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.tíV^^^JF^íT
V I D A
DO
BEATO HEKRIQUE SUSO,
DA ORDEÍJ DOST.PÉGADORES,
Traduzida de Latim em Poituguez:
CONSIDERAÇÕES
DAS
LAGRIJÍAS DE N. SENHORA,
E ♦uua* cbras era prosa, e em verso , (jue andava»
diiipersas.
CO -M POSTAS
POR
Rcrgioso da dlla Oi;":.:in.
< que $t ojiint9tt o. Fida do mesmo Aulor , « o juízo
sobre os seus Escritos, m
r^.
nh?
1 V*-.
COIMBRA:
91 lilPhliiNSA OAUNlVERSiDADlj
— ■*««■
\}^
V
I6^<^
VIDA
DO
Padbe Fr. LUIZ DE SOUSA ,
E JUÍZO SOB^^V'. 05 SEUS ESCRITOS,
i>0 Aviso, qiic pnzémos ao^principío ria
Vida do Venerável Arcebispo D. Fr. I^arrho-
lomeu dos Martyres , que saio impressa em
Jíiiie^lro deste ftnno (r jí)/-), dissemos que logo
depois deterniinavanios p!d)Hair a Vida do
Beato Henrique Soso , e njuiitnr-lhc ns devo-
rissinias Considerações das Lagrimas de Nossa
Seuliora , c algniras ol)ras Latinas , que aii»
davão soltas j Uido producrão bem dii;na
do insigne Autor da Vida do mesmo Vene-
rável Arcebispo : c que a!ii lhe ajur.iariamos
tarnbum uma breve noticia da \ ida da
inesnio Aulor , e dos st ns FsrritdS , e o
jnl/o Si^bie elles. Aguia van:os í>iilisra:er esia
piomcssa.
4 Vida do Padrk
Fr. Luiz de Soiis.i, que no século se cKa-
mou3Ianoel tle Sousa Couiinhojji), foi quinto
filho de Lopo cie Sousi Coutinho , FiJilgo
ilhistrissimo do tempo do Senhor Kei D. João
Iir , e que pelas suas virtudes , talento , e
erudição mereceo, lugares mui distinctos na
vida militar , e conciliou universal respeito
da Corte : e dvi D. Maria de Noronha , fdha
de D. Fernando de Noronha , Capitfio de
Azamor, Lo.^o nos primeiros annos moslroa
Manoel de Sousa grande viveza , e génio sin-
gular para os esíutíos, e muiio cm particular
])ara as Bellas Letras, que cultivou maravi~
íhosamente , e com láo prodigioso fVucto ,
como o fazem ver os seus Escritos. Passou a
estudar Direito á Universidade de Coimbra ,
como o tinlião feito lodoò seus irmãos, não
dispensando seu pai nesta parte nem ainda
o primogénito. E perguntando-se-lhc a ra-
zão de o querer assim ? respondeo discreta-
mente : Qu3 mal lhe tinha feito aq lu lie filha y
para o deíjcir iqnorante P
Não pro:egnio os estudos na Universida-
de; antes deixaudo-os logo, entrou na Reli-
gião de Malta. E fazeuílo viagem para esta.
íllia , ao sair da de Sardenha , aonde ohri-
( 1 ) rV. António lia Kncariiar.So iiiN ida í\r Fr. I.n-t
fli- Sonsa , c^ut TQM ftopiiiicipiu do iíj^uuJo i'gmo J«
CluQU^M.
Fn. Lui2 Dl! Sousa.' 5
^do de um grave temporal , e qnnsi derro-
tado de todo tinha ido arribado, foi cativo
de um Corsário de Mouros, e juntamente
seu irmaó André de Sousa Coutinho, Cavai-
leiro também da mesma KeligiSo. Levado a
Argel , alli acliou entre os cativos o ilhis-
tre , e engenhosissiuio Miguel de Cervan-
tes , com quem logo coníiahio estreita ami-
zade. Em teálemuriiio delia ointroduzio Cer-
vantes em hum Episodio da suacelebie No-
vella dos Trabalhos de Persiles , e Se^ismiiU'
do. Ajustando-se MatiOel de Sousa CoiuitiUo
com O Conjmandantc do Corsário em que,
ficando seu irmão André de Suusa retido no
cativeiro , viesse elle d pátria negocearo res-
gate de um, e outro, passou para Valença
em Hespanha no anno de 15^5 , julgando
que este lugar era commodopara (hdli eííel-
toar o a ({ue viera. Aqoi teve a triste noti-
cia da infebz morte de seu pai , que havia
succedido em Janeiro deste anno. É succeNs^j
admirável , mas verdadeiro Indo a desmon-
tar-se d'uiu cavallo (na Vi lia de Povos)
desenibainhon-se-liic a espada : com o mo-
vimento (jue íez ao cair , firtui de sorte , qeie
forcejando ou p:ira a desviar , ou para a ter
mão ; ella o ferio tão graveuKMíte, que alli
falleceo logo eui 28 do diio tncz. Jaz iia Ca-
pella mói- da igreja Paruc^iilai do Salvador
6 Vida. do Padab
da Villa de Santarém, de que er.i P.idro^ir.^,
e juntamente sua mullier D. x^aria de Noro-
nha.
Estabelecido Manoel de Sonsa em Valen-
ça , procurou logo o celclire Jaime Falcão,
Cujos estudos erão de giandefama er.i toda
a Hespnnlia, e cujo meiccimento Manoel de
Sousa aftirma achara ainda maior do ([ue a
mesma fama. Dois annos, que alii se deteve,
tratou sempre com grande amizade aquelie
sábio homem ; venerando-o como pai , e hon-
rando-o como mestre. Ellc llie explicou para
sua melhor inslrucção a Arte Poética d Ho-
rácio; o que Manoel de Sousa confessa lhe
servira de estimulo para tornar ao estudo da
Poesia, que havia deixado. Ksta explicarão
se acha no fim das obras dome^mo Jai?neFal-
cão, e neila se mostra clare7.a , e bom conhe-
cimento do verdadeiro sentido do Poeía.
Negoceado em fim o seu resgate, e o de
5eu irmão, voltou para o Reino , e para a
Corte, sem que tivesse professado na lleli-
^iáo , que dissemos. Diz-se que tivera razies
forçosas para assim o fazer. Então casou com
D. r>lagdnlena de Vilhena , fdha de Francisco
de Sousa Tavares , Senhora , que fora mu-
lher de D. Jofío de Portugal, filhexleO. Fran-
cisco de Portugid, 'primeiro Conde deVimioso,
o ^ual havia ^cagl^ oa infeliz batalha de AU
Fr. Lciz de Soisi, j
9fiCièr. Assistia na Viila Je Almatla , vivendo
eoniohoni Cidadão, e cultivando oS estudos
das Bellas Leiras com seus amigos, que tinhao
o mesmo gosto, instituindo, para o tazer me-
lhor, uma Socied:ide Lite.-aria : e era Coro-
nel fie 700 iníanles , e quasi 100 Cavallos na-
quelie districto.
Por causa do mal da peste , com que Deos
ferio Lisboa no asiiio de 1677 , passarão o?;
Governadores , que então erão do Ileino , ;i
residir em Almada, por ser terreno mais des-
afogado, elinipn de toda a corrupção, Eião
elles ( I ) D. Miguel de Castro, Arcebispo tio
Lis])oa : D. João da Silva, quarto Contle do
Portalegre, Mordomo Múr : D. FrancisiM
Mascaranhas Conde de Santa Cruz: D. Duar-
te de Castello-Branco , primeiro Conde do
SaiíUíjnl , I\L'irinho Mór do liciívo : jMi.^uel
de Moura, Escrivão da Puridaíle. Repartiiãt»
entie si as casas da Villa , que lhe parecerão
mais commodas para caíla um : e não ob-
stante terem outras , que lhes podião ser' ir
igualmente bem , ordenarão a Manoel de
Sousa Couiiiiho despejasse as suas. Assetiiou
elie que a ordem era injusta ; aures nascitiu.
de anlig») ódio , que agor» quci ião satJi>lrí-
xer , abusando da autoiida<.l«j pública, para
( 1 ) lli;jlur. Gcueai, \yjiii, (j, i'^^. J Jtf,
8 ViDJL DO Pa.I>R1!
vin^^ar.oa particular. Foi extraordinarin a pai*
xáo , que Manoel (iu Sousa conccbeo rew.lo
um tal proítí llmento ; e deixanJo-stí levar
delli , roiii|»eo na arrojada tietermiii,i':ão íle
lançar fogo áscasas: elle íiiesmo o diz assim
( I ): Cu^n vekenienter animo ca mino tus afcn,
itji'a , et ifiaitdita mttamorphosi indis^nantes
parlei is injwiiic subtluxi ; ia f.irnuni , e! ciie»
res abiere. raríio logo pftra Madrid a infor-
mar o Piinclpe do procedimento, de qiic* se
usara para com elle , e do modo porque ellc
mesmo , perdendo a paciência, se havia des-
aggravado, Conhecendo-se a semrazío de
quem o havia provocado, foi attLMidido.
No tempo , em que se deteve em Madrid,
tonjo verdadeiro amigo, cuidou em ajuntar
«soljras de Jair.íC Falcão, que scisannos an-
tes havia fallccido nesta Corte , aonde viera
chamado de Valença; e as que pôde alcançar,
iis fez imprimir no anno òc looo em um
voliiiJíeem oitavo. DanJo ocrusião o seu ines-
perado desterro, como elle Itiecliama, a iiâo
íicarempeipetiio esquecimento a menuírladc
um homem tão estimável ; pois não se pôde
duvidar que Jaime Falcão tinha grande en-
gcnlio , e feliz imaginação; e se tivesse a
fortunn de estudos mais bem dirigidos , seria
hum escritor eouqdeto.
( i ) JVaeíat. Opti". Xacub. I''aIc. de t£uib. iufra.
Fr. Lriz DE SotrsA. 9
Bestitnido á Pátria, continuou INÍanocl de
Sousa a mesma vida retirada, e estudiosa,
que linha ante?. Persuadido então por seu
irmão Jcfto Rodrignes Cuutinho , qutívivia
em Panamá, na America iSleridional, a que se
])assas5e iquelle pai?, com a es| csarra ilecon-
«eguir copiosos iurros pelo connncrcio, fa-
rciido-o assim te^e a noticia, de qnc lhe ti-
nha failecido hnma fdha única , que havia
sido ínulo do sen maiilmonio. Devia esit?
golpe scr-lhe niuilo sensível , muito mais ,
vendo ellc a serie ccntinuada de desgosto?^, e
iníehcidades , que a vida in(fulcn , e tumul-
tuosa do século , a f|ue se havia entregue ,
lhe tinha causado sempre. Meditava nisto lar-
am(M!íe, e cada vez se desenganava mais d*
e não era arruelle o estado, cíu que Deos
o (fueria. O succisso seguinte creio foi qucjn
acidíou de o tlesenc^anar. Tinha Manoel de
Sousa estreita , e íicl amizade com o Cíinde
de Vimioso D. Luiz de Portuj^al. Alluniiado
esto por uma luz , que os eífeilos iheiíin ver
que era (h) Ceo , ahraçou juntanM-nte com
sua mulher a vida religiosa. O Conde lio re-
formado Convénio th» Beniíiía , .1 ('ondessa
1). .loanra de Mendonça no do Sacramento da
Còrie. Fez este cxenjj)Io »raude impressão
ni) anim.i de Manoel de Sonsa. Assentou que
Deos ilití mandava que seguisse o amigo. Por
nu
to Vida. do pADni
niutuo consentimento seu, e de sua esposa
se recolhço elle tr.nibeni ao Convento de
Beniíica , e ella ao do Sacramento, tomando
elle o nome de Luiz , e ellu o de Soror Mag-
dalena disCIíasías. Em quanto viverão não se
virao mais, rcm amua se tratarão por escrito.
Professou Fr. Luiz em 8 de Setembro de
i6i4 ) uas mãos do Prior , que então era
Fr. João de Portugal, Bispo, que depois foi
de Viseu. Logo mostrou que a sua vocat ão
era verdadeira, perdendo iuteiramcnlc todo
o c'h,pirilo do secido , de que até alli vivera
•ocupado. Aquelle brio sem limites, aquelle
animo altivo, e ardente , que o tinlia ol)ri-
^ado a tantos excessos, se tornou em umapro-
lunda, solida e constante abnegação própria.
Vivia entre os Noviços como o menor de todos
ellcs j e depois de professo sempre se tratou
«ntre os Reliooisos conlórmc o mesmo me»
tliodo. Tinha no século iinia gioss.i tcnoa ,
loc;0 a renunciou , nem quiz jamais ter di«
nhelro algum , nem ainda no deposito ila
Fieligião. O habito que ella lhe dava , dellc
se servia , em quanto o podia remendar. Ai
túnicas eráo de laa ; nem admiltio nunca ou-
tro vestido. De lãa era também a cama ; duas
inania* sobre duas taboas; uma branca pe-
quena de pinho j e para se usscnlar um la-
nho.
Fr. Luiz de SottsaÍ ii
Não se contentava com jejuar ossett me-
tes, e outros jejuns lia Ordem no discurso do
anno: íiinda se ariiantava mais; e além distai
do que se llie dava no refeitório sempre dei-
xava ineíade para os poi)res. Nas peniten-
cias, discipiiiii)^, cilicio seguia sempre a mc^ma
máxima , accrescentar de mais ao (pje devia
de olrigação.
Eii quanto «ão teve a seu cargo escrever
por orlem da Religião, tomou sobre si o ot'*
£cio de enfermeiro. Neíle mostrou tal des-
prezo p'oprio , tal abatimento, ião rara Iiii-
nuldade que a todos confundia , e edifica-
va. Não íómente cuidava , com a maior dili-
gencia , d[)5 medicamentos , fazer as cam.as,
alimpar aí cedas aos doentes ; mas eile mes-
mo por suís mãos fa/ia os ministérios mais
despre2Íveii , e n;ais servis, E de que conso-
lação, e aK.vio não era com a sua pratica
aos enfermos'-* toda e.a ou daquelle Senhor,
que he saudc , e vida , ou para lionra
dclle: ociosa, nem uma só palavra se ihe
ouvia.
Em scc>uir o Coro , e acodir á Oração era
nidcíeelivtl.Nãosí salisfaziasócom a d.i Com-
munidade; semprt depois ficava continuando
neila largo espaço ; antes podenjos dizer, qu«
nunca deixava a Ur^ção. Continuamenie an-
dava o siíu espirito/ « a suabOca chtjia átt
f* Vida do Padb»
Deos. De quanto via, ede quanto ou\la, fazíâ
STihir logo o entencUmento , e o coração ao
S2U Creador. De Deos era tudo , arvores (te
Deos, bosques de Deos, aves de Deos, hi-
bito de Deos, casa de Deos.
Ao Rozario da Senliora tlnl^ singilar
dcvoí ão. Todos os dias o rezava visiundo
0 sen altar : e que alfeclos se não tlesco-
brirãonelle, vendo-o de joelhos , faliando
com a Senhora todo huniildc , todo cheio de
respeito , c d«^ piedíide ! Mas sobre íudo o
que mais nelle ediíicava , era a corded devo-
ção do Santissinio Sacramento do Akar: aqui
lie onde todo o seu coração se derri»inava em
\ivos actos de agradecinienlo , df té, e de
amor : aqui se elevavn, e submcríj.a lodo na
profunda meditação deste mvslerio sacrosan-
to , e inefiavel : e daqui lhe vcioque nunca
deixou de celebrar o sacrifício la Missa ena
ioda a sua vida , por mais ocijpado que se
tíssc : este t:ra toda a sua dilicii , e Ioda a &ua
consolação.
Vu'\ admirável a obediência do Padre Fr,
1 uiz de Sonsa. Não só obedecia em tudo, mas
sem allegaçóes, nem replic.ns, ainda em casos,
em que parece que o poilií fazer com justiça.
Até o seu mesmo juizo mostrou que queria
ler «ugeito agora cm desiggravo do tempo ,
eai qu^ g Uuúa deitado guiar pelas máximas.
Fn. Lrix de Sousa. i5
^enganosas do século. Esta foi a causa , por-
queacceitou o cargo de escreTer. ainda obras,
'[ue não erão da Ordem. E bem se \ê que a
cliediencia, e sóa obediência foi quem o obri-
g'>u a que escrevesse. Mandava-o umRei;ea
ese sempie se deve fazer a vontade. Nem
Tintios se j^cde dizer qtie o escrever fpi no
Pacre Fr. Luiz ambição de boura. Tanto era
livrt delia , que nem os estudos quiz seguir
na Crdcm , por se rão obrigar a ser Préga-
tlor. Z que c\ "cliente o seria elle, tendo do-
tes tão singulares para a IJoquencia sagrada ,
como se vê nos seus escritos ! Deste modo
evitou »ainbcm occi:|^ar cargos , e ter alguma
parte to governo: econseguio o que dese-
java 5 p-)is sempre foi súbdito, ]\]as conside-
remos aoccupacfio , que ton;ou de escrever
pelo lado, por onde parece que be justo ; e
mellior fa enios juizo se foi ambição , ou se
foi virtude.
Foi obiigado a revolver Cai tórios, e pa-
peis antigo., averiguar leiras tão (ega.^, e
r.pagadas, que funão perder a vista aiiuL
em annos m:.is vigorosos, separar o verda-
deiro do fals->, ajustar tempos, combinar
circumstancias, pesar attentan;t.nte os factos,
escolbel-os , e Vinca 1-os de {)ois no papel com
aceito; e isto n:n\ laltar num fó ] ortc ás
obrigações de Rebgioso, ao Core, á Orsí âo.
i4
Vida do Padre
ás penitencias, bem se pôde dizer, que mais
era de Santo, cio que de homem.
Chegou em fim o prazo dos sens trahay
lhos : nem forfio necessárias cautelas panl
llie advertir que elle era chegado , e que/i
doença , que delle eia correio, era d^ niol'-
te. Conheceo-o elle muito bem , corno (ji^tu
sempre se havia preparado para aquell i lyra;
c a cada instante a esperava. Recebco /oní
grande piedade os Sacramentos, peindo
humildemente á Communid..de perdjf) do
seu máo exemplo; e consolando-se milto de
acabar entre irmãos túo santos, fia^) em
que pelas suas oraçSes entraria o Sen/ior eui
juizo com elle benignamente, não, se lem-
brando do que elle fura alguui dia ,ye agora
muito do coração sentia ter sido. F.iaeceo no
inez de !\Iaio de i632. Jaz no ariecoro do
Convento de Demfica , junto ao/deíiráos
cue sobem paiM o Coro.
Ainda no século escreveo v/rias obras ,
que temos impressas, e vão m fíui deste
volume quasl pela mesma ortl/ni , por que
sairão. Uma só não pudemos ilcauçar, in-
titulada Navií^atío Aritartic^ú fid Doctorem
Franciscum Giiidiim y civcnj Panamensem ,
de que faz menção na sua r>i>llotheca o eru-
dito Abbade Diogo barbos/ Machado , que
iufornjando-nos cum tíUc do lujar, cm que
Fzi. Luiz de Sorsi. i5
"ã poderíamos descobrir, nos protestou in-
jeniiamenle se riáo ienibravn , pois aquclla
i\ieníOiia, de que se servira na biblioiheca,
lae não podia occorrer donde a bavia con-
seguido. Além destas obras adiámos mais
ma Soneto no principio do Livro irtitulado
Caicimento perfeito, escrilo por Diogo de
Pal\a de Andrade, sobiini;o do insigne
Tiíeologo desle mesmo nome,
íva Rebgião escreveo primeiro a Vida
cio Venerável Arcebispo D. Fr. Bartholomeu
dos Marlyres , que oííereceo á Camera de
Viana, que generosamente a íez imprimir
na mesna Villa , em um volume em tolio no
anuo dt 1619, e nós publicámos agora se-
gunda Víz , como já dÍ5senK)S acima. Esta
obra saio traduzida em franccz iio anno de
Escreveo mais a Prijneira parie da Histo-
ria de S. Lumin^os y particular do lieino , e
Conquistas de Portugal , que se imprin:io
em 1623, tendo sido composta das memo-
rias, que deixara ainda iiiFormcs o Padre
Fr. Líiiz de Gacegas, yí Segunda Parie da
mesma Historia, que se in)primio em 1662 ,
já depois da morie do Autor, peio Padre
i^r. António da Ircarnacáo , que Ibeajunlou
um Prolof:o, t Koticia da Nida do Autor,
«i>nde liiiin,os n.uito do que Itii os dilo, poi
1(5 Vida do Pàdii
ser Autor coéro , e Gcledl^no. Só ros nío
pudemos detej-minar a seguil-o no que toca
ao motivo, que refere tivera IManoel deSouíi
para deixar o século. Não achamos na infoi^-
mação do peregrino, que se diz rir de Jerí-
salem , e mais circumstancias , motivo cjftis
I»aste para nos fazer este sucresso crivei. Hsia
foi a razão, porque assentámos cm outi.i raii-
sa. Terceira Parte da mesma historia eh S.
Domingos y impressa em Lisboa era i6y8.
Tinlião-se impresso já duas obríí áo
Padre Fr. Luiz de Sousa , uma no aiT^o de
1645, e é a das Considerações das Lafrimas^
que a P irgem nossa Senhora derrariou na
Srigrada Paixão repartidas cm de? passos:
para a devoção dos dez sal^bados: <rutra em
1642 , e é a Fida do Deato Henrique Suso^
JDoniinicOj traduzida de Alleniáo cmjLatim por
Fr. Lourenço Surio , e de Latim h^ Porfií'
guez por Manodl de Sousa Couíi/t^io» Estas
duas obras é esta a terceira vez y ^ue se im-
primem.
Deixou t;un])em escrita a fida do Sc"
nhor Rei I). João llí ^ a qual íendo adian-
tjdo quasi até o fim, Ibe foi manda<la pe-
dir por Filippe IV, Uei de fíespanlia , em
nma carta escrita pelo Secroí irio Francisco
de Lucena em 9 de Janeiro do 16 Ja, e lhe
lião tornou a ser resiituida. O Desembarga-
Fk. Lviz DK Socíi. 17
(lor ígnari'i Barbosa Machado , cujas letras
sfio bem conhecidas neste Reino , que lhe
deve o te!-o lllusirado com os seus escritos,
nos segurou que seu Iniuio o Parlie D. José
B.iT!)osa, .sujeito de conhecida literatura ,
c talento , lirdia visto esta obra uo Padre
Fr. Luiz de Sousa na livraria do ultimo Mar-
quez de Gouvea com este titulo: Chronica
cio Frade; mas iuíelizmente não pudera ter
meio de a fazer copiar.
l\esta-uos a^jora satisfazer ao sei^undo
ponto, a que nos obrigámos, e é, tazer
juizo sobre o mereri mento dos escritos do
Padre Fr. Luiz de Sousa, Como não é tanta
a nossa confi^ínça , que de-cancemos somente
sobre o nosso conceito; cncost:nemo3 o que
dissermos á g^rave autoridade de muitas
pessoas de perteitu f^oslo , juizo solido , e
ajustada critica, com quem temos muitas
vezes conferido sobre a presente matéria.
E sem duvida, que teve o Padre Fr,
Luiz de Sousa as mais evrelletites quali-
dades para irsrrever perleifa mente. Até j ara
isso lhe sérvio o seu i ascin»eiit«>, pela acer-
tada educação , í|ue receln-o de seu pai. Os
seus talentos uatmaes erfu^ iíUi tnt;eiTho vi-
vo, e fértil , nma iníaginação copiosa, e
feliz , um juizo solido , e chuo , ujii animo
brioso , e amauie da verdade, hj^W^ laknioi
i8 Vida do PadrI
aperfeiçoados com o trato conliniiado cios
homens mais sábios , e polidos do seu teiu-
po , o commercio das pessoas mais civis , e
conhecinjcnto do mundo , não podiáo dei-
xar de profluzir nelle nm snç^eilo eminente.
Assim surccdeo : e ovonios nos [seus escri-
tos. E principiando pela Vida do Arcebispo
Santo D. Fr. Dartbolomcu dos Martyres :
que evidente prova do que temos dito não é
esta escritura ?
Creio que não ncressilo de fazer agora
aqui lan tratado mcthodico <le como se Jctc
escrever Historia , para ser perfeita, e com-
pleta : isto pareceria obra indiscreta, e in-
t>cmpestÍYa. Mas não pos?o escusnr-nie i!«
apontar uns piincipios geraes , c certos , para
desta sorte proce(ier sem cTrgano. E certo
que é necessário cm quen» escreve Historia
Juízo , Eloquência , Probidade : Juizo para
averiguar, escolher, e dispor os factus :
FJocjuencia para os explicar , c fazer sentir
com toda a sua forca , peso , formosura :
Probidade para não faltar á verdade , e ex-
primir tudo de tí«l modo, que instrua, «
aproveite aos costumes , sem declamar. Tudo
isto parece <jue se acha nesta Vida do Santo
Aicel)ispo. ISão se escreve ncUa facto, que
não seja digno da posteiid.íde , ou para \\\%
íazer ver, como L^ííus pfcvine, c dá anii-
Tá. L:^::% de Zgvs\,
^B
cipaclamcnte a conhecer os fjuc tem desti-
nado para obivr cousas grandes: desta na-
tvreza é o casosuccediclo ao Art-ebispo, sen-
do aiiítid nieniim , com o pobre , que veio
xDedir esmola a sua mãi, que se achava no
síllo da Torriígem : e aqueíla inclinação aos
Religiosos <la Ordem de S. Domingos, a que
liepois honrou tanto. Isto a u:na critica mais
severa , e mais forte pareceria alheio da
seriedade da liiuoria ; mas quem olha pelo
lado mais conforme á piedade , e íilosofia
Cliristãa, até aqui reconhece sábia mão de
Mestre. (íomo tami^ein quando descrevendo
a pobreza da sua mesa Archiepiscopal , o
pouco commodo nas suas visitas , o parco
tnítimeiito da sua casa, a familiaridade,
com que se entretinha , ainda com os mais
huoiildes dos seus subíhtos , a escaccz, címti
que se vestia : p()rf[ue ludo isto ensina sua-
veiuente que é próprio de um Prelado per-
feito viver pobremente, familiarizar-se com
os pequeninos, seguindo o seu exeniplar
Jé:',SlJ Chrislo ; e eu) íim confirma os lio-
mens no corueito de que a Providencia
nunca deixa de assistir aos seus, entre os
maiores perigos, como em o da serra d«
líafToso , e lia casa, em que o Arcebispo se
rão quiz recolher , e io^o depois m arrui-
nuu.
%x> Vida do Padki
E qiierlirei eu dos outros furtos ãe maiot
"▼uUo , e a que esses severos criíiros só que-
Teni admlttir? (>)ino os escolhe sa!)ian5enle
•o Paílre Fr. Luiz de Sou^a , ecoino os dis-
põe ? Quando re})rest'nia o Arcebispo vo-
tando no SngraíJu (Concilio de Trento: nos
Cousistorius de Pio IV, advogando pela di-
gniilade Fpiseopal j nas Cortes de Fiiippe
II, consu) vando ioda a honra da stia Priína-
lia , bem se vê em todas estas f»c(asl'jes o
Arcebispo, grande, generoso, nobre; mas
Santo. £ tanto nestes, como nos casos prece-
ílenies parece que bem mostra o Historiador
o seu JUÍZO.
Alguns succcssos ha , nos quaes parece
que da parte do Arce}»ispo hou^e ali^um ex-
cesso no proceder: tal c, acaso, o modo,
porque se houve na alçada de D. Pedro da
Cunha , escrevendo a F.lllei ; o do Ouvidor
de Chaves ; o da i evolução do povo ile
Braga na uiorte «Io Cardeal Rei. Estes suc-
cessos era bem Jelicaíh) rcíenl-os sem of-
fender ou a memoria do Santo Arcel)i«;po ,
ou a autoridade tio Principe. Mas o Padre
Fr. Luiz dtí Sousa, a n»eU ver, procedeo
com rara discrição , e acerto, lleterc o que
na vci-dade se passou ; mas ou deixa a cada
um , (|ue lê, íazer juizo xsobii- o suctcsso , ou
«e deixa entender sómeule mosiraudo que o
Fr. Luiz ce Sodsa. ai
*èlo forte , ainda que nascido de boa in-
tenção , foi quem iiioveo o grande Prelado ,
e ijae t.ies aoçóes são ílaqnelias, qne se de-
Tem adniirai', sem qiiesirvão de exemplo
para a imitação. E quein assim procede na
escolha dos íacLos , no modo de os conceber,
e de os exprimir, creio que dá boa prova do
seu juizo. Deixo á parte íallar no bem arri-
mado, e bem assentado de cada um, qi!e é
com lai arle, que, obscrvatla l)em atlcnta-
inente toda a historia, se conheie que ne-
nhuma das partes desmeate do seu todo em
cousa alguma. E certo que não pode achar-
se ordem mais bem regalada. Chega -se ao
íim , e se d'alii , como de um hjg;ir alio , se
lancão os olhos por lodos os aí^rad-iveis 5Í-
tios , por oncie se tem passado , tornados
agora a^ver enchem de nova alegria, e dei-
xáo conhecer toda a sua proporção , c for-
mosura,
Passemos á Eloquciicia, Se é eloquente
aquelle , que não só concebe as cousas clara,
e solidamente, mas com cerlo modo grave,
e polido; e depois as exprime com uma
dignidade sãa , nobre, viva , e natural ; cer-
tamente foi eloquente o Padre Fr. Luiz d«
Sousa. Mas isto ainda se prova melhor peh)s
ef leitos, que o coração experimenta no ([ue
ouve ^ ou 10. Ninguém (se lè altentamente o
í2 Vida no Padrk
Padre Fr. Luiz de Sousa) deixa de sentir que
aíjuella c a linr^uagcm , que o coração íalh,
e que o seu próprio coração desejara ter íjl-
lado assim , ou que lhe níiu íalLbieui <le
outro modo. Isto exnoriuieuio eu cm iiiin» :
isto mesmo coníessfio as pessoas de mais puro
gosto,' que experiuiejitão taml)em :e daíjui
iuíiro que me nÃo engano. Devo cjufcisar,
que isto mesmo me succede na litão do
nosso Barros, e do Padre João de Lucen,t.
Oxalá que depois de bem estudadas as ver-
dadeiras regras da Rlietorica , e da Critica ,
se averiguasse , e pezasse bem quanto valeia
estes grandes hoiiiens! Nelle se veria que ,
ou de.ncrcvão lugares, ou reiiráo batalhas ,
ou representem caracteres , ou ponhão al-
guém íallando , nunca tlegenerão dos Anti-
gos JMestres. Agora podia produzir lyrgamen-
Ui bons testemunhos para prova do (jue di-
go ; mas receio ser extenso. A cada passo se
encontrão tanto na Vida do Arcebispo,
como na Chroiiica de S. Domingos. E não
posso concluir melhor o que respeita a esta
parte, do que trasladando aqui, par*
prova do que tenho dilo, o juizo de lun
homem sa))lo , e bem eloí|uenle (i) : Que
(i^i O Padre António Vieira na A^nuttva';1j do
Têretiro To: no 4a (ihrormã,
Fr. Luiz de Sousi. a5
9!qm se vêm juntamente praticadas todas as
lei': da Jlistona que o estilo é claro
com bre^'ídade , discreto sem ajfectacão , co»
pioso nem redanjlancia , e tão corrente , fácil,
e notável, que enriquecendo a memoria , 9
affeicoando a vontade , não cansa o enicn'
dimento. . . .
Qne , ainda quefalião aqnclles casos , e
nomes estrondoso^; , que por si mes/nos Icvcin-
tão a p<:nna , e dão t^randcza , e pompa d
narração . . . . é admirável o juizo , discri'
cão j e eloquência do Autor; porfjuefallan*
do em matérias domesticas y e familiares
todas refere com termos tão ií^uacs, e
decentes , que nem nas mais avultadas se re-
monta y nem nas miúdas se abate: aizcndo o
commum com sínç(ularidade , o simillianté
sem repetição , o sabido, e validar com novi-
dade , e mostrando as cousas , como faz a
luz , cada uma como c , e iodas com lustre,
A lin£;ua9;cm tanto nas palavras , como
na frase, c puramente da linqua, cm quê^
professou escrever, sem mistura , ou corru-
pção de vocábulos estrangeiros , os quaes só
mcndi/fão de outras linf^uas os que são pobres
de cabedaes da nossh tão rica , e bem dotada^
como fdha primogénita da Latina. Sendo
tanto mais de louvar esta pureza no \*adr€
Fr, LuiZj quanto a sua lirão cm diversos
%4 VlDk DO PaDRK
idiomas . e es suas largas peregrinações em
ambos os mundos o não poderão apartar das
fontes naturaes da lingua materna ; como
acontecs aos rios ^ que vem de louge ^ que
sempre tomão a cor, e sabor dai terras , por
cndj pass'Jo,
A propneiade y com que fuV.a em todas
ms matérias , c como de quem as aprende o na
eschola dos olhos. Nas do mar , e navega*
eão falhi como quem o passou muitas vezes :
nas da g".erra como quem exercitou as armas:
nas das Cvries , e Paço cnnio Coríezão , ê
desenganado : e nas da perfeição^ e virtudes
rdligiosas , ci-?ic> Religioso perfeito. Afé aqui
aquelle sal)lo, e cloqucnle lunnem. E com
isto iiíli^inios ter abonado fjastantemcnle a
eloquência do Padre Fr. Luiz dt. Sousa,
Quanto á Prohididc paroiia escusado
nioslrarniol-a ein o Padro Fr. Luiz de Sonsa ,
dejíois de ter dito que elle foi eloquente
(i) , e (jue pratico!i a vida que deixamos
escrita. ATíjs o certo é qiie qr.ando leuios os
seus escíito"^, Io^ío alli veuios um IIisioi:Ja-
dor prudente , hom , ver<ludeiro , Cliri^ifio,
o que é mais ((tje luilo , e que nuuca })cid<í
de vista a Religião Sacrosauta , que prolessa,
Alli estamos vendo um Christfio cheio do
^i) Vid. QuittCtU. lib. xa. l»*lii. Oral. cap. i.
Fr. Luiz de Sousa.. *5
espirito , que oETangííllio imprime a quem o
medita ; a -jnelle espirito manso, humilde,
caritativo , mas ao mesmo pass(j nobre, ge-
neroso, granJe; o qual e^lá contatido á
posteridade, para seu bem, o qiie elie pre-
senceou. fí daqui nasce no coração um gosto
singular, que ao mesmo teri-po, que o
rccred, o excita para se aperfeiçoar. E esta
unia falta , que se acíia em alguns moder-
nos, aliás sábios, e judiciosos, e lhe nao
posso desculpar. Escrevem nobremente, mas
respirão uma íiiosofia h uai ma , uuí ar pro-
fano , de sorte que , lendo-os , mais me pa-
rece que tenho nas uínos um Gentio creado
nas trevas da Infidelidade , do que um
homem , que teve a felicidade incomparável
de professar a Religião Tcrdadeira.
Temos satisfeito ao que pertence á His-
toria , que o Padre Fr. Luiz de Si>usa escre-
veo como sua própria. A f^ida do Beato
Henrique Suso é um perfeito exempKír da
traduf cão , quanto a su!)stancia , e verdade
da matéria; nias no estilo , e fra/e excede
grandemente o orij^nnal.
As Meditações das Dores da Senhora são
obra perfoitissima. Não se pôde escrever
nada mais cheio tle ternura , e de piedade
para cmn a ^Ifii tle Deos. O < oração, que
ama íielmeole, descobre alliosaffeclos niaii
a6 "Vida do Padrb
puros , e mais vivos ; até a lingmgem é sim-
ples , e cievotissima ; parece do Cep.
Quanto ás composiç''es La^:inas. Bem se
vê que o Fadre Fr. Luiz de Sousa soube a
lingiia Latina com pcríeição !)astarile. AcjueU
les Ciiticoi, que uulcaíuente po iem julgar
<le uma palavra só per si (como já a respeito
de algum disse o engenhos:> Pope , acliaráõ
que Iheuolar; mas os que tem bom gosto
conhecerão , que o ha nas composii óes La-
tinas do Padre Fr. Luiz, aindu quanto ao
que é rigorosan.ente lalinidad<\ Lma, ou
outra palavra de idade monos nubre é de-
feito , com que o bom Critico se iiáo of-
iende (i). Em tim os versos Porlu.^uezes,
e Hespanhoes parece-nos (|iie sem escrúpulo
podemos dizer nos não saiiSÍazem quanio de-
ífcjaiJamos.
E aqui nos occorre naturalmente que
^iiem tiver lido , o que deixamos escrito ,
pôde dizer que talvez temos parecido um
pouco encarecitlbs a respeito do mereci-
mento do Pa(íre Fr. Luiz de Sousa, e qu«
apenas agora lhe queremos confessar algu-
mas veuialidatles nos seus escritos, haven-
do aliás nelles defeitos notáveis. Que mostra
(i) Non ego j.ruicis oliViul ir maculis , 4ua> aiil iu-
ruiia íuclit , itut UuiumUiI [>ui'uiu ca>it u<tiuiA. liui^it.
Fb. Luiz de ScrsA. 3^7
paixão pelo Arcobispo ; qr,e na Cbronica a
n?io mostra menos pel.l sua Ordem : que ás
%'ezes se cletém cni faz.cr descri pç^es com
desejo de parecer elegante, e mais como
Poela, do que como Historiador: qnc mista*
rn autoridaJes Latinas de permeio , qufi
são alheias do bom estilo. Que no corpo da
obra ajunta rloíMimentos , que proTÚo os fa-
ctos ; o que só era próprio de uma Disserta-
ção, on de umas I^I-jmorias; pois taiís docu-
menlos, como diz um Historiador !)em cele-
bre (i) são como os anílames nos ediíicios ,
e os esicios , e formas nas alio!)e íjs , que se
tirão feita a obra , ficando bera claro, que
«obre ellas é qne se fundou. Além disto que
parece mais crédulo, do que a judiciosa Cri-
tica opermiite; nem se regu!o?i sempre pelo
preceito do Apostolo: Orjmia prohnte : r[\\e
referio visões , e appariçóes provadas talvei
com o dito de pessoas , cuja imaginação viva
lhe faz acieditar o í[ue apenas se lhe repre-
sentou ; que deu por uiilagres, ou obras so-
bre-naturaes coi!sas , que bem cabião dentro
nas forcas ordinárias da natureza: que se
tlislrae para esc/ever cousas, em que so pa-
rece quiz ostentar que sabia fallar nvllas:
(r) Fleur. Diicurs. j:iimKÍr« íob;* aUistori;» tr-
a8 Vida do Padrí
qneo seu estilo ás vezes é tliffuso, e rctlur»
dante, e tem tlemaziaxia simplicidade, e tal-
vez falia de elegar.cia : e com çstes defeitos
como se pótie aju^ítar o que dissemos do seu
juizo, da sua eloquência , e da su2í probidade^
Coiiíesso que estes defeitos são graves,
e que por si só desiustraiiáo grandemeule
um Escritor; mas eu hei de mostrar que
muitos delles não os ha no Padre Fr. Luiz de
Sousa; e esses, que ha, não diminuem a
cicelleucia dos dotes , que cu apontei , c Hz
ver iieiltí, e que sempre íica salva a sua au-
toridade, e merecimento.
Quanto ao dizer-se que parece ter paixão
pelo Santo Arcebispo: ttl-a-hin o Padre Fr.
Luiz de Sousa , se cu lhe occuUnsse os de-
feilcs, ou llie ampliucasse as virtudes. Quom
lhe confessa geuio ardente, e forte , e seve-
ro , quem mostra que elle se enganou algu-
mas vezes , não merece nome de apaixonado.
Em aLono da sua Ordem é necessário que
refira o que acha provado; e tau)l)em é justo
que assim o faça ; e se alguma vez parece
que lhe níio devia ter sido bastante a prova,
esta culpa ab honestíssima sone causa pro*
fecta , com'» disse um sábio Critico a respeito
de Tito Livio. A origem da Inquisição , que
atlribue á sua ()rdem ; S. (loncalo d'Ama«
rantc, que conu cnire o> Santos delia ^ Fr.
Fr, Luiz de Sousi, 15
Soeiro Mendes , que dá por Porluguf z , sáa
toiísas, que prora com documentos.
Assim é c[iie se detém em descrever lu-
gares como Poeta , por exemplo , o Convento
de Bemfica ; mas alem de que nesta parle é
boa satisíaçãa o exemplar que imitou, e o
aífecto,que lhe merecia uma Casa, onde ti-
nha recebido do Ceo graças especiaes ; é
certo que isto não é impróprio na Historia ,
a qual esi . , , , próxima poetis , et quodani-^
modo carmen solutum , como diz um graúda
Mestre (i). As autoridades Latinas são muito
raras, e muito brevts , e nesta parte con-
descendeo com o seu século : e assim ao me-
nos, nno desmerece perdão. Os documentos],
que metteo na Ghronica , podia escusaUos,
assim hc ; mas ou julgou que a natureza
desta escritura lh'o pcruiittia , ou que alli S8
conservarião mais seguros para todo o tem-
po.
Quanto a dizer-se, que parece ser um
tanto crédulo , e menos critico em algiins
factos: ol^adieFr. Luiz de Sonsa era homem
de piedade, c prudência s#)gular*. creio quo
\endo os seus documentos, ;io tempo de es-
ciever dizia comsi«fo com melhor razão , do
que Livio (:>.) : Mí/ii vetustas rcs scribcníi^
(i) Quiiit. I. 10, Cij). i.
(a> Liv. 43 Citp. li.
2o ViDi. 3o Palrr
f}escio quo pacto , antiquiis fit nnimus ; ef.
quaedam Reli^io est ^ cjiinc prudcntissimi tn-
ri.., snscipienda censiierunt , en pro inclii»riis
hahcre. quac in incos annaies r.^fcram. Jti^to
mesmo podiíiinos rer.pondcr acerca fl:)5 visões,
c dos milaí^res; a siu\ pie(l:i(le certamente UA
causa de se inciirar mais a referil-os.
Se parece que se desvia do seu caminlio
para descrever ou o sitio de i\Iazn2[:u), ou as
festas da Trasladação do corpo do Santo Ar-
cebispo: no primeiro caso o amor da palri^
o jUSliOca : no secundo o afjradeoiniento ás
nnezas , que a Villa de Viana tinlia obrado
em obsequio do mesmo Santo Arcebispo, e
da sua Ordem. Se o estilo parece ali^uma vcx
ílifiuso , não é com excesso ; e a dureza sin-
gular, e a graça maravillicsa, com que sem-
pre propõe o que tliz , fax que possamo»
dizer , (]\\q a brevidade tao estimável no
Historiador d'n>crsis viríiitlbus conscciífus esf,
como Quintiliano diz de Tito Livio a res-
peito de Salusllo. A simplicidade, que Fr.
Luiz tem, sempre é nobre, ainda em oscaso"^,
euí que parece seria difficultoso que assim
fosse. O successo aconfet ido á comitiva ôo
Arcebispo nas alturas de 13arr4>sn , sendo
cousa emsibumilde, couseiva eui a r»arrac5o
todo o ílecoro, que se podia desejar, l (K'Stc
modo coucluinios a respeito do Padre Vr,
Fk. Llí2 dl Sousa. 5i
líuiz de Sousa , como um tios mais sábios ,
c eruditos proíessores da Eloquência , que a
Europa vio neste século, conclue a respeito
de Tito Li vio (i) : íla praestitit , . , iit si mi'
nas , ccteris omnibiis dicendus est praeripuisst
palmam , ceríe nidli secundtis haberi possit :
tíc si Historiarurn scriptori atile dulci miscere
safficerel jjruslra cjaidquamperjectias inveni»
retur . . . paulluluni claudicavit , et huinaiii
aíiquid passas est ; sed iía , vt calpam eausa
culpae elevare plcramquô videatur.
Tenho satiífeito o a que me obriguei no
Prologo que fiz á Vida do Santo Arcebispo:
e á yista do que ate aqui tenho escrito pare-
ce, que não comecei desacertadamente a
resusciíar os nossos primeiros Escritores pelo
Padre Fr. Luiz de Sous:» , para delle passar
a outros, que nos resiáo, e são em maior
numero do ({ue comniuniuienre se jul^a. Es-
pero conseguir o meu projecto pela protec-
ção do nosso Augusto Soberano, e pessoas,
que amão o bem publico dos seus naluraes.
Pois devo confessar o que experimento : ain-
da ha aqucUes briosos aíilrnos antigos, bons
compatriotas, que estiuíãoa honra , e as le-
iloas , e desejão ou imitar , ou igualar os jquo
mais patrocinarão os estudiosos. Quanto a
ii • . — . ■■
(O lu PraíÍAtt avl iiv, llui^r. i)rop, fio.
3^ TiDÂ DO Padm
ilizer-se, quesó enrre nósé próprio o critlcif
mulignamenLe , é giando erro. Não succetle
entre nós nesta parle n<;dd niais do que suc-
cedc erjJ:re as outras nac^íes :se ha invejosos,
e njaii^nos , ha iiiiiito quem estime o estudo ,
ea appiicaca\). Am bom Cidaiifío toca ocori-
solar-se com o hcin que íáz, anjar a qnein o
palrociíia , e a quem lhe Inveja, olhar para
elle conforme a Lei da ile]i<rião verdadeira.
o
A beriijrna arceilação , que cxperiírento,
fará que desattenda qualquer critica menos
judiciosa. Esta he a minha resolucáo, e con-
tniuar em servir a pátria quanto eu puder.
Resta aj^ora trasladar aqui as autorida^
des dos homens sábios, que fallirão sobre o
merecimento do Padre Fr. Luiz de Sousa,
ou o honrarão pelos seus talentos. Primeira-
mente :
O eruditissimo , e sn])io Critico D. Ni»
cnláo António Tora. 2. Dibliol. Hisp. pag^.
52.
In^rtriiam ele^ans ^ excultumque efiarn
Rhctohcis , ntqne liuiiianitatis art,Ous y judi'
cium in paneis runínruin , miraque ^ ac eX"
^ uisíta Lu uía n i o ermo 11 is facúndia .
João Soares de Brito Thealro Lusit. lit.
L num. 47.
Pvacdarum Lusitanae eloquêiitíã* spcm
Fr. Ltiz DE Sorsi. 33
Mapoel de Faria e Sousa Tom. i. dos
Comnícntos das Rim. de Cani. Juizo das
Kini.
Fué iin Ccwalhro de miicho inferno , y
tan insíTuiclo cn las letras humanas, qu&
hien pudo jusgar de ingenios siirefioi inc/itc
ornados delias . . . Escritor nó menos cuerdo,
que elegante^
Fr. Agostinho de Sousa na sua Censura
duda em it^ de Sete;nbro de 1622.
Estilo grave ^ e elegante, sentcncloso ^
com brevidade , e clareza juntamente , que cm
poucos se acha. Linguagem natural , canente,
e coriezãa , com termos tâo próprios , signiji'
cativos, e e/Jicazes, e longo de ajfeites,' e ar^
iijlcios viciosos, que sem encarecimenío podc'
71ÍOS affrmar , que dos livros , que até o pre^
sente são escritos em Poitugiiez, nenhum se
achará de mais policia , e peijcicão.
j\lanoel Severim de Faria : Disc. var,
Disr. 2. da ling. Porlug. Lsta paite . . . (falia
da Histííria} tâo estimada , da eloquência^
SC vè perfeitamente exercitada em varias histo-
rins , compostas cm nosso unlgar, . . Biíste-nos
pnr ora três, que sÚo João de Barros, cos
J^adrcs Jouo de Lucena, e Fr. Luiz de Sousa;
dos quacs João de Barros c tido por narâo
cfonsummadn naquelle género de escritura . , .
O mesmo podemos dizer do Padrtí João d
2.
54 VinA. DO Padue Fr. Luiz de Sousa.
Lucena , , , E das obras do Padre Fr. Luiz
de Sonsa se não podem esperar menores lou'
cores , que o tempo qualificador dos engenhes
lhe concederá brevemente nas outras provin-^
cias j como já lhos tem começado a dar neste
Hei no."
O erudito A})bacle Diogo Barbosa Ma-
cbarlo na Bibliotheca Lusitana pag. i45.
Tom. 3.
Toda a pureza do idioma Portuguez,
toda a elegância do estilo Romano , e ioda a
pompa do artificio Bhetorico se tem religiosa-
mente observado nesta historia , em cujo theti"
tro apparecem diversas figuras mais ornadas y
quando mais despidas de pomposos cpithetos ,
explicando altos conceitos com termos humil-*
des*
55
PROLOGO AO LEITOP,.
eirado parte da Caria dedicatória, que Lou-
renço 5inrio fez no principio das obras deste
Santo Varão, traduzidas do menino Surio de
Allemão em Latim ; parte do Prolof;o, que o
mesmo Autor fez ante o principio da vida ,
que aqui vui iresladaia cm vulgar , e de ou"
tros Autores,
A Vida {diz Surio) do Beato Henrique Siiso,
ainda que diffusa , nao contém lodos os seus
feitos dignos de memoria , n'as só uns
poucos dos muitos, que obrou: aqnelles, que
lhe parc^cco n)nnií"estar del)aixo de nome
alheio. Porém no livro, que nos veio á mão
escrito na lingua vulgar Tudesca (de que
traduzimos alguns trabalhos , e eslutíosseus)
se contãoalguu:as cousas ainda que senj nome
dj Autor , as quaes não se acháo nesta sua
vida mais larga; mas parcceo bem pr(q)oI-as
aqui, por evitar prolixidade , seasaítres-
cenlassemos á mesma vida. No baptismo lhe
foi poiT o nome de Henrique, porém tanto
\ .0 ao admirável gráo de 5anlidade , a
ZS pROLoe#
que chegou , Deos lhe mudou o Tjome fie
Henriíjue em Amando , o qual v.]\e em qii.tuio
TÍveo nfio quiz nianit<'Star por huniihlade ;
mas achou-se í!ej3()is de sua morte entre as
revelações, que o Senhor ibe tinha feito eia
Tiddr , como o mesmo Deos lhe puzera este
nome para declarar o singular amor divino ,
em que seu coração andava ahrazado. O so-
brenome não qiiiz tomar do pai, posto que
fosse de nobre, e couliecida geração, mas
tomou oappellido da mãi, matrona santisòi-
ma, para se estimular a seguir snns pisadas, c
imitar suas virtudes , e assi não se chamou
Henrique Montense,como seu pai, mas Hen-
rique Suso , comosua mãi. Tanto qu&tomoti
ohahito de S. Dou)lngos no Mosteiro de
Constância, logo aproveitou muito na tíjIu.
de : e sen lo mandado aos estudos a Colónia ,
fei t.ies progressos nas letras , que estava já
para receber o gráo de Doutor em Theologia,
fjuantio lh\) prohlbio o Espirito do Senhor
Jl^lSlJ, dizendo que assds estava ensinado para
se aproveitar a si , caos outros na pregação ,
c por tanto, qtie deixasse de tomar o titulo
de honra. Logo que começou a pregar o
fazia com tanto fervor e efficacia de espirito,
ípie veio a ter gr.inde nome de predador
Evangélico. No prógir tinha este modo de
dizer, quando queria persuadir alguma cousa,
Âo Leitoh. Zy
e fazer attentos os ouvintes : Ouvi , dizia , vos
rogo que dá brado Suso , í]ue conforme o
seu nome soa , o njesrr.o que levantar com
seu dizer o auditório para o alto Ceo (|jor-
que Suso em Tudesco é o mesmo que sufsnni
em Latim , que quer dizer no Portuguez
para acima). Destas, e outras similhantes
formas de dizer usava na pregação njui vivas,
as quaes se não podem bem declarar no La-
tim, e por conseguinte , nem no Portuguez.
Os seus escritos leve muitos annos escon-
didos-^com propósito <.ie que ninguém os
visse se não depois de sua inortc , e isto por
sua modéstia , e recoiliimenío grande, até
que o começou a esperlar um escrúpulo,
que em quanto vivia os desse a ler ao seu
Prelado, para fjue podesse iacilmente dar ra-
zão das dúvidas, que neiles se achassem ,
porqiu; podia succederque alguns idiotas (de
cujos juizos se não deve fazer mui lo caso)
com animo danado não pondo os olhos na
pia altenção do Autor , anles por sua ru-
deza , c laila de letras não peuctrando a suh-
staneÍA dos escritos , os quizcssem mordor ,
e o que mais era para temer, podião vir de-
pois delle morto a mãos de alguns fri«is na
virtude , e faltos de espirito , í[ue não porião
cuidado algum ]ielos tiiar á luz, e commu-
iiicar aos [uu3 , e desejosos dg os ver j [ura
38 Prologo
louvor do Senhor, antes os podcilão mostrar
primeiro aos faltos de diicurso , e razão na-
tural, e mal acustumados , os qutes por sua
malevolencia os sipciltarião como muitas
Tezes acontece. Tomando pois disto con-
fiança, tirou de seus escritos as proposições
nialsprincipaes , e maisdifficultosas, edeu-a*
a rever a um Doutor em Theolo^^ia grande-
mente alumiado no espirito do Senhor, do-
tado de grandes partes , e dotes d'.ilma, que
então era Provincial dos Frades Pregadores
em Allemanha, por nome Bartholomeu, o
qnal as lou com muita attencão , e cuidado,
e deu sol)re ell.Ts seu parecer , approvando-as
por t«das as vias , e moilos que se requerem,
declarando serem pontualnjente conformes ás
Sagradas Leiras. K como apoz isto quizesse
cntres^ar ao mesmo Doutor Bartholomeu to-
das as outras snas obras de menos ditficul-
dade para que as examinasse , fallecendo
o Doutor neste meio tempo , náo pôde irr
efíeito o sen bom desejo , de que se começou
a entristecer , e magoar muito, não sabendo
que fizesse: mas orando por isso mui de veras
a N^osso Senhor, para que fosse servido nia-
nifeslar-lhe o que mais convinha, appare-
ceo-lhe o dito Theoloí^o cercado de grande
luz, e ilisse-lhc, que a Ocos era mui agradável
o divui^arclleseus eãcritos, ecoinmuuical-o»
AO Leitor. 89
t todos os pios; o que fez muito de coração.
Dos quiies escritos (diz o mesmo Surio no
Prologo citado pouco depois do principio)
a estimação , que se deve fazer , poderá só
conhecer , quem os ler não de passagem, ©
cumprimento , nem só por curiosidade de
achar cousas no\as, mas com observação
religiosa , e pia attenção , porque creio niio
haverá corarão tão de pedra , que pondo Loa
diligencia, e cuidado nesta lição, não haja
de sentir em si nova luz da divina gi^aça,
c tal mudança , qual nunca experimentou,
porque de propósito em todos os seus escri-
tos o que mais procurou he dar luz aos cet,( s
corações , trazendo-os ao devido conheci-
mento de seu Crcador , desprezo do mundo;
« amor de De os.
4o Prologo
O mesmo Surto no prologo antes da vida dê
Santo Henrique Suso,
yj Sanfo Henrique Suso foi rara o d«
grande Santidade, esclarecido com muitos
milagres, quasi da primeira idade fez uma
■vida a poucos inutavui. Tove uma íiiha espi-
ritual illustre em sangue, porém mais illustre
na virtude ; a qual escondidamente foi tiran»
do delle muitas cousas secretas de sua vida ,
que poz em memoria por escrito : mas sendo
sentida do servo de Deos, mandou-llie por
obediência , que lhe entregasse os paptis, e
logo queimou quantos recebera daquelia vez:
porém querendo queimar a outra parle, que
depois lhe deu a Religiosa obediente , foi
prohibido por divina revelarão: tlonde os
que escaparão do fogo, tirou a luz om nome
alheio, sem fazer menrão alguma de si pró-
prio, mas noineando-se em todo o lugar só
por Ministro da Sapiência, por fugir da van-
gloria, i'^ pois certo que nesta suavidade se
ochão muitas cousas, as quaes sem dúvida
são as mais efucazes que pôde iiaver para iu-
ilammar os corações ainda mais frios, e enrt-
AO LiiTonJ 4*
gelados no amor de Dens. Alguns que vi-
vem nesta vida como brutos , dados ás cousas
do mundo , soem enfastiar-se destas cousas:
porém não df-ve de ser esse mdo exemplo
parte para que os que desejão contentar a
Deos, e não ao mundo , deixem de abraçar
esta lição , porque o Senhor Deos ordenou
que se nos escrevessem as vidas , e feitos dos
Santos, a fim de queaquelles, a que n5o mo-
vino as palavras , abalassem os exemplos das
obias. Por tanto, ú pio Leitor, eu te peço
afíecíuosaniente, que sejas contínuo , e dili-
gente em resolveresta vida, porque o não fa-
iassem grande proveito leu ; até aqui Surio.
iNasceo o Beato Henrique Suso de pais
nobres na Suevia, provincia de Allemanha
alta , ao í{uc se cre, na Cidade de Constância
a 2í) de Março , dia assinalado doPatriarcha
i>. i3ef "o, mas não se sabe o anno. Seu pai
se íbamava tio a[)pellido de M(;ntense , nobre
e conhecido, e sua niãi do de Suso , ou Sizo ,
como í)uíros escrevem. Não temos os nomes
próprios jielo muito que o Beato Henricjue
€ncoi)ri<3 sempre suas cousas. O pai foi dado
ás cousas do mundo , sendo pelo contrario
a mai tão virtuosa e devota , que yjassando
muitas tribulações por causa dos encontrados
costumes do marido, Kulas as levava l»cni
com a Uieditacúo da raixT^o do Senhor JIíSU,
^2 Prologo
na (Jfial era tão contínua e favorecida, qn9
em todos os 3o annos antes de sna morte ,
não ouvio Missa em que não tivesse particu-
lar , e intensa compaixão das dores do
Senhor JESU Crucificado.
Em Constância tomou o Beato Henrique
o habito dos Pregadores , sendo de pouca
idadej porque como consta da sua vida , cap,
XX. , aos i8 annos foi alumiado com par-
ticular ^raca do Senhor a melhorar a vida ,
havendo já passado alguns tempos na Ordem
com íloxid^o. Depois de sua conversão esteve
obrando só comsigo primeiro a sua vida em
silencio 8 annos contínuos, sem se conimu-
nicar aos [)roximos, no íini dos qu.ies lhe íoi
mandado por Deos que saísse a pregar. Dis-
correndo então por toda Allemanha alta, e
baixa fez grande fructo nas almas , mas com
esta differcnça em seu tratamento, i>e dos
i8 annos de sua idade, que foi o pritneiro
de sua conversão , até os 4'» "^o aílouxou
nunca nas suas penitencias asperi>simns, em
que se passarão 22 annos : porém depois por
amoestação do Ceo remitiido o rigor das
extraordinárias penitencias, mas nuncii o da
regular observância, continuou muitos annos
no aproveitamento das alnias, com raro
exemplo de paciência nos trabalhos , e peri-
gos da vida , e luíura em fjue Nosso Seubor
AO Leitor. 4^
o exercitou, não menos extraordinariamente
(lo que ellese tratava na penitencia corporal.
Destes exercicios, que forfio muitos, ainda
que não se escrevem todos , como se vê do Ca-
pitulo XX. de sua vida, secolllge,que a sua
idade foi larga : posto que se não saiba o pe-
riotio certo delia, por nos faltara memoria do
anuo em que nasceo, com tudo sabemos que
não passou de 2 5 de Janeiro da era do Senhor
de mil e trezentos e sessenta e cinco, em que
deixou esta vida presente pela eterna no
Convento de v lona, onde vi veo muitos annos.
As obras, que cumpoz, forão muitas , e to-
das deediíicaçuo , massó temos as seguintes:
O Dialogo da Sapiência , era que falia a Sa-
piência com o Ministro. Quatro Sermões ,
dos quaes vai aqui traduzido o primeiro para
remédio , e consolação dos escrupulosos.
Doze Epistolas , das quaes se poz aqui tum-
Lem a quinta , tiaduzida em nosso vulgar,
como em protestarão do anin)o, que fez sair
á luz esta viíla do Beato Henrique nesta im-
pressão. A's Epistolas se segue o Traíado
das Lioclias , quejúanda trailuzidoem \uli;ar
Cdsteihano. Logo a vida que aqui se p'>e; tle-
pois Cem iMeditaçòes da Paixão, \i no fim
uai Exircicío dos Ministros da Sapiência ,
que aqui ajuntamos por ser de\oto , e lard.
Compoi mais o Ojjxio quotidiano da S.i-
44 Prologo
piencía, que trazem as Horas de Nossa Senho-
ra, segundo o rito dos Frades Prégndores, ea
Missa própria da me^mn Sapiência, Outras
obras suas, e sermões se aclifio entre os es-
critos de João Taulero, Varão taml)e!ri de
granrJe vida, e doutrina da mr^sina Ordem
dos Pregadores, insigne pregador em Alle-
manha, donde foi natural, e falleceo com
opinião de santidade.
O Beato Henrique não é Canonisadopsla
Sé Apostólica , mas intitula-se Peato de tem-
po immemoriavel nas Horas de Nossa Se-
nhora, segundo o rito dos írades Pregadores
no principio do Officio da Sapiência , asquaes
Horas sempre são, e forão especiahnente
approvadas pela Sé Apostólica , e oulrosi é
contado entre os Beatos Con/Vssores da Or-
dem dos Pregadores, que traz o Calendário
Dominicano no fim. Além disto nas Provin-
cias de AUemanha alta , e baixa , que é Frau-
des, se re/a do Beato Henrique pelos Frades
Pregadores com o Oificio próprio; venerando
sua ímacjem com altares levantaclos <?m seu
nome, enáo é muito ([ue se nos commuuique
aos Frades de S. Domingos deste Reino, por-
que lambem elles lá não rezão de S. Gon-
çalo, sendo para com nosio tão conhecido,
íaltando-lhe ainda a (^auonisaçáo , de quem
rezamos só por huma licença, que alcançou
45
ElFxcl D. Sebastião. Ajunta-se a tu Jo isto ser
« nosso Dcato Henrique celebrado por Santo
também de tempo ininiemoraTel nos escritos
dos Var5es pios, e doclos , como é Surio,
que tanto apregoa sua santidade, e mila^^^res
«os prólogos acima , e em outros muitos lu-
gares,escieveudo noauno do Senhor de i555,
quefazembojc perto de cem annos,suppondo
A mesma Hadiçáo deduzida até seus tempos,
não fazendo aqui menção de nossos Escri-
tores, eCironicas, que de sua santidade, e
milagres t'at5o largamente , como é Fr. ]Mi-
guel Pio ím Toscano , c Fr. Fernando de
Castilho, 80 Bispo de Monopoli, aquellena
segunda patê, e este na sexta. Bzovio no
Tom. i4 do;Annaes Fcclesiasticos , Anno do
Senhor 1 36:, onde diz que em vida , e depois
da morte ílcreceo em irrandes niilafTTes. O
mesmo diz Fi António de Sena no seu í.hro-
nicon ad an. 3^o, onde lhe dá tit. de Beato.
]\íolnno nas aUlições ao AJartyrol. de l:si!ar-
do die 25 Jai. Fr. Estevão de S. Tnio in
Stcinmat. Orànis. pnc^. o.^m, Fr. I.(nn(ho
Alberto de vifs iliusfr. Ord. Praei/. Uv. 5.
Bti\A tm.de Scnj, Eccl. pag. 384.
íí
EPISTOLA
Em ordem V. das Obras do Brato Henrique Suso,
da Ordem dos Prèí^ddores , Iradnzidide Lnfhrt
fm vulgar por um Religioso da iftirrK^ Ur-
dem,
jfxLegre-se altamente a multidão dos Santos
Anjos liahitadores das moradas celestiaes
E testemunho do Senhor JESU lo Evange-
lho, que faz o Ceo grande festana conver-
são de um peccador á verdadeira penitencia.
"Veio á noticia do Ministro da I'>riia Sapiên-
cia, que havia uma mulher deião rara for-
mosura , e graça nos olhos dos lomens , que
muitos eráo íeiídos do seu lUior lascivo.
Doía isto muito ao Ministro d Sapiência, e
desejava cortar as raizes de tacanhos escân-
dalos, e perdições de tantas amas, tr.izendo
aqiieUa perdida a Deos, panyjue nella fosse
o Senhor louvado , e o Anjc da sua guarda
delia tivesse particular ghyia , e todos os
mais Anjos com sua conveȋo gozo espiri-
tual : e os homens tomascm exemplo de
emenda. Pelo que com tods as forcas de seu
Epistola do Beato Henrique Scso. ^7
«spiriíoseapplicou a rogar a Deos pela con-
versão taquella alma , e mui em particular
iniportujava muitas \ezcs a Virgem Sacra-
tíssima Ãaiíle Duos Estrella do mar resplan-
decente.oedinclp-lhe com grande aífecto, e
contínua jrarão, que alcançasse de seu Uni-
génito Fiho luz áquelle coração tão entre-
gue ás co.sas do mundo, cego, e escurecido
com as esjcssas trevas dos muitos peccados,
para queipartando-o delles o tr»juxcssc a
Deos, Ouvo a Senhora os rogos de sexi servo,
e íoi dadatal graça áqneila alma mundana ,
que suhitíaiente se converteo a Deos mui
de veras, d» que recebeo o Ministro ' tama-
nha alegriaia suaalnia, que, como fura de
si bêbado dtjubilos espirituaes, Iheescreveo
esta caria. F>rém como dahl a muitos tem-
pos íizesbo ei-tdba de seus papeis, ode mul-
los separassi estes poucos, deixando tO(I;js
os mais por forrar ten)po, chegou a esta
carta , e verulque não contiiiba xnais ou'i»a
cousa senão ui jubilo, e excesso de alegria
espiritual, teino que vindo á tino dos lio-
mcjis de durosç sêccos corações, lhes p^arc-
ceriasemsaburjidcneulium Irulo,' portanto
a j)()Z de parte, -orem logo na njadiugada do
dia fegníntif, qn era a oitava dos Anjos, em
visão cípirituaihe apparerêião niuifeos cs«
piiitos Augeiico cm fóima de njar^.cchofi
4^ KiisTOLA f>o Beato
formosíssimos, os quaes o rcprchenclôrao do
haver posta de parte , e risc^iila aqudia car-
ta , exhortando-o a que do novo a escre-
Tesse; o que tez, começando-a comas pala»
Tias do principio. Ale^^ra-se grancfen)k''iti* a
multidão dos Anjos liahitndores d:» nioradâS
Celestlaes. etc. E sendo-nic cntãc commu-
iiioados raios de luz , e clarldadeespiritr.al
pela respUndecenre Estrella do r]ar a Vir-
gem Santissima Mãi de Deos , coi os quaes
desapparecendc) todas as névoas d meu oo-
racão, ledo e prestes saudei a cesma Se-
nhora com todas minhas forças , hgo na pró-
pria iiora para mim saborosissin)a lompi com
a fortaleza em vozes tle grande ctfitentamen-
to, que chegavão ao Ceo, dizndo: Sejais
Estrella excellentissima do mar»audada com
affectos de amor sem limite dos ue muilíi vos
querem. Convidava aos Santosinj(\s (jue me
havláo apparecido , áquelles laneehos for-
iTKísissimos vindos do Ceo , p;*a qne conngo
á competência com melhores t mais esforça-
das vo^zes saudassem a Dulcisima, e Escla-
recidissima Rainha dos Ceos por haver com
rTandes, e formosos raios rhsua luz illuslra-
do o coração daquella mu^er, depí)is que
por ella ouvio meus rogo, e petições. O
meu espirito exaltado comíanto gozo dava
altos louvores áquella Co^'iúal Jerusalém.
rt.HEKUiQUE Sdso. 49
Bogíiva sera cessar áquellns dlninelas sin-
gulares , áquelles niatlnetes suavíssimos
lios campos da ç:U)ria , qne me ajudas-
sem a canlar em voze*? altíssimos louvores
ao Senhor em reconherimento de sna rrande
magiiifice!>ci:i. Tornava logo a levantar o
rosiro,c olhos so Geo, e treshtirdando oro-
raçáo de contentamento dizia : Alegre-se íjran-
demenie a multidão dos espíritos angeti<os^
hahitadores das moradas celestlaes: ó como
á vista de tar»to ;^'ozo desapparece titdo o que
ríesu vida padeci de ma^oa , e < ontrariedade.
Párecla-me que estava então na i<]adedeNero,'
represeniava-se-me , que andava passcamlo
pt^os prados, e jardins da ç[loria, e tornava
a dizer : Alegraí-vos nobilíssimas Jerarchias
dos espíritos Angélicos, qne viveis nos pastos
ceiestiaes , haja festas, dai vivas , eiUoai mu-
sicas portão alegre nova. Ponderai .vos ro£;o,
com a devida admiração com.o a fdha perdi-
da tornou á casa de seu pai , a filha da con-
denação foi recuperada , a que já era morta
veio á vida , e resuscitou , aanelle prado e
jardim da natureza, ornado de flores , não
menos formosas que aprazíveis , o qual á sur
Tontade paslaváo as he-^tas , vt*de romo é
renovado em sobrenatural formosura , já
íorão lançadas delleas bestas feras, já brotão
novas flores de graça á competência. As eu-
5o F.p:stola do Beato
trácias , eporlaes, dantes tão devassos , já sao
fechados, e seguros. Oc.impo alheado donies
a sen possuidor lhe é restituído. Pelo ^^jue,
vós ó órgãos dos Ceos, ó dextros na rilhara,
<) mestres insignes dashar[)as, e laudes da
gloria , entoai uovos moteltes, sue a nielocia
por todos os assentos, e retretes da Celestial
Jerusalém. Pero-\os com todo o encareci-
mento da minha alma, que por isto mais se
tngrandeça vosso gozo, por quanto a desho-
Lestissima Vénus, deusa da lascivia gentihta^
foi arrancado oseu coração. A grinalda mais
prima lhe foi arrchatada da caheça. Aqucila
boca tão sua amiga mais dextra em conciliar
amores profanos emmudcceo de lodo para
elles. O mundo enganoso , o amor caduco ,
immundo, e falso abaixa já o pescoço en-
tonado: e quem haverá , que de hoje em
diante apregoe iuais teus louvores? qiiem se
deixará prender de teus enredos ? quem
íinahnente haverá que queira neste mundo
ser-te amigo , guarJar-te corlezia , oudir-sti
t tuas vás occupaçóes, e serviço? Já aquello
veiJe ramo para ti seccou , e reverdecendo
ílorcce só p.na Deos : do que loilos os que
deveras amáo ao Senlior , gozosos o engran-
decem, dandodhe altos louvores por esta
admlra\el mudança, dizendo: A vós Senlior
seja dada toda a gloria , por quanto só vó«
Fr. Hb:íriqtie Suso. õi
fazeis estas grandes maravilhais nos nivilores,
e mais desesperados peccadores ; fíuc ainda
que em todas vossas obras, ó dulcíssimo , e
todo pí)deroso Senhor, sejaes amável, e di-
gno de infinito louvor , com tudo por muitos
mais modos sois amável , e digno de louvor
sem comparação maior nas misericórdias, que
usaes com os miseráveis peccadores; áquel-
]es , que tão longe estão do que merecem,
só por vossa bondade, e misericoidia sois
servido de attraír a vós. Este, Senhor San-
tissimo, é na verdade o timbre de vossas
obras , este c a formosura de vossa benigni-
dade , este o enfeite de todos voss()S feitos
mais lilustrcs. Nesta obra , Senhor, o moíite
de ferro de vossa exactíssima justiça se dei-
lou romper e paiiir para dar lugar á mise-
ricorvUa , e bondade. Vinde pois a mim todo.^
os (jue tendes recebido do Senhor outro tal
l)eneficio , e juntos todos em um tratemos
iiiui de veras o como poderemos engran<Iecer
a sempre bondade do Anantissinio bcphor
e Pai nosso tão perdodílor de nossas culpas.
Eia pois, ó Amantis5Ímo Serdior, não vô-
des a cousa mais digua de a<lrniiaçáo ? Aquel-
les, que andavão em braços com os montu-
ros, ja hoje com ferventissimos alTectos de
seu coração amorosamente se abração com
Yosco. Aqutjllas almas, que honicui erão a si
^2 Ei'ISrOL4 DO Bí\TO
wesma5, e a outras occasiáo de rulra , •
perdição, já hoje são pré;4adovas da suavi-
dade de vosso amor, não sabendo falíar de
outra cousa. Caso he de grande admiração
Vã verdade, aquellas que hontem qiicl>rando
de mimo , <; dejicias se não podião ter em
seus pés , lá boje se tirem a si mesmas tantas
cousas ainda das necessárias para a vida , •
iítventáo novos modos de rigores, e aspere-
zas corporaes, e de exercícios para hor.ra,
e gloria vossa, só a fim do vos poderem.
