn.  IIí:\'RIQce  Suso.  271 

de  pssar  grande  trabalhos  ;  que  não  poderei 
eu  p-jr  nenhum  caso  acal.ar  comigo,  fazer-te 
mal ,  pois  ficas  sendo  meu  fillio  ,  e  de  Deos; 
e  eiii([nanto  o  Senhor  me  ministrar  um  1)0- 
cado  íe  pão  ,  [>artil-o-l:."i  comtigo  áhonia  do 
mestno   Senhor  ,   e  levarei  com  paciência   e 
gosio  »odo  o   mal,   que   por  amor  de  time 
vier.  Nío  cião  bem  acabadas  estas  lastimas , 
quando  aquclla  cruel ,   que  assentara  matar 
o  meninf),  toda  compungida  em  seu  corarão 
comecoí  a  chorar   aoramcnte  com  erandcs 
e  alios  sthiços   de   maneira,  que_^  foi  neces- 
sário íazd-a  calar  ,  por  se  não  publicar  o  ne- 
gocio. I)c,)0Ís  que  a  deixou  chorar  um  espa- 
ço,    toiiií.u-l!ie  o  menino',   e    rogando-Uie 
muitos  btns  dizia  :  O  Senhor  Deos  te  de  sua 
benção,   e  seus  Anjos  te  «^uaidem  de  todo 
mal.  j*^  mandou  ,  que  á  sua  custa  tivesse  cui- 
da dt)  delle,  c  o  alimentasse.  Mas  não  se  sa- 
tisfez com  isto  a  perversa  mãi  ,  antes  cisnli- 
nuou  em  infamar  o  íMinistro,  principahn^Mite 
naquellcs  lugares,  onde  mais  damno  ]he  [?o- 
diafazor,  de   maneira,  que  muitos  houjcns 
"viiluosos  lhe  tinhão   lastima,    e    chefjavâo  a 
pedir  a  Deos,  que  como  justo  juiz  tiiasse  ta^ 
mulher  do  mundo.  Foi  um   dia  vistal-o  uni 
parente   seu,   e  disse-lhe  :   Giiai   dessa  mal- 
vada, que  lai  ribalderia  ousou  accommettcr 
contra  vós  j   que  cu  tenho  achado  mai:eir.i 


STl 


Vida  do  Beato 


para  vos  vingar  clella  á  vontade,  e  é  esíon- 
fler-me  em  qualquer  parte  dessa  comprida 
ponlc,  que  está  Sí)!)re  o  rio  ,  e  colhel-a  ?onio 
passar,  e  lanrando-a  dt;  cabeça  na  agui ,  fa- 
zel-a  afogar.  ISâo  fareis  lai  cousa  se  nieAmais, 
disse  a  isto  o  AUiiislro;  que  iiunci  Deos 
queira  ,  que  por  minha  causa  se  ma'e  nin- 
guém. Basta  que  sa])e  o  Senhor  qu3  tudo 
sabe,  que  contra  toda  razão  me  lanoju  essa 
inidher  em  casa  seu  íilhó.  Em  suis  mãos 
deixo  esta  causa»  Elle  a  mate  ,  ou  lhe  dê  vida 
como  mais  for  servido  ;  que  aindi  que  eu 
com  lhe  negociar  a  morte  desejara  ,  cu  pudera 
salvar  o  risco  ,  em  que  anda  minha  vida  e 
honra,  com  tudo,  por  ser  mulhtr,  tivera 
respeito ,  e  fizera  cortezia  nella  a  lòdas  ,  as 
que  sao  honradas  e  virtuosas  ,  e  dexára-avi- 
Ter.  Aqui  tornou  o  parente  com  melancoria. 
Pois  de  mim  vos  digo  ,  que  quem  quer  que 
tal  a£i'onla  me  fizera,  ma  houvera  de  pagar 
com  a  vida  ,  sem  me  dar  nada  que  fura  íio- 
mem  ,  ou  muliíer.  Não  digais  tal ,  disse  o 
JMinistro;  que  isso  é  uma  brutaliJaile  desme- 
surada e  um  desatino  bárbaro.  Assocegai-vos, 
1?  deixai-me  vir  quantos  males  Deos  quizer. 
Cresclào  no  Ministro  os  desgostos  com  o  tem- 
j)o ,  renovando-se-lhe  cada  hora  com  a  fama 
tio  successo  que  se  ia  dividgando.  E  senlido-se 
um  dia  demasiadamente  afadigado  ,  vencido 


Fr.  Henrique  Suso.  ajS 

cTa  fraque?»!   natural  desejava  buscar  algum 
oenero  de  consolação,  ou  allivio.  Coiu  esta 
tenção  foi-se  em  busca  de  dous  homens,  que 
no  bom  tenipo  o  communlcaTão  muito,  e  se 
lhe  tinhào  mostrado  bons  auilgos.  Aqui  per- 
luittío   Deos  ,  que  visse   por  experiência  em 
ambos,   quaiaanha  verdade    é,    que  não  ha 
cousa  sãa  ,  nem  macissa  nas  criaturas.  Por- 
que assim  elie,  como  os  que  eslavão  em  sua 
companhia  o  tratai ã>  com  muito  mais  aspe- 
reza, do  (|(ie  o  povo  fazia.  Uui  recebeo  com 
razões  pesadas,  e  lohando  o  rostro  a  onlra 
parte  com   desdém    dizia-lhe    rllezas.    Entre 
as  quaes  foi  uuia,  que  o  não  visse  mais ,  nem 
o  tivesse  por  ami^o,  porqne  se  corria  de  ter 
commercio  con7  elle.  Cortavão-lhe  as  entra- 
nhas estas  palavras,  e  com  unja  voz  caída   e 
niafj^oad.i  :  Ah  irmão  meu  ,  disse  para  elle  ,  de 
mim  vos  seiatíirmar,  (pie  se  Deos  permitlira 
cairdes  vós  nesle'pego  de  lodo,  e  al)atimento  , 
em  que  hoje  me  vejosomido  ,  correndo  e  pu- 
blicando vos  houvera  de  ir  acudir,   e  ajudar 
com  amor  e  cortezia  a  sair  delle.  E  vós    soÍ5 
ião  deshuniíàno  f[ne  não  basta  verdes-me  atol* 
lado  até  o  pescoço,  mas  ainda  trabalhais  por 
lue  levar  debaixo  dos  pés  ,    e  atropellar-me. 
Disso  só  me  queixarei  eu  sempre  áquelleso* 
bre  todos  atormentado  coração  do  clementis- 
íimo  JESU.  Mas  elle  mandou-lhc  que  se  ca« 


2y4  VíDA  r)0  Bea.t« 

lasse    dizendo-lhe    injurlor.nmerjte  :    .Ta    sois 
acabado,    jd  não  ha  f[iie  fazer  conla  de  vós, 
nem  vossa    pregações,   nem  vossos  li\ros  se- 
rão vistos  de  ningTiem  ,  a  que  tudo  se  dará  de 
TTíão,  tudo  se  fngeitará.  \(j!!Í  o  Ministro  pon- 
do os  olhos  no  Ceo  respondeo  mansamente: 
Pois  eu  confio  em  Ueos  todo  pode  roso  ,  que 
ha  do  vir  tempo  ,  em  que  meus  escritos sejáo 
inais  airados  e  estimados  do  mundo,  do  que 
nunca   forao.  Taes  foiHo   as  consoiíçóes  q;ie 
achou  nos  amigos,  (>ue  linha  por  principais,  e 
verdadeiros.  Os  hímiens  virtuosos  daqiielleiu- 
gar  tin;i.'io  nuiilo  cuitlado  de  o  proverem  com 
o  necessário.   Mas  depois  que  se   pul)hcarão 
estas  falsas  novas  ,  todos  os  que  as  crifio  levan- 
tarão mão  de  lhe  fazer  bem  ;  até  que  certifica- 
dos da  verdade,  tornarão  outra  vez  a  correr 
com  elle.  Assentando-se  um  dia  no  seu  balico 
porverse  poderia  repousar  uni  j  ouço,  foi  loçro 
roubado  aos  sentidos,  e  parecia-lhe  que  era 
levado  a  uma  região  representada  no  enten- 
diuíeuto,  onde  achava  um.  homem,  que  lhe 
fallava  assim  na  parte  inferior  da  alma:  Escu- 
tai ,  escutai  umas  palavras  que  vos  quero  ler 
de  consolação.  Applicava-se  o  Ministro  com 
attencão  ,  e  ouvidos  promptos,  e  notava  que 
lhe  lia  em  Latim  a(|uellas  palavras  de  Isaías, 
que  dizem  :   Não  te  chamarás  já  daqui   em 
diante  desamparada,  e  tua  terra  não  se  cha- 


Fr.  Henrique  Srso,  2^5 

m^.rá  mais  deserta,  mas  chamar-tc-bas  von- 
tade   minha    em  ella,  e  tua  terra   povoada, 
porque  o  Senhor  se  deu   por  coiUente  cm  ti. 
Acabando  o  homem  de  lhas  ler  uma  vez,  tor- 
ijou-as  a  começar  outra,  e  leo-lhas  até  quatro 
▼ezes.  Do  que  o  iviinistro  espantado  :  A  que 
fim,   pergunrou,  me  repetis  isso  tantas  ve- 
zes ?   Faco-o  ,    respondeo  ,   para   que  firme- 
mente confieis  em  Deos,  rimando  a  elle  vos- 
sa ahna  e  vossas  esperanças,  pois  vos  consta 
que  até  a  terra  de  seus  servos,    quero  dl/.er 
até  a  esses  corpos  mortaes  acode  com  o  Tie(  os- 
sário;  e  é   tand)em  que  se  por  uma  parte  se 
liies  tirar  alguma  cousa,  logo  lha  ha  de  sup- 
prir  por  outra.  E  assim  o  lará  também  por 
sua  piedade  com  vosco.  Nem  mais  ,  nem  me- 
nos  succetleo  depois  em  realidaile,    e   com 
tanta    evideixia  ,    que    muitos   de  contentes 
rião  ,    e  louviAvâo  a  Deos  ,   cujos  olhos   pri- 
meiro   tinhão   derramado  infinitas  laijrimas 
de  excessiva   compaixão.  Mas  como  vemos 
que  acontece  aos  animaes  n)ansos   c   peque- 
nos,  que  são  presa    dos  grandes    e  bravos , 
que  se  lhes  caem  nas  mãos  são  dcspadacados 
de  suas  unhas,  e  tragados  de  seii'^  dentes  até 
lhe  (içarem  os  ossos  esbulhados  ebmpí>s,  e 
amda  sobre  esses  ,  se  tem  (jualqner  cheiío  de 
carne  ,  dascenj  enxajues  de  vespas  famintas, 
que   os  acabão  de  roer  e  cocavcirar  j   e  lífio 


a^^  Vida  do  Beato 

fprdoanclo  nos  tutanos  lhos  cliupão,  e  letfío 
]ie]os  aves;  da  nu^snia  irianeira  era  tintado 
então  do  mundo  Fr.  Henrique  ;  e  assim  foi 
roido  e  infamado  por  toda  parte,  e  isto 
por  homens  nas  apparencias  virtuosos  ,  e  que 
o  faziáo  com  capa  e  côr  de  um  sentimento 
santo  e  discurso  christão,a  fim  de  se  consola- 
rem como  amigos,  que  professa\ão  s<'r  do 
JMinistro  :  mas  a  verdade  é  que  cm  nenhum 
dclles  morava  nmor  ,  nem  verdade  ,  e  dníjtú 
nasceo  tentarem-no  alguns  pensamentos  máos 
conlra  estes  taes,  que  lhe  íerião  a  ahua  com 
agudas  setas,  e  o  fazifio  queixar  assim  :  Cousa 
]eve  é  meu  bom  JFSII  i:íadecer  um  lionit in 
trahalj.'-^  quando  forão  ne-Tfociados  por  Ju- 
deos  ,  ou  Gentios,  p;enle  de  seu  perversa,  e 
inimigos  pulílTííos.  Mas  estes  que  tão  secca- 
niente  me  martyrizâo,  vendem-se  por  servos 
vossos  ,  e  parecem-no  ,  e  isto  é  o  que  me  faz 
mniio  mais  pesada  e  intolerável  esta  cruz. 
Mas  tornando  sobre  si,  e  pesando  tudo  na  ba- 
lança da  razão,  nào  lhes  punha  culpa  ,  antes 
entendia  que  Deos  era  o  que  o  castigava  por 
meio  delles ,  e  que  elle  o  estava  beu)  mere- 
cendo, e  parecia-lhe  que  era  conselho  de 
Deos  para  maior  bem  ,  e  salvarão  mais  certa 
de  seus  servos  havfl-os  por  inimigos,  e  tra- 
tal-os  como  a  taes.  Em  pai  ticular  estando  um 
dia  nesta  matéria  mui  tentado  de  impacieu- 


Fr,  Hexriqiii:  Suso.  iyy 

€Ía,  teve  interiormente  esla  resposta:  Lem- 
])ra-te  Cbristão,  que  o  mesmo  JESU  não  qiiiz 
somente  trazer  em  sua  companhia  um  João 
queiido,  e  um  Pedro  fiel,  mas  qulz  também 
soíier  um  Judas  traidor.  P>)Í3  tu  ,  que  dese- 
jas seguir  Sitas  pisadas ,  porque  razáo  te  i\^ns' 
tas  com  teu  Judas?  Contra  isto  o  armava 
um  pensamento  respondendo  assim  :  Ai  de 
mim  piedoso  JESLT,  que,  se  este  vosso  ator- 
mentado servo  não  tivera  mais  que  um  Ju- 
das ,  lòra  ò  negocio  soíVivel ;  mas  eu  vejo 
qntí  todos  os  cantos  estão  cheios  de  Juc'as 
píua  mim  de  maneira,  que  em  fallando  um  , 
lo^o  SC  me  levaiitão  cento.  A  isto  também 
lhe  foi  rephcr.do  interiormente  desta  ma- 
neira :  Todo  homem  ,  que  traz  conta  com 
sna  alma,  tem  obrigação  de  não  cuidar  de 
Tjinguem  ,  que  é  seu  Judas :  antes  deve  cuidar 
que  é  instrumento,  ou  coadjutor  de  Deos 
aquelíe  por  cuj^  meio  lhe  vem  trabalhos , 
que  são  para  sca  bem,  e  para  o  maior  bem 
de  toiios  i[ue  é  a  salvaçíío.  Isto  nos  insinoii 
Chrlstíj  quando  enlregando-o  Judas  com  os- 
culo de  naz  lhe  poz  nome  de  amigo  seu,  di- 
zendo: Amigo  a  que  vieste:'  Sendo  passados 
muitos  dias  que  o  Ministro  andava  assim 
atril)ulado  ,  íicava-llie  só  uma  consolarão 
bem  fraca  ,  que  em  algum  modo  o  alentava,  a 
jL^ual  era  núo  ter  chegado  ainda  a  infâmia , 


%y%  ViTik  DO  Br. iTO 

que  (lelle  corria  ,  aos  Prelados  maiores  de  sifâ 
Ordem.  Mas  este  pequeiK»  ailivio  lhe  lirou 
tan.hem  Deos  subitamente;  porque  o  Geral 
(la  Ordfin  ,  e  o  Provincial  de  Aliuruaaiia  ío- 
rão  ter  ambos  juntos  em  um  tempí>  á  mesma 
terra  ,  onde  a  danada  fêmea  lhe  assacou  o 
falso  testemunho.  Do  que  tanto  que  o  pobre 
Fiade  foi  avisado  em  outro  aigar  distante  , 
onde  morara,  receoso  em  tiemnsia ,  fazia 
discursos  em  seu  pdiíisameuto  dizendo  :  Bem 
pôde  ser  que  teus  superiores  dèm  credito 
áqueila  falsa,  e  se  o  fizerem  uão  tens  uma 
hora  de  vida,  porque  te  laucaráó  n'um  cár- 
cere tão  tcrrivei ,  que  seja  menos  mal  aca- 
bar lo^o.  Este  cuidado  o  moU\stou  doze  dias 
contínuos,  e  outras  tantas  noites  de  manei- 
ra ,  que  esperava  a  cada  momento  o  ca^li^o. 
Um  dia  saío-se  pela  portaria  fora  ,  e  vencido 
da  aucia  ,  que  por  então  coni  maiop  excesso  o 
afrontava,  logo  fugindo  da  gente  tão  lasti- 
moso, e  para  haver  dó  no  interior  de  sua  ai-' 
ma  ,  como  ia  nas  mostras  lie  íóra  ,  fui  se  es- 
conder n  um  higar  apartado,  onde  ninjjuem 
o  podia  ver  ,  nem  ouvir.  Aqui  soltando  a  re- 
tlea  a  seus  tormentos,  ora  rebentava  em 
profundos  suspiros,  ora  se  lhe  rasavão  os 
olhos  de  agua  ,  ora  lhe  coriião  impetuosa- 
mente rios  de  lagrimas  pelo  roslro  abaixo. 
Tal  era  o  aperto  que  sintia  no  coiaçúo,  que 


Fr.  Henrique  Srso.  27^ 

não  poilia  soccgar  em  nenbnna  pí»''f»^'  í5w»-'i- 
tanieiJte  se  assenf-'^»  ?  c  Iu^.j  tom  a  mesma 
preste/»  ^<^  punha  em  pé,  e  })asseava  pela 
casa  a  uiua  parte  eu  outra  dv.  corritla  ,  como 
se  estivera  agonizando  em  1>it.ços  com  a 
nioite.  .Outras  Tezes  lançaTa  das  entrai  ha» 
unsgenjidos  tiistissimos  di/erdo:  Ai  ai, Cio* 
meutissimo  JFSU  e  que  dctei minais  fazer  de 
mim?  ÍSeste  pitdosít  estado  vivia,  fjuando  do 
Ceo  teve  uma  inspiração,  que  ilenlro  nV.l- 
ma  lhe  fallava  assiui :  Onde  istá  a-;ora  a  re- 
signaçáo?  Oiule  a  constante  dfteiuiinação  de 
nfio  ^arinr  pousa  mentos  ,  nem  \)or  mal  ,  nc:n 
por  bem?  Tem  francau.ente  aconselliavas  , 
hem  persuadias  como  se  devia  entregar  cada 
um  nas  mãos  de  Deos  resolulaniente  ,  e  des- 
apega r-se  de  tudo.  Ao  que  elle  cliorando 
respondia  assim  :  Evos  perguntais-mc  pela 
resigmição,  pois  eu  vos  pergunto  a  vós, 
onde  SC  foi  a  misericórdia  de  Deos  infinita  , 
V.  sem  liuíiie  para  com  seus  servos  ,  eis  (jue 
mo  vejo  em  estado,  que  me  não  falta  mais 
que  esperar,  que  o  estremo  de  todos  os  ma- 
les; e  quanto  a  mim  já  sou  bem  morto  , 
como  aci^nlece  a  quem  está  para  ser  ronde- 
Dirado  ú  morte,  e  tem  já  perdido  a  sa*ude  , 
a  fazenda,  e  a  honra.  'Jinha  eu  a  Deos  por 
Benigníssimo,  por  clementíssimo,  e  mui  leal 
paia  com  todos  aquelles,que  se  avtíiuuravuo 


aSo  Vida.  do  Ceato 

a  iai.^or.<;e  de  todo  em  suas  mãos,  e  render-s* 
a  sua  vontaílc.  Mac  a'\  de  mim  que  êÓ  para  co- 
ini,;<)  parece  que  failou  !  Ai  de  ir,-.tn  que  vejo 
que  aquella  tunte  de  misericórdia  e    pieda- 
de, cuj-a  correnie  nunca  houve  cousa  que  a 
pudesse  represar  ,  pareceo  hoje  que  estancou 
para  mim.  Ai  (jue  aquelle  peito  amorosissimo 
cuja  brandura  Ci)?)íesi»a   c  ap:  e^^oa   o  mundo 
todo,  de  todo  me  tem  desamparada,  apar- 
tou de  mim  seus  olhos  foruiosissimos,  vol- 
tO!i-me  seu  roslro  serenissimo.  O'  face  de  meu 
Deos  ,   ó  coração  benigiiissinu,  jamais  pu- 
dera crer  de  vós,  jamais  esperar,    q«ic  assisn 
nieliaveis  de  ent^eitar.  O'  /Vbiáuio  iuexhauslo, 
e  sem  íim,   acudi  e  soccorrei  a  este  triste  ji 
d'antemrK)  acabado  c  morto.  Vós  sabeis,  Se- 
nhor ,   que  toda  minha  esperança  e  consola- 
ção está  posta  só  em  vós  ,  e  não  em  cousa  al- 
guma dl  terra.  Mas  escutai-me  agora  todos 
quantos  viveis   atribulados  no  inundo.   Não 
ha  para  que  nenhum  de  vós  outros  se  escan- 
dalize desta  niiuha  sentida  lorvacáo  ,  nem  de 
meus  desconcertos,    portjue   em  quanto  eu 
não  sabia  novas  da  rcnunciaçáo  própria  mais 
que  íallanclo     e  ouvindo  ,    era  i^n^sto  tratar 
delia.  Mas  agora  estou  todo  chagado,  e  com 
o  coração  em  carne  viva.  As  setas  do  Senhor 
tem-me  trancadas  as  entranhas  ,  e  atravessai 
das  todas  as  vcas  ,   e  ate  o  mesmo  miolo  me 


Fn.  lÍEr-íniocE  Scso.  281 

icm  esgotado  e  sumido  por  tal  maneira, 
que  não  ha  nieml)ro  em  todo  este»rorpo,  que 
não  esteja  perdido  e  acabado  de  dor,  e  mar- 
tyrios.  Coiiío  j)óde  logo  ser  que  viva  resigna- 
do quem  assim  vive?  Havendo  passado  o  jMi- 
liislro  acíueiles  doze  dias  com  tanto  trahallio 
como  temos  contado,  no  cabo  delles  a  lioras 
du  meio  dia,  como  estava  mui  enfraquecido 
do  miolo,  aquietou  em  fim  ,  e  assentoií-se. 
Então  retirado  ,  e  esquecido  todo  de  si  mes- 
mo, virou-se  para  Deos,  e  larr^^ando-se  com 
verdadeira  resignação  nas  mãos  de  sch  di- 
vino querer,  dizia:  Cumpra-se  vossa  vontade. 
Estanílo  pois  assim  assentado  entro\i  em  uma 
extasi  (la  alma  ,  e  via  nella  awo.  se  lhe  punha 
diante  uma  santa  donzeiia ,  das  que  erão  ti- 
iiias  esjíirituaes  suas,  a  qual  quando  vivialhe 
profetizou  quetinlia  por  padjcer  muitos  tra- 
balhos, masque  de  todos  ohavia  Deos  de  li- 
vrar, Consuiava-o  a  donzeiia  amorosamente, 
mas  elle  indignado  com  ella  tratava-a  de  íal» 
sa,  e  de  mentiro5;a.  A  santa  então  sorrindo- 
se  chegon-se  de  mais  perto,  c  dando-lhe  a 
mão:  eisaqui,  disse  ,  vos  empenho  minha  fé 
em  nome  de  Deos  todo  po  iLroso,  e  de  sua 
santa  palavra ,  que  vos  mão  ha  de  desamparar, 
antes  com  sua  divina  ajuda  ,  e  por  sua  miseri- 
córdia haveis  de  sair  bem  dc.Ue  di*sgosto,  e  de 
«[uaesqucr  outros,  que  vus  succedtírem.  E  ião 


dcslramana  ,  respondia  o  Ministro,  a  dor,  e 
a  agonia  ,  cm  que  vivo,  quejá  agora  ,  filha, 
níio  posso  acabsr  comigo  dar-vos  credito,  se 
me  não  ríostrarties  um  si^nal  claro  e  ceilo, 
do  que  dizeis.  Ao  que  clía  ,  tcícís,  difese,  que 
o  mesmo  i)ers  eu)  pessoa  vos  desculpai  a  e 
dcíí.nderá  com  toda  a  gente  virtuosa,  que 
quanto  aos  mãos,  como  medem  tudo  por 
si,  e  por  sua  maldade  ,  liào  tem  para  que  la- 
zer conia  uelies  o  hon)em  ,  que  é  amigo  do 
Deos  e  sisudo,  e  qiianto  a  Orficm  de  S. 
Doviúugos  que  vós  choiais  havcnilo-a  por 
afrontada  neste  caso,  faço^vos  srber  que 
por  vosso  meio  ,  e  com  vosso  nome  ha  de 
ficar  mais  acceiía  assim  a  Deos,  como  a  todo 
homem  de  entendimento,  E  para  que  en- 
lendais,  que  íalio  verdade,  poder-vos-iia  ser- 
vir de  sicjUal  o  que  agora  oirei :  brevemeulc 
TOS  vingará  Deos  justa  e  terrivelmente,  sol- 
tando sua  ira  contra  essa  abominável  íemea  , 
que  vos  foi  autora  deste  mal,  e  matal-a-ha  de 
morte  suljitanea  ,  e  lodos  aqutUcs  que  parli- 
culnrmenle  ajudai ão,  dizendo  e  publiíando 
males  de  vós,  também  acabarão  brevemen- 
te. Com  estas  novas  ficou  o  Ministro  algum 
tanto  suais  alegre,  (uidando  de  se  ver  cedo 
em  paz,  o  assim  esta\a  esperando,  que  fim 
havia  Dks  de  dar  a  esta  tragedia.  I^Ias  não 
passarão  muitos  dias,  que  se  vio  tudo  cum» 


Fr.     Kf."?rique  Suso.  283 

prído  com  effeito.  Porque  a  mulher  morreo 
siibltaciiente ,  castigando  Dt^os  assim  o  pec- 
catlo  de  sacrilégio,  que  coninietteo :  e  dos 
ouiros,  que  mais  o  tinhão  perseguido,  falle- 
cerfio  tiuibem  muitos a])reviadamente,  parte 
com  o  juízo  perdido,  o  parte  sem  Sacramen- 
tos, Entre  estes  foi  um  Prelado,  que  o  aper- 
tou l)ravamcnte  ,  e  depois  de  morto  appare- 
ceo  ao  Ministro,  e  aífirmou-lhe ,  que  pelo 
mal,  que  lhe  fizera,  lhe  tirara  Deos  a  digni- 
dade e  a  vida ,  e  tinha  para  passar  muito 
tempo  gravi<;simos  torn)eníos.  Os  amigos, 
que  sabião  estas  historias ,  e  vião  uma  vin- 
ginça  tão  extraordinária,  e  as  mortes  reba- 
tadas  dos  contrários,  louvavão  a  Deos  dizen- 
do :  A  verdade  é  que  Deos  anda  com  este 
bomV;-.rno,  e  bom  ])arece  que  fe  lhe  fez 
agLj;ravo.  Pelo  queserá  razãoque  nós,  e  todos 
os  bomens  prudentes  o  estim.emos  mais,  e 
o  teidiamos  em  melhor  conta  ,  e  em  maior 
opinião  de  santidade,  que  se  não  houvera 
passado  por  clle  o  que  temes  visto.  DalJi  por 
diante  íoi  acalmando  a  tempestade,  e  por 
obra  do  Ceo  cessou  dtj  todo,  como  lho  disse 
a  dimzella  no  extasi.  Muitas  vezes  depois 
considerarulo  o  Ministro  este  successo:  Ah 
Senhor,  dizia  ,  quão  verdadeiro  é  o  dito  do 
povo  :  A  quem  Deos  quer  bem  ,  não  Uie  pôde 
empecer  ningucm,  Taiiibc;»  luorrco  puuco 


a 84  Vida  do  Cr-ATO 

depois  um  conipanlieiío  seu  dacelia,que 
neste  trabalho  se  lhe  mostrou  pouco  amigo. 
E  sendo  morto,  e  acabado  um  impedimento 
c]ue  llie  toUiia  a  visão  beatifica,  appareceo 
ao  Ministro  cuberto  de  roupas  de  luz,  e 
ouro  ,  e  abrarando-o  com  amor  chego»  sua 
face  á  do  Ministro  ,  e  pedio-lhe  perdão  das 
offensas,  que  lhe  fizera,  com  pacto  que  hou- 
vesse amizade  perpetua  entre  ambns.  Mos- 
trou o  Ministro,  que  folgava  com  isso,  e  o 
defunto  tornou-o  a  abrarar  amigamcnle,  e 
logo  desapparecco,  ese  foi  ao  Ceo.  Tendo  o 
Ministro  provado  infinidade  de  marlyrios, 
em  íim  pareceo  ao  Senlior,  qae  erattnipo, 
foi  divinamente  ^iliyiado  íie  lodos ,  e  ficou 
gozando  de  uma  paz  interior  dalma,  acom- 
panhada de  uma  quietação  socegadu,  e  de 
graça  cheia  de  luz.  Então  louvava  a  Deos 
por  se  ver  fora  ,  principalmente  desta  tribu- 
lação ,  e  affiruiava  ,  que  nem  pelo  que  vai 
o  mundo  todo,  quizera  deixar  tio  ter  pasòado 
por  ella ,  e  por  todas  as  mais.  Enião  por 
celestial  iiluminaçáo,  conliecia  claramente, 
que  este  seu  abatimento  o  levantara  mais 
alto  ,  e  lhe  fora  meio  de  maiores  consolações, 
e  o  chegara  mais  a  Deos,  que  todas  quantas 
adversidades  tinha  cuudo  uebd'a  hora ,  t^iLg 
Dasccra.  ulc  então. 


Fr.  Henrique  Suso»  i8I 


CAPITULO     XLI. 

Tjn  que  o  Santo  Fr.  íicniiqne  conta  dons  ca^ 
SOS,  que  lhe  passai  cio  pelas  mã^sde  tribu^ 
laç  í  es  in  te  rio  i  'es . 

J~l  Gabando  a  santa  «lonzela  delL-ra  tribula*' 
cão  de  seu  l\ui;e  espiritual,  que  temos  con- 
tado ,  solemnizou-u  com  asseis  lagrimas  de 
piedade  e  compaixão  de  tao  triste  historia, 
e  tornou-lhe  a  pedir  ,  que  lhe  quizesse  di- 
zer alguma  cousa  dos  trabalhos  do  espirito. 
Elle  respondco,  que  3Ó  dous  casos  lhe  conta- 
ria nesta  matéria,  E  começou  assiíii  :  Houve 
em  certa  ordem  de  Frades  um  mui  conhe- 
citlo  por  íama,  que  por  divina  permissão 
padecia  uma  cruz  interior  ,  a  qual  lhe  dava 
tanta  pena,  e  o  trízia  tão  desanimado,  que 
de  dia  e  de  noite  não  fazia  outra  cousa, 
senão  accrescentar  seu  mal  com  lagrimas  e 
pranto  contíimo.  Veio-se  um  dia  ao  Mini- 
stro da  Eterna  Sabedoria,  e  deu-lhe  conta  de 
si,  com  grande  devoção,  pedindo  lhe, 
que  com  suas  orações  lhe  alcançasse  remé- 
dio do  Senlior.  Estantlo  o  Ministro  uma 
manhãa  em  oração  porelic  recolhido  dcnno 
em  seu  Oratoo-io  ,   teve  uma  revelação  ,  ciu 


«S5  Vida  do  Deato 

que  lhe  appareceo  o  dcint^nio  em  n^ijura  de 
negro  dé  Guiné  mui  azivichntlo,  os  olhos 
cotrio  brasas  ,  o  semblante  mechuiho  ,  e  in- 
fernal ,  e  com  um  arco  nas  màos.  Disse-lhe 
o  Ministn- :  Eu  te  esconjuro  por  Deos  vivo 
que  me  digas  na  verdade  quem  és  ,  e  que 
queres  aqui.  Eu  (disse  o  diabo,  resp  nlenílo 
bem  como  quem  é)  sou  o  espirito  de  blasfé- 
mia ;  e  o  que  aqui  quoro,  vós  n)esnm  o  cs- 
perimentareis.  I)esviand(í-se  o  Ministro  para 
se  meter  pela  porta  do  Coro  ,  via  que  no 
mesmo  tempo  punha  nella  os  pés  o  Relio;ioso 
atribulado  (íe  que  falíamos ,  para  entrar  no 
Coro  a  caníar  a  Tílissa  ,  logo  o  malvado  es- 
pirito armando  o  arco  tiiou  um  tiro  de  fogo 
ao  coração  do  pobre  Frade  ,  com  que  caía 
por  terra  quasi  de  costas,  e  não  podia  che- 
gar ao  Coro.  Escandalizado  o  Ministro  re- 
prendia  azodamenle  odiabo.  Oque  tomando 
mal    a  soberba  infernal  armava   o  aico  para 

lhe  fazer  tiro  com  outra  sella  de  fo";o.  Mas  o 
«...  "  . . 

