VIDA
^^,^^'^'''' " ^-^
DO
Beato Nuno Alvarez Pereira
(santo condestavel)
^«v .^-'-^ j^
Do mesmo auctor:
Vida do Ven. P. D. Gonçalo da Silveira, protomartyr
-.' * • ^da Mrica do Sul. Roma, 1908.
Á Bemaventurada Joanna d' Are, numero commemora-
tivo da sua beatificação. Echos de Roma, 1909.
Elogiurfi Patris Dominici Palmieri. Roma, 1909.
< ^ . »t^iMatheus Ricci, public#^o cdtememor^t^va doterceir;> ^
centenário da sua morte. Roma, 1910. ■^"^* -^
Lichens de Setúbal. Separata da Brotéria. Braga, 191 5.
A ultima Condessa de Atouguia, memorias autobiogra-
phicas, com um estudo preliminar sobre a direcção
espiritual dada á Condessa pelo P. Gabriel Malagrída,
1.» edição, 1916 (esgotada), 2.« edição. Braga, 1917-
S. Cecilia. Virgem e Martyr. Estudo histórico, archeo-
logico, e artístico. Porto, 19 19.
S. Dâmaso I. Apontamentos sobre o estado actual dos
estudos damasianos. Porto, 1918.
P. Francisco Suares, (Doutor eximio). Brere resenha da
sua vida e obras. Porto, 1918.
*7>r. Sidónio Paes, allocução feita na Egreja da Encar-
nação depois da missa do 3o.* dia, mandada celebrar
por uma commíssão de alumnas do Liceu Central de
Garrett, Lisboa, 1919.
Vida Interior, pelo P. Germano Foch ; traducção. Porto,
1919.
A Vinda de S. Paulo d Hispânia. Revista de Historia,
1920. Lisboa.
R' VALÉRIO A. CORDEIRO
Sócio eíTectivo da Associação dos Arqueólogos Fortogneses
e da Sociedade dos Estudos Históricos
VIDA DO BEATO
Nuno Alvarez Pereira
(SANTO CONDESTAVEL)
2.» EDIÇÃO
LISBOA
Edição da Livraria Cathouca
Rua Augusta, 33o
1921
Reservados todos os direitos de
reproducção em Portugal, Brasil,
etc, segundo as leis vigentes.
Typ. do Annnarío Commercial — Praça dot Bestaaradores, 34 — Lisboa
INTRODUCÇÃO
O pensamento de escrever uma vida de
Nuno Alvarez, surgiu no meu espirito
no mês de maio de 1 909, quando assistia em
Roma ás grandiosas festas da beatificação
da heroina francesa Joanna d' Are. Coilabo-
rando, nessa época, nos Echos de Roma,
graciosa revista do Collegio Português, es-
crevia o seguinte: «Um pensamento nos
preoccupava durante estas festas. Ha na
nossa historia portuguesa um personagem
egualmente santo que incarna o espirito
nacional e o patriotismo lusitano : o Santo
Condestavel D. Nuno Alvarez Pereira. Pa-
rece averiguado que esse varão glorioso
teve culto na ordem Carmelitana, antes do
decreto de Urbano VIII. Sendo assim, fácil
coisa seria o reconhecimento desse culto,
podendo também nós venerar nos altares o
salvador da nossa independência nacional.
Quantas graças não traria semelhante acon-
2226411
8 TIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
tecimento ao nosso amado reino! Aqui fica
a lembrança ; aos corações patrióticos cabe
executá-la».
Poucos dias depois soube que esse pro-
cesso estava iniciado, que se tratava seria-
mente do reconhecimento do culto. Pro-
curei immediatamente o Postulador da
Ordem Carmelitana, o meu venerando
amigo o R. P. Gabriel Wessels, que me re-
cebeu com a maior gentileza. Falíamos com
amor, com entusiasmo, do nosso Santo
Condestabre. Parecia-me que me renasciam
no coração as vivas impressões colhidas
durante a infância na leitura da vida do
Guerreiro-Monge. O R. P. Wessels enten-
deu que me podia convidar para escrever
uma vida em italiano do nosso Condestavel.
Acceitei o encargo, e, com os poucos ele-
mentos de que podia dispor, tracei um com-
pendio dessa vida, compendio que foi uti-
lizado, com a minha plena auctorização,
pelo auctor da recente biografia italiana de
D. Nuno Alvarez. «Os seus apontamentos,
diz o R. P. Wessels, numa carta escrita em
fevereiro de 191 8, serão muito utilizados
INTRODUCÇAO 9
pelo Battaglia, que escreve agora a vida do
Beato. Agradeço-lh'os de novo, porque
doutra forma seria muito difficil para um
italiano escrever tal vida».
Mas, se esse trabalho bastava para um
publico estrangeiro, parecia-me que não
devia satisfazer os leitores portugueses. Ti-
nham direito de exigir coisa melhor do que
a anterior. Pensei então em refazer o escri-
to ; com o rigor do método histórico des-
tacar e pôr em claro relevo a figura nobre
do Condestavel ; procurar, na medida do
possivel, libertar-me de entusiasmos, por
ventura mal cabidos; arrancar serena-
mente da figura do Condestavel a patina
da lenda e apresentá-la em linguagem sim-
ples com a maior verdade possivel. Para
isso, era preciso guiar-me pelas fontes,
prescindindo (prescindir não é depreciar)
de tudo o que se foi escrevendo depois. A
narrativa seria baseada nos auctores mais
fidedignos e mais antigos. O estilo seria o
mais lhano possivel. Se o consegui, julga-
rão os leitores. O que posso assegurar é
que me não resolvi a publicar estas pagi-
IO VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
nas sem ouvir a opinião do meu respeitabi-
lissimo amigo o Sr. Cons. Doutor António
Cândido, o qual, com aíFecto e dedicação,
que não sei como agradecer, percorreu o
manuscrito e me animou a publicá-lo. Com
tão poderoso suffragio, não se admire o lei-
tor que me atrevesse a lançar á publicidade
estas despretenciosas linhas.
Como disse, é nas fontes que fui buscar
os elementos da minha narrativa. A pri-
meira delias é certamente a Chronica do
Condestabre (i). Já Oliveira Martins con-
siderava este livro como «coevo dos acon-
tecimentos que relata e o mais vetusto mo-
numento da 'historiografia nacional em
lingua portuguesa».
Hoje é ponto assente, e esta gloria per-
tence ao erudito historiógrafo o Sr. Braam-
camp Freire, que na magistral prefação da
Crónica dei Rey Dom Joam (2) o demons-
tra com argumentos irrespondiveis, ser elle
(i) Servi-me da e«.'içáo critica feita pelo Sr. Dr. Men-
des dos Remédios (Crimbrd, 191 1).
(2) L. c. pag. XXV e leg. Edçâo do Arquivo Histó-
rico, 1913.
INTRODUCÇÃO I I
da auctoria de Fernão Lopes e de ter sido
escrito entre os annos 1431 e 1443, ou seja
depois da Chronica de D. Fernando e an-
tes da do Mestre de Aviz. São, pois, de
egual auctoridade estas duas chronicas e
assim nelias, principalmente, se estribam
todas as affirmaçóes que se fazem.
Em terceiro logar, a obra de Frei Simão
Coelho, de que existe um perfeito exemplar
na Biblioteca Nacional de Lisboa, com o
titulo de Compendio das Chronicas de Nossa
Senhora do Carmo (1572). Occupa-se do
Condestavel nos cap. 19 a 21; mas infeliz-
mente não dá, sobre a vida de D. Nuno no
Convento do Carmo, aquella riqueza de
informações que seria para desejar. Estas
apparecem copiosas no tomo I da Chronica
dos Carmelitas de Frei Joseph Pereira de
Sant'Anna (1745), em que toda a Parte III
trata do Condestavel (em 188 paginas in-
folio). A parte IV é dedicada á fundação e
descripção do Convento do Carmo. E' claro
que dos dois chronistas carmelitas, merece
maior consideração o mais antigo. No ou-
tro, já apparecem por vezes os ouropéis da
I 2 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
influencia lendária; mas o seu testemunho
é precioso em tudo o que se refere ao que
elle próprio viu e assistiu. Também o Agio-
logio Lusitano de Jorge Cardoso dá pre-
ciosas informações sobre Nuno Alvarez.
São estas as fontes que maior respeito
histórico merecem. Junte-se-lhes o Processo
do reconhecimento do Culto, com os do-
cumentos que abonam a antiguidade desse
culto, largamente utilizado no capitulo que
a elle se refere.
Se a narrativa, como se disse, se baseia
nestes livros, não me dispensei de folhear
com o maior cuidado as outras publicações
antigas e modernas que versam o assum-
pto. Confesso que, por exemplo, ao ler as
paginas insulsas de Frei Domingos Teixei-
ra, mais de uma vez bocejei dç puro tédio,
porque, como bem pode ver quem se dér
ao trabalho de o percorrer, nada diz de in-
teressante ou de novo, e o que diz fá-lo
num estilo hoje insupportavel. Dos traba-
lhos modernos, merece menção especial o
livro de Oliveira Martins : A Vida de Nun'-
Alvares. Faço minhas as palavras com
INTRODUCÇÃO 1 3
que o distinctissimo escriptor Sr. Conse-
lheiro J. Fernando de Souza julga esta obra
na conferencia brilhante sobre Joanna
d* Are e Nun^Alpares, feita em 6 de maio
de 1 916.
(íNun* Alvares é um livro admirável pelo
encanto da forma, pelo poder d'evocação,
pela animação das narrativas, pela piedosa
emoção patriótica. Vê-se que o historiador,
ou antes o poeta, versou com amor o seu
thema e foi empolgado pela extranha fasci-
nação, que em corações portugueses exerce
a figura prestigiosa do heroe sem par, au-
reolada pelo nimbo da santidade . . .
«Algo porém faltava a Oliveira Martins
para comprehender Nun' Alvares. Avassa-
lava-lhe o espirito a flexuosa, contradicto-
ria e obscura philosophia allemã . . . Fal-
tou-lhe a formação intellectual Christã . . .
Por isso a santidade é para elle uma forma
de allucinaçãd. O amor de Deus a que a
religião aspira, o anhelo ardente da perfei-
ção moral, as esperanças immortaes da
beatitude, transformam-se sob a sua penna,
em allucinaçóes, formas de suicidio lento,
14 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
anceios de aniquilamento, aspirações ao
Nirvana . . . Alumiado no fim da vida por
uma luz melhor, Oliveira Martins teve de-
certo a noçáo exacta das aspirações da
alma christã. Se a morte o não roubasse,
em toda a pujança do talento, ás lettras
pátrias, bem poderia rever o seu Nun'Al-
vares, e, tendo a comprehensão nitida da
psychologia do santo, retocaria sem duvida
as manchas que deslustram o quadro no-
tável, que pintou.» Até aqui o Sr. Fernando
de Souza.
Muitas outras publicações modernas se
referem ao nosso Heroe. Duas delias: O
Santo Condestabre do Sr. Ruy Chianca, e
Nun' Alvares do Sr. Augusto Forjaz, execu-
taram o conhecido libello de um cardeal
diabo, com que se procurou desfigurar a
memoria do nosso Heroe. Outras, como
a interessante plaquette do Sr. D. Ma-
nuel José de Noronha : Nun* Alvares, são
forçosamente incompletas. São esboços e
não biografias, como exige o facto da bea-
tificação equipollente do Santo Condestavel.
Foi para corresponder a esta exigência
INTRODUCÇÃO l5
/
que se escreveu o livro que segue, dirigido
de um modo especial á nossa querida Ju-
ventude Portuguesa, e áquelles que dese-
jam um estudo objectivo, breve, que lhes
dê idea clara do grande personagem. E' o
primeiro que, em lingua portuguesa, se
publica depois do acto solemne que legali-
zou o culto prestado ao nosso Heroe Na-
cional.
Oxalá contribua para diíFundir cada vez
mais esse culto e para debellar a crise de
caracteres que tão abatida traz a nossa
Nação. Com um exemplar tão formoso
deante dos olhos, animar- se-ha certamente
a actual Juventude a resuscitar em si as
virtudes e energias dess*outra Juventude a
que pertenceu Nuno Alvarez, e, como ella,
reconstruir Portugal, salvá-lo da decadên-
cia profunda a que o vão levando os erros
tremendos do nosso liberalismo, destruidor
da genuina tradição portuguesa.
Lisboja, I de Janeiro de igig.
O AUCTOR.
NOTA SOBRE A 2!^ EDIÇÃO
Esta segunda edição pode-se bem chamar re-
producção da primeira, tão poucas são as mo-
dijicaçôes que nella seji:{eram.
Juntou-se apenas um apêndice com o oficio e
missa do Beato Nuno Alvarei^ approvado pela
Santa Sé para a Ordem Carmelitana e Pa-
triarcado de Lisboa.
O favor que encontrou a primeira edição,
exgoíandose em poucos meses, prova a lacuna
que este modesto livro veio preencher.
Continue elle a sua missão de levar o conhe-
cimento do B. Nuno até os últimos recantos do
mundo onde se falle o idioma português, para
despertar em todos os que o lêem o apreço e
amor da nossa grande figura nacional.
Lisboa, Janeiro de 1931.
O AUCTOR.
o BEMAVENTURADO NUNO DK SANTA MARIA
Quadro a óleo do Sr. Félix da Costa
(Vide nota da pag. 223)
Reservados todos os direitos de reproducçáo.
Armas de Portugal, da Ordem do Carmo e de D. Nuno Alvarez
(Reproducção da Chronica de Sanfojinna — Frontispício)
O ESCUDEIRO DA RAINHA
Em fevereiro de i373 a corte portuguesa
procurava em Santarém um refugio seguro con-
tra os Castelhanos, cujos exércitos marchavam
sobre Lisboa. EI-Rei D. Fernando de accordo
com os poucos fidalgos que o rodeavam, man-
l8 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
dara reconhecer o inimigo por dois jovens,
inexpertos no mister das armas, irmãos, filhos
do Prior do Hospital: Diogo e Nuno Alvarez.
A' hora de jantar voltavam os dois explorado-
res. El-Rei mandou-os entrar e, ainda á mesa,
quis ouvir as novas que traziam. D. Nuno Al-
varez interrogado, respondeu : tque lhe parecia
muita gente mal acaudellada, e que pouca gente
com bom capitão, bem acaudellada, os poderia
desbaratar (i)».
Sorriu a Rainha D. Leonor, e agradou-se
do mancebo de i3 annos. Pediu ao Rei que lh'o
desse para escudeiro. D. Fernando, que nada
sabia negar a essa mulher serpentina que o tra-
zia enleado, assentiu. Mais, declarou que toma-
va o irmão e companheiro para seu cavalleiro.
Caprichosamente a Rainha mostrou desejo de,
logo alli, armar cavalleiro o seu protegido.
Nuno Alvarez estremecia de alegria. Via
chegado o ideal que tantas vezes sonhara, quan-
do lia soíFregamente os livros então em moda,
as Historias de Cavallaria, como a de Galaaz
e da Tavola Redonda. Elle, que se conservara
casto e puro, ia receber a iniciação que tanto
anciara.
Buscaram-se as armas; o arnez, espada, es-
(i) Chronica do Condestabre — Cap. II, p. 5.
o ESCUDEIRO DA RAINHA I9
poras... mas nenhumas havia que servissem
ao corpo franzino do donzel. Lembrou-se alguém
que as do Mestre de Aviz estavam alli perto.
Mandaram-se pedir. Singular destino de Deus,
que aproximava assim pelo ideal da cavallaria
dois homens cuja vida havia de se unir na re-
surreição da Pátria! Contrastes eloquentes:
dum lado o rei «que fizera fraca a forte gente»
pela sua fraqueza, simbolizada nessa mulher
perversa, verdadeiro fructo da sociedade cor-
rupta dessa época. Do outro, o jovem Nuno,
pallido, loiro, puro como os anjos, frágil creança
que nesse momento representava, inconsciente,
•o futuro Portugal.
Deante do desejo da Rainha suprimiram-se
algumas formalidades, que se usavam em cere-
monias como esta. Não houve jejuns nem vigilia
de armas. A comitiva entrou na capella. A es-
pada já era benta, como benzidas eram as ou-
tras peças do ritual. A pergunta litúrgica foi
feita pelo Rei.
«Qual é a tua intenção ao entrares na Ordem?
Para te enriqueceres? Para descançares? Para
seres honrado, sem honrares a Cavallaria? (i)
Se tal é, vae-te, não és digno.»... O neófito
(1) Cfr. César Gantu, Hist. Univers. t. V, 1. XI,
cap. IV. La Chevalerie, pag. 267 e seg.
20 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
respondia que não, que bem diversos eram os
seus ideaes. Elle queria honrar a Deus, a Reli-
gião e a Cavallaria: jurava-o na espada do seu
senhor e Rei.
A Rainha e as damas da corte cingiram as
armas ao jovem escudeiro: o arnez, a espada,
as esporas. cToma esta espada, cavalleiro.
Exerce com ella o vigor da justiça e derruba o
poder da injustiça. Defende com ella a Egreja
de Deus e os seus fieis ; dispersa os inimigos do
nome christão ; protege as viuvas e os orphãos»
O que estiver abatido, levanta-o. O que tiveres
levantado, conserva-o. O que está conforme
com a ordem, fortalece-o. E' assim que, ufano-
e glorioso somente com o triumpho da virtude^
chegarás ao reino celeste, onde reinarás eterna-
mente com o Salvador do mundo». Terminada
esta exortação, a própria Rainha erguia-se,
tomava a espada real nas mãos, dava com ella
três golpes nos hombros do neófito, depois uma
leve bofetada na face, dizendo: «Eu te arma
cavalleiro em nome de S. Jorge e de S. Miguel.
Sê valente, corajoso, leal». Depois coberto com
o elmo, tomando o escudo e a lança na maa
costumava o novel cavalleiro montar a cavallo
c apparecer á porta do templo, deante do povo
que o acclamava. D. Nuno ainda meditava na
oração do sacerdote. tSenhor, dissera elle, é
para que a justiça tenha um apoio neste mundo
o ESCUDEIRO DA RAINHA 2 I
€ O furor dos maus um freio, que permittistes
-aos homens, por uma disposição particular, o
uso da espada (i)». E promettia, de si para si,
que tal seria o emprego da que havia recebido.
Deus, a Pátria, que passava por uma das suas
maiores crises, a justiça que elle via calcada aos
pés por essa sociedade em decomposição, se-
riam os ideaes que a sua espada havia de de-
fender. Terminada a ceremonia vinha abraçá-lo o
pae, o Prior do Hospital D. Álvaro Gonçalvez
Pereira, que lhe communicava a resolução de
El-Rei, que a seu pedido lhe fizera a mercê de
o tomar «para morador em sua casa, dando-lhe
como aio seu tio Martim Gonçalvez de Carva-
lhal, escudeiro no paço e irmão da cuvilheira da
Infantazinha D. Beatriz, D. Iria Gonçalvez do
Carvalhal, mãe de Nuno. Foi esta senhora, di-
zem as Chronicas, «uma boa e mui nobre mu-
lher e estremada em vida acerca de Deus, de-
pois que houve aquelles filhos, e viveu em
-grande castidade e abstinência, não comendo
carne nem bebendo vinho por espaço de qua-
renta annos, fazendo grandes esmolas e grandes
jejuns, e outros muitos bens. E foi cuvilheira da
Infanta D. Beatriz, filha de El-Rei D. Fernando,
(i) J. Fernando de Souza, Joanna d' Are e Nun' Alva-
res, Lisboa, 19 16, pag. 2.
22 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
que depois foi Rainha de Gastella, sendo para
ella escolheita por sua grande bondade (i)».
Ficava pois Nuno no paço com mais tres
pessoas da familia, a mãe, o tio e seu irmão
Diogo. Nascera elle no castello de Sernache de
Bomjardim, aos 24 de junho de i36o, e fora le-
gitimado por ordem de EI-Rei D. Pedro, um
anno depois. Fora educado com grande cuidado
pelo pae e «criado a grã viço», dizem as Chro-
nicas. Seu gosto predilecto era a leitura de livros
de cavallaria, principalmente a historia da Tavola
Redonda. Adestrara-se egualmente na arte de
cavalgar e no manejo de armas, nas caçadas
em que entretinha os ócios da casa paterna. E
bem o provou no feito que relatamos, feito que
lhe alcançou tão cedo as esporas de cavalleiro.
Não fora elle o único explorador; outros tinham
sido enviados «cavalleiros e escudeiros... que
fossem descobrir terra para verem as gentes
de El-Rei de Gastella que passavam para Lisboa,
que gentes eram e a maneira que levavam»;
estes nada acharam nem puderam ver cousa
alguma. Só os aventurosos filhos de D. Álvaro
(i) «i4 mãe de D6 Nunalvres se chamou Eirea Gon-
çalves do Carvalhal, dona de muyta prudência que de-
pois viveu muy recolheitamente, morreu com muytas
mostras de sanctidade, que foi natural Relvas.» Frei
Simão Coelho. — C. 19, pag. 77.
o ESCUDEIRO DA RAINHA 23
é que tiveram coragem para se arriscar até
ás posições extremas, até avistar o inimigo.
Conta- Fernão Lopes na Chronica de D.
João I (i) que segundo o costume da época, o
pae de Nuno, logo depois do nascimento deste
filho pedira a um certo mestre Thomaz, astró-
logo e grande letrado, o horoscopio da creança,
e que o dito mestre Thomaz lhe dissera que este
filho havia de ser vencedor de batalhas «que se-
ria sempre vencedor em todos os feitos d'armas
em que se acertasse, e que nunca havia de ser
vencido, contanto que se chegasse a Deus em
todas suas obras e nenhuma cousa fizesse em
seu desserviço».
Nada mais natural do que contar-se isto á
creança para a estimular á virtude, já que a
esta estava alliado o successo da sua carreira.
Lia o jovem nos livros de cavallaria que a pu-
reza era a virtude que tornara invenciveis os he-
roes da Tavola Redonda, e procurava que a sua
alma e corpo se conservassem immaculados.
Via como Deus os ajudava, quando Lhe tinham
sido fieis, e assentava comsigo imitar essa fide-
lidade. Assim se foi formando o seu animo viril,
que tantas attençÕes atraiu na corte. A própria
Rainha D. Leonor, apesar da sua maldade, não
podia deixar de estimar o seu angélico escudeiro,
(i) Cap. XXXIV.
24 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
tão puro e integro, não obstante o ambiente
corrupto em que vivia. Tem a innocencia este
condão de se fazer respeitar ainda dos que an-
dam alheiados da virtude.
Sobre a família e ascendentes de D. Nuno
muito se poderia escrever. Contentemo-nos com
as palavras de Fernão Lopes que celebra a li-
nhagem de Nuno, nomeando o seu avô D. Gon-
çalo Pereira, bom e grande fidalgo, de quem,
antes de ser arcebispo de Braga, nasceu o pae
de D. Nuno. Gomo dissemos, D. Álvaro Gon-
çalvez Pereira foi Prior da Ordem Militar dos
Hospitalarios e grande bemfeitor dessa milicia
religiosa. Esteve em Rhodes, para prestar ho-
menagem ao grão-mestre. Construiu o castello
de Amieira, de Bomjardim e de Flor de Rosa,
perto do Crato; aqui mandou edificar uma
egreja, onde jazem os seus restos mortaes. Foi
privado de três reis de Portugal: D. Affonso,
D. Pedro e D. Fernando. Teve trinta c dois
filhos, sendo D. Nuno o undécimo.
II
NA CORTE DE D. FERNANDO
Era El-Rei D. Fernando, no dizer de Fer-
não Lopes «grande creador de fidalgos e muito
companheiro com elles ; e era tão mavioso de
todos os que com elle viviam que não chorava
menos por um seu escudeiro, quando morria,
como se fosse seu filho... Era cavalgante e
torneador, grande justador e lançador atovolado.
Era muito braceiro, não achava homem que o
mais fosse, cortava muito com uma espada e
remessava bem o cavallo... Era ainda El-Rei
D. Fernando muito caçador e monteiro, em
guisa que nenhum tempo azado para elle dei-
xara que o não usasse».
Daqui se pôde conjecturar a vida de Nuno
Alvarez nos três annos que passou na corte.
Ahi se foi completando a sua educação de fi-
dalgo, educação de que se pôde fazer idea pelos
gostos e occupações do Rei. Como em casa do
pae, fora mais ou menos iniciado nestes exercí-
cios, fácil lhe foi no paço alcançar certa nomeada
2 6 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
como bom cavalgante, torneador, justador e
lançador. Tudo isto tornava cada vez mais sim-
pático na côrte o jovem escudeiro. A Rainha,
alegrava-se pela escolha feliz e empregava o seu
pagem de preferencia aos mais, nos serviços
próprios. Elle acompanhava a soberana nos pas-
seios e festas, elle servia-a á mesa, elle com-
municava aos próceres da côrte ás ordens da
esposa de D. Fernando.
Nuno Alvarez, como dissemos, era afeiçoado
á leitura dos livros desde os seus primeiros
annos. Nos serões da côrte teve elle ensejo de
conhecer os trovadores que, já desde o reinado
de D. Dinis, iam lançando as bases da poesia
nacional, como se pôde ver nos monumentos
preciosos que nos foram transmittidos no Can-
cioneiro d'El-Rei D. Dinis. Além disto, encon-
trava na livraria incipiente do paço muitos dos
seus auctores favoritos : as novellas de cavallaria
que tanto apreciava. O Amadis, de Vasco de
Lobeira; o romance do Rei Arthur; o de Santo
Graal, a quem Fernão Lopes chama de Santo
Brial, e que não é outra coisa senão corrupção
das palavras Sangue Real, por se tratar nelle
do famoso cálice onde se conservava o Sangue
de Christo, cálice escondido num recanto da
Hespanha e que só podia ser conhecido de
quem fosse puro, virtuoso e valente; todos estes
livros eram o pasto favorito do seu espirito. Na
NA CORTE DE D. FERNANDO 2/
atmosfera nobre e pura dessas leituras encon-
trava o jovem escudeiro a triaga para se guar-
dar da corrupção que via na corte.
A soltura dos costumes era grande. Os fi-
dalgos e sobretudo as fidalgas que rodeavam os
Reis, encontravam na vida molle, efeminada,
licenciosa dos amos incentivos para as suas
desordens. Apesar das suas falias maviosas e
das caridades que fazia a Rainha com as suas
damas, o Chronista não duvidou dar-lhe o epí-
teto vergonhoso de «lavradoura de Vénus», di-
zendo que o manto de caridade servia unica-
mente para cobertura dos seus deshonestos
feitos.
As caçadas eram o divertimento predilecto
de El-Rei. «Trazia quarenta e cinco falcoeiros
de besta, afora outros de pé e moços de caça e
dizia que não havia de folgar até que povoasse
em Santarém uma rua em que houvesse cem
falcoeiros. Quando El-Rei ia á caça, continua
Fernão Lopes, todas as maneiras d'aves e cães
que se cuidar podem para tal desenfadamento,
todas iam em sua companhia, em guisa que
nenhuma ave grande nem pequena se levantar
podia, posto que fosse grou e betarda, até o
pardal e pequena follosa, que antes que suas
ligeiras pennas a pudessem pôr em salvo pri-
meiro era presa do seu contrario Para ra-
posas, coelhos e lebres e outras semelhantes
28 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
selvagens montezes, levava El-Rei tantos cães
de seguir suas pegadas e cheiro que nenhuma
arte nem multidão de covas lhes prestar podia
que logo não fossem tomadas. E porém nunca
El-Rei ia vez alguma á caça que sempre
nella não houvesse grande sabor e desenfada-
mento (i)».
O escudeiro acompanhava o Rei, escondido
na multidão dos fidalgos e servidores do paço.
Para elle era este divertimento occasiao de to-
nificar o espirito e lavá-lo das impurezas que se
respiravam na corte.
O povo leal português clamava contra os
desmandos da corte, contra a cobardia do Rei,
que, apesar da invasão do inimigo, continuava
numa apatia desesperadora. Corria de bocca em
bocca o rifão severamente satírico, que tão dura-
mente castigava o procedimento do monarca: tEis
vol-o vae, eis vol-o vem, de Lisboa para Santa-
remi. Escarnecia da politica tão cheia de incer-
tezas e da falta de tacto e génio guerreiro dum
Rei, que ateava as guerras para depois entregar
o paiz á devastação do inimigo. Nuno Alvarez
estremecia de raiva ao ouvir as noticias que
vinham de Lisboa. Emquanto D. Fernando tes-
tava de assecego» em Santarém, o exercito do rei
de Castella acampava deante da capital. Hen-
(i) Fernão Lopes, Chronica de D. Fernando — C. I.
NA CORTE DE D. FERNANDO 29
rique II com suas hostes assolava os arredores
da cidade, queimava os navios ancorados no
Tejo, destruia os arsenaes. O assedio era em
breve reforçado por uma armada castelhana que
bloqueava o estuário e impedia a communicaçao
por mar. Outro exercito invadia o Minho se-
meando a devastação por onde passava. Acu-
diam os guerreiros ao Rei, para que fosse ao
encontro do inimigo. D. Fernando não saía da
sua politica de hesitações.
A mediação do Pontífice Romano veio pôr
termo a este triste estado de coisas. Gregório XI,
que ao tempo occupava a cadeira de Pedro, en-
viara o Cardeal de Bolonha, Guido de Mon-
tier, para ver se conseguia restabelecer a paz
entre os dois príncipes christãos. A missão do
Legado Pontifício foi penosa, mas por fim co-
roada de êxito. Os dois reis ratificavam em pes-
soa, deante do Legado, em Vallada, o tratado
que fora assignado em Santarém pelos enviados
dos soberanos aos 19 de março de iSyS. Eram
humilhantes as condições para Portugal, mas
não tanto quanto merecia o procedimento in-
qualificável de D. Fernando.
E o Rei, em vez de tratar da defesa do reino,
cm vez de recompensar o heroísmo dos defenso-
res de Lisboa, mal voltara para ella, movido pelos
conselhos de Leonor Telles, mandava levantar
forcas para exercer vindicta brutal contra Fer-
3o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
não Vasquez, alfaiate que, em nome do povo,
ousara contrariar o casamento do Rei com a
adultera. Outros populares caiam sob a vin-
gança da Rainha: a uns coníiscavam-se os bens;
a outros decepavam-se os pés e mãos, pelo crime
de, dois annos antes, terem querido evitar o mal-
fadado casamento.
Nuno Alvarez assistia com o coração con-
frangido a tanta e tão revoltante injustiça. Se o
respeito devido á auctoridade regia, a gratidão
pela dama que o armara cavalleiro, o obriga-
vam a guardar silencio, não deixava de desap-
provar intimamente taes monstruosidades. Pa-
recia-lhe assistir á morte da Pátria. Quão diversa
dos seus ideaes era a sociedade onde vivia ! . . .
Quanto adeantara no conhecimento dos homens,
quanta experiência adquirira nestes três annos!
Como desejaria elle, o cavalleiro da justiça, o
patriota dedicado, remediar a podridão que via
em torno de si!... Ao menos evitaria ser con-
taminado por essa podridão. Quanto peores
eram os fidalgos com quem convivia, quanto
^mais corrupta a atmosfera que respirava, roais
puro elle deveria conservar-se para a missão a
que se sentia chamado, missão ainda envolvida
nas névoas do futuro e que mal podia adivinhar.
cQuanto peor o mundo lhe apparecesse, melhor
tínha de ser elle para o emendar», diz um seu
biografo contemporâneo.
NA CORTE DE D. FERNANDO 3 I
Tinha então dezasseis annos o escudeiro.
Estava quasi honaem feito. O habito de reflectir
profundamente dera ao seu rosto uma certa
gravidade que parecia augmentar-lhe a edade.
A pureza da sua vida, a castidade immaculada
que todos nelle reconheciam, faziam com que
o tratassem com um respeito superior aos seus
annos e condição. O pae sorria de alegria ao
contemplar este filho, seu valido especial, pelos
dotes que nelle observava e pela lembrança do
horoscopio. Pensou em dar-lhe estado. Bus-
cou-lhe uma noiva egual á posição que occupa-
va; fallou com El-Rei e a Rainha. Fallou com
a mãe. Entabolou negociações com a futura es-
posa; depois resolveu communicar o negocio
ao filho que tão alheado andava de seme-
lhantes pensamentos. Era um successo que ia
transtornar os seus planos. Havia nelle uma só
vantagem: afastá-lo dessa corte licenciosa e
corrupta de que já se sentia enojado.
III
VIDA DE família
«Nuno, embora sejas moço, parece-me que
é bem e serviço de Deus e tua honra que hajas
de casar. E porque entre Douro e Minho ha
uma mui nobre dama jovem e de grande bon-
dade, minha vontade é, se a Deus prouver, de
casares com ella. E quero saber de ti o que te
parece ; e non lhe disse mais ...»
Longe, muito longe de taes projectos, estava
o pensamento de Nuno. Era coisa, diz a Chro-
nica do Condestabre, de que elle trazia a von-
tade muito afastada. Os seus cuidados eram ca-
valgar e montear e ler livros de cavallaria «es-
pecialmente a estoria de Galaaz, em que se
continha a soma da Tavola Redonda.» E como
nella via que o heroe do romance, pela sua vir-
gindade, alcançara obrar grandes coisas, tam-
bém elle cuidava em ser casto, em conservar
illibada a sua pureza e confiar a Deus a sua
resolução. Contudo, como era grande o respeito
que tinha ao pae e maior ainda o amor que lhe
3
34 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
consagrava, não quis contrariar abertamente os
planos paternos. Deu-lhe,ppis, uma resposta eva-
siva, que foi assim : t Senhor, vós me fallaes em
casamento, coisa de que não estava avisado ;
porisso vos peço por mercê que me deis lugar
para nisto cuidar ; e então vos poderei responder
o que me parecer».
Alegrou-se o velho com resposta tão sisuda
e communicou-a á mãe de Nuno, para que tam-
bém ella usasse a sua influencia junto do íilho, a
fim de o levar a abraçar o partido proposto. Quan-
do a mãe foi ter com o jovem, este respondeu-
Ihe com mais liberdade «que sua vontade era de
em nenhuma guisa casar». Baldadas foram as
insistências e rogos. D. Álvaro, sabedor disto,
encarregou um primo e um dos seus genros,
ambos Alvaros, que fallassem com o mancebo.
E elles tanto porfiaram que alfim Nuno cedia ao
desejo paterno.
A noiva, D. Leonor de Alvim, por sua parte
respondera que acceitava o casamento que lhe
propunham, se tal fosse a vontade de El-Rei.
D. Fernando enviou logo um mensageiro á quinta
de Pedrassa, em Cabeceiras de Basto, provin-
da de Entre Douro e Minho, chamando a fidal-
ga, viuva de Vasco Gonçalves Barroso, á corte,
que ao tempo se encontrava em Villa Nova da
Rainha. Vinha a nobre dama, filha de João Pires
Alvim e D. Branca Pires Coelho, com grande
VIDA DE família 35
séquito de creadagem e era acolhida com honra
pelos Reis.
Ao mesmo tempo chegavam de Roma as
dispensas que se haviam pedido, visto os noivos
serem ainda ligados por parentesco. Por ordem
de El-rei, vinha egualmente D. Nuno com seu
pae. E no dia i6 de agosto de 1876 «o casa-
mento foi feito. E Nuno Alvarez recebido com
a dona por palavras de presente, segundo a
Egreja de Roma manda : e não se
fez outra festa como era razão de
fazer: porque ella era viuva». E
aqui nota o Ghronista, que, embora
a noiva fosse apellidada dona, de
facto era donzella, como já antes do
casamento se assegurara a D. Nuno.
Os noivos partiram para Bom-
jardim, onde passaram a lua de mel. Aivar« Pereira
Folgaram ahi alguns dias, dando
occasião ao pae de fazer alarde da sua grandeza
e liberalidade. Todos os festejavam como pes-
soas merecedoras das maiores simpatias. A mo-
déstia e modos prazenteiros da esposa de Nuno
captavam o coração de todos e, dum modo espe-
cial, o do sogro. Foi, pois, dolorosa a despedida
dos neo-esposos, quando elles se resolveram a
partir para o solar minhoto de D. Leonor de
Alvim.
Chegados a Pedrassa, trataram os noivos de
36 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
organizar a casa com o fausto que pedia o novo
estado. D. Nuno «despendia o seu tempo em
tomar honestamente o prazer com sua mulher» .
Fazia-Ihe companhia, ajudava-a a administrar
as ricas propriedades. E ella «lhe dava bons
conselhos das maneiras que havia de ter em
aquella terra onde havia de viver». Como mais
conhecedora dos costumes dos fidalgos do Mi-
nho, D. Leonor ia-os communicando ao bisonho
marido. Este tinha ás suas ordens quatorze es-
cudeiros e vinte a trinta homens de pé, segundo
o uso da terra pedia. Eram todos «bons e bem
homens, cá elie nunca doutros se contentou em
seus dias», diz o Chronista. Com elles se occupa-
va no seu divertimento predilecto, monteando e
caçando nas suas extensas tapadas. Procurava
adaptar-se á vida dos fidalgos minhotos e galle-
gos do tempo, evitando, porém, tudo o que não
fosse conforme a lei de Deus. Observava, como
fiel temente de Deus, todas as prescripções da
Egreja «ouvindo suas missas e vivendo bem com
sua mulher». Era uma vida perfeitamente pa-
triarcal, genuinamente christa, como se usava
então nas nossas províncias. Faltam-nos mais
particulares sobre esta época. Mas podemos
facilmente conjecturar os pormenores desse vi-
ver tranquillo de D. Nuno e D. Leonor, alegrado
pelo nascimento de três filhos. Dois, varões, mor-
reram precocemente. A filhinha, Beatriz, foi a
VIDA DE família 87
única a sobreviver á mãe. Nella se concentravam
os aftectos dos senhores do solar de Pedrassa.