Senbor, agradar pura, e inteiramente; f
aquellas que estavão cativas de demasiado
amor de si mesmas , já se tem a si em lugar
de hospede estranho , c peregrin»). A(|ue'-
las, que sohiáo concertar-se com tanto cui-
dado , para mostrar o como daváo de mão &
vosso amor, agora é já toda sua occuparão
como possfío , Senhor , e devão agradar só
a vós. Aquellas, que d'ant(.'S como lobos rai-
vosos erão estimulados de iras , e fúrias
contínuas, agora como ovclhinhas niausas
não abrem l>òca ás injurias, e mores atVon-
tas. Aquellas, que dantes erão atormentadas
com as rjgorosisílmas accusacófs i!e suas , e
preversas consoien( ias clieias sempre de pro-
fundas tristezas, feridas de agudas «citas do
magoas infernaes, presas com cadèas não
menos rigorosas, que as de ferro , indisso*
Fr. HknpvIque Suso. 53
lureis Inros dos próprios peccados , já ago-
ra desembaraçadas, e prestes passando além
de tudo o que o mundo pôde dnr com uma
firme confiança , e solia liberdade se levan*
tão tanto sobre si , já mudadas , q!io oiisão ,
e podem dar vozes, que chegão á pátria ce-
lestial : em fim trocados de todo, não se es-
pantão senão de como foi possível que algum
dia estivcrão presas do amor do mundo, e
de como viverão algum tempo nas trevas da
obscura noite dos peccados. Ka verdade,
Senhor, aqui venho a ver por experiência
ser certo o que se diz, que o corpo se acom-
moda ao espirito, e um bom natural se
applica ás cousas eternas, logo aliiseacccndc
um grande inceridio de vosso amor. Esta ena
Terdade , Seidior , a mudança só de vossa nião
poderosa. Estas são, Senhora , e Rainha dos
Ceos , as obras de vossa piedade sem limito.
Mas comtigo fallo agora filha minha em
Christo muito amada , dá-me altenção ,
e adverte tu , e eu , e todos os que a nós são
similhantes, como nos devemos liaver com o
Senhor Omnipotente. Assi somos c>l)rigados
compor daqui em diante nossa vida , que
não haja quem nos possa nunca jamais fur»
tar a Deos : da mesma sorte nos havemos de
haver como uma escrava da cosinha, a qual
o liei illustrc , e poderoso preferisse i pro-
54 Ephtol\ do B>:ato
pria Rainha. Não lia diivida senão qre essa
escrava niimosa íaria extremos por se inosiiar
agradeci Ja ao Rei, seria íidehssinia em o
atuar, louvaUo-hia sempre de todo seu cora-
ção , e quanto se visse mais indigna de fa-
vores tão altos , lanlo se esforçai ia tnais no
amor de sen Senhor. Não de outra sorte
pois , nós peccadores devemos procurar ven-
cer aos innocenies, e puros, que nunca er-
rarão ; e se elles só n'um exercicio se em pre-
gão por serviço de Dlos , nós devemos do-
Inar o trabalho, e serviço do Senhor; se
elles anuu) a Dcos singelamente, nós te-
luos obrigação de redobrar o amor milhares
de milhares de vezes , para que assim como
antigamente nos não ficou cousa por fazer
no emprego do mundo , e para grangearmos
as vontades profanas, assim agora recompen-
semos estes damnos , procurando com dobra-
do cuidado trazer todos a Deos, e solue
todas as cousas tralen>os de agradar ao Se-
nhor, não menos diligentes no bem, do
que o fomos antigamente para o mal.
Torna, fdha , d memoria te rogo quanto
lios era agradável nos annos, em que anda-
van)os dados ao ntundo; 'achar quem antc-
pozesse nosso amor aos demais, quem nos
louvasse, e gabasse mais que os outros, e
com particular aífcctu e tenção nos5egui>se^
Fr. TÍENRiour- Suso. 55
como nós então nos persuadiam os ; quanto
pois sem coniparação alguma será agora me-
íiior a nossa sorte, e boa ventura, se o
Summo Bem , o Senhor Deos toclo poderoso
nos amar, não de qualquer maneira, rijas em-
pregando em nós seu cuidado ? Consicitra,
filha, quanto trabalho custou muitas vezes
chegar a poder lograr uma hora um amigo
da terra, da qual se 'pesares as cousas, e
ainda as palavras, pouco, ou nada se tirou
deallivio, e recreação. Quantoserá pois mais
acertado sofrer também agora alf^um tra-
balho porgrangear oser amado de T)eos? Por
sem duvida tenho , ó Eterna Sapiência , que
se todos chegarão a ver-vos com os olhos inte-
riores, como eu vos vejo, que logo ao mesmo
ponto se apagaria nelles todo o amor das
cousas terrenas. Não posso. Senhor, acabar
de declarar o espanto de minha alma, ainda
que já o meu juizo foi bem differente nesta
parle , de con)o possa haver coração, que se
empregue, e assocegueem amar outra rcuisa
fora de vós, ó abysmo de toda a bondade ; e
outrosi, não menos me admira o porque
vos não manifestacs , Senhor , aos taes misera-
Tcis. E sobre isso ver o cuidado , com que
os amadores do mundo auílão cobrindo , c
dourando tudo o que nelhi lhe pôde dt-sn-
gradar, tudo o que e disíorme, e á'jh»
5(j Epistola do BhVTO
ctiioso?e pelo rontr:irio se alguma ro usa tem
que po3Sti parecer bem fJessa pintada, e men-
tirosa formosura , ctmi que diligencia ariíno
á praça, e quanto scofem se nrio ê I>em sabi-
da, e visia (lo seu amaflo qnalffuer apj)aren«
cia Ji3 lustre seu próprio , e quaiido vem :í
experiência fpara qut; diga tudo numa pala-
vra) não aciíMo outra cousa n)ais que sacos
de esterco : dos quaes com razão se pudeia
dizer, ó queJii vos tirara a pelle de fór.j ?
então se viw claramente, i[u:\o medonlio
monstro é a apparescia. Porém vós, ó Escla-
recidissiina Sapiência, agora encobris o que
em vós é amável, e só manifestais o que é
de pena , e moleflia. Descobris o que é
áspero, retendo eni segredo o que é suave.
Mas porque o fazeis assi óBenij^nissimo JESU?
Seja-iiie, Senhor, licito com licença vossa
dizer uma só palavra, porque nao me posso
conter. O' sevos, Sjnhor, me quizcsseis ! ó se
vós me amasseis JESU dulcíssimo I ó se eu
Senhor vosso mimoso fosse ! Haverá alguém
que creia que eu sou amado do Senhor
JESU ? A isto só asjiira. Senhor, a niinlia
alma ; o meu corarão , Senhor, se engran-
dece de gozo , e salta de prazer só em cuidar
que sou de vós amado. Tanto que me vem,
Senhor, isto a memoria, tamanho co gozo
que recebo, que quem quizer atleuUr bem
Fr. rÍKNT.rQrs Snso. Sj
tn'o poderá cie fora conhecer , porque tudo o
que ha em mini se «lerrete, e eatpap* com
alegria. Se me dfiãoíi oscv^lher, nfio podéra
desejar cousa mais sul>lÍ!iie, nem iniiisaí;ra-
diivel , nem mais 5ah(írosa, do que ser de Vvós
querido com singularidade, e que pozesseis ,
Senhor, com particular aífecto os olhos de
vossa benignidade em mim , porque isto, Se-
nhor, quem haverá que (Uividc queé o Reino
dos CeosP os vossos (dhos resplandecentes. ,
Scnlior, vencem es raios do Sol sem comp;»-
ração : a Tossa boca é suavissima a quem t:o
manifesta ; o encarnado so])re a mesuia al-
vura de vossa face , assim da tiivina, como da
Iiumana natureza-: finalmente a. sem par
composlura de vessa pessoa sem comparação
cxcedi3 tudo quanto o desejo mais levantado
pôde alcançar nesta vida corporal. Quanto
mais, e mais se apura vossa grandeza sobre
toda a matéria corporal , tanto sois, Senhor,
mais amável e aprazível, ecom tanto mais im-
menso gozo se se logra vossa prcs;;nça. Tudo
o que se pode imaginar de formoso , amável
e de lustre em vós, ó siiavissÍ!uo Deos , e
Seidmr, sobre todo o encarecimento se en-
cerra com inestimável perfeição. Náo é
possivel achar-se em alguma creatura cousa
agradável, e de saber, ou estimação, que
por modo purissimo com iufmiio exccí>so
58 Epist. do B. Fr. Iíí-nriqtjs Suso.
«enao veja em vós, o Senhor de tutlo. Por
lanto vós outros nvjrtaes, lião vos passe |;or
alto, antes com muita considera cr» o adverti
que tal, e. lâo exccliciite é o incu amado !
Ê sendo esle , vede qne me quer a mim bom,
ó {ilhas de Jerusalém ! O' Senhor, c quão de
réras será ditoso aquelle , a quem vós que-
reis bem, e que nesta vossa amizade for
eternamente confirmado! Deos vos guarde, ó
£lha minha, para sempre. Amen.
Y I D A
DO
Beato Fn. HENRIQUE SUSO,
DA ORDE.V Dos Pr.EGADOEIS.
CAPÍTULO í.
Em que se dá conta donde era na furai o Z?.
Fr, Henrique Suso , e do tempo e idada ,
em que entrou na Religião , e começou a
seguir o caminho da vida perfeita , e de
como se escreveo esta historia.
N,
A grande , e estenJida província de Alie-
man4ia houve uni Kelifjioso da Ordem do hí.s-
so glorioso P. S. Domingos, natural de Sue-
via , cujo nome era Fr. Henrique S':so. Vivia
nelle, em quanto morou na teira, um ardente
desejo de ser servo do Senlior, e não somente
se contentava c<jm a obra , mas desejava ser
havido, c conhecido piM- lai. Aconteceop«r
discurso de tempo, que veio a ter conheci-
6o Vida do Beato'
mento , e pvntica de uma santa niiillier, qiie
tciído píirticuiares favores no Ceo , tinha ila
terra contínuos trabalhos e aíílicr^es : ecomo
t;il desejava c&nsolnr-se com este religioso ,
cesíorcarseu cançiido espirito, ouvindo de!le
algr.inas lições subré a niateiia do padecer,
tiradas da ntuita experiência, que longa-
inenie tinha teila em casos próprios: c isto
jez muito tempo todas as tcz-cs que o \ia , e
assim veio justamente a tirar delle com encii»
]icrtas , e dissinjidadas pergimtas , que lhe
fazia, a crdem , e priricipio de sua vida,
e processo delia, e alguns exercícios, e
maneiras de padecer, porque passara : o qu«
tudo lhe descobria o religioso em segredo
em snntn, e espiritual conversação. Mas elU
Tendo qne manifestamente lhe rcMdtava
daqui coiíSoh.çfio para os trabalhos, e ih>u-
trina para a alma, foi pondo por escrito tu-
do o (jue lhe ouvia para se aproveitar a si ,
e a outros: mas isto tanto a furto, e ás
escondidas de seu mestre , qne não entendia
elleo toubo espiritual, quosell.e fazia. ('.i>m
tudo lauto que pelo tempo adiante o veio
a sentir, rcprehendeo-a, e obrigou-a a lhe
entregar o que tinha escrito , que logo quei-
mou, t tornando-lhi- a dar outro dia alguns
papeis, que lhe Cearão na mão , também iís
quizeia por no fojo, jMas foi- lhe tolhida- a
Fr. fTtzíRiQíUE Suso. 6i
«I)ra rcm uma revelarão divina: e assim fica-
rúo livres estes uUinios cí-critos, que (|ua>i
todos eráo de mão da santa , aos quacs ella
depois de seu íalUciniento ajuntou , e a He-
ii^ião eni nome delia n)uitos outros docu-
wentos espiriluaeã. Começou Fr. Henrique
sui\ conversão ou os mais determinados prin-
ci?)ios doila , sendo em idade de dezoito
r. Tinos : j^oique sem embargo que neste tempo
Lavia já cinco que eslava na Peligião , tinha
;\inda o espirito inquieto,' e desasocegado.
E se bem cou» o favor divino se guardava
de peccados mais feios , e dos (^le o podião
desacreditar, tod^avia nas culpas leves, e
(omsiiuas era descuidado. IMas neste tempo
tinlia o Senhor tal cuidadt) de sua guarda,
que a toda a parte que se deixava levar das
cousas, a (jue seus sentidos com natural
í^osto , e deleitação se inclinavão, cm ue-
nhuma acliava quietação , nem repouso. E
parecia-lhe ((uo alguu)a cousa outra tinha
por descobrir, que só podia dar paz, e verda-
deiro descanço a seu vigoroso tspirito', e
assim vivia com trabalho, andando nas
ondas destas alterações , e dcsassocegos :
ati'omentava-o intciiorniente uma contínua
guerra da consciência, e com tudo não
era poderoso para se ajudar de si mesmo,
até que O piedosissimo Deos loi servido ir»
(53 Vida do De ato
Tra^-o (oin Tma conversão divina. Enxergou»
se K;go iielle uma súbita mudariç;», que a
lo(J(js causava espanto , imaginando no que
|jOíleria ser, que assim o trocara, e todos
davâo seu parecer no caso; mas ningutm
por então acertou com a verdade , que em
fim Ibi obra do Senhor. O ((ual por meio
de um arreliatameiíto secrclo, e clicio de luz
do Ceo obrou sul>ilamenle em Fr. íienriqua
ftsla divina mudança , cujo effeito íoi dai cie
isião a todas as cousas do mundo, e «ntre-
gar-se todo a Deos.
CAPITULO II.
De algumas tentações , que o B. Fr, Henrique
padeceo no principio de sua con^'ersão.
J- Endo Fr. Henrique recebido do Ceo
esta divina graça , logo começou a sentir em
si uma guerra de tentações, e repugnaucias
interiores , com que o diabo tra!)alIiaTa por
lhe estorvar os meios de sua salvaçiio. E
foi desta maneira. As inspirações, com que
Deos lhe batia nas portas da alma, obriga-
\ão-no a voltar as cosias com uma expcíhda
e solta retirada a tudo a({uillo, que o podia
embaraçar no caminho da verdade. Lontra
Fr.. íIekp.iqus Sus©. CS
íslc poi fiava a tentação, que procedesse com
bom conselho , e que se náo determinasse
de pressa, porque era fácil coriíeçar , e muito
difíicuhoso levar ns cousas ao cabo, A inspi-
rarfio celestial repiesentava-lhe o grande
poder e ol^ras do E?=pirito Santo. Da outra
parte a tentação não fazia duvidas na gran-
deza, e omnipotência de Deos quando qui-
zesse ajudnr , mas duvidava de seu querer.
TSo c;d)o de tudo mostrava-se-lhe na alma
com clareza certissinia, que não podia Deos
faltar nnquella branda e amorosa promessa
«ua, que era soccorrer, e ajudar a todosaquel-
les , que, fiados em seu santo nome, com»
metlcsseni este caminho. Ficndo nesta con-
tenda a victoria da parte de Deos , logo o
commettia outro pensamento, que , disfarça-
do com brandura, e com capa de amizade, se
Jhe ia assentando na alma, eo aconselhava
desta maneira : Bem pôde ser que seja acer-
tado isto que tcntaes, e razão é emendar Sk.
vida , mas não vos mateis muito : antes
começai tcão altento , que possaes cbcj^ar ao
fim com o que começardes. Comei, e bebei
á vontade , e tratai-vos bem , e eniretaulo
não haja peccar. Ga dentro de vós , e para
com voscoscde santo quanto quizerdes, ma«í
ftc^ja com tal temperança , que no exterior
nio se assombre nin'uiem com vosco j «
64 VlDl DO Be4T0
andai com o dito commiim : Haja pureza na
alma , que ludo o mais vai bem. Poder-
Tos-heis dar bons dias, e viver entre os ho»
metiS alegremente, e com tudo não deixar
de cumprir codi as obrigações da virtude.
Taad>eni a outra gente espera de se saKar,
o mais wão se metie em tantas fadigas. í^las a
sabedoiia etfcí na desbaratava tão íalsívs con-
celhos com esta só ra/^io. Quem cuida de
ter uma enguia pelo rabo, e começar fida
santa tihia monte, tanto se engana em uma
cousa, como naoutr.i; porque tjuando llte
parece que está bem empolgado em ambas,
frscoa-se das mãos , e acua-se sem nada. As-
sim também quem quer sopear , e ter sujeita
a carne altiva , e mal habituada vivendo
vida mimosa e tlcsraneada , | ódo-se-IIie di-
«er, que não é de juizo l-em assentado , por»
que querer gozar mundo ,'e juntamente ser-
vir a Deos com perfeição, é íabricar impossi-
bilidades, é falsilicar as Escripturas Sagra»
das , é danar a Doutrina de Ghristo. As im
que se queres despcdir-le de tudo, convcin
fazei -o com animo varonil, e dctermir.ado.
Andamlo muiloi dias ás voltas com estas
imaginações, em ínn cobrítu ousatlia, e ar-
mado de conGanca apartou-se esforçada-
mente de tudo, Knire as cousas a que fugio
Ibi uma a companhia ociosa dos amigo*,
iio Tine sfu vigoroso animo passoTi tanto tra-
balho nos I rincipios, que posso affimiar, que
pacleceo muiías míntes. Businva-os primeiro
alírunws ve:*es pan? se dcsníelancolizar com
eiles venculo da fraqueza natural: mas as
mais delias Ibe a( oiiteria tomar triste doiid©
fora alegrí ; porque as praticas, e recrea-
ções dos amigos, í:ão erão nada de Feu ^jos-
to 5 c fís suas erão odiosas aos juesr.ios. Ou-
tras Tezes siiíC^.\o, e não íorao pouras,
trataieni-no coixi palavras, e ditos pesados,
tanto que se chega\a a cllrs. Um ll.e per-
guntava que ordenj de vida ciw aque!.'a qne
enipreudera , em ene queria sor só, c des-
viar-se do coniniuin : Outro lhe dizia , (\v.e o
mais seguro modo de viver era o ordinário ,
por oude todos corrião : Outro que laes in-
venções de vida sempre paravfio em niiío
£m. Aíjsini o agasaUíavão um trazo:ilro, e
elle sem lhes responder palavra , talíando
con^si^o dizia : O' pitdosissinio Deos não ha.
'onstílho mais acenado, que fugir á compa-
.ia dos liomens; que na verdade, se cu i:ão
;a buscnr tacs juaticas, níio tivera 3^M)ra
' qt;e me queixar. - Esta Cruz o trouxe
nj.lle tempo gravisslniamente aloinícr.-
!o, porque i^fio tinha ninguém com qucín
; desse dtaabafíir descubriijtlodl.e suasofflic-
í^ LSj que íoísc pessoa , que sei;uisse a me£ii:a
0S \ir\ Dô Zl\t
ordem , e estilo de vida. E assim vivia des-
contente , e triste. Em fim á viva forçi se
acabou de furtar aos liomeus, e sendo p.ira
eile cousa ião penosa esta abser.cia, o costu-
me lha vci(» a fazer depois saborosíssima.
CAPITULO ííí.
Dâ um rapto sobrenatural , que icí'e o Beato
Fr, Henrique,
AConieceo ao B. Fr. Henrique no princi-
pio de sua conversão, que entrando um dia
depois de comer no Goro na Festa da Vki-
♦rein e Martvr Santa Icjnezse deiíou ficar só ,
c em pe nas cadeiras mais baixas do Coro
direito. Andava elle neste tenip ) mui carre-
gado de melancolia causada de uma grande
tribulação , que padecia. E estando assim
desamparado de todo o allivio, e consolação
luimana , não sendo ninguém presente , foi
arjebatada sua alma, ou tosse no corpo, ou
íóra doUe, e vio , * ouvio cousas, que nem
todas quantas línguas ha do nunulo serão
bastantes para as contar. Era o que vio uma
cousa sem figura , e sem distlncla feição, e
todavia tinha em si lodosos ^jstos, e delei-
te^, q.ie se podem imaginar em todas as ti»
guras, e feições de cousas. O coração junta-
Fui HíTíRiQUE Srsft» 6y
«lentc lhe ardia em desejos , e juntamen-
te se satisíazia , o espirito estava de todo
desassombraílf) , e aprazível, o appctitc,
e eleirão não obravão, antes jazião corno
scpiíltados em profundo sono , semente ap-
p-iicava com cuidado os olhos da alma eni-
piegando~os naquelle raio resplandecente,
e (larisíinio onde de si, e de tudo o da
vida perdia a memoria. De maneira que não
sabia se era dia , se noite. Foi isto sem duvir
da um gosto, que brotou da eterna vida se-
gundo a experiência , que Fr, Henrique de-
pois leve em tempos de mais paz , e quieía-
câo , e assim dizia elle depois : Sc aquiilo não
é a gloria do Reino dos Ceos , cu me reselvo
que não sei que cousa he Reino dvs Ccos,
Porque tudo quanto v,v,. homem pôde pade-
cer de Irabalho nesta vida nào I)asta de ra-
zão , nem de justiça para merecer uma fnl
gloria Jiavcndo-a do lograr para sempre. Du-
rou-lhe este extasls uma hora , e meia, sem
saber atinar se tivera neste espaço a alma no
corpo , ou lóra delle. Mas toriiatido em si
andava lai , que parecia homem , que viniia
d(i outro mundo, e saio dalli tão quelwan-
tndo , e cheio de dores, que llie paiecia que
nno podia ninguém passar tanlas em termo
tão ])reve, ainda que fosse na lir.ra da n^orle,
I. tanto que foi est?n(h) mais v\\\ si, e ro-
6^ TiDÀ Dft BZAT*
brando forças dava uns stispiros, qne se íliê
arranca\:\o do inaiâ príifuudo da aluia , e
SCÍ15 se poder ajudar caía por terra , como
acontece ácpielles, que por falta de forças se
desniaião. Gciíiia lastimosamente, c dando
ais que arrancava das entranhas, dizia desta
maneira : O' meu Deos , onde eslava cu , e
oníle me acho agora. O' summo bem meu,
meu bem principal não ha^vcrá jamais cousa
que possa levar de njínha ahna a memoria
desta hora. No corpo estava , e nelle vivia ,e
ajudava, e todavia não houve ninguém que
di íóra visse, ou entenJesjS delle c;)usa ai*
j;u!na deitas, com andar tal, que trazia a
aluía cheia de visões celestiaes, c no maii
secreto delia se lhe abriáo rcsplandores di-
vinos, que a peneiraváo pctr toda aparte, d«
maneira que lhe parecia , que andava pelos
ares: (inalmente em todas as par^s princi-
paes d.í alma lhe ficou aquelle bom sabor, e
gosto celestial (como vemos em um vaso, que
sérvio de licores cheirosos, que não perde a
cheiro ainda depois de vazio) e duraudo-Ihe
depois muito tempo l.)i melo de espertar em
5011 esoirito uma cclesLiul sede, e saudade
de D^oê,
Fa. Henrique Srso. ^^
CAPITULO IV.
€oino o Baato Fr. Henrique cehlrou Fípo*
sorio €Sf:>irííual com a Sabedoria eterna^
A ordem de vida que Fr. Henrique costu»
niou por grenile discurso de tempo, nos
exercícios cspirituaes , que usava, tra uni
aturado desejo de gozar perp«?tuamente da
vista, e presença de Deos, e juntamente
trataI-o,e conversal-ocom familiar coninuini-
caçào. O princi{»io que teve est(j desejo se
achará nos livros, que clle mesmo rouipoz da
Sabedoria eterna eia Aliemão. Era o Santo
de sua natureza mui alíeiooado , e desde
sna mocidade teve esta inciiiiarfio : e í;eos
na Sagrada Scriptura , onde laila de si i oní
nome de Sabedoria eterna , lUbo se oITciec»
inenoá que por uma amii^a muito vencida
de amores, que se eníeita, e atavia rica-
mente para agratlar a lodos , usa de palavras
e geslosamorosos, para levar traz si as almas,
lo^jo aponta os enganos , e pouca lirmeza de
OLiiras ami.\^*;ís, re[)resenlando de sua parte
grande constância, e^lcaldaiie em amar,
titãs cousas tiravao pt lo animo juvenil ,
Con'.o dizem da onça , que com a suavidade
•^Ct Vida do Bií^to
do cheiro, que naliirnljnciite de si Innoa,
obriga os outros aniinaes.i buscarcm-na. Os
livros cm que mais se usa deste terujo, cujo
intento é com brandura , c suavidade levan-
tar nossa alma ao amor divino, sào os (!e
Salomão, e da Sapiência , e do Ecclesiastico:
os qiiaes lendo-se no Refeitório, e t)uvindo
o Santo um dia as palavras brandas, e namo-
taJas da Sapiência , encheo-se todo de ale-
gria em sua alma, e começou-a a namorar,
e perder-se por ella; e ardendo neste cuida-
do fallava desta man<íira comsi^jo : Eu sem
duvl(ia provarei minha ventura , e verei se a
tenho com esta formosa Senhora , de que se
, contiTo cousas tão soberanas , para merecer
seu amor, e gozar de tão nobre companhia,
pois Deos foi servido dar-me um coração
tívo , esperto, e riíjoroso. E nesta idade nâo
c possível (jue viva eu sem o emprejjir em
algum an^or. Com estes pensamentos anda-
■va-se traz ella espreitando-a por toda a parte,
e buscandf)-a muitas vezes, e outras tantas
se comníunicava o Senhor a sua alma , e
]he fizia assaz fav<nes. Estando nma vez na
mesa ouvio que se liào eslas palavras dã Sa-
piência : A sabedoria é mais fom^osa que o
Sol , e comparada sohrs tcda a ordem das
est relia i com a luz, i.nda se acha que lhe tem
vantaí^em f esta amei y e busquei com cuidado
Fr. Henrique Suso. yl
tíesde minha mocidade j e husqiiei-a para n
tomar por esposa , ê Jiz-me amante de seu
gosto. l-'or esta terei nome no povo ^ e honra
entre os mais velhos; por esta serei immortal,
e deixarei memoria perpetua aos que hão dê
vir depois de mim. Entrafido cm minlia casa
descansarei com ella; porque sua coJiversação
não é pesada^ nem sua còmpanJiia enjada,
antes dá gosto, e alegria. Cora sabedoria
fundou o Senhor a terra , co}?i prudência
fortaleceo os Ccos , de seu saber sairão os
abjsí7ws , c as nurcns se congelão com ona-
Iho. Quem a alcançou passou coíijíadamente
seu caminho, e o seu pê não tr(>pccará ; se
dormir não finverã medo ^ e o seu sono será
descansado. Ouvindo estas palavras, e outra:;
a este modo todas clieias de doçura, ficou
com o coraof.o abrasado, e rtvolvendo-asuo
pensamento failava dusta maneira comsigo:
O' verdaduiramente riO])re , e escol hid:? ami-
ga. O* se por dita pudera aronleccr querer
ella sel-o minha: que bem andante, que
ditoso seria ! Mas logo o espantavào iniagi-
nações contrarias, que lasliniando-o inltrior-
mente lhe chzlào : Como vos ha de caber no
pensamento amar o que nunca vistes ? Como
podereis querer bem a quem nunca conhe-
cestes ? Kfio saldeis vós que nalhor c ur.i pe-
queno punluido cerio j t dcseciba r?( ado,
5* Vida do C«\ro
que a rasa cheia com diivl I.js * qr.rrn fabril
ca edifício alto, e íjrangca amizu.le de gran-
de Senhor , estando hniíre de se r seu i^unl ,
este tal as mais das vezes se acha enganado
em sua espera nçn , e clieio de miséria,©
fome, larga o negoeio. i)em confesso que
i5ão íôra para engeitar o amor desta (iama, se
eila consentira a seus servidores tratarem-sc
])eni , e levarem boa -vida; mas elU esta-vos
dizendo: Quem folga com vinho, e com
grossura não será sábio. E diz mais : Até
quando dormirás preguiçoso, quando has de
acabar de te levantar desse sono? Pouco
áormirás, pouco estarás sonorento, menos
tempo juntarás as mãos para desça nçar , ^
dará comtigo a miséria como um correio, e
a pobreza, como homcRi armado. Vede [lois
se houve alguma hora quem pozcsse tào ri-
gorosas leis a seusnmanlesP Aqui lhe acudio
MUI pensamento dí; Ceo to<lo em seu favor
lembrandrr-Uie, que era lei antiga, c condi-
cào do amor penar, e padecer qucui ama.
ííenhum amante, lhe dizia, vive sem cruz,
£ tormentos , o ê bem de veras marlyr todo
aquelle, que fiequenta a eschola do amor.
Quanto mais raziÀo é lo^o que sofra, e que
trabalhe quem pretentle uma tão alta , e
lao insigne Senhora por esposa e por ami-
ga? VciLia que desuálres, a qc*tí enfadamen^
Fii. Henrique Suso. ^3
tos, t contrastes se sujeita© , e a seu pezar
ess«5 amadores do iiuindo. Com estas, e
outras inspirações siniiihantes, cobrava es«
forço para perseverar, e virihão-lhe a min*
de. E assim ora estava de Lon» aniriio,
ora tornava a abater a afíeição ás cousas
transitórias. Andando nestas voltas sempre
topaTa com alguma cousa, que contradizia
sua períeila conrcrsao, e por esta razão
variava pendendo ora a uma parte , ora
a o;itra. Um dia estando á mesa ouvio ler
um passo da Escriptura Sagrada, que falia da
Sabedoria , com que se abrazou vehementis-
iinianíente , era o passo este: Eu estendi
meus ramos como tberibiiilbo, e os meus
ramos suo de honra , e de graça; como iibano
nao cortado perfumei n^inlia morada, e
como bálsamo sem mistura é o meu cueiro ;
quem me athar, adiará j;az , e aUanrar.í
4âuJe do Senhor. íslo failava da Sabedoria:
e do amor sensual e dcshonesio dizia o se-
guinte: ALuei uma mulher niais amargosa
que a morte, que é laço de caçadores, seu
coração rede , « suas mã^s grilliócs , quem
agiada a Deos escapará ; mas quem c pecca-
d(U', si:^"d por ella lalivado. A islo levanla^a
entre si um grande l)rado , e dizia : Clara-
ínentc siTo islo verdades. Ora de tc(ío cm
todo mu resolvo de tomar por Eí^posa a Su-
^4 Vida no Padus
Ledorla. Já tenho assentado de me c:Uivar
(le seu amor, e Gnlrcg<ir-:i:e todo a seu ser-
TÍro. Ah queiíi tivera lugar de a ver , e fal-
lar-lhe , Inda que nfío fora mais que lima só
vez, Ah quorn soubera, que cousa é , ou que
feição tem , quem pregoa de si cousas tào
maravilhosas ! quem tautas cousas , e tama-
nhas permitte ? E por ventura Deos , ou é
homem ? E homem, ou é mulher? R scicn-
cia , ou é sagacidade ? Ali queiu soubera o
que é. Ardendo nestes desejos mostrou-lhc o
Senhor uma visão, que quanto aossinaes, e
ao que da eterna Sabedoria se escreve noj
passos, que temos referido, e n'outros da Sa-
grada Scriptura, ficou-lhe fácil de conhc-er
ser ella. A visão era esta : Passava por cima
delle ao longe ení uma columna de uma nu»
vem, ia sentada em um ihrono de marfim,
resplandecia como a estrclla da alva , ecomo
o Sol quando cstÁ em sua forra ; por coroa
tiidia a eternidaile ; por manto, bemaven-
turança ; pnv pratica , suavidade j por braços
para abraçar, enchentes d« todo ó l)em. Esta-
va perto, e andava longe, era soberana,
e humilde, estava presente, o esconíiida ,
mosiv^iva-se conversarei, e todavia nfiO s(í
podia travar delia. Era mais alta , que os
mais altos cumes do Oo, e mais prolunda
quG o abysmo, Chegava de cabo a cabo com
Fa. IiENRIQtE Su^o. ^5
fortaleza, e ordcnaTa tudo com suavidade.
Quando Ilie parecia , que estava todo enle-
vado na belleza de uma formosa donzelia ,
iníístrava-se-liie em figura de um Ijellisslmo
mancebo , algun-as vezes se lhe cfíerecia
como mestra dextrissima em todas as artes;
amiora, e graciosa para todos; en) fim vol-
tando-se a elle aprazivelmente , e agazalhan-
do-o com a bôra theia de riso, mas r.Po des-
acompanhada de uma m:)gestade cídtstiai,
í"al!ou-lhe amorosamente estas palavras:
Dá-me, filho, teu coraçã<í. Então elle derri-
bado a seus pcs com toda a humildade , e
entranhavel aifecto lhe rendeo as caraças.
Este favor Ibe foi concedido por csla vez ,
e nunca mais o pode alrancai- oii',ra. Depois
disto anilando pensativo , e com todo ò en-
tendimeuto embebido , como linha de costu-
mo, nesta divina Sapiência , como era de sua
natureza affeiçoado j ventilava entre si esia
questão amoi(>sa : Donde , ou de quo fonte
saio o amor , e a graça de ser amado ? Oíuidc
nasce a formosura, abelkza, a boa som-
líra? Donde vem toda a outra perfeição ? É
possivel cjuc tudo isto mana daqiielle prin-
ciíJÍo fertilissimo da divindade:' A vós nu'
vou lo^M) n abysujo imnícnso,e inexliauslo do
tr.do o f]ue uierecc ser anuído. A vós amo
com Q coracf.o , cos sentidos , e com ulu.a.
^(5 Tida do Beato
A T«? aLr.ioo, que ninguém nro tolhe , roTtí
cntranhayelaíTt>cto deste meu nhrazado espi-
rito. No meio destes pensamentos lhe ncon-
tecia alojjimas vezes cominunicar-se-lhe o
mesmo Senhor , que é fonte, e corrente de
todo o heui ; no qual juntamente nrhava
toda a formosura, e tudo aquillo que só
merecesse ser amado, e tlescjado , e tudo
alli eslava junto jior modo , que tião ha pa-
lavras coui que se possa contar. Da^pii lhe
ficou em costume que Todas ns vezes, que
ouvia referir, o?i cantar versos amorosos,
logo corria c'o alm:i , e c'o coração á sua
nmada, de quem procede tudo o que é dlj;r.3
de ser amado: e furtando de certo modo a
vista do que tinha presente, se recolhia den-
tro em si , ou se arrehatava. E não se pode
dizer quantas vezes com os olhos cheios de
lagrimas largando sem t«rmo a capacidadá
de seu coraçTo a ahravu , e apertou com-
8Ígo. ^luitas vezes se havia com elle neste
Tempo a Kterna Sahedoria , como se ha uma
imli com uiu fdho menino pedindo-lhc o
jicito todo sumido eiitre seui hracos : ella
ahracando-o amorosamente. E como o ii:e-
nino coiu a cahcra , e os meneios do corpo
trahalha por chegar aos peitos da inãi , o
com risinhos, e geilos graciosos lhe está si-
gnlGcando o ^osío, quo tom najuéllc lugar:
Fr. Henuique 5c$o. ^y
Y*íri nals nem menos Toavíi a alma c!o B. Fr.
)!eniiqiie para aquclla prtsenço , gloiiosis-
sima com uma enchente de alegria, que lhe
tríshordava por todos os sentidos, I-og*^ <^'m
se* peTisamenío dizia: Bom Senhor, hom
JEUJ, alegre fora eii , se chegara a tal -vertu-
r», que se me dera por Esposa nuia Poderosa
Jíanha. Pois logo , que n)e falia? Eu tos
teríio agora eterna Sapiência por Senhora
BiíiJrilia , e Imperatriz de minha alrra. Vcc
soií niíi de todas as graças; com^ofco sou
tíTorico, que me soheja lazerida, honra , c
poder. Não cohiro , nem quero n ais de
tudo quanto o niundo pôde dar. Traz cstírs
imaginações íirando com o semllarte riso-
nho , e alegre, os oll os acesos , o coraçêo
e todos os sentidos interiores saltando de
prazer , rebentava nestas palavras : Mais qi.c
a mesma saúde, e mais que toda a loi mesura
in>ei a Sabedoria, e piopuz ttl-a por minha
luz , e daq li nasteo vhcm-me lodos es Ltns
juntos com cila.
Tida do Beat»
CAPITULO T.
Va maneira , com que o Santo cscrevco srl'e
seu coração o SaiuisAmo nome ddJiíSi\
N
O mesmo tempo se lovniiton em snantfim
um grande fogo, que ateado nella , e c as-
cendo sem termo lha abrazou toda em tffi-
cacissimo amor divino, e sentindo um dia
este ardor causado da caridade, com que
sobremaneira amava a Christo , recclheo-se
á sua cella , em um luí^ar apartado , e eniran»
do em uma contemplação saborosissima tal'
lava como o Senhor , e dizia-lhc : Prouveri
a vós formosissimo Deos, que tivera cu pode*
para inventar algum sinal de amor , que fòri
iim perpetuo penhor, e lembrança de ami*
7ade entre mim e vós , e dera testemuuii»
do muito, que me vós quereis, e do qu3
vos cu quero a vós , e fura tal , que nenliun
^esquecimento pudera ser parle para se pertler.
Comeste fervor ilt* e<ipiritotao grande levan-
tou o escapulário, e descuberto o peito tc-
inando na mão um ai^udo ponteiro tle ferro
olhava para o coração , e di/.ia: Deos Omni-
poietite, dai-me vós hoju forças , e liceuç*
para sAíi jí.izcr a meu3 desejos, pois já njor*
Fr. Henrique Srso. 79
líç coiiTCm não me conlentar com rrenos
<]ie corn vos metter Cieniro nas enlranlias
ik^.te coração. Dizendo isto coincrou a fe-
vii-secom o ponteiro sobre o coração, e cor-
tai a carne de cima para baixo até que dei-
xoi escrito nella o Nome de JESU. Entre-
taito corria o sangne de nir.neira, que Uie
bínhava o (oipo todo , e olhando para elle
coii uma alegria da alma não esiijnava as
ílcres ])ela força do amor , que era causa
delas. Acabada a obra assim como eslava
€)Volto em seu sangue foi-se á Igreja, oposto
i(3 gioibos diante de lium Crucificio disse:
Ija Senhor meu , único amor desta alma
ninha , ponde os olhos na forvorosa vontade
(cm que vos busco. Bem vedes que não te-
lho poder para vos imprimir em mim tão de-
veras como eu quizera , sede vós logo servi-
<o, Senlior meu , de condescender agora com
iieusiogos, acabai o que falta , iniprimi-^os
TO profundo tieste coração , e esculpi vosso
santo jNome em mim , de maneira que já
tiais possaes esquecer-vos, ou aparlar-vos de
uinha alma. Durárão-lhe muito tempo alicr*
las estas feridas de amor. Em fim sendo são ,
àcuu-lhc oNome de JESU escrito, ecxprpssf^
no coração como pedira. Erão as letras de
grossuia de uma cana de trigo verde, e li-
iihão ^e comprimento quanio lia de mu nó a
OMtro no fleclo mínimo íIa mão. Esle nomf
trouxe em seu peito até «í Ijora da morlG
Tetlas as vezes, que lhe palpitaTa o cornrrr>
fazia o nome o mesmo movimento, e rts
princípios lançava tle si um estremado rô-
plandor. Mas o Santo teve sempre tainan>o
cuidado de o esconder, que já n»inca mais c
descobrío a r;in£:uern , sciiio foi a um .»<
seus companheiros, a quem o deixou ver eu
segredo, por ler com e!le amizade particuU'
e espiritual. Dalliem diante quando ihesir-
cediáo lral)alhos, punha os olhos neste sini
de amor, c passava-os melhor. Algumas veze
faliando rom o Senhor familiarmente Sf)í.
a dizer-lhe. Os amantes do mundo coslumát
trazer os retratos das suas damas nas roupas
que vestem, eeu, Serilior, com muito avan-
tcjada aííclção es( re\i-vos cm meu corarão, «
em meu sangue. Um dia rocolhendo-se par;
a celia , acabada a oração , que tinha depoi.
áii Matinas , encostou-se sobre um banco to-
mando por cabeceira o livro, que chainão
J''iías paiiutn. Aíjui leve um rapto, e pare^
^cia-lhe que se !he levantava do coração al-
guma claridade , e pondo os olhos nelle vi»
sobre o mesmo lui^ar uma Crur de our*
guarnecida de muita pedraria, entre a (|uai
resplandecia com nuiravilhosa obra o Nome
di JESU. Acudio logo com o capello a cobfir
Fr. Mekriqce Suso. 8í
a conção, trabalhando por esconder tão
espantosa luz , para que de ninguém fossa
"vista, mas quando hkjís se cansava , cntto se
esforcaTãoestreraadaiiiente os ardentes raios,
qnc deila saião, lançando de si tamanho
resplandor, que por nenluima via pôde enco-
brir, nem reprimir sua força»
CAPITULO VI,
Pe nl^uns ensaios de consolações díx^ínas,
com que Deos favorecia o B, Fr. lUnriauc
eui seus princípios»
OAíndo o Santo um dia de Matinas, e re»
foiiiendo'se como costumava cm seu Orató-
rio, deitou-se sobre o oca banco para repou-
lar um poiico. Foi o sono breve, e não du-
rou mais, que até os espertadores darem
sinal do dia , a cujas vozes acordou , c derri-
])ando-se logo por terra satulara a eslrella
d alva, digo, a Soberana llainha dos Ceos,
parecendo-lhc , que assim como as avosinhas
pelo Estio saem alegremente a receber o dia
quando amanhece, assim era razão ievantar-s«
elle lambem a adorar a mãi do Eterno Sol
com alegre, e devoto afíeolo. As palavras
cpe diziu dtí saudação uuo erão rezadas sw-
32 Vi Dl. LO pAcnr
mente , rr.as entoadas con; unia rnirsica íla al-
ma caiada , e suave. Aiiles do Santo acordar
do sono, que digo, ruivia um espantoso
estrondo, que lhe retumbava dentro nalma,
com que todo cslreniecin. O s<jm era por
estremo agudo, e foi sentido dtdie iiorneímo
tempo, que costuma a iiaster a estrclla
d'alva , e daqueile som saía uma voz inlcili-
givel, que dizia: .Vnria estrella do mar suhio
hoje no Oriente» Soou-llie este verso nas ore-
lhas com tal melodia , e tanto sobre o natu-
lal 5 que todo se alegrou em sua alma , e < c»-
mecou juntamente a cantar. Paí.s;u!o o som,
e juntamente a sua musica, sentia-se abra-
çado sem saber com quem, por um modo,
qual nenhuma linguagem alcança a declarar,
e logo ouvio esta voz: Quanh» nuiis amorosa-
mente me abraças, ccjuanto mais puramente
sem mistura corporal juntas tua lace com a
minha, tanto com mais gosto, c maior amor
serás abraçado no reino de minha eterna luz.
No fim destas palavras acordíui , e lem])ran-
do-lhe o ({ue pasjnra , desíazia-se todo em l»i-
grimas Ari. dtivoção. E logo seguindo seu
costume saudava a estrella iralva pelo modo,
que temos dito. Depoii desta saudação cu-
lueçava outra na mesma hora em reverenc ij
da Sabedoria eterna beijando o chão , e di-
zendo uma oração dcToli&sinia , que cUe
Fr. Il£xi\iQU2Scoo. S5
eftmpoZjC anila nos livrinhos, que fez de de-
vocfio j que começa : Desejou minha alma , etc,
A estas duas ajuntava a terceira beijando
tanjbeni o chão em honra do mais alto ,
e mais ahrazado Seraphlm do Ceo , que
com maior fervor arde em amor divino.
O que lhe pedia era, que inflasiimasse
sua alma no mesmo amor, de maneira, que
não só SC ahrazasse todo até ás entranhas
neste santo fogo, mas fizesse arder i.elle ao
miiudo tíjdocom suas fervorosas amoestacóes,
e doutrina. E lae-? eráo as devoções, que usa-
va todas as maulians quando se levantava.
No tempo do erjtrndo, em que o mundo »n-
da lodo devasso, e desccmiposto , esiendeo o
Santo Varão inn.i noite tauto a oração, que
os espertadores já fazião sitiai , que amanhe-
cia : elle então falbva coujsigo , e dizia: Re-
pousa agora um pouco (orpo cansado autes
que vamos a receber a formosa estrella d'aU
va , e deixando vencer os sentidos de um
breve sono, começarão os Anjos a cantar
Mquelle brando, e suavissimo Uesj>onsoi io :
Sartre illiuninave Jerusalemy etc, E a musica
soava dentro cm síia alma com estieniada
suavidade. A cabo de um pequeno espaço
enlevava-se-lhe o esj)irito naquelia celestial
harmonia , de maneira , aue já não pod?i
sop portar o peso do corpo mor lai . c terreno ,
1^ Tida do Blatô
c nssim açor Java trcsbordardo-llie pcloft
ollnisii ízloria ilo coracãu em ardentes arrojos
de lagrimas, que delies verlia. Pelo niesfno
tempo encostando-se algumas vezes para re-
pousar, pnT('ci-.í-llie , que era levado a uma
região estranha, e logo \ia o seu Anjo da
guarda, que post* á sua nuio direita rom
semblante alegre t risonho o acompanhava :
cm vendo o Anjo abracava-se com elle,
linni1o-o com seus braços, e meltcndo-o
todo em sua akna, o mais apertada e amo-
rosamente , que podia , de maneín , que lhe
pareria , qwe entre elle, e aquelle celestial
csj^irito não havia nada de permeio. Enláo
soltarido uma voz !uagoada , e os olhos arra-
sados de agua , e com un)a per)eita tlevaráo
da alma , di/.ia-lhe estas palavias: O' aiuoro-
sissimo espirito , que por Ueos me fostef
assinado para guarda, e remédio de minha
tida , peço-vos pelo ardeutissimo amor , que
tendes a ease mesmo Si^nhor, que me não des-
ampareis. A isto rospondeo o Anjo: Como?
V. não ousastes a fiai -vos do Deos? Pois oro-
de-nie, que tamanlia é a caridade rom qut
ab eterno vos ann)u , que >osnáo ticsampar*
jamais porsua voutaoVv Outra "vez ( on»eçando
ae^ilarecera manhãa dcpoi^ídeter dcv>?<'ansado
iiu) pouco de suas contínuas penitencias con-
veisandu lamiliarnicnle com os An los cm
Tn. Henrique Suso. ^
^tasi . pcdio a um delles que llie declarasse,
porque modo morava Ueos escondidanieníe
em sua alma. Tornou-lbe o Anjo: Ora siií:,
quero-vus mostrarq que (lesfjais. Poinleale-
gromente os olhos em vós mesmo, e vereh co-
mo se ha Deos com utna ahna , qne o ama , co-
mo av. issa. Aitontand) lo^opara si^vio, que
soi")re o siiio d(í coração se lhe tornava a carne
transparííiiíe como um cristal , e via seiUado
qiiietissimamentti no centro dellc ao eterno
Déos em uma fij^ura cheia de amor, e beni-
gnidade; e junt<i delle conhecia , que estava
sua alma confiada nas !)cnções, e amor do
Ceo , e brandamente encostada a um lado
do Senhor, mas da parte delle apertada com
estreitos abraços, e metilda toda em sen di-
Tino coração, e assim a via estar como eia
um exlasi, e roubados os sentidos , sumida
toda , e adormecida entre os braços do Sal-
tador.
CAPITULO Vir.
De algumas consolações^ que o Santo Vurãê
teçc do Ceo,
X Razia o B. Fr. Henrique neste tompo iim
modo de cilicio íeilo por suas nsãos l'io duro,
taspuro , qut; a toda a hora ILc davA giiÀndí
56 ViDV :do Padub
afíiiccru). Estando assim atormentado TimR
noite precedente á festa , que a igreja celebra
dos Anjcs, foi arrebatado em extasi , e pa-
recia-lhe que ouvia uma musica do Ceo , e
vozesangeiicaSjCom que ílcou tao alliviado ,
que de lodo perdeo a ir.emoria dus dores,
quepa.ssava , e dizia-lhe uni dos Anjos: Assim
como ati te recreia ouvir de nós os cânticos
úa Eternidade, que entoamos, assim nos
alef»ra a nós ouvir-te as cantigas da eterna,
e aitiisinia Sapiência, que compões, e loj^o
ajiinKm: Este que ouvistes heaquelle cântico,
com que hào de sair todos os escolhidos do
Senhor no dia ultimo do mundo, tanto que
se virem confirmados na posse da eteina
})emaventuranca. Muitas outras horas teve
o ser\o de Deos no mesmo dia esta celestial
conversação vendo , e contemplando as
íesias, e passatempos dos Anjos. 1'rimcira-
ineute começando já de amanhecer veio-se a
clle um mancebo , que no geito , e na pre-
sença parecia ser um musico do Ceo, (jue -
Deos llie enviava. Acompanhavão-no muitos
outrtís mancebos dj gentil disposição na
niesíua postura, e traje , salvo qae aquelle
era de meu respeito como Archanjo. (ihe-
gou-seao Santo com brio «grande, e disse llic,
qucelle e seus companheiros erão alli nnin-
datlos por ordem divina para o alegrarem , •
' Ffi. TIrxRiQrE Scso. 87
entrctercm, e lhe alUviarein as penas, que
padecia. Pelo que , dizia o Arclianjo , é ueces-
sario, que posta de parLe toda a melancolin ,
entreis nesta companhia, e danceis c^oni
nosco as danças do Ceo. Isto dito clio^járão-
se todos a elles,tiran(lo-o pelas mãos, nietle-
rão-no entre si. Eo AicLanjo cotneçou logo
a entoar um hymno do Menino JESU , que
diz: In diílci jubilo y etc. Tanto que o Santo
vio, e ouvio soleninizar com tão acordada ,0
desenvolta harmonia oNome de JP^Sti , ficou
tão aiiiviado do coração, e de todos os sen-
tidos, que despedindo num momento toda
a trlâteza , parecia-lhe que nunca tivera tra-
balho, e estava com grande ^osti) (]'alina
todo end)ehi(lo na destreza , e admirável con-
<^erlo , com que aquelles espiritos hemaren-
turados dança vão. O mestre desta angélica
capella sabia mui bem ordenar tudo. LIlc
começara os versos com graça celestial , os
outros proseguião cantando, e juntamente
dançando com alegria entranhavel. E elle
no fim repetia três veies a clausula: Ergo me-
riiOy ctc. ísVio erão estas danças como us que
se usão cá na terra. Erão umas mures tc-
lestiaes, que se estendião até o liumcnso
a])ysmo da divindi.de. Muitas outras ct)nsi>-
lações do Ceo teve o B. Fr. Henrique a este
modo, que por alguns anxios forão quasisem
S8 Vidím)oBkat»
niiaiero, principalmente rjuanJo se acliavi
m.íis af.Ii^ltio (le suas penitencias , c assim
as passara ineTUor. Um seivo de Deos leve
iiina rcvelaeãn , em que o vio ao lenipo , qu»
sobia ao altar para dizer Missa cercailo d©
iini resplendor, e via ilescer sobre sua alma
a graça de Deos a niodo de orvalbo , e logo
unir-se o Santo com elle de mancim , qtiâ
ficavão Deos, e elle imia só cousa. Vio mais
estarem por detraz d elle muitos meninos de
lindo e gracioso pirecer, com cirios acesos
nas mãos , que rodeavão o altar, e postos em
ordem huns traz outros, e t(jdos um , e um
se ião (betando ao Santo, e estendendo os
bracinbos, o abraçavão aniorosissimamente,
eo apertavão comsijjo.^Em Hn: .espantado Fr.
Henrijue da visão, pergunia\a-lhes quem
çrfio, ou que qutrião significar naquella
C'bra. Erospontliuo-lbe os uieninos,que erão
comp;inheiro3 do Santo, e participantes de
seus gostos na gloria eterna , e por isso •
acompanharão perpetuamt^nle , e o guaida-
y:\o. ileplicuu o Santo Varão: E que quer
dizer abraçardes todos com tanto amor a este
íiaile ?, Quereinos-lbe uiuito , responderão
elles , e temos com elle grande conversação ,
e amizade , e liáveis de bAtcv que obra o Se-
nhor Deos em sua alma grandes maravillias,
f taes , que senão podem dtclarar, E ludo •
^v.e elle quizer pedir de propósito a Deos
nunca lhe será negado.'
CAPITULO VIÍI.
Di^ algumas revelações y<jue o Scr,'o de De0S
teve.
i^O mesmo tempo tevr o Yar&o muliae
ravffiações de cousas spcrclas , c de outras
ç^ue estavito por vir. E íoi o Senhor servido
dar-llie uma cerla noticia , e experiência do
que passava no Ceo , inferno, c Purgatório.
Ãpparecião-lhea niiude nniiias alir.í^s qoanlo
passavão desia vida , e cojitavão-lheseus svr»
ccssos. Ora por que peccados esta vàopenandoí
c como podião ter remédio , ora que gráos
de gloria tinhào alcançado. Entre outros lhe
apparecerão o Santo Eckardo de gloriosa me-
moria , c o Santo r>. João Fitcreriu de Ar-
gentina. O Santo Eckardo lhe contou, qii«
estará cercado de enchentes de uma gloria
tal, que se não podia dará entVnder com pa-
lavras ,«q'je de todo estava trasformado tiii
Deos. E Fi\ Henrique propoz-lhe duas
questões. A prir.icira era , em (pw; estado esta-
Tao com Deos ac|uelles , (pie com verdadeira
resignaçfio desejavão de o conteiitar seni
luistura de erro , nem falsidade. Ao que lli«
i)o Vida do Pàdmi
foi respondido, que nào Imvia palnvrns^nem
termos humanos, que pudessem sigrificar o
como se sumia uma alnia naquelle ahysmo
immenso , e sem limite da divindade. Ase»
gunda qucsiâo era qual seria o mais provei-
toso exercicio para uma alma poder ejíegar a
este estado ? Respondeo-lheo Sauio Filaido^
que o mais seguro meio era íiif^ir-se um
homem a si niesmo , e desapropriar se de
si com uma humilde resignação , enã'> querer
nada das creaturas , e tomar tudo o que vier
da mão de Deos , e com isto saher-se gover-
nar com mansidão, e paciência com ioda a
sorte de mãos honjenâ. O Santo Fr. João lhe
mostrou laixi])em uma esoccial íormosura ,
de que sua alma estava ataviada na Gloria,
EFr. Henrique lhe perguntou qual era entre
todos o mais proveitoso exercicio para a sal-
Tação , e mais custoso de pòr por obra. 11 es-
pondeo , que nenhunja cousa podia dar maior
trabalho a uuía alma, nem aprovciiar-lhc
mais, que soírer com paciência ser desam-
parada de D^os , e assim íolgarde carecer de
Deos por amor do mesmo Deos. Tand^eni
appareceo ao B. Fr. Henrique seu pai depois
de morto , que como na vida se deixou levar
lodo das vaidades do mundo, manilesiou-lho
com representaçã.0 lastimosa o cruel tor-
mento , que tinha no Purgatório, e decla-
Fe. lÍEN-RIQUE SUSO, 9I
rôu-lhe »n culpa principal porque o padecia,
c o modo , que podia haver para o Santo
filho lhe dar remédio nelie , o que o Santo
Varão cumprio. E elle l!ie tornou apparccer,
e lhe deu c ;nta corno estava já livre da pena,
A mãi de Yv. Henrique ficando viuva por
niorle de seu marido, íbi niulher de abalisa-
da virtude ; e mostrou Deos em seu corpo
c coração depoi* de morta sinaes maravilho-
sos. Sendo tallecida appareceo ao filho em
revelação, eco'»tou-lhe grarmissimas mercês,
que tinlia recel)iilo do Seuhor. I*or e.;te modo
vio, e fallou a muitas ahiias, que foi cousa,
que por eníao lhe deu algum allivio, e niuilo
tempo o ajudou a perseverar naquella abpe^
leza de vida, que seguia.
CAPITULO IX.
Dõ cnmo ^c havia o B. Fr. Henrique cnan(^ò
havia de ir ao refeitório , e quando cotnisL
ficlle,
J. Odas as vezes que este Santo Vnrao havia
de ir ao refeiloiio tinha por costume st/i-
tar-stí primeiro dejoeliios tfiante de Deus, c
entregue a uma profunda nie(htaçào da alma,
pedia-lhe eíficazmente quizesse acompa-
nhaUo , e comei' cora elle, Suavissinio JESU,
§:» Vni DO BxATflr
dizia , com grande gosto e vontade d'alni«
TOS coiividoagí)ra.Pe;i)-vo5 Senhor, cjueasiiir»
como iiiiserJ;;orcliosaii:c]iie nic dais de co-
mer, assim queirais hoje acoinpAuhar-mw
com vossa [>rcsc!ira. 1 anto que se assenta-
Ta a uieza figurava dcíronte de bi-, como cm
ol)jeclo aqúeile amorosíssimo ho.s[MíJe da»
ahiias puras, e fazentlo conta , que o tinha
alli comsigo , punha nelle ws duos hrand*
€ aU^greiucnlc , outras Tezes reclinava»se a
seu lado. Cada prato, que lhe irazião oftere»
cia a esle pai de familias ceieslial, e podia-
lhe, que lho dvitasse sua bençào, usanJo de
palavias familiares, que as mais das vezes
ei ão estas lAmariíissiiuo Senhor peçu-vosqu»
comais comigo. Meu Senhor JÈSXJ benzei,
rogo-vos , esle comer, o tomai delle juuia-
inente com es!epuhreser\ovosso. Taes erão
os amores, que tinha neste lugar com a
Eterna Sabedoiia. Quando havia de hehcr
primeiro llie olferecia o copo, rogando- lh«
que bebesse. 'Jinha por costume bebei á
meza cinco tragos sóu>ente , e estes lazia.
conta, que os liobia das cinco chagas de sea
amado JESIJ. K pMrijue do sagra<io lado saio
juntauíciíle sa-iguc, e a^ua, repartia este
trago em dous, O ptiiuei o boeado , eo der-
raríelro iciv.ra no-o ?•• r dn n'ais .d»razado
corav^io, que p ;dia h^vcr na terra para ccu^^
Fr. Hzr.-siQCE Su5«, ^5
íleos, e pol-a mais inílammada caridatle do
mais alto Serafim do Ceo, coui desejo de
alcançar para sua alma perfeita coniniiiiáca-
«iío destes dons amores. Se lhe davão algum
comer ,.qiie não e>a de seu gosto , servia-lhe
desal paiu olevaroeoracao de Christo haiiha»
tio cm sangue, eassiíii o pasmava sem dutidar^
e sem receio de lhe fazer dai!0. Era o Saiilo
muito amigo de maçãs , e o Senhor maudava-
llie que as não Coii»eí>se. Eiii uma TÍsão, que te-
\e, parecia-lhe aiie lhe davão uma maçu,^ e
que quem llia dava lhe dizia: Toma , e farta
a vontade, quecslassuo as misérias, em qua
tu andas hujcando gostos. Respondendo o
Sanlo que em nenhuma cousa tinha gosto st
v.Zo n;i Eterna Sabedoria : disse-lhe o ouiro
qu<i mcnlia, porque o certo era que folgava
liiais do recciiialio com maçãs. Ficou daqui
o Santo tão corrido , que eu» dous annos de-
j)oi.'! níTo somente não comco maçãs , mas
nem ainda as tomoti na mão. Tendo passailo
o3 dous annos não sem asaz saiidades desta
fruta , suecedeo haver no terceiro tão fraca
noviíhide delia , que se não dava aos religio-
jos em cotumiinidade, e elle ainda (jue t;uha
acahadocomsigo, apezar de trabalhosa-. coil-
tcndas, e vaf"li»s co!itradie'u's du c-pirilo não
pr acurar na inezi . npm des '.niara si em
pariicttlar nenhuma cou.ia[^r'nclpaLiientu d«
^4 TiD\ DO Padre
fruta ; pedlo í> nosso Senhor, que so fo^se
sei: serviço tornar clle a comer marus^ ortle-
rííisse ci<3 maneira , f[U8 as houvesse para toda
a conitnuniJadu. J3espiichoa-llií; o Senhor
esi.i peiiçíTo d medida dí*seu desejo , e acon-
teren , que anianliecc^iido o dia segni?ite ,
cb.egoTi um honiein não cordiecldo ao Con-
Tento com uma boa quantidade de moe<la
íeiía de novo, que lhe deixou com condição,
que se empreitasse toda em niacãsj fizerão-no
as5lm os Frades, e por muito tempo tiveríTo
macas contíguas no refeitório, e desde então
ctmieçou Fr. Henrique a coniel-as com gosto.
As maçãs maiores fazia em quatro quartos ,
destes comia três em nome da Santissima
Trindade, e noutro em reverencia do amor
com que a \'irgem Sacratisíima dava as ma-
cas a seu precioso filho sendo menino, e este
quarto comia sem o aparar, porque assim as
comem os meninos. Do Natal por diante até
al«;uns dias depois não tocava neste quarto ,
offerecendo-<> em seu pensamento d Virí;em
purissima, para que ella de sua mão o desse
ao menino JFSÍJ, por cujo amor fol^^ava de
o deixar. Se alí^uma hora lhe acontecia sen-
tir-se muito appetitoso de comer ou beber,
pejava -se e havia vergonha da sua venerá-
vel esposa a eterna íjabedoria, que faria
conta , que tinha prescnic, e se por csqutii-
Fh. lÍENniQTTzSuSO. ^3
inei.to passava por qualquer cousa doslas ,
elle rnesoio su clara o castigo. Che;;oa-se ir.nii
■vez um peregrino a elle , e disse-iiie, que cm
uma visáo lhe fora mandado do Cef) , que se
('ueria íju.irdar a ordem devida no co:. er se
fosse a elle, ellie tieoisse quizesse ensinar-lhe
as regras e exercícios, que neste particular
usava,
CAPITULO X.
De como se aparelhou Fi\ Henrique parti
entrar no anno novo,
JLíiM Sucvia, donde Fr. Henrique era natu-
ral , c costume em algumas terras entre man-
cebos leves, e ociosos, quando chega o pri-
meiro dia de Janeiro arruarem tod.\ a noite ,
e procurar cada um haver uma Capella da
infio de suas damas, e a este fim compõem
trovas, Qá\xsò musicas, eGnalmente iisào de
todo artificio, e industria para obrigarem ás
damas. Vindo o wSanto Varão a sal)er isto 1'oi
a cousa , que mais llie caio em graça, e me-
lhor lhe pareceo a sua arte. E logo na mesma
noite se determinou elle também visitar sua
Senhora, e pedir-lhe uma capella. E assim
antes de nascer o Sol foi-se aonde estava
lima imagem de Nossa Senhora , que tinha
f)6 Vida. do Be\to
entre scj*; ornços o Menino JESU branda»
incnte apertado nos peitos, e posto de joelhos
diante delia com uma musica dalma calada,
c suave começoti a cantar uma Sequencia da
Virí( » n ,pediíido-ihe por nicrcc alírisse ca-
minlio para eile alt atiçar de seu hento F.Iho
tir.ia capellj, e o cpje laltasse em seu mereci-
mento, íupprisse eila coní sua misericórdia.
Fez isto por jnuitas vezes Ião de veras , e
acu(lÍQ-lhe tamanha forç* de choro, que
todo se banhava em fervorosas lagrimas.
Acabnda esta musica voltava-sc para aquella,
que unicamente amava , digo a Iilerna Sa-
piência : c prostrado a seus pés, adora?a-a
do mais iniimo de sua alma, e engrandecia
com muitos louvores sua formosura, seu
v;.lor, suas virtudes , sua braii/Iura , e liier-
dade junta com eterna autoridade, e respei-
to, c aí firmava , que em nenhuma dama do
inundo , por formosaque fosse, estavão tam-
bém estas partes conm nella. Isto fazia com o
canto, comas palavras, c'os pensamentos, e
c'os desej(jscomo inelhorjjodia , cjuntament»
estava desejando de poder scr]H)i' mcdo|e>p:ri-
tual como uni messaffciro de Ktdos os corações
namorados , e conjo um golfo, e amoiUoa-
mento de todos os pensanienlos, palavras, e
sentidos, (íue nascem do amor, para que assim
^udi.ss« dar iou\orej á Sapicucia igtiaes coiu
Vru merecimento , pois poi outra parte se
sentia indigno cie a poíier louvar. Em fim
fallando com ella lhe tlizia: Vós sois, ó amada
minha, minha alegre paschoa , vós estio florido
de meu coração , vós minha hora de ^osto ,
Tcs sois aquella a quem só ama , e de quem ?6
faz conta esta alma minha, e [-or cuja cansa
tem dado de míío a todo o amor mundano.
Pcço-vo8, Senhora, que me valhais nisto, e
•[ue mereça eu hoje alcançar de vós uma.
grinalda. Fazei-me , rogo-vos Senhora heni-
gnissima , esta mercê pol-a vossa liberalidade
divina , pol-a vossa natural bondade, e iiL'y
permittaes, que neste principio de anno nie
aparte eu de vós com as mãos vazias , que não
estará isso bem a quem vós sois, ó doçura da
vida. Lembre-vos Senhora, que testemunha
de vós um leal servo vosso; que não se acha
em vossa casa , sim , e n.lo , senão , sim , e
mais sim. Eia pois alegria de meu coração
dai-me por favor celestial uma aprazível, e
graciosa capella, para que assim como a rece-
Lem esses desatinados aniadorcs do miindo
feita por mãos humanas , a^sim a minha ahna
receba neste dia por meio das vossas de-
nientissimas , ó Saljedoria suavissima, algu-
ma graça pajlicular, ou nova luz «m lugar
de Janeiras. A esie modo costumava o S».n-
to fazer suas oraíúcs, e nuiica juniais ilnè
4
^8 Vida do Beato
acontecia enganal-o a espertnç.i, com rjue
entrava nellas.
CAPITULO xr.
Das considerações com que o Bento Fr. Hen»^
rique cantava as pcLla^ras do Prefacio :
Surstim Corda.
U -\Ia hora perguntavTo aFr. Henrique seus
amigos , que tenção tinha (jiianJo cantando
a Missa comc^^ava a entoar aqiieilas palavras
do Vt^Íslcio Surs li fTz corda (cuja sigoificaçào
é, que se levantem, e suspirem a Deos os
corações de todos) , ])()rque ns dizia com tanta
eíficacia , e scntimenío, ({ue espertava nos ou-
vintes um particular movimouro de pied.ide ,
e devaçào. Aos quiies o Santo P.uh'e com
facilidade respondco desta maneira : Quando
na Plissa pronunclavi estas palavras as mais
das vezes me acontecia derreter-se-me a alma
e o coraçfío com ardentes saudades, que na-
quelle ponto sentia de Deos, que eriio tacs >
que me roubjvào o coração^ e m'o faziào sair
de si. Era a causa três soberano» e podero-
sos pensamentos , ou discursos, qno em meu
entendimento se moviáo , dos quao^ naquella
hora se me oFfereciao ora um , ora dous , e ás
vezes todos três, e tinhuo força para mo en«.
Fr. Henrique Suso. 5^
ferar , c nrrebatar todo em Deos , e por meu
nuio íi Iodas as crealuras. O piiíneiro, (jne
interiormente me occ.irria era esie. Prí)pu-
iilia-me a mim mesmo diante dos oliios dal-
lua lodo tamanho sou com alma , e corpo ,tí
todos rnc*us sentidos, e ao redor de mim
assentava Iodas quantas creaturas ha por toda
.1 parte íeitas por Dcos , lá nos (leos , cá na
terra, e nos elenienios, e cada inna por si
nofuéiidainenle como as aves do Ceo, as fthas
dv>s liosques, os peixes das a^uas , e todas as
onsas , qne a terra prodnz té a n)ils peqne»-
ra hervinlia do caníoo , as áreas do mar sem
<:õijto, e todos os argneiros que sedesçohrem
nos raios do S;)l , jnníamente todas as gotas de
agua , qne procedem , e hão de pioreder do
orvalho , da neve , das cluivas ,'e eslava no-
tando como cachi cousa destas , (h) iriais inti-
10 centro de meu coração ia levantando em
.iltocom un^i suave harmonia como de umu
Ijem tocada viola , todo tle cahò a cabo can-
tavào novos , e ahisslmos louvores ao aman-
lissinjo , c suavissimo Doos, Entào com um
rvfscido alvoroço se esteiHliiTo os hracos ile
líilnha ahna contra aquelle concurso iníini-
To de crealuras com tal tencào , que todos
por meu meio brotassem íòuvímcs Divinos:
cor.io fa/. neíií mais, nem njcnos nm dex-
tro c cniendido uicsire de t;i2)tlla, qu:ini!o
lOO VlDl DO B«\T(»
convida seus companheiros, qu« c^intcm al^
giernsnte , e levante-ii os cirações a Deos, di*
2en<l(» : Siirsuni corda. O outro discurso era
este: Representava em minha memoria meu
CoracTÍo , e os coi ncóes do toJjs os viventes,
e imaginava, que de gosto e alegria, que
de paz e amor possuem aquelles, que só a
Deo3 rendein seus coraçíes! E pelo contra-
rio quinto mil , e quanto trabalho, quantos
tormentos, e aiterac'>es causa o am)r das
cousas trauiitorias a qiiem se vai traz ellasl
iL assi com grande fervor , e affecio da vonta-
de fallara com meu coração, e com todos
os mais do mundo por onde r;ner que vivera ,
dizL^ndo: Eia sus cativos corações, entregues
a um triste cativeiro, acabai já de resusciíar
da morte dos vicios. Eia sus corações vãos ^
e dissolutos, sahi já da froux.idão e tibieza
desta vidi torpe , e descuidida. Alto , alto
levantar a Deos com uma conversão perfelfa y
c ilesemhararada de iodas os cousas da vida :
Sursuii corda. A terceira consideração era
inna caritativa cOiUpaixão, e lastima de to-
dos aqtjelles que, tcntlo bons desejos, todavia
não scabào de estar resignados, c entregues
nas m.Tos de Deos, e estando em si levão o
camiidio perdido, e andão enredados em
erioi, o a causa é porque trazem o coraçã"©
lepariido em varUs parles e audao d^rriaiA*
Fr. HirfRiQiE Suso. loi
dos nas cousas temporaes. A estes todos, e a
mim com el!es piovncavti eu a tentarmos um.'t
confiada, e desassombrada experiência de nos-
sas forcas, c do que nos cumpre para a sal-
vação com uma perfeita rennnciaçào de nó.^
me.'.m(js, e de todas as creaturas, dizendo:
Sursmn corda,
C A IM T U L O Xir.
Do modo com que o Santo solemuizava ajista
da Piir/Jicacuo d$ Nossa Sen/iora,
X Res dias antes do em que a Igreja cclehia
a festa da Puiiíicacão da ^ ii;'tm f{l(/rio-
' DO
sissima llie fabricava o Santo com su.is or;v-
çóes uma candeia , a qual fazia de tres jia-
vios. O primeiro á honra de sua inteirissima
pureza. O se^'undo em reverencia de sua im-
niensa humildade. O terceiro ení veiieraciTo
da dignidade d-e mài de Deoi, que são as
tres exiellencias, em que esta Seidiora á
avantajada a todos os nujrtaes. iLsta cautlt^iu
espiritual , que di^^o começava tres dias antes
<la festa, Tc/ando cada iha tres vezes a Magni-
ficai j e quaiuh» cluv^ava o dia áx fesía ia-sc
pela mauhàa á i^rt'ja antes que nirjjxiciu
viesse , e pegado com o ahar iwôv es|)crava
alli eni mtdilacàu até a Santa parida cnira>'
loi Vida do Beito
com sou divino penhor, (jonsideran^ío <|Me
chegava á primeira porta da cidade, fazia ctin-
ta quesaía a recel>el-a em c()iiip:íuhii de iodos
os corações, que amão a Oeos, m.\9> levando
a todos a dianteira em afíecio, e devaçãotr.d-
ma. Na praça chega\a-se a ella, e pedia-!ha
quizesse alli parar um pouco com s«u acoai-
])anbamer.io,ein quanto a serviu com um Cân-
tico , e logo começava á pressa I/nHo!(ita , eic,
<:om uma biirínonia espiritual, e calada de ma-
neira, que .-íc lhe viào mover os beiços, mas
não se lhe ouvia a voz. Jsto cantava com a
maior devaçáo e amor, í[vq. j)Oíba, e qiiando
dizia, ó benigna, ó bínigna, abaixava-lhe a ca-
l)eca em final de reverencia, pediíido-liic
iDosLrasse sua clementissima benignidade para
com O peccador miserável. Dalli passando se-
guia a Senhora com seu cirio espiritual aceso ,
desejando ({ue nào consentisse ella jamais que
FC apagassem em sua alma ascliammas do di-
vino íogo. Depois cbegando-se á cocnpanbia
dos servoíi de Ocos, que a arompaiihavfio en-
toava aquelle cântico Adoiua thalamum , etc,
e lembra va-lhes, í{ue recebessem dignamente
o Salvador, e tcslejassem com alvoroço a Vir-
jTcm sua mài. L assim os levava todi>s ao
templo com bymnos , e louvores. Antes da
Virgem entrar dentro , e entregar o lie Icm-
ptor ao Saiuo Simeuo, cbe^ava-se de uuvo
Fr. Hexuique Suso. ioS
a ella com um afervorado desejo, e com os
joelhos em terra , e as niaos e olhos levan-
tados pedia-lh»^, qiie lhe mostrasse o menino,
e lhe desse licença para lhe beijar os pés , o
qne consentindo a Senhora estendia o Santo
seus hracos , e com elles juniamente toda a
machina do mundo , e tomava no cojlo o
amado Esposo tie sua alma , e n'um I^rcve
espaço o abraçava cem mil Tezes, contem-
plava aquelles olhos formosissimos, e aqucl-
las muos de neve , beijava com humildade
lodos aquellcs divinos membros, tenros , e
pueris. Em fim contcniplando tudo, e le-
vantando os olhos para o Ceo com espanto ,
chorava em seu coração , todo pasmado de
ver o autor do Ceo táo immenso, e aqui
tão pequeno , tão formoso nos Ceos, e me-
nino na terra. Alli se occupava todo com o
bom JESU , ora cantando , ora desfazcn-
do-se em la^rin^as , entreízne a toda a sorte?
ue exercicios espirituaes. Idtimamenie enti e-
gava-o a sua mai , e entrava com ella no tem?
pio até se acabar toda a solemnidadc.
io4 Tida do Bbw»
CAPITULO Xíir.