Ministro  virando-se  com  pressa  para  a  Vir- 
gem dizia  :  Bemdiga-nos  c'o  iilho  a  gloriosa 
delRei  Eterno  mãi  ,  e  íilha  e  esposa.  E  o 
demónio  perdidas  as  forças  desappareceo 
logo.  (Jomo  foi  de  dia  Conlou  o  Ministro 
este  successo  ao  Religioso,  eensinou-lhe  re- 
nudios  certos  e  poderosos  contra  o  inimi- 
go ;  e  são  us  uitíàmo3  que  deixgu  w^crilo» 


Tr.  Henrique  Suso,  287 

cm  r.m  Sf  rnião  ,  que  começa  :  Lecíulus  no-- 
sier  JioriíÍLis ,  etc.  Entre  os  muitos  molestados 
de  males  do  espirito  ,  que  cada  dia  se  viuiião 
sf)CcoiTer  ao  Ministro  ,  chegoii-se  uma  "vez  a 
elle  um  homem  secular  ,  natural  d'oulra 
província  ,  e  disse-llie,  que  padecia  um 
mal,  qual  nunca  ninguém  livera  no  mundo, 
cm  que  outren»  niuguííni  lhe  podia  dar  con- 
selíío  e  leinedio  senão  elle.  iSrio  ha  muito 
(dizia  o  pobre  hon>em)  que  quasi  cheguei  a 
estado  de  desesperar  ,  o  com  a  força  da  dôr  , 
que  Svínlla,  desejava  uiatar-me.  Levado  desta 
juria  fui  para  mo  lançar  no  mar,  e  remetten» 
do  para  acabar  de  ser  homicida  de  mim  mes- 
mo, ouvi  uma  voz  sobre  mim ,  (jue  me  dizia  : 
Tem-te  ;  não  te  percas  vilmente  ;  busca  um 
rradcde  S.  Domingos  ,  (e  logo  lhe  dizia  o 
o  nome  do  Ministro,  nome,  que  nunca 
d'anles  ouvira)  e  elle  te  remcdeará,  e  ensina- 
rá <í  que  liiis  de  lazer.  Alvoraçado  com  eslas 
novas  sobr estive  iia  triste  determinação, 
que  tinha,  e  vei.ho-me  a  vós  como  me  foi 
luandado.  Vendo  o  ^linislro  tão  piedoso 
caso  tratou«o  com  muita  brandura  ,  e  tantas 
cousas  lhe  soube  dizer  de  consolação  e  es- 
forço, e  tào  contente  e  bem  doutrinado  o 
mandou  ,  no  que  lhe  c-np^in  ,  que  pela 
graça  de  Deos  nunca  mais  caio  em  siaiilUaa* 
tes  lentacCcs. 


l88  ViDi  DO  Bejlto 


CAPITULO     XLir. 

Em  que  se  clcclnrn  quass  S''ío  as  tribulações 
de  inih  proveito  para  o  Christão  ^  c  d$ 
mais  floria  para  Deos, 


Dl 


'Epois  (lo  qne  tomos  coiiíado,  fez  a  santa 
donzelb  as  perguntas  seíjr.intes  a  Fr.  Hen» 
rique.  Qulzera  saber,  meu  Pacire,  qiiaes  são 
as  cruzes  ,  que  mais  servem  a  uma  alma  para 
se  saWar,  c  de  que  maior  louvor  resulta  ao 
Senhor.  Muitos  e  mui  vários  são  os  traba- 
lhos, respondeo  o  Sa:Uo  ,  que  preparão  ,  e 
armão  um  homem  para  a  beniavenliirança  , 
e  lhe  seginão  os  caminhos  para  ella,se  sou- 
ber usar  bem  delles.  Algumas  vezes  permiite 
Deos  succederein-llie  teniveis  petseguições 
*eni  culpa  sua  :  aqui  o  intento  de  DeÔs  d 
querer  proval-o  ,  e  experimentar  sua  con- 
stância, ou  mosirar-ilie  para  qr.anli>  é,  equo 
é  ,  o  que  lem  de  si  só  ,  e  de  sua  jiropria  co» 
llieita  :  do  que  tenios  mulfos  exeuíplos  na 
\"<ilhoTestan)enio.04j  tamluin  traia  Deos  de 
seu  louvor  e  gh)ria  ,  como  se  lè  no  Evan- 
gelho do  Cego  de  nas(  Imenio ,  a  quem 
Christo  den  por  innoccrae  ,  daiuUclhe  vista. 
Ai^nnis  ha  atribulados  de  ma«cira ,   que  lo- 


Tr.  Henriqui:  Suso.  nZg 

ç]a\la  o  merpceni  bem  .  ronio  ft)i  o  Ladrão  , 
que  cnitificárao  com  Cliristo  ,  a  cjuíni  o  Se- 
nlior  promettto  o  Ceo  pela  inteira  e  peiíei- 
ta  conversão  ,  com  que  se  lhe  reudco  na 
Cruz.  ÁlgMis  padecem  trabalhes  sem  os 
merecerem  ,  se  tratamos  da  caiisa,  pQiqjse  os 
dá  Deos  na  vida  presente;  e  todavia  liáo  ca- 
recem de  alguma  culpa,  pela  qual  pcrmilte 
o  Senhor  que  lhes  \enhão  ;  e  isto  faz  mtnto 
ordinariamente  para  hiiniilhar  sobcilas  de- 
masiadas, e  tornar  para  si,  e  para  o  ra- 
minho da  verdade  o  homem  tocailo  delias  , 
e  assim  íèbaler  e  njortiCcar  a  ir.ch.aef.o  de 
um  espirito  altivo:  o  que  faz  em  coisa, 
onde  por  ventura  o  tal  lu  niem  nfio  meneia 
nenhum  mal.  Outros  males  lia,  que  Ders  é 
servido,  que  succedão  a  muitos  ptlo  an  or, 
que  lhes  tem  ,  para  por  n:cio  desses  os  hirar 
d'oulros  maiores,  como  acontece  áquelles, 
que  neste  mundo  tem  seu  puTfjatoiio,  sei  do 
atribulados  com  doenças,  ctni  pclirc/a  ,  e 
com  outros  niales  desta  qualidiíde,  paia  evi- 
tarem castigo  ujais  rigoroso,  que  é  qua<»i  o 
mesmo,  que  aíontece  áquelles,  a  qu<  m 
deixa  avexar  por  hcmjens  de  opiíito  diabó- 
lico, para  que  na  morte  IhesTÍM»  stja  ne- 
cessário serem  asson. brados  com  as  feias  e 
monstruosas  rej)rtserlac''ts  t  o^  Hei»  <  r»  <"" 
Alguiià   ha  que  tem  si.a  ciz  vivcn  '        ,    '"*• 


IO 


âC)o  Viu  A  DO  Beato- 

zados  em  um  amor  urdentissimo.  Tomljem 
ha  no  mundo  uns  trabalhos  sem  fruto,  nem 
consolação  ,  que  são  os  em  (lue  vivem  nqnel- 
les ,  que,  sem  respeito  da  aíina,  querem 
cumprir  c'o  Uíundo  em  cousas,  que  totí^l- 
mente  são  miintlauas,  e  esíf:.s  taes  comprfio 
as  penas  do  inferno  o->ni  muita  áòv  e  tja- 
Lalho :  cousa  que  devia  ronsohir  Uíiiito  a 
gente  virtuosa  em  suas  afílieçóes.  Também 
ha  homens  a  quem  Deos  está  sempre  i)rj- 
dando ,  e  /^visando  ,  que  de  todo  roraçáo  se 
íionvertão,  porque  deseja  coramunirar-se- 
Ihes  ,  c  dar-lhes  muito  de  si;  e  todavia  de 
descuidados  ou  resistem  ,  ou  não  acabão. 
Estes  traz  Deos  assim  aljumas  ve7.es  por 
meio  das  adversidades,  ortl?i  ando  qneonde 
quer  que  potjm  o  rostro  ,  ou  se  acolhem  por 
lhe  escapar,  ahi  mesmo  não  achem  outra 
cousa  se  não  infortúnios  econtrariedides  ,  e 
muitos  dissabores  de  volta  com  os  gostos  do 
mundo  ,  e  assim  faz  presa  nelles,  como  se 
os  tivera  pelos  cabellos,  com  tanta  força  , 
que  não  iia  íujfir  de  suas  mãtís.  Emhm 
achareis  muita  gento  ,  que  vive  sem  cruz  , 
se  não  é  a  que  ella  mesma  se  forja  ,  ou  ne- 
goceia prjr  suas  m.íos  ,  fazendo  caso  de  cou- 
sas, que  de  si  nao  importão  nada.  O  que  já 
uma  hora  experimentou  com  certeza  ura 
"^  da  fortuna,  Fassiiva  este  por  uma 


Fr.  Henrique  Suso.  291 

casa  onde  seiítio  que  se  carnia  uma  mulher 
com    lag limas     c    pranto    jiet!cso.     liiitrcu 
dentro  pela  consolar  ,  e  perguntarido-lhe  a 
causa  tle  sua  desconsolní  fio  ,  itsponc^eo,  qi:e 
não    podia   achar  uma  ugulha    qi:e  perdera. 
Saío-se  attonito  ,    e    foi   discorrendo   assim 
comsigo  :  O'  líjulhcr  néscia  j  ó  mull.er  tonta  , 
eu  te  fico  que    se  tontííias  as  cestas  i:n)   cos 
feixes  ,    que  cu  trago  ,   não  prantearas    |  cr 
tfio  fraca  perda.  Tacs  sfio  vv.s  certcis  niin.o- 
sos,    que   com  quak|uer  leve   cansa    íin<;cni 
logo    cruzes  ,    onde  as  dl  o  la.  IMas  a  mais 
nobre    e    mais    excellente   cruz,     qne  pode 
haver,    é  aquella   sohre  todas,    qnc  Uiais  se 
conforma  com   a  de  Cliristo   INosso  I^cihor  , 
que  Deos  F.terno  seu  l\ulre  ]lie'poz  sobre  os 
hombros,   e  a  põe    inda  hoje  aos   amigís  , 
que  mais  ama  ,  não  porque  haja  algucm  que 
totalmente   seja    isento  de  pcccado  ,    exceitr» 
Christo  ,  mas  porqTie  assim  como  Chrislo  i  m 
sua  Sagrada  Paixfjo  foi  um  extiemo  de  niaii- 
sidão,    haTcndo-se  nella    couío  uuia   í}velha 
cercada   de    lobos,  assim    taml  cm    carrega 
com    desmc^surado    peso    de    tribulações  os 
seiíi:^  mais  validos  servos;  e  o  ílm  é  pua  <|ue 
rós  outros  os   mál  sofridos  tomenos  exem- 
plo em  seu  valor,  aprendendo  delles   a  ler 
paciência,  e  á  visia  de   um  Satiio  avexado  , 
Aonitnios  btni  j  e  venramos  cem   ii.ai  sidão 


29a  Vida  do  Bíât» 

os   males  que  como   máos  merererr*05.  Ist©, 
filha  minha,  deveis  considerar,  c  riào  façaes- 
iifinca   iiiáo    rosto  aos    trabalhos,    que    por 
qualqiier  via,  que  elles  venháo,  podem  ser  de 
proveito  ao  Chrislão,  se  os  souber  tomar  e 
j  econlieccr  tia  mâb  de  Deos  ,  e  referindo-os 
a  eile  passadas  valorosamente  por  seu  amor. 
Aqui  lez  pausa  Fr.  Henrique  ,  e  Sor  IsaleL 
couieçou  assirií :    A(|ueiia  cruz,   meu  Padre, 
de  q-ie  ultir-.acienle  tratastes,  que  é  quando 
iim  homem  padece  sem  piecedereuL  cul[^a3, 
é  de    pouca  gente.   E  eu  t.omáia  saber  p')r- 
que  melo  pôde  um  homem ,  que  é  peccador, 
e    sogeito  a  culpas    e    misérias,   valer-se  c\o 
auxiUo  Divino  para  com  elle  facilitar,  e  ven- 
cer suas  afiKcçóes.  Porcjue  este   tal   parece 
que   vive   entre    dous  tornífntos,  tendo  de 
uma  par^tc  o  de   ler  offendido  a  Deos  ,  e  da 
outra  o  exterior,   que   o  aíflige.  iSisso  tam- 
bém ,  respondeo  o  Santo  ,  vos  satisfarei  logo. 
Eu  conheci  uma  pessoa  ,  que  se  lhe  acon te- 
cla  por   fraqueza    humana   cair  em  pcccado 
que  merecesse  casligo,  tinha  este  costume: 
Como   uma  lavandeira,  dextra  em  seu  oííi- 
cio,   lava   primeiro    a  roupa  com  sabão  ,  e 
depois    a    passa     a  outra   agua ,    com   que 
a  deixa   de  todo  limpa   c  alva  ,    assim   esta 
pessoa  não  descansava,    até  espiritualmente 
ciie^^ar  áquella    fonte  e  corrente  caudal  da 


Fr.  Henrique  Suso.  «93 

precioso  sangue  de  Ghristo  derramado  com 
inefável  caridade  para  consolação  e  soccorro 
de  todos  os  ncccadorcs,  fonte  que  nasce  de 
suas  sagradas  Chagas.  AWi  naquelie  sangue, 
que  ferve  eni  amor  dos  homens,  se  banhava, 
e  somia  com  todas  suas  cul{)as  ,  que  são  as 
Tiodoas  da  ahna.  Alli  naquelie  rio  de  verda- 
deira salvarão  se  lavava  e  purificava  toda  , 
como  se  faz  a  um  menino  metlido  em  banho 
quente.  íslo  fazia  com  grande  fervor,  e  de- 
vaçào  da  alma  ,  junta  n  uma  fé  firme,  e  dcs- 
eiiganada,  que  aqncUe  divino  sangue  com 
sua  virtude  e  merecimento  infinito  a  havia 
de  deixar  iin)pa  e  sãa  de  toda  a  culpa.  Este 
termo  pois  usava  sempre  diante  de  Deos 
quando  se  via  cm  .lígum  traljalho  ,  quer  o 
tivesse  merecido,  quer  lhe  viesse  sem  causa. 

C  A  P  1  T  U  L  O     XLIIÍ. 

Fm  qut^  j  trata  iiorque  maneira  apartou  o 
Beato  Fr.  Henrique  da  affdcj.o  das  comas 
transitarias  alí^uns  homens  engo!fado!i  no 
mundo  f  e  os  injlamniou  em  amor  Divino» 

1^0  tempo,  que  Fr.  Henrique  de  propó- 
sito se  empregava  em  converter  aimas  a 
Deos,  e  desapegaUas  dos  go^ios  e  vaidades 


504  Vida  do  Beato 

cio  mundo  ,  advertio  cjue  em  alguns  ?.Ios- 
teiros  bavia  gente  ,  que  com  habito  e  pro- 
fissão monástica  cobria  coração  e  pensa- 
mentos mundanos.  Em  particular  soube 
que  em  certo  Convento  havia  nina  Freira  , 
que  andava  mui  entregue  a  uma  affeicão, 
para  em  siniilhantes  parles  ,  não  licita,  que 
tinha,  e  mudava  devotos,  ou  por  nifeluoriJi- 
zer  servidores  ,  que  é  a  peçonha  e  deslruição 
de  toda  a  Reli^nao.  Avisava-a  o  Santo,  qne 
se  queria  viver  vida  dt'scansada  e  quieta,  e 
segdira  vida  espiritual,  que  proíessáro,  desse 
de  mão  a's  conversações  ,  e  em  lugar  dos 
amigos  ociosos ,  tomasse  por  amiga  a  Sa- 
bedoria Eterna.  Não  se  lhe  pot-ia  ia  liar  cm 
cousa  que  mais  a  desagradasse  ;  porque  era 
moca  e  formosa  ,  e  eslava  já  enredada  neste 
Inço  do  diabo  mal  entendido  ,  e  mui  travada 
na  amizade.  Todavia  cb.egou  a  termos,  que 
lhe  rendeu  a  vontade  a  estar  prompla  e 
disposta  para  tomar  seus  conselhos.  /.Ias  oc- 
cupando-sc  outros  em  lha  perverter,  foi  fá- 
cil de  mudar.  O  que  visto  pelo  Santo,  disse- 
lhe  :  Filha  minha,  deixai  est^  modo  de  vida  , 
olhai,  que  vos  amoesio  e  profetizo  ,  que  se 
o  não  fazeis  por  vontade,  o  vireis  a  fazer 
por  força,  e  mal  que  vos  pez.  Vio  elh;  que 
fíizia  ju)uco  caso  de  sua  sãa  e  verdadeira 
Doutrina:  fez  oração   ao   Senhor,  que  [>or 


Fr.  Henrique  Srso.  29^ 

bem  ,  on  por  mal  fosse  serviclo  tirnl-a  claqnel- 
le  estado:  e  íoi-sc  um  dia  ao  Presbyterio  da 
Igreja  ,  com. o  costumava,  e  alli  debruçado 
aos  pés  de  um  Crr*ci6r.o ,  descobertas  as 
costas  ,  discipíinou-se  cruelmente  e  de  ma- 
neira ,  que  tudo  se  baiihava  em  saiigiíe  ,  e 
pedia  a  Deos  que  amancusse  aquelle  duro 
espirito.  Em  fim  ouvio  o  Senlior  sua  ora- 
ção. Porque  recolhendo-se  ella  um  dia  para 
casa  5  começou-se-ihe  a  criar  nas  costas  uma 
feia  alrorcova  ,  com  que  íicou  torpe  e  dis- 
forme. E  assim  constranrrlda  do  mal,  veio  a 
la ro^ar  por  força,  o  q-.ie  não  quiz  por  bem, 
nem  por  amor  de  Deos.  Tveste  mesmo  ]\Ios- 
teiro,  que  nao  era  dos  que  professaTflo  clau- 
sura, ha\ia  outra  donzeila  moça  ua  idade,  e 
nobre  no  sangue  ,  a  qual  caindo  taml.ein  na 
rê-i^í  deste  mesmo  dernonio  ,  tinha  perdido 
o  tempo,  e  devasrado  a  honra  utuitos  an- 
nos  ,  (om  toda  sorte  de  homens,  e  t!e  ma- 
neira andava  cega  ,  que  fogia  do  Sanro, 
como  a  lebre  dos  «^alç^os  >  líoroue  receava 
que  havia  de  procurar  por  lhe  fízer  mudar  ;i 
vida.  Tinlia  esta  donzeila  uma  iruiãa  ,  a  qual 
pedio  a  Fr.  Henrique  quizesse  provar  a  Uião 
com  ella  ,  a  ver  se  por  alguma  via  a  podia 
arrancai-  de  tão  dauuioso  estado,  e  tornal-a 
para  Deos.  M.ís  elle  julgando-o  por  quasi 
impossível,  afíiraiuva-lhe ,    que  Unha    por 


soG  Vida  no  Ceato 

iT)ais  íacll  abnlxar-se  o  Ceo  ,   que  tlohrar-se 
€Íla  a    doixar  seus   costumes  ,  de  rjue  só   a 
morte  a  poderia  já  retirar.  Apertava  «o    com 
muita  instancia  a  irmãa  ,  dizendo,  que  linha 
nelle  tanta    fé ,  que  entendia   não  lhe  havia 
Deos  de  negar  cousa,  que  do  veras  lhe  pedis* 
se.  Vencido  o  Santo  destas  palavras  obrigou- 
S3  a  fazer  de  sua  parte   o  que  podesse.   Mas 
con^o    a  donzelia   de  contínuo   se  desviasse 
delle,   e  assim  não  podes:e  lia  ver  uma  kora 
para  lhe  fallar  ,  em  fim  soube  um  dia,  que 
era  perto   da  festa  de  Santa  Margarida  Vir- 
gem ,    que  era    fora   do  rilosteiro  em  com- 
panhia de  toda  a  Gomniuni  iade,  que  saíra  a 
curar  linho  ao  campo.  Foi-se  Í'>go   dissirnu- 
ladaniente  traz  eilas  dando  rodi'ios  por  che- 
gar a  cUa  em  tempo,  e  comiiiunicaráo  acom- 
modada.  Mas  tanto  ,   que  a  pobre  mulher    o 
sentio  virou -lhe  as  costas  com  descortezia  , 
saltando-lhe  fof^o  pelo  rostro  de  líravcza,  e 
com   brados   desentoados    fallava-lhe    desta 
maneira:     Que    me   quereis    Senhor?    para 
(fue   me  buscaesP  ide  en)])ora  vosso   cami- 
nho, que  comigo   não  acabareis  nada  j  que 
antes  tomarei  que  me  cortem  a  cabeça  ,  que 
confessar-me   comvosco,  e  primeiro  sofrerei 
cnterrarem-me    viva  ,    que    deixar     minhns 
amizades  por  vosso  respeito.  A    isto   acudlo 
uma  companheira  j  que  lhe  ficava  perlo ,  o 


Fr.  Henrique  Sl'soí  297 

estranhou-lhe  o  que  fazia  ,  lembrando-llie  , 
que   o    que  Santo    pertendia    eia   j3or    seu 
Lcm  ,  e  para  sua  salvação.  JMas  ella  aljanan- 
do  a  cabeça  íuriosaniente  dizia:  Nfio  o   hei 
de  enganar,  antes  em  quanto   íizer   e  disser 
quero  ,  que  veja   e  conheça  minha    delermi* 
liarão.   Espantado   o  Santo  do    despejo  coni 
que   íallava  ,    e  da   descomposição  dos  me- 
ueios  que  fazia,  ficou  tão  atalhado,  que  não 
podia  faliar  palavra.  Todas  as  Freiras,    que 
eião  presentes,  loniárão  mal  o   atrevimento 
da  companheira  ,  e  todas  ilie  bradavão  ,  que 
fazia  mal ,   que  se  reportasse.  Afasloii-se  o 
Santo  então  ,  e  pondo  os  olhos  no  Ceo  sus- 
.    pirava  do  fundo  do  peito,   e  queria  de  todo 
largar   a  enipreza  ,  se  níio   fOjia    que    dentro 
«'alma   lh'o  contradizia  Deos  com  esta   leiu- 
liranca  ,  que   quem  tem   requerimento   com 
Deos    e  com    o  mundo  ,    e  quer  acabar    al- 
guma cousa  não  ha  de  parar  logo  ,  nem   eu- 
íadar-sc    de    iuiportunar    e    trabalhar.    F.ra 
depois  do  meio   dia  quando   isto  aconteceo. 
Jantaião    as  Freiras ,    e  viudo    a  tarde,    que 
havião  de  ir  a  uma  horta  para   cuncluirem 
c'o  linho,  rogou  a  uma  das  ami;;as  da  Freira, 
que    quando    passassem    por    um    hospital  , 
onde    elle  estaria  ,  que  era  caminho  para    a 
líorta  ,    poV   arte    lha  levasse  lá  ,   e   se  saísse 
para  fora.  Fcz-se  assim,  aiuda  que  com   Ira- 


âpS  Vida  do  BriTe 

Lalho.  Tanto  que  entrou  ,  e  o  Santo  a  tío 
assentada  a  seus  pés  naquelle  lugar  publico, 
em  que  estava,  começou  sua  pratica  do  co- 
ração, que  lhe  arrebentava  ern  conceitos, 
acompanhando-a  coru  profundos  suspiros  ,  e 
dizendo  desta  maneiía  :  Eia  formosissima 
donzella,  donzella  escolliida  deDeos,  até 
quando  haveis  de  trazer  em  poder  do  diabo 
a  belleza  desse  rcstro  ,  e  de  vossa  alma? 
Olhai  que  \os  fez  Deos  amável ,  e  bem  pare- 
cida em  todas  as  cousas,  só  para  terdes  por 
menoscabo  de  vossa  pessoa,  sendo  mulher  de 
tão  boas  partes  ,  e  tão  nobre,  renderdes^vos 
a  nenhum  outro  amor  senão  ao  de  vosso 
Deos,  que  é  o  melhor  amigo  de  quantos  ha 
na  lerra.  A  quem,  dizei,  se  devem  com 
mais  razfTo  oííerecer  as  rosas  desse  rosto, 
que  agora  estão  em  sua  primavera,  que 
áquclíe,  cujas  ellas  siío  na  verdade?  Abri  , 
rogo-vos,  iUustre  e  formosa  donzella,  esses 
claros  olhos  da  alma,  e  lem])rai-vos  sobre 
tudo  dacjueila  Divina  amizade,  que  começa 
aqui,  e  dura  pata  senípie.  Olh.ii  a  que  desa- 
venturas,  a  que  enganos  se  arriscão,  a  que 
tormentos,  e  cruzes  se  offerecem  ,  que 
damnos  é  forcado,  que  padeçuo  no  corpo  e 
r»a  fazenda,  n'ahi)a  ,  e  na  fama  ,  e  mal  que 
lhes  pez  todas  aquelias  que  andiTo'embcbiua5 
restas   damnosas  ar.íizades,    das   qaaes   vos 


Fpl.  Henrique  Suso,  299 

afíirmo  ,  que  ainda  que  a  peçonha,  ou  feitiço 
í'iini  íalso  gosto  traz  tontos  e  alienados  os 
jinzos  de  niautira,  que  llies  fez  perder  o  res- 
peito ea  nieoioria  de  tantos,  e  tamanhos 
ínc(>nvenienies,  com  tudo  elles  abrangem 
nesta  vida  e  na  outra.  Ora  pois,  tilha  minha  , 
nriais  bíjlla  e  i.-iais  merecedora  de  ser  amada 
de  todas  quantas  o  ííÍio  ,  passai  iodo  o  bor» 
natural ,  que  em  vós  ha  ,  naquellc  Senhor  , 
que  desde  toda  a  eternidade  é  o  mais  no- 
bre,  e  mais  excellente  siíjeito  que  ha,  nem 
pôde  liaver.  E  acabai  já  com  estas  sandices  , 
que  eu  vos  dou  minha  l'é ,  eme  ol)rigo  ,  que 
elie  vos  acceite  por  amiga  ,  e  vos  manteíiha 
verdadeira  fe  e  amizade  neste  mundo  ,  e  no 
outro.  Era  bem  escansada  aquella  hora. 
lào-na  entrando  estas  palavras  ,  e  abran- 
dando aquelie  peito  fero  de  maneira,  que, 
levantando  logo  os  olhos  ao  Ceo,  suspirava 
com  entrnnhavel  dòr:  e  tratando  com  o 
Santo  coiiíiad;nnente  ,  e  com  resoluçfio  varo- 
nil dizia  desta  maneira:  Padre,  e  senhor 
meu  ,  não  haja  mais  (hlação  :  eisme  aqui 
rendida,  e  seja  logo  hoje,  á  disposição  de 
Deos  ,  e  vossa  :  aparelliada  estou  a  deixar  de 
toch)  ponto  ,  e  nesta  mesma  hora  a  \ida  des» 
concertada  e  vãa  ;  e  com  vosso  conselho  c 
ajuda  entiegar-me  toda  a  Deos,  e  a  elle  só 
servir  dchojeeradianlc  até  luorte,  Nenhuma 


3oo  Vida  do  Beato 

nova  ,  disse  o  Santo  ,  se  me  podia  a^ora  daí 
de  maior  gosto.  Bcnidito  e  louvado  seja  o 
Senhor,  que  a  todos,  os  que  a  elle  se  tor- 
não,  recebe  alegremente.  Estando  as^im 
ambos  fallando  ác  Deos,  as  amigas  da  don- 
zella  ,  e  companheiras  de  suas  Icviant^ades  , 
estavao  á  porta  da  banda  de  fora  :  e  enfa- 
dadas de  pratica  tão  comprida  ,  coruo  recea- 
vão  ,  que  o  Santo  a  apartasse  da  soltura  de 
sua  conversação,  começarâo-llie  a  bradar 
que  acabasse.  Levantou-se  a  donzella,  foi -se 
com  ellas,  e  disse-lhes  :  Amigas  e  compa- 
nheiras minhas,  ficai-vos  embora  de  hoje 
paia  todo  sciupre  :  eu  me  hei  por  despedida 
de  vós  ,  e  de  todas  as  de  nossa  companhia, 
como  de  gente,  com  quem  gastei  meu  tem- 
po mal  ,  e  como  não  devia,  de  que  toda  a 
vida  terei  ma^joa.  Já  a^ora  a  um  só  Deos 
todo  poderoso  me  offereco  e  entresjo ;  e 
todo  o  mais  en:íeito  e  lar-jo.  Hesta  maneira 
começou  a  evitar  toda  a  amizade  peri.^osa ,  e 
viver  recolhidamcnle.  E  ainda  que  não  fal- 
tou depois  quem  a  tentou,  e  trabalhou  pela 
tornar  aos  costumes  passailos,  não  se  aca- 
l)ou  nada  com  ella.  Antes  se  havia  de  ma- 
neira, cjue  acompanhando  uma  estremada 
honestidade  com  toda  s;>rte  de  virtudes  per- 
severou até  o  fir.i  da  viila,  firme,  e  conslan- 
leincnte  uo  seivico  de  Deos.  Açonieceo  de- 


FRiTÍENRiQnr.  Sfso.  3oi 

}OÍs  ,  que  saindo  o  Santo  um  clia  do  Mostei- 
ro,  en]  que  morava,  para  a  ir  visitar  o 
mimar  no  caminho  da  Ylrtiule  ,  e  consolai-* 
de -certos  trabalhos,  que  padecia  ,  como  r.n- 
dav;  neste  tempo  indisposto  ,  e  o  caminho 
era  eh  muitos  lodos,  e  parte  delle  por  serras 
altas,  I!  fragosas,  ia  mtii  afadigado.  No  m(>'o 
desta  ahonta  levantando  os  oUk^s  a  Deos  di- 
zia a  ir.iude:  Senhor  Deos  Misericordinso 
e  obrado?  de  misericórdias,  '  lembro  •\  os 
aqnelles  cinsados'  passos,  qne  neste  mundo 
com  muit;o  ^.rahalho  destes  por  nos  salvar;  c 
V  pero-vos  qn°  me  guardeis  minha  filha.  Traz 
isto  encostavi«-se  em  sen  conipanhe  iro ;  o 
qual  cheio  de  lastima  de  o  ver  assim  disse- 
Ihc:  De  verd.ide  entendo  que  compele  a 
Peos  ,  segundo  sua  bondade,  sah;:r*mnitas 
abnas  por  vosso  meio.  Indo  mais.  adiante,  e 
r.  Santo  tão  desfallecido  ,  (pie  já  não  podia 
dar  um  passo:  P.>r  certi)  ,  l\a(he,  tornou  a 
dÍ2(ír  o  companheiro  ,  q-ie  bem  com  ra^zão 
pudera  Deos  agora  olhar  para  vossa  fraone- 
7a  ,  e  com  seu  poder  dcparar-nos  aqui  uma 
cavalgaíhira  ,  e!n  (|ue  fôreis  um  pouc(j  até 
chegarmos  a  povoado  Sc  ambos  jtini(..s,  res- 
ponufo  o  Santo,  p{jdirju(js  isso  a  Deíís,  bem 
ronfio  nelle  ,  (pie  pelo  mercclmcnio  ue  vos-a 
virtude  nos  íará  mercc.  t  estcTidendo  ns 
olhos  vio  sair  do  mato  um  bem  íeito  c.ivallo 


5ai  Vida  do  Beit(^ 

muito  manso,  e  quieto,  sellaclo,  e  enfreado, 
e  sem  dono.  Entúo  o  companheiro  levantan- 
do a  voz  com  alegria  disòc  :  Oihai ,  Padie 
thaiissimo,  con^u  5e  parece  que  não  está  /s- 
fjuecido  Deos  de  vós.  Toriiou-lhe  o  San^o  : 
Alegrai,  filho,  os  olhos  por  toda  essa  t^rra, 
que  se  descobre,  e  vede  se  porventura  rarece 
alguém  ,  cujo  possa  ser  estecavallo.  Ohando 
oFradc  a  unia  e  ouíra  parte  não  vio  jingueni 
mais,  que  o  cavallo ,  que  mansaiiente  se 
■vinha  chegando  para  elles.  E  di.<6e  para  o 
Santo  :  Sem  duvida  ,  meu  Padr^ ,  este  ca- 
vallo yem  para  vós  mandado  po.'  Deos;  so- 
bi-vos  nelie  ,  e  catninhai.  isso  crerei  eu  ,  res- 
pondeo  o  Santo  ,  e  bem  íio  de  Deos  ,  que 
noi  quereria  acutlir  nesta  necessidade,  se  se 
parar  quaíido  cliegar  a  nós.Nao  erão  bem  aca- 
J)ad:iS  as  palavras,  quando  o  cavallo  chegou 
qui'.'tamen!2  ,  e  paruu  diante  do  Santo.  O 
queelle  notando:  ííora,  disse,  sej.a  em  nome 
de  (Christo.  E  cavalgando  Cí)m  ajuda  do  cj)m- 
panheiro  ,  í\n  assim  caminhando  um  grande 
espaço  até  que  cobrou  alento  e  forças.  Se- 
guia-o  o  companheiro  a  pé.  Mas  tanto  que 
chegarão  junto  tle  iima  aldêa,  queapparecia, 
apeou-se  o  Santo,  e  lar.-^ando  as  rédeas  ao 
cavall ; ,  deixou-o  no  inesmo  camiidio  por 
ondj  viera,  e  nunca  depois  pôde  aciíar 
nova  d;í  cujo  ora  ,  wjin  para  onde  lura.  Ghe* 


