Skip to main content

Full text of "Vida do Beato : Nuno Alvarez Pereira, Santo Condestavel"

See other formats


VIDA 


^^,^^'^''''  "   ^-^ 


DO 


Beato  Nuno  Alvarez  Pereira 

(santo  condestavel) 


^«v  .^-'-^  j^ 


Do  mesmo  auctor: 


Vida  do  Ven.  P.  D.  Gonçalo  da  Silveira,  protomartyr 
-.'    *   •    ^da  Mrica  do  Sul.  Roma,  1908. 

Á  Bemaventurada  Joanna  d' Are,  numero  commemora- 
tivo  da  sua  beatificação.  Echos  de  Roma,  1909. 

Elogiurfi  Patris  Dominici  Palmieri.  Roma,  1909. 
<   ^  .  »t^iMatheus  Ricci,  public#^o  cdtememor^t^va  doterceir;>  ^ 

centenário  da  sua  morte.  Roma,  1910.  ■^"^*         -^ 

Lichens  de  Setúbal.  Separata  da  Brotéria.  Braga,  191 5. 

A  ultima  Condessa  de  Atouguia,  memorias  autobiogra- 
phicas,  com  um  estudo  preliminar  sobre  a  direcção 
espiritual  dada  á  Condessa  pelo  P.  Gabriel  Malagrída, 
1.»  edição,  1916  (esgotada),  2.«  edição.  Braga,   1917- 

S.  Cecilia.  Virgem  e  Martyr.  Estudo  histórico,  archeo- 
logico,  e  artístico.  Porto,  19 19. 

S.  Dâmaso  I.  Apontamentos  sobre  o  estado  actual  dos 
estudos  damasianos.  Porto,  1918. 

P.  Francisco  Suares,  (Doutor  eximio).  Brere  resenha  da 
sua  vida  e  obras.  Porto,  1918. 

*7>r.  Sidónio  Paes,  allocução  feita  na  Egreja  da  Encar- 
nação depois  da  missa  do  3o.*  dia,  mandada  celebrar 
por  uma  commíssão  de  alumnas  do  Liceu  Central  de 
Garrett,  Lisboa,  1919. 
Vida  Interior,  pelo  P.  Germano  Foch ;  traducção.  Porto, 
1919. 

A  Vinda  de  S.  Paulo  d  Hispânia.  Revista  de  Historia, 
1920.  Lisboa. 


R'  VALÉRIO  A.  CORDEIRO 

Sócio  eíTectivo  da  Associação  dos  Arqueólogos  Fortogneses 
e  da  Sociedade  dos  Estudos  Históricos 


VIDA  DO  BEATO 

Nuno  Alvarez  Pereira 

(SANTO  CONDESTAVEL) 
2.»   EDIÇÃO 


LISBOA 

Edição  da  Livraria  Cathouca 

Rua  Augusta,  33o 

1921 


Reservados  todos  os  direitos  de 
reproducção  em  Portugal,  Brasil, 
etc,  segundo  as  leis  vigentes. 


Typ.  do  Annnarío  Commercial  —  Praça  dot  Bestaaradores,  34  —  Lisboa 


INTRODUCÇÃO 

O  pensamento  de  escrever  uma  vida  de 
Nuno  Alvarez,  surgiu  no  meu  espirito 
no  mês  de  maio  de  1 909,  quando  assistia  em 
Roma  ás  grandiosas  festas  da  beatificação 
da  heroina  francesa  Joanna  d' Are.  Coilabo- 
rando,  nessa  época,  nos  Echos  de  Roma, 
graciosa  revista  do  Collegio  Português,  es- 
crevia o  seguinte:  «Um  pensamento  nos 
preoccupava  durante  estas  festas.  Ha  na 
nossa  historia  portuguesa  um  personagem 
egualmente  santo  que  incarna  o  espirito 
nacional  e  o  patriotismo  lusitano :  o  Santo 
Condestavel  D.  Nuno  Alvarez  Pereira.  Pa- 
rece averiguado  que  esse  varão  glorioso 
teve  culto  na  ordem  Carmelitana,  antes  do 
decreto  de  Urbano  VIII.  Sendo  assim,  fácil 
coisa  seria  o  reconhecimento  desse  culto, 
podendo  também  nós  venerar  nos  altares  o 
salvador  da  nossa  independência  nacional. 
Quantas  graças  não  traria  semelhante  acon- 


2226411 


8  TIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

tecimento  ao  nosso  amado  reino!  Aqui  fica 
a  lembrança ;  aos  corações  patrióticos  cabe 
executá-la». 

Poucos  dias  depois  soube  que  esse  pro- 
cesso estava  iniciado,  que  se  tratava  seria- 
mente do  reconhecimento  do  culto.  Pro- 
curei immediatamente  o  Postulador  da 
Ordem  Carmelitana,  o  meu  venerando 
amigo  o  R.  P.  Gabriel  Wessels,  que  me  re- 
cebeu com  a  maior  gentileza.  Falíamos  com 
amor,  com  entusiasmo,  do  nosso  Santo 
Condestabre.  Parecia-me  que  me  renasciam 
no  coração  as  vivas  impressões  colhidas 
durante  a  infância  na  leitura  da  vida  do 
Guerreiro-Monge.  O  R.  P.  Wessels  enten- 
deu que  me  podia  convidar  para  escrever 
uma  vida  em  italiano  do  nosso  Condestavel. 
Acceitei  o  encargo,  e,  com  os  poucos  ele- 
mentos de  que  podia  dispor,  tracei  um  com- 
pendio dessa  vida,  compendio  que  foi  uti- 
lizado, com  a  minha  plena  auctorização, 
pelo  auctor  da  recente  biografia  italiana  de 
D.  Nuno  Alvarez.  «Os  seus  apontamentos, 
diz  o  R.  P.  Wessels,  numa  carta  escrita  em 
fevereiro  de   191 8,  serão  muito  utilizados 


INTRODUCÇAO  9 

pelo  Battaglia,  que  escreve  agora  a  vida  do 
Beato.  Agradeço-lh'os  de  novo,  porque 
doutra  forma  seria  muito  difficil  para  um 
italiano  escrever  tal  vida». 

Mas,  se  esse  trabalho  bastava  para  um 
publico  estrangeiro,  parecia-me  que  não 
devia  satisfazer  os  leitores  portugueses.  Ti- 
nham direito  de  exigir  coisa  melhor  do  que 
a  anterior.  Pensei  então  em  refazer  o  escri- 
to ;  com  o  rigor  do  método  histórico  des- 
tacar e  pôr  em  claro  relevo  a  figura  nobre 
do  Condestavel ;  procurar,  na  medida  do 
possivel,  libertar-me  de  entusiasmos,  por 
ventura  mal  cabidos;  arrancar  serena- 
mente da  figura  do  Condestavel  a  patina 
da  lenda  e  apresentá-la  em  linguagem  sim- 
ples com  a  maior  verdade  possivel.  Para 
isso,  era  preciso  guiar-me  pelas  fontes, 
prescindindo  (prescindir  não  é  depreciar) 
de  tudo  o  que  se  foi  escrevendo  depois.  A 
narrativa  seria  baseada  nos  auctores  mais 
fidedignos  e  mais  antigos.  O  estilo  seria  o 
mais  lhano  possivel.  Se  o  consegui,  julga- 
rão os  leitores.  O  que  posso  assegurar  é 
que  me  não  resolvi  a  publicar  estas  pagi- 


IO  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

nas  sem  ouvir  a  opinião  do  meu  respeitabi- 
lissimo  amigo  o  Sr.  Cons.  Doutor  António 
Cândido,  o  qual,  com  aíFecto  e  dedicação, 
que  não  sei  como  agradecer,  percorreu  o 
manuscrito  e  me  animou  a  publicá-lo.  Com 
tão  poderoso  suffragio,  não  se  admire  o  lei- 
tor que  me  atrevesse  a  lançar  á  publicidade 
estas  despretenciosas  linhas. 

Como  disse,  é  nas  fontes  que  fui  buscar 
os  elementos  da  minha  narrativa.  A  pri- 
meira delias  é  certamente  a  Chronica  do 
Condestabre  (i).  Já  Oliveira  Martins  con- 
siderava este  livro  como  «coevo  dos  acon- 
tecimentos que  relata  e  o  mais  vetusto  mo- 
numento da  'historiografia  nacional  em 
lingua  portuguesa». 

Hoje  é  ponto  assente,  e  esta  gloria  per- 
tence ao  erudito  historiógrafo  o  Sr.  Braam- 
camp Freire,  que  na  magistral  prefação  da 
Crónica  dei  Rey  Dom  Joam  (2)  o  demons- 
tra com  argumentos  irrespondiveis,  ser  elle 


(i)  Servi-me  da  e«.'içáo  critica  feita  pelo  Sr.  Dr.  Men- 
des dos  Remédios  (Crimbrd,  191 1). 

(2)  L.  c.  pag.  XXV  e  leg.  Edçâo  do  Arquivo  Histó- 
rico, 1913. 


INTRODUCÇÃO  I  I 

da  auctoria  de  Fernão  Lopes  e  de  ter  sido 
escrito  entre  os  annos  1431  e  1443,  ou  seja 
depois  da  Chronica  de  D.  Fernando  e  an- 
tes da  do  Mestre  de  Aviz.  São,  pois,  de 
egual  auctoridade  estas  duas  chronicas  e 
assim  nelias,  principalmente,  se  estribam 
todas  as  affirmaçóes  que  se  fazem. 

Em  terceiro  logar,  a  obra  de  Frei  Simão 
Coelho,  de  que  existe  um  perfeito  exemplar 
na  Biblioteca  Nacional  de  Lisboa,  com  o 
titulo  de  Compendio  das  Chronicas  de  Nossa 
Senhora  do  Carmo  (1572).  Occupa-se  do 
Condestavel  nos  cap.  19  a  21;  mas  infeliz- 
mente não  dá,  sobre  a  vida  de  D.  Nuno  no 
Convento  do  Carmo,  aquella  riqueza  de 
informações  que  seria  para  desejar.  Estas 
apparecem  copiosas  no  tomo  I  da  Chronica 
dos  Carmelitas  de  Frei  Joseph  Pereira  de 
Sant'Anna  (1745),  em  que  toda  a  Parte  III 
trata  do  Condestavel  (em  188  paginas  in- 
folio).  A  parte  IV  é  dedicada  á  fundação  e 
descripção  do  Convento  do  Carmo.  E'  claro 
que  dos  dois  chronistas  carmelitas,  merece 
maior  consideração  o  mais  antigo.  No  ou- 
tro, já  apparecem  por  vezes  os  ouropéis  da 


I  2  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

influencia  lendária;  mas  o  seu  testemunho 
é  precioso  em  tudo  o  que  se  refere  ao  que 
elle  próprio  viu  e  assistiu.  Também  o  Agio- 
logio  Lusitano  de  Jorge  Cardoso  dá  pre- 
ciosas informações  sobre  Nuno  Alvarez. 

São  estas  as  fontes  que  maior  respeito 
histórico  merecem.  Junte-se-lhes  o  Processo 
do  reconhecimento  do  Culto,  com  os  do- 
cumentos que  abonam  a  antiguidade  desse 
culto,  largamente  utilizado  no  capitulo  que 
a  elle  se  refere. 

Se  a  narrativa,  como  se  disse,  se  baseia 
nestes  livros,  não  me  dispensei  de  folhear 
com  o  maior  cuidado  as  outras  publicações 
antigas  e  modernas  que  versam  o  assum- 
pto. Confesso  que,  por  exemplo,  ao  ler  as 
paginas  insulsas  de  Frei  Domingos  Teixei- 
ra, mais  de  uma  vez  bocejei  dç  puro  tédio, 
porque,  como  bem  pode  ver  quem  se  dér 
ao  trabalho  de  o  percorrer,  nada  diz  de  in- 
teressante ou  de  novo,  e  o  que  diz  fá-lo 
num  estilo  hoje  insupportavel.  Dos  traba- 
lhos modernos,  merece  menção  especial  o 
livro  de  Oliveira  Martins :  A  Vida  de  Nun'- 
Alvares.    Faço   minhas  as   palavras  com 


INTRODUCÇÃO  1 3 

que  o  distinctissimo  escriptor  Sr.  Conse- 
lheiro J.  Fernando  de  Souza  julga  esta  obra 
na  conferencia  brilhante  sobre  Joanna 
d* Are  e  Nun^Alpares,  feita  em  6  de  maio 
de  1 916. 

(íNun* Alvares  é  um  livro  admirável  pelo 
encanto  da  forma,  pelo  poder  d'evocação, 
pela  animação  das  narrativas,  pela  piedosa 
emoção  patriótica.  Vê-se  que  o  historiador, 
ou  antes  o  poeta,  versou  com  amor  o  seu 
thema  e  foi  empolgado  pela  extranha  fasci- 
nação, que  em  corações  portugueses  exerce 
a  figura  prestigiosa  do  heroe  sem  par,  au- 
reolada pelo  nimbo  da  santidade . . . 

«Algo  porém  faltava  a  Oliveira  Martins 
para  comprehender  Nun' Alvares.  Avassa- 
lava-lhe  o  espirito  a  flexuosa,  contradicto- 
ria  e  obscura  philosophia  allemã . . .  Fal- 
tou-lhe  a  formação  intellectual  Christã . . . 
Por  isso  a  santidade  é  para  elle  uma  forma 
de  allucinaçãd.  O  amor  de  Deus  a  que  a 
religião  aspira,  o  anhelo  ardente  da  perfei- 
ção moral,  as  esperanças  immortaes  da 
beatitude,  transformam-se  sob  a  sua  penna, 
em  allucinaçóes,  formas  de  suicidio  lento, 


14  VIDA   DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

anceios  de  aniquilamento,  aspirações  ao 
Nirvana . . .  Alumiado  no  fim  da  vida  por 
uma  luz  melhor,  Oliveira  Martins  teve  de- 
certo a  noçáo  exacta  das  aspirações  da 
alma  christã.  Se  a  morte  o  não  roubasse, 
em  toda  a  pujança  do  talento,  ás  lettras 
pátrias,  bem  poderia  rever  o  seu  Nun'Al- 
vares,  e,  tendo  a  comprehensão  nitida  da 
psychologia  do  santo,  retocaria  sem  duvida 
as  manchas  que  deslustram  o  quadro  no- 
tável, que  pintou.»  Até  aqui  o  Sr.  Fernando 
de  Souza. 

Muitas  outras  publicações  modernas  se 
referem  ao  nosso  Heroe.  Duas  delias:  O 
Santo  Condestabre  do  Sr.  Ruy  Chianca,  e 
Nun' Alvares  do  Sr.  Augusto  Forjaz,  execu- 
taram o  conhecido  libello  de  um  cardeal 
diabo,  com  que  se  procurou  desfigurar  a 
memoria  do  nosso  Heroe.  Outras,  como 
a  interessante  plaquette  do  Sr.  D.  Ma- 
nuel José  de  Noronha :  Nun* Alvares,  são 
forçosamente  incompletas.  São  esboços  e 
não  biografias,  como  exige  o  facto  da  bea- 
tificação equipollente  do  Santo  Condestavel. 

Foi  para  corresponder  a  esta  exigência 


INTRODUCÇÃO  l5 

/ 

que  se  escreveu  o  livro  que  segue,  dirigido 
de  um  modo  especial  á  nossa  querida  Ju- 
ventude Portuguesa,  e  áquelles  que  dese- 
jam um  estudo  objectivo,  breve,  que  lhes 
dê  idea  clara  do  grande  personagem.  E'  o 
primeiro  que,  em  lingua  portuguesa,  se 
publica  depois  do  acto  solemne  que  legali- 
zou o  culto  prestado  ao  nosso  Heroe  Na- 
cional. 

Oxalá  contribua  para  diíFundir  cada  vez 
mais  esse  culto  e  para  debellar  a  crise  de 
caracteres  que  tão  abatida  traz  a  nossa 
Nação.  Com  um  exemplar  tão  formoso 
deante  dos  olhos,  animar- se-ha  certamente 
a  actual  Juventude  a  resuscitar  em  si  as 
virtudes  e  energias  dess*outra  Juventude  a 
que  pertenceu  Nuno  Alvarez,  e,  como  ella, 
reconstruir  Portugal,  salvá-lo  da  decadên- 
cia profunda  a  que  o  vão  levando  os  erros 
tremendos  do  nosso  liberalismo,  destruidor 
da  genuina  tradição  portuguesa. 

Lisboja,  I  de  Janeiro  de  igig. 

O   AUCTOR. 


NOTA   SOBRE  A   2!^   EDIÇÃO 


Esta  segunda  edição  pode-se  bem  chamar  re- 
producção  da  primeira,  tão  poucas  são  as  mo- 
dijicaçôes  que  nella  seji:{eram. 

Juntou-se  apenas  um  apêndice  com  o  oficio  e 
missa  do  Beato  Nuno  Alvarei^  approvado  pela 
Santa  Sé  para  a  Ordem  Carmelitana  e  Pa- 
triarcado de  Lisboa. 

O  favor  que  encontrou  a  primeira  edição, 
exgoíandose  em  poucos  meses,  prova  a  lacuna 
que  este  modesto  livro  veio  preencher. 

Continue  elle  a  sua  missão  de  levar  o  conhe- 
cimento do  B.  Nuno  até  os  últimos  recantos  do 
mundo  onde  se  falle  o  idioma  português,  para 
despertar  em  todos  os  que  o  lêem  o  apreço  e 
amor  da  nossa  grande  figura  nacional. 

Lisboa,  Janeiro  de  1931. 

O    AUCTOR. 


o    BEMAVENTURADO    NUNO    DK    SANTA    MARIA 

Quadro  a  óleo  do  Sr.  Félix  da  Costa 
(Vide  nota  da  pag.  223) 


Reservados  todos  os  direitos  de  reproducçáo. 


Armas  de  Portugal,  da  Ordem  do  Carmo  e  de  D.  Nuno  Alvarez 
(Reproducção  da  Chronica  de  Sanfojinna  —  Frontispício) 


O   ESCUDEIRO   DA   RAINHA 


Em  fevereiro  de  i373  a  corte  portuguesa 
procurava  em  Santarém  um  refugio  seguro  con- 
tra os  Castelhanos,  cujos  exércitos  marchavam 
sobre  Lisboa.  EI-Rei  D.  Fernando  de  accordo 
com  os  poucos  fidalgos  que  o  rodeavam,  man- 


l8  VIDA   DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

dara  reconhecer  o  inimigo  por  dois  jovens, 
inexpertos  no  mister  das  armas,  irmãos,  filhos 
do  Prior  do  Hospital:  Diogo  e  Nuno  Alvarez. 
A'  hora  de  jantar  voltavam  os  dois  explorado- 
res. El-Rei  mandou-os  entrar  e,  ainda  á  mesa, 
quis  ouvir  as  novas  que  traziam.  D.  Nuno  Al- 
varez interrogado,  respondeu :  tque  lhe  parecia 
muita  gente  mal  acaudellada,  e  que  pouca  gente 
com  bom  capitão,  bem  acaudellada,  os  poderia 
desbaratar  (i)». 

Sorriu  a  Rainha  D.  Leonor,  e  agradou-se 
do  mancebo  de  i3  annos.  Pediu  ao  Rei  que  lh'o 
desse  para  escudeiro.  D.  Fernando,  que  nada 
sabia  negar  a  essa  mulher  serpentina  que  o  tra- 
zia enleado,  assentiu.  Mais,  declarou  que  toma- 
va o  irmão  e  companheiro  para  seu  cavalleiro. 
Caprichosamente  a  Rainha  mostrou  desejo  de, 
logo  alli,  armar  cavalleiro  o  seu  protegido. 

Nuno  Alvarez  estremecia  de  alegria.  Via 
chegado  o  ideal  que  tantas  vezes  sonhara,  quan- 
do lia  soíFregamente  os  livros  então  em  moda, 
as  Historias  de  Cavallaria,  como  a  de  Galaaz 
e  da  Tavola  Redonda.  Elle,  que  se  conservara 
casto  e  puro,  ia  receber  a  iniciação  que  tanto 
anciara. 

Buscaram-se  as  armas;  o  arnez,  espada,  es- 


(i)  Chronica  do  Condestabre — Cap.  II,  p.  5. 


o  ESCUDEIRO  DA  RAINHA  I9 

poras...  mas  nenhumas  havia  que  servissem 
ao  corpo  franzino  do  donzel.  Lembrou-se  alguém 
que  as  do  Mestre  de  Aviz  estavam  alli  perto. 
Mandaram-se  pedir.  Singular  destino  de  Deus, 
que  aproximava  assim  pelo  ideal  da  cavallaria 
dois  homens  cuja  vida  havia  de  se  unir  na  re- 
surreição  da  Pátria!  Contrastes  eloquentes: 
dum  lado  o  rei  «que  fizera  fraca  a  forte  gente» 
pela  sua  fraqueza,  simbolizada  nessa  mulher 
perversa,  verdadeiro  fructo  da  sociedade  cor- 
rupta dessa  época.  Do  outro,  o  jovem  Nuno, 
pallido,  loiro,  puro  como  os  anjos,  frágil  creança 
que  nesse  momento  representava,  inconsciente, 
•o  futuro  Portugal. 

Deante  do  desejo  da  Rainha  suprimiram-se 
algumas  formalidades,  que  se  usavam  em  cere- 
monias  como  esta.  Não  houve  jejuns  nem  vigilia 
de  armas.  A  comitiva  entrou  na  capella.  A  es- 
pada já  era  benta,  como  benzidas  eram  as  ou- 
tras peças  do  ritual.  A  pergunta  litúrgica  foi 
feita  pelo  Rei. 

«Qual  é  a  tua  intenção  ao  entrares  na  Ordem? 
Para  te  enriqueceres?  Para  descançares?  Para 
seres  honrado,  sem  honrares  a  Cavallaria?  (i) 
Se  tal   é,  vae-te,  não  és  digno.»...  O  neófito 


(1)  Cfr.  César  Gantu,  Hist.   Univers.  t.  V,  1.  XI, 
cap.  IV.  La  Chevalerie,  pag.  267  e  seg. 


20  VIDA  DO   BEATO  NUNO   ALVAREZ 

respondia  que  não,  que  bem  diversos  eram  os 
seus  ideaes.  Elle  queria  honrar  a  Deus,  a  Reli- 
gião e  a  Cavallaria:  jurava-o  na  espada  do  seu 
senhor  e  Rei. 

A  Rainha  e  as  damas  da  corte  cingiram  as 
armas  ao  jovem  escudeiro:  o  arnez,  a  espada, 
as  esporas.  cToma  esta  espada,  cavalleiro. 
Exerce  com  ella  o  vigor  da  justiça  e  derruba  o 
poder  da  injustiça.  Defende  com  ella  a  Egreja 
de  Deus  e  os  seus  fieis ;  dispersa  os  inimigos  do 
nome  christão ;  protege  as  viuvas  e  os  orphãos» 
O  que  estiver  abatido,  levanta-o.  O  que  tiveres 
levantado,  conserva-o.  O  que  está  conforme 
com  a  ordem,  fortalece-o.  E'  assim  que,  ufano- 
e  glorioso  somente  com  o  triumpho  da  virtude^ 
chegarás  ao  reino  celeste,  onde  reinarás  eterna- 
mente com  o  Salvador  do  mundo».  Terminada 
esta  exortação,  a  própria  Rainha  erguia-se, 
tomava  a  espada  real  nas  mãos,  dava  com  ella 
três  golpes  nos  hombros  do  neófito,  depois  uma 
leve  bofetada  na  face,  dizendo:  «Eu  te  arma 
cavalleiro  em  nome  de  S.  Jorge  e  de  S.  Miguel. 
Sê  valente,  corajoso,  leal».  Depois  coberto  com 
o  elmo,  tomando  o  escudo  e  a  lança  na  maa 
costumava  o  novel  cavalleiro  montar  a  cavallo 
c  apparecer  á  porta  do  templo,  deante  do  povo 
que  o  acclamava.  D.  Nuno  ainda  meditava  na 
oração  do  sacerdote.  tSenhor,  dissera  elle,  é 
para  que  a  justiça  tenha  um  apoio  neste  mundo 


o  ESCUDEIRO  DA  RAINHA  2  I 

€  O  furor  dos  maus  um  freio,  que  permittistes 
-aos  homens,  por  uma  disposição  particular,  o 
uso  da  espada  (i)».  E  promettia,  de  si  para  si, 
que  tal  seria  o  emprego  da  que  havia  recebido. 
Deus,  a  Pátria,  que  passava  por  uma  das  suas 
maiores  crises,  a  justiça  que  elle  via  calcada  aos 
pés  por  essa  sociedade  em  decomposição,  se- 
riam os  ideaes  que  a  sua  espada  havia  de  de- 
fender. Terminada  a  ceremonia  vinha  abraçá-lo  o 
pae,  o  Prior  do  Hospital  D.  Álvaro  Gonçalvez 
Pereira,  que  lhe  communicava  a  resolução  de 
El-Rei,  que  a  seu  pedido  lhe  fizera  a  mercê  de 
o  tomar  «para  morador  em  sua  casa,  dando-lhe 
como  aio  seu  tio  Martim  Gonçalvez  de  Carva- 
lhal, escudeiro  no  paço  e  irmão  da  cuvilheira  da 
Infantazinha  D.  Beatriz,  D.  Iria  Gonçalvez  do 
Carvalhal,  mãe  de  Nuno.  Foi  esta  senhora,  di- 
zem as  Chronicas,  «uma  boa  e  mui  nobre  mu- 
lher e  estremada  em  vida  acerca  de  Deus,  de- 
pois que  houve  aquelles  filhos,  e  viveu  em 
-grande  castidade  e  abstinência,  não  comendo 
carne  nem  bebendo  vinho  por  espaço  de  qua- 
renta annos,  fazendo  grandes  esmolas  e  grandes 
jejuns,  e  outros  muitos  bens.  E  foi  cuvilheira  da 
Infanta  D.  Beatriz,  filha  de  El-Rei  D.  Fernando, 


(i)  J.  Fernando  de  Souza,  Joanna  d' Are  e  Nun' Alva- 
res, Lisboa,  19 16,  pag.  2. 


22  VIDA  DO   BEATO  NUNO  ALVAREZ 

que  depois  foi  Rainha  de  Gastella,  sendo  para 
ella  escolheita  por  sua  grande  bondade  (i)». 

Ficava  pois  Nuno  no  paço  com  mais  tres 
pessoas  da  familia,  a  mãe,  o  tio  e  seu  irmão 
Diogo.  Nascera  elle  no  castello  de  Sernache  de 
Bomjardim,  aos  24  de  junho  de  i36o,  e  fora  le- 
gitimado por  ordem  de  EI-Rei  D.  Pedro,  um 
anno  depois.  Fora  educado  com  grande  cuidado 
pelo  pae  e  «criado  a  grã  viço»,  dizem  as  Chro- 
nicas.  Seu  gosto  predilecto  era  a  leitura  de  livros 
de  cavallaria,  principalmente  a  historia  da  Tavola 
Redonda.  Adestrara-se  egualmente  na  arte  de 
cavalgar  e  no  manejo  de  armas,  nas  caçadas 
em  que  entretinha  os  ócios  da  casa  paterna.  E 
bem  o  provou  no  feito  que  relatamos,  feito  que 
lhe  alcançou  tão  cedo  as  esporas  de  cavalleiro. 
Não  fora  elle  o  único  explorador;  outros  tinham 
sido  enviados  «cavalleiros  e  escudeiros...  que 
fossem  descobrir  terra  para  verem  as  gentes 
de  El-Rei  de  Gastella  que  passavam  para  Lisboa, 
que  gentes  eram  e  a  maneira  que  levavam»; 
estes  nada  acharam  nem  puderam  ver  cousa 
alguma.  Só  os  aventurosos  filhos  de  D.  Álvaro 


(i)  «i4  mãe  de  D6  Nunalvres  se  chamou  Eirea  Gon- 
çalves do  Carvalhal,  dona  de  muyta  prudência  que  de- 
pois viveu  muy  recolheitamente,  morreu  com  muytas 
mostras  de  sanctidade,  que  foi  natural  Relvas.»  Frei 
Simão  Coelho.  —  C.  19,  pag.  77. 


o   ESCUDEIRO  DA   RAINHA  23 

é  que  tiveram  coragem  para  se  arriscar  até 
ás   posições   extremas,   até    avistar   o  inimigo. 

Conta-  Fernão  Lopes  na  Chronica  de  D. 
João  I  (i)  que  segundo  o  costume  da  época,  o 
pae  de  Nuno,  logo  depois  do  nascimento  deste 
filho  pedira  a  um  certo  mestre  Thomaz,  astró- 
logo e  grande  letrado,  o  horoscopio  da  creança, 
e  que  o  dito  mestre  Thomaz  lhe  dissera  que  este 
filho  havia  de  ser  vencedor  de  batalhas  «que  se- 
ria sempre  vencedor  em  todos  os  feitos  d'armas 
em  que  se  acertasse,  e  que  nunca  havia  de  ser 
vencido,  contanto  que  se  chegasse  a  Deus  em 
todas  suas  obras  e  nenhuma  cousa  fizesse  em 
seu  desserviço». 

Nada  mais  natural  do  que  contar-se  isto  á 
creança  para  a  estimular  á  virtude,  já  que  a 
esta  estava  alliado  o  successo  da  sua  carreira. 
Lia  o  jovem  nos  livros  de  cavallaria  que  a  pu- 
reza era  a  virtude  que  tornara  invenciveis  os  he- 
roes  da  Tavola  Redonda,  e  procurava  que  a  sua 
alma  e  corpo  se  conservassem  immaculados. 
Via  como  Deus  os  ajudava,  quando  Lhe  tinham 
sido  fieis,  e  assentava  comsigo  imitar  essa  fide- 
lidade. Assim  se  foi  formando  o  seu  animo  viril, 
que  tantas  attençÕes  atraiu  na  corte.  A  própria 
Rainha  D.  Leonor,  apesar  da  sua  maldade,  não 
podia  deixar  de  estimar  o  seu  angélico  escudeiro, 


(i)  Cap.  XXXIV. 


24  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

tão  puro  e  integro,  não  obstante  o  ambiente 
corrupto  em  que  vivia.  Tem  a  innocencia  este 
condão  de  se  fazer  respeitar  ainda  dos  que  an- 
dam alheiados  da  virtude. 

Sobre  a  família  e  ascendentes  de  D.  Nuno 
muito  se  poderia  escrever.  Contentemo-nos  com 
as  palavras  de  Fernão  Lopes  que  celebra  a  li- 
nhagem de  Nuno,  nomeando  o  seu  avô  D.  Gon- 
çalo Pereira,  bom  e  grande  fidalgo,  de  quem, 
antes  de  ser  arcebispo  de  Braga,  nasceu  o  pae 
de  D.  Nuno.  Gomo  dissemos,  D.  Álvaro  Gon- 
çalvez  Pereira  foi  Prior  da  Ordem  Militar  dos 
Hospitalarios  e  grande  bemfeitor  dessa  milicia 
religiosa.  Esteve  em  Rhodes,  para  prestar  ho- 
menagem ao  grão-mestre.  Construiu  o  castello 
de  Amieira,  de  Bomjardim  e  de  Flor  de  Rosa, 
perto  do  Crato;  aqui  mandou  edificar  uma 
egreja,  onde  jazem  os  seus  restos  mortaes.  Foi 
privado  de  três  reis  de  Portugal:  D.  Affonso, 
D.  Pedro  e  D.  Fernando.  Teve  trinta  c  dois 
filhos,  sendo  D.  Nuno  o  undécimo. 


II 


NA   CORTE   DE   D.   FERNANDO 

Era  El-Rei  D.  Fernando,  no  dizer  de  Fer- 
não Lopes  «grande  creador  de  fidalgos  e  muito 
companheiro  com  elles ;  e  era  tão  mavioso  de 
todos  os  que  com  elle  viviam  que  não  chorava 
menos  por  um  seu  escudeiro,  quando  morria, 
como  se  fosse  seu  filho...  Era  cavalgante  e 
torneador,  grande  justador  e  lançador  atovolado. 
Era  muito  braceiro,  não  achava  homem  que  o 
mais  fosse,  cortava  muito  com  uma  espada  e 
remessava  bem  o  cavallo...  Era  ainda  El-Rei 
D.  Fernando  muito  caçador  e  monteiro,  em 
guisa  que  nenhum  tempo  azado  para  elle  dei- 
xara que  o  não  usasse». 

Daqui  se  pôde  conjecturar  a  vida  de  Nuno 
Alvarez  nos  três  annos  que  passou  na  corte. 
Ahi  se  foi  completando  a  sua  educação  de  fi- 
dalgo, educação  de  que  se  pôde  fazer  idea  pelos 
gostos  e  occupações  do  Rei.  Como  em  casa  do 
pae,  fora  mais  ou  menos  iniciado  nestes  exercí- 
cios, fácil  lhe  foi  no  paço  alcançar  certa  nomeada 


2  6  VIDA  DO   BEATO  NUNO  ALVAREZ 

como  bom  cavalgante,  torneador,  justador  e 
lançador.  Tudo  isto  tornava  cada  vez  mais  sim- 
pático na  côrte  o  jovem  escudeiro.  A  Rainha, 
alegrava-se  pela  escolha  feliz  e  empregava  o  seu 
pagem  de  preferencia  aos  mais,  nos  serviços 
próprios.  Elle  acompanhava  a  soberana  nos  pas- 
seios e  festas,  elle  servia-a  á  mesa,  elle  com- 
municava  aos  próceres  da  côrte  ás  ordens  da 
esposa  de  D.  Fernando. 

Nuno  Alvarez,  como  dissemos,  era  afeiçoado 
á  leitura  dos  livros  desde  os  seus  primeiros 
annos.  Nos  serões  da  côrte  teve  elle  ensejo  de 
conhecer  os  trovadores  que,  já  desde  o  reinado 
de  D.  Dinis,  iam  lançando  as  bases  da  poesia 
nacional,  como  se  pôde  ver  nos  monumentos 
preciosos  que  nos  foram  transmittidos  no  Can- 
cioneiro d'El-Rei  D.  Dinis.  Além  disto,  encon- 
trava na  livraria  incipiente  do  paço  muitos  dos 
seus  auctores  favoritos :  as  novellas  de  cavallaria 
que  tanto  apreciava.  O  Amadis,  de  Vasco  de 
Lobeira;  o  romance  do  Rei  Arthur;  o  de  Santo 
Graal,  a  quem  Fernão  Lopes  chama  de  Santo 
Brial,  e  que  não  é  outra  coisa  senão  corrupção 
das  palavras  Sangue  Real,  por  se  tratar  nelle 
do  famoso  cálice  onde  se  conservava  o  Sangue 
de  Christo,  cálice  escondido  num  recanto  da 
Hespanha  e  que  só  podia  ser  conhecido  de 
quem  fosse  puro,  virtuoso  e  valente;  todos  estes 
livros  eram  o  pasto  favorito  do  seu  espirito.  Na 


NA  CORTE  DE  D.  FERNANDO  2/ 

atmosfera  nobre  e  pura  dessas  leituras  encon- 
trava o  jovem  escudeiro  a  triaga  para  se  guar- 
dar da  corrupção  que  via  na  corte. 

A  soltura  dos  costumes  era  grande.  Os  fi- 
dalgos e  sobretudo  as  fidalgas  que  rodeavam  os 
Reis,  encontravam  na  vida  molle,  efeminada, 
licenciosa  dos  amos  incentivos  para  as  suas 
desordens.  Apesar  das  suas  falias  maviosas  e 
das  caridades  que  fazia  a  Rainha  com  as  suas 
damas,  o  Chronista  não  duvidou  dar-lhe  o  epí- 
teto vergonhoso  de  «lavradoura  de  Vénus»,  di- 
zendo que  o  manto  de  caridade  servia  unica- 
mente para  cobertura  dos  seus  deshonestos 
feitos. 

As  caçadas  eram  o  divertimento  predilecto 
de  El-Rei.  «Trazia  quarenta  e  cinco  falcoeiros 
de  besta,  afora  outros  de  pé  e  moços  de  caça  e 
dizia  que  não  havia  de  folgar  até  que  povoasse 
em  Santarém  uma  rua  em  que  houvesse  cem 
falcoeiros.  Quando  El-Rei  ia  á  caça,  continua 
Fernão  Lopes,  todas  as  maneiras  d'aves  e  cães 
que  se  cuidar  podem  para  tal  desenfadamento, 
todas  iam  em  sua  companhia,  em  guisa  que 
nenhuma  ave  grande  nem  pequena  se  levantar 
podia,  posto  que  fosse  grou  e  betarda,  até  o 
pardal  e  pequena  follosa,  que  antes  que  suas 
ligeiras  pennas  a  pudessem  pôr  em  salvo  pri- 
meiro era  presa  do  seu  contrario Para  ra- 
posas, coelhos  e  lebres  e  outras  semelhantes 


28  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

selvagens  montezes,  levava  El-Rei  tantos  cães 
de  seguir  suas  pegadas  e  cheiro  que  nenhuma 
arte  nem  multidão  de  covas  lhes  prestar  podia 
que  logo  não  fossem  tomadas.  E  porém  nunca 
El-Rei  ia  vez  alguma  á  caça  que  sempre 
nella  não  houvesse  grande  sabor  e  desenfada- 
mento  (i)». 

O  escudeiro  acompanhava  o  Rei,  escondido 
na  multidão  dos  fidalgos  e  servidores  do  paço. 
Para  elle  era  este  divertimento  occasiao  de  to- 
nificar o  espirito  e  lavá-lo  das  impurezas  que  se 
respiravam  na  corte. 

O  povo  leal  português  clamava  contra  os 
desmandos  da  corte,  contra  a  cobardia  do  Rei, 
que,  apesar  da  invasão  do  inimigo,  continuava 
numa  apatia  desesperadora.  Corria  de  bocca  em 
bocca  o  rifão  severamente  satírico,  que  tão  dura- 
mente castigava  o  procedimento  do  monarca:  tEis 
vol-o  vae,  eis  vol-o  vem,  de  Lisboa  para  Santa- 
remi.  Escarnecia  da  politica  tão  cheia  de  incer- 
tezas e  da  falta  de  tacto  e  génio  guerreiro  dum 
Rei,  que  ateava  as  guerras  para  depois  entregar 
o  paiz  á  devastação  do  inimigo.  Nuno  Alvarez 
estremecia  de  raiva  ao  ouvir  as  noticias  que 
vinham  de  Lisboa.  Emquanto  D.  Fernando  tes- 
tava de  assecego»  em  Santarém,  o  exercito  do  rei 
de  Castella  acampava  deante  da  capital.  Hen- 


(i)  Fernão  Lopes,  Chronica  de  D.  Fernando  —  C.  I. 


NA  CORTE  DE  D.  FERNANDO  29 

rique  II  com  suas  hostes  assolava  os  arredores 
da  cidade,  queimava  os  navios  ancorados  no 
Tejo,  destruia  os  arsenaes.  O  assedio  era  em 
breve  reforçado  por  uma  armada  castelhana  que 
bloqueava  o  estuário  e  impedia  a  communicaçao 
por  mar.  Outro  exercito  invadia  o  Minho  se- 
meando a  devastação  por  onde  passava.  Acu- 
diam os  guerreiros  ao  Rei,  para  que  fosse  ao 
encontro  do  inimigo.  D.  Fernando  não  saía  da 
sua  politica  de  hesitações. 

A  mediação  do  Pontífice  Romano  veio  pôr 
termo  a  este  triste  estado  de  coisas.  Gregório  XI, 
que  ao  tempo  occupava  a  cadeira  de  Pedro,  en- 
viara o  Cardeal  de  Bolonha,  Guido  de  Mon- 
tier,  para  ver  se  conseguia  restabelecer  a  paz 
entre  os  dois  príncipes  christãos.  A  missão  do 
Legado  Pontifício  foi  penosa,  mas  por  fim  co- 
roada de  êxito.  Os  dois  reis  ratificavam  em  pes- 
soa, deante  do  Legado,  em  Vallada,  o  tratado 
que  fora  assignado  em  Santarém  pelos  enviados 
dos  soberanos  aos  19  de  março  de  iSyS.  Eram 
humilhantes  as  condições  para  Portugal,  mas 
não  tanto  quanto  merecia  o  procedimento  in- 
qualificável de  D.  Fernando. 

E  o  Rei,  em  vez  de  tratar  da  defesa  do  reino, 
cm  vez  de  recompensar  o  heroísmo  dos  defenso- 
res de  Lisboa,  mal  voltara  para  ella,  movido  pelos 
conselhos  de  Leonor  Telles,  mandava  levantar 
forcas  para  exercer  vindicta  brutal  contra  Fer- 


3o  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

não  Vasquez,  alfaiate  que,  em  nome  do  povo, 
ousara  contrariar  o  casamento  do  Rei  com  a 
adultera.  Outros  populares  caiam  sob  a  vin- 
gança da  Rainha:  a  uns  coníiscavam-se  os  bens; 
a  outros  decepavam-se  os  pés  e  mãos,  pelo  crime 
de,  dois  annos  antes,  terem  querido  evitar  o  mal- 
fadado casamento. 

Nuno  Alvarez  assistia  com  o  coração  con- 
frangido a  tanta  e  tão  revoltante  injustiça.  Se  o 
respeito  devido  á  auctoridade  regia,  a  gratidão 
pela  dama  que  o  armara  cavalleiro,  o  obriga- 
vam a  guardar  silencio,  não  deixava  de  desap- 
provar  intimamente  taes  monstruosidades.  Pa- 
recia-lhe  assistir  á  morte  da  Pátria.  Quão  diversa 
dos  seus  ideaes  era  a  sociedade  onde  vivia ! . . . 
Quanto  adeantara  no  conhecimento  dos  homens, 
quanta  experiência  adquirira  nestes  três  annos! 
Como  desejaria  elle,  o  cavalleiro  da  justiça,  o 
patriota  dedicado,  remediar  a  podridão  que  via 
em  torno  de  si!...  Ao  menos  evitaria  ser  con- 
taminado por  essa  podridão.  Quanto  peores 
eram  os  fidalgos  com  quem  convivia,  quanto 
^mais  corrupta  a  atmosfera  que  respirava,  roais 
puro  elle  deveria  conservar-se  para  a  missão  a 
que  se  sentia  chamado,  missão  ainda  envolvida 
nas  névoas  do  futuro  e  que  mal  podia  adivinhar. 
cQuanto  peor  o  mundo  lhe  apparecesse,  melhor 
tínha  de  ser  elle  para  o  emendar»,  diz  um  seu 
biografo  contemporâneo. 


NA  CORTE  DE  D.  FERNANDO  3  I 

Tinha  então  dezasseis  annos  o  escudeiro. 
Estava  quasi  honaem  feito.  O  habito  de  reflectir 
profundamente  dera  ao  seu  rosto  uma  certa 
gravidade  que  parecia  augmentar-lhe  a  edade. 
A  pureza  da  sua  vida,  a  castidade  immaculada 
que  todos  nelle  reconheciam,  faziam  com  que 
o  tratassem  com  um  respeito  superior  aos  seus 
annos  e  condição.  O  pae  sorria  de  alegria  ao 
contemplar  este  filho,  seu  valido  especial,  pelos 
dotes  que  nelle  observava  e  pela  lembrança  do 
horoscopio.  Pensou  em  dar-lhe  estado.  Bus- 
cou-lhe  uma  noiva  egual  á  posição  que  occupa- 
va;  fallou  com  El-Rei  e  a  Rainha.  Fallou  com 
a  mãe.  Entabolou  negociações  com  a  futura  es- 
posa; depois  resolveu  communicar  o  negocio 
ao  filho  que  tão  alheado  andava  de  seme- 
lhantes pensamentos.  Era  um  successo  que  ia 
transtornar  os  seus  planos.  Havia  nelle  uma  só 
vantagem:  afastá-lo  dessa  corte  licenciosa  e 
corrupta  de  que  já  se  sentia  enojado. 


III 


VIDA  DE  família 

«Nuno,  embora  sejas  moço,  parece-me  que 
é  bem  e  serviço  de  Deus  e  tua  honra  que  hajas 
de  casar.  E  porque  entre  Douro  e  Minho  ha 
uma  mui  nobre  dama  jovem  e  de  grande  bon- 
dade, minha  vontade  é,  se  a  Deus  prouver,  de 
casares  com  ella.  E  quero  saber  de  ti  o  que  te 
parece ;  e  non  lhe  disse  mais ...» 

Longe,  muito  longe  de  taes  projectos,  estava 
o  pensamento  de  Nuno.  Era  coisa,  diz  a  Chro- 
nica  do  Condestabre,  de  que  elle  trazia  a  von- 
tade muito  afastada.  Os  seus  cuidados  eram  ca- 
valgar e  montear  e  ler  livros  de  cavallaria  «es- 
pecialmente a  estoria  de  Galaaz,  em  que  se 
continha  a  soma  da  Tavola  Redonda.»  E  como 
nella  via  que  o  heroe  do  romance,  pela  sua  vir- 
gindade, alcançara  obrar  grandes  coisas,  tam- 
bém elle  cuidava  em  ser  casto,  em  conservar 
illibada  a  sua  pureza  e  confiar  a  Deus  a  sua 
resolução.  Contudo,  como  era  grande  o  respeito 
que  tinha  ao  pae  e  maior  ainda  o  amor  que  lhe 

3 


34  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

consagrava,  não  quis  contrariar  abertamente  os 
planos  paternos.  Deu-lhe,ppis,  uma  resposta  eva- 
siva, que  foi  assim  :  t Senhor,  vós  me  fallaes  em 
casamento,  coisa  de  que  não  estava  avisado ; 
porisso  vos  peço  por  mercê  que  me  deis  lugar 
para  nisto  cuidar ;  e  então  vos  poderei  responder 
o  que  me  parecer». 

Alegrou-se  o  velho  com  resposta  tão  sisuda 
e  communicou-a  á  mãe  de  Nuno,  para  que  tam- 
bém ella  usasse  a  sua  influencia  junto  do  íilho,  a 
fim  de  o  levar  a  abraçar  o  partido  proposto.  Quan- 
do a  mãe  foi  ter  com  o  jovem,  este  respondeu- 
Ihe  com  mais  liberdade  «que  sua  vontade  era  de 
em  nenhuma  guisa  casar».  Baldadas  foram  as 
insistências  e  rogos.  D.  Álvaro,  sabedor  disto, 
encarregou  um  primo  e  um  dos  seus  genros, 
ambos  Alvaros,  que  fallassem  com  o  mancebo. 
E  elles  tanto  porfiaram  que  alfim  Nuno  cedia  ao 
desejo  paterno. 

A  noiva,  D.  Leonor  de  Alvim,  por  sua  parte 
respondera  que  acceitava  o  casamento  que  lhe 
propunham,  se  tal  fosse  a  vontade  de  El-Rei. 
D.  Fernando  enviou  logo  um  mensageiro  á  quinta 
de  Pedrassa,  em  Cabeceiras  de  Basto,  provin- 
da de  Entre  Douro  e  Minho,  chamando  a  fidal- 
ga, viuva  de  Vasco  Gonçalves  Barroso,  á  corte, 
que  ao  tempo  se  encontrava  em  Villa  Nova  da 
Rainha.  Vinha  a  nobre  dama,  filha  de  João  Pires 
Alvim  e  D.  Branca  Pires  Coelho,  com  grande 


VIDA  DE  família  35 

séquito  de  creadagem  e  era  acolhida  com  honra 
pelos  Reis. 

Ao  mesmo  tempo  chegavam  de  Roma  as 
dispensas  que  se  haviam  pedido,  visto  os  noivos 
serem  ainda  ligados  por  parentesco.  Por  ordem 
de  El-rei,  vinha  egualmente  D.  Nuno  com  seu 
pae.  E  no  dia  i6  de  agosto  de  1876  «o  casa- 
mento foi  feito.  E  Nuno  Alvarez  recebido  com 
a  dona  por  palavras  de  presente,  segundo  a 
Egreja  de  Roma  manda :  e  não  se 
fez  outra  festa  como  era  razão  de 
fazer:  porque  ella  era  viuva».  E 
aqui  nota  o  Ghronista,  que,  embora 
a  noiva  fosse  apellidada  dona,  de 
facto  era  donzella,  como  já  antes  do 
casamento  se  assegurara  a  D.  Nuno. 

Os  noivos  partiram  para  Bom- 
jardim,  onde  passaram  a  lua  de  mel.  Aivar«  Pereira 
Folgaram  ahi  alguns  dias,  dando 
occasião  ao  pae  de  fazer  alarde  da  sua  grandeza 
e  liberalidade.  Todos  os  festejavam  como  pes- 
soas merecedoras  das  maiores  simpatias.  A  mo- 
déstia e  modos  prazenteiros  da  esposa  de  Nuno 
captavam  o  coração  de  todos  e,  dum  modo  espe- 
cial, o  do  sogro.  Foi,  pois,  dolorosa  a  despedida 
dos  neo-esposos,  quando  elles  se  resolveram  a 
partir  para  o  solar  minhoto  de  D.  Leonor  de 
Alvim. 

Chegados  a  Pedrassa,  trataram  os  noivos  de 


36  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

organizar  a  casa  com  o  fausto  que  pedia  o  novo 
estado.  D.  Nuno  «despendia  o  seu  tempo  em 
tomar  honestamente  o  prazer  com  sua  mulher» . 
Fazia-Ihe  companhia,  ajudava-a  a  administrar 
as  ricas  propriedades.  E  ella  «lhe  dava  bons 
conselhos  das  maneiras  que  havia  de  ter  em 
aquella  terra  onde  havia  de  viver».  Como  mais 
conhecedora  dos  costumes  dos  fidalgos  do  Mi- 
nho, D.  Leonor  ia-os  communicando  ao  bisonho 
marido.  Este  tinha  ás  suas  ordens  quatorze  es- 
cudeiros e  vinte  a  trinta  homens  de  pé,  segundo 
o  uso  da  terra  pedia.  Eram  todos  «bons  e  bem 
homens,  cá  elie  nunca  doutros  se  contentou  em 
seus  dias»,  diz  o  Chronista.  Com  elles  se  occupa- 
va  no  seu  divertimento  predilecto,  monteando  e 
caçando  nas  suas  extensas  tapadas.  Procurava 
adaptar-se  á  vida  dos  fidalgos  minhotos  e  galle- 
gos  do  tempo,  evitando,  porém,  tudo  o  que  não 
fosse  conforme  a  lei  de  Deus.  Observava,  como 
fiel  temente  de  Deus,  todas  as  prescripções  da 
Egreja  «ouvindo  suas  missas  e  vivendo  bem  com 
sua  mulher».  Era  uma  vida  perfeitamente  pa- 
triarcal, genuinamente  christa,  como  se  usava 
então  nas  nossas  províncias.  Faltam-nos  mais 
particulares  sobre  esta  época.  Mas  podemos 
facilmente  conjecturar  os  pormenores  desse  vi- 
ver tranquillo  de  D.  Nuno  e  D.  Leonor,  alegrado 
pelo  nascimento  de  três  filhos.  Dois,  varões,  mor- 
reram precocemente.  A  filhinha,  Beatriz,  foi  a 


VIDA  DE  família  87 

única  a  sobreviver  á  mãe.  Nella  se  concentravam 
os  aftectos  dos  senhores  do  solar  de  Pedrassa. 
Breve  alcançava  a  estima  e  amizade  dos  vizi- 
nhos, que  não  cessavam  de  admirar  as  prendas 
e  trato  bondoso  de  D.  Nuno.  Vinham  visitá-lo 
frequentemente,  ouviam  da  sua  bocca  a  relação 
das  coisas  que  se  passavam  na  corte,  discutiam 
juntos  os  signaes  da  grande  crise  em  que  ia 
entrar  a  Pátria  e  juntos  formavam  projectos 
para  a  combater.  Firmavam-se  aqui  algumas 
dessas  dedicações  e  amizades  que  haviam  de 
acompanhar  o  guerreiro  nas  suas  futuras  proe- 
zas. Nos  longos  serões  da  casa  solarenga,  as 
conversas  versavam  dum  modo  particular  sobre 
a  guerra.  Todos  queriam  ouvir  da  bocca  de 
Nuno  o  modo  como  vinham  aprestados  para  o 
combate  os  exércitos  do  Rei  de  Castella,  dos 
feitos  dos  seus  soldados  e  do  modo  como  ha- 
viam sido  recebidos  na  invasão.  Por  sua  par- 
te, narravam  as  depredações  que  o  inimigo  fi- 
zara  na  sua  irrupção  pelo  Minho  dentro,  quei- 
xando-se  do  abandono  em  que  os  deixara  El-rei. 
Durante  a  conversa,  os  creados  da  casa  serviam 
aos  convidados  vinho,  doces  e  outras  iguarias, 
como  então  era  de  uso,  preparadas  cuidadosa- 
mente sob  a  direcção  da  laboriosa  e  modesta 
castella.  Ella,  com  suas  damas,  entretinha-se  na 
costura,  lavores,  bordados,  coisas  em  que  eram 
hábeis  as  donas  dos  tempos  idos. 