Breve alcançava a estima e amizade dos vizi-
nhos, que não cessavam de admirar as prendas
e trato bondoso de D. Nuno. Vinham visitá-lo
frequentemente, ouviam da sua bocca a relação
das coisas que se passavam na corte, discutiam
juntos os signaes da grande crise em que ia
entrar a Pátria e juntos formavam projectos
para a combater. Firmavam-se aqui algumas
dessas dedicações e amizades que haviam de
acompanhar o guerreiro nas suas futuras proe-
zas. Nos longos serões da casa solarenga, as
conversas versavam dum modo particular sobre
a guerra. Todos queriam ouvir da bocca de
Nuno o modo como vinham aprestados para o
combate os exércitos do Rei de Castella, dos
feitos dos seus soldados e do modo como ha-
viam sido recebidos na invasão. Por sua par-
te, narravam as depredações que o inimigo fi-
zara na sua irrupção pelo Minho dentro, quei-
xando-se do abandono em que os deixara El-rei.
Durante a conversa, os creados da casa serviam
aos convidados vinho, doces e outras iguarias,
como então era de uso, preparadas cuidadosa-
mente sob a direcção da laboriosa e modesta
castella. Ella, com suas damas, entretinha-se na
costura, lavores, bordados, coisas em que eram
hábeis as donas dos tempos idos.
38 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Nisto chegam mensageiros de Amieira, onde
vivia o pae, trazendo novas tristes do estado da
sua saúde. D. Nuno partiu immediatamente para
assistir aos últimos momentos daquelle a quem
muito amava. Elle, com oito irmãos e outras tan-
tas irmãs, assistiram á morte verdadeiramente
christã do auctor dos seus dias, precedida de
todas as reparações que exigia o estado em que
estava. Os funeraes foram uma verdadeira apo-
teose do nobre e tão amado fidalgo. Innumeros
fidalgos e grandes da terra, muita cleresia, assim
de frades como de clérigos, parentes, amigos e
creados formavam o cortejo fúnebre que acom-
panhava o féretro, de Amieira para a Egreja da
Flor da Rosa, onde o defunto mandara preparar
o seu jazigo, cdentro da ygreja de Santa Maria,
que elle no lugar fez, em hum formoso e bem
obrado muymento» ; egreja notável pela sua ar-
quitectura e ainda mais pelas romarias, que a
ella vinham, attraidas pelas graças e indulgên-
cias de que fora enriquecida.
El-rei consolava a familia enlutada, nomeando
para o cargo do pae o irmão mais velho de D.
Nuno, Pedro Alvarez, preterindo os direitos que
tinha o commendador de Poiares, Álvaro Gon-
çalvez Camello. D. Nuno voltava para junto da
esposa e retomava o teor pacifico da vida que
narramos.
Estava preoccupado com as noticias que lhe
VIDA DE família Sç
haviam dado os fidalgos que tinham vindo da
corte para assistir ao funeral. Narravam estes
como depois da morte de Henrique de Gastella,
seu successor, João I, entrara em negociações
com o soberano português. Como a figura si-
nistra de João Fernandes Andeiro, fidalgo gal-
lego, adquiria influencia notável na corte. Gomo
as más linguas commentavam as relações desse
fidalgo com a Rainha. Este homem, movido pela
Rainha, tentava desfazer a clausula que se esti-
pulara na recente revisão do tratado de Vallada,
clausula em que se assentara o casamento da
princesa real, herdeira do trono, com o filho
do Rei Castelhano. Como elle fora enviado se-
cretamente á Inglaterra para negociar com o
duque de Lancastre uma alliança contra Cas-
tella. Rumores dessas negociações haviam che-
gado á corte de Castella; parecia que em
breve recomeçaria a guerra; os preparativos,
que João I fazia, davam-no a entender clara-
mente.
Passados alguns dias, confirmavam-se as no-
ticias. O Mestre de Santiago, Fernando Anco-
res, invadira a provincia do Alemtejo. A esqua-
dra portuguesa que, sob o commando do irmão
da Rainha, o conde AfFonso Tello, fora bloquear
Cadix e Sevilha, tinha sido derrotada em Saltes.
Seis mil homens e setenta mil dobras, que va-
diam os navios, era a perda desse formidável
40 VIDA DO BEAFO NUNO ALVAREZ
desastre. Outros rumores sinistros carregavam
o aspecto da situação.
D. Nuno, «tanto que vio o recado de elrey»,
saiu immediatamente com uma escolta de vinte
e cinco lanças e trinta homens de pé. Viera cor-
rendo a Santarém e daí voara a Portalegre,
onde estava como fronteiro seu irmão Pedro
Alvarez. Terminava para Nuno a vida bucólica
de Pedrassa, para dar logar á vida de armas.
IV
o SOLDADO
D. Fernando Ancores, Mestre de Santiago,
commandava as hostes castelhanas que inva-
diam Portugal. Começara elle as suas correrias
pela região entre o Tejo e o Guadiana, pene-
trando até Pavia e Coruche, donde levara muita
gente presa e grande copia de gado.
El-rei ordenava ao marechal Gonçalo Vaz
de Azevedo que fosse entender-se com o Mes-
tre do Hospital e combinasse o melhor modo
de repellir o inimigo. Sabendo que este se en-
contrava em Badajoz, resolveram os portugue-
ses, reunidos em Villa Viçosa, ir caminho de
Elvas para o atacar de surpresa. Dividiram os
seus homens, que subiam até mil lanças «de se-
nhores e boÕs fidalgos e cavalleiros e escudei-
ros». Havia além disso uns quatro a cinco mil
besteiros e peões. Na vanguarda, ia Nuno Alva-
rez. Gonçalo Vaz dirigia a retaguarda. Assim
marcharam até ás immediações de Villa Boim.
D'aqui, D. Nuno saiu a explorar o campo,
42 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
pelo sobreiral, que fica entre Villa Viçosa e El-
vas. Nas ladeiras de Villa Bokn caminhavam os
besteiros e peões. O sol, brilhando nas suas lan-
ças, dava lhes um aspecto de exercito bem orga-
nizado. Esquecera-se, porém, D. Nuno de que
estas forças eram as do seu próprio exercito,
enviadas á frente da vanguarda. Tomou-as,
porísso, como exercito inimigo. Sem mais, com
o coração alvoroçado, cavalgou para onde es-
tava o commando, e, apenas chegado, clamou :
— Senhores, boas novas !
— Que novas são, Nuno Alvarez ? pergunta-
vam os da vanguarda.
— Digo-vos, senhores, que vós tendes aqui O
Mestre de Santiago de Gastella que vós ides
buscar, o qual vem prestes para nos poer a ba-
talha. E assim nos escusa o trabalho de o ir
buscar.
Alegraram-se os valentes portugueses que o
acompanhavam na vanguarda; não assim, po-
rém, Gonçalo Vaz, que se receou do êxito duma
peleja naquele momento. Contudo, uns e ou-
tros se encaminharam para o annunciado inimi-
go, descobrindo-se então a verdade. Continua-
ram a sua marcha até Elvas, sitiada pelo in-
fante D. João, que viera em socorro do Mestre
de Santiago, {leuniram-se os caudilhos lusitanos
em conselho para deliberar o que se deveria fa-
zer com o reforço recebido agora pelo inimigo.
o SOLDADO
43
A resolução desgostou profundamente a Nuno
Alvarez ; os vários fronteiros haviam decidido
abandonar, a peleja e recolher-se a
suas terras. Mais uma vez se ma-
lograva o desejo do valoroso man-
cebo. O exercito português dis-
solvia-se. D. Nuno voltava com seu
irmão para Portalegre.
Parecia-lhe, contudo, que esse
procedimento era vergonhoso. Me-
ditou comsigo um modo de o re-
parar. Sabendo que os filhos do
Mestre de Santiago estavam no
exercito que assediava Elvas, man-
dou reptar D. João de Ancores,
primogénito do Mestre, para um
combate de dez contra dez. Esco-
lhesse elle, entre os seus, dez ca-
valleiros, e elle levaria outros tan-
tos portugueses. Pelejariam, e o
vencido cederia o terreno aos ven-
cedores.
D. João acceitou o repto. En-
tre os companheiros de D. Nuno
estavam: Martim Eannes, com-
mendador de Pedroso; Gonçalo
Eannes de Abreu, senhor de Gastello de Vide ;
Vasco Fernandes, Affonso Pires e Vasco Nu-
nes do Outeiro. Pediram salvo-conducto para
Espada
do Con desta vel
D. Nuno Alvarez
44 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Castella, e já estavam prestes a partir, quando
a intervenção inesperada do Prior do Hospital,
por mandado d'El-rei, vinha também desfazer
esse plano de desforço.
«Irmão, lhe disse elle antes da partida, vejo
que vossa intenção é boa, mas com razão vos
posso dizer agora: €Al cuida o baio e ai cuida
quem no sella.v E contava-lhe, como El-rei, sa-
bedor do caso, enviara ordem para que tal de-
safio não fosse adeante. E mais ordenara que
ambos fossem immediatamente á sua presença.
Iriam juntos, quanto antes.
Nuno não acreditava. Julgava tratar-se dum
ardil do irmão para o afastar do perigo. Mas,
quando este lhe mostrou a carta do monarca,
curvou-se deante da ordem régia. Iria advogar
a sua causa ante Sua Mercê. Mostrar-lhe-hia
a vergonha de fugir ao combate, depois de um
repto tão solemne. Convencê-lo-hia, e voltaria
depressa. Que se apressasse, pois, a viagem a
Lisboa, onde estava a corte.
Mal chegou á presença d'El-rei, perguntou-lhe
este «como : estava a obra começada com João
Ancores.
— Senhor, retorquiu o mancebo, com o rosto
inundado dum rubor modesto, Vossa Mercê
sabe-o tão bem ou melhor do que eu.
— Dize-me, Nuno Alvarez, de verdade fazieis
vós isto que começastes ?
o SOLDADO 45
— Pela nossa Santa Fé, de verdade e com
boa e desejada vontade.
— Mas qual era a razão porque se movia a
semelhante empresa ?
— Senhor, a Vossa Mercê saiba que por eu
ser como sou, vosso creado, e pelas muitas mer-
cês que meu padre e meu linhage, e mesmo
eu hei de vós recebidas, e entendo de receber,
mais ao deante: em grande desejo de vos servir
em tal cousa, que vossa mercê se houvesse de
mim por bem servido. E conspirando (conside-
rando) como o Mestre D. Fernando Ancores
vos ha feitos alguns desserviços em vossa terra,
em esta guerra, que a vossa mercê ha com El-
rei de Gastella, e como eu não sou em tal estado
nem de tanta gente, nem de tal maneira, que
lh'o, por agora, de presente, pudesse contrariar,
e vendo como João de Ancores é bom cavalleiro
e rijo, e é seu filho, o qual muito ama, cuidei de
requestar, como de feito fiz, para me matar com
elle, dez por dez, como a vossa mercê, já bem
sabe. E esto por duas cousas : a primeira por-
que se a Deus prouvesse de eu d'elle levar a
melhor, por fazer nojo e desprazer a seu padre;
e emenda de nojo, que vos elle em vossa terra
fez, pois que por agora a mais não posso abran-
ger. E a segunda, porque posto que eu hi fale-
cesse seria com minha honra: e entendo que
faleceria bem, pois é vosso serviço. E porem
ESTATUA DE D, NUNO
pelo Sr. Simões d'Almeida (sobrinho)
V
ESTREIA NA GUERRA
Pouco depois de arribar a esquadra in-
glesa, com o contingente que vinha ajudar-nos
contra o Rei de Gastella, entrava pelo Tejo a
esquadra victoriosa castelhana, para bloquear
Lisboa. Fronteiro-mór da cidade era Gonçalo
Mendes, homem de poucos espíritos, que não
soube organizar a defesa da capital. Nada fazia
para se livrar das frequentes incursões dos cas-
telhanos que vinham, em bateis, devastar e rou-
bar nos arrabaldes. «Gonçalo Mendes, diz Fernão
Lopes (i), não tornava a ello com algum remé-
dio, nem deixava sahir as gentes da cidade, di-
zendo que de guardar o logar deviam ter cui-
dado, e doutra coisa não». /
«El-Rei, continua o mesmo auctor, houve
delia grande melancolia, e disse que lhe pare-
cia que Gonçalo Mendes era nisto tal como o
servo que diz no Evangelho: a quem o senhor
(i) Chronica de D. Fernando — Cap. CXXXVI.
5o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
deu um marco d'oiro, com que trabalhasse por
seu serviço e proveito, e elle escondeu-o sob a
terra, sem fazer com elle nenhuma prole, pela
qual razão foi julgado do senhor por servo mau
e preguiçoso. E Gonçalo Mendes, disse El-Rei,
por tal deve ser julgado. Queria guardar a ci-
dade onde estava seguro dos inimigos e deixar
destruir o termo e logares de redor delia !»
Foi em substituição deste fronteiro que
chamou ao Prior do Hospital e seus irmãos :
Rodrigo Alvarez (o olhinhos), Nuno Alvarez,
Diogo Alvarez, Fernão Pereira e Álvaro Pe-
reira. Acompanhavam-nos outros e bons fidal-
gos.
Em breve se viu o acertado da escolha. Logo
depois de o Prior ter tomado posse do seu cargo,
correu noticia de que os castelhanos haviam feito
uma incursão no termo de Cintra, onde rouba-
vam mantimentos e gado. Immediatamente deu
ordem para que se organizasse uma expedição,
c foi com ella esperar os inimigos. Estes, habi-
tuados a devastar impunemente o paiz, não espe-
ravam resistência. Grande, pois, foi o seu espan-
to, quando de repente se viram cercados pelos
portugueses. Como vinham descuidados e mal
apercebidos, foram facilmente derrotados, fi-
cando muitos mortos e prisioneiros. Quando o
Prior entrou em Lisboa com os cativos e os
despojos que lhes tomara, houve «grão prazer»
ESTREIA NA GUERRA 5l
na cidade. Os lisboetas readquiriram a confiança
nos seus chefes.
Não contente com esta victoria, quiz D. Nuno
armar outra cilada ao inimigo, que certamente
viria desforrar-se do desastre soífrido. Um dia,
«m que o Prior estava ausente, D. Nuno com-
binou com seu cunhado, Pedro Affonso do Ca-
sal, uma espera aos castelhanos que vinham ás
uvas dos vinhedos dos arrabaldes. Reuniram
uns 23 homens de cavalo e até 3o besteiros,
« foram-se postar junto da ponte de Alcântara,
para além do mosteiro de Santos, perto do
Restello. Encobertos pelos muros e arvores, es-
peravam o inimigo. Entretanto, D. Nuno ia ani-
mando os seus e instruindo-os do modo como
se deveriam haver na refrega. Nisto divisaram
um batel com uns 20 homens das naus inimigas.
Vinham ás uvas. Esperaram que os homens
desembarcassem ; deram-lhes tempo de subir
até um barranco, acima do qual estava a vinha,
€ cercaram-nos ; os cavalleiros, pelo lado da
praia, os besteiros, da parte contraria. Nuno Al-
varez desmonta do cavallo e vae atacar os inva-
sores. Tão rijo foi o ataque, que os castelhanos,
amedrontados, deram ás de Villa Diogo, com
quanta velocidade podiam. Mas debalde. Os por-
tuguezes foram-lhes no encalçe, prenderam al-
guns, feriram outros. Só escaparam os que se
lançaram ao Tejo em demanda do barco, a nado.
52 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Das naus via-se a refrega. Excitados pela
derrota dos seus, despacham immediatamenie
bateis com homens de armas, besteiros e peÕes^
uns 25o combatentes. Nuno Alvarez alegrava-
se. Via chegada a occasião de mostrar o seu
valor e de prestar ao Rei um serviço de alguma
monta. «Amigos e irmãos, dizia elle aos seus,
bem sabeis a tenção para que sahimos, que não
cumpre vos dizer mais, c ora me parece que
tendes prestes o que viestes buscar, do que
deveis ser muito ledos, cá da minha parte eu o
sou assaz. E rogo-vos que, pois á mão vêem os
que desejamos e porque aqui viemos, que vos
praza de serdes lembrados de vossas honras e
de aporfiar em pelejar; que por causa que ave-
nha nunca tornedes as costas. E para esto, com
ajuda de Deus, eu serei o primeiro que em elles
toparei ; vós seguide-me e íazede como eu fizer,
e certo sede que os castelhanos não vos soffre-
rão, se em vós sentirem esforço de bem fazer,
mas logo volverão as costas, porque não teem
esperança de outro accorro e assim nos ajuda-
remos delles, para alcançardes grã fama e muita
honra que vos sempre durará (i)>.
Estas e outras palavras que Nuno, cheio de
entusiasmo e fé na victoria, dizia aos seus, não
tiveram o eãeito desejado. Arreceavam-se os
(i) Chronica do Condestabre — Cap. XII.
ESTREIA NA GUERRA 53
portugueses de travar lucta com tal desegual-
■dade de numero. Os inimigos eram cinco vezes
superiores. De mais, Nuno Alvarez ainda não al-
cançara o prestigio que mais tarde teve. A pru-
dência impunha-se. Melhor era evitar temerida-
des. E assim, longe de se adeantarem, os seus
iam recuando. Os adversários desembarcavam
sem resistência e vinham em magotes compa-
•ctos contra o troço dos lusitanos.
D. Nuno olhou em roda de si e viu com
pena que ia rareando o seu esquadrão. Em
breve, encontrava-se quasi só, tal é a força do
mau exemplo. E contudo, não arredou pé, an-
tes, esporeando o cavallo, lançou-se qual massa
•de ferro contra o grosso do inimigo. Com au-
dácia que aterrava os próprios castelhanos,
D. Nuno brandia a sua lança contra as mós de
homens; quebrada esta, arrancava da espada e
ia decepando cabeças á direita e esquerda. O
•cavallo, desesperado pelos golpes que recebia,
espinoteava furiosamente, ferindo os circunstan-
tes. Era um leão desesperado defendendo-se con-
tra uma alcateia de lobos furiosos. Nisto, o ca-
vallo ferido baqueia e arrasta comsigo o destemido
luctador, prendendo-se á cilha uma das pernas de
D. Nuno. Os castelhanos precipitam-se sobre o
infeliz cavalleiro e feremno desapiedadamente
com lançadas. Felizmente, as solhas da arma-
dura resistiam aos golpes, de modo que nenhuma
54 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
atravessara a couraça. Mais uns minutos, e
Nuno teria pago com a vida a sua estranha te-
meridade.
Ao ver o estado em que se achava D. Nuno,
os seus, cheios de vergonha, já se não pude-
ram conter. Correram em seu auxilio, indo á
frente um clérigo, por nome Vasco Eannes do
Couto, que era homem valente e esforçado. Sal-
tou para junto de D. Nuno; cortou a cilha e,
libertando assim o jovem guerreiro, puseram-se
ambos na defensiva. Os outros acudiram tam-
bém dando de rijo contra os inimigos. Nisto,
chegaram dois irmãos de D. Nuno: Diogo Al-
varez e Fernão Pereira, com mais alguns re-
forços. A lucta que se seguiu foi tremenda. De
parte a parte jogava-se a vida com bravura sem
egual. Em breve, porém, a victoria se inclinava
do lado dos portugueses. O inimigo debandava
em direcção da praia buscando os barcos. Aí tra-
vou-se nova peleja. Muitos dos castelhanos caí-
ram feridos ao Tejo. Os que se salvaram, ape-
nas puderam levar á frota a noticia do desastre.
E o que é mais para admirar, nenhum dos
portugueses morreu nesta refrega, embora mui-
tos ficassem feridos. A mortandade foi nos ca-
vallos; nove haviam ficado no campo, sendo o
primeiro, como dissemos, o de D. Nuno. Este
voltava com o corpo pisado dos golpes recebi-
dos, mas sem uma ferida sequer.
ESTREIA NA GUERRA 55
Os da cidade, que haviam presenciado de
longe a lucta, acolheram com grandes applau-
sos os luctadores. A refrega acabara com as
depredações do inimigo nos campos circumvi-
zinhos de Lisboa ; já se não atreviam a desem-
barcar. A gente do povo ia contando, de bocca
em bocca, os feitos de D. Nuno, que pouco a
pouco começava a ser o idolo da cidade. Via-se
que havia nelle um caracter, um homem em
quem poderia confiar a nação na crise gravis-
sima que em breve iria atravessar, crise que
todos presentiam, como aproximando-se a pas-
sos agigantados.
VI
PAZ INESPERADA
O successo, que levamos narrado, deu-se em
agosto de i382. Dias depois, chegava a Lisboa a
noticia de que El-rei, acompanhado dos chefes
da expedição inglesa, fôra, com os dois exérci-
tos, de Evora para Elvas, a fim de offerecer
batalha ao Rei de Castella. Este acampara em
Badajoz.
Nuno Alvarez, apenas ouviu a nova, deter-
minou comsigo ir ter com o Rei e pedir-lhe a
graça de tomar parte na batalha. Communicou
o desejo ao seu irmão, fronteiro de Lisboa; mas
este respondeu-lhe, apresentando as ordens rece-
bidas do monarca, que se deixasse ficar em Lis-
boa, para defender a cidade, contra qualquer
surpresa naval dos castelhanos.
Ficou triste e anojado, diz a Ghronica, com
semelhante resposta, insistiu com o irmão; «por
mercê lhe deixasse ser com El-rei na batalha».
Este, porém, mostrava-se irreduetivel. Então
Nuno affastou-se. Havia de ir, a todo o custo.
58 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
El-rei não poderia condemnar o seu procedi-
mento. Em Lisboa não era necessária a sua pre-
sença. Quatro ou cinco homens de menos não
afrouxavam a defesa da cidade.
Retirou-se, pois, para a sua pousada, e come-
çou a € concertar a sua ida'» muito em segredo.
Não, porém, tanto que o Prior não adivinhasse
os designios do irmão. Mandou que se guar-
dassem bem as portas da cidade, que ninguém
saisse para fora, sem licença sua. Nuno deixou
passar aquelie dia apparentemente inactivo. A'
meia noite, elle e mais cinco escudeiros, apre-
sentam-se deante das portas de S. Vicente; for-
çam os guardas e, a todo o galope, dirigem-se a
Elvas. Aqui, El-rei, conhecedor do caracter de
Nuno, ouve complacentemente a sua explicação
e acolhe-o nas fileiras.
Entretanto, de parte a parte, continuavam os
preparativos da imminente batalha. D. Fernan-
do, seguindo as usanças inglesas, nomeava con-
destavel do exercito a D. Álvaro Peres de Cas-
tro, e marechal a Gonçalo Vasquez de Azevedo.
Era a primeira vez que semelhantes cargos se
introduziam em Portugal. Dantes, ambos estes
officios eram exercidos pelo alferes-mór do
exercito.
A vanguarda portuguesa estava confiada ao
commando do Conde de Cambridge, que vinha
acompanhado do contingente que trouxera com-
PAZ INESPERADA 5^
sigo da Inglaterra. El-rei em pessoa comman-
dava a retaguarda. O inglês arvorava o pendão
de Castella, como pretendente que era desse
reino. Entre este e a bandeira portuguesa flu-
ctuava o estandarte dos cruzados, por especial
concessão do Papa Urbano VI, a quem seguiam
tanto os portugueses como os seus alliados.
Castella reconhecera a soberania do antipapa
de Avinhão.
Nas margens do Caia dispôs D. Fernando o
seu exercito em formação de batalha. Mas, por
motivos que os chronistas não mencionam, o so-
berano de Castella não acceitou o combate. En-
tíou secretamente mensageiros offerecendo a
paz; provavelmente a presença dos ingleses in-
cutira medo aos seus combatentes. Foram bas-
tante vantajosas para Portugal as condições
desta paz. Uma delias era que o castelhano for-
neceria navios para repatriar os auxiliares ingle-
ses; o Rei e o povo haviam experimentado o
pesado desta carga. Outra condição era o casa-
mento da única filha de El-rei, a infanta D. Bea-
triz, com o filho recem-nado do monarca h espa-
nhol. Era a quarta vez que a pobre creancinha
de nove annos mudava de marido!
Concluído este acto, o único importante da
sua vida, D. Fernando, sentindo aggravarem-se
os seus achaques, retirou-se de Elvas, deixando
á Rainha o encargo de dirigir os esponsaes no-
6o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
*
vãmente contratados. Nisto morreu a Rainha de
Castella, e então fez-se a ultima mudança de
noivo da pobre infantazinha. Agora, era o pró-
prio Rei de Castella, viuvo, D. João I. Este aco-
lhia a noiva do seu segundo filho, como meio
de unir Portugal aos seus dominios.
Com a paz com Castella vinha também uma
mudança no Pontifice reconhecido pelo Rei por-
tuguês. Quando se tratou desta questão, apa-
rece pela primeira vez a figura do Dr. João das
Regras, de que tanto teremos de fallar no de-
curso desta historia. Protestava elle contra o
reconhecimento do papa de Avinhão, porque de
direito o não era.
El-rei e a corte tinham ido de Rio Maior
para Santarém. Daqui partiu a Rainha D. Leo-
nor com sua filhinha para Eivas, afim de fazer
entrega a D. João de Castella, da sua noiva. As
festas foram luzidas. Descrevem-nas com gran-
des pormenores os nossos chronistas. Durante o
banquete, deu-se uma scena que nos vae apre-
sentar de novo o nosso biografado num desses
arrancos pundonorosos, que revelam uma alma
Verdadeiramente briosa.
Demos a palavra ao auctor da Chronica do
Condestabre. Assim os factos aparecem melhor,
na singeleza heróica com que foram decor-
rendo.
Feita a festa das bodas, cum dia veio El-rei
PAZ INESPERADA 6l
de Castella a Elvas (veio de Badajoz, onde
estava alojado). E foi-lhe feita sallamui solemne,
em a qual comeram todos-los grandes que hi
eram de Portugal e grande parte
dos de Castella. E entre os fi-
dalgos portugueses, que foron
ordenados comer na salla, fora
Nuno Alvarez e Fernão Pereira,
seu irmão. E na salla eram mui-
tas mesas: e as três mesas prin-
cipaes, a saber: a de El-rei que
era muito alevantada, como cum-
pria á mesa de Rei, uma da
parte direita e outra da sestra
(esquerda) da mesa de El-rei. E
em uma destas duas mesas eram
assignados para comerem nella,
com outros fidalgos, Nuno Alva-
rez e Fernão Pereira, seu irmão.
E quando veio ao assentar, el-
les, como missura, não se tri-
garam (appressaram) ao assen-
tar. E a mesa em que elles eram
assignados para comer, foi muito
. , , . . Espada de D. João I
azinha cheia de portugueses e
mais de castelhãos; e delles não fizeram conta,
pêro (embora) fossem bem conhecidos, e esti-
vessem bem guarnidos. E elles quando esto vi-
ram, e viram o tronco da mesa todo cheio, que
02 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
não tinham onde se assentar, Nuno Alvarez disse
contra seu irmão, ja quanto sanhudo: «Nós não
temos prol nem honra de aqui mais estar; e
porem he bem que nos vamos para as pousa-
das. Mas antes que nos vamos, eu quero fazer
que estes, que nos pouco preçaram e de nós
escarneceram, que fiquem escarnidos». E che-
gou-se logo á mesa, a um cabo delia, e em pre-
sença de El-rei (de Castella) e de sua vista, al-
çou a mesa e com a perna tirou o pé da mesa
e a mesa caiu em o chão. E os que a ella siiam
(sentavam) ficaram todos espantados. E elles
(D. Nuno e o irmão) se partiram logo com gran-
de assesecêgo bem como se não fizessem ne-
nhuma cousa. E El-rei que esto viu bem, pre-
guntou que homens eram aquelles. E foi-lhe
dito que eram alli ordenados áquella mesa, e
como não fizeram delles conta nem tento, onde
se assentar. El-rei respondeu: que elles o fize-
ram bem, e que quem alli tal cousa cometia em
tal lugar, sentindo a honra que lhe era feita,
que pêra mais seria seu coração. E en esto não
fallou El-rei mais, porque eram portugueses,
caso foram castelhanos pudera ser que tornara
doutra guisai. Até aqui a Chronica (Cap. XIV),
Daqui voltou D. Nuno para a sua quinta de
Entre Douro e Minho a retomar a vida de fa-
milia. A rainha fora para Almada, onde estava
D. Fernando, muito prostrado pela doença que
PAZ INESPERADA 63
O ia levar depressa ao tumulo. Acompanhava-a
o Mestre de Aviz, ainda ha pouco ameaçado
na sua vida pela serpentina mulher.
O rei de Castella também retirava para a
sua corte com a pobre infanta, sua esposa, vinte
annos mais nova que elle, casamento que devia
ser tão funesto para o futuro do reino de Por-
tugal, pelas condições estipuladas no contracto.
Ella, a infanta Beatriz, como dissemos, era a
única filha e portanto herdeira do trono portu-
guês que ia vagar em breve.
VII
o FIM DE UMA DINASTIA
Aos 22 de outubro de i383 debatia-se no
leito da morte, minado pela tísica, El-Rei
D. Fernando. Quando o sacerdote, que lhe admi-
nistrou os últimos sacramentos, lhe perguntou
se cria na Egreja, respondeu: «Tudo isto
creio, como bom christao, e creio mais que Deus
me deu estes reinos para os manter em direito
e justiça; e eu, pelos meus peccados, o fiz
de tal guisa que Lhe darei delles mui mau
conto (i)».
Era uma quinta feira; á noite cessava de
existir.
O enterro fora simples ; a Rainha não qui-
sera assistir, receando talvez as murmurações
do povo. Pouco depois tomava ella cargo do
governo como Regedora do reino, em nome da
sua filha D. Beatriz, Rainha de Gastella, e única
(i) Fernão Lopes, Chronica de D, Fernando — Cap.
CLXXII.
5
66 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
herdeira de D. Fernando. Como tal, mandou
erguer pendão pela filha. Quando, porém, os
arautos iam clamar: «Arraial, arraial, por
D. Beatriz, Rainha de Portugal», o povo e os fi-
dalgos verdadeiramente patriotas, sentiam que
o reino estava vendido, repugnavam em res-
ponder á proclamação, como se deveria fazer.
Em Lisboa, D. Álvaro Peres de Castro (narra
Fernão Lopes) deu um tossido e disse : «Ar-
raial, arraial, cujo for o reino, levá-lo-ha». Em
Santarém houve um verdadeiro motim. O povo
correu com o arauto gritando : «Em má hora se-
ria essa, mas arraial pelo Infante D. João. que
é de direito herdeiro deste reino, mas não pela
Rainha de Castella. E como em má hora sujei-
tos havemos de ser a castelhanos. Nunca Deus o
queira». Em Elvas, Gil Fernandes, patriota in-
flamado, respondeu protestando: «Arraial, ar-
raial por. . . Portugal». Todas estas vozes, e ou-
tras semelhantes, indicavam que o povo vira,
com a intuição que dá o amor da pátria, o fim
da independência portuguesa, caso o Rei de
Castella conseguisse fazer acclamar e reconhe-
cer sua esposa, como Rainha de Portugal. Esta
idea revoltava-o: a reacção contra o usurpador
começava a manifestar-se.
D. Nuno Alvarez estava na sua quinta de
Pedrassa quando morreu D. Fernando. Aí rece-
beu recado da Rainha D. Leonor, convidando-o
o FIM DE UMA DINASTIA 67"
para as exéquias solemnes do trigésimo dia da
morte, do trintayro, como então se dizia. Veio
o fidalgo, acompanhado de trinta homens arma-
dos. Presentia_o ódio da Rainha e queria res-
guardar-se de qualquer aleivosia. Na corte en-
controu grande numero de fidalgos, vindos de
roda a parte do reino. A' bocca pequena mur-
murava-se contra o Andeiro, que também viera
de Ourem, assistir ao trintayro e. . . reatar as
suas relações escandalosas no paço.
Contava-se entre os fidalgos como El-Rei
D. Fernando tinha já escrito o alvará que con-
demnava á morte o infame Conde de Ourem,
e como influencias estranhas lhe haviam feito
rasgar a sentença, para cujo executor havia sido
escolhido o Mestre de Aviz. Gontava-se ou-
trosim como o irmão da Rainha, D. João Af-
fonso Tello, também urdira a morte do adul-
tero; como postara creados que o matassem á
entrada de Lisboa, meses antes ; escapara, po-
rém, o Andeiro, por haver tomado outro cami-
nho, diverso daquelle por onde era esperado.
Todos reconheciam que a principal causa da
desgraça do paiz era elle. Fora quem negociara
o ultimo tratado, em virtude do qual o Rei de
Castella se dispunha a vir tomar conta do reino
português. Manchava o tálamo régio. Prepara-
va-se para exercer o logar de primeiro ministro
<la Rainha, sua amante, e fazer de Portugal seu
'68 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
feudo absoluto. E elle não era português, mas
sim um gallego aventureiro, sem dignidade^
sem consciência . . .
Nuno Alvarez ouvia estas coisas; ruminava-
as comsigo ; consultava os amigos, os parentes v
discutia-as com o Mestre de Aviz. Quem havia
de salvar o reino ? Quem seria o homem que
se deveria oppôr ao monarca de Gastella ? . . .
O infante D. Dinis tomara armas contra a Pá-
tria; o infante D. João estava encarcerado pelo
cauteloso Rei castelhano. Outra descendência
masculina não a havia, a não ser o Mestre de
Aviz, filho e irmão natural de reis portugue-
ses. ..
Um dia o Mestre manda-o chamar. Com-
munica-lhe que resolvera, por fim, executar a
sentença que El-Rei D. Fernando proferira. Ma-
taria o Andeiro, livraria Protugal dum inimigo
e vingaria a honra do irmão. Esperasse o aviso
para aquella noite e viesse ajudá-lo com seu tio
Ruy Pereira, que estava na conspiração. Mas
quando chegou a hora decisiva, o recado que veiu
foi bem contrario. O Mestre resolvera não ef-
fectuar o plano combinado.
Por outra parte, a Rainha tentara desapo-
sentar os homem de armas que acompanhavam
D. Nuno, tentativa que abortara, porque estes
opuseram resistência e repelliram os esbirros
régios. Desanimado, triste, enojado dos homens
o FIM DE UMA DINASTIA 69
« da sociedade, D. Nuno retirou-se de Lisboa,
caminho de Santarém. Seu irmão, Prior do Cra-
to, marchara já para essa villa. Iria fallar-lhe
sobre o seu plano de libertar o reino do jugo
estrangeiro. Os dois encontraram-se em Ponte-
vel. Estavam discorrendo sobre o assumpto,
quando chegou um emissário da Rainha. OfFe-
recia ao Prior todas as honras, chamava-o para
Lisboa. D. Nuno indignava-se, vendo o irmão
inclinado a acceitar as mercês. Que resistisse á
tentação, e se unisse ao Mestre de Aviz para tra-
tar de salvar Portugal. O Prior, homem positi-
vo, resolveu não seguir nenhum dos partidos.
Nem seria contra a Rainha, nem acceitaria os
favores que ella offerecia-, partiria para as suas
terras e aí esperaria os successos. Seguiram am-
bos para Santarém,
Deu-se nesta ocasião o celebre encontro de
Nuno Alvarez com o alfageme de Santarém,
episodio que serviu de assumpto para o conhe-
cido drama de Garrett, intitulado O Alfageme
de Santarém. Diga-se aqui de passagem, que o
nosso grande romântico falseou o caracter de
D. Nuno Alvarez nessa peça, apresentando-o
quasi como um requestador vulgar de meninas,
coisa bem alheia á austeridade do nosso biogra-
fado.
Ouçamos a narração do episodio, qual a
apresenta o auctor da Chronica do Condestabre.
70 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Um dia, indo D. Nuno passear pelas riban-
ceiras do Tejo, na direcção de Santa Iria, viu
deante da porta de um alfageme uma espada
muito bem temperada. Perguntou ao artista, se
poderia correger a sua, tão bem como aquella.
Respondeu este que sim, e, muito melhor. En-
tregou-lh'a pois D. Nuno, e quando no dia se-
guinte, vendo-a tão bem trabalhada, quis pagar
ao homem, este lhe fallou assim: «Senhor, eu
por agora não quero de vós nenhuma paga^
mas ireis muito embora e tornareis aqui Conde
de Ourem, e então me pagareis». Ora o Conde
de Ourem, como sabem os leitores, era o An-
deiro, ainda vivo em Lisboa. Não quis, por isso,
tomar a serio o dito do alfageme e insistiu em
pagar, ao que este retrucou: «Senhor, eu vos-
digo a verdade e assim será cedo, prazendo a
Deus». E assim foi, continua o chronista, porque
D. Nuno veiu daí a pouco tempo a Santarém
nomeado para o dito condado, e pagou ao alfa-
geme salvando-lhe os bens e restituindo-o á li-
berdade. Também falseou o caracter deste ho-
mem o citado dramaturgo, apresentando-o como-
um bom e leal português, quando o documento
que seguimos mostra que elle era aíFecto ao
partido dos castelhanos «era mui chegado e
liado com os castellãos em quanto em Santarém
estiveram», motivo porque era chamado scisma-
tico «como naquelle tempo chamavam aos maus
o FIM DE UMA DINASTIA 7I
portugueses», diz a Chronica. Fique pois assen-
te, que, embora a licença poética seja admittida
em composições mais ou menos fundadas em
factos históricos, não chega a permittir a falsi-
ficação do caracter das personagens, apresen-
tando D. Nuno como um vulgar namorador, e
tornando bom patriota quem era um mau por-
tuguês.
Neste meio tempo chegavam noticias graves
de Lisboa. O Andeiro fora assassinado pelo
Mestre de Aviz, mortos outros castelhanos ; a
Rainha fugira da cidade : começava a revolução.
D. Nuno foi ter com o irmão, e pediu-lhe que
ao menos então abraçasse o partido do Mestre.
Baldados esforços. O Prior do Crato recusa-
va-se e ia esperar os acontecimentos no seu so-
lar. Outro irmão, Diogo Alvarez, que, ao prin-
cipio concordara com D. Nuno, abandonava-o
no caminho. De modo que de Pontevel a Lis-
boa não teve este nenhuma outra pessoa da fa-
mília que o acompanhasse.