Tr.  Hr.xPx  qce  Sus«.  3o3 

■rado  o  Santo  ao  l:'gar,  para  onde  ia  ,  estava 
^in  (lia  á  taide  sentado  com  suas  £lbas  es- 
pi-ituíies,  e  pré;j;ava-lbes  do  amor  Divino,  c 
trJ)alliava  por  lhes  fazer  odioso  o  das  consa» 
t^íi'sitorias.  No  cabo,  despedidas  aslVeiras, 
ficoí  com  a  elfiracia  da  ]^rati(  a  abrasado  todo 
em  fo^o  cie  Ui\ina  caridade;  *e  estava  inia- 
g)nana>  ^  qne  só  o  seu  amado  ,  em  c^uem  elle 
tinha  o.  olhos  ,  e  o  corarão  ,  e  a  quem  pre- 
gava e  persuadia  a  todos  ,  que  amassem  ,  le- 
vava infiriía  vantagem  a  todos  03  amigos  do 
muudo.  Nista  doce  meditarão  foi  arrchalacío 
eín  espirito  e  pareciadhe  que  o  mettlão  em 
um  prado  frtsquissimo  ,  onde  o  acompanha- 
va ,  e  trazia  pela  mào  um  gcritil  mancelio 
cortesão  do  Cto,  o  qual  llio  começou  a  can- 
tar tão  siiavernerte,  qoc  peiíetiando-lhe  n'al- 
ma  a  melodia  da  voz  ,  perdia  com  a  força  da 
deleitação  toda  a  operação  e  uso  dos  siii- 
tidos  j  e  parccia-llie  que  o  coração  dentro  em 
sen  peito  se  lhe  enchia  de  um  desejo  ,  e  5au- 
diule  de  Deos  ardunlii-slma  de  xnaTicira  ,  ({iie 
batia  e  saltava  ,  como  cjne  se  qneria  fazer 
pedaços  com  o  excesso  da  força  ,  que  sentia. 
K  para  se  valer,  foi  necessário  acudir  com 
a  mão  direita,  e  pòr-llu  em  cima.  T^las  entio 
tanto  or^u)  tantas  as  lagrimas,  rine  seus  oi!:os 
eslilla\rt() ,  qneem  fio  lhe  desdão  pelo  rostio 
abaixo.   Acabada  a  musica  ,  rcpresentcií-se- 


^oi  Vida  do  Beato 

lhe  uma  figura  ,  para  poder  apprender  o  que^ 
ouvira    cantar  com   tal  firmeza,  que  nunf» 
íiiais  lhe  esquecesse.  Via    a   Virgem  gloiio* 
sissiina,  nossa  Senhora  ,  que  tinha  no  coiloo 
Menino  J£SU,  Sabedoria    F.terna  ,    apert;^^» 
com    o  sagrado  peito  ,    e  sobre  a  cabeça  do 
Menino  estavS  escrito  o  principio  da  ca^çáo, 
que  ouvira  ,  com  letras    formosissimas;  mas 
o  modo,  por  que  estava  escrito,  era  t^  sub- 
til e    escuro  ,  que   o   nào'  podião  l»í^  senão 
aqtielies  ,    que   o    tinhão  estudado  ^   alcan- 
çado por  experiência    de   trabalhe^  e    peni- 
tencias.   A   linguagem  era  de   Alhmanha.  O 
que     iKi  Portngueza  podia  sigíiiícar,   dizia: 
Amigo    fidelíssimo,  como  que  íÓ  elle  seja  o 
í^ue  na  verdade   é  gosto    veidaleiro  d'alnia  , 
e  amigo  singchssiíuo.  O  Santo leo  logo  tudo  : 
e  entre  taulo  o  .^lenino  JIlSI    tinha    amoro- 
samente  os  olhos   nelle  :   donde   lhe    nascia 
quasicoHi  cerie/.a  experiiut^ntar  como  só  este 
suavissliuo    Serdior    é     na    verdade     amigo 
da  alma  ,   em  cuja  companliia   nem    gostos  a 
descompõe,    nem    adversidades   a  soçobrão. 
E  assim   o  meltia  todo  nella;  e  Ioêjo  com   o 
mancebo  começou  a  entoar  a  canção,  e  am- 
idos a  levarão   té  o  ca!)o.  Estando-se   assim 
a 'ora '.avidj  n>)  fogo  destes   amores,    cessou  o 
tíítasi  ,  tornou  em  seu  accordo  ,   e  achou-so 
ca.n  a  mfio  direita  posu  ^obr^  u  cpra^^o  d» 


Yr,  Henrique  Suso.  3o5 

fnesnia  maneira,  que  a  assentou  ,  qnando  llie 
quiz  acudir  com  ella  na  grande  força  com 
que  batia. 

CAPITULO     XLIV. 

Como  por  merecimentos  do  Santo  lhe  accres'^ 
centoiL  Deos  o  vinho ,  estando  assentado  á 
mesa  com  muitos  companheiros. 


\J^ 


M  dia,  caininli?.ndoo  Santo  por  terra  es- 
tiaiilia  ,  chegou  tarde,  e  quel)ranta(lo  da  lon- 
ga jornada,  a  um  inclusorium  ,  onde  fizera 
co?)ta  de  vir  dormir  aquella  noite.  Succetlco 
não  se  achar  vinho  iio  lugar,  nem  cm  uma 
aldeã,  que  era  visinlia;  só  uma  honrada  don- 
zeUa ,  (|ue  era  presente,  disse  ,  que  em  sua 
casa  havia  um  pequeno  jarro  de  viid^o.  Mas 
para  entre  tantos  ,  dizia  ella  ,  que  cousa  é 
iini  jarri)?  E  dizia  iNto  porque  ,  poucos  mais 
ou  menos,  estavào  alli  jnul«vs  vinte  liomens 
devotos,  a  fora  outros,  (pie  acudíiào  á  f;»uia 
do  Santo,  desejando  ouvil-o  pregar,  l\Ian- 
dou-lhe  trazer  o  jarro,  e  poí-o  na  mesa. 
Posto  o  jarro  ,  rogavão-lhe  lodos  (pie  o  ben- 
zesse. Fel-o  o  Santo  em  virtude  do  nome 
Sautissimo  de  JIlSP  ,  e  bcd)co  priu)eiro  (jiie 
todos  ,   porque   vinha  ardendo  em  sèdc  <\<i 


3o6  Tida  do  Beato 

caminho.  Logo  o  deu  aos  outros,  que  todõS 
foráo  bebendo.  Punha-se  o  jarro  na  niczn  á 
vista  de  todos,  e  sem  se  lhe  lançar  omm  . 
nem  vinho,  que  o  não  havia  ,  como  temos 
dito,  tornava  a  andar  a  roda  e  bebia»»  lodos 
uma  vez  ,  e  outra,  f^las  como  eslaváo  com 
grande  devação  de  ouvir  a  palavra  de  Deos  , 
ninguém  attentava  iio  nalagre  do  Ceo.  No 
cabo  quando  entrarão  cm  acordo  ,  e  caíiáo 
na  conta  da  mardvilha  ,  que  o  noder  Di\if:o 
obrou  no  crescimento  d«i  vinho,  lou\;i\áo  a 
Deos,  e  queriâo  attribuir  o  milagre  á  -vir- 
tude e  merecimenios  de  Fi*.  Henrique;  o 
que  não  consentindo  por  nenlium  caso;  não 
ha,  fdhosmens,  dizia,  poia  que  me  deis  por 
autor  disso.  Quiz  o  Poderoso  Deos  lembrar- 
se  desta  virtuosa  companhia  de  gente,  que 
aqui  concorrer»,  e  (*m  galardfio  de  sua  íe  re- 
frescal-os  com  bebida  corporal   e  espiritual. 

CAPÍTULO     XLV. 

Do  que  aconteceo  ao  Beato  Fr.  Henrique 
com  algumas  pessoas ,  qua  com  clU  tiverào 
particular  amizade, 

XJ-Avia  em  uma  Cidade  duas  pessoa*?  de 
muita  virtude,  q^ue  tinháo  íamiliaridade  c'o 


Fr.  Henrique  Suso,  3qj 

Santo.  As   quaes,  se;^iiindo  ambas  o  mesmo 
caminho  do  espirilo,   levava  Deos   por   mui 
difíerente  termo  ,   uma  ria  outra.   Uíiia    era 
conhecida    e    estimada    do  mundo,    e  vivia 
em  grandes  mimos  e  favores  do  Ceo.  A  ou- 
tra   ninguém  lhe    sabia  o   nome,   e   trazia-a 
Deos   penitenciada    com     tribulações    conli- 
nuas.  Sendo  ambas  mortas  ,  desejava  o  Santo 
saber  ,  que  íbtferença  tinhão    de  premio    no 
outro  mundo  ,  pois  neste  fora  tamanha  a  de 
suas  vidas.    Um   dia    ao  rompei-   da  manliãa 
appareceo  llie  a  de  fiima,  e  contou-lhe  como 
inda     então    estava    detida  ,    e    penando    no 
Purgatório.  Pergtíntando-lhe  admirado  ,  co- 
mo podia    ser  tal  ?  respondeo  ,    qne  por  ne- 
nhuma   outra    culjia  pagava  ,    senão   porque 
daquclla  estima,    que    via  íaze»'  de  sua    vir- 
tude,  llie  sobião   á  alma    uns  fumos  de    so- 
berba de  espiriíf)  ,  a  que   não  resistira  com  a 
destreza  ,  que  rouviuha;  e  com  tudo  tinha  por 
certo  haver   de   sair    cedo  daquelle  trabalho, 
A  outra  ,  que  vivia  despiezada   e  abatida    no 
mundo,  voou    sem  «letefica  [)ara  I)cm)s.  Tam- 
bém  a  mái  de  Fr.  Hcuiicjue,  em  quanto  vi- 
veu na  teira  ,   padeceo  gravissimos  tormentos 
causados  da   differeuca   de   vida  ,   que  tila  e 
seu  marido  faziao :  ella,  toda  cheia  de  Deos, 
desejava  conformar    a    vida  de    todo    ponto 
€om  ãua  santa  Lei :  elie,  tudo  dado  ao  luun- 


3o8  Tida  do  Br a to 

iln  ,  encontrava-a  terrivelmente.  Daqui  nas» 
cião  todos  os  de>igostos.  Tinha  por  co.sti:me 
esta  honrada  dona,  quando  se  via  rercadii  de 
trabalhos,  afogal-os  todos,  e  suinil-os  no 
^oUo  da  paixão  de  Christo  ;  e  desta  maneira 
ficava  CQjii  victoria  delles.  Antes  que  morres- 
se,  contou  ao  Sanlo  Fr.  Henrique  seu  filho, 
que  por  espnço  de  trinta  annos,  nunra  se 
achara  no  Santo  sacrifício  da  Missa,  que  não 
chorasse  agramente  de  piedade  e  compaixfo 
dos  tormentos  de  Christo  ,  e  de  sua  magoa- 
dissima  niãi.  Disse  níais,  que  lhe  acontccêia 
algumas  vezes  cliegara  adoecer  de  puroam.or 
de  Deos  (sem  haver  outra  cau^a  ,  tão  exces- 
sivo Q  sem  medidp  era  o  que  lhe  tinha)  e 
que  doze  semanas  estivera  em  cama  sem 
outro  mal  mais,  que  saudades  de  Deos  tão 
rivas  e  acesas,  (p.io  até  os  Médicos  lhas  ei.- 
tendião  e  se  edificavão  assas.  íío  derradeiro 
anno  de  sua  vida,  entrando  a  Quaresma,  foi- 
seum  dia  a  uma  Igreja  ,  onde  iiavia  um  rc- 
taholo,  em  que  estava  figurado  de  relevo  o 
descendimenlo  da  Cruz  AlH  lhe  foi  commu- 
nicada  á  vista  daquellas  figuras  alguma  parte 
da  intcnsissima  dor,  que  a  Sagrada  Virgem 
senlio  ao  pé  da  Cruz  p;»r  maneira  ,  que  tam- 
))em  a  sentia  ,  e  jadecia;  e  foi  tamanho  o 
ímpeto  das  dores,  que  dtsta  lhe  recrescerão 
de  pura  compaixão   e  piedade  ,    que   o  cora- 


Fr.  lÍENRiorE  Srso.  3og 

çrTo  quasi  Ibe  estalava  no  peiio  porinaneira, 
qire  de  a  desampararem  as  forças  naluraes  , 
caio  por  terra  desmaiada  .  e  ficou  sem  lalla, 
e  sem  vista  ,  e  sem  dar  le  de  nada.  ISesle  es- 
tado a  levarão  para  casa  ,  e  nelia  esteve  sem 
se  lev.mtar  da  cama  ,  nem  fallar  palavra,  até 
a  sesta  feira  da  Semana  Santa.  No  qual  dia  , 
ao  tempo  que  se  cantava  pelas  Igrejas  a  Pai- 
xão a  horas  de  Noa,  espiíou.  Estava  então  o 
Santo  Fr.  Henrique  ,  seu  (idio,  em  Colónia 
estudando.  Apparereo-llie  a  ])emav(ínturada 
inãi  em  revelação  ,  e  cheia  de  estranha  ale- 
gria disse-lhe:  Ro.go-te,  fdho,  que  ames  sem- 
pre a  Deos,  e  tem  por  certo  ,  que  nunca  te 
desaníparará  em  nenhum  trahalho  ,  cjue  te 
venha,  Vês-nie  aqui,  já  vou  fora  do  mundo, 
e  não  sou  morta,  antes  agora  \ivirei  elC! na- 
menle  com  Deos.  Então  heijando  o  filho 
amo/^osamente  na  face,  e  lancando-lhe  a 
benção  de  coração,  desappareceo.  Elle  dcrre- 
lla-sc  em  la::;iimas,  e  hiadando  apoz  d\dla 
dizia:  O'  santa,  e  anrh  issima  niãi  miidia, 
sede-me  hoa  amiira  diante  d«*  Deos.  E  a^sim 
chorando  e  soluçando  tornou  em  si.  Sen- 
do Fr.  llenrifjue  mancebo  ,  foi-lhe  forçado 
ir-se  do  (Convento  ,  em  que  morava  ,  á  outra 
terra  a  estudar:  fú  Deos  ser\ido  dardhe  por 
com|)afdiciro  nesta  mudança  um  homem 
muito  ^virtuoso,  e  que  llie  fui  sempre   ver- 


3ro  Vida  do  Beato 

datleiro  amigo.    Um    dia    assentados    ambo» 
juntos,  e  lendo  fallado  de  Deos  grande   es- 
paço, tirou-t)  o  amigo  de  parte,  e  jKidiollie 
em    segredo    pela  fé    e  obrigação  ,  que  iim 
ao  outro   se    tinliàt) ,  lhe  mostrasse  as  letras 
do  sagrado  nome  de  JESU  ,  que  tinha    escul- 
pidas no  peito.  Deíeníhase  o  Santo,  e  escu- 
sava-se.  Mas  em  fiiu  respeitando   sua  grande 
devoção  houve  de  condescendçr  com  elle,  e 
descobrindo     o    peito   deu-lhe  licença    para 
Ter  bem    á    vontade  arjuella  rica  jóia  de  seu 
coraç'ào.  Do   que  eUe  não  satisieito,    depois 
de  o  ter  de  espaço  contemplado,    e  notado 
quão   cUiramente   estava  escrito  aquelle  Di- 
vino Nome,  tocou -o  tambeuí  com  a  mão,  e 
chegou -lhe  o  rostro,  e  em    fim  pondo-lhc  a 
boca  começou    a   derraraar  muitas"   lagrimas 
de  devoção  de  modo,  que  !>aidiava  com  ci- 
las   o   peito    do   Santo.  Depois   disto  teve  o 
Santo  tamanho    segredo    neste    nome,    qiit 
nunca  mais  c«.iiseniio  ver-lho  ninguém  ,    se- 
não   foi   uma    só    vez    um    grande  servo    de 
Deos,   que   do  me^no   Senhor   teve   licença 
para    o  ver.  Quando    o  vio  teve    os    mesmos 
effeitos    de     devt^ção.    Uavendo    estes    dt)us 
companheiros    continuado,     largos   annos, 
sua     amizade  ,     e    conversação    espiritual , 
quamlo  se  ht)uveião  de  apartar,  despedirão- 
6e  um  do  ouiro  com   í^Taiide  amor,  c  cou- 


Fr.  Ke^triode  Scso.  3ii 

certárão  entre  si,  que  fallerentlo  qualquer 
delles  ,  o  que  ficasse  vivo,  pelo  íraternal 
amor,  com  que  se  nmyvão  ,  clis'=esse  cada  se- 
mana duas  Missas  piílo  defunto,  e  fo^^se  uma 
dé  defuntos  á  se^runda  feira  ,  outia  da  Pai- 
xíioá  sexta.  Dahi  a  muitos  anros  veio  a  mor- 
rer o  amigo ,  e  o  Sant<j  Fr.  Henrique  esque- 
cido da  promessa  das  Missas  não  liias  disse  ; 
mas  Com  tudo  lembrou-se  sempre  fielmente 
delle  em  suas  orações.  Estando  pois  o  Santo 
uma  Uíaiiliua  sentado  em  sua  cella  ,  e  quasi 
em  exiasi  ,  appareceo-lhe  o  companheiro  em 
revelação,  e  com  voz  queixosa  e  magoada: 
Ah  ,  disse  ,  que  pouca  verdade  a  vossa  ?  Ah  , 
irmão,  e  como  vos  esquecestes  de  mim!  Ues- 
pondendi)  Fr.  Heniique,  ((necada  dia  selem- 
l)rava  delL'  em  seussacriucios,  repliccju,  que 
não  bastava  ,  mas  que  lhe  havia  de  pagar  a 
divida  das  Missas,  que  lhe  prometiêra  ,  e 
cumprir  sua  palavra  ,  para  que,  descentlo  ao 
Puríjatorii)  ,  o  satiírne  innocenle  de  Christo 
lhe  matasse  o  f<'go  cruel,  em  que  penava, 
que  í;oni  isso  não  tinha  duvida  ,  que  logo 
sairia  daquelle  lugar.  Cumprio  o  Santo  in- 
teiramente sua  obrigação  com  grande  pezar 
do  esquecimento,  íjue  por  elle  passara  j  e  o 
amigo  lui  em  breve  livre  da  peaa. 


3i2  Vida  DO  Beato 


C  A  V  I  T  U  L  O     XLVr. 

Co:^70  appnreceo  Chrhto  nn  Beato  Fr.  Hcu^ 
lique  em  j.^ ura  cie  Suíaj.uLy  e  o  insinou  a 
padecer. 


X  Oz-se  o  Santo  certo  dia  diante  de  Deos 
em  oração  mui  fervorosa  e  de  grfande  efíi- 
cacia  ,  pedindo-llie  qise  o  in<iina<;se  a  pade- 
cer. E  apparaceo-lhe  ein  re\ elação  nina  si- 
inilhança  de  Cluisto  Criuificiulo  em  figura 
de  Serafim  ,  que  tinha  seis  azas,  duas  que 
lhe  cobrião  os  pés  ,  e  duas  as  máos  ,  e  outras 
duas,  com  que  voava.  INas  <!uas  mais  baixas 
estava  escrito:  Toma  a  tribulucfio  de  vonta- 
de. Nas'do  meio  se  continha  :  Leva  a  cruz 
com  paciência.  Nas  duas  mais  altas  se  devi- 
sava  claramente  :  Apprcnde  a  padecer  ao 
modo  de  Chrlsto.  Contou  Fr.  Henrique  esla 
tísúo  a  uuía  Santa  Donzella,  a  qual,  tanto  que 
lha  ouvio  ,  re«pondeo  o  seguinte  :  Sal)ereis, 
meu  Padre  ,  que  tendes  perto  novas  cruzes 
e  tormentos  ,  que  convém  sofrer,  pois  Deos 
assim  quer.  Brevemente  sereis  eleito  Prior  , 
para  que  vossos  contrários  vos  possáo  chegar 
mais  de  perto,  e  offender-vos  mais  pesada- 
mente ;  armai-vos  de  soíriaienlo,  coufóriíic 


Fa*  Henrique  Suso.  3í3 

a  lição,  q»ie  tomastes  nesse  Seraíim.  Acoiite- 
Cí'o  pais,  que  no  Convento,  em  qwe  o  Santo 
então  era  morador  ,  não  tinha   entrado   ha- 
via três  annos  esmola  de  pào,  nem  de  vinho 
de  parle  nenhiuna,  e  assim  estava    mui  indi- 
vidado.    Houveião  os  Frades  seu    conselho: 
tazem  Prior  a  Fr.  Henrique  sen?  lhe  valerem 
escusas  ,  nem  a  resistência  ,  que  fazia  ,  vendo 
já    contra    si   armada   a  perseguição  com    a 
f^randc  íalla  ,  e  carestia  ,  que  havia  de  tiulo. 
O  dia  seguinte  chamou  os  Frades  a  Capitu- 
lo ,    e  juntos    aníoesiou-os,    que  se  encom- 
niendasseai  a  S.  Domingos,  pois  elle  promet- 
tcra   aos   seus  Frades    de    lhes   acudir  e  dar 
remédio,    se   nas  necessidades   se   quizessem 
valer  de  sua  ajuda.   Estavâo  naquella   junta 
dous   Frades  sentados  perto  delle,  os  quaes 
disserão  algumas     cousas    de     mumiur.i:  ilo 
delle.  Mas  o  Santo  perseverando  em  seu  pre- 
posilo  ,     tanto     que    amatiheceo,    niantloii 
cantar  urna  BFissa  de  S.  Domingos  ,  para  que 
lhes  acudisse   com  o  mantimento  de  que  li- 
nhão  necessidade.  Estando  em  pé  no   (^òro, 
e  engolfado  em   muitas    iníaginaç')es,  veio- 
Ihe    dar    lerado   o  Porteiro,  que    o  huscava 
um  Cónego.  Fra  o  Coueg»)   homem  rico  ,    e 
parlicul.ir  amigo  do  Santo.  Quando  chegou 
a   elle    tlissuj-lhe:   Tenlio    sal)ido,   Padre   e 
Senhor  meu,    que    exilai»  em  falta  do   que 


3i4  Vida  do  Ttata 

cumpre  para  manter  esta  Casa;  e  fui  aTÍsado 
esta  noite  do  Geo ,  que  em  nome  de  D  cos 
vos  soccorresse.  Por  isso  em  principio  de 
ajuda  vos  trago  estas  vinte  lihras  de  moeda 
de  Constância  ,  e  confiai  en  Deos ,  que  não 
vos  ha  de  des.^mparar.  Ficando  o  Santo 
cheio  de  alegria,  rece])eo  o  dinheiro  ,  e  man- 
dou logo  comprar  trigo  e  vinho,  e  assim 
com  o  favor  de  Deos ,  e  do  Padre  S.  Domin» 
gos  governou,  e  proveo  a  Casa  ahastadr.men- 
te  ,  em  quanto  íoi  Prior,  e  negociou  que  a 
não  oI)rigassem  ao  pagamento  das  di>jdas 
passadas.  Este  mesmo  Cónego,  estando  para 
morrer,  deixou  cm  seu  tesramrnto  grossíssi- 
mas esmolas  para  se  distrihuircm  por  varias 
partes  a  disposição  e  alvedrio  do  Santo.  E 
mandando-o  chamar,  porque  o  Mosteiro, 
em  que  servia  de  Prior ,  era  na  mesma  terra, 
entregou-lhe  uma  boa  quantidade  de  moeda 
em  ouro  ,  para  que  elle  a  repartisse  por  ou- 
tros lugares,  entre  pessoas  pubres  ,  e  virtuo- 
sas, que  por  aspereza  de  vida  penitente  esti- 
vessem  já  inn tiles  ,  e  sem  íorc^as  para  traba- 
lhar. iMiiito  contra  sua  vontade  acceitava  o 
Santo  este  dinheiro,  arrecea!)do  as  persegui- 
ções, que  depois  lhe  causou.  Mas  em  fim 
levou-o  vencido  da  amizade  ;  e  jiondo-se  a 
caminho,  semei>u-o  ,  conio  promellèra  ao 
amigo,   por   onde  espera\a  seria  mais  pro- 


Fk,  HfiNRiQUE  Suso.  3l5 

Teitoso  á  sua  alma,  e  teve  ruidaclo  ãs  o 
fazer  cotn  testemunhas  dignas  de  fé,  e  d.ín« 
do  estreita  conta  de  tudo  a  sens  superiores. 
Mas  não  bastou  nada  para  deixarem  de  se 
llie  levantar  daqui  grandes  contrastes.  Por- 
que o  Cónego  tinha  um  filho  bastardo  ,  o 
qual,  depois  (jue  des!)3raton  e  consuinio  toda 
a  íazenda,  que  o  pai  lhe  deixnu,  desbaratou 
também  a  vida  e  a  ahna.  E  assim  deu  em 
perlender  com  tern.o  e  cobiça  desenfreada 
o  dinheiro,  que  o  Santo  recebeo.  Vcndo-se 
desesperado  delle,  man(h)u-lheaffiíin.ir  com 
juraníento,  que  onde  uner  que  o  topasse  o 
liAvia  de  matar.  E  tal  foi  o  ódio,  que  lhe 
tomou  ,  que  nunca  ninguém  o  pôíle  miti- 
gar por  mais  que  se  tentou.  Em  fjm  ellc  se 
deterníiiuui  de  todo  em  todo  nialar  o  Santo, 
o  quaí,  vc!ido  o  perigo  ,  e  vivendo  enj  contí- 
nuos receios  ,  não  ousava  sair  por  fora  livre- 
riicnte  com  medo  da  morte  j  e  levantando  os 
ollios  a  Deos  dizia  suspirando  :  x^h  ,  Senhor, 
que  género  é  de  morte  o  que  determinais, 
que  deseslradamente  me  acabe  ?  Accrcscen- 
tava-lhe  a  desconsolação  saber,  que  havia 
pouco,  que  em  outra  Cid.ide  íòra  morto 
Tim  Erade  honrado  por  causa  similhanle. 
Nunca  o  afíligido  Santo  achou  ninguém 
que  se  atrevesse,  ou«qiiizesse  valer-liie  neste 
enfadaaieulo  ,    pelo   muito  que  obrigava  a 


3i6  YiEA.  DO  Eeato 

todos  a  ousadia  e  desatino  do  mancebo.  Fi- 
nalmente tornou-se  a  Deos,  que  o  lavrou, 
acabando  com  morte  acelerada  nni  corpo 
rijo  e  robusto,  e  na  íior  da  idade,  qual  era 
o  de  seu  adversário.  Para  este  n)al  nào  ficar 
singelo,  ajiintou-se-lhe  outro  bem  duro  de 
levar.  Havia  certo  (loliegio,  a  quem  o  Có- 
nego tinba  dado  muito  de  sua  faienda  ,  com 
que  não  contentes  os  collegiaes  perlendião  o 
dinheiro,  que  dera  ao  Santo;  e  porque  lh'o 
negou  ,  accommetterão-no  com  aniuios  da» 
nados,  e  pozeráo-no  em  estado  do  ficar  por 
barreira  de  quantos  o  querião  maltratar. 
Sendo  assim  que  o  iufanjarão  entre  secu- 
lares e  religiosos ,  publicando  cora  sentidos 
torcidos  e  intrepretados  á  peior  parte  quanto 
íizera  em  sua  vida,  e  espalhaudo  tudo  pela 
terra  entre  toda  sorte  de  gentes,  por  manei- 
ra ,  que  íizerão  que  pelo  mesmo,  que  para 
com  Deos  estava  isento  de  toda  culpa  ,  an- 
dasse mal  julgado  diante  dos  homens;  e  se  o 
negoeio  c'o  tempo  se  ia  apagando  ou  esque- 
cendo ,  tornavão-no  a  atiçar  de  novo ,  e 
não  cessarão  muitos  annos  até  deixarem  o 
Santo  bem  moido,  e  atropellado.  No  tempo 
q<ie  assim  andava  perseguido,  appareceo- lho 
muitas  vezes  o  Cónego  vestido  ricamente 
gUi  uma  roupa  verde,  toila  semeada  de  rosas 
ncarnadas ;  e  Uissc- ao  SaiUo,  que  eslava 
e 


Fn.  Hl!?rique  Slso,  3iy 

bem;  e  encommenclou-lhe,  que  levasse 
ooin  paciência  a  cruei  senirazão  ,  que  por 
sua  causa  lhe  i^aziao ,  ficando  certo,  que  por 
Deos  seria  brguissitnamente  consolado.  E 
pergiintaudo  o  Santo,  que  í-ignificava  aquel- 
le  tortuoso  vestido,  que  trazia  ,  respondeo 
assim  :  As  rosas  vermelhas  em  campo  verde 
signiíicão  os  trabalhos,  que  padeceis,  e  o 
sofrimento  com  que  os  passaes ,  que  são 
duas  cousas,  com  que  vós  me  ataviastes  da 
mauciía,  que  vedes,  e  por  ellas  vos  vestirá 
Dcos  eternamente  de  si  mesmo. 

c  A  p  í  T  x;  L  O    XLVir. 