38  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Nisto  chegam  mensageiros  de  Amieira,  onde 
vivia  o  pae,  trazendo  novas  tristes  do  estado  da 
sua  saúde.  D.  Nuno  partiu  immediatamente  para 
assistir  aos  últimos  momentos  daquelle  a  quem 
muito  amava.  Elle,  com  oito  irmãos  e  outras  tan- 
tas irmãs,  assistiram  á  morte  verdadeiramente 
christã  do  auctor  dos  seus  dias,  precedida  de 
todas  as  reparações  que  exigia  o  estado  em  que 
estava.  Os  funeraes  foram  uma  verdadeira  apo- 
teose do  nobre  e  tão  amado  fidalgo.  Innumeros 
fidalgos  e  grandes  da  terra,  muita  cleresia,  assim 
de  frades  como  de  clérigos,  parentes,  amigos  e 
creados  formavam  o  cortejo  fúnebre  que  acom- 
panhava o  féretro,  de  Amieira  para  a  Egreja  da 
Flor  da  Rosa,  onde  o  defunto  mandara  preparar 
o  seu  jazigo,  cdentro  da  ygreja  de  Santa  Maria, 
que  elle  no  lugar  fez,  em  hum  formoso  e  bem 
obrado  muymento» ;  egreja  notável  pela  sua  ar- 
quitectura e  ainda  mais  pelas  romarias,  que  a 
ella  vinham,  attraidas  pelas  graças  e  indulgên- 
cias de  que  fora  enriquecida. 

El-rei  consolava  a  familia  enlutada,  nomeando 
para  o  cargo  do  pae  o  irmão  mais  velho  de  D. 
Nuno,  Pedro  Alvarez,  preterindo  os  direitos  que 
tinha  o  commendador  de  Poiares,  Álvaro  Gon- 
çalvez  Camello.  D.  Nuno  voltava  para  junto  da 
esposa  e  retomava  o  teor  pacifico  da  vida  que 
narramos. 

Estava  preoccupado  com  as  noticias  que  lhe 


VIDA  DE  família  Sç 

haviam  dado  os  fidalgos  que  tinham  vindo  da 
corte  para  assistir  ao  funeral.  Narravam  estes 
como  depois  da  morte  de  Henrique  de  Gastella, 
seu  successor,  João  I,  entrara  em  negociações 
com  o  soberano  português.  Como  a  figura  si- 
nistra de  João  Fernandes  Andeiro,  fidalgo  gal- 
lego,  adquiria  influencia  notável  na  corte.  Gomo 
as  más  linguas  commentavam  as  relações  desse 
fidalgo  com  a  Rainha.  Este  homem,  movido  pela 
Rainha,  tentava  desfazer  a  clausula  que  se  esti- 
pulara na  recente  revisão  do  tratado  de  Vallada, 
clausula  em  que  se  assentara  o  casamento  da 
princesa  real,  herdeira  do  trono,  com  o  filho 
do  Rei  Castelhano.  Como  elle  fora  enviado  se- 
cretamente á  Inglaterra  para  negociar  com  o 
duque  de  Lancastre  uma  alliança  contra  Cas- 
tella.  Rumores  dessas  negociações  haviam  che- 
gado á  corte  de  Castella;  parecia  que  em 
breve  recomeçaria  a  guerra;  os  preparativos, 
que  João  I  fazia,  davam-no  a  entender  clara- 
mente. 

Passados  alguns  dias,  confirmavam-se  as  no- 
ticias. O  Mestre  de  Santiago,  Fernando  Anco- 
res, invadira  a  provincia  do  Alemtejo.  A  esqua- 
dra portuguesa  que,  sob  o  commando  do  irmão 
da  Rainha,  o  conde  AfFonso  Tello,  fora  bloquear 
Cadix  e  Sevilha,  tinha  sido  derrotada  em  Saltes. 
Seis  mil  homens  e  setenta  mil  dobras,  que  va- 
diam os  navios,  era  a  perda  desse  formidável 


40  VIDA  DO  BEAFO  NUNO  ALVAREZ 

desastre.  Outros  rumores  sinistros  carregavam 
o  aspecto  da  situação. 

D.  Nuno,  «tanto  que  vio  o  recado  de  elrey», 
saiu  immediatamente  com  uma  escolta  de  vinte 
e  cinco  lanças  e  trinta  homens  de  pé.  Viera  cor- 
rendo a  Santarém  e  daí  voara  a  Portalegre, 
onde  estava  como  fronteiro  seu  irmão  Pedro 
Alvarez.  Terminava  para  Nuno  a  vida  bucólica 
de  Pedrassa,  para  dar  logar  á  vida  de  armas. 


IV 


o  SOLDADO 

D.  Fernando  Ancores,  Mestre  de  Santiago, 
commandava  as  hostes  castelhanas  que  inva- 
diam Portugal.  Começara  elle  as  suas  correrias 
pela  região  entre  o  Tejo  e  o  Guadiana,  pene- 
trando até  Pavia  e  Coruche,  donde  levara  muita 
gente  presa  e  grande  copia  de  gado. 

El-rei  ordenava  ao  marechal  Gonçalo  Vaz 
de  Azevedo  que  fosse  entender-se  com  o  Mes- 
tre do  Hospital  e  combinasse  o  melhor  modo 
de  repellir  o  inimigo.  Sabendo  que  este  se  en- 
contrava em  Badajoz,  resolveram  os  portugue- 
ses, reunidos  em  Villa  Viçosa,  ir  caminho  de 
Elvas  para  o  atacar  de  surpresa.  Dividiram  os 
seus  homens,  que  subiam  até  mil  lanças  «de  se- 
nhores e  boÕs  fidalgos  e  cavalleiros  e  escudei- 
ros». Havia  além  disso  uns  quatro  a  cinco  mil 
besteiros  e  peões.  Na  vanguarda,  ia  Nuno  Alva- 
rez. Gonçalo  Vaz  dirigia  a  retaguarda.  Assim 
marcharam  até  ás  immediações  de  Villa  Boim. 

D'aqui,  D.  Nuno  saiu  a  explorar  o  campo, 


42  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

pelo  sobreiral,  que  fica  entre  Villa  Viçosa  e  El- 
vas. Nas  ladeiras  de  Villa  Bokn  caminhavam  os 
besteiros  e  peões.  O  sol,  brilhando  nas  suas  lan- 
ças, dava  lhes  um  aspecto  de  exercito  bem  orga- 
nizado. Esquecera-se,  porém,  D.  Nuno  de  que 
estas  forças  eram  as  do  seu  próprio  exercito, 
enviadas  á  frente  da  vanguarda.  Tomou-as, 
porísso,  como  exercito  inimigo.  Sem  mais,  com 
o  coração  alvoroçado,  cavalgou  para  onde  es- 
tava o  commando,  e,  apenas  chegado,  clamou : 

—  Senhores,  boas  novas  ! 

—  Que  novas  são,  Nuno  Alvarez  ?  pergunta- 
vam os  da  vanguarda. 

—  Digo-vos,  senhores,  que  vós  tendes  aqui  O 
Mestre  de  Santiago  de  Gastella  que  vós  ides 
buscar,  o  qual  vem  prestes  para  nos  poer  a  ba- 
talha. E  assim  nos  escusa  o  trabalho  de  o  ir 
buscar. 

Alegraram-se  os  valentes  portugueses  que  o 
acompanhavam  na  vanguarda;  não  assim,  po- 
rém, Gonçalo  Vaz,  que  se  receou  do  êxito  duma 
peleja  naquele  momento.  Contudo,  uns  e  ou- 
tros se  encaminharam  para  o  annunciado  inimi- 
go, descobrindo-se  então  a  verdade.  Continua- 
ram a  sua  marcha  até  Elvas,  sitiada  pelo  in- 
fante D.  João,  que  viera  em  socorro  do  Mestre 
de  Santiago,  {leuniram-se  os  caudilhos  lusitanos 
em  conselho  para  deliberar  o  que  se  deveria  fa- 
zer com  o  reforço  recebido  agora  pelo  inimigo. 


o  SOLDADO 


43 


A  resolução  desgostou  profundamente  a  Nuno 
Alvarez ;  os  vários  fronteiros  haviam  decidido 
abandonar,  a  peleja  e  recolher-se  a 
suas  terras.  Mais  uma  vez  se  ma- 
lograva o  desejo  do  valoroso  man- 
cebo. O  exercito  português  dis- 
solvia-se.  D.  Nuno  voltava  com  seu 
irmão  para  Portalegre. 

Parecia-lhe,  contudo,  que  esse 
procedimento  era  vergonhoso.  Me- 
ditou comsigo  um  modo  de  o  re- 
parar. Sabendo  que  os  filhos  do 
Mestre  de  Santiago  estavam  no 
exercito  que  assediava  Elvas,  man- 
dou reptar  D.  João  de  Ancores, 
primogénito  do  Mestre,  para  um 
combate  de  dez  contra  dez.  Esco- 
lhesse elle,  entre  os  seus,  dez  ca- 
valleiros,  e  elle  levaria  outros  tan- 
tos portugueses.  Pelejariam,  e  o 
vencido  cederia  o  terreno  aos  ven- 
cedores. 

D.  João  acceitou  o  repto.  En- 
tre os  companheiros  de  D.  Nuno 
estavam:  Martim  Eannes,  com- 
mendador  de  Pedroso;  Gonçalo 
Eannes  de  Abreu,  senhor  de  Gastello  de  Vide ; 
Vasco  Fernandes,  Affonso  Pires  e  Vasco  Nu- 
nes do  Outeiro.  Pediram  salvo-conducto  para 


Espada 

do  Con  desta vel 

D.  Nuno  Alvarez 


44  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Castella,  e  já  estavam  prestes  a  partir,  quando 
a  intervenção  inesperada  do  Prior  do  Hospital, 
por  mandado  d'El-rei,  vinha  também  desfazer 
esse  plano  de  desforço. 

«Irmão,  lhe  disse  elle  antes  da  partida,  vejo 
que  vossa  intenção  é  boa,  mas  com  razão  vos 
posso  dizer  agora:  €Al  cuida  o  baio  e  ai  cuida 
quem  no  sella.v  E  contava-lhe,  como  El-rei,  sa- 
bedor do  caso,  enviara  ordem  para  que  tal  de- 
safio não  fosse  adeante.  E  mais  ordenara  que 
ambos  fossem  immediatamente  á  sua  presença. 
Iriam  juntos,  quanto  antes. 

Nuno  não  acreditava.  Julgava  tratar-se  dum 
ardil  do  irmão  para  o  afastar  do  perigo.  Mas, 
quando  este  lhe  mostrou  a  carta  do  monarca, 
curvou-se  deante  da  ordem  régia.  Iria  advogar 
a  sua  causa  ante  Sua  Mercê.  Mostrar-lhe-hia 
a  vergonha  de  fugir  ao  combate,  depois  de  um 
repto  tão  solemne.  Convencê-lo-hia,  e  voltaria 
depressa.  Que  se  apressasse,  pois,  a  viagem  a 
Lisboa,  onde  estava  a  corte. 

Mal  chegou  á  presença  d'El-rei,  perguntou-lhe 
este  «como :  estava  a  obra  começada  com  João 
Ancores. 

—  Senhor,  retorquiu  o  mancebo,  com  o  rosto 
inundado  dum  rubor  modesto,  Vossa  Mercê 
sabe-o  tão  bem  ou  melhor  do  que  eu. 

—  Dize-me,  Nuno  Alvarez,  de  verdade  fazieis 
vós  isto  que  começastes  ? 


o  SOLDADO  45 

—  Pela  nossa  Santa  Fé,  de  verdade  e  com 
boa  e  desejada  vontade. 

—  Mas  qual  era  a  razão  porque  se  movia  a 
semelhante  empresa  ? 

—  Senhor,  a  Vossa  Mercê  saiba  que  por  eu 
ser  como  sou,  vosso  creado,  e  pelas  muitas  mer- 
cês que  meu  padre  e  meu  linhage,  e  mesmo 
eu  hei  de  vós  recebidas,  e  entendo  de  receber, 
mais  ao  deante:  em  grande  desejo  de  vos  servir 
em  tal  cousa,  que  vossa  mercê  se  houvesse  de 
mim  por  bem  servido.  E  conspirando  (conside- 
rando) como  o  Mestre  D.  Fernando  Ancores 
vos  ha  feitos  alguns  desserviços  em  vossa  terra, 
em  esta  guerra,  que  a  vossa  mercê  ha  com  El- 
rei  de  Gastella,  e  como  eu  não  sou  em  tal  estado 
nem  de  tanta  gente,  nem  de  tal  maneira,  que 
lh'o,  por  agora,  de  presente,  pudesse  contrariar, 
e  vendo  como  João  de  Ancores  é  bom  cavalleiro 
e  rijo,  e  é  seu  filho,  o  qual  muito  ama,  cuidei  de 
requestar,  como  de  feito  fiz,  para  me  matar  com 
elle,  dez  por  dez,  como  a  vossa  mercê,  já  bem 
sabe.  E  esto  por  duas  cousas :  a  primeira  por- 
que se  a  Deus  prouvesse  de  eu  d'elle  levar  a 
melhor,  por  fazer  nojo  e  desprazer  a  seu  padre; 
e  emenda  de  nojo,  que  vos  elle  em  vossa  terra 
fez,  pois  que  por  agora  a  mais  não  posso  abran- 
ger. E  a  segunda,  porque  posto  que  eu  hi  fale- 
cesse seria  com  minha  honra:  e  entendo  que 
faleceria  bem,  pois  é  vosso  serviço.  E  porem 


ESTATUA    DE    D,    NUNO 
pelo  Sr.  Simões  d'Almeida  (sobrinho) 


V 


ESTREIA   NA   GUERRA 

Pouco  depois  de  arribar  a  esquadra  in- 
glesa, com  o  contingente  que  vinha  ajudar-nos 
contra  o  Rei  de  Gastella,  entrava  pelo  Tejo  a 
esquadra  victoriosa  castelhana,  para  bloquear 
Lisboa.  Fronteiro-mór  da  cidade  era  Gonçalo 
Mendes,  homem  de  poucos  espíritos,  que  não 
soube  organizar  a  defesa  da  capital.  Nada  fazia 
para  se  livrar  das  frequentes  incursões  dos  cas- 
telhanos que  vinham,  em  bateis,  devastar  e  rou- 
bar nos  arrabaldes.  «Gonçalo  Mendes,  diz  Fernão 
Lopes  (i),  não  tornava  a  ello  com  algum  remé- 
dio, nem  deixava  sahir  as  gentes  da  cidade,  di- 
zendo que  de  guardar  o  logar  deviam  ter  cui- 
dado, e  doutra  coisa  não».  / 

«El-Rei,  continua  o  mesmo  auctor,  houve 
delia  grande  melancolia,  e  disse  que  lhe  pare- 
cia que  Gonçalo  Mendes  era  nisto  tal  como  o 
servo  que  diz  no  Evangelho:  a  quem  o  senhor 


(i)  Chronica  de  D.  Fernando  —  Cap.  CXXXVI. 


5o  VIDA   DO  BEATO   NUNO  ALVAREZ 

deu  um  marco  d'oiro,  com  que  trabalhasse  por 
seu  serviço  e  proveito,  e  elle  escondeu-o  sob  a 
terra,  sem  fazer  com  elle  nenhuma  prole,  pela 
qual  razão  foi  julgado  do  senhor  por  servo  mau 
e  preguiçoso.  E  Gonçalo  Mendes,  disse  El-Rei, 
por  tal  deve  ser  julgado.  Queria  guardar  a  ci- 
dade onde  estava  seguro  dos  inimigos  e  deixar 
destruir  o  termo  e  logares  de  redor  delia !» 

Foi  em  substituição  deste  fronteiro  que 
chamou  ao  Prior  do  Hospital  e  seus  irmãos : 
Rodrigo  Alvarez  (o  olhinhos),  Nuno  Alvarez, 
Diogo  Alvarez,  Fernão  Pereira  e  Álvaro  Pe- 
reira. Acompanhavam-nos  outros  e  bons  fidal- 
gos. 

Em  breve  se  viu  o  acertado  da  escolha.  Logo 
depois  de  o  Prior  ter  tomado  posse  do  seu  cargo, 
correu  noticia  de  que  os  castelhanos  haviam  feito 
uma  incursão  no  termo  de  Cintra,  onde  rouba- 
vam mantimentos  e  gado.  Immediatamente  deu 
ordem  para  que  se  organizasse  uma  expedição, 
c  foi  com  ella  esperar  os  inimigos.  Estes,  habi- 
tuados a  devastar  impunemente  o  paiz,  não  espe- 
ravam resistência.  Grande,  pois,  foi  o  seu  espan- 
to, quando  de  repente  se  viram  cercados  pelos 
portugueses.  Como  vinham  descuidados  e  mal 
apercebidos,  foram  facilmente  derrotados,  fi- 
cando muitos  mortos  e  prisioneiros.  Quando  o 
Prior  entrou  em  Lisboa  com  os  cativos  e  os 
despojos  que  lhes  tomara,  houve  «grão  prazer» 


ESTREIA  NA  GUERRA  5l 

na  cidade.  Os  lisboetas  readquiriram  a  confiança 
nos  seus  chefes. 

Não  contente  com  esta  victoria,  quiz  D.  Nuno 
armar  outra  cilada  ao  inimigo,  que  certamente 
viria  desforrar-se  do  desastre  soífrido.  Um  dia, 
«m  que  o  Prior  estava  ausente,  D.  Nuno  com- 
binou com  seu  cunhado,  Pedro  Affonso  do  Ca- 
sal, uma  espera  aos  castelhanos  que  vinham  ás 
uvas  dos  vinhedos  dos  arrabaldes.  Reuniram 
uns  23  homens  de  cavalo  e  até  3o  besteiros, 
«  foram-se  postar  junto  da  ponte  de  Alcântara, 
para  além  do  mosteiro  de  Santos,  perto  do 
Restello.  Encobertos  pelos  muros  e  arvores,  es- 
peravam o  inimigo.  Entretanto,  D.  Nuno  ia  ani- 
mando os  seus  e  instruindo-os  do  modo  como 
se  deveriam  haver  na  refrega.  Nisto  divisaram 
um  batel  com  uns  20  homens  das  naus  inimigas. 
Vinham  ás  uvas.  Esperaram  que  os  homens 
desembarcassem ;  deram-lhes  tempo  de  subir 
até  um  barranco,  acima  do  qual  estava  a  vinha, 
€  cercaram-nos ;  os  cavalleiros,  pelo  lado  da 
praia,  os  besteiros,  da  parte  contraria.  Nuno  Al- 
varez desmonta  do  cavallo  e  vae  atacar  os  inva- 
sores. Tão  rijo  foi  o  ataque,  que  os  castelhanos, 
amedrontados,  deram  ás  de  Villa  Diogo,  com 
quanta  velocidade  podiam.  Mas  debalde.  Os  por- 
tuguezes  foram-lhes  no  encalçe,  prenderam  al- 
guns, feriram  outros.  Só  escaparam  os  que  se 
lançaram  ao  Tejo  em  demanda  do  barco,  a  nado. 


52  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Das  naus  via-se  a  refrega.  Excitados  pela 
derrota  dos  seus,  despacham  immediatamenie 
bateis  com  homens  de  armas,  besteiros  e  peÕes^ 
uns  25o  combatentes.  Nuno  Alvarez  alegrava- 
se.  Via  chegada  a  occasião  de  mostrar  o  seu 
valor  e  de  prestar  ao  Rei  um  serviço  de  alguma 
monta.  «Amigos  e  irmãos,  dizia  elle  aos  seus, 
bem  sabeis  a  tenção  para  que  sahimos,  que  não 
cumpre  vos  dizer  mais,  c  ora  me  parece  que 
tendes  prestes  o  que  viestes  buscar,  do  que 
deveis  ser  muito  ledos,  cá  da  minha  parte  eu  o 
sou  assaz.  E  rogo-vos  que,  pois  á  mão  vêem  os 
que  desejamos  e  porque  aqui  viemos,  que  vos 
praza  de  serdes  lembrados  de  vossas  honras  e 
de  aporfiar  em  pelejar;  que  por  causa  que  ave- 
nha  nunca  tornedes  as  costas.  E  para  esto,  com 
ajuda  de  Deus,  eu  serei  o  primeiro  que  em  elles 
toparei ;  vós  seguide-me  e  íazede  como  eu  fizer, 
e  certo  sede  que  os  castelhanos  não  vos  soffre- 
rão,  se  em  vós  sentirem  esforço  de  bem  fazer, 
mas  logo  volverão  as  costas,  porque  não  teem 
esperança  de  outro  accorro  e  assim  nos  ajuda- 
remos delles,  para  alcançardes  grã  fama  e  muita 
honra  que  vos  sempre  durará  (i)>. 

Estas  e  outras  palavras  que  Nuno,  cheio  de 
entusiasmo  e  fé  na  victoria,  dizia  aos  seus,  não 
tiveram  o  eãeito  desejado.  Arreceavam-se  os 


(i)  Chronica  do  Condestabre — Cap.  XII. 


ESTREIA  NA  GUERRA  53 

portugueses  de  travar  lucta  com  tal  desegual- 
■dade  de  numero.  Os  inimigos  eram  cinco  vezes 
superiores.  De  mais,  Nuno  Alvarez  ainda  não  al- 
cançara o  prestigio  que  mais  tarde  teve.  A  pru- 
dência impunha-se.  Melhor  era  evitar  temerida- 
des. E  assim,  longe  de  se  adeantarem,  os  seus 
iam  recuando.  Os  adversários  desembarcavam 
sem  resistência  e  vinham  em  magotes  compa- 
•ctos  contra  o  troço  dos  lusitanos. 

D.  Nuno  olhou  em  roda  de  si  e  viu  com 
pena  que  ia  rareando  o  seu  esquadrão.  Em 
breve,  encontrava-se  quasi  só,  tal  é  a  força  do 
mau  exemplo.  E  contudo,  não  arredou  pé,  an- 
tes, esporeando  o  cavallo,  lançou-se  qual  massa 
•de  ferro  contra  o  grosso  do  inimigo.  Com  au- 
dácia que  aterrava  os  próprios  castelhanos, 
D.  Nuno  brandia  a  sua  lança  contra  as  mós  de 
homens;  quebrada  esta,  arrancava  da  espada  e 
ia  decepando  cabeças  á  direita  e  esquerda.  O 
•cavallo,  desesperado  pelos  golpes  que  recebia, 
espinoteava  furiosamente,  ferindo  os  circunstan- 
tes. Era  um  leão  desesperado  defendendo-se  con- 
tra uma  alcateia  de  lobos  furiosos.  Nisto,  o  ca- 
vallo ferido  baqueia  e  arrasta  comsigo  o  destemido 
luctador,  prendendo-se  á  cilha  uma  das  pernas  de 
D.  Nuno.  Os  castelhanos  precipitam-se  sobre  o 
infeliz  cavalleiro  e  feremno  desapiedadamente 
com  lançadas.  Felizmente,  as  solhas  da  arma- 
dura resistiam  aos  golpes,  de  modo  que  nenhuma 


54  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

atravessara  a  couraça.  Mais  uns  minutos,  e 
Nuno  teria  pago  com  a  vida  a  sua  estranha  te- 
meridade. 

Ao  ver  o  estado  em  que  se  achava  D.  Nuno, 
os  seus,  cheios  de  vergonha,  já  se  não  pude- 
ram conter.  Correram  em  seu  auxilio,  indo  á 
frente  um  clérigo,  por  nome  Vasco  Eannes  do 
Couto,  que  era  homem  valente  e  esforçado.  Sal- 
tou para  junto  de  D.  Nuno;  cortou  a  cilha  e, 
libertando  assim  o  jovem  guerreiro,  puseram-se 
ambos  na  defensiva.  Os  outros  acudiram  tam- 
bém dando  de  rijo  contra  os  inimigos.  Nisto, 
chegaram  dois  irmãos  de  D.  Nuno:  Diogo  Al- 
varez e  Fernão  Pereira,  com  mais  alguns  re- 
forços. A  lucta  que  se  seguiu  foi  tremenda.  De 
parte  a  parte  jogava-se  a  vida  com  bravura  sem 
egual.  Em  breve,  porém,  a  victoria  se  inclinava 
do  lado  dos  portugueses.  O  inimigo  debandava 
em  direcção  da  praia  buscando  os  barcos.  Aí  tra- 
vou-se  nova  peleja.  Muitos  dos  castelhanos  caí- 
ram feridos  ao  Tejo.  Os  que  se  salvaram,  ape- 
nas puderam  levar  á  frota  a  noticia  do  desastre. 

E  o  que  é  mais  para  admirar,  nenhum  dos 
portugueses  morreu  nesta  refrega,  embora  mui- 
tos ficassem  feridos.  A  mortandade  foi  nos  ca- 
vallos;  nove  haviam  ficado  no  campo,  sendo  o 
primeiro,  como  dissemos,  o  de  D.  Nuno.  Este 
voltava  com  o  corpo  pisado  dos  golpes  recebi- 
dos, mas  sem  uma  ferida  sequer. 


ESTREIA  NA  GUERRA  55 

Os  da  cidade,  que  haviam  presenciado  de 
longe  a  lucta,  acolheram  com  grandes  applau- 
sos  os  luctadores.  A  refrega  acabara  com  as 
depredações  do  inimigo  nos  campos  circumvi- 
zinhos  de  Lisboa ;  já  se  não  atreviam  a  desem- 
barcar. A  gente  do  povo  ia  contando,  de  bocca 
em  bocca,  os  feitos  de  D.  Nuno,  que  pouco  a 
pouco  começava  a  ser  o  idolo  da  cidade.  Via-se 
que  havia  nelle  um  caracter,  um  homem  em 
quem  poderia  confiar  a  nação  na  crise  gravis- 
sima  que  em  breve  iria  atravessar,  crise  que 
todos  presentiam,  como  aproximando-se  a  pas- 
sos agigantados. 


VI 


PAZ    INESPERADA 

O  successo,  que  levamos  narrado,  deu-se  em 
agosto  de  i382.  Dias  depois,  chegava  a  Lisboa  a 
noticia  de  que  El-rei,  acompanhado  dos  chefes 
da  expedição  inglesa,  fôra,  com  os  dois  exérci- 
tos, de  Evora  para  Elvas,  a  fim  de  offerecer 
batalha  ao  Rei  de  Castella.  Este  acampara  em 
Badajoz. 

Nuno  Alvarez,  apenas  ouviu  a  nova,  deter- 
minou comsigo  ir  ter  com  o  Rei  e  pedir-lhe  a 
graça  de  tomar  parte  na  batalha.  Communicou 
o  desejo  ao  seu  irmão,  fronteiro  de  Lisboa;  mas 
este  respondeu-lhe,  apresentando  as  ordens  rece- 
bidas do  monarca,  que  se  deixasse  ficar  em  Lis- 
boa, para  defender  a  cidade,  contra  qualquer 
surpresa  naval  dos  castelhanos. 

Ficou  triste  e  anojado,  diz  a  Ghronica,  com 
semelhante  resposta,  insistiu  com  o  irmão;  «por 
mercê  lhe  deixasse  ser  com  El-rei  na  batalha». 
Este,  porém,  mostrava-se  irreduetivel.  Então 
Nuno  affastou-se.  Havia  de  ir,  a  todo  o  custo. 


58  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

El-rei  não  poderia  condemnar  o  seu  procedi- 
mento. Em  Lisboa  não  era  necessária  a  sua  pre- 
sença. Quatro  ou  cinco  homens  de  menos  não 
afrouxavam  a  defesa  da  cidade. 

Retirou-se,  pois,  para  a  sua  pousada,  e  come- 
çou a  €  concertar  a  sua  ida'»  muito  em  segredo. 
Não,  porém,  tanto  que  o  Prior  não  adivinhasse 
os  designios  do  irmão.  Mandou  que  se  guar- 
dassem bem  as  portas  da  cidade,  que  ninguém 
saisse  para  fora,  sem  licença  sua.  Nuno  deixou 
passar  aquelie  dia  apparentemente  inactivo.  A' 
meia  noite,  elle  e  mais  cinco  escudeiros,  apre- 
sentam-se  deante  das  portas  de  S.  Vicente;  for- 
çam os  guardas  e,  a  todo  o  galope,  dirigem-se  a 
Elvas.  Aqui,  El-rei,  conhecedor  do  caracter  de 
Nuno,  ouve  complacentemente  a  sua  explicação 
e  acolhe-o  nas  fileiras. 

Entretanto,  de  parte  a  parte,  continuavam  os 
preparativos  da  imminente  batalha.  D.  Fernan- 
do, seguindo  as  usanças  inglesas,  nomeava  con- 
destavel  do  exercito  a  D.  Álvaro  Peres  de  Cas- 
tro, e  marechal  a  Gonçalo  Vasquez  de  Azevedo. 
Era  a  primeira  vez  que  semelhantes  cargos  se 
introduziam  em  Portugal.  Dantes,  ambos  estes 
officios  eram  exercidos  pelo  alferes-mór  do 
exercito. 

A  vanguarda  portuguesa  estava  confiada  ao 
commando  do  Conde  de  Cambridge,  que  vinha 
acompanhado  do  contingente  que  trouxera  com- 


PAZ  INESPERADA  5^ 

sigo  da  Inglaterra.  El-rei  em  pessoa  comman- 
dava  a  retaguarda.  O  inglês  arvorava  o  pendão 
de  Castella,  como  pretendente  que  era  desse 
reino.  Entre  este  e  a  bandeira  portuguesa  flu- 
ctuava  o  estandarte  dos  cruzados,  por  especial 
concessão  do  Papa  Urbano  VI,  a  quem  seguiam 
tanto  os  portugueses  como  os  seus  alliados. 
Castella  reconhecera  a  soberania  do  antipapa 
de  Avinhão. 

Nas  margens  do  Caia  dispôs  D.  Fernando  o 
seu  exercito  em  formação  de  batalha.  Mas,  por 
motivos  que  os  chronistas  não  mencionam,  o  so- 
berano de  Castella  não  acceitou  o  combate.  En- 
tíou  secretamente  mensageiros  offerecendo  a 
paz;  provavelmente  a  presença  dos  ingleses  in- 
cutira medo  aos  seus  combatentes.  Foram  bas- 
tante vantajosas  para  Portugal  as  condições 
desta  paz.  Uma  delias  era  que  o  castelhano  for- 
neceria navios  para  repatriar  os  auxiliares  ingle- 
ses; o  Rei  e  o  povo  haviam  experimentado  o 
pesado  desta  carga.  Outra  condição  era  o  casa- 
mento da  única  filha  de  El-rei,  a  infanta  D.  Bea- 
triz, com  o  filho  recem-nado  do  monarca  h espa- 
nhol. Era  a  quarta  vez  que  a  pobre  creancinha 
de  nove  annos  mudava  de  marido! 

Concluído  este  acto,  o  único  importante  da 
sua  vida,  D.  Fernando,  sentindo  aggravarem-se 
os  seus  achaques,  retirou-se  de  Elvas,  deixando 
á  Rainha  o  encargo  de  dirigir  os  esponsaes  no- 


6o  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

* 

vãmente  contratados.  Nisto  morreu  a  Rainha  de 
Castella,  e  então  fez-se  a  ultima  mudança  de 
noivo  da  pobre  infantazinha.  Agora,  era  o  pró- 
prio Rei  de  Castella,  viuvo,  D.  João  I.  Este  aco- 
lhia a  noiva  do  seu  segundo  filho,  como  meio 
de  unir  Portugal  aos  seus  dominios. 

Com  a  paz  com  Castella  vinha  também  uma 
mudança  no  Pontifice  reconhecido  pelo  Rei  por- 
tuguês. Quando  se  tratou  desta  questão,  apa- 
rece pela  primeira  vez  a  figura  do  Dr.  João  das 
Regras,  de  que  tanto  teremos  de  fallar  no  de- 
curso desta  historia.  Protestava  elle  contra  o 
reconhecimento  do  papa  de  Avinhão,  porque  de 
direito  o  não  era. 

El-rei  e  a  corte  tinham  ido  de  Rio  Maior 
para  Santarém.  Daqui  partiu  a  Rainha  D.  Leo- 
nor com  sua  filhinha  para  Eivas,  afim  de  fazer 
entrega  a  D.  João  de  Castella,  da  sua  noiva.  As 
festas  foram  luzidas.  Descrevem-nas  com  gran- 
des pormenores  os  nossos  chronistas.  Durante  o 
banquete,  deu-se  uma  scena  que  nos  vae  apre- 
sentar de  novo  o  nosso  biografado  num  desses 
arrancos  pundonorosos,  que  revelam  uma  alma 
Verdadeiramente  briosa. 

Demos  a  palavra  ao  auctor  da  Chronica  do 
Condestabre.  Assim  os  factos  aparecem  melhor, 
na  singeleza  heróica  com  que  foram  decor- 
rendo. 

Feita  a  festa  das  bodas,  cum  dia  veio  El-rei 


PAZ  INESPERADA  6l 

de  Castella  a  Elvas  (veio  de  Badajoz,  onde 
estava  alojado).  E  foi-lhe  feita  sallamui  solemne, 
em  a  qual  comeram  todos-los  grandes  que  hi 
eram  de  Portugal  e  grande  parte 
dos  de  Castella.  E  entre  os  fi- 
dalgos portugueses,  que  foron 
ordenados  comer  na  salla,  fora 
Nuno  Alvarez  e  Fernão  Pereira, 
seu  irmão.  E  na  salla  eram  mui- 
tas mesas:  e  as  três  mesas  prin- 
cipaes,  a  saber:  a  de  El-rei  que 
era  muito  alevantada,  como  cum- 
pria á  mesa  de  Rei,  uma  da 
parte  direita  e  outra  da  sestra 
(esquerda)  da  mesa  de  El-rei.  E 
em  uma  destas  duas  mesas  eram 
assignados  para  comerem  nella, 
com  outros  fidalgos,  Nuno  Alva- 
rez e  Fernão  Pereira,  seu  irmão. 
E  quando  veio  ao  assentar,  el- 
les,  como  missura,  não  se  tri- 
garam  (appressaram)  ao  assen- 
tar. E  a  mesa  em  que  elles  eram 
assignados  para  comer,  foi  muito 

.    ,  ,      .  .  Espada  de  D.  João  I 

azinha   cheia   de  portugueses  e 
mais  de  castelhãos;  e  delles  não  fizeram  conta, 
pêro  (embora)  fossem  bem  conhecidos,  e  esti- 
vessem bem  guarnidos.  E  elles  quando  esto  vi- 
ram, e  viram  o  tronco  da  mesa  todo  cheio,  que 


02  VIDA   DO   BEATO  NUNO  ALVAREZ 

não  tinham  onde  se  assentar,  Nuno  Alvarez  disse 
contra  seu  irmão,  ja  quanto  sanhudo:  «Nós  não 
temos  prol  nem  honra  de  aqui  mais  estar;  e 
porem  he  bem  que  nos  vamos  para  as  pousa- 
das. Mas  antes  que  nos  vamos,  eu  quero  fazer 
que  estes,  que  nos  pouco  preçaram  e  de  nós 
escarneceram,  que  fiquem  escarnidos».  E  che- 
gou-se  logo  á  mesa,  a  um  cabo  delia,  e  em  pre- 
sença de  El-rei  (de  Castella)  e  de  sua  vista,  al- 
çou a  mesa  e  com  a  perna  tirou  o  pé  da  mesa 
e  a  mesa  caiu  em  o  chão.  E  os  que  a  ella  siiam 
(sentavam)  ficaram  todos  espantados.  E  elles 
(D.  Nuno  e  o  irmão)  se  partiram  logo  com  gran- 
de assesecêgo  bem  como  se  não  fizessem  ne- 
nhuma cousa.  E  El-rei  que  esto  viu  bem,  pre- 
guntou  que  homens  eram  aquelles.  E  foi-lhe 
dito  que  eram  alli  ordenados  áquella  mesa,  e 
como  não  fizeram  delles  conta  nem  tento,  onde 
se  assentar.  El-rei  respondeu:  que  elles  o  fize- 
ram bem,  e  que  quem  alli  tal  cousa  cometia  em 
tal  lugar,  sentindo  a  honra  que  lhe  era  feita, 
que  pêra  mais  seria  seu  coração.  E  en  esto  não 
fallou  El-rei  mais,  porque  eram  portugueses, 
caso  foram  castelhanos  pudera  ser  que  tornara 
doutra  guisai.  Até  aqui  a  Chronica  (Cap.  XIV), 
Daqui  voltou  D.  Nuno  para  a  sua  quinta  de 
Entre  Douro  e  Minho  a  retomar  a  vida  de  fa- 
milia.  A  rainha  fora  para  Almada,  onde  estava 
D.  Fernando,  muito  prostrado  pela  doença  que 


PAZ  INESPERADA  63 

O  ia  levar  depressa  ao  tumulo.  Acompanhava-a 
o  Mestre  de  Aviz,  ainda  ha  pouco  ameaçado 
na  sua  vida  pela  serpentina  mulher. 

O  rei  de  Castella  também  retirava  para  a 
sua  corte  com  a  pobre  infanta,  sua  esposa,  vinte 
annos  mais  nova  que  elle,  casamento  que  devia 
ser  tão  funesto  para  o  futuro  do  reino  de  Por- 
tugal, pelas  condições  estipuladas  no  contracto. 
Ella,  a  infanta  Beatriz,  como  dissemos,  era  a 
única  filha  e  portanto  herdeira  do  trono  portu- 
guês que  ia  vagar  em  breve. 


VII 


o   FIM   DE   UMA   DINASTIA 

Aos  22  de  outubro  de  i383  debatia-se  no 
leito  da  morte,  minado  pela  tísica,  El-Rei 
D.  Fernando.  Quando  o  sacerdote,  que  lhe  admi- 
nistrou os  últimos  sacramentos,  lhe  perguntou 
se  cria  na  Egreja,  respondeu:  «Tudo  isto 
creio,  como  bom  christao,  e  creio  mais  que  Deus 
me  deu  estes  reinos  para  os  manter  em  direito 
e  justiça;  e  eu,  pelos  meus  peccados,  o  fiz 
de  tal  guisa  que  Lhe  darei  delles  mui  mau 
conto  (i)». 

Era  uma  quinta  feira;  á  noite  cessava  de 
existir. 

O  enterro  fora  simples ;  a  Rainha  não  qui- 
sera assistir,  receando  talvez  as  murmurações 
do  povo.  Pouco  depois  tomava  ella  cargo  do 
governo  como  Regedora  do  reino,  em  nome  da 
sua  filha  D.  Beatriz,  Rainha  de  Gastella,  e  única 


(i)  Fernão  Lopes,  Chronica  de  D,  Fernando  —  Cap. 
CLXXII. 

5 


66  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

herdeira  de  D.  Fernando.  Como  tal,  mandou 
erguer  pendão  pela  filha.  Quando,  porém,  os 
arautos  iam  clamar:  «Arraial,  arraial,  por 
D.  Beatriz,  Rainha  de  Portugal»,  o  povo  e  os  fi- 
dalgos verdadeiramente  patriotas,  sentiam  que 
o  reino  estava  vendido,  repugnavam  em  res- 
ponder á  proclamação,  como  se  deveria  fazer. 
Em  Lisboa,  D.  Álvaro  Peres  de  Castro  (narra 
Fernão  Lopes)  deu  um  tossido  e  disse :  «Ar- 
raial, arraial,  cujo  for  o  reino,  levá-lo-ha».  Em 
Santarém  houve  um  verdadeiro  motim.  O  povo 
correu  com  o  arauto  gritando :  «Em  má  hora  se- 
ria essa,  mas  arraial  pelo  Infante  D.  João.  que 
é  de  direito  herdeiro  deste  reino,  mas  não  pela 
Rainha  de  Castella.  E  como  em  má  hora  sujei- 
tos havemos  de  ser  a  castelhanos.  Nunca  Deus  o 
queira».  Em  Elvas,  Gil  Fernandes,  patriota  in- 
flamado, respondeu  protestando:  «Arraial,  ar- 
raial por. . .  Portugal».  Todas  estas  vozes,  e  ou- 
tras semelhantes,  indicavam  que  o  povo  vira, 
com  a  intuição  que  dá  o  amor  da  pátria,  o  fim 
da  independência  portuguesa,  caso  o  Rei  de 
Castella  conseguisse  fazer  acclamar  e  reconhe- 
cer sua  esposa,  como  Rainha  de  Portugal.  Esta 
idea  revoltava-o:  a  reacção  contra  o  usurpador 
começava  a  manifestar-se. 

D.  Nuno  Alvarez  estava  na  sua  quinta  de 
Pedrassa  quando  morreu  D.  Fernando.  Aí  rece- 
beu recado  da  Rainha  D.  Leonor,  convidando-o 


o  FIM  DE  UMA  DINASTIA  67" 

para  as  exéquias  solemnes  do  trigésimo  dia  da 
morte,  do  trintayro,  como  então  se  dizia.  Veio 
o  fidalgo,  acompanhado  de  trinta  homens  arma- 
dos. Presentia_o  ódio  da  Rainha  e  queria  res- 
guardar-se  de  qualquer  aleivosia.  Na  corte  en- 
controu grande  numero  de  fidalgos,  vindos  de 
roda  a  parte  do  reino.  A'  bocca  pequena  mur- 
murava-se  contra  o  Andeiro,  que  também  viera 
de  Ourem,  assistir  ao  trintayro  e. . .  reatar  as 
suas  relações  escandalosas  no  paço. 

Contava-se  entre  os  fidalgos  como  El-Rei 
D.  Fernando  tinha  já  escrito  o  alvará  que  con- 
demnava  á  morte  o  infame  Conde  de  Ourem, 
e  como  influencias  estranhas  lhe  haviam  feito 
rasgar  a  sentença,  para  cujo  executor  havia  sido 
escolhido  o  Mestre  de  Aviz.  Gontava-se  ou- 
trosim  como  o  irmão  da  Rainha,  D.  João  Af- 
fonso  Tello,  também  urdira  a  morte  do  adul- 
tero; como  postara  creados  que  o  matassem  á 
entrada  de  Lisboa,  meses  antes ;  escapara,  po- 
rém, o  Andeiro,  por  haver  tomado  outro  cami- 
nho, diverso  daquelle  por  onde  era  esperado. 
Todos  reconheciam  que  a  principal  causa  da 
desgraça  do  paiz  era  elle.  Fora  quem  negociara 
o  ultimo  tratado,  em  virtude  do  qual  o  Rei  de 
Castella  se  dispunha  a  vir  tomar  conta  do  reino 
português.  Manchava  o  tálamo  régio.  Prepara- 
va-se  para  exercer  o  logar  de  primeiro  ministro 
<la  Rainha,  sua  amante,  e  fazer  de  Portugal  seu 


'68  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

feudo  absoluto.  E  elle  não  era  português,  mas 
sim  um  gallego  aventureiro,  sem  dignidade^ 
sem  consciência . . . 

Nuno  Alvarez  ouvia  estas  coisas;  ruminava- 
as  comsigo ;  consultava  os  amigos,  os  parentes  v 
discutia-as  com  o  Mestre  de  Aviz.  Quem  havia 
de  salvar  o  reino  ?  Quem  seria  o  homem  que 
se  deveria  oppôr  ao  monarca  de  Gastella  ? . . . 
O  infante  D.  Dinis  tomara  armas  contra  a  Pá- 
tria; o  infante  D.  João  estava  encarcerado  pelo 
cauteloso  Rei  castelhano.  Outra  descendência 
masculina  não  a  havia,  a  não  ser  o  Mestre  de 
Aviz,  filho  e  irmão  natural  de  reis  portugue- 
ses. .. 

Um  dia  o  Mestre  manda-o  chamar.  Com- 
munica-lhe  que  resolvera,  por  fim,  executar  a 
sentença  que  El-Rei  D.  Fernando  proferira.  Ma- 
taria o  Andeiro,  livraria  Protugal  dum  inimigo 
e  vingaria  a  honra  do  irmão.  Esperasse  o  aviso 
para  aquella  noite  e  viesse  ajudá-lo  com  seu  tio 
Ruy  Pereira,  que  estava  na  conspiração.  Mas 
quando  chegou  a  hora  decisiva,  o  recado  que  veiu 
foi  bem  contrario.  O  Mestre  resolvera  não  ef- 
fectuar  o  plano  combinado. 

Por  outra  parte,  a  Rainha  tentara  desapo- 
sentar  os  homem  de  armas  que  acompanhavam 
D.  Nuno,  tentativa  que  abortara,  porque  estes 
opuseram  resistência  e  repelliram  os  esbirros 
régios.  Desanimado,  triste,  enojado  dos  homens 


o   FIM   DE  UMA   DINASTIA  69 

«  da  sociedade,  D.  Nuno  retirou-se  de  Lisboa, 
caminho  de  Santarém.  Seu  irmão,  Prior  do  Cra- 
to, marchara  já  para  essa  villa.  Iria  fallar-lhe 
sobre  o  seu  plano  de  libertar  o  reino  do  jugo 
estrangeiro.  Os  dois  encontraram-se  em  Ponte- 
vel.  Estavam  discorrendo  sobre  o  assumpto, 
quando  chegou  um  emissário  da  Rainha.  OfFe- 
recia  ao  Prior  todas  as  honras,  chamava-o  para 
Lisboa.  D.  Nuno  indignava-se,  vendo  o  irmão 
inclinado  a  acceitar  as  mercês.  Que  resistisse  á 
tentação,  e  se  unisse  ao  Mestre  de  Aviz  para  tra- 
tar de  salvar  Portugal.  O  Prior,  homem  positi- 
vo, resolveu  não  seguir  nenhum  dos  partidos. 
Nem  seria  contra  a  Rainha,  nem  acceitaria  os 
favores  que  ella  offerecia-,  partiria  para  as  suas 
terras  e  aí  esperaria  os  successos.  Seguiram  am- 
bos para  Santarém, 

Deu-se  nesta  ocasião  o  celebre  encontro  de 
Nuno  Alvarez  com  o  alfageme  de  Santarém, 
episodio  que  serviu  de  assumpto  para  o  conhe- 
cido drama  de  Garrett,  intitulado  O  Alfageme 
de  Santarém.  Diga-se  aqui  de  passagem,  que  o 
nosso  grande  romântico  falseou  o  caracter  de 
D.  Nuno  Alvarez  nessa  peça,  apresentando-o 
quasi  como  um  requestador  vulgar  de  meninas, 
coisa  bem  alheia  á  austeridade  do  nosso  biogra- 
fado. 

Ouçamos  a  narração  do  episodio,  qual  a 
apresenta  o  auctor  da  Chronica  do  Condestabre. 


70  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Um  dia,  indo  D.  Nuno  passear  pelas  riban- 
ceiras do  Tejo,  na  direcção  de  Santa  Iria,  viu 
deante  da  porta  de  um  alfageme  uma  espada 
muito  bem  temperada.  Perguntou  ao  artista,  se 
poderia  correger  a  sua,  tão  bem  como  aquella. 
Respondeu  este  que  sim,  e,  muito  melhor.  En- 
tregou-lh'a  pois  D.  Nuno,  e  quando  no  dia  se- 
guinte, vendo-a  tão  bem  trabalhada,  quis  pagar 
ao  homem,  este  lhe  fallou  assim:  «Senhor,  eu 
por  agora  não  quero  de  vós  nenhuma  paga^ 
mas  ireis  muito  embora  e  tornareis  aqui  Conde 
de  Ourem,  e  então  me  pagareis».  Ora  o  Conde 
de  Ourem,  como  sabem  os  leitores,  era  o  An- 
deiro,  ainda  vivo  em  Lisboa.  Não  quis,  por  isso, 
tomar  a  serio  o  dito  do  alfageme  e  insistiu  em 
pagar,  ao  que  este  retrucou:  «Senhor,  eu  vos- 
digo  a  verdade  e  assim  será  cedo,  prazendo  a 
Deus».  E  assim  foi,  continua  o  chronista,  porque 
D.  Nuno  veiu  daí  a  pouco  tempo  a  Santarém 
nomeado  para  o  dito  condado,  e  pagou  ao  alfa- 
geme salvando-lhe  os  bens  e  restituindo-o  á  li- 
berdade. Também  falseou  o  caracter  deste  ho- 
mem o  citado  dramaturgo,  apresentando-o  como- 
um  bom  e  leal  português,  quando  o  documento 
que  seguimos  mostra  que  elle  era  aíFecto  ao 
partido  dos  castelhanos  «era  mui  chegado  e 
liado  com  os  castellãos  em  quanto  em  Santarém 
estiveram»,  motivo  porque  era  chamado  scisma- 
tico  «como  naquelle  tempo  chamavam  aos  maus 


o  FIM  DE  UMA  DINASTIA  7I 

portugueses»,  diz  a  Chronica.  Fique  pois  assen- 
te, que,  embora  a  licença  poética  seja  admittida 
em  composições  mais  ou  menos  fundadas  em 
factos  históricos,  não  chega  a  permittir  a  falsi- 
ficação do  caracter  das  personagens,  apresen- 
tando D.  Nuno  como  um  vulgar  namorador,  e 
tornando  bom  patriota  quem  era  um  mau  por- 
tuguês. 