VIII
A REVOLUÇÃO
Com a morte de Andeiro pode-se dizer que
se iniciava a revolução em Lisboa. Não nos per-
tence apreciar essa morte e muito menos justifi-
cá-la. E' um ponto já demasiado versado pelos
historiadores. Ao nosso fim basta registar o facto
de o Mestre de Aviz ter mais tarde obtido do
Papa um Breve que o absolvia desse crime,
se é que elle merece tal denominação. E' certo
que o principal urdidor do trama, que visava a
morte do Andeiro, era um homem de grande
influencia em Lisboa, Álvaro Paes, chanceller
que fora de El-rei D. Pedro. Elle influiu no
Mestre para a levar a cabo, conseguiu conven-
cer D. Nuno da necessidade dessa execução.
E' sabido que, logo depois do facto, o pagem
do Mestre correu do paço real, gritando: «que
matavam o Mestre». O povo acudiu em chusma
desordenada, armado de foices, paus, fei^ros,
tudo o que uma improvisação podia apresentar
como arma oíFensiva, pedindo em altas vozes vin-
74 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
gança pela morte do Mestre. E, quando o vi-
ram por fim são e salvo, esse povo que viera
clamando: «Acorramos ao Mestre, ca é filha
d'El-rei D. Pedro», esse povo, onde palpitava
o sentimento da defesa da independência da
Pátria, exultava de alegria. As mulheres diziam :
«Oh! Senhor, como vos queriam matar por
traição, bento seja Deus que vos guardou desse
trédor. Vinde-vos, dae ao demo esses paços,
não se)aes lá mais».
Todos reconheciam no Mestre o chefe da
movimento nacional. Este ainda hesitou. Ora fez
correr que ia partir para a Inglaterra; ora con-
sentiu num plano de casamento politico com
D. Leonor, imaginado por Álvaro Paes, porém
frustrado. Por fim, depois de enviar um escudeiro
que obtivesse do infante D. João, preso em Cas-
tella, licença de defender a pátria, acceitou o
cargo de Regedor e Defensor do reino, que lhe
foi offerecido solemnemente numa reunião po-
pular, effectuada no mosteiro de S. Domingos,
em Lisboa. Com este facto quebravam-se as rela-
ções com a rainha D. Leonor, já bandeada para
o partido castelhano, e com o rei dessa nação.
D. Nuno Alvarez, recemchegado de Santa-
rém, assistia, cheio de confiança, a todos estes
graves acontecimentos. Seu coração não duvi-
dava do êxito, apezar da mingua dos defensores
da causa nacional. Elle foi logo incluido na
A REVOLUÇÃO 7>
numero do conselho nomeado pelo Defensor do
reino. Tinha por collegas os.principaes homens
que intervieram na lucta de que nos vamos
occupar. Instituiu-se então a famosa casa dos
vinte e quatro, representantes dos mesteres. A
cruz de Aviz foi intercalada
entre os castellos do brasão
português.
Os sequazes da rainha, que a
haviam acompanhado a Alem-
quer, na sua fuga, depois da
morte do amante, breve iriam
com ella para Santarém. De-
finiam-se as situações ; acaba-
vam, de parte a parte, as he-
sitações. Ou se era pelo Mes-
tre, ou então incluído entre os
inimigos da Pátria.
Impellida pelo Prior de Grato e outros ir-
mãos, que estavam em Portalegre, veiu nessa
occasião a Lisboa a mãe de Nuno. Trazia a
missão de convencer o filho que abandonasse
o partido do Mestre; trazia recado do rei de
Castella «que todavia deixasse o Mestre e se
fosse para El-rey de Castella, que lhe mandava
prometter o condado de Viana e outras terras
e rendas de que elle fosse assaz contente (i)».
Elmo de D. João I
(Do livro Batalha de
Aljubarrota, por C.
Ximenes de Sandoyal,
pag. 26)
( I ) Chronica do Condest. — Cap. XIX.
76 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Fazia-lhe ver como era assaz precária a si-
tuação do Mestre. Assim, não iria adeante. Não
valia a pena expor ao insuccesso uma carreira
que podia e havia de ser tão lucrativa, caso se
bandeasse para os castelhanos. D. Nuno res-
pondeu-lhe: «Que Deus não quizesse que por
dadivas e largas promessas elle fosse contra a
terra que o criara, mas que antes despenderia
seus dias e espargeria seu sangue por emparo
delia». E tão persuasivas foram as razões que
expôs á sua mãe, que esta em breve lhe dizia :
«Pois assi era, que servisse o Mestre verdadei-
ramente, pois que com elle ficara, e se não par-
tisse delle em nenhuma guisa, e que ella faria
logo vir para elle seu filho Fernão Pereira, seu
irmão». E de feito assim o fez, conclue a Chroni-
ca. Dias depois, Fernão vinha juntar-se a Nuno.
Acontecia com a mãe de D. Nuno, o que
rezam as chronicas dum escudeiro, que acompa-
nhara a embaixada que fora a Alemquer tentar
congraçar a rainha com o Mestre. Os da corte
queriam persuadir ao dito escudeiro que dei-
xasse o partido popular e se viesse para elles,
pois a causa do Mestre não podia ir para dean-
te. Resposta do escudeiro: «Quando cá estou
parece-me que é assim como vós dizeis, e de-
pois que sou lá, semelha-me que todos não
valeis nada, e que, quanto me falaes, tudo é
vento».
A REVOLUÇÃO ^^
Logo depois da sua acclamação, como De-
fensor do reino, o Mestre de Aviz tratou de or-
ganizar a resistência contra o inimigo, que se
aprestava a invadir Portugal. D. Leonor lança-
ra-se nos braços do rei castelhano. Primeira-
mente, nomeou o conselho que o devia ajudar
no governo do estado. Entravam nelle Álvaro
Paes, o verdadeiro chefe do movimento popu-
lar em Lisboa; o Dr. João das Regras, juriscon-
sulto eminente, que havia de ser um dos maio-
res sustentáculos da coroa; D. Nuno Alvarez,
que foi immediatamente reconhecido como chefe
militar da revolução.
Do Porto chegavam noticias de que a cidade
aderira ao partido do Mestre; mas em Lisboa
faltava tomar o castello, que ainda era pela
cainha. Tinha-o Martim Affonso Valente; nem
queria render-se, por já ter prestado menagem
a D. Beatriz. D. Nuno mandou atacá-lo, e, como
protecção das forças que investiam, ordenou que
fossem á frente as mulheres e os filhos dos de-
fensores, que dentro estavam. Estes recusaram-
se a combater, para não terem aso de matar
as mulheres e os filhos. D. Nuno foi em pessoa
fallar com Martim Affonso. Mostrou-lhe como a
causa nacional exigia a entrega do castello ao
Mestre; do contrario, ttodo o mundo lh'o teria a
mal e merecia de o apedrejarem todas as gen-
tes do reino por ello».
78 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Pediu então o alcaide que lhe dessem qua-
renta horas para obter licença da rainha. Se esta
não enviasse soccorro, entregaria o castello, seno
combater, ao Mestre. O emissário de Martim
Affonso veio com o recado de que o soccorro
esperado não podia vir, e o castello rendeu-se.
Mais: o alcaide abraçou o partido da indepen-
dência nacional.
Tão grande influencia teve esta occupação,
levada a cabo por D. Nuno, que em breve che-
gavam noticias de que Estremoz, Portalegre,
Penella e Beja haviam abraçado a mesma cau-
sa. Évora e Almada seguiam-lhes o exemplo. Em
Lisboa faltavam os mantimentos. D. Nuno foi
encarregado de fazer uma correria a Cintra para
os trazer. Estando já aí, alta noite chega noti-
cia de que os castelhanos, commandados pelo
Mestre de Santiago, vinham sobre elle. Alguns,
dos que o seguiam, fugiram para Lisboa, de
modo que só ficaram umas sessenta lanças. Estes
insistiam em que se retirasse quanto antes para
Lisboa. D. Nuno recusa; espera até ao meio dia
o inimigo, e depois segue para Lisboa c passo e
muy de vagar». No caminho encontrou um gru-
po de guerreiros, commandados por seu tio Ruy
Pereira, enviado pelo Mestre de Aviz, em seu
auxilio. Os castelhanos, vendo que D. Nuno já
retirara para Lisboa, vieram procurá-lo até aos
arrabaldes, e acamparam no Lumiar. Nuno Al-
A REVOLUÇÃO 79
varez, apenas o soube, foi oíFerecer-lhes batalha,
saindo pela porta de Santo Antão, aos Olivaes,
com trezentas lanças e alguns homens de pé.
Pedro Sarmiento, que era um dos caudilhos ini-
migos, apenas viu a ordem das forças de Nuno,
resolveu aconselhar aos seus que se não arris-
cassem a uma derrota. Retiraram-se, pois, sem
acceitar batalha. «E o campo e honra, diz a
Chronica (i), ficou por Nuno Alvarez, e em esto
■o mestre saiu da cidade e mandou recolher para
a cidade Nuno Alvarez e os que com elle esta-
vam».
Entrementes, chegavam novas de que o Rei
■de Castella invadira Portugal. Urgia ultimar a
defesa da Pátria. D. Nuno Alvarez era nomeado
fronteiro mór do Alemtejo. Ao mesmo tempo,
preparava-se uma esquadra. A experiência mos-
trara como era necessário defender Lisboa por
mar. Pouco antes, algumas naus castelhanas ha-
viam arribado ao Tejo, cheias de mantimentos,
que os portugueses puderam conquistar, mas
viam que não possuíam forças para poder apa-
rar um golpe mais forte.
Todas estas resoluções haviam sido tomadas
em conselho. E, já que falíamos dos conselhos,
vem a propósito narrar brevemente o que nelles
teve que soffrer o nosso biografado. Alguns ho-
(i) Cap. XXIV.
8o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
mens que nelles entravam, vendo a influencia
que D. Nuno exercia no animo do Mestre, dei-
xaram-se levar de inveja, a tal ponto tque jura-
ram que sempre fossem contra os conselhos que
Nuno Alvarez desse, e que nunca se a elles ti-
vessem, por razoados que fossem, e de feito assi
o faziam». D. Nuno soube o segredo. Um dia
estando em plena reunião, todos, segundo o
combinado, votaram contra o parecer emitido
por D. Nuno, contradizendo-o rijamente. Nuno
Alvarez solta uma estridente gargalhada, dizen-
do que sabia bem porque o faziam. O Mestre
quis saber a razão do riso franco do jovem guer-
reiro, e, quando este explicou tudo, ficou mara-
vilhado da paciência do heroe, e os conselheiros,
escarmentados da sua feia acção. Em outra occa-
sião, estava presente o condestavel do reino
D. Álvaro Peres de Castro; o velho conde cen-
surou toda a acção do Mestre, taxando-a de inú-
til para o bem da causa, aconselhando quasi
uma entrega ao castelhano. D. Nuno, furioso, ata-
lhou immediatamente tamanho desaforo, desfa-
zendo as razões apresentadas com estas pala-
vras: «Digo-vos senhor conde, que pois vós com
meu senhor ficastes, e verdadeira vontade haveis
de o servir, tal conselho e palavras, quaes lhe
vós dizeis, não é bom conselho, nem elle nãa
vos deve^crer, antes deve de ir com seu feito
em deante e não só contra El-rei de Castella,
A REVOLUÇÃO 8l
que é um poderoso rei, mas contra todo-los reis
do mundo, ca tem coraçon e razon de o fazer. . .
E todo-los bons portugueses teem razon de o
seguirem até a morte, e Deus que a esto o en-
caminhou e lhe dá os começos que lhe dá, o
trazerá em sua guarda e trazerá seus feitos ao
fim que elle deseja, e quem vontade houver de
bem e lealmente servir, bem terá tempo em que
o sirva». Já se vê, a resposta do conde foi sa-
nhuda, como diz a Chronica. D. Nuno relrucou-
Ihe: «Não hei empacho, nem de quanto disse
me peza, senão por ser pouco». Interveiu o filho
de D. Álvaro, e D. Nuno, longe de retirar o que
dissera, mais o carregou. Então o Mestre impôs
silencio e o conselho foi dado por terminado (i).
(i) Chronica do Condestabre — Cap. XXV.
IX
FRONTEIRO-MOR DO ALEMTEJO
O primeiro acto de Nuno Alvarez, depois de
nomeado fronteiro-mór do Alemtejo, foi a to-
mada de Almada. Aproveitando a divisão que
reinava entre os moradores desta villa, onde os
grandes eram pela Rainha e pelo Rei de Cas-
tella e os miúdos pelo Mestre, D. Nuno um dia
apresenta-se de improviso, com quarenta lanças,
á porta do castello ; falia á gente, espantada
com o successo, de tal sorte «que a todos prou-
ve obedecerem ao Mestre com boas vontades e
lhe deram a villa». Veiu o Mestre, de Lisboa,
recebeu a menagem, e logo se foi com D. Nuno
para a capital.
D. Nuno tratou immediatamente de se apres-
tar para a campanha do Alemtejo. Reuniu os
seus soldados, aos quaes fez que se pagasse o sol-
do sem delongas, coisa que deu logar a um in-
cidente com D. Pedro de Castro, e .partiu de
novo para Almada. Estando nesta villa lhe veiu
noticia da próxima chegada de algumas naus de
84 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Castella, e de como o Mestre se preparava para
dar sobre ellas. Também elle quis tomar parte
no feito, e, como não achasse navio que pudesse
entrar na liça, embarcou em Cacilhas num bote,
com seis escudeiros, e foi ter á nau commanda-
da por Pedro Eannes Lobato. Nella assistiu á
tomada da esquadra inimiga. Divididos os des-
pojos, o Mestre veio a Coina, perto de Almada,
onde acampara Nuno. Combinaram aí os dois
o plano geral da campanha que ia começar.
Aos soldados fez. o Mestre uma falia cheia de
carinho e egualmente pediu a Nuno que tra-
tasse bem «essa boa gente que lhe encom-
mendava». Depois, os dois amigos despedi-
ram-se.
Nuno Alvarez sente agora, pela primeira vez
e em cheio, a responsabilidade do seu cargo.
Elle só devia defender o sul de Portugal, sem
exercito formado, sem dinheiro, sem meios de
organização. Mas os caracteres fortes conhe-
cem-se nas occasiÔes, nas grandes dificuldades.
Com as duzentas lanças que trouxera de Lis-
boa, Nuno vae alegre ; porque levava no cora-
ção puríssimo a fé que gera os heroes. «Tinha
apenas vinte e quatro annos. Era mediano de
estatura e delgado de formas. Branco, de rosto
comprido, nariz longo e afilado, tinha expressa
na fisionomia, como faculdade dominante, a de-
cisão. A bocca era pequena, o mento breve, o
FRONTEIRO-MOR DO ALEMTEJO 85
lábio superior curto. Debaixo dos sobrecilios,
fortemente arqueados, luziam fundos os olhos,
pequenos. Os cabellos e as barbas ruivos. Via-
se-lhe no rosto um misto de energia grave e
bondade cândida, com uma vaga expressão poé-
tica de ambições innominadas que se revelavam
nas rugas precoces da testa e no apanhado da
pelle sobre as fontes (i)».
Activo, alegre, despreoccupado, não obstante
as invejas dos seus émulos, nunca perdia a
calma própria dos grandes génios — a tranquilli-
dade activa — como se sóe dizer. Para os sol-
dados era um pae amoroso, quasi um irmão;
considerava-os mais como amigos do que como
súbditos. Toda a sua auctoridade nascia do seu
caracter franco, leal, corajoso, da pureza e
honestidade austera da sua vida. A estas quali-
dades humanas juntava-se o elemento sobrena-
tural que lhes dava maior brilho. A sua fé, a
sua profunda piedade, o respeito com que obser-
vava os preceitos da Religião, faziam delle um
santo vestido de guerreiro... e essa santidade
communicava-se aos soldados, morigerava-os,
fortificava-os.
Todos os dias ouvia duas missas, uma com
os soldados em ordem militar, debaixo de for-
ma. As blasfémias eram severissimamente pu-
(i) Oliv. Martins — Cap. IV, pag. 140.
86 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
nidas no exercito. O exemplo do chefe, o rigor
da disciplina, exercícios constantes, manobras
com falsas vozes de alerta, iam aguerrindo os
seus homens. Não ha duvida. O heroismo do
soldado só pôde nascer de um coração puro,
duma vida immaculada, ordenada. Quem teme
só e unicamente a Deus, não receia os perigos,
por maiores que sejam.
O estandarte, que ia á frente das suas hos-
tes, era um simbolo da alma do heroe christão.
«E porque híí soom os moores periigos, alli
convém mais devota rrenembrança daquelle
Senhor cujo ajudoiro homem espera, mandou
Nuno Alvarez fazer huúa bandeira, a quall avia
o campo branco, e huíía gramde cruz verme-
lha per meo, e no quarto primeiro da cerca da
asta avia pintada a imagem do nosso Salvador
Jhesu Christo crucificado, e sua Madre, e
sam Joham acerca delle ; e no outro seguinte
da ponta da bandeira estava a imagem da pre-
ciosa Virgem com o seu beemto Filho no coUo;
e nos dous quartos do fundo, no primeiro jumto
com a asta, sam Jorge armado em joelhos,
com as maãos juntas orando pêra cima; e no
outro Samtiago desta mesma guisa, teendo
cada hú seu bacinete amte assi, por tal que ao
temder da bandeira, nos logares homde com-
prisse, veemdo a figura do Salvado/ e da sua
preciosa Madre, mais devotamente açemdesse
FRONTEIRO-MOR DO ALEMTEJO 87
O seu coraçom pêra os chamar em ajuda. E
erã postos nos cantos da bandeira, quatro es-
cudos pequenos das armas de seu linhagem,
que he huúa cruz branca em campo vermelho
aberta pella meatade (i)».
Assim conseguira , Nuno, condensar, objecti-
var, na bandeira os santos da sua devoção, os
motivos da sua esperança na victoria.
De Coina foi a Setúbal, para ver se podia
reduzir a villa que era adversa ao partido do
Mestre. Não o quiseram receber, os da villa.
Acampou nos arrabalcfes, mas temendo alguma
surpresa do exercito castelhano, que já se en-
contrava com o Rei em Santarém, mandou que
de noite guardas e escuitas estivessem de alerta.
Uma falsa noticia de que Pedro Sarmiento vi-
nha com trezentas lanças sobre elle, obrigou-o
a pôr-se em marcha ao encontro do inimigo.
Em Monte-mór soube do engano. Dirigiu-se,
então, a Évora, onde queria organizar o seu
exercito de combate. Escreveu daqui a todos os
comarcãos, que viessem defender o país contra
o invasor. Apenas trinta lanças mais vieram
juntar-se ás duzentas que levava; de besteiros
e homens de pé reuniu uns mil. Dai seguiu
(i) Fernão Lopes — Chronica de D. João — C.
LXXXVIII, pag. 147, — edição do Sr. A. Braamcamp
— Lisboa, 1915. Gfr. Fr. Dom. de Teixeira, L. 2, n.» 2.»
88 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
para Estremoz, onde se lhe juntaram mais al-
guns (muito menos do que esperava), vindos de
Elvas e Beja.
Reunidos todos os seus, quis expôr-lhe fran-
camente a missão que se lhes confiava. Tra-
taya*se de dar combate aos partidários do Rei
de Castella, aquartelados no Crato, com o ir-
mão. Prior do Hospital, bandeado para o ini-
migo. Além de Pedro Alvarez, estavam no
Crato o Mestre de Alcântara e o que se cha-
mava pretenciosamente Mestre de Aviz, Martim
Eannes de Barundo e Pedro Gonçalves de Se-
vilha, e outros. Era sua vontade ir buscá-los,
para os vencer, com o auxilio de Deus.
Não tinha ainda Nuno o prestigio que, ao
depois, alcançou. As suas palavras foram ouvi-
das com frieza. Que a coisa era pesada ; que
lhes desse espaço para*cuidarem nella e então
responderiam. Essa resposta veiu no dia se-
guinte. Entendiam que não deviam pelejar. A
gente contraria era muita; com o inimigo esta-
vam seus irmãos, de Nuno ; os portugueses eram
poucos; portanto não queriam ir a tal obra.
Estava D. Nuno junto dum ribeirozinho,
quando lhe trouxeram a desanimadora mensa-
gem. Ergueu-se e fallou assim aos soldados :
c Amigos! eu non sei que vos em esto diga
mais do que vos já disse: pêro ainda vos quero
responder ao que dizeis que os castellãos são
FRONTEIROMOR DO ALEMTEJO 89
muitos e grandes senhores; tanto vos virá maior
honra e louvor de os vencerdes. E da duvida
que segundo parece tendes por hi virem meus
irmãos, non a deveis ter, cá vos digo e prometo
de verdade, que posto que hi viesse meu padre,
eu seria contra elle, por serviço do Mestre, meu
senhor, e por defender a terra que me criou. E
para vós verdes que é assi, se a vós praza de
em esta obra serdes companheiros, eu vos pro-
metto bem que com ajuda de Deus eu seja o
primeiro que a comece, e assi poderdes ver a
vontade que eu em este feito tenho contra meus
irmãos. E quanto na parte de nós sermos pou-
cos e eles muitos: nem por esto deviades duvi-
dar serdes em tam boa obra: que já muitas ve-
zes aconteceu os poucos vencerem os muitos,
porque o vencimento em Deus é todo e non nos
homens. Mais pois que assi é vossa tenção qual
me dissestes, rogo-vos que os que comigo qui-
zerem ir a esta obra, que se passem d*alem
deste regato, e os que non quizerem ir que fi-
quem desta parte (i)t.
Coisa extraordinária! Todos passaram o ri-
beiro; todos queriam ir. O entusiasmo de Nuno
communicara-se a todos. Houve contudo de
noite quem hesitasse, quem tentasse desertar;
mas algumas palavras de Nuno bastaram para
(i) Chronica do Coni.— Cap. XXVII.
90 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
reduzir esses medrosos; um tal Gil Fernandes
e Martim Roiz d'Elvas.
Quando, no dia seguinte, as trombetas toca-
ram o signal da marcha ninguém faltara. No
caminho, a poucos passos da villa, appareceu
um mensageiro inimigo mandado pelos irmãos
para fallar com D. Nuno. Era Ruy Gonçalves
que vinha da parte do Prior ofterecer-lhe mer-
cês e honrarias, caso se quisesse passar para o
Rei de Castella. Que o fizesse, eram tão pou-
cos! seriam certamente vencidos. Mais uma vez
D. Nuno repelliu, indignado, a infame proposta.
Que não, mil vezes não. Se apercebessem para
a lucta, em breve seria sobre elles. Fosse de-
pressa levar o recado á Fronteira, onde estavam
os castelhanos.
X
ATOLEIROS
Apenas despachado o mensageiro, Nuno
Alvarez manda mover as suas hostes ao encon-
tro do inimigo. Por sua parte os castelhanos
também saem de Fronteira em direcção de Es-
tremoz, la-se travar a primeira batalha da guerra
da independência, batalha de importância deci-
siva para o prestigio do novel general português.
D. Nuno escolheu para o combate um «logar
bem convinhavel», chamado Atoleiros, meia lé-
gua pouco mais ou menos além de Fronteira,
na direcção de Estremoz, dentro do triangulo
formado pelas actuaes povoações de Veiros,
Monforte e Fronteira. Era o dia 6 de abril de
1384, quarta feira de trevas.
Ia D. Nuno introduzir, pela primeira vez em
Portugal, o combate da infantaria, como unidade
capaz de luctar sòsinha contra a cavallaria.
Aprendera, ou ao menos inspirara-se do que
ouvira fallar dos ingleses. Dispõe a sua gente
em quadrado, mandando desmontar os cavallei-
92 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
ros. Depois dirige aos soldados uma aliocução:
«Amigos, disse, lembrai-vos nos vossos corações
de quatro coisas : A primeira que se encom-
mendassem a Deus e á Virgem Maria, sua ma-
dre. A segunda que estavam ali para servirem
seu senhor e alcançarem honra grande que a
Deus prazeriá de lhe dar. A terceira que vi-
nham ahi defender suas casas e a terra que
possuiam e se tirar da sujeição em que o rei de
Castella os queria pôr. E a quarta que tivessem
sempre em seus entendimentos de soffrer todo
trabalho, e de aporfiar em pelejar não uma hora
mas um dia todo e mais se cumprisse». E des-
montando da mula, levanta a viseira ; ajoelha
deante da bandeira e reza. Com elle rezam os
companheiros. E' solemne este momento de re-
colhimento silencioso, interrompido apenas pelos
sons estridentes das trombetas inimigas que se
approximavam. Depois, corajosos como leões,
respondem: «Portugal, S. Jorge», ao grito de
guerra «Castilla, Santiago», e, firmes no seu
posto, esperam a carga da cavallaria inimiga.
Logo no primeiro encontro, esbarrando na pa-
liçada das lanças em riste dos soldados de
Nuno Alvarez, dezenas de cavalleiros castelhanos
rolam no solo, arrastados pelos animaes feridos.
Entretanto voam as settas e virotões e os tiros
dos besteiros fazem numerosas victimas no ini-
migo. Nasce a confusão nas hostes castelhanas.
ATOLEIROS
93
Nuno aproveita-a para ordenar uma carga cer-
rada nessa massa em debandada. Augmenta a
confusão; o inimigo retrocede acossado pelos
dardos e lanças portuguesas. Os cavaileiros já
não podem refrear os corcéis espantados; fogem,
e deixam a descoberto a peonagem, que é então
Frontana da Egreja e Convento do Carmo, antes do terramoto de lySã
(Da Chronica de Sant' c^ntanna — P. I, C. I — pag. 283)
investida pela cavallaria lusitana e completa-
mente desbaratada. Nuno, não contente de ser
senhor do campo, determina perseguir o inimigo
até á fronteira portuguesa e reduzir á obediência
do Mestre os castellos circumvizinhos.
Entre os mortos encontram-se os já nomea-
94 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
dos Mestres de Alcântara e Pedro Gonçalves de
Sevilha. Martim Eannes Barundo, que se pavo-
neava com o titulo de Mestre de Aviz, fugira
até Monforte. Foi provocá-lo, mas o Barbudo
não quis acceitar batalha. Como o castello era
forte e a gente muita, Nuno deixou-o, depois
de algumas escaramuças, e foi em peregrina-
ção ao Santuário de Maria Santíssima, sito em
Assumar.
Ia descalço, a pé. Quando chegou ao tem-
plo, achou-o profanado pelos castelhanos, todo
sujo por causa dos animaes que tinham sido
abrigados na casa de Deus. Antes de tudo, man-
dou que o alimpassem «e elle foi o primeiro que
ajudou a tirar o esterco fora». Bello exemplo de
humildade com que Nuno Alvarez procurava
agradecer a protecção recebida do Ceu, nesta
primeira victoria, que, por ser a primeira, havia
de ter tanta influencia no andamento da campa-
nha e no animo da soldadesca.
Antes de voltar para Évora, tomou Arron-
ches e Alegrete.
Entretanto o rei de Castella movia os seus
arraiaes e vinha assediar Lisboa. Irritado com a
noticia do desastre de Atoleiros, queria castigar
os revoltosos, queria aniquilar esse punhado de
jovens que se atreviam a oppor-se ao que ima-
ginara seu passeio triumfal no reino. Mas tam-
bém aqui o insuccesso o havia de perseguir.
ATOLEIROS 95
Assentou a sua morada em Santos; daqui hos-
tilizava a cidade. Uma primeira esquadra cas-
teihena, que viera trazer mantimentos, fora ven-
cida e desmantelada pelos portugueses em
Oeiras. Vieram então successivamente duas di-
visões de naus para reforçar o bloqueio.
Nuno Alvarez recebeu ordem do Mestre
para que fosse ao Porto, a fim de tomar parte
na armada portuguesa que se estava aprestando
para ir em soccorro da cidade sitiada. Mas,
quando chegou a Coimbra, soube que essa ar-
mada já partira. «Com corrupta tenção se par-
tiram logo com a frota e non o quiseron atten-
der (i)». Com effeito, essas naus haviam conse-
guido fcMTçar o bloqueio e levar aos sitiados
mantimentos e munições, varando depois os na-
vios nas ribanceiras do Tejo. O bloqueio foi res-
tabelecido pelos castelhanos.
D. Nuno regressa a Torres Novas e daí
marcha sobre Abrantes. No caminho assalta um
comboio de viveres castelhano e toma-o. Em se-
guida, apodera-se por surpresa da vil la de Mon-
saraz. Curioso foi o estratagema empregado.
Sabendo que a gente do Castello estava falta de
-mantimentos, fez soltar uma manada de bois
junto das portas da villa. Vieram os de dentro
buscar os bois. Então caiu sobre elles de impro-
(i) Chronica do Cond. — Cap. XXX.
96 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
viso a gente de D. Nuno; entrou pela porta
aberta e toaiou a cidade.
Foi nessa época que lhe apareceu una judeu
da parte do rei de Castella. Trazia mil dobras
(cerca de 1400 escudos) como presente. D. Nuno,
conhecendo as intenções baixas do traficante,
mandou-o retirar da sua presença, dizendo-lhe
que só recebia paga do seu rei.
l)m certo Castanheda mandou-o desafiar.
Foi imaiediatamente ao seu encontro a Badajoz,
e infligiu-lhe uma derrota completa. Duas vezes
veiu contra elle Pedro Sarmiento, marechal do
exercito castelhano, com doze mil homens. Nuno
mappodia oppor-lhe uns mil. Mas ambas as ve-
zes, quando os exércitos se appr ^ximavam, o
castelhano furtava-se á batalha; retirava-se sem
combater, tal era o medo que lhe inspirava o
nome de Nuno Alvarez, desde que o havia co-
nhecido no desastre de Atoleiros.
Entretanto continuava o cerco de Lisboa.
Nuno quer ir animar os sitiados. Dirige-se, pois,
a Almada, e em pouco tempo consegue reduzir
esta villa, mais Palmella. Depois mette-se num
batel e sozinho, á noite, atravessando o Tejo
por entre as naus castelhanas, aporta a Lisboa.
Pode-se calcular a alegria que sentiriam os lis-
boetas ao verem o seu general idolatrado. Abra-
çaram-se aôeciuosamente o Mestre de Aviz e
D. Nuno. G^nversaram largamente sobre os
ATOLEIROS 97
successos do Alemtejo, Gontou-lhe D. Nuno as
privações por que passara, e como, apesar disto,
o seu exercito nunca desfallecera. Em Cano
não acharam outro alimento senão alguns figos ;
em Oliveira, perto de Évora, apenas tivera para
comida de todo o dia um pão «encetado e um
pequeno rabon e um pouco de vinho que um
peom levava». Outra vez tinha estado perto
de Évora dois dias, quasi sem alimentos, asse-
diado por Pedro Sarmiento que o mandara de-
safiar com uma carta insolente. Tivera que re-
tirar, nesse assédio; precisava de vingar tal
desaire; em Almada mandara ao dito^armiento
um cerdo morto, como regalo. Narrou os peri-
gos que passara na conspiração que contra elle
urdira em Coimbra a mulher do Conde de Ceia,
D. Henrique Manuel, e como elle a poupara da
ira dos seus escudeiros e soldados.
Em agosto, a peste apparecera no arraial cas-
telhano. Centenas de soldados e cavalleiros caíam
prostrados pela cruel doença. Transferiu-se o
quartel general para Almada, que se rendera,
depois de dura peleja. Dias depois, adoecia a
própria rainha. Mandou o rei de Castella fazer
propostas de paz ao Mestre, mas este as repel-
liu. Depois, vendo os estragos causados nas suas
tropas, decidiu-se a levantar o cerco e partir
para Santarém. Caminho de Santarém, adoeceu
o rei. Resolveu então regressar com o seu exer-
7
98 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
cito para Castella, e com efifeito, em meiados de
outubro, transpunha a fronteira. Bem quisera
D. Nuno ir atacar o inimigo na sua retirada,
mas o Mestre não o consentiu. Precisava de
consolidar a defesa da Nação; precisava de ro-
bustecer a sua própria situação, para se prepa-
rar melhor para as campanhas futuras. Nem
sempre as circumstancias. poderiam ser tão fa-
voráveis, como haviam sido até então. D. Nuno
obedeceu, embora contrariado nos seus Ímpetos
bellicosos.
XI
REI NOVO
Não é possível, num livro como este, histo-
riar largamente a guerra da independência. Te-
mos de nos limitar aos principaes acontecimentos
«m que tomou parte o nosso biografado, e,
mesmo nestes, impõe-se-nos a concisão. Diremos,
pois, neste capitulo algo do que se passou antes
da famosa reunião das cortes de Coimbra; de-
ter-nos-hemos no resultado das ditas cortes,
para depois traçar os successos que precederam
a batalha de Aljubarrota.
Levantado o cerco, os de Lisboa respiraram.
Também elles haviam sojffrido os horrores da
fome : também elles haviam sentido bem o peso
•do assédio. Nuno Alvarez, depois de combinar
com o Mestre o plano da guerra, voltou para
Palmella, seguindo depois para Setúbal, que se
declarou pelo Mestre. Daí foi tomar Portel,
que Fernão Gonçalves de Sousa tinha pelo Rei
•de Casíella. Entrou na villa por surpresa, abrin-
do-lhe a porta alguns bons portugueses. Mas o
lOO VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
alcaide com os seus refugiou-se no castello.
D. Nuno conseguiu convencê-lo a que se rendes-
se, promettendo, sob juramento, deixar ir, a elle
e aos seus, sãos e salvos, com tudo o que lhes
pertencia, para Castella. Assim se fez, e o alcai-
de, que era homem bem humorado, saiu da
villa cantando as coplas, já celebres na nossa
litteratura :
« — Pois Marina balhou
Tome o que ganou
Milhor era Portel
e Villa Ruiva
que non çafra e segura
tome o que ganou — ■
E isto dizia, continuam as Ghronicas, por
elle perder Portel e Villa Ruiva, que eram seus,
e lhe davam em Castella çafra e segura. Daí
Nuno foi a Évora, onde lhe vinha recado para
que fosse depressa a Elvas. A villa estava em
perigo de ser entregue aos castelhanos. No ca-
minho parou em Villa Viçosa, a fim de castigar
Vasco Porcalho que se havia bandeado para o
partido inimigo. Foi na lucta travada deante
desta villa que morreu Fernão Pereira, irmão
de Nuno. Sentiu este a morte do mancebo pelas
circumstancias que a acompanharam. Fora cas-
tigo de Deus; esse jovem, apesar da fé jurada,
ficara com uma cota e a espada de Garcia Fer-
nandez, um dos que haviam saido de Portel
REI NOVO 104
f
com o alcaide. Essa ideia magoava-o mais que
a própria morte. Dai foi a Torres Vedras. O
■cerco desta villa, encetado pelo Mestre, apesar
do auxilio de Nuno, não surtiu effeito, por isso
renunciou a tomar as villas por assédio. Ou as
tomava directamente ou as deixava, esperando
que os acontecimentos lh'as rendessem. Ambos
os amigos seguiram daí para Coimbra, onde
se deviam reunir as cortes para confirmar a
nomeação do Mestre para Defensor do Reino.
Era este o motivo aparente; mas no fundo o
que se desejava era liquidar a questão da suc-
cessão, elegendo o Mestre para Rei. Já os pro-
curadores das villas traziam esse poder, embora
ninguém lh'o houvesse lembrado ou pedido. Era
a vontade nacional exprimindo-se expontanea-
mente.
Acompanhavam-no os moradores dos arra-
baldes de Torres Vedras. Receando represálias
dos occupantes da villa, punham-se a salvo. Um
velho cego, não podendo ir, bradava em altas
vozes tque o non leixassem alli, antre aquella
gente má». Nuno Alvarez ouviu-o e, movido de
compaixão, mandou-o colocar nas ancas da mula
em que ia, e assim o levou quatro léguas, até que
o cego se deu por contente de o deixar, excla-
mando : « Oh que humano e caridoso senhor ! » Ao
chegar a Monte-mór, o povo veio recebê-lo com
grandes cantares e sabores, dizendo: tem boa
102 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
hora venha o nosso Rei». Era a consagração»
feita pela boca dos moços pequenos, diz a
Chronica; era o mandado de Deus que fallava
pela bocca daquelles moços, como por bocca
dos profetas.
Vae agora apparecer em scena um dos mais
talentosos juristas de Portugal, amigo dedicado
do Mestre, pessoa eminente, de erudição vas-
tíssima, eloquência profunda, encarregado de
travar a lucta parlamentar que havia de trazer,
como resultado, a collocação da coroa sobre a
cabeça do filho bastardo de D. Pedro, João-
Affonso das Regras ou de Aregas, como o cha-
ma Fr. Luis de Sousa (i); formara-se em leis
na celeberrima universidade de Bolonha, onde
ouvira as lições do canonista Bartholo. Era um
homem intelligente, astuto, perseverante. Tinha,.
em sumraa, os dotes que fazem um politico fino.
Confiou-lhe o Mestre a defesa juridica da sua
causa, e, na verdade, não poderia ter encon-
trado advogado mais fiel e hábil. As nossas
historias e chronicas trazem por extenso os
discursos em que o Dr. João das Regras pul-
verizou os argumentos em que se baseavam os
pretendentes á coroa portuguesa: a Rainha de
Castella, filha de D. Fernando, e os dois filhos
naturaes de D. Pedro e D. Ignês de Castro, os
(i) Historia de S. Domingos. — Wol II, cap. XVII.
REI NOVO I03
infantes D. Dinis e D. João. A sua eloquência
conseguiu reduzir os fidalgos que se oppunham
á acclamação do Mestre de Aviz. Nuno Alvarez
assistia a essas cortes e apoiava o jurista. Quan-
do a causa triumfou, elle próprio dirigiu as ce-
remonias da coroação de El-Rei D. João I de
Portugal.