Em  que  o  Beato  Fr.  He?iriqne  ensina  cnm  um 
successo  seu  ,  quão  necessário  c  pelei jar  va» 
lorosanieiite ,  quem  periende  alcançar  vito» 
ria  espiritual, 

li  Oj  principies  de  sua  conversão  desejava 
ir.  Henrique  por  extremo  contentar  a  Deos, 
mas  queria  que  fosse  sem  trabalho,  nem 
pena  sua.  Acontecco  pois  qiu',  saindo  uma 
vez  a  pregar  pela  comarca  th»  lugar,  onde 
morava  ,  entrou  em  uma  náo  no  la^jo  de 
Constância,  c  topou  nella  entre  outros  com 
um  mancebo  mui  geutilhomem  ,  c  loueâa- 


3l8  ViDi    DO    DeATO 

mente  vestido.  Gliegou-se  par.-^  e-leo  Santo, 
e  começou-llie  a  jjerguntar  quem  era  ,  e  do 
que  vivia.  Ao  que  o  mancebo  responcleo, 
que  seu  otficio  era  assistir  entre  fiíi.ilgos  em 
justas,  e  torneios,  e  ensinar  este,  c  outrt»5 
<íxerciiios.  E  ajuntoji  r.ais  ,  que  estes  taes 
erão  mancebos  ,  queservião  f()rn:osas  damas; 
e  o  que  enlre  todos  se  mostrava  mais  esfor- 
çado ,  ficava  com  a  victoi  ia  ,  e  se  Hie  dava  a 
honra  ,  e  o  preço  delia.  Per^^nntando  o  Santo 
qual  era  o  preço,  respondeo :  que  a  dama, 
que  em  graça  e  geiulleza ,  se  a\antajava  a 
todas,  as  que  erão  presentes,  lhe  metlia  uni 
annel  douro  no  dedo  cm  premio  de  seu  es- 
forço. Inquirindo  mais  o  Santo,  que  cumpria 
fazer  a  quem  pertendessc  alcançar  esta  hon- 
ra. A  honra  ,  disse  ,  ganiia  só  a({uelle,  (}ue 
sofre  mais  pesados  golpes,  e  maior  trabalho 
sem  cansar,  nem  quebrar  de  animo  ,  antes 
cada  vez  se  mostra  mais  duro  e  mais  inteiro  , 
e  deixando-se  icrir  de  todos  não  se  dobra, 
liem  al)a!a  com  nada.  Dizei-me,  rogo-vos , 
tornou  o  Santo  ,  se  basta  sair  um  íiomeui 
bem  da  primeira  alronta.  iSão,  respondeo  , 
antes  é  íorçado  manter  o  j<^go  alé  o  cabo.  E 
ainda  que  cáião  tant<ts  golpes  sobre  elle, 
que  lhe  facão  sair  logo  ptdos  olhos,  e  rel)en- 
tar  o  sangue  pela  bò<a  e  nari/es,  tudo  lia 
átí  sofrer,  se  quer  ficar  com  houra.  Replicou 


Fn.  Hzr^RiQUE  Suso,  Srj 

outra  vez  o  Santo  d<?sejoso  de  llie  nao  ficar 
nada  por  saber.  Sofre-se,  dizei-ine,  chomr 
um  homem,  ou  torcer  o  rostro  ,  em  quanto 
dura  a  força  desse  combate?  Por  nenhum 
caso,  disse  o  mancebo;  e  ainda  que  o  cora- 
çiio  lhe  morra  denlro  no  corpo  ,  como  a  mui- 
tos acontece,  <:ouvém  fazer  semblante 
alegre.  Porque  do  contrario  lhe  nasceria 
ficar  um  alvo  de  toda  a  7,ombaria  e  riso,  e 
perder  a  lionra  e  o  annei.  Tendo  Fr.  Hen- 
rique ouvido  as  cousas,  que  temos  contado, 
obrigarão-no  ellas  a  entrar  em  si ,  e  dando 
um  suspiro  saído  dalma  tlisse:  Ah  sobera- 
nissimo  Deos  ,  digno  só  de  ser  servido  sobre 
toda  outra  cousa,  se  os  cavalleiros  deste 
mundo  se  obrigão  a  padecer  tanto  por  tão 
fraca  paga  ,  que  em  fim  nào  é  em  si  nenhuma 
cousa,  quanto  mais  razão  será ,  que  entre- 
mos em  n^óres  afrontas  por  alcançar  a  glo- 
ria eterna  !  O'  quem  feira  merecedor,  piedo- 
síssimo Deos  ,  de  estar  assentado  nos  livros 
da  vossa  espiritual  milicial  O'  formosissima  , 
ó  Eterna  Sabedoria  ,  com  cuja  graça  ,  e  boa 
sombra  não  ha  no  mundo  cousa  ,  (JU(í  tecdia 
comparação.  Se  vós  me  quizesseis  dar  este 
annel,  a  ceei  tara  eu  a  essa  conta  padecer  tudo 
quanto  vós  niandareis.  E  começ<m  a  chorar 
eom  grande  fervor.  íMas  tanto  que  chegou  ao 
lugar  para   onde   caminhava  ,  vierào   sobre 


3ao  Vida  do  Beati 

elle  tantas,  e  tão  Ijravas  trlhultirões ,  que 
quasi  chega>a  a  desesperar  de  Deus  ;  e  muita 
gente  tliorava  de  lasíima  delle.  E  nm  dia, 
perdida  toda  a  memoria  da  ^alo^osa  e  in- 
cansável niilicia,  a  (|ue  com  tatuo  gosto  se 
oíTerecèia  com  lagrimas  em  íio,  e  al^^um 
tanto  impaciente  contra  Deos  ,  poz-se  a 
imaginar  que  razão  haveria  paia  Deos  o  tra- 
tar tão  mal.  Na  maubiTa  seguinte,  antes  de 
esclaret  er  o  dia  ,  estando  sua  alma  em  um 
roubo  dos  sentidos  gozando  de  uma  saborosa 
paz  e  quietação  ,  sentia  que  interiormente 
lhe  íallava  uma  voz  desta  maneira  :  Ofide 
está  agora  aquella  excelienle  .milícia,  que 
professastes  ?  aquelle  valor  estremado,  que 
promettias?  Assim  passa  sohlado  de  palha, 
e  homem  de  trapos  ,  ou  vilmente  envolto 
nelles  ,  orandes  (onfiancas  na  bonança  :  e 
em  se  toldando  o  tempo  ,  logo  espíritos  que- 
])rad(»s,  logo  amos  mulheris  Não  se  abanca 
por  certo  desse  m(ui<)  aquelle  eterno  annel  , 
que  tu  desejas. .Verdade  é,  resjíondia  o  Sapi- 
to; mas,  Senhor ,  as  l)atalhas,  cm  que  me 
vós  metíeis,  e  t:m  (jue  convém  engeiíar-me 
eu  a  mim,  e  laigai-me  em  vossas  mãos 
aturando  o  peso  dcilas,  são  demasiadamen- 
le  tontinnas.  A  jsto  se  lhe  deu  de  improviso 
esta  resposin:  Pois  tand^em  a  i.onia,  a  glo- 
ria ,  e  o  aunei  uoò  meus  soldados,   a  que  cu 


Fr.  Henrique  Suso.  Sai 

liOTiTcr  de  honrar,  é  tudo  |^erpetno.  Caindo 
o  Santo  na  conia  com  estas  palavias,  e  cor- 
vencido  delias  disse  cem  giande  hi  n  ildade: 
Dijj^o  minha  tuljja  ,  Senhor  meu  ;  Tf)^o-ios 
sóinerite  que  me  deixelí)  fartar  de  choiar,  já 
Çbe  este  meu  coracào  total meiíie  rio  pócle 
ter  as  lagrimas.  Mas  o  Senhor:  Ah  vergo- 
nha, disse,  queres  chorar  couio  mulher? 
Deshonrar-le-has  de  verdade  diante  de  lodos 
os  Cid.idàos  do  Ceo.  Aliujpa  os  oUios,  faze 
bom  rostro,  que  nem  Deos  ,  nem  os  homens 
entendáo  de  ti,  qui;  choras  de  altrihi  h  do» 
Começou  então  a  rir  um  pouco,  conciido- 
Ihe  todavia  as  lagiimas  cm  abundância,  e 
prometieo  a  Deos  de  não  chorar  d'alii  cm 
diante  mais  ,  para  poder  merecer  c  alcançar 
o  anneL  es^jiritual. 

CAPITULO      XLVIII. 

Como,  pregando  o  Santo,  lhe  resj)landccco  ê 
rostro  ccino  o  Sol, 


JL  Rc^gava  o  Santo  Y\\  Kcnviqne  uma  vcs 
cm  Colónia  mui  de  proposilo  e  <  on»  grauííc 
fervor,  e  estava  presente  um  no\o  M-ldado 
da  milicia  de  Christo  ,  cnliado  de  |  (  i  <  os 
tlias  iiO  caminho  da  pcríc.çáo,  o  cji  ai  ancúva 

]  I 


Sas  Vida  do  Beato 

assas  atribulado.  Estancio  este  homem  c*of 
olhos  e  attencão  proniptos  no  Santo  ,  vio 
com  os  olhos  d'ahna  trocar-se-lhe  o  rostro 
em  uma  claridaíle  por  extremo  agradável  ;  e 
notou,  que  ires  vezes  ficara  tào  resplande- 
cente e  claro  ,  como  é  o  Sol ,  quando  o  ar 
está  mais  puro.  De  maneira  ,  que  sem  ne- 
nhum estorvo  se  pôde  estar  vendo  nelle, 
como  em  um  espelho.  Teve  poder  esfa  visão 
para  o  dei.ar  asseis  consolado  e  animado- 
em  seu  trabalho,  e  para  o  coi. firmar  na  santa 
fida  ,  que  começava  a  empiender. 


CAPÍTULO     XLÍX. 

e  ultimo. 

Da  deçoeiOf  que  o  Beato    Fr.  Hc^nrique  tinha 
ao  saudável  nome  dd  JESV. 


X  Assando  Fr.  Henrique  de  Alh^manha  a 
alta  para  Aqni^grano  em  romaria  a  uma 
imagem  da  Viij^em  'gloriosissima  Senhora 
nossa  ,  que  natjiiella  Cidade  ha  de  muita  de- 
voção, ^iu  tempo,  que  se  tornava  ,  appare- 
ceu  a  mesma  Senhora  a  umi  santa  donzella , 
e  disie-lhí3:  Eis  [uo  é  vindo  o  .Ministro  de 
meu  i''ilho ,  e  deixa  espalhado  por  ioda  partt 


Fn.  Henrique  Srso.  323 

seu  suavíssimo  Nome  com  íerTor  admirável, 
roíiio  ontigamente  fizeião  seus  Apóstolos. 
Que  assim  como  elles  desejavão  persuadir 
ao  nuiiulo  todo  a  féChristria,  e  ílar-llie  a 
conhecei- aqueile  Santo  Nome;  assim  Hen- 
rique se  occupa  ,  e  emprega  todo  em  o  en- 
tranhar em  todas  as  almas  frias  coiií  um 
Jiovo  ardor  e  caridade,  e  em  íazer ,  que  este- 
ja vivo  e  aceso  relias.  1-elo  que  depois  de 
sua  morte  tan)bem  terá  seu  galardoo  com  os 
Santos  Apóstolos.  Passado  isto  ,  tornando  a 
<lonzclla  a  por  os  ollios  na  Sonhora  ,  rio 
que  tinha  na  inã.o  uma  formosa  candea  , 
que  ardia  cora  \anta  claridade  ,  que  alhi- 
miava  toda  a  teria,  e  toda  em  roda  esta- 
va seuieada  de  unias  letras,  que  roiJtií;hí:o 
o  Nome  de  JESU.  Disse  entào  a  Mái  de  lUos 
para  a  donzella  :  Esta  candea  acesa  significa 
o  Nnatji*.  rlp  JFSTT  j  nome ,  que  na  verdade 
€  luz  de  todos  os  corações  ,  tli^jo  daqueílcs', 
íjue  devotamente  o  agasalhao  e  veneráo, 
e  o  trazem  cf)msi^o  com  afíeclos  de  amoi  (í 
piedade  Chrislãa.  E  a  esle  fim  es(olheomeii 
Filho  a  Henrique  por  seu  Ministro  ,  para 
que  por  seu  meio  ^^uidodo  tome  seu 
íiome  fogo  com  chammas  <le  alvoroço,  e  <le- 
\'ocão  em  muitas  almas,  que  ganhem  dahi 
avantajarem-se  no  caminho  de  sua  salva- 
ção. Esta  mesma  donzella,  depois  que  notou 


5^4  Vida  do  Béíto  Fr.  íÍenriqte  Srsc* 

cm  muitas  cousas,  ler  o  Santo  ,  fjue  era  seu 
Padre  espiíiunl,  uma  niaiaviuiosa  fé  e 
ílcvoíjao  neste  suavíssimo  Nome  de  JESU  , 
coiíio  quem  o  esculpira  com  suas  mãos  na 
própria  carne  sobre  os  peitos,  começou  tan^ 
bem  a  amal-o  "veheinentissimamcnte;  e  to- 
mando um  pequeno  panno  ,  bordoii-o  nelle 
com  uns  fros  de  seda  carmesim  ,  querendo 
trazei-o  conislgo  secretamente.  E  por  cble 
modo  fez  um  numero  iníinito  de  nomes,  e 
acibwu  com  o  Santo  ,  qr.e  os  tocasse  todos 
em  seu  peito.  E  depois  lançando-llie  a  ben- 
ção os  mandasse  por  toda  pane  a  seus  con- 
fessados. Teve  depois  esta  Santa  uma  reve- 
iacào ,  em  que  foi  avisada  da  parte  de  Deos  , 
que  toda  a  pessoa,  que  por  aquella  ordem 
trouxesse  comsiofo  o  sacratíssima  Nome  de 
JESU,  e  á  sua  bonra  rezasse  cada  dia  a 
eraçfio  do  Paler  uoster ,  o  mesmo  Senhor  a 
trataria  coru  amor  nesta  vida  ,  e  usaria  de 
misericórdia  cota  ella  na  outra.  Sirva-se 
Christo  JílSU  nosso  bem  de  nos  fazer  a 
todos  esta  mcrcc.     Ainen. 


325 


SERMÃO  L 


DO 


Santo     Fr.     HENRIQUE   SUSO, 


DA  ORDEM  DOS  PP.LGADORES 


De  como  se  vencerão  algumas  tentações  molestlssiinai 
aos  que  de  novo  se  toruão  de  véias  a  N.  Scuhor. 

Traduzido  de   AUeinxo    cm  Latim 


CARTUSIANO  ; 

í  agora  de  Latim  cm    Portut-iiez  por    um    ReVj^ioío  ds 
Ordem  doj  Prét-aclores. 


Lectidus  fioslci'  floridas, 

ALgiins  lia  que  sã!>  vexados  de  perplexos 
escnipuios  de  consciência  ,  c  graiuicinente 
atormentados  náo  achnitiem  remédio,  nem 
querem  seguir  conselho;  com  o  que  náo 
dão  lugar,  a  que  o  Serdior  JESU  taça  em 
seus  eoiaçóes  morada;    pela  sua  grande   in- 


32  6  Sermão  do  Beato 

quietarão,  a  qnal  Jcveráó  lançar  uc  si  muito 
longe.  (juer. o  Senhor  JESU  ser  ngasalhndo 
em  consciência  pura,  variada  de  divetsas 
flores  de  virtudes  :  e  com  quanta  rasão  ;  por- 
que quão  dissimilhante  é  um  leito,  ou  prado 
cuberto  de  rosas,  lirios,  e  varias  flores  para 
se  nelle  descansar  suavemente,  do  campo  in- 
culto clieio  de  espinhos,  cardos,  e  abrolhos, 
tanto  ditíere  da  consciência  de  um  animo 
desordenado  da  de  uma  alma  bem  concer- 
tada. As  dilicias  do  Senhor  sfío  descancar  em 
morada  de  flores;  o  que  bem  o  entendeo  a 
Esposa  Santa  nos  Cantares  quando  desejando 
ooziir  dos  amorosos  abraços  do  Esposo  disse: 
LectuIiLS  no^tcrfloridus.  Como  se  dissera  :  O 
llialamo  está  fechado  e  perfeito  ,  o  leito  de 
nosso  amor  é  cuberto  do  flores  :  vinde  pois 
amigo  desejadissimo  ,  que  já  nno  falta  mais, 
que  fazerdes,  que  esta  alma  descance  nos 
Ijraços   de  vosso  immcnso  amor. 

Porém  alguns  homens  ha  ,  cuja  consciên- 
cia não  é  ornada  do  flores ,  mas  lem  o  cora- 
ção feito  um  u»or tório  de  esterco  ,  e  immun- 
dicias;  estes  são  aqutílles  ,  cujos  vicios  se  dcs- 
■  aforÁrão,  gente  entregue  aos  vãos  pensa- 
me!:tos  e  honras  do  mundo,  dos  quaes  não 
ha  que  tratar  cm  este  lugar. 

Outros  ha  que  padecem  tentações  occul- 
tas  dentro  no  interior  de  suas  almas  ,  as  quaes 


Fr.  Henrique  Srso.'  327 

jiiTicía  que  sejáo  muitas  ,  entre  todas  com 
tudo  ha  três  tão  molestas  e  pesadas  ,  que 
outros  se  lhe  não  podem  comparar.  A  pri- 
meira é  desordenada  tristeza  ,  a  segunda  de- 
masiada afíhcção  ,  a  terceira  grande  e  vehe- 
mente  desconfiança  de  remédio. 

Quanto  á  primeira  é  necessário  saber, 
que  o  homem  ás  vezes  é  opprimido  de  tão 
grande  meUincoHa  ,  que  nem  vonf.nde  tem 
para  obrar  cousa  boa,  nem  ainda  forças,  e 
«'^{ue  mais  é,  que  nem  conhece  o  qtie  lhe 
falta,  nem  percebe  a  cansa  da  dor  que  pa- 
dece, inda  que  faca  muito  pela  descobrir. 
Este  sentimento  parece  que  quiz  em  si  de- 
clarar o  Santo  Rei  David  quando  disse: 
Qiiare  trlstis  es  anima  mea,  et  qiiare  contar" 
has  me?  Como  se  dissera  :  Alguma  cousa  te 
falta,  mas  nem  tu,  alma,  sabes  o  de  que  ne- 
cessitas. Espera  em  Deos ,  e  melhoraras, 
porque  ainda  lhe  hei  de  cantar  h)uvores  com 
gosto.  Esta  tristeza  muitas  vezes  nasce  da 
complexão  natural ,  o  que  é  para  sentir, 
porque  a  muitos  faz  deixar  o  Ijeni  que  co- 
meçárfio.  Pelo  que  é  certo,  que  a  'ícnhuni 
dos  nascidos  é  mais  necessária  uma  invenci- 
Tel  constância  e  h)rtaleza  decoração,  que 
áquelles  que  se  apostfio  a  entrar  em  batalha 
com  os  vicios ,  tom  animo  da  alcançarem 
tlellea  \ictoria:  porque  se  o  hoiucm  tstiver 


3-25  Sermão  do  C£a.to 

no  animo  ])em  firme,  ajudado  da  ginça  d© 
Espirito  Santo  ,  que  moléstia  corjDoial  ii.i- 
verá,  que  o  possa  enfraquecei?  c  pelu  con- 
trario, como  poderá  viver  se  continua  mento 
trouxer  o  coração  apertado  de  afíliccóes  ,  e 
carregado  deste  deleixamento?  Peli>  que 
deve  cada  um  procurar  com  todo  o  cuidado 
livrar-se  deste  mal.  E  se  me  perguntarem 
como  se  poderá  ver  livre  delle,  notem  bem 
o  erieujplo,  que  se  segue  : 

A  um  Ministro  da  Sabedoria  Eterna  no 
principio  de  sua  conversão  accommelteo 
com  tanta  íorça  este  desordenado  aífccto  de 
tristeza,  que  nem  podia  ler,  nem  orar,  nem  fa- 
zev  alguma  outra  obra  boa.  liste  pois  um  dia, 
estando  sentado  na  sua  cella,  grarulemente 
opprimido  deste  mal  ,  e  com  g^^ande  dor  e 
magoa,  ouvio  uiwa  voz  de  cima,  que  lhe 
dizia  intelectualmente:  Que  estás  aqui  assen- 
tado ocioso  consummindote  em  li  mesmo? 
lovanta-te  ,  e  póe-le  a  meditar  com  devacuo 
na  minha  morte  e  paixão;  e  com  a  memo- 
ria das  dores,  que  nella  padeci,  sete  alliviará 
este  tormento.  O  que  ouvindo  aquelle  Reli- 
gioso lovanton-se  ,  e  pòz-se  a  meditar  na 
Paixão  de  JESU;  e  do  ponto,  que  comectm 
este  exercício,  lhe  fcd  mezinha  tão  saudável 
que  nunca  mais  sentio  similhante  aflliccão  , 
que,  v,iU'ndo-sc  do  remediu  Divino,  não  fos- 
se aliiviado. 


F».  Henrique  Suso.  829 

0;:tra  tentação  interior  c  uma  agonia  , 
c  aperto  (lo  espirito:  os  que  padecem  esttí 
luaí  cliegão  a  conhecer  que  liies  íalla  alguma 
cousa  ,  isto  é  ,  que  não  estão  bem  conformes 
com  a  vonlíKic  de  Deos.  Nasce  este  tíc"Í'>  do 
fazerem  mais  caso  ,  do  que  convén>,  daqiuUo 
de  q!ie  se  v.?.o  deve  fazer  conta  ,  especiat- 
mente  da  affllcçào,  que  por  permissão  i3ivina 
interiormente  padecem.  Quatro  são  a5  af* 
ílicções,  que  podem  molestar  o  coiacão  liu* 
ri)n!i{>,  as  quaes  ninguém  pode  crer  quão 
duras  sejão,  senão  quem  as  experimentou  ^ 
ou  a  quem  nosso  Senhor  deu  espirito  para  as 
entender. 

Por  quanto  no  «m  que  devia  o  rstes 
miseráveis  sentir  algum  aliivio,  que  é  em  s*. 
t(jrnar  a  Deos,  ahi  são  mais  gravemente  ator- 
mentados, vindo-ilie  então  os  mais  perver- 
sos e  abomináveis  pensamentos  contra  Deos  : 
pjorém  estas  tentações  nfio  são  pesadas  por- 
íjUe  causem  algum  mal  grande  na  alíua,  mas 
por  causa  da  grande  moléstia  ,  que  delias  nà 
recebe  ,  com  que  atravessão  o  coração. 

São  pois  estas  tentações  duvidas,  e 
pouca  íirmeza  na  fé,  desesperação  da  Divina 
I\Tisericordia  ,  pensamentos  de  bla>lemia 
(ouiia  Deos,  e  seus  Santos,  e  sobre  tudo 
tlescjtís  de  se  tirar  a  vida  por  suas  mãos:  ile 
Iodas  as  quaes  não    deterniino  tratar,  mas  st» 


33o  Sehjiao  do  Beato 

tia  que  está  em  segando  lugar  ,  da  desespe- 
ração da  Divina  Misericórdia. 

Esta  desesperação  pôde  nascer  de  três 
causas,  de  nfio  sal)eieju  bem  considerar, 
que  cousa  é  Deos,  que  cousa  seja  peccad<i 
mortal,  e  que  cousa  seja  contrição  verda- 
deira. 

Deos  é  fonte  de  Misericórdia,  que  não 
se  pode  esgotar  ;  e  de  natural  tão  benigno  , 
que  nunca  pôde  baver  mãi  tão  pia  ,  que 
\endo  um  tilho  de  suas  entranhas  no  meio 
de  uma  fogueira  lhe  acuda  com  mais  pressa, 
liem  maior  vontade  ao  tirar  do  fogo  ,  do 
que  Deos  acode  a  receber  um  peccacíor  ar- 
rep'  ndido,  ainda  que  ,  se  fora  possivel ,  ti- 
vera cada  dia  muitos  milhares  de  vezes  com» 
inetlido  todos  os  peocados  do  mundo. 
Donde  vem  logo,  ô  l)enignissimo  Senlior, 
que  sejais  para  alguns  tão  amável ,  e  que  al- 
gumas alma^  tanto  sem  par  se  alegrem  em 
vós  ,  e  reccbão  de  vós  tantos  júbilos  espiri- 
tuaes  ?  Por  ventura  atti  ibuir-se-ba  isio  á 
sua  innocencia  ?  n;To  por  certo  :  mas  conu> 
conhecem  bem  suas  culpas,  e  quão  indignos 
s'io  de  pordes  os  olhos  nelles  ,  e  que  sem 
embargo  de  tudo,  sem  teides  necessidade  de 
ninguém  ,  vos  communic.íis  ião  liberalmen- 
te, dando-vos  a  vós  próprio,  conhecem  que 
esta  é  a  causa,   por  quw  vos  gint*fiw  «ni  leui 


i 


Fr.  Henrique  Suso.  33; 

novações  Senhor  tão  grande  e  tão  suave. 
Píirqiie  na  verdade  tão  fácil  vos  é  perdoar 
um,  como  mil  talentos;  dar  perdão  a  um 
só ,  como  a  innumeraveis  peccados  mor- 
taes.  Vence  sem  falia  esta  vossa  benigni- 
dade e  clemência  a  toda  a  lijjeralidade  e 
mansidão,  porqne  nem  estes ,  qne  isto  co- 
nhecem, poderáõ  nunca  dar-vos  as  devidas 
giaras  ;  por  isso  derretem  suas  almas,  e  co- 
rações eia  vossos  louvores  :  estes  sem  falta 
são  para  vós  de  maior  honra  e  louvor,  do 
que  se  nunca  peccárao,  vivendo  com  frieza  e 
com  menos  amor  ,  como  se  pôde  bem  pro- 
var com  as  Escripturas  ,  porque  não  attenlais 
(como  diz  S.  Bernardo)  o  que  o  homem  foi, 
senfio  o  que  desoja  ser  com  aflecto  de  seu 
coração.  Pelo  que  totlo  aquelle,  que  vos  ne- 
gar o  perdoardes  peccados ,  ainda  que  seja 
])or  tantas  vezes,  quantos  são  os  momentos 
lio  tempo,  sem  falta  é  rouhador  e  ladião 
de  vossa  grande  honra.  Porque  o  pcccado 
vos  trouxe  do  Ceo  á  terra  ,  a  vós,  digo,lie- 
demptor  tão  piedoso  ,  e  tão  amável  ,  que 
em  todos  os  momentos  com  grande  prom- 
pti'lão  estais  aparelhado  para  nos  receber  d 
vossa  graça. 

Quem  por  esta  razão  souber  ponderar  o 
quem  Deos  é  (dé-se  David  por  fiador)  não 
jnjdtMii  desconfiar  de  l)eí>s,  nem  dose.-^peiar 
dtí  sua  Divina  Misencoidiii. 


332  Sermão  do  Beato 

O  segundo,  que  não  sabem  considerai, 
é,  c.ue  cousa  seja  peccado.  Na  verdade  aquil- 
lo  só  se  ha  de  ter  por  peccado  no  que  o 
liomem  com  deliberação  certa,  com  adver- 
tência ,  e  vontade,  sem  reclamar  a  raíCo  se 
quer  apartar  de  Deos,   e  passar  á  maldade. 

Mas  se  uma  alma  ainda  em  toilos  os 
momentos  lhe  vem  máos  pensamentos,  pos- 
to que  sejáo  tão  encerrados,  que  nem  o  co- 
ração hun»auo  os  possa  formar,  e  tão  fci'>s , 
que  nem  a  hngua  os  possa  pronunciar,  do 
que  quer  que  sejão  ,  ou  de  Deos,  ou  das 
creaturas  :  e  posto  que  este  homem  ande 
\\m  e  outro  anno ,  e  muitos  annos  neste 
estado  ,  sem  os' poder  nunca  lançar  de  si  , 
como  os  aparie  com  a  razão  superior,  e  lhes 
resista  e  repijf^ne  de  sorte  ,  que  nunca 
lhes  de  consentimento  com  plena  delibera- 
rão, e  inteira  vontade:  e  postt)  que  anile  a 
braços  com  o  peccado  quando  a  natureza 
padece  este  trabalho,  seja  certo  que  nunca 
commeltepeccado  mortal:  o  que  se  pôde  pro- 
sar com  as  Sagiadas  Leiras,  e  sentenças  da 
I^i^reja  Catholica  ,  pelas  quaes  nos  ensina  o 
Espirito  Santo. 

Mas  fica  aqui  escondido  um  aperto,  que 
é  umsulitil  fio,  queaqui  pôde  haver:  este  é, 
de  aquelle  a  que  vtMu  um  mão  pensamento 
destes  lhe  dá  olho»  com  alguma  deleitação  , 


Fn.  HENRíQtJE  Srso.  ^33 

%iim  pouco  esquecido  de  si  não  tira  dclle 
lâa  de  pressa  o  animo,  porque  cuida  que  por 
ist(  só  conseutio  deliberadaihenle ,  e  que 
3cm  temor  do  mal,  que  se  íaz  ,  assim  com- 
me!<!o  pcrcado  morial:  o  crue  estamos  mui 
Icngt  de  crer  ,  por  qi;anto  é  parecer  de  mui- 
tosSa>tr.ç  Padres,  qu'j  sobreviudo-nos  grnude 
imporliuacão  de  pensamentos  n;áos,  muitas 
■vezes  a  razão  se  move  com  a  deleitação  ,  e 
rSio  por  pouco  espaço,  mas  por  tempo  lar- 
o,  pnmfciro  que  a  própria  ra/ão  possa  fa- 
jr  inteira  leliheracão  errada,  e  que  então, 
'-3  admiltir  ,  ou  rejeitar  os  taes  pensamentos  • 
se  diiá  que  r,ói\e  conr.neUcr  peccado  mor- 
tal ,  ou  resiftii. 

O  que  coi.-,o  seja  certo,  não  ha  para  que 
tcnlião  estes  par.i  si  ,  qric  crMumclLêifio  pec- 
t;ulo  mortal,  se  é  que  querem  darcrédlto  in- 
terior á  dor.trina  calliulica.  S.  Aííostinho 
diz:  que  o  peccado  c  ião  voluntário  ,  que  se 
náò  for  voluntário,  não  será  peccado,  don- 
de aífirnjiTo  os  l}í)Ut(ircs ,  que  se  só  Ev-a 
comera,  sem  Adão  consentir  c(;m  ella  n:;. 
culpa,  nenlium  dr.mno  se  nos  seguira.  Da 
própria  maneira  .  por  Uiais  pensamento.-^ 
uiáos  que  se  leAa'Mjui  na  parle  scnsili\a,  !>e 
a  razão  Il.es  nf.o  der  seu  ra\or,  e  tonstnli- 
niciito  ,  nunca  ^^adcn»  faztr  pecíado  níortal. 


334  Sermão  do  Peat«» 

A  terceira  ronsa  ,  que  lhes  omi-c»  o  * 
estes,  é  (n:c  não  s;iljcin  ponderar ,  que  ^ja 
Terciadeiía  contrição.  E  a  conlriíão  v"»* 
virtude  ,  (jue  livra  a  hotneni  de  seus  |)t<(a- 
dos ,  se  for  jnnta  corn  a  disciição  doi'i.i. 
Porque  a  conlriçào  indiscreta  (como  /liz  S. 
Bernardo)  desagrada  a  Deos.  Jtida5  qije  ven- 
deo  a  Christo  Senhor  nosso  ,  e  Ca^ín  que 
malon  seu  Irmão,  ainhos  se  c(»*íe>iáiáo 
peccadores,  nins  desesperarão  ,  e assim  não 
lhes  faltou  penitencia  e  dor  de  jeus  pecca- 
dos,  mas  foi  sem  o  modo  e  f)rdem  ,  que 
convinha.  Um  disse  :  Pequei  (^tregando  o 
sangue  do  justo.  Outro:  É  la/nanho  o  meu 
peccado  ,  que  não  ni?rece  pei"dão  ,  é  maior 
o  meu  peccado  que  todo  o  perdão.  Assim 
dizem  muitas  vezes  estes,  de  que  imos  fal- 
laudo  ,  com  desordenada  contrição.  Mal  é 
"vivermoj:  ó  se  já  acabáramos?  E  muitas 
outras  COUS13  deste  género  ,  com  que  mais 
offendem  a  Deos  ,  que  cam  os  próprios  pcc- 
cados,  que  temem  commetter. 

Ajiielle  pois,  quu  deseja  aU\inrar  verda- 
deira contrição  e  penitencia  de  suas  culpas 
^e  peccados,  por  mais  tornes  e  inormes,  que 
lhe  parerão,  seja  cm  si  1  u.niUhi,  abi>rieça-os 
de  todo  corarão,  c  tenha  firme  confivinça 
eui  Djos  nosso  Senho  •  ,  que  elle  como  ver- 
dulji.a  mjdií.ô  de  nossas  almas  só  lhos  pode 


Fr.  HENniQrE  Sr  «o.  335 

Mirar.  Daqui  veio  dizer  a  Sclíecloria  Fterna  : 
flho,  na\ua  fraqueza  não  le  tlesestinies  a 
ti  ,n)as  roga  ao  Seiilior  ,  que  elle  te  curará  : 
ikIo  será  grande  fatno  iuRielle  que  ,  porque 
vè  lie  fiilla  um  ollio,  se  arrancar  o  outro 
por  sias  pioprias  mãos? 

^«íis  cousas  porém  se  podem  c  devem 
ronsidirar  nestes  medrosos  corações ,  que 
relles  si  soem  adiar.  A  primeira  ,  que  te^do 
o  jnizo  -ivai  errado  e  alheio  da  \crdade, 
nfio  qnernn  dar  ciédllo  a  quem  devem  se- 
guir, e  nuaiio  menos  áquclles ,  que  lhes 
dao  I azoes  ,com  que  pudèrão  recehei'  con- 
solação ealHio,  dando  peh)  ctiutiario  intei- 
ro ciédito  áqtcHes,  que  Uses  dizem  cousas, 
com  que  se  li^  agrava  o  mal  e  a  moléstia, 
que  padecem;  oquu  lhes  succedc  por  causa 
da  (iòr,  que  iraTj-m  na  alma  quasi  contiinia- 
nienie.  Também  em  outro  mal,  que  decla- 
lão  facihncnte  todos  os  seus  trabalhos  e  a 
causa,  com  pretexto  de  pedir  consch-,çào 
e  ajuda  ,  e  não  co^vém  ser  assim  ,  pois  c 
certo  que  pouco,  ou  neiílíi.m  proveito  tirão 
de  aqui  ;  antes  qnanth)  buscfio  muitos  mais 
remédios  para  seu  mnl ,  ta!:lo  m.tis  força 
toma  a  afílicção  ,  que  pndectm  ,  fòra-lVics 
bnm  conselho  buscar  algr.m  varão  tenienfr 
a  Deos  de  letras  e  expeiientia,  a  quem  ec 
«níregassem    tlc  IcTo  o  coração,   dando-lhc 


*3^  SermÍo  do  Bea^to 

inteiro  crerllto  sem  replica ,  n;m  gcnciv 
algum  cie  duviíla,  porque  no  jiiizo  íina^a 
esie,  e  não  a  elies  pedir.í  Deos  conta  de 
suas  almas  ,  se  pelo  menos  de  sua  parte -ite- 
rem o  que  nelles  é,  para  seu  remédio. 