Neste  meio  tempo  chegavam  noticias  graves 
de  Lisboa.  O  Andeiro  fora  assassinado  pelo 
Mestre  de  Aviz,  mortos  outros  castelhanos ;  a 
Rainha  fugira  da  cidade :  começava  a  revolução. 
D.  Nuno  foi  ter  com  o  irmão,  e  pediu-lhe  que 
ao  menos  então  abraçasse  o  partido  do  Mestre. 
Baldados  esforços.  O  Prior  do  Crato  recusa- 
va-se  e  ia  esperar  os  acontecimentos  no  seu  so- 
lar. Outro  irmão,  Diogo  Alvarez,  que,  ao  prin- 
cipio concordara  com  D.  Nuno,  abandonava-o 
no  caminho.  De  modo  que  de  Pontevel  a  Lis- 
boa não  teve  este  nenhuma  outra  pessoa  da  fa- 
mília que  o  acompanhasse. 


VIII 

A  REVOLUÇÃO 

Com  a  morte  de  Andeiro  pode-se  dizer  que 
se  iniciava  a  revolução  em  Lisboa.  Não  nos  per- 
tence apreciar  essa  morte  e  muito  menos  justifi- 
cá-la. E'  um  ponto  já  demasiado  versado  pelos 
historiadores.  Ao  nosso  fim  basta  registar  o  facto 
de  o  Mestre  de  Aviz  ter  mais  tarde  obtido  do 
Papa  um  Breve  que  o  absolvia  desse  crime, 
se  é  que  elle  merece  tal  denominação.  E'  certo 
que  o  principal  urdidor  do  trama,  que  visava  a 
morte  do  Andeiro,  era  um  homem  de  grande 
influencia  em  Lisboa,  Álvaro  Paes,  chanceller 
que  fora  de  El-rei  D.  Pedro.  Elle  influiu  no 
Mestre  para  a  levar  a  cabo,  conseguiu  conven- 
cer D.  Nuno  da  necessidade  dessa  execução. 

E'  sabido  que,  logo  depois  do  facto,  o  pagem 
do  Mestre  correu  do  paço  real,  gritando:  «que 
matavam  o  Mestre».  O  povo  acudiu  em  chusma 
desordenada,  armado  de  foices,  paus,  fei^ros, 
tudo  o  que  uma  improvisação  podia  apresentar 
como  arma  oíFensiva,  pedindo  em  altas  vozes  vin- 


74  VIDA  DO   BEATO  NUNO  ALVAREZ 

gança  pela  morte  do  Mestre.  E,  quando  o  vi- 
ram por  fim  são  e  salvo,  esse  povo  que  viera 
clamando:  «Acorramos  ao  Mestre,  ca  é  filha 
d'El-rei  D.  Pedro»,  esse  povo,  onde  palpitava 
o  sentimento  da  defesa  da  independência  da 
Pátria,  exultava  de  alegria.  As  mulheres  diziam : 
«Oh!  Senhor,  como  vos  queriam  matar  por 
traição,  bento  seja  Deus  que  vos  guardou  desse 
trédor.  Vinde-vos,  dae  ao  demo  esses  paços, 
não  se)aes  lá  mais». 

Todos  reconheciam  no  Mestre  o  chefe  da 
movimento  nacional.  Este  ainda  hesitou.  Ora  fez 
correr  que  ia  partir  para  a  Inglaterra;  ora  con- 
sentiu num  plano  de  casamento  politico  com 
D.  Leonor,  imaginado  por  Álvaro  Paes,  porém 
frustrado.  Por  fim,  depois  de  enviar  um  escudeiro 
que  obtivesse  do  infante  D.  João,  preso  em  Cas- 
tella,  licença  de  defender  a  pátria,  acceitou  o 
cargo  de  Regedor  e  Defensor  do  reino,  que  lhe 
foi  offerecido  solemnemente  numa  reunião  po- 
pular, effectuada  no  mosteiro  de  S.  Domingos, 
em  Lisboa.  Com  este  facto  quebravam-se  as  rela- 
ções com  a  rainha  D.  Leonor,  já  bandeada  para 
o  partido  castelhano,  e  com  o  rei  dessa  nação. 

D.  Nuno  Alvarez,  recemchegado  de  Santa- 
rém, assistia,  cheio  de  confiança,  a  todos  estes 
graves  acontecimentos.  Seu  coração  não  duvi- 
dava do  êxito,  apezar  da  mingua  dos  defensores 
da   causa   nacional.   Elle   foi   logo  incluido  na 


A  REVOLUÇÃO  7> 

numero  do  conselho  nomeado  pelo  Defensor  do 
reino.  Tinha  por  collegas  os.principaes  homens 
que  intervieram  na  lucta  de  que  nos  vamos 
occupar.  Instituiu-se  então  a  famosa  casa  dos 
vinte  e  quatro,  representantes  dos  mesteres.  A 
cruz  de  Aviz  foi  intercalada 
entre  os  castellos  do  brasão 
português. 

Os  sequazes  da  rainha,  que  a 
haviam  acompanhado  a  Alem- 
quer,  na  sua  fuga,  depois  da 
morte  do  amante,  breve  iriam 
com  ella  para  Santarém.  De- 
finiam-se  as  situações ;  acaba- 
vam, de  parte  a  parte,  as  he- 
sitações. Ou  se  era  pelo  Mes- 
tre, ou  então  incluído  entre  os 
inimigos  da  Pátria. 

Impellida  pelo  Prior  de  Grato  e  outros  ir- 
mãos, que  estavam  em  Portalegre,  veiu  nessa 
occasião  a  Lisboa  a  mãe  de  Nuno.  Trazia  a 
missão  de  convencer  o  filho  que  abandonasse 
o  partido  do  Mestre;  trazia  recado  do  rei  de 
Castella  «que  todavia  deixasse  o  Mestre  e  se 
fosse  para  El-rey  de  Castella,  que  lhe  mandava 
prometter  o  condado  de  Viana  e  outras  terras 
e  rendas  de  que  elle  fosse  assaz  contente  (i)». 


Elmo  de  D.  João  I 
(Do   livro   Batalha   de 
Aljubarrota,  por  C. 
Ximenes  de  Sandoyal, 
pag.  26) 


( I )  Chronica  do  Condest.  —  Cap.  XIX. 


76  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Fazia-lhe  ver  como  era  assaz  precária  a  si- 
tuação do  Mestre.  Assim,  não  iria  adeante.  Não 
valia  a  pena  expor  ao  insuccesso  uma  carreira 
que  podia  e  havia  de  ser  tão  lucrativa,  caso  se 
bandeasse  para  os  castelhanos.  D.  Nuno  res- 
pondeu-lhe:  «Que  Deus  não  quizesse  que  por 
dadivas  e  largas  promessas  elle  fosse  contra  a 
terra  que  o  criara,  mas  que  antes  despenderia 
seus  dias  e  espargeria  seu  sangue  por  emparo 
delia».  E  tão  persuasivas  foram  as  razões  que 
expôs  á  sua  mãe,  que  esta  em  breve  lhe  dizia : 
«Pois  assi  era,  que  servisse  o  Mestre  verdadei- 
ramente, pois  que  com  elle  ficara,  e  se  não  par- 
tisse delle  em  nenhuma  guisa,  e  que  ella  faria 
logo  vir  para  elle  seu  filho  Fernão  Pereira,  seu 
irmão».  E  de  feito  assim  o  fez,  conclue  a  Chroni- 
ca.  Dias  depois,  Fernão  vinha  juntar-se  a  Nuno. 

Acontecia  com  a  mãe  de  D.  Nuno,  o  que 
rezam  as  chronicas  dum  escudeiro,  que  acompa- 
nhara a  embaixada  que  fora  a  Alemquer  tentar 
congraçar  a  rainha  com  o  Mestre.  Os  da  corte 
queriam  persuadir  ao  dito  escudeiro  que  dei- 
xasse o  partido  popular  e  se  viesse  para  elles, 
pois  a  causa  do  Mestre  não  podia  ir  para  dean- 
te.  Resposta  do  escudeiro:  «Quando  cá  estou 
parece-me  que  é  assim  como  vós  dizeis,  e  de- 
pois que  sou  lá,  semelha-me  que  todos  não 
valeis  nada,  e  que,  quanto  me  falaes,  tudo  é 
vento». 


A   REVOLUÇÃO  ^^ 

Logo  depois  da  sua  acclamação,  como  De- 
fensor do  reino,  o  Mestre  de  Aviz  tratou  de  or- 
ganizar a  resistência  contra  o  inimigo,  que  se 
aprestava  a  invadir  Portugal.  D.  Leonor  lança- 
ra-se  nos  braços  do  rei  castelhano.  Primeira- 
mente, nomeou  o  conselho  que  o  devia  ajudar 
no  governo  do  estado.  Entravam  nelle  Álvaro 
Paes,  o  verdadeiro  chefe  do  movimento  popu- 
lar em  Lisboa;  o  Dr.  João  das  Regras,  juriscon- 
sulto eminente,  que  havia  de  ser  um  dos  maio- 
res sustentáculos  da  coroa;  D.  Nuno  Alvarez, 
que  foi  immediatamente  reconhecido  como  chefe 
militar  da  revolução. 

Do  Porto  chegavam  noticias  de  que  a  cidade 
aderira  ao  partido  do  Mestre;  mas  em  Lisboa 
faltava  tomar  o  castello,  que  ainda  era  pela 
cainha.  Tinha-o  Martim  Affonso  Valente;  nem 
queria  render-se,  por  já  ter  prestado  menagem 
a  D.  Beatriz.  D.  Nuno  mandou  atacá-lo,  e,  como 
protecção  das  forças  que  investiam,  ordenou  que 
fossem  á  frente  as  mulheres  e  os  filhos  dos  de- 
fensores, que  dentro  estavam.  Estes  recusaram- 
se  a  combater,  para  não  terem  aso  de  matar 
as  mulheres  e  os  filhos.  D.  Nuno  foi  em  pessoa 
fallar  com  Martim  Affonso.  Mostrou-lhe  como  a 
causa  nacional  exigia  a  entrega  do  castello  ao 
Mestre;  do  contrario,  ttodo  o  mundo  lh'o  teria  a 
mal  e  merecia  de  o  apedrejarem  todas  as  gen- 
tes do  reino  por  ello». 


78  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Pediu  então  o  alcaide  que  lhe  dessem  qua- 
renta horas  para  obter  licença  da  rainha.  Se  esta 
não  enviasse  soccorro,  entregaria  o  castello,  seno 
combater,  ao  Mestre.  O  emissário  de  Martim 
Affonso  veio  com  o  recado  de  que  o  soccorro 
esperado  não  podia  vir,  e  o  castello  rendeu-se. 
Mais:  o  alcaide  abraçou  o  partido  da  indepen- 
dência nacional. 

Tão  grande  influencia  teve  esta  occupação, 
levada  a  cabo  por  D.  Nuno,  que  em  breve  che- 
gavam noticias  de  que  Estremoz,  Portalegre, 
Penella  e  Beja  haviam  abraçado  a  mesma  cau- 
sa. Évora  e  Almada  seguiam-lhes  o  exemplo.  Em 
Lisboa  faltavam  os  mantimentos.  D.  Nuno  foi 
encarregado  de  fazer  uma  correria  a  Cintra  para 
os  trazer.  Estando  já  aí,  alta  noite  chega  noti- 
cia de  que  os  castelhanos,  commandados  pelo 
Mestre  de  Santiago,  vinham  sobre  elle.  Alguns, 
dos  que  o  seguiam,  fugiram  para  Lisboa,  de 
modo  que  só  ficaram  umas  sessenta  lanças.  Estes 
insistiam  em  que  se  retirasse  quanto  antes  para 
Lisboa.  D.  Nuno  recusa;  espera  até  ao  meio  dia 
o  inimigo,  e  depois  segue  para  Lisboa  c passo  e 
muy  de  vagar».  No  caminho  encontrou  um  gru- 
po de  guerreiros,  commandados  por  seu  tio  Ruy 
Pereira,  enviado  pelo  Mestre  de  Aviz,  em  seu 
auxilio.  Os  castelhanos,  vendo  que  D.  Nuno  já 
retirara  para  Lisboa,  vieram  procurá-lo  até  aos 
arrabaldes,  e  acamparam  no  Lumiar.  Nuno  Al- 


A   REVOLUÇÃO  79 

varez,  apenas  o  soube,  foi  oíFerecer-lhes  batalha, 
saindo  pela  porta  de  Santo  Antão,  aos  Olivaes, 
com  trezentas  lanças  e  alguns  homens  de  pé. 
Pedro  Sarmiento,  que  era  um  dos  caudilhos  ini- 
migos, apenas  viu  a  ordem  das  forças  de  Nuno, 
resolveu  aconselhar  aos  seus  que  se  não  arris- 
cassem a  uma  derrota.  Retiraram-se,  pois,  sem 
acceitar  batalha.  «E  o  campo  e  honra,  diz  a 
Chronica  (i),  ficou  por  Nuno  Alvarez,  e  em  esto 
■o  mestre  saiu  da  cidade  e  mandou  recolher  para 
a  cidade  Nuno  Alvarez  e  os  que  com  elle  esta- 
vam». 

Entrementes,  chegavam  novas  de  que  o  Rei 
■de  Castella  invadira  Portugal.  Urgia  ultimar  a 
defesa  da  Pátria.  D.  Nuno  Alvarez  era  nomeado 
fronteiro  mór  do  Alemtejo.  Ao  mesmo  tempo, 
preparava-se  uma  esquadra.  A  experiência  mos- 
trara como  era  necessário  defender  Lisboa  por 
mar.  Pouco  antes,  algumas  naus  castelhanas  ha- 
viam arribado  ao  Tejo,  cheias  de  mantimentos, 
que  os  portugueses  puderam  conquistar,  mas 
viam  que  não  possuíam  forças  para  poder  apa- 
rar um  golpe  mais  forte. 

Todas  estas  resoluções  haviam  sido  tomadas 
em  conselho.  E,  já  que  falíamos  dos  conselhos, 
vem  a  propósito  narrar  brevemente  o  que  nelles 
teve  que  soffrer  o  nosso  biografado.  Alguns  ho- 

(i)  Cap.  XXIV. 


8o  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

mens  que  nelles  entravam,  vendo  a  influencia 
que  D.  Nuno  exercia  no  animo  do  Mestre,  dei- 
xaram-se  levar  de  inveja,  a  tal  ponto  tque  jura- 
ram que  sempre  fossem  contra  os  conselhos  que 
Nuno  Alvarez  desse,  e  que  nunca  se  a  elles  ti- 
vessem, por  razoados  que  fossem,  e  de  feito  assi 
o  faziam».  D.  Nuno  soube  o  segredo.  Um  dia 
estando  em  plena  reunião,  todos,  segundo  o 
combinado,  votaram  contra  o  parecer  emitido 
por  D.  Nuno,  contradizendo-o  rijamente.  Nuno 
Alvarez  solta  uma  estridente  gargalhada,  dizen- 
do que  sabia  bem  porque  o  faziam.  O  Mestre 
quis  saber  a  razão  do  riso  franco  do  jovem  guer- 
reiro, e,  quando  este  explicou  tudo,  ficou  mara- 
vilhado da  paciência  do  heroe,  e  os  conselheiros, 
escarmentados  da  sua  feia  acção.  Em  outra  occa- 
sião,  estava  presente  o  condestavel  do  reino 
D.  Álvaro  Peres  de  Castro;  o  velho  conde  cen- 
surou toda  a  acção  do  Mestre,  taxando-a  de  inú- 
til para  o  bem  da  causa,  aconselhando  quasi 
uma  entrega  ao  castelhano.  D.  Nuno,  furioso,  ata- 
lhou immediatamente  tamanho  desaforo,  desfa- 
zendo as  razões  apresentadas  com  estas  pala- 
vras: «Digo-vos  senhor  conde,  que  pois  vós  com 
meu  senhor  ficastes,  e  verdadeira  vontade  haveis 
de  o  servir,  tal  conselho  e  palavras,  quaes  lhe 
vós  dizeis,  não  é  bom  conselho,  nem  elle  nãa 
vos  deve^crer,  antes  deve  de  ir  com  seu  feito 
em  deante  e  não  só  contra  El-rei  de  Castella, 


A  REVOLUÇÃO  8l 

que  é  um  poderoso  rei,  mas  contra  todo-los  reis 
do  mundo,  ca  tem  coraçon  e  razon  de  o  fazer. . . 
E  todo-los  bons  portugueses  teem  razon  de  o 
seguirem  até  a  morte,  e  Deus  que  a  esto  o  en- 
caminhou e  lhe  dá  os  começos  que  lhe  dá,  o 
trazerá  em  sua  guarda  e  trazerá  seus  feitos  ao 
fim  que  elle  deseja,  e  quem  vontade  houver  de 
bem  e  lealmente  servir,  bem  terá  tempo  em  que 
o  sirva».  Já  se  vê,  a  resposta  do  conde  foi  sa- 
nhuda,  como  diz  a  Chronica.  D.  Nuno  relrucou- 
Ihe:  «Não  hei  empacho,  nem  de  quanto  disse 
me  peza,  senão  por  ser  pouco».  Interveiu  o  filho 
de  D.  Álvaro,  e  D.  Nuno,  longe  de  retirar  o  que 
dissera,  mais  o  carregou.  Então  o  Mestre  impôs 
silencio  e  o  conselho  foi  dado  por  terminado  (i). 


(i)  Chronica  do  Condestabre — Cap.  XXV. 


IX 


FRONTEIRO-MOR   DO   ALEMTEJO 

O  primeiro  acto  de  Nuno  Alvarez,  depois  de 
nomeado  fronteiro-mór  do  Alemtejo,  foi  a  to- 
mada de  Almada.  Aproveitando  a  divisão  que 
reinava  entre  os  moradores  desta  villa,  onde  os 
grandes  eram  pela  Rainha  e  pelo  Rei  de  Cas- 
tella  e  os  miúdos  pelo  Mestre,  D.  Nuno  um  dia 
apresenta-se  de  improviso,  com  quarenta  lanças, 
á  porta  do  castello ;  falia  á  gente,  espantada 
com  o  successo,  de  tal  sorte  «que  a  todos  prou- 
ve obedecerem  ao  Mestre  com  boas  vontades  e 
lhe  deram  a  villa».  Veiu  o  Mestre,  de  Lisboa, 
recebeu  a  menagem,  e  logo  se  foi  com  D.  Nuno 
para  a  capital. 

D.  Nuno  tratou  immediatamente  de  se  apres- 
tar para  a  campanha  do  Alemtejo.  Reuniu  os 
seus  soldados,  aos  quaes  fez  que  se  pagasse  o  sol- 
do sem  delongas,  coisa  que  deu  logar  a  um  in- 
cidente com  D.  Pedro  de  Castro,  e  .partiu  de 
novo  para  Almada.  Estando  nesta  villa  lhe  veiu 
noticia  da  próxima  chegada  de  algumas  naus  de 


84  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Castella,  e  de  como  o  Mestre  se  preparava  para 
dar  sobre  ellas.  Também  elle  quis  tomar  parte 
no  feito,  e,  como  não  achasse  navio  que  pudesse 
entrar  na  liça,  embarcou  em  Cacilhas  num  bote, 
com  seis  escudeiros,  e  foi  ter  á  nau  commanda- 
da  por  Pedro  Eannes  Lobato.  Nella  assistiu  á 
tomada  da  esquadra  inimiga.  Divididos  os  des- 
pojos, o  Mestre  veio  a  Coina,  perto  de  Almada, 
onde  acampara  Nuno.  Combinaram  aí  os  dois 
o  plano  geral  da  campanha  que  ia  começar. 
Aos  soldados  fez.  o  Mestre  uma  falia  cheia  de 
carinho  e  egualmente  pediu  a  Nuno  que  tra- 
tasse bem  «essa  boa  gente  que  lhe  encom- 
mendava».  Depois,  os  dois  amigos  despedi- 
ram-se. 

Nuno  Alvarez  sente  agora,  pela  primeira  vez 
e  em  cheio,  a  responsabilidade  do  seu  cargo. 
Elle  só  devia  defender  o  sul  de  Portugal,  sem 
exercito  formado,  sem  dinheiro,  sem  meios  de 
organização.  Mas  os  caracteres  fortes  conhe- 
cem-se  nas  occasiÔes,  nas  grandes  dificuldades. 
Com  as  duzentas  lanças  que  trouxera  de  Lis- 
boa, Nuno  vae  alegre ;  porque  levava  no  cora- 
ção puríssimo  a  fé  que  gera  os  heroes.  «Tinha 
apenas  vinte  e  quatro  annos.  Era  mediano  de 
estatura  e  delgado  de  formas.  Branco,  de  rosto 
comprido,  nariz  longo  e  afilado,  tinha  expressa 
na  fisionomia,  como  faculdade  dominante,  a  de- 
cisão. A  bocca  era  pequena,  o  mento  breve,  o 


FRONTEIRO-MOR   DO  ALEMTEJO  85 

lábio  superior  curto.  Debaixo  dos  sobrecilios, 
fortemente  arqueados,  luziam  fundos  os  olhos, 
pequenos.  Os  cabellos  e  as  barbas  ruivos.  Via- 
se-lhe  no  rosto  um  misto  de  energia  grave  e 
bondade  cândida,  com  uma  vaga  expressão  poé- 
tica de  ambições  innominadas  que  se  revelavam 
nas  rugas  precoces  da  testa  e  no  apanhado  da 
pelle  sobre  as  fontes  (i)». 

Activo,  alegre,  despreoccupado,  não  obstante 
as  invejas  dos  seus  émulos,  nunca  perdia  a 
calma  própria  dos  grandes  génios  —  a  tranquilli- 
dade  activa  —  como  se  sóe  dizer.  Para  os  sol- 
dados era  um  pae  amoroso,  quasi  um  irmão; 
considerava-os  mais  como  amigos  do  que  como 
súbditos.  Toda  a  sua  auctoridade  nascia  do  seu 
caracter  franco,  leal,  corajoso,  da  pureza  e 
honestidade  austera  da  sua  vida.  A  estas  quali- 
dades humanas  juntava-se  o  elemento  sobrena- 
tural que  lhes  dava  maior  brilho.  A  sua  fé,  a 
sua  profunda  piedade,  o  respeito  com  que  obser- 
vava os  preceitos  da  Religião,  faziam  delle  um 
santo  vestido  de  guerreiro...  e  essa  santidade 
communicava-se  aos  soldados,  morigerava-os, 
fortificava-os. 

Todos  os  dias  ouvia  duas  missas,  uma  com 
os  soldados  em  ordem  militar,  debaixo  de  for- 
ma. As  blasfémias  eram  severissimamente  pu- 


(i)  Oliv.  Martins  —  Cap.  IV,  pag.  140. 


86  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

nidas  no  exercito.  O  exemplo  do  chefe,  o  rigor 
da  disciplina,  exercícios  constantes,  manobras 
com  falsas  vozes  de  alerta,  iam  aguerrindo  os 
seus  homens.  Não  ha  duvida.  O  heroismo  do 
soldado  só  pôde  nascer  de  um  coração  puro, 
duma  vida  immaculada,  ordenada.  Quem  teme 
só  e  unicamente  a  Deus,  não  receia  os  perigos, 
por  maiores  que  sejam. 

O  estandarte,  que  ia  á  frente  das  suas  hos- 
tes, era  um  simbolo  da  alma  do  heroe  christão. 
«E  porque  híí  soom  os  moores  periigos,  alli 
convém  mais  devota  rrenembrança  daquelle 
Senhor  cujo  ajudoiro  homem  espera,  mandou 
Nuno  Alvarez  fazer  huúa  bandeira,  a  quall  avia 
o  campo  branco,  e  huíía  gramde  cruz  verme- 
lha per  meo,  e  no  quarto  primeiro  da  cerca  da 
asta  avia  pintada  a  imagem  do  nosso  Salvador 
Jhesu  Christo  crucificado,  e  sua  Madre,  e 
sam  Joham  acerca  delle ;  e  no  outro  seguinte 
da  ponta  da  bandeira  estava  a  imagem  da  pre- 
ciosa Virgem  com  o  seu  beemto  Filho  no  coUo; 
e  nos  dous  quartos  do  fundo,  no  primeiro  jumto 
com  a  asta,  sam  Jorge  armado  em  joelhos, 
com  as  maãos  juntas  orando  pêra  cima;  e  no 
outro  Samtiago  desta  mesma  guisa,  teendo 
cada  hú  seu  bacinete  amte  assi,  por  tal  que  ao 
temder  da  bandeira,  nos  logares  homde  com- 
prisse,  veemdo  a  figura  do  Salvado/  e  da  sua 
preciosa  Madre,  mais  devotamente  açemdesse 


FRONTEIRO-MOR    DO  ALEMTEJO  87 

O  seu  coraçom  pêra  os  chamar  em  ajuda.  E 
erã  postos  nos  cantos  da  bandeira,  quatro  es- 
cudos pequenos  das  armas  de  seu  linhagem, 
que  he  huúa  cruz  branca  em  campo  vermelho 
aberta  pella  meatade  (i)». 

Assim  conseguira , Nuno,  condensar,  objecti- 
var, na  bandeira  os  santos  da  sua  devoção,  os 
motivos  da  sua  esperança  na  victoria. 

De  Coina  foi  a  Setúbal,  para  ver  se  podia 
reduzir  a  villa  que  era  adversa  ao  partido  do 
Mestre.  Não  o  quiseram  receber,  os  da  villa. 
Acampou  nos  arrabalcfes,  mas  temendo  alguma 
surpresa  do  exercito  castelhano,  que  já  se  en- 
contrava com  o  Rei  em  Santarém,  mandou  que 
de  noite  guardas  e  escuitas  estivessem  de  alerta. 
Uma  falsa  noticia  de  que  Pedro  Sarmiento  vi- 
nha com  trezentas  lanças  sobre  elle,  obrigou-o 
a  pôr-se  em  marcha  ao  encontro  do  inimigo. 
Em  Monte-mór  soube  do  engano.  Dirigiu-se, 
então,  a  Évora,  onde  queria  organizar  o  seu 
exercito  de  combate.  Escreveu  daqui  a  todos  os 
comarcãos,  que  viessem  defender  o  país  contra 
o  invasor.  Apenas  trinta  lanças  mais  vieram 
juntar-se  ás  duzentas  que  levava;  de  besteiros 
e  homens  de  pé  reuniu  uns   mil.  Dai  seguiu 


(i)  Fernão  Lopes  —  Chronica  de  D.  João  —  C. 
LXXXVIII,  pag.  147,  —  edição  do  Sr.  A.  Braamcamp 
—  Lisboa,  1915.  Gfr.  Fr.  Dom.  de  Teixeira,  L.  2,  n.»  2.» 


88  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

para  Estremoz,  onde  se  lhe  juntaram  mais  al- 
guns (muito  menos  do  que  esperava),  vindos  de 
Elvas  e  Beja. 

Reunidos  todos  os  seus,  quis  expôr-lhe  fran- 
camente a  missão  que  se  lhes  confiava.  Tra- 
taya*se  de  dar  combate  aos  partidários  do  Rei 
de  Castella,  aquartelados  no  Crato,  com  o  ir- 
mão. Prior  do  Hospital,  bandeado  para  o  ini- 
migo. Além  de  Pedro  Alvarez,  estavam  no 
Crato  o  Mestre  de  Alcântara  e  o  que  se  cha- 
mava pretenciosamente  Mestre  de  Aviz,  Martim 
Eannes  de  Barundo  e  Pedro  Gonçalves  de  Se- 
vilha, e  outros.  Era  sua  vontade  ir  buscá-los, 
para  os  vencer,  com  o  auxilio  de  Deus. 

Não  tinha  ainda  Nuno  o  prestigio  que,  ao 
depois,  alcançou.  As  suas  palavras  foram  ouvi- 
das com  frieza.  Que  a  coisa  era  pesada ;  que 
lhes  desse  espaço  para*cuidarem  nella  e  então 
responderiam.  Essa  resposta  veiu  no  dia  se- 
guinte. Entendiam  que  não  deviam  pelejar.  A 
gente  contraria  era  muita;  com  o  inimigo  esta- 
vam seus  irmãos,  de  Nuno ;  os  portugueses  eram 
poucos;  portanto  não  queriam  ir  a  tal  obra. 

Estava  D.  Nuno  junto  dum  ribeirozinho, 
quando  lhe  trouxeram  a  desanimadora  mensa- 
gem. Ergueu-se  e  fallou  assim  aos  soldados : 
c Amigos!  eu  non  sei  que  vos  em  esto  diga 
mais  do  que  vos  já  disse:  pêro  ainda  vos  quero 
responder  ao  que  dizeis  que  os  castellãos  são 


FRONTEIROMOR  DO  ALEMTEJO  89 

muitos  e  grandes  senhores;  tanto  vos  virá  maior 
honra  e  louvor  de  os  vencerdes.  E  da  duvida 
que  segundo  parece  tendes  por  hi  virem  meus 
irmãos,  non  a  deveis  ter,  cá  vos  digo  e  prometo 
de  verdade,  que  posto  que  hi  viesse  meu  padre, 
eu  seria  contra  elle,  por  serviço  do  Mestre,  meu 
senhor,  e  por  defender  a  terra  que  me  criou.  E 
para  vós  verdes  que  é  assi,  se  a  vós  praza  de 
em  esta  obra  serdes  companheiros,  eu  vos  pro- 
metto  bem  que  com  ajuda  de  Deus  eu  seja  o 
primeiro  que  a  comece,  e  assi  poderdes  ver  a 
vontade  que  eu  em  este  feito  tenho  contra  meus 
irmãos.  E  quanto  na  parte  de  nós  sermos  pou- 
cos e  eles  muitos:  nem  por  esto  deviades  duvi- 
dar serdes  em  tam  boa  obra:  que  já  muitas  ve- 
zes aconteceu  os  poucos  vencerem  os  muitos, 
porque  o  vencimento  em  Deus  é  todo  e  non  nos 
homens.  Mais  pois  que  assi  é  vossa  tenção  qual 
me  dissestes,  rogo-vos  que  os  que  comigo  qui- 
zerem  ir  a  esta  obra,  que  se  passem  d*alem 
deste  regato,  e  os  que  non  quizerem  ir  que  fi- 
quem desta  parte  (i)t. 

Coisa  extraordinária!  Todos  passaram  o  ri- 
beiro; todos  queriam  ir.  O  entusiasmo  de  Nuno 
communicara-se  a  todos.  Houve  contudo  de 
noite  quem  hesitasse,  quem  tentasse  desertar; 
mas  algumas  palavras  de  Nuno  bastaram  para 


(i)  Chronica  do  Coni.— Cap.  XXVII. 


90  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

reduzir  esses  medrosos;  um  tal  Gil  Fernandes 
e  Martim  Roiz  d'Elvas. 

Quando,  no  dia  seguinte,  as  trombetas  toca- 
ram o  signal  da  marcha  ninguém  faltara.  No 
caminho,  a  poucos  passos  da  villa,  appareceu 
um  mensageiro  inimigo  mandado  pelos  irmãos 
para  fallar  com  D.  Nuno.  Era  Ruy  Gonçalves 
que  vinha  da  parte  do  Prior  ofterecer-lhe  mer- 
cês e  honrarias,  caso  se  quisesse  passar  para  o 
Rei  de  Castella.  Que  o  fizesse,  eram  tão  pou- 
cos! seriam  certamente  vencidos.  Mais  uma  vez 
D.  Nuno  repelliu,  indignado,  a  infame  proposta. 
Que  não,  mil  vezes  não.  Se  apercebessem  para 
a  lucta,  em  breve  seria  sobre  elles.  Fosse  de- 
pressa levar  o  recado  á  Fronteira,  onde  estavam 
os  castelhanos. 


X 


ATOLEIROS 

Apenas  despachado  o  mensageiro,  Nuno 
Alvarez  manda  mover  as  suas  hostes  ao  encon- 
tro do  inimigo.  Por  sua  parte  os  castelhanos 
também  saem  de  Fronteira  em  direcção  de  Es- 
tremoz, la-se  travar  a  primeira  batalha  da  guerra 
da  independência,  batalha  de  importância  deci- 
siva para  o  prestigio  do  novel  general  português. 
D.  Nuno  escolheu  para  o  combate  um  «logar 
bem  convinhavel»,  chamado  Atoleiros,  meia  lé- 
gua pouco  mais  ou  menos  além  de  Fronteira, 
na  direcção  de  Estremoz,  dentro  do  triangulo 
formado  pelas  actuaes  povoações  de  Veiros, 
Monforte  e  Fronteira.  Era  o  dia  6  de  abril  de 
1384,  quarta  feira  de  trevas. 

Ia  D.  Nuno  introduzir,  pela  primeira  vez  em 
Portugal,  o  combate  da  infantaria,  como  unidade 
capaz  de  luctar  sòsinha  contra  a  cavallaria. 
Aprendera,  ou  ao  menos  inspirara-se  do  que 
ouvira  fallar  dos  ingleses.  Dispõe  a  sua  gente 
em  quadrado,  mandando  desmontar  os  cavallei- 


92  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

ros.  Depois  dirige  aos  soldados  uma  aliocução: 
«Amigos,  disse,  lembrai-vos  nos  vossos  corações 
de  quatro  coisas :  A  primeira  que  se  encom- 
mendassem  a  Deus  e  á  Virgem  Maria,  sua  ma- 
dre. A  segunda  que  estavam  ali  para  servirem 
seu  senhor  e  alcançarem  honra  grande  que  a 
Deus  prazeriá  de  lhe  dar.  A  terceira  que  vi- 
nham ahi  defender  suas  casas  e  a  terra  que 
possuiam  e  se  tirar  da  sujeição  em  que  o  rei  de 
Castella  os  queria  pôr.  E  a  quarta  que  tivessem 
sempre  em  seus  entendimentos  de  soffrer  todo 
trabalho,  e  de  aporfiar  em  pelejar  não  uma  hora 
mas  um  dia  todo  e  mais  se  cumprisse».  E  des- 
montando da  mula,  levanta  a  viseira ;  ajoelha 
deante  da  bandeira  e  reza.  Com  elle  rezam  os 
companheiros.  E'  solemne  este  momento  de  re- 
colhimento silencioso,  interrompido  apenas  pelos 
sons  estridentes  das  trombetas  inimigas  que  se 
approximavam.  Depois,  corajosos  como  leões, 
respondem:  «Portugal,  S.  Jorge»,  ao  grito  de 
guerra  «Castilla,  Santiago»,  e,  firmes  no  seu 
posto,  esperam  a  carga  da  cavallaria  inimiga. 
Logo  no  primeiro  encontro,  esbarrando  na  pa- 
liçada das  lanças  em  riste  dos  soldados  de 
Nuno  Alvarez,  dezenas  de  cavalleiros  castelhanos 
rolam  no  solo,  arrastados  pelos  animaes  feridos. 
Entretanto  voam  as  settas  e  virotões  e  os  tiros 
dos  besteiros  fazem  numerosas  victimas  no  ini- 
migo. Nasce  a  confusão  nas  hostes  castelhanas. 


ATOLEIROS 


93 


Nuno  aproveita-a  para  ordenar  uma  carga  cer- 
rada nessa  massa  em  debandada.  Augmenta  a 
confusão;  o  inimigo  retrocede  acossado  pelos 
dardos  e  lanças  portuguesas.  Os  cavaileiros  já 
não  podem  refrear  os  corcéis  espantados;  fogem, 
e  deixam  a  descoberto  a  peonagem,  que  é  então 


Frontana  da  Egreja  e  Convento  do  Carmo,  antes  do  terramoto  de  lySã 
(Da  Chronica  de  Sant' c^ntanna  —  P.  I,  C.  I  —  pag.  283) 

investida  pela  cavallaria  lusitana  e  completa- 
mente desbaratada.  Nuno,  não  contente  de  ser 
senhor  do  campo,  determina  perseguir  o  inimigo 
até  á  fronteira  portuguesa  e  reduzir  á  obediência 
do  Mestre  os  castellos  circumvizinhos. 

Entre  os  mortos  encontram-se  os  já  nomea- 


94  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

dos  Mestres  de  Alcântara  e  Pedro  Gonçalves  de 
Sevilha.  Martim  Eannes  Barundo,  que  se  pavo- 
neava com  o  titulo  de  Mestre  de  Aviz,  fugira 
até  Monforte.  Foi  provocá-lo,  mas  o  Barbudo 
não  quis  acceitar  batalha.  Como  o  castello  era 
forte  e  a  gente  muita,  Nuno  deixou-o,  depois 
de  algumas  escaramuças,  e  foi  em  peregrina- 
ção ao  Santuário  de  Maria  Santíssima,  sito  em 
Assumar. 

Ia  descalço,  a  pé.  Quando  chegou  ao  tem- 
plo, achou-o  profanado  pelos  castelhanos,  todo 
sujo  por  causa  dos  animaes  que  tinham  sido 
abrigados  na  casa  de  Deus.  Antes  de  tudo,  man- 
dou que  o  alimpassem  «e  elle  foi  o  primeiro  que 
ajudou  a  tirar  o  esterco  fora».  Bello  exemplo  de 
humildade  com  que  Nuno  Alvarez  procurava 
agradecer  a  protecção  recebida  do  Ceu,  nesta 
primeira  victoria,  que,  por  ser  a  primeira,  havia 
de  ter  tanta  influencia  no  andamento  da  campa- 
nha e  no  animo  da  soldadesca. 

Antes  de  voltar  para  Évora,  tomou  Arron- 
ches e  Alegrete. 

Entretanto  o  rei  de  Castella  movia  os  seus 
arraiaes  e  vinha  assediar  Lisboa.  Irritado  com  a 
noticia  do  desastre  de  Atoleiros,  queria  castigar 
os  revoltosos,  queria  aniquilar  esse  punhado  de 
jovens  que  se  atreviam  a  oppor-se  ao  que  ima- 
ginara seu  passeio  triumfal  no  reino.  Mas  tam- 
bém aqui  o  insuccesso  o  havia  de  perseguir. 


ATOLEIROS  95 

Assentou  a  sua  morada  em  Santos;  daqui  hos- 
tilizava a  cidade.  Uma  primeira  esquadra  cas- 
teihena,  que  viera  trazer  mantimentos,  fora  ven- 
cida e  desmantelada  pelos  portugueses  em 
Oeiras.  Vieram  então  successivamente  duas  di- 
visões de  naus  para  reforçar  o  bloqueio. 

Nuno  Alvarez  recebeu  ordem  do  Mestre 
para  que  fosse  ao  Porto,  a  fim  de  tomar  parte 
na  armada  portuguesa  que  se  estava  aprestando 
para  ir  em  soccorro  da  cidade  sitiada.  Mas, 
quando  chegou  a  Coimbra,  soube  que  essa  ar- 
mada já  partira.  «Com  corrupta  tenção  se  par- 
tiram logo  com  a  frota  e  non  o  quiseron  atten- 
der  (i)».  Com  effeito,  essas  naus  haviam  conse- 
guido fcMTçar  o  bloqueio  e  levar  aos  sitiados 
mantimentos  e  munições,  varando  depois  os  na- 
vios nas  ribanceiras  do  Tejo.  O  bloqueio  foi  res- 
tabelecido pelos  castelhanos. 

D.  Nuno  regressa  a  Torres  Novas  e  daí 
marcha  sobre  Abrantes.  No  caminho  assalta  um 
comboio  de  viveres  castelhano  e  toma-o.  Em  se- 
guida, apodera-se  por  surpresa  da  vil  la  de  Mon- 
saraz. Curioso  foi  o  estratagema  empregado. 
Sabendo  que  a  gente  do  Castello  estava  falta  de 
-mantimentos,  fez  soltar  uma  manada  de  bois 
junto  das  portas  da  villa.  Vieram  os  de  dentro 
buscar  os  bois.  Então  caiu  sobre  elles  de  impro- 


(i)  Chronica  do  Cond.  —  Cap.  XXX. 


96  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

viso  a  gente  de  D.  Nuno;  entrou  pela  porta 
aberta  e  toaiou  a  cidade. 

Foi  nessa  época  que  lhe  apareceu  una  judeu 
da  parte  do  rei  de  Castella.  Trazia  mil  dobras 
(cerca  de  1400  escudos)  como  presente.  D.  Nuno, 
conhecendo  as  intenções  baixas  do  traficante, 
mandou-o  retirar  da  sua  presença,  dizendo-lhe 
que  só  recebia  paga  do  seu  rei. 

l)m  certo  Castanheda  mandou-o  desafiar. 
Foi  imaiediatamente  ao  seu  encontro  a  Badajoz, 
e  infligiu-lhe  uma  derrota  completa.  Duas  vezes 
veiu  contra  elle  Pedro  Sarmiento,  marechal  do 
exercito  castelhano,  com  doze  mil  homens.  Nuno 
mappodia  oppor-lhe  uns  mil.  Mas  ambas  as  ve- 
zes, quando  os  exércitos  se  appr  ^ximavam,  o 
castelhano  furtava-se  á  batalha;  retirava-se  sem 
combater,  tal  era  o  medo  que  lhe  inspirava  o 
nome  de  Nuno  Alvarez,  desde  que  o  havia  co- 
nhecido no  desastre  de  Atoleiros. 

Entretanto  continuava  o  cerco  de  Lisboa. 
Nuno  quer  ir  animar  os  sitiados.  Dirige-se,  pois, 
a  Almada,  e  em  pouco  tempo  consegue  reduzir 
esta  villa,  mais  Palmella.  Depois  mette-se  num 
batel  e  sozinho,  á  noite,  atravessando  o  Tejo 
por  entre  as  naus  castelhanas,  aporta  a  Lisboa. 
Pode-se  calcular  a  alegria  que  sentiriam  os  lis- 
boetas ao  verem  o  seu  general  idolatrado.  Abra- 
çaram-se  aôeciuosamente  o  Mestre  de  Aviz  e 
D.   Nuno.   G^nversaram   largamente   sobre  os 


ATOLEIROS  97 

successos  do  Alemtejo,  Gontou-lhe  D.  Nuno  as 
privações  por  que  passara,  e  como,  apesar  disto, 
o  seu  exercito  nunca  desfallecera.  Em  Cano 
não  acharam  outro  alimento  senão  alguns  figos ; 
em  Oliveira,  perto  de  Évora,  apenas  tivera  para 
comida  de  todo  o  dia  um  pão  «encetado  e  um 
pequeno  rabon  e  um  pouco  de  vinho  que  um 
peom  levava».  Outra  vez  tinha  estado  perto 
de  Évora  dois  dias,  quasi  sem  alimentos,  asse- 
diado por  Pedro  Sarmiento  que  o  mandara  de- 
safiar com  uma  carta  insolente.  Tivera  que  re- 
tirar, nesse  assédio;  precisava  de  vingar  tal 
desaire;  em  Almada  mandara  ao  dito^armiento 
um  cerdo  morto,  como  regalo.  Narrou  os  peri- 
gos que  passara  na  conspiração  que  contra  elle 
urdira  em  Coimbra  a  mulher  do  Conde  de  Ceia, 
D.  Henrique  Manuel,  e  como  elle  a  poupara  da 
ira  dos  seus  escudeiros  e  soldados. 

Em  agosto,  a  peste  apparecera  no  arraial  cas- 
telhano. Centenas  de  soldados  e  cavalleiros  caíam 
prostrados  pela  cruel  doença.  Transferiu-se  o 
quartel  general  para  Almada,  que  se  rendera, 
depois  de  dura  peleja.  Dias  depois,  adoecia  a 
própria  rainha.  Mandou  o  rei  de  Castella  fazer 
propostas  de  paz  ao  Mestre,  mas  este  as  repel- 
liu.  Depois,  vendo  os  estragos  causados  nas  suas 
tropas,  decidiu-se  a  levantar  o  cerco  e  partir 
para  Santarém.  Caminho  de  Santarém,  adoeceu 
o  rei.  Resolveu  então  regressar  com  o  seu  exer- 

7 


98  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

cito  para  Castella,  e  com  efifeito,  em  meiados  de 
outubro,  transpunha  a  fronteira.  Bem  quisera 
D.  Nuno  ir  atacar  o  inimigo  na  sua  retirada, 
mas  o  Mestre  não  o  consentiu.  Precisava  de 
consolidar  a  defesa  da  Nação;  precisava  de  ro- 
bustecer a  sua  própria  situação,  para  se  prepa- 
rar melhor  para  as  campanhas  futuras.  Nem 
sempre  as  circumstancias.  poderiam  ser  tão  fa- 
voráveis, como  haviam  sido  até  então.  D.  Nuno 
obedeceu,  embora  contrariado  nos  seus  Ímpetos 
bellicosos. 


XI 


REI   NOVO 

Não  é  possível,  num  livro  como  este,  histo- 
riar largamente  a  guerra  da  independência.  Te- 
mos de  nos  limitar  aos  principaes  acontecimentos 
«m  que  tomou  parte  o  nosso  biografado,  e, 
mesmo  nestes,  impõe-se-nos  a  concisão.  Diremos, 
pois,  neste  capitulo  algo  do  que  se  passou  antes 
da  famosa  reunião  das  cortes  de  Coimbra;  de- 
ter-nos-hemos  no  resultado  das  ditas  cortes, 
para  depois  traçar  os  successos  que  precederam 
a  batalha  de  Aljubarrota. 

Levantado  o  cerco,  os  de  Lisboa  respiraram. 
Também  elles  haviam  sojffrido  os  horrores  da 
fome :  também  elles  haviam  sentido  bem  o  peso 
•do  assédio.  Nuno  Alvarez,  depois  de  combinar 
com  o  Mestre  o  plano  da  guerra,  voltou  para 
Palmella,  seguindo  depois  para  Setúbal,  que  se 
declarou  pelo  Mestre.  Daí  foi  tomar  Portel, 
que  Fernão  Gonçalves  de  Sousa  tinha  pelo  Rei 
•de  Casíella.  Entrou  na  villa  por  surpresa,  abrin- 
do-lhe  a  porta  alguns  bons  portugueses.  Mas  o 


lOO  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

alcaide  com  os  seus  refugiou-se  no  castello. 
D.  Nuno  conseguiu  convencê-lo  a  que  se  rendes- 
se, promettendo,  sob  juramento,  deixar  ir,  a  elle 
e  aos  seus,  sãos  e  salvos,  com  tudo  o  que  lhes 
pertencia,  para  Castella.  Assim  se  fez,  e  o  alcai- 
de, que  era  homem  bem  humorado,  saiu  da 
villa  cantando  as  coplas,  já  celebres  na  nossa 
litteratura : 

« —  Pois  Marina  balhou 
Tome  o  que  ganou 
Milhor  era  Portel 

e  Villa  Ruiva 

que  non  çafra  e  segura 
tome  o  que  ganou  — ■ 

E  isto  dizia,  continuam  as  Ghronicas,  por 
elle  perder  Portel  e  Villa  Ruiva,  que  eram  seus, 
e  lhe  davam  em  Castella  çafra  e  segura.  Daí 
Nuno  foi  a  Évora,  onde  lhe  vinha  recado  para 
que  fosse  depressa  a  Elvas.  A  villa  estava  em 
perigo  de  ser  entregue  aos  castelhanos.  No  ca- 
minho parou  em  Villa  Viçosa,  a  fim  de  castigar 
Vasco  Porcalho  que  se  havia  bandeado  para  o 
partido  inimigo.  Foi  na  lucta  travada  deante 
desta  villa  que  morreu  Fernão  Pereira,  irmão 
de  Nuno.  Sentiu  este  a  morte  do  mancebo  pelas 
circumstancias  que  a  acompanharam.  Fora  cas- 
tigo de  Deus;  esse  jovem,  apesar  da  fé  jurada, 
ficara  com  uma  cota  e  a  espada  de  Garcia  Fer- 
nandez,  um  dos  que  haviam  saido  de  Portel 


REI    NOVO  104 

f 

com  o  alcaide.  Essa  ideia  magoava-o  mais  que 
a  própria  morte.  Dai  foi  a  Torres  Vedras.  O 
■cerco  desta  villa,  encetado  pelo  Mestre,  apesar 
do  auxilio  de  Nuno,  não  surtiu  effeito,  por  isso 
renunciou  a  tomar  as  villas  por  assédio.  Ou  as 
tomava  directamente  ou  as  deixava,  esperando 
que  os  acontecimentos  lh'as  rendessem.  Ambos 
os  amigos  seguiram  daí  para  Coimbra,  onde 
se  deviam  reunir  as  cortes  para  confirmar  a 
nomeação  do  Mestre  para  Defensor  do  Reino. 
Era  este  o  motivo  aparente;  mas  no  fundo  o 
que  se  desejava  era  liquidar  a  questão  da  suc- 
cessão,  elegendo  o  Mestre  para  Rei.  Já  os  pro- 
curadores das  villas  traziam  esse  poder,  embora 
ninguém  lh'o  houvesse  lembrado  ou  pedido.  Era 
a  vontade  nacional  exprimindo-se  expontanea- 
mente. 

Acompanhavam-no  os  moradores  dos  arra- 
baldes de  Torres  Vedras.  Receando  represálias 
dos  occupantes  da  villa,  punham-se  a  salvo.  Um 
velho  cego,  não  podendo  ir,  bradava  em  altas 
vozes  tque  o  non  leixassem  alli,  antre  aquella 
gente  má».  Nuno  Alvarez  ouviu-o  e,  movido  de 
compaixão,  mandou-o  colocar  nas  ancas  da  mula 
em  que  ia,  e  assim  o  levou  quatro  léguas,  até  que 
o  cego  se  deu  por  contente  de  o  deixar,  excla- 
mando :  « Oh  que  humano  e  caridoso  senhor ! »  Ao 
chegar  a  Monte-mór,  o  povo  veio  recebê-lo  com 
grandes  cantares  e  sabores,  dizendo:  tem  boa 


102  VIDA    DO    BEATO    NUNO   ALVAREZ 

hora  venha  o  nosso  Rei».  Era  a  consagração» 
feita  pela  boca  dos  moços  pequenos,  diz  a 
Chronica;  era  o  mandado  de  Deus  que  fallava 
pela  bocca  daquelles  moços,  como  por  bocca 
dos  profetas. 

Vae  agora  apparecer  em  scena  um  dos  mais 
talentosos  juristas  de  Portugal,  amigo  dedicado 
do  Mestre,  pessoa  eminente,  de  erudição  vas- 
tíssima, eloquência  profunda,  encarregado  de 
travar  a  lucta  parlamentar  que  havia  de  trazer, 
como  resultado,  a  collocação  da  coroa  sobre  a 
cabeça  do  filho  bastardo  de  D.  Pedro,  João- 
Affonso  das  Regras  ou  de  Aregas,  como  o  cha- 
ma Fr.  Luis  de  Sousa  (i);  formara-se  em  leis 
na  celeberrima  universidade  de  Bolonha,  onde 
ouvira  as  lições  do  canonista  Bartholo.  Era  um 
homem  intelligente,  astuto,  perseverante.  Tinha,. 
em  sumraa,  os  dotes  que  fazem  um  politico  fino. 
Confiou-lhe  o  Mestre  a  defesa  juridica  da  sua 
causa,  e,  na  verdade,  não  poderia  ter  encon- 
trado advogado  mais  fiel  e  hábil.  As  nossas 
historias  e  chronicas  trazem  por  extenso  os 
discursos  em  que  o  Dr.  João  das  Regras  pul- 
verizou os  argumentos  em  que  se  baseavam  os 
pretendentes  á  coroa  portuguesa:  a  Rainha  de 
Castella,  filha  de  D.  Fernando,  e  os  dois  filhos 
naturaes  de  D.  Pedro  e  D.  Ignês  de  Castro,  os 


(i)  Historia  de  S.  Domingos.  — Wol  II,  cap.  XVII. 