Dê como se haí^ia o D, Fr. Henrique nos diat
do entrudo.
Ao sabbado anles da Domin«:i^t dn Septus-
gesima, er.i que a Igreja deixa de cantar a
âUeluia,- que é o tempo em que os honieii»
mundanos andáo mais soltos, e dados a des-
atinos e vícios com a visinbduça do entrudo,
ordenou Fr. Henrique de fazer para si cm sua
alma um entrudo celestial, por esta maueira:
Considerava primeiro quão momentâneo , t
prejudicial era o gosto do entrudo c.irnal ,
e como os mais dos homens por um breve
passatempo comprão dcsaventuras , e misé-
rias prolongadas, e rezíiva o iVilmo ào Mise^
rsrs mei Deus em honra do Scnlior, e por
todos os pcccados, injurias , e affrontas, que
«e lhe faziáo naquelle devasso tempo, c a este
chamava clle entrudo de vihúos , como do
j^cntes, que por ignorantes não alcanção
cousas mais altas. Depois meilitava nos ensaios
da vida celestial , considerando (onío Deos
honra a seus servos ainda vivendo na carno
inf)rtal, e corruptível, quasi como passando
tempo cora ellcs por meio de divinas conso-
larócs. Logij passava pela memoria tudo O
que neste ^^enero liuba cip<irimeDUdQ em si |
Fr. HaKAíQri nt ivsol io6
icompanliando-o com multas graças, e louvo-
res ao Senhor. Ainda no tempo de sua con-
versão teve o Santo um espiritual entrudo do
Ceo , que passou desta maneira : No mesmo
dia de entrudo antes de Completas tinha-s«
recolhido o Santo a uma estufa, para S6
aquentar, porque se perdia d« frio , e de fo-
me , mas mui lo mór trabalho lhe dava a se-
de , que juntamcnip padecia. E vendo alli
muitos que se fariavão de carne , e vinho
quando elle morria de fome e sede , sentio-se
mover interiormente, e foi-se h)"o fuíiindo
pol-a porta fora arrancando grandes suspiros
dahna com dó, e compaixfio de si mesmo,
mas na n^.esma noite teve uma visão, em que
llie parecia que se achava em uma enferma-
ria , e da banda de fora ouvia cantar um hy-
nino celeslial com tanta melodia , e concer-
to , que não se llie podia con)parar nenhuma
bem acordada viola , c era a voz cc>n!o de i m
moco de cscliola de idade de doze annos. i'i-
cou lo*,'o Fr. Heni Iqiie esqneci(]o da pena
que lhe daváo a fome, e a sede , e estava
mui atlento , e cou» as orellias j^ronqUas
ouvindo a musica. E dizia com o Icrvor da
alma quem é o que canta ahi tnra ? Ku não
ouvi jamais na terra tão acordada harmonia.
Eespontlia-lhe un: mancebo tle gentil dií^-po-
♦icão, que naquella hora checava : Sabtrci*
lo6 Tida do Deit©
que aquelle moço não vemcnTilarn oiiirem,
seiíão a \ós, e p<.»r vosso respeito da (;sla mii-
sica. llcplicava o Santo: O' se Deos se lem-
brasse (le mim ? Peco-vos celestial mancebo ,
que lhe inantleis que torne a cantar. Tornou
então o moro a começar de novo a musica
comum liple allissimo, e não parou até dar
ílm a trcs cânticos celestiaes. Oscjuaes acaba-
dos, parecia-lhe a Fr. IV.^nrique que o moco
se sobia pelos ares ás jancllas da enfermai ia,
e lhe offerecia um ramo apinhoado de uns
fructos vermelhos como morangãns , qi:e o
xnanco])o lhe touíava das mãos , e alegre-
mente lh'o appresenlava com estas pahivras:
Tomai irmão e companheiro meu esta fni-
cta de que vos faz mercê aquelle Senhor , qi^e
vos mais ama, filho delRci Eterno, que é o
lintlo moço, que ouvistes cantar. O' se soubés-
seis bem quanto vos quer! Ouvindo isto Fr,
Henrique era lai o prazer (jue sentia, que se
lhe acendia todo o roito cm c«)r de sanrjue,
e recebendo alegremente o ramo dizia: O'
venturoso homem, que pôde alcançar deste
divino Senhor uuja tão alta mercê com que
líão é possível deixar de ser alegre esta alma
perpetuamente. E voltando para o mancebo,
que liro dera, e paia outros espirites l)em-
aventurados , que tand)eni eráo presentes ;
Chari^jsimos amigos, dizia, uão vos parece
Fk. Hl??RIQtTE Susd. 10^
mzrlo , que un\e eu de todas minhas forças
este gracioso, e soberano menino? Merece-
dor é de verdade que o ame. E se a mim me
copstííra qual Ke sua vontade, íizer?.-]ha eu
er.i todas as maneiros. Logo tornava para o
mancebo, que lhe dera o ramo, e dizia-ihe :
Dizei-me por vida vossa, amado mancebo, pa-
rece-vos que íaço nisto o que devo? Ao que
clle sorrindo-se respondia, njui Ijem o en-
teralei.s. Justo e deviJo é, que quei^ais mnila
a quem com mais afieiçfLO vos olha, e quer,
que a muitos outros. Pelo que vos Icndjro
que façais pelo amar de todo coração, e que
estejais apercebido , porque sabeis que cum-
pre padecerdes inuiio , e mais do que muitos
outros padecerão. Tudo farei quanto dizeis,
disse o Santo, de mui boa vontade , uías pe-
ço-vos que façais , que possa eu vel-o para Ih*
agradecer este rico presente. Chegai ú janeU
la , tornou o mancebo, e olhai. Abrio Fi\
Henri(|uc a janella , e vio um moco como
estudante de tão aoa!)a<la formosura , qual
nunca viia outro; e querendo-se lançar a elle
pela jancdla , fcz-lhe o moco uma amorosa
inclinação, e deitou-lhe uma bençfio, e subi-
lamenit* desappareceo. E por aqui a( abou a
visão. Torna tido o Santo em si r^Mideo as
graças ao Senhor por este divino enliudo ,
que de 6ua mão recebera.
io8 ViDÁ DO Beito
C APITULO XIV.
De como festejava o Beato Fr, Henrique
a entrada d c Maio,
li A noite do primeiro dia clc Ivlaio rostii-
niava o Santo coíherespiriíur.liiieute, Ci^uinr-
darpara si um rair.o verde, ao qual vencr.na
«iguns dias eoni oraçoens quotidiaras. E
como para haver este ramo não pude nuuta
achar arvore mais fresca entre todas as que
ílorccem na terra por mais bellas, e l)eni as-
sonibia<las, que fossem , que o lenho exccl-
liuie íSm, Sagrada Cruz , que em ^'raça , e vir-
tudes, e em todo o género de perfeição (' mais
nobre, e mais fresca arvore de todas as arvo-
res ; debaixo dos ramos desta divina arvore,
e á sombra delia se ilebrucava no chão seis
\ez('S desejando a cada uma delias em sua
conlemplarão de lhe enramar, e entertecer
as folhas mistioas das mais bellas, e mais
cheirosas boninas, tpie f)roduz o fkjrido Ve-
ifio, e ([izia cantando entre si ohvmno: Sul-
ve Crux sancta ctc, ajuntando mais estas pa-
lavras: Deos te salve arvoíe celestial desande
perpetua onde cre^ceo o fru( to da eterna Si-
bedoria. Piimeiraineule em lugar de todas
:ís rosas encarnadas para teu ornamento , e
alaviu contínuo, lu oííeieeo uai amor en-
Fr. HEi^RiQrE Scso.' 105
traijhavel. Em segundo lugar te offereço por
iodas as violas, que nascem á íace ('o chão
«ma humilde sujeição. Tw teneiíí) por todos
os cheirosos lirií)s um ahraco de |'ureza. Em
quarto um espiritual osculo d'aln a por toda
a sorte de lindas, e agraciadas flores tanto
em frescura , como em cores, que neste Verão
criarem ou tenháo criado dantes ou hajão de
criar depois os matos , os piados , os bosques ,
as arvores, os jardins, e os campos. Em
quinto lugar te oiiereco louvores iiifinilos
de minha alma p»l-a musica, que todas as aves,
que olegremtntc voão por estes ares , derem
daqui té o fim do mundo sohje quaesquer
raminhos de arvores. Em sexto por toda a
sorte de graça , e frescura, que o \ eifo f óde
comníunjcar a uma planta, te engrandece
hoje meu coração com espiritual armonia ro-
gando-te , que me sorcorras , ai vor<' l/cndita ,
para que de tal maneira mereça eu louvar- te
no transe desta breve vida , que fia cutra seja
digno de gozar eteinamenle de ti, que és
fructo de tida. Desta maneira festejava b
Sant* a entrada de Maio.
lio VlDÀ DO Be1T«
CAPÍTULO XV.
La maneira, que o B. Fr. Henrique ncfímpa'
nhn\*^a a Christo em todos os passos dê sua
sagrada Paixão,
J Eve o Beato Fr.. Henrique no priucipio
de sua convciião muitas consoUoóes , e ini-
n>o5 do Geo , cem que Deos o recreou por
muito tempo , dos quaes vivia tão satisfeito ,
que tudo o que era tratar da gloria , e divin-
dade do Senhor era para elle suave , e tlelc:-
toso. Mas se queria lembrar-se de sua paixão,
ou pòr-se em ordem de a imitar cm alguma
parte , nenhuma cousa sentia mais desabri-
cki , nem mais áspera delevaraocal^o. Donde
nasceo , quo o Senhor o reprehendeo ; um cha
asperamente lhe disse: Tão mal sahcs tu que
sou eu a porta, pela qual é torcailo entrarem
e passarem tc»d.">s os venladciros amigtjs de
Dvíos, que pretenderem alcannar gloria P On-
vjm , sem duvida , que passes pelas atílicçóes
de minha atribulada humanidade coníor-
niando-te com ella se queres de verdade che-
gar á divindade nua e perfeita. Ficou Fr.
Henriíjutí temeroso desta pratica , e traba-
liiava por se applicar ao que o Senhor lhe
dissera, aluda que coiu grande repugnância
Fr. Hknriqtje Srso. iti
le s^u gosto. E assim começou a apprender
uma sciencia, em que dantes estava rude,
eritregaiido-se todo com o animo rendido
nas li, aos de Deos. Dahi em diante todas
,is noites depois de Matinas leeolhendo-se no
Capitulo, cí>£tuma\a exerci lar-se em uma re-
presentação ao tívo da Paixão de Chiislo fa-
zendo conta, que o acompanhava, e padecia
juntamente, assim nos passos, que andou,
"omo cm tudo o mais que por nós padecco,
Passeava de canto a canto para deitar de si
(' sono , e a | reguiça , e estar n~iais prompto,
€ mais esperto na ir.ediíação , e sentimento
(ia sagrada l^aixão. O lugar donde cemeçava
eia o da ultima céa. Daqui saía com Cliristo ,
e con ia com ellc todos aquelít^s lugares sa-
grados sem dei::ar nenhum te o trazer dian-
te de Pilatos. Em fim reeehia-o sentenciado
ú nicrte d ante o trihunal, e passava com elie
aquelle lastimoso caminho , que o l)om JE.SL^
íez tom a Cruz ás costas desdo mesmo lugar
té o monte Calvaiio. A cruem que legava
neste can;inho da Cruz era a seguinte: Clie-
gaudo á poila do Capitulo paia sair, pr'-
ineiro que tudo com os joelhos eui terra
beijava as pisadas do Senhor, une fazia conta
que saía j)or alli já coiidemnado a morte , e
camiidiavn para o lugar delia, e aqui rt7a\n o
i*jiaimo : Ltm JUius uicus i íípice iii mt . cie. ^
tí% Vida D5 B]e4T'í
assim saía pftla porta fora, e fa dando rol li
pt!ii oTiiSU , jndtí tinha f-.
giiiaçã'» ciuatro píaias, p- ií
passar em co;iipa[íh;a co oeníii>r, í ÍJ
á priineira passava-aroni ílc5ejo,e .. . :iá«
cão de largar todus os bens te:nporaes, ami-
gos, e hizeud.i , e padecer em h,>:ra, e lou-
vor de Christo um desterro <]eiaiup.<raíio
de todo allivlo, e uma pobreza voluntária.
Na se^jundii pjopunha dar d« mão a toda;
ashcmras, e diguidades da terra, e fazer di-
ligencia por coe^'ar a um voluntário despreza
do niundo: considerando ronio o íiicsmi
ScMihor chegou a tístado de bicho, e não cc
homem, ef<»i haviílo por afronta dos liomecs,
e despreio do povo. Na entratla da terceira
praça tornava a pôr os joelhos em terra, •
beijar o chão, eaíli cojn animo livre, e reso-
luto engeitava todo o descanso, e repouso
desnecessário, e lodo o refrigério, e recrea-
ção corporal á honra daquelie tlehcadissimo
corpo de seu !) )m JESU, espeilaçado coiu tor-
mentos : pondo naíjuelle passo diante dos
allios , o que está escrito, que se scccou sua
força como telha , e íjue foi tornado em pó
de morte. E tend 1 presente na imaginação a
crueza, com que aquelles algozes o empuxa-
vão, considerava que com muita razão não
haveriaolhos, nemcoraç«3cs tão durosdonde
Tm, Henriqui Scío. ti3
% lastima disto não arrancasse lagrimas , e
gemidos de compaixno. Che;2[andt> á qujrta
e ultima praça lançava-se de joelhos no meio
delia, f izen lo cont;» que o fazia diante da
porta da LÍda<le, por onde o Senhor liavia dd
*aír, e posto diante, beijando primeiro o
chão, pedia-lhe efíicazmente , qu« não qui-
zesse ir am<»rTerse elle antes consentisse, qu«
acabasse jwntuu»ente em sua companhia, pois
de força havia dtí passar o Senhor por junto
(k^lle. Estas cousas todas retra-íava o Santo o
meilior qae podia em sua alma , e tanto ao
"vivo como se na verdatle passarão assim em
sua presença , e dizia aquella oração : //fr'd Rejt
noster fili Da\>id^ etc. E assim deixava passar
o Senhor. Depois toniando-se a por em joe-
lhos contra a poria, recebia tatnbem a Crux
com este verso : O Crux ave spes única , etc, e
deixava-a também passar diante. Então fa-
zia outra grande referencia com os joelhos
em terra á Virgem gloriosis^iina Rainha dos
Ceos, que passava por junto dclle, e ia traz
seu lilho trespassada de dores mortaes. Alli
estava considerando os gestos , e mcneos
lastimosos da Senhora , os rios de suas ar-
dentes higrimas , seus profundos e magoados
suspiros, e a tristeza inuuensa de seu Divino
roslo , e rezava-lhe uma Salva tiegine^ ctc^
£ beijava com grande devacão suas pizadas»
.11 4 Tida no Beato
Logo «e levantava , c loniavn a caminhar traí!
o Senhor até o alcanrar , e se pur á sua ilhar-
ga. E isto ainda que ima^inatlo, tiriha-o al-
gumas vezes tão presente , como se corpo-
ralmente o acompanhara. E vendo-o rão só
considerava cmijo iiuindo Ell\cl David de
íeii filho Absalão, nunca lhe taltaião sol-
cla(h)s valorosos , que o aconipaiiha\ ã") , c fa-
miliarmente lhe assistão a um , e a oulro
lado. Aqui rendia , e renunciava todo seu
queier, é vontade nas mãos aivinns , reso-
luto em não cngeiíar nada de ludo quanlo
Deos quizcsse ordíiuir delle. Depois trazia á
memoria aqucila iicão do Propheia Isaias,
que se iêna Sexta feira da Semana Sania , e
começa : Domine quis ctedidit auditui nosfroy
efe; na qual se pinin ao vivo esta saída do Se-
nhor })ara o Uíonte Calvário. Com esta con-
«ideiação entrava pela porta do choro, t
luhia-se ao preshyíerio do alur, e alii lancan-
do-se por terra diante de uma Cruz f>cdia ao
boni JESU, que lúo c[uizcs5e consentir vel-o
tpartado ilo si em tempo al-itim, nem na
morte, nem na vida, nem r.«s boas vcntur.is,
nem nas adversielade>. (Costumava tamhem o
8anlo fazer outro caminho espiritual da -Crui
p<ír esta ordem: Quando $e cantava a iSrtA*
iieí^ina as Completas, conteufplava em sua
alma a Yirgeiu sag^rada encostada soLic o í4í«
Tsi, Hr-^R:QUE Sn5o, Ii5
puUhro He sen Filho, cercada de um mar de
dores, e iiiKí^iriava que erfio horas de a re-
colher para casn, e (jue este o-ficio estax-a a
ma conta. K assim fazia tros vénias em espiri-
to , e a cada uraa deílas beijava o chão , &
desta maneira a acompanhaTa até casa. A
priíneiía vénia fazia junto do Sepulchro ;
porque tanto que se começava a Sa/í^e incli-
nava sua alína^aos pés da Senhora, e toma-
va-a euí seus braços espiritualmente , e alli
chorava a desconsolação daquelle peito riia-
ternal cheio de amargura , de desprezos, de
afrontas , e de mui aiuargosa tristeza , e con-
solava-a com lhe lembrar, qiuí em recom-
pensa destes trabalhos era agora Ikiirdia po-
derosa , Rainha de misericortha , vida, do-
çura, e es[)erança nossa. Chegando ás por-
tas de Jerusalém adiantava-se um pouco, ©
virando para traz punha os olhus nella ,
vendo q<ião lastimosa vinha, tinta, e ba-
idiada do sangue, que .soI)re elhi estilla-
rão os rasgados mecubros <lc seu pre«it)s«
Filho, e tjue desamparada ile tocJa c«mi-
w^íhição. Aipii tornava a beijar o chfio coin
grande devaçfio, e reccben(h)-a com as pala-
VI as: A/Vi ergo ai/i>(>cnía nostra^ ctc. encoui-
men(hi*a- lhe que estivesse de hom animo,
pois já era de tod.» o género humano ativoga -
da dijjuissima, c rogava-ihe que puzesác neilíÇ
os sens pirclosos olhos pelo amor daqiielle la»
tiniosí), e niagonda aspeito, que trazia, elhe
mostrasse brando, e benigno, depois do de-
slerro desta vida, a JP>jli fruito l>emdilo de
seu ventre. A terceira vénia fazia ás portas da
casa de Santa Anna , mãi da Senhora , aonrlt
entrava desfazendo-se em lagrimas, e encom-
mendava-se em sua brandíssima misericór-
dia, e em sua brandura misericordiosissiiiia
com as devotas palavras : O cUmens ^ o pia,
o diílcis M riria , ^ pedia -lhe que na hora da
iMorte recebesse sua ulma pobre, e desterra-
da , e a levasse, e a defetulesse dos inimigos
iufernaes, e enraminhasíe pelas portai do
Ceo á porta da eterna beiuaventurança.
CAPITULO XVÍ.
Do cuidado com que o B. Fr, Henrique f^uar*
dou a virtude utilUsiuia do iilencio.
X ínba o B. Fr. Henri(}ue grandes impulsos
interiores que o obiií;aAã<i a procurar, e
buscar a pa/- verdadeira d alma : para o que
entendi;» , que eia conio íujidamciito princi-
p.íl o siUM.cio. Pelo que tete tal «uarda na
l»òui, que em inuta aiiuo6 uunca na mesa.
Fn. He^aíQUí Suso. iiy
^lebrou o sileiuio senãt) foi uma vez co»
mcndo em urna iiáo com niuiios Fr-des,
com qne vinha de íJopilulo. E para se fazer
mais senhor da. língua , e !iáo ser arremes-
sado no tallar tonjou em sna iiiíagina-
cão três mestres sem cnja licença partiru-
lar não fallava. flsicí erão os Padres S. Do-
mingos, Santo Arsénio, S. Ocrnartlo. Haven-
do de dizer al^nina cousa h)^o em seu pen-
samento os corria todos , pedindo licença a
cada um , e dizendo : Jube Domine Oenedicert,
E se o que queria dizer se podia fazer em tem-
po , e Ingar acínnmodado , fazia conta que
tinha licença rio prinieiro. E se estava certo
que da pratica lhe rifio nasreria renhuni in-
conveniente, ou embaraço de fór,^ , linha
também licença do segundo , e se sentia que
o que queria íallarlhe não causaria desasso-
cego alguíu, ou alteração interior, já então
havia que toJos ires lhe dava o licença , e as-
sim acabava de soltar o que queria dizer. Mas
se lhe acontecia entender outra cousa neste
exame , parava , e não saía dos limites do si-
lencio. Quando acodia á portaria chamado por
alguém, procurava guardar (jualro cousas.
A primeira atalhar a lodos com benignida-
de. A segunda concluir em poucas palavras.
A terceira não deixar ir ninguém desconso-
lado. A quarta tornar para a bua celiu senj
1 1? Vida. do Beito
Icviír nenliiim danino da conversação ou lhe
íicar preso nelia albina atíecto (U TontaJe.
CAPITULO XVÍÍ.
D;iS asparas penitencias com que o D, Fr»
Hcnriqiis inorfiJicai\i. sua carne,
XLPia Fr. Henri|ne em sim mocidade dt
unici uatine/a depravada , e lasciva , e torno
ia entra fidi) na idade roniecaváo os vieios a
fazer nella grande ahalo : do que o Saiilo re-
cebia assaz desgosto conherendo quão pe-
sada era a targa da huinanulaíle in:d morti-
ficada , quanto mais de seu próprio corpo.
Por esta rasao inventava nuiiias cousas sa-
gazmente traçadas , e afliij^ia seu corpo com
cruéis penitencias , trabalhando pelo trazer
sujeiío ao espirito. Priuieiramente trouxe
muilo tempo um cilicio , e unia cadèa de
feiro cingid.i no corpo , alé quví pelo muito
sangne , que Ibe Sciía das cliaga> , cpie lhe cau-
sava , fui forcado a tiral-a. Maiulou secreta-
mente fazer umas ciroulas ile áspero cilicio,
e nella^ umas filas para se alar, em que havia
cenio c cincoenta agulhas de metal adelga-
çadas á lima, cujas pontas lia/.la sempre \ i-
radas para a rarne. Estas íirt)nlas erào muito
justas, e pela dianteira apertadas para §•
Fr. Hsxktqub Sus(í. 119
clicgarem mais ao corpo, e afsitn enlrarera
as naulhas mais luía cai no, e cheíiavão-rue
ale o eiubigo, e aornua com cii.is ue noiíe.
Neste tornienlo parsava as calmas do Estio ,
(juando viisha de fura afrontado do camijjlio,
e desíalecido dfe forças, e alento; ou cjiiando
acabava de ler scado mestre ; e de nia-
Ticira jizla apertado , que tanibom os bichos
lhe fazião guerra, o assim forçado da neces-
sidade, ora se encolhia, ora se torcia,
ora se revolvia de uma banda para outra ,
como faz um bicho, se o. picão com uma
aí>ulha. finitas vezes ficava taí da guerra, c[ue
lhe fazlào os } iollios , como se estivera ro-
deado de muitas formigas; porque ou qui-
zesse cerrar os olhos , ou estivesse já dor-
mindo saitavão nelle, e moru*ião-no, e bc-
bendo-lhe o sangue o atormenta VuO cruel-
mente. Nestas occasiões costumava algumaí;
vezes dizer a Deos de todo coiaçrio : O* meu
Deos , e quáo penosa morte é esta , qn<.MU é
morto por salteadores , espe laçado de b-ras
ahmarias acal>a de uma morto abbreviada :
mas eu jazendo entre bichos, e cercado del-
]es, vejo-ine uorrer de coníínuo , e vejo que
n.Vo posso acabar, e todavia consentir tan-
tas penas: nunca pc»k' acabar <oinsigo afrou-
xar nada deste rigor.; nem nas con^pridas
Boites do Inverno , nem no fervor do Eiiio,
fao TiDÁ Da Beitô
Antes i^kTi ter menos allivio accrescentom
outra cousa de novo. Lanrou ao nescoço um
pedaço de cinto, que Ilie 6cava como colar ,
e iieile pegou artificiosamente duas manilhas
feitas de couro, nas quaes nieilia as mãos^
e as fecli.iva, como em aljeinns , com dous
cadeados, easchaves delies punha sobre um
banco , dianfe do leiro , eni que jazia , e não
se soltava senuo quando eriío horas de se le-
Tantar para as Matinas. FicaviTo-ihe os bra-
ços pegados na garf^anta, e estendidos para
cima , e era a prisíTo tào íirmc , que bem se
lhe podia qileimar a cclla , e o Mosteiro todo
sem ellc ser poderoso para st rcmedear em
nada como nuo usasse das chaves. Conúnuou
neste martjrio tanto tempo, que lhe come-
çarão a tremer as mãos e braços em j^randc
maneira por se aperíar tanto. ílntão buscou
outra invenção. Fez fazer un; as luvas do couro
como as de que usfío os trabalhadores vm of-
íicios perigosos para as mãos , c os lavrado-
res para arrancar cardos, e espinhos, « nian-
flou-as semear todas de preguinhos tle bronz*
de pontas agudiís, e calçava-as de noite pari
que assim se ferisse, e magoasse se acaso dor-
mindo quizesse afastar de si , ou afiouxarai
ceroulas de cilicio, ou \aler-se de alguma
maneira das mãos contra os bichos, quando
o comessem , e assim lhe acoutçceo , qu«
Fr. HEríniQTii Soso, laj
^ucrerulo-se ajudar díS muos (luando dor-*
mia , e coçando-se nos peitos com os pregos,
abria as carros tão crua , e feamcnte, que pa-
recido rasg^adasdts unhas de al^um usso , e
chegava a estado que lh« inchavào os bra-
ços , e os peitos. E sendo as feridas ta«s, que
nao sarava delias senão a cabo de muitos dias,
com tudo, em sendo são logo tornava d«
novo ao mesmo tratamento. Neste penoso
exercício, ou por melhor dizer martyrio ,
coutiniíou o Santo dezeseis annos: no cabo
cios quaes reíriando-se-lhe já a naUireza , •
sentindo muitas contrariedades e misérias
delia , teve uma visão de Anjos , em um dia
de Pentecoste , que lhe certiGcárão ser Deos
servido, que não padecesse mais tal traba-
lho, e elle obedecendo logo, e d.*«.lstindo
de tudo lançou n'um rio todos aquellcs ias-
trumentus.
CAPITULO XVIII.
De uma áspera CrnZy que ó Beato Fr, Henri»
que trouxe entre as tspadoas,
OOhre todos os outros exercícios de pe«
niiencia, que o B. Fr. Henrique conti-
nuou, levava-se com grande gosto daquel-
as que lhe faziãg tiaztí; cia seu cor*.
I5i2 Yicr no Br ATO
po algum sinal cie compaixão experiment^T,
e sensível dos cruéis toniienlos qiu? o Senhor
padeceo na Cruz. E a esic fim fabricou par
suas mãos unia Cruz de pão do comprimento
de um palmo , e de lurgura proporciona-
da, e pregou nolla trinta cravos em honra , c
memoria de todas as chagas cora queChrisio
testemunhou o grande amor que teve ao gé-
nero humano. Esta Cruz assentou nas costis
soljre a carne r.úa estendida entre as espadoas ,
e trouxe-a oito annos couiínuos de dia e de
noite, em louvor de Cl»»iisLo seu Senhor cru-
cilicad.o. No derradeiro ar.no accrescenlou
mais sele agulhas , cujas pontas íuguravão a
Cruz pelo meio, e saião a outra parte, fi-
cando nella bem reíirmadas , e cortadas pela
parle de cima. O sangue e dores, que tsias
llic causavão rccel)ia á honra daquella dòr
penetrante, c agudissima, com que foi tres-
passado o corai:ão e alma da Virgem sagrada
j)a morte de seu filho. A primeira vez que
poz esta Cruz, e a apertou comsigo , assoiu-
brou-se-lhe a natureza como delicada que
era, e ficou cheia de pavor. Pelo que com
uma pedra embotou um pouco as pontas dos
cravos. Mas logo sentindo ver-sc vencido de
tal pusillanimidade, fornou-os a apontar to-
dos com uma lima, e pol-os sobre a
carne* JBai todas as parUíS das costas , oni]#
Tr\, Luiz db Socsa. Ii3
na o«.sos, que sáeni para fora, a Cruz Ih»
ínzia sangue, e chaga. Quando qtier qud
andava ouse deitava parecia-ihe que andava
vestido oní unia pelle de ouiico. Se alguém
desatlentad;nnente lhe tocava naquelia parte
ou o empuxava, nutgoava-o. Com wui s6
lenicílio lhe pareceo que faria loieravel tão
trahalhosíi Cvuz, e foi entalhar como en-
tahiou nas costas delia o salutifero nome
de JÈISU. Alem das afriicçóes ordinari;:s ,
qtie o Sa?ito padecia com csia Ciuz, , duas
vezrs cada dia se disciphnava com ella
por este modo: Dav2«lhe punliadas em cima,
e os cravos en liados pela carne , prega vfio-so
de maneira , que era necessário para os tirar
de^pir-be primeiro. Isto sabia fazer tão enco-
bertameiite, e <om tal aviso, que nin;^ueui
lho podia eritender. Este modo de disciphiia
tomava quando nas meditações, que tinha da
Paixão jchegava a contemplar a colimina, em
que seu Dcos , e Serdior , aquclle mais íbr-
IU050 , e mais jierfeito que l(vlos os fdlios
(h)s homens , foi tfio deshumanameiUe açou-
tado com Taras , e azorragues, e pedia-llie
í[ue com aqucllas divinas chagas sarasse as
sua-. Outra vez se disciplinava quando chç*
gava com o Seniior ao lugar da Cruz, e ocoa-
siderava pregado nella com cra\os , entào se
apertava elle laml)cmcom cravos desuaCru*
1*4 Vida do Biato
com «tenção e nnimo de se não apartar nnn(?€
deChristocruciíicatlo. Em oulrasoccasióesse
mal tratava tambetn da in«sjiu maneira, mas
isto nfio ern Sfínào f|u.ni{lo ihe aconteria ter
gosto demaslatlo no coriici- , ou no hcbcr ,
oii em COUS3S similliantes. Aconieoeo um
dia, que estando sentadas com elleduasdon-
lelias cm lugar púbico, e (iuiile de multa
gfntc , por liiscuido ibes tomou as niaos sem
pretençao , nem pensamento mvío ; mas l>om
(iepressa llie pe.sou assaz, entendendo qne
riào era raz;To passar tal <^)us.i sem castiiço. E
assim em se apartando í^alli íoi-se ao sen ora-
tório, e deitiíndo-se sobre a Cruz ferio- se de
manciía nella por acjnclle descuido , que co-
xnettera , que Ibe tí( arào poi todas as costas
entravadas , e nao conlc-nlc com esta pena,
tomou outra de niTo enlrar, como se fò:a
esoommungado , no capitulo d sua oração
costumada , ifndo pejo de ir a elie ,
como sobia dep(»is de Matinas , e jnnlar-se
com os e<pirit >>í ;ingc!icos, qnesc-mpre >iidK'Ío
aconipanlial o eui suas meditaç.Vs. Do[)ois
querendo já re<"i>nciliar-se com o Senbor, e
absolver-se <ie lodo dtsta culpa , caslij;ou-se
primeiro borrcni/icmnie com muitos tor-
in nlos. rri:ií<!ran»cnte l.iucaílo porteira aos
pt*-í do Juiz, (ptc iuia:;inava presente, ferio-se
diante «icilc coiu a Cruz, e b>jj'0 posto no Dieio
Fa. Lui2 ox Sot?si. la^
Ha casa, e Correndo partioularinente os San»
tos , que fazia conta eiiavão á roda, ferio-s*
da mesma maneira trinta vezes de modo, (jue
llie corria o sangue pelos hund)ros abaixo em
abundância. As«im purgou c: uelmi nte aquel*
la deleitação, que lhe parcceo recebera desor-
denada. Acab.id^s as Matinas, recolhido no
oratório do Capitulo em um lugar apartado,
que costumava , prostata-se cem vezes com
o rosto C!n terra , e beijava o chão, e outras
tantas lazia o ?nesmo posto de joeliios , e para
cada vez que beijava o cliàfo de uma maneira,
e de outra , tinha suas particulares medita^-
ç5es. Daqui saía sempre mui trabalhado;
porque Como trazia a Cruz fortemente aper-
tada lio corpo , e muito mais checada, e co-
sida com a carne , do que audão as cordas
que se at\o em rasos para servir, e como an»
dando desia maneira se debruçava cem vezes
para l)eljai a terra ; a<i dobrar-se mettlào-se-
Ihe todos os cravos pela carne , e os mesmos
ao levantar tornavão a saír^ o logo á outra
inclinação fa/.ião novas feridas , dando em
outros lui,'\Te", , ([uc era cousa que na ver-
dade lhe causava intolerável dòr e marty-
rio , que fò?a mais sofrivel qcantlo não fe-
rirão nimca iiais que n*iim só lugar. Antes
desta peultenc.a fazia outra primeiro. Tinha
íeito por suas jiiãos um uzoriajjuc , e mau-
laO Yjda 130 Deato
r^níi-o rn]>ilr ãc uma parle e cVoulra ri»
Miiia-i nofiias fie bronze agudas cônio de fu-
rador , e d'» meio do azorrague para diante
saííTo nois duas p*)nías , que fica\áo pej^^adas
com cala uma das prlineiras, dejnaneira que
vinha a Si^r cada uir.a de três I)icos , quando
dava a pancada, e feria. Com esta disciplina ,
levaiitando-se antes de corneçarein Matinas ,
se ia at> Coro diante do Sanlissi;iio Sacra-
mento, e diciplinava-se asperamente por uni
])oni espaço , e isto fez até que soube qne to-
dos os Frades o linhão já sentido^ pr.rque
desde então cessou. Em dia de S. Cíemcnle ,
quando comera já a entrar olnxrriio, lhe
íconteceo unii vez fazer uma coiifiísão ge-
ral, e como foi noite, que tudo estava calado,
íechou-se na cella, e despirdo-se de todos oi
vestidos, íicando com as cerotdasde ciliiio ,
que trazia , nçoutou-se de maneira até nas
pernas , e bryços , que o sani^Tic que dedo
corria não era menos que sclòri de cutiladas
de uma esjj.uia. Tinha o azorrií^^ue uma das
pontas revolla, como gancho, ou anzol. (\v.e
tudo o em que pegava da carue arrancara
fora. Foi tal, e tão aturada a força desta
diseijjHna , í{ue lhe qnelnou o azorrague, o
feito em três pedaços foi dar nas paredes da
cel!;í, íir.iiulodhe outro pedat:*) nas máos. Es-
tando p.ds ussiai tcdo (.nvulro cm sangue , •
Fr. Luiz de S uíaJ 1^7
olhando para si considerava a miserarel figu*
ra de seu corpo , e muitas vezes cuidava que
arreuiedava bcni ao vivo ao mesmo (^hristo
quando foi açoutado na columna. Logo co-
meçou a cluiriír agramente de uma compai-
xão de si mesmo. Eassi.n como estava nú, e
banhando em s;íngue , e j)or aquelie frio da
Inverno, pondo os joelhos em terra , pedia a
Deos, que lhe perdoasse todos seus peccados.
Depois disto outra vez em um Domingo da
Quinquiigesima (que eráo dias em que co-
stumava tomar disciplina) «stando os Fradeô
na me/a, mettldo na cella^e as roupas íóia,
5e açoutou com a niesma deshumanidade, fi-
cando todo lavado em sangue; c querendo
apertar de novo comsigo com mais aspereza ,
acudio um Frade aos som dus golpes , que
dava com a disciplina , e assim parou por en»
tao , n)as para sentir mais tormento' lavou
as chajTj.is com sal e vinagre. Em dia de S,'
Bento, que íui o cm que Fr Henrique nasceo
a horas de janiir , recolheo-se erii seu ora-
tório, e fechando-sc por <lentro, dcspio-se ,
e tomando nas mãf)s o aznrruguc, que ^rnos
dito, começou a discip!inar-se. No principio
tlesia (]i-ií:iplina dou cyni o acoute no braço
esquerdo , e tocantio a vea delle , que cha»
mão mediana , ou outra visinha, n)mpeo-a y
€ arrebentou-Uie o sangue com taulu íuri« ,
f a8 Tida 9o JízLtd
c abundância, que lhe corria até os pét, fe
alagAva o sobrado. Logo lhe inchou o braço,
e se lhe fez nesrro : do que íit ando o Santo
atemorizado nao se alreTeo a ir por diante.
No mesmo tempo ^ e liora que aisim se açou-
tava , uma snnta donzella por nome Anna ,
que estava em orai áo tni outra cidade , foi
levada em visão ao mesnío lugar, e vistos
os temerosos golpes , que se dava , cheia de
compaiião, chegou-se perto, e indo o Santo
uma vez com o braço esiendido para se ferir,
•lia se atravessou ao azorragne , de maneira
que lhe pareceo que ton.ara lodo o golpe em
um braço , e cm fim tomando em si achou
a pancada sinalada no braço , e a carne alli
picada 5 e negra , e este sinal evidente por
argumento certo • verdadeiro das ásperas
penitencias de Fr. Henrique lhe ficou bem
de verdade impresso nas carnes por muito
l^mpo.
Fr. Henrique Srso. 129
CAPITULO XIX.
Da camcij que. o Beato Fr, llenrique usava*
J.
^^
Káte n^esmo tempo houve Fr. Henrique ás
jnãos iiu;a po; ta vellia , que j:i nào servia,
e níeltoo-a ua sua cella junto da cama, e
cosluniCTa a dormir nellasern nenhum modo
decoboitor: somente teceo por suas mãos
un»a esU:ira de- junco bem j:ieli,Mda, que tinha
posta sobre a porta , e nuo lhe clic^ava mais
que até os joullios ; para a caberá em luijar
decaljeceira poz um saquinho do palha de
avea , e sobre elle outra almofadinha bem
pequena. Nenhuma cousa totalmente tinha
das que servem , e se usào na cama , e deita-
Ta-se, e dormia de noite assim como andava
de dia dcfcaliando somente os sapatos, e co-
Lrindo-os com uma capa grossa, e assi era
cousa mui piedosa ver o couío ja/ia , porijue
a palha dura depois de amassatia fazia-se-lhe
em novellos debaixo án cubeca. A Ouz com
os agu(h)S cravos passava-lhe as costas , os
brarcs estavâo an.arrados , e fccbatids ((.ni
chave cm duasal^^cmas, os lombos lastimados
dos pannos de cilicio. A capa cancava-o com
o peso , a porta nu)ía-o cchu sua dureza, e
íricldatle , cm lim jazia triste, e miseia^cU
mente atribulado , e como um capo nao se
podia mover sem nniito tormento , t se lhe
acontecia virar-se com força sobre a Cruz ven-
cido do sono encravava-se nos pregos , e
agullias até os ossos. Entre tanto tudo era
gemer, e dar ais ao Ceo. No Inverno passava
multo raal por ra/ITo do íiio. Porque esten-
dendo os pés , como eraccsturaado, punba-os
nús na poria nna, e quando os queria en-
colber por estarem enregelados com frio, ti
cbegabos ao corpo , levantando pira cima
os joelhos d<]vão-ibe caindíras luis pernas
con» alteração do sangue, que o atorn;enta% íto
bravamente, e oí inesnjos p(\s se cnchião d*J
san^ne pisado , que a elles descia, e as pernas
lhe inriiavão como a um hydropico , os joe-
lhos trazia sempre pisados, e en«;anguentados,
os lombos dospannt)S de cilicio feridos, c apos-
temados. A Cruz feria-o nas costas , o frio de-
masiado gastava-lhea natureza, a sede secca-
va-lhe a gar{.{anta , e as entranhas, as mâostrc
miào-lhe de falta já de forças, e nestas afllic-
çóes passava as noit«fS , e os dias. Mas tudo
i^to s.)fria obrl^:id<) dvi immenso, eeniranha-
■vrl arnor que tiidia á Kteina Sapiência, qne
he JE:^IJ Christo Deos , e Senlior nosso, cotu
cuja Paixão penosíssima queria conformar-se
em alguma cousa. Depois deixando este modo
de cama , passou-se a uma ínuito pequen*
Fk. Henrique Snso, i3i
«ellíi , onde tomou por cama o banco, que
iiclla servia de assento, que era tão estreito
ecurlo, que se não podia estender nelle, e
neste modo de prisão tão a penada, e na
porta, que temos dito, se deitou oito nimos
contínuos as vezes que havia de dormir, sem
alliriar neuhunia cousa de todos os outros
irslrumentos de penitencia , que usava e ti-
idia então por costume, quando se achava no
Mosteiro , não entrar em estufa depois de
Compleí-as, nem se chtgar á fogueira do Fra-
des para se aquentar por mais iíiconiporlavel
que o frio fosso. Eistoc^uardou vinte e cinco
annos , se não era quando acaso lhe conipria
ir aos ditos lugares por outra occasião. Nunca
nos ditos vinte cinco annos entrou em banho,
nunca lavou os pés por recrearão , ou por
evitar desabrimentos de corpo delicado, qual
era o seu. Além disto foi tão abstinente, que
nem em Verão, nem Inverno comco mais
de uma só vez ao dia, e não somente não co-
mia carne , nias nem jcixe , nem (jvos. Mui-
tos annos teve t.il cuidado desci:;iilr a po-
breza, que nem com licença , nem ícm ella
quiz tomar dinheiro, nem tocal-o. Wm muito
tempo teve tal guarda na pureza espiritual ,
e corporal, que se não co(a\a, r ítu tf)rava
em nenhuma paile docoipo, mais que nos
fes, c u.ãos.
tZ% VíD\ DO BlAT»
CAPITULO XX.
Dã temperança, que o B, Fr, Henrique rtsai>M
no beLer,
\J 31 tempo se aprestava o Santo a f izcr iiin
inoílo <lc utMÚtenda a majj pesatla, c rigoro-
sa , que podia ser: e foi liiiiilar-se a quaiili-
tia<le ceria ile bebida por cada dia , e Cjta
po;* eitremo pequena , e para a não accre-
Sv.entar nem dinúnuir , estando no Conven-
to , ou fora dtille, fei um copinho daquclla
niedida, que levava conisigo qr.ando ia fora.
E era tão pequena a qiianíithaifí, que pari
sede grande não ficava mais qr.e como
uni trago, para remediar a muita seccura da
boca , como se pudera dar de agua , para
refrescar uni pouco a um enlerino de fe-
bres ardentes, a (juem se tolhe o beber.
Além disto deixou muito Icmpo de beber
vinho, tirando dia de Taschoa , que por
honra tle tamanha solemnidadc o sofria
ent'o. Havendo já muitos dia>, quo vivia
neste tra])alho , e não querendo, como
eia ri^^oroso para t^i , allivi.ir-se di-Ue '
Tieiu com agua, nem com vinho, levan-
tava os olhf)S ao Ceo u'um modo triste >
Q lasliinolio. I£ aconteeeo que , faicndo isioi
Fr. Henrique S-js». i3u»
um dia sentio dentro de si uma inspiração
ou voz de Ueos , que lhe fallava desta manei-
ra : Leinbra-te , e considera como no ul-
timo íim de minha vida , estando eu afíligi-
do com as anciãs da morte, passei uma sec-
cura, e sede ardenti.^sima , com um pouco
de vinagre , e ftl , stndo niiijlias todas as
fontes das a^uas, como feitas por mim , com
tudo o mais que serve para uso, e sustenta-
ção. Assim pois convém, se queres seguir
liiinbas pisadas, que sotras ,'leve e dcsas-
somLrad.imenie as necessidades, e faltas, em
que vives. Lm tempo ante^do Natal , dan-
do o Santo de mío a tT;do o qenero de al-
livio, e descanio corporal , alem de soas or-
dinal.»;, e costumadas penitencias, de n<uilo
tempo , enipiendeo outras três. Primeira-
mente todas as noites depois de Matinas se
punha em pé diante do altar mór con: os
pés descalços sohre as lageas, e assim eí»íava
até amanhecer, e isto fazia quando as noites
sào mais compridas , e es Frades se esperiào
mais cedo para os olíicios nocturi-os do
Coro. A segunda picnitencia era não entiar,
i:cm chegar a esLuIas, nem a outros lugares
qucntoj , nem de dia, nem de noite, nem
ainda a aquentar as mãos ao íu/^o indo
para o altar, com quanto eniào as tra/ia
erucimculc inchadas do frio, que íazia ri 'o*
134 VlDl DO Bf.ít©
Tosissimo : assim todo enregelado com frio
se i\ depois de Completas deitar a dormir
sobre o seu banco, e logo d».^pois de Mati-
nas ficava em pé diante do Altar Mór so-
bre as iageas frias, e descalço até pela
nianháa, como temos di':o. A terceira ycni'
tencia foi determinar-se de não beber,
totaim-nte em todo o dia, ninda que se TÍs'>e
demasiadamente apertado da sede , tirando
ao jantar, que para e:itTo tinha sua me-
dida taixida, que bíbia , e assim quando
^inha a tarde apertava-o a sede tão cruel-
mente, que todos seus sentidos esiaTáo ar-
dendo em desejos de beber. O que toda-
1'ia o Santo reprimia p.irfi.indo contra si,
nfÍD sem muitas, e mui rigorosas dOrrcs. A
l)òca se lhe seccava por tora , e por dentro
da mesma maneira , que acontece a um en-
fermo de febre arderue. A Inigua se lhe gre-
tava tanto, que depois andou mais de um
anuo sem p^der acabar de sarar delia.
Quando desta maneira se achava ás Com-
pletas, e se lançava a agua benta, como c
costume , virava-se com grande desejo com
a boca aberta para o hysopc a ver se lhe
ca'a ACAio uni\ gotinha do agua naquclla
seca lingua, C(vm que tivesse algum pouco
de icfrigtirio. Quan io ia ao refeitório fazer
coliaçàoj em st- assentando na mesa , ainda
Fr. Henrique Suso. %35
que eslava morto de sede, afastava de si o
vinho, e algunsas vezes levantantlo os olhos
io Geo : Kecebei , dizia , Pai celestial este
licor como ein sacrifício de sangue de meu
coração, e dai-o a vosso Filho Unigénito,
que está para espirar na Cruz, aííli^iilo de
mui rigoiosa sede. Outras vezes , assim se-
quioso cjino andava , ía-se á fonte, e pon-
do-se a contemplar aquella agua , que corria
com um suave roído , e caía em um vaso
estanhado por dentro, que a fazia mais cla-
ra c formosa , levantava os oliios aDeos com
lastimosos suspiros arrariCados das entranhas.
Outras vezes tliegondo a estado que já não
podia mais sofrer dizia a Decs do intimo de
seu coração : O' bondade eterna , quão se-
cretos são vossos juízos , que c possível que
vivo láo p^rlo desse espaçoso lago de Con-
stância, e passão diante de meus olhos as
cristalinas aguas do Danúbio , e com tudo
não ha de haver para mimom só trago dtj
agua P Grandíssima miséria é esta! llsia or-
dem de vida C(,ulinnou até í)on:ií)ga , em
que se canta o E\angelho, que tiata eomo o
benhor couverteo a agua euk vinlio. Kslando
este dia á tarde na mesa con^untido de
seus trabalhos não podia comer de pura
sede. Tanto que se dei fu» as praças recolheo-
et; de presia para o seu orai'j;io , porque cia
l36 VíD.V DO Beàtí»
tão fintoleravel a vehemaiicia do mal, que
passava, que já não tinha forças para se po-
der ter , e começou a chorar ileiraniando
muitas lagrimas, fallando com Deos , e di-
«endo: O' Deos immortal , que só conlieceii
©s trabalhos , e as dores, que clles causão ,
quão desaventnrado nisci neste inundo,
pois sobej»ndo-ine tudo quanto c necessário
para a suslentaçio da tida , com tudo c
lorçado, que padcja uma tamanha, e tão
terrível falta. No meio dcistas queixas pare-
ceo-lhe que dentro em sua alma ouvia uma
▼oz que lhe dizia: Animo, animo, que
«edo serás alegre o consolado por Deos.
Ac\hein-£e as lagrimas, valoroso lutador, e
soldado de Deos. Não desmacs, nem te tra-
tes mal. Com estas palavias cobrou tanto es-
forço, que deixou de chorar por um pouco
espaço: e com tudo não se podia alegrar
períeitaracnte, mas estava de maneira, que
no mesmo tempo , qiie lhe corrlão dos olhos
as lagrimas, sentia iulcriormer.te uma cousa,
qae o forçava a rir-se com c.pf ranças de um
grande bem, e j^osto , que do Seidu^r muito
depreisalbe havia de vir, dosla maneira >e
foi a Completas: a boca cantava , mas o co-
ração tremia, e entre tanto lhe parecia , que
cada vez estava mais perto a h.>ra de se ver
livre desU Cruz, como acoutcctío pouco de-
» Fn. KisimiQTji Siso. jSy
poij, e aintia na mesma noite teve em parl«
principio, e foi desta maneira : \ io o Santo
em revelação vir- se para elle a Virgem Nossa
Senhora coiu o inenino JESU naquelU figu-
ra , que representava quando era de sete
annos , e vio ^que o menino JESU i razia ma
copo cheio de agna maior alguma cousa,
que os copos ordinários , qne sei-sâão no
Mosteiro, e que a Virgem gloriosissima o
tomava em suas mãos, e lh'o vinha ofíere-
cer, para que bebesse , c elle acceitando-o
Lebia com grande gosto, a matava a sede á
vontade. Aconteceo iiaqueile tempo ir o San-
to um dia «amir.bandopelo campo, e entran-
do por uma vereda estreita vio , que pela
mesma se vinha encontrar com elle uma
mulher pobre , mas b.onesta em seu parecer.
Tanto que chegou perlo delia, deixou-lhe o
raminho enchuto, e mctteo^se pela lama at«
que passou. A honrada Uiulher voltando-se
para elle , que quef dizer isto , dizia , Reve-
rendo Senhor, que sendo vós Sacerdote , d
illustre por \i\\ dignidafle , me largastes com
tanta humildade o caminho sendo cu uma
pobre mulher, que com mais razão eftava
obrigada a lazer o que vós fizeiles ? Ku ,
rospondco o Santo, tenho por coslnme fa-
ler corte/ia a iodas as uiulbcres em reveren-
cia da SoberanisòiiDa M;'i de Deus , ç Bainha
i38 YiDi Dcf Br.VTo
do Ceo. PxcplicoTi a mulher levantando ct%
olhos, e as mãos ao Cf^o : Per.o eu, e rogo a
esta mesma Senhora, a quem vós ião de ver-
dade reverenciaes em todas nós ontras as
mulheres, que não passeis desta vida sem
alcançardes delia alguma particular mercê.
Assim o queira , e faça , tornou eUc , aquella
Sereníssima Senhora , e Imperatriz do Ceo.
Depois da visão dita , ainda que se lhe
punh.ão diante licores de toda a sorte para
poder beher, com tudo seguindo seu costu-
me, levantava-se da mesa morto de sede*
Acontcceo pois , que na noite seguinte teve
lima visão, em que Iheappareceo uma pessoa
celestial de maravilhosa formosura, que lhe
disse: Eu sou a Virgem Mài de Dcos , que a
noite passada te dei de heber por um pú-
caro de barro, c todas as vezes que padece-
res similhante sede, eu mesma te acudirei ,
e haverei piedade de li. Aqui o Sanlo cheio
de grande coníiança disse: Todavia Virgem
pura não vos vejo nada nessas mãos, com que
possaes lempei ar-nie esta sede. A bebida , re«
])licava a Senliora , (jrje vos eu hei de dar lia
de ser aquella muisahitifera, que procede , e
mana de meu próprio coração. De ouvir
estas palavras ficava o Santo tão espantado,
que nào podia responder como quem se
tinlia por indigno ae tamanho favor. ^las a
Fr. Henrique Suso, 139
Virefera sacratíssima consolava-o amorosa-
mente , e clizia-lhe : Pois meu Senlior e
meu filho JESU se tem entranhado tão
araorosatnenie tm teu cornção , e ta o tens
nierecido , sofrendo com tanto torn:ento a
seccura de tua boca, terás de mim uma par-
ticular corjsohiçáo , que será recrear-te não
com bebida corporal, mas coro um licor sa-
lutiíero , excellente , e espiritual de perfeita
pureza. Consentia o Santo então como quem
tinlía por verdadeiras as palavras , que ou-
via, e entre tanto revolvia no pensamento,
que já sem duvida poderia beber á sua von-
tade , c acabar de vencer, e matar a sede,
que o consummia. ?Jas tanto que se fartou ,
e refrescou a vontade com aquelle celestial
licor, que a Senhora lhe deu, ficou-lhe na
boca uuia cousa como um grão moile , alvo
com.o neve, como se escreve que era o
maná , eeste grão trouxe depois muito tempo
na boca em testemunho do que verdadeira-
mente passou nesta visão. Passada ella der-
retido o Santo todo em fervorosas lagrimas,
deu graças de todo o coraçáo a Deos , e a
sua Mãi tarratlssima por tão alta mercê,
como de ambos rece])éra. Na Inclina noite ,
que isto acontcceo , se mostrou JXcssa Se-
Jihora visivcluicntc a um J^nnto T;,ião, que
"vivia tm cuUo h.^ar , e ile declarou j cr
t4o Vida. do I5za.to
que maneira tléra de beber no Santo Tr,
Henrique, e disse-llie mais estas palavras :
Vai-te ter com o servo de meu Filho Fr.
Henrique, e dize-lhe de ruinha parte o
aviso, que assim como se escreve, que
acontectK) ao insigne Doutor da Igreja S.
João Clirysostomo , que sendo moço, e estu-
dante, estando de joelhos diante de uni
altar, onde estava a minha Imaj^cm fabricada
de madeira , e a de meu Filho uiamnndo a
meus peitos, pela mesma imagem disse a
meu Filho , que me largasse um pouco o
peito, e consentisse , que mamasse aquelle
moço , digo, que a mesma graça, e favor
lhe ílz eu também a tile. È cm fé desta
verdade, se attentares, verás daqui em diante
que a doutrina e [)régaçao , que sáe de siia
boca santa , tem muito mais graça , e é maÍ3
afervorada, e mais deleitosa de ouvir do
que atégora foi. Quando ao Santo Fr. Hen-
rique derão este recado, levantou as m'tos
em alto , e coin ellas os olhos , e o coraç'io ,
e disse : Bemdita , e louvada seja aquella
fonte de divindadde, que perennalmcnteestá
m.mnndo. E bemdita seja a INIãi suavissima
de todas as graças pola mercê, que recebi
sem nenhum merecimento meu. Uma cousa
similhantea esta 'achará o leitor na primeira
parle do livro, que se inlitula : Espelho d«
Tr, Henrique Suso. l4f
Vicente. Accrescentou mais o Santo Yaiáo o
seguinte: Ainda tenho mais que vos rlizer:
Sabereis, que esta noite me appareteo a
\irgeni com seu Filho, e ella linha na mão
um formoso copo cheio de agua , e prati-
cando ambos sobre vossas cousas tratai ão-
vos com honra , e com amor. Logo a Mái
offercceo o copo ao Filho , pedindo que lhe
lançasse a benção. Fez o Senhor o qi e sua
Mãi lhe pedia , c no mesmo instante se ccn- '
verteo a ajua em vinho, e disse o Sei hcr:
Pasta já o que e passado , nao quero rue o
meu servo continue mais este modo de peni-
tencia de não beber vinho , antes hei por
bem que use delle daqui em diante , que
assim o pede já sua d'^sbaratada , c coiiSum-
mida natureza. Com esta licença , que o
Senhor lhe deu, começou outra vez a í cl t r
vinho como primeiro fazia. Neste teuipf) an-
dava já o Santo mui qiuhiado da conlirua-
çfio demasiada dos excriicios , e ] cnilcncias,
que ten-.os leferiílo , con» que li-ntos annos
S'j aííligíra. Mas Chrislo Kosso Stnh<ir ,' que
i)ão se descuida dos seus , apparccro a uni
virtuoso servo seu com uma })ore5a de nu-
guenlo nas mãos, e stJido peri^rníado pelo
Sanlo homem , que (juerla hiztr com aqutl-
1 f vr.so. Com ( Me unguento , disse, qutro
«urai c n.eu ministro Iknri(^ue , e Ic^o sk
j4^ Vi Dl do Beato
chegavA a Fr. Henrique, e cIesco])ertn o vas*,
que Yinha cheio de san^-iie fresco, unia-
Ta-lhe com elle o coração de maneira t|ie
licava todo tinto em san<^ue. Lntâo o Santo
homem, que isto estava vendo em revelarão:
A que fim , Senhor, disse, o sinalais assim
com sangue? quereis por ventura retratar
nelle a simiihança das vossas cinco (iliagao ?
Respondeo o Senhor, isso é o que quero
fazer , e para tal efíeito lhe hei de imprimir
no coração, e em todas as partes da ahna , c
cio corpo sinaes de Cruz e tribulações, e
lotjo applicando mezinhas o sararei , c far^i
deile um homem segundo minha condição.
Tendo pois o Santo Fr. Henrique pasmado
uma tão cansada vida , e dieia de tantas pe-
nitencias, como cm parte temos contado,
desde idade de dezoito annos.até os quaren-
ta : como aquella natureza estivesse já abso-
lutamente gastada , e reduzida a um extremo
de fraqueza, e parecendo que llie não falta-
va já mais que morrer, senão mudava o esti-
lo^devida tão rigorosa, que levava, em íini
deixou aquclle género de penitencias. Mas
si;jniíicou-llie logo o Senlior, que a(|uelle ri-
gor, e aspereza com que se tratara , e as
regras e exercicios, que continuara, não
eia tudo mais que um bom principio , e uni
amansar, e moríilioar a carne desenfreada,
Fr. Henrique Suso. i43
«"^furlosa , e ffue era ainda necessário exerci*
tar-stí , e Iral.alhar por outros modos, se
tjueria que se fizesse bera com elle.
CAPÍTULO XXL
De como o Santo foi levado ^m revelação e.
uma eschola da verdadeira resis^nacão.
<j tf
J- Assadas estas cousas, estando o Santo
depois de Matinas assentado na sua radtira,
e })osto em meditação no meio delia , foi
arrebatado era extasi, e parecia-Il.e que via
■vir do alto naqiiella visão interior um gentil
mancebo, que clic.gando-se a elle lhe bdlava
desta maneira: Assaz tempo tendes continua-
do as escliulas baixas , e ordiraiias , e bem
exercitado estaes ncllas, já é tempo de so-
Lirdes a cousas mais alias. Eia pois vinde
comigo, e levar-vos-hci á priíueira, e prin-
cipal eschola de toda a vi(hi lempf»ral, cndo
estudareis unia sciencia e\( elUntissiuía,a qual
"VOS comnuinicará verdadeiía j;n7. , e dará
prospero ílai aos bons princípios que tendes.
Ficando o Santo cheio de alegria . parecla-
Ihe ({ue se levantava, e que o mancebo, liran-
Ihe da mão, o levava a uma ccrla rej^^ião
especial , onde liavia uma casa insinue , que iio
x4{ Vida do Biíto
tr.^to, e feição narecla um Mosteiro^ em qi:<?
\ivia gente espiriíiial. Ncita casa mora\át>
os que andavão no estiido da scieiíciív, 4116
temos dito, e entrando Fr. Henrique, r«jcc-
berão-no todos com gazalhado, e coriezla ,
e logo forão correndo ao Superior, o» Reitor
do Colles^io, dando-lhe novas da cheíjada da
uni estudante, que vinha determinado a eri-
treg^r-se ásua doutrina, e apprendcr a arte
que alli se ensinava. Disse o Reitor, que que-
ria ver-llie o rosto, e julgar que esperança
se podia terdclle. Depois que o viorio-se-lhe
brandamente, e disse: Discipulo é este que
poderá dar por certo um insigne incòire
desta esclarecida scicncia, se com animo,so-
cegaJo quizer oíferecer-se a uma estreita
prií.fio , onde convém ser lançado. \ão cain-
do ÍV. Henrique uo entendimento destas pvi-
lavras, que as5Í(U escuramente lhe íorâo di-
tas, voltava para o mancebo, que alli o
gr.iára , c dizla-ihe: Gaiissimo companheiro,
declarai-ujc que uobre Universidade é esta,
e qual éa doutrina que nella se lê, de que já
me começastes a dar conla. A doutrina desta
casa , respondeo o nianccbo Angchro, rão
é outra se nuo uma perlVlta rcnum iação , c
resignação própria, com a qual sedeíeriuinc
um homem levantar-se contra si mesmo, e
dar-se[or ifio moiio a tudo ,que de qualquer
Fa. Iís?T;;rQrE Srzo» l45
fhi-eira que Deos o tratar ou por sua r.ião,
ou por mão das creaturas assim nos traba-
lhos , como nas i^rosperidaties , faça força
por mostrar senjprt? um mesmo rosto, e uni
*mfc*srHo aniino iíí'.ial, e$en) muílanra em todo
o estado com renunciaçrto de si , e cie tudo
o qne cabe ern sua alçada tanto, quanto [.óde
sofrer, e dar de si a fraqueza humana , e só
tenha postos os olhos, e tenção no que cum-
pre á iioura , e louvor de Deos , imitando-o
como se houve ('^hristo JESIJ com -eu i jÍ
Celcslial tm quanto andou na t«^tra. A2^ra-
dava isto a Fr. Heruique , e afíirmava que
em todo o caso qu«ria estudar esta sciencia ,
e que se lhe nfào poderia offerecer cousa
tanto contra seu gosto, que o tirasse de-ta
determinação , c já começava a entender em
edificar um aposento , eoccupou-se em mui-
tos negócios de pouca quietação, mas o man-
cebo indo-lhe á mão dizia-lhe, que aquella
arte requeria uma ociosidade assocegada , e
religiosa, e quanto cada um se occupava, •
obrav^ menos, tanto ua verdade fazia mais,
entendendo daquella occupação, com que
uma ahna se enibaraca , e não tem pura-
mente os olhos na honra de Deos. IN o fim
desta pratica tornou Fr. Henrique cm seu
acordo, e dei\ando-so estar assentado, e
calado começiju a pasmar pela meiuoria o
^46 Vida do Beato
que ouvira com uma profunda consí(]risç?o,
e assentou, que em tr.clo era conlcríne á
razão e verJade , e á dtmti ina , oue o mesmo
Clnisto eiisinou. Em {;m fallando comslgo
interiormente diiia assinj: Olha Heniiqutí
para dentro de ti, « vê como hoje foi o pri-
meiro dia, em que na verdade te entendeste
com lodos os exercicios e penitencias exte-
riores, que por tua vontade íi/este^ ainda
não estas rendido a sofrer um trabalho , que
te vetdiade fora , ou te seja dado por outrem.
Ainda te assombras cada dia com qualquer
díi^gosto, quetesuccede, como se foras uma
lebre despavorida, que se vai escoij<ltndo
entre as ramas de cada n)3ula, e treme do
movimento tle qualquer foll a; perdi-s a cor
á visla dos que não são teus amigos : quando
tinhas obrigação de te fazer morto , e dares-
te por vencido , foges quando singelamente
te havias deoíferccer, e mostrar aparelluido
para sofrer l..di)s os trabalhos, andas escon-
dido, se tel()u\ã(), folgas, se te prague-
jão, peza-te. Tor onde creio que has mister
aprender, e exercilar-te cm tscbolas m.ais
aiia^í. Logo levantando os olhos a Deos com
um setitido suspiro: O' Deos eterno, disse,
qiião ei.iramente te me deu hoje a entender
a niesnia verdade. Ai de mÍ!U (piando c\ni'
garuialj^uma hojaa sericsiijMiado devcrdadí.
Fr. Il2.->íraQUB Sdso» j^J
CAPÍTULO xxir.
De algumas pcnr>sas mortificações y em qUê
Q Sai lio se extíícitãi^a.
D
Epois q;ie Dcos nosso Senhor mandou si
Fr. Honiiqiití que deixasse as penitencias ex-
teriores , que em parte temos contado, que
lhe houverfio de custar a vida se as não dei-
xara , tanto se alegrou aquella natureza de-
bilitada e consumida, que chorada de pra-
zer , tornando á memoria a fjrande aspereza
dos cilícios e prisões, e d'oiitras cousas, que
comtrabalho, e marlyrio experimentara. En-
trava eniáo em pensauientos , que o faziáo
dizer entre si desta maneira : Já agora, Deos
e Senhor uicu, vivirei daqui eni diante uma
vida folgada ,' e tratar-me-hei bem , niatarei
a sede com agua e vinho, deitar-me-hei
livre de prisões, ecm enxergão de palha, que
foi aVecreação, que muitas vezes co])icei , se
quer antes de acabar a vida. Assaz e dema-
ziado quebrantei níinhas forcas , tempo é já
de descancar. Estes atrevidos pensamenics sa
lhe ião assentando brandamente na alma,
romo a quem sabia mal o que Doos linha
determinado delle ; e havendo já algumas
aemanas ) que seus sentidos aadavãu com-
t^i VlDl DO 1)1170
balidos de similhantes inid<^ÍT}aç5es, e quasí
delcitando-se riellas, acontcceo um dl.i que,
estíindo sentado na sua cadeira segundo seu
costume , meditava aquella tão acertada sen-
tença do Santo Joh , que diz: Milicia é a
'vida do Jiornem sobre a terra, E neste meio
ficou enlevado em extasi , e parecia-ihe que
se vinha a elle um mancebo de fornioFO
rosto , e disposição varonil , e que lhe trazia
dous borseguins a uso de guerra, e outras
roupas e p?ças, que a gente de cavaUo usa
na guerra , e h>go se lhe chegava perto vesti-
do nelias, e fallava-lhe desta maiíeira: Sabe-
reis , soldado, que atégora fostes pião, e como
tal continuastes a guerra, mas agora quer-vos
Deos fazer homem de cavallo Olhava (^ Santo
para os borse<,^uins, e cheio de grande achui-
racão: Epossivel, dizia, que me hei de pôr
a cavallo eu , que atégora me dei cofn muito
gosto a vi\er ocioso, e descauçado ? E dizia
para o n^ancebo: Pois Deos assim é servido,
e (juer que seja eu cavalieiro, estimara mais
esla honra se com valor a tivera ganhado em
alguma batalha, ecoin esse titulo m'a deráo.
A |ui o mance! o torcendo um pouco o roslo,
e sorriudo-se disse: ]\ilo vosagaslris por esse
p.iriicular, que assaz occasióes e demasia-
tlas tereis de pelej:ír; porque ([iiem pertendc
gei' soldado espiritual, e valoroso de Christo
Fr. lÍEi^aíQri 5us»^ JÍ^
muitas mais, e mais cri!eis batalhas e afron-
tas ha iie vencer, e passar do que venrêrão,
e pasíárào esses iUusires, e famosos capitães,
cujos íoilDS em armas, e triunfos insignes
trazem os homens tio ruuuclo sempre na boca,
para os celebrarem fallando , e escrcveriflo.
Vós cuidais que voS tem já Deos tirado o ji:;^'o,
e que cslals livre da prisão, e que haveis
de tratar só de recreações, e "vida descanr a-
da? Pois afíirmo-vos que vai o negocio mriito
aorevez. Não quer Deos soltar-vos Ja prisão:
trocal-a sim , e fazel-a mais tralnllmsa do
que nunca atégora foi. Atemorizado grande-
mente o Santo Fr. Henrique do que ouvira,
dizia a De<)s: Que é isto Senhor, que deter-
minais fazer de mim ? Cuidava cu que ilrdia
já passado por todas as batalhas, e se^^jindo
vejo agora querem começar de novo ? E já
me parece que me acho em maiores apertos,
e angustias, que d'antes. Que quer dizer isto
meu Deos? sou eu só por ventura peccador,
e todos os outros são Santos , para que só no
triste de mim carreíjueis a mão tão rÍ£í )rosa-
monte, e perdoeis aos mais? Assim me tra-
tais destie que me comecei a eniender, e
sempre me attribulastes colii fortes , c com-
pridas doenças quando era moro, e parcia-
nie que tiniia já padecido bem, c assaz. iN^JO
passa assiui , lhe respondeu u Senhor, anics
lio VíD\ D(j Beato
ain<Li nSo estás exerciíado quinto baste, ^©
queres que se faça bem cointigo convt^ni
seres provado Je raiz em toflo o i^enero tle
trabalho'5. Eiiicío Fr. ÍÍHniiíjue, peço-%o-> Se-
nhor, replicou , que não vos seja penoso de-
clarar-me quantas cruzes tenlio ainda por
piíssar, e o Senhor, levanta , disse , os olhos
ao Ceo , e se podes contar estas estrelias sem
tonto pud**rás também alcançar o numero
«las tribulações , que te estão guardadas.
E assim como as estrellas ainda que são mui
grandes todavia parecem pequenas , assim as
tuas cruzes pareceráó leves aoshomensf que
nunca padecerão , mas tu as acharás bera
ásperas, e pesadas. Toinou Fr. Henrique,
peco-vos Senhor, que me signifiqueis a quali-
dade delias , para que leuha já noticia algu-
ma quando chegarem. Ao que o Senhor, não
convém isso, (Hsse , antes é melhor que não
saibas parte delias, porque não esmoreças.
Todavia do numero infinito das que tens por
padecer, só de três te quero advirtir. A pri-
meira é, que atégora tu mesmo te casiijjavas
por tuas mãos, e havendo piedade de ti
cessavas quando (pierias. Mas a^ora lirar-te-
hei de tuas mãos , e entregar-te-hei nas
alheias, que te maltiatem sem te poderes
valer, onde será foiçado padeceres grande
detrimento na fama c reputarão paia com
Fr. Henrique Suso. t^t
«l^iima fifente de entení!imentos erraclos; o
que terás por mais agro e duro (le soíier , do
que era para tuas espaldas a Cruz abrolhada
de cravos , que na verdade os trabalhos pas-
sados renílião- te glcria e louvor diante dos
liojuens, mas nestes has de ser abatido, e
chegar a estado que te não tenlião em conta.
A outra é que ainda que te aííligiste com
muitas e terríveis penas , que por taes podiáo
ternomede mortes, com tudo íicon-teainda
por ordem divina uma condição branda , e
que folga de ser amada; mas agora nconte-
cer-te-hn, que nas mesmas partes, em (jue an-
dares grangeando uma fé verdadeira , e uma
amisade especial, ahi acharás grandes enga-
nos e mentiras, e serás cruelmente avexado,
e isto por tantas vias que até aquelles, que
com fé e amor puro te am;irem por have-
rem dó de ti, viráõ a ser participante^ em
tuas mesmas tribulações. A. terceira será que
atégora le criaste com leite de peitos como
menino, que ainda não é desmamado ,(jU('ro
dizer , que nadaste conuf em um hkw largo
de conlentamentoj divinos, c daqui etn diante
não te farei mais taes favores ,nntes le dt-ixa-
reiseccar, e mirrliarde pura po])rP/.a de espi-
rito , e serás desaniparido ãv Deos, e dos ho-
mens ; e amigoi> eininngos juntamente t** per-
seguirão coradcshunianidade, e para concluir
i5i Vida do Biato
em pouri:^ nalavras , quanto tiveres traçaJ»
para consolação , e quietação tua , tudo te
sairá totaliiiçrtte ao rcvez. Ficou Fr, Henri-
que tão cortado de medo com estas palavras,
que t()do4remla. E arrenicçando-se impeiuo-
sainerite ao ciião , estendeo-se neile eni for-
ma de crucificado, e bradando a Of*<^s com co-
ração triste , e voz chorosa pedia-lhe por sua
paternal brandura , que se fosse possível não
consentisse que viessem sobre elle tantos
males , mas quantio não pudesse tal ser, era
contente que se cumprisse nelle sua divina
vontade. E estando assim uru espaço aperta-
do de angustias, fazendo a mesma petição,
ouvio dentro de si uma voz que lhe fallava
desta maneira: Tem bom animo, que eu
serei ct)mtigo , e farei que venças, e passes
por tudo , honrada e prosperamente. Cora
isto se levantou entregue lodo nas mãos dt
Deos. JMas o dia seguinte amanhecendo tendo
dito Missa, e estando recoliiido na cella ,
e melancolisado com a imaginação destas
cousas, que liidia presentes, e morto de frio
pela aspereza do •inverno, qtie fazia, ouvio
uma voz , que lhe fallava dentro na alma,
e lhe mandava (jue abrisse a janella, eoilias-
se , e notasse. Abrio-a elle , e poz-se a olhar,
e vio que vinha um cão correndo pelo meio
daciasía,,c trazia na boca uma servilliA d«
Fb. ÍIe^írique Sl'50. i5S
panno velha e rota, com que fazia granfle
festa, ora cleilaiido-a para o ar, ora pondo-
Ihe as mãos em cinia , e rasg;inclo-a comas
unhas, e rnordendo-a com os dentes. Le-
Tantou o Santo os olhos ao Ceo, e dando
uni grande ai ! sentio que dentro na sina
liie soavão estas palavras : Desla mesma ma-
neira serás tratado án boca dos tens Frades.