O  segundo  ,  que  os  inquieta,  é  um  liedo 
conlínuo  e  vão    de  nunca  ihes   parecer  que 
se  conrejsrio  bem  ,  por  mais  lotr;ulo  (<ie  seja 
o  confessor,  que  os  ouve:  também  e<es,  por 
mais  q;ie  trabalhem  quanto  em  si  à  ,  nunca 
cIi3g.To  a  ter  a  verdadeira  tranquilidade   de 
nnimo  ,  e  paz  de  coraçrío :  a  caus^  é ,  porque 
nfío  sabjui    muitas   vezes  que  p^ccados   hão 
íIb  coufcisar  expressa  e  di.stiuct;mente.  Certo 
é  que  só  os  peccados  laortaes^e  hão  de  con- 
fessar ,    dijo,  é  necessário  co-lfessar  expressa 
e  discinctu mente ;   dsjs  maisbasta  fazer  uma 
mensã-j  geral.  E  como  quef  que  nas   Tenta- 
ções ,  de  que  temos   dito,   não   ha    peccado 
mortal,  não  ó  n<'cessario,  nem  co!ivém   qu« 
os  coníeisem    toljs     pe.'o    miúdo   expre^sa- 
inanle;  l>asta  dizelos  em  sjeral   seiíundo  a 
prudência  do  c:in!c'S5(jr;  porque  esta   escru- 
pulosidade   de  coato^siar  tudo  pelo   miuilo  é 
traça    do  demónio  para    tirar  a   paz    da  coií- 
sciencia   e  quietação  da  alma;    e  portanto  se 
Ihi  d^ve    reilstir  com   lo  lis  as  forças  ;   pois 
ve:n:)5  que  quanto  mais   se  obedece    a  estes 
t'..-.\i,):il-)i ,    yinio    mais    crescem,    c    tanlo 
r.Kiii  embarac^a  fi'ja  a  couscienci*. 


Frí  Henrtqte  Suso.  33^ 

o  terceiro  erro  (]'estes ,  que  nun* to  pe- 
noso se  lhes  íaz  ,  é  que  queieiu  ler  srien- 
cia,  e  certeza  igual  das  cousas  ,  em  qtie  a  não 
póile  haver;  querem  saher  tle  certo  se  lem  , 
ou  não  tem  pescado  mortal  ,  sendo  cousa 
averiguada  segundo  nossa  fé,  que  ninguern  , 
por  mais  Santo  que  seja  ,  prxle  nesta  vida 
saher  se  está  em  graça  ,  se  Det^s  llTo  não  re- 
velar. O  que  hasta  nesta  paile  é,  que  feito 
diligente  exame  de  consciência,  nào  »e  athe 
iiella  peccado  mortal  certo.  Assim  que  q«;erer 
saher  isto  com  maicir  certeza  ,  nasce  ile 
ignorância  ,  com>í  se  um  nienino  quizer  sa- 
ber o  que  :»  liei  tinha  no  seu  c»nacrio.  Por 
tanto  assim  como  o  doente  lefu  ol»rii:acão 
de  crer  ao  medicív  do  hcm  ,  ou  nuil  de  sua 
enfermidade  ,  como  aquelle  que  meihor  en- 
tende a  doença  do  próprio  eníermo  ,  assim 
os  h'!mcF)s  desta  laya  tc.n  (íhii^Mcão  de  crer, 
e  obedecerem  tudo  a  um  confessor  piu- 
dente. 

O  quarto  erro  destes  é  que  são  tentados 
de  impaciência  contra  Deos ,  a  qtial  procede 
án  mesma  affliccão  ,  qtie  pa'lecem;  porque 
Como  nã  »  são  provados  em  outros  trahallios, 
aconlece-lhes  o  que  a  um  cavallo  duro  do 
freio,  iridí)milo,  alado  ao  corhe  ,  o  qual, 
depois  de  muito  coucear  por  se  livrar,  de 
cansado  vem  a  se  sogeitar,  e  pouco  a  pouco 


338  Sermão  do  De  ato 

amansa  das  primeiras  fúrias.  Assim  estes  em 
quanto    se  oppóera    ás  suas  afíliocóes  traba- 
lhando  muito   por  se  livrar  delias  sem  aca- 
barem   de  se  sogeitar  ,  e  resignar  de  todo  á 
divina    vontade,  roníórnies  em   sofrer  estas 
cousas  quanto   for  ordem  de  Deos  ,     são  pof 
isto  gravemente    atormentados;  nem  se  po- 
dem   livrar    delias ,    porque    núo    \^óáe   ser 
menos  que  piulecel-as,  até  que  Deos  ponha 
os    olhos  em  seu    trabalho   e  sofrimento,  o 
qual  só  saln^  quando  Ihics  convém    serem   li- 
vres dtilas.  Peio  que  nenhumíf^cousa  é  mais 
necessária  para  reriíedio  deste  mal ,  queresi- 
gnar-se  e  oííerecer-se  uma  alma  com  grande 
humildade  ,  para  as  sofrer   em   quanto    for 
vontade  do  Senhor,  e  pedir-lhe  ajuda  com 
pacieucia  ,  valendo-se  das  orações   dos  bons. 
O    quinto  erro  ,    e  o  maior  euíjano  em 
que   andão,  é    querer  responder  a  todos  os 
niáos   pensamentos,     crendo-os,    e   respon- 
dendo-lhe  ,    e  com  razoes  procurar    conven- 
cel-os,    -vindo  a  disputa  com  clles.  O   que  se 
deve  evitar   com    grjmle   cuidado  ;    porque 
pelo  mesmo  caso  que  se  põe    a  lutar  com  os 
taes  pensamentos  ,  seembaracHo,   e   deixão 
perder  de  sorte,  que  lhe  não   fica  saída  por 
onde  lhes  possão  encapar. 

Pelo  que  o  mais  acertado   e  seguro  con- 
«elho    é ,    tanto   que  vier   um    pcLsameutu 


Fií.   Hl^rique  Slso.  339 

destes,  sem  coiítí-^nda,  nem  nrginnento,  e 
sem  pôr.;  algum  estorço  por  lhe  r^iisistir ,  o 
mais  d«  pjessa  que  puder  divertir-se,  e  pôr 
o  sentido  em  a  primeira  coiisn  que  acertar 
dever,  ouvir,  011  conliecer.  Corno  se  dis- 
sera :  lá  íe  liavém  com  teus  susunos  ,  que  a 
mim  me  não  tofão;não  é  a-Cua  maldade 
para  alguém  t^  querer  responder.  Porque 
na  veidade  quanto  menos  caso  se  faz  destas 
importunações,  tanto  mais  de  pressa  se  des- 
fazem ;  e  assim  se  deve  repelir  este  remédio 
uma,  e  outra  vez,  até  qtie  fique  em  uso. 
Porém  estas  cousas  só  as  alcanção  os  que  em 
si  as  cxperimentão. 

O  sexto  engano  é  ,  quanto  mais  sagrados 
são  os  tempos  ,  e  quanto  elíes  de  melhor 
vontade  se  cliegão  a  Deos ,  tanto  é  maior  a 
sua  afihcção,  de  sorte  que  nem  um  Pater 
nosler  ^  ou  A^^e  Maria  podem  dizer  sem  estes 
susurros  diabólicos:  d*oude  os  pobres,  vindo 
como  em  desesperação,  deixão  a  reza,  e 
(hzem  coiijsigo  :  Que  me  podem  aproveitar 
orações  túo  cheias  de  torpez.is?  N<>  (pie  crráo 
grandemeiíTe  ,  c  fazem  a  vontade  a  seu  ini- 
migo ,  CUJO  intento  não  é  outro,  que  fazer 
com  que  tenhão  pouca  estima  dos  exercicios 
espirituaes,  lhes  pareção  de  nenhum  pro- 
veito, e  por  isso  os  deixem  ;  sendo  assim, 
que  a  tal  oração ,  ainda  com  todas  aquuUas 


84^  SermSo  do  Beato 

trovoadas  de  tentações,  e  de  m á os  pensa- 
mentos ,  que  tanto  os  atormenta,  não  é 
pouco  agradável  ao  todo  poderoso  Dccs; 
porque,  coiíio  diz  S.  Gregório,  muitas  vezes 
o  coração  do  homem  é  tào  gravemente  per- 
turbado ,  que  se  não  sabe  li\rar  da  tribula- 
ção, mas  no  meio  dessa  aí-licção  o  mesmo 
trabalho  esta  iniercedendo  devotissimamenie 
diante  dos  Divinos  olhos  pelo  próprio  co- 
ração ,  que  a  padece.  A  mesma  amargura 
da  tribubação  do  coração  afflirto  ,  rebizindo 
nos  olhos  de  Deos,  mais  de  pressa  ,  do  que 
outro  exercício  (|ualqi!er  espiritiial,  inchna 
a  sua  Divina  iMaç:;e5tade  a  este  coração  aííli- 
cto,  fazendo-se-ihc  força  para  que  mais  cedo 
lh«  acuda  com  seu  favor.  Por  tanto  nào  se 
interrompa  pfjr  esta  cansa  obra  nenhun^a 
boa,  não  se  deixem  orações  ,  nem  o  ir  á 
Igreja  ,  que  é  uma  das  cousas  ijue  mais  mo- 
léstia dá  aos  demónios.  P<irque  o  que  faUa 
ao  assim  perseguido  na  pureza  da  oração, 
isso  se  suppre  corti  a  niokstia  da  aííHcçáo  ,  a 
qual  por  isso  grandemente  contenta  ao  pie- 
doso Senhor.  Porfjue  muitas  vezes  ouvimos 
melhor  ,  e  com  ni.iis  tenção,  a(|uclles,  qut 
por  fraqueza  escassamente  podem  lançar  uma 
palavra  pela  boca  ,  que  aquelles  ,  que  com 
inteiras  iorças,  e  voz  nos  pedem;  sendo 
assim  que  quanto  mais  larQ\'\mos  o  exercido 


Fr.  HETTF.iQrE  Sus©.  541 

t!a  orncáo  ,  tanto  mais  nos  accommodamos 
c*jm    o  inimigo  de  nossas  almas. 

Porém  sendo  rerto,  como  temos  provado, 
que  nestas  aíílicçóes  não  ha  peccado  ,  é  para 
perguntar  a  causa,  por  que  Deos  nosso  Senlior 
deixa  atormentar  tHo  gravemente  t  s  qne  as 
padecem  ;  aos  qiiaes  não  apontareis  pena  , 
0!J  tormento  corporal,  que  de  boa  vontade 
não  acceitem  por  se  ver  livres  desta  tentação 
de  desesperaçáo.  Na  verdade  estes  e  alguns 
simplices  sem  experiência  persuadem-se  ,  que 
isto  não  é  sem  culpa  sua  :  mas  o  contrario 
se  mostra  ])em  claramente  ,  advertindo  qu« 
tanjbcm  padecem  este  Irnlialho  muitas  pessoas 
de  grande  virtude,  e  santid'ade  conhecida  , 
como  se  vê  por  experiência ,  além  do  que  os 
Santos  escrevem  e  icstiíicão.  E  pelo  contra- 
rio vemos  homens  de  consciências  perdidas 
e  torpes,  scmntnhutna  perlurb.íção,  nem  in- 
quietarão interior,  sendo  assim  que  alé  nos 
meninos  innitasvezes acontece  verem-se  estes 
trabalhos,  antes  de  poder  haver  nelles  pec- 
cados  giaves. 

Pelo  (jue  se  alienem  depois  de  haver  toma» 
do  o  liabito  de  alguma  Religião,  ou  depois 
de  conhecida  a  verdade,  por  culpa  sua  vier 
a  padecer  estas  tribulações  ,  deve  dar  por 
cilas  muitas  graças  a  Deos:  porque  ,  romo  as 
Sagradas  Leiras' nos  eusinfio,  c  grandissimo 


34^  Sermão  do  Beato 

slgnal,  e  prova  do  amor  Divino  não  deixar 
por  luuito  teiuposuccederem  as  cous;>s  a  V(;»»- 
tade  dus  peccadores  ,  mas  appliear-ibe  logo 
em  continente  o  casti^ío. 

A  causa  por  que  o  sapientissimo  Senhor 
com  esla  tenção  de  (i^iesperacão  queira  antes 
abater  a  soberba  destes,  quebrantando-os 
e  domando-os  mais  com  esra  tribiiiacíio,  que 
com  outras  ,  isso  é  segred»)  de  sua  alta  pro- 
videncia ,  o  que  também  devem  entender, 
e  confessar  os  que  as  padecem  ;  porque  como 
o  Senhor  tenha  bem  conhecido  os  corações 
dos  homens,  almas  e  coslunits  ,  como  me- 
dico Gel  applica  a  cada  um  a  mesinlia.  que 
mais  lhe  conveai.  E  se  me  perguntar  alguém 
de  que  utilidade  j)óde  ser  esta  tentação  de 
desesperação,  cmií  grande  certeza  dij^o,  que 
delia  se  tirão  muitos  e  grandes  bens  espiri- 
tuaes. 

Primeiramente  os  homens  por  natureza 
soberbos,  por  nenhuma  outra  via  melhor, 
e  menos  sem  elles  o  entenderem,  podem  *=or 
trazidos  áhuniihlade  verdadeira  ,  niãi  de  to- 
das as  virtudes;  porque  os  que  são  opprimidos 
desta  tentação  pela  torpeza  e  suavidade  de 
seus  pensamentos,  vem  a  conhecer  a  fealda- 
de e  enormitlade  dos  pcccados  mortaes;  o 
que  d'antes  não  conheciào ,  como  provámos 
ao  principio,    Cuusa  cerU  é ,  que  ler    um 


Fr.  Hemuqtje  Susf».  343 

homem  um  só  pensa nien lo  de  vangloria  o 
fará  mais  disforme  diante  de  Deos,  que  mil 
pensamentos,  tilhulaçóes  ,  e  angnsiias,  que 
tieciaramos,  o  que  se  vê  claramente  em  Lú- 
cifer, o  quvil  sem  padecer  tentação  nlgnma 
torpe  caio  feiamente.  1'ermiltc  pois  Deos, 
que  seja  um  homem  vexado  de.sla  moléstia, 
para  que  aquellc,  que  íòr  causa  de  inchação 
de  Seu  coi  arão  ,  não  se  queria  conhecer , 
pelo  menos  com  e«;ta  aíflicçào  venha  em  co- 
nhecimento próprio. 

E  assim  succede  que  aqncllc,  que  d'antes 
desprezava  os  outros,  já  se  tenha  por  mere* 
cfdor  que  todos  o  desprezem  ;  que  cousa 
lhe  pode  ser  mais  proveitosa  que  esta  ?  ou 
que  cousa  o  pôde  mais  de  pressa  tornar  a 
Deos?  Por(|ue  é  impossível  que  Deos  deixo 
perder  o  verdadeiramente  humilde. 

Pelo  que  os  que  padecem  esta  cruz , 
assim  pelo  que  nos  ensináo  as  Escripturas  , 
como  pelo  que  consta  da  mesma  verdade  , 
devenj,  prostrando-se  aos  pés  do  Todo  Pode- 
roso Deos,  dourar  esta  tão  execravel  tentação 
com  piedoso  fazimento  de  L,Macas;  porque 
esta  afllicção  não  só  tira  a  um  homem  da 
boca  do  inferno,  mas  o  levanta  até  o  pór 
nuC<!o,  guardando- o  de  innumeraveis  pccca- 
dos  com  lhe  dar  tanta  guerra  ,  que  se  es- 
queça do  Iodas  as   vaidades  do  mundo  j  o 


S44  SERMto    DO    BeíTO 

que  na  verdade  llie  é  o  maior  proveito  ,  • 
áe  gríintlissiui;!  ajuda  para  se  a!>ia«  ar  (oiu 
as  virtudes:  p')ique  os  que  patlectm  esta 
teiitaçãíi  são  táo  vexados  delia,  que  vern  a 
tomar  por  remédio  de  sua  necessitlade  segui- 
rem a  vii-tude,  e  nada  lhe  parece  impossível, 
com  que  possão  aliiviar  sua  cruz  ou  esqueccr- 
se  do  mal  que  padecem,  o  que  ainda  que 
facão  mui  de  preposilo,  nem  por  isso  le- 
vanta logo  nosso  Senhor  a  mão ,  antes  os 
deixa  mais  atormeníar  com  a  mesma  miséria, 
até  que  depois  de  ajuulaiem  grande  celeiro 
<le  boas  obras  ,  sejão  ricos  da  graça  ,  e  dt 
"virtudes. 

Daqui  se  deixa  bem  ver  quão  suave, 
e  beniguameute  a  Sabedoria  Eterna  dispõe 
todas  as  cousas,  pois  se  converte  por  ordem 
divina  emsalvaçfío  própria,  o  que  nuiilo<%  tem 
pv)r  sua  destruirão  ;  ahin  de  que  se  alilvia 
com  esta  atlliccáo  ^randu  parle  <las  peuas  do 
Purgatório,  e  não  só  tira  a  pena  dos  que  o 
sofrem  com  paciência  ,  mas  «rangéa  niere- 
cimeuto  para  grande  prémio  :  porque  airula 
que  se  conheião  culpados  em  gjaudes  pec- 
cados  (baute  de  Deos,  seiáo  contados  entre 
os  martyres  singulares ,  que  não  pó>!e  l^aver 
duvida  ser  esta  vexação  contínua  ,  mais  dif- 
ÍJCultosa  de  sofrer  que  o  ferro  do  algoz,  qu# 


Fr.  Henrique  Su5o.    '  Si? 

tle  um  g<^>lpe  aparla  a  caijcça  dos  honibros, 
Firiainit^iiie  écousa  averiguada  n.is  Escriptu- 
ras Santas  ,  e  por  experiência  consta  ser  esta 
vexação  argumento  de  giaiide  amor  de 
Deos  a  quem  o  padece,  o  qual  se  s<jj,ailrá 
grande  graça,  e  revelações  de  muitos,  e 
mysteriosos  segredos  divinos. 

P«)r  taiilo  devem  as  pessoas  ,  de  que  fal- 
íamos ,  levar  este  trabalho  ,  nã'»  só  com  pa- 
ciência ,  mas  com  muito  animo  e  boa  von- 
tade, certos  qtie  esle  bieve  rigor,  este, 
como  diz  o  Apostolo,  leve  momento  de  tri- 
bulação obrará  grande  e  soberano  prémio 
ria  gloria.  Do  que  seja  boa  prova  uma  Reli- 
giosa ,  que  havendo  cm  vida  padecido ninito 
nesta  pai  te,  apparcceo  depois  de  morta  a 
um  devoto,  dizendo,  qiielhe  scr\ira  de  pur- 
gatório tuo  perfeito,  que  sen^.  mais  se  deter 
fora  logo  em  morrendo  recei)ida  a  ver  a  lace 
de  Deos,  o  que  nos  dê  a  nós  o  Senhor 
JESU ,  sendo  «ngraadecido  para  todo  sem- 
pre. Amcn. 


347 


exercício 

DA 

ETERNA  SAPIÊNCIA, 

NA  REALIDADE  DULCÍSSIMO , 

REVELADO  POR  DEOS 

AO 

Beato    Fr.    HENRIQUE    SUSO, 

DA    ORDEM  DOS   PREGADORES. 

TradmUio  de  Latim   em   Portit^ttez  por  i:/n  Religioso  dm 
mesma  Ordem, 


X  Odo  aqnolle,  que  deseja  ser  discípulo  ama» 
do  da  Eterna  Sapiência,  que  c  JESU  Curisto 
nosso  Senhor,  e  junlaineiitc  aproveitar  no 
amor  de  Deos  ,  guardar-se  dos  males,  sentir 
os  elTeitos  da  graça  e  hencào  fan>iliar  de 
Deos,  viver  bem  ,  morrer  ditosamente,  de 
qualquer  estado  ,  e  contlii.ão  que  seja  ,  ob* 


348  Exercício   do  Beat© 

serve  com  tliligencia  e  cuidado  as  cousas 
seguintes  ,  as  quaes  srio  tão  niodt radas  e 
teiíiperadas,  que  sem  difíiculdude  alguma 
qualquer  pessoa  as  pôde  exercitar  sem  pre- 
juízo do  seu  estado  e  coudiçáo ,  porque 
nfio  contém  preceito  algum,  inas  só  desper- 
táo  ao  amor  de  Deos  aquelles,  que  estão  co- 
mo alados  de  noxiífão   e  perguiça  d'aim2. 

Em  primeiro  lugar  o  discijjulo  da  Eterna 
Sapiência  não  só  deve  apartar  de  si  tudo  o 
amor  próprio  ,  mas  procurar  com  todas  suas 
forcas  de  lançar  de  si  ,  e  aiTancar  d'alma  to- 
do o  aífecto  desordenado  ,  e  torcido  a  quaes- 
quer  cousas  da  terra,  e  com  isto  eleger,  e 
tomar  por  esposa  a  Divina  Sapiência  :.  mas 
se  al^um  se  vir  tão  embaraçado  e  preso  do 
«mor  próprio  ,  que  lhe  pareça  muito  árduo 
apariar-se  ílelle  ,  este  lai  íoruje  um  propósi- 
to e  desejo  na  sua  alma  ,  de  que  se  apartará 
deste  amor  nocivo ,  tanto  que  em  qualquer 
occasiào  se  sentir  tocar  da  giaça  e  auxilio 
de  De(js  eíiicazinente,  e  com  este  propósito 
comece  este  exercício. 

Porém  aquçlles,  a^ucm  não  tem  presos 
o  tal  amor  próprio  ,C^com  tudo  são  aluda 
ne^liireutes,  e  íi  i<  s  no  amor  divino  ,  estes 
tomem  de  novo  por  esposa  a  Divma  Sapiên- 
cia ,  renovando  e:n  si  o  .seu  divino  amor  com 
fervorosos  affeclos  ,  de  soi  le  que  ,  se  Uaiiie^ 


Fr.  Henrique  Ssso.  5*491 

a  serrlão  como  a  Senlior  pelo  temor  da  pena, 
já  daqui  eni  filante  estudem  af;rs0ar-llie, 
como  a  esposa  mui  querida  ,  nnindo-se  com 
ella  por  íerventissima  caridade.  Pesando  e 
pensando  muitas  veies  a  grande  exceliencia  , 
benignidade  e  t'oi4iio5a  presença  desta  divi- 
níssima esposa,  ou  esposo,  conforme  lhe 
for  mais  suave  nomeai -a  ,  pois  em  Deos  não 
ha  diíFerencas  da  sexos,  sentlo,  como  é, 
espirito  puríssimo  ,  e  simplicíssimo.  O*  uma  , 
e  multas  vezes  ditosos  aquelles,  que  forem 
dio^nos  de  ser  adunltidos  á  sua  auiizade  e 
traio  familiar.  Porém  este  desposorio ,  não 
só  se  deve  frizer  interiormente  n'alma  ,  senão 
também  exteriormente ,  para  despertar  o 
fervor  da  ilevoção :  mas  em  secreto  ,  por 
meio  de  certos  siguaes  devotos  na  forma  se- 
guinte. 

Primeiramente  todviaqnelle,  que  quer  ser 
recebido  á  iruiandad*  da  Kterna  Sapiência, 
dizendo  tves*  Paires  nos fres  ^  c  outras  tantas 
j^i>g  Marias  em  SGC*reto ,  prostre-se  outras 
tantas  vezes  em  terra  ,  offerecendo-se  ,  resi- 
gnando-se,  e  deixando«se  totlo  í»  Eterna  Sa- 
piência. Peça-llie  as  arras  do  de^posítrio  di- 
vino ,  SC  nova  graça  em  slgnal  de  mutua 
amizade,  e  fidelida<le  perpettia  ,  a  qual  nem 
a  morte,  nem  a  vida  ,  nem  a/^uma  crealura 
possa  nuaca  jamais  ^uebianUr, 


35o  ExETíCICIO  DO  Bea-to 

Devem  os  clisí  ipulos,  que  deveras  vene- 
rão  a  Etí^nia  S;ipieii(ia  ,  dizer  todos  os  dias 
as  nuii  devotas  iioras  e  ofíiíio,  que  se  clia- 
ina  vulgarmente  o  Curso  da  Eterna  Sapiên- 
cia, as  quaes  estão  nas  iioras  de  jNossa  Se- 
iihoia  dos  Frades  Prégadt)rcs.  Porém  os  que 
não  sabem,  nem  podem  rezar -estas  horas  , 
diffão  em  seu  lu^-ar  sete  vezes  a  oração  do 
Pater  nosier  com  outras  tautiis  y/t'<?  iSlarins^ 
SC.  por  cada  liora  um  Paler  Nostcr  e  uma 
J[i>e  Maria  ,  e  isto  com  tenção  de  que  a  Eter- 
na Sapiência  guarde  suas  almas  e  corpos  de 
serem  presas  e  enlaçadas  das  vaidades  e  pe- 
rigos deste  mundo;  mas  que  andando  nelle 
com  cautela  ,  scjão  defendidos  tle  lodos  os 
males,  e  por  caminho  direito  sejiío  dirigidos 
do  Senhor  d  salvação. 

Na  mesa  depois  da  Isenção  commua  digào 
um  Pater  Ao.^ter  e  Jve  Maria  por  esmola 
espiritual  ás  idn;as  ,  que  tem  necessida- 
de no  fogo  do  Purgaloiio  ,  lend)iando-so 
quào  grande  peiigo  e  comer  de  esmolas  sem 
agradecimento  ,  e  quão  piedosa  cousa  seja 
ajudar  os  miseráveis  que  se  não  podem  valer 
a  si  mesmos.  E  oulrosi  considerem  com 
que  graças  as  pcihres  ahnas  e  necessitadas 
do  Purgatório  receheráô  as  minimas  mi- 
galhas, que  caem  da  mesa  de  seus  s€nhorci 
para  seu  refrigério  ,  e  allivio, 


Fr.  HE>'niQUE  Suso,  3di 

Dijno  também  um  Pater  nnster  e  Jve 
Mn/ia  ao  cluU.issimo  e  saudável  nome  da 
Kterna  Sapiência,  que  é  o  Senhor  JTSU  ,  para 
que  o  mL^iino  Scídior  defenda ,  e  ampare 
todos  os  discípulos  da  Eterna  Sapienria  ,  e 
a  [greja  Cat}i'dlca  de  todos  os  contrastes  e 
ciladas  dos  inimigos  ,  ajuntando  estas  pala- 
Tras:  Bento  seja  o  doce  nome  do  Senhor  JESIJ, 
e  da  gloriosa  sempre  Virgem  Maria  sua  mãi 
para  sempre  jamais.  Amen. 

E  isto  para  que  o  Senhor  JESU  ( que 
nestes  tempos  miseráveis  anda  ião  desterrado 
dos  corações  de  muitos,  porque  lodos  buscão 
só  o  que  é  seu  ,  e  não  o  que  é  de  JESU 
Christo)  havendo  nos  seus  corações  o  se« 
amor,  inspirando  nelles  o  seu  nome  suavissi- 
mOjC  meliíluo,  e  conservando-o  para  sempre. 

Além  disto  os  discipulos  da  Eterna  Sa- 
piência devem  em  certos  dias  do  anno  vene- 
ral-a  como  a  Senhora  ,  e  Esposa  d'alma  roíu 
algum  particular  aíTecto  ,  e  obsequio  <leter- 
minado. 

O  primeiro  dia  é  a  primeira  Dominga  de 
Agosto,  em  que  se  coine<  ão  a  ler  na  leza  da 
Igreja  os  livros  da  Sapiência.  O  segundo  dia 
é  o  septimo  antes  da  Vigilia  do  NaLil,  em  que 
se  começa  a  Antiphona  :  O'  Sajyientia.  Neste 
dia  ,  e  nos  que  se  seguem  até  áípiella  noute 
gloriosa  y  aiw  a  qual  a  Eterna  bapi<;ncia  ãC 


Zdi  Exercício  do  Peato 

dignou  entrar  corpciraliuente  ne-^te  munclo  , 
farão  uma  especial  C(»u!iueinorat Ho  á  lUerna 
Sapiência  pvir  Aiitiphona  ,  e  (Jt»lle<  ta  ,  ou 
por  um  Pater  nosicr  ^  coníóruie  a  (levõ<  ão 
de  cada  um  ;  o  que  fòr  Sacerdote  ,  se  nestes 
dias  disser  Missa  da  ElerrKi  Sapiência,  tar-lhe» 
ba  um  aíiradavel  serviço. 

O  terceiro  dia  é  da  Circiinuisâo  do  Se- 
nhor, no  qual  se  começa  o  anno  novo,  em 
o  qual  os  amigos  di.ste  inundo  se  mandão 
presentes  e  dadivas  uns  aos  outros,  com 
imprecações  de  bons  annos.  Da  mesma  sorte 
o  discipulo  da  Eteina  Sapiência  ,  por  afer- 
Torar  em  si  o  amor,  visiie  a  Eterna  Sapiên- 
cia, pedindo-lhe  hons  annt»s  para  si  ,  e  para 
toda  a  Igreja  Calholica. 

O  quarto  dia  é  Dominga  da  Quinqnage- 
«ima,  que  o  mundo  thama  de  Entrudo,  o 
qual  é  tào  celebrado  dos  mundanos  com  se 
ajuntarem  em  festas  e  ])anquetes  profanos , 
em  que  se  coiUamináo  os  Cíístumes  com 
muitas  maldades  a  troco  das  \ãas  consola- 
ções e  gostos  dí)  corpo.  JMas  o  discípulo  da 
Eterna  Sapiência,  para  que  mostre  com 
iinaes  certos  como  da  Etei  na  Sapiência  é  todo 
o  seu  gosto  e  consolação  nesta  vida  ,  e  na 
por  vir  ,  faça  o  que  abaixo  se  diz. 

O   quinto  dia    é    o    primeiro    de^Maio, 
guando  a  alegre  Primai  çfa  se  luosUa  a  lo-. 


Fb.  íÍESRi-QrE  Suso.  353 

tios  agradável,  bioíaudo  em  toda  a  parte  flo- 
res ,  e  \erduras.  Na  noiíte  anies  deste , 
costuníâo  os  inarcchos  dados  a  tinioic*  , 
cm  algumas  partes  enramar  as  perlas  das 
casas,  onde  lem  seus  amores  com  ramos 
verdes  ,  e  flores  em  demonstração  e  teste- 
munho da  fc  ,  a  anior,  que  ^  uai  dão  a  buas 
damas. 

Para  que  se  tire  de  trio  mio  costume 
al^'um  £i:ucto  bom ,  e  para  que  os  filhos 
deste  mcndo  o  que  fazem  a  um  sujeito  cor- 
poral c  mundano,  como  elles ,  seja  melhor 
empregado  espiritualmente  pelos  filhos  da 
Eterna  Sapiência  aoCreador  de  tuuo,  e  isto 
com  tanto  maior  cuidado,  quanto  mais  sem 
comparação  esta  Divina  esposa  e  amiga 
excede  a  todos  os  mortaes ,  ofíercção-lhc 
reste  dia  ,  ou  um  liiio,  ou  ai» uma  orafão 
particular. 

Cada  um  destes  cinco  dias  apontados  cele- 
Lrem  cada  anno  todos  os  discípulos  da  r.ier- 
na  Sapiência  com  singular  e  devota  reno- 
vação ,  dizendo  em  cada  um  cem  Pnter 
nostres  ,  e  outras  l;\uidiS  Ave  I\Jaiias^  ou  qual- 
quer oração  ou  serviço,  como  c  ouvir  Missa; 
ise  forem  Sacerdotes  a  dii,rio,  ou  actncãoum 
cirio  ,  ou  íação  alguma  loa  obra,  que  é  a 
Eterna  luz,  em  testemunho  e  prova  eviden- 
Jedeque,  como  fieis  discípulos,  toda  a  ^ua 

12 


354  Exercício  do  Beato 

salvação  neste  tempo,  que  passa,  somente  re- 
conhecem ter  só  de  sua  divina  esposa,  e 
delia  só  a  querem  pedir,  a  que  só  o  seu  di- 
vino amor  se  ha  de  ver  arder  em  seus  cora- 
ções. E  peçáo-lhe  que,  se  por  algum  aconte- 
cimento este  divino  amor  está  apagado  tm 
seus  corações,  tão  benigna  e  fielmente  seja 
outra  vez  nclles  encendido,  que  nunca  já 
mais  se  apag\ie. 