Era o novo monarca filho d'El-Rei D. Pedro
e de Teresa Lourenço. Aos treze annos fora
feito Mestre de Aviz. Do retrato que se con-
serva no Museu Inoperial de Vienna de Áustria,
vê-se que era um homem robusto, ossudo, de
rosto angular, quasi quadrado, sem barba,
olhos pretos e pequenos, lábios finos. Politico
sagaz, sabia aproveitar todas as occasiÓes e
acontecimentos para favorecer a sua causa. Pro-
fundo conhecedor dos homens, tinha o dom de
escolher com acerto os companheiros e auxilia-
res da sua causa, aproveitá-los com grande pru-
dência, evitando ao mesmo tempo estar-lhes
sujeito. aE' preciso reconhecer, diz Sandoval,
que se mostrou digno dos favores da sorte,
tanto politica como militarmente, pois os obte-
ve, auxiliado de talento, habilidade, valor e
energia, quer no apertado assédio de Lisboa,
quer nas cortes de Coimbra, quer nas outras
operações da guerra (i)».
(i) Batalha de Aljubarrota. — Cap. V, pag. 292.
104 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Contava apenas 27 annos, quando foi acla-
mado Rei. Do seu matrinnonio com D. Filipa
de Lencastre, inglesa, teve oito filhos, progénie
illustre que fez grande o nosso Portugal. Basta
recordar o Infante de Sagres, o Infante Santo,
D. Duarte, D. Pedro, etc, quasi todos sepulta-
dos na capella do fundador do Mosteiro da
Batalha.
Tinha menos um anno o rei de Castella, seu
adversário, também chamado João I. Homem
de caracter manso e consciência recta e costu-
mes sãos, taes qualidades não compensavam a
falta de tino politico e uma tal qual pretensão a
discutir tudo e decidir ain3a contra o parecer
dos seus leaes e velhos conselheiros. Jovem,
creado numa atmosfera de riqueza e adulações,
deixava-se levar pelos entusiasmos impruden-
tes dos fidalgos moços que o lisonjeavam. Tinha
saúde fraca, o que também contribuia muito
para a indecisão e falta de firmeza que mos-
trava nas batalhas de que nos vamos occupando.
Apenas eleito rei, D. João I nomeava para os
cargos de confiança, os seus melhores amigos.
D. Nuno Alvarez foi escolhido para Condesta-
vel do Reino. Entregava-se-lhe desta arte o com-
mando supremo do exercito português. Pouco
antes fora nomeado conde de Ourem, titulo que
D. Nuno acceitou com a condição expressa de
que não seria creado nenhum outro conde du-
REI NOVO I05
rante a vida do Mestre. Verificava-se assim a
profecia do alfageme de Santarém.
Terminadas as cortes, D. Nuno seguiu para
o Norte. No Porto tentou debalde aparelhar uma
armada para ir combater as naus castelhanas
que outra vez vinham bloquear o Tejo. Aqui
veiu ter com elle a mulher e a filha, que pude-
ram escapar de Guimarães, onde estavam reti-
das pelos que tinham essa cidade pelo rei de
Castella. Pouco depois empreendia uma ro-
maria a Santiago. De caminho foi tomado o
castello de Neiva; em seguida Darque e Vianna;
Villa Nova de Cerveira, Caminha, Monção,
também vinham render-se ao Mestre. Este, por
sua parte, acometteu a conquista de Guimarães,
mandando recado a D. Nuno que fosse tomar
Braga. Partiu logo o Condestavel; deu sobre a
cidade de Braga, que depressa se rendeu, e
correu a tomar Ponte de Lima, como El-Rei
lhe ordenara. Depois, juntaram-se ambos em
Braga e dai marcharam sobre Guimarães, que
foi egualmente rendida.
XII
ALJUBARROTA (prelúdios)
Em Braga recebeu EI-Rei D. João I noticia
de que os castelhanos se preparavam para in-
vadir outra vez o reino. Haviam-se concentrado
em Ciudad Rodrigo, e entrariam pelo Alemte-
jo. Partiu immediatamente com Nuno Alvarez
para Coimbra, donde seguiu para Santarém. Em
Mugem souberam do engano. O castelhano es-
colhera o valle do Mondego para penetrar em
Portugal. Enviou, pois, El-Rei o seu Condesta-
vel ao Alemiejo para alliciar soldados e formar
um exercito, indo elle a Abrantes. O Condes-
tavel tratou logo de ajuntar gente, percorrendo
a região entre Évora e Estremoz, e conseguiu
levantar uns quinhentos homens de armas e
besteiros, e dois mil peões.
Nisto chegava recado de El-Rei que se fosse
immediatamente a Abrantes. O inimigo estava
perto de Coimbra; atravessara a fronteira sem
resistência; Almeida e Celorico haviam sido to-
madas sem lucta.
I08 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Apenas chegado o Gondestavel, reuniu-se o
conselho de guerra. Ia- se deliberar sobre o modo
como se devia proceder num momento tão angus-
tioso para os destinos da Pátria, Os conselheiros
divergiam: «El-Rei desejava muyto haver a bata-
lha; e o Condestabre era com elle, o qual dese-
java muyto dar a batalha mais que nenhúa ou-
tra coisa, en tendo esto por serviço del-rei.
E os outros do conselho eram muyto contra
esto (i)».
Os debates foram violentos e longos. A
maioria inclinava-se a que se não deveria dar
batalha; a differença de numero era enorme;
aos trinta mil castelhanos podiam os portugue-
ses, ao summo, oppor uns dez mil; luctar assim,
seria temeridade, o melhor era invadir a Hes-
panha pela Andaluzia e obrigar deste modo, in-
directamente, o inimigo a voltar para o seu país.
Nuno, porem, pensava mui diversamente. Pro-
testou com energia contra taes planos. Elle pro-
mettera aos lisboetas que não deixaria approxi-
marem-se os castelhanos da cidade, sem passarem
pelo seu cadáver: havia de cumprir a palavra.
Já que o haviam feito condestavel, pertencia-lhe
deliberar sobre assumptos de guerra, e elle jul-
gava que se devia dar batalha. E, como os do
conselho ainda hesitassem, D. Nuno saiu e re-
(i) Chron. do Cond. — Cap. LI.
ALJUBARROTA
109
colheu aos seus alojamentos. No dia seguinte,
pela manhã, partiu para Thomar para ir contra
o rei de Gastella. Ao mensageiro,
que o vinha chamar outra vez ao
conselho, respondeu : «Dizei a el-rei
meu senhor que eu não sou ho-
mem de muitos conselhos, e pois
uma vez por elle foi determinado,
como elle bem sabe, de não deixar
passar el-rei de Gastella todavia lhe
poer batalha, que eu desta tenção
não me entendo de mudar nem
tornarei um pé atraz, mas dizei-
^ lhe que peço por mercê que me
deixe ir meu caminho, cá eu com
estes poucos e bons homens portu-
gueses que commigo vão, lh'a en-
tendo de ir poer ; se sua^ mercê for
de ir lá, mande-m'o dizer, e aguar-
dá-lo-hei em Thomar (i)».
Resposta tão decisiva não deixou
de escandalizar os graves conselhei-
ros ; quiseram «mizerar o Condes-
tabre» com El-rei : que era muito
cm se partir, que era desprezamen-
to que fazia a el-rei, etc. Das quaes coisas, diz
a Chronica, El-rei não curava, porque conhe-
A pá da Pa-
deira de Al-
jubarrota
(i) Fernão Lopes — O. c, vol. IV, cap. XXXI.
I IO VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
cia melhor o Condestavel e que tudo o que fazia
era por seu serviço. E, com effeito, no dia se-
guinte, D. João I inclinava para a decisão do
seu amigo, também elle abraçaria a opinião do
Condestabre. Mandou, pois, apparelhar o seu
exercito e marchou ao encontro do Condesta-
vel para Thomar.
Entretanto, o exercito invasor, passando por
Coimbra, approximava-se de Leiria, dirigindo-se
sôbre Lisboa. No percurso havia destruido tudo.
Casas, povoações, egrejas, campos, tinham sido
talados, arrasados na marcha triunfal. Parti-
cular ódio mostrara em Trancoso, onde man-
dara arrasar até a própria Egreja de S. Mar-
cos, para se vingar da derrota que recentemente
soflrera um exercito hespanhol. Embriagado com
o triunfo, o rei de Castella respondia orgulhosa-
mente aos mensageiros que mandara D. Nuno,
intimando-o a deixar o reino: tnem reconhecia o
Mestre como rei, nem a Nuno por condestavel».
Um prisioneiro castelhano dera informações
do exercito: era numeroso, vinha bem aperce-
bido, cheio de esperança. D. Nuno proíbiu-lhe
que o dissesse aos portugueses, antes o obri-
gou a dizer o contrario; que eram muitos, sim,
mas descorçoados, desorganizados, mal dirigi-
dos. Poucos homens aguerridos bastariam para
os vencer.
Eram animadoras as noticias, mais porme-
ALJUBARROTA III
norizadas, do desastre infligido aos castelhanos
em Trancoso, desastre a que atrás nos referi-
mos. O caso passara-se assim :
Quatrocentas lanças, commandadas por João
Rodrigues Gatanheda haviam invadido o reino
português, e, arrasando os arredores de Pinhel
e Almeida, acercavam-se de Viseu. As dissen-
sões, que reinavam entre alguns fidalgos portu-
gueses, facilitavam a tarefa do inimigo, pois im-
pediam a formação dum núcleo de resistência.
Questões de falso pundonor, questões de pena-
cho, como hoje se diria, entre dois fidalgos,
D. Gonçalo Vasques Goutinho, alcaide-mór de
Trancoso, e Martim Vasques da Gunha, de Li-
nhares. Felizmente o alcaide d; Ferreira, por
nome João Fernandes Pacheco, interveiu, con-
seguiu congraçar os dois fidalgos. Immediata-
mente se organizou um exercito que, cortando
a retirada aos castelhanos, lhes tomasse os des-
pojos que levavam e infligisse uma derrota com-
pleta. Mandaram, como era de estilo, um es-
cudeiro que levasse o cartel de desafio ao Ga-
tanheda, e esperaram o inimigo a meia légua de
Trancoso, com umas trezentas lanças, ás quaes,
porem, não correspondia numero sufficiente de
peonagem e besteiros. Os castelhanos eram
mais de dois mil. Junto da ermida de S. Mar-
cos deu-se o encontro. Abriram a batalha os
ginetes de Gatanheda, que derrotaram os cam-
l I 2 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
ponezes portugueses, pondo-os em fuga. Mas os
fidalgos lusitanos, ajudados de alguns besteiros,
contiveram a investida da cavallaria inimiga, re-
cebendoa de pé quedo, á maneira do sistema
usado por Nuno Alvarez em Atoleiros. Foi te-
naz, obstinada, a lucta. Nella morreram quasi
todos os cavalleiros castelhanos, de encontro á
barricada de lanças, onde iam cair feridos os
animaes, arrastando na queda os montadores.
A peleja durou desde manhã até á noite. Por fim,
os portugueses tinham vencido. Apoderaram-se
de todas as bagagens, libertaram os prisioneiros,
e puseram em fuga os invasores. Teve esta ba-
talha, diz Schoeffer (i), resultados funestos para
os castelhanos; diminuiu o seu poder, destruindo
uma boa porção da sua fidalguia, abalando a sua
confiança, e exaltando a coragem dos portu-
gueses, cuja orgulhosa audácia arrostou dai em
deante todos os perigos. Foi um digno preludio
da batalha decisiva de Aljubarrota.
Haviamos deixado D. Nuno em Thomar,
onde se lhe fora juntar El-rei.
Ambos os amigos, decididos a dar batalha
ao invasor, detendo-o na sua marcha sobre Lis-
boa, vieram com os seus exércitos, aos quaes
se haviam juntado os triunfadores de Trancoso,
a Ourem; dai seguiram para Porto de Moz, e
(i) Hist. de Port.f pag. 366, trad. port.
ALJUBARROTA I I 3
daí a Aljubarrota, onde se feriu a batalha de
que vamos tratar.
No caminho, em Atouguia das Cabras, acon-
teceu entrar no acampamento uma corça, que,
apesar de perseguida e acossada por muita gen-
te, conseguiu escapar até á tenda real, onde foi
morta. Bom prenuncio, diziam os optimistas,
(e o eram quasi todos), para a peleja em que
iam entrar.
D. João I e o Condestavel ordenaram os
seus exércitos, e tomaram posições extrema-
mente favoráveis para um combate. Mas, so-
bretudo, e é o que mais importa para este nosso
trabalho, procuraram preparar-se para a lucta,
com aquelles confortos religiosos que alentam o
coração humano e o dispõem para o heroismo.
Ao cair da noite de i3 de agosto de i385,
os dois exércitos estavam já dispostos em ordem
de batalha, a duas léguas de Leiria. No dia se-
guinte decidir-se-hia a sorte do reino português,
a sorte da sua independência, a confirmação da
nova dinastia.
Demos a palavra ao nosso Fernão Lopes. Es-
tamos no dia 14 de agosto, uma segunda feira,
véspera da Assumpção de Nossa Senhora, dia
de jejum. «Bem cedo, de madrugada, diz o
chronista, mandou o Conde dar ás trombetas,
e de noite, antes que amanhecesse, começou a
ouvir suas missas e naquela tenda onde estava.
114
VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
davam o Santo Sacramento a quantos commun-
gar queriam os clérigos que para isto eram pres-
tos». Iam receber na Sagrada Eucaristia, no
Pão dos fortes, a coragem de leões, que haviam
de mostrar em breve, iam pedir a Deus, tem
cujas mãos estão as victorias», que a desse a
elles, á sua Pátria periclitante ; iam, mais uma
vez, clamar: «Senhor, salvae o vosso Portugali.
Fac-úmilc em madeira do tumulo de D. Nuno Alvarez que se conserva ainda
nas ruinas do Carmo
XIII
ALJUBARROTA (a batalha)
«Dom João, pela graça de Deus, Rei de Por-
tugal e do Algarve. A quantos esta carta virem
fazemos saber, que por honra da Virgem Maria
nossa defensora e destes reinos, considerando
as muitas estremadas graças, que de seu ben-
to Filho a rogo delia sempre recebemos, as-
sim em guarda de nosso corpo, como exalça-
mento dos ditos Reinos em as guerras e meste-
res em que somos postos, especialmente na ba-
talha e campo que houvemos com os Castel-
lãos, dando-nos delles victoria maravilhosa,
mais por sua misericórdia, que pelos nossos
merecimentos, propuzemos, em remembrança
dos benefícios por ella recebidos de edificar e
mandar fazer esta casa de oração, em a qual
á honra e louvor da dita Senhora se faça servi-
ço a Deus. . . »
Assim começa a carta de doação do Mostei-
ro da Batalha á esclarecida Ordem de S. Do-
I I 6 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
*
mingos (i). O Chronista da Ordem descreve^
na sua linguagem e estilo maravilhoso, o nosso
grande monumento nacional, certamente um
dos mais bellos templos do mundo e a melhor
jóia da arquitectura portuguesa. E' um poema
em pedra, onde a alma portuguesa cristallizou
as suas aspirações e sentimentos, a sua Fé e
religiosidade, no tempo em que foi fundado. A
fachada riquissima, com o estupendo pórtico,
constitue uma Biblia marmórea.
A' direita de quem entra está a capella dos
fundadores onde jazem os restos mortaes de
M). João I, de D. Filipa e seus filhos. As três
naves arrojadas, as columnas esguias, a sobrie-
dade da ornamentação, a claridade mistica da
interior são dum effeito surpreendente. Santa
Maria da Victoria é um monumento votivo e
commemorativo da Batalha de Aljubarrota, le-
vantado nas immediações do campo onde ella
se feriu.
A dois kilometros, na estrada que conduz a
Lisboa, está uma graciosa capella, dedicada a
S. Jorge e mandada edificar pelo Santo Con-
destavel no sitio preciso, onde esteve a sua ala
na memorável batalha.
O logar, escolhido por D. Nuno para o exer-
(i) Pr. Luís de Sousa, Hist. de S. Dom., b. VI, c. XIL
ALJUBARROTA I I ^
cito português, estava em posição elevada, per-
tnittindo-lhe, assim espiar os movimentos do
■exercito contrario, e tinha a vantagem de ser de-
tendido nos flancos por dois barrancos de diffi-
■cil accesso. E bem necessária era esta vantagem
para luctar com cerca de oito mil combatentes
contra o enorme exercito castelhano, quasi qua-
tro vezes superior em numero, abundantemente
fornecido de alimentos e munições.
O sol meridional já illuminava o horisonte.
Ambos os exércitos se preparavam para o com-
bate. D. Nuno dispunha as suas hostes. EUe
próprio commandava a vanguarda; El-Rei a re-
taguarda, que era ao mesmo tempo a reserva
íjue havia de acudir ao logar de maior perigo.
Um dos flancos estava confiado á celebre ala
dos namorados; no outro estavam todos os es-
trangeiros, na mór parte ingleses. Pouco vis-
toso era esse exercito improvisado; mas tinha
unidade de commando, coesão, e um gene-
ral, novo sim, mas genial, D. Nuno Alvarez, a
quem todos, inclusivamente o Rei, obedeciam.
As hostes castelhanas, numerosas, vistosas, mo-
veram-se do seu acampamento em busca do ini-
migo. Em vez de o atacar de frente, «pollo poo
« vento que lhes dava nos rostos» foi ladeando
a posição occupada pelos portugueses. Era uma
serpente medonha, uma giboia monstruosa que
parecia querer enroscar, nas suas curvas mortife-
I I 8 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
ras, o pequeno núcleo que occupava o logar da
actual aldeia de S. Jorge. D. Nuno, por sua
parte, também inverteu as posições dos seus.
Foi occupar o logar onde estava a règuarda
c ordenou que trocassem posições as outras
alas. Era meio dia, e ainda o combate não co-
meçara. Vieram parlamentados propor uma
rendição; D. Nuno recebeu-os com cortesia,
mas negou-se a tratar do assumpto; e, como
elles insistissem, comminou-os que os mandaria
assetear, se se não retirassem immediatamente.
Uns peões portugueses da carriagem, tomados
de medo, intentaram a fuga: mas foram cruel-
mente mortos pelos contrários. Ao ver tal fim
os do exercito exclamaram «que antes queriam
morrer como homens que morrerem como por-
cos, como aquelles que fugiram morrerom».
D. Nuno percorria as fileiras, animando, ins-
truindo os seus. O seu único receio era de que os
castelhanos não dessem batalha; era a peior das
hipóteses para os seus punhados de valentes,,
que estavam em jejum, por ser véspera da Vir-
gem Santissima; para se manterem em cêrco,^
faltava-lhes o necessário. Impacientavam-se to-
dos por verem as hesitações do inimigo, hesi-
tações inevitáveis, porque lhes faltavam caudi-
lhos. Os melhores haviam morrido no cerco de
Lisboa; o rei estava doente, era conduzido em
liteira; os conselheiros actuaes peccavam por
ALJUBARROTA I I 9
inexperientes ou por medrosos. Apesar dessas
hesitações, ás três da tarde ouviu-se um estam-
pido formidável ; dois escudeiros portugueses
caiam mortos; eram os írons ou bombardas,
que appareciam pela primeira vez na Peninsula.
Imperfeitas, como eram, não tiveram resultado
apreciável. Pouco depois soavam as trombetas
castelhanas; grandes massas de cavalleiros pre-
cipitavam-se em desordem sobre a vanguarda
portuguesa. D. Nuno animava os seus, claman-
do: «Ah portugueses! pelejar. . . filhos e senho-
res. . . por vosso rei, e por vossa terra... » Que
estivessem firmes, e recebessem assim a inves-
tida dos cavalleiros.
Eram perto das seis da tarde. A enorme e
pesada massa veio esbater-se contra o muro
formado pelas lanças lusitanas: vinha desorde-
nada. A estreita garganta, onde estavam os por
tugueseç, a obrigara a diminuir a frente de ata-
que. Gomtudo, a pressão foi tal, que o centro da
vanguarda recuou em arco, ia ceder. Mas, eis
que, automaticamente, as duas alas vieram re-
forçá-la, e pouco depois vinha El-rei com as
reservas da retaguarda. Fortalecido assim o nú-
cleo combatente, a lucta tomou um aspecto fe-
roz. Abandonando as lanças, ou quebrando-lhes
os contos, os cavalleiros hespanhoes combatiam
denodadamente, para derribar essa parede de
homens, formada pelos portugueses. Esforço
120 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
baldado, porque elles próprios caiam feridos
pelas lanças dos peões, ou derribados pelos ti-
ros dos besteiros e archeiros. Os cavallos mor-
tos eram outro obstáculo contra o qual esbar-
ravam na sua marcha. Os cadáveres, os corpos
dos feridos, já se amontoavam defronte da posi-
ção expugnada, formando novo e horrivel obs-
táculo. A flor da nobreza hespanhola estava di-
zimada. Nisto vem um reforço enviado pelo rei,
o qual já encontrou os combatentes em franca
retirada, acossados violentamente pelos valen-
tes soldados de D. Nuno. O embate dos dois
corpos augmenta a confusão, a fuga agora é
desordenada. D. Nuno corre a acudir a um
ataque dirigido pelo Mestre de Alcântara contra
a retaguarda portuguesa e repelle-o facilmente.
Depois todos gritando: tJá fogem, já fogem»,
perseguem o inimigo, completamente desorien-
tado. Tomam-lhe a bandeira, matam desapie-
dadamente, prendem, saqueam tudo. O pobre
rei doente, monta num cavallo e foge para San-
tarém. Privados do chefe, os da infantaria, que
nem se quer chegaram a tomar parte na lucta,
fogem, largando armas e bagagens. Foi uma
debandada confusa, lúgubre, augmentada pela
escuridão que começava a entristecer os tojaes
dos campos de Aljubarrota. Em menos de uma
hora htvia-se ganhado uma victoria verdadeira-
mente decisiva. A coroa real fora baptizada no
ALJUBARROTA I 2 I
sangue castelhano, firmara-se inabalavelraente
a nova dinastia (i).
O jovem Gondestavel (contava apenas vinte
e cinco annos!) alcançara as palmas do maior
general da Peninsula; dora avante o seu nome
só bastará para refrear os mais audazes adver-
sários. A fuga do rei fora precipitada. Enten-
deu-o D. Nuno, pois via bem que com o exer-
cito que ainda restava podiam os castelhanos
bater o inimigo. Não permittiu, portanto, que se
desfizesse a ordem de guerra dos seus durante
a noite. Alta noite, foi á tenda real congratu-
lar-se com El-rei D. João. Paliaram longamente
os dois amigos. D. Nuno contou-lhe como vira
uma setta vinda do ar derribar o seu irmão
(i) Alguns dos nossos historiadores mencionam as
mulheres portuguezas que de algum modo concorreram
para o êxito da batalha. Maria de Sousa ajudava e ani-
mava os soldados levando-lhes alimentos e refrescos; só
ella havia derrubado 20 castelhanos. Joana de Gouvêa,
parenta do cavalleiro Castro de Sousa, arremessava con-
tra o inimigo pedras e paus. Mas de todas a mais cele-
bre é a lendária padeira de Aljubarrota Brites de Almei-
da, por alcunha a Pisqueira, que matou sete castelhanos,
escondidos no seu forno, com a famosa pá, que ainda
hoje se conserva no município da villa. Também se con-
serva no Convento de Alcobaça a enorme caldeira que
foi tomada ao inimigo e na qual, segundo referem os
chronistas, se preparava a comida do séquito do Rei de
Oastella. Tem i,3o de diâmetro máximo.
122 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Pecir'Alvarez, feito Mestre de Calatrava pelo
rei castelhano; faliaram dos mortos, dos bons
portugueses e dos chamorros que «então chama-
vam aos máos portugueses •. «Bastos como os
feixes no restolho de bom trigo e bem basto»,
diz a Chronica, jaziam os cadáveres dos inimi-
gos. Cearam juntos, elles que durante todo esse
dia nada haviam provado «e a tal ceia, acres-
centa a Chronica, se poderia bem chamar sa-
borosa». El-rei ficou três dias no campo, como
era costume para affirmar a sua victoria; de-
pois foi a Alcobaça juntar-se ao Gondestavel
que regressava de Ourem, onde fora agradecer
á Virgem a victoria que alcançara e tomar pos-
se do condado, agora confirmado e ampliado
com largas doações. Daí marcharam para San-
tarém.
XIV
VALVERDE
Em Santarém souberam os dois amigos que
o rei de Gastella fugira em direcção de Lisboa ;
aí embarcara secretamente, disfarçado, numa
das naus que bloqueava a cidade, e partira
para Sevilha. Estava assim consumada a der-
rota. Sem guia, sem commando, dispersava-se o
exercito invasor. Mas nem El-Rei nem o Con-
destavel quiseram descansar á sombra dos lou-
ros alcançados. Era necessário tirar todo o par-
tido possivel da victoria; era necessário subjugar
todas as cidades que ainda se mantinham por
D. Beatriz e, principalmente, urgia inutilizar o
resto do exercito castelhano, a fim de tornar im-
possível qualquer tentativa de nova invasão.
D. João I dirigiu-se para o Minho; aqui, depois
de agradecer a Nossa Senhora da Oliveira, de
Guimarães, as graças recebidas, foi tratar no
Porto da columna que havia de render as cida-
des que em Traz-os-Montes ainda eram por Gas-
tella. O Gondestavel dirigiu-se para o Alemtejo,
onde, como fronteiro-mór, lhe competia a defesa
do reino. Acompanhá-lo-hemos nessa viagem
124 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
certamente a mais gloriosa de quantas teve na
sua vida. A esquadra castelhana abandonava o
Tejo. D. Nuno entendeu que devia proseguir
as operações e e ir buscar o inimigo no seu pró-
prio território. Tomava assim a offensiva, cujo
efieito moral forçosamente havia de deprimir o
animo dos castelhanos, já profundamente aba-
lado com a derrota de Aljubarrota.
Reuniu, pois, um exercito, apetrechou-o de
tudo o que necessitava para uma invasão e
mandou aviso ao inimigo que em breve seria
em terra sua. Passou a fronteira em Badajoz, e
foi tomando successivamente Almendroal, Par-
ra, Zafra, Fuente dei Maestre, Usagre e Villa
Garcia. Desde Parra seguia-o o mestre de Al-
cântara, Barbuda, porem sem lhe dar combate.
Esperava melhor occasiáo, que em breve se lhe
ia apresentar. Com effeito, em Villa Garcia
appareceu um arauto, com recado dos inimigos.
Trazia na mão um molho de varas. A Chro-
iiica do Condestabre (i) descreve pormenoriza-
damente a encantadora scena de que não que-
remos privar o leitor.
Bem recebido pelo Condestabre que estava
sentado, o trombeta, de joelhos, fallou desta
guisa: «Senhor Condestabre, o Mestre de San-
tiago, D. Pedro Moniz, meu senhor, ouvindo
•
(i) Cap. LIV.
VALVERDE 125
dizer que vós sois em sua terra e lhe fazeis
muito mal e estrago nella, vos manda dasafiar
e vos envia esta vara». — E o conde respondeu:
«que fosse bem vindo com taes novas»; e to-
mando a vara na mão, passou-a para outra «e
bem entendeu que todas lhas havia de dar». Com
egual ceremonial o arauto
foi entregando as outras va-
ras, até exgotar o feixe: e
bem numerosas ellas eram.
O Mestre de Galatrava, o
Conde de Medina ,Cceli, o
Mestre de Alcântara, mais
de doze fidalgos da Anda-
luzia e Estremadura hespa-
. A caldeira de Alcobaça,
nhola, e os vinte e quatro tomada aos castelhanos
de Sevilha, todos haviam ^^ '3^5*
enviado a sua vara. Acabando de as receber,
D. Nuno disse: «Amigo meu, vós sejaes mui
bemvindo com taes novas como estas, que me
não podieis ora trazer outras com que me
tanto prouvesse ; salvo se me trouxéreis recado
que el-rei de Castella me mandava desafiar.
E vós dizei ao Mestre, meu senhor e ami-
go, que me praz muito com sua desafiaçao».
Interrompendo então o discurso e dirigindo-se
aos seus exclamou: «Vedes, amigos, como é
certo o que eu dizia estes dias? que o Mestre,
meu senhor e amigo, não nos havia de leixar
120 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
passar por esta terra, que não nos puzesse ba-
talha? Ora é mister que nos façamos prestes
para ella, e quem nos tão boas novas trouxe ra-
zão é que haja boas alviçaras». Mandou então
dar ao trombeta cem dobras e concluiu: cDizei
ao Mestre meu senhor e amigo, e aos senhores
que com elle são, que eu lhes agradeço muito
suas desafiações e que muito mais lhes agra-
deço as varas que me mandaram, com que os
entendo todos de ir castigar». E então se partiu
o trombeta e levou este recado áquelles senho-
res que o enviaram, que de tal resposta foram
mui maravilhados, conclue o citado documento.
Marchou, pois, com o seu exercito, já dis-
posto em ordem de batalha, a Villa Nueva c,
passando por Medelim, veio a Valverde, perto
de Merida, onde achou o inimigo.
Occupava este posições altas, extremamente
vantajosas, emquanto Nuno devia passar a vau
o rio, para o ir buscar, perseguido na retaguarda
pelo Barbuda, que já lhe mordia a cauda do
exercito. Encontrava-se entre dois fogos. E com-
tudo não hesitou. Em ordem de batalha atra-
vessou com a vanguarda o rio; depois veiu ellc
mesmo acompanhar as bagagens e a retaguar-
da, pelejando sempre, mas sempre firme. For-
maram então um quadrado cerrado c investiram
contra o inimigo.
Como um bloco immenso de granito que,
VALVERDE l 2J
desprendendo-se da encosta dum monte, não
obstante a tempestade e os raios, vence todos
os obstáculos com a força adquirida, e se arre-
messa nos campos, destruindo, com a sua massa
gigantesca, arvores, casas, tudo o que se lhe
atravessa na marcha fulminante, assim, impel-
lida pela coragem de Nuno, cae sobre o inimi-
go, cinco vezes superior em numero, a pequena
hoste portuguesa, pequena em numero, mas he-
róica na coragem. Toma de assalto, uma a uma,
as posiçõeis ou outeiros occupados pelos hespa-
nhoes. Quando chegaram ao terceiro, a lucta é
homérica. Atacados por todos os lados, os por-
tugueses defendem-se como leões. Sustenta-os a
coragem do seu jovem Condestavel. Nisto um
dardo vem ferir o calcanhar de Nuno. Não im-
porta ; elle continua impávido na refrega. Vendo
que a retaguarda do seu exercito começa a fra-
quejar, accorre a ella, e levanta os espíritos dos
combatentes. Uma chuva de lanças, dardos,
settas, virotÕes cae sobre as hostes lusitanas;
ouvem-se gritos ferozes, misturados com os la-
mentos dos feridos; o retinir das espadas lem-
bra o fusilar dos relâmpagos. A vanguarda
começa a ceder. Procuram Nuno não o en-
contram. Um temor gélido invade os espíritos.
Teria morrido o capitão ? e então o que seria
delles, aí... entregues a tão numerosos inimi-
gos e assaltados como feras!?
128 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Mas eis que Ruy Gonçalves dá com o Con-
deslavei. De joelhos, com os braços levantados,
entre umas penhas, enlevado em sublime ora-
ção, Nuno fitava os céus. Chamam-no, expõem
o perigo em que se encontram. D. Nuno, pla-
cidamente, responde: «Amigos, ainda não é
tempo, esperae que termine de orar», e conti-
nua enlevado, como um santo em êxtase, na
sua fervente oração. Acodem outros guerreiros
e se quedam maravilhados deante do estranho
espectáculo, deante da serenidade desse rosto
no meio do alarido da guerra. Pouco depois
ei-lo de pé, manda aproximar o escudeiro que
sustentava o seu cavallo, monta, e apontando
para o estandarte do chefe espanhol, do Mes>
tre de Santiago, convida os seus a o acompa-
nharem. Caem sobre os hespanhoes com Ím-
peto irresistivel, tomam-lhe a bandeira, ferem
mortalmente o chefe: pÕem em debandada o
inimigo. A victoria estava ganha. Agora só se
perseguiam no terreno accidentado da peleja os
fugitivos. Apoderara-se delles um verdadeiro
pavor. Durara esta lucta dois dias, de sol a sol.
Depois de estar um dia no campo da bata-
lha, Nuno empreendeu a marcha para Portu-
gal; passando por Merida e Badajoz, veiu des-
cansar em Elvas.
Quisemos descrever mais desenvolvidamente
esta batalha, porque a iniciativa da invasão, a
VALVERDE I29
ordem, o apetrechamento dos toldados, tudo foi
exclusivamente dirigido por Nuno. Elle, sem
consultar o Rei, havia tomado todas as resolu-
ções. Nella, pois, apparece o homem tal qual é :
recebendo da sua Fé, haurindo na oração aquelle
heroismo que tornou o seu nome temido em
toda a Hespanha. Com esta victoria, alcançada
em terras hespanholas, com a guerra levada ao
coração de Castella, acabava de abater comple-
tamente o moral dessa Nação. E' certo que para
ella contribuiu a inferioridade dos soldados que
formavam as hostes castelhanas. As melhores
haviam succumbido em Atoleiros, Trancoso e
Aljubarrota. As de Valverde, embora nume-
rosas como herva do campo ^ que fazia parecer
o exercito português uma eira cercada de cam-
pos, eram formadas de camponeses, pouco des-
tros no manejo das armas e nas manobras da
guerra. Faltava-lhes mais uma vez a unidade
de commando. Os vários fidalgos que as diri-
giam estavam separados por invejas, rivalida-
des, que faziam perder a homogeneidade de
vistas, necessária para as batalhas. As próprias
chronicas castelhanas inserem, como dia funesto
para a sua Pátria, a data desta peleja : ferida a
i5 e 16 de outubro de i385, apenas três meses
depois do desastre de Aljubarrota.
XV
GUERRA OFFENSIVA
D. João I, como dissemos, fora reduzir as
praças do norte que ainda se mantinham por
Castella. Apenas recebeu noticia da victoria de
Valverde, ordenou ao Gondestavel que viesse
ajudá-lo em Traz-os-Montes, onde Chaves re-
sistia valorosamente ao cerco. Quando chegou
ao Porto um popular apresenta-se ao Gondes-
tavel, a pedir-lhe justiça contra um dos seus
cavalleiros, um certo Antão Vaz. Esse cavalleiro
he «depenara a barba e lhe tomara vinho de
sua adega non lhe pagando delle nenhúa coisa».
Mandou immediatamente D. Nuno indemnizar
o queixoso com bens que pertenciam ao dito
Antão, nada se importando com as «palavras sol-
tas» deste. O Vaz adeantou-se na marcha e foi
queixar-se a El-Rei : que o Gondestavel era de-
masiado severo, que lhe roubara a terra, etc.
Mas o Monarca, depois de ouvir D. Nuno, deu
por bem feito tudo o que elle ordenara. Mais
ainda: a pedido do seu Gondestavel, ordenou
l32 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
que se lançassem fóra todas as mulheres que
acompanhavam os soldados, medida severa, mas
absolutamente necessária para a moralidade que
deve reinar nas tropas disciplinadas. Chaves
por fim capitulou; logo depois Bragança. Po-
dia-se agora iniciar a invasão de Castella.
Com effeito, em maio de i386, depois da
revista ou alardo passado em Vallariça, as hos-
tes portuguesas penetravam por Ciudad Rodri-
go, que se entregava sem combate, na Castella,
e iam cercar Coria. Algumas villas só se ren-
diam ao Condestavel, coisa que não pequena
inveja fazia nascer no animo de alguns fidalgos
que continuavam a conspirar, «a fazerem entre
si falia para errar ao Condestabre se pudes-
sem». Inúteis conjuras! O espirito de D. Nuno
era superior a todas estas mesquinharias. Tra-
tava-os como se ignorasse os seus conluios.
Durante o cerco vieram-lhe dizer que um escu-
deiro, por nome Gonçalo Gil, roubara um cálix
de uma egreja. Não pôde Nuno soffrear a sua
indignação deante do sacrilégio. Inquiriu, viu
confirmado o crime. Ordenou que levantassem
uma fogueira para queimar o criminoso. S6
depois de muito rogado perdoou a vida ao des-
graçado Gonçalo, mas expulsou-o do exercito,
j Nunca mais apparecesse entre os seus solda-
dos. . . » Entretanto a cidade cercada resistia. Os
sitiantes não possuíam engenhos para acometter
GUERRA OFFENSIVA l33
a praça forte. O calor e a falta de agua faziam
adoecer grande numero de soldados «de guisa
que tantos eram os doentes como os sãos».
Decidiu-se, pois, levantar o assédio e regressar
a Portugal, pela Beira. Nuno Alvarez, algo
desgostoso, seguiu para Ourem, passando antes
a Santa Maria do Meio (Certan), para visitar
o Santuário da Virgem. Daí voltou para o Alem-
tejo.
Estava D. João em Lamego, quando lhe che-
garam novas de que os ingleses, commandados
pelo Duque de Lencastre, haviam desembarca-
do em Corunha e seguiam triunfantes pela Gal-
liza abaixo. Vinha o Duque, como se sabe, pre-
tender a coroa de Castella, pretensão favorecida
por D. João, como meio de enfraquecer o ini-
migo. Pouco auxilio material recebeu a nossa
nação com a vinda do Duque. Em compensa-
ção, porém, foram grandes os resultados mo-
raes. O rei de Castella procurou entabolar
negociações para o casamento da filha primo-
génita do Duque, D. Catarina, com o herdeiro
da sua coroa. Antes que ellas surtissem effeito,
o nosso Rei casa com a segunda filha, D. Fili-
pa, rainha das mais beneméritas que ainda se
sentaram em trono português. Logo depois desse
casamento, eífectuado no Porto, o exercito por-
tuguês e mais o corpo expedicionário do Duque,
•entravam pela Hespanha; iam cercar Benavente,
l34 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
que se rendia, seguindo pelo pais dentro. Mas
os nossos alliados bem depressa fraquejavam;
não podiam soíFrer os calores de maio, nem a
falta de alimentos. Não eram èlles frugaes^
como os nossos. Cansaram-se, pois, bem de-
pressa; o Duque proseguiu as negociações da
casamento de D. Catarina com o Infante D.