Ao que o Santo cuidando um pouco comsigo,
dizia desta maneira: Pois ai não pôde ser,
cnlrcí^a-te nas mãos de Dfíos. E assim como
aqueliepanno sofre, sem fallar palavras, todas
as voltas , que o cão lhe d:í , faze tu também o
mesmo. Lop^o desceo a baixo , e tomou o
panno, guarcÍou-o muitos ânuos estimando «o
como cousa de preço , e se alguma hora ten-
tado de impaciência ia para arrebentar em
palavras, ou indignação , lirava-o fora , e pu-
nha os odios neíle para tornar em si , e s«
conhecer, e não largar palavras contra nin-
guém ; se algumas vezes lhe acontecia Tngir
com o rosto com desdém aos que o perse-
guião repreliendia-se interiormente com estas
palavras : Lembra-le peccador, que *> mesmo
Seidior teu não virou aquelie íornuísiésimo
rosto, nem quando o injuriavão coui mui
ásperas palavras , nem quando o ctispiâo.
E logo por extremo sentido voltava para os
mesmos com braudura , e semblante alegre.
l54 TiDV rn Beato
Antes disto qunntio ilie acontecia algum tra»
])aUK) imaginando conisigo, dizia: Ah bom
Deos , quem se vira livre desia Cruz. Eappa-
receo-lhe em revela' ão o Menino JESU em
iim dia da Purificação , e depois de o repre-
hender dÍ5se-lhe: Inda não sabes padecer
como convém. Mas eu t'o ensinarei ; quando
tens algum trabalho não áti\es tratar do fira
dclle , nem procural-o , como que então
hajas de viver descancado, n)as em «juanto
te dura hiiinilha-te , c apercebeste para rece-
beres outro de novo sem nenhuma alteração.
E isto é o que em todo ocaso convém' que
£íças. lias tie arremedar uma donzella, qsie
apanha rosas, que nfio íica satisfeita em vc-.-
liiendo uma d'entre as espirdias, mas colhe
mui ias mais. Digo que assim o faças tu tam-
bém. Anda cojn o peito aparelhado para to-
mares logo outra Cruz ás costas tanto que te
faltar a presente. Entre outros servos áv Deos,
que profetizavao ao Santo as tiibulaçóes, que
lhe haviào de succeder, foi uma doiizclia de
abalisada virtude, a qual visitando-o lhe
disse, que na festa dos Anjos depois de Mati-
nas fizera oração por elle muito de propósito,
e que cm revelarfiolhe parecera que a levarão
a uni lugar, onde oSaiili) estava, t' vira crescer
sobre elle um rosal íirandede larijura e com»
primeuiu, e uiuiio deleitoso, cheio de frciÇAi
Fr. Hesuique Srso. i 55
rosas, e to tias encarnadas. Logo levantando
os olhos vira nascei' o Sol com admirável
claridade, e sem nenhiini impedimento de
nuvens, e viri estarem pé no meio de seus
raios um menino de singular formosura cm
figura decraciíicado, edo mesmo Sol sair un*
raio, que ia dar no coração do Santo coni
tanta força e efíiracia , que todos seus mem-
bros , e todas as veias se lhe abrasavuo. Aqui
o rosal com sua espessura e ahundancia do
rosas porfiaTa por tomar em si a força áo
Sol, e desvial-o do seu peito , mas não fazia
nada , porque os raios ardentes penetrando
pela raíTia, irlo ferir no coração do Santo.
Traz isto via o I^Ienino saír-se do Sol , e tila
ilizia-lhe : Para onde ides bom Tilenino?
Vou-me, disse- lhe , para o meu amado servo.
E que quor dizer, amorosissimo iMenino,
replicava ella , aquelle raio do Sol, que arde
em seu peito ? Saberás, respondeo o Menino,
que lhe enchi o coração de tanta luz e cla-
ridade, porquj uma reverberação, que dcíla
ha de sair de seu peito me ha de ^'anhar, e
reduzir a meu serviço muitas almas. Nem
ha de ser parte este espesso rosal , que signi-
fica um grande numero de tribulações, que
lhe eslão guardailas, para estorvar (jue sa
effeitue por clle o que digo com <:jraiide per-
feição , e excellencia. Como sobre iodas a#
i56 Tida do Eeat»
cousas que servem para os piincipIaTit«s na
virtude seja mais proveitosa de totíjs a vida
solitária , pareceo ao S.mío que seria conse-
lho mui acertado nâo sair do Mosteiro por
tempo ds dez anncs, ou mais , e vivfr assim
apartado do mundo , e de todo o comnicrcio
e trato das gentes. E assim em saindo do re-
feitório feohava-se em seu oratório , e alii
se deixava estar sem chegar nunca áporlavia,
nem querer íallar com mulheres , uem cou-
versar cem honicris, nem ainda ver-ihes o
rosto. Tinha limitado aoá olhos um termo
certo, e esse bem esireito donde não haviâo
de passir c<)in a vista, e era espaço de cinco
pés." Sempre estava em casa , nuo saindo ,
nem á villa , nem aos lugares visinhos , tra-
tando só de si naqui.lla (pnelaçrio solitária ,
mas uào llie valerão tamanhas cautelas para
deixar de ser commetildo no mesmo anno de
táo fortes presei^uiçócs, que todos IhehaviíTo
Listlma , e elie mesmo a tinha de si. e |'ara
passar melhor a soidade daquelle oraíorio,
em fjue se linha voluniaiiamenlc encarcera<[o
sem grilhões, como em uma prisão, ro^ou
a um pintor, que Uie debuxasse pelas paredes
os Padres antigos com letreiros de algumas
sentenças suas , e outras hislorias pias , <(iie
pudessem esperlar, e obrigar a soíriu)cnto
luxi espirito atribulado, li nisto ptii.iiiuo
Fa. Henrique Suso» 107
Dcos também qne se lhe não cumprissem
logo seus dcsej':ts. Porque começando o pin-
tor a obra , e líào tendo lançado ninis que o
primeiro rescurlio de carvíio cni algiim.as
hiruras dos Padres, adoeceo dos olhos de
nianeiraque iiao pôde ir por diante: e assim
se despedio , afíirmando que era forçado
largar a o])ra no estado ern ([ue estava, até
ronvalecer. E sendo perguntado quanto
tempo liavia anisterpara col)rar saúdo, e po-
der tornar ao trabalho ? Respondeo , que ires
mezes. Então o Santo mandou-lhe que tor-
nasse a levantar a escada, e sobiíjdo nella
poz as [mãos peias imagens ilos Santos , e
tocando com ellas os olhos enfermos do pin-
tor disse-lhe :Eu te mando ]Hntor em virtude
de Deos , e da santidade destes Padres, que
tornes aqTii d nwnhfia com os olhos de todo
sãos, e salvos. Quando amanhcceo tornou o
pintor ao Mosteiro são, e alegre dando gra-
ças a Deoâ e ao Santo pela mercê , e rc .sti-
tnlção da vista, que tiniia perdi<lu : njas o
Santo aliribuío esle milagre aos Santos Pa-
dres em que primeiro po/ as mãos, e não
a si. Parecia naquelle tempo que tinha Deos
dado licença a todos os demónios , e a lodos
os hom.ens para o peiscguirom. As vexnções
que padetco dos demónios foião innuuuTa-
"Vwis, porqiu o atormenta\à'o de dia , e Jo
:58
ID.l DO Íi£ATO
noile , acor(íaílo , e dormindo , com Insolên-
cia, eimporlunaçfio írrandissiijía , e aperfavão
com elle terrivcliiienie por modos ásperos ,
c extraordinários. Aconteceo inna vez qiio
desejou de comer carne, que muitos annos
havia nãí> lini:ia c<jmido, ikiiXu que satisfez
a vontade teve uma visuo, na qual vio um
feissiino demónio, que poslo diante delle
referioum verso dos Psalnios,que diz: Ainda
estavão com o comer na l>òca , e a ira de
Deos veio sobre elles. E ladrando f<amente
disse para os circunstantes. Este Frade é di-
gno da morte, que eu a^ora Uic darei ,'e acu-
dindo-lhe todos e não consentindo tal , ar-
rancou de uma grande verruma , e disse ao
Santo: Já que me não deixão fazer-te outro
dano , cu te atormentarei o corpo com esta
verruma , e furandote con) ella essa l)òca ,
far-te-bei tanto mal, e causar-te-bei tamaidiai
«lòres, que igualem o gosto que te deu a
carne que comeste. E logo lhe nielieo a \<;r*
inma pela boca, com que n'um momei lo Ibc
incliáráo as queixadas , c gení^ivas , e toda a
Lura de m.uieira que em trcs dias iieiu
carne, nem outra comida nenhuma pôde
levar . r
liquida,
C A P I T U L O XXIII.
De algumas tribiilacoc: , que o Santo padcceé
interioi-fiiente.
E
Ntre outros trabalhos, que o Santo teve ,
três ii»tcrit>i\íS o aííligiião penosissimanieiUe.
Um destes er;i peiísaiiientoscleirífideiiuatle. A
toda a hora iiic conibatiaa alma uma contínua
imaginação, que secretamente llie dizia , que
como podiaser, on se podia crer íazer-se Deos
liouifin ? ajuntando entras blasfémias muitas
similhantcrí a esta , ns qiiaes cjuanto niyiso
Sr.nto qutria rebater comargunientos , tanto
mvÀs se embaraçava. Esta tentarão o marty-
li/ou nove annos chorando scinpie dos olhos,
e suspirando d'ahna a Deos , e a todos os
Santos por soccorro do Ceo. Em ÍÍm tanto
que ao Senhor lhe parcceo tempo livrou -o
lotiíhijenle delia ,e deu-lhe uma L;rande íir-
n;e.La de íc clara, e ahindada. O outro tra-
balho foi UMiyJextraordinaria tristeza ; qi;asi
continuamente o apertava com tanuidio
peso de melancolia , que parecia que trazia
sobre o corarão um monte inteiro. Este mal
lhe íicou em parte da ^'rancie velieuiencia ,
com que seconverteo a í)eos , ((»ie como sua
conversão ioi repentina eefíitacis-inia , ílt ou-
Ihtí daUi uma anciã , que por txlreuio o ufa*
l5« Vida do 13íato
<;ligav3. Oito annos viveo o Sar.to ncstíí tor-
inenio. A terceira atiliccâo , qiic teve , ft-i mv.ti
tentarão, q re preteiiíiia peisuailil-o , queníiO
era possivel salvar-se , mas que o cerlo era
que havia elo ser conuen^do ás pen^ts cio In-
lerno , que por mais hoysobras, que fizesse,
c por mais penitencias que cm si ■txecntasse,
uenhuLia cousa lhe havia tle aprovrilar para
cheg-ir a ser do numero doseseolhidos, antei
perdia o trabalho e o tempo, que nelle em-
pregava. Estes pensamentos, como afiados
pinihíes lhe atravessarão o coração de dia
e de noite. Se entrava ia Igreja cu entendia
em al^um outro acto de virtude, lojro o com-
batia esta itntaçâo, e apcrtava-o n;ise^a^el•
mente, dizendo: Que te aproveita, dize,
•ertir a Dtos se já és ir.aldito , se ja eterra-
luenle não podes ter rrn.cillo ? Acab a já, dti-
xa-te com tempo de trabalhos, qut de (lual-
quer n.aneira que viveres a sentença de tua
j:erdição está dada. Conhecendo o Santo a
forca (jue lhe fa/ião , chegava algun:as vezes
a estar tunie^iando assim comsií^o: Ai de n ira
dt?savt nturado , aonde me irei? se delioa
lUligião tenho a condenação certa; S( j er-
severo nesta vida, tamben) mt não hei-il«
salvar. O' Ueos eterno, quem houve nunca
no mundo mais desditoso que cu ? Outras
irezes íicava como pasmado , sem fazer mais
Fjr, HiLNRiQrE Srso. iCi
que ciar rruitos ais arrancados das entranhas,
correndo-lhe as lagrimas cm fio pelo rosto
abaixo. Algumas vezes liatia nos peitos di-
zendo: Que cm fiiu Senh )r Deos é forçado,
e sem remédio perder>me eu ? Que miséria
pófle l.aTer maior que esta ? Tarlo vaiem
nno possuir eu ncnlunn l)em nesta vida ,
mw na outra : pobre do mim , para que
uasci no mundo ? Esta tentacilo lhe proce-
deo de um raedo desordenado, que tomou
por lhe dizei em , que fora recebido no Mos-
teiro por razão de certos bcus temporacs , e
que era peccado de simonia , quando 5C nc-
gocia^ào bens espirituaes com em pregoo de
fazenda temporal; isto lhe ficou assentado
na memoria até vir a dar nesta tentaçíTo. jMas
no cabo de dez annos de marlyrio, em to-
dos os quaes não fazia conta de si, senão
como de homem condemndo, foi ter com •
sanlissimo Varão lu bardo, Doutorem a Sa-
jjrada Theologia, com cujo conselho, dando-
íhe conta de sua afílicção ficou livre e quieto,
saindo de um cárcere infernal, cm que tan-
tos annos estivera preso,
x(ía Vida do Beato
CAPITULO XXIV.
De coino o Snnto começou a entender np
remédio , e salvação dos próximos.
OEndo piissaflos muitos nnnos, qite o Santo
não tratava em mais, que rm purificar sua
alma, e \iver em silencio e soidade , foi
depois movido por Dcos , e obrigado por
meio de muitas revelações a tomar cuidado
de salvar outras almas. JMas não tem fim,
nem conto os grandes trabalhos , que nesle
serviço de caridade se lhe offerecèrão, e
menos o tem de outra parte a iutínidade de
almas, que ganhou para o Senhor; o que
tudo foi mostrado uma vez em revelação a
«ma donzella de grande virtude , que tam-
bém eia sua filha espiritual : estando eni
oração esta Sania Virc^em , foi arrebatada
em espirito , e vu> ao ^anto, que sobre um
alio monte estava celebrando o sagrado sa-
criíicin da Plissa; e vio , que cilavâo pega-
dos com cl!e uma infinidade de homens, e
todos dlfferontes enlre si; dos quaes os que
€stavão nielhor , e mais unidos com Dcos ,
estarão «anibem mais perto do Santo, e
c^uanto e>ta\ão mais ch^ígados a clle, tum-
Fr. KEríRiQUE Suso. i^3
hem o Senhor os chegava para si com
iDais amor, e \ia ao Santo rof;ar por todos
íle propósito ao Senhor, que tinha nas mãos.
Pedio a Santa Virgem a Deos, que fosse
scrrido clcclarar-lhc esta visão ; o que o Sc-
nhí)r lhe concedco , dizendo-lhc assim: Ves
aqnelle concurso de homens sem conto , que
estno pegados nelle Pestes saherás, que si-
gnificáo os seus confessados , que vivem
entregues a seus conselhos , e santa doutri-
na ; e aq>.el!e qiie fora disto com particular
fé, e boa vontade o amão, aos quaes todos
me tem encqmmendado com tal clíicacla,
que não hei de rouseutir, que nenhum dellcs
se aparte de mÍBi jamais, antes farei que
acabem a vida santa e bemaventuradameu-
te , e a elle pagarei largamente com conso-
lações miidiíKS o trabalho, que por esta causa
passar, ou seja tomado por suas uíãos, ou
negociado por poder alheio. Antes qre a
santa donzella , que na virtude era sinalada
como temos dito, conhecesse'» Fr. Henrique
foi interiormenfe movida por Deos, a ';un
procurasse veUo. Kaconteceo que , estando
um dia arrebatada em extasi, ouvio cm
revelação, que lhe dizião, que chegasse alli,
onde eslava Fr. líenrique , e que o visse E
como ella respondessí», que o .in<» p^dia dif-
íerenciar , nem conhecer pelo
l(54 Vida.
níero de Frades, que via junto-; , nuv.o logo
í£ue lhe tornavão .\ dizer o seg^r lute : Sem
muito trabalho se pôde conhecer entre lo-
dos, po]qne traz ua cabe a uurã bem fresca
capella de boninas tecida de rosas brancas,
e encarnadas. E as rosas brancas significào
sua castidade, as vermcliias sua j):iciencia,
no meio de niuilas e contínuas tribularócs.
Tu assiiu como aquelle circulo douro, qu^ se
costuma pintar sobre as cabeçiis dos Santos,
é si^nal da bcmaventur.;nça eíerna , qva
gozão no Senhor, assim esta grinalda de
rosas significa muitas e diversas tribufaç^ies,
(j^ne os amigos de Deos padecem cm quanto
nesta viila exercitão vaiorosameute a milícia
de seu Oeos , e Senhor. Passado isto levou
11 m Anjo em revelação a mesma donzella ao
lugar, onde Fr. Henrique vivia, e logo o co-
nheceu pela capellade rosas, que tirdia posta,
"Nestes tempos , em que oSaulo cia por mui-
tas maneiras e rigoroiamcutc aliibulado, a
cousa , que mais o contortava e inlerior-
nienie lhe da\a animo para tudo, era unia
contínua conversação e trato , que tinha
com os Anjos. E uma vei lhe aconteceo que ,
ficando alheio de todos os sentidos exterio-
res, vio, que o levavao em espirito a um
luf»ar , que estava C(»berto de um numero
iídinito de Anjoi, dos quucs um, qua lhe
Fr. ÍÍEKraQtiE Suso. i65
iscava mais perto , disse para elle : Estendei
essas rnfíos , e olhai para ellas. Eslendeo ello
umaiiifío, e olliando-a \if), que do meio delia
lhe saía uiiia formosíssima rosa cncarr.ada,
ce-'eaíUi de íollias muito frescas, a qual cres-
cia tanto, que lhe \inha a íolwiar toda a
mão até 05 dedos, e fazia-se tuo hella e
graciosa , que em extremo alegrava e delei-
tava os olhos. Virara o Santo as mSos de
lima parte u da outra , e de todas era a
vista lias rosas dilkíitosissinia , e asbini muito
espantado dizia : Santo mancebo declarai-
me, que quer liizer esta '^isfioi^ Ao que o
Anjo respondia: A si«jtiificaeuo é Cri:7es e
mais Cruzes , c outras Cruzes e mais outras
Cruzes, porque Dcos qiiCr que passeis, e
isto se dá a entender nas duas ro:5as , que
Icnties nas mãos , e nas outras duas ,
qne também vos cobrem es pés. Suspirou o
Santo , e tlisse: Camorosissinn? Deus , épos*
vel , que é tão penosa a tribnlarào para os
iif)niens< e toda vi;i lhe pnem tanta íormosu-
la na almai^ i^âo ha duvida senão que é
is^o uma notável dispensarão, e mertè Vijssa
dií^na lie ser reconhecida com espanto.
l66 ViDi DO Deito
CAPITULO XXV.
De muitos trabalhos , que n Santo Fr» Henri^
que padccjo.
V^Hegou iim dia Fr. Henrique a nmn Vil-
Ifita , não longe da qual estava um Crucifixo
de ma:!eira posto em uma pequena Ermid.i,
cjue 05 moradores lhe tinhão edificado ,
como é costume em muitas lerras , c liavia
lama , que se fazião alli muilos mil.ij^res;
pelo que a gente devota trazia a otíerecer
grand»^ copia de cera lavrada em figuras , e
èm pão, que pondiiravâo, e deixa vão em
louvor de Ocos. Chegando o Santo ao Cru-
cifixo poz-se de joellios, e esleve um espaço
fazendo oração , e foi -se com seu con^pa-
nheiro á pousada; e esteve presente uma
menina de sele annos, que o vio , e notou.
A noite seguiiite derão ladrões na Einiida,
€ q«iebrand<i as fechaduras roubarão a cera
toda. Quantlo amaubeceo eiicbeo-sc todo o
lugar de alvoroço, e chegou a nova do suc-
cesso a vm homem honrado , que linha
cuidado do Crucifixo , o qual começando
loj^o a fazer intjairição soiíie o autor do sa-
crilégio, acfidi{>a moca, que temos dito, e
afiiiaiou j que cila o conhecia , e sendo aper-
Fr. Henrique Suso.^ 167
ta (la qut dissesse o nome , deu os indícios de
como ro dia atiaz vira alli a Fr. Henrique
estar fazendo oração já muito tarde, e dahi
se recoiiicra para o lugar. A esta infoimaçáo
da menina deu o bom visir.ho credito tão
ligeiramente como se íòra verdadeira , e de
maneira esleiídco e publicou a mentira,
que andava divulgada por \nda a Yilla , e os
mais linlião aO Santo por culpado em ta-
manha maldade. Entre tanto tndo era lançar
jnizos sobre que movle llie díuião, e com
que género de tornienlos o tirariíTo do mun-
do, como a homem aboíninavcl. JMas tanto
que o Santo teve noticia do que passava ,
temeo grandemente, sem en)bargo, que
conliecia sua iunorencia , e com inn pioftm-
do suspiro do coração disse a Deos: Pois, Se-
nhor, é jorçado que eu padeça , tutlo so-
frera levemeiíte , e de b(ui voiiiade, se fô-
reis servido dar-ujc tal sorte de trabalhos,
que me não tocárno na honra j masvejc^j
Senhor, que os que pennlltjs, que me suc-
cedáo são lacs , que de todo me desacrcdi-
tão ; e estes ^ão os que eu síMo r";i!n.a.
Com este meilo dclxou-se ficar no higar alé
se apaziguar o povo , e o nunim. Kuk outra
Cidade aconteceo ao Santo outra cousa
quasi símilhante a esla , com que sua fama
íoi mal tratada áii bòea dtí muitos , uíio bò
l6o VlD\ DO Be.vto
na mesma terra, mas por todo seu distrlcto,
E toi o negocio asshvi : ííavla naquella Ci-
dade um Mosteiro, em que estava um Cru-
cifixo de mármore da mesma estatura , se-
gundo se dizia , de que foi Christo nosso
Senhor. Aconteceo que uma Quaresma se
vio , que tinha a imagem sangue íVesco em
lucrar da chas^a •.'•o lado. K correndo muita
gente a ver o milagre , a( udio também o
Santo Fr. Henrique, e vendo o sangue,
chegou-se de mais perto , e tomou-o n'um
dedo á vista de todos os que cstaváo preíien-
tes. Ajuntoíi-se logo sobre elle um numero
infinito de povo , e constrangeráo-no a de-
clarar publicamente o que "víra e tocara , o
que o Santo fez contando simplesmente e
na verdade o que passara, não se resolven-
do em nada , nem determinando se era aquii-
lo niysterio do Ceo , ou obra da terra, mas
deixando a determinara ) disso para outro
juizo, n'um momento se publicou o caso
por toda a terra , e cada um acc.escentava o
que lhe vinha á vontade, e chegou a cousa
a termos , (juc affuinavão que o Santo se
picara no dedo , e puzera o sangue, que lhe
saíra, na imagem, para que se cuidasse que
manara delia milagrosamente , e que não
procurara aqtielle ajuntamento do povo a
outro íim, seuão paru fazer muito dinheiro,
Fiu Kri^RraTTE Srso. iCg
e fartar sua coJ3Íca. Esle gcnero de praga
corria do Santo em outros lugares, e andava
nas linguas de todos. Mas lanto que chegou
ás oreluas dos moradores da Cidade^ foi-ihe
necessário saír-se delia íogindo. E conitudo
ainda o forfio seguindo com deíermi»jacào d«
o matarem , se senão acolhera ; mas como
e»ca pou , fizerào promessas de muito dinhei-
ro a que'm quer í|ue liro desse ás n»àos vi-
vo , ou mortOj Muitas ontias faL.idades a
esto modo se assacavâo a Fr. Henrique;
aonde f(uer que ehegavão erào tidas por
verdadeiías , do ({ue nasceo ter-se poi' mal-
dito, e abominável seu nome entre muita
gente , e hun aien;-se a cada passo muitos
jui/os temerários, e cheios de n-aldade sn-
l)re sua vida, e obras. Algumas vezes aclian-
<Io-se presentes homens ujais atlenlados , o
que bem coidiecião o Santo , acuíháo por
sua innocencia. Mas crão rebatidos c( ni
tanta forra de razões , e porfias, que lhes
era forçaílo calar-se, esofier as iníauii.KS ,
que do Santo se dizião. Vendo esta tão des-
arrazoada vexarão uma honrada matrona
daqueila Cidade, foi-se ao aílhgido Santo,
o aconselhou-o , que tomasse certidões dos
governadores da Cidade sclhulas com o sello
público , que servissem de testemunho do
sua iuiioctiicia quando se aehabse em ouir.:íJ
I^o Vida. do Beato
terras , principalmente portfue os mais dos
homens honrados delia o tinlião por inno-
cente da culpa , que se lhes dava , mas elie
respondeo-lhe nesti íórma : Se Deos fora
servido que só esta Cruz me opprimira ,
íacil cousa fora valcr-me desse remédio ,
mas vejo cm\x dia tantos males similhanles
a este sobre mim, que entendo que me
convém deixar tudo a Deos, c níío fazer
força, nem porfiar em contrario. Aconteceo
que foi uma vez a Allemanha a Raixa a um
Capitulo , qne se fazia , e já lá lhe estava ar-
mada d'antemão a perseguição; porque dous
Keligioios dos principaes da sua Ordem crão
idos ao mesmo Capitulo mui apostados a lhe
fazerem todo o mal, que pudessem: foi o
Santo mandado apparecer em juizo , e veio a
ellc cheio de tremor, emedo, e entre ou-
tras muilas culpas , que lhe ílerão, foi ac-
cusado por falsa inforniaçáo de seus emulos,
que nos livros, que Compunha, misturava he-
regias, com qne se viria a perdera pureza da
Fe por toda aquella terra , por isso o re-
preenderão os Padres Capitulares aspera-
mente com aineai;as de maiores castigos,
sem emhiirgo que diante de Deos,e dos
luuncns estava livro de tal culpa. E comtudo
uào se deu o Senhor por satisfeito era per-
miliir , que fosse esta Gruzsingela , antes lhe
Fr. Henrique Stso. 171
aggravou o mal atormenlando-o com unias
crucls fehrcs, e sobre ellas com unia peri-
gosa posteiua, que se llie íez nau entranhas
íifío loiíj^e lio coração; e iltsíes traLalhos ,
que assim de dentro, como de ícia o an»
gustiavão, chegou a estado, que tcdcs des-
confiavão do sua vida. E seu ccmpauheiío o
■vigiava esperando a cada passo o termo em
que havia de espirar. Assim estava o Santo
Vr. líenrique em terra estranha , e em Wos-
teiío alheio lançado isa cama , e desampa-
rado de toda a consolação , quando uma
noite não podendo loinar sono com a forca
da dor, conif^çou a enlrar em contas com
Deos, e f.illar-Ilhe assim : Ah Justissimo Dcçs,
pois vós, Senhor, houvestes por liem de alor-
r.ieniar com ifio intohíravel dor este coipo
consiimniido de tral)alhos , e l"erir-me no iii-
limo tPííhna com uma vergonlía , e aírorJoi
grandíssima de maneira , que não ha parte
cm mim, que esteja livre de magoas, nem
interior, nem exteriormente: quando che-
garei a ver nina liora , Piedosíssimo Pai,
cm que me deis por bem castigado i^ quando
chci^inei a ver tempo, cm qne levanteis a
jjiito de me aííli^Mr ? Acabadas esias palavras,
conieçou ;i meditar as angustias iiortaes,
que (^iirJslo nosso Sahacor j ;iyhou i;o n.enttí
Uiivete, c entre a nitditaçí o passcu-se do
1-2 YíDl DO Br.VTO
leito para Tima cadeira, que tinlia perto, e
?cnton-se nclla , porque da grsiidc dur , que
a postema lhe causava , nào podia jazer, lis-
tando assim assentado ecarreirado de dòrís,
e miséria , pareceo-lhe que via em espirito
um grande numero da Anjos , q!io Ilic en-
íravão po!a ceila a consolal-o, c cantaviío
com agradáveis vozes uns versos celesíiaes ,
cuja melodia lhe cncliia as oieUias de ta-
manha deleitarão , que de todo íicava ou-
tro. Finalmente continuando os Anjos com
sua musica, e o Santo em sou assento entre
o martyrio da íebrc , e das dores, um dos
Anjos se clicgou a elle, e tirando-lhe bran-
damente' do hraj^o, porque razão, di*=se ,
estais meu irmão tão calado? Porque não
cantais juntamente comnosco ? Pois h«m
sei eu que sois vós bom rncstre de musicas
do Ceo. A isto respondeo o Santo acompa-
nhando o que diziíi com magoa dos suspiros
snídos da alma. Não vedes vós, disse, ou
não notais, o estado de minha viíla? Qual
foi o homem que se pôde alguma hora ale-
f^rar estando cm braro^ com a morte ? E
possivel que em tal ccmjuncção me convi-
dais vós para cantar? O que eu cantarei se-
rão tristezas, e magoas. Porque se alguma
hora em tempos pasmados cantei com ale-
gria, tudo isso é hoje acabado, que já agora
Fn. IIs'^RrQUE Soso. 1*3
•ono cspei^o mais que a hora da morte. Dis-
Hi-lhe então o Anjo com grande alegria:
'iVnde animo, e coração varonil, que ne-
nlinna cousa dessas vos ha de acontecer.
Antes vos certifico, e crêde-nie, que tal
çmcao haveis de entoar ainda em vossos
dias, que a Deos lodo podei-oso ha de dar
bonn , e a muitos altrihulados consolação.
Logo se lhe abrirão os olhos acordando, e
comei o'i a chorar com 2;randc abundância
í'e lagrimas, c na mesma hora lhe arreben-
tou a postcma , e cobrou perfeita saúde.
Tanto que o Santo tornou para o seu Mos-
t(.'iro, foi visitado de um varão abalis;ido no
serviço de Deos, o qual lhe disse-o seguinte :
Ainda, Senhor, que nesta votsa jornada tí-
nhamos no meio de andjos mais de cem nú-
Ihas de distancia , com tudo cá vi , e tive
presente a Cruz, que lá padecestes ; porque
haveis de saber , que eu vi um dia com os
olhos d'alma o grão Juiz Soberano as.ve::-
tado em seu throno, e com sua licença se
soltarão (h)us demónios , que vos atormen-
tarão; e o meio, que tomarão , foi o daquel-
les dous Prelados, que forão auclores da
persegfiiçâo que padecestes. Mas eu dav.;
vozes ao SeiTlior , e dizia -lhe: Como pode
ser, Deos núsericordioíissimo , que foírdis
ser túo mal iralado uuí ami:ro vcsso? lles-
1^4 YlDA DO BeàT©
pondia-me o Senhor : Eii o ter.ho escnlliiJc
para mim , paru que peio ir, tio cias tfibulí»-
ções se pareça e coníórnie com moii Uni-
génito Fiiho; mas todavia a inteireza cie mi-
nha justiça está pedinchj , que se vingue li-
manha injuria , como recejjeo , com* a m<J!ie
<l()s dous, cpic lha negociarão. E assim suc-
cedeo cm effeiU) pouco tempo depois j c íoi
cousa notória , e sabida de muitos.
CAPITULO XXVÍ.
De um gravide desgosto , que o Santo tet'{ por
cansa de unia Jnnãa sua.
X hiha o Santo uma Irmãa Freira, que sendo
clle aijsente se começou a dar a c-orj\ersa-
íH'»es , e companhias prejudiciaes de homens ,
c saindo um dia fcJra do Mosteiro (o que não
era deicso naquelle tempo) em cSmpanhia
de certos lu^mtíns veio a perder-se. E como
os peceados não pavão tão de pressa , chegou
a sua desaventura a estado que fugio do Mos-
teiro , e íoi-se pelo mundo sem que o irmão
soubiisse parte áAV\. Quando o Santo tor-
nou ao Convento andava já o negocio publi-
co , e corria a nova por toda a terra , nao
sem muiiuuracão. Vcio-5j lo 40 a eUc ceilo
Fr. IIexrioue Suso. 17J
lomem, e contou-llie o que passava; o
'ípe o Santo ouvindo , ricoii pasmado. E en-
íiiquecendo-llie o coração com a forca da
dcr andavci como homem tolo, e qvie nercicra
toíos os sentidos. Perguntando onde acharia
a p»rdida irmãa? ninguém lhe sahia dizer
cousi certa. Eniáo fazendo discursos fa liava
só comsiga, e dizia : Eisaqiiihe entrada nova
triholacâo , mas não haja desmaiar. Ksforca-
te faze diligencia , e ve se por ajgnma via
pó('es remediar esta alma perdida, e desavcn-
iiir.ida. Ofíerece a Deos piedosissimo a
queira, que esle caso traz á tua honra , o
ciédio. Ponha-se de parte todo o pejo da
humaaidade , ariisca-te a entrar n'um pro-
fundo 'ago a ver se podes tirar deile essa mi-
serável. Quando passava polo Coro por nieio
dos Fraces perdia as cores, esfriava, arrepia-
va-se toi'o , e tremia. Não se atrevia ajuntar
com ninguém, porque todos se pejavão deilc;
os que d'antes erão senis companheiros e íd-
lu/iiares, tm o vendo fogião. Se (|uciia acon-
selhar-se com os amigos, viravão-ilic? ò rosto,
e nfio o linlifio em conta. No meio deste tra-
balho lemhravase doSanio Job, e (hzia: Pois
todo o mundo me desampara , buja por bein
de me acudir o bcni^^iissimo Deos com seu
diviíjo lemedio. F. não deixava <le pcrj^untar,
onde quer que se achava, | o: onde iria. jara
I '-5 Tida do Beat«
Talcr mais de pressa á desa ventura tia irniãa-
Em fim dando-llie novas de certo lugar ont^
a poderia achar, logo se poz ao caniiidio. F/a
isto em dia da Virgem Santa lí^nez, e f./»a
grande íVio; e na mesma noite tinha pas3»í'«^
ll.^ rijo chuveiro, com qucifjo cheios iod>s os
ribeiros. Querendo o Santo passar de salf) nm
pequeno regato, era tal sua fraqueza, qnr caio
no meio dclle , e ficou mergulhado. Siío-se
todavia o melhor que pôde. E coíuo o sevti-
iiiento, que lhe cantivaa alma, era excessvo,
não lhe deu muito peio que só fazia no rolo
corpo. Caminhando adiante mostrará >- lhe
lima casa, onde a irmãa eslava. Entrou t)Santo
pela porta todo trespassado de dor, e :chou-a
dentro assentada , e quando a vic , ca/o
so]);e iim banco onde ella eslava, e por
duas vezes ficou desmaiado. Mas fornarido
em si arrebentou em piedosas lagritias e co-
meçou a encher o ar de gritos equiíixas lasti-
mosas , c batendo as mãos sobre a cabeça,
e dizia: Deos Deos meu, como me desampa-
rastes assim ? logo vira^ão-se-lhc os olhos, a
lingoa pcgava-sc-lhe no ceo da boca, aper-
tavag-sc-ihe as mãos, e ficava assim um es-
paço desamparado de lodo uso dos scntiílos.
tonando tornou outra vez em acor<lo abia-
cou-se rom a irmãa, e dizia: Ai ai fiH^a í^^i-
iilía , ai ai irmãa miiiba j a que estado Uto
Fk. FIenriotie Slmo; 17 j
miserável tendes chesfado ! Ah Snn'n í^nez
Yiro*;iTi Santíssima quíTo triste , e (\v:io pe-
noso íiia foi este vosso pi a uÁm ! ISo cabo
de todas e^íns palavras tornava a cair (les-
inaiado , e fora de si : o ^lv.e veiulo a poljre
irmãa lancou-se-lhe aos pé.í derramando de
seus oihos rios de lagrimas, e dizendo mui-
tas lastimas , faliava com elle desta manei-
•ra: O' senhor , c pai meu , mal aventurado
íoi o dia, em que eii nafci no míirido , pois
por uma parte tenho perdido a Deos , e por
outra %os causei tanto mal , e tantos tor-
mentos. Com razão mereço viver sempre eni
trabalhos. Coin razão me devem perpetua-
mente cair as laces com vergonha , e deifa-
zer-se«me o coração em gemidos. O' íidelis-
sinio remíílor de luinha triste alma. Ainda
que não sou digna de me tallardes, nem res-
ponderdes, peço vos todavia que haja memo-
ria nesse piedoso coração , que em nenhuma
cousa podeis melhor cumprir com a palavra
que a Der<s tenrlcs d ida , nem imital-o ukjís
ao vivo, que reíhizindo a seu servirei unui
peccadora miserável , e al>atida , e dando
a mão a uma alma oppriuiida de gravissimo
peso ; que este é o íim para que Deos vos
(leu condição piedosa aconipitnliada íle proni-
ptidão , e brandura para com lodos os atlii-
gidos. Pois como ha de haver no mundo qj\e
l^r^ Vida do Deito
só pnia a triste de mim peccadora , de todos
desprezada e aoorrecida haveis de serrar a$
entranhas de niisciicordia ? A mim qT)v' já
diante de Deos e dos homens estou perdida
depois que minha maldade me fez cair em des-
graça do todos? Mas lai sois vós que aquella,
que todos dcsprezão, e a que todos dão de
mão , essa buscais : e aquella de quem todos
com muita razfio se envorgonhfio , e pejão ,
essa chamais , nHo sem grande ahaiimei.to
de vossa autoridade, e magoa deste cora-
ção. Abraçada a esses pés vos peco sénior
cui:i um sentimento eteino de minha alma,
que por honra ^le Deos perdoeis a esta desdi-
tosa e^te homicídio que comir.elli (ah mofina
mulher ) contra vós , e contra n)iu!)a ahna.
E lembre-vos que ainda que lui occasiâo de
receberdes psrJa na honra , e no gosto da
\ida temporal, haveis de ter no Geo por este
respeito uma particular gloria , e contenta-
mento eterno. Havei lastima da mais abatida
e miserável j i ccadjra d«) mundo ; (jue tu
mesma me lancei na rede para padecer eter-
namente no corpo e na alma o mal, que te-
nho piesenle , e ser abominável , e odiosa
tanto a mim , como a «piantns me conhere-
lem : tomai-me tie hoje em tliante a' vossa
conta para remédio desta vida , c da or.tra ,
e não vos uè pena cuidar que quero lorcar
ao eslaclo nonrailo de irniíía vossa , que an-
tei iiLMíbnrria cousa desejo mais , que perder
para toda a vida este nome, que não mereço,
O que só queria ^le que de mercê me soííVes-
seis ter Ingar diante de vós de irmáa perdida,
e de ilireilo neuhiJUi outro se não de esciava
achada de novo , e c()brada á custa de muito
toriiiento vo^so. E esta determinação tenho
tão asàeiilada comigo , que se houver quem
inc chan;e vossa irmàa , ou por essa queira
íazer-me alguma boa ebra , será a cousa que
na ahna mais sentirei. Anlcs terei dó de
vós , se estiverdes em parte onde vos eu pos-
sa apparecer diante dos olhos, e hajais de so-
frer tamanha afronta como é !iatuialu»ernc ,
e com razão para todo o homem , uma tal
irmàa, e como eu creio , que o é para vós,
seí(undo conheço de vossa ctjndicHo. Nem
quero, que em nenhum tempo tenhais
comigo trr.to, nem conversação j que bem
enlcndo que não podem deixar de se assíun-
brar comigo vossas orelhas, e quel>rarLn: se-
vos 03 olhos com vergonha. Cousas são estas
para mim muito de sentir, idas ainda que
scjão duras e intoleráveis , com ludt) piíssarei
por todas de boa vontadvi, e oííerccel-as-bei
ao poderoso Dcos em desconto do a;iontoso
peccado com que o ofíeudi: para que assim
movendcj-vos vós a pi^vladc Ucniim por quem
i8o YiDk do!3j-:\to
sois, liajais por liem de satisfazer fielniento
por minha culpa , e torn;ir-me a pc.r em
graça com Dco-s. A estas lamentações, e
pranto acudio o Santo Fr. Henrique , livre
já (Io acciclente, e resnonrleo desla niancira :
Eia sli-s ardentes lai^riniHS arrebentai já deste
coração íertilissimo delias , que de dòr, e
magoas não lhe cabe lá em si. Ai de mim
íiliia minha, único ailivio desta alnia dcsd'o
principio de minha vida. Deixai os pós,
chcgai-vos a mim, e a este peito já dcfuiicto
<le vosso desaventurado irn^.ào. Dcixai-me
banhar com as desconsoladas e sancionas la-
j^rinias de meus olhos o rosto de minha ir-
luàa. Ueixai-me chorar, e prr.ntear núnha
fjllia morta. O' que pequena dor é padecer
r.iil mortes no corpo. 3Ias que grande , e
deshumana dòr é estragar a alma , e perder
a honra ! O' magoa ! O' desavcntura de n!cu
atirihidado coração! Ai de mim bom Deos,
que é isto que me aconlec(»o? Cbo;^^ai-vos a
luiui fdha minha, que pois achei , e cobrei
4idnha liiha , quero já enxugar as lagrin^as,
e onero hoje admitiir-vos com a mesma bran-
dura , e piedade com que eu pobre pcccador
desejo ser recebido no den adeiro passo de
minha vida, c coiu protnpii*íSÍma vontcde
"vns largarei o merc( Imento do nojo, e an-
ciãs mortaes desta alma , e de todo o ou-
Fr.Heniviqce Suso. iSr
Iro mal , que me cnn^n^tcs , e de forra liá-
veis de causar já até o fim de meus d as. E
não duvideis que vos hei de ajudar sempre ,
satisnizendo por vossa culpa quanto puder ,
assim diante de Deos , como dos Lomens.
Alguns homens, que acaso se achárào pie-
sentes a este acto, vendo os prantos d'anihas
as parles , e aquelles eíítiios de tristeza ,
forfío ião movidos de com.paixão , que ne-
nliiim podia ler as lagiimas. Desta maneira
tkhrandou o Sinito aquelle coraí^ào , pri-
meiro com os eíTeitus íie sentimento, e lo^o
coiu a consolação amorosa, e ficou tal, (jue
TIO mesmo ponto se ofíercceo prompíamente
a tornar ao ha])ilo penitente dalleíigião,
que linha deixado. E foi o Senhor servido,
que tanto que esta ovcllia perdiíla tornou
para o rehanho de Chrislo á custa de tanta
vergonha e ahatimento, e Irahalho do San-
to , foi recchida n'oulro I>Iosteiro melhor
accomniodado c mais a seu propósito. Onde
cresceo depois rlj maneira cui fervor, c ohras
do serviço de IJeos , c procedeo na guarda
de sua ahna tão santa c acautclr.(^ín:ente ,
armando-se de muitas virtudes ale a ujorle,
que seu irmão se houve por largamente satis-
feito ,e contente dos enfadamentos, e tra-
ballios, que diante de Deos , e dos liomers
passou por sua causa. Antes vendo que o
182 Vida do Blato
qne por ella padecera lhe tinha rendido
tanto , sentia j^iandc gosto , e aU;grava-se
ruuito , e considerava os occultos juizos de
Deos, e como aos que o aiiião tudo lhes
torna em hem. Da.jni levantava os ollios ao
Ceo , e dava- lhe iníinit;is gratas , c toda sua
aliijâ se derretia em louvores Divinos.
CAPÍTULO XXVíl.
De um grande perigo j cjiie Fr, Henrique jws^
soíi por causa de um hradê seu conipankti'
ro,
J Arlindo o Santo uni dia para fora, foi-lhe
dado por companheiro um^i*'rade lei^i), que
lo5^'o acceilou de má voulade, porque era
liomem de juizo pouco assentado: leudjra-
vao-lhe quantos desgostos lhe tiidiào succe-
dido com outros companheiros, que sem
respeito se lhe tinhfio dcsconjposlo; e toda-
via sogeitando-se por obediência á vontade
alheia , levou-o comsigo. Aconteceo ciiega-
rcm antes de comer a uma aldèa , aonde
corria grande numero de gente por razào de
de certa feira , que alli se fazia. Vinha o lei-
go nu)iliado da chuva , que troiixcrào pcKi
inanhàa; pelo que mettendu-se em uiua ca-
sa ciicgou-i.c ao foi^o, e dicse ao Í.Miito,
Fr. ííENIlIQUE Suso. x83
que se não sentia em disposição para passar
adiante , que se tiniia alguma cousa que
ncgocear, fosse embora só, que elle o que-
ria alli esperar. E tanto que o Santo poz os
pés fora da porta , largou o fogo , e foi-se á
mesa, onde comia muita fjente dissolula, e
devassa, que vinha ne^ocear na feira, e por-
curar giinlio de suas mercadorias. Vendo
alguns destes, que o Frade leigo se levantara
da uiesa , e estava á porta bocejando, e
ocioso , voUantlo os olnos com livi.iudadc a
uma parte , e a outra , e dando fé de tudo,
lançarão mão delle , levaiitando-lhc qi)c
lhes totnára um queijo. Em quanlo csu-s
luáos homens maltratavilo o pobre Frade por
esta via , sobrevierão outros , que erao cin-
co, e vinhao armados , e cheios de fúria,
que também pef^árão dello dizendo a gran-
des vozes,, que era honuMu , que trazia pe-
çonha comsigo , e a punha, e lançava por
toda a parte. Corria fama naquelle temj>c,
que havia homens, que cum atrevida niaU
dadtí iníicionaviio as aíruas. Em Hm tomá-
lão-no entiesi, e tal era a tra^í.-dia , que
rcprescntavào , que corria a elles todo o
])ovo. Vendo-se o Frade preso, e desejando
livrar-'^ \ voltou-se para os circunstantes , e
disse-lhes estas palavras: Pcco-vos, Senhores ,
que me deis uma breve audiciK^ia , e descu-
x84 Vida ro Cíato
l)rir-vo5-]i?i cháoniente tudo o que é pas-
sado nesta jnateíia. Ficaiuio ic»t.o3 altL-iuos,
ecala:it)S, começou a fa liar (icsti maneira .*
Bem veíltís , e conheceis lodos cm nieu as-
peito , que sou homem íle fraco juízo, e por
isso nino^uem íuz de mim conta. Rias lenho
uni companheiro homem sisudo , e «Ití
grande ser, a quem nossa Oídem tem dado
o cargo de empeçonhentar todas as íonies,
que ha daqui até os Trihunos, ou Alsatia, e
a esse fim caminha para lá. Pelo que não
haja detença em o colhíTdos; que, se tar-
dais, porá cm execução e^lG danado in-
tento. E já lançou na fonte deste luí^ar um
saquinho (ie veneuo para que morrão quan-
tos aqui vierem, e hehereni dcUa. E esia é a
razHo porque me deixei aqui (içar, o nào
fui com elle , visto como já o acompanhal-o
me faz mal. E para que vos asse£;ureis , que
íallo verdade, será testemunlia do que dií^o
um alíorjj^e granile, que serve de trazer li-
vros, no (jual -traz muitas hocelas atestadas
de peçonha, e de muitas moedas d'ouro ,
que os Judeos lhe derào a elle, e á noss*
Ordem para que ponha em ohra tamanha
maldade. Tanto que tal ouvirão os cinco, e
outros tão desatinados, e preversos conio
elles , que se lhe tinhão ajuntado , dovào
brami^ivs como ])estas leras, e a grandes
Fr. ITkxriqus Su^o. io5
Vozes dizião, Tanivos depressa traz elle, siga-
mol-o. ¥. ít>í^í^ arrebatando cada um o que
primeiro achava, quem lança, quem machia-
do, quem outra CDUsa, ião correndo como
doudos, e quebrando portas, e abrindo ca-
sas , onde cuidavão de achar o Santo : com as
espadas nuas fazifio gueira a's camns, e á |}a-
Iha dos eijxergóes, dando-ihes de estocadas,
e era o alvoroço , e o ruido tal , que quantos
nndaví^o na feira ião traz elle. A-Ciiaiáo-sc
aUi alguns forasteiros, homens de bem, qi;e
conhecião ao Sjnto Fr. Henrique. Estes ou-
TÍiido-o nomear niettcrão-se no meio, eaffir-
runvão que fazião o que não deviáo em o
buscarem, porque era tal Pessoa, c de tanta
virtude, que uáo era possivej entrar-llie ra
vontade, nem no pensamento um tamanlio
pcccado. Com tudo não se quietarão senão
depois que não poderão dar com elle, mas
leva'rão preso o leif(o ao Governador da ter-
ra 5 que o mandou encarcerar em uma casa,
O Santo Fr. Henrique não sabia nada do que
passava ; e parecendj-lhe hora de comer, e
que seu companheiro teria já o habito en-
xuto, veio-se para a pousada dontle o dei-
xara para jantar. Tanto que entrou, conta-
i'ão-]he tudo o que era passado. O que en-
tendiílo, íicou mui atcMuori/ado, e r.o mes-
nio poiilo sem parar voltou para íóra , e
i86 YiDA po Beato
ft)i-«e rom pressa a rasa do Govfrnuclor, er
pedia-lhe que llie soitjsse seu companheiro..
Piespondeo-llie o C(;vernador, qne por ne-
nhum caso podia "tiil ÍLi/er, antes o havia de .
r.ielter em uma torre pelos males, que linha-
feito. Sentio Fr. Henrique por estiemo esta
resohiçâo, e não cansava de sohir, e descer
escadas , e andar de luiuia parte para a outra
por ver se podia remediar o sen preso. E em
fim depois deter gastado nisto muitas horas,
não sem grandes enfadamentos e afrontas,
acahou que lh'o sohassem. Parecia-lhe já en-
tão a Fr. Henrique que era acal)ada ioda a
tempestade. Mas na verdade daqui começou
a relVescar mais asperamente, pí)ique quan-
do acahou de se dcsemharacar dos que man-
d;:vão no lugar, então entrou em perigo de
perder a vida. E o negocio passou desta ma-
neira : 'l'i:dia-se divv.lgado at|uella tarde no
povo mindo, e entre a gente haixa, que o
íSanto tiazla c<jmsi"o peçonha nara corrom-
per as aguas, e arsim em o vendo sair de casa
do Governador davão todos traz elle, como
se fora um ladião, c de maneira que não
ousava apparccer no higar. Todos o moslra-
vão com o dedo, e dlzião : Eis alli o mesUe
da peçonha; mas elle n;iO nos escapaia das
mãos, que sem falta morrerá, ennt^lhe va-
lera coumosco o seu dinheiro como fez coui
Fr. He-Vrique Suso. 187
c Governndor. Venrío-se o Santo aperlado,
quiz acolher-se a uma quitUa : pp.táo levan-
tarão a voz corn niais íuiia, e uns dizião :
Afognemol-o no Danúbio (estava assentatJo
o lugar ao longo (leile), outros gritavão: Isso
iiívo, que nos danará a agua es^e ladiáo, ave
é sujo, e torpe; melhor será queimal-o. lím
villfio deshumano e furioso envolto em um
tabardo, trazia uma lança nas ii/ãos, e atra-
Tessandri por meio da gente onde estava niais
apinhada, poz-se diante de todos, e soltou
estas palavias; Oilvi-mc senhores, e todos os
que aqui sois presentes. Nenhuma morte po-
deremos dar a este herege mais afrontosa, do
que será se o cu espetar nesta lança como se
faz aos sapos. Desta maneira ficando nú , e
aspado nesta lança, e levantado no ar com a
boca par.1 baixo atnarral-o-hei a esta sebe de
maneira , que uno possa cair. i\lirrhe-se no ar
o corpo malvado, e fique este ladrão á vista
do quar)los passarem, para que o maldigâo,
e abominem vendo tão feio grenero de mor-
te, eassnn seja maior sua desventura no tem-
po presente, e no por vir, que tudo tem bem
merecido tão jvj^tilencial homem. Ouviu isto
o Santo com assaz pavor, e apertados suspi-
ros, e era tal a anciã , que lhe fazia saltar as
lagrimas dos olhos. Vendo-o neste estado al-
guns homens honrados, que eslaváo á roda^
i88 VíDA DO Bi:\TO
choravao ngranientc, oiitiosconi niigoa ba-
tião nos peilos, c lorcláo as mãos sobre a
cabeça. lias nã© oustiva neubuni falia r pala-
vra ciíia medo ilo povo furioso, |)or((ue não
lançiíssein mão delle. Asoini passou Fr. Hen-
rique o dia, e sencio j:i tarde andava de casa
em casa pedindo ga/aiiiado cí)i!i lagrimas, e
eiii toda a parte íoi esqtiivaineiitc despedi-
do. Umas devotas mulheres desejánio aj^Mza-
Ihal-o; mas de medo o deixarão cie íazer:
finalnientc seiítindo-se apirlauo dcmoiliiis
anjuslluS, e dcsanipara^lo de lodo o socorro
humano, como a({uella genie não espeiava
anais c|ue vel-o preso para o acai;arem,
caio de pura tristeza, e medo da morle ao
longo de um vabulo; e dídii levantando os
olhos, inchados do muito que tinha chora-
Jo, ao pji ceh^sllal dizia : O' pai amoro.-issi-
mo, qnaiido valereis já a e.^le miserável mel-
lido em tanianho aperto? O' pai piedosissinu»,
porque vos esqueceis tanto de mim ? O' pai,
ó íidelissiiiio, ó clenientissimo pai ajuilai-uje
nesta minha uliima necessidade, que jii eslo
coração deíiinU) não tem esperança de vida.
3Va moíle não ha duvida. IN cm posso esc^ipar
de aíogado no rio, ou queimado, ou pas-
Siido de uma lança. Kncommendo-vos hoje
meu desconsolado espirito, e peço que liajais
piedade desta desavcuUirada n.orlc, que i^io
Fr. iíi:ríi;iQi:E Suso, 189
eslão longe os qwe me querem matar. Sendo
informado um Sacerdote do lugar destas pie-
dosas la5ti)iias, foi de pressa aonde o Santo
jazia, o usaiitlo de íoíVíi tirou-o das mãos
da([ueries inimigos, e meltendo-o em casa
teve-o dcjuella noiíe em paz, e ao oiiiro dia
em amanhecendo niandou-o embora , e as-
siiií o livrou do pcrijj^o da mo* te, que tão cei-
ta, e tão presente leve.
C A P 1 T i: L O XXVIII.
Do rue acontccco ao Santo com uni ladrão.
i_ Ornava o Santo mna vez para Allemanba,
onde tinlia sua morada, das partes delran-
des, (Hide o mantlaia a obeuiencla, e vinha
caminhando peia ribeiras do Danúbio con\
um companheiro mancebo, e despachado no
arnlar. Aconteceo que achando-se um dia o
Santo mal disposto , e cansado , não lhe pô-
de aturar o passo, que levava, e ficoii-se [)or
dclraz espaço ({uasi de meia milha. la-st; pon-
<Io o Sol, e tinha por passar um grande bos-
que nial assombratlo, eperigoso por muitos
ladrões, que nelle contmuavão. Olhou eniáo
para liaz a ver se acaso vinlia al;:;nm vian-
dante, em cuja coiitpaniiia p.assa^>e o bosque,
eparou-seum pouco antes de enlrar neílc es-
Ií)0 VlDY DO BljLTO
p?ranflo nl^tir^n. Fiilretantovio assomar fluas
pessoas, que vinhõo raminh.indo Á pressa,
das quaes uma era nuiliíer moça , e forninsa;
a o!ilra um lioniem temoroso com uma l.inca
ao liombro, e uma espada compriíla á ilhar-
ga, cuherto com um taljardo negro. Assoui-
brado o Santo da feia catiidura deste, tornou
a estender os olhos por tudo por ver se acaso
"Vcria outra companhia; rnas não vendo jiin-
guem, fallava comsig(?, e dizia: Senhor Deos,
que sorte de homens são estes I qne feição
tão espantosa ? Como hei de passar assim tão
grande bosque? E que será de mim ? Dizen-
do isto fez o sinal da Cruz sobre os peitos,
e metteo-se a caminho pela floresta adiante.
Tendo caminhado um l)om pedaço todos
tre?, travou a mullier pratica com elle, per-
g(;nlap.df>-ll!e quem era, e como se chama-
va? Satisfez o Santo á pergunta. K ella: Bem
vos conheço senhor meu, disse, pelo nouie.
Pccovos que me queirais ouvir de confissíío.
Começou loi^o a ir-se confessando, e disse:
Ai de mim, Reverendo Padre, quero-nie
queixar com vosco de minha triste ventura,
líaví.is de saber que este homem, que n(»s
aco'upaTdia é ladrão, e matador, e usa este
oMirii» neste ])osfjuc c n'outras partes, e toma
a lodos as bolsas, e vesti(h)s, sem pírdtvir a
iiinjj;ueni, lílle lueengauuu, eme tirou d\u-
Fr. Kr^NRTQUE Suso. ic;t
tre minhas amigns, e por força sou sua
iiiullicr. Ouvindo isto Fr. Henrique faltou
pouco para lhe dar um acidente de medo, e
Tirando para traz olliava paia todas ns parle*
por ver se podia ver, ou ouvir al^ueni. Mas
como a ílorcsta t-ra espessa, e sombria, nun-
ca vio, nem omio niijjniem , mais que o la-
drão, que os vinha seguindo. Neste ríeio fazia
discursos Cl insigo , e dizia : se fujo assim cau-
rado comí^ vou , logo me alcança , e me ma-
la ; SC brado , não ha de lun er quem me ouça
neste tão espaçoso ermo, e da mesma ma-
neira sou perdido. Então Icvaiitando os olhos
ao Ceo tristes, c arrasados de agua : Ah Se-
nh.or D<'(;s, dizia, que ha de ser hoje de
n:iiu ! O' morte, quào perto me estas. Tanto
que a muJlier couciuio sua ccníissão, foi-sc
para o ladrfio, e pedia-lhe em segredo, que
se confessasse com o Santo , e dizia-lhe, sa-
Lci b(un seulior, que na uíinlia terra temos
taníci fé neste homem , que é opinião que nin-
guém se confessa com el!e, aitida que n)uilo
máo epeecador, que seja desamparado i\q
Dcos. Ora fazei o que vos rogo , (|ue l)em
pode ser que por amor dellc se leiubre Deos
de vós, evos queira acudir neslas ullinuis
angustias, que vos cercão. Indo assim j.m-
l)os lidl.indo em voz baixa, foi o Santo tão
apertado de Uíedo, que se du>a poj traído. O
ií)2 Vida do Beato
ladrão começava a vlr-se para e!le. OuancTo
o Santo o \io junlo íle si, e lhe \io a LuíÇd
Uiis niãoa, treiuco toei ), e .irrepiárâo-se-llie
os cabellos , e ficu-se por acauaJo, porque
nfio sabi;i o que an»hos ti:íhão passado ciitre
si. O sitio dohio^ar, por onde raminliavâo ,
era de si niea.inlio, porque o Danúbio cor-
ria ao longo do bosqne , í? a esti ada ia sobre
a l)orJa tio rio. O lad/áo deixou ir o Santo
parle da agua, e poz-se da banda da terra.
Indo nvim o hanto cIícIo de niedo , couic-
çou o ladrão sua confis.i'10 dec^^arando todos
íjuanlos males, e rí>ubos linha feito, e em
particular contou nin horrendissinio homiri-
dio que fez íicar o Santo altoiiito. Kntrei um
dia , contava o ladrão, neste bosque a saltear
como tand)eni agora venho, encontrei com
um Sacerdote honrado e veneravei, confes-
:sei-me com clle, indo caminhando and)os
como agora vamos vós, eeu. Acabada a con-
fissão, levei desta mesina espada, que aqui
vedes, c del-lhe de estocadas, o lancei-o no
rio. Desta historia junta com os gestos, que
o ladrão fazia conlando-a, e de seu aspecto
ficou Fr. Heiiriíjuc tão atlonito e perdido de
animo, que lhe corrião suores frios, e mor-
tais lodos os men)!)ros, e o sangue se llie
congelou no corpo, e perdeo a f.iila, e ficou
tJe maneira, que ";uroi eslava faliu de tudos
Tb. ÍÍE^íRiQtJE SusOé 193
'os scr.tldos, só tinha os ollios postos na es-
pada (lo Indião, esperando a hora, eni que
o havia de atravessar com elh^ , como ílzera ;ío
outro Sacerdote , q lançal-o de cabeça no rio:
e começando com esta asronia a desmaiar, e
não tendo jd tbrcss para se ter em pé, íicoii*
lhe o rosto desfigurado e mortal, como de
homem , que c^^tava para perder a vida logo,
e desejava £aival-a. Notava estes eííeitos a
companheira do ladrão, e tanto que caio no
que era, acudio de pressa a ahracar-se com
clle, que ia caindo já desfalecido, e trabalha-
va pelo alentar, e tornar em acordo, dizen-
do-ihe : Não temais , bom Paíire , que não se
vos fará' nenlium mah Também o ladrão o
animava , o dizia-lhe : Eu Senhor tenho ouvi-
do muitos bens de vós , e por ivso quero dei-
X ir- vos a vida. Rogai a Deos por mim , e pe-
di-Ihe que por aunrr (k; vos me acuda , e haja
njisericordia comigo, que sou um la d ião, e
ando para morrȒr catia dia. Quando dizia
eUas ultimas palavras acaha\rio de sair do
bosque, e eis ([ue appareceo o compnniiti-
ro de Fr, Henri(p>e, que estava assentado
ao pé de uma arvore espera !ulo por ello.
O bubão adiantnu-se com sua ci,m[)anhei-
ra ; mas o Santo chegando como pôde aon-
de estava o seu Frade, dei\ou-se cair em
terra com um íjranile tremor d«) coracâc,
7
194 VíDA. DO Beato
c do corpo todo. Depois de estar assim u«i
espaço deitado cobrando alento, levantou-se,
e acabou seu caniinbo. E sempre pedia a
Doos n)ui de propósito, e com granc^e^ sus-
Í)iros, fosse servido que aproveitasse aqnelle
adião a fé, que tiveia nelle, e a esperança ,
cjue puzera em sua intercessão , e orações, e
não permittisse que depois da morte se con-
demnasse. E mostrou-l!ie o So!)bor uma vi-
são , pela qual ficou cei lificado de sua salva-
ção poi^ maneira (jue nenhuma duvida tiniu ,
que se havia de salvar,
CAPITULO XXIX.
De alguns perigos y que o Santo passou por
X ínha o Santo por costume ir algumas ve-
^xes á Cidade de Argentina, que vulgarmente
se chama Str.iburgf. Tornando uma vez delia
para o Convento, caio uuui temeroso pego
doDantdjlo, e juntamente com elle foi um li-
vro, que tinha composto havia pouco, a quem
o diabo linha grande ódio. E sendo levado
da forca da corrente sem haverquem Ibe aco-
disse, e andando já em braços com a morte,
ora indo-se ao fundo, ora Lí)rnando-se em
cima da agua, acontccco por divina provi»
Fr. IIE^•RIQrE Suso? 19^
tlencin , que r.o mesmo íeaipo cliegou alli um
soldad.) da Prússia, quo vinlia de Argentina,
o qual se lançou á agua , e o tirou dcUa com
seu companheiro são e salvo , livrando-os de
tão triste género de morte. Outra vez foi
íora da casa por ordem dos superiores, e ei^
no Inverno, e tendo caminhado em coclie o
dia todo alé vésperas :>em comer, pelo vento
que corria frio e desabrido , chegou a um pas-
so de agua turva e nlía , que com a força das
chuv.is levava grande corrente. O criado, qiis
governava ococlie, deixou-se chegar t;i«to á
})orda d'agua por descuido , que caindo as
rodas em vazio daquell;\. banda , revirou em
claro sobre a corrente. Caindo o coche caio
tand)em o Santo de cabeça, e fjcou de costas
pohrir a aíT^a , e losfo foi o ccclie sobre elle,
de maneira que se não pod'a tirar debaixo,
nem revolver-se com o peso paia nenliuma
parte, nem ajudar-se; c assim foi um gr;yidj
pediíço pela agua abaixo junto com o coche
até darem n'um moinho. Aqui o cocheiro
acudio com outros, e ferrou nulle; uj.ís era
tal o ptíso do coche, que por muito que tr;:*
balhaváo, e fazião pelo tirar, não n'o j)odira>
levantar, antes tornava a baixo. Em íim le-
vantando primeiro o coche, não sem gmnde
trabalho, tirarão-no a terra bem niolhado. E
como o frio era grandíssimo , logo so lhe con-
19^ VíDi DO Beato
gelarão os fatos no corpo de maneira, que
batia os dentes de íiio. Nesta afllircão esteve
o Santo por grande esj);i( o sem se poder va-
ler, e levantando os ollios a Deos dizia : Que
farei, Senhor, ou que intentarei primeiro?
veni^se a noite, e não vejo luj^ar, nem alJèa
por aqui onde me possa aquentar, ou reme-
diar. Se quereis que acabe aqui assim triste-
mente, he bem miserável género de morte.
Todavia estendendo a vista por tudo enxer-
gou ao longe uma aldeã ao pé de um monte,
Foi-se lá como pôde todo molha<lo, e inti-
rissado com fiio e era já noite , rodeava as
casas, pedia gazalhado por amor de Deos ,
snas de toda a parle o despedião, nfio se
doendo ninguém de seu tral)al;io. Em fmi
arreceando de acabar alli, bja<lou ao Senhor
em voz alta dizendo : Melhor fora Senhor
deixardes-mc afogar naquella agua. Acaba-
ra Limais de pressa, e com mais gosto, do que
me vejo aqui perecer com frio. Estas pala-
vras ouvio acaso um viliáo, que primei lu lhe
negara pousada, e havendo lastima delle to-
rhou-o nos braços, e metteo-o em sua casa ^
« a\li passou uma bem cansada noite»
Fk. Henrique Suso. 197
C A P I T U L O XXX.
De como se houve o Santo n^uni breve tempo,
que teve vago de tribulações,
JLjiília já Deos nosso Senlior poslo cni tal
costume o seu servo Fr. Henrique, que em
lhe aíroxando uma tribubífio, cleterniinada-
inente espeiíiva logo í)ntra. E a^aim sem ter
um momento de lefrioeiio, andava semj re
afíligldo : só de unja vez lhe deu o Senlior al-
gum repouso, e este foi ainda de bem pouca
dura; no qual tempo entrando um dia n'i:m
Mosteiro de Freiras, umas filhas espirituais,
que nelle linha , lhe perguntarão conjo ainía-
Ta. Aoque o Santo rcspondeo, que receava qn j
lhe não ia l)em , e que Deos se esquecia deile ,
porque era passa-lo um mez inteiro sem rece-
ber otiensa de ni»)guem, nem no corpo, netn
na fama, cousa íóra do costume em que estava
de muito teujpo atraz. l'onco espaço liavia
queo Santo eslava assentado asgrades, quan-
do um Fratle de sua Ordem, ([uese alliathou,
o chamou á parre, e Ihedisse osej^uinte : \ão
ha muitos dias que ntc achei u'um ca^tello,
onde ouvi o Senhor deile per^^amtar elíioaz-
incnle por vós, c por (huide aritlaveis, e ju-
rar com as mãos levantadas diante de mi;ila
gente, que se vus aciuvu, cm qualquer lu-
igH Vida no Beato
gar que fosse, vos havia (]e dar de nonliali-
das. O mesmo juramento Gzerão tnníLcm al-
guns fidalgos seus parentes, os ([tiaes a estr\
conta TOS huscarão já em tdgans Moslciros,
]:ara executarem esla danada vontade, que vos
lein. Por onde vede o que vos cumpre. An-
dai acautelado, e olhai por vós, se estimais
a vida. Ouvindo isto Fr. Henrique ficou cheio
de medo , e disse ao Frade , que tomara saber,
que razfio hírvia para o tei eui por merecedor
de tal morte. O Frade llie respondeo desta
maneira: Haveis de saber que cuntarfio a este
senhor, que vós ensináveis a urna fiilia sua
um modo devida particul.jr, e novo, que se
chama espiritual, e os professores delle espi-
ra uais, e (jue a niettesles nella c .mo fizestes
noutra muita gente. E está persuadido que en-
tre todos os nascidos não ha peiores ho:i»ens,
que os que seguem esta doutrina. Também
estava piesente nesta junla um homem atre-
vido, e feroz, que aftírmava (jue vós o ti-
i::heis descasado de sua mulher, que muito
amava de tal maneira, que tapava o rosto,
e não queria olhar para elle , e dizia que que-
ria bó olhar para dentro de si, e por sua al-
ma. Tanto que o Santo soube estas novas,
deu graças a Deos , e tornou logo para as Ke-
ligiosas, e disse-lhes : Amadas tilhas, servi a
Deos varoniiiuente, que ja se lembrou do
Fr. He:íriqui Suso, ipf)
mim. E logo lhes contou as temerosas novas
que v^ Frade llie dera , e como o luaiulo an-
dava traçando pagar^lhe com males os servi-
ços, que lhe fazia.
CAPITULO xxxr.
De conin o Santo entrou um dia ein contas
com Deos , e do que lhe rssultou delias»
N,
O mesmo tempo, que Fr. Henrique pade-
cia os trabalhos, que vamos contando, en-
trou unia vez na enfermaria da casa, em í\\\q
morava, para d.ir alguina recreação a seus
cansados Uíembros. Estando seulado á mesa,
e calado, segun<]o seu costume, molesta-
vão-no com algumas zombarias e palavras,
que elle sentia muito , e iíie causavão tanta
compaixão de s» "^nesmo vendo-se assim m U
tratar, que muiíi«s vezes lhe corrião as laj^ri-
nias pelo ri'Slo aliaixo, c lhe -eutravão pela
boca envoltas com o que comia, e bebia.
Então punha os olhos no Geo, e chaujando
por Dcos com entranháveis suspiros fallava-
íhe ^^slm: Piedosissimo Deos, não bastão as
misérias e desveíiiur.ís , (pic'couiinuauiente
padeço de dia e »ie noite, souão que ainda
esta pe:]uei:a refri-ão, que s^ómo, sf meha de
tornar fel e amargura í* /ísio lhe acoutcceo
aoo Vida do Bj24to
muitas vezes, e de uma levantando-se da
mesa, não se pude mais reprimir, e fcil-se
Correndo ao seu Oratório, e posto diante de
Deos conieç.ju a queixar-se desta maneira :
Suavibsimo Deos, Senhor do inundo tolo,
peço-vos que useis comiijo de brandura, e
piedade , que hoje é o dia , em que determino
entrar em contas com vosco , e não posso ai
fazer. E ainda que a ninguém deveis nada,
nem eslejaij obrigado a na fia, por serdes,
como soisj Deos soberano,, c imnicnso em ma-
gestade: sem embargo de tudo á vossa bon-
dade iníiuiia compete sofrerdes, que possa
desabafar com vosco, e tomar algum aílivio
CiC vossos divinos favores, um espirito afo-
gado em tribula'-ões, maionnente quando
não tem outrem ninguém , a quem se possa
queixar, ou quem o console. E começando,
a vós mesmo Senhor, a quem nada se es-
conde, tóiuo eu por testemunha, que desde
que nasci tive sempre um coração brando, e
compassivo; porque nu!íca me lembra que
visse ninguém altribulado, ou triste, que
me não compadecesse delleentranhavelmen-
te. Nunca pude ouvir cousa que pudesse fa-
ler nojo ao p-oximo, nem em presença,
nem em a])^eniia sua. De unia cousa me se-
rão testemunhas meus companheiros lodos,
que mui raras veze"^ «ue ouviriáo torcer coiu
Fr. TÍENRIQtlE ScSO. 40»
minlia llnofiiacrem , ou Jar entendlmenlo á
pfior parte aos feitos alheios, nem de Frade,
riem de outrem ninguém, assim diante cios
superiores como de toda a outra pessoa. An-
tes em qiianto pude julguei sempre o me-
lhor das obras de todos, e quand<; mais não
pude, ou me calei, ou me desviei por nfío
ouvir o contrario; e daquelles me dava por
mais pr.rticular ami^^o, que eu sentia terem
recebido <letrimenlo algum na fama , ou na
reputação; o que fazia de piedade , porque
llies custasse menos tornar a cobrar seu cre-
dito, O meu nome era verdadeiro pai de
tristes. De toílos os amigos de Deos eia par-
ticular amigo. Todos os que se clirgavao a
mim tristes, ou trabalhados, ao menos dava
algum conselho , com que se tornavào ale-
gres, e animados: chorava com os que cho-
ravão, dcoconsolava-me com os tristes até
qi\e quietava uns e outros com autor de
niái. Nunca ninguém me anojou tanto, que
logo lhe não perdoasse tudo como se nunca
me offendera , se só uma vez me mostrasse
bom rosto. De que .•-(írve fallar dos homens,
se as íaltas, e trabalhos de quaesquer nni-
inaes , ou avezi.íhas me apertaváo o coração
de maneira, que quando as via , í»u ouvia,
chegava a pedir-vos ren^cdio para elles P
Tudo quanto vive sobio a leira acha tta
*02 Vida do Beatí>
mim entranliss úc amor e branrlura: e vós^
Deos piedosíssimo, perniittis que haja ho-
mens (eslcs são os que o Apostolo chama ir-
iiiftos falsos) que me tratem com muita esqui-
"vança , e de«abrimento, como \ós, Senhor,
Lem saljeis, e a todos lie ben) notório. Pe-
ço-vos, Senhor, que vejais isto, eros mesmo
me deis algum aUivio de vossa nião. Depois
que o Santo desabafou largamente com Deos
riestas contas, ficou n'um repouso mui asso-
ceo^ado, esentio i:or meio de uma luz divina
csra resposta em sua ahna: Eftas tuas conlus
são contas de minino, e nasccm-te de não ad-
virtires sempre, c^mo deves, nas palavras,
e nas obias de Christo paciento. Has de en-
tender, que não é só bastante para Deos esta
tua condição caritativa e branda , de que tu
te contentas, mas sabe q«)e quer de ti outra
cousa mais subida, e mais perfeita, quoro
dizer, que quando alguém te aggravar com
obras, ou com palavras, não somente passes
por isso levemente, mas inda estejas tão
morto á tua paixão, e a ti mesmo, que não
ouses deilar-te a dormir sem primeiro busca-
res esse que te a^j^sfravou , e com gesto tlesas-
sonjbrndo e palavias decortezia, e com a bo-
ca cheia de rizo abrandares quanto em ti for,
ç assocegaressiia cólera , e fúria: porque com
esta uioderacào e humildade lhe arrancas
Fr.. Henrique Sttso. ao3
Ia mito a espada, e fazes que aquella raiva
ema vontade lhe finue fraca, e sem forças,
e totalmente desnrmrida. E este he a(|nelle
aníi;'o casuinlio ^de perfeição que Clirlsto
JESL ensinou a seus discípulos quando lhes
dizia: íiis afie eu vos mando como cordeiros
entre 'obos. Depois que o Santo tornou em
si pancco-lhtí este caminho de perfeiçno
muito liais agro, e trabalhoso, e não podia
cuidar nelle sem .grande desabrimento , e
muití) naior o sentia se queria acommeltel-o.