REI    NOVO  I03 

infantes  D.  Dinis  e  D.  João.  A  sua  eloquência 
conseguiu  reduzir  os  fidalgos  que  se  oppunham 
á  acclamação  do  Mestre  de  Aviz.  Nuno  Alvarez 
assistia  a  essas  cortes  e  apoiava  o  jurista.  Quan- 
do a  causa  triumfou,  elle  próprio  dirigiu  as  ce- 
remonias  da  coroação  de  El-Rei  D.  João  I  de 
Portugal. 

Era  o  novo  monarca  filho  d'El-Rei  D.  Pedro 
e  de  Teresa  Lourenço.  Aos  treze  annos  fora 
feito  Mestre  de  Aviz.  Do  retrato  que  se  con- 
serva no  Museu  Inoperial  de  Vienna  de  Áustria, 
vê-se  que  era  um  homem  robusto,  ossudo,  de 
rosto  angular,  quasi  quadrado,  sem  barba, 
olhos  pretos  e  pequenos,  lábios  finos.  Politico 
sagaz,  sabia  aproveitar  todas  as  occasiÓes  e 
acontecimentos  para  favorecer  a  sua  causa.  Pro- 
fundo conhecedor  dos  homens,  tinha  o  dom  de 
escolher  com  acerto  os  companheiros  e  auxilia- 
res da  sua  causa,  aproveitá-los  com  grande  pru- 
dência, evitando  ao  mesmo  tempo  estar-lhes 
sujeito.  aE'  preciso  reconhecer,  diz  Sandoval, 
que  se  mostrou  digno  dos  favores  da  sorte, 
tanto  politica  como  militarmente,  pois  os  obte- 
ve, auxiliado  de  talento,  habilidade,  valor  e 
energia,  quer  no  apertado  assédio  de  Lisboa, 
quer  nas  cortes  de  Coimbra,  quer  nas  outras 
operações  da  guerra  (i)». 


(i)  Batalha  de  Aljubarrota. — Cap.  V,  pag.  292. 


104  VIDA    DO    BEATO    NUNO    ALVAREZ 

Contava  apenas  27  annos,  quando  foi  acla- 
mado Rei.  Do  seu  matrinnonio  com  D.  Filipa 
de  Lencastre,  inglesa,  teve  oito  filhos,  progénie 
illustre  que  fez  grande  o  nosso  Portugal.  Basta 
recordar  o  Infante  de  Sagres,  o  Infante  Santo, 
D.  Duarte,  D.  Pedro,  etc,  quasi  todos  sepulta- 
dos na  capella  do  fundador  do  Mosteiro  da 
Batalha. 

Tinha  menos  um  anno  o  rei  de  Castella,  seu 
adversário,  também  chamado  João  I.  Homem 
de  caracter  manso  e  consciência  recta  e  costu- 
mes sãos,  taes  qualidades  não  compensavam  a 
falta  de  tino  politico  e  uma  tal  qual  pretensão  a 
discutir  tudo  e  decidir  ain3a  contra  o  parecer 
dos  seus  leaes  e  velhos  conselheiros.  Jovem, 
creado  numa  atmosfera  de  riqueza  e  adulações, 
deixava-se  levar  pelos  entusiasmos  impruden- 
tes dos  fidalgos  moços  que  o  lisonjeavam.  Tinha 
saúde  fraca,  o  que  também  contribuia  muito 
para  a  indecisão  e  falta  de  firmeza  que  mos- 
trava nas  batalhas  de  que  nos  vamos  occupando. 

Apenas  eleito  rei,  D.  João  I  nomeava  para  os 
cargos  de  confiança,  os  seus  melhores  amigos. 
D.  Nuno  Alvarez  foi  escolhido  para  Condesta- 
vel  do  Reino.  Entregava-se-lhe  desta  arte  o  com- 
mando  supremo  do  exercito  português.  Pouco 
antes  fora  nomeado  conde  de  Ourem,  titulo  que 
D.  Nuno  acceitou  com  a  condição  expressa  de 
que  não  seria  creado  nenhum  outro  conde  du- 


REI  NOVO  I05 

rante  a  vida  do  Mestre.  Verificava-se  assim  a 
profecia  do  alfageme  de  Santarém. 

Terminadas  as  cortes,  D.  Nuno  seguiu  para 
o  Norte.  No  Porto  tentou  debalde  aparelhar  uma 
armada  para  ir  combater  as  naus  castelhanas 
que  outra  vez  vinham  bloquear  o  Tejo.  Aqui 
veiu  ter  com  elle  a  mulher  e  a  filha,  que  pude- 
ram escapar  de  Guimarães,  onde  estavam  reti- 
das pelos  que  tinham  essa  cidade  pelo  rei  de 
Castella.  Pouco  depois  empreendia  uma  ro- 
maria a  Santiago.  De  caminho  foi  tomado  o 
castello  de  Neiva;  em  seguida  Darque  e  Vianna; 
Villa  Nova  de  Cerveira,  Caminha,  Monção, 
também  vinham  render-se  ao  Mestre.  Este,  por 
sua  parte,  acometteu  a  conquista  de  Guimarães, 
mandando  recado  a  D.  Nuno  que  fosse  tomar 
Braga.  Partiu  logo  o  Condestavel;  deu  sobre  a 
cidade  de  Braga,  que  depressa  se  rendeu,  e 
correu  a  tomar  Ponte  de  Lima,  como  El-Rei 
lhe  ordenara.  Depois,  juntaram-se  ambos  em 
Braga  e  dai  marcharam  sobre  Guimarães,  que 
foi  egualmente  rendida. 


XII 

ALJUBARROTA   (prelúdios) 

Em  Braga  recebeu  EI-Rei  D.  João  I  noticia 
de  que  os  castelhanos  se  preparavam  para  in- 
vadir outra  vez  o  reino.  Haviam-se  concentrado 
em  Ciudad  Rodrigo,  e  entrariam  pelo  Alemte- 
jo.  Partiu  immediatamente  com  Nuno  Alvarez 
para  Coimbra,  donde  seguiu  para  Santarém.  Em 
Mugem  souberam  do  engano.  O  castelhano  es- 
colhera o  valle  do  Mondego  para  penetrar  em 
Portugal.  Enviou,  pois,  El-Rei  o  seu  Condesta- 
vel  ao  Alemiejo  para  alliciar  soldados  e  formar 
um  exercito,  indo  elle  a  Abrantes.  O  Condes- 
tavel  tratou  logo  de  ajuntar  gente,  percorrendo 
a  região  entre  Évora  e  Estremoz,  e  conseguiu 
levantar  uns  quinhentos  homens  de  armas  e 
besteiros,  e  dois  mil  peões. 

Nisto  chegava  recado  de  El-Rei  que  se  fosse 
immediatamente  a  Abrantes.  O  inimigo  estava 
perto  de  Coimbra;  atravessara  a  fronteira  sem 
resistência;  Almeida  e  Celorico  haviam  sido  to- 
madas sem  lucta. 


I08  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Apenas  chegado  o  Gondestavel,  reuniu-se  o 
conselho  de  guerra.  Ia- se  deliberar  sobre  o  modo 
como  se  devia  proceder  num  momento  tão  angus- 
tioso para  os  destinos  da  Pátria,  Os  conselheiros 
divergiam:  «El-Rei  desejava  muyto  haver  a  bata- 
lha; e  o  Condestabre  era  com  elle,  o  qual  dese- 
java muyto  dar  a  batalha  mais  que  nenhúa  ou- 
tra coisa,  en  tendo  esto  por  serviço  del-rei. 
E  os  outros  do  conselho  eram  muyto  contra 
esto  (i)». 

Os  debates  foram  violentos  e  longos.  A 
maioria  inclinava-se  a  que  se  não  deveria  dar 
batalha;  a  differença  de  numero  era  enorme; 
aos  trinta  mil  castelhanos  podiam  os  portugue- 
ses, ao  summo,  oppor  uns  dez  mil;  luctar  assim, 
seria  temeridade,  o  melhor  era  invadir  a  Hes- 
panha  pela  Andaluzia  e  obrigar  deste  modo,  in- 
directamente, o  inimigo  a  voltar  para  o  seu  país. 
Nuno,  porem,  pensava  mui  diversamente.  Pro- 
testou com  energia  contra  taes  planos.  Elle  pro- 
mettera  aos  lisboetas  que  não  deixaria  approxi- 
marem-se  os  castelhanos  da  cidade,  sem  passarem 
pelo  seu  cadáver:  havia  de  cumprir  a  palavra. 
Já  que  o  haviam  feito  condestavel,  pertencia-lhe 
deliberar  sobre  assumptos  de  guerra,  e  elle  jul- 
gava que  se  devia  dar  batalha.  E,  como  os  do 
conselho  ainda  hesitassem,  D.  Nuno  saiu  e  re- 


(i)  Chron.  do  Cond.  —  Cap.  LI. 


ALJUBARROTA 


109 


colheu  aos  seus  alojamentos.  No  dia  seguinte, 
pela  manhã,  partiu  para  Thomar  para  ir  contra 
o  rei  de  Gastella.  Ao  mensageiro, 
que  o  vinha  chamar  outra  vez  ao 
conselho,  respondeu :  «Dizei  a  el-rei 
meu  senhor  que  eu  não  sou  ho- 
mem de  muitos  conselhos,  e  pois 
uma  vez  por  elle  foi  determinado, 
como  elle  bem  sabe,  de  não  deixar 
passar  el-rei  de  Gastella  todavia  lhe 
poer  batalha,  que  eu  desta  tenção 
não  me  entendo  de  mudar  nem 
tornarei  um  pé  atraz,  mas  dizei- 
^  lhe  que  peço  por  mercê  que  me 
deixe  ir  meu  caminho,  cá  eu  com 
estes  poucos  e  bons  homens  portu- 
gueses que  commigo  vão,  lh'a  en- 
tendo de  ir  poer ;  se  sua^  mercê  for 
de  ir  lá,  mande-m'o  dizer,  e  aguar- 
dá-lo-hei  em  Thomar  (i)». 

Resposta  tão  decisiva  não  deixou 
de  escandalizar  os  graves  conselhei- 
ros ;  quiseram  «mizerar  o  Condes- 
tabre» com  El-rei :  que  era  muito 
cm  se  partir,  que  era  desprezamen- 
to  que  fazia  a  el-rei,  etc.  Das  quaes  coisas,  diz 
a  Chronica,  El-rei  não  curava,  porque  conhe- 


A  pá  da  Pa- 
deira de  Al- 
jubarrota 


(i)  Fernão  Lopes  — O.  c,  vol.  IV,  cap.  XXXI. 


I  IO  VIDA  DO  BEATO  NUNO   ALVAREZ 

cia  melhor  o  Condestavel  e  que  tudo  o  que  fazia 
era  por  seu  serviço.  E,  com  effeito,  no  dia  se- 
guinte, D.  João  I  inclinava  para  a  decisão  do 
seu  amigo,  também  elle  abraçaria  a  opinião  do 
Condestabre.  Mandou,  pois,  apparelhar  o  seu 
exercito  e  marchou  ao  encontro  do  Condesta- 
vel para  Thomar. 

Entretanto,  o  exercito  invasor,  passando  por 
Coimbra,  approximava-se  de  Leiria,  dirigindo-se 
sôbre  Lisboa.  No  percurso  havia  destruido  tudo. 
Casas,  povoações,  egrejas,  campos,  tinham  sido 
talados,  arrasados  na  marcha  triunfal.  Parti- 
cular ódio  mostrara  em  Trancoso,  onde  man- 
dara arrasar  até  a  própria  Egreja  de  S.  Mar- 
cos, para  se  vingar  da  derrota  que  recentemente 
soflrera  um  exercito  hespanhol.  Embriagado  com 
o  triunfo,  o  rei  de  Castella  respondia  orgulhosa- 
mente aos  mensageiros  que  mandara  D.  Nuno, 
intimando-o  a  deixar  o  reino:  tnem  reconhecia  o 
Mestre  como  rei,  nem  a  Nuno  por  condestavel». 

Um  prisioneiro  castelhano  dera  informações 
do  exercito:  era  numeroso,  vinha  bem  aperce- 
bido, cheio  de  esperança.  D.  Nuno  proíbiu-lhe 
que  o  dissesse  aos  portugueses,  antes  o  obri- 
gou a  dizer  o  contrario;  que  eram  muitos,  sim, 
mas  descorçoados,  desorganizados,  mal  dirigi- 
dos. Poucos  homens  aguerridos  bastariam  para 
os  vencer. 

Eram  animadoras  as  noticias,  mais  porme- 


ALJUBARROTA  III 

norizadas,  do  desastre  infligido  aos  castelhanos 
em  Trancoso,  desastre  a  que  atrás  nos  referi- 
mos. O  caso  passara-se  assim : 

Quatrocentas  lanças,  commandadas  por  João 
Rodrigues  Gatanheda  haviam  invadido  o  reino 
português,  e,  arrasando  os  arredores  de  Pinhel 
e  Almeida,  acercavam-se  de  Viseu.  As  dissen- 
sões, que  reinavam  entre  alguns  fidalgos  portu- 
gueses, facilitavam  a  tarefa  do  inimigo,  pois  im- 
pediam a  formação  dum  núcleo  de  resistência. 
Questões  de  falso  pundonor,  questões  de  pena- 
cho, como  hoje  se  diria,  entre  dois  fidalgos, 
D.  Gonçalo  Vasques  Goutinho,  alcaide-mór  de 
Trancoso,  e  Martim  Vasques  da  Gunha,  de  Li- 
nhares. Felizmente  o  alcaide  d;  Ferreira,  por 
nome  João  Fernandes  Pacheco,  interveiu,  con- 
seguiu congraçar  os  dois  fidalgos.  Immediata- 
mente  se  organizou  um  exercito  que,  cortando 
a  retirada  aos  castelhanos,  lhes  tomasse  os  des- 
pojos que  levavam  e  infligisse  uma  derrota  com- 
pleta. Mandaram,  como  era  de  estilo,  um  es- 
cudeiro que  levasse  o  cartel  de  desafio  ao  Ga- 
tanheda, e  esperaram  o  inimigo  a  meia  légua  de 
Trancoso,  com  umas  trezentas  lanças,  ás  quaes, 
porem,  não  correspondia  numero  sufficiente  de 
peonagem  e  besteiros.  Os  castelhanos  eram 
mais  de  dois  mil.  Junto  da  ermida  de  S.  Mar- 
cos deu-se  o  encontro.  Abriram  a  batalha  os 
ginetes  de  Gatanheda,  que  derrotaram  os  cam- 


l  I  2  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

ponezes  portugueses,  pondo-os  em  fuga.  Mas  os 
fidalgos  lusitanos,  ajudados  de  alguns  besteiros, 
contiveram  a  investida  da  cavallaria  inimiga,  re- 
cebendoa  de  pé  quedo,  á  maneira  do  sistema 
usado  por  Nuno  Alvarez  em  Atoleiros.  Foi  te- 
naz, obstinada,  a  lucta.  Nella  morreram  quasi 
todos  os  cavalleiros  castelhanos,  de  encontro  á 
barricada  de  lanças,  onde  iam  cair  feridos  os 
animaes,  arrastando  na  queda  os  montadores. 
A  peleja  durou  desde  manhã  até  á  noite.  Por  fim, 
os  portugueses  tinham  vencido.  Apoderaram-se 
de  todas  as  bagagens,  libertaram  os  prisioneiros, 
e  puseram  em  fuga  os  invasores.  Teve  esta  ba- 
talha, diz  Schoeffer  (i),  resultados  funestos  para 
os  castelhanos;  diminuiu  o  seu  poder,  destruindo 
uma  boa  porção  da  sua  fidalguia,  abalando  a  sua 
confiança,  e  exaltando  a  coragem  dos  portu- 
gueses, cuja  orgulhosa  audácia  arrostou  dai  em 
deante  todos  os  perigos.  Foi  um  digno  preludio 
da  batalha  decisiva  de  Aljubarrota. 

Haviamos  deixado  D.  Nuno  em  Thomar, 
onde  se  lhe  fora  juntar  El-rei. 

Ambos  os  amigos,  decididos  a  dar  batalha 
ao  invasor,  detendo-o  na  sua  marcha  sobre  Lis- 
boa, vieram  com  os  seus  exércitos,  aos  quaes 
se  haviam  juntado  os  triunfadores  de  Trancoso, 
a  Ourem;  dai  seguiram  para  Porto  de  Moz,  e 


(i)  Hist.  de  Port.f  pag.  366,  trad.  port. 


ALJUBARROTA  I  I  3 

daí  a  Aljubarrota,  onde  se  feriu  a  batalha  de 
que  vamos  tratar. 

No  caminho,  em  Atouguia  das  Cabras,  acon- 
teceu entrar  no  acampamento  uma  corça,  que, 
apesar  de  perseguida  e  acossada  por  muita  gen- 
te, conseguiu  escapar  até  á  tenda  real,  onde  foi 
morta.  Bom  prenuncio,  diziam  os  optimistas, 
(e  o  eram  quasi  todos),  para  a  peleja  em  que 
iam  entrar. 

D.  João  I  e  o  Condestavel  ordenaram  os 
seus  exércitos,  e  tomaram  posições  extrema- 
mente favoráveis  para  um  combate.  Mas,  so- 
bretudo, e  é  o  que  mais  importa  para  este  nosso 
trabalho,  procuraram  preparar-se  para  a  lucta, 
com  aquelles  confortos  religiosos  que  alentam  o 
coração  humano  e  o  dispõem  para  o  heroismo. 

Ao  cair  da  noite  de  i3  de  agosto  de  i385, 
os  dois  exércitos  estavam  já  dispostos  em  ordem 
de  batalha,  a  duas  léguas  de  Leiria.  No  dia  se- 
guinte decidir-se-hia  a  sorte  do  reino  português, 
a  sorte  da  sua  independência,  a  confirmação  da 
nova  dinastia. 

Demos  a  palavra  ao  nosso  Fernão  Lopes.  Es- 
tamos no  dia  14  de  agosto,  uma  segunda  feira, 
véspera  da  Assumpção  de  Nossa  Senhora,  dia 
de  jejum.  «Bem  cedo,  de  madrugada,  diz  o 
chronista,  mandou  o  Conde  dar  ás  trombetas, 
e  de  noite,  antes  que  amanhecesse,  começou  a 
ouvir  suas  missas  e  naquela  tenda  onde  estava. 


114 


VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 


davam  o  Santo  Sacramento  a  quantos  commun- 
gar  queriam  os  clérigos  que  para  isto  eram  pres- 
tos». Iam  receber  na  Sagrada  Eucaristia,  no 
Pão  dos  fortes,  a  coragem  de  leões,  que  haviam 
de  mostrar  em  breve,  iam  pedir  a  Deus,  tem 
cujas  mãos  estão  as  victorias»,  que  a  desse  a 
elles,  á  sua  Pátria  periclitante ;  iam,  mais  uma 
vez,  clamar:  «Senhor,  salvae  o  vosso  Portugali. 


Fac-úmilc  em  madeira  do  tumulo  de  D.  Nuno  Alvarez  que  se  conserva  ainda 
nas  ruinas  do  Carmo 


XIII 

ALJUBARROTA  (a  batalha) 


«Dom  João,  pela  graça  de  Deus,  Rei  de  Por- 
tugal e  do  Algarve.  A  quantos  esta  carta  virem 
fazemos  saber,  que  por  honra  da  Virgem  Maria 
nossa  defensora  e  destes  reinos,  considerando 
as  muitas  estremadas  graças,  que  de  seu  ben- 
to Filho  a  rogo  delia  sempre  recebemos,  as- 
sim em  guarda  de  nosso  corpo,  como  exalça- 
mento  dos  ditos  Reinos  em  as  guerras  e  meste- 
res em  que  somos  postos,  especialmente  na  ba- 
talha e  campo  que  houvemos  com  os  Castel- 
lãos,  dando-nos  delles  victoria  maravilhosa, 
mais  por  sua  misericórdia,  que  pelos  nossos 
merecimentos,  propuzemos,  em  remembrança 
dos  benefícios  por  ella  recebidos  de  edificar  e 
mandar  fazer  esta  casa  de  oração,  em  a  qual 
á  honra  e  louvor  da  dita  Senhora  se  faça  servi- 
ço a  Deus. . .  » 

Assim  começa  a  carta  de  doação  do  Mostei- 
ro da  Batalha  á  esclarecida  Ordem  de  S.  Do- 


I  I  6  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

* 

mingos  (i).  O  Chronista  da  Ordem  descreve^ 
na  sua  linguagem  e  estilo  maravilhoso,  o  nosso 
grande  monumento  nacional,  certamente  um 
dos  mais  bellos  templos  do  mundo  e  a  melhor 
jóia  da  arquitectura  portuguesa.  E'  um  poema 
em  pedra,  onde  a  alma  portuguesa  cristallizou 
as  suas  aspirações  e  sentimentos,  a  sua  Fé  e 
religiosidade,  no  tempo  em  que  foi  fundado.  A 
fachada  riquissima,  com  o  estupendo  pórtico, 
constitue  uma  Biblia  marmórea. 

A'  direita  de  quem  entra  está  a  capella  dos 
fundadores  onde  jazem  os  restos  mortaes  de 
M).  João  I,  de  D.  Filipa  e  seus  filhos.  As  três 
naves  arrojadas,  as  columnas  esguias,  a  sobrie- 
dade da  ornamentação,  a  claridade  mistica  da 
interior  são  dum  effeito  surpreendente.  Santa 
Maria  da  Victoria  é  um  monumento  votivo  e 
commemorativo  da  Batalha  de  Aljubarrota,  le- 
vantado nas  immediações  do  campo  onde  ella 
se  feriu. 

A  dois  kilometros,  na  estrada  que  conduz  a 
Lisboa,  está  uma  graciosa  capella,  dedicada  a 
S.  Jorge  e  mandada  edificar  pelo  Santo  Con- 
destavel  no  sitio  preciso,  onde  esteve  a  sua  ala 
na  memorável  batalha. 

O  logar,  escolhido  por  D.  Nuno  para  o  exer- 


(i)  Pr.  Luís  de  Sousa,  Hist.  de  S.  Dom.,  b.  VI,  c.  XIL 


ALJUBARROTA  I  I  ^ 

cito  português,  estava  em  posição  elevada,  per- 
tnittindo-lhe,  assim  espiar  os  movimentos  do 
■exercito  contrario,  e  tinha  a  vantagem  de  ser  de- 
tendido  nos  flancos  por  dois  barrancos  de  diffi- 
■cil  accesso.  E  bem  necessária  era  esta  vantagem 
para  luctar  com  cerca  de  oito  mil  combatentes 
contra  o  enorme  exercito  castelhano,  quasi  qua- 
tro vezes  superior  em  numero,  abundantemente 
fornecido  de  alimentos  e  munições. 

O  sol  meridional  já  illuminava  o  horisonte. 
Ambos  os  exércitos  se  preparavam  para  o  com- 
bate. D.  Nuno  dispunha  as  suas  hostes.  EUe 
próprio  commandava  a  vanguarda;  El-Rei  a  re- 
taguarda, que  era  ao  mesmo  tempo  a  reserva 
íjue  havia  de  acudir  ao  logar  de  maior  perigo. 
Um  dos  flancos  estava  confiado  á  celebre  ala 
dos  namorados;  no  outro  estavam  todos  os  es- 
trangeiros, na  mór  parte  ingleses.  Pouco  vis- 
toso era  esse  exercito  improvisado;  mas  tinha 
unidade  de  commando,  coesão,  e  um  gene- 
ral, novo  sim,  mas  genial,  D.  Nuno  Alvarez,  a 
quem  todos,  inclusivamente  o  Rei,  obedeciam. 
As  hostes  castelhanas,  numerosas,  vistosas,  mo- 
veram-se  do  seu  acampamento  em  busca  do  ini- 
migo. Em  vez  de  o  atacar  de  frente,  «pollo  poo 
«  vento  que  lhes  dava  nos  rostos»  foi  ladeando 
a  posição  occupada  pelos  portugueses.  Era  uma 
serpente  medonha,  uma  giboia  monstruosa  que 
parecia  querer  enroscar,  nas  suas  curvas  mortife- 


I  I  8  VIDA   DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

ras,  o  pequeno  núcleo  que  occupava  o  logar  da 
actual  aldeia  de  S.  Jorge.  D.  Nuno,  por  sua 
parte,  também  inverteu  as  posições  dos  seus. 
Foi  occupar  o  logar  onde  estava  a  règuarda 
c  ordenou  que  trocassem  posições  as  outras 
alas.  Era  meio  dia,  e  ainda  o  combate  não  co- 
meçara. Vieram  parlamentados  propor  uma 
rendição;  D.  Nuno  recebeu-os  com  cortesia, 
mas  negou-se  a  tratar  do  assumpto;  e,  como 
elles  insistissem,  comminou-os  que  os  mandaria 
assetear,  se  se  não  retirassem  immediatamente. 
Uns  peões  portugueses  da  carriagem,  tomados 
de  medo,  intentaram  a  fuga:  mas  foram  cruel- 
mente mortos  pelos  contrários.  Ao  ver  tal  fim 
os  do  exercito  exclamaram  «que  antes  queriam 
morrer  como  homens  que  morrerem  como  por- 
cos, como  aquelles  que  fugiram  morrerom». 
D.  Nuno  percorria  as  fileiras,  animando,  ins- 
truindo os  seus.  O  seu  único  receio  era  de  que  os 
castelhanos  não  dessem  batalha;  era  a  peior  das 
hipóteses  para  os  seus  punhados  de  valentes,, 
que  estavam  em  jejum,  por  ser  véspera  da  Vir- 
gem Santissima;  para  se  manterem  em  cêrco,^ 
faltava-lhes  o  necessário.  Impacientavam-se  to- 
dos por  verem  as  hesitações  do  inimigo,  hesi- 
tações inevitáveis,  porque  lhes  faltavam  caudi- 
lhos. Os  melhores  haviam  morrido  no  cerco  de 
Lisboa;  o  rei  estava  doente,  era  conduzido  em 
liteira;   os  conselheiros  actuaes  peccavam  por 


ALJUBARROTA  I  I  9 

inexperientes  ou  por  medrosos.  Apesar  dessas 
hesitações,  ás  três  da  tarde  ouviu-se  um  estam- 
pido formidável ;  dois  escudeiros  portugueses 
caiam  mortos;  eram  os  írons  ou  bombardas, 
que  appareciam  pela  primeira  vez  na  Peninsula. 
Imperfeitas,  como  eram,  não  tiveram  resultado 
apreciável.  Pouco  depois  soavam  as  trombetas 
castelhanas;  grandes  massas  de  cavalleiros  pre- 
cipitavam-se  em  desordem  sobre  a  vanguarda 
portuguesa.  D.  Nuno  animava  os  seus,  claman- 
do: «Ah  portugueses!  pelejar. . .  filhos  e  senho- 
res. . .  por  vosso  rei,  e  por  vossa  terra... »  Que 
estivessem  firmes,  e  recebessem  assim  a  inves- 
tida dos  cavalleiros. 

Eram  perto  das  seis  da  tarde.  A  enorme  e 
pesada  massa  veio  esbater-se  contra  o  muro 
formado  pelas  lanças  lusitanas:  vinha  desorde- 
nada. A  estreita  garganta,  onde  estavam  os  por 
tugueseç,  a  obrigara  a  diminuir  a  frente  de  ata- 
que. Gomtudo,  a  pressão  foi  tal,  que  o  centro  da 
vanguarda  recuou  em  arco,  ia  ceder.  Mas,  eis 
que,  automaticamente,  as  duas  alas  vieram  re- 
forçá-la, e  pouco  depois  vinha  El-rei  com  as 
reservas  da  retaguarda.  Fortalecido  assim  o  nú- 
cleo combatente,  a  lucta  tomou  um  aspecto  fe- 
roz. Abandonando  as  lanças,  ou  quebrando-lhes 
os  contos,  os  cavalleiros  hespanhoes  combatiam 
denodadamente,  para  derribar  essa  parede  de 
homens,   formada   pelos   portugueses.  Esforço 


120  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

baldado,  porque  elles  próprios  caiam  feridos 
pelas  lanças  dos  peões,  ou  derribados  pelos  ti- 
ros dos  besteiros  e  archeiros.  Os  cavallos  mor- 
tos eram  outro  obstáculo  contra  o  qual  esbar- 
ravam na  sua  marcha.  Os  cadáveres,  os  corpos 
dos  feridos,  já  se  amontoavam  defronte  da  posi- 
ção expugnada,  formando  novo  e  horrivel  obs- 
táculo. A  flor  da  nobreza  hespanhola  estava  di- 
zimada. Nisto  vem  um  reforço  enviado  pelo  rei, 
o  qual  já  encontrou  os  combatentes  em  franca 
retirada,  acossados  violentamente  pelos  valen- 
tes soldados  de  D.  Nuno.  O  embate  dos  dois 
corpos  augmenta  a  confusão,  a  fuga  agora  é 
desordenada.  D.  Nuno  corre  a  acudir  a  um 
ataque  dirigido  pelo  Mestre  de  Alcântara  contra 
a  retaguarda  portuguesa  e  repelle-o  facilmente. 
Depois  todos  gritando:  tJá  fogem,  já  fogem», 
perseguem  o  inimigo,  completamente  desorien- 
tado. Tomam-lhe  a  bandeira,  matam  desapie- 
dadamente, prendem,  saqueam  tudo.  O  pobre 
rei  doente,  monta  num  cavallo  e  foge  para  San- 
tarém. Privados  do  chefe,  os  da  infantaria,  que 
nem  se  quer  chegaram  a  tomar  parte  na  lucta, 
fogem,  largando  armas  e  bagagens.  Foi  uma 
debandada  confusa,  lúgubre,  augmentada  pela 
escuridão  que  começava  a  entristecer  os  tojaes 
dos  campos  de  Aljubarrota.  Em  menos  de  uma 
hora  htvia-se  ganhado  uma  victoria  verdadeira- 
mente decisiva.  A  coroa  real  fora  baptizada  no 


ALJUBARROTA  I  2  I 

sangue  castelhano,  firmara-se  inabalavelraente 
a  nova  dinastia  (i). 

O  jovem  Gondestavel  (contava  apenas  vinte 
e  cinco  annos!)  alcançara  as  palmas  do  maior 
general  da  Peninsula;  dora  avante  o  seu  nome 
só  bastará  para  refrear  os  mais  audazes  adver- 
sários. A  fuga  do  rei  fora  precipitada.  Enten- 
deu-o  D.  Nuno,  pois  via  bem  que  com  o  exer- 
cito que  ainda  restava  podiam  os  castelhanos 
bater  o  inimigo.  Não  permittiu,  portanto,  que  se 
desfizesse  a  ordem  de  guerra  dos  seus  durante 
a  noite.  Alta  noite,  foi  á  tenda  real  congratu- 
lar-se  com  El-rei  D.  João.  Paliaram  longamente 
os  dois  amigos.  D.  Nuno  contou-lhe  como  vira 
uma  setta  vinda  do  ar  derribar  o  seu  irmão 


(i)  Alguns  dos  nossos  historiadores  mencionam  as 
mulheres  portuguezas  que  de  algum  modo  concorreram 
para  o  êxito  da  batalha.  Maria  de  Sousa  ajudava  e  ani- 
mava os  soldados  levando-lhes  alimentos  e  refrescos;  só 
ella  havia  derrubado  20  castelhanos.  Joana  de  Gouvêa, 
parenta  do  cavalleiro  Castro  de  Sousa,  arremessava  con- 
tra o  inimigo  pedras  e  paus.  Mas  de  todas  a  mais  cele- 
bre é  a  lendária  padeira  de  Aljubarrota  Brites  de  Almei- 
da, por  alcunha  a  Pisqueira,  que  matou  sete  castelhanos, 
escondidos  no  seu  forno,  com  a  famosa  pá,  que  ainda 
hoje  se  conserva  no  município  da  villa.  Também  se  con- 
serva no  Convento  de  Alcobaça  a  enorme  caldeira  que 
foi  tomada  ao  inimigo  e  na  qual,  segundo  referem  os 
chronistas,  se  preparava  a  comida  do  séquito  do  Rei  de 
Oastella.  Tem  i,3o  de  diâmetro  máximo. 


122  VIDA   DO  BEATO   NUNO   ALVAREZ 

Pecir'Alvarez,  feito  Mestre  de  Calatrava  pelo 
rei  castelhano;  faliaram  dos  mortos,  dos  bons 
portugueses  e  dos  chamorros  que  «então  chama- 
vam aos  máos  portugueses •.  «Bastos  como  os 
feixes  no  restolho  de  bom  trigo  e  bem  basto», 
diz  a  Chronica,  jaziam  os  cadáveres  dos  inimi- 
gos. Cearam  juntos,  elles  que  durante  todo  esse 
dia  nada  haviam  provado  «e  a  tal  ceia,  acres- 
centa a  Chronica,  se  poderia  bem  chamar  sa- 
borosa». El-rei  ficou  três  dias  no  campo,  como 
era  costume  para  affirmar  a  sua  victoria;  de- 
pois foi  a  Alcobaça  juntar-se  ao  Gondestavel 
que  regressava  de  Ourem,  onde  fora  agradecer 
á  Virgem  a  victoria  que  alcançara  e  tomar  pos- 
se do  condado,  agora  confirmado  e  ampliado 
com  largas  doações.  Daí  marcharam  para  San- 
tarém. 


XIV 


VALVERDE 

Em  Santarém  souberam  os  dois  amigos  que 
o  rei  de  Gastella  fugira  em  direcção  de  Lisboa ; 
aí  embarcara  secretamente,  disfarçado,  numa 
das  naus  que  bloqueava  a  cidade,  e  partira 
para  Sevilha.  Estava  assim  consumada  a  der- 
rota. Sem  guia,  sem  commando,  dispersava-se  o 
exercito  invasor.  Mas  nem  El-Rei  nem  o  Con- 
destavel  quiseram  descansar  á  sombra  dos  lou- 
ros alcançados.  Era  necessário  tirar  todo  o  par- 
tido possivel  da  victoria;  era  necessário  subjugar 
todas  as  cidades  que  ainda  se  mantinham  por 
D.  Beatriz  e,  principalmente,  urgia  inutilizar  o 
resto  do  exercito  castelhano,  a  fim  de  tornar  im- 
possível qualquer  tentativa  de  nova  invasão. 
D.  João  I  dirigiu-se  para  o  Minho;  aqui,  depois 
de  agradecer  a  Nossa  Senhora  da  Oliveira,  de 
Guimarães,  as  graças  recebidas,  foi  tratar  no 
Porto  da  columna  que  havia  de  render  as  cida- 
des que  em  Traz-os-Montes  ainda  eram  por  Gas- 
tella. O  Gondestavel  dirigiu-se  para  o  Alemtejo, 
onde,  como  fronteiro-mór,  lhe  competia  a  defesa 
do   reino.  Acompanhá-lo-hemos  nessa  viagem 


124  VIDA   DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

certamente  a  mais  gloriosa  de  quantas  teve  na 
sua  vida.  A  esquadra  castelhana  abandonava  o 
Tejo.  D.  Nuno  entendeu  que  devia  proseguir 
as  operações  e  e  ir  buscar  o  inimigo  no  seu  pró- 
prio território.  Tomava  assim  a  offensiva,  cujo 
efieito  moral  forçosamente  havia  de  deprimir  o 
animo  dos  castelhanos,  já  profundamente  aba- 
lado com  a  derrota  de  Aljubarrota. 

Reuniu,  pois,  um  exercito,  apetrechou-o  de 
tudo  o  que  necessitava  para  uma  invasão  e 
mandou  aviso  ao  inimigo  que  em  breve  seria 
em  terra  sua.  Passou  a  fronteira  em  Badajoz,  e 
foi  tomando  successivamente  Almendroal,  Par- 
ra, Zafra,  Fuente  dei  Maestre,  Usagre  e  Villa 
Garcia.  Desde  Parra  seguia-o  o  mestre  de  Al- 
cântara, Barbuda,  porem  sem  lhe  dar  combate. 
Esperava  melhor  occasiáo,  que  em  breve  se  lhe 
ia  apresentar.  Com  effeito,  em  Villa  Garcia 
appareceu  um  arauto,  com  recado  dos  inimigos. 
Trazia  na  mão  um  molho  de  varas.  A  Chro- 
iiica  do  Condestabre  (i)  descreve  pormenoriza- 
damente a  encantadora  scena  de  que  não  que- 
remos privar  o  leitor. 

Bem  recebido  pelo  Condestabre  que  estava 
sentado,  o  trombeta,  de  joelhos,  fallou  desta 
guisa:  «Senhor  Condestabre,  o  Mestre  de  San- 
tiago, D.   Pedro  Moniz,  meu  senhor,  ouvindo 

• 

(i)  Cap.  LIV. 


VALVERDE  125 

dizer  que  vós  sois  em  sua  terra  e  lhe  fazeis 
muito  mal  e  estrago  nella,  vos  manda  dasafiar 
e  vos  envia  esta  vara».  —  E  o  conde  respondeu: 
«que  fosse  bem  vindo  com  taes  novas»;  e  to- 
mando a  vara  na  mão,  passou-a  para  outra  «e 
bem  entendeu  que  todas  lhas  havia  de  dar».  Com 
egual  ceremonial  o  arauto 
foi  entregando  as  outras  va- 
ras, até  exgotar  o  feixe:  e 
bem  numerosas  ellas  eram. 
O  Mestre  de  Galatrava,  o 
Conde  de  Medina  ,Cceli,  o 
Mestre  de  Alcântara,  mais 
de  doze  fidalgos  da  Anda- 
luzia e  Estremadura  hespa- 

.  A   caldeira   de  Alcobaça, 

nhola,    e    os    vinte    e    quatro  tomada  aos  castelhanos 

de  Sevilha,  todos  haviam  ^^  '3^5* 
enviado  a  sua  vara.  Acabando  de  as  receber, 
D.  Nuno  disse:  «Amigo  meu,  vós  sejaes  mui 
bemvindo  com  taes  novas  como  estas,  que  me 
não  podieis  ora  trazer  outras  com  que  me 
tanto  prouvesse ;  salvo  se  me  trouxéreis  recado 
que  el-rei  de  Castella  me  mandava  desafiar. 
E  vós  dizei  ao  Mestre,  meu  senhor  e  ami- 
go, que  me  praz  muito  com  sua  desafiaçao». 
Interrompendo  então  o  discurso  e  dirigindo-se 
aos  seus  exclamou:  «Vedes,  amigos,  como  é 
certo  o  que  eu  dizia  estes  dias?  que  o  Mestre, 
meu  senhor  e  amigo,  não  nos  havia  de  leixar 


120  VIDA   DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

passar  por  esta  terra,  que  não  nos  puzesse  ba- 
talha? Ora  é  mister  que  nos  façamos  prestes 
para  ella,  e  quem  nos  tão  boas  novas  trouxe  ra- 
zão é  que  haja  boas  alviçaras».  Mandou  então 
dar  ao  trombeta  cem  dobras  e  concluiu:  cDizei 
ao  Mestre  meu  senhor  e  amigo,  e  aos  senhores 
que  com  elle  são,  que  eu  lhes  agradeço  muito 
suas  desafiações  e  que  muito  mais  lhes  agra- 
deço as  varas  que  me  mandaram,  com  que  os 
entendo  todos  de  ir  castigar».  E  então  se  partiu 
o  trombeta  e  levou  este  recado  áquelles  senho- 
res que  o  enviaram,  que  de  tal  resposta  foram 
mui  maravilhados,  conclue  o  citado  documento. 

Marchou,  pois,  com  o  seu  exercito,  já  dis- 
posto em  ordem  de  batalha,  a  Villa  Nueva  c, 
passando  por  Medelim,  veio  a  Valverde,  perto 
de  Merida,  onde  achou  o  inimigo. 

Occupava  este  posições  altas,  extremamente 
vantajosas,  emquanto  Nuno  devia  passar  a  vau 
o  rio,  para  o  ir  buscar,  perseguido  na  retaguarda 
pelo  Barbuda,  que  já  lhe  mordia  a  cauda  do 
exercito.  Encontrava-se  entre  dois  fogos.  E  com- 
tudo  não  hesitou.  Em  ordem  de  batalha  atra- 
vessou com  a  vanguarda  o  rio;  depois  veiu  ellc 
mesmo  acompanhar  as  bagagens  e  a  retaguar- 
da, pelejando  sempre,  mas  sempre  firme.  For- 
maram então  um  quadrado  cerrado  c  investiram 
contra  o  inimigo. 

Como  um  bloco  immenso  de  granito  que, 


VALVERDE  l  2J 

desprendendo-se  da  encosta  dum  monte,  não 
obstante  a  tempestade  e  os  raios,  vence  todos 
os  obstáculos  com  a  força  adquirida,  e  se  arre- 
messa nos  campos,  destruindo,  com  a  sua  massa 
gigantesca,  arvores,  casas,  tudo  o  que  se  lhe 
atravessa  na  marcha  fulminante,  assim,  impel- 
lida  pela  coragem  de  Nuno,  cae  sobre  o  inimi- 
go, cinco  vezes  superior  em  numero,  a  pequena 
hoste  portuguesa,  pequena  em  numero,  mas  he- 
róica na  coragem.  Toma  de  assalto,  uma  a  uma, 
as  posiçõeis  ou  outeiros  occupados  pelos  hespa- 
nhoes.  Quando  chegaram  ao  terceiro,  a  lucta  é 
homérica.  Atacados  por  todos  os  lados,  os  por- 
tugueses defendem-se  como  leões.  Sustenta-os  a 
coragem  do  seu  jovem  Condestavel.  Nisto  um 
dardo  vem  ferir  o  calcanhar  de  Nuno.  Não  im- 
porta ;  elle  continua  impávido  na  refrega.  Vendo 
que  a  retaguarda  do  seu  exercito  começa  a  fra- 
quejar, accorre  a  ella,  e  levanta  os  espíritos  dos 
combatentes.  Uma  chuva  de  lanças,  dardos, 
settas,  virotÕes  cae  sobre  as  hostes  lusitanas; 
ouvem-se  gritos  ferozes,  misturados  com  os  la- 
mentos dos  feridos;  o  retinir  das  espadas  lem- 
bra o  fusilar  dos  relâmpagos.  A  vanguarda 
começa  a  ceder.  Procuram  Nuno não  o  en- 
contram. Um  temor  gélido  invade  os  espíritos. 
Teria  morrido  o  capitão  ?  e  então  o  que  seria 
delles,  aí...  entregues  a  tão  numerosos  inimi- 
gos e  assaltados  como  feras!? 


128  VIDA  DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

Mas  eis  que  Ruy  Gonçalves  dá  com  o  Con- 
deslavei.  De  joelhos,  com  os  braços  levantados, 
entre  umas  penhas,  enlevado  em  sublime  ora- 
ção, Nuno  fitava  os  céus.  Chamam-no,  expõem 
o  perigo  em  que  se  encontram.  D.  Nuno,  pla- 
cidamente,  responde:  «Amigos,  ainda  não  é 
tempo,  esperae  que  termine  de  orar»,  e  conti- 
nua enlevado,  como  um  santo  em  êxtase,  na 
sua  fervente  oração.  Acodem  outros  guerreiros 
e  se  quedam  maravilhados  deante  do  estranho 
espectáculo,  deante  da  serenidade  desse  rosto 
no  meio  do  alarido  da  guerra.  Pouco  depois 
ei-lo  de  pé,  manda  aproximar  o  escudeiro  que 
sustentava  o  seu  cavallo,  monta,  e  apontando 
para  o  estandarte  do  chefe  espanhol,  do  Mes> 
tre  de  Santiago,  convida  os  seus  a  o  acompa- 
nharem. Caem  sobre  os  hespanhoes  com  Ím- 
peto irresistivel,  tomam-lhe  a  bandeira,  ferem 
mortalmente  o  chefe:  pÕem  em  debandada  o 
inimigo.  A  victoria  estava  ganha.  Agora  só  se 
perseguiam  no  terreno  accidentado  da  peleja  os 
fugitivos.  Apoderara-se  delles  um  verdadeiro 
pavor.  Durara  esta  lucta  dois  dias,  de  sol  a  sol. 

Depois  de  estar  um  dia  no  campo  da  bata- 
lha, Nuno  empreendeu  a  marcha  para  Portu- 
gal; passando  por  Merida  e  Badajoz,  veiu  des- 
cansar em  Elvas. 

Quisemos  descrever  mais  desenvolvidamente 
esta  batalha,  porque  a  iniciativa  da  invasão,  a 


VALVERDE  I29 

ordem,  o  apetrechamento  dos  toldados,  tudo  foi 
exclusivamente  dirigido  por  Nuno.  Elle,  sem 
consultar  o  Rei,  havia  tomado  todas  as  resolu- 
ções. Nella,  pois,  apparece  o  homem  tal  qual  é  : 
recebendo  da  sua  Fé,  haurindo  na  oração  aquelle 
heroismo  que  tornou  o  seu  nome  temido  em 
toda  a  Hespanha.  Com  esta  victoria,  alcançada 
em  terras  hespanholas,  com  a  guerra  levada  ao 
coração  de  Castella,  acabava  de  abater  comple- 
tamente o  moral  dessa  Nação.  E'  certo  que  para 
ella  contribuiu  a  inferioridade  dos  soldados  que 
formavam  as  hostes  castelhanas.  As  melhores 
haviam  succumbido  em  Atoleiros,  Trancoso  e 
Aljubarrota.  As  de  Valverde,  embora  nume- 
rosas como  herva  do  campo  ^  que  fazia  parecer 
o  exercito  português  uma  eira  cercada  de  cam- 
pos, eram  formadas  de  camponeses,  pouco  des- 
tros no  manejo  das  armas  e  nas  manobras  da 
guerra.  Faltava-lhes  mais  uma  vez  a  unidade 
de  commando.  Os  vários  fidalgos  que  as  diri- 
giam estavam  separados  por  invejas,  rivalida- 
des, que  faziam  perder  a  homogeneidade  de 
vistas,  necessária  para  as  batalhas.  As  próprias 
chronicas  castelhanas  inserem,  como  dia  funesto 
para  a  sua  Pátria,  a  data  desta  peleja :  ferida  a 
i5  e  16  de  outubro  de  i385,  apenas  três  meses 
depois  do  desastre  de  Aljubarrota. 


XV 


GUERRA   OFFENSIVA 

D.  João  I,  como  dissemos,  fora  reduzir  as 
praças  do  norte  que  ainda  se  mantinham  por 
Castella.  Apenas  recebeu  noticia  da  victoria  de 
Valverde,  ordenou  ao  Gondestavel  que  viesse 
ajudá-lo  em  Traz-os-Montes,  onde  Chaves  re- 
sistia valorosamente  ao  cerco.  Quando  chegou 
ao  Porto  um  popular  apresenta-se  ao  Gondes- 
tavel, a  pedir-lhe  justiça  contra  um  dos  seus 
cavalleiros,  um  certo  Antão  Vaz.  Esse  cavalleiro 
he  «depenara  a  barba  e  lhe  tomara  vinho  de 
sua  adega  non  lhe  pagando  delle  nenhúa  coisa». 
Mandou  immediatamente  D.  Nuno  indemnizar 
o  queixoso  com  bens  que  pertenciam  ao  dito 
Antão,  nada  se  importando  com  as  «palavras  sol- 
tas» deste.  O  Vaz  adeantou-se  na  marcha  e  foi 
queixar-se  a  El-Rei :  que  o  Gondestavel  era  de- 
masiado severo,  que  lhe  roubara  a  terra,  etc. 
Mas  o  Monarca,  depois  de  ouvir  D.  Nuno,  deu 
por  bem  feito  tudo  o  que  elle  ordenara.  Mais 
ainda:  a  pedido  do  seu  Gondestavel,  ordenou 


l32  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

que  se  lançassem  fóra  todas  as  mulheres  que 
acompanhavam  os  soldados,  medida  severa,  mas 
absolutamente  necessária  para  a  moralidade  que 
deve  reinar  nas  tropas  disciplinadas.  Chaves 
por  fim  capitulou;  logo  depois  Bragança.  Po- 
dia-se  agora  iniciar  a  invasão  de  Castella. 

Com  effeito,  em  maio  de  i386,  depois  da 
revista  ou  alardo  passado  em  Vallariça,  as  hos- 
tes portuguesas  penetravam  por  Ciudad  Rodri- 
go, que  se  entregava  sem  combate,  na  Castella, 
e  iam  cercar  Coria.  Algumas  villas  só  se  ren- 
diam ao  Condestavel,  coisa  que  não  pequena 
inveja  fazia  nascer  no  animo  de  alguns  fidalgos 
que  continuavam  a  conspirar,  «a  fazerem  entre 
si  falia  para  errar  ao  Condestabre  se  pudes- 
sem». Inúteis  conjuras!  O  espirito  de  D.  Nuno 
era  superior  a  todas  estas  mesquinharias.  Tra- 
tava-os  como  se  ignorasse  os  seus  conluios. 
Durante  o  cerco  vieram-lhe  dizer  que  um  escu- 
deiro, por  nome  Gonçalo  Gil,  roubara  um  cálix 
de  uma  egreja.  Não  pôde  Nuno  soffrear  a  sua 
indignação  deante  do  sacrilégio.  Inquiriu,  viu 
confirmado  o  crime.  Ordenou  que  levantassem 
uma  fogueira  para  queimar  o  criminoso.  S6 
depois  de  muito  rogado  perdoou  a  vida  ao  des- 
graçado Gonçalo,  mas  expulsou-o  do  exercito, 
j  Nunca  mais  apparecesse  entre  os  seus  solda- 
dos. . . »  Entretanto  a  cidade  cercada  resistia.  Os 
sitiantes  não  possuíam  engenhos  para  acometter 


GUERRA  OFFENSIVA  l33 

a  praça  forte.  O  calor  e  a  falta  de  agua  faziam 
adoecer  grande  numero  de  soldados  «de  guisa 
que  tantos  eram  os  doentes  como  os  sãos». 
Decidiu-se,  pois,  levantar  o  assédio  e  regressar 
a  Portugal,  pela  Beira.  Nuno  Alvarez,  algo 
desgostoso,  seguiu  para  Ourem,  passando  antes 
a  Santa  Maria  do  Meio  (Certan),  para  visitar 
o  Santuário  da  Virgem.  Daí  voltou  para  o  Alem- 
tejo. 