Henrique. Com este matrimonio terminaram as
pretensões do Duque de Lencastre, que regres-
sou, com o que lhe restava do exercito, através
de Castella, por Bayona, para Inglaterra. As
duas familias reinantes de Portugal e Castella,
approximavam-se por um parentesco que mui-
to havia de contribuir para a paz definitiva.
D. João I voltava para Portugal e fixava a corte
em Coimbra. O Condestavel retirou-se para o
Alemtejo.
Em agosto de iSõy adoeceu El-rei grave-
mente. Chegaram a julgá-lo perdido. Sabida a
noticia, D. Nuno correu a Coimbra. Felizmente \
a crise passara. Amorosamente o Condestavel
não quis apartar-se do seu amigo antes de o
ver completamente curado.
No mês de dezembro El-Rei convocava as
cortes para Braga. Não obstante a sua repu-
gnância D. Nuno viu-se obrigado a apparecer
nellas, como procurador dos fidalgos do reino.
Fallou na assembleia com o desassombro cos-
tumado. cE desto non prouve a El-rei, segundo
GUERRA OFFENSIVA I 35
palavras que ao conde respondeo», e, o que é
peor, nenhum dos fidalgos se levantou para o
apoiar. «Quem serve ao commum, não serve a
nenhum», dizia D. Nuno vendo o pouco resul-
tado da sua acção parlamentar, e nunca mais
quis acceitar tal procuração.
Nisto lhe veiu recado de que a condessa, sua
mulher, estava doente no Porto. Quando lá che-
gou, tinha morrido. Enterrou-a com as maiores
honras no Convento das Dominicanas de Villa
Nova de Gaia, casa de que os pães de D. Leo-
nor de Alvim haviam sido generosos bemfeito-
res. A única filha, D. Beatriz, fructo deste ma-
trimonio, mandou-a para Lisboa, ao cuidado da"^
sua mãe Iria Gonçalves. Ele voltou depois ás
cortes de Braga.
Gomo é sabido, a rainha D. Filipa tem na
nossa historia fama de casamenteira. Quis dar
ao viuvo nova esposa na pessoa de D. Beatriz
de Castro, filha de Álvaro Peres de Castro,
primeiro condestavel que foi de Portugal, «don-
zella bem filhadalgo e formosa», diz a chronica.
Recusou-se D. Nuno, dizendo: «Para offerecer
a D. Beatriz os braços, era preciso que esti-
vessem dezarmados, não convém ainda largar
a espada» (i). Não se dava porem a rainha por
vencida, tanto que D. Nuno pediu licença a El-
í I ) Chronica de Sant'Anna — L. III, pag. gSS.
l36 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
rei e fugiu de Braga, dizendo no caminho aos
que o acompanhavam: tque emquanto estivera
em Braga que sempre encima delle andara uma
nuvem negra, e que depois que dahi partira lhe
parecia que aquella nuvem negra ficara sobre
Braga, e que elle vinha já desabafado sem
ella (i)..
Quando chegou ao Alemtejo, em Évora
houve recado que o Mestre de Santiago se pre-
parava para invadir o nosso reino, com tenção
de queimar Estremoz e Vimieiro. Reuniu logo
os seus e marchou a defender Estremoz. Esta
invasão, porem, não chegou a effectuar-se. O
Castelhano apenas soube da vinda do Condes-
tavel, desistiu da empresa. Não assim o Conde
de Nebra, que entrara em Poitugal por Campo
de Ourique, talando e saqueando as povoações
que encontrara. Particular damno soffrera Vidi-
gueira, donde o inimigo levara presos homens,
mulheres e creanças e ttodollos gados e bes-
tas». No regresso triunfal chegara a Villa Nueva
dei Fresno, a quatro léguas de Monsaraz, onde
se encontrava D. Nuno. Com os escassos ho-
mens que o acompanhavam, a marchas força-
das, foi no encalço do inimigo, mesmo de noite:
surpreendeu-o emquanto estava em grande fol-
gança, e, obrando prodigios de valor, desbara-
(i) Chromca do Cowá. — Cap. LVIII.
GUERRA OFFENSIVA I 3 /
tou-o por completo. Libertou os prisioneiros,
distribuiu por elles o saque da Villa; para si só
ficou com a ferida que uma pedra lançada da
torre da cidade lhe fizera na coxa.
Alegrou-se o Rei, que se encontrava em Lis-
boa, com a noticia e apesar do nojo dos maldi-
zentes, que continuavam a perseguir o Condes-
tavel na corte, veiu a Estremoz, para ir com
D. Nuno tomar Campo Maior, que estava pelo
rei de Castella. Defendia-a Gil Vaz de Ba-
rundo, que resistiu durante algum tempo ao si-
tio. Por fim a villa foi tomada e Barundo en-
tregou o castello, recebendo elle e os seus,
salvo-conducto para Castella «como era con-
teúdo no tracto».
Em outubro deste anno de i388 assignavam-
se as primeiras tréguas. Durariam apenas seis
meses, mas com ellas já se ia preparando o
caminho para a paz definitiva. El-rei D. João
e o Condestavel foram a Aljubarrota assis-
tir ao lançamento da primeira pedra dos mo-
numentos a Santa Maria e S. Jorge, que am-
bos haviam feito voto de erguer no sitio da
famosa batalha. Tudo presagiava o fim da
guerra.
N<
XVI
o FIM DA GUERRA — PAZ DEFINITIVA
Vamos resumir neste capitulo tudo o que
se refere ás hostilidades entre Portugal e Cas-
tella, já que nellas sempre teve parte activa o
nosso biografado. Os outros successos parallelos
serão, para maior clareza, tratados no capitulo
que segue. Assim poderemos terminar esta ma-
téria, já algo monótona, das invasões e tomadas
de cidades.
Terminados os seis meses de tréguas D. João I
rompeu a guerra, tomando Tuy em agosto de
1389. Convencido o rei de Castella da sua in-
ferioridade e aconselhado pelo Duque de Len-
castre, que em França assignara tréguas de três
annos com a Inglaterra, na celebre conferencia
de Amiensi resolveu-se a entabolar negociações
com Portugal e assignou também umas tréguas
que deveriam durar seis annos. Mas o seu espi-
rito não se conformava com semelhante acto. As-
sim reunidas as cortes em Guadalajara, mani-
festou-lhes a tenção que tinha de romper essas
140 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
tréguas. Não encontrou, porem, nem nos fidalgos^
nem no povo, o apoio que procurava. Estavam
todos cansados da guerra. Pouco tempo depois,
dava em Alcalá de Henares, uma queda de um
cavallo tão desastrosa que lhe custou a vida. Suc-
cedeu-lhe o filho D. Henrique, concunhado d'El-
Rei de Portugal. As duas rainhas, como o leitor
sabe, eram irmãs e ambas desejosas de ver o
termo da guerra. Assim chegaram a assignar-se
novas tréguas por quinze annos, facto que de-
terminou a resolução de D. Nuno, em iSgS, de
que adeante fallaremos. Julgava elle que era a
paz definitiva, e decidira distribuir os seus bens.
Três condições continha o tratado: suspen-
são de hostilidades, restituição mútua de pri-
sioneiros, nomeação de juizes que dirimissem
quaesquer contendas que porventura surgissem
nos quinze annos que deveria durar a trégua.
Nomearam-se dezaseis dominicos, oito castelha-
nos e oito portugueses, para recolher os presos
em Castella. Em Portugal tomaram esta missão
oito franciscanos, metade portugueses, metade
castelhanos.
Da nossa parte cumpriu-se á risca o que dizia
respeito á restituição dos prisioneiros ; não foi
egual a lealdade do procedimento dos contrá-
rios. D. João I quis exercer represálias. Mandou
chamar Martim Affonso de Mello e encommen-
dou-lhe a conquista de alguma cidade castelhana
o FIM DA GUERRA
141
para obrigar o rei de Gastella a cumprir o con-
vencionado. Este fidalgo, diz Pinheiro Chagas (i),
partifl para o Alemtejo e esteve muito tempo es-
piando Badajoz e Albuquerque, e informando-se
do modo como essas duas praças eram guarda-
O Convento do Carmo, visto da parte oriental
(Da Chronica de SanfAnna — P. IV. C. I — pag. 571)
das. Lançou afinal as suas vistas sobre Badajoz.
Combinou com um homisiado português, Gon-
çalo Annes, um modo de entrar por surpresa na
cidade, cousa que só pôde ser levada a cabo na
(i) Hist. de Portugal — Yol II, cap. III, pag. 56.
142 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
noite da Ascensão de iSgõ. El-Rei, apenas teve
noticia do feito, encarregou o Condestavel de
assegurar a posse da cidade, e enviou recfdo a
D. Henrique de Castella que restituiria Badajoz,
logo que se lhe pagasse o que devia, mais de
25o mil dobras.
Irritou-se o monarca hespanhol, e, sem mais,
declarou rotas as hostilidades. Passaram, nessa
occasião, para o lado de Castella, alguns fidalgos
portugueses despeitados e invejosos de Nuno Al-
varez. Juntaram-se ao exercito invasor e vieram
sobre Viseu, que foi tomada, saqueada e incen-
diada; D. João I quis reunir os seus, mas já
não encontrava nelles o entusiasmo de antes.
O próprio Condestavel, irritado com as medidas
que o Rei tomara quando foi da distribuição dos
seus bens, mandou dizer a El-Rei cque havia
mais fidalgos no reino, que não era preciso
chamá-lo em tudo e por tudo». Anojou-se o Rei
com a resposta ; mas tudo foi esquecido quando
dias depois lhe apparecia D. Nuno á testa de
duas mil lanças.
Mais uma vez triunfara o coração nobre de
D. Nuno sobre os seus justos resentimentos.
El-Rei, abraçando-o, exclamou: tOra posso eu
dizer que 6 este o primeiro homem darmas que
«u em esta terra vi (i)f.
(i) Chron. — Cap. LXV.
o FIM DA GUERRA 143
Os castelhanos, ouvindo a noticia da che-
gada do Condestavel, retiraram-se da Beira, mas
enviaram outro corpo de exercito para invadir
o reino pelo Alemtejo. Partiram immediatamente
para a região invadida; mas o Mestre de San-
tiago, apenas sentiu os portugueses, houve por
bem voltar á sua terra com os despojos co-
lhidos na comarca de Beja e de Campo de Ou-
rique. Quiseram os portugueses vingar a affronta
e invadiram Castella por Valência até Cáceres.
Aqui os castelhanos se refugiaram adentro dos
muros da cidade, resistindo com valor e zom-
bando do Condestavel com estas palavras, bem
celebres nos fastos da nossa historia: «Non vos
valeo vosso madrugar, Nuno madruga». Mas o
Condestavel, a quem davam essa alcunha pelo
costume que tinha de se levantar muito cedo,
assentou seu arraial junto da villa, e no dia se-
guinte, apenas recebidos novos reforços, ata-
cou-a e reduziu-a.
No regresso para Portugal, estando em So-
veral, appareceram dez escudeiros castelhanos,
«que pareciam homens de bem», no arraial de
D. Nuno. Levados á presença do Condestavel,
perguntou-lhes este o motivo da sua vinda, e
como haviam tomado tal ousadia sem salvo-
conducto nem seguro. Elles responderam que a
fama da sua grande bondade lhes dera tal atre-
vimento, e que outra coisa não desejavam senão
144 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
vê-lo, como ]i tinham visto. Mandou que se lhes
desse de cear, e que os deixassem ir em paz.
Nessa mesma occasião alguns soldados rouba-
ram uma egreja, apesar de tal coisa estar defesa
pelo Chefe, e tomaram uma caldeira. De noite
ataram á caldeira uma das mulas e descansa-
ram. Alta noite espantou-se o animal e levou a
caldeira após si; as outras bestas, atemorizadas
com o estranho ruído da caldeira, tresmalha-
ram-se, fugindo em todas as direcções. D. Nuno
ria-se, dizendo que era castigo merecido, que
devia servir de exemplo para t nunca fazerem
nojo em nenhuma egrejat.
Por Valença voltou a expedição, e D. Nuno,
depois de descansar uns dias, foi visitar a sua
filhinha, mais a sua mãe, que estavam em Villa
Viçosa.
Já ia doente o guerreiro, da enfermidade de
que fallaremos no capitulo seguinte.
Em maio desse anno de 1 897, uma esquadra
castelhana vinha bloquear o Tejo, fazendo al-
guns destroços em naus portuguesas. Por terra
faziam-se varías invasões, mas a principal era
dirigida pelo infante D. Dinis, que penetrara em
Portugal pela Beira, proclamando que a rainha
de Castella lhe cedera todos os direitos. Intitu-
lava-se rei de Portugal! O Condestavel veiu
logo a defender o logar invadido. Em Castello
Branco soube que o Infante estava na Covilhã»
o FIM DA GUERRA I 45
Enviou-lhe logo um mensageiro com uma carta
enérgica, em que lhe exprobrava uma coisa «tão
fea e vergonhosa», como era luctar contra a Pá-
tria, usurpando o titulo de Rei. D. Dinis pensou
ainda em travar batalha, mas os companheiros,
escarmentados em Valverde, Aljubarrota e Ato-
leiros, não concordaram e immediatamente to-
maram o caminho de Gastella. Mais uma vez o
prestigio do Condestavel triunfara.
Todas estas coisas, e mais o revés de Jerez
de Gaballeros infligido por D. Nuno numa cor-
reria que fez por Gastella dentro, obrigaram o
monarca hespanhol a tratar seriamente da paz.
Por intervenção dum genovês, um certo Am-
brósio, assignaram-se tréguas de três meses. De-
pois, em fevereiro de i3gg, reuniam-se os en-
carregados de parte a parte para tratarem da
paz, em Olivença; Nuno Alvarez era o repre-
sentante principal de Portugal. Prorogaram a
trégua nove meses, passados todos em discus
soes. Eram demasiado exigentes para um ven-
cido as condições que impunha o rei de Gastella.
D. João I rompeu bruscamente as negociações,
e em maio de 1400 invadiu Gastella, indo cercar
Alcântara. A praça era forte. Resistiu, apesar
do auxilio de D. Nuno. Simultaneamente os cas-
telhanos vinham tomar Miranda do Douro e Pe-
namacor. Tiveram os portugueses de voltar para
defender o solo pátrio. Em Alcântara apenas
146 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
houve algumas escaramuças, que serviram para
salvar o nome português. Felizmente recome-
çaram as negociações da paz, assignando-se em
Segóvia uma trégua de dez annos. Virtualmente
era o fim da guerra. A paz definitiva só foi as-
signada depois da morte do rei de Castella, por
sua mulher a rainha D. Catharina, regente du-
rante a menoridade do filho, aos 3 1 de outubro
de 141 1. Mas o tratado formal da paz perpétua
só íoi ratificado definitivamente por D. João lí
de Castella, em Medina dei Campo, no anno de
143 1. El-Rei assignou-o em Almeirim, aos 17
de janeiro de 1432.
XVII
CONTRARIEDADES
Alludimos nas paginas que levamos escritas
a dois factos dolorosos, que Juntaaios a um outro
análogo neste capitulo. Mostram elles muito bem
a tempera do caracter de Nuno.
Em iSgS, julgando já feita a paz, D. Nuno
Alvarez entendeu que devia «dar galardão aos
cavalleiros e escudeiros que em sua companhia
na guerra andaram». Repartiu, pois, generosa-
mente por elles as terras e rendas que recebera
de El-Rei em recompensa dos seus serviços. Era
uma espécie de participação dos lucros da
empresa em que juntos haviam trabalhado. Jun-
tos haviam refeito Portugal. D. Nuno julgava
que o premio que lhe fora outorgado devia ser
distribuído pelos seus collaboradores na grande
obra.
E assim, diz a Chronica (i) tcomeçando
entre Tejo e Odiana, deu Alter do Chão com
(i) Gap. LXI.
148 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
seu castello e todas suas rendas a Gonçalo Ans
d' Abreu. E deu Évora Monte com suas rendas a
Martim Gonçalves do Carvalhal, seu tio. E as ren-
das da alcaidaria de Estremoz (porque o Castello
nom era seu) com outras rendas do dito lugar
a Lopo Gonçalves. E as rendas de Borba a
Johá Gonçalvez da Ramada. E Monsarraz a
Rodrigo Alvarez Pimintel. E parte das rendas
de Portel, com as rendas todas de Villa de
Frades a Fernão Doíjz, seu thesoureiro. E a
parte das rendas da Vidigueira a hum bom e
estramado escudeiro, que chamavam Aôbnso
Estéz Perdigão. E Villa Alva. E Villa Ruyva
a Rodrigo Affonso de Coimbra. E as rendas de
Montemor o Novo a hum bom escudeiro de hy
que chamam Rodrigo Ans Azeiteiro. E as ren-
das d' Almada a Pedro Ans Lobato. E o barco
de Sacavém a Johã Affonso, contador seu, que
depois foi vedor da fazenda d'El-rei. E o
reguengo de Dalvella a Esteve Ans Berbereta
de Lisboa. E as rendas de Porto de Moos e
de Rio Mayor a Pedro Affonso do Casal. E Al-
vaiazer a Álvaro Pereira. E o Rabaçal a Mem
Rodriguez de Vasconcellos e terra de Baltar,
que ha entre Doiro e Minho. E a Martim Gon-
çalvez Alcoforado o Arco de Baulhe, com três
ou quatro quintas que o Condestabre naquella
comarca havia a João Gonçalvez, seu meirinho
moor, e certas rendas que havia em Terra de
CONTRARIEDADES 1^9
Basto e depfía a Aífonso PTjz, que foi seu vedor.
E certas rendas de Barcellos a hum bom escu-
deiro de seu corpo e que bem serviu, que cha-
mavam Gil Vãz Freã. E Montalegre com terra
de Barroso a Diego Gil d'Ayrco, seu alferez. E
Chaves com todas suas rendas a Vasco Machado,
seu criado que no começo das guerras foi seu
pagem».
Todas estas rendas e terras dera o Condes-
tavel em préstamo, ou seja com condição de
cada um dos beneficiados contribuir com um
certo numero de guerreiros em seu serviço e
de El-Rei, como vassallo seu. Fora generosa
a distribuição, a tal ponto que ficara escassa-
mente com o sufficiente para a sua própria
manutenção, de modo que «vivia estreitamente».
Porém em si, acrescenta a Chronica, era sem-
pre muito ledo porque lhe parecia que era
desencarregado daquelles que o serviram.
Este facto de generosidade causou espanto
nos inimigos do Condestavel. Fallaram a El-rei,
o qual, movido principalmente pelos argumen-
tos do Dr. João da Regras, não aprovou a re-
partição. O jurista via nella uma renovação do
feudalismo, e elle, que era convictamente pela
concentração de todo o poder nas mãos do Rei,
entendia que os seus planos seriam destruídos,
se se permittisse semelhante liberdade. D. João,
amicíssimo do Condestavel, cujos conselhos se-
l5o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
guia em tudo o que se referia á guerra, e ao
mesmo tempo attentissimo aos sábios ensina-
mentos do seu chanceller, sentia no coração
uma terrivel lucta. Mas a razão de Estado pre-
valeceu. Resolveu oppor-se á distribuição.
Já se vê, semelhante medida magoou profun-
damente D. Nuno. O guerreiro franco e leal
não entendia como não lhe fosse permittido dis-
por do que era seu e havia ganho pelo seu valor
e trabalho. Profundamente desgostoso saiu da
corte e marchou para o Alemtejo. Em Estre-
moz reuniu os seus parentes, amigos e creados.
Expôs-lhes a ordem de monarca e o seu pesar.
Resolvera sair fora do reino buscar sua vida:
ttodavia servidor d'El-rei»,e respeitando sempre
o seu nome onde quer que estivesse; convida-
va-os a serem seus companheiros. Todos annuí-
ram. Quantos aí estavam declararam que
iriam de boa vontade morrer e viver com elle.
Distribuiu então o dinheiro que trazia e cada
qual se foi preparar para a saída do reino. O
Condestavel foi a Portel. Apenas o Rei soube da
resolução do seu fiel amigo, enviou-lhe recado
pelo licenciado Ruy Lourenço, deão de Coimbra,
cpollo torvar da sua ida».
Logo depois vinha com egual missão o novo
Mestre de Aviz e, a seguir, o Bispo de Évora. E
o Conde enviava «por elles suas respostas com
grande humildade, como a rei e senhor, mos-
CONTRARIEDADES I 5 I
trando-lhe que sua partida non se podia escu-
sar». Veiu finalmente da parte do rei o tio,
Martim Gonçalves do Carvalhal. Conseguiu dis-
suadir o Condestavel, entrando-se num accordo
que. salvaguardava as prerogativas da coroa.
Foram revogadas todas as doações. El-Rei «pôs
a todos suas contijas» e assim ficou tudo sere-
nado, tnão se tocando nas suas terras de juro
e herdade mas todavia lhe foram tiradas as que
tinham de préstamo».
Outra contrariedade não menos dolorosa
para o coração de Nuno foi a doença que o afli-
giu em 1398. Pelos simptomas que vêem lar-
gamente descritos na Ghronica, vê-se que se tra-
tava de uma neurastenia, aggravada por cólicas
hepáticas. Humor menecónico, lhe chamam os
antigos. Não podia, irritava-se com o tratar
com gente, «especialmente os homens que lhe
traziam cartas» ou fallavam de negócios. Vinha
a febre, perdia a vontade de comer. Seu desejo
era mandar açoitar os importunos visitantes.
Abandonou todos os negocies e empregos.
Os fisicos de Lisboa não davam com a doença.
A mãe e a filha tratavam-no desveladamente.
Finalmente appareceu um medico que pôde dia-
gnosticar o mal e prescrever o tratamento:
repouso absoluto no campo. Pouco a pouco
melhorava em Alfarrara, numa quinta formosa,
onde esteve cerca de três meses. Quando se
l52 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
sentiu bem foi por Évora a Setúbal e daí em
barco para Alcácer. Na viagem as aguas en-
capellaram-se, foi forçoso arribar, emquanto
durava a tormenta. Em terra D. Nuno apar-
tou-se um pouco dos companheiros e quis expe-
rimentar as suas forças. Toma uma faca e
começa a cortar pelo mato. Viu que já recupe-
rara a saúde. Podia com o trabalho, poderia
também com as armas. Voltou pois á sua vida
normal.
A única filha de Nuno Alvarez, fructo do
seu matrimonio com D. Leonor de Alvim, casara
em 1401, com D. Aífonso, filho legitimado de
El-Rei D. João I, feito Conde de Barcellos por
occasião do casamento e ricamente dotado pelo
pae e pelo sogro. Estava o Gondestavel em
Villa Viçosa quando lhe chegou a noticia de
essa filha ter enfermado gravemente em Chaves.
Morreu repentinamente, logo após o parto. Ima-
gine-se a afflicçáo de Nuno. Correu opprimido
pela dor a Chaves, assistiu ás exéquias e acom-
panhou o cadáver a Villa do Conde, onde foi
depositado no coro baixo da Egreja das Reli-
giosas de Santa Clara.
tQuando o caixão da filha desceu á sepul-
tura, fechando-se sobre elle a campa, diz Oli-
veira Martins (i), o Gondestavel sentiu par-
(i) i4 Vida de Nun' Alvares. — C&p. X.
CONTRARIEDADES I 5 3
tir-se o ultimo elo que o prendia á vida...
Quando a sepultura se encerrou abriu-se-lhe
na alma a resolução de ir para o Carmo.»
Ficavam-lhe ainda três netos, seu enlevo e
objecto dos seus maiores carinhos até á morte. . .
Ao mais velho coube o condado de Ourem,
depois da renuncia de D. Nuno; ao segundo deu
o condado de Arrayolos; e á sua querida neta
Isabel, a quem nas cartas dá o tratamento tão
terno de minha linda j dotou-a com bastas ter-
ras. Todos estes actos, porém, foram feitos
depois da sua entrada no Carmo, de que nos
vamos a occupar no capitulo que segue.
XVIII
o ADEUS AO MUNDO
Duas obras levou a termo D. Nuno Alvarez,
antes de se despedir do mundo : a reorganiza-
ção do exercito português e a erecção de
vários templos que votara á Virgem Mãe de
Deus. Fallar-se-ha delias e da empresa de
Ceuta, antes de se tratar da matéria apontada
no titulo.
Eflectivamente a D. Nuno Alvarez se deve a
creação do exercito permanente no nosso país.
O Rei começou a ter desde então «três mil e
duzentas lanças, doze ou quinze mil homens
eífectivos ; quinhentos a cargo dos capitães, duas
mil e quatrocentas dos escudeiros, trezentas das
ordens militares : Ghristo e Santiago a cem, Aviz
oitenta, Hospital vinte. Por outro lado haveria
sempre armamento em arsenaes dispersos por
todo o reino, mil e quinhentos arneses, distri-
buidos desta forma : quinhentos ao rei, cincoenta
ao condestavel, etc. . . . Desta forma o reino fi-
cava permanentemente armado para a defeza e
l56 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
O rei deixava de estar á mercê dos contingentes
dos vassallos (i).»
Já dissemos que a noticia da morte da filha
o foi surpreender quando assistia á construcção
da egreja que mandou levantar em Estremoz á
A capelia de S. Jorge, mandada edificar pelo Condestavel
no litío onde esteve hasteado o sen pendáo, durante a batalha de Aljubarrota
(Do livro Aljubarrota por C. Ximenes de Sandoval, pag. 368)
honra da Virgem Santissima, sob o titulo de ^
Nossa Senhora dos Mártires. Em Villa Viçosa
havia dedicado uma capella á Immaculada Con-
ceição, a mais antiga de Portugal com seme-
lhante invocação. Souzel, Portel, Monsaraz,
(1) Oliv. Martins. — A Vida de Nun' Alvares, pag. 353.
o ADEUS AO MUNDO l5j
Mourão, Évora, Camarate, possuiam egrejas,
todas dedicadas a Maria Santissima e manda-
das construir pelo Condestavel, e em Aljubar-
rota, onde esteve o pendão de D. Nuno, erguia-se
uma modesta capellinha em honra de Santa Ma-
ria e S. Jorge, que, embora deteriorada, ainda
existe. Na fachada, á direita da porta de entra-
da, conserva-se a inscripçao seguinte que o au-
ctor destas linhas copiou numa das visitas fei-
tas a essa localidade. Diz ella assim :
ERA DE MIL QUATROCENTOS
E TRINTA E DOIS D. NuNO AL-
VARES PEIRA CÔDDA ESTAB
MADOU FAZER ESTA CAP-
PEELA A ONRA DA VIRGEM MARIA POR
ONDE ÁDO DIA QUE SE POZ A BA-
TALHA QUE ELREY DE PORTUGAL HOUVE DE ELREY
DA CASTELLA-ESTAVA EN ESTE LOGAR A BANDEI-
RA DO DITO CONDESTABRE
Muito para desejar seria a restauração desse
monumento, tão insigne na nossa historia na-
cional.
A mais bella, porem, das egrejas mandadas
levantar pelo Condestavel, é, sem duvida, a de
Nossa Senhora do Vencimento, construída numa
das mais formosas collinas de Lisboa, e entre-
gue logo depois da sua conclusão aos Padres
l58 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Carmelitas. O Convento do Carmo, de Lisboa,
foi uma obra digna do espirito alentado do seu
piedoso fundador. Elle ha de ser o retiro sa-
grado onde D. Nuno, trocando as armas pela
pobre samarra de carmelita, irá viver os últimos
dez annos da sua existência, e encontrar um
repouso para os seus restos mortaes. Mas não
antecipemos os factos.
Sobre a fundação desse templo divergem as
opiniões. O Chronista da Ordem, Frei Joseph
Pereira de Sant'Anna, expõe e discute larga-
mente as diversas opiniões. Uns queriam que ella
tivesse sido votada durante a batalha de Aljubar-
rota, coisa pouco provável. Outros attribuem a
um voto feito no heróico combate de Valver-
de (i). Outros, finalmente, dizem que foi um
acto de devoção á Virgem, que lh'o pedira
numa visão. Seja como for, a nós basta-nos
saber que foi começado em i6 de julho de iSSq.
A situação e má qualidade do terreno obriga-
ram a refazer ires veses os alicerces; só nelles
(i) Só por approximaçóes de datas é que se pode affir-
mar com probabilidade que a Egreja do Carmo foi
levantada para commemorar a victoria de Valverde. Com
eíTeito, esta batalha feriu-se no dia i5 ou i6 de outubro
de i385, portanto três meses depois da grande victoria
de Aljubarrota. Para commemorar esta decidira-se a
construcção do Mosteiro da Batalha com a Egreja de
Santa Maria da Victoria. Como Valverde era o segvmdo
o ADEUS AO MUNDO iSç
se gastaram oito anos, dos trinta e três que le-
vou a obra. tHavenoos de fazer os alicerces
de aço», dizia o Condestavel quando via caírem
os muros successivamente duas vezes. E, com
tenacidade incrível, a obra foi crescendo até ser
inaugurada em 1422. Mas já desde 1392 habi-
tavam os frades no Convento do Carmo. Frei
Joseph Pereira de Sant'Anna, descreve prolixa-
mente a historia da fundação, e dá uma lista
documentada dos bens com que o Condestavel
a enriqueceu, sendo uma parte principal os dum
judeu chamado David Negro que se bandeara
para os castelhanos. Conta como o fundador
ordenara que se fizesse um mirante donde obser-
vava os trabalhadores, animando-os a proseguir
na obra.
Durante esta edificação é que se realizou a
gloriosa empresa de Ceuta. El-rei D. João I ia
inaugurar a epopeia que deu a Portugal um im-
pério colonial. Os filhos de D. João I, constru-
ctores desse império, iam entrar em scena e
passo decisivo da derrota dos castelhanos, e como por
outro lado se sabe que o Condestavel fizera voto de er-
guer um templo em honra da Virgem Santíssima, nada
mais natural que ser esse templo a Egreja do Carmo.
Quanto seria para desejar que a Nação Portuguesa,
de collaboração com o governo, pusesse mãos á obra e
restaurasse esse majestoso templo para depois se transfe-
rirem para elle as Relíquias do nosso Grande Heroe ! . . .
l60 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
iniciar os planos grandiosos a que consagraram
a sua vida. Assentada em conselho a expedição,
aprestaram-se as naus e o Gondestavel mais uma
vez vestiu a cota de armas. Era a ultima vez,
mas a sua estrella triunfante não era já um pre-
sagio de victoria ? A rainha morria da peste que
assolava Lisboa ; no seu leito de morte animava
os filhos a proseguirem na execução do plano a
que não era alheia. Verdadeiro coração de he-
roina! Em 1415 largavam as amarras e voga-
vam essas naus para Ceuta, primeiro reducto do
islamismo na Africa. Na expedição ia o Rei, ia o
infante D. Duarte, o futuro rei, o infante D. Pe-
dro, o desafortunado, ia o fundador da escola
de Sagres D. Henrique, e o conde de Barcellos,
filho bastardo do Rei. Os dois infantes D. João e
D. Fernando ficavam: «erã tam pequenos que
nó foram lá. . . » « E o condestabre foi com elrey
e cõ seus filhos.» (i)
Chegados a Ceuta foram assaltados por uma
violenta tempestade. Todas as naus caçavam,
cortavam-se as amarras, rompia-se o vela-
me (2). El-Rei determinou refugiar-se com uma
parte da frota no ancoradoiro de Gibraltar. «E
(1) Chron. — Cap. LXXVIII.
(2) «E hy se rrecreceo hua tãn Xorte tormenta q to-
dollas naus caçavam ; e as amaras e cabres se cortavam
das pedras.» Chron.—Cap. LXXVIII.
o ADEUS AO MUNDO l6l
O conde ficou alli naquella tormenta e prijgo
com a sua frota».
Tres dias durou a tormenta. Os capitães pe-
diram debalde ao Conde que ou tomasse terra
ou ordenasse que as naus fossem ter com o Rei.
Nenhuma das coisas quis fazer. Desembarcar
era tirar ao Rei a gloria de ser o primeiro a pôr
pé em terra inimiga; retirar-se era cobardia, que
nem para salvar a vida praticaria. Quando sere-
nou a tempestade, recebeu recado que fosse a Gi-
braltar. Obedeceu á ordem regia. Nesse ancora-
doiro houve novo conselho, onde resolveram
proseguir a empresa. Empresa facil, pois a ci-
dade foi tomada sem grande resistência, o cas-
tello entregou-se ao Condestavel. Passados tres
dias veiu uma algarada de inimigos investir a
porta de Fez. Saíram-lhe ao encontro os infan-
tes. A peleja era rija. Foi necessário que o Con-
destavel corresse em seu auxilio para o inimigo
debandar. Desde então assentou a sua pousada
perto dessa porta, que era a mais ameaçada. A
conquista de Ceuta era um facto. O salvador
da independência nacional collaborava na funda-
ção dum império cuja grandeza, mal chegava a
suspeitar. Com grande pena de D. Nuno, El-Rei
ordenou o regresso da expedição, deixando go-
vernador da praça o conde D. Pedro. Bem qui-
sera Nuno Alvarez trocar os seus titulos pela
gloria de governar essa fortaleza. Mas El-Rei
102 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
não queria separar-se do seu amigo, do seu con-
selheiro, do exemplo que apontava constante-
mente aos seus filhos, summamente afteiçoados
ao vencedor de Valverde. A carreira militar
terminara para D. Nuno Alvarez, circundada
com o mesmo nimbo de prestígio e gloria com
que a iniciara.
Voltou, pois, para Lisboa onde continuou a
velar pelas obras do Convento do Carmo. Aqui
estabeleceu residência, desde o mês de julho
de 1422. Ainda não vestira o habito, ainda não
entrara a fazer vida de communidade, mas essa
idea ia ganhando terreno no seu espirito. Admi-
nistrava os bens que doara ao Convento dos seus
queridos padres Carmelitas, dispunha a distri-
buição dos que dera aos seus netos e netas, e
consagrava todo o tempo que sobrava ao exer-
cicio da oração e das virtudes christãs.
XIX
NA SOMBRA DO CLAUSTRO
E' preciso não confundir o retiro do Condes-
tavel no Convento do Carmo, com a sua en-
trada na Ordem Carmelita. Entre um e a outra
houve um intervallo de quasi um anno. Em 17
de agosto de 1422 já D. Nuno estava instalado
no Convento. Deixara o mundo, mas ainda não
vestira o habito, nem revelara a pessoa alguma
a sua intenção de o fazer.» Tempo de recolhi-
mento e de piedade. Como procurador e perpe-
tuo administrador do Convento, cargos que
reservara para si quando doara a fundação aos
frades, superentendia nas obras lá do alto do
miradoiro, situado ao lado da capella-mór, da
banda do sul. Nesse tempo o cruzeiro já estava
terminado. Entretanto ia liquidando as contas
dos seus devedores e almoxarifes. Ia dispondo
tudo para o adeus completo ao mundo.
Nelle, como dissemos, ficavam três netos,
dois varões e uma menina, a sua querida neta
Isabel, a quem nas cartas dá o tratamento de
164 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
minha linda (i). Sois pedaços da minha alma^
escrevia elle a esses netinhos, porque tendes
em vós a imagem de vossa querida mãe. Nem
deixava de repreender paternalmente o seu
neto Fernando, por ser muito travesso. Ao genro
também escrevia frequentes vezes. Notável é a
carta em que o admoesta severamente a renun-
ciar á pretensão de tirar aos seus frades carme-
litas algumas das propriedades por elle doadas.
(i) Damos aqui uma, carta, registada por Sant'Anna:
«A Senhora D. Zavel minha netinha faga Deos Santa.
Ninguna reson tenedes pêra renhirme, porque hsi gram
prazer de letras vosas leer. Os dis atras ube huma bossa,
que me foy tragida por bentura e se nom bos foi respon-
dida non foi menga de bontade mas de mui poça saúde,
que para ello tube escrever a Fernando, mas abendo bos
non faga tenerdes bos em o logo de que mas a el, que
a bos hei de feison, e se bem lo ver.des, acharedes que
quantas minutas minhas ha, tantas son só a renhilo que
cá bem certo são travesso ha ; mas bos minha linda
como no abedes que bos possa emendar ávido a lo que
mengua ha dello, e nõ leixo de bos querer como a vida.
Agora minha linda lo fago a bos só por darbos contento
em que los otros o sentam no leixedes de me fager o que
ata aqui, porque sendo los huns e los otros pedaços da
alma em bos o semelho sondes la bossa madre en lo que
como ella fagedes, e no digo ai, se non embiarbos la
minha bençom e la de Deos vos cubra minha linda.
Carmo XI da Vríl de 1439.
(T^uno de Santa ^aria.»
Existia o original no Arquivo do Carmo.
NA SOMBRA DO CLAUSTRO
i65
<t01hae bem senhor o que f azedes que é um
grande desserviço a Deos, e quem na terra não
cumpre, não entra no ceo». E tão efficazes
foram as li-
nhas do velho
Condestavel
que o conde
de Barcellos
desistiu logo
do injusto in-
tento.
O tempo
que lhe sobra-
va das men-
cionadas oc-
cupações, em-
pregava-© to-
do na oração
€ trato com
Deus, e no
exercido das
mais virtudes
christãs. Ter-
minados os
trabalhos, e
obtida a creação da nova Provinda do Carmo
cm Portugal (até então os frades eram depen-
dentes do convento de Moura, donde os pedira),
reuniu-se em Lisboa o Capitulo Provincial da
Altar-mór da Egreia do Carmo, antes do ter-
remoto. Desenho de manuscrito de Frei Ma-
nuel de Sá. — Obsequiosamente cedido pelo
Sr. Aífonso d'0rnellas
!66 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Ordem para assentar as coisas referentes á
nova Província. Assistia o Condestavel. No dia
23 de julho fazia elle a solemne e formal doa-
ção, e dias depois assignava-se a escriptura^
referida pelo Chronista da Ordem, Frei Joseph
Pereira de Sant'Anna. Era magnifica a egreja
do mais puro gótico, que do alto da coUina do-
minava a cidade. Durara 33 annos a sua cons-
trucção.