Mas cí'm tudo como estava resignado nas
mãf)S d) Senlror, começo\i a provar suas for-
ças , ea:)r3nder os passos desta estrada. Acon-
ttíceo dalli a alj^uns dias, que um í'rade leigo
o tratou mal (!e palavra, e o injuriou nota-
velmente Sofreo tudo o Santo sem fallar na-
lavrií ; e luvendo que isto bastava , náo queria
passar adiante. Mas interiormente sentia um
reníordimento , que o obrigava a fazer mais.
E assim no mesmo dia á tarde estando o Frade
ceando na eifermaria , esperou a porta , cem
saindo deiton-se-lhe aos pés, e pcdio-lhe
hurnihlemente perdfio dizendo: Cliarissimo
e Rclij^ioso Pa Ire , peço- vos por reverencia
de Deos , que «e em algucna cousa vos mo-
lestei, ou offendi, me perdoeis por amor
de Deos. Vejidu o leigo um tal acto, primei-
ramente íicou par;rdo, t mudo, c lo^o er-
ao4 Vida. do BrAxo
giiendo os olhos disse em voz alta : Valha-me
Dcos, que maravilha é esta? que fazeis?
Nunca me offcndestes mais que aos oulfos,
antes eu fui o que notavehiiente vos e*c;in-
dalizci , e que com a soltura demasiadri ííosta
liugua V03 fiz cruéis aL'oiitas; c disto eu sou ,
meu Padre, o que houvera e devia peclr-vos
perdão, e iniportunar-vos uma, e muitas
vezes por elle. E assim ficou o Santo (|uielo.
I^m dia estando Fr. Henrique á mesa na en-
fermaria, disse-lhe un» Fraiie muitas pala-
vras pesadas , e malditas, e elle lhas pagou
com se virar para elle com um senjl)lante
tão risonho e alegre, como se nelias reccl)era
alguma amizade mui signalada. Mas i-*to teve
poder para tornar o Fra<!e tanto so])r« si coni-
pungindo-o inteiiormeute, que náosón\ente
se calou , u-.as tauihem se liie mostrou ale-
gre e bem assoml)rado. Depois de jantarem
contou o me>mo Frade este successo na ci-
dade com estas palavras : Hoje foi o dia , em
que uie vi tão cheio de vergonha e afronta-
do estando comendo, que cuid> que nunca
outra tal me aronteceo. Porque fa liando eu
mui solta, e desarazoadamen:e contra Fr.
Henrique, elle me ouvio tom um gesto tão
aprazivel , e desapaixonado, que me ffz ficar
corrido. È espero aw nosso Senhor que me
ha de aproveitar sempre este seu exemplo.
Fe. Kenriqte Srso. 2o5
CAPÍTULO XXXII.
Deconio o Santo chegou alí^umas vezes a risco
íe perder a vida de demasiada ajjlicçào,
ACjonterco a Fr. Henrique em certo tem-
po, -jue as mais das noites no meio do sono
acoríava cheio tle pavor E começando a re-
2ar sem saber o qne, logo começava o PsaU
mo d;Pnlxáo, que começa : Deus Deus meus
respiciin me, que éonjcsn-o, qnecoritf.o, que
Chiisú') nosso Senhor disse na Cruz vendo-se
naquele nliimo irai alho desan;parado do Pa-
dre Fjerro , e de todas as creaiuias. A contí-
nua r(peli< áo deste P.«^almo, qiicscm qnei er se
lhe vidia á hòca , e a lembinnca do prii:<?i-
pio deUí irazifio-no inui assun. brado quí^ndo
estava icordado, como quem se receava sem-
pre detfibulaçóes. E assim ini dia poíto
diante ie um Crucifixo lallnva coin-eilc em
voz alta (• com desconí-oladíis la'.',r'n ns, di-
zendo : t\ de miui , Senhor Ikos, é isto por
ventura qiercrdes vós que de r.ovo leve eu
oulra Cru. com vosco , ou seja cruciríado
neila? se asim é, ac aliai já, rooo-\os, de sa-
tiiíazer rese triste corpo os tornemos de
vossa innoctnie, e santíssima IMuilc, nas
sedo (oníigo e lazei que <( n) íe, € confan-
ça em vossa ijuda pcisa ventcr l( lio (• i^c-
20(5 Vida f>n P.bvto
nero de trabalho. NiTo tardou muito ?. cm
que cLuínuentc lhe represei tár.i aíjuelle r>-
soíTibra mento nocturno , com a qual lhe a<ii-
(Tirão extraordinários trabalhos, de que ião
conveíii fazer-se menção nesta hislori.i; os
quaes indo-sc aiignicntando cada tua vérno
a crescer tanto, eser tão intoleráveis, c^ie o
chegavão, como tle seu natural era f/nco,
ao derradeiro e-trenio da vida , e unt vez
lhe succedeo estando fora do .Mosiefo , e
querendo-se recolher a dormir já tarde, dar-
liie um desmaio, e cortamento de forç;s tal ,
qiiG entendia de si que a demasiada frqucza
o havia de fazer desfalecer, e acabar lojo. E
asfeim jazia sem bulir, c tão mortal , qie em
nenhuma veia do corpo tinha pulso. VMidi>-o
t;d um homem virtuoso seu devoto, cue era
presente (qne o Santo tirara de gravís peo-
cados, nío i;em grande custo, e trahabo seu)
acudio de pressa lançando muitas lagimas, e
saltando-liie o coração de dor, por ^er se ti-
nha ainda ah^^um alento devida. iMjS achou-
lhe o coração tão adi)rmecido, q\c não pj-
recia fazer iiíais movimento quese íura de
um homem morto. Então vencdo de dor
caindo sobre ellecom lagrimas en fio e pran-
to em grita : O' Deos, dizia, >ede como é
acabado hoje aquelle cxcellen te .^oração , que
vus hospedou, e trouxe em »i tão longos
Fr. Henltqfe íSuso. ^07
anos com uma virtude, e religião fora do
ciomum, e que com palavras, e escritos, que
corem pelo mundo, vos deu a conhecer, e
cou suavidade fez seguir de infinito numero
díí liomens estragados, e perdidos. Enire
esta lamentações, e magoas, que dizia, pii-
nliallíe as mãos sobre o coração, e na boca,
e pcos braços, desejando entender se esta-
va anda vivo, ou se era fallecido. Mas em
iienhnia parte lhe achou movimento, nem
pulse E na verdade elle eslava tal, que ne-
nhum cousa tinha do homem vivo, mas
tudo omo quem caminhava já para a sepul-
tura. ) rosto inflado, e amarcllo, e a buca
negr;. Neste estado esteve tanto esjiaço, em
quani se pudera bem andar uma milha de
Allcnniha. Mps em quanto a^sín» jazia como
em ex;isi , eslava sua alma gozando não me-
nos oljecto que o mesmo Dios, e a divin-
dade , » aquelle que só é verdadeiro , e a
mesma erdade, e a unidade sempiterna. E
já antes |ue começasse a cair reste desfalleci-
m'*ento , ? Iransporlar-se , tiirha entrado eni
brandos? devotos colloquios com Deos, di-
zendo d6ta maneira: O' Acrilade eterna,
cujo ine:<iauslo abvsmo está encuberto a
toda a cretura : Eu pnlire servo vosso q!:an-
to ao que entendo de mim, e da fraq^u/a
em que nu vejo, sinlo-n:e chegado ao dcna-
to 3 VíDi DO Beatíj
cieiro termo da vida. Por isso, Deos Omn-
potunle, íallo com vosco nesta uitinia lioii,
coiu vosco a quem ninguém póile /iientir a
qiíein ninguém pó»le en^^janar, pois tudo os
é patente e manifesto. Vós só sabeis »> |Ue
passa CMtre nun» e vós. Vussa henigni^de
e misericórdia invoco Clementissimo íli-
delissinio Pai: e su alíjuma liora me dtA^iei
para outro algum oI)jecto fora da snhfaoa
verdade, peza-me, Senhor Deos, denodo
coração, pedindo-vos que com vosso pccio-
so sangue laveis este erro, segundo vos* cle-
mência, e minha nece-^sidade. Lemhíevos,
Senlior, como quanto foi em mim lourvi, e
exalcei por todo o discurso de minhaVida
aquelle puríssimo, e sagrado Sangue, (j/e na
Cruz derramastes. Este fazei vós que W pu-
rifique e alimpe de todo o peccado íjora ,
que vou passando desta vida. Peço-vo.v .3an-
los do Ceo, e a vós em particular moro-
síssimo Pai e Bispo S. iNicoláo, qu lodos
juntos de joelhos, e com as niáos letntadas
façais oração por mim ao Senhor, que me
dè boa morte. O' puríssima e eslarecida
Virgem i\Iaria, dai-;ne ajora a mão aijuella
mão, digo, piedoslíslma , e vo^sa, frt esta ul-
tima hora recebei minha alma di^aixo de
vossa Fé, e amparo, ]>ois depoií de Deos
não tem meu coração outro gosic^ nem au-
Fa. TlE"'íP.iQrE Sus^. 209
tra copsolíção senão a vós ó Senhora e Mãi
niinha : e»; vossas niáos encommenclo meu
es|úritô. Ah suavíssimos espirlios .-Jiigelicos,
lenibre-vos, rogo, como em toda a v*<Ia
bastou só para me alegrar e enclur de gosto
oiivir-vos non)ear. ÍA-tid^re-vos quantas ve-
zes no meio de grandes tribulaçoens me
acudistes com festas e passatempos do Ceo ,
e quantas me defendestes de nieus inimigos.
Eia espirites gloriosíssimos, agora ^stoii em
extrema neces-idnde evi.njonia, ai/ora !i<i ml-
ster que me ajudeis. Por laiito acudi-me ago-
ra , eguardai-me da vista temerosa e feia de
nfeus inimigos. Louvo-vos Deos Omnipoten-
te, edoii-vos graças porque fostes servi(lo dar-
n-e nesta hora, em que aíalu) , um juizo per-
feito, e uma i\izfio e coniiecimeuto ( laro , e
vou deste mundo inteiro e íii uie na Fé (Ja-
tlíõlica sem duvida, nem arreceio: e de boa
vontatíe perdò a lodos aquelles, que algu-
ma hora me derão desgosto, assim couio vós
peiíloastes estariílo na Liruz aos mesmos , (jue
vos mataváo. Senlior meu JFSU Clnisto,
\allia-nie o vosso sacratíssimo corpo , que
boje, aituhi que fraco, recebi na Missa; e
leve- me diante de vosso divino rosto : e esta
uhima oração, que neste estado vos offere-
ço , qneií) «jue soja por todos os meus devo-
us filhos e liiiias espiritúaes , que por razuo
210 Vida do Beato
cie amizade, ou de confissão tiverão trato,
ou conliecimento coiiiiso. E assim como vó-> ,
misericorcliosissimo JI- SU estando para ren-
der o espirito com sumiiia confiança encom-
mendastes ao Padre Eterno vossos amados
discípulos , peço-ros que com o n:esmo amor
os li.ijals por encomnienilados a tcs para llies
dardes santo e bemaventurado fim. Agora
de verdade dou as costas a todas a*s crealu-
ras vis e mortaes; e íaço de mim entrega á
mesma divindade, fonte e origem primeira
da salvação eterna. 'i'endo dito esUis pala-
vras, e outras mnitas a este modo , que en-
tre si com devação e amorosamente íallava,
começou a cair no de mai > que temos con-
tado, e ficou arrebatado. ]\ias cuidando to-
dos , e elle também que morria , tornou em
si; e o coração, que estava sem movimento,
e mortal, resuscitou.com novo alento de vi-
da , os membros cansados e enfermos cobra-
rão saúde, e elle suas forças primeiras.
Fr. Hn'-r.TorE Suso. ail
CAPÍTULO XXXill.
De como foi revelado ao Santo , em que ma^
ncíra devem os ajjii^idos . ojferecer a Dcos
suas irihidacoes com louvor e íiracas.
l
-jStando o Sinto Fr. Henrique um dia com
profunda imaginação considerando seus tra-
biilios, e batalhas contínuas, e passando to»
das pela íuemona , e notando nt;llas os escon-
didos, e uíaravilhosos juiios de Deos , virou
para o Seniior com uni suspiro saído d'alma,
etiisse: Estas cruzes, SenlioPj eafíiicçõts com
que vós permittis que exteriormente eu seja
perseguido, ao parecer de fora não tem ne-
niiuma diiferença de uns agudos ahrollios, e
espinhos duros, qjic me passão a carne , e en-
cravão os ossos. Pelo que, piedosíssimo Se-
nlior, fazei vós que s íia algum fru< lo saboro-
2j, fruct»» de doutrina pia , e saudável da as-
pereza destes espinhos, para que os miserá-
veis atribulados levemos com mais paciência
o pcs4) de nossas crnzes, e saibanif»s tirar
delias hiuvor e gloria vossa. Depois (juc o
Santo continuou um grande espaço, e muito
de proposiso esta petição , transportf»u-se al-
gumas vezes dentro de si , e sobre si, n'ura
quieto roubo da alma, e brando alheio de
todo sentido corporal, ouvio o Senlioi-, que
a 12 Vida do Beato
suavemente llie dizia estas palavras : Hoje por
certo te quero descobrir urna exrellencia , e
diijnidade altíssima d«3 minha vida , e ensi-
nar-te coino todo o afíligido deve offererer a
Deos com louvor o agradeeimeníí) os traba-
lhos, que lhe dá. Tanto que isto oii^io oSar.»
to, começou a derreter-se-lhe o coração em
grande suavidade nascida de nma abundân-
cia sem medida de cousas, que naquelle ex-
tasi sentia communicareai-se-lhe. E esten-
demh) os braços de sua alma pela imuiensi-
dade do Ceo , e por a redondeza da terra ,
dava graças a Deos com entra nliavel aí feito
do coração, c com uma inefável devacãf) di«
zendo desta matieira: Até>^ora Senhor meu
vos louvava em meus escritos , atégora vos
celebrava, e engrandecia cont.mdo, e tra-
zendo em gloria vossa tudo (juanto pode
haverem todas as crealuras, que sejaaglada-
vel, e deleitoso, que seja saboroso, e apra-
zivel. Mas agora sou forcado a romper os
ares com uma nova musica , e entoar um lou-
vor dt;'^act)^lijma(lo, et.d, qtie eu lyesmo
não tive ja ukÚ'^ nolicia delle, senão foi hoje
que vim a aprender suas adversidades. Co-
mecemos Ioíi<» assim du lodo coração, e t:om
a^ entranhas de ndnha abna desejo, Senhor,
que iodos os desgostos, e trahalh(»s, que
uesla \ida itnho paasado, e assim todos os
Fr. HE^RIQtJE Suso. âi3
Tr?.balhos, e angustias de todos os outros ho-
mens, as dores de todos os feridos, os tor-
mentos de todos os eníernios, os suspiros
dos anojados, as lagrimas dos tristes, os des*
pi'ezos e aíroiitas dos qiu; andão nlro[)elia-
dos do rnmido , a miséria dns viuvas desam-
paradas, e dos oríãos sem remédio, a sec-
cura da fome, e sede dos pofjres, e necessi-
tados, todo o sancriie que lodos os Alarlyres
derramarão, a renunciarão da própria von-
tade de todos aíjuelles, que nílo pnssárão
ainda da ílor e vigor dn idade, as aspeins
e rigorosas penitencias de quaeiquer servos
'í]||,Deos, todas as afílicções e dores, assim pu-
l)licas como secretas, qne ou cu, ou qual-
quer outro hí/uiem so^^eito a desaventnrns
padeceo no cor[)o , na fazenda, na lic^uM ,
tanto nas prosperiílades , como nos tcujpos
contrários, o tudo em fim quanto cada ho-
mem alj^uma hora ha fie padecer até o fim
do mundo, dií^o que todas estas cousas sejào
para eterno lotivor vosso , Padre Allissimo,
Deos e Senhor meu, e para i^loria e honra,
em annos sem fim, de vosso unigénito Filho,
í{ue por mim padereo. E juntamente eu pr)-
líre servo vosso desejo acudir, e supprir fiel-
mente |)or todos aquelles, que, sencííí atlrihu-
lados, fuTo souherno por ventura usar hem de
suas cruzes louviudu-vos tom paciência e
ai4 ViDÀ DO Bi:vT«
agradecimento; e em noiiie Jc todos vos of-
fereço todos stíus trabalhos parj vos^o lou-
vor, fosse qualquer que íosse a lencão com
quo os passarão. E os niesiDos vos offerero
por elies, e louvor perpetuo de vosso Filho
t:niweiúlo rruíliuente alHi^ido, e para con-
soiacão dos mesmos altrihuiados, ou sejào
vivos, ou mortos. Com vós outros íallo to-
dos quantos viveis tristes e desconsolados,
todos quantos juntamente comigo traceis
vossas cruzes ás costas : olhai, rogo-vos , para
mim , e ouvi o que vos quero dÍ7er com nt-
tenção : He na verdade justo, é acertatlo que
nos alegremos, e consolemos, aluda que nyj
tratados, olhando para Chriòlo JESU cal»e-
ca nossa , e Senhor de todos, que primeiío
que nós provou tantos, e tão vários trtiba-
Ihos, que eo) quanto viveo na terra nunca
jamais teve um dia de gosto. Certo e que se
em uma famiiia de <;enie baixa e pobre não
houvesse mais que um homem rico, toda a
geraçíio se alegraria por similhante senhor.
Pois, ó Piíssimo JESU, cabeça escl.irecida
de todos os que íuid.unos sossobrados com o
peio de nossas cruzes, acudi-nos Senhor. E
quando por fraqueza humana faltarmos na
verdadeira paciência em qualquer a*lversi-
dade, remedeai vós, suppri , e aperfeiçoai
Jiaute do Padre celestial o que nos fallar;
Fr. Henrique Srso. 21 5
li mbre-vos, Senijor, que já alguma liora soc-
correstes a um servo vo5so vo meio de seus
inales quasi desesperado dizcíndo-Ilie: Es-
íoiça-te filho, ollia para mim. Kis-me aqui
que também nasci de gerarfio ilhistrl.vsiuKí , e
sempre vivi po'ue neste mundo, juntamente
era o mais delicado deile , e juntamente o
mais miserável. Com grandes alegrias nasci
nelle, e todavia sen)pre me cercaváo dores ,
e cruz. Eia pois todos os que somos soldados
valoroáos deste soberaníi Imperador, nfío
desmaiemos; todos os que seguimos tal Ca-
pitão , armemo-nos de varonii esíorco ; e pois
vamos traz elle, não levcm(-s de má vontade
nossa cruz, que na verdade se das adversi-
dades se não tirara outro intcresie maior, que
parccermo-nos tauto mais com aqucllc ela-
rissimo espelho JESU Christo Senhor nosso ,
quanto mais de verdade o imitamos, era as-
saz grande, e muito para estimar. Antes te-
nho para mim que, se Ueos depois desta
vida houvera de dar igual premio aos que pa-
decem , e aos ípie viveu» contentes, ainda
então haviamos de escolher os trabalhos por
nenhuma outra razão senão só por nos con-
formarmos com Christo, pJ5r(]ue a regra do
amor é conformar-se, e unir-se o amante
com o que ama como e por qualquer manei-
ra que pôde. Mas que razão póile haver, JESU
Iií5 ViDi DO Beato
Rei invictissinio , pnia nos atrevermos a in-
teijtar ou desejar parecer-nos com vosco nos
trabalhos ? O' quanta difíerenca ha dos que
vós padecestes aos nossos! Vós, inen Senhor,
só sois aqueile que passastes gravíssimos ma-
Ifcs, sem nunca merecerdes nerdium. E qual
será o homem (jue se possa gabar que não
fez nunca por onde mereça uni infortnnio,
e que se bera pôde acontecer por uma parte
padecer contra razãí) , por outra não !he pôde
íahar por onde seja bem dif^no delies. Por
onde todos os que alguma hora íouios afíli-
gidos juntos em uma grande roda vos assen-
tamos Senhor no meio delia , e diante de vós
alargamos as sêccas veas tle nossas almas abia-
sadas de sede, e desejos de beber dessa fonte
perv^Mine de vida , e de graça que sois vós. Co-
stuma aterra quando abre ícndas de sec*
cura embeber eai si muito mais aguas com
que largunente a rega o Ceo, assim nós pec-
cadores fracos sem humor de virtudes greta-
dos de mil íontes de vicios, quanto mais vos
devenios, tanlo com mais ardentes desejos,
e mais sequiosos corações Jios abraçamos com
vosco, e segundo ^ós mesuí.» por vossa sa-
grada boca nos e^commendastes queremos,
apezar do njundo totlo , lavar-nos nas corren-
tes copiosissin)as de vossas chagas, e em to-
das as maneiras ficar limpos , c purilicados
por esta via de todo o peccrJo. Díinde nasce-
rá serdes perpetuanunitti ioinado, e glori-
ficado de nós, e nós alcançaremos de vós a
graça ; que tal é a virtude de vosso precioso
sangue , 'jue basta com sua efíicacia para ti-
rar toda a fealdade, que o peccado causa em
nossas almas. Depois que o San lo gozou por
grande espaço desta quietaçião em quatito as
cousas, qne temos dito, se lhe revelavão, e
assentavão com firmeza no centro d'alma ,
levantou-se alegre, e contente, e deu gra-
ças ao Sc.Mhor por esta mercê,
CAPITULO XXXIV.
De como foi r anelado a Fr. Henrique por que
meios consola Deos neste mundo aos aírí'
balados em seus trabalhos,
VJ M dia de Paschoa andando o Santo bem
assombrado , e presenteiro , sentatlo no seu
banco, em que costumava a repousar as bre-
ves horas, que tomava para o sííuo, desejava
entetuler de Deos, que consolação havia do
dar nesta vida áquelles , que por seu amor
padecessen» muito, (loui esta consideração
se arrebatou em extasi , e por meio de uma
divina ill iminaçào leve esta resposta : Ale-
grem-se de todo coração , c com auimo in-
»lS VlDADoBrVTO
Tenclvel todos os que vivem em trabalhos , e
leváo suas cruzes com verciacieira resignação:
porque podem estar certos, que llies ha de
render esta paciência 4,'ra n d iss imos galardoes,
fjue ahsim como na opinião de muitos íoráo
miseráveis , e mal afortunados, assim muitos
mais hão de receber perpetuo e celestial gos-
to de sua particular bemr.vcnturai]ça , e do
louvor que para sempre hão de ter. Comigo
morrerão aqui, con5Í.^'o tambcm aiegremeute
resurgirdõ. Mas altíni disto ainda lhes hei de
comniunicar mais três gastos particulares de
tanta honra e exccUencia , que ninguém po-
derá conheceriina valia. O piiiiiciro é que ha-
verão de mim licença pnra escolherem no Ceo
e na terra o que quizcrem, e sempre íílcança-
ráó o que desejarem. O outro é que lhes darei
mlniia divina paz, que nem os Anjos, nem os
demónios, nem os homers, nem (re^Uura al-
guma llit s poderá tirar. O terceiro é que de
contínuo estarei em braços com suas almas ,
e com a minha boca na sua com tanto amor,
e com Ião particular e entianhavel assistên-
cia , q»:e sejão uma só cousa comigo, e neste
estado permaneefKj eternanjente , ellesvivão
em mim , e eu nelles. K assim como ne-
iihuuia cous.) «anca lanlo a um entermo,
como , quando peile alj;uma cousa com in-
stancia , nào lhe fazerem a Vontade, a&sim..
Fr, H£^-^^T':)^:: S-jí^o. 219
pelo brove cspsro , que agora p2de<em, não
h;ivcrá jamais iiíierpí»iaçio eiu nos^o amor,
nem de um só momento, mas começantlo
urxja vez aqui gozar-nos-heiuos tlelle eterna-
mente quanto puder sofrei' a fraqueza huma-
na, e mais ou rrseiiQs, sejuudo o estado, e
a natureza de cada um. Com estas novas
de não pc(]'r:?no gosto ficou o Santo por
estremo ale:(re, e orno tornou em acordo
saío-se da cella , e entrando no or.itorio co-
meçou a rir muito de vontade e de maneira ,
que soava toila a ca?a , e clieiv) de co'ilenta-
nicnto íÃizii! enlre.si:Se no mundo lia homeui
algum, que passasse tantos inftirlnnios, ap-
pareça aqui, c ouçamos suas queixas ; que
eu de num cháamente confesso e affuiiio ,
que nunca passei nenhum. Eu de verdade
não sei que cou:".a é cruz , ne:n irahalho, tí
tenho provaílo heni que cousa é gosto , e
alegria. Deruo-me Heenca larga para escollier
o Éjuequizer, cousa que de forca ha de faltar
a muitos, que levào errado o (.auíinho da ver-
dade, que quero eu'níais, ou que mais posso
desejar. í' Acabando estas palavras virou-se
para Deos com todo o entendimenlo, c disse
assim : Peço-vos, Verdade eterna , JESU pie-
dosíssimo , que me deis a entender estas
cousas, quanto se poderem declarar por ter-
mos humanos, porque totalmente as igno-
'22a VíD.i DO BzVTO
rãò muitos destes cegos, que andáo pelo
mundo. Logo liie foi dadi» interiormt-nie
esta dodtriíia. TocIíís aqiieiies que bem e
direitamente se governâo na mortiíicaçào , e
renuijciação própria, que é r.ecessaria liaver
no seivo de Deos primeico que tudo, de ni:i-
neira que para comsigo , e {5ara com todas as
cousas do uíundo seja como morto (que lia
Lem poucos, que tal facão) estes taes per-
dein-se tanto de vista a si rae5raos, e tanto se
alongão de si para Deos com os sentidos, e
com a alma, que quaii se d-jsccuhccem , e
cliegão a nao saber parte ile si, se não é para
seaciiaiem, e alcançarem em sua primeira
origem, que é o mesmo Deos, lauto a si como
a tudo o mais; e daqui lhes nasce levarem tan-
to gosto de todas as obras, que Deos faz, como
se Deos nãoíòra oauior delias, mas como se
lhas mandara fazer a elles a seu modo, e por
sua trat a. E esia é a razào porque se lhes dá
licença para escolher, e desejar, pois o Oco
lhes obedece, e a terra os serve, e todas as
creaturas estfio a seu mandado em tudo
aquiib», que fazem, e no mesmo tjuedeixão
de fazer. Homens desta mauiira com ne-
nhuma tiibulacão senlem des^^^osto na alma,
porque eu chamo (h'sgosto d'.! Ima quauílo a
■vontade com entendimento deliberado de-
seja de se \er livre da iribularáo. Que quanto
Fr. Hexiuqce Scso. a2i
tos sentidos, e ao homeni exterior , tamhem
estes de quem tratamos sentem o hem e o
mal, como os outros homens ; antes alguns
sentem os males mais que as outros , por te*
rem a nature/.a eníraquecida e «astada ;
mas quanto ao interior não tem nelles ne-
nhum higar, c i.inda quanto aí) depois pas-
sao seus trabalhos sem fazer desconcertos,
nem raoslrar irnpaciencia<í : farta-os Deos ahi
nesses corpos mortaes de i)ens3ltissinios por
meio de uma extasi, quanto nesta vida podo
ser. Ue til maneira que em todas suas causas,
e em todo succcsso ^Mízào de uma paz, e ale-
gria perfeita, e inieira e permanente; por-
que na divina, essência aonde elles, se lhes
vai beai, já checarão com a alma , não tem
lugar dòr, nem tristeza, mas paz e alegria,
senão é em caso, que por sua culpa ou des-
cuido caem em cousenliniento de peccado ,
porque delle nasce logo a tristeza a quem o
faz, e quant») s'e enlodâo mais nos vicios,
tanto lhes vai faltando esta felicidade, e boa
ventura. Mas em quanto se guardão de pec-
car neganilo e encontrando sua própria von-
t de, e (hegru) a tal esta .o, que bc não pode
senlir nelle liòr , nem des^oMo da alma (ou
tem passado a turmos, que não tem a dor em
conta de dòr, netu a aftlicção) de maneira qtio
em tudo achão verdadeira piz ^ ja então aà"
522 Vida DO Br.ÀTO
sento (^ue lhes vai Leni <lc verdade. V toclo este
bem nasce de cortarem por si , e inoi ti ficarem
os appetitos ; porqjie assim tugintlo, e saindo
de si , cori crr» para Deos com unia sede , e de-
sejo artèenti^simo da? cumprir seus inar.damen-
tos j e guardar sua lei ; e fica-llies tão saborosa
esta obediência , e leviTo tanto gosio do cuni-
priniento delia, que aciiso por suave e de»
leitoso tudo o que por p«rniJssão divina llios
succcde, e nao querem, nem desej fio outra
cousa. Mas nfio se ha de toiíiar isto de ma-
neira , qi:c cuidemos íicão por esta razão sem
licença , e exclnic'Ds de fazerem oração, e pe-
direm a Deos reme lio em seus maJes ; por-
que a mesma vontade de Deos é também que
o roguemos e importunemos: ba-se de
entender sesruudo unia ordenada renuncia*
1 • • •
cão ck> sentimento, e do juizo próprio entre-
gue nas i;):'ios de Deos, como fica dito. Iúm
aqui fica ainda un;a duvida secreta, cm que
muitos se embaraçfio , perguntando-nos : E
quem me disstí a mim f. nu qr.em sabe que é
essa a 'vontade de Deos? A verdade é que Deos
é um bem sobre toda a essência . ^qual está
em tiulo,e em cad*a cousa n-ais presencial, e
eniranbavelmcnte do (jue a mesma cousa, que
o está em si, assim netibuma se yóác iazer,
nem manter um só momento contra sua von-
tade. JMdS impossinel e lu^o deixarem depa-
Fr. Henrique Scso. 2^3
decer mni gravíssimos tormentos afjuelles ,
que repugnao sempre á ciisposlcào Jivina, e
que, se tora em sua niao , tomarão andar
sempre ao sabor de seu gosto. Estes tais não
tem mais paz, que os drenados do inferno ;
porque reina cm sJias almas uma perpetua
melancolia. Mas bem ao contrario aconte-
ce a uma alma nua de vontade própria. Esta
tem de seu a Deos perpetuamente, e possue
verdadeira paz, tanto nos trabalhos, como
nas bonanças, porque cm efíeito está sempre
com elia presente o Senhor, que criou e go-
verna todas as cousas , e que é o tudo em
todas. Como será logo a estc^s homens mo-
lesta a Cruz eafílicçào, na qual vem a Deos,
na qual o achão , na qual gozão de sua divina
vontade, deixando, e negando a sua pró-
pria, como a cousa, que não conhecem ? E
isto é assim antes de tartarmos daquellas il-
lustradas consolações , e celestiacs represen-
tações , e dehcias, com que Deos repetida»
mente recrea , e sustenta os seus amigos,
quando mais aííiictos, e desconsolados. Na
verdade estes já vivem dentro no mesmo
Ceo; por quanto tudo o que lhes succcde ,
ou não succede , todas as cousas , que Deoi
ordena , ou não ordena em todas as criatu-
ras , são para seu bem , e todas os ajuduo á
salvação eterna. Fiaalmciitc por esta via ,
ia4 ViDÂ Eo Blato
ao que sofre com igualdatle (ic animo f.\
adversicUídes desta vida , ninda eslaiido iieU
Li , so lhe restitue jiaríe cio premio da outra ,
nisto que é gozar em todas as cousas paz e
gozo sem perluibaçíTo, e depois da morte
alcançar a bemavcniuranca,
a a
G A P I T U L O aXXV.
De um^ Jilhct espintual cio Eeato Fr, Ilen*^
rique.
Quasi
i no mesmo fempo linha o Peato Fr.
Henrique uma íillia espiritual na proGssíio
Dominica, que vivia n iim Pthosteiro cRcena-
do, de uma villa , por nome Isabel Eslaglin;
cuja vida interior , e modo de proteder era
assa's santa, sendo na verdade o animo inte-
rior Angélico. Aquella excellente conversão,
com que se tornou a Deos de todo o corarão,
era tão íorte, tão eííicaz, e tão vehemente,
que em um momento se despio de iodas
aqnellas superlluidades , e vaidades , com
que muitos se prendem e embaratão para
Dão tratarem da vida eterna como convém.
Todo o cuidado desta serva de Deos era pro-
curar com grande diligencia , conio seria en-
slna<la nas doutrinas espirituaes,a fmi de c\\\^
fosse beui çncaiuinhada á vida eterna , que
Fe. HiNRiQrí Suso. aaS
í?ra o S€u uniro e insaciável desejo. Porém
asstMitava com diligencia tudo o qr.e por al-
guma via aprendo, que podesse ser útil a si,
e aos oiitios, paia alrancar as virtudes do
espirito; iinllíiva as trahaUiadoras abelhas, que
de todo o género de flores, que íia coiliem
para o suave favo mel. Naquelle IMosteiro,
aonde cnire as outras Virgens consagradas a
Deos vivia tomo um vivo retrato de todas as
virtudes, e sendo mui enferma, e falta de for-
ças corporaes , conipoz uni livro assas gran-
de, ni) qual entre outras cousas, tinha escrito
a santa Fielioriosa a conversação, o modo de
viver exemplar, os grandes, e extraordinários
favores, que receberão do Senhor todas as Re-
ligiosas defuntas da mesma casa. Cousas certo
de muita edificação , e que despertão gran-
íU-niente os ânimos devotos no serviço de
Deos. Pois esía santa Virgem tendo noticia
do Be-ato Fr. Heniique, Ministro da Sapiên-
cia , foi movida pelo Ceo a procurar sa!;cr
com muita devacão , e dillíjencia a sua vida ,
e regras de espirito ; o que conseguio per-
scrutando com muita cautela , e dissimulação
a ordem , por onde elle , deixando atraz io-
das as cousas da vida, penetrava ao mesmo
Deos, e coiuo se negava as.im mesmo d<»scu
prin(.'ij):o; e tudo, quanto colheo , po/ cm
eácrito, como já acima se diss.', c niais adian-
a!i(5 Vida do Be\t«
le se tornará a contar. E nos primeiros prin-
cípios da conversfio desta serva do Deoá , lhe
forão reveladas muitas cousas, e muito altas,
e que só pertencião ao conhecimento, diíH-
cultosas assas de perceber. Con\eiii a saber,
da singela e nua Divindade; orno t<>das as
cousas criadas súo nad:i ; da resignação de si
mesma; de como se deve despejar a alma de
todas as imagens , e figuras, para clu^gar á
verdadeira pureza de espirito, e outras m.ii-
tas cousas deste teor , que sendo escritas coin
fi^rande concerto, e limpeza de palavra*;, da-
"vfio grande consolação a quem as lia. Porém
liavia aqui escondido um perigo, edamno
oculto para os simples, e priucipiautes na
virtude, que por falta da discripoão necessá-
ria fa qual ella ainda padecia) podião torcer
aquelias palavras a uma e ou ti a parte, acom-
inodnn(in-as igualmer.lo ao espirito, e á con»
solaçfio da carne, segundo que o leitor esti-
vesse bem ou mal aftecto. As cousas em tim
erão de grande doutrina , mas nem a Reli-
giosa se podia bem desapegar delias. Pelo
q le pedio por cartas ao Beato Fr. Henrique,
Mifiislro da Sapiência, com grandes itislan*
cias , que a quizcsse soccorrer, e ajuilar , ti-
ra.ulo-a ao caminho real , plano , e desemba-
raçado. ?>Ias porque ella eslava ainda presa
da suavidade, que achava naqutil<?s5cus ^\tíí*
Frí IIe^írtque Suso. 527
cicios espiritwaes, esorcveo-lhe pedindo, que
tltfi:4ados por eníf.o os priricipios rudes tios
que começ-rio , a (loutii::íísse escrcvc\iíIo-liiG
das cousas líívantada-j e altas , que lhe tiídia
apontado. Ao que respoiídeo o MinisVro da
Sapiência: Se desejais, fdha, coiliíicar-vos de
mim nestas cousas altas peia grande admi-
ração, que vos rausão. para (|ue conl<eccn-
do-as bem , possais com maior clai-c7.a íallar do
espirito, em poucas; palavras responderei, mas
taos que não sejão de gosto. Por quanto, mais
depressa se podem daqui originai' erros per-
niciosos, que ediCcação, e dcuitrina provei-
loia. A Verdadeira santidade, e períeiçáo
não está em palivras bem compostas , e for-
mosas , mas uas boas ojjras , e íeltos da ver-
dadeira virtude : e se vos niuve a íuzer per-
guntas deitas cousas altas desejo de as poder
a-leanear com a vida, íazei o tuie vos aceu-
seiho ; e íleixadas por ora estas levantatias
questões, t''atai das eousas, que mais vos scr-
venj para o aproveilauunto daluia. Conio le-
nho entendido, sois Religiosa enrerrada , c
ainda nioça, pouco exercitada: pelo que a
vós , e ás siuiilhantes a vós , o que uuiis ( on-
véin é saber como hão de comeear a vida esni*
ritual, iuqniiindo, e apremleudo bc;us , o
saudareis exemplos <la vida aeti\a , coméui a
saber- o ccnno aproveitou ar^u.dle, nu aq'.!el'i'
âaS Vjd\ do Beito
servo, e amigo de Deos, e como toilos forão
)Dor este caminho, dando principio á sua vida
espiritual, e exercitanclo-se em primeiro lu-
garnavida, e paixão de Gliristo, ecjueoonsa»
padecerão mais aturadamente, como segovcr-
r.árão no exterior, e interior, se fováo trata-
dos de Deos com mimos , ou com seccura , e
em fim como e (fuando chegarão a perderas
íisrnras, e similhancas das cousas. Esies sfio
t)S meios por oníle um principiante se con«
vida, e encaminha pf.ra chegar á períeirão,
e ao que mais cumpre para a salvação ; que,
ainda que Deos pôde dar ludo isto em um mo-
mento, todavia não o castunja, e de forca
lia de haver trabalhar e traballiar para se al-
c;incar. A isto replicou a sania d«ínzel!a por
outra carta com e<ras ]):ílavias: Não é, meu
Padie, minha tenção atulartraz flores, e ele-
gâncias de palavras, ou subtilezas de concei-
tos: o que summamontc desejo é aprender
como hei de %iver uma vida santa e pura ,
e para este fi:u tenho assentado comigo ca-
minhar um caminho direita e ordenada-
mente, e ainda que seja á custa de muito
des.;j )Sto e quebiantamenlo meu. Se é ne-
cessário fugir , se padecer , se m«)rrer , se
ou ira cousa maior que estas , aqui estou de-
terminada, c offererida a fa7afr chammente
tudo o que pudor slt parto para uie levan-
F». Hf-NRiQTTE Srso. 229
tar a inais sobida perfticãc do Ceo: etião tos
de pena a fraqueza dfí minha natureza , que
em confiança do poclei- divino , não arrecea-
rei tousa nenhuma de quantas me qe.izerdes
mandar fazer, ainda que enct)í]trem a mesma
natureza. Começai embora das cousas mais
baixas, e levai-me pouco a pouco ás maiores,
e tratai-me como a menino de csthela, a
quem o ?>Testre começa ensinar prinjciro o
que é mais accommodado áquella idade, e
logo por degráoso vai sobindo de dia em dia
a cousas de mais substancia, até o dar mestre.
l^ma cousa vos queira pedir, que por me fa-
zer mercê me vSo negueis , a qual é qt.^e nfío
somente sejais vós o que me encaminheis, o
instrunis na vida espiritual, mas que me ar-
meis tam})em de forças , e constância para
quaesquer adversidades, que me possão suc-
ceder. PeiguiUando-lhe o Santo que requeii-
mento era esíeP Respondeo assim: Tenho, se-
nhor, ouvido contar, que o Pjlicano tem nor
natureza abrir cíun o bico seu próprio pcil»;,
e manter os lilhinhos de seu sangue, obri-
gado da afreiçào natural, que lhes tem. O q'ie
nisto qiiero ilizcr é , que tia mesnia m.mcira
agasalhei'^, e crieis esta po})re , e indigna
íi!ha vossit com o [i:\\v. de vossa santa doulrifía
nã') colhida d'outrem , tutus tirada de vcs mes-
mo , e dv vossa vida e expor-^Míci.:». pui*tjue
a3o Vida. do Beato
aquillo porque vós passastes, qtiantode mais
poi-lo o provastes, e experimentastes em vossa
Vítln própria, tanto maior eííeilo faiá em mi-
nha alma, e mais liie aproveitai á. A este rc-
querimentií lhe tornou o Santo a escrever com
a lesposra seguinte: Nao lia ínuito t».'mpo,
qu3 mo vós mostrastes um caderno de ditos
excellenles, que tinlieis colhido das claras
sunvissnnas do Santo Dí)ntor iichardo, que
ijuardais para vós com o amor e gosto , qae
e razAo. l^elo que não posso deixar de me
espantar granden;ente de ver que mostrais
tanta seíle ila minha pobre agua nascida de
baixa e rústica ftmte, dcp-ois de lerdes pro-
t.\do da voa riquíssima de tal varão, d »nde
mana licor celestial. Ainda que, quando cuido
bem niiso, reci^nhero em tais desejos não
sem £;;ande gosto meu , \ ossa prudência , e
industria, pois buscais com cuidado , c pro-
curais saber os principios, e entradas da vida
segura e santa, ou os meic^s e exercicios ,
por onde ha de passar primeiro quem quizer
ch<':rar a e!Ias. TodciS os Sanios liveráo dif-
ierenie princípios, uns começarão de uma
maneira , outros croutra; mas náo deixarei
de vos avisar qual é <» mais acertado , e enca-
ininbiflo para a vida mais perfeita , que c o
que pertencíeis saber. \íu conheci um ho-
raem , (^ue uidenando de entrar no caminho
Fr. Henrique Suso. 23 1
dn virtude, a primeira cousa, que fez, foi pu-
rificar ii consciência com uma confisião ge-
ral , e antes de a fazer todos seus pensamen-
tos occupava em a ordenar de maneira, que
fosse muito bem feita, eein buscar confessor
prud<;ntc e discreto, para ihe descobrir iodas
suas faltas, e para se levantar de Stins pés lim-
po, e são , e com todos seus peccados perdoa-
dos, como da preseiça de Deos , cujo lugar
tem os confessores na terra. Imitando nisto
á bemaventurada Magdaieua , que couj o co-
raçfio cbeio de dòr e os ollios de lagrimas
lavava os sagrados pés de C^hristo, e ( hristo
llie perdoava seus peccados todos. 'V'a\ foi o
primeiro fundamento, que este homem fez ,
para começara servir a Deos.
CAPITULO XXXVí.
Da ordem , que levou em seit^ principiou a
santa donztUa hahel por consellio de l-^r.
Henrique ^ c da que teve do Ceo outra dou*
zcliaj para o tomar por confessor,
j vSta resposta de Fr. Henrique , qne temos
co!ftado, lecoUieo a santa d')n/.tdla em sua
alma com determinação de se gf)\cniar pelo
conselho, que nclhi lhe dava, c (pieroiid»
pòl-o em eífeito, dcâejou muito, que fusj*
a32 ViD\ DO Blato
elle seu confessor, como quem era tr»o iíTo-
nco, tendo juntamenie tenção a duas cousas:
liina a ficar dalli em diante sua filha espiri-
tual pelo meio da confissão , outra para Hm
ficar sua salvação mais encarregada para com
Deos. Mas porque não podia íazer ccnfi.ssã<í
verl)al por certos inconvenientes, que havia,
contoa-llit' toda sua vida, em que na verda-
de não haíia culpa, nem mal algum. E as
cousas ,em que lhe parecia que houvera pec-
cado , escrseveo todas em uma grande tahoa
de cera, e assignisiido-se ao pé, mandíiu a
Fr. Henrique, pedindo-ihe absolvição. Leu
elle a ct)nfissão, e lida r.ih)U no cabo umas
regras, que dizião: Reverendo Senhor, cu po-
bre peccadora, poslrada a vossos pés , vos pe-
co c rogo, qr»e por meio de vosso fidelíssimo
coracfio me torneis ao coração Divino, e
consintais que seja eu , e me chame vosoa fi-
lha tanto na vida temporal , como na espiri-
tual. Moveo ao Santo até as entranhas uma
úo confiada devação , e, obrigado delia,
tornou-se a Deos, dizendo : Que direi-a isto,
piedosíssimo Senhor ? por ventura será razão
in-^eital-a ? Em verdade que nem a hum cão
posso íazer tal : e se o eu fizera , pôde ser que
lura , meu Deos, com afronta vossa, pois esta
niulííer busca nu criado as riqueziís de seu
Amo : por onde vos peço, clementíssimo Se-
Fr. Henrique Suso. ^33
nhor, lançado com ella a vossos pés, qiio
hajais por bem de a ouvir. Valha-lhe sua fé ,
e siinta confiança , porque brada traz nós; e
lemhre-vos o que antl;2:amente fizestes com
a Cananea. E na verdade , misericordiosissi-
mo Senhrr , tão solemnisada é enlre nós , e
tão nomeada vossa inimensa njansidão , que
com razão deveis dar perdão a muitos mais
peccados. Clenientissimo Jesu , ponde nel!a
Yo.sf.os amorosissimos ollirt#. Dizei-Ihe aquel-
la só palavra de consolarí^o : fdlia , tem con-
fiança , tua i.' te salvou. E tique isto , que pe-
ço , certo e firme, e su[>pri vós por mim no que
llíe fizer falta , pois tenho feito de n^inha
parle o que me locava , oulorgando-lhe em
desejos picnissima e geral absolvição de todas
suas culpas. Depois turn<ui-llic a esc^e^ er o
Santo pelo mesmo mensageiro estas palavras:
Sabereis que Deos vos tem concedido o que
lhe pedistes por n)eio deste seu Ministro, e
cel'tifi(•ai-^os, ciue yá antes dagora nTo tiuli.i
o Senhor revelarlo , ])orque no me:smo dja pela
manhãa cedo, depois de acabar de rezar,
encostando-me para dormir um p(»ucí) , e
adormecidos os sentidos exteriores tive em
revelação grandes \istas da bondade Divina.
Entre outras cousas entendi por celestial il-
luminação os excessivrs gostos, e siimma fe-
licidade, rtue Deos deu aos Anjos, e como a
í34 Vida do Beato
tecla um com particular ortleiu , e differcnçt
roínmnnicou particulares e diítcremes pro-
priecJades, que nãu ha palavras, com que se
poi-íão declarar. Depois que assim estive um
espaço recrearido-iite entre aquelles htm-
aventurados esjHíitos com celestial altgiia , e
estando cheio de contentamento das grandes
maravillias, que alli .<!e me dcscohrírSo na al-
lua , vi-vos na mesma visão, que entraveis
onde eu estava asser.lado entre grande nu-
mero de Anjos, e vos púnheis diante de mim,
e logo sentada de joelhos arrimáveis com
muita devacão o rosto a meu coração, e fi-
cáveis assim um espaço largo á vista de ioda
aquella corte celesti;d. Eu cspanlava-me de
vosso atrevimeilo , ainda que estáveis arma-
da de tanta modéstia,' e c<^rle7Ía , que sem
pejo vos consentiu. O que alli reclinada neste
pohre coração alcançastes de graça, e favores
doC^eo, \ós o saheis mui hem , e hem se
deixava conhecer em vós. Quando vos levan-
tastes, passado um pequeno intervallo , appa-
recestes com um losto táo alegre, tão sere-
no e agraciado , que se podia entender cla-
ramente, que vos linha Deos feito alguma
grande meicê, e vos havia de fazer outras
por meio daquelle Cíjracão para honra sua,
e consolação vf>í?sa. Quasi peh)s mesuu)S ler-
UiOi foi o t^ue succudco a outra duíJiclia , quf
Fr. Henrique Suso. 235
7lvla em um Casteilo por nome Anna , mu-
lher heni nol)re, e mui reli:7Í()sa, cuja vida^
Yião foi oiiira cousa , senáo um contínuo
mariyrio. Obrando Deos nella desde s pri-
meiros annos de sua idade até morle j^ran-
dcs, e notáveis maravilhas. Antes que esta
donzella conhecesse a Fr. Henrique , nem
soubesse novas deile , estando um dia eni
ciacáo Hrou rapta eru extasi, e alli vioconio
C()nteniph'io e hiuvfio a Deos os Santos u-i
Pátria celestial ; e vendo a S. João Evange-
lista , qiw era o seu Apostolo , e com quem
tinha especial devaçno, pedio-lhe que a qui-
zesse confessar. OEvaugeiisla lhe respondco
com muita brard na, que lhe daria em teu
lugar um bom confessor, a f|i:eir. Deos ti-
idia dado inteiro uoder e autoridade sobro
ella , e que lhe poderia dar copi. sãmente
allivio em todas suas aifliccóes. Pe''^untando
quem era? satisfez bastaniemente a tudo. O
outro dia pela ujaidiáa levantoií-se íomprndo
a alva, dando cracas ao Senhor, e foi-se ao.
Mosteiro ondií a Deos niandára , e perguntou
por Fr. Henrique; o qual sen^ > (hamaíío
\eio á portaria, e pcrguntou-lhe que n\an-
dava delleP Contou a donzella o que passava,
comti temos referido, e começou a confes-
sar-se: o que vendo Fr. Henrique, e c<.n!ie-
cendo, que viiilia a elle por ordem Divina ,
23(» Vida do Ceàto
satisfei-a com a confissão. Ksta vlrtiioí^a don-
7.elia foi a que lhe contou , que vírr. em reve-
iíjçao hnnia formosissirna roseira cuherta de
frescas rosas, todas vermelhas, e a clie sen-
tado debaixo delias, e lopjo lhe apparecèra o
Menino JESU sobre a mesma roseira com uma
capella tecida das mesmas rosas vermelhas,
o (|ual a{>ariliando muitas rosas as lançava
sobro Fr. Henrique em lanta quantidade, que
o deixava cuberto delias. E perguntando a
donzelia , que qaeriáo tlizcr aquellas rosas ?
respondera o Menino , estas rosas em tanta
quantidade significão muitas e contínuas tri-
bi! loções, que Deos permittirá, que succe-
dáo a Vr. Henrique, que elle tomará de sua
mão com ale^^^re vontade, e sofrerá com pa-
ciência,
C A P I T L L O XXXVlir.
£r7i que j prosei^uiiido na doutrina con^enien'
te fios principiantes na virtude y se contuo
ali^.Lnias dci'acòes e exercidos ^ que o Santo
ii<ai>a em sua mocidade: e avisa como se
liÁo de rr^ular as penitencias com pruden^
cia.
Oi:=
ando o Santo Fr. ílenrii|ue se determi*
T!ou a entrar no caminho da vida mais per-
íeita, depois de faz,er (como temos contado)
Fr. Henrique Sc5o. iZ-j
uma confissão geral mui upurada , ordf iiou
logo nos princípios coinsii;o algumas cousas ,
í.\n{i o ajudarão limito nelle. Primeira mente
limiíou-se no pensauicnto ties sítios paia mo-
rar, dentro dos quaes se encerrou determina-
danienle, para melhor guarda desuaalma. O
primeiro sitio linha três paríes , a sua cella , o
keu oratório, e o coro. F.m quanto estava
neste, havia que vivia bem seguro. O outro
sitio era todo í) Mosteiro sem t liegará portaria.
O terceiro e ulliuio era a n;esma prriaii.i,
aonde era forrado acudir algumas ve/cs, e alli
entendia , que lhe era necessário ter muita
guarda e vigilância sobre si. E se alguma liora
lhe acontecia por obediência sair lióra destes
limites, tinha-se por tão arriscado, como
qualquer animal silvestre, que andando íóra
da cova , dá entre caçadores, e lia n;isler sa-
ber muito, e suar muito para se salvar. No
mesmo tempo tinha escolhido um lugar
apartado, que era o seu oratório, onde alem
de outros meios satisfazia também a sua de-
va< ãtí cr-tn imagens, que nelle mantlava pin-
tar. Em particular sendo ainda ujuilo n.oço
fe/ pintar n'um pergaminho a tleina Saj)ien
cia , senlioreando o Ceu e a terra com tíío
vivas cores, e com tanta formosura, e ii.n
amoroso gosto, que claran.cnle abatia a
maior peiítií^ão de ledas as cii;aur;.s, e qc.í
a3S Vida ©o Bratci
foi musa tle a toin.ir por Setiliom , e Espo5;i
sua nessa prifDt^ira iílade. Esta in»ai(em por
estremo bem acahad.i rosluniava clle a trazer
comsigo, qiiat)(Io o manílavfio estudar a ou-
tros Conventos, eprej;ava-a na relia junto da
janella , aí^nde ll»e ficava mais defroiíte da
■vista, eol])ava para ella muitas vezes com um
mui entranli.ivel eílv-ilo da alma. No cabo de
suas peregrinações tornou-a a trazer eoiusigo
para oMíJsteiro; e pòlra em o seu oratório
com uma santa simplicidade de espirito. As
mais pinturas , que alli tinha , crão segundo
achava , que mais lhe armavão para elle , e
para í»s priuripiantes na virtude , e quaes fas-
scní facihnente se pôde colIi;4Ír das leiras ,6
sentenças dos l^athes anti-os, que a(jui irão
em parte escritas , assim como as tinha no
orarorio , tresladando mais o sentidv) , que
as palavras de cada uma.
1 O Abhadc Arserdo perp^untou a um
Anjo, que faria para se salvar;^ Respondeo:
Foge, cala, assocega.
2 Em u»na visão , que Fr. flonriqje teve,
recitou-lhe um Anjo esta seitteuca do livro
que chaujfio f^^itas Patrum .* A íonie e origem
ce todos os bens é morar um homem com-
sigo per[)etuamente '^em nunca sair de si.
3 O Abbade Tlieodoro dizia: A pureza
da alma ensiua maii», que o mesmo estado.
Fr. He3írique Suso: aS^
4 O A])bac]e RIoyses: Está-te em tua cel-
la , que ella te ensinará tudo.
5 O Abbadc João: Guarda-te no exterior
tom silencio, no interior com pureza.
6 O niesmr»: O peixe tora da agna , e o
Frat-Ie íóra da cella igualmente desíallecem.
y António dizia : Trcs cousas crião e
conserTao a castidade, penitencia corpoial,
devaçáo do espiíito, apartamento dos ho-
mens.
8 O mesmo: Não tragas vestido , que
cheire a levianda(]c. A primeira balallia do
bisonlio na virtude é peleijar valentemente
contra os vicios.
9 O Abbade Pastor: Jamais te indignes
cofitra ninguém , inda que te vejas tirar o
olho direito.
10 Isidoro Abbade: Todo bondem súbito
na ira desagrada a Deos, ainda que faca mi-
lagres,
í I Ipericio : Menos perca quem come
carne nos tempos, que a toilie a Igreja , que
quem diz mal de seu proxiruo.
12 Pior Abbade: A nuiior maldade de
todas é laliar nos vicios alheios , e di^siiriular
os próprios.
i3 Zachaiias: Quem qnizer chegar ao
cume da perfeição, é necessário que ía'ja pri-
meiro mui abatido e desprezado <ie lo(icá.
^io VlDÀ DO BeAT»
i4 Nestor; He necessário que te facas
animal bruto e o mais ignorante de todos
primeiro, que chegues a alcançar o saber do
Ceo.
i5 Um velho: Nos trabalhos ena bonan-
ça não faças mais movimento do qi:e í.»2 um
corpo morto.
iG Helias: Três cousas estão mui bem no
Religioso , rosto amarello , corpo seco , íui-
niildade no andar e no tratar.
ly Hilário : A cavallo rinchador, e corpo
orgulhoso encurta-lhe a mantença.
18 Um velho: Tirai-me o vinho, que jaz
escondida nelle a morte dalma.
19 Pastor: JNão se ha de ter por Frade
quem se queixa , quem nao sabe enfrear a
coKíra : escusar muita pratica , sofrer ser tido
em pouco.
20 Cassiano: De tal maneira devemos
ordenar nossa vida e costumes, que imitemos
a (^hrislo poslo na Cruz, e morrendo.
2 i O Àbhade António escrevia a um Fra-
^e : Eia , irmão , tem cuidado de tua salva-
ção , e se não , nem Deos , nem eu te pode-
remos jamais remediar.
22 Arsénio Abljade , pedindo-Uie certa
mulher, que se lembrasse delia diante de
Deos: Peço-lhe eu, disse, que nunca ein
toda a vida me dê lembrança de ti.
Fr. 'Henrique Su:». a4f
lí rjr.cario : Mortifico minha carne , ave-
xarMlo-me com variedarle de penitencias ,
c af^i*^iiido-nie com muiias tentações.
sí4^ João Abhade: Ninica obedeci á von-
tade; niincH ensinei de palavra cousa , que
não tivesse primeiro niostiacio por obra.
25 líii velho : Palavras boas, formosas,
e muitas sem companhia de obras , é cousa
sem sui)stari( ia , como arvore coberta de fo-
lha despeja<la de fructo.
2Í) j\'ih): (^iiem trasfega muito mundo,
de força ha de ser ferido muitas ve«.es.
2y Um velho : Se não é em tua mão ap-
plicares-te a nenhum exeicicio estando na
ceUa , ao menos acompanha e guarda essas
paredes por amor de Deos.
28 Ipericio: Quem vive castamente tem
honra na terra e coroa no Oo.
r>A) Apolionio: Resiste e faze força nos
principios , e quebra a cabeça á serpente.
3o O Abbade Aj^aiho : Três annos trouxe
uma pedra na boca, para aprender a não
falia r.
3i Arsénio: Muitas vezos me pesou de
ter fallado, nunca de ler caiado.
?)'2 Um velho, perg^untado por um mo-
ço, qnatilo tempo Iiavia de guardar silencio?
respondco : Em quanto não fallarem comti-
go.
a4* Vida doBeat©
33 Santa Siiiíletira : Qnan
alegra-te, porque se kinbia Dtos cie ti , não
digas que o jejiíni causa doenças, porque
também adorcem os caie não jejuão : se pa-
deces tentaçr-es corp<»rae5, tandjem fol^a ,
porque pôde Deos fazer de ti outro S. Paulo.
34 Nestorio: Nunca o Sf)l me vlt> comer,
35 João : Nunca o Sol me vio irado.
3G António: Entre todas as virtudes , a
que tem o piimeiro lugar é a Prudência , a
qual é necessária j^ara poderes acertar com o
melo e guardar re;:ra , e modcricão em
tudo.
3y Pafnucio : Nada aproveita começar
bem , se não per5;ev<nares aié o cabo.
38 O Abbado Moyscs : rudo o que em-
pece á limpeza da alma se ha de evitar, ain-
da que nas aparências seja santo e bom.
3g Cassiano: O alvo e fim de toda per-
feição é quando a alma com todas suas for-
ças eslá recolhida na(|ueiUi altissima c única
unidade, que é Deos.
Estas letras e sentenças mandou o Santo
á sua devota espiritual íillia Isabel com ten-
ção, que, vendo ella os exemplos dos Padres,
fizesse tand)em sua penitencia. O que ella
tomou tanto a peito , (jue começou logo a
niallratar-se veslindo-se de cilicio, cingindo
curdas, aíerrolhaudo-se em tcmorosas jiri-
Fíi. TÍExrvinnE Scso, a45
sõps, mar^oan(!<*-'?e ooru agudas pontas de
íVrro, e íazeiuK) outras causas a este modo.
Mas tíiTJto que o Sdfilo o soube, niandou-lkfc
os avisos seguintes: Já que, (íllia minha,
dí^tennlnastes seguir a vida espiritual, e go-
verna I-a por uieu conselho, e assiui mo pe-
disles, o que a;^ora haví^is de ía/er ha de ser
deixar esse rigor easpere/a , porque nem diz
bem com a fraqueza temiuil , nem é neces-
sária para uma natureza hem inclinada, qual
é a vussa ; que não disse Cliristo , icunai a
miiiha Cruz sobre vossos liombros, mas dir
leve cada um sua Cruz. Não é ra/ã<» que
queirais iudtar o desmedido rigor dos Padres
antig«.'S, nem as ásperas penitencias de vosso
Padre espiritual, mas basta que delias tomeis
só algumas , com que possa vossa comprf i( ão
fraca, para que assim tra^^ais sopeados os vi-
cios e a carne , e não en( uríeis a vida , que
este é um excellenie, e que muito vosarnia.
Mas querendo a devota don/ella saber do
Santo, que razão houvera para se elle dar a
tão cruas penitencias, quando nen» a ella ,
nem a outrem as act)nse!!iava , nem consen-
tia ; el!e a rernetteo aos livros das viiias dos
Padres, dizendo: Conta-se, que liOll^c antiga-
mente alguns Padres, que fizerão vida táo tora
da commum, que quasi não tiidia nada df
huníana , e tanto mais austera do que se pódf
a54 Vida do Beato
crer, qiiC ncrn só (Uivil-a contar porlí^m os
iioiner-s desle lenips», <-'í'JÍ<^ os (jiie são para
pouco, sem se lhe anijjiurein os raheilos e
p.iSínarein. E isto nasce de não ponderarem
quanto pode lazer e passar por Deos um de-
sejo afervorado , e um \alt)r grande ajudado
<lo mesmo Deos. A umlioniejn, que assim
ama, té o iínpossivel se lUe tortia íacll e chão
em viríuíJe de Deos ; por onde diz David nos
Psalniíís: Ennneu Deos passarei o niiiro. Mas
tandjem se aclia nas mesmas vidas dos l^adres,
que houve outros que não seguirão este rigor
de vida , e todavia uns e outros tiraváo ao
mesino fim. S. Pedro e S. João ambos forão
Apostoh)S , e não íorão levados pelo mesmo
modo. Quem poderá resolver, c declarar
«stas dittereiíças, que na verdade são mui-
to .para espantar, senão for dizendo, que
é Nosso Senhor espantoso em seus Santos , e
que quer ser loji\ado por diiferenles manei-
ras , conforme as muitas, porque é grande
e poderoso. Depois disto não temos todos a
mesma comiilexão , nem as mesmas forcas.
Donde vem , que o que api oveita a um , fiiz
nojo a outro. E assim não se ha de cuidar, que
quando um homem [)or veniura se não atre-
ve com lauta aspei c/a , íica por isso atalhado
para n;To potler sul, ir ao mais alto grão de
pcríeição. j\las lambem hão de advertir o$
Fr. ÍÍExrxiQUE Srso. 24^
que são fracos , e para pouí o que n?o lia cie
desprezar, nem tachar , nem lançar a peior
parte as penitencias , e aiisterirlades grandes,
(pie virem nos oulroj. Cada um íenba conta
coinsigo só , e trabalhe por entender , o ene
Deos cíelle quer , e com isto cumpra , sem se
empachra' com o que íazeni os ou ti os. Pela
maior parte o nielhtir e niais se^^uro é dar-se
homem á penitencia regrada meu te , e com
prudência, arjles que íazcr dvmaaias indis-
cretas. E porque é diíficultoso acertar com
este niei(i , é melhor conselho ficar antes
áqueni iim pouco, que passar além mais ào
que é razão. Porque acontece muitas vezes
quando queremos apertar demasiado com a
natureza , ser depois forçado , para se restau-
rar, íavorecel-a e animail-a com a môsn;a de-
masia. Ainda que é beui verdade, que mui-
tos Padres insi;^ncs em virtude e santidade
passárfto nesta paite os termos , obrigados de
ardentisáimo fervor. Esta rigorosa orílcm de
vida, e os exemplos de rara severidade dos
Santos sirvão j)ara aquelles que desordena-
damente são amigos de si , e se tratão com
muito mimo e brandura , e que deltrmina-
damente largão as rédeas ao cor|;o furioso,
e desenfreado para sua perdição. Mas não
convém para vós, nem para gente composta
das vossas qualidadcs.Tem Deos Nosso Senhor
a4^ Vida no Dkíto
dlíferenças deCruzes, co:n quo provn o casti-
ga seus servos; e eu cuido certo, que vos
quer elle lançar ás costas tima , que não será
menos traballiosa, que a dessa penitencia
corporal (luevós tomais. Qu.?iido chegar não
llii; façais !»iáo rostro. Não passou muito tem-
po , qve couiocon Deos a tentar com doenças
compridas esta douzella , que fvjrão conti-
nuando de maneira , que, e:n quanlo viveo ,
não teve um tlia desande; o que logo escre*
Teo ao Santo, avisando-o como se compria
nella o que lhe tinha proletizado. E o Santo
lhe respondeo assim : Charissinia filha , n§o me
tomo!i só Deos por instrumento de vos noti-
ficar d anttf mão vossas tribulações , mas tam-
bém me castigou a mim , e me fez assas mal,
dando-vol-as j visto coujo não tenlio outrem
nin«;nem , que daqui em diante me possa
ajudar acabar aí> obras , que tenho composto ,
e fazer outras de novo com o cuidado e
Terdade , que vós fizestes em quanto tinheis
sauile. Por esta causa fez oração a Deos por
vós um servo seu pedindo-lhe decoração,
que se fosse servido , vos quizesse dar saúde.
Mas não sendo lo^^o ouvido conso desejava ,
agastou-se com Deos com uma afuorasa indi-
gnação, edisse-lhe, que í»áo lia%ia mais des-
crever tlelle, nem lhe havia mais de fazer
uma devota saudação, que costumava [elas
Fr. lÍENRTQrE Srso. 247
manliãas, se vos não sarasse. E recolhcndo-se
assim apaixonado, e queixoso a seu Orató-
rio, assentou-se ifni pouco como tinha cie
costume. Aqui, ficando roubado aos sentidos,
parecia-lhe que vinha uni giande numero de
Anjos, que entravão pelo Oratório; e pelo
recrearem, porque andava neste tempo ave-
xado de uma extraorditiaria aídicçào , lhe
davão uma musica celestial. E |)ergunlando-
Ihe os Anjos porrjue eslava assinj triste, e não
chegava a ajudal-os a cantar, cordessou-lhes
a paixão de sua alma , que o obrií^ira a aga-
star-se contia Deos , poique não queria ou-
vir as orações, aue por vossa saúde lhe fazia.
Mas os Anjos persuadião-no que socegassc ,
ti não podesse assin! , porque se Deos permit-
tira padecerdes indisposiçóes, era paia grande
j)i'Oveito vosso , c que esta havia de ser a vo>^
sa Cruz neste u!? rido , a qual vos renderia
muita graça na vida presente, gal: rdão mui
avantajado na futura : Por onde , (ilha. tende
paciência , e recehei esletrahalho da rniTo da
providencia divina , com não u)cnos boa
sombra , que se fora uma mercê de muito
Sosio vosso.
^4^ Vida do Bcato
CAPITULO XXXVIU.
Em que o Santo conta oiftras dcí^acões^ qus
fazia em seus princípios , e umas visões ,
que teve no mesmo tempo,
L^ M tlia foi o S.\Tito visitar a donzclla Isa-
bel, que estava enlerma, e tUa pedio-lhe
quizesse praticar alguma matéria espiritual,
que não fosse da-: mais subidas, e todavia
alegrasse uma aliDa devota. Coniecou então
o servo de^Deos c<u)rar suas devaçóes de
quando era moço. E failaiulo tie si por ter-
ceira pessoa com nome de Ministro da Sa-
piência , nome que elle muito estimava, dizia
assim : Sendo o jMipTstroda Sapiência aind.!
muito moço , e de seu natural n:ui esperto,
costumou muito tempo, todas as vezes que
succedia sangrar-se , vecolher-se comslgo , e
imaginar-se no monte Calvário defronte de
Christo posto na Cruz : então estendendo o
braço ferido da lanceta, dizia com profundos
suspiros: Senhor JESU Christo, a quem amo
sobre todos quantos amigos tenho, peço-vos
que tenhais lemhrança do costume, que
corre entre os homens, que é, quando se
tirão sangue irem-se por casa de seus ami-
gos, e cobrarem em sua companhia outro
iadío e melhorado. E bem sabeis \ós , Se-
Fr. HcNniQrE Suno. a4f
nlior meu , que a ninguém qucio eu mais
que a vós. Por isso me venlio aqui pi.ra que
])<;nzsis <,'sra ferida , e me crieis novo e boui
sangue. Nos niessuos annos cia mocidade , de-
pois que fa/ia a barba a uavalLa como era
muito gentilhomcm , íicava-llie o roslro cu-
berto de uma (òr rosada graciosíssima; ven-
do-se assim , fallava couio Chi isto dizendo:
I>uIcis^i^■:o JESlf , inda que esla íjce se avan-
tajara em cor a todas as mais bem coradas
rosas da lona, nunca offerecora a ninguém
senão a ^ós só isto, que o mundo cbama
foiíuosura. E seni embargo que vos pagais
mais de cf)rações , o menos do que parece
de íórâ ; com tudo folga min lia alma de dar
esta mostra do qiuí vos ama , offerecendo-
▼os a vós , e nãíi a outrem ninguém este ex-
terior. Quando Ibes ac(»ntecia vestir túnica
liova , oa por capello novo , recolbia-se no
oratório , e fazia tiracfio ao Seidior , de cuja
mão reconhecia aípiellas peças, e pedia-lhe,
que bouvesse por fjcm , que elle as lograsse
com saúde . e acabasse de lompel-as. Na ida-
de niais tenra , quan<lo entrava o Veifio, e
comecavão a desaijotoar as flores, tinha por
costume não tocar, nem colher nenhuma,
sem primeiro íazer uma canclla alegre, e
muito fresca para sua serdu)ra espiritual a
Eterna Sabedoria, na qual a [.limeira , que
230 Vida do Beato
punha , era sempre cm honra tia Virgem Mãi
cie Deos. Depois qu.indo lhe parecia tempo
apanhava outras ílores , não desacotnpanha-
das de con^iueracóes arnorobissiinas, e ira-
zen4o-ys á relia tecia giinaldas, e entrava
no Curo, OM siibia ao altar de Nossa Senho-
ra, e posto de joelhos con) grande humildade
diante de sua imagem, coioava-a com ellas
respeitando comsigo, qe.e esta Senhora eia a
niaij aprasivel flor de todas as ílores, e a
n^csmo verão e frescura de sua alma , e ro-
gava-lhe que não engeitasse da máo de seu
servo as primícias das Ho» es, que lhe oftere-
cia. Um dia , tendo posto un-.a eapeíla a sua
ariiada Scrdiora e Klerna Sd)edorla, te\e
lima visno, na qual lhe parecia, que via o
Ceo aherto, e o Anjos Aoar de cima para
haixo vestidos de roupas ric .s e loucãas: Jun-
tamente lhe feria as orelhas unia inusica a
inais suave e deleitosa de (piantas jamais se
ouvirão na terra , que la r»a (^urle celestial
estavão dai)do aquelleá hePiaventuiados espi-
rit;)s, Partic- lai inen^e entendeo , que canta-
Tâo um verso da M.li de Deos , que d zifio a
"vozes com tno at<)r<!iida harmonia , que toda
a ;dina se lhe dt rreiia de ;rostn Era o "i erso
simllhante a un:, (jue se <anta na festa de to-
dos os Sa:tos na SeiUiencia , que diz: Ulic
regina Firgiiium traiicenucns cubnen viut-'
Fr. ÍIexrique Srso, a5x
niimf etc, E o ^Ilnistro começou a cantar
juntíituerite com elles, Alli alcançou sua alma
gruniltis ef clientes de gloria <lo Geo , e ar-
dentes desej'^»s di; servir a Deos. Outra vez
na entrada de !\laio tinha coroado de rosas ,
segundo seu costume , a Imagem de Nos-
Sii Senhora com grande devaç;;o. í^ no dia
se;:;ujnte de m;idrngada desejava de dt)rmir,
que viera de fóta (ançado, deferniinando
deixar por aquella vez a salva que costumava
dar á Virgem áfjucUas horas. Mas quando
chegou á e:ii que se costumava levantar para
esta elevação , parecia-lhe que se achava co-
mo encerrado em um Coro celestial , omle
se estava cantando uma Magnifica em louvor
da Virgem. A qualacahada, cliegava-se a
Virgem a cile , e mandava-!he que comcça-
se a cantar o verso que diz : O vcrnalis rosii'
la, etc. Elle ficava pensativo imaginando, que
seria o que lhe (fuerla significar nisto, e to-
davia cjuerendo obedecer con)eç(>u-o a cantar
despejadamente. E logo de um grande ajun-
ta ruento de Anjos, que assistifio no Coro ,
sairão Ires , ou quatro, e juntos com elie
forãíj tand)i'm cantando, e traz estes se vierão
chegando todos os (jue eslavár» na caf>a como
á porfia , e caníavão com tamanho estrondo,
e melodia juntamente, comosc soarão juntos
todos quantos in^irumcmos ha na inusica.
a52 YiDJL DO Be\to
Mas não potencio a hiimanidnde fraca siip-
porlar aqiiella extraordinária floria, tornou
o Ministro em seu aeordo. Outra vez tainbeni
alcançou ciiegar á vista dos ;^'ostos S')))eran )S
da Pátria Celestial, e foi um dia depois du
festa da Assumpção da Virgem. Mais nesta
TÍsão não se lhe consentia a elle, nem a nin-
guém, mais que ver de fora, porque não
deixa vão entrar quem vinha descomposta-
mente , e fazendo o Ministro força por entrar,
TÍo que um mancebo lhe travava do brato ,
dizendo: irmão meu, não ha para que cuidar,
que haveis de ter licença para entrarei desta
Tez. Deixiiyvos estar aqui fora , poÍ5 estnis
cbri<yado a uma dividrí, e convém remirdes
vossa culpa com bastaiite satisfação pi imeiro,
que chegueis a ouvir as musicas tio Ceo.