Estava  D.  João  em  Lamego,  quando  lhe  che- 
garam novas  de  que  os  ingleses,  commandados 
pelo  Duque  de  Lencastre,  haviam  desembarca- 
do em  Corunha  e  seguiam  triunfantes  pela  Gal- 
liza  abaixo.  Vinha  o  Duque,  como  se  sabe,  pre- 
tender a  coroa  de  Castella,  pretensão  favorecida 
por  D.  João,  como  meio  de  enfraquecer  o  ini- 
migo. Pouco  auxilio  material  recebeu  a  nossa 
nação  com  a  vinda  do  Duque.  Em  compensa- 
ção, porém,  foram  grandes  os  resultados  mo- 
raes.  O  rei  de  Castella  procurou  entabolar 
negociações  para  o  casamento  da  filha  primo- 
génita do  Duque,  D.  Catarina,  com  o  herdeiro 
da  sua  coroa.  Antes  que  ellas  surtissem  effeito, 
o  nosso  Rei  casa  com  a  segunda  filha,  D.  Fili- 
pa, rainha  das  mais  beneméritas  que  ainda  se 
sentaram  em  trono  português.  Logo  depois  desse 
casamento,  eífectuado  no  Porto,  o  exercito  por- 
tuguês e  mais  o  corpo  expedicionário  do  Duque, 
•entravam  pela  Hespanha;  iam  cercar  Benavente, 


l34  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

que  se  rendia,  seguindo  pelo  pais  dentro.  Mas 
os  nossos  alliados  bem  depressa  fraquejavam; 
não  podiam  soíFrer  os  calores  de  maio,  nem  a 
falta  de  alimentos.  Não  eram  èlles  frugaes^ 
como  os  nossos.  Cansaram-se,  pois,  bem  de- 
pressa; o  Duque  proseguiu  as  negociações  da 
casamento  de  D.  Catarina  com  o  Infante  D. 
Henrique.  Com  este  matrimonio  terminaram  as 
pretensões  do  Duque  de  Lencastre,  que  regres- 
sou, com  o  que  lhe  restava  do  exercito,  através 
de  Castella,  por  Bayona,  para  Inglaterra.  As 
duas  familias  reinantes  de  Portugal  e  Castella, 
approximavam-se  por  um  parentesco  que  mui- 
to havia  de  contribuir  para  a  paz  definitiva. 
D.  João  I  voltava  para  Portugal  e  fixava  a  corte 
em  Coimbra.  O  Condestavel  retirou-se  para  o 
Alemtejo. 

Em  agosto  de  iSõy  adoeceu  El-rei  grave- 
mente. Chegaram  a  julgá-lo  perdido.  Sabida  a 
noticia,  D.  Nuno  correu  a  Coimbra.  Felizmente  \ 
a  crise  passara.  Amorosamente  o  Condestavel 
não  quis  apartar-se  do  seu  amigo  antes  de  o 
ver  completamente  curado. 

No  mês  de  dezembro  El-Rei  convocava  as 
cortes  para  Braga.  Não  obstante  a  sua  repu- 
gnância D.  Nuno  viu-se  obrigado  a  apparecer 
nellas,  como  procurador  dos  fidalgos  do  reino. 
Fallou  na  assembleia  com  o  desassombro  cos- 
tumado. cE  desto  non  prouve  a  El-rei,  segundo 


GUERRA  OFFENSIVA  I  35 

palavras  que  ao  conde  respondeo»,  e,  o  que  é 
peor,  nenhum  dos  fidalgos  se  levantou  para  o 
apoiar.  «Quem  serve  ao  commum,  não  serve  a 
nenhum»,  dizia  D.  Nuno  vendo  o  pouco  resul- 
tado da  sua  acção  parlamentar,  e  nunca  mais 
quis  acceitar  tal  procuração. 

Nisto  lhe  veiu  recado  de  que  a  condessa,  sua 
mulher,  estava  doente  no  Porto.  Quando  lá  che- 
gou, tinha  morrido.  Enterrou-a  com  as  maiores 
honras  no  Convento  das  Dominicanas  de  Villa 
Nova  de  Gaia,  casa  de  que  os  pães  de  D.  Leo- 
nor de  Alvim  haviam  sido  generosos  bemfeito- 
res.  A  única  filha,  D.  Beatriz,  fructo  deste  ma- 
trimonio, mandou-a  para  Lisboa,  ao  cuidado  da"^ 
sua  mãe  Iria  Gonçalves.  Ele  voltou  depois  ás 
cortes  de  Braga. 

Gomo  é  sabido,  a  rainha  D.  Filipa  tem  na 
nossa  historia  fama  de  casamenteira.  Quis  dar 
ao  viuvo  nova  esposa  na  pessoa  de  D.  Beatriz 
de  Castro,  filha  de  Álvaro  Peres  de  Castro, 
primeiro  condestavel  que  foi  de  Portugal,  «don- 
zella  bem  filhadalgo  e  formosa»,  diz  a  chronica. 
Recusou-se  D.  Nuno,  dizendo:  «Para  offerecer 
a  D.  Beatriz  os  braços,  era  preciso  que  esti- 
vessem dezarmados,  não  convém  ainda  largar 
a  espada»  (i).  Não  se  dava  porem  a  rainha  por 
vencida,  tanto  que  D.  Nuno  pediu  licença  a  El- 


í  I )  Chronica  de  Sant'Anna  —  L.  III,  pag.  gSS. 


l36  VIDA  DO  BEATO   NUNO  ALVAREZ 

rei  e  fugiu  de  Braga,  dizendo  no  caminho  aos 
que  o  acompanhavam:  tque  emquanto  estivera 
em  Braga  que  sempre  encima  delle  andara  uma 
nuvem  negra,  e  que  depois  que  dahi  partira  lhe 
parecia  que  aquella  nuvem  negra  ficara  sobre 
Braga,  e  que  elle  vinha  já  desabafado  sem 
ella  (i).. 

Quando  chegou  ao  Alemtejo,  em  Évora 
houve  recado  que  o  Mestre  de  Santiago  se  pre- 
parava para  invadir  o  nosso  reino,  com  tenção 
de  queimar  Estremoz  e  Vimieiro.  Reuniu  logo 
os  seus  e  marchou  a  defender  Estremoz.  Esta 
invasão,  porem,  não  chegou  a  effectuar-se.  O 
Castelhano  apenas  soube  da  vinda  do  Condes- 
tavel,  desistiu  da  empresa.  Não  assim  o  Conde 
de  Nebra,  que  entrara  em  Poitugal  por  Campo 
de  Ourique,  talando  e  saqueando  as  povoações 
que  encontrara.  Particular  damno  soffrera  Vidi- 
gueira, donde  o  inimigo  levara  presos  homens, 
mulheres  e  creanças  e  ttodollos  gados  e  bes- 
tas». No  regresso  triunfal  chegara  a  Villa  Nueva 
dei  Fresno,  a  quatro  léguas  de  Monsaraz,  onde 
se  encontrava  D.  Nuno.  Com  os  escassos  ho- 
mens que  o  acompanhavam,  a  marchas  força- 
das, foi  no  encalço  do  inimigo,  mesmo  de  noite: 
surpreendeu-o  emquanto  estava  em  grande  fol- 
gança, e,  obrando  prodigios  de  valor,  desbara- 


(i)  Chromca  do  Cowá.  — Cap.  LVIII. 


GUERRA  OFFENSIVA  I  3  / 

tou-o  por  completo.  Libertou  os  prisioneiros, 
distribuiu  por  elles  o  saque  da  Villa;  para  si  só 
ficou  com  a  ferida  que  uma  pedra  lançada  da 
torre  da  cidade  lhe  fizera  na  coxa. 

Alegrou-se  o  Rei,  que  se  encontrava  em  Lis- 
boa, com  a  noticia  e  apesar  do  nojo  dos  maldi- 
zentes, que  continuavam  a  perseguir  o  Condes- 
tavel  na  corte,  veiu  a  Estremoz,  para  ir  com 
D.  Nuno  tomar  Campo  Maior,  que  estava  pelo 
rei  de  Castella.  Defendia-a  Gil  Vaz  de  Ba- 
rundo,  que  resistiu  durante  algum  tempo  ao  si- 
tio. Por  fim  a  villa  foi  tomada  e  Barundo  en- 
tregou o  castello,  recebendo  elle  e  os  seus, 
salvo-conducto  para  Castella  «como  era  con- 
teúdo no  tracto». 

Em  outubro  deste  anno  de  i388  assignavam- 
se  as  primeiras  tréguas.  Durariam  apenas  seis 
meses,  mas  com  ellas  já  se  ia  preparando  o 
caminho  para  a  paz  definitiva.  El-rei  D.  João 
e  o  Condestavel  foram  a  Aljubarrota  assis- 
tir ao  lançamento  da  primeira  pedra  dos  mo- 
numentos a  Santa  Maria  e  S.  Jorge,  que  am- 
bos haviam  feito  voto  de  erguer  no  sitio  da 
famosa  batalha.  Tudo  presagiava  o  fim  da 
guerra. 


N< 


XVI 

o   FIM   DA    GUERRA  — PAZ   DEFINITIVA 

Vamos  resumir  neste  capitulo  tudo  o  que 
se  refere  ás  hostilidades  entre  Portugal  e  Cas- 
tella,  já  que  nellas  sempre  teve  parte  activa  o 
nosso  biografado.  Os  outros  successos  parallelos 
serão,  para  maior  clareza,  tratados  no  capitulo 
que  segue.  Assim  poderemos  terminar  esta  ma- 
téria, já  algo  monótona,  das  invasões  e  tomadas 
de  cidades. 

Terminados  os  seis  meses  de  tréguas  D.  João  I 
rompeu  a  guerra,  tomando  Tuy  em  agosto  de 
1389.  Convencido  o  rei  de  Castella  da  sua  in- 
ferioridade e  aconselhado  pelo  Duque  de  Len- 
castre, que  em  França  assignara  tréguas  de  três 
annos  com  a  Inglaterra,  na  celebre  conferencia 
de  Amiensi  resolveu-se  a  entabolar  negociações 
com  Portugal  e  assignou  também  umas  tréguas 
que  deveriam  durar  seis  annos.  Mas  o  seu  espi- 
rito não  se  conformava  com  semelhante  acto.  As- 
sim reunidas  as  cortes  em  Guadalajara,  mani- 
festou-lhes  a  tenção  que  tinha  de  romper  essas 


140  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

tréguas.  Não  encontrou,  porem,  nem  nos  fidalgos^ 
nem  no  povo,  o  apoio  que  procurava.  Estavam 
todos  cansados  da  guerra.  Pouco  tempo  depois, 
dava  em  Alcalá  de  Henares,  uma  queda  de  um 
cavallo  tão  desastrosa  que  lhe  custou  a  vida.  Suc- 
cedeu-lhe  o  filho  D.  Henrique,  concunhado  d'El- 
Rei  de  Portugal.  As  duas  rainhas,  como  o  leitor 
sabe,  eram  irmãs  e  ambas  desejosas  de  ver  o 
termo  da  guerra.  Assim  chegaram  a  assignar-se 
novas  tréguas  por  quinze  annos,  facto  que  de- 
terminou a  resolução  de  D.  Nuno,  em  iSgS,  de 
que  adeante  fallaremos.  Julgava  elle  que  era  a 
paz  definitiva,  e  decidira  distribuir  os  seus  bens. 

Três  condições  continha  o  tratado:  suspen- 
são de  hostilidades,  restituição  mútua  de  pri- 
sioneiros, nomeação  de  juizes  que  dirimissem 
quaesquer  contendas  que  porventura  surgissem 
nos  quinze  annos  que  deveria  durar  a  trégua. 
Nomearam-se  dezaseis  dominicos,  oito  castelha- 
nos e  oito  portugueses,  para  recolher  os  presos 
em  Castella.  Em  Portugal  tomaram  esta  missão 
oito  franciscanos,  metade  portugueses,  metade 
castelhanos. 

Da  nossa  parte  cumpriu-se  á  risca  o  que  dizia 
respeito  á  restituição  dos  prisioneiros ;  não  foi 
egual  a  lealdade  do  procedimento  dos  contrá- 
rios. D.  João  I  quis  exercer  represálias.  Mandou 
chamar  Martim  Affonso  de  Mello  e  encommen- 
dou-lhe  a  conquista  de  alguma  cidade  castelhana 


o   FIM   DA  GUERRA 


141 


para  obrigar  o  rei  de  Gastella  a  cumprir  o  con- 
vencionado. Este  fidalgo,  diz  Pinheiro  Chagas  (i), 
partifl  para  o  Alemtejo  e  esteve  muito  tempo  es- 
piando Badajoz  e  Albuquerque,  e  informando-se 
do  modo  como  essas  duas  praças  eram  guarda- 


O  Convento  do  Carmo,  visto  da  parte  oriental 
(Da  Chronica  de  SanfAnna  —  P.  IV.  C.  I  —  pag.  571) 


das.  Lançou  afinal  as  suas  vistas  sobre  Badajoz. 
Combinou  com  um  homisiado  português,  Gon- 
çalo Annes,  um  modo  de  entrar  por  surpresa  na 
cidade,  cousa  que  só  pôde  ser  levada  a  cabo  na 


(i)  Hist.  de  Portugal  — Yol  II,  cap.  III,  pag.  56. 


142  VIDA   DO  BEATO   NUNO  ALVAREZ 

noite  da  Ascensão  de  iSgõ.  El-Rei,  apenas  teve 
noticia  do  feito,  encarregou  o  Condestavel  de 
assegurar  a  posse  da  cidade,  e  enviou  recfdo  a 
D.  Henrique  de  Castella  que  restituiria  Badajoz, 
logo  que  se  lhe  pagasse  o  que  devia,  mais  de 
25o  mil  dobras. 

Irritou-se  o  monarca  hespanhol,  e,  sem  mais, 
declarou  rotas  as  hostilidades.  Passaram,  nessa 
occasião,  para  o  lado  de  Castella,  alguns  fidalgos 
portugueses  despeitados  e  invejosos  de  Nuno  Al- 
varez. Juntaram-se  ao  exercito  invasor  e  vieram 
sobre  Viseu,  que  foi  tomada,  saqueada  e  incen- 
diada; D.  João  I  quis  reunir  os  seus,  mas  já 
não  encontrava  nelles  o  entusiasmo  de  antes. 
O  próprio  Condestavel,  irritado  com  as  medidas 
que  o  Rei  tomara  quando  foi  da  distribuição  dos 
seus  bens,  mandou  dizer  a  El-Rei  cque  havia 
mais  fidalgos  no  reino,  que  não  era  preciso 
chamá-lo  em  tudo  e  por  tudo».  Anojou-se  o  Rei 
com  a  resposta ;  mas  tudo  foi  esquecido  quando 
dias  depois  lhe  apparecia  D.  Nuno  á  testa  de 
duas  mil  lanças. 

Mais  uma  vez  triunfara  o  coração  nobre  de 
D.  Nuno  sobre  os  seus  justos  resentimentos. 
El-Rei,  abraçando-o,  exclamou:  tOra  posso  eu 
dizer  que  6  este  o  primeiro  homem  darmas  que 
«u  em  esta  terra  vi  (i)f. 


(i)  Chron.  —  Cap.  LXV. 


o   FIM  DA  GUERRA  143 

Os  castelhanos,  ouvindo  a  noticia  da  che- 
gada do  Condestavel,  retiraram-se  da  Beira,  mas 
enviaram  outro  corpo  de  exercito  para  invadir 
o  reino  pelo  Alemtejo.  Partiram  immediatamente 
para  a  região  invadida;  mas  o  Mestre  de  San- 
tiago, apenas  sentiu  os  portugueses,  houve  por 
bem  voltar  á  sua  terra  com  os  despojos  co- 
lhidos na  comarca  de  Beja  e  de  Campo  de  Ou- 
rique. Quiseram  os  portugueses  vingar  a  affronta 
e  invadiram  Castella  por  Valência  até  Cáceres. 
Aqui  os  castelhanos  se  refugiaram  adentro  dos 
muros  da  cidade,  resistindo  com  valor  e  zom- 
bando do  Condestavel  com  estas  palavras,  bem 
celebres  nos  fastos  da  nossa  historia:  «Non  vos 
valeo  vosso  madrugar,  Nuno  madruga».  Mas  o 
Condestavel,  a  quem  davam  essa  alcunha  pelo 
costume  que  tinha  de  se  levantar  muito  cedo, 
assentou  seu  arraial  junto  da  villa,  e  no  dia  se- 
guinte, apenas  recebidos  novos  reforços,  ata- 
cou-a  e  reduziu-a. 

No  regresso  para  Portugal,  estando  em  So- 
veral, appareceram  dez  escudeiros  castelhanos, 
«que  pareciam  homens  de  bem»,  no  arraial  de 
D.  Nuno.  Levados  á  presença  do  Condestavel, 
perguntou-lhes  este  o  motivo  da  sua  vinda,  e 
como  haviam  tomado  tal  ousadia  sem  salvo- 
conducto  nem  seguro.  Elles  responderam  que  a 
fama  da  sua  grande  bondade  lhes  dera  tal  atre- 
vimento, e  que  outra  coisa  não  desejavam  senão 


144  VIDA  DO  BEATO   NUNO  ALVAREZ 

vê-lo,  como  ]i  tinham  visto.  Mandou  que  se  lhes 
desse  de  cear,  e  que  os  deixassem  ir  em  paz. 
Nessa  mesma  occasião  alguns  soldados  rouba- 
ram uma  egreja,  apesar  de  tal  coisa  estar  defesa 
pelo  Chefe,  e  tomaram  uma  caldeira.  De  noite 
ataram  á  caldeira  uma  das  mulas  e  descansa- 
ram. Alta  noite  espantou-se  o  animal  e  levou  a 
caldeira  após  si;  as  outras  bestas,  atemorizadas 
com  o  estranho  ruído  da  caldeira,  tresmalha- 
ram-se,  fugindo  em  todas  as  direcções.  D.  Nuno 
ria-se,  dizendo  que  era  castigo  merecido,  que 
devia  servir  de  exemplo  para  t nunca  fazerem 
nojo  em  nenhuma  egrejat. 

Por  Valença  voltou  a  expedição,  e  D.  Nuno, 
depois  de  descansar  uns  dias,  foi  visitar  a  sua 
filhinha,  mais  a  sua  mãe,  que  estavam  em  Villa 
Viçosa. 

Já  ia  doente  o  guerreiro,  da  enfermidade  de 
que  fallaremos  no  capitulo  seguinte. 

Em  maio  desse  anno  de  1 897,  uma  esquadra 
castelhana  vinha  bloquear  o  Tejo,  fazendo  al- 
guns destroços  em  naus  portuguesas.  Por  terra 
faziam-se  varías  invasões,  mas  a  principal  era 
dirigida  pelo  infante  D.  Dinis,  que  penetrara  em 
Portugal  pela  Beira,  proclamando  que  a  rainha 
de  Castella  lhe  cedera  todos  os  direitos.  Intitu- 
lava-se  rei  de  Portugal!  O  Condestavel  veiu 
logo  a  defender  o  logar  invadido.  Em  Castello 
Branco  soube  que  o  Infante  estava  na  Covilhã» 


o  FIM  DA  GUERRA  I  45 

Enviou-lhe  logo  um  mensageiro  com  uma  carta 
enérgica,  em  que  lhe  exprobrava  uma  coisa  «tão 
fea  e  vergonhosa»,  como  era  luctar  contra  a  Pá- 
tria, usurpando  o  titulo  de  Rei.  D.  Dinis  pensou 
ainda  em  travar  batalha,  mas  os  companheiros, 
escarmentados  em  Valverde,  Aljubarrota  e  Ato- 
leiros, não  concordaram  e  immediatamente  to- 
maram o  caminho  de  Gastella.  Mais  uma  vez  o 
prestigio  do  Condestavel  triunfara. 

Todas  estas  coisas,  e  mais  o  revés  de  Jerez 
de  Gaballeros  infligido  por  D.  Nuno  numa  cor- 
reria que  fez  por  Gastella  dentro,  obrigaram  o 
monarca  hespanhol  a  tratar  seriamente  da  paz. 
Por  intervenção  dum  genovês,  um  certo  Am- 
brósio, assignaram-se  tréguas  de  três  meses.  De- 
pois, em  fevereiro  de  i3gg,  reuniam-se  os  en- 
carregados de  parte  a  parte  para  tratarem  da 
paz,  em  Olivença;  Nuno  Alvarez  era  o  repre- 
sentante principal  de  Portugal.  Prorogaram  a 
trégua  nove  meses,  passados  todos  em  discus 
soes.  Eram  demasiado  exigentes  para  um  ven- 
cido as  condições  que  impunha  o  rei  de  Gastella. 
D.  João  I  rompeu  bruscamente  as  negociações, 
e  em  maio  de  1400  invadiu  Gastella,  indo  cercar 
Alcântara.  A  praça  era  forte.  Resistiu,  apesar 
do  auxilio  de  D.  Nuno.  Simultaneamente  os  cas- 
telhanos vinham  tomar  Miranda  do  Douro  e  Pe- 
namacor. Tiveram  os  portugueses  de  voltar  para 
defender  o  solo  pátrio.  Em  Alcântara  apenas 


146  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

houve  algumas  escaramuças,  que  serviram  para 
salvar  o  nome  português.  Felizmente  recome- 
çaram as  negociações  da  paz,  assignando-se  em 
Segóvia  uma  trégua  de  dez  annos.  Virtualmente 
era  o  fim  da  guerra.  A  paz  definitiva  só  foi  as- 
signada  depois  da  morte  do  rei  de  Castella,  por 
sua  mulher  a  rainha  D.  Catharina,  regente  du- 
rante a  menoridade  do  filho,  aos  3 1  de  outubro 
de  141 1.  Mas  o  tratado  formal  da  paz  perpétua 
só  íoi  ratificado  definitivamente  por  D.  João  lí 
de  Castella,  em  Medina  dei  Campo,  no  anno  de 
143 1.  El-Rei  assignou-o  em  Almeirim,  aos  17 
de  janeiro  de  1432. 


XVII 


CONTRARIEDADES 

Alludimos  nas  paginas  que  levamos  escritas 
a  dois  factos  dolorosos,  que  Juntaaios  a  um  outro 
análogo  neste  capitulo.  Mostram  elles  muito  bem 
a  tempera  do  caracter  de  Nuno. 

Em  iSgS,  julgando  já  feita  a  paz,  D.  Nuno 
Alvarez  entendeu  que  devia  «dar  galardão  aos 
cavalleiros  e  escudeiros  que  em  sua  companhia 
na  guerra  andaram».  Repartiu,  pois,  generosa- 
mente por  elles  as  terras  e  rendas  que  recebera 
de  El-Rei  em  recompensa  dos  seus  serviços.  Era 
uma  espécie  de  participação  dos  lucros  da 
empresa  em  que  juntos  haviam  trabalhado.  Jun- 
tos haviam  refeito  Portugal.  D.  Nuno  julgava 
que  o  premio  que  lhe  fora  outorgado  devia  ser 
distribuído  pelos  seus  collaboradores  na  grande 
obra. 

E  assim,  diz  a  Chronica  (i)  tcomeçando 
entre  Tejo  e  Odiana,  deu  Alter  do  Chão  com 

(i)  Gap.  LXI. 


148  VIDA   DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

seu  castello  e  todas  suas  rendas  a  Gonçalo  Ans 
d' Abreu.  E  deu  Évora  Monte  com  suas  rendas  a 
Martim  Gonçalves  do  Carvalhal,  seu  tio.  E  as  ren- 
das da  alcaidaria  de  Estremoz  (porque  o  Castello 
nom  era  seu)  com  outras  rendas  do  dito  lugar 
a  Lopo  Gonçalves.  E  as  rendas  de  Borba  a 
Johá  Gonçalvez  da  Ramada.  E  Monsarraz  a 
Rodrigo  Alvarez  Pimintel.  E  parte  das  rendas 
de  Portel,  com  as  rendas  todas  de  Villa  de 
Frades  a  Fernão  Doíjz,  seu  thesoureiro.  E  a 
parte  das  rendas  da  Vidigueira  a  hum  bom  e 
estramado  escudeiro,  que  chamavam  Aôbnso 
Estéz  Perdigão.  E  Villa  Alva.  E  Villa  Ruyva 
a  Rodrigo  Affonso  de  Coimbra.  E  as  rendas  de 
Montemor  o  Novo  a  hum  bom  escudeiro  de  hy 
que  chamam  Rodrigo  Ans  Azeiteiro.  E  as  ren- 
das d' Almada  a  Pedro  Ans  Lobato.  E  o  barco 
de  Sacavém  a  Johã  Affonso,  contador  seu,  que 
depois  foi  vedor  da  fazenda  d'El-rei.  E  o 
reguengo  de  Dalvella  a  Esteve  Ans  Berbereta 
de  Lisboa.  E  as  rendas  de  Porto  de  Moos  e 
de  Rio  Mayor  a  Pedro  Affonso  do  Casal.  E  Al- 
vaiazer  a  Álvaro  Pereira.  E  o  Rabaçal  a  Mem 
Rodriguez  de  Vasconcellos  e  terra  de  Baltar, 
que  ha  entre  Doiro  e  Minho.  E  a  Martim  Gon- 
çalvez Alcoforado  o  Arco  de  Baulhe,  com  três 
ou  quatro  quintas  que  o  Condestabre  naquella 
comarca  havia  a  João  Gonçalvez,  seu  meirinho 
moor,  e  certas  rendas  que  havia  em  Terra  de 


CONTRARIEDADES  1^9 

Basto  e  depfía  a  Aífonso  PTjz,  que  foi  seu  vedor. 
E  certas  rendas  de  Barcellos  a  hum  bom  escu- 
deiro de  seu  corpo  e  que  bem  serviu,  que  cha- 
mavam Gil  Vãz  Freã.  E  Montalegre  com  terra 
de  Barroso  a  Diego  Gil  d'Ayrco,  seu  alferez.  E 
Chaves  com  todas  suas  rendas  a  Vasco  Machado, 
seu  criado  que  no  começo  das  guerras  foi  seu 
pagem». 

Todas  estas  rendas  e  terras  dera  o  Condes- 
tavel  em  préstamo,  ou  seja  com  condição  de 
cada  um  dos  beneficiados  contribuir  com  um 
certo  numero  de  guerreiros  em  seu  serviço  e 
de  El-Rei,  como  vassallo  seu.  Fora  generosa 
a  distribuição,  a  tal  ponto  que  ficara  escassa- 
mente com  o  sufficiente  para  a  sua  própria 
manutenção,  de  modo  que  «vivia  estreitamente». 
Porém  em  si,  acrescenta  a  Chronica,  era  sem- 
pre muito  ledo  porque  lhe  parecia  que  era 
desencarregado  daquelles  que  o  serviram. 

Este  facto  de  generosidade  causou  espanto 
nos  inimigos  do  Condestavel.  Fallaram  a  El-rei, 
o  qual,  movido  principalmente  pelos  argumen- 
tos do  Dr.  João  da  Regras,  não  aprovou  a  re- 
partição. O  jurista  via  nella  uma  renovação  do 
feudalismo,  e  elle,  que  era  convictamente  pela 
concentração  de  todo  o  poder  nas  mãos  do  Rei, 
entendia  que  os  seus  planos  seriam  destruídos, 
se  se  permittisse  semelhante  liberdade.  D.  João, 
amicíssimo  do  Condestavel,  cujos  conselhos  se- 


l5o  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

guia  em  tudo  o  que  se  referia  á  guerra,  e  ao 
mesmo  tempo  attentissimo  aos  sábios  ensina- 
mentos do  seu  chanceller,  sentia  no  coração 
uma  terrivel  lucta.  Mas  a  razão  de  Estado  pre- 
valeceu. Resolveu  oppor-se  á  distribuição. 

Já  se  vê,  semelhante  medida  magoou  profun- 
damente D.  Nuno.  O  guerreiro  franco  e  leal 
não  entendia  como  não  lhe  fosse  permittido  dis- 
por do  que  era  seu  e  havia  ganho  pelo  seu  valor 
e  trabalho.  Profundamente  desgostoso  saiu  da 
corte  e  marchou  para  o  Alemtejo.  Em  Estre- 
moz reuniu  os  seus  parentes,  amigos  e  creados. 
Expôs-lhes  a  ordem  de  monarca  e  o  seu  pesar. 
Resolvera  sair  fora  do  reino  buscar  sua  vida: 
ttodavia  servidor  d'El-rei»,e  respeitando  sempre 
o  seu  nome  onde  quer  que  estivesse;  convida- 
va-os  a  serem  seus  companheiros.  Todos  annuí- 
ram.  Quantos  aí  estavam  declararam  que 
iriam  de  boa  vontade  morrer  e  viver  com  elle. 
Distribuiu  então  o  dinheiro  que  trazia  e  cada 
qual  se  foi  preparar  para  a  saída  do  reino.  O 
Condestavel  foi  a  Portel.  Apenas  o  Rei  soube  da 
resolução  do  seu  fiel  amigo,  enviou-lhe  recado 
pelo  licenciado  Ruy  Lourenço,  deão  de  Coimbra, 
cpollo  torvar  da  sua  ida». 

Logo  depois  vinha  com  egual  missão  o  novo 
Mestre  de  Aviz  e,  a  seguir,  o  Bispo  de  Évora.  E 
o  Conde  enviava  «por  elles  suas  respostas  com 
grande  humildade,  como  a  rei  e  senhor,  mos- 


CONTRARIEDADES  I  5  I 

trando-lhe  que  sua  partida  non  se  podia  escu- 
sar».  Veiu  finalmente  da  parte  do  rei  o  tio, 
Martim  Gonçalves  do  Carvalhal.  Conseguiu  dis- 
suadir o  Condestavel,  entrando-se  num  accordo 
que.  salvaguardava  as  prerogativas  da  coroa. 
Foram  revogadas  todas  as  doações.  El-Rei  «pôs 
a  todos  suas  contijas»  e  assim  ficou  tudo  sere- 
nado, tnão  se  tocando  nas  suas  terras  de  juro 
e  herdade  mas  todavia  lhe  foram  tiradas  as  que 
tinham  de  préstamo». 

Outra  contrariedade  não  menos  dolorosa 
para  o  coração  de  Nuno  foi  a  doença  que  o  afli- 
giu em  1398.  Pelos  simptomas  que  vêem  lar- 
gamente descritos  na  Ghronica,  vê-se  que  se  tra- 
tava de  uma  neurastenia,  aggravada  por  cólicas 
hepáticas.  Humor  menecónico,  lhe  chamam  os 
antigos.  Não  podia,  irritava-se  com  o  tratar 
com  gente,  «especialmente  os  homens  que  lhe 
traziam  cartas»  ou  fallavam  de  negócios.  Vinha 
a  febre,  perdia  a  vontade  de  comer.  Seu  desejo 
era  mandar  açoitar  os  importunos  visitantes. 

Abandonou  todos  os  negocies  e  empregos. 
Os  fisicos  de  Lisboa  não  davam  com  a  doença. 
A  mãe  e  a  filha  tratavam-no  desveladamente. 
Finalmente  appareceu  um  medico  que  pôde  dia- 
gnosticar o  mal  e  prescrever  o  tratamento: 
repouso  absoluto  no  campo.  Pouco  a  pouco 
melhorava  em  Alfarrara,  numa  quinta  formosa, 
onde  esteve  cerca  de  três  meses.  Quando  se 


l52  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

sentiu  bem  foi  por  Évora  a  Setúbal  e  daí  em 
barco  para  Alcácer.  Na  viagem  as  aguas  en- 
capellaram-se,  foi  forçoso  arribar,  emquanto 
durava  a  tormenta.  Em  terra  D.  Nuno  apar- 
tou-se  um  pouco  dos  companheiros  e  quis  expe- 
rimentar as  suas  forças.  Toma  uma  faca  e 
começa  a  cortar  pelo  mato.  Viu  que  já  recupe- 
rara a  saúde.  Podia  com  o  trabalho,  poderia 
também  com  as  armas.  Voltou  pois  á  sua  vida 
normal. 

A  única  filha  de  Nuno  Alvarez,  fructo  do 
seu  matrimonio  com  D.  Leonor  de  Alvim,  casara 
em  1401,  com  D.  Aífonso,  filho  legitimado  de 
El-Rei  D.  João  I,  feito  Conde  de  Barcellos  por 
occasião  do  casamento  e  ricamente  dotado  pelo 
pae  e  pelo  sogro.  Estava  o  Gondestavel  em 
Villa  Viçosa  quando  lhe  chegou  a  noticia  de 
essa  filha  ter  enfermado  gravemente  em  Chaves. 
Morreu  repentinamente,  logo  após  o  parto.  Ima- 
gine-se  a  afflicçáo  de  Nuno.  Correu  opprimido 
pela  dor  a  Chaves,  assistiu  ás  exéquias  e  acom- 
panhou o  cadáver  a  Villa  do  Conde,  onde  foi 
depositado  no  coro  baixo  da  Egreja  das  Reli- 
giosas de  Santa  Clara. 

tQuando  o  caixão  da  filha  desceu  á  sepul- 
tura, fechando-se  sobre  elle  a  campa,  diz  Oli- 
veira  Martins  (i),   o   Gondestavel   sentiu  par- 


(i)  i4  Vida  de  Nun' Alvares.  — C&p.  X. 


CONTRARIEDADES  I  5  3 

tir-se  o  ultimo  elo  que  o  prendia  á  vida... 
Quando  a  sepultura  se  encerrou  abriu-se-lhe 
na  alma  a  resolução  de  ir  para  o  Carmo.» 
Ficavam-lhe  ainda  três  netos,  seu  enlevo  e 
objecto  dos  seus  maiores  carinhos  até  á  morte. . . 
Ao  mais  velho  coube  o  condado  de  Ourem, 
depois  da  renuncia  de  D.  Nuno;  ao  segundo  deu 
o  condado  de  Arrayolos;  e  á  sua  querida  neta 
Isabel,  a  quem  nas  cartas  dá  o  tratamento  tão 
terno  de  minha  linda j  dotou-a  com  bastas  ter- 
ras. Todos  estes  actos,  porém,  foram  feitos 
depois  da  sua  entrada  no  Carmo,  de  que  nos 
vamos  a  occupar  no  capitulo  que  segue. 


XVIII 


o   ADEUS   AO   MUNDO 

Duas  obras  levou  a  termo  D.  Nuno  Alvarez, 
antes  de  se  despedir  do  mundo :  a  reorganiza- 
ção do  exercito  português  e  a  erecção  de 
vários  templos  que  votara  á  Virgem  Mãe  de 
Deus.  Fallar-se-ha  delias  e  da  empresa  de 
Ceuta,  antes  de  se  tratar  da  matéria  apontada 
no  titulo. 

Eflectivamente  a  D.  Nuno  Alvarez  se  deve  a 
creação  do  exercito  permanente  no  nosso  país. 
O  Rei  começou  a  ter  desde  então  «três  mil  e 
duzentas  lanças,  doze  ou  quinze  mil  homens 
eífectivos ;  quinhentos  a  cargo  dos  capitães,  duas 
mil  e  quatrocentas  dos  escudeiros,  trezentas  das 
ordens  militares :  Ghristo  e  Santiago  a  cem,  Aviz 
oitenta,  Hospital  vinte.  Por  outro  lado  haveria 
sempre  armamento  em  arsenaes  dispersos  por 
todo  o  reino,  mil  e  quinhentos  arneses,  distri- 
buidos  desta  forma :  quinhentos  ao  rei,  cincoenta 
ao  condestavel,  etc. . . .  Desta  forma  o  reino  fi- 
cava permanentemente  armado  para  a  defeza  e 


l56  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

O  rei  deixava  de  estar  á  mercê  dos  contingentes 
dos  vassallos  (i).» 

Já  dissemos  que  a  noticia  da  morte  da  filha 
o  foi  surpreender  quando  assistia  á  construcção 
da  egreja  que  mandou  levantar  em  Estremoz  á 


A  capelia  de  S.  Jorge,  mandada  edificar  pelo  Condestavel 

no  litío  onde  esteve  hasteado  o  sen  pendáo,  durante  a  batalha  de  Aljubarrota 

(Do  livro  Aljubarrota  por  C.  Ximenes  de  Sandoval,  pag.  368) 

honra  da  Virgem  Santissima,  sob  o  titulo  de    ^ 
Nossa  Senhora  dos  Mártires.  Em  Villa  Viçosa 
havia  dedicado  uma  capella  á  Immaculada  Con- 
ceição, a  mais  antiga  de  Portugal  com  seme- 
lhante   invocação.    Souzel,    Portel,    Monsaraz, 


(1)  Oliv.  Martins.  —  A  Vida  de  Nun' Alvares,  pag.  353. 


o  ADEUS  AO  MUNDO  l5j 

Mourão,  Évora,  Camarate,  possuiam  egrejas, 
todas  dedicadas  a  Maria  Santissima  e  manda- 
das construir  pelo  Condestavel,  e  em  Aljubar- 
rota, onde  esteve  o  pendão  de  D.  Nuno,  erguia-se 
uma  modesta  capellinha  em  honra  de  Santa  Ma- 
ria e  S.  Jorge,  que,  embora  deteriorada,  ainda 
existe.  Na  fachada,  á  direita  da  porta  de  entra- 
da, conserva-se  a  inscripçao  seguinte  que  o  au- 
ctor  destas  linhas  copiou  numa  das  visitas  fei- 
tas a  essa  localidade.  Diz  ella  assim : 

ERA  DE  MIL  QUATROCENTOS 
E    TRINTA  E  DOIS  D.  NuNO  AL- 
VARES PEIRA   CÔDDA  ESTAB 
MADOU  FAZER  ESTA  CAP- 
PEELA  A  ONRA  DA  VIRGEM  MARIA  POR 
ONDE  ÁDO  DIA  QUE   SE  POZ  A  BA- 

TALHA QUE  ELREY  DE  PORTUGAL  HOUVE  DE  ELREY 
DA  CASTELLA-ESTAVA  EN  ESTE  LOGAR  A  BANDEI- 
RA DO  DITO  CONDESTABRE 

Muito  para  desejar  seria  a  restauração  desse 
monumento,  tão  insigne  na  nossa  historia  na- 
cional. 

A  mais  bella,  porem,  das  egrejas  mandadas 
levantar  pelo  Condestavel,  é,  sem  duvida,  a  de 
Nossa  Senhora  do  Vencimento,  construída  numa 
das  mais  formosas  collinas  de  Lisboa,  e  entre- 
gue logo  depois  da  sua  conclusão  aos  Padres 


l58  VIDA  DO  BEATO    NUNO  ALVAREZ 

Carmelitas.  O  Convento  do  Carmo,  de  Lisboa, 
foi  uma  obra  digna  do  espirito  alentado  do  seu 
piedoso  fundador.  Elle  ha  de  ser  o  retiro  sa- 
grado onde  D.  Nuno,  trocando  as  armas  pela 
pobre  samarra  de  carmelita,  irá  viver  os  últimos 
dez  annos  da  sua  existência,  e  encontrar  um 
repouso  para  os  seus  restos  mortaes.  Mas  não 
antecipemos  os  factos. 

Sobre  a  fundação  desse  templo  divergem  as 
opiniões.  O  Chronista  da  Ordem,  Frei  Joseph 
Pereira  de  Sant'Anna,  expõe  e  discute  larga- 
mente as  diversas  opiniões.  Uns  queriam  que  ella 
tivesse  sido  votada  durante  a  batalha  de  Aljubar- 
rota, coisa  pouco  provável.  Outros  attribuem  a 
um  voto  feito  no  heróico  combate  de  Valver- 
de (i).  Outros,  finalmente,  dizem  que  foi  um 
acto  de  devoção  á  Virgem,  que  lh'o  pedira 
numa  visão.  Seja  como  for,  a  nós  basta-nos 
saber  que  foi  começado  em  i6  de  julho  de  iSSq. 
A  situação  e  má  qualidade  do  terreno  obriga- 
ram a  refazer  ires  veses  os  alicerces;  só  nelles 


(i)  Só  por  approximaçóes  de  datas  é  que  se  pode  affir- 
mar  com  probabilidade  que  a  Egreja  do  Carmo  foi 
levantada  para  commemorar  a  victoria  de  Valverde.  Com 
eíTeito,  esta  batalha  feriu-se  no  dia  i5  ou  i6  de  outubro 
de  i385,  portanto  três  meses  depois  da  grande  victoria 
de  Aljubarrota.  Para  commemorar  esta  decidira-se  a 
construcção  do  Mosteiro  da  Batalha  com  a  Egreja  de 
Santa  Maria  da  Victoria.  Como  Valverde  era  o  segvmdo 


o  ADEUS  AO  MUNDO  iSç 

se  gastaram  oito  anos,  dos  trinta  e  três  que  le- 
vou a  obra.  tHavenoos  de  fazer  os  alicerces 
de  aço»,  dizia  o  Condestavel  quando  via  caírem 
os  muros  successivamente  duas  vezes.  E,  com 
tenacidade  incrível,  a  obra  foi  crescendo  até  ser 
inaugurada  em  1422.  Mas  já  desde  1392  habi- 
tavam os  frades  no  Convento  do  Carmo.  Frei 
Joseph  Pereira  de  Sant'Anna,  descreve  prolixa- 
mente a  historia  da  fundação,  e  dá  uma  lista 
documentada  dos  bens  com  que  o  Condestavel 
a  enriqueceu,  sendo  uma  parte  principal  os  dum 
judeu  chamado  David  Negro  que  se  bandeara 
para  os  castelhanos.  Conta  como  o  fundador 
ordenara  que  se  fizesse  um  mirante  donde  obser- 
vava os  trabalhadores,  animando-os  a  proseguir 
na  obra. 

Durante  esta  edificação  é  que  se  realizou  a 
gloriosa  empresa  de  Ceuta.  El-rei  D.  João  I  ia 
inaugurar  a  epopeia  que  deu  a  Portugal  um  im- 
pério colonial.  Os  filhos  de  D.  João  I,  constru- 
ctores  desse  império,   iam   entrar  em  scena  e 


passo  decisivo  da  derrota  dos  castelhanos,  e  como  por 
outro  lado  se  sabe  que  o  Condestavel  fizera  voto  de  er- 
guer um  templo  em  honra  da  Virgem  Santíssima,  nada 
mais  natural  que  ser  esse  templo  a  Egreja  do  Carmo. 
Quanto  seria  para  desejar  que  a  Nação  Portuguesa, 
de  collaboração  com  o  governo,  pusesse  mãos  á  obra  e 
restaurasse  esse  majestoso  templo  para  depois  se  transfe- 
rirem para  elle  as  Relíquias  do  nosso  Grande  Heroe  ! . . . 


l60  VIDA  DO   BEATO  NUNO  ALVAREZ 

iniciar  os  planos  grandiosos  a  que  consagraram 
a  sua  vida.  Assentada  em  conselho  a  expedição, 
aprestaram-se  as  naus  e  o  Gondestavel  mais  uma 
vez  vestiu  a  cota  de  armas.  Era  a  ultima  vez, 
mas  a  sua  estrella  triunfante  não  era  já  um  pre- 
sagio  de  victoria  ?  A  rainha  morria  da  peste  que 
assolava  Lisboa ;  no  seu  leito  de  morte  animava 
os  filhos  a  proseguirem  na  execução  do  plano  a 
que  não  era  alheia.  Verdadeiro  coração  de  he- 
roina! Em  1415  largavam  as  amarras  e  voga- 
vam essas  naus  para  Ceuta,  primeiro  reducto  do 
islamismo  na  Africa.  Na  expedição  ia  o  Rei,  ia  o 
infante  D.  Duarte,  o  futuro  rei,  o  infante  D.  Pe- 
dro, o  desafortunado,  ia  o  fundador  da  escola 
de  Sagres  D.  Henrique,  e  o  conde  de  Barcellos, 
filho  bastardo  do  Rei.  Os  dois  infantes  D.  João  e 
D.  Fernando  ficavam:  «erã  tam  pequenos  que 
nó  foram  lá. . . » «  E  o  condestabre  foi  com  elrey 
e  cõ  seus  filhos.»  (i) 

Chegados  a  Ceuta  foram  assaltados  por  uma 
violenta  tempestade.  Todas  as  naus  caçavam, 
cortavam-se  as  amarras,  rompia-se  o  vela- 
me (2).  El-Rei  determinou  refugiar-se  com  uma 
parte  da  frota  no  ancoradoiro  de  Gibraltar.  «E 


(1)  Chron.  —  Cap.  LXXVIII. 

(2)  «E  hy  se  rrecreceo  hua  tãn  Xorte  tormenta  q  to- 
dollas  naus  caçavam ;  e  as  amaras  e  cabres  se  cortavam 
das  pedras.»  Chron.—Cap.  LXXVIII. 


o   ADEUS  AO  MUNDO  l6l 

O  conde  ficou   alli  naquella  tormenta  e  prijgo 
com  a  sua  frota». 

Tres  dias  durou  a  tormenta.  Os  capitães  pe- 
diram debalde  ao  Conde  que  ou  tomasse  terra 
ou  ordenasse  que  as  naus  fossem  ter  com  o  Rei. 
Nenhuma  das  coisas  quis  fazer.  Desembarcar 
era  tirar  ao  Rei  a  gloria  de  ser  o  primeiro  a  pôr 
pé  em  terra  inimiga;  retirar-se  era  cobardia,  que 
nem  para  salvar  a  vida  praticaria.  Quando  sere- 
nou a  tempestade,  recebeu  recado  que  fosse  a  Gi- 
braltar. Obedeceu  á  ordem  regia.  Nesse  ancora- 
doiro  houve  novo  conselho,  onde  resolveram 
proseguir  a  empresa.  Empresa  facil,  pois  a  ci- 
dade foi  tomada  sem  grande  resistência,  o  cas- 
tello  entregou-se  ao  Condestavel.  Passados  tres 
dias  veiu  uma  algarada  de  inimigos  investir  a 
porta  de  Fez.  Saíram-lhe  ao  encontro  os  infan- 
tes. A  peleja  era  rija.  Foi  necessário  que  o  Con- 
destavel corresse  em  seu  auxilio  para  o  inimigo 
debandar.  Desde  então  assentou  a  sua  pousada 
perto  dessa  porta,  que  era  a  mais  ameaçada.  A 
conquista  de  Ceuta  era  um  facto.  O  salvador 
da  independência  nacional  collaborava  na  funda- 
ção dum  império  cuja  grandeza,  mal  chegava  a 
suspeitar.  Com  grande  pena  de  D.  Nuno,  El-Rei 
ordenou  o  regresso  da  expedição,  deixando  go- 
vernador da  praça  o  conde  D.  Pedro.  Bem  qui- 
sera Nuno  Alvarez  trocar  os  seus  titulos  pela 
gloria  de  governar  essa  fortaleza.  Mas  El-Rei 


102  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

não  queria  separar-se  do  seu  amigo,  do  seu  con- 
selheiro, do  exemplo  que  apontava  constante- 
mente aos  seus  filhos,  summamente  afteiçoados 
ao  vencedor  de  Valverde.  A  carreira  militar 
terminara  para  D.  Nuno  Alvarez,  circundada 
com  o  mesmo  nimbo  de  prestígio  e  gloria  com 
que  a  iniciara. 

Voltou,  pois,  para  Lisboa  onde  continuou  a 
velar  pelas  obras  do  Convento  do  Carmo.  Aqui 
estabeleceu  residência,  desde  o  mês  de  julho 
de  1422.  Ainda  não  vestira  o  habito,  ainda  não 
entrara  a  fazer  vida  de  communidade,  mas  essa 
idea  ia  ganhando  terreno  no  seu  espirito.  Admi- 
nistrava os  bens  que  doara  ao  Convento  dos  seus 
queridos  padres  Carmelitas,  dispunha  a  distri- 
buição dos  que  dera  aos  seus  netos  e  netas,  e 
consagrava  todo  o  tempo  que  sobrava  ao  exer- 
cicio  da  oração  e  das  virtudes  christãs. 


XIX 


NA  SOMBRA  DO   CLAUSTRO 

E'  preciso  não  confundir  o  retiro  do  Condes- 
tavel  no  Convento  do  Carmo,  com  a  sua  en- 
trada na  Ordem  Carmelita.  Entre  um  e  a  outra 
houve  um  intervallo  de  quasi  um  anno.  Em  17 
de  agosto  de  1422  já  D.  Nuno  estava  instalado 
no  Convento.  Deixara  o  mundo,  mas  ainda  não 
vestira  o  habito,  nem  revelara  a  pessoa  alguma 
a  sua  intenção  de  o  fazer.»  Tempo  de  recolhi- 
mento e  de  piedade.  Como  procurador  e  perpe- 
tuo administrador  do  Convento,  cargos  que 
reservara  para  si  quando  doara  a  fundação  aos 
frades,  superentendia  nas  obras  lá  do  alto  do 
miradoiro,  situado  ao  lado  da  capella-mór,  da 
banda  do  sul.  Nesse  tempo  o  cruzeiro  já  estava 
terminado.  Entretanto  ia  liquidando  as  contas 
dos  seus  devedores  e  almoxarifes.  Ia  dispondo 
tudo  para  o  adeus  completo  ao  mundo. 

Nelle,  como  dissemos,  ficavam  três  netos, 
dois  varões  e  uma  menina,  a  sua  querida  neta 
Isabel,  a  quem  nas  cartas  dá  o  tratamento  de 


164  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

minha  linda  (i).  Sois  pedaços  da  minha  alma^ 
escrevia  elle  a  esses  netinhos,  porque  tendes 
em  vós  a  imagem  de  vossa  querida  mãe.  Nem 
deixava  de  repreender  paternalmente  o  seu 
neto  Fernando,  por  ser  muito  travesso.  Ao  genro 
também  escrevia  frequentes  vezes.  Notável  é  a 
carta  em  que  o  admoesta  severamente  a  renun- 
ciar á  pretensão  de  tirar  aos  seus  frades  carme- 
litas algumas  das  propriedades  por  elle  doadas. 


(i)  Damos  aqui  uma,  carta,  registada  por  Sant'Anna: 
«A  Senhora  D.  Zavel  minha  netinha  faga  Deos  Santa. 
Ninguna  reson  tenedes  pêra  renhirme,  porque  hsi  gram 
prazer  de  letras  vosas  leer.  Os  dis  atras  ube  huma  bossa, 
que  me  foy  tragida  por  bentura  e  se  nom  bos  foi  respon- 
dida non  foi  menga  de  bontade  mas  de  mui  poça  saúde, 
que  para  ello  tube  escrever  a  Fernando,  mas  abendo  bos 
non  faga  tenerdes  bos  em  o  logo  de  que  mas  a  el,  que 
a  bos  hei  de  feison,  e  se  bem  lo  ver.des,  acharedes  que 
quantas  minutas  minhas  ha,  tantas  son  só  a  renhilo  que 
cá  bem  certo  são  travesso  ha ;  mas  bos  minha  linda 
como  no  abedes  que  bos  possa  emendar  ávido  a  lo  que 
mengua  ha  dello,  e  nõ  leixo  de  bos  querer  como  a  vida. 
Agora  minha  linda  lo  fago  a  bos  só  por  darbos  contento 
em  que  los  otros  o  sentam  no  leixedes  de  me  fager  o  que 
ata  aqui,  porque  sendo  los  huns  e  los  otros  pedaços  da 
alma  em  bos  o  semelho  sondes  la  bossa  madre  en  lo  que 
como  ella  fagedes,  e  no  digo  ai,  se  non  embiarbos  la 
minha  bençom  e  la  de  Deos  vos  cubra  minha  linda. 

Carmo  XI  da  Vríl  de  1439. 

(T^uno  de  Santa  ^aria.» 

Existia  o  original  no  Arquivo  do  Carmo. 


NA   SOMBRA   DO   CLAUSTRO 


i65 


<t01hae  bem  senhor  o  que  f azedes  que  é  um 
grande  desserviço  a  Deos,  e  quem  na  terra  não 
cumpre,  não  entra  no  ceo».  E  tão  efficazes 
foram  as  li- 
nhas do  velho 
Condestavel 
que  o  conde 
de  Barcellos 
desistiu  logo 
do  injusto  in- 
tento. 