Mas dar a egreja era pouco para o seu animo
generoso. Faltava ainda a realização do ideal
que mais caro lhe era, acariciado no intimo do
coração durante perto de um anno. Apresen-
ta-se ao Provincial da Ordem e, com não pouco-
assombro do mesmo, pede que o admitta na Re-
ligião Carmelitana, no humilde grau de Donato.
O P. Affonso da Alfama, que era o superior
da nova Província, acolheu com o maior res-
peito semelhante pedido. A vocação era de
Deus, embora viesse aos 63 annos de edade.
Em uma só coisa não concordava, precisamente
aquella em que mais empenho tinha o postu-
lante. Que entrasse, sim, mas no grau de co-
rista, ou ao menos no de irmão leigo. Baldados
foram os esforços! c Viera á Religião, respondia
o Condestavel, para se empregar nos humildes
ministérios dos que professam a vida activa,,
não queria, pois, outro habito senão o dos ser-
ventes.» Era esse habito uma túnica talar, com>
NA SOMBRA DO CLAUSTRO 167
escapulário comprido e capa curta que parecia
murça, tudo de um panno escuro, chamado na-
quelle tempo gri:{i e hoje estamenha.
Frei Simão Coelho, na sua Chronica, diz:
«Encerrou-se neste mosteiro de N. Senho-
ra... e não querendo ser sacerdote, foi semi-
frater (conforme as constituições da Ordem)
que sam meios frades & os que exercitam os
officios de maior humildade, & nam trazem
hábitos mas huns tabardos cõpridos, e bar-
bas» (i).
Não vestiu, pois, o hábito ordinário dos
Carmelitas o noviço sexagenário, mas sim um
hábito especial, inferior ao dos mesmos irmãos
leigos, próprio dos que occupavam o grau mais
Ínfimo entre os moradores do convento.
No dia i5 de agosto de 1423 celebrou-se a
commovente cerimonia. Era o 38.° anniversario
da batalha de Aljubarrota, e se naquela mos-
trara o heroísmo do seu valor, agora manifes
tava-se o heroísmo da sua virtude.
D. Nuno Alvarez Pereira, Condestavel do
reino, conde de Ourem, Arrayollos e Barcellos,
mordomo-mor do Rei D. João I, senhor dona-
tário das cidades e villas de Valença, Basto,
Bouças, Baltar, Penafiel, Castello de Piconha,
Portello, Chaves, Barroso, Monte Alegre, Ri-
(i) Chronicas de N. S. do Carmo. — Cap. XXI.
l68 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
beira da Pena, Lousada, Paiva, Almada, Al-
vayazere, Rabaçal, Charneca, Porto de Moz,
Rio Maior, Villa Viçosa, Borba, Estremoz,
Evoramonte, Portel, Montemór-o-Novo, Souzel,
Alter do Chão, Monsaraz, Villa dos Frades,
Vidigueira, Villa Ruiva, Landroal, Monforte,
Loulé, Villa do Conde, Arco de Baulhe, Ten-
daes, Silves, Guimarães, Villalva, etc, nomes
que recordam proezas bellicas praticadas pelo
Condestavel na lucta de mais de 40 annos pela
independência da Pátria — esse homem extraor-
dinário, o mais prestigioso do Reino, chamava-
se doravante Nuno de Santa Maria. «Não con-
sentia, diz Simão Coelho, que lhe chamassem
senam Nuno (i).» Não queria que lhe apuses-
se ao nome o costumado Frei.
Depusera, antes da vestiçao, e testamento
nas mãos do Superior do Convento. Agora não
queria pensar mais no mundo que deixara. Ha-
bitava uma cella escura e pobre, onde o prin-
cipal e único adorno era um crucifixo e uma
estampa da Virgem Mãe de Deus. Nuas as pa-
redes. O leito: simples tábuas com uma gros-
seira manta, uma pobre mesinha; ao lado da
imagem da Virgem estavam os instrumentos
de penitencia, disciplinas e cilicios.
Quando na corte se soube da noticia do
(i) Chronica de N. S. do Carmo. — Cap. XXI.
NA SOMBRA DO CLAUSTRO I 69
propósito de D. Nuno, alvoroçou-se toda a casa
real. ElRei, os príncipes, sobretudo D. Duarte,
que amava ternamente o velho companheiro de
armas do pae, os próceres do paço vinham
admirar e edificar-se com os exemplos de vir-
tude que dava o donato carmelita. Sugeriam-
Ihe que ao menos conservasse algumas preroga-
tivas, ao menos reservasse uma tença para a
sua sustentação, para as esmolas que a sua di-
gnidade pedia que desse. «Senhor, respondia o
sexagenário, o condestavel está morto e amor-
talhado.» E, completamente esquecido de si,
diminuia-se dia a dia, para copiar, retratar a
humildade de Ghristo. Foi necessária a inter-
venção expressa do Infante para o impedir de
andar mendigando pelas ruas e casas.
Mais ainda. Vendo o concurso da gente que
ia visitá-lo, e querendo entregar-se mais á soli-
dão, pensou em se retirar de Lisboa, e mesmo
de Portugal, para viver em algum ermo, onde
ninguém fosse perturbar a sua conversação com
Deus. Também desta vez a intervenção de El-
Rei obstou a esse desejo. Ficou no Convento do
Carmo, mas obteve do superior que mandasse
construir uma capellinha na cerca do convento,
onde fugia ao commercio mundano. Aí passava
horas esquecidas, entregue á oração e trato com
Deus, todo o tempo que lhe sobejava dos exer-
cicios costumados da vida de communidade.
I 7 o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Unir-se cada vez mais a Deus e vêr a Santís-
sima Virgem eram os seus anceios, as aspira-
ções da sua alma entregue toda á pratica do
mais alto misticismo.
Lisboa inteira admirava os exemplos do setíy
por tantos titulos seu, Condestavel. O povo vene-
rava o santo velhinho, quando o via pelas ruas
apoiado ao seu bastão, rude e nodoso. Quisera
beijar a fímbria desse hábito, quisera dar-lhe
uma prova da veneração que inspirava. Mas
fazê-lo seria ferir a modéstia do humilde dona-
to. Olhava-o, pois, em silencio, saudando-o com
aquelle respeito com que se saúdam os santos.
«E' um santo», diziam os pobrezinhos, quando
distribuia o caldo e as esmolas, á portaria do
convento, occupação que mais o deleitava. Jun-
tamente com o alimento do corpo, alliviava os
softVimentos desses infelizes, com bons conse-
lhos e palavras que iam até ao fundo da alma.
Escolhera e praticava a única forma de aposto-
lado consentânea com o humilde grau de donato
na Religião.
XX
NUNO DE SANTA MARIA
Poucas, infelizmente bem poucas, são as no-
ticias que os chronistas antigos (o auctor da
Chronica do Condestavel e Frei Simão Coelho)
nos deixaram sobre a vida de Nuno Alvarez no
claustro. Mais abundante e cheia de pormenores
interessantes é a Chronica de Sant'Anna, mas
o historiador consciencioso não poderá deixar
de ver nella já os adornos com que a lenda vem
dourar a vida dos heroes. Feita pois esta reserva,
resumiremos neste capitulo o que diz este ul-
timo auctor, que, como todos sabem, escreveu
três séculos depois da morte do Santo Condes-
tavel.
Começa Sant'Anna por narrar o que já le-
vamos dito sobre a sua singular pureza e casti-
dade. «Foi tão firme neste ponto, diz o referido
auctor, que jamais em prejuízo desta virtude,
se lhe conheceu o mais leve defeito». Na mo-
déstia exterior mostrava a pureza angélica da
sua consciência. Em sua presença ninguém se
I 72 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
atrevia a dizer palavra mal soante. Vimos como
se sujeitou ao matrimonio por imposição do pae,
e como se recusou a contrair segundas núpcias
depois da sua viuvez precoce. Ainda com a pró-
pria mulher, refere a Chronica do Condestavel (i)
€ depois que elle veeo ao trintario d'el-rei D. Fer-
nando viveu como se fora irmão». Vimos tam-
bém como profligou do seu exercito toda a sorte
de licenciosidades. Costumava dizer, como re-
fere o Agiologo Lusitano: «Que tanto teriam
de victoriosos (os soldados) quanto de hones-
tos, e que o capitão que não amava esta angé-
lica virtude entrava na batalha meio vencido».
Desde a juventude foi muito dado ao exer-
cício da oração. Neila procurava o melhor au-
xilio para as suas grandiosas empresas, levan-
tando-se para isso muito cedo, o que lhe valeu
o nome de Nw?io Madruga. «Ouvia suas missas
mui devotadamente, cada um dia duas missas e
três em todollos sabbados, e três era todollos
domingos, de que ficou em Portugal bom exem-
plo, especialmente aos do paaço, que dantes que
o elle asy usasse, poucos as ouviam», diz a
Chronica.
Longas horas de oração passava na capelli-
nha ou ermida, derramando copiosas lagrimas,
.deante duma imagem da Virgem da Assumpção,
(i) Chronica do Condestabre — Cap LXXX.
NUNO DE SANTA MARIA
17J
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feita de alabastro. Como refere Sant'Anna, era
tradição entre os frades que a Virgem lhe fal-
lára muitas vezes e que lhe annunciára o mo-
mento da morte.
Deante do Santissinio Sacramento do Altar
sentia-se como arroubado. Fazia-lhe companhia
constante quan-
do era exposto
na Egreja, acom-
panhava-© quan-
do era levado aos
enfermos. Qua-
tro vezes no anno
recebia a Sagra-
da Gommunhão,
fazendo-a prece-
der sempre duma
confissão geral.
E embora, se-
gundo refere
Sant'Anna, se
confessasse to-
dos os dias (tal
era a delicadeza
da sua consciência), a sua profunda humildade
lhe fazia crer-se indigno de receber mais amiu-
dadas vezes a S. Eucharistia.
Daqui nascia o grande respeito que tinha
aos Sacerdotes, como dispensadores que são do
m
Nuno de Santa Maria. Reproducçáo do
manuscripto inédito de Frei Manuel
de Sá. — Obsequiosamente cedido pelo
Sr. AíFonso d'OrnelIa8
I 74 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Corpo de N. Senhor Jesus Christo. Costumava
dizer: o Que a auctoridade própria era superfi-
cial, e o caracter delles andava inapresso n'alma:
e se as criaturas do Rei, pelo valiniento, que
com elle adquiriam eram mais do que os estra-
nhos attendidas; quanta honra se não devia aos
Sacerdotes, que eram Ministros, e os mais Ín-
timos familiares do seu mesmo Creador?» No
Convento do Carmo vivia também um padre
Carmelita que outrora fora creado do Condes-
tavel. Comtudo, Nuno beijava-lhe sempre o es-
capulário e punha-se de pé á sua passagem,
emquanto da sua parte o humilde P. João Gon-
çalves pospunha sempre ao seu nome o epiteto
de € Criado do Condestabre*. Santa contenda
de dois humildes frades !
Egual reverencia mostrava pelos outros Sa.
cramentos. Acceitava de vontade o ofiBcio de pa-
drinho dos neo-baptisados, dizendo: cQue via
huma creatura justificada, e na Egreja de Deus
mais hum filho capaz de Lhe dar gloria». Além
disto provia abundantemente ao bem-estar e
educação dos seus numerosos afilhados.
Deixou ordenado que no seu Convento do
Carmo se administrasse nas festas principaes a
Confirmação, obtendo para isso privilegio es-
pecial e perpetuo para o Superior.
/ Notável é o respeito que mostrou, no furor
da guerra, pelo sacramento do Matrimonio. To-
NUNO DE SANTA MARIA I ^5
mada a villa de Cáceres, aconteceu que entre
os prisioneiros se encontravam dois desposados,
surprendidos pelos portugueses na occasião mes-
mo em que se iam receber. Apenas D. Nuno soube
do caso, mandou vir os noivos á sua presença,
ordenou que os tratassem com a maior consi-
deração, e depois foi elie próprio acompanhá-los
á Egreja e servir-lhes de padrinho, dotando ri-
camente os dois esposos. Além disto deu ordem
para que fossem immediatamente libertados to-
dos os parentes e creados desses seus afilhados.
Grande foi o seu espirito de penitencia e
mortificação. «Jejuava três dias na semana sem-
pre emquanto foy em hydade que podia supor-
tar : a quarta feira, e sesta, e sábado, e todalas
festas que a Egreja manda guardar, como fiel
católico» (i), ou seja o advento e a quaresma;
além disso, nas vigilias das festas principaes
do anno christão.
Até á morte trouxe continuamente um duro
cilicio. Todos os dias se disciplinava, algumas
vezes até derramar sangue. Seu desejo cons-
tante era poder um dia morrer mártir da Fé.
Foi este desejo que o levou a offerecer-se para ir
em defesa de Ceuta, novamente ameaçada pelos
moiros. «Sem largar as contas da mão, dizia,
levaria na outra a espada, guardada para servir
(i) Chronica do Condestabre — Cap. LXXX,
176 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
nos desempenhos da Honra de Deus, sem que
parecesse novidade cingil-a sobre o habito, por-
que o Grande Elias, de quem era filho, lhe dei-
xara este exemplo». Notável frase que deveriam
ponderar os que assacam falta de patriotismo
aos religiosos. tNão podia escolher morte mais
gloriosa, accrescentou, ou sepultura mais hon-
rada, do que o acabar naquella empresa em be-
neficio da Fé e gloria da Pátria». Felizmente a
expedição não chegou a realizar-se;o moiro de-
sistira da empresa.
Este mesmo amor da Pátria o levou a res-
ponder a um embaixador hespanhol que o viera
sondar e lhe perguntara se haveria alguma coisa
que o levasse a despir o hábito : tQue só huma
o moveria, que vinha a ser, se Elrey de Cas-
tella outra vez movesse guerra contra Portugal;
e que nesse caso, emquanto não estivesse se-
pultado, havia de servir juntamente á Religião
que professava, e á Pátria, que lhe dera o ser».
Accrescentam outros, diz Sant'Anna, que dera
esta resposta apartando do peito o escapulário
e mostrando-se já armado por baixo do hábito.
Noutra occasião, a alguém que parecia du-
vidar das suas forças, respondeu tomando uma
lança e arremessando-a, do alto do Carmo,
onde estava, para o outro lado do Rocio: tEm
Africa a poderey meter, se for ainda necessá-
rio que eu exponha a vida em perigos, em
NUNO DE SANTA MARIA I77
honra da Pátria ou em defensa da Religião».
Daqui, diz Sant'Anna, veiu o nosso provérbio
portuguez; «Metter uma lança em Africa», para
significar feitos valorosos.
Taes espirites em nada diminuiam a sua pro-
funda humildade na vida do claustro. Abraçava
de preferencia os serviços mais baixos da com-
munidade. Já no século, fazia por si tudo o que
respeitava á sua pessoa, permittindo unicamente
que os creados o servissem quando o decoro
assim o exigia. Na Religião esta profunda hu-
mildade subiu de ponto. «Na casa de Deus, dizia,
tudo era tão illustre, que o menos vinha a ser
o mais: e que á Religião não viera descansar,
mas só a trabalhar como os outros». E quando
lhe observavam que ao menos evitasse fazer os
trabalhos mais custosos, respondia : «Que o ser-
viço nada teria de agradável a Deus se não fosse
custoso».
Caridosissimo para com os pobres, nunca
perdia occasião de exercer esta virtude. A maior
parte das suas rendas eram empregadas em
alliviar misérias. Nem os próprios inimigos
eram excluídos desse beneficio, como aconteceu,
quando mandou alimentar á sua custa mais de
quatrocentos castelhanos, por occasião duma
grande carestia.
Depois de recolhido no Convento, a sua oc-
cupação predilecta era distribuir esmolas aos
178 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
necessitados. Mandou que uma grande caldeira,
que antes servia para preparar o rancho aos
soldados, fosse destinada a fazer todos os dias
sopa, que elle mesmo distribuia á porta do Con-
vento.
A comida, procurava fazê-la acompanhar de
boas palavras e conselhos salutares. E o povo
de Lisboa, cheio de gratidão, cantava as trovas
seguintes, conservadas por Sant'Anna na sua
obra :
O gram Condestabre
Em o seu mosteiro
Dá-nos sua sopa,
mai-la sua repa,
mai-lo seu dinheiro.
A bençom de Deos
Cahio na Caldeira
De Nunoalves Pereira,
Que abondo cresceo,
É todo-lo deo.
Se comer queredes
Nom bades alem :
Don menga non tem,
Ahi lo comeredes,
Como lo bedes.
Esta caldeira, diz Sant'Anna, conservou-se
muitos annos, servindo no ministério do comer
dos pobres... e embora passado muito tempo
se gastasse, não acabou o costume da sopa á
portaria.
NUNO DE SANTA MARIA I 79
Outro costume introduzido pelo humilde do-
nato era o de irem todos os habitadores do Con-
vento, na Sexta-feira Santa, levar ao Tronco da
Cidade uma grande esmola aos presos, procu-
rando libertar os que aí estavam por dividas.
Mas, com quem mais caridoso se mostrava
o nosso biografado, era com os doentes, fossem
do' Convento, fossem de fora. Visitava-os, pres-
tava-lhes os serviços mais humildes, e, sobre-
tudo, procurava consolar as suas almas atribu-
ladas. Tinha particular devoção em assistir aos
moribundos e ajudá-los a luctar com valor nesse
momento supremo de que depende a nossa sorte
eterna.
XXI
MORTE DE PREDESTINADO
Oito annos, dois meses e quinze dias ha-
viam passado desde que D. Nuno Alvarez ves-
tira a samarra de donato carmelita, oito annos
de exercido continuo das mais acrisoladas vir-
tudes, que o faziam chegar a um grau de santi-
dade elevada. As penitencias e jejuns tinham
tornado macilento seu corpo, mas o espiritç
pairava nas mais altas regiões do misticismo.
Orava continuamente, e, rezam as Chronicas,
era favorecido de visões e graças extraordiná-
rias do Céu. Numa delias, como dissemos, a
Virgem lhe annunciara o dia da morte. Estava
doente; os físicos da corte confirmaram o pre-
sagio celeste. Nuno recebeu a noticia com a
plácida alegria de quem outra coisa não an-
ciava que ver a Deus face a face. Fez, mais uma
vez, confissão geral de toda a sua vida, e rece-
beu a Sagrada Eucaristia, em forma de Viati-
co, com a maior humildade, devoção e confian-
ça. Quando o Prior lhe administrou a ultima
Communhão, entre as lagrimas dos assistentes,
l82 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
segundo refere Sant'Anna, renovou os votos re-
ligiosos e fez profissão solemne. O Chronista
anterior nada diz a este respeito, nem nos pa-
rece autentica a formula de votos que traz Sant'-
Anna (i). Depois agradeceu ao Superior a graça
de o ter admittido no Convento, e, num supremo
acto de humildade, para sair do mundo tão
pobre como nelle entrara, declarou que renun-
ciava a qualquer coisa que porventura ainda
possuisse e pediu ao superior, que lhe desse
como esmola: thuma mortalha e huma cova para
o corpo», advertindo que essa sepultura não
deveria ser diversa da que se costumava desti-
nar aos leigos da Ordem. Desfeito em pranto, o
Prior prometeu.
Sabida a noticia na corte, El-rei D. João I
veiu pessoalmente despedir-se do seu amigo, a
quem costumava chamar um dos seus olhos. Ao
vêr aquella figura, quasi transparente, envolta
num hábito pobríssimo, com o rosto irradiando
uma alegria serena, de quem já começa a fruir
a bemaventurança, ao vêr o seu querido Con-
destavel, o homem a quem devia a coroa e o
reino, jazendo num leito duro e pobre, não pôde
reter as lagrimas. Abraçaram-se os dois com-
panheiros de armas. E' impossível descrever o
(i) Também o Decreto do Reconhecimento do culto
só falia da «profissão de fé ortodoxa» feita nessa hora.
MORTE DE PREDESTINADO l83
affecto, a dor, que traduzia esse abraço derra-
deiro; dum lado a serenidade calma de um
santo, doutro a afiflicção de quem vai perder o
mais caro dos amigos, exprimida pelos solu-
ços mal comprimidos do monarca. O Infante
D. Duarte, que amava a D. Nuno com ternura fi-
lial, não cessava de o visitar em quanto durou
a doença. Esta progredia de tal modo que se
julgou próximo o triste desenlace. Conheceu-o
Nuno, pediu que no dia i de novembro de
143 1 (i) lhe administrassem a Extrema- Uncção
e que o não abandonassem durante aquelle dia,
que bem sabia ser o ultimo da sua vida. Depois
tomou o crucifixo nas mãos e, com a voz já
exausta, continuou a repetir piedosas jaculató-
rias, que lhe suggeriam os circunstantes, banha-
dos em pranto. Na portaria, na praça, na egreja,
milhares de pessoas aguardavam o momento
tão receado ; sobretudo os pobrezinhos rezavam
e choravam a perda do seu amado bemfeitor.
Entretanto a communidade, reunida em volta
do leito do moribundo, respondia, com soluços
entrecortados, ao officio dos agonizantes. Pe-
diu Nuno que lhe lessem a Paixão de Nosso
Senhor, segundo o Evangelho de S. João, ou-
vindo-a com a mais devota compuncção. A res-
(i) O Agiologio Lusitano segue a versão de D. Nuno
ter morrído no dia 12 de maio de 1432.
184 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
piração tornava-se cada vez mais fraca, todos
os olhos estavam fixos nesse ancião tão estremo-
samente amado. Quando o leitor chegou ás pala-
vras : Ecce Filius Tuus. . . , Nuno inclinou suave-
mente a cabeça ; seu coração cessara de pulsar.
Os sinos do convento annunciaram, com o
seu dobre plangente, a triste noticia, que, em-
bora fosse esperada, commoveu a cidade inteira.
Toda a gente acorreu em devota romaria junto
do esquife do pobre donato carmelita. El-rei
determinou que o funeral fosse feito a suas ex-
pensas, querendo dar-lhe o maior esplendor
possivel. Príncipes, fidalgos, frades e sobretudo
os pobrezinhos vinham contemplar, pela derra-
deira vez, o seu amigo.
Num pobre catre, vestido do escuro tabardo
de donato carmelita, jazia o cadáver de Nuno.
Sobre a longa barba, que lhe descia até o
peito, coUocara-se o crucifixo, que elle se esfor-
çara por copiar em si durante toda a sua vida no
claustro. O rosto bem assombrado, conservava
a serena expressão da paz que lhe era habitual;
só se apagara a luz dos seus olhos de águia.
fEra um Santo... era um Santo... Mor-
reu o nosso Santo, a nossa Providencia na ter-
rai, exclamavam os visitantes, que tocavam nos
despojos mortaes do Monge Guerreiro, as con-
tas e outros objectos de devoção.
Foram esplendidos os funeraes, verdadeira-
MORTE DE PREDESTINADO I 85
mente dignos de quem os custeara e da gran-
deza moral do defunto. O caixão, conduzido
pelos mais altos dignitários da corte, foi depo-
sitado numa sepultura pobre, rasa, no meio da
Gapella-mór, tmais chegada ás cadeiras que fi-
cam da parte da Epistola». Na campa lia-se a
seguinte inscripção :
ILLE COMESTABILIS BRAGANTI NOMINIS AUTHOR
NUNUS ADEST, DUX MAXIMUS, HIC MONACHUSQUE
BEAl US
QUI REGNUM ASCIVIT VIVENS SORTITUS IN AEVUM
CCELUM CUM SUPERIS : NaM POST NUMEROSA TROPHíEA
CuNSUMPSIT POMPAS, HUMILISQUE EX PRÍNCIPE FACTUS
HOC TEMPLUM POSTJIT, COLUIT, CENSUMQUE DICAVIT (l)
Aqui ficaram quasi durante noventa annos
os restos mortaes de Nuno de S. Maria. Em
i522 foram elles transportados para um mau-
soléu riquíssimo de alabastro, offerecido pela
Rainha de Gastella, D. Joanna, esposa de Fi-
lippe o Formoso e filha dos Reis Catholicos,
que primeiro foi coUocado num vão da capella-
(i) Aqui repousa aquelle Nuno, condestavel, funda-
dor da casa de Bragança, general eximio, depois monge
bemaventurado ; o qual, sendo vivo, desejou tanto o Reino
do Ceu que mereceu, depois da morte, viver eternamente
na companhia dos Santos ; pois, após numerosos troféus,
desprezou as pompas, e, fazendo-se humilde, de príncipe
que era, fundou, ornou e dotou este templo.
l86 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
mór c depois cm i545, no presbitério, onde es-
teve até o terremoto que destruiu Lisboa e o
templo do Carmo, e foi como o prenuncio da
decadência de Portugal.
Era este tumulo, como refere Sant'Anna, e
o leitor pode verificar pela gravura da Chro-
nica do P. Manuel de Sá que apresentamos (i),
(i) Num erudito artigo, publicado pelo Sr. Aífonso
d'Ornellas no Diário de Noticias de i de novembro de
igi6, vem largamente historiada a serie de trasladações
que soíTreram as relíquias do B. Nuno Alvarez. Como
este grande admirador e propagador do culto do nosso
santo heroe se propõe publicar em breve as suas curio-
sas investigações, apesar de S. Ex.* me ter auctorizado
a utilizar os seus manuscriptos, não me atrevo a fazê-lo.
Não quero, porem, deixar de manifestar aqui publica-
mente, o meu agradecimento pela amabilidade com que
me cedeu alguns dos clichés reproduzidos e pelas inte-
ressantes informações com que me foi elucidando na con-
sulta que tive com S. Ex.* sobre o Estandarte do Con-
destavel. Nesta consulta é que se assentou a disposição
das figuras que adornam a bandeira, disposição perfeita-
mente análoga á do sarcófago antigo, mas trocada em
todas as reconstrucções até hoje publicadas por se ter
collocado a haste do lado esquerdo do observador. Ora,
de facto, em todas as gravuras antigas a haste é do lado
direito, o que faz coincidir a descripção da Chronica de
Fernão Lopes (citada á pag. 86) com a gravura de Frei
Manuel de Sá e com o fac-simile do sarcófago que ainda
hoje se conserva. Neste ultimo faltam os bacinetes deante
de S. Jorge e S. Tiago.
MORTE DE PREDESTINADO
187
«obra magestosa e rara que assentava sobre
tres leões, também de pedra». Tinha de com-
primento doze palmos, e de altura sete e meio.
Na face principal em todo o quadro, diz o ci-
tado auctor, que o viu com seus próprios olhos,
Sarcófago primitivo de alabastro, destruído pelo terremoto de ijôb. Desenho
do manuscrito inédito de Frei Manuel de Sá ( 172 1). — Obsequiosamente
cedido pelo Sr. Âffonso d'0mella8.
«estão com primor abertas de relevo no mesmo
alabastro as Imagens, que trazia pintadas na
sua bandeira. Nos remates deste quadro entre
columnas relevadas, se mostram mais dois an-
jos do mesmo artificio, que as outras imagens.
I 88 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
tendo cada um nas mãos seu escudo com as
armas dos Pereiras. Sobre o tumulo estava
uma estatua jacente do Condestavel, vestido
com o hábito de donato carmelita, tendo na
mão direita o báculo e na esquerda o livro de
meditações, que sempre comsigo trazia. Outra
estatua do Condestavel, vestido de guerreiro, se
encontrava no corpo da Egreja, tcom sete pal-
mos de alto, que representa o soldado de pouca
edade, na forma que costumava sair a pelejar
nas campanhas, vestido de armas brancas, com
cota de malha, guarnecida em roda com muitas
cruzes de suas armas. . . Mas, ainda que a esta-
tua se mostra inteiramente vestida com peito,
manoplas, grevas e espaldar, íalta-lhe só o
morriâo na cabeça, que a tem descoberta...
Tem, de mais, espada ácinta e huma grande
maça de ferro nas mãos». Até aqui o P. Frei
Sant'Anna.
Como dissemos, depois do terremoto de
1755, ficou destruido o mausoléu de alabastro.
Fez-se então uma reproducção em madeira,
onde se coUocaram os restos sagrados do nosso
Heroe Nacional. Este segundo mausoléu conti-
nuou a ficar nas ruinas do Carmo (1). Em i836,
(1) Tanto o fac-simiie do sarcófago, como o da es-
tatua de madeira, se conservam ainda hoje no Museu
Archeologico do Carmo. Neile estão as inscrípções se-
MORTE DO PREDESTINADO I 89
depois das convulsões politicas que occasionaram
a extincção das ordens religiosas em Portugal,
pareceu conveniente transportar as relíquias do
Condestavel para logar mais seguro, e com ef-
feito foram levadas solemnemente para S. Vi-
cente de Fora, onde ficaram na capella lateral
do cruzeiro da Egreja. Em 1906 fez-se o reco-
nhecimento canónico das relíquias, servindo de
guintes, curiosas por arquivarem uma trasladação que
não chegou a realizar-se:
AQUI REPOUSAM OS RESTOS GLORIOSOS DO SANTO CONDESTABRE
D. NUNO ALVARES PEREIRA
QUE NASCEU EM 24 DE JUNHO DE l36o E MORREU
CM I DE NOVEMBRO DE 148 I
NESTE TUMULO FOI O COFRE DAS SUAS RELÍQUIAS
PELA PRIMEIRA VEZ ENCERRADO EM 2 1 DE MARÇO
DE 1768 NA EGREJA PROVISÓRIA DO CONVENTO DO CARMO
DE LISBOA ONDE ESTEVE ATE I4 DE MARÇO DE l836 EM QUE FOI
TRANSPORTADO PARA A EGREJA DE- S. VICENTE DE FORA
ONDE CONTINUOU DENTRO DO MESMO TUMULO ATE 9 DE MARÇO
DE 1895 DIA EM QUE O DITO COFRE FOI TRASLADADO PARA
A CAPELA DOMESTICA DOS CARDEAES PATRIARCAS
PARA AGUARDAR A SUA DIFINITIVA TRASLADAÇÃO PARA
A EGREJA DE SANTA MARIA DA BATALHA O COFRE COM AS
RELÍQUIAS DE NUN'aLVARES EM 2 DE MARÇO DE I918
TRASLADADO DA EGREJA DE S. VICENTE DE FORA PARA A EGREJA
DOS JERONYMOS ONDE NOVAMENTE FOI ENCERRADO
NESTE TUMULO
PARA ESSE EFFEITO CEDIDO PELA ASSOCIAÇÃO
DOS ARCHEOLOGOS PORTUGUESES
190 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
peritos médicos os Drs. António Mendes Lages
e Manuel Ferreira Cardoso. Já então estavam
ellas na capella particular do Sr. Patriarca,
para onde tinham sido transferidas em 1873.
Depois foram para o Pantheon da Familia Real
de Bragança; daqui para a capella da Ordem
Terceira do Carmo, esperando o dia em que
Do outro lado do tumulo está a seguinte inscrípção :
ESTE TUMULO DE MADEIRA
É FAC-SIMIl.E DO DE
ALABASTRO FEITO EM FLORENÇA NO ANNO DK l53l
QUE FOI
DESTRUÍDO PELO TERREMOTO DE 1755
POR MANDADO B EXPENSAS
DA
SR.* D. JOANNA DUQUEZA DE BORGONHA
QUE FOI DEPOIS RAINHA DE ARAGÃO
4.* NETA
DE D. NUNO ALVARES PEREIRA
2.» CONDESTAVEL DE PORTUGAL
MULHER DE FIUPE (O DAS MÃOS BRANCAS)
DUQUE DAQUELLES ESTADOS
ONDE JAZIA O REFERIDO CONDESTAVEL NO RIAL
MOSTEIRO DE S. VICENTE DE FORA
âTÚ PORTARIA DO
MINUTERIO DO REINO 29 DE JULHO DE l865
EM QUE O MANDOU ENTREGAR
Á ASSOCIAÇÃO DOS ARCUITECTOS CIVIS PORTUOLSZES
PARA
O MUSEU DB ARCHEOLOGIA NO
EDIFÍCIO GOTHICO DO LARGO DO CARMO
MORTE DE PREDESTINADO I9I
tornem a ser veneradas no seu, por tantos títu-
los seu, Convento do Carnno, restaurado pelo
amor e devoção dos portugueses (i).
(1) Apesar do respeito e cosideração que nos me-
recem os promotores da trasladação das relíquias do
B. Nuno Alvarez para o grandioso mosteiro da Batalha,
não concordamos com tal idea. A figura do Santo Con-
destavel é daquellas que deve estar sempre deante dos
olhos dos portuguezes como exemplo digno de imitar-se.
É pois da maior conveniência que tudo o que a elle se
refere esteja na capital da Nação, onde elle viveu e mor-
reu, onde a cada momento se imponha á consideração
dos que trabalham por fazer grande a Pátria, onde por
assim dizer está o coração da nacionalidade. Relegá-lo
para a solidão da Batalha, de accesso tão difficultoso, é
contribuir para augmentar o esquecimento em que jaz o
Condestavel em milhares de portugueses. O que urge é
popularizar cada vez mais a vida de D. Nuno Alvarez,
avivar a sua memoria com celebrações e festas religiosas
e patrióticas, ensinar as creanças a amar essa figura tão
profundamente nacional. Romarias piedosas e litterarias
aos monumentos que se ligam á vida de D. Nuno, opús-
culos de propaganda distribuídos profusamente pelo po-
vo, e alguma publicação periódica onde se fosse arqui-
vando toda a documentação que se refere ao salvador
da nossa independência, parecem-nos meios práticos de
fazer crescer o culto popular pelo heroe de Aljubarrota
e Valverde.
XXII
CULTO NACIONAL
O povo de Lisboa que, logo depois da mor-
te, acciamara Santo ao humilde donato carme-
lita, não tardou em mostrar esse conceito de
santidade por manifestações religiosas, próprias
de quem é honrado nos altares. Por outro lado,
Deus Nosso Senhor dignava-se, por assim dizer,
approvar esse culto, concedendo graças e favo-
res, e como premiando a fé dos devotos lis-
boetas. Gonta-se, no Agiologio Lusitano, que
o povo abrira um buraco junto do tumulo, don-
de extraía terra «que era a pedra bazar da-
quella dourada edade». E o padre Simão Coe-
lho affirma que já se não chegava ao fundo
dessa cavidade senão «com uma cana de cinco
ou seis palmos». O Infante D. Duarte mandara
collocar uma lâmpada accesa deante dos vene-
ráveis restos. Egual devoção teve El-rei D. Af-
fonso V.
Depressa se consagrou um altar ao Santo
Condestabre (era esse o nome que teve na lin-
i3
194
VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
guagem corrente), altar cujos principaes ador-
nos, diz Sant'Anna, eram o ex-votos dos mi-
raculados. Nelle se dizia missa em honra do
Santo, primeiro com tá-
cito consentimento da
auctoridade ecclesiastica,
depois com sua approva-
ção clara.
Logo se começaram
a lavrar imagens do Con-
destavel, que apparece-
ram expostas em algu-
mas egrejas, não somen-
te em Lisboa, mas em
outros pontos de Portu-
gal. Nos arredores de Lis-
boa e nas comarcas de
Aviz, Sernache de Bom-
jardim, no Alemtejo, ha-
via altares consagrados
ao Santo Condestavel.
Eram notáveis as ima-
EitatiM do Condestavel. qoe se gens da villa da Certa e
conwrva ainda na» rninat da ^j^ ^OUra. Nesta ultima
Egreja do Carmo.
conservou-se ate 1745;
mas desde a dominação castelhana, havia-se
mudado o seu nome em Santo Amaro !
E sabido o costume português de fazer ro-
marias e festas aos santos mais populares, fes-
CULTO NACIONAL I 95
tas que não deixam de ter alguns resaibos de
paganismo. Tanto o Agiologio, como Sant'An-
na, referem pormenorizadamente estas romarias
e as coplas que nellas se cantavam. Enumere-
mos algumas:
A principal era no dia i de novembro, dia
do seu transito bemaventurado. Parece que Deus
Nosso Senhor, levando o Condestavel nesse dia
consagrado a todos -os Santos, quis que elle ti-
vesse a sua festa logo desde o dia da morte.
Na oitava da Paschoa, era a peregrinação
«das mulheres dos Cidadãos de Lisboa... que
se ajuntavam na Capela-mór do Mosteiro do
Carmo . . . com seus pandeiros, e adufes, e ou-
tras tangendo as palmas e com muito prazer e
folgança cantavam e dançavam á roda donde so-
terrado estava, começando huma das mulheres,
que melhor voz tinha, e as outras respondiam o
que ella cantava, e diziam desta guiza»:
GUIA, só, E DEPOIS TODOS
No' me lo digades none '
Que Santo he o Conde.
GUIA, só
O grande Condestabre
Nunalves Pereira
Defendeo Portugale
Com sua bandeira
E com seu pendone.
196 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
RESPONDIAM TODOS
No' me lo digades none, etc.
GUIA, só
Na Aljubarrota
Levou a vanguarda,
Com braçal, e cota
Os CastelhSos mata,
E toma o pendone.
TODOS
No' me lo digades, etc.
GtJiA, só
Com sua chegança
Filhou Badalhouce
Sem usar davença
Entrou sua torre,
E poz seu pendone.
TODOS
No' me lo digades, etc.
GUIA, só
Dentro no Valverde
Vence os Castelhãos
Matou bons e mãos
Só co' a sua hoste,
E seo esquadrone.
TODOS
No' me lo digades, etc.
CULTO NACIONAL I97
Na oitava de Pentecostes vinham os habi-
tantes de Restello e Belém, trazendo como of-
ferta um tveião, que era do pezo d'huma arro-
ba». O cortejo que vinha em batéis bem ador-
nados, desde o sitio,, onde actualmente está o
Mosteiro dos Jeronymos, desembarcava em
Santos, e se dirigia com alegres cantares e folias
ao Convento, onde fazia «sua oraçam bem espa-
çada». Depois dançavam em torno do sepulcro
cantando as seguintes trovas:
DIZIA UMA. VOZ
Santo Condestabre
Boné Português,
Conde darrayoles,
De Barcellos, dorem.
Santo Condestabre
Boné Português.