O  sexto  uid  será  o  seguinte  ao  dos  íina- 
do=;,  no  qual  os  que  forem  Sacerdotes  digfio 
Missa  por  todos  os  Irmãos  desta  sociedade 
e  união  ,  e  por  todos  os  seus  amigos  defun- 
ctos,  o:i  a  facão  dizer,  ou  cera  Pater 
no^ires  ^  e  outras  ta  n  las  Â^'e  Marias^  ou 
quaesquer  outras  orações  equivalentes, 

A  todas  estas  cousas  que  nos  dias  deter- 
minados se  apontão,  em  cada  um  dclles  ac- 
crcscentem  depois  delias  esta  oraçfio: 

Piedosíssimo  Pai  nosso,  todo  poderosoy 
■peco-vospila  coeterna  a  vósy  a  vossa  Sapieri' 
cia^  N.  Senhor  JKSU  CinstOj  que  soccorrais 
a  vossa  afjlicta  Itsrcja ,  e  a  ponhais  cm  paz  y 
uniUo  e  tranquillídade  conforme  vossa 
honra  ,  e  ahissimo  beneplácito,  Amen, 

Também  os  discipulos  da  Eterna  Sapiên- 
cia tiagão  sempre  comsigo  o  nome  tia  Eter- 
na Sapiência  s.  o  saluíifero  nome  de  JESU  , 
9U  impresso  ,  ou  insculpido  ,  ou  de  qualquer 


Fr.  Henrique  Suso,  355 

sorte,  confónDe  sua  devoção,  estampado, 
ou  debaixo  do  vestido,  ou  como  melhor 
puderem  ,  e  digão  pela  nianliãa  de  cada  um 
dia  a  saudação  seguinte  ,  para  que  o  piedoso 
JESUS  os  guarde  de  lodo  o  mal,e  leve  a  Jjoai 
íim, 

A  minba  alma  tos  desejou  na  noii«,  e 
TIO  espirito  de  minhas  entranhas,  muidcnia- 
riiiúa  tlespertejava  ,  ó  exccllentÍ£sirx:a  Sapiwn- 
cia,  pedindo  que  arossaamada  presença  a portíí 
de  mim  todas  as  cousas  coulrarias;  peneire 
vossa  sfraca  o  intimo  de  meu  coração,  afervo- 
rando-o  grandemente  em  vosso  amor.  Agora 
dulcissimc»  Senhor  JESUCiiristo  cu  me  levan- 
to cedo  só  para  vós,  evos  saúdo  de  todo  n.cti 
coração.  i\iiliiares  de  uíilharcs  de  Angélicos 
espiritos,  que  continuamente  vos  servem,  e 
assistem  ,  vos  glorifiquem  por  mim.  A  uni- 
versal armonia  de  todas  as  creaturas  vos  lou- 
ve por  mim  ,  e  digão:  seja  o  vosso  gloriosíssi- 
mo Nome,  que  é  escudu  de  nobsa  protecção  , 
bemcHto,  e  lotivado  para  todo  sempre.  Amen. 

Além  destas  cousas  os  discipulos  da  Eter- 
na Sapiência  devem  venerar  com  grande 
affecto  a  mãi  gloriosíssima  da  Eterna  Sa- 
piência como  aquella,  que  está  sciii|>re  pre- 
stes para  os  amar  a  todos  crimo  ílihos,  v.  cu- 
rar (lelles  com  entranhas  í!e  piedade  nalcr- 
iial,  Peio  que   cada   um  dos  dibcipiílcs  ijúd» 


S56  Exercício  do  Beat» 

cada  dia  com  nove  Ave  Marias  á  Virgem  Mal, 
s.  uma  vez  pela  manbãa  logo,  em  se  levan- 
tando, pondo  os  joelhos  na  lerra  ,  offereca 
todas  suas  boas  obras  dafjii^ílle  dia  á  Rainha 
dos  Ceos ,  para  que  ella,  como  Mái  ião  agra- 
dável e  acceita  ,  as  apreseiite  a  seu  Unigénito 
Filho,  ao  qual  serão  sem  duvida  agradáveis  , 
se  quer  por  reverencia  da  Mái,  qne  asoíTerece 
como  medianeira ,  ainda  que  scjáo  em  si  cou- 
sas de  mui. o  pouco  porte,  e  substamia  , 
e  muito  menos  gratas  como  forão  se  im me- 
diatamente as  oííciecera  como  as  olirou  um 
peccador  talvez  muito  grande. 

O  mesmo  faea  á  noite  quando  se  recolher 
a  dormir  depois  de  ter  revoado  todas  as  suas 
devoções  ,  pedindo  que  tudo  o  que  naquelle 
dia  houvesse  tido  de  uegligentia  ,  o  suppra  a 
Setdiora  com  sua  caridade;  o  que  fosse  mal 
feito,  a  Senhora  o  emende,  eo  que  houver  de 
l)jm  ii  Senhora  oappresc^nte  diante  dos  olhos 
di\ino5.  As  outras  sete  advertências  oíferera 
ao  coração  dulcíssimo  da  Mfii  de  Dens,  refugio 
piedosíssimo  de  todos  os  peccadorcs  ,  -^^ara 
que  a  Sjnhora,  assento  e  morada  suavís- 
sima da  E:erna  Sipicncia ,  depositário  de 
todas  as  misericórdias  divinas ,  corrente  ma- 
nancial delias,  as  appllcjue  sobre  os  corações 
do  todos  os  disc*iptd'>s  .ia  Eterna  Sapiência  , 
que  es.á j  na  denadcira  hora ,   e  nelia  os  de- 


Fr.  HENRiQrB  StrsoJ  357 

fen Ja  com  entranhas  de  piedade,  e  delia  os 
não  largue  mais ,  até  os  meter  de  posse  de 
Bemaverturança. 

Finalmente  se  alguns  ,  ou  por  fraqueza 
de  es['.irito  ,  e  de  foiças,  ou  por  occupaçóes 
nào  poderem  dar-se  a  estes  exercicios  em"  al- 
guns dias  ,  ou  se  por  dureza  de  coração^  e 
ignorância,  não  souberem  cumprir  todas  ,  e 
cada  uma  destas  cousas  apontadas,  digáo 
cada  dia  nove  Pater  nostrcs  ,  e  outras  tantas 
A<e  Marias  lazcndo  a  sobredita  peticilo  com 
a  uiesma  tenção  implicita,  ou  explicitauien- 
te  que  o  fazem  os  outros  expressamente  , 
e  hasta. 

Também  se  aljjuem  tiver  devoção  de 
mudar  as  Ave  jMarias  em  Salve  Rainhas, 
e  a  oração  do  Pater  noster  j  que  se  ha  de 
dizer  na  meza  ,  em  o  psalmo  Da  profundis , 
l)em  o  pôde  fazer  em  lionra  da  Eterna  bn- 
piedcia  ,  que  seja  r-lorificada  para  todo  bem- 
pre  jamais.  Auien. 


CONSIDERAÇÕES 

DAS 

LAGRIMAS, 

QUE 

A 

YIRGEM   N.    SENHORA 

DERRAMOU 

NA 

SAGRADA  PAIXÃO, 

Koparlúlas   em  dez  passos,    para   a   devaçâo  do  dez 
Sabhados, 

PELO 

da  Ordeia  de  S,  Domingos. 


3^i 


S  A  B  B  A  D  O     I. 

Despede^se  o  Senhor  da  Firmem  para  ir  a  pa- 
dec^r. 


C 


Omeção  hoje,  puríssima  Virgcni  Mar, 
vossos  devotos  a  considerar,  e  sentir  com 
vosco  aqucllc  abismo  de  dores,  aquelíe  mar 
de  lagrimas,  que  vos  ciisLou  a  Paixão  d« 
vosso  unigénito  Filho  ,  Filho  vosso  ,  e  verda- 
deiro Deos  ,  c  Senhor  meu.  Atrevimento  é  , 
tíio  grande  peccador,  como  eu,  chegar-m« 
a  tal  companhia  ,  tentar  vossos  porias,  quan- 
to mais  entrar  por  ellas.  RJas  lembrando- 
vos ,  Senliora  ,  que  vosso  Filho  iWs^c  ,  qu« 
não  vinlia  buscar  justos,  scnao  peccadores  ; 
dai-nie  licença  ,  que  se  quer  de  longe  ,  couío 
o  Puhiicano  ,  ponha  os  olhos  em  vos:  para 
que  vendo  neste  aííligidissimo  semblante  a 
graveza  dos*ermentos ,  que  cercào  vossa 
alma,  reverbere  sobre  a  niiniia  uma  luz  do 
(iCO,  que  me  faça  digno  de  vos  ajudar  a  sen- 
til-os. 

líoje  ,  Soidiora  ,  é  o  dia  ,  que  começa  a 
entrar  por  vo>sa  casa  aquclla  espada,  qu« 
taatos   ânuos  ha  ouvistes   ao  Santo  Siiueáo  , 


362         Considerações  das  Laguimas 

qne  atravessaria  vossa  alma.  Hoje  é  o  dia  , 
que  coníeça  o  vosso  Divino  Abel  a  caminhar 
para  o  campo,  em  que  o  espera  a  maior  trai- 
rão ,  que  jamais  se  commeiteo ;  traição ,  nao 
só  de  irmãos,  inas  de  filhos,  que  dóe  mais  ; 
e  fiihos  creados  com  tantas  misericórdias. 
Hoje  manda  a  oliediencia  do  Padre  Eterno  , 
qne  comece  o  innoccnte  Isaac  a  sobir  ao 
monte  para  ser  sacrificado  ,e  não  virá  Anjo , 
que  detenha  o  cutello  ;  mas  jnnlar-se-hão 
infinitos  algozes  a  dar  pressa  ao  sacrifício  ; 
algozes  de  vossas  penas  ,  executores  dos  fios 
da  empada  de  Simefio.  fios  ião  agudos,  que 
coi  tão  por  alma,  e  espirito.  E  porque  eite 
Seidior,  q!ie  ha  de  ser  sacrificado,  quer, 
qne  venhãt»  s«»bre  elle  todas  as  desconsola- 
ções juntas  ,  que  o  mutído  pôde  dar,  acceita 
tanuDeni  ser  para  com  vosco  o  mensageiro  de 
tão  tristes  novas;  e  entra  hoje  por  vossas  por- 
tas a  avisar-vos  delias,  despedir-se  de  vós, 
e  dar-vos  os  últimos  al)racos  de  obediente  fi- 
Ihí» ,  qual  sempre  o  experimentastes.  Magoa 
é  sem  fisn  ,  que  clieguem  voaTido  as  profe- 
cias tristes  para  m.Jiar,  e  que  as  legres  tar- 
dem ,  como  se  forjo  fingimentos  ,  para  cn- 
í:^'unar.  Tínheis  oijvido  ,  que  havia  de  ser 
grande,  ciue  havia  de  reinar  eternamente 
cm  Jacob  ;  e  elle  mesmo  vos  faz  a  saber,  qne 
•vai  a  padecer ,  que  vai  para   u   não  verdiíi 


r>A  TiRGEM  Nossa  Sexhora^        365 

rtiais  em  sua  vida  alegre.  O  acerbissimo  des- 
engano! ó  ciuelissima  troca!  n'oiitro  tempí> 
vos  disseião  os  Anjos  ,  que  estáveis  cljeia  de 
graça  ,  que  eslava  o  Senhor  com  vosco  :  hoje 
vos  diz  o  r.jesnio  Senhor  dos  Anjos,  que  se 
vai,  e  vos  deixa,  para  ficarem  com  vosco  e 
em  sen  lugar  todos  os  maiores  toí^mentos  ,  e 
martyrios  ,  que  o  mundo  pôde  dar. 

iMas  quo  sentiria  vossa  alma  ,  Virgem 
bemdita,  neste  passo,  que  sentiria  o  fillio  na 
sua  ?  íSão  bastão  entendimentos  de  Serafins 
para  o  poderem  penetrar.  Creio  eu  ,  que  vos 
acodiríao  aos  olhos  não  menos  aguas,  que  as 
do  rio  JNiJo  paia  chorar,  e  ao  coração  os  tre- 
mores e  abalos  do  monte  Etna  para  suspi- 
TAv.  Mas  se  é  verdade  ,  que  isto  de  alguma 
maneira  descança  e  consola;  creio  também , 
que  vos  quÍ7X'stes  privar  de  tal  allivio,  tanto 
para  começardes  a  padecer  com  o  fillio  , 
quanto  para  lhe  não  accrescentardes  magoa, 
s.ibendo  certo  a  grande  parle,  que  tinha  nas 
vossas  :  crtsce  a  (lòr  repiimida  ,  morre  por 
arrebentar,  como  em  mit:a,  suspiros  repre- 
zídos.  Assim  me  persuado,  que  o  mesmo  Se- 
lihor  para  dar  lugar  a  vossas  lagrimas,  co- 
meçíH)  primeiro  a  declarar,  e  deixar  correr 
as  suas,  que  se  elle  as  não  nc^ou  na  triste/a 
de  duasirmãas,  que  uma  vez  o  agazalliarao  , 
nem   na  dcstruiçáo  antes  vista    da  Ciu;'.dL', 


364       Co:T5id£ràçóes  das  Lacrimií 

que  em  sua  morte  se  alegrava;  como  nã<* 
choraria,  vendo  o  que  passava  em  vosso  co- 
ração, que  o  paristes ,  e  creastes  ,  e  tantos 
annos  tao  fielmente  servistes,  e  que  por  lhe 
ulargar  a  vida  uuia  hora  ,  déreis  mil  vezes  de 
boa  vontade  a  vossa.  Chorou,  e  chorastes,  e 
misturou  couí  vossas  lagrimas  as  suas.  E  as- 
sim íoi  hcm  ,  para  que  da  mesma  maueira 
que  á  perdição  do  mundo  ,  se  juntáriío 
duas  creaturas  a  procural-a  ,  assim  na  res- 
tauração, começasse  por  la^^rimas  das  duas 
mais  puras  ahv.as  ,  que  nelle  havia.  Devia 
eu,  \  irgem  sagrada,  pois  meus  peccados 
forão  causa  destas  lagrimas,  acompanhal-as , 
c  acompanhar-vos  com  pranto  perpetuo. 
Mas  oflerecer-vos-hci  em  lugar  delle,  o  que 
ainda  me  nào  tirou  mirdia  mald^ide,  que 
suo  desejos  de  poder  chorar  toda  a  vida , 
e  com  elles  vos  peco  que  acceileis  estas 
Ave  Marias  em  lemhrança  <lo  amor  ,  que  o 
Kterno  Pai  noz  teve  ,  fazend  j-vos  31ái  de  lai 
£lUo. 

íTfrV/i  yíi^e  alarias. 


Hk  ViRGSM  Nossa  Senhoua.         565 


S  A  B  D  A  D  O     ÍL 

Como  sonhe  a.  Virgem,  da  prisão  ,  c  o  mais 
que  o  SenJior  passou  aqucUa  noite, 

i.iErcada  estais  fie  anjrustias  ,  Tirfrem  Snn- 
tissima  j  fazendo  discursos  entre  li  grimas  e 
jei»ii(]f/S  sobre  o  sacrifício  ,  que  vos  foi  de- 
nunciado ,  imaginais  sacrifício,  imaginais 
iiíorte.  Mas  triste  de  mim,  menos  mal  é 
morte,  que  o  modo  ,  e  circumstancias  da 
que  se  aparelha  para  o  l)oni  JFST^S.  Ouvi  a 
^o:\n  seu  amado,  que  chega  dcsalentadíí  ,  e 
tremendo  das  cruezas ,  que  stus  olhos  vi- 
rão executadas  contra  elle.  Quem  crera,  que 
para  prendernu  um  Cordeiro  sejão  neces- 
sárias mnnljas,  e  cautelas?  Sejão  necessárias 
armasP  Peita-se  o  Discípulo  infiel:  comprào- 
sc  a  dinheiro  ,  meu  hom  JESUS  ,  vossas  in- 
jurias: busca-se  a  noite  para  crescerem  em 
despejo  c  soltura:  paga-se  uma  companhia 
de  gente  armada  para  haver  mais  executores 
delia. 

Assim  começa  S.  Jolo  a  cortar:  n'as 
para  o  rpie  resta,  como  tereis  oll^i<los\i^- 
j^em  Santa  ?  Couio  tereis  coração?  Pcuico  é 
kgrimas:  noto  género  couvem  de  seminu  r.- 


365       Considerações  da.s  Lagrima? 

to  :    maiores  causas  pedem  maiores  L-ffeitoi, 
Hnuve,  Scíihoia,  Ci)itléis  psra  alar  ri^oio^a- 
mente  aquelbs  mãos  ,    que  fizerão    o  C.eo  e 
a  terra,  e  souu  uiua^oz  do  maldito  traidor, 
que  o  arrecadassem  bem.  Houve  mãos  paia 
afear  as  rosas  do  rosto  mais  formoso  ,    que 
quantos  nascerão  das  mulheres  :   para  arre- 
pelar o  ouro  da  sagrada  Cabeça.  Ho  tive  pés 
para  empuxar  ,  e  atropelar  os  membros  san- 
tos. Houve  línguas  para  afrontas  ,  vozes  para 
falsos  testemuirhos,    varas    para    cinco  .mil 
açoutes.  E  porque  antes  querem  por  senhor 
iim  César  Gentio ,  que  o  1  ilho  de  Deos  vivo  • 
dâo-ilie  por  t:scarneo  ceptro,  e  coroa,  ceptro 
de  canna  ,   e  coroa    de  espinhos,  e   em  íini 
pôe-Ibcuni  pesaiio  madeiro  sobre  as  costas, 
que    de  muito  chagadas   dos  açoutes  ,   crão 
todas  uuja  só  chaga.  Mas  se  cada  cousa  destas 
pei"  si  SD  basta  para  quel)iar  coraç3es,    que 
tempestades    de  afíllcção  levaniariáo   nesse 
virginal  peito  todas  juntas?  Cheia  está  mi- 
nha alma  de  terror,  e  cheia  de  compaixão  : 
do  terror,  porque  foráo  minhas  culpas  causa 
de  tanto  mal:   de  compaixão  vendo   o  que 
padeceis  vós  igualmente,   Virgem  bemdita, 
sem    teres   jamais    oiíondido  o  Crcador,    e 
|)or  isto  merecestes   ser  .Mái  sua  ,   e  ouvir  a 
iaudação   do  Anjo,    que  vos  oifcreço  ncàtas 
Ave  Marias. 

Cem  //rc  Mur/us^ 


DA.  Virgem  Nossa.  SE^■IroRA.        Z6y 


S  A  B  L  A  D  O     ÍIÍ. 

Como  a  Firgem  encontroa  o  ScnJior  jia  rum 
da  Amargura, 

V^Ostiima  o  inverno  frio  esforçaras  fontes, 
c  accrt-íicentar  os  rios:  mas  se  cresce  em  ri^or , 
ala  ,  e  endurece  as  aguas  ,  suspende  as  cor- 
rentes dos  rios,  e  até  o  mar  salgado  congel- 
la.  Assim  creio  ,  Virgem  sagrada  ,  que  cres- 
cerão tanto  vossas  magoas,  com  o  que  ou- 
vistes a  João,  que  seccarão  a  veia  das  íneri- 
mas,  cerrarão  o  peito,  [renderão  os  sus|.iro5, 
e  ficando  toda  trocada,  íica.stes  por  novo  mo- 
do mais  atribulada.  Logo  tomais  o  manto,  dei- 
xais a  casa,  e  com  passos  apresurfidos  saís  a 
a  buscar  (como  n'oTJtro  tempo  vos  represen- 
tou o  Espirito  Santo)  acu<^lle,  a  quem  amava 
vossa  alma.  ]\í;;s  dai-mo  licença  para  vos  di- 
zer, (iw^  accommetleis  temerária  joiuada:  que 
se  na  outra  vos  não  guardai ão  respeito,  per- 
destes o  u/anto,  e  ícittes  maltratada  dos  que 
vigiavão  a  cidade:  que  esperais  agora  de 
gente  conjurada  contra  o  naior  bem  da 
me.ima  cidade,  que  era  o  bom  J1''SL'S?  Vejo  , 
que  nie  dizeis  ,  que  isto  é  o  nicsnio  ,  qiic  lus 
cais ,  n.crrcr  cem  elie  ,  ou  ciiuiic  dc-ilc.  que 


363  CoifSIDERAÇOES    DAS    LlGETMAJ 

não  deveis  menos  ao  amor,  que  lhe  tendes, 
e  ao  que  sabeis  ,   que  vos  ellc  tem. 

E  em  fim  chí^gastes  animosa  iVLTi  ao  Fi- 
lho atribulado  ,  vistes  o  Filho  ;  mas  como  o 
vistes?  O'  que  chagado!  O'  que  i?ista!  Bem 
próprio  foi  o  nome  ,  que  ficou  a  tal  rua  (rua 
<Je  amargura)  pelo  que  no  Fillio  vistes  ,  e 
em  vós  sentistes.  Virão  vossos  olhos  aquelle 
Rosto,  que  alegra  os  Anjos  do  Ceo,  pizado 
de  bofetadas,  e  banhado  da  sangue,  que 
tlesce  daCa!)cça,  atravessada  de  espinhos: 
liado  todo  de  cordas  ,  j^ara  que  fosse  arrastos, 
quem  com.  peso  da  Cruz,  e  marlyrio  dos 
O' outcs  estava  tão  quebrado ,  e  falto  de 
torças,  que  não  podia  levar  os  pós.  Neste 
estado,  Sculiora ,  vos  virão  também  seus 
oliios  ,  c  compadecido  de  vossa  pena  ,  em 
meio  de  tantas  suas,  falia  com  vosco,  e  com 
vossas  companheiras:  com  ellas  cm  voz, 
tom  vosco  em  espirito;  diz-vos  dentro  no 
Coração,  que  alli  vai  feito  valente  Sansão 
com  as  portas  da  ciilade  ás  costas  para  ficar 
.niKirta  a  celestial  Jeruzalem  a  iodos  os  pecca- 
doros:  leva  o  cjptro «verdadeiro  de  Daviíl 
pira  sjnhoreir  o  mundo;  porque  estava 
t'>'?rit  >  que  do  luidvíiro  havia  ilc  reinar. 
A'á  co:npau!iv3Íras  diz,  que  cliorein  sobre 
si;  p>i:pi8  se  o  vingar  dá  gosto,  duro  ca- 
stijo    j-jjiM    aos   qac    esta   pena    lho   dj- 


©A  Virgem  Nossa  SEJinoni.       3^9 

tão.  Ah  Virgem  purissinia  ,  npo  tos  pôde 
faltar  consolação  daquelles  Divinos  olhos  em 
quanto  o  tendes  pre>?ente,  em  qualquer  esta- 
do, que  o  vejais;  puis  sempre  vivestes  da 
luz  delles.  E  para  isto  vos  lembro  a  caloria  , 
que  sentistes  com  as  novas  de  serdes  sua  Mai 
na  saadacHo  Ano^elica, 

Cem  Ave  Marias. 


S  A  B  B  A  D  O     IV. 
Como  vio  preparo  Senhor  na  Cruz, 

ÍtJLAs  é  grande  a  pressa  ,  grande  a  violên- 
cia ,  com  que  vos  arrebatào  o  bom  Sei  hor; 
se  vossos  passos  não  podem  ser  iguaes  ,  re- 
Kicdio  tendes  para  não  errar  ocamihl.o; 
tal  rasto  fica  do  precioso  Sangue  ,  que  elle 
vos  guiará,  onde  seus  inimigos  o  levjo.  Ao 
monte  vão,  e  la  vos  convém  ir,  Virí?m 
l-emd.ita;  se  tendes  animo  para  ver  a  ultima 
.  maior  de  todas  as  maldades  e  cruezas, 
ijue  com  elle  se  usarão  :  ISiidus  egressus  snni 
de  ventre  mutris  meae ,  dizia  Job,  ntidim  r^- 
vertar  etc.  Qual  o  vistes  na  cova  do  Presépio, 
sem  mais  testemunhas  ,  que  vossos  puris- 
simos  olhos,  e  os  de  S.  Joseph  :   tal  qutrcm 


3yo         Considerações  das  Lagrimas 

os  malva  dos  ,  que  o  vejais  na  coiòa  cie  um 
monte  á  vista  de  infinito  povo:  lá  festejado 
dos  Anjos,  adorado  e  servido  de  Reis:  cá 
cercado  de  opprobrios,  e  pregoado  por  me- 
nos merecedor  da  vida,  que  um  publico  lio- 
niicida  :  lá  reclinado  enj  pobres  palhinhas, 
mas  agazalliado  ,  e  abiigado  <'om  vosso  bafo 
e  vossa  presença :  cá  estenditlo  sobre  um 
áspero  madeiro  ,  e  logo.  pregado  neiie  com 
quatro  cravos.  Já  soão  os  golpes  dos  maâtel- 
los ,  já  crescem  novas  dores,  confraiige-se 
a  Scigrada  Humanidade;  reconhecendo  sua 
fiaqueza  ,  arrelienta  o  Sangue  em  rios,  re- 
gfio  quatro  fontes  a  terra.  Quem  podéra , 
Virgem  soberana  ,  levantar  tanto  a  conside- 
ração ,  que  ahíançára  os  effeitos ,  que  nesse 
Santo  peito  fazião  aqueiles  golpes,  e  aquel- 
les  cravos!  A  vós  a  peco,  que  m'a  podeis  al- 
cançar; porque  sei,  m\e  na  gloria  que  hoje 
possuís  vos  agrado  muito  lembrando-nos  (ie 
\ossos  trabaliios  ,  os  que  somos  causa  de  os 
pí.^sardes  ,  para  que  assim  como  foráo  prin- 
cipio de  nosso  remeíiio,  assim  da  lembrança 
delles,    comece  a  enienda    de  nossas  vidas. 

Cc/íi  A^e  Marias» 


DA  Virgem  Nossa  Senuoiia.         Zn 


S  A  B  B  A  D  O     V. 

Como  vio  o  Senhor  levantado  na  Cruz, 

J  A'  parecia  ,  Virji^em  affligidissinia  ,  qne  naò 
podia  haver  cousa  ,  que  accrescentasse  vossas 
penas  ,  quando  de  novo  se  moatra  ,  que  nem 
em  vossos  ininiif]fos  se  leni  esgotado  as  inven- 
coes  de  afíligir  ao  meu  bom  JESUS ,  nem 
faltão  ao  vosso  peito  occasióes  de  mais  dur  , 
e  mais  mcrccimeiUoj  hem  se  diz,  que  todos 
os  Marlyres  juntos  não  padc-cèiáo  tanto, 
como  elle  só  ;  c  que  vós  sem  níorrer  ,  pa de- 
testes tanto,  conuí  todos  eiles.  Levant.To  a 
(]ruA  cm  alto,  assenta o-llie  o  pé  delia  na  cova , 
em  que  lia  de  ficar  arvorada  :  estremecei 
todo  o  Corpo  Sa<(rado ,  c  ao  mesmo  passo  se 
ahala'râo  vossas  entranhas,  Virfjem  Santa, 
nfio  tenho  dúvida  ,  que  vos  estalara  o  cora- 
ção no  peito  ,  se  para  mais  merece nlcs  vos 
não  desse  força  o  mesmo  Tilho,  como  ver- 
dadeiro Deos,  que  é.  Rasgão-se  de  novo  as 
feridas  dos  pés  e  macs,  e  comera  a  correr 
de  todas  unia  celestial  chnva  de  Sangue,  que 
sendo  infinito  no  preço,  fa/  ciescer  qnasi  in- 
finitamente as  dures  cm  todas. 

Já  eitá  arvorada  a  serpente  do  descrio  , 


3j5       Considerações  das  Lagrimas 

que  dava  saúde  com  sua  vista.  Já  o  Fiiho  ão 
liotiieiu  está  em  alto  para  trazer  indo  a  si: 
já  seu  divino  Sanoue  reíra  os  ossos  delidos 
com  antiguidade  de  nosso  pai  Adão  neste 
monte  .sepultado  j  para  que  lavadas  assim 
suas  culpas,  se  torne  em  ben^^ões  a  maldi- 
ção, que  por  ellas  mereceo  a  terra.  Pois,  Se- 
nhora ,  como  não  tom  allivio  vossas  descon- 
solações, onde  todo  o  mundo  espera  verda- 
deiro remédio  ás  suas  misérias?  ftlas  se  h;To 
de  alliviar  ,  se  só  pafa  vós  crescem  cada  hora 
novas  rasóes  de  magoa?  Não  querem  ,  que 
baste  morte  de  Cruz,  morte  de  iníiimia,  e 
iRiddiçâo ;  querem  fazer  culpas  ,  onde  ne- 
nhuma podia  haver.  Com  dois  bdr<'ies  acom- 
panhão  o  meu  bt)m  JESUS,  e  a  elle  põe  no 
meio  para  que  seja  julgado  poi*  lOiíior.  Vir» 
gem  Sagrada  ,  onde  tudo  se  junta  contra 
vós  ,  junto  eu  cm  vosso  serviço  t  honra 
Catas  pobres  orações. 

r*,7/  ^íi^e  Marias^ 


WA  Virgem  Nossa  Senhora.         ^yj 


S  A  B  B  A  D  O     VI. 

Como  lhe  deu  o  Senhor  por  filho  a  S»  João, 

A^M  fim ,  meu  ])om  JESUS  e  Senhor  da  mi- 
dIki  alma  ,  tlado  tem  remate  vosso  inimigo  a 
tudo  o  que  podia  executar  contra  tós  o  ódio 
e  maldade  :  já  despejào  o  monte:  já  vos  fino 
da  Mãi  saibrada.  Pilas  é  em  estado,  que 
■vos  não  pôde  ser  I>oa  mais,  que  com  a  vista  : 
o  madeiro  alto  ,  e  seus  braços  fracos  para 
nos  livrar,  (.hega-se  ao  pé  delle  ,  que  é  tudo 
o  que  pode  fazer,  e  posta  em  pé  para  mais 
visinlianca  ,  prega  seus  olhos  nas  eslrellas 
dos  vossos,  que  em  todas  as  tempestades  da 
•vida  llie  forão  sempre  fiel  norte.  AUi  está 
Ioda  embebida  na  consideração  das  cruelda- 
des ,  com  ((ue  vos  ti*i\árão  a  vida:  espanta-s* 
como  lhe  dura  a  sua  ,  vendo-a  de  tantos  gé- 
neros de  morte  accommettida  ,  (fuantos  são 
os  que  vos  estão  atormentando.  Neste  passo 
mostrastes,  nu^u  bom  Seidior ,  que  não  sen- 
tis monos  seus  tormentos  ,  que  os  í[ue  estais 
padecendo  :  e  lastimado  mais  .fo  eftado  ,  em 
que  a  vedes,  que  de  vós  mesmo  ,  ordenais 
com  elia  ,  como  olediente  e  verdadeiro  fi- 
lho ,  vosso  testamento.  Quera  não  tem  nada 


374         Considerações  das  Lagbimas 

de  seu;  pois  nem  vestidos  vos  deixarão,  e 
até  a  túnica  interior  foi  jogada  aos  d^dos, 
assaz  é  ,  que  dê  alguma  rou:-^  para  prenda  , 
e  sinal  de  amor.  Uois  penhores  tínheis  na 
terra,  que  muito  amáveis:  a  sagrada  Mài  ,  e 
o  Discípulo  João  :  a  e!le  com  amor  tle  Filho  , 
e  a  ella  com  amor  de  jMãi  :  e  porque  mor- 
rendo vós  ,  fica  ella  sem  Fillio  ,  e  João  sem 
?dãi ,  ordenais,  que  tenha  ella  a  João  por 
Filho  ,  e  João  a  eíl»  por  Mãi.  Isto  íoi  o  que 
naqu tília  ultima  liora  lhe  dissestes,  ^las 
dai-me  iicença  ,  Senhor,  para  vos  dizer,  que 
a  não  desconsolão  só  os  inimigos  ,  também 
vós  ,  que  sois  todo  o  seu  I)em ,  lhe  dais  nisto 
muito  que  sentir.  Mas  se  desengana  quem 
ama  de  verdade,  em  quanto  vos  tem  vivo, 
deixai-a  ,  Senhor,  enganar  C(un  vossa  pre- 
sença. ?^âo  se  publicão  os  testamentos  em 
vitla,nem  se  acceitão  legados,  senão  depois 
que  acaba  o  testador.  Quanto  mais  que  nem 
para  depois  que  vós  faltanles  ,  é  a  troca  de 
receber  :  trocar  o  Rei  pelo  vassallo  ,  o  Se- 
nhor pelo  escravo,  o  amo  pelo  criado,  e:n 
nenhum  estilo  póile  ser  género  de  consola- 
ção:  antes  creio,  que  uma  das  mais  cruéis 
setas,  que  em  vossa  1-aixão  lhe  teríião  a  al- 
ma, fi)i  este  desengano.  Vós  mo» to  não  po- 
deis deixar  ile  ser  seu  Filho,  e  mais  lhe 
vaieis  murto  ,  e  sepultado  ,  que  quantos  lhe 


DA.  Virgem  Nossa  Senhora.       3; 3 

podeis  dar  na  viuii ,  por  puros  ,  e  santos  ,  que 
sejáo ,  qual  lie  João.  Se  quereis  muito  a 
Jofio ,  nao  seja  tanto  á  custa  da  Mài ,  que  vos 
deis  já  por  nào  Fillio  seu  ,  e  que  ella  sabe 
mui  l)em,  que  vós  sois  por  natureza;  e  vivo 
€  morto  vos  quer  por  Filho  ,  e  em  todo  o 
estado  não  ha  mister  outro ,  senão  avós: 
quanto  mais,  que  bem  sabeis  vós,  Senhor, 
que  não  pôde  liaver  nenhum  ,  que  encha  o 
vosso  lugar.  E  sondo  assim  ,  occasião  lhe  dais 
de  lagrimas  sem  remédio  todas  as  vezes  ,  que 
olhar  para  o  adoptivo  com  lembranças  do 
natural  ;  c. mortais  saudades  ,  quando  vir, 
que  lhe  deixastes  a  sombra  em  lugar  de  ver- 
dade. 