O  tempo 
que  lhe  sobra- 
va das  men- 
cionadas oc- 
cupações,  em- 
pregava-© to- 
do na  oração 
€  trato  com 
Deus,  e  no 
exercido  das 
mais  virtudes 
christãs.  Ter- 
minados os 
trabalhos,  e 

obtida  a  creação  da  nova  Provinda  do  Carmo 
cm  Portugal  (até  então  os  frades  eram  depen- 
dentes do  convento  de  Moura,  donde  os  pedira), 
reuniu-se  em  Lisboa  o  Capitulo  Provincial  da 


Altar-mór  da  Egreia  do  Carmo,  antes  do  ter- 
remoto. Desenho  de  manuscrito  de  Frei  Ma- 
nuel de  Sá.  —  Obsequiosamente  cedido  pelo 
Sr.  Aífonso  d'0rnellas 


!66  VIDA  DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

Ordem  para  assentar  as  coisas  referentes  á 
nova  Província.  Assistia  o  Condestavel.  No  dia 
23  de  julho  fazia  elle  a  solemne  e  formal  doa- 
ção, e  dias  depois  assignava-se  a  escriptura^ 
referida  pelo  Chronista  da  Ordem,  Frei  Joseph 
Pereira  de  Sant'Anna.  Era  magnifica  a  egreja 
do  mais  puro  gótico,  que  do  alto  da  coUina  do- 
minava a  cidade.  Durara  33  annos  a  sua  cons- 
trucção. 

Mas  dar  a  egreja  era  pouco  para  o  seu  animo 
generoso.  Faltava  ainda  a  realização  do  ideal 
que  mais  caro  lhe  era,  acariciado  no  intimo  do 
coração  durante  perto  de  um  anno.  Apresen- 
ta-se  ao  Provincial  da  Ordem  e,  com  não  pouco- 
assombro  do  mesmo,  pede  que  o  admitta  na  Re- 
ligião Carmelitana,  no  humilde  grau  de  Donato. 
O  P.  Affonso  da  Alfama,  que  era  o  superior 
da  nova  Província,  acolheu  com  o  maior  res- 
peito semelhante  pedido.  A  vocação  era  de 
Deus,  embora  viesse  aos  63  annos  de  edade. 
Em  uma  só  coisa  não  concordava,  precisamente 
aquella  em  que  mais  empenho  tinha  o  postu- 
lante. Que  entrasse,  sim,  mas  no  grau  de  co- 
rista, ou  ao  menos  no  de  irmão  leigo.  Baldados 
foram  os  esforços!  c Viera  á  Religião,  respondia 
o  Condestavel,  para  se  empregar  nos  humildes 
ministérios  dos  que  professam  a  vida  activa,, 
não  queria,  pois,  outro  habito  senão  o  dos  ser- 
ventes.» Era  esse  habito  uma  túnica  talar,  com> 


NA   SOMBRA  DO   CLAUSTRO  167 

escapulário  comprido  e  capa  curta  que  parecia 
murça,  tudo  de  um  panno  escuro,  chamado  na- 
quelle  tempo  gri:{i  e  hoje  estamenha. 

Frei  Simão  Coelho,  na  sua  Chronica,  diz: 
«Encerrou-se  neste  mosteiro  de  N.  Senho- 
ra... e  não  querendo  ser  sacerdote,  foi  semi- 
frater  (conforme  as  constituições  da  Ordem) 
que  sam  meios  frades  &  os  que  exercitam  os 
officios  de  maior  humildade,  &  nam  trazem 
hábitos  mas  huns  tabardos  cõpridos,  e  bar- 
bas» (i). 

Não  vestiu,  pois,  o  hábito  ordinário  dos 
Carmelitas  o  noviço  sexagenário,  mas  sim  um 
hábito  especial,  inferior  ao  dos  mesmos  irmãos 
leigos,  próprio  dos  que  occupavam  o  grau  mais 
Ínfimo  entre  os  moradores  do  convento. 

No  dia  i5  de  agosto  de  1423  celebrou-se  a 
commovente  cerimonia.  Era  o  38.°  anniversario 
da  batalha  de  Aljubarrota,  e  se  naquela  mos- 
trara o  heroísmo  do  seu  valor,  agora  manifes 
tava-se  o  heroísmo  da  sua  virtude. 

D.  Nuno  Alvarez  Pereira,  Condestavel  do 
reino,  conde  de  Ourem,  Arrayollos  e  Barcellos, 
mordomo-mor  do  Rei  D.  João  I,  senhor  dona- 
tário das  cidades  e  villas  de  Valença,  Basto, 
Bouças,  Baltar,  Penafiel,  Castello  de  Piconha, 
Portello,  Chaves,  Barroso,  Monte  Alegre,  Ri- 


(i)  Chronicas  de  N.  S.  do  Carmo.  —  Cap.  XXI. 


l68  VIDA  DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

beira  da  Pena,  Lousada,  Paiva,  Almada,  Al- 
vayazere,  Rabaçal,  Charneca,  Porto  de  Moz, 
Rio  Maior,  Villa  Viçosa,  Borba,  Estremoz, 
Evoramonte,  Portel,  Montemór-o-Novo,  Souzel, 
Alter  do  Chão,  Monsaraz,  Villa  dos  Frades, 
Vidigueira,  Villa  Ruiva,  Landroal,  Monforte, 
Loulé,  Villa  do  Conde,  Arco  de  Baulhe,  Ten- 
daes,  Silves,  Guimarães,  Villalva,  etc,  nomes 
que  recordam  proezas  bellicas  praticadas  pelo 
Condestavel  na  lucta  de  mais  de  40  annos  pela 
independência  da  Pátria — esse  homem  extraor- 
dinário, o  mais  prestigioso  do  Reino,  chamava- 
se  doravante  Nuno  de  Santa  Maria.  «Não  con- 
sentia, diz  Simão  Coelho,  que  lhe  chamassem 
senam  Nuno  (i).»  Não  queria  que  lhe  apuses- 
se ao  nome  o  costumado  Frei. 

Depusera,  antes  da  vestiçao,  e  testamento 
nas  mãos  do  Superior  do  Convento.  Agora  não 
queria  pensar  mais  no  mundo  que  deixara.  Ha- 
bitava uma  cella  escura  e  pobre,  onde  o  prin- 
cipal e  único  adorno  era  um  crucifixo  e  uma 
estampa  da  Virgem  Mãe  de  Deus.  Nuas  as  pa- 
redes. O  leito:  simples  tábuas  com  uma  gros- 
seira manta,  uma  pobre  mesinha;  ao  lado  da 
imagem  da  Virgem  estavam  os  instrumentos 
de  penitencia,  disciplinas  e  cilicios. 

Quando   na   corte   se  soube  da  noticia  do 


(i)  Chronica  de  N.  S.  do  Carmo. — Cap.  XXI. 


NA  SOMBRA  DO   CLAUSTRO  I  69 

propósito  de  D.  Nuno,  alvoroçou-se  toda  a  casa 
real.  ElRei,  os  príncipes,  sobretudo  D.  Duarte, 
que  amava  ternamente  o  velho  companheiro  de 
armas  do  pae,  os  próceres  do  paço  vinham 
admirar  e  edificar-se  com  os  exemplos  de  vir- 
tude que  dava  o  donato  carmelita.  Sugeriam- 
Ihe  que  ao  menos  conservasse  algumas  preroga- 
tivas,  ao  menos  reservasse  uma  tença  para  a 
sua  sustentação,  para  as  esmolas  que  a  sua  di- 
gnidade pedia  que  desse.  «Senhor,  respondia  o 
sexagenário,  o  condestavel  está  morto  e  amor- 
talhado.» E,  completamente  esquecido  de  si, 
diminuia-se  dia  a  dia,  para  copiar,  retratar  a 
humildade  de  Ghristo.  Foi  necessária  a  inter- 
venção expressa  do  Infante  para  o  impedir  de 
andar  mendigando  pelas  ruas  e  casas. 

Mais  ainda.  Vendo  o  concurso  da  gente  que 
ia  visitá-lo,  e  querendo  entregar-se  mais  á  soli- 
dão, pensou  em  se  retirar  de  Lisboa,  e  mesmo 
de  Portugal,  para  viver  em  algum  ermo,  onde 
ninguém  fosse  perturbar  a  sua  conversação  com 
Deus.  Também  desta  vez  a  intervenção  de  El- 
Rei obstou  a  esse  desejo.  Ficou  no  Convento  do 
Carmo,  mas  obteve  do  superior  que  mandasse 
construir  uma  capellinha  na  cerca  do  convento, 
onde  fugia  ao  commercio  mundano.  Aí  passava 
horas  esquecidas,  entregue  á  oração  e  trato  com 
Deus,  todo  o  tempo  que  lhe  sobejava  dos  exer- 
cicios    costumados    da   vida   de   communidade. 


I  7 o  VIDA   DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

Unir-se  cada  vez  mais  a  Deus  e  vêr  a  Santís- 
sima Virgem  eram  os  seus  anceios,  as  aspira- 
ções da  sua  alma  entregue  toda  á  pratica  do 
mais  alto  misticismo. 

Lisboa  inteira  admirava  os  exemplos  do  setíy 
por  tantos  titulos  seu,  Condestavel.  O  povo  vene- 
rava o  santo  velhinho,  quando  o  via  pelas  ruas 
apoiado  ao  seu  bastão,  rude  e  nodoso.  Quisera 
beijar  a  fímbria  desse  hábito,  quisera  dar-lhe 
uma  prova  da  veneração  que  inspirava.  Mas 
fazê-lo  seria  ferir  a  modéstia  do  humilde  dona- 
to. Olhava-o,  pois,  em  silencio,  saudando-o  com 
aquelle  respeito  com  que  se  saúdam  os  santos. 
«E'  um  santo»,  diziam  os  pobrezinhos,  quando 
distribuia  o  caldo  e  as  esmolas,  á  portaria  do 
convento,  occupação  que  mais  o  deleitava.  Jun- 
tamente com  o  alimento  do  corpo,  alliviava  os 
softVimentos  desses  infelizes,  com  bons  conse- 
lhos e  palavras  que  iam  até  ao  fundo  da  alma. 
Escolhera  e  praticava  a  única  forma  de  aposto- 
lado consentânea  com  o  humilde  grau  de  donato 
na  Religião. 


XX 


NUNO   DE   SANTA   MARIA 

Poucas,  infelizmente  bem  poucas,  são  as  no- 
ticias que  os  chronistas  antigos  (o  auctor  da 
Chronica  do  Condestavel  e  Frei  Simão  Coelho) 
nos  deixaram  sobre  a  vida  de  Nuno  Alvarez  no 
claustro.  Mais  abundante  e  cheia  de  pormenores 
interessantes  é  a  Chronica  de  Sant'Anna,  mas 
o  historiador  consciencioso  não  poderá  deixar 
de  ver  nella  já  os  adornos  com  que  a  lenda  vem 
dourar  a  vida  dos  heroes.  Feita  pois  esta  reserva, 
resumiremos  neste  capitulo  o  que  diz  este  ul- 
timo auctor,  que,  como  todos  sabem,  escreveu 
três  séculos  depois  da  morte  do  Santo  Condes- 
tavel. 

Começa  Sant'Anna  por  narrar  o  que  já  le- 
vamos dito  sobre  a  sua  singular  pureza  e  casti- 
dade. «Foi  tão  firme  neste  ponto,  diz  o  referido 
auctor,  que  jamais  em  prejuízo  desta  virtude, 
se  lhe  conheceu  o  mais  leve  defeito».  Na  mo- 
déstia exterior  mostrava  a  pureza  angélica  da 
sua  consciência.   Em  sua  presença  ninguém  se 


I  72  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

atrevia  a  dizer  palavra  mal  soante.  Vimos  como 
se  sujeitou  ao  matrimonio  por  imposição  do  pae, 
e  como  se  recusou  a  contrair  segundas  núpcias 
depois  da  sua  viuvez  precoce.  Ainda  com  a  pró- 
pria mulher,  refere  a  Chronica  do  Condestavel  (i) 
€  depois  que  elle  veeo  ao  trintario  d'el-rei  D.  Fer- 
nando viveu  como  se  fora  irmão».  Vimos  tam- 
bém como  profligou  do  seu  exercito  toda  a  sorte 
de  licenciosidades.  Costumava  dizer,  como  re- 
fere o  Agiologo  Lusitano:  «Que  tanto  teriam 
de  victoriosos  (os  soldados)  quanto  de  hones- 
tos, e  que  o  capitão  que  não  amava  esta  angé- 
lica virtude  entrava  na  batalha  meio  vencido». 

Desde  a  juventude  foi  muito  dado  ao  exer- 
cício da  oração.  Neila  procurava  o  melhor  au- 
xilio para  as  suas  grandiosas  empresas,  levan- 
tando-se  para  isso  muito  cedo,  o  que  lhe  valeu 
o  nome  de  Nw?io  Madruga.  «Ouvia  suas  missas 
mui  devotadamente,  cada  um  dia  duas  missas  e 
três  em  todollos  sabbados,  e  três  era  todollos 
domingos,  de  que  ficou  em  Portugal  bom  exem- 
plo, especialmente  aos  do  paaço,  que  dantes  que 
o  elle  asy  usasse,  poucos  as  ouviam»,  diz  a 
Chronica. 

Longas  horas  de  oração  passava  na  capelli- 
nha  ou  ermida,  derramando  copiosas  lagrimas, 
.deante  duma  imagem  da  Virgem  da  Assumpção, 


(i)  Chronica  do  Condestabre  —  Cap  LXXX. 


NUNO  DE  SANTA   MARIA 


17J 


.,„,_— 


feita  de  alabastro.  Como  refere  Sant'Anna,  era 
tradição  entre  os  frades  que  a  Virgem  lhe  fal- 
lára  muitas  vezes  e  que  lhe  annunciára  o  mo- 
mento da  morte. 

Deante  do  Santissinio  Sacramento  do  Altar 
sentia-se  como  arroubado.  Fazia-lhe  companhia 
constante  quan- 
do era  exposto 
na  Egreja,  acom- 
panhava-© quan- 
do era  levado  aos 
enfermos.  Qua- 
tro vezes  no  anno 
recebia  a  Sagra- 
da Gommunhão, 
fazendo-a  prece- 
der sempre  duma 
confissão  geral. 
E  embora,  se- 
gundo refere 
Sant'Anna,  se 
confessasse  to- 
dos os  dias  (tal 
era  a  delicadeza 
da  sua  consciência),  a  sua  profunda  humildade 
lhe  fazia  crer-se  indigno  de  receber  mais  amiu- 
dadas vezes  a  S.  Eucharistia. 

Daqui  nascia  o  grande  respeito  que  tinha 
aos  Sacerdotes,  como  dispensadores  que  são  do 


m 


Nuno  de  Santa  Maria.  Reproducçáo  do 
manuscripto  inédito  de  Frei  Manuel 
de  Sá.  —  Obsequiosamente  cedido  pelo 
Sr.  AíFonso  d'OrnelIa8 


I  74  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Corpo  de  N.  Senhor  Jesus  Christo.  Costumava 
dizer:  o  Que  a  auctoridade  própria  era  superfi- 
cial, e  o  caracter  delles  andava  inapresso  n'alma: 
e  se  as  criaturas  do  Rei,  pelo  valiniento,  que 
com  elle  adquiriam  eram  mais  do  que  os  estra- 
nhos attendidas;  quanta  honra  se  não  devia  aos 
Sacerdotes,  que  eram  Ministros,  e  os  mais  Ín- 
timos familiares  do  seu  mesmo  Creador?»  No 
Convento  do  Carmo  vivia  também  um  padre 
Carmelita  que  outrora  fora  creado  do  Condes- 
tavel.  Comtudo,  Nuno  beijava-lhe  sempre  o  es- 
capulário e  punha-se  de  pé  á  sua  passagem, 
emquanto  da  sua  parte  o  humilde  P.  João  Gon- 
çalves pospunha  sempre  ao  seu  nome  o  epiteto 
de  €  Criado  do  Condestabre*.  Santa  contenda 
de  dois  humildes  frades ! 

Egual  reverencia  mostrava  pelos  outros  Sa. 
cramentos.  Acceitava  de  vontade  o  ofiBcio  de  pa- 
drinho dos  neo-baptisados,  dizendo:  cQue  via 
huma  creatura  justificada,  e  na  Egreja  de  Deus 
mais  hum  filho  capaz  de  Lhe  dar  gloria».  Além 
disto  provia  abundantemente  ao  bem-estar  e 
educação  dos  seus  numerosos  afilhados. 

Deixou  ordenado  que  no  seu  Convento  do 
Carmo  se  administrasse  nas  festas  principaes  a 
Confirmação,  obtendo  para  isso  privilegio  es- 
pecial e  perpetuo  para  o  Superior. 

/  Notável  é  o  respeito  que  mostrou,  no  furor 
da  guerra,  pelo  sacramento  do  Matrimonio.  To- 


NUNO  DE  SANTA   MARIA  I  ^5 

mada  a  villa  de  Cáceres,  aconteceu  que  entre 
os  prisioneiros  se  encontravam  dois  desposados, 
surprendidos  pelos  portugueses  na  occasião  mes- 
mo em  que  se  iam  receber.  Apenas  D.  Nuno  soube 
do  caso,  mandou  vir  os  noivos  á  sua  presença, 
ordenou  que  os  tratassem  com  a  maior  consi- 
deração, e  depois  foi  elie  próprio  acompanhá-los 
á  Egreja  e  servir-lhes  de  padrinho,  dotando  ri- 
camente os  dois  esposos.  Além  disto  deu  ordem 
para  que  fossem  immediatamente  libertados  to- 
dos os  parentes  e  creados  desses  seus  afilhados. 

Grande  foi  o  seu  espirito  de  penitencia  e 
mortificação.  «Jejuava  três  dias  na  semana  sem- 
pre emquanto  foy  em  hydade  que  podia  supor- 
tar :  a  quarta  feira,  e  sesta,  e  sábado,  e  todalas 
festas  que  a  Egreja  manda  guardar,  como  fiel 
católico»  (i),  ou  seja  o  advento  e  a  quaresma; 
além  disso,  nas  vigilias  das  festas  principaes 
do  anno  christão. 

Até  á  morte  trouxe  continuamente  um  duro 
cilicio.  Todos  os  dias  se  disciplinava,  algumas 
vezes  até  derramar  sangue.  Seu  desejo  cons- 
tante era  poder  um  dia  morrer  mártir  da  Fé. 
Foi  este  desejo  que  o  levou  a  offerecer-se  para  ir 
em  defesa  de  Ceuta,  novamente  ameaçada  pelos 
moiros.  «Sem  largar  as  contas  da  mão,  dizia, 
levaria  na  outra  a  espada,  guardada  para  servir 


(i)  Chronica  do  Condestabre  —  Cap.  LXXX, 


176  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

nos  desempenhos  da  Honra  de  Deus,  sem  que 
parecesse  novidade  cingil-a  sobre  o  habito,  por- 
que o  Grande  Elias,  de  quem  era  filho,  lhe  dei- 
xara este  exemplo».  Notável  frase  que  deveriam 
ponderar  os  que  assacam  falta  de  patriotismo 
aos  religiosos.  tNão  podia  escolher  morte  mais 
gloriosa,  accrescentou,  ou  sepultura  mais  hon- 
rada, do  que  o  acabar  naquella  empresa  em  be- 
neficio da  Fé  e  gloria  da  Pátria».  Felizmente  a 
expedição  não  chegou  a  realizar-se;o  moiro  de- 
sistira da  empresa. 

Este  mesmo  amor  da  Pátria  o  levou  a  res- 
ponder a  um  embaixador  hespanhol  que  o  viera 
sondar  e  lhe  perguntara  se  haveria  alguma  coisa 
que  o  levasse  a  despir  o  hábito :  tQue  só  huma 
o  moveria,  que  vinha  a  ser,  se  Elrey  de  Cas- 
tella  outra  vez  movesse  guerra  contra  Portugal; 
e  que  nesse  caso,  emquanto  não  estivesse  se- 
pultado, havia  de  servir  juntamente  á  Religião 
que  professava,  e  á  Pátria,  que  lhe  dera  o  ser». 
Accrescentam  outros,  diz  Sant'Anna,  que  dera 
esta  resposta  apartando  do  peito  o  escapulário 
e  mostrando-se  já  armado  por  baixo  do  hábito. 

Noutra  occasião,  a  alguém  que  parecia  du- 
vidar das  suas  forças,  respondeu  tomando  uma 
lança  e  arremessando-a,  do  alto  do  Carmo, 
onde  estava,  para  o  outro  lado  do  Rocio:  tEm 
Africa  a  poderey  meter,  se  for  ainda  necessá- 
rio  que   eu   exponha   a   vida  em  perigos,  em 


NUNO  DE  SANTA  MARIA  I77 

honra  da  Pátria  ou  em  defensa  da  Religião». 
Daqui,  diz  Sant'Anna,  veiu  o  nosso  provérbio 
portuguez;  «Metter  uma  lança  em  Africa»,  para 
significar  feitos  valorosos. 

Taes  espirites  em  nada  diminuiam  a  sua  pro- 
funda humildade  na  vida  do  claustro.  Abraçava 
de  preferencia  os  serviços  mais  baixos  da  com- 
munidade.  Já  no  século,  fazia  por  si  tudo  o  que 
respeitava  á  sua  pessoa,  permittindo  unicamente 
que  os  creados  o  servissem  quando  o  decoro 
assim  o  exigia.  Na  Religião  esta  profunda  hu- 
mildade subiu  de  ponto.  «Na  casa  de  Deus,  dizia, 
tudo  era  tão  illustre,  que  o  menos  vinha  a  ser 
o  mais:  e  que  á  Religião  não  viera  descansar, 
mas  só  a  trabalhar  como  os  outros».  E  quando 
lhe  observavam  que  ao  menos  evitasse  fazer  os 
trabalhos  mais  custosos,  respondia  :  «Que  o  ser- 
viço nada  teria  de  agradável  a  Deus  se  não  fosse 
custoso». 

Caridosissimo  para  com  os  pobres,  nunca 
perdia  occasião  de  exercer  esta  virtude.  A  maior 
parte  das  suas  rendas  eram  empregadas  em 
alliviar  misérias.  Nem  os  próprios  inimigos 
eram  excluídos  desse  beneficio,  como  aconteceu, 
quando  mandou  alimentar  á  sua  custa  mais  de 
quatrocentos  castelhanos,  por  occasião  duma 
grande  carestia. 

Depois  de  recolhido  no  Convento,  a  sua  oc- 
cupação  predilecta   era  distribuir  esmolas  aos 


178  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

necessitados.  Mandou  que  uma  grande  caldeira, 
que  antes  servia  para  preparar  o  rancho  aos 
soldados,  fosse  destinada  a  fazer  todos  os  dias 
sopa,  que  elle  mesmo  distribuia  á  porta  do  Con- 
vento. 

A  comida,  procurava  fazê-la  acompanhar  de 
boas  palavras  e  conselhos  salutares.  E  o  povo 
de  Lisboa,  cheio  de  gratidão,  cantava  as  trovas 
seguintes,   conservadas   por  Sant'Anna  na  sua 

obra : 

O  gram  Condestabre 
Em  o  seu  mosteiro 
Dá-nos  sua  sopa, 
mai-la  sua  repa, 
mai-lo  seu  dinheiro. 

A  bençom  de  Deos 
Cahio  na  Caldeira 
De  Nunoalves  Pereira, 
Que  abondo  cresceo, 
É  todo-lo  deo. 

Se  comer  queredes 
Nom  bades  alem : 
Don  menga  non  tem, 
Ahi  lo  comeredes, 
Como  lo  bedes. 

Esta  caldeira,  diz  Sant'Anna,  conservou-se 
muitos  annos,  servindo  no  ministério  do  comer 
dos  pobres...  e  embora  passado  muito  tempo 
se  gastasse,  não  acabou  o  costume  da  sopa  á 
portaria. 


NUNO  DE  SANTA  MARIA  I  79 

Outro  costume  introduzido  pelo  humilde  do- 
nato era  o  de  irem  todos  os  habitadores  do  Con- 
vento, na  Sexta-feira  Santa,  levar  ao  Tronco  da 
Cidade  uma  grande  esmola  aos  presos,  procu- 
rando libertar  os  que  aí  estavam  por  dividas. 

Mas,  com  quem  mais  caridoso  se  mostrava 
o  nosso  biografado,  era  com  os  doentes,  fossem 
do' Convento,  fossem  de  fora.  Visitava-os,  pres- 
tava-lhes  os  serviços  mais  humildes,  e,  sobre- 
tudo, procurava  consolar  as  suas  almas  atribu- 
ladas. Tinha  particular  devoção  em  assistir  aos 
moribundos  e  ajudá-los  a  luctar  com  valor  nesse 
momento  supremo  de  que  depende  a  nossa  sorte 
eterna. 


XXI 


MORTE   DE   PREDESTINADO 

Oito  annos,  dois  meses  e  quinze  dias  ha- 
viam passado  desde  que  D.  Nuno  Alvarez  ves- 
tira a  samarra  de  donato  carmelita,  oito  annos 
de  exercido  continuo  das  mais  acrisoladas  vir- 
tudes, que  o  faziam  chegar  a  um  grau  de  santi- 
dade elevada.  As  penitencias  e  jejuns  tinham 
tornado  macilento  seu  corpo,  mas  o  espiritç 
pairava  nas  mais  altas  regiões  do  misticismo. 
Orava  continuamente,  e,  rezam  as  Chronicas, 
era  favorecido  de  visões  e  graças  extraordiná- 
rias do  Céu.  Numa  delias,  como  dissemos,  a 
Virgem  lhe  annunciara  o  dia  da  morte.  Estava 
doente;  os  físicos  da  corte  confirmaram  o  pre- 
sagio  celeste.  Nuno  recebeu  a  noticia  com  a 
plácida  alegria  de  quem  outra  coisa  não  an- 
ciava  que  ver  a  Deus  face  a  face.  Fez,  mais  uma 
vez,  confissão  geral  de  toda  a  sua  vida,  e  rece- 
beu a  Sagrada  Eucaristia,  em  forma  de  Viati- 
co,  com  a  maior  humildade,  devoção  e  confian- 
ça. Quando  o  Prior  lhe  administrou  a  ultima 
Communhão,  entre  as  lagrimas  dos  assistentes, 


l82  VIDA   DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

segundo  refere  Sant'Anna,  renovou  os  votos  re- 
ligiosos e  fez  profissão  solemne.  O  Chronista 
anterior  nada  diz  a  este  respeito,  nem  nos  pa- 
rece autentica  a  formula  de  votos  que  traz  Sant'- 
Anna  (i).  Depois  agradeceu  ao  Superior  a  graça 
de  o  ter  admittido  no  Convento,  e,  num  supremo 
acto  de  humildade,  para  sair  do  mundo  tão 
pobre  como  nelle  entrara,  declarou  que  renun- 
ciava a  qualquer  coisa  que  porventura  ainda 
possuisse  e  pediu  ao  superior,  que  lhe  desse 
como  esmola:  thuma  mortalha  e  huma  cova  para 
o  corpo»,  advertindo  que  essa  sepultura  não 
deveria  ser  diversa  da  que  se  costumava  desti- 
nar aos  leigos  da  Ordem.  Desfeito  em  pranto,  o 
Prior  prometeu. 

Sabida  a  noticia  na  corte,  El-rei  D.  João  I 
veiu  pessoalmente  despedir-se  do  seu  amigo,  a 
quem  costumava  chamar  um  dos  seus  olhos.  Ao 
vêr  aquella  figura,  quasi  transparente,  envolta 
num  hábito  pobríssimo,  com  o  rosto  irradiando 
uma  alegria  serena,  de  quem  já  começa  a  fruir 
a  bemaventurança,  ao  vêr  o  seu  querido  Con- 
destavel,  o  homem  a  quem  devia  a  coroa  e  o 
reino,  jazendo  num  leito  duro  e  pobre,  não  pôde 
reter  as  lagrimas.  Abraçaram-se  os  dois  com- 
panheiros de  armas.  E'  impossível  descrever  o 


(i)  Também  o  Decreto  do  Reconhecimento  do  culto 
só  falia  da  «profissão  de  fé  ortodoxa»  feita  nessa  hora. 


MORTE  DE  PREDESTINADO  l83 

affecto,  a  dor,  que  traduzia  esse  abraço  derra- 
deiro; dum  lado  a  serenidade  calma  de  um 
santo,  doutro  a  afiflicção  de  quem  vai  perder  o 
mais  caro  dos  amigos,  exprimida  pelos  solu- 
ços mal  comprimidos  do  monarca.  O  Infante 
D.  Duarte,  que  amava  a  D.  Nuno  com  ternura  fi- 
lial, não  cessava  de  o  visitar  em  quanto  durou 
a  doença.  Esta  progredia  de  tal  modo  que  se 
julgou  próximo  o  triste  desenlace.  Conheceu-o 
Nuno,  pediu  que  no  dia  i  de  novembro  de 
143 1  (i)  lhe  administrassem  a  Extrema- Uncção 
e  que  o  não  abandonassem  durante  aquelle  dia, 
que  bem  sabia  ser  o  ultimo  da  sua  vida.  Depois 
tomou  o  crucifixo  nas  mãos  e,  com  a  voz  já 
exausta,  continuou  a  repetir  piedosas  jaculató- 
rias, que  lhe  suggeriam  os  circunstantes,  banha- 
dos em  pranto.  Na  portaria,  na  praça,  na  egreja, 
milhares  de  pessoas  aguardavam  o  momento 
tão  receado ;  sobretudo  os  pobrezinhos  rezavam 
e  choravam  a  perda  do  seu  amado  bemfeitor. 
Entretanto  a  communidade,  reunida  em  volta 
do  leito  do  moribundo,  respondia,  com  soluços 
entrecortados,  ao  officio  dos  agonizantes.  Pe- 
diu Nuno  que  lhe  lessem  a  Paixão  de  Nosso 
Senhor,  segundo  o  Evangelho  de  S.  João,  ou- 
vindo-a  com  a  mais  devota  compuncção.  A  res- 


(i)  O  Agiologio  Lusitano  segue  a  versão  de  D.  Nuno 
ter  morrído  no  dia  12  de  maio  de  1432. 


184  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

piração  tornava-se  cada  vez  mais  fraca,  todos 
os  olhos  estavam  fixos  nesse  ancião  tão  estremo- 
samente  amado.  Quando  o  leitor  chegou  ás  pala- 
vras :  Ecce  Filius  Tuus. . . ,  Nuno  inclinou  suave- 
mente a  cabeça ;  seu  coração  cessara  de  pulsar. 

Os  sinos  do  convento  annunciaram,  com  o 
seu  dobre  plangente,  a  triste  noticia,  que,  em- 
bora fosse  esperada,  commoveu  a  cidade  inteira. 
Toda  a  gente  acorreu  em  devota  romaria  junto 
do  esquife  do  pobre  donato  carmelita.  El-rei 
determinou  que  o  funeral  fosse  feito  a  suas  ex- 
pensas, querendo  dar-lhe  o  maior  esplendor 
possivel.  Príncipes,  fidalgos,  frades  e  sobretudo 
os  pobrezinhos  vinham  contemplar,  pela  derra- 
deira vez,  o  seu  amigo. 

Num  pobre  catre,  vestido  do  escuro  tabardo 
de  donato  carmelita,  jazia  o  cadáver  de  Nuno. 
Sobre  a  longa  barba,  que  lhe  descia  até  o 
peito,  coUocara-se  o  crucifixo,  que  elle  se  esfor- 
çara por  copiar  em  si  durante  toda  a  sua  vida  no 
claustro.  O  rosto  bem  assombrado,  conservava 
a  serena  expressão  da  paz  que  lhe  era  habitual; 
só  se  apagara  a  luz  dos  seus  olhos  de  águia. 

fEra  um  Santo...  era  um  Santo...  Mor- 
reu o  nosso  Santo,  a  nossa  Providencia  na  ter- 
rai,  exclamavam  os  visitantes,  que  tocavam  nos 
despojos  mortaes  do  Monge  Guerreiro,  as  con- 
tas e  outros  objectos  de  devoção. 

Foram  esplendidos  os  funeraes,  verdadeira- 


MORTE  DE  PREDESTINADO  I  85 

mente  dignos  de  quem  os  custeara  e  da  gran- 
deza moral  do  defunto.  O  caixão,  conduzido 
pelos  mais  altos  dignitários  da  corte,  foi  depo- 
sitado numa  sepultura  pobre,  rasa,  no  meio  da 
Gapella-mór,  tmais  chegada  ás  cadeiras  que  fi- 
cam da  parte  da  Epistola».  Na  campa  lia-se  a 
seguinte  inscripção : 

ILLE   COMESTABILIS  BRAGANTI  NOMINIS  AUTHOR 
NUNUS     ADEST,     DUX     MAXIMUS,     HIC    MONACHUSQUE 


BEAl US 


QUI  REGNUM  ASCIVIT  VIVENS  SORTITUS  IN  AEVUM 
CCELUM  CUM  SUPERIS :  NaM  POST  NUMEROSA  TROPHíEA 
CuNSUMPSIT  POMPAS,  HUMILISQUE  EX  PRÍNCIPE  FACTUS 
HOC  TEMPLUM  POSTJIT,  COLUIT,  CENSUMQUE  DICAVIT  (l) 

Aqui  ficaram  quasi  durante  noventa  annos 
os  restos  mortaes  de  Nuno  de  S.  Maria.  Em 
i522  foram  elles  transportados  para  um  mau- 
soléu riquíssimo  de  alabastro,  offerecido  pela 
Rainha  de  Gastella,  D.  Joanna,  esposa  de  Fi- 
lippe  o  Formoso  e  filha  dos  Reis  Catholicos, 
que  primeiro  foi  coUocado  num  vão  da  capella- 


(i)  Aqui  repousa  aquelle  Nuno,  condestavel,  funda- 
dor da  casa  de  Bragança,  general  eximio,  depois  monge 
bemaventurado ;  o  qual,  sendo  vivo,  desejou  tanto  o  Reino 
do  Ceu  que  mereceu,  depois  da  morte,  viver  eternamente 
na  companhia  dos  Santos ;  pois,  após  numerosos  troféus, 
desprezou  as  pompas,  e,  fazendo-se  humilde,  de  príncipe 
que  era,  fundou,  ornou  e  dotou  este  templo. 


l86  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

mór  c  depois  cm  i545,  no  presbitério,  onde  es- 
teve até  o  terremoto  que  destruiu  Lisboa  e  o 
templo  do  Carmo,  e  foi  como  o  prenuncio  da 
decadência  de  Portugal. 

Era  este  tumulo,  como  refere  Sant'Anna,  e 
o  leitor  pode  verificar  pela  gravura  da  Chro- 
nica  do  P.  Manuel  de  Sá  que  apresentamos  (i), 


(i)  Num  erudito  artigo,  publicado  pelo  Sr.  Aífonso 
d'Ornellas  no  Diário  de  Noticias  de  i  de  novembro  de 
igi6,  vem  largamente  historiada  a  serie  de  trasladações 
que  soíTreram  as  relíquias  do  B.  Nuno  Alvarez.  Como 
este  grande  admirador  e  propagador  do  culto  do  nosso 
santo  heroe  se  propõe  publicar  em  breve  as  suas  curio- 
sas investigações,  apesar  de  S.  Ex.*  me  ter  auctorizado 
a  utilizar  os  seus  manuscriptos,  não  me  atrevo  a  fazê-lo. 
Não  quero,  porem,  deixar  de  manifestar  aqui  publica- 
mente, o  meu  agradecimento  pela  amabilidade  com  que 
me  cedeu  alguns  dos  clichés  reproduzidos  e  pelas  inte- 
ressantes informações  com  que  me  foi  elucidando  na  con- 
sulta que  tive  com  S.  Ex.*  sobre  o  Estandarte  do  Con- 
destavel.  Nesta  consulta  é  que  se  assentou  a  disposição 
das  figuras  que  adornam  a  bandeira,  disposição  perfeita- 
mente análoga  á  do  sarcófago  antigo,  mas  trocada  em 
todas  as  reconstrucções  até  hoje  publicadas  por  se  ter 
collocado  a  haste  do  lado  esquerdo  do  observador.  Ora, 
de  facto,  em  todas  as  gravuras  antigas  a  haste  é  do  lado 
direito,  o  que  faz  coincidir  a  descripção  da  Chronica  de 
Fernão  Lopes  (citada  á  pag.  86)  com  a  gravura  de  Frei 
Manuel  de  Sá  e  com  o  fac-simile  do  sarcófago  que  ainda 
hoje  se  conserva.  Neste  ultimo  faltam  os  bacinetes  deante 
de  S.  Jorge  e  S.  Tiago. 


MORTE  DE  PREDESTINADO 


187 


«obra  magestosa  e  rara  que  assentava  sobre 
tres  leões,  também  de  pedra».  Tinha  de  com- 
primento doze  palmos,  e  de  altura  sete  e  meio. 
Na  face  principal  em  todo  o  quadro,  diz  o  ci- 
tado auctor,  que  o  viu  com  seus  próprios  olhos, 


Sarcófago  primitivo  de  alabastro,  destruído  pelo  terremoto  de  ijôb.  Desenho 
do  manuscrito  inédito  de  Frei  Manuel  de  Sá  ( 172 1).  —  Obsequiosamente 
cedido  pelo  Sr.  Âffonso  d'0mella8. 


«estão  com  primor  abertas  de  relevo  no  mesmo 
alabastro  as  Imagens,  que  trazia  pintadas  na 
sua  bandeira.  Nos  remates  deste  quadro  entre 
columnas  relevadas,  se  mostram  mais  dois  an- 
jos do  mesmo  artificio,  que  as  outras  imagens. 


I  88  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

tendo  cada  um  nas  mãos  seu  escudo  com  as 
armas  dos  Pereiras.  Sobre  o  tumulo  estava 
uma  estatua  jacente  do  Condestavel,  vestido 
com  o  hábito  de  donato  carmelita,  tendo  na 
mão  direita  o  báculo  e  na  esquerda  o  livro  de 
meditações,  que  sempre  comsigo  trazia.  Outra 
estatua  do  Condestavel,  vestido  de  guerreiro,  se 
encontrava  no  corpo  da  Egreja,  tcom  sete  pal- 
mos de  alto,  que  representa  o  soldado  de  pouca 
edade,  na  forma  que  costumava  sair  a  pelejar 
nas  campanhas,  vestido  de  armas  brancas,  com 
cota  de  malha,  guarnecida  em  roda  com  muitas 
cruzes  de  suas  armas. . .  Mas,  ainda  que  a  esta- 
tua se  mostra  inteiramente  vestida  com  peito, 
manoplas,  grevas  e  espaldar,  íalta-lhe  só  o 
morriâo  na  cabeça,  que  a  tem  descoberta... 
Tem,  de  mais,  espada  ácinta  e  huma  grande 
maça  de  ferro  nas  mãos».  Até  aqui  o  P.  Frei 
Sant'Anna. 

Como  dissemos,  depois  do  terremoto  de 
1755,  ficou  destruido  o  mausoléu  de  alabastro. 
Fez-se  então  uma  reproducção  em  madeira, 
onde  se  coUocaram  os  restos  sagrados  do  nosso 
Heroe  Nacional.  Este  segundo  mausoléu  conti- 
nuou a  ficar  nas  ruinas  do  Carmo  (1).  Em  i836, 


(1)  Tanto  o  fac-simiie  do  sarcófago,  como  o  da  es- 
tatua de  madeira,  se  conservam  ainda  hoje  no  Museu 
Archeologico  do  Carmo.  Neile  estão  as  inscrípções  se- 


MORTE  DO  PREDESTINADO  I  89 

depois  das  convulsões  politicas  que  occasionaram 
a  extincção  das  ordens  religiosas  em  Portugal, 
pareceu  conveniente  transportar  as  relíquias  do 
Condestavel  para  logar  mais  seguro,  e  com  ef- 
feito  foram  levadas  solemnemente  para  S.  Vi- 
cente de  Fora,  onde  ficaram  na  capella  lateral 
do  cruzeiro  da  Egreja.  Em  1906  fez-se  o  reco- 
nhecimento canónico  das  relíquias,  servindo  de 


guintes,  curiosas  por  arquivarem  uma  trasladação  que 
não  chegou  a  realizar-se: 

AQUI  REPOUSAM  OS  RESTOS  GLORIOSOS  DO  SANTO  CONDESTABRE 

D.  NUNO  ALVARES  PEREIRA 

QUE  NASCEU  EM  24  DE  JUNHO  DE    l36o  E  MORREU 

CM   I   DE  NOVEMBRO  DE    148  I 

NESTE  TUMULO  FOI  O  COFRE  DAS  SUAS  RELÍQUIAS 

PELA  PRIMEIRA  VEZ  ENCERRADO  EM  2 1    DE  MARÇO 

DE    1768  NA  EGREJA  PROVISÓRIA  DO  CONVENTO  DO  CARMO 

DE  LISBOA  ONDE  ESTEVE  ATE   I4  DE  MARÇO  DE  l836  EM  QUE  FOI 

TRANSPORTADO  PARA  A  EGREJA  DE- S.  VICENTE   DE  FORA 

ONDE  CONTINUOU  DENTRO  DO  MESMO  TUMULO  ATE  9  DE  MARÇO 

DE    1895  DIA  EM  QUE  O   DITO  COFRE  FOI  TRASLADADO  PARA 

A  CAPELA  DOMESTICA  DOS  CARDEAES  PATRIARCAS 

PARA  AGUARDAR  A  SUA  DIFINITIVA  TRASLADAÇÃO  PARA 

A  EGREJA  DE  SANTA  MARIA  DA  BATALHA  O  COFRE  COM  AS 

RELÍQUIAS  DE  NUN'aLVARES  EM  2   DE  MARÇO  DE    I918 

TRASLADADO  DA  EGREJA  DE  S.  VICENTE  DE  FORA  PARA  A  EGREJA 

DOS  JERONYMOS  ONDE  NOVAMENTE  FOI  ENCERRADO 

NESTE  TUMULO 

PARA  ESSE  EFFEITO  CEDIDO  PELA  ASSOCIAÇÃO 

DOS  ARCHEOLOGOS  PORTUGUESES 


190  VIDA  DO  BEATO   NUNO   ALVAREZ 

peritos  médicos  os  Drs.  António  Mendes  Lages 
e  Manuel  Ferreira  Cardoso.  Já  então  estavam 
ellas  na  capella  particular  do  Sr.  Patriarca, 
para  onde  tinham  sido  transferidas  em  1873. 
Depois  foram  para  o  Pantheon  da  Familia  Real 
de  Bragança;  daqui  para  a  capella  da  Ordem 
Terceira  do  Carmo,  esperando  o  dia  em  que 


Do  outro  lado  do  tumulo  está  a  seguinte  inscrípção : 

ESTE  TUMULO  DE  MADEIRA 

É  FAC-SIMIl.E  DO  DE 

ALABASTRO  FEITO  EM  FLORENÇA  NO  ANNO  DK  l53l 

QUE  FOI 

DESTRUÍDO  PELO  TERREMOTO  DE   1755 

POR  MANDADO  B  EXPENSAS 

DA 

SR.*  D.  JOANNA  DUQUEZA  DE  BORGONHA 

QUE  FOI  DEPOIS  RAINHA  DE  ARAGÃO 

4.*  NETA 

DE  D.  NUNO  ALVARES  PEREIRA 

2.»  CONDESTAVEL  DE  PORTUGAL 

MULHER  DE  FIUPE  (O  DAS  MÃOS  BRANCAS) 

DUQUE  DAQUELLES  ESTADOS 

ONDE  JAZIA  O   REFERIDO  CONDESTAVEL  NO  RIAL 

MOSTEIRO  DE  S.  VICENTE  DE  FORA 

âTÚ  PORTARIA  DO 

MINUTERIO  DO  REINO  29  DE  JULHO  DE   l865 

EM  QUE  O  MANDOU  ENTREGAR 

Á  ASSOCIAÇÃO  DOS  ARCUITECTOS  CIVIS  PORTUOLSZES 

PARA 

O  MUSEU  DB  ARCHEOLOGIA  NO 

EDIFÍCIO  GOTHICO  DO  LARGO  DO  CARMO 


MORTE  DE  PREDESTINADO  I9I 

tornem  a  ser  veneradas  no  seu,  por  tantos  títu- 
los seu,  Convento  do  Carnno,  restaurado  pelo 
amor  e  devoção  dos  portugueses  (i). 


(1)  Apesar  do  respeito  e  cosideração  que  nos  me- 
recem os  promotores  da  trasladação  das  relíquias  do 
B.  Nuno  Alvarez  para  o  grandioso  mosteiro  da  Batalha, 
não  concordamos  com  tal  idea.  A  figura  do  Santo  Con- 
destavel  é  daquellas  que  deve  estar  sempre  deante  dos 
olhos  dos  portuguezes  como  exemplo  digno  de  imitar-se. 
É  pois  da  maior  conveniência  que  tudo  o  que  a  elle  se 
refere  esteja  na  capital  da  Nação,  onde  elle  viveu  e  mor- 
reu, onde  a  cada  momento  se  imponha  á  consideração 
dos  que  trabalham  por  fazer  grande  a  Pátria,  onde  por 
assim  dizer  está  o  coração  da  nacionalidade.  Relegá-lo 
para  a  solidão  da  Batalha,  de  accesso  tão  difficultoso,  é 
contribuir  para  augmentar  o  esquecimento  em  que  jaz  o 
Condestavel  em  milhares  de  portugueses.  O  que  urge  é 
popularizar  cada  vez  mais  a  vida  de  D.  Nuno  Alvarez, 
avivar  a  sua  memoria  com  celebrações  e  festas  religiosas 
e  patrióticas,  ensinar  as  creanças  a  amar  essa  figura  tão 
profundamente  nacional.  Romarias  piedosas  e  litterarias 
aos  monumentos  que  se  ligam  á  vida  de  D.  Nuno,  opús- 
culos de  propaganda  distribuídos  profusamente  pelo  po- 
vo, e  alguma  publicação  periódica  onde  se  fosse  arqui- 
vando toda  a  documentação  que  se  refere  ao  salvador 
da  nossa  independência,  parecem-nos  meios  práticos  de 
fazer  crescer  o  culto  popular  pelo  heroe  de  Aljubarrota 
e  Valverde. 


XXII 


CULTO   NACIONAL 

O  povo  de  Lisboa  que,  logo  depois  da  mor- 
te, acciamara  Santo  ao  humilde  donato  carme- 
lita, não  tardou  em  mostrar  esse  conceito  de 
santidade  por  manifestações  religiosas,  próprias 
de  quem  é  honrado  nos  altares.  Por  outro  lado, 
Deus  Nosso  Senhor  dignava-se,  por  assim  dizer, 
approvar  esse  culto,  concedendo  graças  e  favo- 
res, e  como  premiando  a  fé  dos  devotos  lis- 
boetas. Gonta-se,  no  Agiologio  Lusitano,  que 
o  povo  abrira  um  buraco  junto  do  tumulo,  don- 
de extraía  terra  «que  era  a  pedra  bazar  da- 
quella  dourada  edade».  E  o  padre  Simão  Coe- 
lho affirma  que  já  se  não  chegava  ao  fundo 
dessa  cavidade  senão  «com  uma  cana  de  cinco 
ou  seis  palmos».  O  Infante  D.  Duarte  mandara 
collocar  uma  lâmpada  accesa  deante  dos  vene- 
ráveis restos.  Egual  devoção  teve  El-rei  D.  Af- 
fonso  V. 

Depressa  se  consagrou  um  altar  ao  Santo 
Condestabre  (era  esse  o  nome  que  teve  na  lin- 

i3 


194 


VIDA   DO  BEATO   NUNO  ALVAREZ 


guagem  corrente),  altar  cujos  principaes  ador- 
nos, diz  Sant'Anna,  eram  o  ex-votos  dos  mi- 
raculados. Nelle  se  dizia  missa  em  honra  do 
Santo,  primeiro  com  tá- 
cito consentimento  da 
auctoridade  ecclesiastica, 
depois  com  sua  approva- 
ção  clara. 

Logo  se  começaram 
a  lavrar  imagens  do  Con- 
destavel,  que  apparece- 
ram  expostas  em  algu- 
mas egrejas,  não  somen- 
te em  Lisboa,  mas  em 
outros  pontos  de  Portu- 
gal. Nos  arredores  de  Lis- 
boa e  nas  comarcas  de 
Aviz,  Sernache  de  Bom- 
jardim,  no  Alemtejo,  ha- 
via altares  consagrados 
ao  Santo  Condestavel. 
Eram  notáveis  as  ima- 
EitatiM  do  Condestavel.  qoe  se    gens  da  villa  da  Certa  e 

conwrva  ainda  na»  rninat  da     ^j^    ^OUra.    Nesta   ultima 
Egreja  do  Carmo. 

conservou-se  ate  1745; 
mas  desde  a  dominação  castelhana,  havia-se 
mudado  o  seu  nome  em  Santo  Amaro ! 

E  sabido  o  costume  português  de  fazer  ro- 
marias e  festas  aos  santos  mais  populares,  fes- 


CULTO  NACIONAL  I  95 

tas  que  não  deixam  de  ter  alguns  resaibos  de 
paganismo.  Tanto  o  Agiologio,  como  Sant'An- 
na,  referem  pormenorizadamente  estas  romarias 
e  as  coplas  que  nellas  se  cantavam.  Enumere- 
mos algumas: 

A  principal  era  no  dia  i  de  novembro,  dia 
do  seu  transito  bemaventurado.  Parece  que  Deus 
Nosso  Senhor,  levando  o  Condestavel  nesse  dia 
consagrado  a  todos  -os  Santos,  quis  que  elle  ti- 
vesse a  sua  festa  logo  desde  o  dia  da  morte. 

Na  oitava  da  Paschoa,  era  a  peregrinação 
«das  mulheres  dos  Cidadãos  de  Lisboa...  que 
se  ajuntavam  na  Capela-mór  do  Mosteiro  do 
Carmo . . .  com  seus  pandeiros,  e  adufes,  e  ou- 
tras tangendo  as  palmas  e  com  muito  prazer  e 
folgança  cantavam  e  dançavam  á  roda  donde  so- 
terrado estava,  começando  huma  das  mulheres, 
que  melhor  voz  tinha,  e  as  outras  respondiam  o 
que  ella  cantava,  e  diziam  desta  guiza»: 

GUIA,  só,  E  DEPOIS  TODOS 

No'  me  lo  digades  none  ' 

Que  Santo  he  o  Conde. 

GUIA,  só 

O  grande  Condestabre 
Nunalves  Pereira 
Defendeo  Portugale 
Com  sua  bandeira 
E  com  seu  pendone. 


196  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 


RESPONDIAM  TODOS 

No'  me  lo  digades  none,  etc. 

GUIA,  só 

Na  Aljubarrota 
Levou  a  vanguarda, 
Com  braçal,  e  cota 
Os  CastelhSos  mata, 
E  toma  o  pendone. 

TODOS 

No'  me  lo  digades,  etc. 

GtJiA,  só 

Com  sua  chegança 
Filhou  Badalhouce 
Sem  usar  davença 
Entrou  sua  torre, 
E  poz  seu  pendone. 

TODOS 

No'  me  lo  digades,  etc. 

GUIA,  só 

Dentro  no  Valverde 
Vence  os  Castelhãos 
Matou  bons  e  mãos 
Só  co'  a  sua  hoste, 
E  seo  esquadrone. 

TODOS 

No'  me  lo  digades,  etc. 