Âcab;Hu!o estas palavras levou-p por ism c.i-
iriinho torcido, e dependurado a uma cova
sobterranea, escura, esó,e píw extremo mal
assombrada. Aqui estava sem poder sair para
nenhuma parte, como um preso a quem se
«no deixa ver Sol , nem Lua. E vendo-sc
assim captivo conieçava a suspirar profunda-
mente, e queixar-sc om pra!)lo, o lamen-
tações tia prisão , em que se via. Pouco tlepois
tornou o mancebo, e perguntava-llie C(»mo
eslava, respondendo que mi-ito nual,entã(í
O mancebo: Haveis de ba!)er , tliàse , oee a
Fr. Henrique Su.^o. 253
Soberana Im peru triz cio Cjo está menenco-
rea com vosco pela mesn^n razão, que vos
tem aqui preso. Ficava o r^Iinistro altonito de
temor do que ouvia , ç dizia : Ai de mim, e
em que cousa adesservi eu? toma mal, tornou
o mancebo, serties Xí^^ò indo de chegar a pre-
gar delia em 5Íias festas , que ainda hontem
em uma soleniui Jade sua tão grande , respon-
destes a vossos Superiores, que não quereis
sui)ir ao púlpito. É verdade, disse o Minis-
tro , e a razão é, porqiie terlio por tão altas
e tamanhas as excellericias da Virgem , que
me hei por indigno de fallar delia em públi-
co nem uma só palavra. E por isso largo este
car^o aos pi ('.-^adores mais velhos e mais sa-
bios, de quem julgo, que cumprem com
tamanha obrigação muito melhor, do que o
pôde fazer um ignorante como eu. ^^las afíir-
niando-lhe o njancebo, que suas pregações
erão multo acccitas á Virgem , e que não era
razão furíar-llies mais o corpo , desfazia-se
em lagrimas de devacâo, e dizia : Peço-vos ,
charissimo espirito, que me ponhais em gra-
ça c(»m a ^ irgem gh)riosiítSÍma , que eu vos
empenho niiidiu fé, que não caia mais em
similhante falta. Su?rio-se o Anjo, e tiran-
do-o da prisão tornou ao lugar, onded'anles
eslava , diz<Mido-lhe: AÍL'gra;-vos, irmão, que
€U conheci no gesto da Njrgem , e cm sua
s54 VinA DO Bkato
mansidão, e no como falia <\e vós, que lhe
passou já toda a paixão, qi»e contra vós ti-
ni ta , e que sempre vos ha de aniar com
amor de Hãi. Neste tempo tinha o Ministro
tomado um costume ; rpic todas as vezes, (jue
saindo da cella, descia ahaixo, ou lorjiava a
subir, fazia ocamirdio pelo Coro, o adorava
o Santíssimo Sacrarneriío, lembrando-lhc e
considerajido , que todo homem , que faz aU
g)ima jornada , se sabe quejnuto da estrada ,
por onde vai , tem algum amigo de conta,
torce de boa vontade , e alarga um pedaço o
raminho pelo ver. Aconteceo-lhe uma vez pe-
dir a Deos, que de sna mão liie quizesse dar
uiD entrudo celestial, porque o nào queria
de nenhuma creatura , nem tai como ci'a o
dos homen^i, foi logo rebatado em extasi , e
parecia-lhe que via a ChristoíESU na dispo-
sição , que representava na terra, sendo de
♦rinta annos , que se vinha onde elie eslava
para lhe satisfazer seu desejo , e dar-lhe í) en-
trudo Divino, que pedira , e tomava em suas
mãos Ufu copo cheio de vinho , e dava -o a
ties , um traz outro, que eslavão presentes
sentados a unia mesa. E xioqueo prinjeiío
ei!i })ehendo caio logo cortado de pcs e
mãos , o segundo ficou algum tanto abala-
do , {) terceiro í)áo sen lio nada. O segredo
dislo Ibíí declarou Deos logo, mcsirando-lha
Fr. Henrique Suso. i55
que era a flifferença que lia via entre os três
estados cio homem pj incipiante na virtude ,
do que vai aproveitando, e do que é já per-
feito, E como uns e outras sentem a mesma
variedade de eí feitos iia connnunicai^ão , e
ahnndancia dos ^rostos divinos. Tendo o Bea-
to Fr. Henrique contado editas e outras mui-
tas cousas desta (jualidade á stia enferma,
concluio a pratica , e desj»edio-se. Ido o San*
to, «t devota Isabel tomou tinta e penna ,
escreveo tudo, e fechou o papel em uma
caixa , porque se não perdesse. Succedeo
que alguns dias depois veio visital-a outra
Religiosa , e lhe perguntou se tinha na(]ueUa
arca alguma cousa , que tocasse a Mysterios
do Ceo. Porque , dizia elia, vi esta noite em
sonhos um menino celestial, que estava as»
sentado sobre ella , e tinha na mão um in-
strumento musico por estremo suave , ao qual
cantava composK^óes espiriíuaes tão gracio-
sas, e l»em apontadas, que não havia quem
não ficasse cheio de devoção e alegria espi-
ritual de as ouvir. Pcco-vos, irmãa minha j
que me mostreis o cjue alii tendes gtiardado ,
para que o ItMinos, e tenha eu t;iud)cm mi-
nha parle. Klla cerrou-se sem querer mos-
trar , nem contar nad.« , por(|ue assim lho ti-
nha mantlado Fr, ilenri.^uc.
^^S Vida bo Beíto
G A P I T U L O XXXIX.
Ern que o Santo conta j como 5c empregou em
ganhar almas engolfadas no mtirido fiara.
Deos y e como conso/ava os alriôulados.
H
A vendo muitos dias , que a devota Isa-
bel não linha nciilir.ni recado de seu Mestre
Fr. Henrique, mândou-lhe uma cai la , eiu
que ihe pedia , quizesse escrever-lhe alguma
cousa , com que desal^afasse de suas continua»
afflicções. A substancia da carta era esta: Pai a
qualquer triste é gcnero de consolação ver
que lia outras mais tristes que elle , assim
mesmo um homem atribulado cobra esforço
e entra em si , quando ouve , que seus viãi-
rhos se viríio tm maiores aírouins, c todavia
forão soccorridos do Ceo. A isto respondeo
o Santo o que se segue , fallando de si em
terv''elja pessoa com o nome, que usava, <lo
Ministio da Sabedoria : Para que os traba-
lhos, que tendes de presente, vos fiquelii
maisjeves, conlar-vos-lui alguns aliíeios, á
híJiira e louvor de Deos. £u conheci um ho-
mem a quem por permissão divina sobrevie.
rão gravissimas tnrnienlas de adversidades,
que chegarão a lhe tocar n;* fan)a e honra.
Este h.omem t(>das suas íorças e desejos em-
pregava em uma cousa , que era amar ud
todo coraçHo a Deos , e ol)íigar os outros a
eritranliareni-no em suas aln^as de maneira,
que a nenhuma cousa quizessem mais que a
elle, e por este meio se afastassem do amor
vão e prejudicial das creatuias. O fjue to»
davia vio cumprido em muítcs , asjrim ho-
m.ens , como mulheres. i^Ias o diabo, vendo
que se llie arrebatava das mãos, e tornava
para Deos o que era presa sua , seutiao por
extremo, eappare(crdo a alguns homens
devotos, soltava palavras clieias de ameaças
contra o Ministro da Sapiência , af^rmantlo
que tii^ba assentado vingar-sc valentemente
delle. iXcste ínterim passou o Ministro por
um Mosteiro, onde viviAo em litligião ho-
mens emulhercfijuntan ente ,elles com regra
particular sua , eeiias tambtm ( ou» leis sepa*
radas. Achou aqui , que entre uui Religioso
destes, e uma Religiosa corria uma au;izade
e conversação cslieitissima. E Irazia-lhes o
demónio as almas tão cegas, disfarçando-lhíS
o mal com as sombras de virtude, fjue ('e
nenluHua maneira imaginavão , que li;:via al'i
culpa , antes que tinbáo para isso licci «a de
Deos; e sendo perguíitado se podia manter*
se tal ami/adeem serviço de Deos, < bâanicnte
o contradisse affirmando, que era (quni.io fal-
sa e errada, e contra a verdade' da doutrina
Christãa. E assim acabou com ellcs, qnc s«
9
l58 YlDA DO LeATO
atalhasse a conversação, e ficassem vivenda
í.l:».ni em diante pnia e Iioiicstaiiienle, No
mcstno tempo que nesta santa obra se oc-
cnpava , uma santa donzella, por nome Anna ,
TÍo em espirito uma grande multidão de de-
mónios, que juntos sobre o iSIinistro brada-
rão a grandes vozes: O' que malvado Frade!
vinde, saltemos íielle , malemol-o. Traz isto
lancavão-lhc maldições , e roJ[av;.o-llie iira-
gas , porque com seus conselhos e santas
amoestacõeá os lançara daquclle lugar tam-
isem assombrado para elles. E todos junta-
mente Fazerido gestos feios, e meneos cheios
de braveza juravão, que havlãii de andar d'a-
\iso sobre elle, e armar»ihe com tanta cí>n-
tin nação ale o colheram o se vinjjarem. E
quand»> ihe não podesseni empecer no cor-
po, ou na fazenda , ao menos entre a genlc
secular llie menoscabarião a honra e repu-
taÇvio grandemente., tingindo contra elle
cousas torpes c vergonhosas. E com quanto
se guardava com grande cautela tie todas as
occasivões, não doixarião c!e sair com seu in-
tjnt ) por meio ile minas secreias de enga-
nos e mentiras. Assomiuwda a Santa do (pie
ouvira ro.;.iva a Isosaa Senliora , qne valesse
ao Ministro em perigos tão apertados. Mas a
i\iãi lie viisericortlia respondia amorosamen.
tt j Nenhum mal lhe podem fazer sen» Itrem
Fk. Ili?;n:orE Srso. 2^9
iicenra cie nuii rillio. V entende, que todo
o que elle permittlr, que cliihi lhe veiilia , II e
será ruui inij^^^ortiinte e proveitoso para a al-
ma. Pelo que l)em ihe podes dizer, que este-
ja de bom auiuio , e não tema. Sendo o Mi-
nistro avisado destas cousas, coniocou a ro-
tear a coRjurarílo iniciual , e segundo cos!u-
riir.va fazer a miude , (juando se adiava cm
ajjcrtos , subio-se aoiuonte, ondotiului uma
Heriuida da Invocação dos Anjos , e passava
nove luezes ao redor tlella á honra dos nove
coros dos Anjos, rezando, e pediudo-lhes
muito de propósito que fossem com elle, e
o ajudassem contra seus inimigos : logo em
au)auheceudo teve um rapto da alma, epare-
cia-lhe que era levado a um formoso prado,
onde via ao redor de si um cojuosissiu.o
ajuntamento de Anjos, que lhe vinbão acu-
dir, e o auitravão com estas jxilavias: O Se-
nhor é com vo.ico , o sabei que cm nenhum
perigo , nem aíronta vos ha de desamparar
jamais. Pelo que o que \os cumpre é , que
não largueis o cuidado em que andais de
arrancar almas das vaidades do mundo, e
Irazel-as para Deos. Esh)rcado o Minislio
com taes visões, fazia grande^ diligencia por
converter lodo género de gente. E assim co-
Iheo com boas palavras, e com um santo en-
gano ganhou para Deos um homem cspan»
tido Vida do Beat»
tosainente assomado e temeroso, que havia
dezoito annos que se não confessava , o qual
tocado dl graça divina se Jbe confessou com
tanta dòr e arrependimento d'alnia , que am-
bos juntamente clioravão. E ponco tempo
depois acabou a vida bemaveniuradamente.
De uma vez tirou de máo viver doze mídbe-
res públicas. E não se pôde encarecer o tra-
balho que levou com elias até as chegar a
bom estado j o cii fim só duas perseverarão
nelle. No diitricto daqiiella terra , onde en-
tão morava , Ira via por muitos lugares gran-
de numero de mulheres, assim seculares co-
mo religiosas, que por fraqueza e leviandade
se tinliáo perdido desalinadamente , euão ti-
nhào ningiieui a quem se atrevessem a con-
fessar suas desavenluras, pela grande vergo-
nha que em suas almas sentião ; donde lhes
nascia uma anciã tão excessiva, que muitas
■vezes entra/ão em tentação de se matarem.
I\Ias como cairão na brandura e piedade ,
com que o Ministro tratava todos os affligi-
dos , cobrando co líi mra , vierão-se a elle uma
e uma no tempo , que era maior o perigo tle
seu estado, c c o n dòr e lagrimas lUe derão
conta das angiístiás, eui que vivião , e do
p«.rigo q le receavãtx Quando o Ministro vio
o ín> p ibr.^s mulheres afadigadas com lania
naiiJrla , o.isjlava«ai com muito amor, cho-
Fr. Hjznbique Suso. 2Ô1
rando com todas, e em Sm remetleou-us, e
fez, ainda que não foi sem arriscar r.niito de
sua reputação, que ganhassem as almas, e
remecliassem a lionra , não fazendo caso no
processo desrl. negocio do que as lingnas dos
maldizentes lhe podião levantar. Havia nma
que era mull^er bem nascida e nolire, que
estranhamenle sentia ver-se em tal estado.
Appareceo-Uie a Virgem gloriosissima , Nossa
Seniicra, e mandou-lhe que se fosse ao seu
(^aneliíío, avisando-a que era o Ministro,
])ara ser remediada por elle. E respondendo
que o não conhecia, tornou a Mãi de Mise-
ricórdia : Olha para de!)aÍAO de meu manto,
.que O guardo e defendo com meu amparo,
tí nola-lhe as feições do rcstro, para que o
possas conhecer depois ; elle é consolação ,
e alliviodc todos os tristes, elle ,te consolará.
Foi a mulher ao Ministro , e pondo-llie os
olhos no rostro , conhcceo-o pelo que tinha
visto na rcvelaçfio ; e contando-lhe sua ])er-
dição , pedio-lhe quo a remediasse com
entranhas do miiericorília. Ouvio-a o Ministro
conj muita benignidade, e ajudou-a (pianto
pôde, porque tornasse arcstauiar o nome
perdido segundo a Sagrada Virgem Íh'o en-
carregai a.
i62 Vida do Dízato
CAPITULO XL.
Em que Fr, Henrique , proscí^nindo sua nar-^
ração j conta uma estranha afronta y em que
se vio , procurando com mi:,ir ejjlcacia , e
cuidado a salvação das almas,
1 Ela maneira que leínos dito salvou o Mi-
nistro um numero infinito de homens afadi-
gciílos com o peso de seus peccados. 3Mas em
pago destas obras de caricíaJe íoi necessário
padecer maltas e mui rig(<rosai cruzes , as
quaes o Senhor lhe significou prirjieiro em
uma visão, que passou desta maneira : Indo
um dia de caminho chejj(Mi já tarde a uma
pousada. O outro dia pela manhua ao romper
da alva foi levado em revelação a um lugor,
onde se hnvia de cantar uma Misia , a qual
por sorte lhe cabia a ello. E os cantores, que a
offieiavão, comecavào o Intróito áà IMissa doi
Martyres, que diz : Mulíae tribulationes JU"
storum. etc. A.^astava-se o Miiiistro com este
Intróito, e deeejaudo que a IMissa fosse outra
dizia-lhes: A qtie propósito me vindes agora
com Bíartyres! que desconserto « cantar de
Matyres, não serido hoje dia de nenhum Mar-
tyr assignalado. I\]as os cantores apontando
nclle com os olhos filos , e com dedos esten-
didos ; Hoje também y rtspondião , icm Dcoí
Fs. Henrique Suso. 265
seus Marlyrc."^ , não menos que em todo outro
tempo. Vós apeiccbei-TOs, c não façaisoiitra
cousa, e ide começando a Missa. Corria o
Ministro , e revolvia o Missal que tinha dian-
te , e procurava dizer outra Missa , qualquer
que ícsse, ou de Confessores, ou doutra
cousa , antes que de Marlyres insignes. Mas
por muito que se cansava em correr o Missal ,
não topava com outra cousa, senão com Of-
íicios de Mar í Vi es, de que adiava todas as
íbilias cheias. Ilntão vendo que não podia
ai fazer, con.:iniio , e i"ui-se cantando com
a um pouco tornava a falíar com elles di-
zendo : Km veidadeque c cousa espanto-
sa, e n(r\a a oTie fazeis. Porque não di-
reis ai)íe:i uíu Gaudcanius y que é intróito
alegí-e, e não esse que é triste e me-
laiK olizado .í^ Nào sal3eis, meu amigo, o
x\\\iô passa? respoudiáo os Cantores: Aí]^o-
la tem primeiro lu^^ar este ofncio dos Mar-
tyres, depois viiá i'ssv Gaiulca/nus de festa
algumas vezes, e a seu teuqu). Quando
o Ministro entrou em si estremeceo todo com
Ipavor do que vira, e dizia: Ai de mim, meu
bom JESL ! é isto por ventura ali;um novo
género de Cruzes, que me espeião? Indo ca-
miidiando com roslro caído, e dcst onteníe,
perguniuu-ihe o conipanlieiio , qucliavia,
a64 Vida do Bíato
porque ia assim nielarjcolizaclo. Respor.tli^o :
Oue vos posso dizer irmão: cantou-se-nie nesie
lu^^nr uma Missa de ?,Lirtyres. Querendo si-
gnificar que lhe fora revelado por Deos , qu-j
havia de ser asperamente perseguido. Mas o
Frade não entendeo, nem eile lhe quiz desi-o-
hrlr mais. Tanto que tornou ao Convento ,
que foi antes de Natal no tempo, que as iioitr :
são mais comnridas , locro ocomecáráo a sai-
tear, segundo seu antigo costume, varias u
mui pesadas trlhidações por maneira que ,
humanau.enle julgarfílo, cria que lhe hsAÍa Ój-
estalar o coração com a íV.rca do sentimento,
ainda (]ue não fora de mais, que ver o mes-
liio mal era qualquer outro liomem , porque
o punhào em cerco tão apertado e crutl ,
que por meios iaslimosos lhe vinha a falln.
totalmente tudo quanto lhe ficava, eoi que
poder estribar de descanso, de consolação ,
de honra temporal, e finalmente de qualquer
outra cousa , que pôde dar gosto na vida.
Esta trabalhosíssima Cruz passou desta ma-
neira : Entre a muita gente, que o IVIinistrij
desejava reduzir ao serviço ile Deos , veio
ter com elle uma falsa fêmea , engana-
dora , e dobrada , que com capa de virtude
ao que parecia , colaria um corinjão de loh;i ,
' c sabia também dissimular, que por grande
tjmpo não pôde o Ministro cair em quem
Fr. Henrique Scso, ^65
clia ei»n. Esta se tinlia perdido primeiro com
certo homem; e para lazer a culpa mais feia,
não se contentando com a primeira maldade ,
de uma criança , que delle tinha , quiz dar
por pai oLiiro homem , que totalmente a não
conhecia. Mas não foi isto parte para o Mi-
nistro a lançar í^e si, antes a ouvia de confis-
são , e lhe arodin com n^uitas ohras de cari-
dade , com que remediava suas necessidades ,
e honrava e fazia por ella mais que os Frades
daquellal^iovincia,que (hamioXerminaríos,
Sendo passado muito tempo que o Ministro
continuava coui ella , veio-se a entender cla-
ramente })or elle , e por outras pessoas di-
^ gnas de fé , que ás escondidas era tão má
e tão devassa, conjo o fora no principio de
sua \ida.'E todavia elle encuhrio o que sabia ,
não a qTieriíudo publicar por quem era , mas
foi-se desviando delia , e levantando a mão
dos bens, que lhe fa/ia. Tanto («ue isto enlen-
deo a boa mulher, mandou-lhe dizer qu« mTo
procedesse assim com ella, porque lhe fazia
a saber , que se lhe faltava com os lions of-
íioios , e favores que atélli recebera delle, lh'o
havia de pagar a bem grande preço. Porque o
menos que havia de lazer seria mandar-lhe
cngeilar, e nomear por íilho seu um menino
que linha de um secular, com o que lhe da-
ria tal descrédito , que em toda a terra ficasse
u66 Vida do Beato
infamado. Mui assomlírado ficou o Ministr*
deste recado: e recolhido só comsjcro, e ca-
Jado , suspirava proíimaainente ,e discorria
assim entre si. l^()r toda parte me vejo posto
em cerco , e não sei que conselho siga ; que
se corro niais com esta mulher, perco-me ; e
se o não faço , tainherii me pejco: e assim
fico rodeado de inales para nào poder esca-
par de ser a tropel lado d'alguni. Entretanto
padecia inorlaes afrontas in)aginando como ,
e eni que , e até onde ptrniiitiria Deos que se
alargasse este minlstio infernal em o perse-
guir. Em fim assentou que era melhor para si ,
e para Ueos, e mais acertado para a saúde ãa.
alma , e do corpo, quehrar couí a perversa
mulher escolhendo de dous males o menor,
sem fazer caso do risco, a que punha sua
honra , e assim o fez. lAa^i cila ficou tão to-
mada , que com uma maldade hestial , qual
era a sua , qu iz dcshonrar-se a si , só por
prejudicar ao Ministro; e correndo por entre
Religiosos e Senhores , e andando de uns a
outios publicou e affirmou, que tinha uni
filho delle. Grandenienie se escandalizarão
com tal nova todos os que lhe daTao credi-
to, e tanto mais, quanto em melhor conta
o tinhão, e quanto mais cornmum mente era
havido por Santo em toda parte. Mas a clle
chegava-lhe á alma, e atressava-lhe o cora-
Fr. Heniiique Scso. ^6y
cão com dòr, e assim se ia seccando , c niyi-
rliando de pura desconsolação e agonia. As
noites [^assava inteiras sem dnrniii-, os dias
cansados, e tristes; algum brexe repouso,
que tomava, eia envoito em representações
medonhas. Um dia levantou os olhos a Deos
com rosíro choioso, e magoados suspiros , e
dizia : Eis , Senlior, tenho já presente aquelle
desventurado tempo que lenua , checada é
aquella triste hora, chora minha O' como po-
derei supportar os apertos sem termo deste
coração ! O' quem lura morto para que nao
vira, nem ouvira tal desventura! O' bom
JESU, bem sal>eis vós como reverenciei sem-
pre vosso Nomo Santíssimo, e quanto traba-
lhei sempre peh) íazcr amado e servido de
todos, e por toda parte: e vós quereis, Se-
nhor , que padeça o meu agora uma tamanha
quebra i' Dem , e com assas razão me posso
eu queixar disso. Eis que a Ordem de São
Domingos tão iilustre no mundo terá por
mim uma tamanha iní\imia , qual nunca já
m:iis deÍ7carei de cliorar ? O' anciãs e tor-
mentos de minlia alma , já todos os devo-
tos, que atégora mehuniárão como se fora
honjcm Sanlo (cousa ({ue me podia dar animo
para o ser) não meolliaráõ senão como a um
lal.so enganador dos homens , cousa que me
trcsj;assa a alma de inoríacs leridas. Ttndo
26B Vida ko Beat©
passado algum tempo nestas queixas e pran*
tos de mai;eira, que ia perdendo as forcas,
e a vida , veio ter com elle uma mulher , que
lhe faílou desta maneira : Que razão ha Se-
j.dior para vos matardes assim ? tendo animo ;
que eu vos darei remédio a l)cm pouco custo,
se quizerdes governar a meu modo , para que
não percais nem um fio de vossa reputação.
Ora íazei , rogo-vos, um coração grande , va-
loroso e constante. Levantando o»Ministro
o rostro pergunlon-lhe que ordem havia de
ter no que dizia. Tomaiei, rcspondeo , esse
menino, e leval-o-liei dehaixo deste manto
escondido, e como for noite enterral-o-hei vi-
vo, ou o matarei metiendolhe uma agulha pela
calieca. iHe morto, acnlmará U)go ioda esta
tormenta , e ficará vossa lionra sem f[ue]>ra.
Ouvindo isto o Ministro encheo-se de paixão,
e disse-lhe:0' fêmea mais-deshutnaua de to-
das quantas são nascidas , e assim te atreve-
rias a matar um innocente? Como ? e lia-se
de ^ôr á conta do menino a maldade da mái
para pa^^ar por ella ? Vivo o querias sepultar ?
?íão ha de haver tal, nunca Deos queira que
do meu consentimento tal insulto secoramet-
la. O maior mal, que. deste me pôde vir, é um
total abatimento de meu credito, pois affir-
nio-'vC que se de minha iionra dependera a de
um Pvcino inteiro , de boa vontade u largara
Fr. KETíniQrc Scs^j, 2^)9
n.is mãos de Deos, c iha offorecéra, antes
que consintir derramar- se pela conservaçuo
deila este innocenle sangue. Elle não c vosso
filho : qae vos dá logo que acabe assim ? re-
plicou a mullier. E Iraz estas palavras arran-
cou de imia iara aíiada j c Icjnion a dizer:
Acabai já, deixai-mo levar daqui, tirar-vol-o-
liei da ^ista , e logo ou o degolarei , ou llie
darei com osla faca pelo Cíjração, e assim
acalnndo clle , terciros paz. Cala-le perversa
niillicr, disse o Ministro. Seja deqi.ieni quer
ior, Lr.sla (jue è feito á imagem de Deos, e
remido com o sangue piecioso de Christo;
não é razão, nem quero eu , que se derrame
seu sangue com tamanln crueza. Ficou a mu-
lliar com estas palavras abra/ada de raiva, e
respon{]e{)-llie : Pois não quereis que morra,
convém que de duas cousas façais uma. Ou
que pela manbãa o deixeis levar a porta da
Igreja , como se faz aos mais engeiíados , 011
vos apercvhais para uma despesa, excessiva
para vús, í»té (\ue seja criado. Eu rondo em
Deos todo poderoso, tornou o i\Iinistro, que
atégora teve de mim cuidado , também o terá
daqui em diante, e nos tlará o necessário a
este menino , e a mim : p >r isso ide , c trazei-
mo aqui, que o quero ve ás escorulidas. '!'()-
mou-o então nos braços, e tendo-o no collo,
comecou-llie o coitadinho a rir. Ao oue clle ,
ajo Vi D A DO Beat»
respondendo com v.m gemulo rançado do
innis intin^.or dop<jil() , disse; Havia ou matar
uni inenhio tão beiio , que com o riso me está
fazendo festas? Isíio íarei tal por certo, antes
tomarei muito bem todo mal que por esta
cai'r5a me saccedcr. E viraudo o rosto amoro-
samente pêra elle: O' pobrezinho, dizia, eque
dcsaveníurada orfandade foi a tua, pois quem
te gerou te não quer por seu ; e a Iraitlora de
tua mãite quize;jgLÍtar como se foras um ca-
clioro lançado no monturo ! Mas Deos permit*
tio que me fosses dado, para que eu seja teu
pai, e eu o quero assim de boa vontade: toda-
via não te r.íjceilamlo d'outra ujão, senão ila
tio meíuioDeos. Tu eslás em meus I>racos me-
nino clarisslmo, e aintiaque não sabes fallar,
ollns-mc com uns oIIids risonhos, e eu estou-
le contemplando cosn o coração magoado e
ferido , os olhos bmliados em lagriuías, e com
afaí^os de piedade. Eis te estou lavando esta
tc.-.ia lace com a agua anlente , que meus
oiiios c^Tilão. Tanto que a bella criatura sin-
lio cairem-lhc no rostro as laíirimas do Mlui-
.-jlro , começou a chorar fortemente , e assim
pranteavào ambos juntos. O Ministro vendo
chorar o menino, apertouo com.^igocom mui-
to amor, diztiulo, não cliorts fjlho da minha
iiima, que te não hei de malar, ainda que
to aio íj^croi, o ainda qiie por lua causa haja
Fn. IIí:\'RIQce Suso. 271
de pssar grande trabalhos ; que não poderei
eu p-jr nenhum caso acal.ar comigo, fazer-te
mal , pois ficas sendo meu fillio , e de Deos;
e eiii([nanto o Senhor me ministrar um 1)0-
cado íe pão , [>artil-o-l:."i comtigo áhonia do
mestno Senhor , e levarei com paciência e
gosio »odo o mal, que por amor de time
vier. Nío cião bem acabadas estas lastimas ,
quando aquclla cruel , que assentara matar
o meninf), toda compungida em seu corarão
comecoí a chorar aoramcnte com erandcs
e alios sthiços de maneira, que_^ foi neces-
sário íazd-a calar , por se não publicar o ne-
gocio. I)c,)0Ís que a deixou chorar um espa-
ço, toiiií.u-l!ie o menino', e rogando-Uie
muitos btns dizia : O Senhor Deos te de sua
benção, e seus Anjos te «^uaidem de todo
mal. j*^ mandou , que á sua custa tivesse cui-
da dt) delle, c o alimentasse. Mas não se sa-
tisfez com isto a perversa mãi , antes cisnli-
nuou em infamar o íMinistro, principahn^Mite
naquellcs lugares, onde mais damno ]he [?o-
diafazor, de maneira, que muitos houjcns
"viiluosos lhe tinhão lastima, e chefjavâo a
pedir a Deos, que como justo juiz tiiasse ta^
mulher do mundo. Foi um dia vistal-o uni
parente seu, e disse-lhe : Giiai dessa mal-
vada, que lai ribalderia ousou accommettcr
contra vós j que cu tenho achado mai:eir.i
STl
Vida do Beato
para vos vingar clella á vontade, e é esíon-
fler-me em qualquer parte dessa comprida
ponlc, que está Sí)!)re o rio , e colhel-a ?onio
passar, e lanrando-a dt; cabeça na agui , fa-
zel-a afogar. ISâo fareis lai cousa se nieAmais,
disse a isto o AUiiislro; que iiunci Deos
queira , que por minha causa se ma'e nin-
guém. Basta que sa])e o Senhor qu3 tudo
sabe, que contra toda razão me lanoju essa
inidher em casa seu íilhó. Em suis mãos
deixo esta causa» Elle a mate , ou lhe dê vida
como mais for servido ; que aindi que eu
com lhe negociar a morte desejara , cu pudera
salvar o risco , em que anda minha vida e
honra, com tudo, por ser mulhtr, tivera
respeito , e fizera cortezia nella a lòdas , as
que sao honradas e virtuosas , e dexára-avi-
Ter. Aqui tornou o parente com melancoria.
Pois de mim vos digo , que quem quer que
tal a£i'onla me fizera, ma houvera de pagar
com a vida , sem me dar nada que fura íio-
mem , ou muliíer. Não digais tal , disse o
JMinistro; que isso é uma brutaliJaile desme-
surada e um desatino bárbaro. Assocegai-vos,
1? deixai-me vir quantos males Deos quizer.
Cresclào no Ministro os desgostos com o tem-
j)o , renovando-se-lhe cada hora com a fama
tio successo que se ia dividgando. E senlido-se
um dia demasiadamente afadigado , vencido
Fr. Henrique Suso. ajS
cTa fraque?»! natural desejava buscar algum
oenero de consolação, ou allivio. Coiu esta
tenção foi-se em busca de dous homens, que
no bom tenipo o communlcaTão muito, e se
lhe tinhào mostrado bons auilgos. Aqui per-
luittío Deos , que visse por experiência em
ambos, quaiaanha verdade é, que não ha
cousa sãa , nem macissa nas criaturas. Por-
que assim elie, como os que eslavão em sua
companhia o tratai ã> com muito mais aspe-
reza, do (|(ie o povo fazia. Uui recebeo com
razões pesadas, e lohando o rostro a onlra
parte com desdém dizia-lhe rllezas. Entre
as quaes foi uuia, que o não visse mais , nem
o tivesse por ami^o, porqne se corria de ter
commercio con7 elle. Cortavão-lhe as entra-
nhas estas palavras, e com unja voz caída e
niafj^oad.i : Ah irmão meu , disse para elle , de
mim vos seiatíirmar, (pie se Deos permitlira
cairdes vós nesle'pego de lodo, e al)atimento ,
em que hoje me vejosomido , correndo e pu-
blicando vos houvera de ir acudir, e ajudar
com amor e cortezia a sair delle. E vós soÍ5
ião deshuniíàno f[ne não basta verdes-me atol*
lado até o pescoço, mas ainda trabalhais por
lue levar debaixo dos pés , e atropellar-me.
Disso só me queixarei eu sempre áquelleso*
bre todos atormentado coração do clementis-
íimo JESU. Mas elle mandou-lhc que se ca«
2y4 VíDA r)0 Bea.t«
lasse dizendo-lhe injurlor.nmerjte : .Ta sois
acabado, jd não ha f[iie fazer conla de vós,
nem vossa pregações, nem vossos li\ros se-
rão vistos de ningTiem , a que tudo se dará de
TTíão, tudo se fngeitará. \(j!!Í o Ministro pon-
do os olhos no Ceo respondeo mansamente:
Pois eu confio em Ueos todo pode roso , que
ha do vir tempo , em que meus escritos sejáo
inais airados e estimados do mundo, do que
nunca forao. Taes foiHo as consoiíçóes q;ie
achou nos amigos, (>ue linha por principais, e
verdadeiros. Os hímiens virtuosos daqiielleiu-
gar tin;i.'io nuiilo cuitlado de o proverem com
o necessário. Mas depois que se pul)hcarão
estas falsas novas , todos os que as crifio levan-
tarão mão de lhe fazer bem ; até que certifica-
dos da verdade, tornarão outra vez a correr
com elle. Assentando-se um dia no seu balico
porverse poderia repousar uni j ouço, foi loçro
roubado aos sentidos, e parecia-lhe que era
levado a uma região representada no enten-
diuíeuto, onde achava um. homem, que lhe
fallava assim na parte inferior da alma: Escu-
tai , escutai umas palavras que vos quero ler
de consolação. Applicava-se o Ministro com
attencão , e ouvidos promptos, e notava que
lhe lia em Latim a(|uellas palavras de Isaías,
que dizem : Não te chamarás já daqui em
diante desamparada, e tua terra não se cha-
Fr. Henrique Srso, 2^5
m^.rá mais deserta, mas chamar-tc-bas von-
tade minha em ella, e tua terra povoada,
porque o Senhor se deu por coiUente cm ti.
Acabando o homem de lhas ler uma vez, tor-
ijou-as a começar outra, e leo-lhas até quatro
▼ezes. Do que o iviinistro espantado : A que
fim, pergunrou, me repetis isso tantas ve-
zes ? Faco-o , respondeo , para que firme-
mente confieis em Deos, rimando a elle vos-
sa ahna e vossas esperanças, pois vos consta
que até a terra de seus servos, quero dl/.er
até a esses corpos mortaes acode com o Tie( os-
sário; e é tand)em que se por uma parte se
liies tirar alguma cousa, logo lha ha de sup-
prir por outra. E assim o lará também por
sua piedade com vosco. Nem mais , nem me-
nos succetleo depois em realidaile, e com
tanta evideixia , que muitos de contentes
rião , e louviAvâo a Deos , cujos olhos pri-
meiro tinhão derramado infinitas laijrimas
de excessiva compaixão. Mas como vemos
que acontece aos animaes n)ansos c peque-
nos, que são presa dos grandes e bravos ,
que se lhes caem nas mãos são dcspadacados
de suas unhas, e tragados de seii'^ dentes até
lhe (içarem os ossos esbulhados ebmpí>s, e
amda sobre esses , se tem (jualqner cheiío de
carne , dascenj enxajues de vespas famintas,
que os acabão de roer e cocavcirar j e lífio
a^^ Vida do Beato
fprdoanclo nos tutanos lhos cliupão, e letfío
]ie]os aves; da nu^snia irianeira era tintado
então do mundo Fr. Henrique ; e assim foi
roido e infamado por toda parte, e isto
por homens nas apparencias virtuosos , e que
o faziáo com capa e côr de um sentimento
santo e discurso christão,a fim de se consola-
rem como amigos, que professa\ão s<'r do
JMinistro : mas a verdade é que cm nenhum
dclles morava nmor , nem verdade , e dníjtú
nasceo tentarem-no alguns pensamentos máos
conlra estes taes, que lhe íerião a ahua com
agudas setas, e o fazifio queixar assim : Cousa
]eve é meu bom JFSII i:íadecer um lionit in
trahalj.'-^ quando forão ne-Tfociados por Ju-
deos , ou Gentios, p;enle de seu perversa, e
inimigos pulílTííos. Mas estes que tão secca-
niente me martyrizâo, vendem-se por servos
vossos , e parecem-no , e isto é o que me faz
mniio mais pesada e intolerável esta cruz.
Mas tornando sobre si, e pesando tudo na ba-
lança da razão, nào lhes punha culpa , antes
entendia que Deos era o que o castigava por
meio delles , e que elle o estava beu) mere-
cendo, e parecia-lhe que era conselho de
Deos para maior bem , e salvarão mais certa
de seus servos havfl-os por inimigos, e tra-
tal-os como a taes. Em pai ticular estando um
dia nesta matéria mui tentado de impacieu-
Fr, Hexriqiii: Suso. iyy
€Ía, teve interiormente esla resposta: Lem-
])ra-te Cbristão, que o mesmo JESU não qiiiz
somente trazer em sua companhia um João
queiido, e um Pedro fiel, mas qulz também
soíier um Judas traidor. P>)Í3 tu , que dese-
jas seguir Sitas pisadas , porque razáo te i\^ns'
tas com teu Judas? Contra isto o armava
um pensamento respondendo assim : Ai de
mim piedoso JESLT, que, se este vosso ator-
mentado servo não tivera mais que um Ju-
das , lòra ò negocio soíVivel ; mas eu vejo
qntí todos os cantos estão cheios de Juc'as
píua mim de maneira, que em fallando um ,
lo^o SC me levaiitão cento. A isto também
lhe foi rephcr.do interiormente desta ma-
neira : Todo homem , que traz conta com
sna alma, tem obrigação de não cuidar de
Tjinguem , que é seu Judas : antes deve cuidar
que é instrumento, ou coadjutor de Deos
aquelíe por cuj^ meio lhe vem trabalhos ,
que são para sca bem, e para o maior bem
de toiios i[ue é a salvaçíío. Isto nos insinoii
Chrlstíj quando enlregando-o Judas com os-
culo de naz lhe poz nome de amigo seu, di-
zendo: Amigo a que vieste:' Sendo passados
muitos dias que o Ministro andava assim
atril)ulado , íicava-llie só uma consolarão
bem fraca , que em algum modo o alentava, a
jL^ual era núo ter chegado ainda a infâmia ,
%y% ViTik DO Br. iTO
que (lelle corria , aos Prelados maiores de sifâ
Ordem. Mas este pequeiK» ailivio lhe lirou
tan.hem Deos subitamente; porque o Geral
(la Ordfin , e o Provincial de Aliuruaaiia ío-
rão ter ambos juntos em um tempí> á mesma
terra , onde a danada fêmea lhe assacou o
falso testemunho. Do que tanto que o pobre
Fiade foi avisado em outro aigar distante ,
onde morara, receoso em tiemnsia , fazia
discursos em seu pdiíisameuto dizendo : Bem
pôde ser que teus superiores dèm credito
áqueila falsa, e se o fizerem uão tens uma
hora de vida, porque te laucaráó n'um cár-
cere tão tcrrivei , que seja menos mal aca-
bar lo^o. Este cuidado o moU\stou doze dias
contínuos, e outras tantas noites de manei-
ra , que esperava a cada momento o ca^li^o.
Um dia saío-se pela portaria fora , e vencido
da aucia , que por então coni maiop excesso o
afrontava, logo fugindo da gente tão lasti-
moso, e para haver dó no interior de sua ai-'
ma , como ia nas mostras lie íóra , fui se es-
conder n um higar apartado, onde ninjjuem
o podia ver , nem ouvir. Aqui soltando a re-
tlea a seus tormentos, ora rebentava em
profundos suspiros, ora se lhe rasavão os
olhos de agua , ora lhe coriião impetuosa-
mente rios de lagrimas pelo roslro abaixo.
Tal era o aperto que sintia no coiaçúo, que
Fr. Henrique Srso. 27^
não poilia soccgar em nenbnna pí»''f»^' í5w»-'i-
tanieiJte se assenf-'^» ? c Iu^.j tom a mesma
preste/» ^<^ punha em pé, e })asseava pela
casa a uiua parte eu outra dv. corritla , como
se estivera agonizando em 1>it.ços com a
nioite. .Outras Tezes lançaTa das entrai ha»
unsgenjidos tiistissimos di/erdo: Ai ai, Cio*
meutissimo JFSU e que dctei minais fazer de
mim? ÍSeste pitdosít estado vivia, fjuando do
Ceo teve uma inspiração, que ilenlro nV.l-
ma lhe fallava assiui : Onde istá a-;ora a re-
signaçáo? Oiule a constante dfteiuiinação de
nfio ^arinr pousa mentos , nem \)or mal , nc:n
por bem? Tem francau.ente aconselliavas ,
hem persuadias como se devia entregar cada
um nas mãos de Deos resolulaniente , e des-
apega r-se de tudo. Ao que elle cliorando
respondia assim : Evos perguntais-mc pela
resigmição, pois eu vos pergunto a vós,
onde SC foi a misericórdia de Deos infinita ,
V. sem liuíiie para com seus servos , eis (jue
mo vejo em estado, que me não falta mais
que esperar, que o estremo de todos os ma-
les; e quanto a mim já sou bem morto ,
como aci^nlece a quem está para ser ronde-
Dirado ú morte, e tem já perdido a sa*ude ,
a fazenda, e a honra. 'Jinha eu a Deos por
Benigníssimo, por clementíssimo, e mui leal
paia com todos aquelles,que se avtíiuuravuo
aSo Vida. do Ceato
a iai.^or.<;e de todo em suas mãos, e render-s*
a sua vontaílc. Mac a'\ de mim que êÓ para co-
ini,;<) parece que failou ! Ai de ir,-.tn que vejo
que aquella tunte de misericórdia e pieda-
de, cuj-a correnie nunca houve cousa que a
pudesse represar , pareceo hoje que estancou
para mim. Ai (jue aquelle peito amorosissimo
cuja brandura Ci)?)íesi»a c ap: e^^oa o mundo
todo, de todo me tem desamparada, apar-
tou de mim seus olhos foruiosissimos, vol-
tO!i-me seu roslro serenissimo. O' face de meu
Deos , ó coração benigiiissinu, jamais pu-
dera crer de vós, jamais esperar, q«ic assisn
nieliaveis de ent^eitar. O' /Vbiáuio iuexhauslo,
e sem íim, acudi e soccorrei a este triste ji
d'antemrK) acabado c morto. Vós sabeis, Se-
nhor , que toda minha esperança e consola-
ção está posta só em vós , e não em cousa al-
guma dl terra. Mas escutai-me agora todos
quantos viveis atribulados no inundo. Não
ha para que nenhum de vós outros se escan-
dalize desta niiuha sentida lorvacáo , nem de
meus desconcertos, portjue em quanto eu
não sabia novas da rcnunciaçáo própria mais
que íallanclo e ouvindo , era i^n^sto tratar
delia. Mas agora estou todo chagado, e com
o coração em carne viva. As setas do Senhor
tem-me trancadas as entranhas , e atravessai
das todas as vcas , e ate o mesmo miolo me
Fn. lÍEr-íniocE Scso. 281
icm esgotado e sumido por tal maneira,
que não ha nieml)ro em todo este»rorpo, que
não esteja perdido e acabado de dor, e mar-
tyrios. Coiiío j)óde logo ser que viva resigna-
do quem assim vive? Havendo passado o jMi-
liislro acíueiles doze dias com tanto trahallio
como temos contado, no cabo delles a lioras
du meio dia, como estava mui enfraquecido
do miolo, aquietou em fim , e assentoií-se.
Então retirado , e esquecido todo de si mes-
mo, virou-se para Deos, e larr^^ando-se com
verdadeira resignação nas mãos de sch di-
vino querer, dizia: Cumpra-se vossa vontade.
Estanílo pois assim assentado entro\i em uma
extasi (la alma , e via nella awo. se lhe punha
diante uma santa donzeiia , das que erão ti-
iiias esjíirituaes suas, a qual quando vivialhe
profetizou quetinlia por padjcer muitos tra-
balhos, masque de todos ohavia Deos de li-
vrar, Consuiava-o a donzeiia amorosamente,
mas elle indignado com ella tratava-a de íal»
sa, e de mentiro5;a. A santa então sorrindo-
se chegon-se de mais perto, c dando-lhe a
mão: eisaqui, disse , vos empenho minha fé
em nome de Deos todo po iLroso, e de sua
santa palavra , que vos mão ha de desamparar,
antes com sua divina ajuda , e por sua miseri-
córdia haveis de sair bem dc.Ue di*sgosto, e de
«[uaesqucr outros, que vus succedtírem. E ião
dcslramana , respondia o Ministro, a dor, e
a agonia , cm que vivo, quejá agora , filha,
níio posso acabsr comigo dar-vos credito, se
me não ríostrarties um si^nal claro e ceilo,
do que dizeis. Ao que clía , tcícís, difese, que
o mesmo i)ers eu) pessoa vos desculpai a e
dcíí.nderá com toda a gente virtuosa, que
quanto aos mãos, como medem tudo por
si, e por sua maldade , liào tem para que la-
zer conia uelies o hon)em , que é amigo do
Deos e sisudo, e qiianto a Orficm de S.
Doviúugos que vós choiais havcnilo-a por
afrontada neste caso, faço^vos srber que
por vosso meio , e com vosso nome ha de
ficar mais acceiía assim a Deos, como a todo
homem de entendimento, E para que en-
lendais, que íalio verdade, poder-vos-iia ser-
vir de sicjUal o que agora oirei : brevemeulc
TOS vingará Deos justa e terrivelmente, sol-
tando sua ira contra essa abominável íemea ,
que vos foi autora deste mal, e matal-a-ha de
morte suljitanea , e lodos aqutUcs que parli-
culnrmenle ajudai ão, dizendo e publiíando
males de vós, também acabarão brevemen-
te. Com estas novas ficou o Ministro algum
tanto suais alegre, (uidando de se ver cedo
em paz, o assim esta\a esperando, que fim
havia Dks de dar a esta tragedia. I^Ias não
passarão muitos dias, que se vio tudo cum»
Fr. Kf."?rique Suso. 283
prído com effeito. Porque a mulher morreo
siibltaciiente , castigando Dt^os assim o pec-
catlo de sacrilégio, que coninietteo : e dos
ouiros, que mais o tinhão perseguido, falle-
cerfio tiuibem muitos a])reviadamente, parte
com o juízo perdido, o parte sem Sacramen-
tos, Entre estes foi um Prelado, que o aper-
tou l)ravamcnte , e depois de morto appare-
ceo ao Ministro, e aífirmou-lhe , que pelo
mal, que lhe fizera, lhe tirara Deos a digni-
dade e a vida , e tinha para passar muito
tempo gravi<;simos torn)eníos. Os amigos,
que sabião estas historias , e vião uma vin-
ginça tão extraordinária, e as mortes reba-
tadas dos contrários, louvavão a Deos dizen-
do : A verdade é que Deos anda com este
bomV;-.rno, e bom ])arece que fe lhe fez
agLj;ravo. Pelo queserá razãoque nós, e todos
os bomens prudentes o estim.emos mais, e
o teidiamos em melhor conta , e em maior
opinião de santidade, que se não houvera
passado por clle o que temes visto. DalJi por
diante íoi acalmando a tempestade, e por
obra do Ceo cessou dtj todo, como lho disse
a dimzella no extasi. Muitas vezes depois
considerarulo o Ministro este successo: Ah
Senhor, dizia , quão verdadeiro é o dito do
povo : A quem Deos quer bem , não Uie pôde
empecer ningucm, Taiiibc;» luorrco puuco
a 84 Vida do Cr-ATO
depois um conipanlieiío seu dacelia,que
neste trabalho se lhe mostrou pouco amigo.
E sendo morto, e acabado um impedimento
c]ue llie toUiia a visão beatifica, appareceo
ao Ministro cuberto de roupas de luz, e
ouro , e abrarando-o com amor chego» sua
face á do Ministro , e pedio-lhe perdão das
offensas, que lhe fizera, com pacto que hou-
vesse amizade perpetua entre ambns. Mos-
trou o Ministro, que folgava com isso, e o
defunto tornou-o a abrarar amigamcnle, e
logo desapparecco, ese foi ao Ceo. Tendo o
Ministro provado infinidade de marlyrios,
em íim pareceo ao Senlior, qae erattnipo,
foi divinamente ^iliyiado íie lodos , e ficou
gozando de uma paz interior dalma, acom-
panhada de uma quietação socegadu, e de
graça cheia de luz. Então louvava a Deos
por se ver fora , principalmente desta tribu-
lação , e affiruiava , que nem pelo que vai
o mundo todo, quizera deixar tio ter pasòado
por ella , e por todas as mais. Enião por
celestial iiluminaçáo, conliecia claramente,
que este seu abatimento o levantara mais
alto , e lhe fora meio de maiores consolações,
e o chegara mais a Deos, que todas quantas
adversidades tinha cuudo uebd'a hora , t^iLg
Dasccra. ulc então.
Fr. Henrique Suso» i8I
CAPITULO XLI.
Tjn que o Santo Fr. íicniiqne conta dons ca^
SOS, que lhe passai cio pelas mã^sde tribu^
laç í es in te rio i 'es .
J~l Gabando a santa «lonzela delL-ra tribula*'
cão de seu l\ui;e espiritual, que temos con-
tado , solemnizou-u com asseis lagrimas de
piedade e compaixão de tao triste historia,
e tornou-lhe a pedir , que lhe quizesse di-
zer alguma cousa dos trabalhos do espirito.
Elle respondco, que 3Ó dous casos lhe conta-
ria nesta matéria, E começou assiíii : Houve
em certa ordem de Frades um mui conhe-
citlo por íama, que por divina permissão
padecia uma cruz interior , a qual lhe dava
tanta pena, e o trízia tão desanimado, que
de dia e de noite não fazia outra cousa,
senão accrescentar seu mal com lagrimas e
pranto contíimo. Veio-se um dia ao Mini-
stro da Eterna Sabedoria, e deu-lhe conta de
si, com grande devoção, pedindo lhe,
que com suas orações lhe alcançasse remé-
dio do Senlior. Estantlo o Ministro uma
manhãa em oração porelic recolhido dcnno
em seu Oratoo-io , teve uma revelação , ciu
«S5 Vida do Deato
que lhe appareceo o dcint^nio em n^ijura de
negro dé Guiné mui azivichntlo, os olhos
cotrio brasas , o semblante mechuiho , e in-
fernal , e com um arco nas màos. Disse-lhe
o Ministn- : Eu te esconjuro por Deos vivo
que me digas na verdade quem és , e que
queres aqui. Eu (disse o diabo, resp nlenílo
bem como quem é) sou o espirito de blasfé-
mia ; e o que aqui quoro, vós n)esnm o cs-
perimentareis. I)esviand(í-se o Ministro para
se meter pela porta do Coro , via que no
mesmo tempo punha nella os pés o Relio;ioso
atribulado (íe que falíamos , para entrar no
Coro a caníar a Tílissa , logo o malvado es-
pirito armando o arco tiiou um tiro de fogo
ao coração do pobre Frade , com que caía
por terra quasi de costas, e não podia che-
gar ao Coro. Escandalizado o Ministro re-
prendia azodamenle odiabo. Oque tomando
mal a soberba infernal armava o aico para
lhe fazer tiro com outra sella de fo";o. Mas o
«... " . .
Ministro virando-se com pressa para a Vir-
gem dizia : Bemdiga-nos c'o iilho a gloriosa
delRei Eterno mãi , e íilha e esposa. E o
demónio perdidas as forças desappareceo
logo. (Jomo foi de dia Conlou o Ministro
este successo ao Religioso, eensinou-lhe re-
nudios certos e poderosos contra o inimi-
go ; e são us uitíàmo3 que deixgu w^crilo»
Tr. Henrique Suso, 287
cm r.m Sf rnião , que começa : Lecíulus no--
sier JioriíÍLis , etc. Entre os muitos molestados
de males do espirito , que cada dia se viuiião
sf)CcoiTer ao Ministro , chegoii-se uma "vez a
elle um homem secular , natural d'oulra
província , e disse-llie, que padecia um
mal, qual nunca ninguém livera no mundo,
cm que outren» niuguííni lhe podia dar con-
selíío e leinedio senão elle. iSrio ha muito
(dizia o pobre hon>em) que quasi cheguei a
estado de desesperar , o com a força da dôr ,
que Svínlla, desejava uiatar-me. Levado desta
juria fui para mo lançar no mar, e remetten»
do para acabar de ser homicida de mim mes-
mo, ouvi uma voz sobre mim , (jue me dizia :
Tem-te ; não te percas vilmente ; busca um
rradcde S. Domingos , (e logo lhe dizia o
o nome do Ministro, nome, que nunca
d'anles ouvira) e elle te remcdeará, e ensina-
rá <í que liiis de lazer. Alvoraçado com eslas
novas sobr estive iia triste determinação,
que tinha, e vei.ho-me a vós como me foi
luandado. Vendo o ^linislro tão piedoso
caso tratou«o com muita brandura , e tantas
cousas lhe soube dizer de consolação e es-
forço, e tào contente e bem doutrinado o
mandou , no que lhe c-np^in , que pela
graça de Deos nunca mais caio em siaiilUaa*
tes lentacCcs.
l88 ViDi DO Bejlto
CAPITULO XLir.
Em que se clcclnrn quass S''ío as tribulações
de inih proveito para o Christão ^ c d$
mais floria para Deos,
Dl
'Epois (lo qne tomos coiiíado, fez a santa
donzelb as perguntas seíjr.intes a Fr. Hen»
rique. Qulzera saber, meu Pacire, qiiaes são
as cruzes , que mais servem a uma alma para
se saWar, c de que maior louvor resulta ao
Senhor. Muitos e mui vários são os traba-
lhos, respondeo o Sa:Uo , que preparão , e
armão um homem para a beniavenliirança ,
e lhe seginão os caminhos para ella,se sou-
ber usar bem delles. Algumas vezes permiite
Deos succederein-llie teniveis petseguições
*eni culpa sua : aqui o intento de DeÔs d
querer proval-o , e experimentar sua con-
stância, ou mosirar-ilie para qr.anli> é, equo
é , o que lem de si só , e de sua jiropria co»
llieita : do que tenios mulfos exeuíplos na
\"<ilhoTestan)enio.04j tamluin traia Deos de
seu louvor e gh)ria , como se lè no Evan-
gelho do Cego de nas( Imenio , a quem
Christo den por innoccrae , daiuUclhe vista.
Ai^nnis ha atribulados de ma«cira , que lo-
Tr. Henriqui: Suso. nZg
ç]a\la o merpceni bem . ronio ft)i o Ladrão ,
que cnitificárao com Cliristo , a cjuíni o Se-
nlior promettto o Ceo pela inteira e peiíei-
ta conversão , com que se lhe reudco na
Cruz. ÁlgMis padecem trabalhes sem os
merecerem , se tratamos da caiisa, pQiqjse os
dá Deos na vida presente; e todavia liáo ca-
recem de alguma culpa, pela qual pcrmilte
o Senhor que lhes \enhão ; e isto faz mtnto
ordinariamente para hiiniilhar sobcilas de-
masiadas, e tornar para si, e para o ra-
minho da verdade o homem tocailo delias ,
e assim íèbaler e njortiCcar a ir.ch.aef.o de
um espirito altivo: o que faz em coisa,
onde por ventura o tal lu niem nfio meneia
nenhum mal. Outros males lia, que Ders é
servido, que succedão a muitos ptlo an or,
que lhes tem , para por n:cio desses os hirar
d'oulros maiores, como acontece áquelles,
que neste mundo tem seu puTfjatoiio, sei do
atribulados com doenças, ctni pclirc/a , e
com outros niales desta qualidiíde, paia evi-
tarem castigo ujais rigoroso, que é qua<»i o
mesmo, que aíontece áquelles, a qu< m
deixa avexar por hcmjens de opiíito diabó-
lico, para que na morte IhesTÍM» stja ne-
cessário serem asson. brados com as feias e
monstruosas rej)rtserlac''ts t o^ Hei» < r» <""
Alguiià ha que tem si.a ciz vivcn ' , '"*•
IO
âC)o Viu A DO Beato-
zados em um amor urdentissimo. Tomljem
ha no mundo uns trabalhos sem fruto, nem
consolação , que são os em (lue vivem nqnel-
les , que, sem respeito da aíina, querem
cumprir c'o Uíundo em cousas, que totí^l-
mente são miintlauas, e esíf:.s taes comprfio
as penas do inferno o->ni muita áòv e tja-
Lalho : cousa que devia ronsohir Uíiiito a
gente virtuosa em suas afílieçóes. Também
ha homens a quem Deos está sempre i)rj-
dando , e /^visando , que de todo roraçáo se
íionvertão, porque deseja coramunirar-se-
Ihes , c dar-lhes muito de si; e todavia de
descuidados ou resistem , ou não acabão.
Estes traz Deos assim aljumas ve7.es por
meio das adversidades, ortl?i ando qneonde
quer que potjm o rostro , ou se acolhem por
lhe escapar, ahi mesmo não achem outra
cousa se não infortúnios econtrariedides , e
muitos dissabores de volta com os gostos do
mundo , e assim faz presa nelles, como se
os tivera pelos cabellos, com tanta força ,
que não iia íujfir de suas mãtís. Emhm
achareis muita gento , que vive sem cruz ,
se não é a que ella mesma se forja , ou ne-
goceia prjr suas m.íos , fazendo caso de cou-
sas, que de si nao importão nada. O que já
uma hora experimentou com certeza ura
"^ da fortuna, Fassiiva este por uma
Fr. Henrique Suso. 291
casa onde seiítio que se carnia uma mulher
com lag limas c pranto jiet!cso. liiitrcu
dentro pela consolar , e perguntarido-lhe a
causa tle sua desconsolní fio , itsponc^eo, qi:e
não podia achar uma ugulha qi:e perdera.
Saío-se attonito , e foi discorrendo assim
comsigo : O' líjulhcr néscia j ó mull.er tonta ,
eu te fico que se tontííias as cestas i:n) cos
feixes , que cu trago , não prantearas | cr
tfio fraca perda. Tacs sfio vv.s certcis niin.o-
sos, que com quak|uer leve cansa íin<;cni
logo cruzes , onde as dl o la. IMas a mais
nobre e mais excellente cruz, qne pode
haver, é aquella sohre todas, qnc Uiais se
conforma com a de Cliristo INosso I^cihor ,
que Deos F.terno seu l\ulre ]lie'poz sobre os
hombros, e a põe inda hoje aos amigís ,
que mais ama , não porque haja algucm que
totalmente seja isento de pcccado , exceitr»
Christo , mas porqTie assim como Chrislo i m
sua Sagrada Paixfjo foi um extiemo de niaii-
sidão, haTcndo-se nella couío uuia í}velha
cercada de lobos, assim taml cm carrega
com desmc^surado peso de tribulações os
seiíi:^ mais validos servos; e o ílm é pua <|ue
rós outros os mál sofridos tomenos exem-
plo em seu valor, aprendendo delles a ler
paciência, e á visia de um Satiio avexado ,
Aonitnios btni j e venramos cem ii.ai sidão
29a Vida do Bíât»
os males que como máos merererr*05. Ist©,
filha minha, deveis considerar, c riào façaes-
iifinca iiiáo rosto aos trabalhos, que por
qualqiier via, que elles venháo, podem ser de
proveito ao Chrislão, se os souber tomar e
j econlieccr tia mâb de Deos , e referindo-os
a eile passadas valorosamente por seu amor.
Aqui lez pausa Fr. Henrique , e Sor IsaleL
couieçou assirií : A(|ueiia cruz, meu Padre,
de q-ie ultir-.acienle tratastes, que é quando
iim homem padece sem piecedereuL cul[^a3,
é de pouca gente. E eu t.omáia saber p')r-
que melo pôde um homem , que é peccador,
e sogeito a culpas e misérias, valer-se c\o
auxiUo Divino para com elle facilitar, e ven-
cer suas afiKcçóes. Porcjue este tal parece
que vive entre dous tornífntos, tendo de
uma par^tc o de ler offendido a Deos , e da
outra o exterior, que o aíflige. iSisso tam-
bém , respondeo o Santo , vos satisfarei logo.
Eu conheci uma pessoa , que se lhe acon te-
cla por fraqueza humana cair em pcccado
que merecesse casligo, tinha este costume:
Como uma lavandeira, dextra em seu oííi-
cio, lava primeiro a roupa com sabão , e
depois a passa a outra agua , com que
a deixa de todo limpa c alva , assim esta
pessoa não descansava, até espiritualmente
ciie^^ar áquella fonte e corrente caudal da
Fr. Henrique Suso. «93
precioso sangue de Ghristo derramado com
inefável caridade para consolação e soccorro
de todos os ncccadorcs, fonte que nasce de
suas sagradas Chagas. AWi naquelie sangue,
que ferve eni amor dos homens, se banhava,
e somia com todas suas cul{)as , que são as
Tiodoas da ahna. Alli naquelie rio de verda-
deira salvarão se lavava e purificava toda ,
como se faz a um menino metlido em banho
quente. íslo fazia com grande fervor, e de-
vaçào da alma , junta n uma fé firme, e dcs-
eiiganada, que aqncUe divino sangue com
sua virtude e merecimento infinito a havia
de deixar iin)pa e sãa de toda a culpa. Este
termo pois usava sempre diante de Deos
quando se via cm .lígum traljalho , quer o
tivesse merecido, quer lhe viesse sem causa.
C A P 1 T U L O XLIIÍ.
Fm qut^ j trata iiorque maneira apartou o
Beato Fr. Henrique da affdcj.o das comas
transitarias alí^uns homens engo!fado!i no
mundo f e os injlamniou em amor Divino»
1^0 tempo, que Fr. Henrique de propó-
sito se empregava em converter aimas a
Deos, e desapegaUas dos go^ios e vaidades
504 Vida do Beato
cio mundo , advertio cjue em alguns ?.Ios-
teiros bavia gente , que com habito e pro-
fissão monástica cobria coração e pensa-
mentos mundanos. Em particular soube
que em certo Convento havia nina Freira ,
que andava mui entregue a uma affeicão,
para em siniilhantes parles , não licita, que
tinha, e mudava devotos, ou por nifeluoriJi-
zer servidores , que é a peçonha e deslruição
de toda a Reli^nao. Avisava-a o Santo, qne
se queria viver vida dt'scansada e quieta, e
segdira vida espiritual, que proíessáro, desse
de mão a's conversações , e em lugar dos
amigos ociosos , tomasse por amiga a Sa-
bedoria Eterna. Não se lhe pot-ia ia liar cm
cousa que mais a desagradasse ; porque era
moca e formosa , e eslava já enredada neste
Inço do diabo mal entendido , e mui travada
na amizade. Todavia cb.egou a termos, que
lhe rendeu a vontade a estar prompla e
disposta para tomar seus conselhos. /.Ias oc-
cupando-sc outros em lha perverter, foi fá-
cil de mudar. O que visto pelo Santo, disse-
lhe : Filha minha, deixai est^ modo de vida ,
olhai, que vos amoesio e profetizo , que se
o não fazeis por vontade, o vireis a fazer
por força, e mal que vos pez. Vio elh; que
fíizia ju)uco caso de sua sãa e verdadeira
Doutrina: fez oração ao Senhor, que [>or
Fr. Henrique Srso. 29^
bem , on por mal fosse serviclo tirnl-a claqnel-
le estado: e íoi-sc um dia ao Presbyterio da
Igreja , com. o costumava, e alli debruçado
aos pés de um Crr*ci6r.o , descobertas as
costas , discipíinou-se cruelmente e de ma-
neira , que tudo se baiihava em saiigiíe , e
pedia a Deos que amancusse aquelle duro
espirito. Em fim ouvio o Senlior sua ora-
ção. Porque recolhendo-se ella um dia para
casa 5 começou-se-ihe a criar nas costas uma
feia alrorcova , com que íicou torpe e dis-
forme. E assim constranrrlda do mal, veio a
la ro^ar por força, o q-.ie não quiz por bem,
nem por amor de Deos. Tveste mesmo ]\Ios-
teiro, que nao era dos que professaTflo clau-
sura, ha\ia outra donzeila moça ua idade, e
nobre no sangue , a qual caindo taml.ein na
rê-i^í deste mesmo dernonio , tinha perdido
o tempo, e devasrado a honra utuitos an-
nos , (om toda sorte de homens, e t!e ma-
neira andava cega , que fogia do Sanro,
como a lebre dos «^alç^os > líoroue receava
que havia de procurar por lhe fízer mudar ;i
vida. Tinlia esta donzeila uma iruiãa , a qual
pedio a Fr. Henrique quizesse provar a Uião
com ella , a ver se por alguma via a podia
arrancai- de tão dauuioso estado, e tornal-a
para Deos. M.ís elle julgando-o por quasi
impossível, afíiraiuva-lhe , que Unha por
soG Vida no Ceato
iT)ais íacll abnlxar-se o Ceo , que tlohrar-se
€Íla a doixar seus costumes , de rjue só a
morte a poderia já retirar. Apertava «o com
muita instancia a irmãa , dizendo, que linha
nelle tanta fé , que entendia não lhe havia
Deos de negar cousa, que do veras lhe pedis*
se. Vencido o Santo destas palavras obrigou-
S3 a fazer de sua parte o que podesse. Mas
con^o a donzelia de contínuo se desviasse
delle, e assim não podes:e lia ver uma kora
para lhe fallar , em fim soube um dia, que
era perto da festa de Santa Margarida Vir-
gem , que era fora do rilosteiro em com-
panhia de toda a Gomniuni iade, que saíra a
curar linho ao campo. Foi-se Í'>go dissirnu-
ladaniente traz eilas dando rodi'ios por che-
gar a cUa em tempo, e comiiiunicaráo acom-
modada. Mas tanto , que a pobre mulher o
sentio virou -lhe as costas com descortezia ,
saltando-lhe fof^o pelo rostro de líravcza, e
com brados desentoados fallava-lhe desta
maneira: Que me quereis Senhor? para
(fue me buscaesP ide en)])ora vosso cami-
nho, que comigo não acabareis nada j que
antes tomarei que me cortem a cabeça , que
confessar-me comvosco, e primeiro sofrerei
cnterrarem-me viva , que deixar minhns
amizades por vosso respeito. A isto acudlo
uma companheira j que lhe ficava perlo , o
Fr. Henrique Sl'soí 297
estranhou-lhe o que fazia , lembrando-llie ,
que o que Santo pertendia eia j3or seu
Lcm , e para sua salvação. JMas ella aljanan-
do a cabeça íuriosaniente dizia: Nfio o hei
de enganar, antes em quanto íizer e disser
quero , que veja e conheça minha delermi*
liarão. Espantado o Santo do despejo coni
que íallava , e da descomposição dos me-
ueios que fazia, ficou tão atalhado, que não
podia faliar palavra. Todas as Freiras, que
eião presentes, loniárão mal o atrevimento
da companheira , e todas ilie bradavão , que
fazia mal , que se reportasse. Afasloii-se o
Santo então , e pondo os olhos no Ceo sus-
. pirava do fundo do peito, e queria de todo
largar a enipreza , se níio fOjia que dentro
«'alma lh'o contradizia Deos com esta leiu-
liranca , que quem tem requerimento com
Deos e com o mundo , e quer acabar al-
guma cousa não ha de parar logo , nem eu-
íadar-sc de iuiportunar e trabalhar. F.ra
depois do meio dia quando isto aconteceo.
Jantaião as Freiras , e viudo a tarde, que
havião de ir a uma horta para cuncluirem
c'o linho, rogou a uma das ami;;as da Freira,
que quando passassem por um hospital ,
onde elle estaria , que era caminho para a
líorta , poV arte lha levasse lá , e se saísse
para fora. Fcz-se assim, aiuda que com Ira-
âpS Vida do BriTe
Lalho. Tanto que entrou , e o Santo a tío
assentada a seus pés naquelle lugar publico,
em que estava, começou sua pratica do co-
ração, que lhe arrebentava ern conceitos,
acompanhando-a coru profundos suspiros , e
dizendo desta maneiía : Eia formosissima
donzella, donzella escolliida deDeos, até
quando haveis de trazer em poder do diabo
a belleza desse rcstro , e de vossa alma?