Ce-n  yli'0  Marias. 


S  A  B  n  A  D  O    Vir. 

Como  onvío  dizer  ao  ScnJior  y  que  tinha  sede, 

J-^Levada  estais  toda,  Virgem  Saniissinn  ,  no 
vosso  Cnuificado:  notando  os  termos  porque 
transpondo  o  Sol  daquella  vida  ,  de  que  de- 
jjende  a  vossa.  Já  nadão  os  (>lhos  em  ondas 
de  niorte  ,  quebrando-se  sua  luz.  (^lída  está 
a  ral>cça  sobre  o  peito,  enrruadcis  e  grossas 
as  ícj idas  com  o  rigor  do  Lio  j  e  ties|as5ado 


5^6  GoNSIDERAÇt^ES    DAS    LAGRnfl9 

delle  o    corpo  tório.  Neste  estado  levanta  a 
"VOZ  o  affligidissimo  JEjUS,  publicando  un\ 
tormento    interior    deseccura,   que  aquella 
humanidade    sentio,     causado    dos    ii^uitos 
exteriores  ,  que  tinha  passrído,    edis?-*,   que 
tinha  sede  :    mas  a  quem  vos  queixais,  meii 
bom  Senhor,  ou  a  quem  pedis  agua:   se  á 
Mái,   ella  não  vos  pôde  valer  no  esfado  em 
que  está  e  tós  estais,   se    não  for  com  a  de 
seus  olhos  j  se  aos  que  pnssão  ,    toilos  síío  ini- 
migos ,    uns  zomhào   de  vós,    outi os  fazem 
2ond:)aiia  da  vossa  afflicção,  sendo  Blhos  da- 
quelles  (ó  gente  ingralissima)  (jue  vós  anti- 
gamente acompanhastes  com  uma  fonie  pe- 
renal, que  os  seguia  por  n^eio  das  areias  scc- 
cas  do  deserto.  Sede  foi  esta  só  para  mailyrio 
da  pobre  Mái :  a  vós  canoa  ,   m.is  a  ella  ma- 
ta ;  porque  não  a  podendo  remediar  por  si  , 
te  ,  que  houve  peitos  ião  deshumanos,  que 
em    fel   e  vinagre  embebem  uma  esponja  , 
e  vol-o  offerecem  por  agua  na  ponte  de  uma 
cana.  Que  mudanças  são  estas  tão  estranhas  ? 
Yós  sois ,  Senhor  ,  o  que  a  Elias  acodisles  com 
o  bolo  e  vazo  de  aj^iia    na  sua  necessidade , 
e  a  Daniel  no  lago  dos  Leões,   com  o  jantar 
dos  Cegadores  do  outro  Profeta  ?  Vós  sois ,  o 
que  na  fome  do  vosso  jejum  fostes  servido  de 
Anjos,   que  vos  pozeráií  meza  nos  matos  do 
ermo  ?  Vós  sois  o  que  ha  pouco  tempo  susteu- 


DA  Virgem  Nossa  Senhora.  ^yj 

tastes  muitos  milhares  de  homens  com  poucos 
pães,  e  o  que  offerecieis  á  Samaritana  fontes 
vivas  no  fervor  da  calma  ?  E  hoje  por  uma 
pouca  de  agua,  de  que  estais  necessitado , 
não  achais  quem  vos  acuda,  se  não  com  fel. 
Mas  que  Gzestes,  meu  doce  JESUS,  quando 
tal  Lehida  vos  foi  presentada  ?  pro"v;jstes  o 
fel,  para  mostrardes,  que  nenhuma  pena 
recusais  por  meus  peccados.  E  tomada  a  sal- 
va,  deixais  o  mais  á  Mãi  sagrada,  que  sem 
dúvida  ainda  primeiro  que  vós  o  hebeo  lodo 
em  dòr  e  angustias,    senão  foi  era  sustancit, 

Cem  Ave  Marias, 


S  A  B  B  A  D  O     VIII. 

Como  lhe  vio  dar  a  lançada. 

J-iM  fim  cliegou-se  o  termo  daquella  fida,' 
que  para  tão  perseguida,  tinha  durado  muito. 
Acompanháo  vossas  dores  ,  Virgem  Mái  so- 
bre todas  as  Mais  a  mais  atribulada  ,  e  sobre 
todas  as  Virgens  a  mais  pura  ,  que  todas  as 
cousas  creadas,  Cobre-se  o  Ceo  de  escurida- 
de, perdem  sua  luz  o  Sol  e  a  Lua,  treme  a 
terra,  abalão-se  os  montes,  correm  as  serras, 
quebrão-s«    05   pçngdos   uns  com   outros. 


3-8        Co:?fsiDERAÇ(5iiS  das  Lagrimas 

respondem  os  vales  com  cecos  e  roncos  tri- 
stes; ludo  em  fim  mostra  brandura  de  sen- 
timento, só  vossos  inimigos  estão  ainda  mais 
duros  e  encarniçados  ,  que  a  primeiía  hora. 
O  ódio  mais  entra nhavel  ,  a  maior  raiva  ,  e 
indignarão  do  mundo  duia  até  malar  o  ini- 
migo, e  cessa  com  sua  morte;  mas  nestes  não 
é  assim,  tomão  as  armas  contra  os  memlíios 
defuntos,  e  diante  de  vossos  olhos  passfio 
com  uma  lança  o  peito  frio.  Abanou-se  a 
Cruz  com  a  torça  do  encontro  ,  tremeo  o 
Corpo  Sagrado  ,  que  já  não  sentia  ;  mas  o 
que  elle  não  sentia  ,  padecerão  vossas  entra- 
nhas ,  Virgem  purissima.  OcHo  e  vingança 
fora  de  homens,  nKital-o,  e  deixal-o;  mo- 
stra o  braveza  de  bestas ,  que  depois  de 
espodaçar  o  corpo,  bebem  o  sangue.  E 
disto  da  signal  o  Peito  Sagrado,  despedindo 
da  ferida  um  rio  de  sangue  ,  como  repre- 
hendendo  sua  deshumauitlade ,  e  dizendo: 
Paia  a  minha  sede,  nã  >  tivestes,  gente 
avara  e  cruel  ,  uma  gota  de  agua  ,  eu  para 
lartar  a  vossa  ,  não  quero  que  íique  nestes 
membros,  nem  uma  só  gola  de  Sangue  ,  e 
ahi  vai  todo.  O'  lança  cruel,  ó  cruiza  sobre 
todas  as  cruezas!  Fm  comparação  delia  ,  do- 
ces (içarão  os  cravos  ,  brandos  os  espinhos , 
leve  o  poíjo  du  Cruz, 

Ce/n  Jy'c  Marias^ 


DA.  ViiiGiíM  Nossa  Senhora.         879 


S  A  B  B  /\  D  O     IX. 

Como  lhe  puzerão  o  Senhor  nos  braços  , 
clescendo'0  da  Cruz, 

VjUmprido  eslá ,  Virgem  Santíssima, 
quanto  da  morte  cie  vossol^ilholinlifio  escrito 
os  Profetas,  e  o  mesmo  Senhí)r  tinha  dito 
de  si.  Eclipsado  está  de  todo  aquelle  Sol  Di- 
vino ,  c  posto  cm  estado  ,  qne  nem  de  homem 
tem  fijj^iira.  Mas  novos  cuidados  combatem 
vossa  alma.  Temeis  ,  e  com  razão  ,  se  que- 
rerão os  vossos  inimigos,  que  fique  ainda  o 
Corpo  Sagrado  para  dar  segundiís  vistas  ao 
povo ,  e  ser  alvo  de  novos  opprobrios.  E  logo 
vos  faz  temer  e  tremer  um  tropel  de  gente, 
que  sentis  vir  demandando  o  monte.  Porém 
silo  Discípulos  nobres  e  secretos  de  vosso  Fi- 
lho ,  que  como  o  í)uviào  de  noite,  tamhem 
o  buscão  nas  trevas  de  seus  trabalhos:  clie- 
gão  a  vós,  pedcm-vos  licença  para  lhe  da- 
rem sepultura,  descem  o  Corpo  Sagrado, 
depositão-no  em  vossos  braços  :  nellcs  teve  o 
primeiro  descanco  depois  de  morto  ,  como 
no  primeiro  ,  que  começou  a  viver  no 
inundo.  O  que  aqui  sentistes.  Virgem  bem- 
dita,  os  rios  de  lagrimas  ,  que  derramastes, 
«  com  que  banhustei  o  rosto   e  peito  Sa- 


38o  COTTSIDERAÇÕES    DAS    L.VGRIMAS 

gradd,  e  lavastes  as  feridas  dos  pés  ,  e  mãos  : 
as  lastimas,  que  em  cada  uma  dissestes,  e  as 
razoes  ,  que  de  novo  pranto  achastes  em  cada 
uma  ,  só  os  Anjos  ,  que  foiTio  presentes  ,  as 
podem  refeiir,  e  a  eiíes  peço  j  que  mas  dèni 
a  sentir  com  talaífecto  ,  que  netihHma  b.ora 
da  vida  deixem  de  ser  presentes  nesta  alma. 
Grande  cousa  íbi,  Virgem  Santa,  poderdes 
sustentar  a  vida  á  vista  de  tal  espectáculo. 
Mas  não  morrestes,  ponjue  não  podia  mor- 
rer quem  vivendo  já  estava  morta  ,  e  (ji.eca 
o  Senh(ir  que  vivêsseis  para  consolarão  dos 
Disripulos ,  e  remtdi(i  <íii  sua  Igreja,  que 
foi ,  Senhora  ,  o  quv  vos  quiz  significar ,  dan- 
do-vos  a  João  por  íilho. 

Cem  A\>e  Mar  Lis. 


S  A  B  B  A  D  O     X. 

Como  o  acompanhou  á  Seoullura,  c  o  deixou 
ndlct 

ItXAs  é  tempo  ,  Senhora  ,  de  largardes  o 
Sa^'rado  deposito  para  se  entender  no  olílcio 
da  sepultura  ;  que  o  cntrula  a  noite,  e  con- 
vém fazer-se  antes  do  Sahbado.  Evos  Vir- 
gem Santa  ,  não  podeis  acabar  com  vosco 
desapegar-vos  dclle.  Antes  quasi  tlefunla  com 
O  defuQto,   pedis  ,   que  vus  juntem   a  si  na 


T>x  Virgem  Nossa  Senhora,         38 1 

sepultura  ,  qne  pois  para  vós  houve  Cruz, 
como  para  elie ,  ao  menos  haja  para  am- 
hos  a  mesma  terra,  Cul)ra  vossos  olhos  a 
que  ciihrir  os  seus,  e  íiqiiem  vossas  (iòres 
com  as  suas  scpullaclas.  No  meio  destas  histU 
mas  levão-vos  o  Filho,  e  a  pouei>  espaço  ve» 
des  o  Scpulchro  cerrado  de  um  grossa  lage. 
Aqui,  Virgem  piedosissima  ,  c.iío  sohre 
vossa  aluía  unia  noite  e.->cnrissima  de  triste- 
za ,  montes  de  anciã,  e  tormento  sobre  o 
coração,  e  ccrrou-se  para  vós  o  Ceo ,  e  a 
terra ,  o  Ceo  com  a  falta  do  Filho  ,  que  ainda 
assim  morto  era  género  de  consolação  sua 
presença  :  a  terra  com  a  luge ,  que  o  cobre. 
Bem  pagais,  Senhora  ,  agora  e  com  cresci- 
das vantagens  as  dores  ,'que  no  parlo  não  ti- 
vestes, liem  pagais  os  gozos  de  vos  ou\  ir  cha- 
mar bcmdila  entre  as  mulheres.  Por  um  filho, 
que  tinha  por  espcdaçado  de  feras,  não  ad- 
mitia consolação  um  Jacob,  tendo  vivos 
outros  muitos:  que  fareis  Virgem  ,  por  um 
só,  que  verdadeiras  feras  vos  tirarão?  Desfa- 
zia-sc  cm  pranto  o  Santo  Rei  David  por  uni 
filho  muito  culpado;  que  será  razão,  que  fa- 
çais vós  por  ura  innocentissimo,  cquetonhe- 
ceis  por  verdadeiro  Deos?  Com  lagrimas  ir- 
remediáveis chorava  uma  Mãi  saudosa  a 
ausência  do  seu  único  Tobias;  quais  hão  de 
«er  as  voásas  n«i  moitC}   não  só  ausência  d<» 


3  82        CONSIDER.  DÁS  LaGR.   DE  N.  Se?JHOP\ 

Tosso  Unigénito  ,  iinica  consolação,  refugio 
e  renieclio  de  vossa  vifla  ,  que  á  forra  de  ferro 
e  afrontas  vos  matarão  seus  inimiíjros?  Vir- 
geiu  sagnida,  se  vossas  magoas  crescem  á 
medida  da  razão,  qtic  tendes,  nem  as  ílòies 
podem  ter  fim  ,  nem  todas  as  aguas  do  mar 
igualar  vossas  lagrimas.  Maiores  sao  Tossas 
dores,  que  todas  as  grandes,  que  houve  no 
inundo;  porque  as  padece  a  mais  pura  e  mais 
santa  crealura  de  quantas  puras  creaturas 
nelle nascerão,  que  sois  vós,  e  vós  as  padeceis 
pelo  mellior  Filíio  ,  que  quantos  nascerão  das 
mulheres,  e  tal,  que  só  eile  vos  pôde  dar  re- 
médio. 

Cem  Ave  Marias, 

Dia  de.  Páscoa  se  dirá  uma  Missa  da  Re- 
surrei  cão. 


VARIAS  COMPOSIÇÕES 

DO 

Padre  Fr.  LUIZ  DE  SOUSA, 

Assim  em  prosn  ,  como  cm  Terso ,  que  uncIaTao  dis- 
persas por  diversos  livros  ,  e  aqui  se  ajuiitao  para 
satisfazer  a  curiosidade  ,  e  gosto  dos  Leitores,  qm 
facilmeute  aao  as  poderiao  alcançar. 


385 


Ko  pilncipío  cias  Obras  Poéticas  de  Jaime  Falcam , 
impressas  em  Madrid  no  aiino  de  1600  por  diligen- 
cia de  Marvel  de  Sousa  Coutinho  vem  esta  Dedicató- 
ria ,  e  Piologo. 

PHILIP  PO  TERTIO,  Hispaniarvm,  níqus 
Indiarurn  Regi  Catholico  j  clemcntissiiiio  y 
augustissimo  ,  invictissimo  salutum  ,  et  ron- 
tineniem  felicitatis  cursum, 

t^>iUm  Reges  in  terris  pracpotenlis  Del  pro- 
videntiam  exercere,  \icem  agere,  et  qiiasi 
quamdam  personam  sustinere ,  ipsae  sarrae 
Literae  plurihus  locis  attestentur,  non  iin- 
merito  ,  Regum  potentissime  ,  opem  tuam 
in  beneíicium  aniici  íato  funcú  iniploraluiii 
accedo.  Ecce  oblata  jaceiít  ad  pedes  luos  ossa 
árida  Falcor.is  Yaleiítinl ;  sciipta,  inquani, 
Falconis  Poètae  quondam  disertissimi  apiid 
iValentinos,  in  volunieii  ,  qiiasi  in  corpus 
integrum  compacta  :  quibus,  iit  lui  favoíi.n 
aíflatu  vitain  inspires,  efflagitamus,  non 
brevem,  non  coniinuneni,  non  nd  irueritiim 
praecipitibus  ruentem  spatiis,  sed  diuUirnani, 
et  inimortalem,  atque  in  perpetnum  tliiratu- 
rani;  id  est ,  aeternani ,  nullisque  íinibus 
circnniscribendam  ianiain.  Qua  ut  nihil  lio- 
Xiiini  liberali  in  -rita  optabilius ,  slc  post  fata 
nihil  gloriosius.  Híinc  lu  eumulatissiuie  rrae- 
i3 


^85  Varias  composições 

> 

stabis,  si  ad  scripía,  qnae  offerimiis,  íncli- 
nata  tantisper  Regia  majcstate,  óculos  demit- 
tere  non  dedignaberis.  íta  enim  fiet ,  ut  sta- 
tnam  ,  qnani  nos  amico  pro  viribiis,  papyra- 
ceam  poniinus  ,  tu  in  oihls  theatro  inarnio- 
ream ,  tu  anream  reddas.  Si  enim  veteres 
Poètae  solo  Musarum  favore,  quasi  aura  affla- 
ti  nominis  immortalitatem  sibi  ausi  sunt  au- 
gurari,  quid  nos  Falconi  cum  veteribusacquo 
jure  de  poèti^A  l.u.ide  certantiaudehimuspol- 
liceri,  si  illuni  Mi:sarum  jam  gloria  evectum  , 
llcgius  tuus  favor  benlgnius  complectatur  ? 
Accipe  igltur,  Rex  augustissimc,  Falconis 
poèmata ,  in  quae  afflalu  tiio  vÍTentem  ani- 
mam introducas,  utRenipublicam  lilerariam 
augeas,  tuosque  popnlos  in  borsaruni  artium 
stndia  incendas:  rertabunt  hae  olium  non 
ultimo  loco  in  regiae  tuae  \irtutcs  Inudem, 
Honora  Falconem  ,  quo  Valcntiam  ,  nrbem 
luam  ,  cjusdem  patrlam  ,  nuiltisque  tibi  no- 
núnibus  devinctam  inimoitali   beneficio  de- 

nuò  astrin:T.is.   Honora  cum  Falcone  omnes 

.... 

illi  Musarum  studiis  conjunctos,  ut  maiores 

tuos,  duosque  ipsos  Alfonsos,  quanvis  $a- 
pientum  cognomen  litcrarum  gloria  ade- 
ptos ,  nou  S()lum  imiteris  ,  'Tcriini ,  uti  spe- 
rain;js,  loií^issiniò  antecellas.  Vale.  Datum 
idibus  Martiis  ,  Mantuae  Carpentanorum. 
Èni:nafiu€l  Sousa  Couttigniu, 


DO  P.  Fr.  Luiz  de  Sousa.         887 


,.«,-%<»<'V^-v«^»-»^v/%  •«^fc* -w»  »^-»  ^^•V  ♦^v»^^»/»  * -vwvw^  ».'V»  *■«.■»  *^^ 

STUDIOSIS   LECTORIBUS 
S. 

Xllc  locus  est ,  ul)i  qui  suos  cdnntlibros, 
pauca  de  inslituto  ,  Yel  judicio* suo  pracfari 
solent.  Ego  vero,  studiosi  Lectores,  cui  alie- 
nos  in  lucem  proferrc  roíitigit ,  jnrc  meo 
agcre  \idear,  si  non  pauca  soliini  | ditam , 
sed  libram  ctiam  inenm  alieno  libro "praelc- 
gendum  oíferani.  Multa  mihi  dicenda  in- 
cumbunt ,  multorum  accusaliciics  pracccu- 
pandae.  Quis  porro  multa  pau  eis  complccia- 
tur  ?  Plerosque  niihi  sic  occvirrentes  video. 
Quid  Liisiliuio  cum  Vaicutino?  Quld  cxiili 
cum  sepulto  ?  rraeterca.  (jtiid  tu  in  (  j  i  je 
alieno  laudcm  qiiaeris  ?  Quid  iudigct  am 
laudem  à  Valenlinis  extorques?  íusiiper  qui 
lectilare  incipiunt.  Quid  nobis  iion  \'ii^;ilii 
cenlonesobtrudis  P  Quid  Aiisl(jteleni  poèiam 
reddis  ?  Ad  cxlicmuuí.  Quid  in  modict)  II- 
bello  plures  libros  distnibis  ,  cl  ronr.eclis? 
Haec  saue  est  gralia  ,  qua  (»u.ni!im  feje  scri- 
ptorum  labor  lependitur:  uec  ire  latet  an- 
tiquam esse  Tulgi  consuctudincnj  ,  vet<'rem- 
que  invectivam  ,  iit  plane  crrdi.miís,  cmnes  , 
qui   se   ad  studia    bouarum   artiuni   tcníc- 


388  Varias  coMPOsirõrs 

runt,  etpubiicae  utiliiati  serviurit,  nulla  spç 
hiimani  praemii  adiictos ,  scd  divino  in- 
stinctu  agitatos  id  facere.  Unde  non  jam 
proiogium  ,  seá  apologiain  iiiihi  in  liiiiine 
constituendani  video.  Omnes  ercfo  mortalcs 
in  primis  persuasos  velini,  nuUuni  me  inanis 
gloriae  siimulum  huic  oneri  siiscipieiulo 
adegisse.  Officium  estvet^iris,  et  bene  íun- 
datae  amicitlae.  Si  qtii  siniili  vinculo  ani- 
nium  aliquanJo  ol^strinxisti ,  facile  apud  ex- 
pertos íidem  inveriiam.  Sed  ut  singula  dilu- 
cidius  explanentur  ,  pauca  mihi  de  Falcone 
mostro  praemonenda  erunt.  Jacobus  Falco 
Yalentiae  Exletanorum  (urbs  cst  in  Hispânia 
tani  anioenitate  soli ,  quam  ingeniorum 
ubertate  notissiina}  natiis  est  nobili  quidem, 
etaníiqao  loco.  Prima  aetale  humanis  literis 
incubuit  :  in  iis  eani  de  se  expectationem 
dedit  tin:i  ingcnii  acumine ,  tum  judicii 
profunditate  ,  ut  ma^^lstri  Poetam  natiim 
asserercnt.  Adhac  syllabarum  natiiras  vix 
perceperat  puer  ,  jam  justa  mensura  cirmirja 
scandere  ,  cLiudií.untia  nosse,  et  restituere  , 
totum  Virj:ilium  mcmoriter  recitare.  Cnm 
tale  à  naluia  in^jenium  accepisset ,  primis 
bumanitatis  rudimeniis  vix  exc(/hiit.  Vitium 
est  liispaniae  nostiae  pecidiare.  Coelurn 
babem us  ingeni  )ram  mlnimè  avarum  ,  lio- 
miaes  discipiijiarum  avaxissimos.  Unde  q^uos 


DO  P.  Fr.  Luiz  de  Sowsa.         389 

cUrissimos  habuimus  viros,  ii  magna  ex 
parte  sunt,  qui  anud  exteras  nationcs  inge- 
niiim  exercuere  li  bei  i  à  parcntum  seu  in- 
cúria y  seu  avaritià.  Ua  Falco  pkii>  nalurae  , 
quam  arti  etparenlibusclebitoradolescentlam 
sane  importuno  tempere  ad  otiuni  convei- 
tit.  Hinc  lusoriis  artibus,  aleae,  et  taloruni, 
animuni  adjecit,  phis  quam  decet ,  litcia- 
rum  amatorem.  Lrium  illi  lioc  \ilium  in 
illà  aetate  objicilur  :  in  quod  paulo  post  sa- 
lyris  duabus  ita  invectus  est ,  ut  possis  con- 
jicerc  satis  ipsum  malè  impensae  opcrae  poe- 
nituiíise.  Sed  cum  cgregiac  indobs  Cbset  , 
suople  ingenio,  tanquam  pondus  ad  cen- 
trum,  ad  studia  literarum  deferebatur.  A' 
]\hisarum  aiilis  absens  donii  multa  sibi  et 
ditficiba  discenda  imponcbat.  Suo  duclu, 
itidHusque  auspiciis  totam  AristoteHs  pbi- 
losopbiam ,  bbrosque  Plalonis  percurrit, 
"Maihematicas  artes,  Geomeiiiam  ,  et  Astro- 
bj^lam  ila  penetravil ,  ut  in  utiAque  iii:>iíj;uio 
evascrit.  At  ne  animum  laboriosac  scieniiae 
sludio  scmper  coiilundeict,  vcl  coaelaneis  , 
€t  civibns  suis  minus  viderclur  humanus, 
lusui  quideni  inter  amicos  sacrossivií  boris 
indulgebat,  scd  tali  Insui ,  qui  inj^eniuni 
ejus  profunde,  et  non  sinevirlule  excrreret, 
Audierat  Saccrdolem  vulgo  Aldíalem  Saliae 
noniiiiatum    ingeniem  uou)ÍLÍ5  íaniam   lu- 


3go  Varias  composições 

trmicalorum  ludo  Gonseciitum,  quòd  omneí 
aetatis  suae  homines  non  suluni  artis   calli- 
ditate  vinceret  ,  setl   quòd   mcinoritcr,    ah- 
sensque  ab  alvéolo  cuiii    praesentibus  lude- 
let   (dictu  (juidein    mirabile).    Floret   is  in 
Hispânia   ludus  praecipue  inter  nobiles  ,  et 
Lene  moratos  viros.  Conteniio    est   judicio- 
rum  ,  exaaien  itigenii  :  minoris  íit  in  eo  lu« 
cruni ,   q;uiin  victoria  :  ipsa    nolius   vlrtoria 
preiium  est ,  e  praemiiun  \ictorlae.  Miruni 
«arrabo   praestaníi?sin)i   inj^enii  excmplum. 
Cam    antea    ne  latruiiculos    quidem    agere 
rosset,  parvo   teir.poris  intervallo  non  tan- 
tum   ciim  dexteritate  ludere,   viotoriainque 
de   spííctatisslniis   lusoribus    repoi-lare,    sed 
€liaii)    meiDoriler   ludere,    et   cum  Abbate 
ipso  do  latidc  certare.  Certo  seio  niultis  boc 
lutaruin  incredibile:   sed    cum  inter  vivos 
testes    loquar,    niiralnlia   narrare  non  eru- 
besco  :    incredulosque  onínos  oratos  velim, 
fidem  mibi  non   prius   adhibeant,    scrupu- 
lunive  animo  deponaiit,   qiiam  testes   ipsos 
ncuUtos,   qui  plures  adbuc  snpcrsunt ,  per- 
contentur.    Is   erat  Falco,    qui  sibi  sem  per 
difriciljima  arrogabat;  ut  ipse  eleganter  dis- 
berit  lib.  2.  Ode  24.  Unde  arcusatus  venus- 
tatis,   et    facllitatis  ,  qua   in  saíyra  utebalur 
(quasl  nomen  Poetae  amitterct,  qui  a  Per- 
siano illo  tétrico,  et  obscuro  scribendi  generc 


DO  P.  Ff.  Luiz  de  Sousa.         dgt 

ahliorreretj   satyrara     integram   data   opera 
coniposuit,  ubi  sententiarn   Horutianae    il- 
lius  ,  quae  incipit  :  Quijii  Naecenas  etc.  ad 
ungnem   expriínens,  singulos  versus  à   mo- 
Dosyllabis  orsiis,  moiiosyllabis    clausit.  Per- 
sinm  etiam  eadem  de  causa  imitatus  est  sa- 
tyra  2.  O  studía ,   o  mores  etc.  Sed  qui  cla- 
rissimuni     ingeniuni    à    natura    acceperat, 
nullo    modo    adduci   poterat,    ut    obscurè 
aninii  sensa  depromeret.  Legerat  apud  Gel- 
liuni  ,  ut  ipse  mihi  saepius  affirraavit,  dilíi- 
ciilimum  exisiiniatuni  tuisse  prisca  illaaetate 
carminis  Jnmbici  genus,    quorl  Jambis  pedi- 
bus   merè    constaret.   Hinc   ansam    arripuit 
edendi    epigranimata  ,  odesque   nou  pancas 
meris  Jambis  summo  cuni  labore  ,   sed    non 
minore  cum   laudo.  Omitto  retroo:radorum 
carmmum  varia  gencra  ,  quae  primo  patent 
libro :  qui  quidem  labor,  quanvis  sterilis ,  et 
tanto  viro   indignus  videatur,   sublllitateni 
tamen   ingenii    non   contemnendam    argiut, 
Sed  maximè  Falcon«m  aíl  opinionem   iiidu- 
striae,  et  sagariíalis  <ominendaTÍt  novus  oc» 
cultè  scribendi  modus  {cifram    Hispani    vo- 
cant)  ab  eo    inventus.  (^inn  aiidlvissot  llte- 
ras   Regias,  (juac   atl   exerrinim    miitrban- 
tur,  saepius  interceptas  ronsilia  nostra    lios- 
tibus  relexisbc ,   quarnvis  obscuro  satis  scri- 
bendi geuere  cx-iratas  j   noYuiu  exco^itavit 


392  Varias  composições 

lAni    ínextrlca])iU   amba^e    perplexiim  ,    ut 
mérito  labyrinthus  (quod  illi  nouien  Auctor 
rleJit)  appellari    possit.   íd  nos   in  publicam 
utiiitatern  Geometricis  ejus  lucubrationibus 
subnectimus.  Cum   his  artibus   in  urbe  sna 
omnibus  cbarus  esset  ,  incredibile  est,  quaiu 
intrinseca  famiiiaritate,  qiiain  solidii  amicitià 
animum  sapientissimi  viii  Petri  Borgiae  sibi 
ílevinxerit.  Erat  is  'Slontesianae  miíiiiae  in 
eo    regno    clarissimae   Magister,    í'i*aterque 
Francisci  ilhislrissiniiGandiae  Reguli :  utque 
erat  solertissimo  ingenio  praeditus,  nec  nii- 
nus  insigni  iiberaUtate    ilhistrls,    cum  Fal- 
conis  fidem,  industriam,  integritatem  animi 
uiaximis  in  rebus  expertas  esset,  eum  sum- 
ino  cum  bouore  in  collesjium  ^Montesianuni 
cooptavit,  et  vertente  tempore  honoratissimo 
stipendio   cumulavit    {Commendam   Hispani 
dinint).  Erat  haec in  oppido  Perpucicnte  sita. 
Adllegem  semel,  atqueiteru»  pergensdegra- 
fissiniis  rebus  disceplaturus  eum  secum  du- 
xit ,  omniumquc  consiliorum  suorum  partici- 
pem ferit.  Oranum  etiam  in  Africam  trajecit, 
quo  à  Rege  missus  est  munitissimi  iUius  pro- 
pugnacuU  iniperator  destinatus.  In  omnibus 
ita  bominis  prudentiam,  constantiam,  gravi- 
tatem  admirabatur,   nt  nibil  in  otio,  nibil  in 
regotio  ,  Falcone  inconsulto  ,  ageret.    Intr- 
rioi  Falco  nuntjuam  Ubros  depoQ«re,  prae^ 


DO  P.  Fr.  Luiz  de  Sousa;         %3 

sertim  poetas;  scirper  allqultl  ir.edltars: 
nunc  epigramnia,  mmc  hyinrjum  p;ii)gere  : 
partem  etiam  uoclibus  íurari,  qnani  in  tlieíu 
transcrilíeret  ,  iiterls/po  iiupendeiei.  Per 
itl  tempiis  libros  Georj^icoriini  VirgUii  iuii- 
taturijs  conipendiaiiaiu  •  luhicoruiii  Ailstu- 
telis  descriptioncin  aggressiis  est  (jiicuiidissi- 
iiium  opus,  si,  ut  prt)po5iiit,  absolverei, 
taiiloque  Georgicis  utiliiis,  quanto  animo- 
rum  ciihus  agrirulturae  pratstat).  IVaeci- 
puus  ejus  labor  fuit  ojnis  4»piruni  ttxere, 
qiio  Hispanoriim  fada  celeliaicl.  íratpius 
(licentem  audivi  solos  portaruin  nomint*  di- 
gnos esse  ,  qui  opus  epicnm  componero  au- 
derent :  idque  in  expositione  Anis  poétirae 
plane  affirmat.  Miium  est  qnam  intenta 
opera  huic  se  nieditationi  addixit.  Tlatonis  , 
Arislotelis,  Iloratii  libros  de  ai  le  poética  sae- 
pius  revolvit,  et  ('iuiclcca\  it :  Graecjs  li- 
teras  tentavit^  ut  sensa  Homeri  ,  quem  La- 
tine legerat  ,  [)enitus  invcsligaret.  Cum  mul- 
ta jani  animo  concepisset ,  instar  pictoris 
lineas  primas  tiahcniis  íundamenla  jacere 
inccpir,  conslruílionem  operis  formare, 
])arles  nunc  nKídIas  ,  nunc  posleritues  ila 
pertraclare,  ut  faeile  tiat  kgenlibus  conji- 
cere  ex  liaginentis  ,  quae  inter  libros  annu- 
lueramus  Falconem  cum  primis  antiquilalis 
viris  aemulalionem  assumpsissè,  Ab  ulioque 