UMA voz
Na campanha somdes
Alem duaia bez,
E mais otra bez,
E mais otra bez.
Santo Condestabre
Boné português.
198 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
UMA VOZ
Por faison da Pátria
Todo esto lo fez,
Mata os Castelhãos,
Salva a nossa grei,
TODOS
E mais otra bez
E mais otra bez.
UMA voz
No me lo digades
Quabondo lo sey
Librou as obelhinhas
Do Leo de Gastei.
TODOS
E mais otra bez
E mais otra bez.
Outras seguidilhas, também cantadas dean-
te do tumulo de Nuno Alvarez, arquivadas por
Sant'Anna, são as que seguem:
VUK voz
Do Restello a Sacavém
Nem ningola nem ninguém
Tem semelho ao Condestabre
Que le pruge, e que le praze
Ha fagemos tanto bem.
CULTO NACIONAL I 99
TODOS
E bem, e bem.
UMA voz
O rapaz das coberturas,
Que morre, e cahe para traz
Ja non vai á sepultura.
Que otra vez vive o rapaz :
E o Conde le fizo o bem.
TODOS
E bem, e bem.
UMA voz
A' filha de Joanna Estes,
Que finou por nom mamar.
Ao do moinho do cubo
Que finou por se afogar,
Viventa o Conde também.
TODOS
E bem, e bem.
UMA voz
O mal d'aquella alfayata,
A gran dor de Lopo Affons,
Non les chega aos corações,
Que o Conde Santo los guarda;
Y todo por fazer bem.
E bem, e bem.
200 VIPA DO BEATO NUNO ALVAREZ
UMA VOZ
E bem, Condestabre Santo,
Cobri-nos com vosso manto
Com vosso manto de gales,
Defendendimento dos males,
E faganos muito bem.
TODOS
E bem, e bem.
Os habitantes de Sacavém, vinham no dia
de S. João Baptista, com uma boa oíferta de
azeite; no dia da Assumpção de Nossa Senhora
os de Almada, com muitas candeias e velas.
Como vimos nas seguidilhas referidas em
ultimo logar, o povo celebrava também os mi-
lagres e graças recebidas. Muitos d'elles são
descritos na Chronica de Sant'Anna, que diz
ter colhido a narração numa Chronica manus-
crita de Gomes Annes de Azurara. Basta-nos
indicar apenas o numero e a qualidade delles:
Resureições de mortos 12
Apparíções e graças singularissimas 6
Enfermos dox olhos 21
Paralíticos, tolhidos e males de cabeça 24
Surdos, mudos, doentes de garganta 21
Moléstias do peito, estômago e coração 14
Hidropicos, tumores 11
Enfermidades de pernas e pés 21
Roturas, sciaticas, pedra 10
CULTO NACIONAL 20I
Doenças semelhantes i6
Febres e fluxos de sangue lo
Perigos do parto 19
Tudo isto refere Sant'Anna, cuja Chronica
foi publicada em 1745. Já dissemos que a des-
truição do templo pelo terremoto concorreu
para diminuir bastante o culto prestado ao Santo
Gondestavel. Vieram logo depois as perturba-
ções causadas pelas invasões francesas, época
de grandes e contínuos sobresaltos para a nossa
nacionalidade, o que não pouco contribuiu para
arrefecer o entusiasmo popular. Seguiu-se-lhes
a revolução liberal com decretos que extinguiam
as ordens religiosas e encetavam a total ruina
dos preciosos escrinios de arte, tradição na-
cional e piedade, que eram os conventos. Tudo
isto consumou a obra que, durante o jugo cas-
telhano, visara a fazer esquecer o culto pres-
tado ao Heroe Nacional, que salvara a inde-
pendência do país. Entende-se bem que os
castelhanos assim o fizessem; mas o que não
pode deixar de merecer profunda condemnação
de todo o português é o descuido imperdoável
dos nossos antigos governos. A elles cabe a prin-
cipal responsabihdade do eclipse sofrido pelo
culto de Nuno Alvarez, eclipse que em breve
vae terminar.
XXIII
CULTO OFFICIAL
Vamos agora neste capitulo resumir breve-
mente o Processo do reconhecimento do culto
pela Egreja, acto que equivale a uma beatifica-
ção, e portanto dá direito á anteposiçao da pa-
lavra Bemaventurado ou Beato ao nome do
nosso Santo Gondestavel. Não quero, porem,
deixar de exarar aqui mais uma vez o meu pro-
fundo agradecimento ao meu venerando amigo
Rev. Padre Gabriel Wessels, da preclara Or-
dem dos Carmelitas Calçados, zelosíssimo Pos-
tulador da Causa e devotíssimo do Beato Nuno
Alvarez, pela singular amabilidade com que me
communicou uma copia desse processo com o
fim exclusivo de servir para este meu trabalho.
E' pois com sua plena auctorização que passo
a resumir o processo.
Como todos sabem, desde o celebre decreto
de Urbano VIII (1623-1644), foi abolido o cos-
tume de prestar culto aos Servos de Deus, ape-
204 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
nas com licença da auctoridade diocesana. Ex-
ceptuavam-se, é certo, os casos em que tal culto
fosse rendido desde cem annos antes da publi-
cação do decreto, como acontecia com o Santo
Condestavel, mas exigiam-se certas formalida-
des para o dito culto ser reconhecido official-
mente pela Egreja.
Taes formalidades não foram, como facil-
mente se compreende, observadas pelos hespa-
nhoes dominadores; antes pelo contrario, pro-
curou-se que de Portugal ninguém as lembrasse
durante a época do seu jugo. Mas, logo em
1641, D. João IV pediu ao Pontífice que reco-
nhecesse a beatificação e procedesse á canoni-
zação. Acompanhava o pedido uma supplica do
Episcopado Português. Outra supplica do mes-
mo teor era dirigida ao Papa por El-rei D. Pe-
dro II, assignada por dez prelados lusitanos. O
texto completo dessa mensagem vem na obra
de José Soares da Silva — Memorias para a
Historia de Portugal. — Mas desde essa data,
embora o culto continuasse, como mostram os
documentos que traz o processo — trechos de
historiadores e literatos portugueses, epigra-
fes appostas aos retratos e imagens, missas e
festividades, tanto na Ordem Carmelitana,como
cm vários outros pontos de Portugal e estran-
geiro — contudo nenhum passo se deu, ao que
conste, para o reconhecimento official da Egre-
CULTO OFFICIAL 205
ja. Nem quando se transferiram as relíquias
para o sarcófago de madeira, nem quando se
transportaram para S. Vicente de Fora, houve
semelhante pedido. Em Lisboa este culto con-
tinuou, diz o Sr. Dr. Pereira dos Reis, no seu
interessante opúsculo tO Santo Condestabre»,
na capella dos Terceiros do Carmo, onde estava
exposto sobre o altar á veneração dos fieis o
painel do Santo Condestabre (i).
Em 1871, conforme se lê no opúsculo «Me-
moria sobre a phase christã do grande Condes-
tavel D. Nuno Alvares Pereira», do P. José An-
tónio da Conceição Vieira, fora este sacerdote
encarregado pelo Rev. P. Frei Angelo Savini,
carmelita, de tratar dos inquéritos que deviam
preceder a beatificação de D. Nuno. Mas tal
iniciativa não teve êxito feliz.
Foi somente em 1894 que o Rev. Padre
Anastasio Ronci, então Postulador das Causas
das beatificações e canonizações da Ordem
Carmelitana, encetou o processo do reconheci-
mento do culto do insigne português que mor-
(i) Em appendlce vae uma nota sobre as relações da
Ven. Ordem Terceira do Carmo e o B. Nuno Alvarez,
gentilmente communicada pelo Rev. Sr. Dr. Pereira
dos Reis, a quem testemunho aqui o devido agradeci-
mento.
206 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
rera com o habito religioso do seu instituto.
Delegou a sua missão de Postulador junto da
Cúria diocesana de Lisboa, onde se havia de
iniciar o Processo, no fallecido Mgr. Francisco
Alçada de Paiva, ao tempo prior de S. Nicolau.
O Sr. Cardeal Patriarca, D. José, nomeou juiz
da causa o seu Vigário Geral, D. Manuel Ba-
ptista da Cunha, Arcebispo de Mytilene; Pro-
motor, o Cónego Ruas de Abreu, e notário,
o Rev. Dr. Simões de Almeida. Constituído
o tribunal, inquiriram-se as testemunhas se-
guintes :
Rev. Padre Joaquim José de Abreu Campo-
Santo, Provincial da Companhia de Jesus em
Portugal.
Rev. Padre Pedro Daniel Hickey, da Ordem
dos Pregadores.
Rev. Padre José António da Assumpção Bru-
geiros, da Ordem de S. Francisco.
Rev. Padre Bernardino Barros Gomes, da
Congregação da Missão.
Rev. Padre Luís José Grappe, da Congre-
gação do Espirito Santo.
Rev. Padre Diogo Singleton.
Rev. Padre Carlos da Costa Carvalho,
Egresso Carmelita.
Maximiano Paes de Andrade Baeta, da Or-
dem Terceira do Carmo.
CULTO OFFICIAL 20/
Conselheiro Henrique de Barros Gomes.
José Joaquim Ribeiro.
Álvaro Alfredo da Silva Zuzarte de Men-
donça. ,
Seria longo referir os depoimentos. Todos
elles foram unanimes em testemunhar a santi-
dade de Nuno e a antiguidade do seu culto.
Alem disso procedeu-se ao exame dos do-
cumentos apresentados. Finalmente o Juiz De-
legado deu a sentença sobre a existência do
culto immemorial e continuo prestado ao Santo
Condestavel. Assigna-a o successor no cargo
de Arcebispo de Mytilene, o fallecido D. José
Alves de Mattos, e é datada de 7 de Março
de Março de 1914.
Como explicar semelhante intervallo?. . . E'
que, depois da i3.^ sessão, ou seja em 6 de
março de 1896, adoecia o notário do processo,
doença de que pouco depois morria. Também
os Juizes mudavam: O Sr. D. Manuel Baptista
da Cunha era promovido para a Sé de Braga,
e o seu successor immediato o Sr. D. Manuel
Vieira de Mattos para a diocese da Guarda. Em
1903 fallecia o promotor da causa, coisa que
não pouco atrasou o andamento do processo.
Finalmente, em 1906 resignava o próprio Car-
deal Netto, Patriarca de Lisboa, vindo occupar
o seu posto o actual Cardeal Patriarca, o
208 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Em. ""O e Rev.^o Senhor D. António Mendes
Bello, que Deus guarde por longos annos. Foi
elle quem, a instancias do Rev. Padre Wes-
sels, retomou o processo e lhe deu o anda-
mento necessário, para se chegar ao feliz termo
a que chegou.
Entretanto promulgavam-se em Roma, sob
o pontificado de Pio X, de chorada memoria,
dois decretos novos, augmentando as formali-
dades canónicas requeridas para o reconheci-
mento do culto: exame dos escritos, etc, etc.
A seguir estas novas prescripções, certamente
o processo demoraria muitissimo tempo. Era
Lisboa terminara o processo diocesano, sendo
juiz, como atrás dissemos, o fallecido arce-
bispo de Mytilene, D. José Alves de Mattos,
promotor o Dr. Dinis de Carvalho e notário o
Dr. Pereira dos Reis. Mas os decretos, retro-
mencionados de Pio X, obstavam a que o pro-
cesso diocesano fosse, sem mais, confirmado
pela Sagrada Congregação dos Ritos. Também
esta dificuldade desapareceu, desde o momento
em que foi deferida uma supplica do Episco-
pado Português, em que se pedia ao Santo Pa-
dre, que aitendendo a ter sido o processo ini-
ciado e quasi concluido, antes dos referidos
decretos, os dispensasse no nosso caso. A
resposta não se fez esperar. O actual Pon-
tífice reinante dignou-se benignamente acceder
GLORIA DO BEATO NUNO ALVAREZ
POB GONELLA
(Reproducçáo auctorizada pelo R. P. Wessels, O. C.
CULTO OFFICIAL 2O9
ao pedido, e a dispensa referendada pelo
Ena.™° Cardeal Viço, foi concedida aos 14 de
fevereiro de 1917. Faltava, apenas a sentença
definitiva da Sagrada Congregação dos Ritos.
Antes porem de a referir, seja nos licito dei-
xar aqui exarados alguns nomes de pessoas que
altamente contribuiram para o feliz e rápido
despacho duma causa, que tão cara é para todo
o coração português.
Em primeiro logar o do talentoso diplomata,
encarregado então dos negócios da Santa Sé em
Lisboa, o Ex.""° e Rev.i^o Mgr. Benedicto Aloisi
Masella, hoje Núncio no Chile, e do seu irmão
o advogado do processo em Roma, o Sr. Conde
Dr. Adriano, estrénuos promotores do reco-
nhecimento do culto, e do illustre exilado o
Ex.""» e Rev.rao Senhor Arcebispo titular de
Damietta D. Sebastião Leite de Vasconcellos,
que com o maior interesse acompanhou, seguiu
e estimulou o andamento da causa. A estes três
beneméritos as nossas homenagens reconheci-
das, bem como ao infatigável Postulador, o
Rev.i^o Padre Wessels.
Com effèito, aos 7 de junho de 191 7 era
apresentado á Congregação o final do processo.
Pouco mais de um mês depois propunha o Pro-
motor da Fé Mgr. Angelo Mariani as suas du-
vidas e diíficuldades, a que responderam o mais
satisfatória e triunfantemente possível os advo-
«4
2 10 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
gados Sr. Conde Adriano Masella e Sr. Dr. João
Romagnoli, em i de dezembro.
Finalmente, aos i5 de janeiro do anno
de 1918, na sessão plenária dos membros da
S. Congregação dos Ritos, depois dum relatório
admirável e eloquentíssimo, feito pelo Cardeal
Ponente, o grande amigo de Portugal e Prote-
ctor da nossa Nação, o Em.^io Sr. Cardeal Vi-
cente Vanutelli, antigo Núncio em Lisboa e be-
nemérito do Collegio Português de Roma, foi
approvado sem votação, por aclamação unanime,
(coisa raríssima nos annaes de semelhantes cau-
sas) o reconhecimento do Culto do Beato Nuno
Alvarez.
A 23 do mesmo mez, Sua Santidade Ben-
to XV ratificava a sentença da Congregação
que era communicada ao mundo inteiío pelo
Decreto Clementissimus Deus, cuja traducção
damos em appendice, no fim deste livro.
Successivamente em Roma e em Lisboa fa-
zia-se com o maior esplendor possível o triduo
de festas costumado, como para iniciar uma
nova era do culto official. Foi no triduo de
Lisboa, na Egreja de S. Domingos, ao Rocio,
que pregou pela ultima vez o fallecido Arcebispo
de Évora D. Augusto Eduardo Nunes. Era o
seu canto de cisne, antes de subir ao Ceu.
Quasi ao mesmo tempo a Santa Sé approvava
a missa e o oíficio do Beato que o leitor encon-
CULTO OFFICIAL 2 I 1
trará em appendice (i). Fazemos votos por que
elle seja admittido como obrigatório, não so-
mente em todas as dioceses de Portugal e seus
Dominios, mas também em todas as Familias
Religiosas que estiveram ou estão no nosso
país. Nisto não nos podemos deixar vencer pelo
patriotismo e piedade dos franceses para com a
sua Heroina Nacional, S.** Joanna d' Are, que
tantos pontos de contacto e semelhança tem'
com o nosso B. Nuno Alvarez.
(i) Arquivamos aqui adoração, approvada por Sua
Eminência o Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, em 5 de
Novembro de 191 5 :
ORAÇÃO
Senhor, que sois admirável nos vossos Santos e que
neles, como em tuonumenío da vossa omnipotência e com-
pendio vivo de virtudes, nos revelaes eloquentemente a
providencia indefectivel que exerceis sobre as . vossas
creaturas, faixei que, admirando as virtudes excelsas que
em grau heróico resplandeceram no vosso Servo Nuno
Alvares, possamos, á sua imitação, alliar ao amor da
Pátria que nos foi berço^ a caridade ardente e o des-
prego das glorias e bens terrenos, de que nos legou tão
sublimes exemplos. Por Jesus Christo Senhor Nosso.
Amen
QUADRO Dl D. NUNO ALVAREZ
Da caia Poidal
(Reprodacvio mctorizada pelo Ex.** Sr. Conde de Ociru)
XXIV
relíquias e retratos
Dez annos antes do terremoto de 1755, dei-
xava Sant'Anna, na sua Chronica, uma longa des-
cripção das relíquias e memorias de Nuno Al-
varez, que nessa época ainda se veneravam no
Convento do Carmo de Lisboa. Já então havia
desaparecido o púcaro de madeira em que be-
bia o Donato, o qual servia «aos religiosos que
tomavam Ordens, de se adestrarem nas cere-
monias da Missa». Era um copo modesto, feito
de hera. Um titular da corte, que o pediu em-
prestado, nunca mais o quis restituir. Também
se haviam desencaminhado o barrete de «faces»
e o báculo, com que o Gondestavel saía á rua.
Da parte superior era torcido e «fazia volta».
Apenas se conservavam: um cabo da muleta
de que o santo varão se servia quando «as mo-
léstias lhe embargavam o passo»; as contas
pelas quaes rezava; uns retalhos do seu hábito;
uma carta autografa sua para o Mestre de Aviz,
e a espada do Condestavel. «A folha tem de
2 I 4 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
largura pouco mais ou menos de três dedos, e
está com diminuição no comprimento; pois para
se usar delia no ministério, em que de presente
serve, foi preciso que cortassem uma grande
porção, e que pelo meio a vazassem». Era tra-
dição que essa espada era a mesma que fora
corregida pelo alfageme de Santarém «o que,
com effeito, se conhece pela marca própria do
referido alfageme, a qual ainda se distingue, e
vem a ser uma cruz, com uma estrella na ex-
tremidade da haste maior. Da parte desta marca
estão umas letras, que estão de presente apa-
gadas, mas no tempo daquelle religioso (Fr.
Jerónimo da Encarnação que a descreveu) ain-
da se liam e diziam : Excelsus super omnes gen-
tes Dominus. Da outra parte também se divisa
o sinal da contramarca, que é uma cruz ílore-
teada, sobre um circulo acompanhado de outras
letras, que mal se distinguem, mas sabemos
que diziam: Dom Nuno Alves. Vêem-se mais
uns caracteres embaraçados entre si que clara-
mente dão a perceber, que formam o ineffavel
nome de MARIA». O ministério em que era
empregada era o de ser collocada na mão da
estatua do Profeta Elias,, considerado pelos Car-
melitas, como seu fundador. A ultima infor-
mação que tive sobre o paradeiro desta espada
é que esteve no Museu Numismático do Palácio
da Ajuda, onde fora encerrada num estojo, por
relíquias e retratos 2i5
ordem de El-Rei D. Luiz I. Fora retirada do
Convento do Carmo em i834 pelo Duque de
Bragança. Tinha i"^,C7 de comprimento. Está
actualmente no Museu de Artilharia (i).
Quanto ás relíquias propriamente ditas, te-
mos informações contemporâneas da maior res-
peitabilidade histórica. E' o juizo ou informação
jurada dos médicos que serviram de peritos na
invenção ou reconhecimento dos despojos mor-
(i) Encontra-se na sala Camões, conservada num
rico estojo, com a lamina em bom estado. — Eis a des-
cripção dada pelo Catalogo do referido museu (pag. ii6):
6. Espada do século xiv, que pertenceu a D. Nuno
Alvares Pereira. A folha é direita, de dois gumes e per-
furada, tendo de ambos os lados como marca, o lobo e
cruzes. A largura junto ao punho é 0,06. Os quartões são
de secção eliptica, curvados nos extremos para o lado da
folha tendo ao meio um escudo terminando em ponta.
Num dos lados ha um arco, que tem os extremos liga-
dos aos quartões servindo de guarda e cujo plano é quasi
perpendicular á folha.
O pomo tem a forma ovóide encimado por um botão
que o prende á espiga por meio de rosca.
O punho é revestido de uma placa de cobre onde se
enrola em hélice um fio de cobre. O comprimento total
da espada é de 1,10. Esta espada tinha sido posta na mão
duma imagem de Santo Elias pelos frades do Convento
do Carmo de Lisboa, onde faleceu D. Nuno. Daí foi ti-
rada no dia 28 de maio de 1834 por ordem de D. Pe.
dro IV. Veiu do Paço das Necessidades para este museu
em 19 de dezembro de 1913.
2 I 6 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
taes do Beato Nuno, feita em 1 906. Numa caixa
com 0,80 de comprimento, o, 33 de altura e 0,34
de largura estavam os ossos. Sobre esta caixa,
forrada de veludo carmezim, estava uma lamina
de prata, com uns dizeres que attestam a natu-
reza do seu conteúdo (i). Dentro estavam dois
saccos de linho, diligentemente cozidos e no fundo
alguns Qssos dispersos. A relação dos ossos cor-
respondia perfeitamente á que existia, da tras-
ladação que se fez em 1768. O estudo desse
documento e o confronto dos ossos deu-lhes a
plena convicção de que eram autênticos. Eram
elles um craneo a que faltava na parte superior
(i) Eis os dizeres que se encontram gravados em
duas laminas collocadas sobre a caixa :
Na tampa : Restos de D. Nuno Alvares Pereira re-
colhidos de accordo com o parecer da comissão official
de identificação nomeada por portaria do Ministério da
Justiça de 29 de janeiro de 1918. Foram encerrados nesta
uma no dia 19 de fevereiro de iqi8.
Na parte da frente : Aqui estão os ossos do Con-
destavel Dom Nuno Alvares Pereira que estiveram na
antiga e já derrocada Egreja do Carmo e vieram para a
de S. Vicente de Fora, sendo accompanhados até esta
Capella de Sua Eminência Reverendíssima o Senhor
Cardeal Patriarcha de Lisboa pelo Prior Monsenhor Joa-
quim António de Sant'Anna e nella collocados em 9 de
março de 1895.
A caixa está fechada com um cordão preso com o
sello de lacre onde se lê : Sig. Comit. pro recognit. exuv.
relíquias e retratos 217
e anterior, o frontal e pequenas porções dos
parietaes; dois fémures, o direito sem a respe-
ctiva cabeça o esquerdo completo, ambos de
dimensões idênticas; duas tibias, incompletas
na sua parte inferior; dois peroneus, também
incompletos; um cubito e um radio direito, e
ainda outro radio incompleto a que faltava o
terço inferior. Encontraram mais alguns ossi-
nhos envolvidos em linho, com nomes de San-
tos, relíquias que provavelmente foram deposi-
tadas no tumulo por disposição testamentária
de D. Nuno. Por fim acharam outros ossos,
cujas dimensões mostravam pertencerem a pes-
soas diversas, de alta estatura. Que o primeiro
Nonii Avs. *Pereira MCMXyiII. Está ella, como já le-
vamos dito, sobre o altar lateral da direita da graciosa
capella da Ordem Terceira do Carmo em Lisboa. Numa
das dependências desse edifício está também a urna com
os restos mortaes da mãe de D. Nuno, com a seguinte
inscripção, pintada em madeira, ladeando um escudo com
a cruz dos Pereiras: «qui jáz a muito honrada e vir-
tuosa D. Eiria Gonçalves Madre do Santo Conde que
mandou fazer este mosteiro».
Numa lamina de prata está gravado : «Restos de Iria
Gonçalves, mãe do condestavel, recolhidos de accordo
com o parecer do Commissão Official, etc. Foram trazi-
dos para aqui juntamente com os do filho».
Também se encontra no tesouro da Ordem um re-
licário que D. Nuno trazia ao peito, conforme me infor-
mou um empregado da casa, mas que não pude ver.
2 I 8 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
grupo de ossos pertença realmente a Nuno Al-
varez, deduz-se de as suas dimensões se har-
monizarem com o que as chronicas rezam sobre
a sua pessoa. Tal o veridicto medico (i).
Sobre a pessoa de D. Nuno Alvarez, diz o se-
guinte o P. Frei Simão Coelho: «Foi o Condes-
tabre, segundo se mostra por seu retrato, homem
envolto em carnes, de estatura que mais hia a
grade que a pequena: tinha o aspeto baronil;
o rosto comprido e formoso; era alto e louro,
tinha os olhos pequenos, mas mui resplande-
centes, pouca barba e cabida para baixo. Foi
muito esforçado e constante, sofredor de traba-
lhos e muy amador de castidade e limpeza (2)».
O Agiologio copia estas palavras, taes quaes.
Sant'Anna refere outra versão que diz ter
copiado de Frei Jerónimo da Encarnação, o
o qual a teria recebido de contemporâneos do
Condestavel. E a seguinte: «Foy o virtuoso
Condestavel de meam estatura, teve o rosto
comprido, cor branca, o nariz afilado e agudento,
os olhos pequenos, mas muy viventos, as so-
brancelhas arcadas e ruivas, assim era o seu
cabello, não só da cabeça mas também da bar-
ba, como algumas ruguizas na testa e nos cabos
(1) Damos em apêndice o auto completo do reco-
nhecimento feito em igi8.
(2) Chronica, pag. 91.
relíquias e retratos
219
dos lagrimaes, a bocca pequena com o seu sem-
brante muy amezurado». Falia o mesmo auctor
dos vários retratos do Santo que possuía o
Convento. O mais fiel teria sido o que mandou
fazer o conde de Barcellos, seu genro. Estava
collocado entre os painéis «que ornam o espal-
dar do caixão mayor da nossa sacristia». Havia
outro na sala do capitulo, etc.
Cofre de veludo vermelho agaloado, onde actualmente se conservam as
relíquias do B. Nunes Alvarez. — (Desenho obsequiosamente cedido
pelo Sr. AfFonso d'0rnellas.
Um folheto recente, com o titulo de Iconogra-
fia Portuguesa (i), publica as melhores imagens
do Santo Gondestavel, que ainda existem. Desta-
ca-se entre ellas a pintura que foi descoberta ha
pouco em Oeiras, no palácio dos Srs. Marque-
ses de Pombal. O artigo erudito do Sr. Dr. José
de Figueiredo, que traz o citado folheto, mostra
(i) Fase. I. Nun' Alvares organisaram e editaram
Alberto Sousa e Mário Salgueiro.
220 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
que este quadro deve ser considerado como o
mais autentico de todos os que existem. Tal
affirmação é brilhantemente confirmada pelo
achado precioso do Sr. Affonso d'Ornellas.
Trata-se dum desenho á penna inserido no ma-
nuscrito de Fr. Manuel de Sá e publicado no
Diário de Noticias de 26 de junho de 1917. O
manuscrito é inédito. Nelle á pagina 58 (como
me communicou amavelmente o Sr. d'Ornellas),
vem o seguinte: «A estas copias ou Imagens do
animo e religíozo afecto deste raro Heroe S.*"
(refere-se ás cartas aos netos de que falíamos
na pag. 164) se deve seguir também darmos huma
da forma em q era p^* id* e Habito, com que
asestia entre os Religiozos deste seu real Convento
como se fora professo. He fielmente copiado de
huma estampa antiquíssima, q se iquivoca sendo
copia, com o original de colorido, q nelle se
conserva por verdad''^».
Este testemunho valioso vem destruir a con-
jectura do Sr. Dr. Figueiredo sobre a posição da
bocca no quadro da casa dos Srs. Marqueses
de Pombal, o qual por especial deferência dos
illustres fidalgos, vem intercalado neste livro e
serviu para a reconstituição a cores que vem
no frontispicio. Também reproduzimos o dese-
nho do manuscrito de Frei Manuel de Sá.
Confrontando estes dois retratos com a xi-
lografía da 2.« edição da Chronica do Condes-
relíquias E retratos 22 1
tabre, vê-se que estas três reproduções, tão pa-
recidas entre si, fixaram fielmente a fisionomia
de D. Nuno. A bocca, porêra, que no qua-
dro da casa Pombal apparece desviada para a
esquerda, nos outros dois apresenta o desvio
para a direita. O Sr. Figueiredo, que atribue o
quadro ao pintor de D. João I, mestre António
Florentim, quer explicar o desvio, já que exclue
erro do pintor, a algum ataque apopletico que
o Gondestavel tivesse padecido. Mas a represen-
tação de Frei Manuel de Sá, pondo o desvio do
lado opposto, vem desfazer tal hipótese. Além
disto, como ella era copia fiel duma «estampa
antiquissima que se iquivoca com o original»
temos de pôr de parte a idéa de esse original
ser o quadro da casa Pombal, onde a figura do
Condestavel se acha um tanto remoçada.
Os mais quadros antigos, como os dois da
Bibliotheca Nacional de Lisboa e os do Museu
das Janellas Verdes, não teem valor como re-
presentações da fisionomia do Santo Condesta-
vel. Os melhores vêem reproduzidos no supra-
citado opúsculo.
Das producçÕes recentes nada quero dizer, se-
não que nenhuma delias satisfaz ao ideal que for-
mamos sobre a figura do Santo Gondeí^tavel. São,
sem duvida, obras de valor artístico, mas, no meu
fraco parecer, estão longe de ser obras primas.
Assim, por exemplo, na sala Europa do Mu-
22 2 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
seu de Artilharia está uma tela dí Luciano
Freire representando D. Nuno. A expressão do
rosto do Condestavel é dum nevrotico desvai-
rado. O modelo da estatua feito pela Ex."™* Sr.^
D. Maria do Carmo Vasconcellos, e reprodu-
zida, ao que me informara, na Itália, tem o in-
conveniente de apresentar uma cabeça dema-
siado feminil. Nos dois quadros de Gonella,
distincto pintor italiano, não está bem caracte-
rizada a fisionomia de D. Nuno. Ambos vão
publicados neste livro. O da vestição é lindíssi-
mo. Admirável o equilíbrio das figuras ; a ex-
pressão do rosto de cada um dos personagens,
sobretudo do velho e venerando Prior do Mos-
teiro, está muito bem representada. No outro,
o da gloria do Beato Nuno, é felicíssimo o
contraste das grandezas terrenas que deixou e
do habito que vestiu, para merecer o ceu. No-
tamos porem nelle uma particularidade que
não corresponde á verdade histórica, particula-
ridade que também apresenta a estatua do
Beato, que se venera no altar onde estão col-
locadas as relíquias: referimo-nos ao habito
carmelita com que está vestido D. Nuno, á
capa branca que nunca elle trouxe, como o lei-
tor terá já fixado pelo que atrás dissemos (vide
pag. 167).
Fazemos votos ardentes para que surja al-
gum artista português e fixe na tela ou no mar-
RELÍQUIAS E RETRATOS 22 3
more as principaes scenas da vida de D. Nuno
Alvarez, e muito em particular a da oração de
Valverde, e da sua edificante morte no Carmo
de Lisboa (i).
Algumas linhas sobre a familia do Gondes-
tavel. Sobre a sua mãe, limito-me ao que traz
Fr. Simão Coelho: «A mãe de Dõ Nunalvres
se chamou Eirea Gonçalvez do Carvalhal, dona
de muita prudência, que depois viveo muy re-
(i) Isto escrevíamos na primeira edição deste livro.
Podemos agora registar com a maior satisfação alguns
passos dados neste sentido :
O primeiro é a reconstituição de Nuno de Santa Ma-
ria, feita pelo sr. Félix da Costa, meu amigo especial, e
reproduzida no fronstispicio deste livro. Com incrivel
paciência, com o exame atento de todos os retratos e
estatuas antigas, e a leitura das Chronicas, este notável
pintor moderno, conseguiu apresentar um trabalho, que
reputo o melhor dos nossos tempos pela fidelidade com
que está reproduzida a fisionomia e o habito do Donato
Carmelita. Orgulho-me de o possuir no meu oratório
particular, por generosa offerta do insigne artista. Vem
em seguida a estatua do Condestavel, que também apre-
sentamos entre as estampas do nosso livro. Foi man-
dada fazer pelo meu amigo Francisco José de Sousa
Tavares, editor desta obra, e executada pelo escultor
sr. Simões de Almeida.
224 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
colheitamente e morreu com muytas mostras de
sanctidade, que foi natural d'Elvas. Está enter-
rada na capella dos fieis de Deus no moesteyro
de Nossa Senhora do Carmo de Lisboa, que he
a capella que está jiinto com a sacristia, em
hua sepultura alta posta na parede da banda do
Evangelho, mandada fazer por seu filho que
ali lhe aprouve de a enterrar. E agora são tres-
ladados seus ossos á capella mór e estam em
hua sepultura metida na parede e costas do
coro, junto á do Conde seu filho (i).»
Noto aqui que aquelle aprouve de a enterrar
não quer dizer que Iria Gonçalvez morresse
antes do filho, mas, simplesmente, que o Con-
destavel destinou em vida a sepultura em que
devia ficar o corpo da sua mãe. Na realidade
elia morreu dez annos depois de D. Nuno.
Como deixamos dito, o corpo da mulher,
D. Leonor de Alvim, tinha sido depositado na
egreja das Dominicanas de Villa Nova de Gaia.
Mas essa egreja primitiva foi destruida, e na
nova não encontrei, na visita que fiz em outu-
bro de 1918, sinal algum da sepultura da nobre
dama. Provavelmente desapareceu, como tantas
outras coisas no nosso país, entre os escombros
da velha egreja.
(i) O. c, pag. 77. Veja-se a nota da pag. a 17.
relíquias E retratos 2 25
Do tempo de Nuno Alvarez ha apenas uma
memoria, que damos em nota (i). A filha,
D. Beatriz ou Brites, fora enterrada no coro
baixo da egreja das Clarissas, da Villa do Con-
de. O seu tumulo está hoje no meio da egreja
do referido convento; mascarraram com uma
camada de estuque o sarcófago antigo, e trans-
portaram-no para o centro do templo, hoje pro-
fanado.
Falta-nos, apenas, para concluir, dizer algu-
mas palavras sobre o Convento do Carmo. Está,
como todos sabem, em ruinas, e serve actual-
mente de Museu Arqueológico a parte^das rui-
nas que corresponde á egreja. O resto, claus-
tro, corredores, officinas, emfim, o convento,
foi militarizado e serve hoje de quartel. Sobre
(i) E' a seguinte inscripção :
«Aqui jaz Alvarianes Cernache Cavaleiro Armado
por el rey D. João cuja alma Deus haja. Anadel mor dos
besteiros de cavallo e alferes q foi na ala dosSnamorados
na batalha real e em todas as outras guerras o coal se
finou na era de 1462. — Em o anno de i7o6ise mudou este
tumulo da igreja velha p. esta nova, e se reformou da
forma antiga. Pertense com a capela colateral de San-
tiago e as três sepulturas junto ao altarjja António de
Távora e Noronha Leme Cernache moço fidalgo da caza
de S. Magestade, nono neto do mesmo Alvarianes Cer-
nache, senhor do morgado dos Cernaches quejelle insti-
tuiu e padroeiro in solidum das egrejas a elle unidas. De
tudo é cabeça a capela de Santiago.»
i5
2 26 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
a cella' do Santo, ouçamos o eminente escritor
Visconde de Castilho (i i:
«A cella onde habitou o senhor Santo Conde,
avô dos nossos Soberanos, amigo do Mestre de
Aviz, pelejador em nome da Religião e da Pá-
tria, progenitor de todas as Casas Reaes da
Europa, a sua cella de Monge, onde elle fugiu
ás grandesas humanas, onde elle meditou, onde
elle orou, essa habitação quasi sagrada... ohl
antes mil vezes a esquecessem as tradições I
Insultaram-na de modo que o insulto nem se-
quer se pode narrar em publico. A' letra re-
donda repugna-o.»
(i) Lisboa Antiga— Vo]. I, pag. 38o, 2.«-ed.
A bandeira e espada de D. Nuno
Nova reconstituição sobre documentos originaes
(Vide a nota da pag. 186)
DECRETO
DIOCESE DE LISBOA
CONFIRMAÇÃO DO CULTO PRESTADO DESDE TEMPOS
IMMEMORIAES AO SERVO DE DEUS
NUNO ALVARES PEREIRA
LEIGO, PROFESSO, DA ORDEM DOS CARMELITAS CALÇADOS
CHAMADO BEATO E SANTO.
)
Deus clementissimo, que dispõe com próvido e sá-
bio conselho, os tempos, .os acontecimentos e todas as
mais coisas, e as dirige para sua gloria e salvação dos
homens, guardou, para as circumstancias em que actual-
mente se encontram as condições das coisas publicas e
da Europa, a discussão desta prestantissima causa pe-
rante a S. C. dos Ritos, acerca da confirmação do culto
immemorial, prestado ao preclarissimo varão, Condes-
tavel do Reino de Portugal, Nuno Alvares Pereira, hu-
milde leigo professo da Ordem dos Carmelitas calçados,
honra e ornamento da familia e da Pátria, como da Egreja
Catholica e da Ordem Carmelitana, o qual brilhou pela
santidade da vida e esplendor de virtude, especialmente
em Portugal.
Este Servo de Deus nasceu em Sernache do Bom-
jardim no dia 24 de junho de i36o; recebeu educação
moral e instrucção conveniente e foi alistado entre os
pagens reaes, e, aos i3 annos incompletos, admittido
na milicia regia, sendo armado cavalleiro pela própria
Rainha, tão grande era a graça que encontrou perante
os monarcas.
Condescendendo com os conselhos dos pães e do
2 3o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Rei, aos 17 annos contraiu matrimonio com a nobilissima
D. Leonor de Alvim, de quem teve dois filhos, mortos
prematuramente, e uma única filha D. Brites, esposa
que foi do Conde de Barcellos e primeiro duque de Bra-
gança, mãe de numerosa prole espalhada pelo universo.
Pois delia derivam muitos príncipes e reis da Europa, o
imperador Carlos V e, nos nossos dias, o próprio rei de
Portugal D. Manuel II.
Ainda que se podem narrar muitos exemplos do
saber e valor militar do Servo de Deus, das suas luctas e
victorias para conquistar e manter a independência e li-
bertação da Pátria, contudo basta-nos indicar apenas al-
guns e instructivos.