Olhai que \os fez Deos amável , e bem pare-
cida em todas as cousas, só para terdes por
menoscabo de vossa pessoa, sendo mulher de
tão boas partes , e tão nobre, renderdes^vos
a nenhum outro amor senão ao de vosso
Deos, que é o melhor amigo de quantos ha
na lerra. A quem, dizei, se devem com
mais razfTo oííerecer as rosas desse rosto,
que agora estão em sua primavera, que
áquclíe, cujas ellas siío na verdade? Abri ,
rogo-vos, iUustre e formosa donzella, esses
claros olhos da alma, e lem])rai-vos sobre
tudo dacjueila Divina amizade, que começa
aqui, e dura pata senípie. Olh.ii a que desa-
venturas, a que enganos se arriscão, a que
tormentos, e cruzes se offerecem , que
damnos é forcado, que padeçuo no corpo e
r»a fazenda, n'ahi)a , e na fama , e mal que
lhes pez todas aquelias que andiTo'embcbiua5
restas damnosas ar.íizades, das qaaes vos
Fpl. Henrique Suso, 299
afíirmo , que ainda que a peçonha, ou feitiço
í'iini íalso gosto traz tontos e alienados os
jinzos de niautira, que llies fez perder o res-
peito ea nieoioria de tantos, e tamanhos
ínc(>nvenienies, com tudo elles abrangem
nesta vida e na outra. Ora pois, tilha minha ,
nriais bíjlla e i.-iais merecedora de ser amada
de todas quantas o ííÍio , passai iodo o bor»
natural , que em vós ha , naquellc Senhor ,
que desde toda a eternidade é o mais no-
bre, e mais excellente siíjeito que ha, nem
pôde liaver. E acabai já com estas sandices ,
que eu vos dou minha l'é , eme ol)rigo , que
elie vos acceite por amiga , e vos manteíiha
verdadeira fe e amizade neste mundo , e no
outro. Era bem escansada aquella hora.
lào-na entrando estas palavras , e abran-
dando aquelie peito fero de maneira, que,
levantando logo os olhos ao Ceo, suspirava
com entrnnhavel dòr: e tratando com o
Santo coiiíiad;nnente , e com resoluçfio varo-
nil dizia desta maneira: Padre, e senhor
meu , não haja mais (hlação : eisme aqui
rendida, e seja logo hoje, á disposição de
Deos , e vossa : aparelliada estou a deixar de
toch) ponto , e nesta mesma hora a \ida des»
concertada e vãa ; e com vosso conselho c
ajuda entiegar-me toda a Deos, e a elle só
servir dchojeeradianlc até luorte, Nenhuma
3oo Vida do Beato
nova , disse o Santo , se me podia a^ora daí
de maior gosto. Bcnidito e louvado seja o
Senhor, que a todos, os que a elle se tor-
não, recebe alegremente. Estando as^im
ambos fallando ác Deos, as amigas da don-
zella , e companheiras de suas Icviant^ades ,
estavao á porta da banda de fora : e enfa-
dadas de pratica tão comprida , coruo recea-
vão , que o Santo a apartasse da soltura de
sua conversação, começarâo-llie a bradar
que acabasse. Levantou-se a donzella, foi -se
com ellas, e disse-lhes : Amigas e compa-
nheiras minhas, ficai-vos embora de hoje
paia todo sciupre : eu me hei por despedida
de vós , e de todas as de nossa companhia,
como de gente, com quem gastei meu tem-
po mal , e como não devia, de que toda a
vida terei ma^joa. Já a^ora a um só Deos
todo poderoso me offereco e entresjo ; e
todo o mais en:íeito e lar-jo. Hesta maneira
começou a evitar toda a amizade peri.^osa , e
viver recolhidamcnle. E ainda que não fal-
tou depois quem a tentou, e trabalhou pela
tornar aos costumes passailos, não se aca-
l)ou nada com ella. Antes se havia de ma-
neira, cjue acompanhando uma estremada
honestidade com toda s;>rte de virtudes per-
severou até o fir.i da viila, firme, e conslan-
leincnte uo seivico de Deos. Açonieceo de-
FRiTÍENRiQnr. Sfso. 3oi
}OÍs , que saindo o Santo um clia do Mostei-
ro, en] que morava, para a ir visitar o
mimar no caminho da Ylrtiule , e consolai-*
de -certos trabalhos, que padecia , como r.n-
dav; neste tempo indisposto , e o caminho
era eh muitos lodos, e parte delle por serras
altas, I! fragosas, ia mtii afadigado. No m(>'o
desta ahonta levantando os oUk^s a Deos di-
zia a ir.iude: Senhor Deos Misericordinso
e obrado? de misericórdias, ' lembro •\ os
aqnelles cinsados' passos, qne neste mundo
com muit;o ^.rahalho destes por nos salvar; c
V pero-vos qn° me guardeis minha filha. Traz
isto encostavi«-se em sen conipanhe iro ; o
qual cheio de lastima de o ver assim disse-
Ihc: De verd.ide entendo que compele a
Peos , segundo sua bondade, sah;:r*mnitas
abnas por vosso meio. Indo mais. adiante, e
r. Santo tão desfallecido , (pie já não podia
dar um passo: P.>r certi) , l\a(he, tornou a
dÍ2(ír o companheiro , q-ie bem com ra^zão
pudera Deos agora olhar para vossa fraone-
7a , e com seu poder dcparar-nos aqui uma
cavalgaíhira , e!n (|ue fôreis um pouc(j até
chegarmos a povoado Sc ambos jtini(..s, res-
ponufo o Santo, p{jdirju(js isso a Deíís, bem
ronfio nelle , (pie pelo mercclmcnio ue vos-a
virtude nos íará mercc. t estcTidendo ns
olhos vio sair do mato um bem íeito c.ivallo
5ai Vida do Beit(^
muito manso, e quieto, sellaclo, e enfreado,
e sem dono. Entúo o companheiro levantan-
do a voz com alegria disòc : Oihai , Padie
thaiissimo, con^u 5e parece que não está /s-
fjuecido Deos de vós. Toriiou-lhe o San^o :
Alegrai, filho, os olhos por toda essa t^rra,
que se descobre, e vede se porventura rarece
alguém , cujo possa ser estecavallo. Ohando
oFradc a unia e ouíra parte não vio jingueni
mais, que o cavallo , que mansaiiente se
■vinha chegando para elles. E di.<6e para o
Santo : Sem duvida , meu Padr^ , este ca-
vallo yem para vós mandado po.' Deos; so-
bi-vos nelie , e catninhai. isso crerei eu , res-
pondeo o Santo , e bem íio de Deos , que
noi quereria acutlir nesta necessidade, se se
parar quaíido cliegar a nós.Nao erão bem aca-
J)ad:iS as palavras, quando o cavallo chegou
qui'.'tamen!2 , e paruu diante do Santo. O
queelle notando: ííora, disse, sej.a em nome
de (Christo. E cavalgando Cí)m ajuda do cj)m-
panheiro , í\n assim caminhando um grande
espaço até que cobrou alento e forças. Se-
guia-o o companheiro a pé. Mas tanto que
chegarão junto tle iima aldêa, queapparecia,
apeou-se o Santo, e lar.-^ando as rédeas ao
cavall ; , deixou-o no inesmo camiidio por
ondj viera, e nunca depois pôde aciíar
nova d;í cujo ora , wjin para onde lura. Ghe*
Tr. Hr.xPx qce Sus«. 3o3
■rado o Santo ao l:'gar, para onde ia , estava
^in (lia á taide sentado com suas £lbas es-
pi-ituíies, e pré;j;ava-lbes do amor Divino, c
trJ)alliava por lhes fazer odioso o das consa»
t^íi'sitorias. No cabo, despedidas aslVeiras,
ficoí com a elfiracia da ]^rati( a abrasado todo
em fo^o cie Ui\ina caridade; *e estava inia-
g)nana> ^ qne só o seu amado , em c^uem elle
tinha o. olhos , e o corarão , e a quem pre-
gava e persuadia a todos , que amassem , le-
vava infiriía vantagem a todos 03 amigos do
muudo. Nista doce meditarão foi arrchalacío
eín espirito e pareciadhe que o mettlão em
um prado frtsquissimo , onde o acompanha-
va , e trazia pela mào um gcritil mancelio
cortesão do Cto, o qual llio começou a can-
tar tão siiavernerte, qoc peiíetiando-lhe n'al-
ma a melodia da voz , perdia com a força da
deleitação toda a operação e uso dos siii-
tidos j e parccia-llie que o coração dentro em
sen peito se lhe enchia de um desejo , e 5au-
diule de Deos ardunlii-slma de xnaTicira , ({iie
batia e saltava , como cjne se qneria fazer
pedaços com o excesso da força , que sentia.
K para se valer, foi necessário acudir com
a mão direita, e pòr-llu em cima. T^las entio
tanto or^u) tantas as lagrimas, rine seus oi!:os
eslilla\rt() , qneem fio lhe desdão pelo rostio
abaixo. Acabada a musica , rcpresentcií-se-
^oi Vida do Beato
lhe uma figura , para poder apprender o que^
ouvira cantar com tal firmeza, que nunf»
íiiais lhe esquecesse. Via a Virgem gloiio*
sissiina, nossa Senhora , que tinha no coiloo
Menino J£SU, Sabedoria F.terna , apert;^^»
com o sagrado peito , e sobre a cabeça do
Menino estavS escrito o principio da ca^çáo,
que ouvira , com letras formosissimas; mas
o modo, por que estava escrito, era t^ sub-
til e escuro , que o nào' podião l»í^ senão
aqtielies , que o tinhão estudado ^ alcan-
çado por experiência de trabalhe^ e peni-
tencias. A linguagem era de Alhmanha. O
que iKi Portngueza podia sigíiiícar, dizia:
Amigo fidelíssimo, como que íÓ elle seja o
í^ue na verdade é gosto veidaleiro d'alnia ,
e amigo singchssiíuo. O Santo leo logo tudo :
e entre taulo o .^lenino JIlSI tinha amoro-
samente os olhos nelle : donde lhe nascia
quasicoHi cerie/.a experiiut^ntar como só este
suavissliuo Serdior é na verdade amigo
da alma , em cuja companliia nem gostos a
descompõe, nem adversidades a soçobrão.
E assim o meltia todo nella; e Ioêjo com o
mancebo começou a entoar a canção, e am-
idos a levarão té o ca!)o. Estando-se assim
a 'ora '.avidj n>) fogo destes amores, cessou o
tíítasi , tornou em seu accordo , e achou-so
ca.n a mfio direita posu ^obr^ u cpra^^o d»
Yr, Henrique Suso. 3o5
fnesnia maneira, que a assentou , qnando llie
quiz acudir com ella na grande força com
que batia.
CAPITULO XLIV.
Como por merecimentos do Santo lhe accres'^
centoiL Deos o vinho , estando assentado á
mesa com muitos companheiros.
\J^
M dia, caininli?.ndoo Santo por terra es-
tiaiilia , chegou tarde, e quel)ranta(lo da lon-
ga jornada, a um inclusorium , onde fizera
co?)ta de vir dormir aquella noite. Succetlco
não se achar vinho iio lugar, nem cm uma
aldeã, que era visinlia; só uma honrada don-
zeUa , (|ue era presente, disse , que em sua
casa havia um pequeno jarro de viid^o. Mas
para entre tantos , dizia ella , que cousa é
iini jarri)? E dizia iNto porque , poucos mais
ou menos, estavào alli jnul«vs vinte liomens
devotos, a fora outros, (pie acudíiào á f;»uia
do Santo, desejando ouvil-o pregar, l\Ian-
dou-lhe trazer o jarro, e poí-o na mesa.
Posto o jarro , rogavão-lhe lodos (pie o ben-
zesse. Fel-o o Santo em virtude do nome
Sautissimo de JIlSP , e bcd)co priu)eiro (jiie
todos , porque vinha ardendo em sèdc <\<i
3o6 Tida do Beato
caminho. Logo o deu aos outros, que todõS
foráo bebendo. Punha-se o jarro na niczn á
vista de todos, e sem se lhe lançar omm .
nem vinho, que o não havia , como temos
dito, tornava a andar a roda e bebia»» lodos
uma vez , e outra, f^las como eslaváo com
grande devação de ouvir a palavra de Deos ,
ninguém attentava iio nalagre do Ceo. No
cabo quando entrarão cm acordo , e caíiáo
na conta da mardvilha , que o noder Di\if:o
obrou no crescimento d«i vinho, lou\;i\áo a
Deos, e queriâo attribuir o milagre á -vir-
tude e merecimenios de Fi*. Henrique; o
que não consentindo por nenlium caso; não
ha, fdhosmens, dizia, poia que me deis por
autor disso. Quiz o Poderoso Deos lembrar-
se desta virtuosa companhia de gente, que
aqui concorrer», e (*m galardfio de sua íe re-
frescal-os com bebida corporal e espiritual.
CAPÍTULO XLV.
Do que aconteceo ao Beato Fr. Henrique
com algumas pessoas , qua com clU tiverào
particular amizade,
XJ-Avia em uma Cidade duas pessoa*? de
muita virtude, q^ue tinháo íamiliaridade c'o
Fr. Henrique Suso, 3qj
Santo. As quaes, se;^iiindo ambas o mesmo
caminho do espirilo, levava Deos por mui
difíerente termo , uma ria outra. Uíiia era
conhecida e estimada do mundo, e vivia
em grandes mimos e favores do Ceo. A ou-
tra ninguém lhe sabia o nome, e trazia-a
Deos penitenciada com tribulações conli-
nuas. Sendo ambas mortas , desejava o Santo
saber , que íbtferença tinhão de premio no
outro mundo , pois neste fora tamanha a de
suas vidas. Um dia ao rompei- da manliãa
appareceo llie a de fiima, e contou-lhe como
inda então estava detida , e penando no
Purgatório. Pergtíntando-lhe admirado , co-
mo podia ser tal ? respondeo , qne por ne-
nhuma outra culjia pagava , senão porque
daquclla estima, que via íaze»' de sua vir-
tude, llie sobião á alma uns fumos de so-
berba de espiriíf) , a que não resistira com a
destreza , que rouviuha; e com tudo tinha por
certo haver de sair cedo daquelle trabalho,
A outra , que vivia despiezada e abatida no
mundo, voou sem «letefica [)ara I)cm)s. Tam-
bém a mái de Fr. Hcuiicjue, em quanto vi-
veu na teira , padeceo gravissimos tormentos
causados da differeuca de vida , que tila e
seu marido faziao : ella, toda cheia de Deos,
desejava conformar a vida de todo ponto
€om ãua santa Lei : elie, tudo dado ao luun-
3o8 Tida do Br a to
iln , encontrava-a terrivelmente. Daqui nas»
cião todos os de>igostos. Tinha por co.sti:me
esta honrada dona, quando se via rercadii de
trabalhos, afogal-os todos, e suinil-os no
^oUo da paixão de Christo ; e desta maneira
ficava CQjii victoria delles. Antes que morres-
se, contou ao Sanlo Fr. Henrique seu filho,
que por espnço de trinta annos, nunra se
achara no Santo sacrifício da Missa, que não
chorasse agramente de piedade e compaixfo
dos tormentos de Christo , e de sua magoa-
dissima niãi. Disse níais, que lhe acontccêia
algumas vezes cliegara adoecer de puroam.or
de Deos (sem haver outra cau^a , tão exces-
sivo Q sem medidp era o que lhe tinha) e
que doze semanas estivera em cama sem
outro mal mais, que saudades de Deos tão
rivas e acesas, (p.io até os Médicos lhas ei.-
tendião e se edificavão assas. íío derradeiro
anno de sua vida, entrando a Quaresma, foi-
seum dia a uma Igreja , onde iiavia um rc-
taholo, em que estava figurado de relevo o
descendimenlo da Cruz AlH lhe foi commu-
nicada á vista daquellas figuras alguma parte
da intcnsissima dor, que a Sagrada Virgem
senlio ao pé da Cruz p;»r maneira , que tam-
))em a sentia , e jadecia; e foi tamanho o
ímpeto das dores, que dtsta lhe recrescerão
de pura compaixão e piedade , que o cora-
Fr. lÍENRiorE Srso. 3og
çrTo quasi Ibe estalava no peiio porinaneira,
qire de a desampararem as forças naluraes ,
caio por terra desmaiada . e ficou sem lalla,
e sem vista , e sem dar le de nada. ISesle es-
tado a levarão para casa , e nelia esteve sem
se lev.mtar da cama , nem fallar palavra, até
a sesta feira da Semana Santa. No qual dia ,
ao tempo que se cantava pelas Igrejas a Pai-
xão a horas de Noa, espiíou. Estava então o
Santo Fr. Henrique , seu (idio, em Colónia
estudando. Apparereo-llie a ])emav(ínturada
inãi em revelação , e cheia de estranha ale-
gria disse-lhe: Ro.go-te, fdho, que ames sem-
pre a Deos, e tem por certo , que nunca te
desaníparará em nenhum trahalho , cjue te
venha, Vês-nie aqui, já vou fora do mundo,
e não sou morta, antes agora \ivirei elC! na-
menle com Deos. Então heijando o filho
amo/^osamente na face, e lancando-lhe a
benção de coração, desappareceo. Elle dcrre-
lla-sc em la::;iimas, e hiadando apoz d\dla
dizia: O' santa, e anrh issima niãi miidia,
sede-me hoa amiira diante d«* Deos. E a^sim
chorando e soluçando tornou em si. Sen-
do Fr. llenrifjue mancebo , foi-lhe forçado
ir-se do (Convento , em que morava , á outra
terra a estudar: fú Deos ser\ido dardhe por
com|)afdiciro nesta mudança um homem
muito ^virtuoso, e que llie fui sempre ver-
3ro Vida do Beato
datleiro amigo. Um dia assentados ambo»
juntos, e lendo fallado de Deos grande es-
paço, tirou-t) o amigo de parte, e jKidiollie
em segredo pela fé e obrigação , que iim
ao outro se tinliàt) , lhe mostrasse as letras
do sagrado nome de JESU , que tinha escul-
pidas no peito. Deíeníhase o Santo, e escu-
sava-se. Mas em fiiu respeitando sua grande
devoção houve de condescendçr com elle, e
descobrindo o peito deu-lhe licença para
Ter bem á vontade arjuella rica jóia de seu
coraç'ào. Do que eUe não satisieito, depois
de o ter de espaço contemplado, e notado
quão cUiramente estava escrito aquelle Di-
vino Nome, tocou -o tambeuí com a mão, e
chegou -lhe o rostro, e em fim pondo-lhc a
boca começou a derraraar muitas" lagrimas
de devoção de modo, que !>aidiava com ci-
las o peito do Santo. Depois disto teve o
Santo tamanho segredo neste nome, qiit
nunca mais c«.iiseniio ver-lho ninguém , se-
não foi uma só vez um grande servo de
Deos, que do me^no Senhor teve licença
para o ver. Quando o vio teve os mesmos
effeitos de devt^ção. Uavendo estes dt)us
companheiros continuado, largos annos,
sua amizade , e conversação espiritual ,
quamlo se ht)uveião de apartar, despedirão-
6e um do ouiro com í^Taiide amor, c cou-
Fr. Ke^triode Scso. 3ii
certárão entre si, que fallerentlo qualquer
delles , o que ficasse vivo, pelo íraternal
amor, com que se nmyvão , clis'=esse cada se-
mana duas Missas piílo defunto, e fo^^se uma
dé defuntos á se^runda feira , outia da Pai-
xíioá sexta. Dahi a muitos anros veio a mor-
rer o amigo , e o Sant<j Fr. Henrique esque-
cido da promessa das Missas não liias disse ;
mas Com tudo lembrou-se sempre fielmente
delle em suas orações. Estando pois o Santo
uma Uíaiiliua sentado em sua cella , e quasi
em exiasi , appareceo-lhe o companheiro em
revelação, e com voz queixosa e magoada:
Ah , disse , que pouca verdade a vossa ? Ah ,
irmão, e como vos esquecestes de mim! Ues-
pondendi) Fr. Heniique, ((necada dia selem-
l)rava delL' em seussacriucios, repliccju, que
não bastava , mas que lhe havia de pagar a
divida das Missas, que lhe prometiêra , e
cumprir sua palavra , para que, descentlo ao
Puríjatorii) , o satiírne innocenle de Christo
lhe matasse o f<'go cruel, em que penava,
que í;oni isso não tinha duvida , que logo
sairia daquelle lugar. Cumprio o Santo in-
teiramente sua obrigação com grande pezar
do esquecimento, íjue por elle passara j e o
amigo lui em breve livre da peaa.
3i2 Vida DO Beato
C A V I T U L O XLVr.
Co:^70 appnreceo Chrhto nn Beato Fr. Hcu^
lique em j.^ ura cie Suíaj.uLy e o insinou a
padecer.
X Oz-se o Santo certo dia diante de Deos
em oração mui fervorosa e de grfande efíi-
cacia , pedindo-llie qise o in<iina<;se a pade-
cer. E apparaceo-lhe ein re\ elação nina si-
inilhança de Cluisto Criuificiulo em figura
de Serafim , que tinha seis azas, duas que
lhe cobrião os pés , e duas as máos , e outras
duas, com que voava. INas <!uas mais baixas
estava escrito: Toma a tribulucfio de vonta-
de. Nas'do meio se continha : Leva a cruz
com paciência. Nas duas mais altas se devi-
sava claramente : Apprcnde a padecer ao
modo de Chrlsto. Contou Fr. Henrique esla
tísúo a uuía Santa Donzella, a qual, tanto que
lha ouvio , re«pondeo o seguinte : Sal)ereis,
meu Padre , que tendes perto novas cruzes
e tormentos , que convém sofrer, pois Deos
assim quer. Brevemente sereis eleito Prior ,
para que vossos contrários vos possáo chegar
mais de perto, e offender-vos mais pesada-
mente ; armai-vos de soíriaienlo, coufóriíic
Fa* Henrique Suso. 3í3
a lição, q»ie tomastes nesse Seraíim. Acoiite-
Cí'o pais, que no Convento, em qwe o Santo
então era morador , não tinha entrado ha-
via três annos esmola de pào, nem de vinho
de parle nenhiuna, e assim estava mui indi-
vidado. Houveião os Frades seu conselho:
tazem Prior a Fr. Henrique sen? lhe valerem
escusas , nem a resistência , que fazia , vendo
já contra si armada a perseguição com a
f^randc íalla , e carestia , que havia de tiulo.
O dia seguinte chamou os Frades a Capitu-
lo , e juntos aníoesiou-os, que se encom-
niendasseai a S. Domingos, pois elle promet-
tcra aos seus Frades de lhes acudir e dar
remédio, se nas necessidades se quizessem
valer de sua ajuda. Estavâo naquella junta
dous Frades sentados perto delle, os quaes
disserão algumas cousas de mumiur.i: ilo
delle. Mas o Santo perseverando em seu pre-
posilo , tanto que amatiheceo, niantloii
cantar urna BFissa de S. Domingos , para que
lhes acudisse com o mantimento de que li-
nhão necessidade. Estando em pé no (^òro,
e engolfado em muitas iníaginaç')es, veio-
Ihe dar lerado o Porteiro, que o huscava
um Cónego. Fra o Coueg») homem rico , e
parlicul.ir amigo do Santo. Quando chegou
a elle tlissuj-lhe: Tenlio sal)ido, Padre e
Senhor meu, que exilai» em falta do que
3i4 Vida do Ttata
cumpre para manter esta Casa; e fui aTÍsado
esta noite do Geo , que em nome de D cos
vos soccorresse. Por isso em principio de
ajuda vos trago estas vinte lihras de moeda
de Constância , e confiai en Deos , que não
vos ha de des.^mparar. Ficando o Santo
cheio de alegria, rece])eo o dinheiro , e man-
dou logo comprar trigo e vinho, e assim
com o favor de Deos , e do Padre S. Domin»
gos governou, e proveo a Casa ahastadr.men-
te , em quanto íoi Prior, e negociou que a
não oI)rigassem ao pagamento das di>jdas
passadas. Este mesmo Cónego, estando para
morrer, deixou cm seu tesramrnto grossíssi-
mas esmolas para se distrihuircm por varias
partes a disposição e alvedrio do Santo. E
mandando-o chamar, porque o Mosteiro,
em que servia de Prior , era na mesma terra,
entregou-lhe uma boa quantidade de moeda
em ouro , para que elle a repartisse por ou-
tros lugares, entre pessoas pubres , e virtuo-
sas, que por aspereza de vida penitente esti-
vessem já inn tiles , e sem íorc^as para traba-
lhar. iMiiito contra sua vontade acceitava o
Santo este dinheiro, arrecea!)do as persegui-
ções, que depois lhe causou. Mas em fim
levou-o vencido da amizade ; e jiondo-se a
caminho, semei>u-o , conio promellèra ao
amigo, por onde espera\a seria mais pro-
Fk, HfiNRiQUE Suso. 3l5
Teitoso á sua alma, e teve ruidaclo ãs o
fazer cotn testemunhas dignas de fé, e d.ín«
do estreita conta de tudo a sens superiores.
Mas não bastou nada para deixarem de se
llie levantar daqui grandes contrastes. Por-
que o Cónego tinha um filho bastardo , o
qual, depois (jue des!)3raton e consuinio toda
a íazenda, que o pai lhe deixnu, desbaratou
também a vida e a ahna. E assim deu em
perlender com tern.o e cobiça desenfreada
o dinheiro, que o Santo recebeo. Vcndo-se
desesperado delle, man(h)u-lheaffiíin.ir com
juraníento, que onde uner que o topasse o
liAvia de matar. E tal foi o ódio, que lhe
tomou , que nunca ninguém o pôíle miti-
gar por mais que se tentou. Em fjm ellc se
deterníiiuui de todo em todo nialar o Santo,
o quaí, vc!ido o perigo , e vivendo enj contí-
nuos receios , não ousava sair por fora livre-
riicnte com medo da morte j e levantando os
ollios a Deos dizia suspirando : x^h , Senhor,
que género é de morte o que determinais,
que deseslradamente me acabe ? Accrcscen-
tava-lhe a desconsolação saber, que havia
pouco, que em outra Cid.ide íòra morto
Tim Erade honrado por causa similhanle.
Nunca o afíligido Santo achou ninguém
que se atrevesse, ou«qiiizesse valer-liie neste
enfadaaieulo , pelo muito que obrigava a
3i6 YiEA. DO Eeato
todos a ousadia e desatino do mancebo. Fi-
nalmente tornou-se a Deos, que o lavrou,
acabando com morte acelerada nni corpo
rijo e robusto, e na íior da idade, qual era
o de seu adversário. Para este n)al nào ficar
singelo, ajiintou-se-lhe outro bem duro de
levar. Havia certo (loliegio, a quem o Có-
nego tinba dado muito de sua faienda , com
que não contentes os collegiaes perlendião o
dinheiro, que dera ao Santo; e porque lh'o
negou , accommetterão-no com aniuios da»
nados, e pozeráo-no em estado do ficar por
barreira de quantos o querião maltratar.
Sendo assim que o iufanjarão entre secu-
lares e religiosos , publicando cora sentidos
torcidos e intrepretados á peior parte quanto
íizera em sua vida, e espalhaudo tudo pela
terra entre toda sorte de gentes, por manei-
ra , que íizerão que pelo mesmo, que para
com Deos estava isento de toda culpa , an-
dasse mal julgado diante dos homens; e se o
negoeio c'o tempo se ia apagando ou esque-
cendo , tornavão-no a atiçar de novo , e
não cessarão muitos annos até deixarem o
Santo bem moido, e atropellado. No tempo
q<ie assim andava perseguido, appareceo- lho
muitas vezes o Cónego vestido ricamente
gUi uma roupa verde, toila semeada de rosas
ncarnadas ; e Uissc- ao SaiUo, que eslava
e
Fn. Hl!?rique Slso, 3iy
bem; e encommenclou-lhe, que levasse
ooin paciência a cruei senirazão , que por
sua causa lhe i^aziao , ficando certo, que por
Deos seria brguissitnamente consolado. E
pergiintaudo o Santo, que í-ignificava aquel-
le tortuoso vestido, que trazia , respondeo
assim : As rosas vermelhas em campo verde
signiíicão os trabalhos, que padeceis, e o
sofrimento com que os passaes , que são
duas cousas, com que vós me ataviastes da
mauciía, que vedes, e por ellas vos vestirá
Dcos eternamente de si mesmo.
c A p í T x; L O XLVir.
Em que o Beato Fr. He?iriqne ensina cnm um
successo seu , quão necessário c pelei jar va»
lorosanieiite , quem periende alcançar vito»
ria espiritual,
li Oj principies de sua conversão desejava
ir. Henrique por extremo contentar a Deos,
mas queria que fosse sem trabalho, nem
pena sua. Acontecco pois qiu', saindo uma
vez a pregar pela comarca th» lugar, onde
morava , entrou em uma náo no la^jo de
Constância, c topou nella entre outros com
um mancebo mui geutilhomem , c loueâa-
3l8 ViDi DO DeATO
mente vestido. Gliegou-se par.-^ e-leo Santo,
e começou-llie a jjerguntar quem era , e do
que vivia. Ao que o mancebo responcleo,
que seu otficio era assistir entre fiíi.ilgos em
justas, e torneios, e ensinar este, c outrt»5
<íxerciiios. E ajuntoji r.ais , que estes taes
erão mancebos , queservião f()rn:osas damas;
e o que enlre todos se mostrava mais esfor-
çado , ficava com a victoi ia , e se Hie dava a
honra , e o preço delia. Per^^nntando o Santo
qual era o preço, respondeo : que a dama,
que em graça e geiulleza , se a\antajava a
todas, as que erão presentes, lhe metlia uni
annel douro no dedo cm premio de seu es-
forço. Inquirindo mais o Santo, que cumpria
fazer a quem pertendessc alcançar esta hon-
ra. A honra , disse , ganiia só a({uelle, (}ue
sofre mais pesados golpes, e maior trabalho
sem cansar, nem quebrar de animo , antes
cada vez se mostra mais duro e mais inteiro ,
e deixando-se icrir de todos não se dobra,
liem al)a!a com nada. Dizei-me, rogo-vos ,
tornou o Santo , se basta sair um íiomeui
bem da primeira alronta. iSão, respondeo ,
antes é íorçado manter o j<^go alé o cabo. E
ainda que cáião tant<ts golpes sobre elle,
que lhe facão sair logo ptdos olhos, e rel)en-
tar o sangue pela bò<a e nari/es, tudo lia
átí sofrer, se quer ficar com houra. Replicou
Fn. Hzr^RiQUE Suso, Srj
outra vez o Santo d<?sejoso de llie nao ficar
nada por saber. Sofre-se, dizei-ine, chomr
um homem, ou torcer o rostro , em quanto
dura a força desse combate? Por nenhum
caso, disse o mancebo; e ainda que o cora-
çiio lhe morra denlro no corpo , como a mui-
tos acontece, <:ouvém fazer semblante
alegre. Porque do contrario lhe nasceria
ficar um alvo de toda a 7,ombaria e riso, e
perder a lionra e o annei. Tendo Fr. Hen-
rique ouvido as cousas, que temos contado,
obrigarão-no ellas a entrar em si , e dando
um suspiro saído dalma tlisse: Ah sobera-
nissimo Deos , digno só de ser servido sobre
toda outra cousa, se os cavalleiros deste
mundo se obrigão a padecer tanto por tão
fraca paga , que em fim nào é em si nenhuma
cousa, quanto mais razão será , que entre-
mos em n^óres afrontas por alcançar a glo-
ria eterna ! O' quem feira merecedor, piedo-
síssimo Deos , de estar assentado nos livros
da vossa espiritual milicial O' formosissima ,
ó Eterna Sabedoria , com cuja graça , e boa
sombra não ha no mundo cousa , (JU(í tecdia
comparação. Se vós me quizesseis dar este
annel, a ceei tara eu a essa conta padecer tudo
quanto vós niandareis. E começ<m a chorar
eom grande fervor. íMas tanto que chegou ao
lugar para onde caminhava , vierào sobre
3ao Vida do Beati
elle tantas, e tão Ijravas trlhultirões , que
quasi chega>a a desesperar de Deus ; e muita
gente tliorava de lasíima delle. E nm dia,
perdida toda a memoria da ^alo^osa e in-
cansável niilicia, a (|ue com tatuo gosto se
oíTerecèia com lagrimas em íio, e al^^um
tanto impaciente contra Deos , poz-se a
imaginar que razão haveria paia Deos o tra-
tar tão mal. Na maubiTa seguinte, antes de
esclaret er o dia , estando sua alma em um
roubo dos sentidos gozando de uma saborosa
paz e quietação , sentia que interiormente
lhe íallava uma voz desta maneira : Ofide
está agora aquella excelienle .milícia, que
professastes ? aquelle valor estremado, que
promettias? Assim passa sohlado de palha,
e homem de trapos , ou vilmente envolto
nelles , orandes (onfiancas na bonança : e
em se toldando o tempo , logo espíritos que-
])rad(»s, logo amos mulheris Não se abanca
por certo desse m(ui<) aquelle eterno annel ,
que tu desejas. .Verdade é, resjíondia o Sapi-
to; mas, Senhor , as l)atalhas, cm que me
vós metíeis, e t:m (jue convém engeiíar-me
eu a mim, e laigai-me em vossas mãos
aturando o peso dcilas, são demasiadamen-
le tontinnas. A jsto se lhe deu de improviso
esta resposin: Pois tand^em a i.onia, a glo-
ria , e o aunei uoò meus soldados, a que cu
Fr. Henrique Suso. Sai
liOTiTcr de honrar, é tudo |^erpetno. Caindo
o Santo na conia com estas palavias, e cor-
vencido delias disse cem giande hi n ildade:
Dijj^o minha tuljja , Senhor meu ; Tf)^o-ios
sóinerite que me deixelí) fartar de choiar, já
Çbe este meu coracào total meiíie rio pócle
ter as lagrimas. Mas o Senhor: Ah vergo-
nha, disse, queres chorar couio mulher?
Deshonrar-le-has de verdade diante de lodos
os Cid.idàos do Ceo. Aliujpa os oUios, faze
bom rostro, que nem Deos , nem os homens
entendáo de ti, qui; choras de altrihi h do»
Começou então a rir um pouco, conciido-
Ihe todavia as lagiimas cm abundância, e
prometieo a Deos de não chorar d'alii cm
diante mais , para poder merecer c alcançar
o anneL es^jiritual.
CAPITULO XLVIII.
Como, pregando o Santo, lhe resj)landccco ê
rostro ccino o Sol,
JL Rc^gava o Santo Y\\ Kcnviqne uma vcs
cm Colónia mui de proposilo e < on» grauííc
fervor, e estava presente um no\o M-ldado
da milicia de Christo , cnliado de | ( i < os
tlias iiO caminho da pcríc.çáo, o cji ai ancúva
] I
Sas Vida do Beato
assas atribulado. Estancio este homem c*of
olhos e attencão proniptos no Santo , vio
com os olhos d'ahna trocar-se-lhe o rostro
em uma claridaíle por extremo agradável ; e
notou, que ires vezes ficara tào resplande-
cente e claro , como é o Sol , quando o ar
está mais puro. De maneira , que sem ne-
nhum estorvo se pôde estar vendo nelle,
como em um espelho. Teve poder esfa visão
para o dei.ar asseis consolado e animado-
em seu trabalho, e para o coi. firmar na santa
fida , que começava a empiender.
CAPÍTULO XLÍX.
e ultimo.
Da deçoeiOf que o Beato Fr. Hc^nrique tinha
ao saudável nome dd JESV.
X Assando Fr. Henrique de Alh^manha a
alta para Aqni^grano em romaria a uma
imagem da Viij^em 'gloriosissima Senhora
nossa , que natjiiella Cidade ha de muita de-
voção, ^iu tempo, que se tornava , appare-
ceu a mesma Senhora a umi santa donzella ,
e disie-lhí3: Eis [uo é vindo o .Ministro de
meu i''ilho , e deixa espalhado por ioda partt
Fn. Henrique Srso. 323
seu suavíssimo Nome com íerTor admirável,
roíiio ontigamente fizeião seus Apóstolos.
Que assim como elles desejavão persuadir
ao nuiiulo todo a féChristria, e ílar-llie a
conhecei- aqueile Santo Nome; assim Hen-
rique se occupa , e emprega todo em o en-
tranhar em todas as almas frias coiií um
Jiovo ardor e caridade, e em íazer , que este-
ja vivo e aceso relias. 1-elo que depois de
sua morte tan)bem terá seu galardoo com os
Santos Apóstolos. Passado isto , tornando a
<lonzclla a por os ollios na Sonhora , rio
que tinha na inã.o uma formosa candea ,
que ardia cora \anta claridade , que alhi-
miava toda a teria, e toda em roda esta-
va seuieada de unias letras, que roiJtií;hí:o
o Nome de JESU. Disse entào a Mái de lUos
para a donzella : Esta candea acesa significa
o Nnatji*. rlp JFSTT j nome , que na verdade
€ luz de todos os corações , tli^jo daqueílcs',
íjue devotamente o agasalhao e veneráo,
e o trazem cf)msi^o com afíeclos de amoi (í
piedade Chrislãa. E a esle fim es(olheomeii
Filho a Henrique por seu Ministro , para
que por seu meio ^^uidodo tome seu
íiome fogo com chammas <le alvoroço, e <le-
\'ocão em muitas almas, que ganhem dahi
avantajarem-se no caminho de sua salva-
ção. Esta mesma donzella, depois que notou
5^4 Vida do Béíto Fr. íÍenriqte Srsc*
cm muitas cousas, ler o Santo , fjue era seu
Padre espiíiunl, uma niaiaviuiosa fé e
ílcvoíjao neste suavíssimo Nome de JESU ,
coiíio quem o esculpira com suas mãos na
própria carne sobre os peitos, começou tan^
bem a amal-o "veheinentissimamcnte; e to-
mando um pequeno panno , bordoii-o nelle
com uns fros de seda carmesim , querendo
trazei-o conislgo secretamente. E por cble
modo fez um numero iníinito de nomes, e
acibwu com o Santo , qr.e os tocasse todos
em seu peito. E depois lançando-llie a ben-
ção os mandasse por toda pane a seus con-
fessados. Teve depois esta Santa uma reve-
iacào , em que foi avisada da parte de Deos ,
que toda a pessoa, que por aquella ordem
trouxesse comsiofo o sacratíssima Nome de
JESU, e á sua bonra rezasse cada dia a
eraçfio do Paler uoster , o mesmo Senhor a
trataria coru amor nesta vida , e usaria de
misericórdia cota ella na outra. Sirva-se
Christo JílSU nosso bem de nos fazer a
todos esta mcrcc. Ainen.
325
SERMÃO L
DO
Santo Fr. HENRIQUE SUSO,
DA ORDEM DOS PP.LGADORES
De como se vencerão algumas tentações molestlssiinai
aos que de novo se toruão de véias a N. Scuhor.
Traduzido de AUeinxo cm Latim
CARTUSIANO ;
í agora de Latim cm Portut-iiez por um ReVj^ioío ds
Ordem doj Prét-aclores.
Lectidus fioslci' floridas,
ALgiins lia que sã!> vexados de perplexos
escnipuios de consciência , c graiuicinente
atormentados náo achnitiem remédio, nem
querem seguir conselho; com o que náo
dão lugar, a que o Serdior JESU taça em
seus eoiaçóes morada; pela sua grande in-
32 6 Sermão do Beato
quietarão, a qnal Jcveráó lançar uc si muito
longe. (juer. o Senhor JESU ser ngasalhndo
em consciência pura, variada de divetsas
flores de virtudes : e com quanta rasão ; por-
que quão dissimilhante é um leito, ou prado
cuberto de rosas, lirios, e varias flores para
se nelle descansar suavemente, do campo in-
culto clieio de espinhos, cardos, e abrolhos,
tanto ditíere da consciência de um animo
desordenado da de uma alma bem concer-
tada. As dilicias do Senhor sfío descancar em
morada de flores; o que bem o entendeo a
Esposa Santa nos Cantares quando desejando
ooziir dos amorosos abraços do Esposo disse:
LectuIiLS no^tcrfloridus. Como se dissera : O
llialamo está fechado e perfeito , o leito de
nosso amor é cuberto do flores : vinde pois
amigo desejadissimo , que já nno falta mais,
que fazerdes, que esta alma descance nos
Ijraços de vosso immcnso amor.
Porém alguns homens ha , cuja consciên-
cia não é ornada do flores , mas lem o cora-
ção feito um u»or tório de esterco , e immun-
dicias; estes são aqutílles , cujos vicios se dcs-
■ aforÁrão, gente entregue aos vãos pensa-
me!:tos e honras do mundo, dos quaes não
ha que tratar cm este lugar.
Outros ha que padecem tentações occul-
tas dentro no interior de suas almas , as quaes
Fr. Henrique Srso.' 327
jiiTicía que sejáo muitas , entre todas com
tudo ha três tão molestas e pesadas , que
outros se lhe não podem comparar. A pri-
meira é desordenada tristeza , a segunda de-
masiada afíhcção , a terceira grande e vehe-
mente desconfiança de remédio.
Quanto á primeira é necessário saber,
que o homem ás vezes é opprimido de tão
grande meUincoHa , que nem vonf.nde tem
para obrar cousa boa, nem ainda forças, e
«'^{ue mais é, que nem conhece o qtie lhe
falta, nem percebe a cansa da dor que pa-
dece, inda que faca muito pela descobrir.
Este sentimento parece que quiz em si de-
clarar o Santo Rei David quando disse:
Qiiare trlstis es anima mea, et qiiare contar"
has me? Como se dissera : Alguma cousa te
falta, mas nem tu, alma, sabes o de que ne-
cessitas. Espera em Deos , e melhoraras,
porque ainda lhe hei de cantar h)uvores com
gosto. Esta tristeza muitas vezes nasce da
complexão natural , o que é para sentir,
porque a muitos faz deixar o Ijeni que co-
meçárfio. Pelo que é certo, que a 'ícnhuni
dos nascidos é mais necessária uma invenci-
Tel constância e h)rtaleza decoração, que
áquelles que se apostfio a entrar em batalha
com os vicios , tom animo da alcançarem
tlellea \ictoria: porque se o hoiucm tstiver
3-25 Sermão do C£a.to
no animo ])em firme, ajudado da ginça d©
Espirito Santo , que moléstia corjDoial ii.i-
verá, que o possa enfraquecei? c pelu con-
trario, como poderá viver se continua mento
trouxer o coração apertado de afíliccóes , e
carregado deste deleixamento? Peli> que
deve cada um procurar com todo o cuidado
livrar-se deste mal. E se me perguntarem
como se poderá ver livre delle, notem bem
o erieujplo, que se segue :
A um Ministro da Sabedoria Eterna no
principio de sua conversão accommelteo
com tanta íorça este desordenado aífccto de
tristeza, que nem podia ler, nem orar, nem fa-
zev alguma outra obra boa. liste pois um dia,
estando sentado na sua cella, grarulemente
opprimido deste mal , e com g^^ande dor e
magoa, ouvio uiwa voz de cima, que lhe
dizia intelectualmente: Que estás aqui assen-
tado ocioso consummindote em li mesmo?
lovanta-te , e póe-le a meditar com devacuo
na minha morte e paixão; e com a memo-
ria das dores, que nella padeci, sete alliviará
este tormento. O que ouvindo aquelle Reli-
gioso lovanton-se , e pòz-se a meditar na
Paixão de JESU; e do ponto, que comectm
este exercício, lhe fcd mezinha tão saudável
que nunca mais sentio similhante aflliccão ,
que, v,iU'ndo-sc do remediu Divino, não fos-
se aliiviado.
F». Henrique Suso. 829
0;:tra tentação interior c uma agonia ,
c aperto (lo espirito: os que padecem esttí
luaí cliegão a conhecer que liies íalla alguma
cousa , isto é , que não estão bem conformes
com a vonlíKic de Deos. Nasce este tíc"Í'> do
fazerem mais caso , do que convén>, daqiuUo
de q!ie se v.?.o deve fazer conta , especiat-
mente da affllcçào, que por permissão i3ivina
interiormente padecem. Quatro são a5 af*
ílicções, que podem molestar o coiacão liu*
ri)n!i{>, as quaes ninguém pode crer quão
duras sejão, senão quem as experimentou ^
ou a quem nosso Senhor deu espirito para as
entender.
Por quanto no «m que devia o rstes
miseráveis sentir algum aliivio, que é em s*.
t(jrnar a Deos, ahi são mais gravemente ator-
mentados, vindo-ilie então os mais perver-
sos e abomináveis pensamentos contra Deos :
pjorém estas tentações nfio são pesadas por-
íjUe causem algum mal grande na alíua, mas
por causa da grande moléstia , que delias nà
recebe , com que atravessão o coração.
São pois estas tentações duvidas, e
pouca íirmeza na fé, desesperação da Divina
I\Tisericordia , pensamentos de bla>lemia
(ouiia Deos, e seus Santos, e sobre tudo
tlescjtís de se tirar a vida por suas mãos: ile
Iodas as quaes não deterniino tratar, mas st»
33o Sehjiao do Beato
tia que está em segando lugar , da desespe-
ração da Divina Misericórdia.
Esta desesperação pôde nascer de três
causas, de nfio sal)eieju bem considerar,
que cousa é Deos, que cousa seja peccad<i
mortal, e que cousa seja contrição verda-
deira.
Deos é fonte de Misericórdia, que não
se pode esgotar ; e de natural tão benigno ,
que nunca pôde baver mãi tão pia , que
\endo um tilho de suas entranhas no meio
de uma fogueira lhe acuda com mais pressa,
liem maior vontade ao tirar do fogo , do
que Deos acode a receber um peccacíor ar-
rep' ndido, ainda que , se fora possivel , ti-
vera cada dia muitos milhares de vezes com»
inetlido todos os peocados do mundo.
Donde vem logo, ô l)enignissimo Senlior,
que sejais para alguns tão amável , e que al-
gumas alma^ tanto sem par se alegrem em
vós , e reccbão de vós tantos júbilos espiri-
tuaes ? Por ventura atti ibuir-se-ba isio á
sua innocencia ? n;To por certo : mas conu>
conhecem bem suas culpas, e quão indignos
s'io de pordes os olhos nelles , e que sem
embargo de tudo, sem teides necessidade de
ninguém , vos communic.íis ião liberalmen-
te, dando-vos a vós próprio, conhecem que
esta é a causa, por quw vos gint*fiw «ni leui
i
Fr. Henrique Suso. 33;
novações Senhor tão grande e tão suave.
Píirqiie na verdade tão fácil vos é perdoar
um, como mil talentos; dar perdão a um
só , como a innumeraveis peccados mor-
taes. Vence sem falia esta vossa benigni-
dade e clemência a toda a lijjeralidade e
mansidão, porqne nem estes , qne isto co-
nhecem, poderáõ nunca dar-vos as devidas
giaras ; por isso derretem suas almas, e co-
rações eia vossos louvores : estes sem falta
são para vós de maior honra e louvor, do
que se nunca peccárao, vivendo com frieza e
com menos amor , como se pôde bem pro-
var com as Escripturas , porque não attenlais
(como diz S. Bernardo) o que o homem foi,
senfio o que desoja ser com aflecto de seu
coração. Pelo que totlo aquelle, que vos ne-
gar o perdoardes peccados , ainda que seja
])or tantas vezes, quantos são os momentos
lio tempo, sem falta é rouhador e ladião
de vossa grande honra. Porque o pcccado
vos trouxe do Ceo á terra , a vós, digo,lie-
demptor tão piedoso , e tão amável , que
em todos os momentos com grande prom-
pti'lão estais aparelhado para nos receber d
vossa graça.
Quem por esta razão souber ponderar o
quem Deos é (dé-se David por fiador) não
jnjdtMii desconfiar de l)eí>s, nem dose.-^peiar
dtí sua Divina Misencoidiii.
332 Sermão do Beato
O segundo, que não sabem considerai,
é, c.ue cousa seja peccado. Na verdade aquil-
lo só se ha de ter por peccado no que o
liomem com deliberação certa, com adver-
tência , e vontade, sem reclamar a raíCo se
quer apartar de Deos, e passar á maldade.
Mas se uma alma ainda em toilos os
momentos lhe vem máos pensamentos, pos-
to que sejáo tão encerrados, que nem o co-
ração hun»auo os possa formar, e tão fci'>s ,
que nem a hngua os possa pronunciar, do
que quer que sejão , ou de Deos, ou das
creaturas : e posto que este homem ande
\\m e outro anno , e muitos annos neste
estado , sem os' poder nunca lançar de si ,
como os aparie com a razão superior, e lhes
resista e repijf^ne de sorte , que nunca
lhes de consentimento com plena delibera-
rão, e inteira vontade: e postt) que anile a
braços com o peccado quando a natureza
padece este trabalho, seja certo que nunca
commeltepeccado mortal: o que se pôde pro-
sar com as Sagiadas Leiras, e sentenças da
I^i^reja Catholica , pelas quaes nos ensina o
Espirito Santo.
Mas fica aqui escondido um aperto, que
é umsulitil fio, queaqui pôde haver: este é,
de aquelle a que vtMu um mão pensamento
destes lhe dá olho» com alguma deleitação ,
Fn. HENRíQtJE Srso. ^33
%iim pouco esquecido de si não tira dclle
lâa de pressa o animo, porque cuida que por
ist( só conseutio deliberadaihenle , e que
3cm temor do mal, que se íaz , assim com-
me!<!o pcrcado morial: o crue estamos mui
Icngt de crer , por qi;anto é parecer de mui-
tosSa>tr.ç Padres, qu'j sobreviudo-nos grnude
imporliuacão de pensamentos n;áos, muitas
■vezes a razão se move com a deleitação , e
rSio por pouco espaço, mas por tempo lar-
o, pnmfciro que a própria ra/ão possa fa-
jr inteira leliheracão errada, e que então,
'-3 admiltir , ou rejeitar os taes pensamentos •
se diiá que r,ói\e conr.neUcr peccado mor-
tal , ou resiftii.
O que coi.-,o seja certo, não ha para que
tcnlião estes par.i si , qric crMumclLêifio pec-
t;ulo mortal, se é que querem darcrédlto in-
terior á dor.trina calliulica. S. Aííostinho
diz: que o peccado c ião voluntário , que se
náò for voluntário, não será peccado, don-
de aífirnjiTo os l}í)Ut(ircs , que se só Ev-a
comera, sem Adão consentir c(;m ella n:;.
culpa, nenlium dr.mno se nos seguira. Da
própria maneira . por Uiais pensamento.-^
uiáos que se leAa'Mjui na parle scnsili\a, !>e
a razão Il.es nf.o der seu ra\or, e tonstnli-
niciito , nunca ^^adcn» faztr pecíado níortal.
334 Sermão do Peat«»
A terceira ronsa , que lhes omi-c» o *
estes, é (n:c não s;iljcin ponderar , que ^ja
Terciadeiía contrição. E a conlriíão v"»*
virtude , (jue livra a hotneni de seus |)t<(a-
dos , se for jnnta corn a disciição doi'i.i.
Porque a conlriçào indiscreta (como /liz S.
Bernardo) desagrada a Deos. Jtida5 qije ven-
deo a Christo Senhor nosso , e Ca^ín que
malon seu Irmão, ainhos se c(»*íe>iáiáo
peccadores, nins desesperarão , e assim não
lhes faltou penitencia e dor de jeus pecca-
dos, mas foi sem o modo e f)rdem , que
convinha. Um disse : Pequei (^tregando o
sangue do justo. Outro: É la/nanho o meu
peccado , que não ni?rece pei"dão , é maior
o meu peccado que todo o perdão. Assim
dizem muitas vezes estes, de que imos fal-
laudo , com desordenada contrição. Mal é
"vivermoj: ó se já acabáramos? E muitas
outras COUS13 deste género , com que mais
offendem a Deos , que cam os próprios pcc-
cados, que temem commetter.
Ajiielle pois, quu deseja aU\inrar verda-
deira contrição e penitencia de suas culpas
^e peccados, por mais tornes e inormes, que
lhe parerão, seja cm si 1 u.niUhi, abi>rieça-os
de todo corarão, c tenha firme confivinça
eui Djos nosso Senho • , que elle como ver-
dulji.a mjdií.ô de nossas almas só lhos pode
Fr. HENniQrE Sr «o. 335
Mirar. Daqui veio dizer a Sclíecloria Fterna :
flho, na\ua fraqueza não le tlesestinies a
ti ,n)as roga ao Seiilior , que elle te curará :
ikIo será grande fatno iuRielle que , porque
vè lie fiilla um ollio, se arrancar o outro
por sias pioprias mãos?
^«íis cousas porém se podem c devem
ronsidirar nestes medrosos corações , que
relles si soem adiar. A primeira , que te^do
o jnizo -ivai errado e alheio da \crdade,
nfio qnernn dar ciédllo a quem devem se-
guir, e nuaiio menos áquclles , que lhes
dao I azoes ,com que pudèrão recehei' con-
solação ealHio, dando peh) ctiutiario intei-
ro ciédito áqtcHes, que Uses dizem cousas,
com que se li^ agrava o mal e a moléstia,
que padecem; oquu lhes succedc por causa
da (iòr, que iraTj-m na alma quasi contiinia-
nienie. Também em outro mal, que decla-
lão facihncnte todos os seus trabalhos e a
causa, com pretexto de pedir consch-,çào
e ajuda , e não co^vém ser assim , pois c
certo que pouco, ou neiílíi.m proveito tirão
de aqui ; antes qnanth) buscfio muitos mais
remédios para seu mnl , ta!:lo m.tis força
toma a afílicção , que pndectm , fòra-lVics
bnm conselho buscar algr.m varão tenienfr
a Deos de letras e expeiientia, a quem ec
«níregassem tlc IcTo o coração, dando-lhc
*3^ SermÍo do Bea^to
inteiro crerllto sem replica , n;m gcnciv
algum cie duviíla, porque no jiiizo íina^a
esie, e não a elies pedir.í Deos conta de
suas almas , se pelo menos de sua parte -ite-
rem o que nelles é, para seu remédio.
O segundo , que os inquieta, é um liedo
conlínuo e vão de nunca ihes parecer que
se conrejsrio bem , por mais lotr;ulo (<ie seja
o confessor, que os ouve: também e<es, por
mais q;ie trabalhem quanto em si à , nunca
cIi3g.To a ter a verdadeira tranquilidade de
nnimo , e paz de coraçrío : a caus^ é , porque
nfío sabjui muitas vezes que p^ccados hão
íIb coufcisar expressa e di.stiuct;mente. Certo
é que só os peccados laortaes^e hão de con-
fessar , dijo, é necessário co-lfessar expressa
e discinctu mente ; dsjs maisbasta fazer uma
mensã-j geral. E como quef que nas Tenta-
ções , de que temos dito, não ha peccado
mortal, não ó n<'cessario, nem co!ivém qu«
os coníeisem toljs pe.'o miúdo expre^sa-
inanle; l>asta dizelos em sjeral seiíundo a
prudência do c:in!c'S5(jr; porque esta escru-
pulosidade de coato^siar tudo pelo miuilo é
traça do demónio para tirar a paz da coií-
sciencia e quietação da alma; e portanto se
Ihi d^ve reilstir com lo lis as forças ; pois
ve:n:)5 que quanto mais se obedece a estes
t'..-.\i,):il-)i , yinio mais crescem, c tanlo
r.Kiii embarac^a fi'ja a couscienci*.
Frí Henrtqte Suso. 33^
o terceiro erro (]'estes , que nun* to pe-
noso se lhes íaz , é que queieiu ler srien-
cia, e certeza igual das cousas , em qtie a não
póile haver; querem saher tle certo se lem ,
ou não tem pescado mortal , sendo cousa
averiguada segundo nossa fé, que ninguern ,
por mais Santo que seja , prxle nesta vida
saher se está em graça , se Det^s llTo não re-
velar. O que hasta nesta paile é, que feito
diligente exame de consciência, nào »e athe
iiella peccado mortal certo. Assim que q«;erer
saher isto com maicir certeza , nasce ile
ignorância , com>í se um nienino quizer sa-
ber o que :» liei tinha no seu c»nacrio. Por
tanto assim como o doente lefu ol»rii:acão
de crer ao medicív do hcm , ou nuil de sua
enfermidade , como aquelle que meihor en-
tende a doença do próprio eníermo , assim
os h'!mcF)s desta laya tc.n (íhii^Mcão de crer,
e obedecerem tudo a um confessor piu-
dente.
O quarto erro destes é que são tentados
de impaciência contra Deos , a qtial procede
án mesma affliccão , qtie pa'lecem; porque
Como nã » são provados em outros trahallios,
aconlece-lhes o que a um cavallo duro do
freio, iridí)milo, alado ao corhe , o qual,
depois de muito coucear por se livrar, de
cansado vem a se sogeitar, e pouco a pouco
338 Sermão do De ato
amansa das primeiras fúrias. Assim estes em
quanto se oppóera ás suas afíliocóes traba-
lhando muito por se livrar delias sem aca-
barem de se sogeitar , e resignar de todo á
divina vontade, roníórnies em sofrer estas
cousas quanto for ordem de Deos , são pof
isto gravemente atormentados; nem se po-
dem livrar delias , porque núo \^óáe ser
menos que piulecel-as, até que Deos ponha
os olhos em seu trabalho e sofrimento, o
qual só saln^ quando Ihics convém serem li-
vres dtilas. Peio que nenhumíf^cousa é mais
necessária para reriíedio deste mal , queresi-
gnar-se e oííerecer-se uma alma com grande
humildade , para as sofrer em quanto for
vontade do Senhor, e pedir-lhe ajuda com
pacieucia , valendo-se das orações dos bons.
O quinto erro , e o maior euíjano em
que andão, é querer responder a todos os
niáos pensamentos, crendo-os, e respon-
dendo-lhe , e com razoes procurar conven-
cel-os, -vindo a disputa com clles. O que se
deve evitar com grjmle cuidado ; porque
pelo mesmo caso que se põe a lutar com os
taes pensamentos , seembaracHo, e deixão
perder de sorte, que lhe não fica saída por
onde lhes possão encapar.
Pelo que o mais acertado e seguro con-
«elho é , tanto que vier um pcLsameutu
Fií. Hl^rique Slso. 339
destes, sem coiítí-^nda, nem nrginnento, e
sem pôr.; algum estorço por lhe r^iisistir , o
mais d« pjessa que puder divertir-se, e pôr
o sentido em a primeira coiisn que acertar
dever, ouvir, 011 conliecer. Corno se dis-
sera : lá íe liavém com teus susunos , que a
mim me não tofão;não é a-Cua maldade
para alguém t^ querer responder. Porque
na veidade quanto menos caso se faz destas
importunações, tanto mais de pressa se des-
fazem ; e assim se deve repelir este remédio
uma, e outra vez, até qtie fique em uso.
Porém estas cousas só as alcanção os que em
si as cxperimentão.
O sexto engano é , quanto mais sagrados
são os tempos , e quanto elíes de melhor
vontade se cliegão a Deos , tanto é maior a
sua afihcção, de sorte que nem um Pater
nosler ^ ou A^^e Maria podem dizer sem estes
susurros diabólicos: d*oude os pobres, vindo
como em desesperação, deixão a reza, e
(hzem coiijsigo : Que me podem aproveitar
orações túo cheias de torpez.is? N<> (pie crráo
grandemeiíTe , c fazem a vontade a seu ini-
migo , CUJO intento não é outro, que fazer
com que tenhão pouca estima dos exercicios
espirituaes, lhes pareção de nenhum pro-
veito, e por isso os deixem ; sendo assim,
que a tal oração , ainda com todas aquuUas
84^ SermSo do Beato
trovoadas de tentações, e de m á os pensa-
mentos , que tanto os atormenta, não é
pouco agradável ao todo poderoso Dccs;
porque, coiíio diz S. Gregório, muitas vezes
o coração do homem é tào gravemente per-
turbado , que se não sabe li\rar da tribula-
ção, mas no meio dessa aí-licção o mesmo
trabalho esta iniercedendo devotissimamenie
diante dos Divinos olhos pelo próprio co-
ração , que a padece. A mesma amargura
da tribubação do coração afflirto , rebizindo
nos olhos de Deos, mais de pressa , do que
outro exercício (|ualqi!er espiritiial, inchna
a sua Divina iMaç:;e5tade a este coração aííli-
cto, fazendo-se-ihc força para que mais cedo
lh« acuda com seu favor. Por tanto nào se
interrompa pfjr esta cansa obra nenhun^a
boa, não se deixem orações , nem o ir á
Igreja , que é uma das cousas ijue mais mo-
léstia dá aos demónios. P<irque o que faUa
ao assim perseguido na pureza da oração,
isso se suppre corti a niokstia da aííHcçáo , a
qual por isso grandemente contenta ao pie-
doso Senhor. Porfjue muitas vezes ouvimos
melhor , e com ni.iis tenção, a(|uclles, qut
por fraqueza escassamente podem lançar uma
palavra pela boca , que aquelles , que com
inteiras iorças, e voz nos pedem; sendo
assim que quanto mais larQ\'\mos o exercido
Fr. HETTF.iQrE Sus©. 541
t!a orncáo , tanto mais nos accommodamos
c*jm o inimigo de nossas almas.
Porém sendo rerto, como temos provado,
que nestas aíílicçóes não ha peccado , é para
perguntar a causa, por que Deos nosso Senlior
deixa atormentar tHo gravemente t s qne as
padecem ; aos qiiaes não apontareis pena ,
0!J tormento corporal, que de boa vontade
não acceitem por se ver livres desta tentação
de desesperaçáo. Na verdade estes e alguns
simplices sem experiência persuadem-se , que
isto não é sem culpa sua : mas o contrario
se mostra ])em claramente , advertindo qu«
tanjbcm padecem este Irnlialho muitas pessoas
de grande virtude, e santid'ade conhecida ,
como se vê por experiência , além do que os
Santos escrevem e icstiíicão. E pelo contra-
rio vemos homens de consciências perdidas
e torpes, scmntnhutna perlurb.íção, nem in-
quietarão interior, sendo assim que alé nos
meninos innitasvezes acontece verem-se estes
trabalhos, antes de poder haver nelles pec-
cados giaves.
Pelo (jue se alienem depois de haver toma»
do o liabito de alguma Religião, ou depois
de conhecida a verdade, por culpa sua vier
a padecer estas tribulações , deve dar por
cilas muitas graças a Deos: porque , romo as
Sagradas Leiras' nos eusinfio, c grandissimo
34^ Sermão do Beato
slgnal, e prova do amor Divino não deixar
por luuito teiuposuccederem as cous;>s a V(;»»-
tade dus peccadores , mas appliear-ibe logo
em continente o casti^ío.
A causa por que o sapientissimo Senhor
com esla tenção de (i^iesperacão queira antes
abater a soberba destes, quebrantando-os
e domando-os mais com esra tribiiiacíio, que
com outras , isso é segred») de sua alta pro-
videncia , o que também devem entender,
e confessar os que as padecem ; porque como
o Senhor tenha bem conhecido os corações
dos homens, almas e coslunits , como me-
dico Gel applica a cada um a mesinlia. que
mais lhe conveai. E se me perguntar alguém
de que utilidade j)óde ser esta tentação de
desesperação, cmií grande certeza dij^o, que
delia se tirão muitos e grandes bens espiri-
tuaes.
Primeiramente os homens por natureza
soberbos, por nenhuma outra via melhor,
e menos sem elles o entenderem, podem *=or
trazidos áhuniihlade verdadeira , niãi de to-
das as virtudes; porque os que são opprimidos
desta tentação pela torpeza e suavidade de
seus pensamentos, vem a conhecer a fealda-
de e enormitlade dos pcccados mortaes; o
que d'antes não conheciào , como provámos
ao principio, Cuusa cerU é , que ler um
Fr. Hemuqtje Susf». 343
homem um só pensa nien lo de vangloria o
fará mais disforme diante de Deos, que mil
pensamentos, tilhulaçóes , e angnsiias, que
tieciaramos, o que se vê claramente em Lú-
cifer, o quvil sem padecer tentação nlgnma
torpe caio feiamente. 1'ermiltc pois Deos,
que seja um homem vexado de.sla moléstia,
para que aquellc, que íòr causa de inchação
de Seu coi arão , não se queria conhecer ,
pelo menos com e«;ta aíflicçào venha em co-
nhecimento próprio.
E assim succede que aqncllc, que d'antes
desprezava os outros, já se tenha por mere*
cfdor que todos o desprezem ; que cousa
lhe pode ser mais proveitosa que esta ? ou
que cousa o pôde mais de pressa tornar a
Deos? Por(|ue é impossível que Deos deixo
perder o verdadeiramente humilde.
Pelo que os que padecem esta cruz ,
assim pelo que nos ensináo as Escripturas ,
como pelo que consta da mesma verdade ,
devenj, prostrando-se aos pés do Todo Pode-
roso Deos, dourar esta tão execravel tentação
com piedoso fazimento de L,Macas; porque
esta afllicção não só tira a um homem da
boca do inferno, mas o levanta até o pór
nuC<!o, guardando- o de innumeraveis pccca-
dos com lhe dar tanta guerra , que se es-
queça do Iodas as vaidades do mundo j o
S44 SERMto DO BeíTO
que na verdade llie é o maior proveito , •
áe gríintlissiui;! ajuda para se a!>ia« ar (oiu
as virtudes: p')ique os que patlectm esta
teiitaçãíi são táo vexados delia, que vern a
tomar por remédio de sua necessitlade segui-
rem a vii-tude, e nada lhe parece impossível,
com que possão aliiviar sua cruz ou esqueccr-
se do mal que padecem, o que ainda que
facão mui de preposilo, nem por isso le-
vanta logo nosso Senhor a mão , antes os
deixa mais atormeníar com a mesma miséria,
até que depois de ajuulaiem grande celeiro
<le boas obras , sejão ricos da graça , e dt
"virtudes.
Daqui se deixa bem ver quão suave,
e beniguameute a Sabedoria Eterna dispõe
todas as cousas, pois se converte por ordem
divina emsalvaçfío própria, o que nuiilo<% tem
pv)r sua destruirão ; ahin de que se alilvia
com esta atlliccáo ^randu parle <las peuas do
Purgatório, e não só tira a pena dos que o
sofrem com paciência , mas «rangéa niere-
cimeuto para grande prémio : porque airula
que se conheião culpados em gjaudes pec-
cados (baute de Deos, seiáo contados entre
os martyres singulares , que não pó>!e l^aver
duvida ser esta vexação contínua , mais dif-
ÍJCultosa de sofrer que o ferro do algoz, qu#
Fr. Henrique Su5o. ' Si?
tle um g<^>lpe aparla a caijcça dos honibros,
Firiainit^iiie écousa averiguada n.is Escriptu-
ras Santas , e por experiência consta ser esta
vexação argumento de giaiide amor de
Deos a quem o padece, o qual se s<jj,ailrá
grande graça, e revelações de muitos, e
mysteriosos segredos divinos.
P«)r taiilo devem as pessoas , de que fal-
íamos , levar este trabalho , nã'» só com pa-
ciência , mas com muito animo e boa von-
tade, certos qtie esle bieve rigor, este,
como diz o Apostolo, leve momento de tri-
bulação obrará grande e soberano prémio
ria gloria. Do que seja boa prova uma Reli-
giosa , que havendo cm vida padecido ninito
nesta pai te, apparcceo depois de morta a
um devoto, dizendo, qiielhe scr\ira de pur-
gatório tuo perfeito, que sen^. mais se deter
fora logo em morrendo recei)ida a ver a lace
de Deos, o que nos dê a nós o Senhor
JESU , sendo «ngraadecido para todo sem-
pre. Amcn.
347
exercício
DA
ETERNA SAPIÊNCIA,
NA REALIDADE DULCÍSSIMO ,
REVELADO POR DEOS
AO
Beato Fr. HENRIQUE SUSO,
DA ORDEM DOS PREGADORES.
TradmUio de Latim em Portit^ttez por i:/n Religioso dm
mesma Ordem,
X Odo aqnolle, que deseja ser discípulo ama»
do da Eterna Sapiência, que c JESU Curisto
nosso Senhor, e junlaineiitc aproveitar no
amor de Deos , guardar-se dos males, sentir
os elTeitos da graça e hencào fan>iliar de
Deos, viver bem , morrer ditosamente, de
qualquer estado , e contlii.ão que seja , ob*
348 Exercício do Beat©
serve com tliligencia e cuidado as cousas
seguintes , as quaes srio tão niodt radas e
teiíiperadas, que sem difíiculdude alguma
qualquer pessoa as pôde exercitar sem pre-
juízo do seu estado e coudiçáo , porque
nfio contém preceito algum, inas só desper-
táo ao amor de Deos aquelles, que estão co-
mo alados de noxiífão e perguiça d'aim2.
Em primeiro lugar o discijjulo da Eterna
Sapiência não só deve apartar de si tudo o
amor próprio , mas procurar com todas suas
forcas de lançar de si , e aiTancar d'alma to-
do o aífecto desordenado , e torcido a quaes-
quer cousas da terra, e com isto eleger, e
tomar por esposa a Divina Sapiência :. mas
se al^um se vir tão embaraçado e preso do
«mor próprio , que lhe pareça muito árduo
apariar-se ílelle , este lai íoruje um propósi-
to e desejo na sua alma , de que se apartará
deste amor nocivo , tanto que em qualquer
occasiào se sentir tocar da giaça e auxilio
de De(js eíiicazinente, e com este propósito
comece este exercício.
Porém aquçlles, a^ucm não tem presos
o tal amor próprio ,C^com tudo são aluda
ne^liireutes, e íi i< s no amor divino , estes
tomem de novo por esposa a Divma Sapiên-
cia , renovando e:n si o .seu divino amor com
fervorosos affeclos , de soi le que , se Uaiiie^
Fr. Henrique Ssso. 5*491
a serrlão como a Senlior pelo temor da pena,
já daqui eni filante estudem af;rs0ar-llie,
como a esposa mui querida , nnindo-se com
ella por íerventissima caridade. Pesando e
pensando muitas veies a grande exceliencia ,
benignidade e t'oi4iio5a presença desta divi-
níssima esposa, ou esposo, conforme lhe
for mais suave nomeai -a , pois em Deos não
ha diíFerencas da sexos, sentlo, como é,
espirito puríssimo , e simplicíssimo. O* uma ,
e multas vezes ditosos aquelles, que forem
dio^nos de ser adunltidos á sua auiizade e
traio familiar. Porém este desposorio , não
só se deve frizer interiormente n'alma , senão
também exteriormente , para despertar o
fervor da ilevoção : mas em secreto , por
meio de certos siguaes devotos na forma se-
guinte.
Primeiramente todviaqnelle, que quer ser
recebido á iruiandad* da Kterna Sapiência,
dizendo tves* Paires nos fres ^ c outras tantas
j^i>g Marias em SGC*reto , prostre-se outras
tantas vezes em terra , offerecendo-se , resi-
gnando-se, e deixando«se totlo í» Eterna Sa-
piência. Peça-llie as arras do de^posítrio di-
vino , SC nova graça em slgnal de mutua
amizade, e fidelida<le perpettia , a qual nem
a morte, nem a vida , nem a/^uma crealura
possa nuaca jamais ^uebianUr,
35o ExETíCICIO DO Bea-to
Devem os clisí ipulos, que deveras vene-
rão a Etí^nia S;ipieii(ia , dizer todos os dias
as nuii devotas iioras e ofíiíio, que se clia-
ina vulgarmente o Curso da Eterna Sapiên-
cia, as quaes estão nas iioras de jNossa Se-
iihoia dos Frades Prégadt)rcs. Porém os que
não sabem, nem podem rezar -estas horas ,
diffão em seu lu^-ar sete vezes a oração do
Pater nosier com outras tautiis y/t'<? iSlarins^
SC. por cada liora um Paler Nostcr e uma
J[i>e Maria , e isto com tenção de que a Eter-
na Sapiência guarde suas almas e corpos de
serem presas e enlaçadas das vaidades e pe-
rigos deste mundo; mas que andando nelle
com cautela , scjão defendidos tle lodos os
males, e por caminho direito sejiío dirigidos
do Senhor d salvação.
Na mesa depois da Isenção commua digào
um Pater Ao.^ter e Jve Maria por esmola
espiritual ás idn;as , que tem necessida-
de no fogo do Purgaloiio , lend)iando-so
quào grande peiigo e comer de esmolas sem
agradecimento , e quão piedosa cousa seja
ajudar os miseráveis que se não podem valer
a si mesmos. E oulrosi considerem com
que graças as pcihres ahnas e necessitadas
do Purgatório receheráô as minimas mi-
galhas, que caem da mesa de seus s€nhorci
para seu refrigério , e allivio,
Fr. HE>'niQUE Suso, 3di
Dijno também um Pater nnster e Jve
Mn/ia ao cluU.issimo e saudável nome da
Kterna Sapiência, que é o Senhor JTSU , para
que o mL^iino Scídior defenda , e ampare
todos os discípulos da Eterna Sapienria , e
a [greja Cat}i'dlca de todos os contrastes e
ciladas dos inimigos , ajuntando estas pala-
Tras: Bento seja o doce nome do Senhor JESIJ,
e da gloriosa sempre Virgem Maria sua mãi
para sempre jamais. Amen.
E isto para que o Senhor JESU ( que
nestes tempos miseráveis anda ião desterrado
dos corações de muitos, porque lodos buscão
só o que é seu , e não o que é de JESU
Christo) havendo nos seus corações o se«
amor, inspirando nelles o seu nome suavissi-
mOjC meliíluo, e conservando-o para sempre.
Além disto os discipulos da Eterna Sa-
piência devem em certos dias do anno vene-
ral-a como a Senhora , e Esposa d'alma roíu
algum particular aíTecto , e obsequio <leter-
minado.
O primeiro dia é a primeira Dominga de
Agosto, em que se coine< ão a ler na leza da
Igreja os livros da Sapiência. O segundo dia
é o septimo antes da Vigilia do NaLil, em que
se começa a Antiphona : O' Sajyientia. Neste
dia , e nos que se seguem até áípiella noute
gloriosa y aiw a qual a Eterna bapi<;ncia ãC
Zdi Exercício do Peato
dignou entrar corpciraliuente ne-^te munclo ,
farão uma especial C(»u!iueinorat Ho á lUerna
Sapiência pvir Aiitiphona , e (Jt»lle< ta , ou
por um Pater nosicr ^ coníóruie a (levõ< ão
de cada um ; o que fòr Sacerdote , se nestes
dias disser Missa da ElerrKi Sapiência, tar-lhe»
ba um aíiradavel serviço.
O terceiro dia é da Circiinuisâo do Se-
nhor, no qual se começa o anno novo, em
o qual os amigos di.ste inundo se mandão
presentes e dadivas uns aos outros, com
imprecações de bons annos. Da mesma sorte
o discipulo da Eteina Sapiência , por afer-
Torar em si o amor, visiie a Eterna Sapiên-
cia, pedindo-lhe hons annt»s para si , e para
toda a Igreja Calholica.
O quarto dia é Dominga da Quinqnage-
«ima, que o mundo thama de Entrudo, o
qual é tào celebrado dos mundanos com se
ajuntarem em festas e ])anquetes profanos ,
em que se coiUamináo os Cíístumes com
muitas maldades a troco das \ãas consola-
ções e gostos dí) corpo. JMas o discípulo da
Eterna Sapiência, para que mostre com
iinaes certos como da Etei na Sapiência é todo
o seu gosto e consolação nesta vida , e na
por vir , faça o que abaixo se diz.
O quinto dia é o primeiro de^Maio,
guando a alegre Primai çfa se luosUa a lo-.
Fb. íÍESRi-QrE Suso. 353
tios agradável, bioíaudo em toda a parte flo-
res , e \erduras. Na noiíte anies deste ,
costuníâo os inarcchos dados a tinioic* ,
cm algumas partes enramar as perlas das
casas, onde lem seus amores com ramos
verdes , e flores em demonstração e teste-
munho da fc , a anior, que ^ uai dão a buas
damas.
Para que se tire de trio mio costume
al^'um £i:ucto bom , e para que os filhos
deste mcndo o que fazem a um sujeito cor-
poral c mundano, como elles , seja melhor
empregado espiritualmente pelos filhos da
Eterna Sapiência aoCreador de tuuo, e isto
com tanto maior cuidado, quanto mais sem
comparação esta Divina esposa e amiga
excede a todos os mortaes , ofíercção-lhc
reste dia , ou um liiio, ou ai» uma orafão
particular.
Cada um destes cinco dias apontados cele-
Lrem cada anno todos os discípulos da r.ier-
na Sapiência com singular e devota reno-
vação , dizendo em cada um cem Pnter
nostres , e outras l;\uidiS Ave I\Jaiias^ ou qual-
quer oração ou serviço, como c ouvir Missa;
ise forem Sacerdotes a dii,rio, ou actncãoum
cirio , ou íação alguma loa obra, que é a
Eterna luz, em testemunho e prova eviden-
Jedeque, como fieis discípulos, toda a ^ua
12
354 Exercício do Beato
salvação neste tempo, que passa, somente re-
conhecem ter só de sua divina esposa, e
delia só a querem pedir, a que só o seu di-
vino amor se ha de ver arder em seus cora-
ções. E peçáo-lhe que, se por algum aconte-
cimento este divino amor está apagado tm
seus corações, tão benigna e fielmente seja
outra vez nclles encendido, que nunca já
mais se apag\ie.