394  Yahias  composições 

opere  fellciter  absolvendo  varias  homínem 
occupationes  retardarunt  ,  qiiibus  à  IMaece- 
nate  Borgia  fere  semper  implicabatur,  cum 
sua  niinquam  commoda  amicitiae'  officiis 
anteponeret.  Quod  n^agis  doleo  ,  non  pauca 
titriusíjue  operis  periere  membra ,  quae 
sane  studiosos  delccturent ,  aiictori  gloriam 
])arerent.  Nuniijuam  niiniis  appetentem  glo- 
rlae  poetam  Apolliiiis  scbolae  protulerunt, 
Ubi  noviiin  paiturn  mens  illa  conceperat  , 
protlniis  iníquas  pater  non  umbilicis  iiiauia- 
tis,  non  miniu  disllncíls,  sed  vilibns  cliarlis, 
Tel  epistolae  dorso  cnnimendabat  ,  vel  in 
calce  libri  cujusvis  exponebat.  L'nde  ilbiia 
anilei  ei<;dein  versibus  plerunqiie  compelia - 
rnnt,  quibiis  Syi)illam  Aeneas  apud  Virgi- 
lium:  Foliis  tantiini  ne  carmina  manda  ^  nc 
iiirhata  volcnt  vapidis  hidibria  iientis.  Cer- 
tum  est,  iiisi  per  aniicos  sietlsset ,  vix  po- 
luisse  confia  ri  parvulum  hoc  voliinien  :  quod 
lairicn  in  duplum  excrescerct  ,  si  omnia  ejus 
v«.rripta  exlarent :  vel  ipse  rebus  suiseo  amore 
indulgeret,  quo  nmlti  indocti  Narcissi  suas 
admirantur.  lilgo  quidem  plura  ab  aniicis  ao* 
cepi;  non  pauca  meo  labore  ,  et  industria  , 
veluti  aucnpio  collegi  ,  quae  vel  in  discrimi- 
ne pereundi,  vel  mutandi  patris  versabar:- 
tur.  Po^qiKun  Dorgia  í\  pul)iic:s  inuneribiis 
obcundis  ad  olium,  et  cjuistem  6e  «©nYtriil 


DO  P.  Fii.  Lriz  DE  SoTJsi.         3t|5 

jara  síínescente  actate  :  ipse  eliam  ,  qiii  pari 
annorum  passu  31aecenateni  suum  sequtba- 
lur,  i/l  uiheni  palriam  se  recepit.  Ibi  cuni 
amicis  conversar!  ,  animiim  omnihus  piutatis 
«fíiciis  excolere,  à  Ivlnsis  tanien  nuuqnani 
lecedeie.  Eo  nos  prorsus  tenipore  homincm 
iiovirrms.  Valeijtiani  veni  anv.n  á  ['arlii  Vir- 
^•inis  septuagefsmio  soptinio  supra  niillcssi- 
r.iuni,  et  quingentessimum.  Hanc  in!liií:e(]en\ 
elegxTam  agitandae  rcilei:iplionis  uostrae, 
ctfiatris:  qui  in  Bíelitensi  trirenii  r.dversa 
tenipestate  pene  CTcrsa  à  piraiis  ad  Sardi- 
niam  capti ,  Algerliunqiie  in  Aírlcain  Irajecti 
ciim  Praetore  har])aro  tonveneranins,  iiC 
ego  in  palriam  demitterer,  ciuii  statuto  pre- 
tio  libertatis  utriu&que  rediturus.  Cuni  iir- 
bcm  adiissem  ,  rihil  mibi  potius  ftjit,  quam 
iit  Falronem  convenirem,  ciijus  lama  oiiíiies 
regni  illiiis  sinus  pcragrabat.  C^onveni,  aiuli- 
^i,  aiiiavi.  Mir?or  enini  crat  fama  bcniino 
3;iso.  Duobus  annls  iit  paticni  cobii ,  ut  nia- 
gistruni  veneratus  siini.  Uiraque  ilb;  olíicia 
«tpatris,  et  magislri  intbjlgfntissime  prae- 
stilit.  liitcr  alia  Artem  Poclicam  !loralii  nnbi 
sedulo  explaraAií,  eadtniqiif  ij)sa  scholia 
dictavlt,  quae  bis  libris  snl)jimxiimis.  Ad 
stutlia  literarum  pene  jam  I^lusaruin  ol  li- 
lum  cxcitavli,  languentem  atl  Poéiirii  iiii- 
pulit ,  et  quasi  futuri  pjaesagiis  onínibus  me 


3yG 


TarTAS    COMPOSinÕES 


aniicitiae  vinciilis  obstrlnxit.  Fatio'al)atnr 
tunc  gravíssima  Geometiiae  parte.  Cum  non 
Sfjbim  res  magnas  snscipere,  scd  veliementer 
árduas  ,  plenasqiie  laljorum  à  mente  inde- 
fessa  cogerelur,  imposuerat  sibi  circuli  Qua- 
^raturam  inrenire.  In  qiiod  studiíini  tanta 
unimi  conteiilione  incubnit,  iit  saluti  ejiis 
nb  amicisomnibus  timeretur. Noites  integras 
insomnes  agere,  saepius  coenae  ,  saepius  sui 
í'sse  immemorem  ,  Tigllantem,  et  dornilen- 
tem  inter  circinos,  et  bneas  versai  i,  ajiqnandò 
non  firmas  mentis  videri.  Fama  cst  operis 
rxiagniruíbne  deterritiim  voluisse  se  tam 
í^ravi  oncii  subcbjcere  ,  in  eamqiie  mentem 
anxibnm  Uei ,  bominumque  religione  insi- 
gnium  invocasse:  contracto  tamen  babitii 
assiietudine  meditandi  niiUo  modo  poluísse 
ruram  exiicre.  Scd  de  bis  laiius  agemus  in 
ipsis  Geomcíriae  commentjriis  ,  quac  prope- 
diem  edituri  M'.nins,  nbi  Qiiaib.itnras  cir- 
culi  phiribus  modis  fclicitcr  tentatns  exbibe- 
bimus.  íd  tantum  in  a  miei  commendatione 
addam  ,  quod  referi  ArnobUis  Union  Delga 
in  eo  opere,  cui  iiomen  dedit  Lignum  vitae 
tom.  2.  cap.  4^-  V^Z-  ^'  ^^^^^^  Jacobus 
Falco  HispaniJS  Valentinns,  ordinis  Monte- 
sia^e  miles ,  admirabilis  ingenii  vir.  Quod 
enim  ante  ignotum,  suo  nobis  manifestavit 
in^jenio:   paucU  lácmpe  abbi»G  annii   Qua* 


DO  P.  Fi:'.  Luiz  de  Sorsi.         ÔCiy 

rlraturam  circiili  noviter  aclinvenil  ,  et  Je  ea 
insignem  tractatum  scrij^sit,  qiii  exciíssiis 
rst  AnlticTpiae  apwd  Joannem  Bellerum  ari:o 
1591.  Haec  ilie.  Ciim  Falco  bis  turis  iam 
£[raviter  iirgcretur,  nullo  modo  ad  huma- 
iiiora  stiuiia  revoran  potuit :  rnni  jani  abun- 
darei otio  ,  vel  ad  iiicohata  opera  perfrcier- 
da  ,  vel  inipeifecta  s;ilieni  expolierda.  Ideo 
multa  bic  iniperíeda  ,  imilía  inoriiala  da- 
mus,  aliqua  niimis  correcta  :  cjuce  vos  ! ori 
consulturos  speramus,  praesertim  cumhitel- 
lexeritls  qwo  casii  ,  qna  fortuna  bacc  peni» 
jam  extlncta  nionuinenta  è  tenebris  in  luccni 
venerint.  Animam  egerat  Falco  exlra  pa- 
triam.  Dispersa  erant  ejus  «cripta  inter  mul- 
torum  manus.  Plura  Valentiae  liabebal  Fran- 
ciscus  Beneitus  ,vir  nolllitate,  cl  religione 
«:larus:  illa  ,  nl  crat  Falconis  amicissitnus  , 
menicfiae  tradcre  snnm. opere  oplabal.  Ad- 
versabanlur  aliqui  leiibns  quidem  de  causis, 
partim  viri  graves,  paitim  gian  ni:  ijri  : 
íiand  seio  nu  gloiiae  5uae,  cl  jntriac,  an 
Falconis  invidenliores.  Ita  inj^raia  Pátria 
scnpta  VI ta  (IiL;njssima  ciim  auctore  suo  se- 
pelicbat:  et  bonorc  ÍVaudabat  non  eos  soluni, 
qui  ii)  bor  libro  laudanlur  ,  sed  qiii  in  .«al}- 
ris  accusantur.  Scilè  nu(;  juditio  Ilelrusc  ;'s 
qnidani  ,    pluris,   inqnit,    laccuni   a    Dnn;c 


3gS  Varias  cojiposiçoes 

signari ,  quam  ipsius  Hetruriae  RcguVi  opí- 
bus,  copiis,  dicruitate  frui.  Pilagnifica  Terò 
vox  ,  et  lioniine  Romano  digna.  Si  enim 
iinpius  jlle  Dianae  Ephesinae  hostis  ,  vel  per 
incendia  nominis  faniam  quaerere  non  du- 
bitavit  ,  quanto  gloriasiàs  itnmortalitateni 
sihi  vindicabunt  illi  ,  quorum  nomine  ab 
homine  sapientissimo  ieviter  joco  praesliicU 
aoternum  victnris  carminibus  posteritati 
coniinendantur.  Novus  casus  litem  diieniit. 
Almadae  in  Lusitânia  agebam ,  qui  locus 
Ulisiponi  imniinet  ,  brevi  freto  interíluente 
Tago  ,  salu})er  coelo,  fontibus  exuberaas , 
IMusaruni  otiis  conimodissimus.  Vita  erat 
curis  libera,  et  pene  rusticana,  practerquam 
qnòd  praefectuíam  niihi  imposuerat  Rex  se- 
ptingentorum  peditum,  equlíuni  ferme  ccn- 
tunj  ,  qui  nobis  atl  signa,  si  quando  res  pos- 
tula!)at,  praesto  errint.  Ad  íncrunt  (hiber- 
natores  Regni  ,  cariam  Almadain  transíeren- 
tes.  Aedes  oppidi  sibi  ia  hospirium  dislri- 
buunt:  cum  piares,  nec  incommodae  super- 
esseiit,  meãs  etiain  sibi  postulant:  quae  pos- 
tulalio  iniqui  plena  impcrii  contra  niorein 
p.itrium,  et  morum  instituía,  Regumque 
,h?  jes  inilissimas  satis  iiidicabat,  nova  illos 
\  eteris  in  me  ofíensae  recorda tione  ,  jam  diii 
cj:npressuni  oJii  virus  opp:>rtunè  evomere  , 
nequaquani  in  raemoriaiu  rjvocintes ,  dede- 


DO  P.  Fr,  Luiz  de  Sousa.         Sci^ 

•ere  príncipes  vires,  quales  ii  esseut,  in 
privíttam  "vlndictani  potenliá  pr.blici  magi- 
stratívs  a]>uti.  (>uni  vf  lienieiiter  ariimo  ccni- 
motus  essein,  nova,  et  inauclila  inetauior- 
phoftis  liidignantes  parleies  injuriae  siibiliixi; 
in  íunuin  ,  et  cineres  abiere.  Ad  Rcgcn^i 
rleinde  Mantuani  Carpentanoium  feslir.o, 
Ivegem  motili^eiitia  in  noítros  ,  aequitate  in 
onmcs  Lusilanoruni  iieijum  veie  succcíío- 
rcni.  Ita  qiiincjueviraius  ilie  in\idiani  sibi 
non  levem  conílavit ,  niihi  inopinatuni  exi- 
linnj  peperit,  Falconi  gloriam  altulit.  Lbi 
Manluain  vcni ,  nibil  porius  duxl  ,  quani  ut 
^ndci  memoriam  consccrarcm.  Sciipta  ex. 
omni  parte  colle;;i ,  disposui  ,  in  libM)S  di- 
slribni  ,  lahoren,  ingenlem  suscepi.  lia  ernnt 
omnia  dispersa  ,  et  involula  ,  et  sibi  diss^iden- 
lia.  IMiilium  milii  addit  animi  Comes  Ticalii, 
Joannes  Borgia,  IMariae  Impcraliicis  donius 
Pracrecliis,  Ma^;istri  ijc|)<)S  ex  íralre,  vir 
gravissinius  ,  ci.jiis  exslaiit  moni. menta  do- 
citriíiae,  et  eruditionis  plena.  Wuluim  acuit 
Venerabilis  Thouias  Malaeensis  Kpiscopiis, 
Magistri  fraler.  ISon  parum  altnlit  adju- 
nienli  Keneitus,  qui  a  Kaicone  liuercs  ex 
teslanienlo  nuncupaliis ,  serljJa  tmirtia,  cnae 
potuit ,  tam  l\)elj<.a  ,  c^ian»  Cccmclrica  co- 
geie  ,  dib'genterque  ad  me  n  itlire  (llla^it. 
Vixil  F;ilcc  :irrcs  duo?,  tt  tepij-f^ÍMP.  (. Liit 


4ao  VàRlAS    COMPOSlÇÓEf 

Manluae  Carpentanorum  :  in  templnm  So 
cietatis  JESU  tumulo  reccptus  ,  anno  i594. 
Aá  extremam  usque  spiíittim  ,  cum  per  oc- 
cupationes  llcebat,  studiis  vacavil.  Caelil>em 
\itam  perpetua  egit.  Amicos  oíficiosissime 
coluit.  Qua  etiam  de  causa  extra  Patriam 
iliem  clausit :  cum  septuagenarius  non  ciu- 
])itaret  Maecenatis  sui  vitâ  jam  defuncti 
causa  curiam  adire,  Regem  convenire,  et 
de  amici  rebus  constantissimé  agere.  Con- 
stans  est  fama,  Regem  sapientissimum  ho- 
iriinis  constahtiam  admiratum  Régio  oráculo 
colaudasse :  nullum  se  in  tota  Republica 
ineliorem  Falcone  hominem  habere.  De  im- 
mortiilitate  animorum,  de  soUuione  naturae 
Libicunque  occurrebat,  avidè ,  et  jucundè 
disputabat  acerrimus  immortalitatis  demon- 
.stvator:  quippe  cui  omnia  bona  in  morte 
sila  esse  jndicanti  proprium  pondus  animi 
solertiam  acuebat,  Cum  ad  me  scriberet, 
liaec  ferme  fuere  verba  :  de  communibus 
amicis,  ut  scribam  ,  oras:  Gombaum  sclto 
f;Uis  cuncessisse;  paucis  posl  diebus  Cbristo- 
.phoriim.  Glemens  in  IMaioricam  missas  est , 
iu  Sar<lÍMÍain  Moncada,  ambo  magistratum 
acturi  :  verum  ,  si  mihi  credis  ,  melius  cum 
niortuls  actum  esse  opinor.  Ilaec  ille.  Plures 
ia  Fidcone  viruites  e\<'e!laore,  comitas  ,  li- 
l)(3raiiui  ,  contiueatiu,   l.iborum  loltM-autia, 


DO  P.  Fr.   Litiz  de  Sousa.         4o t 

contemptio  forturiae.  Ea  fuit  modéstia,  ut 
cum  ad  unum  iinlversa  ordinis  Montesiani 
administratio  deíerretur,  Praeíectus  a  Rege 
ipso  loco  ,  ac  nomine  l\egio  nuncupatus  , 
tanto  se  honore  diíjnum  constanter  ne;íaret : 
nec  prius  proviíiciam  susciperet,  quani  vi 
Regii  imperii  con:pnlsus  est.  Ne  plura  di- 
cam  ,  ita  piam  se  in  onínibus  ,  ita  philo- 
sophuni  gessit ,  ut  Christianum  Platonem 
posses  dicere.  Talis  vol)i%  hominis,  stndiosi 
Lectores  ,  lucubrationes  offero  :  vaticinir.ni- 
que  non  Delphicum  ,  sed  veriim  praecino, 
nemiiii  qnidem  ,  qui  virtutis  via  insistat  ,  et 
memoria  digna  connetur,  defuturum  ,  qui 
laudes  ejus  celebiet ,  nomenque  posteris 
muadet. 


yahtc^ 


i 


4ol 


Ko  principio  do  primeiro  tomo  da  Monarchia  Lusj^ 
tí\iia ,  \eai   a  obra  que  se  segue, 

D.  EMMANVKLIS  SOSAE  COTTIGNI 

Cármen   Heroicwn  ia  laudem  Fratris  Be*'- 
nardi  de  Brito. 

Uíscute  luctificá  squalentein  fronte  capiU 

liim  , 
O  qui  turbato  jam  pridem  volveris  amne  , 
Necte  sacras  lauios,  et  priscuin  crinibus  aii- 

rum  j 
Amissosque  ânimos  iterum,  Tage  ,  Dubibus 

aequa. 
Magna,   qiiod  optanti   nostrCira    permittere 

nemo 
Auderet,  reruni    series    jam   nascltnr:    ecce 
Bipis,  ecce  tais  otimil  tibi  Pai  ria  eivem 
llUistri  e{j;rcgiuni  partii,  quo  clarior  orbe 
Jaçtabit  niiUo  telliis  se  Lysia  íantiim. 
Arte    pólens  ,    opibusque  aninii   l;ernardu5 

ab  alto 
Ducet  Lysiadum  famani  ,  et  monimcnla  liio- 

rum  , 
Ex  quo  prima  uotís  Aurora  invecla  quadri- 


!4o4  Varias  composições 

Splenfliiit    humano    gcneri :    dehlnc    arma 
tritimphis. 

Inclyta  ,   tunc   sanctos  repetens   ?.b   origint 
mores  , 

LoiJga  vetustatis  ,  reruuique  arcana   niove- 
bit. 
Vela  setl  in  ventos  jatujani  flullancla  pandit. 

Aílsis  ò  proriiiSí[ne  juves  ,  da  Nerèa  niiiem 

Euruniííue,  et  Zephyrum,  Hcsperii  Rex  ina- 
xime  fiuctus. 

MhificLiín     tibi   furgit   opus  ,    quo   viibiera 
iiostra 

Obníibi  tandem  potuerunt,  licèt  impla  Par- 
ca, 

Diim  res  ambiguae,  dum  spei  erut  ulla  íu- 
tu  ri , 

Insultare  dedlt ,  fatoque  iiiciiniberc  trlsti 

Venales  Itab\m  calamos  ,  quos  ater  in  iras 

Exacuit  Uvor  ,  fí^lbsque  immane  venenuni. 

Lega  tamen  sta])ili  succednnt  laela    dolori. 

Ascipe   ut  inJucarjt  primam  haec  in   litora 
gentem 

Semina  Pyrrhaei  lapldis,  durum  genus  unde 

Decidlmus,  primam  ut  nobis  Tubal  Optimus 
arcem 

Erigat,  Hesperiae  caput ,  imperiumque  fu- 
turam. 

Ut  Lenaeus  agens  Nysae  de  vértice  Tigres 

Orbe  triumphato,    primiim  Iiis   corsedÁt  in 

Oi'Í6 


DO  P.  Fr.  Lri7  de  Sousi!^  4o5 

IVonilna  Lysiadls  socli  de  Poinine  sigffaiis. 
AdiiiiranJa     quihas  ,    post    longum    scilicel 

aevnn»  , 
Vertere  clniistra    clatuni  Oceani,  et  nova  si» 

dera  inundi , 
Indunique  ,  atqiie  suam  ra libas  Irar.f.ccr.í^r^^ 

iNysani 

Orcultà  fati  signatum  ]c^e  £íicl)at. 

.  .  . 

Addit  Ulyssaeis  tundatani  virihus  uroem. 

Ostentai  raptas  Aquilas,  íracluniqiie  Quiri- 

num  , 
Multatosque  Gotlios,  atque  agmina  Vanda- 

lorum  , 
Maile  levem  quoiies  ariiiavlt  Lysla  pubem. 
At  geminas  huc  ílccle  acics :  nova    gentis 

origo  , 
Religionc  potens ,  cerne,  ut  se  tollit  Olym- 

Et  niimernni  sanrtis  altarlbus  aiiget,  ut  indc 
Vera  fides  longos    nitet  intemerata    per  aii- 

nos. 
Exin    gentrin  Arabum ,  pugnalaque    in   or- 

dine  bulia  , 
Nostra  jugo  quorum  nunquam   se  coUa   dc- 

d(;rc. 
Testantur  nuiliae  servalis  maenibus  arces. 
O    quantos    Reges  í    Quam    fortia    pectora ! 

Magnos 
Alphonsos ,  et  Joanncs ,  Pctrcíquo  roveros. 


4o6  Varias  composíçÓeS 

Aspice  Cotílnos,  genus  insuperabile  liella. 
Aspice    íberorum    vulnus ,    stragemque  Ve^ 

reiras , 
Almeydas  Indi  cladem  ,  Libyaeque  Meneses. 
Noronlas,   Sylvasque  ,    et  beili  fulmina  So- 

sas  , 
Reroasque  allos  natos  melioribus  annis  , 
Martla  qiios  stabili  clecorarunt  vulnera  fama. 
Sed  quid    ego   annale ,  tantaruni  stringere 

la  u  d  um 
Yersibus  exíguis  tentem  ?  Non  si  mihi  Phac- 

bus 
Et  cilharam  ,  et  vim  sufficeret,   rocisque  ? 

melosque. 
Ergo     ur^de    Hesperiae   rector ,     domlnalop 

Eole  , 
Laudiluis    in^fentem    «jratus    fer    ad    aeihera 

aluninun)  : 
Aurea  quo  tandem  componas  têmpora  ,  red- 

dens 
Seria    tibl  ,    luctumque     hosti  ,    rairiaequc 

salutem. 


CO  P.  Fr.  Lrrz  »e  Sousi.         4^7 


Epi^ramma  de  ^lanoel  de  Sonsa  Coutinho  , 
que  elU  mandou  pôr  em  publico  no  dia  da 
collocação  das  relicfuias  dos  Santos  Mar» 
tyrcSf  que  se  levarão  á  Igreja  de  S.  Baque 
a  2S  de  Janeiro  'de  i588,  e/itre  os  mais 
Imersos  da  festa  com  o  titulo  seguinte» 


êumanae  SjbiUae  orncuhim  ,    qnoã  ÀstrologCTum  'vmnitmj 
l/J  dcttrins  niulavvrat. 


JL  Ostqunm  ter  Phoebus  qiiingentis  cursibus^ 
aclos 

A  Dato   in   terris  miminc,   tollet  equos. 
Octogessimus  octavus  vciieraliilis  annus 

Lysiaduni  geiíti  gauclia  snnima  ferct. 
Si  non  hoc  anno  pravae  mala  scmina  sectae. 

Si  non  cum  Lihyco  'lliiax  fenis  liosle  luil. 
At  supplcx  iiianibus  vinctis   j»osl    tcrga  Eii- 
ta  n  nus 

Hispano  subdet  pérfida  colla  jugo. 
Prisca  íides ,  et  religio  ,  pielasque,  pudorque 

Aurífero  referent  áurea  secía  Tago. 
Parva  loquor,  Divis  tolo  procul  orbe  fugatis, 

Ipsc  Tagtis  sedes,  et  pia  tem  pia  daLit. 
Tantus  erit  profugis  honor,    atque   triura- 
phus  ,  ut  inde 

Join  coelo  incipiant  or>$a  boftta  frui» 


4o8  VarUs  composições 

Vida  do  Patriarca  S.  Domin^oSy  dividida  em 
i-j  disticos  y    que    se  acfião  debuxados    em 
o  azulejo  ,  que  c^bre  as  paredes  do  clausro' 
do  Convénio  de  S,  Domingos  de  Lisboa» 


V  Era   TÍ( 


ides  ,    gentrix  ;     coelestem    condi» 
in  alvo  , 
Qui  mundum  accenso  personet   ore,    ca- 
nem. 

Fax  in  ventre  latens  jam  sacro  fonte  lava- 
tus 
Aurora,    est ,    ardens    postmodo    Plaebus 
erit. 

Absumens  parvum  pia  liteni  flauini.i  dlreniit. 
Et  saiictuni  innocuum  ter  repulère  facífs, 

Accipe     ai)   aetlierco    niissuin    tlbi     muiMJS 
Olympo, 
Orbis  tutamen ,  diliciasque  meãs. 

Pro  Christo  certuns ,   scutum  Cnicis  objizit 
hosti , 
Ilanc  solam  ,  illaeso   milita,    tela  petunt. 


DO  P.  Fr.  Luiz  de  Sorrsi.'        4og 

Qui   potiiit  quondam   templi  cohibere  rui- 
nani , 
Per  sobolera  verus    niinc   quoqae   fulsit 
Atlas. 

Nate  ,  quis  in  míseros  tantus  furor?  Áurea 
terris , 
Hoc  duce,   restituei  saecula  prisca  fides. 

Quas  saepe  coeli  praenuncia  signa  probâ- 
runt, 
Aeternâ  leges  consecro  lege  tuas. 

Lustret,  et  illustr«t  mens  aemula  Sclis  ut 
orbem  , 
Legis  Evangelicae  est  rector  hic,  ille  viae. 

Arte  laboratam  nostrâ    tlbi  susripe  Testem  , 
Regiiialde  ,  luei  siigmata  Dominici. 

Prodlgus  ad   pocnas  renuitqiic  ,    horretque 
Tiaras  : 
Omnis  anhelaiiti  sidera  sordet  boiios. 

Férrea   vinda   diu  ,  terque  hórrida  vcrberi 
noctu 
Aeterna  rcpetunt  coiulltione  vices. 

Quae  non  monstra  tibi,  quae  non  miracula 
ccdcnt , 


4 IO  Virias  composições 

Cui  loties  spoliis  mortis  onusta  manusí 

Félix  paupertas  !   Quid  non  speremus  egeni? 
Coelicolum  ,  o  socii ,  pascimur  ecce  penu! 

Corpoream   excedit    nioiem   super  aéra  ra- 
ptus, 
Nec  pavet  insidias,  hostis  inique,   tuas. 

Qui    potuit   pluvias   cohibere ,   et   claudere 
nubes  , 
Hunc  mira  populi  religione  colunt. 

Ergo   triunipliales ,    victor,  íer  ad   aetheni 
passas ; 
Sacra  ruanus  oneret  palma ,  corona  caput. 


T>0    P.    Fíí.    Luil   DE   SOUSA.^  ÍH 


No  principio  do  livro  intitulado  Gaza  mento 
Perfeito  ,  auctor  Diogo  de  Paiva  de  An-- 
drade ,  vem  de  Manoel  de  Sousa  Comi- 
nho este 


SONETO. 


O 


S  meios  tle  Imivar-te  me  ncj^aste, 
Buscados,   niasentvão,  do  obedecer- te; 
Que  de  cliegar,  Senhor,   a  conhecer-te 
Admirações  somente  me  deixaste. 


De^te  perfeito  assumpto  ,  que  tomaste  , 
Quiz  devidos  elogios  escrever-te  ; 
Mas  vejo  tpie  o  louvor  chega  a  ofl'ender-le, 
Por  não  poder  chegar  ao  que  chegaste. 

Mas  ainda  assim  isento  de  aggravar-le 
Só  devia  louvur-te  jusíanicnle  , 
Pois  to  julgo  o  mais  tligno  de  louvar-ie» 

No  que  do  mundo  illustra  Phcho  ardente 
Que  parte  em  teu  louvor  não  terá  parte? 
Que  siente  sem  li  será  sienie? 


4 12  Varias  composições 

No  principio  do  livro  iníilulado  Gigantoma^ 
chia  ,  auctor  Manoel  de  Gallegos,  vem  de 
Manoel  de  Sousa  Coutinho  este 


SONETO. 


U 


Nicos  son  dichosos  Tueslros  males , 
Pues  que  gozais  vencidos  grave  ernpleo; 
Si  aspirasteys  deyad  ,   ya  tanta  os  vco, 
Que  con  los  niisinos  dioses  soys  iguales. 

La  ciega  presuncion  de  los  mortales 
Ha  conslguido  el  fin  de  su  desseo; 
Con  Jn piíer  se  iguala  el  gran  Typlioo  , 
Uno ,  y  otro  en  tu  canto  ya  imniortales, 

Y  tu  por  niàs  que  Jove  poderoso , 
Bivc  gloriosamente  en  la  memoria 
A  pezar  de  laendjidia,  y  tieuipo  avaro, 

El  vence  nn  esqusdron  por  licencioso, 
Tu  le  dàb  ruUi.inado  lanta  floria  , 
Que  Júpiter  trocara  el  poder  raro. 


DO  P.  Fr.  Luiz  de  Sousa.         4i3 


».■».  %i^/^  »^V»"V  v^-»-  «/^/W 


A^o  livro  intitulado  Discursos  Variei  Políti- 
cos ,  anctor  Manoel  Scverim  cir  Faria, 
impresso  em  Ei^ora  em  1624  vem.  íJ^^iManoel 
de  Sousa  Coutinho  eUe 


EPÍGRAMMA 


V^Uod  Maro  suhlinii ,    quod  sua>i  rinrla- 
rus  ,  alto 
Quod  Sophocles,     tristi    Naso ,    qcod   or« 
canit. 
Maestitiauí ,  casus  ,  horrentia  piaelia  ,  amo- 
res , 
Junctasiinul  canlu  ,  sed  graviore ,  danuis.' 
Quisnani    andor?     Camoniu.s.     Undc     hic? 
Protiiilil  illuin 
Lysia  in  Eoas  imperiosa  plagas. 
Unus  tanta   ucdit  :*   Oedit  ,  et  maiora  datu- 
riis, 
Ni  ciileri  fato  corriperetiir ,   erat. 
Ultimus  hic  choreis  Musaruiu  pncfiiit:    illo 
rieniur   Aonidum    est ,   jiubiliortjuc    clui- 

rus. 
Fios   vetcris,     virtuscpie    iiovae    fuit    ille 
Cauienae: 


4f4  Varias  composições 

Debita  jure  sihi  steptra  Poésis  babet.' 
in  Lusitanos  Mt;Íicouis  culmina  tractus 
Transtulit  a.itia  ,    Lyi'as  ,   sertã,  flucnta  ^ 
Deas. 
Currere  Castalios  nostra  de  rupe  liquores 

Jussit,    ah  invito  prata  virere  solo. 
Cerne  per  iuculios  ,  Tenipe  meliora  ,  reces- 
sus, 
Cerne  satãs  sterili  cespite  ,  veris  opes. 
Omnibus  Occidui  rident  tibi   florll)Tis  liorti , 

Non  ego  jani  Lysios,  credo,  sed  Elysios. 
Orpheús  attonilas  dulci  inodulainine  cantes 
Traxit,      et    ah    stygio  squalida   monstra 
foro. 
fl^bessalicos ,    Lodoice,    sacro   dum  flumine 
montes 
Pieridumque  trabis  ,  Coelicolumque  tbo-^ 
ros. 
£unt  maiora  tuae  Orpheis  miracula  tocís: 
Attica  ,  quid  íacerçs  ,  si  libi  lingua  loretií 


Bo  P.  Fr.  Lriz  de  SotisA^         4'S 

l^a  Biblioteca  Lusitana,  tom»  2.  Art.  Fr. 
Luiz  de  Sousa  ,  vem  de  Manoel  de  Sousa. 
Coutlniio,  feito  na  occasião ,  em  que 
deitou  o  ffygo  ás  casas  déí  sua  quinta  de 
A  ima  da  ,    este 

EPÍGRAMMA. 

quid  nostris  insultas  aedibus  ?   ant 
quid 

Exilio  causas  nectis,   alisque  moras! 
Molire ,    expone,    implora,     minitare ,     rc» 
posce 
Yindictam,    laqueos,    jura,  pcricla,    ne- 
crm 
Conjurem   tecum    fortuna,    occasio,    leges ; 

Longe  allò  nobis  lis  dirimenda  foro  est. 
Quos    llama   absumpsit,  redolct   milii   fama 
Penates  ; 
Ponet  ai  atíternam  non  moritura  domuin« 


IXviJo  , 


I 


r 


BV      Sousa,  Luiz  de 

5095       Vida  do  Beato  Henrique 

S85S6 

1836 


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