CULTO  NACIONAL  I97 

Na  oitava  de  Pentecostes  vinham  os  habi- 
tantes de  Restello  e  Belém,  trazendo  como  of- 
ferta  um  tveião,  que  era  do  pezo  d'huma  arro- 
ba». O  cortejo  que  vinha  em  batéis  bem  ador- 
nados, desde  o  sitio,,  onde  actualmente  está  o 
Mosteiro  dos  Jeronymos,  desembarcava  em 
Santos,  e  se  dirigia  com  alegres  cantares  e  folias 
ao  Convento,  onde  fazia  «sua  oraçam  bem  espa- 
çada». Depois  dançavam  em  torno  do  sepulcro 
cantando  as  seguintes  trovas: 

DIZIA   UMA.   VOZ 

Santo  Condestabre 
Boné  Português, 
Conde  darrayoles, 
De  Barcellos,  dorem. 


Santo  Condestabre 
Boné  Português. 

UMA  voz 

Na  campanha  somdes 
Alem  duaia  bez, 
E  mais  otra  bez, 
E  mais  otra  bez. 


Santo  Condestabre 
Boné  português. 


198  VIDA  DO  BEATO  NUNO   ALVAREZ 


UMA    VOZ 

Por  faison  da  Pátria 
Todo  esto  lo  fez, 
Mata  os  Castelhãos, 
Salva  a  nossa  grei, 

TODOS 

E  mais  otra  bez 
E  mais  otra  bez. 

UMA  voz 

No  me  lo  digades 
Quabondo  lo  sey 
Librou  as  obelhinhas 
Do  Leo  de  Gastei. 

TODOS 

E  mais  otra  bez 
E  mais  otra  bez. 


Outras  seguidilhas,  também  cantadas  dean- 
te  do  tumulo  de  Nuno  Alvarez,  arquivadas  por 
Sant'Anna,  são  as  que  seguem: 

VUK  voz 

Do  Restello  a  Sacavém 
Nem  ningola  nem  ninguém 
Tem  semelho  ao  Condestabre 
Que  le  pruge,  e  que  le  praze 
Ha  fagemos  tanto  bem. 


CULTO   NACIONAL  I  99 

TODOS 

E  bem,  e  bem. 

UMA  voz 

O  rapaz  das  coberturas, 
Que  morre,  e  cahe  para  traz 
Ja  non  vai  á  sepultura. 
Que  otra  vez  vive  o  rapaz : 
E  o  Conde  le  fizo  o  bem. 

TODOS 

E  bem,  e  bem. 

UMA  voz 

A'  filha  de  Joanna  Estes, 
Que  finou  por  nom  mamar. 
Ao  do  moinho  do  cubo 
Que  finou  por  se  afogar, 
Viventa  o  Conde  também. 

TODOS 

E  bem,  e  bem. 

UMA  voz 

O  mal  d'aquella  alfayata, 
A  gran  dor  de  Lopo  Affons, 
Non  les  chega  aos  corações, 
Que  o  Conde  Santo  los  guarda; 
Y  todo  por  fazer  bem. 


E  bem,  e  bem. 


200  VIPA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

UMA  VOZ 

E  bem,  Condestabre  Santo, 
Cobri-nos  com  vosso  manto 
Com  vosso  manto  de  gales, 
Defendendimento  dos  males, 
E  faganos  muito  bem. 

TODOS 

E  bem,  e  bem. 

Os  habitantes  de  Sacavém,  vinham  no  dia 
de  S.  João  Baptista,  com  uma  boa  oíferta  de 
azeite;  no  dia  da  Assumpção  de  Nossa  Senhora 
os  de  Almada,  com  muitas  candeias  e  velas. 

Como  vimos  nas  seguidilhas  referidas  em 
ultimo  logar,  o  povo  celebrava  também  os  mi- 
lagres e  graças  recebidas.  Muitos  d'elles  são 
descritos  na  Chronica  de  Sant'Anna,  que  diz 
ter  colhido  a  narração  numa  Chronica  manus- 
crita de  Gomes  Annes  de  Azurara.  Basta-nos 
indicar  apenas  o  numero  e  a  qualidade  delles: 

Resureições  de  mortos 12 

Apparíções  e  graças  singularissimas 6 

Enfermos  dox  olhos 21 

Paralíticos,  tolhidos  e  males  de  cabeça 24 

Surdos,  mudos,  doentes  de  garganta 21 

Moléstias  do  peito,  estômago  e  coração 14 

Hidropicos,  tumores 11 

Enfermidades  de  pernas  e  pés 21 

Roturas,  sciaticas,  pedra 10 


CULTO    NACIONAL  20I 

Doenças  semelhantes i6 

Febres  e  fluxos  de  sangue lo 

Perigos  do  parto 19 

Tudo  isto  refere  Sant'Anna,  cuja  Chronica 
foi  publicada  em  1745.  Já  dissemos  que  a  des- 
truição do  templo  pelo  terremoto  concorreu 
para  diminuir  bastante  o  culto  prestado  ao  Santo 
Gondestavel.  Vieram  logo  depois  as  perturba- 
ções causadas  pelas  invasões  francesas,  época 
de  grandes  e  contínuos  sobresaltos  para  a  nossa 
nacionalidade,  o  que  não  pouco  contribuiu  para 
arrefecer  o  entusiasmo  popular.  Seguiu-se-lhes 
a  revolução  liberal  com  decretos  que  extinguiam 
as  ordens  religiosas  e  encetavam  a  total  ruina 
dos  preciosos  escrinios  de  arte,  tradição  na- 
cional e  piedade,  que  eram  os  conventos.  Tudo 
isto  consumou  a  obra  que,  durante  o  jugo  cas- 
telhano, visara  a  fazer  esquecer  o  culto  pres- 
tado ao  Heroe  Nacional,  que  salvara  a  inde- 
pendência do  país.  Entende-se  bem  que  os 
castelhanos  assim  o  fizessem;  mas  o  que  não 
pode  deixar  de  merecer  profunda  condemnação 
de  todo  o  português  é  o  descuido  imperdoável 
dos  nossos  antigos  governos.  A  elles  cabe  a  prin- 
cipal responsabihdade  do  eclipse  sofrido  pelo 
culto  de  Nuno  Alvarez,  eclipse  que  em  breve 
vae  terminar. 


XXIII 


CULTO   OFFICIAL 

Vamos  agora  neste  capitulo  resumir  breve- 
mente o  Processo  do  reconhecimento  do  culto 
pela  Egreja,  acto  que  equivale  a  uma  beatifica- 
ção, e  portanto  dá  direito  á  anteposiçao  da  pa- 
lavra Bemaventurado  ou  Beato  ao  nome  do 
nosso  Santo  Gondestavel.  Não  quero,  porem, 
deixar  de  exarar  aqui  mais  uma  vez  o  meu  pro- 
fundo agradecimento  ao  meu  venerando  amigo 
Rev.  Padre  Gabriel  Wessels,  da  preclara  Or- 
dem dos  Carmelitas  Calçados,  zelosíssimo  Pos- 
tulador da  Causa  e  devotíssimo  do  Beato  Nuno 
Alvarez,  pela  singular  amabilidade  com  que  me 
communicou  uma  copia  desse  processo  com  o 
fim  exclusivo  de  servir  para  este  meu  trabalho. 
E'  pois  com  sua  plena  auctorização  que  passo 
a  resumir  o  processo. 

Como  todos  sabem,  desde  o  celebre  decreto 
de  Urbano  VIII  (1623-1644),  foi  abolido  o  cos- 
tume de  prestar  culto  aos  Servos  de  Deus,  ape- 


204  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

nas  com  licença  da  auctoridade  diocesana.  Ex- 
ceptuavam-se,  é  certo,  os  casos  em  que  tal  culto 
fosse  rendido  desde  cem  annos  antes  da  publi- 
cação do  decreto,  como  acontecia  com  o  Santo 
Condestavel,  mas  exigiam-se  certas  formalida- 
des para  o  dito  culto  ser  reconhecido  official- 
mente  pela  Egreja. 

Taes  formalidades  não  foram,  como  facil- 
mente se  compreende,  observadas  pelos  hespa- 
nhoes  dominadores;  antes  pelo  contrario,  pro- 
curou-se  que  de  Portugal  ninguém  as  lembrasse 
durante  a  época  do  seu  jugo.  Mas,  logo  em 
1641,  D.  João  IV  pediu  ao  Pontífice  que  reco- 
nhecesse a  beatificação  e  procedesse  á  canoni- 
zação. Acompanhava  o  pedido  uma  supplica  do 
Episcopado  Português.  Outra  supplica  do  mes- 
mo teor  era  dirigida  ao  Papa  por  El-rei  D.  Pe- 
dro II,  assignada  por  dez  prelados  lusitanos.  O 
texto  completo  dessa  mensagem  vem  na  obra 
de  José  Soares  da  Silva  —  Memorias  para  a 
Historia  de  Portugal.  —  Mas  desde  essa  data, 
embora  o  culto  continuasse,  como  mostram  os 
documentos  que  traz  o  processo  —  trechos  de 
historiadores  e  literatos  portugueses,  epigra- 
fes appostas  aos  retratos  e  imagens,  missas  e 
festividades,  tanto  na  Ordem  Carmelitana,como 
cm  vários  outros  pontos  de  Portugal  e  estran- 
geiro —  contudo  nenhum  passo  se  deu,  ao  que 
conste,  para  o  reconhecimento  official  da  Egre- 


CULTO  OFFICIAL  205 

ja.  Nem  quando  se  transferiram  as  relíquias 
para  o  sarcófago  de  madeira,  nem  quando  se 
transportaram  para  S.  Vicente  de  Fora,  houve 
semelhante  pedido.  Em  Lisboa  este  culto  con- 
tinuou, diz  o  Sr.  Dr.  Pereira  dos  Reis,  no  seu 
interessante  opúsculo  tO  Santo  Condestabre», 
na  capella  dos  Terceiros  do  Carmo,  onde  estava 
exposto  sobre  o  altar  á  veneração  dos  fieis  o 
painel  do  Santo  Condestabre  (i). 

Em  1871,  conforme  se  lê  no  opúsculo  «Me- 
moria sobre  a  phase  christã  do  grande  Condes- 
tavel  D.  Nuno  Alvares  Pereira»,  do  P.  José  An- 
tónio da  Conceição  Vieira,  fora  este  sacerdote 
encarregado  pelo  Rev.  P.  Frei  Angelo  Savini, 
carmelita,  de  tratar  dos  inquéritos  que  deviam 
preceder  a  beatificação  de  D.  Nuno.  Mas  tal 
iniciativa  não  teve  êxito  feliz. 

Foi  somente  em  1894  que  o  Rev.  Padre 
Anastasio  Ronci,  então  Postulador  das  Causas 
das  beatificações  e  canonizações  da  Ordem 
Carmelitana,  encetou  o  processo  do  reconheci- 
mento do  culto  do  insigne  português  que  mor- 


(i)  Em  appendlce  vae  uma  nota  sobre  as  relações  da 
Ven.  Ordem  Terceira  do  Carmo  e  o  B.  Nuno  Alvarez, 
gentilmente  communicada  pelo  Rev.  Sr.  Dr.  Pereira 
dos  Reis,  a  quem  testemunho  aqui  o  devido  agradeci- 
mento. 


206  VIDA   DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

rera  com  o  habito  religioso  do  seu  instituto. 
Delegou  a  sua  missão  de  Postulador  junto  da 
Cúria  diocesana  de  Lisboa,  onde  se  havia  de 
iniciar  o  Processo,  no  fallecido  Mgr.  Francisco 
Alçada  de  Paiva,  ao  tempo  prior  de  S.  Nicolau. 
O  Sr.  Cardeal  Patriarca,  D.  José,  nomeou  juiz 
da  causa  o  seu  Vigário  Geral,  D.  Manuel  Ba- 
ptista da  Cunha,  Arcebispo  de  Mytilene;  Pro- 
motor, o  Cónego  Ruas  de  Abreu,  e  notário, 
o  Rev.  Dr.  Simões  de  Almeida.  Constituído 
o  tribunal,  inquiriram-se  as  testemunhas  se- 
guintes : 

Rev.  Padre  Joaquim  José  de  Abreu  Campo- 
Santo,  Provincial  da  Companhia  de  Jesus  em 
Portugal. 

Rev.  Padre  Pedro  Daniel  Hickey,  da  Ordem 
dos  Pregadores. 

Rev.  Padre  José  António  da  Assumpção  Bru- 
geiros,  da  Ordem  de  S.  Francisco. 

Rev.  Padre  Bernardino  Barros  Gomes,  da 
Congregação  da  Missão. 

Rev.  Padre  Luís  José  Grappe,  da  Congre- 
gação do  Espirito  Santo. 

Rev.  Padre  Diogo  Singleton. 

Rev.  Padre  Carlos  da  Costa  Carvalho, 
Egresso  Carmelita. 

Maximiano  Paes  de  Andrade  Baeta,  da  Or- 
dem Terceira  do  Carmo. 


CULTO   OFFICIAL  20/ 

Conselheiro  Henrique  de  Barros  Gomes. 
José  Joaquim  Ribeiro. 

Álvaro  Alfredo  da  Silva  Zuzarte  de  Men- 
donça. , 

Seria  longo  referir  os  depoimentos.  Todos 
elles  foram  unanimes  em  testemunhar  a  santi- 
dade de  Nuno  e  a  antiguidade  do  seu  culto. 

Alem  disso  procedeu-se  ao  exame  dos  do- 
cumentos apresentados.  Finalmente  o  Juiz  De- 
legado deu  a  sentença  sobre  a  existência  do 
culto  immemorial  e  continuo  prestado  ao  Santo 
Condestavel.  Assigna-a  o  successor  no  cargo 
de  Arcebispo  de  Mytilene,  o  fallecido  D.  José 
Alves  de  Mattos,  e  é  datada  de  7  de  Março 
de  Março  de  1914. 

Como  explicar  semelhante  intervallo?. . .  E' 
que,  depois  da  i3.^  sessão,  ou  seja  em  6  de 
março  de  1896,  adoecia  o  notário  do  processo, 
doença  de  que  pouco  depois  morria.  Também 
os  Juizes  mudavam:  O  Sr.  D.  Manuel  Baptista 
da  Cunha  era  promovido  para  a  Sé  de  Braga, 
e  o  seu  successor  immediato  o  Sr.  D.  Manuel 
Vieira  de  Mattos  para  a  diocese  da  Guarda.  Em 
1903  fallecia  o  promotor  da  causa,  coisa  que 
não  pouco  atrasou  o  andamento  do  processo. 
Finalmente,  em  1906  resignava  o  próprio  Car- 
deal Netto,  Patriarca  de  Lisboa,  vindo  occupar 
o    seu    posto    o    actual    Cardeal   Patriarca,   o 


208  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Em. ""O  e  Rev.^o  Senhor  D.  António  Mendes 
Bello,  que  Deus  guarde  por  longos  annos.  Foi 
elle  quem,  a  instancias  do  Rev.  Padre  Wes- 
sels,  retomou  o  processo  e  lhe  deu  o  anda- 
mento necessário,  para  se  chegar  ao  feliz  termo 
a  que  chegou. 

Entretanto  promulgavam-se  em  Roma,  sob 
o  pontificado  de  Pio  X,  de  chorada  memoria, 
dois  decretos  novos,  augmentando  as  formali- 
dades canónicas  requeridas  para  o  reconheci- 
mento do  culto:  exame  dos  escritos,  etc,  etc. 
A  seguir  estas  novas  prescripções,  certamente 
o  processo  demoraria  muitissimo  tempo.  Era 
Lisboa  terminara  o  processo  diocesano,  sendo 
juiz,  como  atrás  dissemos,  o  fallecido  arce- 
bispo de  Mytilene,  D.  José  Alves  de  Mattos, 
promotor  o  Dr.  Dinis  de  Carvalho  e  notário  o 
Dr.  Pereira  dos  Reis.  Mas  os  decretos,  retro- 
mencionados  de  Pio  X,  obstavam  a  que  o  pro- 
cesso diocesano  fosse,  sem  mais,  confirmado 
pela  Sagrada  Congregação  dos  Ritos.  Também 
esta  dificuldade  desapareceu,  desde  o  momento 
em  que  foi  deferida  uma  supplica  do  Episco- 
pado Português,  em  que  se  pedia  ao  Santo  Pa- 
dre, que  aitendendo  a  ter  sido  o  processo  ini- 
ciado e  quasi  concluido,  antes  dos  referidos 
decretos,  os  dispensasse  no  nosso  caso.  A 
resposta  não  se  fez  esperar.  O  actual  Pon- 
tífice reinante  dignou-se  benignamente  acceder 


GLORIA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

POB    GONELLA 

(Reproducçáo  auctorizada  pelo  R.  P.  Wessels,  O.  C. 


CULTO  OFFICIAL  2O9 

ao  pedido,  e  a  dispensa  referendada  pelo 
Ena.™°  Cardeal  Viço,  foi  concedida  aos  14  de 
fevereiro  de  1917.  Faltava,  apenas  a  sentença 
definitiva  da  Sagrada  Congregação  dos  Ritos. 

Antes  porem  de  a  referir,  seja  nos  licito  dei- 
xar aqui  exarados  alguns  nomes  de  pessoas  que 
altamente  contribuiram  para  o  feliz  e  rápido 
despacho  duma  causa,  que  tão  cara  é  para  todo 
o  coração  português. 

Em  primeiro  logar  o  do  talentoso  diplomata, 
encarregado  então  dos  negócios  da  Santa  Sé  em 
Lisboa,  o  Ex.""°  e  Rev.i^o  Mgr.  Benedicto  Aloisi 
Masella,  hoje  Núncio  no  Chile,  e  do  seu  irmão 
o  advogado  do  processo  em  Roma,  o  Sr.  Conde 
Dr.  Adriano,  estrénuos  promotores  do  reco- 
nhecimento do  culto,  e  do  illustre  exilado  o 
Ex.""»  e  Rev.rao  Senhor  Arcebispo  titular  de 
Damietta  D.  Sebastião  Leite  de  Vasconcellos, 
que  com  o  maior  interesse  acompanhou,  seguiu 
e  estimulou  o  andamento  da  causa.  A  estes  três 
beneméritos  as  nossas  homenagens  reconheci- 
das, bem  como  ao  infatigável  Postulador,  o 
Rev.i^o  Padre  Wessels. 

Com  effèito,  aos  7  de  junho  de  191 7  era 
apresentado  á  Congregação  o  final  do  processo. 
Pouco  mais  de  um  mês  depois  propunha  o  Pro- 
motor da  Fé  Mgr.  Angelo  Mariani  as  suas  du- 
vidas e  diíficuldades,  a  que  responderam  o  mais 
satisfatória  e  triunfantemente  possível  os  advo- 

«4 


2  10  VIDA  DO  BEATO   NUNO  ALVAREZ 

gados  Sr.  Conde  Adriano  Masella  e  Sr.  Dr.  João 
Romagnoli,  em  i  de  dezembro. 

Finalmente,  aos  i5  de  janeiro  do  anno 
de  1918,  na  sessão  plenária  dos  membros  da 
S.  Congregação  dos  Ritos,  depois  dum  relatório 
admirável  e  eloquentíssimo,  feito  pelo  Cardeal 
Ponente,  o  grande  amigo  de  Portugal  e  Prote- 
ctor da  nossa  Nação,  o  Em.^io  Sr.  Cardeal  Vi- 
cente Vanutelli,  antigo  Núncio  em  Lisboa  e  be- 
nemérito do  Collegio  Português  de  Roma,  foi 
approvado  sem  votação,  por  aclamação  unanime, 
(coisa  raríssima  nos  annaes  de  semelhantes  cau- 
sas) o  reconhecimento  do  Culto  do  Beato  Nuno 
Alvarez. 

A  23  do  mesmo  mez,  Sua  Santidade  Ben- 
to XV  ratificava  a  sentença  da  Congregação 
que  era  communicada  ao  mundo  inteiío  pelo 
Decreto  Clementissimus  Deus,  cuja  traducção 
damos  em  appendice,  no  fim  deste  livro. 

Successivamente  em  Roma  e  em  Lisboa  fa- 
zia-se  com  o  maior  esplendor  possível  o  triduo 
de  festas  costumado,  como  para  iniciar  uma 
nova  era  do  culto  official.  Foi  no  triduo  de 
Lisboa,  na  Egreja  de  S.  Domingos,  ao  Rocio, 
que  pregou  pela  ultima  vez  o  fallecido  Arcebispo 
de  Évora  D.  Augusto  Eduardo  Nunes.  Era  o 
seu  canto  de  cisne,  antes  de  subir  ao  Ceu. 

Quasi  ao  mesmo  tempo  a  Santa  Sé  approvava 
a  missa  e  o  oíficio  do  Beato  que  o  leitor  encon- 


CULTO   OFFICIAL  2  I  1 

trará  em  appendice  (i).  Fazemos  votos  por  que 
elle  seja  admittido  como  obrigatório,  não  so- 
mente em  todas  as  dioceses  de  Portugal  e  seus 
Dominios,  mas  também  em  todas  as  Familias 
Religiosas  que  estiveram  ou  estão  no  nosso 
país.  Nisto  não  nos  podemos  deixar  vencer  pelo 
patriotismo  e  piedade  dos  franceses  para  com  a 
sua  Heroina  Nacional,  S.**  Joanna  d' Are,  que 
tantos  pontos  de  contacto  e  semelhança  tem' 
com  o  nosso  B.  Nuno  Alvarez. 


(i)  Arquivamos  aqui  adoração,  approvada  por  Sua 
Eminência  o  Sr.  Cardeal  Patriarca  de  Lisboa,  em  5  de 
Novembro  de  191 5  : 

ORAÇÃO 

Senhor,  que  sois  admirável  nos  vossos  Santos  e  que 
neles,  como  em  tuonumenío  da  vossa  omnipotência  e  com- 
pendio vivo  de  virtudes,  nos  revelaes  eloquentemente  a 
providencia  indefectivel  que  exerceis  sobre  as .  vossas 
creaturas,  faixei  que,  admirando  as  virtudes  excelsas  que 
em  grau  heróico  resplandeceram  no  vosso  Servo  Nuno 
Alvares,  possamos,  á  sua  imitação,  alliar  ao  amor  da 
Pátria  que  nos  foi  berço^  a  caridade  ardente  e  o  des- 
prego das  glorias  e  bens  terrenos,  de  que  nos  legou  tão 
sublimes  exemplos.  Por  Jesus  Christo  Senhor  Nosso. 
Amen 


QUADRO   Dl   D.   NUNO  ALVAREZ 

Da  caia  Poidal 

(Reprodacvio  mctorizada  pelo  Ex.**  Sr.  Conde  de  Ociru) 


XXIV 
relíquias  e  retratos 

Dez  annos  antes  do  terremoto  de  1755,  dei- 
xava Sant'Anna,  na  sua  Chronica,  uma  longa  des- 
cripção  das  relíquias  e  memorias  de  Nuno  Al- 
varez, que  nessa  época  ainda  se  veneravam  no 
Convento  do  Carmo  de  Lisboa.  Já  então  havia 
desaparecido  o  púcaro  de  madeira  em  que  be- 
bia o  Donato,  o  qual  servia  «aos  religiosos  que 
tomavam  Ordens,  de  se  adestrarem  nas  cere- 
monias  da  Missa».  Era  um  copo  modesto,  feito 
de  hera.  Um  titular  da  corte,  que  o  pediu  em- 
prestado, nunca  mais  o  quis  restituir.  Também 
se  haviam  desencaminhado  o  barrete  de  «faces» 
e  o  báculo,  com  que  o  Gondestavel  saía  á  rua. 
Da  parte  superior  era  torcido  e  «fazia  volta». 
Apenas  se  conservavam:  um  cabo  da  muleta 
de  que  o  santo  varão  se  servia  quando  «as  mo- 
léstias lhe  embargavam  o  passo»;  as  contas 
pelas  quaes  rezava;  uns  retalhos  do  seu  hábito; 
uma  carta  autografa  sua  para  o  Mestre  de  Aviz, 
e  a  espada  do  Condestavel.  «A  folha  tem  de 


2  I  4  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

largura  pouco  mais  ou  menos  de  três  dedos,  e 
está  com  diminuição  no  comprimento;  pois  para 
se  usar  delia  no  ministério,  em  que  de  presente 
serve,  foi  preciso  que  cortassem  uma  grande 
porção,  e  que  pelo  meio  a  vazassem».  Era  tra- 
dição que  essa  espada  era  a  mesma  que  fora 
corregida  pelo  alfageme  de  Santarém  «o  que, 
com  effeito,  se  conhece  pela  marca  própria  do 
referido  alfageme,  a  qual  ainda  se  distingue,  e 
vem  a  ser  uma  cruz,  com  uma  estrella  na  ex- 
tremidade da  haste  maior.  Da  parte  desta  marca 
estão  umas  letras,  que  estão  de  presente  apa- 
gadas, mas  no  tempo  daquelle  religioso  (Fr. 
Jerónimo  da  Encarnação  que  a  descreveu)  ain- 
da se  liam  e  diziam :  Excelsus  super  omnes  gen- 
tes Dominus.  Da  outra  parte  também  se  divisa 
o  sinal  da  contramarca,  que  é  uma  cruz  ílore- 
teada,  sobre  um  circulo  acompanhado  de  outras 
letras,  que  mal  se  distinguem,  mas  sabemos 
que  diziam:  Dom  Nuno  Alves.  Vêem-se  mais 
uns  caracteres  embaraçados  entre  si  que  clara- 
mente dão  a  perceber,  que  formam  o  ineffavel 
nome  de  MARIA».  O  ministério  em  que  era 
empregada  era  o  de  ser  collocada  na  mão  da 
estatua  do  Profeta  Elias,,  considerado  pelos  Car- 
melitas, como  seu  fundador.  A  ultima  infor- 
mação que  tive  sobre  o  paradeiro  desta  espada 
é  que  esteve  no  Museu  Numismático  do  Palácio 
da  Ajuda,  onde  fora  encerrada  num  estojo,  por 


relíquias  e  retratos  2i5 

ordem  de  El-Rei  D.  Luiz  I.  Fora  retirada  do 
Convento  do  Carmo  em  i834  pelo  Duque  de 
Bragança.  Tinha  i"^,C7  de  comprimento.  Está 
actualmente  no  Museu  de  Artilharia  (i). 

Quanto  ás  relíquias  propriamente  ditas,  te- 
mos informações  contemporâneas  da  maior  res- 
peitabilidade histórica.  E'  o  juizo  ou  informação 
jurada  dos  médicos  que  serviram  de  peritos  na 
invenção  ou  reconhecimento  dos  despojos  mor- 


(i)  Encontra-se  na  sala  Camões,  conservada  num 
rico  estojo,  com  a  lamina  em  bom  estado.  —  Eis  a  des- 
cripção  dada  pelo  Catalogo  do  referido  museu  (pag.  ii6): 

6.  Espada  do  século  xiv,  que  pertenceu  a  D.  Nuno 
Alvares  Pereira.  A  folha  é  direita,  de  dois  gumes  e  per- 
furada, tendo  de  ambos  os  lados  como  marca,  o  lobo  e 
cruzes.  A  largura  junto  ao  punho  é  0,06.  Os  quartões  são 
de  secção  eliptica,  curvados  nos  extremos  para  o  lado  da 
folha  tendo  ao  meio  um  escudo  terminando  em  ponta. 
Num  dos  lados  ha  um  arco,  que  tem  os  extremos  liga- 
dos aos  quartões  servindo  de  guarda  e  cujo  plano  é  quasi 
perpendicular  á  folha. 

O  pomo  tem  a  forma  ovóide  encimado  por  um  botão 
que  o  prende  á  espiga  por  meio  de  rosca. 

O  punho  é  revestido  de  uma  placa  de  cobre  onde  se 
enrola  em  hélice  um  fio  de  cobre.  O  comprimento  total 
da  espada  é  de  1,10.  Esta  espada  tinha  sido  posta  na  mão 
duma  imagem  de  Santo  Elias  pelos  frades  do  Convento 
do  Carmo  de  Lisboa,  onde  faleceu  D.  Nuno.  Daí  foi  ti- 
rada no  dia  28  de  maio  de  1834  por  ordem  de  D.  Pe. 
dro  IV.  Veiu  do  Paço  das  Necessidades  para  este  museu 
em  19  de  dezembro  de  1913. 


2  I  6  VIDA  DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

taes  do  Beato  Nuno,  feita  em  1 906.  Numa  caixa 
com  0,80  de  comprimento,  o, 33  de  altura  e  0,34 
de  largura  estavam  os  ossos.  Sobre  esta  caixa, 
forrada  de  veludo  carmezim,  estava  uma  lamina 
de  prata,  com  uns  dizeres  que  attestam  a  natu- 
reza do  seu  conteúdo  (i).  Dentro  estavam  dois 
saccos  de  linho,  diligentemente  cozidos  e  no  fundo 
alguns  Qssos  dispersos.  A  relação  dos  ossos  cor- 
respondia perfeitamente  á  que  existia,  da  tras- 
ladação que  se  fez  em  1768.  O  estudo  desse 
documento  e  o  confronto  dos  ossos  deu-lhes  a 
plena  convicção  de  que  eram  autênticos.  Eram 
elles  um  craneo  a  que  faltava  na  parte  superior 


(i)  Eis  os  dizeres  que  se  encontram  gravados  em 
duas  laminas  collocadas  sobre  a  caixa : 

Na  tampa :  Restos  de  D.  Nuno  Alvares  Pereira  re- 
colhidos de  accordo  com  o  parecer  da  comissão  official 
de  identificação  nomeada  por  portaria  do  Ministério  da 
Justiça  de  29  de  janeiro  de  1918.  Foram  encerrados  nesta 
uma  no  dia  19  de  fevereiro  de  iqi8. 

Na  parte  da  frente :  Aqui  estão  os  ossos  do  Con- 
destavel  Dom  Nuno  Alvares  Pereira  que  estiveram  na 
antiga  e  já  derrocada  Egreja  do  Carmo  e  vieram  para  a 
de  S.  Vicente  de  Fora,  sendo  accompanhados  até  esta 
Capella  de  Sua  Eminência  Reverendíssima  o  Senhor 
Cardeal  Patriarcha  de  Lisboa  pelo  Prior  Monsenhor  Joa- 
quim António  de  Sant'Anna  e  nella  collocados  em  9  de 
março  de  1895. 

A  caixa  está  fechada  com  um  cordão  preso  com  o 
sello  de  lacre  onde  se  lê :  Sig.  Comit.  pro  recognit.  exuv. 


relíquias  e  retratos  217 

e  anterior,  o  frontal  e  pequenas  porções  dos 
parietaes;  dois  fémures,  o  direito  sem  a  respe- 
ctiva cabeça  o  esquerdo  completo,  ambos  de 
dimensões  idênticas;  duas  tibias,  incompletas 
na  sua  parte  inferior;  dois  peroneus,  também 
incompletos;  um  cubito  e  um  radio  direito,  e 
ainda  outro  radio  incompleto  a  que  faltava  o 
terço  inferior.  Encontraram  mais  alguns  ossi- 
nhos envolvidos  em  linho,  com  nomes  de  San- 
tos, relíquias  que  provavelmente  foram  deposi- 
tadas no  tumulo  por  disposição  testamentária 
de  D.  Nuno.  Por  fim  acharam  outros  ossos, 
cujas  dimensões  mostravam  pertencerem  a  pes- 
soas diversas,  de  alta  estatura.  Que  o  primeiro 


Nonii  Avs.  *Pereira  MCMXyiII.  Está  ella,  como  já  le- 
vamos dito,  sobre  o  altar  lateral  da  direita  da  graciosa 
capella  da  Ordem  Terceira  do  Carmo  em  Lisboa.  Numa 
das  dependências  desse  edifício  está  também  a  urna  com 
os  restos  mortaes  da  mãe  de  D.  Nuno,  com  a  seguinte 
inscripção,  pintada  em  madeira,  ladeando  um  escudo  com 
a  cruz  dos  Pereiras:  «qui  jáz  a  muito  honrada  e  vir- 
tuosa D.  Eiria  Gonçalves  Madre  do  Santo  Conde  que 
mandou  fazer  este  mosteiro». 

Numa  lamina  de  prata  está  gravado :  «Restos  de  Iria 
Gonçalves,  mãe  do  condestavel,  recolhidos  de  accordo 
com  o  parecer  do  Commissão  Official,  etc.  Foram  trazi- 
dos para  aqui  juntamente  com  os  do  filho». 

Também  se  encontra  no  tesouro  da  Ordem  um  re- 
licário que  D.  Nuno  trazia  ao  peito,  conforme  me  infor- 
mou um  empregado  da  casa,  mas  que  não  pude  ver. 


2  I  8  VIDA  DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

grupo  de  ossos  pertença  realmente  a  Nuno  Al- 
varez, deduz-se  de  as  suas  dimensões  se  har- 
monizarem com  o  que  as  chronicas  rezam  sobre 
a  sua  pessoa.  Tal  o  veridicto  medico  (i). 

Sobre  a  pessoa  de  D.  Nuno  Alvarez,  diz  o  se- 
guinte o  P.  Frei  Simão  Coelho:  «Foi  o  Condes- 
tabre, segundo  se  mostra  por  seu  retrato,  homem 
envolto  em  carnes,  de  estatura  que  mais  hia  a 
grade  que  a  pequena:  tinha  o  aspeto  baronil; 
o  rosto  comprido  e  formoso;  era  alto  e  louro, 
tinha  os  olhos  pequenos,  mas  mui  resplande- 
centes, pouca  barba  e  cabida  para  baixo.  Foi 
muito  esforçado  e  constante,  sofredor  de  traba- 
lhos e  muy  amador  de  castidade  e  limpeza  (2)». 
O  Agiologio  copia  estas  palavras,  taes  quaes. 

Sant'Anna  refere  outra  versão  que  diz  ter 
copiado  de  Frei  Jerónimo  da  Encarnação,  o 
o  qual  a  teria  recebido  de  contemporâneos  do 
Condestavel.  E  a  seguinte:  «Foy  o  virtuoso 
Condestavel  de  meam  estatura,  teve  o  rosto 
comprido,  cor  branca,  o  nariz  afilado  e  agudento, 
os  olhos  pequenos,  mas  muy  viventos,  as  so- 
brancelhas arcadas  e  ruivas,  assim  era  o  seu 
cabello,  não  só  da  cabeça  mas  também  da  bar- 
ba, como  algumas  ruguizas  na  testa  e  nos  cabos 


(1)  Damos  em  apêndice  o  auto  completo  do  reco- 
nhecimento feito  em  igi8. 

(2)  Chronica,  pag.  91. 


relíquias  e  retratos 


219 


dos  lagrimaes,  a  bocca  pequena  com  o  seu  sem- 
brante  muy  amezurado».  Falia  o  mesmo  auctor 
dos  vários  retratos  do  Santo  que  possuía  o 
Convento.  O  mais  fiel  teria  sido  o  que  mandou 
fazer  o  conde  de  Barcellos,  seu  genro.  Estava 
collocado  entre  os  painéis  «que  ornam  o  espal- 
dar do  caixão  mayor  da  nossa  sacristia».  Havia 
outro  na  sala  do  capitulo,  etc. 


Cofre  de  veludo  vermelho  agaloado,  onde  actualmente  se  conservam  as 
relíquias  do  B.  Nunes  Alvarez. —  (Desenho  obsequiosamente  cedido 
pelo  Sr.  AfFonso  d'0rnellas. 

Um  folheto  recente,  com  o  titulo  de  Iconogra- 
fia Portuguesa  (i),  publica  as  melhores  imagens 
do  Santo  Gondestavel,  que  ainda  existem.  Desta- 
ca-se  entre  ellas  a  pintura  que  foi  descoberta  ha 
pouco  em  Oeiras,  no  palácio  dos  Srs.  Marque- 
ses de  Pombal.  O  artigo  erudito  do  Sr.  Dr.  José 
de  Figueiredo,  que  traz  o  citado  folheto,  mostra 


(i)   Fase.    I.  Nun' Alvares  organisaram  e  editaram 
Alberto  Sousa  e  Mário  Salgueiro. 


220  VIDA  DO   BEATO  NUNO  ALVAREZ 

que  este  quadro  deve  ser  considerado  como  o 
mais  autentico  de  todos  os  que  existem.  Tal 
affirmação  é  brilhantemente  confirmada  pelo 
achado  precioso  do  Sr.  Affonso  d'Ornellas. 
Trata-se  dum  desenho  á  penna  inserido  no  ma- 
nuscrito de  Fr.  Manuel  de  Sá  e  publicado  no 
Diário  de  Noticias  de  26  de  junho  de  1917.  O 
manuscrito  é  inédito.  Nelle  á  pagina  58  (como 
me  communicou  amavelmente  o  Sr.  d'Ornellas), 
vem  o  seguinte:  «A  estas  copias  ou  Imagens  do 
animo  e  religíozo  afecto  deste  raro  Heroe  S.*" 
(refere-se  ás  cartas  aos  netos  de  que  falíamos 
na  pag.  164)  se  deve  seguir  também  darmos  huma 
da  forma  em  q  era  p^*  id*  e  Habito,  com  que 
asestia  entre  os  Religiozos  deste  seu  real  Convento 
como  se  fora  professo.  He  fielmente  copiado  de 
huma  estampa  antiquíssima,  q  se  iquivoca  sendo 
copia,  com  o  original  de  colorido,  q  nelle  se 
conserva  por  verdad''^». 

Este  testemunho  valioso  vem  destruir  a  con- 
jectura do  Sr.  Dr.  Figueiredo  sobre  a  posição  da 
bocca  no  quadro  da  casa  dos  Srs.  Marqueses 
de  Pombal,  o  qual  por  especial  deferência  dos 
illustres  fidalgos,  vem  intercalado  neste  livro  e 
serviu  para  a  reconstituição  a  cores  que  vem 
no  frontispicio.  Também  reproduzimos  o  dese- 
nho do  manuscrito  de  Frei  Manuel  de  Sá. 

Confrontando  estes  dois  retratos  com  a  xi- 
lografía  da  2.«  edição  da  Chronica  do  Condes- 


relíquias  E   retratos  22  1 

tabre,  vê-se  que  estas  três  reproduções,  tão  pa- 
recidas entre  si,  fixaram  fielmente  a  fisionomia 
de  D.  Nuno.  A  bocca,  porêra,  que  no  qua- 
dro da  casa  Pombal  apparece  desviada  para  a 
esquerda,  nos  outros  dois  apresenta  o  desvio 
para  a  direita.  O  Sr.  Figueiredo,  que  atribue  o 
quadro  ao  pintor  de  D.  João  I,  mestre  António 
Florentim,  quer  explicar  o  desvio,  já  que  exclue 
erro  do  pintor,  a  algum  ataque  apopletico  que 
o  Gondestavel  tivesse  padecido.  Mas  a  represen- 
tação de  Frei  Manuel  de  Sá,  pondo  o  desvio  do 
lado  opposto,  vem  desfazer  tal  hipótese.  Além 
disto,  como  ella  era  copia  fiel  duma  «estampa 
antiquissima  que  se  iquivoca  com  o  original» 
temos  de  pôr  de  parte  a  idéa  de  esse  original 
ser  o  quadro  da  casa  Pombal,  onde  a  figura  do 
Condestavel  se  acha  um  tanto  remoçada. 

Os  mais  quadros  antigos,  como  os  dois  da 
Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa  e  os  do  Museu 
das  Janellas  Verdes,  não  teem  valor  como  re- 
presentações da  fisionomia  do  Santo  Condesta- 
vel. Os  melhores  vêem  reproduzidos  no  supra- 
citado opúsculo. 

Das  producçÕes  recentes  nada  quero  dizer,  se- 
não que  nenhuma  delias  satisfaz  ao  ideal  que  for- 
mamos sobre  a  figura  do  Santo  Gondeí^tavel.  São, 
sem  duvida,  obras  de  valor  artístico,  mas,  no  meu 
fraco  parecer,  estão  longe  de  ser  obras  primas. 

Assim,  por  exemplo,  na  sala  Europa  do  Mu- 


22  2  VIDA  DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

seu  de  Artilharia  está  uma  tela  dí  Luciano 
Freire  representando  D.  Nuno.  A  expressão  do 
rosto  do  Condestavel  é  dum  nevrotico  desvai- 
rado. O  modelo  da  estatua  feito  pela  Ex."™*  Sr.^ 
D.  Maria  do  Carmo  Vasconcellos,  e  reprodu- 
zida, ao  que  me  informara,  na  Itália,  tem  o  in- 
conveniente de  apresentar  uma  cabeça  dema- 
siado feminil.  Nos  dois  quadros  de  Gonella, 
distincto  pintor  italiano,  não  está  bem  caracte- 
rizada a  fisionomia  de  D.  Nuno.  Ambos  vão 
publicados  neste  livro.  O  da  vestição  é  lindíssi- 
mo. Admirável  o  equilíbrio  das  figuras ;  a  ex- 
pressão do  rosto  de  cada  um  dos  personagens, 
sobretudo  do  velho  e  venerando  Prior  do  Mos- 
teiro, está  muito  bem  representada.  No  outro, 
o  da  gloria  do  Beato  Nuno,  é  felicíssimo  o 
contraste  das  grandezas  terrenas  que  deixou  e 
do  habito  que  vestiu,  para  merecer  o  ceu.  No- 
tamos porem  nelle  uma  particularidade  que 
não  corresponde  á  verdade  histórica,  particula- 
ridade que  também  apresenta  a  estatua  do 
Beato,  que  se  venera  no  altar  onde  estão  col- 
locadas  as  relíquias:  referimo-nos  ao  habito 
carmelita  com  que  está  vestido  D.  Nuno,  á 
capa  branca  que  nunca  elle  trouxe,  como  o  lei- 
tor terá  já  fixado  pelo  que  atrás  dissemos  (vide 
pag.  167). 

Fazemos  votos  ardentes  para  que  surja  al- 
gum artista  português  e  fixe  na  tela  ou  no  mar- 


RELÍQUIAS  E  RETRATOS  22  3 

more  as  principaes  scenas  da  vida  de  D.  Nuno 
Alvarez,  e  muito  em  particular  a  da  oração  de 
Valverde,  e  da  sua  edificante  morte  no  Carmo 
de  Lisboa  (i). 


Algumas  linhas  sobre  a  familia  do  Gondes- 
tavel.  Sobre  a  sua  mãe,  limito-me  ao  que  traz 
Fr.  Simão  Coelho:  «A  mãe  de  Dõ  Nunalvres 
se  chamou  Eirea  Gonçalvez  do  Carvalhal,  dona 
de  muita  prudência,  que  depois  viveo  muy  re- 


(i)  Isto  escrevíamos  na  primeira  edição  deste  livro. 
Podemos  agora  registar  com  a  maior  satisfação  alguns 
passos  dados  neste  sentido  : 

O  primeiro  é  a  reconstituição  de  Nuno  de  Santa  Ma- 
ria, feita  pelo  sr.  Félix  da  Costa,  meu  amigo  especial,  e 
reproduzida  no  fronstispicio  deste  livro.  Com  incrivel 
paciência,  com  o  exame  atento  de  todos  os  retratos  e 
estatuas  antigas,  e  a  leitura  das  Chronicas,  este  notável 
pintor  moderno,  conseguiu  apresentar  um  trabalho,  que 
reputo  o  melhor  dos  nossos  tempos  pela  fidelidade  com 
que  está  reproduzida  a  fisionomia  e  o  habito  do  Donato 
Carmelita.  Orgulho-me  de  o  possuir  no  meu  oratório 
particular,  por  generosa  offerta  do  insigne  artista.  Vem 
em  seguida  a  estatua  do  Condestavel,  que  também  apre- 
sentamos entre  as  estampas  do  nosso  livro.  Foi  man- 
dada fazer  pelo  meu  amigo  Francisco  José  de  Sousa 
Tavares,  editor  desta  obra,  e  executada  pelo  escultor 
sr.  Simões  de  Almeida. 


224  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

colheitamente  e  morreu  com  muytas  mostras  de 
sanctidade,  que  foi  natural  d'Elvas.  Está  enter- 
rada na  capella  dos  fieis  de  Deus  no  moesteyro 
de  Nossa  Senhora  do  Carmo  de  Lisboa,  que  he 
a  capella  que  está  jiinto  com  a  sacristia,  em 
hua  sepultura  alta  posta  na  parede  da  banda  do 
Evangelho,  mandada  fazer  por  seu  filho  que 
ali  lhe  aprouve  de  a  enterrar.  E  agora  são  tres- 
ladados  seus  ossos  á  capella  mór  e  estam  em 
hua  sepultura  metida  na  parede  e  costas  do 
coro,  junto  á  do  Conde  seu  filho  (i).» 

Noto  aqui  que  aquelle  aprouve  de  a  enterrar 
não  quer  dizer  que  Iria  Gonçalvez  morresse 
antes  do  filho,  mas,  simplesmente,  que  o  Con- 
destavel  destinou  em  vida  a  sepultura  em  que 
devia  ficar  o  corpo  da  sua  mãe.  Na  realidade 
elia  morreu  dez  annos  depois  de  D.  Nuno. 

Como  deixamos  dito,  o  corpo  da  mulher, 
D.  Leonor  de  Alvim,  tinha  sido  depositado  na 
egreja  das  Dominicanas  de  Villa  Nova  de  Gaia. 
Mas  essa  egreja  primitiva  foi  destruida,  e  na 
nova  não  encontrei,  na  visita  que  fiz  em  outu- 
bro de  1918,  sinal  algum  da  sepultura  da  nobre 
dama.  Provavelmente  desapareceu,  como  tantas 
outras  coisas  no  nosso  país,  entre  os  escombros 
da  velha  egreja. 


(i)  O.  c,  pag.  77.  Veja-se  a  nota  da  pag.  a  17. 


relíquias   E   retratos  2  25 

Do  tempo  de  Nuno  Alvarez  ha  apenas  uma 
memoria,  que  damos  em  nota  (i).  A  filha, 
D.  Beatriz  ou  Brites,  fora  enterrada  no  coro 
baixo  da  egreja  das  Clarissas,  da  Villa  do  Con- 
de. O  seu  tumulo  está  hoje  no  meio  da  egreja 
do  referido  convento;  mascarraram  com  uma 
camada  de  estuque  o  sarcófago  antigo,  e  trans- 
portaram-no  para  o  centro  do  templo,  hoje  pro- 
fanado. 

Falta-nos,  apenas,  para  concluir,  dizer  algu- 
mas palavras  sobre  o  Convento  do  Carmo.  Está, 
como  todos  sabem,  em  ruinas,  e  serve  actual- 
mente de  Museu  Arqueológico  a  parte^das  rui- 
nas que  corresponde  á  egreja.  O  resto,  claus- 
tro, corredores,  officinas,  emfim,  o  convento, 
foi  militarizado  e  serve  hoje  de  quartel.  Sobre 


(i)  E'  a  seguinte  inscripção  : 

«Aqui  jaz  Alvarianes  Cernache  Cavaleiro  Armado 
por  el  rey  D.  João  cuja  alma  Deus  haja.  Anadel  mor  dos 
besteiros  de  cavallo  e  alferes  q  foi  na  ala  dosSnamorados 
na  batalha  real  e  em  todas  as  outras  guerras  o  coal  se 
finou  na  era  de  1462.  —  Em  o  anno  de  i7o6ise  mudou  este 
tumulo  da  igreja  velha  p.  esta  nova,  e  se  reformou  da 
forma  antiga.  Pertense  com  a  capela  colateral  de  San- 
tiago e  as  três  sepulturas  junto  ao  altarjja  António  de 
Távora  e  Noronha  Leme  Cernache  moço  fidalgo  da  caza 
de  S.  Magestade,  nono  neto  do  mesmo  Alvarianes  Cer- 
nache, senhor  do  morgado  dos  Cernaches  quejelle  insti- 
tuiu e  padroeiro  in  solidum  das  egrejas  a  elle  unidas.  De 
tudo  é  cabeça  a  capela  de  Santiago.» 

i5 


2  26  VIDA  DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

a  cella'  do  Santo,  ouçamos  o  eminente  escritor 
Visconde  de  Castilho  (i  i: 

«A  cella  onde  habitou  o  senhor  Santo  Conde, 
avô  dos  nossos  Soberanos,  amigo  do  Mestre  de 
Aviz,  pelejador  em  nome  da  Religião  e  da  Pá- 
tria, progenitor  de  todas  as  Casas  Reaes  da 
Europa,  a  sua  cella  de  Monge,  onde  elle  fugiu 
ás  grandesas  humanas,  onde  elle  meditou,  onde 
elle  orou,  essa  habitação  quasi  sagrada...  ohl 
antes  mil  vezes  a  esquecessem  as  tradições I 
Insultaram-na  de  modo  que  o  insulto  nem  se- 
quer se  pode  narrar  em  publico.  A'  letra  re- 
donda repugna-o.» 


(i)  Lisboa  Antiga— Vo].  I,  pag.  38o,  2.«-ed. 


A  bandeira  e  espada  de  D.  Nuno 

Nova  reconstituição  sobre  documentos  originaes 

(Vide  a  nota  da  pag.  186) 


DECRETO 

DIOCESE  DE  LISBOA 

CONFIRMAÇÃO  DO  CULTO  PRESTADO  DESDE  TEMPOS 
IMMEMORIAES  AO  SERVO  DE  DEUS 

NUNO  ALVARES  PEREIRA 

LEIGO,  PROFESSO,  DA  ORDEM  DOS  CARMELITAS  CALÇADOS 

CHAMADO  BEATO  E  SANTO. 

) 

Deus  clementissimo,  que  dispõe  com  próvido  e  sá- 
bio conselho,  os  tempos,  .os  acontecimentos  e  todas  as 
mais  coisas,  e  as  dirige  para  sua  gloria  e  salvação  dos 
homens,  guardou,  para  as  circumstancias  em  que  actual- 
mente se  encontram  as  condições  das  coisas  publicas  e 
da  Europa,  a  discussão  desta  prestantissima  causa  pe- 
rante a  S.  C.  dos  Ritos,  acerca  da  confirmação  do  culto 
immemorial,  prestado  ao  preclarissimo  varão,  Condes- 
tavel  do  Reino  de  Portugal,  Nuno  Alvares  Pereira,  hu- 
milde leigo  professo  da  Ordem  dos  Carmelitas  calçados, 
honra  e  ornamento  da  familia  e  da  Pátria,  como  da  Egreja 
Catholica  e  da  Ordem  Carmelitana,  o  qual  brilhou  pela 
santidade  da  vida  e  esplendor  de  virtude,  especialmente 
em  Portugal. 

Este  Servo  de  Deus  nasceu  em  Sernache  do  Bom- 
jardim  no  dia  24  de  junho  de  i36o;  recebeu  educação 
moral  e  instrucção  conveniente  e  foi  alistado  entre  os 
pagens  reaes,  e,  aos  i3  annos  incompletos,  admittido 
na  milicia  regia,  sendo  armado  cavalleiro  pela  própria 
Rainha,  tão  grande  era  a  graça  que  encontrou  perante 
os  monarcas. 