O sexto uid será o seguinte ao dos íina-
do=;, no qual os que forem Sacerdotes digfio
Missa por todos os Irmãos desta sociedade
e união , e por todos os seus amigos defun-
ctos, o:i a facão dizer, ou cera Pater
no^ires ^ e outras ta n las Â^'e Marias^ ou
quaesquer outras orações equivalentes,
A todas estas cousas que nos dias deter-
minados se apontão, em cada um dclles ac-
crcscentem depois delias esta oraçfio:
Piedosíssimo Pai nosso, todo poderosoy
■peco-vospila coeterna a vósy a vossa Sapieri'
cia^ N. Senhor JKSU CinstOj que soccorrais
a vossa afjlicta Itsrcja , e a ponhais cm paz y
uniUo e tranquillídade conforme vossa
honra , e ahissimo beneplácito, Amen,
Também os discipulos da Eterna Sapiên-
cia tiagão sempre comsigo o nome tia Eter-
na Sapiência s. o saluíifero nome de JESU ,
9U impresso , ou insculpido , ou de qualquer
Fr. Henrique Suso, 355
sorte, confónDe sua devoção, estampado,
ou debaixo do vestido, ou como melhor
puderem , e digão pela nianliãa de cada um
dia a saudação seguinte , para que o piedoso
JESUS os guarde de lodo o mal,e leve a Jjoai
íim,
A minba alma tos desejou na noii«, e
TIO espirito de minhas entranhas, muidcnia-
riiiúa tlespertejava , ó exccllentÍ£sirx:a Sapiwn-
cia, pedindo que arossaamada presença a portíí
de mim todas as cousas coulrarias; peneire
vossa sfraca o intimo de meu coração, afervo-
rando-o grandemente em vosso amor. Agora
dulcissimc» Senhor JESUCiiristo cu me levan-
to cedo só para vós, evos saúdo de todo n.cti
coração. i\iiliiares de uíilharcs de Angélicos
espiritos, que continuamente vos servem, e
assistem , vos glorifiquem por mim. A uni-
versal armonia de todas as creaturas vos lou-
ve por mim , e digão: seja o vosso gloriosíssi-
mo Nome, que é escudu de nobsa protecção ,
bemcHto, e lotivado para todo sempre. Amen.
Além destas cousas os discipulos da Eter-
na Sapiência devem venerar com grande
affecto a mãi gloriosíssima da Eterna Sa-
piência como aquella, que está sciii|>re pre-
stes para os amar a todos crimo ílihos, v. cu-
rar (lelles com entranhas í!e piedade nalcr-
iial, Peio que cada um dos dibcipiílcs ijúd»
S56 Exercício do Beat»
cada dia com nove Ave Marias á Virgem Mal,
s. uma vez pela manbãa logo, em se levan-
tando, pondo os joelhos na lerra , offereca
todas suas boas obras dafjii^ílle dia á Rainha
dos Ceos , para que ella, como Mái ião agra-
dável e acceita , as apreseiite a seu Unigénito
Filho, ao qual serão sem duvida agradáveis ,
se quer por reverencia da Mái, qne asoíTerece
como medianeira , ainda que scjáo em si cou-
sas de mui. o pouco porte, e substamia ,
e muito menos gratas como forão se im me-
diatamente as oííciecera como as olirou um
peccador talvez muito grande.
O mesmo faea á noite quando se recolher
a dormir depois de ter revoado todas as suas
devoções , pedindo que tudo o que naquelle
dia houvesse tido de uegligentia , o suppra a
Setdiora com sua caridade; o que fosse mal
feito, a Senhora o emende, eo que houver de
l)jm ii Senhora oappresc^nte diante dos olhos
di\ino5. As outras sete advertências oíferera
ao coração dulcíssimo da Mfii de Dens, refugio
piedosíssimo de todos os peccadorcs , -^^ara
que a Sjnhora, assento e morada suavís-
sima da E:erna Sipicncia , depositário de
todas as misericórdias divinas , corrente ma-
nancial delias, as appllcjue sobre os corações
do todos os disc*iptd'>s .ia Eterna Sapiência ,
que es.á j na denadcira hora , e nelia os de-
Fr. HENRiQrB StrsoJ 357
fen Ja com entranhas de piedade, e delia os
não largue mais , até os meter de posse de
Bemaverturança.
Finalmente se alguns , ou por fraqueza
de es['.irito , e de foiças, ou por occupaçóes
nào poderem dar-se a estes exercicios em" al-
guns dias , ou se por dureza de coração^ e
ignorância, não souberem cumprir todas , e
cada uma destas cousas apontadas, digáo
cada dia nove Pater nostrcs , e outras tantas
A<e Marias lazcndo a sobredita peticilo com
a uiesma tenção implicita, ou explicitauien-
te que o fazem os outros expressamente ,
e hasta.
Também se aljjuem tiver devoção de
mudar as Ave jMarias em Salve Rainhas,
e a oração do Pater noster j que se ha de
dizer na meza , em o psalmo Da profundis ,
l)em o pôde fazer em lionra da Eterna bn-
piedcia , que seja r-lorificada para todo bem-
pre jamais. Auien.
CONSIDERAÇÕES
DAS
LAGRIMAS,
QUE
A
YIRGEM N. SENHORA
DERRAMOU
NA
SAGRADA PAIXÃO,
Koparlúlas em dez passos, para a devaçâo do dez
Sabhados,
PELO
da Ordeia de S, Domingos.
3^i
S A B B A D O I.
Despede^se o Senhor da Firmem para ir a pa-
dec^r.
C
Omeção hoje, puríssima Virgcni Mar,
vossos devotos a considerar, e sentir com
vosco aqucllc abismo de dores, aquelíe mar
de lagrimas, que vos ciisLou a Paixão d«
vosso unigénito Filho , Filho vosso , e verda-
deiro Deos , c Senhor meu. Atrevimento é ,
tíio grande peccador, como eu, chegar-m«
a tal companhia , tentar vossos porias, quan-
to mais entrar por ellas. RJas lembrando-
vos , Senliora , que vosso Filho iWs^c , qu«
não vinlia buscar justos, scnao peccadores ;
dai-nie licença , que se quer de longe , couío
o Puhiicano , ponha os olhos em vos: para
que vendo neste aííligidissimo semblante a
graveza dos*ermentos , que cercào vossa
alma, reverbere sobre a niiniia uma luz do
(iCO, que me faça digno de vos ajudar a sen-
til-os.
líoje , Soidiora , é o dia , que começa a
entrar por vo>sa casa aquclla espada, qu«
taatos ânuos ha ouvistes ao Santo Siiueáo ,
362 Considerações das Laguimas
qne atravessaria vossa alma. Hoje é o dia ,
que coníeça o vosso Divino Abel a caminhar
para o campo, em que o espera a maior trai-
rão , que jamais se commeiteo ; traição , nao
só de irmãos, inas de filhos, que dóe mais ;
e fiihos creados com tantas misericórdias.
Hoje manda a oliediencia do Padre Eterno ,
qne comece o innoccnte Isaac a sobir ao
monte para ser sacrificado ,e não virá Anjo ,
que detenha o cutello ; mas jnnlar-se-hão
infinitos algozes a dar pressa ao sacrifício ;
algozes de vossas penas , executores dos fios
da empada de Simefio. fios ião agudos, que
coi tão por alma, e espirito. E porque eite
Seidior, q!ie ha de ser sacrificado, quer,
qne venhãt» s«»bre elle todas as desconsola-
ções juntas , que o mutído pôde dar, acceita
tanuDeni ser para com vosco o mensageiro de
tão tristes novas; e entra hoje por vossas por-
tas a avisar-vos delias, despedir-se de vós,
e dar-vos os últimos al)racos de obediente fi-
Ihí» , qual sempre o experimentastes. Magoa
é sem fisn , que clieguem voaTido as profe-
cias tristes para m.Jiar, e que as legres tar-
dem , como se forjo fingimentos , para cn-
í:^'unar. Tínheis oijvido , que havia de ser
grande, ciue havia de reinar eternamente
cm Jacob ; e elle mesmo vos faz a saber, qne
•vai a padecer , que vai para u não verdiíi
r>A TiRGEM Nossa Sexhora^ 365
rtiais em sua vida alegre. O acerbissimo des-
engano! ó ciuelissima troca! n'oiitro tempí>
vos disseião os Anjos , que estáveis cljeia de
graça , que eslava o Senhor com vosco : hoje
vos diz o r.jesnio Senhor dos Anjos, que se
vai, e vos deixa, para ficarem com vosco e
em sen lugar todos os maiores toí^mentos , e
martyrios , que o mundo pôde dar.
iMas quo sentiria vossa alma , Virgem
bemdita, neste passo, que sentiria o fillio na
sua ? íSão bastão entendimentos de Serafins
para o poderem penetrar. Creio eu , que vos
acodiríao aos olhos não menos aguas, que as
do rio JNiJo paia chorar, e ao coração os tre-
mores e abalos do monte Etna para suspi-
TAv. Mas se é verdade , que isto de alguma
maneira descança e consola; creio também ,
que vos quÍ7X'stes privar de tal allivio, tanto
para começardes a padecer com o fillio ,
quanto para lhe não accrescentardes magoa,
s.ibendo certo a grande parle, que tinha nas
vossas : crtsce a (lòr repiimida , morre por
arrebentar, como em mit:a, suspiros repre-
zídos. Assim me persuado, que o mesmo Se-
lihor para dar lugar a vossas lagrimas, co-
meçíH) primeiro a declarar, e deixar correr
as suas, que se elle as não nc^ou na triste/a
de duasirmãas, que uma vez o agazalliarao ,
nem na dcstruiçáo antes vista da Ciu;'.dL',
364 Co:T5id£ràçóes das Lacrimií
que em sua morte se alegrava; como nã<*
choraria, vendo o que passava em vosso co-
ração, que o paristes , e creastes , e tantos
annos tao fielmente servistes, e que por lhe
ulargar a vida uuia hora , déreis mil vezes de
boa vontade a vossa. Chorou, e chorastes, e
misturou couí vossas lagrimas as suas. E as-
sim íoi hcm , para que da mesma maueira
que á perdição do mundo , se juntáriío
duas creaturas a procural-a , assim na res-
tauração, começasse por la^^rimas das duas
mais puras ahv.as , que nelle havia. Devia
eu, \ irgem sagrada, pois meus peccados
forão causa destas lagrimas, acompanhal-as ,
c acompanhar-vos com pranto perpetuo.
Mas oflerecer-vos-hci em lugar delle, o que
ainda me nào tirou mirdia mald^ide, que
suo desejos de poder chorar toda a vida ,
e com elles vos peco que acceileis estas
Ave Marias em lemhrança <lo amor , que o
Kterno Pai noz teve , fazend j-vos 31ái de lai
£lUo.
íTfrV/i yíi^e alarias.
Hk ViRGSM Nossa Senhoua. 565
S A B D A D O ÍL
Como sonhe a. Virgem, da prisão , c o mais
que o SenJior passou aqucUa noite,
i.iErcada estais fie anjrustias , Tirfrem Snn-
tissima j fazendo discursos entre li grimas e
jei»ii(]f/S sobre o sacrifício , que vos foi de-
nunciado , imaginais sacrifício, imaginais
iiíorte. Mas triste de mim, menos mal é
morte, que o modo , e circumstancias da
que se aparelha para o l)oni JFST^S. Ouvi a
^o:\n seu amado, que chega dcsalentadíí , e
tremendo das cruezas , que stus olhos vi-
rão executadas contra elle. Quem crera, que
para prendernu um Cordeiro sejão neces-
sárias mnnljas, e cautelas? Sejão necessárias
armasP Peita-se o Discípulo infiel: comprào-
sc a dinheiro , meu hom JESUS , vossas in-
jurias: busca-se a noite para crescerem em
despejo c soltura: paga-se uma companhia
de gente armada para haver mais executores
delia.
Assim começa S. Jolo a cortar: n'as
para o rpie resta, como tereis oll^i<los\i^-
j^em Santa ? Couio tereis coração? Pcuico é
kgrimas: noto género couvem de seminu r.-
365 Considerações da.s Lagrima?
to : maiores causas pedem maiores L-ffeitoi,
Hnuve, Scíihoia, Ci)itléis psra alar ri^oio^a-
mente aquelbs mãos , que fizerão o C.eo e
a terra, e souu uiua^oz do maldito traidor,
que o arrecadassem bem. Houve mãos paia
afear as rosas do rosto mais formoso , que
quantos nascerão das mulheres : para arre-
pelar o ouro da sagrada Cabeça. Ho tive pés
para empuxar , e atropelar os membros san-
tos. Houve línguas para afrontas , vozes para
falsos testemuirhos, varas para cinco .mil
açoutes. E porque antes querem por senhor
iim César Gentio , que o 1 ilho de Deos vivo •
dâo-ilie por t:scarneo ceptro, e coroa, ceptro
de canna , e coroa de espinhos, e em íini
pôe-Ibcuni pesaiio madeiro sobre as costas,
que de muito chagadas dos açoutes , crão
todas uuja só chaga. Mas se cada cousa destas
pei" si SD basta para quel)iar coraç3es, que
tempestades de afíllcção levaniariáo nesse
virginal peito todas juntas? Cheia está mi-
nha alma de terror, e cheia de compaixão :
do terror, porque foráo minhas culpas causa
de tanto mal: de compaixão vendo o que
padeceis vós igualmente, Virgem bemdita,
sem teres jamais oiíondido o Crcador, e
|)or isto merecestes ser .Mái sua , e ouvir a
iaudação do Anjo, que vos oifcreço ncàtas
Ave Marias.
Cem //rc Mur/us^
DA. Virgem Nossa. SE^■IroRA. Z6y
S A B L A D O ÍIÍ.
Como a Firgem encontroa o ScnJior jia rum
da Amargura,
V^Ostiima o inverno frio esforçaras fontes,
c accrt-íicentar os rios: mas se cresce em ri^or ,
ala , e endurece as aguas , suspende as cor-
rentes dos rios, e até o mar salgado congel-
la. Assim creio , Virgem sagrada , que cres-
cerão tanto vossas magoas, com o que ou-
vistes a João, que seccarão a veia das íneri-
mas, cerrarão o peito, [renderão os sus|.iro5,
e ficando toda trocada, íica.stes por novo mo-
do mais atribulada. Logo tomais o manto, dei-
xais a casa, e com passos apresurfidos saís a
a buscar (como n'oTJtro tempo vos represen-
tou o Espirito Santo) acu<^lle, a quem amava
vossa alma. ]\í;;s dai-mo licença para vos di-
zer, (iw^ accommetleis temerária joiuada: que
se na outra vos não guardai ão respeito, per-
destes o u/anto, e ícittes maltratada dos que
vigiavão a cidade: que esperais agora de
gente conjurada contra o naior bem da
me.ima cidade, que era o bom J1''SL'S? Vejo ,
que nie dizeis , que isto é o nicsnio , qiic lus
cais , n.crrcr cem elie , ou ciiuiic dc-ilc. que
363 CoifSIDERAÇOES DAS LlGETMAJ
não deveis menos ao amor, que lhe tendes,
e ao que sabeis , que vos ellc tem.
E em fim chí^gastes animosa iVLTi ao Fi-
lho atribulado , vistes o Filho ; mas como o
vistes? O' que chagado! O' que i?ista! Bem
próprio foi o nome , que ficou a tal rua (rua
<Je amargura) pelo que no Fillio vistes , e
em vós sentistes. Virão vossos olhos aquelle
Rosto, que alegra os Anjos do Ceo, pizado
de bofetadas, e banhado da sangue, que
tlesce daCa!)cça, atravessada de espinhos:
liado todo de cordas , j^ara que fosse arrastos,
quem com. peso da Cruz, e marlyrio dos
O' outcs estava tão quebrado , e falto de
torças, que não podia levar os pós. Neste
estado, Sculiora , vos virão também seus
oliios , c compadecido de vossa pena , em
meio de tantas suas, falia com vosco, e com
vossas companheiras: com ellas cm voz,
tom vosco em espirito; diz-vos dentro no
Coração, que alli vai feito valente Sansão
com as portas da ciilade ás costas para ficar
.niKirta a celestial Jeruzalem a iodos os pecca-
doros: leva o cjptro «verdadeiro de Daviíl
pira sjnhoreir o mundo; porque estava
t'>'?rit > que do luidvíiro havia ilc reinar.
A'á co:npau!iv3Íras diz, que cliorein sobre
si; p>i:pi8 se o vingar dá gosto, duro ca-
stijo j-jjiM aos qac esta pena lho dj-
©A Virgem Nossa SEJinoni. 3^9
tão. Ah Virgem purissinia , npo tos pôde
faltar consolação daquelles Divinos olhos em
quanto o tendes pre>?ente, em qualquer esta-
do, que o vejais; puis sempre vivestes da
luz delles. E para isto vos lembro a caloria ,
que sentistes com as novas de serdes sua Mai
na saadacHo Ano^elica,
Cem Ave Marias.
S A B B A D O IV.
Como vio preparo Senhor na Cruz,
ÍtJLAs é grande a pressa , grande a violên-
cia , com que vos arrebatào o bom Sei hor;
se vossos passos não podem ser iguaes , re-
Kicdio tendes para não errar ocamihl.o;
tal rasto fica do precioso Sangue , que elle
vos guiará, onde seus inimigos o levjo. Ao
monte vão, e la vos convém ir, Virí?m
l-emd.ita; se tendes animo para ver a ultima
. maior de todas as maldades e cruezas,
ijue com elle se usarão : ISiidus egressus snni
de ventre mutris meae , dizia Job, ntidim r^-
vertar etc. Qual o vistes na cova do Presépio,
sem mais testemunhas , que vossos puris-
simos olhos, e os de S. Joseph : tal qutrcm
3yo Considerações das Lagrimas
os malva dos , que o vejais na coiòa cie um
monte á vista de infinito povo: lá festejado
dos Anjos, adorado e servido de Reis: cá
cercado de opprobrios, e pregoado por me-
nos merecedor da vida, que um publico lio-
niicida : lá reclinado enj pobres palhinhas,
mas agazalliado , e abiigado <'om vosso bafo
e vossa presença : cá estenditlo sobre um
áspero madeiro , e logo. pregado neiie com
quatro cravos. Já soão os golpes dos maâtel-
los , já crescem novas dores, confraiige-se
a Scigrada Humanidade; reconhecendo sua
fiaqueza , arrelienta o Sangue em rios, re-
gfio quatro fontes a terra. Quem podéra ,
Virgem soberana , levantar tanto a conside-
ração , que ahíançára os effeitos , que nesse
Santo peito fazião aqueiles golpes, e aquel-
les cravos! A vós a peco, que m'a podeis al-
cançar; porque sei, m\e na gloria que hoje
possuís vos agrado muito lembrando-nos (ie
\ossos trabaliios , os que somos causa de os
pí.^sardes , para que assim como foráo prin-
cipio de nosso remeíiio, assim da lembrança
delles, comece a enienda de nossas vidas.
Cc/íi A^e Marias»
DA Virgem Nossa Senuoiia. Zn
S A B B A D O V.
Como vio o Senhor levantado na Cruz,
J A' parecia , Virji^em affligidissinia , qne naò
podia haver cousa , que accrescentasse vossas
penas , quando de novo se moatra , que nem
em vossos ininiif]fos se leni esgotado as inven-
coes de afíligir ao meu bom JESUS , nem
faltão ao vosso peito occasióes de mais dur ,
e mais mcrccimeiUoj hem se diz, que todos
os Marlyres juntos não padc-cèiáo tanto,
como elle só ; c que vós sem níorrer , pa de-
testes tanto, conuí todos eiles. Levant.To a
(]ruA cm alto, assenta o-llie o pé delia na cova ,
em que lia de ficar arvorada : estremecei
todo o Corpo Sa<(rado , c ao mesmo passo se
ahala'râo vossas entranhas, Virfjem Santa,
nfio tenho dúvida , que vos estalara o cora-
ção no peito , se para mais merece nlcs vos
não desse força o mesmo Tilho, como ver-
dadeiro Deos, que é. Rasgão-se de novo as
feridas dos pés e macs, e comera a correr
de todas unia celestial chnva de Sangue, que
sendo infinito no preço, fa/ ciescer qnasi in-
finitamente as dures cm todas.
Já eitá arvorada a serpente do descrio ,
3j5 Considerações das Lagrimas
que dava saúde com sua vista. Já o Fiiho ão
liotiieiu está em alto para trazer indo a si:
já seu divino Sanoue reíra os ossos delidos
com antiguidade de nosso pai Adão neste
monte .sepultado j para que lavadas assim
suas culpas, se torne em ben^^ões a maldi-
ção, que por ellas mereceo a terra. Pois, Se-
nhora , como não tom allivio vossas descon-
solações, onde todo o mundo espera verda-
deiro remédio ás suas misérias? ftlas se h;To
de alliviar , se só pafa vós crescem cada hora
novas rasóes de magoa? Não querem , que
baste morte de Cruz, morte de iníiimia, e
iRiddiçâo ; querem fazer culpas , onde ne-
nhuma podia haver. Com dois bdr<'ies acom-
panhão o meu bt)m JESUS, e a elle põe no
meio para que seja julgado poi* lOiíior. Vir»
gem Sagrada , onde tudo se junta contra
vós , junto eu cm vosso serviço t honra
Catas pobres orações.
r*,7/ ^íi^e Marias^
WA Virgem Nossa Senhora. ^yj
S A B B A D O VI.
Como lhe deu o Senhor por filho a S» João,
A^M fim , meu ])om JESUS e Senhor da mi-
dIki alma , tlado tem remate vosso inimigo a
tudo o que podia executar contra tós o ódio
e maldade : já despejào o monte: já vos fino
da Mãi saibrada. Pilas é em estado, que
■vos não pôde ser I>oa mais, que com a vista :
o madeiro alto , e seus braços fracos para
nos livrar, (.hega-se ao pé delle , que é tudo
o que pode fazer, e posta em pé para mais
visinlianca , prega seus olhos nas eslrellas
dos vossos, que em todas as tempestades da
•vida llie forão sempre fiel norte. AUi está
Ioda embebida na consideração das cruelda-
des , com ((ue vos ti*i\árão a vida: espanta-s*
como lhe dura a sua , vendo-a de tantos gé-
neros de morte accommettida , (fuantos são
os que vos estão atormentando. Neste passo
mostrastes, nu^u bom Seidior , que não sen-
tis monos seus tormentos , que os í[ue estais
padecendo : e lastimado mais .fo eftado , em
que a vedes, que de vós mesmo , ordenais
com elia , como olediente e verdadeiro fi-
lho , vosso testamento. Quera não tem nada
374 Considerações das Lagbimas
de seu; pois nem vestidos vos deixarão, e
até a túnica interior foi jogada aos d^dos,
assaz é , que dê alguma rou:-^ para prenda ,
e sinal de amor. Uois penhores tínheis na
terra, que muito amáveis: a sagrada Mài , e
o Discípulo João : a e!le com amor tle Filho ,
e a ella com amor de jMãi : e porque mor-
rendo vós , fica ella sem Fillio , e João sem
?dãi , ordenais, que tenha ella a João por
Filho , e João a eíl» por Mãi. Isto íoi o que
naqu tília ultima liora lhe dissestes, ^las
dai-me iicença , Senhor, para vos dizer, que
a não desconsolão só os inimigos , também
vós , que sois todo o seu I)em , lhe dais nisto
muito que sentir. Mas se desengana quem
ama de verdade, em quanto vos tem vivo,
deixai-a , Senhor, enganar C(un vossa pre-
sença. ?^âo se publicão os testamentos em
vitla,nem se acceitão legados, senão depois
que acaba o testador. Quanto mais que nem
para depois que vós faltanles , é a troca de
receber : trocar o Rei pelo vassallo , o Se-
nhor pelo escravo, o amo pelo criado, e:n
nenhum estilo póile ser género de consola-
ção: antes creio, que uma das mais cruéis
setas, que em vossa 1-aixão lhe teríião a al-
ma, fi)i este desengano. Vós mo» to não po-
deis deixar ile ser seu Filho, e mais lhe
vaieis murto , e sepultado , que quantos lhe
DA. Virgem Nossa Senhora. 3; 3
podeis dar na viuii , por puros , e santos , que
sejáo , qual lie João. Se quereis muito a
Jofio , nao seja tanto á custa da Mài , que vos
deis já por nào Fillio seu , e que ella sabe
mui l)em, que vós sois por natureza; e vivo
€ morto vos quer por Filho , e em todo o
estado não ha mister outro , senão avós:
quanto mais, que bem sabeis vós, Senhor,
que não pôde liaver nenhum , que encha o
vosso lugar. E sondo assim , occasião lhe dais
de lagrimas sem remédio todas as vezes , que
olhar para o adoptivo com lembranças do
natural ; c. mortais saudades , quando vir,
que lhe deixastes a sombra em lugar de ver-
dade.
Ce-n yli'0 Marias.
S A B n A D O Vir.
Como onvío dizer ao ScnJior y que tinha sede,
J-^Levada estais toda, Virgem Saniissinn , no
vosso Cnuificado: notando os termos porque
transpondo o Sol daquella vida , de que de-
jjende a vossa. Já nadão os (>lhos em ondas
de niorte , quebrando-se sua luz. (^lída está
a ral>cça sobre o peito, enrruadcis e grossas
as ícj idas com o rigor do Lio j e ties|as5ado
5^6 GoNSIDERAÇt^ES DAS LAGRnfl9
delle o corpo tório. Neste estado levanta a
"VOZ o affligidissimo JEjUS, publicando un\
tormento interior deseccura, que aquella
humanidade sentio, causado dos ii^uitos
exteriores , que tinha passrído, edis?-*, que
tinha sede : mas a quem vos queixais, meii
bom Senhor, ou a quem pedis agua: se á
Mái, ella não vos pôde valer no esfado em
que está e tós estais, se não for com a de
seus olhos j se aos que pnssão , toilos síío ini-
migos , uns zomhào de vós, outi os fazem
2ond:)aiia da vossa afflicção, sendo Blhos da-
quelles (ó gente ingralissima) (jue vós anti-
gamente acompanhastes com uma fonie pe-
renal, que os seguia por n^eio das areias scc-
cas do deserto. Sede foi esta só para mailyrio
da pobre Mái : a vós canoa , m.is a ella ma-
ta ; porque não a podendo remediar por si ,
te , que houve peitos ião deshumanos, que
em fel e vinagre embebem uma esponja ,
e vol-o offerecem por agua na ponte de uma
cana. Que mudanças são estas tão estranhas ?
Yós sois , Senhor , o que a Elias acodisles com
o bolo e vazo de aj^iia na sua necessidade ,
e a Daniel no lago dos Leões, com o jantar
dos Cegadores do outro Profeta ? Vós sois , o
que na fome do vosso jejum fostes servido de
Anjos, que vos pozeráií meza nos matos do
ermo ? Vós sois o que ha pouco tempo susteu-
DA Virgem Nossa Senhora. ^yj
tastes muitos milhares de homens com poucos
pães, e o que offerecieis á Samaritana fontes
vivas no fervor da calma ? E hoje por uma
pouca de agua, de que estais necessitado ,
não achais quem vos acuda, se não com fel.
Mas que Gzestes, meu doce JESUS, quando
tal Lehida vos foi presentada ? pro"v;jstes o
fel, para mostrardes, que nenhuma pena
recusais por meus peccados. E tomada a sal-
va, deixais o mais á Mãi sagrada, que sem
dúvida ainda primeiro que vós o hebeo lodo
em dòr e angustias, senão foi era sustancit,
Cem Ave Marias,
S A B B A D O VIII.
Como lhe vio dar a lançada.
J-iM fim cliegou-se o termo daquella fida,'
que para tão perseguida, tinha durado muito.
Acompanháo vossas dores , Virgem Mái so-
bre todas as Mais a mais atribulada , e sobre
todas as Virgens a mais pura , que todas as
cousas creadas, Cobre-se o Ceo de escurida-
de, perdem sua luz o Sol e a Lua, treme a
terra, abalão-se os montes, correm as serras,
quebrão-s« 05 pçngdos uns com outros.
3-8 Co:?fsiDERAÇ(5iiS das Lagrimas
respondem os vales com cecos e roncos tri-
stes; ludo em fim mostra brandura de sen-
timento, só vossos inimigos estão ainda mais
duros e encarniçados , que a primeiía hora.
O ódio mais entra nhavel , a maior raiva , e
indignarão do mundo duia até malar o ini-
migo, e cessa com sua morte; mas nestes não
é assim, tomão as armas contra os memlíios
defuntos, e diante de vossos olhos passfio
com uma lança o peito frio. Abanou-se a
Cruz com a torça do encontro , tremeo o
Corpo Sagrado , que já não sentia ; mas o
que elle não sentia , padecerão vossas entra-
nhas , Virgem purissima. OcHo e vingança
fora de homens, nKital-o, e deixal-o; mo-
stra o braveza de bestas , que depois de
espodaçar o corpo, bebem o sangue. E
disto da signal o Peito Sagrado, despedindo
da ferida um rio de sangue , como repre-
hendendo sua deshumauitlade , e dizendo:
Paia a minha sede, nã > tivestes, gente
avara e cruel , uma gota de agua , eu para
lartar a vossa , não quero que íique nestes
membros, nem uma só gola de Sangue , e
ahi vai todo. O' lança cruel, ó cruiza sobre
todas as cruezas! Fm comparação delia , do-
ces (içarão os cravos , brandos os espinhos ,
leve o poíjo du Cruz,
Ce/n Jy'c Marias^
DA. ViiiGiíM Nossa Senhora. 879
S A B B /\ D O IX.
Como lhe puzerão o Senhor nos braços ,
clescendo'0 da Cruz,
VjUmprido eslá , Virgem Santíssima,
quanto da morte cie vossol^ilholinlifio escrito
os Profetas, e o mesmo Senhí)r tinha dito
de si. Eclipsado está de todo aquelle Sol Di-
vino , c posto cm estado , qne nem de homem
tem fijj^iira. Mas novos cuidados combatem
vossa alma. Temeis , e com razão , se que-
rerão os vossos inimigos, que fique ainda o
Corpo Sagrado para dar segundiís vistas ao
povo , e ser alvo de novos opprobrios. E logo
vos faz temer e tremer um tropel de gente,
que sentis vir demandando o monte. Porém
silo Discípulos nobres e secretos de vosso Fi-
lho , que como o í)uviào de noite, tamhem
o buscão nas trevas de seus trabalhos: clie-
gão a vós, pedcm-vos licença para lhe da-
rem sepultura, descem o Corpo Sagrado,
depositão-no em vossos braços : nellcs teve o
primeiro descanco depois de morto , como
no primeiro , que começou a viver no
inundo. O que aqui sentistes. Virgem bem-
dita, os rios de lagrimas , que derramastes,
« com que banhustei o rosto e peito Sa-
38o COTTSIDERAÇÕES DAS L.VGRIMAS
gradd, e lavastes as feridas dos pés , e mãos :
as lastimas, que em cada uma dissestes, e as
razoes , que de novo pranto achastes em cada
uma , só os Anjos , que foiTio presentes , as
podem refeiir, e a eiíes peço j que mas dèni
a sentir com talaífecto , que netihHma b.ora
da vida deixem de ser presentes nesta alma.
Grande cousa íbi, Virgem Santa, poderdes
sustentar a vida á vista de tal espectáculo.
Mas não morrestes, ponjue não podia mor-
rer quem vivendo já estava morta , e (ji.eca
o Senh(ir que vivêsseis para consolarão dos
Disripulos , e remtdi(i <íii sua Igreja, que
foi , Senhora , o quv vos quiz significar , dan-
do-vos a João por íilho.
Cem A\>e Mar Lis.
S A B B A D O X.
Como o acompanhou á Seoullura, c o deixou
ndlct
ItXAs é tempo , Senhora , de largardes o
Sa^'rado deposito para se entender no olílcio
da sepultura ; que o cntrula a noite, e con-
vém fazer-se antes do Sahbado. Evos Vir-
gem Santa , não podeis acabar com vosco
desapegar-vos dclle. Antes quasi tlefunla com
O defuQto, pedis , que vus juntem a si na
T>x Virgem Nossa Senhora, 38 1
sepultura , qne pois para vós houve Cruz,
como para elie , ao menos haja para am-
hos a mesma terra, Cul)ra vossos olhos a
que ciihrir os seus, e íiqiiem vossas (iòres
com as suas scpullaclas. No meio destas histU
mas levão-vos o Filho, e a pouei> espaço ve»
des o Scpulchro cerrado de um grossa lage.
Aqui, Virgem piedosissima , c.iío sohre
vossa aluía unia noite e.->cnrissima de triste-
za , montes de anciã, e tormento sobre o
coração, e ccrrou-se para vós o Ceo , e a
terra , o Ceo com a falta do Filho , que ainda
assim morto era género de consolação sua
presença : a terra com a luge , que o cobre.
Bem pagais, Senhora , agora e com cresci-
das vantagens as dores ,'que no parlo não ti-
vestes, liem pagais os gozos de vos ou\ ir cha-
mar bcmdila entre as mulheres. Por um filho,
que tinha por espcdaçado de feras, não ad-
mitia consolação um Jacob, tendo vivos
outros muitos: que fareis Virgem , por um
só, que verdadeiras feras vos tirarão? Desfa-
zia-sc cm pranto o Santo Rei David por uni
filho muito culpado; que será razão, que fa-
çais vós por ura innocentissimo, cquetonhe-
ceis por verdadeiro Deos? Com lagrimas ir-
remediáveis chorava uma Mãi saudosa a
ausência do seu único Tobias; quais hão de
«er as voásas n«i moitC} não só ausência d<»
3 82 CONSIDER. DÁS LaGR. DE N. Se?JHOP\
Tosso Unigénito , iinica consolação, refugio
e renieclio de vossa vifla , que á forra de ferro
e afrontas vos matarão seus inimiíjros? Vir-
geiu sagnida, se vossas magoas crescem á
medida da razão, qtic tendes, nem as ílòies
podem ter fim , nem todas as aguas do mar
igualar vossas lagrimas. Maiores sao Tossas
dores, que todas as grandes, que houve no
inundo; porque as padece a mais pura e mais
santa crealura de quantas puras creaturas
nelle nascerão, que sois vós, e vós as padeceis
pelo mellior Filíio , que quantos nascerão das
mulheres, e tal, que só eile vos pôde dar re-
médio.
Cem Ave Marias,
Dia de. Páscoa se dirá uma Missa da Re-
surrei cão.
VARIAS COMPOSIÇÕES
DO
Padre Fr. LUIZ DE SOUSA,
Assim em prosn , como cm Terso , que uncIaTao dis-
persas por diversos livros , e aqui se ajuiitao para
satisfazer a curiosidade , e gosto dos Leitores, qm
facilmeute aao as poderiao alcançar.
385
Ko pilncipío cias Obras Poéticas de Jaime Falcam ,
impressas em Madrid no aiino de 1600 por diligen-
cia de Marvel de Sousa Coutinho vem esta Dedicató-
ria , e Piologo.
PHILIP PO TERTIO, Hispaniarvm, níqus
Indiarurn Regi Catholico j clemcntissiiiio y
augustissimo , invictissimo salutum , et ron-
tineniem felicitatis cursum,
t^>iUm Reges in terris pracpotenlis Del pro-
videntiam exercere, \icem agere, et qiiasi
quamdam personam sustinere , ipsae sarrae
Literae plurihus locis attestentur, non iin-
merito , Regum potentissime , opem tuam
in beneíicium aniici íato funcú iniploraluiii
accedo. Ecce oblata jaceiít ad pedes luos ossa
árida Falcor.is Yaleiítinl ; sciipta, inquani,
Falconis Poètae quondam disertissimi apiid
iValentinos, in volunieii , qiiasi in corpus
integrum compacta : quibus, iit lui favoíi.n
aíflatu vitain inspires, efflagitamus, non
brevem, non coniinuneni, non nd irueritiim
praecipitibus ruentem spatiis, sed diuUirnani,
et inimortalem, atque in perpetnum tliiratu-
rani; id est , aeternani , nullisque íinibus
circnniscribendam ianiain. Qua ut nihil lio-
Xiiini liberali in -rita optabilius , slc post fata
nihil gloriosius. Híinc lu eumulatissiuie rrae-
i3
^85 Varias composições
>
stabis, si ad scripía, qnae offerimiis, íncli-
nata tantisper Regia majcstate, óculos demit-
tere non dedignaberis. íta enim fiet , ut sta-
tnam , qnani nos amico pro viribiis, papyra-
ceam poniinus , tu in oihls theatro inarnio-
ream , tu anream reddas. Si enim veteres
Poètae solo Musarum favore, quasi aura affla-
ti nominis immortalitatem sibi ausi sunt au-
gurari, quid nos Falconi cum veteribusacquo
jure de poèti^A l.u.ide certantiaudehimuspol-
liceri, si illuni Mi:sarum jam gloria evectum ,
llcgius tuus favor benlgnius complectatur ?
Accipe igltur, Rex augustissimc, Falconis
poèmata , in quae afflalu tiio vÍTentem ani-
mam introducas, utRenipublicam lilerariam
augeas, tuosque popnlos in borsaruni artium
stndia incendas: rertabunt hae olium non
ultimo loco in regiae tuae \irtutcs Inudem,
Honora Falconem , quo Valcntiam , nrbem
luam , cjusdem patrlam , nuiltisque tibi no-
núnibus devinctam inimoitali beneficio de-
nuò astrin:T.is. Honora cum Falcone omnes
....
illi Musarum studiis conjunctos, ut maiores
tuos, duosque ipsos Alfonsos, quanvis $a-
pientum cognomen litcrarum gloria ade-
ptos , nou S()lum imiteris , 'Tcriini , uti spe-
rain;js, loií^issiniò antecellas. Vale. Datum
idibus Martiis , Mantuae Carpentanorum.
Èni:nafiu€l Sousa Couttigniu,
DO P. Fr. Luiz de Sousa. 887
,.«,-%<»<'V^-v«^»-»^v/% •«^fc* -w» »^-» ^^•V ♦^v»^^»/» * -vwvw^ ».'V» *■«.■» *^^
STUDIOSIS LECTORIBUS
S.
Xllc locus est , ul)i qui suos cdnntlibros,
pauca de inslituto , Yel judicio* suo pracfari
solent. Ego vero, studiosi Lectores, cui alie-
nos in lucem proferrc roíitigit , jnrc meo
agcre \idear, si non pauca soliini | ditam ,
sed libram ctiam inenm alieno libro "praelc-
gendum oíferani. Multa mihi dicenda in-
cumbunt , multorum accusaliciics pracccu-
pandae. Quis porro multa pau eis complccia-
tur ? Plerosque niihi sic occvirrentes video.
Quid Liisiliuio cum Vaicutino? Quld cxiili
cum sepulto ? rraeterca. (jtiid tu in ( j i je
alieno laudcm qiiaeris ? Quid iudigct am
laudem à Valenlinis extorques? íusiiper qui
lectilare incipiunt. Quid nobis iion \'ii^;ilii
cenlonesobtrudis P Quid Aiisl(jteleni poèiam
reddis ? Ad cxlicmuuí. Quid in modict) II-
bello plures libros distnibis , cl ronr.eclis?
Haec saue est gralia , qua (»u.ni!im feje scri-
ptorum labor lependitur: uec ire latet an-
tiquam esse Tulgi consuctudincnj , vet<'rem-
que invectivam , iit plane crrdi.miís, cmnes ,
qui se ad studia bouarum artiuni tcníc-
388 Varias coMPOsirõrs
runt, etpubiicae utiliiati serviurit, nulla spç
hiimani praemii adiictos , scd divino in-
stinctu agitatos id facere. Unde non jam
proiogium , seá apologiain iiiihi in liiiiine
constituendani video. Omnes ercfo mortalcs
in primis persuasos velini, nuUuni me inanis
gloriae siimulum huic oneri siiscipieiulo
adegisse. Officium estvet^iris, et bene íun-
datae amicitlae. Si qtii siniili vinculo ani-
nium aliquanJo ol^strinxisti , facile apud ex-
pertos íidem inveriiam. Sed ut singula dilu-
cidius explanentur , pauca mihi de Falcone
mostro praemonenda erunt. Jacobus Falco
Yalentiae Exletanorum (urbs cst in Hispânia
tani anioenitate soli , quam ingeniorum
ubertate notissiina} natiis est nobili quidem,
etaníiqao loco. Prima aetale humanis literis
incubuit : in iis eani de se expectationem
dedit tin:i ingcnii acumine , tum judicii
profunditate , ut ma^^lstri Poetam natiim
asserercnt. Adhac syllabarum natiiras vix
perceperat puer , jam justa mensura cirmirja
scandere , cLiudií.untia nosse, et restituere ,
totum Virj:ilium mcmoriter recitare. Cnm
tale à naluia in^jenium accepisset , primis
bumanitatis rudimeniis vix exc(/hiit. Vitium
est liispaniae nostiae pecidiare. Coelurn
babem us ingeni )ram mlnimè avarum , lio-
miaes discipiijiarum avaxissimos. Unde q^uos
DO P. Fr. Luiz de Sowsa. 389
cUrissimos habuimus viros, ii magna ex
parte sunt, qui anud exteras nationcs inge-
niiim exercuere li bei i à parcntum seu in-
cúria y seu avaritià. Ua Falco pkii> nalurae ,
quam arti etparenlibusclebitoradolescentlam
sane importuno tempere ad otiuni convei-
tit. Hinc lusoriis artibus, aleae, et taloruni,
animuni adjecit, phis quam decet , litcia-
rum amatorem. Lrium illi lioc \ilium in
illà aetate objicilur : in quod paulo post sa-
lyris duabus ita invectus est , ut possis con-
jicerc satis ipsum malè impensae opcrae poe-
nituiíise. Sed cum cgregiac indobs Cbset ,
suople ingenio, tanquam pondus ad cen-
trum, ad studia literarum deferebatur. A'
]\hisarum aiilis absens donii multa sibi et
ditficiba discenda imponcbat. Suo duclu,
itidHusque auspiciis totam AristoteHs pbi-
losopbiam , bbrosque Plalonis percurrit,
"Maihematicas artes, Geomeiiiam , et Astro-
bj^lam ila penetravil , ut in utiAque iii:>iíj;uio
evascrit. At ne animum laboriosac scieniiae
sludio scmper coiilundeict, vcl coaelaneis ,
€t civibns suis minus viderclur humanus,
lusui quideni inter amicos sacrossivií boris
indulgebat, scd tali Insui , qui inj^eniuni
ejus profunde, et non sinevirlule excrreret,
Audierat Saccrdolem vulgo Aldíalem Saliae
noniiiiatum ingeniem uou)ÍLÍ5 íaniam lu-
3go Varias composições
trmicalorum ludo Gonseciitum, quòd omneí
aetatis suae homines non suluni artis calli-
ditate vinceret , setl quòd mcinoritcr, ah-
sensque ab alvéolo cuiii praesentibus lude-
let (dictu (juidein mirabile). Floret is in
Hispânia ludus praecipue inter nobiles , et
Lene moratos viros. Conteniio est judicio-
rum , exaaien itigenii : minoris íit in eo lu«
cruni , q;uiin victoria : ipsa nolius vlrtoria
preiium est , e praemiiun \ictorlae. Miruni
«arrabo praestaníi?sin)i inj^enii excmplum.
Cam antea ne latruiiculos quidem agere
rosset, parvo teir.poris intervallo non tan-
tum ciim dexteritate ludere, viotoriainque
de spííctatisslniis lusoribus repoi-lare, sed
€liaii) meiDoriler ludere, et cum Abbate
ipso do latidc certare. Certo seio niultis boc
lutaruin incredibile: sed cum inter vivos
testes loquar, niiralnlia narrare non eru-
besco : incredulosque onínos oratos velim,
fidem mibi non prius adhibeant, scrupu-
lunive animo deponaiit, qiiam testes ipsos
ncuUtos, qui plures adbuc snpcrsunt , per-
contentur. Is erat Falco, qui sibi sem per
difriciljima arrogabat; ut ipse eleganter dis-
berit lib. 2. Ode 24. Unde arcusatus venus-
tatis, et facllitatis , qua in saíyra utebalur
(quasl nomen Poetae amitterct, qui a Per-
siano illo tétrico, et obscuro scribendi generc
DO P. Ff. Luiz de Sousa. dgt
ahliorreretj satyrara integram data opera
coniposuit, ubi sententiarn Horutianae il-
lius , quae incipit : Quijii Naecenas etc. ad
ungnem expriínens, singulos versus à mo-
Dosyllabis orsiis, moiiosyllabis clausit. Per-
sinm etiam eadem de causa imitatus est sa-
tyra 2. O studía , o mores etc. Sed qui cla-
rissimuni ingeniuni à natura acceperat,
nullo modo adduci poterat, ut obscurè
aninii sensa depromeret. Legerat apud Gel-
liuni , ut ipse mihi saepius affirraavit, dilíi-
ciilimum exisiiniatuni tuisse prisca illaaetate
carminis Jnmbici genus, quorl Jambis pedi-
bus merè constaret. Hinc ansam arripuit
edendi epigranimata , odesque nou pancas
meris Jambis summo cuni labore , sed non
minore cum laudo. Omitto retroo:radorum
carmmum varia gencra , quae primo patent
libro : qui quidem labor, quanvis sterilis , et
tanto viro indignus videatur, sublllitateni
tamen ingenii non contemnendam argiut,
Sed maximè Falcon«m aíl opinionem iiidu-
striae, et sagariíalis <ominendaTÍt novus oc»
cultè scribendi modus {cifram Hispani vo-
cant) ab eo inventus. (^inn aiidlvissot llte-
ras Regias, (juac atl exerrinim miitrban-
tur, saepius interceptas ronsilia nostra lios-
tibus relexisbc , quarnvis obscuro satis scri-
bendi geuere cx-iratas j noYuiu exco^itavit
392 Varias composições
lAni ínextrlca])iU amba^e perplexiim , ut
mérito labyrinthus (quod illi nouien Auctor
rleJit) appellari possit. íd nos in publicam
utiiitatern Geometricis ejus lucubrationibus
subnectimus. Cum his artibus in urbe sna
omnibus cbarus esset , incredibile est, quaiu
intrinseca famiiiaritate, qiiain solidii amicitià
animum sapientissimi viii Petri Borgiae sibi
ílevinxerit. Erat is 'Slontesianae miíiiiae in
eo regno clarissimae Magister, í'i*aterque
Francisci ilhislrissiniiGandiae Reguli : utque
erat solertissimo ingenio praeditus, nec nii-
nus insigni iiberaUtate ilhistrls, cum Fal-
conis fidem, industriam, integritatem animi
uiaximis in rebus expertas esset, eum sum-
ino cum bouore in collesjium ^Montesianuni
cooptavit, et vertente tempore honoratissimo
stipendio cumulavit {Commendam Hispani
dinint). Erat haec in oppido Perpucicnte sita.
Adllegem semel, atqueiteru» pergensdegra-
fissiniis rebus disceplaturus eum secum du-
xit , omniumquc consiliorum suorum partici-
pem ferit. Oranum etiam in Africam trajecit,
quo à Rege missus est munitissimi iUius pro-
pugnacuU iniperator destinatus. In omnibus
ita bominis prudentiam, constantiam, gravi-
tatem admirabatur, nt nibil in otio, nibil in
regotio , Falcone inconsulto , ageret. Intr-
rioi Falco nuntjuam Ubros depoQ«re, prae^
DO P. Fr. Luiz de Sousa; %3
sertim poetas; scirper allqultl ir.edltars:
nunc epigramnia, mmc hyinrjum p;ii)gere :
partem etiam uoclibus íurari, qnani in tlieíu
transcrilíeret , iiterls/po iiupendeiei. Per
itl tempiis libros Georj^icoriini VirgUii iuii-
taturijs conipendiaiiaiu • luhicoruiii Ailstu-
telis descriptioncin aggressiis est (jiicuiidissi-
iiium opus, si, ut prt)po5iiit, absolverei,
taiiloque Georgicis utiliiis, quanto animo-
rum ciihus agrirulturae pratstat). IVaeci-
puus ejus labor fuit ojnis 4»piruni ttxere,
qiio Hispanoriim fada celeliaicl. íratpius
(licentem audivi solos portaruin nomint* di-
gnos esse , qui opus epicnm componero au-
derent : idque in expositione Anis poétirae
plane affirmat. Miium est qnam intenta
opera huic se nieditationi addixit. Tlatonis ,
Arislotelis, Iloratii libros de ai le poética sae-
pius revolvit, et ('iuiclcca\ it : Graecjs li-
teras tentavit^ ut sensa Homeri , quem La-
tine legerat , [)enitus invcsligaret. Cum mul-
ta jani animo concepisset , instar pictoris
lineas primas tiahcniis íundamenla jacere
inccpir, conslruílionem operis formare,
])arles nunc nKídIas , nunc posleritues ila
pertraclare, ut faeile tiat kgenlibus conji-
cere ex liaginentis , quae inter libros annu-
lueramus Falconem cum primis antiquilalis
viris aemulalionem assumpsissè, Ab ulioque
394 Yahias composições
opere fellciter absolvendo varias homínem
occupationes retardarunt , qiiibus à IMaece-
nate Borgia fere semper implicabatur, cum
sua niinquam commoda amicitiae' officiis
anteponeret. Quod n^agis doleo , non pauca
titriusíjue operis periere membra , quae
sane studiosos delccturent , aiictori gloriam
])arerent. Nuniijuam niiniis appetentem glo-
rlae poetam Apolliiiis scbolae protulerunt,
Ubi noviiin paiturn mens illa conceperat ,
protlniis iníquas pater non umbilicis iiiauia-
tis, non miniu disllncíls, sed vilibns cliarlis,
Tel epistolae dorso cnnimendabat , vel in
calce libri cujusvis exponebat. L'nde ilbiia
anilei ei<;dein versibus plerunqiie compelia -
rnnt, quibiis Syi)illam Aeneas apud Virgi-
lium: Foliis tantiini ne carmina manda ^ nc
iiirhata volcnt vapidis hidibria iientis. Cer-
tum est, iiisi per aniicos sietlsset , vix po-
luisse confia ri parvulum hoc voliinien : quod
lairicn in duplum excrescerct , si omnia ejus
v«.rripta exlarent : vel ipse rebus suiseo amore
indulgeret, quo nmlti indocti Narcissi suas
admirantur. lilgo quidem plura ab aniicis ao*
cepi; non pauca meo labore , et industria ,
veluti aucnpio collegi , quae vel in discrimi-
ne pereundi, vel mutandi patris versabar:-
tur. Po^qiKun Dorgia í\ pul)iic:s inuneribiis
obcundis ad olium, et cjuistem 6e «©nYtriil
DO P. Fii. Lriz DE SoTJsi. 3t|5
jara síínescente actate : ipse eliam , qiii pari
annorum passu 31aecenateni suum sequtba-
lur, i/l uiheni palriam se recepit. Ibi cuni
amicis conversar! , animiim omnihus piutatis
«fíiciis excolere, à Ivlnsis tanien nuuqnani
lecedeie. Eo nos prorsus tenipore homincm
iiovirrms. Valeijtiani veni anv.n á ['arlii Vir-
^•inis septuagefsmio soptinio supra niillcssi-
r.iuni, et quingentessimum. Hanc in!liií:e(]en\
elegxTam agitandae rcilei:iplionis uostrae,
ctfiatris: qui in Bíelitensi trirenii r.dversa
tenipestate pene CTcrsa à piraiis ad Sardi-
niam capti , Algerliunqiie in Aírlcain Irajecti
ciim Praetore har])aro tonveneranins, iiC
ego in palriam demitterer, ciuii statuto pre-
tio libertatis utriu&que rediturus. Cuni iir-
bcm adiissem , rihil mibi potius ftjit, quam
iit Falronem convenirem, ciijus lama oiiíiies
regni illiiis sinus pcragrabat. C^onveni, aiuli-
^i, aiiiavi. Mir?or enini crat fama bcniino
3;iso. Duobus annls iit paticni cobii , ut nia-
gistruni veneratus siini. Uiraque ilb; olíicia
«tpatris, et magislri intbjlgfntissime prae-
stilit. liitcr alia Artem Poclicam !loralii nnbi
sedulo explaraAií, eadtniqiif ij)sa scholia
dictavlt, quae bis libris snl)jimxiimis. Ad
stutlia literarum pene jam I^lusaruin ol li-
lum cxcitavli, languentem atl Poéiirii iiii-
pulit , et quasi futuri pjaesagiis onínibus me
3yG
TarTAS COMPOSinÕES
aniicitiae vinciilis obstrlnxit. Fatio'al)atnr
tunc gravíssima Geometiiae parte. Cum non
Sfjbim res magnas snscipere, scd veliementer
árduas , plenasqiie laljorum à mente inde-
fessa cogerelur, imposuerat sibi circuli Qua-
^raturam inrenire. In qiiod studiíini tanta
unimi conteiilione incubnit, iit saluti ejiis
nb amicisomnibus timeretur. Noites integras
insomnes agere, saepius coenae , saepius sui
í'sse immemorem , Tigllantem, et dornilen-
tem inter circinos, et bneas versai i, ajiqnandò
non firmas mentis videri. Fama cst operis
rxiagniruíbne deterritiim voluisse se tam
í^ravi oncii subcbjcere , in eamqiie mentem
anxibnm Uei , bominumque religione insi-
gnium invocasse: contracto tamen babitii
assiietudine meditandi niiUo modo poluísse
ruram exiicre. Scd de bis laiius agemus in
ipsis Geomcíriae commentjriis , quac prope-
diem edituri M'.nins, nbi Qiiaib.itnras cir-
culi phiribus modis fclicitcr tentatns exbibe-
bimus. íd tantum in a miei commendatione
addam , quod referi ArnobUis Union Delga
in eo opere, cui iiomen dedit Lignum vitae
tom. 2. cap. 4^- V^Z- ^' ^^^^^^ Jacobus
Falco HispaniJS Valentinns, ordinis Monte-
sia^e miles , admirabilis ingenii vir. Quod
enim ante ignotum, suo nobis manifestavit
in^jenio: paucU lácmpe abbi»G annii Qua*
DO P. Fi:'. Luiz de Sorsi. ÔCiy
rlraturam circiili noviter aclinvenil , et Je ea
insignem tractatum scrij^sit, qiii exciíssiis
rst AnlticTpiae apwd Joannem Bellerum ari:o
1591. Haec ilie. Ciim Falco bis turis iam
£[raviter iirgcretur, nullo modo ad huma-
iiiora stiuiia revoran potuit : rnni jani abun-
darei otio , vel ad iiicohata opera perfrcier-
da , vel inipeifecta s;ilieni expolierda. Ideo
multa bic iniperíeda , imilía inoriiala da-
mus, aliqua niimis correcta : cjuce vos ! ori
consulturos speramus, praesertim cumhitel-
lexeritls qwo casii , qna fortuna bacc peni»
jam extlncta nionuinenta è tenebris in luccni
venerint. Animam egerat Falco exlra pa-
triam. Dispersa erant ejus «cripta inter mul-
torum manus. Plura Valentiae liabebal Fran-
ciscus Beneitus ,vir nolllitate, cl religione
«:larus: illa , nl crat Falconis amicissitnus ,
menicfiae tradcre snnm. opere oplabal. Ad-
versabanlur aliqui leiibns quidem de causis,
partim viri graves, paitim gian ni: ijri :
íiand seio nu gloiiae 5uae, cl jntriac, an
Falconis invidenliores. Ita inj^raia Pátria
scnpta VI ta (IiL;njssima ciim auctore suo se-
pelicbat: et bonorc ÍVaudabat non eos soluni,
qui ii) bor libro laudanlur , sed qiii in .«al}-
ris accusantur. Scilè nu(; juditio Ilelrusc ;'s
qnidani , pluris, inqnit, laccuni a Dnn;c
3gS Varias cojiposiçoes
signari , quam ipsius Hetruriae RcguVi opí-
bus, copiis, dicruitate frui. Pilagnifica Terò
vox , et lioniine Romano digna. Si enim
iinpius jlle Dianae Ephesinae hostis , vel per
incendia nominis faniam quaerere non du-
bitavit , quanto gloriasiàs itnmortalitateni
sihi vindicabunt illi , quorum nomine ab
homine sapientissimo ieviter joco praesliicU
aoternum victnris carminibus posteritati
coniinendantur. Novus casus litem diieniit.
Almadae in Lusitânia agebam , qui locus
Ulisiponi imniinet , brevi freto interíluente
Tago , salu})er coelo, fontibus exuberaas ,
IMusaruni otiis conimodissimus. Vita erat
curis libera, et pene rusticana, practerquam
qnòd praefectuíam niihi imposuerat Rex se-
ptingentorum peditum, equlíuni ferme ccn-
tunj , qui nobis atl signa, si quando res pos-
tula!)at, praesto errint. Ad íncrunt (hiber-
natores Regni , cariam Almadain transíeren-
tes. Aedes oppidi sibi ia hospirium dislri-
buunt: cum piares, nec incommodae super-
esseiit, meãs etiain sibi postulant: quae pos-
tulalio iniqui plena impcrii contra niorein
p.itrium, et morum instituía, Regumque
,h? jes inilissimas satis iiidicabat, nova illos
\ eteris in me ofíensae recorda tione , jam diii
cj:npressuni oJii virus opp:>rtunè evomere ,
nequaquani in raemoriaiu rjvocintes , dede-
DO P. Fr, Luiz de Sousa. Sci^
•ere príncipes vires, quales ii esseut, in
privíttam "vlndictani potenliá pr.blici magi-
stratívs a]>uti. (>uni vf lienieiiter ariimo ccni-
motus essein, nova, et inauclila inetauior-
phoftis liidignantes parleies injuriae siibiliixi;
in íunuin , et cineres abiere. Ad Rcgcn^i
rleinde Mantuani Carpentanoium feslir.o,
Ivegem motili^eiitia in noítros , aequitate in
onmcs Lusilanoruni iieijum veie succcíío-
rcni. Ita qiiincjueviraius ilie in\idiani sibi
non levem conílavit , niihi inopinatuni exi-
linnj peperit, Falconi gloriam altulit. Lbi
Manluain vcni , nibil porius duxl , quani ut
^ndci memoriam consccrarcm. Sciipta ex.
omni parte colle;;i , disposui , in libM)S di-
slribni , lahoren, ingenlem suscepi. lia ernnt
omnia dispersa , et involula , et sibi diss^iden-
lia. IMiilium milii addit animi Comes Ticalii,
Joannes Borgia, IMariae Impcraliicis donius
Pracrecliis, Ma^;istri ijc|)<)S ex íralre, vir
gravissinius , ci.jiis exslaiit moni. menta do-
citriíiae, et eruditionis plena. Wuluim acuit
Venerabilis Thouias Malaeensis Kpiscopiis,
Magistri fraler. ISon parum altnlit adju-
nienli Keneitus, qui a Kaicone liuercs ex
teslanienlo nuncupaliis , serljJa tmirtia, cnae
potuit , tam l\)elj<.a , c^ian» Cccmclrica co-
geie , dib'genterque ad me n itlire (llla^it.
Vixil F;ilcc :irrcs duo?, tt tepij-f^ÍMP. (. Liit
4ao VàRlAS COMPOSlÇÓEf
Manluae Carpentanorum : in templnm So
cietatis JESU tumulo reccptus , anno i594.
Aá extremam usque spiíittim , cum per oc-
cupationes llcebat, studiis vacavil. Caelil>em
\itam perpetua egit. Amicos oíficiosissime
coluit. Qua etiam de causa extra Patriam
iliem clausit : cum septuagenarius non ciu-
])itaret Maecenatis sui vitâ jam defuncti
causa curiam adire, Regem convenire, et
de amici rebus constantissimé agere. Con-
stans est fama, Regem sapientissimum ho-
iriinis constahtiam admiratum Régio oráculo
colaudasse : nullum se in tota Republica
ineliorem Falcone hominem habere. De im-
mortiilitate animorum, de soUuione naturae
Libicunque occurrebat, avidè , et jucundè
disputabat acerrimus immortalitatis demon-
.stvator: quippe cui omnia bona in morte
sila esse jndicanti proprium pondus animi
solertiam acuebat, Cum ad me scriberet,
liaec ferme fuere verba : de communibus
amicis, ut scribam , oras: Gombaum sclto
f;Uis cuncessisse; paucis posl diebus Cbristo-
.phoriim. Glemens in IMaioricam missas est ,
iu Sar<lÍMÍain Moncada, ambo magistratum
acturi : verum , si mihi credis , melius cum
niortuls actum esse opinor. Ilaec ille. Plures
ia Fidcone viruites e\<'e!laore, comitas , li-
l)(3raiiui , contiueatiu, l.iborum loltM-autia,
DO P. Fr. Litiz de Sousa. 4o t
contemptio forturiae. Ea fuit modéstia, ut
cum ad unum iinlversa ordinis Montesiani
administratio deíerretur, Praeíectus a Rege
ipso loco , ac nomine l\egio nuncupatus ,
tanto se honore diíjnum constanter ne;íaret :
nec prius proviíiciam susciperet, quani vi
Regii imperii con:pnlsus est. Ne plura di-
cam , ita piam se in onínibus , ita philo-
sophuni gessit , ut Christianum Platonem
posses dicere. Talis vol)i% hominis, stndiosi
Lectores , lucubrationes offero : vaticinir.ni-
que non Delphicum , sed veriim praecino,
nemiiii qnidem , qui virtutis via insistat , et
memoria digna connetur, defuturum , qui
laudes ejus celebiet , nomenque posteris
muadet.
yahtc^
i
4ol
Ko principio do primeiro tomo da Monarchia Lusj^
tí\iia , \eai a obra que se segue,
D. EMMANVKLIS SOSAE COTTIGNI
Cármen Heroicwn ia laudem Fratris Be*'-
nardi de Brito.
Uíscute luctificá squalentein fronte capiU
liim ,
O qui turbato jam pridem volveris amne ,
Necte sacras lauios, et priscuin crinibus aii-
rum j
Amissosque ânimos iterum, Tage , Dubibus
aequa.
Magna, qiiod optanti nostrCira permittere
nemo
Auderet, reruni series jam nascltnr: ecce
Bipis, ecce tais otimil tibi Pai ria eivem
llUistri e{j;rcgiuni partii, quo clarior orbe
Jaçtabit niiUo telliis se Lysia íantiim.
Arte pólens , opibusque aninii l;ernardu5
ab alto
Ducet Lysiadum famani , et monimcnla liio-
rum ,
Ex quo prima uotís Aurora invecla quadri-
!4o4 Varias composições
Splenfliiit humano gcneri : dehlnc arma
tritimphis.
Inclyta , tunc sanctos repetens ?.b origint
mores ,
LoiJga vetustatis , reruuique arcana niove-
bit.
Vela setl in ventos jatujani flullancla pandit.
Aílsis ò proriiiSí[ne juves , da Nerèa niiiem
Euruniííue, et Zephyrum, Hcsperii Rex ina-
xime fiuctus.
MhificLiín tibi furgit opus , quo viibiera
iiostra
Obníibi tandem potuerunt, licèt impla Par-
ca,
Diim res ambiguae, dum spei erut ulla íu-
tu ri ,
Insultare dedlt , fatoque iiiciiniberc trlsti
Venales Itab\m calamos , quos ater in iras
Exacuit Uvor , fí^lbsque immane venenuni.
Lega tamen sta])ili succednnt laela dolori.
Ascipe ut inJucarjt primam haec in litora
gentem
Semina Pyrrhaei lapldis, durum genus unde
Decidlmus, primam ut nobis Tubal Optimus
arcem
Erigat, Hesperiae caput , imperiumque fu-
turam.
Ut Lenaeus agens Nysae de vértice Tigres
Orbe triumphato, primiim Iiis corsedÁt in
Oi'Í6
DO P. Fr. Lri7 de Sousi!^ 4o5
IVonilna Lysiadls socli de Poinine sigffaiis.
AdiiiiranJa quihas , post longum scilicel
aevnn» ,
Vertere clniistra clatuni Oceani, et nova si»
dera inundi ,
Indunique , atqiie suam ra libas Irar.f.ccr.í^r^^
iNysani
Orcultà fati signatum ]c^e £íicl)at.
. . .
Addit Ulyssaeis tundatani virihus uroem.
Ostentai raptas Aquilas, íracluniqiie Quiri-
num ,
Multatosque Gotlios, atque agmina Vanda-
lorum ,
Maile levem quoiies ariiiavlt Lysla pubem.
At geminas huc ílccle acics : nova gentis
origo ,
Religionc potens , cerne, ut se tollit Olym-
Et niimernni sanrtis altarlbus aiiget, ut indc
Vera fides longos nitet intemerata per aii-
nos.
Exin gentrin Arabum , pugnalaque in or-
dine bulia ,
Nostra jugo quorum nunquam se coUa dc-
d(;rc.
Testantur nuiliae servalis maenibus arces.
O quantos Reges í Quam fortia pectora !
Magnos
Alphonsos , et Joanncs , Pctrcíquo roveros.
4o6 Varias composíçÓeS
Aspice Cotílnos, genus insuperabile liella.
Aspice íberorum vulnus , stragemque Ve^
reiras ,
Almeydas Indi cladem , Libyaeque Meneses.
Noronlas, Sylvasque , et beili fulmina So-
sas ,
Reroasque allos natos melioribus annis ,
Martla qiios stabili clecorarunt vulnera fama.
Sed quid ego annale , tantaruni stringere
la u d um
Yersibus exíguis tentem ? Non si mihi Phac-
bus
Et cilharam , et vim sufficeret, rocisque ?
melosque.
Ergo ur^de Hesperiae rector , domlnalop
Eole ,
Laudiluis in^fentem «jratus fer ad aeihera
aluninun) :
Aurea quo tandem componas têmpora , red-
dens
Seria tibl , luctumque hosti , rairiaequc
salutem.
CO P. Fr. Lrrz »e Sousi. 4^7
Epi^ramma de ^lanoel de Sonsa Coutinho ,
que elU mandou pôr em publico no dia da
collocação das relicfuias dos Santos Mar»
tyrcSf que se levarão á Igreja de S. Baque
a 2S de Janeiro 'de i588, e/itre os mais
Imersos da festa com o titulo seguinte»
êumanae SjbiUae orncuhim , qnoã ÀstrologCTum 'vmnitmj
l/J dcttrins niulavvrat.
JL Ostqunm ter Phoebus qiiingentis cursibus^
aclos
A Dato in terris miminc, tollet equos.
Octogessimus octavus vciieraliilis annus
Lysiaduni geiíti gauclia snnima ferct.
Si non hoc anno pravae mala scmina sectae.
Si non cum Lihyco 'lliiax fenis liosle luil.
At supplcx iiianibus vinctis j»osl tcrga Eii-
ta n nus
Hispano subdet pérfida colla jugo.
Prisca íides , et religio , pielasque, pudorque
Aurífero referent áurea secía Tago.
Parva loquor, Divis tolo procul orbe fugatis,
Ipsc Tagtis sedes, et pia tem pia daLit.
Tantus erit profugis honor, atque triura-
phus , ut inde
Join coelo incipiant or>$a boftta frui»
4o8 VarUs composições
Vida do Patriarca S. Domin^oSy dividida em
i-j disticos y que se acfião debuxados em
o azulejo , que c^bre as paredes do clausro'
do Convénio de S, Domingos de Lisboa»
V Era TÍ(
ides , gentrix ; coelestem condi»
in alvo ,
Qui mundum accenso personet ore, ca-
nem.
Fax in ventre latens jam sacro fonte lava-
tus
Aurora, est , ardens postmodo Plaebus
erit.
Absumens parvum pia liteni flauini.i dlreniit.
Et saiictuni innocuum ter repulère facífs,
Accipe ai) aetlierco niissuin tlbi muiMJS
Olympo,
Orbis tutamen , diliciasque meãs.
Pro Christo certuns , scutum Cnicis objizit
hosti ,
Ilanc solam , illaeso milita, tela petunt.
DO P. Fr. Luiz de Sorrsi.' 4og
Qui potiiit quondam templi cohibere rui-
nani ,
Per sobolera verus niinc quoqae fulsit
Atlas.
Nate , quis in míseros tantus furor? Áurea
terris ,
Hoc duce, restituei saecula prisca fides.
Quas saepe coeli praenuncia signa probâ-
runt,
Aeternâ leges consecro lege tuas.
Lustret, et illustr«t mens aemula Sclis ut
orbem ,
Legis Evangelicae est rector hic, ille viae.
Arte laboratam nostrâ tlbi susripe Testem ,
Regiiialde , luei siigmata Dominici.
Prodlgus ad pocnas renuitqiic , horretque
Tiaras :
Omnis anhelaiiti sidera sordet boiios.
Férrea vinda diu , terque hórrida vcrberi
noctu
Aeterna rcpetunt coiulltione vices.
Quae non monstra tibi, quae non miracula
ccdcnt ,
4 IO Virias composições
Cui loties spoliis mortis onusta manusí
Félix paupertas ! Quid non speremus egeni?
Coelicolum , o socii , pascimur ecce penu!
Corpoream excedit nioiem super aéra ra-
ptus,
Nec pavet insidias, hostis inique, tuas.
Qui potuit pluvias cohibere , et claudere
nubes ,
Hunc mira populi religione colunt.
Ergo triunipliales , victor, íer ad aetheni
passas ;
Sacra ruanus oneret palma , corona caput.
T>0 P. Fíí. Luil DE SOUSA.^ ÍH
No principio do livro intitulado Gaza mento
Perfeito , auctor Diogo de Paiva de An--
drade , vem de Manoel de Sousa Comi-
nho este
SONETO.
O
S meios tle Imivar-te me ncj^aste,
Buscados, niasentvão, do obedecer- te;
Que de cliegar, Senhor, a conhecer-te
Admirações somente me deixaste.
De^te perfeito assumpto , que tomaste ,
Quiz devidos elogios escrever-te ;
Mas vejo tpie o louvor chega a ofl'ender-le,
Por não poder chegar ao que chegaste.
Mas ainda assim isento de aggravar-le
Só devia louvur-te jusíanicnle ,
Pois to julgo o mais tligno de louvar-ie»
No que do mundo illustra Phcho ardente
Que parte em teu louvor não terá parte?
Que siente sem li será sienie?
4 12 Varias composições
No principio do livro iníilulado Gigantoma^
chia , auctor Manoel de Gallegos, vem de
Manoel de Sousa Coutinho este
SONETO.
U
Nicos son dichosos Tueslros males ,
Pues que gozais vencidos grave ernpleo;
Si aspirasteys deyad , ya tanta os vco,
Que con los niisinos dioses soys iguales.
La ciega presuncion de los mortales
Ha conslguido el fin de su desseo;
Con Jn piíer se iguala el gran Typlioo ,
Uno , y otro en tu canto ya imniortales,
Y tu por niàs que Jove poderoso ,
Bivc gloriosamente en la memoria
A pezar de laendjidia, y tieuipo avaro,
El vence nn esqusdron por licencioso,
Tu le dàb ruUi.inado lanta floria ,
Que Júpiter trocara el poder raro.
DO P. Fr. Luiz de Sousa. 4i3
».■». %i^/^ »^V»"V v^-»- «/^/W
A^o livro intitulado Discursos Variei Políti-
cos , anctor Manoel Scverim cir Faria,
impresso em Ei^ora em 1624 vem. íJ^^iManoel
de Sousa Coutinho eUe
EPÍGRAMMA
V^Uod Maro suhlinii , quod sua>i rinrla-
rus , alto
Quod Sophocles, tristi Naso , qcod or«
canit.
Maestitiauí , casus , horrentia piaelia , amo-
res ,
Junctasiinul canlu , sed graviore , danuis.'
Quisnani andor? Camoniu.s. Undc hic?
Protiiilil illuin
Lysia in Eoas imperiosa plagas.
Unus tanta ucdit :* Oedit , et maiora datu-
riis,
Ni ciileri fato corriperetiir , erat.
Ultimus hic choreis Musaruiu pncfiiit: illo
rieniur Aonidum est , jiubiliortjuc clui-
rus.
Fios vetcris, virtuscpie iiovae fuit ille
Cauienae:
4f4 Varias composições
Debita jure sihi steptra Poésis babet.'
in Lusitanos Mt;Íicouis culmina tractus
Transtulit a.itia , Lyi'as , sertã, flucnta ^
Deas.
Currere Castalios nostra de rupe liquores
Jussit, ah invito prata virere solo.
Cerne per iuculios , Tenipe meliora , reces-
sus,
Cerne satãs sterili cespite , veris opes.
Omnibus Occidui rident tibi florll)Tis liorti ,
Non ego jani Lysios, credo, sed Elysios.
Orpheús attonilas dulci inodulainine cantes
Traxit, et ah stygio squalida monstra
foro.
fl^bessalicos , Lodoice, sacro dum flumine
montes
Pieridumque trabis , Coelicolumque tbo-^
ros.
£unt maiora tuae Orpheis miracula tocís:
Attica , quid íacerçs , si libi lingua loretií
Bo P. Fr. Lriz de SotisA^ 4'S
l^a Biblioteca Lusitana, tom» 2. Art. Fr.
Luiz de Sousa , vem de Manoel de Sousa.
Coutlniio, feito na occasião , em que
deitou o ffygo ás casas déí sua quinta de
A ima da , este
EPÍGRAMMA.
quid nostris insultas aedibus ? ant
quid
Exilio causas nectis, alisque moras!
Molire , expone, implora, minitare , rc»
posce
Yindictam, laqueos, jura, pcricla, ne-
crm
Conjurem tecum fortuna, occasio, leges ;
Longe allò nobis lis dirimenda foro est.
Quos llama absumpsit, redolct milii fama
Penates ;
Ponet ai atíternam non moritura domuin«
IXviJo ,
I
r
BV Sousa, Luiz de
5095 Vida do Beato Henrique
S85S6
1836
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