Desde os 23 annos de edade, em que obteve o com-
mando supremo do exercito, ^até aos 62 annos (ou seja
até 1422), libertou a Pátria da invasão e jugo inimigo, lu-
ctando com denodo e valor, razão porque foi procla-
mado heroe invencivel e defensor da liberdade, e elevado
pelo próprio monarca ao fastígio das honras e dignida-
des do reino.
Os historiadores são concordes em affirmar que a
sua força e valor nas pelejas derivava da sua fé em Deus
e piedade; e o illustre auctor do Agiologio Lusitano, que
tão bem descreve a sua devoção especial para com o
Santíssimo Sacramento da Eucaristia e a Bemaventurada
Virgem Maria, refere-nos a resposta que o Servo de Deus
costumava dar aos que notavam a sua frequência á mesa
Eucarística. «Que se alguém o quizesse ver vencido pre-
tendesse afastá-lo daquela Sagrada mesa em que Deus
se dá em manjar aos homens, porque delia lhe resultava
todo o esforço e fortaleza com que vencia e debellava
os seus contrários».
Ha documentos e provas esplendidas acerca da sua
eximia devoção e amor para com a Santíssima Virgem,
como são: a imagem da mesma Virgem Maria que man-
DECRETO 2 3 I
dou pintar no seu pendão de guerra, qual penhor seguro
de victoria; seis templos (dos sete que mandou erigir)
foram dedicados á Virgem Mãe de Deus; as missas so-
lenes que ordenou fossem celebradas perpetuamente nos
altares desses templos e os jejuns rigorosos que D. Nuno
observava fielmente em todos os sabbados do anno e
nas vigílias das festas da Senhora, ainda que fossem dias
de peleja.
Não admira pois que o Servo de Deus, fosse tão casto
e piedoso, nos três estados de solteiro, casado e viuvo,
e que depois da morte prematura da esposa, apesar de
ser ainda novo, se recusasse a contrair segundas núp-
cias. Mais ainda, exemplo de pureza e temperança, re-
freava os seus soldados de quaesquer desmandos, com
palavras, prémios e castigos severos, dizendo amiúde :
«Que tanto teriam de victoriosos quanto de honestos, e
o capitão que não amava esta angélica virtude entrava
na batalha meio vencido».
Armado destas virtudes e auxílios accometia as pe-
lejas; e attribuia, com grande fé e devoção, as victorias
alcançadas pelo exercito do seu commando ao favor de
Deus, por intercessão da Beatíssima Virgem Maria.
Este Varão tão cumulado de honras, troféus glorio-
sos e dignidades, depois de libertada a pátria e a religião,
pondo a mira na sua perfeição espiritual, movido pelos
exemplos e palavras de Nosso Senhor: «Se queres ser
perfeito... segue-me», e ajudado pela graça de Deus,
um dia, suspendendo a espada nas aras da Virgem, des-
prezando as riquezas, prazeres e honrarias mundanas,
recolheu-se ao Convento do Carmo que elle mesmo
mandara edificar e dotar, e no mês de julho de 1422,
vestiu o hábito de irmão donato, com pasmo e edi-
ficação de todos, tomando o nome de Nuno de Santa
Maria.
Julgava-se indigno do beneficio divino da vocação
2 32 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
religiosa, a tal ponto que nunca se pôde conseguir que
abraçasse o Sacerdócio ou fízesse profissão de irmão de
coro. Contentou-se sempre com o humilde officio e tra-
balhos de irmão leigo; mais de uma vez se lhe ouviu di-
zer; «Que na casa de Deus tudo é grande e que não
viera a ella para descançar, mas para trabalhar como os
outros». Só a vontade dos superiores e do próprio Rei»
a que o irmão donato logo obtemperou, é que impediu a
realização do seu desejo de ir para outro mosteiro, longe
de Lisboa e mesmo de Portugal, para fugir ás visitas
frequentissimas que lhe faziam o povo e os próceres da
corte e para se entregar melhor ao trato com Deus.
Prova-se historicamente que o Servo de Deus exce-
deu de longe as glorias obtidas nas armas, pelo exercido
das virtudes religiosas no mosteiro carmelitano, e dando
aos grandes do mundo exemplos de santidade, deixou
aos religiosos norma da mais austera observância.
Ao completar dez annos de vida cenobitica, sentindo
imminente a morte, preparou-se para ella com actos
muito mais fervorosos até o supremo dia. Quando este
chegou, recebeu o Santo Viatico devotissimamente, fa-
zendo-o preceder da profissão de fé católica; depois
foi-lhe administrada a Extremaunção. Assim refeito e
robustecido, tomando a vela na mão esquerda e na di>
reita o crucifixo, que mirava e beijava com terníssima
devoção, emquanto um religioso lhe lia a Paixão de
Christo Senhor Nosso, do Evangelho de S. João, ao
chegar as palavras : «Eis a tua mãe», entregou o seu es-
pirito ao Creador, no dia i de novembro do anno de 143 1-
Delineada assim a vida e feitos do Servo de Deus,
tratando da sentença confirmativa do seu culto imme-
morial, deve dizer-se o seguinte:
O processo ordinário de Lisboa, com a sentença dada
aos 7 de março de 1914, foi apresentado á S. C. dos Ri-
tos, e mostra que o culto que pública e ecclesiasticamente
DECRETO 2 33
se prestou ao Servo de Deus logo depois da morte, cres-
ceu com o andar dos tempos, perseverando até hoje,
com auctorização dos Ordinários. Os documentos da
Guria Patriarcal, da Bibliotheca Nacional de Lisboa, dos
annaes, arquivos e chronistas do Ordem do Carmo, e
muitos outros argumentos, narram e provam que a festa
do Servo de Deus era celebrada annualmente em um dos
primeiros dias de novembro, com missa de Commum
de Confessor; que deantê do seu tumulo ardiam lâmpa-
das e quadros votivos; que lhe foram dedicadas capellas
e altares; que suas imagens e estatuas com signaes de
Bemaventurado e coroadas de aureolas, eram expostas á
veneração particular e publica, distribuídas pelos fieis,
que as pediam. Acrescem os reconhecimentos e traslada-
ções do seu corpo e reliquias, feitas canonicamente em
i522, 1548, 1768, i836 e 1906, em que se afirma ter ha-
vido graças e prodigios, operados por Deus por interven-
ção sua em favor dos fieis que imploravam seu auxilio;
finalmente as supplicas dirigidas á Santa Sé para a Bea-
tificação e Canonização conforme as leis e normas se-
guidas, pelos reis D. João IV e D. Pedro II e pelo epis-
copado português.
Entretanto aos 14 de fevereiro de 1917, a pedidos
instantes do Em."" e Rev."» Sr. Cardeal D. António Men-
des Bello, Patriarca de Lisboa e dos Rev.""* Arcebispos
e Bispos de Portugal, e bem assim do Rev.""> Padre
Gabriel Wessels, postulador geral da Ordem dos Carme-
litas Calçados, dignava-se o Santo Padre Bento XV, at-
^endendo ás circunstancias particulares desta causa, dis-
pensar, por decreto da S. C. dos Ritos, das prescripções
mandadas pelo Papa Pio X, de Santa memoria, com a
data de n de novembro de 1912 e 3i de janeiro de igiS.
Portanto, como tudo estava preparado, e nada se
oppunha ao proseguimeuto da causa, em face das instan-
cias ardentes do Santo Padre, do postulador da referida
2 34 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Ordem e da causa, do Prior e Superior Geral dos Car-
melitas, e das supplicatorias de todo o Episcopado lusi-
tano, o Em."o e Rev."» Sr. Cardeal Vicente Vanutelii,
Bispo de Ostia e Palestrina, decano do Sacro Collegio e
ponente ou relator da causa, na reunião eíTectuada no
Vaticano, em consesso pleno da S. G. dos Ritos propôs
á discussão o seguinte quesito:
Se se deve ou não confirmar, para os effeitos de que
se trata, a sentença dojuij delegado pelo Em.'^o e Rev.^o
Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, para julgar da vera-
cidade do culto immemorial prestado ao servo de Deus
Nuno; ou seja, se é applicavel ou não a excepção de-
cretada por S. S. Urbano VJII de santa memoria.
Os Em."*' e Rev."" Padres que presidem aos Ritos,
ouvida a relação do Em.*"* Cardeal Ponente, ouvido o
parecer oral e escrito do Rev. Padre D. Angelo Mariani,
promotor da Fé, e depois de ponderar tudo accurada-
mènte, resolveram responder:
A^rmativamente, ou a sentença deve ser confir-
mada, se assim o aprouver a Sua Santidade. Aos i5 de
janeiro de igi8.
Feito depois ao Santíssimo Papa Bento XV, pelo in-
fraescrito Cardeal Pro-Prefeito da S. C. dos Ritos, o
devido relato, Sua Santidade houve por confirmado e
retificado o rescrito da mesma Congregação, no dia 23
de janeiro de 1918.
f António Cardeal Vico, Bispo do Porto e
Santa Ru fina, Pro-Prefeito da S. C.
dos Ritos.
L ^ S
Alexandre Verde
Secretario da S. C. dos Ritos.
A Í4ISSA E O OFFICIO
DIE VI NOVEMBRIS
In Festo Beatí Nonii Alvares Pereira
GONFESSORIS
DUPLEX MAJUS
(In Civitate Olysiponensi duplex II. classis )
IN MISSA
INTROITUS. Ps. gi. Justus ut palma florébit, sicut
cedrus Libani multiplicábitur : plantátus in domo Dó-
mini, in átriis domus Dei nostri. Ps. ibid. Bonum est
confitéri Domino : et psállere nomini tuo Altíssime.
t. Glória Patri. Justus.
ORATIO
Deus, qui Beáto Nónio bonum certámen certáre de-
dísti, eúmque sui ac mundi contemptórem exímium eíFe-
císti : concede nobis fámulis tuis; ut, devíctis mundi
cupiditátibus, in ccelésti pátria perpétuo gaudeámus.
Per Dóminum.
Oratio secunda de Oct. Omnium Sanctorum.
2 36 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Léctio Libri Sapiéntiae.
Eccli 45.
Diléçtus Deo et bominibus, cujus memòri^^in bene-
dictióne est. Similem illum fecit in glória sanctórum, et
magnificávit eum in tiroòre intmicórum, et in verbis suis
monstra placávit. Glorifícávit illum in conspéctu regum,
et jussit illi coram pópulo suo, et osténdit illi gloriam
suam. In fide et lenitáte ipsíus sanctum fecit illum, et
elégit eum ex omni carne. Audívit enim eum, et vocem
ipsíus, et indúxit illum in nubem. Et dedit illi coram
praecépta, et legem vitae et disciplinai.
CRADUALE. Ps. 36. Os justi meditábitur sapién-
tiam, et lingua ejus loquétur judícium. t. Lex Dei ejus
in corde ipsíus : et non supplantabúntur gressus ejus.
Allelúia, allelúia, t. Ps. iii. Beátus vir, qui timet
Dòminum; in mandátis ejus cupit nimis. Allelúia.
In Missis votivis post Sepiuagesimam, omissis Alle-
lúia, et Versu sequenti, dicitur.
TRACTUS. Ps. ibid. Beátus vir, qui timet Dòmi-
num : in mandátis ejus cupit nimis. t. Potens in terra
erit sémen ejus : generátio rectòrum benedicétur. t. Gló-
ria et divítiae in domo ejus : et justítia ejus manet in
saeculum saeculi.
In Missis votivis Tempore Paschali omittitur GrO'
duale, et ejus loco dicitur :
Allelúia, allelúia. t. Ps. ibid. Beátus vir, qui timet
Dòminum : in mandátis ejus cupit nimis. Allelúia.
t. Os. 14. Justus germinábit sicut lilium : et florébit in
ietérnum ante Dòminum. Allelúia.
*ii Sequéntia Sancti Evangélii secúndum Matthaeum.
/(>. d.
In illo témpore : Dixit Petrus ad Jesum : Ecce nos
reliquimus ómnia, et secúti sumus te : quid ergo erit no-
IN MISSA 237
bis ? Jesus autem dixit illis : Amen dico vobis, quod vos,
qui secúti estis me, in regeneratióne cum séderit Filius
hótninis in sede majestátis sua;, sedébitis et vos super
sedes duódecim, judicántes duódecim tribus Israel. Et
oronis, qui relíquerit domum, vel fratres, aut sorores,
aut patrem aut matrem, aut uxórem, aut fílios, aut agros
propter nomen meum, céntuplum accípiet, et vitam aetér-
nam possidébit.
Et dicitur Credo, propter octavam Omnium San-
ctorum.
OFFERTORIUM. Ps. 20. In virtúte tua Domine,
laetábitur justus, et super salutáre tuum exsultábit vehe-
ménter : desidériura anima: ejus tribuísti ei.
SECRETA
Tuórum mílitum, Rex omnipotens, virtútem corro-
bora ; ut, quos m hujus mortalitátis stádio, Beáti Nónii
Confessóris tui vita prajclára lastíficat ; consummáto
cursu certáminis, per haec qua; oíTérimus, immortalitátis
bravíura comprehéndant. Per Dóminum.
COMMUNIO. Matth. ig. Amen dico vobis, quod
vos qui reliquístis ómnia, et secúti estis me, céntuplum
accipiétis, et vitam aeternam possidébitis.
POSTCOMMUNIO
Súpplices te rogámus, omnipotens Deus : ut, quos
tuis réficis sacraméntis ; intercedénte Beato Nónio Con-
fessóre tuo, tríbuas ab hóstium insídiis júgiter liberári,
et contra ómnia adversa contínua protectióne muníri.
Per Dóminum.
OFFICIUM
IN FESTO BEATI NONII ALVARES PEREIRA
CONFESSOR IS
DUPLEX UAJV»
(In civitate Ulissiponensis, duplex II classis)
Omnia de Commnni Confestoris noo Pontificit prseter hic notata
IN I VESPERIS
Ad Magnif. Afia. Salvum fac pópulum tuum, Domi-
ne, et bénedic hereditáti tuae : et rege eos, et extólle illos
usque in £etérnum.
Oratio
Deus, qui beato Nónio bonum certámen certáre de-
dísti, eumque sui ac mundi contemptórem exímium eíTe-
<císti: concede nobis fámuHs tuis; ut, devictis mundi cupi-
ditátibus, in caelésti pátria perpétuo gaudeámus. Per Dó-
minum.
Et fit Commemoratio Octavs.
AD MATUTINUM
In 1 Nocturno Lectionet de Sciiptura occurrente.
OFFICIUM 239
IN II NOCTURNO
Lectio iv
Nónius Alvares Pereira, sereníssimas famíliae Brigan-
tíníe fundátor, piíssima fuit educátus. Trédecim annos
natus, juxta militarem ritum, solémniter eques creátus
est. Adoléscens nobilíssimam féminam uxórem duxit :
qua demórtua, ad secundas núptias nullo pacto transíre
vóluit. Singulári suas béllicas virtúti christiánam pietátem
máxime conjúnxit. Ipse enim antepugnas, ut sibi Deum
propritiáret, assidue oratióni vacábat, suumque corpus
jejúniis, disciplínis ácriter muníre solébat: insignes au-
tem victórias subínde reportaras a Deo referébat accé-
ptas. In tot belli angústiis mira pietáte et fidúçia erga
Deíparam elúxjt : in cujus honórem étiam post insignes
victórias ad Aljubarrótam et in Valverde relatas, in tem-
plo ex belli manúbiis pro Carmclítis (eo quod hic Ordo
prscípue Beá tge Vírgini dicátus est) exstrúcto, fatálem
gládium suspéndit.
B. Desidérium.
Lectio V
In corde generósi hujus milítias Ducis et Cómitis
stábilis tam alta inséderat diffúsio cultus Beatas Mari£e
Vírginis, ut sacram ejus efFígiem, pro felíci dimicatiónum
auspício vexíllis appictam gérere consuéverit. In pervi-
gíliis festórum ejusdem Vírginis Deíparae et in síngulis
anni sábbatis, quamvis certámini dies forent distináti,
pane et aqua conténtus, jejúnium inviolábili lege servá-
vit. Erga sanctíssimam Eucharistíam ádeo veheménti
devotióne exársit, ut pro ejus glória procuránda et au-
génda, pecúnias plena manu contúlerit ad óleum, ceram,
pretiósam supelléctilem et sacra vasa comparánda. Quum
in óppidis moram lóngius tráhere cogerétur, inter Con-
240 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
frátres societátis sanctissimi Sacraménti adscríbi satagé-
bat. Annuum ejus festum magnificentíssimo apparátu,
éiíam in castris constitútus, máxima cordis Icetitia cele-
bráre in deliciis hábuit. Ad sanctam Communiónem, multa
cum preparatiòne, frequéntius accedébat, et ab hoc sa-
cro épulo, qui est cibus fórtium, robur et vires ad inimi.
cos debellándos pénitus hauriébat.
». Amávit eum.
Leetio vi
Lusitániae rebus in paca compósitis, despíciens mun-
dum, qui diu nómini et virtútibus ejus pláuserat, plene
sui victor, rudi indútus túnica, tamquam frater láicus in
Carméli Ordincm admítti petívit, ibíque constánter sum-
ma ánimi demissione sacerdótium recusávit. Ostiátim
eieemósynas assídue quaerere, viiióra quasque ofíícia in
Domo Dei exercére, gratíssimum illi fuit. Ter in hebdó-
mada jejúnium servábat, ac duóbus vel tribus Missárum
sacrificiis quotídie ministráre gaudébat : média autem
nocte ssepíssime ad orándum súrgere stúduit. Eximiam
in páuperes commiseratiónem ac liberalitátem, intra reii-
giónis claustra osténdere numquam déstitit. Post novem
religiónis annos sancte peráctos, de sui óbitus die per
revelatiónem Beátae Vírginis cértior factus, caelésiia únice
cogitáre coepit. Tandem ómnibus Ecclésiae Sacraméntis
rite munítus, in lectiónc Passiònis Dómini Nostri Jesu
Christi secúndum Joánnem quum ad ea verba perve-
nisset : £cce Mater tua, plácide expirávit, anno Dómini
millésimo quadringentésimo trigésimo primo. Públicum
cultum, eidem háctenus exhíbitnm, Benedíctus Papa dé-
cimus quintus approbávit, atque in ejus honórem Offi-
cium recitári indulsit.
}*. Iste sanctus.
OFFICIUM 241
IN UI NOCTURNO
Léctio santi Evangélii secúndum Matthsum.
Lectio vij Cap. ig
In illo témpore : Dixit Petrus ad Jesum : Ecce nos
reliquimus ómnia, et secúti sumus te : quid ergo erit no-
bis ? Et réiiqua.
Homilia sancti Bernárdi Abbátis.
Fidélis sermo, et dignum omni acceptióne collóquium
Simónis Petri et Jesu. Familiáris siquidem et arnica salúti
obediéntia est : sed obediéntia firma et stábilis, quas fun-
dáta est super petram. Mélior est enim obediéntia quam
victimae : et acquiéscere nolle, ut peccátum hariolándi
est. Unde et vitas queque ipse Salvátor praetulit hanc vir-
tútem, éligens magis animam pónere quam obediéntiam
non implére. Postremo et ipsum nomen Jesu, quod est
super omne nomen, et in quo fléctitur omne genu, Após-
tolo teste, obediéntiae remunerátio est. Libet proinde sa-
cratissimo huic interesse collóquio, et intima cordis aure
percipere quae dlcúntur. Arbitror enim verba lectiónis hu-
jus ea esse, de quibus ad immortálem Sponsum a finibus
terrae clamat Ecclésia : Propter verba labiórum tuórum
ego custodivi vias duras.
ç. Iste est.
Si nona Leciio debeat dici de Dominica, du« sequentes Lectíones
con)uaguntur.
Lectio viif
Haec nempe sunt verba, quae contémptum mundi in
universo mundo, et voluntáriam persuasére hominibus
paupertátem. Hasc sunt, qua; mónachis claustra replent,
deserta anachorétis. Hasc, inquam, sunt verba, quae
16
242 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
iEgyptum expóliante, et óptima quasque ejus vasa dirí-
piunt. Hic sermo vivus et éíficax, convértens animas fe-
lici aemulatióne sanctitátis, et veritátis promissióne íidéli.
Ecce, inquit, nos reliquimus ómnia.
9. Sint lumbi.
Lectio ix
Bene, óptime, et non ad insipiéntiam tibi : nam et
mundus transir, et concupiscéntia ejus; et relinquere hasc
magis cxpedit quam relinqui. Reliquimus ómnia, et secúti
sumus te. Nimirum quia exsultávit ut gigas ad currénoam
viam, nec curréntem sequi póterat onerátus. Sed nec inú-
tilis coi.mutátio, pro eo, qui super ómnia est, ómnia re-
liquisse. Nam et simul cum eo donántur ómnia, et ubi
apprehénderis eum, erit unus ipse ómnia in ómnibus, qui
pro ipso ómnia reliquérunt Omnia sane dixerim, non tan-
tum possessiónes, sed étiam cupiditátes, et eas máxime.
Plus enim concupiscéntia mundi quam substántia nocet:
et haec fugiendárum causa divitiárum praecipua est, quod
aut vix, aut nunquam sine amóre váleant possidéri.
Te Deum laudámus.
AD LAUDUS
Ad Bened. Afia. Gaudéte et lauda te simul quia con-
solátus est Dóminus pópulum suum, et redémit Jeru-
salém.
tt fit Commemoratio OctaTc.
IN II VESPERIS
Ad Magnif. AHa. Exsultávit spirítus meus in Deo sa-
lutárí meo.
Et fit Commemoratio teqaentis et ocurm.
ELOGIUM
Martyrologio inserendum
KALENDIS NOVEMBRIS
Ulyssipóne in Lusitânia Beáti Nónii Gonfessóris, se-
reníssimas Brigantinee familiae fundatóris ; qui, relícta ter-
rena milítia, húmilis Frater Láicus Ordínis Carmelitáni
factus esL
DIE VI NOVEMBFIS
Beáti Nónii, Ordinis Beatas Marias Virginis de Monte
Garmélo Gonfessóris : cujus natális dies Kaléndis Novém-
bris celebrátur.
(Reprodnzido da ediçáo do Patríarcbado.)
&nto da Identificação das Relíquias feita em 1918
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo
de mil novecentos e dezoito, quarto do Pontificado do
Santíssimo Padre Bento XV, Papa, aos sete dias do mês
de Fevereiro, na Sacristia da Igreja parochial de S. Vi-
cente de Fora d'esta cidade de Lisboa, pela uma hora da
tarde, compareceu o Excellentissimo e Reverendíssimo
Senhor Dom João Evangelista de Lima Vidal, Arcebispo
de Mytilene, Vigário Geral do Eminentíssimo e Reveren-
díssimo Senhor Dom António I, Cardeal iMendes Bello,
Patríarcha de Lisboa, e os Excellentissimos Senhores
General Thomaz António Garcia Rosado, Chefe do Es-
tado-maior do Exercito Português, Doutor Carlos Au-
gusto Vellez Caldeira, Juiz do Supremo Tribunal de
Justiça, Doutor António Aurélio da Costa Ferreira e
Doutor Manoel Ferreira Cardoso, médicos ; Affonso de
Dornellas Cysneiros, publicista, comigo, José Manoel
Pereira dos Reis, Licenciado em Theologia pela Univer-
sidade de Coimbra, Juiz da Relação Patriarchal e Secre-
tario da Camará Ecclesiastica do Patriarchado de Lisboa,
nomeados por Decreto Patriarchal de vinte e nove de
Janeiro ultimo, respectivamente Presidente, Vogais e
vogal-secretario d'uma Commissão para o exame e iden-
tificação das Relíquias do Santo Condestavel, B. Nuno
Alvares Pereira, Religioso Professo da Ordem dos Car-
melitas Calçados, do Convento de Nossa Senhora do
Carmo de Lisboa, como acto preparatório da trasladação
das mesmas Rei quias para a Igreja de Santa Maria de
Belém.
AUTO DA IDENTIFICAÇÃO 245
Lido por mim, Secretario, o Decreto acima referido,
foi apresentado á Commissão um cofre de madeira for-
rado de velludo vermelho, guarnecido com galões de
ouro, em cuja face anterior se lia, gravada numa chapa
de prata, a seguinte inscripção: «Aqui estão os Ossos do
Condestavel D. Nuno Alvares Pereira que estiveram na
antiga e já derrocada Igreja do Carmo e vieram para
esta de S. Vicente de Fora, sendo acompanhados até
esta Capella de Sua Eminência Reverendissima o Senhor
Cardeal Patriarcha pelo Prior Monsenhor Joaquim An-
tónio Sant'Anna, e n'ella coUocados em nove de Março
de 1895».
Pelo simples exame se verificou que este cofre é
aquelle mesmo era que, no dia 21 de Março de mil sete-
centos e sessenta e oito, foram encerrados os Ossos do
Santo Condestavel, catalogados e descriptos pelos peri-
tos médicos, como consta do auto de trasladação a que
nesse dia se procedeu por Decreto do Cardeal Patriarcha
de Lisboa, Dom Francisco de Saldanha, e cuja identidade
foi attestada com juramento solemne pelo Prior e Reli-
giosos do Convento de Nossa Senhora do Carmo, de
cuja Igreja em ruinas se trasladavam as Relíquias do
Santo Condestavel para a Igreja provisória do mesmo
Convento; no qual cofre as mencionadas Relíquias foram
transportadas para a Igreja de S. Vicente de Fora, por
Aviso Régio do Ministério da Justiça ao Cardeal Patriar-
cha de Lisboa, Dom Patricio, que ali as recebeu, e desta
Igreja para a Capella Particular dos Eminentissimos
Cardeaes Patriarchas no edifício de São Vicente de Fora,
encontrando-se desde a occupação, por parte do Estado,
do mencionado edifício de São Vicente, em princípios
do mês de Agosto de mil novecentos e doze, no Pan-
theon dos Príncipes da Casa de Bragança, d'onde foi re-
tirado, na manhã d'este dia e para os effeitos da presente
identifícação, achando-se na dita Sacristia da Igreja.
246 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Aberto por efracçao o mesmo cofre, cuja chave
desappareceu, foram encontrados quatro envoltórios
contendo ossos e ainda alguns ossos dispersos no fundo
do cofre.
Examinados os envoltórios, veriíicou-se que no pri-
meiro existiam ossos e fragmentos de ossos que deveriam
ser Reliquias de Santos, como o indicavam as inscripções
impressas ou manuscriptas que alguns d'elles conserva-
vam colladas; no segundo ossos e fragmentos de ossos
que, segundo o depoimento dos peritos anthropologistas
da Commissão, não podem attribuir-se á ossada do
Santo Condestavel, ou porque denunciam, uns, edade
menos avançada no individuo a que pertenceram, ou
porque apresentam, outros, as caracteristicas de fazerem
parte d'um esqueleto feminino; no terceiro envoltório
ossos e fragmentos de ossos que, segundo o testemunho
dos mesmos peritos, pela sua densidade, contextura,
dimensões e aspecto, pertenceram a individuo do sexo
masculino e de avançada edade e juntamente um quarto
envoltório em que havia ossos e fragmentos de ossos
envolvidos cada um no seu sacco de panno de linho
branco, cuidadosamente cozido segundo o contorno do
osso ou fragmento que encerrava, presos todos a um
envolucro geral, reconheceudo-se ainda a existência de
muitos d'estes saccos, ou pequenos envolucros, cortados
e vasios do seu conteúdo.
Os ossos encontrados n'este ultimo envoltório cons-
tituem uma parte d'aquelles que os peritos, no exame a
que se procedeu por ordem do Eminentissimo Cardial
Netto, ao tempo Patriarcha de Lisboa, no dia trinta e um
de Janeiro de mil novecentos e seis, reconheceram indu-
bitavelmente como referidos no auto da trasladação de
1768. A Commissão, tendo em vista os relatórios dos pe-
ritos de 1906, agora confirmados pelo vogal Doutor Fer-
reira Cardoso, considera os ditos ossos como pertencen-
AUTO DA IDENTIFICAÇÃO 247
tes á ossada do Santo Condestavel; outro tanto julga a
respeito de um fragmento de illiaco encontrado no ter-
ceiro envoltório, fora do seu envolucro vazio, a cujo
contorno exactamente se ajusta.
Os ossos encontrados no terceiro envoltório, pelas
circumstancias de este conter o quarto e de n'elle se
achar o fragmento de illiaco acima mencionado, julga a
Commissão, com probabilidade pouco distante da certeza
completa, que todos hajam sido extrahidos dos saccos
ou pequenos envolucros ora vasios, devendo assim con-
siderar-se, embora sob ligeira reserva, como pertencendo
á ossada veneranda do Santo Condestavel.
O que tudo a Commissão affirmou ser conforme á
verdade, sob juramento aos Santos Evangelhos, prestado
nas mãos do Excellentissimo e Reverendíssimo Arcebispo
de Mytilene.
Assim, deliberou a Commissão que os ossos do quarto
envoltório, como identificados sem a menor duvida, fos-
sem encerrados n'um cofre de ferro nikelado, em cujo
interior se guardará uno escripto contendo essa indica-
ção. Em cofre igual resolveu encerrar os ossos do ter-
ceiro envoltório, acompanhados de um escripto donde
constará a identificação sob reserva.
O que se effectuou n'uma subsequente sessão, reali-
zada aos onze dias do mez de Fevereiro de mil novecen-
tos e dezoito, na mencionada Sacristia da Igreja de S. Vi-
cente de Fora, sendo presentes as mesmas pessoas refe-
ridas no começo d'este auto.
Os restos do Santo Condestavel e os ossos que com
toda a probabilidade Lhe são attribuidos, envoltos em
estofo de seda branca, foram encerrados separadamente
nos dois cofres de ferro, pela maneira acima descripta,
fechando-se em seguida os ditos cofres, os quaes foram
ligados com cordão de seda vermelho, e sellados com o
sello próprio da Commissão, pendente em caixa de metal-
248 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Os mesmos cofres foram fixados, com grampos de
ferro parafusados, no fundo da urna ou cofre antigo de
madeira forrado de velludo vermelho, no interior do qual
se deixará o presente auto, depois de assignado e sellado,
em tubo de folha de Flandres, sellado.
A referida urna será fechada com chave e ligada
com cordão de seda vermelho, sellado com o mesmo
sello próprio, pendente em duas caixas de metal, nas
faces anterior e posterior da mesma urna, que, assim
fechada e sellada, aguardará a trasladação que d'ella se
fará para a igreja de Santa Maria de Belém, onde as Re-
liquias gloriosas do Santo Condestavel repousarão, até
que definitivamente sejam trasladadas para a igreja de
Santa Maria da Batalha, se assim fôr ordenado.
Para constar se lavrou o presente auto, que vai ser
assignado por todos os Excellentissimos Vogaes d'esta
Comissão, depois do Excellentissimo e Reverendíssimo
Arcebispo de Mytilene, Delegado do Eminentíssimo e
Reverendíssimo Senhor Dom António I, Cardeal Mendes
Bello, Patriarcha de Lisboa, aos onze de Fevereiro de
mil novecentos e dezoito.
E eu, José Manoel Pereira dos Reis, secretario, o
subscrevi e assigno.
f João, Arcebispo de Mytilene
Thoma^ António Garcia Rosado
Carlos Augusto Vellej Caldeira Castel-Branco
Manuel Ferreira Cardoso
Affonso de Domellas Cysneiros
António Aurélio da Costa Ferreira
José Manuel Pereira dos Reis.
(Da Vida Catholiea, n." 61, pag. 393,-6)
IMAGEM DO BEATO NUNO QUE SE VENERA NA CAPELLA
DA ORDEM TERCEIRA DO CARMO (lISBÔa)
A Yen. Ordem Terceira do Carmo e o B. Nuno Alvarez
A Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Monte do Carmo é em Lisboa e no paiz a mais lídima
representante da tradição do Santo Condestavel, sendo
como é originariamente, fundação sua.
Os Terceiros Carmelitas de Lisboa são ainda hoje a
familia espiritual de Nun'Alvares, orgulhando-se justa-
mente da sua illustre e santa ascendência.
A Venerável Ordem Terceira foi, nos seus inicios,
uma simples Confraria do Escapulário^ transformada em
Ordem por auctoridade do Papa Xisto IV, datando de
i6 de Junho de i665 o seu primeiro compromisso, appro-
vado pelo Provincial e Geral da Ordem dos Carmelitas,
Das origens da Confraria dá testemunho um valioso
manuscripto arrecadado no Archivo da V. O. T., copia
do século xvm do original que se perdeu e que era cer-
tamente anterior a i665, data da transformação da Irman-
dade em Ordem III.
Transcrevemos o titulo do manuscripto e a noticia
que nelle se encontra da fundação da Irmandade do Es-
capulário.
REFORMA — DO — COMPROMISSO — DA IRMANDADE DE N. S.
— DO VENCIMENTO — DO MONTE DO CAR — MO, ESTABELECIDA
— NO REAL CONVENTO DA — MESMA SENHORA — DESTA CIDADE
— DE USBOA. —
Legenda frontispicial dentro de um escudete orna-
mental setecentista, encimado por uma coroa de conde
rudimentarmente desenhada .
2 5o VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
(fl. 6) Introducção. Foi erecta esta Irmandade e
confraria denominada do Bentinho, pello Servo de Deos
o Conde D. Nuno Alvarez Pereira, Magnânimo Fundador
deste Convento, logo que despois que para elle vierão
aquelles devotos Relligiosos, que mandou buscar do de
Moura: sendo aprovada pelo Senhor Rey D. João o i."
de gloriosa memoria; que a instancia do venerável Fun-
dador, a tomou debaixo de sua protecção: e confirmada
por D. Frey Gomes, Bispo Titular Eborense (?) actual
Prior do dito Convento e Vigário Geral de toda a Ordem
com Authoridade Apostólica em Portugal... (fl. 6, v.).
Foram os primeiros irmãos desta Irmandade os criados
do Venerável Conde, a saber: O seu Mordomo, Estri-
beiro. Medico, Gentilhoroens, dos quais descendem mui-
tas familias Illustres destes Reynos; e he tradição cons-
tante que o Venerável Conde os mandava servir em os
dias festivos no Altar de Acólitos e Thuriferarios, por
serem naquelle tempo poucos os Relligiosos que havia no
Convento para satisfazer ás obrigações daquelles Minis-
térios,. . . e como o Venerável Conde viveu muitos annos
entre os mesmos Relligiosos: he sem duvida que aquel-
les Irmãos e criados seus o haviam de acompanhar nos
mesmos actos, para os quais os conduzia o seu virtuoso
exemplo.
(Nota communicada pelo sr. Dr. Pereira doa Reia.)
ILLUSTRAÇÕES
NA CAPA
Vista das minas da Egreja do Carmo (interior).
Bandeira e espada do Condestavel. Ambos estes
desenhos são do Sr. Alfredo Moraes.
FORA DO TEXTO
Nuno de Santa Maria — Reconstituição feita pelo
Sr. Félix da Costa.
Vestição de D. Nuno, por Gonella.
Vista geral do Mosteiro da Batalha.
Estatua de D. Nuno, pelo Sr. SimÔes d' Almeida
(sobrinho).
Gloria do Beato Nuno Alvarez, por Gonella.
Imagem do Beato Nuno que se venera na Gapella
da Ordem Terceira do Carmo.
NO CONTEXTO
Pag.
Armas de Portugal, da Ordem do Carmo e de
D, Nuno 17
Brazão de D. Nuno Alvarez Pereira 35
Espada do Condestavel D. Nuno Alvarez 43
Espada de D. João 1 61
Elmo de D. João I jS
Frontaria da Egreja do Carmo, antes do terre-
moto 93
A pá da padeira de Aljubarrota 109
Fac-simile em madeira do tumulo de D. Nuno.. . 114
A caldeira de Alcobaça i25
252 VIDA DO BEATO NUNO ALVAREZ
Pag.
O convento do Carmo, visto da parte oriental.. . 141
A capella de S. Jorge 1 56
Altar da Egreja do Carmo, desenho dum manus-
crito inédito de Fr. Manuel de Sá i65
Nuno de S. Maria, desenho dum manuscrito me-
dito de Fr. Manuel de Sá lyS
Tumulo de D. Nuno, desenho dum manuscrito iné-
dito de Fr. Manuel de Sá 187
Fac-simile em madeira da estatua de D. Nuno. . . 194
Quadro de DNuno Alvarez, da casa Pombal . . . 212
Caixa de velludo, onde se conservam as relíquias
do Beato Nuno Alvarez 219
Bandeira e espada de D. Nuno Alvarez 227
índice
Pag.
Introducção 7
Capitulo I — O Escudeiro da Rainha 17
» II — Na corte de D. Fernando 25
u III — Vida de familia 33
» IV — O soldado 41
» V — Estreia na guerra 49
» VI — Paz inesperada Sj
» VII — O fim duma dinastia 65
» VIII — A revolução 73
» IX — Fronteiro-mór do Alemtejo 83
» X — Atoleiros 91
» XI — Rei novo 99
» XII — Aljubarrota CPre/wí/105) 107
» XIII —Aljubarrota (A Batalha) u5
» XIV — Valverde I23
» XV — Guerra oífensiva i3i
» XVI — O fim da guerra — Paz defini-
tiva 139
» XVII — Contrariedades 147
■ XVIII — O adeus ao mundo i55
» XIX— Na sombra do claustro i63
» XX — Nuno de Santa Maria 171
» XXI — Morte de predestinado 181
» XXII — Culto Nacional 193
» XXIII — Culto official 2o3
» XXIV — Relíquias e retratos 2i3
Decreto do Reconhecimento do culto 229
Missa e officio do B. Nuno Alvarez 235
Auto da identificação das reliquias feito em 19 18 244
A Ven. Ordem Terceira do Carmo e o B. Nuno. 249
lUustrações 25 1
Nihil obstat
Ulisipone, die 2 januarii 1919
Sac. J. M, Pereira dos Rkis
Cens. dep.
Imprimi potest
Ulisipone, die 10 octobris 1921
f JOANNES,
Archiepiscopus Mytilenensts
Nihil obstat
Komae, die 21 Januarii 1919
Carolus Salotti
a. Cons. Adv. S. R. Congreg. Adtessor
000 061