Condescendendo  com  os  conselhos  dos  pães  e  do 


2  3o  VIDA   DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

Rei,  aos  17  annos  contraiu  matrimonio  com  a  nobilissima 
D.  Leonor  de  Alvim,  de  quem  teve  dois  filhos,  mortos 
prematuramente,  e  uma  única  filha  D.  Brites,  esposa 
que  foi  do  Conde  de  Barcellos  e  primeiro  duque  de  Bra- 
gança, mãe  de  numerosa  prole  espalhada  pelo  universo. 
Pois  delia  derivam  muitos  príncipes  e  reis  da  Europa,  o 
imperador  Carlos  V  e,  nos  nossos  dias,  o  próprio  rei  de 
Portugal  D.  Manuel  II. 

Ainda  que  se  podem  narrar  muitos  exemplos  do 
saber  e  valor  militar  do  Servo  de  Deus,  das  suas  luctas  e 
victorias  para  conquistar  e  manter  a  independência  e  li- 
bertação da  Pátria,  contudo  basta-nos  indicar  apenas  al- 
guns e  instructivos. 

Desde  os  23  annos  de  edade,  em  que  obteve  o  com- 
mando  supremo  do  exercito,  ^até  aos  62  annos  (ou  seja 
até  1422),  libertou  a  Pátria  da  invasão  e  jugo  inimigo,  lu- 
ctando  com  denodo  e  valor,  razão  porque  foi  procla- 
mado heroe  invencivel  e  defensor  da  liberdade,  e  elevado 
pelo  próprio  monarca  ao  fastígio  das  honras  e  dignida- 
des do  reino. 

Os  historiadores  são  concordes  em  affirmar  que  a 
sua  força  e  valor  nas  pelejas  derivava  da  sua  fé  em  Deus 
e  piedade;  e  o  illustre  auctor  do  Agiologio  Lusitano,  que 
tão  bem  descreve  a  sua  devoção  especial  para  com  o 
Santíssimo  Sacramento  da  Eucaristia  e  a  Bemaventurada 
Virgem  Maria,  refere-nos  a  resposta  que  o  Servo  de  Deus 
costumava  dar  aos  que  notavam  a  sua  frequência  á  mesa 
Eucarística.  «Que  se  alguém  o  quizesse  ver  vencido  pre- 
tendesse afastá-lo  daquela  Sagrada  mesa  em  que  Deus 
se  dá  em  manjar  aos  homens,  porque  delia  lhe  resultava 
todo  o  esforço  e  fortaleza  com  que  vencia  e  debellava 
os  seus  contrários». 

Ha  documentos  e  provas  esplendidas  acerca  da  sua 
eximia  devoção  e  amor  para  com  a  Santíssima  Virgem, 
como  são:  a  imagem  da  mesma  Virgem  Maria  que  man- 


DECRETO  2  3 I 

dou  pintar  no  seu  pendão  de  guerra,  qual  penhor  seguro 
de  victoria;  seis  templos  (dos  sete  que  mandou  erigir) 
foram  dedicados  á  Virgem  Mãe  de  Deus;  as  missas  so- 
lenes que  ordenou  fossem  celebradas  perpetuamente  nos 
altares  desses  templos  e  os  jejuns  rigorosos  que  D.  Nuno 
observava  fielmente  em  todos  os  sabbados  do  anno  e 
nas  vigílias  das  festas  da  Senhora,  ainda  que  fossem  dias 
de  peleja. 

Não  admira  pois  que  o  Servo  de  Deus,  fosse  tão  casto 
e  piedoso,  nos  três  estados  de  solteiro,  casado  e  viuvo, 
e  que  depois  da  morte  prematura  da  esposa,  apesar  de 
ser  ainda  novo,  se  recusasse  a  contrair  segundas  núp- 
cias. Mais  ainda,  exemplo  de  pureza  e  temperança,  re- 
freava os  seus  soldados  de  quaesquer  desmandos,  com 
palavras,  prémios  e  castigos  severos,  dizendo  amiúde : 
«Que  tanto  teriam  de  victoriosos  quanto  de  honestos,  e 
o  capitão  que  não  amava  esta  angélica  virtude  entrava 
na  batalha  meio  vencido». 

Armado  destas  virtudes  e  auxílios  accometia  as  pe- 
lejas; e  attribuia,  com  grande  fé  e  devoção,  as  victorias 
alcançadas  pelo  exercito  do  seu  commando  ao  favor  de 
Deus,  por  intercessão  da  Beatíssima  Virgem  Maria. 

Este  Varão  tão  cumulado  de  honras,  troféus  glorio- 
sos e  dignidades,  depois  de  libertada  a  pátria  e  a  religião, 
pondo  a  mira  na  sua  perfeição  espiritual,  movido  pelos 
exemplos  e  palavras  de  Nosso  Senhor:  «Se  queres  ser 
perfeito...  segue-me»,  e  ajudado  pela  graça  de  Deus, 
um  dia,  suspendendo  a  espada  nas  aras  da  Virgem,  des- 
prezando as  riquezas,  prazeres  e  honrarias  mundanas, 
recolheu-se  ao  Convento  do  Carmo  que  elle  mesmo 
mandara  edificar  e  dotar,  e  no  mês  de  julho  de  1422, 
vestiu  o  hábito  de  irmão  donato,  com  pasmo  e  edi- 
ficação de  todos,  tomando  o  nome  de  Nuno  de  Santa 
Maria. 

Julgava-se  indigno  do  beneficio  divino  da   vocação 


2  32  VIDA  DO   BEATO  NUNO  ALVAREZ 

religiosa,  a  tal  ponto  que  nunca  se  pôde  conseguir  que 
abraçasse  o  Sacerdócio  ou  fízesse  profissão  de  irmão  de 
coro.  Contentou-se  sempre  com  o  humilde  officio  e  tra- 
balhos de  irmão  leigo;  mais  de  uma  vez  se  lhe  ouviu  di- 
zer; «Que  na  casa  de  Deus  tudo  é  grande  e  que  não 
viera  a  ella  para  descançar,  mas  para  trabalhar  como  os 
outros».  Só  a  vontade  dos  superiores  e  do  próprio  Rei» 
a  que  o  irmão  donato  logo  obtemperou,  é  que  impediu  a 
realização  do  seu  desejo  de  ir  para  outro  mosteiro,  longe 
de  Lisboa  e  mesmo  de  Portugal,  para  fugir  ás  visitas 
frequentissimas  que  lhe  faziam  o  povo  e  os  próceres  da 
corte  e  para  se  entregar  melhor  ao  trato  com  Deus. 

Prova-se  historicamente  que  o  Servo  de  Deus  exce- 
deu de  longe  as  glorias  obtidas  nas  armas,  pelo  exercido 
das  virtudes  religiosas  no  mosteiro  carmelitano,  e  dando 
aos  grandes  do  mundo  exemplos  de  santidade,  deixou 
aos  religiosos  norma  da  mais  austera  observância. 

Ao  completar  dez  annos  de  vida  cenobitica,  sentindo 
imminente  a  morte,  preparou-se  para  ella  com  actos 
muito  mais  fervorosos  até  o  supremo  dia.  Quando  este 
chegou,  recebeu  o  Santo  Viatico  devotissimamente,  fa- 
zendo-o  preceder  da  profissão  de  fé  católica;  depois 
foi-lhe  administrada  a  Extremaunção.  Assim  refeito  e 
robustecido,  tomando  a  vela  na  mão  esquerda  e  na  di> 
reita  o  crucifixo,  que  mirava  e  beijava  com  terníssima 
devoção,  emquanto  um  religioso  lhe  lia  a  Paixão  de 
Christo  Senhor  Nosso,  do  Evangelho  de  S.  João,  ao 
chegar  as  palavras :  «Eis  a  tua  mãe»,  entregou  o  seu  es- 
pirito ao  Creador,  no  dia  i  de  novembro  do  anno  de  143 1- 

Delineada  assim  a  vida  e  feitos  do  Servo  de  Deus, 
tratando  da  sentença  confirmativa  do  seu  culto  imme- 
morial,  deve  dizer-se  o  seguinte: 

O  processo  ordinário  de  Lisboa,  com  a  sentença  dada 
aos  7  de  março  de  1914,  foi  apresentado  á  S.  C.  dos  Ri- 
tos, e  mostra  que  o  culto  que  pública  e  ecclesiasticamente 


DECRETO  2  33 

se  prestou  ao  Servo  de  Deus  logo  depois  da  morte,  cres- 
ceu com  o  andar  dos  tempos,  perseverando  até  hoje, 
com  auctorização  dos  Ordinários.  Os  documentos  da 
Guria  Patriarcal,  da  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa,  dos 
annaes,  arquivos  e  chronistas  do  Ordem  do  Carmo,  e 
muitos  outros  argumentos,  narram  e  provam  que  a  festa 
do  Servo  de  Deus  era  celebrada  annualmente  em  um  dos 
primeiros  dias  de  novembro,  com  missa  de  Commum 
de  Confessor;  que  deantê  do  seu  tumulo  ardiam  lâmpa- 
das e  quadros  votivos;  que  lhe  foram  dedicadas  capellas 
e  altares;  que  suas  imagens  e  estatuas  com  signaes  de 
Bemaventurado  e  coroadas  de  aureolas,  eram  expostas  á 
veneração  particular  e  publica,  distribuídas  pelos  fieis, 
que  as  pediam.  Acrescem  os  reconhecimentos  e  traslada- 
ções do  seu  corpo  e  reliquias,  feitas  canonicamente  em 
i522,  1548,  1768,  i836  e  1906,  em  que  se  afirma  ter  ha- 
vido graças  e  prodigios,  operados  por  Deus  por  interven- 
ção sua  em  favor  dos  fieis  que  imploravam  seu  auxilio; 
finalmente  as  supplicas  dirigidas  á  Santa  Sé  para  a  Bea- 
tificação e  Canonização  conforme  as  leis  e  normas  se- 
guidas, pelos  reis  D.  João  IV  e  D.  Pedro  II  e  pelo  epis- 
copado português. 

Entretanto  aos  14  de  fevereiro  de  1917,  a  pedidos 
instantes  do  Em.""  e  Rev."»  Sr.  Cardeal  D.  António  Men- 
des Bello,  Patriarca  de  Lisboa  e  dos  Rev.""*  Arcebispos 
e  Bispos  de  Portugal,  e  bem  assim  do  Rev."">  Padre 
Gabriel  Wessels,  postulador  geral  da  Ordem  dos  Carme- 
litas Calçados,  dignava-se  o  Santo  Padre  Bento  XV,  at- 
^endendo  ás  circunstancias  particulares  desta  causa,  dis- 
pensar, por  decreto  da  S.  C.  dos  Ritos,  das  prescripções 
mandadas  pelo  Papa  Pio  X,  de  Santa  memoria,  com  a 
data  de  n  de  novembro  de  1912  e  3i  de  janeiro  de  igiS. 

Portanto,  como  tudo  estava  preparado,  e  nada  se 
oppunha  ao  proseguimeuto  da  causa,  em  face  das  instan- 
cias ardentes  do  Santo  Padre,  do  postulador  da  referida 


2  34  VIDA   DO   BEATO   NUNO   ALVAREZ 

Ordem  e  da  causa,  do  Prior  e  Superior  Geral  dos  Car- 
melitas, e  das  supplicatorias  de  todo  o  Episcopado  lusi- 
tano, o  Em."o  e  Rev."»  Sr.  Cardeal  Vicente  Vanutelii, 
Bispo  de  Ostia  e  Palestrina,  decano  do  Sacro  Collegio  e 
ponente  ou  relator  da  causa,  na  reunião  eíTectuada  no 
Vaticano,  em  consesso  pleno  da  S.  G.  dos  Ritos  propôs 
á  discussão  o  seguinte  quesito: 

Se  se  deve  ou  não  confirmar,  para  os  effeitos  de  que 
se  trata,  a  sentença  dojuij  delegado  pelo  Em.'^o  e  Rev.^o 
Sr.  Cardeal  Patriarca  de  Lisboa,  para  julgar  da  vera- 
cidade do  culto  immemorial  prestado  ao  servo  de  Deus 
Nuno;  ou  seja,  se  é  applicavel  ou  não  a  excepção  de- 
cretada por  S.  S.  Urbano  VJII  de  santa  memoria. 

Os  Em."*'  e  Rev.""  Padres  que  presidem  aos  Ritos, 
ouvida  a  relação  do  Em.*"*  Cardeal  Ponente,  ouvido  o 
parecer  oral  e  escrito  do  Rev.  Padre  D.  Angelo  Mariani, 
promotor  da  Fé,  e  depois  de  ponderar  tudo  accurada- 
mènte,  resolveram  responder: 

A^rmativamente,  ou  a  sentença  deve  ser  confir- 
mada, se  assim  o  aprouver  a  Sua  Santidade.  Aos  i5  de 
janeiro  de  igi8. 

Feito  depois  ao  Santíssimo  Papa  Bento  XV,  pelo  in- 
fraescrito  Cardeal  Pro-Prefeito  da  S.  C.  dos  Ritos,  o 
devido  relato,  Sua  Santidade  houve  por  confirmado  e 
retificado  o  rescrito  da  mesma  Congregação,  no  dia  23 
de  janeiro  de  1918. 

f  António  Cardeal  Vico,  Bispo  do  Porto  e 
Santa  Ru  fina,  Pro-Prefeito  da  S.  C. 
dos  Ritos. 
L  ^  S 

Alexandre  Verde 

Secretario  da  S.  C.  dos  Ritos. 


A   Í4ISSA    E    O    OFFICIO 

DIE    VI    NOVEMBRIS 

In  Festo  Beatí  Nonii  Alvares  Pereira 

GONFESSORIS 


DUPLEX  MAJUS 


(In   Civitate   Olysiponensi  duplex  II.   classis ) 


IN  MISSA 

INTROITUS.  Ps.  gi.  Justus  ut  palma  florébit,  sicut 
cedrus  Libani  multiplicábitur :  plantátus  in  domo  Dó- 
mini,  in  átriis  domus  Dei  nostri.  Ps.  ibid.  Bonum  est 
confitéri  Domino  :  et  psállere  nomini  tuo  Altíssime. 
t.  Glória  Patri.  Justus. 

ORATIO 

Deus,  qui  Beáto  Nónio  bonum  certámen  certáre  de- 
dísti,  eúmque  sui  ac  mundi  contemptórem  exímium  eíFe- 
císti :  concede  nobis  fámulis  tuis;  ut,  devíctis  mundi 
cupiditátibus,  in  ccelésti  pátria  perpétuo  gaudeámus. 
Per  Dóminum. 

Oratio  secunda  de  Oct.  Omnium  Sanctorum. 


2  36  VIDA   DO   BEATO   NUNO  ALVAREZ 

Léctio  Libri  Sapiéntiae. 

Eccli  45. 

Diléçtus  Deo  et  bominibus,  cujus  memòri^^in  bene- 
dictióne  est.  Similem  illum  fecit  in  glória  sanctórum,  et 
magnificávit  eum  in  tiroòre  intmicórum,  et  in  verbis  suis 
monstra  placávit.  Glorifícávit  illum  in  conspéctu  regum, 
et  jussit  illi  coram  pópulo  suo,  et  osténdit  illi  gloriam 
suam.  In  fide  et  lenitáte  ipsíus  sanctum  fecit  illum,  et 
elégit  eum  ex  omni  carne.  Audívit  enim  eum,  et  vocem 
ipsíus,  et  indúxit  illum  in  nubem.  Et  dedit  illi  coram 
praecépta,  et  legem  vitae  et  disciplinai. 

CRADUALE.  Ps.  36.  Os  justi  meditábitur  sapién- 
tiam,  et  lingua  ejus  loquétur  judícium.  t.  Lex  Dei  ejus 
in  corde  ipsíus :  et  non  supplantabúntur  gressus  ejus. 

Allelúia,  allelúia,  t.  Ps.  iii.  Beátus  vir,  qui  timet 
Dòminum;  in  mandátis  ejus  cupit  nimis.  Allelúia. 

In  Missis  votivis  post  Sepiuagesimam,  omissis  Alle- 
lúia, et  Versu  sequenti,  dicitur. 

TRACTUS.  Ps.  ibid.  Beátus  vir,  qui  timet  Dòmi- 
num :  in  mandátis  ejus  cupit  nimis.  t.  Potens  in  terra 
erit  sémen  ejus  :  generátio  rectòrum  benedicétur.  t.  Gló- 
ria et  divítiae  in  domo  ejus  :  et  justítia  ejus  manet  in 
saeculum  saeculi. 

In  Missis  votivis  Tempore  Paschali  omittitur  GrO' 
duale,  et  ejus  loco  dicitur : 

Allelúia,  allelúia.  t.  Ps.  ibid.  Beátus  vir,  qui  timet 
Dòminum :  in  mandátis  ejus  cupit  nimis.  Allelúia. 
t.  Os.  14.  Justus  germinábit  sicut  lilium  :  et  florébit  in 
ietérnum  ante  Dòminum.  Allelúia. 

*ii  Sequéntia  Sancti  Evangélii  secúndum  Matthaeum. 
/(>.  d. 

In  illo  témpore :  Dixit  Petrus  ad  Jesum :  Ecce  nos 
reliquimus  ómnia,  et  secúti  sumus  te :  quid  ergo  erit  no- 


IN   MISSA  237 

bis  ?  Jesus  autem  dixit  illis  :  Amen  dico  vobis,  quod  vos, 
qui  secúti  estis  me,  in  regeneratióne  cum  séderit  Filius 
hótninis  in  sede  majestátis  sua;,  sedébitis  et  vos  super 
sedes  duódecim,  judicántes  duódecim  tribus  Israel.  Et 
oronis,  qui  relíquerit  domum,  vel  fratres,  aut  sorores, 
aut  patrem  aut  matrem,  aut  uxórem,  aut  fílios,  aut  agros 
propter  nomen  meum,  céntuplum  accípiet,  et  vitam  aetér- 
nam  possidébit. 

Et  dicitur  Credo,  propter  octavam  Omnium  San- 
ctorum. 

OFFERTORIUM.  Ps.  20.  In  virtúte  tua  Domine, 
laetábitur  justus,  et  super  salutáre  tuum  exsultábit  vehe- 
ménter :  desidériura  anima:  ejus  tribuísti  ei. 

SECRETA 

Tuórum  mílitum,  Rex  omnipotens,  virtútem  corro- 
bora ;  ut,  quos  m  hujus  mortalitátis  stádio,  Beáti  Nónii 
Confessóris  tui  vita  prajclára  lastíficat ;  consummáto 
cursu  certáminis,  per  haec  qua;  oíTérimus,  immortalitátis 
bravíura  comprehéndant.  Per  Dóminum. 

COMMUNIO.  Matth.  ig.  Amen  dico  vobis,  quod 
vos  qui  reliquístis  ómnia,  et  secúti  estis  me,  céntuplum 
accipiétis,  et  vitam  aeternam  possidébitis. 

POSTCOMMUNIO 

Súpplices  te  rogámus,  omnipotens  Deus  :  ut,  quos 
tuis  réficis  sacraméntis ;  intercedénte  Beato  Nónio  Con- 
fessóre  tuo,  tríbuas  ab  hóstium  insídiis  júgiter  liberári, 
et  contra  ómnia  adversa  contínua  protectióne  muníri. 
Per  Dóminum. 


OFFICIUM 

IN  FESTO  BEATI NONII  ALVARES  PEREIRA 

CONFESSOR  IS 

DUPLEX  UAJV» 

(In  civitate  Ulissiponensis,  duplex  II  classis) 

Omnia  de  Commnni  Confestoris  noo  Pontificit  prseter  hic  notata 

IN  I  VESPERIS 

Ad  Magnif.  Afia.  Salvum  fac  pópulum  tuum,  Domi- 
ne, et  bénedic  hereditáti  tuae  :  et  rege  eos,  et  extólle  illos 
usque  in  £etérnum. 

Oratio 

Deus,  qui  beato  Nónio  bonum  certámen  certáre  de- 
dísti,  eumque  sui  ac  mundi  contemptórem  exímium  eíTe- 
<císti:  concede  nobis  fámuHs  tuis;  ut,  devictis  mundi  cupi- 
ditátibus,  in  caelésti  pátria  perpétuo  gaudeámus.  Per  Dó- 
minum. 

Et  fit  Commemoratio  Octavs. 

AD  MATUTINUM 

In  1  Nocturno  Lectionet  de  Sciiptura  occurrente. 


OFFICIUM  239 

IN  II  NOCTURNO 
Lectio  iv 

Nónius  Alvares  Pereira,  sereníssimas  famíliae  Brigan- 
tíníe  fundátor,  piíssima  fuit  educátus.  Trédecim  annos 
natus,  juxta  militarem  ritum,  solémniter  eques  creátus 
est.  Adoléscens  nobilíssimam  féminam  uxórem  duxit  : 
qua  demórtua,  ad  secundas  núptias  nullo  pacto  transíre 
vóluit.  Singulári  suas  béllicas  virtúti  christiánam  pietátem 
máxime  conjúnxit.  Ipse  enim  antepugnas,  ut  sibi  Deum 
propritiáret,  assidue  oratióni  vacábat,  suumque  corpus 
jejúniis,  disciplínis  ácriter  muníre  solébat:  insignes  au- 
tem  victórias  subínde  reportaras  a  Deo  referébat  accé- 
ptas.  In  tot  belli  angústiis  mira  pietáte  et  fidúçia  erga 
Deíparam  elúxjt :  in  cujus  honórem  étiam  post  insignes 
victórias  ad  Aljubarrótam  et  in  Valverde  relatas,  in  tem- 
plo ex  belli  manúbiis  pro  Carmclítis  (eo  quod  hic  Ordo 
prscípue  Beá  tge  Vírgini  dicátus  est)  exstrúcto,  fatálem 
gládium  suspéndit. 

B.  Desidérium. 

Lectio  V 

In  corde  generósi  hujus  milítias  Ducis  et  Cómitis 
stábilis  tam  alta  inséderat  diffúsio  cultus  Beatas  Mari£e 
Vírginis,  ut  sacram  ejus  efFígiem,  pro  felíci  dimicatiónum 
auspício  vexíllis  appictam  gérere  consuéverit.  In  pervi- 
gíliis  festórum  ejusdem  Vírginis  Deíparae  et  in  síngulis 
anni  sábbatis,  quamvis  certámini  dies  forent  distináti, 
pane  et  aqua  conténtus,  jejúnium  inviolábili  lege  servá- 
vit.  Erga  sanctíssimam  Eucharistíam  ádeo  veheménti 
devotióne  exársit,  ut  pro  ejus  glória  procuránda  et  au- 
génda,  pecúnias  plena  manu  contúlerit  ad  óleum,  ceram, 
pretiósam  supelléctilem  et  sacra  vasa  comparánda.  Quum 
in  óppidis  moram  lóngius  tráhere  cogerétur,  inter  Con- 


240  VIDA   DO  BEATO  NUNO   ALVAREZ 

frátres  societátis  sanctissimi  Sacraménti  adscríbi  satagé- 
bat.  Annuum  ejus  festum  magnificentíssimo  apparátu, 
éiíam  in  castris  constitútus,  máxima  cordis  Icetitia  cele- 
bráre  in  deliciis  hábuit.  Ad  sanctam  Communiónem,  multa 
cum  preparatiòne,  frequéntius  accedébat,  et  ab  hoc  sa- 
cro épulo,  qui  est  cibus  fórtium,  robur  et  vires  ad  inimi. 
cos  debellándos  pénitus  hauriébat. 
».  Amávit  eum. 

Leetio  vi 


Lusitániae  rebus  in  paca  compósitis,  despíciens  mun- 
dum,  qui  diu  nómini  et  virtútibus  ejus  pláuserat,  plene 
sui  victor,  rudi  indútus  túnica,  tamquam  frater  láicus  in 
Carméli  Ordincm  admítti  petívit,  ibíque  constánter  sum- 
ma  ánimi  demissione  sacerdótium  recusávit.  Ostiátim 
eieemósynas  assídue  quaerere,  viiióra  quasque  ofíícia  in 
Domo  Dei  exercére,  gratíssimum  illi  fuit.  Ter  in  hebdó- 
mada  jejúnium  servábat,  ac  duóbus  vel  tribus  Missárum 
sacrificiis  quotídie  ministráre  gaudébat :  média  autem 
nocte  ssepíssime  ad  orándum  súrgere  stúduit.  Eximiam 
in  páuperes  commiseratiónem  ac  liberalitátem,  intra  reii- 
giónis  claustra  osténdere  numquam  déstitit.  Post  novem 
religiónis  annos  sancte  peráctos,  de  sui  óbitus  die  per 
revelatiónem  Beátae  Vírginis  cértior  factus,  caelésiia  únice 
cogitáre  coepit.  Tandem  ómnibus  Ecclésiae  Sacraméntis 
rite  munítus,  in  lectiónc  Passiònis  Dómini  Nostri  Jesu 
Christi  secúndum  Joánnem  quum  ad  ea  verba  perve- 
nisset :  £cce  Mater  tua,  plácide  expirávit,  anno  Dómini 
millésimo  quadringentésimo  trigésimo  primo.  Públicum 
cultum,  eidem  háctenus  exhíbitnm,  Benedíctus  Papa  dé- 
cimus  quintus  approbávit,  atque  in  ejus  honórem  Offi- 
cium  recitári  indulsit. 

}*.  Iste  sanctus. 


OFFICIUM  241 

IN  UI  NOCTURNO 
Léctio  santi  Evangélii  secúndum  Matthsum. 
Lectio  vij  Cap.  ig 

In  illo  témpore :  Dixit  Petrus  ad  Jesum :  Ecce  nos 
reliquimus  ómnia,  et  secúti  sumus  te :  quid  ergo  erit  no- 
bis  ?  Et  réiiqua. 

Homilia  sancti  Bernárdi  Abbátis. 

Fidélis  sermo,  et  dignum  omni  acceptióne  collóquium 
Simónis  Petri  et  Jesu.  Familiáris  siquidem  et  arnica  salúti 
obediéntia  est :  sed  obediéntia  firma  et  stábilis,  quas  fun- 
dáta  est  super  petram.  Mélior  est  enim  obediéntia  quam 
victimae :  et  acquiéscere  nolle,  ut  peccátum  hariolándi 
est.  Unde  et  vitas  queque  ipse  Salvátor  praetulit  hanc  vir- 
tútem,  éligens  magis  animam  pónere  quam  obediéntiam 
non  implére.  Postremo  et  ipsum  nomen  Jesu,  quod  est 
super  omne  nomen,  et  in  quo  fléctitur  omne  genu,  Após- 
tolo teste,  obediéntiae  remunerátio  est.  Libet  proinde  sa- 
cratissimo  huic  interesse  collóquio,  et  intima  cordis  aure 
percipere  quae  dlcúntur.  Arbitror  enim  verba  lectiónis  hu- 
jus  ea  esse,  de  quibus  ad  immortálem  Sponsum  a  finibus 
terrae  clamat  Ecclésia :  Propter  verba  labiórum  tuórum 
ego  custodivi  vias  duras. 

ç.  Iste  est. 

Si  nona  Leciio  debeat  dici  de  Dominica,  du«  sequentes  Lectíones 
con)uaguntur. 

Lectio  viif 

Haec  nempe  sunt  verba,  quae  contémptum  mundi  in 
universo  mundo,  et  voluntáriam  persuasére  hominibus 
paupertátem.  Hasc  sunt,  qua;  mónachis  claustra  replent, 
deserta    anachorétis.    Hasc,  inquam,   sunt   verba,   quae 

16 


242  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

iEgyptum  expóliante,  et  óptima  quasque  ejus  vasa  dirí- 
piunt.  Hic  sermo  vivus  et  éíficax,  convértens  animas  fe- 
lici  aemulatióne  sanctitátis,  et  veritátis  promissióne  íidéli. 
Ecce,  inquit,  nos  reliquimus  ómnia. 
9.  Sint  lumbi. 

Lectio  ix 

Bene,  óptime,  et  non  ad  insipiéntiam  tibi :  nam  et 
mundus  transir,  et  concupiscéntia  ejus;  et  relinquere  hasc 
magis  cxpedit  quam  relinqui.  Reliquimus  ómnia,  et  secúti 
sumus  te.  Nimirum  quia  exsultávit  ut  gigas  ad  currénoam 
viam,  nec  curréntem  sequi  póterat  onerátus.  Sed  nec  inú- 
tilis  coi.mutátio,  pro  eo,  qui  super  ómnia  est,  ómnia  re- 
liquisse.  Nam  et  simul  cum  eo  donántur  ómnia,  et  ubi 
apprehénderis  eum,  erit  unus  ipse  ómnia  in  ómnibus,  qui 
pro  ipso  ómnia  reliquérunt  Omnia  sane  dixerim,  non  tan- 
tum  possessiónes,  sed  étiam  cupiditátes,  et  eas  máxime. 
Plus  enim  concupiscéntia  mundi  quam  substántia  nocet: 
et  haec  fugiendárum  causa  divitiárum  praecipua  est,  quod 
aut  vix,  aut  nunquam  sine  amóre  váleant  possidéri. 

Te  Deum  laudámus. 

AD  LAUDUS 

Ad  Bened.  Afia.  Gaudéte  et  lauda  te  simul  quia  con- 
solátus  est  Dóminus  pópulum  suum,  et  redémit  Jeru- 
salém. 

tt  fit  Commemoratio  OctaTc. 

IN  II  VESPERIS 

Ad  Magnif.  AHa.  Exsultávit  spirítus  meus  in  Deo  sa- 
lutárí  meo. 

Et  fit  Commemoratio  teqaentis  et  ocurm. 


ELOGIUM 

Martyrologio  inserendum 


KALENDIS   NOVEMBRIS 

Ulyssipóne  in  Lusitânia  Beáti  Nónii  Gonfessóris,  se- 
reníssimas Brigantinee  familiae  fundatóris  ;  qui,  relícta  ter- 
rena milítia,  húmilis  Frater  Láicus  Ordínis  Carmelitáni 
factus  esL 

DIE   VI   NOVEMBFIS 

Beáti  Nónii,  Ordinis  Beatas  Marias  Virginis  de  Monte 
Garmélo  Gonfessóris :  cujus  natális  dies  Kaléndis  Novém- 
bris  celebrátur. 

(Reprodnzido  da  ediçáo  do  Patríarcbado.) 


&nto  da  Identificação  das  Relíquias  feita  em  1918 


Anno  do  Nascimento  de  Nosso  Senhor  Jesus  Christo 
de  mil  novecentos  e  dezoito,  quarto  do  Pontificado  do 
Santíssimo  Padre  Bento  XV,  Papa,  aos  sete  dias  do  mês 
de  Fevereiro,  na  Sacristia  da  Igreja  parochial  de  S.  Vi- 
cente de  Fora  d'esta  cidade  de  Lisboa,  pela  uma  hora  da 
tarde,  compareceu  o  Excellentissimo  e  Reverendíssimo 
Senhor  Dom  João  Evangelista  de  Lima  Vidal,  Arcebispo 
de  Mytilene,  Vigário  Geral  do  Eminentíssimo  e  Reveren- 
díssimo Senhor  Dom  António  I,  Cardeal  iMendes  Bello, 
Patríarcha  de  Lisboa,  e  os  Excellentissimos  Senhores 
General  Thomaz  António  Garcia  Rosado,  Chefe  do  Es- 
tado-maior  do  Exercito  Português,  Doutor  Carlos  Au- 
gusto Vellez  Caldeira,  Juiz  do  Supremo  Tribunal  de 
Justiça,  Doutor  António  Aurélio  da  Costa  Ferreira  e 
Doutor  Manoel  Ferreira  Cardoso,  médicos ;  Affonso  de 
Dornellas  Cysneiros,  publicista,  comigo,  José  Manoel 
Pereira  dos  Reis,  Licenciado  em  Theologia  pela  Univer- 
sidade de  Coimbra,  Juiz  da  Relação  Patriarchal  e  Secre- 
tario da  Camará  Ecclesiastica  do  Patriarchado  de  Lisboa, 
nomeados  por  Decreto  Patriarchal  de  vinte  e  nove  de 
Janeiro  ultimo,  respectivamente  Presidente,  Vogais  e 
vogal-secretario  d'uma  Commissão  para  o  exame  e  iden- 
tificação das  Relíquias  do  Santo  Condestavel,  B.  Nuno 
Alvares  Pereira,  Religioso  Professo  da  Ordem  dos  Car- 
melitas Calçados,  do  Convento  de  Nossa  Senhora  do 
Carmo  de  Lisboa,  como  acto  preparatório  da  trasladação 
das  mesmas  Rei  quias  para  a  Igreja  de  Santa  Maria  de 
Belém. 


AUTO   DA  IDENTIFICAÇÃO  245 

Lido  por  mim,  Secretario,  o  Decreto  acima  referido, 
foi  apresentado  á  Commissão  um  cofre  de  madeira  for- 
rado de  velludo  vermelho,  guarnecido  com  galões  de 
ouro,  em  cuja  face  anterior  se  lia,  gravada  numa  chapa 
de  prata,  a  seguinte  inscripção:  «Aqui  estão  os  Ossos  do 
Condestavel  D.  Nuno  Alvares  Pereira  que  estiveram  na 
antiga  e  já  derrocada  Igreja  do  Carmo  e  vieram  para 
esta  de  S.  Vicente  de  Fora,  sendo  acompanhados  até 
esta  Capella  de  Sua  Eminência  Reverendissima  o  Senhor 
Cardeal  Patriarcha  pelo  Prior  Monsenhor  Joaquim  An- 
tónio Sant'Anna,  e  n'ella  coUocados  em  nove  de  Março 
de  1895». 

Pelo  simples  exame  se  verificou  que  este  cofre  é 
aquelle  mesmo  era  que,  no  dia  21  de  Março  de  mil  sete- 
centos e  sessenta  e  oito,  foram  encerrados  os  Ossos  do 
Santo  Condestavel,  catalogados  e  descriptos  pelos  peri- 
tos médicos,  como  consta  do  auto  de  trasladação  a  que 
nesse  dia  se  procedeu  por  Decreto  do  Cardeal  Patriarcha 
de  Lisboa,  Dom  Francisco  de  Saldanha,  e  cuja  identidade 
foi  attestada  com  juramento  solemne  pelo  Prior  e  Reli- 
giosos do  Convento  de  Nossa  Senhora  do  Carmo,  de 
cuja  Igreja  em  ruinas  se  trasladavam  as  Relíquias  do 
Santo  Condestavel  para  a  Igreja  provisória  do  mesmo 
Convento;  no  qual  cofre  as  mencionadas  Relíquias  foram 
transportadas  para  a  Igreja  de  S.  Vicente  de  Fora,  por 
Aviso  Régio  do  Ministério  da  Justiça  ao  Cardeal  Patriar- 
cha de  Lisboa,  Dom  Patricio,  que  ali  as  recebeu,  e  desta 
Igreja  para  a  Capella  Particular  dos  Eminentissimos 
Cardeaes  Patriarchas  no  edifício  de  São  Vicente  de  Fora, 
encontrando-se  desde  a  occupação,  por  parte  do  Estado, 
do  mencionado  edifício  de  São  Vicente,  em  princípios 
do  mês  de  Agosto  de  mil  novecentos  e  doze,  no  Pan- 
theon  dos  Príncipes  da  Casa  de  Bragança,  d'onde  foi  re- 
tirado, na  manhã  d'este  dia  e  para  os  effeitos  da  presente 
identifícação,  achando-se  na  dita  Sacristia  da  Igreja. 


246  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Aberto  por  efracçao  o  mesmo  cofre,  cuja  chave 
desappareceu,  foram  encontrados  quatro  envoltórios 
contendo  ossos  e  ainda  alguns  ossos  dispersos  no  fundo 
do  cofre. 

Examinados  os  envoltórios,  veriíicou-se  que  no  pri- 
meiro existiam  ossos  e  fragmentos  de  ossos  que  deveriam 
ser  Reliquias  de  Santos,  como  o  indicavam  as  inscripções 
impressas  ou  manuscriptas  que  alguns  d'elles  conserva- 
vam colladas;  no  segundo  ossos  e  fragmentos  de  ossos 
que,  segundo  o  depoimento  dos  peritos  anthropologistas 
da  Commissão,  não  podem  attribuir-se  á  ossada  do 
Santo  Condestavel,  ou  porque  denunciam,  uns,  edade 
menos  avançada  no  individuo  a  que  pertenceram,  ou 
porque  apresentam,  outros,  as  caracteristicas  de  fazerem 
parte  d'um  esqueleto  feminino;  no  terceiro  envoltório 
ossos  e  fragmentos  de  ossos  que,  segundo  o  testemunho 
dos  mesmos  peritos,  pela  sua  densidade,  contextura, 
dimensões  e  aspecto,  pertenceram  a  individuo  do  sexo 
masculino  e  de  avançada  edade  e  juntamente  um  quarto 
envoltório  em  que  havia  ossos  e  fragmentos  de  ossos 
envolvidos  cada  um  no  seu  sacco  de  panno  de  linho 
branco,  cuidadosamente  cozido  segundo  o  contorno  do 
osso  ou  fragmento  que  encerrava,  presos  todos  a  um 
envolucro  geral,  reconheceudo-se  ainda  a  existência  de 
muitos  d'estes  saccos,  ou  pequenos  envolucros,  cortados 
e  vasios  do  seu  conteúdo. 

Os  ossos  encontrados  n'este  ultimo  envoltório  cons- 
tituem uma  parte  d'aquelles  que  os  peritos,  no  exame  a 
que  se  procedeu  por  ordem  do  Eminentissimo  Cardial 
Netto,  ao  tempo  Patriarcha  de  Lisboa,  no  dia  trinta  e  um 
de  Janeiro  de  mil  novecentos  e  seis,  reconheceram  indu- 
bitavelmente como  referidos  no  auto  da  trasladação  de 
1768.  A  Commissão,  tendo  em  vista  os  relatórios  dos  pe- 
ritos de  1906,  agora  confirmados  pelo  vogal  Doutor  Fer- 
reira Cardoso,  considera  os  ditos  ossos  como  pertencen- 


AUTO  DA  IDENTIFICAÇÃO  247 

tes  á  ossada  do  Santo  Condestavel;  outro  tanto  julga  a 
respeito  de  um  fragmento  de  illiaco  encontrado  no  ter- 
ceiro envoltório,  fora  do  seu  envolucro  vazio,  a  cujo 
contorno  exactamente  se  ajusta. 

Os  ossos  encontrados  no  terceiro  envoltório,  pelas 
circumstancias  de  este  conter  o  quarto  e  de  n'elle  se 
achar  o  fragmento  de  illiaco  acima  mencionado,  julga  a 
Commissão,  com  probabilidade  pouco  distante  da  certeza 
completa,  que  todos  hajam  sido  extrahidos  dos  saccos 
ou  pequenos  envolucros  ora  vasios,  devendo  assim  con- 
siderar-se,  embora  sob  ligeira  reserva,  como  pertencendo 
á  ossada  veneranda  do  Santo  Condestavel. 

O  que  tudo  a  Commissão  affirmou  ser  conforme  á 
verdade,  sob  juramento  aos  Santos  Evangelhos,  prestado 
nas  mãos  do  Excellentissimo  e  Reverendíssimo  Arcebispo 
de  Mytilene. 

Assim,  deliberou  a  Commissão  que  os  ossos  do  quarto 
envoltório,  como  identificados  sem  a  menor  duvida,  fos- 
sem encerrados  n'um  cofre  de  ferro  nikelado,  em  cujo 
interior  se  guardará  uno  escripto  contendo  essa  indica- 
ção. Em  cofre  igual  resolveu  encerrar  os  ossos  do  ter- 
ceiro envoltório,  acompanhados  de  um  escripto  donde 
constará  a  identificação  sob  reserva. 

O  que  se  effectuou  n'uma  subsequente  sessão,  reali- 
zada aos  onze  dias  do  mez  de  Fevereiro  de  mil  novecen- 
tos e  dezoito,  na  mencionada  Sacristia  da  Igreja  de  S.  Vi- 
cente de  Fora,  sendo  presentes  as  mesmas  pessoas  refe- 
ridas no  começo  d'este  auto. 

Os  restos  do  Santo  Condestavel  e  os  ossos  que  com 
toda  a  probabilidade  Lhe  são  attribuidos,  envoltos  em 
estofo  de  seda  branca,  foram  encerrados  separadamente 
nos  dois  cofres  de  ferro,  pela  maneira  acima  descripta, 
fechando-se  em  seguida  os  ditos  cofres,  os  quaes  foram 
ligados  com  cordão  de  seda  vermelho,  e  sellados  com  o 
sello  próprio  da  Commissão,  pendente  em  caixa  de  metal- 


248  VIDA   DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Os  mesmos  cofres  foram  fixados,  com  grampos  de 
ferro  parafusados,  no  fundo  da  urna  ou  cofre  antigo  de 
madeira  forrado  de  velludo  vermelho,  no  interior  do  qual 
se  deixará  o  presente  auto,  depois  de  assignado  e  sellado, 
em  tubo  de  folha  de  Flandres,  sellado. 

A  referida  urna  será  fechada  com  chave  e  ligada 
com  cordão  de  seda  vermelho,  sellado  com  o  mesmo 
sello  próprio,  pendente  em  duas  caixas  de  metal,  nas 
faces  anterior  e  posterior  da  mesma  urna,  que,  assim 
fechada  e  sellada,  aguardará  a  trasladação  que  d'ella  se 
fará  para  a  igreja  de  Santa  Maria  de  Belém,  onde  as  Re- 
liquias  gloriosas  do  Santo  Condestavel  repousarão,  até 
que  definitivamente  sejam  trasladadas  para  a  igreja  de 
Santa  Maria  da  Batalha,  se  assim  fôr  ordenado. 

Para  constar  se  lavrou  o  presente  auto,  que  vai  ser 
assignado  por  todos  os  Excellentissimos  Vogaes  d'esta 
Comissão,  depois  do  Excellentissimo  e  Reverendíssimo 
Arcebispo  de  Mytilene,  Delegado  do  Eminentíssimo  e 
Reverendíssimo  Senhor  Dom  António  I,  Cardeal  Mendes 
Bello,  Patriarcha  de  Lisboa,  aos  onze  de  Fevereiro  de 
mil  novecentos  e  dezoito. 

E  eu,  José  Manoel  Pereira  dos  Reis,  secretario,  o 
subscrevi  e  assigno. 

f  João,  Arcebispo  de  Mytilene 
Thoma^  António  Garcia  Rosado 
Carlos  Augusto  Vellej  Caldeira  Castel-Branco 
Manuel  Ferreira  Cardoso 
Affonso  de  Domellas  Cysneiros 
António  Aurélio  da  Costa  Ferreira 
José  Manuel  Pereira  dos  Reis. 

(Da  Vida  Catholiea,  n."  61,  pag.  393,-6) 


IMAGEM  DO  BEATO  NUNO  QUE  SE  VENERA  NA  CAPELLA 
DA  ORDEM  TERCEIRA  DO  CARMO  (lISBÔa) 


A  Yen.  Ordem  Terceira  do  Carmo  e  o  B.  Nuno  Alvarez 


A  Venerável  Ordem  Terceira  de  Nossa  Senhora  do 
Monte  do  Carmo  é  em  Lisboa  e  no  paiz  a  mais  lídima 
representante  da  tradição  do  Santo  Condestavel,  sendo 
como  é  originariamente,  fundação  sua. 

Os  Terceiros  Carmelitas  de  Lisboa  são  ainda  hoje  a 
familia  espiritual  de  Nun'Alvares,  orgulhando-se  justa- 
mente da  sua  illustre  e  santa  ascendência. 

A  Venerável  Ordem  Terceira  foi,  nos  seus  inicios, 
uma  simples  Confraria  do  Escapulário^  transformada  em 
Ordem  por  auctoridade  do  Papa  Xisto  IV,  datando  de 
i6  de  Junho  de  i665  o  seu  primeiro  compromisso,  appro- 
vado  pelo  Provincial  e  Geral  da  Ordem  dos  Carmelitas, 

Das  origens  da  Confraria  dá  testemunho  um  valioso 
manuscripto  arrecadado  no  Archivo  da  V.  O.  T.,  copia 
do  século  xvm  do  original  que  se  perdeu  e  que  era  cer- 
tamente anterior  a  i665,  data  da  transformação  da  Irman- 
dade em  Ordem  III. 

Transcrevemos  o  titulo  do  manuscripto  e  a  noticia 
que  nelle  se  encontra  da  fundação  da  Irmandade  do  Es- 
capulário. 

REFORMA  —  DO  —  COMPROMISSO  —  DA  IRMANDADE  DE  N.  S. 

—  DO  VENCIMENTO — DO  MONTE  DO  CAR  —  MO,  ESTABELECIDA 

—  NO  REAL  CONVENTO  DA  —  MESMA  SENHORA  —  DESTA  CIDADE 

—  DE  USBOA. — 

Legenda  frontispicial  dentro  de  um  escudete  orna- 
mental setecentista,  encimado  por  uma  coroa  de  conde 
rudimentarmente  desenhada . 


2  5o  VIDA  DO  BEATO  NUNO   ALVAREZ 

(fl.  6)  Introducção.  Foi  erecta  esta  Irmandade  e 
confraria  denominada  do  Bentinho,  pello  Servo  de  Deos 
o  Conde  D.  Nuno  Alvarez  Pereira,  Magnânimo  Fundador 
deste  Convento,  logo  que  despois  que  para  elle  vierão 
aquelles  devotos  Relligiosos,  que  mandou  buscar  do  de 
Moura:  sendo  aprovada  pelo  Senhor  Rey  D.  João  o  i." 
de  gloriosa  memoria;  que  a  instancia  do  venerável  Fun- 
dador, a  tomou  debaixo  de  sua  protecção:  e  confirmada 
por  D.  Frey  Gomes,  Bispo  Titular  Eborense  (?)  actual 
Prior  do  dito  Convento  e  Vigário  Geral  de  toda  a  Ordem 
com  Authoridade  Apostólica  em  Portugal...  (fl.  6,  v.). 
Foram  os  primeiros  irmãos  desta  Irmandade  os  criados 
do  Venerável  Conde,  a  saber:  O  seu  Mordomo,  Estri- 
beiro.  Medico,  Gentilhoroens,  dos  quais  descendem  mui- 
tas familias  Illustres  destes  Reynos;  e  he  tradição  cons- 
tante que  o  Venerável  Conde  os  mandava  servir  em  os 
dias  festivos  no  Altar  de  Acólitos  e  Thuriferarios,  por 
serem  naquelle  tempo  poucos  os  Relligiosos  que  havia  no 
Convento  para  satisfazer  ás  obrigações  daquelles  Minis- 
térios,. . .  e  como  o  Venerável  Conde  viveu  muitos  annos 
entre  os  mesmos  Relligiosos:  he  sem  duvida  que  aquel- 
les Irmãos  e  criados  seus  o  haviam  de  acompanhar  nos 
mesmos  actos,  para  os  quais  os  conduzia  o  seu  virtuoso 
exemplo. 

(Nota  communicada  pelo  sr.  Dr.  Pereira  doa  Reia.) 


ILLUSTRAÇÕES 


NA  CAPA 

Vista  das  minas  da  Egreja  do  Carmo  (interior). 
Bandeira  e  espada  do  Condestavel.  Ambos  estes 
desenhos  são  do  Sr.  Alfredo  Moraes. 

FORA  DO  TEXTO 

Nuno  de  Santa  Maria  —  Reconstituição  feita  pelo 

Sr.  Félix  da  Costa. 
Vestição  de  D.  Nuno,  por  Gonella. 
Vista  geral  do  Mosteiro  da  Batalha. 
Estatua  de  D.  Nuno,  pelo  Sr.  SimÔes  d' Almeida 

(sobrinho). 
Gloria  do  Beato  Nuno  Alvarez,  por  Gonella. 
Imagem  do  Beato  Nuno  que  se  venera  na  Gapella 

da  Ordem  Terceira  do  Carmo. 

NO  CONTEXTO 

Pag. 
Armas  de  Portugal,  da  Ordem  do  Carmo  e  de 

D,  Nuno 17 

Brazão  de  D.  Nuno  Alvarez  Pereira 35 

Espada  do  Condestavel  D.  Nuno  Alvarez 43 

Espada  de  D.  João  1 61 

Elmo  de  D.  João  I jS 

Frontaria  da  Egreja  do  Carmo,  antes  do  terre- 
moto   93 

A  pá  da  padeira  de  Aljubarrota 109 

Fac-simile  em  madeira  do  tumulo  de  D.  Nuno.. .  114 

A  caldeira  de  Alcobaça i25 


252  VIDA  DO  BEATO  NUNO  ALVAREZ 

Pag. 

O  convento  do  Carmo,  visto  da  parte  oriental.. .  141 

A  capella  de  S.  Jorge 1 56 

Altar  da  Egreja  do  Carmo,  desenho  dum  manus- 
crito inédito  de  Fr.  Manuel  de  Sá i65 

Nuno  de  S.  Maria,  desenho  dum  manuscrito  me- 
dito de  Fr.  Manuel  de  Sá lyS 

Tumulo  de  D.  Nuno,  desenho  dum  manuscrito  iné- 
dito de  Fr.  Manuel  de  Sá 187 

Fac-simile  em  madeira  da  estatua  de  D.  Nuno. . .  194 

Quadro  de  DNuno  Alvarez,  da  casa  Pombal . . .  212 
Caixa  de  velludo,  onde  se  conservam  as  relíquias 

do  Beato  Nuno  Alvarez 219 

Bandeira  e  espada  de  D.  Nuno  Alvarez 227 


índice 


Pag. 

Introducção 7 

Capitulo          I — O  Escudeiro  da  Rainha 17 

»               II  —  Na  corte  de  D.  Fernando 25 

u              III — Vida  de  familia 33 

»             IV  — O  soldado 41 

»               V  — Estreia  na  guerra 49 

»              VI — Paz  inesperada Sj 

»             VII — O  fim  duma  dinastia 65 

»            VIII — A  revolução 73 

»              IX — Fronteiro-mór  do  Alemtejo 83 

»               X — Atoleiros 91 

»              XI — Rei  novo 99 

»             XII — Aljubarrota  CPre/wí/105) 107 

»           XIII —Aljubarrota  (A  Batalha) u5 

»           XIV — Valverde I23 

»            XV  —  Guerra  oífensiva i3i 

»           XVI — O  fim  da  guerra  —  Paz  defini- 
tiva   139 

»          XVII — Contrariedades 147 

■        XVIII  —  O  adeus  ao  mundo i55 

»           XIX— Na  sombra  do  claustro i63 

»            XX — Nuno  de  Santa  Maria 171 

»           XXI — Morte  de  predestinado 181 

»         XXII  —  Culto  Nacional 193 

»        XXIII  —  Culto  official 2o3 

»        XXIV — Relíquias  e  retratos 2i3 

Decreto  do  Reconhecimento  do  culto 229 

Missa  e  officio  do  B.  Nuno  Alvarez 235 

Auto  da  identificação  das  reliquias  feito  em  19 18  244 

A  Ven.  Ordem  Terceira  do  Carmo  e  o  B.  Nuno.  249 

lUustrações 25 1 


Nihil  obstat 
Ulisipone,  die  2  januarii  1919 

Sac.  J.  M,  Pereira  dos  Rkis 
Cens.  dep. 


Imprimi  potest 

Ulisipone,  die  10  octobris  1921 

f   JOANNES, 
Archiepiscopus  Mytilenensts 


Nihil  obstat 

Komae,  die  21  Januarii  1919 

Carolus  Salotti 
a.  Cons.  Adv.  S.  R.  Congreg.  Adtessor 


000  061